Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 43
Throe há muito ouvira que era possível fazer uma bomba com materiais comuns encontrados numa casa. Que era possível alguém produzir um explosivo potente com pouco mais do que alguns produtos encontrados na cozinha.
Contudo, embora isso pudesse ser verdadeiro, à medida que descia pela escadaria principal da mansão do hellren da sua amante, quase se sentiu desapontado com a natureza onipresente daquilo que procurava. Todavia, com seu livro debaixo do braço, e um objetivo claro em mente, disse a si mesmo que sua fé seria recompensada; sua resolução, suprida; seu objetivo, alcançado.
Mesmo que isto fosse um tanto anticlimático.
Mas, em retrospecto, agora ao menos estava focado.
Aquela confusão anterior fora muito estranha, pensou ao chegar ao átrio do térreo, onde o fogo da lareira crepitava oferecendo luz e calor, o candelabro de cristal acima reluzindo como se diamantes de verdade estivessem pendurados no teto. Parando ali, olhou para a sala de estar mais além e aprovou os sofás de seda e os candelabros, os tecidos pensos ao redor das janelas altas, as cores fortes escolhidas por alguém com muito bom gosto e fundos infinitos.
Do lado oposto do vasto espaço aberto, como era a tradição, o escritório do macho principal da casa vislumbrava poder e distinção: os painéis de madeira e os livros com capa de couro, a escrivaninha ampla com mata-borrão de couro e cadeira combinando, as janelas de vitral, emprestando ao ambiente a impressão da mais alta aristocracia, de modo que uma saudade aqueceu o meio do seu peito. Fazia muito anos desde que vivera desta maneira, com tantas cabanas nesse intervalo. Além disso, houve vulgaridade e grosseria, morte e sangue, sexo do tipo mais básico.
Não fora a vida que outrora buscara para si e, de fato, por mais que tivesse se sentido ligado ao Bando de Bastardos e ao líder deles, agora acreditava que seu período com eles não passara de um pesadelo, uma tempestade predestinada que passara pelo seu destino a caminho de criar o caos na existência de alguma outra pobre alma.
Ali era o seu lugar.
Na realidade, de todos os lugares em que estivera em Nova York, aquela mansão era a que mais se adequava a ele. Não era a maior dentre as das amigas de sua fêmea, mas era a mais bem decorada, num estilo que ele próprio teria escolhido para a sua morada...
A que logo escolheria para a sua morada, corrigiu-se, quando ele passasse a controlar a raça...
– Você não vai durar com ela.
Throe girou sobre os calcanhares. O hellren da casa, um vampiro idoso de uns oitocentos anos de vida, surgiu claudicando da toalete junto à biblioteca, o som da descarga acionada anunciando sua presença mais do que o sotaque remanescente da voz enfraquecida.
– Perdão. O que disse? – Throe murmurou, apesar de ter ouvido muito bem.
– Ela não ficará com você mais do que ficou com os outros. Você voltará para as ruas antes do Ano Novo.
Throe sorriu, ainda mais ao notar a bengala de que o macho necessitava a fim de se locomover. Por um instante, entreteve a ideia de que o instrumento poderia escorregar debaixo daquela mão artrítica, e o macho se desequilibraria, despencando no piso de mármore.
– Acredito que subestime meus atrativos, meu velho. – Throe mudou a posição dO Livro, aproximando-o do peito. Engraçado, ele pareceu formigar junto ao seu coração. – Mas isso não é um tópico educado sujeito a discussões, não é mesmo?
Cabelos grisalhos, sobrancelhas fartas e desarrumadas, tufos de pelos se projetando para fora das orelhas, as indignidades da idade, Throe pensou. E a inevitável disfunção erétil. Afinal, Viagra ajudava até certo ponto. Mesmo que o membro pudesse enrijecer graças aos farmacêuticos, se o restante do corpo fosse tão atraente quanto a carcaça de um cervo, o que mais uma fêmea jovem poderia fazer além de assumir um amante mais palatável?
– Ela saiu, sabe disso, não? – o macho comentou com voz trêmula.
Por que não existia o equivalente a uma bengala para a fala, Throe ponderou distraidamente. Um pequeno alto-falante para ampliar a voz? Talvez com um botão para acrescentar um tom mais grave ao volume.
– Sim, ela saiu – Throe entoou com um sorriso. – Pedi que ela saísse e encontrasse outra fêmea para que ela e eu pudéssemos nos divertir com um brinquedinho. Já fizemos isso antes... E ela voltará me trazendo aquilo que pedi.
Quando o macho gaguejou como se estivesse absolutamente chocado, Throe se projetou para a frente e sussurrou as palavras seguintes, como se ele e o hellren partilhassem de um segredo.
– Creio que descobrirá que isso acontecerá com bastante frequência daqui por diante. Perceberá, meu caro senhor, que não sou como os demais que a entretiveram no passado. Eu digo a ela o que fazer, e ela obedece. O que acaba por nos diferenciar, entre mim e você, não é mesmo?
O ancião recobrou a compostura e sacudiu a bengala.
– Veremos. Ela já fez isso antes. Sou eu aquele sem quem ela não consegue viver porque posso sustentá-la. Você, como um andarilho, embusteiro, um aristocrata decaído, certamente não consegue fazer isso.
Bem, Throe ponderou, talvez tivesse mal interpretado a natureza apática deste macho em particular. No entanto, isso não importava.
Throe inclinou a cabeça.
– Acredite no que quiser. Isso nunca muda a realidade, muda? Boa noite.
Ao seguir para a despensa do mordomo, o hellren disse com um pouco mais de volume:
– Usando a porta dos criados, estou vendo. Muito apropriado. Você costumava ser um membro da glymera, mas isso já não é mais verdade, não é desde que sua família o baniu das propriedades e da linha sucessória. Uma pena. A menos que veja a questão segundo o ponto de vista deles. Desgraças devem ser extirpadas, caso contrário, elas ameaçam a integridade.
Throe parou. E lentamente se virou.
Estreitando os olhos, sentiu uma raiva familiar se revolver nas entranhas, uma víbora prestes a dar o bote.
– Cuidado, velho. Eu lhe direi isto uma vez e nunca mais: não sou como os outros.
– Você é um gigolô. Troca seu corpo por alimento e abrigo como uma prostituta qualquer. Um terno fino não altera o fedor das carnes que jazem por baixo dele.
Vagamente, Throe se apercebeu que O Livro se aquecia junto ao seu esterno. E ele sentiu a tentação de ceder à ira como nunca antes.
Mas, então, ele se lembrou do motivo que o levara a descer para o térreo. E do que faria em seu quarto assim que juntasse tudo de que necessitava.
E voltou a sorrir.
– Você tem sorte por eu precisar de você.
– Melhor se lembrar disso. E ela também.
– Nos lembraremos, eu prometo. Ainda mais quando sua shellan vier até mim.
Throe seguiu adiante, deixando o hellren a sós para fazer o que quer que costumasse fazer às noites – o que deveria ser uma festa. Devido aos seus problemas de mobilidade, ele passava a maioria das noites na biblioteca dos fundos que dava para um solário, acomodado como uma estátua cuja base fora quebrada.
Portanto, quando chegasse a hora... seria fácil localizá-lo.
Encontrar a despensa com suas múltiplas prateleiras e suas filas de caixas e latas foi simples o bastante. Encontrar exatamente o que precisava, entretanto, requereria mais tempo e concentração. E ao avaliar o que fora comprado para o consumo da casa, ficou um pouco desarmado.
Mas algo lhe dizia que não fosse procurar a ajuda dos criados.
O Livro lhe disse, concluiu mais tarde. Sim, O Livro se comunicava com ele sem palavras, ao estilo de um animal com quem se tem grande familiaridade, que “fala” através dos movimentos do focinho e dos olhos, detalhes intangíveis para todos salvos os dois em questão.
Abrindo o tomo sobre a tábua de corte, Throe sorriu quando as páginas se viraram sozinhas até as passagens corretas. Em seguida, ele começou a juntar o que estava listado.
De fato, o cozido não seria agradável.
Tônico preparado com casca de angostura. Vinagre tinto. Gengibre. Alcaçuz. Rúcula. Açafrão. Sementes de gergelim.
E também precisava de cera de velas pretas. E... óleo de motor? De carro?
Por um instante, irritou-se com o esforço que seria despendido para reunir os itens, seus antigos hábitos de ser sempre servido ressurgindo. Só que, nesse instante, O Livro remexeu as páginas, como que em desaprovação.
– Muito bem – ele o segurou. – Seguirei em frente.
Pegando uma cesta de uma pilha junto à entrada, como se estivesse mesmo num supermercado, começou a pegar o que lhe fora indicado das prateleiras.
Ah, e uma panela de cobre. Imaginou que encontraria uma na cozinha.
Sim, aquele era um cozido e tanto. Todavia não parecia algo que pudesse produzir um exército, e talvez aquilo não funcionasse...
O Livro folheou as páginas, como um cão ofendido.
Throe lhe sorriu de volta.
– Não seja tão melindroso. Tenho minha fé e minha fé me tem.
Modo estranho de expor a situação, mas o refrão se alojou em seu cérebro e saiu da sua boca num murmúrio.
– Tenho minha fé, minha fé me tem, eu-tenho-minha-fé, minha-fé-me-tem, minhafémetemminhafémetem...
CAPÍTULO 44
Zypher os levou de volta ao lugar no qual vinham se abrigando muito antes da aurora surgir. A nevasca estava tão intensa e estava durando tanto que não só seus planos de viajem para o Antigo País foram interrompidos – junto com o de tantos humanos –, mas a cidade de Caldwell e suas cercanias se tornaram cidades fantasmas cobertas de neve, sem carros pelas ruas intransitáveis, nem pedestres nas calçadas impraticáveis.
Na noite anterior tentaram localizar Xcor, pelo que imaginaram seria a última vez. Mas quando ficaram presos na Costa Leste, com o voo sobrevoando o Atlântico atrasado, aventuraram-se, uma vez mais, no que certamente seria a derradeira procura do líder deles.
E, assim como antes, não descobriram nada. Quer por conta do mau tempo, quer...
Ah, a quem tentava enganar?, Zypher pensou ao fazer a curva na esquina do beco que se tornara familiar. Xcor havia desaparecido de vez, muito provavelmente em sua cova. Precisavam de fato desistir disso, ainda mais porque agora, além de frustrados, estavam congelando. Melhor descansarem, pois ao cair da noite do dia seguinte, começariam a batalha de encontrar uma luta diferente, ou quem sabe, um caminho diverso para regressarem para casa.
Uma coisa pela qual ansiava? Retomar as acomodações do castelo.
O restaurante abandonado em que vinham ficando era melhor do que muitos dos lugares nos quais se alojaram do decorrer dos séculos, mas não se comparava aos amontoados de pedras bem aquecidas deles lá no Antigo País. Contudo, tiravam vantagem do que podiam do local no qual fixaram residência, aproveitando-se da porta do prédio adjacente como rota alternativa de fuga e monitorando os demais negócios abandonados para o caso de os humanos revolverem retornar ao bairro degradado.
Sim, ficaria contente em partir, mesmo lamentando aquele que deixariam para trás.
Zypher chegou primeiro à porta, e, seguindo o protocolo, postou-se de lado e protegeu seus companheiros guerreiros enquanto eles abriam a porta e se perfilavam para entrar – não que houvesse algo do que se protegerem.
Pensou que seria bom caso tempestades como aquela acontecessem com maior frequência de modo a afastar os humanos das ruas.
Syn foi o último a entrar pela porta, e depois Zypher verificou uma vez mais o beco enterrado em neve e os prédios vazios do lado oposto. Em seguida, ele também desapareceu no interior, que não estava mais aquecido, mas que tinha muito menos brisas geladas do que o ambiente exterior.
Era um alívio não ter neve obscurecendo a vista e abafando a audição.
O som do grupo batendo os pés para se livrarem da neve e sacudindo chapéus e luvas fez com que se lembrasse do estouro de um rebanho acompanhado pelo som de pássaros. Não que tivesse algum dia visto algo semelhante, mas imaginou como seria...
– Algo errado aqui dentro.
– Alguém esteve aqui.
Conforme a presença do intruso foi percebida por todos, puseram-se em posição de defesa, agachando-se e sacando suas armas. Mas não havia ninguém...
– Cheiro de pólvora? – um deles disse.
– Talvez um sinalizador...
Nesse instante, a porta se abriu atrás deles...
E o cheiro que entrou com o frio deteve tudo. Aquele cheiro... e o tamanho do macho que preenchia o vão entre os batentes... e a aura de poder que o acompanhava...
A porta foi fechada lentamente. E ainda assim ninguém se moveu.
A voz, aquela que Zypher já desistira de ouvir novamente, disse com clareza:
– Nenhuma saudação ao seu líder? Fiquei afastado por tanto tempo assim?
Zypher deu um passo à frente na escuridão. E mais um.
Depois, com a mão trêmula, enfiou-a no casaco e pegou uma lanterna.
Era Xcor. Uma versão mais magra e envelhecida de Xcor, mas era o guerreiro sem dúvida.
Zypher estendeu a mão e tocou no ombro largo. Depois, sim, tocou-o no rosto.
– Está vivo – sussurrou.
– Sim – Xcor sussurrou de volta. – Por pouco. Mas estou.
Não soube quem deu o primeiro passo, se foi ele ou seu líder. Mas braços se envolveram e os peitos se encontraram, o presente se realinhando com o passado que sempre incluiu o macho que miraculosamente se postava diante dele.
– Meu irmão, pensei que esta noite jamais viria. – Zypher fechou os olhos. – Eu havia perdido as esperanças.
– Eu também – Xcor admitiu rouco. – Eu também.
Quando Zypher recuou, Balthazar se aproximou, assim como os outros.
Um a um, abraços foram trocados, tapas fortes dados nos ombros. Se lágrimas se formaram nos olhos, não foram derramadas, mas nenhuma voz se mostrou capaz de falar – mesmo Syn pareceu comovido, o pior dentre todos eles afetado como os demais.
A missão deles de localizar Xcor acabara se tornando uma resolução tácita de que se ao menos descobrissem o que acontecera, ou quem sabe se conseguissem localizar seus restos mortais para dispor deles adequadamente, talvez pudessem viver em paz com o ocorrido. Mas há tempos perderam a esperança de aquela reunião seria o destino deles, aquele regresso vital uma dádiva ao qual não ousavam aspirar.
– Foi a Irmandade? – Balthazar demandou. – Eles o levaram?
– Sim.
No mesmo instante, rosnados permearam o ar frio e parado como se uma matilha de lobos tivesse sido atiçada, numa promessa de sofrimento em troca do mal que fora causado a um deles.
– Não – Xcor disse. – É mais complicado do que isso.
Xcor estivera se escondendo do outro lado da rua, observando a entrada do restaurante abandonado, esperando para ver se qualquer um dos seus machos viria ao espaço vazio antes do amanhecer. Preferiu passar a noite assim em vez de ficar no interior escuro, visto que Qhuinn e Tohr, e possivelmente outros, estavam a sua caça. Temia ficar encurralado e ser assassinado.
Com isso, agachara-se dentro de um prédio sem portaria que oferecia visibilidade e vidraças pelas quais conseguiria se desmaterializar no caso de ouvir um mínimo assobio do vento que não fosse do seu agrado. E conforme o tempo passava, seus pensamentos com frequência se desviavam para Layla, o que lhe foi benéfico visto que as imagens do corpo nu dela aqueceram o seu, mantendo-o alerta apesar da exaustão incomum. Com a aproximação iminente da aurora, ele não tinha um plano certo quanto ao que fazer após a sua chegada, a não a de que não retornaria para a casa segura.
Pelo menos, com o surgimento do sol, ele não teria que se preocupar com os Irmãos indo atrás dele.
Os problemas relacionados à luz solar também os afetavam.
Só que, em seguida seus machos chegaram, materializando-se na nevasca como aparições aterrissando num cemitério, os corpanzis surgindo no meio da neve que caía, um a um. Tão feliz ficou em vê-los que abriu a boca para chamá-los do seu poleiro junto à janela. Anos de treinamento na guerra, contudo, o silenciaram antes que ele emitisse uma sílaba sequer de saudação.
Foi preciso muito autocontrole para esperar um tempo, só para ter certeza de que não haviam sido seguidos.
E, ao entrar no covil deles, não teve certeza se seria bem recebido, preocupou-se que a cadeia de poder um dia por ele criada e reforçada com brutalidade tivesse causado um motim irreversível.
Em vez disso, fora recebido como um irmão. Um cuja morte presumida fora lamentada e sentida.
Ah, como desejou que pudessem permanecer um pouco mais naquele clima de camaradagem daquele reencontro emotivo. Mas dispunha de pouco tempo, e quanto mais se demorasse com eles, menos eles estariam seguros.
– Quer dizer que fugiu da Irmandade – alguém declarou com orgulho. – Quantos deles você matou?
Pensou em Qhuinn tentando abrir os portões na entrada daquela caverna.
– Não matei ninguém. E não estou livre.
– O que isso significa? – Zypher perguntou.
Na luz certeira da lanterna do macho, Xcor cruzou os braços diante do peito e olhou cada um dos seus bastardos nos olhos.
– Fiz um juramento para o Rei Cego. Jurei fidelidade ao trono dele.
O silêncio que veio após o seu pronunciamento era esperado.
– Foi coagido, então? – Zypher inquiriu. – A troco da sua liberdade, garantiu lealdade a Wrath?
– Não, eu a dei de livre e espontânea vontade.
Balthazar meneou a cabeça.
– A Escolhida, então.
– Não, o Rei, então. – Xcor falou lenta e claramente, confiando nos longos anos de sobrevivência no campo de batalha juntos para dar às suas palavras o peso de sua total convicção. – Jurei minha lealdade a Wrath, filho de Wrath, espontaneamente, a despeito da Escolhida Layla, e não em troca de me desculpar por minhas ações passadas.
– Subjugou-se? – Zypher perguntou.
– Sim, e digo a todos vocês, o Rei quer o mesmo juramento de vocês.
– Essa é uma ordem sua? – Zypher demandou.
– Não. – Xcor uma vez mais os fitou nos olhos. – Ele quer isso em troca da exoneração da pena de morte contra vocês. Ele perdoará cada um de vocês por suas traições, e lhes garantirá um regresso seguro para o Antigo País, se forem até ele e lhe jurarem fidelidade.
– Mas você não está nos ordenando a fazer isso?
– Lutarei lado a lado com cada um de vocês até a noite da minha morte. Mas jamais os forçarei a abaixarem as cabeças diante de um líder. Respeito-os demais para isso e, além do mais, suspeito que Wrath saberia disso. Apesar da cegueira... ele enxerga as coisas com muita nitidez.
Houve murmúrios entre o grupo. Em seguida, uma voz grave disse:
– O que fizeram com você.
Aquele era Syn, e não foi uma pergunta.
– Mantiveram-me livre.
– Um traidor em meio a eles – o bastardo disse ao dar um passo adiante. – Um traidor do Rei deles e ainda assim o mantiveram vivo?
– Feri-me no campo de batalha. Levaram-me e me mantiveram vivo.
Zypher meneou a cabeça.
– Wrath, assim como você, não é conhecido por sua fraqueza. Isso não faz sentido.
– É a verdade. – Xcor virou as palmas na direção dos céus, erguendo-as. – Digo-lhes apenas o que aconteceu. Fui ferido, eles me levaram, e garantiram que eu sobrevivesse. – Para que pudessem torturá-lo, fato. Mas queria paz entre a Irmandade e os Bastardos, então editaria essa informação. – Fugi e agora os procurei.
– Isso não faz sentido algum – Syn ecoou numa voz baixa e maligna. – Você fugiu, mas então como fez seu juramento a Wrath? Foi mantido prisioneiro por uma facção da Irmandade, sem que o Rei soubesse?
– Os detalhes não importam.
– Ao inferno que não. E não compreendo esse juramento. Não é da sua natureza se submeter a outrem.
Xcor sorriu com frieza.
– Não creio tê-lo ouvido falar tão longamente assim antes, Syn.
– Se existe um motivo para conversamos, este é ele. E volto a repetir, isto não faz sentido algum e não compreendo por que abaixou a cabeça diante de outro.
– Evolução do meu pensamento.
– Ou do seu pau.
