Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 14
– Sério. Só vou tomar uma chuveirada e depois ficar olhando para fora da janela por mais um tempo. Só isso.
Quando Vishous não disse nada, Layla se virou na cadeira na qual estivera sentada pela última hora. Ele também estava onde estivera, naquela cozinha limpa junto com ela, apoiado contra a bancada de granito ao lado do fogão, fumando silenciosamente. A casa segura na qual ficaram durante o dia era uma bela casa térrea pequena o bastante para parecer acolhedora, mas grande o suficiente para uma pequena família. Tudo ali era decorado em tons de cinza, com toques cuidadosamente escolhidos de amarelo e um azul alegre, por isso, em vez de parecer melancólico, parecia arejado, leve e moderno.
Em outras circunstâncias, ela teria amado tudo sobre aquela casa. Como a situação se apresentava, parecia uma prisão.
– Convenhamos, Vishous. Acha mesmo que vou aparecer na soleira da mansão e exigir ser recebida? E eu nem tenho a chave. – Quando ele não respondeu, ela revirou os olhos. – Ah, não, você está pensando que estou procurando outra oportunidade de irritar nosso Rei. Porque você consegue ver como isso está dando certo para mim agora.
Vishous passou o peso do corpo de um coturno para outro. Vestindo couro preto e uma camiseta justa, e com uns vinte quilos de pistolas e adagas no corpo, ele era como um espectro no lugar errado naquele retrato de casa perfeita. Ou talvez fosse mesmo o lugar certo. Fora o arauto da destruição desde a noite anterior – e no que se referia ao quesito colegas de quarto, ele era tão divertido quanto estava o seu humor.
Layla assentiu para o celular na mão enluvada dele.
– Vá para a sua reunião. A mensagem era sobre isso, não?
– É grosseria ler as mentes das pessoas – ele murmurou.
– Não estou dentro da sua cabeça. A sua expressão simplesmente evidencia que gostaria de sair e se sente aprisionado aqui comigo. Não preciso de uma babá. Não vou a parte alguma. O Rei tem meus filhos debaixo do teto dele, e a menos que eu jogue segundo as regras dele, jamais voltarei a vê-los. Se acha que estou tentando enganá-lo de alguma maneira, então você perdeu completamente a sua maldita cabeça.
Quando ela se virou para a janela, estava ciente de ter praguejado, e não deu a mínima. Estava preocupada com Lyric e Rhamp, sem ter dormido nem se alimentado.
– Vou mandar vir outra pessoa no meu lugar. – Som de teclas, como se Vishous estivesse mandando uma mensagem. – Talvez Lassiter.
– Prefiro ficar sozinha. – Ela se virou de frente. – Estou ficando cansada de chorar diante de uma plateia.
Vishous abaixou o braço. Se por ter enviado aquilo que estivera escrevendo ou por concordar com ela, ela não sabia – tampouco se importava.
Impotência aprendida, ela pensou. Não assim que aquilo era chamado? Ouvira Marissa e Mary usando o termo quando se referiam ao estado inerte em que as vítimas de abuso doméstico às vezes se encontravam.
Embora em seu caso ela não estivesse sendo abusada. Merecera isso por conta dos seus próprios atos.
Voltou a encarar a noite, mudando de posição para poder olhar as portas de correr atrás de mesa. Havia uma varanda do lado de fora das largas vidraças, e sob o brilho das luzes de segurança, ela mediu a pequena elevação de gelo e neve, e tracejou a trilha de folhas marrons dançando sobre o palco enregelado. Durante o dia, ela ligara a televisão no noticiário local do meio-dia. Aparentemente, havia uma frente fria estranha vindo na direção de Caldwell, e ela já ouvia os barulhos dos caminhões de sal roncando ao longe, jogando salmoura nas estradas.
Talvez as crianças humanas tivessem o dia de folga da escola quando a tempestade chegasse, e isso fez com que ela verificasse as casas ao longe da cerca do quintal de trás. Não conseguia ver muito das casas, apenas o brilho nas janelas do segundo andar, e ela imaginou todo tipo de seres humanos jovens aninhados em suas camas enquanto os pais assistiam a um pouco de TV antes de irem dormir.
Como os invejava.
E, com isso em mente, Deus, como desejou que V. fosse embora. Estava enlouquecendo presa ali na presença furiosa dele – ainda que a ideia de ter Lassiter como substituto bastasse para que pensasse em suicídio.
– Muito bem – Vishous murmurou. – Volto quando souber de algo.
– Por favor, não mande aquele anjo.
– Pode deixar. Isso tornaria a sua punição cruel e extraordinária.
Ela soltou o ar que nem sabia que estava segurando.
– Obrigada.
O Irmão hesitou.
– Layla, escute...
– Correndo o risco de também te irritar, não há nada que possa me dizer que fará com que isto melhore ou piore. É assim que se sabe que estamos no Inferno, a propósito. Nenhuma esperança, e dor é só o que você vê.
O som das botas pesadas de Vishous nos ladrilhos soou alto na quietude da pequena cozinha e, por algum motivo, ela pensou no amor do Irmão Tohrment pelos filmes do Godzilla. Na outra noite mesmo, ela descera para esticar um pouco as pernas e encontrara Tohr relaxado no sofá da sala de bilhar, com Autumn adormecida em cima dele, Godzilla versus Mothra passando na tela grande acima da lareira.
Ela acreditara que as coisas eram complicadas na época. Agora? Desejava poder voltar no tempo para aquelas noites agradáveis em que só o que ela tinha em mente era arrependimento e culpa.
Quando V. parou diante dela, seus ombros se endureceram até ela sentir uma dor na base do crânio.
– Sim – ela disse com irritação –, eu vou acionar o alarme depois que você sair. E também sei como funcionam os controles remotos. Você me mostrou isso antes, embora eu possa lhe garantir que não estou interessada nem em Game of Thrones a esta altura.
Não era usual da sua parte ser cruel, mas estava proverbialmente dentro da toca do coelho, perdida de quem e do que normalmente costumava ser.
– Xcor fugiu. Ontem à noite.
Layla se retraiu tão repentinamente que quase caiu da cadeira. E antes que pudesse perguntar, o Irmão disse:
– Ninguém foi ferido no processo. Mas ele acabou trancando Qhuinn na Tumba... Que é onde o estávamos mantendo. E ele deixou a chave para trás.
O coração de Layla deu um salto e começou a bater rápido, antes que ela conseguisse dizer alguma coisa ou ordenar seus pensamentos, Vishous arqueou uma sobrancelha.
– Ainda se sente segura em ficar sozinha?
Ela o fitou com franqueza.
– Está mesmo preocupado com isso?
– Você ainda é um membro da família.
– Uh-hum. Certo. – Cruzou os braços diante do peito. – Bem, ele não virá atrás de mim, se é com isso que está preocupado. Ele terminou comigo. Não existe literalmente nada que possa levar esse macho a se aproximar de mim – o que faz com que ele tenha algo em comum com Qhuinn, ironicamente.
Vishous não respondeu. Apenas pairou acima dela, com os olhos gélidos avaliando cada nuance do seu corpo, da sua postura, cada respiração sua.
Era como se estivesse num palco diante de cem milhões de pessoas. Com os holofotes do teatro queimando-lhe as retinas.
Exatamente do que ela estava precisando.
– Não acha que Xcor gostaria de saber onde você está? – A pergunta foi feita num tom tão neutro que era impossível adivinhar se era uma pergunta de verdade ou apenas retórica.
De todo modo, ela sabia a resposta.
– Não. Não existe a mínima chance.
Ela se virou e voltou a olhar para os escorregadores na escuridão. O coração batia rápido no peito, mas ela estava se esforçando para não aparentar isso.
– Você ainda o ama – V. disse distraído. – Não?
– Isso importa?
Quando V. acendeu outro cigarro enrolado à mão, começou a andar, indo de volta para perto do fogão onde estivera parado antes. Em seguida, foi até a porta que dava para o porão. E finalmente voltou para a mesa onde ela estava sentada.
Numa voz baixa, ele disse:
– Não sei bem o quanto você sabe sobre mim e Jane, mas eu tive que apagar a memória dela uma vez. As circunstâncias não importam, e o destino tinha outras ideias, ainda bem... Mas eu sei o que é não estar com aquele a quem amamos. Também sei como é quando nada no relacionamento parece fazer sentido para ninguém além de vocês dois. Quero dizer, eu me apaixonei pela porra de uma humana, e depois ela morreu. Então agora amo um fantasma, e não no sentido metafórico. Essa coisa com Xcor? Sei que você teria escolhido um caminho diferente se pudesse.
Quando Layla olhou para o Irmão, ela sentiu os olhos se arregalando. De todas as coisas que Vishous poderia ter dito? Ela ficaria menos surpresa caso ele dissesse que estava comprando ações da Apple.
– Espere... O quê? – disse, surpresa.
– Às vezes as merdas do coração não fazem sentido. E você sabe, no fim das contas, Xcor não a machucou. Por quanto tempo se encontrou com ele? Ele nunca a aterrorizou, nem aos seus filhos. Odeio o filho da puta, não se engane, e você se associou ao inimigo. E que ele vá para os infernos, mas ele não estava agindo como um, pelo menos não no que se referia a você – e ele também nunca nos atacou, não é? Durante todo esse tempo, ele sabia onde estávamos, mas o Bando de Bastardos nunca entrou na propriedade. Não estou dizendo que quero me sentar e tomar um drinque com o FDP, e que você não estava errada. Mas a coisa boa em ser lógico é que você pode julgar tanto a história quanto o presente com claridade – e eu sou um macho muito lógico.
Os olhos de Layla começaram a se encher de lágrimas de novo. E, com uma voz partida, sussurrou:
– Eu me odiei durante todo aquele tempo. Mas... eu o amei. E temo que sempre amarei.
Os olhos diamantinos de Vishous se abaixaram de modo que foram parar nos coturnos. Depois esticou o braço e pegou a caneca que vinha usando como cinzeiro. Batendo as cinzas dentro dela, deu de ombros.
– Não escolhemos por quem nos apaixonamos, e tentar se convencer a não sentir essas emoções é a receita para o fracasso. Não errou ao amá-lo, certo? Por essa parte, ninguém pode condená-la, porque as coisas são como elas são – e você já sofreu o bastante. Além disso, é como eu disse... ele nunca a machucou, não é? Portanto deve haver algo dentro dele que não é vil.
– Olhei nos olhos dele. – Ela fungou e enxugou o rosto com o dorso das mãos. – Enxerguei a verdade neles e ela era que ele jamais feriria a mim ou a qualquer um que eu amasse. E quanto ao motivo de nossa relação ter terminado? Ele não queria me amar, assim como eu não queria amá-lo.
Ela estava pronta para continuar falando, desesperada pelo alívio inesperado que vinha quando alguém compreendia em que ponto se encontrava. Mas, de repente, a compaixão de V. desapareceu, e a máscara impenetrável que ele costumava usar voltou ao seu lugar, e a porta de comunicação foi fechada como se nunca tivesse sido aberta.
– Pegue. – O Irmão colocou seu celular sobre a mesa. – A senha é dez, dez. Não sei quanto tempo Wrath vai levar para decidir que tipo de programa de visitação haverá, mas você pode esperar ter que ficar nesta casa por enquanto. Ligue se precisar de nós. Meu segundo telefone está listado como “V. 2” na lista de contatos.
Layla esticou a mão e pegou o celular. Ainda estava quente pelo contato com a mão dele.
– Obrigada – disse com suavidade ao segurar o objeto. – E não só por isto.
– Não importa – ele murmurou. – Engraçado como maldições vêm em todos os tipos de sabores, certo? Minha mãe era criativa assim.
No túnel, Qhuinn abriu caminho da clínica médica no centro de treinamento até a mansão como se estivesse embriagado, as passadas tão descoordenadas quanto dados quando eram lançados, a cabeça girando, os pontos na lateral do corpo doendo tanto que ele parava de tempos em tempos na sua camisola hospitalar para ver se não dera uma de Alien com algo saindo das entranhas.
Só queria ir direto até os gêmeos, numa rota desimpedida pela porta camuflada atrás da grande escadaria da mansão até o quarto no segundo andar: sem nenhum olhar preocupado de um doggen, nenhuma acareação por parte dos seus irmãos, nem ninguém tentando alimentá-lo. E, por favor, Deus, nada que se relacionasse a Lassiter.
Ao sair debaixo das escadas, fez uma pausa antes de avançar no vestíbulo e apurou os ouvidos. A Primeira Refeição já fora e estava no processo de limpeza, pois os criados estavam arrumando a sala de jantar, conversando baixinho e os sons dos talheres de aço inoxidável sendo retirados dos pratos de porcelana eram sussurrados para fora da soleira aberta em forma de arco.
Nada vindo da sala de bilhar.
Ninguém no tapete vermelho...
Bem na hora – sqn – uma estranha fonte de luz apareceu bem no meio do espaço imenso e resplandecente, como se alguém tivesse cavado um buraco no teto e um sol improvável do meio-dia estivesse brilhando através do telhado.
Por um segundo, só o que Qhuinn conseguia pensar era “graças a Deus”. O segundo advento humano chegara a tempo de acabar com todo o sofrimento de uma vez – e, na verdade, uma figura de fato apareceu no meio do facho de luz. Mas não era o Cristo para o qual Butch rezava o tempo todo.
Também não era Papai Noel com sua pança e seus pôneis de chifres ou sabe-se lá que porra que eles eram – uma vez que sendo época das festas natalinas poderia ser o caso.
Nada disso; era o Grande Agitador Imortal: Lassiter, o anjo caído, materializado no meio daquela indefinível fonte de luz imensa, e o brilho reluzente diminuiu quando ele assumiu sua forma como se um sistema de entrega em domicílio o tivesse levado até ali.
Ok, as roupas eram estranhas, Qhuinn pensou.
E não por ser do tipo louco de listras de zebra com boá de penas. O anjo tinha uma camisa de flanela amarrada na cintura. Jeans azuis que com mais uma lavagem perderiam toda a sua integridade física. E uma camiseta do Nirvana do show no Saint Andrew’s Hall em 11 de outubro de 1991.
