Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 32
Enquanto a noite caía em Caldwell no dia seguinte, Blay tentou sair para a varanda de trás para fumar seu primeiro cigarro após ter acordado. O cenário estava perfeito. Tinha sua caneca YETI cheia de café da Dunkin’ Donuts, feito pela mãe que encomendara o pó pela Internet, e o maço de Dunhill – que precisava racionar porque só tinha mais seis – e vestia sua parca Patagonia que tinha mais plumas de ganso do que todos os travesseiros da casa juntos.
Isso mesmo, era um bom plano. Cafeína e nicotina eram essenciais numa missão quando não se conseguiu dormir por mais de quinze minutos diretos durante o dia e não se quer arrancar as cabeças de todos ao seu redor.
O problema? Quando ele tentou abrir a porta da varanda, teve que empurrar com toda a força com o ombro.
Em seguida foi atingido no rosto por golpes de neve.
Retraindo-se, ele imprecou e voltou a fechar a porta.
– Puta merda, o tempo está um...
O ruído que veio da cozinha foi alto e envolvia alguma panela de aço inoxidável ou talvez uma assadeira, a julgar pelo som de pratos de uma orquestra.
– Mãe? – ele a chamou.
Deixando de lado a arrancada química, disparou para a cozinha...
... e encontrou a mãe no chão de ladrilhos diante do fogão, o tornozelo virado num ângulo estranho, o pãozinho de noz-pecã que estivera colocando no forno também caído no chão, a assadeira na qual ele estivera acomodado cerca de um metro distante dela.
Blay largou o café e o maço de cigarros na bancada e se apressou para ajoelhar ao lado dela.
– Mahmen? Bateu a cabeça? O que aconteceu?
Lyric se sentou fazendo uma careta, apoiando o corpo nos cotovelos.
– Eu só queria colocar isto no forno antes de o seu pai descer para a Primeira Refeição.
– A cabeça, você a bateu ou não? – Ao afastar os cabelos dela, rezou para não encontrar sangue. – Quantos dedos você está vendo?
Ela empurrou a mão dele da frente.
– Blay, eu estou bem. Pelo amor de Deus, não bati a cabeça.
Ele se sentou. A fêmea vestia seus costumeiros jeans de mãe e uma blusa de gola role que a fazia parecer um cruzamento de Mamãe Noel e a senhora Taylor, personagem de Home Improvement. E ela parecia estar bem, seus olhos o acompanhavam, a coloração estava boa, o comportamento derivado do embaraço e não do trauma.
– Blay, eu só escorreguei no tapetinho. Estou bem.
– Que bom, porque assim posso brigar com você. Onde diabos está a sua bota? Por que ela não está no seu pé?
De repente, a mãe fingiu tontura, batendo os cílios e levantando as mãos adiante como se não estivesse enxergando.
– São dez dedos? Ou doze?
Quando ele a encarou, ela fez uma careta encabulada.
– Aquela bota atrapalha tanto... e a cozinha é apertada. Eu ia colocá-la de novo assim que tivesse feito os ovos.
– Você escorregou ou o tornozelo cedeu?
Quando ela não disse nada, Blay deduziu que devia ter sido a última opção e foi para perto do pé. No instante em que tentou tocar no chinelo dela, ela sibilou e empalideceu.
– Está tudo bem – disse com voz contraída.
Ele se concentrou nos lábios apertados dela e no modo como as mãos tremiam.
– Acho que torceu o tornozelo de novo. E talvez tenha fraturado alguma coisa, não sei...
– Vou ficar bem.
– Sabe, essas são as minhas três palavras menos favoritas. Qhuinn sempre as diz quando... – Ele se interrompeu, e ignorou propositadamente a maneira como sua mãe o fitava. – Consegue se desmaterializar? Porque tenho certeza de que a doutora Jane precisa dar uma olhada nisso aí. Não, Manny. Ele é o cara dos ossos.
– Ah, isso não será necessário.
– Porque não deixamos papai decidir. – Quando ela piscou, ele continuou sugestivamente: – Ou você poderia ser sensata e ir comigo sem reclamar.
A expressão de Lyric foi de aborrecimento, mas ele sabia que a convencera. Desde os ataques, o pai vinha se portando de modo superprotetor com a companheira. Ele parecia ficar histérico com as coisas mais ridículas – cortes de papel, cutículas levantadas, dedos do pé batidos – o que significou que quando Lyric escorregou nos degraus da frente da casa quando foi apanhar o jornal algumas noites atrás, o pobre quase perdera a cabeça.
E este machucado estava pior que o primeiro.
– Consegue se desmaterializar? – Blay perguntou.
– Acha mesmo que é necessário?
– Você mesma pode responder a essa pergunta. Quer tentar se levantar?
A mãe encarou o pé.
– Como eu queria ter colocado a maldita bota...
– Eu também.
Ela franziu o cenho.
– Como faço para chegar à clínica do centro de treinamento? Mesmo que eu consiga me desmaterializar, não conheço a localização exata.
– Podemos chegar até perto dela e pedir para irem nos buscar. – Blay se levantou e olhou para o teto. Ouvia os passos do pai no andar de cima, movendo-se de um lado a outro enquanto se vestia. – Acha que é melhor ou pior se formos sem que ele saiba?
– Podemos mandar uma mensagem para ele? Dizendo que vamos dar uma saidinha e que já voltamos. Diga a ele que... que eu fui fazer compras.
A mãe odiava mentir, mas odiava preocupar seu hellren ainda mais. E Blay tinha que apoiá-la neste caso. Seu pai teria um treco com o que aconteceu ali.
– Vamos embora. – Blay pegou o celular e começou a mandar uma mensagem para Jane. – Você sabe aquela quitanda na Rota 9? Aquela que fica num celeiro?
Só que, enquanto falava, tentou abrir a porta da varanda e se perguntou que diabos estivera pensando. Sua mãe precisava se desmaterializar até um lugar seco e aquecido com aquele seu tornozelo daquele jeito. Aquele celeiro não era aquecido e provavelmente estaria fechado. Era melhor que a maldita floresta, mas, convenhamos...
No que estivera pensando?
Abaixou o telefone com o texto escrito pela metade e fitou a mahmen. Ela fechara os olhos e voltara a deitar a cabeça no chão – e a mão estava sobre o abdômen, contraída.
A outra estava encostada no chão, tremendo e batendo as unhas como se ela estivesse sapateando.
– Você não vai conseguir se desmaterializar – ele disse mecanicamente. – De jeito nenhum.
– Claro que consigo.
Mas a negação dela não o convenceu.
E nessa hora seu pai apareceu na cozinha, a gravata meio feita ao redor do pescoço, os cabelos ainda úmidos do banho e penteados num estilo que o boneco Ken adoraria, cada mecha perfeitamente ajeitada e parecendo congelada no lugar.
–... vídeo conferência com os meus clientes e... Lyric! Ai, meu Deus, Lyric!
Enquanto o pai corria para perto da mãe, Blay olhou para a porta que dava para a garagem. Os pais começaram a discutir, mas ele os interrompeu:
– Pai, me faça feliz e me diga que seu carro tem tração nas quatro rodas.
De volta à mansão da Irmandade, Qhuinn estava fazendo algo inconcebível: estava arrumando uma mochila preta com mamadeiras, leite em pó e água filtrada. Fraldas. Lenços umedecidos. Pomada para assaduras. Chocalhos e chupetas.
Claro, arrumar uma mochila não era o problema. Normalmente a sua bagagem girava em torno de Smith & Wesson, Glocks ou Berettas, o tipo de coisa que vinha acompanhada de balas e visões noturnas, não por Pampers e Evenflo.
O outro motivo por aquilo ser estranho é ele estar arrumando a mala dos filhos para que eles saíssem da casa. Sem ele.
Eram tão pequenos. E ele não os queria mesmo mais ao redor daquela fêmea.
Recusava-se a se referir a Layla como mahmen deles, mesmo que apenas mentalmente.
Mas a situação era essa. Subira ao Santuário com Amalya, a directrix das Escolhidas, e ela o acompanhara pelo cenário bucólico, mostrando-lhe as piscinas refletoras e os templos, os dormitórios e os aposentos particulares da Virgem Escriba.
Onde Layla ficaria com os bebês.
Seria impossível discutir a respeito do arranjo. Aquele lugar era ainda mais seguro do que a mansão, pelo amor de Deus, e Amalya lhe garantira que as crianças seriam capazes de entrar e sair sem problemas.
E quando a pressionou, ela garantira que traria os bebês de volta pessoalmente. Se Layla causasse algum problema.
Uma batida suave à porta do quarto fez com que ele afastasse o olhar da mochila.
– Oi.
Beth entrou e parecia muito mais calma. Pensando bem, ela conseguira aquilo que quisera.
– Parece que deixou tudo pronto.
Ele baixou o olhar para o que havia separado.
– É.
– Tudo vai ficar bem, Qhuinn. Estou orgulhosa de você...
– Sem querer ofender, mas você vai ficar com o seu filho vinte e quatro horas por dia porque a pessoa com quem a teve não é um mentiroso, nem um traidor. Portanto, vai ter que me desculpar se a sua versão de “tudo bem” e a minha forem ligeiramente diferentes. – Ele se afastou do pé da cama. – Não tenho permissão para ter o meu “tudo bem”, que seria ter meus filhos neste quarto enquanto eu saio para lutar. O meu “tudo bem” não é estar no campo de batalha, defendendo a raça, com minha mente preocupada se Layla vai ou não devolvê-los quando deve fazer isso. E o meu “tudo bem” evidentemente não envolveria aquela fêmea ter qualquer tipo de contato com eles de novo. Não preciso que sinta orgulho de mim e não quero a sua preocupação dissimulada. Só o que preciso de você é que fique com eles enquanto eu saio da porra desta casa.
Beth cruzou os braços diante do corpo e lentamente balançou a cabeça.
– O que aconteceu com você?
As palavras foram ditas tão baixas que ficou claro que ela estava perguntando apenas para si própria.
– De verdade? Você está me perguntando isso mesmo?
Qhuinn lhe deu as costas e foi até os berços. Relanceou para Lyric e depois se concentrou em Rhamp, voltando a colocar a chupeta na boca dele.
– Seja corajoso, meu menino. – Qhuinn afagou a mecha de cabelos escuros. – Eu te vejo em vinte e quatro horas. Vai ser fácil, não vai?
Errado.
Era tão difícil sair dali. Seu peito estava em fogo com uma dor que ia fundo no seu DNA... Ainda mais quando seus olhos passaram por Lyric uma vez mais. Queria ir até perto dela, mas simplesmente não conseguia olhá-la no rosto.
Não poderia vê-lo agora.
E quando andou na direção de Beth, manteve os olhos para a frente. Não confiava em si para abrir a boca nem para apenas dar um tchau. Sem dúvida despejaria alguma coisa na Rainha, e isso não ajudaria a ninguém.
Apanhando as armas e a jaqueta de couro de uma cadeira, saiu do quarto e fechou a porta silenciosamente atrás de si. Não sabia exatamente quando Layla apareceria – depois do pôr do sol, claro, mas isso já acontecera há algum tempo. Ela devia estar para chegar a qualquer minuto...
– Pronto para a reunião?
Olhou por sobre o ombro. Z. estava saindo da sua suíte, e o irmão estava armado e pronto para o combate, com todo tipo de metal pendurado nele, os olhos amarelos estreitados e astutos.
A cicatriz no rosto, aquela que descia pela face e distorcia o lábio superior, fez com que Qhuinn pensasse no rosto fodido de Xcor.
– Temos uma reunião? – Qhuinn perguntou ao pescar o celular do bolso.
Ele estivera verificando a coisa com o único propósito de ver se Blay telefonara ou lhe mandara alguma mensagem. Uma foto. Um maldito emoji.
Nada. E ele não prestara atenção em nada mais.
Ora, ora. Mensagem no grupo convocando a Irmandade para o escritório de Wrath. Exatamente naquela hora.
– Acho que temos – murmurou ao voltar a guardar o aparelho e seguir Z.
Não houve nenhuma conversa entre eles a caminho do escritório, e estava tudo bem assim para Qhuinn. E quando entrou no escritório para a reunião, manteve a cabeça baixa e seguiu para o canto mais afastado da lareira. A última coisa de que precisava era reviver a merda colossal que a noite anterior havia sido. Todos conheciam os fatos, e na verdade lhe disseram o que pensavam enquanto estivera trancado na Tumba.
Nenhum motivo para que todos o culpassem pela tremenda diversão que tiveram.
E ainda assim, aquela coisa de descarregar uma arma dentro da casa ainda surtiria muitos comentários. Sempre haveria motivos para se lembrarem daquilo.
Ou talvez existisse uma porta número três, algo que, com sorte, não estaria relacionado a ele.
Wrath estava sentado atrás da escrivaninha ornamental, no trono que fora do pai dele por tantos anos. E Vishous estava do seu lado direito, com um daqueles seus cigarros aceso na mão enluvada, os olhos gélidos trafegando ao longo do grupo reunido. Butch estava no sofá com Rhage, aquela peça delicada de mobiliário francês parecendo estar muito acima da sua capacidade de peso. Z. assumira seu posto ao lado de Phury junto à estante de livros. E Rehv estava ali.
Quando John Matthew entrou, o cara olhou ao redor e, ao ver Qhuinn, se aproximou. Não sinalizou nada, apenas se recostou na parede e enfiou as mãos dentro dos bolsos da calça de couro.
Qhuinn relanceou para o amigo.
– Eu e você estamos juntos na ronda de hoje.
John assentiu e tirou as mãos dos bolsos.
Acho que não vamos a parte alguma.
– Não vão me deixar ir a campo?
Não, por causa da nevasca. Recorde de neve. Inédito nesta época do ano.
Qhuinn deixou a cabeça pender para trás, de modo que batesse no gesso da parede. Que maldita sorte a sua. Não haveria modo de ele ficar dentro da casa enquanto os filhos estivessem com aquela fêmea, sem que Blay estivesse conversando com ele, e seus irmãos ainda estivessem putos da vida pelo fato de Xcor ter fugido da Tumba.
Puta merda, ele pensou. Não estava numa prisão. Não teria que...
Wrath falou de seu posto no trono.
– Então, vamos acabar logo com isto.
Qhuinn cruzou os braços diante do peito e se preparou para mais uma rodada de quanto ele era um bosta.
– Sabemos onde Xcor está – o Rei anunciou. – E ele trará os Bastardos até mim.
No mesmo instante, a sala explodiu com discursos e imprecações, os irmãos batendo os coturnos no piso, todos de pé – e Qhuinn também pareceu surpreso até a alma. O macho estava sob custódia novamente? Alguém por certo teria lhe dito algo...
Lembrou-se da confusão que fizera na Tumba e concluiu... Não, a Irmandade estava basicamente de saco cheio dele e de Xcor no momento.
– Ele é meu! – Tohr exclamou acima da balbúrdia. – Sou eu quem vai matá-lo!
Isso era tremendamente discutível; mas Qhuinn manteve isso para si. Achado não é roubado, e coisa e tal.
Se chegasse ao filho da puta primeiro, era ele quem acabaria com o maldito e ao inferno com...
– Não, não vai – Wrath ladrou. – Ninguém vai matá-lo.
Conforme as palavras do Rei foram absorvidas, todos se calaram, e V. foi para trás de Tohr como se estivesse se preparando para contê-lo pelo pescoço.
Espere... O quê?, Qhuinn pensou.
– Vocês me entenderam – o Rei ordenou. – Ninguém vai matá-lo.
Em seguida, como se para fazer com que suas ordens chegassem aos maiores interessados, Wrath olhou primeiro para Tohr... E depois diretamente para o próprio Qhuinn.
CAPÍTULO 33
Na casa segura da Irmandade, Xcor estava no chuveiro, com o rosto voltado para o jato de água, o corpo recuperando as forças minuto a minuto. Assim que a noite caíra, deixara Layla adormecida na cama que partilharam e subira até a cozinha, onde encontrara diversas fontes de calorias e se pusera a consumi-las. Não lhe pareceu importante que os sabores não combinassem: bebeu suco de laranja com sorvete de menta e lascas de chocolate, chilli direto da lata sem se dar ao trabalho de esquentar, um filão de pão com uma barra de manteiga, ambos inteiros, e fatias de queijo e frios, além das duas pizzas que estavam no congelador.
Que ele tivera que assar, pois não conseguiria comê-las congeladas.
Teria que reabastecer a despensa, apesar de não saber como fazer isso. Nunca cuidara do dinheiro do grupo e, portanto não tinha acesso a nenhuma conta bancária nem a recursos financeiros. E já não era mais ladrão.
Throe sempre controlara os fundos. Dentre eles, era ele que poderia se apresentar melhor quando o contato com os humanos se fazia necessário...
Xcor sentiu a presença de Layla no momento em que ela abriu a porta do banheiro, e quando mudou de posição para olhar para ela, quase caiu de joelhos. Ela estava gloriosamente nua, as coxas, os seios de bicos rosados e o quadril adorável, as pernas longilíneas e o sexo perfeito, exposto para ele, e apenas para ele, ver.
Seu pau de pronto ficou ereto.
Mas ele o escondeu dela. Apesar de terem feito amor no decorrer do dia, ele encostou a extensão na barriga e a manteve ali com as duas mãos.
Ela caminhou silenciosamente pelo piso de mármore, abrindo a porta para se juntar a ele.
Os olhos dela se desviaram para onde as palmas dele estavam.
– Por que não se mostra para mim?
De fato, ele mantivera as roupas a noite inteira, abaixando a calça quando a penetrava, reajustando-as sobre o quadril quando a aninhava contra si depois.
– Xcor? – ela sussurrou enquanto o vapor a envolveu e a pele começou a reluzir com a umidade. – Por que não quer que eu o veja?
Meneando a cabeça, ele preferiu não falar. Era simplesmente difícil demais por em palavras o quanto era duro para ele deixar que ela o visse nu. Ela nunca pareceu se importar com seu defeito, nunca pareceu notá-lo, tampouco julgá-lo inferior por causa dele – ainda assim, as roupas eram uma máscara que ele preferia usar na presença dela. Fora diferente quando quisera repeli-la, quando procurou desafiá-la com a sua feiura na esperança de que ela lhe desse as costas e parasse de torturar a ambos. Mas agora...
Fora rejeitado a vida toda. Nada daquilo teria a menor importância, contudo, caso ela se afastasse também...
Layla se ajoelhou com a graciosidade do luar recaindo dos céus. E seu primeiro instinto foi o de ajudá-la a se levantar, pois não apreciava a ideia de ela ficar no piso duro. No entanto, quando ele se inclinou na direção dela, Layla o deteve.
Inclinou-se na direção das palmas ele.
Esticou a língua...
... e lentamente lambeu o dedo médio da mão direita dele.
A língua dela estava escorregadia por conta da água, e suave, macia como o veludo. E ele se recostou contra a parede do chuveiro.
Os olhos de Layla subiram pelo corpo dele enquanto repetia o movimento – e depois lhe sugou o dedo para dentro da boca. Girando a língua, mais quente agora, como o interior dela.
– Layla – implorou.
Um a um, ela lhe sugou os dedos, soltando a pegada de cima do sexo, deixando-o tão fraco que as mãos se afastaram, não por ele tê-la comandado a fazer tal, mas porque lhe faltavam forças para que os braços fizessem qualquer outra coisa.
Livre do escudo, o pau se projetou para longe do quadril, a água do chuveiro fazendo com que o mastro orgulhoso reluzisse. Deuses, ele queria que ela fizesse o que pretendia fazer, ansiava pela sensação dos lábios na cabeça, na extensão toda, queria a sucção e...
– Caralho – ele gemeu quando ela o capturou.
Ela não inseriu tudo o que ele tinha a oferecer. Concentrou-se na ponta, provocando-o, recuando, abocanhando um pouco mais – e bem quando ele achava que perderia a cabeça, ela esticou a língua e rodeou a ponta, lenta, ah, tão lentamente. E durante todo o tempo, os olhos verdes o fitaram, a água caindo por cima dela, escorrendo pelos mamilos, desaparecendo entre as pernas afastadas.
Xcor teve que se segurar em alguma coisa para continuar de pé, as palmas derrapando no vidro, mas encontrando algum tipo de apoio na parede de mármore.
– Ah, Deus, Layla... – Fechou os olhos. – É demais...
Mas ela não parou. Finalmente o sugou por inteiro, engolindo-o por completo apesar de ele provavelmente estar em sua garganta.
Ele teve que olhar. E no segundo em que viu os lábios dela se esticarem ao redor da sua espessura, começou a gozar.
– Eu... ah, cacete...
Mesmo quando ele tentou se afastar, para o caso de ela não saber o que estava acontecendo, ela não permitiu. Encontrou um ritmo na sucção, aceitando o orgasmo dele em sua boca, as mãos subindo pelas coxas para amparar as bolas.
Xcor acabou de bunda no chão. Literalmente.
Os músculos das coxas cederam, e ele só conseguiu se impedir de cair num amontoado, esmagando-a ao despencar. E ainda assim, ela continuou a lhe dar prazer, reposicionando-se com ele, fazendo com que ele chegasse a mais um orgasmo depois do primeiro, as pernas afastadas para acomodá-la, as mãos indo para os cabelos molhados dela, a cabeça e o pescoço se apertando no canto do box.
Quando finalmente terminou, ela se levantou e lambeu os lábios. Nesse meio tempo, só o que ele conseguiu fazer foi respirar e encará-la, com o crânio pendendo no alto da coluna, os braços largados de lado, o chuveiro despejando uma chuva quente como se ele fosse uma rocha numa floresta.
– Quero fazer o mesmo com você – ele disse numa voz gutural.
Ela se sentou sobre os calcanhares e sorriu.
– Quer?
Ele assentiu. Como um parvo.
– Você me parece um pouco cansado, guerreiro – murmurou. – Eu o exauri?
Xcor estava prestes a negar quando ela se inclinou para trás, acomodando os ombros na parede oposta, imitando-lhe a pose. Quando ela cerrou as pálpebras, ergueu os joelhos... e os afastou, dando-lhe uma vista e tanto.
– O que você faria comigo? – ela perguntou, sensual. – Você me beijaria aqui?
Ela arrastou a mão elegante para a lateral do pescoço. Ele assentiu quase imóvel, e ela sorriu.
– Aqui?
Agora as pontas dos dedos estavam na clavícula, e ele assentiu de novo.
– E quanto a... aqui?
Quando ela resvalou os mamilos, ele cerrou os molares com tanta força que sentiu um estalo.
– Bem aqui, guerreiro? Você me beijaria aqui?
Ela atiçou o próprio mamilo, beliscando-o de modo que acabou sibilando, e depois o esfregou como que para atenuar a sensação. E, então, a outra mão desceu pelo abdômen.
– Que tal... aqui? – ela sussurrou enquanto afagou o centro da sua fenda.
Um grunhido escapou dele, e Xcor disse num rompante.
– Isso. Exatamente aí.
– O que você faria com a sua boca? – A ponta de um dedo circundou o sexo por fora. – Ah, não... você usaria a língua, não usaria, guerreiro? A língua...
Ela arquejou ao se masturbar, os olhos grudados nele quando inclinou a cabeça para trás, as sensações evidentemente levando a melhor sobre ela.
– Você deveria colocar a sua língua aqui...
Xcor se projetou sobre ela, movendo-se tão rapidamente que nem estava ciente da decisão de atacá-la. E foi bruto, afastando as mãos dela no caminho para selar a boca no sexo dela, tomando o que mais queria, aquilo com que ela o provocara.
Agora era ela quem abria os braços, tentando se manter em alguma forma de equilíbrio. Mas ele não aceitaria nada disso. Deitou-a no chão de azulejos, espalmou as mãos nas coxas dela, abrindo-a para inserir a língua, consumindo-a.
Ela gozou com tudo contra o rosto dele, as mãos se enterrando nos cabelos molhados dele, puxando até provocar dor. Não que ele desse a mínima. O importante era entrar nela, fazer com que ela dissesse seu nome, marcando-a com seus lábios e língua.
Isso não bastava.
Mesmo enquanto o clímax a assolava e ela se arqueava para longe dos azulejos, os ombros se projetando para trás, os seios empinando, a água na pele dela fazendo com que as carnes brilhassem na luz fraca, ele não tinha o bastante.
Xcor montou nela, e empurrou o pau com força, os dedos cravando na bacia dela, prendendo-a enquanto começava a bombear. Agora os seios dela se moviam para este e para aquele lado, e os dentes inferiores se chocaram com os superiores, e os braços se debatiam. Mas os olhos dela eram como fogo quando o animal dentro dele subjugou o animal dentro dela.
Ele se afastou no último segundo, elevando-se sobre ela, os ombros bloqueando o jato de água. Agarrando a ereção, foi ainda mais brutal consigo do que fora com ela, puxando o sexo para gozar uma vez mais.
De modo a cobri-la com seu sêmen.
Era a marca de um macho vinculado, uma prática feita a fim de que qualquer outro macho na presença dela estivesse absolutamente ciente de que era melhor tomar cuidado caso se aproximasse dela.
Ela pertencia a outro.
Não como uma propriedade. Mas como algo infinitamente mais precioso para que os outros tentassem se aproveitar.
Enquanto Xcor terminava de fazer o que querias com ela, a água do chuveiro começava a esfriar – não que Layla se importasse. Tinha seu guerreiro entre as pernas, e ele fazia o que um macho fazia quando clamava uma fêmea, um instinto antigo nascido na espécie para garantir sua sobrevivência. Era selvagem e era belo, era primitivo e, ainda assim, muito bem recebido no mundo moderno.
Pelo menos no seu mundo moderno.
Quando, por fim, ele desabou em cima dela, ela envolveu os ombros largos escorregadios e fechou os olhos com um sorriso.
– Eu peso demais – ele murmurou junto ao seu pescoço.
Antes que pudesse detê-lo, dizendo que não se importava que seu cóccix estivesse doendo ou que suspeitava que teria alguns hematomas num futuro próximo, ele a suspendia e se levantava, segurando-a nos braços como se ela fosse de vidro.
Do lado de fora do chuveiro, ele pegou uma toalha macia e a enrolou nela. Depois pegou uma segunda e enxugou-lhe o rosto antes de se postar atrás dela. Com apertos suaves, passou a toalha pela extensão dos cabelos, enrolando as pontas para tirar boa parte da água.
O tempo inteiro, ela o observou pelo espelho, memorizando detalhes da expressão dele, do corpo, dos cabelos ainda molhados, de toda a força controlada. O rosto era-lhe especialmente querido: os planos e os ângulos impetuosos se suavizaram – e ela teve a impressão de que ele não gostaria que ela visse essa sua vulnerabilidade.
– Estará segura esta noite? – ele disse numa voz baixa. – Quando for para aquela casa? E depois para o Santuário?
– Sim. Eu te prometo. Eles não irão me machucar.
– E ninguém mais vai subir até lá, certo? Ninguém pode chegar até você?
– Ninguém, além das Escolhidas, tem acesso. Não sei bem como funciona, mas sempre foi assim. Somente minhas irmãs e o Primale têm permissão para ir e vir à vontade.
– Bom. Isso é muito bom.
– Para onde você vai?
Enquanto aguardava pela resposta dele, seu coração batia mais forte porque ela odiou a ideia de ele estar em Caldwell, sozinho – e também porque odiava a passagem da noite. Assim que ele encontrasse seus companheiros, iria embora para longe dela.
Quando Xcor não respondeu, o silêncio entre eles se tornou palpável.
– Então, vou ficar lá durante o dia também. – Ela lhe disse isso apesar de já ter lhe contado seus planos. – Mas, ao anoitecer amanhã, voltarei para cá.
– E eu estarei aqui para recebê-la.
Quando ela exalou aliviada, Xcor deixou a toalha de lado e apanhou a escova. Começando pelas pontas, continuou a cuidar dos cabelos dela, cuidadosamente desfazendo os nós.
– Vou sentir a sua falta – ela sussurrou para a cabeça inclinada dele.
Parecia totalmente incongruente que um macho tão endurecido pela guerra cuidasse dela assim, com aquela escova pequena demais para as suas mãos, os ombros tão largos atrás dela, o rosto enrijecido estampando uma expressão tão gentil.
– É apenas por uma noite e um dia. – Ele passou para o alto da cabeça dela, parecendo enfeitiçado pelo modo como as cerdas negras se emaranhavam aos fios dourados. – Voltaremos para cá antes de nos darmos conta disso.
Layla assentiu apenas porque pressentiu que seu equilíbrio emocional era de vital importância para ele – e queria fingir que estava bem para o bem dele. Mas as vinte e quatro horas de separação não era o que ocupava a sua mente. Aquilo que duraria pelo resto dos seus dias estava ali.
Fechando os olhos, tentou não pensar nisso. Seu coração acabara de ser acalentado. Não havia motivos para retornar à tristeza.
– Eu te amo – ela disse.
Xcor parou, os olhos disparando para os dela no reflexo do espelho.
– O quê?
Ela se virou para ficar de frente para ele. Santa Virgem Escriba, jamais se cansaria do rosto dele, do cheiro dele, do corpo dele.
Elevando-se nas pontas dos dedos, passou os braços ao redor do pescoço dele, e quando os seios se encontraram com o peito, ela sentiu um calor ora conhecido se formando entre as coxas.
– Eu te amo – ela repetiu.
As pálpebras dela abaixaram e ele pareceu oscilar.
Mas, em seguida, ele soltou as mãos dela e abaixou-lhe os braços.
– Shhh... – Beijou-a uma vez, e depois de novo. – Eu tenho que ir, e você também.
CAPÍTULO 34
Tohr disse a si mesmo, enquanto permanecia de pé no escritório de Wrath e ouvia a todos os insultos contra Xcor, que manteria a calma. Simplesmente revelaria no rosto toda variação de expressão do tipo “tudo bem, chefe”, e assentiria nas horas certas, e talvez até desse de ombros, uma ou duas vezes.
Como se Wrath deixar um criminoso livre depois de ter beijado o maldito anel real não significasse absolutamente porra nenhuma para ele. Como se isso acontecesse a toda hora. Sem problemas.
Ah, sim, claro, e trazer o Bando de Bastardos para fazer a mesma coisa era uma ideia perfeitamente sensata. Sim, um a um, pois isso realmente minimizaria os riscos.
Porque Xcor e seus garotos seriam incapazes de pensar num ataque coordenado.
Na-na-ni-na-não. Por que fariam algo assim?
–... todos, e quero dizer todos mesmo – Wrath voltou a cabeça na direção de Tohr de novo e depois girou aqueles óculos escuros ao redor até Qhuinn – estejam a bordo nisto. Depois dos juramentos, eles partirão para o Antigo País e não teremos mais nenhum assunto com eles.
Na verdade, Tohr pensou, talvez devesse simplesmente morder o cano de uma pistola agora mesmo. Muito mais eficiente o que esperar que seu cérebro explodisse com essa solução que tinha estampada sobre ela toda: IDEIA IDIOOOOTA.
Quando Wrath se calou, houve um silêncio demorado no escritório – o que significava que havia certa quantidade de pessoas ainda convictas das próprias ideias –, e Tohr relanceou para Qhuinn. Os olhos do irmão estavam concentrados no chão como se estivesse avaliando a integridade física dos cadarços dos seus coturnos.
Tohr voltou a olhar na direção de Wrath. O Rei estava sério pra cacete em relação a esse plano idiota dele, com o maxilar travado e toda aquela postura de “nem pense nisso”.
E por mais que o resto dos irmãos não gostasse daquilo, acatariam aquela merda, não por serem fracos, mas porque sabiam que Wrath não cederia – e eles levavam muito a sério suas funções de guarda-costas.
Portanto, fariam o melhor para manter aquele macho vivo.
Mesmo quando ele fosse a uma casa segura esperando que o Bando de Bastardos se apoiasse sobre um joelho como um punhado de noivos humanos.
A questão era que juramentos feitos por machos sem honra não passaram de um tremendo desperdício de sílabas.
– Bom – Wrath murmurou. – Estou contente por todos me apoiarem nisso.
Um punhado de irmãos tossiu, e alguns pés se remexeram. Vishous acendeu outro cigarro, e Butch pegou aquele imenso Jesus que sempre trazia consigo, esfregando o símbolo de fé entre o indicador e polegar. Como se estivesse rezando mentalmente.
Cara esperto.
Em seguida, como se tudo estivesse bem, Wrath passou a tratar de assuntos rotineiros, falando sobre a rotação dos turnos, quando o próximo pedido de armas seria feito, e como o programa de treinamento vinha prosseguindo.
– Agora, em relação a esta nevasca. – Wrath meneou a cabeça. – A coisa está feia lá fora. Vou suspender esta noite. Dia de brincar na neve, babacas.
Houve um murmúrio e concordância. E logo foram dispensados.
Tohr queria ser o primeiro a sair do escritório, a raiva esganava-o, mas ele se conteve, ficando no meio do grupo, avançando do jeito que sempre fazia. Não conversou porque não confiava em si mesmo para deixar que a boca falasse, embora tentasse aparentar que estava pouco se lixando com o que os outros estavam planejando.
Torneio de bilhar. Pôquer. Bebida. Sundae bar MYO.
Este último mencionado por Rhage.
Tohr esperou... até finalmente estar de frente aquilo que esperava.
Qhuinn saiu do escritório por último e parecia um lutador profissional à procura de um ringue. Quando ele estava passando, Tohr se colocou no caminho do cara de forma que os ombros se chocaram.
Quando Qhuinn olhou para ele, Tohr encarou os olhos despareados com firmeza. E depois, num tom suave, disse:
– Garagem. Dez minutos.
Qhuinn pareceu surpreso, as sobrancelhas se erguendo. Mas ele se recuperou rápido.
O assentimento do irmão foi quase imperceptível.
Depois do qual seguiram para direções opostas.
No fim do corredor de toda aquela alegria acontecendo no escritório, Trez despertou em seu quarto e sabia que não deveria se mover rapidamente, tampouco se alegrar com o fato de o estômago finalmente parecer navegar mares tranquilos. O verdadeiro teste viria quando ele tentasse se sentar, e depois de ter passado umas boas doze horas deitado de costas, sentindo-se um atropelado por um caminhão, não estava com muita pressa de provocar a sorte, tentando ficar na vertical.
Mas não poderia ficar assim para sempre.
Enquanto erguia lentamente o tronco do colchão, procurou não se concentrar demais em cada recôndito do seu corpo e cabeça. Lendo folhas de chá em relação a como a situação prosseguiria dali...
– Mas que porra!