Antes que Xcor pudesse pensar duas vezes, grudou no rosto de Syn, apesar de o outro guerreiro superá-lo atualmente em peso.
Expondo as presas, Xcor disse:
– Não me subestime. Estou propenso ao igualitarismo, mas até certo ponto.
Os dois se encararam, olho no olho, peito contra peito, por algum tempo, e os demais recuaram para o caso de uma briga se desencadear.
– Por conta de uma fêmea, então – Syn disse arrastado.
– Por conta do amor da minha vida. E trate de se lembrar disso, bastardo.
Enquanto Xcor falava, a fragrância da sua vinculação emanou, e isso chamou a atenção do outro macho. As sobrancelhas de Syn se ergueram, e ele se retraiu sutil, mas perceptivelmente para alguém que o conhecia até a medula – que era o caso de Xcor.
Depois de um instante, a inclinação de cabeça de Syn foi leve, mas incontestável.
– Perdão.
– Aceito. E ela não tem nada a ver com isto. – O grupo respirou coletivamente em alívio quando a agressividade se dissipou, mas Xcor não lhes deu tempo para relaxar. – Como já disse, em troca do juramento de vocês, Wrath os exonerará de qualquer punição, mas terão que retornara para o Antigo País. Assim como eu.
Zypher riu.
– Na verdade esses eram os nossos planos. Estávamos prestes a partir, mas com esta nevasca... Ela nos impediu como se este reencontro tivesse sido programado pela Virgem Escriba.
– Um acontecimento fortuito, sem dúvida.
O grupo se calou, e Xcor lhes deu tempo para avaliá-lo e pensarem no que ele lhes contara. Mas não poderia se demorar mais com eles.
Já fora alvejado uma vez nesta noite. Não queria atrair os Irmãos até ali.
– Portanto, é isto o que temos na mesa de negociações – disse ele. – Vou deixá-los para que reflitam. Se escolherem não fazer isso, são grandes as chances de retornarem para a mãe terra, e permanecerem em segurança por algum tempo. Mas essa é uma existência da qual já estou farto. Nunca deixarão de olhar por sobre os ombros, e, não se enganem, Wrath um dia os procurará. Pode demorar um tempo, visto que existem outras prioridades. No fim, contudo, a vingança dele será encontrar vocês. Ele é um macho a favor da paz, mas não da castração.
– Espere – Balthazar interveio. – Se você está com o Rei, por que não é seguro para nós estarmos ao seu lado? Presumo que seja por isso que esteja partindo.
Xcor hesitou, e depois concluiu que parte das informações eram devidas.
– Alguns dentro da Irmandade não estão aceitando o meu juramento.
– O pai do filho da Escolhida, imagino – um dos guerreiros disse.
Xcor deixou isso pairar no ar, pois tanto era uma conclusão lógica quanto não da alçada deles. Jamais negara que a Escolhida estivesse grávida, mas tampouco comentara a esse respeito – e certamente não discutiria sua vida particular com ninguém, nem agora, nem nunca.
Xcor voltou para a saída.
– Vou deixá-los por enquanto. Vocês têm muito em que pensar. Eu os encontrarei daqui a vinte e quatro horas, no nosso ponto de encontro. Vocês poderão me dar suas respostas, então.
Ele suspeitava que todos eles já sabiam qual ela seria. Mas precisava de tempo para garantir que, caso os levasse diante de Wrath, seus machos estariam seguros.
– Aonde irá agora? – Zypher perguntou.
– Eu os encontrarei às quatro da manhã de amanhã. – Xcor se virou. E antes de abrir a porta, olhou por cima do ombro. – Nunca pensei que voltaria a vê-los.
O fato de sua voz se partir não era algo que ele pudesse mudar. E também era evidência de quanto ele havia mudado.
E não era que ele fosse um macho novo, pensou ao se preparar para voltar a enfrentar o frio e a neve.
Não, seria melhor dizer havia voltado a ser o indivíduo que outrora fora, a transformação um retorno para o macho que a ambição e a crueldade haviam eclipsado. E descobriu que esse retorno era tão bem-vindo quanto a visão daqueles guerreiros, a única família que ele jamais conhecera, aqueles que o aceitaram quando todos os outros, tanto do seu sangue quanto desconhecidos, o rejeitaram.
Conforme a neve açoitava seu rosto e o vento cortava as roupas que pegara emprestado, rezou para conseguir a paz verdadeira com o Rei que tentara destronar de modo a fazer com que seus soldados ficassem a salvo.
Se não poderia ficar com a fêmea que tinha seu coração e sua alma? Pelo menos poderia cuidar dos guerreiros que o serviram tão bem por tanto tempo.
Isso ele teria que compensar.
CAPÍTULO 45
No fim de tarde do dia seguinte, Layla despertou e de pronto estendeu o braço para os filhos, mas não havia necessidade para se preocupar. Rhamp e Lyric estavam bem ao seu lado na cama elevada dos aposentos privativos da Virgem Escriba, com os preciosos cílios repousados, a respiração profunda e a expressão de concentração evidências dos esforços que faziam para crescerem sãos e fortes.
Quando ela rolou de costas, teve a sensação de que a noite estava chegando lá embaixo na Terra. Era sempre assim, uma transmutação das mudanças de lá, da luz para a escuridão, de estação em estação, reverberando no Santuário.
Movendo-se com cautela a fim de não perturbar os bebês, levantou-se e parou um instante para observar seus rostinhos. Fora um período adorável, esse interlúdio particular, cada momento saboreado, cada toque e cada sorriso, cada afago e cada carinho, detalhes com que encheu seu coração.
Como os deixaria?
Seria muito difícil, uma ferida aberta que estivera cicatrizando durante aquelas horas pacatas e cruéis.
Para se poupar das lágrimas, virou-se e afastou-se ao longo do piso de mármore. Pensar que dormira no espaço pessoal da Virgem Escriba com os filhos era quase bizarro demais de compreender, mas tampouco teria imaginado uma noite em que a mãe da raça não existisse mais e que houvesse uma alternância de visitações entre ela e Qhuinn.
No entanto, as mudanças aconteciam quando deviam e, por vezes, só o que nos resta fazer é aceitar e fazer o que pudermos.
Além disso, os aposentos foram muito confortáveis; a cama, macia; o piso de mármore branco, bem como as paredes e os armários, tranquilizadores; a...
Layla franziu o cenho. Do lado oposto, uma das portas dos armários estava entreaberta. Estranho. A extensão de portas de mármores com puxadores quase invisíveis estivera completamente fechada quando ela entrara ali para descansar.
Aproximando-se, sentiu-se nervosa sem nenhum motivo aparente. Seria improvável que a Virgem Escriba estivesse se escondendo ali ou algo assim.
Enganchando o dedo no puxador, ela abriu a porta, sem saber o que esperava ver...
– Ah... Oras.
Uma legging com estampa de zebra. Uma jaqueta de couro preta. Botas grandes como a sua cabeça, um boá de plumas rosa, calças jeans, camisetas básicas brancas e pretas...
– Tentei não te acordar.
Layla girou ante a voz masculina e cobriu a boca com a mão para não acordar os bebês. Quando viu quem era, contudo, abaixou o braço e franziu a testa em sinal de preocupação... e do mais absoluto choque.
Não, não podia ser...
Lassiter, o Anjo Caído, sorriu e se aproximou dela, os longos cabelos loiros e negros balançando até o quadril, os piercings e as correntes douradas fazendo-o brilhar.
Ou talvez ele brilhasse por algum outro motivo.
Layla pigarreou enquanto as implicações se avolumavam umas sobre as outras.
– Você está... ela está... ou fez... o que...
– Sei que está balbuciando assim porque está tão animada – ele disse – que acabou sem palavras.
Layla sacudiu a cabeça – para em seguida assentir para não ofendê-lo.
– É só que... quero dizer... você?
– Isso mesmo, eu. A Virgem Escriba me escolheu. A mim, eu, euzinho. – Ele fez alarde ao dar pulinhos como uma menina de seis anos de chupeta e sapatos de sapateado. Só para, em seguida, deixar a bobagem de lado e ficar muito sério, fitando-a nos olhos com uma expressão inflexível. – Não contei a ninguém ainda, nem você pode contar. Só imaginei que, como está ficando aqui com os bebês, acabaria descobrindo cedo ou tarde porque estou me mudando para cá.
Ela olhou para a cama em alarme, mas ele levantou as palmas.
– Ah, não, não ficarei aqui enquanto você estiver. Sei que quer a sua privacidade e respeito isso. Também quero ajudá-la. Você passou por maus bocados, não passou?
A compaixão e a compreensão de Lassiter foram tão inesperadas que ela se emocionou.
– Oh, Santa Virgem Escriba, estou tão... – Deteve-se ao perceber que essa expressão já não se aplicava mais. – Hum...
– Pois é, não sou virgem e odeio escrever. Portanto, vai ter que dizer outra coisa. Eu estava pensando em algo do tipo Grande e Sublime Pooh-Bah,1 mas creio que os humanos já fizeram isso, malditos.
– Ah... – Ela hesitou, pois estava tão surpresa que não conseguia pensar em nada para dizer. – Bem, tenho certeza de que pensará em alguma outra solução.
Mas só os deuses sabiam o que poderia ser.
– E quanto aos aposentos – ela disse –, não quero atrapalhar. Mudarei nossas coisas para o dormitório...
– Não, não, eu não durmo aqui. Só pendurei algumas roupas para ver qual era a sensação, só isso. Esta promoção também requer alguns ajustes da minha parte – sabe, tentar descobrir que poderes eu tenho. – Inclinou-se para perto de modo conspiratório. – Isto é, com o que é que consigo me safar. Ei! Sabia que eu sei fazer nevar?
– O quê?
– Neve. – Imitou algo caindo com as pontas dos dedos. – Sei fazer uma porrada de neve. E sabe o que vai ser ainda mais divertido? Observar os cientistas humanos tentarem descobrir porque aquela nevasca aconteceu. Vão começar a falar de mudança no clima do planeta, mas eu tinha que ajudar o seu garoto.
– Xcor? Desculpe... Não estou entendendo.
– Longa história. Bem, voltando, como você está? E as crianças?
Ele perguntou como se nada estivesse acontecendo.
– Perdoe-me, hum... ah...
– Vamos tentar Vossa Excelência.
Layla piscou.
– Tudo bem. Perdoe-me, Vossa Excelência, mas como ajudou Xcor?
– Eu precisava manter o s guerreiros dele por estas bandas. Portanto, olha o veeeento do norte!
– Quer dizer que ele os localizou!
– Sabe, no fim o destino é coisa demais para alguém como eu. – Deu de ombros. – Quem haveria de saber que era preciso tanto esforço para dar às pessoas uma oportunidade de elas exercitarem o livro arbítrio? É como se o mundo fosse um tabuleiro de xadrez para cada uma das pessoas das quais estou encarregado. Portanto, estou jogando umas cem mil partidas ao mesmo tempo.
– Uaaau.
– Pois é, está vendo? Graças a Deus pelo Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade! – Deu um amplo sorriso, e depois franziu o cenho. – Na verdade, acho que agora podemos dizer “graças a mim”.
Layla teve que sorrir.
– Por certo você será uma mudança e tanto, Vossa Excelência.
Lassiter revirou os ombros.
– Não, isso soou estranho. Vamos tentar “Eminência”. Tenho que usar algo com o qual me sinta à vontade.
– Muito bem, Vossa Eminência.
Ele estalou o pescoço.
– Não. Também não vai ser isso. Teremos que trabalhar mais nesse título... Ah! – O Anjo Caído, hum, o chefe de tudo... hum... deu um pulo como se tivesse sido cutucado na lateral do corpo. – Ok, tenho que ir. Cuide-se, está bem, e você sabe o que tem a fazer depois.
– Eu sei?
– Sabe, sim. Você tem uma carta para jogar, uma peça para mover, na verdade. Você sabe o que é. E lembre-se – levou o indicador aos lábios –... psiu. O meu trabalho é o nosso segredinho até segunda ordem.
– Ah, sim, claro.
– Tchauzinho!
Dito isso, Lassiter desapareceu, uma cascata de luzes tremeluzentes caindo até o chão, e bem nessa hora Cormia apareceu na porta dos aposentos privativos.
– Como estão todos? – a fêmea perguntou.
Ah, então ele foi embora para não ser visto, Layla concluiu.
Voltando ao presente, Layla se recompôs.
– Ah... foi tudo bem. Muito bem mesmo, obrigada.
A outra Escolhida avançou até perto dos bebês.
– Olá, crianças. Estão acordando? Oi, oi, tudo bem?
Sub-repticiamente, Layla foi até o armário para fechá-lo de modo que a estampa de zebra não aparecesse – e depois tentou sorrir, como se não soubesse o que sabia, nem tivesse ouvido o que ouvira.
– Eles se comportaram muito bem. Claro que segui a rotina deles. Deixe-me apenas juntar o lixo e poderemos descer.
Ela foi até a sacola em que juntara as fraldas usadas e passou a alça pelo ombro. Depois se aproximou da cama.
– Tenho certeza de que Qhuinn estará animado em vê-los. Sei que eu estava quando... bem, estou contente que tenha vindo me ajudar com o transporte de novo. Obrigada.
Os olhos de Cormia estavam entristecidos, mas a voz saiu firme e deliberadamente jovial.
– Mas claro! Qual deles prefere segurar agora?
– Rhamp, foi carreguei Lyric aqui para cima. – Mudando a bolsa de lugar para deixá-la às costas, dirigiu-se ao filho. – Tenho que dividir meu tempo. O que é justo é justo afinal.
Relanceou para Cormia enquanto esta apanhava Lyric. Não havia como evitar. Não que não confiasse na Escolhida com essa tarefa... mas era uma coisa de mahmen.
Uma coisa de mãe, como Beth teria dito.
– Alguma coisa excitante aconteceu? – Cormia perguntou ao segurar Lyric nos braços. – Alguma novidade?
– Não – Layla murmurou. – Nenhuma.
– Consegui o emprego, consegui o em-pre-go!!
Therese continuou a falar consigo pelo reflexo do espelho enquanto passava um pouco de maquilagem nos olhos e alisava os cabelos. Pretendia prendê-los de modo que não caíssem no rosto, mas se não acalmasse um pouco os fios antes, ela ficava com a sensação de ter um tutu de bailarina no alto da cabeça.
Engraçado, ela sempre presumira que todas aquelas ondas fossem herança da mãe.
No fim, não era nada disso.
Puxando o fio da tomada, deu mais uma espiada para ver se não havia exagerado na base e no blush. Depois assentiu para si mesma.
– Prontinho.
Bem quando estava para apagar a luz, uma barata passou correndo na frente da banheira manchada, e ela teve que se conter para não pisoteá-la – ainda estava descalça. Isso teria sido bem nojento.
– Mal posso esperar para sair deste pulgueiro.
Entrando na sala/quarto/cozinha, que soava muito melhor do que a triste realidade de tudo aquilo, apanhou o casaco, o celular, a bolsa e, num impulso, um cachecol. Junto à porta, parou um instante para abaixar a cabeça e enviar uma oração de proteção à Virgem Escriba.
Mas não por causa do emprego novo ou do trajeto até lá. Era para descer as escadas e passar pela entrada do prédio, chegando à rua sã e salva.
Lamentável pensar que se está mais segura nas ruas escuras de uma parte ruim da cidade do que no seu próprio prédio.
Mas, pelo menos, tinha seu plano já detalhado: na semana e meia desde que se mudara para ali com sua mala, a mochila e setecentos dólares em espécie, criara um procedimento para sair de casa. Primeiro passo? Orelha na porta.
Fechando os olhos, concentrou-se no que acontecia no corredor. Nada muito diferente da rotina. Os mesmos gritos e a mesma música alta demais, alguns tapas abafados.
– Maravilha! Agora passo número dois.
Ela soltou a corrente, destrancou a barra que corria verticalmente e destrancou a porta. Depois saiu e trancou tudo rapidinho. Não sabia se corria mais perigo andando pelo corredor ou sendo forçada a voltar para o quarto. Claro que, como fêmea vampira, era mais forte do que a maioria dos machos humanos. Mas o que mais a preocupava era se um deles a abordasse com uma arma de fogo. Provavelmente saberia lidar com uma faca ou navalha de qualquer tipo, mas uma bala era...
Mas. Que. Droga.
Como se estivesse esperando que ela saísse, o esquisito do outro lado do corredor saiu na mesma hora que ela. Comparado a ela, ele parecia muito mais relaxado ao sair, sem pressa alguma. Primeiro porque devia estar muito doidão, segundo, ela tinha a impressão, mesmo com o mínimo de interação que tivera com ele, que ele meio que estivesse encarregado daquele lugar.
O que estava garantido era que ele sempre a encarava como se ela fosse uma refeição a ser consumida.
Nojento.
Preparando-se para o tipo de cantada barata que ele lançaria, ela...
– Ai, cacete! – ele murmurou ao vê-la.
E logo se virou e começou a se debater com a maçaneta da porta. Como se quisesse voltar para o apartamento.
Therese olhou para uma ponta e para a outra do corredor. Não havia mais ninguém por perto. Talvez estivesse sofrendo alguma alucinação paranoica ou algo assim? Tanto faz, não tinha a mínima intenção de ir perguntar se ele estava se sentindo bem ou reclamar do fato de que, de repente, ele parecia disposto a evitá-la.
Apressando-se, ela seguiu para a escada, descendo os degraus às pressas. Sabia que provavelmente deveria se desmaterializar, mas todas as janelas no prédio inteiro eram cobertas por uma grade aramada de aço e nenhuma delas se abria. E embora fosse quase certo de que o concreto, os tijolos ou o diabo que fosse o material constituinte das paredes não estaria fortalecido com nada; ela não podia correr esse risco. Ouvira histórias de terror do que acontecia quando os vampiros calculavam mal e tentavam se desmaterializar por paredes.
E como estava sozinha no mundo, esse era mais um risco que não podia se dar ao luxo de tentar.
Therese estava na metade das escadas, prestes a fazer uma curva quando dois homens que vinham subindo chegaram ao patamar junto com ela.
Reconhecendo-os da entrada, abaixou os olhos e enfiou as mãos no casaco para aproximar mais a bolsa do corpo.
Os dois deram um salto e se chocaram, antes de grudarem na parede de modo a deixar que ela passasse.
Quando algo semelhante aconteceu enquanto saía pela entrada da frente, outro humano que ela vira vagabundeando ao redor do prédio saindo rapidamente do seu caminho, ela concluiu que devia estar com alguma doença transmissível que somente a outra espécie reconhecia?
Mas, pensando bem... Caramba, será que descobriram que ela era uma vampira? Não tinha a mínima noção do que poderia ter feito para se revelar, mas por que outro motivo esses caras a tratavam como se ela estivesse com uma dinamite nas mãos?
Claro que deviam estar todos drogados, mas uma psicose coletiva envolvendo mulheres de cabelos escuros era altamente improvável.
Ainda assim, por que discutir com aquilo que a mantinha segura? A menos, claro, que se tratasse de descobrirem a respeito da sua espécie, e se fosse o caso, estaria em sérios apuros. Mas, mesmo assim, que tipo de credibilidade aquelas pessoas teriam? Viciados em drogas frequentemente sofrem ilusões, correto?
Do lado de fora, ela fez uma pausa.
Uau. Neve. Por toda parte... neve. Devia haver pelo menos um metro ao redor do prédio, e o vento que a manteve acordada durante o dia empurrou os flocos formando montes.
Ao sair, não se surpreendeu em ver que o caminho até a calçada, por mais ridículo que ele fosse, não havia sido liberado. O que a incomodou foi que suas botas Merrells, a prova d’água e confortáveis, só chegavam até os tornozelos. Meias molhadas seriam moda esta noite, concluiu.
Quando chegou à calçada, descobriu que o concreto também não fora limpo, evidentemente. Olhando para a direita e para a esquerda, debateu-se se não deveria simplesmente mandar tudo para os ares e se desmaterializar em plena vista, mas não. O sol já se pusera, mas estava mais ou menos escuro ainda, e o brilho da cidade se refletia e era amplificado pela camada branca.
Acabariam por notá-la, por isso precisaria encontrar um local mais escondido.
Descendo dois quarteirões, aninhou-se dentro do casaco desgostando bastante da queimação de frio nas orelhas. Pelo menos o pescoço estava aquecido e as mãos estavam protegidas dentro dos bolsos do casaco. Virando à esquerda, entrou num beco bem mais escuro que a rua de trás, fechou os olhos e...