E também esse não era o estilo musical dele. Lassiter era fã de Fetty Wap quando não estava em êxtase com Midler.
A boa notícia? O anjo foi direto para a sala de bilhar, sem notar que Qhuinn estava seminu e nauseado na base das escadas.
Portanto existia um pouco de graça e misericórdia restante no mundo, ao que tudo levava a crer.
Sim, só que em seguida veio o trajeto de Qhuinn para o segundo andar. A subida exigiu o uso da balaustrada e muitos molares cerrados, mas, depois de diversos meses, senão anos, de subida, Qhuinn conseguiu chegar. No alto, ficou aliviado em ver que as portas do escritório de Wrath estavam fechadas. O que não era tão bom assim? O fato de haver muitas vozes indo e vindo por trás daqueles painéis.
Ele podia imaginar qual seria o assunto.
Prosseguindo pelo corredor das estátuas, foi até o quarto em que Layla se hospedara, e se viu querendo bater mesmo sabendo que seus filhos estavam ali. Criando coragem, agarrou a maçaneta da porta nova e a virou com tanta força que seu pulso parecia prestes a saltar do fim do braço.
Quando abriu a porta, parou de pronto.
Beth estava de costas para ele inclinada sobre o berço de Lyric, a Rainha murmurando todo tipo de coisa adorável enquanto acomodava o bebê no casulo macio.
Quando sua presença foi percebida, não foi uma surpresa quando Beth cruzou os braços diante do peito e aprumou os ombros como se ele fosse o inimigo.
– Obrigado por cuidar deles – disse ao claudicar para dentro.
– Sua aparência está horrível.
– Eu me sinto pior.
– Que bom. – Quando ele levantou uma sobrancelha na direção dela, a Rainha deu de ombros. – O que quer que eu diga? Que tudo bem você expulsar Layla desta casa?
– Ela fez isso consigo, não eu.
Deus, a cabeça latejava, aquela conversa com Blay virava e girava em sua mente como se fosse um carro numa pista de corrida. Pois é, por isso falar sobre a Escolhida seria bom pra cacete agora.
– Só pra você saber – a Rainha levou as mãos ao quadril – eu acho que os direitos de Layla devem ser mantidos, e acho que você e ela precisam encontrar um esquema de visitação justo no qual estes bebês possam ir ficar com a mahmen deles às noites.
– Eles não vão sair desta casa. E Layla não pode ficar aqui. A situação é esta.
– Você não é o encarregado.
– Não, mas nem você é – ele disse exausto. – Portanto, por que não paramos por aqui?
Beth deu uma olhada em Rhamp, depois foi para a frente. Enfrentando-o nos olhos, disse:
– Isto aqui não se trata do seu ego ferido, Qhuinn. Estes dois precisam de vocês dois, e isso significa que você precisa agir como adulto mesmo quando não tem vontade. Você não tem que ver Layla, mas eles sim.
Qhuinn foi até a cama e se sentou, porque ou era isso ou acabaria dando uma de tapete aos pés dela.
– Traição, Beth. Contra o seu companheiro. Isto aqui não é um caso de um pai ter se esquecido de alimentá-los um dia, ou de colocá-los para dormir na hora certa.
– Você não tem que me dizer quem atirou no meu marido – Beth estrepitou. – Assim como eu não tenho que te dizer que depende de Wrath – e de ninguém mais – perdoar ou não, punir ou não. Esta droga não te diz respeito, Qhuinn. Tire a cabeça de dentro do seu traseiro, faça o que é certo para os seus filhos e veja se dá um jeito nesse seu temperamento.
Quando ela marchou para fora do quarto, ele teve absoluta certeza que se não fosse por Rhamp e Lyric, ela teria batido a porta com força suficiente para ecoar até o Fade.
Levando a cabeça às mãos, ele quase vomitou sobre os pés descalços.
Jesus, ainda estava só de camisola hospitalar.
Pois é, porque com todas aquelas merdas acontecendo, o que ele vestia era de grande importância. Pensando bem, quando se está cercado por coisas que não se pode controlar, não consegue endireitar, e com as quais não quer lidar, o que cobre o seu traseiro é um tipo de férias para o seu cérebro do tamanho de uma ervilha.
Abaixando os braços, levantou-se e foi para perto dos berços. Pegou Rhamp primeiro, segurando o filho nas palmas e levando-o até a imensa cama. Colocando o bebê entre os travesseiros, rapidamente trouxe Lyric e se deitou com os dois.
Rhamp se remexeu um pouco. Lyric estava tranquila.
Em pouco tempo, ambos estavam adormecidos nas curvas dos braços de Qhuinn. Mas ele não conseguiu descansar, e não só porque o corpo doía em toda parte.
Todavia sua insônia não fazia sentido algum. Conseguira aquilo que queria: Layla estava fora da mansão, e não importava o que Beth dissesse, Wrath faria a coisa certa e expulsaria a Escolhida da vida dos seus filhos. E Blay também acabaria cedendo. Passaram por coisas piores do que aquilo e sempre chegaram ao outro lado do conflito melhores e mais fortes juntos.
Além disso, tinha os filhos a salvo consigo.
Apesar de tudo isso, porém, Qhuinn sentia como se alguém o tivesse esvaziado por dentro, não deixando nada entre as costelas, a pelve estava sem conteúdo, a pele, um saco inútil sem nada de fato a fazer.
Fechou os olhos. Obrigou-se a descansar. A relaxar.
Dentro de segundos, seus olhos estavam abertos. Enquanto fitava o teto, para os buracos de bala que formara num canto, ele sentiu uma dor no lugar em que seu coração deveria estar.
Fazia sentido. Aquele órgão vital seu estava do lado oposto de Caldwell, na casa nova dos pais de Blay, aquela que a mahmen do macho não gostava porque tudo nela funcionava bem e as tábuas do assoalho não rangiam quando se caminhava sobre elas.
Sem seu coração, Qhuinn era um receptáculo vazio. Mesmo com os filhos junto dele.
Pois é, isso doía. Ele só estava surpreso com o quanto.
CAPÍTULO 15
O prédio da Companhia de Seguros de Caldwell tinha uns setenta andares e estava localizada no bairro financeiro, servindo de marco em meio a outras construções elegantes, porém mais baixas. De acordo com uma placa informativa, havia sido construído em 1927 e, de fato, comparado com seus vizinhos mais modernos, era uma gloriosa grande dama na companhia de meretrizes. Com conjuntos de gárgulas marcando três estágios diferentes da elevação, e uma coroa ornamental com entalhes e frases em latim no alto, o CSC era um monumento à grandeza e à longevidade da cidade.
Quando Zypher tomou forma no telhado, o vento açoitou os cabelos lisos para trás do rosto, e os olhos se encheram de lágrimas com o jorro frio. Bem abaixo, as luzes da cidade se estendiam num halo terreno dividido em dois pelo rio Hudson.
Um a um, os outros do Bando de Bastardos se juntaram a ele: Balthazar, o selvagem; Syphon, o espião; e Syn, que pairava nas imediações como a fonte do mal esperando para atrapalhar o destino feliz de alguém.
Eram-lhe todos conhecidos, esses machos com quem lutara lado a lado por mais de duzentos anos. Não havia nada que não tivessem partilhado: derramamento de sangue, deles mesmos e dos inimigos; fêmeas, tanto vampiras quanto da variedade humana; abrigos, tanto aqui quanto no Antigo País.
– Amanhã, então – Balthazar comentou contra o vento.
– Isso. – Zypher acompanhou o desenho da autoestrada abaixo com os olhos, notando os faróis brancos do trânsito nesta direção, e os vermelhos, dos que partiam para a outra. – Amanhã à noite, nós partiremos.
O grupo estivera no Novo Mundo por pouco tempo, e não conquistaram nada daquilo que procuraram quando viajaram através do Oceano. Originalmente, vieram à procura de assassinos, visto que o número de inimigos no lar deles no Antigo País diminuíra até quase desaparecerem por completo e aterrorizar humanos só era divertido até certo ponto. Mas após ali chegarem, descobriram uma semelhante população quase dizimada. A ambição, no entanto, logo se alargou. Xcor quisera ser Rei, e alianças necessárias foram forjadas com aristocratas na glymera que queriam que o Conselho tivesse mais poder.
O golpe fracassara.
Mesmo tendo conseguido colocar uma bala na garganta de Wrath, o Rei não só sobrevivera à tentativa de homicídio como se elevara a uma posição de ainda maior poder – e isso colocara o Bando de Bastardos em desvantagem crítica.
Em seguida, os fundamentos mudaram, pelo menos para Xcor.
Depois que a Escolhida Layla entrou na vida do líder deles, nada mais pareceu importar para o macho – e isso de fato foi encarado como um benefício para a maioria do grupo. A natureza de Xcor há tempos se alinhara com uma crueldade que inspirara medo e, portanto, respeito. Depois daquela fêmea? Os cantos afiados do guerreiro ficaram mais fáceis com que se lidar – e, em troca, os Bastardos se mostraram mais produtivos, visto que já não monitoravam constantemente o humor em que Xcor estava.
Só que, então, o líder fora capturado ou assassinado.
Até esta noite, eles não sabiam qual dos dois acontecera e, evidentemente, nunca mais veriam Xcor. O destino bem sabia que haviam tentado encontrá-lo, quer seus restos, quer o próprio macho, e encerrar as buscas era difícil. Mas sem nada mais em que se apoiarem, e com a Irmandade sempre em seu encalço, a melhor escolha era retornarem para onde vieram.
De repente, a imagem de Throe veio à mente de Zypher e ele franziu o cenho.
Alas, mais outro acabara se perdendo. Throe, o segundo no comando para todos os efeitos, fora expulso do grupo quando suas ambições ao trono se mostraram mais permanentes que as de Xcor. Essa incompatibilidade de objetivos separara os dois – e, portanto, o macho que não deveria ter estado com eles de todo modo partira, sendo apenas uma nota de rodapé na história deles. De fato, Throe, um antigo aristocrata que fora humilhado e recrutado a servir como forma de pagamento de um débito, mas que acabara provando seu valor ao longo do tempo, não fazia mais parte do grupo, talvez assassinado por redutores ou por outros de sua posição com os quais conspirara. Ou talvez ainda estivesse vivendo entre aqueles de sangue azul, aceito uma vez mais em seu seio, com novos esquemas em mente.
No entanto, nenhum deles se importava com o desaparecimento desse como se importavam com o de Xcor.
Na verdade, enquanto Zypher observava a cidade, teria parecido inconcebível ao chegarem a estas paragens que um dia partiriam sem os dois que foram parceiros em todos os modos que importavam. Mas havia um truísmo que regia tudo: o destino seguia seu próprio curso, sem escolhas individuais nem predileções e quanto a previsões, nove entre dez eram inconsequentes.
– Nosso objetivo agora é... – Ele deixou o pensamento incompleto.
Balthazar imprecou.
– Encontraremos outro, companheiro. E o faremos no lugar a que pertencemos.
Sim, Zypher pensou. Era o que fariam. No Antigo País, tinham um castelo livre de dívidas, e uma equipe de doggens que trabalhavam na terra, provendo sustento e produtos para serem vendidos nas vilas circundantes. Os humanos supersticiosos da região se afastavam deles. Havia mulheres e algumas fêmeas para a cama. Talvez conseguissem localizar alguns assassinos por ali, depois de tanto tempo...
Céus, tudo parecia tão horrível. Um passo para trás em vez de para a frente.
Todavia, não poderiam permanecer ali. A primeira regra de um conflito era que se você deseja viver, não se deve entrar em choque com um inimigo mais poderoso – e a Irmandade, protegida pelo Rei como era, tinha tremendos recursos financeiros, instalações e armamentos. Enquanto existia uma possibilidade de destituírem Wrath, o cenário fora diferente. Mas com os Bastardos possuindo apenas quatro guerreiros, sem nenhum líder, e nenhum objetivo definido?
Não. Aquilo não era nada bom.
– Amanhã, então – Balthazar disse. – Partiremos.
– Certo.
Entretanto, Zypher quis mesmo que estivessem com o corpo de Xcor para levá-lo de volta.
– Procuraremos por ele uma última vez – anunciou para o vento. – Para isso, nesta nossa noite final, encontraremos nosso líder.
Fariam mais uma tentativa – e mesmo com o resultado provavelmente não sendo diferente das outras vezes, o esforço os ajudaria a encontrar a paz com a sensação coletiva de estarem desertado o líder deles.
– Vamos sair para caçar, então – Balthazar disse.
Um a um, desmaterializaram-se na escuridão fria.
Assim que Vishous saiu da casa segura, Layla inspirou fundo – mas o exalo não lhe adiantou de nada.
Permanecendo onde estava, à mesa da cozinha, ela ouviu ao absolutamente nada por um tempo, e depois se levantou e caminhou pelo primeiro andar, entrando nos ambientes acolhedores. No fundo da mente, teve o pensamento de que a casa era um ninho perfeito, o tipo de lugar que uma fêmea sozinha se sentiria segura.
Será que teria a oportunidade de trazer os gêmeos para ali um dia?
A ansiedade lhe dificultou a respiração, e ela foi até a porta corrediça que V. usara para sair. Abrindo-a, ela saiu, e quando os chinelos esmagaram a camada superficial de neve sobre a varanda, ela tentou aquela coisa de inalar fundo de novo.
Desta vez, ao soltar o ar, a respiração formou uma nuvem que soprou para cima da cabeça.
As faces, sensíveis por tanto choro sendo enxugado, arderam no ar frio e limpo, e ela levantou o olhar para o céu. Havia uma nuvem espessa cobrindo as estrelas cintilantes, e mais neve fresca sobre o gramado, sugerindo que o tempo estivera agitado e marcado por pancadas de neve durante todo o dia.
Abraçando-se, Layla...
Tudo parou para ela. Desde as batidas do coração até a respiração e os pensamentos em sua mente confusa, foi como se seu circuito interno tivesse queimado um fusível e ela tivesse se tornado como a casa atrás dela: completamente imóvel e vazia.
