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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESCOLHA / Odette Joyeux
A ESCOLHA / Odette Joyeux

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A série televisiva em que Marie Soler foi estrela constituiu um êxito total, que terminou em apoteose com a cerimônia de casamento de Marie com Michel de Villecroze. De facto, Serge, que desde o início emparceirara com Marie, achou que aquele não era o seu lugar. E talvez tivesse razão: logo após as filmagens, Michel e Marie anunciaram efectivamente o seu noivado, preparando-se para viver na vida o papel que tinham desempenhado no écran.

Entretanto, passada a emoção dos primeiros momentos, Marie experimenta em si, e em relação àquele noivado, a sensação de estará trair... nem ela saberia o quê! A sua liberdade? A sua paixão pela dança? Ou de trair Serge, o amigo, o camarada de sempre?

Entre a amálgama de sentimentos confusos e contraditórios que interiormente a agitam, Marie Soler vai ter de escolher. Soou para ela a hora da grande decisão...

 

 

 

 

A pequena igreja provençal resplandecia, iluminada e florida, semelhante a um repositório. Vestidos com trajos fora da época, preciosos como relíquias, Marie Soler e Michel de Villecroze tinham-se casado. A fingir... Para proporcionarem a milhões de espectadores uma hora de distracção.

A fim de enfeitiçar Marie, Michel imaginara uma bela história para fornecer em episódios aos écrans da televisão. Fizera da jovem bailarina uma noiva ideal, aquela com que todos -e ele em primeiro lugar- podiam sonhar. Tinha, de certa forma, reconstituído em A Vida Dançada uma existência paralela que, através da aparência de espectáculo, procurava reflectir a verdade. Durante meses, os jovens tinham partilhado uma vida profissional de que aceitavam, felizes, todas as exigências. Não se separavam, por assim dizer, e isso era delicioso. Teriam mesmo aceitado nunca mais se separarem...

A girândola final - "O Grande Dia" - fora esse casamento tão belamente conseguido. Cerimônia simbólica, mascarada à laia de carnaval. Os juramentos trocados, os anéis de ouro, o ramo da noiva deposto aos pés da Virgem. E o cortejo, os sinos, o portal aberto de par em par para o átrio.

"Vivo il novi! vivo il novi!" gritava a multidão aglomerada na praça. E outra vez os sinos, os confeitos, o arroz, a chuva de felicidade sob aquele sol radioso.

Os jovens tinham-se deixado arrastar. Para eles, que representavam aquela falsa cerimônia era uma revelação. Há instantes tão belos! Como não querer continuá-los, eternizá-los?

"Se recomeçássemos?"

Era o que Michel propusera ao saírem da igreja, e Marie, fascinada, respondera, do fundo do coração: "Sim, Sim. "

Nessa tarde, Michel anunciara o seu noivado à mãe.

Feliz, triunfante, dissera, segurando Marie pela mão:

"Mama, vou casar com Marie.

- Outra vez! - exclamara a marquesa.

-Desta vez, é a sério. "

A marquesa fizera uma pausa. O seu olhar vivo envolvia-os e, como se pensasse noutra coisa, declarara:

"Meus filhos, no vosso lugar, eu reflectiria!

-Mas a mama não está no nosso lugar!" replicara Michel, surpreendido com aquele conselho.

A marquesa continuara, com o seu encantador e irônico sorriso:

"Vocês tiveram a sorte de se casar a fingir... Isso não vos basta? Sabem muito bem que, geralmente, quando a gente se casa, acaba sempre por chorar. "

A exaltação experimentada por Marie dissipara-se para dar lugar a uma ponderação. Uma ponderação que despertava súbitas preocupações. A marquesa iria levantar-lhes obstáculos?

Não...

Se o filho encontrara a felicidade, que a defendesse e a conservasse. Nos nossos dias, o casamento já não é um fim. É uma grande aventura que cada um pode viver como vencido ou como vencedor. Michel era irresistível e aquela bailarinazinha diabolicamente bonita e sedutora. Assim seja!

Não encontrando qualquer razão para recusar, a Sr.a de Villecroze dera o seu consentimento.

Mas a sua primeira reacção alertara Marie. Aquele amor revelado graças a uma representação, aquela decisão espontânea que lhe comprometia o futuro, ia perturbar a sua juventude e fazer dela uma mulher.

Mal tinha começado a viver, o casamento fechava-se sobre ela como um círculo mágico no qual teria de se inscrever a felicidade...

O castelo de Villecroze desperta numa alegre desordem. Técnicos e operários desmontam as armações, carregam nos camiões fiadas de projectores.

O cenário da "boda", armado para a filmagem, deu lugar ao quadro natural do terraço rodeado de mimosas, de ciprestes e de pinheiros.

Michel, na véspera encenador e actor improvisado, contempla sonhadoramente aquela paisagem familiar que, da Garde-Freinet até ao plano da Tour, desce no azul do céu. Em cima, no lindo quarto do castelo onde a marquesa lhe deu hospitalidade, Marie dorme ainda, feliz.

Michel lança um olhar a Nazaire, o mordomo que o viu nascer. Este maneja com destreza cafeteira, chávenas e compoteira. Michel tem vontade de lhe dizer: "Pense na bandeja da Menina Soler." Mas o sorriso do velho criado, eloqüente, dispensa-o disso.

A Sr. a de Villecroze espia o filho com o canto do olho, meio divertida, meio enternecida. O que não a impede de pensar, prática, no cheque que Géraldine, associada de Michel, lhe entregou para o aluguer do castelo. É preciso viver, e os tempos são duros. Claro que o êxito de Michel lhe assegura doravante o crédito necessário nos meios do cinema e da televisão...

Subitamente, apesar da surdina, o transistor tagarela atrai a atenção da mãe e do filho. Um cronista relata a emissão de "O Grande Dia", apoteose do folhetim.

"Para concluir o nosso jornal, o único sorriso da actualidade. No termo deste Grande Dia, que os nossos amigos telespectadores puderam seguir ontem à noite no pequeno écran, e que parece ter alcançado o máximo de aplausos, os encantadores protagonistas do casamento

- fictício- anunciaram o seu noivado autêntico. Sim, a realidade pode inspirar-se na ficção! Todas as nossas felicitações para a heroína de A Vida Dançada e para o seu realizador... "

A Sr.a de Villecroze desliga o transistor, espalha os jornais em cima da mesa, à sua frente.

"Decididamente, só se fala de vocês! "

Michel pergunta, inquieto:

"Não está aborrecida, mama?

- Aborrecida? Porque o meu filho é feliz?" Levantando-se num pulo Michel inclina-se

diante da mãe e beija-lhe a mão com arrebatamento. A Sr. a de Villecroze ri:

"Ai, ai, Como a amas, à tua Marie!

-Vai ver, quando a conhecer melhor!

- Mas eu conheço-a muito bem. E fiquei-me com a primeira impressão. Excelente. "

E acrescenta, não sem ironia: "Mas se tivéssemos de casar com todas as nossas impressões... "

Nazaire, apesar do seu ar impassível, não perde uma palavra da conversa. Gosta tanto de Michel! E aquela pequena Marie é-lhe já tão simpática! Um pouco afastado, sobre o parapeito da balaustrada de pedra, prepara uma bandeja carregada de torradas e de brioches para a jovem, quando a sineta do portão soa.

"Ah, não! ", exclama a Sr. a de Villecroze. "A esta hora não quero ver ninguém." A sineta soa de novo.

Nazaire hesita, com a bandeja entre as mãos. Michel vai ao pé dele, pega-lhe na bandeja.

"Vá ver, Nazaire. Eu trato do pequeno-almoço da Menina Soler."

A Sr. a de Villecroze impacienta-se: "Quanto a visitas, respeite-se a regra. "

Michel pede indulgência para os visitantes matinais.

"A televisão vai fazer-vos uma publicidade monstra!

- Tanto melhor, afinal de contas -suspira a mãe. -Preciso tanto dela! Tornei-me uma mulher de negócios. Também me reconverti, e confesso que isso me diverte grandemente... Aliás, a vida de castelo está a passar de moda! Temos de viver com o nosso tempo e, palavra, se as leis da hospitalidade são respeitadas, façamo-las pagar pelo seu justo preço! "

Ao portão de entrada, um grupo de repórteres massacra Nazaire. Eles precisam imperiosamente de fotografar e entrevistar os noivos.

"Convidaram-nos para o casamento", exclama um deles, "com certeza que não vão recusar-nos o noivado!. "

Nazaire defende-se como pode:

"Ontem era cinema. E a vida privada das pessoas...

- Abriram-nos o apetite ontem - recomeça outro jornalista -: não podem, hoje, deixar-nos só com os aperitivos! "

Diante do grupo sorridente, Nazaire debate-se:

"Vamos, meus senhores, não sejam tão exigentes! "

Um corpulento barbudo exclama:

"Mas a noiva, ontem à noite, não era de toda a gente?

-Admitam portanto hoje que a noiva é só do noivo! A menos que... "

E Nazaire lança um olhar desesperado para o terraço, procurando em vão a luz verde da Sr. a de Villecroze.

O dia chegou de repente, injectado por pios de aves e de zumbidos de insectos.

Marie acordou feliz. As preocupações suscitadas na véspera pelas reticências da marquesa desapareceram. Nunca se sentira tão bem, depois de ter dormido tão pouco. com os olhos abertos, continua a sonhar.

Finalmente, pode confessar a si mesma aquilo que, havia semanas, se recusava a crer: ama Michel. Ama aquele jovem marquês, discreto e romântico sob os seus ares descontraídos.

Mas essa felicidade imensa, imprevista, deve-a a Serge. O seu amigo de infância, o seu companheiro de sempre, o seu par, teve a coragem de se afastar. Ciumento e lúcido, compreendeu que o papel do noivo seria mais bem desempenhado pelo criador da peça. Não se enganara...

Ela veste-se, sem olhar para o relógio.

O mar resplandecente casa-se com o céu brilhante, no horizonte tão próximo.

Marie vira-se para a porta, uns segundos antes de Michel entrar no compartimento. O coração adianta-se muitas vezes aos acontecimentos.

"Já pronta, minha querida?" Marie aninha-se contra o jovem, embaraçado com a bandeja do pequeno-almoço.

"Tenho o ensaio para o exame -murmura ela. -Queria aquecer antes. Preciso, bem sabes! Ontem não trabalhei.

- Não tens tempo de comer um pouco? Também deves precisar, não?"

Marie lança uma olhadela à rosa que assoma entre um pires e a manteigueira; corre a meter-se vestida na cama:

"Assim, sim, preciso mesmo de almoçar!" Michel coloca a bandeja diante dela, entala-lhe a almofada debaixo dos rins!

"Estás bem, minha querida?

- Formidavelmente. Adoro almoçar na cama, de manhã: é o meu prazerzinho. Quando estou em casa... "

Marie interrompe-se, bate na testa:

"E a mama! Tenho de anunciar isto à mama! "

Michel, que veio sentar-se na cama, começa a barrar uma torrada com manteiga.

"Ela já o deve saber, a tua mãe, quer pela rádio, quer pelos jornais!... "

Desdobra um diário:

"Cá está! Olha! "

Marie contempla a fotografia da página da frente, lê o artigo em diagonal. Entre dois bocados de brioche, murmura:

"Ela não vai ficar contente!

-Tu estás a tornar-te célebre!

- Célebre, célebre... na televisão!

- A tua mãe é assim tão conformista?" Marie reflecte, engolindo um golo de chá. "Conformista? Não. Nem por sombras... e,

todavia, acho-a estranha. Mesmo assim, preferia que ela tivesse sido prevenida antes de toda a gente. Teria sido mais simpático. "

Michel brinca com os cabelos sedosos de Marie:

"Fomos apanhados de surpresa, que queres! Foi a revelação. Ao casarmos de brincadeira, vimos que nos amávamos a sério. Não é verdade?"

Marie olha para ele intensamente: "Sim, é verdade! Amo-te." Michel aproxima o rosto do de Marie: "Eu também te amo! Tens razão: vamos falar com a tua mãe. E eu tenho de pedir a tua mão segundo os usos. Como na emissão. "

Hesita um instante:

"Achas que ela ma vai conceder?

- Ela sempre me deixou fazer o que eu queria!

- Espero que não tenhas querido coisas a mais! "

Os lábios de Marie tocam ao de leve os lábios de Michel:

"Eu quis dançar: dancei. Agora quero amar-te: amamo-nos. "

Nazaire interrompe o duo batendo à porta. Michel vai abrir-lha:

"Desculpe, senhor. Não consigo livrar-me dos jornalistas. Chamam por si! "

Marie salta da cama, exclamando: "born dia, Nazaire! "

Este olha para ela, confundido: a "noiva do Sr. Michel" dorme vestida?

Balbucia qualquer coisa, enquanto Marie enfia os sapatos.

"Não tenho tempo para falar com esses jornalistas", afirma a jovem.

Michel tranquiliza-a.

"Eu vou lá. Dir-lhes-ei que já partiste. "

Nazaire desapareceu. Marie está já pronta para sair do quarto:

"Não quero perder a minha lição. O exame antes de tudo. "

À pressa, acaba a chávena de chá, mete as suas coisas na maleta. Michel inclina-se para ela:

"Não antes de mim, espero?"

De repente, o sussurro da chusma dos repórteres invadindo o vestíbulo sobe até aos dois jovens.

Marie fecha outra vez a maleta e cochicha: "Estás a ouvi-los lá em baixo? Despacha-te! "

Michel sente-se literalmente cercado. Nenhum dos jornalistas tem suficiente autoridade ou presença de espírito para disciplinar e ordenar as perguntas que saltam de todo o lado.

"Então, Sr. de Villecroze, vai repetir isto?

- Noivado depois do casamento: é ao contrário?

- Não vai fazer-nos acreditar que ao preparar a sua emissão com Marie Soler não tinha já uma ideiazinha na cabeça?

- Podemos tirar-lhe uma fotografia com Marie?

- Não é assim tão ingênua a sua vida dançada'... é antes premedita ção! "

Michel tem um gesto de cansaço. com as duas mãos, acaba por impor o silêncio. Um silêncio bastante relativo, de resto.

"É muito simples. Ontem, fizemos um casamento de cinema. Hoje, sublinho-o e conto com o vosso tacto: trata-se do nosso noivado. "

O sussurro recomeça:

"Está a esconder a sua noiva? Conte-nos como é que isso se passou!

-Só uma palavrinha!

- Tem medo que lha roubemos, agora, que quer casar com ela a sério?

-Queremos vera futura Sr. a de Villecroze!

- Vá buscá-la!

- Isso não é bonito! Sejam simpáticos! Só um ou dois flashes... "

Michel tenta convencê-los: impossível, de momento, fazer essa fotografia: portanto, é inútil insistir. A vida continua. A Menina Soler está a preparar o seu exame de dança. Teve, muito cedo, de regressar ao Centro de Dança, em Cannes, Marie conhece mal a imensa habitação dos Villecroze.

Tem em absoluto de evitar o vestíbulo, onde os jornalistas se aglutinam em volta de Michel. Depressa a reconheceriam e reteriam, sob um lustre venerável, para imortalizarem de forma gritante o seu noivado com o herdeiro do local. Evidentemente que é preciso conformarmo-nos com os usos. Os jornalistas serão impiedosos. Mas, de momento, ela tem pressa de voltar ao grande estúdio do curso de dança, aos seus collants, às suas sapatilhas, à barra e às suas amigas Florentine e Sarah.

Depois de ter roçado as paredes apaineladas dum corredor, atravessa um boudoir para alcançar o terraço sem ser vista.

O salão azul dá precisamente, por uma porta envidraçada, para o jardim, que desce em degraus até à grade do parque e à estrada.

Entra no salão, pisa um tapete persa de lã alta e pára, surpreendida. Um fotógrafo, sem dúvida mais manhoso do que os outros, deve ter vindo à sua procura. Como é que ele adivinhou que ela seguiria precisamente aquele itinerário secreto? Deve conhecer bem o castelo. Sem se constranger absolutamente nada, instalou o aparelho diante dum quadro de Watteau que representa uma antepassada dos Villecroze com um vestido de cetim azul. Trianon.

Marie recua, porque o homem não parece ter notado a sua presença. No entanto, é por ela que espera, não?

Ao começar a retirada, Marie tem tempo, num segundo, de ver que o fotógrafo fechou as cortinas da sala. E agora, empoleirado numa cadeira, manipula o quadro de Watteau. Se aquele amador de arte pudesse perder-se assim na sua contemplação...

Demasiado tarde! Voltou-se e, depois de ter estremecido ligeiramente, interpela a rapariga: "Ah! cá está você, afinal!"

Marie parou. Vai esquivar-se em sentido contrário, com risco de cair no grosso da coluna? O homem tem aspecto de estar perturbado. Diz numa voz sacudida:

"Eu tinha a certeza... tinha a certeza de que você estava cá! Não sou parvo! Por muito que nos jurassem que já tinha partido, fiz bem em esperar! "

Descendo da cadeira, aproxima-se de Marie com uma falsa indolência. A rapariga observa:

"Estava à minha espera, fotografando esse quadro?

-Sim. Tinha observado este retrato ontem, durante o casamento."

Ri:

"Durante o seu casamento. Há coisas muito belas aqui... "

Impondo a si mesma gestos lentos, Marie vai à porta envidraçada. Entreabre-a suavemente, mas vê que o grupo de jornalistas, que se agitam em volta de Michel, reflui para o terraço. O homem aconselha:

"Não vá para lá: os meus colegas julgam que você partiu de facto. Vão-na açambarcar. Eu tenho-a, vou conservá-la! "

E, sem ruído, torna a fechar a porta. Faz um gesto com o braço na direcção de Marie. Gostaria de a aprisionar, de a convencer, enquanto ela procura de novo uma escapadela discreta.

"Seja gentil, menina. Pouse ao lado do quadro. É uma idéia minha: os antepassados Villecroze acolhem a nova eleita! Isso dar-me-á um clichê exclusivo. "

Depois, tornando-se fleumático, dá uma volta à chave da porta envidraçada.

A impaciência de Marie transforma-se numa espécie de tortura.

"Não. Não tenho tempo! "

O fotógrafo parece não a ter ouvido. Pega familiarmente na mão da jovem.

"Marie Soler... Soler é o seu verdadeiro nome ou um nome de guerra?"

Ela liberta-se com firmeza e recua, indignada, olhando para aquele curioso homem, pequeno, espadaúdo e de olhar um pouco turvo.

Passando a mão pelos cabelos, ele acrescenta

como para consigo próprio:

"Soler! Tem piada! A gente encontra-se

sempre. "

Abana a cabeça, com ar entendido: "Conheci muito bem a sua família, menina.

Muito bem. A criação de gado do seu avô, o Sr.

Giraud. Ele tinha nessa época uma coudelaria célebre... "

Deixa de evocar as suas recordações e torna-se mais insistente.

"Então, fazemos essa foto? Entre velhos conhecidos... podia fazer-me esse favorzinho. "

Marie, intrigada, já não tem vontade de fugir. E, todavia, insensivelmente, recua mais.

"A sério? Conhece a minha família?

-Estou a dizer-lhe! Até trabalhei para o seu avô, na Normandia, perto de Elbeuf. Eu também gostava de cavalos. Mas fizeram-me perder o gosto por eles.

- Conheceu a minha mãe?

- Catherine? A Sr.a Giraud? Certamente que a conheci! Era muito bonita. Agradava-me muito. Mas eu não era o seu gênero. O seu gênero era antes... "

Será por escrúpulo que o homem não acaba as suas confidências? Marie está subjugada. Como aquela pausa é irritante.

Incita-o à continuação da narrativa:

"Era quem, o seu gênero?

- O seu pai, claro! Enfim, éramos novos nesse tempo! Fale de Julien à sua mãe...

Admirar-me-ia que ela me tivesse esquecido. Continua na Normandia?"

Marie hesita antes de responder, com voz um pouco surda.

"Não. Instalou-se perto daqui. No Var. Continua a ocupar-se de cavalos.

- Ah, bom! E ele? Quero dizer: o seu pai?

- Morreu. "

De repente, a porta interior abre-se. Nazaire parece surpreendido por encontrar Marie em companhia dum desconhecido naquele boudoir mergulhado na penumbra.

Marie tem dificuldade em recuperar a presença de espírito. Explica a Nazaire:

"Estou a tirar uma fotografia." Nazaire, ingenuamente:

"Às escuras?"

O fotógrafo exibe o seu flash e, sem esperar por comentários, rapidamente, como que para se justificar, tira uma fotografia a Marie. A luz branca cega Nazaire e a jovem, imobilizados.

"Obrigado, mil vezes obrigado", murmura o repórter. "Vai ficar bem! "

E, como ninguém se mexe, acrescenta:

A Menina Soler está livre. Já terminei o meu trabalho. "

Então Nazaire decide-se:

"A menina quer fazer o favor de me seguir? O Sr. Michel pede que o espere, em baixo, no carro. Está a despedir os outros jornalistas. "

Cos diabos! No corredor seguinte, um grupo de repórteres descobre a heroína do dia acompanhada do mordomo.

Michel tenta mandar embora toda a gente. Os jornalistas são menos numerosos. Muitos, desencorajados, já partiram com os seus aparelhos de filmagem e de registo. Só resta aquele punhado de irredutíveis. Marie agarra-se a Michel:

"É horrível! vou chegar atrasada." Então Michel suplica:

"Sejam simpáticos! Saberão tudo, juro. Mas não agora. "

O comprido barbudo protesta:

"Mais tarde, para nós, é sempre demasiado tarde! "

Michel segura Marie pelo braço e arrasta-a através do vestíbulo. Os dois jovens correm pelo terraço, com os jornalistas atrás; Nazaire fecha a marcha, de braços levantados.

Michel ainda tem tempo de gritar: "Cumpri a minha promessa. Dir-vos-emos tudo. "

Vê a Sr.a de Villecroze, que segue a cena com olhar divertido, e uma idéia súbita lhe atravessa o espírito:

"A minha mãe, lá em cima, vai confiar-vos as suas próprias impressões. Não é mama?"

Sem esperar por resposta, ajuda Marie a subir para o carro arrumado sob os plátanos das dependências anexas.

E acrescenta, ao som do arranque:

"Ela terá muito prazer em vos oferecer o copo da amizade! "

O carro desaparece num talude de rochas ocres, salpicadas de aloés.

A Sr.a de Villecroze, soberana, dirige-se aos jornalistas, um pouco desnorteados:

"Não se impacientem, meus senhores, sereis seguramente convidados para a boda.

- A boda? Mas acabámos de sair dela! "

A Sr.a de Villecroze sorri:

"Pois bem, vireis de novo! Entretanto, se um aperitivo vos tenta... "

Nazaire limpa a testa e prepara uns copos em cima duma mesa guarnecida de garrafas multicolores.

Pelas persianas do boudoir o misterioso Julien espia aquela cena. Sente-se muito calmo.

Lentamente, discretamente, puxa de novo as cortinas. Naquela solidão claro-escura, dirige-se para o Watteau, depois pára, satisfeito, e contempla-o esfregando as mãos.

Em Cannes, no grande estúdio do Centro de Dança, reina um ambiente febril e aplicado: o duma véspera de exame!

Lynn, louro, hirsuto e simpático, dá a lição de jazz. O jovem americano ensinou e dançou na Broadway. Tendo vindo fazer um estágio na Escola, lá ficou, seduzido. Os alunos adoram as suas aulas: é um notável bailarino moderno e trata-os como camaradas, sem gritos de autoridade. No entanto, é incisivo, preciso, nada escapa ao seu olho crítico.

As raparigas "aquecem" ainda na barra, enquanto os rapazes ocupam o meio do estúdio.

As inseparáveis Florentine e Sarah descansam um pouco. Marie ainda não chegou. Florentine, uma meridional morena e viva, avista de repente através da grande porta envidraçada o carro de Michel, que traz Marie.

"Olha, cá estão eles! Eu já começava a pensar que ela ia faltar à lição. "

Sarah é mais subtil, mais reflectida, talvez. Não se nota na sua pronúncia do francês qualquer indício das suas origens americanas.

"Tu não conheces Marie, Flo! A dança é tudo para ela! "

Serge, o melhor companheiro de Marie - os outros atribuem-lhe por ela mais ternos sentimentos -, aproxima-se das duas raparigas. Está encharcado e limpa com uma toalha felpuda o suor que lhe perla o rosto. Dir-se-ia que a conversa de Sarah e Florentine o atrai.

No pátio, Marie, de pé contra a porta da esquerda, conversa com um Michel bronzeado, radiante: um verdadeiro galã de revista de modas inglesa.

"Ele é gentil, esse Michel", aprecia Florentine. "Eu, no lugar de Marie, num dia semelhante, mandava passear tudo! "

com o canto do olho, observa o rosto impassível de Serge: também ele observa os dois noivos do dia, que prolongam o seu adeus. Florentine acrescenta, evidentemente para arreliar Serge:

"No seu gênero, Marie é uma fiel. "

Serge não reagiu, compreende a intenção de Flo.

Quereria agora voltar ao estúdio, onde tem de trabalhar sob a direcção de Lynn uma série de arabescos acrobáticos.

Mas Florentine, imperturbável, insiste:

"Quero dizer que é uma fiel... da dança. E a dança, para Marie, não é muito de ti, Serge?

-Grande idiota! ", berra o jovem lançando-se aos ritmos do piano-jazz, enquanto Sarah e Florentine desatam a rir.

O motor do carro trabalha au ralenti.

Marie sente bem que os camaradas do Centro a observam por detrás da vidraça do estúdio. "Devem achar esquisito que eu tenha passado a noite em casa dos Villecroze", pensa ela. "Contanto que ninguém tenha idéias estapafúrdias... "

Michel arranca-a ao seu devaneio.