Trez se retraiu tão rapidamente que bateu o crânio na cabeceira e de pronto teve um flashback de como havia sido o dia anterior.
Havia alguém sentado ali no quarto, na cadeira mais distante...
– Tá de zoeira? – Exalou um xingamento e esfregou a cabeça. – Fala sério! Que brincadeira é essa?
Do lado oposto, uma espécie de espantalho mal feito vestindo calças jeans, camiseta do Nirvana e a camisa de flanela daquele anjo, e um par de Nikes que fora preenchido sabe lá Deus com o quê. A cabeça do “Lassiter” era feito de uma sacola de nylon que tivera batatas dentro, e os cabelos loiros e pretos eram uma coleção de meias sociais de cano alto – provavelmente de Butch – e panos de limpeza Swiffer que foram mantidos no lugar por alfinetes.
Ao redor do pescoço? Uma placa escrita a mão com os dizeres: o chefe esteve aqui.
– Filho da puta.
Passando as pernas para a lateral da cama, Trez deu um tempo para que o coração voltasse a um ritmo abaixo de duzentas batidas por minuto. A boa notícia era que a enxaqueca parecia estar bem longe no seu espelho retrovisor, a bigorna que estivera pendurada do lado direito da cabeça desaparecera e seu estômago roncava de fome.
Depois de uma chuveirada, uma barbeada e roupas limpas, ele estava pronto para fazer o que tinha que ser feito, ou seja, ir para a shAdoWs e ver como estavam as coisas.
Em vez disso, pegou o celular e ligou para o irmão. iAm atendeu ao primeiro toque.
– Como está se sentindo? – o cara perguntou.
– Estou vivo.
– Isso é bom.
– E então?
– Então o quê? – Quando Trez não preencheu as lacunas, iAm começou a murmurar palavras começadas com F. – Trez, sério, deixa isso de lado, ok?
– Isso não vai rolar. Pode, por favor, contratar aquela fêmea?
Houve um período longo de silêncio – o qual Trez interpretou como sendo iAm tentando se apegar à esperança de que ele daria voz à razão. Mas Trez não estava nem aí. Esperaria sem se preocupar e acabaria recebendo aquilo que queria, e Therese teria o seu emprego no Sal’s.
– Tá bom – iAm disse bravo. – Dou o emprego a ela. Tá feliz agora?
Não, nem perto disso.
– Uh-hum. Obrigado, cara. Você está fazendo a coisa certa.
– Será? Não sei bem se fazer com que entre em contato com essa fêmea vai acabar ajudando a qualquer um de nós.
Trez fechou os olhos e se lembrou da sensação dos lábios de Therese, do sabor dela, da fragrância trafegando pelo ar frio até seu nariz... sua alma.
Uma pontada de náusea tirou tudo isso da sua mente.
– Vai ficar tudo bem. Não vou incomodá-la.
– Uh-hum. Tá.
Depois que Trez desligou, lançou um olhar bravo para a efígie do anjo ali no canto.
– Lassiter – disse em voz alta. – Apareça, sei que está em algum lugar por aqui.
Esperou, já imaginando que o anjo passaria pela porta. Saltasse para fora do closet. Deslizasse por debaixo da cama. O cara estava sempre por perto, quer você quisesse isso ou não.
Mas ele deveria ter desconfiado. Dez minutos e absolutamente nenhum anjo depois, pareceu-lhe justo que da única vez em que queria ver o cara, o maldito desse uma de fantasma.
Vestindo uma jaqueta limpa, Trez saiu do quarto e pegou o celular de novo ao seguir para a escadaria. Enviou uma mensagem de texto para Xhex enquanto descia e se surpreendeu quando ouviu o toque de resposta em seguida. Normalmente, ela estaria verificando as bebidas do estoque no...
Ah. Entendido. Nevasca. Boate fechada, ninguém indo a parte alguma da cidade.
Ao chegar ao átrio, atravessou o desenho da árvore em flor do mosaico e foi direto para a sala de bilhar – onde uns três quartos da Irmandade estava reunida ao redor de tacos de sinuca com bebidas em mãos.
Butch se aproximou dele, o antigo policial humano elegante como de costume.
– Vai se juntar a nós? Quer uma bebida?
Antes que pudesse responder, Xhex apareceu de trás do bar.
– Pois é, eu resolvi fechar a boate. Os seguranças estavam me ligando, dizendo que não conseguiam atravessar a cidade, os barmen também. Nenhuma das meninas. A única coisa que apareceu foi a entrega de bebida, e o DJ, apesar de esse já estar lá porque estava bêbado demais na noite passada e acabou indo dormir nos fundos.
Trez agradeceu, mas negou a oferta de Butch e se virou para Xhex.
– Acho que nunca ficamos fechados numa quinta-feira.
– As primeiras vezes acontecem quando menos se espera.
– A neve está ruim assim?
– Veja por si só.
Quando ela apontou para uma das oito janelas de pé direito inteiro da sala, Trez usou isso como desculpa para se distanciar da conversa e dar início à sua saída à francesa da casa e da mansão como um todo. Não que não amasse os Irmãos. Era que, a esta altura do seu estado traumático pós-enxaqueca, toda aquela conversa e aquelas risadas, as batidas das bolas, J. Cole e Kendrick Lamar, tudo isso estava acima dos seus limites.
Escolhendo a janela que estava mais próxima do arco de entrada da sala, afastou a cortina e olhou para o pátio – ou o pouco que consiga enxergar dele. A neve caía forte que ele mal enxergava a um metro para fora da mansão e, evidentemente, estivera nevando há algum tempo assim. Sob as luzes de segurança, parecia que um toldo branco fora lançado sobre tudo, os contornos do telhado do Buraco, os grandes pinheiros da montanha, os carros estacionados do outro lado da fonte, cobertos por uns trinta centímetros daquilo que caíra dos céus...
A princípio, a figura não foi notada, as vestes e capuz brancos indistinguíveis do cenário imaculado. Mas ele logo reconheceu um buraco no padrão dos flocos de neve, a cascata rodopiante se movendo ao redor da silhueta.
Que o encarava.
No jorro frio, todo o sangue desapareceu da sua cabeça.
– Selena? – ele sussurrou. – É...
– Estamos na época errada do ano para este tipo de tempestade – Xhex murmurou ao seu lado.
Trez se sobressaltou tanto que quase chegou ao teto. E, na mesma hora, olhou de novo através da vidraça.
A figura havia sumido.
– Trez?
Nesse instante, a campainha tocou. Trez se virou e disparou para fora da sala de bilhar, chegando à porta pesada, escancarando-a...
A Escolhida Layla recuou, o capuz branco que colocara na cabeça escorregando para trás dos cabelos loiros, flocos de neve caindo das vestes brancas até os pés.
– Tenho permissão para estar aqui – ela disse ao levantar as palmas como se ele estivesse lhe apontando uma pistola. – Tenho permissão. Pergunte ao Rei.
Trez relaxou dentro da própria pele e fechou os olhos por um segundo.
– Não, sim, não... Claro. Entre.
Ao dar passagem, ele não sabia por que ela estava tão na defensiva – ou por que ela estivera fora numa noite como aquela. Mas não ficou pensando nisso.
Estava distraído um tantinho demais tentando se entender com o que vira do lado de fora... a forma como imediatamente presumira que se tratasse da sua Selena, que ela tivesse ido vê-lo, ressurgindo dos mortos.
O que era loucura. Uma loucura total.
Não sei bem se fazer com que entre em contato com essa fêmea vai acabar ajudando a qualquer um de nós.
– Ah, cala a boca... – murmurou.
– O que disse? – a Escolhida Layla perguntou.
– Merda, desculpa. – Esfregou o rosto. – Só estou falando comigo mesmo.
É, porque isso não era o mesmo que ficar louco nem nada assim. Nada mesmo. Pode crer.
Pelo amor de Deus, ele precisa dar um jeito em si mesmo antes que acabasse enlouquecendo de vez.
CAPÍTULO 35
Quando Layla entrou na mansão e olhou ao redor do átrio, maravilhou-se com a rapidez com o que fora seu lar agora lhe parecia algo tão desconhecido: depois de todo o tempo passado na propriedade da Irmandade, conhecia todos seus cômodos e andares, as pessoas e seus ritmos, tão bem quanto conhecia os do Santuário. Agora, contudo, quando Trez lhe deu entrada e ela olhou para o átrio resplandecente com suas colunas multicoloridas, para a lareira estrepitante e as arandelas de cristal, parecia que ela entrava num museu ou num palácio que nunca visitara antes.
Pensando bem, lar implica um lugar ao qual se é bem-vindo. E ela já não o era ali.
– Ei! Você chegou!
Enquanto Beth saía da sala de jantar e lhe dava um abraço acolhedor, Layla ficou muito feliz em ver um rosto sorridente.
– Você viu as fotos que mandei? – a Rainha perguntou.
– Eu não estava com o meu celular, mas mal posso esperar para vê-las.
O que Layla queria mesmo dizer é que mal podia esperar para ver os filhos. Não ligava para fotos, queria a coisa de verdade e já – só que não desejava ser rude, e certamente não seguiria até o segundo andar sem ser convidada. Só Deus sabia onde Qhuinn poderia estar...
Seguindo a deixa, como se o Universo estivesse determinado a colocá-los no mesmo espaço, Qhuinn apareceu no alto da escadaria. E Santa Virgem Escriba, ele estava vestido para a guerra, o corpo envolto em couro negro, as armas presas ao peito e ao quadril, o corpo delgado um estudo de agressividade.
Instantaneamente, ele olhou para ela, os olhos estreitados como se avaliasse um alvo. Logo ele desceu os degraus acarpetados em vermelho como se estivesse numa missão.
Beth de pronto enrijeceu, e Layla recuou um passo, para o caso de ele atacar, as costas já batendo na madeira entalhada da porta de entrada. Mas em vez de correr até ela, Qhuinn continuou ao entrar na sala de jantar, com aqueles seus coturnos surrando o piso.
Mesmo depois de ele ter partido, foi como se houvesse um rastro de fogo nas suas passadas, a fúria pairando como um cheiro muito ruim.
Isso não seria bom para os bebês, Layla pensou ao levar a mão trêmula para os cabelos. Os dois teriam que fazer algo a respeito da ruptura do relacionamento entre eles, mas ela temia e tinha a sensação de que, apesar de gostar de imaginá-lo se suavizando, ele jamais faria isso.
– Venha – Beth disse baixo. – Vamos subir.
Layla assentiu e seguiu a Rainha. O fato de estar sendo acompanhada até o segundo andar não lhe passou despercebido, mas a cada degrau que ela subia, seu coração acelerava de antecipação, pois estava prestes a ver Rhamp e Lyric. No entanto, também pesou de tristeza. Quando um sentimento de alienação a acompanhou, ela refletiu numa outra época em sua vida que terminara quase antes de ter começado: não percebera que, mesmo em meio à culpa e à ansiedade em relação a Xcor, fora feliz com seus filhos ali – bem como tivera expectativas de criá-los com Nalla, L.W. e Bitty.
E agora tudo isso não existia mais.
Mas, lembrou-se, o que lhe restava em que se apegar era o fato de que, ao menos, poderia ver seus filhos. Essa não fora uma conclusão certa antes da decisão de Wrath.
Quando chegaram ao alto, Layla perdeu o ritmo ao ver as portas fechadas do escritório de Wrath e teve que se recompor a fim de prosseguir para o corredor das estátuas. No meio do corredor, hesitou novamente, mas, desta vez, foi para que Beth abrisse a porta do quarto que Layla pensara como sendo seu. E na fração de segundo que isso demorou, ela percebeu que no chão havia um tecido dobrado com manchas de tinta junto a algumas latas, um balde de gesso, e algumas brochas e pincéis. Seu estômago se contraiu ao deduzir o motivo de tudo isso estar ali.
Os buracos de bala na parede.
Mas logo a porta estava livre e ela correu para junto dos berços.
– Meus amores! Meus amores! – Com os olhos rasos de lágrimas, ela não sabia em quem se concentrar primeiro, a cabeça se virando de um lado a outro. – Mahmen está aqui!
Uma parte paranoica sua estava preocupada que talvez eles já tivessem se esquecido dela. Ou que talvez estivessem bravos, mesmo tão pequenos, acreditando que ela os abandonara deliberadamente, coisa que, definitivamente, ela não fizera. No entanto, não teve com que se preocupar. Ante o som da sua voz, os dois pares e olhos se abriram e os bracinhos começaram a girar. Inclinando-se para baixo, segurou os cabelos e deixou que seu peso cascateasse ao redor de Lyric primeiro, depois em volta de Rhamp.
Enquanto os pequenos balbuciaram incoerências e reagiram ao seu cheiro e à sua vez, ela sentiu uma alegria atravessá-la, o peito se inflando de amor, todas as preocupações brevemente cedendo lugar à felicidade que não podia ser ofuscada por nada no mundo.
– Eles estão tão felizes em ver a mahmen deles.
Layla olhou por sobre o ombro para a voz.
– Cormia!
Estava de fato muito feliz em ver a outra Escolhida, e as duas se abraçaram com força. Quando se afastaram, Beth disse:
– Temos tudo pronto no Santuário.
Cormia assentiu.
– Acabei de voltar de lá, pois fui levar suprimentos para os aposentos privativos, acredito que encontrará tudo de que precisar. Fiquei pensando se não gostaria que eu a ajudasse a levá-los para lá, assim não terá que se preocupar em fazer duas viagens?
– Ah, isso seria maravilhoso. Obrigada. – Layla cedeu ao impulso de alisar as vestes brancas, sua dependência de gentileza das outras fêmeas emocionando-a. – Eu... Hum, estou muito grata pela sua ajuda. Talvez queira levar Rhamp?
– Com certeza!
Enquanto Cormia pegava seu filho, Layla apanhava Lyric e segurava o calor vital da menina junto ao coração.
– Vamos?
Pouco antes de se desmaterializar com a outra Escolhida, relanceou para o canto do quarto... para os buracos de bala tão próximos ao teto. Podia apostar que eles teriam sumido quando ela voltasse dali a vinte e quatro horas.
Entretanto, eles não seriam esquecidos.
Fechando os olhos, tentou se lembrar da última vez em que fora ao Santuário. Ah, sim, verdade.
Fora um mês atrás... Quando descobrira quem era o pai de Xcor.
E ela também estava com o cheiro dele.
Enquanto marchava através da sala de jantar, Qhuinn estava furioso, mas nem um pouco surpreso: Wrath dera passe livre a Xcor, e Layla estivera no mundo exterior por uns vinte minutos, então, claro que o casal se encontrara. Devem ter transado o dia inteiro.
Nesse meio tempo, os filhos dela estavam sem a mãe.
– Espero que tenha se divertido, meu bem – murmurou ao disparar adiante.
A porta para a garagem estava nos fundos da casa, do lado oposto do quartinho de casacos, e ele teve que se desviar dos doggens ao longo da cozinha para chegar até lá. Estava na metade do caminho quando, ora vejam, Tohr desceu pela escada dos funcionários.
Nenhum deles fez contato visual. Simplesmente seguiram em frente, em fila ao entrarem no quartinho repleto de casacos sobressalentes, botas de neve, chapéus e luvas. Do outro lado, Tohr abriu a porta para a garagem sem calefação que ficava depois do quartinho, e os fechou ali.
O ar estava frio e seco e cheirava vagamente a fertilizante e gasolina. Quando as luzes acionadas por movimentos se acenderam, um estacionamento perfeitamente limpo de piso de concreto surgiu, junto com tanques de semente para passarinhos e sal em pedra perfilados, cortadores de grama estacionados em fila, mangueiras, pás penduradas. Mais no alto, vigas feitas de madeira antiga, tão resistentes quanto a montanha na qual a casa fora construída e, do lado oposto, dezesseis caixões estavam empilhados um ao lado do outro, como se não passassem de baús de mudança da U-Haul.
O fato de Tohr ter andado até lá e parado junto a eles pareceu adequado.
Quando o irmão falou, sua voz saiu baixa, mas profunda, como se surgisse do Inferno.
– Não tenho a mínima intenção de deixar isso de lado.
Não havia motivo para definir isso, havia.
Qhuinn balançou a cabeça lentamente.
– Nem eu.
– Não sei quando foi que Wrath se transformou num maldito millenial. – Tohr começou a andar de um lado para o outro. – Mas talvez ele devesse descer daquele trono e começar a trocar Snapchats sobre como todos precisam perdoar e seguir em frente. Botar uma maldita carinha de coelho na foto dele e fazer uma meditação guiada para a unidade. Isto é loucura.
O irmão parou e pôs a mão sobre um dos caixões, o maxilar cerrando com força, formando uma cova na bochecha.
Tohr meneou a cabeça.
– Às vezes temos que tomar conta do Rei mesmo quando ele não quer que você faça isso.
– Verdade.
– Às vezes coisas tem que ser resolvidas por mãos diferentes.
– Concordo cem por cento, porra.
Os olhos azuis marinhos de Tohr olharam para ele.
– O campo de batalha é um lugar muito perigoso.
Qhuinn flexionou as mãos, fechando os punhos.
– As pessoas se machucam o tempo todo.
– Redutores. Humanos. Eles conseguem provocar muitos danos mesmo em guerreiros muito experientes.
Enquanto Qhuinn assentia, reconheciam que por mais que se aproximassem por perspectivas completamente diferentes, certamente estavam chegando ao mesmo maldito lugar. Xcor morreria lá fora, enquanto supostamente estivesse procurando pelos seus rapazes. Quer pela bala de Qhuinn ou de Tohr, o maldito morreria.
– Então esta é uma corrida? – Qhuinn interveio. – Do tipo, o primeiro que pegar o maldito recebe o prêmio de matá-lo?
– Não. Trabalharemos juntos e isso vai ficar entre nós. Quem quer que o apanhe, o apresentará como uma refeição a ser partilhada.
Enquanto Tohr mostrava a palma, Qhuinn a segurou sem hesitação.
– Fechado.
O outro irmão assentiu quando soltaram as mãos e abaixaram os braços.
– Vamos, então – disse Tohr. – Ele estará procurando pelos lutadores apesar do tempo ruim porque vai querer juntar as tropas o quanto antes. Nós o encontraremos em campo em algum lugar esta noite.
Com um plano determinado, os dois seguiram para o quartinho dos casacos para se vestirem com parcas brancas. Depois saíram da mansão pela porta lateral que dava para o jardim de trás. Ou tentaram. No segundo em que abriram a porta, os dois foram estapeados por granizo e neve que fariam mortais menores procurar o calor das lareiras e de chocolate quente. Mas o conforto que se fodesse.
Cuidariam daquela situação, e a solução seria um segredo deles.
Ninguém tinha que saber porra nenhuma a esse respeito.
CAPÍTULO 36
Xcor esperou até sentir que Layla havia se desmaterializado completamente para longe do rancho, e depois se envolveu numa missão na pequena casinha, rapidamente vasculhando todos os armários e gavetas e possíveis esconderijos nos quartos. Sua pressuposição era a de que se os Irmãos se hospedassem ali, manteriam armas onde dormiam – mas, no fim, não encontrou nada.
Frustrante.
Todavia, encontrou roupas adequadas para sair. Havia um armário de casacos no caminho para a porta da garagem e, dentro dele, uma parca e calças para neve que eram grandes o bastante para ele, bem como luvas de esqui e um gorro. Infelizmente, todas as peças eram pretas e, na neve, fariam com que ele se sobressaísse – mas como a cavalo dado não se olham os dentes...
Havia, contudo, algo mais que compensava aquela ausência de camuflagem.
Depois de se vestir, seguiu para a garagem, indo até o Range Rover no qual o retiraram da floresta na noite anterior. O SUV parecia ter passado por um banho de sal, pois havia grandes marcas até em baixo nas laterais e no para choque frontal e capô. Nenhuma chave, e ele não se surpreendeu com isso. Vishous a teria levado consigo.
O veículo, entretanto, estava destrancado, e aquilo que esperava encontrar estava no compartimento traseiro: da caixa de emergências, ele tirou três sinalizadores e os enfiou na parca, mantendo-os seguros ali dentro ao subir o zíper do casaco acolchoado.
Em seguido, voltou a entrar, ligou o sistema de segurança e rapidamente partiu pela porta deslizante da cozinha. Não esperava que Layla fosse voltar no meio da noite, mas, para o caso da volta dela, ele queria que ela ficasse numa casa que fora ao menos minimamente protegida. Além disso, não tinha como trancar a casa após sua saída, imaginando que pretendia voltar a entrar e passar o dia ali.
O que ele ainda não sabia se seria o caso.
Na varanda, o tempo maquinou um grande ataque contra ele, a neve caindo em faixas pesadas que vinham com os ventos fortes, como se fosse uma tempestade dentro de uma tempestade. A visibilidade era fraca, e ele apostaria que poucos humanos se aventurariam a sair. Isso poderia conspirar a seu favor.
Fechando os olhos, desmaterializou-se...
... e retomou sua forma num bairro uns vinte e poucos quilômetros a sudoeste.
Ao assumir sua forma corpórea uma vez mais, foi numa rua sem saída em que havia casas coloniais de dois andares, casas mais caras do que a segura onde ficara, mas muito distantes ainda do patamar das mansões. Em toda a volta, havia muitas luzes acesas, quer nas salas de estar, quer nos quartos, em garagens de canto ou em árvores, mas com a neve pesada que caía, as iluminações eram isoladas, não conseguindo avançar muito mais.
Apoiando-se no vento, ele andou o restante do caminho, as botas pesadas revolvendo a neve fofa em seu caminho, a audição aumentando e diminuindo dependendo da direção dos ventos. A propriedade específica que procurava ficava bem nos fundos e, como as outras, também tinha luzes acesas dentro. Batendo as botas na entrada, espiou através da vidraça enquanto um humano magro, de uns quinze ou dezesseis anos, entrou na sala sem dizer nada para a mulher de meia-idade que estava sentada diante da lareira falando ao celular.
Xcor foi para o caminho de entrada, que não era mais caminho nenhum, porque a neve caía com tanta intensidade que ninguém tentaria limpá-lo até o término da nevasca. Quando chegou à porta da frente, na qual estava afixada uma guirlanda, estendeu a mão e experimentou girar a maçaneta de latão.
Estava destrancada, portanto ele simplesmente abriu e entrou.
Tudo se moveu em câmera lenta na sala de estar. O jovem olhou por sobre o ombro, depois deu um salto de susto. A outra fêmea ficou de pé, e qualquer que fosse a bebida quente que estava bebendo, ela saiu voando.
Xcor fechou a porta enquanto o filho foi se proteger atrás da mãe.
Covarde.
Todavia sentiu uma pontada de emoção que não desejava sentir quando a mãe empurrou o rapaz ainda mais para trás dele, mesmo ele sendo mais alto do que ela, e potencialmente mais forte.
– O q-q-eu v-você quer? – ela perguntou.
Quando uma mecha de cabelos loiros recaiu sobre o rosto dela, ela a soprou para longe dos olhos; as mãos estavam ocupadas tentando manter o filho em relativa proteção.
– Tenho... – A voz dela guinchou. – Minha bolsa está na bancada da cozinha. Leve o que quiser... Tenho joias, no andar de cima. Mas, por favor... Não nos machuque.
Xcor observou o rosto corado e o corpo trêmulo dela do que lhe pareceu uma grande distância. Depois olhou ao redor. A mobília fora trocada desde que ele e seus bastardos ficaram sob aquele teto, o sofá modular havia sumido junto com as eternas caixas de pizza vazias e as sacolas de lona, armas e munição, botas e adagas.
– Não vim atrás do seu dinheiro – Xcor disse em voz baixa.
Ela fechou os olhos brevemente, o rosto subitamente empalidecendo.
– Tampouco vim por sua causa. – Xcor ergueu a palma porque sabia que ambos se concentrariam nela. – Não sou profanador de fêmeas e de jovens.
Enquanto os olhos dos humanos se concentravam na palma erguida, ele entrou nos seus cérebros e congelou tudo ali dentro, de modo que eles apenas respiravam e piscavam. Nesse meio tempo, no chão, o celular que a mãe havia derrubado ainda estava conectado e uma voz em pânico exigia que alguém respondesse.
Seria um bom palpite afirmar que conversar com um vampiro não acalmaria o medo de ninguém.
Deixando a humana agitada de lado, Xcor bateu as botas no capacho para limpar boa parte da neve delas, depois galgou as escadas dois degraus de cada vez. No alto, foi direto para a suíte principal, que fora elegantemente decorada nas cores azul e branca.
Nada mais dos horrendos babados e rendas. E também haviam sumido os botões de rosa que tomavam conta do banheiro cor de rosa.
Por mais ofensivo que tudo aquilo antes fora, ele não perdeu tempo apreciando a melhora na decoração. Prosseguiu diretamente para o armário alto e estreito ao lado do box onde toalhas teriam sido guardadas caso ele tivesse alguma na época em que ali morara.
Mas claro que agora as prateleiras estavam repletas de toalhas brancas felpudas bem dobradas.
Ajoelhando-se, ele tirou os materiais de limpeza da prateleira de baixo, expondo o piso de azulejos que, ainda bem, a proprietária da casa não alterara. O painel que ele criara anteriormente era de trinta por trinta centímetros no fundo da partição, e ele teve que retirar as luvas para soltá-la com as pontas dos dedos. Depois esticou o braço e enfiou a mão no esconderijo.
O par de semiautomáticas estava exatamente onde as deixara.
E também a caixa de munição.
Xcor recolocou a tampa do compartimento secreto só porque facilitaria o trabalho de lavagem mental que teria que fazer naqueles dois lá de baixo.
Saindo do banheiro, passou pela cama e parou na soleira. Olhando para trás, relembrou a época em que ele e seus machos passaram um tempo naquela casa.
E se surpreendeu com a vontade que sentiu de voltar a vê-los.
A descida foi rápida, e logo estava de volta ao andar de baixo junto da mãe e do filho. Ainda estavam parados juntos, a fêmea protegendo aquele a quem amava e procurava defender com o mesmo corpo através do qual dera vida a esse.
Ele entrou em suas mentes uma vez mais.
– Vocês ouviram um barulho. Foram para fora para verificar o que era. Não era nada. Quando voltaram, suas botas deixaram o capacho molhado. Noite estranha. Provavelmente foi o vento. Que bom que não foi nada.
Xcor se desmaterializou para fora, e parou por um instante para observá-los enquanto despertavam, os dois se olhando como se não conseguissem entender porque estavam de mãos dadas. Em seguida, a mãe levou a mão à têmpora e esfregou como se a cabeça doesse, e o rapaz olhou ao redor e estalou o pescoço.
Ambos olharam para a porta.
Quando a fêmea se inclinou para apanhar o celular do chão, Xcor se pôs a caminho do seu destino seguinte.
O Santuário era de fato um lugar sagrado de paz e de tranquilidade, e enquanto Layla estava sentada na fonte da Virgem Escriba com os dois bebês, inspirou fundo. Os três estavam envoltos numa coberta branca fofa, e a temperatura estava perfeita, o ar gentil e acolhedor como um banho quente. Acima, o céu de nuvens brancas estava claro, mas não ofuscante, e o mármore branco do pátio era iluminado de dentro para fora.
Lyric e Rhamp fizeram a viagem sem problemas, e Cormia, como se sentisse que Layla desejava ficar a sós com eles, partiu em seguida depois que os gêmeos foram acomodados ali junto à água clara e à arvore em flor que agora estava repleta de novos passarinhos.
Acomodando os pés debaixo do corpo, balançou uma tulipa amarela diante de um, depois do outro... e depois de volta ao primeiro.
– Não é linda? Tulipa... Esta é uma linda tulipa.
De fato, as pétalas eram como a grama verde e a água azul: resplandecentes e misteriosas como joias em sua coloração. Devia ser por conta da luz dali, que não irradiava de nenhum lugar e não caía em nenhum ângulo específico – ou talvez existisse alguma fonte de magia sagrada atuando ali.
E era engraçado. Ela podia afirmar que seus pequenos estavam se fortalecendo com a energia que emanava dali, as faces estavam mais rosadas com um brilho mais intenso, os movimentos parecendo mais coordenados.
Sim, com certeza tinham o seu sangue dentro deles. Mesmo Rhamp, tão parecido com Qhuinn que chegava a ser estranho, também era evidentemente seu filho. Membros das Escolhidas sempre se sentiam melhor quando vinham até ali para se recarregarem.
Então, talvez tudo aquilo fosse algo bom...
Uma estranha sensação de estar sendo observada fez com que se virasse. Mas não havia ninguém na colunata, e ninguém no arco aberto que foram os aposentos privativos da Virgem Escriba. De fato, ninguém em parte alguma.
Lembrou-se de quando as coisas eram tão diferentes, quando as Escolhidas nasciam e criavam a geração seguinte de Escolhidas e de Irmãos ali e serviam à Virgem Escriba, aderindo ao programa dela de adoração, de descanso e de celebrações. Existira alegria e felicidade, propósito e realização– ainda que houvesse havido sacrifícios.
E nenhuma cor. Em parte alguma.
Layla estendeu a mão e acariciou a bochecha macia de Lyric. Por mais que reverenciasse a Virgem Escriba e as tradições que tanto valorizara e respeitara, estava feliz porque a filha não seria forçada a desempenhar um papel do qual não poderia escapar, exclusivamente a serviço de outros.
Sim, por mais que sentisse saudades dos tempos antigos e dos costumes de outrora, e por mais triste que estivesse ao ver este lugar tão maravilhoso deserto e sem vida, não se arrependia de nada.
Ela era de uma geração que conhecia tanto a servidão quanto a libertação e a última não era desprovida das suas dificuldades e tragédias. Mas pelo menos agora, ela tinha a sensação de que era um indivíduo, que tinha desejos próprios que não eram determinados por mais ninguém. E também tinha dois filhos que teriam a liberdade para escolher quem queriam ser e que rumo dar às suas vidas.
Seria sempre melhor seguir um caminho tortuoso escolhido por conta própria do que uma trilha suave, porém determinada por outrem.
A primeira escolha era mais árdua, todavia muito mais vital. A segunda era como uma morte em vida... a não ser pelo fato de que não se sabe que se está morrendo porque se está em coma.
CAPÍTULO 37
Enquanto Vishous pisava duro no corredor subterrâneo distanciando-se do centro de treinamento, aproximou-se da porta que dava para a mansão... e seguiu adiante. O Buraco, um nome muito adequado para a casa para carruagens em que ele Butch ficavam com suas shellans, estava ainda uns duzentos metros adiante, e sua entrada subterrânea era exatamente como a que dava para a casa grande, com todos os tipos de senhas e travas de segurança que impediam a entrada e a saída de pessoas que não deveriam entrar nem sair.
Depois de inserir a sequência numérica no teclado, a trava se soltou e, então, lar doce lar.
A disposição não era grande coisa, apenas uma sala de estar diante de uma cozinha embutida na lateral, e um corredor curto que desembocava em dois quartos adjacentes. Ele e Jane ficavam no primeiro; Butch e Marissa, e o guarda-roupa do policial ficavam no segundo – embora não houvesse espaço suficiente para todas aquelas malditas roupas. No corredor abarrotado, havia cabideiros repletos de ternos e camisas. E uma fila de sapatos sobre as tábuas do assoalho que, na opinião de V., eram sempre o mesmo sapato, somente em couro diferente e com diferentes fivelas.
O filho da puta se excitava com seus calçados. Mas, pensando bem, o quanto se pode fazer com um sapato masculino?
Enquanto V. fechava a porta atrás de si, demorou-se junto ao cabideiro repleto de Canali e Tom Ford. Tudo estava silencioso, Marissa estando no Lugar Seguro, Butch jogando sinuca na mansão e Jane...
Com uma imprecação, V. seguiu para a cozinha. As garrafas de Grey Goose estavam exatamente onde ele gostava que ficassem, debaixo da bancada da cozinha, ao lado da gaveta funda onde Butch guardava seus Fritos, os Goldfish de parmesão e os Milanos.
Esses eram os únicos lanches que o cara comia.
Engraçado, V. não percebera antes, mas Butch era um cara constante: gostava daquilo que gostava e não se interessava por novidades.
O filho da mãe provavelmente desmaiaria se você lhe oferecesse uma fatia de bagle. E nem pense em biscoitos multigrãos ou torrada crocante Melba.
O tira era da velha guarda, e mesmo que V. jamais admitisse isso, esse era parte do motivo de amar seu melhor amigo. Quando se tem mais de duzentos anos, você acaba aprendendo que quanto mais a coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas. Portanto, sim, você pode perder um tempão e desperdiçar suas papilas gustativas, mas isso seria muito ineficiente: existia uma quantidade máxima de felicidade advinda de um pacote de bolachas ou de salgadinhos. Vadear em meio a um monte de porcarias que não dão em nada, só para simplesmente voltar àquilo que já gostava antes, era um artifício bem humano.
Caralho, dava pra ver isso em toda a cultura deles, desde a “moda”, que não passava de uma reação de quinze minutos de fama de um carrossel de feiura de uma estação a outra, até o entretenimento que abarcava uma montanha do mesmo, e a tecnologia com sua obsolescência planejada e inovação desnecessária.
Que culminava com a Apple dizendo que era “corajoso” abolir os fios dos fones de ouvido. Num maldito celular.
Pois é, merecedor de um Coração Púrpura, garotos. A Medalha Presidencial da Liberdade. Talvez acabassem se colocando num selo, assim que comprassem o governo americano.1
Abrindo o armário, V. pegou um copo, encheu-o de gelo... e depois encheu de vodca até a borda.
Querem coragem?, ele pensou. Que tal abolirem a si mesmos, humanos. Esse é um bom plano.
Não que ele estivesse amargo nem nada assim.
Nem um pouco.
Foi para a sua mesa e se sentou diante da sua fileira de PCs, relaxando em seu palácio e, um a um, foi ligando todos os computadores.
Fazia um bom tempo desde que tivera uma noite de folga para si, e enquanto verificava as câmeras de segurança e os monitores nas diversas partes da propriedade da Irmandade, lembrou-se do motivo.
A última coisa que desejava fazer era ficar ali sentado mexendo nos seus Lenovo com sua Goose, totalmente sozinho enquanto todos os outros cuidavam dos seus afazeres.
Mas sua mente ainda estava perturbada com toda aquela situação do Xcor. Estava exausto também, mas não queria ir dormir. Precisava se alimentar – e não estava nada interessado em tomar uma veia. Tinha que comer – e não estava com fome. Queria se embebedar – e isso não parecia estar acontecendo rápido o bastante.
