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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESCOLHA
A ESCOLHA

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 22

E, no entanto, ele não a matou.

De alguma forma, apesar da inanição de Xcor, Layla o sentiu soltar seu pulso bem quando ela começava a sentir os efeitos da alimentação dele, sua pressão sanguínea começava a diminuir, a cabeça ficando levemente tonta.

Ela sabia que o recuo dele era custoso. As presas dele estavam totalmente expostas, e ele lutava contra si mesmo, os músculos nas laterais do pescoço se retesavam contra a pele, os braços e as pernas agitados contra a terra derretida e lamacenta debaixo do corpo nu.

E ele estava total e completamente... ereto.

Quando ele estivera numa situação de vida ou morte, a nudez dele fora fácil de não perceber. Aliás, estavam bem longe de saírem desse ponto, naturalmente, como V. diria. Mas naquela fração de segundo de alívio, ela ficou vitalmente ciente de quão masculino ele verdadeiramente era.

Xcor era ríhgido, de fato.

Mas não se demoraria na ereção dele. De trás deles, luzes surgiram, e logo o som do ronco poderoso de um motor e de batidas em árvores. Layla deu um salto e ficou de pé, colocando-se entre Xcor e o que quer que...

O Range Rover atravessou a floresta como um touro investindo, parando pouco antes de abalroá-la. A porta do motorista se abriu e o coração de Layla subiu até a garganta.

No entanto, era apenas Vishous.

Bem, “apenas” sugeria que o Irmão seria uma presença benigna, e isso não podia estar mais distante da verdade. Vishous parecia positivamente furioso, as sobrancelhas baixas, os cabelos pretos bagunçados como se tivesse passado a mão por eles repetidamente, as tatuagens da têmpora e aquele cavanhaque tornando-o ainda mais sinistro.

– Terminaram? – o Irmão exigiu saber.

Recusou-se a olhar para ela, por isso ela falou ao assentir.

– Sim.

– Vou colocá-lo no...

– Não, eu faço isso.

– Você não é forte o bastante...

Ela se inclinou, forçou um braço por baixo das costas de Xcor e outro por baixo das pernas, a lama encharcando as mangas e grudando nos antebraços. Mas ela não se importou, assim como ignorou o modo como ele se debatia contra ela, e os protestos confusos escapavam da boca dele enquanto ela o suspendia do chão.

– Abra a porta – ordenou a V.

Depois do choque inicial, o Irmão atendeu ao pedido, abrindo caminho para que ela levasse Xcor. Foi difícil, os chinelos dela afundavam na neve, os galhos pareciam se agarrar a Xcor de propósito, e a lama escorria pela frente do seu roupão – e ela não teria conseguido caso ele não tivesse perdido tanto peso.

Mas, segundo seu ponto de vista, Xcor era responsabilidade sua e somente sua.

Colocá-lo no banco de trás foi complicado, e ele a ajudou ao puxar a parte de baixo do corpo, desabando de costas ao longo do banco. Ela queria entrar no carro ao lado dele, mas mesmo definhando, ele ainda era muito alto e não havia espaço para ela. Despindo a veste, cobriu-o com ela, ajeitando a peça o melhor que podia antes de correr para a porta do passageiro.

Somente de legging e uma blusa folgada, o frio a atingiu rapidamente, e ela já tremia quando fechou a porta.

– Ponha o cinto – V. murmurou. – Isto não vai ser fácil.

Verdade, Layla pensou ao passar o cinto pelo peito.

Imaginou que o Irmão fosse conduzi-los rapidamente. O que não antecipou foi que ele pisaria fundo no acelerador e os faria passar à toda em meio às árvores, os faróis iluminavam troncos e moitas pouco antes de eles passarem, e o SUV avançava aos trancos e barrancos num trajeto que ela esperava os levasse até alguma estrada.

Que poderia muito bem estar nos confins do mundo.

Girando o pescoço para trás, verificou como Xcor estava e tentou interceptar seu olhar – o que foi difícil visto que ela era sacudida para cima e para baixo, para um lado e para o outro, embora pelo menos Xcor estivesse em compasso com seus movimentos: o corpo sacolejando e se chocando contra o banco de trás. Ele fazia o que podia para se firmar, uma mão segurava o encosto para cabeça, um pé se apoiava na porta e todo o resto virava ovos mexidos numa frigideira.

Quando seus olhares finalmente se encontraram, a pergunta “você está bem?” foi feita por ambos silenciosamente... e respondida com um mútuo: “não sei”.

O fim do trajeto de partir os dentes chegou tão rapidamente quanto começou, o Range Rover saltando para fora do limite das árvores como se estivesse arrancando um casaco pesado demais, os pneus guinchando no asfalto numa curva ampla para se endireitar na pista, que ela esperava fosse até o fim.

E, verdade fosse dita, quando aceleraram ainda mais, a situação ficou muito mais tranquila, mais civilizada.

O que só enfatizou o quanto respiravam com esforço.

Virando-se para trás de novo, ela tentou enxergar na escuridão, através da janela de trás, mas não havia muito para ver. Só via entulho que arrastaram em seu rastro – e, nesse meio tempo, Xcor se largara sobre o banco, o corpo frouxo, a respiração dificultosa.

Mas estava vivo e levantou o polegar para ela.

Quando ela voltou a se concentrar no caminho à frente, só o que viu foi muito asfalto, uma linha branca em cada lateral, e uma dupla amarela no meio. Ah, espere... Uma placa com um cervo saltitante, o desenho em preto do animal com sua galhada no meio de uma placa em forma de losango da cor de um dente-de-leão.

Nenhuma palavra foi dita.

Nenhuma era necessária.

A princípio, ela não soube para onde estavam indo – e nem pretendia perguntar. Mas logo V. fez uma série de curvas que pareceu conduzi-los de volta à cidade. Provavelmente de volta a casa segura.

Estava certa.

Uns vinte minutos mais tarde, ele parou em segurança na garagem da casa e todos esperaram em seus lugares enquanto as portas se fechavam.

Vishous foi o primeiro a sair, e Layla não ficou nem um segundo atrás para poder cuidar de Xcor. Abrindo a porta junto à cabeça dele, pegou-o pelo braço e o ajudou a se ajeitar, mantendo o roupão enlameado cobrindo-lhe a nudez. Quando ele ficou de pé, ela segurou as mangas e as amarrou ao redor da cintura, e girou o tecido branco de modo que apenas o quadril, a lateral da coxa e a parte inferior da perna aparecessem.

– Apoie-se em mim – ela ordenou ao se acomodar debaixo dele e passar um braço pela sua cintura.

Vishous entrara na casa de pronto, mas deixara a porta aberta para eles, presa no gancho do piso.

– Vou levá-lo para baixo – ela disse. – Há duas suítes e uma sala de estar ali.

Xcor se apoiou nela, ainda mais quando subiram os três degraus para entrar na casa. Enquanto pensava na logística, ela não fazia a mínima ideia de como desceriam até o porão.

– Onde estamos? – ele perguntou, rouco.

– Numa casa segura.

– Da Irmandade?

– Sim.

Vishous estava na cozinha, apoiado contra o balcão e acendendo um cigarro, e nem lhes dispensou um olhar quando passaram por ele. Contudo, ele mais uma vez facilitara as coisas, deixando a porta pela qual passariam aberta, a luz acesa para que pudessem descer em segurança.

Puxa, aquela escadaria era estreita.

Xcor resolveu o problema soltando-se dela e se apoiando no corrimão. Quando ele chegou ao fundo, foi direto para um sofá que estava diante de uma TV de tela plana. Quando ele se largou, ela não entendeu bem quem exalou mais alto, se ele ou se o sofá.

Havia uma coberta vermelha e preta dobrada sobre as costas de uma poltrona do conjunto e ela a apanhou, retirando o roupão sujo da parte de baixo do corpo dele, substituindo-o por algo mais limpo.

Ela se aproveitou de um instante para respirar. E depois voltou à ação.

– Vou trazer comida.

Quando ele não discutiu, apenas se afundou ainda mais no sofá, ela imaginou se a viagem até ali não fizera o que a Mãe Natureza fracassara, e V. se recusara a fazer. Mas não... ele estava respirando.

Layla subiu rapidamente e, ao chegar à cozinha, fechou a porta de acesso silenciosamente. Havia coisas que ela e Vishous precisavam dizer – no entanto, ele não parecia disposto a conversar. Estava absolutamente composto enquanto encarava a ponta acesa do cigarro, as sobrancelhas baixas, a expressão tão neutra que ele parecia apenas um retrato de si mesmo.

Ela se aproximou e pousou a mão no braço dele.

– Vishous, obrig...

– Não toque em mim! – Ele se afastou dela. – Não ouse tocar em mim!

Os olhos reluziam com raiva enquanto ele batia as cinzas.

– Não confunda as coisas. Não estamos “nisso” juntos. Não somos um grupo junto a Xcor. Não acredito nessa fantasia romântica que criou pra si mesma. O que vou fazer é deixá-la aqui com um assassino e um telefone. Se estiver viva para atender o telefonema a respeito dos seus malditos filhos mais tarde, bem, você terá ganhado na loteria. Se ele resolver te matar e depois ligar pros amiguinhos para vir até aqui e se divertir com o seu cadáver? Desculpe, mas não sinto muito. De todo modo, estou pouco me fodendo com isto. Você o quer? Agora está com ele.

V. foi até a mesa e pegou o celular que havia deixado para trás.

Em seguida foi embora, passando pelas portas de correr e desaparecendo no ar.

Depois de um instante, Layla foi até lá e a trancou. Depois voltou e começou a verificar o que havia nos armários, à procura de latas de sopa.

A primeira coisa que Trez fez quando voltou ao restaurante foi entrar no escritório de iAm e procurar na bagunça da escrivaninha dele. Não teve que se esforçar muito para encontrar aquilo que procurava. O currículo da fêmea estava no topo de uma pilha e ele olhou o cabeçalho.

Ousaria fazer isso?

A pergunta foi respondida quando ele devolveu a folha para a pilha de contas e pedidos, e saiu sorrateiro pelos fundos do Sal’s, tal qual um criminoso. Desmaterializando-se, ele prosseguiu para uma área não muito badalada da cidade, até uma pensão que o fez querer gritar. A maldita construção tinha três andares em um quarteirão, e tinha pelo menos uma dúzia de janelas tampadas com tábuas. A pintura devia ter sido nova nos anos 1970, mas desbotara para um tom de amarelo mijo, e o casal que saía pelas portas duplas de metal bem poderiam passar por moradores de rua com aquelas roupas sujas e os cabelos imundos.

Será que estava no endereço certo?

Merda. Estava, sim.

Ela não deveria ficar ali, naquele ninho de humanos imundos. Pelo amor de Deus, ela dormia acima da terra com apenas uma cortina entre ela e o sol durante o dia?

No que ela estava pensando?

Enquanto Trez atravessava a rua, ele se preocupou com a possibilidade de aquilo não ser fruto de uma escolha.

Quando chegou à entrada, espiou através dos vidros cobertos por malha de arame. Era difícil enxergar porque a maldita coisa não devia ter sido limpa na última década, ou duas... Mas, do outro lado, aparentemente havia um “saguão” com luzes no teto e um carpete que bem poderia passar por azulejo por conta da ausência de fios, e uma parede de caixas de correio onde metade das portas estava quebrada, pensas para fora como se fossem línguas de animais mortos.

Era o equivalente a um cólon num prédio... Úmido, sem janelas, com manchas marrons nas paredes.

– Precisa entrar?

Um macho humano que fedia a bebida e cigarros passou por ele, abrindo a porta com um cartão e mantendo-a aberta.

Enquanto Trez contemplava se devia ou não entrar, passou um pensamento pela sua cabeça de que seria muito melhor, tanto para ele quanto para Therese se deixasse aquilo de lado. Se a esquecesse.

Mas acabou entrando mesmo assim.

Havia uns dois viciados no canto extremo, sacudindo as cabeças como se tivessem acabado de se injetar alguma coisa, e os olhos esbugalhados passaram por ele com a distinta falta de entusiasmo dos viciados em heroína. Não existia mais nenhuma alegria para eles. Só se consegue isso no começo durante a parte jovial do seu relacionamento com os opiáceos.

O elevador estava quebrado, uma fita amarela de atenção presa em diversas partes diante do painel, com uma placa escrita à mão, torta e afixada na parede como um Band-Aid. Ver aquilo o fez pensar no Otis do programa The Big Bang Theory – e estava disposto a apostar que aquele garotão ali estava quebrado há ainda mais tempo.

Só havia uma escada e ela estava entulhada e tinha cheiro de urina. À medida que ele subia até o terceiro andar, os barulhos que ouvia ao longo do caminho não eram mais otimistas e alegres do que o resto daquele pardieiro: gritos, música alta saindo de alto-falantes, batidas como se alguém estivesse socando a cabeça na parede repetidamente.

Jesus Cristo.

No andar de cima, ele olhou para a direita e para a esquerda. Não era preciso dizer que não existia uma placa indicando às pessoas a direção para determinados apartamentos. Ah, sim... Claro. Bem na frente dele, no nível dos olhos, havia um espaço mais claro na parede rachada de onde uma havia sido arrancada.

Porque algo assim podia ser reutilizado. Ou trocado por um prato de comida. Ou ser usado para repartir sua droga.

Ela morava no 309, que era o último à esquerda.

Maldição, odiou o número daquele apartamento. Não gostava de três nem de noves em sequência. Quatro-zero-dois era um bom número. Oito-zero-quatro. Dois-dois-quatro.

Era um cara divisível por dois. Não gostava de três, de cinco nem de nove.

O sete não era um problema, pensou ao parar diante da porta dela, porque dois juntos somavam catorze.

Treze era a ruína da sua existência.

– Tá procurando a garota?

Trez virou a cabeça. Logo em frente no corredor, um cara de camiseta regata e uma montanha de tatuagens estava parado na soleira da porta como se fosse dono do lugar, um verdadeiro Rei dos Babacas. Tinha um bigode reto, bolsas debaixo dos olhos como sacolas de lona e um perfume cortesia do crack que estivera fumando.

– É o cafetão dela ou algo assim? – O humano esticou o pescoço e depois coçou a jugular. – Qual é o preço dela? Ela é carne fresca...

Trez diminuiu a distância entre eles, agarrou o cara pelo rosto e forçou o merdinha para dentro do seu covil de destruição.

Quando Trez chutou a porta atrás deles, o babaca girava os braços para trás como se estivesse prestes a voar – e, olá, colega de quarto no sofá.

Trez usou a mão livre para sacar a arma e apontar para o cara do outro lado da sala.

– Dá o fora.

O drogado só levantou as palmas e deu de ombros, como se pessoas sendo enxovalhadas e Glocks sendo apontadas fossem parte da sua rotina – e ele não estava a fim de se meter nos assuntos alheios.

Trez empurrou o tarado contra a parede, mantendo a palma no rosto dele.

– Você não vai chegar perto dela. Se fizer isso, vou pegar todas as suas drogas, jogá-las na privada e dar descarga bem na sua frente. Depois vou te sequestrar e te largar num hospital do centro onde vão te manter contra a sua vontade enquanto o juiz decide pra qual instituição de reabilitação ele vai te mandar. Ouviu bem? Meta-se com ela e eu mando o seu traseiro por sistema, e a próxima vez que você vai chegar perto da próxima dose vai ser só depois de noventa malditos dias.

Afinal, não se trata alguém como ele com uma pistola. Eles já estão mortos.

E, não, Trez não sentia uma obrigação de ajudar aqueles ratos sem cauda. Matar-se com drogas era um direito dado por Deus às duas espécies, e ele não estava interessado em interferir no curso do vício de ninguém. No entanto, ficava mais do que satisfeito em usar qualquer fraqueza em benefício próprio.

Relanceou para o Cara do Sofá para se certificar de que o babaca também estivesse ouvindo.

– O apartamento dela é monitorado. Sei onde ela está em cada segundo do dia. – Sorriu de leve, mantendo as presas para si. – Se um de vocês chegar perto dela, eu vou saber.

Depois se concentrou naquele que segurava, apertando aquelas feições com tanta força que o bigode idiota do cara estava se misturando às sobrancelhas, como um Muppet cujo operador estivesse sofrendo um espasmo.

Quando Trez finalmente o soltou, o rosto do bastardo era como uma máscara de Halloween, inchada e deformada, o bigode formando um ângulo como um par de óculos quebrado.

Trez voltou a encarar o do sofá.

– Pode crer, cara – o cara dali garantiu. – Pode deixar. Ela não é pro bico de ninguém.


CAPÍTULO 23

Cedo ou tarde, quando se rouba para sobreviver, acaba-se roubando do sujeito errado. E Xcor cometeu esse erro em seu vigésimo sexto ano, num trecho de floresta há muitas léguas do chalé em que vivera com sua ama-seca, o qual mais tarde, após algumas idas e vindas, ele mesmo o abandonara.

Era obra do destino, ele supôs mais tarde.

O que lhe chamou a atenção a princípio, conforme avançava sozinho pela noite, foi o aroma de cozido de carne. De fato, há tempos se acostumara a procurar por alimentos, atendo-se às sombras com tanta competência e constância que começara a pensar em si como tal. Era melhor assim. Outros olhos sobre ele nunca eram coisa boa.

Na realidade, antes da transição, ele acalentara esperanças de que este seu defeito magicamente se consertaria. De alguma maneira, a mudança repararia a fenda em seu lábio superior, como se sua gestação necessitasse de esse último estirão de crescimento para ele estar totalmente pronto. Alas, não. Sua boca permaneceu como era, curvada para cima. Arruinada.

Horrenda.

Portanto, sim, era mais sábio permanecer nas sombras, e enquanto se protegia atrás do tronco largo de um carvalho, observava o brilho da fogueira ao longe na floresta como uma possível refeição ou fonte de suprimentos.

Ao redor das chamas estalantes, viu pessoas – machos – e eles bebiam ao redor da tremeluzente luz alaranjada. E também havia cavalos, amarrados um pouco mais distantes.

A fogueira era ampla. Obviamente não se importavam em ser ou não avistados, o que sugeria que fossem guerreiros, e possivelmente estariam bem armados. Também eram de sua espécie. Ele sentia seus cheiros no meio da fumaça, do odor dos cavalos, do perfume da campina e de mulheres.

Enquanto planejava sua abordagem, sentiu-se grato pela cobertura de nuvens que mantinha a lua ao longe e aumentava as sombras da noite. Desde que permanecesse longe do alcance daquela fonte de luz, era como se estivesse vestindo um manto de invisibilidade.

Aproximando-se, as chamas fizeram com que se lembrasse do chalé no qual habitara há mais de duas décadas. Partira de lá depois que a ama-seca ali o deixara, encontrando o orfanato mencionado pelo lacaio. Mas fora incapaz de se manter afastado por muito tempo, pensamentos a respeito do possível regresso de seu pai fazendo com que procurasse a estrutura novamente. No decorrer dos anos, partia de lá por certos períodos, especialmente durante os invernos, quando os lobos estavam famintos; no entanto, sempre regressava para lá.