... se desmaterializou até os fundos do restaurante Sal’s.
Ao retomar sua forma, percebeu alguns carros entrando e se aproximando da entrada de serviço. Humanos, um homem e duas mulheres, saíram dos carros, sem dizer muita coisa ao se apressarem para a porta dos funcionários como se estivessem atrasados ou com frio. Talvez ambos.
Therese seguiu os exemplos deles, segurando a porta aberta antes que ela voltasse a se fechar, depois batendo as botas para tirar a neve no capacho de borracha logo na entrada.
– Oi.
Quando ela levantou o olhar, foi para encarar um macho humano extremamente atraente. Ele tinha cabelos loiros escuros, olhos azuis como o de uma caneta marca texto e um maxilar quadrado perfeito.
– Você é a recém-contratada? – ele perguntou.
– Sou, sim.
Uma mão bem grande foi estendida na sua direção.
– Sou Emile.
– Therese. Tres.
– E você tem um sotaque. Como eu. Bem, não é francês, como o meu.
Ela sorriu.
– Não, não sou da França.
Não houve um esquete do Saturday Night Live que começava bem assim?, pensou. Talvez ela fosse uma vampira e ele, um alienígena.
– Venha, vamos para a saleta dos funcionários? – Ele indicou o caminho à frente. – Oui?
Ela assentiu e o seguiu, tirando o cachecol e desabotoando o casaco.
– Já trabalhei como garçonete antes. Mas ainda estou nervosa.
– Enzo, o gerente da frente do salão? Fez entrevista com ele? Ele é muito camarada. Muito bom. Ele lhe dará uma chance.
– Recebi uma cópia do cardápio. Passei o dia decorando-o.
Ao entrarem na cozinha, havia uma antessala com armários onde os funcionários podiam guardar seus pertences, e ela passou os olhos pelas pessoas que estavam por ali conversando. Os homens e as mulheres pareciam estar com vinte e poucos anos, evidentemente se esforçando para começar a vida e se tornarem independentes da família – o que era exatamente o que ela estava tentando fazer. Uns dois olharam para ela, mas a maioria só estava se preparando para o início do jantar.
O encarregando pelo funcionamento da frente da casa, Enzo Angelini, apareceu e se dirigiu a ela e aos demais.
– Que bom, você está aqui. Atenção todos, esta é Therese. Therese, você aprenderá o nome de todos com o tempo. Venha comigo para assinar a documentação, e já separei seu smoking.
Havia algo de reconfortante em seguir uma rotina e procedimentos. Depois que saiu de casa, tudo estivera livre, sem limitações, mas também leve demais com uma sensação meio de “cair na estrada sem lenço nem documento”.
Isto seria algo bom.
A única coisa não tão boa que vinha acontecendo? Ela parecia incapaz de se livrar dos pensamentos envolvendo aquele macho de duas noites atrás. Imagens dele eram como uma ressaca sem ter bebido nada, a cabeça latejava, seu estômago se contorcia quando ela se lembrava do beijo.
Ele parecera determinado em deixá-la em paz.
E isso ainda parecia ser um bom plano.
Entretanto parecia estranho sentir a falta de alguém que não conhecia, alguém que era um completo desconhecido. Mas seu coração doía um pouco ante o pensamento de que nunca voltaria a vê-lo.
Nada disso importava, contudo. Deviam ser os hormônios. Ou quem sabe a tristeza por tudo o que acontecera quando ela partira do Michigan estivesse contaminando outras áreas da sua vida.
Isso, devia ser isso mesmo.
Porque como seria possível lamentar a perda de alguém que você não conheceu por pouco mais do que vinte minutos?
Pooh-Bah é uma das personagens da ópera cômica “Mikado”, de Arthur Sullivan e libreto de W.S. Gilbert. (N.T.)
CAPÍTULO 46
Assim que entrou no quarto dos gêmeos, Qhuinn estava preparado para ficar sozinho com eles, preparando-os para irem à casa dos pais de Blay... Mas Cormia estava junto aos berços, acomodando-os. A boa notícia? Pelo menos Layla não estava por perto, ainda que sentisse o cheiro dela pairando no ar – e esse insulto só piorou ao se aproximar dos berços e sentir o mesmo cheiro nas crianças.
Ignorando a shellan de Phury, ele imediatamente marchou para o banheiro, colocou as duas banheiras dentro das cubas fundas da pia, e deixou a água quente correr.
Quando ele saiu, Cormia encarou-o de um modo direto que ele não apreciou.
– Gostaria que eu o ajudasse com os banhos? – perguntou.
Como se ele fosse incapaz de fazer isso.
– Obrigado, mas não.
A Escolhida hesitou, ainda parada entre os dois berços.
– Veja bem, sei que agora está bem difícil.
Na verdade, não sabe, não, ele pensou.
– Mas – a fêmea continuou – Layla adorou estar com eles, e você pode ver que eles estão muito bem.
Pelo menos seus filhos ainda estavam respirando. Isso era verdade.
– Eu acredito mesmo que você...
Qhuinn levantou a mão.
– Obrigado por sua ajuda e preocupação. Verdade, você foi ótima. Não sei dizer o quanto sou grato.
Com gentileza, porém firmemente, ele a segurou pelo cotovelo e a acompanhou até a porta.
– Sério mesmo, simplesmente maravilhoso.
Assim que ela pisou no corredor das estátuas, ele fechou e trancou a porta – e logo se envolveu com os banhos, garantindo que a temperatura estivesse na temperatura perfeita, lavando primeiro Rhamp, porque era muito mais fácil lidar com o filho, por tantos motivos, e depois lavou, ensaboou e enxaguou Lyric.
Quando o par estava de volta aos berços, todos coradinhos e quentinhos, ele pensou que agora ainda teria que vesti-los para a excitante saída da casa.
Aproximou-se do armário, onde duas cômodas foram colocadas lado a lado. E ao abrir as gavetas, maravilhou-se com todas aquelas roupinhas pequenas, os macacõezinhos e as camisetas pequeninas, as “calças” e as “saias”. Por um segundo, imaginou quanto tempo levariam para lavar todas aquelas peças, dobrá-las, e garantir que estivessem no lugar correto, tudo rosa de um lado, e marrom e azul do outro.
Layla gostava de arrumar Lyric com as roupinhas mais bonitas e delicadas.
Por isso ele vestiu a filha num par de jeans e uma camisa polo do irmão. Depois arrumou Rhamp no menor conjunto de terno e gravata que já vira a não ser os do boneco Ken.
Consultou as horas, pensando se deveria tomar um banho também, mas caramba como o tempo voara. Tivera a intenção de chegar à casa dos pais de Blay bem antes da Primeira Refeição. Mas naquele ritmo? Teria sorte de levá-los até lá antes que pudessem dirigir eles mesmos. E pensou nisso antes de calçar as minúsculas botinhas e vestir os diminutos casacos – e a merda de ir para a frente e para trás até conseguir colocar os dois nos malditos bebês-conforto.
Quando finalmente colocou os dois recém-trocados, completamente vestidos e protegidos contra o frio – e amarrado os dois nos bebês conforto como se corressem o perigo de começarem a dançar break dentro dos ninhos acolchoados? De verdade, olhou para a cama e pensou se não seria uma boa ideia tirar uma soneca.
Mas, caramba, seu trabalho era lutar contra redutores. Que tentavam matá-lo.
Não era que sua base de comparação fosse um maldito trabalho burocrático atrás de uma mesa.
– Ok – disse para os dois rostinhos que o encaravam. – Prontos? Vamos em frent...
Nesse mesmo instante, um fedor que era um híbrido de bomba de mau cheiro, de uma lagartixa morta e de algum tipo de fruta podre subiu e o atingiu com tudo nas narinas.
Jesus H. Cristo. Aquele era o tipo de coisa que o faria lacrimejar, devido ao qual seu nariz ameaçava arrumar as malas e abandoná-lo com nada mais que um par de buracos negros no meio do seu rosto.
– Tá de brincadeira...!
Por uma fração de segundo, imaginou se não poderia ir embora daquele jeito mesmo. Afinal, poderia abrir as janelas do Hummer, aumentar a calefação, e com um tanque de oxigênio auxiliar talvez conseguisse atravessar a cidade.
Inclinando-se para baixo, ficou evidente que Rhamp armara a bomba quente. E Qhuinn teve que admitir, ao desatar o cinto e voltar a pegar o garoto, que ele meio que respeitava o esforço feito, de macho para macho.
Pois é, nada de cocozinho de menina para o seu garoto. O menino descarregava merda como se devia.
Hum... Literalmente.
Pois é.
De volta ao trocador. Uma vez mais o botão e o zíper da miniatura de calças que provocava câimbras nas mãos grandes de Qhuinn. E depois...
– Uau... Ufa! – Qhuinn murmurou ao ter que virar a cabeça para inspirar um pouco de ar fresco.
Quem haveria de dizer que era possível enxergar Deus sem sair do planeta?
E a limpeza requereria uma escavadeira e uma roupa especial contra materiais tóxicos.
Nesse meio tempo, Rhamp só ficou ali, deitado, olhando para ele com os punhos pequenos girando como se ele quisesse um tapinha de palmas no ar como forma de cumprimento.
Dada a falta de foco e de concentração, era possível que se chegasse a essa conclusão, e por mais que os vampiros amadurecessem muito mais rapidamente nos primeiros estágios de vida, evidentemente o olfato deles não se ajustava até muito mais tarde. De outro modo, o filho não estaria sorrindo.
Enquanto Qhuinn abria as abas da fralda, teve que sacudir a cabeça.
– Você é um verdadeiro cagão, sabia?
Uma batida à porta lhe deu a desculpa para virar a cabeça para esse lado e inspirar profundamente.
– Oi!
Saxton, o advogado do Rei e primo de Qhuinn, inseriu a cabeleira loira e perfeita para dentro do quarto.
– Estou com aqueles documentos que você...
O retraimento dele teria sido cômico se Qhuinn não estivesse até os cotovelos em cocô de bebê.
O advogado até tossiu. Ou talvez fosse o som de ele reprimindo uma ânsia de vômito.
– Santíssima Virgem Escriba, o que é que você anda dando para eles comerem?
– Leite em pós Enfamil.
– E isso legal?
– Na maior parte, sim. Embora, dependendo do trato digestivo no qual o leite é processado, evidentemente existem aplicações militares.
– De fato. – O macho meneou a cabeça como se estivesse tentando organizar as ideias sem inspirar aquele fedor. – Como eu dizia, tenho aqui aquilo que me solicitou.
– Maravilha. Obrigado. Pode colocar no bebê conforto de Rhamp? Não, pensando bem, na mochila de fraldas. Como pode ver, estou com as mãos ocupadas agora.
– Sim, e creio que ninguém na casa apreciaria se sua atenção fosse desviada. Pensando bem, talvez toda a costa leste.
Enquanto Qhuinn fechava a fralda suja debaixo do bumbum do filho, e começava a puxar os lenços umedecidos como se fosse fazer um paraquedas formando por eles, ficou se perguntando o que faria com aquela Pampers. Talvez a queimaria no quintal dos fundos?
A chama provavelmente seria verde. Seguindo essa teoria, ele deveria então apagar as luzes e ver se ela brilharia no escuro.
– Qhuinn.
– Fala, cara.
Quando o macho não disse nada mais, Qhuinn relanceou por cima do ombro para o advogado meticulosamente bem vestido.
– O que foi?
– Tem certeza? Disso?
– Sim, tenho absoluta certeza de que esta fralda precisa ser trocada. E obrigado, você foi de muita ajuda. Mesmo. De verdade.
Aquilo serviria como adeus. Sentia-se imensamente grato, mas estava programado para encerrar aquela conversa e afastar qualquer pessoa de perto dele.
E olha que deu certo.
Saxton não se demorou muito mais depois disso, e logo Qhuinn voltou a prender o filho no bebê conforto, lançado a mochila no ombro e pegou o outro transportador de bebês.
Na mesma hora, apoiou-os no chão. Abriu a porta que Saxton fechara ao sair. E tentou de novo aquela coisa que carregá-los para fora do quarto.
Porque seria meio que difícil virar a bendita maçaneta se as mãos estavam ocupadas.
Ao avançar ao longo do corredor das estátuas, sentiu uma exaustão permanente e concluiu que talvez as causas fossem algumas possíveis. Não dormira o dia inteiro, a mente se consumindo com pensamentos de Blay, raiva em relação a Layla, e ansiedade a respeito do bem-estar de Rhamp e de Lyric. Além daquela coisa de Xcor. Sem falar na Olimpíada infantil de preparar as crianças para aquela saída.
Infernos, talvez fosse um estado depressivo antecipado só de pensar em prender aqueles malditos bebês conforto nas bases que estavam presas na parte de trás do Hummer. Fizera um teste ao anoitecer e quase perdera a cabeça tentando decifrar como encaixar aquelas merdas de plástico alinhadas onde deveriam se firmar – e isso sem ter Rhamp e Lyric acomodados dentro das coisas.
Por que os idiotas humanos que faziam aquelas coisas não as construíam de modo que as duas partes se encaixassem como os problemas de Sherlock Holmes? Era de se imaginar que se aqueles ratos sem cauda conseguiram enfiar um filho da puta com roupas de astronauta na superfície da Lua, também deveriam ser capazes de impedir que pais brigassem com assentos para carro.
Simples assim.
Quando chegou a escadaria principal, deixou que a mente continuasse a vagar, dando permissão ao cérebro para reclamar sobre qualquer equipamento e acessório infantil.
Isso era melhor do que ficar se preocupando se Blay estaria ou não na casa dos pais. Se eles superariam essa crise. Ou não.
Muito melhor.
Quando Layla retomou sua forma na varanda de trás do rancho, acabou acionando os detectores de movimento que a iluminaram. Mas, não foi um problema. Nenhum humano a teria visto chegar de lugar nenhum porque ela apareceu nas sombras junto à cerca.
Seguindo para as portas deslizantes, esmagou a camada de neve, e a tristeza por deixar os filhos para trás misturada à preocupação de que Qhuinn talvez fizesse alguma loucura como sequestrá-los sendo substituída pela ansiedade por não saber se Xcor estaria ou não esperando por ela. Sua mente estivera tão distraída que quase não conseguira se desmaterializar, e ela não estava sendo capaz de sentir a presença dele ali na propriedade.
Inseriu a senha no teclado junto à porta, ouviu a trava sendo aberta, depois a abriu.
O calor a recebeu, assim como o silêncio.
Ela deixara a luz acesa acima do fogão e outra na sala de estar perto da porta. Tudo parecia como estivera – não, espere, o lixo fora retirado.
– Xcor?
Fechou a porta de correr. Inspirou fundo.
Um desapontamento pungente atingiu seu esterno quando não recebeu nenhuma resposta e não sentiu o cheiro dele. Curiosa quanto a quem teria esvaziado as latas de lixo, ela andou até a geladeira. Ela fora completamente reestocada... e estava disposta a apostar que o quarto debaixo também havia sido arrumado.
Evidentemente, uma equipe de doggens estivera ali para limpar e arrumar tudo depois que Xcor saíra na outra noite. Além disso, o macho evidentemente não passara o dia debaixo daquele teto.
Sentando-se junto à mesa redonda, apoiou as palmas no tampo lustrado e esticou os dedos, afastando-os. Depois os fechou. E voltou a abri-los uma vez mais.
Ela deduzira que ele estaria ali quando retornasse. Não fora esse o plano? Talvez tivesse sido apenas do seu lado. Não se lembrava.
Ah, Deus, e se ele tivesse sido morto na noite ou no dia anterior? Mas não, isso era apenas a paranoia falando mais alto... certo? Ou será que... que ele encontrara os seus guerreiros? Teriam jurado fidelidade a Wrath e já partido sem que Xcor se despedisse?
Ao prestar atenção ao silêncio na casa, a tranquilidade só era interrompida pelo assobio suave do ar quente saindo pelas ventoinhas da calefação e pelo ruído ocasional de gelo caindo dentro do freezer, e do seu coração batendo forte tanto por tristeza quanto por medo.
E então, enquanto o tempo passava, ela se pegou pensando que, assim como aquela casa, sua vida era deserta demais. Sem os filhos para tomar conta e sem a companhia de Xcor, o que ela tinha?
Considerando-se que ele logo estaria indo embora – se já não fora – e também por serem mínimas as possibilidades de ela voltar a morar na mansão, percebeu que era hora de encontrar algo para si, algo que não fosse ligado à maternidade ou ao matrimônio. Quando estivera exercendo as funções de Escolhida, tivera muito com que ocupar a mente e o tempo, com tantas diferentes tarefas a executar. Aqui, no mundo exterior, contudo? Na era pós Virgem Escriba?
Com a liberdade vinha a obrigação da autodescoberta, concluiu.
Afinal, como se pode exercitar suas escolhas se não se tem a mínima ideia de quem se é? Rótulos de nada adiantariam, títulos como “mahmen” ou “shellan” não a ajudariam. Era preciso mergulhar dentro de si mesma e descobrir como preencher as horas com atividades significativas para si mesma, enquanto pessoa, enquanto indivíduo.
Uma pena que o que deveria ser encarado como uma aventura, uma exploração, uma elucidação, ela via como sendo um fardo.
Quando o estômago emitiu um ronco, ela relanceou para a porta da geladeira. Havia todo tipo de comida ali, mas pouco a interessava a ponto de fazê-la se levantar e se aproximar de lá, muito menos pegar panelas e tigelas. Delivery? Já ouvira falar nisso, mas não tinha dinheiro, nem cartão de crédito, e nenhum interesse em se misturar a humanos...
Toc, toc, toc...
Layla deu um salto e se virou na direção da porta de correr. E então sorriu. Um sorriso grande.
Um sorriso imenso.
Saltando da cadeira, destrancou a porta de vidro e levantou a cabeça até encontrar o rosto que estivera na sua mente nas últimas vinte e quatro horas.
– Você voltou – ela suspirou enquanto Xcor entrou, fechando-os dentro da casa.
Os olhos dele se concentraram na boca dela.
– Aonde mais eu iria?
Layla se viu tentada a fazê-lo jurar que não partiria para o Antigo País sem se despedir adequadamente, mas agora que ele estava na sua frente, ela não queria estragar nem um segundo do tempo dele juntos com pensamentos da separação que se avizinhava.
Levantando-se nas pontas dos pés, ela se inclinou para a frente até se desequilibrar, certa de que ele a seguraria – e foi o que ele fez, com braços sólidos e fortes ao seu redor.
– Diga-me – ele disse depois de beijá-la –, seus filhos estão bem? E você, como está?
Por um instante, ela fechou os olhos. A ideia de que ele perguntasse pelos filhos de outro macho que o detestava era uma coisa tão generosa e gentil de fazer.
– Layla? – Ele se afastou um pouco. – Está tudo bem?
Ela piscou rapidamente.
– Sim, sim, sim. Está tudo bem. Tivemos uma noite e um dia maravilhosos. É tão lindo vê-los. Uma verdadeira benção.
Por um momento, ela entreteve a fantasia de ele conhecer Lyric e Rhamp, dele segurando-os e conhecendo-os. Mas isso jamais aconteceria, e não só porque Xcor estava retornando para o Antigo País.
– E você? – ela perguntou. – Você está bem?
– Agora sim.
Os lábios dele encontraram os seus, os braços voltaram a envolvê-la, e ele a suspendeu, sustentando-a ao encontro do corpo. Fundindo as bocas, ele se moveu até a parede onde a prendeu com os pés pendurados e longe do chão.
Com um grunhido, ela passou as pernas ao redor da cintura dele, pendeu a cabeça para um lado... e o beijou com ardor. Toda a sua preocupação, toda inquietação e ansiedade a respeito dele, dos filhos, de Qhuinn... tudo isso saiu pela janela quando o sabor e a fragrância dele passaram a ser as únicas coisas que ela percebia.
Cedo demais, Xcor se afastou, os olhos ardentes percorrendo-lhe os cabelos, os ombros. Ele a via nua, ela pensou enquanto sentia o calor do seu olhar. Ele estava se lembrando exatamente de como ela ficava sem nada, apenas com a pele nua e a paixão para envolvê-la.