Encostando-se na poltrona, concentrou-se na tarefa de inserir álcool na corrente sanguínea, sorvendo grandes goladas que arderam na garganta e torceram seu estômago.
E à medida que começava a apresentar progressos no seu objetivo, ele pensou em Jane lá na clínica agora. No momento em que a procurara foi só para encontrá-la mergulhada até os joelhos numa crise, Assail berrando naquele seu quarto, Manny perguntando-lhe alguma coisa, Ehlena aparecendo com uma dúvida num pedido de medicamentos.
V. ficou na periferia e admirou o propósito da companheira. O comprometimento. A paixão.
Deus, pobre Assail.
Aqueles gritos eram de outro mundo, um lembrete de que não se pode brincar com o vício. Claro, você começa no caminho expresso das substâncias químicas só para poder tocar a vida. Mas, em seguida, você se vê num quarto acolchoado, literalmente amarrado, porque você tentou arrancar o próprio rosto a unhadas.
A propósito, me passem a vodca.
Estendendo o braço ao longo da mesa, apanhou a garrafa e voltou a encher o copo. O gelo começava a baixar no copo, mas depois desta dose, ele estaria pouco se fodendo se a merda estivesse em temperatura ambiente.
Pelo menos Assail tinha a sua Jane para cuidar dele, e ela estava se esforçando ao máximo para lhe oferecer o melhor tratamento de reabilitação durante a síndrome de abstinência. A questão era se a psicose um dia o abandonaria. Fazia um mês desde que o macho inalara pó branco, então ele podia estar simplesmente um terreno devoluto em decorrência de tantas drogas. Às vezes isso acontecia com vampiros e cocaína.
Claro, o antigo traficante provavelmente não devia ter sabido disso quando começou a consumir tanto daquela droga. Mas existiam muitas vezes na vida em que se está dançando com o diabo e não se tem a mínima ideia de tão demoníaco seu parceiro é. E você só descobre quanto é tarde demais.
Era assim que o destino agia. As maldições também.
Enquanto V. tomava mais do seu torpor engarrafado, descobriu-se pensando naquele chocolate quente de novo, aquilo que servira a Jane bem lá no começo. Ou melhor, no primeiro dos finais deles.
Ele sempre imaginara que o último fim aconteceria quando ele morresse. Mas, sentado sozinho ali na casa, tentando se lembrar da última vez em que passaram algumas horas significativas juntos... Isso o fez parar para pensar.
O revide era uma lástima. Quando ele e seus irmãos estavam no campo de batalha, lutando pela raça, eles não pensavam nas companheiras e nas fêmeas que sustentavam o forte em casa. Simplesmente tentavam cumprir seus deveres e permanecer vivos.
O mesmo acontecia lá na clínica. Jane não estava pensando nele agora. Ela estava trabalhando com Manny para salvar o que restava do cérebro de Assail. E ajudava o irmão de Qhuinn, Luchas, a recuperar a mobilidade e a saúde mental depois do terrível abuso sofrido nas mãos da Sociedade Redutora. Todas as noites, ela cuidava de todos os tipos de ferimento, desde os crônicos até os agudos, desde um simples Band-Aid até algo que ameaçava a vida, com concentração incansável e devoção aos seus pacientes.
Portanto, não é que ele não entendesse.
E também não é que não a amasse. Merda, ela era inteligente. Era valente. Provavelmente era... a única fêmea que ele tivesse encontrado e que considerasse uma igual – e não, isso não era uma declaração misógina. Ele também achava que muitos machos não eram seus iguais.
Que é o que acontece quando se é filho de uma divindade, ele supôs.
Definitivamente não conseguia se imaginar com outra pessoa que não fosse Jane. O problema era que estava devotado à guerra. Ela era devotada ao trabalho dela. E, no começo, quando tudo era novo e recente, e o ímpeto de estarem juntos era uma coceira que precisava ser coçada ou que os enlouqueceria, eles criavam tempo para estarem juntos.
Agora?
Nem tanto.
Mas tudo bem, pensou ao se acomodar à frente e voltar a se concentrar nos monitores. Nenhum deles iria a parte alguma.
Era só que... estava começando a se preocupar que isso também fosse verdade no relacionamento deles.
Uma súbita imagem de Layla se colocando diante de Xcor para protegê-lo com tudo o que tinha surgiu em sua mente e não queria ir embora. Jesus, naquele momento, ela teria levado uma bala no lugar do puto. Um movimento estúpido, sem dúvida, e um que ela teria lamentado no instante em que pensasse nos filhos... Mas naquela fração de segundo, ela esteve motivada pelo amor.
E Xcor, em troca, falara sério ao implorar que ela fosse afastada antes que ele fosse morto. O bastardo estivera tremendamente seguro disso... e perdidamente apaixonado.
V. franziu o cenho ao perceber que aquele filho da mãe e ele tinham algo em comum, não tinham? Ambos passaram pelo campo de guerra de Bloodletter.
Era praticamente certo que tivessem perdido a virgindade da mesma maneira.
Portanto, talvez devessem providenciar tatuagens de melhores amigos ou alguma merda do tipo.
– Puta que o pariu...
Mais Gray Goose... até precisar de um segundo refil. E se forçou a sair da própria cabeça e se concentrar nas imagens das telas diante dele, todas de ambientes internos e externos, quer fossem da Casa de Audiências, daquela casinha segura em que Layla e Xcor estavam ralando e rolando, das outras três casas que eles possuíam em Caldie, do restaurante Sal’s ou da mansão e do terreno em volta.
Somente a mansão mostrava sinais de vida. Os outros lugares estavam fechados por conta da “Nevegeddon”, que era como os repórteres estavam chamando aquela nevasca.
Enquanto observava os irmãos jogarem e rirem, notou que a grande maioria deles estava com suas shellans ao seu lado. As fêmeas da casa tinham suas existências separadas e independentes, mas numa noite como esta – quando os machos não estavam a serviço da guerra –, elas priorizavam passar o tempo com seus amados.
– Pois é, e eu estou aqui com a minha Goose – murmurou ao tomar mais um gole. – Não é tão ruim assim...
Infelizmente, sua mente permanecia teimosa e inaceitavelmente ébria. E isso significava que ele estava afetado demais, suas emoções ganhando um volume desproporcional de transmissão.
O que equivalia dizer que estavam simplesmente sendo percebidas pelo seu radar.
Ele odiava sentimentos, lembram-se?
Tentando entreter a massa cinzenta com algo, com qualquer coisa, ligou a Internet e resolveu monitorar algumas publicações humanas. Isso sempre o fazia rir. As merdas com que aqueles babacas se preocupavam eram simplesmente inacreditáveis – e depois eles acabavam inevitavelmente gritando uns com os outros através dos seus computadores.
A verdade era suavizada. A histeria nem um pouco.
Depois de passar pela CNN.com, pela Fox News, e pela TMZ.com, ele acabou entrando no YouTube assistindo a vídeos de McKamey Manor, que era definitivamente um dos seus passatempos prediletos e que, no fim, acabou por alegrá-lo um pouco. E foi depois de uma meia hora disso que uma notificação apareceu no fim da tela, indicando a chegada de um email.
Franzindo o cenho, entrou no Outlook para dar uma espiada.
Ora, ora, ora... O bom e velho Damn Stoker postou algo novo.
V. sorriu e engoliu outra bela dose de Goose ao entrar no blog que vinha seguindo no último mês. Era novo no cenário paranormal, escrito por um cara que parecia um cruzamento de repórter investigativo e adorador de presas.
Isto é, um humano determinado a provar a existência dos vampiros.
Era tão divertido ver como eles viravam e torciam os fins das suas falsidades lexicais, repetindo todo tipo de mentira e bobagem que os humanos vinham usando para criar mitos sobre o que na verdade existia em meio a eles.
Bons tempos, bons velhos tempos.
Pense em vídeos de YouTube. Devia existir uma centena de milhar de filmagens, de sons de mordidas, de solilóquios alegando mostrar verdadeiros vampiros vampirizando com seus equipamentos vampirescos. Dirigindo carros vampiros...
Muito bem, era possível que o álcool estivesse começando a surtir efeito.
Mas Damn Stoker era diferente, e era por isso que V. acompanhava as divagações não tão divagadoras assim do filho da puta.
O cara na verdade tinha conteúdo.
De alguma forma, o cara conseguira um vídeo do embate acontecido na Escola para Garotas de Brownswick, aquele em que a Sociedade Redutora e a Irmandade se encontraram e dançaram sob o luar, por assim dizer. Era a típica filmagem sacudida de algum viciado, mas havia o bastante para sugerir que algo grande e sobrenatural pudesse ter acontecido no campus abandonado.
Felizmente, Ômega realizara um excelente trabalho de limpeza depois da luta, e o que fora filmado era passível de ser considerado algo gerado digitalmente. Sangue de redutores no chão, afinal, podia muito bem passar por óleo automotivo velho.
Que bom que o vídeo não era olfativo, ou teria deixado as pessoas enjoadas.
E, claro, o fato de não haver nada na propriedade era um grande motivo para desacreditar a filmagem, e aquele depósito que a besta de Rhage estivera comendo acabara por ruir de todo modo, bem como muitas das outras instalações.
Ainda assim, o cara se escondendo por trás do apelido não tão inteligente assim estava no radar de V. Ele postara vários outros links de outros conteúdos no YouTube, a maioria um monte de blá-blá-blá a respeito de outros humanos que juraram de pés juntos terem tido contato com “vampiros de verdade” e muitas outras filmagens noturnas de má qualidade com cenas de lutas e de figuras entrando e saindo de lugares com capas compridas. Mas, de novo, foi aquela coisa da escola para moças que chamou sua atenção – e também o fato de a gramática do cara ser boa, de ele não se exceder no uso das maiúsculas e nem fazer isto !!!!!!!!!!!! ao final das orações, sem falar no profissionalismo de modo geral.
E nada daquilo era algo de que a raça precisasse.
Humanos ridículos com incisivos falsos com bengalas coroadas por crânios? Tudo bem. Podiam dar a V. um milhão desses. Um tipo sagaz, mais Scully do que Mulder que parecia capaz de sistematicamente passar o pente fino na Internet, separando as bobagens e isolando aquelas poucas instâncias em que algo de fato acontecera?
Isso já não era tão bom para uma espécie que queria continuar se escondendo à plena vista.
– Mais um vídeo... – V. murmurou ao dar uma passada de olhos na postagem. – O que temos hoje, Damn? Época errada para o Halloween.
V. avançou a parte em que passava o contexto sobre o suposto assunto do link, e foi direto ao que interessava.
A princípio, não entendeu o que estava vendo... Ah, sim, uma filmagem de segurança em branco e preto de um estacionamento à noite. Carro entrando e fazendo a volta... Estacionando, mas sem desligar as luzes e o motor, a julgar pela nuvem de condensação saindo do cano de escapamento.
V. sorveu mais um gole e tateou o tampo da mesa à procura de um cigarro. Sem sorte. Precisava...
– Ah... Olha só. Como vai, senhor Latimer...
Quando as duas portas se abriram, ele reconheceu o macho que saiu do lado do passageiro. Era Trez. E ora, ora, ora... Uma fêmea saiu de trás do volante, uma morena com roupas civis. Impossível ver o rosto dela, pois ela olhava para baixo tentando não escorregar no gelo, mas o corpo era bonito.
Talvez o pobre FDP estivesse afogando as mágoas do jeito antigo.
Trez deu a volta no carro e a encontrou na frente. Os dois conversaram por um minuto...
– Merda.
V. sacudiu a cabeça, depois apertou o nariz na parte entre os olhos. Depois apertou a pausa, voltou um pouco para trás e voltou a assistir.
A fêmea simplesmente desapareceu, desmaterializando-se em pleno ar. Depois Trez se colocou atrás do volante e saiu de lá como se nada tivesse acontecido.
V. rolou a tela para cima e leu o que aquele Damn havia escrito: lojinha de souvenires local após Storytown – que se a memória não lhe faltasse, distava apenas um quilômetro do Sal’s. A filmagem era de propriedade da loja, claro, mas o dono a encaminhara para Damn com permissão para publicação. Nenhuma autoridade foi contatada, e havia uma declaração do proprietário, em citação completa como se aquilo fosse um artigo num jornal: “nada foi alterado na filmagem”.
Vishous assistiu ao vídeo umas duas ou três vezes mais, e disse a si mesmo que podia relaxar. Que diabos alguém faria com aquilo? Ir até a CBS local para fazer com que transmitissem uma revelação comprometedora? Aquilo não chegava a provar nada – a não ser o fato de que sexo era um analgésico de curta duração no que se refere ao processo do luto.
Ninguém acreditaria que aquele vídeo não fora editado.
Tudo bem.
Mas Damn estava começando a se tornar um pé no saco: duas vezes em um só mês, algum humano postou vídeos de fatos reais das merdas que andavam acontecendo?
Às vezes as teorias da conspiração acertavam.
E quando isso acontecia muitas vezes seguidas, elas tinham que ser contidas, certo?
Coração Púrpura é uma condecoração militar dos Estados Unidos, outorgada em nome do Presidente a todos os integrantes das Forças Armadas que sejam feridos ou mortos durante o serviço militar, desde 5 de abril de 1917. A Medalha Presidencial da Liberdade é uma condecoração concedida pelo presidente dos Estados Unidos e é, junto com a equivalente Medalha de Ouro do Congresso – concedida por um ato do Congresso dos Estados Unidos –, a maior condecoração civil dos Estados Unidos. (N.T.)
CAPÍTULO 38
A localização seguinte na qual Xcor se materializou não estava habitada. De fato, o pequeno chalé e a casa de fazenda maior mais além era uma propriedade bem afastada de Caldwell, e ao reassumir sua forma nos ventos fortes, não se surpreendeu por nenhuma luz estar ligada, não haver nenhuma lareira acesa, nenhuma silhueta nas janelas da construção.
Ao avançar, ele passou pelo chalé e entrou na linha divisória das árvores que abençoadamente lhe deram um pouco de abrigo contra o vento inclemente. Adquirira ambas as casas e o terreno no qual haviam sido construídas para Layla e para ele. De fato, tivera certas fantasias – uma que ele jamais dera voz tampouco reconhecera sequer para si próprio – de que os dois poderiam se acomodar no pequeno chalé com todo o seu charme e conforto enquanto os machos morariam na fazenda mais distante.
De fato, ela o visitara ali algumas vezes, na época em que estivera grávida e tão resplandecentemente bela, quando ele considerara quase impossível não expressar coisas que não lhe cabiam sentir quanto menos discorrer a respeito. E fora então que ela o desafiara, justamente a respeito da evolução dos seus sentimentos, dando-lhe uma descrição acurada da fragilidade que ele sentia em relação a ela.
Nessa altura, mandara-a embora. Dissera coisas cruéis que não quisera dizer porque fora o único modo de fazer com que ela saísse da casa, deixando-o em paz. Que guerreiro que fora nesse dia. Na verdade, fora um covarde diante dela. Mas ele fora incapaz de ver qualquer futuro para os dois, e começara a se preocupar com a segurança dela por estar grávida... e mais do que isso tudo, ele ficara aterrorizado pelo modo como ela o interpretara tão bem.
Aterrorizado com o poder que ela tinha sobre ele.
E com isso ela se fora. E logo em seguida, ele fora capturado.
E agora eles tinham esse pequeno olho de furacão, um diminuto instante de paz que logo terminaria assim que ele encontrasse aquilo por que procurava.
A casa da fazenda estava fechada a tábuas no primeiro andar, todas as vidraças tampadas com tábuas presas com pregos que seus bastardos alegremente martelaram no lugar. No entanto, a porta da frente estava destrancada, e quando ele a empurrou para dentro, o rangido foi tão audível que abafou até o gemido incessante dos ventos de fora.
Deixaram as dobradiças deliberadamente sem lubrificação; aquele era o sistema de alarme mais barato que existia.
Seus olhos se ajustaram à escuridão. Os quartos não tinham nada dentro deles a não ser assoalho de tábuas e teias de aranha, mas, na verdade, seus guerreiros nunca se importaram muito com as armadilhas da civilização. Após terem sobrevivido ao campo de guerra de Bloodletter, só era preciso um teto sobre suas cabeças. A ausência de uma adaga junto ao pescoço era suficiente.
Pegando um dos sinalizadores de dentro da jaqueta, ele tirou a ponta e o acendeu, a luz sibilante vermelha iluminando um círculo amplo ao seu redor.
Xcor desceu as escadas, as passadas ecoando pela casa vazia e fria. Conforme ele avançava, segurou o sinalizador à frente, inspecionando todas as paredes e batentes e o piso todo.
Foram necessárias três viagens, três circuitos da sala de estar, escritório e sala de jantar até a cozinha e banheiro dos anos 1940, antes de encontrar.
Teve que sorrir um pouco ao se agachar no canto oposto da sala de estar.
O que acabou por chamar sua atenção foi um arranhado nas tabu-as, algo que facilmente seria desconsiderado, e que, de fato, ele quase deixara passar. Mas, após um exame mais detalhado, ele evidentemente apontava para a junção à direita das paredes onde havia um punhado de galhos, folhas e poeira.
Um amontoado de sujeira sem nenhum significado – como se alguém tivesse pegado uma vassoura e tentado limpar um pouco, só para depois perder o interesse até uma pá ser encontrada.
Aproximando o sinalizador num ângulo no chão, empurrou a sujeira para um lado e observou a mensagem deixada para ele.
– Bom macho – murmurou ao ver as marcações entalhadas na madeira.
Para alguém que não saberia interpretar, aquilo não passava de uma série aleatória de cortes e golpes. Para ele... era um mapa de Caldwell que fora montado seguindo uma bússola previamente combinada que não se baseava no norte verdadeiro, mas num conjunto de símbolos que não seria reconhecido por alguém de fora do Bando de Bastardos.
Xcor jamais aprendera a ler. Não fora uma habilidade necessária para ele no Antigo País tampouco na guerra, e ele muitas vezes se considerava inferior por essa incapacidade. Mas ele era insuperável para orientar-se e também tinha memória fotográfica, algo que desenvolvera com a necessidade de poder se lembrar do máximo de detalhes das coisas que lhe eram mostradas ou descritas.
Não se deu ao trabalho de procurar armas. Ele mesmo nunca deixara nenhuma ali, e eles teriam levado tudo que tinham consigo.
Partindo pela porta que rangia, apagou o sinalizador enfiando a ponta acesa na neve, depois fechou os olhos e se desmaterializou...
... voltando à sua forma num túnel de vento.
Os ventos eram tão brutais que ele teve que se afastar deles, e mesmo de costas, estava difícil de suportar. Mas é isso o que acontece quando se sobe mais de cem andares acima da rua no centro de Caldwell, no topo do prédio da Companhia de Seguros de Caldwell.
Movendo-se velozmente, abrigou-se atrás de uma das máquinas do sistema de aquecimento e refrigeração central que tinha o tamanho de uma ambulância, e, de lá, ele conseguiu se orientar, tendo que partir do leste para ele poder interpretar as marcações adequadamente.
Só que um problema logo se evidenciou. Com tanta neve caindo, ele não conseguia divisar o padrão de ruas bem o bastante para encontrar o local: ainda que houvesse alguns marcos iluminados da cidade para lhe dar uma ideia da planta, ela não conseguiria precisar nada dali de cima.
Sua única chance seria descer à rua e seguir dali. A boa notícia? Seus guerreiros ficariam abrigados numa noite como esta.
Assim como os humanos, até mesmo assassinos não se aventurariam numa confusão como aquela. E seus bastardos nunca gostaram muito do frio.
Se ainda estavam em Caldwell, ele os encontraria esta noite.
CAPÍTULO 39
– O que há nesse livro?
A voz feminina que se aproximou de Throe pelo ombro era petulante como a de uma criança, mesmo tendo saído dos lábios maliciosos da vampira de trinta e seis anos de seios naturais tamanho grande, um abdômen tão reto que poderia ser usado como prato numa refeição, e um par de pernas longas o bastante para envolver duas vezes sua cintura.
Costumeiramente, ele teria apreciado a interrupção vinda de alguém como ela.
– Throe! Eu não serei ignorada!
Não esta noite.
Ao se endireitar diante do tomo antigo que levara para casa do consultório daquela vidente, suas costas estalaram, e ficou aborrecido em ver que o pescoço estava tão duro que não conseguiu olhar por cima do ombro. Precisou virar o tronco inteiro para fazer contato visual.
– Estou estudando – ouviu-se dizer.
Estranho, pensou. Era como se não tivesse um pensamento consciente ao dizer aquelas palavras específicas.
No entanto, estavam corretas. De fato estivera estudando o que estava escrito no pergaminho o dia todo e... já era noite? Parecia-lhe que havia acabado de se sentar.
– Perdoe-me. – Pigarreou. – Mas que horas são?
– Nove horas! Você me prometeu que sairíamos.
Sim, lembrava-se disso. Fizera isso para tirá-la das costas e mandá-la para a cama de seu hellren ao amanhecer a fim de ter um pouco de privacidade com o livro.
Ou O Livro, como começara a pensar nele.
E ela evidentemente confiara na sua palavra, pois seu vestido era tanto revelador quanto caro. Roberto Cavalli, a julgar pela estampa de pele de animal. E ela tinha joias de ouro Bulgari suficientes para que a polícia dos anos 1980 abrisse um inquérito.
– Então? – ela exigiu. – Quando vai se vestir?
Throe olhou para o próprio corpo, com um distanciamento enraizado ao fitar as calças, a camisa e os sapatos.
– Estou vestido.
– São as mesmas roupas de ontem à noite!
– Verdade.
Throe sacudiu a cabeça e olhou ao redor. O quarto de hóspedes ele reconhecia, e isso era um alívio. Sim, era ali que vinha se hospedando desde o incêndio que destruíra a mansão do hellren de sua antiga amante. Um mês havia passado nesta suíte mogno e azul marinho, com aquela cama de dossel, os quadros de caça e cômoda alta de gavetas e escrivaninha.
Mudara-se para ali e de pronto assumira um relacionamento sexual com esta fêmea subestimada sexualmente, de modo semelhante ao que acontecera com a amante anterior: esta, assim como aquela, estava casada com um macho muito mais velho que estava incapacitado de servi-la na cama – com isso, Throe, como um “cavalheiro de boa linhagem”, fora acolhido naquele lar, sendo estimado e protegido sem data para partir.
Evidentemente, eles não sabiam dos boatos de como ele acabara se associando ao Bando de Bastardos. Ou sabiam e tinham um padrão baixo. De todo modo, havia um acordo tácito de que enquanto ele cuidasse da shellan, ele poderia contar com um quarto, com refeições e um guarda-roupa a altura, e neste caso – o que não acontecera no anterior – ele tinha suspeitas de que companheiro dela sabia do acordo e o aprovava.
Talvez o macho mais velho estivesse ciente das escapadas dela, e temia que o deixasse para sempre.
Na glymera, isso seria um embaraço que ninguém gostaria de levar até o túmulo.
– Não está se sentindo bem? – ela perguntou franzindo o cenho.
Ele se virou lentamente. Estava sentado à escrivaninha, aquela acomodada entre as duas janelas grandes cobertas por vidro com bolhas e cortinas elegantes. A mansão era grande e espaçosa, repleta de antiguidades e de mobília muito, mas muito mais distinta do que a atual proprietária. E há quem poderia suspeitar que ela preferisse morar no Commodore, numa cobertura com vista para o rio, repleto com sofás grandes em couro branco e reproduções de Mapplethorpe.
Ela gostava de sexo. E era boa nisso...
– Throe, sério. Qual é o problema?
O que ela lhe perguntara antes? Ah... sim. E ele virara naquela direção para se mirar no reflexo dos espelhos das portas superiores da escrivaninha.
Apesar de o espelho ter manchas e estar riscado, havia ainda suficiente superfície espelhada para ver que ele ainda era o mesmo de antes de ir até o consultório da vidente. Ainda os mesmos cabelos loiros espessos, e o maxilar quadrado clássico, e os cílios longos que costumavam fazer sucesso entre as fêmeas.
No entanto, ele não se sentia o mesmo.
Algo mudara.
Enquanto uma onda de ansiedade o atravessava, ele apoiou a palma no livro aberto e, instantaneamente, se acalmou, certo como se o tomo fosse uma droga. Como fumaça vermelha, talvez. Ou quem sabe um bom Porto.
O que estiveram mesmo discutindo...
– Não importa, estou saindo sem você. – Ela fez uma pirueta em sinal de desaprovação, os saltos agulha imprecando ao passarem sobre o carpete enquanto ela recuava para a saída. – Se vai ser tão básico assim, eu não vou...
Throe piscou e esfregou os olhos. Relanceando ao redor, levantou-se, depois voltou a se sentar ao sentir câimbras nos músculos das pernas. Na segunda tentativa, conseguiu tanto permanecer de pé quanto andar, apesar de que esse último aconteceu com passos meio duros à medida que ele avançava sobre o tapete Oriental em direção à porta pela qual sua amante acabara de passar.
Abrindo-a, ainda não sabia muito bem o que lhe diria, mas não faria sentido continuar a discussão. Ele necessitava muito dela no momento, aquele teto sobre a sua cabeça e o sustento em sua barriga necessários para que estivesse livre para seguir suas verdadeiras ambições.
Segurando a maçaneta ornamentada da sua suíte, inclinou-se para o corredor, olhando para a direita e para a esquerda. Não havia sinal dela, então ele desceu quatro portas e bateu com suavidade. Quando não houve resposta, verificou novamente para ter certeza de que não haveria ninguém por perto e depois entrou no quarto creme e pêssego.
Muitas luzes estavam acesas. Alguns vestidos largados sobre a cama. A essência do perfume pairava no ar.
– Corra? – ele a chamou. – Corra, minha querida, vim me desculpar.
Aproximou-se do imenso banheiro branco e creme. Na bancada à frente da cadeira em que se penteava e maquilava, diversos produtos Channel, tubos, potes e pincéis. Mas nada de Corra.
Throe não tocou em nada e voltou para seu quarto. Bem quando fechava a porta, seus olhos passaram pelo relógio acima da cômoda – e ficou imobilizado.
Dez horas. Na verdade, um pouco passadas das dez.
Throe franziu o cenho e se aproximou da peça Ormolu. Mas a proximidade não alterou o fato de que aqueles ponteiros proclamavam que eram mais de dez.
No entanto, Corra lhe dissera que eram nove. Não foi?
Throe relanceou para O Livro.
Nos recessos da mente, notou que era estranho que, apesar de tê-lo lido por tantas horas – Céus, não se passaram quase vinte e quatro? –, mesmo assim ele não avançara da primeira página aberta.
Throe sentiu um formigamento de vertigem caçoar de sua mente com a impressão de que o mundo girava ao seu redor.
Cambaleando até a escrivaninha, sentou-se na cadeira dura novamente, com os joelhos unidos, a cabeça pensa e os olhos no tomo aberto.
Interessante, não percebera ter dado um comando consciente ao corpo para que ele retomasse aquela posição ali...
Espere, o que mesmo ele...
Por que estivera...
Pensamentos entraram e saíram da sua mente, movendo-se como nuvens no céu desabitado, nada permanecendo com ele tampouco encontrando uma fricção. Chegou a pensar que estava se esvaziando, que partes suas estavam sendo drenadas, mas tinha dificuldades para determinar exatamente o que o abandonara e para onde isso fora.
Por um momento, o medo o atingiu e ele desviou o olhar dO Livro.
Esfregando os olhos com tanta força que provocou lágrimas, percebeu que não fazia a mínima ideia do que lera. Todas aquelas horas passadas diante do livro aberto... e ele não sabia nada do que estava impresso naquelas páginas.
Precisava fechar a capa e queimar aquela coisa.
Sim, era isso o que precisava fazer. Manteria os olhos desviados, sem prestar atenção às páginas, e fecharia a capa com força. Depois do que, apanharia o volume maligno e o carregaria par abaixo. Havia uma lareira constantemente acesa na livraria e ele...
Os olhos de Throe retornaram para o pergaminho e para a tinta, um par de cães convocado pelo seu mestre, em posição de sentido.
E se concentrou nos símbolos, no texto.
Abriu a boca. Fechou-a. Tentou se lembrar do motivo de ter ido procurar a vidente para início de conversa.
Enquanto seu medo aumentava, ele tentou se forçar a se concentrar em se libertar – e, de fato, lembrou-se daqueles sonhos que tinha de tempos em tempos, no qual estava acordado, mas preso num corpo inerte, com uma sensação de pânico que o levava a querer despertar.
Mover um pé ou uma mão normalmente afastava alguém do precipício, e ele sentia que agora, se conseguisse ser assertivo, poderia se salvar de um perigo do qual jamais conseguiria escapar.
Por que fora até aquela vidente... Qual fora o motivador... O que estivera procurando...
E a resposta surgiu.
Numa voz que não soava como a sua, ele disse em voz alta:
– Preciso de um exército. Preciso de um exército para poder derrotar o Rei.
Algo como um raio atravessou o ar, e sim, uma corrente elétrica o perpassou, trazendo-lhe claridade e propósito que afastou toda a confusão prévia.
– Quero derrotar o Rei e dominar tanto a minha raça quanto a dos humanos. Desejo ser o senhor e o mestre de tudo na terra e dos seus habitantes.
De repente, as páginas começaram a virar, um cheiro de pó entrou em suas narinas, ameaçando-o a espirrar.
Quando a arremetida ensandecida para sabe-se lá o que cessou, ele se inclinou, certo de que havia uma mão atrás do seu pescoço, empurrando seu tronco nessa direção.
De súbito... as palavras fizeram sentido.
E Throe começou a sorrir.
CAPÍTULO 40
Qhuinn se moveu pela neve, que caía como se fosse parte da nevasca, sua fúria rivalizando os ventos uivantes, a roupa branca camuflando-o nas correntes que se formavam nos becos do centro da cidade. Ao seu lado, Tohr estava igual a ele, um predador camuflado no ambiente, que já não parecia mais urbano, mas ártico.
Rajadas de flocos de neve espessos como fumaça de bombas rodopiavam ao redor dele e desacelerava o avanço deles em mais um quarteirão desprovido de pedestres e de carros em movimento. Estava tão frio que a neve era leve e fofa, mas o volume era tremendo, centímetros e mais centímetros se avolumando e crescendo no chão. E ainda assim a coisa continuava a cair do céu.
Rogou para ver um Bastardo, qualquer Bastardo.
Mas especialmente aquele que procuravam.
Esta era a melhor oportunidade para apanharem Xcor num ambiente solitário onde poderiam fazer com que o assassinato parecesse uma emboscada armada pelo inimigo... no qual poderiam cuidar de tudo como deviam. E o filho da puta definitivamente estava ali, à procura dos seus garotos a despeito da tempestade.
Enquanto Qhuinn avançava com dificuldade, os músculos das coxas queimavam e os dentes da frente tiritavam de frio, e o calor que seu corpo gerava fez com que ele desejasse descer o zíper da parca branca. Nos recessos da mente, ele sabia que estava insistindo nesse plano traidor não só em busca de uma vingança merecida em relação ao Bastardo, mas também porque fugia de tudo que acontecia em casa: Blay afastado, Layla com as crianças, Wrath e ele desentendidos.
Permanecer no frio a noite inteira era preferível a ficar preso em casa – ainda mais que tinha o dia inteiro adiante para ficar fechado debaixo daquele teto. Merda, acabaria louco com tanta...
Mais adiante, em meio à vista enevoada da neve, uma figura de preto do tamanho de um vampiro guerreiro se revelou e depois sumiu quando uma rajada soprou pelo cruzamento distante uns vinte metros deles.
O que quer que fosse era grande, e não deveria estar ali.
E parou assim que os notou, o vento que soprara pelas suas costas sem dúvida levando seu cheiro e o de Tohr na direção dele.
Naquele momento, como se as coisas tivessem sido preordenadas, os ventos mudaram de direção... e trouxeram o cheiro da figura, identificando-a.
– Xcor – Qhuinn sussurrou ao enfiar a mão dentro daquela camada espessa a prova de água e vento e empunhar o cabo da sua quarenta.
– Bem na hora. – Tohr, do mesmo modo, sacara sua pistola. – Melhor impossível. Terminando antes mesmo de ter começado.
Xcor lhes deu tempo para que se aproximassem, e Qhuinn estava certo de que ele sabia quem eram.
Perto... Ao alcance das balas...
O coração de Qhuinn começou a bater forte, uma excitação borbulhando suas emoções, mas não sua cabeça nem o corpo. O braço permaneceu firme e junto ao corpo.
Mais perto...
Bem quando levantou o braço, seu celular tocou junto ao peito, a vibração chamando sua atenção, mas sem desviá-la.
Ele e Tohr puxaram os gatilhos ao mesmo tempo – bem quando Xcor, que não era nada bobo, se jogou no chão.
Com a tempestade furiosa, aquela foi uma situação do tipo “ovo ou galinha”, difícil de determinar quem veio primeiro, o abaixamento ou o impacto com a bala.
Com o celular ainda tocando, Qhuinn e Tohr dispararam a correr, ambos atirando alternadamente para onde o Bastardo estivera de pé e depois caído ou aterrissado enquanto eles avançavam sob a neve densa.
– Filho da puta – Qhuinn ladrou quando chegaram onde Xcor estivera.
O puto desaparecera. E não havia cheiro de sangue.
Deixaram mesmo de acertá-lo?
Ele e Tohr olharam ao redor, depois o irmão disse:
– Telhado.
Os dois desapareceram do beco, ressurgindo no alto de um prédio de dez andares bem de frente para onde o tiroteio acontecera. Nada. A visibilidade era tão fraca que não conseguiam enxergar a rua abaixo, e não sentiam o cheiro de Xcor em lugar nenhum.
Com o vento rugindo forte nos ouvidos apesar de ele ter ajustado o gorro até bem embaixo, e seus olhos se enchendo de água por conta do frio, Qhuinn sentiu uma frustração invadindo-o até a medula.
– Ele não pode ter ido longe! – gritou acima do barulho.
– Vamos nos espalhar. Eu vou...
– Filho da mãe. – Qhuinn sentiu o celular vibrar pela segunda vez. – Mas quem diabos está me ligando!
Abaixou o zíper da parca e enfiou a mão dentro dela. Tirando o maldito aparelho, ele...
Aceitou a chamada de pronto.
– Blay? Blay...?
Ele não conseguia ouvir nada e apontou para o beco abaixo. Quando Tohr assentiu, Qhuinn tentou se concentrar – e um segundo mais tarde, desmaterializou-se para onde estivera antes.
Cobrindo com a outra mão o ouvido livre, ele disse:
– Blay?
