Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 8
Enquanto Layla fitava os três machos, tremia tanto que era difícil manter o tronco ereto, longe do chão. O que lhe outorgava as poucas forças de que dispunha? Lyric e Rhamp estavam em seu colo, as dobras do roupão os envolvia como proteção contra o frio do quarto, o choro deles tinha sido silenciado... por enquanto.
Concentrando-se no Rei, quis enxugar os olhos, mas não soltaria os filhos nem por um segundo.
– Ela andou se encontrando com Xcor – Qhuinn desabafou, sua respiração saindo em nuvens brancas. – Pelas nossas costas. Esse tempo todo, enquanto estava grávida. Quero privá-la do direito de ver meus filhos, e também que ela saia desta casa. Tanto faz que ela seja sentenciada à morte ou banida... Isso é você quem decide.
O rosto cruel e aristocrático de Wrath se virou na direção do Irmão.
– Obrigado por me dizer qual o meu papel, babaca. E se está se referindo a banimento, neste instante, é você que me vem à mente, não ela.
– Imagine descobrir que Beth está dormindo com o líder do Bando de Bastardos enquanto ela...
– Cuidado com suas palavras – Wrath rosnou. – Está andando numa corda muito fina, da qual está prestes a cair. Na verdade, saia daqui. Quero conversar com Layla a sós.
– Não vou deixar os meus filhos.
O Rei relanceou para Blay.
– Tire-o daqui. Esganado, se for preciso...
– Tenho meus direitos! – Qhuinn exclamou. – Eu tenho...
Wrath movimentou o quadril para a frente.
– Você só tem a porra do que eu te conceder! Sou seu dono, fodidão, então feche a matraca e saia da porra deste quarto. Cuido de você quando eu achar que é a sua vez. Entendo que está com a cabeça quente, e até tentaria respeitar isso se você não agisse como dono do mundo. Mas, neste instante, minha única preocupação são os seus filhos, porque, evidentemente, eles não estão no seu radar...
– Como diabos você pode dizer isso...
– Porque você acabou de apontar uma arma para a mahmen deles!
Ao lado de Qhuinn, Blay parecia ter estado em contato próximo com a morte. Sua expressão era um misto de horror e tristeza, suas mãos tremiam ao passá-las repetidas vezes pelos cabelos ruivos.
– Sou o Rei, esta é a minha casa. Tire-o daqui, Blay. E isso é uma ordem.
Blay cochichou algo inaudível para Qhuinn. Em seguida, Qhuinn marchou para fora do quarto, os coturnos esmagando o carpete coberto de gelo. Enquanto ele prosseguia, Blay o acompanhou, como um guarda-costas faria.
Só que Blay, na verdade, estava protegendo os demais presentes.
Quando restaram apenas Wrath e a Escolhida, Layla inspirou tão fundo que doeu.
– Permite-me colocar os bebês no berço, meu senhor?
– Tá, tá. Faça o que precisa fazer.
Parecia que suas pernas estavam desprovidas de ossos, e com a fúria dissipada, ela temia não ter forças para ficar de pé e carregar os dois em segurança ao mesmo tempo. Foi difícil decidir quem deixar de lado por enquanto, mas, no fim, colocou Rhamp com cuidado sobre o tapete oriental. Segurando Lyric com os dois braços, esforçou-se para ficar de pé e caminhar aos tropeços até o berço. Depois de depositar Lyric no ninho macio, voltou para apanhar Rhamp, que havia começado a se agitar com a ausência da irmã. Ajeitando as cobertas ao redor deles para mantê-los aquecidos, preparou-se para enfrentar o Rei.
– Posso me sentar? – sussurrou.
– Sim, é melhor mesmo.
– Não há nada diante dos seus pés, meu senhor. Se desejar avançar pelo quarto.
Ele ignorou a tentativa dela quanto a ajudá-lo a navegar em sua cegueira, em território desconhecido.
– Quer me explicar o que diabos está acontecendo aqui?
Qhuinn não conseguia se lembrar de absolutamente nada.
Ao se dirigir até a sala de estar do segundo andar, no lado oposto da mansão, ele tentava juntar a série de eventos, porque isso lhe dava outra coisa para fazer além de gritar. Seu último instante de clareza foi aquele em que quase derrubou a porta de entrada para entrar na casa. Tudo a partir daquela fração de segundo, até o momento, enquanto ele andava ao redor dos sofás de seda e das mesinhas auxiliares – era uma tábula rasa.
E quanto mais se esforçava para se lembrar, mais indefinível tal hiato na realidade se tornava, como se a perseguição tornasse a vítima mais ligeira.
Mas que diabos, não estava conseguindo pensar. Não conseguia...
Indistintamente, percebia que Blay o observava. E então o macho começou a falar. Mas só o que Qhuinn conseguia fazer era circular, dando voltas na mobília, com a necessidade premente de proteger os filhos mantida como o principal objetivo que exigia toda a sua concentração.
O que diabos Wrath faria? Por certo, o Rei não permitiria que Layla... Saído sabe-se lá de onde, Blay se empostou diante dele, com o rosto impassível e as costas aprumadas.
– Não consigo fazer isto.
– Fazer o quê?
– Ficar no mesmo cômodo que você nem por mais um minuto.
Qhuinn piscou.
– Então saia. Estou desarmado, lembra? E tem uns mil quilos de Irmandade pairando ao redor daquele maldito quarto.
De outro modo, sim, ele ainda estaria ali. Com seus filhos.
– Pode deixar – Blay murmurou. – Vou para casa ver como a minha mahmen está.
Quando as sílabas atingiram o ar entre eles, Qhuinn precisou de um minuto em meio à salada do seu cérebro para decifrá-las. Casa...? Mahmen...? Ah, verdade. O tornozelo dela.
– Ok. Tá bem.
Blay continuou onde estava. E depois, num tom baixo, disse:
– Você vai sequer se importar se eu voltar, ou não, antes do amanhecer?
Quando houve uma batida de coração de pausa, o macho retrocedeu, meneando a cabeça ao seguir para a saída. Qhuinn notou a partida dele – e uma parte sua sabia que deveria chamá-lo, para se reconectarem... impedi-lo de sair. Mas outra porção muito maior sua estava de volta àquele quarto, à procura de agarrar os fios de lembranças do espaço em branco que havia tomado conta dele.
Jesus... Havia mesmo disparado uma arma na mansão? Com seus filhos no quarto...
– Qhuinn?
Ele voltou a se concentrar na sala. Blay estava na soleira, com os olhos estreitados e o maxilar travado.
O macho pigarreou.
– Só para que você e eu estejamos de acordo em relação a um ponto, eu nunca serei capaz de tirar o que você disse da minha cabeça. E o mesmo vale para a cena de você com aquela arma na mão.
– Pelo menos um de nós vai se lembrar – Qhuinn murmurou.
– Como que é?
– Não consigo me lembrar de nada.
– Ah, pare com isso. – Blay apontou um dedo na direção dele. – Você não pode apagar aquela cena alegando amnésia momentânea.
– Não vou discutir com você sobre isso.
– Então não temos muito para dizer um ao outro, né?
Quando Blay apenas o encarou, Qhuinn sacudiu a cabeça.
– Olha só, sem querer te desrespeitar, a vida dos meus filhos é só no que eu consigo pensar agora. Layla não é quem eu pensei que fosse, e ela...
– Para a sua informação, você acabou de me dizer que eu não sou pai. – A voz de Blay saiu dura, como se estivesse tentando esconder a dor. – Você me olhou nos olhos e me disse que as crianças e a mãe delas não eram da minha conta.
Num eco distante, nas profundezas da consciência de Qhuinn, surgiu um ódio ainda ardente. Mas foi um fio ao qual ele não conseguiu se apegar. Só o que queria fazer era voltar para o quarto e apanhar o filho e a filha, e sair dali. Não se importava para onde iria...
Blay praguejou.
– Não espere por mim. Não vou voltar.
E dessa maneira, Qhuinn ficou sozinho.
Fantástico. Agora o seu relacionamento também estava na merda.
Inclinando-se para o lado, Qhuinn espiou através da soleira da porta, mas mais para tentar avaliar se ainda havia Irmãos no corredor das estátuas. Sim, os guerreiros pairavam por ali – até parece que alguém iria sair? Mesmo com a ordem de Wrath para manterem distância?
Eles muito provavelmente dormiriam do lado de fora da droga daquele quarto, protegendo uma fêmea que não merecia isso...
Em seguida, Qhuinn se deu conta de que tinha um abajur nas mãos, e segurava o vaso oriental modificado como se fosse um bastão de beisebol. E, vejam só, pelo visto, ele tinha decidido lançá-lo em si mesmo, pois estava diante de um dos espelhos de antiguidade, seu reflexo distorcido no velho vidro espelhado.
Parecia um monstro, uma versão de si mesmo que fora processada nas engrenagens de um pesadelo, o rosto cerrado como um punho, as feições contraídas de um modo que mal as reconhecia. Observando, soube sem sombra de dúvida que, caso atirasse o abajur, acabaria destruindo a sala inteira, arrancando quadros da parede, quebrando janelas, tirando brasas acesas da lareira e jogando-as sobre os sofás, para formar uma fogueira de verdade.
E não pararia por ali.
Não pararia até que alguém o obrigasse, quer mediante correntes ou por meio de uma ou duas balas.
Estranhamente, seus olhos pararam no fio que pendia da base do abajur, a cauda marrom como a de um cachorro nervoso implorando por perdão e clemência por algo que não fazia a mínima ideia de ter feito.
O corpo inteiro de Qhuinn tremia ao depositar o abajur de cristal no chão.
Bem quando se endireitava, deu de cara com a janela e antes que conseguisse pensar duas vezes, foi até ela, entreabriu-a e fechou os olhos.
Mas não conseguia se desmaterializar. Não tinha nenhum lugar em mente, ele...
Não, espere. Tinha, sim, um destino. Claro que tinha a droga de um destino.
De repente, tranquilizou-se e se concentrou, desmaterializando-se para o lado externo da mansão, desejando ter agido de maneira mais fria. Se tivesse, talvez sua desforra tivesse sido evidente mais cedo.
Ao reassumir sua forma, o perfume dos pinheiros era pungente no ar invernal, e o vento passava por entre as árvores, suscitando o gemido dos pinheiros. A caverna para a qual se dirigira apresentava uma abertura escondida por rochas, mas se você soubesse o que estava procurando, não teria problemas em encontrá-la. Do lado de dentro, avançou rapidamente até a os portões da Tumba, e quando acionou o mecanismo para deslizar as paredes de granito, encontrava-se perfeitamente composto diante dos portões de ferro, com um sorriso tranquilo no rosto, como cal sobre uma cerca apodrecida.
– Estou aqui para a troca de turno – exclamou ao sacudir o metal antigo.
Torcia silenciosamente para que, só para variar, as novidades não tivessem se espalhado com tanta velocidade entre os membros da Irmandade. Que o Irmão do turno não tivesse consultado o celular, ou que todos na casa ainda estivessem tão envolvidos na situação que não tivessem pensado em mandar uma mensagem de texto para o encarregado do momento.
Phury apareceu no corredor iluminado por tochas; o som dos seus coturnos ecoava no piso de pedras, em meio aos jarros dos redutores.
– Ah, oi – cumprimentou o Irmão. – Tudo bem?
Sob a vacilante luz alaranjada, não havia nenhum sinal de suspeita, nenhum alarme no seu rosto, nada de olhos estreitados. Nenhuma mão à procura do telefone para chamar por reforços. Zero tensão, como se o guerreiro estivesse preparado para defender sua posição mesmo com os portões fechados.
– Tudo ótimo – Qhuinn respondeu como se tentasse não prestar atenção a quanto tempo o cara demoraria para se deslocar até ele. – A não ser pelo fato de eu estar cobrindo o turno de Lassiter hoje.
Phury parou junto ao portão e apoiou as mãos no quadril, o que causou em Qhuinn um ímpeto de gritar.
– Deixe-me adivinhar – disse o outro Irmão. – Maratona de Super-gatas.
– Pior. Uma retrospectiva de Maude. Bea Arthur é sexy, pelo visto. Vai me deixar entrar?
O Primale pegou a chave de cobre.
– A propósito, ele está acordado.
O coração de Qhuinn começou a bater forte.
– Xcor?
Como se pudessem estar se referindo a outra pessoa...
– Embora não muito comunicativo, está consciente. Mas nada de interrogatórios, ainda. V. teve que arrancar Tohr daqui e depois Butch saiu quando eu cheguei. – Phury abriu o portão e foi para o lado.
– E você conhece o esquema. Dois de nós temos que estar presentes para arrancar alguma coisa dele, e eu não posso ficar. Fiquei de encontrar Cormia nos Grandes Campos. Você tem um reserva ou vamos esperar cair a noite para começar a diversão?
Uma ironia, na verdade. Todos se preocuparam que Tohr poderia enlouquecer e acabar com aquele pedaço de carne antes da hora.
Mas isso não seria mais um problema, não é?
Qhuinn soltou o ar que esteve prendendo e tomou o cuidado de não entrar com afobação.
– Blay viria comigo, mas teve de ir ver a mahmen dele.
Quando trocaram de lugar, Phury lhe entregou a chave, que ele quase guardou no bolso.
– Opa, desculpe. Você vai precisar disto. Verdade, ouvi que ela caiu. Como está o tornozelo?
Qhuinn estava tão distraído pelo objeto que lhe foi colocado na mão que perdeu o fio da conversa. Que diabos eles...
– Melhor – Qhuinn se ouviu dizer ao fechar o portão e trancá-lo. – Mas ele ia providenciar alguém para cobrir o turno dele.
– Eu ficaria se pudesse.
Qhuinn observou de longe enquanto girava a maçaneta ornamentada para a esquerda, de modo que a tranca se ajustasse no lugar...
– Qhuinn?
Ele se sacudiu mentalmente e certificou de demonstrar uma expressão agradável – algo com o qual suas feições normalmente já não estavam acostumadas, mesmo sem a crise atual.
– Oi?
– Você está bem? Não parece.
Num gesto exagerado ao afastar os cabelos para trás e ao ajeitar a jaqueta, revirou o ombro – e quis saudar essa parte de sua anatomia por ter emitido um crec! bem sonoro.
– Pra falar a verdade, este ombro está me matando. – Pôs a mão nele para massageá-lo. – A doutora Jane acha que vai ter de operá-lo, para limpar o osso. Mas não é nada grave, é um crônico gradual, não agudo. Se alguma coisa acontecer com esse pedaço de carne daqui – apontou para trás, eu aguento.
Phury xingou.
– Já passei por isso. Não estou preocupado com você. Sei que dá conta do recado. Quer que eu passe na mansão para ver se Z. pode vir pra cá?
– Não, Blay vai encontrar alguém. Mas obrigado.
Pelo amor de tudo o que havia de mais sagrado, será que ele poderia parar de jogar conversa fora? A qualquer segundo, o telefone do Irmão poderia tocar com uma chamada ou mensagem para informá-lo que Qhuinn não deveria em hipótese alguma ficar a cerca de trezentos metros do prisioneiro...
– Tchau. – Phury se virou e levantou a mão. – Boa sorte com ele.
– Ele bem que vai precisar – Qhuinn sussurrou para as costas do Irmão, que se distanciavam.
CAPÍTULO 9
Em sua cegueira, Wrath estava tanto mais isolado como também mais conectado com o mundo do que os indivíduos que enxergavam: isolado, porque a ausência de pistas visuais do seu ambiente significava a permanência na flutuação numa galáxia de escuridão, e mais conectado porque seus outros sentidos estavam amplificados no seu eterno céu noturno, dentro de si, estrelas de informações pelas quais ele se guiava.
Portanto, ao ficar de frente para Layla, enquanto essa lhe contava toda a história, percebeu e acompanhou todas as nuances, as variações no cheiro e no tom de voz, em cada movimento desenhado por ela, até mesmo na pressão do ar entre eles quando o humor da Escolhida passou da raiva para a tristeza, do arrependimento para a culpa.
– Então Xcor localizou o complexo – Wrath concluiu – ao rastrear seu sangue. Foi assim que ele fez?
Houve um leve rangido na cama quando ela ajustou a divisão de seu peso sobre o móvel.
– Sim – respondeu com suavidade. – Eu o havia alimentado.
– Certo, na primeira noite. Quando Throe a enganou, levando-a até aquela campina. Ou aconteceu de novo depois disso?
– Voltou a acontecer.
– O seu sangue estava nele – Wrath repetiu. – E ele seguiu o sinal até aqui.
– Xcor prometeu que, se eu continuasse a vê-lo, ele não atacaria o complexo. Argumentei comigo mesma que estava protegendo a todos nós, mas a verdade é que... eu precisava vê-lo. Eu queria vê-lo. Foi horrível, ficar presa entre meu coração e minha família. Foi... terrível.
Maldição, Wrath pensou. Não haveria uma saída fácil da situação.
– Você cometeu um ato de traição.
– Cometi.
Wrath se esforçara muito para reverter muitas das Antigas Leis restritivas e impiedosas, abolindo sanções como a escravidão de sangue e a servidão contratual, e também estabelecendo processos básicos adequados para as ofensas entre os civis. Mas a única coisa à qual ele ainda aderia era a traição à Coroa, que era punida com a morte.
– Por favor – ela sussurrou –, não me afaste dos meus filhos. Não me mande para o Fade.
Ela dificilmente podia ser considerada uma inimiga do Estado. Mas cometera um crime muito sério – e sua cabeça estava latejando.
– Por que precisava ver Xcor?
– Eu me apaixonei por ele. – A voz da Escolhida saiu impassível, sem vida. – Não tive nenhum controle sobre isso. Ele sempre foi bem gentil comigo. Muito educado. Nunca fez um avanço em minha direção – e quando eu o fiz, ele me rejeitou, mesmo diante da clara evidência de que... que não era indiferente a mim. Ele só parecia querer estar comigo.
– Tem certeza de que ele não estava mentindo?
– Sobre o quê?
– Sobre saber a nossa localização.
– Não, não estava. Eu o vi na propriedade. Eu o encontrei... dentro da propriedade. – E falou mais rápido, com uma súplica fervorosa invadindo-lhe a voz. – Então, ele tem honra, pois poderia ter atacado, mas escolheu não fazê-lo. Manteve sua palavra, mesmo depois que me mandou ir embora e nunca mais procurá-lo.
Wrath franziu o cenho.
– Está me dizendo que foi ele quem terminou?
– Sim. Ele me expulsou e abandonou o chalé no qual efetuávamos nossos encontros.
– E por qual motivo ele teria agido assim?
Estabeleceu-se uma longa pausa.
– Eu o confrontei em relação aos seus sentimentos por mim. Eu sabia que ele sentia algo, e... Mas, sim, foi depois disso que ele me mandou embora.
– Há quanto tempo foi isso?
– Pouco antes de ele ser capturado. E sei por que ele pôs um fim a tudo. Ele não queria se sentir vulnerável ao meu lado.
Wrath franziu a testa e cruzou os braços diante do peito.
– Convenhamos, Layla, não seja ingênua. Não pensou nenhuma vez que talvez o motivo tenha sido ele enfim ter mobilizado tropas e informações o suficiente para promover um ataque aqui?
– Como? Não estou entendendo.
– Xcor trabalhou sem cessar junto à glymera para formar alianças contra mim. Antes e depois de botar uma bala na minha garganta. – Quando ela arfou, ele normalmente teria parado por ali. Mas a realidade não podia ser ignorada. – Se pretendia atacar uma fortaleza como esta, ele precisaria de meses e meses de vigilância e planejamento. E precisaria de um exército bem armado. Teria de juntar insumos e equipamentos. E está me dizendo que você não cogitou, nem por um momento, que ele continuava a usá-la só para ganhar tempo? E que talvez a tenha dispensado porque estava finalmente pronto?
A voz dela ficou estridente.
– Depois que ele me mandou embora, fiquei confusa e triste, mas refleti muito. Sei que o que ele sente por mim é real. Analisei seus olhos. Enxerguei esse sentimento.
– Não seja romântica, ok? Não no que se refere à guerra. Aquele maldito é um assassino frio e implacável, e usou você. Você é como todo o resto para ele. Um instrumento para ele chegar onde quer. Tire essa venda, fêmea, e caia na real.
Houve um longo silêncio, e ele praticamente conseguia escutar o funcionamento de suas reflexões.
E, em seguida, ela disse num fio de voz:
– À parte de tudo isso... O que vai fazer comigo?
Enquanto Xcor ouvia as vozes ao longe no corredor, testou as amarras, apesar de saber que nada havia mudado e ele continuava preso ali, junto à maca. E então captou o cheiro de outro macho, ouviu passadas pesadas se aproximando, sentiu a agressividade que beirava a ira.
Era chegada a sua hora. O acerto de contas; e ele não sobreviveria.
Ao mexer braços e pernas uma vez mais, descobriu que suas forças eram mínimas. Mas era assim que a situação se apresentava. Talvez significasse uma morte mais rápida, e isso não deixava de ser certa bênção.
O rosto que entrou em seu campo de visão lhe era bem conhecido: os olhos que não combinavam – um azul, outro verde –, feições endurecidas, e cabelos negros que fizeram Xcor sorrir um pouco.
– Me acha engraçado? – Qhuinn exigiu a resposta num tom afiado como a sua adaga. – Imaginei que fosse receber seu assassino com outra expressão que não um sorriso.
– Ironia – Xcor comentou, rouco.
– Destino, filho da puta.
Qhuinn dirigiu-se ao aço que prendia o tornozelo esquerdo de Xcor, os puxões fizeram-no franzir a testa em confusão – e, quando a pressão se esvaiu, ele se esforçou para levantar a cabeça. O Irmão seguiu para o tornozelo direito para libertá-lo... depois subiu para os pulsos.
– O que... faz... – Não conseguia entender os motivos para ser libertado. – Por que...
Qhuinn deu a volta pela cabeça e soltou a última das amarras.
– Porque quero que seja uma luta justa. Sente-se, caralho.
Xcor começou a se mover com lentidão, dobrando os braços e depois levantando os joelhos. Depois de ter permanecido de costas por sabe-se lá quanto tempo, todos os seus músculos se atrofiaram e havia uma rigidez inerente às juntas que o fez pensar em galhos de árvore sendo partidos. Mas era incrível como estar na iminência de um ataque fazia com que você superasse as barreiras da dor.
– Você não... – Gemeu ao se apoiar nos cotovelos, as vértebras estalaram ao longo da coluna – ... nem vai me perguntar...
Qhuinn ajustou sua posição de combate a um metro e meio de distância – os punhos erguidos, o peso apoiado nas coxas.
– Perguntar o quê?
– Onde estão meus soldados?
Desde que sua consciência tinha sido notada pelos seus captores, todos os tubos e fios haviam sido desconectados do seu corpo, e as máquinas que o mantiveram vivo foram retiradas, a não ser pelo acesso intravenoso no braço. Por instinto, ele o arrancou e deixou um buraco sangrando.
– Isto não se trata do Bando de Bastardos.
Com isso, o macho o atacou, desferindo um soco de direita tão certeiro e violento que se assemelhou a ser atropelado por um carro bem no rosto. Sem energia, sem coordenação e com um corpo nu que não respondia a comandos mais complexos do que apenas respirar e piscar, Xcor virou a maca. Em pleno ar, tentou agarrar o que podia para aplacar sua queda – e apanhou a beirada da maca, derrubando-a por cima do seu corpo.
Qhuinn atacou o escudo, apanhou-o e jogou-o por cima do ombro como se não pesasse mais do que um travesseiro. O baque, quando a maca atingiu prateleiras e jarros, foi tão alto como se uma bomba tivesse sido detonada no corredor iluminado pelas tochas.
– Seu filho da puta! – Qhuinn berrou. – Cuzão maldito!
Xcor se sentiu suspenso pelos cabelos, e as pernas não tiveram nem a chance de falhar sob o peso corpóreo, visto que seguiu o mesmo curso do leito hospitalar – voou em pleno ar, chocou-se contra uma seção de prateleiras, e os jarros amorteceram-lhe a queda como o cascalho o faria.
Quando ele aterrissou num fardo, o chão de pedras rachou sua pelve como se fosse vidro, ou pelo menos assim pareceu. Então, Xcor rolou de costas, na esperança de conseguir uma postura defensiva com as mãos.
Qhuinn saltou sobre o adversário, com uma bota em cada lado do tronco dele. Agachando-se, o Irmão exclamou:
– Ela estava grávida dos meus filhos! Jesus Cristo, você poderia ter matado eles!
Xcor fechou os olhos ante a imagem nítida de Layla, e seu corpo em progressiva transformação, como resultado do filho de outro macho – o filho desse macho – crescendo dentro dela. E outras imagens piores surgiram em sua mente... o da pele nua dela revelada para o toque de outro macho, seu cerne precioso penetrado por alguém que não ele, uma cópula acontecida entre ela e outro.
Do nada, uma fonte de energia ressurgiu em seu corpo, como gasolina a invadir o que antes era um motor seco.
Desprovido de um pensamento consciente, ele escancarou as presas, os caninos se projetaram por conta própria, o cheiro da sua vinculação em constante expansão rumo ao alvo que mataria apenas com as mãos.
As narinas de Qhuinn se inflaram e ele ficou imóvel, tamanha a sua supresa.
– Só pode ser a porra de uma brincadeira... Você se vinculou a ela, maldito? – O Irmão começou a gargalhar, lançando a cabeça para trás; na sequência, porém, deixou de lado a descontração do momento e escarneceu: – Bem, eu a atendi no cio. Pense nisso, filho da puta. Fui eu quem a possuiu e quem aliviou seu sofrimento de um jeito que só os machos...
A parte mais selvagem de qualquer vampiro tomou conta de Xcor, um ato dilacerador sobre o manto claustrofóbico da fraqueza, expondo o guerreiro em seu sangue, o assassino em sua medula.
Xcor saltou e atacou o Irmão com tudo o que tinha dentro de si, acertou Qhuinn e lançou ambos em uma confusão até a parede oposta e suas prateleiras. As posições mudaram quando Qhuinn o empurrou e socos foram desferidos. Era evidente que Xcor estava atrapalhado e poderia ser facilmente dominado, mas tinha a vinculação ao seu lado, a necessidade masculina de proteger e defender, o ciúme inato, o sentimento de posse sobrepujante produzindo-lhe uma força vital para atacar até subjugar o competidor.
Enquanto brigavam, seus pés esmagavam os jarros quebrados, Xcor sangrava no nariz e arrastava uma das pernas como peso morto, mas atingiu Qhuinn com a cabeça e usou todas as forças para empurrar o oponente. Enquanto Qhuinn se precipitava em direção aos equipamentos médicos, Xcor mantinha os braços em busca do equilíbrio que não conseguia encontrar, e saltou para a frente. Seu objetivo era aterrissar sobre o Irmão e bater nele até que perdesse os sentidos.
Mas, como um guerreiro treinado que era, Qhuinn conseguiu girar no meio da queda livre e, de alguma forma, endireitou-se a tempo de plantar as botas no chão e agarrar um dos monitores. Girando o equipamento pesado num círculo, lançou-o contra Xcor, como se fosse uma rocha.
Sem tempo para se abaixar – não com a parca coordenação que detinha no momento –, o impacto fez com que Xcor perdesse o ar e o equilíbrio: o ar foi forçado para fora dos pulmões e o equipamento médico o atingiu na lateral. No entanto, após um ínfimo segundo de recuperação, lançou-se a um rolamento defensivo, pois Qhuinn havia apanhado outro equipamento, que dessa vez era mais largo.
Qhuinn suspendeu o exaustor no alto, e Xcor sabia que configurava um alvo grande e lento demais, de modo que o Irmão não erraria a mira.
Por isso, atacou o macho ao invés de escapar dele. No último instante, Xcor se deitou, empurrou o chão com a palma e mobilizou cada músculo que tinha para lançar a parte inferior do corpo num movimento em arco, as pernas formaram um círculo...
... que tirou os pés de Qhuinn debaixo de si.
Enquanto o Irmão caía, o exaustor escorregou-lhe das mãos e caiu sobre ele. Ao se deparar com o xingamento e o grunhido, era possível inferir que o contato tinha ocorrido em um ponto vulnerável.
De fato, ele se enrolou sobre si mesmo como se as entranhas tivessem sido comprometidas.
Uma fração de segundo. Xcor tinha uma fração de segundo para pensar além da sua reação de macho vinculado e analisar a luta a partir da lógica. Por sorte, não havia muito em que pensar. Mesmo com a vinculação correndo nas veias, a derrota era iminente.
E quando se enfrenta um oponente que se sobrepõe a você, o que se deseja é sobreviver, então o passo é recuar e mandar o ego para o inferno.
Bloodletter lhe ensinara isso. À força.
Com Qhuinn se reerguendo de quatro e amparando a lateral do corpo, Xcor disparou, com seus pés ensanguentados, para então tropeçar e cair por cima do leito derrubado, passando por cima dos escombros dos jarros dos redutores e dos corações pútridos e rançosos que estiveram dentro deles. Não podia correr; seus passos mais se assemelhavam aos de um bêbado, fazendo-o andar torto; a cabeça girava mesmo apesar da certeza de que as tochas e as paredes estavam imóveis.
O mais rápido que conseguia. E depois ainda mais.
Ele seguiu o mais rápido que um macho imobilizado pelos inimigos durante semanas a fio conseguiria.
Era o equivalente a afirmar que ele parecia estar passeando. Qhuinn, no entanto, tinha sido gravemente ferido. Um olhar de relance por cima do ombro mostrou que o Irmão vomitava sangue.
Xcor seguiu em frente, com um breve otimismo incitando-o avante. Só que acabou confrontando um problema de tamanha magnitude que sua ineficiência em se deslocar com agilidade se tornou um problema pequeno.
Sob a iluminação das tochas, ele avistou os portões pesados logo adiante, constituídos de barras grossas de ferro incrustadas nas rochas da caverna – e eles tinham uma malha de aço sobre elas, tão fina que se desmaterializar através dela seria impossível.
Xcor arfava, sangrava, suava e tremia ao se aproximar e testar a resistência da barreira com seus braços patéticos. A barreira era sólida como as paredes da caverna. Nenhuma surpresa.
Olhando para trás, viu Qhuinn se levantar, sacudir a cabeça como que para clareá-la e encontrar um foco absoluto.
Como um predador faz com sua presa.
O fato de o queixo do macho escorrer sangue, que lhe cobria o peito, parecia um presságio do futuro.
Infelizmente, ele não sobreviveria a isso.
CAPÍTULO 10
Enquanto Layla aguardava o pronunciamento de Wrath sobre a sua punição, ela sequer conseguia engolir devido ao medo, à vergonha e ao arrependimento.
Incapaz de ficar parada, porém sem conseguir se levantar da cama, ela desviou o olhar da figura implacável do Rei – só para se deparar com os buracos das balas no gesso, no alto do canto mais distante. A náusea lhe subiu pela garganta, uma onda de queimação vil. Com a raiva dispersa, ela não conseguia mais imaginar o ódio que sentira, mas não tinha dúvidas do quanto tinha agido movida pela emoção. Assim como Qhuinn.
Santa Virgem Escriba, iria vomitar.
– Não ordenarei a sua morte – Wrath anunciou.
Layla exalou ao relaxar.
– Ah, muito, muito obrigada, meu senhor...
– Mas você não pode ficar aqui.
Ela se endireitou quando o coração passou a bater forte.
– E os bebês?
– Criaremos algum esquema de visitação ou...
Com um salto da cama, ela levou as mãos à garganta como se estivesse sendo estrangulada.
– Não pode me separar deles!
O semblante do Rei, tão aristocrático e poderoso, não lhe ofereceu uma centelha de piedade ou misericórdia.
– Não pode mais ficar aqui. Xcor não sobreviverá ao que faremos com ele, mas Throe se alimentou de você, e mesmo que isso tenha acontecido há algum tempo, simplesmente não é seguro. Presumimos que o mhis seria forte o bastante para nos proteger, mas evidentemente não é verdade, e é um risco de segurança em escala catastrófica.
Layla tropeçou à frente e caiu de joelhos aos pés de Wrath, juntando as mãos numa súplica.
– Eu juro, nunca quis que nada disso acontecesse. Por favor, imploro seu perdão, não tire meus filhos de mim! Obedecerei a qualquer outra ordem, eu juro!
Ela sabia que os Irmãos, que estavam no corredor, haviam se aproximado uma vez mais e ouviam a uma distância discreta, mas não lhe importava que a vissem se descontrolar. Wrath, contudo, sim. Relanceou por cima do ombro.
– Para trás. Estamos nos entendendo aqui – o Rei ladrou.
Não, não estamos, ela pensou. Não estamos nada bem aqui.
Houve uma breve agitação; em seguida, ela não via mais ninguém no corredor – e Wrath voltou a se concentrar nela, a inspiração profunda movendo as narinas.
– Sinto o cheiro das suas emoções. Sei que não está mentindo em seu relato e no que acredita. Mas há vezes em que as intenções são irrelevantes e esta é uma delas. Você tem que ir agora...
– Meus filhos!
– ... ou providenciarei que a levem.
Enquanto suas lágrimas caíam, ela quis gritar, mas não havia o que discutir. Ele tinha razão. Xcor a encontrara e seguira até em casa, e quem haveria de garantir que Throe não poderia imitá-lo? O sangue de Layla era tão puro que os efeitos de rastreamento poderiam durar anos, décadas, talvez até mais – apesar de ter alimentado o macho apenas uma vez. Por que ela não pensara nisso? Por que eles não pensaram?
– Está extinguindo meus direitos parentais? – perguntou, rouca.
O horror de perder os filhos era tão grande que ela mal conseguia traduzir seu medo em palavras. Em todos os seus piores pesadelos, jamais tinha cogitado que chegariam a esse ponto. Jamais havia considerado que as consequências poderiam ser tão devastadoras.
Mas, em retrospecto, quando se está em rota de colisão direta, não é possível catalogar exatamente a extensão dos ferimentos vindouros – ainda mais quando se está no meio de manobras evasivas para tentar impedir o acidente.
O destino a colocara ali.
Suas escolhas, também.
Não havia como negociar com nenhum dos dois.
– Não – Wrath disse abruptamente. – Não a excluirei. Qhuinn odiará a decisão, mas não é problema meu.
Layla fechou os olhos, as lágrimas saindo por eles, emaranhando-se com os cílios.
– A sua piedade desconhece limites.
– Bobagem. E agora você tem que partir. Tenho propriedades seguras e providenciarei o transporte. Comece a aprontar as malas.
– Mas quem ficará com eles? – Virou-se na direção dos berços. – Meus filhos... Ah, Santa Virgem Escriba...
– Qhuinn ficará com eles. E depois tomaremos providências para que você os visite. – O Rei pigarreou. – É assim... que tem que ser. Tenho que pensar nas outras crianças da casa... Diabos, agora mesmo estou pensando se não devo ordenar uma evacuação completa da mansão. Jesus, não faço a mínima ideia do motivo de ainda não nos terem atacado.
Ao se imaginar dormindo longe de Lyric e Rhamp, não alimentá-los durante o dia, não ser a responsável por trocá-los, acalentá-los e banhá-los, ela mal conseguiu respirar.
– Mas somente eu sei do que eles precisam, e eu...
– Diga seu adeus, e depois Fritz...
– Mas que diabos aconteceu aqui?
Quando Wrath se virou para trás, Layla fungou e levantou o olhar. O Primale estava parado junto à porta quebrada, as sobrancelhas de Phury abaixadas sobre os olhos amarelos, o corpo envolto em armas e cheirando a pinheiros e ar fresco.
– Você está bem, Layla? – ele perguntou, preocupado ao entrar e contornar Wrath. – Santa Virgem Escriba, mas... Isso são buracos de bala? Quem diabos descarregou uma arma aqui? As crianças estão bem?
– Foi Qhuinn quem deu uma de dedo rápido no gatilho. – Wrath cruzou os braços diante do peito e balançou a cabeça. – Os bebês estão bem, mas ela tem que ir embora. Talvez você possa ajudar a tirá-la daqui?
Phury virou a cabeça na direção do líder, os cabelos multicoloridos balançando na altura dos ombros.
– Do que está falando?
O Rei foi eficiente ao resumir a história entre ela e Xcor – e não usou as palavras traição, deslealdade nem punição com a morte, e também não foi preciso. Tudo isso e muito mais estava implícito, embora Wrath não tivesse repassado toda a história.
Phury o interrompeu antes do fim.
– Então é por isso que ele apareceu!
– Xcor a estava usando, sim...
– Não! Qhuinn! Caralho! – Phury levou os dedos à boca e assobiou tão alto que Layla teve de cobrir as orelhas. E depois ele começou a falar rápido. – Qhuinn acabou de aparecer no sanctum sanctorum! Ele me disse que cobriria o turno diurno de Lassiter e... merda, ele disse que estava esperando um reforço. Ele não me pareceu bem, por isso pensei em parar aqui a caminho dos Grandes Campos, para me certificar de que o substituto providenciado por Blay fosse para lá de imediato...
– Não! – Layla gritou. – Ele não pode ficar sozinho com...
– Ele vai matar Xcor – Wrath estrepitou. – Maldição...
Zsadist, o gêmeo idêntico de Phury, passou pela soleira, já prendendo o cinto das armas.
– Chamou?
Wrath praguejou.
– Puta merda, ele vai matá-lo. Vocês dois, vão agora! Eu chamo Vishous.
Enquanto os Irmãos e o Rei saíam, Layla foi para o corredor, atrás deles. Mesmo que não houvesse nada ao seu alcance – ou obrigações – para fazer, estava envolvida em pesadelos.
Assim como todos eles.
Junto ao portão da caverna, Xcor deu as costas a Qhuinn, que mancava e sangrava, e puxou as grades, colocando em prática seu instinto de sobrevivência. Não que fosse o suficiente.
– Vou te matar, maldito – Qhuinn praguejou, rouco. – Com as minhas mãos. E depois vou comer o seu coração enquanto ele ainda estiver quente...
Xcor ia se virar para articular sua defesa do ataque quando algo reluziu na chama da tocha e o motivou a ficar bem parado onde estava. A princípio, não conseguia acreditar no que lhe havia chamado a atenção. Foi tão inesperado que mesmo a perspectiva de morte certa não bastou para distraí-lo.
Ele fechou os olhos, sacudiu a cabeça e depois ergueu as pálpebras, arregalando os olhos como se, assim, conseguisse enxergar melhor.
Do lado oposto de onde estavam as dobradiças do portão... havia uma tranca. E tão certo quanto o sol se põe no Oeste, parecia haver a projeção de uma chave para fora do mecanismo.
Ante o som de arrasto do avanço desigual de Qhuinn, que se aproximava, Xcor esticou a mão trêmula e girou a peça de metal pesada para um lado... depois para o outro...
A fechadura emitiu um som e, de repente, o que estava firme como rocha acabou por ceder. E Xcor abriu o portão, cambaleando para fora.
Qhuinn percebeu de imediato a brecha de segurança colossal e começou a se locomover mais rápido, praguejando e segurando a lateral do corpo. Mas Xcor arrancou a chave, bateu o portão e descobriu... Isso... O mecanismo funcionava dos dois lados.
Quando o Irmão avançou, enfurecido, jogando o corpanzil contra as barras de ferro, Xcor enfiou a chave na fechadura e virou-a na direção correta e...
Trancou Qhuinn dentro da caverna.
Xcor se empurrou para trás quando o Irmão sacudiu as grades de ferro e as telas de aço, com grunhidos e xingamentos, que a Morte lhe negara algo com amargura e muito mais.
Aterrissando no chão com a bunda nua, Xcor tremia tanto que seus dentes tiritavam.
– ... vou te matar! – Qhuinn berrava com as mãos agarradas à tela até elas sangrarem. – Vou te matar, seu filho da puta!
Xcor olhou por cima do ombro. O ar fresco vinha daquela direção, e ele sabia que estava sem tempo. Era quase certo que Qhuinn chamaria por reforços assim que parasse de brigar com o oponente de ferro.
Levantando-se com dificuldade, ele manquejava tanto que teve que se apoiar na parede da caverna.
– Deixarei a chave aqui.
A voz fraca e trêmula interrompeu as imprecações, silenciando seu oponente por instantes.
– Não quero nada com você nem com a Irmandade. – Inclinou-se para baixo e colocou a chave no chão. – Não lhes quero mal, nem um fim. Já não cobiço mais o trono, tampouco desejo a guerra. Deixo esta chave como um testemunho das minhas intenções. E juro pela fêmea que amo com toda a minha alma que nunca entrarei nas suas propriedades aqui nem em qualquer outro lugar novamente.
Começou a se afastar, arrastando um pé atrás de si. Mas, então, parou e olhou para trás.
Deparando-se com o olhar despareado e selvagem de Qhuinn, Xcor disse com claridade:
– Eu amo Layla. E nunca tomei o corpo dela, tampouco o farei. Nunca mais a procurarei, tampouco pousarei os olhos sobre ela. Quer que eu morra? Pois bem, já morri, pois cada noite que ela vive com você e seus filhos, sou assassinado por não estar na presença dela. Portanto, seu objetivo foi conquistado.
Dito isso, ele voltou a partir, rezando para poder, de alguma maneira, se desmaterializar. Quando sua vista começou a falhar, porém, teve pouca fé que o conseguiria.
Suas forças o abandonavam agora que o macho vinculado dentro dele já não estava mais sendo provocado por um rival. De fato, não havia muitos motivos para correr, já que acabaria por cair nas mesmas mãos que o tinham prendido antes, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito. Se tivesse sorte, eles o alcançariam na floresta e atirariam nele como em um javali.
Mas a sorte raramente estivera ao seu lado.