Virando-se para o leste, inspirou fundo até que as costelas doessem com o esforço, mas ela não tentava farejar nada. Estava tentando fazer com que os pulmões ficassem imóveis dentro do peito – e se pudesse ter detido o coração e as funções dos órgãos, era o que teria feito.
O eco do seu sangue estava muito fraco, e difícil de determinar se aquilo era ou não um equívoco da sua parte, um mal-entendido do que estava de fato acontecendo. Mas não... ela estava mesmo captando o sussurro da sua fonte vital na direção do norte... na verdade, noroeste.
Agora seu coração disparava.
– Xcor...? – sussurrou.
O sinal, tal qual ele era, não vinha da localização da Irmandade. Vinha de um ponto muito a oeste para isso. Vinha...
Olhou para trás, para as portas de correr que usara. Hesitou. Só que, então, pensou em Vishous e em tudo o que ele lhe dissera.
Incerta quanto aonde iria exatamente, fechou os olhos e se desmaterializou até uma curta distância, reassumindo sua forma no parquinho de crianças que avistara quando a levaram até ali na noite anterior.
Ao ficar parada junto aos balanços e trepa-trepas, voltou a se imobilizar.
Sim... Por ali...
Atrás dela, um som metálico fez com que se virasse. Mas era apenas o vento empurrando um dos balanços, suas correntes protestando contra a perturbação.
Abaixando as pálpebras uma vez mais, concentrou-se no seu destino, e tentou não se precipitar.
Ao voar adiante com suas moléculas dispersas, ela ouviu a voz de Vishous em sua cabeça:
Não escolhemos por quem nos apaixonamos... Não errou ao amá-lo, certo? Por essa parte, ninguém pode condená-la... e você já sofreu o bastante.
Ele nunca a machucou, não é? Portanto deve haver algo dentro dele que não é vil.
Desta vez, quando ela retomou a forma corpórea, o farol que a guiava estava ainda mais forte, e sua trajetória era precisa. Portanto, prosseguiu mais um quilômetro. E depois, uma distância ainda maior, até o último anel de bairros suburbanos antes que as terras da floresta começassem. Depois disso? Ela foi mais além, penetrando na floresta onde começava o Parque Adirondack.
Seu último trajeto foi de uns trezentos metros, e quando ela voltou ao corpo, foi bem diante de um galho de árvore.
Afastando o galho nu do caminho, ela espiou ao redor. A neve estava mais espessa ali, o vento, mais brando, o terreno, mais rochoso. Havia sombras em todas as partes – ou talvez fosse seu nervosismo que fazia parecer assim.
Perto... Muito perto. Mas onde precisamente?
Layla se virou num círculo lento. Não havia nada ali, e tampouco havia animais se movendo.
Parecia improvável que Xcor tivesse passado do dia inteiro ao aberto e ainda sobrevivido – ainda que... houve uma nevasca e uma grande tempestade se aproximava. Talvez houvesse nuvens suficientes para cobrir a luminosidade do dia? Essa não era uma aposta que alguém faria a menos que não tivesse outras mais seguras, mas e se ele estivesse incapacitado de algum modo?
Afinal, se estivesse morto, ela não teria captado nada.
Girando a cabeça, franziu o cenho ao perceber algo atípico no cenário que lhe chamou a atenção.
Havia algo... adiante... à esquerda de um carvalho tão grosso que deveria ter pelo menos cem anos de vida.
Juntando as vestes, deu um passo... e depois mais um...
... na direção do que quer que aquilo fosse.
CAPÍTULO 16
O Restaurante Salvatore’s era um marco não apenas em Caldwell, mas em toda a Costa Leste do cenário gastronômico, um atavismo dos duradouros dias do Rat Pack quando almoços com três martínis, amantes e Don Drapers que sabiam como se vestir eram a norma. Na era moderna, muita coisa mudara no mundo exterior... Mas não muito mudara debaixo daquele teto. O papel de parede vermelho da entrada ainda estava no mesmo lugar, bem como o restante da decoração ao estilo O Poderoso Chefão, como toda aquela madeira entalhada e toalhas de linho. Em todas as múltiplas salas de refeição e no bar dos fundos, o layout das mesas permanecia exatamente como fora estabelecido na noite de inauguração, na época em que garçons e garçonetes ainda vestiam smokings. No cardápio? Apenas o melhor da culinária do oeste da Sicília, com as receitas sendo preparadas exatamente como deviam e sempre foram.
Algumas modernizações aconteceram, mas todas na imensa cozinha. E duas entradas foram acrescentadas ao cardápio, o que causara um furor – pelo menos até a terceira geração da sua clientela ter experimentado os pratos e decidido que, de fato, eram bons.
Bem, e havia outra coisa que estava diferente.
Sentado atrás da mesa no escritório, iAm atendeu ao telefone e apanhou o mais recente pedido de entrega de carnes ao mesmo tempo.
– Vinnie, e aí? – disse ao inclinar a cabeça para o lado para segurar o telefone junto à orelha. – Aqui também... Tudo bem. Não, não, vou precisar de mais vitela do que isso. É. E quero daquele outro do fornecedor. A qualidade é...
O gerente de atendimento dele colocou a cabeça pela porta.
– Ela está aqui. Com experiência e boas maneiras. Ela serve.
iAm cobriu a parte de baixo do telefone.
– Mande-a entrar.
Enquanto o açougueiro revendedor e ele continuavam a falar sobre o pedido, iAm relembrou os dias logo após ter adquirido o local. Os humanos com quem lidava presumiam que ele fosse afrodescendente, o que ele não era, mas como Sombra, ele estava acostumado a se fazer passar como membro dessa raça. E para um homem negro assumir um marco histórico e extremamente orgulhoso da Itália, fora uma surpresa para todos desde a cozinha até a frente da casa, os clientes e os fornecedores.
Mas o terceiro Salvattore lhe dera sua benção depois que iAm cozinhara excelentes gato di patate, pasta alla Norma e caponata – e depois apresentara ao velhote o melhor cannoli que o cara já comera na vida. Dívidas de jogo junto a Rehv significaram que ele teria que desistir do que amava, e Rehv, em troca, passara o empreendimento para iAm como recompensa pelo seu bom trabalho.
Ainda assim, como novo proprietário, iAm quis manter uma continuidade – e também a vinda dos clientes italianos – e o apoio de Sal III garantira ambas as coisas. Ainda mais quando iAm deixou que os odiadores odiassem, e reconquistou cada um dos antigos frequentadores da velha escola, seduzindo-os com manjericão e fusili.
O lugar prosperava, e o respeito fluía, e tudo isso era muito bom. Ele também encontrara seu par... Que, por acaso, era a rainha do s’Hisbe. Portanto sua vida deveria ser perfeita.
Sqn.
A situação com seu irmão, Trez, estava acabando com ele. Era tão difícil ver um macho do seu valor ser derrubado pelo destino, e a alma do cara se curvara por conta de uma perda que iAm sequer conseguia imaginar sem sentir vontade de vomitar...
– Desculpe, o que foi? – iAm voltou a se concentrar. – Sim, sim, está bem assim. Obrigado, cara – espere, o que disse? Sim, posso fazer isso. De quanto você precisa? Não, não precisa me pagar. Se você pagasse, eu ficaria insultado. Levarei os manicotti como um presente para você e para a sua mãe. Experimente, você vai gostar.
iAm sorria ao desligar o telefone. Os italianos da velha guarda no fim se pareciam muito com os Sombra: fechados para o mundo exterior, orgulhosos das suas tradições, suspeitosos dos desconhecidos. Mas depois que você estava no grupo deles? Depois de ter conquistado o respeito deles e ser aceito? Eram tão leais e generosos que nem pareciam humanos.
Na verdade, para ele, os italianos de verdade eram uma subespécie à parte dos outros ratos sem cauda que habitavam o planeta.
Aquele manicotti? Fizera para a mãe de Vinnie, a senhora Giufridda, e o levaria pessoalmente. E quando seu pedido chegasse? Haveria costeletas a mais ou alguma linguiça ou algum corte de carne de graça. Mas a questão é que teria feito o manicotti de qualquer forma, mesmo se não recebesse nada em troca – porque a senhora Giufridda era um amor e sempre era a primeira cliente da primeira sexta-feira de todo mês e pedia pasta con sarde. E se você fosse gentil com a mãe de Vinnie? Aquele homem morreria por você até o fim dos dias.
E isso era um acordo e tanto e...
De repente, iAm ficou imóvel como uma estátua, tudo nele ficando absolutamente inerte. Engraçado até, considerando-se o que estava parado na soleira da porta do seu escritório, parecia apropriado que ele tentasse uma versão da Prisão adequada ao seu tamanho.
A vampira entre os batentes era longilínea e cheia de curvas, o corpo estava coberto por calças pretas folgadas e uma blusa com gola rolê. Os cabelos negros ondulados estavam presos com uma presilha, e o rosto não estava maquilado – não que ela precisasse de alguma ajuda da Maybelline. Ela era estonteantemente bela, com lábios perfeitos e olhos que eram quase anime, faces coradas por ter vindo do frio do lado de fora – ou talvez por estar nervosa com a entrevista para o posto de garçonete.
Os componentes individuais dela e do guarda-roupa não eram o surpreendente, porém. Era o conjunto da maldita obra que roubara seu fôlego.
iAm se levantou lentamente, porque, caso se movesse rápido demais, a cabeça poderia explodir.
– Selena? – sussurrou. Só que aquilo não podia ser real... Podia?
As belas sobrancelhas negras da fêmea se ergueram.
– Hum... não? Meu nome é Therese. Meus amigos me chamam de Tres...
De repente, o mundo começou a girar e iAm caiu na cadeira.
A fêmea deu um passo à frente como se estivesse preocupada com a possibilidade de ele precisar de massagem cardíaca, mas logo parou como se não soubesse o que fazer.
– Você está bem? – ela perguntou.
Numa voz que soava absoluta, positiva e exatamente como a shellan morta do seu irmão.
Em vez de voltar para a mansão da Irmandade para descansar durante o dia, Trez ficara na boate. Primeiro porque, como Sombra, ele não só suportava a luz do dia como na verdade gostava da coisa – apesar de ela ter sido inexistente devido à neve que caíra durante toda a manhã e a tarde. Mais especificamente, porém, ele ficou por ali porque, às vezes, a multidão de pessoas da casa era demais para a sua cabeça já cheia, e ele precisava de um respiro e se esconder, sem se esconder, ali.
Uma vantagem? Sua cadeira era tão confortável que era basicamente um leito hospitalar ajustável, sem as grades e o saco de soro.
Virando-se para ficar de frente para a parede de vidro, olhou para a pista de dança. As luzes da casa estavam acesas, e todos os riscos nas tábuas de pinho pintadas de preto o irritavam até não poder mais. O pessoal da limpeza fizera um bom trabalho, mas não havia nada que pudesse consertar o estrago feito por centenas de pés embriagados. Devia estar na hora de lixar e repintar. De novo.
Claro, pintar o assoalho de novo era desperdício de tempo e de dinheiro porque aquele piso acabaria estragado uma vez mais e, além disso, ninguém via os pontos claros quando os lasers estavam ligados e o lugar escuro como o interior de um chapéu. Mas ele não suportava aquilo. Sabia que as imperfeições estavam ali e as desprezava.
Deduziu que a manutenção do piso da boate equivalesse ao corte de um gramado: você sabe que está perseguindo um alvo móvel, mas, por pelo menos dez minutos, a grama fica com a aparência de um carpete de fora a fora.
Consultou as horas. Sete da noite.
Umas duas antes, lá pelas cinco, ele tomara uma chuveirada no seu banheiro particular, barbeara-se e vestira uma versão limpa do seu uniforme de trabalho, ou seja, calças e camisa social. Esta noite, a parte de cima era cinza, e a de baixo, branca. E no meio estava livre como um passarinho.
Deu mais uma olhada no relógio de pulso. E contou as horas desde a última vez em que colocara comida na boca.
Como se seu estômago soubesse que aquela era sua única chance de ser ouvido, emitiu um rugido.
Maldito Lassiter. Convite para jantar. No Sal’s.
Mas que porra.
A última coisa que queria fazer era ficar sentado diante daquele anjo e ouvir algum spoiler ao estilo de Cães de Aluguel sobre algum simbolismo em Deadpool. O problema? Seu irmão, iAm, fazia mesmo a melhor bolonhesa de qualquer lugar, e, além disso, caso não aparecesse? Lassiter era bem capaz de voltar ali fantasiado de palhaço para ficar apertando seu nariz falso até ele perder a cabeça.
O que não era muito difícil ultimamente, claro. Mas mesmo assim...
Olhou para o relógio mais uma vez. Praguejou. Tomou uma decisão.
Levantando-se, verificou se a pistola estava bem ajeitada na lombar, apanhou a carteira e o celular e vestiu a jaqueta.
Lá embaixo, Xhex inventariava as bebidas do bar.
– Já volto – ele disse para a chefe de segurança. – Quer que eu traga algo do restaurante do meu irmão para você jantar?
Ela balançou a cabeça ao suspender uma caixa de Absolut para o balcão como se ela não pesasse nada. Xhex tinha ombros quase tão largos quanto os de um macho humano, e o restante dela estava em igual boa forma. Com os cabelos curtos e olhos cinza chumbo, ela era o tipo de coisa que os bêbados reconheciam como um “comigo não”, o que a tornava perfeita para o trabalho.
– Não precisa. Comi em casa. – Ela inclinou uma sobrancelha. – Não te vi lá na Primeira Refeição.
Ela só iria até esse ponto em vez de perguntar por que ele não voltara para casa, e ele ficava grato por isso. Xhex era como um cara em muitos aspectos: breve, direta ao ponto, e não partia para aquela coisa sentimentalóide.