"Corro para o aeroporto para estar no estúdio esta noite, mas virei assistir ao teu exame. E falarei com a tua mãe. "

Acrescenta, meio sério, meio divertido: "A tua mama, sim! Mete-me medo! -Eu também tenho medo, Michel! É terrível sabermos que nos amamos! Sabê-lo, assim sem ter pensado nisso! Uma evidência! Felizmente que Serge me abriu os olhos... "

Michel, visivelmente irritado, corta-lhe a palavra.

"Ah! deixa o Serge sossegado, por favor.

-A verdade é que sem ele... "

O jovem acalma-se:

"Sim, bem sei, sem ele, eu não seria senão um pobre imbecil!

- Como eu - acrescenta Marie.

- E é por isso que nos amamos. "

Olham-se, maravilhados. Há bem cinco minutos que tagarelam sem poderem separar-se.

Marie escapa-se por fim ao olhar de Michel, à voz de Michel: um último beijo enviado na ponta dos dedos, e pfft! desaparece, ligeira, em direcção à escada do Centro.

Sem aparentar cansaço (um amor novo dá asar), reentra no quarto um pouco funcional, mas muito alegre, que partilha com Florentine e Sarah.

Lá está a colcha em patchwork colorido de Florentine e o véu indiano do "canto" de Sarah. O pique branco da cama de Marie está impecável. Os "cantos" das outras duas acusam uma certa desordem: o exame do dia seguinte desculpa muita coisa.

Marie despede-se para se pôr em trajo de dança, enquanto, com intermitências, lhe chegam os ecos musicais da sessão de trabalho. A lição de jazz já começou. Parece-lhe portanto mais razoável preparar-se para o curso de Dança Clássica.

Florentine, Sarah, Adrienne e Jocelyne encontram-se na mesma linha, sob o olhar de aço de Lynn. Os rapazes descansam, encostados à barra do fundo. Serge, num ângulo do estúdio, aplica-se sozinho, diante do espelho mural, a um grande écart au ralenti.

Lynn notou a ausência de Marie. Pergunta antes do recomeço dos déboulés:

- Ela não vem?

- Não tardará-diz Sarah. - Deve estar a vestir-se: nós vimo-la chegar.

- Olha, aqui está ela -exclama Florentine, enquanto a porta do estúdio range... - Ah! não... é Suzanne: que bom vento... "

É raro, com efeito, que a secretária do Centro, Suzanne Leroy, venha interromper uma sessão de trabalho. Salvo casos excepcionais, bem entendido.

Brandindo um telegrama, procura alguém com a vista. Vê Serge diante do espelho, faz-lhe sinal.

Lynn bate as palmas, pede que comecem uma série de entrechats.

"Atenção, please! Meninas, avancem! Estão amontoadas lá no fundo. Ar, ar, estão a incomodar-se umas às outras, vamos! "

Serge aproximou-se de Suzanne, que lhe estende o telegrama.

"Nada de grave?", pergunta ela.

Serge coça a cabeça:

"Não compreendo nada! O texto está redigido em inglês. "

Sem se preocupar com os camaradas que se esforçam em déhanchements e em saltos de grande amplitude, Serge vai ao encontro de Lynn. A música pára.

"O exame é amanhã", protesta Lynn: "Não façam tolices, meus filhos. Que é que queres?"

Serge mostra o telegrama ao americano:

"Desculpa... mas é inglês. É-me dirigido; não percebo nada. É talvez importante?"

Lynn, já calmo, traduz imediatamente:

Serge Laroche convidado com grupo para concurso das jovens companhias em Nova Iorque - telegrafe acordo.

"E está assinado: Dance-Festival." Estupefacto, Serge fica com a respiraçãocortada:

"Não é verdade! "

Lynn acena com a cabeça, sorrindo: "Sim, é verdade. Juro-to.

- É formidável", grita subitamente Serge! "A minha primeira coreografia: estás a ver! "

Volta-se então para os seus camaradas.

"Vamos a Nova Iorque! Para dançar a minha criação! "

Há bem dez cabeças que formam uma pirâmide por cima dos ombros de Serge. De toda a parte saem exclamações alegres: "Catita! Fantástico! O Canadá! A América do Norte! Viva Serge! "

O júbilo de Florentine mistura-se com uma certa preocupação:

"Contanto que a mama me deixe ir para tão longe sozinha! "

Serge tranqüiliza-a:

"Não estarás sozinha, mas connosco! "

Suzanne Leroy aperta as mãos do jovem:

"Estou contente por ti, Serge! Dá-me o nome dos bailarinos e bailarinas que são abrangidos pelo teu ballet. vou distribuir-lhes fichas para serem preenchidas pelos pais, por causa das autorizações. "

Na euforia geral, Lynn já não ousa zangar-se, nem protestar. Tem a impressão de que a sessão de dança moderna está muito comprometida.

Sarah aproxima-se de Serge, felicita-o por sua vez:

"Estou verdadeiramente encantada por nós, mas primeiro por ti, crê-o. Bem o mereceste! Depois da tournée, irás passar uns dias em minha casa, em Nova Iorque. Vais gostar, tenho a certeza. Apresentar-te-ei pessoas! Mostrar-te-ei coisas...

- És um anjo! Aceito de boa vontade! Quem sabe se vou ficar em Nova Iorque para trabalhar com Balanchine ou Robbins... "

As raparigas protestam. Serge exclama: "É uma fanfarronada, bem sabem!... Logo que o exame termine, temos de fazer ajustes e pôr todo o ballet de pé. Se vocês, já tinham idéias de farniente, está tudo perdido!

- Não estaremos muito frescos -suspira Jocelyne -, mas é preciso que estejamos completamente afinados.

Lynn resigna-se a abreviar a lição de jazz.

"Vocês podem vestir-se para o clássico. Por hoje, acabou para mim. "

Vai-se pensar de novo no exame.

As raparigas, num canto do estúdio, mudam de collants, atam as sapatilhas, passam as pontas com resina, enquanto Serge, escoltado por um grupo de rapazes, se dirige para o escritório do Centro, para ali afixar triunfalmente o seu telegrama.

Quando Marie vai ter com Florentine e Sarah, a agitação provocada pelo telegrama de Serge cessa. Vão mesmo esquecê-la por um momento: a noiva de Michel de Villecroze deve ter tantas coisas para contar!

No entanto, Marie parece quase intimidada pelo que lhe acontece. Aquele "segredo", tão depressa divulgado pela imprensa e pelos fotógrafos indiscretos, como falar dele, agora, às amigas?

Inabilmente, começa:

"Tenho uma coisa para lhes dizer. "

Florentine encolhe os ombros sorrindo.

"Sim, calculamos." Sarah, mais grave:

"Mas, enfim, é a sério? A opinião pública não exagera?"

Pausadamente, e enquanto "aquece" na barra, Marie confirma:

"Tudo é verdade! Ficámos noivos nessa tarde. Logo a seguir ao casamento. "

Florentine finge não se espantar de nada. com uma grande calma, compõe os cabelos diante do espelho mural. E num tom desprendido:

"Entre Michel e tu, isso tinha de acabar assim! Há muito tempo que eu compreendera. "

Marie interrompe um déroulement do braço esquerdo, acompanhado duma flexão lateral do busto. Flo surpreendê-la-á sempre!

"És com certeza a única! Porque nem Michel nem eu própria... "

Florentine interrompe-a, cáustica:

"Evidentemente! O amor torna-nos parvos. Parvos e maus, aliás, porque, em tudo isto, o pobre Serge... "

De repente, Marie abandona a barra. Quer restabelecer a verdade. Mesmo Sarah parece céptica.

"Mas, no fim de contas, foi por causa dele! Sim, foi graças a Serge que Michel e eu compreendemos que nos amávamos!

- A sério? - murmura Sarah. - Deviam canonizá-lo! "

Marie impacienta-se. Porque é que as suas amigas se permitem julgá-la, fazer de Serge um mártir?

Claro que elas não podem compreender. Não leram a carta de Serge. As coisas passam-se tão depressa... Tomada pela actividade febril da filmagem, Marie não teve tempo de lhes explicar...

Tudo começara na véspera de manhã, no seu lindo quarto do castelo de Villecroze. Muito cedo, Sarah e Florentine subiram para ir ter com ela. Não havia tempo para molengar: toda a equipa estava já pronta.

De repente, enquanto admiravam o maravilhoso vestido de noiva, enfiado num manequim de verga, a porta abriu-se brutalmente. Michel, furioso, precipitou-se no compartimento, seguido dum monte de pessoas. Atirou para cima da cama o manequim que segurava nas mãos:

"Toma, aqui tens o noivo! ", gritou ele.

Reconhecendo o trajo que Serge devia usar para o seu casamento de cinema, Marie ficara estupefacta; Michel brandiu então um cartaz. "com os bons-dias do noivo! ", leu ela.

Primeiro, julgou que era uma brincadeira. Mas Michel desenganou-a: havia algum tempo que Serge não era o mesmo. Parecia nervoso, irritado...

Apesar das buscas, não foi possível encontrar

Serge. E a sua moto já não estava na garagem.

Enquanto toda a gente andava de cabeça perdida, Marie examinou o manequim, perplexa. Sob os seus dedos, qualquer coisa rangeu.

Uma carta para ela.

Escondeu-a imediatamente. Lê-la-ia mais tarde. Agora era preciso, custasse o que custasse, salvar a emissão. Mas como? De repente, teve uma idéia: Michel podia substituir Serge: tinha a mesma altura que ele; sabia o papel de cor...

De boa ou de má vontade, Michel acabou por aceder.

Tendo ficado só, Marie abriu o sobrescrito. A carta era curta. Serge renunciava a fazer de "palhaço" junto dela naquele belo dia. O papel não era seu e ele entregava-o. A quem de direito. Depois desejava-lhe boa sorte.

Assim, ele não tinha querido sabotar a emissão por ela o afastar do seu verdadeiro objectivo: a coreografia. Simplesmente, desaparecia diante de Michel, para deixar livre o coração de Marie.

Em breve, Michel e Marie transpunham a entrada da igreja. As câmaras tinham começado a trabalhar, os flashes crepitavam. E Michel, perturbado, confessara a Marie o seu amor,

Todo o dia se filmara sem descanso. Repetições, cantos, árias tocadas pelos músicos, danças repetidas até à exaustão, retoque dos penteados, da maquilhagem... Nem por um instante Marie tivera ocasião de falar calmamente a Florentine e Sarah. Chegada a tarde, Michel arrastara Marie a casa da marquesa, depois anunciara o seu noivado aos jornalistas ainda presentes.

Enquanto a notícia se espalhava, saudada com risos e exclamações, Michel e Marie tinham-se esquivado para um canto do parque. De lá, ternamente enlaçados viram o carro que esperava pelos alunos do Centro. Florentine e Sarah tinham sido as últimas a ocupá-lo, não sem terem procurado Marie com o olhar.

Marie, que ficava agora só com Michel, conservando a carta de Serge sobre o coração, como um terno segredo...

Marie acabou as suas explicações. Florentine e Sarah ficam pensativas.

-"Pobre Serge-murmura uma vez mais a primeira.

-Felizmente que ele tem uma boa surpresa pelo seu lado! Isso far-lhe-á engolir a pílula", acrescenta a segunda.

Marie interroga-as com os olhos.

"É verdade, tu não sabes! ", exclama Florentine. "O ballet de Serge foi convidado para ir à América, a Nova Iorque, com o Centro. Vão dançá-lo nas universidades! "

No mesmo momento, o grupo dos rapazes, conduzido por Serge, entra ruidosamente no estúdio.

Marie precipita-se para o jovem.

"Formidável! Estou feliz por ti! "

Ter-se-á Serge apercebido de que ela tem vontade de o beijar? Fica à distância a repetir:

"Eu também, estou feliz por ti! Que vais fazer?"

Marie olha-o sem compreender. Ele explica:

"Sim, com o ballet, justamente! Vens connosco a Nova Iorque?"

Ela encolhe ligeiramente os ombros:

"Oh! com certeza. vou pedir a Michel: ele compreenderá.

-E se ele não compreender?"

Sem responder, Marie esboça uma careta dubitativa. Serge prossegue:

"bom! Entretanto, e no caso de ele não compreender, como tu dizes, vou prever a tua substituição. "

Marie coloca-se, de pernas afastadas, mesmo em frente de Serge. Cruza os braços.

"Mas que é que te leva a crer que Michel tem intenção de me impedir de dançar?

- Ele há-de querer guardar-te para si. Para o seu cinema. Para os seus espectáculos.

-Diz antes que não queres que eu fique com o meu papel!

- Eu preferia indubitavelmente que ficasses, visto que o preparei para ti. Mas bem viste ontem, durante a filmagem: ninguém é insubstituível. " Num relance Marie revê Michel a vestir no último momento o fato de Serge e a aparecer, na verdade, não sem garbo, diante das câmaras.

Ela suspira e acrescenta a meia voz:

"Nunca esquecerei o que fizeste por mim. "

A sua frase destaca-se num silêncio total. Aos grupinhos, os bailarinos dispersam-se.

Marie e Serge ficaram frente a frente. O jovem responde, um pouco pálido:

"De qualquer maneira, eu não podia fazer outra coisa. Então, mais vale escolher o papel adequado quando não se tem o melhor. "

Marie baixa a cabeça. No imenso espelho, ao fundo da sala, por um instante, as suas imagens ficam muito próximas, depois separam-se.

No grande estúdio, a lição de Dança Clássica está a acabar. À austera disciplina sucede uma desordem alegre e colorida. Os rapazes friccionam-se com as suas toalhas antes de passarem ao duche. As raparigas reúnem no saco os acessórios da sua "panóplia" de bailarinas: sapatilhas, fitas, xailinhos e fitas para a cabeça.

Discute-se com firmeza no grupo Sarah-Marie-Florentine. É esta que se ouve mais: o seu sangue meridional, as suas entonações cantantes dão um toque de alegria às suas mais curtas intervenções.

"Faz-me impressão, podes crer, esse noivado - confia ela a Marie.

- Eu penso como Flo! -acrescenta Sarah. -Todavia... vocês deviam estar contentes-protesta Marie.

-Põe-te no nosso lugar-replica Florentine. -Isso aborrece-nos como se fôssemos perder-te um pouco. Não estás bem connosco? Não estás bem na Escola?

- Nada mudará, absolutamente nada -responde Marie encolhendo os ombros.

-Sim! já começa a mudar um pouco -exclama Sarah, apontando com o dedo para ela -: achei-te menos certa do que de costume, há pouco, na tua variação.

- Eu estava menos concentrada. Um pouco distraída, talvez... Vocês não podem compreender. "

Florentine arrelia-a:

"Porquê, tu compreendes-te? Tens sorte!

- Eu... Eu já não sei. Não sei. Desculpem-me, estava a pensar noutra coisa. Vocês deviam acompanhar-me a casa da minha mãe. É absolutamente necessário que eu vá ter com ela. Que lhe fale a respeito de Michel. "

Sarah observa:

"Michel é que te devia acompanhar.

- Ele não pode. Tomou o avião para Paris. O seu trabalho não espera. Conta voltar amanhã.

- Para o exame?

- Oh, o exame, ele, sabes... Sobretudo para falar com a mama."

Virando-se para Sarah, Florentine declama em voz solene:

"O Sr. Michel de Villecroze tem a honra de pedir à Sr. a Soler a mão da sua filha Marie. Para o melhor e para o pior! "

Marie impacienta-se.

"Não sejam idiotas! Tenho de prevenir a mama imediatamente. É a mínima das coisas: suponham que a minha mãe sabe do nosso noivado pelos jornais; ficaria zangada e teria razão! Vá, sejam boas, acompanhem-me! Poderíamos partir às quatro horas.

- A gente vai baldar-se ao ioga -observa Sarah.

-Oh, por uma vez! ", implora Marie.

Mas Florentine ainda não disse que sim.

"Bem sabes, o ioga é na verdade capital. Não façamos asneiras! Antes dum exame, o ioga é mesmo indispensável. Tu devias era descansar. O ioga põe-nos em forma. A tua mãe, falarás com ela amanhã na chusma dos pais desnorteados com o júri. "

Marie não se dá por vencida.

"Sarah, tu vais comigo. Paciência, faltaremos ao ioga. Isso proporcionar-nos-á um belo passeio no teu Méhari: descapotaremos. E bronzearemos! "

Sarah começa a deixar-se convencer. Marie explora o seu êxito.

"Enquanto eu falar com a mama, tu poderás visitar as boxes. Os cavalos já têm a sua pelagem de Verão. Vais ver. São magníficos... "

Os olhos da jovem americana brilham de prazer. Os cavalos! Uma das suas paixões, infelizmente contrariada pela sua carreira de bailarina!

A equitação e a coreografia comportam, segundo parece, disciplinas musculares incompatíveis entre si.

Ao volante do seu Méhari vermelho, Sarah não tinha vontade de "apertar". Aquele passeio ao longo da costa e através dos contrafortes dos Maures caía do céu. Mais valia aproveitá-lo plenamente.

Marie não ousava pedir à amiga que fosse mais depressa: os controladores de estrada eram freqüentes. As duas raparigas tinham, aliás, ajustado ajuizadamente os cintos de segurança. De jeans azuis desbotados e camisolas de algodão muito cavadas, deixavam-se acariciar pelo sol.

Sarah teve de repente uma idéia que lhe pareceu genial:

"Achas que temos tempo de dar um mergulho? Em Sainte-Maxime, por exemplo?"

Marie olhou para o relógio. Eram quase cinco horas. Não. Não era aconselhável. Precisava de falar demoradamente com a mãe.

"E depois", acrescentou, "um banho, na véspera do exame, amolecer-nos-ia as pernas! "

Sarah curvou-se depressa a esse convincente argumento. Concluiu com bom humor: "É incrível como uma bailarina tem de se sacrificar para praticar a sério a sua arte: na equitação, equitação, esqui, sem falar dum regime alimentar rigoroso para combater a celulite e o peso a mais! "

Do Méhari descobria-se aqui e acolá, nas concavidades das montanhas, o reflexo do Mediterrâneo.

"Que maravilhosa região! -suspirava Marie. - E dizer que aproveitamos dela tão raramente!

-Receio que a Cote d'Azur se encha de construções como a nossa Califórnia -respondeu Sarah! - Tu verás: quando fores aos Estados Unidos, levar-te-ei a Los Angeles. Essa região, que era tão bela, tornou-se numa das mais poluídas do mundo. "

Sem esperar pela resposta de Marie, acrescentou:

"Desta vez não teremos tempo para passear muito na América: ficaremos limitadas ao Canadá e ao Festival-Dance de Nova Iorque. Aliás, talvez Michel não te permita que venhas connosco.

- Mas porque é que metes, tu também, essa idéia ridícula na cabeça?"

Sarah continuou, sonhadora:

"Quando fores a esposa do Sr. de Villecroze, e ele se tornar um grande cineasta, terás muitas ocasiões de correr o mundo. "

Aproximavam-se de Sainte-Maxime. A baía, calma como um lago, estava sulcada, até SaintTropez, de criscrafts e de veleiros multicolores.

No meio dos pinheiros e dos sobreiros escalonavam-se as aldeias de Gogolin, de Grimaud e de La Garde. Marie não queria continuar a falar de Michel: abordaria esse assunto escaldante dali a pouco, com a mãe.

Indicou, à direita, a bifurcação de Grimaud depois de um loteamento de casas de campo para veraneantes com a mania do pitoresco.

"Em Grimaud fez-se um esforço para salvaguardar o cunho original da velha aldeia. A minha mãe aprecia-a imenso. Vive lá, ao lado do picadeiro, em companhia duma amiga, Dominique, que é como minha segunda mãe.

- Mas porque é que a tua mãe se meteu a tratar de cavalos? - perguntou Sarah.

- É uma tradição de família: o meu avô possuía uma criação de gado de Elbeuf, na Normandia. A mama continuou depois dele. "

As ruas de Grimaud, estreitas e sombrias, torciam-se em vários planos, até ao parreiral que trepa pelas muralhas do castelo.

O carro parou diante do picadeiro, encostado a uma antiga casa branca. Um pouco mais longe, as cavalariças, construções de forma oblonga, furadas pelas células das boxes. Marie não esperou que Sarah tivesse arrumado o Méhari: saltando do carro ainda em andamento, correu para a casa.

Dominique, uma mulher duns quarenta anos, delgada e alta, com umas calças de linho preto, veio ao encontro da jovem.

"Catherine espera-te. De momento acompanha um grupo de cavaleiros em passeio para a Garde-Freinet. Não vai demorar-se. "

Marie, um pouco esbaforida, deixou-se cair num cadeirão provençal. "Ela sabe?

- Sabe o quê?

- Que eu estou noiva?"

Dominique escolheu uma cadeira, aproximou-se de Marie. Designou em cima duma mesa baixa um jornal e um transistor.

"com certeza que sabes que Grimaud não está livre nem dos jornais, nem da rádio. Pensámos que era publicidade. "

Marie ficou muda.

"Não vais dizer-me que é a sério?-insistiu Dominique.

-É mesmo -disse Marie num murmúrio-: é muito sério. "

-silêncio. Uma mosca embatia contra uma vidraça. Então, Marie, subitamente tímida:

"Que é que a mama disse?

- Nada! Repito-te que não acreditámos!" Levantando-se bruscamente, Marie foi ter

com Sarah, que hesitava em entrar no compartimento.

"Tudo isto me enerva! -disse ela. -Dominique, conheces a minha amiga Sarah? Confio-ta: eu vou selar um cavalo, um qualquer: Gigondas, por exemplo, para ir ao encontro da mama.

-Cuidado com as tuas pernas-gritou Dominique. -Não é muito prudente! Amanhã danças! "

Sarah tinha-se sentado no cadeirão deixado livre pela amiga.

"Eu julgava -observou Dominique -que Marie só pensava na dança.

- Ela pode também pensar noutra coisa... No amor, por exemplo."

Dominique espantou-se:

"Nós não estávamos ao corrente de nada...

- Tudo se decidiu muito depressa." Ouviram-se as ferraduras de Gigondas a

bater nas pedras do pátio, ao lado do bebedouro.

"Demasiado depressa, na minha opinião", corrigiu Dominique.

Sarah sorriu e acrescentou:

"O falso casamento deu-lhes a idéia de se tornarem noivos. Não acha isso engraçado?

- Se você acha! A gente casa-se por ser engraçado?

- Eles não tiveram tempo de pensar. -É pena!... ", suspirou Dominique.

As rédeas vão lassas sobre o pescoço de Gigondas, Marie deixa-se conduzir: aquele velho cavalo conhece as mais pequenas incrustações de caminho que escala a montanha - castanheiros e carvalhos - entre duas curvas da estrada do Luc.

Por alturas da nascente da Bégude, os cavaleiros conduzidos por Catherine Soler tomaram o caminho do regresso. É aí que Marie e sua mãe se encontram. De comum acordo, vão fechar a marcha, a boa distância dos outros passeantes: assim, falarão tranqüilamente.

O rosto fechado, o pouco entusiasmo de Catherine, perturbam a jovem. Eleva um pouco a voz:

"Eu julgava dar-te prazer! Estava segura de que dirias sim sem histórias.

- Infelizmente, há uma história. -Qual?"

A Sr.a Soler hesita em responder. Depois ilude a resposta.

"Aliás, vocês não são do mesmo meio.

- Oh! por favor! O meio em 1975! Tenho razões para me envergonhar de ti?

- De mim, não, certamente. "

Intrigada, Marie guia Gigondas para junto do cavalo de sua mãe. Os jeans da jovem encostam-se à bota de Catherine.

"Mama: que queres dizer? Que é que há? Fala.

- Sim, sim. Vamos falar. Mas não aqui. Não nestas circunstâncias.

-Metes-me medo. Diz: vais impedir-me de ser feliz?"

A Sr. a Soler suspira, abana a cabeça. "Não sou só eu.

- Como, não és só tu? Quem há mais?" Sem responder, Catherine esporeia a sua

montada e vence a trote a distância que a separa dos outros cavaleiros; vai retomar o comando do grupo para voltar ao clube. Os cavalos atravessam já a estrada departamental.

Marie, tendo ficado só, não força o andamento. Trote e galope devem ser evitados a todo o custo. Só pensa na mãe, em Michel, na sua felicidade.

Mas entretanto, amanhã, amanhã, há esse aborrecido exame: é preciso ter cuidado com os joelhos, com as pernas. Como se Gigondas adivinhasse, continua docemente a andar a passo.

Dominique levou Sarah a visitar o clube hípico. Conversam agora no terraço.

A sócia de Catherine Soler explica à visitante como é delicado evitar aos cavalos hóspedes o "cansaço de Verão". Estes animais, que têm falta de "saídas" durante a estação morta, são obrigados, durante as férias, a um regime de passeio intensivo. Passam da inactividade a uma espécie de escravatura.

"Sem falar dos principiantes ou dos brutos, que os maltratam ou esgotam.

- É verdade - aprova Sarah - um cavalo não deve apreciar muito essa mudança tão freqüente de cavaleiro!

- Oh! esse problema atormenta-nos, a Catherine e a mim. Os nossos animais deviam tanto quanto possível ter um único cavaleiro. Imagine! um cavalo de picadeiro tem por vezes, durante o ano, dezenas de cavaleiros! Como,

outrora, os cavalos da tropa. "

Os moços de estrebaria esfregam os animais que acabam de voltar do passeio.

Marie passa com a mãe diante de Sarah e Dominique. Parecem preocupadas. Catherine esquece-se de cumprimentar a colega da filha.

Entraram em casa. Marie fechou brutalmente a porta, sentou-se outra vez no cadeirão provençal. A mãe ficou de pé e anda nervosamente.

"Assim, mama, é de meu pai que queres falar-me? E esperaste até hoje para o ressuscitares?"

A Sr. a Soler pára de repente, com o olhar distante. Responde com uma voz que deixa transparecer uma obscura angústia: "Tu és menor...