A voz do seu companheiro estava baixa na ligação cheia de estática.
– ... ajuda.
– O quê?
– ... na Northway. Saída...
– Espere, o quê?
– ... vinte e seis...
– Blay?
E então uma palavra foi ouvida sem a menor dúvida:
– Acidente.
– Estou indo! – Qhuinn olhou para Tohr. – Agora mesmo!
Ele queria manter a conexão aberta, mas havia o risco de a neve fazer com que o celular parasse de funcionar e ele poderia precisar dele.
Tohr disse:
– Vamos nos dividir. Eu vou pelo norte...
– Não, não, Blay está em apuros. Eu tenho que ir!
Houve uma fração de segundo na qual se encararam. Para Qhuinn, contudo, não havia a menor dúvida. Amor versus vingança.
E ele escolheria o amor.
Merda, sentia-se péssimo por Blay ter se envolvido num acidente... Mas, pelo menos, o macho o procurara num momento importante, e claro, cacete, ele iria para onde estava o seu coração. Mesmo que Xcor estivesse sangrando no peito e precisasse de apenas uma última bala para ir para o Fade? Qhuinn estava fora.
Tohr, no entanto, era outra história.
Xcor via os dois Irmãos do seu ponto de vantagem no teto do lado oposto a onde Qhuinn e Tohr estiveram: mesmo com aquelas parcas brancas, as rajadas de neve se desviavam ao redor dos seus corpos, delineando-os.
Algumas vezes no decorrer da sua vida, Xcor poderia ter jurado que alguma espécie de força exterior estivera determinada em mantê-lo vivo.
Esta noite fora uma delas.
Aquelas duas armas foram apontadas para ele descarregadas ao mesmo tempo, como se os Irmãos dividissem um cérebro – ou pelo menos um par de dedos prontos para atirar. E mesmo assim, de algum modo, ele nem precisou do colete a prova de balas que vestira antes de colocar a parca preta ainda no rancho.
Ele atribuiu a culpa ao vento.
Ou lhe deu crédito, o que parecia mais adequado.
Mesmo trajando a roupa ideal para um alvo, e a distância entre eles não ser superior a cinquenta metros, aquelas balas foram para algum outro lugar.
E ele não desperdiçou um segundo para se desmaterializar.
Graças ao Fade ele tendia a ficar mais concentrado em vez de se desconcentrar quando em perigo, e também deduzira certo ao pensar que o movimento seguinte deles seria o de proceder para o prédio mais baixo atrás de onde eles tentaram abatê-lo. No entanto, sua vantagem não perduraria. Eles se dividiriam a fim de dar cabo do assunto.
E aquela tentativa de homicídio significava duas coisas: ou o par se rebelara contra o Rei... Ou Wrath mentira sobre suas verdadeiras intenções e toda a Irmandade estava atrás dele.
O macho lhe parecera sincero, mas poderia garantir?
E quem discutiria com aquelas 40 mm...
Quando Tohr e Qhuinn se desmaterializaram, Xcor se agachou e também sumiu, seguindo a teoria de que um alvo móvel é mais difícil de acertar.
Voltou à sua forma três quarteirões a oeste junto a um conjunto habitacional. E ao se materializar novamente, triangulou sua localização no mapa daquela tábua no piso da casa de fazenda. Estava perto, muito perto, da localização ali ilustrada.
E não existia melhor lugar para ficar do que junto aos seus guerreiros já que estava sendo caçado.
Movendo-se de telhado em telhado, lembrou-se do seu tempo nas copas das árvores, bem antes de Bloodletter tê-lo abordado naquela floresta. De fato, talvez tivesse que se apoiar nas suas habilidades de ladrão uma vez mais, dependendo de como as coisas se dariam dali para a frente.
Tinha pouca munição e nenhum dinheiro – e isso era um problema que exigia uma solução. Mas estava colocando o carro na frente dos bois.
Pensando assim, foi para um beco tão estreito e escuro como o interior do seu crânio. O vento não conseguia entrar naquela fenda criada pelos prédios de tijolos, e a neve formara grandes bancos nas duas extremidades, deixando um vácuo no meio. Ficou num dos lados, agachado e se esgueirando ao longo dos espaços formados pelas soleiras e uma ou outra ocasional lata de lixo.
Soube que estava no local correto ao ver três marcas fundas de facadas na parte superior direita da moldura da porta – e quando virou a maçaneta velha, não esperou que ela fosse girar. Mas girou.
Relanceando para a direita e para a esquerda, depois para cima, enfiou os ombros pela abertura e entrou.
Quando se fechou ali dentro, não disse nada. Seu cheiro anunciaria sua presença – assim como os cheiros que o receberam lhe disseram que seus machos estiveram ali bem recentemente. Numa questão de horas.
Era ali que vinham ficando.
Com as janelas cobertas por tábuas e a porta fechada, resolveu se arriscar e acender o segundo sinalizador. Quando a luz avermelhada explodiu na ponta, ele moveu o bastão ao redor lentamente.
Era a cozinha de um restaurante abandonado, com todo tipo de utensílios e panelas velhas, engradados e baldes de plástico cobertos por uma camada grossa de poeira. Havia vestígios dos machos terem ficado ali, todavia, lugares vazios junto às paredes onde os imensos corpos se esticaram para descansar.
As caixas de pizza da Domino’s o fizeram sorrir. Eles sempre gostaram daquela pizzaria.
Depois de dar a volta em toda a cozinha, e depois seguir para a frente do restaurante, encontrando-o similarmente selado, desordenado e vazio, voltou a passar pela porta pela qual entrara.
Voltando para a tempestade.
CAPÍTULO 41
Fora um bom plano. E como com todos os bons planos que acabam sendo ruins, tudo começara bem: Blay assumira o volante do novo sedã Volvo do pai, com o pai indo ao seu lado na frente e a mãe no banco de trás com as costas apoiadas na porta e o pé ruim sobre o banco. Sim, claro, divertiram-se um pouco para saírem do caminho de carros da casa, mas quando chegaram à estrada principal e depois entraram na Northway, nenhum problema.
Bem, evidentemente, a estrada estava fechada, porém, aquilo era Nova York e as pessoas estavam pouco se fodendo com isso, portanto as pessoas criaram duas faixas paralelas bem no meio das duas pistas que levariam para o norte. Tudo o que você precisava fazer era manter um ritmo constante enquanto o para-brisa à sua frente se transformava naquilo que Han Solo via toda vez que a Millenium Falcon avançava em hipervelocidade.
Portanto, tudo somado, foi um bom começo. Ouviram o bom e velho Garrison Keillor, e cantaram junto com a sua versão de “Tell Me Why” e quase conseguiram se esquecer de que estavam entrando na parte das saídas longas, aquelas entre as quais não havia saída em quinze, vinte ou até mesmo trinta quilômetros em cada trecho.
A guinada para o pior aconteceu sem preâmbulos nem um aviso de cortesia de que talvez precisassem ligar para Houston por estarem com problemas. Avançavam a modestos 50 km/hora, mantendo-se nas faixas, descendo um declive... quando o Volvo acertou um trecho de gelo que não entrou em acordo com seus pneus, com o controle de tração, e tampouco com a tração das quatro rodas.
Num minuto estavam muito bem, no seguinte, em câmera lenta, fizeram uma pirueta e... aterrissaram numa vala.
Numa maldita vala de verdade.
De ré.
A boa notícia, Blay supôs, era que ele conseguira desacelerar o processo de modo que os airbags não foram acionados na sua cara e na do seu pai. A ruim? A “vala” estava mais para uma ravina capaz de engolir o carro sueco inteiro.
A primeira coisa que Blay fez foi ver como a mãe estava, pois ela estivera sem cinto.
– Como estamos aí atrás?
Ele tentou parecer relaxado, mas não respirou direito até a mãe levantar os polegares.
– Bem, isso foi excitante. E eu estou ótima.
Enquanto o pai e a mãe começaram a conversar nervosos, ele olhou para cima, bem para cima, onde estava a autoestrada. Depois desligou o motor. Eram grandes as chances de o cano de escapamento estar entupido pela neve, e caso o aquecedor continuasse ligado, acabariam mortos antes de serem incinerados pelo sol da manhã.
– Alguma possibilidade de conseguir se desmaterializar? – perguntou à sua mahmen.
– Sim, claro. Sem problemas.
Dez minutos fechando os olhos e se concentrando da parte dela mais tarde, foi claro que aquela era uma causa perdida. E nem era preciso dizer que nem ele nem o pai sairiam do carro sem ela.
E foi assim que ele acabou ligando para Qhuinn.
Bem, essa decisão demorou um tempo para ser tomada.
E com o macho vindo para ajudá-los sem demora, Blay continuou sentado com as mãos apertando o volante apesar de não estarem indo a parte alguma, e se perguntando se não deveria ter ligado para John Matthew em vez disso.
Ou quem sabe, para a maldição Fada Açucarada do Quebra-Nozes.
– Vai ficar tudo bem – a mãe disse do banco de trás. – Qhuinn logo estará aqui.
Enquanto Blay relanceava pelo espelho retrovisor, notou que ela subira o zíper da parca.
– É.
Maldição, deveria ter pedido que Jane fosse até a casa dos pais. Mas estivera pensando em Assail e em qualquer outro que pudesse estar ferido. Pareceu-lhe egoísmo tirar qualquer um dos médicos ou Ehlena da clínica.
Além disso, Manny, como humano, não tinha como se desmaterializar.
Não, fora melhor mesmo chamar Qhuinn. Ainda mais que estava tentando tranquilizar os pais quanto ao fato de ter passado uma, ou melhor, duas noites em casa – sem mencionar os gêmeos. Sabia muito bem que não estava conseguindo enganá-los, mas ainda não estava pronto para tocar no assunto: ah, a propósito, sabem aquelas crianças que vocês tanto adoram? Pois é, mãe, inclusive aquela que tem o seu nome? Então, eles não vão mais ser...
No meio da tempestade de neve, um fantasma apareceu. Um fantasma enorme de gorro.
– Ah, aí está ele – disse a mãe do banco de trás.
E o alívio dela era o tipo de sentimento que Blay não poderia reconhecer sentir. Só que, sim, estava contente porque o irmão estava ali. Fala sério, aquela era a sua mahmen. Precisava levá-la para a mansão – e ele sabia que nem uma nevasca impediria Qhuinn de ir buscá-los.
Sim, aparentemente a linha divisória não fora delimitada pela força dos ventos e da neve que cegava,
Não, fraldas eram a divisória.
– Fiquem aqui – Blay anunciou ao tentar abrir a porta.
Tivera a intenção de emergir triunfante, de igual para igual que fora temporariamente superado pelo fracasso dos seus malditos radiais Bridgestone. Mas a maldita porta estava emperrada.
Acabou se desmaterializando por uma abertura de dois centímetros na janela.
Maldição, que frio, pensou ao ser estapeado no rosto pelo vento.
– Ela está machucada! – ele gritou contra o vento.
Qhuinn só o encarou, aqueles olhos diminuindo a distância que os separava, inquisidores, suplicantes. Mas logo o cara voltou à realidade.
– Por causa do acidente?
– Não, antes disso! Ela escorregou e machucou o tornozelo de novo. Estava sem a bota. Eu estava tentando levá-los ao centro de treinamento.
– Deveria ter me ligado antes... Eu teria...
No meio da tempestade, outra figura surgiu. Tohr. E quando Qhuinn notou sua presença, pareceu surpreso. Depois aliviado.
– Ela consegue se desmaterializar? – Qhuinn gritou ao se concentrar novamente.
– Não! E não vamos deixá-la!
Qhuinn assentiu.
– Preciso ir pegar o Hummer!
Gritavam para se fazer ouvir, as mãos ao redor da boca, os corpos lutando contra o vento – e Blay pensou que era estranho, mas aquilo era bem semelhante a quando tentaram se comunicar a respeito dos eventos em relação a Layla e as crianças. Uma tempestade os envolvera, abalando a ambos, criando uma nevasca emocional que tornou o cenário ao redor deles impenetrável – e o tempo ruim ainda tinha que passar.
Na verdade, ele temia que jamais fosse passar.
– Vou ficar com eles! – Blay disse.
Tohr se pronunciou.
– Vou para casa para buscar cobertas! E depois volto para ajudar a montar guarda!
Blay teve que virar a cabeça para tirar a neve dos olhos.
– Obrigado!
Quando sentiu a mão de Qhuinn no seu ombro, sobressaltou-se, mas não recuou.
– Já volto, ok? – informou o Irmão. – Não se preocupe com nada.
Por uma fração de segundo, Blay apenas fitou os olhos despareados. Algo fez com que ao vê-los, tão preocupados e intensos, a dor no meio do seu peito se renovasse como no instante em que fora criada.
Mas não foi só isso o que sentiu.
Seu corpo ainda desejava o cara. Seu corpo ainda estava pronto... para mais de Qhuinn. Maldição.
Sem nem mais uma palavra, Qhuinn sumiu, assim como Tohr.
Blay permaneceu na nevasca por mais uma ou duas batidas de coração, depois se virou e olhou para cima, na direção da estrada. Conseguiram quebrar o guard rail.
Antes de voltar a entrar no carro, deu a volta para a frente, abaixou-se e apanhou seu canivete. Estava sem luvas, por isso trabalhou rápido, limpando a neve e retirando os dois parafusos que prendiam a placa para tirá-la. Depois enfrentou o vento e foi para a parte traseira, fazendo a mesma coisa com a placa de trás, colocando as duas no bolso da jaqueta.
Desmaterializando-se para dentro do carro, sorriu para os pais.
– Eles já vão voltar. Não vai ser um problema.
Sua mahmen assentiu e sorriu.
– Eles são simplesmente os melhores.
– Uh-hum. – Apontou para o porta-luvas. – Pai, importa-se em...
– Já fiz.
O homem lhe deu o documento e a papelada do seguro, ambos falsificados por V., e Blay também os guardou dentro da parca. O número do chassi fora apagado assim que compraram o carro pensando em situações como esta – quando se é um vampiro no mundo dos humanos, e o seu carro se acidenta, muitas vezes é melhor apenas abandoná-lo porque a dor de cabeça não valia a pena recuperá-lo.
E como andavam as coisas, demoraria bem uns dois dias até que alguém conseguisse chegar perto daquele sedã, por isso era melhor mesmo apenas se esquecerem dele.
Ao olhar para fora da janela lateral, Blay começou a sentir uma ansiedade crescente que não tinha nada a ver com o pé da mãe nem com a nevasca.
Não posso voltar para trás, pensou. Apenas seguir em frente.
– Vou sentir falta deste carro – a mãe murmurou. – Eu estava me acostumando a ele.
– Compraremos outro, querida – o pai disse. – E você vai poder escolher.
Uma pena que não se pode ir até a concessionária mais próxima dos relacionamentos para comprar uma nova versão do que quer tenha se acidentado, uma que talvez tenha algumas melhorias tecnológicas e suspensão melhor da parte do seu companheiro.
Mas a vida não funcionava assim.
CAPÍTULO 42
Atrás do volante do Hummer, Qhuinn sentiu que demorou um mês para ele voltar até onde o Volvo se suicidou na lateral daquela autoestrada. Concluiu, contudo, ao se aproximar da quilometragem que aguardava finalmente aparecer, que deveria ser grato por poder ir até lá de todo modo. Seu segundo SUV era durão assim mesmo, com seus pneus parecendo garras fortificadas com correntes King Kong, a base larga e a capacidade de cobrir grandes distâncias tudo o que era preciso numa noite como esta.
Mesmo quando se está resgatando o amor da sua vida e os pais deles do meio de uma nevasca.
Ainda que, com toda a robustez do seu veículo, a visibilidade estivesse uma merda e ele tivesse que trocar do farol alto para o baixo assim que ganhou velocidade na Northway: com sua vista aguçada, a iluminação ainda era suficiente e resolvia a questão que tivera com o brilho excessivo que as malditas Xenon criavam ao atingir os flocos de neve.
Ao passar pela quilometragem marcada, saiu da pista do meio e foi para o acostamento. Estreitando os olhos, apesar de isso não melhorar sua acuidade visual, tentou ver exatamente onde eles saíram da estrada na pista oposta da estrada.
Seguira alguns metros antes de resolver jogar tudo para o alto.
Virando o volante para a esquerda, cruzou a pista contra o fluxo contrário de carros – que era inexistente pelo menos naquele instante – e seguiu para o norte na pista contrária. Ligando a luz refletora da lateral, usou a manivela para direcionar o facho poderoso de luz para a lateral.
Encontrou o Volvo trezentos e cinquenta metros mais adiante, e algo em ver aquele utilitário saído da estrada naquele ângulo, metros abaixo do guard rail, fez com ele sentisse ânsia. Em vez se seguir o caminho do vômito, porém, ele freou, deixou a marcha em ponto morto e abriu a porta.
O Volvo perdera tração na base de uma descida, o para-choque frontal entrando com tudo na neve de uma maneira que a porta do motorista não podia ser aberta. Blay e a família saíram pelo outro lado, porém; ele e o pai saindo primeiro para depois ajudarem a mãe e sair de trás. Lyric fazia caretas de dor enquanto a ajudavam a sair, mas não reclamava. Ela estava tentando sorrir.
– Olá, Qhuinn – ela gritou na estrada quando ele desceu ao encontro deles.
Foi só o que ela conseguiu dizer. A movimentação evidentemente estava acabando com ela, e Qhuinn desejou poder ajudar.
Nesse meio tempo, Tohr também ficou de lado, com a coberta e a garrafa térmica que trouxera nas mãos. Qhuinn ficara surpreso ao ver o irmão aparecer ali, e cara, como foi bom saber que ele estava segurando as pontas enquanto ele trazia o Hummer.
– Eu a levo – o pai de Blay anunciou, como qualquer macho vinculado.
E em deferência a ele, todos recuaram enquanto ele segurava a companheira nos braços. Blay logo se postou atrás do pai, empurrando-os para cima da vala até o Hummer enquanto Tohr perscrutava a escuridão à procura de um possível inimigo e Qhuinn corria à frente para virar o carro e abrir a porta de trás.
Deus, permita que nenhum humano apareça. Especialmente se for algum carro de polícia de Caldwell ou estadual.
Mais um instante em que tudo parece demorar demais até que Lyric estivesse segura no banco de trás, e Qhuinn pudesse respirar fundo de alívio.
Mas ainda restava chegarem inteiros à mansão.
Enquanto Blay se acomodava ao seu lado na frente e o pai dele se ajeitava atrás com Lyric, Tohr se aproximou.
Qhuinn abaixou o vidro.
– Obrigado... Muito obrigado mesmo.
O irmão lhe entregou a coberta e a garrafa térmica.
– É chocolate quente. Fritz aparentemente o tem pronto para noites como esta.
– Vai voltar para o centro?
Tohr desviou o olhar para a neve que caía.
– Vamos juntos, concordamos com isso.
Qhuinn estendeu a palma.
– Amém, irmão.
Depois que apertaram as mãos, Tohr recuou.
– Eu os seguirei até em casa.
– Não precisa. Mas fico feliz que faça isso.
Tohr assentiu uma vez e deu um soco de leve no capô do carro.
– Boa viagem.
Qhuinn levantou o vidro e acelerou – devagar. O Hummer estava equipado para enfrentar todo tipo de terreno, dos mais lamacentos até a pior das neves, mas ele não se arriscaria com sua carga preciosa – e também havia o fato de a mãe de Blay sibilar toda vez que o SUV dava um solavanco em cima de um monte maior de neve.
Quando recomeçaram a viagem, a mãe e o pai de Blay ficaram conversando baixinho no banco de trás, palavras de conforto sendo dadas e recebidas, os murmúrios acolhedores e íntimos.
Basicamente o oposto do que estava acontecendo na frente do veículo.
Qhuinn relanceou para Blay. O macho olhava fixo adiante, o rosto estava impassível.
– Bem, vou levá-los direto para o centro de treinamento – Qhuinn disse.
O que, claro, era uma declaração completamente idiota. Ou será que ele pretendia levá-los pela chaminé como se fosse Papai Noel?
– Ótimo. – Blay pigarreou e depois desceu o zíper da parca. – Quer dizer que a Irmandade estava em campo hoje?
– O quê?
– Wrath os mandou a campo mesmo com esta nevasca? – Quando Qhuinn pareceu continuar confuso, Blay disse: – Você e Tohr estavam falando sobre estarem em campo?
– Ah, isso. Não. Todos foram dispensados.
– Então o que vocês estavam fazendo no centro?
– Ah, nada.
Blay voltou a se concentrar no para-brisa.
– Assuntos particulares da Irmandade, hum. Bem, sinto cheiro de pólvora em você.
Quando o Hummer chegou ao centro de treinamento, parando diante das portas reforçadas na base da garagem, Blay foi o primeiro a sair do carro. O trajeto até o complexo fora marcado por uma série de embaraçosas paradas e retomadas conversacionais entre ele e Qhuinn até ser um impasse se o completo silêncio era melhor do que os pigarreios. E, nesse meio tempo, na parte de trás, os pais ouviam tudo, mesmo enquanto fingiam estar conversando entre eles.
Nada como expor o pior do seu relacionamento na frente da mamãe e do papai.
Isso era quase tão divertido quanto um tornozelo fraturado.
Bem quando Blay abria a porta ao lado da mãe, o doutor Manello aparecia com uma maca, o macho humano sorrindo com jovialidade, mas também avaliando a situação com olhos de águia como todos os cirurgiões diante de um paciente.
– Como estamos, pessoal? – o cara perguntou enquanto Lyric se esforçava para sair do banco do Hummer. – Fico feliz que tenham chegado inteiros.
A mahmen de Blay inclinou a cabeça e sorriu para o médico enquanto se apoiava no seu hellren.
– Ah, fui uma boba.
– Não colocou a bota.
– Não, não coloquei. – Revirou os olhos. – Eu estava tentando preparar a Primeira Refeição. E deu nisto.
O doutor Manello cumprimentou o pai de Blay com um aperto de mãos e depois segurou o ombro de Lyric.
– Bem, não se preocupem. Vou cuidar bem de você.
Por algum motivo, aquela simples declaração aliada à absoluta confiança que o cara carregava como se fosse sua aura, fez com que Blay desviasse o olhar e piscasse rápido.
– Você está bem? – Qhuinn perguntou baixo.
Blay se controlou e ignorou o comentário enquanto a mãe era cuidadosamente colocada na maca e o doutor Manello fazia um exame rápido como se não conseguisse se conter.
– Quando você vai voltar para casa? – Qhuinn sussurrou.
Quando Blay não respondeu, o macho pressionou:
– Por favor... volte.
Blay se aproximou da maca.
– Mahmen, precisa das cobertas? Não? Ok, vou abrir a porta para vocês.
Com determinação, manteve a porta aberta e ficou de lado enquanto todos formavam uma fila e entravam no centro de treinamento. Depois de ter se certificado em fechar bem a porta atrás de si, juntou-se à marcha pelo corredor de concreto, passando pelas salas de aula e pelo refeitório que a nova turma de trainees usava.
Como tudo o mais em Caldwell, as aulas foram suspensas, não havia nenhum aluno por perto, todos permanecendo em suas casas.
Melhor assim, pois os gritos... Santa Virgem não mais Escriba, aqueles gritos.
– O que é isso? – a mãe de Blay perguntou. – Alguém está morrendo?
O doutor Manello meneou a cabeça. Embora o sistema de saúde dos vampiros não seguisse nenhuma Lei de Portabilidade e de Responsabilidade de Seguros de Saúde, o médico nunca falava dos seus pacientes, mesmo quando a informação fosse de um Irmão para outro Irmão – e Blay sempre admirara isso no homem. Na doutora Jane também. Inferno, naquela mansão todos tendiam a saber tudo sobre todos. Quando tudo estava bem? Tudo bem. Mas quando não estava?
A plateia amorosa e preocupada da mansão podia ser um tanto demais.
– Então, quando poderei ver os bebês? – O pai de Blay relanceou sobre o ombro na direção de Qhuinn. – Faz umas dez noites que não seguro meus netos nos braços. Isso é tempo demais. E sei que a grand-mahmen deles poderia se beneficiar com um pouco de alegria, concorda, meu amor?
Enquanto Blay refreava uma imprecação, fez questão de não olhar na direção de Qhuinn. Pelo menos sabia que poderia confiar no cara para ele se safar de...
– Com certeza. Mas podemos esperar até amanhã à noite? Porque eu adoraria levá-los até a casa de vocês para uma primeira visita.
Como é que é?, Blay pensou. Tá de brincadeira comigo?
Quando lançou um olhar fuzilante para o macho, a mãe de Blay encheu o silêncio com um arquejo de felicidade.
Virando-se na maca, ergueu o olhar para Qhuinn.
– Mesmo?
O Irmão ignorou propositadamente Blay enquanto todos entravam na sala de exames.
– Mesmo. Sei que queriam que fôssemos até lá e acho que agora seria ideal.
Inacreditável. I-na-cre-di-ta-vel-o-ca-ce-te.
Mas tinha que dar créditos ao cara pela boa jogada. Lyric vinha querendo cuidar dos bebês, e cozinhar e tirar fotos deles na sua casa já há algum tempo, apesar de nunca ter dito nada abertamente porque não queria ser insistente. Sua campanha fora muito mais sutil, nada além de comentários aqui a acolá a respeito de possíveis dormidas com eles, quando eles estivessem muito, muito mais crescidos, e sobre as visitas durante os festivais, quando eles estivessem muito, muito mais crescidos, e sobre noites de filmes quando eles estivessem muito, muito mais crescidos.
O desejo, no entanto, sempre estivera na voz dela.
Quando a mãe de Blay estendeu o braço e apertou o braço de Qhuinn, Assail escolheu esse instante para gritar de novo – que era, sabem, exatamente o que Blay estava fazendo em sua cabeça.
– Ok, vamos ver o que temos aqui.
Enquanto o doutor Manello falava, Blay ficou se perguntando a que diabos o médico se referia, quando se lembrou que, sim, de fato estavam na sala de exames. Depois de terem saído da estrada. No meio da pior nevasca noturna de dezembro de toda a história.
Puta que o pariu, o que mais queria era acertar a cabeça de Qhuinn com algum objeto. Um armário repleto de equipamentos médicos, ou quem sabe, aquela mesa logo ali.
– Vamos precisar de um raio X. E depois teremos que...
Enquanto o médico falava, o pai de Blay estava todo sério e concentrado, e Blay também queria estar assim. Em vez disso, esperou até que Qhuinn olhasse para ele.
E então movimentou os lábios: Corredor, agora.
Mensagem entregue, Blay se voltou para os pais:
– Só vamos sair um segundinho e já voltamos.
Odiou o modo como a mãe o fitou com aprovação, como se esperasse que o que quer que houvesse de errado fosse resolvido a tempo de a família formar um retrato perfeito de Normal Rockwell na noite seguinte.
Esse seria um presente que ela não receberia dele neste Natal.
No segundo em que Qhuinn se juntou a ele no corredor, Blay se esticou e fechou a porta atrás deles. E depois de verificar se não havia mais ninguém no corredor, ligou o aparador de grama.
– Tá de zoeira comigo, cacete! – disse num jorro. – Você não vai lá amanhã.
Qhuinn só deu de ombros.
– Seus pais querem ver...
– Pois é, aqueles dois bebês que você deixou bem claro que não são meus. Então, não, você não vai levar o seu filho e a sua filha para a casa dos meus pais, só para ter uma desculpa para me ver. Não vou permitir isso.
– Blay, você está levando isso tudo longe demais...
– Disse o babaca que quis botar uma bala na cabeça da mãe dos filhos dele. Enquanto ela estava diante dos berços deles. – Ergueu as mãos para o alto. – Qhuinn, você não pode ser assim tão envolvido em si mesmo.
O macho se inclinou para a frente.
– Não sei quantas vezes preciso dizer que sinto muito.
– Nem eu, mas desculpas não vão consertar isto.
Houve um instante de silêncio, então Qhuinn relaxou a postura para trás, com uma expressão remota tomando conta das suas feições.
– Então é isso – disse ele. – Está jogando todo o nosso relacionamento para o ar por causa de um comentário.
– Não foi um comentário. Foi uma revelação.
Uma que praticamente o matara bem onde estivera. Infernos, teria tido melhores chances de sobrevivência, caso Qhuinn tivesse atirado nele.
Qhuinn cruzou os braços diante do peito, de um modo que fez os bíceps ficarem tão protuberantes que forçavam as mangas daquela parca.
– Você se lembra... – O macho pigarreou. – Você se lembra lá de trás, há um milhão de anos, quando vinha para a minha casa depois que meu pai... Você sabe, depois que o meu pai acabava comigo?
Blay baixou o olhar para o piso de concreto entre eles.
– Qual das vezes? Houve tantas.
– Justo. Mas você sempre esteve lá por mim. Você entrava escondido, jogávamos Playstation e eu esfriava a cabeça. Você foi a minha salvação. O único motivo pelo qual estou vivo hoje. E pelo qual aquelas crianças existem.
Blay começou a balançar a cabeça.
– Não faça isso. Não use o passado para tentar fazer com que eu me sinta culpado.
– Você sempre me disse que o meu pai estava errado por me odiar. Disse que não entendia por que ele...
– Olha só, paguei meus pecados com você – Blay estrepitou. – Ok? Já paguei todos os meus pecados. Fui seu saco de pancada, seu Band-Aid, seu cobertorzinho de segurança. E quer saber por quê? Não por você ser tão especial. Era porque você era um vadio que eu não podia ter, e eu considerei que a sua promiscuidade significava que eu não bastava – e isso fez com que eu quisesse me provar pra você uma vez depois da outra. Mas não vou mais fazer isso. Você me afastou durante todo aquele tempo, enquanto fodia outras pessoas, mas eu vou deixar isso passar porque eu não tinha coragem de chegar junto de você e te dizer como eu me sentia na época. Mas quando você me afastou naquele quarto? Você sabia muito bem o quanto eu te amava. Não vou conseguir me recuperar disso...
– O que eu ia dizer – Qhuinn ladrou – era que você sempre me disse o quanto lamentava por ele não conseguir me perdoar por algo que eu não podia mudar...
– Isso mesmo, o seu DNA não é culpa sua. Que diabos isso tem a ver com qualquer coisa entre a gente? Está querendo dizer que não é responsável pelo que sai da sua boca? – Blay meneou a cabeça e começou a andar. – Ou melhor, que não é culpa sua que você me tirou das vidas daquelas crianças?
– Eu me convidei para ir para a casa dos seus pais amanhã à noite, lembra? Está claro que eu não estou te tirando das vidas deles. – Qhuinn ergueu o queixo. – O que eu quero dizer é que não entendo como alguém que defende a importância do perdão está se recusando a aceitar o meu pedido de desculpas.
Sem pensar a respeito, Blay enfiou a mão no casaco e pegou o maço de Dunhill. Quando acendeu um, murmurou:
– Sim, voltei a fumar. Não, isso não tem nada a ver com você. E quando eu estava falando do seu pai, era a respeito da cor dos seus olhos, pelo amor de Deus. Eu não estava pedindo que se afastasse do que pensava ser seus filhos. Aquilo era a minha vida, Qhuinn. Aquelas crianças... eram o meu futuro, o que restaria de mim depois que eu morresse e não estivesse mais aqui. Elas seriam... – Quando a voz dele se partiu de emoção, ele deu um trago. – Elas levariam adiante as tradições dos meus pais. Seriam marcos, a felicidade e uma completude que nem você consegue me dar. Isso não é nada comparado a um acidente genético que resultou em você ter um olho azul e o outro verde.
– Tanto faz, Blay – Qhuinn disse sombrio ao caminhar em círculos. – Este defeito foi a minha vida inteira, e você sabe disso. O meu defeito na casa dos meus pais foi toda a minha porra de existência. Eu fui afastado de tudo...
– Então tudo bem, sei como se sente.
Quando se encararam, Qhuinn balançou a cabeça.
– Você é tão ruim quanto o meu pai, sabia? É mesmo.
Blay apontou o cigarro aceso na direção do cara.
– Vai se foder. Por isso. Sério.
Qhuinn encarou através do ar tenso por um momento. Depois disse:
– O que está acontecendo aqui. Isto é, sério que você quer terminar? Está querendo voltar para o Saxton ou talvez transar com outro? Quer fazer do jeito que eu fazia? É por isso que você está agindo assim?
– O que eu estou fazendo... Espera aí, como se eu estivesse me aproveitando disso para ter uma saída? Acha mesmo que esta é uma chance para eu tomar uma decisão? Acha de verdade que eu estou jogando aqui? – Ele balançou a cabeça tantas vezes em descrença que chegou a ficar tonto. – E não. Não quero ser como você. Você e eu não somos iguais e nunca seremos.
– E é por isso que a gente dá certo. – De repente, a voz de Qhuinn ficou aguda. – Você é o meu lar, Blay. Sempre foi. Mesmo com Lyric e Rhamp na minha vida, fico perdido sem você... Sim, claro, fico puto no meio de uma conversa como esta, mas ainda sou macho o bastante pra admitir que não sou nada se você não estiver comigo. – Pigarreou. – E para a sua informação, vou brigar, por você, por nós, por isso vou te perguntar de novo. O que vai ser preciso? Sangue? Porque o que eu precisar fazer para te ter de volta, eu vou fazer.
Quando Assail soltou mais um grito, Blay fechou os olhos, com uma exaustão pesando sobre ele como uma mortalha.
– Sim, claro, tanto faz – murmurou. – Sangue. Vai ser preciso sangue. Agora, se me dá licença, vou ver como a minha mãe está.
– Amanhã à noite eu vou com as crianças para a casa dos seus pais.
– Eu não estarei lá.
– Essa é uma decisão sua. E vou respeitá-la. Mas eu falei sério. Não importa o que for preciso, eu vou te provar que te amo e que preciso de você e que te quero – e que aquelas crianças são suas.
Com isso, o Irmão se virou e se afastou pelo corredor de concreto, com a cabeça erguida, os ombros aprumados, os passos ritmados...
– Filho?
Blay se assustou e se virou de frente para o pai.
– Como ela está? Já fizeram o raio X?
– Ela está chamando por você. O doutor Manello disse que talvez tenham que operar.
Merda.
– Sim, claro. – Passou o braço ao redor dos ombros do pai. – Venha, vamos decidir o que precisa ser...
– Você e Qhuinn estão bem?
– Maravilha. Estamos ótimos – ele respondeu ao empurrar a porta da sala de exames. – Não tem com que se preocupar. Vamos nos concentrar na mamãe, está bem?
