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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESCUNA NOZ MOSCADA / Patrick O'brian
A ESCUNA NOZ MOSCADA / Patrick O'brian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A tripulação da Diane, capitaneada por Jack Aubrey, é assaltada por um grupo de ferozes piratas malaios; consegue escapar e zarpar com uma maltratada escuna com a qual deverão enfrentar-se com a Cornélie, uma poderosa fragata francesa de trinta e dois canhões, e como se fosse pouco, navegar por águas mal conhecidas pelos cartógrafos britânicos. O’Brian demostra neste romance um conhecimento realmente excepcional da época sobre a qual escreve, o que a converte em uma obra apaixonante.
Este é o décimo quarto romance da mais apaixonante série de novelas históricas marítimas jamais publicada; por considerá-lo de indubitável interesse, ainda que os leitores que desejem prescindir disso podem perfeitamente fazê-lo, inclue-se um arquivo adicional com um amplo e detalhado Glossário de termos marítmos.
Foi mantido o sistema de medidas da Armada Real inglesa, como forma habitual de expressão da terminologia náutica.
1 jarda = 0, 9144 metros.
1 pé = 0, 3048 metros - 1 m = 3, 28084 pés.
1 cabo =120 braças = 185,19 metros.
1 polegada = 2, 54 centímetros - 1 cm = 0, 3937 polegada.
1 libra = 0, 45359 quilogramas - 1 kg = 2, 20462 libra.
1 quintal = 112 libras = 50, 802 kg.
1 pinta = 0,47 litros.
1 celemine= 4,6 litros.
Qualquer autor de narrações nas quais a ação ocorra no início do século XIX e os personagens sejam principalmente marinheiros dependerá em grande medida, tanto para a inclusão de fatos históricos como para o tratamento do tempo, das memórias e cartas de marinheiros, os arquivos do Almirantado e da Junta Naval, dos historiadores navais e, certamente, das valiosas publicações da Sociedade para a Conservação de Arquivos da Armada.
Todas estas fontes, junto com a Crônica Naval e os jornais da época, constituem a seiva da qual me alimentei com gosto durante muitos anos; porém, ocasionalmente, quando a narração se estende a zonas para as quais há escassa informação e falta a experiência de primeira mão, aparece um livro providencial para suprir a carência.
Faz algum tempo, por exemplo, queria encontrar maior quantidade de informação que a disponível atualmente sobre a vaca marinha descoberta por Steller, um enorme animal como uma sereia cinzento, sem pêlo, de vinte pés de comprimento, inofensivo e comestível que vivia no Pacífico Norte e se extinguiu mais ou menos vinte e cinco anos após sua descoberta em 1741 devido à pesca excessiva, e quase não havia formulado meu desejo quando apareceu em meu escritório, em um livro que devia revisar, uma elegante tradução do relato do própio Steller. No caso desta narração, parte da qual transcorre na colônia-penal de Nova Gales do Sul (geralmente conhecida por Botany Bay) no princípio do mandato do governador Macquarie, o livro providencial, realmente providencial, foi a esplêndida obra de Robert Hughes Hughes The Fatal Shore. Apesar de que havia lido muito sobre o descobrimento e a fundação dessa colônia quando escrevi a vida de sir Joseph Banks (o primeiro homem que estudou a flora dessa extraordinária baía), naquele tempo havia ainda muitas lagunas. Por outra parte, ainda que tivesse me dedicado a investigar durante anos, não teria podido acumular, e muito menos ordenar, a imensa quantidade de material que contém esse amplo, bem documentado e humano relato da história do país, um relato que de qualquer maneira teria lido com suma vontade e que nesta ocasião devorei com um prazer que não seria honesto tratar de ocultar.

 

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CAPÍTULO 1
Cento e cinqüenta e sete náufragos, os sobreviventes da Diane, uma fragata de Sua Majestade que havia encalhado em um arrecife não indicado nas cartas marítimas
e que fora destruída por um tufão vários dias depois, permaneciam em uma ilha deserta no sul do Mar da China. Era um grupo de apenas cento e cinqüenta e sete homens,
porém, sentados ao redor de um terreno plano e sem nenhuma vegetação que se estendia entre a marca d’água na maré alta e o início do bosque, parecia a tripulação
completa de um navio de linha. Isso se devia a ser um domingo pela tarde e a guarda de estibordo, encabeçada pelo capitão Aubrey, jogava críquete com os infantes
da marinha, capitaneados pelo oficial chefe, o senhor Welby.
A partida estava muito disputada e exaltava tanto os ânimos que se ouviam gritos, vivas e assobios de protesto depois de cada jogada. Para qualquer observador imparcial
esse era outro exemplo de que os homens do mar vivem intensamente o presente e se preocupam pouco ou nada com o futuro. Sua atitude denotava irresponsabilidade,
mas também uma grande fortaleza, pois o ambiente era úmido como uma esponja e o sol, oculto atrás das nuvens, irradiava um calor sufocante. O único observador imparcial
era Stephen Maturin, o cirurgião da fragata, que considerava o críquete a mais chata das atividades humanas. Agora subia lentamente para o bosque que cobria a ilha
com a intenção de caçar algum javali ou, no pior dos casos, alguns dos macacos de calda preénsil, e depois chegar até a parte norte, onde se aninhavam as andorinhas
das quais se fazia sopa de ninho de pássaro. Parou no arredondado cume de uma colina, onde o rastro de um javali adentrava na ilha, e olhou para a costa sul. À esquerda,
em alto mar, encontrava-se o arrecife onde encalhara a fragata, que agora, com três quartos da maré morta, estava coberto de espuma pelas ondas que rompiam nele,
mas que com a maré viva ficava oculto pelas águas; à direita ficava o lugar da praia aonde chegara um fragmento de bom tamanho da embarcação destroçada. Também à
esquerda se via a enseada para aonde tinham rebocado essa parte com um dos botes que restavam, e ali a desmontaram cuidadosamente e a uniram novamente para formar
a armação da escuna que lhes levaria a Batavia quando lhe pusessem as pranchas, as cobertas e a exárcia. No alto da colina em frente à enseada ficava o acampamento,
resguardado pelo bosque em que se refugiaram contra o tufão que destruiu a fragata e provocou a morte de muitos dos tripulantes e de quase todos os animais que levavam
a bordo, além de estragar quase toda a pólvora. E justo abaixo dele ficava o extenso terreno plano e firme onde corriam de um lado para outro os homens vestidos
de branco, não porque jogavam críquete, mas porque era domingo e teriam que passar revista formados em brigadas (barbeados e com camisa limpa) e depois assistir
ao ofício religioso.
Poderia parecer uma frivolidade que jogassem críquete quando ainda não tinham terminado a escuna, restavam muito poucas provisões e os recursos da ilha, os cocos,
os javalis e os macacos de calda preénsil estavam quase esgotados; contudo, Stephen sabia muito bem como funcionava a mente de Jack Aubrey. Os tripulantes haviam
se comportado exageradamente bem até agora e trabalharam denodadamente, mas nem todos eram marinheiros de barcos de guerra formados na Armada nem haviam servido
nela juntos durante muitos anos, aliás pelo menos um terço deles foram recrutados a força, alguns em levas muito recentes, e entre estes havia súditos do rei não
desejáveis, incluídos dois ou três brigões. Porém, mesmo quando todos fossem marinheiros que serviam na Armada desde o começo da guerra, um pouco de relaxamento
era essencial e, por outra parte, esperavam com ânsia essa partida. Os bastões, de madeira de canforeira ou de palma, careciam da elegância dos de salgueiro, mas
o veleiro fizera uma bola como as oficiais com o couro da boca da verga da carangueja, e os jogadores tinham praticado lançando-a aos cabos mais altos para jogar
dignamente. Ademais, o críquete era uma pequena parte da ordinária cerimônia que mantinha os ânimos elevados, cuja importância, naturalmente, não podia se comparar
com a dos nobres ritos que se celebravam a bordo, como a formação em brigadas, a solene leitura dos artigos do Código Naval, os funerais ou os ofícios religiosos,
mas contribuía para pôr ordem no caos.
O que Stephen não conseguia entender era a satisfação que Jack sentia ao participar dessa cerimônia. Como capitão, Aubrey estava muito preocupado com a escassez
de alimentos e de apetrechos, sobretudo de cabos, pela quase inexistência de pólvora e pela iminente falta de aguardente de palma e de tabaco; não obstante, como
jogador de críquete sabia que era necessário observar atentamente a parte central do campo, especialmente em um como esse, mais parecido com um terreno coberto de
concreto branco que a uma campina como Deus manda, e depois que o suboficial encarregado dos cabos pegou a bola lançada pelo sargento de Infantaria da Marinha e
conseguiu dezesseis pontos, quando foi sua vez de jogar, colocou-se no centro e lançou ao seu redor um olhar penetrante, como o de um predador, enquanto dava golpes
com o bastão no canto do bloco, e se concentrou no que estava fazendo.
- Jogo! - gritou o sargento, e depois de dar dois saltinhos jogou a bola bastante alto e descrevendo uma curva.
Jack lembrou-se do que Nelson havia dito: "Não importam as manobras. Sempre há que atacar com decisão". Então, obedecendo ao seu herói, saltou para frente e golpeou
a bola antes que caísse no solo lançando-a diretamente para a cabeça do lançador. O mal-humorado sargento não inclinou nem baixou a cabeça, senão que pegou a bola
no ar.
- Fora de jogo! - exclamou Edwards, o único civil que havia ali e, portanto, o árbitro perfeito. - Sinto dizer-lhe que está fora de jogo, senhor.
Entre os rugidos dos militares e os lamentos dos decepcionados marinheiros, que não só admiravam o capitão por ser um bom oficial como também por ser um potente
rebatedor, Jack gritou:
- Muito bem, sargento!
Dirigiu-se então até os três coqueiros (sem cocos já fazia tempo) que serviam de refúgio.
- Espero que isto não seja um mau presságio - disse Stephen, pendurando o rifle no ombro e voltando-se.
Aquele era um rifle extraordinariamente bom, um Joe Mantón de retrocarga. Herdara-o do senhor Fox, o enviado britânico que haviam trazido na Diane para contrariar
o trabalho dos franceses nas negociações que mantinham com o sultão de Pulo Prabang. Fox triunfou e logrou firmar um tratado de ajuda mútua, mas estava tão ansioso
para levá-lo à Inglaterra que decidiu percorrer as duzentas milhas que separavam essa ilha de Batavia na pinaça da Diane, uma embarcação robusta e com uma excelente
tripulação, enquanto a fragata permanecia encalhada no arrecife, de onde não poderia se mover até que chegasse a maré viva seguinte.
Aquele era um rifle muito bom. E como Stephen era um atirador certeiro e havia muito pouca pólvora (muito pouca para o uso geral de mosquetes), tinha o cargo de
caçador chefe do acampamento. Durante a primeira quinzena suas mãos ficaram esfoladas ao puxar cabos, ajudar a serrar madeira, cravar estacas e remeter cunhas, e
também, sofreu muito devido aos problemas inerentes a todas essas coisas (não houve nenhum cabo, ainda que passasse pela mais pura superfície, que não se enredasse
ou enganchasse em qualquer diminuta fenda ou protuberância, nem nenhuma serra que não se desviasse da linha que seguia, nem nenhum maço com que não se golpeasse
a mão, que tinha inchada e roxa), mas seus companheiros sofreram ainda mais refazendo todos os nós que havia feito, salvando-lhe dos improváveis perigos e vigiando-lhe
pelo rabo do olho enquanto faziam seu própio trabalho. Inclusive quando foi encarregado de sacar o que obstruía o poço, a tarefa menos dura na qual interveio, cravou
uma picareta no pé de William Gorges.
Apesar disso, tinha um valor inestimável para a tripulação como caçador que trazia comida para a panela. Não só manejava muito bem a arma, como era um eperimentado
naturalista acostumado a seguir o rastro dos animais, a aproximar-se silenciosamente contra a direção do vento e a esperar imóvel durante horas. Essas qualidades
eram necessárias, pois apesar de haver porcos de duas espécies (o javali de crina e a babirussa), como os tinham caçado há pouco tempo, desde o início haviam sido
cautelosos e agora os sobreviventes eram muito mais. Ademais, restavam muito menos, e ainda que a primeira semana, numa tarde proporcionara aos marinheiros o dobro
da ração de carne de porco que lhes davam na fragata, agora tinha que percorrer toda a ilha para conseguir um, às vezes muito pequeno; e em ocasiões nem isso lograva
porque a pólvora estragada ficava na recâmara sem explodir.
As pegadas que seguia agora, contudo, pareciam prometer algo mais concreto que as que havia seguido ultimamente. Eram recentes, tão recentes que quando ele olhou
para o ponto onde chegavam à beira de um conjunto de espinhosas canas-da-índia, viu aparecer o extremo de um. O animal era quase certo uma babirussa de cento e trinta
ou cento e quarenta libras, a primeira que via desde a quinta-feira da semana anterior. Alegrava-se com isso porque na tripulação havia vários judeus e muitos muçulmanos,
unidos somente pelo aborrecimento da carne de porco, e poderiam considerar a babirussa, por seus colmilhos muito similares aos cornos e suas longas pernas, uma espécie
de cervo que habitava aquela ilha remota.
"Vou dar a volta e esperar por ela", se disse Stephen, e deu a volta ao redor do canavial caminhando devagar em meio do calor.
Muito provavelmente o animal ia dormir. Tanto os javalis desse lugar como os que vira anteriormente eram animais muito pouco audazes, que preferiam os caminhos conhecidos,
e agora Stephen conhecia a maioria deles. Subiu em uma árvore de onde dominava a saída e se sentou na base de um largo galho coberto de musgo, entre orquídeas que
pertenciam a uma espécie de uma forma e um colorido que nunca tinha visto. O sol nascente apareceu entre o céu nublado, ainda que estava se pondo em Sumatra ou talvez
Biliton, em qualquer caso, para o oeste. Seus raios se deslizavam sob a abóbada celeste e iluminavam o conjunto de cinqüenta ou sessenta orquídeas, cujo colorido
vermelho vivo contrastava com o verde brilhante das úmidas folhas. Ainda contemplava o conjunto e os insetos que haviam nele quando a babirussa começou a se mover
outra vez entre as canas-da-índia. Os sons se ouviam cada vez mais perto. A babirussa emergiu, parou e começou a mover seu focinho quadrado de um lado para o outro.
Stephen, sem alterar-se, matou-a e desceu da árvore.
Levava um avental na mochila e o pôs para estripar a babirussa, pois não se importava em se melar de sangue mas sabia que Killick sim, e ouvir a voz fanhosa com
que se queixava uma e outra vez, ainda que com razão, era tão desagradável que o incômodo de pôr um avental não era nada comparado com isso. Também dispunha de um
pequeno moitão com o qual levantava o animal quase com uma só mão. Seu uso era um dos trabalhos própios de marinheiros cuja realização havia estudado com proveito,
e Bonden, o timoneiro do capitão, passara muitas horas ensinando-lhe a atar um extremo do cabo e a passar o restante pelo canal da roda. Se a polia fosse fixa muito
alta, geralmente tinha êxito na primeira tentativa, e nesta ocasião o teve. Retrocedeu e olhou a babirussa (que provavelmente pesava cento e cinqüenta libras em
vez de cento e quarenta) com verdadeira satisfação, pensando que poucos pratos agradavam mais a Jack que a cabeça de javali temperada e que ele gostava de patas
de porco fritas. Pendurou o avental em um galho para que servisse de guia aos que levariam a babirussa abaixo e secou suas mãos na casaca, do que foi consciente
um momento depois, quando, tarde demais, viu a mancha no linho branco.
- Tratarei de tirá-la na laguna das andorinhas - murmurou sem convicção.
Durante parte de sua infância estivera ao cuidado de uma terciária dominica chamada freira Luisa, descendente de um dos ramos mais respeitáveis dos Torquemada de
Valladolid (o primo e também padrinho de Stephen dava muita importância a essas coisas), uma mulher para quem a limpeza era sagrada, e nunca conseguira enganá-la
quando tentava "tirar as manchas". Agora seu lugar era ocupado por um marinheiro de idade indefinida, magro e com a cara curtida pelos elementos que usava uma trança
e um brinco dourado na orelha, tinha voz escandalosa e falava em tom mal-humorado. Killick não era seu servente, assim que não tinha os direitos de um servente;
era o despenseiro de Jack Aubrey. O servente de Stephen era um jovem, malaio amável e bobo chamado Ahmed, mas como Preserved Killick conhecia ao capitão e ao doutor
há muito tempo, tinha tanta autoridade moral que em certos casos a presença de Ahmed não lhe servia de proteção.
Como Stephen temia, não pôde eliminar a mancha na laguna das andorinhas, mas então cometeu um ato covarde, impróprio de sua idade e de sua educação: ocultou a mancha
de sangue e fluido peritoneal com uma capa de barro que pegou da margem, e também, como medida de segurança, passou por cima várias algas. O que ele chamava de laguna
das andorinhas ficava perto do espetacular escarpado onde essas aves se aninhavam, mas não formavam seus ninhos com o barro cinzento que havia nela. Os resguardados
ninhos eram translúcidos e brancos como pérolas e não tinham musgo nem fibras vegetais, nem barro. Encontravam-se no mais profundo das cavernas, nas fendas da face
do escarpado que dava para o mar, e Stephen só os podia ver bem de um lugar, do saliente de uma caverna que se elevava desde um amplo leito de seixos situado duzentos
pés mais abaixo até uma estreita fenda no alto. A altura o impressionava, e subir nas vergas superiores de uma simples fragata lhe produzia um medo espantoso que
só conseguia dominar por sua extraordinária força de vontade; contudo, ali estava deitado, com o corpo firmemente apoiado sobre a cálida rocha plana, os braços e
as pernas estendidos e a cabeça pendurando no vazio, para observar as aves. Viu uma revoada de passarinhos cinzentos entrar pela parte mais larga da caverna e formar
um redemoinho voando a grande velocidade, e depois observou que cada um se afastava para dirigir-se ao seu ninho. Inclinou-se ainda mais para frente para ver uma
parte mais profunda da caverna, protegeu os olhos com as mãos e quase imediatamente sua peruca caiu, dando voltas e voltas até que desapareceu entre as sombras cheias
de aves que se viam muito mais abaixo.