Seu pai jamais apareceu.

E, então, a hora da sua transição chegou. No vilarejo, havia uma prostituta que regularmente servia aos machos de sua espécie, mas por conta de sua feiura, ele teve que ceder o chalé e tudo dentro dele em troca da veia dela.

Quando partira de lá na noite seguinte, com a detestável moita de framboesas e a floresta vicinal repleta de lobos, olhou uma derradeira vez por sobre o ombro. A ama-seca jamais regressara para ver como ele estava, mas ele não imaginara que a veria novamente. E já passara da hora de ele parar de fingir que o pai poderia procurá-lo.

Cedendo aquele abrigo para outra pessoa, Xcor de fato ficou à deriva no mundo.

Levou apenas uma coisa consigo: a coleira que estivera ao redor do seu pescoço até ele ter usado um machadinho para se livrar dele. Empenhara-se durante horas naquele couro, os então jovens braços sem a força necessária para ser mais eficiente. Mas sua ama-seca deixara para trás apenas uma pequena quantidade de água, e bem pouca comida, portanto, ele teve que se soltar.

Felizmente, caçar e matar eram habilidades que surgiram naturalmente nele.

Assim como roubar.

Odiara fazer isso no início. Mas nunca levara mais do que o necessário, que tivesse sido comida, roupas ou elementos para se abrigar. E era incrível o que uma pessoa era capaz de sacrificar em termos morais quando a questão era a sobrevivência. Também era incrível como era possível tramar métodos de evitar o sol numa floresta de árvores, ficando à frente de animais selvagens... e de encontrar maneiras de pagar pela veia das prostitutas.

As florestas do Antigo País se tornaram seu refúgio, seu lar, e ele ficou com elas, permanecendo só. O significava que ele se mantinha ao largo dos redutores que pairavam pelos pinheiros e pelas cavernas, e evitava o vampiro guerreiro que os caçava e travava lutas com eles, assassinando-os. Além disso, mantinha-se distante do campo de guerra.

Aquele não era lugar para ninguém. Nem mesmo ele, que tentava evitar a tudo, ouvira partes de relatos das depravações dali, e da crueldade do guerreiro que o administrava.

Voltando a se concentrar, fechou os olhos... e se desmaterializou até os galhos densos das árvores. E depois desapareceu até a seguinte, sempre ficando longe do solo, como um macaco.

Quando se está sozinho, sem ninguém para ajudá-lo, existe adaptação, pois se está sempre de olhos abertos quanto ao perigo, e tanto vampiros quanto humanos tendiam a estar muito mais preocupados com o que acontece no nível deles, em vez de com o que está acima deles.

Não muito mais adiante, ele observou o acampamento improvisado de um ponto de vantagem de não mais de dez metros, e dez metros acima do solo. Os vampiros de fato eram guerreiros, bem armados e de ombros largos, mas estavam embriagados e passavam uma mulher adiante como ela se fosse uma caneca de cerveja partilhada. A mulher estava ali porque queria, gargalhando enquanto se disponibiliza a cada um deles, e Xcor tentou se imaginar tomando parte de tal depravação.

Não.

Não se importava com sexo, pelo menos não com o daquele tipo. De fato, permanecia virgem, pois as prostitutas sempre lhe exigiram mais do que ele podia pagar pelo que jazia entre as coxas delas – além disso, não estava muito interessado em campos já tão arados.

Olhando para onde os cavalos estavam amarrados, concluiu que poderia invadir o local. Mas não levaria os cavalos, pouco importando o valor deles, visto que não queria ser responsável por outro ser vivo. Já tinha bastante dificuldade para se manter vivo e alimentado. De armas, no entanto, ele faria uso. Levava três adagas consigo, e uma pistola que não usava. Ela era incômoda e também existia a inconveniência de mantê-la abastecida com balas. Sua mira também não era das mais acuradas: ele lançava adagas com maior precisão. Ainda assim, parecia sensato levar ao menos uma arma de fogo consigo.

Talvez ele conseguisse surrupiar mais uma boa adaga, uma mais afiada que a sua mais cega? Um pouco de carne? Um cantil de água?

Sim, dessas coisas ele se beneficiaria.

Xcor se desmaterializou no chão, agachando atrás de outro pinheiro. Os cavalos estavam presos no limiar da fogueira, e viraram as cabeças em reação; e as selas estavam estocadas com artigos de primeira necessidade e outros pertences.

Não fez som algum ao se mover junto ao chão, a pele dos seus mocassins abafando-lhe as passadas e mascarando qualquer som.

Os cavalos viraram as orelhas e os pescoços ao registrarem sua presença, um deles relinchou como numa pergunta. Ele não estava preocupado. Estava acostumado a desaparecer na noite mesmo sob pressão e, além disso, os guerreiros estavam ocupados com outras coisas.

Xcor agiu rápido e com certeza ao vasculhar a sela do ruão que devia ter facilmente mais de dezesseis palmos de altura, levantando as abas pesadas de couro, investigando mochilas e sacos. Encontrou roupas, grãos, carne defumada. Pegou a carne, guardando-a em seu manto, e se moveu para o cavalo seguinte. Não havia armas, mas encontrou uma vestimenta feminina com odor de sangue dentro de uma das sacolas de lona.

Imaginou se a fêmea teria sobrevivido ao ataque. Pensou que talvez não...

A briga junto à fogueira começou seu nenhum preâmbulo, tudo estava bem até não estar mais, dois dos machos dando um salto na direção do outro, agarrando os pescoços, os corpos dançando em círculos enquanto tentavam subjugar um ao outro. Em seguida, algo pegou fogo, uma porção do casaco de um em chamas vivas, cor de laranja e amarelo.

O guerreiro não pareceu se importar, tampouco seu oponente. No entanto, os cavalos se assustaram, e quando aquele que Xcor tentava roubar recuou, sua mão ficou presa numa das sacolas de sela, a torção e a pressão prendendo-o.

De forma que, quando o cavalo se virou de lado, ele também acabou virando.

Ficando em plena vista de todos eles.

A mudança no acampamento foi imediata, a mulher foi largada de lado, a discussão entre os camaradas, esquecida, o intruso, um alvo de todos. E mesmo assim Xcor permaneceu preso ao cavalo sensível, dançando ao redor dos cascos pontiagudos, tentando libertar a mão presa.

Os guerreiros resolveram esse problema para ele.

Xcor foi erguido e isso bastou para mudar o ângulo do pulso. Seu braço subitamente voltou a ser seu e em boa hora. Foi golpeado no rosto por um punho do tamanho de uma rocha, mas, pelo menos, isso o mandou numa trajetória diferente do cavalo agitado.

Infelizmente, acabou no caminho de outro dos guerreiros, e Xcor soube que teria de estabelecer seu domínio logo ou acabaria sendo subjugado. Contudo, havia pouca esperança de isso acontecer – aqueles machos eram perigos em conflitos, socos e chutes voavam rápidos demais para ele se desviar ou retribuir, o ar foi expelido dos seus pulmões uma vez após a outra.

De fato, já tivera experiência com punhos antes desta vez. Mas contra humanos e vampiros civis. O que enfrentava agora era um inimigo completamente diferente.

Golpes continuaram a cair sobre sua cabeça e tronco, vindo mais rápidos do que ele conseguia combater, com mais força do que conseguia suportar, enquanto ele era passado adiante como a mulher havia sido, indo de um ao seguinte. Sangue jorrou do seu nariz e da boca, e sua vista ficou comprometida quando ele se virou, tentando proteger os órgãos vitais e o crânio.

– Larápio maldito!

– Bastardo!

Um soco o atingiu de lado e ele acreditou que algo tivesse se rompido internamente. E foi nessa hora que os joelhos cederam debaixo dele e ele aterrissou sobre folhas e terra.

– Esfaqueiem-no!

– Ainda não! – alguém disse num rosnado.

Uma bota o acertou debaixo das costelas e ele saiu rolando até a fogueira. Ficou tão atordoado que permaneceu deitado no lugar em que parou de costas, incapaz de recobrar o juízo a fim de proteger o rosto e virar numa posição defensiva.

Santa Virgem Escriba, acabaria morrendo. E provavelmente nas chamas que já começavam a chamuscar seu ombro, mão, e quadril através das roupas.

Um dos guerreiros, que tinha uma barba espessa e fedia a cabra morta, se inclinou sobre ele e sorriu, revelando presas tremendas.

– Pensou que poderia roubar de nós? De nós?

Agarrou a frente do manto de Xcor e suspendeu-lhe o tronco do chão.

– De nós!

O guerreiro o estapeou com a mão aberta com tanta força que foi como se ele tivesse sido atingido por uma tábua de madeira.

– Você sabe o que fazemos com ladrões?

Os outros se agruparam ao redor num semicírculo, e Xcor se lembrou dos lobos da floresta, naquela época em que vivera com a ama-seca. Uma força terrível pela qual ser capturado e usado como brinquedo. Uma rota rápida para o Fade.

– Sabe? – O guerreiro o sacudiu como se fosse uma boneca de pano e depois o largou com força. – Permita-me dizer-lhe. Nós cortamos as mãos dos seus pulsos, e depois nós...

Xcor não ousava olhar para o rosto pairando acima dele. Mas, pela visão periférica, ele viu que uma acha estava meio dentro e meio fora das chamas da fogueira.

Esticando a mão naquela direção, segurou-a e esperou pelo momento certo quando o macho relanceou para os compatriotas com jovialidade maligna.

Rápido como um raio, Xcor guinou a acha com força e atingiu o guerreiro na cabeça, derrubando-o sem sentidos de lado.

Houve um instante de surpresa de todos ali, e Xcor sabia que teria que agir com presteza. Segurando sua arma, agarrou uma das adagas que estivera embainhada no tronco da sua vítima e logo se pôs de pé.

E desta vez ele atacou.

Nenhum grito de guerra saiu da sua boca. Nenhum grunhido. Nenhum rosnado.

Nenhuma lembrança precisa do que fez. Só o que sabia, só do que tinha ciência, era que algo se libertava dentro dele. Fosse o que fosse, ele tivera pistas disso no passado, uma espécie de fonte de energia que era mais do que raiva, diferente do medo, fortalecendo seu corpo e sua mente. E conforme se apossava dele por dentro, seus membros assumiram o comando da mente, funcionando independentemente, sabendo melhor do que a sua consciência onde atingir, o que fazer, como se mover. Seus sentidos também se dissociaram da mente, elevando-se a um nível superior de precisão, quer fosse a audição para detectar algo que iria atingi-lo por trás, a visão para notar algo vindo pela esquerda, o olfato para informar que um agressor vinha pela direita.

Em meio a tudo aquilo, sua mente ficou completamente distanciada. E ainda assim livre para extrapolar e, dessa forma, refinar a sua execução.

No entanto, ele ainda perderia. Havia oponentes demais que eram habilidosos demais: depois que os derrubava no chão, eles não permaneciam ali por muito tempo, e a equação de que perderia forças antes que eles era fácil de calcular.

A solução para essa disparidade surgiu tão inesperadamente quanto aquela acha.

A princípio, ele não entendeu o que surgiu em seu campo de visão. Mas logo viu que era uma espécie de imensa lâmina negra do lado oposto da fogueira... A maior arma que já vira, apoiada contra uma pedra.

Bem quando um dos machos saltou para cair sobre ele, Xcor disparou e projetou o corpo acima das chamas, a cambalhota poupando-o do calor, a aterrissagem tão coordenada quanto a decolagem havia sido.

Projetando-se em direção daquela imensa lâmina curva, ele agarrou o cabo ao qual ela estava presa e...

Era uma foice. Um instrumento comum usado nos campos, a lâmina afixada ao suporte de madeira por amarras de couro tão firmes quando ossos ao redor da medula. Havia pouco tempo para compreender seus atributos. No fim, percebeu que não precisava.

Segurando com firmeza a vara, ele... atacou cada um deles.

A princípio, eles riram e zombaram dele, mas quando ele cortou o primeiro quase ao meio, a tática mudou. Pistolas foram sacadas, balas disparadas com muito barulho e pouca acuidade, o chumbo voando ao redor dele. Em seguida, os guerreiros coordenaram um ataque, postando-se numa formação de ataque.

Não fez diferença. Um a um, ele matou a todos, arrancando braços, ou pernas, ou estripando-os, sangue jorrou na noite escura, cobrindo-os como as roupas o faziam.

Até haver apenas um guerreiro – que era, na verdade, o barbado que ele atingira na cabeça com a acha. Assim que ele notou que os irmãos ou estavam mortos ou a beira da morte, disparou a correr pela floresta, com todas as forças que lhe restavam.

Os mocassins de Xcor não produziram som algum enquanto ele perseguia o guerreiro machucado num passo tranquilo, ele e o macho ferido resvalando em moitas e árvores enquanto o guerreiro tentava chegar aos cavalos. Xcor também estava ferido e sangrava, mas, por algum motivo, ele não sentia dor. Estava tanto entorpecido quanto energizado.

E logo tudo acabou.

O macho se deparou com uma rocha que não conseguia galgar, nem dar a volta por conta da subida íngreme.

Xcor sabia que tinha que terminar o serviço.

E lamentou por isso.

– Leve o que quiser – o guerreiro arquejante disse ao cuspir para o lado. – Apenas leve tudo o que quiser. Tenho armas. Aqueles cavalos lá atrás valem muito. Deixe-me em paz e eu o deixarei também.

Xcor desejou que as coisas pudessem terminar assim entre eles. Contudo, estava ciente de que se deixasse o guerreiro viver, ele seria um macho marcado. Ele era uma testemunha que devia ser eliminada, para que aquele guerreiro não encontrasse reforços e fosse atrás dele por ter matado seus companheiros.

– Apenas leve...

– Perdoe-me pelo que devo fazer.

Dito isso, Xcor afundou nos calcanhares, saltou adiante e moveu a arma num arco, cortando fora o braço que o macho erguera em defesa e acertando o pescoço em cheio.

Pelo resto de suas noites, Xcor se lembraria da cena daquela cabeça virando um toco em pleno ar, o sangue se empoçando nas veias abertas da garganta, rubro como vinho.

Quando o vento aumentou, o corpo despencou como o objeto inanimado que agora era e, de repente, a foice se tornou pesada demais para Xcor continuar a segurá-la. O equipamento rural que ele transformara em arma aterrissou aos seus pés, com a lâmina pingando sangue.

Xcor tentou fazer com que ar entrasse nos pulmões ardentes, e quando olhou para o céu, sua coragem e seu propósito o desertaram e lágrimas quentes se formaram nos cantos dos seus olhos.

Ah, como o cheiro do sangue que ele derramara se misturava ao perfume da terra, da grama, do musgo e dos liquens...

Não entendeu o que o golpeou. Num instante ele contemplava a tristeza que provocara. No seguinte, ele estava deitado de costas...

... preso pelo mais aterrorizante vampiro que já vira na vida.

Imenso, tão grandes eram seus ombros, que Xcor já não via mais o céu. E o rosto era inenarravelmente maligno, as feições se retorciam num sorriso desvirtuado que prometia sofrimento primeiro, depois a morte. E os olhos... Sem alma, tomados por uma inteligência fria e por um ódio incandescente.

Aquele era o lobo líder daquela matilha, Xcor pensou. Semelhante àquele que aparecera na porta aberta do chalé há tanto anos.

– Ora, ora, ora – disse uma voz grave como um trovão, afiada como milhares de adagas. – E pensar que chamam a mim de Bloodletter...1

Com um arquejo, Xcor se ergueu. Por uma fração de segundo, ele não soube onde estava e olhou ao redor em pânico.

As paredes da caverna já não estavam lá, nem as prateleiras com jarros, a maca e seus carcereiros da Irmandade. No lugar disso tudo... uma enorme tela de TV que no momento estava escura como um buraco na galáxia.

Sacudindo a cabeça, tudo voltou... A repentina mudança de ideia de Vishous, Layla retornando até eles na floresta, o glorioso presente da veia de Escolhida. Em seguida, aquele trajeto terrível em meio aos pinheiros até a estrada escorregadia que os levara até este bairro de subúrbio e esta casa suburbana.

Layla estava no andar de cima. Ouvia as passadas dela ali. E tinha a impressão que Vishous já não estava mais na casa.

Tirando as pernas de cima das almofadas de couro, observou a trilha de sujeira que deixara na escada e no tapete cinza claro até onde despencara. Havia agulhas de pinheiro e lama no sofá também... bem como no roupão branco de Layla que estava pendurado nas costas de uma poltrona.

O tecido que a adornara estava arruinado, machado de sangue e de lama.

Uma espécie de tema seu na vida dela, não?

Cerrando os dentes, levantou-se e espiou pelo corredor. Havia duas portas abertas, e quando se esgueirou até elas, avaliou os dois banheiros das suítes. Escolheu aquele que não trazia a fragrância de Layla, e usou a luz que vinha do corredor para passar ao longo da cama king-size e entrar no banheiro que...

Ah! Piso aquecido. Piso de mármore aquecido.

Após tanto sofrimento, primeiro do golpe na cabeça e dos derrames sofridos, em seguida aquelas vinte e quatro horas enregelantes na floresta, Xcor cambaleou ao sentir o calor que emanava pelas solas nuas dos seus pés.

Fechando os olhos, cambaleou na escuridão, todos os seus instintos gritando para que ele se deitasse no mármore e descansasse. Só que nessa hora ele pensou na sujeira que trouxera até aquela casa, em toda a lama e imundície.

Concentrando-se novamente, acendeu a luz do banheiro – e de pronto imprecou contra a claridade, protegendo o rosto com o antebraço. Quando suas retinas se reajustaram, teria preferido não se olhar no espelho acima da pia, mas isso era inevitável, por isso abaixou o braço.

– Santo Fade... – sussurrou.

O macho que o fitava de volta era quase irreconhecível. O rosto magro, pálido, barbado, as costelas e o estômago afundados, a pele solta que pendia debaixo do maxilar, dos peitorais, dos braços. O cabelo era uma confusão, e parecia haver sangue e terra em cada um dos seus poros, por todo o corpo.

Quando alguém está mais ou menos limpo, uma toalha de mão úmida esfregada sobre a pele com sabonete suficiente faz as vezes de higiene. No seu estado atual? Ele precisava de uma lavagem de carro. Talvez de uma mangueira industrial.

A ideia de Layla o ver assim fez com que ele se retraísse e desse as costas ao seu reflexo na mesma hora, ligando o chuveiro dentro daquela divisória de vidro. A água quente logo apareceu, mas antes que ele entrasse debaixo dela, abriu portas e gavetas do gabinete. A escova e a pasta de dentes que encontrou foram muito apreciadas, assim como o sabonete, o xampu e o condicionador.

Ele também pegou um barbeador e creme de barbear, levando tudo para o box.

O simples ato de escovar os dentes quase o fez chorar. Fazia tanto tempo que sua boca não ficava com hálito fresco. E depois o barbear... livrar-se dos pelos das faces e do queixo fez com que sentisse gratidão pela empresa que a produzia. Em seguida, o xampu. Usou-o duas vezes, e deixou o condicionador agir enquanto lavava a pele com o sabonete.