– Quando foi que você comeu pela última vez? – ele perguntou.
Ok, talvez ele estivesse pensando em outras coisas.
– Não sei. – Ela deslizou as mãos dos ombros para a nuca dele. – Beije-me de novo... Ah, beije-me...
– Vamos alimentá-la agora.
Dito isso, ela a acomodou numa cadeira como se ela não pesasse mais do que uma boneca. E bem quando ela estava prestes a observar que havia tempo mais que suficiente para tratarem de assuntos calóricos depois de fazerem amor, ele desceu o zíper da parca que estivera vestindo.
Que era um movimento na direção correta para o que ela tinha em ment...
– Isso é um colete a prova de balas? – ela demandou.
Ele baixou o olhar para o peito.
– Sim.
Ela fechou os olhos por um instante, e não só de alívio por ele ter vestido um. Era também porque desejou que a guerra não existisse. Que ninguém da equipe dele tivesse tentado atirar em Wrath. Que não houvesse motivos para ele se preocupar com pistolas e facas ou com qualquer outro tipo de arma vindo na direção dele.
– O que gostaria de comer? – ele perguntou ao deixar a parca de lado e começar a abrir os fechos do colete. – Tenha em mente, não sou uma grande chef. No entanto, bem que eu gostaria de lhe oferecer muita sofisticação.
Princeps ou pobre, chef ou não, ela pensou, isso pouco importava.
Ainda mais se ele continuasse despindo...
– Espere, você se machucou? – ela perguntou ao se levantar.
– O quê?
– Você está ferido.
Quando ele despiu o colete, ela apontou para o sangue seco na lateral do tronco dele. E antes que ele minimizasse a situação, ela se aproximou e puxou a camiseta, arquejando ante o ferimento.
– Você foi alvejado. – Afinal, o que mais poderia ter provocado aquela listra? Não uma adaga, com certeza. – O que aconteceu?
Ele deu de ombros.
– Não senti nada.
Ela afastou as mãos dele quando Xcor tentou se esconder.
– Lá pra baixo. Banheiro, agora. Venha.
Quando ele não pareceu inclinado a obedecer a ordem, ela segurou a mão dele e o arrastou consigo, forçando-o a descer até o porão e entrar no banheiro que dividiam. No banheiro, ela ligou a água quente da pia, pegou sabonete e uma toalhinha e depois começou a tirar a camiseta dele.
– Layla...
– Xcor – ela murmurou, imitando o tom entediado dele. – E, sim, sei muito bem que nem adianta eu lhe pedir que vá até Havers nem me deixará chamar a doutora Jane. Portanto, em troca da minha compreensão e natureza sensível, você me deixará limpar esse ferimento.
– Já está curado.
– Será? – Ela molhou a toalhinha e a ensaboou. – É por isso que ela voltou a sangrar agora que tirou o colete? Agora tire essa camiseta ou vou pegar as tesouras.
Xcor começou a reclamar, mas, pelo menos, a obedeceu – e depois sibilou quando ela esfregou com suavidade a faixa de pele inflamada ao redor do ferimento. Quando ela conseguiu avaliar melhor a situação, concluiu que uma bala deve ter passado de raspão, acertando-lhe o tronco numa parte desprotegida pelo colete, talvez por ele ter estado pulando ou correndo no momento. O colete voltara a se ajustar, selando o ferimento, prendendo-o até ter sido retirado.
Pelo menos essa foi a sua conclusão inexperiente.
– Então, o que aconteceu? – ela perguntou quando enxaguou o pano para tirar o sabonete. – E então?
Quando ela levantou o olhar do que estava fazendo, teve a visão desimpedida do maxilar forte de Xcor, do modo como os molares estavam cerrados. Do mesmo modo, ele cruzara os braços diante do peito, num retrato perfeito de desaprovação.
– Encontrou seus machos? – ela insistiu.
– Não – respondeu de modo breve. – Não os encontrei.
Bem, pelo menos não fora um deles, bravos por ele ter jurado fidelidade a Wrath.
– Foram redutores?
Depois de um longo momento, quando ela começou a imaginar se teria que arrancar uma explicação à fórceps, ele assentiu com relutância.
Layla fechou os olhos.
– Odeio esta guerra. De verdade.
Santa Virg... Hum, Santo-Definitivamente-Não-Virgem-Lassiter, ela odiava pensar no que teria acontecido lá naquela nevasca se ele tivesse sido atingido em alguma outra parte, como na cabeça...
– Eu estou bem – ele disse com suavidade.
Concentrando-se nele, ela viu que ele baixara os braços e que a fitava com carinho.
– Não chore, meu amor.
– Estou chorando? – sussurrou.
– Está. – Com cuidado, ele resvalou suas faces com os polegares. – Nunca chore por mim.
Ele a endireitou e a aproximou do corpo.
– Além disso, estou bastante bem. Veja como estou aqui e agora.
Dito isso, ele a beijou longamente, os lábios provocando e tomando posse, a língua lambendo e acariciando a sua; em pouco tempo ela se derreteu, todos os pensamentos de cuidar da ferida dele desaparecendo. O que, indubitavelmente, fora seu plano; no entanto, ela não teve como não ceder.
– Você é um grandessíssimo provocador – ela disse ao encontro da boca dele.
– O que quer dizer?
Sacudindo a cabeça, ela se encostou ainda mais nele, e depois expeliu uma imprecação quando ele recuou e saiu do seu alcance.
– Comida – anunciou. – Agora.
Quando ela começou a protestar, ele ergueu uma sobrancelha. – Deixei que cuidasse de mim. Sou eu quem vai cuidar de você agora.
Com isso, ele apanhou a mão dela e a conduziu de volta à escada. Quando passaram pela cama, ela murmurou:
– Você percebe que existe uma cama aqui. Beeeeem aqui.
– E ela estará a nossa espera assim que terminarmos de alimentá-la, minha fêmea.
CAPÍTULO 47
Quando parou o Hummer na entrada para carros da casa dos pais de Blay, Qhuinn verificou as janelas da casa. Várias delas estavam iluminadas, e ele logo procurou uma específica com um grande corpo se movendo, um lindamente proporcional.
A porta da frente se abriu e, como já esperado, a mahmen do macho em questão saiu por ela apoiada em muletas e com gesso na perna, parecendo estar disposta a chegar até o carro apesar da neve e do gelo escorregadio.
Em pânico, Qhuinn segurou a maçaneta, preparado para se desmaterializar diante dela para detê-la, mas logo o pai de Blay saiu e lhe disse algo.
Por um instante, Qhuinn apenas observou as expressões deles enquanto discutiam, o carinho e o amor que sentiam um pelo outro transformando o conflito numa negociação entre partes sensatas.
Algo no que poderia se esforçar, pensou.
– Prontas, crianças? – ele perguntou ao relancear pelo espelho retrovisor. – Hora de verem seus granhmen.
Desligando o motor e saindo, acenou para a varanda.
– Boa noite!
– Estou tão feliz! – Lyric disse de longe.
– Ela andou cozinhando – o pai de Blay disse meneando a cabeça. – Ficou cozinhando apesar das ordens médicas dizerem que não deveria apoiar o pé e de esses dois só tomarem leite.
– Mas tenho Qhuinn para alimentar! – Lyric estava decididamente radiante com tanto entusiasmo, prestes a saltar para fora da própria pele. – Além disso, a casa ficará com um aroma gostoso para os bebês. Eles vão adorar o cheiro de canela e de temperos no ar.
Ou talvez não, Qhuinn pensou ao dar a volta para retirar Rhamp primeiro. Era bem provável que o farejador do filho estivesse enguiçado.
Depois de se debater com o assento, soltou o bebê conforto e depois abriu caminho para si e para o filho até o caminho que dava na casa.
– Quer um bebê? – ele perguntou ao pai de Blay.
– Ah, você não sabe o quanto – o macho respondeu ao aceitar a oferta.
Quando Qhuinn estava prestes a se virar, viu como olhavam para o bebê e quase chorou de emoção. Aqueles dois vampiros mais velhos estavam enfeitiçados de amor, os olhos brilhavam cintilantes, e os rostos estavam corados.
Isso o fez pensar no que Blay dissera a respeito de torturá-los com crianças que não eram netos deles.
Bem, isso ele consertara.
Tentando não dar na cara, apoiou-se num lado e olhou para a entrada da casa. Nada do Blay. E nenhum Blay vinha descendo as escadas tampouco. Nem vinha dos fundos da casa. E Qhuinn estava ansioso demais para tentar pressentir a presença dele.
Hum... Como por aquilo em palavras?
– Blay está aqui?
Quando sua boca se abriu e as sílabas saíram, os pais do macho ficaram congelados no lugar.
O pai de Blay franziu o cenho e depois fitou Lyric, a maior.
– Ele está na varanda dos fundos. Onde mais ele poderia estar?
Lyric, por sua vez, sabia o que estava acontecendo.
– Por que não vai até ele? – Depois olhou para seu hellren. – Querido, vá tirar Lyric de dentro daquele imenso pesadelo de emissão de gás carbônico, sim?
Conforme o pai de Blay se punha em ação, Qhuinn sentiu vontade de abraçar a fêmea. E foi o que fez – e o fato de ela aceitar seu abraço tão prontamente lhe deu esperanças.
– Vá lá – ela sussurrou ao seu ouvido. – Vocês dois deem um jeito nisso. Nós cuidamos das crianças.
Quando Qhuinn se endireitou, parte das suas emoções deve ter sido revelada na sua expressão, porque ela levantou a mão e acariciou seu rosto.
– Eu te amo, mesmo que sua escolha para carros me aterrorize. Isso consome o que, um quilômetro por litro? Na estrada?
O pai de Blay deu sua opinião ao retornar com Lyric:
– Foi ele quem nos levou em segurança ao centro de treinamento ontem à noite. O seu Prius? Aquela coisa não teria chegado nem na estrada.
Como se soubesse que já havia dito o suficiente, Rocke piscou para Qhuinn, sorrindo amorosamente para sua shellan e foi rápido para dentro da casa com os dois bebês conforto como se estivesse sendo perseguido por uma edição enrolada da revista Mother Jones.1
– Levem o tempo que precisarem, vocês dois – disse a mãe de Blay. – Vou ler alguns artigos sobre as mudanças climáticas para os bebês. Quem sabe fazer com que assistam ao vídeo Inovando a Zero de Bill Gates!
Qhuinn a ajudou a entrar na cada, mesmo quando ela resistiu à mão apoiada em seu cotovelo, e ela tinha muita razão: o aroma de canela e de outros temperos estava espetacular, e o calor da lareira da sala de estar íntima estava simplesmente perfeito naquela noite fria, e tudo parecia resplandecer de tanto amor.
Preparando-se, passou pela cozinha e foi para a varanda de trás. Antes de abri-la, deu uma espiada para ver se a camisa estava bem abotoada e se o casaco de lã estava... sei lá, adequadamente não sei o quê. E ainda procurou por alguma marca de creme contra assaduras para o caso de haver alguma perdida.
Em seguida...
Através da vidraça na parte superior da porta, ele viu Blay parado no frio, vestindo apenas um suéter, fitando o cenário coberto de neve até o laguinho congelado. Quando o macho tragou o cigarro, a ponta alaranjada brilhou mais forte, e depois uma nuvem de fumaça flutuou acima da cabeça ruiva dele.
Ele estava magnífico em sua postura reservada, os ombros aprumados para trás, os olhos estreitados num ponto mais distante, os pés plantados na varanda de outro modo deserta.
Algo disse a Qhuinn que batesse antes de sair para lá.
Quando o fez, Blay não se virou. Apenas deu de ombros de leve.
Para a fome não há pão duro, Qhuinn pensou ao abrir a porta e sair para a noite invernal.
E Deus bem sabia que ele estava faminto.
– Mais torrada?
Quando Xcor lhe perguntou isso do outro lado da mesa, Layla meneou a cabeça, limpou a boca com um guardanapo de papel e se recostou na cadeira.
– Sabe, estou bem satisfeita, obrigada. – Tradução: já comi duas torradas, dois ovos e tomei uma xícara de Earl Grey. Podemos descer agora para fazer amor?
– Vou apenas preparar mais uma torrada para você. Que tal mais chá?
Enquanto ele se levantava da mesa, ela entendeu, talvez pela postura dos ombros ou pela desaprovação no seu rosto, que ele de alguma forma sabia que ela mentira sobre estar satisfeita – e ele não tinha a mínima intenção de se desviar do seu objetivo de alimentá-la adequadamente.
– Sim, por favor.
Seu tom estava mais para “ao inferno com isso” do que para “muito obrigada por me servir mais chá”, mas era isso o que frustração sexual causava numa fêmea.
– Que tal se levarmos para baixo? – ela sugeriu, pensando que assim estariam mais próximos da cama onde fariam muitas coisas deliciosas. – Na verdade, já vou na frente.
Perto da torradeira Xcor pôs mais duas fatias de pão de forma branco e abaixou a alavanca.
– Eu levarei tudo. Desça e relaxe, deixe sua caneca aqui.
Seguindo para a porta que dava para o porão, ela parou e relanceou por cima do ombro. A cozinha branca e cinza era pequena, e Xcor praticamente a apequenava mais como se ele fosse um cão pastor alemão dentro de uma casa de bonecas. Era tão incongruente que aquele guerreiro ficasse inclinando sobre a torradeira para acompanhar detalhadamente o processo de torrefação.
Não claro demais, tampouco dourado em excesso.
E depois viria o processo de espalhar a manteiga. Ele encarava o processo de espalhar a manteiga sobre a superfície crocante com a mesma seriedade e atenção com que um cirurgião abriria um coração.
Era exatamente assim que ela sempre desejou ser tratada pelo macho que amasse – e isso não dependia de ser Primeira ou Última Refeição, dia ou noite do lado de fora, inverno ou verão. A preocupação e a concentração de Xcor simplesmente demonstravam o quanto ela era importante para ele. E que ele se importava com ela.
Que ele a enxergava.
Depois de uma vida inteira sendo uma dentre tantos para uma divindade, era uma dádiva rara ser a única para alguém mortal.
Mas, maldição, por que não podiam estar fazendo sexo agora?
No porão, diminuiu a intensidade das luzes e ligou a TV, esperando achar um daqueles filmes românticos que Beth e Marissa gostavam de assistir na programação a cabo. Notícias. Notícias. Propaganda. Mais propaganda...
Por que ele está demorando tanto?, ela pensou ao olhar na direção da escada.
Propaganda... Propaganda...
Ah, este era bom. Enquanto você dormia.
Mas onde estava Xcor?
Por fim, depois do que pareceu cem anos, ela o ouviu descendo.
– Acionei o sistema de segurança – ele disse.
Ela abaixou o volume enquanto Sandra Bullock tentava empurrar uma árvore de Natal para dentro do seu apartamento pela janela aberta, e depois tentou se ajeitar e às vestes mais para um dos lados do sofá. As vestes eram frustrantes. Quando os doggens limparam a casa, trouxeram diversos dos seus uniformes de Escolhida, por não saberem que ela já não os usava mais. Uma pena que não fossem lingerie. Com aquelas dobras de pano devorando os contornos do seu corpo, ela não se sentia nenhuma beldade.
Embora seu macho parecesse preferi-la nua.
Quando não a abarrotava de comida, isto é...
– Puxa – disse ela ao notar a bandeja que ele trouxera.
Xcor podia muito bem ter trazido a cozinha até o porão. Tostara o restante do pão, fizera mais ovos mexidos, e preparara mais um bule de chá. Também incluíra creme, mesmo ela não tendo se servido disso antes, e o pote de mel, o qual ela consumira.
– Bem, isto... é adorável – ela disse quando ele apoiou a bandeja na mesinha baixa.
Sentando-se ao lado dela, ele pegou uma fatia de torrada e começou o processo de passar a manteiga.
– Posso fazer isso – ela murmurou.
– Eu gostaria de servi-la.
Então, abaixe as calças, ela pensou ao fitar as coxas enormes que forçavam as costuras das calças de nylon pretas que ele vestia. E também havia a questão de como as mangas da camiseta se esticavam para abarcar a circunferência dos bíceps. E como a sombra da barba por fazer escurecia seu maxilar.
Cravando as unhas nos joelhos, ela olhou para a boca dele.
– Xcor.
– Hum? – ele perguntou ao mover matematicamente uma camada uniforme de manteiga com a espátula na superfície da torrada.
– Já basta com a comida.
– Estou quase terminando aqui.
E eu estou completamente acabada, ela pensou.
Sentando-se à frente, Layla tentou se distrair servindo-se de chá, mas aquela era uma causa perdida. Notou, porém, como a lapela das vestes se afrouxou.
Tire isso. Vá em frente.
Levando as mãos até o laço na cintura, soltou o nó e afastou as duas metades, expondo o tecido transparente que era a roupa de baixo característica das Escolhidas. Ok, isso também teria que sumir. E, vejam só, quando ela desabotoou as pequeninas pérolas dos ilhoses, elas deslizaram com uma facilidade que sugeria que estavam determinadas a ajudá-la nos eu propósito.
Aproveitando a deixa delas, Layla escorregou para fora do restante do ninho que a cobria.
E mesmo assim, ele só olhava para aquela maldita torrada.
Quando ele se sentou um pouco para trás, admirando sua obra prima, ela pensou que embora aquela coisa de macho vinculado alimentar sua fêmea tivesse lá suas vantagens evolucionárias, aquilo era ridículo.
O que ele faria em seguida? Pegaria uma régua para ver se tinha uma altura igual em todas as pontas?
– Sabe o que seria bom nessa torrada? – ele disse ao pegar a espátula de novo.
Sim, claro, porque havia um milímetro sem manteiga.
– O quê?
– Mel – ele murmurou. – Acho que ficaria muito bom mesmo.
Layla deu uma espiada no pote de mel.
– Acho que tem razão. – Esticando-se à frente, ela pegou o pote e arqueou as costas. – Mel fica gostoso em muitas coisas.
Girando o pegador de mel, ela puxou o objeto e o sustentou acima do seio, e o mel se espalhou e caiu, o mamilo sendo envolvido por toda aquela doçura. O contato fez com mordesse o lábio, e depois mais daquele líquido cor de âmbar reluziu pela sua pele, um riacho provocante descendo até o abdômen.
– Xcor...?
– Sim?
Quando ele olhou para ela, teve que olhar de novo – e largou a torrada na mesma hora. O que era um alívio porque, caramba, se não conseguisse vencer uma competição contra carboidratos pela atenção dele, ela estaria em sérios apuros.
Os olhos azuis marinhos ficaram de pronto ardentes e muito, muito centrados no modo como o mel descia, provocantemente atingindo o seio, gota a gota, para depois vagar num caminho descendente...
– Fiquei pensando – ela disse numa voz rouca – se mel fica mais doce em mim?
Dito isso, ela dobrou um joelho e mostrou seu centro para ele.
Seu macho afastou a bandeja com tanta rapidez que foi como se o prato sobre ela tivesse dito algo de muito ruim a respeito dos guerreiros dele.
O grunhido que emanou dele foi tudo o que ela desejou, assim como a visão das pontas dos caninos emergindo apressadas. E logo ele se estendeu sobre ela, a força descomunal mal contida enquanto a língua se esticava logo abaixo do mamilo... para interceptar uma gota.
Com um gemido, os lábios escorregadios e quentes capturaram e sugaram, lamberam e beijaram. A cabeça de Layla pendeu para trás, mas ela a virou de lado a fim de poder enxergar seu macho enorme. As sensações eram tão eróticas que ela sentiu a aproximação de um orgasmo, mas não queria que aquilo acabasse rápido. Antes impaciente para estar com ele, agora ela queria saborear cada segundo que tinham juntos.
– Xcor... Olhe para mim.
Quando ele abriu os olhos, ela suspendeu o pegador até a boca e deixou que os restos do mel aterrissassem em sua língua. E depois sugou a ponta rombuda, tirando-a para fora da boca... e girando nos lábios, sugando depois...
– Você vai acabar comigo, fêmea – Xcor praguejou.
Com um movimento preciso, ele tirou o pegador da mão dela e o colocou de novo no pote, bem quando o corpo dela se tornou aquilo que despejara sobre ele, seus ossos se derretendo, os músculos relaxados. E quando as pernas se afastaram ainda mais, ele se apossou da sua boca, os lábios grudando com a viscosidade, a ereção pressionando-a no seu centro através da calça.