CONTINUA
CAPÍTULO 32
Enquanto a noite caía em Caldwell no dia seguinte, Blay tentou sair para a varanda de trás para fumar seu primeiro cigarro após ter acordado. O cenário estava perfeito. Tinha sua caneca YETI cheia de café da Dunkin’ Donuts, feito pela mãe que encomendara o pó pela Internet, e o maço de Dunhill – que precisava racionar porque só tinha mais seis – e vestia sua parca Patagonia que tinha mais plumas de ganso do que todos os travesseiros da casa juntos.
Isso mesmo, era um bom plano. Cafeína e nicotina eram essenciais numa missão quando não se conseguiu dormir por mais de quinze minutos diretos durante o dia e não se quer arrancar as cabeças de todos ao seu redor.
O problema? Quando ele tentou abrir a porta da varanda, teve que empurrar com toda a força com o ombro.
Em seguida foi atingido no rosto por golpes de neve.
Retraindo-se, ele imprecou e voltou a fechar a porta.
– Puta merda, o tempo está um...
O ruído que veio da cozinha foi alto e envolvia alguma panela de aço inoxidável ou talvez uma assadeira, a julgar pelo som de pratos de uma orquestra.
– Mãe? – ele a chamou.
Deixando de lado a arrancada química, disparou para a cozinha...
... e encontrou a mãe no chão de ladrilhos diante do fogão, o tornozelo virado num ângulo estranho, o pãozinho de noz-pecã que estivera colocando no forno também caído no chão, a assadeira na qual ele estivera acomodado cerca de um metro distante dela.
Blay largou o café e o maço de cigarros na bancada e se apressou para ajoelhar ao lado dela.
– Mahmen? Bateu a cabeça? O que aconteceu?
Lyric se sentou fazendo uma careta, apoiando o corpo nos cotovelos.
– Eu só queria colocar isto no forno antes de o seu pai descer para a Primeira Refeição.
– A cabeça, você a bateu ou não? – Ao afastar os cabelos dela, rezou para não encontrar sangue. – Quantos dedos você está vendo?
Ela empurrou a mão dele da frente.
– Blay, eu estou bem. Pelo amor de Deus, não bati a cabeça.
Ele se sentou. A fêmea vestia seus costumeiros jeans de mãe e uma blusa de gola role que a fazia parecer um cruzamento de Mamãe Noel e a senhora Taylor, personagem de Home Improvement. E ela parecia estar bem, seus olhos o acompanhavam, a coloração estava boa, o comportamento derivado do embaraço e não do trauma.
– Blay, eu só escorreguei no tapetinho. Estou bem.
– Que bom, porque assim posso brigar com você. Onde diabos está a sua bota? Por que ela não está no seu pé?
De repente, a mãe fingiu tontura, batendo os cílios e levantando as mãos adiante como se não estivesse enxergando.
– São dez dedos? Ou doze?
Quando ele a encarou, ela fez uma careta encabulada.
– Aquela bota atrapalha tanto... e a cozinha é apertada. Eu ia colocá-la de novo assim que tivesse feito os ovos.
– Você escorregou ou o tornozelo cedeu?
Quando ela não disse nada, Blay deduziu que devia ter sido a última opção e foi para perto do pé. No instante em que tentou tocar no chinelo dela, ela sibilou e empalideceu.
– Está tudo bem – disse com voz contraída.
Ele se concentrou nos lábios apertados dela e no modo como as mãos tremiam.
– Acho que torceu o tornozelo de novo. E talvez tenha fraturado alguma coisa, não sei...
– Vou ficar bem.
– Sabe, essas são as minhas três palavras menos favoritas. Qhuinn sempre as diz quando... – Ele se interrompeu, e ignorou propositadamente a maneira como sua mãe o fitava. – Consegue se desmaterializar? Porque tenho certeza de que a doutora Jane precisa dar uma olhada nisso aí. Não, Manny. Ele é o cara dos ossos.
– Ah, isso não será necessário.
– Porque não deixamos papai decidir. – Quando ela piscou, ele continuou sugestivamente: – Ou você poderia ser sensata e ir comigo sem reclamar.
A expressão de Lyric foi de aborrecimento, mas ele sabia que a convencera. Desde os ataques, o pai vinha se portando de modo superprotetor com a companheira. Ele parecia ficar histérico com as coisas mais ridículas – cortes de papel, cutículas levantadas, dedos do pé batidos – o que significou que quando Lyric escorregou nos degraus da frente da casa quando foi apanhar o jornal algumas noites atrás, o pobre quase perdera a cabeça.
E este machucado estava pior que o primeiro.
– Consegue se desmaterializar? – Blay perguntou.
– Acha mesmo que é necessário?
– Você mesma pode responder a essa pergunta. Quer tentar se levantar?
A mãe encarou o pé.
– Como eu queria ter colocado a maldita bota...
– Eu também.
Ela franziu o cenho.
– Como faço para chegar à clínica do centro de treinamento? Mesmo que eu consiga me desmaterializar, não conheço a localização exata.
– Podemos chegar até perto dela e pedir para irem nos buscar. – Blay se levantou e olhou para o teto. Ouvia os passos do pai no andar de cima, movendo-se de um lado a outro enquanto se vestia. – Acha que é melhor ou pior se formos sem que ele saiba?
– Podemos mandar uma mensagem para ele? Dizendo que vamos dar uma saidinha e que já voltamos. Diga a ele que... que eu fui fazer compras.
A mãe odiava mentir, mas odiava preocupar seu hellren ainda mais. E Blay tinha que apoiá-la neste caso. Seu pai teria um treco com o que aconteceu ali.
– Vamos embora. – Blay pegou o celular e começou a mandar uma mensagem para Jane. – Você sabe aquela quitanda na Rota 9? Aquela que fica num celeiro?
Só que, enquanto falava, tentou abrir a porta da varanda e se perguntou que diabos estivera pensando. Sua mãe precisava se desmaterializar até um lugar seco e aquecido com aquele seu tornozelo daquele jeito. Aquele celeiro não era aquecido e provavelmente estaria fechado. Era melhor que a maldita floresta, mas, convenhamos...
No que estivera pensando?
Abaixou o telefone com o texto escrito pela metade e fitou a mahmen. Ela fechara os olhos e voltara a deitar a cabeça no chão – e a mão estava sobre o abdômen, contraída.
A outra estava encostada no chão, tremendo e batendo as unhas como se ela estivesse sapateando.
– Você não vai conseguir se desmaterializar – ele disse mecanicamente. – De jeito nenhum.
– Claro que consigo.
Mas a negação dela não o convenceu.
E nessa hora seu pai apareceu na cozinha, a gravata meio feita ao redor do pescoço, os cabelos ainda úmidos do banho e penteados num estilo que o boneco Ken adoraria, cada mecha perfeitamente ajeitada e parecendo congelada no lugar.
–... vídeo conferência com os meus clientes e... Lyric! Ai, meu Deus, Lyric!
Enquanto o pai corria para perto da mãe, Blay olhou para a porta que dava para a garagem. Os pais começaram a discutir, mas ele os interrompeu:
– Pai, me faça feliz e me diga que seu carro tem tração nas quatro rodas.
De volta à mansão da Irmandade, Qhuinn estava fazendo algo inconcebível: estava arrumando uma mochila preta com mamadeiras, leite em pó e água filtrada. Fraldas. Lenços umedecidos. Pomada para assaduras. Chocalhos e chupetas.
Claro, arrumar uma mochila não era o problema. Normalmente a sua bagagem girava em torno de Smith & Wesson, Glocks ou Berettas, o tipo de coisa que vinha acompanhada de balas e visões noturnas, não por Pampers e Evenflo.
O outro motivo por aquilo ser estranho é ele estar arrumando a mala dos filhos para que eles saíssem da casa. Sem ele.
Eram tão pequenos. E ele não os queria mesmo mais ao redor daquela fêmea.
Recusava-se a se referir a Layla como mahmen deles, mesmo que apenas mentalmente.
Mas a situação era essa. Subira ao Santuário com Amalya, a directrix das Escolhidas, e ela o acompanhara pelo cenário bucólico, mostrando-lhe as piscinas refletoras e os templos, os dormitórios e os aposentos particulares da Virgem Escriba.
Onde Layla ficaria com os bebês.
Seria impossível discutir a respeito do arranjo. Aquele lugar era ainda mais seguro do que a mansão, pelo amor de Deus, e Amalya lhe garantira que as crianças seriam capazes de entrar e sair sem problemas.
E quando a pressionou, ela garantira que traria os bebês de volta pessoalmente. Se Layla causasse algum problema.
Uma batida suave à porta do quarto fez com que ele afastasse o olhar da mochila.
– Oi.
Beth entrou e parecia muito mais calma. Pensando bem, ela conseguira aquilo que quisera.
– Parece que deixou tudo pronto.
Ele baixou o olhar para o que havia separado.
– É.
– Tudo vai ficar bem, Qhuinn. Estou orgulhosa de você...
– Sem querer ofender, mas você vai ficar com o seu filho vinte e quatro horas por dia porque a pessoa com quem a teve não é um mentiroso, nem um traidor. Portanto, vai ter que me desculpar se a sua versão de “tudo bem” e a minha forem ligeiramente diferentes. – Ele se afastou do pé da cama. – Não tenho permissão para ter o meu “tudo bem”, que seria ter meus filhos neste quarto enquanto eu saio para lutar. O meu “tudo bem” não é estar no campo de batalha, defendendo a raça, com minha mente preocupada se Layla vai ou não devolvê-los quando deve fazer isso. E o meu “tudo bem” evidentemente não envolveria aquela fêmea ter qualquer tipo de contato com eles de novo. Não preciso que sinta orgulho de mim e não quero a sua preocupação dissimulada. Só o que preciso de você é que fique com eles enquanto eu saio da porra desta casa.
Beth cruzou os braços diante do corpo e lentamente balançou a cabeça.
– O que aconteceu com você?
As palavras foram ditas tão baixas que ficou claro que ela estava perguntando apenas para si própria.
– De verdade? Você está me perguntando isso mesmo?
Qhuinn lhe deu as costas e foi até os berços. Relanceou para Lyric e depois se concentrou em Rhamp, voltando a colocar a chupeta na boca dele.
– Seja corajoso, meu menino. – Qhuinn afagou a mecha de cabelos escuros. – Eu te vejo em vinte e quatro horas. Vai ser fácil, não vai?
Errado.
Era tão difícil sair dali. Seu peito estava em fogo com uma dor que ia fundo no seu DNA... Ainda mais quando seus olhos passaram por Lyric uma vez mais. Queria ir até perto dela, mas simplesmente não conseguia olhá-la no rosto.
Não poderia vê-lo agora.
E quando andou na direção de Beth, manteve os olhos para a frente. Não confiava em si para abrir a boca nem para apenas dar um tchau. Sem dúvida despejaria alguma coisa na Rainha, e isso não ajudaria a ninguém.
Apanhando as armas e a jaqueta de couro de uma cadeira, saiu do quarto e fechou a porta silenciosamente atrás de si. Não sabia exatamente quando Layla apareceria – depois do pôr do sol, claro, mas isso já acontecera há algum tempo. Ela devia estar para chegar a qualquer minuto...
– Pronto para a reunião?
Olhou por sobre o ombro. Z. estava saindo da sua suíte, e o irmão estava armado e pronto para o combate, com todo tipo de metal pendurado nele, os olhos amarelos estreitados e astutos.
A cicatriz no rosto, aquela que descia pela face e distorcia o lábio superior, fez com que Qhuinn pensasse no rosto fodido de Xcor.
– Temos uma reunião? – Qhuinn perguntou ao pescar o celular do bolso.
Ele estivera verificando a coisa com o único propósito de ver se Blay telefonara ou lhe mandara alguma mensagem. Uma foto. Um maldito emoji.
Nada. E ele não prestara atenção em nada mais.
Ora, ora. Mensagem no grupo convocando a Irmandade para o escritório de Wrath. Exatamente naquela hora.
– Acho que temos – murmurou ao voltar a guardar o aparelho e seguir Z.
Não houve nenhuma conversa entre eles a caminho do escritório, e estava tudo bem assim para Qhuinn. E quando entrou no escritório para a reunião, manteve a cabeça baixa e seguiu para o canto mais afastado da lareira. A última coisa de que precisava era reviver a merda colossal que a noite anterior havia sido. Todos conheciam os fatos, e na verdade lhe disseram o que pensavam enquanto estivera trancado na Tumba.
Nenhum motivo para que todos o culpassem pela tremenda diversão que tiveram.
E ainda assim, aquela coisa de descarregar uma arma dentro da casa ainda surtiria muitos comentários. Sempre haveria motivos para se lembrarem daquilo.
Ou talvez existisse uma porta número três, algo que, com sorte, não estaria relacionado a ele.
Wrath estava sentado atrás da escrivaninha ornamental, no trono que fora do pai dele por tantos anos. E Vishous estava do seu lado direito, com um daqueles seus cigarros aceso na mão enluvada, os olhos gélidos trafegando ao longo do grupo reunido. Butch estava no sofá com Rhage, aquela peça delicada de mobiliário francês parecendo estar muito acima da sua capacidade de peso. Z. assumira seu posto ao lado de Phury junto à estante de livros. E Rehv estava ali.
Quando John Matthew entrou, o cara olhou ao redor e, ao ver Qhuinn, se aproximou. Não sinalizou nada, apenas se recostou na parede e enfiou as mãos dentro dos bolsos da calça de couro.
Qhuinn relanceou para o amigo.
– Eu e você estamos juntos na ronda de hoje.
John assentiu e tirou as mãos dos bolsos.
Acho que não vamos a parte alguma.
– Não vão me deixar ir a campo?
Não, por causa da nevasca. Recorde de neve. Inédito nesta época do ano.
Qhuinn deixou a cabeça pender para trás, de modo que batesse no gesso da parede. Que maldita sorte a sua. Não haveria modo de ele ficar dentro da casa enquanto os filhos estivessem com aquela fêmea, sem que Blay estivesse conversando com ele, e seus irmãos ainda estivessem putos da vida pelo fato de Xcor ter fugido da Tumba.
Puta merda, ele pensou. Não estava numa prisão. Não teria que...
Wrath falou de seu posto no trono.
– Então, vamos acabar logo com isto.
Qhuinn cruzou os braços diante do peito e se preparou para mais uma rodada de quanto ele era um bosta.
– Sabemos onde Xcor está – o Rei anunciou. – E ele trará os Bastardos até mim.
No mesmo instante, a sala explodiu com discursos e imprecações, os irmãos batendo os coturnos no piso, todos de pé – e Qhuinn também pareceu surpreso até a alma. O macho estava sob custódia novamente? Alguém por certo teria lhe dito algo...
Lembrou-se da confusão que fizera na Tumba e concluiu... Não, a Irmandade estava basicamente de saco cheio dele e de Xcor no momento.
– Ele é meu! – Tohr exclamou acima da balbúrdia. – Sou eu quem vai matá-lo!
Isso era tremendamente discutível; mas Qhuinn manteve isso para si. Achado não é roubado, e coisa e tal.
Se chegasse ao filho da puta primeiro, era ele quem acabaria com o maldito e ao inferno com...
– Não, não vai – Wrath ladrou. – Ninguém vai matá-lo.
Conforme as palavras do Rei foram absorvidas, todos se calaram, e V. foi para trás de Tohr como se estivesse se preparando para contê-lo pelo pescoço.
Espere... O quê?, Qhuinn pensou.
– Vocês me entenderam – o Rei ordenou. – Ninguém vai matá-lo.
Em seguida, como se para fazer com que suas ordens chegassem aos maiores interessados, Wrath olhou primeiro para Tohr... E depois diretamente para o próprio Qhuinn.
CAPÍTULO 33
Na casa segura da Irmandade, Xcor estava no chuveiro, com o rosto voltado para o jato de água, o corpo recuperando as forças minuto a minuto. Assim que a noite caíra, deixara Layla adormecida na cama que partilharam e subira até a cozinha, onde encontrara diversas fontes de calorias e se pusera a consumi-las. Não lhe pareceu importante que os sabores não combinassem: bebeu suco de laranja com sorvete de menta e lascas de chocolate, chilli direto da lata sem se dar ao trabalho de esquentar, um filão de pão com uma barra de manteiga, ambos inteiros, e fatias de queijo e frios, além das duas pizzas que estavam no congelador.
Que ele tivera que assar, pois não conseguiria comê-las congeladas.
Teria que reabastecer a despensa, apesar de não saber como fazer isso. Nunca cuidara do dinheiro do grupo e, portanto não tinha acesso a nenhuma conta bancária nem a recursos financeiros. E já não era mais ladrão.
Throe sempre controlara os fundos. Dentre eles, era ele que poderia se apresentar melhor quando o contato com os humanos se fazia necessário...
Xcor sentiu a presença de Layla no momento em que ela abriu a porta do banheiro, e quando mudou de posição para olhar para ela, quase caiu de joelhos. Ela estava gloriosamente nua, as coxas, os seios de bicos rosados e o quadril adorável, as pernas longilíneas e o sexo perfeito, exposto para ele, e apenas para ele, ver.
Seu pau de pronto ficou ereto.
Mas ele o escondeu dela. Apesar de terem feito amor no decorrer do dia, ele encostou a extensão na barriga e a manteve ali com as duas mãos.
Ela caminhou silenciosamente pelo piso de mármore, abrindo a porta para se juntar a ele.
Os olhos dela se desviaram para onde as palmas dele estavam.
– Por que não se mostra para mim?
De fato, ele mantivera as roupas a noite inteira, abaixando a calça quando a penetrava, reajustando-as sobre o quadril quando a aninhava contra si depois.
– Xcor? – ela sussurrou enquanto o vapor a envolveu e a pele começou a reluzir com a umidade. – Por que não quer que eu o veja?
Meneando a cabeça, ele preferiu não falar. Era simplesmente difícil demais por em palavras o quanto era duro para ele deixar que ela o visse nu. Ela nunca pareceu se importar com seu defeito, nunca pareceu notá-lo, tampouco julgá-lo inferior por causa dele – ainda assim, as roupas eram uma máscara que ele preferia usar na presença dela. Fora diferente quando quisera repeli-la, quando procurou desafiá-la com a sua feiura na esperança de que ela lhe desse as costas e parasse de torturar a ambos. Mas agora...
Fora rejeitado a vida toda. Nada daquilo teria a menor importância, contudo, caso ela se afastasse também...
Layla se ajoelhou com a graciosidade do luar recaindo dos céus. E seu primeiro instinto foi o de ajudá-la a se levantar, pois não apreciava a ideia de ela ficar no piso duro. No entanto, quando ele se inclinou na direção dela, Layla o deteve.
Inclinou-se na direção das palmas ele.
Esticou a língua...
... e lentamente lambeu o dedo médio da mão direita dele.
A língua dela estava escorregadia por conta da água, e suave, macia como o veludo. E ele se recostou contra a parede do chuveiro.
Os olhos de Layla subiram pelo corpo dele enquanto repetia o movimento – e depois lhe sugou o dedo para dentro da boca. Girando a língua, mais quente agora, como o interior dela.
– Layla – implorou.
Um a um, ela lhe sugou os dedos, soltando a pegada de cima do sexo, deixando-o tão fraco que as mãos se afastaram, não por ele tê-la comandado a fazer tal, mas porque lhe faltavam forças para que os braços fizessem qualquer outra coisa.
Livre do escudo, o pau se projetou para longe do quadril, a água do chuveiro fazendo com que o mastro orgulhoso reluzisse. Deuses, ele queria que ela fizesse o que pretendia fazer, ansiava pela sensação dos lábios na cabeça, na extensão toda, queria a sucção e...
– Caralho – ele gemeu quando ela o capturou.
Ela não inseriu tudo o que ele tinha a oferecer. Concentrou-se na ponta, provocando-o, recuando, abocanhando um pouco mais – e bem quando ele achava que perderia a cabeça, ela esticou a língua e rodeou a ponta, lenta, ah, tão lentamente. E durante todo o tempo, os olhos verdes o fitaram, a água caindo por cima dela, escorrendo pelos mamilos, desaparecendo entre as pernas afastadas.
Xcor teve que se segurar em alguma coisa para continuar de pé, as palmas derrapando no vidro, mas encontrando algum tipo de apoio na parede de mármore.
– Ah, Deus, Layla... – Fechou os olhos. – É demais...
Mas ela não parou. Finalmente o sugou por inteiro, engolindo-o por completo apesar de ele provavelmente estar em sua garganta.
Ele teve que olhar. E no segundo em que viu os lábios dela se esticarem ao redor da sua espessura, começou a gozar.
– Eu... ah, cacete...
Mesmo quando ele tentou se afastar, para o caso de ela não saber o que estava acontecendo, ela não permitiu. Encontrou um ritmo na sucção, aceitando o orgasmo dele em sua boca, as mãos subindo pelas coxas para amparar as bolas.
Xcor acabou de bunda no chão. Literalmente.
Os músculos das coxas cederam, e ele só conseguiu se impedir de cair num amontoado, esmagando-a ao despencar. E ainda assim, ela continuou a lhe dar prazer, reposicionando-se com ele, fazendo com que ele chegasse a mais um orgasmo depois do primeiro, as pernas afastadas para acomodá-la, as mãos indo para os cabelos molhados dela, a cabeça e o pescoço se apertando no canto do box.
Quando finalmente terminou, ela se levantou e lambeu os lábios. Nesse meio tempo, só o que ele conseguiu fazer foi respirar e encará-la, com o crânio pendendo no alto da coluna, os braços largados de lado, o chuveiro despejando uma chuva quente como se ele fosse uma rocha numa floresta.
– Quero fazer o mesmo com você – ele disse numa voz gutural.
Ela se sentou sobre os calcanhares e sorriu.
– Quer?
Ele assentiu. Como um parvo.
– Você me parece um pouco cansado, guerreiro – murmurou. – Eu o exauri?
Xcor estava prestes a negar quando ela se inclinou para trás, acomodando os ombros na parede oposta, imitando-lhe a pose. Quando ela cerrou as pálpebras, ergueu os joelhos... e os afastou, dando-lhe uma vista e tanto.
– O que você faria comigo? – ela perguntou, sensual. – Você me beijaria aqui?
Ela arrastou a mão elegante para a lateral do pescoço. Ele assentiu quase imóvel, e ela sorriu.
– Aqui?
Agora as pontas dos dedos estavam na clavícula, e ele assentiu de novo.
– E quanto a... aqui?
Quando ela resvalou os mamilos, ele cerrou os molares com tanta força que sentiu um estalo.
– Bem aqui, guerreiro? Você me beijaria aqui?
Ela atiçou o próprio mamilo, beliscando-o de modo que acabou sibilando, e depois o esfregou como que para atenuar a sensação. E, então, a outra mão desceu pelo abdômen.
– Que tal... aqui? – ela sussurrou enquanto afagou o centro da sua fenda.
Um grunhido escapou dele, e Xcor disse num rompante.
– Isso. Exatamente aí.
– O que você faria com a sua boca? – A ponta de um dedo circundou o sexo por fora. – Ah, não... você usaria a língua, não usaria, guerreiro? A língua...
Ela arquejou ao se masturbar, os olhos grudados nele quando inclinou a cabeça para trás, as sensações evidentemente levando a melhor sobre ela.
– Você deveria colocar a sua língua aqui...
Xcor se projetou sobre ela, movendo-se tão rapidamente que nem estava ciente da decisão de atacá-la. E foi bruto, afastando as mãos dela no caminho para selar a boca no sexo dela, tomando o que mais queria, aquilo com que ela o provocara.
Agora era ela quem abria os braços, tentando se manter em alguma forma de equilíbrio. Mas ele não aceitaria nada disso. Deitou-a no chão de azulejos, espalmou as mãos nas coxas dela, abrindo-a para inserir a língua, consumindo-a.
Ela gozou com tudo contra o rosto dele, as mãos se enterrando nos cabelos molhados dele, puxando até provocar dor. Não que ele desse a mínima. O importante era entrar nela, fazer com que ela dissesse seu nome, marcando-a com seus lábios e língua.
Isso não bastava.
Mesmo enquanto o clímax a assolava e ela se arqueava para longe dos azulejos, os ombros se projetando para trás, os seios empinando, a água na pele dela fazendo com que as carnes brilhassem na luz fraca, ele não tinha o bastante.
Xcor montou nela, e empurrou o pau com força, os dedos cravando na bacia dela, prendendo-a enquanto começava a bombear. Agora os seios dela se moviam para este e para aquele lado, e os dentes inferiores se chocaram com os superiores, e os braços se debatiam. Mas os olhos dela eram como fogo quando o animal dentro dele subjugou o animal dentro dela.
Ele se afastou no último segundo, elevando-se sobre ela, os ombros bloqueando o jato de água. Agarrando a ereção, foi ainda mais brutal consigo do que fora com ela, puxando o sexo para gozar uma vez mais.
De modo a cobri-la com seu sêmen.
Era a marca de um macho vinculado, uma prática feita a fim de que qualquer outro macho na presença dela estivesse absolutamente ciente de que era melhor tomar cuidado caso se aproximasse dela.
Ela pertencia a outro.
Não como uma propriedade. Mas como algo infinitamente mais precioso para que os outros tentassem se aproveitar.
Enquanto Xcor terminava de fazer o que querias com ela, a água do chuveiro começava a esfriar – não que Layla se importasse. Tinha seu guerreiro entre as pernas, e ele fazia o que um macho fazia quando clamava uma fêmea, um instinto antigo nascido na espécie para garantir sua sobrevivência. Era selvagem e era belo, era primitivo e, ainda assim, muito bem recebido no mundo moderno.
Pelo menos no seu mundo moderno.
Quando, por fim, ele desabou em cima dela, ela envolveu os ombros largos escorregadios e fechou os olhos com um sorriso.
– Eu peso demais – ele murmurou junto ao seu pescoço.
Antes que pudesse detê-lo, dizendo que não se importava que seu cóccix estivesse doendo ou que suspeitava que teria alguns hematomas num futuro próximo, ele a suspendia e se levantava, segurando-a nos braços como se ela fosse de vidro.
Do lado de fora do chuveiro, ele pegou uma toalha macia e a enrolou nela. Depois pegou uma segunda e enxugou-lhe o rosto antes de se postar atrás dela. Com apertos suaves, passou a toalha pela extensão dos cabelos, enrolando as pontas para tirar boa parte da água.
O tempo inteiro, ela o observou pelo espelho, memorizando detalhes da expressão dele, do corpo, dos cabelos ainda molhados, de toda a força controlada. O rosto era-lhe especialmente querido: os planos e os ângulos impetuosos se suavizaram – e ela teve a impressão de que ele não gostaria que ela visse essa sua vulnerabilidade.
– Estará segura esta noite? – ele disse numa voz baixa. – Quando for para aquela casa? E depois para o Santuário?
– Sim. Eu te prometo. Eles não irão me machucar.
– E ninguém mais vai subir até lá, certo? Ninguém pode chegar até você?
– Ninguém, além das Escolhidas, tem acesso. Não sei bem como funciona, mas sempre foi assim. Somente minhas irmãs e o Primale têm permissão para ir e vir à vontade.
– Bom. Isso é muito bom.
– Para onde você vai?
Enquanto aguardava pela resposta dele, seu coração batia mais forte porque ela odiou a ideia de ele estar em Caldwell, sozinho – e também porque odiava a passagem da noite. Assim que ele encontrasse seus companheiros, iria embora para longe dela.
Quando Xcor não respondeu, o silêncio entre eles se tornou palpável.
– Então, vou ficar lá durante o dia também. – Ela lhe disse isso apesar de já ter lhe contado seus planos. – Mas, ao anoitecer amanhã, voltarei para cá.
– E eu estarei aqui para recebê-la.
Quando ela exalou aliviada, Xcor deixou a toalha de lado e apanhou a escova. Começando pelas pontas, continuou a cuidar dos cabelos dela, cuidadosamente desfazendo os nós.
– Vou sentir a sua falta – ela sussurrou para a cabeça inclinada dele.
Parecia totalmente incongruente que um macho tão endurecido pela guerra cuidasse dela assim, com aquela escova pequena demais para as suas mãos, os ombros tão largos atrás dela, o rosto enrijecido estampando uma expressão tão gentil.
– É apenas por uma noite e um dia. – Ele passou para o alto da cabeça dela, parecendo enfeitiçado pelo modo como as cerdas negras se emaranhavam aos fios dourados. – Voltaremos para cá antes de nos darmos conta disso.
Layla assentiu apenas porque pressentiu que seu equilíbrio emocional era de vital importância para ele – e queria fingir que estava bem para o bem dele. Mas as vinte e quatro horas de separação não era o que ocupava a sua mente. Aquilo que duraria pelo resto dos seus dias estava ali.
Fechando os olhos, tentou não pensar nisso. Seu coração acabara de ser acalentado. Não havia motivos para retornar à tristeza.
– Eu te amo – ela disse.
Xcor parou, os olhos disparando para os dela no reflexo do espelho.
– O quê?
Ela se virou para ficar de frente para ele. Santa Virgem Escriba, jamais se cansaria do rosto dele, do cheiro dele, do corpo dele.
Elevando-se nas pontas dos dedos, passou os braços ao redor do pescoço dele, e quando os seios se encontraram com o peito, ela sentiu um calor ora conhecido se formando entre as coxas.
– Eu te amo – ela repetiu.
As pálpebras dela abaixaram e ele pareceu oscilar.
Mas, em seguida, ele soltou as mãos dela e abaixou-lhe os braços.
– Shhh... – Beijou-a uma vez, e depois de novo. – Eu tenho que ir, e você também.
CAPÍTULO 34
Tohr disse a si mesmo, enquanto permanecia de pé no escritório de Wrath e ouvia a todos os insultos contra Xcor, que manteria a calma. Simplesmente revelaria no rosto toda variação de expressão do tipo “tudo bem, chefe”, e assentiria nas horas certas, e talvez até desse de ombros, uma ou duas vezes.
Como se Wrath deixar um criminoso livre depois de ter beijado o maldito anel real não significasse absolutamente porra nenhuma para ele. Como se isso acontecesse a toda hora. Sem problemas.
Ah, sim, claro, e trazer o Bando de Bastardos para fazer a mesma coisa era uma ideia perfeitamente sensata. Sim, um a um, pois isso realmente minimizaria os riscos.
Porque Xcor e seus garotos seriam incapazes de pensar num ataque coordenado.
Na-na-ni-na-não. Por que fariam algo assim?
–... todos, e quero dizer todos mesmo – Wrath voltou a cabeça na direção de Tohr de novo e depois girou aqueles óculos escuros ao redor até Qhuinn – estejam a bordo nisto. Depois dos juramentos, eles partirão para o Antigo País e não teremos mais nenhum assunto com eles.
Na verdade, Tohr pensou, talvez devesse simplesmente morder o cano de uma pistola agora mesmo. Muito mais eficiente o que esperar que seu cérebro explodisse com essa solução que tinha estampada sobre ela toda: IDEIA IDIOOOOTA.
Quando Wrath se calou, houve um silêncio demorado no escritório – o que significava que havia certa quantidade de pessoas ainda convictas das próprias ideias –, e Tohr relanceou para Qhuinn. Os olhos do irmão estavam concentrados no chão como se estivesse avaliando a integridade física dos cadarços dos seus coturnos.
Tohr voltou a olhar na direção de Wrath. O Rei estava sério pra cacete em relação a esse plano idiota dele, com o maxilar travado e toda aquela postura de “nem pense nisso”.
E por mais que o resto dos irmãos não gostasse daquilo, acatariam aquela merda, não por serem fracos, mas porque sabiam que Wrath não cederia – e eles levavam muito a sério suas funções de guarda-costas.
Portanto, fariam o melhor para manter aquele macho vivo.
Mesmo quando ele fosse a uma casa segura esperando que o Bando de Bastardos se apoiasse sobre um joelho como um punhado de noivos humanos.
A questão era que juramentos feitos por machos sem honra não passaram de um tremendo desperdício de sílabas.
– Bom – Wrath murmurou. – Estou contente por todos me apoiarem nisso.
Um punhado de irmãos tossiu, e alguns pés se remexeram. Vishous acendeu outro cigarro, e Butch pegou aquele imenso Jesus que sempre trazia consigo, esfregando o símbolo de fé entre o indicador e polegar. Como se estivesse rezando mentalmente.
Cara esperto.
Em seguida, como se tudo estivesse bem, Wrath passou a tratar de assuntos rotineiros, falando sobre a rotação dos turnos, quando o próximo pedido de armas seria feito, e como o programa de treinamento vinha prosseguindo.
– Agora, em relação a esta nevasca. – Wrath meneou a cabeça. – A coisa está feia lá fora. Vou suspender esta noite. Dia de brincar na neve, babacas.
Houve um murmúrio e concordância. E logo foram dispensados.
Tohr queria ser o primeiro a sair do escritório, a raiva esganava-o, mas ele se conteve, ficando no meio do grupo, avançando do jeito que sempre fazia. Não conversou porque não confiava em si mesmo para deixar que a boca falasse, embora tentasse aparentar que estava pouco se lixando com o que os outros estavam planejando.
Torneio de bilhar. Pôquer. Bebida. Sundae bar MYO.
Este último mencionado por Rhage.
Tohr esperou... até finalmente estar de frente aquilo que esperava.
Qhuinn saiu do escritório por último e parecia um lutador profissional à procura de um ringue. Quando ele estava passando, Tohr se colocou no caminho do cara de forma que os ombros se chocaram.
Quando Qhuinn olhou para ele, Tohr encarou os olhos despareados com firmeza. E depois, num tom suave, disse:
– Garagem. Dez minutos.
Qhuinn pareceu surpreso, as sobrancelhas se erguendo. Mas ele se recuperou rápido.
O assentimento do irmão foi quase imperceptível.
Depois do qual seguiram para direções opostas.
No fim do corredor de toda aquela alegria acontecendo no escritório, Trez despertou em seu quarto e sabia que não deveria se mover rapidamente, tampouco se alegrar com o fato de o estômago finalmente parecer navegar mares tranquilos. O verdadeiro teste viria quando ele tentasse se sentar, e depois de ter passado umas boas doze horas deitado de costas, sentindo-se um atropelado por um caminhão, não estava com muita pressa de provocar a sorte, tentando ficar na vertical.
Mas não poderia ficar assim para sempre.
Enquanto erguia lentamente o tronco do colchão, procurou não se concentrar demais em cada recôndito do seu corpo e cabeça. Lendo folhas de chá em relação a como a situação prosseguiria dali...
– Mas que porra!