- Maldita seja! - exclamou, pois apesar de ser uma peruca velha, gasta e quase sem cabelo, Killick lhe fizera cachos e branqueara seus lados (a parte superior não
tinha remédio), e, também, sentia-se nú sem ela.
Mas a irritação durou pouco mais que a lenta queda. Sua vã tentativa de pegar a peruca o fez adotar uma posição muito melhor, pois ainda que o sol o atingisse em
cheio na parte posterior da cabeça, agora desprotegida, estava mais cômodo e podia ver uma parte mais profunda da caverna. Estava completamente relaxado, e quando
seus olhos se acostumaram a ver na escuridão pôde distinguir os ninhos, que tinham a forma de xícaras e, colados uns aos outros, formavam longas filas que cobriam
as paredes da caverna desde sessenta pés acima da marca da maré alta até o topo. Os mais brancos e mais bonitos não eram os das filas mais altas, que tinham em cima
um pouco de terra que o vento havia trazido consigo, mas os que ficavam abaixo da fila vinte aproximadamente, em uma parte muito estreita. Esses eram os ninhos que
se vendiam aos chineses a preço de ouro. Cada ninhada tinha duas crias, duas limpíssimas crias, e, como esperava, estariam prontas para voar de um momento para o
outro. Permaneceu ali uma hora depois da outra, sem notar o sol abrasador, observando como os pais das crias se amontoavam, que traziam alimentos e levavam os excrementos.
De repente franziu o cenho. Pôs toda sua atenção em um ninho muito bem iluminado e pouco depois se confirmaram suas suspeitas: o pássaro que regressava ali uma e
outra vez e apoiava os pés na borda tinha todos os dedos dirigidos para frente. Meia hora depois se levantou, pendurou o rifle no ombro, olhou para os pássaros com
desgosto e se afastou dali.
"Não são andorinhas", disse sentindo não só indignação como também náuseas, e se pôs atrás de um arbusto; e logo atrás de vários mais, pois depois de vomitar estava
solto de ventre.
Ainda que Stephen Maturin não tinha mau gênio, seu caráter não era muito alegre, e às vezes contrariedades desse tipo lhe causavam desagrado ou algo pior. Quando
chegou ao acampamento estava pronto para atacar a Killick, mas Killick o conhecia muito bem e, depois de dar uma rápida olhada para sua casaca suja e para sua cabeça
descoberta, e ao ver a expressão ameaçadora de seus claros olhos, limitou-se a dar-lhe um chapéu de palha de aba larga e dizer-lhe:
- O capitão acaba de despertar, senhor.
Stephen pensou: "A indignação que me provocaram os pássaros foi excessiva. Sem dúvida, a verdadeira causa foi um repentino aumento da bílis produzida pela pressão
sobre o ductus choledocus communis que provocava minha postura". Entrou na enfermaria, preparou uma poção, bebeu e, depois de um tempo, sentindo-se um pouco melhor,
foi até a tenda. Ali voltou a dizer-se: "Excessiva". Mas quando Jack o felicitou pela babirussa ("Alegro-me muito porque eu estava cansando dos malditos macacos,
inclusive dos bolos feitos com eles", havia dito), explicou:
- Com relação aos pássaros de cujos ninhos se faz sopa, tenho que dizer-te que não são andorinhas, mas aves diminutas que pertencem a um ramo dos vencelhos orientais.
- Não se incomode com isso, meu amigo. Que importância tem um nome? Enquanto façam esse tipo de ninho de tão bom sabor, dá no mesmo que se chamem avestruzes.
- Eles lhe agradaram quando os comeu na casa de Raffles?
- Achei que eram um prato excelente. Aquela foi uma tarde muito agradável.
- Então talvez poderíamos pegar alguns dentro de alguns dias. Esta é a época apropiada, pois as crias estão a ponto de alçar vôo. Um guarda-marinha magro, como Reade
ou Harper, poderia descer por uma corda até a caverna e pegar meia dúzia de ninhos vazios. Ademais, queria que pegassem um ou dois pássaros para examinar seus dedos.
Mas não lhe perguntei como terminou a partida. Ganhamos?
- Alegro-me em dizer que todos ganhamos. Houve um empate. Eles lograram mais corridas que nós, mas não conseguiram eliminar Fielding nem o contramestre antes que
derrubassem as estacas da meta. Por sorte, Edward é um árbitro neutro, assim que não houve olhares furiosos nem burburinhos de protesto e todos ganhamos.
- Não há dúvida de que todos pareciam muito alegres quando atravessei o acampamento, ainda que Deus sabe o esgotador que é um esporte desse tipo neste calor asfixiante.
Simplesmente por caminhar devagar sob as árvores eu estava empapado de suor, e isso não tem comparação com correr de um lado para o outro atrás de uma endemoninhada
e dura bola debaixo deste calor úmido e sufocante. Meu Deus!
- Sem dúvida, estou seguro de que os marinheiros trabalharão melhor amanhã. E creio que eu também. Pelo aspecto do céu me parece que o vento soprará do leste, e
espero que seja assim. Temos que serrar muita madeira, um trabalho esgotador mesmo quando a brisa leva o pó de serra e permite aos que serram no fundo da embarcação
respirar, mas quando começarmos a pôr as pranchas os tripulantes se animarão muito e poderemos fazer-nos ao mar antes do dia de Santa Fome. Vamos ao estaleiro, mostrarei
o que falta por fazer.
O acampamento, com suas ruas e valetas arrumadas outra vez depois do tufão, tinha uma disposição similar à de um barco de guerra, e Jack, para evitar molestar aos
marinheiros que conversavam sentados diante de suas tendas, no extremo do retângulo, subiu na carreta do canhão de bronze de nove libras que dominava o porto, saltou
para o outro lado e depois ajudou Stephen a saltar. Aquele era um excelente canhão, um dos dois que tanto apreciava e que os marinheiros haviam jogado pela borda
junto com os outros quando tentavam aliviar o peso da fragata para poder desencalhá-la do arrecife. Tinha ficado entre duas rochas e foi o único encontrado pela
brigada que tentou recuperá-los na baixa-mar. Era um excelente canhão, mas menos útil que as duas caronadas leves, pois ainda que dispusessem de muita pólvora, a
única bala de nove libras que tinham era a que estava dentro dele quando o recuperaram.
- Senhor, senhor! - gritaram os dois oficiais que restavam ao capitão Aubrey, subindo a ladeira ofegantes para aproximar-se dele. - Os guardas-marinhas agarraram
uma tartaruga junto ao cabo.
- É uma verdadeira tartaruga, senhor Fielding?
- Bem, senhor, acho que sim, ainda que Richardson achedite que tem um aspecto estranho. Esperamos que o doutor nos diga se é comestível.
Desceram a ladeira até o vale obliquamente dirigindo-se para a direita. Depois rodearam a massa formada pela terra e rochas que haviam deslizado pelo sopé da colina
no apogeu do tufão, uma massa na qual ainda cresciam alegremente algumas árvores e arbustos, mas outros murchavam. Depois atravessaram o leito seco escavado pela
torrente, muito conveniente como estaleiro, e caminharam pela praia quase até o lugar aonde chegou o que restava da fragata. Ali estavam todos os guardas-marinhas,
cujo silêncio contrastava com o estrondo das ondas. Estavam os dois ajudantes do oficial de derrota, o único guarda-marinha graduado (o outro tinha se afogado),
os dois cadetes, o escrevente do capitão e o ajudante do cirurgião. Como os outros oficiais, haviam tirado a elegante roupa dos domingos e agora usavam calças rotas
ou calções desabotoados no joelho, e alguns nem sequer tinham posta uma camisa que cobrisse costas suas bronzeadas. E, certamente, estavam descalços. Formavam um
grupo pobremente vestido e faminto, mas alegre.
- Gostaria de ver minha tartaruga, senhor? - perguntou Reade de uma distância de mais de cem jardas, e sua voz, que ainda não havia mudado, destacou-se entre os
rugidos do mar.
- Sua tartaruga, senhor Reade? - perguntou Jack enquanto se aproximava.
- Sim, senhor. Eu a vi primeiro.
Na presença do capitão, Seymour e Bennett, os altos ajudantes do oficial de derrota, que haviam virado a tartaruga, limitaram-se a olhar um para o outro, mas Reade,
ao vê-los, acrescentou:
- Naturalmente, senhor, os outros ajudaram um pouco.
Todos permaneceram um momento observando como movia inutilmente as patas no ar com muita força.
- Por que a tartaruga lhe parece rara, senhor Richardson? - perguntou Jack outra vez.
- Não sei, senhor - respondeu Richardson -, mas tem algo na boca que não me agrada.
- O doutor tirará nossas dúvidas - disse Jack, elevando a voz para que se ouvisse apesar do estrépito produzido pelo triplo choque das ondas, pois por um lado a
maré baixava e por outro a contramaré, combinada com a corrente, cruzava com ela frente ao cabo de modo que as águas se moviam caoticamente.
- É uma tartaruga verde, sem dúvida - anunciou Stephen também em voz alta, apesar de que lhe doía a cabeça, mas sua voz era muito diferente, era desagradável e mais
aguda. - E muito grande, porque deve pesar uns dois quintais. Mas é um macho e, certamente, tem a cara feia. Em Londres não a aceitariam no mercado nem poderia ser
eleita vereador.
- Mas é comestível, senhor? Pode ser comida? Não é daninha? Não é como o peixe roxo que nos fez jogar fora?
- Ainda que seja possível que esteja um pouco dura, não lhes fará estrago. Mas Deus sabe que não sou infalível, e se têm alguma dúvida talvez seja conveniente que
o senhor Reade comesse um pouco primeiro e o observassem durante várias horas. Em qualquer caso, peço que cortem sua cabeça imediatamente porque detesto ver estes
animais sofrendo. Lembro de um barco onde havia montes destas criaturas amarradas na coberta e com os olhos vermelhos como cerejas porque não as molhavam. Um amigo
e eu íamos de um lado para outro umedecendo-as com uma esponja.
Reade e Harper correram ao acampamento para buscar o machado do carpinteiro. Aubrey e Maturin deram a volta e foram até o estaleiro passeando pela areia endurecida
da praia.
- Uma horrível combinação de marés - disse Jack, assinalando o mar com a cabeça, e depois acrescentou: - Sabe que me faltou pouco para dizer algo engenhoso com referência
às tartarugas machos e fêmeas? Era algo relacionado com o molho, por comparação com o de ganso, já sabe. Mas me calei.
- Talvez fosse melhor assim, meu amigo. Um tenente divertido, é engraçado, é uma boa companhia; um capitão divertido pode sê-lo entre seus iguais; mas um capitão
de navio que faz rir aos oficiais possivelmente perderá parte de sua autoridade como oficial superior. Acaso Nelson contava piadas?
- Nunca o ouvi fazê-lo. Quase sempre estava alegre e sorridente, e uma vez me perguntou: "Importaria-se de me passar o sal, por favor?", em um tom tão amável que
foi melhor que um piada, mas não recordo que contasse piadas explicitamente. Talvez seja melhor que reserve minhas idéias, quando as tenha, para você e para Sophie.
Seguiram caminhando em silêncio. Stephen lamentava ter falado com rudeza e sentia ainda mais remorso devido à resposta de Jack. Viu passar por cima deles um inconfundível
pelicano das Filipinas, mas não o mostrou porque temia resultar mais chato falando das aves do que Jack dos jogos de palavras e as agudezas, e porque lhe parecia
que sua cabeça ia estourar.
- Mas diga-me, o que queria dizer com o dia de Santa Fome? - perguntou por fim. - Temos uma babirussa de cento e quarenta libras e uma tartaruga de dois quintais.
- Sim, e é estupendo. Disporemos de uma libra a mais de carne por pessoa durante dois dias, e isso poderia ser um banquete se tivéssemos bolachas ou ervilhas secas
para acompanhá-la. Mas não há, e acho que em boa medida a culpa é minha por não ter tirado mais bolachas, farinha, sal e carne salgada de vaca e de porco enquanto
havia tempo.
- Querido Jack, não podia predizer o tufão, e os botes não cessaram de ir de um lado para o outro.
- Sim, mas tiramos primeiro as coisas do enviado e seus acompanhantes. Killick, que Deus o perdoe, carregou a prataria no esquife em vez das ervilhas secas, como
devia. E o primeiro é o primeiro. Agora, como você mesmo disse, é difícil encontrar javalis e mesmo macacos. O caso é que quase não restam cocos e daquilo que pescamos
quase nada é comestível. Mas deixando isso de lado, é assombroso que um necessite de tão pouca comida. Um pode seguir ativo e trabalhar duro comendo somente botas
velhas, cinturões de pele e o que menos poderia um pensar se tem ânimo. Quando falei do dia de Santa Fome me referia ao dia em que tenha que anunciar que não há
mais tabaco nem grogue. Não pode imaginar o apego que têm a essas duas coisas. Esse dia chegará dentro de duas semanas.
- Teme que haja um motim?
- Um motim na forma de rebelião violenta contra a autoridade? Não. Contudo, espero burburinhos de descontentamento e amostras de hostilidade, e não há nada que faça
o trabalho mais lento nem menos produtivo que a hostilidade e as brigas que implica. É horrível ter que mandar em uma tripulação com metade dos membros ressentidos
e mal-humorados. Ademais, desde que se perde um barco do rei alguns rapidinhos dizem aos demais que, já que os oficiais foram designados para um determinado barco,
não têm mais autoridade sobre a tripulação quando o barco já não existe. Também dizem que os marinheiros não recebem mais pagamento a partir do dia do naufrágio,
assim que não têm a obrigação de trabalhar nem de obedecer nem estão sujeitos às leis do Código Naval.
- E isso é verdade?
- Oh, não! Isso era assim faz muito tempo, mas mudou depois da perda do Wager no tempo de Anson. Contudo, muitos marinheiros acreditam que voltará a ser como antes
porque a Armada tem muito má reputação no que se refere aos pagamentos e pensões.
Nesse ponto o nível da praia subia pela presença de um banco de dejetos arrastados montanha abaixo pela chuva torrencial. Ambos subiram nele e puderam ver abaixo,
no estaleiro natural, a armação da escuna, tão bem feita como era desejável.
- Ali está! - exclamou Jack. - Não lhe parece surpreendente?
- Muito - respondeu Stephen, fechando os olhos.
- Supus que acharia - disse Jack, assentindo com a cabeça e sorrindo. - Passaram dois ou três dias desde que a viu, e nesse tempo não só pudemos pôr-lhe as pranchas
que formam a parte inferior da popa como também os yugos{1} e as vagaras{2}. Só falta colocar as gambotas{3} para começar a pôr-lhe as pranchas.
- As gambotas?
- Sim, deixa-me explicar. Pode ver o codaste, naturalmente. Pois as pranchas do fundo se elevam por ambos os lados e em cima deles vão as gambotas...
Jack Aubrey falava com entusiasmo, pois, assim como o senhor Hadley, o carpinteiro, estava muito orgulhoso da elegante popa; contudo, seu entusiasmo o fez se estender
e dar muitos detalhes sobre os alefrices{4} e os chapuces{5}. Stephen teve que interrompê-lo:
- Desculpe-me, Jack - disse, virando a cabeça ao sentir um forte enjôo.
Poucas coisas podiam ser mais desconcertantes, já que o doutor Maturin, que não era somente um simples cirurgião como um médico, sabia perfeitamente como manter
a boa saúde, tanto a alheia como a sua própia. Ademais, as doenças não o faziam de presa, pois permanecera imune sob o frio Antártico e o calor do Equador, havia
cuidado de toda a tripulação de um barco durante uma epidemia de tifo sem se contagiar, e tratara a febre amarela, a peste bubônica e a varíola com tão pouco temor
como o resfriado comum. Contudo, agora estava pálido como um ovo de avestruz.
Jack ajudou Stephen a subir a colina muito devagar e este disse:
- Só é um enjôo passageiro. - E quando se aproximavam do parapeito acrescentou: - Acho que vou me sentar aqui para recuperar o fôlego. - Sentou-se em um canto do
acampamento onde o condestável e um de seus ajudantes estavam misturando a pólvora que formava uma torre em um pedaço de lona. - E aí, senhor White, como vai isso?
- Bem, senhor - respondeu o senhor White com sua voz estrondosa -, saquei a pólvora dos barris estragados, como lhe disse, e misturei e pulverizei os cristais. Mas
acha, senhor, que secará com este espantoso ar úmido? Não, senhor, não secará nem que permaneça embaixo do sol e lhe demos voltas.
- Acho que amanhã soprará o vento do leste, condestável - anunciou Jack com tanta calma que o condestável o olhou com os olhos descomedidamente abertos -, assim
que não terá problemas.
Então pegou Stephen pelo cotovelo, levou-lhe até a tenda e mandou um grumete chamar Macmillan, o ajudante de cirurgião.
- O doutor estava muito pálido - disse o condestável, ainda com os olhos descomedidamente abertos.
Ainda estava mais pálido quando Macmillan chegou. O jovem sentia grande afeto por seu chefe, porém, ainda que tenha feito uma viagem tão longa em sua companhia,
ainda o temia e agora estava totalmente desconcertado. Depois do reconhecimento de rotina (mandar mostrar a língua, tomar o pulso e outras coisas), em tom vacilante,
disse:
- Com sua permissão, sugiro que tome vinte gotas de tintura de ópio, senhor.
- Não, senhor! - gritou Stephen com surpreendente veemência. Durante anos fui viciado nessa droga, da qual tomei doses tão monstruosas que não suportaria tomar outra
vez, e sofrera consideravelmente quando a havia deixado. - Mas como o senhor terá percebido - disse quando passou a dor provocada por seu grito -, tenho febre alta,
assim que, indubtavelmente, as coisas mais recomendáveis são quina, ferro, um enema de uma solução salina, repouso e, sobretudo, silêncio. Ainda que, como o senhor
sabe muito bem, é impossível que haja silêncio absoluto em um acampamento cheio de marinheiros, com os tampões de cera se pode conseguir algo muito semelhante. Estão
detrás do bálsamo de Gilead.