CAPÍTULO 11
De volta à mansão da Irmandade, umas quatro portas distante de onde todo o drama com a arma se desenrolara, Tohr estava deitado sobre a cama, totalmente vestido. Ao fitar o dossel acima, tentou se convencer de que estava relaxando – e essa foi uma discussão que acabou por perder. Das pernas firmes como rocha, dos dedos que se flexionavam até os globos oculares que iam de um lado a outro, ele estava tão relaxado quanto uma corrente elétrica.
Fechando os olhos, só conseguiu enxergar aquela 40 mm mudando de direção e disparando balas dentro da mansão.
O mundo inteiro parecia descontrolado...
– Trouxe chá.
Antes que conseguisse se impedir, Tohr sacou a arma amarrada sob o braço. Mas, no mesmo instante, ao sentir a fragrância da sua fêmea e reconhecer-lhe a voz, abaixou a mão e se concentrou em Autumn. Sua amada shellan estava parada diante dele, com sua caneca YETI na mão e os olhos tristes e sérios.
– Venha cá – ele disse, estendendo a mão para pegar a dela. – Só preciso de você.
Puxou-a para o seu lado, agradeceu-lhe por ela ter lhe trazido o chá e deixou o Earl Grey de lado. Então, com um tremor de alívio, aninhou-a junto ao peito, passou os braços ao redor dela e a manteve junto ao coração.
– Noite ruim – ele confessou, perto dos cabelos perfumados. – Noite muito ruim.
– Verdade. Estou aliviada por ninguém ter se ferido. E também, é o aniversário de Wellsie. Sim, é uma noite muito, muito ruim.
Tohr afastou Autumn um pouco para poder fitá-la no rosto. Após o assassinato de sua companheira grávida executado por um inimigo, convencera-se de que jamais voltaria a amar. Como poderia, depois de tamanha tragédia? Mas essa gentil, paciente e determinada fêmea diante dele abrira seu coração e sua alma, dando-lhe vida onde ele estava morto, luz em sua escuridão perpétua, sustento para a sua fome.
– Como consegue ser assim? – perguntou-se, tracejando-lhe o rosto com a ponta dos dedos.
– Assim como? – Ela levantou a mão e afagou a mecha grisalha que se formara na parte da frente dos cabelos, logo após a morte de Wellsie.
– Você nunca se ressentiu dela ou... – Era difícil para ele reconhecer à sua fêmea, em voz alta, que continuava apegado aos seus mortos. Ele jamais quis que ela se sentisse menor. – Ou dos meus sentimentos por ela?
– Por que eu me ressentiria? Cormia nunca se frustrou pela ausência da perna do companheiro dela. Nem Beth pela cegueira de Wrath. Eu o amo como você é, e não seria você caso nunca tivesse amado outra, se nunca tivesse perdido outra, se nunca tivesse perdido a chance de ser pai.
– Só podia ser você – ele sussurrou, inclinando-se para pressionar os lábios nos dela. – Você é a única com quem eu poderia estar.
O sorriso dela era como o coração: acessível, franco, acolhedor.
– Que conveniente, já que sinto o mesmo por você.
Tohr aprofundou o beijo, mas logo interrompeu o contato – e ela entendeu por que ele parou, assim como sempre o compreendia: ele não poderia se deitar com ela essa noite e esse dia. Não até a meia-noite. Não até o aniversário de Wellsie ter passado.
– Não sei onde eu estaria sem você. – Tohr meneou a cabeça, pensando no estado em que havia estado quando da ida até a caverna, em busca de Xcor. – Quero dizer...
Enquanto Autumn alisava o vinco formado na testa dele, ele retrocedeu ainda mais no tempo, para o instante em que Lassiter aparecera no meio da floresta com um saco cheio do McDonald’s e a insistência para que ele retornasse junto a seus irmãos. O anjo caído não dera ouvidos à razão – o início de uma tradição, naturalmente – e os dois se arrastaram e pararam de volta à mansão.
Tohr estivera à beira da morte, tendo subsistido à base da ingestão de não muito mais do que sangue de cervos e não muito mais durante o tempo em que ficou na floresta sozinho. Tivera um plano na época: durante todos aqueles meses procurara se matar por exaustão porque não estivera disposto a testar a lenda urbana de que as pessoas que cometiam suicídio não iriam para o Fade.
Morrer de fome, para sua mente perturbada, era uma morte diferente do que se ele metesse uma bala na cabeça.
Mas não fora seu destino. Assim como regressar para a casa com aquele anjo caído não fora sua salvação.
Não, ele devia isso à fêmea ao seu lado. Ela, e somente ela, o fizera dar a volta por cima, o amor entre eles o tirara do inferno. Com Autumn, a perspectiva de permanecer no planeta dera uma guinada de cento e oitenta graus, e embora ainda tivesse noites ruins, como essa... também tivera noites boas.
Voltou a se concentrar na sua fêmea.
– O seu amor me transformou.
Deus, era como se Lassiter tivesse sabido o tempo inteiro o que acabaria acontecendo, com a certeza de que aquele era o momento para o seu retorno e ressurreição...
Tohr franziu o cenho ao sentir uma mudança em Autumn.
– Autumn? O que foi?
– Desculpe. Eu só estava imaginando... O que vai acontecer com Layla?
Antes que pudesse responder, alguém começou a bater na porta deles – e aquele tipo de urgência significava apenas uma coisa: mobilização de armas. Seria possível que o Bando de Bastardos tivesse decidido atacar?
Tohr acomodou Autumn com gentileza para o lado, depois saltou da cama para pegar o coldre das adagas.
– O que aconteceu? – ladrou. – Para onde vamos?
A porta se abriu e Phury exibia uma aparência horrível.
– Qhuinn está sozinho na Tumba com Xcor.
O coração de Tohr perdeu o compasso, e ele fez os cálculos, chegando à conclusão de que estava sendo passado para trás em matar o filho da puta.
– Maldição, ele é meu, não do Qhuinn...
– Você vai ficar aqui. Precisamos de alguém com Wrath. Todos os outros vão para lá.
Tohr cerrou os molares por ter sido colocado no banco dos reservas, mas não estava surpreso. E proteger o Rei dificilmente seria considerado uma demoção.
– Me mantenha informado, tá?
– Sempre.
Com um xingamento, o irmão girou e foi embora junto aos demais, integrando o que parecia um estouro de coturnos no corredor das estátuas.
– Vá – Autumn lhe disse. – Procure Wrath. Fará com que se sinta útil.
Ele olhou por sobre o ombro.
– Você sabe sempre, não?
Sua linda companheira meneou a cabeleira loira.
– Você tem mistérios que ainda me fascinam.
Quando um desejo súbito engrossou seu sangue, Tohr emitiu um ronronado.
– Meia-noite. Você será minha, fêmea.
O sorriso dela foi tão antigo quanto a raça, e tão duradouro quanto.
– Mal posso esperar.
No instante seguinte, Tohr estava no corredor, sentindo-se completamente confinado – apesar de a mansão ter quantos quartos mesmo? Mas então, ao chegar às portas abertas do escritório de Wrath, o Rei quase o atropelou.
– ... o caralho, estou saindo daqui. – Wrath fechou as portas atrás de si e seguiu para a escadaria. – Maldição, sou um Irmão, tenho permissão para ir lá...
– Meu senhor, não pode ir à Tumba.
Enquanto George, o cão-guia do Rei, gania no interior do escritório, o último vampiro puro da raça chegou à escadaria para iniciar a descida.
– Wrath. – Tohr apressou-se atrás dos calcanhares do macho, mas não se deu ao trabalho de aumentar o tom da voz. – Pare. Mesmo. Pare agora.
Pois é, estava sendo tão persuasivo quanto um idiota com bandeirolas como farol, e os dois braços quebrados: não estava se colocando no caminho do governante. Não o segurava pelo braço, nem forçava o Rei a ficar dentro de casa. E não iria, no fim das contas, impedir que seu monarca fosse até a Tumba, onde Qhuinn estava.
Onde Xcor estava.
Porque, oras, se estava protegendo o Rei, tinha que ir aonde o cara ia, certo? E, se por acaso isso acabasse por levá-lo até onde o Bastardo estava? Beeeem, isso não seria sua culpa, né? Além disso, considerando-se o estado de humor de Wrath? Qualquer tentativa de convencê-lo a ficar e esperar seria fôlego desperdiçado. O Rei era bem racional – só quando não o era. E quando aquele FDP de cabelos negros e óculos escuros decidia que faria, ou não faria, algo? Ninguém, mas ninguém mesmo, seria capaz de mudar sua opinião.
Com a exceção de, talvez, Beth – e mesmo isso não era garantido.
E quando ele e Wrath chegaram ao átrio e começaram a cruzar o mosaico da macieira em flor, Tohr disse num tom enfastiado:
– Sério. Deixe que os outros cuidem do assunto. Pare.
Wrath não hesitou nem falseou. Mesmo sem enxergar, ele conhecia bem a mansão, e sabia antecipar o número de degraus, a direção e até mesmo a altura da enorme maçaneta à qual estava prestes a alcançar. Se as coisas seguissem assim, chegariam à caverna ao norte da montanha num nanossegundo.
Só que... quando a porta do vestíbulo se abriu e uma lufada de ar fresco entrou, Tohr inspirou fundo.
E, no mesmo instante, sua sanidade retornou.
Espere um instante, ele pensou. Que diabos estava fazendo?
Uma coisa era abrir a porta ele mesmo, e outra era fracassar em sua missão de guarda-costas, permitindo que o Rei entrasse numa situação que poderia colocar sua vida em perigo. E também, P.S., era uma bobagem absoluta querer matar Xcor por ter metido uma bala em Wrath ao mesmo tempo em que estava disposto a permitir que o Rei entrasse no que poderia ser uma emboscada. O Bando de Bastardos era uma surpresa, mais do que nunca. E se alguma coisa desse errado com a insubordinação de Qhuinn e Xcor acabasse, de algum modo, livre? E se encontrasse os seus garotos? E se atacasse a Irmandade?
Enquanto Wrath atravessava a porta e seguia para a noite, Tohr voltou ao trabalho.
Dessa vez se colocou no caminho dele, esticou as mãos e socou o peitoral do governante.
Encarando os óculos pretos, disse:
– Espere aí, não posso permitir que vá até a Tumba. Por mais que eu queira a porra dessa desculpa pra ir pra lá também e lidar com o puto do Xcor nos meus próprios termos, não saberei viver comigo mesmo se...
Tchauzinho.
Sem nem uma palavra ou hesitação, Wrath desapareceu. O que provava a Tohr que estivera certo quanto ao Rei fazer o que bem entendia – e um maldito idiota por não ter impedido o macho ainda na escadaria.
– Maldição! – Tohr murmurou ao sacar as duas pistolas.
Sua própria desmaterialização interrompeu o restante dos impropérios que se debatiam no seu cérebro desfuncional. Em seguida, reassumia a forma na floresta densa, no lugar do qual fora retirado à força não mais do que uma hora antes.
Ah... Deus.
Sangue. No meio do vento gélido e forte... ele sentia o cheiro do sangue de Xcor.
O filho da puta estava lá fora? Mas que diabos? Porque aquela merda não vinha de longe, como se fosse de um ferimento impingido no interior da caverna.
Não, estava bem aos seus pés, nas agulhas caídas dos pinheiros e na terra. Um rastro.
Uma fuga.
Mesmo que os instintos de rastrear o macho fossem quase irresistíveis, Wrath era mais importante. Girando sobre os coturnos, correu para junto do seu monarca.
– Meu senhor! – Tohr perscrutou o ambiente, à procura de movimentos. – Mas que porra há de errado com você?! Precisamos tirá-lo daqui!
Wrath o ignorou e seguiu para a caverna, onde as vozes dos outros irmãos ecoavam e, evidentemente, davam-lhe uma direção. Tohr pensou em deter o macho, mas era melhor que ele estivesse ali, com a Irmandade, do que no meio da floresta, como um alvo imóvel.
Cara, mas depois teriam uma conversinha.
Noite incrível para os moradores da casa. Puta que o pariu.
O cheiro do sangue estava mais intenso ali, e sim, sentiu uma ponta de inveja no meio do peito. Qhuinn, ao que tudo levava a crer, tivera sua vez com o bastardo. Mas algo de muito, muito errado acontecera. Havia um rastro de pés descalços e sanguinolentos saindo da caverna, e Qhuinn também sangrava. Aquele outro cheiro também estava bem distinto.
O Irmão ainda estaria vivo? Xcor o teria, de alguma forma, sobrepujado e se apoderado da chave dos portões? Mas isso seria possível? Xcor estivera meio morto naquela maca.
Enquanto Tohr e o Rei avançavam pelo interior da caverna, a luz das tochas nos portões oferecia um brilho a ser seguido e quando ele e Wrath se juntaram a todos os outros – ... Tohr confrontou uma situação que era tão inesperada quanto inexplicável.
Qhuinn estava depois dos grandes portões do sanctum sanctorum, sentado de bunda no chão, com os cotovelos posicionados sobre os joelhos. Ele sangrava em alguns pontos e a respiração superficial sugeria que devia ter costelas quebradas. Suas roupas estavam desarrumadas e manchadas de sangue – tanto dele quanto de Xcor –, e as juntas dos dedos estavam esfoladas.
Mas isso não era o mais estranho.
A chave do portão estava do lado de fora. Deitada no chão de terra como se tivesse sido propositalmente colocada ali.
Três dos seus irmãos estavam ao redor do objeto, como se ele fosse explodir na cara deles, e, nas imediações, pessoas dialogavam. Toda a conversa cessou, contudo, quando a presença de Wrath foi registrada pelo grupo.
– Mas que porra! – alguém exclamou.
– Jesus, Maria e José! – Ok, esse era Butch. – Mas que diabos?
Mais irmãos se juntaram a eles nesse tipo de exclamação, mas Wrath não estava para brincadeira.
– Para o que estou olhando? Algum puto pode me descrever o que tenho diante de mim?
No silêncio que se seguiu, Tohr esperou que um dos outros transmitisse o relato.
Só que nenhum deles pareceu ter coragem.
Tudo bem, mas que diabos, Tohr pensou.
– Qhuinn está consciente, sangrando, trancado na Tumba. A chave... – Tohr meneou a cabeça na direção dos portões –... está do lado de fora. Qhuinn, Xcor está aí dentro com você ou não?
Mesmo que o rastro de sangue para fora da caverna já fosse resposta suficiente.
Qhuinn abaixou a cabeça e esfregou os cabelos negros, a palma desenhando círculos lentos no que já estava emaranhado.
– Ele fugiu.
Ceeeeerto, quer falar de bombas “f ”? Foi como se cada um dos Irmãos tivesse um piano despejado sobre seus malditos pés e usado a palavra “foda” como analgésico.
Um ímpeto de urgência fez com que Tohr se desconectasse de tudo aquilo. Virou-se, pegou o celular e ligou a lanterna, lançando o facho de luz ao redor no chão. Rastrear as pegadas na areia e na terra solta foi bastante fácil, e ele as seguiu até a boca da caverna. Xcor estivera arrastando os pés, em vez de caminhar de verdade, sua locomoção estava evidentemente prejudicada por ter passado o mês anterior deitado, e também pelo que acontecera entre ele e Qhuinn.
Quando Tohr voltou para a floresta, agachou-se e formou um arco com a luz. Atrás dele, uma bela discussão se desenrolava entre Wrath e a Irmandade, com vozes graves ecoando ao redor graças às paredes de pedra, mas ele deixou que continuassem. Andando à frente, desligou a lanterna e guardou o celular no bolso de trás da calça. Não levara um casaco consigo ao sair da mansão, mas a noite de -4°C não o incomodava.
Estava ocupado demais dando uma de cão farejador, fungando o ar.
Xcor fora para o Oeste.
Tohr acelerou, mas não podia ir rápido demais. Com o vento soprando em diferentes direções, era difícil acompanhar o rastro.
E, então, ele simplesmente chegou ao fim.
Fazendo círculos, Tohr retrocedeu a fim de localizar o rastro de sangue novamente... e depois, sim, voltou a perdê-lo.
– Ah, maldito bastardo – ele sibilou na noite.
Como aquele merdinha enfraquecido tinha conseguido se desmaterializar era uma questão que Tohr jamais compreenderia. Contudo, não havia como discordar dos fatos: a única explicação possível para o rastro ter sido interrompido tão subitamente era que o bastardo, de alguma forma, havia reunido forças para virar fantasma.
Se Tohr não odiasse o filho da puta com demasiada intensidade... quase seria capaz de respeitá-lo.
Quando Xcor reassumiu a forma corpórea, encontrou-se nu sobre uma espécie de moita coberta de neve, no interior da floresta que já não era mais de pinheiros, mas de bordos e carvalhos. Arquejado, ele forçou os olhos a trabalhar, e quando o cenário apareceu límpido e focado, ele soube que havia conseguido sair da propriedade da Irmandade. O mhis, névoa de proteção do cenário que marcava o território deles, havia sumido, e seu senso de direção havia retornado.
Não que ele tivesse a mínima ideia da sua localização.
No trajeto de fuga, tinha conseguido se desmaterializar três vezes. Uma para uns cinquenta metros de distância da caverna; na segunda, um pouco além da última, talvez meio quilômetro descendo a montanha; e depois até ali, para uma porção gramada, que sugeria um afastamento considerável da montanha onde fora mantido prisioneiro.
Rolando de costas, inflou os pulmões e rezou em busca de forças.
Uma vez passada a ameaça imediata à própria vida, uma fraqueza imensurável se abateu sobre Xcor, tão letal quanto qualquer outro inimigo. E também havia o frio, que subtraía ainda mais suas reservas de força, diminuindo-lhe ainda mais os reflexos e os batimentos cardíacos. Mas nada disso era sua maior preocupação.
Virando a cabeça, olhou para o Leste.
O horizonte começava a se aquecer com a chegada iminente da aurora em uma hora. Mesmo em seu estado, ele sentia os vislumbres de alerta em sua pele nua.
Empenhado em forçar a cabeça para longe do chão, procurou abrigo, uma caverna talvez, um agrupamento de rochas... um tronco caído com espaço vazio no qual poderia se esconder. Só o que identificou foram árvores, lado a lado, com os galhos despidos formando um dossel, que não significaria proteção suficiente contra o amanhecer.
Acabaria em chamas assim que o sol estivesse a pino.
Pelo menos estaria aquecido... Pelo menos, assim, tudo chegaria a um fim.
Por certo, e por pior que fossem os horrores da imolação, nada se compararia à tortura que a Irmandade sem dúvida o teria feito passar – torturas que não serviriam a nenhum propósito, mediante a suposição de que o Bando de Bastardos seria o seu objetivo.
Primeiro porque seus soldados teriam seguido o protocolo e abandonado o acampamento, estabelecendo-se em outro local após o seu desaparecimento. Afinal, morte ou captura eram as únicas explicações para a sua ausência, e não havia sentido apostar em qual delas.
Segundo, ele não teria entregue seus guerreiros mesmo se prestes a ser estripado.
Bloodletter não fora capaz de quebrá-lo. Ninguém mais o conseguiria.
Mas, pensando bem, tudo isso não tinha mais importância.
Xcor enrolou-se de lado, aproximou as pernas do peito e passou os braços ao redor de si mesmo, tremendo. As folhas debaixo do corpo não eram nenhum leito suave; as pontas curvas e geladas cortavam sua pele. E enquanto o vento trespassava o cenário, um atormentador em busca de vítimas, parecia não lhe prestar uma atenção especial, empurrando detritos da floresta para cantos escondidos, roubando ainda mais o seu decrescente calor corporal.
Fechando os olhos, encontrou uma parte do passado voltando para si...
Era dezembro do seu nono ano de vida, e ele estava diante do chalé decaído de telhado de sapê no qual ele e sua ama-seca ficavam. De fato, assim que a noite caía todos os dias, ele era jogado para fora, acorrentado pelo pescoço, e tolerado de volta ao interior apenas quando o sol ameaçava surgir a Leste e os humanos estariam fora de suas casas. Por grande parte das longas horas solitárias, ainda mais naquele inverno, ele se acomodava contra a parede externa da casa, movendo-se em sua corrente apenas para se colocar contra o vento.
O estômago estava vazio e assim permaneceria. Ninguém da sua raça no pequeno vilarejo o abordaria para lhe oferecer comida, e a ama-seca certamente não o alimentaria até assim o desejar – e só seriam restos das refeições consumidas por ela.
Levando os dedos sujos de terra à boca, sentiu a distorção que partia do lábio superior até a base do nariz. O defeito sempre fora assim, e por causa dele, sua mahmen o tirara do quarto em que nascera, deixando-o nas mãos da ama-seca. Sem ninguém mais para cuidar do jovem ele tentou agir bem para com a fêmea, tentara fazê-la feliz; mas nenhuma ação sua nunca a deixava satisfeita – e ela parecia se deliciar ao lhe dizer, repetidamente, como sua mahmen o banira de suas vistas, como ele fora uma maldição no que, senão por isso, teria sido uma fêmea de valor, bem-nascida.
A melhor opção era ficar fora do caminho da ama-seca, fora fora de seu campo de visão, fora de sua casa. E mesmo assim ela não permitia -lhe a fuga. Ele tentara isso algum tempo atrás e chegara aos limites dos campos que cercavam a aldeia. No entanto, uma vez que a ausência foi registrada, ela foi atrás dele e o surrou com tamanha violência que ele se retraiu e chorou em meio aos golpes, implorando por perdão; pelo quê, ele não sabia exatamente.
E assim, ele acabou acorrentado.
Os aros de metal partiam da coleira ao redor do seu pescoço até o poste de ferro em que os cavalos eram amarrados, na quina do chalé. Nada mais de vaguear para ele, nada mais de mudar de posição, a menos que para se aliviar ou se manter abrigado. O couro áspero ao redor do pescoço provocava machucados na pele, e como nunca era removido, não havia como as feridas cicatrizarem. Mas há tempos ele aprendera a suportar.
Sua vida, tal qual a percebia, tratava-se de saber suportar.
Dobrando os joelhos junto ao peito diminuto, passou os braços ao redor dos ossos das pernas e estremeceu. Suas vestes eram limitadas a uma das capas de lã gastas da ama-seca e um par de calças masculinas que eram tão grandes que ele poderia prendê-las debaixo das axilas com uma corda. Os pés estavam descalços, mas ele os mantinha debaixo da capa para que não congelassem.
Quando o vento soprou em meio aos galhos despidos das árvores, o som o impeliu a pensar num lobo, e seus olhos se arregalaram enquanto ele perscrutava a escuridão, para o caso de ter ouvido de fato um lupino. Morria de medo de lobos. Se um, ou uma matilha, fosse atrás dele, ele seria comido, disso tinha certeza, visto que a corrente significava que não poderia fugir nem subir em árvores, tampouco alcançar a porta do chalé.
E ele não acreditava que a ama-seca o salvaria. Às vezes chegava a crer que ela o amarrava na esperança de que fosse consumido, dado que a morte dele, quer pelos elementos climáticos, quer pela natureza selvagem, a libertaria, pois, se assim acontecesse, não seria exatamente culpa dela.
A quem ela prestava contas, contudo, ele não sabia. Se sua mahmen o rejeitara, quem pagava por sua subsistência? Seu pai? O macho cuja identidade nunca lhe fora revelada e que, por certo, jamais aparecera...
Quando um som sinistro atravessou a noite, ele se retraiu.
Era o vento. Tinha que ser... somente o vento.
Procurando algo para acalmar a mente, fitou a poça amarelada de luz que emanava da única janela do chalé. A iluminação tremeluzente brincava com os tentáculos de uma moita de framboesas morta que circundava o chalé, movimentando o o arbusto cheio de espinhos como se esse tivesse vida – e ele tentou não achar nada de sinistro nas constantes mudanças. Não, em vez disso, ele se concentrou no brilho e tentou se visualizar diante da lareira, aquecendo as mãos e os pés, os músculos frágeis se desenrolando do rigor provocado pela postura de proteção contra o frio.
Ao longo de seu devaneio, imaginou o sorriso e os braços abertos da ama-seca para ele, encorajando-o a se aninhar em segurança nela. Fantasiou-a com um afago em seus cabelos, sem se importar acerca da imundície, oferecendo-lhe comida que não estava estragada e não era apenas restos. Em seguida, ele se banharia, limparia a pele e retiraria a coleira do pescoço. O unguento apaziguaria osuas aflições, e então ela lhe diria que não se importava por ele se imperfeito.
Ela o perdoaria pela sua existência, e sussurraria que sua mahmen de fato o amava e que logo viria buscá-lo.
E, finalmente, ele adormeceria, com seu sofrimento terminado...
Outro urro interrompeu-lhe os pensamentos, e ele retornou rapidamente à consciência, vasculhando uma vez mais os arbustos e os esqueletos das árvores.
Era sempre assim, as idas e vindas de sua necessidade de estar ciente das cercanias para o caso de um ataque... e sua busca de um abrigo mental que o impedisse de concluir que não poderia fazer nada para se salvar.
Enfiando a cabeça entre os ombros, apertou os olhos uma vez mais.
Havia outra fantasia que ele acalentava, ainda que não com muita frequência. Ele fingia que seu pai, sobre quem a ama-seca jamais falara, mas quem Xcor imaginava ser um grande guerreiro da raça, chegaria num enorme garanhão de guerra para salvá-lo e levá-lo dali. Imaginara o grande guerreiro chamando por ele, colocando-o no alto da sua sela, chamando-o de “filho” com orgulho. Aos galopes, afastar-se-iam, a crina do cavalo açoitando o rosto de Xcor conforme avançassem atrás de aventuras e glórias.
Na verdade, essa situação era tão pouco provável quanto ele ser acolhido no interior do chalé...
Ao longe, o tropel dos cascos de um cavalo sinalizava uma aproximação e, por um momento, seu coração acelerou. Teria chamado sua mahmen? Seu pai? Teria o impossível por fim acontecido...?
Não, não era um cavalo. Era uma incrível carruagem, da realeza, sem dúvida, com o exterior dourado e um par de cavalos brancos combinando. Havia até lacaios de libré preto e um cocheiro de uniforme.
Era um membro da glymera, um aristocrata.
E, sim, quando um criado desceu e auxiliou a saída de uma fêmea com um lindo vestido e peles, Xcor jamais vira algo mais belo e perfumado.
Mudando de posição de modo a enxergar ao redor do chalé, retraiu-se quando o couro fez um novo corte na clavícula.
A bela fêmea não se deu ao trabalho de bater, mas o lacaio abriu a porta que rangeu.
– Hharm se casou após o nascimento de um filho. Está feito. Está livre... Ele não vai mais prender você à sua ira.
A ama-seca franziu o cenho.
– Como?
– É verdade. Papai o ajudou com o dote considerável exigido por ele. Nossa prima é agora a shellan dele e você está livre.
– Não. Não pode ser...
Enquanto as duas fêmeas recuavam para dentro do chalé e deixavam o lacaio para fora, Xcor se esforçou para ficar de pé e espiar através da janela. Do outro lado do vidro grosso e cheio de bolhas, ele viu quando a ama-seca continuou agindo como se estivesse em estado de choque e descrença. A outra fêmea, no entanto, deve ter aplacado sua contradição, pois houve um momento de pausa... e, então, uma grande transformação se apresentou.
De fato, uma alegria tão contagiante tomou conta da ama-seca, em seu âmago, que ela pareceu uma lareira recobrando as chamas quase extintas, não mais o espectro cansado da feiura a que ele se habituara, mas algo completamente diverso.
Tornou-se resplandecente, mesmo nos trapos que vestia.
A boca se moveu, e ainda que ele não conseguisse ouvir sua voz, ele entendeu exatamente o que ela dizia: Estou livre... estou livre!
Além do vidro ondulado, ele a viu olhar ao redor como se procurasse um objeto de significância.
Ela o estava abandonando, ele pensou, em pânico.
E como se ela tivesse lhe lido os pensamentos, a ama-seca parou e olhou na direção do vidro, a luz da lareira brincava ao longo do rosto corado e alegre dela. Com os olhos fixos um no outro, ele levou a mão à janela numa súplica.
– Me leve com você – sussurrou. – Não me deixe assim...
A outra fêmea relanceou na sua direção e seu retraimento sugeria que apenas a imagem de Xcor lhe revirava o estômago. Disse algo à ama-seca, e aquela que cuidara dele até então não respondeu de pronto. Mas, então, seu rosto endureceu, e ela se aprumou como se em preparo para uma tempestade inclemente.
Ele começou a bater na janela.
– Não me deixe, por favor!
As duas fêmeas lhe deram as costas e saíram apressadas, e ele correu para a frente para vê-las subindo na carruagem.
– Me leve com você!
Quando ele se precipitou, atingiu o limite da corrente e foi puxado para trás pelo pescoço, aterrissando com força e tendo o ar expelido dos pulmões.
A fêmea bem vestida não prestou atenção ao levantar as saias e abaixar a cabeça para entrar no interior da carruagem. A ama-seca, por sua vez, apressou-se logo atrás, levantando a mão à têmpora para proteger os olhos de vê-lo.
– Me ajude! – Ele se agarrou à corrente, que lhe raspou a pele. – O que será de mim?!
Um dos lacaios fechou a porta dourada da carruagem. E o doggen hesitou antes de voltar para seu posto, na parte posterior.
– Existe um orfanato não muito longe daqui – ele informou com secura. – Liberte-se e prossiga por cinquenta léguas ao Norte. Lá, encontrará outros.
– Me ajude! – Xcor gritou quando o cocheiro estalou as rédeas e os cavalos saltaram adiante, conduzindo a carruagem pela estrada de terra.
Ele continuou a gritar enquanto era deixado para trás, os barulhos da partida cada vez mais distantes... até sumirem.
À medida que o vento soprava sobre ele, os vestígios das lágrimas no seu rosto se tornaram gelo e seu coração batia nos ouvidos, impossibilitando-o de ouvir qualquer outra coisa. Por conta do jorro da ansiedade, ele ficou tão quente com a agitação que deixou a capa de lado, e o sangue se juntou ao redor do pescoço, cobrindo-lhe o peito desnudo e aquelas as enormes.
Cinquenta léguas? Orfanato?
Ficar livre?
Palavras tão simples, surgidas de uma consciência pesada. Mas que não o ajudavam em nada.
Não, ele pensou. Só tinha a si mesmo em quem confiar agora.
Mesmo quando desejou se curvar numa bola e chorar de medo e de tristeza, soube que tinha que se fortalecer, pois um abrigo era extremamente necessário. E com isso em mente, controlou as emoções e agarrou a corrente com ambas as mãos. Inclinou-se para trás e puxou-a com todas as forças, numa tentativa de soltá-la do poste. Os elos rangeram com o movimento.
Enquanto ele se empenhava, teve a vaga noção de que a carruagem não podia estar muito longe. Poderia ainda alcançá-la se apenas conseguisse se soltar e correr...
Também disse a si mesmo que aquela não era sua mahmen que acabara de partir, tendo-lhe mentido o tempo todo. Não, era apenas uma ama-seca de alguma posição social pouco comum.
Seria insuportável pensar nela de outro modo.
CAPÍTULO 12
Parecia apropriado que Qhuinn tivesse que olhar através das grades para ver seus irmãos – não que desejasse fitá-los. Mas, sim, a separação entre ele e aqueles outros seres vivos, marcada pelos portões antigos e impenetráveis, parecia o melhor curso de inação.
Não estava apto a qualquer tipo de companhia.
E, evidentemente, os outros tampouco estavam felizes com ele.
Enquanto permanecia de bunda no chão de pedra bruta da caverna com as costas apoiadas numa seção de prateleiras de jarros que ainda permaneciam intactos, ele observava a Irmandade circular e rosnar do lado oposto das barras de metal, indo de um lado a outro e esbarrando uns nos outros ao ladrarem para ele. A boa notícia – e ele imaginava que fosse apenas marginalmente “boa” – foi que o som de tamanho drama se assentou, por algum truque do Universo, ou talvez porque a pressão sanguínea estivesse diminuindo, enevoando tudo no mundo a sua volta.
Melhor assim. Já era perito em foder com as coisas. Não havia nada que mesmo o uso mais criativo da palavra que começava com “f ” lhe ensinasse no tocante a imprecar contra alguém.
Além disso, considerando-se que ele era o substantivo em todas aquelas frases? Quem precisava disso agora? Ele já vinha se autoflagelando mentalmente, muito obrigado.
Abaixando a cabeça, fechou os olhos. Não foi uma boa ideia. A lateral do corpo estava acabando com ele, e sem nenhuma distração, a dor assumiu proporções gigantescas. Devia ter fraturado alguma coisa ali. Talvez rompido um rim ou um...
Quando uma onda de náusea inflou seu estômago, ele abriu os olhos e mirou a direção oposta do zoológico de acusações. Pense num lugar destruído. A maca destroçada, os equipamentos médicos arregaçados, todos aqueles jarros quebrados com seus corações negros oleosos no piso de pedras... Era como se um furacão tivesse passado pela caverna.
O segundo lugar que ele destruíra – se tomados em consideração os tiros no quarto de Layla.
Ainda que essa bagunça ele lamentasse.
A outra? Sim, arrependia-se dela também – mas não recuaria quanto à proibição de ela ver seus filhos.
Com um gemido, esticou uma perna e depois a outra. Havia sangue em suas calças. Nos coturnos. Nas juntas de ambas as mãos. Provavelmente necessitaria de atenção médica, mas não a queria...
Um silêncio abrupto chamou-lhe a atenção e ele recobrou o enfoque portões. Ah, maravilha. Que porra do cacete.
O Rei estava bem diante da barras de ferro, parecendo a fúria dos infernos de pé sobre seus coturnos. E, aparentemente, ele queria um mano a mano em close: Vishous havia se adiantado e estava colocando a chave na fechadura, na outra ponta; então seguiu-se um estalo que permitiu a abertura dos portões.
Wrath foi o único a entrar, e logo ambos foram trancados ali. Seria para impedir que os demais atacassem Qhuinn? Ou para impedi-lo de fugir dos planos do Rei, sejam quais fossem?
Escolhas, escolhas...
Quando Wrath se aproximou e depois parou, Qhuinn abaixou o olhar, apesar de o macho ser cego.
– É aqui que você vai me demitir da Irmandade?
Malditos coturnos enormes, ele pensou de súbito. De sua perspectiva, eles pareciam ter o tamanho de um par de Subarus.
– Estou ficando cansado pra cacete de te encontrar assim – Wrath estrepitou.
– Então somos dois.
– Quer me contar o que aconteceu?
– Na verdade, não.
– Deixe-me formular de outra forma, filho da mãe. Você vai me contar o que aconteceu ou vou te manter trancado aqui até a fome consumir seus ossos?
– Sabe, dietas da moda nunca funcionam a longo prazo.
– Funcionam se você tomar um suplemento de ferro junto a elas.
Qhuinn fitou o coldre debaixo do imenso braço esquerdo de Wrath. Por mais que o Rei não tivesse olhos saudáveis, seria uma boa aposta imaginar que ele conseguiria botar uma bala no lugar de sua vontade, baseando-se apenas na audição.
– Que tal assim... – Wrath propôs. – Vou te ajudar. Você pode pular a parte em que julgou ser uma boa ideia vir até aqui atacar um prisioneiro, meu sem a minha permissão. Sei chegar a essa conclusão sozinho, obrigado. Por que não me conta como ele conseguiu te trancar aí dentro?
#tomaládácá
Ele pigarreou.
– Quando Phury saiu, ele me deu a chave pra eu me trancar aqui com Xcor. E foi o que fiz.
Que era o novo protocolo. Assim que Xcor ficou sob a custódia deles, o responsável pela guarda tinha que ficar trancado pelo lado de fora. Com o passar do tempo, porém, o procedimento foi alterado por motivos práticos, em virtude de todas as mudanças de escala, check-ups médicos e administração de remédios. E, sim, talvez porque acabaram relaxando depois de um mês em que o bastardo apenas ficou ali deitado, na maca como uma obra de arte moderna.
– E? – Wrath grunhiu.
– Eu estava distraído. Então esqueci a maldita chave na fechadura.
– Você estava... distraído. Com o quê? Planos para destruir este lugar? – Quando o Rei gesticulou ao redor dos jarros arruinados como se pudesse vê-los, ficou claro que o fedor dos redutores tinha se instaurada sob o nariz dele. Além disso, convenhamos, a plateia vinha reclamando da bagunça. – Mas que caralho, Qhuinn. Fala sério, perdeu a porra da sua cabeça?
– Sim, acho que perdi. – Que sem graça. – Ou isso foi uma pergunta retórica que não requer resposta? Ei, por que não paramos de falar sobre Xcor pra você me contar o que vai fazer com aquela fêmea dele, Layla?
Falando em vontade de vomitar...
No silêncio subsequente, Wrath cruzou os braços diante do peito, os bíceps se avolumaram tanto que ele fez com que o The Rock parecesse um “Pescoço Fino”.
– Neste instante, são os seus direitos parentais que estou pensando em anular.
Qhuinn levantou o olhar de supetão e depois teve que engolir o vômito enquanto a cabeça latejava.
– Espera aí, o quê? Ela comete um ato de traição ao ajudar e se encontrar com um inimigo seu...
– E você acabou de deixar uma fonte de informação para a Irmandade fugir porque perdeu a porra da cabeça. Portanto, vamos deixar de lado essa asneira de traição, que tal? Só vai fazer com que suas bolas fiquem mais apertadas, confie em mim.
Era meio difícil argumentar contra fatos, Qhuinn pensou. Que bom que suas emoções estavam pouco se fodendo para a lógica.
– Só me diga que vai tirá-la da casa – exigiu. – E que meus filhos vão ficar comigo. É só o que me importa.
Por uma fração de segundo, Qhuinn lembrou de Xcor falando bobagens pouco antes de o bastardo sair se arrastando. Dizendo coisas sobre Layla. Sobre amor. Sobre não querer mais ir atrás de Wrath.
Ah, tá. Como se ele fosse acreditar em qualquer uma dessas coisas.
O Rei o encarou por trás dos óculos escuros.
– O que faço ou deixo de fazer não é da porra da sua conta.
– Tá falando sério? – Qhuinn fez menção de se levantar, mas isso não aconteceria. Mesmo grunhindo e vomitando para o lado, ele continuou falando em meio à náusea. – Ela abriu mão dos direitos dela! Ela alimentou o inimigo!
– Se é mesmo um inimigo, por que Xcor deixou a chave para trás?
– O quê?
Wrath apontou um dedo na direção dos portões.
– Xcor te trancou aqui dentro, mas deixou a chave no chão. Por que ele fez isso?
– Como é que eu vou saber?
– Pois é, e agora não podemos mais perguntar para ele, podemos? – Wrath rebateu.
Qhuinn meneou a cabeça.
– Ele ainda é seu inimigo. Ele sempre vai ser o seu maldito inimigo. Estou pouco me fodendo pro que ele diz.
As sobrancelhas negras de Wrath se abaixaram por trás dos óculos.
– Então o que ele te disse?
– Nada. Não disse merda nenhuma. – Qhuinn expôs as presas. – E não se preocupe, vou pegá-lo de novo. Vou caçar o puto e...
– Até parece. Estou te suspendendo do trabalho em campo a partir deste instante.
– O quê?! – Dessa vez, Qhuinn conseguiu se erguer, mesmo achando que acabaria por vomitar ao estilo Exorcista em cima do Rei. – Isso é papo-furado!
– Você está passando dos limites e isso eu não engulo. Agora, seja um bom sociopata e cale a boca enquanto recebe cuidados médicos.
Numa descarga de ira nuclear, a fúria ardente ressurgindo e provocando um curto circuito na mente de Qhuinn de novo – como se sua consciência fosse para o banco de trás daquele fogo infernal, ele vagamente tinha ciência dos movimentos de sua boca ao gritar para o Rei. Mas ele não fazia a mínima ideia do que estava dizendo.
– Sabe de uma coisa? – Wrath o interrompeu com um tom enfastiado. – Encerramos por aqui, você e eu.
Foi a última coisa que Qhuinn ouviu.
A última coisa que viu. O imenso punho do Rei voando na direção do seu queixo.
Pense em fogos de artifício, e depois, quando as luzes se apagam, nada aceso dentro dele, as pernas em vias de ceder debaixo do corpo, o peso em um strike no chão da caverna.
Seu pensamento final antes de desmaiar na metade da queda?
Duas concussões consecutivas fariam maravilhas para a sua saúde mental. Pois é, bem o tipo de merda que ele precisava a essa altura.
Em seu quarto na mansão da Irmandade, Layla estava de pé diante dos berços, os olhos passando de um a outro dos seus bebês adormecidos. Os rostos de Lyric e de Rhamp eram de angelicais, com bochechinhas cheias e rosadas, pele macia, cílios escuros e abaixados, as sobrancelhas arqueadas como asas. Ambos respiravam pesado como se em esforço repousante para crescer, ficar mais fortes e mais espertos.
Era a procriação em curso, a raça da Virgem Escriba seguindo em frente. Um milagre. Imortalidade para os mortais.
Ao sentir uma presença às suas costas, disse num tom baixo e rouco:
– Melhor sacar a arma.
– Por quê?
Olhou para Vishous por sobre o ombro. O Irmão estava parado perto da entrada do quarto parecia um arauto da destruição. O que, na verdade, ele era.
– Se quer que eu os deixe, terá que me mandar para o Fade.