Francamente, ela era uma das poucas pessoas com quem ele conseguia se relacionar no momento. Nos últimos tempos, ele passou a detestar olhos piedosos, suspiros cheios de significado e abraços demorados demais. Não que ele não apreciasse todo aquele apoio, mas a questão é que... quando se está em luto profundo, é difícil ficar perto de pessoas que ficam mal por você estar se sentindo mal. Ver a Irmandade com suas companheiras o fazia se sentir ainda pior e ainda mais exausto. Uma vez depois da outra, repetidamente.
– Volto às oito. – Trez bateu os nós dos dedos duas vezes na bancada de granito. – Estou com o celular ligado.
– Ok.
Seguindo para a porta principal, acenou para as meninas que estavam chegando e ainda tinham que trocar de roupa para o trabalho. Quando passou por elas, sentiu as humanas fitando-o, desejando-o, se perguntando a respeito dele. Na verdade, elas sempre se ligavam nele, e houve uma época em que ele as teria levado até o escritório. Mas não mais, e sua abstinência pelo visto aumentava o seu apelo.
Nunca contara a ninguém no trabalho os detalhes a respeito de Selena. Somente Xhex sabia, e ela jamais diria nada a ninguém.
A boa notícia? Depois de ele ter rejeitado algumas das prostitutas umas duas vezes, a notícia se espalhara e todas elas pararam de ir atrás dele. Graças a Deus; fêmeas e mulheres literalmente o deixavam enjoado. Pensar em qualquer uma delas tocando-o, ou mesmo só pensando nele de modo sexual?
Seu estômago se revirava apenas com a hipótese.
Do lado de fora, o ar estava espesso e frio – um sinal de que uma tempestade se aproximava – e ele precisou respirar fundo algumas vezes para fazer com que a bile voltasse a descer pela garganta.
Deixando a náusea de lado, ele estava mais do que contente em viver sozinho o resto das suas noites. Não imaginava, nem por um segundo, uma realidade em que alguma outra pessoa entraria na sua vida e lhe causaria alguma impressão...
De lugar nenhum, sua Selena voltou para ele, a voz dela enchendo sua cabeça:
Pode me prometer que vai permitir que coisas boas aconteçam depois que eu partir... Mesmo que essas coisas aconteçam porque outra fêmea está ao seu lado?
Trez esfregou o rosto.
– Meu amor. Meu amor... esse é um destino com o qual nem você nem eu teremos que nos preocupar jamais.
Recobrando a compostura, relanceou na direção da sua BMW. Pensou que talvez devesse dirigir. Isso reduziria o tempo da refeição uns vinte minutos, considerando-se que ele “tinha” que estar de volta para a abertura da boate.
No fim, porém, simplesmente se desmaterializou pela cidade até o canto mais distante do estacionamento do Sal’s. Haviam limpado a pouca neve até então daquela faixa asfaltada, e as beiradas brancas pareciam a decoração de um bolo de glacê. Havia alguns carros estacionados, mais próximos à entrada do restaurante, e luzes estavam acesas tanto nos postes da rua quanto nas laterais do estabelecimento.
Andando até o toldo da entrada, bateu os sapatos no capacho e avançou pelo tapete vermelho dos três degraus até a porta.
Ao entrar, pensou que era uma pena que tivesse que lidar com Lassiter. De outro modo, talvez tivesse meia chance de apreciar o que quer que fosse comer.
– Olá, senhor Latimer.
– Boa noite.
Trez levantou a mão para a humana que estava no posto de recepcionista. Quando os olhos dela fizeram uma varredura rápida dele, o sorriso foi uma sugestão de que adoraria terminar a noite com ele. Mas ela se manteve distante.
Sua reputação de não estar ficando com as damas o precedia. Obrigado, iAm.
Passando pela seção de souvenires com seus freezers cheios de entrada e copinhos de shot e colheres decorativas – sim, porque as pessoas viajavam só para virem ao Sal’s – seguiu até a área do bar.
– Senhor Latimer, e aí?
O barman era um cara boa pinta de vinte e poucos, sensual o bastante para ser modelo de perfumes da Gucci ou da Armani: cabelos escuros, queixo forte, olhos azuis claros, ombros largos, blá-blá-blá. Ele trabalhava na shAdoWs nas suas noites de folga e travava muitos negócios com as fêmeas da sua espécie – e dava pra ver que ele gostava do seu posto como “Cara Gostoso das Boates de Caldie”.
Ele deveria aproveitar enquanto aquilo durasse.
– Olá, Geo.
Pois é, porque um cara com aquela fachada não poderia jamais ser chamado pelo seu nome de batismo. Que era George.
– O de sempre? – Geo perguntou. – Vai ficar para jantar?
– Sim para o jantar, não para a bebida. Mas obrigado.
– O chefe está no escritório.
– Valeu.
Trez empurrou as portas vai e vem acolchoadas ao lado das prateleiras espelhadas de bebida, e entrou na cozinha bem iluminada, onde todas as bancadas de aço inoxidável e equipamentos industriais reluziam por ser limpados com regularidade. Os ladrilhos do piso eram num tom de terracota dos telhados de Siena, e chefs com seus dólmãs tradicionais se inclinavam por cima de panelas, tábuas de corte e tigelas. Todos os cozinheiros eram homens, e todos eram de origem italiana, mas com o passar do tempo, iAm pensava em alterar a primeira coisa, mas não a segunda.
Bom Deus, que aroma delicioso... Cebolas, manjericão, orégano, tomates, e linguiças salteando nos queimadores.
Maldição, detestava pensar que Lassiter pudesse ter razão em alguma coisa. Só que, merda, estava faminto.
O escritório de iAm ficava nos fundos, e quando Trez fez a curva, o fato de haver uma vampira na soleira da porta com as costas para ele não lhe pareceu nada significante. iAm contratava com frequência membros da espécie, ainda mais nos meses de inverno quando escurecia lá pelas quatro e meia da tarde no norte do Estado de Nova York. Sim, Trez ficou vagamente ciente de que o cheiro dela era diferente e agradável, mas nada diferente do que se tivesse passado por um buquê de flores.
Tudo isso começou a mudar quando apareceu atrás dela e olhou para o irmão por cima da cabeça dela.
iAm estava sentado à mesa, o corpo um tanto pálido, os olhos arregalados, a boca aberta.
– Tudo bem aí? – Trez perguntou. – O que...
iAm começou a sacudir a cabeça, as palmas se erguendo enquanto se colocava de pé. Mas logo tudo isso foi esquecido – junto com cada momento do passado, do presente e do futuro – quando a fêmea se virou para trás.
Trez tropeçou para trás até quase se chocar contra a parede – e logo se viu levantando os braços como se fosse para se proteger de algum golpe. Através do X que seus pulsos formaram, ele notou os olhos dela, os lábios, o nariz... os cabelos... a garganta e os ombros... o corpo...
Selena...
Essa foi a última coisa da qual se lembrou.
CAPÍTULO 17
Algum tempo depois, tendo se exaurido após a partida da ama-seca, Xcor caiu no chão frio e duro do lado externo do chalé. Não havia mais ar em seus pulmões para gritar, nenhuma força para lutar contra a corrente que o mantinha prisioneiro, nenhuma vontade de reclamar por ter sido deixado para trás.
Enquanto uma resignação entorpecente se acomodava em seu peito, o corpo começou a esfriar. Não... era por causa do vento. Com a ausência do esforço, sua temperatura diminuía pelas rajadas frígidas do mês de dezembro, e ele sabia que teria que buscar abrigo ou acabaria perecendo.
Pegando o manto do chão, passou o peso imundo ao redor dos ombros e deixou que o corpo tremesse por um instante. Em seguida, pôs-se de pé e, esticando-se o máximo que a extensão da corrente permitia, olhou ao redor do chalé. A porta ainda estava aberta e ele imaginou poder sentir o calor que emanava por ela – mas isso era mentira, uma maquinação da memória mais do que a realidade, pois o fogo há tempos se apagara.
Seus olhos seguiram para o horizonte. Por entre o tronco fino e a copa peluda do pinheiro, ele viu que a aurora logo chegaria, pois o brilho se agrupava a leste, afastando a escuridão. Haveria um pouco de calor com a subida do Sol, mas nenhuma preocupação, pois, como pré-trans, ele não tinha que se preocupar em ser consumido pela luz do dia. Fome e sede, contudo, eram preocupações que deveriam ser consideradas caso desejasse viver. Sem nenhuma reserva de gordura, e uma garganta seca, ele não duraria muito, ainda mais no clima invernal.
Xcor tentou uma última vez remover a coleira de couro do pescoço, mas teve que abortar seus esforços em seguida. Tentara tantas vezes se livrar que o sangue escorria pelos ferimentos provocados por suas unhas e puxar mais seria penoso demais.
Ninguém do vilarejo o ajudaria. Ninguém o fizera antes...
A mudança de uma sombra fez com que seus olhos se voltassem para a luz crescente a leste, através da moita de framboesas adiante.
O que quer que tivesse se movido parou assim que ele se virou. Mas, em seguida, uma segunda sombra se aproximou de outra direção.
Lobos.
Santa Virgem Escriba... os lobos o encontraram.
Com o coração acelerado, Xcor olhou ao redor em pânico. Estivera esperando que o encontrassem, e talvez tivessem se aproximando agora que se calara.
Em vão, procurou por alguma arma, algo que pudesse usar para se proteger...
A pedra que chamou sua atenção estava ao alcance, caso se inclinasse sobre a corrente, mas ela pesava mais do que ele conseguiria lidar com facilidade ao tentar suspendê-la. Grunhindo, esforçando-se, usando as últimas reservas de força, levantou-a...
Um rosnado surgiu baixo, vindo da moita, e ele teve a sensação de que os lobos estavam brincando com ele, alertando-o de modo a talvez querer fugir e, assim, dar-lhes um pouco de diversão antes que ele se transformasse no desjejum deles.
Em frenesi de pavor, ele recuou...
Um galho se partiu debaixo do peso de um dos animais. E depois outro.
Não havia a menor possibilidade de ele alcançar a porta e se fechar ali dentro, nenhuma maneira de subir no telhado ou...
Virando-se, ele olhou para a janela suja. Conforme os lobos se aproximavam, com a agressividade se avolumando, Xcor cerrou os dentes e suspendeu a pedra acima da cabeça. Com uma descarga de energia que nem sabia possuir, lançou a pedra com toda força de que dispunha na direção daquela janela.
O vidro se quebrou, e então ele recuou, levantando o braço para se proteger dos cacos. Não havia mais tempo para pensar. Incentivados pelo impacto, os predadores o caçaram e se projetaram para atacá-lo, com seus os olhos amarelos e dentes pontiagudos e corpos poderosos.
Xcor saltou o mais alto que conseguiu, agarrou-se na parte inferior do caixilho e se lançou para dentro do chalé – e bem quando ele aterrissava numa pilha de ossos a um palmo de distância de seu catre, os lobos se chocaram contra a parede externa, arranhando com as unhas e ladrando furiosos para a escotilha pela qual ele escapara, os rosnados agora de frustração.
A porta ainda estava escancarada.
Colocando-se de joelhos, ele se arrastou pelo piso nu, espalhando tigelas vazias e utensílios.
A corrente terminou antes que ele chegasse ao seu alvo, e ele foi puxado para trás, os pés se projetando à frente mesmo quando a parte superior do seu corpo parou de pronto. E foi nesse instante que o líder da matilha apareceu entre os batentes da porta. O caçador lupino era do tamanho de um cavalo pequeno, e seus dentes eram como adagas entrelaçadas. Com os lábios recuados e a baba se avolumando sobre as patas dianteiras, ela fazia com que os demais parecessem filhotinhos.
Sorrindo. Ele estava lhe sorrindo.
Xcor relanceou para a porta que estava projetada num ângulo para dentro do chalé.
Em seguida, moveu-se com tanta rapidez que nem havia tomado ciência da decisão de agir. Caiu de frente, apoiando as mãos ensanguentadas no chão e girou as pernas num círculo... apanhando a porta sem nem um centímetro de folga.
A porta se fechou num baque e o mecanismo de tranca se ajustou ao seu lugar no mesmo segundo em que o imenso lobo saltava adiante no ar.
O animal se chocou contra a madeira que a porta sacudiu nas dobradiças de metal que a sustentavam no lugar. Mas se mantiveram firmes. Elas seguraram a porta.
Tremendo de terror, Xcor se enrolou sobre si mesmo, levando os joelhos para junto do peito. Levou as mãos ensanguentadas para a cabeça, cobriu os ouvidos e começou a chorar, com o som dos lobos ecoando dentro do seu crânio...
E foi nessa hora que o fantasma apareceu.
Ela se achegou dele através das paredes do chalé, passando pelo que era sólido com a presteza do ar parado.
Xcor piscou em meio às lágrimas, observado as vestes brancas e os longos cabelos loiros... e o rosto que era tão belo quanto um sonho.
No silêncio, o espectro flanou até ele, mas ele não sentia medo. Como algo tão adorável poderia feri-lo?
E, então, ele percebeu que os lobos já não estavam mais ali. Como se ela os tivesse mandado embora.
Estou seguro, ele pensou consigo. Com ela, apenas com ela, eu estou seguro...
E o maldito Oscar vai para...?
Quando Vishous retomou a forma na floresta a alguma distância de Layla, quase acendeu um cigarro. Ficara contra o vento em relação a ela em cada uma das paradas que ela fizera, e ela estava tão distraída que ele duvidava que fosse notar qualquer tipo de chama ou a ponta de seu cigarro acesa... mas não, melhor não.
Chegaram até ali, e estavam tão perto de terminar, não estavam?
A Escolhida estava a uns bons trinta metros adiante, a veste branca se destacando na floresta como uma espécie de farol. E sabem do que mais, algo chamou a atenção dela e ela prosseguia lentamente na direção do que quer que fosse, a cabeça inclinada para baixo, como se estivesse concentrada no chão da floresta.