Quando Macmillan regressou com todas essas coisas, Stephen lhe explicou:
- Certamente não produzirão efeito imediato, e é possível que entretanto tenha enjôos mais fortes. Notei que a febre subiu com rapidez e já tenho certa tendência
a ter fantasias, idéias desconexas e alucinações; quer dizer, os primeiros sinais do delírio. Tenha a amabilidade de dar-me três folhas de coca da caixinha que está
no bolso de meus calções e a sentar-me o mais comodamente possível nessa vela dobrada.
Depois de ter mastigado as folhas durante um tempo, prosseguiu:
- Um dos motivos de sofrimento dos médicos é que, por um lado, sabemos quantas coisas horríveis podem ocorrer ao corpo humano e, por outro, sabemos muito bem que
realmente podemos fazer muito pouco para combatê-las. Por isso, não podemos ter o consolo da fé. Muitas vezes ouvi que os pacientes com dores agudas, depois de tomar
uma poção de alguma substância nauseabunda mas neutra ou um comprimido de farinha açucarado, dizem que sentem um grande alívio. Isto não deve nem pode ocorrer conosco.
Os dois se puseram a recordar, e vieram a suas mentes casos de indivíduos a quem isso havia ocorrido, inclusive a eles mesmos, e pouco depois Stephen comentou:
- Mas lhe direi outra causa de sofrimento inegável. Em circunstâncias normais, os médicos, os cirurgiões e os boticários têm que responder a uma grande demanda de
compaixão e é possível que vejam meia dúzia de casos dignos de lástima em um só dia. Os que não são santos correm o risco de ficar sem fundos e ir à bancarrota,
quer dizer, ficar em um estado em que perdem grande parte de sua humanidade. Os que trabalham por sua conta têm que dizer palavras mais ou menos apropiadas para
manter sua clientela, seu meio de vida, e, como sem dúvida terá observado, pôr simplesmente uma expressão compassiva produz a impressão de que se sente ao menos
um pouco de lástima. Mas nossos pacientes não podem nos deixar, não têm alternativa. Não estamos obrigados a pôr uma expressão compassiva porque nossa falta de humanidade
não afeta o nosso meio de vida. Temos um monopólio e acredito que com o tempo muitos de nós pagaremos muito caro por isso. Provavelmente o senhor terá visto a muitos
bárbaros insensíveis, preguiçosos, presunçosos, egoístas e muitos práticos atendendo a pacientes que não têm escolha, e se permanece na Armada, verá a muitos mais.
Mas o monopólio ainda não convertera Macmillan em um prático bárbaro, e ele e Ahmed passaram toda a calorosa e úmida noite sentados junto a Stephen, abanando-lhe,
dando-lhe água fresca do poço profundo e mexendo sua rede com um rítmico movimento. Antes do amanhecer o prometido vento do leste começou a soprar e a refrescar
o ambiente, e ambos viram com satisfação como Stephen caía em um profundo e tranqüilo sono.
- Acho que está melhorando, senhor - disse Macmillan quando Jack lhe fez um sinal para que saísse da tenda. - A febre baixou tão rapidamente como subiu, acompanhada
de abundante suor, e se permanecer deitado hoje e tomar caldo de vez em quando, amanhã poderá levantar-se.
Stephen se equivocou ao pensar que em um acampamento cheio de marinheiros não podia haver silêncio absoluto. Quando as estrelas estavam ainda no céu, saíram todos
na ponta dos pés do acampamento e levaram seu frugal desjejum para comê-lo no estaleiro, deixando para trás somente alguns de seus companheiros que não faziam ruído
ao realizar seu trabalho. Alguns eram os cordoeiros, com cabos velhos, fio e uma roca; outro era o condestável, disposto a espalhar a pólvora assim que o sol lhe
desse esperanças de que a secaria; outro, o veleiro, que começara a fazer as bujarronas da escuna; e outro, Killick, que tinha a intenção de cerzir toda a roupa
do doutor (Ahmed não se dava bem com a costura) e realizar a digna tarefa de polir a prata do capitão.
Portanto, havia um inusual silêncio quando Stephen, pouco antes do meio-dia, saiu da tenda. Macmillan, como correspondia nesse momento, tinha ido para a cozinha
para ver se o caldo já estava preparado; Ahmed saíra muito antes em busca de cocos verdes; e Stephen, mesmo sentindo-se muito débil, teve que ir à latrina.
- Vejo que está melhor, senhor - disse o condestável com voz rouca.
- Muito melhor, obrigado, senhor White - respondeu Stephen. - E o senhor deve de estar contente com este forte vento.
Em tom satisfeito, o condestável explicou que talvez poderia meter a pólvora de novo no barril dentro de um par de dias e depois, muito mais alto e com muito mais
convicção, acrescentou:
- Mas não deveria ter se levantado nem caminhar por aí em camisa de dormir quando sopra o vento do leste. Se tivesse me avisado, teria mandado o preguiçoso do Killick
levar-lhe esse utensílio.
O condestável, como o própio doutor Maturin, era um oficial assimilado, e ainda que fosse de categoria inferior aos oficiais, tinha direito de expressar sua opinião.
Os veleiros, em troca, não; mas quando Stephen passou junto a eles e atravessou o espaço onde faziam os cabos, lançaram-lhe olhares tão cheios de sensuras, movendo
a cabeça de um lado para o outro, que se alegrou de regressar à tenda. Macmillan levou-lhe uma tijela de caldo de babirussa engrossado com bolachas moidas (pensava
que a sopa de tartaruga tinha demasiada gordura), felicitou-lhe por sua recuperação e, em um tom quase de censura, informou-lhe de que em um canto havia um pequeno
móvel com um urinol dentro. Acrescentou que Ahmed estava para chegar porque só tinha ido até a ponta oeste, que Killick se encontrava agora a uma distância desde
a qual podia ouvir-lhe e que queria dormir um pouco. Depois, respeitosamente, sugeriu que o doutor fizesse o mesmo.
E foi isso que o doutor fez, apesar de que era meio-dia e se ouviam os distantes risos dos marinheiros no estaleiro, onde giravam a babirussa sobre o fogo feito
com troncos flutuantes. Não despertou até que ouviu vozes malaias que não pôde reconhecer e a voz de Killick, que dizia:
- Ah, ah, ah, companheiro! Diga-lhes que há muitas mais no outro baú e que poderiam ter pego o dobro se houvesse tido espaço.
Ahmed traduziu isto e acrescentou que o capitão era exageradamente rico e importante, como um rajá em seu país. Depois, em resposta a uma pergunta feita em voz aguda
como a de um eunuco ou um menino, explicou o que o condestável fazia com a pólvora e por que. Também se ouviam vozes inglesas, mas eram muito baixas pois, como muitos
haviam dito a Ahmed repetidas vezes:
- Está muito melhor, companheiro, mas agora dorme, assim que há que falar baixo.
Mas quem falava com voz aguda não parecia disposta a baixar o tom. Fez insistentes perguntas a Ahmed sobre a pólvora: "É toda?", "está pronta?", "quando estará pronta?",
"será boa?". Finalmente Stephen se levantou, pôs a camisa e os calções e saiu da tenda. Então pôde identificar a propietária da voz aguda: uma mulher jovem, bastante
jovem, e delgada. Por seu rosto bonito e expressivo e sua pele fina deduziu que era uma dyak. Usava uma saia comprida que só lhe permitia caminhar com um movimento
oscilante, como o que faziam as mulheres chinesas com os pés vendados, e uma jaqueta curta que não ocultava nem tinha o propósito de ocultar completamente seus peitos
e que, para deleite dos marinheiros, amiúde o forte e caprichoso vento o abria. Tinha uma adaga com empunhadura de marfim metida na cinta e os incisivos laterais
rebaixados de modo que eram pontiagudos, pelo que parecia ter dois pares de caninos. Stephen pensou que talvez isso provocasse sua expressão malévola, que, contudo,
não intimidou aos poucos marinheiros e infantes da marinha que estavam no acampamento. Todos se agruparam em torno da jovem, olhando-a como tontos, e o condestável,
ainda que não se separou do monte de pólvora, que agora estava muito mais solta e quase pronta, mostrou-se desejoso de satisfazer sua curiosidade.
Stephen cumprimentou aos recém chegados, a jovem e o homem grisalho que a acompanhava, que responderam formalmente, como costumava-se fazer em malaio, mas com um
sotaque e algumas variações que nunca tinha ouvido. Ahmed deu um passo adiante e lhe contou que ao chegar na ponta oeste na inútil busca por cocos os vira desembarcando
de um pequeno paraú com cinco companheiros. Acrescentou que eles lhe perguntaram que fazia e que quando explicou a situação lhe deram cocos (apontou uma pequena
rede). Como a maré, que estava baixando, e a corrente agitavam tanto o mar que o paraú não podia bordejar a costa nem mesmo com o vento favorável, trouxera essas
duas pessoas pelo caminho interior.
- Como ela pôde caminhar com essa saia? - perguntou Stephen em inglês, desviando-se por um momento do tema.
- Ela a tirou - respondeu Ahmed, ruborizando.
- Admiro sua adaga - disse Stephen para a jovem. - Nunca existiu uma empunhadura tão apropiada para uma mão tão pequena e delicada.
- Dê-me seu honorável antebraço - respondeu a jovem com seu assombroso sorriso. E sacou a adaga, que tinha a lâmina reta de estilo damasquino, e lhe barbeou uma
meia face tão bem como o teria feito um barbeiro.
- Diga-lhe que barbeie a mim - disse o ajudante do condestável, dando um passo adiante e soltando a lona.
Então a lona, movida pelo vento leste, envolveu seu companheiro, e a pólvora se espalhou para bombordo formando uma volátil e irrecuperável nuvem de poeira.
- Olhe o que me fez fazer, Tom Evans, maldito estúpido! - gritou o senhor White.
- Ahmed - disse Stephen -, sirva o café na tenda, por favor. Traga uma cafeteira de prata, quatro xícaras e uma almofada para a jovem. Preserved Killick, desça correndo
tão rapido como possa, apresente meus respeitos ao capitão e diga-lhe que aqui há dois dyaks que chegaram pelo mar.
- E deixar a prataria? - perguntou Killick, estendendo o braço por cima do desordenado conjunto de objetos que brilhavam ao sol. - Oh, senhor, permita que vá o jovem
Aquiles! Pode correr mais rapidamente que qualquer membro da Armada.
- Muito bem. Por favor, vá o senhor, Aquiles, e não se esqueça de apresentar meus respeitos.
Depois, quando Aquiles saltou o parapeito e começou a descer a ladeira correndo como uma lebre, perguntou:
- Não confia em seus companheiros, Killick?
- Não, senhor, nem nestes estrangeiros tampouco. Ainda que não me agrada dizer nada contra uma dama, quando chegaram e cumprimentaram em sua língua seu olhar parecia
cobiçoso. Deus sabe que olharam as sopeiras com os olhos descomedidamente abertos.
Ainda olhavam cobiçosamente quando passaram junto de Killick, mas depois de trocarem umas palavras em um idioma que não era o malaio, desviaram o olhar e entraram
na barraca.
O homem grisalho era, obviamente, de importância inferior à mulher. Sentou-se no solo a certa distância dela e, ainda que se expressasse com elegância, de acordo
com as regras malaias, não o fazia com tanta como ela nem falava com tanta fluidez. Agora ela conversava animadamente e já não fazia rudes perguntas diretas, senão
observações que lhe teriam permitido obter informação se Stephen estivesse disposto a dá-las. Porém, certamente, não o estava. Depois de ter atuado com discrição
durante tão longo tempo, quase não era capaz de dizer as horas sem esforço. Mesmo assim, como mostrar-se resistente a falar era tão pouco discreto como murmurar,
contou-lhe coisas que ela já devia de saber e se estendeu tanto que ainda estava falando das vantagens do clima quente quando Jack chegou, com a cara mais vermelha
que o habitual, depois de ter subido a ladeira atrás de Aquiles.
Stephen fez as apresentações com a formalidade apropiada. Killick cobriu discretamente o pequeno móvel que continha o urinol com uma bandeira de saída e Jack sentou-se
em cima. Então chegou o café e Stephen anunciou:
- O capitão não entende o malaio, assim que me desculparão se falo inglês com ele.
- Nada nos proporcionaria mais prazer que escutar a língua inglesa - respondeu a jovem. - Disseram-me que se parece com a dos pássaros.
Stephen fez uma inclinação de cabeça e disse:
- Em primeiro lugar, Jack, peço que tente não lançar olhares notoriamente lascivos para a jovem, pois isso não só é descortês como põe sua moral em suspeita. Em
segundo lugar, diga-me se devo perguntar a estas pessoas se estão dispostas a levar uma mensagem a Batavia em troca de uma soma. E se for assim, diga-me qual deve
ser a mensagem.
- Eu a olhei com respeito e admiração. Olha quem fala! Mas para evitar suspeitas olharei para outra parte. - Tomou um trago de café para recobrar a serenidade e
depois continuou: - Sim, por favor, pergunte-lhes se iriam a Batavia em representação nossa. Com este vento forte e tão estável não tardarão mais de dois dias. E
quanto à mensagem, deixe-me pensar enquanto chega a um acordo sobre o primeiro ponto importante. Stephen fez a pergunta e escutou atentamente a longa e meditada
resposta enquanto pensava que estava diante da pessoa mais inteligente e perspicaz que conhecera em Pulo Prabang, com excessão de Wan Da, cuja mãe era dyak. Quando
ela terminou, Stephen se voltou para Jack e disse:
- Em poucas palavras, tudo depende da soma. Seu tio, um homem muito importante em Pontianak e capitão do paraú, tem muito interesse em estar em seu país para o Festival
das Caveiras. Seria um sacrifício tanto para ele como para a tripulação e para a dama perderem o Festival das Caveiras. Com vento favorável, tardariam dois dias
em chegar a Batavia.
Reiniciaram a negociação e fizeram comentários sobre as festas nos diferentes países e, em particular, sobre o Festival das Caveiras. Depois falaram das compensações
e das hipotéticas somas e as formas de pagamento. E quando voltaram a servir-lhes café, Stephen anunciou:
- Jack, acredito que chegaremos a um acordo muito cedo. Talvez poderíamos poupar tempo se fizesse uma lista das coisas que quer que o senhor Raffles lhe envie, pois
imagino que não tem a intenção de abandonar a escuna, que já está quase pronta para navegar.
- Deus me livre! - exclamou Jack. - Isso seria opor-se à Providência. Eu me limitarei a anotar algumas coisas essenciais que poderá mandar-me em qualquer barco pesqueiro
que esteja disponível, sem necessidade de esperar por um dos barcos que fazem o comércio com as Índias nem outro desse tipo.
Então começou a escrever: "1 quintal de tabaco, 20 galões de rum (ou aguardente de palma, se não encontrar rum...)" E quando estava escrevendo: "100 balas de 12
libras e 50 de 9 libras; 2 meios barris de pólvora vermelha de grão grosso e um de grão fino...", Stephen o interrompeu:
- Combinamos a quantidade de vinte johannes.
- Vinte johannes?
- É muito, concordo, mas é o valor da menor letra que Shao Yen me deu e não quero tentar à jovem... - Nesse momento viu que o capitão Aubrey começava a sorrir e
que um brilho premonitório aparecia em seus olhos e o atalhou: - Jack, peço que não tente ser gracioso neste momento. A dama é delicada como o âmbar e é muito inteligente;
não devemos ofendê-la. Como dizia, não quero tentá-la dando-lhe moedas, pois Satanás poderia induzi-la a fugir com o dinheiro. Ela conhece perfeitamente bem seu
selo e sabe que não receberá os johannes até que entregue a letra a Shao Yen com minha firma. Assim que, se já terminou a lista, dá-me para pôr as duas coisas juntas.
A dama, cujo nome é Kesegaran... Não faça comentários, por favor, e limite-se a olhar para baixo humildemente. A dama diz que gostaria de ver a escuna, e como o
vento não é favorável para navegar no paraú de seu tio mas sim em nosso cúter, poderíamos ganhar uma hora ou duas levando-a até a ponta sul. Ademais, a cortesia
não exige menos.
Ficaram olhando como o cúter zarpava, avançava bastante para o alto mar, virava e deslizava pelas agitadas águas azuis salpicadas de branco em direção à ponta sul.
Todos os marinheiros permaneciam sentados conforme o estabelecido na Armada; as únicas incongruências eram a falta de uniforme de Seymour e o modo com que Kesegaran,
segurando-se a um cabo da popa, inclinou-se para o lado de barlavento e ficou suspensa sobre o mar como se essa fosse a forma de navegar mais natural do mundo.
- Nunca tinha visto uma mulher tão interessada na fabricação de barcos - disse Jack.
- Nem nas ferramentas de quem os constroem - replicou Stephen. - Tanto ela como seu acompanhante quase expressaram seus desejos aos gritos. Ainda que estou seguro
de que estavam interessados em sua prataria, isso foi um desejo passageiro comparado com a cobiça das serras de cabo duplo, dos enxós, dos gatos e muitas outras
ferramentas brilhantes do senhor Hadley cujo nome desconheço.
- Em alguns lugares têm que unir as pranchas com uma costura - explicou Jack.
Mas Stephen, seguindo o fio de seu pensamento, disse:
- Quando falei de uma expressão malévola não me referia a malévola em sentido moral. Não devia ter usado essa palavra. Queria dizer feroz, isto é, potencialmente
feroz, de alguém com quem não se deve brincar.
- Não acredito que nenhum homem que valorize um pouco suas... quer dizer, que não queira terminar seus dias como um eunuco, seja capaz de brincar com Kesegaran.
- Já viu um arminho alguma vez, meu amigo? - perguntou Stephen depois de alguns momentos.
Jack, dando um suspiro, descartou um jogo de palavras com a palavra "arminho" e se limitou a responder que não, mas que acreditava que se parecia com a marta ainda
que de menor tamanho.
- Sim - respondeu Stephen. - A marta tem uma forma muito bonita, é uma criatura realmente bela, mas quando ataca ou se defende o faz com grande ferocidade. Esse
é o sentido que lhe dei impropriamente à palavra "malévola".