Não era surpresa nenhuma que Wrath tivesse enviado Vishous para levá-la embora. O guerreiro era frio, intocável, insensível diante de qualquer objetivo a que estava determinado; era como lidar com um iceberg. Os outros machos da casa? Especialmente os que tinham filhos, ou Phury, o Primale, ou até Tohr, que perdera a companheira e um filho antes de nascer? Qualquer um desses Irmãos poderia ser persuadido a mudar o curso das coisas, de forma a permitir que ela ficasse ou levasse os filhos consigo.
Mas não Vishous.
E, no caso dela, talvez nem Tohr. Ele queria matar o macho com quem ela traíra a Irmandade.
Olhou para a arma no coldre debaixo do braço de V.
– Então?
Vishous meneou a cabeça.
– Não será necessário. Venha, vamos embora.
Ela se virou para os filhos.
– Qhuinn o matou? Xcor? Ele está morto?
– Fritz está na frente da casa. Temos um meio de locomoção. Partiremos agora.
– Como se eu fosse uma bagagem a ser transportada. – Não havia mais lágrimas para ela; o horror dos acontecimentos era tão grande que a entorpecia por dentro.
– Xcor está morto?
Quando Vishous falou, em seguida, ele estava logo atrás dela, a voz na parte de trás do seu pescoço, fazendo com que os pelos da nuca se eriçassem em alerta.
– Use a razão...
Ela se virou e estreitou os olhos.
– Não ouse distorcer as coisas fazendo com que eu pareça irracional por não querer deixá-los.
– Então não se esqueça da posição em que se encontra. – Ele esfregou o cavanhaque com a mão enluvada. – Você pode acabar sem nenhum direito parental sobre eles, a despeito de ser a mãe biológica. Mas se vier comigo agora, eu garanto, eu garanto, que eles logo estarão com você de novo, quem sabe ao cair da noite de amanhã.
Layla se envolveu com os braços.
– Você não tem esse tipo de poder.
A sobrancelha dele, a que tinha uma tatuagem na lateral, arqueou-se.
– Talvez não, mas elas têm.
Ao dar um passo para o lado, ele apontou para a porta, e Layla cobriu a boca com a mão. Uma a uma, as fêmeas da casa entraram no quarto, e mesmo com Vishous como comparação, elas formavam um grupo poderoso ao criar um semicírculo ao redor dela. Até mesmo Autumn estava presente.
Beth, a Rainha, falou num tom baixo a fim de não perturbar os bebês.
– Falarei com Wrath. Assim que ele voltar do centro de treinamento. Daremos um jeito nisto. Não dou a mínima com o que aconteceu entre você e Xcor. De mãe para mãe, só me importo com você e com os bebês. E meu marido entenderá meu ponto de vista. Confie em mim.
Layla quase se jogou nos braços da Rainha e quando Beth a segurou com força, Bella se adiantou e acariciou os cabelos de Layla.
– Vamos cuidar deles enquanto você estiver ausente – disse a fêmea de Z. – Todas nós. Não ficarão sozinhos nem por um segundo, por isso, tente não se preocupar.
Cormia também se adiantou, os olhos verdes claros de sua companheira Escolhida estavam rasos de lágrimas.
– Ficarei com eles o dia inteiro. – Ela apontou para a cama. – Não sairei do lado deles.
Ehlena, a shellan de Rehv, assentiu.
– Enquanto fui enfermeira, cuidei de centenas de bebês. Conheço bebês de trás para a frente. Nada acontecerá com eles, prometo.
As outras murmuraram em concordância, e uma delas entregou um lenço a Layla. E foi assim que ela percebeu que estava chorando.
Afastando-se de Beth, tentou manter o choro baixo. Queria dizer alguma coisa, queria expressar seu medo e sua gratidão...
A Rainha apoiou as mãos nos ombros de Layla.
– Os seus direitos parentais não serão anulados. Isso não irá acontecer. E sei exatamente aonde você vai agora. É uma casa segura, totalmente protegida. V. projetou e instalou a segurança dela e eu mesma a decorei depois que a Irmandade a comprou há um ano.
– É seguro lá – Vishous declarou. – Como o cofre de um banco. E vou passar o dia com você como seu maldito colega de quarto.
– Quer dizer que estarei sendo vigiada? – Layla franziu o cenho. – Sou uma prisioneira?
O Irmão apenas deu de ombros.
– Estará protegida. É só isso.
Ao inferno que era isso, ela pensou. Mas não havia nada que pudesse fazer. Aquilo era maior do que ela, e ela sabia muito bem quais eram os motivos disso.
Voltando para Lyric e Rhamp, descobriu que as lágrimas jorravam dos seus olhos com mais rapidez do que era capaz de enxugá-las com o bolo molhado no qual o lenço se transformara. De fato, as fêmeas da casa terem aparecido para apoiá-la descongelara a névoa no meio do seu peito, e agora suas emoções estavam em chagas novamente.
A mão tremia ao puxar as mantas até debaixo dos queixos deles.
– Meus pequenos – sussurrou. – Mahmen logo voltará. Eu não... os estou abandonando...
Não havia como alongar o adeus. Ela soluçou tanto que falar era impossível.
Sua jornada para ter aquelas duas preciosidades começara ao que parecia uma eternidade atrás, na época em que vivenciou o cio e implorara para que Qhuinn a servisse. Em seguida foram aqueles meses intermináveis da gestação, e os partos de emergência.
Existiram tantas impossibilidades pelo caminho, tantos desafios que não teria como prever. Mas isto era algo que ela não podia jamais ter imaginado: deixar os filhos aos cuidados de outros, por mais competentes e amorosas que estas “outras” pudessem ser, isso não era algo que pudesse ter antecipado.
Era simplesmente horrível.
– Vamos – Vishous disse com finalidade. – Antes que a aurora chegue e as coisas acabem se complicando ainda mais.
Com uma última espiada para os filhos, Layla juntou as dobras do seu roupão e saiu do quarto. Em seu rastro, ela sentiu como se tivesse deixado seu coração e sua alma para trás.
CAPÍTULO 13
Conforme a noite caía na tarde seguinte, Qhuinn não estava ciente de que o Sol descia e se punha no horizonte ocidental. Primeiro porque estava nas profundezas da clínica do centro de treinamento – portanto o gigantesco e flamejante orbe passando a vez para a Lua não era algo que ele pudesse olhar para fora da janela e ver. E, segundo, porque ele estava sob o efeito de drogas que faziam com que se esquecesse do próprio nome, quanto mais saber que horas seriam. Mas o principal motivo por ele não ter se dado conta da passagem do dia?
Mesmo com todas as coisas ruins que estavam acontecendo na sua vida, ele estava curtindo a melhor alucinação de toda a sua vida. De verdade.
A parte consciente do seu cérebro – que fora para o banco de trás do carro, tão distante do volante que a coisa podia muito bem estar amarrada no porta-malas – estava muito ciente de que aquilo que pensava estar vendo do outro lado do quarto hospitalar não estava, de jeito nenhum, acontecendo. Mas aí é que está a coisa. Ele estava tão alto que, assim como a dor da cirurgia a que fora submetido há seis horas, os eventos da noite anterior estavam um tanto temporariamente esquecidos – e isso significava que ele estava particularmente excitado.
O que não era surpresa alguma. O fato de ele ser um porco com um tremendo apetite sexual fora provado inúmeras vezes.
E, ei, considerando-se como ele se comportara na noite anterior, ele tinha muitas outras coisas com que se desapontar a respeito de si mesmo.
Portanto, sim, lá estava ele deitado num leito hospitalar, com os tubos e fios entrando e saindo dele como se ele fosse um maldito dublê de Xcor, vendo Blay sentado na poltrona do canto – aquela de cores neutras, um misto de creme com aveia que tinha os braços curvos e as costas baixas.
A braguilha do macho estava aberta, e seu pau estava exposto... E o punho de Blay envolvia o mastro espesso, as veias dos braços musculosos engrossando enquanto ele se masturbava.
– Quer isto? – o Blay hipotético perguntou com voz grave.
Qhuinn sibilou e mordeu o lábio inferior – e vejam só, rolou o quadril quase sem sentir a incisão na lateral do corpo.
– Porra se quero esse pau.
O Blay que não era de verdade deslizou pela poltrona de modo a poder afastar ainda mais os joelhos. E quando ele fez isso, os jeans pretos que vestia se esticaram por cima das coxas musculosas e aquele zíper se abriu até o limite. E... ah! Enquanto o guerreiro cuidava de si, os peitorais daquele lado flexionavam e relaxavam junto com o ombro enquanto ele bombeava devagar e bem gostoso.
Engolindo em seco, a língua perfurada pelo piercing de Qhuinn formigou de vontade de pegar a cabeça daquele pau. Queria compensá-lo pelo que saíra daquela sua boca tola enquanto estivera enfurecido e sexo não era um Band-Aid tão ruim assim.
E o Blay que não estava nada ali o deixaria fazer isso.
Flanando em seu mar de ilusão, Qhuinn sentiu uma sensação falsa de alívio que acompanhou o perdão que não existia na vida real. Só que, maldição, considerando-se o estado do resto da sua vida, ele iria em frente com aquilo. Naquele seu pedacinho de fantasia, ele subiria a bordo do trem Blay e rezaria para que, de algum modo, pudesse traduzir aquela conexão com o macho de verdade assim que o efeito das drogas passasse.
– O que quer fazer comigo? – Quase Blay sussurrou. – O que vai fazer com essa sua língua?
Ah, chega de conversa.
Com um movimento repentino, Qhuinn se sentou na cama – porque é isso o que se faz quando se tem grandes planos: tinha toda a intenção de atravessar aquele quarto de hospital, cair de joelhos, escancarar a boca até secar Blay de uma vez. E isso seria apenas um prelúdio para o sexo de reconciliação que apreciariam pelas próximas doze ou quinze horas.
Portanto, sim, infernos, ele se pôs na vertical – mas só foi até aí. Seu estômago puxou o pino da granada que nem sabia que estivera de posse e depois as entranhas largaram a maldita direto nos pulmões, a dor lançando-o num parafuso descendente que o deixou nauseado.
E, maldição, aquela dor lancinante foi um terrível clareador de ideia, apagando o Blay Hipotético com seu magnífico pau ereto daquele quarto...
Quando o som de alguém gritando foi registrado, ele levou a mão à boca para verificar se fora ou não ele. Não. Seus lábios estavam fechados.
Qhuinn franziu o cenho e olhou para a porta.
O que estava... Quem estava gritando assim? Não podia ser Xcor. Se a Irmandade tivesse de algum modo conseguido recapturá-lo, eles jamais trariam o bastardo para cá.
Tanto faz. Não era problema seu.
Relanceando para a esquerda, Qhuinn mediu a distância entre ele e o telefone fixo da casa na mesinha de cabeceira. Uns duzentos metros. É, talvez duzentos e cinquenta.
Então, se ele fosse um jogador de golfe, estaria sem tacadas numa jogada de longa distância.
Com um gemido, iniciou o processo de se erguer e esticar o braço o mais que podia. Bem perto do alvo. E... quase lá.
Depois de algumas passadas fúteis e remexidas das pontas dos dedos, finalmente conseguiu tirar o fone antigo do gancho. Até conseguiu acomodá-lo sobre o peito sem derrubar a maldita coisa.
Levar a coisa até a orelha também, fácil como tirar doce de criança.
Mas, cacete, a coisa do discar...
Teve que retirar o acesso extra... quer dizer, intravenoso. Uma sujeira, o portal aberto da máquina vazando um líquido claro no chão enquanto o sangue escorria de onde o tubo estivera conectado na curva do seu braço. Quem se importava. Ele mesmo limparia... Quando conseguisse ficar de pé sem vomitar.
Por um instante, encarou os doze botões em seus quadradinhos bem arrumados, mas não conseguia se lembrar da sequência. Mas o desespero tornou sua memória muito mais afiada do que ela tinha qualquer direito de ser e ele se lembrou do padrão mais do que da ordem dos números.
Um toque. Dois toques. Três...
– Alô? – disse uma voz feminina.
A luz do sol praticamente estava 97% sumida do céu quando Blay abriu a porta e saiu para a varanda de trás da nova casa dos pais. Frio, muito frio, e o ar estava tão seco que parecia jato de areia em seu nariz.
Cara, como ele odiava dezembro. Não só porque ficava frio assim, mas porque significava que ainda havia uns... quatro meses antes que o tempo melhorasse e as pessoas não sentissem necessidade de se cobrirem toda vez que saíam de cada.
Levando o cigarro aos lábios, acendeu-o com seu isqueiro de ouro da Van Cleef & Arpels – aquele dos anos 1940 que Saxton lhe dera na época em que namoraram – e amparou a chama alaranjada com a mão. A primeira tragada foi...
Horrível pra cacete.
Um acesso de tosse atacou o que deveria ter sido um alegre reencontro entre dois velhos amigos: seus pulmões e a nicotina. Mas ele se recuperou rapidamente, e em três baforadas, estava de volta à ativa. E o formigar conhecido na cabeça fazia com que se sentisse mais leve do que na verdade estava, a fumaça descendo pelo fundo da garganta como o afago de uma massagista em seu esôfago, cada exalada algo bem perto de uma sessão de quiropraxia ao longo da coluna.
Ouvira dizer que fumar era estimulante? O leve zunido no seu lobo frontal não confirmava essa ideia. Mas era estranho como tudo a respeito daquele vício o acalmava: a potencialidade para relaxamento começara a se amalgamar no instante em que encontrara um velho maço ainda fechado de Dunhill Reds na gaveta do criado mudo do seu quarto no andar de cima, e culminara ali, no primeiro momento de semi paz desde que aparecera na casa há doze horas, com a desculpa de ir ver como estava o tornozelo da mãe.
Bateu o cigarro no cinzeiro de cristal que equilibrara sobre a grade da varanda, e depois o levou de volta aos lábios, inalou, exalou.
Concentrando-se no prado coberto de neve atrás da casa, sentiu pena da mãe. Tivera que deixar a verdadeira casa da família quando redutores atacaram o lugar – um episódio que, embora ele pudesse ter vivido ser isso, mostrara que contadores como seu pai e fêmeas civis como sua mãe sabiam ser duros na queda quando necessário. Mas, sim, não havia como permanecerem lá depois de algo semelhante – e depois de passarem um tempo de um lado para o outro, hospedando-se com parentes por um tempo, os pais finalmente compraram esta nova casa em estilo colonial onde havia fazendas e espaços vazios de terra.
Sua mãe odiava a casa, mesmo que todos os utensílios fossem novos, as janelas se abrissem e fechassem com facilidade, e nenhuma das tábuas rangesse. Pensando bem, talvez fosse por tudo isso que ela desgostava da casa, mas o que se podia fazer? E aquele não era um lugar ruim. Quarenta mil metros quadrados com boas árvores, uma linda varanda circundando-a completamente e, pela primeira vez, sistema de ar condicionado central.
Que não era necessário ao norte do Estado de Nova York a não ser por talvez a última semana em julho e a primeira em agosto.
E durante essa quinzena de noites, você se sente verdadeiramente grato por possuí-lo.
Enquanto fitava o laguinho congelado com as hastes altas de amentilhos e montes de neve que formavam letras “S” no chão, deixou que a mente vagasse por todo tipo de pensamentos não controversos sobre propriedades e sistemas de ar condicionado central, e vícios que não eram tão graves assim.
Deus bem sabia que isso era bem mais fácil do que o manteve acordado o dia inteiro.
Quando chegara na noite anterior, perto do amanhecer, não tivera coragem de contar aos pais o que acontecera. A questão era que, quando Qhuinn afirmou que ele, Blay, não era pai daquelas crianças, o cara apagara qualquer direito de avós que a sua mãe e o seu pai acreditavam ter também. Portanto, não iria explicar por que ele...
O rangido da porta logo atrás fez com que ele se virasse.
– Oi, Mahmen – ele disse, escondendo o cigarro atrás das costas. Como se fosse um maldito pré-trans fazendo algo errado.
Ainda assim, bons garotos gostam de deixar suas mães felizes, e Blay sempre fora um bom garoto.
Sua mahmen sorriu, mas os olhos dispararam para o cinzeiro e, convenhamos, até parece que ela não sentiria o cheiro no ar? E ela também nunca lhe pedira para parar, só que era como Qhuinn. Não era fã, mesmo não existindo nenhum risco de câncer com que se preocupar.
– Você tem um telefonema. – Ela indicou com a cabeça para trás. – Há uma extensão no escritório do seu pai caso queira um pouco de privacidade?
– Quem é?
Ele perguntou isso para ganhar tempo, apesar de estar bem claro quem estava ligando – mas ela não pareceu se importar.
– Qhuinn. Ele parece um pouco... estranho.
– Aposto como parece.
Blay voltou a olhar para o laguinho. Também voltou a fumar, porque se sentiu subitamente agitado.
– Não quis me meter, Blay. Mas sei que há algo de errado entre vocês dois, de outro modo, ele também estaria aqui. Quero dizer, seu Qhuinn nunca deixa passar uma chance de vir comer a minha comida.
– Pode dizer a ele que não estou aqui? – Bateu as cinzas no cinzeiro apesar de não haver muito para bater. – Diga que saí. Ou algo assim.
– Tarde demais. Eu já disse que você estava na varanda. Desculpe.
– Tudo bem. – Equilibrando o cinzeiro, apagou o Dunhill. – Importa-se se eu deixar isto aqui agora? Eu limpo antes de ir embora.
– Claro. – Sua mahmen deu um passo para o lado e esperou com a porta aberta. Quando ele não foi de imediato, ela pareceu triste. – O que quer que seja, vocês dois saberão resolver. Ser pais novos pode mudar muitas coisas, mas nada a que não possam se ajustar.
Bem, aparentemente, só um de nós é um pai novo, então...
Blay atravessou a varanda e lhe deu um beijo.
– No escritório? Tem certeza de que papai não vai precisar dele?
– Ele está no sótão. Acho que está alfabetizando as nossas malas, por mais estranho que isso possa parecer.
– Nada é estranho no que se refere a papai e a organização. É por cor ou marca?
– Marca primeiro, depois por cor. Quem haveria de saber que aquelas Samsonites dos anos 1970 durariam tanto?
– Baratas, Twinkies e Samsonites. Isso é o que restará depois de uma guerra nuclear.
Estava bem mais quente no interior, e enquanto se dirigia para o escritório do pai, seus Nikes guincharam no assoalho recém-envernizado de pinho. Acendendo a luz, foi confrontado por um conjunto de escritório completo. A escrivaninha, na ponta oposta, não era nada especial, apenas uma peça legal da loja Office Depot com pernas pretas e tampo marrom claro, e sobre ele, havia um telefone e uma calculadora antiga com um rolo de papel. A cadeira era preta e acolchoada, e o computador era um Mac, não um PC.
Melhor não contar isso ao V., pensou ao fechar a porta.
Havia uma série de janelas, todas elas com cortinas pesadas ainda fechadas, evidência que seu pai ainda não batera o ponto na empresa de consultoria que começara. Trabalhar de casa era uma benção para os vampiros que queriam ganhar dinheiro no setor humano, e ainda mais apropriado se você é um contador que vive dos números.
Sentando-se atrás da central de comando do pai, Blay apanhou o fone e pigarreou.
– Alô?
Houve um clique quando sua mãe desligou a extensão da cozinha, ou da sala de estar, ou de onde quer que tenha atendido o telefonema. Em seguida, nada além de estática do outro lado da linha.
– Alô...? – repetiu.
A voz de Qhuinn estava tão rouca que mal se ouvia.
– Oi.
Longo silêncio. Não era uma surpresa. Era Blay quem normalmente pressionava para que se comunicassem quando divergiam em algo, em grande parte porque não lidava bem com distanciamento entre eles, e Qhuinn sempre teve dificuldades para falar sobre “sentimentos”. Inevitavelmente, porém, o macho cedia, e falavam o que tinham que falar como adultos – e depois Qhuinn o serviria sexualmente por horas, como se o cara quisesse compensar por sua fraqueza interpessoal.
Era um bom “modus operandi”. Normalmente funcionava para eles.
Mas não esta noite. Blay não entraria nesse jogo.
– Então, me desculpe – Qhuinn disse.
– Pelo que. – A pausa que se seguiu sugeria que Qhuinn estava pensando “você sabe pelo que”. – Sim, vou fazer você dizer.
– Me desculpe pelo que saiu da minha boca quando eu estava alterado. Sobre Lyric e Rhamp e você. Eu sinto muito mesmo... Estou me sentindo péssimo. Eu estava tão furioso que não estava pensando direito.
– Acredito nisso. – Blay passou os dedos pelas teclas da calculadora do pai, com seus números no centro e os símbolos nas beiradas. – Você estava muito alterado.
– Eu não conseguia acreditar que Layla os colocara em risco daquele jeito. Isso me deixou louco pra cacete.
Aquela era a hora de Blay concordar, de afirmar que, sim, qualquer um ficaria furioso. E que seria difícil não ficar.
– Ela arriscou mesmo as vidas deles. Isso é verdade.
– Quero dizer, consegue imaginar uma vida sem aqueles dois?
Oras, sim. Passei boa parte do dia fazendo exatamente isso.
Um bolo se formou na garganta, e Blay tossiu para desalojá-lo.
– Não, não consigo.
– Eles são o que há de mais importante na minha vida. Os dois e você.
– Sei disso.
Qhuinn exalou como se estivesse aliviado.
– Fico feliz que entenda.
– Eu entendo.
– Você sempre me entendeu. Sempre.
– É verdade.
Houve mais um silêncio. E depois Qhuinn disse:
– Quando você vai voltar? Preciso te ver.
Blay fechou os olhos contra o tom sedutor da voz dele. Ele sabia exatamente o que estava se passando pela cabeça de Qhuinn. Crise superada, hora do sexo – e isso não era uma hipótese desagradável, não mesmo. Mas, convenhamos, Qhuinn era um orgasmo de pé em coturnos, uma força da natureza dominante na horizontal, capaz de fazer um macho se sentir como a coisa mais desejável na face da Terra.
– Blay? Espere, a sua mahmen está bem? Como está o tornozelo dela?
– Melhor. Ela está conseguindo se movimentar. A doutora Jane disse que em mais uma ou duas noites, ela poderá tirar a bota. Está se curando bem depois da queda.
– Que ótimo. Diga a ela que estou feliz por ela estar se recuperando.
– Eu direi.
– Então... quando vai voltar para casa?
– Não vou.
Longo silêncio.
– Por quê?
Blay passou as pontas dos dedos sobre os números do teclado, na ordem certa – primeiro crescente, do zero ao nove, depois decrescente. Não pressionou com força de modo que nada apareceu na parte acesa nem no rolo de papel para que começasse a imprimir algo.
– Blay, de verdade, sinto muito. Estou me sentindo uma merda. Nunca quis te magoar, nunca.
– Acredito nisso.
– Eu não estava bem da cabeça.
– E isso é um problema meu.
– Olha só, eu não consigo acreditar que saquei uma arma e puxei o gatilho. Quero vomitar toda vez que penso nisso. Mas já me acalmei agora e Layla saiu de casa. Foi a primeira coisa que perguntei quando me recuperei. Ela está fora e as crianças estão seguras, então eu estou bem.
– Espera. Recuperar do quê? Você se machucou depois que fui embora?
– Eu, ah... É uma longa história. Volta pra casa e eu te conto pessoalmente.
– Eles tiraram os direitos de Layla?
– Ainda não. Mas vão tirar. Wrath vai entender o meu lado. Afinal, ele é pai.
Aquele bolo na garganta de Blay voltou, mas não tão ruim desta vez. Não precisou tossir.
– Layla ainda deveria ser capaz de ver as crianças regularmente. Eles precisam da mahmen deles, e quer você goste disso ou não, ela deveria estar nas vidas deles.
– O que está dizendo, que ela e Xcor deveriam levá-los para o McDonald’s pra comer a porra de uma porção de batatas fritas e tomar uma Coca?
– Não vou discutir isso com você. Não é da minha conta, lembra?
– Blay. – Agora vinha a impaciência. – O que mais quer que eu diga?
– Nada. Não há nada a...
– Já estou com a cabeça no lugar. Sei que estive errado ao gritar com você daquele jeito e...
– Pare. – Blay pegou o maço de Dunhill, mas depois voltou a guardá-lo no bolso da camisa. Não fumaria dentro da casa. – O fato de você ter se acalmado? Que bom, talvez isso o ajude a ser mais racional no que se refere a Layla. Mas tem uma coisa... Quando as pessoas estão bravas, elas dizem a verdade. Você pode se desculpar o quanto quiser por ter ficado bravo e ter gritado comigo e toda essa merda. O que você nunca vai conseguir retirar, contudo, é o fato de que, naquele momento, numa fração de segundo, quando não tinha a capacidade de dourar a pílula, ou pensar no que dizia ou ser gentil... você deixou claro, para que todos ouvissem, no que acredita de fato. Que eu não sou pai daquelas crianças.
– Você está tão errado. Eu só estava irritado com a Layla. Não tinha nada a ver com você.
– As suas palavras têm tudo a ver comigo – e, olha só, não é que eu não entenda. Você é o pai biológico daquelas crianças. Isso é algo que ninguém pode tirar de você nem mudar – isso é sagrado, uma realidade determinada no segundo em que Layla engravidou graças a você. E é por isso que a ideia de você esperar que Wrath finja que da noite passada pra frente Layla não deve estar nas vidas deles é a maior cretinice. Ela está no sangue deles, assim como você está. É verdade, ela tomou uma decisão muito errada enquanto estava grávida, mas os bebês nasceram, e ela não os deixou nem por um segundo desde que deu a luz. Você sabe muito bem que ela só pensa neles, não em outra coisa nem ninguém mais, e isso inclui Xcor. Se você tirar os direitos dela? Só estará fazendo isso para ser cruel porque quer que ela tenha medo de você e você quer lhe ensinar uma lição e fazê-la sofrer. E esse não é um motivo bom o bastante para afastá-la de Lyric e Rhamp.
– Ela se associou ao inimigo, Blay.
– E ele não a machucou, não é mesmo? Nem aos seus filhos. – Blay imprecou. – Mas isso não é da minha conta...
– Dá pra parar de ficar jogando isso na minha cara!
– Não estou dizendo isso pra te irritar. – De repente, seus olhos se encheram de lágrimas. – Estou dizendo isso porque essa é a minha nova realidade, e estou tentando me ajustar a ela.
Ele odiou a aspereza em sua voz – ainda mais porque Qhuinn o conhecia bem demais para não notá-la. Com isso em mente...
– Olha só, eu tenho que ir...
– Blay, para com isso. Me deixa ir até aí pra te ver...
– Por favor, não faz isso.
– O que tá acontecendo aqui? – A voz de Qhuinn ficou contraída. – Blay. O que você tá fazendo?
Enquanto Blay se recostava na poltrona de encosto alto do pai, fechou os olhos... e a imagem de Lyric contra seu peito foi como uma espada atravessando seu coração. Deus, conseguia se lembrar de cada detalhe dela: os lindos e grandes olhos míopes que ainda tinham cor indefinida, as bochechas rosadas, a penugem loira na cabeça.
Lembrava-se de sorrir para ela, com seu coração tão cheio de amor que o corpo parecia um balão glorioso, superinflado, mas sem o perigo de explodir.
Tudo parecera mais permanente com a chegada dos bebês, como se Qhuinn e ele, já comprometidos, tivessem acrescentado umas cordas de aço ao redor deles, tendo puxado a ponta bem forte.
Ele não sabia o que era pior: perder seu lugar nas vidas dos bebês, ou não sentir mais essa segurança.
– Tenho que ir – disse de repente.
– Blay, pera aí...
Ao abaixar o fone no gancho, não foi com força. Não pegou a peça para jogá-la sobre as prateleiras muito bem ordenadas de livros sobre economia e regras de contabilidade.
Não estava bravo.
Ficar irritado com a verdade era estupidez.
Seria melhor passar o tempo ajustando-se a ela.
Muito mais lógico, mesmo que isso fizesse com que lágrimas se formassem nos seus olhos.
CONTINUA
CAPÍTULO 8
Enquanto Layla fitava os três machos, tremia tanto que era difícil manter o tronco ereto, longe do chão. O que lhe outorgava as poucas forças de que dispunha? Lyric e Rhamp estavam em seu colo, as dobras do roupão os envolvia como proteção contra o frio do quarto, o choro deles tinha sido silenciado... por enquanto.
Concentrando-se no Rei, quis enxugar os olhos, mas não soltaria os filhos nem por um segundo.
– Ela andou se encontrando com Xcor – Qhuinn desabafou, sua respiração saindo em nuvens brancas. – Pelas nossas costas. Esse tempo todo, enquanto estava grávida. Quero privá-la do direito de ver meus filhos, e também que ela saia desta casa. Tanto faz que ela seja sentenciada à morte ou banida... Isso é você quem decide.
O rosto cruel e aristocrático de Wrath se virou na direção do Irmão.
– Obrigado por me dizer qual o meu papel, babaca. E se está se referindo a banimento, neste instante, é você que me vem à mente, não ela.
– Imagine descobrir que Beth está dormindo com o líder do Bando de Bastardos enquanto ela...
– Cuidado com suas palavras – Wrath rosnou. – Está andando numa corda muito fina, da qual está prestes a cair. Na verdade, saia daqui. Quero conversar com Layla a sós.
– Não vou deixar os meus filhos.
O Rei relanceou para Blay.
– Tire-o daqui. Esganado, se for preciso...
– Tenho meus direitos! – Qhuinn exclamou. – Eu tenho...
Wrath movimentou o quadril para a frente.
– Você só tem a porra do que eu te conceder! Sou seu dono, fodidão, então feche a matraca e saia da porra deste quarto. Cuido de você quando eu achar que é a sua vez. Entendo que está com a cabeça quente, e até tentaria respeitar isso se você não agisse como dono do mundo. Mas, neste instante, minha única preocupação são os seus filhos, porque, evidentemente, eles não estão no seu radar...
– Como diabos você pode dizer isso...
– Porque você acabou de apontar uma arma para a mahmen deles!
Ao lado de Qhuinn, Blay parecia ter estado em contato próximo com a morte. Sua expressão era um misto de horror e tristeza, suas mãos tremiam ao passá-las repetidas vezes pelos cabelos ruivos.
– Sou o Rei, esta é a minha casa. Tire-o daqui, Blay. E isso é uma ordem.
Blay cochichou algo inaudível para Qhuinn. Em seguida, Qhuinn marchou para fora do quarto, os coturnos esmagando o carpete coberto de gelo. Enquanto ele prosseguia, Blay o acompanhou, como um guarda-costas faria.
Só que Blay, na verdade, estava protegendo os demais presentes.
Quando restaram apenas Wrath e a Escolhida, Layla inspirou tão fundo que doeu.
– Permite-me colocar os bebês no berço, meu senhor?
– Tá, tá. Faça o que precisa fazer.
Parecia que suas pernas estavam desprovidas de ossos, e com a fúria dissipada, ela temia não ter forças para ficar de pé e carregar os dois em segurança ao mesmo tempo. Foi difícil decidir quem deixar de lado por enquanto, mas, no fim, colocou Rhamp com cuidado sobre o tapete oriental. Segurando Lyric com os dois braços, esforçou-se para ficar de pé e caminhar aos tropeços até o berço. Depois de depositar Lyric no ninho macio, voltou para apanhar Rhamp, que havia começado a se agitar com a ausência da irmã. Ajeitando as cobertas ao redor deles para mantê-los aquecidos, preparou-se para enfrentar o Rei.
– Posso me sentar? – sussurrou.
– Sim, é melhor mesmo.
– Não há nada diante dos seus pés, meu senhor. Se desejar avançar pelo quarto.
Ele ignorou a tentativa dela quanto a ajudá-lo a navegar em sua cegueira, em território desconhecido.
– Quer me explicar o que diabos está acontecendo aqui?
Qhuinn não conseguia se lembrar de absolutamente nada.
Ao se dirigir até a sala de estar do segundo andar, no lado oposto da mansão, ele tentava juntar a série de eventos, porque isso lhe dava outra coisa para fazer além de gritar. Seu último instante de clareza foi aquele em que quase derrubou a porta de entrada para entrar na casa. Tudo a partir daquela fração de segundo, até o momento, enquanto ele andava ao redor dos sofás de seda e das mesinhas auxiliares – era uma tábula rasa.
E quanto mais se esforçava para se lembrar, mais indefinível tal hiato na realidade se tornava, como se a perseguição tornasse a vítima mais ligeira.
Mas que diabos, não estava conseguindo pensar. Não conseguia...
Indistintamente, percebia que Blay o observava. E então o macho começou a falar. Mas só o que Qhuinn conseguia fazer era circular, dando voltas na mobília, com a necessidade premente de proteger os filhos mantida como o principal objetivo que exigia toda a sua concentração.
O que diabos Wrath faria? Por certo, o Rei não permitiria que Layla... Saído sabe-se lá de onde, Blay se empostou diante dele, com o rosto impassível e as costas aprumadas.
– Não consigo fazer isto.
– Fazer o quê?
– Ficar no mesmo cômodo que você nem por mais um minuto.
Qhuinn piscou.
– Então saia. Estou desarmado, lembra? E tem uns mil quilos de Irmandade pairando ao redor daquele maldito quarto.
De outro modo, sim, ele ainda estaria ali. Com seus filhos.
– Pode deixar – Blay murmurou. – Vou para casa ver como a minha mahmen está.
Quando as sílabas atingiram o ar entre eles, Qhuinn precisou de um minuto em meio à salada do seu cérebro para decifrá-las. Casa...? Mahmen...? Ah, verdade. O tornozelo dela.
– Ok. Tá bem.
Blay continuou onde estava. E depois, num tom baixo, disse:
– Você vai sequer se importar se eu voltar, ou não, antes do amanhecer?
Quando houve uma batida de coração de pausa, o macho retrocedeu, meneando a cabeça ao seguir para a saída. Qhuinn notou a partida dele – e uma parte sua sabia que deveria chamá-lo, para se reconectarem... impedi-lo de sair. Mas outra porção muito maior sua estava de volta àquele quarto, à procura de agarrar os fios de lembranças do espaço em branco que havia tomado conta dele.
Jesus... Havia mesmo disparado uma arma na mansão? Com seus filhos no quarto...
– Qhuinn?
Ele voltou a se concentrar na sala. Blay estava na soleira, com os olhos estreitados e o maxilar travado.
O macho pigarreou.
– Só para que você e eu estejamos de acordo em relação a um ponto, eu nunca serei capaz de tirar o que você disse da minha cabeça. E o mesmo vale para a cena de você com aquela arma na mão.
– Pelo menos um de nós vai se lembrar – Qhuinn murmurou.
– Como que é?
– Não consigo me lembrar de nada.
– Ah, pare com isso. – Blay apontou um dedo na direção dele. – Você não pode apagar aquela cena alegando amnésia momentânea.
– Não vou discutir com você sobre isso.
– Então não temos muito para dizer um ao outro, né?
Quando Blay apenas o encarou, Qhuinn sacudiu a cabeça.
– Olha só, sem querer te desrespeitar, a vida dos meus filhos é só no que eu consigo pensar agora. Layla não é quem eu pensei que fosse, e ela...
– Para a sua informação, você acabou de me dizer que eu não sou pai. – A voz de Blay saiu dura, como se estivesse tentando esconder a dor. – Você me olhou nos olhos e me disse que as crianças e a mãe delas não eram da minha conta.
Num eco distante, nas profundezas da consciência de Qhuinn, surgiu um ódio ainda ardente. Mas foi um fio ao qual ele não conseguiu se apegar. Só o que queria fazer era voltar para o quarto e apanhar o filho e a filha, e sair dali. Não se importava para onde iria...
Blay praguejou.
– Não espere por mim. Não vou voltar.
E dessa maneira, Qhuinn ficou sozinho.
Fantástico. Agora o seu relacionamento também estava na merda.
Inclinando-se para o lado, Qhuinn espiou através da soleira da porta, mas mais para tentar avaliar se ainda havia Irmãos no corredor das estátuas. Sim, os guerreiros pairavam por ali – até parece que alguém iria sair? Mesmo com a ordem de Wrath para manterem distância?
Eles muito provavelmente dormiriam do lado de fora da droga daquele quarto, protegendo uma fêmea que não merecia isso...
Em seguida, Qhuinn se deu conta de que tinha um abajur nas mãos, e segurava o vaso oriental modificado como se fosse um bastão de beisebol. E, vejam só, pelo visto, ele tinha decidido lançá-lo em si mesmo, pois estava diante de um dos espelhos de antiguidade, seu reflexo distorcido no velho vidro espelhado.
Parecia um monstro, uma versão de si mesmo que fora processada nas engrenagens de um pesadelo, o rosto cerrado como um punho, as feições contraídas de um modo que mal as reconhecia. Observando, soube sem sombra de dúvida que, caso atirasse o abajur, acabaria destruindo a sala inteira, arrancando quadros da parede, quebrando janelas, tirando brasas acesas da lareira e jogando-as sobre os sofás, para formar uma fogueira de verdade.
E não pararia por ali.
Não pararia até que alguém o obrigasse, quer mediante correntes ou por meio de uma ou duas balas.
Estranhamente, seus olhos pararam no fio que pendia da base do abajur, a cauda marrom como a de um cachorro nervoso implorando por perdão e clemência por algo que não fazia a mínima ideia de ter feito.
O corpo inteiro de Qhuinn tremia ao depositar o abajur de cristal no chão.
Bem quando se endireitava, deu de cara com a janela e antes que conseguisse pensar duas vezes, foi até ela, entreabriu-a e fechou os olhos.
Mas não conseguia se desmaterializar. Não tinha nenhum lugar em mente, ele...
Não, espere. Tinha, sim, um destino. Claro que tinha a droga de um destino.
De repente, tranquilizou-se e se concentrou, desmaterializando-se para o lado externo da mansão, desejando ter agido de maneira mais fria. Se tivesse, talvez sua desforra tivesse sido evidente mais cedo.
Ao reassumir sua forma, o perfume dos pinheiros era pungente no ar invernal, e o vento passava por entre as árvores, suscitando o gemido dos pinheiros. A caverna para a qual se dirigira apresentava uma abertura escondida por rochas, mas se você soubesse o que estava procurando, não teria problemas em encontrá-la. Do lado de dentro, avançou rapidamente até a os portões da Tumba, e quando acionou o mecanismo para deslizar as paredes de granito, encontrava-se perfeitamente composto diante dos portões de ferro, com um sorriso tranquilo no rosto, como cal sobre uma cerca apodrecida.
– Estou aqui para a troca de turno – exclamou ao sacudir o metal antigo.
Torcia silenciosamente para que, só para variar, as novidades não tivessem se espalhado com tanta velocidade entre os membros da Irmandade. Que o Irmão do turno não tivesse consultado o celular, ou que todos na casa ainda estivessem tão envolvidos na situação que não tivessem pensado em mandar uma mensagem de texto para o encarregado do momento.
Phury apareceu no corredor iluminado por tochas; o som dos seus coturnos ecoava no piso de pedras, em meio aos jarros dos redutores.
– Ah, oi – cumprimentou o Irmão. – Tudo bem?
Sob a vacilante luz alaranjada, não havia nenhum sinal de suspeita, nenhum alarme no seu rosto, nada de olhos estreitados. Nenhuma mão à procura do telefone para chamar por reforços. Zero tensão, como se o guerreiro estivesse preparado para defender sua posição mesmo com os portões fechados.
– Tudo ótimo – Qhuinn respondeu como se tentasse não prestar atenção a quanto tempo o cara demoraria para se deslocar até ele. – A não ser pelo fato de eu estar cobrindo o turno de Lassiter hoje.
Phury parou junto ao portão e apoiou as mãos no quadril, o que causou em Qhuinn um ímpeto de gritar.
– Deixe-me adivinhar – disse o outro Irmão. – Maratona de Super-gatas.
– Pior. Uma retrospectiva de Maude. Bea Arthur é sexy, pelo visto. Vai me deixar entrar?
O Primale pegou a chave de cobre.
– A propósito, ele está acordado.
O coração de Qhuinn começou a bater forte.
– Xcor?
Como se pudessem estar se referindo a outra pessoa...
– Embora não muito comunicativo, está consciente. Mas nada de interrogatórios, ainda. V. teve que arrancar Tohr daqui e depois Butch saiu quando eu cheguei. – Phury abriu o portão e foi para o lado.
– E você conhece o esquema. Dois de nós temos que estar presentes para arrancar alguma coisa dele, e eu não posso ficar. Fiquei de encontrar Cormia nos Grandes Campos. Você tem um reserva ou vamos esperar cair a noite para começar a diversão?
Uma ironia, na verdade. Todos se preocuparam que Tohr poderia enlouquecer e acabar com aquele pedaço de carne antes da hora.
Mas isso não seria mais um problema, não é?
Qhuinn soltou o ar que esteve prendendo e tomou o cuidado de não entrar com afobação.
– Blay viria comigo, mas teve de ir ver a mahmen dele.
Quando trocaram de lugar, Phury lhe entregou a chave, que ele quase guardou no bolso.
– Opa, desculpe. Você vai precisar disto. Verdade, ouvi que ela caiu. Como está o tornozelo?
Qhuinn estava tão distraído pelo objeto que lhe foi colocado na mão que perdeu o fio da conversa. Que diabos eles...
– Melhor – Qhuinn se ouviu dizer ao fechar o portão e trancá-lo. – Mas ele ia providenciar alguém para cobrir o turno dele.
– Eu ficaria se pudesse.
Qhuinn observou de longe enquanto girava a maçaneta ornamentada para a esquerda, de modo que a tranca se ajustasse no lugar...
– Qhuinn?
Ele se sacudiu mentalmente e certificou de demonstrar uma expressão agradável – algo com o qual suas feições normalmente já não estavam acostumadas, mesmo sem a crise atual.
– Oi?
– Você está bem? Não parece.