-E então? Vais dizer-me que ele tem direitos sobre mim? Primeiro, porque me mentíste? Porque me deixaste acreditar que ele morrera?"

Catherine procura as palavras. E, muito lentamente:

«Eu não sabia como justificar a sua ausência. Queria poupar-te à verdade.

- Poupar-me. Pois bem, hoje, não me poupas!»

Catherine avança para a filha, com rosto grave:

«Marie! No momento em que decides comprometer a tua vida, sou obrigada a explicar-te...

- O que me tinhas cuidadosamente escondido!

A Sr.a Soler desloca-se de novo, procura as palavras, palavras muito difíceis de encontrar em caso semelhante:

«Julguei que fazia bem... tu parecias não pensar senão na tua carreira... E, além disso, tinhas tempo... Eras ainda uma criança...»

Marie levantou-se, dominando uma espécie de raiva. Por sua vez também ela anda para trás e para diante. Amargamente, exclama:

«Como são cômodas as crianças! Adormecemo-las com mentiras, com o silêncio, com a ausência! E depois: traz!, deixamo-las despertar para as abandonarmos sozinhas diante da verdade.»

Catherine toma Marie nos braços:

«Tu não estás sozinha, minha filhinha, eu estou aqui.»

Marie afasta-se com violência.

«Mas o meu pai não está! Tu não vais dizer-me que preciso da sua autorização para organizar a minha vida...

-Marie... por favor!

- Preocupou-se ele com a minha existência? Olha, preferia julgá-lo morto!»

A Sr.a Soler tenta acalmar a filha. «Não o ataques: o teu pai foi vítima duma história suja.

- Que história?»

Catherine baixa a cabeça sem responder. «Oh!, por favor, mama! Eu tenho agora o direito de saber! Matou? Roubou?

- Não... -Então?»

A Sr.a Soler começa com dificuldade:

«Ficou comprometido...»

Toma tempo para respirar demoradamente, vai sentar-se no grande cadeirão provençal. Marie espera, a tremer.

«Tínhamos acabado de casar - recomeça Catherine-, e isso contra a vontade dos meus pais... Compreendes, Claude...

-Claude?

-Sim, o teu pai chama-se Claude. Claude era pobre e eu parecia rica. Digo parecia porque a situação de teu avô era desastrosa. O teu pai trabalhava em nossa casa como treinador de cavalos... Houve uma série de circunstâncias mais que desgraçadas... Em resumo, foi acusado quando estava inocente.

- Mas o culpado? Quem era o culpado?» Catherine gostaria de não responder. Mas

pode ela parar assim em plena confidência? Prossegue em voz baixa:

«O teu avô morreu pouco depois do escândalo.

Não fora isso, ele teria desculpado Claude. Não o teria deixado cometer um tal erro.

- Porque ele era testemunha?

-Sim. E até mais. Todavia, nunca teria denunciado ninguém. Enquanto que o outro... -O outro?

- Sim. O ladrão. Conseguiu fazer condenar o teu pai em seu lugar. Para se vingar.

- É ignóbil! Tu conhece-lo?

- Claro que sim -confessa Catherine. -Esse homem amava-me à sua maneira. Vingou-se por minha causa... "

Um clarão atravessa o espírito de Marie, uma intuição que ela não retém: ouve de novo a voz do repórter que, nessa mesma manhã, fotografando-a diante do retrato de Watteau: "Fale de Julien à sua mãe... Admirar-me-ia que ela me tivesse esquecido... "

A rapariga tem subitamente vontade de fazer uma pergunta precisa à mãe. Dominique, que entra no salão, impede-a disso nesse instante.

"Catherine, estão à tua espera! Os cavaleiros já montaram para a última saída. Anoitece mais cedo: vocês já deviam ter partido. "

A Sr. a Soler lança um olhar ao relógio.

"É verdade, estou atrasada! "

Põe uma mão no ombro de Marie:

"Escuta, minha querida: os clientes esperam-me. Tenho de os conduzir. Mas poderemos falar esta noite. Saberás tudo. "

A jovem encolhe os ombros:

"Já sei o suficiente, chega!

- Por favor, minha filhinha!

-Mas eu não posso ficar! Também tenho que fazer. Tenho de voltar ao Centro. Quanto ao resto, veremos amanhã. "

A rapariga torna-se dura ao passar diante da mãe, que esboça um gesto para a beijar.

Marie saúda vagamente Dominique, diz-lhe adeus com indiferença. No terraço, apoiada ao Méhari, Sarah dirige à amiga um alegre sinal com a mão: os seus grandes olhos negros arregalados parecem perguntar: "Tudo vai bem?" A mímica de Marie sugere uma resposta nitidamente pessimista.

Ela caminha em grandes passadas para o carro, enquanto Catherine monta o seu cavalo, no meio do novo grupo de cavaleiros.

Dominique corre atrás da jovem para a apanhar:

"Por favor: espera pelo regresso da tua mãe!

- Mas será demasiado tarde para mim, Dominique! Sou obrigada a horários, no Centro! Sarah, que teve a gentileza de me trazer até aqui, não está à minha disposição. E, depois, porquê esperar pela mama? De qualquer maneira... "

Dominique segurou a rapariga pelos ombros: "Tenta compreender e não tomes esse ar

obstinado! Vais causar um desgosto a Catherine.

Ela devia ter-me dado ouvidos e ter-te prevenido

há muito tempo.

- Porque tu, evidentemente, sabias?

- Claro. "

Dominique beija ternamente a jovem e acrescenta:

"Vejamos, Marie! Eu julgava que tu gostavas de mim... não te considerei sempre como minha filha?"

Marie, pálida, cerra os dentes. Sente-se naquele momento incapaz de qualquer demonstração.

Afastando-se, murmura:

"Tem piada! Em conclusão, eu devia estar contente! Não tenho pai, mas tenho duas mães! "

Depois corre para Sarah e, sem acrescentar palavra, instala-se no assento do lado direito do carro.

Mais do que nunca, nessa noite, o quarto do trio, no Centro, parece uma espécie de caverna onde se amontoam o essencial e o supérfluo: sapatilhas, gadgets, estojos de maquilhagem, água mineral, biscoitos de dieta, flores dos campos num copo, colants enrolados em cima duma cadeira...

Florentine e Sarah não têm vontade de dormir. Em camisa de noite, entretêm-se, com um baralho de cartas, a fazer paciências no canto da mesa. Viram as cartas sem convicção: ah! se Marie pudesse encontrar de novo a língua! Ela não confiou às amigas quase nada da sua entrevista com a mãe. Isso é de mau presságio... Deitou-se muito depressa, pretextando uma dor de cabeça. Fechou os olhos, mas vira-se muitas vezes, agitada, nervosa.

Por cima da cama, uma fotografia, recortada dum jornal, está colada na parede.

Aquela prova, com muitos meses, representa um ensaio de balet: Galateia, ou o Nascimento Duma Estrela. Para Marie, aquela fora a primeira oportunidade. Escolhida pelo maior bailarino do mundo, Igor Andreiev, esperara segui-lo no seu périplo de glória. Mas não: nada daquela aventura fabulosa pudera realizar-se. O milagre iniciado desvanecera-se. A estrela em embrião não se confirmara. Tornara-se depois daquele revés, uma simples aluna. Uma aluna, mas a rapariga, a mulher, fora subitamente despertando: depois da mágoa, podia ela conhecer de novo os sorrisos da vida? Encontrar o amor?

Nessa noite, tudo é examinado de novo. Mais barreiras que se levantam: não já no palco dum teatro, mas no seu próprio coração, e essa sombra reflui até à ternura das suas recordações de criança. Até mesmo a mãe se barricou por detrás da mentira.

De repente, a voz de Florentine arranca Marie ao seu "cinema".

"Quando se tem um desgosto, no coração, vale mais esvaziá-lo: alivia! "

Ela ouve também Sarah, mais discreta, que intervém:

"Deixa-a sossegada, Flo! Ela há-de falar quando quiser. Deixa-a em paz.

-Mas, afinal, nós somos ou não as suas compinchas?"

Sarah e Florentine olham-se. A sua intervenção não deu nada de positivo. Pelo contrário. Marie volta-se ostensivamente para a parede.

Florentine arruma as cartas. Sarah não se decide a deitar-se. E a conversa recomeça entre as duas amigas: é sempre Marie, Marie a muda, que é a sua heroína.

"Diz lá! É na verdade uma boca calada", cochicha Florentine, designando Marie com o queixo.

Sarah não pode deixar de rir.

"Boca calada, mas tu serias antes o contrário! "

Em voz mais baixa, Flo recomeça:

"A mãe deve ter-lhe arranjado complicações...

- Mas vejamos - respondeu Sarah-: a própria Marie te disse que a mãe não era contra.

-Talvez. Mas com certeza que também não é a favor.

- É possível. Deve achar Marie um pouco nova de mais.

- Dezoito anos?! É assim tão nova? Nota que a minha mãe me diz muitas vezes: Tens muito tempo, Florentine! Aproveita agora uma família que se ocupa de ti. Verás, quando tiveres de te ocupar da tua vida, a música vai mudar e hás-de ter saudades de nós. "

Sarah não está de acordo com os princípios enunciados por Florentine:

"Eu tenho uma amiga que se casou aos dezasseis anos, teve um filho muito, muito cedo. "

Flo inclina-se para trás: aquela perspectiva de maternidade parece-lhe verdadeiramente extravagante. Agarra numa boneca de cima duma estante e, a rebentar de riso, mete-se na cama apertando a boneca ao coração.

"Estás a ver, Sarah? Se nos puséssemos todas a ter meninos! Madame teria de instalar uma creche no Centro. Poríamos talco nos bebês ao ritmo do jazz de Lynn... E as tournées, diz: estás a pensar nisso? Passariam muito, os pequenos! "

Seguindo o exemplo de Florentine, Sarah deita-se, a rir daquelas lucubrações. Conclui:

"Que queres? a vida mudou! Os bebês, hoje, levam-se para toda a parte. Nas faculdades há creches. "

Florentine puxa os cobertores até ao queixo:

"Pelo menos, o Maio de 68 serviu para isso... finalmente! "

Suspira e diz em voz alta: "Boa noite, Marie! "

Marie não respondeu. Flo apaga o candeeiro e insiste:

"Estás a dormir?"

Continua a não haver resposta. Por sua vez, Sarah apaga o seu candeeirinho, murmurando:

"Boa noite, Marie. "

Está escuro. Marie aproveita-se disso para abrir de novo os olhos. É naquele vazio que tenta construir o rosto desconhecido de seu pai.

No Casino de Cannes.

Um público "diferente dos outros" comprime-se em volta do controlo, onde os cartões de convite marcados com a sigla do Centro permitem a famílias inteiras penetrar na grande sala. Pais de alunos, jornalistas, grupos de jovens, aproveitam a vantagem dum espectáculo gratuito.

Esse público está tão febril como os bailarinos e bailarinas agrupados já por classes no foyer, nos bastidores e na proximidade dos camarotes.

Misturada com os espectadores, uma raça particularmente temível se revela nos dias de exame: as mamas de bailarinas! Uma mãe de família, de natural amável, transforma-se então em galinha furiosa, que esmaga, com um desprezo invejoso, qualquer outro pinto que não seja o seu.

Professores de dança, jornalistas e membros do júri fogem dessas mães como da peste. Elas perseguem-nos para obterem uma nota de favor:

"A minha filha trabalhou muito a sério... Talvez não meta tanta vista como a pequena X, é sem dúvida menos conhecedora do que a pequena Y, não possui por certo a técnica rigorosa e mecânica da pequena Z, mas toda a gente reconhece que ela tem qualquer coisa a mais. Hem? É isso: o talento, o garbo, a classe! À minha filha, aliás, eu sempre disse: Tu serás estrela ou nada! O corpo de ballet! O menos tempo possível. Será uma bailarina, já se sente isso. Uma das verdadeiras. "

Eis o que se ouve, com pequenas diferenças, um pouco por todo o lado, na sala a abarrotar.

As primeiras filas da platéia ficam vazias. Estão reservadas: uma grande mesa coberta com um pano vermelho foi instalada no centro para os membros do júri, composto por personalidades da dança. Antes de a cortina se levantar, eles fazem uma entrada solene, tomam os seus lugares com um ar bastante importante.

Cochicha-se ao ver o director do Festival Ballet. Ou o braço direito de Balanchine. Há também o representante de Béjart... Attilio Labis, o bailarino-estrela da Ópera de Paris... Reconhecem-se também, no júri, professores, jornalistas e empresários.

Aquela enfiada de juizes constitui igualmente o alvo de alguns alunos que, dos bastidores, mostram o nariz pela abertura do pano.

De facto, a maior parte dos candidatos, dominados pelo nervoso, aquecem na barra, concentram-se num canto, retocam a maquilhagem ou juntam-se por classes.

A de Marie, Florentine e Sarah, uma das primeiras a enfrentar o júri, reagrupou-se em volta de Marika, professora de Dança Clássica. Esta prodigaliza os últimos conselhos:

"Sobretudo, meus filhos, nada de pânico! Se se enganarem num passo, isso não tem importância. Pode acontecer a qualquer, mesmo a uma estrela. Vocês serão julgados pelo conjunto da vossa prova. Ao interpretar, não exagerem: não disfarcem a falta de técnica com poses de bayadère ou de carmencita. Sejam naturais. Vocês não concorrem para entrar no Alcázar... "

Marika afasta-se em direcção a outros alunos. Sarah vai ter com Serge atrás da cortina, do lado do jardim. Este sente-se em plena forma desde que recebeu o telegrama de contrato para o seu ballet. Sabe já que obterá excelentes notas hoje: há intuições que jamais enganam.

Florentine foi ter com eles. Pergunta a Serge:

"Arranjaste uma bailarina para substituir Marie, no teu balet?

O jovem responde afirmativamente, com um breve aceno de cabeça.

"Resultará bem?-interroga por sua vez Sarah.

-Tem de ser -diz Serge... -Pensei em Jocelyne. "

Sarah e Florentine olham-se sem uma palavra, cépticas. Uma camarada da classe delas mete-se na conversa:

"Talvez nem tudo esteja perdido, com Marie...

- Oh! bem sabes, uma bailarina já é difícil de dirigir: se está apaixonada, não há mais nada a tirar dela! "

Serge, que finge mal a indiferença, gostaria que a conversa terminasse com uma afirmação definitiva.

Mas Florentine recomeça:

"A não ser que essa bailarina esteja apaixonada por um bailarino. "

O jovem fica impassível:

"Não é esse o caso", resmunga ele.

Depois, mudando de assunto, exclama:

"Contanto que o nosso ballet caminhe sobre rodas nos Estados Unidos! Se eu pudesse conseguir um contrato na América!

- Tenho a certeza de que tens hipóteses afirma Sarah. -Lá não terias qualquer problema de alojamento. Podias ficar em minha casa enquanto quisesses. Os meus pais estão de acordo. "

O rapaz agradece-lhe com um largo sorriso.

"Tu és fixe, Sarah! Já não penso senão nesse concurso, é bestialmente importante para mim. "

Uma pequena bailarina, de voz aguda, chama os faladores à realidade presente:

"E o exame, digam: não é importante?"

Dos bastidores, ouvem-se os aplausos da sala. A apresentadora, no caso Suzanne Leroy, acaba de fazer um aviso no palco:

"Minhas senhoras e meus senhores, o exame vai começar! Pedimos ao público que não se manifeste nem com aplausos, nem com murmúrios: isso, como compreendem, a fim de respeitar a serenidade do júri. Obrigada pela compreensão e por nos ajudarem assim na rigorosa integridade da classificação.

Nesse momento preciso, o público entregou-se, não sem humor, a uma tempestade de bravos.

Suzanne Leroy acrescenta:

"Obrigada! Conto agora com o vosso silêncio. As provas processar-se-ão por classe: primeiro um adágio de conjunto. Depois, passagens duas a duas constituirão as provas individuais. "

Nos bastidores, a classe de Marie começa a reunir-se. Marie, estranhamente isolada, apoia-se num alizar do cenário. Ainda não procurou ver, na sala, a mãe, acompanhada da inseparável Dominique, nem verificar se Michel já chegou.

Serge faz notar a Sarah e a Florentine:

"Dizer que vamos passar a nossa vida a fazer exames! É verdade: todas as subidas de pano são como exames! Temos sempre medo, arriscamos sempre qualquer coisa. Somos chanfrados, pois!

- Chanfrados? - murmura Sarah. - Sabemos de que gostamos. Não achas?... "

O pianista instalou-se diante do grande Pleyel de cauda. Certos temas serão tocados em directo pelo acompanhante. Outros serão difundidos em play-back por altifalantes dispostos no fosso da orquestra.

Suzanne Leroy anuncia: "Excelência 31" Em semicírculo o "adágio-reverência" dos alunos da Excelência 3 serve de apresentação a uma enfiada de tutus românticos.

Os rapazes da classe de Serge observam o júri hirto nas primeiras filas, diante de grandes folhas de papel. Serge troça:

"Lá estão eles, muito tranqüilos, de caneta na mão, enquanto nós estamos a morrer de medo! "

Sucedem-se as variações. São as alunas mais pequenas que se apresentam primeiro.

Florentine não se agüenta no seu lugar.

A hora aproxima-se para ela e para as suas camaradas. Murmura depois duma cotovelada a Jocelyne:

"Estás a ver, à esquerda, a mulherzinha que representa Bejart? Devia gostar de Marie, aquela. Marie é muito Bejart' no aspecto morfológico. "

De momento, Marie esfrega as sapatilhas num recipiente com resina. Parece ao mesmo tempo distante e febril.

No palco, uma "pequena" termina a sua prova. No canto de Flo -Sarah -Marie, as gargantas apertam-se. As mãos estão húmidas. Uma espécie de pânico contagioso invade as pernas, cava a barriga.

No palco, Suzanne Leroy anuncia:

"Marie Soler. "

Marika procura com o olhar Marie, uma das suas mais firmes esperanças, e, em voz quase alta:

"Vamos, Marie, é a tua vez! "

Sarah faz uma figa em cada mão para conjurar a má sorte.

Serge foi ter, pelo fundo do palco, com as camaradas de Marie. Florentine murmura:

"Se Marie dançar bem, tem probabilidades de trabalhar com Béjart. "

Serge encolhe os ombros:

"Sim, mas Marie agora está-se nas tintas. Já não é Béjart que lhe interessa... é... olha... do lado das galerias: aquele! Quer instalar-se -num banquinho. E com ele aqui ela não vai dançar bem. "

Michel de Villecroze acaba de entrar na sala. A sua chegada parece sincronizada com a entrada de Marie em cena.

Deslumbrada pelos projectores, ela sente-se mole como uma grande boneca de algodão. Não vê nada. Não ouve nada. Está em todo o lado e em lado nenhum. Coloca-se em posição de partida, o melhor que pode.

O pianista toca os dois primeiros acordes do acompanhamento.

Num segundo, os olhos de Marie acostumaram-se à luz: acaba de notar, à direita, a chegada de Michel, procurando às apalpadelas, apesar da lanterna da arrumadora, o seu banquinho, no fim duma fila de poltronas. E um pouco mais longe, à esquerda, lado a lado, a mãe e Dominique, que olham para ela fixamente.

Os dedos do pianista estão suspensos no primeiro passo, na primeira atitude de Marie, ligeiramente desequilibrada.

Desconcertada, ela vacila. Parece ter esquecido totalmente a actuação que lhe cabe.

Nos bastidores, Marika aperta as mãos. Nenhum dos alunos do Centro abre a boca. O silêncio é aterrador.

O pianista toma a iniciativa de pôr fim àquela "ausência" tocando de novo, fortíssimo, os mesmos dois acordes.

Uma ansiedade desmedida paira sobre todo o Casino de Cannes. Depois, subitamente, Marie parece sair duma espécie de letargia. Arvora um sorriso crispado, lança-se obedecendo a um impulso, gira como um autômato, mas a cada volta não vê senão os rostos de sua mãe. e de Michel, que a encerram num labirinto sufocante.

Já não obedece ao compasso musical, deixa-se arrastar pelas recordações daqueles ensaios onde tudo caminhava tão bem... O piano é lento. As pernas estão enferrujadas. Marie perde-se naquele palco imenso, onde os seus passos se desencontram da música. Quer agarrar o tempo, só faltam dois compassos. Vai perder-se. Desequilibrar-se...

O acorde final surpreende-a numa reverência acanhada, apressada e atamancada.

Nos bastidores reina a consternação.

"É a Berezina! -troça Serge, que experimenta uma dor que não ousaria confessar por nada no mundo.

- Cala-te, Serge, peço-te - implora Sarah, que não suspeita o que a ironia do jovem esconde.

- Que é que eu te dizia? - recomeça ele com uma surda amargura. -O amor e a dança são incompatíveis. "

Marie, sem um sorriso, sai do palco como se fugisse.

Encadeada pelas luzes da ribalta, choca logo com Florentine, Sarah e Serge, cujo silêncio e expressões assombradas são mais do que eloqüentes.

Marie toma a dianteira e troça:

"Vocês vêm para as condolências! Estraguei tudo. É o desastre total. Não tem importância, obrigada. "

Serge não tenta atenuar hipocritamente as coisas:

"Não é possível! Serraram-te as pernas! Não te agüentas de pé!"

Sarah considera esta franqueza insuportável. Interpõe-se:

"Não a enerves, Serge. "

Pega na mão de Marie:

"Verás, vais recuperar no jazz e na representação.

- Estou-me nas tintas para a comédia.

Marie, com os maxilares cerrados, baixa a cabeça. Em frente dela, Serge parece um boxador vencido. No palco, a aluna que sucedeu a Marie dança -ironia da sorte- uma variação sobre o Sonho de Amor, de Liszt, cujas notas de cristal se desfiam naquele ambiente de pesadelo.

Florentine, que ainda não dissera nada, arrisca-se a falar de esperança:

"Sabes, Marie, o júri toma em conta as notas do ano inteiro e... "

E Marie interrompe-a:

"O público está-se nas tintas para o que eu fiz durante o ano! O que conta para ele é o que vê. Estraguei tudo. Estraguei tudo!... "

Marika sente o insucesso de Marie "no clássico" como se lhe dissesse respeito directamente. A sua melhor aluna, ou quase... É de desesperar!

com ar encolerizado, faz que a ordem reine nos bastidores.

"Excelência!... Pequenas! Vocês, aí! Preparem-se.

- Estamos a ver as mais crescidas, minha senhora! -implora uma voz de anjo.

-E adoramos a variação da Princesa Aurora-explica outra -: não podemos ficar?"

Encolhendo os ombros, Marika faz uma rápida inspecção:

"Só deixo ficar aqui aquelas que já calçaram as pontas. As outras, para os camarins. "

Marika examina as razões possíveis do desastre de Marie. É evidente que há em primeiro lugar desculpas de ordem afectiva: noivado relâmpago, na véspera dum exame, com aquele Villecroze, mais play-boy do que príncipe encantado. A mudança de cenário talvez tenha perturbado a sua aluna, igualmente. O estúdio de ensaio era menos fundo e muito mais comprido... Os projectores? A presença de pais na sala?

"Desculpe, minha senhora, procuro o Sr. de Villecroze. "

Um agente da polícia, meio desabrido, meio intimidado, arrancou Marika aos seus pensamentos.

Ela fica interdita. Então, ele recomeça em voz mais baixa:

"Foi o meu chefe que me mandou procurá-lo. O Sr. Michel de Villecroze. O cineasta, deve saber. Aquele que...

- Não é um bailarino. Que quer que. ele esteja a fazer aqui no palco?

- Eu cá não sei; foi o comissário Morati que me mandou -diz o polícia pronunciando o guturalmente. -Parece que o Sr. de Villecroze está aqui, visto que a noiva é bailarina e...

- Nesse caso, veja na sala -fulmina surdamente Marika. -Mas espere pelo fim do exame: podia perturbar o júri, distrair as candidatas e aborrecer o público. "

As pequenas bailarinas têm o ouvido apurado.

Não perderam nada daquele breve diálogo entre a sua professora e o homem de quépi.

Uma delas arrisca-se:

"Nós vimo-lo, o Sr. de Villecroze: acolá, no fim da sétima fila, num banquinho.

-Ah! bom! Muito bem, triunfa o representante da ordem numa voz estrondosa: vou então procurá-lo! "

Coro de Marika indignada e das pequenas maliciosas:

"Chut! Chut! Chut! "

As jovens bailarinas empurram-se com o cotovelo e cochicham entre si. Marika insurge-se:

"Menos barulho, fazem favor! E o Sr. Agente seja discreto, espere pelo intervalo! "

Entretanto, no palco, anuncia-se a prova seguinte:

"Florentine Bardini. Variação extraída d'A Bela do Bosque Adormecido, de Tchaikovsky: dança da princesa Aurora. "

Patrícia, uma das pequenas bailarinas, oferece-se subitamente. Ousa aproximar-se do polícia, murmurando:

"Se o senhor quiser, eu posso ir prevenir o Sr. de Villecroze."

Sem esperar por resposta, a rapariguinha escapa-se pela porta de acesso à sala - a qual range um poucochinho -, depois, de gatas, enfia-se por entre as primeiras filas da platéia: o júri está distraído, os espectadores intrigados com aquele ratinho, invasor e insólito.

É igualmente para Catherine e Dominique uma feliz diversão. Elas acabam de admirar Florentine, e, embora não sendo grandes especialistas de dança, a contra-actuação de Marie saltou-lhes aos olhos, incrível, desesperante.

Patrícia vai até junto de Michel, fala-lhe ao ouvido.

O jovem levanta-se.

Dominique diz baixo a Catherine:

"É ele?

-Creio que sim.

-É menos bonito do que no écran ou nas fotografias da imprensa.