Houve uma pausa e Jack disse:
- Suponho que chegarão a Batavia na quarta-feira pela tarde, mas acredita que eles tardarão muito em encontrar ao banqueiro e ele em encontrar a Raffles?
- Meu amigo, sei tanto como você sobre suas festas e seu estado de saúde. Mas Shao Yen mantém uma estreita relação com o governador e poderia fazer-lhe chegar sua
mensagem em cinco minutos, se se encontrar ali. E como o governador nos apoia totalmente, em outros cinco minutos poderia passar a mão em qualquer barco, bote ou
lancha. Como já viu, Batavia, por seus caminhos, é como a esquina do Orador de Hyde Park em versão marítima.
- Então, no melhor dos casos, sob a condição de que escolha um barco que navegue bem de bolina, o que é provável porque nasceu no mar, poderemos ver-lhes de novo
no domingo. Cânhamo de Manila novo, pregos de seis polegadas novos, potes de tinta! E não esqueçamos as coisas essenciais como pólvora, balas, rum e tabaco. Viva
o domingo!
- Que viva o domingo! - exclamou Stephen, e começou a subir devagar a ladeira.
Mais tarde, enquanto se balançava na maca e tratava de encontrar no fundo de sua mente o motivo de sua enorme insatisfação, repetiu:
- Que viva o domingo!
Por sua profissão, era muito desconfiado e reconhecia que amiúde exagerava, sobretudo quando não se achava bem. Perguntava-se por que Kesegaran pedira a Ahmed que
a levasse ao acampamento pelo caminho interior, um caminho acidentado, em vez de pela praia. Era evidente que ela conhecia muito bem a ilha, ainda que tenha dito
de passagem, e sem dúvida com razão, que não era muito frequentada devido às perigosas correntes. Entrar pelo caminho interior era como ter visto o acampamento indefenso,
e o tonto de Ahmed havia feito ainda mais evidente sua indefensibilidade ao contar tudo sobre a pólvora. Tanto o encontro casual como as circunstâncias em que se
havia produzido não podiam ter sido mais desafortunados. Porém, por outra parte, ela havia visto no estaleiro mais de uma centena de homens fortes, um grupo que
não podia deixar de se levar em conta. E o fato de que seus incisivos laterais estivessem afiados (sem dúvida, um costume tribal), não negava precisamente a malevolência.
CAPÍTULO 2
- Outra desgraça na vida é ter um contubernal que ronca como dez - disse Stephen na escuridão da madrugada.
- Não estava roncando - replicou Jack. - estava muito acordado. Que significa contubernal?
- Você é um contubernal.
- E você é outro. estava muito acordado pensando no domingo. Se as provisões que solicitamos a Raffles chegarem, celebraremos uma cerimônia religiosa para agradecer
a Deus, almoçaremos uma ração inteira de pudim de passas e passaremos o restante do dia como um dia festivo. Então na segunda-feira nos poremos a...
- Que foi esse ruído? Queira o céu que não tenha sido um trovão.
- Só eram Lascas e o contramestre tratando de escapulir sem fazer ruído. Eles e seus homens vão começar o trabalho cedo e preparar a panela com o breu, e Joe Gower
levará o arpão com a esperança de pescar uma dessas saborosas arraias que permanecem nas águas pouco profundas durante a noite. Dentro de pouco começará a sentir
o cheiro de breu, se prestar atenção.
Deram-se o luxo de ficar ali, relaxados, durante vários minutos. Mas não foi o odor de breu o que fez Jack descer da maca de um salto. No estaleiro se ouviram gritos
confusos, golpes e berros de dor que cessaram de repente.
Ainda estava escuro quando chegou ao parapeito, mas abaixo e no mar se moviam algumas luzes. Pareceu ter visto muito perto da costa a silhueta de uma grande embarcação
iluminada pelas chamas que estavam debaixo da panela, mas antes de poder assegurar-se disso, os primeiros ajudantes do carpinteiro subiram correndo a ladeira.
- O que aconteceu, Jennings? - perguntou.
- Mataram Hadley, senhor, e também a Joe Gower. Alguns homens negros estão roubando nossas ferramentas.
- Chamem todos aos seus postos! - gritou Jack.
Quando o tambor começou a soar, vários marinheiros mais subiram a ladeira, e os últimos apoiavam o contramestre, que estava sangrando.
Apareceram as primeiras luzes a leste e chegou a alvorada. Logo assomou a vermelha auréola do sol e imediatamente depois chegou a brilhante luz do dia. O maior paraú
de dois cascos que Jack já vira em sua vida estava situado a poucas jardas da entrada do estaleiro. Como estava tão perto e tinha maré baixa, numerosos tripulantes,
formando muitas filas, levavam ferramentas, cabos, velas e objetos de metal para o barco caminhando pela água, enquanto outros ainda estavam ao redor de seus amigos
ou seus inimigos mortos.
- Posso abrir fogo, senhor? - perguntou o senhor Welby quando os infantes da marinha que estavam sob seu comando se alinharam atrás do parapeito.
- A esta distância e com pólvora tão pouco confiável? Não. Quantas cargas têm seus homens?
- A maioria tem duas, senhor, e em condições bastante boas.
Jack assentiu com a cabeça.
- Senhor Reade! - gritou. - Dê-me a luneta, por favor, e diga ao condestável que venha.
Com a luneta pôde ver a costa exageradamente perto. Os homens estavam cortando cuidadosamente a cabeça do carpinteiro. Gower e outro homem que não pôde identificar
já haviam perdido as suas. havia dois malaios ou dyaks mortos, e nesse momento observou com surpresa que uma era Kesegaran. Era perfeitamente reconhecível apesar
de que agora usava calças chinesas e estava coberta de feridas. Tinha a cara voltada para o céu e a mesma expressão feroz.
Jennings ainda estava de seu lado e falava muito devido à impressão recebida.
- Foi Joe Gower que o fez, senhor - disse. - O senhor White tentou evitar que ela pegasse seu machado grande e ela lhe deu um golpe na perna e depois, quando ele
estava no solo, cortou sua cabeça com a destreza de um lenhador enquanto ele gritava como um porco. Então Joe lhe deu seu merecido com o arpão. Foi uma reação natural,
pois é arpoador e ajudante do carpinteiro.
- Senhor! - gritou o condestável.
- Senhor White, mande sacar as caronadas e carregá-las de novo com metralha. Que acha das cargas?
- Não queria ter que responder sobre a caronada dianteira, senhor, mas o canhão de nove libras e a caronada posterior cumprirão com seu dever.
- Pelo menos troque o feltro velho por um pano seco e misture o conteúdo com um pouco de cevo, e deixe que se espalhe. Essa gente estará ocupada lá embaixo durante
um bom tempo.
Então voltou-se para o imediato e perguntou:
- Senhor Fielding, já as lanças e os sabres já foram distribuidos, não é?
- Oh, sim, senhor!
- Então mande os homens desjejuarem alternando-se em dois grupos e busque todos os objetos de onde possa tirar pólvora: frascos, armas defeituosas, foguetes, pistolas
que tenhamos passado por alto... Ah, doutor, está aí! Suponho que já sabe o que ocorre.
- Tenho uma ligeira idéia. Quer que eu desça para tentar negociar com eles a paz?
- Sabia que Kesegaran encontrava-se lá e está morta?
- Não - respondeu Stephen com semblante grave.
- Pegue minha luneta. Ainda não a levaram para o paraú. Pelo modo como agem, não acredito que seja possível acordar uma trégua, e lhe matariam de imediato. Em um
enfrentamento como este, um bando tem que derrotar o outro.
- Creio que tem razão.
Killick pôs uma bandeja sobre o parapeito e eles se sentaram um de cada lado e observaram o estaleiro e os atarefados dyaks.
- Como está o contramestre? - perguntou Jack, baixando a xícara na bandeja.
- Nós o costuramos - respondeu Stephen -, e a menos que contraia uma infecção, ele se salvará. Mas nunca poderá voltar a dançar. Uma das lesões lhe cortou um tendão
do joelho.
- O pobre gostava da dança típica dos marinheiros e da dança irlandesa. Já notou que estão pondo casacas esbranquiçadas?
- Os guardas dyaks de Prabang as usavam. Wan Da me disse que podiam rechaçar balas porque são forradas com kapok.
Seguiram observando em silêncio enquanto tomaram duas cafeteiras. A maior parte do saque havia cessado e agora o estaleiro estava rodeado de lanças com as pontas
brilhando ao sol. Ao terminar de beber uma xícara, o capitão Aubrey perguntou:
- Senhor Welby, que lhe parece a situação?
- Acredito que pensam em atacar, senhor, e de um modo inteligente. Estive observando ao que os dirige, esse velho com um lenço verde na cabeça. Já faz meia hora
que está enviando pequenos grupos para as árvores que se encontram a nossa esquerda, e dos que foram somente alguns poucos regressaram gritando e agitando galhos
no ar para serem vistos. Enviou a muitos mais para se colocarem atrás do banco de areia situado a leste do estaleiro, onde não poderemos ver-lhes porque essa parte
fica oculta pelo banco. Acho que o plano consiste em mandar um grande grupo subir a ladeira para nos atacar diretamente, entabular combate no parapeito, matar a
todos os homens que possam ali. Suponho que depois retrocederão devagar sem deixar de lutar e finalmente se voltarão e passarão a correr para que abandonemos nossos
postos e os persigamos. Então o grupo que está no bosque nos atacará por um flanco, os homens da parte oculta pelo banco começarão a subir a ladeira e, entre eles
e os primeiros atacantes, voltarão de novo, nos farão em pedaços. Além de tudo, são mais de trezentos e nós em torno da metade.
- Acho que já esteve em situações como esta, senhor Welby - disse Jack olhando atentamente as árvores que ficavam à esquerda, onde podia-se ver bem o brilho das
armas.
- Já vi muitas coisas durante meus longos anos de serviço, senhor - respondeu o senhor Welby.
Enquanto falava, um canhão giratório e um grande mosquete apoiado em uma carreta dispararam desde o paraú. A bala de canhão, de meia libra, fez saltar terra por
cima do parapeito, e a bala de mosquete, provavelmente uma pedra redonda, passou por cima de suas cabeças produzindo um assobio. Essa era aparentemente toda a artilharia
que os dyaks possuíam (não se viam outros mosquetes) e imediatamente depois da descarga, os homens com coletes brancos e lanças começaram a formar filas.
Depois de falar um momento em voz baixa com Jack, Welby disse:
- Infantes da marinha, para cada disparo, um homem. Disparem com discrição, mas ninguém deve fazer fogo se não estiver seguro de que vai matar. Ninguém deve abandonar
seu posto. Ninguém deve carregar de novo a arma, e sim calar a baioneta. Sargento, repita as ordens.
O sargento as repetiu e acrescentou:
- Depois de ter limpado a chave e o canhão da arma se o tempo o permite.
Então se ouviram uivos e o forte som de um tambor, e os homens armados com lanças, separados em grupos, começaram a subir a ladeira correndo. Quando estavam a cem
jardas, alguém disparou nervosamente um mosquete.
- Sargento, anote o nome desse homem!
Aproximaram-se mais e puderam ouvir seu ofegar; percorreram o último vão e se ouviram vinte ou trinta disparos de mosquete. Depois, todos agrupados e dando gritos,
chegaram ao parapeito e nesse momento se ouviram chocar as lanças, as piques, os sabres e as baionetas entre nuvens de poeira. Pouco depois um de seus chefes deu
um terrível grito e todos retrocederam, primeiro lentamente e sem deixar de olhar para o acampamento, depois mais rápido e de costas para ele e finalmente correndo.
Uma dúzia de furiosos marinheiros começaram a correr atrás deles uivando como cachorros de presa, mas Jack, Fielding e Richardson sabiam seus nomes e os chamaram
para que regressassem aos seus postos qualificando-lhes de tontos e insensatos, e lerdos como mulheres.
Os dyaks pararam na metade do caminho, agruparam-se, viraram para o acampamento e lançaram desafios e fizeram zombarias.
- A caronada dianteira! - gritou Jack. - Disparem nos morenos!
A pederneira não acendeu a carga da primeira vez que puxaram o rabicho, mas sim da segunda, e a caronada lançou a carga horizontalmente, espalhando metralha entre
os dyaks, que riam, gritavam e davam saltos. Ademais, alguns cumprimentavam os ingleses movendo o pênis e outros lhes mostravam as nádegas. Nesse momento saíram
correndo de entre as árvores os reforços, que iam se unir a eles para atacar com dureza.
- A caronada posterior! - gritou Jack.
Seu grito foi seguido imediatamente por um grande estrépito acompanhado de uma nuvem de fumaça com lampejos alaranjados. Enquanto se ouvia o eco do disparo, a nuvem
se deslocou para sotavento descobrindo a horrível fileira que a metralha havia deixado. Todos correram para o estaleiro, e ainda que alguns voltaram, meio agachados,
para ajudar seus amigos feridos a descer, deixaram para trás uma vintena de mortos.
Depois seguiu um período sem nenhuma ação que durou até a tarde, mas logo ficou claro que nem os dyaks nem seus amigos malaios (a tripulação era uma mistura de ambos)
haviam se desanimado. Via-se muito movimento junto ao estaleiro e entre o estaleiro e o paraú, e de vez em quando disparavam o canhão giratório. Ao meio-dia acenderam
o fogo para cozinhar e os homens do acampamento fizeram o mesmo.
Durante todo esse tempo Jack estivera observando o inimigo muito atentamente e tanto para ele como para seus oficiais era óbvio que o velho Lenço Verde tinha o comando.
O chefe dos dyaks observava os ingleses com a mesma atenção, amiúde situado sobre o banco de areia e fazendo-se sombra com a mão sobre os olhos, de modo que um bom
atirador com o rifle apoiado no parapeito poderia derrubá-lo. Tinha a certeza de que Stephen poderia fazê-lo, mas também de que nunca o faria, e, de toda maneira,
ambos médicos estavam atendendo aos feridos (vários homens ficaram feridos na luta junto ao parapeito). Tampouco ele o faria a sangue frio e a essa distância. Apesar
de não lhe desagrar ver como uma descarga arrasava o convés de um barco inimigo, ainda que parecesse um contra-senso, considerava sagrado o chefe dos oponentes e
sabia que havia uma diferença perceptível mas indefinível entre matar e assassinar. Pergunta: Isso era válido para um homem a quem se atribui a tarefa de franco-atirador?
Resposta: Não. E tampouco o era para um grupo de homens, ainda que fosse muito pequeno.
O capitão Aubrey seus oficiais e David Edwards, o secretário do enviado, comeram em pranchas colocadas sobre pés de tesoura junto à parte interior do parapeito,
que tinha em cima sacos de areia para proteger a cabeça dos freqüentes disparos do canhão giratório. Os disparos eram muito precisos e quase sempre batiam no parapeito
ou passavam justo acima dele; eram tão precisos que os marinheiros que estavam ao seu alcance se ajoelhavam quando viam o clarão. Mas a genuflexão nem sempre lhes
salvava, e duas vezes durante o almoço chamaram ao doutor Maturin para atender aos que foram feridos.
A refeição desse dia foi tão pouco formal que Richardson não cometeu um ato impróprio quando, quando olhava pela luneta por entre os sacos de areia, anunciou:
- Senhor, parece que o inimigo ficou sem água. Vejo três grupos tratando de fazer buracos onde supõem que passa uma corrente de água, e Lenço Verde os está insultando
como uma verdureira.
- Esperavam poder beber água de nosso poço - disse Welby, sorrindo, e depois, para não tentar à fortuna, acrescentou: - Mas cuidado: ainda é possível que o façam.
- Agora nossas possibilidades são mais parecidas - disse o contador. - E se as coisas seguem a este passo, logo teremos vantagem.
- Se isso ocorrer, não há dúvida de que partirão e regressarão com uma força três vezes maior - aventurou o oficial de derrota. - Senhor, seria disparatado sugerir
que destruíssemos o paraú? É sumamente frágil; não tem nenhuma parte de sua estrutura de metal e uma bala em cada um dos cascos ou, melhor ainda, onde se unem, o
faria pedaços.
- Seria, senhor Warren - respondeu Jack. - Isso nos deixaria com mais de duzentos vilãos sedentos que nos tirariam o abrigo e o sustento. O doutor diz que quase
não restam uma vintena de javalis e que só há macacos de calda preénsil para proporcionar-nos uma ração de carne durante alguns poucos dias. O que mais eu gostaria
seria vê-los zarpar em busca de reforços. Quase terminamos de serrar, e como, por sorte, o pobre senhor Hadley tinha deixado aqui algumas das ferramentas mais importantes
para afiá-las e ajustá-las, acho que se trabalharmos dia e noite poderemos botar a escuna e estar navegando rumo a Batavia antes que regressem. Creio que procedem
de Bornéu.
- Oh! - exclamou o contador como se lhe tivesse ocorrido outra idéia, mas não disse nada mais.
Tanto a bala do canhão giratório como a do grande mosquete perfuraram o saco de areia que tinha em sua frente, cobrindo ele e a mesa com o conteúdo. Quando os outros
tentaram levantá-lo já estava morto. Stephen lhe abriu a camisa, pôs a orelha em seu peito e disse a meia voz:
- Temo que seu coração falhou. Que Deus tenha piedade dele!
Durante as tranqüilas e calorosas horas que seguiram, Jack, Fielding e o condestável inspecionaram toda a pólvora que tinham encontrado no fundo dos barris ou em
frascos, cartuchos para fazer sinais e foguetes.
- Temos bastante para uma carga das caronadas e do canhão de nove libras, e nos sobra o suficiente para dar ao doutor meio frasco para seu rifle - sentenciou Jack.
- Condestável, seria conveniente carregá-los agora que o metal quase não se pode tocar, pois o calor fará que a pólvora exploda mais rapidamente. E ordene que raspem
cuidadosamente a bala de nove libras e depois a esfreguem com azeite.
- Sim, sim, senhor. Suponho que poremos metralha nas caronadas.
- Seria melhor pôr-lhes aquelas cargas que provocam uma carnificina a curta distância, mas suponho que não temos nenhuma.