Num gesto exagerado ao afastar os cabelos para trás e ao ajeitar a jaqueta, revirou o ombro – e quis saudar essa parte de sua anatomia por ter emitido um crec! bem sonoro.
– Pra falar a verdade, este ombro está me matando. – Pôs a mão nele para massageá-lo. – A doutora Jane acha que vai ter de operá-lo, para limpar o osso. Mas não é nada grave, é um crônico gradual, não agudo. Se alguma coisa acontecer com esse pedaço de carne daqui – apontou para trás, eu aguento.
Phury xingou.
– Já passei por isso. Não estou preocupado com você. Sei que dá conta do recado. Quer que eu passe na mansão para ver se Z. pode vir pra cá?
– Não, Blay vai encontrar alguém. Mas obrigado.
Pelo amor de tudo o que havia de mais sagrado, será que ele poderia parar de jogar conversa fora? A qualquer segundo, o telefone do Irmão poderia tocar com uma chamada ou mensagem para informá-lo que Qhuinn não deveria em hipótese alguma ficar a cerca de trezentos metros do prisioneiro...
– Tchau. – Phury se virou e levantou a mão. – Boa sorte com ele.
– Ele bem que vai precisar – Qhuinn sussurrou para as costas do Irmão, que se distanciavam.
CAPÍTULO 9
Em sua cegueira, Wrath estava tanto mais isolado como também mais conectado com o mundo do que os indivíduos que enxergavam: isolado, porque a ausência de pistas visuais do seu ambiente significava a permanência na flutuação numa galáxia de escuridão, e mais conectado porque seus outros sentidos estavam amplificados no seu eterno céu noturno, dentro de si, estrelas de informações pelas quais ele se guiava.
Portanto, ao ficar de frente para Layla, enquanto essa lhe contava toda a história, percebeu e acompanhou todas as nuances, as variações no cheiro e no tom de voz, em cada movimento desenhado por ela, até mesmo na pressão do ar entre eles quando o humor da Escolhida passou da raiva para a tristeza, do arrependimento para a culpa.
– Então Xcor localizou o complexo – Wrath concluiu – ao rastrear seu sangue. Foi assim que ele fez?
Houve um leve rangido na cama quando ela ajustou a divisão de seu peso sobre o móvel.
– Sim – respondeu com suavidade. – Eu o havia alimentado.
– Certo, na primeira noite. Quando Throe a enganou, levando-a até aquela campina. Ou aconteceu de novo depois disso?
– Voltou a acontecer.
– O seu sangue estava nele – Wrath repetiu. – E ele seguiu o sinal até aqui.
– Xcor prometeu que, se eu continuasse a vê-lo, ele não atacaria o complexo. Argumentei comigo mesma que estava protegendo a todos nós, mas a verdade é que... eu precisava vê-lo. Eu queria vê-lo. Foi horrível, ficar presa entre meu coração e minha família. Foi... terrível.
Maldição, Wrath pensou. Não haveria uma saída fácil da situação.
– Você cometeu um ato de traição.
– Cometi.
Wrath se esforçara muito para reverter muitas das Antigas Leis restritivas e impiedosas, abolindo sanções como a escravidão de sangue e a servidão contratual, e também estabelecendo processos básicos adequados para as ofensas entre os civis. Mas a única coisa à qual ele ainda aderia era a traição à Coroa, que era punida com a morte.
– Por favor – ela sussurrou –, não me afaste dos meus filhos. Não me mande para o Fade.
Ela dificilmente podia ser considerada uma inimiga do Estado. Mas cometera um crime muito sério – e sua cabeça estava latejando.
– Por que precisava ver Xcor?
– Eu me apaixonei por ele. – A voz da Escolhida saiu impassível, sem vida. – Não tive nenhum controle sobre isso. Ele sempre foi bem gentil comigo. Muito educado. Nunca fez um avanço em minha direção – e quando eu o fiz, ele me rejeitou, mesmo diante da clara evidência de que... que não era indiferente a mim. Ele só parecia querer estar comigo.
– Tem certeza de que ele não estava mentindo?
– Sobre o quê?
– Sobre saber a nossa localização.
– Não, não estava. Eu o vi na propriedade. Eu o encontrei... dentro da propriedade. – E falou mais rápido, com uma súplica fervorosa invadindo-lhe a voz. – Então, ele tem honra, pois poderia ter atacado, mas escolheu não fazê-lo. Manteve sua palavra, mesmo depois que me mandou ir embora e nunca mais procurá-lo.
Wrath franziu o cenho.
– Está me dizendo que foi ele quem terminou?
– Sim. Ele me expulsou e abandonou o chalé no qual efetuávamos nossos encontros.
– E por qual motivo ele teria agido assim?
Estabeleceu-se uma longa pausa.
– Eu o confrontei em relação aos seus sentimentos por mim. Eu sabia que ele sentia algo, e... Mas, sim, foi depois disso que ele me mandou embora.
– Há quanto tempo foi isso?
– Pouco antes de ele ser capturado. E sei por que ele pôs um fim a tudo. Ele não queria se sentir vulnerável ao meu lado.
Wrath franziu a testa e cruzou os braços diante do peito.
– Convenhamos, Layla, não seja ingênua. Não pensou nenhuma vez que talvez o motivo tenha sido ele enfim ter mobilizado tropas e informações o suficiente para promover um ataque aqui?
– Como? Não estou entendendo.
– Xcor trabalhou sem cessar junto à glymera para formar alianças contra mim. Antes e depois de botar uma bala na minha garganta. – Quando ela arfou, ele normalmente teria parado por ali. Mas a realidade não podia ser ignorada. – Se pretendia atacar uma fortaleza como esta, ele precisaria de meses e meses de vigilância e planejamento. E precisaria de um exército bem armado. Teria de juntar insumos e equipamentos. E está me dizendo que você não cogitou, nem por um momento, que ele continuava a usá-la só para ganhar tempo? E que talvez a tenha dispensado porque estava finalmente pronto?
A voz dela ficou estridente.
– Depois que ele me mandou embora, fiquei confusa e triste, mas refleti muito. Sei que o que ele sente por mim é real. Analisei seus olhos. Enxerguei esse sentimento.
– Não seja romântica, ok? Não no que se refere à guerra. Aquele maldito é um assassino frio e implacável, e usou você. Você é como todo o resto para ele. Um instrumento para ele chegar onde quer. Tire essa venda, fêmea, e caia na real.
Houve um longo silêncio, e ele praticamente conseguia escutar o funcionamento de suas reflexões.
E, em seguida, ela disse num fio de voz:
– À parte de tudo isso... O que vai fazer comigo?
Enquanto Xcor ouvia as vozes ao longe no corredor, testou as amarras, apesar de saber que nada havia mudado e ele continuava preso ali, junto à maca. E então captou o cheiro de outro macho, ouviu passadas pesadas se aproximando, sentiu a agressividade que beirava a ira.
Era chegada a sua hora. O acerto de contas; e ele não sobreviveria.
Ao mexer braços e pernas uma vez mais, descobriu que suas forças eram mínimas. Mas era assim que a situação se apresentava. Talvez significasse uma morte mais rápida, e isso não deixava de ser certa bênção.
O rosto que entrou em seu campo de visão lhe era bem conhecido: os olhos que não combinavam – um azul, outro verde –, feições endurecidas, e cabelos negros que fizeram Xcor sorrir um pouco.
– Me acha engraçado? – Qhuinn exigiu a resposta num tom afiado como a sua adaga. – Imaginei que fosse receber seu assassino com outra expressão que não um sorriso.
– Ironia – Xcor comentou, rouco.
– Destino, filho da puta.
Qhuinn dirigiu-se ao aço que prendia o tornozelo esquerdo de Xcor, os puxões fizeram-no franzir a testa em confusão – e, quando a pressão se esvaiu, ele se esforçou para levantar a cabeça. O Irmão seguiu para o tornozelo direito para libertá-lo... depois subiu para os pulsos.
– O que... faz... – Não conseguia entender os motivos para ser libertado. – Por que...
Qhuinn deu a volta pela cabeça e soltou a última das amarras.
– Porque quero que seja uma luta justa. Sente-se, caralho.
Xcor começou a se mover com lentidão, dobrando os braços e depois levantando os joelhos. Depois de ter permanecido de costas por sabe-se lá quanto tempo, todos os seus músculos se atrofiaram e havia uma rigidez inerente às juntas que o fez pensar em galhos de árvore sendo partidos. Mas era incrível como estar na iminência de um ataque fazia com que você superasse as barreiras da dor.
– Você não... – Gemeu ao se apoiar nos cotovelos, as vértebras estalaram ao longo da coluna – ... nem vai me perguntar...
Qhuinn ajustou sua posição de combate a um metro e meio de distância – os punhos erguidos, o peso apoiado nas coxas.
– Perguntar o quê?
– Onde estão meus soldados?
Desde que sua consciência tinha sido notada pelos seus captores, todos os tubos e fios haviam sido desconectados do seu corpo, e as máquinas que o mantiveram vivo foram retiradas, a não ser pelo acesso intravenoso no braço. Por instinto, ele o arrancou e deixou um buraco sangrando.
– Isto não se trata do Bando de Bastardos.
Com isso, o macho o atacou, desferindo um soco de direita tão certeiro e violento que se assemelhou a ser atropelado por um carro bem no rosto. Sem energia, sem coordenação e com um corpo nu que não respondia a comandos mais complexos do que apenas respirar e piscar, Xcor virou a maca. Em pleno ar, tentou agarrar o que podia para aplacar sua queda – e apanhou a beirada da maca, derrubando-a por cima do seu corpo.
Qhuinn atacou o escudo, apanhou-o e jogou-o por cima do ombro como se não pesasse mais do que um travesseiro. O baque, quando a maca atingiu prateleiras e jarros, foi tão alto como se uma bomba tivesse sido detonada no corredor iluminado pelas tochas.
– Seu filho da puta! – Qhuinn berrou. – Cuzão maldito!
Xcor se sentiu suspenso pelos cabelos, e as pernas não tiveram nem a chance de falhar sob o peso corpóreo, visto que seguiu o mesmo curso do leito hospitalar – voou em pleno ar, chocou-se contra uma seção de prateleiras, e os jarros amorteceram-lhe a queda como o cascalho o faria.
Quando ele aterrissou num fardo, o chão de pedras rachou sua pelve como se fosse vidro, ou pelo menos assim pareceu. Então, Xcor rolou de costas, na esperança de conseguir uma postura defensiva com as mãos.
Qhuinn saltou sobre o adversário, com uma bota em cada lado do tronco dele. Agachando-se, o Irmão exclamou:
– Ela estava grávida dos meus filhos! Jesus Cristo, você poderia ter matado eles!
Xcor fechou os olhos ante a imagem nítida de Layla, e seu corpo em progressiva transformação, como resultado do filho de outro macho – o filho desse macho – crescendo dentro dela. E outras imagens piores surgiram em sua mente... o da pele nua dela revelada para o toque de outro macho, seu cerne precioso penetrado por alguém que não ele, uma cópula acontecida entre ela e outro.
Do nada, uma fonte de energia ressurgiu em seu corpo, como gasolina a invadir o que antes era um motor seco.
Desprovido de um pensamento consciente, ele escancarou as presas, os caninos se projetaram por conta própria, o cheiro da sua vinculação em constante expansão rumo ao alvo que mataria apenas com as mãos.
As narinas de Qhuinn se inflaram e ele ficou imóvel, tamanha a sua supresa.
– Só pode ser a porra de uma brincadeira... Você se vinculou a ela, maldito? – O Irmão começou a gargalhar, lançando a cabeça para trás; na sequência, porém, deixou de lado a descontração do momento e escarneceu: – Bem, eu a atendi no cio. Pense nisso, filho da puta. Fui eu quem a possuiu e quem aliviou seu sofrimento de um jeito que só os machos...
A parte mais selvagem de qualquer vampiro tomou conta de Xcor, um ato dilacerador sobre o manto claustrofóbico da fraqueza, expondo o guerreiro em seu sangue, o assassino em sua medula.
Xcor saltou e atacou o Irmão com tudo o que tinha dentro de si, acertou Qhuinn e lançou ambos em uma confusão até a parede oposta e suas prateleiras. As posições mudaram quando Qhuinn o empurrou e socos foram desferidos. Era evidente que Xcor estava atrapalhado e poderia ser facilmente dominado, mas tinha a vinculação ao seu lado, a necessidade masculina de proteger e defender, o ciúme inato, o sentimento de posse sobrepujante produzindo-lhe uma força vital para atacar até subjugar o competidor.
Enquanto brigavam, seus pés esmagavam os jarros quebrados, Xcor sangrava no nariz e arrastava uma das pernas como peso morto, mas atingiu Qhuinn com a cabeça e usou todas as forças para empurrar o oponente. Enquanto Qhuinn se precipitava em direção aos equipamentos médicos, Xcor mantinha os braços em busca do equilíbrio que não conseguia encontrar, e saltou para a frente. Seu objetivo era aterrissar sobre o Irmão e bater nele até que perdesse os sentidos.
Mas, como um guerreiro treinado que era, Qhuinn conseguiu girar no meio da queda livre e, de alguma forma, endireitou-se a tempo de plantar as botas no chão e agarrar um dos monitores. Girando o equipamento pesado num círculo, lançou-o contra Xcor, como se fosse uma rocha.
Sem tempo para se abaixar – não com a parca coordenação que detinha no momento –, o impacto fez com que Xcor perdesse o ar e o equilíbrio: o ar foi forçado para fora dos pulmões e o equipamento médico o atingiu na lateral. No entanto, após um ínfimo segundo de recuperação, lançou-se a um rolamento defensivo, pois Qhuinn havia apanhado outro equipamento, que dessa vez era mais largo.
Qhuinn suspendeu o exaustor no alto, e Xcor sabia que configurava um alvo grande e lento demais, de modo que o Irmão não erraria a mira.
Por isso, atacou o macho ao invés de escapar dele. No último instante, Xcor se deitou, empurrou o chão com a palma e mobilizou cada músculo que tinha para lançar a parte inferior do corpo num movimento em arco, as pernas formaram um círculo...
... que tirou os pés de Qhuinn debaixo de si.
Enquanto o Irmão caía, o exaustor escorregou-lhe das mãos e caiu sobre ele. Ao se deparar com o xingamento e o grunhido, era possível inferir que o contato tinha ocorrido em um ponto vulnerável.
De fato, ele se enrolou sobre si mesmo como se as entranhas tivessem sido comprometidas.
Uma fração de segundo. Xcor tinha uma fração de segundo para pensar além da sua reação de macho vinculado e analisar a luta a partir da lógica. Por sorte, não havia muito em que pensar. Mesmo com a vinculação correndo nas veias, a derrota era iminente.
E quando se enfrenta um oponente que se sobrepõe a você, o que se deseja é sobreviver, então o passo é recuar e mandar o ego para o inferno.
Bloodletter lhe ensinara isso. À força.
Com Qhuinn se reerguendo de quatro e amparando a lateral do corpo, Xcor disparou, com seus pés ensanguentados, para então tropeçar e cair por cima do leito derrubado, passando por cima dos escombros dos jarros dos redutores e dos corações pútridos e rançosos que estiveram dentro deles. Não podia correr; seus passos mais se assemelhavam aos de um bêbado, fazendo-o andar torto; a cabeça girava mesmo apesar da certeza de que as tochas e as paredes estavam imóveis.
O mais rápido que conseguia. E depois ainda mais.
Ele seguiu o mais rápido que um macho imobilizado pelos inimigos durante semanas a fio conseguiria.
Era o equivalente a afirmar que ele parecia estar passeando. Qhuinn, no entanto, tinha sido gravemente ferido. Um olhar de relance por cima do ombro mostrou que o Irmão vomitava sangue.
Xcor seguiu em frente, com um breve otimismo incitando-o avante. Só que acabou confrontando um problema de tamanha magnitude que sua ineficiência em se deslocar com agilidade se tornou um problema pequeno.
Sob a iluminação das tochas, ele avistou os portões pesados logo adiante, constituídos de barras grossas de ferro incrustadas nas rochas da caverna – e eles tinham uma malha de aço sobre elas, tão fina que se desmaterializar através dela seria impossível.
Xcor arfava, sangrava, suava e tremia ao se aproximar e testar a resistência da barreira com seus braços patéticos. A barreira era sólida como as paredes da caverna. Nenhuma surpresa.
Olhando para trás, viu Qhuinn se levantar, sacudir a cabeça como que para clareá-la e encontrar um foco absoluto.
Como um predador faz com sua presa.
O fato de o queixo do macho escorrer sangue, que lhe cobria o peito, parecia um presságio do futuro.
Infelizmente, ele não sobreviveria a isso.
CAPÍTULO 10
Enquanto Layla aguardava o pronunciamento de Wrath sobre a sua punição, ela sequer conseguia engolir devido ao medo, à vergonha e ao arrependimento.
Incapaz de ficar parada, porém sem conseguir se levantar da cama, ela desviou o olhar da figura implacável do Rei – só para se deparar com os buracos das balas no gesso, no alto do canto mais distante. A náusea lhe subiu pela garganta, uma onda de queimação vil. Com a raiva dispersa, ela não conseguia mais imaginar o ódio que sentira, mas não tinha dúvidas do quanto tinha agido movida pela emoção. Assim como Qhuinn.
Santa Virgem Escriba, iria vomitar.
– Não ordenarei a sua morte – Wrath anunciou.
Layla exalou ao relaxar.
– Ah, muito, muito obrigada, meu senhor...
– Mas você não pode ficar aqui.
Ela se endireitou quando o coração passou a bater forte.
– E os bebês?
– Criaremos algum esquema de visitação ou...
Com um salto da cama, ela levou as mãos à garganta como se estivesse sendo estrangulada.
– Não pode me separar deles!
O semblante do Rei, tão aristocrático e poderoso, não lhe ofereceu uma centelha de piedade ou misericórdia.
– Não pode mais ficar aqui. Xcor não sobreviverá ao que faremos com ele, mas Throe se alimentou de você, e mesmo que isso tenha acontecido há algum tempo, simplesmente não é seguro. Presumimos que o mhis seria forte o bastante para nos proteger, mas evidentemente não é verdade, e é um risco de segurança em escala catastrófica.
Layla tropeçou à frente e caiu de joelhos aos pés de Wrath, juntando as mãos numa súplica.
– Eu juro, nunca quis que nada disso acontecesse. Por favor, imploro seu perdão, não tire meus filhos de mim! Obedecerei a qualquer outra ordem, eu juro!
Ela sabia que os Irmãos, que estavam no corredor, haviam se aproximado uma vez mais e ouviam a uma distância discreta, mas não lhe importava que a vissem se descontrolar. Wrath, contudo, sim. Relanceou por cima do ombro.
– Para trás. Estamos nos entendendo aqui – o Rei ladrou.
Não, não estamos, ela pensou. Não estamos nada bem aqui.
Houve uma breve agitação; em seguida, ela não via mais ninguém no corredor – e Wrath voltou a se concentrar nela, a inspiração profunda movendo as narinas.
– Sinto o cheiro das suas emoções. Sei que não está mentindo em seu relato e no que acredita. Mas há vezes em que as intenções são irrelevantes e esta é uma delas. Você tem que ir agora...
– Meus filhos!
– ... ou providenciarei que a levem.
Enquanto suas lágrimas caíam, ela quis gritar, mas não havia o que discutir. Ele tinha razão. Xcor a encontrara e seguira até em casa, e quem haveria de garantir que Throe não poderia imitá-lo? O sangue de Layla era tão puro que os efeitos de rastreamento poderiam durar anos, décadas, talvez até mais – apesar de ter alimentado o macho apenas uma vez. Por que ela não pensara nisso? Por que eles não pensaram?
– Está extinguindo meus direitos parentais? – perguntou, rouca.
O horror de perder os filhos era tão grande que ela mal conseguia traduzir seu medo em palavras. Em todos os seus piores pesadelos, jamais tinha cogitado que chegariam a esse ponto. Jamais havia considerado que as consequências poderiam ser tão devastadoras.
Mas, em retrospecto, quando se está em rota de colisão direta, não é possível catalogar exatamente a extensão dos ferimentos vindouros – ainda mais quando se está no meio de manobras evasivas para tentar impedir o acidente.
O destino a colocara ali.
Suas escolhas, também.
Não havia como negociar com nenhum dos dois.
– Não – Wrath disse abruptamente. – Não a excluirei. Qhuinn odiará a decisão, mas não é problema meu.
Layla fechou os olhos, as lágrimas saindo por eles, emaranhando-se com os cílios.
– A sua piedade desconhece limites.
– Bobagem. E agora você tem que partir. Tenho propriedades seguras e providenciarei o transporte. Comece a aprontar as malas.
– Mas quem ficará com eles? – Virou-se na direção dos berços. – Meus filhos... Ah, Santa Virgem Escriba...
– Qhuinn ficará com eles. E depois tomaremos providências para que você os visite. – O Rei pigarreou. – É assim... que tem que ser. Tenho que pensar nas outras crianças da casa... Diabos, agora mesmo estou pensando se não devo ordenar uma evacuação completa da mansão. Jesus, não faço a mínima ideia do motivo de ainda não nos terem atacado.
Ao se imaginar dormindo longe de Lyric e Rhamp, não alimentá-los durante o dia, não ser a responsável por trocá-los, acalentá-los e banhá-los, ela mal conseguiu respirar.
– Mas somente eu sei do que eles precisam, e eu...
– Diga seu adeus, e depois Fritz...
– Mas que diabos aconteceu aqui?
Quando Wrath se virou para trás, Layla fungou e levantou o olhar. O Primale estava parado junto à porta quebrada, as sobrancelhas de Phury abaixadas sobre os olhos amarelos, o corpo envolto em armas e cheirando a pinheiros e ar fresco.
– Você está bem, Layla? – ele perguntou, preocupado ao entrar e contornar Wrath. – Santa Virgem Escriba, mas... Isso são buracos de bala? Quem diabos descarregou uma arma aqui? As crianças estão bem?
– Foi Qhuinn quem deu uma de dedo rápido no gatilho. – Wrath cruzou os braços diante do peito e balançou a cabeça. – Os bebês estão bem, mas ela tem que ir embora. Talvez você possa ajudar a tirá-la daqui?
Phury virou a cabeça na direção do líder, os cabelos multicoloridos balançando na altura dos ombros.
– Do que está falando?
O Rei foi eficiente ao resumir a história entre ela e Xcor – e não usou as palavras traição, deslealdade nem punição com a morte, e também não foi preciso. Tudo isso e muito mais estava implícito, embora Wrath não tivesse repassado toda a história.
Phury o interrompeu antes do fim.
– Então é por isso que ele apareceu!
– Xcor a estava usando, sim...
– Não! Qhuinn! Caralho! – Phury levou os dedos à boca e assobiou tão alto que Layla teve de cobrir as orelhas. E depois ele começou a falar rápido. – Qhuinn acabou de aparecer no sanctum sanctorum! Ele me disse que cobriria o turno diurno de Lassiter e... merda, ele disse que estava esperando um reforço. Ele não me pareceu bem, por isso pensei em parar aqui a caminho dos Grandes Campos, para me certificar de que o substituto providenciado por Blay fosse para lá de imediato...
– Não! – Layla gritou. – Ele não pode ficar sozinho com...
– Ele vai matar Xcor – Wrath estrepitou. – Maldição...
Zsadist, o gêmeo idêntico de Phury, passou pela soleira, já prendendo o cinto das armas.
– Chamou?
Wrath praguejou.
– Puta merda, ele vai matá-lo. Vocês dois, vão agora! Eu chamo Vishous.
Enquanto os Irmãos e o Rei saíam, Layla foi para o corredor, atrás deles. Mesmo que não houvesse nada ao seu alcance – ou obrigações – para fazer, estava envolvida em pesadelos.
Assim como todos eles.
Junto ao portão da caverna, Xcor deu as costas a Qhuinn, que mancava e sangrava, e puxou as grades, colocando em prática seu instinto de sobrevivência. Não que fosse o suficiente.
– Vou te matar, maldito – Qhuinn praguejou, rouco. – Com as minhas mãos. E depois vou comer o seu coração enquanto ele ainda estiver quente...
Xcor ia se virar para articular sua defesa do ataque quando algo reluziu na chama da tocha e o motivou a ficar bem parado onde estava. A princípio, não conseguia acreditar no que lhe havia chamado a atenção. Foi tão inesperado que mesmo a perspectiva de morte certa não bastou para distraí-lo.
Ele fechou os olhos, sacudiu a cabeça e depois ergueu as pálpebras, arregalando os olhos como se, assim, conseguisse enxergar melhor.
Do lado oposto de onde estavam as dobradiças do portão... havia uma tranca. E tão certo quanto o sol se põe no Oeste, parecia haver a projeção de uma chave para fora do mecanismo.
Ante o som de arrasto do avanço desigual de Qhuinn, que se aproximava, Xcor esticou a mão trêmula e girou a peça de metal pesada para um lado... depois para o outro...
A fechadura emitiu um som e, de repente, o que estava firme como rocha acabou por ceder. E Xcor abriu o portão, cambaleando para fora.
Qhuinn percebeu de imediato a brecha de segurança colossal e começou a se locomover mais rápido, praguejando e segurando a lateral do corpo. Mas Xcor arrancou a chave, bateu o portão e descobriu... Isso... O mecanismo funcionava dos dois lados.
Quando o Irmão avançou, enfurecido, jogando o corpanzil contra as barras de ferro, Xcor enfiou a chave na fechadura e virou-a na direção correta e...
Trancou Qhuinn dentro da caverna.
Xcor se empurrou para trás quando o Irmão sacudiu as grades de ferro e as telas de aço, com grunhidos e xingamentos, que a Morte lhe negara algo com amargura e muito mais.
Aterrissando no chão com a bunda nua, Xcor tremia tanto que seus dentes tiritavam.
– ... vou te matar! – Qhuinn berrava com as mãos agarradas à tela até elas sangrarem. – Vou te matar, seu filho da puta!
Xcor olhou por cima do ombro. O ar fresco vinha daquela direção, e ele sabia que estava sem tempo. Era quase certo que Qhuinn chamaria por reforços assim que parasse de brigar com o oponente de ferro.
Levantando-se com dificuldade, ele manquejava tanto que teve que se apoiar na parede da caverna.
– Deixarei a chave aqui.
A voz fraca e trêmula interrompeu as imprecações, silenciando seu oponente por instantes.
– Não quero nada com você nem com a Irmandade. – Inclinou-se para baixo e colocou a chave no chão. – Não lhes quero mal, nem um fim. Já não cobiço mais o trono, tampouco desejo a guerra. Deixo esta chave como um testemunho das minhas intenções. E juro pela fêmea que amo com toda a minha alma que nunca entrarei nas suas propriedades aqui nem em qualquer outro lugar novamente.
Começou a se afastar, arrastando um pé atrás de si. Mas, então, parou e olhou para trás.
Deparando-se com o olhar despareado e selvagem de Qhuinn, Xcor disse com claridade:
– Eu amo Layla. E nunca tomei o corpo dela, tampouco o farei. Nunca mais a procurarei, tampouco pousarei os olhos sobre ela. Quer que eu morra? Pois bem, já morri, pois cada noite que ela vive com você e seus filhos, sou assassinado por não estar na presença dela. Portanto, seu objetivo foi conquistado.
Dito isso, ele voltou a partir, rezando para poder, de alguma maneira, se desmaterializar. Quando sua vista começou a falhar, porém, teve pouca fé que o conseguiria.
Suas forças o abandonavam agora que o macho vinculado dentro dele já não estava mais sendo provocado por um rival. De fato, não havia muitos motivos para correr, já que acabaria por cair nas mesmas mãos que o tinham prendido antes, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito. Se tivesse sorte, eles o alcançariam na floresta e atirariam nele como em um javali.
Mas a sorte raramente estivera ao seu lado.
CAPÍTULO 11
De volta à mansão da Irmandade, umas quatro portas distante de onde todo o drama com a arma se desenrolara, Tohr estava deitado sobre a cama, totalmente vestido. Ao fitar o dossel acima, tentou se convencer de que estava relaxando – e essa foi uma discussão que acabou por perder. Das pernas firmes como rocha, dos dedos que se flexionavam até os globos oculares que iam de um lado a outro, ele estava tão relaxado quanto uma corrente elétrica.
Fechando os olhos, só conseguiu enxergar aquela 40 mm mudando de direção e disparando balas dentro da mansão.
O mundo inteiro parecia descontrolado...
– Trouxe chá.
Antes que conseguisse se impedir, Tohr sacou a arma amarrada sob o braço. Mas, no mesmo instante, ao sentir a fragrância da sua fêmea e reconhecer-lhe a voz, abaixou a mão e se concentrou em Autumn. Sua amada shellan estava parada diante dele, com sua caneca YETI na mão e os olhos tristes e sérios.
– Venha cá – ele disse, estendendo a mão para pegar a dela. – Só preciso de você.
Puxou-a para o seu lado, agradeceu-lhe por ela ter lhe trazido o chá e deixou o Earl Grey de lado. Então, com um tremor de alívio, aninhou-a junto ao peito, passou os braços ao redor dela e a manteve junto ao coração.
– Noite ruim – ele confessou, perto dos cabelos perfumados. – Noite muito ruim.
– Verdade. Estou aliviada por ninguém ter se ferido. E também, é o aniversário de Wellsie. Sim, é uma noite muito, muito ruim.
Tohr afastou Autumn um pouco para poder fitá-la no rosto. Após o assassinato de sua companheira grávida executado por um inimigo, convencera-se de que jamais voltaria a amar. Como poderia, depois de tamanha tragédia? Mas essa gentil, paciente e determinada fêmea diante dele abrira seu coração e sua alma, dando-lhe vida onde ele estava morto, luz em sua escuridão perpétua, sustento para a sua fome.
– Como consegue ser assim? – perguntou-se, tracejando-lhe o rosto com a ponta dos dedos.
– Assim como? – Ela levantou a mão e afagou a mecha grisalha que se formara na parte da frente dos cabelos, logo após a morte de Wellsie.
– Você nunca se ressentiu dela ou... – Era difícil para ele reconhecer à sua fêmea, em voz alta, que continuava apegado aos seus mortos. Ele jamais quis que ela se sentisse menor. – Ou dos meus sentimentos por ela?
– Por que eu me ressentiria? Cormia nunca se frustrou pela ausência da perna do companheiro dela. Nem Beth pela cegueira de Wrath. Eu o amo como você é, e não seria você caso nunca tivesse amado outra, se nunca tivesse perdido outra, se nunca tivesse perdido a chance de ser pai.
– Só podia ser você – ele sussurrou, inclinando-se para pressionar os lábios nos dela. – Você é a única com quem eu poderia estar.
O sorriso dela era como o coração: acessível, franco, acolhedor.
– Que conveniente, já que sinto o mesmo por você.
Tohr aprofundou o beijo, mas logo interrompeu o contato – e ela entendeu por que ele parou, assim como sempre o compreendia: ele não poderia se deitar com ela essa noite e esse dia. Não até a meia-noite. Não até o aniversário de Wellsie ter passado.
– Não sei onde eu estaria sem você. – Tohr meneou a cabeça, pensando no estado em que havia estado quando da ida até a caverna, em busca de Xcor. – Quero dizer...
Enquanto Autumn alisava o vinco formado na testa dele, ele retrocedeu ainda mais no tempo, para o instante em que Lassiter aparecera no meio da floresta com um saco cheio do McDonald’s e a insistência para que ele retornasse junto a seus irmãos. O anjo caído não dera ouvidos à razão – o início de uma tradição, naturalmente – e os dois se arrastaram e pararam de volta à mansão.
Tohr estivera à beira da morte, tendo subsistido à base da ingestão de não muito mais do que sangue de cervos e não muito mais durante o tempo em que ficou na floresta sozinho. Tivera um plano na época: durante todos aqueles meses procurara se matar por exaustão porque não estivera disposto a testar a lenda urbana de que as pessoas que cometiam suicídio não iriam para o Fade.
Morrer de fome, para sua mente perturbada, era uma morte diferente do que se ele metesse uma bala na cabeça.
Mas não fora seu destino. Assim como regressar para a casa com aquele anjo caído não fora sua salvação.
Não, ele devia isso à fêmea ao seu lado. Ela, e somente ela, o fizera dar a volta por cima, o amor entre eles o tirara do inferno. Com Autumn, a perspectiva de permanecer no planeta dera uma guinada de cento e oitenta graus, e embora ainda tivesse noites ruins, como essa... também tivera noites boas.
Voltou a se concentrar na sua fêmea.
– O seu amor me transformou.
Deus, era como se Lassiter tivesse sabido o tempo inteiro o que acabaria acontecendo, com a certeza de que aquele era o momento para o seu retorno e ressurreição...
Tohr franziu o cenho ao sentir uma mudança em Autumn.
– Autumn? O que foi?
– Desculpe. Eu só estava imaginando... O que vai acontecer com Layla?
Antes que pudesse responder, alguém começou a bater na porta deles – e aquele tipo de urgência significava apenas uma coisa: mobilização de armas. Seria possível que o Bando de Bastardos tivesse decidido atacar?
Tohr acomodou Autumn com gentileza para o lado, depois saltou da cama para pegar o coldre das adagas.
– O que aconteceu? – ladrou. – Para onde vamos?
A porta se abriu e Phury exibia uma aparência horrível.
– Qhuinn está sozinho na Tumba com Xcor.
O coração de Tohr perdeu o compasso, e ele fez os cálculos, chegando à conclusão de que estava sendo passado para trás em matar o filho da puta.
– Maldição, ele é meu, não do Qhuinn...
– Você vai ficar aqui. Precisamos de alguém com Wrath. Todos os outros vão para lá.
Tohr cerrou os molares por ter sido colocado no banco dos reservas, mas não estava surpreso. E proteger o Rei dificilmente seria considerado uma demoção.
– Me mantenha informado, tá?
– Sempre.
Com um xingamento, o irmão girou e foi embora junto aos demais, integrando o que parecia um estouro de coturnos no corredor das estátuas.
– Vá – Autumn lhe disse. – Procure Wrath. Fará com que se sinta útil.
Ele olhou por sobre o ombro.
– Você sabe sempre, não?
Sua linda companheira meneou a cabeleira loira.
– Você tem mistérios que ainda me fascinam.
Quando um desejo súbito engrossou seu sangue, Tohr emitiu um ronronado.
– Meia-noite. Você será minha, fêmea.
O sorriso dela foi tão antigo quanto a raça, e tão duradouro quanto.
– Mal posso esperar.
No instante seguinte, Tohr estava no corredor, sentindo-se completamente confinado – apesar de a mansão ter quantos quartos mesmo? Mas então, ao chegar às portas abertas do escritório de Wrath, o Rei quase o atropelou.
– ... o caralho, estou saindo daqui. – Wrath fechou as portas atrás de si e seguiu para a escadaria. – Maldição, sou um Irmão, tenho permissão para ir lá...
– Meu senhor, não pode ir à Tumba.
Enquanto George, o cão-guia do Rei, gania no interior do escritório, o último vampiro puro da raça chegou à escadaria para iniciar a descida.
– Wrath. – Tohr apressou-se atrás dos calcanhares do macho, mas não se deu ao trabalho de aumentar o tom da voz. – Pare. Mesmo. Pare agora.
Pois é, estava sendo tão persuasivo quanto um idiota com bandeirolas como farol, e os dois braços quebrados: não estava se colocando no caminho do governante. Não o segurava pelo braço, nem forçava o Rei a ficar dentro de casa. E não iria, no fim das contas, impedir que seu monarca fosse até a Tumba, onde Qhuinn estava.
Onde Xcor estava.
Porque, oras, se estava protegendo o Rei, tinha que ir aonde o cara ia, certo? E, se por acaso isso acabasse por levá-lo até onde o Bastardo estava? Beeeem, isso não seria sua culpa, né? Além disso, considerando-se o estado de humor de Wrath? Qualquer tentativa de convencê-lo a ficar e esperar seria fôlego desperdiçado. O Rei era bem racional – só quando não o era. E quando aquele FDP de cabelos negros e óculos escuros decidia que faria, ou não faria, algo? Ninguém, mas ninguém mesmo, seria capaz de mudar sua opinião.
Com a exceção de, talvez, Beth – e mesmo isso não era garantido.
E quando ele e Wrath chegaram ao átrio e começaram a cruzar o mosaico da macieira em flor, Tohr disse num tom enfastiado:
– Sério. Deixe que os outros cuidem do assunto. Pare.
Wrath não hesitou nem falseou. Mesmo sem enxergar, ele conhecia bem a mansão, e sabia antecipar o número de degraus, a direção e até mesmo a altura da enorme maçaneta à qual estava prestes a alcançar. Se as coisas seguissem assim, chegariam à caverna ao norte da montanha num nanossegundo.
Só que... quando a porta do vestíbulo se abriu e uma lufada de ar fresco entrou, Tohr inspirou fundo.
E, no mesmo instante, sua sanidade retornou.
Espere um instante, ele pensou. Que diabos estava fazendo?
Uma coisa era abrir a porta ele mesmo, e outra era fracassar em sua missão de guarda-costas, permitindo que o Rei entrasse numa situação que poderia colocar sua vida em perigo. E também, P.S., era uma bobagem absoluta querer matar Xcor por ter metido uma bala em Wrath ao mesmo tempo em que estava disposto a permitir que o Rei entrasse no que poderia ser uma emboscada. O Bando de Bastardos era uma surpresa, mais do que nunca. E se alguma coisa desse errado com a insubordinação de Qhuinn e Xcor acabasse, de algum modo, livre? E se encontrasse os seus garotos? E se atacasse a Irmandade?
Enquanto Wrath atravessava a porta e seguia para a noite, Tohr voltou ao trabalho.
Dessa vez se colocou no caminho dele, esticou as mãos e socou o peitoral do governante.
Encarando os óculos pretos, disse:
– Espere aí, não posso permitir que vá até a Tumba. Por mais que eu queira a porra dessa desculpa pra ir pra lá também e lidar com o puto do Xcor nos meus próprios termos, não saberei viver comigo mesmo se...
Tchauzinho.
Sem nem uma palavra ou hesitação, Wrath desapareceu. O que provava a Tohr que estivera certo quanto ao Rei fazer o que bem entendia – e um maldito idiota por não ter impedido o macho ainda na escadaria.
– Maldição! – Tohr murmurou ao sacar as duas pistolas.
Sua própria desmaterialização interrompeu o restante dos impropérios que se debatiam no seu cérebro desfuncional. Em seguida, reassumia a forma na floresta densa, no lugar do qual fora retirado à força não mais do que uma hora antes.
Ah... Deus.
Sangue. No meio do vento gélido e forte... ele sentia o cheiro do sangue de Xcor.
O filho da puta estava lá fora? Mas que diabos? Porque aquela merda não vinha de longe, como se fosse de um ferimento impingido no interior da caverna.
Não, estava bem aos seus pés, nas agulhas caídas dos pinheiros e na terra. Um rastro.
Uma fuga.
Mesmo que os instintos de rastrear o macho fossem quase irresistíveis, Wrath era mais importante. Girando sobre os coturnos, correu para junto do seu monarca.
– Meu senhor! – Tohr perscrutou o ambiente, à procura de movimentos. – Mas que porra há de errado com você?! Precisamos tirá-lo daqui!
Wrath o ignorou e seguiu para a caverna, onde as vozes dos outros irmãos ecoavam e, evidentemente, davam-lhe uma direção. Tohr pensou em deter o macho, mas era melhor que ele estivesse ali, com a Irmandade, do que no meio da floresta, como um alvo imóvel.
Cara, mas depois teriam uma conversinha.
Noite incrível para os moradores da casa. Puta que o pariu.
O cheiro do sangue estava mais intenso ali, e sim, sentiu uma ponta de inveja no meio do peito. Qhuinn, ao que tudo levava a crer, tivera sua vez com o bastardo. Mas algo de muito, muito errado acontecera. Havia um rastro de pés descalços e sanguinolentos saindo da caverna, e Qhuinn também sangrava. Aquele outro cheiro também estava bem distinto.
O Irmão ainda estaria vivo? Xcor o teria, de alguma forma, sobrepujado e se apoderado da chave dos portões? Mas isso seria possível? Xcor estivera meio morto naquela maca.
Enquanto Tohr e o Rei avançavam pelo interior da caverna, a luz das tochas nos portões oferecia um brilho a ser seguido e quando ele e Wrath se juntaram a todos os outros – ... Tohr confrontou uma situação que era tão inesperada quanto inexplicável.
Qhuinn estava depois dos grandes portões do sanctum sanctorum, sentado de bunda no chão, com os cotovelos posicionados sobre os joelhos. Ele sangrava em alguns pontos e a respiração superficial sugeria que devia ter costelas quebradas. Suas roupas estavam desarrumadas e manchadas de sangue – tanto dele quanto de Xcor –, e as juntas dos dedos estavam esfoladas.
Mas isso não era o mais estranho.
A chave do portão estava do lado de fora. Deitada no chão de terra como se tivesse sido propositalmente colocada ali.
Três dos seus irmãos estavam ao redor do objeto, como se ele fosse explodir na cara deles, e, nas imediações, pessoas dialogavam. Toda a conversa cessou, contudo, quando a presença de Wrath foi registrada pelo grupo.
– Mas que porra! – alguém exclamou.
– Jesus, Maria e José! – Ok, esse era Butch. – Mas que diabos?
Mais irmãos se juntaram a eles nesse tipo de exclamação, mas Wrath não estava para brincadeira.
– Para o que estou olhando? Algum puto pode me descrever o que tenho diante de mim?
No silêncio que se seguiu, Tohr esperou que um dos outros transmitisse o relato.