- Na penumbra não podes julgar bem. "

E acrescenta com um suspiro resignado:

"Aliás, que é que isso interessa?"

No palco, Marika increpa o agente:

"O senhor está contente, agora? Conseguiu

incomodar toda a gente. Não podia esperar, essa

formalidade?"

O homem protesta:

"Minha senhora, eu não incomodei ninguém.

Foi a pequena que me propôs...

- As crianças só me devem obedecer a mim. Só a mim! "

Pela porta de acesso aos bastidores, Michel de Villecroze vai ao encontro do polícia.

A professora de ballet aproveita isso para pedir a Suzanne Leroy que anuncie um intervalo.

As rapariguinhas rodeiam Michel de Villecroze, que está, a seus olhos, nimbado da auréola das vedetas.

E, depois, é o noivo de Marie Soler! E, depois, possui um castelo! E, depois, deve ter muito dinheiro! E, depois... Olha, cá está Patrícia, heroína ela também, visto que ousou introduzir-se na sala. Enchem-na de perguntas, porque surpreendeu as primeiras palavras da conversa entre Michel e o agente.

Ela empertiga-se, cheia de importância:

"Houve um roubo em casa do noivo de Marie! "

No seu camarim, Florentine e Sarah rodeiam Marie. Generosas, as duas raparigas não dizem palavra do seu próprio exame. Tentam minimizar o insucesso dela, mas a sua tentativa é mal acolhida.

Marie sente-se muito cansada, enquanto as raparigas se atarefam a retocar a maquilhagem, depois de terem vestido os collants de dança moderna.

"Toda a gente pode ter uma falha técnica! -declara Sarah. -Sabes muito bem, Marie, que a dança, no fundo, é sobretudo uma arte de viver!

- Tenho a impressão de que mal respiro -murmura Marie. - Portanto, de que vivo dificilmente, e muito mal!

- Apesar de tudo, é preciso não exagerar-protesta Florentine. -Não nos representes a morte do cisne!

- Uma carreira não se desfaz numa sessão-recomeça Sarah! -Tu estás apenas no começo. Nos primeiros passos, e...

- No descalabro, queres tu dizer! interrompe-a Marie. - Tenho mesmo vontade de largar tudo. De desaparecer.

-Desaparecer? Porquê? -pergunta Florentine. - Estás maluca?

- Dir-se-ia - protesta Sarah -que estás sozinha no mundo, sem amigas, sem família. "

Marie olha para ela tranqüilamente:

"Fazes mal em falar em família! Sobretudo

tu, Sarah, que renunciaste aos dólares do teu

pai, a uma vida fácil nos Estados Unidos. Não

me repetiste muitas vezes que uma bailarina não tem família? Aliás, eu só tenho a minha mãe. E ela desiludiu-me. "

Florentine põe-se diante de Marie:

"bom. Admitamos que já não tens mãe. Mesmo assim, pensa em ontem à noite... Michel de Villecroze, existe, não é verdade? Tu vais ter com ele! Ele saberá consolar-te, presumo. "

Marie volta à realidade. Tê-la-á seguido o seu coração? Ninguém, nem mesmo ela, saberia dizê-lo. Sarah propõe de repente:

"É verdade, Michel! Vi-o na sala. vou procurar-to. "

Eclipsa-se antes de Marie ter tido tempo de aquiescer.

Em volta de Patrícia, todas as pequenas se reuniram ardendo em curiosidade.

"Um roubo? -espanta-se uma delas. - Que é que roubaram?

- Um quadro. Foi o agente que disse a Michel de Villecroze.

-Um quadro de quê? - pergunta outra.

- Eu não sei -responde Patrícia, orgulhosa por ser a vedeta - mas não deve ter importância. Se vocês vissem o noivo... Pffft, pisgou-se e disse-me que prevenisse Marie. "

As bailarinas combinam-se: "Tu vais já dizer-lhe?"

Patrícia agita-se. O seu papel está a tornar-se terrivelmente interessante:

"A pobre! Mais vale contar-lhe isso depois do exame: ela tem ainda o jazz e a representação. Vamos deixá-la tranqüila.

-Sobretudo porque ela não parece estar nos seus dias felizes - reforça uma conhecedora. - Viste-a no clássico?"

Patrícia sacode as mãos gorduchas acrescentando:

"Oh! lá, lá, lá!... "

O júri retoma os seus lugares. O público volta às poltronas e bancos. O exame-maratona vai prosseguir.

Nos bastidores, Lynn reúne os seus alunos.

Vai agora passar-se para o moderno.

Sarah e Florentíne rodeiam de novo Marie. Decididamente, esta não está com sorte.

Sarah voltou para o camarim de mãos a abanar. E cometeu uma gaffe ao declarar:

"Michel estava cá. Viram-no nos bastidores. Um contra-regra afirma-me que o viu ir-se embora. Não compreendo!

-Eu compreendo muito bem -murmura amargamente Marie. - Não soube como dizer a sua oração fúnebre. "

O exame continuou num ritmo desenfreado.

As provas do moderno pareceram demasiado abstractas a esse público conservador, mais apreciador do repertório tradicional de Gisela ou d'O Lago dos Cisnes. Não se pode dizer que Marie tenha brilhado especialmente...

O período do medo estava ultrapassado, é certo. Todavia, faltava-lhe aquela chama que a animara até então. Ela ousa confessá-lo a si mesma agora: o banco vazio de Michel desiludiu-a profundamente. Bem lhe disseram que o noivo fora obrigado a deixar o Casino de improviso, mas ninguém lhe revelou ainda o verdadeiro motivo da sua partida.

Ansiosamente, Marie interroga-se. Porque é que Michel partiu, na realidade? Não lhe terão dado uma vaga desculpa para esconder outra coisa?

Géraldine... Michel e ela encontraram-se sós durante aquela breve viagem de negócios a Paris. Marie não ignora os sentimentos de Géraldine para com o seu noivo. É certo que há muito tempo Géraldine se prestava ao cinismo aparente de Michel. Jogava o seu jogo, com medo de o afastar... Eles formavam um "par actualizado": liberdade garantida, ciúme banido. E sobretudo, tinham as mesmas esperanças, as mesmas ambições. Hoje ainda, no seu meio profissional, eles formam um par. Um par vedeta, um tandem ao vento...

Quando Michel anunciou aos jornalistas o seu noivado com Marie, Géraldine tentou mostrar-se, como sempre, trocista, indiferente. Em vão. O rosto traía-a.

Marie deixa galopar a imaginação. Durante essa viagem relâmpago, Michel e Géraldine falaram. Descobriram que os uniam laços profundos. E Michel voltou ao Casino para romper com Marie.

Somente, ao assistir ao insucesso da bailarina, não teve coragem de a afligir. Fugiu...

Lynn dá uma grande palmada nas costas de Marie antes da sua entrada em cena. A música-jazz desfia variações de xilofone sobre as descargas da guitarra eléctrica.

"Não te rales, Marie. Isso irá bem, agora! ", diz-lhe ele gentilmente.

com efeito, aquilo vai. Ao começo, pelo menos. Depois, o parceiro de Marie, um amigo de Serge, avança para a bailarina. Vai levá-la aos ombros. Então, é ele que fraqueja. O insucesso da rapariga no clássico condiciona-o, falha o seu porte, oscila, segurando a rapariga nos braços.

O público não pode reprimir uns "oh! oh!" que são mais de pena do que de censura.

Marie recupera o ritmo nas pernas e recupera habilmente o compasso. Livrou-se a tempo, o júri há-de sublinhá-lo; mas não pode deixar de pensar, enquanto, nos bastidores, o seu parceiro apresenta as desculpas de circunstância:

"Decididamente, não estou com sorte! "

O comissário Morati bebe um scotch no terraço do castelo dos Villecroze.

Folheia um álbum de arte colocado em cima dos joelhos e que apresenta reproduções das obras do século XVIII. As carnes rosadas dos Bouchers, as sensualidades mais ricas dos Fragonards, os pastéis delicados e os mistérios dos Watteaus, tudo isso poetiza o seu inquérito.

Um sinal marca a página onde se exibe majestosamente a antepassada da marquesa de Villecroze. O retrato chama-se: A dama de azul Trianon, colecção particular Anne de Villecroze."

Decididamente, aquele castelo dá que falar. Ontem, a filmagem duma emissão de êxito, um acontecimento mundano. Hoje, o rapto duma antepassada, por interposta pintura.

"Mais uma gota de Chivaz, comissário?"

Morati preferia um bom pastis com anchovas e azeitonas, mas sacrifica-se e aceita o uísque por delicadeza.

"Este é o meu filho", anuncia a marquesa.

Michel, precedido de Nazaire, faz a sua entrada no terraço. Aperta a mão do comissário.

Os quatro entram em seguida no salão que foi teatro do roubo:

"Eu não tinha notado nada -precisa à Sr.a de Villecroze - foi Nazaire quem deu por isso. "

A moldura está no seu lugar, pendente da sua escapula. Mas a tela foi cortada cuidadosamente, ao longo da barrinha interior de madeira dourada.

O comissário interroga Nazaire:

"O senhor afirma que o quadro estava aí, ontem de manhã?

- Tenho a certeza - responde o criado. -Um fotógrafo estava a tirar retratos à Menina Soler ao lado do quadro. Ali, está a ver... "

Nazaire estende a mão para a moldura.

"Não toque aí-recomenda. - vou mandar tirar as impressões digitais.

- Talvez o ladrão tivesse luvas... ", sugere a marquesa, que leu muitos romances policiais.

Morati examina os objectos que se encontram perto da moldura.

"O indivíduo teve de subira esta poltrona...

- Isso vê-se -reforça a Sr.a de Villecroze. - Podia ao menos ter limpo os pés! "

Nazaire, adestrado, apressa-se a sacudir o pó da tapeçaria bordada da poltrona.

-Faça favor de deixar isso. Vamos examiná-la igualmente. Mas esse fotógrafo, conhece-o?"

Nazaire diz que não com a cabeça. A Sr.a de Villecroze vem em seu socorro:

"Eu tinha alugado este castelo à Produção das Emissões Vida Sonhada-Vida Dançada.

Sabe, comissário, para aquele famoso casamento que não o era de facto. "

Morati diz que sim. Está ao corrente. A marquesa prossegue:

"A minha casa já não me pertencia. Estávamos literalmente invadidos! Actores, técnicos, jornalistas, fotógrafos, caracterizadores, havia-os por toda a parte! "

Tirando um bloco da algibeira, o comissário esboça um vago plano do compartimento, com cruzes e inscrições no sítio de cada móvel. Abana a cabeça, observa:

"A senhora disse-me que esse quadro não estava no seguro? Isso não é muito prudente! Vale uma fortuna!

- O senhor fala muito bem, comissário! Segurarmo-nos custa já uma fortuna. Os seguradores também são ladrões. Por isso, corri os riscos! ", exclama a marquesa com espírito.

Michel não pode deixar de rir.

Morati, esse, não compreende que se tome um tal roubo tão irreflectidamente. Os ricos são duma inconsequência!

Volta a Nazaire:

"Segundo o senhor, o roubo foi cometido ontem de manhã?

- Forçosamente. Os maquinetas arrumavam as caçarolas... Perdão, os maquinistas arrumavam os projectores. É assim que eles falam, no seu calão de cinema. Faziam um tal vaivém! Quanto aos fotógrafos, metiam o nariz em todos os cantos. O Sr. Michel mandou-me procurar a Menina Soler. Queria levá-la no carro para fugir aos jornalistas. Encontrei-a no salão... mais ou menos onde o senhor está... "

Morati passa dedos perplexos numa ganforina rara e desordenada.

"Ao lado do quadro, então?

-Sim, visto que esse homem os fotografava juntos. "

O comissário anota meticulosamente as palavras de Nazaire. Depois pergunta de novo:

"Assim a Menina Soler ficou só com esse fotógrafo até à sua chegada?

- com efeito", diz Nazaire, um pouco atrapalhado.

A marquesa intervém com violência:

"O senhor não supõe, com certeza, que foi a própria Marie que cortou o Watteau? Ou que ajudou o fotógrafo a roubá-lo, se é ele o culpado?"

Morati responde em tom neutro:

"Por favor, não se enerve! No começo dum inquérito, todas as hipóteses são plausíveis. Nenhuma é de rejeitar. Até a minha cara senhora é suspeita! "

Os dois Villecroze e Nazaire estão estupefactos. A marquesa começa a achar a brincadeira de mau gosto. Estes polícias sentem-se com direito a tudo!

Explorando a sua vantagem, o comissário decreta, imperioso:

"Tenho de interrogar esssa menina. É a testemunha número um do caso. Onde posso encontrá-la?

- No Casino de Cannes -responde Michel. -Está a fazer lá um exame. Eu posso telefonar-lhe, mas deve ser difícil interrompê-la. vou tentar mandá-la prevenir pelo Centro Internacional de Dança... Se desejar, volto a Cannes e vou esperá-la à saída do exame.

-Já vamos ver isso. "

O inspector dirige-se agora à marquesa:

"Naturalmente, a senhora vai apresentar queixa?"

A Sr.a de Villecroze fica espantada:

"Contra quem?

- Contra o ladrão! Contra X, evidentemente!

- Como isso é vago, caro senhor!

- É uma formalidade!

- Ora! Será necessário? Eu tenho confiança! Sabe, os roubos de quadros são muito freqüentes e as restituições também correntes... Um Watteau não pode desaparecer facilmente: é in-ven-dá-vel, porque está catalogado.

- Sim, sim, bem sei.

-Bem vê! O pior seria que a minha encantadora antepassada de vestido azul fosse apodrecer em casa dum rei do petróleo. Parece que isso é muito freqüente. Perfeitamente. Os emires da Arábia não hesitam em sepultar as nossas obras-primas no seu harém. Está a ver, Sr. Comissário, se esssa encantadora senhora, roubada por um pirata, acaba a sua existência contemplativa entre as odaliscas e os eunucos?"

A sua reacção diverte Michel, escandaliza Nazaire e desconcerta Morati:

"A senhora espanta-me -balbucia ele. -E, em certa medida, admiro-a.

- Porquê, meu Deus?

-A senhora tem a coragem de brincar.

- Queria que eu chorasse? As mulheres de lágrima fácil não são o meu gênero. Aliás, este roubo não é a primeira contrariedade da minha vida. "

Morati tem os olhos fixos na moldura vazia. Abana a cabeça:

"Tenho a impressão de que encontraremos o seu ladrão. Não é seguramente esta a sua primeira experiência. "

A marquesa começa a ter esperança:

"Tem indícios?

- Talvez. A maneira -hábil e limpa- como a tela foi cortada lembra-me outro caso.

- Pode saber-se?

- Sim... um Rembrandt!

- Oh, oh!... o meu ladrão é um homem de gosto! "

O humor descuidado da marquesa acaba por derrotar Morati. Um humor que de facto, toca a inconsciência ou a coragem. Porque há muito tempo que, no castelo de Villecroze, as cópias de objectos de arte salvam as aparências. Só alguns vestígios da fortuna de antanho escaparam às necessidades financeiras.

Entre os quais, precisamente, o Watteau do salão azul...

A mãe de Marie e Dominique não tinham visto Michel de Villecroze retomar o seu lugar. O seu banco ficara desocupado durante as provas de dança moderna.

Longe de calcular que ele devia ter saído do Casino devido a um assunto importante, imaginavam-no perorando nos bastidores ou instalado no camarim de Marie.

"Estás a ver?! A tua filha já não te pertence", murmurara Dominique.

E a Sr. a Soler acenara com a cabeça afirmativamente:

"Esta gente de cinema é muito atrevida".

E acrescentara:

"Eu tenho medo de que Marie, desiludida com a nossa conversa de ontem e com os seus maus resultados no exame, precipite os acontecimentos...

- Contanto que não o ponha contra ti! Porque ela vai ter de to apresentar, Catherine.

- Sim! E não podes saber quanto receio essa entrevista. "

Depois realizara-se o exame de jazz, com o mini-acidente do porte em desequilíbrio. É certo que Marie já não estava em causa desta vez, mas como parecia tempestuoso o clima do dia!

A prova de representação atenua a tensão geral. Os nervos dos candidatos distendem-se. Aquilo vai melhor. As notas que ali se obtêm não alterarão o julgamento de conjunto. Mas podem, em rigor, ajudar com meio ponto a salvar um exame, e esse escape é apreciado mesmo pelo extenuado júri.

Marie deu brilhantemente a réplica a Serge, um pouco crispado, numa cena de Jogos de Amor e do Acaso. Ei-la agora sozinha, frente ao público, recitando uma fábula de La Fontaine, A Jovem Viúva. Sabe perfeitamente o texto. A finura, a malícia e o espírito com que o pormenoriza encantam os espectadores.

Fixa o banco vazio de Michel e ataca:

A perda dum esposo não vai sem suspiros,

Faz-se muito barulho, e depois consolamo-nos.

Nas asas do tempo, a tristeza

Voa.

O tempo traz de novo os prazeres.

Nos bastidores, Florentine aprecia: "Confessa: ela é dotada, Marie!" Serge responde, trocista:

"Lá nisso, irá longe! Sem dúvida não a dançar, mas com os homens!" Marie prossegue:

Entre a viúva dum ano

E a viúva dum dia

A diferença é grande: nunca se diria

Que fosse a mesma pessoa...

Na sala, certas mães de alunas viram-se para a Sr.a Soler. com falso fair play, dirigem-lhe sorrisos admirativos.

Escuta-se Marie num silêncio recolhido. Quando a jovem interpreta a personagem do pai da viúva, a sua composição é a duma autêntica actriz.

Ninguém, na sala, suspeita a verdade. Marie evoca simplesmente esse pai que julgava morto e que vive, no entanto, em qualquer sítio do mundo...

"Minha filha - diz-lhe ele-, derramar lágrimas

é exagero. Que necessidade tem o defunto de que vós

afogueis os vossos encantos? Visto que há vivos, não penseis mais nos mortos. "

Sarah, nos bastidores, solta um suspiro de alívio. A sua amiga vence a corrente do azar. Vai impor-se. Serge também é obrigado a reconhecer:

"Ela tem de facto um destes talentos!" Marie descreve agora, radiante, a ressurreição da viúva.

Esperando por outros atavios,

Todo o bando dos amores

Volta ao pombal. Os jogos, os gritos, a dança,

Têm também a sua oportunidade no fim.

Mergulha-se de tarde e de manhã

Na fonte de Jouvence...

De novo se volta para o banco vazio de Michel:

Onde está então o jovem marido Que me prometestes?- diz ela.

Apesar das recomendações de Suzanne Leroy há pouco, o público aplaude demoradamente.

Ao sair do palco, Marie é acolhida por Flo, Sarah, Serge e, sobretudo, Patrícia, que grita com a sua vozinha aguda:

"Foste formidável, Marie! Não procures o Sr. de Villecroze: foi convocado pela polícia e teve de regressar a casa. "

Marie mal ouve. Já não precisa que a tranqüilizem. Sente-se de repente imunizada contra todos os golpes da infelicidade.

Uma suspensão da sessão foi considerada necessária. Os pais de alunos discutem entre si na sala. O exame está a acabar.

"A sua filha recuperou bem, sussurra a Catherine Soler uma mãe insidiosa. Oh! já está uma mulher! Pelo menos, para o teatro, não tem de ter preocupações. "

Catherine recebe aquela flor venenosa conservando o seu sorriso.

O exame terminou. Candidatos e candidatas vão para o Centro Internacional de Dança, onde os resultados serão afixados depois das deliberações do júri.

Escoltados por quase todos os familiares, passeiam pelas ruas cheias de sol.

Catherine, ao volante do seu 2 cv, recolhe a filha nos degraus do Casino. Dominique, instalada atrás, comprime-se para dar lugar a Florentine. Marie senta-se ao lado da mãe. Ninguém se arrisca a qualquer comentário sobre o exame.

"Vamos já direitas ao Centro?", pergunta a Sr." Soler.

Marie, muito calma, responde sem azedume:

"Creio que não vale a pena esperar pelos resultados. Não os teremos antes da noite. E, no que me diz respeito, não tenho qualquer ilusão. Farei melhor para a próxima vez! Já tomei a minha decisão. "

A Sr. a Soler fica aliviada por ver a filha tão razoável. Todavia, diz desastradamente:

"Não te arrelies, vamos! Nunca se sabe...

- Não te dês a todo esse trabalho, mama. Eu estou muito lúcida. "

Catherine atrapalha-se: "Mesmo que não alcances o lugar que esperavas, um exame não é o fim do mundo.

- É o que acabo de te dizer.

- Muito bem. Então vens jantar connosco.

- Não tenho fome.

- De qualquer maneira, vais voltar esta noite para Grimaud comigo. Entretanto, vamos tomar uma bebida a qualquer parte, à beira-mar. Tu precisas de descansar, minha querida. E temos de falar... "

Marie não responde. Já não tem nenhuma vontade de ouvir confidências. O pai está vivo. Que lho deixem imaginar a seu modo. O resto pouco importa. E além disso há Michel. Pelo menos, com ele pode fugir ao seu universo familiar - a família e a dança-, que lhe parece hoje um tanto ou quanto sufocante.

O silêncio de Marie oprime os outros. A mãe censura a si mesma a sua falta de habilidade.

Dominique tem vontade de desenferrujar as pernas e de dar uma volta pela Croisette. Florentine sente que qualquer coisa não carbura bem entre a mãe e a filha.

"bom! Eu vou deixar-vos. Amanhã parto para férias com toda a família. Vamos para a Bretanha. O oceano, para variar do mar; não é muito original, hem? Mas é só por quinze dias. Depois voltarei para as representações de Avinhão. "

Dominique está encantada por Flo ter desviado a conversa:

"Você tem muitas festas, este Verão?

- Um pouco, por aqui e por acolá. O que me faz saudades é a América. Ah! É verdade, Marie! Não contaste à tua mãe?"

com efeito, a Sr. a Soler vira-se para Marie, espantada. Mas é Florentine que explica:

"Serge foi convidado para um concurso internacional em Nova Iorque com o seu ballet. Eu gostava tanto de os acompanhar! O papá não deu ouvidos a quem quer que fosse. Pretende que eu sou muito nova para ir para tão longe. Assim, estou condenada à Bretanha e à pesca aos camarões... "

O 2cv torna a arrancar aos soluços. Catherine interroga a filha:

"Tu, Marie, vais dançar no ballet de Serge?" Marie não tem tempo de responder. Florentine inclinou-se para a condutora e perguntou-lhe:

"Pode deixar-me aqui, Sr.a Soler? Sim, mesmo em frente do cinema. vou fazer umas compras antes de voltar ao Centro. "

O carro pára junto ao passeio. Florentine salta para o macadame.

E, batendo a porta, explica:

"Claro que ela dança no ballet de Serge. Ou, antes: dançava. E um belo papel, até!... Somente, o seu mais belo papel é Michel, agora... Adeus e obrigada! "

Florentine, ligeira, esvoaça já entre os transeuntes. Marie esboça um gesto para abrir a porta; sente uma vontade irresistível de seguir a sua camarada. A Sr.a Soler retém a filha, arranca:

"Não tens vontade de ficar comigo? Dir-se-ia, na verdade, que me queres mal.

- Tu não podes compreender, mama." Dominique crê útil intervir:

"A tua mãe compreende perfeitamente. É a tua atitude que a desgosta.

- Tu vais consolá-la, Dominique! "

Marie arrepende-se de ter respondido tão brutalmente. Agora, que começam outra vez com os mal-entendidos, mais vale explicarem-se:

"Escuta, mama! Eu não te quero mal. Mas, se falhei no meu exame, foi em parte por culpa tua. Tudo o que me disseste transtornou-me. Porque mo disseste depois de mo teres escondido durante tanto tempo? Eu era tão feliz...

- Mas, filhinha, não há nenhuma razão para que o não sejas. Se esse rapaz gosta de ti, que lhe importará o passado?

-Não foi o que me deixaste compreender, ontem. "

O carro avança para a saída da Bocca. Marie pede de repente a Catherine:

"Leva-me outra vez ao Centro. Encontrar-nos-emos um pouco mais tarde. vou tentar apanhar Michel. Talvez que ele ande à minha procura. Queria dar-lhe uma telefonadela. "

Ao fazer meia volta, a Sr.a Soler murmura:

"Tu és injusta, Marie. Por vezes sacrifiquei-me para que tu pudesses dançar. Acusas-me hoje de ter comprometido o teu exame, simplesmente porque julguei honesto dizer-te a verdade.

- Nem sempre é bela, a verdade.

- Tu não és responsável por isso. É a vida.

- Ela tem as costas largas, a vida! ", exclama Marie com cólera.

Dominique zanga-se:

"Calem-se! Deviam ter vergonha de discutirem assim. E tu, Marie, tens razão, vai para o Centro! Voltaremos a buscar-te daqui a pouco. "

Marie, apesar de tudo, beijou a mãe antes de sair do carro.

E, como Florentine um pouco antes, num abrir e fechar de olhos, desapareceu na multidão.

À porta do Centro, Suzanne Leroy espera pela jovem. "Estás com sorte! Tenho Michel de Villecroze na linha. Estive quase a desligar, não te encontravam em parte nenhuma... "

Radiante, liberta, Marie corre para o posto da recepção:

"Espera dois segundos", grita Suzanne. "Passo-te a comunicação para a cabina. "

Marie fecha-se num universo de luz e de doçura que lhe escorre do coração.

"Alô, Michel! Sou eu!

- Até que enfim, Marie! Onde estavas?

- Dei uma volta de carro com a minha mãe.

- Explicaram-te porque é que eu tinha saído do Casino?

- Vagamente. Uma convocatória da polícia, em tua casa, no castelo. Nada de maçador, espero?

- Não, nada de grave. Um roubo no castelo... Então, correu bem o exame?

- Oh! bem sabes, o exame...