Isso não durou muito tempo.
Com mãos bruscas, ele libertou o sexo e logo a penetrou, golpeando-a enquanto a beijava, os corpos encontrando um ritmo tão intenso que o sofá ficou batendo contra a parede.
Mais rápido, mais forte, mais duro, até que eles não conseguiram mais unir as bocas. Esticando os braços, ela apoiou as mãos nos ombros largos cujos músculos pareciam ondas do oceano numa tormenta...
O prazer a atingiu como um raio, mas também a completou – em seguia ele também chegou ao ápice, despejando-se dentro dela.
E Xcor não parou.
Nem desacelerou.
Mother Jones é uma revista independente, sem fins lucrativos, conhecida por suas reportagens investigativas. (N.T.)
CAPÍTULO 48
O coração de Blay sapateou quando a porta da varanda se abriu atrás dele e o cheiro do único amor da sua vida se antecipou ao cara que se aproximou da grade.
Uma coisa boa a respeito de fumar era que isso lhe dá algo para fazer com as mãos. Uma coisa ruim a respeito de fumar é quando você resolve que precisa bater as cinzas para ter o que fazer com elas: se estiver tremendo, isso vai aparecer.
– Oi.
Blay deu uma tossidela.
– Ei.
– Estou feliz que esteja aqui. – Pausa. – Eu não achei que fosse estar.
Por um momento, Blay só quis gritar: nem eu, filho da mãe! Mas lhe pareceu que seria melhor omitir isso se desejava parecer forte, estar forte... permanecer forte.
Deus, por que Qhuinn tinha que cheirar tão bem?
– Trouxe Rhamp – Qhuinn murmurou.
– Era essa a ideia. – Mas franziu o cenho. – Onde está Lyric...
– Ah, ela também está aqui.
Quando uma brisa suave soprou do sul, Blay pensou numa bailarina rodopiando de maneira controlada de encontro ao cenário branco azulado da neve. Não havia mais folhas soltas para rodopiarem com ela, pois tudo estava escondido por aquela cobertura branca, mas, nos limites da propriedade, árvores perenes que se curvaram sob o peso do que caíra sobre elas se aliviavam quando torvelinhos de neve saíam de cima delas.
Pela sua visão periférica, através das janelas atrás de Qhuinn, ele conseguia ver os pais se movimentando na luz amarelada e acolhedora da cozinha. Sua mahmen insistira em cozinhar por seis horas seguidas, a excitação e a alegria revigorando-a depois do apuro da noite e do dia anteriores. Tão grande era a alegria dela que era difícil se lembrar de que fora anestesia para arrumar aquele seu osso. Havia pontos debaixo daquele gesso. E ela teria que voltar dali a duas noites para que o doutor Manello acompanhasse o progresso.
Pelo menos Fritz conseguira trazê-los até ali no furgão de vidros insufilmados, apesar de ser dia quando Lyric recebera alta da clínica. Os pais queriam muito voltar para casa depois de toda aquela provação, e Blay por certo não tinha como argumentar contra isso...
– Eu te trouxe uma coisa – Qhuinn disse.
Quando o macho enfiou a mão no casaco, Blay meneou a cabeça e apagou o cigarro no cinzeiro.
– Vamos entrar? Estou com frio.
Não esperou que o outro concordasse, e não estava interessado no que ele tinha trazido.
Recuando para a casa, foi atingido por todo tipo de cheiro que o lembrava da família, e isso quase o fez querer vomitar. Ainda mais quando Qhuinn o seguiu até a cozinha, e a presença do macho não perdeu intensidade apesar de ele não estar no campo de visão de Blay.
Talvez tenha até se amplificado.
– Como posso ajudar? – Blay perguntou ao sorrir para a mãe.
A Lyric mais velha estava sentada num banco diante do fogão, fritando bacon e ovos e preparando torradas.
– Você pode dizer olá para seus filhos – ela inclinou a cabeça para o lado, por cima do ombro. – E arrumar a mesa.
Engolindo a pontada de dor em seu peito, como se alguém o tivesse chutado no esterno, Blay deixou o maço de Dunhill ao lado do telefone fixo da casa e foi lavar as mãos – e tentou se preparar para ver as crianças.
Não, pensou ao enxugá-las. Ainda não conseguiria se aproximar dos bebês conforto. Primeiro precisava se controlar de algum modo ou acabaria tendo um acesso.
Ocupou-se com a gaveta onde estavam os talheres. Ocupou-se em pegar os guardanapos brancos e vermelhos. Ocupou-se pegando quatro pratos.
Na ilha que ocupava o centro da cozinha, Qhuinn e seu pai conversavam a respeito da guerra, da política dos humanos, das finais do futebol americano universitário e do início da temporada de basquete.
Os olhos de Qhuinn ficaram em Blay o tempo todo.
E o macho era esperto. Sabia que caso dissesse qualquer coisa a Blay a respeito de ver as crianças, que haviam adormecido nos bebês conforto que estavam sobre a mesa, a manobra não daria certo.
Maldição, Blay pensou por fim. Não poderia continuar evitando as crianças.
Preparando-se, formou uma pilha de pratos, talheres e guardanapos e se aproximou deles.
E tentou não olhar. E fracassou.
E no instante em que seus olhos se desviaram para os bebês, seu escudo desapareceu: todos aqueles sermões quanto a ficar distante, alguém distanciado deles para não se machucar de novo saíram voando pela janela.
Como que sentindo sua presença, os dois despertaram, olharam para ele, e no mesmo instante começaram a girar pernas e braços, os rostinhos de anjos se animando e sons suaves saíram das boquinhas. Evidentemente o reconheceram.
Talvez até sentissem saudades.
Lentamente abaixando o que quer que tivesse nas mãos – podia ser algo em que se comer, ou um forno, ou uma pá de neve ou uma televisão... –, ele se inclinou para baixo.
Abriu a boca para falar, mas nada saiu dela. Sua garganta estava fechada.
Portanto teria que se fiar no toque para se comunicarem. E tudo bem. Eles também não sabiam falar.
Primeiro se aproximou de Lyric, afagou-lhe o rosto, deu uma coçadinha no pescoço macio. E pôde jurar que ela riu.
– Como está a minha menina? – sussurrou com voz embargada.
Mas logo percebeu o uso do pronome – e contraiu os olhos. Não são meus filhos, corrigiu-se. Estes não são meus filhos.
Sim, claro, Qhuinn voltara ao trem familiar. Mas quanto tempo isso duraria? Quando ele seria provocado por qualquer coisa que Layla fizesse de novo para se descarrilar? A coisa inteligente a fazer era saltar fora de vez, curar aquela ferida para que aquele sofrimento nunca mais acontecesse – sem olhar para trás.
Dito isso, concentrou-se em Rhamp. Um rapazinho bem durão. Blay acreditava com veemência que a divisão de papeis por gênero era uma completa asneira, e se Lyric quisesse ser uma guerreira da pesada como Payne ou Xhex, ele estaria totalmente de acordo. Do mesmo modo, caso Rhamp decidisse ser advogado ou médico em vez de ir para o campo de batalha, isso também seria bom. Mas cara, eram evidentemente tão diferentes – embora fosse essencial que isso não os definisse. Ele acreditava piamente que era importante que as crianças tivessem a liberdade para...
Merda. Estava fazendo aquilo de novo. Esquecia-se dos limites.
O som de facas e garfos se chocando fez com ele levantasse a cabeça. Qhuinn assumira a tarefa de arrumar a mesa, e ajeitava pratos e talheres com a cabeça baixa, sério.
Blay pigarreou.
– Eu faço isso.
– Tá tudo bem. Pode deixar.
Nesse instante, Rhamp emitiu uma bomba de fedor forte o suficiente para provocar lágrimas nos olhos de um macho adulto.
– Uau...
– Pois é – Qhuinn disse. – Deveria ter sentido o cheiro dele pouco antes de virmos para cá. Foi por isso que me atrasei. Pode me fazer um favor e dar uma espiada? Talvez tenhamos sorte e sejam apenas gases.
Blay cerrou os molares. Estava na ponta da língua dizer ao cara que fizesse isso ele mesmo, mas isso seria desnecessariamente rude. Além disso, em seu coração, ele queria segurar o bebê, e seus pais estavam logo ali, observando enquanto fingiam não estar.
Quando tudo pareceu congelar no lugar, ele sentiu como se sua vida inteira e o seu conceito de família tivessem se resumido aquele momento – e era estranho como a vida vinha até você desse jeito. Você segue em frente, criando relações e rompendo-as, avançando e recuando, navegando nos mares das suas emoções e das emoções dos outros, mas, em grande parte, envolve-se demais numa dança de um pra lá, dois pra cá de escolhas e decisões que são mais um trajeto do que um destino, mais algo aleatório do que dirigido.
Exceto que, de repente, a abertura da câmera se abre rápido demais e você é atingido por um tapa existencial, e é forçado a olhar para tudo e dizer, ok, quer dizer que estou aqui.
Só porque um moleque se cagou todo nas calças e você teria que lidar com isso.
Qhuinn se aproximou e acomodou um conjunto de prato com guardanapo e talheres diante dele. Numa voz baixa que somente ele poderia ouvir, disse:
– Sinto sua falta. Eles sentem a sua falta.
– Sou um tio – Blay se ouviu dizer. – Ok? Só um tio.
Com mãos trêmulas, soltou o cinto de segurança e pegou Rhamp. Levantou o bumbum do bebê no alto e aproximou o nariz, inspirando fundo.
– Estamos bem, Houston – disse rouco. Repito, era uma nuvem de gases. O campo de força não foi rompido.
Transferindo o filho de Qhuinn para a curva do braço, Blay se sentou e começou a mexer os dedos diante dos olhinhos dele.
– Quem está com fome? – a mãe perguntou alegre. Como se ela tivesse decidido que tudo ficaria bem porque ele estava segurando o bebê.
– Olhe só esses reflexos – o pai observou quando as mãos de Rhamp se moviam de um lado a outro, agarrando com impressionante destreza. – Qhuinn, esse é o seu filhote, não é, não?
– É – Blay concordou. – Ele é.
Layla perdeu a conta de quantas vezes fizeram amor. Duas vezes no sofá. Depois no chuveiro. Três outras na cama?
Deitada ao lado do seu macho, acariciando-lhe o ombro largo, sentindo-o respirar em sua nuca, ela sorriu na escuridão. Insaciabilidade era um pró quando se tem um amante em sua vida.
E Xcor era um macho muito, mas muito insaciável.
As partes internas das suas coxas doíam. Seu centro formigava por conta de toda aquela fricção. E o cheiro dele a cobria, por dentro e por fora.
Ela não mudaria nada daquilo.
Bem, talvez apenas uma coisa...
– O que a aflige? – ele perguntou ao levantar a cabeça.
– O que disse?
– O que aconteceu?
Ela não deveria se surpreender por ele ser capaz de interpretar seus humores mesmo meio que adormecido no escuro. Ele estava estranhamente sintonizado a ela, e não apenas sexualmente.
– Layla? – ele insistiu.
– Só não quero que você parta – sussurrou. – Não suporto a ideia de...
Quando a voz dela se perdeu, a cabeça dele voltou a repousar na posição anterior e ele a beijou na lateral do pescoço. Quando ele não disse nada, ela não ficou surpresa. Que palavras podiam ser ditas? Ela tinha os filhos, e por mais que amasse Xcor, não os levaria para o Antigo País. Eles precisavam do pai.
E Qhuinn tampouco permitiria isso.
– Não pense nisso, minha fêmea.
Ele estava tão certo. Teria o resto da vida para sentir saudades dele. Por que começar agora que ele ainda estava ali ao seu lado?
– Sei tão pouco a seu respeito – ela murmurou. – Como você cresceu. Por onde viajou. Como veio parar aqui.
– Não há nada para contar.
– Ou será que você não quer que eu saiba?
O silêncio dele respondeu a sua pergunta. Mas não era incapaz de imaginar a partir do que lera a respeito dele no Santuário. Na verdade, a tristeza que sentia pelo que lhe fizeram era uma dor que a atingia na alma – ainda mais quando pensava em Rhamp. A ideia de que um pai pudesse decidir rejeitar um bebê inocente apenas por que ele tinha um defeito que sequer fora autoimposto?
Não suportava pensar nisso, no entanto, não conseguia deixar de pensar.
– Não temos mais muito tempo – disse com suavidade, mesmo tendo acabado de prometer a si mesmo não ficar remoendo a separação iminente. – Assim que você encontrar seus machos, você os levará até Wrath e eles prometerão lealdade... e depois você irá embora. Preciso viver uma vida nestas noites que nós temos.
– Você seguirá em frente.
– E você também – ela rebateu. – Só que não estaremos juntos. Então, por favor, me deixe entrar. Enquanto temos este tempo juntos... não me poupe de nada, o bom e o ruim, de modo que eu o conheça por inteiro.
– Se você não quer perder tempo, não vamos conversar.
Só que, quando ele tentou beijá-la, ela o manteve afastado.
– Não temo o seu passado.
A voz dele se abaixou.
– Mas deveria.
– Você nunca me feriu.
– Isso não é verdade e você sabe disso.
Enquanto ela se lembrava de como ele a mandara embora, ela se sentou, acendeu as luzes, e virou os pés para fora dos lençóis. Mas não saiu.
Ela queria tocar nele, percorrer a coluna dele com a mão, acalentá-lo quando ele apoiou a cabeça nas mãos. Mas sabia que não deveria.
– Sinto seus arrependimentos – ela sussurrou.
Xcor permaneceu calado por um instante, depois disse:
– Uma pessoa pode ser levada a situações que... – Abruptamente, meneou a cabeça. – Não, eu fiz o que fiz. Ninguém nunca me forçou a nada. Segui um macho maligno e me comportei mal, e não me eximo de nenhuma responsabilidade.
– Conte-me – ela insistiu.
– Não.
– Eu vou te amar de qualquer jeito.
Xcor se aprumou, depois lentamente se virou para ela. O rosto estava marcado por sombras, mas nenhuma que se comparasse às dos seus olhos.
– Você não sabe o que está dizendo.
– Eu te amo. – Apoiou a mão no braço dele e sustentou seu olhar, desafiando-o a negar o que ela sentia. – Você ouviu? Eu te amo.
Ele sacudiu a cabeça e desviou o olhar.
– Você não me conhece.
– Então me ajude a conhecê-lo.
– E correr o risco de você me expulsar? Você diz querer passar o tempo que temos juntos. Garanto que isso não acontecerá quando me conhecer melhor.
– Eu jamais o mandaria embora.
– Minha mahmen fez isso. Por que seria diferente com você? – Meneou a cabeça de novo. – Talvez ela soubesse os caminhos que eu seguiria. Talvez... não tenha sido por causa do lábio.
Layla sabia muito bem que teria que avançar com cuidado.
– A sua mãe o abandonou?
– Fui dado a uma ama-seca... alguém... até ela também me abandonar.
– E o seu pai? – ela perguntou com cuidado. Apesar de saber parte dessa história.
– Pensei que fosse Bloodletter. Aquele macho me disse que era meu pai, mas, mais tarde, descobri que esse não era o caso.
– Você nunca... tentou descobrir quem seu pai era?
Xcor flexionou as mãos e depois as cerrou com força.
– Passei a acreditar que a biologia é um indicador menor de uma família do que a livre escolha. Os meus machos, meus soldados, me escolheram. Decidiram me seguir. Eles são a minha família. Dois indivíduos que se juntaram para minha concepção e nascimento, mas que depois me abandonaram quando eu era incapaz de sobreviver sozinho? Não preciso saber suas identidades nem seus paradeiros.
Um medo absoluto atravessou o coração de Layla quando o imaginou primeiro como um recém-nascido, depois como um menino incapaz de se defender e, por fim, um pré-trans passando pela transformação sem auxílio algum.
– Como conseguiu sobreviver? – sussurrou.
– Fiz o que tinha que fazer. E lutei. Sempre fui bom de briga. Esse é o único legado que meus pais me deram que teve alguma serventia.
– Como foi a sua transição... Como conseguiu superar a mudança? – Era uma pergunta franca, e que não estava incluída no volume transcrito dele.
– Dei à prostituta que me serviu o chalé em que morava. Tive que pagar ou ela não teria me permitido tomar da sua veia. Pareceu-me um acordo justo, minha vida em troca de um abrigo. Imaginei que poderia encontrar outro lugar para ficar, e foi o que fiz.
Layla se sentou e ajeitou os lençóis sob o queixo.
– Eu não conseguiria fazer isso com uma criança. Simplesmente não conseguiria.
– E é por isso que você é uma fêmea de valor. – Ele deu de ombros. – Além disso, fui uma concepção fracassada. Tenho certeza de que ambos teriam preferido que eu morresse no ventre ou no parto – mesmo que isso matasse minha mahmen. Melhor ter um filho morto do que dar a vida a alguém como eu.
– Isso é errado.
– Isso é a vida, e você bem sabe disso.
Xcor relanceou para ela, com uma expressão dura.
– Você está determinada a arrancar tudo isso de mim, não está?
– Você não tem que se esconder de mim.
– Quer saber, então, como perdi a virgindade? – ele estrepitou. – Quer?
Ela fechou os olhos de leve.
– Sim.
– Ah, mas espere. Talvez eu deva ser mais específico. Quer saber quando trepei com uma fêmea pela primeira vez, ou quando fiz sexo pela primeira vez? Porque não são a mesma coisa. A primeira me custou dez vezes a taxa que uma prostituta cobrava no Antigo País, e a primeira coisa que ela fez depois foi correr para o rio para se lavar de mim. Fiquei até imaginando se ela acabaria se afogando, de tão rápido que correu para a água.
Layla piscou para conter as lágrimas.
– E... e o outro?
O rosto dele se obscureceu de raiva.
– Fui fodido por um soldado. Diante de todo o campo de guerra. Porque perdi uma luta. Sangrei por horas depois disso.
Fechando os olhos, ela se viu orando baixinho.
– Ainda me quer? – ele a provocou.
– Sim. – Abriu os olhos e olhou para ele. – Você não está maculado aos meus olhos. Tampouco é menos macho por isso.
O sorriso no rosto dele a assustou, de tão frio e distante que era.
– A propósito, fiz isso com outros. Quando os venci.
A tristeza dela foi tão profunda e permanente que não havia lágrimas para expressar.
E ela sabia exatamente o que ele estava fazendo. Ele a estava afastando de novo, desafiando-a a partir de modo a não dizer que ele fosse embora. Já fizera isso antes, e o que mais se poderia esperar de um macho que fora repelido a vida inteira?
– Ainda quer isto? Ainda acha que ama isto? – Quando ela não respondeu, ele indicou o próprio rosto e corpo como se pertencessem a outra pessoa. – E, então, fêmea, o que me diz?
CAPÍTULO 49
Vishous saiu da mansão da Irmandade sem contar para ninguém aonde estava indo. Não que estivesse escondendo alguma coisa; era só que Butch estava em campo com Rhage, John Matthew e Tohr, e Wrath estava na Casa de Audiências com Phury e Z., e blá-blá-blá.
Ah, e Jane estava na clínica.
E tudo bem com isso.
Portanto, não tinha ninguém para contar e ninguém preocupado com seu paradeiro. Ainda assim, tudo bem.
A nevasca da noite anterior deixara um problema de limpeza em seu rastro, e quando V. se desmaterializou nos limites da zona urbana de Caldwell, viu um pouco de tudo que era esperado: algum progresso na retirada da neve, mas ainda assim uma montanha da coisa branca cobrindo carros estacionados e prédios de apartamentos, as ruas principais restritas a duas faixas, os becos impenetráveis, as calçadas intransitáveis.
O endereço em que recobrou a forma física era uma casa Vitoriana de três andares convertida em três apartamentos. Luzes estavam acesas em todos os andares, e os humanos ali dentro estavam relaxando, descansando do trabalho.
Ou... no caso do apartamento em que estava interessado, se drogando.
Mudando de posição ao subir para o telhado do prédio oposto, acendeu um cigarro e observou. E esperou. O indivíduo a quem esperava não estava em casa ainda, e ele sabia disso porque pesquisara a respeito do bom e velho Damn Stoker.
E descobriu que “ele” era ela. Uma tal senhorita Jo Early, que por acaso trabalhava no Caldwell Courier Journal.