O condestável, com expressão melancólica, negou com a cabeça.
- Todas ficaram nesse maldito arrecife, senhor, com perdão.
- Então ponha metralha, senhor White.
- Senhor, senhor, o capitão Welby diz que estão mandando os homens subirem pelo bosque! - gritou Bennett.
- Senhor - disse Welby quando Jack se reuniu com ele no posto de vigilância -, talvez fosse mais prudente que não dirigisse a luneta para lá porque poderiam pensar
que os vimos. Se observar a clareira situada à esquerda daquela enorme árvore com flores vermelhas que forma com a haste um ângulo como as onze em ponto, verá que
o estão atravessando com as lanças abaixadas e com as pontas cobertas de folha ou capim.
- Que acha que se propõem?
- Suponho que é um grupo preparado para um ataque surpresa e que foi enviado para atacar o acampamento pela parte de trás, onde está a prataria. Vão se apoderar
de um ou dois baús e depois correrão para o bosque que fica atrás, enquanto seus amigos nos entretêm lançando um falso ataque pela parte dianteira.
- Não sabem como é a parte traseira do acampamento. Poderemos protegê-la com meia dúzia de homens, pois quando ocorreu o desprendimento de terra na ladeira se formou
um grande socavão.
- Não o sabem, senhor. E como a jovem veio pela entrada oeste e saiu pela sul, não viu essa trincheira natural. Ainda que, indubtavelmente, seu general está empregando
sua estratégia, acho que também confia no fator surpresa.
- Quantos homens calcula que são?
- Contei vinte e nove, senhor, mas é possível que haja alguns mais.
- Bem, não acredito que isso nos cause problema. Senhor Reade, deixe de apontar tontalmente para as árvores. Pare imediatamente, entendeu? O senhor e Harper recolham
as pedras maiores que possam carregar e levem-nas imediatamente até os degraus da parede norte. Senhor Welby, acho que poderemos permitir-nos que oito dos melhores
atiradores que tenha entre seus homens disparem suas séries. Ver cair a quarta parte dos companheiros de um antes de começar um ataque é desalentador. Somente os
homens extraordinariamente valentes são capazes de continuar com semelhante perspectiva pela frente.
Quase imediatamente começou a diversão. O canhão giratório e o grande mosquete começaram a fazer disparos que se sucediam tão rapidamente como era possível; grandes
grupos de homens começaram a atravessar diagonalmente a ladeira que ficava entre o estaleiro e o acampamento e enquanto corriam davam gritos de alegria ou uivavam
como gibões. Pouco depois se ouviu a primeira descarga dentro do bosque, muito perto do limite. Jack teve que gritar para que o ouvissem.
- Senhor Seymour, um grupo está a ponto de chegar à parede norte para levar a prataria. Leve Killick, Bonden, os oito infantes da marinha escolhidos pelo senhor
Welby e a tantos marinheiros como necessite para formar uma linha ao longo do muro e fazer frente à situação. Enquanto isso, nós vigiaremos os que tentam nos entreter
para nos assegurarmos de que a situação não fique feia.
O falso ataque, o que pretendia distrair sua atenção, não se pôs feio, mas o real sim. Os membros do grupo que atacava de surpresa foram escolhidos por sua força
e coragem, e apesar das numerosas baixas que sofreram quando saíram de seu refúgio, correram pelos degraus do muro. Dali lhes atacou Killick, que cheio de ódio e
fúria os lançou pedras, junto com os infantes da marinha, todos os barqueiros do capitão e seu timoneiro, que estavam situados de ambos os lados dele. Uma e outra
vez, cada vez que um dyak tentava substituir a outro avançando com a lança preparada, faziam com que retrocedesse à ponta de pique, atravessavam-no com um sabre
ou o esmagavam com uma pedra de cinqüenta libras. Em pouco tempo já não restava nenhum que avançasse. Seymour, que estava nominalmente ao comando do grupo, teve
que bater-lhes nas costas para evitar que continuassem atirando pedras nos poucos homens malferidos que desciam com dificuldade por entre as rochas. E Killick ainda
permaneceu ali de pé um longo tempo, vermelho de ira e com um machado de abordagem na mão e um pedaço dentado de basalto na outra.
A diversão decaiu logo. Os homens que corriam diagonalmente de um lado para outro perderam energia; soou a última descarga; e o sol, cansado também daquele dia extraordinariamente
quente, começou a descer devagar pelo céu, de um intenso azul, em direção oeste.
- Apesar de tudo, senhor - disse Welby -, não acho que isto seja o final. O general perdeu homens muito fortes e não pode substituí-los. Ademais, não têm água...
Olhe como escavam ainda que não vão encontrá-la ali! Assim que não podem esperar. O general não pode esperar. Assim que tenham descansado um pouco, ordenará a todos
que nos ataquem de frente. Creio que é um tipo que luta de morte ou glória. Olhe como lhes arenga enquanto vai de um lado a outro. Oh, meu Deus, incendiaram a escuna!
Quando a negra fumaça se elevava com o ar, no acampamento se ouviram gritos de raiva, desespero, frustração e tristeza. Jack, elevando a voz, chamou o condestável.
- Senhor White! Senhor White! Saque as caronadas e carregue-as com as melhores balas que tenhamos. Seus homens têm cinco minutos, não mais, para raspá-las e deixá-las
o mais lisas possíveis. E prepare a mecha de combustão lenta.
Desta vez não houve manobras de distração. Subiram a ladeira primeiro a trote e depois correndo com fúria. Avançaram diretamente para as peças de artilharia sem
dar nenhum sinal de temor, mas sem nenhuma ordem, chegaram ao parapeito em ondas, os mais rápidos primeiro e muitos mais em pequenos grupos, de modo que não puderam
atravessar a massa de lanças e baionetas. Seu chefe chegou correndo na segunda onda, mas quase não podia ver nem recobrar o fôlego. Saltou por cima de um cadáver
e atacou ao marinheiro que tinha em frente dando golpes a cegas, mas caiu para trás com a cabeça partida em duas por um machado.
Foi uma luta encarniçada, de matar ou morrer, entre a poeira, o ruído de espadas e lanças ao chocar, gritos, gemidos, e às vezes uivos. Durante um período que pareceu
muito comprido, o inimigo não retrocedeu salvo para voltar a avançar. Os dyaks e os malaios tinham que lutar subindo a ladeira e contra inimigos protegidos por um
parapeito de moderada altura que obedeciam a chefes navais e militares competentes e de voz potente. Ademais, apesar de sua valentia, eram mais baixos e magros que
os ingleses, e em um dado momento, quando os que estavam no centro e na direita se retiraram para reagrupar-se e lançar um novo assalto, Jack Aubrey percebeu que
o rumo da batalha havia mudado e gritou:
- Senhor Welby, a carga! Tripulantes da Diane, sigam-me!
Todo o acampamento começou a avançar pelo parapeito dando vivas. O tambor redobrou e todos correram para frente. Depois do espantoso primeiro choque, os infantes
da marinha, por sua potência e sua perfeita ordem, abateram todos os homens que tinham na frente. Aquela foi uma derrota, uma derrota para os dyaks, que fugiram
para se salvar.
Os quase cem homens que ficavam corriam mais que os ingleses e, ao chegar à praia, entraram no mar e foram até o paraú nadando com rapidez, ágeis como nútrias.
Jack se deteve na margem ofegando e com o sabre pendurando da munheca. Enxugou o sangue dos olhos (sangue de algum golpe que não sentira) e olhou para a escuna,
cujas balizas se recortavam sobre as luminosas chamas e depois para os dyaks, que já estavam recolhendo âncora.
- Senhor Fielding - gritou com voz rouca -, vá ver o que se pode fazer para extinguir o fogo! Senhor White, artilheiros, repito, artilheiros, venham comigo!
Os que haviam saído incólumes voltaram a subir trabalhosamente, e Jack sentiu como nunca antes a carga de seu pesado corpo. A meio caminho do acampamento havia muitos
cadáveres amontoados e diante do parapeito havia muitos mais, mas Jack quase não se fixou nisso enquanto avançava para situar-se junto ao canhão de bronze de nove
libras. Bonden, que estava encarregado do canhão e corria mais rapidamente que ele, ajudou-lhe a saltar por cima do parapeito dizendo.
- Já recolheram a âncora, senhor.
Jack se voltou e viu que, de fato, o paraú orçava e tratava de que a proa formasse com a direção do desfavorável vento o menor ângulo possível. A maré estivera baixando
durante um tempo bastante longo para que o arrecife estivesse descoberto, e o paraú tinha que se aproximar do alto mar o máximo possível com as velas amuradas para
estibordo para poder dobrar o cabo oeste, diante do qual havia um horrível redemoinho provocado pela maré e por uma corrente em direção norte.
O condestável chegou um momento depois auxiliado por um ajudante sobrevivente.
- Há mais mechas em minha tenda, senhor - anunciou com uma voz que quase não se ouvia do outro lado do parapeito.
- Não se preocupe com isso, senhor White - Jack respondeu sorrindo. - Metade da primeira ainda falta ser consumida.
Efetivamente, ainda estava lá, ardendo dentro do recipiente metálico ao qual ninguém dera um chute nem havia tocado durante a batalha, apesar da confusão, e agora
a fumaça saía dela e atravessava o acampamento vazio.
- Que Deus nos ajude - sussurrou o condestável quando todos se agacharam para colocar a caronada dianteira. - Pensava que o combate ia ser muito mais longo. Quatro
graus lhe parece bem, senhor?
- Aponte bastante acima, condestável.
- Bastante acima, senhor - disse o condestável, dando meia volta mais no parafuso.
Durante um breve momento, a mecha produziu um som sibilante ao entrar em contato com o cevo e imediatamente a caronada disparou com estrépito e retrocedeu rangendo.
Todos os marinheiros olharam por baixo da fumaça e alguns puderam ver a bala descrevendo uma trajetória curva. Jack a observou com tanta atenção que só seu coração,
que batiu com tanta força que quase o deixou sem fôlego, reconheceu com alegria que a pólvora reagira bem. A direção era acertada, mas a bala caiu a vinte jardas
do alvo.
Jack se aproximou correndo do canhão de nove libras enquanto gritava ao encarregado da outra caronada:
- Quatro e meio, Willet! Dispare quando suba!
A caronada disparou um momento depois e voltou-se a ouvir um grande estrépito. Desta vez Jack não viu a bala, mas o penacho de espuma que se formou no mar, justo
diante do paraú, e notou que a direção era tão acertada como a primeira. Então subiu a alavanca para inclinar o canhão um pouco para a direita e disse:
- Preparados!
Depois aproximou a mecha do ouvido e, nesse mesmo instante, o timoneiro do paraú virou o quanto pôde o leme para esquivar-se da bala, mas levou o barco precisamente
para o lugar onde ela ia cair. Não saltou espuma para o ar e os marinheiros se olharam perplexos durante alguns momentos. Então os dois cascos se separaram, a grande
vela desabou e o barco se desintegrou. Todos os pedaços, espalhados por uma zona do mar de vinte ou trinta jardas, começaram a avançar com rapidez para a ponta oeste
e o terrível redemoinho.
- Por que dão vivas? - perguntou Stephen, saindo da tenda-hospital com as mãos cheias de sangue e com os olhos como bolinhas atrás das lentes dos óculos que agora
usava para as operações mais delicadas.
- Afundamos o paraú - respondeu Jack. - Pode ver os pedaços passando pela frente do cabo. Dentro de pouco chegarão ao redemoinho. Meu Deus, como se move! Nenhum
homem pode nadar ali. Pelo menos, não teremos temor de que venham reforços.
- Ante seus triunfos se mostra muito triste, não é verdade, meu amigo?
- Queimaram a escuna, sabia? E pelo pouco que vi, parece que não há esperança de salvar nem uma só baliza.
Fielding passou trabalhosamente por em cima dos cadáveres e do parapeito, tirou seu destroçado chapéu e disse:
- Senhor, felicito-lhe pelo estupendo disparo. Nunca tinha visto um tão extraordinário. Mas lamento ter que informar que apesar de que alguns marinheiros, por seu
zelo, sofreram queimaduras, não pudemos fazer nada para salvar a escuna e não restou inteira nem uma só baliza. Inclusive a sobrequilha ficou destruída, e, certamente,
também as pranchas do convés e o cúter.
- Sinto muito, senhor Fielding - disse Jack no tom de voz apropriado para fazer uma declaração pública, pois uns vinte marinheiros que estavam ao redor podiam ouvir-lhe.
- Estou seguro de que todos os marinheiros fizeram tudo o que puderam, mas já não era possível extinguir o fogo quando chegaram. Sem dúvida, eles espalharam breu
de proa a popa. Mas estamos vivos, e a maioria de nós nos encontramos em condições de cumprir com nosso dever. Ademais, dispomos de muitas das ferramentas do pobre
senhor Hadley e de madeira, e creio que encontraremos uma solução.
Tinha a esperança de que o tom de suas palavras tivesse parecido alegre e convincente, mas não estava seguro de que assim fosse. Como costumava ocorrer depois de
um combate, começava a sentir uma profunda tristeza. Até certo ponto, isso se devia ao contraste entre dois modos de vida. Na luta corpo a corpo não havia lugar
para o tempo, a reflexão, a inimizade nem a dor, a menos que o resultado deste último fosse a incapacidade. Tudo sucedia com grande rapidez: um dava rápidos cortes
e defesas com o sabre sem pensar, vigiava automaticamente a três ou quatro homens próximos e lhes cravava o sabre quando baixavam a guarda, dava gritos para prevenir
a algum amigo ou para que o inimigo retardasse um golpe. E entretanto a mente estava extraordinariamente lúcida e um, com uma espécie de furiosa exaltação, vivia
com intensidade o presente. Mas agora o tempo regressara com todo seu agoniante peso (o sustento do amanhã e do próximo ano, a ascensão a almirante, o futuro de
seus filhos), e também a responsabilidade, a enorme responsabilidade que tinha o capitão de um barco de guerra. Outra diferença residia na decisão; durante a batalha
os olhos e a espada tomavam decisões com inconcebível rapidez, pois não havia tempo para pensar antes de agir.
Por outra parte estavam as coisas desagradáveis que se deviam fazer depois de uma vitória, e também as tristes. Olhou ao seu redor buscando com a vista aos guardas-marinhas,
posto que a maioria dos homens já haviam subido a ladeira outra vez; mas como não viu a nenhum, chamou Bonden, o invulnerável Bonden, e lhe ordenou que perguntasse
ao doutor se achava conveniente que o visitasse.
- Sim, certamente, senhor - disse Bonden, e depois de vacilar um momento, esfregando o couro cabeludo, acrescentou: - Tem um buraco aí em cima que deveria ser examinado.
- Ah, sim! - exclamou Jack, tocando-se a cabeça. - Mas não tem importância. Agora vá embora.
Antes que Bonden regressasse, Richardson chegou coxeando e informou que os dyaks tinham cortado a cabeça não só do carpinteiro e de seu ajudante, como também de
todos os que haviam matado no terreno central e no mais baixo, pelo que alguns não podiam ser identificados. Depois perguntou se deviam subir os cadáveres, se os
companheiros que morreram junto ao acampamento tinham que ser separados de acordo com sua religião e o que deviam fazer com os nativos mortos.
- Senhor - disse Bonden com uma estranha expressão -, o doutor apresenta seus respeitos e lhe espera dentro de cinco minutos, com sua permissão.
Para cada homem cinco minutos têm distinta equivalência. Os de Jack Aubrey eram mais curtos que os de Stephen, e por isso entrou na tenda antes do tempo. Nesse momento
Stephen levava um pequeno braço para o monte de membros amputados e cadáveres de pacientes. O pôs sobre um pé destroçado e disse:
- Posso ver sua cabeça? Sente-se neste barril.
- De quem era esse braço? - perguntou Jack.
- De Reade - respondeu Stephen. - Acabo de amputá-lo pelo ombro.
- Como ele está? Posso falar com ele? Ficará bem?
- Se Deus quiser se curará - disse Stephen. - Se Deus quiser. A bala do canhão giratório o fez cair para trás e golpear a cabeça em uma rocha, assim que está completamente
aturdido. Sente-se no barril. Senhor Macmillan, traga água quente e a tesoura grande e chata, por favor.
Depois, enquanto limpava e cortava acrescentou:
- Naturalmente, não posso dar uma lista completa porque ainda não contaram todos os mortos e há que subir a alguns feridos, mas temo que será comprida. Os guardas-marinhas
sofreram muitos danos. O seu escrevente foi morto na carga fechada, e também o pequeno Harper; Bennett quase teve as entranhas arrancadas e, ainda que o tenhamos
costurado, duvido que chegue a amanhã.
Butcher, Harper, Bennett e Reade estavam mortos ou aleijados. Enquanto Jack estava sentado ali, com a cabeça inclinada diante da tesoura, da gaze e da sonda e com
as mãos juntas, as lágrimas caiam sobre elas sem cessar.
Passaram os primeiros dias tristes e esgotadores de enterros massivos (havia mais homens mortos, contando os de ambos os lados, do que vivos) e de visitas aos feridos,
quase todos homens bons e honestos cujos rostos havia se acostumado a ver durante a missão, que agora estavam macilentos, doloridos ou às vezes com uma infecção
mortal e jaziam ali em meio do calor e do espantoso e bem conhecido odor. Depois se celebraram funerais quando os que estavam em piores condições morriam, às vezes
um, dois ou mesmo três por dia. E tinham muito pouca comida. Stephen só matou uma pequena babirussa; não valia a pena atirar nos macacos que restavam; e dos poucos
peixes que se pescavam com vara nas rochas ou com rede, a maioria eram peixes sem escamas e de cor plúmbeo que nem mesmo as gaivotas comiam.