- Estavas encantadora.

- Mas um pouco fora do ritmo.

- Não é grave.

- Sim, para mim, é. Enfim, recuperei nojazz e na representação.

- De qualquer maneira, tens agora muito mais coisas a fazer do que passar nos exames. Falaste à tua mãe?"

Marie hesita durante um breve lapso de tempo, antes de responder em voz mais baixa: "Falei.

- Ouço-te muito mal agora. Espero que isso não te tenha ocasionado muitos problemas. A tua idade? A tua dança, talvez? Hás-de me contar tudo isso. Tenho pressa de conhecer a tua mãe.

- Tenho a certeza de que lhe vais agradar." Depois dum curto silêncio, Michel replica: "Já me esquecia, eles precisam do teu testemunho.

-Do meu testemunho? Porquê?

- Por causa da história do roubo.

- Que é que roubaram então?

- O Watteau. Tu sabes, aquele retrato de antepassada com vestido azul Trianon... Aquele diante do qual tu pousaste ontem. "

Marie revê o estranho repórter que se gabava de conhecer a sua família, os Giraud d'Elbeuf... "Soler? É o seu nome? O mundo é pequeno! Fale de Julien à sua mãe... O gênero da sua mãe é antes..." E com um sorriso de ressentimento um tanto maldoso: "Era afinal o seu pai... "

"Alô, Marie? Estás aí?", pergunta Michel, espantado daquele silêncio prolongado.

Interpretando-o mal, acrescenta logo:

"Ninguém te acusa, quero tranquilizar-te imediatamente! As suspeitas recaem sobre o fotógrafo. Talvez que até nós, a minha mãe e eu, fôssemos suspeitos, se tivéssemos o Watteau no seguro. Somente, segurar um quadro daquele valor custa uma fortuna!

- Que é que eu tenho a ver com essa história? - preocupa-se Marie.

-Suponho que podes ajudar o comissário descrevendo-lhe o fotógrafo. Fornecer-lhe um indício, talvez. Espera sem dúvida identificá-lo graças a ti.

- Eu preferia estar contigo, Michel! É assim de tanta pressa, esse encontro com a polícia?

- O comissário queria interrogar-te esta tarde ainda...

- Esta tarde? A minha mãe vem buscar-me aqui. E eu pensava que tu também virias ter comigo.

- Mas com certeza! Já arranjei tudo. Disse ao comissário que tinhas feito um exame, que estavas estafada. Ele espera-te amanhã no seu gabinete.

Aquele adiamento alivia Marie. Ela decidiu viver intensamente o presente. Insiste: "Então, vens buscar-me ao Centro?

- vou já! ", exclama Michel desligando.

De novo Marie sente as pernas lassas. Suzanne Leroy passa-lhe um braço familiarmente em volta dos ombros. O sussurro dos pais de alunos, que se comprimem já diante dos quadros de afixação, amplifica-se progressivamente.

"Isto parece que não vai lá muito bem, Marie..." -preocupa-se Suzanne.

- Oh, sim... como a vida é complicada! vou ter de testemunhar à polícia por uma história de roubo dum quadro em casa dos Villecroze. "

Suzanne encolhe os ombros: "Simples formalidade!

- Talvez-replica Marie. -De momento tenho outra coisa na idéia! "

com um movimento do queixo indica os painéis de afixação, diante dos quais, agora, alguns alunos se misturam com os pais, impacientes.

De repente, Marjorie Brooks, a directora, sai do seu gabinete. É assaltada por rapazes e raparigas que a enchem de perguntas:

"A que horas temos os resultados?", pergunta Patrícia, sempre muito excitada.

Madame esboça um gesto evasivo, sem responder.

Uma outra raparíguinha diz em tom choramingas:

"Espero que seja antes de amanhã. Estou estafada! Queria dormir!

-Eu também, vê lá -responde-lhe Madame.

- É desumana esta espera", declara um bailarino em fato de treino.

E Patrícia conclui:

"Sim, mas enquanto há vida há esperança! "

A porta do grande estúdio abre-se por um instante, deixando filtrar uma baforada de música moderna. Madame escuta-a e designa a sala com a mão:

"Vocês deviam fazer como Serge! ", aconselha. "Ele está a trabalhar. Nada como a fadiga para combater a fadiga. "

Patrícia volta à carga:

"Madame, seja simpática, quando é que se saberá qualquer coisa?"

Madame tem um ar de aborrecimento.

"À noite. Entre as vinte e uma e as vinte e duas horas, talvez mais tarde. Eu não posso sobrepor-me ao júri. Os seus membros trabalham para vocês. Deixei-os no gabinete da direcção do Casino, em plena deliberação. É um trabalho muito delicado. Um motociclista há-de trazer-me directamente os resultados. Ignoro em absoluto tudo a respeito da classificação; isso garante-vos a objectividade do seu veredicto.

"Já cá estás, Marie?"

Madame acaba de ver a jovem ao lado de Suzanne Leroy. Olham-se em silêncio. Marie sacode a cabeça para exprimir a sua inquietação. A directora, ao mesmo tempo severa e indulgente, murmura:

"Eu tinha-te prevenido.

- vou seguramente ficar mal classificada.

- Oh! não serás a primeira. Terias muito bem podido sê-lo, se tivesses querido. Mas não serás a última. "

Marie suspira, oprimida:

"Estou fatigada. Tive como que um momento de vazio.

- Evidentemente, fazes coisas a mais! Cinema, televisão. Fala-se demasiado de ti! Muito em excesso. A dança é uma ascese. Pensa em Sarah, que podia levar a vida duma milionária e que se encerra aqui na disciplina, que se restringe a um regime draconiano. Pensa em Serge, que foi lavar louça num hotel para ajudar os pais a pagarem-lhe as lições... "

Marie baixa a cabeça, envergonhada. Madame prossegue:

"Se assim continuares, vais fazer uma carreira de figura secundária em vez duma carreira de estrela. A dança não admite partilhas. Eu repito-vos isso bastante. Tu tinhas... tens ainda... o estofo duma bailarina. Mas é preciso pensar só nisso. É pena comprometeres tudo dispersando-te.

- Está zangada?

- Não, estou desiludida. Tu podes fazer melhor. Muito melhor! Mas devo confessar-to: observo-te há algum tempo e tenho de admitir que já não te concentras. "

Marie põe-se a chorar. Não tenta conter-se. Silenciosamente, as lágrimas rolam-lhe ao longo das faces. Está imóvel, gelada. A directora modera-se:

"Não é trágico. Pode levar-se uma bela existência fora da dança. Continuarás a fazer cinema... Vais casar-te... "

Os soluços de Marie redobram.

"Tanto pior para a dança! ", conclui Madame. "Michel consolar-te-á. "

Através das lágrimas, Marie confessa, lastimosa:

"Michel, eis um assunto que não está ainda completamente assegurado! Ontem fui a casa da mama. Se soubesse o que ela me disse... Há pouco, quando dançava, a presença de Michel perturbou-me, em vez de me ajudar. E depois, de repente, ele saiu da sala... Quanto à minha mãe, tornou-se fria, distante. Como se já não gostasse de mim... "

Volúvel, veemente, Marie gesticula. Os seus nervos dão de si.

Suzanne Leroy apareceu à entrada do escritório. Faz sinal a Madame de que a chamam. Esta afaga as faces de Marie, todas envernizadas de lágrimas.

"Não quero ouvir nada. Tu deves ter coragem para resolver os teus problemas- sozinha. Ninguém pode fazê-lo por ti. Porque não vais ter com Serge ao estúdio? Ele está a trabalhar no seu balet. Não sei que disposições tomou a teu respeito; quero deixá-lo totalmente livre. Vai então assistir ao ensaio, isso acalmar-te-á. "

Marie limpa as lágrimas com a mão. Sente mais vontade de se ir estender na cama. De repente, através duma espécie de bruma, vê Michel a entrar no vestíbulo do Centro. Vem acompanhado por um homem e parece pouco à vontade.

"Marie! Estás a ver, vim o mais depressa possível. Mas não pude dissuadir o comissário Morati de me acompanhar: ele prometeu ser muito breve. Não é verdade, Sr. Comissário?... "

Marie enfrenta os dois recém-vindos. Michel repara nos seus olhos vermelhos, nas lágrimas mal limpas:

"Que é que tens, minha querida? Oh! estou desolado! Está a ver, Sr. Comissário? Só devia interrogar a Menina Soler amanhã, como estava combinado. "

Marie dominou-se. com lassidão, diz ao polícia:

"Mais vale acabar já! "

Depois, num tom de censura, diz a Michel: "Eu tinha muita necessidade de estar contigo a sós. Julgava que tinhas compreendido. "

Morati parece estar numa posição incômoda. É pelo menos a atitude que ele adopta, talvez hipocritamente:

"Eu tenho uma profissão terrível, Menina Soler. Se dependesse só de mim, creia que me dispensaria de a importunar... Prometo-lhe entregá-la muito depressa ao Sr. de Villecroze. Só uma ou duas perguntas a fazer-lhe. "

Michel, Morati e Marie instalaram-se num canto da cantina do Centro, totalmente deserta àquela hora, enquanto visitantes e alunos continuam a comprimir-se diante dos quadros de afixação.

O comissário colocou à sua frente o seu inevitável bloco e a sua caneta, cuja ponta está roída como uma beata de charuto.

Interroga com palavras premeditadas: "Esse homem... esse fotógrafo... ficou muito tempo a sós com ele?

-Não sei -murmura Marie. -Quero dizer: cinco minutos, dez, um quarto de hora?"

Marie faz um gesto evasivo: "Uns minutos, talvez. E depois Nazaire chegou para me levar junto de Michel... "

Morati interrompe-a:

"Sim, sim, eu sei tudo isso. "

O tempo de consultar as suas notas e pergunta:

"Esse indivíduo... espantou-se de o encontrar sozinho nesse compartimento?

- Hum... sim. Ou, antes, não. Havia tanta gente no castelo!

-Como era ele? Novo, velho?

- Deve ter interrogado Nazaire a esse respeito, não?"

O comissário empertiga-se.

"Entendamo-nos bem. Eu faço abstracção das informações que obtive. Já tenho uma idéia sobre a da identidade do ladrão. São portanto as suas impressões pessoais que lhe peço... Esse homem era novo ou velho?

- Não sei! Pouco mais ou menos da sua idade, Sr. Comissário.

- Digamos: uns cinqüenta? -Talvez.

-E poderia reconhecê-lo?"

Decididamente, Marie não se sente cooperante. Encolhe os ombros:

"Reconhecê-lo?... Isso depende... Na verdade, não o vi bem. Era ele que olhava para mim, para me fotografar.

-Sim, por certo. Se nenhum pormenor do seu rosto ou do seu vestuário a impressionou particularmente, talvez se lembre das palavras que trocaram... "

O rosto de Marie toma uma expressão súbita de receio e de embaraço. Revelar as alusões daquele "Julien" à sua família, a seu pai, nem pensar. Sobretudo na presença de Michel.

Terá muito tempo para isso, quando tiver sabido mais coisas da Sr. a Soler. Aliás, porque é que aquele homem havia de ser o ladrão do Watteau? E em que é que esse facto teria qualquer incidência sobre o passado de seu pai? Ela balbucia:

"Ele disse-me... hum... falámos de fotografia, de dança... de emissões televisivas. Nada de muito preciso... "

Morati não parece nada convencido. Dobra o bloco, mete-o na algibeira com a caneta e levanta-se:

"Bem. Retomaremos mais tarde a conversa. Conto muito com a sua ajuda, Menina Soler. Poderá apresentar-se amanhã no comissariado?

- Eu acompanho-a lá", intervém Michel, com pressa de acabar com aquele interrogatório.

No momento em que Morati vai a sair da cantina, volta-se para Marie:

"Agradeço-lhe a sua atenção, Menina Soler. Perdoe-me o tê-la importunado. Espero poder apresentar-lhe amanhã algumas fotografias de suspeitos. Nunca se sabe: talvez que reconheça nelas o nosso amador de arte. Eu não tenho elementos suficientes, no estado actual do inquérito, para mandar fazer um retrato robot. Ignoro mesmo para que jornal trabalhava esse indivíduo. Ele disse-lhe?"

Marie faz um sinal negativo com a cabeça.

Morati prossegue (e Michel acha que ele está a exagerar).

"Se essa fotografia que ele lhe tirou fosse publicada na imprensa, seria muito simples. "

Partiu. Ufa!... Michel pega na mão de Marie: enfim, sós!

Não. Morati volta. Foi uma falsa saída. Marie afasta-se de Michel. Este fecha os punhos, exasperado.

O comissário recomeça, em tom melífluo:

"Desculpe-me Menina Soler. Já me esquecia: se precisarmos de si, onde poderemos encontrá-la? Aqui, no Centro de Dança?

- Nós estamos em férias, agora -responde Marie.

- Está certo. Então, em casa dos seus pais, sem dúvida?

- Para já, sim. Dou-lhe amanhã a direcção de minha mãe.

- Tenho sempre o recurso de telefonar para o castelo, para casa da Sr. a de Villecroze.

-Mas eu não vivo lá -replica Marie -Nós ainda não estamos casados.

- É verdade! Onde eu tenho a cabeça!... Mais uma vez as minhas desculpas, Menina Soler. Até amanhã. "

Michel faz um gesto expeditivo que significa: "Até que enfim!" Enlaça Marie, depois, tomando o rosto da jovem entre as mãos, aproxima os lábios dos dela. Marie fecha os olhos. A boca treme-lhe ligeiramente. Balbucia:

"Michel, suplico-te, não me beijes aqui... No Centro, eu trabalho... leva-me. Leva-me depressa... "

Enquanto eles se afastam, os ecos duma música ritmada sobrepõem-se ao sussurro do vestíbulo. O ensaio d'As Grades, o ballet de Serge, atinge o auge no grande estúdio.

Demoradamente, beijaram-se. Marie abandona-se de olhos fechados, a sua respiração mistura-se com a de Michel. Geme. Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos:

"Porque é que me repeliste, no Centro?

- Tu compreendes -murmura ela contra os lábios de Michel - não queria que nos vissem. Não gosto das alusões e da ironia dos outros. Incomodam-me.

- Tenho a impressão de que queres muito à tua escola de dança", diz ele. "Renunciavas a ela facilmente para viveres comigo?"

Ela afasta-se um pouco dele e olha-o, admirada:

"Não sei se renunciaria, Michel.

- Eu não exijo nada de ti. A vida encarrega-se de pôr em ordem os nossos desejos e as necessidades quotidianas. É uma escolha que pouco a pouco se faz por si. Muitas vezes sem nós sabermos.

- Então, não seríamos livres, Michel? Escolher é ser livre, não? Eu abafaria, creio, se não pudesse decidir da orientação da minha vida. "

Michel ri, trocista:

"Perfeito! Desprezas as paixões repentinas e o amor cego! És uma mulher que raciocina e o teu espírito metódico fustiga a paixão. "

Ela ri por sua vez e lança-se-lhe nos braços, naquele espaço minúsculo ainda mais reduzido pelo volante contra o painel de instrumentos.

De novo o tempo suspendeu o seu vôo... Mais tarde, muito mais tarde, decidem-se por fim a ir tomar uma bebida às Ombrelles, destino do passeio.

As pedras de gelo tilintam na limonada, à qual Michel mandou acrescentar umas gotas de gim.

"Tu sabes -confessa Marie -, quanto ao meu exame... Tê-lo-ia talvez feito melhor se não te tivesse visto na sala.

- Muito obrigado! E eu que pensava servir-te de doping!

- Tu não compreendes? É o que Morgan, um escritor inglês, chama "a unidade do espírito!" De certa forma, desconcentraste-me. Substituía o meu amor pela dança pelo nosso amor... Mas não faz mal: vou habituar-me. É uma questão de rodagem, de adaptação. Foi tudo tão brusco, tão novo. "

Michel reflecte. Tenta ver claro.

"No carro, enquanto marchávamos, deste-me no entanto outra razão completamente diferente. Disseste-me que uma discussão com a tua mãe te tinha perturbado. "

Marie pensa por um segundo.

"É verdade. Mas tudo se conjuga. Tudo se acumulou. Aliás, não serve de nada tornar a falar disso agora...

- Sim - replica Michel, com os olhos fixos. -Essa discussão com a tua mãe dizia-me respeito, não?

- A mama não te conhece. Não ficou muito entusiasmada e fez, por princípio, apenas por princípio, algumas objecções.

- A tua idade? A tua arte com um grande A? Oh! estas pessoas para quem a carreira é tudo! "

A jovem desata a rir. Depois passa-lhe de novo uma sombra no olhar. Torna a pensar nas revelações ouvidas sobre o seu pai.

"Talvez - acaba ela por confessar - que a minha mãe não ache que as nossas famílias liguem muito bem.

- Ela não me julga digno de ti?

- Não digas asneiras! -exclama Marie, sorrindo.

- Ou é a minha que a impressiona? É comigo que tu casas, não com a minha família.

- Tens razão - reconhece Marie. -Mas não podes compreender. A minha mãe foi por vezes muito infeliz. E não quer que eu também me arrisque a sê-lo...

- Mais uma razão para que eu a conheça.

- Um pouco de paciência, vê-la-ás em breve" responde Marie evasivamente.

Lança uma olhadela ao relógio. "Pronto! Tenho de regressar, agora. Os resultados devem estar afixados.

- Não ficamos ainda um pouco? É na verdade tão importante, esse exame?

- Para mim, é.

- Não impedirá a Terra de girar...

- Por favor, Michel!

O jovem hesita um segundo, depois, levantando-se, conduz Marie até ao carro.

Marie correu até ao vestíbulo do Centro Internacional, onde a multidão está agora aglutinada sob os painéis de afíxação. A noite caiu. Parece que não se saberá nada antes das onze horas.

Marie não tem vontade de se misturar com aqueles imbecis suados que se insultam, fumam, tossem e dizem piadas já gastas sobre a indecisão do júri.

Dá uma olhadela pela pequena nota que Suzanne Leroy lhe estende: "A sua mãe espera-a a partir das 21. 30 no pub do Palácio do Festival." Depois trepa quatro a quatro as escadas que levam ao quarto que partilha com Sarah e Florentine.

A desordem que reina em cima das camas, das cadeiras e na casa de banho testemunha ainda a febre do exame. Os trajes habituais das companheiras de Marie -jeans, camisolas socos de praia- misturam-se com os maillots de dança, com as meias e as sapatilhas. Não vendo os seus collants cor de carne, Marie deduz que as colegas os enfiaram para o ensaio d'As Grades.

Presta atenção aos ritmos sincopados que sobem do grande estúdio, reconhece o acompanhamento em play-back do ballet.

Ao ouvir aquela música, é tomada, sem querer, duma excitação que não procura nem analisar, nem conter. Marie despe-se à pressa, revolve o seu armário, ela, que tão ordenada é habitualmente, até encontrar o maillot e o collant cor de carne. Enquanto se veste, segue instintivamente os ecos do ensaio. Depois, de pés descalços, desce a escada até ao estúdio.

O pequeno grupo de Serge trabalha ali com fervor. A ponto de perguntar a si mesma se a terão visto entrar. Silenciosa, vai sentar-se em cima da barra cheia de roupões e fitas para a cabeça.

Serge no seu papel de coreógrafo, aplica-se sem desfalecimento. Corrige o mínimo gesto, marca o compasso, dita as atitudes.

Este ballet é obra sua, o primeiro que escreveu, criou, dirigiu. Já há alguns meses que o apresentou num concurso de jovens companhias, no palco da Ópera de Monte Carlo. Ganhou o prêmio, alcançou um verdadeiro êxito. Um êxito que lhe permitia todas as esperanças...

Porque Serge não se limitará a ser um simples bailarino: quer ser coreógrafo, e entre os maiores. Para satisfazer as suas ambições, para atingir os mais altos cumes da dança, está pronto a todos os sacrifícios.

O seu balet esbarras nos antípodas das regras acadêmicas. Serge trata nele, sob a forma de sátira, os temas essenciais da existência. A caricatura revela assim a gravidade das suas preocupações. Enquanto recitantes declamam o texto com uma ênfase irônica, os bailarinos passam dum personagem a outro, encarnando os heróis estereotipados do coreógrafo.

As Grades contam uma vida, a dum ser humano que vai crescer numa sociedade absurda: a primeira bofetada que recebe o bebê -interpretado por Lynn, que serve assim a criação do seu aluno - a escola, os deveres e os castigos; depois o amor e a guerra. A morte, finalmente.

Marie, neste balet, encarnava a mulher sobre diversos aspectos. Mostrava as múltiplas facetas da vida, desde a primeira convulsão até à imobilidade definitiva. Realizando o seu sonho de sempre, Serge dera à sua amiga de infância, à sua parceira, o principal papel.

Um papel que, hoje, é retomado por Jocelyne.

Serge, agora, ensaia a cena da escola. Véronique e James, os recitantes, conservam-se nas duas extremidades do estúdio, enquanto, no Centro, Lynn está comicamente agachado diante duma mesinha. Em frente dele, Jocelyne, ridicularizada com uns óculos enormes, representa a professora. Os outros bailarinos, que encarnam os colegas do petiz, rodeiam-nos, com o dedo estendido para Lynn.

Serge avança para o grupo:

"Mais severa, a professora! ", diz ele a Jocelyne.

Depois vira-se para Lynn:

"Estás a ver? Quando olhas para mim, o efeito resulta. E vocês, os colegas de escola, riem, fazem troça dele. "

O grupo de bailarinos põe-se a rir, apontando Lynn com um dedo trocista.

"com mais maldade! ", indica Serge. Volta a Jocelyne: "Tu, mais severa, já te disse. "

Jocelyne faz todos os possíveis. Mas não tem, como Marie, o estofo duma autêntica actriz. O seu rosto permanece inexpressivo, os seus gestos fabricados.

"Mas, cos diabos! ", estoura Serge, "dir-se-ia que nunca estiveste na escola! Esqueces o clássico. Não estás a dançar Copélia ou Gisela. És a professora, aprovas, castigas! Não tem nada de difícil! "

Vai parar o gravador, limpa a testa.

"Isso não está bem, Jocelyne. Agora estás a exagerar a mímica. Tenta ser um pouco natural! "

Jocelyne deixa-se cair no chão -esgotada, aborrecida.

"Nunca conseguirei! Não sou dotada para o teatro.

- bom. Respira um pouco... Recomeça. Pensa no que estás a fazer. "

O jovem liga de novo o gravador e, como se não tivesse notado a sua presença, vem sentar-se ao pé de Marie. Jocelyne, pacientemente, trabalha de novo a sua atitude.

Mas o coreógrafo observa-a com menos atenção. Lentamente, com ar desprendido, vira-se para Marie. Toma-a por testemunha: "Estás a ver, Jocelyne não é uma solista. Integra-se num grupo porque é a aluna-tipo. Mas, sozinha, está perdida... Não sabe representar. Vai ser terrível ensiná-la. Não poderias ajudá-la? Dar-lhe umas idéias?

- Não vale a pena -murmura docemente Marie. -Se quiseres, eu parto convosco. "

Serge, esquecendo totalmente Jocelyne, vira-se para Marie. É agora a ela, bem real e viva, que se dirige. E não já à intérprete ideal do seu ballet. Diz com ironia:

"Não acredito! Não me digas! Michel é um tipo às direitas! Um tipo fixe! Quer que continues a dançar? Deu-te licença?"

Ela encolhe os ombros.

"Eu não lhe falei nisso. E, alem disso, sou eu quem decide. "

O jovem olha para ela, intrigado.

"Que é que se passa, afinal?

-Montes de coisas. E o pior: falhei o meu exame.

- Oh! um exame... Sabemos o que podes fazer. Isso não quer dizer nada, um exame! Em todas as carreiras há contratempos.

- É muito grave, Serge... Madame está zangada comigo... Tenho de me reabilitar. "

No outro extremo da sala, no grupo de bailarinos, Florentine e Sarah observam Marie. Embora Serge, agora, já não intervenha, o ensaio prossegue. Lynn saltou de detrás da mesa, revolta-se, faz uma gaifona à professora. Mas a sua liberdade reconquistada dura pouco: a bailarina agarra-o pelo braço, Lynn está de novo prisioneiro. Prisioneiro das regras, prisioneiro para a vida duma sociedade asfixiante.

Antes de responder a Serge, Marie reflectiu, com a cabeça entre as mãos. A nuca inclinada trai o seu desalento. Mesmo Serge parece triste, indeciso. Sem querer, como outrora, sente-se solidário com Marie. Todavia, doravante, o fracasso da sua amiga não lhe diz já respeito. Para afastar essa tristeza importuna, recomeça, com ar desenvolto:

"De qualquer modo, não és obrigada a vir connosco. Se preferes não deixar Michel...

- Michel não tem nada a ver com isso. Esse papel, criaste-o para mim, deste-mo. Quero continuar a ser a tua intérprete! "

Falou em voz baixa, mas com tanta força que Jocelyne, no meio do estúdio, pára. Aliás, cada um dos assistentes -bailarinos ou espectadores ocasionais- tem os olhos fixos em Serge e Marie.

Jocelyne vai ter com eles. Coxeia, está esfalfada. com voz aliviada exclama:

"Tens razão, conserva o teu papel, minha amiga! Não é para mim. Se podes partir, eu estou inteiramente de acordo.

Marie responde:

"Sim, posso partir, acabo de o dizer a Serge. "

Depois acrescenta, receando a decepção da companheira:

"Tens a certeza de não te arrependeres?"