Sorriu para si mesmo. O truque mais velho que existia. Pegue uma pessoa da qual você quer algo, acesse as emoções dessa pessoa, usando a cabeça, mexa em uma série de manoplas – e encontre o maldito bastardo que está procurando porque a dita fêmea o leva direto até ele. Xcor foge e desaparece. Layla tem o seu sangue nas veias dele. Ela está se sentindo culpada, sozinha, e está com medo, uma vítima alienada das circunstâncias. O trabalho de V.? Emprestar um suposto ouvido amigo, oferecer um pouco de compreensão de modo aparentemente sincero, e dar-lhe um projeto, de modo que, quando ela pisasse naquela varanda e sentisse o próprio eco em algum lugar do mundo, ela acabaria seguindo seu impulso de ir ajudar o macho a quem amava.
Se V. sabia com certeza que ela sairia, ficaria na neve e cheiraria o ar? Não, mas era um palpite bom o bastante considerando-se o quanto ela se sentira sufocada naquela cozinha. Dera-lhe seu celular com a esperança de que ela o colocasse no bolso e o levasse para onde quer que fosse a fim de que ele a localizasse através do sinal de GPS do seu aparelho? Claro. Desapontara-se quando ela o deixara para trás? Com certeza. Compensara isso porque, sendo um Irmão cuja companheira não podia alimentá-lo, ele tomara a veia de Layla antes da gravidez para sobreviver e se concentrara para rastreá-la? Certamente. Seguira-a até ali?
#feito
Não, não tivera certeza que Xcor ainda estava vivo. Assim como não estivera cem por cento seguro que a Escolhida de fato iria atrás do cara depois de tê-lo sentido. Mas, às vezes, valia a pena apostar nos dados.
E, ao que tudo levava a crer, os seus resultaram em dois seis.
Mas à frente, Layla parou. E lentamente se ajoelhou.
Bingo.
Vishous se desmaterializou até mais perto, escondendo-se atrás do tronco de um velho carvalho. E, ao se concentrar na fêmea, levou a mão para dentro da jaqueta de couro e empurrou o cabo da sua 40 mm.
Ela se inclinava sobre o que parecia ser apenas um monte de neve – e V. fez o mesmo contra a árvore, que, na verdade não o ajudou em nada para enxergar melhor.
Não era um monte de neve. Nada disso. Ele estava se movendo, cacete.
Ora, ora, o que temos aqui: debaixo da cobertura gélida da neve, havia um macho nu quase morto, os flocos de neve haviam sido lançados contras as costas do corpo encurvado dele.
Franzindo o cenho, V. olhou para cima e mediu o céu. Como diabos foi que Xcor conseguiu sobreviver ao dia? Em retrospecto, as nuvens pesadas eram muito diferentes de uma cortina de veludo diante de uma janela? Qualquer vampiro que estivesse de posse das suas faculdades mentais procuraria um teto e quatro paredes para se proteger do meio-dia, mas se você já está à beira da morte, sem dúvida você só deita onde está mesmo e reza para alguém, para qualquer pessoa, a fim de ter sorte.
E, evidentemente, Xcor tivera.
Mas agora essa sorte de vencedor chegava ao fim, Vishous pensou ao se desmaterializar até mais perto, pronto para tomar conta da situação.
E foi então que conseguiu visualizar o rosto de Xcor.
Cinzento. Bem cinzento. Mas os olhos do guerreiro estavam abertos e ele fitava Layla como se ela fosse uma aparição... Um milagre vindo a ele do Outro Lado.
Ele estava chorando. Lágrimas rolavam pelo rosto emaciando dele, e quando ele estendeu a mão para tocar nela, neve caiu dos braços.
Layla capturou a mão dele e a levou até o coração. Numa voz estrangulada, sussurrou:
– Você está vivo...
Xcor tentou falar, mas só um grasnido soou.
E isso pareceu energizá-la.
– Tenho que salvá-lo...
– Não. – Isso foi dito com clareza. – Deixe-me estar. Vá...
– Você não vai morrer aqui.
– Deixe-me. – Layla tentou falar, mas Xcor não permitiu, falando numa voz fraca e aguda. – Estou feliz agora... Levarei sua memória comigo... para o Dhunhd...
Layla começou a chorar sobre o macho, cobrindo o corpo tampado pela neve com o seu.
– Não, nós podemos salvá-lo. Tenho que salvá-lo...
Já chega, V. pensou. Hora de fazer o seu trabalho.
O que estava testemunhando agora era apenas um monte de asneira sentimental, irrelevante para o problema que tinha em mãos – e que não mudara em nada apesar de o par ali estar atuando como Kate e Leo depois de aquele maldito navio ter afundado.
Cara, ainda bem que era ele quem estava ali para dar um jeito na coisa, porque qualquer um dos seus irmãos poderia ter hesitado diante daquela cena. Todavia, seu estofo era mais firme do que isso, e não, não que ele estivesse bravo com Layla ou quisesse vingança ou sentisse alguma hostilidade em especial por Xcor.
Infernos, no estado em que o bastardo estava, seria o mesmo que perder tempo odiando um bloco de gelo seco.
Não, ele estava ali apenas para dar um jeito na merda que Qhuinn fizera na Tumba quando Xcor, de algum modo, levara a melhor e trancara o tolo ali dentro. V. mandaria Layla de volta para casa e depois sacrificaria Xcor como se fosse um cachorro, ali mesmo, naquela hora.
Porque, fala sério, chega de bobagem. Uma bala na cabeça, e aquele desperdício de energia e foco acabaria para a Irmandade. Sim, claro, até poderiam torturar o maldito se conseguissem torná-lo viável de novo com outro milagre médico. Mas o Bando de Bastardos não era um bando de idiotas. Tiveram trinta dias para se reagruparem, realocarem, e se distanciarem do líder desaparecido. Xcor não teria nenhuma informação útil para dar, e no que se referia a Tohr e ao direito dele de matá-lo? Aquele irmão já estava no limiar da loucura. Matar Xcor só faria com que ele afundasse ainda mais, não o tiraria de onde se encontrava agora.
Além disso, a guerra chegava a um ponto crítico. A Sociedade Redutora estava em colapso, mas Ômega não iria a parte alguma, não a menos que alguém o deslocasse à força – e isso era o trabalho de Butch, pelo menos de acordo com a Profecia do Dhestroyer: depois de todos esses anos de combate, o fim estava próximo – e a Irmandade precisava regressar à sua função principal de eliminar o verdadeiro inimigo da raça.
Em vez de se desviar por esse grupo derrotado de vigilantes que de todo modo já fora castrado.
V. estava tomando uma decisão executiva naquilo.
Hora de acabar logo com tudo isso, certo.
Levantando o cano da pistola, saiu de trás da árvore.
CAPÍTULO 18
Deitada sobre o corpo nu e frio de Xcor, Layla estava desesperada para aquecê-lo, tirá-lo da floresta, dar-lhe alimento e água. Como é que ele ainda estava vivo? Como sobrevivera à passassem de sequer uma hora naquelas condições, quanto mais um dia inteiro? Santa Virgem Escriba, ele estava tão frio que tremia, o tronco, os braços, as pernas estavam congeladas com a obstinação de uma estátua, o rosto barbado retorcido de sofrimento.
– Temos que tirá-lo daqui – ela disse com urgência. – Você pode tomar a minha veia, e depois que estivermos a salvo, nós... Não sei, nós teremos que convencê-los a...
Abruptamente, ela se lembrou de Vishous lhe dizendo que Xcor deixara a chave dos portões para trás quando escapara da Tumba. Por certo isso devia significar alguma coisa, não? Se ele quisesse fazer o mal, ou retaliar, ele a teria levado consigo, certo? E a Irmandade devia saber disso, tinha que interpretar isso como um sinal de paz... correto?
– Precisamos...
– Layla. – A voz frágil de Xcor era urgente. – Layla, olhe para mim...
Ela sacudiu a cabeça ao se sentar, afastando-se dele.
– Não há mais tempo! Você está morrendo congelado...
– Shhh... – Os olhos azuis marinhos se suavizaram. – Estou aquecido na alma com você diante de mim. Isso é só o que preciso.
– Por favor, tome a minha veia. Por favor...
– Este é um bom modo de morrer, nos seus braços. Uma morte melhor do que a que mereço, certamente. – Contra tudo o que era sensato, os lábios dele se curvaram num sorriso. – E tenho algo que preciso lhe dizer...
– Você não vai morrer, não vou permitir...
– Eu te amo.
A respiração de Layla ficou suspensa.
– O quê...?
O sorriso moribundo se tornou algo desejoso. Ou talvez venerador fosse uma palavra mais adequada.
– Como todo o meu coração negro e deformado, eu te amo, minha fêmea. Não mereço a terra sob seus pés, nem o seu perfume em minhas narinas, e jamais a dádiva do seu sangue, mas eu... eu serei eternamente grato pela mudança que provocou em mim. Você me salvou, e a única coisa maior que o meu amor por você é a minha gratidão.
Ele falou rapidamente no Antigo Idioma, como se soubesse que estava ficando sem tempo.
– Estou em paz e eu te amo, Layla. – Xcor levantou o braço, suspendendo a mão enrijecida até o rosto dela. Quando resvalou sua face, ela arquejou com o tanto que a pele dele estava fria. – E agora eu posso ir...
– Não, por favor, não...
– Eu posso ir.
Aquele sorriso dele a atormentaria pelo resto da vida: ele devia estar sentindo dores excruciantes, todavia a paz o cercava, emanando dele. De sua parte? Era o total oposto. Não havia paz para ela; caso ele sobrevivesse, teriam uma briga imensa pela frente. E se morresse? Ele levaria uma parte sua para o Outro Lado também.
– Xcor, por favor...
– É melhor assim.
– Não, não, não é. Não me deixe.
– Você me deixará partir. – O tom dele se tornou sério. – Sairá daqui com a cabeça erguida, sabendo que foi honrada e adorada, mesmo que apenas por alguém como eu. Deixará que eu me vá e viverá a sua vida com seus filhos e encontrará alguém de valor para você.
– Não diga isso! – Layla enxugou as lágrimas do rosto com impaciência. – Podemos remediar isto.
– Não, não podemos. Você tem que me deixar partir e depois sairá desta floresta, livre do pecado que levei à sua vida. A culpa foi, e é, toda minha, Layla. Você nunca fez nada de errado, e tem que saber que está melhor e mais segura sem mim.
Ela se inclinou à frente uma vez mais e afastou-lhe os cabelos emaranhados da testa. Relembrando a raiva de Qhuinn e a questão com seus gêmeos, era difícil argumentar contra essas palavras. Por mais que morresse por perdê-lo, era impossível contradizer o caos que Xcor trouxera à sua vida.
– Prometa-me que seguirá com a sua vida – ele exigiu. – Não posso ficar em paz a menos que jure isso.
Ela levou as mãos ao rosto.
– Sinto como se eu estivesse me quebrando ao meio.
– Não, não... Esta é uma noite de alegria. Eu quis lhe dizer a verdade por tanto tempo, mas nunca era a hora certa. Primeiro porque neguei isso a mim mesmo, depois porque lutei contra isto e a mandei embora. Agora que estou partindo da minha existência mortal, porém, estou livre – mas, mais importante, você também está. Não haveria um bom final para nós, Layla, meu amor. Contudo, haverá um bom final para você. E você será perdoada pela Irmandade, pois eles são corretos e justos, e sabem que eu sou o mau, e você não o é. Você partirá e será a mahmen que sempre deveria ter sido, e encontrará um macho a sua altura, eu prometo. Sou apenas um obstáculo no seu destino, algo a ser superado e esquecido. Você irá em frente, meu amor, e eu cuidarei de você.
Layla abriu a boca para falar, mas então ele tossiu um pouco, gemeu e estremeceu.
– Xcor?
Ele inspirou fundo e abaixou as pálpebras.
– Eu te amo...
Quando a voz se perdeu foi como se a força vital dele o tivesse abandonado de uma vez, a forma corpórea foi desinflando, a energia se consumindo.
Ela sequer percebera que ele havia levantado a cabeça que agora voltava a repousar na neve. Em seguida, mais uma daquelas respirações estremecidas, e a luz nos olhos dele se embaçou ainda mais.
Mas ele permaneceu em paz. Ele parecia...
O estalo de um galho bem diante dela fez com que ela levantasse a cabeça e arquejasse.
Bem diante deles, com as botas afastadas e plantadas na neve, com uma arma em punho... estava o Irmão Vishous.
E o rosto dele estava tão impassível e controlado que era como se ele fosse um carrasco de máscara.
Xcor sentiu como se estivesse debaixo d’água. Suas condições físicas já tão debilitadas pela exposição ao frio e aos elementos que o fazia pensar que estava nadando sob uma superfície incerta contra uma corrente poderosa só para se agarrar à consciência – e não duraria muito mais. Sua mensagem para Layla fora de importância suficiente para lhe dar forças extras, mas assim que as palavras foram ditas, ele começou a declinar rapidamente.
Porém, o lindo rosto dela... Ah, mas que rosto maravilhoso.
Ele estava satisfeito por nunca terem feito amor. Isso teria sido egoísmo da sua parte, uma sessão de paixão que certamente a macularia pelo resto da vida. Melhor que ela continuasse imaculada para o macho que verdadeiramente a clamaria para si.
Ainda que, Santa Virgem Escriba, ele morria só de pensar nisso.
Mas, céus, amava-a tanto a ponto de deixá-la e desejar-lhe o melhor que a vida tinha a lhe oferecer – e sua sensatez quanto a esse assunto, imaginou ele, era a coisa mais generosa que já havia feito na vida.
Talvez a única coisa generosa.
– Eu te amo – sussurrou.
Ele quis que isso tivesse sido pronunciado mais alto, mas estava perdendo a batalha contra o oxigênio em seus pulmões – portanto, para conservar as forças e lhe dar um pouco mais de tempo, ele parou de tentar falar e se contentou em apenas fitá-la. Engraçado como ele misturara a chegada dela ali na floresta com aquela lembrança do passado, seu cérebro colocando-a como uma salvadora naquela lembrança terrível.
Em retrospecto, quer na vida real ou numa ficção relativa da sua memória, ela era sua deusa e seu milagre – na verdade, até sua salvadora, apesar do fato de ele não sobreviver a isto. E tinha tanta sorte por ter...