Não conseguia esfregar as costas inteiras, mas fez o melhor que pôde.

Quando finalmente saiu do chuveiro, havia uma camada espessa de condensação no espelho. Uma benção, claro, visto o quanto detestava o próprio reflexo. Enxugando-se, ficou se perguntando onde encontraria roupas – e, de fato, encontrou-as no armário do quarto: calças de nylon pretas, compridas o bastante para suas pernas, com um cordão que garantia que permaneceria presa em sua cintura e quadril agora tão estreitos. Uma camiseta preta que era larga o bastante para os ossos dos seus ombros, mas que estava frouxa no restante dele. Uma malha com algo escrito na frente.

Não encontrou sapatos, mas aquilo já era mais do que ele podia esperar.

Ao sair do quarto, imaginou que teria que subir.

O trajeto se mostrou desnecessário. A Escolhida Layla estava sentada na poltrona estofada ao lado do sofá, com uma bandeja de sopa fumegante, um pratinho de bolachas de água e sal, e um copo de chá gelado sobre uma mesinha baixa diante da TV.

Os olhos dela dispararam para os seus, mas não permaneceram ali. Trafegavam ao longo do seu corpo como se ela estivesse surpresa por ele ter tido forças para se banhar e se trocar.

– Trouxe comida – ela disse com suavidade. – Deve estar faminto.

– Estou.

Mesmo assim, ele se viu incapaz de se mover. Pois, de fato, ele planejara dizer adeus a ela na cozinha.

Não poderia ficar ali com ela. Por mais que desejasse isso.

– Venha e se sente. – Ela indicou o local em que ele estivera deitado antes. E claro que ela já limpara toda a sujeira, a lama que ele deixara ali tendo sido limpada com alguma esponja ou papel toalha.

– Tenho que ir.

Layla inclinou a cabeça e, quando ela fez isso, os cabelos loiros foram iluminados pela lâmpada do teto.

– Eu sei. Mas... antes que vá...

Em sua mente, ele ouviu a voz dela dizer: faça amor comigo.

– Por favor, coma isto – ela sussurrou.


Numa tradução livre, Bloodletter pode ser considerado “aquele que faz sangrar”. (N.T.)


CAPÍTULO 24

Vishous estava num tremendo mau humor quando voltou à mansão da Irmandade, e o que mais queria era ir para o Buraco e abrir uma garrafa de Grey Goose. Ou seis. Talvez doze.

Mas, ao reassumir sua forma no pátio, e parar no vento frio diante da fonte que fora drenada e coberta pela duração do inverno, soube que, por mais que desejasse fugir da situação na qual se metera voluntariamente, não tinha como escapar da confusão criada.

Indo em frente, chegou aos degraus de pedra que conduziam à entrada principal da mansão, e fitou as gárgulas empoleiradas bem no alto do telhado. O que não daria para ser um daqueles filhos da mãe inanimados, sem nada para fazer, nem nada com que se preocupar, só ficando sentados ali, tendo as cabeças ocasionalmente cagadas por um pombo.

Na verdade, essa parte era foda.

Tanto faz.

Escancarando a porta, pisou no vestíbulo e enfiou a cara na câmera de segurança. Quando Fritz abriu a porta e o cumprimentou com toda aquela sua alegria costumeira, Vishous teve que se controlar ao máximo para não soltar os cachorros em cima do pobre mordomo doggen.

Direto para a escadaria. Três degraus de cada vez.

E logo se viu diante das portas duplas fechadas do escritório de Wrath. Ouviu vozes vindas do lado oposto, na verdade, parecia uma discussão acalorada, mas perdão, sem desculpas, aquilo que tinha a relatar era de suma importância, mais do que praticamente qualquer coisa, salvo o Armagedom.

Bateu com força e não esperou por uma resposta.

A cabeça de Wrath se ergueu rapidamente de onde ele estava atrás da antiga escrivaninha que o pai usara, e por mais que aqueles olhos cegos não fossem visíveis graças aos óculos escuros, V. sentiu-se observar.

– Está precisando de uma cópia do Emily Post enfiada goela abaixo? – o Rei estrepitou. – Você não pode entrar aqui sem ser convidado, babaca.1

Saxton, o advogado real e perito nas Leis Antigas, relanceou de onde estava, junto ao cotovelo de Wrath. Havia um monte de documentos espalhados diante dos dois. Além de uma quantidade expressiva de textos antigos. Sax não disse nada, mas como o penteado normalmente sempre perfeito do cara estava desalinhado, podia imaginar que os dois tentavam chegar a uma conclusão quanto à custódia dos filhos de Qhuinn e Layla.

E, pois é, a Rainha estava sentada num dos sofás franceses delicados junto à lareira, com os braços cruzados sobre o peito e uma fenda tão profunda quanto uma ravina no meio da testa.

– Preciso de um minuto com você – V. disse a Wrath num tom baixo.

– Então vai poder voltar quando eu disser pra você fazer isso, caralho.

– Isto não pode esperar.

Wrath se recostou no imenso trono entalhado que fora do seu pai e do pai dele antes disso.

– Vai me falar do que se trata?

– Não posso. Lamento.

Houve um período de silêncio na elegante sala azul clara, e depois Wrath pigarreou e olhou na direção de sua shellan.

– Leelan? Pode nos dar licença um minuto?

Ela se levantou.

– Não creio que haja muito mais a ser dito. Você dividirá a guarda de maneira igualitária e Layla verá aqueles bebês hoje ao anoitecer. Fico muito feliz quando você e eu estamos de acordo. Isso diminui muito a tensão.

Dito isso, ela saiu do escritório de cabeça erguida e com os ombros aprumados – enquanto, à sua escrivaninha, o Rei levava a cabeça às mãos como se seu crânio latejasse.

– Não que eu discorde dela – murmurou quando as portas se fecharam num baque. – Só não quero mais malditas pistolas sendo disparadas na porra da minha casa.

A última palavra foi dita com muito mais volume.

Mas logo o Rei abaixou os braços e olhou na direção de V.

– Meu advogado pode ficar?

– Não, ele não pode.

– Maravilha. Mais um problema.

Saxton começou a recolher os papéis e livros, mas o Rei o deteve.

– Não. Você já vai voltar. Espere do lado de fora.

– Claro, meu senhor.

Saxton se curvou apesar de o Rei não conseguir enxergá-lo, mas o cara era assim mesmo, sempre cheio de classe, sempre apropriado. E, ao passar por V., apesar da hora inapropriada da sua interrupção, ele se curvou novamente.

Um bom macho. Provavelmente ainda apaixonado por Blay, mas o que se podia fazer?

Com isso, V. relembrou a conversa com Layla na casa segura e aquelas suas reminiscências que o assolaram na floresta. Cara, estava cansado pra cacete de romance, de amor verdadeiro e de toda essa bobagem.

– E então? – Wrath demandou.

V. esperou até que as portas duplas se fechassem de novo.

– Sei onde Xcor está.

Layla estava sentada na poltrona acolchoada diante de Xcor enquanto ele tomava a sopa. Ele também comeu todas as bolachas de água e sal, e depois todas as pizzas de pepperoni que ela colocou no forno antes de trazer a primeira leva de comida ali para o porão.

Ele não falou, e sem conversarem, ela se viu observando-o tão absorta que sentiu que deveria se desculpar por isso.

Santa Virgem Escriba, ele emagrecera tanto, e mesmo morrendo de fome, usou os talheres com uma precisão refinada, até cortando a pizza com garfo e faca. Também limpou os lábios com regularidade com o guardanapo de papel, mastigou com a boca fechada e não derrubou nada mesmo consumindo calorias rapidamente.

Quando, por fim, ele terminou, ela disse:

– Tenho sorvete de menta com lascas de chocolate. Um pote inteiro. Lá em cima... Você sabe, no congelador.

Pois é, onde mais estaria. Na estante de livros?

Ele só meneou a cabeça, dobrou o guardanapo e se recostou no sofá. Havia um volume considerável em sua barriga, e ele exalou fundo como se precisasse abrir espaço para tudo em seu tronco – e o ar era uma commodity menos desejável do que pizza.

– Obrigado – ele agradeceu baixinho.

Quando seus olhos se encontraram, ela ficou muito ciente de que estavam sozinhos... E, por um momento, entreteve a fantasia de que aquela era a casa deles, que seus filhos estavam adormecidos no andar de cima, e estavam prestes a aproveitar os instantes seguintes juntos.

– Preciso ir. – Dito isso, ele se levantou e levou a bandeja consigo. – Eu... eu tenho que partir.

Layla se pôs de pé e passou os braços ao redor do corpo.

– Tudo bem.

Ela se visualizou seguindo-o pelas escadas. E depois? Bem, talvez acabassem partilhando um abraço demorado e depois diriam adeus, o que a mataria...

Xcor abaixou a bandeja.

Quando deu a volta na mesa e abriu os braços, ela correu na direção dele. Pressionada no corpo dele, segurou-o com tudo o que tinha. Detestou a sensação dos ossos dele, os feixes de músculos que haviam definhado, mas ao virar a cabeça e apoiar a orelha no meio do peito dele, as batidas do coração estavam fortes, ritmadas. Poderosas.

As mãos dele, tão grandes, tão gentis, afagaram suas costas, subindo e descendo.

– É mais seguro para você assim – ele disse ao encontro dos seus cabelos.

Ela se afastou e levantou o olhar para ele.

– Beije-me. Uma vez antes de ir embora.

Xcor fechou os olhos como se estivesse sofrendo. Mas, em seguida, acolheu o rosto dela entre as palmas e abaixou a boca até a dela... quase.

Com apenas o espaço de um fio de cabelos entre eles, ele disse no Antigo Idioma:

– Meu coração é seu. Onde quer que eu vá, será com você, através da escuridão e na luz, em todas as minhas horas desperto e naquelas em que estiver adormecido. Sempre... com você.

O beijo, quando ele aconteceu, foi como a neve caindo, silenciosa e suave, mas foi quente, muito quente. E enquanto ela se recostava nele, os braços dele a envolveram e os quadris se encontraram. Ele ficou instantaneamente excitado – ela sentia a ereção firme em seu abdômen, e o desejava há tanto tempo que lágrimas surgiram.

Sonhos. Tantos sonhos ela tivera, situações imaginadas em sua mente em que ele finalmente a procuraria, e a despiria, e a tomaria sob o corpo, o sexo dele se enterrando no seu. Existiram incontáveis fantasias, cada uma mais impossível que a anterior, dos dois fazendo amor na propriedade do complexo, nos banheiros, na parte de trás do carro, debaixo da árvore na colina deles.

Sua vida sexual fora inexistente no mundo real. Na sua imaginação, entretanto, vicejara.

Mas nada disso aconteceria.

Xcor interrompeu o contato, apesar de ela saber que ele ia contra os instintos que o mandavam marcá-la como sua. De fato, um aroma emanava dele, algo pungente que invadiu suas narinas, excitando-a tanto quanto a sensação da ereção dele, do corpo, das mãos, da boca dele.

– Não posso tê-la – disse rouco. – Já provoquei danos demais até então.

– Esta pode ser a nossa única chance – ela se ouviu implorar. – Eu sei... Eu sei que você não voltará para mim.

Ele pareceu impossivelmente triste ao menear a cabeça.

– Isso não pode acontecer entre nós.

– Quem disse?

Agindo pelo desespero, agarrou-o pela nuca e o abaixou até a sua boca – e depois o beijou com tudo o que tinha, a língua invadindo-lhe a boca quando ele arquejou, o corpo se arqueando ao encontro do dele, as coxas se afastando para que ele conseguisse se aproximar mais de seu centro.

– Layla – ele gemeu. – Santo Fade... Isto não está certo.

Ele tinha absoluta razão, claro. Aquilo não estava nada certo se usasse o ábaco que regia o mundo todo. Mas ali, naquele instante, numa casa que de outro modo estava deserta, era...

De repente, ele a afastou de si. E bem quando ela estava prestes a protestar, ouviu passadas no andar de cima. Dois pares. Ambas muito, mas muito pesadas.

– Vishous – ela sussurrou.

A voz sem corpo do Irmão surgiu na escadaria.

– Pode crer. E eu vim com um amigo.

Layla se postou na frente de Xcor, mas ele não aceitou isso. Removeu o corpo dela para trás do seu, seu lado protetor recusando-se a deixar que ela o antecedesse.

O Irmão desceu primeiro pela escada, e empunhava duas pistolas – e, a princípio, ela não compreendeu quem o acompanhava logo atrás. Mas só existia um par de pernas longas assim. Apenas um peito com aquela largura. Apenas um vampiro macho no planeta com cabelos negros que ultrapassavam o quadril.

O Rei chegara.

E quando Wrath deu o passo final no porão, ele plantou os dois coturnos e inspirou fundo, as narinas se inflaram. Santa Virgem Escriba, ele era um macho enorme, e aqueles óculos escuros agarrados ao crânio, que não revelavam nada dos seus olhos, fazia com que ele parecesse um assassino.

O que, supostamente, ele era.

– Ora, ora, ora, sinto cheiro de romance no ar – ele murmurou. – Mas que diabos...


Emily Post é autora de um livro sobre etiqueta e boas maneiras. (N.T.)


CAPÍTULO 25

Enquanto Xcor encarava o antigo inimigo no rosto, não sentiu nenhuma animosidade em relação ao macho. Nenhuma raiva, nem cobiça pela posição do Rei. Nenhuma agressividade direcionada.

– Então. – Wrath disse numa voz adequada tanto ao aristocrata quanto ao guerreiro que era. – Da última vez em que botou os olhos em mim, eu acabei com uma bala na garganta.

Ao lado, o Irmão Vishous soltou uma imprecação e acendeu um cigarro. Era evidente que aquela visita não era algo que o guerreiro apoiasse, mas não era difícil imaginar que, se o Rei Cego tomava uma decisão a respeito de alguma coisa, ninguém o demoveria.

– Devo pedir desculpas? – Xcor perguntou. – O que é apropriado numa situação como esta?

– A sua cabeça numa lança – V. murmurou. – Ou as suas bolas no meu bolso.

Pelo modo como Wrath meneou a cabeça para o Irmão, era possível imaginar que ele estivesse revirando os olhos por trás daqueles óculos muito negros. E depois o Rei voltou a se concentrar.

– Não acredito que exista uma maneira de voltar atrás de algo como tentativa de homicídio.

Xcor assentiu.

– Imagino que esteja certo. E isso nos deixa exatamente onde?

Wrath relanceou na direção de Layla.

– Eu pediria que nos deixasse, mas tenho a impressão que você não fará isso.

– Eu preferiria ficar – disse a Escolhida –, obrigada.

– Muito bem. – Os lábios de Wrath se afinaram num sinal de desaprovação, mas ele não forçou. – Então, Xcor, líder do Bando de Bastardos, traidor, assassino, blá-blá-blá – que tremendos títulos você tem a seu favor, a propósito –, você se importa se eu lhe perguntar quais são os seus planos?

– Prefiro pensar que isso depende de você, não?

– Vejam só, ele tem cérebro. – Wrath riu com frieza. – Na verdade, vamos aguardar quanto a isso. Vou lhe fazer algumas perguntas, se não se importa? Maravilha. Obrigado por ser tão compreensivo.

Xcor quase sorriu. O Rei era seu tipo de macho em tantas maneiras.

– Quais são as suas intenções no que se refere ao meu trono?

Enquanto Wrath falava, suas narinas inflaram, e Xcor deduziu que o Rei Cego tinha alguma maneira de saber a verdade. Felizmente, não havia nenhum motivo para resguardá-la do macho.

– Não tenho nenhuma.

– Mesmo. E quanto aos seus meninos?

– Meu Bando de Bastardos me serviu em todos os modos. Iam onde eu ia, tanto literal quanto figurativamente. Sempre.

– Tempo passado. Eles o expulsaram?

– Acreditam que eu esteja morto.

– Pode encontrá-los para mim?

Xcor franziu o cenho.

– Agora sou eu quem pergunta, quais são as suas intenções?

Wrath sorriu de novo, revelando as presas.

– Eles não se livram só porque o plano para me matar foi uma das suas grandes ideias. Traição é como um resfriado. Você espirra nos seus amigos e passa a doença pra eles.

– Não sei onde estão. E essa é a verdade.

As narinas do Rei inflaram uma vez mais.

– Mas pode localizá-los para mim.

– Eles não estarão onde ficavam antes. Terão se mudado, talvez até voltado para o Antigo País.

– Está se esquivando da minha pergunta retórica. Consegue encontrá-los para mim.

Xcor relanceou para Layla, logo atrás. Ela o encarava intensamente, os olhos verdes estavam arregalados. Odiava desapontá-la, de verdade, mas jamais entregaria seus guerreiros. Nem mesmo por ela.

– Não, não os caçarei. Não trairei meus irmãos. Pode me matar, aqui, agora, se desejar. Pode me torturar atrás de informações que nunca surgirão, porque eu desconheço a localização deles. Pode me colocar sob o sol. Mas não o levarei até eles para que os condene à morte. Não são inocentes, é verdade. Todavia, não o atacaram, nem aos seus guerreiros. Ou atacaram?

– Talvez eles não sejam bons no que fazem. Já tentaram me matar uma vez, lembra? – O Rei bateu no coração. – Ainda está batendo.

– Eles não representam um perigo para você. São poderosos, mas a ambição era minha. Por séculos viveram contentes no Antigo País somente lutando e fodendo, e não tenho motivos para acreditar que essa condição não tenha sido retomada na minha ausência.

Ao se dar conta da sua franqueza, desviou os olhos para Layla, desejando não ter sido tão rude. No entanto, ela não parecia afetada.

Depois de um momento, Wrath ponderou:

– O que acha que vai acontecer depois desta noite?

– Como disse?

O Rei deu de ombros.

– Digamos que eu decida deixá-lo viver e o liberte... – Quando Layla arquejou, esse macho poderoso lhe lançou um olhar bravo. – Não se precipite, fêmea. Ainda temos uma grande distância a percorrer.

A Escolhida abaixou a cabeça em submissão. Mas seus olhos estavam inquietos, ardendo com um otimismo que Xcor não partilhava.

– Então, digamos que eu o liberte – Wrath prosseguiu. – O que fará?

Ante isso, Xcor evitou o olhar da sua fêmea.

– De fato, sei que o Antigo País é mais favorável nesta época do ano. Muito mais do que Caldwell. Tenho uma propriedade lá, e uma fonte de renda que é pacífica. Eu gostaria de regressar para o local de onde vim.

Wrath o encarou demoradamente, e Xcor enfrentou aqueles óculos escuros mesmo que os olhos por trás das lentes não o enxergassem.

No silêncio, ninguém se moveu. Ele não tinha certeza se alguém respirava.

E a tristeza que emanou de Layla era tangível. Mesmo assim, ela não discutiu.

Xcor pensou que ela entendia o quanto a situação era intratável.

– Já ouvi isso também – Wrath disse por fim. – A respeito do Antigo País. Lugar agradável. Ainda mais se tiver onde ficar e humanos que o deixam em paz.

Xcor inclinou a cabeça.