Só que nenhum deles pareceu ter coragem.
Tudo bem, mas que diabos, Tohr pensou.
– Qhuinn está consciente, sangrando, trancado na Tumba. A chave... – Tohr meneou a cabeça na direção dos portões –... está do lado de fora. Qhuinn, Xcor está aí dentro com você ou não?
Mesmo que o rastro de sangue para fora da caverna já fosse resposta suficiente.
Qhuinn abaixou a cabeça e esfregou os cabelos negros, a palma desenhando círculos lentos no que já estava emaranhado.
– Ele fugiu.
Ceeeeerto, quer falar de bombas “f ”? Foi como se cada um dos Irmãos tivesse um piano despejado sobre seus malditos pés e usado a palavra “foda” como analgésico.
Um ímpeto de urgência fez com que Tohr se desconectasse de tudo aquilo. Virou-se, pegou o celular e ligou a lanterna, lançando o facho de luz ao redor no chão. Rastrear as pegadas na areia e na terra solta foi bastante fácil, e ele as seguiu até a boca da caverna. Xcor estivera arrastando os pés, em vez de caminhar de verdade, sua locomoção estava evidentemente prejudicada por ter passado o mês anterior deitado, e também pelo que acontecera entre ele e Qhuinn.
Quando Tohr voltou para a floresta, agachou-se e formou um arco com a luz. Atrás dele, uma bela discussão se desenrolava entre Wrath e a Irmandade, com vozes graves ecoando ao redor graças às paredes de pedra, mas ele deixou que continuassem. Andando à frente, desligou a lanterna e guardou o celular no bolso de trás da calça. Não levara um casaco consigo ao sair da mansão, mas a noite de -4°C não o incomodava.
Estava ocupado demais dando uma de cão farejador, fungando o ar.
Xcor fora para o Oeste.
Tohr acelerou, mas não podia ir rápido demais. Com o vento soprando em diferentes direções, era difícil acompanhar o rastro.
E, então, ele simplesmente chegou ao fim.
Fazendo círculos, Tohr retrocedeu a fim de localizar o rastro de sangue novamente... e depois, sim, voltou a perdê-lo.
– Ah, maldito bastardo – ele sibilou na noite.
Como aquele merdinha enfraquecido tinha conseguido se desmaterializar era uma questão que Tohr jamais compreenderia. Contudo, não havia como discordar dos fatos: a única explicação possível para o rastro ter sido interrompido tão subitamente era que o bastardo, de alguma forma, havia reunido forças para virar fantasma.
Se Tohr não odiasse o filho da puta com demasiada intensidade... quase seria capaz de respeitá-lo.
Quando Xcor reassumiu a forma corpórea, encontrou-se nu sobre uma espécie de moita coberta de neve, no interior da floresta que já não era mais de pinheiros, mas de bordos e carvalhos. Arquejado, ele forçou os olhos a trabalhar, e quando o cenário apareceu límpido e focado, ele soube que havia conseguido sair da propriedade da Irmandade. O mhis, névoa de proteção do cenário que marcava o território deles, havia sumido, e seu senso de direção havia retornado.
Não que ele tivesse a mínima ideia da sua localização.
No trajeto de fuga, tinha conseguido se desmaterializar três vezes. Uma para uns cinquenta metros de distância da caverna; na segunda, um pouco além da última, talvez meio quilômetro descendo a montanha; e depois até ali, para uma porção gramada, que sugeria um afastamento considerável da montanha onde fora mantido prisioneiro.
Rolando de costas, inflou os pulmões e rezou em busca de forças.
Uma vez passada a ameaça imediata à própria vida, uma fraqueza imensurável se abateu sobre Xcor, tão letal quanto qualquer outro inimigo. E também havia o frio, que subtraía ainda mais suas reservas de força, diminuindo-lhe ainda mais os reflexos e os batimentos cardíacos. Mas nada disso era sua maior preocupação.
Virando a cabeça, olhou para o Leste.
O horizonte começava a se aquecer com a chegada iminente da aurora em uma hora. Mesmo em seu estado, ele sentia os vislumbres de alerta em sua pele nua.
Empenhado em forçar a cabeça para longe do chão, procurou abrigo, uma caverna talvez, um agrupamento de rochas... um tronco caído com espaço vazio no qual poderia se esconder. Só o que identificou foram árvores, lado a lado, com os galhos despidos formando um dossel, que não significaria proteção suficiente contra o amanhecer.
Acabaria em chamas assim que o sol estivesse a pino.
Pelo menos estaria aquecido... Pelo menos, assim, tudo chegaria a um fim.
Por certo, e por pior que fossem os horrores da imolação, nada se compararia à tortura que a Irmandade sem dúvida o teria feito passar – torturas que não serviriam a nenhum propósito, mediante a suposição de que o Bando de Bastardos seria o seu objetivo.
Primeiro porque seus soldados teriam seguido o protocolo e abandonado o acampamento, estabelecendo-se em outro local após o seu desaparecimento. Afinal, morte ou captura eram as únicas explicações para a sua ausência, e não havia sentido apostar em qual delas.
Segundo, ele não teria entregue seus guerreiros mesmo se prestes a ser estripado.
Bloodletter não fora capaz de quebrá-lo. Ninguém mais o conseguiria.
Mas, pensando bem, tudo isso não tinha mais importância.
Xcor enrolou-se de lado, aproximou as pernas do peito e passou os braços ao redor de si mesmo, tremendo. As folhas debaixo do corpo não eram nenhum leito suave; as pontas curvas e geladas cortavam sua pele. E enquanto o vento trespassava o cenário, um atormentador em busca de vítimas, parecia não lhe prestar uma atenção especial, empurrando detritos da floresta para cantos escondidos, roubando ainda mais o seu decrescente calor corporal.
Fechando os olhos, encontrou uma parte do passado voltando para si...
Era dezembro do seu nono ano de vida, e ele estava diante do chalé decaído de telhado de sapê no qual ele e sua ama-seca ficavam. De fato, assim que a noite caía todos os dias, ele era jogado para fora, acorrentado pelo pescoço, e tolerado de volta ao interior apenas quando o sol ameaçava surgir a Leste e os humanos estariam fora de suas casas. Por grande parte das longas horas solitárias, ainda mais naquele inverno, ele se acomodava contra a parede externa da casa, movendo-se em sua corrente apenas para se colocar contra o vento.
O estômago estava vazio e assim permaneceria. Ninguém da sua raça no pequeno vilarejo o abordaria para lhe oferecer comida, e a ama-seca certamente não o alimentaria até assim o desejar – e só seriam restos das refeições consumidas por ela.
Levando os dedos sujos de terra à boca, sentiu a distorção que partia do lábio superior até a base do nariz. O defeito sempre fora assim, e por causa dele, sua mahmen o tirara do quarto em que nascera, deixando-o nas mãos da ama-seca. Sem ninguém mais para cuidar do jovem ele tentou agir bem para com a fêmea, tentara fazê-la feliz; mas nenhuma ação sua nunca a deixava satisfeita – e ela parecia se deliciar ao lhe dizer, repetidamente, como sua mahmen o banira de suas vistas, como ele fora uma maldição no que, senão por isso, teria sido uma fêmea de valor, bem-nascida.
A melhor opção era ficar fora do caminho da ama-seca, fora fora de seu campo de visão, fora de sua casa. E mesmo assim ela não permitia -lhe a fuga. Ele tentara isso algum tempo atrás e chegara aos limites dos campos que cercavam a aldeia. No entanto, uma vez que a ausência foi registrada, ela foi atrás dele e o surrou com tamanha violência que ele se retraiu e chorou em meio aos golpes, implorando por perdão; pelo quê, ele não sabia exatamente.
E assim, ele acabou acorrentado.
Os aros de metal partiam da coleira ao redor do seu pescoço até o poste de ferro em que os cavalos eram amarrados, na quina do chalé. Nada mais de vaguear para ele, nada mais de mudar de posição, a menos que para se aliviar ou se manter abrigado. O couro áspero ao redor do pescoço provocava machucados na pele, e como nunca era removido, não havia como as feridas cicatrizarem. Mas há tempos ele aprendera a suportar.
Sua vida, tal qual a percebia, tratava-se de saber suportar.
Dobrando os joelhos junto ao peito diminuto, passou os braços ao redor dos ossos das pernas e estremeceu. Suas vestes eram limitadas a uma das capas de lã gastas da ama-seca e um par de calças masculinas que eram tão grandes que ele poderia prendê-las debaixo das axilas com uma corda. Os pés estavam descalços, mas ele os mantinha debaixo da capa para que não congelassem.
Quando o vento soprou em meio aos galhos despidos das árvores, o som o impeliu a pensar num lobo, e seus olhos se arregalaram enquanto ele perscrutava a escuridão, para o caso de ter ouvido de fato um lupino. Morria de medo de lobos. Se um, ou uma matilha, fosse atrás dele, ele seria comido, disso tinha certeza, visto que a corrente significava que não poderia fugir nem subir em árvores, tampouco alcançar a porta do chalé.
E ele não acreditava que a ama-seca o salvaria. Às vezes chegava a crer que ela o amarrava na esperança de que fosse consumido, dado que a morte dele, quer pelos elementos climáticos, quer pela natureza selvagem, a libertaria, pois, se assim acontecesse, não seria exatamente culpa dela.
A quem ela prestava contas, contudo, ele não sabia. Se sua mahmen o rejeitara, quem pagava por sua subsistência? Seu pai? O macho cuja identidade nunca lhe fora revelada e que, por certo, jamais aparecera...
Quando um som sinistro atravessou a noite, ele se retraiu.
Era o vento. Tinha que ser... somente o vento.
Procurando algo para acalmar a mente, fitou a poça amarelada de luz que emanava da única janela do chalé. A iluminação tremeluzente brincava com os tentáculos de uma moita de framboesas morta que circundava o chalé, movimentando o o arbusto cheio de espinhos como se esse tivesse vida – e ele tentou não achar nada de sinistro nas constantes mudanças. Não, em vez disso, ele se concentrou no brilho e tentou se visualizar diante da lareira, aquecendo as mãos e os pés, os músculos frágeis se desenrolando do rigor provocado pela postura de proteção contra o frio.
Ao longo de seu devaneio, imaginou o sorriso e os braços abertos da ama-seca para ele, encorajando-o a se aninhar em segurança nela. Fantasiou-a com um afago em seus cabelos, sem se importar acerca da imundície, oferecendo-lhe comida que não estava estragada e não era apenas restos. Em seguida, ele se banharia, limparia a pele e retiraria a coleira do pescoço. O unguento apaziguaria osuas aflições, e então ela lhe diria que não se importava por ele se imperfeito.
Ela o perdoaria pela sua existência, e sussurraria que sua mahmen de fato o amava e que logo viria buscá-lo.
E, finalmente, ele adormeceria, com seu sofrimento terminado...
Outro urro interrompeu-lhe os pensamentos, e ele retornou rapidamente à consciência, vasculhando uma vez mais os arbustos e os esqueletos das árvores.
Era sempre assim, as idas e vindas de sua necessidade de estar ciente das cercanias para o caso de um ataque... e sua busca de um abrigo mental que o impedisse de concluir que não poderia fazer nada para se salvar.
Enfiando a cabeça entre os ombros, apertou os olhos uma vez mais.
Havia outra fantasia que ele acalentava, ainda que não com muita frequência. Ele fingia que seu pai, sobre quem a ama-seca jamais falara, mas quem Xcor imaginava ser um grande guerreiro da raça, chegaria num enorme garanhão de guerra para salvá-lo e levá-lo dali. Imaginara o grande guerreiro chamando por ele, colocando-o no alto da sua sela, chamando-o de “filho” com orgulho. Aos galopes, afastar-se-iam, a crina do cavalo açoitando o rosto de Xcor conforme avançassem atrás de aventuras e glórias.
Na verdade, essa situação era tão pouco provável quanto ele ser acolhido no interior do chalé...
Ao longe, o tropel dos cascos de um cavalo sinalizava uma aproximação e, por um momento, seu coração acelerou. Teria chamado sua mahmen? Seu pai? Teria o impossível por fim acontecido...?
Não, não era um cavalo. Era uma incrível carruagem, da realeza, sem dúvida, com o exterior dourado e um par de cavalos brancos combinando. Havia até lacaios de libré preto e um cocheiro de uniforme.
Era um membro da glymera, um aristocrata.
E, sim, quando um criado desceu e auxiliou a saída de uma fêmea com um lindo vestido e peles, Xcor jamais vira algo mais belo e perfumado.
Mudando de posição de modo a enxergar ao redor do chalé, retraiu-se quando o couro fez um novo corte na clavícula.
A bela fêmea não se deu ao trabalho de bater, mas o lacaio abriu a porta que rangeu.
– Hharm se casou após o nascimento de um filho. Está feito. Está livre... Ele não vai mais prender você à sua ira.
A ama-seca franziu o cenho.
– Como?
– É verdade. Papai o ajudou com o dote considerável exigido por ele. Nossa prima é agora a shellan dele e você está livre.
– Não. Não pode ser...
Enquanto as duas fêmeas recuavam para dentro do chalé e deixavam o lacaio para fora, Xcor se esforçou para ficar de pé e espiar através da janela. Do outro lado do vidro grosso e cheio de bolhas, ele viu quando a ama-seca continuou agindo como se estivesse em estado de choque e descrença. A outra fêmea, no entanto, deve ter aplacado sua contradição, pois houve um momento de pausa... e, então, uma grande transformação se apresentou.
De fato, uma alegria tão contagiante tomou conta da ama-seca, em seu âmago, que ela pareceu uma lareira recobrando as chamas quase extintas, não mais o espectro cansado da feiura a que ele se habituara, mas algo completamente diverso.
Tornou-se resplandecente, mesmo nos trapos que vestia.
A boca se moveu, e ainda que ele não conseguisse ouvir sua voz, ele entendeu exatamente o que ela dizia: Estou livre... estou livre!
Além do vidro ondulado, ele a viu olhar ao redor como se procurasse um objeto de significância.
Ela o estava abandonando, ele pensou, em pânico.
E como se ela tivesse lhe lido os pensamentos, a ama-seca parou e olhou na direção do vidro, a luz da lareira brincava ao longo do rosto corado e alegre dela. Com os olhos fixos um no outro, ele levou a mão à janela numa súplica.
– Me leve com você – sussurrou. – Não me deixe assim...
A outra fêmea relanceou na sua direção e seu retraimento sugeria que apenas a imagem de Xcor lhe revirava o estômago. Disse algo à ama-seca, e aquela que cuidara dele até então não respondeu de pronto. Mas, então, seu rosto endureceu, e ela se aprumou como se em preparo para uma tempestade inclemente.
Ele começou a bater na janela.
– Não me deixe, por favor!
As duas fêmeas lhe deram as costas e saíram apressadas, e ele correu para a frente para vê-las subindo na carruagem.
– Me leve com você!
Quando ele se precipitou, atingiu o limite da corrente e foi puxado para trás pelo pescoço, aterrissando com força e tendo o ar expelido dos pulmões.
A fêmea bem vestida não prestou atenção ao levantar as saias e abaixar a cabeça para entrar no interior da carruagem. A ama-seca, por sua vez, apressou-se logo atrás, levantando a mão à têmpora para proteger os olhos de vê-lo.
– Me ajude! – Ele se agarrou à corrente, que lhe raspou a pele. – O que será de mim?!
Um dos lacaios fechou a porta dourada da carruagem. E o doggen hesitou antes de voltar para seu posto, na parte posterior.
– Existe um orfanato não muito longe daqui – ele informou com secura. – Liberte-se e prossiga por cinquenta léguas ao Norte. Lá, encontrará outros.
– Me ajude! – Xcor gritou quando o cocheiro estalou as rédeas e os cavalos saltaram adiante, conduzindo a carruagem pela estrada de terra.
Ele continuou a gritar enquanto era deixado para trás, os barulhos da partida cada vez mais distantes... até sumirem.
À medida que o vento soprava sobre ele, os vestígios das lágrimas no seu rosto se tornaram gelo e seu coração batia nos ouvidos, impossibilitando-o de ouvir qualquer outra coisa. Por conta do jorro da ansiedade, ele ficou tão quente com a agitação que deixou a capa de lado, e o sangue se juntou ao redor do pescoço, cobrindo-lhe o peito desnudo e aquelas as enormes.
Cinquenta léguas? Orfanato?
Ficar livre?
Palavras tão simples, surgidas de uma consciência pesada. Mas que não o ajudavam em nada.
Não, ele pensou. Só tinha a si mesmo em quem confiar agora.
Mesmo quando desejou se curvar numa bola e chorar de medo e de tristeza, soube que tinha que se fortalecer, pois um abrigo era extremamente necessário. E com isso em mente, controlou as emoções e agarrou a corrente com ambas as mãos. Inclinou-se para trás e puxou-a com todas as forças, numa tentativa de soltá-la do poste. Os elos rangeram com o movimento.
Enquanto ele se empenhava, teve a vaga noção de que a carruagem não podia estar muito longe. Poderia ainda alcançá-la se apenas conseguisse se soltar e correr...
Também disse a si mesmo que aquela não era sua mahmen que acabara de partir, tendo-lhe mentido o tempo todo. Não, era apenas uma ama-seca de alguma posição social pouco comum.
Seria insuportável pensar nela de outro modo.
CAPÍTULO 12
Parecia apropriado que Qhuinn tivesse que olhar através das grades para ver seus irmãos – não que desejasse fitá-los. Mas, sim, a separação entre ele e aqueles outros seres vivos, marcada pelos portões antigos e impenetráveis, parecia o melhor curso de inação.
Não estava apto a qualquer tipo de companhia.
E, evidentemente, os outros tampouco estavam felizes com ele.
Enquanto permanecia de bunda no chão de pedra bruta da caverna com as costas apoiadas numa seção de prateleiras de jarros que ainda permaneciam intactos, ele observava a Irmandade circular e rosnar do lado oposto das barras de metal, indo de um lado a outro e esbarrando uns nos outros ao ladrarem para ele. A boa notícia – e ele imaginava que fosse apenas marginalmente “boa” – foi que o som de tamanho drama se assentou, por algum truque do Universo, ou talvez porque a pressão sanguínea estivesse diminuindo, enevoando tudo no mundo a sua volta.
Melhor assim. Já era perito em foder com as coisas. Não havia nada que mesmo o uso mais criativo da palavra que começava com “f ” lhe ensinasse no tocante a imprecar contra alguém.
Além disso, considerando-se que ele era o substantivo em todas aquelas frases? Quem precisava disso agora? Ele já vinha se autoflagelando mentalmente, muito obrigado.
Abaixando a cabeça, fechou os olhos. Não foi uma boa ideia. A lateral do corpo estava acabando com ele, e sem nenhuma distração, a dor assumiu proporções gigantescas. Devia ter fraturado alguma coisa ali. Talvez rompido um rim ou um...
Quando uma onda de náusea inflou seu estômago, ele abriu os olhos e mirou a direção oposta do zoológico de acusações. Pense num lugar destruído. A maca destroçada, os equipamentos médicos arregaçados, todos aqueles jarros quebrados com seus corações negros oleosos no piso de pedras... Era como se um furacão tivesse passado pela caverna.
O segundo lugar que ele destruíra – se tomados em consideração os tiros no quarto de Layla.
Ainda que essa bagunça ele lamentasse.
A outra? Sim, arrependia-se dela também – mas não recuaria quanto à proibição de ela ver seus filhos.
Com um gemido, esticou uma perna e depois a outra. Havia sangue em suas calças. Nos coturnos. Nas juntas de ambas as mãos. Provavelmente necessitaria de atenção médica, mas não a queria...
Um silêncio abrupto chamou-lhe a atenção e ele recobrou o enfoque portões. Ah, maravilha. Que porra do cacete.
O Rei estava bem diante da barras de ferro, parecendo a fúria dos infernos de pé sobre seus coturnos. E, aparentemente, ele queria um mano a mano em close: Vishous havia se adiantado e estava colocando a chave na fechadura, na outra ponta; então seguiu-se um estalo que permitiu a abertura dos portões.
Wrath foi o único a entrar, e logo ambos foram trancados ali. Seria para impedir que os demais atacassem Qhuinn? Ou para impedi-lo de fugir dos planos do Rei, sejam quais fossem?
Escolhas, escolhas...
Quando Wrath se aproximou e depois parou, Qhuinn abaixou o olhar, apesar de o macho ser cego.
– É aqui que você vai me demitir da Irmandade?
Malditos coturnos enormes, ele pensou de súbito. De sua perspectiva, eles pareciam ter o tamanho de um par de Subarus.
– Estou ficando cansado pra cacete de te encontrar assim – Wrath estrepitou.
– Então somos dois.
– Quer me contar o que aconteceu?
– Na verdade, não.
– Deixe-me formular de outra forma, filho da mãe. Você vai me contar o que aconteceu ou vou te manter trancado aqui até a fome consumir seus ossos?
– Sabe, dietas da moda nunca funcionam a longo prazo.
– Funcionam se você tomar um suplemento de ferro junto a elas.
Qhuinn fitou o coldre debaixo do imenso braço esquerdo de Wrath. Por mais que o Rei não tivesse olhos saudáveis, seria uma boa aposta imaginar que ele conseguiria botar uma bala no lugar de sua vontade, baseando-se apenas na audição.
– Que tal assim... – Wrath propôs. – Vou te ajudar. Você pode pular a parte em que julgou ser uma boa ideia vir até aqui atacar um prisioneiro, meu sem a minha permissão. Sei chegar a essa conclusão sozinho, obrigado. Por que não me conta como ele conseguiu te trancar aí dentro?
#tomaládácá
Ele pigarreou.
– Quando Phury saiu, ele me deu a chave pra eu me trancar aqui com Xcor. E foi o que fiz.
Que era o novo protocolo. Assim que Xcor ficou sob a custódia deles, o responsável pela guarda tinha que ficar trancado pelo lado de fora. Com o passar do tempo, porém, o procedimento foi alterado por motivos práticos, em virtude de todas as mudanças de escala, check-ups médicos e administração de remédios. E, sim, talvez porque acabaram relaxando depois de um mês em que o bastardo apenas ficou ali deitado, na maca como uma obra de arte moderna.
– E? – Wrath grunhiu.
– Eu estava distraído. Então esqueci a maldita chave na fechadura.
– Você estava... distraído. Com o quê? Planos para destruir este lugar? – Quando o Rei gesticulou ao redor dos jarros arruinados como se pudesse vê-los, ficou claro que o fedor dos redutores tinha se instaurada sob o nariz dele. Além disso, convenhamos, a plateia vinha reclamando da bagunça. – Mas que caralho, Qhuinn. Fala sério, perdeu a porra da sua cabeça?
– Sim, acho que perdi. – Que sem graça. – Ou isso foi uma pergunta retórica que não requer resposta? Ei, por que não paramos de falar sobre Xcor pra você me contar o que vai fazer com aquela fêmea dele, Layla?
Falando em vontade de vomitar...
No silêncio subsequente, Wrath cruzou os braços diante do peito, os bíceps se avolumaram tanto que ele fez com que o The Rock parecesse um “Pescoço Fino”.
– Neste instante, são os seus direitos parentais que estou pensando em anular.
Qhuinn levantou o olhar de supetão e depois teve que engolir o vômito enquanto a cabeça latejava.
– Espera aí, o quê? Ela comete um ato de traição ao ajudar e se encontrar com um inimigo seu...
– E você acabou de deixar uma fonte de informação para a Irmandade fugir porque perdeu a porra da cabeça. Portanto, vamos deixar de lado essa asneira de traição, que tal? Só vai fazer com que suas bolas fiquem mais apertadas, confie em mim.
Era meio difícil argumentar contra fatos, Qhuinn pensou. Que bom que suas emoções estavam pouco se fodendo para a lógica.
– Só me diga que vai tirá-la da casa – exigiu. – E que meus filhos vão ficar comigo. É só o que me importa.
Por uma fração de segundo, Qhuinn lembrou de Xcor falando bobagens pouco antes de o bastardo sair se arrastando. Dizendo coisas sobre Layla. Sobre amor. Sobre não querer mais ir atrás de Wrath.
Ah, tá. Como se ele fosse acreditar em qualquer uma dessas coisas.
O Rei o encarou por trás dos óculos escuros.
– O que faço ou deixo de fazer não é da porra da sua conta.
– Tá falando sério? – Qhuinn fez menção de se levantar, mas isso não aconteceria. Mesmo grunhindo e vomitando para o lado, ele continuou falando em meio à náusea. – Ela abriu mão dos direitos dela! Ela alimentou o inimigo!
– Se é mesmo um inimigo, por que Xcor deixou a chave para trás?
– O quê?
Wrath apontou um dedo na direção dos portões.
– Xcor te trancou aqui dentro, mas deixou a chave no chão. Por que ele fez isso?
– Como é que eu vou saber?
– Pois é, e agora não podemos mais perguntar para ele, podemos? – Wrath rebateu.
Qhuinn meneou a cabeça.
– Ele ainda é seu inimigo. Ele sempre vai ser o seu maldito inimigo. Estou pouco me fodendo pro que ele diz.
As sobrancelhas negras de Wrath se abaixaram por trás dos óculos.
– Então o que ele te disse?
– Nada. Não disse merda nenhuma. – Qhuinn expôs as presas. – E não se preocupe, vou pegá-lo de novo. Vou caçar o puto e...
– Até parece. Estou te suspendendo do trabalho em campo a partir deste instante.
– O quê?! – Dessa vez, Qhuinn conseguiu se erguer, mesmo achando que acabaria por vomitar ao estilo Exorcista em cima do Rei. – Isso é papo-furado!
– Você está passando dos limites e isso eu não engulo. Agora, seja um bom sociopata e cale a boca enquanto recebe cuidados médicos.
Numa descarga de ira nuclear, a fúria ardente ressurgindo e provocando um curto circuito na mente de Qhuinn de novo – como se sua consciência fosse para o banco de trás daquele fogo infernal, ele vagamente tinha ciência dos movimentos de sua boca ao gritar para o Rei. Mas ele não fazia a mínima ideia do que estava dizendo.
– Sabe de uma coisa? – Wrath o interrompeu com um tom enfastiado. – Encerramos por aqui, você e eu.
Foi a última coisa que Qhuinn ouviu.
A última coisa que viu. O imenso punho do Rei voando na direção do seu queixo.
Pense em fogos de artifício, e depois, quando as luzes se apagam, nada aceso dentro dele, as pernas em vias de ceder debaixo do corpo, o peso em um strike no chão da caverna.
Seu pensamento final antes de desmaiar na metade da queda?
Duas concussões consecutivas fariam maravilhas para a sua saúde mental. Pois é, bem o tipo de merda que ele precisava a essa altura.
Em seu quarto na mansão da Irmandade, Layla estava de pé diante dos berços, os olhos passando de um a outro dos seus bebês adormecidos. Os rostos de Lyric e de Rhamp eram de angelicais, com bochechinhas cheias e rosadas, pele macia, cílios escuros e abaixados, as sobrancelhas arqueadas como asas. Ambos respiravam pesado como se em esforço repousante para crescer, ficar mais fortes e mais espertos.
Era a procriação em curso, a raça da Virgem Escriba seguindo em frente. Um milagre. Imortalidade para os mortais.
Ao sentir uma presença às suas costas, disse num tom baixo e rouco:
– Melhor sacar a arma.
– Por quê?
Olhou para Vishous por sobre o ombro. O Irmão estava parado perto da entrada do quarto parecia um arauto da destruição. O que, na verdade, ele era.
– Se quer que eu os deixe, terá que me mandar para o Fade.
Não era surpresa nenhuma que Wrath tivesse enviado Vishous para levá-la embora. O guerreiro era frio, intocável, insensível diante de qualquer objetivo a que estava determinado; era como lidar com um iceberg. Os outros machos da casa? Especialmente os que tinham filhos, ou Phury, o Primale, ou até Tohr, que perdera a companheira e um filho antes de nascer? Qualquer um desses Irmãos poderia ser persuadido a mudar o curso das coisas, de forma a permitir que ela ficasse ou levasse os filhos consigo.
Mas não Vishous.
E, no caso dela, talvez nem Tohr. Ele queria matar o macho com quem ela traíra a Irmandade.
Olhou para a arma no coldre debaixo do braço de V.
– Então?
Vishous meneou a cabeça.
– Não será necessário. Venha, vamos embora.
Ela se virou para os filhos.
– Qhuinn o matou? Xcor? Ele está morto?
– Fritz está na frente da casa. Temos um meio de locomoção. Partiremos agora.
– Como se eu fosse uma bagagem a ser transportada. – Não havia mais lágrimas para ela; o horror dos acontecimentos era tão grande que a entorpecia por dentro.
– Xcor está morto?
Quando Vishous falou, em seguida, ele estava logo atrás dela, a voz na parte de trás do seu pescoço, fazendo com que os pelos da nuca se eriçassem em alerta.
– Use a razão...
Ela se virou e estreitou os olhos.
– Não ouse distorcer as coisas fazendo com que eu pareça irracional por não querer deixá-los.
– Então não se esqueça da posição em que se encontra. – Ele esfregou o cavanhaque com a mão enluvada. – Você pode acabar sem nenhum direito parental sobre eles, a despeito de ser a mãe biológica. Mas se vier comigo agora, eu garanto, eu garanto, que eles logo estarão com você de novo, quem sabe ao cair da noite de amanhã.
Layla se envolveu com os braços.
– Você não tem esse tipo de poder.
A sobrancelha dele, a que tinha uma tatuagem na lateral, arqueou-se.
– Talvez não, mas elas têm.
Ao dar um passo para o lado, ele apontou para a porta, e Layla cobriu a boca com a mão. Uma a uma, as fêmeas da casa entraram no quarto, e mesmo com Vishous como comparação, elas formavam um grupo poderoso ao criar um semicírculo ao redor dela. Até mesmo Autumn estava presente.
Beth, a Rainha, falou num tom baixo a fim de não perturbar os bebês.
– Falarei com Wrath. Assim que ele voltar do centro de treinamento. Daremos um jeito nisto. Não dou a mínima com o que aconteceu entre você e Xcor. De mãe para mãe, só me importo com você e com os bebês. E meu marido entenderá meu ponto de vista. Confie em mim.
Layla quase se jogou nos braços da Rainha e quando Beth a segurou com força, Bella se adiantou e acariciou os cabelos de Layla.
– Vamos cuidar deles enquanto você estiver ausente – disse a fêmea de Z. – Todas nós. Não ficarão sozinhos nem por um segundo, por isso, tente não se preocupar.
Cormia também se adiantou, os olhos verdes claros de sua companheira Escolhida estavam rasos de lágrimas.
– Ficarei com eles o dia inteiro. – Ela apontou para a cama. – Não sairei do lado deles.
Ehlena, a shellan de Rehv, assentiu.
– Enquanto fui enfermeira, cuidei de centenas de bebês. Conheço bebês de trás para a frente. Nada acontecerá com eles, prometo.
As outras murmuraram em concordância, e uma delas entregou um lenço a Layla. E foi assim que ela percebeu que estava chorando.
Afastando-se de Beth, tentou manter o choro baixo. Queria dizer alguma coisa, queria expressar seu medo e sua gratidão...
A Rainha apoiou as mãos nos ombros de Layla.
– Os seus direitos parentais não serão anulados. Isso não irá acontecer. E sei exatamente aonde você vai agora. É uma casa segura, totalmente protegida. V. projetou e instalou a segurança dela e eu mesma a decorei depois que a Irmandade a comprou há um ano.
– É seguro lá – Vishous declarou. – Como o cofre de um banco. E vou passar o dia com você como seu maldito colega de quarto.
– Quer dizer que estarei sendo vigiada? – Layla franziu o cenho. – Sou uma prisioneira?
O Irmão apenas deu de ombros.
– Estará protegida. É só isso.
Ao inferno que era isso, ela pensou. Mas não havia nada que pudesse fazer. Aquilo era maior do que ela, e ela sabia muito bem quais eram os motivos disso.
Voltando para Lyric e Rhamp, descobriu que as lágrimas jorravam dos seus olhos com mais rapidez do que era capaz de enxugá-las com o bolo molhado no qual o lenço se transformara. De fato, as fêmeas da casa terem aparecido para apoiá-la descongelara a névoa no meio do seu peito, e agora suas emoções estavam em chagas novamente.
A mão tremia ao puxar as mantas até debaixo dos queixos deles.
– Meus pequenos – sussurrou. – Mahmen logo voltará. Eu não... os estou abandonando...
Não havia como alongar o adeus. Ela soluçou tanto que falar era impossível.
Sua jornada para ter aquelas duas preciosidades começara ao que parecia uma eternidade atrás, na época em que vivenciou o cio e implorara para que Qhuinn a servisse. Em seguida foram aqueles meses intermináveis da gestação, e os partos de emergência.
Existiram tantas impossibilidades pelo caminho, tantos desafios que não teria como prever. Mas isto era algo que ela não podia jamais ter imaginado: deixar os filhos aos cuidados de outros, por mais competentes e amorosas que estas “outras” pudessem ser, isso não era algo que pudesse ter antecipado.
Era simplesmente horrível.
– Vamos – Vishous disse com finalidade. – Antes que a aurora chegue e as coisas acabem se complicando ainda mais.
Com uma última espiada para os filhos, Layla juntou as dobras do seu roupão e saiu do quarto. Em seu rastro, ela sentiu como se tivesse deixado seu coração e sua alma para trás.
CAPÍTULO 13
Conforme a noite caía na tarde seguinte, Qhuinn não estava ciente de que o Sol descia e se punha no horizonte ocidental. Primeiro porque estava nas profundezas da clínica do centro de treinamento – portanto o gigantesco e flamejante orbe passando a vez para a Lua não era algo que ele pudesse olhar para fora da janela e ver. E, segundo, porque ele estava sob o efeito de drogas que faziam com que se esquecesse do próprio nome, quanto mais saber que horas seriam. Mas o principal motivo por ele não ter se dado conta da passagem do dia?
Mesmo com todas as coisas ruins que estavam acontecendo na sua vida, ele estava curtindo a melhor alucinação de toda a sua vida. De verdade.
A parte consciente do seu cérebro – que fora para o banco de trás do carro, tão distante do volante que a coisa podia muito bem estar amarrada no porta-malas – estava muito ciente de que aquilo que pensava estar vendo do outro lado do quarto hospitalar não estava, de jeito nenhum, acontecendo. Mas aí é que está a coisa. Ele estava tão alto que, assim como a dor da cirurgia a que fora submetido há seis horas, os eventos da noite anterior estavam um tanto temporariamente esquecidos – e isso significava que ele estava particularmente excitado.
O que não era surpresa alguma. O fato de ele ser um porco com um tremendo apetite sexual fora provado inúmeras vezes.
E, ei, considerando-se como ele se comportara na noite anterior, ele tinha muitas outras coisas com que se desapontar a respeito de si mesmo.
Portanto, sim, lá estava ele deitado num leito hospitalar, com os tubos e fios entrando e saindo dele como se ele fosse um maldito dublê de Xcor, vendo Blay sentado na poltrona do canto – aquela de cores neutras, um misto de creme com aveia que tinha os braços curvos e as costas baixas.
A braguilha do macho estava aberta, e seu pau estava exposto... E o punho de Blay envolvia o mastro espesso, as veias dos braços musculosos engrossando enquanto ele se masturbava.
– Quer isto? – o Blay hipotético perguntou com voz grave.
Qhuinn sibilou e mordeu o lábio inferior – e vejam só, rolou o quadril quase sem sentir a incisão na lateral do corpo.
– Porra se quero esse pau.
O Blay que não era de verdade deslizou pela poltrona de modo a poder afastar ainda mais os joelhos. E quando ele fez isso, os jeans pretos que vestia se esticaram por cima das coxas musculosas e aquele zíper se abriu até o limite. E... ah! Enquanto o guerreiro cuidava de si, os peitorais daquele lado flexionavam e relaxavam junto com o ombro enquanto ele bombeava devagar e bem gostoso.
Engolindo em seco, a língua perfurada pelo piercing de Qhuinn formigou de vontade de pegar a cabeça daquele pau. Queria compensá-lo pelo que saíra daquela sua boca tola enquanto estivera enfurecido e sexo não era um Band-Aid tão ruim assim.
E o Blay que não estava nada ali o deixaria fazer isso.
Flanando em seu mar de ilusão, Qhuinn sentiu uma sensação falsa de alívio que acompanhou o perdão que não existia na vida real. Só que, maldição, considerando-se o estado do resto da sua vida, ele iria em frente com aquilo. Naquele seu pedacinho de fantasia, ele subiria a bordo do trem Blay e rezaria para que, de algum modo, pudesse traduzir aquela conexão com o macho de verdade assim que o efeito das drogas passasse.
– O que quer fazer comigo? – Quase Blay sussurrou. – O que vai fazer com essa sua língua?
Ah, chega de conversa.
Com um movimento repentino, Qhuinn se sentou na cama – porque é isso o que se faz quando se tem grandes planos: tinha toda a intenção de atravessar aquele quarto de hospital, cair de joelhos, escancarar a boca até secar Blay de uma vez. E isso seria apenas um prelúdio para o sexo de reconciliação que apreciariam pelas próximas doze ou quinze horas.
Portanto, sim, infernos, ele se pôs na vertical – mas só foi até aí. Seu estômago puxou o pino da granada que nem sabia que estivera de posse e depois as entranhas largaram a maldita direto nos pulmões, a dor lançando-o num parafuso descendente que o deixou nauseado.
E, maldição, aquela dor lancinante foi um terrível clareador de ideia, apagando o Blay Hipotético com seu magnífico pau ereto daquele quarto...
Quando o som de alguém gritando foi registrado, ele levou a mão à boca para verificar se fora ou não ele. Não. Seus lábios estavam fechados.
Qhuinn franziu o cenho e olhou para a porta.
O que estava... Quem estava gritando assim? Não podia ser Xcor. Se a Irmandade tivesse de algum modo conseguido recapturá-lo, eles jamais trariam o bastardo para cá.
Tanto faz. Não era problema seu.
Relanceando para a esquerda, Qhuinn mediu a distância entre ele e o telefone fixo da casa na mesinha de cabeceira. Uns duzentos metros. É, talvez duzentos e cinquenta.
Então, se ele fosse um jogador de golfe, estaria sem tacadas numa jogada de longa distância.
Com um gemido, iniciou o processo de se erguer e esticar o braço o mais que podia. Bem perto do alvo. E... quase lá.
Depois de algumas passadas fúteis e remexidas das pontas dos dedos, finalmente conseguiu tirar o fone antigo do gancho. Até conseguiu acomodá-lo sobre o peito sem derrubar a maldita coisa.
Levar a coisa até a orelha também, fácil como tirar doce de criança.
Mas, cacete, a coisa do discar...
Teve que retirar o acesso extra... quer dizer, intravenoso. Uma sujeira, o portal aberto da máquina vazando um líquido claro no chão enquanto o sangue escorria de onde o tubo estivera conectado na curva do seu braço. Quem se importava. Ele mesmo limparia... Quando conseguisse ficar de pé sem vomitar.
Por um instante, encarou os doze botões em seus quadradinhos bem arrumados, mas não conseguia se lembrar da sequência. Mas o desespero tornou sua memória muito mais afiada do que ela tinha qualquer direito de ser e ele se lembrou do padrão mais do que da ordem dos números.
Um toque. Dois toques. Três...
– Alô? – disse uma voz feminina.
A luz do sol praticamente estava 97% sumida do céu quando Blay abriu a porta e saiu para a varanda de trás da nova casa dos pais. Frio, muito frio, e o ar estava tão seco que parecia jato de areia em seu nariz.
Cara, como ele odiava dezembro. Não só porque ficava frio assim, mas porque significava que ainda havia uns... quatro meses antes que o tempo melhorasse e as pessoas não sentissem necessidade de se cobrirem toda vez que saíam de cada.
Levando o cigarro aos lábios, acendeu-o com seu isqueiro de ouro da Van Cleef & Arpels – aquele dos anos 1940 que Saxton lhe dera na época em que namoraram – e amparou a chama alaranjada com a mão. A primeira tragada foi...
Horrível pra cacete.
Um acesso de tosse atacou o que deveria ter sido um alegre reencontro entre dois velhos amigos: seus pulmões e a nicotina. Mas ele se recuperou rapidamente, e em três baforadas, estava de volta à ativa. E o formigar conhecido na cabeça fazia com que se sentisse mais leve do que na verdade estava, a fumaça descendo pelo fundo da garganta como o afago de uma massagista em seu esôfago, cada exalada algo bem perto de uma sessão de quiropraxia ao longo da coluna.
Ouvira dizer que fumar era estimulante? O leve zunido no seu lobo frontal não confirmava essa ideia. Mas era estranho como tudo a respeito daquele vício o acalmava: a potencialidade para relaxamento começara a se amalgamar no instante em que encontrara um velho maço ainda fechado de Dunhill Reds na gaveta do criado mudo do seu quarto no andar de cima, e culminara ali, no primeiro momento de semi paz desde que aparecera na casa há doze horas, com a desculpa de ir ver como estava o tornozelo da mãe.
Bateu o cigarro no cinzeiro de cristal que equilibrara sobre a grade da varanda, e depois o levou de volta aos lábios, inalou, exalou.
Concentrando-se no prado coberto de neve atrás da casa, sentiu pena da mãe. Tivera que deixar a verdadeira casa da família quando redutores atacaram o lugar – um episódio que, embora ele pudesse ter vivido ser isso, mostrara que contadores como seu pai e fêmeas civis como sua mãe sabiam ser duros na queda quando necessário. Mas, sim, não havia como permanecerem lá depois de algo semelhante – e depois de passarem um tempo de um lado para o outro, hospedando-se com parentes por um tempo, os pais finalmente compraram esta nova casa em estilo colonial onde havia fazendas e espaços vazios de terra.