Na manhã depois da morte do último paciente da lista dos que corriam perigo, um dyak que suportara um corte depois de outro em sua perna gangrenosa com admirável
fortaleza, Stephen tardou em obedecer ao toque do pífano "Todos ao convés, todos para popa", que precedia a alocução que o capitão fazia aos tripulantes. Quando
chegou ao seu posto, Jack ainda falava das normas navais, do caráter permanente das missões, do Código Naval e coisas similares. Todos os marinheiros o escutaram
atentamente, com expressão grave e sensata, quando repetiu os pontos principais, especialmente os referidos à continuidade de seu pagamento, sempre de acordo com
sua classificação, e à compensação que receberiam se não se lhes dessem álcool. Permaneciam ali muito unidos entre imaginários costados, exatamente como se estivessem
a bordo da Diane, e analisando cada palavra. Stephen prestou pouca atenção porque ouvira a essência do discurso antes e, também, tinha o pensamento em outra parte.
Havia se afetuado ao dyak, que confiava totalmente em sua habilidade e suas boas intenções e só comia de suas mãos. Acreditara que poderia salvá-lo como ao jovem
Reade, encolhido agora em uma carreta com a manga vazia presa no peito, ou como a Edwards, que estava sozinho no lugar que costumavam ocupar o enviado e seu séquito.
- Mas agora, companheiros de tripulação - disse Jack com voz grave -, vou tratar de outro ponto. Todos ouviram falar do pote da viúva.
Nenhum oficial, nenhum marinheiro nem nenhum infante da marinha deu sinais de já ter ouvido falar do pote da viúva nem de saber o que significava.
- Bem - continuou o capitão Aubrey depois de uma pausa -, pois na Diane não ficava o pote da viúva, e com isto quero dizer que amanhã é o dia de Santa Fome.
Nos rostos dos marinheiros de barcos de guerra mais veteranos apareceram sinais de compreensão, alarme, desalento e desgosto. E Jack permaneceu silencioso um longo
momento enquanto sussurravam a explicação para os que seguiam sem compreender.
- Mas não é o pior dia de Santa Fome que já conheci - prosseguiu. - Se bem que é verdade que hoje receberão a última ração de grogue e a última pitada de tabaco,
ainda temos algumas bolachas e um barril de carne de cavalo de Dublim que não está muito estragada. Ademais, é possível que o doutor mate outra das gazelas da ilha.
E há outro ponto importante. Os oficiais e eu não vamos nos sentar em almofadas de seda para beber vinho e conhaque. O despenseiro dos oficiais e Killick juntarão
nossas provisões para reparti-las entre todos e as terão sob vigilância dia e noite, e, enquanto durem, todos terão a possibilidade de conseguir uma ração tirando
a sorte. Isso é o que vão fazer o despenseiro dos oficiais e Killick, tanto se gostarem como se não.
Estas palavras foram bem recebidas. Killick era bem conhecido pelo zelo com que guardava as provisões do capitão, inclusive a borra das mais velhas garrafas de vinho,
e o do despenseiro dos oficiais não era menor. Ambos fizeram um gesto de irritação e desaprovação, mas quase todos os marinheiros riram como não tinham rido desde
antes da batalha.
- Ademais, Deus ajuda a quem se ajuda. Ainda temos Neil Walker e outros dois homens classificados como ajudantes de carpinteiro; ainda temos muita lona para velas
e uma considerável quantidade de cabos; e podemos recuperar muitos dos pregos e chavetas das cinzas da escuna. Meu plano é construir um cúter de seis remos para
substituir o que se queimou, escolher uma tripulação entre os melhores marinheiros e um oficial para que o governe e enviar-lhes a Batavia para buscar ajuda. Eu
ficarei aqui, certamente.
Todas estas idéias expressadas de repente confundiram a audiência. Ouviu-se um burburinho geral de conformidade e inclusive aprovação, mas um homem, alçando a voz,
perguntou:
- Duzentas milhas em uma embarcação aberta quando o monção está a ponto de mudar?
- Bligh navegou quatro mil em um bote de vinte e três pés abarrotado de homens. Ademais, o monção não mudará até dentro de duas semanas, e mesmo um grupo de estúpidos
marinheiros de água doce poderia construir nesse tempo um cúter seguro para fazer uma longa viagem pelo mar. E por outra parte, qual é a alternativa? Permanecer
aqui sentados e ver morrer o último macaco de calda preénsil? Não, não. Mais vale um cachorro morto que um leão vivo, quero dizer...
- Três vivas ao plano do capitão Aubrey! - gritou inesperadamente um homem taciturno de meia idade e respeitado por todos chamado Nicholl.
Os marinheiros ainda davam vivas quando Stephen, com o fuzil debaixo do braço, foi andando até além dos enegrecidos restos da escuna no estaleiro. Ainda podia reconhecer-se
seu esqueleto, com suas elegantes curvas, e como havia chovido muito pela noite, perdera um pouco do odor acre que expelia no primeiro dia.
Seguiu caminhando pela praia para o oeste, com a intenção de subir pela vereda que usualmente tomava, pelas costas do campo de críquete. Mas depois de avançar um
pouco, viu algo movendo-se no mar; e como já estava muito acima da marca da maré alta, onde as mais fortes tempestades, como a que destroçara a Diane, deixavam grande
quantidade de despojos em que cresciam curiosas plantas, às vezes com assombrosa rapidez sentou-se comodamente no tronco de uma árvore à sombra das samambaias e
pegou a luneta de bolso. Tão logo como o enfocou, confirmou sua primeira impressão: tinha diante de si a cara enorme, insípida, de nariz quase quadrado e expressão
doce de um dugongo. Não era o primeiro que via, mas sim o primeiro nessas águas, e, sem dúvida, nunca pudera ver melhor a nenhum. Era um dugongo fêmea e jovem, de
uns oito pés de comprimento, e tinha uma cria que umas vezes se colocava junto ao peito com ajuda de uma barbatana, situava-se de maneira que as duas ficavam em
posição vertical no mar, e olhava para o vazio; outras comia algas marinhas que cresciam nas distantes rochas. Mas em todo momento era solícita com ela, tanto que
às vezes lhe lavava a cara, o que parecia uma tarefa absurda naquelas límpidas águas. Perguntou-se se sua presença e a de outras sereias que se viam muito mais longe
eram um sinal da iminente mudança de estação.
- Me alegro de que esse cúter seja ainda um projeto - disse, depois de refletir sobre o assunto. - Se não fosse assim, teria a obrigação de perseguir ao inocente
dugongo. Dizem que sua carne é excelente, como a da vaca marinha do pobre Steller, isto é, a pobre vaca marinha de Steller.
Pouco depois o dugongo mergulhou e foi se reunir com suas companheiras, que comiam no distante extremo do arrecife. Stephen pensou em se levantar, mas nesse momento
um ruído reclamou sua atenção.
"Juraria que é um javali buscando raizes na terra", disse, virando devagar a cabeça para a direita. Efetivamente, era um javali buscando raizes, a maior babirussa
que havia visto. Ofegava e grunhia amiúde enquanto dedicava toda sua atenção a um monte de tubérculos. Era um alvo perfeito e Stephen apontou o rifle muito devagar.
A babirussa era tão inocente como o dugongo, mas Stephen a matou sem escrúpulos.
Enquanto pendurava a babirussa em uma árvore com o moitão, pensou: "Aposto que pesa trezentas libras. Mãe de Deus, como ficarão contentes! Vou seguir a vereda por
onde chegou até onde possa para ver de onde saiu. Nunca houve um dia melhor para seguir veredas. Depois acho que vou dar-me o prazer de ir ver os vencelhos. Acho
que já não lhes guardo mais rancor e queria ver em que estado se encontram os ninhos vazios. Por desgraça, o pobre Reade nunca poderá entrar para pegar. Céus, o
que fazem o vigor da juventude e o otimismo frente a uma horrível ferida! Dentro de duas semanas estará correndo, e o contramestre, em troca, como é um homem de
meia idade e está deprimido, tardará muito mais em se recuperar de uma ferida muito menos grave". Pensava estas coisas enquanto seguia aquela vereda bem delimitada
e por fim chegou a um popular lamaçal na parte superior da ilha. Tempos atrás vira convergir naquele lamaçal uma dúzia ou mais de veredas, novas ou velhas, mas agora
só via uma procedente do nordeste. "Eu me desviarei aqui", decidiu ao chegar a uma árvore de onde havia matado um javali uma vez. Continuou subindo para aproximar-se
da borda da face norte do escarpado. Quando ainda estava longe do precipício, teve que rodear o que havia sido um charco durante a noite e agora era um espaço coberto
de lama. Junto à parte da borda mais distante pôde ver a pegada de um menino tão clara como era possível, mas notou que nenhum rastro levava até ela nem partia dela.
"OU esse menino é extraordinariamente ágil e saltou oito pés, ou um anjo deixou sua pegada na terra - pensou, depois de revistar os arbustos sem encontrar a explicação.
- Ademais, não temos grumetes tão pequenos na tripulação." Cem jardas mais adiante achou a solução do enigma. Perto da borda do precipício, onde ele se deitara com
a cabeça inclinada para abaixo para ver aquela estreita caverna, a caverna na qual iam descer a Reade, havia sete cestos cheios dos melhores ninhos e cuidadosamente
calçados com pedras. E caso isso não fosse bastante claro, havia um junco ancorado frente à costa e vários botes iam e vinham da pequena praia de areia.
Depois de permanecer sentado ali durante vários minutos, pensando muitas nas diversas possibilidades, ouviu vozes de crianças entre as árvores que ficavam mais abaixo.
Falavam em tom incômodo, brincalhão, desafiante ou depreciativo, tanto em malaio como em chinês. As vozes eram cada vez mais audíveis até que se ouviu um golpe seguido
por um grito de dor e vários lamentos de uma só vez.
Stephen desceu e debaixo de uma árvore alta encontrou quatro crianças: três meninas dando gritos de aflição e um menino berrando de dor e agarrando uma perna que
estava coberta de sangue. Todos eram chineses, estavam vestidos de forma muito parecida e tinham almofadinhas nos joelhos e nos cotovelos para escalar pelas paredes
das cavernas.
Voltaram-se para ele e pararam de gritar.
- Li Po disse que podíamos brincar quando enchêssemos sete cestos - queixou-se uma menina em malaio.
- Não dissemos a ele que subisse até o cume - interveio outra. - Não é culpa nossa.
- Li Po nos açoitará até que não possamos aguentar - disse a terceira antes de começar a lamentar-se outra vez.
A aparição de Stephen não os assustou, ele também vestia calça curta e larga, casaca aberta e um chapéu de aba larga e, também, tinha uma rara cor amarelada pois
tinha passado muito tempo ao sol. O menino, um pouco aturdido, deixou que lhe examinasse a perna sem opor resistência.
Depois de conter quase por completo a hemorragia com o lenço e de fazer o diagnóstico, Stephen disse:
- Fique tranqüilo e cortarei sete ripas.
Usou a faca de caça para fazê-las, e ainda que o tempo instava, obrigado por sua consciência de profissional, retocou-as antes de fazer tiras de sua fina casaca
para usá-las como vendas e cataplasmas. Trabalhava tão rapidamente como podia, mas as meninas, tranqüilizadas pela presença de uma pessoa adulta e competente, falavam
ainda mais rápido. A mais velha, Mai-mai, era a irmã do menino, e Li Po, o dono do junco, era o pai de ambos. Tinham chegado de Batavia para recolher um carregamento
de mineral de ferro em Ketaman, Bornéu, como faziam a cada estação quando o vento era favorável e o mar estava calmo. Haviam se desviado de seu rumo para ir à ilha
dos ninhos de pássaros. Quando eram muito pequenos deslizavam pelas cordas partindo de cima, mas agora não necessitavam delas porque podiam chegar por baixo metendo
estacas aqui e ali quando era necessário. Geralmente era muito fácil subir pelas ladeiras e os ressaltos sustentando um pequeno cesto com os dentes e enchendo os
grandes no alto. Só as pessoas delgadas podiam passar por alguns lugares. O irmão de Li Po, a quem os piratas dyaks haviam matado, tinha engordado muito quando tinha
quinze anos.
- Assim! - exclamou Stephen, fazendo o último nó devagar. - Acredito que isto servirá. Agora, Mai-mai, querida, deve descer imediatamente e contar a seu pai o que
aconteceu. Diga-lhe que sou médico, que curei a ferida de seu irmão e que vou levá-lo ao nosso acampamento, que fica na parte sul. Não é possível descê-lo até o
junco neste estado. Conte para Li Po que há cem ingleses em um acampamento fortificado perto do arrecife do lado oposto, e que nos alegraremos de vê-lo quando leve
o junco até lá. Agora corra como uma boa menina e diga-lhe que tudo sairá bem. As outras podem ir contigo ou vir comigo, como prefiram.
As outras preferiram ir com ele porque lhes atraía a novidade, não queriam ver a Li Po nesse momento e lhes parecia uma glória levar o rifle. Como a vereda era estreita
e suas pernas curtas, tinham que correr na frente de Stephen, que levava o menino com dificuldade, e falar por cima do ombro ou correr para trás e falar olhando
a parte posterior de sua cabeça. Mas era impossível que não falassem, pois tinham muitas coisas que comunicar e muitas que aprender. A mais delgada das duas, cujos
olhos eram formados por linhas curvas de uma perfeição que só se encontrava entre as crianças chinesas, queria que Stephen soubesse que sua melhor amiga em Batavia,
uma menina cujo nome significava Flor Dourada do Dia, tinha um gato holandês rajado. E depois disse que não duvidava que o velho cavalheiro tinha visto algum gato
holandês rajado. Depois perguntou se o velho cavalheiro queria que lhe contasse que plantas tinha no jardim e a cerimônia pelo noivado de sua tia Wang. Tudo isto
e uma relação das variedades de ninhos de pássaros com seus correspondentes preços duraram quase até que chegaram ao limite do bosque, e desde o acampamento puderam
ouvir-lhes muito antes de ver suas silhuetas.
Stephen, depois de deitar o menino em uma maca, cubrir-lhe a perna com um cesto e encarregar Ahmed que ficasse de seu lado para consolá-lo, e depois de que as meninas
se foram sozinhas para admirar as maravilhas do acampamento, exclamou:
- Oh, Jack! Quanto valor tem a tradição confucionista!
- Isso minha aia sempre dizia - disse Jack. - Permita-me que mande buscar sua bendita gazela antes de contar-me onde os encontrou e por que parece tão contente.
- Esta tradição, isto é, esta doutrina inculca nas crianças um infinito respeito pela velhice. Quando eu disse para aquela menina exemplar que corresse como uma
menina boa, levantou-se e, juntando as mãos diante do corpo, fez uma inclinação de cabeça e imediatamente passou a correr. Esse foi o momento decisivo, crítico:
ou tudo se estragava ou tudo saía bem. Se houvesse sido obstinada, rebelde ou desobediente, eu teria fracassado... O animal está do outro lado do campo de críquete,
em uma árvore que tem a metade enegrecida por causa de um raio e a outra verde. É assim como vou criar minha filha.
- E quer ter êxito, verdade? Ah, ah, ah! Bonden, Bonden, o doutor salvou nosso bacon outra vez! Salvou nosso bacon! Pegue um bom pau e vá com outros três homens
até a árvore fendida por um raio que fica junto à parte central do campo de críquete. Corra tão rápido como possa. - E voltando-se para Stephen acrescentou: - Pode
começar.
- Agora, senhor, prepare-se para se assombrar. Um junco com a bodega vazia estava ancorado diante da costa norte da ilha e as crianças desceram para terra para colher
os ninhos de pássaros comestíveis. Acho que o junco virá até aqui quando o vento for favorável, e é provável que seu dono e capitão nos leve de regresso a Batavia.
Esse garoto enfaixado é seu filho, e, ademais, tenho letras emitidas por Shao Yen, um banqueiro de Batavia que ele tem que conhecer forçosamente e cujo valor permitirá
pagar nossa passagem. E se não pedir uma quantia exorbitante, sobrará dinheiro para comprar uma modesta embarcação em que possamos comparecer ao nosso encontro em
Nova Gales do Sul ou chegar antes.
- Oh, Stephen! - exclamou Jack. - Que idéia estupenda! - Juntou as mãos de golpe, como costumava fazer quando estava emocionado, e continuou: - Oxalá não peça uma
quantia exorbitante... meu Deus, comparecer ao nosso encontro...! Com este vento tardaríamos no máximo três dias para chegar a Batavia, e se Raffles puder nos ajudar
a conseguir algo que possa navegar a pouco mais de cinco nós, teríamos tempo de comparecer inclusive a um encontro muito anterior, teríamos tempo de sobra. Meu Deus,
foi um feito providencial que estivesse ali quando o menino quebou a perna!
- Talvez seria mais preciso dizer que a machucou. Não posso assegurar que tenha uma fratura.
- Mas está enfaixado.
- Nestes casos, todas as precauções são poucas. Que agradável é esta forte brisa!
- A condição de que o junco navegue bem de bolina, e estou seguro de que navega assim extraordinariamente bem, com este vento chegará aqui pela tarde. De que tamanho
é? - Ao ver o gesto estúpido de Stephen, acrescentou: - Quero dizer, que quantidade de água desloca? Qual é a tonelagem? Qual é o arqueio?
- Não sei. É possível que tenha dez mil toneladas?
- Que tipo mais raro és, Stephen! - exclamou Jack. - A Surprise não chega às seiscentas toneladas. Como é o bendito junco comparado com ela?
- Minha querida Surprise... - disse Stephen, mas imediatamente reagiu e continuou: - Não presumo ser um especialista em questões náuticas, sabia?, mas me parece
que o junco, sem ser tão comprido como a Surprise, é muito mais largo e está menos afundado na água. Estou seguro de que há lugar para todos, e para as posses que
nos restam.
- Com sua permissão, senhor - Killick os interrompeu. - O almoço está servido.
- Killick - respondeu Jack, sorrindo de uma forma que seria incompreensível para Killick se ele não houvesse estado escutando atentamente -, ainda não pusemos todo
o vinho no fundo comum, né?
- Oh, não, senhor! Hoje ainda há grogue para todos os marinheiros.
- Então, traga um par de garrafas de Haut Brion com a rolha comprida, as de 1789. E diga ao cozinheiro que prepare algo para aplacar a fome das meninas até que a
gazela chegue. - Se voltou para Stephen e disse: - O Haut Brion deve de ir bem com o cavalo de Dublim, ah, ah, ah! Não sou agudo? Você entendeu, não foi, Stephen?