Trez se retraiu tão rapidamente que bateu o crânio na cabeceira e de pronto teve um flashback de como havia sido o dia anterior.
Havia alguém sentado ali no quarto, na cadeira mais distante...
– Tá de zoeira? – Exalou um xingamento e esfregou a cabeça. – Fala sério! Que brincadeira é essa?
Do lado oposto, uma espécie de espantalho mal feito vestindo calças jeans, camiseta do Nirvana e a camisa de flanela daquele anjo, e um par de Nikes que fora preenchido sabe lá Deus com o quê. A cabeça do “Lassiter” era feito de uma sacola de nylon que tivera batatas dentro, e os cabelos loiros e pretos eram uma coleção de meias sociais de cano alto – provavelmente de Butch – e panos de limpeza Swiffer que foram mantidos no lugar por alfinetes.
Ao redor do pescoço? Uma placa escrita a mão com os dizeres: o chefe esteve aqui.
– Filho da puta.
Passando as pernas para a lateral da cama, Trez deu um tempo para que o coração voltasse a um ritmo abaixo de duzentas batidas por minuto. A boa notícia era que a enxaqueca parecia estar bem longe no seu espelho retrovisor, a bigorna que estivera pendurada do lado direito da cabeça desaparecera e seu estômago roncava de fome.
Depois de uma chuveirada, uma barbeada e roupas limpas, ele estava pronto para fazer o que tinha que ser feito, ou seja, ir para a shAdoWs e ver como estavam as coisas.
Em vez disso, pegou o celular e ligou para o irmão. iAm atendeu ao primeiro toque.
– Como está se sentindo? – o cara perguntou.
– Estou vivo.
– Isso é bom.
– E então?
– Então o quê? – Quando Trez não preencheu as lacunas, iAm começou a murmurar palavras começadas com F. – Trez, sério, deixa isso de lado, ok?
– Isso não vai rolar. Pode, por favor, contratar aquela fêmea?
Houve um período longo de silêncio – o qual Trez interpretou como sendo iAm tentando se apegar à esperança de que ele daria voz à razão. Mas Trez não estava nem aí. Esperaria sem se preocupar e acabaria recebendo aquilo que queria, e Therese teria o seu emprego no Sal’s.
– Tá bom – iAm disse bravo. – Dou o emprego a ela. Tá feliz agora?
Não, nem perto disso.
– Uh-hum. Obrigado, cara. Você está fazendo a coisa certa.
– Será? Não sei bem se fazer com que entre em contato com essa fêmea vai acabar ajudando a qualquer um de nós.
Trez fechou os olhos e se lembrou da sensação dos lábios de Therese, do sabor dela, da fragrância trafegando pelo ar frio até seu nariz... sua alma.
Uma pontada de náusea tirou tudo isso da sua mente.
– Vai ficar tudo bem. Não vou incomodá-la.
– Uh-hum. Tá.
Depois que Trez desligou, lançou um olhar bravo para a efígie do anjo ali no canto.
– Lassiter – disse em voz alta. – Apareça, sei que está em algum lugar por aqui.
Esperou, já imaginando que o anjo passaria pela porta. Saltasse para fora do closet. Deslizasse por debaixo da cama. O cara estava sempre por perto, quer você quisesse isso ou não.
Mas ele deveria ter desconfiado. Dez minutos e absolutamente nenhum anjo depois, pareceu-lhe justo que da única vez em que queria ver o cara, o maldito desse uma de fantasma.
Vestindo uma jaqueta limpa, Trez saiu do quarto e pegou o celular de novo ao seguir para a escadaria. Enviou uma mensagem de texto para Xhex enquanto descia e se surpreendeu quando ouviu o toque de resposta em seguida. Normalmente, ela estaria verificando as bebidas do estoque no...
Ah. Entendido. Nevasca. Boate fechada, ninguém indo a parte alguma da cidade.
Ao chegar ao átrio, atravessou o desenho da árvore em flor do mosaico e foi direto para a sala de bilhar – onde uns três quartos da Irmandade estava reunida ao redor de tacos de sinuca com bebidas em mãos.
Butch se aproximou dele, o antigo policial humano elegante como de costume.
– Vai se juntar a nós? Quer uma bebida?
Antes que pudesse responder, Xhex apareceu de trás do bar.
– Pois é, eu resolvi fechar a boate. Os seguranças estavam me ligando, dizendo que não conseguiam atravessar a cidade, os barmen também. Nenhuma das meninas. A única coisa que apareceu foi a entrega de bebida, e o DJ, apesar de esse já estar lá porque estava bêbado demais na noite passada e acabou indo dormir nos fundos.
Trez agradeceu, mas negou a oferta de Butch e se virou para Xhex.
– Acho que nunca ficamos fechados numa quinta-feira.
– As primeiras vezes acontecem quando menos se espera.
– A neve está ruim assim?
– Veja por si só.
Quando ela apontou para uma das oito janelas de pé direito inteiro da sala, Trez usou isso como desculpa para se distanciar da conversa e dar início à sua saída à francesa da casa e da mansão como um todo. Não que não amasse os Irmãos. Era que, a esta altura do seu estado traumático pós-enxaqueca, toda aquela conversa e aquelas risadas, as batidas das bolas, J. Cole e Kendrick Lamar, tudo isso estava acima dos seus limites.
Escolhendo a janela que estava mais próxima do arco de entrada da sala, afastou a cortina e olhou para o pátio – ou o pouco que consiga enxergar dele. A neve caía forte que ele mal enxergava a um metro para fora da mansão e, evidentemente, estivera nevando há algum tempo assim. Sob as luzes de segurança, parecia que um toldo branco fora lançado sobre tudo, os contornos do telhado do Buraco, os grandes pinheiros da montanha, os carros estacionados do outro lado da fonte, cobertos por uns trinta centímetros daquilo que caíra dos céus...
A princípio, a figura não foi notada, as vestes e capuz brancos indistinguíveis do cenário imaculado. Mas ele logo reconheceu um buraco no padrão dos flocos de neve, a cascata rodopiante se movendo ao redor da silhueta.
Que o encarava.
No jorro frio, todo o sangue desapareceu da sua cabeça.
– Selena? – ele sussurrou. – É...
– Estamos na época errada do ano para este tipo de tempestade – Xhex murmurou ao seu lado.
Trez se sobressaltou tanto que quase chegou ao teto. E, na mesma hora, olhou de novo através da vidraça.
A figura havia sumido.
– Trez?
Nesse instante, a campainha tocou. Trez se virou e disparou para fora da sala de bilhar, chegando à porta pesada, escancarando-a...
A Escolhida Layla recuou, o capuz branco que colocara na cabeça escorregando para trás dos cabelos loiros, flocos de neve caindo das vestes brancas até os pés.
– Tenho permissão para estar aqui – ela disse ao levantar as palmas como se ele estivesse lhe apontando uma pistola. – Tenho permissão. Pergunte ao Rei.
Trez relaxou dentro da própria pele e fechou os olhos por um segundo.
– Não, sim, não... Claro. Entre.
Ao dar passagem, ele não sabia por que ela estava tão na defensiva – ou por que ela estivera fora numa noite como aquela. Mas não ficou pensando nisso.
Estava distraído um tantinho demais tentando se entender com o que vira do lado de fora... a forma como imediatamente presumira que se tratasse da sua Selena, que ela tivesse ido vê-lo, ressurgindo dos mortos.
O que era loucura. Uma loucura total.
Não sei bem se fazer com que entre em contato com essa fêmea vai acabar ajudando a qualquer um de nós.
– Ah, cala a boca... – murmurou.
– O que disse? – a Escolhida Layla perguntou.
– Merda, desculpa. – Esfregou o rosto. – Só estou falando comigo mesmo.
É, porque isso não era o mesmo que ficar louco nem nada assim. Nada mesmo. Pode crer.
Pelo amor de Deus, ele precisa dar um jeito em si mesmo antes que acabasse enlouquecendo de vez.
CAPÍTULO 35
Quando Layla entrou na mansão e olhou ao redor do átrio, maravilhou-se com a rapidez com o que fora seu lar agora lhe parecia algo tão desconhecido: depois de todo o tempo passado na propriedade da Irmandade, conhecia todos seus cômodos e andares, as pessoas e seus ritmos, tão bem quanto conhecia os do Santuário. Agora, contudo, quando Trez lhe deu entrada e ela olhou para o átrio resplandecente com suas colunas multicoloridas, para a lareira estrepitante e as arandelas de cristal, parecia que ela entrava num museu ou num palácio que nunca visitara antes.
Pensando bem, lar implica um lugar ao qual se é bem-vindo. E ela já não o era ali.
– Ei! Você chegou!
Enquanto Beth saía da sala de jantar e lhe dava um abraço acolhedor, Layla ficou muito feliz em ver um rosto sorridente.
– Você viu as fotos que mandei? – a Rainha perguntou.
– Eu não estava com o meu celular, mas mal posso esperar para vê-las.
O que Layla queria mesmo dizer é que mal podia esperar para ver os filhos. Não ligava para fotos, queria a coisa de verdade e já – só que não desejava ser rude, e certamente não seguiria até o segundo andar sem ser convidada. Só Deus sabia onde Qhuinn poderia estar...
Seguindo a deixa, como se o Universo estivesse determinado a colocá-los no mesmo espaço, Qhuinn apareceu no alto da escadaria. E Santa Virgem Escriba, ele estava vestido para a guerra, o corpo envolto em couro negro, as armas presas ao peito e ao quadril, o corpo delgado um estudo de agressividade.
Instantaneamente, ele olhou para ela, os olhos estreitados como se avaliasse um alvo. Logo ele desceu os degraus acarpetados em vermelho como se estivesse numa missão.
Beth de pronto enrijeceu, e Layla recuou um passo, para o caso de ele atacar, as costas já batendo na madeira entalhada da porta de entrada. Mas em vez de correr até ela, Qhuinn continuou ao entrar na sala de jantar, com aqueles seus coturnos surrando o piso.
Mesmo depois de ele ter partido, foi como se houvesse um rastro de fogo nas suas passadas, a fúria pairando como um cheiro muito ruim.
Isso não seria bom para os bebês, Layla pensou ao levar a mão trêmula para os cabelos. Os dois teriam que fazer algo a respeito da ruptura do relacionamento entre eles, mas ela temia e tinha a sensação de que, apesar de gostar de imaginá-lo se suavizando, ele jamais faria isso.
– Venha – Beth disse baixo. – Vamos subir.
Layla assentiu e seguiu a Rainha. O fato de estar sendo acompanhada até o segundo andar não lhe passou despercebido, mas a cada degrau que ela subia, seu coração acelerava de antecipação, pois estava prestes a ver Rhamp e Lyric. No entanto, também pesou de tristeza. Quando um sentimento de alienação a acompanhou, ela refletiu numa outra época em sua vida que terminara quase antes de ter começado: não percebera que, mesmo em meio à culpa e à ansiedade em relação a Xcor, fora feliz com seus filhos ali – bem como tivera expectativas de criá-los com Nalla, L.W. e Bitty.
E agora tudo isso não existia mais.
Mas, lembrou-se, o que lhe restava em que se apegar era o fato de que, ao menos, poderia ver seus filhos. Essa não fora uma conclusão certa antes da decisão de Wrath.
Quando chegaram ao alto, Layla perdeu o ritmo ao ver as portas fechadas do escritório de Wrath e teve que se recompor a fim de prosseguir para o corredor das estátuas. No meio do corredor, hesitou novamente, mas, desta vez, foi para que Beth abrisse a porta do quarto que Layla pensara como sendo seu. E na fração de segundo que isso demorou, ela percebeu que no chão havia um tecido dobrado com manchas de tinta junto a algumas latas, um balde de gesso, e algumas brochas e pincéis. Seu estômago se contraiu ao deduzir o motivo de tudo isso estar ali.
Os buracos de bala na parede.
Mas logo a porta estava livre e ela correu para junto dos berços.
– Meus amores! Meus amores! – Com os olhos rasos de lágrimas, ela não sabia em quem se concentrar primeiro, a cabeça se virando de um lado a outro. – Mahmen está aqui!
Uma parte paranoica sua estava preocupada que talvez eles já tivessem se esquecido dela. Ou que talvez estivessem bravos, mesmo tão pequenos, acreditando que ela os abandonara deliberadamente, coisa que, definitivamente, ela não fizera. No entanto, não teve com que se preocupar. Ante o som da sua voz, os dois pares e olhos se abriram e os bracinhos começaram a girar. Inclinando-se para baixo, segurou os cabelos e deixou que seu peso cascateasse ao redor de Lyric primeiro, depois em volta de Rhamp.
Enquanto os pequenos balbuciaram incoerências e reagiram ao seu cheiro e à sua vez, ela sentiu uma alegria atravessá-la, o peito se inflando de amor, todas as preocupações brevemente cedendo lugar à felicidade que não podia ser ofuscada por nada no mundo.
– Eles estão tão felizes em ver a mahmen deles.
Layla olhou por sobre o ombro para a voz.
– Cormia!
Estava de fato muito feliz em ver a outra Escolhida, e as duas se abraçaram com força. Quando se afastaram, Beth disse:
– Temos tudo pronto no Santuário.
Cormia assentiu.
– Acabei de voltar de lá, pois fui levar suprimentos para os aposentos privativos, acredito que encontrará tudo de que precisar. Fiquei pensando se não gostaria que eu a ajudasse a levá-los para lá, assim não terá que se preocupar em fazer duas viagens?
– Ah, isso seria maravilhoso. Obrigada. – Layla cedeu ao impulso de alisar as vestes brancas, sua dependência de gentileza das outras fêmeas emocionando-a. – Eu... Hum, estou muito grata pela sua ajuda. Talvez queira levar Rhamp?
– Com certeza!
Enquanto Cormia pegava seu filho, Layla apanhava Lyric e segurava o calor vital da menina junto ao coração.
– Vamos?
Pouco antes de se desmaterializar com a outra Escolhida, relanceou para o canto do quarto... para os buracos de bala tão próximos ao teto. Podia apostar que eles teriam sumido quando ela voltasse dali a vinte e quatro horas.
Entretanto, eles não seriam esquecidos.
Fechando os olhos, tentou se lembrar da última vez em que fora ao Santuário. Ah, sim, verdade.
Fora um mês atrás... Quando descobrira quem era o pai de Xcor.
E ela também estava com o cheiro dele.
Enquanto marchava através da sala de jantar, Qhuinn estava furioso, mas nem um pouco surpreso: Wrath dera passe livre a Xcor, e Layla estivera no mundo exterior por uns vinte minutos, então, claro que o casal se encontrara. Devem ter transado o dia inteiro.
Nesse meio tempo, os filhos dela estavam sem a mãe.
– Espero que tenha se divertido, meu bem – murmurou ao disparar adiante.
A porta para a garagem estava nos fundos da casa, do lado oposto do quartinho de casacos, e ele teve que se desviar dos doggens ao longo da cozinha para chegar até lá. Estava na metade do caminho quando, ora vejam, Tohr desceu pela escada dos funcionários.
Nenhum deles fez contato visual. Simplesmente seguiram em frente, em fila ao entrarem no quartinho repleto de casacos sobressalentes, botas de neve, chapéus e luvas. Do outro lado, Tohr abriu a porta para a garagem sem calefação que ficava depois do quartinho, e os fechou ali.
O ar estava frio e seco e cheirava vagamente a fertilizante e gasolina. Quando as luzes acionadas por movimentos se acenderam, um estacionamento perfeitamente limpo de piso de concreto surgiu, junto com tanques de semente para passarinhos e sal em pedra perfilados, cortadores de grama estacionados em fila, mangueiras, pás penduradas. Mais no alto, vigas feitas de madeira antiga, tão resistentes quanto a montanha na qual a casa fora construída e, do lado oposto, dezesseis caixões estavam empilhados um ao lado do outro, como se não passassem de baús de mudança da U-Haul.
O fato de Tohr ter andado até lá e parado junto a eles pareceu adequado.
Quando o irmão falou, sua voz saiu baixa, mas profunda, como se surgisse do Inferno.
– Não tenho a mínima intenção de deixar isso de lado.
Não havia motivo para definir isso, havia.
Qhuinn balançou a cabeça lentamente.
– Nem eu.
– Não sei quando foi que Wrath se transformou num maldito millenial. – Tohr começou a andar de um lado para o outro. – Mas talvez ele devesse descer daquele trono e começar a trocar Snapchats sobre como todos precisam perdoar e seguir em frente. Botar uma maldita carinha de coelho na foto dele e fazer uma meditação guiada para a unidade. Isto é loucura.
O irmão parou e pôs a mão sobre um dos caixões, o maxilar cerrando com força, formando uma cova na bochecha.
Tohr meneou a cabeça.
– Às vezes temos que tomar conta do Rei mesmo quando ele não quer que você faça isso.
– Verdade.
– Às vezes coisas tem que ser resolvidas por mãos diferentes.
– Concordo cem por cento, porra.
Os olhos azuis marinhos de Tohr olharam para ele.
– O campo de batalha é um lugar muito perigoso.
Qhuinn flexionou as mãos, fechando os punhos.
– As pessoas se machucam o tempo todo.
– Redutores. Humanos. Eles conseguem provocar muitos danos mesmo em guerreiros muito experientes.
Enquanto Qhuinn assentia, reconheciam que por mais que se aproximassem por perspectivas completamente diferentes, certamente estavam chegando ao mesmo maldito lugar. Xcor morreria lá fora, enquanto supostamente estivesse procurando pelos seus rapazes. Quer pela bala de Qhuinn ou de Tohr, o maldito morreria.
– Então esta é uma corrida? – Qhuinn interveio. – Do tipo, o primeiro que pegar o maldito recebe o prêmio de matá-lo?
– Não. Trabalharemos juntos e isso vai ficar entre nós. Quem quer que o apanhe, o apresentará como uma refeição a ser partilhada.
Enquanto Tohr mostrava a palma, Qhuinn a segurou sem hesitação.
– Fechado.
O outro irmão assentiu quando soltaram as mãos e abaixaram os braços.
– Vamos, então – disse Tohr. – Ele estará procurando pelos lutadores apesar do tempo ruim porque vai querer juntar as tropas o quanto antes. Nós o encontraremos em campo em algum lugar esta noite.
Com um plano determinado, os dois seguiram para o quartinho dos casacos para se vestirem com parcas brancas. Depois saíram da mansão pela porta lateral que dava para o jardim de trás. Ou tentaram. No segundo em que abriram a porta, os dois foram estapeados por granizo e neve que fariam mortais menores procurar o calor das lareiras e de chocolate quente. Mas o conforto que se fodesse.
Cuidariam daquela situação, e a solução seria um segredo deles.
Ninguém tinha que saber porra nenhuma a esse respeito.
CAPÍTULO 36
Xcor esperou até sentir que Layla havia se desmaterializado completamente para longe do rancho, e depois se envolveu numa missão na pequena casinha, rapidamente vasculhando todos os armários e gavetas e possíveis esconderijos nos quartos. Sua pressuposição era a de que se os Irmãos se hospedassem ali, manteriam armas onde dormiam – mas, no fim, não encontrou nada.
Frustrante.
Todavia, encontrou roupas adequadas para sair. Havia um armário de casacos no caminho para a porta da garagem e, dentro dele, uma parca e calças para neve que eram grandes o bastante para ele, bem como luvas de esqui e um gorro. Infelizmente, todas as peças eram pretas e, na neve, fariam com que ele se sobressaísse – mas como a cavalo dado não se olham os dentes...
Havia, contudo, algo mais que compensava aquela ausência de camuflagem.
Depois de se vestir, seguiu para a garagem, indo até o Range Rover no qual o retiraram da floresta na noite anterior. O SUV parecia ter passado por um banho de sal, pois havia grandes marcas até em baixo nas laterais e no para choque frontal e capô. Nenhuma chave, e ele não se surpreendeu com isso. Vishous a teria levado consigo.
O veículo, entretanto, estava destrancado, e aquilo que esperava encontrar estava no compartimento traseiro: da caixa de emergências, ele tirou três sinalizadores e os enfiou na parca, mantendo-os seguros ali dentro ao subir o zíper do casaco acolchoado.
Em seguido, voltou a entrar, ligou o sistema de segurança e rapidamente partiu pela porta deslizante da cozinha. Não esperava que Layla fosse voltar no meio da noite, mas, para o caso da volta dela, ele queria que ela ficasse numa casa que fora ao menos minimamente protegida. Além disso, não tinha como trancar a casa após sua saída, imaginando que pretendia voltar a entrar e passar o dia ali.
O que ele ainda não sabia se seria o caso.
Na varanda, o tempo maquinou um grande ataque contra ele, a neve caindo em faixas pesadas que vinham com os ventos fortes, como se fosse uma tempestade dentro de uma tempestade. A visibilidade era fraca, e ele apostaria que poucos humanos se aventurariam a sair. Isso poderia conspirar a seu favor.
Fechando os olhos, desmaterializou-se...
... e retomou sua forma num bairro uns vinte e poucos quilômetros a sudoeste.
Ao assumir sua forma corpórea uma vez mais, foi numa rua sem saída em que havia casas coloniais de dois andares, casas mais caras do que a segura onde ficara, mas muito distantes ainda do patamar das mansões. Em toda a volta, havia muitas luzes acesas, quer nas salas de estar, quer nos quartos, em garagens de canto ou em árvores, mas com a neve pesada que caía, as iluminações eram isoladas, não conseguindo avançar muito mais.
Apoiando-se no vento, ele andou o restante do caminho, as botas pesadas revolvendo a neve fofa em seu caminho, a audição aumentando e diminuindo dependendo da direção dos ventos. A propriedade específica que procurava ficava bem nos fundos e, como as outras, também tinha luzes acesas dentro. Batendo as botas na entrada, espiou através da vidraça enquanto um humano magro, de uns quinze ou dezesseis anos, entrou na sala sem dizer nada para a mulher de meia-idade que estava sentada diante da lareira falando ao celular.
Xcor foi para o caminho de entrada, que não era mais caminho nenhum, porque a neve caía com tanta intensidade que ninguém tentaria limpá-lo até o término da nevasca. Quando chegou à porta da frente, na qual estava afixada uma guirlanda, estendeu a mão e experimentou girar a maçaneta de latão.
Estava destrancada, portanto ele simplesmente abriu e entrou.
Tudo se moveu em câmera lenta na sala de estar. O jovem olhou por sobre o ombro, depois deu um salto de susto. A outra fêmea ficou de pé, e qualquer que fosse a bebida quente que estava bebendo, ela saiu voando.
Xcor fechou a porta enquanto o filho foi se proteger atrás da mãe.
Covarde.
Todavia sentiu uma pontada de emoção que não desejava sentir quando a mãe empurrou o rapaz ainda mais para trás dele, mesmo ele sendo mais alto do que ela, e potencialmente mais forte.
– O q-q-eu v-você quer? – ela perguntou.
Quando uma mecha de cabelos loiros recaiu sobre o rosto dela, ela a soprou para longe dos olhos; as mãos estavam ocupadas tentando manter o filho em relativa proteção.
– Tenho... – A voz dela guinchou. – Minha bolsa está na bancada da cozinha. Leve o que quiser... Tenho joias, no andar de cima. Mas, por favor... Não nos machuque.
Xcor observou o rosto corado e o corpo trêmulo dela do que lhe pareceu uma grande distância. Depois olhou ao redor. A mobília fora trocada desde que ele e seus bastardos ficaram sob aquele teto, o sofá modular havia sumido junto com as eternas caixas de pizza vazias e as sacolas de lona, armas e munição, botas e adagas.
– Não vim atrás do seu dinheiro – Xcor disse em voz baixa.
Ela fechou os olhos brevemente, o rosto subitamente empalidecendo.
– Tampouco vim por sua causa. – Xcor ergueu a palma porque sabia que ambos se concentrariam nela. – Não sou profanador de fêmeas e de jovens.
Enquanto os olhos dos humanos se concentravam na palma erguida, ele entrou nos seus cérebros e congelou tudo ali dentro, de modo que eles apenas respiravam e piscavam. Nesse meio tempo, no chão, o celular que a mãe havia derrubado ainda estava conectado e uma voz em pânico exigia que alguém respondesse.
Seria um bom palpite afirmar que conversar com um vampiro não acalmaria o medo de ninguém.
Deixando a humana agitada de lado, Xcor bateu as botas no capacho para limpar boa parte da neve delas, depois galgou as escadas dois degraus de cada vez. No alto, foi direto para a suíte principal, que fora elegantemente decorada nas cores azul e branca.
Nada mais dos horrendos babados e rendas. E também haviam sumido os botões de rosa que tomavam conta do banheiro cor de rosa.
Por mais ofensivo que tudo aquilo antes fora, ele não perdeu tempo apreciando a melhora na decoração. Prosseguiu diretamente para o armário alto e estreito ao lado do box onde toalhas teriam sido guardadas caso ele tivesse alguma na época em que ali morara.
Mas claro que agora as prateleiras estavam repletas de toalhas brancas felpudas bem dobradas.
Ajoelhando-se, ele tirou os materiais de limpeza da prateleira de baixo, expondo o piso de azulejos que, ainda bem, a proprietária da casa não alterara. O painel que ele criara anteriormente era de trinta por trinta centímetros no fundo da partição, e ele teve que retirar as luvas para soltá-la com as pontas dos dedos. Depois esticou o braço e enfiou a mão no esconderijo.
O par de semiautomáticas estava exatamente onde as deixara.
E também a caixa de munição.
Xcor recolocou a tampa do compartimento secreto só porque facilitaria o trabalho de lavagem mental que teria que fazer naqueles dois lá de baixo.
Saindo do banheiro, passou pela cama e parou na soleira. Olhando para trás, relembrou a época em que ele e seus machos passaram um tempo naquela casa.
E se surpreendeu com a vontade que sentiu de voltar a vê-los.
A descida foi rápida, e logo estava de volta ao andar de baixo junto da mãe e do filho. Ainda estavam parados juntos, a fêmea protegendo aquele a quem amava e procurava defender com o mesmo corpo através do qual dera vida a esse.
Ele entrou em suas mentes uma vez mais.
– Vocês ouviram um barulho. Foram para fora para verificar o que era. Não era nada. Quando voltaram, suas botas deixaram o capacho molhado. Noite estranha. Provavelmente foi o vento. Que bom que não foi nada.
Xcor se desmaterializou para fora, e parou por um instante para observá-los enquanto despertavam, os dois se olhando como se não conseguissem entender porque estavam de mãos dadas. Em seguida, a mãe levou a mão à têmpora e esfregou como se a cabeça doesse, e o rapaz olhou ao redor e estalou o pescoço.
Ambos olharam para a porta.
Quando a fêmea se inclinou para apanhar o celular do chão, Xcor se pôs a caminho do seu destino seguinte.
O Santuário era de fato um lugar sagrado de paz e de tranquilidade, e enquanto Layla estava sentada na fonte da Virgem Escriba com os dois bebês, inspirou fundo. Os três estavam envoltos numa coberta branca fofa, e a temperatura estava perfeita, o ar gentil e acolhedor como um banho quente. Acima, o céu de nuvens brancas estava claro, mas não ofuscante, e o mármore branco do pátio era iluminado de dentro para fora.
Lyric e Rhamp fizeram a viagem sem problemas, e Cormia, como se sentisse que Layla desejava ficar a sós com eles, partiu em seguida depois que os gêmeos foram acomodados ali junto à água clara e à arvore em flor que agora estava repleta de novos passarinhos.
Acomodando os pés debaixo do corpo, balançou uma tulipa amarela diante de um, depois do outro... e depois de volta ao primeiro.
– Não é linda? Tulipa... Esta é uma linda tulipa.
De fato, as pétalas eram como a grama verde e a água azul: resplandecentes e misteriosas como joias em sua coloração. Devia ser por conta da luz dali, que não irradiava de nenhum lugar e não caía em nenhum ângulo específico – ou talvez existisse alguma fonte de magia sagrada atuando ali.
E era engraçado. Ela podia afirmar que seus pequenos estavam se fortalecendo com a energia que emanava dali, as faces estavam mais rosadas com um brilho mais intenso, os movimentos parecendo mais coordenados.
Sim, com certeza tinham o seu sangue dentro deles. Mesmo Rhamp, tão parecido com Qhuinn que chegava a ser estranho, também era evidentemente seu filho. Membros das Escolhidas sempre se sentiam melhor quando vinham até ali para se recarregarem.
Então, talvez tudo aquilo fosse algo bom...
Uma estranha sensação de estar sendo observada fez com que se virasse. Mas não havia ninguém na colunata, e ninguém no arco aberto que foram os aposentos privativos da Virgem Escriba. De fato, ninguém em parte alguma.
Lembrou-se de quando as coisas eram tão diferentes, quando as Escolhidas nasciam e criavam a geração seguinte de Escolhidas e de Irmãos ali e serviam à Virgem Escriba, aderindo ao programa dela de adoração, de descanso e de celebrações. Existira alegria e felicidade, propósito e realização– ainda que houvesse havido sacrifícios.
E nenhuma cor. Em parte alguma.
Layla estendeu a mão e acariciou a bochecha macia de Lyric. Por mais que reverenciasse a Virgem Escriba e as tradições que tanto valorizara e respeitara, estava feliz porque a filha não seria forçada a desempenhar um papel do qual não poderia escapar, exclusivamente a serviço de outros.
Sim, por mais que sentisse saudades dos tempos antigos e dos costumes de outrora, e por mais triste que estivesse ao ver este lugar tão maravilhoso deserto e sem vida, não se arrependia de nada.
Ela era de uma geração que conhecia tanto a servidão quanto a libertação e a última não era desprovida das suas dificuldades e tragédias. Mas pelo menos agora, ela tinha a sensação de que era um indivíduo, que tinha desejos próprios que não eram determinados por mais ninguém. E também tinha dois filhos que teriam a liberdade para escolher quem queriam ser e que rumo dar às suas vidas.
Seria sempre melhor seguir um caminho tortuoso escolhido por conta própria do que uma trilha suave, porém determinada por outrem.
A primeira escolha era mais árdua, todavia muito mais vital. A segunda era como uma morte em vida... a não ser pelo fato de que não se sabe que se está morrendo porque se está em coma.
CAPÍTULO 37
Enquanto Vishous pisava duro no corredor subterrâneo distanciando-se do centro de treinamento, aproximou-se da porta que dava para a mansão... e seguiu adiante. O Buraco, um nome muito adequado para a casa para carruagens em que ele Butch ficavam com suas shellans, estava ainda uns duzentos metros adiante, e sua entrada subterrânea era exatamente como a que dava para a casa grande, com todos os tipos de senhas e travas de segurança que impediam a entrada e a saída de pessoas que não deveriam entrar nem sair.
Depois de inserir a sequência numérica no teclado, a trava se soltou e, então, lar doce lar.
A disposição não era grande coisa, apenas uma sala de estar diante de uma cozinha embutida na lateral, e um corredor curto que desembocava em dois quartos adjacentes. Ele e Jane ficavam no primeiro; Butch e Marissa, e o guarda-roupa do policial ficavam no segundo – embora não houvesse espaço suficiente para todas aquelas malditas roupas. No corredor abarrotado, havia cabideiros repletos de ternos e camisas. E uma fila de sapatos sobre as tábuas do assoalho que, na opinião de V., eram sempre o mesmo sapato, somente em couro diferente e com diferentes fivelas.
O filho da puta se excitava com seus calçados. Mas, pensando bem, o quanto se pode fazer com um sapato masculino?
Enquanto V. fechava a porta atrás de si, demorou-se junto ao cabideiro repleto de Canali e Tom Ford. Tudo estava silencioso, Marissa estando no Lugar Seguro, Butch jogando sinuca na mansão e Jane...
Com uma imprecação, V. seguiu para a cozinha. As garrafas de Grey Goose estavam exatamente onde ele gostava que ficassem, debaixo da bancada da cozinha, ao lado da gaveta funda onde Butch guardava seus Fritos, os Goldfish de parmesão e os Milanos.
Esses eram os únicos lanches que o cara comia.
Engraçado, V. não percebera antes, mas Butch era um cara constante: gostava daquilo que gostava e não se interessava por novidades.
O filho da mãe provavelmente desmaiaria se você lhe oferecesse uma fatia de bagle. E nem pense em biscoitos multigrãos ou torrada crocante Melba.
O tira era da velha guarda, e mesmo que V. jamais admitisse isso, esse era parte do motivo de amar seu melhor amigo. Quando se tem mais de duzentos anos, você acaba aprendendo que quanto mais a coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas. Portanto, sim, você pode perder um tempão e desperdiçar suas papilas gustativas, mas isso seria muito ineficiente: existia uma quantidade máxima de felicidade advinda de um pacote de bolachas ou de salgadinhos. Vadear em meio a um monte de porcarias que não dão em nada, só para simplesmente voltar àquilo que já gostava antes, era um artifício bem humano.
Caralho, dava pra ver isso em toda a cultura deles, desde a “moda”, que não passava de uma reação de quinze minutos de fama de um carrossel de feiura de uma estação a outra, até o entretenimento que abarcava uma montanha do mesmo, e a tecnologia com sua obsolescência planejada e inovação desnecessária.
Que culminava com a Apple dizendo que era “corajoso” abolir os fios dos fones de ouvido. Num maldito celular.
Pois é, merecedor de um Coração Púrpura, garotos. A Medalha Presidencial da Liberdade. Talvez acabassem se colocando num selo, assim que comprassem o governo americano.1
Abrindo o armário, V. pegou um copo, encheu-o de gelo... e depois encheu de vodca até a borda.
Querem coragem?, ele pensou. Que tal abolirem a si mesmos, humanos. Esse é um bom plano.
Não que ele estivesse amargo nem nada assim.
Nem um pouco.
Foi para a sua mesa e se sentou diante da sua fileira de PCs, relaxando em seu palácio e, um a um, foi ligando todos os computadores.
Fazia um bom tempo desde que tivera uma noite de folga para si, e enquanto verificava as câmeras de segurança e os monitores nas diversas partes da propriedade da Irmandade, lembrou-se do motivo.
A última coisa que desejava fazer era ficar ali sentado mexendo nos seus Lenovo com sua Goose, totalmente sozinho enquanto todos os outros cuidavam dos seus afazeres.
Mas sua mente ainda estava perturbada com toda aquela situação do Xcor. Estava exausto também, mas não queria ir dormir. Precisava se alimentar – e não estava nada interessado em tomar uma veia. Tinha que comer – e não estava com fome. Queria se embebedar – e isso não parecia estar acontecendo rápido o bastante.