Sua mãe odiava a casa, mesmo que todos os utensílios fossem novos, as janelas se abrissem e fechassem com facilidade, e nenhuma das tábuas rangesse. Pensando bem, talvez fosse por tudo isso que ela desgostava da casa, mas o que se podia fazer? E aquele não era um lugar ruim. Quarenta mil metros quadrados com boas árvores, uma linda varanda circundando-a completamente e, pela primeira vez, sistema de ar condicionado central.
Que não era necessário ao norte do Estado de Nova York a não ser por talvez a última semana em julho e a primeira em agosto.
E durante essa quinzena de noites, você se sente verdadeiramente grato por possuí-lo.
Enquanto fitava o laguinho congelado com as hastes altas de amentilhos e montes de neve que formavam letras “S” no chão, deixou que a mente vagasse por todo tipo de pensamentos não controversos sobre propriedades e sistemas de ar condicionado central, e vícios que não eram tão graves assim.
Deus bem sabia que isso era bem mais fácil do que o manteve acordado o dia inteiro.
Quando chegara na noite anterior, perto do amanhecer, não tivera coragem de contar aos pais o que acontecera. A questão era que, quando Qhuinn afirmou que ele, Blay, não era pai daquelas crianças, o cara apagara qualquer direito de avós que a sua mãe e o seu pai acreditavam ter também. Portanto, não iria explicar por que ele...
O rangido da porta logo atrás fez com que ele se virasse.
– Oi, Mahmen – ele disse, escondendo o cigarro atrás das costas. Como se fosse um maldito pré-trans fazendo algo errado.
Ainda assim, bons garotos gostam de deixar suas mães felizes, e Blay sempre fora um bom garoto.
Sua mahmen sorriu, mas os olhos dispararam para o cinzeiro e, convenhamos, até parece que ela não sentiria o cheiro no ar? E ela também nunca lhe pedira para parar, só que era como Qhuinn. Não era fã, mesmo não existindo nenhum risco de câncer com que se preocupar.
– Você tem um telefonema. – Ela indicou com a cabeça para trás. – Há uma extensão no escritório do seu pai caso queira um pouco de privacidade?
– Quem é?
Ele perguntou isso para ganhar tempo, apesar de estar bem claro quem estava ligando – mas ela não pareceu se importar.
– Qhuinn. Ele parece um pouco... estranho.
– Aposto como parece.
Blay voltou a olhar para o laguinho. Também voltou a fumar, porque se sentiu subitamente agitado.
– Não quis me meter, Blay. Mas sei que há algo de errado entre vocês dois, de outro modo, ele também estaria aqui. Quero dizer, seu Qhuinn nunca deixa passar uma chance de vir comer a minha comida.
– Pode dizer a ele que não estou aqui? – Bateu as cinzas no cinzeiro apesar de não haver muito para bater. – Diga que saí. Ou algo assim.
– Tarde demais. Eu já disse que você estava na varanda. Desculpe.
– Tudo bem. – Equilibrando o cinzeiro, apagou o Dunhill. – Importa-se se eu deixar isto aqui agora? Eu limpo antes de ir embora.
– Claro. – Sua mahmen deu um passo para o lado e esperou com a porta aberta. Quando ele não foi de imediato, ela pareceu triste. – O que quer que seja, vocês dois saberão resolver. Ser pais novos pode mudar muitas coisas, mas nada a que não possam se ajustar.
Bem, aparentemente, só um de nós é um pai novo, então...
Blay atravessou a varanda e lhe deu um beijo.
– No escritório? Tem certeza de que papai não vai precisar dele?
– Ele está no sótão. Acho que está alfabetizando as nossas malas, por mais estranho que isso possa parecer.
– Nada é estranho no que se refere a papai e a organização. É por cor ou marca?
– Marca primeiro, depois por cor. Quem haveria de saber que aquelas Samsonites dos anos 1970 durariam tanto?
– Baratas, Twinkies e Samsonites. Isso é o que restará depois de uma guerra nuclear.
Estava bem mais quente no interior, e enquanto se dirigia para o escritório do pai, seus Nikes guincharam no assoalho recém-envernizado de pinho. Acendendo a luz, foi confrontado por um conjunto de escritório completo. A escrivaninha, na ponta oposta, não era nada especial, apenas uma peça legal da loja Office Depot com pernas pretas e tampo marrom claro, e sobre ele, havia um telefone e uma calculadora antiga com um rolo de papel. A cadeira era preta e acolchoada, e o computador era um Mac, não um PC.
Melhor não contar isso ao V., pensou ao fechar a porta.
Havia uma série de janelas, todas elas com cortinas pesadas ainda fechadas, evidência que seu pai ainda não batera o ponto na empresa de consultoria que começara. Trabalhar de casa era uma benção para os vampiros que queriam ganhar dinheiro no setor humano, e ainda mais apropriado se você é um contador que vive dos números.
Sentando-se atrás da central de comando do pai, Blay apanhou o fone e pigarreou.
– Alô?
Houve um clique quando sua mãe desligou a extensão da cozinha, ou da sala de estar, ou de onde quer que tenha atendido o telefonema. Em seguida, nada além de estática do outro lado da linha.
– Alô...? – repetiu.
A voz de Qhuinn estava tão rouca que mal se ouvia.
– Oi.
Longo silêncio. Não era uma surpresa. Era Blay quem normalmente pressionava para que se comunicassem quando divergiam em algo, em grande parte porque não lidava bem com distanciamento entre eles, e Qhuinn sempre teve dificuldades para falar sobre “sentimentos”. Inevitavelmente, porém, o macho cedia, e falavam o que tinham que falar como adultos – e depois Qhuinn o serviria sexualmente por horas, como se o cara quisesse compensar por sua fraqueza interpessoal.
Era um bom “modus operandi”. Normalmente funcionava para eles.
Mas não esta noite. Blay não entraria nesse jogo.
– Então, me desculpe – Qhuinn disse.
– Pelo que. – A pausa que se seguiu sugeria que Qhuinn estava pensando “você sabe pelo que”. – Sim, vou fazer você dizer.
– Me desculpe pelo que saiu da minha boca quando eu estava alterado. Sobre Lyric e Rhamp e você. Eu sinto muito mesmo... Estou me sentindo péssimo. Eu estava tão furioso que não estava pensando direito.
– Acredito nisso. – Blay passou os dedos pelas teclas da calculadora do pai, com seus números no centro e os símbolos nas beiradas. – Você estava muito alterado.
– Eu não conseguia acreditar que Layla os colocara em risco daquele jeito. Isso me deixou louco pra cacete.
Aquela era a hora de Blay concordar, de afirmar que, sim, qualquer um ficaria furioso. E que seria difícil não ficar.
– Ela arriscou mesmo as vidas deles. Isso é verdade.
– Quero dizer, consegue imaginar uma vida sem aqueles dois?
Oras, sim. Passei boa parte do dia fazendo exatamente isso.
Um bolo se formou na garganta, e Blay tossiu para desalojá-lo.
– Não, não consigo.
– Eles são o que há de mais importante na minha vida. Os dois e você.
– Sei disso.
Qhuinn exalou como se estivesse aliviado.
– Fico feliz que entenda.
– Eu entendo.
– Você sempre me entendeu. Sempre.
– É verdade.
Houve mais um silêncio. E depois Qhuinn disse:
– Quando você vai voltar? Preciso te ver.
Blay fechou os olhos contra o tom sedutor da voz dele. Ele sabia exatamente o que estava se passando pela cabeça de Qhuinn. Crise superada, hora do sexo – e isso não era uma hipótese desagradável, não mesmo. Mas, convenhamos, Qhuinn era um orgasmo de pé em coturnos, uma força da natureza dominante na horizontal, capaz de fazer um macho se sentir como a coisa mais desejável na face da Terra.
– Blay? Espere, a sua mahmen está bem? Como está o tornozelo dela?
– Melhor. Ela está conseguindo se movimentar. A doutora Jane disse que em mais uma ou duas noites, ela poderá tirar a bota. Está se curando bem depois da queda.
– Que ótimo. Diga a ela que estou feliz por ela estar se recuperando.
– Eu direi.
– Então... quando vai voltar para casa?
– Não vou.
Longo silêncio.
– Por quê?
Blay passou as pontas dos dedos sobre os números do teclado, na ordem certa – primeiro crescente, do zero ao nove, depois decrescente. Não pressionou com força de modo que nada apareceu na parte acesa nem no rolo de papel para que começasse a imprimir algo.
– Blay, de verdade, sinto muito. Estou me sentindo uma merda. Nunca quis te magoar, nunca.
– Acredito nisso.
– Eu não estava bem da cabeça.
– E isso é um problema meu.
– Olha só, eu não consigo acreditar que saquei uma arma e puxei o gatilho. Quero vomitar toda vez que penso nisso. Mas já me acalmei agora e Layla saiu de casa. Foi a primeira coisa que perguntei quando me recuperei. Ela está fora e as crianças estão seguras, então eu estou bem.
– Espera. Recuperar do quê? Você se machucou depois que fui embora?
– Eu, ah... É uma longa história. Volta pra casa e eu te conto pessoalmente.
– Eles tiraram os direitos de Layla?
– Ainda não. Mas vão tirar. Wrath vai entender o meu lado. Afinal, ele é pai.
Aquele bolo na garganta de Blay voltou, mas não tão ruim desta vez. Não precisou tossir.
– Layla ainda deveria ser capaz de ver as crianças regularmente. Eles precisam da mahmen deles, e quer você goste disso ou não, ela deveria estar nas vidas deles.
– O que está dizendo, que ela e Xcor deveriam levá-los para o McDonald’s pra comer a porra de uma porção de batatas fritas e tomar uma Coca?
– Não vou discutir isso com você. Não é da minha conta, lembra?
– Blay. – Agora vinha a impaciência. – O que mais quer que eu diga?
– Nada. Não há nada a...
– Já estou com a cabeça no lugar. Sei que estive errado ao gritar com você daquele jeito e...
– Pare. – Blay pegou o maço de Dunhill, mas depois voltou a guardá-lo no bolso da camisa. Não fumaria dentro da casa. – O fato de você ter se acalmado? Que bom, talvez isso o ajude a ser mais racional no que se refere a Layla. Mas tem uma coisa... Quando as pessoas estão bravas, elas dizem a verdade. Você pode se desculpar o quanto quiser por ter ficado bravo e ter gritado comigo e toda essa merda. O que você nunca vai conseguir retirar, contudo, é o fato de que, naquele momento, numa fração de segundo, quando não tinha a capacidade de dourar a pílula, ou pensar no que dizia ou ser gentil... você deixou claro, para que todos ouvissem, no que acredita de fato. Que eu não sou pai daquelas crianças.
– Você está tão errado. Eu só estava irritado com a Layla. Não tinha nada a ver com você.
– As suas palavras têm tudo a ver comigo – e, olha só, não é que eu não entenda. Você é o pai biológico daquelas crianças. Isso é algo que ninguém pode tirar de você nem mudar – isso é sagrado, uma realidade determinada no segundo em que Layla engravidou graças a você. E é por isso que a ideia de você esperar que Wrath finja que da noite passada pra frente Layla não deve estar nas vidas deles é a maior cretinice. Ela está no sangue deles, assim como você está. É verdade, ela tomou uma decisão muito errada enquanto estava grávida, mas os bebês nasceram, e ela não os deixou nem por um segundo desde que deu a luz. Você sabe muito bem que ela só pensa neles, não em outra coisa nem ninguém mais, e isso inclui Xcor. Se você tirar os direitos dela? Só estará fazendo isso para ser cruel porque quer que ela tenha medo de você e você quer lhe ensinar uma lição e fazê-la sofrer. E esse não é um motivo bom o bastante para afastá-la de Lyric e Rhamp.
– Ela se associou ao inimigo, Blay.
– E ele não a machucou, não é mesmo? Nem aos seus filhos. – Blay imprecou. – Mas isso não é da minha conta...
– Dá pra parar de ficar jogando isso na minha cara!
– Não estou dizendo isso pra te irritar. – De repente, seus olhos se encheram de lágrimas. – Estou dizendo isso porque essa é a minha nova realidade, e estou tentando me ajustar a ela.
Ele odiou a aspereza em sua voz – ainda mais porque Qhuinn o conhecia bem demais para não notá-la. Com isso em mente...
– Olha só, eu tenho que ir...
– Blay, para com isso. Me deixa ir até aí pra te ver...
– Por favor, não faz isso.
– O que tá acontecendo aqui? – A voz de Qhuinn ficou contraída. – Blay. O que você tá fazendo?
Enquanto Blay se recostava na poltrona de encosto alto do pai, fechou os olhos... e a imagem de Lyric contra seu peito foi como uma espada atravessando seu coração. Deus, conseguia se lembrar de cada detalhe dela: os lindos e grandes olhos míopes que ainda tinham cor indefinida, as bochechas rosadas, a penugem loira na cabeça.
Lembrava-se de sorrir para ela, com seu coração tão cheio de amor que o corpo parecia um balão glorioso, superinflado, mas sem o perigo de explodir.
Tudo parecera mais permanente com a chegada dos bebês, como se Qhuinn e ele, já comprometidos, tivessem acrescentado umas cordas de aço ao redor deles, tendo puxado a ponta bem forte.
Ele não sabia o que era pior: perder seu lugar nas vidas dos bebês, ou não sentir mais essa segurança.
– Tenho que ir – disse de repente.
– Blay, pera aí...
Ao abaixar o fone no gancho, não foi com força. Não pegou a peça para jogá-la sobre as prateleiras muito bem ordenadas de livros sobre economia e regras de contabilidade.
Não estava bravo.
Ficar irritado com a verdade era estupidez.
Seria melhor passar o tempo ajustando-se a ela.
Muito mais lógico, mesmo que isso fizesse com que lágrimas se formassem nos seus olhos.
CONTINUA
CAPÍTULO 8
Enquanto Layla fitava os três machos, tremia tanto que era difícil manter o tronco ereto, longe do chão. O que lhe outorgava as poucas forças de que dispunha? Lyric e Rhamp estavam em seu colo, as dobras do roupão os envolvia como proteção contra o frio do quarto, o choro deles tinha sido silenciado... por enquanto.
Concentrando-se no Rei, quis enxugar os olhos, mas não soltaria os filhos nem por um segundo.
– Ela andou se encontrando com Xcor – Qhuinn desabafou, sua respiração saindo em nuvens brancas. – Pelas nossas costas. Esse tempo todo, enquanto estava grávida. Quero privá-la do direito de ver meus filhos, e também que ela saia desta casa. Tanto faz que ela seja sentenciada à morte ou banida... Isso é você quem decide.
O rosto cruel e aristocrático de Wrath se virou na direção do Irmão.
– Obrigado por me dizer qual o meu papel, babaca. E se está se referindo a banimento, neste instante, é você que me vem à mente, não ela.
– Imagine descobrir que Beth está dormindo com o líder do Bando de Bastardos enquanto ela...
– Cuidado com suas palavras – Wrath rosnou. – Está andando numa corda muito fina, da qual está prestes a cair. Na verdade, saia daqui. Quero conversar com Layla a sós.
– Não vou deixar os meus filhos.
O Rei relanceou para Blay.
– Tire-o daqui. Esganado, se for preciso...
– Tenho meus direitos! – Qhuinn exclamou. – Eu tenho...
Wrath movimentou o quadril para a frente.
– Você só tem a porra do que eu te conceder! Sou seu dono, fodidão, então feche a matraca e saia da porra deste quarto. Cuido de você quando eu achar que é a sua vez. Entendo que está com a cabeça quente, e até tentaria respeitar isso se você não agisse como dono do mundo. Mas, neste instante, minha única preocupação são os seus filhos, porque, evidentemente, eles não estão no seu radar...
– Como diabos você pode dizer isso...
– Porque você acabou de apontar uma arma para a mahmen deles!
Ao lado de Qhuinn, Blay parecia ter estado em contato próximo com a morte. Sua expressão era um misto de horror e tristeza, suas mãos tremiam ao passá-las repetidas vezes pelos cabelos ruivos.
– Sou o Rei, esta é a minha casa. Tire-o daqui, Blay. E isso é uma ordem.
Blay cochichou algo inaudível para Qhuinn. Em seguida, Qhuinn marchou para fora do quarto, os coturnos esmagando o carpete coberto de gelo. Enquanto ele prosseguia, Blay o acompanhou, como um guarda-costas faria.
Só que Blay, na verdade, estava protegendo os demais presentes.
Quando restaram apenas Wrath e a Escolhida, Layla inspirou tão fundo que doeu.
– Permite-me colocar os bebês no berço, meu senhor?
– Tá, tá. Faça o que precisa fazer.
Parecia que suas pernas estavam desprovidas de ossos, e com a fúria dissipada, ela temia não ter forças para ficar de pé e carregar os dois em segurança ao mesmo tempo. Foi difícil decidir quem deixar de lado por enquanto, mas, no fim, colocou Rhamp com cuidado sobre o tapete oriental. Segurando Lyric com os dois braços, esforçou-se para ficar de pé e caminhar aos tropeços até o berço. Depois de depositar Lyric no ninho macio, voltou para apanhar Rhamp, que havia começado a se agitar com a ausência da irmã. Ajeitando as cobertas ao redor deles para mantê-los aquecidos, preparou-se para enfrentar o Rei.
– Posso me sentar? – sussurrou.
– Sim, é melhor mesmo.
– Não há nada diante dos seus pés, meu senhor. Se desejar avançar pelo quarto.
Ele ignorou a tentativa dela quanto a ajudá-lo a navegar em sua cegueira, em território desconhecido.
– Quer me explicar o que diabos está acontecendo aqui?
Qhuinn não conseguia se lembrar de absolutamente nada.
Ao se dirigir até a sala de estar do segundo andar, no lado oposto da mansão, ele tentava juntar a série de eventos, porque isso lhe dava outra coisa para fazer além de gritar. Seu último instante de clareza foi aquele em que quase derrubou a porta de entrada para entrar na casa. Tudo a partir daquela fração de segundo, até o momento, enquanto ele andava ao redor dos sofás de seda e das mesinhas auxiliares – era uma tábula rasa.
E quanto mais se esforçava para se lembrar, mais indefinível tal hiato na realidade se tornava, como se a perseguição tornasse a vítima mais ligeira.
Mas que diabos, não estava conseguindo pensar. Não conseguia...
Indistintamente, percebia que Blay o observava. E então o macho começou a falar. Mas só o que Qhuinn conseguia fazer era circular, dando voltas na mobília, com a necessidade premente de proteger os filhos mantida como o principal objetivo que exigia toda a sua concentração.
O que diabos Wrath faria? Por certo, o Rei não permitiria que Layla... Saído sabe-se lá de onde, Blay se empostou diante dele, com o rosto impassível e as costas aprumadas.
– Não consigo fazer isto.
– Fazer o quê?
– Ficar no mesmo cômodo que você nem por mais um minuto.
Qhuinn piscou.
– Então saia. Estou desarmado, lembra? E tem uns mil quilos de Irmandade pairando ao redor daquele maldito quarto.
De outro modo, sim, ele ainda estaria ali. Com seus filhos.
– Pode deixar – Blay murmurou. – Vou para casa ver como a minha mahmen está.
Quando as sílabas atingiram o ar entre eles, Qhuinn precisou de um minuto em meio à salada do seu cérebro para decifrá-las. Casa...? Mahmen...? Ah, verdade. O tornozelo dela.
– Ok. Tá bem.
Blay continuou onde estava. E depois, num tom baixo, disse:
– Você vai sequer se importar se eu voltar, ou não, antes do amanhecer?
Quando houve uma batida de coração de pausa, o macho retrocedeu, meneando a cabeça ao seguir para a saída. Qhuinn notou a partida dele – e uma parte sua sabia que deveria chamá-lo, para se reconectarem... impedi-lo de sair. Mas outra porção muito maior sua estava de volta àquele quarto, à procura de agarrar os fios de lembranças do espaço em branco que havia tomado conta dele.
Jesus... Havia mesmo disparado uma arma na mansão? Com seus filhos no quarto...
– Qhuinn?
Ele voltou a se concentrar na sala. Blay estava na soleira, com os olhos estreitados e o maxilar travado.
O macho pigarreou.
– Só para que você e eu estejamos de acordo em relação a um ponto, eu nunca serei capaz de tirar o que você disse da minha cabeça. E o mesmo vale para a cena de você com aquela arma na mão.
– Pelo menos um de nós vai se lembrar – Qhuinn murmurou.
– Como que é?
– Não consigo me lembrar de nada.
– Ah, pare com isso. – Blay apontou um dedo na direção dele. – Você não pode apagar aquela cena alegando amnésia momentânea.
– Não vou discutir com você sobre isso.
– Então não temos muito para dizer um ao outro, né?
Quando Blay apenas o encarou, Qhuinn sacudiu a cabeça.
– Olha só, sem querer te desrespeitar, a vida dos meus filhos é só no que eu consigo pensar agora. Layla não é quem eu pensei que fosse, e ela...
– Para a sua informação, você acabou de me dizer que eu não sou pai. – A voz de Blay saiu dura, como se estivesse tentando esconder a dor. – Você me olhou nos olhos e me disse que as crianças e a mãe delas não eram da minha conta.
Num eco distante, nas profundezas da consciência de Qhuinn, surgiu um ódio ainda ardente. Mas foi um fio ao qual ele não conseguiu se apegar. Só o que queria fazer era voltar para o quarto e apanhar o filho e a filha, e sair dali. Não se importava para onde iria...
Blay praguejou.
– Não espere por mim. Não vou voltar.
E dessa maneira, Qhuinn ficou sozinho.
Fantástico. Agora o seu relacionamento também estava na merda.
Inclinando-se para o lado, Qhuinn espiou através da soleira da porta, mas mais para tentar avaliar se ainda havia Irmãos no corredor das estátuas. Sim, os guerreiros pairavam por ali – até parece que alguém iria sair? Mesmo com a ordem de Wrath para manterem distância?
Eles muito provavelmente dormiriam do lado de fora da droga daquele quarto, protegendo uma fêmea que não merecia isso...
Em seguida, Qhuinn se deu conta de que tinha um abajur nas mãos, e segurava o vaso oriental modificado como se fosse um bastão de beisebol. E, vejam só, pelo visto, ele tinha decidido lançá-lo em si mesmo, pois estava diante de um dos espelhos de antiguidade, seu reflexo distorcido no velho vidro espelhado.
Parecia um monstro, uma versão de si mesmo que fora processada nas engrenagens de um pesadelo, o rosto cerrado como um punho, as feições contraídas de um modo que mal as reconhecia. Observando, soube sem sombra de dúvida que, caso atirasse o abajur, acabaria destruindo a sala inteira, arrancando quadros da parede, quebrando janelas, tirando brasas acesas da lareira e jogando-as sobre os sofás, para formar uma fogueira de verdade.
E não pararia por ali.
Não pararia até que alguém o obrigasse, quer mediante correntes ou por meio de uma ou duas balas.
Estranhamente, seus olhos pararam no fio que pendia da base do abajur, a cauda marrom como a de um cachorro nervoso implorando por perdão e clemência por algo que não fazia a mínima ideia de ter feito.
O corpo inteiro de Qhuinn tremia ao depositar o abajur de cristal no chão.
Bem quando se endireitava, deu de cara com a janela e antes que conseguisse pensar duas vezes, foi até ela, entreabriu-a e fechou os olhos.
Mas não conseguia se desmaterializar. Não tinha nenhum lugar em mente, ele...
Não, espere. Tinha, sim, um destino. Claro que tinha a droga de um destino.
De repente, tranquilizou-se e se concentrou, desmaterializando-se para o lado externo da mansão, desejando ter agido de maneira mais fria. Se tivesse, talvez sua desforra tivesse sido evidente mais cedo.
Ao reassumir sua forma, o perfume dos pinheiros era pungente no ar invernal, e o vento passava por entre as árvores, suscitando o gemido dos pinheiros. A caverna para a qual se dirigira apresentava uma abertura escondida por rochas, mas se você soubesse o que estava procurando, não teria problemas em encontrá-la. Do lado de dentro, avançou rapidamente até a os portões da Tumba, e quando acionou o mecanismo para deslizar as paredes de granito, encontrava-se perfeitamente composto diante dos portões de ferro, com um sorriso tranquilo no rosto, como cal sobre uma cerca apodrecida.
– Estou aqui para a troca de turno – exclamou ao sacudir o metal antigo.
Torcia silenciosamente para que, só para variar, as novidades não tivessem se espalhado com tanta velocidade entre os membros da Irmandade. Que o Irmão do turno não tivesse consultado o celular, ou que todos na casa ainda estivessem tão envolvidos na situação que não tivessem pensado em mandar uma mensagem de texto para o encarregado do momento.
Phury apareceu no corredor iluminado por tochas; o som dos seus coturnos ecoava no piso de pedras, em meio aos jarros dos redutores.
– Ah, oi – cumprimentou o Irmão. – Tudo bem?
Sob a vacilante luz alaranjada, não havia nenhum sinal de suspeita, nenhum alarme no seu rosto, nada de olhos estreitados. Nenhuma mão à procura do telefone para chamar por reforços. Zero tensão, como se o guerreiro estivesse preparado para defender sua posição mesmo com os portões fechados.
– Tudo ótimo – Qhuinn respondeu como se tentasse não prestar atenção a quanto tempo o cara demoraria para se deslocar até ele. – A não ser pelo fato de eu estar cobrindo o turno de Lassiter hoje.
Phury parou junto ao portão e apoiou as mãos no quadril, o que causou em Qhuinn um ímpeto de gritar.
– Deixe-me adivinhar – disse o outro Irmão. – Maratona de Super-gatas.
– Pior. Uma retrospectiva de Maude. Bea Arthur é sexy, pelo visto. Vai me deixar entrar?
O Primale pegou a chave de cobre.
– A propósito, ele está acordado.
O coração de Qhuinn começou a bater forte.
– Xcor?
Como se pudessem estar se referindo a outra pessoa...
– Embora não muito comunicativo, está consciente. Mas nada de interrogatórios, ainda. V. teve que arrancar Tohr daqui e depois Butch saiu quando eu cheguei. – Phury abriu o portão e foi para o lado.
– E você conhece o esquema. Dois de nós temos que estar presentes para arrancar alguma coisa dele, e eu não posso ficar. Fiquei de encontrar Cormia nos Grandes Campos. Você tem um reserva ou vamos esperar cair a noite para começar a diversão?
Uma ironia, na verdade. Todos se preocuparam que Tohr poderia enlouquecer e acabar com aquele pedaço de carne antes da hora.
Mas isso não seria mais um problema, não é?
Qhuinn soltou o ar que esteve prendendo e tomou o cuidado de não entrar com afobação.
– Blay viria comigo, mas teve de ir ver a mahmen dele.
Quando trocaram de lugar, Phury lhe entregou a chave, que ele quase guardou no bolso.
– Opa, desculpe. Você vai precisar disto. Verdade, ouvi que ela caiu. Como está o tornozelo?
Qhuinn estava tão distraído pelo objeto que lhe foi colocado na mão que perdeu o fio da conversa. Que diabos eles...
– Melhor – Qhuinn se ouviu dizer ao fechar o portão e trancá-lo. – Mas ele ia providenciar alguém para cobrir o turno dele.
– Eu ficaria se pudesse.
Qhuinn observou de longe enquanto girava a maçaneta ornamentada para a esquerda, de modo que a tranca se ajustasse no lugar...
– Qhuinn?
Ele se sacudiu mentalmente e certificou de demonstrar uma expressão agradável – algo com o qual suas feições normalmente já não estavam acostumadas, mesmo sem a crise atual.
– Oi?
– Você está bem? Não parece.
Num gesto exagerado ao afastar os cabelos para trás e ao ajeitar a jaqueta, revirou o ombro – e quis saudar essa parte de sua anatomia por ter emitido um crec! bem sonoro.
– Pra falar a verdade, este ombro está me matando. – Pôs a mão nele para massageá-lo. – A doutora Jane acha que vai ter de operá-lo, para limpar o osso. Mas não é nada grave, é um crônico gradual, não agudo. Se alguma coisa acontecer com esse pedaço de carne daqui – apontou para trás, eu aguento.
Phury xingou.
– Já passei por isso. Não estou preocupado com você. Sei que dá conta do recado. Quer que eu passe na mansão para ver se Z. pode vir pra cá?
– Não, Blay vai encontrar alguém. Mas obrigado.
Pelo amor de tudo o que havia de mais sagrado, será que ele poderia parar de jogar conversa fora? A qualquer segundo, o telefone do Irmão poderia tocar com uma chamada ou mensagem para informá-lo que Qhuinn não deveria em hipótese alguma ficar a cerca de trezentos metros do prisioneiro...
– Tchau. – Phury se virou e levantou a mão. – Boa sorte com ele.
– Ele bem que vai precisar – Qhuinn sussurrou para as costas do Irmão, que se distanciavam.
CAPÍTULO 9
Em sua cegueira, Wrath estava tanto mais isolado como também mais conectado com o mundo do que os indivíduos que enxergavam: isolado, porque a ausência de pistas visuais do seu ambiente significava a permanência na flutuação numa galáxia de escuridão, e mais conectado porque seus outros sentidos estavam amplificados no seu eterno céu noturno, dentro de si, estrelas de informações pelas quais ele se guiava.
Portanto, ao ficar de frente para Layla, enquanto essa lhe contava toda a história, percebeu e acompanhou todas as nuances, as variações no cheiro e no tom de voz, em cada movimento desenhado por ela, até mesmo na pressão do ar entre eles quando o humor da Escolhida passou da raiva para a tristeza, do arrependimento para a culpa.
– Então Xcor localizou o complexo – Wrath concluiu – ao rastrear seu sangue. Foi assim que ele fez?
Houve um leve rangido na cama quando ela ajustou a divisão de seu peso sobre o móvel.
– Sim – respondeu com suavidade. – Eu o havia alimentado.
– Certo, na primeira noite. Quando Throe a enganou, levando-a até aquela campina. Ou aconteceu de novo depois disso?
– Voltou a acontecer.
– O seu sangue estava nele – Wrath repetiu. – E ele seguiu o sinal até aqui.
– Xcor prometeu que, se eu continuasse a vê-lo, ele não atacaria o complexo. Argumentei comigo mesma que estava protegendo a todos nós, mas a verdade é que... eu precisava vê-lo. Eu queria vê-lo. Foi horrível, ficar presa entre meu coração e minha família. Foi... terrível.
Maldição, Wrath pensou. Não haveria uma saída fácil da situação.
– Você cometeu um ato de traição.
– Cometi.
Wrath se esforçara muito para reverter muitas das Antigas Leis restritivas e impiedosas, abolindo sanções como a escravidão de sangue e a servidão contratual, e também estabelecendo processos básicos adequados para as ofensas entre os civis. Mas a única coisa à qual ele ainda aderia era a traição à Coroa, que era punida com a morte.
– Por favor – ela sussurrou –, não me afaste dos meus filhos. Não me mande para o Fade.
Ela dificilmente podia ser considerada uma inimiga do Estado. Mas cometera um crime muito sério – e sua cabeça estava latejando.
– Por que precisava ver Xcor?
– Eu me apaixonei por ele. – A voz da Escolhida saiu impassível, sem vida. – Não tive nenhum controle sobre isso. Ele sempre foi bem gentil comigo. Muito educado. Nunca fez um avanço em minha direção – e quando eu o fiz, ele me rejeitou, mesmo diante da clara evidência de que... que não era indiferente a mim. Ele só parecia querer estar comigo.
– Tem certeza de que ele não estava mentindo?
– Sobre o quê?
– Sobre saber a nossa localização.
– Não, não estava. Eu o vi na propriedade. Eu o encontrei... dentro da propriedade. – E falou mais rápido, com uma súplica fervorosa invadindo-lhe a voz. – Então, ele tem honra, pois poderia ter atacado, mas escolheu não fazê-lo. Manteve sua palavra, mesmo depois que me mandou ir embora e nunca mais procurá-lo.
Wrath franziu o cenho.
– Está me dizendo que foi ele quem terminou?
– Sim. Ele me expulsou e abandonou o chalé no qual efetuávamos nossos encontros.
– E por qual motivo ele teria agido assim?
Estabeleceu-se uma longa pausa.
– Eu o confrontei em relação aos seus sentimentos por mim. Eu sabia que ele sentia algo, e... Mas, sim, foi depois disso que ele me mandou embora.
– Há quanto tempo foi isso?
– Pouco antes de ele ser capturado. E sei por que ele pôs um fim a tudo. Ele não queria se sentir vulnerável ao meu lado.
Wrath franziu a testa e cruzou os braços diante do peito.
– Convenhamos, Layla, não seja ingênua. Não pensou nenhuma vez que talvez o motivo tenha sido ele enfim ter mobilizado tropas e informações o suficiente para promover um ataque aqui?
– Como? Não estou entendendo.
– Xcor trabalhou sem cessar junto à glymera para formar alianças contra mim. Antes e depois de botar uma bala na minha garganta. – Quando ela arfou, ele normalmente teria parado por ali. Mas a realidade não podia ser ignorada. – Se pretendia atacar uma fortaleza como esta, ele precisaria de meses e meses de vigilância e planejamento. E precisaria de um exército bem armado. Teria de juntar insumos e equipamentos. E está me dizendo que você não cogitou, nem por um momento, que ele continuava a usá-la só para ganhar tempo? E que talvez a tenha dispensado porque estava finalmente pronto?
A voz dela ficou estridente.
– Depois que ele me mandou embora, fiquei confusa e triste, mas refleti muito. Sei que o que ele sente por mim é real. Analisei seus olhos. Enxerguei esse sentimento.
– Não seja romântica, ok? Não no que se refere à guerra. Aquele maldito é um assassino frio e implacável, e usou você. Você é como todo o resto para ele. Um instrumento para ele chegar onde quer. Tire essa venda, fêmea, e caia na real.
Houve um longo silêncio, e ele praticamente conseguia escutar o funcionamento de suas reflexões.
E, em seguida, ela disse num fio de voz:
– À parte de tudo isso... O que vai fazer comigo?
Enquanto Xcor ouvia as vozes ao longe no corredor, testou as amarras, apesar de saber que nada havia mudado e ele continuava preso ali, junto à maca. E então captou o cheiro de outro macho, ouviu passadas pesadas se aproximando, sentiu a agressividade que beirava a ira.
Era chegada a sua hora. O acerto de contas; e ele não sobreviveria.
Ao mexer braços e pernas uma vez mais, descobriu que suas forças eram mínimas. Mas era assim que a situação se apresentava. Talvez significasse uma morte mais rápida, e isso não deixava de ser certa bênção.
O rosto que entrou em seu campo de visão lhe era bem conhecido: os olhos que não combinavam – um azul, outro verde –, feições endurecidas, e cabelos negros que fizeram Xcor sorrir um pouco.
– Me acha engraçado? – Qhuinn exigiu a resposta num tom afiado como a sua adaga. – Imaginei que fosse receber seu assassino com outra expressão que não um sorriso.
– Ironia – Xcor comentou, rouco.
– Destino, filho da puta.
Qhuinn dirigiu-se ao aço que prendia o tornozelo esquerdo de Xcor, os puxões fizeram-no franzir a testa em confusão – e, quando a pressão se esvaiu, ele se esforçou para levantar a cabeça. O Irmão seguiu para o tornozelo direito para libertá-lo... depois subiu para os pulsos.
– O que... faz... – Não conseguia entender os motivos para ser libertado. – Por que...
Qhuinn deu a volta pela cabeça e soltou a última das amarras.
– Porque quero que seja uma luta justa. Sente-se, caralho.
Xcor começou a se mover com lentidão, dobrando os braços e depois levantando os joelhos. Depois de ter permanecido de costas por sabe-se lá quanto tempo, todos os seus músculos se atrofiaram e havia uma rigidez inerente às juntas que o fez pensar em galhos de árvore sendo partidos. Mas era incrível como estar na iminência de um ataque fazia com que você superasse as barreiras da dor.
– Você não... – Gemeu ao se apoiar nos cotovelos, as vértebras estalaram ao longo da coluna – ... nem vai me perguntar...
Qhuinn ajustou sua posição de combate a um metro e meio de distância – os punhos erguidos, o peso apoiado nas coxas.
– Perguntar o quê?
– Onde estão meus soldados?
Desde que sua consciência tinha sido notada pelos seus captores, todos os tubos e fios haviam sido desconectados do seu corpo, e as máquinas que o mantiveram vivo foram retiradas, a não ser pelo acesso intravenoso no braço. Por instinto, ele o arrancou e deixou um buraco sangrando.
– Isto não se trata do Bando de Bastardos.
Com isso, o macho o atacou, desferindo um soco de direita tão certeiro e violento que se assemelhou a ser atropelado por um carro bem no rosto. Sem energia, sem coordenação e com um corpo nu que não respondia a comandos mais complexos do que apenas respirar e piscar, Xcor virou a maca. Em pleno ar, tentou agarrar o que podia para aplacar sua queda – e apanhou a beirada da maca, derrubando-a por cima do seu corpo.
Qhuinn atacou o escudo, apanhou-o e jogou-o por cima do ombro como se não pesasse mais do que um travesseiro. O baque, quando a maca atingiu prateleiras e jarros, foi tão alto como se uma bomba tivesse sido detonada no corredor iluminado pelas tochas.
– Seu filho da puta! – Qhuinn berrou. – Cuzão maldito!
Xcor se sentiu suspenso pelos cabelos, e as pernas não tiveram nem a chance de falhar sob o peso corpóreo, visto que seguiu o mesmo curso do leito hospitalar – voou em pleno ar, chocou-se contra uma seção de prateleiras, e os jarros amorteceram-lhe a queda como o cascalho o faria.
Quando ele aterrissou num fardo, o chão de pedras rachou sua pelve como se fosse vidro, ou pelo menos assim pareceu. Então, Xcor rolou de costas, na esperança de conseguir uma postura defensiva com as mãos.
Qhuinn saltou sobre o adversário, com uma bota em cada lado do tronco dele. Agachando-se, o Irmão exclamou:
– Ela estava grávida dos meus filhos! Jesus Cristo, você poderia ter matado eles!
Xcor fechou os olhos ante a imagem nítida de Layla, e seu corpo em progressiva transformação, como resultado do filho de outro macho – o filho desse macho – crescendo dentro dela. E outras imagens piores surgiram em sua mente... o da pele nua dela revelada para o toque de outro macho, seu cerne precioso penetrado por alguém que não ele, uma cópula acontecida entre ela e outro.
Do nada, uma fonte de energia ressurgiu em seu corpo, como gasolina a invadir o que antes era um motor seco.
Desprovido de um pensamento consciente, ele escancarou as presas, os caninos se projetaram por conta própria, o cheiro da sua vinculação em constante expansão rumo ao alvo que mataria apenas com as mãos.
As narinas de Qhuinn se inflaram e ele ficou imóvel, tamanha a sua supresa.
– Só pode ser a porra de uma brincadeira... Você se vinculou a ela, maldito? – O Irmão começou a gargalhar, lançando a cabeça para trás; na sequência, porém, deixou de lado a descontração do momento e escarneceu: – Bem, eu a atendi no cio. Pense nisso, filho da puta. Fui eu quem a possuiu e quem aliviou seu sofrimento de um jeito que só os machos...
A parte mais selvagem de qualquer vampiro tomou conta de Xcor, um ato dilacerador sobre o manto claustrofóbico da fraqueza, expondo o guerreiro em seu sangue, o assassino em sua medula.
Xcor saltou e atacou o Irmão com tudo o que tinha dentro de si, acertou Qhuinn e lançou ambos em uma confusão até a parede oposta e suas prateleiras. As posições mudaram quando Qhuinn o empurrou e socos foram desferidos. Era evidente que Xcor estava atrapalhado e poderia ser facilmente dominado, mas tinha a vinculação ao seu lado, a necessidade masculina de proteger e defender, o ciúme inato, o sentimento de posse sobrepujante produzindo-lhe uma força vital para atacar até subjugar o competidor.
Enquanto brigavam, seus pés esmagavam os jarros quebrados, Xcor sangrava no nariz e arrastava uma das pernas como peso morto, mas atingiu Qhuinn com a cabeça e usou todas as forças para empurrar o oponente. Enquanto Qhuinn se precipitava em direção aos equipamentos médicos, Xcor mantinha os braços em busca do equilíbrio que não conseguia encontrar, e saltou para a frente. Seu objetivo era aterrissar sobre o Irmão e bater nele até que perdesse os sentidos.
Mas, como um guerreiro treinado que era, Qhuinn conseguiu girar no meio da queda livre e, de alguma forma, endireitou-se a tempo de plantar as botas no chão e agarrar um dos monitores. Girando o equipamento pesado num círculo, lançou-o contra Xcor, como se fosse uma rocha.
Sem tempo para se abaixar – não com a parca coordenação que detinha no momento –, o impacto fez com que Xcor perdesse o ar e o equilíbrio: o ar foi forçado para fora dos pulmões e o equipamento médico o atingiu na lateral. No entanto, após um ínfimo segundo de recuperação, lançou-se a um rolamento defensivo, pois Qhuinn havia apanhado outro equipamento, que dessa vez era mais largo.
Qhuinn suspendeu o exaustor no alto, e Xcor sabia que configurava um alvo grande e lento demais, de modo que o Irmão não erraria a mira.
Por isso, atacou o macho ao invés de escapar dele. No último instante, Xcor se deitou, empurrou o chão com a palma e mobilizou cada músculo que tinha para lançar a parte inferior do corpo num movimento em arco, as pernas formaram um círculo...