O fato de ela ser uma fêmea o impressionara, na verdade. Presumira que a nitidez da voz e a apresentação direta, não emocional, dos fatos narrados no blog significassem que um macho estivera por trás daquilo, mas, espere um instante... Sua shellan era inteligente, não?
Jane era durona, e pensava com mais discernimento do que ele.
Como, por exemplo, ele tinha certeza que Jane não estava pirando a respeito do relacionamento deles. Não, ela estava trabalhando naquele emprego dela de salvar vidas. Era ele quem estava fazendo aquela merda de Doutor Phil...1
Ok, que tal a gente não pensar que tudo gira ao nosso redor, pra variar?
Enquanto fumava e tentava desviar a mente do seu relacionamento amoroso, sua massa cinzenta de fato acabou se direcionando para outro lado. Pena que não fosse uma grande melhora. Considerando-se que desejava um pouco de paz.
Enquanto estivera sentado diante da sua mesa, verificando vídeos de YouTube e páginas do Facebook e contas de Instagram buscando vampiros vistos por humanos, sentiu-se tentado por um antigo endereço de e-mail seu, um que abandonara assim que a doutora Jane entrara na sua vida.
Bem, na verdade, ele parou de usá-lo logo depois que conheceu Butch.
O nome, que era um pseudônimo, e sua conta de Gmail associada era o que ele registrava em websites onde submissos imploravam por Dominadores, tanto dentro quanto fora da espécie.
Sempre existiram voluntários para ele naquela época. Fêmeas e machos, homens e mulheres, todos procurando por determinado tipo de experiência – e V. estabelecera uma rotina que usava com eles. Primeiro, encontrava-os em clubes e boates ou através de indicações para fazer uma primeira avaliação, escolhendo os mais atraentes – aqueles que ele acreditava fariam um bom espetáculo. Depois os levava para a sua cobertura no Commodore e brincava com eles até se entediar. Quando tivesse terminado, mandava-os embora.
Alguns poucos ele viu mais de uma vez. A imensa maioria foram encontros únicos.
Só existiram três mais frequentes.
Na época, aquilo tudo foi para gastar energia, para acalmar seu lado sombrio, diminuir o dimmer dos seus anseios.
Ele entrou naquela sua conta hoje.
Lá pelo meio-dia.
Logo depois de receber uma mensagem de texto de Jane lhe dizendo que correra tudo bem com a cirurgia da mãe de Blay, mas como ela queria ir para casa, a médica teria que ficar na clínica para tentar convencer a fêmea a não ir embora. O recado breve chegou umas duas horas depois de ela dizer que tinha acabado na sala de cirurgia e que estava a caminho do Buraco – só restando se certificar que Lyric despertaria bem da anestesia. Que precedeu a mensagem de texto a respeito de Assail em duas horas também.
Encontrou quase duzentos emails naquela conta.
E ele leu cada um deles. Alguns eram curtos, nada além de dados pessoais breves com alguma foto anexada. Outras eram mais longas e extensas, um verdadeiro fluxo de consciência do que eles queriam que lhes fizessem. Também encontrou dois parágrafos em que suplicavam que ele reconsiderasse, para se reconectarem e retomarem o relacionamento entre eles. Frases introdutórias com números de telefone. Discursos inflamados de que ele não poderia simplesmente esquecê-los, não, não podia, e que eles não aceitariam isso, eles o encontrariam e o fariam perceber como eram os certos para ele...
Foi como uma escavação arqueológica nas relíquias da cidade que outrora ele mesmo construíra, na qual morara e da qual era o governante.
Lá embaixo, na rua coberta de neve, um Honda parou diante do prédio de apartamentos. Quem quer que estivesse lá dentro conversou por um minuto ou dois e depois a porta do passageiro se abriu e uma ruiva humana magra saiu.
– Nos falamos amanhã, está bem? – ela disse para dentro do carro. – Ok. Pode deixar, eu estou cuidando disso, e vou postar no website do CCJ amanhã logo cedo. Dick pode ir se ferrar.
Com um aceno final, ela fechou a porta e deu a volta pela frente do caro. Afastando os braços para se equilibrar, saltou por cima de um monte de neve e pisou numa trilha de pegadas deixadas por muitas outras pessoas, depois subiu os degraus do prédio e verificou a caixa de correios ao lado das portas duplas.
Alguns instantes mais tarde, ele a viu entrar na sala da frente no segundo andar e conversar com os caras que se alternavam com o bong enquanto permaneciam sentados no sofá diante da TV.
Ela parecia irritada, V. pensou, quando levou uma mão ao quadril e sacudia com a outra o que parecia ser uma pilha de contas para pagar.
Em seguida, ela marchou para o quarto da frente e fechou a porta.
Vishous desviou o olhar quando ela começou a se despir, mas não precisou se dar ao trabalho. No fim, ela apenas tirou o casaco e terminou de tirar o resto no banheiro que tinha uma janela fosca.
Ela acabou indo parar diante do computador, diante de um pedaço de merda da Apple, para acessar a Internet.
Enquanto acendia outro cigarro, V. ficou se debatendo se deveria simplesmente botar uma bala na cabeça dela, mas concluiu que só estava de mau humor. A não ser pelos vídeos e pelos posts publicados, uma investigação sobre o passado dela não levantou nenhuma suspeita. Ela era filha adotiva de um casal abastado. Num trabalho corriqueiro para o CCJ postado na Internet. Antes disso, trabalhara como recepcionista de uma imobiliária. Tinha um currículo escolar bastante impressionante, mas, assim como muitos outros jovens, ela não fizera nada com isso.
A menos que se considere usar a gramática adequadamente ao discorrer sobre vampiros.
Portanto, só o que ele precisava fazer era apagar a memória dela para poder voltar para o Buraco.
Tragando, soltou a fumaça e observou-a subir no ar praticamente parado.
Ao longe, ouviu uma sirene.
Uma ambulância. Sim, definitivamente era de uma ambulância.
Mais acima, no céu azul marinho aveludado, apenas a luz das estrelas mais fortes porque as luzes da cidade interferiam, mas os aviões apareciam a intervalos frequentes, em suas rotas padrões pelas faixas de trânsito invisíveis até o Aeroporto de Caldwell.
Como se talvez Deus estivesse usando um marca-texto para circundar a cidade e fazer uma verificação de inspeção.
Depois de um tempo observando a fêmea, perguntou-se de novo porque não ia fazer logo o que viera fazer. Invadindo o site dela e assumindo o controle dele, para depois apagar os conteúdos no YouTube, ele poderia fazer tudo isso em casa.
Isto é, tinha que fazer.
A Internet, afinal, era uma espécie de placa de petri de um laboratório de ciências. Se você deseja aumentar determinada cultura, bastava criar as condições certas e deixar que o tempo aja: conversas suficientes a respeito de vampiros, amparadas por filmagens e cedo ou tarde aquilo se espalha, porque os humanos amavam merdas assustadoras, ainda mais se acreditassem que isso fosse sensual.
Tédio.
Do mesmo modo, se você deseja dar um fim à história? Apenas desapareça com ela e, em pouco tempo, toda a balbúrdia humana é substituída por algum outro assunto.
A habilidade dos humanos de se distraírem, a não ser a respeito da sua mortalidade facilmente destruída, era a melhor característica deles.
Porque, claro, no que se referia a vampiros, quem diabos precisaria que a Ellen entrevistasse Ômega a respeito das suas tradições prediletas nos feriados natalinos, ou um livro humorístico post-mortem de Lash chegando à lista dos mais vendidos do The New York Times, certo?
Ou pior, deixando a brincadeira de lado, que os filhos da mãe começassem uma caçada à sua raça?
Aqueles ratos sem cauda não se entendiam entre si. E se, de repente, descobrissem que coexistem com outra espécie do jeito que os vampiros faziam, misturados a eles?
Seria possível apagar a partícula “co” ao lado da palavra “existir” dos dicionários.
Portanto, sim, teria que apagar aquela confusãozinha na Internet, bem como “conversar” com a senhorita Jo Early: e se o amor que ela tinha pelos vampiros fosse algo antigo na vida dela, esse tipo de conhecimento não seria reversível, mas, de todo modo, ele poderia mexer um pouco na massa cinzenta dela e fazer com que deixasse de lado seu blog.
Isso mesmo, ele pensou. Era hora de dar uma de fantasma no quarto dela, descobrir o que havia dentro daquele crânio dela, e depois retornar para a sua limpeza virtual pela Internet.
Pois é.
Agorinha mesmo.
E V. ficou bem onde estava, batendo cinzas no teto branco de neve, passando o peso do corpo de um lado a outro toda vez que uma perna se cansava, espreguiçando as costas de vez em quando.
O motivo para ele não sair dali não tinha nada a ver com a mulher.
Não, ele ficou ali pelo mesmo motivo que saíra de casa.
Quando se está pensando em trair a companheira, isso não cai muito bem na sua consciência. E tampouco é algo que você gostaria de fazer na casa que partilha com ela.
Phil McGraw, conhecido por Dr. Phil, é um psicólogo dos Estados Unidos que se tornou conhecido do grande público ao participar nos programas de Oprah Winfrey como consultor de comportamento e relações humanas. (N.T.)
CAPÍTULO 50
Enquanto Xcor aguardava que Layla lhe dissesse para ir embora, seu sangue corria rápido nas veias e a cabeça estava permeada de recordações. Nunca falara com ninguém a respeito das coisas que lhe foram feitas ou que ele fizera no campo de guerra. Primeiro porque ninguém nunca perguntou. Seus guerreiros ou fizeram aquilo ou sofreram aquilo, e aquele não era um tópico adequado para uma conversa no grupo, algo que alguém fosse rememorar porque trazia doces lembranças do passado. E, aparte os guerreiros, Xcor nunca se deparara com alguém que desejasse conhecê-lo.
– E então – ele demandou –, o que me diz, fêmea.
Não era uma pergunta. Porque ele sabia o que ela diria...
Layla o encarou nos olhos e, ao falar, sua voz estava absolutamente controlada.
– Eu digo que a sobrevivência pode, por vezes, ser algo trágico e horrível. E se você espera que eu sinta qualquer coisa além de tristeza e pesar por você, então terá que esperar bastante.
Foi Xcor quem desviou os olhos. E no silêncio que se estendeu entre eles, ele não entendia o que estava sentindo.
No entanto, parecia que suas mãos, enquanto as fitava de uma vasta distância, estavam tremendo.
– Nunca pensou no que aconteceu com os seus pais? – ela perguntou. – Nunca quis descobrir se tinha irmãos ou irmãs, talvez?
Pelo menos, ele achava que foi isso o que ela disse. Sua mente não estava processando as coisas muito bem.
– Desculpe... O que disse?
O colchão se moveu quando ela mudou de posição e foi se sentar ao lado dele, com os pés pendurados enquanto os dele chegavam ao chão porque tinha pernas bem mais compridas. Depois de um momento, ele sentiu algo sendo colocado sobre seus ombros. Uma coberta. Ela o cobrira com uma coberta que estivera dobrada ao pé da cama.
E que tinha o cheiro dela.
E também era quente, como ela.
– Xcor?
Quando ele não respondeu, ela virou o rosto dele para si. E enquanto ela o fitava, ele sentiu vontade de fechar os olhos. Ela era adorável demais para ele e para o passado dele. Ela era tudo o que era bom, e ele já lhe custara tanto: seu lar, sua paz junto aos filhos, seu...
– O amor é um encontro de almas – ela disse quando pousou uma mão no meio do seu peito. – O nosso amor é entre a minha e a sua alma. Nada vai mudar isso, não o seu passado, nem o nosso presente... Ou quaisquer futuros que tenhamos afastados um do outro. Pelo menos não da minha parte.
Ele inspirou fundo.
– Quero acreditar em você.
– Não sou eu quem tem que acreditar ou desacreditar. É uma lei do Universo. Debata o quanto quiser... Ou simplesmente aceite a benção que ele é.
– Mas e se ela tiver razão?
– Quem? Se quem tiver razão?
Xcor desviou o olhar, concentrando-se nos pés descalços.
– Minha ama-seca sempre me disse que eu era amaldiçoado. Que eu era mal. Quando ela me... – Ele se deteve aí, sem querer mencionar as surras. – Ela me dizia que eu era nojento. Que o meu rosto só mostrava a podridão no meu interior. Que a verdadeira supuração estava dentro de mim.
Layla meneou a cabeça.
– Então ela se referia a si própria. Ela revelava a verdade dela. Dizer tais coisas a uma criança inocente? Perverter-lhe a mente, aterrorizando-o assim? Se existe alguma outra definição de podridão e maldade, eu não sei qual ela seria.
– Você vê o bem demais em mim.
– Mas foi assim que você se mostrou para mim. Você sempre foi bom comigo.
A mão dela pegou a dele, que agarrava o joelho, e quando ela lhe deu um aperto, ele teve dificuldades para compreender a lealdade e a generosidade dela. De fato, ela jamais compreenderia a extensão das suas atrocidades, e talvez fosse melhor assim. Isso a pouparia de se sentir mal por ter se equivocado a respeito dele.
– Preciso lhe contar algo.
Quando ele ouviu a tensão na voz dela, relanceou na sua direção.
– O quê.
Agora sim ela lhe diria para ir embora.
– Eu tenho que te pedir desculpas. – Soltando a mão dele, entrelaçou suas duas e pareceu ter dificuldades para encontrar as palavras certas. – Fiz algo que talvez não deveria ter feito – e que definitivamente deveria ter lhe contado a respeito antes. E a minha consciência está me matando.
– O que foi?
Quando a agitação dela pareceu crescer, foi fácil e um alívio mudar o curso e se concentrar no que quer que a estivesse incomodando.
– Layla, nada do que você fizer poderá que me aborrecer.
Ela disparou a falar, conectando as sílabas rapidamente, mas com clareza.
– Lá em cima no Santuário, onde as Escolhidas moravam, existe uma grande biblioteca das vidas. E, naqueles livros, naqueles volumes, são mantidos os detalhes dos machos e das fêmeas, as passagens foram transcritas por escribas sagradas que testemunharam os eventos, observando-os em cubas reveladoras, tanto as coisas boas quanto as ruins, tudo o que se sucedera na Terra. É uma crônica completa da raça, das batalhas e das celebrações, dos festivais e das penúrias, das tristezas e das alegrias... das mortes e dos nascimentos.
Quando ela fez uma pausa, ele se deu conta de que seu coração batia mais forte.
– Continue.
Layla inspirou fundo.
– Eu queria saber mais. Sobre você.
– Você leu o meu registro.
– Sim.
Xcor deixou de lado a coberta com a qual ela o envolvera e começou a andar de um lado a outro.
– Por que se deu ao trabalho de me perguntar sobre o meu passado, então? Por que me forçar a dizer...
– Nem tudo está lá.
– Você acabou de dizer que está.
– Não os sentimentos. Nem os seus pensamentos. E eu não sabia que... – Ela pigarreou. – Eu sabia que você havia ido ao campo de guerra, mas as coisas exatas que lá aconteceram não foram registradas.
Ele parou e se virou para ela. Ela estava abençoadamente nua, o corpo espetacular exposto para os seus olhos no calor do quarto, com somente os cabelos longos para cobri-la. Ela estava nervosa, mas não parecia ter medo, e, uma vez mais, ele se perguntou como alguém como ela poderia se relacionar com um macho como ele.
O que havia de errado com ela?, perguntou-se.
– Então, o que leu a meu respeito? – exigiu saber.
– Sei quem é o seu pai...
– Pare. – Quando ele ergueu a palma, suor brotou no buço e na testa. – Você precisa parar agora.
– Sinto muito – ela disse ao pegar a coberta e envolver o corpo com ela. – Eu deveria ter te contado. Eu...
– Não estou bravo.
– Não?
Ele sacudiu a cabeça com sinceridade.
– Não.
Depois de um instante, ele foi até as calças emprestadas e as vestiu. E fez o mesmo com a camiseta que estivera usando quando fora alvejado. Movendo a bainha, inspecionou o furo no tecido onde a bala passara raspando e depois verificou a pele. Completamente cicatrizada.
Como resultado do sangue da Escolhida Layla.
– Sei o que vai perguntar – ele disse meio distante.
– Bem, o que você quer saber?
Os pés descalços recomeçaram a andar, levando-o até uma extremidade do quarto e depois retornando.
– Sabe, eu tinha essa fantasia... quando era apenas um menino. Bem, eu tive muitas. Costumava pensar nelas quando a ama-seca me acorrentava do lado de fora do chalé à noite...
– Acorrentava? – Layla repetiu baixo.
– ... para passar o tempo. Uma das minhas prediletas era a respeito de quem seria o meu pai. Eu visualizava um guerreiro destemido num garanhão imponente, e que numa noite qualquer ele surgiria do meio da floresta e me colocaria em sua sela. Nos meus devaneios, ele era forte e tinha orgulho de mim, e éramos parecidos, querendo apenas honrar e fazer o bem para a espécie. Bons guerreiros, lado a lado.
Ele sentia os olhos dela cravados nele, e não gostou disso. Já se sentia bastante vulnerável. Mas assim como se deve arrancar uma bala alojava nas carnes, ele teria que terminar aquela tarefa.
– Aquilo me fazia ir em frente. De modo que, mesmo tendo ficado em diversos orfanatos, nunca consegui permanecer neles porque me preocupava que talvez ele fosse até aquele chalé e não me encontrasse lá. Mais tarde, quando meus caminhos se cruzaram com os de Bloodletter e ele me contou aquela mentira para que eu me juntasse a ele? Quando ele me disse que era meu pai? Eu estava tão desesperado que me transformei para me encaixar no mundo daquele macho maligno e cometi um dos piores erros da minha vida. – Balançou a cabeça. – E quando descobri a mentira? Eu me senti traído, mas também foi um regresso ao lugar em que estive enquanto criança. Vivi com a rejeição dos meus pais a vida inteira. Tiveram um ou dois séculos para repensarem o que fizeram e tentar me encontrar, mas escolheram não fazer isso. Descobrir agora os nomes deles ou o que aconteceu com eles, ou onde vivem agora? Isso não mudará nada, nem para mim, nem para eles.
Os lindos olhos de Layla reluziam com lágrimas reprimidas, e ele entendeu que ela tentava ser forte por causa dele.
E desejou uma vez mais não colocá-la nessa posição.
– Não estou bravo com você – ele disse ao se aproximar e se ajoelhar diante dela. – Jamais ficaria.
Ele apoiou as mãos nas coxas dela e forçou um sorriso. Queria tranquilizá-la, apaziguar sua consciência e sua mente, mas suas próprias emoções estavam confusas. De fato, conversar com ela abrira uma caixa de Pandora em relação ao passado, e todo tipo de imagem surgiu em sua mente, lembranças da infância. E depois do campo de guerra, e mais adiante, com seus guerreiros, abalroando-o tal qual invasores diante de um portão, ameaçando tomar conta de tudo o que ele era.
Era por isso que o passado devia permanecer enterrado, ele concluiu, e as verdades não reveladas deveriam continuar assim. Trazê-las à tona não resolvia nada e apenas criava uma tempestade de areia que levaria muito tempo para se assentar.
A boa notícia? Dissera aos seus machos que os encontraria às quatro da manhã, e isso lhe daria uma boa desculpa para pôr fim aquela conversa. E daí que passava pouco das duas? Ele precisaria de um tempo a sós para se recompor.
– Preciso ir.
– Para procurar seus guerreiros.
– Isso.
Ela pareceu inspirar fundo como quem tenta se fortalecer.
– Voltará a vestir o colete a prova de balas? Para o caso de se deparar com mais assassinos?
Quando Xcor voltou a se levantar, fez um gesto de dispensa com a mão para tranquilizá-la.
– Sim, mas não se preocupe. Eles são quase inexistentes agora. Nem me lembro da última vez em que vi um.
A Primeira Refeição com os pais de Blay foi, pelo menos a primeira vista, um cena perfeita de um desjejum: um casal apaixonado, duas belas crianças e um casal de avós numa cozinha que parecia saída de uma revista para mulheres dos tempos antigos.
A realidade, todavia, não estava nada perto da perfeição.
Quando Qhuinn se recostou na cadeira, apoiou a caneca de café no abdômen. O que não foi uma boa ideia, considerando-se tudo o que havia ali embaixo. Para deixar Lyric feliz e fazer jus a todo o trabalho duro dela, ele comera quatro ovos, seis fatias de torrada, tomara três xícaras de café e suco de laranja. E, ah, comera três doces congelados feitos de menta e chocolate.