– Sim. É assim mesmo.

– Não estou perdoando nem esquecendo nenhuma maldita coisa aqui. – Wrath balançou a cabeça. – Essa merda não faz parte da minha natureza. Mas esta fêmea aqui – apontou para Layla – já passou por coisas demais graças a você. Não tenho que provar meu poder a ninguém, e não vou foder com a cabeça dela pelo resto das noites dela só pra ser um filho da puta vingativo. Tudo o que disse até aqui é a verdade que você conhece, e contanto que dê o fora de Caldwell, acho que ambos os lados podem viver com esse acordo.

Xcor assentiu.

– Sim, ambos os lados. – Pigarreou. – E se isso for ajudar numa paz futura, eu lhe digo que me arrependo das minhas ações contra você. Eu sinto muito. Havia muita raiva dentro de mim, e seus efeitos são corrosivos. As coisas são... diferentes... agora.

Ele relanceou para a Escolhida e depois desviou o olhar rapidamente.

– Eu sou... – Xcor inspirou fundo. – Não sou mais o que costumava ser.

Wrath assentiu.

– O amor de uma boa fêmea etc. e tal. Isso não me é desconhecido.

– Então, estamos acabados aqui? – Vishous proferiu como se basicamente desaprovasse tudo aquilo.

– Não – Wrath disse sem se desviar de Xcor. – Antes de encerramos esta merda, você vai fazer uma coisa para mim, aqui, agora.

O Rei apontou para o carpete à sua frente.

– De joelhos, bastardo.

Claro que Xcor teria que partir, Layla pensou ao tentar se recompor. Não poderia permanecer em Caldwell. Os outros Irmãos poderiam aceitar o perdão de Wrath aparentemente, mas coisas aconteciam no campo de batalha. Não havia modo de garantir que, no calor do conflito, um dos guerreiros do Rei não estaria fora do seu normal e numa posição incompatível com este acordo.

Especialmente Qhuinn.

E Tohr.

Só que ela não perderia tempo pensando nisso. Quando o Rei apontou para o chão diante dele, seu coração saltou até a garganta e ela olhou nervosa para Vishous.

Wrath dava todos os indícios de que aquele era um encontro de mentes, um acordo do tipo “viva e deixe viver”, simplesmente por estar declarando isto. Mas Vishous já a ludibriara antes, armando uma cilada da qual recuou, mas a qual poderia muito bem ter se mantido fiel.

Será que uma adaga ou um sabre seria lançado diante da garganta de Xcor? Matando-o ali, bem onde estava?

– Com que finalidade? – Xcor perguntou ao Rei.

– Abaixe-se e descubra.

Xcor relanceou para Vishous. Voltou a se concentrar em Wrath. Mas ainda ficou onde estava.

Wrath sorriu de uma maneira repulsiva, como um assassino prestes a abater.

– E então? Tenha em mente, estou com todas as cartas.

– Curvei minha cabeça uma vez antes, e apenas diante de um. Isso quase me matou.

– Bem, se não fizer isso agora, isso será a sua morte.

Diante disso, houve um som de metal contra metal, e com um choque de alarme, ela viu que Vishous desembainhava uma das adagas negras que estavam presas ao peito, com os cabos para baixo.

– Guarde isso – Wrath ladrou. – Isto acontecerá voluntariamente ou não acontecerá de modo algum.

– Ele não merece...

Wrath expôs as presas para o Irmão e sibilou.

– Suba. Vá pra porra do andar de cima agora. E isso é uma ordem.

A fúria do rosto de Vishous era tamanha que parecia que as tatuagens à têmpora se moviam sobre a pele. Mas logo ele fez o que lhe foi ordenado – o que fez Layla repensar exatamente qual a extensão do poder de Wrath sobre a Irmandade. No fim do dia, mesmo o filho gerado pela Santa Virgem Escriba evidentemente acatava as ordens do Rei.

Ainda que fosse óbvio que Vishous não estava nem um pouco satisfeito. O som das suas botas subindo pelos degraus era alto como uma série de trovões, e quando ele chegou ao andar de cima, bateu a porta com tanta força que ela sentiu os dentes se chocarem.

– Divertiu-se com o humor das tropas enquanto esteve no comando? – Wrath murmurou para Xcor.

– O tempo todo. Quanto mais forte o guerreiro...

– ... mais teimoso ele é.

– ... mais teimoso ele é.

Quando terminaram a frase usando as mesmas palavras, e no mesmo tom exausto, ela se surpreendeu. Todavia enfrentaram os mesmos desafios, ambos líderes de grupos de machos altamente carregados de emoções nas melhores circunstâncias... e extremamente perigosos nas piores.

Enquanto Vishous andava de um lado a outro acima das suas cabeças, as passadas um protesto não verbal que evidentemente pretendia ser transmitido para aqueles no porão, Xcor fechou os olhos por um instante demorado.

E então... lentamente se ajoelhou.

Por algum motivo, vê-lo ajoelhado fez com que lágrimas surgissem nos seus olhos. Mas, pensando bem, ver um macho orgulhoso se submeter, mesmo naquelas circunstâncias, era motivo para se emocionar.

Wrath, calado, estendeu a mão, aquela na qual o imenso diamante negro que indicava sua posição estava aninhado. No Antigo Idioma, o Rei proclamou:

– Jure sua fidelidade a mim, nesta noite e para sempre, não colocando ninguém da face desta Terra acima de mim.

A mão de Xcor tremia quando se projetou à frente. Segurando a palma de Wrath, ele beijou o anel e depois a apoiou sobre sua cabeça inclinada.

– Para sempre, eu juro minha obediência a você e apenas a você, não servindo a mais ninguém.

Ambos os machos inspiraram fundo. Então Wrath pousou a mão sobre a cabeça de Xcor, como se o estivesse abençoando. Erguendo a cabeça, o Rei procurou Layla com seus olhos cegos.

– Você deveria sentir orgulho do seu macho. Isto não é pouca coisa para um guerreiro.

Ela enxugou os olhos.

– Sim, eu sei.

Wrath virou a mão, oferecendo a palma para Xcor a fim de ajudá-lo a se levantar. E Xcor... depois de um instante... a aceitou.

Quando os dois guerreiros estavam frente a frente, Wrath disse:

– Agora, faça com que cada um dos seus guerreiros repita isto, e estarão livres para voltarem ao Antigo País. Mas precisarei dos votos de cada um deles, entendeu?

– E caso eles já tenham cruzado o oceano?

– Então você os trará de volta até mim. É assim que será. A Irmandade que me serve tem que acreditar nisto, e este é o único meio de fazer com que ele parem de caçar os malditos.

Xcor esfregou o rosto.

– Sim. Muito bem, então.

– Fique aqui enquanto estiver à procura dos seus meninos. Este será o nosso ponto de encontro. Farei com que V. deixe um telefone para que entre em contato conosco. Presumindo que seus garotos ainda estejam deste lado do lago, você nos chamará quando estiverem prontos e faremos isto um a um. Qualquer desvio neste nosso acordo será interpretado como uma agressão e lidado de acordo. Entende?

– Sim.

– Estou disposto a ser leniente, mas não sou idiota. Eliminarei toda e qualquer ameaça contra mim, entende isto também?

– Sim.

– Ótimo. Terminamos por hoje. – Pesaroso, Wrath balançou a cabeça. – E você acha que tem problemas? Pelo menos você não tem que voltar pra casa com aquilo.

Quando o Rei apontou para o teto, Vishous pisou com mais força – como se soubesse que era o assunto em questão.

Bem quando Wrath estava se virando, Xcor disse:

– Meu senhor...

O Rei olhou por sobre o ombro.

– Sabe, até que gosto de ouvir isso.

– Acredito. – Xcor pigarreou. – Em relação às ameaças contra a sua pessoa... Gostaria de alertá-lo a respeito de certo indivíduo contra o qual seria prudente estar atento.

Wrath ergueu uma sobrancelha por cima dos óculos.

– Diga quem.


CAPÍTULO 26

O sacrifício também estava nos olhos de quem vê.

Assim como a beleza, era pessoal, uma avaliação subjetiva, uma análise de custo e benefício sem uma resposta certa, somente uma bússola que girava ao redor do norte verdadeiro que variava de pessoa para pessoa.

Throe, filho gerado e depois esquecido de Throe, ajustou o belo casaco de cashmere ao redor do corpo delgado enquanto caminhava pela calçada desigual. O bairro, se é que alguém poderia se referir àqueles velhos apartamentos sem portaria e às horrendas lojinhas usando uma palavra tão acolhedora, estava mais para uma área delimitada do que qualquer um gostaria de chamar de moradia.

Mas, para ele, o sacrifício de ver tanta decrepitude e podridão valia o que conseguiria.

O que esperava poder conseguir.

De maneira geral, não conseguia sequer acreditar que estava naquela busca atual. Parecia... inapropriado... para um cavalheiro do seu status. Mas a vida seguira muitos cursos que ele não teria previsto sequer escolhido por vontade própria, portanto estava um tanto acostumado a surpresas – embora supusesse, mesmo sob esses prognósticos, este rumo ainda estava indefinido.

Mesmo para um aristocrata que fora alistado pelo Bando de Bastardos, tornara-se um guerreiro, tentara derrubar a coroa, e depois fora libertado daquele grupo de foras da lei para se arranjar entre os ricos e bem-nascidos como ele... só para ter escapado por pouco de ser queimado vivo quando sua amante fora assassinada por manter um escravo de sangue no porão.

Uma loucura de fato.

E seu estranho destino surtira muitos efeitos nele. Houve uma época em que fora verdadeiramente regido pelos princípios convencionais da lealdade e do decoro, quando se portara como um macho de valor perante a sociedade. Mas então tivera que confiar em Xcor para ahvenge uma desgraça que, em retrospecto, ele deveria ter cuidado sozinho. Uma vez dentro do círculo de guerreiros de Xcor, depois de ter superado todo tipo de tortura de um modo que surpreendera não apenas aqueles bastardos, mas também a si próprio, ele começara a acreditar que só se pode confiar em si mesmo.

A ambição, antes desdenhada por ele como uma atitude dos novos ricos, criara raízes e culminara no golpe contra o Rei Cego que quase dera certo. Xcor perdera o desejo de seguir em frente, no entanto.

E Throe descobrira que ele não havia perdido.

Wrath podia ter vencido por voto popular e castrado o Conselho da glymera, mas Throe ainda acreditava em seu íntimo que existia um governante muito melhor para a raça.

Ele mesmo.

Portanto, insistiria sozinho, encontrando alavancas e fazendo uso delas para engendrar o resultado que desejava.

Ou no caso da diligência desta noite? Criaria a alavanca, na verdade.

Parou e olhou ao redor. A promessa de muita neve estava no ar, a noite estava úmida e fria ao mesmo tempo, as nuvens se agrupavam com tal densidade que o céu estava cada vez mais baixo, próximo do chão.

Os números numa rua como aquela eram raros e difíceis de determinar visto que aquele não era um setor de Caldwell onde as pessoas cuidavam das suas propriedades. Ali, era mais provável que alguém invadisse a casa do vizinho para roubar xícaras de açúcar e ferramentas. Portanto, havia poucas placas, e mesmo as de rua haviam sido tiradas das esquinas.

Mas seu destino devia estar ali em algum lugar...

Isso mesmo. Ali. Do outro lado da rua.

Throe estreitou os olhos. E depois os revirou.

Não conseguia acreditar que de fato havia uma placa iluminada pis-cante na qual estava escrito VIDENTE na janela. Bem ao lado de uma compulsória mão aberta que estava acesa. Na cor roxa.

Enquanto aguardava que um carro passasse, e depois teve que colocar seus sapatos de camurça num banco de neve para passar pela sarjeta, decidiu que sim, os sacrifícios que tivera que fazer eram desagradáveis, mas eram coisas necessárias que tivera que suportar somente pelo tempo que seria obrigado. Por exemplo, não se conformava de viver à custa de fêmeas abastadas do jeito como vinha fazendo desde que deixara o Bando de Bastardos. Mas mesmo com o dinheiro que conseguira juntar nos últimos duzentos anos, seria incapaz de se sustentar no padrão que merecia. Não, isso demandava um capital na casa dos milhões de dólares, não na de centena de milhares.

Mas os sacrifícios. Por certo se transformara numa espécie de gigolô, fodendo aquelas fêmeas em troca de moradia, alimento e indumentária à altura do legado venerável da sua linhagem. Mas estava farto de pobreza depois daqueles anos sob o comando de Xcor.

Se nunca mais visse um sofá modular barato coberto por caixas vazias de pizza de novo, isso já seria cedo demais.

No pé em que estava agora, o sexo era um preço barato a pagar por tudo o que recebia em troca – e, além disso, tudo terá valido a pena assim que estivesse no trono.

Chegando ao outro lado da rua, saltou sobre o monte de neve e bateu os sapatos para se livrar da neve derretida.

– Uma vidente... – murmurou. – Uma vidente humana.

Aproximando-se da porta, que estava pintada de roxo, ele quase deu meia-volta. Tudo aquilo começava a parecer uma brincadeira de mau gosto.

De que outra maneira sua presença podia ser explicada ali...

Os três machos humanos que dobraram a esquina anunciaram sua chegada de três maneiras diversas. Primeiro ele notou o cheiro do cigarro que o do meio fumava. Depois houve a tosse do cara à esquerda. Mas foi o da direita quem foi que selou o acordo.

O cara parou na mesma hora. E depois sorriu, revelando um incisivo de ouro.

– Tá perdido?

– Não, obrigado. – Throe se virou para a porta e virou a maçaneta. Ela estava trancada.

Os três homens se aproximaram e, Deus, eles nunca ouviram falar de colônia pós-barba? Perfume? Na verdade, xampu parecia ser um conceito desconhecido para o trio.

Throe recuou um passo da soleira para poder olhar para as janelas acima. Estavam escuras.

Deveria ter ligado antes para marcar um horário, concluiu. Assim como alguém faria com um barbeiro. Ou um contador...

– Quer saber o seu futuro?

Isso foi dito bem próximo do seu ouvido, e quando Throe olhou nessa direção, descobriu que o trio se aproximara, formando uma espécie de colar ao seu redor.

– É pra isso que tá aqui? – Aquele com o dente de ouro sorriu de novo. – É supersticioso ou o quê?

Os olhos de Throe passaram por eles. Aquele com o cigarro o apagara, apesar de a coisa ter sido fumada apenas pela metade. E o candidato a uma doença pulmonar crônica já não estava mais tossindo. E aquele com o incisivo de catorze quilates enfiara a mão dentro do casaco de couro.

Throe revirou os olhos de novo.

– Sigam em frente, cavalheiros. Não são páreo para mim.

O líder responsável por toda aquela conversa lançou a cabeça para trás e gargalhou.

– Cavalheiros? Você é a porra de um inglês? Ei, esse cara é inglês. Você conhece o Hugh Grant? Ou o cara que finge que é americano no House? Qual é mesmo o nome dele...? Babaca.

No “babaca”, o cara mostrou o que parecia ser um belo canivete.

– Me passa a grana. Ou te corto todo.

Throe não conseguia acreditar nisso. Seus sapatos de camurça prediletos estavam arruinados, ele estava sendo forçado a lidar com humanos, e estava parado diante de um prédio mais adequado ao consumo de crack do que para qualquer negócio legítimo.

Muito bem, essa era a última vez que aceitaria o conselho de uma namoradinha da glymera que estivesse embriagada. Sem a defesa um tanto ébria da fêmea em relação a esta autoproclamada vidente, ele estaria, naquele momento, do lado certo da cidade, sorvendo seu copo de xerez.

– Cavalheiros, eu lhes direi isto apenas uma vez mais. Não são páreo para mim. Sigam em frente.

O canivete foi empurrado na direção do seu rosto, tão próximo que seu nariz corria o risco de ser aparado.

– Me passa a porra da grana e a merda do...

Ah, humanos...

Throe arreganhou as presas, mostrou as mãos como se fossem garras... e rugiu para eles como se pretendesse arrancar-lhes as gargantas.

A retirada foi divertida de ver, na verdade, e o alegou um pouco: aqueles três idiotas deram uma espiada na morte certa e decidiram que suas habilidades sociais dúbias eram desejadas em alguma outra parte. Na verdade, não poderiam ter executado uma retirada mais competente e completa caso tivessem usado as mentes conscientemente na ação.

Um, dois, três... Foram derrapando ao redor da esquina pela qual vieram.

Quando Throe encarou a porta uma vez mais, franziu o cenho.

Ela estava um centímetro aberta, como se alguém tivesse descido para destrancá-la.

Empurrando-a, não ficou nem um pouco surpreso em ver uma luz negra acima e um lance de escadas pintado na cor roxa logo adiante.

– Olá – ele disse.

Ouviu passadas subindo, atravessando a plataforma entre os degraus acima da sua cabeça.

– Olá – repetiu. Depois murmurou: – Esse mistério deliberado é de fato necessário...

Entrando, limpou os pés num capacho preto para tirar a neve dos sapatos. Depois seguiu no rastro de quem quer que tivesse ido à frente dele, subindo dois degraus de cada vez.

– E roxo de novo – disse baixinho ao virar na escada e seguir até a única porta do segundo andar.

Pelo menos sabia ter chegado ao seu destino. Havia o desenho de uma palma na porta, o contorno em preto dos dedos e das linhas da vida feito de qualquer modo, não de maneira adequada ou mesmo desenhada por algum artista.

Céus, aquilo era ridículo. Por que aquela fêmea embriagada iria saber qualquer coisa a respeito de contatar Ômega? Usando um portal humano, ainda por cima.

E mesmo enquanto hesitava, ele sabia que iria em frente naquele encontro de provável beco sem saída. Seu problema, claro, era que procurava um modo de se fortalecer, sem encontrar nenhum. Não queria acreditar que a glymera era verdadeiramente a causa perdida que aparentava ser. Afinal, se fossem incapazes de lhe prover uma plataforma da qual poderia assumir o papel de Wrath, onde mais ele conseguiria suprimentos, tropas ou coisas dessa natureza?

Os humanos não eram de grande ajuda. E ele continuava a acreditar que era melhor que a espécie invasiva desconhecesse a existência dos vampiros. Eles já sujeitaram tudo o mais aos seus desejos e sobrevivência, incluindo o planeta que abrigava suas vidas. Não, aquela era uma colmeia que era melhor deixar de lado.

Portanto, o que lhe restava? A Irmandade estava fora de questão. O Bando de Bastardos agora já não era uma opção. E isso o deixava com apenas outro caminho a ser explorado.

Ômega. O Maligno. O terrível equilíbrio para a Virgem Escriba...

A porta se entreabriu com um rangido saído direto de uma mansão mal-assombrada.

Pigarreando, ele pensou: perdido por cem, perdido por mil. Ou, no seu caso, perdido pela substituição do seu par de Ferragamo, que custava cerca de quinze mil dólares.

– Olá? – ele chamou.

Quando não houve resposta, ele se inclinou um pouco para dentro.

– Oi? Você está recebendo... – Qual seria o termo apropriado... Clientes? Loucos? Perdedores ingênuos? – Você poderia parar para conversar um pouco?