Jocelyne é muito consciente das suas limitações. Honesta e nada rancorosa também. Replica:

"com certeza, fica tranqüila. Teria um trabalho louco para conseguir. E depois, no interesse do ballet... "

Serge intervém:

"Obrigado, Jocelyne. Retoma o teu lugar no grupo. "

Ao misturar-se com os outros, Jocelyne exclama amavelmente:

"Quando eu tiver feito mais um ano de jazz, pensa em mim, Serge! "

Enquanto os bailarinos se dispersam, esperando pelas ordens de Serge, Marie vai ter com Florentine e Sarah. Mas não tem tempo de lhes dirigir uma palavra. Serge, que fez voltar a fita do gravador ao ponto de partida, diz ao pequeno grupo:

"Vamos começar do princípio. Véronique e James, é a vossa vez!"

Os dois recitantes pegam nas molduras, que devem conservar à volta dos rostos e que tinham colocado no chão. Começam:

"Eis o papá,

Eis a mama,

Eis os amantes.

Eis as pessoas de coragem

Que fazem as crianças. "

Marie e Stanislas, que interpretam os pais, executam um pás de deux.

Marie já não sente qualquer fadiga. com ligeireza, dança ao lado do seu parceiro. Os seus gestos são alegres, maliciosos, um pouco excessivos, como o exige o espírito do ballet. Mas o seu rosto permanece grave. Contra sua vontade, a imagem de Michel acaba de lhe vir à lembrança.

Em vez de expulsar essa visão, agarra-se a ela. As palavras que trocaram, há pouco, nas Ombrelles, obcecam-na. Porque é que Michel não a compreende? Porque é que aquele exame falhado conta tão pouco para ele? Se a ama, deve partilhar tudo com ela. Êxitos e fracassos, sonhos e ambições...

Talvez que não tivesse tido tempo de se adaptar. Uma bailarina não é uma mulher como as outras. Tem obrigações, uma vida austera, dominada pela disciplina e pelo esforço. Começar uma carreira de bailarina é entrar num convento... Claro que Michel está ciumento da dança, quer Marie só para ele. O seu amor é tão recente!

Mais tarde, quando ela lhe tiver explicado, ele mostrar-se-á menos exclusivo, poderá ajudá-la...

"Marie! Não estás aqui! ", grita-lhe Serge através duma espécie de nevoeiro.

Ela sobressalta-se, domina-se. Desta vez, não falhará. Dê por onde der, é preciso que recupere. E nada, nem mesmo a imagem de Michel, a perturbará mais.

Na Croisette, Catherine e Dominique passeiam. Depois, demoram-se em todas as pequenas ruas adjacentes, entre os numerosos turistas que se colam às montras: joalharias, lojas de couros, boutiques de luxo. Dispõem ainda de tempo antes que Marie vá ter com elas ao pub.

"Tenho fome, agora -diz Dominique. -Achas que devemos esperar pela tua filha para jantar?

- Oh, não!... Começaremos sem ela. Mas podíamos talvez tomar qualquer coisa já, no terraço do Rio.

-De acordo! Olha para todas estas fotografias de Marie no vestíbulo do jornal Riviera: decididamente, é a vedeta!

-Vedeta, assim, não o desejava - suspira Catherine. -Contanto que isso não lhe dê volta à cabeça!

- Não te preocupes. Marie é uma rapariga razoável. Aliás, se ela ama na verdade esse Michel, conservará ainda melhor o equilíbrio.

- E a dança?

- Isso, minha cara, já não é da tua competência. Ela lá se arranjará com Michel... " Subitamente, Catherine assopra à amiga: "Quando se fala no mau...

- Achas que é ele?

-Claro!... "

As duas mulheres, sem quererem, encaram com aquele transeunte de camisola azul-celeste, com a tez queimada, o porte um tanto romântico.

Nada como o olhar convergente de duas mulheres para surpreender um homem em pleno sonho.

Michel, que atravessava a Rue Grimaldi, onde está aparcado o seu carro, vira-se. Um secreto instinto adverte-o: reconhece a mãe de Marie.

Por um instante esteve quase a sustentar aqueles olhares, a ir ao encontro da Sr. a Soler. Preparou à pressa um pequeno discurso:

"Minha senhora, sei que espera a minha visita. Sem aquele maldito exame, já o teria feito. Posso finalmente dizer-lhe, amo Marie muito profundamente. Quero fazê-la feliz... Que importam as minhas origens ou a minha profissão! A única coisa que conta é que nos amamos..." Talvez não seja preciso dizer a Marie que nos encontrámos por acaso... Ela poderia pensar nalgum complot. Aliás...

Aliás, Catherine e Dominique, com o coração a bater, instalam-se como que a custo, no terraço coberto do Rio. Um pouco desiludido, Michel, depois de ter hesitado em segui-las, mudou de idéias. E sentou-se, melancólico, ao volante do seu carro. Sem bem saber porquê, parece-lhe que acaba de perder qualquer coisa.

Qualquer coisa, contudo, muito mais importante do que um exame.

O exame!... O exame, desta vez, aí está! Vão afixar os resultados.

Ouviram-se de muito longe os ruídos fatídicos do BMW do estafeta que fazia a ligação entre o Casino, onde o júri deliberava, e aquela espécie de colmeia barulhenta que é o vestíbulo cheio, sobreaquecido, electrizado.

Como o mar Vermelho diante de Moisés, a multidão dos bailarinos - alguns tornaram a vestir pijamas e trajes de noite-, dos pais, dos amigos, afasta-se respeitosamente diante do motociclista, espantado da sua importância.

A porta do gabinete da direcção abre-se, Suzanne Leroy agarra no grande sobrescrito e torna a fechar a porta, saudada com "oh! oh!" desiludidos. A Sr.a Directora -noblesse oblige deve ser a primeira a tomar conhecimento do veredicto. O motociclista aliviado do seu tesouro, tem dificuldade de atingir a escada do Centro de Dança.

Agora reina o silêncio. Uma calma completa, semelhante àquela que antecede tempestade, nascer do Sol ou tremor de terra.

Ouve-se distintamente a música do grande estúdio, onde o grupo de Serge, imperturbável, continua o seu ensaio: naquela, hora grave, aquilo é quase uma provocação.

Então Patrícia, cheia de iniciativas, abre caminho, acotovelando as pessoas ofuscadas, até à porta da sala. Abre-a com energia e, sem se embaraçar, põe-se a gritar:

"Pronto! Mexam-se! Vão afixar os resultados. "

A música pára, os bailarinos precipitam-se para o vestíbulo.

Só Marie fica imóvel, não ousando seguir os camaradas até ao quadro de afixação.

Uma mão pegou na sua: Serge vem tirá-la da sua letargia. Assim, não estava só.

"Mesmo contrariada", murmura-lhe ele, "é preciso que venhas. "

Ela tem vontade de deixar pender a cabeça contra o ombro do rapaz. Mas que iria ele pensar ainda? Nesse segundo, é prova de coragem endurecer-se e, apertando com muita força os dedos do amigo, murmurar:

"Vá, vamos lá! "

Que confusão! Marie e Serge passam através duma cortina de abraços, de congratulações, de soluços e de risos que saem de toda a parte. Nunca em nenhum campo de batalha lágrimas e louros se misturaram tanto.

Certos sorrisos vencedores parecem mais indecentes, do que as crises de nervos ou as caretas de despeito. Várias mães de bailarinas empertigam-se como se tivessem dado à luz Terpsfcore. Outras mostram-se alegres, transformando um insucesso em triunfo. Outras, finalmente, invocam a injustiça da sociedade, a ingratidão dum júri corrompido.

Para muitos, a classificação estava "feita anteriormente". Que vergonha! Para alguns, nada estava terminado: ia saber-se com quem se lidava, e falar-se-ia nisso nas cúpulas! Para outros -pouco numerosos - o mérito e o talento colhiam finalmente os seus frutos.

Marie, empurrada por Serge, encontra-se frente a frente com as grandes folhas brancas onde a dactilógrafa fixou irrevogavelmente a sua sorte. Primeiro, só vê sinais baralhados. Uma espécie de indiferença, que, por momentos, dá lugar a um sentimento de invulnerabilidade, que a espanta até a ela própria. Ter dançado para Serge, exactamente antes daqueles resultados, parece, tê-la imunizado contra a catástrofe. Sarah encontra-se mesmo a seu lado, encantada: está em segundo lugar! Florentine em quarto!

Marie procura-se no fim da lista. Continua a não se ver. A sua resignação transforma-se em desafio.

A voz de Sarah entra-lhe no ouvido:

"Então, Marie: não te viste? Não é Austerlitz, mas também não é Waterloo! "

Marie enerva-se. Continua a não ver nada. O indicador de Sarah aponta no papel fatídico:

"Quinta! És a quinta!

- Como dizes, não é Austerlitz!

- Não te rales: nada tem de terrível! Sofrerás golpes mais duros do que este na vida. Não é, Serge?"

Serge, que é o primeiro da sua classe, não se alegra. Retoma a mão de Marie, seguido de perto por Sarah, e tenta fazê-la sair da multidão vociferante.

"Isto não significa nada -diz o rapaz. -Devias estar fora da classificação.

- Ele tem razão -reforça Sarah. -Tu és a melhor, habitualmente. Tens imensas coisas a teu favor. "

Sonhadora, a jovem não responde. Acaba por dizer baixinho, com amargura: "Talvez de mais...

- Que é que te acontece?-espanta-se a jovem americana, enquanto Serge se vê rodeado por um grupo de alunos alegres. -Não te reconheço, Marie. Já não és tu.

- Tens razão, Sarah. Eu própria não me reconheço", diz Marie em tom cansado.

Sarah procura mudar de assunto:

"A tua mãe deixou a Suzanne um aviso para

te encontrares com ela.

-Sim, eu sei, obrigada. vou correr a

anunciar-lhe o meu "triunfo'! "

Apesar da estação estival, o pub está ainda meio vazio. Embora Catherine e Dominique tenham atingido a idade em que se tem cuidado com a linha, elas saboreiam -uma vez não são vezes- uma maravilhosa caldeirada. Os bocados de lagosta e as lascas de tamboril estão mergulhados, sob o pão frito dourado, numa espécie de creme que cheira a alho e a açafrão.

Dominique enche a Catherine um copázio de Plan-de-la-tour.

"Felizmente que comemos antes da tua filha", diz ela, com olhar malicioso. "A nossa gulodice afligi-la-ia. "

Catherine não responde. Pensa naquele Michel com quem se cruzaram há pouco. Um estranho sentimento a obceca: aquele rapaz pareceu-lhe mais delicado, menos real, do que nas fotografias da imprensa. Dava uma impressão de melancolia.

Acaba por dizer à amiga:

"Este Michel de Villecroze... liga bem com Marie. No fundo, conhecem-se há muito tempo. Entrevistas, emissões televisivas, recepções, etc. Mesmo que isto nos pareça um pouco... precipitado. Que pensas?

- Que te estás a habituar a essa idéia de casamento. Marie é tão nova, todavia...

- com a idade dela, eu já estava casada. Mas é assim que se vive! Nada se pode contra isso, Dominique!

- Não foi o que fizeste de melhor. Queremos sempre viver cedo de mais. "

Catherine não gosta nada que a amiga critique a sua própria experiência. Pesca na caldeirada um mexilhão carnudo e prossegue, pensativa:

"Marie reagiu muito mal quando lhe falei do pai. Quer-me mal por isso. De repente passa a tratar-me como inimiga. É horrível!

- Não estejas com complexos! As crianças têm sempre qualquer coisa a censurar aos pais. É culpa tua se ela te põe bruscamente perante uma situação imprevista? Vamos, não é assim tão complicado! Ela está enamorada, quer casar o mais depressa possível com esse rapaz. É normal que a previnas! "

Catherine abana a cabeça e afasta o prato. O criado começa a desembaraçar a mesa do escalfador onde acabava de apurar um pouco de caldo de peixe.

"Já lhe encomendamos o resto", diz Dominique. "Estamos à espera duma pessoa que ainda não jantou. "

Catherine faz o inventário daquilo a que, escrupulosamente, chama "as suas culpas" para com a filha.

"Eu devia ter esperado que o exame acabasse para lhe falar: perturbei-a. Talvez tenha apresentado as coisas muito mal. "

Dominique encolhe os ombros e afirma: "Marie, tenho a certeza, agora já venceu o choque. É aliás natural, visto que só pensa nesse rapaz. Confesso que ele me causa boa impressão.

Ela podia ter escolhido pior e enamorar-se fosse

de quem fosse.

-Tu passas dum extremo ao outro! Eu digo-te que lhe sabotei o exame!

- Deixa de fazer disso um drama! Sem Michel na idéia, Marie não teria dançado melhor! Eu achei-a muito bem, à tua filha!

- Evidentemente: tu e a dança.

- Na representação foi perfeita. No jazz, excelente. Evidentemente que no clássico não foi genial. Mas viste as outras alunas?

- Repito-te que Marie podia fazer melhor!" A jovem acaba justamente de entrar no

restaurante. O chefe de mesa, cerimonioso. precede-a em direcção a Catherine e Dominique, subitamente mudas e de olhar interrogador.

O criado, que acabava de desembaraçar a mesa daquelas "senhoras", explica que, por causa da hora tardia, não se poderá servir o prato quente à recém chegada.

Mas Marie está-se nas tintas.

Senta-se, encolhendo os ombros, e anuncia a classificação:

"Quinta! O mesmo é dizer: horrível. Já esperava! Eu, que vos tinha habituado ao primeiro ou segundo lugar!... É uma alegria! "

Catherine, por cima da mesa, põe a mão em cima da da filha, murmurando:

"Minha filhinha! "

Marie empertiga-se:

"Por favor, mama. Não gosto que me lastimem. "

Então Dominique protesta, atormentada.

"Basta, Marie! Eu sei que não tenho voz activa no assunto e que não percebo nada da tua profissão. Mas posso pelo menos dizer-te que a tua atitude para com a tua mãe me choca. Se não queres que te lastimem, deixa de fazer essa cara! "

Catherine toma a defesa da filha:

"Por favor, Dominique... Não percebes que

Marie tem na verdade um desgosto? É o seu

orgulho que... "

O chefe de mesa, a insistência do criado, pretende tomar nota da encomenda de Marie.

"Eu como qualquer coisa -diz Marie com voz fatigada. -Por exemplo, uma salada mista e um bife grelhado.

- Quanto ao bife, receio que o chefe não possa... Que acha dum prato de carnes frias?

- Bem, de acordo. Mas então sem maionese, com duas folhas de alface e gressinos.

Catherine manda acrescentar à encomenda uma garrafa de Pommery seco e fruta fresca para todas.

Mais calma, mas sempre amarga, Marie pergunta:

"Champanhe? Mas para festejar o quê, afinal, mama?

-Para te dar prazer! Eu sei que o adoras, que te privas de o tomar durante todo o ano por causa da tua dança. Então, tréguas esta noite, oferece a ti mesma um pouco de descanso. Isto vai levantar-te o moral.

-Porquê? É inútil sacrificar-me. com o meu formidável quinto lugar não serei contratada nem por Béjart, nem por Roland Petit! "

Catherine procura acalmá-la:

"Um exame nunca decidiu uma carreira. Parece que Noella Pontois, a estrela da Ópera de Paris, não foi vez nenhuma a primeira classificada num exame.

- Talvez -concede Marie -, mas um exame é o palco. A prova do fogo. Temos de triunfar dela.

- Sê razoável, tu não podes fazer tudo: Béjart ou Roland Petit! Os filmes! O casamento! "

Marie rói um gressino enquanto o criado lhe coloca diante um tacho de barro rústico contendo uma apetitosa salada mista, onde, entre os pimentos, as azeitonas, os tomates e o aipo branco, se comprimem pétalas de atum rosado e argolas de anchovas. Ela esboça uma náusea e murmura:

"Quanto ao casamento, ouça: ainda não se encomendou a missa, nem publicaram os banhos. Quando se tem um pai condenado por delito comum... "

Dominique vira ostensivamente a cabeça, ignorando a conversa.

Catherine explica com brandura:

"Foi um erro judiciário... Juro-te! O teu pai não tem nada a ver com esse assunto.

-Não lhe quero mal por isso, pobrezinho! Mas, se há erro, seria preciso prová-lo. Estás a ver-me a abrir um dossier de inquérito em casa dos Villecroze? Não, já pensei bem. De momento, não tenho nada mais a fazer senão trabalhar. Quero recuperar. Dançar, dançar, dançar! -Mas Michel!

- Michel? Amo-o. Quanto ao casamento, ver-se-á. Se a data for adiada, não serei obrigada a falar-lhe disso. Teria muita vergonha! "

O empregado respectivo fez saltar devagar a rolha do champanhe. Limpa a garrafa coberta de água gelada e enche três taças de cristal. Depois coloca a garrafa encetada num grande balde de prata, que as pedras de gelo fazem tilintar como um sino surdo.

Marie agita o champanhe na sua taça para o tornar menos espumante. Dominique vai quebrar-lhe o silêncio:

"Porque é que não repousas um pouco, Marie? Tira férias!

-É isso, mudar de ar! Viajar! A propósito... "

Marie não termina a frase. Tira da carteira uma folha de papel que estende à mãe:

"Toma, mama! Quanto a isto, estás talvez de acordo. Basta-te assinar. " Catherine percorre a ficha escrita à máquina por Suzanne Leroy:

"Autorizo a minha filha Marie Soler a participar na tournée do Centro Internacional de Dança de Cannes, que decorrerá nos E. U. A. na semana de 21 a 28 de Julho, para apresentação do ballet As Grades, de Serge Laroche. "

Exclama imediatamente:

"Um convite para Nova Iorque? É formidável!

- Com efeito - responde Marie. -É uma grande sorte para Serge, para mim, para a Escola. Vá, mama, assina! "

Estende uma caneta à mãe. Dominique não pronunciou uma única palavra. Sem hesitar, Catherine assina a folha.

Marie fica subitamente acalmada, quase alegre. Bebe um gole de champanhe enquanto o chefe de mesa leva a salada mista, na qual ela mal tocara.

"Quinze dias-comenta Marie, retomando a ficha-não será muito. Nos Estados Unidos serei recebida pela família da minha amiga Sarah. Isso deve tranquilizar-te, mama! E depois, de Nova Iorque, o Canadá não é longe. Poderei dar um salto até lá.

- É grande, o Canadá - observa Dominique.

- Posso talvez encontrar lá o meu pai", murmura a rapariga.

Catherine faz um movimento de surpresa. Dominique responde no lugar dela:

"Vamos, não digas asneiras! "

Ignorando a interrupção, Marie pergunta à mãe:

"Sabes ao menos onde ele vive?

-Não.

- Eu julgava que vocês se escreviam.

- Tão raramente!

- Para onde mandavas as tuas cartas?

- A última vez, para Château Cartier... Um hotel de Monreal.

- Escrevias-lhe em nome dele?

- Evidentemente que não. "

Catherine cala-se bruscamente: o criado traz a Marie um prato de carnes frias copioso, decorado com pepinos, pickles e agriões. Marie impacienta-se porque o funcionário disso encarregado enche sem se apressar as taças de champanhe.

Assim que ele se afasta, ela olha para a mãe

com insistência.

Esta recomeça, em voz muito baixa: "Quando escrevo para lá, meto uma carta para Claude num sobrescrito dirigido ao Sr. Volnay.

- Conheces esse Sr. Volnay?

Não. Mas é ele quem faz chegar o correio às mãos do teu pai.

- Portanto, posso muito bem encontrar-me com o Sr. Volnay! "

A jovem lançou esta pequena frase como um desafio, com os olhos brilhantes. Mas Catherine não parece nada entusiasmada:

"Em que é que isso mudaria as coisas?", diz ela. "Que ficarás a saber mais? O teu pai refez a sua vida com outra identidade. No fim, arriscas-te a causar-lhe aborrecimentos... "

Marie faz um pequeno gesto rápido que significa: ver-se-á. Dominique faz-lhe notar que ela mal tocou no prato:

"Desforrar-me-ei na fruta. Não gosto de comer sozinha. "

Catherine preocupa-se:

"Tenho vontade de te levar para Grimaud para passares esta noite. Lá há calma, dormirias melhor.

-Mas não posso, mama! Amanhã de manhã, ensaio com Serge. Depois estou convocada pela polícia. Houve um roubo em casa dos Villecroze... "

Dominique e Catherine interrompem-na:

"Roubo?"

Marie não responde. Salta da cadeira e exclama:

"Meu Deus, Michel! Eu devia telefonar-lhe!" Atravessando a sala, precipita-se para a cabina telefônica.

"Alô! Michel?

- Telefonas tarde, já começava a ficar inquieto. Nada de grave, pelo menos?

- Nada... A não ser que fiquei em quinto lugar!

- E então? Tu és a melhor. Não vais fiar-te nesse bando de incapazes!

- Não sejas idiota, Michel. São todos profissionais. Eles têm razão, eu dancei mal. Mas vou recuperar! "

Michel, que tem outra idéia na cabeça, muda de assunto.

"Disseste à tua mãe que eu queria conhecê-la?

- Ainda não -confessa Marie. -Estou com ela esta noite, vou dizer-lhe...

-Não posso ir ter com vocês? Gostaria tanto de lhe falar.

-Tu és doido, Michel! Depois do dia que tive! Não percebes que estou estafada? Quanto a apresentações, não é o momento! Vem buscar-me amanhã para ir falar com esse polícia, discutiremos isso... "

Na extremidade da linha, Michel não responde.

"Estás zangado? - preocupa-se Marie.

- Não, um pouco desiludido apenas... Queria levar-te para longe, muito longe...

- Eu também, Michel, queria partir contigo. Para longe de tudo isto...

- É pena que os meus contratos me bloqueiem todo o Verão entre Paris e a Cote. Não podes acompanhar-me a Paris, na minha próxima viagem?

- Tenho de dançar, Michel. Tu deves respeitar o meu trabalho, como eu respeito o teu... Quanto a minha mãe, não te preocupes. Organizaremos qualquer coisa, um jantar em casa..."

Michel, feliz, agradece-lhe. Falam ainda mais um pouco, saúdam-se ternamente, depois desligam.

Marie fica pensativa, com a mão no auscultador. A perspectiva dum próximo encontro entre Michel e a mãe parece-lhe subitamente angustiante.

Confusamente, experimenta o sentimento de trair. Trair o quê? Trair quem? A sua juventude? A dança?

Contanto que não seja Serge que ela tenha traído...

Noite avançada, Marie voltou ao Centro. A reunião com Dominique e sua mãe fora dolorosa. A Sr. a Soler ficara silenciosa, olhando para a filha com ansiedade. Como Marie mudara! A sua violência ao saber a verdade a respeito do pai, a brusca comunicação da sua digressão pela América, o desprendimento em relação ao seu tão recente amor...

Durante o regresso de carro, as duas mulheres não tinham aberto a boca. Marie também não.

A mãe e a filha não manifestam qualquer impulso uma para a outra ao separarem-se:

"Virás, contudo, a Grimaud antes da partida para Nova Iorque?-perguntou Catherine.

- com certeza! Não partimos amanhã! E, além disso, tenho de ir buscar as minhas roupas de Verão a casa. "

Dominique faz uma simples pergunta, que gela a atmosfera: "E Michel?

- Michel, o quê?

- Ele não te pediu que o apresentasses à tua mãe? Deve estar impaciente. "

Marie fuzila-a com o olhar, mas esforça-se por responder calmamente:

"Ver-se-á... Há tanta trapalhada, neste momento! Aliás, não há urgência... Boa noite! "

A Riviera formiga de veraneantes noctívagos. Ecos musicais de night-clubs chegam até aos jardins que rodeiam o Centro.

Marie não faz parte das pessoas em férias. Mesmo no Centro, onde tudo parece dormir, ela sente-se relegada -sobretudo com a sua classificação de quinto lugar- para qualquer purgatório, como de quarentena. Evita finalmente pensar em Michel: o seu compromisso com ele atormenta-a, invadindo-a uma espécie de piedade.

No quarto, o sono profundo de Sarah e de Florentine irrita-a. São aquilo, as amigas! Ela tinha precisamente vontade, e até necessidade, de lhes falar... oh! não importa de quê, simplesmente para se sentir menos só.

Depois de se ter despido com uma espécie de raiva, atira-se para cima da cama. Aquela fadiga extrema, aquele "filme", que desfila sem descanso na sua cabeça, torturam-na.

Tantas coisas aconteceram em tão pouco tempo...

Aquele noivado inesperado depois da febre da filmagem; Serge, seu parceiro, seu amigo de sempre, tornado frio e distante; aquela atroz sensação de vazio no palco do Casino, e, sobretudo, as revelações de sua mãe. O pai é um ladrão! Pelo menos, passa por sê-lo... Aquela terna e imprecisa imagem que dormia no coração de Marie revela-se bruscamente sob um aspecto inquietante... O inquérito do comissário sobre o roubo do quadro não pode lançá-la bruscamente em plena luz?

Para afastar essa visão, Marie esforça-se por pensar em Michel... Mas mesmo Michel não pode fazer nada por ela. Aliás, não se expõe ele a fazê-la também sofrer? Parece tão indiferente ao que ela coloca acima de tudo: a dança! O esforço todos os dias renovado, o desejo de se ultrapassar, de conhecer aquela felicidade semelhante à euforia perante o público conquistado... E se, um dia, por ciúme, ele a impedisse de dançar?

Vira-se e revira-se entre os lençóis húmidos. O sono não surge. E só a alvorada, que vem branquear os estores venezianos, a liberta finalmente da sua angústia.

Pequeno-almoço - ioga - representação dicção - barra. Uma manhã insólita porque laboriosa: em princípio, as férias começaram. Mas para a equipa de Serge, assim como para os outros bailarinos do Lago e do Pás de Deux, de Werbern, o trabalho prossegue até à partida para o estrangeiro.

com Sarah e Florentine, Marie conversou de tudo, de nada, mas nunca do exame.

Florentine não tomará parte na viagem; todavia, participa nos ensaios antes de partir para a Bretanha: no regresso tem de dançar no Festival de Avinhão.