... que tirou os pés de Qhuinn debaixo de si.
Enquanto o Irmão caía, o exaustor escorregou-lhe das mãos e caiu sobre ele. Ao se deparar com o xingamento e o grunhido, era possível inferir que o contato tinha ocorrido em um ponto vulnerável.
De fato, ele se enrolou sobre si mesmo como se as entranhas tivessem sido comprometidas.
Uma fração de segundo. Xcor tinha uma fração de segundo para pensar além da sua reação de macho vinculado e analisar a luta a partir da lógica. Por sorte, não havia muito em que pensar. Mesmo com a vinculação correndo nas veias, a derrota era iminente.
E quando se enfrenta um oponente que se sobrepõe a você, o que se deseja é sobreviver, então o passo é recuar e mandar o ego para o inferno.
Bloodletter lhe ensinara isso. À força.
Com Qhuinn se reerguendo de quatro e amparando a lateral do corpo, Xcor disparou, com seus pés ensanguentados, para então tropeçar e cair por cima do leito derrubado, passando por cima dos escombros dos jarros dos redutores e dos corações pútridos e rançosos que estiveram dentro deles. Não podia correr; seus passos mais se assemelhavam aos de um bêbado, fazendo-o andar torto; a cabeça girava mesmo apesar da certeza de que as tochas e as paredes estavam imóveis.
O mais rápido que conseguia. E depois ainda mais.
Ele seguiu o mais rápido que um macho imobilizado pelos inimigos durante semanas a fio conseguiria.
Era o equivalente a afirmar que ele parecia estar passeando. Qhuinn, no entanto, tinha sido gravemente ferido. Um olhar de relance por cima do ombro mostrou que o Irmão vomitava sangue.
Xcor seguiu em frente, com um breve otimismo incitando-o avante. Só que acabou confrontando um problema de tamanha magnitude que sua ineficiência em se deslocar com agilidade se tornou um problema pequeno.
Sob a iluminação das tochas, ele avistou os portões pesados logo adiante, constituídos de barras grossas de ferro incrustadas nas rochas da caverna – e eles tinham uma malha de aço sobre elas, tão fina que se desmaterializar através dela seria impossível.
Xcor arfava, sangrava, suava e tremia ao se aproximar e testar a resistência da barreira com seus braços patéticos. A barreira era sólida como as paredes da caverna. Nenhuma surpresa.
Olhando para trás, viu Qhuinn se levantar, sacudir a cabeça como que para clareá-la e encontrar um foco absoluto.
Como um predador faz com sua presa.
O fato de o queixo do macho escorrer sangue, que lhe cobria o peito, parecia um presságio do futuro.
Infelizmente, ele não sobreviveria a isso.
CAPÍTULO 10
Enquanto Layla aguardava o pronunciamento de Wrath sobre a sua punição, ela sequer conseguia engolir devido ao medo, à vergonha e ao arrependimento.
Incapaz de ficar parada, porém sem conseguir se levantar da cama, ela desviou o olhar da figura implacável do Rei – só para se deparar com os buracos das balas no gesso, no alto do canto mais distante. A náusea lhe subiu pela garganta, uma onda de queimação vil. Com a raiva dispersa, ela não conseguia mais imaginar o ódio que sentira, mas não tinha dúvidas do quanto tinha agido movida pela emoção. Assim como Qhuinn.
Santa Virgem Escriba, iria vomitar.
– Não ordenarei a sua morte – Wrath anunciou.
Layla exalou ao relaxar.
– Ah, muito, muito obrigada, meu senhor...
– Mas você não pode ficar aqui.
Ela se endireitou quando o coração passou a bater forte.
– E os bebês?
– Criaremos algum esquema de visitação ou...
Com um salto da cama, ela levou as mãos à garganta como se estivesse sendo estrangulada.
– Não pode me separar deles!
O semblante do Rei, tão aristocrático e poderoso, não lhe ofereceu uma centelha de piedade ou misericórdia.
– Não pode mais ficar aqui. Xcor não sobreviverá ao que faremos com ele, mas Throe se alimentou de você, e mesmo que isso tenha acontecido há algum tempo, simplesmente não é seguro. Presumimos que o mhis seria forte o bastante para nos proteger, mas evidentemente não é verdade, e é um risco de segurança em escala catastrófica.
Layla tropeçou à frente e caiu de joelhos aos pés de Wrath, juntando as mãos numa súplica.
– Eu juro, nunca quis que nada disso acontecesse. Por favor, imploro seu perdão, não tire meus filhos de mim! Obedecerei a qualquer outra ordem, eu juro!
Ela sabia que os Irmãos, que estavam no corredor, haviam se aproximado uma vez mais e ouviam a uma distância discreta, mas não lhe importava que a vissem se descontrolar. Wrath, contudo, sim. Relanceou por cima do ombro.
– Para trás. Estamos nos entendendo aqui – o Rei ladrou.
Não, não estamos, ela pensou. Não estamos nada bem aqui.
Houve uma breve agitação; em seguida, ela não via mais ninguém no corredor – e Wrath voltou a se concentrar nela, a inspiração profunda movendo as narinas.
– Sinto o cheiro das suas emoções. Sei que não está mentindo em seu relato e no que acredita. Mas há vezes em que as intenções são irrelevantes e esta é uma delas. Você tem que ir agora...
– Meus filhos!
– ... ou providenciarei que a levem.
Enquanto suas lágrimas caíam, ela quis gritar, mas não havia o que discutir. Ele tinha razão. Xcor a encontrara e seguira até em casa, e quem haveria de garantir que Throe não poderia imitá-lo? O sangue de Layla era tão puro que os efeitos de rastreamento poderiam durar anos, décadas, talvez até mais – apesar de ter alimentado o macho apenas uma vez. Por que ela não pensara nisso? Por que eles não pensaram?
– Está extinguindo meus direitos parentais? – perguntou, rouca.
O horror de perder os filhos era tão grande que ela mal conseguia traduzir seu medo em palavras. Em todos os seus piores pesadelos, jamais tinha cogitado que chegariam a esse ponto. Jamais havia considerado que as consequências poderiam ser tão devastadoras.
Mas, em retrospecto, quando se está em rota de colisão direta, não é possível catalogar exatamente a extensão dos ferimentos vindouros – ainda mais quando se está no meio de manobras evasivas para tentar impedir o acidente.
O destino a colocara ali.
Suas escolhas, também.
Não havia como negociar com nenhum dos dois.
– Não – Wrath disse abruptamente. – Não a excluirei. Qhuinn odiará a decisão, mas não é problema meu.
Layla fechou os olhos, as lágrimas saindo por eles, emaranhando-se com os cílios.
– A sua piedade desconhece limites.
– Bobagem. E agora você tem que partir. Tenho propriedades seguras e providenciarei o transporte. Comece a aprontar as malas.
– Mas quem ficará com eles? – Virou-se na direção dos berços. – Meus filhos... Ah, Santa Virgem Escriba...
– Qhuinn ficará com eles. E depois tomaremos providências para que você os visite. – O Rei pigarreou. – É assim... que tem que ser. Tenho que pensar nas outras crianças da casa... Diabos, agora mesmo estou pensando se não devo ordenar uma evacuação completa da mansão. Jesus, não faço a mínima ideia do motivo de ainda não nos terem atacado.
Ao se imaginar dormindo longe de Lyric e Rhamp, não alimentá-los durante o dia, não ser a responsável por trocá-los, acalentá-los e banhá-los, ela mal conseguiu respirar.
– Mas somente eu sei do que eles precisam, e eu...
– Diga seu adeus, e depois Fritz...
– Mas que diabos aconteceu aqui?
Quando Wrath se virou para trás, Layla fungou e levantou o olhar. O Primale estava parado junto à porta quebrada, as sobrancelhas de Phury abaixadas sobre os olhos amarelos, o corpo envolto em armas e cheirando a pinheiros e ar fresco.
– Você está bem, Layla? – ele perguntou, preocupado ao entrar e contornar Wrath. – Santa Virgem Escriba, mas... Isso são buracos de bala? Quem diabos descarregou uma arma aqui? As crianças estão bem?
– Foi Qhuinn quem deu uma de dedo rápido no gatilho. – Wrath cruzou os braços diante do peito e balançou a cabeça. – Os bebês estão bem, mas ela tem que ir embora. Talvez você possa ajudar a tirá-la daqui?
Phury virou a cabeça na direção do líder, os cabelos multicoloridos balançando na altura dos ombros.
– Do que está falando?
O Rei foi eficiente ao resumir a história entre ela e Xcor – e não usou as palavras traição, deslealdade nem punição com a morte, e também não foi preciso. Tudo isso e muito mais estava implícito, embora Wrath não tivesse repassado toda a história.
Phury o interrompeu antes do fim.
– Então é por isso que ele apareceu!
– Xcor a estava usando, sim...
– Não! Qhuinn! Caralho! – Phury levou os dedos à boca e assobiou tão alto que Layla teve de cobrir as orelhas. E depois ele começou a falar rápido. – Qhuinn acabou de aparecer no sanctum sanctorum! Ele me disse que cobriria o turno diurno de Lassiter e... merda, ele disse que estava esperando um reforço. Ele não me pareceu bem, por isso pensei em parar aqui a caminho dos Grandes Campos, para me certificar de que o substituto providenciado por Blay fosse para lá de imediato...
– Não! – Layla gritou. – Ele não pode ficar sozinho com...
– Ele vai matar Xcor – Wrath estrepitou. – Maldição...
Zsadist, o gêmeo idêntico de Phury, passou pela soleira, já prendendo o cinto das armas.
– Chamou?
Wrath praguejou.
– Puta merda, ele vai matá-lo. Vocês dois, vão agora! Eu chamo Vishous.
Enquanto os Irmãos e o Rei saíam, Layla foi para o corredor, atrás deles. Mesmo que não houvesse nada ao seu alcance – ou obrigações – para fazer, estava envolvida em pesadelos.
Assim como todos eles.
Junto ao portão da caverna, Xcor deu as costas a Qhuinn, que mancava e sangrava, e puxou as grades, colocando em prática seu instinto de sobrevivência. Não que fosse o suficiente.
– Vou te matar, maldito – Qhuinn praguejou, rouco. – Com as minhas mãos. E depois vou comer o seu coração enquanto ele ainda estiver quente...
Xcor ia se virar para articular sua defesa do ataque quando algo reluziu na chama da tocha e o motivou a ficar bem parado onde estava. A princípio, não conseguia acreditar no que lhe havia chamado a atenção. Foi tão inesperado que mesmo a perspectiva de morte certa não bastou para distraí-lo.
Ele fechou os olhos, sacudiu a cabeça e depois ergueu as pálpebras, arregalando os olhos como se, assim, conseguisse enxergar melhor.
Do lado oposto de onde estavam as dobradiças do portão... havia uma tranca. E tão certo quanto o sol se põe no Oeste, parecia haver a projeção de uma chave para fora do mecanismo.
Ante o som de arrasto do avanço desigual de Qhuinn, que se aproximava, Xcor esticou a mão trêmula e girou a peça de metal pesada para um lado... depois para o outro...
A fechadura emitiu um som e, de repente, o que estava firme como rocha acabou por ceder. E Xcor abriu o portão, cambaleando para fora.
Qhuinn percebeu de imediato a brecha de segurança colossal e começou a se locomover mais rápido, praguejando e segurando a lateral do corpo. Mas Xcor arrancou a chave, bateu o portão e descobriu... Isso... O mecanismo funcionava dos dois lados.
Quando o Irmão avançou, enfurecido, jogando o corpanzil contra as barras de ferro, Xcor enfiou a chave na fechadura e virou-a na direção correta e...
Trancou Qhuinn dentro da caverna.
Xcor se empurrou para trás quando o Irmão sacudiu as grades de ferro e as telas de aço, com grunhidos e xingamentos, que a Morte lhe negara algo com amargura e muito mais.
Aterrissando no chão com a bunda nua, Xcor tremia tanto que seus dentes tiritavam.
– ... vou te matar! – Qhuinn berrava com as mãos agarradas à tela até elas sangrarem. – Vou te matar, seu filho da puta!
Xcor olhou por cima do ombro. O ar fresco vinha daquela direção, e ele sabia que estava sem tempo. Era quase certo que Qhuinn chamaria por reforços assim que parasse de brigar com o oponente de ferro.
Levantando-se com dificuldade, ele manquejava tanto que teve que se apoiar na parede da caverna.
– Deixarei a chave aqui.
A voz fraca e trêmula interrompeu as imprecações, silenciando seu oponente por instantes.
– Não quero nada com você nem com a Irmandade. – Inclinou-se para baixo e colocou a chave no chão. – Não lhes quero mal, nem um fim. Já não cobiço mais o trono, tampouco desejo a guerra. Deixo esta chave como um testemunho das minhas intenções. E juro pela fêmea que amo com toda a minha alma que nunca entrarei nas suas propriedades aqui nem em qualquer outro lugar novamente.
Começou a se afastar, arrastando um pé atrás de si. Mas, então, parou e olhou para trás.
Deparando-se com o olhar despareado e selvagem de Qhuinn, Xcor disse com claridade:
– Eu amo Layla. E nunca tomei o corpo dela, tampouco o farei. Nunca mais a procurarei, tampouco pousarei os olhos sobre ela. Quer que eu morra? Pois bem, já morri, pois cada noite que ela vive com você e seus filhos, sou assassinado por não estar na presença dela. Portanto, seu objetivo foi conquistado.
Dito isso, ele voltou a partir, rezando para poder, de alguma maneira, se desmaterializar. Quando sua vista começou a falhar, porém, teve pouca fé que o conseguiria.
Suas forças o abandonavam agora que o macho vinculado dentro dele já não estava mais sendo provocado por um rival. De fato, não havia muitos motivos para correr, já que acabaria por cair nas mesmas mãos que o tinham prendido antes, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito. Se tivesse sorte, eles o alcançariam na floresta e atirariam nele como em um javali.
Mas a sorte raramente estivera ao seu lado.
CAPÍTULO 11
De volta à mansão da Irmandade, umas quatro portas distante de onde todo o drama com a arma se desenrolara, Tohr estava deitado sobre a cama, totalmente vestido. Ao fitar o dossel acima, tentou se convencer de que estava relaxando – e essa foi uma discussão que acabou por perder. Das pernas firmes como rocha, dos dedos que se flexionavam até os globos oculares que iam de um lado a outro, ele estava tão relaxado quanto uma corrente elétrica.
Fechando os olhos, só conseguiu enxergar aquela 40 mm mudando de direção e disparando balas dentro da mansão.
O mundo inteiro parecia descontrolado...
– Trouxe chá.
Antes que conseguisse se impedir, Tohr sacou a arma amarrada sob o braço. Mas, no mesmo instante, ao sentir a fragrância da sua fêmea e reconhecer-lhe a voz, abaixou a mão e se concentrou em Autumn. Sua amada shellan estava parada diante dele, com sua caneca YETI na mão e os olhos tristes e sérios.
– Venha cá – ele disse, estendendo a mão para pegar a dela. – Só preciso de você.
Puxou-a para o seu lado, agradeceu-lhe por ela ter lhe trazido o chá e deixou o Earl Grey de lado. Então, com um tremor de alívio, aninhou-a junto ao peito, passou os braços ao redor dela e a manteve junto ao coração.
– Noite ruim – ele confessou, perto dos cabelos perfumados. – Noite muito ruim.
– Verdade. Estou aliviada por ninguém ter se ferido. E também, é o aniversário de Wellsie. Sim, é uma noite muito, muito ruim.
Tohr afastou Autumn um pouco para poder fitá-la no rosto. Após o assassinato de sua companheira grávida executado por um inimigo, convencera-se de que jamais voltaria a amar. Como poderia, depois de tamanha tragédia? Mas essa gentil, paciente e determinada fêmea diante dele abrira seu coração e sua alma, dando-lhe vida onde ele estava morto, luz em sua escuridão perpétua, sustento para a sua fome.
– Como consegue ser assim? – perguntou-se, tracejando-lhe o rosto com a ponta dos dedos.
– Assim como? – Ela levantou a mão e afagou a mecha grisalha que se formara na parte da frente dos cabelos, logo após a morte de Wellsie.
– Você nunca se ressentiu dela ou... – Era difícil para ele reconhecer à sua fêmea, em voz alta, que continuava apegado aos seus mortos. Ele jamais quis que ela se sentisse menor. – Ou dos meus sentimentos por ela?
– Por que eu me ressentiria? Cormia nunca se frustrou pela ausência da perna do companheiro dela. Nem Beth pela cegueira de Wrath. Eu o amo como você é, e não seria você caso nunca tivesse amado outra, se nunca tivesse perdido outra, se nunca tivesse perdido a chance de ser pai.
– Só podia ser você – ele sussurrou, inclinando-se para pressionar os lábios nos dela. – Você é a única com quem eu poderia estar.
O sorriso dela era como o coração: acessível, franco, acolhedor.
– Que conveniente, já que sinto o mesmo por você.
Tohr aprofundou o beijo, mas logo interrompeu o contato – e ela entendeu por que ele parou, assim como sempre o compreendia: ele não poderia se deitar com ela essa noite e esse dia. Não até a meia-noite. Não até o aniversário de Wellsie ter passado.
– Não sei onde eu estaria sem você. – Tohr meneou a cabeça, pensando no estado em que havia estado quando da ida até a caverna, em busca de Xcor. – Quero dizer...
Enquanto Autumn alisava o vinco formado na testa dele, ele retrocedeu ainda mais no tempo, para o instante em que Lassiter aparecera no meio da floresta com um saco cheio do McDonald’s e a insistência para que ele retornasse junto a seus irmãos. O anjo caído não dera ouvidos à razão – o início de uma tradição, naturalmente – e os dois se arrastaram e pararam de volta à mansão.
Tohr estivera à beira da morte, tendo subsistido à base da ingestão de não muito mais do que sangue de cervos e não muito mais durante o tempo em que ficou na floresta sozinho. Tivera um plano na época: durante todos aqueles meses procurara se matar por exaustão porque não estivera disposto a testar a lenda urbana de que as pessoas que cometiam suicídio não iriam para o Fade.
Morrer de fome, para sua mente perturbada, era uma morte diferente do que se ele metesse uma bala na cabeça.
Mas não fora seu destino. Assim como regressar para a casa com aquele anjo caído não fora sua salvação.
Não, ele devia isso à fêmea ao seu lado. Ela, e somente ela, o fizera dar a volta por cima, o amor entre eles o tirara do inferno. Com Autumn, a perspectiva de permanecer no planeta dera uma guinada de cento e oitenta graus, e embora ainda tivesse noites ruins, como essa... também tivera noites boas.
Voltou a se concentrar na sua fêmea.
– O seu amor me transformou.
Deus, era como se Lassiter tivesse sabido o tempo inteiro o que acabaria acontecendo, com a certeza de que aquele era o momento para o seu retorno e ressurreição...
Tohr franziu o cenho ao sentir uma mudança em Autumn.
– Autumn? O que foi?
– Desculpe. Eu só estava imaginando... O que vai acontecer com Layla?
Antes que pudesse responder, alguém começou a bater na porta deles – e aquele tipo de urgência significava apenas uma coisa: mobilização de armas. Seria possível que o Bando de Bastardos tivesse decidido atacar?
Tohr acomodou Autumn com gentileza para o lado, depois saltou da cama para pegar o coldre das adagas.
– O que aconteceu? – ladrou. – Para onde vamos?
A porta se abriu e Phury exibia uma aparência horrível.
– Qhuinn está sozinho na Tumba com Xcor.
O coração de Tohr perdeu o compasso, e ele fez os cálculos, chegando à conclusão de que estava sendo passado para trás em matar o filho da puta.
– Maldição, ele é meu, não do Qhuinn...
– Você vai ficar aqui. Precisamos de alguém com Wrath. Todos os outros vão para lá.
Tohr cerrou os molares por ter sido colocado no banco dos reservas, mas não estava surpreso. E proteger o Rei dificilmente seria considerado uma demoção.
– Me mantenha informado, tá?
– Sempre.
Com um xingamento, o irmão girou e foi embora junto aos demais, integrando o que parecia um estouro de coturnos no corredor das estátuas.
– Vá – Autumn lhe disse. – Procure Wrath. Fará com que se sinta útil.
Ele olhou por sobre o ombro.
– Você sabe sempre, não?
Sua linda companheira meneou a cabeleira loira.
– Você tem mistérios que ainda me fascinam.
Quando um desejo súbito engrossou seu sangue, Tohr emitiu um ronronado.
– Meia-noite. Você será minha, fêmea.
O sorriso dela foi tão antigo quanto a raça, e tão duradouro quanto.
– Mal posso esperar.
No instante seguinte, Tohr estava no corredor, sentindo-se completamente confinado – apesar de a mansão ter quantos quartos mesmo? Mas então, ao chegar às portas abertas do escritório de Wrath, o Rei quase o atropelou.
– ... o caralho, estou saindo daqui. – Wrath fechou as portas atrás de si e seguiu para a escadaria. – Maldição, sou um Irmão, tenho permissão para ir lá...
– Meu senhor, não pode ir à Tumba.
Enquanto George, o cão-guia do Rei, gania no interior do escritório, o último vampiro puro da raça chegou à escadaria para iniciar a descida.
– Wrath. – Tohr apressou-se atrás dos calcanhares do macho, mas não se deu ao trabalho de aumentar o tom da voz. – Pare. Mesmo. Pare agora.
Pois é, estava sendo tão persuasivo quanto um idiota com bandeirolas como farol, e os dois braços quebrados: não estava se colocando no caminho do governante. Não o segurava pelo braço, nem forçava o Rei a ficar dentro de casa. E não iria, no fim das contas, impedir que seu monarca fosse até a Tumba, onde Qhuinn estava.
Onde Xcor estava.
Porque, oras, se estava protegendo o Rei, tinha que ir aonde o cara ia, certo? E, se por acaso isso acabasse por levá-lo até onde o Bastardo estava? Beeeem, isso não seria sua culpa, né? Além disso, considerando-se o estado de humor de Wrath? Qualquer tentativa de convencê-lo a ficar e esperar seria fôlego desperdiçado. O Rei era bem racional – só quando não o era. E quando aquele FDP de cabelos negros e óculos escuros decidia que faria, ou não faria, algo? Ninguém, mas ninguém mesmo, seria capaz de mudar sua opinião.
Com a exceção de, talvez, Beth – e mesmo isso não era garantido.
E quando ele e Wrath chegaram ao átrio e começaram a cruzar o mosaico da macieira em flor, Tohr disse num tom enfastiado:
– Sério. Deixe que os outros cuidem do assunto. Pare.
Wrath não hesitou nem falseou. Mesmo sem enxergar, ele conhecia bem a mansão, e sabia antecipar o número de degraus, a direção e até mesmo a altura da enorme maçaneta à qual estava prestes a alcançar. Se as coisas seguissem assim, chegariam à caverna ao norte da montanha num nanossegundo.
Só que... quando a porta do vestíbulo se abriu e uma lufada de ar fresco entrou, Tohr inspirou fundo.
E, no mesmo instante, sua sanidade retornou.
Espere um instante, ele pensou. Que diabos estava fazendo?
Uma coisa era abrir a porta ele mesmo, e outra era fracassar em sua missão de guarda-costas, permitindo que o Rei entrasse numa situação que poderia colocar sua vida em perigo. E também, P.S., era uma bobagem absoluta querer matar Xcor por ter metido uma bala em Wrath ao mesmo tempo em que estava disposto a permitir que o Rei entrasse no que poderia ser uma emboscada. O Bando de Bastardos era uma surpresa, mais do que nunca. E se alguma coisa desse errado com a insubordinação de Qhuinn e Xcor acabasse, de algum modo, livre? E se encontrasse os seus garotos? E se atacasse a Irmandade?
Enquanto Wrath atravessava a porta e seguia para a noite, Tohr voltou ao trabalho.
Dessa vez se colocou no caminho dele, esticou as mãos e socou o peitoral do governante.
Encarando os óculos pretos, disse:
– Espere aí, não posso permitir que vá até a Tumba. Por mais que eu queira a porra dessa desculpa pra ir pra lá também e lidar com o puto do Xcor nos meus próprios termos, não saberei viver comigo mesmo se...
Tchauzinho.
Sem nem uma palavra ou hesitação, Wrath desapareceu. O que provava a Tohr que estivera certo quanto ao Rei fazer o que bem entendia – e um maldito idiota por não ter impedido o macho ainda na escadaria.
– Maldição! – Tohr murmurou ao sacar as duas pistolas.
Sua própria desmaterialização interrompeu o restante dos impropérios que se debatiam no seu cérebro desfuncional. Em seguida, reassumia a forma na floresta densa, no lugar do qual fora retirado à força não mais do que uma hora antes.
Ah... Deus.
Sangue. No meio do vento gélido e forte... ele sentia o cheiro do sangue de Xcor.
O filho da puta estava lá fora? Mas que diabos? Porque aquela merda não vinha de longe, como se fosse de um ferimento impingido no interior da caverna.
Não, estava bem aos seus pés, nas agulhas caídas dos pinheiros e na terra. Um rastro.
Uma fuga.
Mesmo que os instintos de rastrear o macho fossem quase irresistíveis, Wrath era mais importante. Girando sobre os coturnos, correu para junto do seu monarca.
– Meu senhor! – Tohr perscrutou o ambiente, à procura de movimentos. – Mas que porra há de errado com você?! Precisamos tirá-lo daqui!
Wrath o ignorou e seguiu para a caverna, onde as vozes dos outros irmãos ecoavam e, evidentemente, davam-lhe uma direção. Tohr pensou em deter o macho, mas era melhor que ele estivesse ali, com a Irmandade, do que no meio da floresta, como um alvo imóvel.
Cara, mas depois teriam uma conversinha.
Noite incrível para os moradores da casa. Puta que o pariu.
O cheiro do sangue estava mais intenso ali, e sim, sentiu uma ponta de inveja no meio do peito. Qhuinn, ao que tudo levava a crer, tivera sua vez com o bastardo. Mas algo de muito, muito errado acontecera. Havia um rastro de pés descalços e sanguinolentos saindo da caverna, e Qhuinn também sangrava. Aquele outro cheiro também estava bem distinto.
O Irmão ainda estaria vivo? Xcor o teria, de alguma forma, sobrepujado e se apoderado da chave dos portões? Mas isso seria possível? Xcor estivera meio morto naquela maca.
Enquanto Tohr e o Rei avançavam pelo interior da caverna, a luz das tochas nos portões oferecia um brilho a ser seguido e quando ele e Wrath se juntaram a todos os outros – ... Tohr confrontou uma situação que era tão inesperada quanto inexplicável.
Qhuinn estava depois dos grandes portões do sanctum sanctorum, sentado de bunda no chão, com os cotovelos posicionados sobre os joelhos. Ele sangrava em alguns pontos e a respiração superficial sugeria que devia ter costelas quebradas. Suas roupas estavam desarrumadas e manchadas de sangue – tanto dele quanto de Xcor –, e as juntas dos dedos estavam esfoladas.
Mas isso não era o mais estranho.
A chave do portão estava do lado de fora. Deitada no chão de terra como se tivesse sido propositalmente colocada ali.
Três dos seus irmãos estavam ao redor do objeto, como se ele fosse explodir na cara deles, e, nas imediações, pessoas dialogavam. Toda a conversa cessou, contudo, quando a presença de Wrath foi registrada pelo grupo.
– Mas que porra! – alguém exclamou.
– Jesus, Maria e José! – Ok, esse era Butch. – Mas que diabos?
Mais irmãos se juntaram a eles nesse tipo de exclamação, mas Wrath não estava para brincadeira.
– Para o que estou olhando? Algum puto pode me descrever o que tenho diante de mim?
No silêncio que se seguiu, Tohr esperou que um dos outros transmitisse o relato.
Só que nenhum deles pareceu ter coragem.
Tudo bem, mas que diabos, Tohr pensou.
– Qhuinn está consciente, sangrando, trancado na Tumba. A chave... – Tohr meneou a cabeça na direção dos portões –... está do lado de fora. Qhuinn, Xcor está aí dentro com você ou não?
Mesmo que o rastro de sangue para fora da caverna já fosse resposta suficiente.
Qhuinn abaixou a cabeça e esfregou os cabelos negros, a palma desenhando círculos lentos no que já estava emaranhado.
– Ele fugiu.
Ceeeeerto, quer falar de bombas “f ”? Foi como se cada um dos Irmãos tivesse um piano despejado sobre seus malditos pés e usado a palavra “foda” como analgésico.
Um ímpeto de urgência fez com que Tohr se desconectasse de tudo aquilo. Virou-se, pegou o celular e ligou a lanterna, lançando o facho de luz ao redor no chão. Rastrear as pegadas na areia e na terra solta foi bastante fácil, e ele as seguiu até a boca da caverna. Xcor estivera arrastando os pés, em vez de caminhar de verdade, sua locomoção estava evidentemente prejudicada por ter passado o mês anterior deitado, e também pelo que acontecera entre ele e Qhuinn.
Quando Tohr voltou para a floresta, agachou-se e formou um arco com a luz. Atrás dele, uma bela discussão se desenrolava entre Wrath e a Irmandade, com vozes graves ecoando ao redor graças às paredes de pedra, mas ele deixou que continuassem. Andando à frente, desligou a lanterna e guardou o celular no bolso de trás da calça. Não levara um casaco consigo ao sair da mansão, mas a noite de -4°C não o incomodava.
Estava ocupado demais dando uma de cão farejador, fungando o ar.
Xcor fora para o Oeste.
Tohr acelerou, mas não podia ir rápido demais. Com o vento soprando em diferentes direções, era difícil acompanhar o rastro.
E, então, ele simplesmente chegou ao fim.
Fazendo círculos, Tohr retrocedeu a fim de localizar o rastro de sangue novamente... e depois, sim, voltou a perdê-lo.
– Ah, maldito bastardo – ele sibilou na noite.
Como aquele merdinha enfraquecido tinha conseguido se desmaterializar era uma questão que Tohr jamais compreenderia. Contudo, não havia como discordar dos fatos: a única explicação possível para o rastro ter sido interrompido tão subitamente era que o bastardo, de alguma forma, havia reunido forças para virar fantasma.
Se Tohr não odiasse o filho da puta com demasiada intensidade... quase seria capaz de respeitá-lo.
Quando Xcor reassumiu a forma corpórea, encontrou-se nu sobre uma espécie de moita coberta de neve, no interior da floresta que já não era mais de pinheiros, mas de bordos e carvalhos. Arquejado, ele forçou os olhos a trabalhar, e quando o cenário apareceu límpido e focado, ele soube que havia conseguido sair da propriedade da Irmandade. O mhis, névoa de proteção do cenário que marcava o território deles, havia sumido, e seu senso de direção havia retornado.
Não que ele tivesse a mínima ideia da sua localização.
No trajeto de fuga, tinha conseguido se desmaterializar três vezes. Uma para uns cinquenta metros de distância da caverna; na segunda, um pouco além da última, talvez meio quilômetro descendo a montanha; e depois até ali, para uma porção gramada, que sugeria um afastamento considerável da montanha onde fora mantido prisioneiro.
Rolando de costas, inflou os pulmões e rezou em busca de forças.
Uma vez passada a ameaça imediata à própria vida, uma fraqueza imensurável se abateu sobre Xcor, tão letal quanto qualquer outro inimigo. E também havia o frio, que subtraía ainda mais suas reservas de força, diminuindo-lhe ainda mais os reflexos e os batimentos cardíacos. Mas nada disso era sua maior preocupação.
Virando a cabeça, olhou para o Leste.
O horizonte começava a se aquecer com a chegada iminente da aurora em uma hora. Mesmo em seu estado, ele sentia os vislumbres de alerta em sua pele nua.
Empenhado em forçar a cabeça para longe do chão, procurou abrigo, uma caverna talvez, um agrupamento de rochas... um tronco caído com espaço vazio no qual poderia se esconder. Só o que identificou foram árvores, lado a lado, com os galhos despidos formando um dossel, que não significaria proteção suficiente contra o amanhecer.
Acabaria em chamas assim que o sol estivesse a pino.
Pelo menos estaria aquecido... Pelo menos, assim, tudo chegaria a um fim.
Por certo, e por pior que fossem os horrores da imolação, nada se compararia à tortura que a Irmandade sem dúvida o teria feito passar – torturas que não serviriam a nenhum propósito, mediante a suposição de que o Bando de Bastardos seria o seu objetivo.
Primeiro porque seus soldados teriam seguido o protocolo e abandonado o acampamento, estabelecendo-se em outro local após o seu desaparecimento. Afinal, morte ou captura eram as únicas explicações para a sua ausência, e não havia sentido apostar em qual delas.
Segundo, ele não teria entregue seus guerreiros mesmo se prestes a ser estripado.
Bloodletter não fora capaz de quebrá-lo. Ninguém mais o conseguiria.
Mas, pensando bem, tudo isso não tinha mais importância.
Xcor enrolou-se de lado, aproximou as pernas do peito e passou os braços ao redor de si mesmo, tremendo. As folhas debaixo do corpo não eram nenhum leito suave; as pontas curvas e geladas cortavam sua pele. E enquanto o vento trespassava o cenário, um atormentador em busca de vítimas, parecia não lhe prestar uma atenção especial, empurrando detritos da floresta para cantos escondidos, roubando ainda mais o seu decrescente calor corporal.
Fechando os olhos, encontrou uma parte do passado voltando para si...
Era dezembro do seu nono ano de vida, e ele estava diante do chalé decaído de telhado de sapê no qual ele e sua ama-seca ficavam. De fato, assim que a noite caía todos os dias, ele era jogado para fora, acorrentado pelo pescoço, e tolerado de volta ao interior apenas quando o sol ameaçava surgir a Leste e os humanos estariam fora de suas casas. Por grande parte das longas horas solitárias, ainda mais naquele inverno, ele se acomodava contra a parede externa da casa, movendo-se em sua corrente apenas para se colocar contra o vento.
O estômago estava vazio e assim permaneceria. Ninguém da sua raça no pequeno vilarejo o abordaria para lhe oferecer comida, e a ama-seca certamente não o alimentaria até assim o desejar – e só seriam restos das refeições consumidas por ela.
Levando os dedos sujos de terra à boca, sentiu a distorção que partia do lábio superior até a base do nariz. O defeito sempre fora assim, e por causa dele, sua mahmen o tirara do quarto em que nascera, deixando-o nas mãos da ama-seca. Sem ninguém mais para cuidar do jovem ele tentou agir bem para com a fêmea, tentara fazê-la feliz; mas nenhuma ação sua nunca a deixava satisfeita – e ela parecia se deliciar ao lhe dizer, repetidamente, como sua mahmen o banira de suas vistas, como ele fora uma maldição no que, senão por isso, teria sido uma fêmea de valor, bem-nascida.
A melhor opção era ficar fora do caminho da ama-seca, fora fora de seu campo de visão, fora de sua casa. E mesmo assim ela não permitia -lhe a fuga. Ele tentara isso algum tempo atrás e chegara aos limites dos campos que cercavam a aldeia. No entanto, uma vez que a ausência foi registrada, ela foi atrás dele e o surrou com tamanha violência que ele se retraiu e chorou em meio aos golpes, implorando por perdão; pelo quê, ele não sabia exatamente.
E assim, ele acabou acorrentado.
Os aros de metal partiam da coleira ao redor do seu pescoço até o poste de ferro em que os cavalos eram amarrados, na quina do chalé. Nada mais de vaguear para ele, nada mais de mudar de posição, a menos que para se aliviar ou se manter abrigado. O couro áspero ao redor do pescoço provocava machucados na pele, e como nunca era removido, não havia como as feridas cicatrizarem. Mas há tempos ele aprendera a suportar.
Sua vida, tal qual a percebia, tratava-se de saber suportar.
Dobrando os joelhos junto ao peito diminuto, passou os braços ao redor dos ossos das pernas e estremeceu. Suas vestes eram limitadas a uma das capas de lã gastas da ama-seca e um par de calças masculinas que eram tão grandes que ele poderia prendê-las debaixo das axilas com uma corda. Os pés estavam descalços, mas ele os mantinha debaixo da capa para que não congelassem.
Quando o vento soprou em meio aos galhos despidos das árvores, o som o impeliu a pensar num lobo, e seus olhos se arregalaram enquanto ele perscrutava a escuridão, para o caso de ter ouvido de fato um lupino. Morria de medo de lobos. Se um, ou uma matilha, fosse atrás dele, ele seria comido, disso tinha certeza, visto que a corrente significava que não poderia fugir nem subir em árvores, tampouco alcançar a porta do chalé.
E ele não acreditava que a ama-seca o salvaria. Às vezes chegava a crer que ela o amarrava na esperança de que fosse consumido, dado que a morte dele, quer pelos elementos climáticos, quer pela natureza selvagem, a libertaria, pois, se assim acontecesse, não seria exatamente culpa dela.
A quem ela prestava contas, contudo, ele não sabia. Se sua mahmen o rejeitara, quem pagava por sua subsistência? Seu pai? O macho cuja identidade nunca lhe fora revelada e que, por certo, jamais aparecera...
Quando um som sinistro atravessou a noite, ele se retraiu.
Era o vento. Tinha que ser... somente o vento.
Procurando algo para acalmar a mente, fitou a poça amarelada de luz que emanava da única janela do chalé. A iluminação tremeluzente brincava com os tentáculos de uma moita de framboesas morta que circundava o chalé, movimentando o o arbusto cheio de espinhos como se esse tivesse vida – e ele tentou não achar nada de sinistro nas constantes mudanças. Não, em vez disso, ele se concentrou no brilho e tentou se visualizar diante da lareira, aquecendo as mãos e os pés, os músculos frágeis se desenrolando do rigor provocado pela postura de proteção contra o frio.
Ao longo de seu devaneio, imaginou o sorriso e os braços abertos da ama-seca para ele, encorajando-o a se aninhar em segurança nela. Fantasiou-a com um afago em seus cabelos, sem se importar acerca da imundície, oferecendo-lhe comida que não estava estragada e não era apenas restos. Em seguida, ele se banharia, limparia a pele e retiraria a coleira do pescoço. O unguento apaziguaria osuas aflições, e então ela lhe diria que não se importava por ele se imperfeito.
Ela o perdoaria pela sua existência, e sussurraria que sua mahmen de fato o amava e que logo viria buscá-lo.
E, finalmente, ele adormeceria, com seu sofrimento terminado...
Outro urro interrompeu-lhe os pensamentos, e ele retornou rapidamente à consciência, vasculhando uma vez mais os arbustos e os esqueletos das árvores.
Era sempre assim, as idas e vindas de sua necessidade de estar ciente das cercanias para o caso de um ataque... e sua busca de um abrigo mental que o impedisse de concluir que não poderia fazer nada para se salvar.
Enfiando a cabeça entre os ombros, apertou os olhos uma vez mais.
Havia outra fantasia que ele acalentava, ainda que não com muita frequência. Ele fingia que seu pai, sobre quem a ama-seca jamais falara, mas quem Xcor imaginava ser um grande guerreiro da raça, chegaria num enorme garanhão de guerra para salvá-lo e levá-lo dali. Imaginara o grande guerreiro chamando por ele, colocando-o no alto da sua sela, chamando-o de “filho” com orgulho. Aos galopes, afastar-se-iam, a crina do cavalo açoitando o rosto de Xcor conforme avançassem atrás de aventuras e glórias.
Na verdade, essa situação era tão pouco provável quanto ele ser acolhido no interior do chalé...
Ao longe, o tropel dos cascos de um cavalo sinalizava uma aproximação e, por um momento, seu coração acelerou. Teria chamado sua mahmen? Seu pai? Teria o impossível por fim acontecido...?
Não, não era um cavalo. Era uma incrível carruagem, da realeza, sem dúvida, com o exterior dourado e um par de cavalos brancos combinando. Havia até lacaios de libré preto e um cocheiro de uniforme.
Era um membro da glymera, um aristocrata.
E, sim, quando um criado desceu e auxiliou a saída de uma fêmea com um lindo vestido e peles, Xcor jamais vira algo mais belo e perfumado.
Mudando de posição de modo a enxergar ao redor do chalé, retraiu-se quando o couro fez um novo corte na clavícula.
A bela fêmea não se deu ao trabalho de bater, mas o lacaio abriu a porta que rangeu.
– Hharm se casou após o nascimento de um filho. Está feito. Está livre... Ele não vai mais prender você à sua ira.
A ama-seca franziu o cenho.
– Como?
– É verdade. Papai o ajudou com o dote considerável exigido por ele. Nossa prima é agora a shellan dele e você está livre.
– Não. Não pode ser...
Enquanto as duas fêmeas recuavam para dentro do chalé e deixavam o lacaio para fora, Xcor se esforçou para ficar de pé e espiar através da janela. Do outro lado do vidro grosso e cheio de bolhas, ele viu quando a ama-seca continuou agindo como se estivesse em estado de choque e descrença. A outra fêmea, no entanto, deve ter aplacado sua contradição, pois houve um momento de pausa... e, então, uma grande transformação se apresentou.
De fato, uma alegria tão contagiante tomou conta da ama-seca, em seu âmago, que ela pareceu uma lareira recobrando as chamas quase extintas, não mais o espectro cansado da feiura a que ele se habituara, mas algo completamente diverso.
Tornou-se resplandecente, mesmo nos trapos que vestia.
A boca se moveu, e ainda que ele não conseguisse ouvir sua voz, ele entendeu exatamente o que ela dizia: Estou livre... estou livre!
Além do vidro ondulado, ele a viu olhar ao redor como se procurasse um objeto de significância.