Ele encostou a mão na madeira e, de imediato, franziu o cenho, retraindo-a e sacudindo-a. Foi como se tivesse levado uma descarga elétrica pela palma.

– Olá? – repetiu.

Com uma imprecação, Throe avançou pelo interior escurecido – e se retraiu ante o cheiro. Patchouli. Deus, ele odiava patchouli.

Sim, lá estava o incenso sobre a mesa com pedras. Velas acesas nos cantos. Grandes extensões de pano em diferentes cores e desenhos pendurados no teto.

E, claro, ela tinha um pequeno trono com uma mesa redonda diante dele e... uma bola de cristal.

Aquilo era demais.

– Na verdade, acho que estou no lugar errado. – Virou-se. – Se me der licença...

O ruído que ecoou pelo lugar foi alto o bastante para tinir nos seus ouvidos e fazê-lo saltar para fora da própria pele.

Girando sobre os calcanhares, ele chamou:

– Madame? Está tudo bem?

Quando não houve resposta, ele se viu sobrepujado por uma sensação indescritível de paranoia. Relanceando ao redor, ele pensou: saia. Agora. Saia deste lugar.

Nada estava certo ali.

E naquele exato instante, a porta bateu e pareceu se trancar.

Throe se apressou até ela, agarrou a maçaneta e tentou girá-la de um lado e do outro. Ela não se moveu, e nem a madeira cedeu quando ele tentou arrancá-la dos batentes.

Throe ficou imobilizado, os cabelos na nuca se eriçaram.

Relanceando por cima do ombro, ele estava preparado não sabia para o quê. Mas havia algo no quarto ali com ele... e não era deste mundo.


CAPÍTULO 27

Na boate shAdo Ws, parado na beira da pista de dança, Trez supostamente observava a multidão diante dele. Na realidade, ele nada via. Não enxergava os fachos de laser roxos lançados sobre a nuvem de fumaça das máquinas. Por certo não os humanos que se amontoavam uns contra os outros como colheres empilhadas na gaveta de talheres.

A decisão de sair, quando lhe ocorreu, seguiu o padrão da noite: viera do nada e ele se sentiu impotente perante o comando.

Seguindo para o bar, encontrou Xhex com os braços cruzados e os olhos estreitados sobre um par de cabeças de bagre que exigiam mais uma rodada de drinques, apesar de estarem evidentemente acima do limite legal – e provavelmente drogados também.

– Bem na hora – ela murmurou sobre o barulho da música e do sexo. – Sei o quanto gosta de me ver limpar o chão com humanos.

– Na verdade, tenho que ir. Talvez eu não volte hoje, tudo bem?

– Claro que sim. Há quanto tempo venho te dizendo pra tirar uma folga?

– Liga se precisar?

– Sempre.

De modo pouco usual, Trez apoiou a mão no ombro dela e lhe deu um aperto – e se o gesto a surpreendeu, Xhex escondeu muito bem. Depois, virando-se ele...

A chefe de segurança o segurou pelo pulso, detendo-o.

– Quer que alguém vá com você?

– Como que é?

Os olhos cinza metálicos dela vasculharam suas feições, e o foco deles o fez sentir como se ela estivesse dentro da sua alma. Malditos symphatos. Eles deixavam a intuição no chinelo, pelo menos no que se referia a adivinhar o humor das outras pessoas.

– O seu emocional está todo desbalanceado, Trez. Não está?

– O quê?

Em seguida, ele se viu segurado pelo braço e estava marchando para os fundos, onde as meninas se trocavam e as encomendas eram entregues.

– De verdade, eu estou bem.

Mesmo enquanto ele protestava, ela só faltou empurrá-lo pela porta dos fundos da boate, já com o celular na mão, enviando uma mensagem.

Trez levantou os braços ao fazer os cálculos.

– Não incomode iAm... Xhex, sério, você não precisa...

Seu irmão literalmente de desmaterializou até ali um segundo depois de Xhex ter abaixado o celular, usando seu dólmã e chapéu de chef, com um pano de pratos na mão.

– Ok, isto é ridículo. – Trez pigarreou antes para que a voz parecesse mais convincente. – Sou perfeitamente capaz de ir sozinho aonde eu preciso ir.

– E onde seria isso? – iAm exigiu saber. – Uma casa de aluguel do outro lado da cidade? Talvez no terceiro andar? Qual era mesmo o número do apartamento... e não me diga que não leu o maldito currículo.

– Vão me dizer de que diabos vocês estão falando, meninos? – Xhex olhava de um a outro. – E quem sabe me explicar por que um macho que andou meio morto de tanto sofrimento nos últimos meses de repente está emanando seu cheiro de vinculação?

– Não – Trez interveio. – Não sinto a menor necessidade de explicar nada.

Um relance rápido de alerta na direção do irmão e Trez se perguntou se teria que partir para a porrada ali. Mas iAm só sacudiu a cabeça.

– Longa história – o bom chef murmurou. – Venha, Trez, deixa eu te levar pra casa.

– Posso me desmaterializar.

– Mas será que vai mesmo, essa é a questão...

– Você não tem tempo pra isso – Trez disse quando o cara fez menção de ir até a BMW de Trez.

Que era do mesmo modelo e fabricação da do seu irmão. Conseguiram uma barganha ao comprar duas, quem quisesse poderia tentar processá-los por isso.

E, caramba, iAm tinha de algum jeito se lembrado de levar as malditas chaves. Como se tivesse planejado aquilo, talvez com Xhex.

Lembrete mental: tirar a maldita chave do cara. E, caso não conseguisse, comprar um maldito carro novo.

– Venha – iAm disse. – Vamos embora.

Quando os dois começaram a olhar para ele como se tivesse crescido um chifre de unicórnio na testa, Trez considerou desmaterializar-se, deixando iAm sem ninguém para quem bancar o chofer e Xhex sozinha com suas teorias de saúde mental a respeito do seu “estado emocional”, o que quer que isso fosse. Mas algo nos recessos da sua mente por acaso concordava com eles. Por mais que ele detestasse admitir isso.

Portanto, como o bom idiota que era, foi para o lado do passageiro, e até atou o cinto de segurança – e iAm não perdeu tempo ao colocá-los na Northway, seguindo para fora da cidade na velocidade máxima permitida.

– Você foi até o apartamento dela, não foi.

Mesmo com a cabeça começando a latejar, Trez sintonizou na SiriusXM. Kid Ink cantava “Nasty”, e Trez fechou os olhos – e pensou naquele beijo. Será que perdera a porra da cabeça? Sua shellan morrera há três meses e ele estava beijando uma desconhecida?

E era isso que o estivera incomodando, o motivo por ele ter querido sair da boate. Ficar rodeado de todos aqueles humanos se beijando e transando nos banheiros privativos que ele construíra para especificamente esse propósito fez o que ele fizera com Therese ficasse estampado num outdoor de Las Vegas – e a culpa que se alojara nas suas entranhas era como se estivesse sofrendo de intoxicação alimentar.

Estava totalmente nauseado e empanturrado, tonto e fraco.

iAm desligou o rádio.

– Foi ou não?

Virando a cabeça para o lado, Trez avaliou os carros da faixa de rola-gem mais lenta – pela qual ele e o irmão passavam como se os malditos estivessem estacionados no acostamento.

– Fui. Ela mora num pardieiro. Não é seguro. Você vai contratá-la, certo?

– Não, não vou contratá-la, cacete.

Trez mudou o foco do trânsito da meia-noite para os prédios de apartamentos aninhados nas laterais da autoestrada enquanto a cidade fazia a sua transição de urbana para suburbana. Nas incontáveis janelas, ele viu pessoas indo de um cômodo para outro, ou sentados em sofás, ou lendo na cama.

Naquele instante, ele teria trocado de lugar com qualquer um deles, mesmo eles sendo humanos.

– Não tire essa oportunidade dela por minha causa. – Trez esfregou os olhos e piscou para se livrar dos pontos claros da visão. Maldição, o trânsito da noite sempre acabava com ele. – Isso não seria justo.

Deus, não conseguia acreditar que beijara aquela fêmea. Enquanto estivera com Therese, quando ela estivera junto ao seu corpo, fitando seus olhos, fora fácil se convencer de que era Selena reencarnada. Mas com o distanciamento e o tempo vinha a lógica: ela era apenas uma desconhecida que se parecia com a fêmea que ele perdera.

Merda. Colocara a boca na de outra fêmea.

Trez olhou para o irmão numa tentativa de parar de pensar naquilo que fizera.

– Estou falando sério, iAm. Se ela estiver qualificada, dê o emprego a ela. Ela precisa sair daquele lugar horrível em que está morando. E eu não vou incomodá-la. Não vou voltar lá.

– Bem, mas eu também não quero que deixe de ir ao restaurante por causa dela.

Trez voltou a se concentrar na estrada à frente, mas as luzes dos faróis vindo da direção contrária o deixaram tonto. Esfregando os olhos, sentiu o estômago se revirar.

– Ei, pode me fazer um favor?

iAm relanceou para ele.

– Claro, qualquer coisa. Do que precisa?

– Encoste.

– O que...

– Agora.

iAm virou o volante e foi para o acostamento, e antes que o carro sequer parasse, Trez abria a porta – o que acionou o mecanismo de antirrolagem e garantiu que os pneus travassem de uma vez.

Bem como a fêmea dissera.

Inclinando-se o mais longe que conseguiu do carro, Trez vomitou o pouco que tinha no estômago, o que devia ser basicamente bile. Enquanto sentia ânsia e vomitava, e depois sentiu mais uma onda vindo, ele imprecou contra os lampejos na sua visão que se organizavam numa aura.

Enxaqueca. Maldita e idiota enxaqueca.

– Dor de cabeça? – iAm comentou quando um caminhão passou por eles.

Não era seguro ficarem ali, Trez pensou quando o frio entrou no interior da BMW. Deviam ter pegado uma saída...

Respondeu à pergunta do irmão vomitando mais um pouco, e depois se largou no encosto do assento. Sem nenhum motivo aparente, baixou o olhar para as calças brancas e percebeu as manchas causadas quando ele desmaiara e depois quando escorregara.

Era por isso que não se usava branco.

– O que posso fazer? – iAm perguntou.

– Nada. – Fechou a porta. – Vamos em frente. Vou tentar segurar, mas podemos diminuir a temperatura?

Ele não se lembrou muito do trajeto até a mansão, pois passou o tempo monitorando a evolução da aura desde os pontos esparsos no centro da sua visão até que suas asas se espalhassem e voassem para a periferia. Mas o que notou a seguir foi que o irmão o ajudava a sair do carro, acompanhando-o como se ele fosse um inválido pelos degraus até a entrada da mansão. Assim que entraram, o vestíbulo com todas as suas colunas coloridas, o folheado a ouro, e as malditas arandelas de cristal bastaram para deixá-lo nauseado de novo.

– Acho que vou...

Fritz, o doggen mordomo, apresentou-lhe um saco para vômito no momento certo. Um saco para vômito. Um saco de vômito ao estilo hospitalar, verde claro.

Enquanto Trez se dobrava ao meio e mantinha a abertura circular contra a boca, ele pensou em algumas coisas: 1) quem diabos andava com sacos para vômito? 2) que porra mais aquele macho carregava naquele seu terno de pinguim? e 3) por que ele tinha que ser verde como a bile?

Se a ideia era fazer alguma coisa para que as pessoas vomitassem dentro, por que tinham que fazer a maldita coisa da cor da sopa de ervilhas?

Um amarelo vivo, quem sabe? Um branco limpo e simples.

Apesar de que, considerando-se o estado das suas calças...

Quando Trez finalmente se endireitou, aquela bigorna de sobreaviso sobre uma lateral da cabeça começou a latejar, e o padrão dos seus pensamentos começou a assumir a forma torcida e estranha que acompanhava suas enxaquecas.

– Me ajuda a subir? – murmurou para ninguém em particular.

Não foi uma surpresa quando iAm se encarregou disso, e o levou para o quarto novo em que vinha ficando desde que Rhage, Mary e Bitty se mudaram para as suítes do terceiro andar.

Atravessaram o corredor. Sentou na cama. Deitou de costas.

Como sempre, sair de cima dos pés lhe ofereceu apenas um alívio mínimo, um breve instante em que o estômago se assentava e a cabeça tinha uma folga – e depois tudo recomeçava cem vezes pior.

Pelo menos iAm sabia exatamente do que ele precisava. Um depois do outro, seus sapatos foram removidos, mas o irmão sabia que ele precisava ficar de meias porque as extremidades perdiam a circulação e ficavam frias durante as enxaquecas. Em seguida, o cinto e as calças foram tirados e a colcha acomodada ao seu redor. A jaqueta ficou onde estava, assim como a camisa. Tirar isso do corpo requereria muito esforço e muitas viradas, o que provavelmente provocaria mais ânsia.

O que era exatamente o que se quer evitar quando sua cabeça já está latejando.

Depois as cortinas foram fechadas, mesmo não havendo lua naquela noite. A colocação do cesto de lixo bem ao lado da cabeceira da cama. E a inevitável depressão no colchão quando iAm se sentou ao seu lado.

Deus, fizeram aquilo tantas vezes.

– Prometa – Trez disse na escuridão das suas pálpebras abaixadas – que vai dar o emprego a ela. Juro que não vou atrás dela. Na verdade, não quero vê-la nunca mais.

Ele estaria propenso demais a fazer alguma estupidez de novo...

Quando o sabor dela lhe voltou à língua, ele gemeu quando o coração se contraiu.

– Eu queria que você tomasse algum remédio para isso – iAm praguejou baixinho. – Odeio te ver sofrendo assim.

– Vai passar. Sempre passa. Contrate a fêmea, iAm. E eu não a incomodarei.

Ele esperou que o irmão lhe dissesse algo, que ele lhe desse alguma resposta ou discutisse, e quando não ouviu nada, abriu os olhos – só para se retrair. Apesar de a única fonte de luz vir da porta quase fechada que dava para o corredor, a merda já era forte demais para seus olhos hipersensíveis.

– Sei que ela não é a Selena – murmurou. – Pode confiar. Eu sei muito bem o quanto ela não é a minha fêmea.

Diabos, as implicações daquele beijo eram exatamente o motivo por ele estar com aquela maldita enxaqueca. O arrependimento literalmente explodira sua cabeça: culpa como evento vascular.

A doutora Jane deveria escrever o seu caso nos periódicos médicos.

– Não a castigue por um erro que é só meu.

Pelo menos foi isso o que ele quis dizer. Não soube muito bem o que saiu da sua boca.

– Apenas descanse – iAm disse. – Vou pedir a Manny que venha dar uma espiada em você.

– Não o incomode. – Ou algo assim. – Mas você pode fazer uma coisa por mim.

– O quê?

Trez forçou as pálpebras a se erguerem e levantou a cabeça mesmo com o mundo girando ao seu redor.

– Chame Lassiter. Traga o anjo caído até aqui.

– Agora, se não se importar, trocarei umas palavras com a Escolhida no andar de cima.

Enquanto Wrath falava, Layla não se deixou enganar. Seu tom deixava muito claro que não estava pedindo a permissão de Xcor para falar com um dos seus súditos.

Se a voz do Rei estivesse um pouco mais seca, teria deixado uma camada de poeira sobre a mobília.

Mas, na verdade, ela também desejava lhe falar reservadamente, e quando Wrath indicou as escadas, ela assentiu. Com uma rápida olhada para Xcor, apressou-se escada acima, abrindo a porta no alto e se preparando para enfrentar Vishous.

Não precisou ter se preocupado.

O Irmão se recusou a olhar para ela de onde estava junto à mesa. Simplesmente pegou a caneca que vinha usando como cinzeiro e saiu pelas portas de correr.

O Rei subiu mais lentamente, e ela se sentiu mal por não tê-lo ajudado.

– Meu senhor – ela disse –, há uma mesa à direita cerca de três metros da...

– Tudo bem. – Wrath fechou a porta que dava para o porão. – Você vai querer se senta. Vishous saiu? Sinto cheiro do ar fresco.

– Ah... – Layla engoliu com força. – Sim, ele está na varanda. Quer que... eu o chame?

– Não. Isto é entre mim e você.

– Sim, claro. – Ela fez uma mesura apesar de ele não poder vê-la. – E, sim, acho melhor eu me sentar.

– Boa pedida.

O Rei permaneceu exatamente onde estava, um pouco à frente da porta fechada – e por um instante, ela tentou imaginar como seria tocar a vida sem nenhum tipo de orientação visual. Poderia haver um buraco diante dele, ou um amontoado de coisas espalhadas pelo chão, ou... só os céus saberiam o que mais.

Todavia, quando ela avaliou a forma como ele sustentava o queixo, deduziu que ele seria capaz de enfrentar qualquer coisa. E como o invejava por isso.

– Então por que não se senta?

Como ele sabia?, ela se perguntou ao se adiantar e se acomodar em uma das quatro cadeiras.

– Pois não, meu senhor.

Wrath procedeu falando calmamente, com a voz tranquila, despejando uma série de sentenças repletas de palavras que, em outras circunstâncias, ela teria compreendido sem demora.

Neste caso, contudo, nada além de “seus filhos estão...” foi compreendido.

– ... dia sim, dia não, bem como às noites, num esquema de rotação. É justo e imparcial, e acredito que atenda aos interesses de todos. Fritz será o responsável por acompanhá-la a...

– Desculpe – ela disse quase engasgada. – Poderia... poderia repetir o que acabou de dizer?

O rosto do Rei pareceu se suavizar.

– Quero que fique com seus filhos a cada dia e noite. Está bem? Você e Qhuinn dividirão a custódia meio a meio, e serão os dois responsáveis por tomar todas as decisões de pais quanto ao bem-estar deles.

Layla piscou rapidamente, ciente de que todo o seu corpo tremia.

– Quer dizer que não serei afastada deles.

– Não, não será.

– Oh, meu senhor, muito obrigada. – Cobriu a boca com a palma. E falou ao redor da mão. – Eu não saberia viver sem eles.

– Sei disso. Eu entendo, acredite em mim. E o Santuário lhe garantirá segurança.

Layla se retraiu.

– Desculpe, o que disse?

– Será transportada até o Santuário e ficará com eles nos aposentos privativos da Virgem Escriba – todos bem sabem que ela não os está mais usando. É o lugar mais seguro para vocês três porque nem fica neste planeta. Phury e Cormia me garantiram que você será capaz de se transportar e voltar de lá facilmente à maneira das Escolhidas com seus filhos – tudo o que terá que fazer será segurá-los nos braços e poderá ir. – Wrath balançou a cabeça. – Qhuinn vai bater no teto quando eu lhe comunicar isto, mas ele não terá como argumentar em relação ao bem-estar deles se vocês estiverem lá. E quando não estiverem com você... você terá a liberdade de ir aonde bem quiser, de estar com quem desejar, e pode usar este lugar como sua casa.

Houve uma pausa, na qual Layla corou.

Porque Wrath sabia muito bem o que ela faria e com quem faria. Pelo menos até Xcor partir para o Antigo País.