Certamente que não quiz ofender ao seu país, que Deus bendiga. Só foi uma brincadeira.
Sem parar de rir, tirou a rolha, deu um copo para Stephen e levantou o seu, e então disse:
- Pelo magnífico, magnífico junco, o junco mais oportuno que já se viu.
O magnífico junco apareceu frente ao cabo antes que terminassem a segunda garrafa e imediatamente virou para barlavento e começou a avançar para o ancoradouro.
- Antes que tomemos o café, vou dar uma espiada na bandagem - anunciou Stephen.
E ao chegar à tenda-hospital disse:
- Senhor Macmillan, tenha a amabilidade de dar-me duas ripas de bom aspecto e muitas vendas.
Ambos tiraram as tiras da casaca e limparam bem o arranhão.
- Noto um entorse, senhor - informou Macmillan -, e também uma considerável intumescida em o maléolo, porém, onde está a fratura? Por que lhe enfaixou?
- É possível que tenha uma fissura quase imperceptível - respondeu Stephen -, mas devemos tratá-la com tanto cuidado como se fosse uma fratura permuta da pior tipo.
Ademais, devemos untar-lhe a perna com gordura de porco mesclada com argila de Camboja.
Quando regressou para tomar o café, observou que Jack Aubrey, apesar de suas brincadeiras, não havia passado por alto a necessidade de fazer uma demonstração de
força. Agora atrás do parapeito havia numerosos homens armados e todos eles eram visíveis desde o junco.
Portanto, Li Po subiu a ladeira em atitude humilde e submissa, acompanhado somente de um jovem que levava uma miserável caixa cheia de litchis secos e uma lata de
chá verde de má classe. Li Po rogou ao eminente médico que aceitasse esses insignificantes artigos que eram um pálido reflexo de seu respeito e sua gratidão. Depois
perguntou se podia ver ao seu filho.
O pequeno não pôde representar melhor seu papel. Gemeu e se queixou, moveu os olhos de um lado para outro dentro das órbitas em sinal de angústia, falou com uma
voz débil como a de um moribundo e, com petulância, tratou de esquivar uma carícia de seu pai.
- Não se preocupe - disse Stephen. - Seu sofrimento diminuirá enquanto estejamos navegando. Eu o atenderei dia e noite, e quando lhe tire a bandagem em Batavia,
verá que a perna estará completamente curada.
CAPÍTULO 3
Quando a Diane encalhou no arrecife que não aparecia nas cartas marítimas, levava de regresso a Batavia ao enviado britânico encarregado de negociar com o sultão
de Pulo Prabang, e cobria a primeira etapa de sua viagem de volta para a Inglaterra. O senhor Fox havia concluído com êxito as negociações de um tratado de amizade
com o sultão, apesar da inflamada concorrência dos franceses, e como estava desejoso de levá-lo a Londres, quando o tempo era aparentemente bom zarpou na pinaça
da fragata, junto com seu séquito, uma tripulação e um oficial, para percorrer as duzentas milhas que faltavam. Ao mesmo tempo deixou uma cópia oficial, firmada
e selada para seu secretário, David Edwards, tanto como razoável medida de precaução como meio para desfazer-se dele, já que a tinha cismado com o jovem e não desejava
estar em sua companhia durante a comprida viagem de Batavia para a Inglaterra.
Mas a pinaça a havia sido surpreendida pelo mesmo tufão que destruiu a fragata encalhada, e se o original e o enviado haviam desaparecido, a importância da cópia
era maior. O alegre e otimista jovem, que carecia de dinheiro e necessitava encontrar um trabalho fixo, tinha cifradas suas esperanças nela. Pensava que se chegasse
a Whitehall e dissesse ao ministro: "Senhor, aqui tem o tratado firmado com o sultão de Pulo Prabang" ou "Senhor, tenho a honra de trazer-lhe o tratado firmado entre
sua majestade e o sultão de Pulo Prabang", isso o conduziria a algo. Naturalmente, não à nomeação de cavalheiro ou barão, como Fox esperava, porém, sem dúvida, a
algum posto de pouca importância no Governo, talvez adido de alguma das legações menores e remotas ou vice-legado da Junta do Forro Verde. Era um homem honorável
e ignorava que a carta que Fox havia adjuntado à cópia estava envenenada, pois nela falava mal de quase todos os que iam a bordo da Diane e especialmente de seu
secretário; contudo, Stephen, que por ser agente secreto vivia conforme um código diferente, conhecia muito bem seu conteúdo.
Edwards, guiado por seu senso do dever, pelo afeto que ainda sentia por seu chefe, seu honesto interesse e tudo o que era apropriado, havia envolvido o tratado em
um pedaço de linho e depois em um pedaço de seda coberto de cera, e depois o havia metido em um estojo. Sempre levava o estojo no peito, e agora, estando junto com
Stephen na alta popa do junco de Li Po olhando para trás, deu-se umas palmadinhas no peito e, ao ouvir o som apagado do cartão, disse:
- Às vezes me parece que este documento é maldito. Esteve em um naufrágio e quase chegou a afundar; sofreu o ataque dos dyaks e esteve a ponto de ser queimado; e
agora está em perigo de ser apreendido por piratas, pelo que se perderão irremediavelmente todos os nossos esforços.
- Não há dúvida de que este espetáculo é capaz de gelar o sangue nas veias de qualquer homem - sentenciou Stephen, olhando o temível paraú que avançava velozmente
pela esteir do junco, navegando com o vento do sudeste em contra e ambos balancins brancos de espuma roçando o mar.
Era temível porque, obviamente, era um barco pirata, e muito mais rápido que o junco, mas não era muito perigoso: era pequeno, não levava a bordo mais que cinqüenta
homens muito apertados e não tinha nenhum canhão.
- Apesar de tudo - acrescentou -, acredito que se largará, como diria o capitão Aubrey, tão logo como ele e o senhor Welby tenham alinhado os infantes da marinha
nos costados. Ademais, Mai-mai, que sabe mais dos marinheiros dyaks e dos piratas em geral que doze de nós juntos, assegurou-me que é simplesmente um pequeno paraú
de Karimata, e está assombrada de que navegue tão confiante porque isto é território de Wan Da. Quando ele não está caçando nem de serviço no palácio, navega de
um lado para outro pelo estreito e cobra tributos para quem aceitou sua proteção e afunda ou queima os barcos dos outros.
Por fim os infantes da marinha subiram pesadamente, com suas casacas vermelhas, suas brancas bandoleiras e seus brilhantes mosquetes, aptos a participar em um desfile
em terra. Alinharam-se junto à borda, junto a todas as bordas, e o capitão Aubrey gritou para Stephen:
- Por favor, diga-lhe que vire para bombordo!
Ouviram-se vários gritos em falsete dando ordens em chinês e depois o junco descreveu uma suave curva que lhe permitiu mostrar seu esmagador armamento, que incluía
duas caronadas. Depois de contemplá-lo durante um momento, os piratas viraram e se afastaram com rapidez navegando para o norte, em busca de outra presa mais fácil.
- Senhor Welby - disse Jack -, salvaria algumas vidas se ordenasse seus homens romperem filas imediatamente. E permita-lhes que tirem as meias.
Trocou vários sorrisos e inclinações de cabeça com Li Po e depois disse a Stephen e a Edwards:
- Sinto muito ter deixado que tremessem de medo tanto tempo, mas a construção do junco é tão diferente com as que estamos acostumados a ver que os pobres homens
não podiam encontrar suas coisas. As botas estavam em uma bodega; a roupa, em outra; as baionetas, separadas das bandoleiras; e o calcário no porão de popa, junto
com a pólvora. Acreditariam, cavalheiros, se lhes dissesse que este barco tem nada menos que seis porões separados? E quando digo separados quero dizer divididos
entre si por um anteparo impermeável.
Nesse momento seus oficiais subiram em grupo a escada e chegaram ao curioso castelo de popa ou pequena plataforma para o qual não havia nenhum termo no vocabulário
da Armada Real. Olharam ao seu redor com a mesma expressão de assombro que geralmente põem os homens do interior quando estão a bordo de um barco de guerra.
- Senhor Fielding, não tenho razão ao dizer ao doutor que há nada menos que seis porões separados?
- Esse é um cálculo moderado, senhor - respondeu Fielding. - Richardson e eu contamos sete, e o oficial de derrota, oito, assim que vamos fazer outro percurso. Os
guardas-marinhas dizem que contaram um número de dois dígitos.
- Mai-mai, querida - disse Stephen assomando-se em um gradeado abaixo do qual se via as duas meninas brincarem de um jogo similar à amarelinha -, seria tão amável
de mostrar a estes senhores todos e cada um dos compartimentos do junco? Estou seguro de que lhe darão uma bolacha de barco inteira para você sozinha. - As meninas
adoravam as bolachas de barco, apesar de velhas, e não podiam acreditar que em tempos normais dessem uma libra aos marinheiros todos os dias úteis.
- Esta forma de construir um barco é estranha - disse Jack -, mas bem sabe Deus que tem suas vantagens. Se a Diane tivesse estes anteparos, agora estaria navegando.
Depois seguiu falando das manobras que se poupavam e da solidez e da flexibilidade, que eram maiores que as que outras estruturas proporcionavam, mas se interrompeu
ao notar que seu interlocutor punha cara de não entender nada.
- Tenho que curar o menino - Stephen se desculpou. - Ali à direita há outro pelicano.
Além de ter que revisar as ripas e voltar a pôr no menino o chamativo bálsamo violeta debaixo do atento olhar de seu pai, tinha que fazer algo realmente sério, uma
ronda em companhia de Macmillan, a quem, para sua surpresa, encontrou bêbado. Era comum que nos barcos de guerra os homens estivessem um pouco bêbados depois do
almoço, e nesse barco ficavam mais que o usual, pois o grogue estava mesclado com a aguardente de palma de Li Po, uma bebida alcoólica quase duas vezes mais forte
que a que haviam tirado da Diane depois que o contador a aumentasse jogando-lhe água de chuva e um pouco de vitríolo. E Macmillan, certamente, havia comido no camarote
dos guardas-marinhas ao meio-dia. Apesar disso, Stephen se assombrou porque Macmillan geralmente ficava sóbrio. Inclusive agora mantinha perfeitamente o equilíbrio
e punha bem as vendas, mas sua língua natal, o escocês, com suas curiosas interrupções glóticas, sons aspirados e fortes erres, interferia no inglês que costumava
falar. Ademais, atuava com maior segurança e estava mais loquaz que de costume.
- Passei a noite toda acordado e de repente compreendi por que entalou a perna do menino - disse. - Ah, ah! Deve de ter pensado que eu era um tonto.
- Não, em absoluto - respondeu Stephen. - Tem uma deformação congênita na canela que talvez tenhamos que cauterizar para evitar problemas no futuro. Notou?
- Sim, notei. Minha mulher tinha uma igual, mas em cima do joelho.
Encontravam-se em um lugar quase privado, um lugar que servia como sótão do capitão e ambulatório, e Stephen, que sinceramente apreciava e inclusive sentia afeto
por seu ajudante, pensou que devia dizer:
- Não sabia que era casado, senhor Macmillan.
Macmillan tardou um pouco em falar porque estava muito ocupado pegando os comprimidos, o gesso, as poções e as vendas com seu obsessivo perfeccionismo, e quando
por fim começou, fez como se já tivesse respondido e essa fosse a continuação da resposta.
- Pensava que uma esposa era uma pessoa a quem se podia contar seus sonhos, mas um dia ela me jogou na cara as fatias de bacon que estava fritando na frigideira
e gritou: "Ao diabo com seus malditos sonhos!" e partiu dando batendo a porta. - Então fechou o estojo de remédios, repetindo o mesmo movimento de sempre com a chave,
e prosseguiu: - Nunca voltei a vê-la.
Em um parêntese contou que viviam no andar mais alto de um edifício em Canongate e depois, em um tom de voz diferente, acrescentou:
- Eu não era um bom esposo para uma jovem tão alegre como ela. De menino sonhava com velas que se dobravam debaixo do sol até que chegavam a tocar a prateleira;
quando já era um homem, tinha sonhos muito parecidos, como, por exemplo, que estava apontando uma pistola com gesto triunfal e o canhão se dobrava, se dobrava...
Mais lá de várias cobertas e várias bodegas Stephen ouviu o tambor tocar Roast Beef of Old England para convocar aos oficiais para o almoço.
- Desculpe-me, Macmillan - Stephen o interrompeu-, mas o capitão é muito estrito quanto à pontualidade.
Nesse dia, em lugar de rosbife havia restos da babirussa, alguns cozidos ao estilo inglês e outros ao estilo chinês, uma pequena variedade de pratos javaneses e
a melhor sopa de ninho de pássaro que um homem que não fosse o imperador podia tomar em sua vida.
- Acho, cavalheiros - disse o capitão dois minutos depois que brindaram ao rei -, que estamos orçando. Doutor, permitiria que Ahmed subisse até o convés para saber
o que se passa?
Ahmed regressou em um momento e, fazendo uma inclinação de cabeça, explicou em tom de desaprovação, mas conciliatório, que estavam detendo o junco, soltando as velas
para permitir a aproximação de um barco pirata com o dobro do tamanho do junco, e que Li Po lhe havia dito que não era possível nem desejável fugir e que poderia
ser fatal.
- Saímos da frigideira para o fogo - disse Edwards a Stephen quando estavam sobre os cabos aduchados, justo atrás de Jack e seus oficiais, olhando o paraú extraordinariamente
grande que estava por barlavento e a canoa que se aproximava deles.
- Com sua permissão, senhor posso subir nos mesmos cabos que o senhor? - perguntou Reade em voz baixa.
- Certamente que pode, senhor Reade! - respondeu Stephen. - Dê-me a mão. E, pelo amor de Deus, tenha cuidado com esta madeira para que o toco não bata nele, porque
me partiria o coração ver estragada uma união tão perfeita. - Voltou-se de novo para o secretário e continuou: - É uma assombrosa figura retórica, senhor Edwards,
porém, se me perdoa, não muito exata. Seria melhor dizer "grelha", pois os malaios sempre assam na grelha os seus prisioneiros cristãos, isto é, a todos os que não
crucificam. Pode ler muitas coisas sobre este assunto no livro de Pére du Halde.
- Acho que se não fosse por este tratado, estaria muito disposto a apostatar - disse Edwards.
A canoa se abordou com o junco e seu capitão e dois subordinados foram levados à imitação de portaló, onde Li Po e seus companheiros os receberam com uma profunda
reverência. Quando Li Po pronunciou as primeiras palavras, o capitão olhou com assombro para os marinheiros ingleses, para os infantes da marinha (agora vestidos
com velhas calças e camisas), aos oficiais e finalmente para Stephen.
- Wan Da, meu amigo, como está? - perguntou Stephen. - Sem dúvida, terá reconhecido ao capitão Aubrey e a seus respeitáveis oficiais, e também ao senhor Edwards,
que guarda o valioso tratado.
Indubtavelmente, os reconhecera, e disse que ficaria encantado de tomar café com o doutor Maturin e o capitão Aubrey tão logo seus subordinados tivessem terminado
seu trabalho, que consistia em recolher cento e vinte e cinco moedas de prata e três cestos de ninhos de pássaro como pagamento pelo pedágio. Posto que Li Po, desde
que vira aquele paraú tão bem conhecido, estivera reunindo com cuidado as moedas, escolhendo as menos valiosas e mais duvidosas que tinha em sua cabine, a operação
não durou muito. Mas durante este tempo, ainda que foi breve, Stephen pôde informar-se por Wan Da de várias coisas sobre a fragata francesa Cornélie, já pronta em
Pulo Prabang para navegar mas ainda sem um mínimo de provisões, que os franceses faziam grandes esforços para conseguir, e essas coisas lhe pareceram suficientes
para declinar um convite em nome de Jack, a quem disse em um aparte:
- Escute, meu amigo, nos convidaram para ir ao outro barco, mas para você isso só significaria ficar ouvindo falarmos por longo tempo, um tempo que poderia alongar-se
devido à tradução. Eu lhe contarei o principal quando regressar.
Assim, foi sozinho ao outro barco.
- Sim - disse Wan Da, conduzindo Stephen até uma fila de almofadas -, está pronta para navegar. Já se encontra na baía; todos os navegantes experimentados aconselharam
aos franceses que passem pelo estreito de Salibabu nesta época do ano e eles juram que isso é o que farão assim que possam carregar provisões suficientes para chegar
até ali. E estão conseguindo bastantes coisas. Naturalmente, não têm dinheiro nem crédito, mas trocaram seus seis canhões de nove libras, certa quantidade de balas
e metralha, vinte e sete mosquetes, duas correntes de âncora, uma âncora e uma âncora pequena por comida, principalmente sagu. Estarão fartos do sagu muito antes
de chegarem ao estreito de Salibabu, ah, ah, ah!
- O senhor realmente acredita, senhor Wan Da, que a desesperada tripulação de um barco bem armado pode limitar-se a viver de sagu?
- Não se pode encontrar um barco mais débil em algum canto do mar. Os tigres necessitam saciar-se. Porém, como lhe dizia no junco, seu problema é a pólvora. O condestável
era um homem negligente e já havia vários barris estragados pouco depois de chegarem; depois, a chuva caiu muito quando desatou o tufão, o mesmo que afetou aos senhores.
Causou-me muita tristeza saber o que lhes ocorreu - acrescentou, colocando a mão no joelho de Stephen. - Assim que toda a que tinham na costa se empapou. Agora o
enviado francês, o capitão e todos os oficiais hão reunido seus anéis, relógios, accesórios, os talheres e objetos de prata, como as fivelas dos sapatos, fechaduras
e dobradiças, para conseguir uma quantidade de dinheiro com que comprar tantos barris ou meios barris como o sultão lhes permita.
- Esse é um monopólio da coroa, claro.
- Oh, sim! Com excessão da pólvora que usam os chineses para os fogos de artifício. Não sei que quantidade os franceses puderam obter secretamente deles, mas não
creio que seja muita, e além de ser pouca terá força escassa.
- Que opina o sultão?