Encostando-se na poltrona, concentrou-se na tarefa de inserir álcool na corrente sanguínea, sorvendo grandes goladas que arderam na garganta e torceram seu estômago.
E à medida que começava a apresentar progressos no seu objetivo, ele pensou em Jane lá na clínica agora. No momento em que a procurara foi só para encontrá-la mergulhada até os joelhos numa crise, Assail berrando naquele seu quarto, Manny perguntando-lhe alguma coisa, Ehlena aparecendo com uma dúvida num pedido de medicamentos.
V. ficou na periferia e admirou o propósito da companheira. O comprometimento. A paixão.
Deus, pobre Assail.
Aqueles gritos eram de outro mundo, um lembrete de que não se pode brincar com o vício. Claro, você começa no caminho expresso das substâncias químicas só para poder tocar a vida. Mas, em seguida, você se vê num quarto acolchoado, literalmente amarrado, porque você tentou arrancar o próprio rosto a unhadas.
A propósito, me passem a vodca.
Estendendo o braço ao longo da mesa, apanhou a garrafa e voltou a encher o copo. O gelo começava a baixar no copo, mas depois desta dose, ele estaria pouco se fodendo se a merda estivesse em temperatura ambiente.
Pelo menos Assail tinha a sua Jane para cuidar dele, e ela estava se esforçando ao máximo para lhe oferecer o melhor tratamento de reabilitação durante a síndrome de abstinência. A questão era se a psicose um dia o abandonaria. Fazia um mês desde que o macho inalara pó branco, então ele podia estar simplesmente um terreno devoluto em decorrência de tantas drogas. Às vezes isso acontecia com vampiros e cocaína.
Claro, o antigo traficante provavelmente não devia ter sabido disso quando começou a consumir tanto daquela droga. Mas existiam muitas vezes na vida em que se está dançando com o diabo e não se tem a mínima ideia de tão demoníaco seu parceiro é. E você só descobre quanto é tarde demais.
Era assim que o destino agia. As maldições também.
Enquanto V. tomava mais do seu torpor engarrafado, descobriu-se pensando naquele chocolate quente de novo, aquilo que servira a Jane bem lá no começo. Ou melhor, no primeiro dos finais deles.
Ele sempre imaginara que o último fim aconteceria quando ele morresse. Mas, sentado sozinho ali na casa, tentando se lembrar da última vez em que passaram algumas horas significativas juntos... Isso o fez parar para pensar.
O revide era uma lástima. Quando ele e seus irmãos estavam no campo de batalha, lutando pela raça, eles não pensavam nas companheiras e nas fêmeas que sustentavam o forte em casa. Simplesmente tentavam cumprir seus deveres e permanecer vivos.
O mesmo acontecia lá na clínica. Jane não estava pensando nele agora. Ela estava trabalhando com Manny para salvar o que restava do cérebro de Assail. E ajudava o irmão de Qhuinn, Luchas, a recuperar a mobilidade e a saúde mental depois do terrível abuso sofrido nas mãos da Sociedade Redutora. Todas as noites, ela cuidava de todos os tipos de ferimento, desde os crônicos até os agudos, desde um simples Band-Aid até algo que ameaçava a vida, com concentração incansável e devoção aos seus pacientes.
Portanto, não é que ele não entendesse.
E também não é que não a amasse. Merda, ela era inteligente. Era valente. Provavelmente era... a única fêmea que ele tivesse encontrado e que considerasse uma igual – e não, isso não era uma declaração misógina. Ele também achava que muitos machos não eram seus iguais.
Que é o que acontece quando se é filho de uma divindade, ele supôs.
Definitivamente não conseguia se imaginar com outra pessoa que não fosse Jane. O problema era que estava devotado à guerra. Ela era devotada ao trabalho dela. E, no começo, quando tudo era novo e recente, e o ímpeto de estarem juntos era uma coceira que precisava ser coçada ou que os enlouqueceria, eles criavam tempo para estarem juntos.
Agora?
Nem tanto.
Mas tudo bem, pensou ao se acomodar à frente e voltar a se concentrar nos monitores. Nenhum deles iria a parte alguma.
Era só que... estava começando a se preocupar que isso também fosse verdade no relacionamento deles.
Uma súbita imagem de Layla se colocando diante de Xcor para protegê-lo com tudo o que tinha surgiu em sua mente e não queria ir embora. Jesus, naquele momento, ela teria levado uma bala no lugar do puto. Um movimento estúpido, sem dúvida, e um que ela teria lamentado no instante em que pensasse nos filhos... Mas naquela fração de segundo, ela esteve motivada pelo amor.
E Xcor, em troca, falara sério ao implorar que ela fosse afastada antes que ele fosse morto. O bastardo estivera tremendamente seguro disso... e perdidamente apaixonado.
V. franziu o cenho ao perceber que aquele filho da mãe e ele tinham algo em comum, não tinham? Ambos passaram pelo campo de guerra de Bloodletter.
Era praticamente certo que tivessem perdido a virgindade da mesma maneira.
Portanto, talvez devessem providenciar tatuagens de melhores amigos ou alguma merda do tipo.
– Puta que o pariu...
Mais Gray Goose... até precisar de um segundo refil. E se forçou a sair da própria cabeça e se concentrar nas imagens das telas diante dele, todas de ambientes internos e externos, quer fossem da Casa de Audiências, daquela casinha segura em que Layla e Xcor estavam ralando e rolando, das outras três casas que eles possuíam em Caldie, do restaurante Sal’s ou da mansão e do terreno em volta.
Somente a mansão mostrava sinais de vida. Os outros lugares estavam fechados por conta da “Nevegeddon”, que era como os repórteres estavam chamando aquela nevasca.
Enquanto observava os irmãos jogarem e rirem, notou que a grande maioria deles estava com suas shellans ao seu lado. As fêmeas da casa tinham suas existências separadas e independentes, mas numa noite como esta – quando os machos não estavam a serviço da guerra –, elas priorizavam passar o tempo com seus amados.
– Pois é, e eu estou aqui com a minha Goose – murmurou ao tomar mais um gole. – Não é tão ruim assim...
Infelizmente, sua mente permanecia teimosa e inaceitavelmente ébria. E isso significava que ele estava afetado demais, suas emoções ganhando um volume desproporcional de transmissão.
O que equivalia dizer que estavam simplesmente sendo percebidas pelo seu radar.
Ele odiava sentimentos, lembram-se?
Tentando entreter a massa cinzenta com algo, com qualquer coisa, ligou a Internet e resolveu monitorar algumas publicações humanas. Isso sempre o fazia rir. As merdas com que aqueles babacas se preocupavam eram simplesmente inacreditáveis – e depois eles acabavam inevitavelmente gritando uns com os outros através dos seus computadores.
A verdade era suavizada. A histeria nem um pouco.
Depois de passar pela CNN.com, pela Fox News, e pela TMZ.com, ele acabou entrando no YouTube assistindo a vídeos de McKamey Manor, que era definitivamente um dos seus passatempos prediletos e que, no fim, acabou por alegrá-lo um pouco. E foi depois de uma meia hora disso que uma notificação apareceu no fim da tela, indicando a chegada de um email.
Franzindo o cenho, entrou no Outlook para dar uma espiada.
Ora, ora, ora... O bom e velho Damn Stoker postou algo novo.
V. sorriu e engoliu outra bela dose de Goose ao entrar no blog que vinha seguindo no último mês. Era novo no cenário paranormal, escrito por um cara que parecia um cruzamento de repórter investigativo e adorador de presas.
Isto é, um humano determinado a provar a existência dos vampiros.
Era tão divertido ver como eles viravam e torciam os fins das suas falsidades lexicais, repetindo todo tipo de mentira e bobagem que os humanos vinham usando para criar mitos sobre o que na verdade existia em meio a eles.
Bons tempos, bons velhos tempos.
Pense em vídeos de YouTube. Devia existir uma centena de milhar de filmagens, de sons de mordidas, de solilóquios alegando mostrar verdadeiros vampiros vampirizando com seus equipamentos vampirescos. Dirigindo carros vampiros...
Muito bem, era possível que o álcool estivesse começando a surtir efeito.
Mas Damn Stoker era diferente, e era por isso que V. acompanhava as divagações não tão divagadoras assim do filho da puta.
O cara na verdade tinha conteúdo.
De alguma forma, o cara conseguira um vídeo do embate acontecido na Escola para Garotas de Brownswick, aquele em que a Sociedade Redutora e a Irmandade se encontraram e dançaram sob o luar, por assim dizer. Era a típica filmagem sacudida de algum viciado, mas havia o bastante para sugerir que algo grande e sobrenatural pudesse ter acontecido no campus abandonado.
Felizmente, Ômega realizara um excelente trabalho de limpeza depois da luta, e o que fora filmado era passível de ser considerado algo gerado digitalmente. Sangue de redutores no chão, afinal, podia muito bem passar por óleo automotivo velho.
Que bom que o vídeo não era olfativo, ou teria deixado as pessoas enjoadas.
E, claro, o fato de não haver nada na propriedade era um grande motivo para desacreditar a filmagem, e aquele depósito que a besta de Rhage estivera comendo acabara por ruir de todo modo, bem como muitas das outras instalações.
Ainda assim, o cara se escondendo por trás do apelido não tão inteligente assim estava no radar de V. Ele postara vários outros links de outros conteúdos no YouTube, a maioria um monte de blá-blá-blá a respeito de outros humanos que juraram de pés juntos terem tido contato com “vampiros de verdade” e muitas outras filmagens noturnas de má qualidade com cenas de lutas e de figuras entrando e saindo de lugares com capas compridas. Mas, de novo, foi aquela coisa da escola para moças que chamou sua atenção – e também o fato de a gramática do cara ser boa, de ele não se exceder no uso das maiúsculas e nem fazer isto !!!!!!!!!!!! ao final das orações, sem falar no profissionalismo de modo geral.
E nada daquilo era algo de que a raça precisasse.
Humanos ridículos com incisivos falsos com bengalas coroadas por crânios? Tudo bem. Podiam dar a V. um milhão desses. Um tipo sagaz, mais Scully do que Mulder que parecia capaz de sistematicamente passar o pente fino na Internet, separando as bobagens e isolando aquelas poucas instâncias em que algo de fato acontecera?
Isso já não era tão bom para uma espécie que queria continuar se escondendo à plena vista.
– Mais um vídeo... – V. murmurou ao dar uma passada de olhos na postagem. – O que temos hoje, Damn? Época errada para o Halloween.
V. avançou a parte em que passava o contexto sobre o suposto assunto do link, e foi direto ao que interessava.
A princípio, não entendeu o que estava vendo... Ah, sim, uma filmagem de segurança em branco e preto de um estacionamento à noite. Carro entrando e fazendo a volta... Estacionando, mas sem desligar as luzes e o motor, a julgar pela nuvem de condensação saindo do cano de escapamento.
V. sorveu mais um gole e tateou o tampo da mesa à procura de um cigarro. Sem sorte. Precisava...
– Ah... Olha só. Como vai, senhor Latimer...
Quando as duas portas se abriram, ele reconheceu o macho que saiu do lado do passageiro. Era Trez. E ora, ora, ora... Uma fêmea saiu de trás do volante, uma morena com roupas civis. Impossível ver o rosto dela, pois ela olhava para baixo tentando não escorregar no gelo, mas o corpo era bonito.
Talvez o pobre FDP estivesse afogando as mágoas do jeito antigo.
Trez deu a volta no carro e a encontrou na frente. Os dois conversaram por um minuto...
– Merda.
V. sacudiu a cabeça, depois apertou o nariz na parte entre os olhos. Depois apertou a pausa, voltou um pouco para trás e voltou a assistir.
A fêmea simplesmente desapareceu, desmaterializando-se em pleno ar. Depois Trez se colocou atrás do volante e saiu de lá como se nada tivesse acontecido.
V. rolou a tela para cima e leu o que aquele Damn havia escrito: lojinha de souvenires local após Storytown – que se a memória não lhe faltasse, distava apenas um quilômetro do Sal’s. A filmagem era de propriedade da loja, claro, mas o dono a encaminhara para Damn com permissão para publicação. Nenhuma autoridade foi contatada, e havia uma declaração do proprietário, em citação completa como se aquilo fosse um artigo num jornal: “nada foi alterado na filmagem”.
Vishous assistiu ao vídeo umas duas ou três vezes mais, e disse a si mesmo que podia relaxar. Que diabos alguém faria com aquilo? Ir até a CBS local para fazer com que transmitissem uma revelação comprometedora? Aquilo não chegava a provar nada – a não ser o fato de que sexo era um analgésico de curta duração no que se refere ao processo do luto.
Ninguém acreditaria que aquele vídeo não fora editado.
Tudo bem.
Mas Damn estava começando a se tornar um pé no saco: duas vezes em um só mês, algum humano postou vídeos de fatos reais das merdas que andavam acontecendo?
Às vezes as teorias da conspiração acertavam.
E quando isso acontecia muitas vezes seguidas, elas tinham que ser contidas, certo?
Coração Púrpura é uma condecoração militar dos Estados Unidos, outorgada em nome do Presidente a todos os integrantes das Forças Armadas que sejam feridos ou mortos durante o serviço militar, desde 5 de abril de 1917. A Medalha Presidencial da Liberdade é uma condecoração concedida pelo presidente dos Estados Unidos e é, junto com a equivalente Medalha de Ouro do Congresso – concedida por um ato do Congresso dos Estados Unidos –, a maior condecoração civil dos Estados Unidos. (N.T.)
CAPÍTULO 38
A localização seguinte na qual Xcor se materializou não estava habitada. De fato, o pequeno chalé e a casa de fazenda maior mais além era uma propriedade bem afastada de Caldwell, e ao reassumir sua forma nos ventos fortes, não se surpreendeu por nenhuma luz estar ligada, não haver nenhuma lareira acesa, nenhuma silhueta nas janelas da construção.
Ao avançar, ele passou pelo chalé e entrou na linha divisória das árvores que abençoadamente lhe deram um pouco de abrigo contra o vento inclemente. Adquirira ambas as casas e o terreno no qual haviam sido construídas para Layla e para ele. De fato, tivera certas fantasias – uma que ele jamais dera voz tampouco reconhecera sequer para si próprio – de que os dois poderiam se acomodar no pequeno chalé com todo o seu charme e conforto enquanto os machos morariam na fazenda mais distante.
De fato, ela o visitara ali algumas vezes, na época em que estivera grávida e tão resplandecentemente bela, quando ele considerara quase impossível não expressar coisas que não lhe cabiam sentir quanto menos discorrer a respeito. E fora então que ela o desafiara, justamente a respeito da evolução dos seus sentimentos, dando-lhe uma descrição acurada da fragilidade que ele sentia em relação a ela.
Nessa altura, mandara-a embora. Dissera coisas cruéis que não quisera dizer porque fora o único modo de fazer com que ela saísse da casa, deixando-o em paz. Que guerreiro que fora nesse dia. Na verdade, fora um covarde diante dela. Mas ele fora incapaz de ver qualquer futuro para os dois, e começara a se preocupar com a segurança dela por estar grávida... e mais do que isso tudo, ele ficara aterrorizado pelo modo como ela o interpretara tão bem.
Aterrorizado com o poder que ela tinha sobre ele.
E com isso ela se fora. E logo em seguida, ele fora capturado.
E agora eles tinham esse pequeno olho de furacão, um diminuto instante de paz que logo terminaria assim que ele encontrasse aquilo por que procurava.
A casa da fazenda estava fechada a tábuas no primeiro andar, todas as vidraças tampadas com tábuas presas com pregos que seus bastardos alegremente martelaram no lugar. No entanto, a porta da frente estava destrancada, e quando ele a empurrou para dentro, o rangido foi tão audível que abafou até o gemido incessante dos ventos de fora.
Deixaram as dobradiças deliberadamente sem lubrificação; aquele era o sistema de alarme mais barato que existia.
Seus olhos se ajustaram à escuridão. Os quartos não tinham nada dentro deles a não ser assoalho de tábuas e teias de aranha, mas, na verdade, seus guerreiros nunca se importaram muito com as armadilhas da civilização. Após terem sobrevivido ao campo de guerra de Bloodletter, só era preciso um teto sobre suas cabeças. A ausência de uma adaga junto ao pescoço era suficiente.
Pegando um dos sinalizadores de dentro da jaqueta, ele tirou a ponta e o acendeu, a luz sibilante vermelha iluminando um círculo amplo ao seu redor.
Xcor desceu as escadas, as passadas ecoando pela casa vazia e fria. Conforme ele avançava, segurou o sinalizador à frente, inspecionando todas as paredes e batentes e o piso todo.
Foram necessárias três viagens, três circuitos da sala de estar, escritório e sala de jantar até a cozinha e banheiro dos anos 1940, antes de encontrar.
Teve que sorrir um pouco ao se agachar no canto oposto da sala de estar.
O que acabou por chamar sua atenção foi um arranhado nas tabu-as, algo que facilmente seria desconsiderado, e que, de fato, ele quase deixara passar. Mas, após um exame mais detalhado, ele evidentemente apontava para a junção à direita das paredes onde havia um punhado de galhos, folhas e poeira.
Um amontoado de sujeira sem nenhum significado – como se alguém tivesse pegado uma vassoura e tentado limpar um pouco, só para depois perder o interesse até uma pá ser encontrada.
Aproximando o sinalizador num ângulo no chão, empurrou a sujeira para um lado e observou a mensagem deixada para ele.
– Bom macho – murmurou ao ver as marcações entalhadas na madeira.
Para alguém que não saberia interpretar, aquilo não passava de uma série aleatória de cortes e golpes. Para ele... era um mapa de Caldwell que fora montado seguindo uma bússola previamente combinada que não se baseava no norte verdadeiro, mas num conjunto de símbolos que não seria reconhecido por alguém de fora do Bando de Bastardos.
Xcor jamais aprendera a ler. Não fora uma habilidade necessária para ele no Antigo País tampouco na guerra, e ele muitas vezes se considerava inferior por essa incapacidade. Mas ele era insuperável para orientar-se e também tinha memória fotográfica, algo que desenvolvera com a necessidade de poder se lembrar do máximo de detalhes das coisas que lhe eram mostradas ou descritas.
Não se deu ao trabalho de procurar armas. Ele mesmo nunca deixara nenhuma ali, e eles teriam levado tudo que tinham consigo.
Partindo pela porta que rangia, apagou o sinalizador enfiando a ponta acesa na neve, depois fechou os olhos e se desmaterializou...
... voltando à sua forma num túnel de vento.
Os ventos eram tão brutais que ele teve que se afastar deles, e mesmo de costas, estava difícil de suportar. Mas é isso o que acontece quando se sobe mais de cem andares acima da rua no centro de Caldwell, no topo do prédio da Companhia de Seguros de Caldwell.
Movendo-se velozmente, abrigou-se atrás de uma das máquinas do sistema de aquecimento e refrigeração central que tinha o tamanho de uma ambulância, e, de lá, ele conseguiu se orientar, tendo que partir do leste para ele poder interpretar as marcações adequadamente.
Só que um problema logo se evidenciou. Com tanta neve caindo, ele não conseguia divisar o padrão de ruas bem o bastante para encontrar o local: ainda que houvesse alguns marcos iluminados da cidade para lhe dar uma ideia da planta, ela não conseguiria precisar nada dali de cima.
Sua única chance seria descer à rua e seguir dali. A boa notícia? Seus guerreiros ficariam abrigados numa noite como esta.
Assim como os humanos, até mesmo assassinos não se aventurariam numa confusão como aquela. E seus bastardos nunca gostaram muito do frio.
Se ainda estavam em Caldwell, ele os encontraria esta noite.
CAPÍTULO 39
– O que há nesse livro?
A voz feminina que se aproximou de Throe pelo ombro era petulante como a de uma criança, mesmo tendo saído dos lábios maliciosos da vampira de trinta e seis anos de seios naturais tamanho grande, um abdômen tão reto que poderia ser usado como prato numa refeição, e um par de pernas longas o bastante para envolver duas vezes sua cintura.
Costumeiramente, ele teria apreciado a interrupção vinda de alguém como ela.
– Throe! Eu não serei ignorada!
Não esta noite.
Ao se endireitar diante do tomo antigo que levara para casa do consultório daquela vidente, suas costas estalaram, e ficou aborrecido em ver que o pescoço estava tão duro que não conseguiu olhar por cima do ombro. Precisou virar o tronco inteiro para fazer contato visual.
– Estou estudando – ouviu-se dizer.
Estranho, pensou. Era como se não tivesse um pensamento consciente ao dizer aquelas palavras específicas.
No entanto, estavam corretas. De fato estivera estudando o que estava escrito no pergaminho o dia todo e... já era noite? Parecia-lhe que havia acabado de se sentar.
– Perdoe-me. – Pigarreou. – Mas que horas são?
– Nove horas! Você me prometeu que sairíamos.
Sim, lembrava-se disso. Fizera isso para tirá-la das costas e mandá-la para a cama de seu hellren ao amanhecer a fim de ter um pouco de privacidade com o livro.
Ou O Livro, como começara a pensar nele.
E ela evidentemente confiara na sua palavra, pois seu vestido era tanto revelador quanto caro. Roberto Cavalli, a julgar pela estampa de pele de animal. E ela tinha joias de ouro Bulgari suficientes para que a polícia dos anos 1980 abrisse um inquérito.
– Então? – ela exigiu. – Quando vai se vestir?
Throe olhou para o próprio corpo, com um distanciamento enraizado ao fitar as calças, a camisa e os sapatos.
– Estou vestido.
– São as mesmas roupas de ontem à noite!
– Verdade.
Throe sacudiu a cabeça e olhou ao redor. O quarto de hóspedes ele reconhecia, e isso era um alívio. Sim, era ali que vinha se hospedando desde o incêndio que destruíra a mansão do hellren de sua antiga amante. Um mês havia passado nesta suíte mogno e azul marinho, com aquela cama de dossel, os quadros de caça e cômoda alta de gavetas e escrivaninha.
Mudara-se para ali e de pronto assumira um relacionamento sexual com esta fêmea subestimada sexualmente, de modo semelhante ao que acontecera com a amante anterior: esta, assim como aquela, estava casada com um macho muito mais velho que estava incapacitado de servi-la na cama – com isso, Throe, como um “cavalheiro de boa linhagem”, fora acolhido naquele lar, sendo estimado e protegido sem data para partir.
Evidentemente, eles não sabiam dos boatos de como ele acabara se associando ao Bando de Bastardos. Ou sabiam e tinham um padrão baixo. De todo modo, havia um acordo tácito de que enquanto ele cuidasse da shellan, ele poderia contar com um quarto, com refeições e um guarda-roupa a altura, e neste caso – o que não acontecera no anterior – ele tinha suspeitas de que companheiro dela sabia do acordo e o aprovava.
Talvez o macho mais velho estivesse ciente das escapadas dela, e temia que o deixasse para sempre.
Na glymera, isso seria um embaraço que ninguém gostaria de levar até o túmulo.
– Não está se sentindo bem? – ela perguntou franzindo o cenho.
Ele se virou lentamente. Estava sentado à escrivaninha, aquela acomodada entre as duas janelas grandes cobertas por vidro com bolhas e cortinas elegantes. A mansão era grande e espaçosa, repleta de antiguidades e de mobília muito, mas muito mais distinta do que a atual proprietária. E há quem poderia suspeitar que ela preferisse morar no Commodore, numa cobertura com vista para o rio, repleto com sofás grandes em couro branco e reproduções de Mapplethorpe.
Ela gostava de sexo. E era boa nisso...
– Throe, sério. Qual é o problema?
O que ela lhe perguntara antes? Ah... sim. E ele virara naquela direção para se mirar no reflexo dos espelhos das portas superiores da escrivaninha.
Apesar de o espelho ter manchas e estar riscado, havia ainda suficiente superfície espelhada para ver que ele ainda era o mesmo de antes de ir até o consultório da vidente. Ainda os mesmos cabelos loiros espessos, e o maxilar quadrado clássico, e os cílios longos que costumavam fazer sucesso entre as fêmeas.
No entanto, ele não se sentia o mesmo.
Algo mudara.
Enquanto uma onda de ansiedade o atravessava, ele apoiou a palma no livro aberto e, instantaneamente, se acalmou, certo como se o tomo fosse uma droga. Como fumaça vermelha, talvez. Ou quem sabe um bom Porto.
O que estiveram mesmo discutindo...
– Não importa, estou saindo sem você. – Ela fez uma pirueta em sinal de desaprovação, os saltos agulha imprecando ao passarem sobre o carpete enquanto ela recuava para a saída. – Se vai ser tão básico assim, eu não vou...
Throe piscou e esfregou os olhos. Relanceando ao redor, levantou-se, depois voltou a se sentar ao sentir câimbras nos músculos das pernas. Na segunda tentativa, conseguiu tanto permanecer de pé quanto andar, apesar de que esse último aconteceu com passos meio duros à medida que ele avançava sobre o tapete Oriental em direção à porta pela qual sua amante acabara de passar.
Abrindo-a, ainda não sabia muito bem o que lhe diria, mas não faria sentido continuar a discussão. Ele necessitava muito dela no momento, aquele teto sobre a sua cabeça e o sustento em sua barriga necessários para que estivesse livre para seguir suas verdadeiras ambições.
Segurando a maçaneta ornamentada da sua suíte, inclinou-se para o corredor, olhando para a direita e para a esquerda. Não havia sinal dela, então ele desceu quatro portas e bateu com suavidade. Quando não houve resposta, verificou novamente para ter certeza de que não haveria ninguém por perto e depois entrou no quarto creme e pêssego.
Muitas luzes estavam acesas. Alguns vestidos largados sobre a cama. A essência do perfume pairava no ar.
– Corra? – ele a chamou. – Corra, minha querida, vim me desculpar.
Aproximou-se do imenso banheiro branco e creme. Na bancada à frente da cadeira em que se penteava e maquilava, diversos produtos Channel, tubos, potes e pincéis. Mas nada de Corra.
Throe não tocou em nada e voltou para seu quarto. Bem quando fechava a porta, seus olhos passaram pelo relógio acima da cômoda – e ficou imobilizado.
Dez horas. Na verdade, um pouco passadas das dez.
Throe franziu o cenho e se aproximou da peça Ormolu. Mas a proximidade não alterou o fato de que aqueles ponteiros proclamavam que eram mais de dez.
No entanto, Corra lhe dissera que eram nove. Não foi?
Throe relanceou para O Livro.
Nos recessos da mente, notou que era estranho que, apesar de tê-lo lido por tantas horas – Céus, não se passaram quase vinte e quatro? –, mesmo assim ele não avançara da primeira página aberta.
Throe sentiu um formigamento de vertigem caçoar de sua mente com a impressão de que o mundo girava ao seu redor.
Cambaleando até a escrivaninha, sentou-se na cadeira dura novamente, com os joelhos unidos, a cabeça pensa e os olhos no tomo aberto.
Interessante, não percebera ter dado um comando consciente ao corpo para que ele retomasse aquela posição ali...
Espere, o que mesmo ele...
Por que estivera...
Pensamentos entraram e saíram da sua mente, movendo-se como nuvens no céu desabitado, nada permanecendo com ele tampouco encontrando uma fricção. Chegou a pensar que estava se esvaziando, que partes suas estavam sendo drenadas, mas tinha dificuldades para determinar exatamente o que o abandonara e para onde isso fora.
Por um momento, o medo o atingiu e ele desviou o olhar dO Livro.
Esfregando os olhos com tanta força que provocou lágrimas, percebeu que não fazia a mínima ideia do que lera. Todas aquelas horas passadas diante do livro aberto... e ele não sabia nada do que estava impresso naquelas páginas.
Precisava fechar a capa e queimar aquela coisa.
Sim, era isso o que precisava fazer. Manteria os olhos desviados, sem prestar atenção às páginas, e fecharia a capa com força. Depois do que, apanharia o volume maligno e o carregaria par abaixo. Havia uma lareira constantemente acesa na livraria e ele...
Os olhos de Throe retornaram para o pergaminho e para a tinta, um par de cães convocado pelo seu mestre, em posição de sentido.
E se concentrou nos símbolos, no texto.
Abriu a boca. Fechou-a. Tentou se lembrar do motivo de ter ido procurar a vidente para início de conversa.
Enquanto seu medo aumentava, ele tentou se forçar a se concentrar em se libertar – e, de fato, lembrou-se daqueles sonhos que tinha de tempos em tempos, no qual estava acordado, mas preso num corpo inerte, com uma sensação de pânico que o levava a querer despertar.
Mover um pé ou uma mão normalmente afastava alguém do precipício, e ele sentia que agora, se conseguisse ser assertivo, poderia se salvar de um perigo do qual jamais conseguiria escapar.
Por que fora até aquela vidente... Qual fora o motivador... O que estivera procurando...
E a resposta surgiu.
Numa voz que não soava como a sua, ele disse em voz alta:
– Preciso de um exército. Preciso de um exército para poder derrotar o Rei.
Algo como um raio atravessou o ar, e sim, uma corrente elétrica o perpassou, trazendo-lhe claridade e propósito que afastou toda a confusão prévia.
– Quero derrotar o Rei e dominar tanto a minha raça quanto a dos humanos. Desejo ser o senhor e o mestre de tudo na terra e dos seus habitantes.
De repente, as páginas começaram a virar, um cheiro de pó entrou em suas narinas, ameaçando-o a espirrar.
Quando a arremetida ensandecida para sabe-se lá o que cessou, ele se inclinou, certo de que havia uma mão atrás do seu pescoço, empurrando seu tronco nessa direção.
De súbito... as palavras fizeram sentido.
E Throe começou a sorrir.
CAPÍTULO 40
Qhuinn se moveu pela neve, que caía como se fosse parte da nevasca, sua fúria rivalizando os ventos uivantes, a roupa branca camuflando-o nas correntes que se formavam nos becos do centro da cidade. Ao seu lado, Tohr estava igual a ele, um predador camuflado no ambiente, que já não parecia mais urbano, mas ártico.
Rajadas de flocos de neve espessos como fumaça de bombas rodopiavam ao redor dele e desacelerava o avanço deles em mais um quarteirão desprovido de pedestres e de carros em movimento. Estava tão frio que a neve era leve e fofa, mas o volume era tremendo, centímetros e mais centímetros se avolumando e crescendo no chão. E ainda assim a coisa continuava a cair do céu.
Rogou para ver um Bastardo, qualquer Bastardo.
Mas especialmente aquele que procuravam.
Esta era a melhor oportunidade para apanharem Xcor num ambiente solitário onde poderiam fazer com que o assassinato parecesse uma emboscada armada pelo inimigo... no qual poderiam cuidar de tudo como deviam. E o filho da puta definitivamente estava ali, à procura dos seus garotos a despeito da tempestade.
Enquanto Qhuinn avançava com dificuldade, os músculos das coxas queimavam e os dentes da frente tiritavam de frio, e o calor que seu corpo gerava fez com que ele desejasse descer o zíper da parca branca. Nos recessos da mente, ele sabia que estava insistindo nesse plano traidor não só em busca de uma vingança merecida em relação ao Bastardo, mas também porque fugia de tudo que acontecia em casa: Blay afastado, Layla com as crianças, Wrath e ele desentendidos.
Permanecer no frio a noite inteira era preferível a ficar preso em casa – ainda mais que tinha o dia inteiro adiante para ficar fechado debaixo daquele teto. Merda, acabaria louco com tanta...
Mais adiante, em meio à vista enevoada da neve, uma figura de preto do tamanho de um vampiro guerreiro se revelou e depois sumiu quando uma rajada soprou pelo cruzamento distante uns vinte metros deles.
O que quer que fosse era grande, e não deveria estar ali.
E parou assim que os notou, o vento que soprara pelas suas costas sem dúvida levando seu cheiro e o de Tohr na direção dele.
Naquele momento, como se as coisas tivessem sido preordenadas, os ventos mudaram de direção... e trouxeram o cheiro da figura, identificando-a.
– Xcor – Qhuinn sussurrou ao enfiar a mão dentro daquela camada espessa a prova de água e vento e empunhar o cabo da sua quarenta.
– Bem na hora. – Tohr, do mesmo modo, sacara sua pistola. – Melhor impossível. Terminando antes mesmo de ter começado.
Xcor lhes deu tempo para que se aproximassem, e Qhuinn estava certo de que ele sabia quem eram.
Perto... Ao alcance das balas...
O coração de Qhuinn começou a bater forte, uma excitação borbulhando suas emoções, mas não sua cabeça nem o corpo. O braço permaneceu firme e junto ao corpo.
Mais perto...
Bem quando levantou o braço, seu celular tocou junto ao peito, a vibração chamando sua atenção, mas sem desviá-la.
Ele e Tohr puxaram os gatilhos ao mesmo tempo – bem quando Xcor, que não era nada bobo, se jogou no chão.
Com a tempestade furiosa, aquela foi uma situação do tipo “ovo ou galinha”, difícil de determinar quem veio primeiro, o abaixamento ou o impacto com a bala.
Com o celular ainda tocando, Qhuinn e Tohr dispararam a correr, ambos atirando alternadamente para onde o Bastardo estivera de pé e depois caído ou aterrissado enquanto eles avançavam sob a neve densa.
– Filho da puta – Qhuinn ladrou quando chegaram onde Xcor estivera.
O puto desaparecera. E não havia cheiro de sangue.
Deixaram mesmo de acertá-lo?
Ele e Tohr olharam ao redor, depois o irmão disse:
– Telhado.
Os dois desapareceram do beco, ressurgindo no alto de um prédio de dez andares bem de frente para onde o tiroteio acontecera. Nada. A visibilidade era tão fraca que não conseguiam enxergar a rua abaixo, e não sentiam o cheiro de Xcor em lugar nenhum.
Com o vento rugindo forte nos ouvidos apesar de ele ter ajustado o gorro até bem embaixo, e seus olhos se enchendo de água por conta do frio, Qhuinn sentiu uma frustração invadindo-o até a medula.
– Ele não pode ter ido longe! – gritou acima do barulho.
– Vamos nos espalhar. Eu vou...
– Filho da mãe. – Qhuinn sentiu o celular vibrar pela segunda vez. – Mas quem diabos está me ligando!
Abaixou o zíper da parca e enfiou a mão dentro dela. Tirando o maldito aparelho, ele...
Aceitou a chamada de pronto.
– Blay? Blay...?
Ele não conseguia ouvir nada e apontou para o beco abaixo. Quando Tohr assentiu, Qhuinn tentou se concentrar – e um segundo mais tarde, desmaterializou-se para onde estivera antes.
Cobrindo com a outra mão o ouvido livre, ele disse:
– Blay?