No instante em que os olhos dela se moveram para algo que a alertou e assustou, ele se sentiu energizado com um propósito, o corpo reagindo como o de qualquer macho vinculado, os músculos preparados para defender e proteger mesmo se o que tivesse aparecido ali fosse simplesmente um cervo desgarrado.
No entanto, essa foi a extensão da sua reação, seus instintos tentando mobilizar o que já não podia se mexer. Entretanto, ele conseguiu virar a cabeça bem de leve e desviar o olhar.
De tal modo a poder enxergar seu assassino – desde que a natureza não fosse mais rápida que o Irmão Vishous. E, considerando-se aquela arma, qual seria essa probabilidade?
Pela visão periférica, Xcor percebeu Layla levantando as mãos e se levantando.
– Vishous, por favor, não...
Xcor encontrou sua voz uma vez mais.
– Não na frente dela. Não faça isso na frente dela se você tiver alguma decência. Mande-a embora e depois me mate.
Layla voltou a se agachar diante dele, estendo os braços para proteger seu corpo.
– Ele é um bom macho. Por favor, eu lhe imploro.
Com esforço supremo que quase o fez desmaiar, Xcor se virou para fitar os olhos diamantinos do Irmão, e enquanto os dois se encaravam, Layla continuou a suplicar por uma vida que não merecia ser salva.
– Pare, meu amor – Xcor lhe disse. – E agora nos deixe. Estou em paz, e ele fará o que trará paz para a Irmandade. Sou culpado de traição e isso apagará a mancha que causei em sua vida e na deles. Minha morte a liberta, meu amor. Aceite este presente que o destino nos deu.
Layla enxugou novamente o rosto.
– Por favor, Vishous. Você disse que me entendia. Disse que...
– Só não na frente dela – Xcor exigiu. – O último pedido de um criminoso. Uma oportunidade para você provar que é um macho melhor do que eu sou.
A voz de Vishous foi forte como um trovão comparada à fragilidade de Xcor.
– Eu já sei que sou melhor do que você, babaca. – O Irmão olhou para Layla. – Saia daqui. Agora.
– Vishous, eu lhe imploro...
– Layla. Não vou pedir de novo. Você sabe muito bem o que tem a perder, e sugiro que pense naqueles seus dois filhos. Você já tem problemas pra cacete por enquanto.
Xcor fechou os olhos com tristeza.
– Eu sinto muito, meu amor, por eu tê-la arrastado para isto.
Existiram apenas duas fêmeas importantes em sua vida: sua mahmen, que o desertara em todas as instâncias... E sua Escolhida, a quem ele magoara de tantos modos.
Ele fora uma maldição para ambas, no fim das contas.
– Vishous, por favor – Layla implorou. – Você me disse que ele não era mau. Você...
– Eu menti – o Irmão murmurou. – Menti pra cacete. Portanto, saia. Agora.
CAPÍTULO 19
Trez recobrou a consciência e se viu fitando o teto liso pintado de branco. Espere... Todos os tetos não eram, por definição, lisos? Não, na verdade, não. Havia aqueles com texturas que o pessoal dos anos 1970 tanto gostava, aqueles que pareciam decoração de bolo ao estilo antigo. E também existiam os tetos das cavernas, imaginou ele... Bem cheios de calombos. Teatros às vezes tinham uns degraus elevados que ajudavam na acústica...
Espere um instante, qual foi mesmo a pergunta?
Piscando, ele tomou consciência de uma dor na parte posterior do crânio...
O rosto do irmão, tão familiar quanto o seu, apareceu no seu campo de visão pondo um fim ao debate sobre tetos.
– E aí, tudo em cima? – iAm perguntou.
– O que aconteceu? Por que eu... – Trez foi se sentar, mas desistiu quando a cabeça começou a latejar atrás. – Porra, como isso dói.
Pois é, e também havia o lugar em que a arma se chocara com a lombar. Devia mesmo começar a pensar em mantê-la num coldre sob o braço. Mas, pensando bem, quando foi a última vez que desmaiou como uma dama da época vitoriana?
– Você está bem? – iAm perguntou.
– Não, estou ótimo pra cacete. – Beleza, pelo menos sabia que parte do córtex cerebral responsável pelas imprecações estava funcionando a contento. – Não sei o que me atingiu. Eu fiz a curva e...
Bem quando se lembrou da fêmea na soleira da porta do escritório de iAm, ele se sentou e virou a cabeça... E lá estava ela, contra a parede do corredor estreito, os braços em volta da cintura, o rosto todo tenso.
O rosto da Selena todo tenso.
– Deixe-nos – Trez disse rouco.
Ela se curvou um pouco.
– Sim, claro, eu...
– Não você. Ele.
iAm colocou o rosto dele na frente de Trez para que ele não a enxergasse.
– Escuta aqui, nós precisamos...
– Dá o fora! – Quando Trez estrepitou, a fêmea se retraiu, e isso provavelmente era a única coisa que o faria diminuir um pouco o tom. – Só... me deixe falar com ela.
A fêmea... sua Selena... mostrou as palmas.
– É melhor eu ir mesmo, já estou me sentindo bem mal com isso.
Trez fechou os olhos e oscilou. A voz dela. Aquela voz. Era aquela que vinha atormentando-o, noite e dia, no mesmo volume, na mesma entonação, com uma leve rouquidão, a...
– Ele vai desmaiar de novo? – ela perguntou.
– Não – iAm murmurou. – A menos, é claro, que eu o acerte com uma frigideira. O que me parece uma boa ideia no momento.
Trez abriu os olhos de novo, porque subitamente estava se sentindo paranoico.
– Isto é um sonho? Estou sonhando?
A fêmea olhou de um a outro como se esperasse que iAm criasse coragem para responder a isso.
– Eu só quero conversar com você – Trez lhe disse.
– Espere por mim na cozinha por um segundo, sim – iAm pediu à fêmea. E antes que Trez conseguisse montar no cavalo de novo, o cara o interrompeu. – Ela vai conversar com você, mas só se ela quiser. Não vou obrigá-la, e qualquer que seja o resultado disto, você vai me ouvir primeiro.
A fêmea deu uma última olhada em Trez e assentiu antes de se afastar.
– Quem é ela? – Trez perguntou emocionado. – De onde ela veio?
– Não é Selena. – iAm se levantou e ficou andando de um lado a outro. O que resultava em três passos numa direção, uma virada e dois de volta até Trez. – Ela não é a sua fêmea.
– Ela é Selena...
– Não, de acordo como currículo dela... – iAm entrou no escritório, se inclinou sobre a escrivaninha e pegou uma única folha. – O nome dela é Therese, e acabou de se mudar para Caldwell. Está procurando um emprego como garçonete e quer se fixar aqui.
Quando o irmão estendeu a folha para ele, Trez encarou a A4 e ficou se perguntando se conseguiria se lembrar de como ler.
– Não entendo – murmurou. – Ela se parece exatamente com a Selena. E a voz dela...
Pegou o currículo e os olhos ficaram brincando de paintball com as palavras, somente acertando algumas delas. Detroit, Michigan. Trinta e quatro anos. Alguns empregos ao longo das últimas décadas, alguns em TI, outros no serviço de alimentos. Nenhuma menção à linhagem dela, mas ela não teria mencionado essa coisa se estivesse também tentando empregos com humanos. Evidentemente, porém, ela tinha que ser uma civil, e não um membro da glymera, porque os aristocratas não permitiam que suas filhas solteiras solicitassem empregos de garçonete.
Ah, Deus... e se ela fosse comprometida?
– Ela não é Selena. – O rosto de iAm estava sério. – Não me importo com quem ela se pareça, esta não é a sua companheira morta voltando para você.
Therese estava na entrada da cozinha fervilhante e ficou se perguntando se simplesmente não deveria ir embora.
Encontrara aquela vaga de emprego num grupo fechado para vampiros no Facebook e enviara o resumo por e-mail. Também estava tentando outras duas vagas, uma num call-center de humanos para o horário noturno, e outro em uma empresa de processamento de dados, no qual poderia trabalhar de casa. Dos três, aquela vaga como garçonete era a sua primeira escolha, porque o call-center não garantia um salário fixo e o de processamento de dados seria complicado porque a casa em que estava, a única que podia bancar, não tinha sistema de Wi-Fi.
Mal tinha água encanada, pelo amor de Deus.
Encarando o chão, pensou no gigantesco macho desmaiando bem diante dela, aterrissando bem onde ela estivera. Inacreditável. E por mais que o dramalhão garantisse que o proprietário do restaurante se lembraria de quem ela era, isso não seria um motivo para ajudá-la a conseguir o emprego.
Não a menos que estivesse procurando por pessoas que inspirassem outras a desmaiar.
Crispando as feições, visualizou o macho que batera no chão, o rosto dele, os olhos... o corpo. Ele era, de fato, extraordinário. Mas uma louca atração por um cara que não conseguia ficar de pé não era o motivo da sua ida até ali. Um emprego. Precisava de um emprego de modo que suas economias, mínimas como eram, não acabariam antes do fim do mês.
Não havia como voltar de onde viera. Não retornaria ao Michigan...
O proprietário apareceu na virada do corredor e inspirou fundo.
– Então, é o seguinte...
– Não quero causar nenhum problema nem nada assim. – Mesmo sem saber exatamente o que havia feito. – Eu posso simplesmente... ir embora, sabe...
O proprietário desviou o olhar, parecendo se concentrar na fila de chefs preparando ambrosia junto aos fogões.
– Não é culpa sua. Meu irmão... ele passou por muita coisa.
– Sinto muito.
O proprietário esfregou o alto da cabeça, os cabelos quase raspados não se realinhando nem um pouco. Ele era um Sombra, assim como o irmão – claro, oras –, com aquelas lindas feições dos Sombra e a pele escura. Mas era ao outro que ela desejava.
Espere. Não, ela não o desejava.
– Ele vai ficar bem? – perguntou num rompante. – Parece que ele está precisando de um médico.
– Temos um médico particular que podemos consultar.
Therese ergueu as sobrancelhas.
– Ah.
– É só que... você se parece...
O macho em questão entrou na cozinha. Deus, ele era tão grande, com os ombros pesados de tantos músculos, e o peito era acolchoado com força, e as pernas eram longas e poderosas. Bonito? Pois é, mas na verdade, lindo demais, com aqueles lábios, especialmente o inferior, e aquele rosto com tez escura. Ele usava calças brancas, uma camisa de seda cinza e um casaco preto, e parecia... luxuoso e sexy... Caramba, aqueles sapatos deviam custar mais do que o quartinho que ela alugava.
Por, sei lá, uns seis meses.
Os olhos, porém, os olhos eram o que verdadeiramente lhe chamava a atenção. Eram escuros como a noite, mas quente como o fogo – e ele a encarava como se ela fosse a única coisa existente no mundo... O que não fazia muito sentido. Ela não era feia, mas não era nenhuma rainha da beleza, e nem estava muito bem arrumada.
– Posso só... falar com você por um segundo? – ele perguntou.
Não era uma exigência. Nada disso. Na verdade, havia um sofrimento naquela voz que sugeria que ele estava à mercê dela de alguma maneira.
– Ah... as suas pupilas estão com tamanhos diferentes. – Therese apontou para a esquerda. – Acho que você precisa de um médico em vez de conversar com alguém que não esteja de jaleco.
– Tudo bem. Pode me levar até o Havers?
– Quem é ele?
– O nosso médico aqui em Caldwell.
Therese piscou.
– Não tenho um carro.
– Podemos levar o dele. – O macho apontou para o irmão e estendeu a mão para o cara. – Me dá as chaves.
O dono do restaurante revirou os olhos.
– Não, eu te levo...
– Está tudo bem – Therese se ouviu responder. – Não tenho outros planos para esta noite, e, de um jeito estranho, me sinto meio que responsável.
Mais tarde, ela teria que se perguntar exatamente por que se prontificara. Afinal, o cara poderia ser um perseguidor em busca da sua próxima vítima, algum tipo de desajustado mental numa cidade em que ela não conhecia ninguém e não tinha a quem procurar caso desse o passo maior que a perna.
Mas seus instintos lhe diziam que ela não estava correndo perigo.
Claro, no fim se veria que essa pressuposição estava errada, não porque ele representasse alguma ameaça para ela. Não, foi um perigo de outra natureza que ele, no fim, lhe trouxe.
Algumas vezes, porém, para que o destino pudesse trabalhar, ele garantia que você entraria às cegas em algumas situações. De outro modo, você viraria o volante e apertaria o pedal do freio... evitando seu destino como se fosse uma peste.
– Perfeito – o macho disse num tom baixo. – Isso é simplesmente perfeito.
CAPÍTULO 20
Parado pouco mais distante de Layla e Xcor, Vishous estava perdendo sua maldita paciência. Que equivalia a um ladrão deixando de lado seus escrúpulos: não havia muito do que se livrar. Mas, tanto faz.
– Layla – ele ordenou –, dá o fora daqui, porra. Agora.
Deitado no chão da floresta, disse o guerreiro inimigo:
– Vá embora, meu amor.
– E veja se faz isso direito – V. não conseguia acreditar que estava concordando com aquele puto ali no chão. – Volte para a casa segura. Ele saberá se você se distanciou o bastante, e eu vou perguntar pra ele.
– Por favor, poupe-o – Layla pediu ao se pôr de pé. – Por favor...
V. cortou o ar com a pistola, impaciente.
– Preocupe-se com seus filhos, fêmea. Não com um tipo como esse aí.
No fim, Layla fez o que era certo – porque em seu cerne, era uma fêmea de valor. Depois de um último olhar demorado para o bastardo a quem amava, ela assentiu uma vez e fechou os olhos. Demorou um pouco para se desmaterializar, mas isso era esperado. Emoções corriam à solta. Pelo menos para dois deles.
Quanto a V.? Firme como uma rocha, muito obrigado.
Quando a Escolhida se foi, V. se concentrou no merdinha aos seus pés.