– Sim – ela disse lentamente. – Sim, sim, claro.

– Um aviso, porém, você terá que trazê-los para baixo quando for a vez de Qhuinn ficar com eles. Assim como ele terá que entregá-los a você quando for a sua noite. O esquema tem que ser honrado por vocês dois.

– Absolutamente. Eles precisam do pai deles. Ele é muito importante nas vidas deles. Não quero fazer nada para atrapalhar isso.

E Wrath tinha razão. Agora que ela fora essencialmente perdoada na acusação de traição, o principal argumento de Qhuinn para impedir seu contato com os filhos seria que ela não estaria na mansão da Irmandade com eles, e não existia nenhum outro lugar, nenhuma casa segura, nenhum abrigo, nenhuma estrutura, mesmo com todo o esquema de segurança providenciado por Vishous, que chegasse perto da segurança que a mansão oferecia.

A solução? Sair do planeta.

Afinal, houvera apenas um ataque ao Santuário, há uns vinte e cinco anos. E esse fora um golpe ensaiado por descontentes da glymera que já nem estavam mais vivos.

Ela, Lyric e Rhamp estariam bem e felizes ali também. Com todas as flores e gramados, as fontes de mármore e os templos. Haveria muito a ser explorado quando eles fossem maiores e estivessem se movimentando.

– É perfeito – ela disse. – Meu senhor, é perfeito.

– Voltarei para casa agora e falarei com Qhuinn. Eu o colocarei na ronda de amanhã. Vá até a mansão então e fique com as crianças.

Layla abaixou a cabeça.

– Isso... é muito tempo para eu esperar.

– É assim que vai ser. Qhuinn está muito instável e não quero que você esteja lá quando eu lhe contar a respeito do esquema de visitação ou quando for ver as crianças. Então é o tempo de que necessitamos. Mas farei com que Beth lhe mande mais fotos.

– Fotos?

– É, não as tem recebido no seu celular?

– Não o trouxe comigo... Ela tem tirado fotografias?

– Todas elas têm. Formaram um grupo do qual você faz parte... Foi o que ouvi dizer. As fêmeas querem ter certeza de que você não sentirá estar perdendo alguma coisa.

– Elas são tão... – Layla inspirou fundo. – É muito generoso da parte delas.

– Elas sabem pelo que você está passando. Ou têm um mínimo de noção, pois estão horrorizadas pra caramba.

Layla levantou as mãos até o rosto. Como se isso pudesse, de alguma forma, ajudá-la a se recompor.

– Venha cá.

Quando o Rei gesticulou para que se aproximasse, ela saltou da cadeira e correu até ele. Abraçar Wrath era o mesmo que passar os braços ao redor de um piano de cauda, tudo duro e grande demais para ser abarcado.

Mas o Rei também a abraçou, dando-lhe tapinhas nas costas.

– Faça-me um favor, sim?

Ela fungou e olhou para cima, para a projeção do queixo dele.

– Qualquer coisa.

– Cuidado com Xcor. Mesmo que ele não a mate fisicamente, ele pode acabar arruinando-a por toda a vida.

Layla só conseguiu sacudir a cabeça.

– Ela já fez isso, meu senhor. Temo que o estrago já tenha sido feito.


CAPÍTULO 28

Enquanto Throe vasculhava o escritório ou quarto, ou como aquilo era chamado, envolto em tecidos e iluminado por velas da vidente, ele não ouvia nada além das batidas do seu próprio coração. Parecia que estava sozinho, mas todos os seus instintos lhe diziam o contrário. Enfiando a mão no casaco, espalmou o cano de sua pistola e pensou no trio de humanos que assustara na rua.

Bem que desejou não estar enfrentando nada mais exótico do que três malandros e um canivete.

Virando a cabeça, procurou pela fonte do barulho que ouvira, um gatilho para seus instintos de alerta, um...

Santo Fade, o que era aquilo?

Nada se movia naquele espaço... Nada mesmo.

Por algum truque... ele desconhecia a causa... as chamas das velas estavam absolutamente imóveis, como se fossem uma fotografia, a cera não derretia, nenhuma brisa soprava as labaredas douradas de fogo, nenhum fio de fumaça se erguia no ar.

Com uma sensação de absoluto terror, levantou o braço, puxou a manga do casaco e olhou para o relógio Audemars Piguet.

As lanças, que estiveram funcionando muito bem até chegar àquele local, já não davam a volta no dial.

Começando a andar – só para provar para si mesmo que conseguia –, marchou até a janela, puxou uma cortina e olhou para a rua embaixo. Não havia nenhuma circulação de carros. Mas também não havia nenhum em vista...

No prédio da outra calçada, havia um par de humanos sentados em poltronas, assistindo a TV, e um deles estava no processo de levar uma lata de cerveja à boca.

Eles não estavam se mexendo.

Assim como nem o comercial da KFC na TV.

– Santa Virgem Escriba... – Fechou os olhos e rolou contra a parede. – Mas que loucura é esta?

Relembrou o que a fêmea que o mandara até ali lhe dissera. Uma vidente no centro da cidade. Uma bruxa. Uma bruxa humana com portais para o outro lado.

A conversa havia começado ao redor da mesa de jantar cercada por fêmeas da alta sociedade, todas reclamando dos seus “problemas” e as soluções para situações terríveis como pisos pintados claros demais, escuros demais, inconsistentes demais, e bolsas Birkins que estavam gastas nos cantos e ah... o que mais? Amantes que não eram atenciosos e hellrens que não entendiam a importância moral da nova coleção de verão/inverno da Channel.

A certa altura, uma das fêmeas mencionou vidência e leitura de tarô, e como ela havia sido auxiliada pela mulher deste lugar. Como fora estranho o modo como a bruxa humana fora precisa. E como a fêmea deixara de ir até ali porque “algo não parecia certo”.

Quem haveria de saber que isso fora uma interpretação correta?

Provavelmente a única na vida da fêmea.

Preparando-se para algum tipo de ataque, Throe aguardou a aparição de algum fantasma se materializando num canto escuro, ou um morcego voando sobre sua cabeça, ou um zumbi arrastando a perna. E que fosse um desses últimos, pois assim sua arma seria de alguma serventia.

Quando nada aconteceu, ele começou a se sentir um tolo. Pelo menos até olhar para as velas do outro lado.

– Você me libertará – ele disse para o ar. – E eu seguirei o meu caminho, sem mais atrapalhar o seu.

Ele não fazia ideia com quem estava falando. E quando não houve nenhuma resposta, ele se motivou, andando até a mesa redonda. Aproximando-se dela, resistiu ao impulso de olhar na bola de cristal, e deu uma espiada por sobre o ombro...

O som de algo se arrastando, como se unhas estivessem raspando uma madeira, atraiu seu olhar para a esquerda.

Havia algo no chão.

Foi cauteloso em sua aproximação, e manteve a arma no alto – e só quando se aproximou o bastante do objeto reconheceu-lhe os contornos.

Um livro. Havia um livro no chão, um que parecia muito antigo, com a capa de couro gasta e páginas grossas com as pontas viradas.

Ajoelhando-se, franziu a testa. Uma mancha de queimado cercava o objeto, como se sua presença contivesse calor suficiente para queimar as fibras da madeira debaixo do seu peso.

Seria esse o som que ele ouvira?, perguntou-se. Sua chegada àquele plano de existência fora anunciada pelo baque alto?

Estendendo a mão, tocou no desenho da capa...

Com um sibilo, retraiu-a e, assim como fizera com a porta ao entrar, sacudiu a palma, tentando se livrar de uma estanha sensação de formigamento...

A capa se abriu sozinha e Throe se assustou, aterrissando sobre o traseiro.

Quando uma nuvem de poeira emanou do pergaminho das páginas, ele estreitou os olhos. O padrão da tinta estava na horizontal e repleto de caracteres, mas num idioma que ele não compreendia.

Inclinou-se à frente... só para arquejar.

O que quer que ali estivesse escrito estava se transmutando, os riscos e traços da tinta se revolvendo sobre si mesmos... e o texto se tornou o Antigo Idioma.

Sim, era sua língua mãe.

E as passagens pareceram ser a cerca de...

Throe levantou os olhos. Olhou ao redor. Depois, agindo num impulso que subitamente lhe pareceu tão forte quanto a da própria sobrevivência, ele fechou o tomo e o apanhou.

A sensação de formigamento já não era mais desagradável. De fato, o volume parecia vivo em suas mãos e aprovava aquele que o amparava, como um gato que se enrosca e ronrona nos braços do dono.

E foi então que tudo aconteceu.

De uma só vez, uma sirene soou ao longe e, quando ele se inclinou perto da janela, as chamas das velas nos cantos do quarto começaram a se mover com uma corrente de ar de novo.

A porta pela qual entrara emitiu um rangido.

O que estivera trancado... agora estava aberto.

Throe segurou o livro junto ao peito e disparou para a saída, correndo como se sua vida dependesse disso. E não parou até estar uma vez mais na rua, na neve derretida e no frio. Por um momento, o medo o perseguiu como um predador, mas isso não durou muito.

Mantido à tona pelo livro junto ao coração, ele descobriu que sorria quando se desmaterializou daquele bairro.


CAPÍTULO 29

Após a partida do Rei, Layla voltou ao porão da casa, e não se surpreendeu em encontrar Xcor de pé, andando de um lado a outro enquanto aguardava pelo seu retorno.

– Então, eles se foram? – ele perguntou.

– Sim. Foram embora.

– Existe algum sistema de segurança aqui? Alguma arma na casa?

– O controle do sistema de segurança fica na cozinha, e V. me ensinou como acioná-lo.

– E você fez isso?

Não que ele estivesse sendo indiscutivelmente exigente, mas ele parecia tão intenso, como se a única coisa que os separasse de... lobos, ou algo assim... fosse a capacidade dele de trancá-los aqui e de juntar armamentos para o caso de um ataque.

– Não.

Xcor sorriu como se estivesse se esforçando para não parecer desagradável, mas seus olhos não estavam nada relaxados.

– Como se ativa o alarme?

– Hum... Eu vou te mostrar.

Ela tinha a sensação de que ele não ficaria satisfeito até entender como tudo funcionava e operava. E estava certa. Ele insistiu em ele mesmo apertar as teclas de comando.

Em seguida, evidentemente, foi a vez de verificar todas as portas e janelas.

Layla o seguiu conforme ele ia adiante, uma a uma, passando por todos os quartos e banheiros, inspecionando as trancas das janelas e as linguetas dos caixilhos para que elas não se abrissem mais do que um ou dois centímetros. Logo depois, foi a vez das travas das portas. E ele até verificou as portas da garagem, apesar de insistir para que ela permanecesse dentro da casa porque estava frio.

Voltando a entrar na cozinha, ele assentiu ao acionar de vez o alarme.

– Esta casa está bem protegida.

– Vishous cuida dessas coisas.

– E ele faz um bom trabalho.

Xcor atravessou a cozinha até perto do fogão e começou a abrir as gavetas.

– Isto vai ter que servir.

Uma a uma, ele perfilou as facas que conseguiu encontrar: um cutelo, uma faca de serra, duas para descascar e uma de trinchar. Colocando-as sobre um pano de prato, enrolou-as e depois estendeu a outra mão para ela.

– Vamos para baixo.

Layla se aproximou dele e estremeceu quando as palmas se encostaram. Quando os dois desceram, o corpo dela relaxou.

Ao chegarem ao último degrau, ele parou e a fitou.

Ela lhe concedeu um instante para falar. Quando não o fez, ela sussurrou:

– Sim, por favor.

Ele fechou os olhos e oscilou. Depois baixou a cabeça.

– Tem certeza?

– Mais do que tudo na vida.

Ele levantou as pálpebras.

– Serei gentil com você.

Estava na ponta da língua dela lhe dizer para que não se contivesse: na verdade, a última coisa que ela queria era que ele se refreasse porque aquela bem podia ser a única vez em que estariam juntos.

Mas, em seguida, sua mente parou de funcionar.

Porque Xcor a atraía para junto do corpo dele. Com a mão livre, aquela que não segurava todas aquelas facas, afagou-lhe o rosto e resvalou o lábio inferior com o polegar.

Em seguida, só percebeu os lábios dele nos seus, resvalando, pressionando, acariciando.

O beijo foi suave como um respiro, e isso foi frustrante. Ela queria mais – e enquanto se esforçava para conseguir isso, ele recuou abruptamente, controlando-se.

Quando por fim, ele interrompeu o contato, passou a palma pelos cabelos dela.

– Posso entrar no seu quarto, fêmea?

Os olhos dele eram tão bonitos, e brilhavam quentes, aquele profundo azul marinho quase negro pela luxúria que sentia por ela. E, para ela, o rosto dele era belo, todo forte, masculino e poderoso, o defeito do lábio superior nada que notasse e que lhe desviasse a atenção. Na verdade, era o conjunto que a atraía, o poder e a vulnerabilidade, a natureza selvagem e o esforço educado que estava fazendo, o guerreiro interior e o protetor que surgia por causa dela.

– Sim – sussurrou.

– Eu a carregaria, mas não estou forte ainda.

Segurou-a pela mão e, juntos, entraram no quarto no qual ela tentara dormir durante o dia. Mas, na verdade, apesar da falta de descanso, ela se sentia vitalmente desperta, quase dolorosamente consciente de tudo.

Xcor acendeu o abajur com um comando mental e fechou a porta. Depois a conduziu até a cama, inclinando-se para enfiar o fardo das facas debaixo do colchão de molas.

Quando se sentaram, ela se sentiu corar.

Ele sorriu.

– A sua timidez é a minha perdição, fêmea. Olhe para as minhas mãos.

Quando as estendeu para ela, o leve tremor não combinava com as veias grossas que percorriam os antebraços até os pulsos.

– Sonhei com tocar em você – ele murmurou. – Por tantas vezes eu...

– Então, me toque agora.

Quando ele pareceu congelar no lugar, foi ela que o agarrou pelos ombros e aproximou a boca dele da sua – e, ah, Santa Virgem Escriba, quando ela não refreou nada, ele também não o fez. O sabor de Xcor era de sexo e de desespero, e não demorou a que as mãos dele se tornassem mais bruscas e o seu grunhido permeasse o quarto tranquilo e fracamente iluminado. De fato, ele já não estava cauteloso ao montar sobre ela, o corpo empurrando o seu para o colchão, o joelho se inserindo entre as pernas dela, forçando-as para que se abrissem...

Ele se conteve no mesmo instante, e se retraiu.

– Layla... Meu amor... Estou prestes a...

– Possua-me. Depressa, ah... apenas me possua... Já esperei por tanto tempo.

Xcor revelou as presas e sibilou, os olhos cintilando com um propósito próximo do profano, mas que, no estado no qual ela se encontrava, era exatamente do que ela necessitava.

– Deixe-me vê-la, preciso ver o seu corpo – ele gemeu ao passar a mão pela cintura dela.

Layla se arqueou quando ele pegou o último dos botões da sua camisa e começou a puxá-lo para cima do estômago até seus...

Xcor arquejou quando os seios ficaram expostos.

– Ah, que fêmea mais doce...

Com ele imóvel ante a visão dos mamilos enrijecidos, ela terminou o trabalho, puxando aquilo que lhe cobria o tronco por cima da cabeça, largando-a sem se importar onde a peça cairia. Quando ela voltou a se acomodar nos travesseiros, Xcor se sentou sobre os joelhos, montado no quadril dela com as pernas dobradas.

As mãos dele tremiam de verdade agora que passava as pontas dos dedos pela clavícula e as descia pelo vale entre os seios.

– Você é ainda mais maravilhosa do que nos meus devaneios.

Quando os olhos agitados e reverentes dele passearam pela sua pele nua, Layla entendeu que sentir-se bela não tinha nada a ver com a verdadeira aparência. Era um estado mental – e nada fazia com que uma fêmea chegasse a esse ponto mais rápido do que o macho desejado olhando para ela, como Xcor o fazia então.

– Obrigada – sussurrou.

– Sou eu quem deveria agradecer pela dádiva que é o seu corpo.

Pairando acima dela, Xcor pareceu enorme apesar de ter perdido peso, os ombros eram tão largos e os braços ainda pesados dentro daquele agasalho. E quando ele se abaixou para beijá-la na lateral do pescoço, a costura do que ele vestia repuxou, e um sutil rasgo aconteceu em alguma parte.

Com o coração acelerado, e o calor se espalhando por suas veias, Layla se arqueou novamente enquanto ele movia os lábios de um lado a outro, resvalando sua pele. Nesse meio tempo, as mãos, aquelas mãos incríveis, ampararam as laterais dos seios – e logo ele se moveu para os mamilos, beijando-os, sugando primeiro um para sua boca, depois o outro.

Em resposta, o corpo dela cedeu debaixo dele, a ponto de ela pensar que já não tinha mais ossos, e a primeira onda de urgência começou a ceder um pouco quando ela se viu envolta em sensações.

Enquanto ele venerava os seios, ela teve um pensamento fugidio de que, de certo modo, fechara um círculo. Treinada como ehros, como uma Escolhida cujo único propósito era o de dar prazer ao Primale para gerar seus filhos, ela chegara à maturidade e estivera disponível para servir numa época em que, na realidade, não havia ninguém para servir: o antigo Primale tivera um fim trágico, e o novo ainda não havia sido apontado. E, com isso, ela esperou... Até Phury ser elevado ao posto. Ele, entretanto, só assumira uma companheira, e não se deitaria com ninguém mais. E, então, ela esperou mais ainda, a vida seguindo um caminho diferente quando Phury as libertara, ela e as irmãs, do Santuário, permitindo que as Escolhida descessem à Terra com uma autonomia sem paralelos.

Contudo, não houve amor para ela. Tampouco sexo.

Apenas uma breve fascinação por Qhuinn até ela perceber que não passava de ficção comparada ao que o macho partilhava com seu verdadeiro companheiro, Blay.

E, no entanto, os dois machos não estiveram juntos, parecendo fadados a levarem vidas afastadas. Portanto, quando ela entrara no cio, pedira que Qhuinn a aliviasse em seu período fértil, não porque a amasse, mas porque ele, na época, estivera tão perdido quanto ela: durante aquelas horas terríveis de seu sofrimento, deitaram-se juntos com o propósito da concepção, que acabara acontecendo.

Ela pouco se lembrava do ato em si, tampouco desejava se lembrar dele.

Ainda mais agora, no pé em que estava a sua situação com Qhuinn.

Além disso, apesar de ter dado à luz, ela era praticamente virgem, desconhecendo o toque amoroso, a carícia afetuosa... de um parceiro sexual que amava e pelo qual era amada em troca.

– Estou tão feliz que seja você – ela disse ao vê-lo circundar o mamilo com a língua.

Os olhos de Xcor se ergueram para ela, e quando se escureceram com autodepreciação, ela desejou poder poupá-lo desse sentimento.

– Não. – Ela pousou as pontas dos dedos nos lábios dele, silenciando-o quando ele foi falar. – Essa é uma decisão minha, não cabe a você julgar. E, por favor... não pare.