Ela o estava abandonando, ele pensou, em pânico.
E como se ela tivesse lhe lido os pensamentos, a ama-seca parou e olhou na direção do vidro, a luz da lareira brincava ao longo do rosto corado e alegre dela. Com os olhos fixos um no outro, ele levou a mão à janela numa súplica.
– Me leve com você – sussurrou. – Não me deixe assim...
A outra fêmea relanceou na sua direção e seu retraimento sugeria que apenas a imagem de Xcor lhe revirava o estômago. Disse algo à ama-seca, e aquela que cuidara dele até então não respondeu de pronto. Mas, então, seu rosto endureceu, e ela se aprumou como se em preparo para uma tempestade inclemente.
Ele começou a bater na janela.
– Não me deixe, por favor!
As duas fêmeas lhe deram as costas e saíram apressadas, e ele correu para a frente para vê-las subindo na carruagem.
– Me leve com você!
Quando ele se precipitou, atingiu o limite da corrente e foi puxado para trás pelo pescoço, aterrissando com força e tendo o ar expelido dos pulmões.
A fêmea bem vestida não prestou atenção ao levantar as saias e abaixar a cabeça para entrar no interior da carruagem. A ama-seca, por sua vez, apressou-se logo atrás, levantando a mão à têmpora para proteger os olhos de vê-lo.
– Me ajude! – Ele se agarrou à corrente, que lhe raspou a pele. – O que será de mim?!
Um dos lacaios fechou a porta dourada da carruagem. E o doggen hesitou antes de voltar para seu posto, na parte posterior.
– Existe um orfanato não muito longe daqui – ele informou com secura. – Liberte-se e prossiga por cinquenta léguas ao Norte. Lá, encontrará outros.
– Me ajude! – Xcor gritou quando o cocheiro estalou as rédeas e os cavalos saltaram adiante, conduzindo a carruagem pela estrada de terra.
Ele continuou a gritar enquanto era deixado para trás, os barulhos da partida cada vez mais distantes... até sumirem.
À medida que o vento soprava sobre ele, os vestígios das lágrimas no seu rosto se tornaram gelo e seu coração batia nos ouvidos, impossibilitando-o de ouvir qualquer outra coisa. Por conta do jorro da ansiedade, ele ficou tão quente com a agitação que deixou a capa de lado, e o sangue se juntou ao redor do pescoço, cobrindo-lhe o peito desnudo e aquelas as enormes.
Cinquenta léguas? Orfanato?
Ficar livre?
Palavras tão simples, surgidas de uma consciência pesada. Mas que não o ajudavam em nada.
Não, ele pensou. Só tinha a si mesmo em quem confiar agora.
Mesmo quando desejou se curvar numa bola e chorar de medo e de tristeza, soube que tinha que se fortalecer, pois um abrigo era extremamente necessário. E com isso em mente, controlou as emoções e agarrou a corrente com ambas as mãos. Inclinou-se para trás e puxou-a com todas as forças, numa tentativa de soltá-la do poste. Os elos rangeram com o movimento.
Enquanto ele se empenhava, teve a vaga noção de que a carruagem não podia estar muito longe. Poderia ainda alcançá-la se apenas conseguisse se soltar e correr...
Também disse a si mesmo que aquela não era sua mahmen que acabara de partir, tendo-lhe mentido o tempo todo. Não, era apenas uma ama-seca de alguma posição social pouco comum.
Seria insuportável pensar nela de outro modo.
CAPÍTULO 12
Parecia apropriado que Qhuinn tivesse que olhar através das grades para ver seus irmãos – não que desejasse fitá-los. Mas, sim, a separação entre ele e aqueles outros seres vivos, marcada pelos portões antigos e impenetráveis, parecia o melhor curso de inação.
Não estava apto a qualquer tipo de companhia.
E, evidentemente, os outros tampouco estavam felizes com ele.
Enquanto permanecia de bunda no chão de pedra bruta da caverna com as costas apoiadas numa seção de prateleiras de jarros que ainda permaneciam intactos, ele observava a Irmandade circular e rosnar do lado oposto das barras de metal, indo de um lado a outro e esbarrando uns nos outros ao ladrarem para ele. A boa notícia – e ele imaginava que fosse apenas marginalmente “boa” – foi que o som de tamanho drama se assentou, por algum truque do Universo, ou talvez porque a pressão sanguínea estivesse diminuindo, enevoando tudo no mundo a sua volta.
Melhor assim. Já era perito em foder com as coisas. Não havia nada que mesmo o uso mais criativo da palavra que começava com “f ” lhe ensinasse no tocante a imprecar contra alguém.
Além disso, considerando-se que ele era o substantivo em todas aquelas frases? Quem precisava disso agora? Ele já vinha se autoflagelando mentalmente, muito obrigado.
Abaixando a cabeça, fechou os olhos. Não foi uma boa ideia. A lateral do corpo estava acabando com ele, e sem nenhuma distração, a dor assumiu proporções gigantescas. Devia ter fraturado alguma coisa ali. Talvez rompido um rim ou um...
Quando uma onda de náusea inflou seu estômago, ele abriu os olhos e mirou a direção oposta do zoológico de acusações. Pense num lugar destruído. A maca destroçada, os equipamentos médicos arregaçados, todos aqueles jarros quebrados com seus corações negros oleosos no piso de pedras... Era como se um furacão tivesse passado pela caverna.
O segundo lugar que ele destruíra – se tomados em consideração os tiros no quarto de Layla.
Ainda que essa bagunça ele lamentasse.
A outra? Sim, arrependia-se dela também – mas não recuaria quanto à proibição de ela ver seus filhos.
Com um gemido, esticou uma perna e depois a outra. Havia sangue em suas calças. Nos coturnos. Nas juntas de ambas as mãos. Provavelmente necessitaria de atenção médica, mas não a queria...
Um silêncio abrupto chamou-lhe a atenção e ele recobrou o enfoque portões. Ah, maravilha. Que porra do cacete.
O Rei estava bem diante da barras de ferro, parecendo a fúria dos infernos de pé sobre seus coturnos. E, aparentemente, ele queria um mano a mano em close: Vishous havia se adiantado e estava colocando a chave na fechadura, na outra ponta; então seguiu-se um estalo que permitiu a abertura dos portões.
Wrath foi o único a entrar, e logo ambos foram trancados ali. Seria para impedir que os demais atacassem Qhuinn? Ou para impedi-lo de fugir dos planos do Rei, sejam quais fossem?
Escolhas, escolhas...
Quando Wrath se aproximou e depois parou, Qhuinn abaixou o olhar, apesar de o macho ser cego.
– É aqui que você vai me demitir da Irmandade?
Malditos coturnos enormes, ele pensou de súbito. De sua perspectiva, eles pareciam ter o tamanho de um par de Subarus.
– Estou ficando cansado pra cacete de te encontrar assim – Wrath estrepitou.
– Então somos dois.
– Quer me contar o que aconteceu?
– Na verdade, não.
– Deixe-me formular de outra forma, filho da mãe. Você vai me contar o que aconteceu ou vou te manter trancado aqui até a fome consumir seus ossos?
– Sabe, dietas da moda nunca funcionam a longo prazo.
– Funcionam se você tomar um suplemento de ferro junto a elas.
Qhuinn fitou o coldre debaixo do imenso braço esquerdo de Wrath. Por mais que o Rei não tivesse olhos saudáveis, seria uma boa aposta imaginar que ele conseguiria botar uma bala no lugar de sua vontade, baseando-se apenas na audição.
– Que tal assim... – Wrath propôs. – Vou te ajudar. Você pode pular a parte em que julgou ser uma boa ideia vir até aqui atacar um prisioneiro, meu sem a minha permissão. Sei chegar a essa conclusão sozinho, obrigado. Por que não me conta como ele conseguiu te trancar aí dentro?
#tomaládácá
Ele pigarreou.
– Quando Phury saiu, ele me deu a chave pra eu me trancar aqui com Xcor. E foi o que fiz.
Que era o novo protocolo. Assim que Xcor ficou sob a custódia deles, o responsável pela guarda tinha que ficar trancado pelo lado de fora. Com o passar do tempo, porém, o procedimento foi alterado por motivos práticos, em virtude de todas as mudanças de escala, check-ups médicos e administração de remédios. E, sim, talvez porque acabaram relaxando depois de um mês em que o bastardo apenas ficou ali deitado, na maca como uma obra de arte moderna.
– E? – Wrath grunhiu.
– Eu estava distraído. Então esqueci a maldita chave na fechadura.
– Você estava... distraído. Com o quê? Planos para destruir este lugar? – Quando o Rei gesticulou ao redor dos jarros arruinados como se pudesse vê-los, ficou claro que o fedor dos redutores tinha se instaurada sob o nariz dele. Além disso, convenhamos, a plateia vinha reclamando da bagunça. – Mas que caralho, Qhuinn. Fala sério, perdeu a porra da sua cabeça?
– Sim, acho que perdi. – Que sem graça. – Ou isso foi uma pergunta retórica que não requer resposta? Ei, por que não paramos de falar sobre Xcor pra você me contar o que vai fazer com aquela fêmea dele, Layla?
Falando em vontade de vomitar...
No silêncio subsequente, Wrath cruzou os braços diante do peito, os bíceps se avolumaram tanto que ele fez com que o The Rock parecesse um “Pescoço Fino”.
– Neste instante, são os seus direitos parentais que estou pensando em anular.
Qhuinn levantou o olhar de supetão e depois teve que engolir o vômito enquanto a cabeça latejava.
– Espera aí, o quê? Ela comete um ato de traição ao ajudar e se encontrar com um inimigo seu...
– E você acabou de deixar uma fonte de informação para a Irmandade fugir porque perdeu a porra da cabeça. Portanto, vamos deixar de lado essa asneira de traição, que tal? Só vai fazer com que suas bolas fiquem mais apertadas, confie em mim.
Era meio difícil argumentar contra fatos, Qhuinn pensou. Que bom que suas emoções estavam pouco se fodendo para a lógica.
– Só me diga que vai tirá-la da casa – exigiu. – E que meus filhos vão ficar comigo. É só o que me importa.
Por uma fração de segundo, Qhuinn lembrou de Xcor falando bobagens pouco antes de o bastardo sair se arrastando. Dizendo coisas sobre Layla. Sobre amor. Sobre não querer mais ir atrás de Wrath.
Ah, tá. Como se ele fosse acreditar em qualquer uma dessas coisas.
O Rei o encarou por trás dos óculos escuros.
– O que faço ou deixo de fazer não é da porra da sua conta.
– Tá falando sério? – Qhuinn fez menção de se levantar, mas isso não aconteceria. Mesmo grunhindo e vomitando para o lado, ele continuou falando em meio à náusea. – Ela abriu mão dos direitos dela! Ela alimentou o inimigo!
– Se é mesmo um inimigo, por que Xcor deixou a chave para trás?
– O quê?
Wrath apontou um dedo na direção dos portões.
– Xcor te trancou aqui dentro, mas deixou a chave no chão. Por que ele fez isso?
– Como é que eu vou saber?
– Pois é, e agora não podemos mais perguntar para ele, podemos? – Wrath rebateu.
Qhuinn meneou a cabeça.
– Ele ainda é seu inimigo. Ele sempre vai ser o seu maldito inimigo. Estou pouco me fodendo pro que ele diz.
As sobrancelhas negras de Wrath se abaixaram por trás dos óculos.
– Então o que ele te disse?
– Nada. Não disse merda nenhuma. – Qhuinn expôs as presas. – E não se preocupe, vou pegá-lo de novo. Vou caçar o puto e...
– Até parece. Estou te suspendendo do trabalho em campo a partir deste instante.
– O quê?! – Dessa vez, Qhuinn conseguiu se erguer, mesmo achando que acabaria por vomitar ao estilo Exorcista em cima do Rei. – Isso é papo-furado!
– Você está passando dos limites e isso eu não engulo. Agora, seja um bom sociopata e cale a boca enquanto recebe cuidados médicos.
Numa descarga de ira nuclear, a fúria ardente ressurgindo e provocando um curto circuito na mente de Qhuinn de novo – como se sua consciência fosse para o banco de trás daquele fogo infernal, ele vagamente tinha ciência dos movimentos de sua boca ao gritar para o Rei. Mas ele não fazia a mínima ideia do que estava dizendo.
– Sabe de uma coisa? – Wrath o interrompeu com um tom enfastiado. – Encerramos por aqui, você e eu.
Foi a última coisa que Qhuinn ouviu.
A última coisa que viu. O imenso punho do Rei voando na direção do seu queixo.
Pense em fogos de artifício, e depois, quando as luzes se apagam, nada aceso dentro dele, as pernas em vias de ceder debaixo do corpo, o peso em um strike no chão da caverna.
Seu pensamento final antes de desmaiar na metade da queda?
Duas concussões consecutivas fariam maravilhas para a sua saúde mental. Pois é, bem o tipo de merda que ele precisava a essa altura.
Em seu quarto na mansão da Irmandade, Layla estava de pé diante dos berços, os olhos passando de um a outro dos seus bebês adormecidos. Os rostos de Lyric e de Rhamp eram de angelicais, com bochechinhas cheias e rosadas, pele macia, cílios escuros e abaixados, as sobrancelhas arqueadas como asas. Ambos respiravam pesado como se em esforço repousante para crescer, ficar mais fortes e mais espertos.
Era a procriação em curso, a raça da Virgem Escriba seguindo em frente. Um milagre. Imortalidade para os mortais.
Ao sentir uma presença às suas costas, disse num tom baixo e rouco:
– Melhor sacar a arma.
– Por quê?
Olhou para Vishous por sobre o ombro. O Irmão estava parado perto da entrada do quarto parecia um arauto da destruição. O que, na verdade, ele era.
– Se quer que eu os deixe, terá que me mandar para o Fade.
Não era surpresa nenhuma que Wrath tivesse enviado Vishous para levá-la embora. O guerreiro era frio, intocável, insensível diante de qualquer objetivo a que estava determinado; era como lidar com um iceberg. Os outros machos da casa? Especialmente os que tinham filhos, ou Phury, o Primale, ou até Tohr, que perdera a companheira e um filho antes de nascer? Qualquer um desses Irmãos poderia ser persuadido a mudar o curso das coisas, de forma a permitir que ela ficasse ou levasse os filhos consigo.
Mas não Vishous.
E, no caso dela, talvez nem Tohr. Ele queria matar o macho com quem ela traíra a Irmandade.
Olhou para a arma no coldre debaixo do braço de V.
– Então?
Vishous meneou a cabeça.
– Não será necessário. Venha, vamos embora.
Ela se virou para os filhos.
– Qhuinn o matou? Xcor? Ele está morto?
– Fritz está na frente da casa. Temos um meio de locomoção. Partiremos agora.
– Como se eu fosse uma bagagem a ser transportada. – Não havia mais lágrimas para ela; o horror dos acontecimentos era tão grande que a entorpecia por dentro.
– Xcor está morto?
Quando Vishous falou, em seguida, ele estava logo atrás dela, a voz na parte de trás do seu pescoço, fazendo com que os pelos da nuca se eriçassem em alerta.
– Use a razão...
Ela se virou e estreitou os olhos.
– Não ouse distorcer as coisas fazendo com que eu pareça irracional por não querer deixá-los.
– Então não se esqueça da posição em que se encontra. – Ele esfregou o cavanhaque com a mão enluvada. – Você pode acabar sem nenhum direito parental sobre eles, a despeito de ser a mãe biológica. Mas se vier comigo agora, eu garanto, eu garanto, que eles logo estarão com você de novo, quem sabe ao cair da noite de amanhã.
Layla se envolveu com os braços.
– Você não tem esse tipo de poder.
A sobrancelha dele, a que tinha uma tatuagem na lateral, arqueou-se.
– Talvez não, mas elas têm.
Ao dar um passo para o lado, ele apontou para a porta, e Layla cobriu a boca com a mão. Uma a uma, as fêmeas da casa entraram no quarto, e mesmo com Vishous como comparação, elas formavam um grupo poderoso ao criar um semicírculo ao redor dela. Até mesmo Autumn estava presente.
Beth, a Rainha, falou num tom baixo a fim de não perturbar os bebês.
– Falarei com Wrath. Assim que ele voltar do centro de treinamento. Daremos um jeito nisto. Não dou a mínima com o que aconteceu entre você e Xcor. De mãe para mãe, só me importo com você e com os bebês. E meu marido entenderá meu ponto de vista. Confie em mim.
Layla quase se jogou nos braços da Rainha e quando Beth a segurou com força, Bella se adiantou e acariciou os cabelos de Layla.
– Vamos cuidar deles enquanto você estiver ausente – disse a fêmea de Z. – Todas nós. Não ficarão sozinhos nem por um segundo, por isso, tente não se preocupar.
Cormia também se adiantou, os olhos verdes claros de sua companheira Escolhida estavam rasos de lágrimas.
– Ficarei com eles o dia inteiro. – Ela apontou para a cama. – Não sairei do lado deles.
Ehlena, a shellan de Rehv, assentiu.
– Enquanto fui enfermeira, cuidei de centenas de bebês. Conheço bebês de trás para a frente. Nada acontecerá com eles, prometo.
As outras murmuraram em concordância, e uma delas entregou um lenço a Layla. E foi assim que ela percebeu que estava chorando.
Afastando-se de Beth, tentou manter o choro baixo. Queria dizer alguma coisa, queria expressar seu medo e sua gratidão...
A Rainha apoiou as mãos nos ombros de Layla.
– Os seus direitos parentais não serão anulados. Isso não irá acontecer. E sei exatamente aonde você vai agora. É uma casa segura, totalmente protegida. V. projetou e instalou a segurança dela e eu mesma a decorei depois que a Irmandade a comprou há um ano.
– É seguro lá – Vishous declarou. – Como o cofre de um banco. E vou passar o dia com você como seu maldito colega de quarto.
– Quer dizer que estarei sendo vigiada? – Layla franziu o cenho. – Sou uma prisioneira?
O Irmão apenas deu de ombros.
– Estará protegida. É só isso.
Ao inferno que era isso, ela pensou. Mas não havia nada que pudesse fazer. Aquilo era maior do que ela, e ela sabia muito bem quais eram os motivos disso.
Voltando para Lyric e Rhamp, descobriu que as lágrimas jorravam dos seus olhos com mais rapidez do que era capaz de enxugá-las com o bolo molhado no qual o lenço se transformara. De fato, as fêmeas da casa terem aparecido para apoiá-la descongelara a névoa no meio do seu peito, e agora suas emoções estavam em chagas novamente.
A mão tremia ao puxar as mantas até debaixo dos queixos deles.
– Meus pequenos – sussurrou. – Mahmen logo voltará. Eu não... os estou abandonando...
Não havia como alongar o adeus. Ela soluçou tanto que falar era impossível.
Sua jornada para ter aquelas duas preciosidades começara ao que parecia uma eternidade atrás, na época em que vivenciou o cio e implorara para que Qhuinn a servisse. Em seguida foram aqueles meses intermináveis da gestação, e os partos de emergência.
Existiram tantas impossibilidades pelo caminho, tantos desafios que não teria como prever. Mas isto era algo que ela não podia jamais ter imaginado: deixar os filhos aos cuidados de outros, por mais competentes e amorosas que estas “outras” pudessem ser, isso não era algo que pudesse ter antecipado.
Era simplesmente horrível.
– Vamos – Vishous disse com finalidade. – Antes que a aurora chegue e as coisas acabem se complicando ainda mais.
Com uma última espiada para os filhos, Layla juntou as dobras do seu roupão e saiu do quarto. Em seu rastro, ela sentiu como se tivesse deixado seu coração e sua alma para trás.
CAPÍTULO 13
Conforme a noite caía na tarde seguinte, Qhuinn não estava ciente de que o Sol descia e se punha no horizonte ocidental. Primeiro porque estava nas profundezas da clínica do centro de treinamento – portanto o gigantesco e flamejante orbe passando a vez para a Lua não era algo que ele pudesse olhar para fora da janela e ver. E, segundo, porque ele estava sob o efeito de drogas que faziam com que se esquecesse do próprio nome, quanto mais saber que horas seriam. Mas o principal motivo por ele não ter se dado conta da passagem do dia?
Mesmo com todas as coisas ruins que estavam acontecendo na sua vida, ele estava curtindo a melhor alucinação de toda a sua vida. De verdade.
A parte consciente do seu cérebro – que fora para o banco de trás do carro, tão distante do volante que a coisa podia muito bem estar amarrada no porta-malas – estava muito ciente de que aquilo que pensava estar vendo do outro lado do quarto hospitalar não estava, de jeito nenhum, acontecendo. Mas aí é que está a coisa. Ele estava tão alto que, assim como a dor da cirurgia a que fora submetido há seis horas, os eventos da noite anterior estavam um tanto temporariamente esquecidos – e isso significava que ele estava particularmente excitado.
O que não era surpresa alguma. O fato de ele ser um porco com um tremendo apetite sexual fora provado inúmeras vezes.
E, ei, considerando-se como ele se comportara na noite anterior, ele tinha muitas outras coisas com que se desapontar a respeito de si mesmo.
Portanto, sim, lá estava ele deitado num leito hospitalar, com os tubos e fios entrando e saindo dele como se ele fosse um maldito dublê de Xcor, vendo Blay sentado na poltrona do canto – aquela de cores neutras, um misto de creme com aveia que tinha os braços curvos e as costas baixas.
A braguilha do macho estava aberta, e seu pau estava exposto... E o punho de Blay envolvia o mastro espesso, as veias dos braços musculosos engrossando enquanto ele se masturbava.
– Quer isto? – o Blay hipotético perguntou com voz grave.
Qhuinn sibilou e mordeu o lábio inferior – e vejam só, rolou o quadril quase sem sentir a incisão na lateral do corpo.
– Porra se quero esse pau.
O Blay que não era de verdade deslizou pela poltrona de modo a poder afastar ainda mais os joelhos. E quando ele fez isso, os jeans pretos que vestia se esticaram por cima das coxas musculosas e aquele zíper se abriu até o limite. E... ah! Enquanto o guerreiro cuidava de si, os peitorais daquele lado flexionavam e relaxavam junto com o ombro enquanto ele bombeava devagar e bem gostoso.
Engolindo em seco, a língua perfurada pelo piercing de Qhuinn formigou de vontade de pegar a cabeça daquele pau. Queria compensá-lo pelo que saíra daquela sua boca tola enquanto estivera enfurecido e sexo não era um Band-Aid tão ruim assim.
E o Blay que não estava nada ali o deixaria fazer isso.
Flanando em seu mar de ilusão, Qhuinn sentiu uma sensação falsa de alívio que acompanhou o perdão que não existia na vida real. Só que, maldição, considerando-se o estado do resto da sua vida, ele iria em frente com aquilo. Naquele seu pedacinho de fantasia, ele subiria a bordo do trem Blay e rezaria para que, de algum modo, pudesse traduzir aquela conexão com o macho de verdade assim que o efeito das drogas passasse.
– O que quer fazer comigo? – Quase Blay sussurrou. – O que vai fazer com essa sua língua?
Ah, chega de conversa.
Com um movimento repentino, Qhuinn se sentou na cama – porque é isso o que se faz quando se tem grandes planos: tinha toda a intenção de atravessar aquele quarto de hospital, cair de joelhos, escancarar a boca até secar Blay de uma vez. E isso seria apenas um prelúdio para o sexo de reconciliação que apreciariam pelas próximas doze ou quinze horas.
Portanto, sim, infernos, ele se pôs na vertical – mas só foi até aí. Seu estômago puxou o pino da granada que nem sabia que estivera de posse e depois as entranhas largaram a maldita direto nos pulmões, a dor lançando-o num parafuso descendente que o deixou nauseado.
E, maldição, aquela dor lancinante foi um terrível clareador de ideia, apagando o Blay Hipotético com seu magnífico pau ereto daquele quarto...
Quando o som de alguém gritando foi registrado, ele levou a mão à boca para verificar se fora ou não ele. Não. Seus lábios estavam fechados.
Qhuinn franziu o cenho e olhou para a porta.
O que estava... Quem estava gritando assim? Não podia ser Xcor. Se a Irmandade tivesse de algum modo conseguido recapturá-lo, eles jamais trariam o bastardo para cá.
Tanto faz. Não era problema seu.
Relanceando para a esquerda, Qhuinn mediu a distância entre ele e o telefone fixo da casa na mesinha de cabeceira. Uns duzentos metros. É, talvez duzentos e cinquenta.
Então, se ele fosse um jogador de golfe, estaria sem tacadas numa jogada de longa distância.
Com um gemido, iniciou o processo de se erguer e esticar o braço o mais que podia. Bem perto do alvo. E... quase lá.
Depois de algumas passadas fúteis e remexidas das pontas dos dedos, finalmente conseguiu tirar o fone antigo do gancho. Até conseguiu acomodá-lo sobre o peito sem derrubar a maldita coisa.
Levar a coisa até a orelha também, fácil como tirar doce de criança.
Mas, cacete, a coisa do discar...
Teve que retirar o acesso extra... quer dizer, intravenoso. Uma sujeira, o portal aberto da máquina vazando um líquido claro no chão enquanto o sangue escorria de onde o tubo estivera conectado na curva do seu braço. Quem se importava. Ele mesmo limparia... Quando conseguisse ficar de pé sem vomitar.
Por um instante, encarou os doze botões em seus quadradinhos bem arrumados, mas não conseguia se lembrar da sequência. Mas o desespero tornou sua memória muito mais afiada do que ela tinha qualquer direito de ser e ele se lembrou do padrão mais do que da ordem dos números.
Um toque. Dois toques. Três...
– Alô? – disse uma voz feminina.
A luz do sol praticamente estava 97% sumida do céu quando Blay abriu a porta e saiu para a varanda de trás da nova casa dos pais. Frio, muito frio, e o ar estava tão seco que parecia jato de areia em seu nariz.
Cara, como ele odiava dezembro. Não só porque ficava frio assim, mas porque significava que ainda havia uns... quatro meses antes que o tempo melhorasse e as pessoas não sentissem necessidade de se cobrirem toda vez que saíam de cada.
Levando o cigarro aos lábios, acendeu-o com seu isqueiro de ouro da Van Cleef & Arpels – aquele dos anos 1940 que Saxton lhe dera na época em que namoraram – e amparou a chama alaranjada com a mão. A primeira tragada foi...
Horrível pra cacete.
Um acesso de tosse atacou o que deveria ter sido um alegre reencontro entre dois velhos amigos: seus pulmões e a nicotina. Mas ele se recuperou rapidamente, e em três baforadas, estava de volta à ativa. E o formigar conhecido na cabeça fazia com que se sentisse mais leve do que na verdade estava, a fumaça descendo pelo fundo da garganta como o afago de uma massagista em seu esôfago, cada exalada algo bem perto de uma sessão de quiropraxia ao longo da coluna.
Ouvira dizer que fumar era estimulante? O leve zunido no seu lobo frontal não confirmava essa ideia. Mas era estranho como tudo a respeito daquele vício o acalmava: a potencialidade para relaxamento começara a se amalgamar no instante em que encontrara um velho maço ainda fechado de Dunhill Reds na gaveta do criado mudo do seu quarto no andar de cima, e culminara ali, no primeiro momento de semi paz desde que aparecera na casa há doze horas, com a desculpa de ir ver como estava o tornozelo da mãe.
Bateu o cigarro no cinzeiro de cristal que equilibrara sobre a grade da varanda, e depois o levou de volta aos lábios, inalou, exalou.
Concentrando-se no prado coberto de neve atrás da casa, sentiu pena da mãe. Tivera que deixar a verdadeira casa da família quando redutores atacaram o lugar – um episódio que, embora ele pudesse ter vivido ser isso, mostrara que contadores como seu pai e fêmeas civis como sua mãe sabiam ser duros na queda quando necessário. Mas, sim, não havia como permanecerem lá depois de algo semelhante – e depois de passarem um tempo de um lado para o outro, hospedando-se com parentes por um tempo, os pais finalmente compraram esta nova casa em estilo colonial onde havia fazendas e espaços vazios de terra.
Sua mãe odiava a casa, mesmo que todos os utensílios fossem novos, as janelas se abrissem e fechassem com facilidade, e nenhuma das tábuas rangesse. Pensando bem, talvez fosse por tudo isso que ela desgostava da casa, mas o que se podia fazer? E aquele não era um lugar ruim. Quarenta mil metros quadrados com boas árvores, uma linda varanda circundando-a completamente e, pela primeira vez, sistema de ar condicionado central.
Que não era necessário ao norte do Estado de Nova York a não ser por talvez a última semana em julho e a primeira em agosto.
E durante essa quinzena de noites, você se sente verdadeiramente grato por possuí-lo.
Enquanto fitava o laguinho congelado com as hastes altas de amentilhos e montes de neve que formavam letras “S” no chão, deixou que a mente vagasse por todo tipo de pensamentos não controversos sobre propriedades e sistemas de ar condicionado central, e vícios que não eram tão graves assim.
Deus bem sabia que isso era bem mais fácil do que o manteve acordado o dia inteiro.
Quando chegara na noite anterior, perto do amanhecer, não tivera coragem de contar aos pais o que acontecera. A questão era que, quando Qhuinn afirmou que ele, Blay, não era pai daquelas crianças, o cara apagara qualquer direito de avós que a sua mãe e o seu pai acreditavam ter também. Portanto, não iria explicar por que ele...
O rangido da porta logo atrás fez com que ele se virasse.
– Oi, Mahmen – ele disse, escondendo o cigarro atrás das costas. Como se fosse um maldito pré-trans fazendo algo errado.
Ainda assim, bons garotos gostam de deixar suas mães felizes, e Blay sempre fora um bom garoto.
Sua mahmen sorriu, mas os olhos dispararam para o cinzeiro e, convenhamos, até parece que ela não sentiria o cheiro no ar? E ela também nunca lhe pedira para parar, só que era como Qhuinn. Não era fã, mesmo não existindo nenhum risco de câncer com que se preocupar.
– Você tem um telefonema. – Ela indicou com a cabeça para trás. – Há uma extensão no escritório do seu pai caso queira um pouco de privacidade?
– Quem é?
Ele perguntou isso para ganhar tempo, apesar de estar bem claro quem estava ligando – mas ela não pareceu se importar.
– Qhuinn. Ele parece um pouco... estranho.
– Aposto como parece.
Blay voltou a olhar para o laguinho. Também voltou a fumar, porque se sentiu subitamente agitado.
– Não quis me meter, Blay. Mas sei que há algo de errado entre vocês dois, de outro modo, ele também estaria aqui. Quero dizer, seu Qhuinn nunca deixa passar uma chance de vir comer a minha comida.
– Pode dizer a ele que não estou aqui? – Bateu as cinzas no cinzeiro apesar de não haver muito para bater. – Diga que saí. Ou algo assim.
– Tarde demais. Eu já disse que você estava na varanda. Desculpe.
– Tudo bem. – Equilibrando o cinzeiro, apagou o Dunhill. – Importa-se se eu deixar isto aqui agora? Eu limpo antes de ir embora.
– Claro. – Sua mahmen deu um passo para o lado e esperou com a porta aberta. Quando ele não foi de imediato, ela pareceu triste. – O que quer que seja, vocês dois saberão resolver. Ser pais novos pode mudar muitas coisas, mas nada a que não possam se ajustar.
Bem, aparentemente, só um de nós é um pai novo, então...
Blay atravessou a varanda e lhe deu um beijo.
– No escritório? Tem certeza de que papai não vai precisar dele?
– Ele está no sótão. Acho que está alfabetizando as nossas malas, por mais estranho que isso possa parecer.
– Nada é estranho no que se refere a papai e a organização. É por cor ou marca?
– Marca primeiro, depois por cor. Quem haveria de saber que aquelas Samsonites dos anos 1970 durariam tanto?
– Baratas, Twinkies e Samsonites. Isso é o que restará depois de uma guerra nuclear.
Estava bem mais quente no interior, e enquanto se dirigia para o escritório do pai, seus Nikes guincharam no assoalho recém-envernizado de pinho. Acendendo a luz, foi confrontado por um conjunto de escritório completo. A escrivaninha, na ponta oposta, não era nada especial, apenas uma peça legal da loja Office Depot com pernas pretas e tampo marrom claro, e sobre ele, havia um telefone e uma calculadora antiga com um rolo de papel. A cadeira era preta e acolchoada, e o computador era um Mac, não um PC.
Melhor não contar isso ao V., pensou ao fechar a porta.
Havia uma série de janelas, todas elas com cortinas pesadas ainda fechadas, evidência que seu pai ainda não batera o ponto na empresa de consultoria que começara. Trabalhar de casa era uma benção para os vampiros que queriam ganhar dinheiro no setor humano, e ainda mais apropriado se você é um contador que vive dos números.
Sentando-se atrás da central de comando do pai, Blay apanhou o fone e pigarreou.
– Alô?
Houve um clique quando sua mãe desligou a extensão da cozinha, ou da sala de estar, ou de onde quer que tenha atendido o telefonema. Em seguida, nada além de estática do outro lado da linha.
– Alô...? – repetiu.
A voz de Qhuinn estava tão rouca que mal se ouvia.
– Oi.
Longo silêncio. Não era uma surpresa. Era Blay quem normalmente pressionava para que se comunicassem quando divergiam em algo, em grande parte porque não lidava bem com distanciamento entre eles, e Qhuinn sempre teve dificuldades para falar sobre “sentimentos”. Inevitavelmente, porém, o macho cedia, e falavam o que tinham que falar como adultos – e depois Qhuinn o serviria sexualmente por horas, como se o cara quisesse compensar por sua fraqueza interpessoal.
Era um bom “modus operandi”. Normalmente funcionava para eles.
Mas não esta noite. Blay não entraria nesse jogo.
– Então, me desculpe – Qhuinn disse.
– Pelo que. – A pausa que se seguiu sugeria que Qhuinn estava pensando “você sabe pelo que”. – Sim, vou fazer você dizer.
– Me desculpe pelo que saiu da minha boca quando eu estava alterado. Sobre Lyric e Rhamp e você. Eu sinto muito mesmo... Estou me sentindo péssimo. Eu estava tão furioso que não estava pensando direito.
– Acredito nisso. – Blay passou os dedos pelas teclas da calculadora do pai, com seus números no centro e os símbolos nas beiradas. – Você estava muito alterado.
– Eu não conseguia acreditar que Layla os colocara em risco daquele jeito. Isso me deixou louco pra cacete.
Aquela era a hora de Blay concordar, de afirmar que, sim, qualquer um ficaria furioso. E que seria difícil não ficar.
– Ela arriscou mesmo as vidas deles. Isso é verdade.
– Quero dizer, consegue imaginar uma vida sem aqueles dois?
Oras, sim. Passei boa parte do dia fazendo exatamente isso.
Um bolo se formou na garganta, e Blay tossiu para desalojá-lo.
– Não, não consigo.
– Eles são o que há de mais importante na minha vida. Os dois e você.
– Sei disso.
Qhuinn exalou como se estivesse aliviado.
– Fico feliz que entenda.
– Eu entendo.
– Você sempre me entendeu. Sempre.
– É verdade.
Houve mais um silêncio. E depois Qhuinn disse:
– Quando você vai voltar? Preciso te ver.
Blay fechou os olhos contra o tom sedutor da voz dele. Ele sabia exatamente o que estava se passando pela cabeça de Qhuinn. Crise superada, hora do sexo – e isso não era uma hipótese desagradável, não mesmo. Mas, convenhamos, Qhuinn era um orgasmo de pé em coturnos, uma força da natureza dominante na horizontal, capaz de fazer um macho se sentir como a coisa mais desejável na face da Terra.
– Blay? Espere, a sua mahmen está bem? Como está o tornozelo dela?
– Melhor. Ela está conseguindo se movimentar. A doutora Jane disse que em mais uma ou duas noites, ela poderá tirar a bota. Está se curando bem depois da queda.
– Que ótimo. Diga a ela que estou feliz por ela estar se recuperando.
– Eu direi.
– Então... quando vai voltar para casa?
– Não vou.
Longo silêncio.
– Por quê?
Blay passou as pontas dos dedos sobre os números do teclado, na ordem certa – primeiro crescente, do zero ao nove, depois decrescente. Não pressionou com força de modo que nada apareceu na parte acesa nem no rolo de papel para que começasse a imprimir algo.
– Blay, de verdade, sinto muito. Estou me sentindo uma merda. Nunca quis te magoar, nunca.
– Acredito nisso.
– Eu não estava bem da cabeça.
– E isso é um problema meu.
– Olha só, eu não consigo acreditar que saquei uma arma e puxei o gatilho. Quero vomitar toda vez que penso nisso. Mas já me acalmei agora e Layla saiu de casa. Foi a primeira coisa que perguntei quando me recuperei. Ela está fora e as crianças estão seguras, então eu estou bem.
– Espera. Recuperar do quê? Você se machucou depois que fui embora?
– Eu, ah... É uma longa história. Volta pra casa e eu te conto pessoalmente.
– Eles tiraram os direitos de Layla?
– Ainda não. Mas vão tirar. Wrath vai entender o meu lado. Afinal, ele é pai.
Aquele bolo na garganta de Blay voltou, mas não tão ruim desta vez. Não precisou tossir.
– Layla ainda deveria ser capaz de ver as crianças regularmente. Eles precisam da mahmen deles, e quer você goste disso ou não, ela deveria estar nas vidas deles.
– O que está dizendo, que ela e Xcor deveriam levá-los para o McDonald’s pra comer a porra de uma porção de batatas fritas e tomar uma Coca?
– Não vou discutir isso com você. Não é da minha conta, lembra?
– Blay. – Agora vinha a impaciência. – O que mais quer que eu diga?
– Nada. Não há nada a...
– Já estou com a cabeça no lugar. Sei que estive errado ao gritar com você daquele jeito e...
– Pare. – Blay pegou o maço de Dunhill, mas depois voltou a guardá-lo no bolso da camisa. Não fumaria dentro da casa. – O fato de você ter se acalmado? Que bom, talvez isso o ajude a ser mais racional no que se refere a Layla. Mas tem uma coisa... Quando as pessoas estão bravas, elas dizem a verdade. Você pode se desculpar o quanto quiser por ter ficado bravo e ter gritado comigo e toda essa merda. O que você nunca vai conseguir retirar, contudo, é o fato de que, naquele momento, numa fração de segundo, quando não tinha a capacidade de dourar a pílula, ou pensar no que dizia ou ser gentil... você deixou claro, para que todos ouvissem, no que acredita de fato. Que eu não sou pai daquelas crianças.
– Você está tão errado. Eu só estava irritado com a Layla. Não tinha nada a ver com você.
– As suas palavras têm tudo a ver comigo – e, olha só, não é que eu não entenda. Você é o pai biológico daquelas crianças. Isso é algo que ninguém pode tirar de você nem mudar – isso é sagrado, uma realidade determinada no segundo em que Layla engravidou graças a você. E é por isso que a ideia de você esperar que Wrath finja que da noite passada pra frente Layla não deve estar nas vidas deles é a maior cretinice. Ela está no sangue deles, assim como você está. É verdade, ela tomou uma decisão muito errada enquanto estava grávida, mas os bebês nasceram, e ela não os deixou nem por um segundo desde que deu a luz. Você sabe muito bem que ela só pensa neles, não em outra coisa nem ninguém mais, e isso inclui Xcor. Se você tirar os direitos dela? Só estará fazendo isso para ser cruel porque quer que ela tenha medo de você e você quer lhe ensinar uma lição e fazê-la sofrer. E esse não é um motivo bom o bastante para afastá-la de Lyric e Rhamp.
– Ela se associou ao inimigo, Blay.
– E ele não a machucou, não é mesmo? Nem aos seus filhos. – Blay imprecou. – Mas isso não é da minha conta...
– Dá pra parar de ficar jogando isso na minha cara!
– Não estou dizendo isso pra te irritar. – De repente, seus olhos se encheram de lágrimas. – Estou dizendo isso porque essa é a minha nova realidade, e estou tentando me ajustar a ela.
Ele odiou a aspereza em sua voz – ainda mais porque Qhuinn o conhecia bem demais para não notá-la. Com isso em mente...
– Olha só, eu tenho que ir...
– Blay, para com isso. Me deixa ir até aí pra te ver...
– Por favor, não faz isso.
– O que tá acontecendo aqui? – A voz de Qhuinn ficou contraída. – Blay. O que você tá fazendo?
Enquanto Blay se recostava na poltrona de encosto alto do pai, fechou os olhos... e a imagem de Lyric contra seu peito foi como uma espada atravessando seu coração. Deus, conseguia se lembrar de cada detalhe dela: os lindos e grandes olhos míopes que ainda tinham cor indefinida, as bochechas rosadas, a penugem loira na cabeça.
Lembrava-se de sorrir para ela, com seu coração tão cheio de amor que o corpo parecia um balão glorioso, superinflado, mas sem o perigo de explodir.
Tudo parecera mais permanente com a chegada dos bebês, como se Qhuinn e ele, já comprometidos, tivessem acrescentado umas cordas de aço ao redor deles, tendo puxado a ponta bem forte.
Ele não sabia o que era pior: perder seu lugar nas vidas dos bebês, ou não sentir mais essa segurança.
– Tenho que ir – disse de repente.
– Blay, pera aí...
Ao abaixar o fone no gancho, não foi com força. Não pegou a peça para jogá-la sobre as prateleiras muito bem ordenadas de livros sobre economia e regras de contabilidade.
Não estava bravo.
Ficar irritado com a verdade era estupidez.
Seria melhor passar o tempo ajustando-se a ela.
Muito mais lógico, mesmo que isso fizesse com que lágrimas se formassem nos seus olhos.