– Ela se foi?
Xcor fechou os olhos.
– Sim, já percorreu uma vasta distância. Honrou o seu pedido.
– Se estiver mentindo para mim, você só estará fodendo com ela.
– A verdade é a única moeda de que disponho agora.
– Ora se você não é um filho da puta milionário.
Quando Vishous se ajoelhou, as botas e a jaqueta rangeram no frio.
– Estou pronto – Xcor murmurou.
V. revelou as presas.
– Estou pouco me fodendo se você está ou não, cretino. Eu não preciso de permissão pra botar uma bala na sua cabeça.
– Sim, você está certo. – O macho sustentou o olhar de V. com firmeza. – Você está no comando.
Com a mão livre, V. pegou um cigarro e o colocou entre os lábios. E teve a intenção de acendê-lo. De verdade. Isso mesmo, rapaz... acenderia o cigarro e depois botaria chumbo no lobo frontal de Xcor quando exalasse a fumaça.
Isso mesmo. Uh-hum...
Pois é.
Alguns instantes mais tarde – inferno, talvez aquilo fosse melhor medido em anos – guardou a arma e removeu a luva com forro de chumbo, libertando a coisa dedo a dedo. O brilho da sua maldição era tão claro que deixou Xcor pronto para um close ao estilo de Crepúsculo dos Deus, e o primeiro pensamento de V. foi: caceeeete, era melhor se apressar se queria mesmo matar o filho da puta. O bastardo fazia Vincent Price parecer o pôster de propaganda de uma franquia de bronzeamento.
Erguendo seu amiguinho letal, V. acendeu a ponta do cigarro enrolado a mão com o dedo médio e inalou.
Que diabos faria agora?
Ou não faria, como parecia o caso.
Alô?, ele quis dizer para seu saco. Tudo bem, só havia uma bola dentro dele, mas, normalmente, agressão não era um problema para ele.
No entanto, ali estava ele, completamente cercado por ele não atirando no crânio de Xcor.
Ruim, ruim... Isso era muito ruim.
E então as coisas ficaram piores.
Sem se permitir pensar duas vezes a respeito do que estava fazendo, estendeu a mão amaldiçoada sobre o macho nu e moribundo e comandou que a energia fluísse dele para Xcor. Em reação, ondas de calor pulsaram sobre o quase cadáver, a neve nem tanto derretendo, mas secando como quando papel se curva sobre si mesmo ao contato com uma chama.
Xcor gemeu quando o corpo contorcido começou a afundar na lama criada pelo calor, o gelo no chão da floresta se transformando como se fosse primavera.
E então o bastardo começou a tremer. Conforme o sangue começou a circular com mais facilidade, as extremidades começaram a inchar e tremer, o rigor sendo substituído por uma vitalidade que devia ser tão dolorosa quanto ter a pele dilacerada por uma lâmina enferrujada. Ouvindo os gemidos e fitando os movimentos lentos e retorcidos ali de baixo, V. se lembrou de moscas se chocando contra janelas. Não era uma analogia muito original, só que, cacete, era bem acurada.
– V-v-vishous...
– Que foi.
Os olhos de Xcor estavam injetados e lacrimejantes como o diabo quando ele levantou o olhar.
– Preciso que você... saiba...
– O que.
Demorou um pouco até o bastardo conseguir responder.
– A culpa nunca foi dela. Eu aceito toda a responsabilidade. Nunca foi ela quem instigou os encontros, ela foi uma vítima.
– Que cavalheiro do caralho que você é.
– De que outro modo uma fêmea como ela se aproximaria de um macho como eu?
– Bem pensado.
– E, no fim, eu a libertei. Mandei-a embora para longe de mim.
V. bateu o cigarro na neve.
– Então vou nominá-lo para o Prêmio Nobel da Paz. Feliz assim?
– Eu tive que libertá-la – o macho murmurou. – Era a única saída... eu tive que libertá-la.
Vishous franziu o cenho. Depois sacudiu a cabeça. Mas não porque estivesse discordando daquele merdinha miserável.
Estava tentando tirar uma lembrança da cabeça. Tentando... e no fim fracassando.
Era uma lembrança que parecia pertencer a outra vida. Ele e Jane parados na cozinha do apartamento dela, ele diante do fogão, ela apoiada na bancada. A lembrança era tão nítida que V. conseguia ouvir o barulho do metal da colher batendo na panela de aço inoxidável, o chocolate quente ficando cada vez mais cheiroso conforme o calor era transferido do queimador.
Quando a temperatura chegara ao ponto certo, ele enchera uma caneca e dado a Jane, e depois a encarou nos olhos enquanto ela segurava aquilo que fora preparado para ela. Em seguida, ele limpara a memória de curto prazo dela, tirando dela todo o conhecimento que tinha deles juntos.
Tudo sumiu. O sexo que partilharam. A ligação entre eles. O relacionamento deles.
Apagado como se nunca tivesse existido.
Pelo menos do lado dela.
Do dele? Tudo ficou grudado na memória, e ele não queria que tivesse sido de outro modo. Estivera preparado para suportar a saudade, os anos que viriam sem estarem juntos, a separação da sua outra metade que o teria diminuído para todo o sempre. Não houvera uma alternativa para eles àquela altura. Ela era uma humana com uma vida. Ele era de uma espécie que a dela sequer sabia da existência e que estava envolvida numa guerra na qual ele só poderia acabar morto.
Claro que, então, porque a mãe dele era um osso duro de roer e o destino tinha um perverso senso de humor, tiveram que enfrentar provas piores...
Mesmo ele tendo lutado contra a maré, sua mente se recusou a ter algo negado: de repente, aquela cena da cozinha foi substituída por um evento ainda pior. Jane sendo alvejada, sangrando, morrendo nos seus braços. E depois ele se viu deitado, enroscado sobre si mesmo, na cama, bem parecido a Xcor agora, querendo morrer.
Abruptamente, Vishous teve que desviar o olhar do filho da puta. E teria saído dali se pudesse.
Em vez disso, cerrou os molares e levou a mão que era incapaz de incendiar carros transformando-os em esculturas modernas até o bolso da jaqueta. Com um esforço hercúleo, dispensou as lembranças e as emoções, expulsando aqueles visitantes indesejáveis com a afabilidade de um leão de chácara limpando a casa antes do fechamento.
Tchauzinho.
Emoções não tinham lugar no grande esquema das coisas. Não mesmo.
Tampouco as lembranças do passado.
Parada na sala de estar da confortável casa segura, Layla estava de fronte a um relógio de parede colocado ali com intenções decorativas. Com ponteiras em arabescos tão compridos quanto seus braços, e números cursivos saídos de um romance de Dickens, era tanto extravagante quanto elegante – e também funcional.
Não estava mais chorando. O rosto ardia e queimava, porém, um resultado combinado de todas aquelas lágrimas enxugadas e do frio que esfoliara a camada mais superficial da pele. E a garganta estava doída. E as pontas dos dedos, todas elas, latejavam por terem tido uma amostra de queimação causada pelo frio.
Vishous fizera uso da carta trunfo, e com razão, como sempre. Se desejava ter a acesso a Lyric e Rhamp, a última coisa que agiria em seu favor era impedir a execução de Xcor.
Ainda mais se fizesse algo desvairado... como se lançar na trajetória da bala que era direcionada a ele.
O resultado final, contudo, era que sempre escolheria os filhos em detrimento de qualquer um, até de si mesma... e mesmo de Xcor. Mas, ah... A dor de perder aquele macho. Era transformadora, de verdade, aquela agonia no peito, o tipo de fardo emocional que a fazia pensar que pesava mais e atrapalhava seus movimentos.
A princípio, o som do telefone tocando mal foi percebido. Só quando o objeto se silenciou na cozinha e de imediato voltou a tocar que ela franziu o cenho e olhou ao redor da porta em arco.
O celular que Vishous deixara para ela ficou silencioso. E de pronto voltou a tocar de novo.
Talvez fosse alguém tentando falar com ele para que ele a levasse de volta para ver os filhos?
Apressando-se para a mesa, verificou a tela. Ela estava acesa... com o nome do próprio Vishous.
Ele estava ligando para si mesmo? Não era possível. Neste instante ele devia estar puxando o gatilho...
Quando os olhos começaram a arder e se encher de lágrimas, ela levou as mãos ao rosto. Será que o Irmão trataria os restos mortais de Xcor com respeito? Ela não suportaria se fosse de outro modo...
Os toques cessaram. E quando não retornaram de súbito, ela se virou. Devia ser algum engano, algum botão apertado sozinho por conta de o corpo ter mudado de posição ou algo assim.
A campainha voltou a tocar pela terceira vez. Ou seria a quarta?
Girando novamente, Layla franziu o cenho e pegou o celular. Aceitando a chamada, ela disse:
– Jesus Cristo – Vishous ralhou antes que ela pudesse dizer algo. – Que demora pra atender.
Layla se retraiu.
– Eu... eu sinto muito.
– Venha para cá.
– O quê?
– Você ouviu. Volte para a floresta.
Layla começou a arquejar, uma combinação de terror e de tristeza a sufocando.
– Como pode ser tão cruel? Não posso vê-lo morto...
– Então é melhor vir logo pra cá pra alimentá-lo, porra. Precisamos tirá-lo desta floresta.
– O quê?!
– Você me ouviu bem, cacete. Agora se desmaterialize até aqui antes que eu mude de ideia.
A conexão foi interrompida tão abruptamente que ela teve que se perguntar se ele jogara o telefone do qual a chamara no chão. Ou talvez atirado nele.
Com o coração apressado, a cabeça girando, ela afastou o celular da orelha e só o encarou. Mas logo foi ela quem o jogou sobre a mesa.
Estava para fora das portas de correr assim que o telefone bateu no tampo de madeira.
Desmaterializou-se e recobrou a forma bem onde estivera perto de Xcor, e encontrou Vishous a um metro e meio do lado oposto do macho, fumando com tanto fervor que era como se o cigarro entre os dentes fosse sua única fonte de oxigênio. Nesse meio tempo, Xcor fora transformado por alguma fonte de calor, a neve desaparecera de cima e ao redor dele, o chão embaixo era uma poça de lama, a pele já não estava emaciada, mas tinha um tom de vermelho vivo.
Ele estava vivo. E quanto sua presença foi registrada por ele, ele moveu um pouco a cabeça e entreabriu os olhos.
– Layla...?
– O que... por quê? – ela murmurou.
Vishous cortou o ar com a mão, mas quando falou, parecia exausto.
– Sem querer ofender, mas calem a bocas, vocês dois, sim? Sem perguntas. Você... Alimente-o. E você... sorva da porra da veia dela e seja rápido. Voltarei em vinte minutos, e é melhor vocês dois estarem prontos para serem transportados.
Com essa súbita explosão de otimismo, o Irmão desapareceu em pleno ar como um fantasma.
Layla piscou e ficou pensando se aquilo seria um sonho. Mas logo se pôs em ação.
Não se deu ao trabalho de falar com Xcor. Puxou a manga do roupão e expôs o pulso, rasgou a pele com as próprias presas, depois aproximou a fonte de energia e nutrição da boca de Xcor.
Mas ele se recusou a abrir os lábios. Mesmo enquanto a força vital de que precisava tão desesperadamente molhou sua boca, ele lhe negou a entrada.
Silenciosamente, encarou-a e virou a cabeça de um lado a outro.
Aquilo a fez se lembrar da primeira vez que o vira debaixo daquele bordo naquela colina. Naquele dia, ele também tentara rejeitá-la.
– Sem querer ofender – ela murmurou –, mas beba de uma vez, caramba.
Ela não fazia a mínima ideia do motivo pelo qual Vishous resolvera poupar a vida do inimigo. Mas não discutiria com o que parecia estar acontecendo – nem tomaria como garantido o perdão. Inferno, o Irmão talvez acabasse mudando de ideia de novo, voltando ali com a arma empunhada. Ou a adaga. Ou com reforços.
Quando Xcor ainda assim a rejeitou, ela aproximou a mão livre do rosto dele e apertou-lhe as narinas.
– Se você me ama, vai se salvar agora. Não ponha a sua morte na minha consciência.
Enquanto ele permanecia ali deitado, aparentemente contente em morrer sufocado, ela começou a pensar em outras maneiras de forçá-lo a abrir a boca. Mas, então, ele arquejou um pouco... E isso bastou.
Uma gota ou duas devem ter entrado na boca, porque ele gemeu de uma maneira diferente, o tronco se arqueando, as pernas se remexendo como se uma necessidade muito grande o tivesse acometido.
E, então, ele emitiu um sibilo predatório...
... E a mordeu com tanta força que ela teve que refrear uma imprecação.
Em seguida, ele bebeu grandes goladas e tão rapidamente que ela soube que deveria tomar cuidado. Eram grandes as chances de ele acabar matando-a sem querer, a fome dele capaz de sobrepor todos os outros instintos, inclusive aquele de querer protegê-la.
Santa Virgem Escriba, ela desejou saber o que Vishous tinha planejado para eles, mas, às vezes, na vida, era melhor não olhar muito adiante. Só o que ela tinha que fazer agora era alimentar Xcor e mantê-lo aquecido até Vishous regressar com algum tipo de veículo.
Depois disso? Ela não sabia.
Afastando os cabelos de Xcor da testa, ela se deparou com os olhos ensandecidos dele e se viu assolada por uma necessidade premente de rezar. Cedendo ao reflexo, começou a recitar os quartetos que aprendera desde o nascimento lá no Santuário, as palavras antigas e sagradas marcharam pela sua mente, o ritmo do Antigo Idioma formando uma batida que reverberou até o meio do seu peito.
Um pena que não havia mais ninguém lá para ouvir. Mas que importância tinha isso? Vishous era o único salvador que ela e Xcor tinham – e Deus bem sabia, ela aceitaria o que pudesse ter.
CAPÍTULO 21
– Ah, eu esqueci – Trez murmurou. – O carro de iAm é manual.
Parado diante da porta de saída dos funcionários do Sal’s, ele encarou a BMW M6 e tentou pensar em como manteria aquela coisa de irem até Havers...