Xcor meneou a cabeça. Mas depois ele levou a mão para a cintura da legging dela, os lábios descendo quando ele enganchou o dedo no elástico.

– Tem certeza? – ele perguntou, rouco. – Não haverá volta depois que eu retirar isto.

– Não pare. Nunca.

Ele mordeu o lábio inferior com as presas.

– Minha fêmea...

Em seguida, ele puxou a legging junto com a calcinha para baixo, deixando-a nua para seu olhar ardente.

Ah, seus olhos estavam em todos os lugares, passaram pela extensão das pernas, no sexo sem pelos, no baixo ventre... de volta aos seios.

O cheiro da vinculação era tão intenso que era só o que ela conseguia sentir.

Xcor se mostrou cauteloso agora ao se estender sobre ela, descendo o peso do corpo lentamente, bem cuidadoso nos seus movimentos. E a sensação daquele volume duro por trás da calça de ginástica fez com que ela girasse o quadril e esfregasse seu centro nele.

Quando ele a beijou de novo, a língua invadiu-lhe a boca para se encontrar com a dela, e ela o arranhou nas costas. Não aguentava esperar um minuto mais, o sexo pedia pelo dele, o corpo se retesava por estarem tão próximos, mas ainda não unido ao dele.

– Agora – implorou. – Por favor...

Uma das mãos desapareceu entre eles, e ela gritou quando ele deslizou a palma pela lateral interna da sua coxa. Em seguida, ele a tocava no centro do seu calor.

Estava tão pronta para ele, e mesmo assim o alívio que a assolou foi tanto inesperado quanto uma surpresa, o prazer ricocheteando dentro dela, fazendo-a flanar da cama enquanto ainda permanecia deitada.

Ele a ajudou a surfar nas ondas da sensação, e depois a parte inferior do corpo dele se elevou. Alguns movimentos ali embaixo, no quadril dele, e ela ficou excitada em sentir a pele dele contra a sua, conhecendo a sensação do sexo dele sem nenhum impedimento.

Só que quando ele desceu de novo sobre ela, ainda estava vestido.

No entanto, o sexo fora libertado. E os olhos dela se fecharam quando a cabeça rombuda dele a resvalou.

– Estou tentando ir devagar – ele disse entre dentes cerrados.

– Você não tem que fazer isso.

Dito isso, ela abaixou as mãos, encontrou a extensão rija e a conduziu ao lugar certo. Enterrando os calcanhares na colcha, moveu-se para cima...

Ele deslizou para dentro dela e o encaixe por perfeito. Aquele era seu lar, e a galáxia inteira ao mesmo tempo; ela se sentiu desarmada, e lágrimas surgiram – porque ela sabia que ele estava igualmente afetado: Xcor chegou ao orgasmo no mesmo instante em que a penetrou, o corpo de guerreiro começando a se esvaziar dentro do seu. E, no entanto, ele se retraiu, a cabeça se inclinando para trás, o alarme marcando seu rosto enquanto o corpo continuava a se esvaziar.

– Eu a machuquei? – ele disse horrorizado.

– O quê?

– Você está chorando!

– O que... Ah, não, não, não... – Ela segurou o rosto dele e o beijou. – Não... Não é de dor. Nunca isso.

Beijou-o novamente, e tentou voltar ao ritmo iniciado pelos corpos deles.

Mas ele não aceitou nada disso.

– Por que está chorando? – exigiu saber, contendo-se longe dela.

Layla enxugou os olhos impacientemente.

– Porque... eu nunca pensei que poderia tê-lo assim. Não pensei que... que isto aconteceria entre nós, e estou tão grata... Demorou tanto, esta espera, este querer...

Xcor se apoiou nos cotovelos.

– O mesmo aconteceu comigo – ele sussurrou. – No decorrer da minha vida, eu aprendi que os sonhos não se realizam. São apenas os pesadelos que nos encontram na vida real. Eu não tinha esperanças que isto fosse acontecer.

Quando uma luz atormentada invadiu o olhar dele, ela se perguntou que horrores ele suportara em sua vida dura. Os horrores que lhe foram impostos. O lábio arruinado não deve ter sido um defeito fácil de suportar.

Procurando terminar o que havia começado tão bem, Layla se forçou a deixar de lado esses pensamentos tristes e se concentrou novamente se aproximando da barra do agasalho dele.

Mas quando procurou puxá-la para cima, ele a impediu, movendo a cabeça.

– Não vai se juntar a mim? – ela perguntou.

Mudo, ele meneou a cabeça, e antes que ela pudesse fazer qualquer pergunta, ele começou a beijá-la de novo, os lábios movendo-se sobre os dela, a ereção afagando-a para cima e para baixo. As sensações voltaram a tomar conta dela de novo, consumindo-a em calor e surpresa, e ela se permitiu se perder no momento.

Aquele era um lugar no qual poderia ficar para sempre.

No entanto, sabia que não deveria desejar isso.

O destino providenciara para que tivessem aquele breve descanso, aquele breve período antes que ele devesse regressar para o local do qual viera – e por mais que ela quisesse sentir gratidão por isso, no fundo do coração, ansiava por mais.

Deduziu que o amor era como a própria vida.

Não importa o quanto você é abençoada, quando o fim chega, nunca parece que foi o bastante.


CAPÍTULO 30

Quando V. chegou de volta à mansão com o Rei, ele estava absolutamente puto com tudo e com todos. E isso incluía a si mesmo.

Mas quando o par se materializou lado a lado, junto à fonte, ele estava bem ciente que seu papel de guarda-costas só terminaria quando o Poderoso Chefão ali tivesse passado pela porta de entrada e estivesse no átrio da mansão. Então, e somente então, ele estaria livre para abandonar o barco para beber até cair.

Com um pouco de sorte, aquelas duas garrafas de Grey Goose que Fritz levara até lá ainda estariam onde foram deixadas, ou seja, debaixo do balcão da pia do Buraco.

Depois de uma noite como esta, ele não precisaria de gelo.

Nem de copo.

– Parabéns – Wrath disse.

V. segurou o braço que era quase da espessura da sua própria coxa e começou a andar.

– Pelo quê?

– Você tem mais uma oportunidade para ser racional esta noite.

– Sou sempre racional.

– Na sua cabeça, tenho certeza de que isso é verdade.

– Degrau – V. murmurou quando chegaram à escada de pedras. – E agora o que vamos fazer? É melhor que seja algo bom, a propósito. Tenho um encontro com uma garrafa de vodca.

Quando o Rei chegou à escada, mas permaneceu calado, V. quis revelar as presas e sibilar. Em vez disso, exigiu:

– Conte.

Ao chegarem à porta externa no vestíbulo, o Rei parou e olhou na sua direção.

– Estou pronto para falar com Qhuinn. A sua oportunidade é de levar um tiro porque irá comigo falar com ele.

– Isso não é uma oportunidade de ser racional. Isso se chama tornar-se um alvo.

– Dá na mesma. Tanto faz.

– Juro que sempre ganho na loteria com você. – V. escancarou a porta até o vestíbulo. – Toda maldita noite, não é mesmo?

Wrath mostrou a cara para a câmera de segurança, encontrando a lente com a mão.

– Você é um tremendo filho da puta de sorte, isso lá é verdade.

Fritz abriu a porta, e a luz do glorioso átrio bastou para fazer com que V. piscasse até que as retinas se acostumassem.

– Meu senhor! – o doggen exclamou. – Senhor! Ah, que bom que chegaram em casa antes da tempestade! Posso lhes trazer alguma bebida?

O sorriso de Fritz era como o de um basset hound, todo enrugado e cheio de entusiasmo, e o mordomo tinha a mesma falta de noção de tempo como um cão, pois sua alegria ante o par era como se não os visse há cinco anos, e não apenas uma hora.

– Que tal um par de coletes a prova de balas? – V. sussurrou.

– Sim, mas é claro. Prefere o Point Blank Alpha Elites ou esta é mais uma ocasião de detonação de bombas necessitando os coletes táticos Paraclete?

Como se a escolha fosse o mesmo que decidir entre gravata branca com fraque ou um smoking normal.

V. pensou a contragosto que era impossível desgostar do cara.

– Era uma piada, meu chapa. – Vishous enfiou um cigarro entre os lábios e falou ao redor dele enquanto pegava o isqueiro. – Pelo menos espero que seja.

– Qualquer coisa para os dois! E, oh, meu senhor, tomei a liberdade de permitir que George saísse para se aliviar há uns quinze minutos.

– Obrigado, Fritz. Você...

– E o alimentei também. Dei-lhe lombo das sobras de ontem à noite, mas aqueci e servi com cenouras frescas, purê de abóbora e vagem. Tudo orgânico, claro.

– Você ama aquele cachorro, não ama?

O doggen se curvou tão baixo que era um milagre que as sobrancelhas grisalhas e cerradas não fizessem as funções de limpeza no piso de mosaico.

– Amo, sim. Com certeza.

– Bom macho. Você é um bom macho.

Wrath pareceu que gostaria de dar um tapa no ombro do mordomo, ou talvez lhe oferecer a palma erguida para um cumprimento, mas não foi em frente. Mesmo sendo o Rei, havia coisas que não se podiam fazer, como manter contato com um servo da velha guarda como Fritz.

O pobre coitado seria capaz de explodir de vergonha.

Em vez disso, Wrath seguiu em frente como se fosse dono do lugar, e V. o acompanhou.

– Um metro – V. disse quando na hora certa.

O Rei Cego subiu no último degrau da grande escadaria com a coordenação de um dançarino de sapateado, acertando o alvo à perfeição, e também soube quando chegou ao do topo. Primeira parada, o escritório, onde abriu as portas duplas e foi atacado por George, que evidentemente achava que nunca mais veria seu dono.

– Venha garoto, de volta ao trabalho. Conduza.

George trotou até a mesa e voltou com a guia, a qual Wrath ajustou tão rapidamente que se podia jurar que o cara enxergava o que estava fazendo. E depois, cão e dono se reuniram, indo na direção do corredor das estátuas.

Com V. na retaguarda. Sem dúvida parecendo o vilão de um filme da Disney.

Inferno, nem ele queria estar perto daquele seu mau humor. Mas, claro, aonde você vai, ele o acompanha e pronto.

Quando chegaram ao quarto em que estavam as crianças, Wrath bateu uma vez e abriu a porta. Na luz difusa da lua e das estrelas, foi fácil localizar Qhuinn deitado na cama, com os dois bebês aninhados nos braços, adormecidos.

Mas o irmão não dormia.

– Oi – ele disse com suavidade.

– Hora de conversarmos – o Rei anunciou enquanto George estacionava ao seu lado.

– Importa-se se formos para o corredor?

– Não.

Qhuinn assentiu e se levantou. Depois olhou de um para outro dos bebês adormecidos... como quem estava indeciso quanto a quem levar para o berço primeiro.

– V., pode me dar uma mão?

Por um instante, Vishous não compreendeu com quem o cara estava falando, apesar de o seu nome ter sido mencionado. Mas então a cabeça de Wrath se voltou na sua direção, como se ele também estivesse esperando uma resposta.

Ok, por que ele não podia estar simplesmente bebendo nesta hora? Ainda assim, carregar até o berço uma daquelas máquinas de fazer cocô devia ser melhor do que se desviar de balas.

Certo?

V. relanceou para o par de viciados em leite. Ok, talvez a proporção entre gu-gu-ga-gá versus uma Glock fosse meio a meio.

– V.? – Qhuinn o chamou.

– Sim. Claro. – Eu adorariiiiia segurar o seu DNA. E quem sabe, depois, podemos nos alterar em escovar os cabelos um do outro? – O que eu preciso fazer?

As sobrancelhas de Qhuinn se ergueram quando V. se aproximou da cama.

– Você pega Rhamp no colo e o leva até ali.

A cabeça. Era preciso amparar a cabeça...

– Você precisa amparar a cabeça – Qhuinn disse em seguida.

Viram? V. disse para si mesmo. Tudo ficaria bem.

Só que, então, V. percebeu que estava segurando um cigarro aceso.

– Me passa o seu cigarro – Wrath anunciou num tom entediado. – Mas que diabos, V... Você não pode ficar com isso perto de uma criança.

Enquanto Qhuinn se levantava com Lyric no colo, V. entregava o cigarro como se ele fosse sua última batida de coração. Em seguida, estendia a mão boa, assim como a que estava envolvida pelo couro preto, na direção do filho do irmão. Cara... a não ser por situações de emergência médica, parecia errado ele pegar algo mais precioso do que um saco de ração de cachorro com sua mão amaldiçoada, mas ele sabia, intelectualmente, que nada de ruim aconteceria com o garoto.

Inferno, sua fonte de calor não transformaria Rhamp numa versão infantil de enroladinho de salsicha nem nada assim. Não mesmo, certo?

Porra...

Pequeno. Quente. Forte.

Era essa a sensação. E foi completamente bizarro perceber... que estava segurando um bebê fora de um ambiente clínico pela primeira vez na vida. Não que os tivesse evitado; simplesmente nunca se interessara por aqueles bastardinhos fedorentos e lamurientos...

Nem um pouco...

Sem aviso, Rhamp abriu os olhos bem quando V. o estava acomodando no berço ao lado da irmã.

V. se retraiu. Ok, uau, aqueles olhos eram intensos pra cacete, muito diretos e um tanto hostis – como se o garoto soubesse que aquela sua transferência estava muuuuito acima das atribuições de trabalho de Vishous e nada que deveria ser sancionado por qualquer pai de respeito.

– Relaxa, meu chapa – V. murmurou ao ver o que o Papai fazia ali no berço do lado para depois imitá-lo, ajeitando a manta como Qhuinn estava fazendo. – Tá tudo tranquilo. Você está bem, certo?

Qhuinn olhou na sua direção.

– Ele é um guerreiro, pode crer. Já dá pra saber.

V. apoiou o peso nos calcanhares, cruzou os braços, e continuou fitando o pequeno fardo de vampiro. E vejam só, o filho da mãe o encarava de volta.

Vishous começou a sorrir. Não conseguiu evitar. Era preciso admirar esse tipo de força – e evidentemente ela era genética. Que outra explicação haveria para que algo com mal um mês de vida se mostrasse pronto para enfrentar um macho criado e muito bem armado e parecer bravo pra cacete?

– Meu chapa – V. disse ao mostrar a palma. – Bate aqui.

Rhamp não sabia ainda o que seria isso, mas agarrou o que estava diante do rosto dele, e, cara, como apertou.

V. gargalhou no fundo da garganta.

– Cara, vou te deixar lutar comigo quando tiver crescido. E logo você já vai estar bem grandinho pra segurar uma adaga... Vou fazer uma pra você. Que eu mesmo vou forjar. E você vai ser que nem seu pai, um tremendo guerreiro. Igualzinho a ele...

Enquanto Vishous parecia encontrar um parceiro para o crime em Rhamp, Qhuinn se viu encarando o irmão. Por muitos motivos.

Primeiro, o fato de V. estar parecendo se enfeitiçar por Rhamp era... Bem, era mais provável alguém ficar de frente a Deus do que um cara como V. ficar cheio de “ahs” e “ohs” por conta de uma criança. Segundo, Rhamp estava começando a parecer mais amigável, a primeira reação hostil se atenuando, o corpo começando a relaxar, a expressão e aqueles olhos meio míopes de bebês assumindo uma expressão mais acolhedora.

Como quando um tigre encontra outro na natureza e o par resolve que quer passar o tempo juntos em vez de brigarem pelo domínio.

Mas o principal motivo pelo qual Qhuinn não conseguia desviar o olhar?

Virando a cabeça, olhou para o canto oposto. Para aqueles buracos no teto.

E você vai ser que nem seu pai.

Igualzinho a ele.

Retraindo-se, Qhuinn esfregou as têmporas.

– Pronto?

Wrath e George se viraram.

– Porta.

Quando eles saíram, Qhuinn se perguntou se V. ficaria para trás para ficar com as crianças. Quem sabe para ler um pouco de “Adivinha o quanto eu te amo?”. Ou quem sabe passar o tempo com “Pedro, o Pinguim”?

Esse tipo de coisa.

Mas Vishous os acompanhou, de modo que os três e o golden retriever dourado do Rei ficaram no corredor.

Pouco antes que qualquer um conseguisse dizer alguma coisa, Zsadist saiu do próprio quarto no fim do corredor. O irmão deu uma olhada para eles, balançou a cabeça e voltou apressado para a própria suíte.

Pois é, todos sabiam qual era o assunto.

– Então, é assim que as coisas vão ser: – Wrath disse sem preâmbulos. – Meio a meio. E ela vai levá-los para o Santuário quando for a vez dela. Vai começar amanhã ao cair do sol quando você sair para trabalhar. Isto não está sujeito a negociações, nem está sendo exposto para a sua consideração. Este é um decreto real e espero que você se comporte como um macho e não como um paciente de uma instituição mental a esse repeito.

Qhuinn levantou as palmas para a cabeça, como se dando umas batidinhas o cérebro fosse funcionar. Ou algo semelhante a isso.

– No Santuário? – perguntou.

– Ela pode viajar para lá como as Escolhidas fazem e eles também podem. – Wrath devolveu o cigarro para V. – A Virgem Escriba não está mais usando seus aposentos, então eles podem dormir lá.

– Acabei de levar mais uns passarinhos para lá – V. ponderou ao tragar. – Aposto como as crianças vão gostar. Aqueles putinhos cantarolantes são coloridos e até que agradáveis. Sabe, existem ganhos sensoriais como resultado de...

O irmão se retraiu e depois pareceu aborrecido quando tanto Qhuinn quanto o Rei o encararam como se ele tivesse tirado a roupa de couro, substituindo-a por um vestido cor-de-rosa e chinelos felpudos.

– Que foi? Só tô dizendo... – V. revirou os olhos. – Não tô nem aí. Sério.

– Voltando à visitação – Wrath prosseguiu. – Imagino que a sua maior preocupação quanto a Layla tirá-los daqui seja a segurança, e não existe um lugar melhor para ela estar com eles... já que não pode ficar aqui.

Qhuinn cruzou os braços e encarou o carpete. Depois andou de um lado para o outro, passando diante das estátuas de mármore conhecidas pelos humanos como gregas e romanas. As formas masculinas eram poderosas e posicionadas de diversas maneiras, as mãos vazias segurando lanças que se perderam no decorrer dos séculos – e os instrumentos de combate não eram as únicas coisas faltantes. Algumas tinham membros quebrados nos cotovelos ou joelhos, um ou outro acidente tirando algo que seria necessário para ficarem completos. Um até nem cabeça tinha.

Naturalmente pensou naquela sua parte essencial que ele mesmo perdera recentemente.

Seu Blay.

E agora... os filhos?

Quando Qhuinn se virou e voltou lentamente, V. apagou o cigarro na sola do coturno e enfiou-o meio fumado dentro do bolso das calças. Depois, sorrateiramente deslizou a mão desnuda até o cabo da sua quarenta presa ao coldre debaixo do braço.

Bem pensado, Qhuinn ponderou, porque ele estava ficando bravo. Na verdade, só a hipótese daquela Escolhida levar seus filhos para qualquer lugar fazia com que sua fúria começasse a vibrar na base do crânio.