A voz do seu companheiro estava baixa na ligação cheia de estática.
– ... ajuda.
– O quê?
– ... na Northway. Saída...
– Espere, o quê?
– ... vinte e seis...
– Blay?
E então uma palavra foi ouvida sem a menor dúvida:
– Acidente.
– Estou indo! – Qhuinn olhou para Tohr. – Agora mesmo!
Ele queria manter a conexão aberta, mas havia o risco de a neve fazer com que o celular parasse de funcionar e ele poderia precisar dele.
Tohr disse:
– Vamos nos dividir. Eu vou pelo norte...
– Não, não, Blay está em apuros. Eu tenho que ir!
Houve uma fração de segundo na qual se encararam. Para Qhuinn, contudo, não havia a menor dúvida. Amor versus vingança.
E ele escolheria o amor.
Merda, sentia-se péssimo por Blay ter se envolvido num acidente... Mas, pelo menos, o macho o procurara num momento importante, e claro, cacete, ele iria para onde estava o seu coração. Mesmo que Xcor estivesse sangrando no peito e precisasse de apenas uma última bala para ir para o Fade? Qhuinn estava fora.
Tohr, no entanto, era outra história.
Xcor via os dois Irmãos do seu ponto de vantagem no teto do lado oposto a onde Qhuinn e Tohr estiveram: mesmo com aquelas parcas brancas, as rajadas de neve se desviavam ao redor dos seus corpos, delineando-os.
Algumas vezes no decorrer da sua vida, Xcor poderia ter jurado que alguma espécie de força exterior estivera determinada em mantê-lo vivo.
Esta noite fora uma delas.
Aquelas duas armas foram apontadas para ele descarregadas ao mesmo tempo, como se os Irmãos dividissem um cérebro – ou pelo menos um par de dedos prontos para atirar. E mesmo assim, de algum modo, ele nem precisou do colete a prova de balas que vestira antes de colocar a parca preta ainda no rancho.
Ele atribuiu a culpa ao vento.
Ou lhe deu crédito, o que parecia mais adequado.
Mesmo trajando a roupa ideal para um alvo, e a distância entre eles não ser superior a cinquenta metros, aquelas balas foram para algum outro lugar.
E ele não desperdiçou um segundo para se desmaterializar.
Graças ao Fade ele tendia a ficar mais concentrado em vez de se desconcentrar quando em perigo, e também deduzira certo ao pensar que o movimento seguinte deles seria o de proceder para o prédio mais baixo atrás de onde eles tentaram abatê-lo. No entanto, sua vantagem não perduraria. Eles se dividiriam a fim de dar cabo do assunto.
E aquela tentativa de homicídio significava duas coisas: ou o par se rebelara contra o Rei... Ou Wrath mentira sobre suas verdadeiras intenções e toda a Irmandade estava atrás dele.
O macho lhe parecera sincero, mas poderia garantir?
E quem discutiria com aquelas 40 mm...
Quando Tohr e Qhuinn se desmaterializaram, Xcor se agachou e também sumiu, seguindo a teoria de que um alvo móvel é mais difícil de acertar.
Voltou à sua forma três quarteirões a oeste junto a um conjunto habitacional. E ao se materializar novamente, triangulou sua localização no mapa daquela tábua no piso da casa de fazenda. Estava perto, muito perto, da localização ali ilustrada.
E não existia melhor lugar para ficar do que junto aos seus guerreiros já que estava sendo caçado.
Movendo-se de telhado em telhado, lembrou-se do seu tempo nas copas das árvores, bem antes de Bloodletter tê-lo abordado naquela floresta. De fato, talvez tivesse que se apoiar nas suas habilidades de ladrão uma vez mais, dependendo de como as coisas se dariam dali para a frente.
Tinha pouca munição e nenhum dinheiro – e isso era um problema que exigia uma solução. Mas estava colocando o carro na frente dos bois.
Pensando assim, foi para um beco tão estreito e escuro como o interior do seu crânio. O vento não conseguia entrar naquela fenda criada pelos prédios de tijolos, e a neve formara grandes bancos nas duas extremidades, deixando um vácuo no meio. Ficou num dos lados, agachado e se esgueirando ao longo dos espaços formados pelas soleiras e uma ou outra ocasional lata de lixo.
Soube que estava no local correto ao ver três marcas fundas de facadas na parte superior direita da moldura da porta – e quando virou a maçaneta velha, não esperou que ela fosse girar. Mas girou.
Relanceando para a direita e para a esquerda, depois para cima, enfiou os ombros pela abertura e entrou.
Quando se fechou ali dentro, não disse nada. Seu cheiro anunciaria sua presença – assim como os cheiros que o receberam lhe disseram que seus machos estiveram ali bem recentemente. Numa questão de horas.
Era ali que vinham ficando.
Com as janelas cobertas por tábuas e a porta fechada, resolveu se arriscar e acender o segundo sinalizador. Quando a luz avermelhada explodiu na ponta, ele moveu o bastão ao redor lentamente.
Era a cozinha de um restaurante abandonado, com todo tipo de utensílios e panelas velhas, engradados e baldes de plástico cobertos por uma camada grossa de poeira. Havia vestígios dos machos terem ficado ali, todavia, lugares vazios junto às paredes onde os imensos corpos se esticaram para descansar.
As caixas de pizza da Domino’s o fizeram sorrir. Eles sempre gostaram daquela pizzaria.
Depois de dar a volta em toda a cozinha, e depois seguir para a frente do restaurante, encontrando-o similarmente selado, desordenado e vazio, voltou a passar pela porta pela qual entrara.
Voltando para a tempestade.
CAPÍTULO 41
Fora um bom plano. E como com todos os bons planos que acabam sendo ruins, tudo começara bem: Blay assumira o volante do novo sedã Volvo do pai, com o pai indo ao seu lado na frente e a mãe no banco de trás com as costas apoiadas na porta e o pé ruim sobre o banco. Sim, claro, divertiram-se um pouco para saírem do caminho de carros da casa, mas quando chegaram à estrada principal e depois entraram na Northway, nenhum problema.
Bem, evidentemente, a estrada estava fechada, porém, aquilo era Nova York e as pessoas estavam pouco se fodendo com isso, portanto as pessoas criaram duas faixas paralelas bem no meio das duas pistas que levariam para o norte. Tudo o que você precisava fazer era manter um ritmo constante enquanto o para-brisa à sua frente se transformava naquilo que Han Solo via toda vez que a Millenium Falcon avançava em hipervelocidade.
Portanto, tudo somado, foi um bom começo. Ouviram o bom e velho Garrison Keillor, e cantaram junto com a sua versão de “Tell Me Why” e quase conseguiram se esquecer de que estavam entrando na parte das saídas longas, aquelas entre as quais não havia saída em quinze, vinte ou até mesmo trinta quilômetros em cada trecho.
A guinada para o pior aconteceu sem preâmbulos nem um aviso de cortesia de que talvez precisassem ligar para Houston por estarem com problemas. Avançavam a modestos 50 km/hora, mantendo-se nas faixas, descendo um declive... quando o Volvo acertou um trecho de gelo que não entrou em acordo com seus pneus, com o controle de tração, e tampouco com a tração das quatro rodas.
Num minuto estavam muito bem, no seguinte, em câmera lenta, fizeram uma pirueta e... aterrissaram numa vala.
Numa maldita vala de verdade.
De ré.
A boa notícia, Blay supôs, era que ele conseguira desacelerar o processo de modo que os airbags não foram acionados na sua cara e na do seu pai. A ruim? A “vala” estava mais para uma ravina capaz de engolir o carro sueco inteiro.
A primeira coisa que Blay fez foi ver como a mãe estava, pois ela estivera sem cinto.
– Como estamos aí atrás?
Ele tentou parecer relaxado, mas não respirou direito até a mãe levantar os polegares.
– Bem, isso foi excitante. E eu estou ótima.
Enquanto o pai e a mãe começaram a conversar nervosos, ele olhou para cima, bem para cima, onde estava a autoestrada. Depois desligou o motor. Eram grandes as chances de o cano de escapamento estar entupido pela neve, e caso o aquecedor continuasse ligado, acabariam mortos antes de serem incinerados pelo sol da manhã.
– Alguma possibilidade de conseguir se desmaterializar? – perguntou à sua mahmen.
– Sim, claro. Sem problemas.
Dez minutos fechando os olhos e se concentrando da parte dela mais tarde, foi claro que aquela era uma causa perdida. E nem era preciso dizer que nem ele nem o pai sairiam do carro sem ela.
E foi assim que ele acabou ligando para Qhuinn.
Bem, essa decisão demorou um tempo para ser tomada.
E com o macho vindo para ajudá-los sem demora, Blay continuou sentado com as mãos apertando o volante apesar de não estarem indo a parte alguma, e se perguntando se não deveria ter ligado para John Matthew em vez disso.
Ou quem sabe, para a maldição Fada Açucarada do Quebra-Nozes.
– Vai ficar tudo bem – a mãe disse do banco de trás. – Qhuinn logo estará aqui.
Enquanto Blay relanceava pelo espelho retrovisor, notou que ela subira o zíper da parca.
– É.
Maldição, deveria ter pedido que Jane fosse até a casa dos pais. Mas estivera pensando em Assail e em qualquer outro que pudesse estar ferido. Pareceu-lhe egoísmo tirar qualquer um dos médicos ou Ehlena da clínica.
Além disso, Manny, como humano, não tinha como se desmaterializar.
Não, fora melhor mesmo chamar Qhuinn. Ainda mais que estava tentando tranquilizar os pais quanto ao fato de ter passado uma, ou melhor, duas noites em casa – sem mencionar os gêmeos. Sabia muito bem que não estava conseguindo enganá-los, mas ainda não estava pronto para tocar no assunto: ah, a propósito, sabem aquelas crianças que vocês tanto adoram? Pois é, mãe, inclusive aquela que tem o seu nome? Então, eles não vão mais ser...
No meio da tempestade de neve, um fantasma apareceu. Um fantasma enorme de gorro.
– Ah, aí está ele – disse a mãe do banco de trás.
E o alívio dela era o tipo de sentimento que Blay não poderia reconhecer sentir. Só que, sim, estava contente porque o irmão estava ali. Fala sério, aquela era a sua mahmen. Precisava levá-la para a mansão – e ele sabia que nem uma nevasca impediria Qhuinn de ir buscá-los.
Sim, aparentemente a linha divisória não fora delimitada pela força dos ventos e da neve que cegava,
Não, fraldas eram a divisória.
– Fiquem aqui – Blay anunciou ao tentar abrir a porta.
Tivera a intenção de emergir triunfante, de igual para igual que fora temporariamente superado pelo fracasso dos seus malditos radiais Bridgestone. Mas a maldita porta estava emperrada.
Acabou se desmaterializando por uma abertura de dois centímetros na janela.
Maldição, que frio, pensou ao ser estapeado no rosto pelo vento.
– Ela está machucada! – ele gritou contra o vento.
Qhuinn só o encarou, aqueles olhos diminuindo a distância que os separava, inquisidores, suplicantes. Mas logo o cara voltou à realidade.
– Por causa do acidente?
– Não, antes disso! Ela escorregou e machucou o tornozelo de novo. Estava sem a bota. Eu estava tentando levá-los ao centro de treinamento.
– Deveria ter me ligado antes... Eu teria...
No meio da tempestade, outra figura surgiu. Tohr. E quando Qhuinn notou sua presença, pareceu surpreso. Depois aliviado.
– Ela consegue se desmaterializar? – Qhuinn gritou ao se concentrar novamente.
– Não! E não vamos deixá-la!
Qhuinn assentiu.
– Preciso ir pegar o Hummer!
Gritavam para se fazer ouvir, as mãos ao redor da boca, os corpos lutando contra o vento – e Blay pensou que era estranho, mas aquilo era bem semelhante a quando tentaram se comunicar a respeito dos eventos em relação a Layla e as crianças. Uma tempestade os envolvera, abalando a ambos, criando uma nevasca emocional que tornou o cenário ao redor deles impenetrável – e o tempo ruim ainda tinha que passar.
Na verdade, ele temia que jamais fosse passar.
– Vou ficar com eles! – Blay disse.
Tohr se pronunciou.
– Vou para casa para buscar cobertas! E depois volto para ajudar a montar guarda!
Blay teve que virar a cabeça para tirar a neve dos olhos.
– Obrigado!
Quando sentiu a mão de Qhuinn no seu ombro, sobressaltou-se, mas não recuou.
– Já volto, ok? – informou o Irmão. – Não se preocupe com nada.
Por uma fração de segundo, Blay apenas fitou os olhos despareados. Algo fez com que ao vê-los, tão preocupados e intensos, a dor no meio do seu peito se renovasse como no instante em que fora criada.
Mas não foi só isso o que sentiu.
Seu corpo ainda desejava o cara. Seu corpo ainda estava pronto... para mais de Qhuinn. Maldição.
Sem nem mais uma palavra, Qhuinn sumiu, assim como Tohr.
Blay permaneceu na nevasca por mais uma ou duas batidas de coração, depois se virou e olhou para cima, na direção da estrada. Conseguiram quebrar o guard rail.
Antes de voltar a entrar no carro, deu a volta para a frente, abaixou-se e apanhou seu canivete. Estava sem luvas, por isso trabalhou rápido, limpando a neve e retirando os dois parafusos que prendiam a placa para tirá-la. Depois enfrentou o vento e foi para a parte traseira, fazendo a mesma coisa com a placa de trás, colocando as duas no bolso da jaqueta.
Desmaterializando-se para dentro do carro, sorriu para os pais.
– Eles já vão voltar. Não vai ser um problema.
Sua mahmen assentiu e sorriu.
– Eles são simplesmente os melhores.
– Uh-hum. – Apontou para o porta-luvas. – Pai, importa-se em...
– Já fiz.
O homem lhe deu o documento e a papelada do seguro, ambos falsificados por V., e Blay também os guardou dentro da parca. O número do chassi fora apagado assim que compraram o carro pensando em situações como esta – quando se é um vampiro no mundo dos humanos, e o seu carro se acidenta, muitas vezes é melhor apenas abandoná-lo porque a dor de cabeça não valia a pena recuperá-lo.
E como andavam as coisas, demoraria bem uns dois dias até que alguém conseguisse chegar perto daquele sedã, por isso era melhor mesmo apenas se esquecerem dele.
Ao olhar para fora da janela lateral, Blay começou a sentir uma ansiedade crescente que não tinha nada a ver com o pé da mãe nem com a nevasca.
Não posso voltar para trás, pensou. Apenas seguir em frente.
– Vou sentir falta deste carro – a mãe murmurou. – Eu estava me acostumando a ele.
– Compraremos outro, querida – o pai disse. – E você vai poder escolher.
Uma pena que não se pode ir até a concessionária mais próxima dos relacionamentos para comprar uma nova versão do que quer tenha se acidentado, uma que talvez tenha algumas melhorias tecnológicas e suspensão melhor da parte do seu companheiro.
Mas a vida não funcionava assim.
CAPÍTULO 42
Atrás do volante do Hummer, Qhuinn sentiu que demorou um mês para ele voltar até onde o Volvo se suicidou na lateral daquela autoestrada. Concluiu, contudo, ao se aproximar da quilometragem que aguardava finalmente aparecer, que deveria ser grato por poder ir até lá de todo modo. Seu segundo SUV era durão assim mesmo, com seus pneus parecendo garras fortificadas com correntes King Kong, a base larga e a capacidade de cobrir grandes distâncias tudo o que era preciso numa noite como esta.
Mesmo quando se está resgatando o amor da sua vida e os pais deles do meio de uma nevasca.
Ainda que, com toda a robustez do seu veículo, a visibilidade estivesse uma merda e ele tivesse que trocar do farol alto para o baixo assim que ganhou velocidade na Northway: com sua vista aguçada, a iluminação ainda era suficiente e resolvia a questão que tivera com o brilho excessivo que as malditas Xenon criavam ao atingir os flocos de neve.
Ao passar pela quilometragem marcada, saiu da pista do meio e foi para o acostamento. Estreitando os olhos, apesar de isso não melhorar sua acuidade visual, tentou ver exatamente onde eles saíram da estrada na pista oposta da estrada.
Seguira alguns metros antes de resolver jogar tudo para o alto.
Virando o volante para a esquerda, cruzou a pista contra o fluxo contrário de carros – que era inexistente pelo menos naquele instante – e seguiu para o norte na pista contrária. Ligando a luz refletora da lateral, usou a manivela para direcionar o facho poderoso de luz para a lateral.
Encontrou o Volvo trezentos e cinquenta metros mais adiante, e algo em ver aquele utilitário saído da estrada naquele ângulo, metros abaixo do guard rail, fez com ele sentisse ânsia. Em vez se seguir o caminho do vômito, porém, ele freou, deixou a marcha em ponto morto e abriu a porta.
O Volvo perdera tração na base de uma descida, o para-choque frontal entrando com tudo na neve de uma maneira que a porta do motorista não podia ser aberta. Blay e a família saíram pelo outro lado, porém; ele e o pai saindo primeiro para depois ajudarem a mãe e sair de trás. Lyric fazia caretas de dor enquanto a ajudavam a sair, mas não reclamava. Ela estava tentando sorrir.
– Olá, Qhuinn – ela gritou na estrada quando ele desceu ao encontro deles.
Foi só o que ela conseguiu dizer. A movimentação evidentemente estava acabando com ela, e Qhuinn desejou poder ajudar.
Nesse meio tempo, Tohr também ficou de lado, com a coberta e a garrafa térmica que trouxera nas mãos. Qhuinn ficara surpreso ao ver o irmão aparecer ali, e cara, como foi bom saber que ele estava segurando as pontas enquanto ele trazia o Hummer.
– Eu a levo – o pai de Blay anunciou, como qualquer macho vinculado.
E em deferência a ele, todos recuaram enquanto ele segurava a companheira nos braços. Blay logo se postou atrás do pai, empurrando-os para cima da vala até o Hummer enquanto Tohr perscrutava a escuridão à procura de um possível inimigo e Qhuinn corria à frente para virar o carro e abrir a porta de trás.
Deus, permita que nenhum humano apareça. Especialmente se for algum carro de polícia de Caldwell ou estadual.
Mais um instante em que tudo parece demorar demais até que Lyric estivesse segura no banco de trás, e Qhuinn pudesse respirar fundo de alívio.
Mas ainda restava chegarem inteiros à mansão.
Enquanto Blay se acomodava ao seu lado na frente e o pai dele se ajeitava atrás com Lyric, Tohr se aproximou.
Qhuinn abaixou o vidro.
– Obrigado... Muito obrigado mesmo.
O irmão lhe entregou a coberta e a garrafa térmica.
– É chocolate quente. Fritz aparentemente o tem pronto para noites como esta.
– Vai voltar para o centro?
Tohr desviou o olhar para a neve que caía.
– Vamos juntos, concordamos com isso.
Qhuinn estendeu a palma.
– Amém, irmão.
Depois que apertaram as mãos, Tohr recuou.
– Eu os seguirei até em casa.
– Não precisa. Mas fico feliz que faça isso.
Tohr assentiu uma vez e deu um soco de leve no capô do carro.
– Boa viagem.
Qhuinn levantou o vidro e acelerou – devagar. O Hummer estava equipado para enfrentar todo tipo de terreno, dos mais lamacentos até a pior das neves, mas ele não se arriscaria com sua carga preciosa – e também havia o fato de a mãe de Blay sibilar toda vez que o SUV dava um solavanco em cima de um monte maior de neve.
Quando recomeçaram a viagem, a mãe e o pai de Blay ficaram conversando baixinho no banco de trás, palavras de conforto sendo dadas e recebidas, os murmúrios acolhedores e íntimos.
Basicamente o oposto do que estava acontecendo na frente do veículo.
Qhuinn relanceou para Blay. O macho olhava fixo adiante, o rosto estava impassível.
– Bem, vou levá-los direto para o centro de treinamento – Qhuinn disse.
O que, claro, era uma declaração completamente idiota. Ou será que ele pretendia levá-los pela chaminé como se fosse Papai Noel?
– Ótimo. – Blay pigarreou e depois desceu o zíper da parca. – Quer dizer que a Irmandade estava em campo hoje?
– O quê?
– Wrath os mandou a campo mesmo com esta nevasca? – Quando Qhuinn pareceu continuar confuso, Blay disse: – Você e Tohr estavam falando sobre estarem em campo?
– Ah, isso. Não. Todos foram dispensados.
– Então o que vocês estavam fazendo no centro?
– Ah, nada.
Blay voltou a se concentrar no para-brisa.
– Assuntos particulares da Irmandade, hum. Bem, sinto cheiro de pólvora em você.
Quando o Hummer chegou ao centro de treinamento, parando diante das portas reforçadas na base da garagem, Blay foi o primeiro a sair do carro. O trajeto até o complexo fora marcado por uma série de embaraçosas paradas e retomadas conversacionais entre ele e Qhuinn até ser um impasse se o completo silêncio era melhor do que os pigarreios. E, nesse meio tempo, na parte de trás, os pais ouviam tudo, mesmo enquanto fingiam estar conversando entre eles.
Nada como expor o pior do seu relacionamento na frente da mamãe e do papai.
Isso era quase tão divertido quanto um tornozelo fraturado.
Bem quando Blay abria a porta ao lado da mãe, o doutor Manello aparecia com uma maca, o macho humano sorrindo com jovialidade, mas também avaliando a situação com olhos de águia como todos os cirurgiões diante de um paciente.
– Como estamos, pessoal? – o cara perguntou enquanto Lyric se esforçava para sair do banco do Hummer. – Fico feliz que tenham chegado inteiros.
A mahmen de Blay inclinou a cabeça e sorriu para o médico enquanto se apoiava no seu hellren.
– Ah, fui uma boba.
– Não colocou a bota.
– Não, não coloquei. – Revirou os olhos. – Eu estava tentando preparar a Primeira Refeição. E deu nisto.
O doutor Manello cumprimentou o pai de Blay com um aperto de mãos e depois segurou o ombro de Lyric.
– Bem, não se preocupem. Vou cuidar bem de você.
Por algum motivo, aquela simples declaração aliada à absoluta confiança que o cara carregava como se fosse sua aura, fez com que Blay desviasse o olhar e piscasse rápido.
– Você está bem? – Qhuinn perguntou baixo.
Blay se controlou e ignorou o comentário enquanto a mãe era cuidadosamente colocada na maca e o doutor Manello fazia um exame rápido como se não conseguisse se conter.
– Quando você vai voltar para casa? – Qhuinn sussurrou.
Quando Blay não respondeu, o macho pressionou:
– Por favor... volte.
Blay se aproximou da maca.
– Mahmen, precisa das cobertas? Não? Ok, vou abrir a porta para vocês.
Com determinação, manteve a porta aberta e ficou de lado enquanto todos formavam uma fila e entravam no centro de treinamento. Depois de ter se certificado em fechar bem a porta atrás de si, juntou-se à marcha pelo corredor de concreto, passando pelas salas de aula e pelo refeitório que a nova turma de trainees usava.
Como tudo o mais em Caldwell, as aulas foram suspensas, não havia nenhum aluno por perto, todos permanecendo em suas casas.
Melhor assim, pois os gritos... Santa Virgem não mais Escriba, aqueles gritos.
– O que é isso? – a mãe de Blay perguntou. – Alguém está morrendo?
O doutor Manello meneou a cabeça. Embora o sistema de saúde dos vampiros não seguisse nenhuma Lei de Portabilidade e de Responsabilidade de Seguros de Saúde, o médico nunca falava dos seus pacientes, mesmo quando a informação fosse de um Irmão para outro Irmão – e Blay sempre admirara isso no homem. Na doutora Jane também. Inferno, naquela mansão todos tendiam a saber tudo sobre todos. Quando tudo estava bem? Tudo bem. Mas quando não estava?
A plateia amorosa e preocupada da mansão podia ser um tanto demais.
– Então, quando poderei ver os bebês? – O pai de Blay relanceou sobre o ombro na direção de Qhuinn. – Faz umas dez noites que não seguro meus netos nos braços. Isso é tempo demais. E sei que a grand-mahmen deles poderia se beneficiar com um pouco de alegria, concorda, meu amor?
Enquanto Blay refreava uma imprecação, fez questão de não olhar na direção de Qhuinn. Pelo menos sabia que poderia confiar no cara para ele se safar de...
– Com certeza. Mas podemos esperar até amanhã à noite? Porque eu adoraria levá-los até a casa de vocês para uma primeira visita.
Como é que é?, Blay pensou. Tá de brincadeira comigo?
Quando lançou um olhar fuzilante para o macho, a mãe de Blay encheu o silêncio com um arquejo de felicidade.
Virando-se na maca, ergueu o olhar para Qhuinn.
– Mesmo?
O Irmão ignorou propositadamente Blay enquanto todos entravam na sala de exames.
– Mesmo. Sei que queriam que fôssemos até lá e acho que agora seria ideal.
Inacreditável. I-na-cre-di-ta-vel-o-ca-ce-te.
Mas tinha que dar créditos ao cara pela boa jogada. Lyric vinha querendo cuidar dos bebês, e cozinhar e tirar fotos deles na sua casa já há algum tempo, apesar de nunca ter dito nada abertamente porque não queria ser insistente. Sua campanha fora muito mais sutil, nada além de comentários aqui a acolá a respeito de possíveis dormidas com eles, quando eles estivessem muito, muito mais crescidos, e sobre as visitas durante os festivais, quando eles estivessem muito, muito mais crescidos, e sobre noites de filmes quando eles estivessem muito, muito mais crescidos.
O desejo, no entanto, sempre estivera na voz dela.
Quando a mãe de Blay estendeu o braço e apertou o braço de Qhuinn, Assail escolheu esse instante para gritar de novo – que era, sabem, exatamente o que Blay estava fazendo em sua cabeça.
– Ok, vamos ver o que temos aqui.
Enquanto o doutor Manello falava, Blay ficou se perguntando a que diabos o médico se referia, quando se lembrou que, sim, de fato estavam na sala de exames. Depois de terem saído da estrada. No meio da pior nevasca noturna de dezembro de toda a história.
Puta que o pariu, o que mais queria era acertar a cabeça de Qhuinn com algum objeto. Um armário repleto de equipamentos médicos, ou quem sabe, aquela mesa logo ali.
– Vamos precisar de um raio X. E depois teremos que...
Enquanto o médico falava, o pai de Blay estava todo sério e concentrado, e Blay também queria estar assim. Em vez disso, esperou até que Qhuinn olhasse para ele.
E então movimentou os lábios: Corredor, agora.
Mensagem entregue, Blay se voltou para os pais:
– Só vamos sair um segundinho e já voltamos.
Odiou o modo como a mãe o fitou com aprovação, como se esperasse que o que quer que houvesse de errado fosse resolvido a tempo de a família formar um retrato perfeito de Normal Rockwell na noite seguinte.
Esse seria um presente que ela não receberia dele neste Natal.
No segundo em que Qhuinn se juntou a ele no corredor, Blay se esticou e fechou a porta atrás deles. E depois de verificar se não havia mais ninguém no corredor, ligou o aparador de grama.
– Tá de zoeira comigo, cacete! – disse num jorro. – Você não vai lá amanhã.
Qhuinn só deu de ombros.
– Seus pais querem ver...
– Pois é, aqueles dois bebês que você deixou bem claro que não são meus. Então, não, você não vai levar o seu filho e a sua filha para a casa dos meus pais, só para ter uma desculpa para me ver. Não vou permitir isso.
– Blay, você está levando isso tudo longe demais...
– Disse o babaca que quis botar uma bala na cabeça da mãe dos filhos dele. Enquanto ela estava diante dos berços deles. – Ergueu as mãos para o alto. – Qhuinn, você não pode ser assim tão envolvido em si mesmo.
O macho se inclinou para a frente.
– Não sei quantas vezes preciso dizer que sinto muito.
– Nem eu, mas desculpas não vão consertar isto.
Houve um instante de silêncio, então Qhuinn relaxou a postura para trás, com uma expressão remota tomando conta das suas feições.
– Então é isso – disse ele. – Está jogando todo o nosso relacionamento para o ar por causa de um comentário.
– Não foi um comentário. Foi uma revelação.
Uma que praticamente o matara bem onde estivera. Infernos, teria tido melhores chances de sobrevivência, caso Qhuinn tivesse atirado nele.
Qhuinn cruzou os braços diante do peito, de um modo que fez os bíceps ficarem tão protuberantes que forçavam as mangas daquela parca.
– Você se lembra... – O macho pigarreou. – Você se lembra lá de trás, há um milhão de anos, quando vinha para a minha casa depois que meu pai... Você sabe, depois que o meu pai acabava comigo?
Blay baixou o olhar para o piso de concreto entre eles.
– Qual das vezes? Houve tantas.
– Justo. Mas você sempre esteve lá por mim. Você entrava escondido, jogávamos Playstation e eu esfriava a cabeça. Você foi a minha salvação. O único motivo pelo qual estou vivo hoje. E pelo qual aquelas crianças existem.
Blay começou a balançar a cabeça.
– Não faça isso. Não use o passado para tentar fazer com que eu me sinta culpado.
– Você sempre me disse que o meu pai estava errado por me odiar. Disse que não entendia por que ele...
– Olha só, paguei meus pecados com você – Blay estrepitou. – Ok? Já paguei todos os meus pecados. Fui seu saco de pancada, seu Band-Aid, seu cobertorzinho de segurança. E quer saber por quê? Não por você ser tão especial. Era porque você era um vadio que eu não podia ter, e eu considerei que a sua promiscuidade significava que eu não bastava – e isso fez com que eu quisesse me provar pra você uma vez depois da outra. Mas não vou mais fazer isso. Você me afastou durante todo aquele tempo, enquanto fodia outras pessoas, mas eu vou deixar isso passar porque eu não tinha coragem de chegar junto de você e te dizer como eu me sentia na época. Mas quando você me afastou naquele quarto? Você sabia muito bem o quanto eu te amava. Não vou conseguir me recuperar disso...
– O que eu ia dizer – Qhuinn ladrou – era que você sempre me disse o quanto lamentava por ele não conseguir me perdoar por algo que eu não podia mudar...
– Isso mesmo, o seu DNA não é culpa sua. Que diabos isso tem a ver com qualquer coisa entre a gente? Está querendo dizer que não é responsável pelo que sai da sua boca? – Blay meneou a cabeça e começou a andar. – Ou melhor, que não é culpa sua que você me tirou das vidas daquelas crianças?
– Eu me convidei para ir para a casa dos seus pais amanhã à noite, lembra? Está claro que eu não estou te tirando das vidas deles. – Qhuinn ergueu o queixo. – O que eu quero dizer é que não entendo como alguém que defende a importância do perdão está se recusando a aceitar o meu pedido de desculpas.
Sem pensar a respeito, Blay enfiou a mão no casaco e pegou o maço de Dunhill. Quando acendeu um, murmurou:
– Sim, voltei a fumar. Não, isso não tem nada a ver com você. E quando eu estava falando do seu pai, era a respeito da cor dos seus olhos, pelo amor de Deus. Eu não estava pedindo que se afastasse do que pensava ser seus filhos. Aquilo era a minha vida, Qhuinn. Aquelas crianças... eram o meu futuro, o que restaria de mim depois que eu morresse e não estivesse mais aqui. Elas seriam... – Quando a voz dele se partiu de emoção, ele deu um trago. – Elas levariam adiante as tradições dos meus pais. Seriam marcos, a felicidade e uma completude que nem você consegue me dar. Isso não é nada comparado a um acidente genético que resultou em você ter um olho azul e o outro verde.
– Tanto faz, Blay – Qhuinn disse sombrio ao caminhar em círculos. – Este defeito foi a minha vida inteira, e você sabe disso. O meu defeito na casa dos meus pais foi toda a minha porra de existência. Eu fui afastado de tudo...
– Então tudo bem, sei como se sente.
Quando se encararam, Qhuinn balançou a cabeça.
– Você é tão ruim quanto o meu pai, sabia? É mesmo.
Blay apontou o cigarro aceso na direção do cara.
– Vai se foder. Por isso. Sério.
Qhuinn encarou através do ar tenso por um momento. Depois disse:
– O que está acontecendo aqui. Isto é, sério que você quer terminar? Está querendo voltar para o Saxton ou talvez transar com outro? Quer fazer do jeito que eu fazia? É por isso que você está agindo assim?
– O que eu estou fazendo... Espera aí, como se eu estivesse me aproveitando disso para ter uma saída? Acha mesmo que esta é uma chance para eu tomar uma decisão? Acha de verdade que eu estou jogando aqui? – Ele balançou a cabeça tantas vezes em descrença que chegou a ficar tonto. – E não. Não quero ser como você. Você e eu não somos iguais e nunca seremos.
– E é por isso que a gente dá certo. – De repente, a voz de Qhuinn ficou aguda. – Você é o meu lar, Blay. Sempre foi. Mesmo com Lyric e Rhamp na minha vida, fico perdido sem você... Sim, claro, fico puto no meio de uma conversa como esta, mas ainda sou macho o bastante pra admitir que não sou nada se você não estiver comigo. – Pigarreou. – E para a sua informação, vou brigar, por você, por nós, por isso vou te perguntar de novo. O que vai ser preciso? Sangue? Porque o que eu precisar fazer para te ter de volta, eu vou fazer.
Quando Assail soltou mais um grito, Blay fechou os olhos, com uma exaustão pesando sobre ele como uma mortalha.
– Sim, claro, tanto faz – murmurou. – Sangue. Vai ser preciso sangue. Agora, se me dá licença, vou ver como a minha mãe está.
– Amanhã à noite eu vou com as crianças para a casa dos seus pais.
– Eu não estarei lá.
– Essa é uma decisão sua. E vou respeitá-la. Mas eu falei sério. Não importa o que for preciso, eu vou te provar que te amo e que preciso de você e que te quero – e que aquelas crianças são suas.
Com isso, o Irmão se virou e se afastou pelo corredor de concreto, com a cabeça erguida, os ombros aprumados, os passos ritmados...
– Filho?
Blay se assustou e se virou de frente para o pai.
– Como ela está? Já fizeram o raio X?
– Ela está chamando por você. O doutor Manello disse que talvez tenham que operar.
Merda.
– Sim, claro. – Passou o braço ao redor dos ombros do pai. – Venha, vamos decidir o que precisa ser...
– Você e Qhuinn estão bem?
– Maravilha. Estamos ótimos – ele respondeu ao empurrar a porta da sala de exames. – Não tem com que se preocupar. Vamos nos concentrar na mamãe, está bem?