A fêmea que o fizera desmaiar arrancou as chaves das suas mãos.
– Não é um problema. Sou boa de câmbio.
Therese desligou o alarme e abriu a porta do motorista, depois passou para o banco de couro como se fosse a dona do carro esportivo.
– Bem, entre. Não consigo colocá-lo no banco de passageiro. Vai ter que fazer isso sozinho.
O sorriso dela era tão fácil, mas nada simples. Na verdade, nada a respeito dela era descomplicado para ele: o modo como ela se movia, o som da sua voz, ou o fato de ela preencher aqueles jeans pretos justos à perfeição.
Bem como Selena teria preenchido.
Sim, o alerta de iAm continuava a incomodá-lo na cabeça: Esta não é a sua companheira morta voltando para você.
Com uma imprecação, Trez deu a volta pelo porta-malas do sedã. Ao entrar, olhou para a fêmea. Deus, o perfil dela era...
– Hum, pode fechar a porta? Este modelo em especial tem um mecanismo de antirrolagem. Não conseguirei ir a parte alguma até você fazer isso... Além disso, convenhamos, que frio! Brrrr...
Trez corou e puxou a porta pela maçaneta. E depois tentou parecer relaxado quando ela deu partida, diminuiu a velocidade do aquecedor e passou a marcha ré. Com uma manobra perfeita, partiram, abrindo caminho ao redor da propriedade e seguindo para a avenida de quatro pistas adiante.
– Você vai ter que me guiar.
Enquanto ela falava, estava tão linda sob a luz alaranjada do painel, o nariz afilado, os lábios cheios, aquele maxilar firme, coisas que ele vinha tentando recriar em 3D das suas lembranças em 2D.
Ele falou sem ter a intenção. Sem querer.
– Senti saudades...
Sua voz se partiu no mesmo instante em que ela lhe lançou um olhar assustado.
– Desculpe? O que disse?
Merda, aquilo acabara mesmo de sair da sua boca?
– Ah... hum, uau. Não estou fazendo muito sentido, estou? – Lançou um sorriso de desculpas, que era absolutamente sincero. – Talvez eu precise mesmo de um médico.
Ao chegarem à saída do estacionamento, ela sorriu uma vez mais.
– Bem, a pergunta imediata é, quer o Google Maps? O sistema de navegação do carro? Ou sabe para onde estamos indo?
Trez se pegou encarando-a de novo, e quando a imagem dela ficou ondulada, ele teve que enxugar os olhos no que esperou fosse um movimento rápido que ela não percebesse.
– Você está com dor mesmo – murmurou. – Precisa de uma ambulância?
E foi então que ela o tocou. Foi, mais uma vez, uma coisa simples e nada simples ao mesmo tempo: apenas apoiou a palma quente e suave no dorso da sua mão, aquele que estava apoiada na coxa – e, no processo, deu ao seu peito o equivalente a um ataque cardíaco.
– Eu deveria te dizer para ir – disse ele, rouco.
– Concordo. Direita ou esquerda?
Fechando os olhos, ele ordenou a si mesmo que se controlasse e desse ouvidos ao irmão. Esta fêmea, quem quer que ela fosse, não era a sua Selena. E era tremendamente injusto para com ela, e para o seu processo de luto, colocar-se na órbita de uma desconhecida só por conta de um acidente na aparência.
Ela tinha um leve sotaque de Detroit, pelo amor de Deus, algo que Selena evidentemente nunca tivera. E Selena nunca prendeu o cabelo daquele jeito, nem usou aquele tipo de roupas...
– Como é mesmo o seu nome? – a fêmea perguntou. – Quer que eu chame o seu irmão? Oi? Vai desmaiar... ou já desmaiou na minha frente de novo?
Quando ele falou, as palavras saíram dele rapida e descoordenadamente – bem como mexeu na maçaneta e saltou para fora do carro.
– Desculpe. Eu tenho que ir. Sair daqui. Desculpe. Desculpe mesmo...
Ao cambalear para longe da porta, que deixara aberta, conseguiu pisar numa faixa de gelo com o calcanhar...
E caiu de bunda no chão pela segunda vez na presença dela.
Mas, pelo menos, desta vez ele estava consciente.
Seu ego reclamou. Pequenos passos, seu idiota, pequenos passos.
A fêmea saiu e deu a volta no carro mais rápido do que um respiro e, ao escorregar e derrapar, acabou aterrissando bem em cima dele, e Trez quis gritar.
Ele não gritou.
Não mesmo. Quando ela caiu em cima dele... ele passou os braços ao redor dela e a beijou.
Therese não antecipara isso. Não mesmo. Ao se desequilibrar e cair bem em cima do peito do cara, seu único pensamento era quanto tempo levaria para se colocar de pé de novo, correr até o restaurante para buscar o irmão dele.
Porque, ora essa, como um par de vampiros, eles não ligariam para o SAMU. A última coisa de que necessitavam eram paramédicos humanos aparecendo ali para levá-lo a um hospital humano – onde ele daria entrada e, com a sorte que estavam tendo, acabariam em chamas quando a luz do sol entrasse pela janela caindo sobre o leito ajustável dele.
Só que aquela ideia de ir buscar o irmão não aconteceu. Ao empurrar o peitoral dele para levantar a cabeça, tudo parou de repente. Seus olhos se encontraram, a respiração ficou presa – e ele, então, escorregou um braço pela sua cintura, uma mão na sua nuca... e a puxou para a boca dele.
Suave. Os lábios dele eram tão suaves... e tremiam ao encontro dos seus, como se estivessem inseguros quanto ao que ele fazia ou talvez afetados por algo monumental. Contudo, o corpo dele não era nada frágil. Debaixo dela, ele era grande e forte, e ela sentia o poder emanando dele.
Foi só então, quando a língua apareceu e a lambeu, procurando entrar, que Therese interrompeu o contato.
Mas não foi muito longe. Não queria.
Deus... os olhos dele eram incríveis, e já não eram mais negros. Brilhavam num extraordinário tom de verde peridoto, a luz emanando deles era tão clara que ela teve que piscar.
– Sinto muito – ele sussurrou. – Eu deveria ter feito isso. – O macho franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Quero dizer, eu não deveria ter feito isso.
Therese vasculhou a expressão dele, perdendo-se no desenroscado que acontecia em suas entranhas, o corpo passando a um estado hiperalerta e estranhamente frouxo ao mesmo tempo.
– Você tem um macho? – ele perguntou com voz rouca.
– Não. – Ela se concentrou nos lábios dele. – Não, não tenho.
As pálpebras dele se fecharam e o alívio que trespassou aquelas feições foi uma surpresa.
– Graças a Deus.
Therese teve que sorrir.
– Você é um macho de valor, então. – Só que ela acabou franzindo o cenho. – Você está com alguém?
– Não, não estou...
O toque de uma buzina os assustou. Uma Mercedes encostara atrás deles, e o motorista estava saindo.
– Vocês estão bem? – ele perguntou.
– Tudo bem – seu macho disse. – Desculpe.
Hummm, ok, ele não era seu.
– Sim, estamos ótimos – ela ecoou. Procurando provar o que parecia ser uma mentira, Therese agarrou o braço dele e o ajudou a ficar de pé. – Estamos bem. Obrigado.
Ela ajudou o macho até a porta do passageiro e a entrar. Depois trotou ao redor do carro, assumindo o volante e acelerou, pegando à direita ao sair do estacionamento porque isso seria mais fácil do que atravessar as pistas para ir na direção oposta.
– Seria mesmo melhor eu ir embora – ele disse ao olhar através do para-brisa.
– Para o médico, eu sei. Então, para onde vamos? Posso fazer o contorno.
– Olha só, eu vou ficar bem. Eu sempre fico. Pode, por favor, encostar?
Ela relanceou na direção dele, e, bom Deus, ele estava tenso, as mãos apertando as coxas, a mandíbula travada. Fora ele quem começara o beijo, mas, evidentemente, se arrependia disso.
– Por favor, encoste – ele murmurou.
– Sim, claro. Mas não há onde... Não vejo nada.
O restaurante ficava no início de uma faixa de vinte ou trinta lojas, mas a escolha dela de ir à direita os levara na direção oposta de tudo isso: de fato, estavam entrando num trecho sem acostamento e de muitas árvores, nada além de um tipo de rampa com acesso à estrada, e, ao que parecia, terrenos vazios e inacabados do lado oposto da avenida.
Franzindo o cenho, ela se inclinou sobre o volante. Mais adiante, havia algo no horizonte, uma elevação no cenário... gruas de construção, talvez? Ou... Ela não sabia bem o que era aquilo.
O que quer que fosse, o estacionamento se apresentou na curva seguinte e com que abundância... Asfalto livre dos dois lados da pista, com espaço suficiente para acomodar centenas e centenas de carros. Seria um centro de convenções? Mas ela não enxergava nenhum hotel, nenhuma instalação grande. Apenas escuridão.
Quando acionou a seta, o macho se enrijeceu.
– Aqui não – disse rouco. – Ai, Deus... Em qualquer lugar menos aqui.
– O que disse?
– Siga em frente.
Voltando a pisar no acelerador, ela passou pelo que se mostrou ser... Ah, um parque de diversões. Claro. Aquilo que ela imaginou serem gruas era, na verdade, montanhas-russas e elevações, tudo atualmente desligado porque era inverno e o empreendimento ficaria fechado durante essa estação.
Ela seguiu em frente, passando por uma sorveteria chamada Martha’s que tinha como placa um galo imenso. Isso também estava fechado pela estação, mas ela visualizou as filas formadas na dúzia de janelas, crianças correndo ao redor com cones de sorvete derretendo pelos braços, pais relaxando ao mesmo tempo em que ficavam de olho nos pequenos.
Aquela fantasia de verão era real para algumas pessoas. Fora real para ela, por um tempo.
Tudo isso não existia mais.
– Aqui – ele disse, apontando para o galo. – Vire aqui.
– Hum... mais pra frente.
Ela não queria parar na sorveteria assim como ele não queria parar no parque de diversões. Então talvez tivessem algo em comum. Uma unidade de estraga-prazeres.
A loja de souvenires com que se depararam em seguida tinha muitas janelas e diversos pequenos objetos feitos de vidro, globos de neve, copos de shot, camisetas e capas para latas de cerveja perfiladas como soldados à espera de serem chamados para as linhas de frente da diversão familiar. Seu estacionamento era o filhote dos papais pelos quais passaram, mas, como estava vazio, havia espaço mais que suficiente.
Depois que Therese parou a BMW, deixou a marcha em ponto morto e puxou o freio de mão e, vejam só, concordou com o macho sentado ao seu lado. Deixando de lado os cuidados com a saúde física, era hora de seguirem cada um o seu caminho. No seu atual estado mental, ela era como um aspirador à procura de alguma distração, uma confusão oca que só parecia intacta pelo lado externo. Viera a Caldwell à procura de um recomeço, uma nova definição de si mesma... Uma fuga de tudo o que acontecera antes, de todas as mentiras e decepções, de toda a falsidade.
Engraçado como descobrir que você não é quem achava que fosse faz com que você mude para mais de oitocentos quilômetros de distância da sua “família”.
Mas o lado bom de estar por conta própria?
A menos que minta para si mesma, você sabe exatamente em que ponto está da vida.
O lado ruim, porém? Você tem a tendência de encher o vazio sentido com outras coisas – e ela não precisava de um terapeuta para lhe dizer que seria uma péssima ideia se meter no que quer que estivesse acontecendo com aquele macho. Ele era muito sexy, estava em mau estado, e era coisa demais para ela lidar com todas as suas defesas abaixadas.
– Consegue se desmaterializar até a sua casa? – ele perguntou.
– Sim, claro. Mas ainda estou preocupada com a sua cabeça.
Mesmo enquanto falava, porém, ela já desatava o cinto de segurança e abria a porta. Ele fez o mesmo, e os dois saíram.
O macho deu a volta junto com ela, e eles se encontraram na frente do carro, bem diante dos faróis – e quando se encararam, ela franziu o cenho, com um estranho sentimento se abatendo sobre ela.
– Eu cuido disto – ele disse. – Estou me sentindo bem melhor.
Quando ela levantou o olhar em toda a altura dele, piscou... E tentou se lembrar do que ele estava falando. Ah, sim, da cabeça.
Bem, ele estava parecendo mais firme, e os vampiros se curam rapidamente mesmo. Ele não falava arrastado, e aqueles olhos, verdes claros e reluzentes agora, pareciam do mesmo tamanho. Além disso, ele não teria um trajeto muito longo para voltar ao restaurante do irmão. Ela não dirigira nem dois quilômetros.
– Você vai estar segura? – ele perguntou. – Voltando para casa sozinha, quero dizer.
– Sim. – Ela levantou o queixo e forçou um sorriso. – Perfeitamente segura.
– Eu deveria levá-la. Onde você...
Quando ela pensou naquele beijo, levantou a mão.
– Não, prefiro ir sozinha. É melhor assim.
Ele inclinou a cabeça.
– Perfeitamente.
– Então... – Ela estendeu a mão. – Foi estranho te conhecer.
Ela temperou as palavras com um sorriso sincero. Vinte e quatro horas em Caldwell, e ela já estava provocando desmaios em machos, praticando suas habilidades em entrevistas de emprego e dirigindo carros esportes. Levando-se tudo em consideração? Poderia ter sido bem pior.
– O prazer foi meu – ele disse distraído.
Ela teve a sensação de que ele queria abraçá-la pelo modo como deixou a mão pendurada no ar, mas ela nãopretendia se encostar naquele corpo de novo. Já estava na situação de ter que se esquecer daquele beijo. Mais motivos para querer se dar uma amnésia não era algo de que ela precisasse.
– Bem, adeus. – Ela recuou um passo. – Hum... Tenha uma boa vida.
Dito isso, ela se desmaterializou. E enquanto viajava espalhada, maravilhou-se com o fato de alguém que você mal conhece causar um impacto tão grande.
Loucura.
Loucura mesmo.