Só que então ouviu a voz de V. na sua cabeça:

E você vai ser que nem seu pai.

Enquanto as palavras ecoavam e ricocheteavam no espaço vazio do seu crânio, ele se viu preso entre ser quem era... e se comportar como devia.

No fim, a lembrança dos buracos daquelas balas fez um lado da balança pender.

Olhando para Vishous, disse rouco:

– Pode deixar a arma onde ela está.

– Está virando uma nova página? – V. perguntou sem abaixar a mão. – E em tão pouco tempo também. Quer dizer que, ou você está exausto ou está esperando por uma oportunidade melhor.

Qhuinn focou o olhar na porta fechada da suíte dos filhos, enxergando através dos painéis do quarto atrás dela. Visualizou momentos felizes, como aquela noite e os berços com seus laços, e as pequenas letras cursivas, R na cabeceira de Rhamp, e L, na de Lyric.

– Nenhuma das alternativas. – Ele se ouviu dizer. Apesar de se sentir cansado a ponto de parecer um zumbi.

– Portanto, aceita os meus termos – Wrath prosseguiu.

– Não quero mais ver Layla. – Qhuinn meneou a cabeça. – Nunca mais. Ela e eu estamos acabados. E quero conversar pessoalmente com a directrix, Amalya. Quero ter certeza absoluta de que eles podem ir e voltar bem. E também, se Layla tentar mantê-los lá...

– Ela não fará isso.

– Como pode saber – Qhuinn disse com amargura.

– Ela me disse que é importante que você os veja.

– E acreditou nela?

Wrath tocou na lateral do nariz.

– Acha que eu não saberia se ela estivesse mentindo? E vê se me dá um tempo. Ela não é a fonte de todo o mal do mundo.

– Esse seria Ômega – V. informou com secura. – Para o caso de ter se esquecido.

– Então, está decidido. – Qhuinn não se deu ao trabalho de mostrar seu desagrado quanto ao assunto da Escolhida. – Tenho que assinar alguma coisa?

O Rei meneou a cabeça.

– Não a menos que faça questão. Todos sabemos como será.

– Tá. Acho que sabemos.

Depois que Wrath, George e V. partiram, Qhuinn ficou onde estava, olhando para as estátuas. Estava quase decidido a bater na porta de Z. para avisar que a barra estava limpa, mas, no fim, acabou só entrando de novo no quarto.

Uma olhada rápida para o relógio, e ele soube que dentro de uma hora seria a hora da mamadeira. Fritz e os doggens levavam a sério a tarefa de trazerem o leite com muito orgulho nos horários certos e na temperatura exata. Alimentar dois ao mesmo tempo seria um desafio, mas ele daria um jeito.

Deus... Blay adorava a hora da mamadeira. Amava as fraldas, mesmo aquelas que traziam lágrimas aos olhos.

Qhuinn voltou para perto dos berços e pensou em Layla levando-os para algum lugar. Literalmente, não conseguia imaginar isso – e cada osso do corpo, cada instinto paterno que tinha, gritou para que aquela loucura parasse. Não ligava que ela lhes tivesse dado à luz. Estava pouco se fodendo para o que o Rei dissera. E discordava completamente com o consenso geral de que aquela traidora em vestes brancas tinha algum direito de estar no mesmo código postal que seus filhos.

Muito menos levá-los consigo.

Baixando o olhar para Lyric, ele franziu o cenho. Havia tanto de Layla naquela garotinha, desde o formato do rosto até as mãos...

As mãos eram verdadeiramente assustadoras. Uma cópia carbono em miniatura.

Enquanto suas emoções ardiam, ele lhe deu as costas. E se concentrou em Rhamp.


CAPÍTULO 31

Conforme a aurora se aproximava, pelo menos de acordo com o relógio digital sobre o criado mudo, Xcor sentiu um resíduo de dor atravessar seu corpo.

E pensar onde estivera meras vinte e quatro horas antes.

Se algum anjo tivesse aparecido para lhe contar que no mero ciclo de um dia e uma noite, ele iria das portas da morte a se deitar ao lado do seu amor numa casa segura pertencente à Irmandade? Ele teria dito que tal destino seria impossível.

Mesmo que isso lhe tivesse sido dito pela própria Virgem Escriba.

Relanceou para Layla. Sua fêmea havia desmaiado sobre seu peito, estava largada como o melhor dos cobertores que alguém poderia ter. E parte do que ele mais amava sobre este momento? Além do fato de estar completamente saciado sexualmente assim como ela?

Ela dormia profundamente. A Escolhida Layla estava completamente em repouso; o corpo, relaxado e lânguido; a respiração, tranquila; até mesmo as pálpebras estavam fechadas como se há tempos ela não descansasse adequadamente.

De fato, a qualidade do sono dela o afetava por diversos motivos, o mais importante dos quais era que ela não poderia estar assim tão em paz caso não tivesse confiança de que ele cuidaria dela. Mantendo-a a salvo. Protegida contra toda e qualquer ameaça.

Como macho vinculado, a segurança de sua fêmea era seu maior objetivo, a confiança dela nele, seu maior orgulho, o bem-estar dela colocado acima de todos e de qualquer coisa.

Servi-la seria o maior e o melhor feito da sua vida, e era com grande tristeza que ele reconhecia que aquela era uma tarefa que ele não poderia desfrutar por muito tempo.

Wrath estava certo em fazer com que o Bando de Bastardos jurasse sobre o anel de diamante negro antes de serem todos eles banidos por decreto para o Antigo País. Os guerreiros de Xcor eram por princípio um grupo de ladrões e renegados – e se ele, Xcor, ordenasse que passassem a lealdade deles para o Rei Cego? Eles fariam isso, e manteriam a palavra, embora não por terem jurado a Wrath. Mas por causa de lealdade que sentiam em relação a Xcor.

Apenas por ele dariam suas vidas.

A Irmandade, entretanto, não aceitaria nada disso. Não, eles só seriam persuadidos por um juramento feito ao soberano deles – e, mesmo então, a paz intermediada seria tênue.

Portanto, o Bando de Bastardos tinha que deixar o Novo Mundo.

Mas como os encontraria? Caldwell era uma cidade grande se você quisesse cruzar o caminho de alguém que não se importava em ser localizado. Tentar descobrir o paradeiro de um grupo de machos que definiam suas noites e seus dias de modo a permanecerem escondidos?

Quase impossível. Isso se já não tivessem resolvido atravessar o oceano.

Com um suspiro leve, Layla se moveu ao seu encontro, reposicionando a cabeça no seu braço. Procurando acalentá-la ainda mais, esfregou-lhe as costas com a palma lentamente.

Ele sabia que deveria fechar os olhos e seguir seu exemplo, mas não havia a mínima possibilidade de essa última coisa acontecer. Felizmente, ele estava acostumado a funcionar privado de sono.

Deitado no escuro com seu amor, Xcor se maravilhou novamente com o quanto ela o havia transformado. E, então, retornou para o passado.

Era difícil imaginar o que teria acontecido caso não tivesse roubado aquele grupo de guerreiros naquela floresta específica exatamente naquela noite. Ainda mais complicado não lamentar essa única decisão que acabou por levar a tantas outras coisas.

Porque um mal o encontrara...

Bloodletter.

Santa Virgem Escriba, Xcor pensou ao encarar o tremendo vampiro macho que apareceu na floresta, vindo do nada, lançando-o para o chão. De fato, apesar de Xcor ter buscado roubar, acabou tendo que matar... um esquadrão de machos de Bloodletter.

Morreria por isso.

– Não tem nada a dizer? – o grande guerreiro demandou ao pairar acima de Xcor. – Nenhum pedido de desculpas pelo que tirou de mim?

No vento agora frio, Bloodletter passou por cima de Xcor e foi apanhar a cabeça decepada pelos cabelos, deixando-a pendurada com o sangue escorrendo pelo pescoço.

– Você faz ideia de quanto tempo é necessário para treinar um destes? – O tom era mais de fastio do que de qualquer outra coisa. – Anos. Você, em apenas uma noite – em apenas uma luta – me privou de um vasto investimento do meu precioso tempo e energia.

Dito isso, ele lançou crânio para o lado, e Xcor estremeceu quando a cabeça quicou pelo gramado.

– Você – Bloodletter apontou para ele – me compensará por isso.

– Não.

Por um instante, Bloodletter pareceu surpreso. Mas depois sorriu com todos os seus dentes. – O que disse?

– Não haverá nenhuma compensação. – Xcor se levantou. – Nenhuma.

Bloodletter lançou a cabeça para trás e gargalhou, o som trafegando pela noite e espantando uma coruja logo acima e um cervo mais ao longe.

– É louco, então? É a insanidade que lhe dá tantas forças?

Xcor lentamente se inclinou para o lado e recuperou a foice. As palmas suavam e estavam escorregadias no cabo, mas ele segurou a arma com todas as forças de que dispunha.

– Sei quem você é – Xcor disse com suavidade.

– Sabe. Diga, então. – Mais um sorriso horrendo e ávido por sangue, enquanto o vento açoitava os cabelos longos trançados. – Eu gosto de ouvir elogios vindos da boca de outrem – antes que eu os mate e foda seus corpos. Diga, é isso o que ouviu a meu respeito? – Bloodletter deu um passo à frente. – É? É isso o que tanto o aterroriza? Posso lhe prometer, você não sentirá nada. A menos que eu decida querê-lo enquanto ainda respira. Nesse caso... Bem, nesse caso, conhecerá a dor de ser possuído, isso eu também lhe prometo.

Era como se Xcor estivesse sido confrontado pelo mais genuíno mal, um demônio em carne e osso, colocado sobre a face da Terra para atormentar e torturar almas que, de outro modo, seriam puras.

– Você e seus machos também são ladrões. – Xcor olhou para cada centímetro daquele corpo, desde as mãos curvadas até a mudança do peso de um pé a outro. – São violadores de fêmeas e governam a si mesmos, sem servirem ao verdadeiro e único Rei.

– Acha que Wrath virá ao seu resgate agora? Mesmo? – Bloodletter fez de conta que olhava ao redor na floresta. – Acredita que seu benevolente regente vai aparecer aqui e interceder por você, salvando-o de mim? A sua lealdade é louvável, imagino – mas não o protegerá disto.

O som de metal contra metal foi como um grito na noite, a lâmina que Bloodletter desembainhou quase tão comprida quanto a foice.

– Ainda jura lealdade, será? – Bloodletter disse de modo arrastado. – Tem ciência, eu me pergunto, de que ninguém sabe onde está o Rei? Que depois que os pais dele foram assassinados, ele desapareceu? Então, não, eu não acredito que você será salvo por ele. – Um rugido se elevou. – Nem por ninguém mais.

– Eu mesmo me salvarei.

Naquele momento, as nuvens perderam a luta contra os ventos, a cobertura pesada sendo afastada e fornecendo um espaço pelo qual a lua brilhou, iluminando o céu como se fosse o dia que Xcor não via desde a sua transição.

Bloodletter se retraiu. Depois inclinou a cabeça num ângulo.

Houve um longo instante de silêncio, durante o qual nada se moveu a não ser pelos pinheiros e pelas moitas.

E, então, Bloodletter, voltou a embainhar a adaga.

Xcor não abaixou a sua arma. Não sabia o que estava acontecendo, mas estava muito ciente de que não se devia confiar no inimigo – e ele se colocara contra aquele temido guerreiro apenas por autodefesa.

– Venha comigo, então.

A princípio, Xcor não compreendeu as palavras. E mesmo quando as compreendeu, não as entendeu.

Balançou a cabeça.

– Irei para o meu túmulo antes de acompanhá-lo para qualquer lugar. O que é a mesma coisa, no final.

– Não, você virá comigo. E eu lhe ensinarei os caminhos da guerra e você servirá ao meu lado.

– Por que eu faria isso...

– É o seu destino.

– Você não me conhece.

– Sei exatamente quem você é. – Bloodletter apontou para a cabeça decapitada. – E isso torna tudo muito mais compreensível.

Xcor franziu o cenho, uma aceleração que não era causada pelo medo ante o que estava prestes a ouvir.

– Que mentiras você diz?

– O seu rosto é o que o denunciou. Pensei que você fosse um boato, uma fofoca. Mas não, não com sua mão de adaga e esse lábio. Você vem comigo e eu o treinarei e o colocarei a trabalho contra a Sociedade Redutora...

– Sou... um ladrão qualquer. Não um guerreiro.

– Não conheço nenhum ladrão que poderia fazer o que você acabou de fazer. E você também sabe disso. Negue se quiser, mas você nasceu para isto, perdeu-se no mundo, agora foi encontrado.

Xcor meneou a cabeça.

– Não irei com você, não... Não, eu não irei.

– Você é meu filho.

Com isso Xcor abaixou a foice. Lágrimas surgiram nos seus olhos, e ele piscou para afastá-las, determinado a não demonstrar nenhuma fraqueza.

– Você virá comigo – Bloodletter repetiu. – E eu lhe ensinarei os caminhos adequados na guerra. Eu o forjarei como o aço temperado pelo fogo, e você não me desapontará.

– Conhece minha mahmen? – Xcor perguntou com voz fraca. – Sabe onde ela está?

– Ela não o quer. Nunca quis.

Isso era verdade, Xcor pensou. Era o que sua ama-seca lhe dissera.

– Portanto, você virá comigo agora e eu pavimentarei o caminho do seu destino. Você me sucederá... se o treinamento não o matar.

Xcor voltou ao presente ao abrir os olhos que nem sabia que havia fechado. Bloodletter estivera certo em certos assuntos, errado em outros.

O treinamento no campo de guerra fora muito pior do que Xcor um dia poderia ter imaginado, os guerreiros de lá lutando uns contra os outros pelos suprimentos e água escassos e também quando eram incitados uns contra os outros quer por diversão, quer por combate. Fora uma existência brutal, noite após noite, semana após semana, um mês após o outro... no decorrer de cinco anos... tudo acontecendo exatamente como Bloodletter prometera.

Xcor fora forjado como um aço vivo, despido de emoções e de compaixão como se elas nunca tivessem existido nele, crueldade em cima de crueldade cobrindo-o até que sua natureza fosse suprimida por completo por tudo o que ele vira primeiro, e feito depois.

Sadismo podia ser treinado numa pessoa. Ele era a prova viva disso.

E também era algo viral, pois ele fizera com Throe o que Bloodletter fizera com ele, sujeitando o antigo aristocrata a uma infinidade de indignidades e desafios e insultos. O resultado também foi semelhante: Throe também superara os testes, mas também fora amargurado por eles.

Foi assim que tudo aconteceu. Ainda que, diferentemente de Xcor, Throe pareceu não ser mediado por qualquer força abençoada, sua ambição ainda era incontrolável.

Ou pelo menos assim fora antes do sequestro de Xcor – e não havia provas que sugerissem que as ambições e propensões do macho pudessem ter mudado com a passagem do tempo.

Motivo pelo qual Xcor resolvera alertar Wrath a respeito do macho.

Xcor acariciou o ombro de Layla e se maravilhou com o efeito que ela surtia nele, a habilidade dela em atravessar sua armadura de agressão e hostilidade, alcançando o macho que havia por baixo daquilo, o verdadeiro.

Aquele com quem há tempos havia perdido contato.

Ela era o seu recomeço, o mecanismo de revés que o transportou de volta ao que era antes que seu destino o tivesse feito cruzar o caminho de Bloodletter.

Uma imagem daquele terrível guerreiro lhe veio à mente com uma clareza que foi como se o tivesse visto na noite anterior, tudo, desde as sobrancelhas grossas até os olhos penetrantes, a protuberância do queixo e a grossura do pescoço, a circunferência e a amplitude daquele imenso corpo. Fora um mesomorfo entre os imensos, uma força da natureza que envergonharia tanto as tempestades furiosas do verão quanto as nevascas explosivas e gélidas do inverno.

E também fora um mentiroso.

Quem quer que fosse o pai de Xcor, não fora ele. A própria filha de Bloodletter lhe dissera isso.

Xcor meneou a cabeça de um lado a outro sobre o travesseiro macio para clarear os pensamentos.

Por tanto tempo, ele quisera saber quem eram seus pais, algo que ele supunha devia ser verdade para a maioria dos órfãos no mundo: mesmo não tendo sido desejado por eles, mesmo que não fosse ter nenhum relacionamento com eles, ele ainda assim tivera o desejo de conhecer suas identidades.

Era algo difícil de explicar, mas sempre sentira estar sujeito a tal ausência de gravidade conforme se movia pelo mundo, o corpo possuindo uma leveza essencial que, em retrospecto, o predispusera a cair na ideologia da destruição de Bloodletter, no caos e na morte.

Quando não se tem uma bússola própria, a de qualquer um serve.

E, no seu caso, o mais maligno e aviltante que se poderia imaginar foi no qual ele caíra e abraçara.

Deus, como tinha arrependimentos.

Bloodletter falara de treinamento para a guerra, mas ficara bem claro que ele servira apenas à própria sede de sangue e não à defesa da espécie – e mesmo assim, Xcor o seguira: assim que teve uma amostra do que era o orgulho paterno, por mais pervertido que ele tivesse se manifestado, a aprovação se tornara uma droga da qual ele necessitava, um antídoto contra o vazio que existia dentro dele.

Só que o paternalismo não passara de um sonho, no fim das contas. Uma mentira revelada por uma verdade inesperada.

Com a perda do macho, Xcor sentiu como se tivesse sido abandonado uma terceira vez: a primeira ao nascimento; a segunda quando a fêmea que fora sua ama-seca... ou algo mais para ele... partira. E depois a terceira foi quando a falsidade de Bloodletter, indubitavelmente criada para garantir que Xcor o seguiria até o campo de guerra, foi revelada, a notícia entregue por uma fonte incontestável.

A irmã de sangue de V., Payne, matara o verdadeiro pai deles, Bloodletter.

Matando a mentira também.

Mas Xcor pensou que estava tudo bem. Ao encontrar seu amor? Toda a sua busca cessou. Ele estivera perseguindo uma família que não existia porque ela nunca o quisera. Estava farto de buscar por fontes externas para encher sua cisterna interna. Não assumiria mais nenhum sistema de valor que não fosse o seu próprio.

E quanto a não tentar mais procurar algo que não existia? Ele descobrira que o destino que procurava esteve sempre dentro dele, e a sensação disso... era boa.

Era bom sentir-se inteiro.

Era bom oferecer-se sem reservas, nem hesitações para uma fêmea de valor que o amava com tudo o que ele tinha dentro de si.

Xcor franziu o cenho. Mas como deixaria Layla? O destino era o que era, contudo, por mais que ele tivesse melhorado, por melhor que fossem seus caminhos agora... Ele não poderia apagar o passado ou as consequências que tinha que pagar por tudo o que fizera. Nada faria isso.

Na verdade, ele nunca estaria à altura dela. Mesmo se o grande Rei Cego não tivesse ordenado sua deportação, ele teria ido mesmo assim.

Eles só precisavam fazer contar o pouco tempo de que dispunham.

Para durar uma vida inteira.

 

 

 

CONTINUA