"Parece - conta ela com uma piscadela de olho malicioso para Marie -que Michel, Géraldine e a sua equipa virão filmar seqüências do Festival... Acompanhá-lo-ás, se os Americanos não te tiverem açambarcado como vedeta?

-No regresso, passarei em princípio uns dias com a minha mãe-responde Marie. -De qualquer maneira, não tenho intenção de seguir Michel como um cãozinho. Tenho o meu trabalho, ele o seu.

- E o amor? - pergunta Florentine.

- O amor e o trabalho são duas coisas independentes. "

Marie falou em tom calmo, mas definitivo. Encontrou, segundo parece, o equilíbrio. Aquela conversa a respeito de Michel lembra-lhe de repente o encontro com o comissário Morati. São perto de duas horas e meia, Marie tem de avisar a directora da sua ausência. Michel vai chegar dum minuto para o outro. Não se pode pôr Madame perante o facto consumado, sobretudo depois dos resultados que Marie obtivera no dia anterior.

Quando Suzanne Leroy introduz a jovem no escritório de Madame, Marie é recebida com um sorriso cujo calor dilui o "raspanete" da véspera.

"Estou satisfeita por não teres amuado", diz Madame. "Não serve de nada protestar, gemer ou ficar no cantinho. É preciso continuar imediatamente. A tua mama, -que é uma excelente cavaleira, deve ter-te ensinado que se tornam a colocar imediatamente perante o obstáculo os cavalos que falharam o salto. Sobretudo os bons! Os outros, levam-se para a cavalariça. "

Marie aceita a lição sem pestanejar. Madame prossegue:

- "Serge disse-me que tinhas retomado o teu papel em As Grades. Tanto melhor. Jocelyne não estava à altura. E Suzanne mostrou-me a autorização da tua mãe para essa viagem à América: na verdade, não perdeste um segundo. Creio que encontrei de novo a minha pequena Soler, na qual depositava tantas esperanças... Claro que a Companhia Béjart contratou Clara, melhor classificada do que tu. Roland Petit seleccionou para Setembro dois rapazes, Raoul e Teddy, assim como Christine... mas são todos mais antigos do que tu. Demais, tu tens tempo! No próximo ano poderás apresentar-te diante de Raymond Franchetti: a Ópera de Paris recruta novas bailarinas. Mas, peço-te, não te disperses mais! O teu noivo tem de ser razoável: tu és uma bailarina, não uma figura secundária. "

Madame interrompe-se. Olha para o rosto atento da sua aluna. Satisfeita com a expressão de Marie, recomeça:

"Se me permitires, posso falar a Michel. É um rapaz inteligente e eu colocar-me-ei num plano estritamente profissional. O que tu -não queres dizer-lhe, eu me encarrego de lho fazer compreender. Basta um pouco de bom senso. Para já, ele deixa-te partir para os Estados Unidos. Teria podido exigir que ficasses. No fim de contas, vocês estão noivos... "

Marie responde sem timidez:

"Por favor, deixe-me falar eu a Michel.

- Como quiseres.

- Mas, justamente, eu vim pedir-lhe autorização para me ausentar com ele daqui a bocadinho. Sem dúvida até ao começo da tarde. "

Madame acena que sim com a cabeça. Está num dia de indulgência.

"Está bem. Não posso recusar-to, visto que as aulas, em princípio, terminaram. Mas os teus ensaios? As Grades! Serge?

-Já preveni Serge de que seguramente só viria por volta das três horas. "

Marie acrescenta:

"Tenho de testemunhar na polícia. Sabe, por causa do roubo do quadro...

- É verdade, já me esquecia dessa história-interrompe-a a directora. -Que imbecis, esses polícias! Vir perturbar assim um exame! bom, de acordo. Vai quando quiseres. "

São quase onze horas. O motor do Sunbeam ronca diante do Centro. Michel, ainda ao volante, vê surgir Marie. Não tenta beijá-la quando ela sobe para o lado dele no carro: sabe que ela receia ser vista pelas colegas. Aperta-lhe demoradamente a mão, acaricia-lhe os dedos antes de pegar na maçaneta da mudança de velocidades, em baixo.

O carro desce as ruazinhas da velha Cannes antes de tomar a direcção do Cannet. Eles sorriem-se ternamente um para o outro a cada sinal vermelho.

"Não vamos falar com o comissário?-espanta-se Marie, que tenta orientar-se.

- Mudança de programa: Morati fez questão de voltar ao castelo. Espera-nos lá. A minha mãe está a entretê-lo. E eu tenho a agradável missão de te conduzir lá acima. "

A rapariga parece contrariada.

"Michel peço-te, faz-lhe compreender que tenho de voltar ao Centro antes das duas e meia.

-Conta comigo. Creio que vai ser rápido. Só há umas perguntas a fazer-te. Depois, a minha mãe quer falar-te. É normal, não achas? No fundo, vocês falaram muito pouco uma com a outra. "

Marie mantém-se num silêncio prudente.

O Sol está na vertical. O mar brilha com milhões de reflexos de bom tempo. No cruzamento da pequena estrada que sobe o vale do Loup, um camionista bonacheirão, mas não-te-rales, descarrega garrafas metálicas de gás butano. O seu veículo bloqueia toda a circulação.

Marie vê as horas no painel de instrumentos do Sunbeam. Toca o klaxon sem pedir a opinião de Michel.

Alguns jogadores de chinquilho que se instalaram no largo passeio sombreado por plátanos sobressaltam-se e interpelam os jovens.

"Eh, pombinhos! Não se enervem! Aproveitem as férias!... Sobretudo você, amigo! Tem muito com que se entreter, não é verdade?"

Michel, entrando no jogo, enlaça Marie. A rapariga abandona-se ao seu abraço e os jogadores aplaudem.

Marie fica ternamente apertada contra Michel até que o Sunbeam chegue ao castelo.

No terraço do castelo, onde grandes canteiros estão plantados de gerânios vermelhos, Anne de Villecroze, rodeada pelo comissário Morati e por dois inspectores, vê Marie e Michel com um certo alívio.

A conversa com a polícia limita-se muitas vezes a lugares-comuns sobre a lentidão dos inquéritos, o arbítrio da justiça, os casos brilhantemente resolvidos e aqueles, de que ela se gaba menos, que ficaram por resolver.

"Seja como for", conclui a Sr.a de Villecroze levantando-se para receber os jovens, "os ladrões são por vezes mais simpáticos do que os polícias! "

Morati não aprecia nada aquela tirada pouco elegante e levanta-se, por sua vez, enquanto a marquesa beija espontaneamente a rapariga. Marie fica surpreendida com aquele acolhimento caloroso.

Morati, antecipadamente, já se desculpa: "Não vai demorar muito, Menina Soler, apenas uma afinaçãozinha.

- Por favor, faça o seu trabalho - responde Marie. -Previno-o de que tenho muito pouco tempo para lhe dispensar. Tenho de estar de volta a Cannes para os meus ensaios.

- Se ao menos se encontrasse o meu Watteau -suspira a Sr.a de Villecroze - ficaria menos confusa por incomodar toda a gente, mas" não há muitas esperanças, não é assim comissário?

- Nunca se sabe", resmunga o policia com um ar cheio de segundos sentidos.

Finalmente, Morati pede a Marie que o siga, em companhia de Michel e de Nazaire, até ao salão que foi teatro do roubo.

Os dois jovens instalam-se nas poltronas e o comissário, esse, senta-se diante duma mesa onde poderá folhear comodamente o seu dossier.

"A Menina Soler, desculpe-me pedir-lhe um esclarecimento. Fala de ensaios. Ora, ontem, disse-me que estava em férias. Tem mesmo de me dar a direcção da sua mãe. As suas férias não começaram então?

-A vida duma bailarina é cheia de imprevistos-responde Marie. - Ontem eu ainda não sabia que ia ter de partir em digressão."

Michel olha para Marie com surpresa, mas abstém-se de todo e qualquer comentário.

Morati continua:

"Perfeito. Peço-lhe agora que dê uma olhadela a estas fotografias. Há uma ou duas que poderiam parecer-se com o fotógrafo?, quero dizer, com o indivíduo que se fez passar por fotógrafo e que conversou consigo durante uns minutos?"

Estende a Marie um maço com uma dúzia de clichês colados em cartões classificados e tendo datas e números de referência.

A jovem examina-os sem grande convicção. Ao passá-los todos em revista, não se deteve em nenhum. Estuda-os uma segunda vez e encolhe ligeiramente os ombros:

"Não, não é ele.

- Tem a certeza?-insiste Morati. -Devo adverti-la de que o Sr. de Villecroze e o Sr. Nazaire julgam reconhecê-lo numa dessas fotografias.

- Esquece-se de explicar -observa Michel-que não só nem Nazaire, nem eu, estamos seguros disso, mas que separámos cada um uma fotografia diferente. "

Morati fica bastante descontente com a intervenção de Michel. Tira a Marie o maço de fotografias e mete-o numa pasta.

Depois, numa voz mais seca, pergunta à bailarina:

"O homem tinha uma pronúncia especial?

- Não. Tinha a pronúncia... francesa.

- com um toque meridional?

- Não. Não especialmente... Não notei!

- Ele falou-lhe de pintura, de objectos de arte?

- Pôs-me diante do quadro... talvez o tenha feito de propósito. Era um bonito fundo. Sobretudo para fotos a cores.

- Ele disse-lhe isso?

- Não, fui eu que pensei. Falava-se muito na rádio e na imprensa no meu noivado com Michel de Villecroze. Então, aquela senhora de vestido azul por detrás de mim, aquela antepassada de Michel, fazia um pouco, como dizer... álbum de família. "

Marie perturba-se: a presença de Michel, aquele assunto delicado, sobretudo para ela, que se sabe agora filha dum homem que fugiu à justiça, tudo isso se mistura numa espécie de pudor e de enleio súbitos. Michel vem em seu socorro, sem desconfiar dos motivos exactos daquele embaraço.

"Acha, comissário, que essas considerações familiares, muito subjectivas, podem ter qualquer relação com o roubo do Watteau?

- Não acho nada e acho tudo. "

O polícia passeia para trás e para diante. Fala sem se dirigir a ninguém em particular. Resume para si certos factos notórios.

"A escuridão reinava nesta sala... Quando Nazaire entrou, ficou surpreendido por encontrar juntos esse fotógrafo e a Menina Soler..." Nazaire entende por bem rectificar: "Eu disse que o fotógrafo ficou surpreendido por ver entrar alguém... E que a Menina se sobressaltou um pouco. Não insinuei que a Menina Soler e esse senhor tinham uma atitude... hum...

-Eu também não -interrompeu-o Morati. - O senhor é maldoso, meu amigo! "

Michel e Marie descontraem-se rindo e a jovem objecta:

"A palavra escuridão é exagerada, Sr. Comissário. Diga antes penumbra. As cortinas estavam fechadas, mas via-se muito bem: o sol entra directamente por esta vidraça...

-Quem tinha fechado as cortinas? A Menina?

-Não! O fotógrafo! Para evitar um contraluz. Ia utilizar um flash. "

Nazaire vem em seu socorro:

"É verdade! Ele até me falou nele, o tipo, no seu flash"

O comissário torna a sentar-se diante da mesa e pergunta a Marie:

"Agora, pode dar-me a direcção da sua mãe?

-Vive no Centro Hípico de Grimaud. Pode encontrar-se comigo lá, se eu não estiver em Cannes. Antes da minha partida, é claro. "

Michel sobressalta-se. Um silêncio sucede à resposta de Marie, um silêncio em que pesam os olhares do jovem, assim como os de Morati e de Nazaire. O polícia notou a surpresa de Michel. Vai explorá-la.

"Vai partir? com que destino? Por muito tempo?

Marie ironiza:

"Não pense que quero fugir a um inquérito ou à justiça. Exerço simplesmente a minha profissão. "

Visivelmente, o comissário espera informações suplementares. Marie explica:

"Parto em digressão para Nova Iorque durante quinze dias. "

Outro silêncio. Os olhos de Marie encontram os dum Michel desamparado.

Enquanto fala ao comissário, a jovem continua a olhar para Michel.

"Posso sair de França por duas semanas? Por outras palavras, tenho de o saber depressa, para prevenir os meus camaradas... Uma substituta não se encontra assim tão facilmente...

-Não, Menina, pode partir. Está bem de ver! "

Morati reúne os seus papéis, mete-os na pasta e despede-se rapidamente de Michel e de Marie. Acompanhado por Nazaire, saúda a marquesa e afasta-se com os inspectores.

Michel e Marie sentaram-se lado a lado num canapé.

"Que história é essa de digressão? - pergunta Michel.

- A Escola é convidada. Eu disse-te, mas tu decerto não ouviste.

- Ontem, parecias pronta a abandonar...

- Por causa da minha má actuação? De facto, estava a dramatizar. Compreendi quanto gostava de dançar! Seria cobarde e estúpido desistir ao primeiro obstáculo. "

Michel olha em frente. Julgava até aquele instante contar mais do que tudo na vida de Marie. Sem dúvida que isso continua a ser verdade, aliás. Porque duvidar? Mas, por brincadeira ou por ciúme, pergunta, irônico:

"Então, vais com Serge?"

Ela responde com uma certa secura:

"Eu não vou com Serge. vou com a Escola.

-Permite-me que fique surpreendido! Dizes-me, assim de repente, que partes para a América.

-Digo-te que já falámos disso. Tu deves mesmo ter visto o plano de trabalhos, com o programa: O Lago, o Pás de Deux, de Webern, e As Grades...

- E não me perguntas se eu estou de acordo... se isso me causa prazer ou me contraria... "

Ela olha para ele intensamente. Estará a brincar? Nenhuma malícia nos seus olhos, nenhuma sombra de sorriso nos seus lábios. Então, eleva um pouco a voz:

"Michel, quando tu fazes uma viagem a Paris, com ou sem Géraldine, pedes-me a minha opinião? Aliás, nós não estamos ainda casados, que eu saiba! "

O rapaz esquece que foi ele que desencadeou aquela discussão, que é culpa sua se ela se converter em disputa. Deixando-se enredar no seu próprio jogo, mostra-se preocupado:

"Que é que tens, Marie? Já não te reconheço, és tão dura...

-Achas que é engraçado ter sido lamentável?

- Tu não foste lamentável! Aliás, mesmo que falhes todas as tuas variações, para mim, bem sabes...

- Sim, eu sei, para ti nada daquilo de que eu gosto tem importância! A minha carreira, zero... as minhas esperanças, zero! "

O sino do castelo, tocando para o almoço, impede infelizmente que a discussão se envenene.

Michel, durante esse almoço, tentou mostrar-se jovial, terno com Marie. Ela, por delicadeza, conservou o sorriso, para não ferir Anne de Villecroze, que a rodeia de atenções.

"Seria engraçado recomeçar o vosso... primeiro noivado", diz a marquesa com malícia. "Noivado dançado como no Grande Século, uma recepção sumptuosa... Mas a sério, desta vez Não, estou a brincar. Aliás, vocês devem estar fartos das mundanidades... Penso antes numa festa muito íntima, em casa da sua mama, Marie, em Grimaud. "

Marie olha para a Sr." de Villecroze, estupefacta.

"Nós falámos muito de si, Michel e eu", continua a marquesa. "Sei que sua mãe dirige um centro hípico. Que vida agradável ela deve levar! Depois de Michel a ter conhecido, ficarei encantada de ir visitá-la. "

Michel, aprovando com um sinal, acrescenta:

"Creio que será melhor organizar a festa aqui. com todas essas pessoas...

-Que pessoas?-pergunta Marie, na defensiva.

- Então, todas aquelas que devemos convidar: produtores, relações profissionais, os técnicos da equipa. Os teus camaradas do Centro... Não podemos pô-los de parte. Isso vexá-los-ia. "

Nazaire apresenta uma grande saladeira de framboesas e de morangos.

"Para mim, sem creme, se faz favor-implora Marie.

- Eu não danço -ironiza Anne, gulosa. -Nazaire, traga o açúcar em pó. Pode acrescentar-se, sobretudo aqueles que se abstêm de creme! Minha pequena Marie, gostaria de a ver muitas vezes aqui, em ocasiões mais agradáveis do que a de hoje. Você está em sua casa.

- Agradeço-lhe a gentileza, minha senhora, mas tenho em breve de partir em digressão para Nova Iorque e ensaiamos muito no Centro...

- Para Nova Iorque? Está cheia de sorte! Michel acompanha-a?"

Marie e Michel olham-se, embaraçados. Finalmente, o rapaz responde à mãe:

"Não pense nisso mama! O meu planning está sobrecarregado. Marie tem a sua profissão, eu a minha.

- É muito melhor! -exclama a marquesa. -À força de estarmos sempre juntos, aborrecemo-nos. Não há amor que resista a isso. É preciso conservar a independência. com a condição de não se exagerar, evidentemente... Que vai dançar em Nova Iorque, Marie?

- Dois balets clássicos e uma criação de Serge, As Grades. É um ballet moderno muito divertido: desempenhamos vários papéis e Lynn, o professor de jazz, encarna um bebê! Aliás, eu vou ser obrigada a voltar ao Centro para o ensaio. Se Michel quiser acompanhar-me...

- Não tem tempo de tomar um café?

- Não tomo, obrigada.

- As bailarinas estão sempre apressadas! ", brinca Michel, levantando-se.

Mas a sua voz está toldada de amargura.

O Sunbeam roda a grande velocidade para Cannes. Michel gostaria de aliviar a atmosfera, mas o nervosismo de Marie, que consulta sem cessar o relógio, torna-se contagioso. Ele dá voltas bruscas ao volante. A jovem agarra-se ao apoio da porta da direita.

"Não vamos matar-nos por uns minutos de atraso", murmura o rapaz. "Esqueceste o cinto de segurança... Põe-no, para o caso de haver um controlo à entrada da cidade. "

Ela obedeceu sem descerrar os lábios. Ele acaricia-lhe os cabelos gentilmente e, com uma ponta de ironia, acrescenta:

"É pior que um ofício, a tua dança! Torna-se uma religião, uma entrada para o convento!

- Eu queria reabilitar-me.

- Reabilitares-te! Que grande tirada!

- Sim, Michel! Pelos meus professores, pela mama, por mim mesma. Não trabalhei com entusiasmo durante dez anos para abandonar tudo de vez. "

Ele não responde. Não quer feri-la mais. Mas Marie prossegue, com voz mais agressiva:

"Não quero imitar essas raparigas que deixam desfazer os seus sonhos para caírem estupidamente no casamento. "

Então, ele reage:

"Muito obrigado! Porque, o casamento é estúpido?"

Marie fica embaraçada.

"Não, com certeza. Mas há casamentos e casamentos. Eu falo daqueles que alteram os impulsos duma vocação... daqueles que condenam o amor a uma rotina sem vôos. Isso, não! A tua mãe, aliás, há pouco... "

Ele interrompe-a bruscamente:

"A minha mãe referia-se a generalidades... Mas é preciso encarar as coisas de frente, Marie. Em suma, tu pensas que, se falhaste o teu exame, foi por causa de mim. "

Ela não hesita um segundo:

"Sim. De certa maneira. Foi culpa tua e também de minha mãe... Das coisas da vida.

- Que queres dizer? Eu, a tua mãe, as coisas da vida? Tudo isso está ligado?

-Não, Michel... Mas não posso explicar-to. Hoje não. Mais tarde, talvez. "

O jovem abranda mais o andamento do carro. Estão a entrar na cidade. Há engarrafamentos, toques de klaxon. O calor é abafador. O jovem tenta compreender. Pergunta com amargura:

"Foi a tua mãe que te fez mudar de opinião?

- Sim, de certa forma...

- Ela tem alguma coisa contra mim?

- Não, Michel, o assunto não te diz respeito.

- Tu podes dispensar o seu consentimento.

- Eu sei. Sei também que não farei nada sem que ela me dê o seu assentimento. A sua vida nem sempre foi agradável, sozinha comigo. Ajudou-me, favoreceu os meus gostos. Teve confiança em mim. Deu-me a liberdade.

- A liberdade que te torna a tirar quando precisas dela!

- Mas ela não ma tira! Conservo-a. Sou eu, eu só, quem decide... Não estou preparada, Michel! Há muitas coisas que eu ignoro.

- Podemos muito bem aprendê-las juntos." Marie ilude a resposta. Já não olha para o

relógio. com o coração despedaçado, gostaria de se aninhar contra Michel. Gostaria de repente de poder conciliar tudo, o seu amor e a sua arte, numa felicidade única.

Enquanto o carro torna a partir depois de ter estado bloqueado por um sinal vermelho, Marie diz quase sem querer:

"O casamento: é assim tão necessário? Tu sabes muito bem, Michel, que para viver a dois não há necessidade de se ser casado. O casamento não é mais do que uma convenção. Uma convenção muitas vezes ultrapassada, aliás! Na nossa época, as pessoas casam-se menos. A não ser por razões muito importantes. "

Ele pôs a mão direita em cima dos joelhos de Marie, conduzindo com as pontas dos dedos da mão esquerda. Fala meigamente:

"E o amor? Não é uma razão importante? Que é que te falta mais? Um filho? Posso muito bem fazer-to, bem sabes! Não é difícil.

-Eu não tenho vontade de rir...

- Porque te faz rir essa idéia de ter um filho?

- Não... "

Ela baixa a cabeça. Num relâmpago, vê-se grávida, obrigada a recusar um papel, uma promoção, uma digressão. Renunciar. Renunciar sempre. Talvez que no fundo não ame Michel com bastante intensidade... E, como se adivinhasse o seu pensamento, o jovem prossegue, desiludido:

"Afinal de contas, tu talvez tenhas razão. É difícil as pessoas amarem-se. É difícil ser feliz, tornar-se feliz. Eu devia ter desconfiado de ti... Não tomar a sério a tua declaração de amor. "

Ela tem vontade de lhe gritar que se engana, mas cala-se, enquanto ele continua, em voz mais surda:

"Eu julgava que eras capaz de te tornar minha mulher, e conduzes-te como uma miúda caprichosa! "

Ela parece uma estudante apanhada em falta. Então, ele dá-lhe a estocada:

"Divertir-me contigo? Divertir-me à tua custa? Passarmos umas noites juntos... Obrigado! Se só se trata disso, não esperei por ti.

- com certeza. Tens a Géraldine.

- Géraldine e muitas outras. Contigo, pensava que seria diferente. "

Ela está à beira das lágrimas. Faz um esforço para se dominar e consegue dizer, tristemente:

"É verdade. É outra coisa. "

O carro inicia uma viragem antes de entrar no pátio do Centro. Eles já não poderão beijar-se agora. Um beijo que teria podido desvanecer tudo...

Michel pergunta subitamente:

"Marie, Marie... que se passa? Quero saber.

- Não há nada para saber-responde ela.

- Tu não queres que eu fale com a tua mãe?

- Para quê? Não vale a pena, visto que eu não quero casar-me por agora... "

Marie põe a mão no fecho da porta: Michel retém-na.

"Por agora, claro... Mas mais tarde?

- Talvez não, Michel. vou partir. Pensaremos nisso. Ou, antes, tentaremos não pensar nisso... Não fiques triste. Porventura, vale a pena?"

Ele não responde. Está muito pálido. Vê através do pára-brisas uns reflexos que parecem lágrimas. Murmura:

"Vai depressa, Marie. Vais chegar atrasada. "

Durante uma pausa, Marie ligou para Grimaud.

O ensaio ia bem, mas ela sentia-se, mesmo assim, preocupada. A idéia da tristeza da mãe perseguia-a. A última conversa com Michel fizera-lhe mal. Lamentava ter-se mostrado tão desprendida. E, todavia...

A campainha do telefone interrompeu o seu debate interior:

"Alô, Dominique? A mama não está? Escuta: tentarei dar aí um salto amanhã...

- com Michel? Sabes, apesar da sua primeira reacção, estou certa de que Catherine o receberá com alegria.

-Não, não se trata de Michel... Telefono apenas para que a mama me prepare as coisas de Verão que tenho de levar para Nova Iorque. Que pense também em ir buscar a mala grande, mas leve, que está no sótão. Tudo o que tenho aqui é demasiado pequeno, e eu não quero transportar trinta e seis volumes.

- Porque é que não dormes cá amanhã à noite? Seria uma gentileza para com a tua mãe, sobretudo se partires dentro de duas semanas.

- Bom, de acordo. Mas com uma condição. Só se vai falar da chuva e do bom tempo. Compreendido?

- Tu és uma rapariga esquisita... E se Michel vier na tua ausência?

- Por favor Dominique, deixa-me em paz!... E diz à mama que me telefone esta noite, antes das dez horas", remata Marie, desligando.

Marie voltou ao grande estúdio. Serge julga-a em forma. Pelo lado técnico, está perfeitamente bem. Todavia, o seu rosto permanece fechado, um pouco arisco. O jovem chama-a à ordem:

"Oh, minha velha, não me faças essa cara! Guarda-a para daqui a bocadinho. Estamos na cena do amor e não na da morte. "

Marie suspira. Tem boas piadas, o Serge! Fazer de enamorada, neste momento, não tem verdadeiramente disposição para isso!

Catherine desce do cavalo.

Neste período de férias, acontece-lhe cavalgar seis horas seguidas em passeios sucessivos. Levanta-se cedo, tem sempre animais a controlar, a cuidar por causa duma distensão ou dum coxear suspeito.

Há também a forragem a mandar buscar pelos moços, a aveia a mandar distribuir, a limpeza a vigiar, o bebedouro a limpar.

A tarefa de Dominique é mais administrativa: contabilidade, verificação das quotizações, pagamento das "saídas", facturas a pôr em dia. O amor pelo cavalo reuniu as duas mulheres, que se entendem como duas irmãs.