Que foram consumidos à semelhança daquele episódio de Monty Python. Sim, era inteiramente possível que acabasse explodindo em toda aquela linda cozinha, nos armários de bordo e no assoalho de madeira e sobre todas aquelas panelas de cobre decorativas acima da ilha central, como a personagem do esquete cômico naquele restaurante.
– Mais torrada? – Lyric perguntou com um sorriso.
Quando ela estendeu o prato diante dele, um botão de ânsia foi acionado e ele quase devolveu toda aquela comida deliciosa que ela preparava em cima das sobras.
– Acho que vou fazer uma pausa antes de repetir.
Pela oitava vez?
– Você comeu bem, filho – o pai de Blay comentou quando ele também se recostou. – Faz tempo desde a última boa refeição? O que Fritz tem servido para vocês? Couve e tofu?
– Ah, vocês sabem... – Na verdade foi meio difícil comer desde que o meu companheiro praticamente saiu de casa. – Andei ocupado, sabem.
– Você trabalha demais – Lyric disse ao reposicionar a criança que tinha seu nome. – Não é? O seu papai trabalha demais.
A pequena Lyric emitiu um gorgolejo na hora certa, como se objetivo da criança fosse o de derreter a avó.
– Ela se parece tanto com Layla. – Lyric relanceou para seu hellren. – Não acha? Ela vai ser uma belezura quando crescer.
Rocke assentiu e saudou tanto Blay quanto Qhuinn com sua caneca de café.
– Que bom que vocês sabem usar uma arma.
Blay falou:
– Ela vai ter aulas de autodefesa. Assim poderá se proteger sozinha e...
Quando ele parou abruptamente e olhou para fora da janela, Qhuinn murmurou:
– Isso mesmo. E você vai ensiná-la. Não vai, Blay?
Quando o macho não respondeu, Lyric olhou para Qhuinn.
– Estou monopolizando sua filha, não estou? Você não a segurou nem uma vez a noite toda.
A fêmea fez menção se passar a criança, e quando Qhuinn viu aquelas feições que eram a cópia das da mahmen dela, ele se retraiu – e se recuperou rapidamente.
– Não, estou bem, assim. Mas obrigado.
Inclinou-se propositadamente na direção de Rhamp, que estava nos braços do pai de Blay.
– E também vamos te ensinar a lutar. Não é mesmo, garotão?
– Você vai mesmo colocá-lo na guerra? – Lyric disse. – Quero dizer, quem sabe ele não encontra um outro lugar no mundo...
– Ele é filho de um Irmão – Blay a interrompeu ao se levantar. – Então será o que seu pai é.
O macho apanhou seu prato e o da mãe e seguiu para a pia.
– Ah, Qhuinn, pegue-a – a fêmea disse.
Qhuinn balançou a cabeça.
– Importa-se em colocá-la no bebê conforto? Vou ajudar com os pratos.
– E você – o pai de Blay murmurou para a mãe dele – precisa tirar esse pé do chão. Pra cama. Já.
– Preciso limpar isto.
– Não – Blay disse com firmeza. – Você cozinha, eu limpo, lembra?
– Dê ouvidos ao seu filho, Lyric.
Quando outra das discussões respeitosas e tranquilas do casal começou, Qhuinn procurou desesperadamente prender o olhar de Blay enquanto tiravam pratos, canecas e jarros.
Blay não estava de acordo. Na verdade, o cara parecia furioso com alguma coisa – embora escondesse bem enquanto seus pais se preparavam para acomodar Lyric na cama.
Quando a mãe de Blay abraçou Qhuinn, ele mais do que retribuiu o gesto.
– Eu volto logo.
– Melhor mesmo. E traga meus netinhos, por favor.
O pai de Blay a tomou nos braços.
– Já desço para ajudar, rapazes.
– Ou – Lyric disse – você pode assistir a um pouco de televisão com sua companheira.
– Esta bagunça precisa...
– Eles já são crescidos. Saberão cuidar de tudo. Venha, há um programa sobre destruição em massa que eu gostaria muito de assistir com você.
– Era isso mesmo o que eu queria – o pai de Blay disse com um afeto sarcástico.
Quando o casal começou a subir as escadas, Qhuinn poderia jurar que Lyric lhe lançara um aceno que dizia: pode deixar, leve o tempo de que precisar...
– Quer me dizer que porra está acontecendo aqui?
Qhuinn se retraiu e parou a caminho da mesa onde pegaria os guardanapos.
– Como que é?
Blay se recostou na pia e cruzou os braços diante do peito.
– Você não olhou para ela a noite inteira. Não tocou nela. Que diabos está acontecendo?
Balançando a cabeça, Qhuinn disse:
– Desculpe, mas não estou entendendo...
Blay apontou os dedos para os bebês conforto.
– Lyric.
– Não sei o que você está dizendo.
– Até parece.
Quando Blay o encarou, Qhuinn sentiu a exaustão retornar redobrada.
– Olha só, eu não...
– Sei que não sou pai dela, mas...
– Ah, Deus, isso de novo não. – Ele pendeu a cabeça para trás e fitou o teto. – Por favor, de novo não...
–... não vou ficar aqui parado e deixar que você a ignore só porque ela se parece com Layla e você não suporta a Escolhida. Não vou aceitar isso, Qhuinn. Não é justo com a sua filha.
Estava na ponta da língua de Qhuinn dizer que ele não entendia, mas não. Não seguiria esse caminho.
Blay apontou o dedo na direção dela.
– Ela é um bom bebê e contanto que você não meta os pés pelas mãos nos próximos vinte e poucos anos, ela será uma fêmea espetacular. Não me importo por não estar na certidão de nascimento deles e o fato de não ter direito nenhum sobre eles...
– Sem querer ofender, mas já chega com isso. Isso não cola mais.
Quando Blay estreitou os olhos e pareceu prestes a explodir, Qhuinn enfiou a mão dentro da bolsa de fraldas e pôs uns papéis sobre a bancada de granito.
Deslizando-os na direção do cara, disse:
– Já cuidei disso.
– Do quê?
Exalando alto, Qhuinn se arrastou até a mesa e largou o peso do corpo numa cadeira. Remexendo num guardanapo amassado, assentiu na direção dos documentos.
– Apenas leia-os.
Blay estava no clima para discutir, mas algo deve ter surtido algum efeito, ou foi a expressão de Qhuinn.
– Por quê? – o cara quis saber.
– Você vai ver.
Quando o outro macho pegou os papéis e os desdobrou, Qhuinn acompanhou cada nuance do lindo rosto familiar, as torções na testa, a contração – e posterior relaxamento – da boca e do maxilar, o mais absoluto choque e descrença que foram substituídos por raiva.
– O que você fez? – Blay perguntou quando, por fim, levantou o olhar.
– Acho que é autoexplicativo.
Enquanto Blay relia o documento, Qhuinn fitou os dois bebês conforto, os bebês dentro deles, e os dois pares de olhos que começavam a se fechar.
– Não posso deixar que faça isso – Blay disse ao final.
– Tarde demais. Esse é um selo real no pé dos documentos.
Blay se aproximou da mesa e pareceu despencar na cadeira antes usada pela mãe.
– Isto é...
– Você tem os meus direitos parentais. Agora você é legalmente o pai deles.
– Qhuinn, você não tem que fazer isso.
– O inferno que não. Estou fazendo valer a minha palavra. – Apontou para a papelada. – Declarei-me incompetente e incapaz como pai... E, olha só, quando a gente descarrega uma arma de fogo no quarto dos seus filhos, é fácil comprovar isso. E Saxton fez uma pesquisa legal. Nós levamos o caso para Wrath e ele aprovou.
Não de pronto, na verdade. Mas, no fim da noite, o que o Rei poderia fazer? Ainda mais quando Qhuinn explicara o motivo para aquilo.
– Não consigo acreditar... – Blay balançou a cabeça. – O que Layla tem a dizer sobre isto?
– Nada. Isso não tem nada a ver com ela.
– Ela é a mahmen deles.
– E agora você é o pai deles. Conte a ela se quiser, ou não. Pouco me importo. – Quando Blay franziu o cenho, Qhuinn largou o guardanapo e se sentou à frente da cadeira. – Olha só, serei sempre o pai deles. O meu sangue está nas veias deles. Nada nem ninguém poderá mudar isso. Não estou negando o fato de que os gerei nem a realidade de que sempre estarei nas vidas deles. O que estou fazendo é legalizando a sua situação. Quando perdi a merda da minha cabeça naquele quarto? Aquilo foi emoção. – Apontou para os documentos de novo. – Isto é a realidade.
Blay só ficou olhando para os papéis.
– De verdade, não consigo acreditar que você fez isso.
Qhuinn se levantou e começou a prender as crianças, Rhamp primeiro. Quando se virou para Lyric, tentou ser rápido. Tentou não olhar para o rosto dela.
Quando uma emoção estranha o atravessou, tentou se livrar dela.
– Tenho que deixar que Layla os leve amanhã ao anoitecer. Eu devo ir a campo, e você também – já olhei a escala. Então, a menos que queira mudá-la, eu te vejo na mansão amanhã à noite antes de sairmos.
Parou antes de pegar os bebês conforto.
– A menos que queria ir comigo agora.
Quando Blay meneou a cabeça, ele não se surpreendeu.
– Ok, espero te ver amanhã. Venha mais cedo se quiser passar um tempo com seus filhos antes que ela vá buscá-los.
Ele sabia que não deveria sugerir que Blay talvez quisesse vê-lo.
Levantando os gêmeos, Qhuinn girou sobre os calcanhares e seguiu para a porta. Quando estava no corredor, desejou que Blay de repente tivesse uma revelação e viesse correndo para a porta da frente.
Quando isso não aconteceu, ele a abriu e saiu.
CAPÍTULO 51
Os atrasos eram inaceitáveis. Incomensuráveis. Inadmissíveis.
Enquanto se desenroscava dos braços da amante, Throe estava a ponto de gritar. No início, fora incapaz de encontrar todos os ingredientes para o feitiço, ou o que quer que aquilo fosse, na despensa da cozinha na noite anterior. Isso significou que ele teve que sair – no Bentley no hellren da casa, a propósito – e ir até a cidade para encontrar alcaçuz, açafrão e velas pretas.
Tentar localizar aquelas velas em Caldwell às duas da manhã o enlouquecera.
Entrara em três supermercados que ficavam abertos 24 horas, mas nenhum deles as tinha. E tentara uma CVS. Duas, na verdade. Nada. E depois, quando voltara para casa, a senhorita Fazendo Birra Com Seus Louboutin estava tendo uma crise de histeria.
Ele quase a deixara falando sozinha. Mas a aurora estivera próxima e, além disso, ele ainda precisava das malditas velas e do óleo de motor.
Depois de vê-la transformar uma DR numa pequena expressão artística que durou umas duas horas pelo menos, tivera que transar com ela por três ou quatro vezes. Em seguida o acesso de choro e os malditos arrependimentos e recriminações. E as subsequentes declarações de amor às quais ele não acreditava nem por um segundo.
Quando ele conseguiu se livrar a fim de encontrar um doggen para lhe dar instruções, já passara das quatro da tarde.
O doggen só voltara depois das seis, e a Primeira Refeição foi interminavelmente longa – e agora, depois de mais uma rodada de sexo, ele estava livre. Ela estava apagada e permaneceria assim porque ele lhe dera sorrateiramente sete comprimidos de calmante, dentre os que ela mantinha no gabinete do banheiro.
As pílulas ficavam indetectáveis no espresso que ela bebeu na refeição chamada pelos humanos de desjejum.
Ficou de pé e se movimentou silenciosamente pelo quarto pouco iluminado, encontrou o roupão de seda, cobriu-se e se apressou até a porta. No corredor, suas passadas eram leves devido à antecipação que ele sentia mais frequentemente ao abordar uma nova amante.
E, de fato, quando por fim voltou à própria suíte, correu para a cama, jogou o travesseiro para o lado e aproximou O Livro do coração.
Quando o sentiu se aquecer, ele sorriu.
– Sim, faz tempo demais. E como faz. Mas aqui estamos nós. Vamos trabalhar agora.
Pareceu-lhe apropriado deixar as luzes apagadas, pois sentia que estava fazendo alguma coisa em segredo, algo sagrado – ou talvez essas fossem palavras erradas.
Não se importava muito em encontrar as certas: bem nos recessos da mente, ele sabia que aquilo era maligno. E, de fato, quando se sentou num dos cantos do quarto e depositou O Livro no tapete, ele lhe pareceu sombrio, cheio de sombras.
No entanto, não se demorou refletindo a esse respeito. Iria se concentrar apenas no seu objetivo.
– Tenho minha fé e a minha fé me tem – ele murmurou quando O Livro se abriu sozinho e as páginas começaram a virar. – Tenho minha fé e minha fé me tem...
Quando o livro encontrou a parte certa, as páginas começaram a brilhar como se sentissem que seus olhos necessitavam de assistência.
– Quanta gentileza sua – ele disse ao acariciar a lombada.
No pergaminho, os símbolos do Antigo Idioma apareceram e ele deu uma rápida revisada na tarefa que tinha à frente. Certo, os ingredientes. Precisaria de...
O som de algo se movendo surgiu de baixo da cama. E também dentro do armário.
As coisas que pegara na despensa e no supermercado, na cozinha e na garagem, migraram sozinhas ao longo do tapete oriental, uma mixórdia de pacotinhos de temperos, a garrafa de vinagre tinto, a garrafa de Coca-Cola de plástico na qual colocara o óleo do Jaguar vintage estacionado na garagem, e todos os demais ingredientes se movendo, saltitando e pulando até junto dele. As velas pretas foram as últimas e, na metade do caminho, elas se soltaram da caixa e rolaram adiante como se fossem troncos, evidentemente preferindo a liberdade em vez de continuarem confinadas.
Tudo formou um círculo ao seu redor, como se fossem estudantes ansiosos, prontos para serem chamados.
– Ora, que conveniente...
Um barulho de algo metálico se chocando fez com que ele virasse a cabeça. Algo provocava aquele barulho numa gaveta da cômoda, um rá-tá-tá agudo como se estivesse batendo à porta.
Intrigado, Throe se levantou e foi até lá. Quando ele abriu a gaveta certa, viu uma das suas adagas, da sua vida pregressa, que implorava para sair.
– Você também.
Ao segurar o cabo e senti-lo junto à palma, ele pensou nos seus colegas guerreiros. Pensou em Xcor.
A tristeza imediata foi uma surpresa, mas não algo desconhecido. Quando a princípio orquestrara o plano para destronar Wrath, surpreendera-se com a audácia e quase se convenceu de que seria loucura. Mas, em seguida, aproximou-se da glymera e encontrou apoio, comprometimento e recursos para lutar contra as “melhorias” que o Rei Cego vinha colocando em prática.
Sendo que nenhuma delas beneficiaria a aristocracia.
Subindo naquela onda de alienação e descontentamento, e depois a manipulando ainda mais para inflamar a glymera, acabara por se viciar na sensação do poder. De fato, isso era algo com que se deleitara antes ainda, antes que tudo desmoronasse com a tragédia da sua irmã e com ele indo parar junto de Xcor e do Bando de Bastardos. No Antigo País, antes do seu destino com aquele grupo de guerreiros perigosos, ele fora um macho de posição social e de valor, não servindo a ninguém – e percebia agora que a sua animosidade contra Wrath vinha do desejo de querer retornar à posição da qual caíra.
Imaginou que almejar o trono havia sido uma correção de curso um tanto excessiva. Mas ninguém pode ser acusado de querer alcançar as estrelas, pode?
Voltando a se concentrar n’O Livro, Throe leu as instruções. Duas vezes. E logo pegou a panela de cobre e fez uma pasta com os temperos, o vinagre e o óleo automotivo. O cheiro era desagradável, porém necessário. Quando isso foi feito, ele pegou uma das velas e a cobriu com a pasta, garantindo que tudo exceto o pavio estivesse coberto. Em seguida, apanhou o que restava da pasta, virou a panela para baixo e fez uma pilha no fundo dela. Equilibrando a vela no monte que criara, terminou enrolando o tapete para transferir a estranha escultura para o piso diretamente, fazendo uma pequena trilha da pasta descendo da escultura e se afastando uns vinte centímetros da panela.
Deu uma rápida verificada no que havia feito para se certificar de que tudo estava correto até ali.
Sangue era necessário em seguida, e ele o providenciou fazendo um corte na palma com a adaga. A dor foi leve e o cheiro de sangue permeou sua narina. Segurando a ferida acima da vela, permitiu que o sangue escorresse sem, no entanto, molhar o pavio. Mais sangue era necessário na mancha sobre o assoalho.
Lambendo a palma para selar a ferida, segurou um isqueiro e abriu a tampa para logo acendê-lo. E acendeu a vela.
A chama se sustentou linda em sua simplicidade, a luz amarela translúcida formando o desenho de uma lágrima no alto do pavio.
Hipnotizante.
Throe a observou por um instante, e acompanhou nela a dança sinuosa dos movimentos de uma fêmea erótica.
Uma voz entrou em sua cabeça, de onde ele não sabia: Estou esperando por você, meu amor.
Estremecendo, esfregou os olhos e sentiu o medo se renovar. Mas não havia volta, e tampouco ele desejava abandonar aquele ritual ou o que quer que aquilo fosse. Retornaria a quem e ao que fora, e comandaria a raça com um exército que o seguiria e obedeceria a somente ele.
Inclinando-se para baixo, apoiou a palma na trilha de pasta.
– Tenho minha fé e minha fé me tem...
Com um golpe decisivo, cravou a ponta da adaga no dorso da mão, perfurando pele, cortando até o osso, enterrando a ponta no assoalho.
Arfando por conta da dor, ele piscou e olhou para a adaga. Olhou para a chama. Olhou para...
Nada de especial acontecera. Nenhuma maldita coisa.
Esperou um pouco mais, e depois começou a praguejar. Que babaquice era aquela?
– Você me prometeu – ele estrepitou contra O Livro. – Você me disse que isto...
Throe deixou a frase pairando no ar quando algo chamou sua atenção.
Estivera procurando no lugar errado. Não era na vela, nem na chama, nem na palma, tampouco na adaga onde encontrou aquilo que criara.
Não, estava na sombra do cabo e do corpo da adaga criada pela luz da vela. Dos contornos da sombra escura lançada sobre o assoalho, algo borbulhava, tomando forma... emergindo.
Throe se esqueceu do mau cheiro e da dor enquanto observava a entidade emergir diante dele, os contornos fluidos como água, o corpo sem corpo e sem rosto e transparente ao se elevar da sombra lançada, crescendo mais e mais...
Na verdade, era uma sombra.
E parecia estar olhando para ele, aguardando uma instrução.
Parou de crescer em tamanho quando chegou às dimensões de um macho adulto, e oscilou de um lado a outro, bem ao estilo da dança da chama, como se estivesse presa ao chão... presa bem no ponto em que a adaga atravessara as carnes de Throe.
Com uma careta de dor, Throe arrancou a adaga e puxou a mão.
Em reação, a entidade flutuou para longe do chão, como um balão preso a um fio invisível.
Caindo de bunda, ele continuou sentado apenas observando. Depois segurou a adaga ensanguentada pela ponta e... lançou-a de modo que a arma atingisse a sombra com a ponta.
Houve um sibilo e um chiado, mas a adaga aterrissou no chão atrás da sombra como se tivesse atravessado apenas o ar.
Pigarreando, Throe ordenou.
– Apanhe a adaga.
A sombra se virou e a adaga foi apanhada do chão, sendo sustentada por uma ramificação da sombra que devia ser uma espécie de braço. E a entidade apenas aguardou, como se estivesse esperando mais uma ordem.
– Esfaqueie o travesseiro.
Quando Throe apontou para a cama, a coisa se moveu à velocidade da luz, tão rápido que seus olhos mal conseguiram acompanhá-la, seu corpo se alongando e depois estalando como um elástico.
E golpeou precisamente o travesseiro apontado por Throe, apesar de existirem oito apoiados contra a cabeceira.
Em seguida, a entidade simplesmente aguardou ao lado da cama, fazendo aquela coisa de balão oscilando a partir da base.