Catherine estende-se num cadeirão, sob uma grande reprodução gravada de Théodore Géricault, o pintor do cavalo, Étude de chevauchées au haras de Laigle. Deitou-se tarde naquela noite, depois da penosa reunião em Cannes com Marie. Sente-se tão cansada que diz Dominique:

"vou pedir ao Norbert que me substitua na condução da próxima saída. vou contentar-me com vigiar os principiantes no picadeiro.

- A tua filha telefonou há pouco.

- Devo comunicar com ela?

- Nada de urgente. Esta noite, antes das dez horas. De qualquer modo, ela vem cá dormir amanhã.

- Vai trazer Michel para o aperitivo, ou para jantar?

-Não. Mas precisa que lhe prepares as suas roupas de Verão... Enfim, ela própria to vai explicar.

-Não falou de Michel?

- Falou. Mas fui eu que a obriguei a isso. Marie parece evitar esse assunto. "

Catherine enche um grande copo de água mineral, ao qual Dominique junta umas pedras de gelo e extracto de verbena. As duas mulheres olham-se em silêncio. Têm de se combinar, de adoptar a atitude melhor para com Marie. Porque é que esta mostra tão pouco entusiasmo à idéia do casamento? E como receber Michel se, inesperadamente, ele se apresentar em Grimaud?

"Já não sei que fazer -geme Catherine. - Marie é demasiado complicada!

- É normal - observa Dominique. -Está em plena confusão... Recusa que a ajudem, que se intervenha. Por amor-próprio ou por pudor... "

Hesita um pouco antes de prosseguir:

"Contanto que não te queira mal por lhe teres revelado a verdade sobre o pai! Seria capaz de predispor Michel contra ti. "

Perante o gesto dubitativo de Catherine, Dominique, explica:

"Não quero dizer que ela te descrevesse como uma mulher antipática, mas, inconscientemente, poderia exagerar a tua reacção à notícia do seu noivado. Propor-lhe:" Dispensemo-nos das obrigações familiares. Sejamos modernos, amemo-nos assim. Ver-se-á mais tarde. "

Enquanto Catherine termina o seu copo, Dominique afirma:

"Tenho a certeza de que ela impede Michel de vir falar contigo. Por rancor.

- O seu rancor não pode ser mais forte que o seu amor!...

- Aliás, mesmo que goste de Michel, não casará com ele forçosamente.

- Isso o que é que quer dizer?" Dominique senta-se no braço do cadeirão de Catherine.

"Isto quer dizer que será sua amante. Michel já não é um rapazinho. Contentar-se-á com isso. E ela, na verdade, já não precisa da tua bênção. "

Catherine salta:

"Nem por sombras! Por muito larga que eu seja de vistas...

- Sim, tu és larga de vistas para as outras. Mas não quando se trata da tua filha.

-Dominique! Estás a falar como Marie! Dir-se-ia que a defendes!

-Não defendo ninguém, tento ser realista. Que podes tu fazer agora? Provocar uma entrevista com os Villecroze? Vês-te a fazer de mãe lacrimosa? Sem contar que Marie nunca to perdoaria! "

Catherine levantou-se. Diante do espelho, penteia-se, retoca a sua leve maquilhagem. Deixa cair a mão, desencorajada.

"A única coisa que conta, para mim, é a felicidade de Marie. "

Dominique, pensativa, acaba por sugerir:

"Porque é que não falas a Michel? Revelas-lhe a verdade sobre o teu marido. Pouco importa! Visto que Marie se recusa a confessar-lha, toma tu a dianteira. Ninguém tem nada a perder com isso.

- E se eu o influencio, a esse Michel? Afinal de contas, ele não está interessado no casamento, talvez. Pode julgar-se obrigado a casar com Marie por puro espírito cavalheiresco... Marie adivinhá-lo-ia. Censurar-mo-ia toda a vida! "

Dominique conclui, acendendo um cigarro: "Ou agradecer-to-ia... É um risco a correr. "

Catherine dirige-se lentamente para o telefone. Antes de levantar o auscultador, procura rapidamente o número dos Villecroze na lista:

  1. 39. 42. Repete duas vezes os seis algarismos.

Fecha a lista. Levanta o auscultador. Depois, mudando de idéias, murmura, voltando para o grande cadeirão provençal:

"Não. Prefiro que as coisas caminhem por si próprias. "

A marquesa não tem o hábito de se imiscuir nos problemas sentimentais do filho. Há muito tempo que eles não trocam confidências sobre esse assunto. O liberalismo de Anne, o cinismo afectado de Michel, são os garantes dessa independência. A Sr. a de Villecroze considera-se um pouco como uma camarada de Michel, ao mesmo tempo indulgente e cúmplice.

Mas, dessa vez, trata-se duma coisa séria: o casamento. E Michel tem o aspecto de quem está profundamente enamorado. A marquesa acha que deve quebrar a sua prudente neutralidade.

Desde a ida e volta a Cannes, aonde reconduziu Marie, Michel parece atormentado. A intuição duma mãe raramente falha, mesmo que a marquesa tenha passado há muito tempo o cabo das sensibilidades maternas.

Aquele rapagão, engolindo umas atrás das outras três chávenas de café, depois de ter exigido de Nazaire que ponha a cafeteira no frigorífico, sim, aquele rapaz está a passar um mau bocado.

Anne ataca de frente:

"É o casamento que te assusta, Michel? Vocês, os jovens, fazem disso um mundo! Nada vos impede de esquecer as sujeições, uma vez terminada a cerimônia, de viverem como amantes... Vocês têm sorte, Marie e tu. As vossas profissões separar-vos-ão de vez em quando. A independência reforça o amor. "

Michel tem um sorriso amargo:

"Não para nós. Marie já não quer casar comigo. "

Anne estremeceu. Mas retoma depressa o domínio de si própria.

"A culpa é tua. Já devias ter-te apresentado à mãe. Ela tem classe, essa garota. Nunca se rebaixará a pedir-to... "

A campainha do telefone impede Michel de desenganar a marquesa. Nazaire chega ao terraço a correr, depois de ter recebido a comunicação:

"Sr. Michel, é para si. De Paris, creio. É Géraldine. "

A marquesa de Villecrozze, com uma tesoura na mão, procura cortar uns pés de rosas murchas, enquanto espera pelo regresso do filho.

Ele não tarda, aliás, e anuncia a Anne:

"Eu contava ficar aqui mais dois dias, mas a produção precisa de mim em Paris. Tenho de preparar uma filmagem no exterior, em Deauville.

- Antes de partires, tens de falar à mãe de Marie. Não tens o direito de te esquivares, Michel.

- Esta manhã, ainda, estava pronto a fazê-lo. Agora daria a impressão de correr atrás duma rapariguinha caprichosa que não sabe o que quer. "

Anne de Villecroze larga a tesoura:

"É teu dever chamá-la à razão, justamente. Ela tem talvez complexos, escrúpulos para contigo... "

Apoiado à balaustrada do terraço, Michel não parece convencido. Todavia, reprime a vontade de correr ao telefone para chamar a Sr. a Soler.

Pensa em silêncio. Depois, a passos lentos, dirige-se para o salão, cujas portas envidraçadas se abrem largamente sobre as árvores que dominam o mar.

Voltando-se para a marquesa, diz:

"Prefiro que as coisas caminhem por si próprias. "

Foi talvez naquele instante preciso que Catherine murmurou a mesma frase a Dominique.

Mas, quer para tranqüilizar a mãe, quer por escrúpulo para com Marie, o jovem acrescenta:

"Quando for para o aeroporto, passarei pelo Centro de Dança. Procurarei falar com Marie durante uns minutos. Se ela estiver de acordo, telefonarei à mãe antes de tomar o avião. "

O motor do Sunbeam trabalha au ralenti. Sempre apressado, Michel quer evitar uma nova discussão com Marie. Só uma palavrinha, um simples sorriso da rapariga, bastar-lhe-ão. Desde que ela não se entregue mais aos seus acessos de independência... Ele ama-a, ela ama-o, é isso que conta. Não vão discutir sobre a data do casamento.

Quatro a quatro, o jovem trepa os degraus da escada do Centro. No corredor, encontra Patrícia.

"Se procura Marie, ela está ainda no estúdio", informa-o a pequenita.

Depois de ter hesitado um pouco, Michel decide-se a entreabrir a grande porta mal almofadada.

O ensaio deve ter terminado há pouco. A dois metros da entrada, Serge e Marie estão sós; conversam.

Michel não pode perceber senão estas poucas palavras, bem inofensivas. Ciúme? Despeito? Elas parecem-lhe ambíguas:

"Estou contente por te ter recuperado!... ", disse Serge à bailarina.

Antes de responder, Marie deixa descair um pouco a cabeça sobre o ombro nu do bailarino.

Murmura, com uma ternura que faz mal a Michel:

"Idiota! Tu nunca me perdeste! "

Então, Michel afasta-se apressadamente. Garatuja um bilhete, que vai confiar a Suzanne Leroy:

Marie:

Regresso a Paris para preparar uma filmagem. Espero ver-te antes da tua partida. Se continuares na intenção de casar comigo, participa-mo.

Podes dançar onde quiseres e com quem quiseres. Eu não to impeço...

MICHEL

No quarto das raparigas, naquele fim de dia, reina uma certa melancolia. Florentine, que passa a última noite no Centro antes da partida para férias, reúne as suas coisas, dizendo tristemente:

"Sinto uma sensação estranha por nos separarmos. Estou triste!"

Empilha um transistor, uma caixa de pó-de-arroz, um urso de pelúcia, um baralho de cartas, em cima de duas almofadas de cetim. Acrescenta:

"Bem queria partir com vocês para a América... Como o Tio Cristóvão: a propósito, o seu ovo era um ovo de Colombo "

Ela é a única a rir do seu estúpido jogo de palavras. E, como as outras duas não reagiram, continua:

"Diz lá, Marie, se não te casares, voltarás para o Centro no próximo ano?

- Porque é que não havia de voltar? Que é que isso altera, que eu esteja casada ou não?

-Porque... bom! prefiro dizer-to: aborrece-me que nos deixes, assim, por um homem que nem sequer é bailarino. Eu, podes crer, se me casar, será com um bailarino. "

Marie encolhe os ombros sorrindo. Sarah murmura:

-Tu não virás, seguramente, pedir a nossa opinião, quando te casares. "

Florentine pareceu não ouvir:

"A gente da dança é como a do circo: forma uma tribo. Ninguém pode compreender-nos. A vida de família, só a vejo em pirouettes e sauts de chat... "

Desata a rir e exclama:

"Seria engraçado, na verdade, Michel a fazer sauts de chat.

Marie, que lhe vira as costas -está a arrumar o seu canto - não reagiu. Sarah faz sinal a Florentine para se calar: não é verdadeiramente o momento próprio para brincadeiras. A atmosfera começa justamente a desanuviar-se. Florentine, que decididamente não tem vontade de se calar, começa a "deitar cartas" às amigas.

Sarah sentou-se ao lado de Marie na cama coberta de pique branco. Escutam com ouvido, distraído as predições fantasistas da amiga.

A hora é de confidências. Daquelas que se dizem baixinho, mas que permitem por vezes fazer o ponto, depois dos acontecimentos excepcionais.

Marie não leu a Sarah o bilhete que guardou, um pouco amarrotado, no fundo húmido da mão. Mas disse-lhe o essencial das suas discussões com Michel...

"Achas que ele estava realmente zangado? pergunta Sarah.

- Acho - confessa Marie.

- Por causa da digressão?

- Não só... Sobretudo porque eu lhe disse que tínhamos muito tempo para nos casarmos. "

No seu canto, Florentine exclama: "Tirei-vos umas cartas estupendas!... Tu, Sarah, afora os paus, que representam o dinheiro dos teus pais -sim, não podes dar nada contra isso! -, tens um ás de ouros, quer dizer, um êxito fabuloso, mas não para já. Paciência!... Quanto a Marie, cobri o seu rei de copas com espadas: mau sinal para o seu príncipe encantado! Agora tiro um valete de copas com muitas outras cartas do mesmo naipe. Tu brincas com os corações, Marie! E quem é este pai nobre que entra no teu jogo? Um rei de paus misterioso que encontras durante uma viagem?... "

A mão de Marie crispa-se no pulso de Sarah. Esta está irritada com a verve de Flo.

"Florentine, já que tens coisas na rouparia, devias ir buscá-las. Ao mesmo tempo, podias trazer as de Marie, assim como as minhas. "

A cartomante arruma as cartas suspirando: "Está bem, já compreendi: o futuro assusta-vos! Aliás, ouvi o que vocês diziam há pouco. Marie tem muita razão, tem muito tempo para casar com Michel. De qualquer forma, está melhor connosco! "

Florentine acrescenta sem hesitar: "Aliás, Michel está ciumento... Ciumento de nós, ciumento de Serge e da dança." Sarah sugere:

"Porque é que Michel não vai connosco?" Marie encolhe os ombros: Sarah não compreende verdadeiramente nada! E Florentine, que se enerva, responde em seu lugar:

"Michel borrifa-se para a dança. Não acha isto sério. Para ele a dança não é uma profissão de homem! Vê-se bem que não faz porte. E depois os maiores filósofos interessam-se pela dança. Sócrates... "

Sarah interrompe-a na sua dissertação: "Pensa na roupa, Florentine, serás um amor...

- bom, bom, está bem! vou a correr!" Um pouco vexada por ser sempre tratada como miúda, Florentine fecha as malas depois duma ida e volta relâmpago à rouparia. A hora do jantar aproxima-se; a rapariga vai ter com os pais, enquanto Marie e Sarah se dirigem, tagarelando para a cantina do Centro.

Os menus da cantina do Centro estão mais próximos da dietética do que da gastronomia. Sarah e Marie escolheram os mesmos pratos: salada de soja com gruyère, peito de frango com arroz de caril, queijo branco magro e salada de toranja com melão. A única fantasia que se permitiram como suplemento foi um grande bule de chá de jasmim, sem açúcar, evidentemente!

Esta noite, elas fazem "grupo à parte". Evitando as graçolas dos rapazes que rodeiam Serge, o herói do dia, isolam-se no fundo do snack, no extremo duma grande mesa vazia. Sarah, que admitia muito bem que Marie pudesse conciliar a dança com o amor, defende a causa de Michel:

"Tu sabes, eu compreendo que ele esteja zangado. A tua decisão é tão brutal!... Confessa que, há dois dias, não tinhas tanta vontade de partir.

- Talvez. Mas tinha a sensação de trair a dança... Já, durante o exame, estive quase... Reflecti. Tenho de partir. "

Enquanto enche uma chávena de chá, Sarah replica:

"A tua decisão de partir parece-me tão pouco razoável como a tua vontade de ficar. "

Marie faz um sinal negativo com a cabeça. Sarah designa Serge com o olhar: "É por causa dele que vais?

- Não.

- Então há outra razão... Não queres dizer-ma?"

Marie hesita em revelar o seu segredo. Lembra-se de que Florentine, há pouco, deitadora de cartas a brincar, fez sair um rei nobre do seu jogo.

Acaba por murmurar:

"É inesperado para mim poder ir à América. Queria encontrar uma pessoa... "

Sarah, muito intrigada, interrompe o jantar. Inclina-se para a amiga:

"Que estás a dizer?

- Quando se está em Nova Iorque, quanto tempo é preciso para ir a Monreal?

-Que idéia esquisita!... Digamos uma hora de avião, como entre Paris e Nice. Mas que queres tu fazer em Monreal?"

Marie fixa Sarah, olhos nos olhos: "É muito grave. Tenho um encontro.

- Um encontro? com alguém muito importante?"

Marie não hesita mais. Todavia, a voz treme-lhe um pouco:

"com o meu pai. "

Sarah inclina-se levemente contra as costas cromadas da sua cadeira. Incrédula, franze as sobrancelhas. Marie explica:

"Não, não. Ele não morreu, sei-o agora. Tenho de o conhecer. "

Estabelece-se um silêncio entre as duas raparigas. Na outra extremidade do snack, os rapazes barulhentos bombardeiam-se com queijinhos, brandindo os pratos como escudos. Mas nada pode já distrair Marie e Sarah:

"Michel está ao corrente?", pergunta esta.

- Claro que não! Não deve saber nada... Por agora... é um segredo. Não posso confiá-lo senão a ti, Sarah, porque tu podes ajudar-me.

- Farei tudo o que puder. Conta comigo. Mas... ele nunca se ocupou de ti, o teu pai?"

Marie abana tristemente a cabeça, afastando a bandeja. Sarah pergunta:

"Não me digas que lhe vais pedir o seu consentimento... Para ti, não é mais do que um desconhecido. Não compliques a vida!"

Marie reage. Replica numa voz amarga:

- É a sua existência que ma complica. Se tu soubesses! "

Sarah encolhe os ombros:

"Continua então a agir como de costume! Faz como se ele não existisse. Os pais, estamos sempre com eles tempo de mais!

- Ou tempo de menos! "

Quase todos os alunos saíram do snack. As raparigas são as últimas. E falam agora em voz alta. Ninguém, afora uma criada, pode surpreender a sua conversa.

Sarah, brincando com uma colher de chá, faz já planos:

- Escuta... Indo para Nova Iorque, pode fazer-se escala em Monreal. É praticamente o mesmo preço. Então eis o que te proponho: em vez de partirmos com os outros, nós duas poderíamos safar-nos dois dias antes. Eu tenho família em Monreal: um irmão de meu pai, primos... Direi que vou visitá-los e que tu me acompanhas... Que pensas disto?

- Vamos outra vez passar por originais! Eu, sobretudo. Depois do meu noivado com Michel e do insucesso do exame, prefiro não" dar nas vistas. Vale mais não alterar a data da partida... Avisaremos mais tarde, lá mesmo. De Nova Iorque poderemos sempre dar lá um pulo, quer à volta, quer durante a estadia. "

A criada dá sinais de impaciência. Varre ostensivamente junto das raparigas, desloca mesas, limpa cadeiras.

Puxando Marie pelo braço, Sarah arrasta-a.

Naquele fim-de-semana, uma ligeira trovoada aliviara a atmosfera.

O ar que se respirava era mais fresco, as tardes pareciam mais longas e mais suaves.

De Paris, Michel não telefonara e Marie não tentara ir ter com ele ao castelo de Villecroze. Dançava, revivia, parecia ter reencontrado o equilíbrio.

Em volta dela, aliás, reinava uma espécie de amigável conspiração: mais nenhuma alusão ao seu casamento, nenhum comentário sobre a desilusão do seu exame. Até mesmo Sarah, a confidente, mantinha uma afectuosa reserva. Ela estava disponível, Marie não o esquecia. E sem dúvida que não se tornaria a falar duma viagem-relâmpago ao Canadá antes do Boeing 747 ter aterrado em Nova Iorque.

Marie passara duas noites em Grimaud. Aí também, uma espécie de armistício fora observado por Catherine e Dominique. As duas mulheres não tinham abordado qualquer assunto delicado: a existência do pai de Marie, a visita adiada de Michel.

Marie retemperara-se com delícia nas suas recordações, ainda próximas, de rapariguinha. A cama e as cortinas de cretone às flores, a colecção de aves paradisíacas em gravuras, a ternura duma mama reencontrada "como dantes", com os seus sorrisos, os seus mimos. O velho cavalo Gigondas, de narinas frementes, sempre à espera duma carícia e duma maçã, seguia-a até mesmo à sala de jantar... Sim, tudo isso a isolava no tempo, como um inviolável casulo.

No Centro, a equipa d'As Grades tornava-se muito homogênea. Os conjuntos alegóricos eram muito eficazmente dirigidos por Serge e, bem entendido, supervisionados por Lynn. Marie trabalhava pacientemente, ardentemente; muitas vezes, treinava-se sozinha, sem música, num canto do grande estúdio. Segundo as exigências dos seus papéis sucessivos, ela sabia integrar-se no grupo ou destacar-se dele. Inspirada, infatigável, aparecia já como uma grande profissional.

Nessa tarde, Suzanne Leroy mergulhou a equipa inteira numa grande agitação. Surgindo na sala mesmo no meio do ensaio, exclamou:

"Estou desolada por vos incomodar, mas tenho de vos anunciar uma coisa. Por razões de organização, temos de estar em Nova Iorque três dias antes do previsto. "

Uma vaga de murmúrios e de exclamações saudou aquela notícia. Dominando a excitação geral, Serge perguntou:

"Quando partimos, então?

-Amanhã. Às seis e meia. "

Soaram bravos de toda a parte, enquanto Suzanne acrescentava:

"Façam os preparativos, previnam as famílias. Na América, terão muito tempo para ensaiar e fazer os vossos ajustes. "

Marie ausentou-se por uns instantes para telefonar à mãe. Por causa da hora matinal, esta não viria acompanhá-la ao aeroporto.

A rapariga não fez qualquer alusão ao seu projecto de ir a Monreal e a mãe nem sequer teve a tentação de lhe falar nisso. Aquela história parecia dali em diante definitivamente esquecida.

Na véspera da partida, os bailarinos do grupo deitaram-se cedo, no Centro. Todavia, Marie ficou muito tempo acordada no escuro. Por fim, acendeu outra vez o candeeiro para escrever uma carta a Michel. Metê-la-ia no correio no aeroporto.

São cinco horas da manhã. Quase faz frio em pleno Verão.

Os compartimentos das bagagens do autocarro foram carregados por rapazes do grupo. Só se levam como cenário elementos leves. A maior parte dos acessórios já foi expedida por avião de carga há dois dias. Só falta arrumar algumas bagagens de mão e cartazes, assim como programas entregues na véspera pelo impressor e cuja tinta está ainda mal seca.

Depois de terem engolido à pressa um café, rapazes e raparigas instalam-se desordenadamente no autocarro Pullman azul, iluminado por caracteres dourados: "Os rápidos da Cote d'Azur."

Sarah, retardatária, ainda não desceu do quarto. Sem dúvida que vai dispensar o pequeno-almoço.

Deslumbrada pela luz da manhã, Marie fica um instante na escada do Centro, enquanto, no autocarro e em volta dela, as pessoas se agitam nervosamente.

O mar está imóvel. Apenas alguns sinais de bom tempo desenham sulcos lineares num azul profundo. No horizonte prendem-se, aqui e acolá, minúsculos lenços de bruma branca.

A jovem aspira o ar e olha à direita as altas palmeiras que estremecem.

De repente, pela porta do autocarro, a voz de Serge chama-a à ordem:

"Então, Marie? Vens connosco ou esperas alguém?"

Ela sobressalta-se, decide-se a vir até junto dele.

"Não espero ninguém.

-Tens a certeza?", pergunta Serge.

Mas na sua pergunta não transparece nenhuma ironia.

"Absolutamente!... "

Marie respondeu com espontaneidade muito calma. Sorrindo, o jovem bailarino continua:

"Então, sobe! Guardei-te um lugar ao meu lado. "

Marie sorri-lhe, por sua vez, e Serge repete: "Guardei o teu lugar, ao meu lado... Como de costume. "

Comovida, Marie trepa para o estribo de trás. É um pouco acotovelada pelos viajantes volúveis e gesticulantes, enquanto Sarah chega a correr.

Marie está agora instalada. Serge tirou-lhe das mãos o cestinho e colocou-o na rede portabagagens, mesmo ao lado do seu saco-mala. Ela fecha os olhos. O autocarro está ruidoso como um viveiro.

Subitamente, a voz de Serge, muito próxima, murmura ao ouvido de Marie:

"E Michel?"

Ela abre os olhos e olha para o jovem na sua frente:

"Michel, o quê? Pela minha parte, vou dizer-te uma coisa, meu Serge. Tu não passas dum pobre idiota... "

O seu terno sorriso compensa a expressão empregada. Aliás, o interessado não se ofende e conserva um rosto radioso.

Encorajada, Marie recomeça:

"Sim, um pobre idiota. Como eu, aliás! Tu também tens tendência para confundir o palco com a vida. Toda a maquinação do casamento não era mais do que uma brincadeira de crianças. Deixei-me enredar nela. Poderia ter sido grave. Mas hoje tenho consciência disso. Então... "

com um gesto, dispersa as poeiras dum sonho desvanecido. Serge parece hesitar:

"Eu gostaria de te acreditar. "

Ela agarra-lhe na mão:

"A culpa é tua, Serge! Tu enfiaste-nos aquela idéia na cabeça, com o teu ciúme, o teu sacrifício. Mas pensa: um amor que se revela diante duma câmara não pode aguentar-se... Eu já não caso com Michel. "

A alegria afastou as últimas dúvidas dos olhos de Serge:

"É verdade? Não casas com ele?

- Não tenho assim tanta vontade de viver, tenho vontade de dançar. É mais bonito e menos complicado... Enfim, só sei viver dançando. Tu compreendes-me, não é verdade?"

Ele aperta na sua, com força, a mão de Marie.

"Com certeza que te compreendo! "

Então ela recomeça, com entusiasmo:

"E para dançar são precisos parceiros, gostos comuns, projectos... "

As portas do autocarro batem. No interior reina uma alegre confusão. O autocarro arranca e parte através dos bulevares ainda desertos.

Lado a lado, Serge e Marie ficaram por muito tempo silenciosos. Foi como se se encontrassem à luz depois de terem errado, separados, dentro dum interminável túnel.

Marie murmura, sem olhar para o jovem:

"Eu sei que já não me amas. E eu? Eu não te amo ainda. "

As suas mãos tocam-se sempre sobre o banco. Serge, primeiro mudo de emoção, contentou-se com apertar um pouco mais os dedos da rapariga entre os seus.

Acaba por murmurar:

"Marie... "

Ela interrompe-o:

"Não há pressa! "

O olhar que trocam está ao mesmo tempo cheio de perturbação e de pudor.

Serge continua numa voz neutra:

"Somos amigos! "

Ela responde no mesmo tom:

"Somos camaradas. "

Mas as suas mãos, sempre enlaçadas, têm outra linguagem.

 

 

                                                                                                    Odette Joyeux

 

 

 

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