– Venha cá – Throe sussurrou.
A obediência era mágica. O poder, inegável. As possibilidades...
– Um exército – Throe disse com um sorriso que fez suas presas latejarem. – Sim, um exército desses me servirá muito bem.
CAPÍTULO 52
De pé na sala dos funcionários no restaurante Sal’s, Therese estava cansada, mas satisfeita ao fim da noite. Por volta de uma da manhã, com suas mesas arrumadas, sua parte nas gorjetas e um smoking extra para levar para casa, ela estava feliz com o andamento das coisas. Errara em três pedidos, mas não muito: uma entrada estivera errada, um rosbife foi servido ao ponto em vez de ponto para menos, e ela confundiu um semifreddo com um tiramisù.
Atendera oito mesas de quatro, uma de seis e três casais. O que resultou numa boa soma em gorjeta. Se a situação continuasse assim, ela sairia daquele prédio no qual morava até a metade de janeiro. Só o que precisava fazer era poupar o dinheiro do mês de depósito e o primeiro mês de aluguel para conseguir algo um pouco mais decente. Depois disso, era só se mudar – sem ter que pagar uma transportadora, pois não tinha tantas coisas assim.
– Feito.
Quando Emile se aproximou, ela sorriu.
– Feito. E ainda estou de pé.
– Você se saiu bem. – Ele retribuiu o sorriso. – O pessoal vai sair agora. Quer se juntar a nós?
– Ah, obrigada, mas estou exausta. Quem sabe na próxima?
Ele tirou suas coisas do armário, um casaco de flanela e um cachecol simples, mas de boa qualidade.
– Encontro marcado... Quero dizer, não um encontro. Ah, você entendeu.
Ela assentiu aliviada.
– Entendi. Perfeito.
– Até amanhã, então, Therese.
Emile pronunciou o nome dela ao estilo francês, e naquele idioma, ele pareceu exótico e elegante. E ela precisou de um minuto para notar a cor dos olhos dele. Muito azuis.
– Pronto, E.?
A humana que falou com ele posicionada na soleira da porta devia estar perto dos trinta e tinha uma irritação na voz, no olhar, no corpo. Liza? Ou Lisa? Algo assim. Tinha cabelos escuros com luzes mais claras nas pontas, olhos escuros com invejáveis cílios naturais, e pernas que faziam os jeans que ela vestia agora, depois de ter tirado o uniforme, parecerem uma obra de arte.
Não demonstrara muito interesse em Therese, mas estava na cara por quem se interessava.
– Então?
Emile assentiu.
– Pronto. Tchau, Therese.
Lisa/Liza/Não importa quem apenas deu as costas.
– Tchau, Emile.
Quando Therese fechou seu armário, dobrou o smoking extra sobre o braço. Ainda vestia aquele no qual trabalhara e guardara as roupas em que viera dentro da mochila porque estava simplesmente cansada demais para se trocar. Só o que precisava fazer era ir para a cama e fechar os olhos, porque uma coisa ela sabia sobre o trabalho de garçonete: o turno seguinte chegaria rápido demais, antes que seus pés parassem de latejar se não descansasse.
Tinha que admirar aqueles humanos que saíram para se divertir.
Virando-se, ela...
Parou onde estava.
– Você... – ela sussurrou ao levantar o olhar, bem para o alto, até chegar ao rosto que estivera constantemente em sua mente desde a noite anterior.
Trez, o Sombra, o irmão do dono do restaurante... uma fantasia devastadoramente atraente em carne e osso com quem vinha se preocupando preenchia a soleira de um modo que nenhum outro humano conseguiria, os ombros largos ocupando quase todo o espaço vazio, a altura impressionante fazendo com que a cabeça quase batesse no batente. Vestia um terno cinza escuro que ressaltava a cor de pele dele, e uma camisa social branca que parecia ter um brilho azulado, assim como a neve sob a luz do luar.
O rosto dele era mais bonito do que se lembrava.
E isso a fez imaginar se o lábio inferior dele era ainda mais macio do que ela se recordava.
– Tentei ficar afastado – ele disse num tom baixo. – Consegui por mais de vinte horas.
Ela lentamente abaixou a mochila para o banco.
– Bem... Olá.
Trez mudou de posição e enfiou as mãos nos bolsos.
– Comeu alguma coisa?
– Não. Quero dizer... Eu experimentei os pratos no início da noite, mas... fora isso, não.
– Quer comer alguma coisa rapidinho comigo?
– Quero.
O fato de não ter sequer hesitado provavelmente fez com que parecesse desesperada. Mas não se importou com isso. Quando se está ignorando de propósito o que é bom para você, não há muito espaço para introspecção.
– Venha. – Ele indicou por cima do ombro. – Trouxe o meu carro.
Quando atravessaram a cozinha, ela manteve a cabeça abaixada. Tinha a sensação de que o irmão dele, proprietário do Sal’s, não aprovaria aquilo... E o cara estava cozinhando mais adiante, na frente do fogão. Mas, pensando bem, com olhos erguidos ou abaixados, não havia como passarem despercebidos.
Quando chegaram à porta dos funcionários, atrás, Trez a manteve aberta para ela passar, e não se surpreendeu nem um pouco por haver uma BMW idêntica estacionada junto à saída – apenas a cor era diferente. Também não se surpreendeu quando ele deu a volta e a ajudou a entrar do lado do passageiro.
Quando ele entrou, o interior do carro lhe pareceu muito menor, e ela não se importou porque, Deus, aquele corpo... E puxa, ele também era cheiroso, talvez fosse a colônia que usava ou quem sabe, poderia ser apenas ele mesmo, atiçando-a.
– Onde gostaria de ir? – ele perguntou ao dar partida e colocar na marcha ré.
Sirius/Xm estava na rádio The Heat, e ela sorriu.
– Temos o mesmo gosto musical.
– Temos? – ele disse ao levar o carro para a parte do estacionamento dos clientes do restaurante.
– Temos. Ah, e eu adoro Kent Jones.
– Eu também. – Ele parou na saída da avenida que pegaram na noite anterior. – Olha só, conheço uma lanchonete que fica aberta a noite inteira. Não é nada muito luxuoso, mas...
– Não sou uma fêmea ligada em luxos. O básico está ótimo para mim.
– Você não é básica.
Engraçado como uma afirmação como essa, vinda de um macho que estava vestido daquele jeito, com aquela aparência, que manobrava um carro tão luxuoso como aquele, parecia lhe dar a coroa de Miss Estados Unidos, o Prêmio Nobel da Paz e as chaves do Palácio de Buckingham ao mesmo tempo.
Ok, talvez isso tudo parecesse exagero, mas seu peito subitamente estava cantarolando e a cabeça estava tonta como se ela tivesse tomado uma taça de champanhe.
– Como foi seu primeiro dia no trabalho? – ele perguntou como se quisesse preencher o silêncio.
Pigarreando, Therese começou a responder superficialmente, mencionando os três erros cometidos, mas era tão fácil conversar com ele que logo ela se aprofundou mais.
– Eu estava preocupada em não ser boa o bastante. Preciso muito deste trabalho, e os outros dois que eu tinha em vista não pagavam tão bem como este.
– Precisa de um adiantamento ou algo assim? Eu posso te emprestar...
– Não. – A resposta foi brusca. – Mas obrigada. Vim ao mundo sozinha e vou lidar com meus problemas sozinha.
Quando a cabeça dele se virou para ela rapidamente, ela moderou o tom:
– Quero dizer, não quero ser um fardo para ninguém.
Ah, quanta asneira. A verdade era que ela não se permitiria mais ficar vulnerável com ninguém por nenhum motivo. Mas isso faria com que parecesse defensiva demais e ficava estranho naquele contexto.
– E o jogo de Syracuse? – ela mudou de assunto. – Estávamos olhando toda hora nossos telefones na cozinha enquanto aguardávamos os pratos.
– Ah, meu Deus, eu também fiquei grudado no meu. Aquela zona de defesa é insana...
E ele gosta de basquete universitário, ela pensou. Aquele macho era, sério, um unicórnio.
A lanchonete, no fim das contas, era incrível. A parte anterior fora convertida num vagão de trem, e a posterior era onde estavam as mesas. A atmosfera era muito nova-iorquina, com as garçonetes algo que você encontraria nos episódios de Seinfeld, todas com uniformes alegres, atendendo-o como se você tivesse invadido as casas delas e defecado nos sofás das suas salas.
Fantástico.
– Então, a especialidade daqui são as tortas, o café e as batatas assadas – Trez disse quando se acomodaram nos fundos bem do lado de uma placa de saída. – E fritas. O hambúrguer deles também é ótimo. Ah, o chilli é demais também.
Quando ele abriu o cardápio, os olhos vaguearam um pouco.
– Esqueci, o Reuben deles também é demais. E o rosbife.
Therese amparou o cardápio junto ao corpo e apenas sorriu.
– Por acaso você pulou a Primeira Refeição?
Os olhos dele voltaram para os dela.
– O quê? Ah, é que fui eu quem abriu hoje.
– Você tem um restaurante?
– Não, uma boate. Bem, duas.
Inclinando a cabeça para o lado, ela assentiu.
– Sabe, consigo ver isso. Você parece polido e sofisticado.
A garçonete abalroou a mesa deles, trazendo dois copos de água que quase despejou em cima deles.
– O que vai ser.
Trez apontou para ela.
– Therese?
– O Reuben. Definitivamente o Reuben. Nem tenho nem que olhar o cardápio.
– Batatas fritas ou chips – a pergunta foi feita de má vontade.
– Fritas, por favor. Obrigada.
A garçonete olhou para Trez.
– E você.
Nenhuma das frases da mulher eram perguntas. Estava mais para o estilo de um ladrão encostando o cano da pistola na sua nuca ao pedir a sua carteira.
Trez deixou o cardápio de lado.
– Cheeseburger. Americano. Ao ponto. Fritas. Duas tortas maçãs. Duas cocas e um refil antes da sobremesa. A conta, por favor, em dinheiro, não preciso de troco.
A garçonete voltou os olhos na direção dele. Depois assentiu como se estivesse dando um peteleco na cabeça dele com os nós dos dedos.
– É assim que se faz.
Quando a mulher se afastou, Therese riu.
– Evidentemente você sabe agradar as fêmeas.
– Pelo menos as humanas que estão servindo quase às duas da manhã e têm mais umas quatro horas antes de poderem ir para casa descansar.
Conversaram até a mulher voltar com as cocas, sem perder tempo em deixá-los sozinhos de novo.
– Sim, sempre fui fã de basquete. Spartans para sempre. Grande fã de Izzo. – Therese sorveu um gole do refrigerante e se recostou com um gemido. Geladinho, e tão doce, e cheio de gás. – Esta deve ser a melhor Coca que eu já tomei.
– Noite longa, deve estar com sede. – Ele sorriu. – A perspectiva é tudo na vida.
Verdade. E também havia o fato de aquele macho incrível estar sentado na frente dela.
– Como é que você não está com ninguém... – ela deixou escapar.
Quando os olhos dele saltaram, ela pensou: Ai, que droga. Dissera mesmo aquilo em voz alta?
De repente, aqueles olhos escuros se desviaram para outro lugar, vagueando ao redor do interior cheio de mesas e cadeiras desocupadas. Só havia outros dois casais na lanchonete, ambos no balcão mais adiante, e Therese tinha quase certeza de que se eles não estivessem tão perto, ele teria se levantado para andar de um lado a outro.
– Desculpe – ela murmurou. – Isso não é da minha conta.
– Hum... Não, tá tudo bem. Acho que podemos dizer que o amor não deu certo pra mim.
– Não consigo imaginar um motivo para uma fêmea deixar alguém como você. – Fazendo uma careta, ela fechou os olhos e meneou a cabeça. – Ok. Vou parar de falar agora. Fico metendo os pés pelas mãos.
Quando ele se recostou, um sorriso retornou por um segundo.
– Acho a sua franqueza animadora, sabia?
– Olha só, tenho uma ideia. Gosto de ser proativa, então, que tal se a gente justificar tudo isso por conta da minha exaustão? Tipo assim, tudo o que sair da minha boca será desculpado antecipadamente. Acho que nós dois nos sentiremos melhor quando tudo isso tiver terminado.
– Você não tem por que sentir vergonha.
– Espere e verá. A comida nem chegou ainda.
– Gosto de honestidade.
– Mesmo? Bem, então vai se dar bem comigo. Meus pais sempre disseram que...
Quando ela deixou a frase incompleta, ele murmurou:
– O quê?
Therese deu de ombros.
– Ah, você sabe, que eu não tenho filtro.
– Eles estão em Michigan?
– Não.
– Morreram? – ele perguntou com um vinco na testa.
Como responder a isso?
– Sim – ela disse. – Minha mahmen e meu pai estão mortos.
– Puxa, sinto muito. – Ele pareceu tão sincero, os lábios se afinando e as sobrancelhas abaixando. – Deve ser muito difícil.
– É por isso que vim para Caldwell.
– Um recomeço? – Quando ela assentiu, ele fez menção de estender a mão para segurar a dela, mas logo se conteve. – É difícil seguir em frente quando você é aquele que fica para trás.
– Vamos falar de coisas alegres? – Ela estalou o pescoço e sorriu com determinação. – Sabe, qualquer coisa que não seja família nem amores passados deve funcionar.
Ele retribuiu o sorriso.
– Isso nos deixa muitas possibilidades.
– Não é?
– Olha só, me faz um favor?
– Claro.
– Vai me deixar encontrar um lugar pra você morar que não seja aquele prédio em que está agora? – Ele levantou as mãos. – Eu sei, eu sei, isso não é da minha conta, mas aquela é uma parte bem esquisita da cidade, e não estou sugerindo que você não sabe tomar conta de si própria. Está na cara que você é inteligente, um indivíduo perfeitamente capaz de tocar a própria vida. Mas... Fala sério. Aquilo lá é perigoso.
– Você é um amor.
– Não sei bem se é assim que a maioria das pessoas me descreveria.
– Ok. Então o que elas diriam?
Sim, ela estava tentando mudar de assunto, mas não por estar assustada com a oferta dele. Mais por estar um tanto inclinada a aceitá-la.
– Belo pivô.
– O que disse?
– Foi uma maneira bem inteligente de me dizer para tratar dos meus assuntos.
Nesse momento, a garçonete se aproximou com os pedidos. Puxa vida, Therese pensou ao dar uma espiada no seu Reuben. Não se lembrava da última vez que vira fatias de pão tão grossas. E devia haver meio boi enfiado naqueles dois colchões de pão.
– Esta é a coisa mais linda que eu já vi na vida – ela disse.
– Eu te disse – Trez concordou.
A garçonete apenas grunhiu, mas Therese deduziu que deviam ter sorte por ela não ter despejado os pratos de batata frita nas cabeças deles.
– Me diz uma coisa – Trez continuou quando a mulher se afastou –, você é o tipo de garota que gosta de catchup?
– Sou sim, sou sim.
Ele abriu a tampa do Heinz e entregou a garrafinha para ela. Quando ela terminou de se servir, ele cobriu o próprio cheeseburger com o molho.
– Então, voltando à minha oferta pra te ajudar.
Therese apanhou metade do sanduíche com cuidado.
– Não sei, não. Lá pela metade de janeiro eu devo sair de lá desde que consiga manter o emprego no Sal’s. Não vai demorar muito.
– Olha só, eu tenho alguns amigos que têm um monte de propriedades na cidade. Membros da espécie, entende. As casas estão localizadas em bons bairros e são monitorados por... Bem, por equipamentos de ponta. Têm sistema de segurança e o bônus de não terem viciados em heroína no saguão de entrada.
– Mas quanto isso irá me custar? – Ela balançou a cabeça. – Não tenho o depósito ainda e não vou conseguir bancar...
Ele sacudiu a mão.
– Não se preocupe com isso.
– Desculpe, mas eu tenho que me preocupar. Eu estou cuidando de mim, lembra?
Dito isso, Therese abriu bem a boca e deu uma mordida. Hum, aquilo era o paraíso. E o pão de centeio era tão macio quanto um pão de forma, mas com a picância do primo russo.
Ela gemeu e Trez assentiu.
– Bom mesmo, não é? Fico feliz que tenha gostado.
Enquanto ele comia o cheeseburger, ela ficou impressionada com os bons modos dele à mesa. Nada atrapalhado, nem apressado, e muito uso de guardanapos. E ele também conseguiu não derrubar nada na jaqueta, o que era muito impressionante.
– Isso é seda? – ela perguntou ao apertar para o tronco dele.
– O terno ou a camisa?
– Hum... os dois?
– São.
– Bem, são bonitos. – E o que tem debaixo da camisa é ainda mais bonito...
Abruptamente, ele abaixou as pálpebras.
– Não sei bem como responder a isso.
Therese abaixou o sanduíche e se recostou no banco.
– Ai, meu Deus.
– Tudo bem. – Os olhos se direcionaram para a boca dela. – Não esquenta.
Abaixando a parte que restava daquela metade do seu Reuben, ela limpou as mãos no guardanapo.
– Sabe de uma coisa, é melhor eu ir embora.
– Não diga bobagens.
– Pelo visto é só o que eu tenho dito hoje.
– Olha só – ele murmurou. – Você pode me compensar. Fique na casa de um dos meus amigos para que eu não me sinta culpado se alguma coisa ruim acontecer com você.
– Por que você se sentiria culpado? Não sou problema seu.
– Qualquer macho – qualquer pessoa – que não faça algo quando alguém precisa de ajuda está errando.
– Mas e quanto ao depósito e ao aluguel do primeiro e do último mês...
– Vamos programar um esquema pra você. Para os pagamentos. – Deu de ombros. – Olha só, somos só membros da mesma espécie cuidando uns dos outros. Temos que nos apoiar neste mundo. Se juntarmos os humanos e os redutores, eles nos superam em número.
A garçonete retornou trazendo mais refrigerante e colocou dois pratos com fatias enormes de torta de maçã. À moda da casa. Depois pegou a ultrapassada caderneta de tirar pedidos e arrancou uma folha como se a coitada tivesse insultado sua mãe.
E bateu na mesa com ela.
– A torta é por conta da casa. – Ela indicou o smoking de Therese. – Trabalha no Sal’s?
As sobrancelhas de Therese se ergueram.
– Sim, trabalho.
– Cortesia entre profissionais. Boa noite.
A mulher marchou para longe como se estivesse numa campanha para fechar a cozinha.
– Uau – Therese disse. – Legal da parte dela.
– Não tenho nenhum problema com alguém que é meio mal-educado enquanto está trabalhando duro para se sustentar honestamente.
– Nem eu. E eu teria agradecido caso ela...
– Mas você estava preocupada que ela encostasse uma arma na sua cabeça? Boa ideia.
Os dois se calaram enquanto Therese pensava em ter que voltar para o buraco onde estava morando.
– Quando eu poderia me mudar? – inferiu num rompante.
Trez a encarou por cima da mesa e sorriu.
– Vamos dar alguns telefonemas e descobrir, que tal?
Ela abaixou os olhos.
– Obrigada. – E logo voltou a fitá-lo. – Mas eu mesma vou pagar por tudo. E não quero nenhum desconto. Isto vai ser tratado como se fosse com qualquer outro locatário, ok? Eu prefiro continuar onde estou e correr o risco de ser assaltada a...
Trez mostrou as palmas.
– Entendido. Completamente. Você só vai se mudar para um lugar onde não terá que se preocupar se vai ou não ser apunhalada só para provar a sua independência.
– Isso mesmo. – Ela esticou a mão e apanhou a conta. – Dito isso, eu vou pagar esta conta e você vai me deixar fazer isso, com graciosidade.
Quando ele abriu a boca, ela dissimulou levando a mão ao coração.
– Ah, não tem de quê. Mesmo, será um prazer para mim e uma ótima maneira de recompensar a sua gentileza. E só para constar, eu amo machos seguros o suficiente que permitem que as fêmeas sejam seus iguais. É muito sexy.
Ele fechou a boca. Inclinou-se para trás e para a frente.
– Uau – ele disse por fim.
– O que foi?
Trez pigarreou e endireitou o colarinho aberto da camisa. Que já estava perfeitamente ajustada.
– Este cheeseburger está perfeito. Verdade... E as fritas também.
Therese começou a sorrir.
– Espere até chegar à torta. Acho que nós dois vamos adorar.