- Não se preocupa. Como Hafsa está em um estado de gestação avançado, comprou em Bali uma concubina, uma encantadora criatura de pernas compridas que parece um garoto
e que, conforme dizem, é perversa. - Wan Da esteve alguns momentos pensando e rindo para seu interior e depois sentenciou: - Está obcecado por ela e larga tudo nas
mãos do vizir.
Stephen conhecia bem a Wan Da. Haviam caçado juntos e Wan Da agira como intermediário quando Stephen comprou o favor do governo com letras emitidas por Shao Yen.
Depois de refletir alguns momentos, pegou outra dessas letras com o bem conhecido selo do banqueiro chinês e disse:
- Wan Da, por favor, tenha a amabilidade de averiguar se isto pode persuadir ao vizir de que se oponha à venda de pólvora aos franceses. Diga-lhe que poderiam usá-la
para atacar Pulo Prabang, em vingança por não ter firmado o tratado com eles, e também apoderar-se do dinheiro do subsídio inglês e do tesouro real e violar as concubinas.
O senhor não deve nada aos franceses. Já cumpriu a sua palavra de protegê-los. O que lhes ocorra longe (por exemplo, no remoto estreito de Salibabu), não é assunto
seu. De toda forma, como bem sabe, o que vai suceder já está decidido, o que está escrito, está escrito.
- Muito verdade - respondeu Wan Da. - O que está escrito, indubtavelmente, está escrito. Seria uma bobagem negá-lo.
Mas não parecia muito decidido nem convencido, e quando cogía a cafeteira para voltar a se servir, sorriu forçadamente.
- Recorda-se do rifle de Fox, o que se chamava O Xale? - perguntou Stephen depois de tomar outra xícara de café e de fazer um comentário sobre o urso apicultor.
A expressão de Wan Da se mostrou alegre ao recordá-lo.
- O que tinha a cabeça de um cisne no ferrolho?
Stephen assentiu com a cabeça e disse:
- Agora é meu. Far-me-ia a honra de aceitá-lo como prova de amizade? Eu o entregarei aos tripulantes do bote quando me levem de regresso ao barco. Agora, amigo Wan
Da, tenho que deixar-lhe.
- Sua excelência, um dos grandes juncos locais acaba de chegar ao porto carregado até os topes de envergonhados marinheiros britânicos.
- São de alguma das Companhias das Índias?
- Oh, não, senhor! - Pelo o que se pode ver, apesar de sua sujeira, são brancos; ou bastante brancos. Jackson os observou com a luneta e pensa que pertencem ao barco
corsário de Mauricio que zarpou no mês passado.
- Malditos sejam! Senhor Warner, faça todo o necessário para que se alojem nas barracas da cavalaria, que estão bastante limpas. E pode pedir ajuda ao major Bentinck.
O governador voltou a se ocupar de sua orquídea. Era uma epifita que estava colocada em um suporte alto de modo que o conjunto de suas quase cinqüenta flores brancas
(de um branco purísimo com o centro dourado) pendurava para o lado próximo ao cavalete e quase roçava o relógio, um raro relógio pelo qual media seus momentos de
ócio. Preocupava-se muito com a exatidão das coisas como para trabalhar rapidamente, e só havia pintado dezenove quando o secretário regressou e anunciou:
- Desculpe, excelência, mas há um tipo do junco que insiste em ver-lhe. Conforme diz, possue documentos que só entregará ao senhor pessoalmente. Diz que é médico,
mas não usa peruca e não se há barbeado em uma semana.
- Ele se chama Maturin?
- Envergonha-me dizer que não ouvi seu nome, senhor, porque estava feito uma fera quando cheguei ao saguão. É um homem feio, baixo, de compleição débil e de tez
pálida.
- Diga-lhe que entre e cancele meus encontros com o adido Selim e o senhor Pierson.
Então pôs cuidadosamente o cavalete, as aquarelas e a orquídea de um lado, apertou o gasto botão do relógio e quando a porta se abriu, avançou para ela apressadamente
exclamando:
- Meu querido Maturin, quanto me alegro de ver-lhe! Nós lhe dávamos por perdido. Espero que esteja bem.
- Perfeitamente bem, obrigado, governador, só um pouco agitado - respondeu Stephen, cujo rosto, em verdade, não estava amarelado como era habitual. - O sargento
me ofereceu quatro peniques para que me fosse.
- Sinto muito. Quase todas as pessoas foram trocadas. Mas sente-se, por favor, e tome um pouco de laranjada. Aqui tem uma jarra muito fria. E agora conte-me o que
se passou em todo este tempo.
- Fox teve êxito nas negociações do tratado. Imediatamente a Diane zarpou para chegar ao encontro que tinha diante das Falsas Nantunas. O outro barco não apareceu,
e Aubrey, depois de esperar o tempo estipulado, pôs rumo a Batavia. Durante a noite, a fragata encalhou em um arrecife que não figurava nas cartas marítimas quando
havia maré viva. O mar estava bastante calmo e o acidente não causou nenhum desastre nem, certamente, um naufrágio; contudo, foi impossível desencalhá-la apesar
dos enormes esforços realizados e tivemos que resignar-nos a esperar a seguinte maré viva que se formaria com a mudança da lua. Mas o senhor Fox pensou que não devia
perder tempo e zarpou rumo a Batavia com seu séquito no mais sólido dos botes da fragata. O bote foi açoitado pelo mesmo tufão que destruiu a Diane enquanto permanecia
no arrecife, pelo que suponho que se terá perdido. Não teve notícias dele?
- Nenhuma em absoluto. E não acredito que pudesse tê-las, pois esse tufão foi tremendamente destruidor. Dois barcos que fazem o comércio com as índias ficaram desmantelados
e muitos, muitos barcos do país se encheram de água e afundaram. Não há esperança possível de que uma embarcação aberta tenha se salvado.
Depois de uma pausa Maturin disse:
- Ele deixou uma cópia oficial com seu secretário, o senhor Edwards, como precaução. Estou com ela aqui - acrescentou, entregando-lhe uma pasta. - Certamente que
era um dever e um privilégio de Edwards trazê-la, mas o pobre jovem está prostrado por causa da disenteria e, para não perder tempo, pediu que lhe entregasse e lhe
apresentasse seus respeitos.
- Muito correto de sua parte.
Raffles tirou o envelope da pasta e perguntou:
- Permite-me?
- Certamente!
- Nenhum enviado já conseguiu melhores termos - disse depois de sua leitura -, parecem ditados pelos ministros. - Apesar disso, não parecia totalmente satisfeito,
e depois de ter olhado inquisitivamente para Stephen, acrescentou: - Mas há uma carta adjunta.
- Isso mesmo - confirmou Stephen. - Eu a li para ver se nela se revelava minha participação na operação, para não dizer que me atraiçoava. Algo estranho me fez supor
que era possível.
- Pelo menos não fez isso - disse Raffles -, mas a carta é uma violenta e injuriosa denúncia. Pobre Fox! Eu via isto acontecendo há vários anos, mas que chegasse
a tal extremo... talvez não o creia, Maturin, mas de jovem era uma excelente companhia. É terrivelmente injuriosa - repetiu, olhando a mal-intencionada carta com
pesar.
- É tão injuriosa que estive tentado de destruí-la.
- O senhor Edwards conhece o conteúdo da carta?
- Não, o pobre jovem não sabe. Tem todas suas esperanças postas na entrega do tratado, com o que isso implica em Whitehall.
- Compreendo, compreendo. Pode assegurá-lo, verdade, Maturin?
- Certamente!
- Se se fizesse pública, destruiria a boa reputação de Fox. Todos seus amigos lamentariam extraordinariamente... - Então viu a sua mulher passar pela frente da porta
de vidro com luvas de jardinagem e disse: - Olivia, querida, aqui está o doutor Maturin, que regressou de sua viagem junto com a maioria de seus companheiros.
- Senhora - disse Stephen -, peço perdão humildemente por aparecer neste estado, com estas calças, com o cabelo sem empoar e isto que quase se poderia chamar de
barba. Ainda que o capitão Aubrey considerou que não devia vir, que desprestigiaria a Armada, desprezo seu conselho. Nem ele nem nenhum de seus homens porão um pé
na costa até que estejam arrumados como para passar pela inspeção de um almirante. Tem que compreender, senhora, que viajamos em um sujo junco empregado geralmente
para transportar minério de ferro, que é uma importante fonte de sujeira. Como nossa roupa está guardada em múltiplos compartimentos, o capitão tardará em torno
de uma hora antes de ter a honra de visitar-lhes, mas me há dito que entretanto lhes apresente seus respeitos.
A senhora Raffles sorriu. Expressou a alegria que lhe produzia voltar a ver o doutor Maturin, e anunciou que imediatamente mandaria um mensageiro para convidar ao
capitão Aubrey e seus oficiais para almoçarem nessa tarde e pediu licença e saiu.
- Bem - disse Raffles quando ambos se sentaram de novo -, quer me dizer como o tratado foi obtido?
- Desde logo, influíram muitos fatores: o subsídio, os argumentos que deu Fox e outros. Mas um foi o fato de seu banqueiro e o amável Van Buren me apresentar aos
intermediários apropiados, e pude ganhar assim o favor da maioria dos membros do gabinete.
- Confio em que não suporá que o Governo lhe reembolsará mais de um décimo dos gastos. E somente o fará depois de sete anos de impertinente insistência.
- Não. Eu me permiti o luxo de fazê-lo principalmente para defender uma boa causa, mas tenho que admitir que também por um veemente desejo de derrotar a Ledward
e ao seu amigo.
- Oh! E o que lhes aconteceu?
- Morreram em um distúrbio depois de perder seu prestígio na corte.
- Que Deus lhes perdoe.
- Posto que os franceses quase não tinham dinheiro, pois Ledward o gastara jogando, não tinha concorrência, assim que o luxo não foi tão caro. E agora quero permitir-me
outro: a compra de um mercante mediano que possa navegar velozmente.
- Então, não tem intenção de regressar à Inglaterra em algum dos barcos que fazem o comércio com as índias?
- Absolutamente nenhuma. Não lhe falei do encontro que temos com... com outro barco nestas águas ou suas proximidades, e de que temos que regressar passando por
Nova Gales do Sul?
- Sim, mas pensei que já tinha passado o momento.
- Não, porque se previram várias possibilidades. Também, em confiança, direi que é possível que nos encontremos com a Cornélie.
- Não seria necessário nesse caso um barco de maior potência e, portanto, fazer um considerável gasto?
- Sem dúvida, é necessário fazer um considerável gasto, mas me resta bastante dinheiro depositado nas mãos de Shao Yen, e os presentes que fiz foram muito pequenos.
E se isso não for suficiente, sempre posso trazer dinheiro de Londres. - Fez uma pausa com estranheza e depois continuou: - Parece triste, senhor. Tem, se me permite
dizê-lo, uma expressão triste e desconcertada.
- Bem, para lhe ser sincero, Maturin, devo confessar que estou triste e desconcertado. Não há cartas pessoais para o senhor nem para Aubrey, provavelmente porque
as levaram para Nova Gales do Sul, mas tenho más notícias para lhe dar. Não me disse que trocara de banco porque não estava satisfeito com o que tinha?
- Isso mesmo. Só havia ali um monte de porcos ignorantes, mal-humorados e ingratos.
- E elegeu o banco de Smith e Clowes para substituí-lo, verdade?
- Exatamente.
- Então, sinto muito em lhe dizer que o banco de Smith e Clowes suspendeu os pagamentos. Está na bancarrota. É possível que pague pequenos dividendos aos credores,
mas até agora não há nem a mais remota possibilidade de que o senhor possa sacar dinheiro.
Nesse momento, Stephen lembrou claramente o escritório do advogado de Portsmouth onde se redigiu o documento em que pedia ao seu banco que transferisse tudo o que
possuía para o banco de Smith e Clowes. Também lá se escreveu a procuração que outorgou a sir Joseph Blaine, que também era o executor de seu testamento. O advogado
que redigiu o documento era muito competente e estava acostumado a enfrentar-se a estratagemas, fraudes e má fé. Era um velho empoeirado que desfrutava muito com
seu trabalho e mastigava com suas desdentadas gengivas enquanto a pluma deslizava sobre o papel. A empoeirada habitação tinha as paredes cobertas de livros, para
usar como referência mais que por prazer, e a empoeirada janela dava para uma parede, de cujo canto pendurava uma lamparina que iluminava tenuamente o escuro teto,
e a sombra de uma gaivota que passou pela frente se projetou sobre aquela desordem.
- Aqui tem, senhor - havia dito o advogado. - Se fizer cópias, e em assuntos como estes um documento autógrafo é sempre melhor, desafio ao homem mais polêmico, crítico
e sabichão do reino a superá-lo. Não esqueça de firmar os dois documentos e mandá-los a Sir Joseph com o correio da tarde. Não selam a saca até as cinco, pelo que
terá tempo para fazer duas cópias com letra pequena e embarcar antes que a maré mude.
Quase não pasarra um instante em recordar tudo aquilo, incluído o pequeno discurso que com voz escandalosa o advogado deu, pois agora, ao ouvir Raffles, parecia
que não se havia perdido nem uma palavra.
- Mas por outra parte, alegra-me dizer-lhe que tenho uma notícia menos desagradável para dar-lhe, uma notícia que de certa forma compensa a anterior. Faz pouco tiramos
da água uma escuna holandesa de vinte canhões que, por causa de uma infecção, foi afundada de propósito há vários meses e agora é tão estanque e está em tão boas
condições como no dia que a lançaram n’água. Se estivéssemos no terraço poderia vê-la com uma luneta. Encontra-se justo em frente da ilhota próxima ao estaleiro
da Companhia das índias holandesa. Como lhe digo, não é mais do que uma embarcação de vinte canhões, assim que não pode enfrentar a Cornélie, mas pelo menos lhes
permitirá comparecer ao encontro.
- O senhor me surpreende, governador - disse Stephen. - Estou surpreso e contente.
- Fico alegre - respondeu Raffles, olhando-lhe desconcertado.
- Permite que eu vá comunicar a boa nova a Aubrey? Eu o deixei muito aflito, examinando cuidadosamente os inumeráveis livros e documentos da Diane que deve apresentar
ao oficial de marinha de maior patente daqui. Está em um mar de confusões, pois quando os dyaks nos atacaram na ilha, perdeu o contador e seu escrevente.
- Oh, Maturin, não me disse nada disso!
- Posso contar muito pouco sobre as batalhas. Geralmente, não as vejo nem participo delas. Nesta precisamente estive na tenda-hospital quase todo o tempo e nem ao
menos cheguei a tomar parte na carga final. Foi uma luta ensangüentada, e ainda que eles tenham matado ou ferido a muitos de nossos homens, nós os aniquilamos. Mas
o capitão lhe contará com precisão. Moveu-se de um lado para o outro do campo de batalha como se aquela fosse sua terra natal. Sem dúvida, o senhor saberá como rugem
os filhotes de tigre.
- Sem dúvida!
- Esse é o ruído que ele faz quando empreende uma batalha. Permite-me ir buscá-lo agora e trocar minha roupa por outra mais apropiada para sentar-me à mesa da senhora
Raffles?
- Certamente! Minha falua lhe levará ao barco imediatamente e trará a todos nossos convidados. Por favor, diga-me quantos oficiais sobreviveram.
- Todos menos o contador, o escrevente e um guarda-marinha, ainda que Fielding ficou coxo para o resto de sua vida, Bennett, um ajudante de oficial de derrota, ainda
encontra-se em um estado delicado, e Reade perdeu um braço.
- O garoto de cabelo cacheado?
- Não. O garoto de cabelo cacheado morreu.
Raffles moveu de um lado para outro a cabeça, mas como não era possível fazer nenhum comentário apropriado, limitou-se a dizer:
- Mandarei buscar a falua. - E depois de uma pausa acrescentou: - Com relação à apresentação dos livros da fragata que Aubrey pensa fazer a um oficial superior,
não há nenhum aqui, o mais próximo está em Colombo. Por essa razão tenho tanta liberdade para dispor da escuna holandesa. Além disso, permita-me dizer que conheço
casos em que se hão perdido todos os livros e documentos de um barco em um naufrágio ou devido ao ataque do inimigo e as autoridades não se alteraram; em troca,
em casos em que faltava um só certificado de aduana, um recibo ou uma firma em um dos muitos, muitos livros, houve uma interminável disputa por carta e as contas
não se ajustaram até sete ou dez anos depois. Digo-lhe isto extra-oficialmente.
Quando descia para a costa, Stephen pediu ao timoneiro do governador que o levasse a uma loja de brinquedos.
- Quero comprar três bonecas para as meninas - disse.
Talvez essa fosse a última vez que ia vê-las, porque havia se decidido que Jack e ele se alojariam na residência do governador e Li Po tinha pressa para recolher
o carregamento de minério de ferro e zarpar quando a maré mudasse.
- Bonecas, senhor? - perguntou o timoneiro com assombro e, depois de pensar um pouco, acrescentou: - Só conheço uma loja holandesa, e não sei que pensará uma menina
chinesa de uma boneca holandesa. Provavelmente o senhor o saberá melhor que eu, senhor, dado que conhece às interessadas. Dado que conhece às interessadas - repetiu
com satisfação.
Levou Stephen a uma loja situada junto a um canal que tinha janelas de ambos os lados da porta. E diante da porta aberta estava sentada a vendedora, uma mulher bátava.
- O cavalheiro quer comprar uma boneca - anunciou o timoneiro. - Uma boneca - repetiu em voz mais alta, fazendo um estranho gesto com o braço e a cabeça.
A vendedora os olhou com seus claros olhos semicerrados e uma expressão de desconfiança, mas ao reconhecer a libré dos servidores do governador, levantou-se e lhes
permitiu entrar. Só podia escolher entre meia dúzia de bonecas vestidas com a roupa da moda em Paris há vários anos. A mulher lhes levantou a saia e o saiote para
mostrar as calcinhas com babados, que eram de tira e põe.
- Autêntica renda, sim, sim.
Depois de observá-las alguns minutos, Stephen, presa do desespero, escolheu as três com vestidos menos atrevidos.
A vendedora escreveu o preço claramente em um cartão e deu ao timoneiro repetindo:
- Autêntica renda, sim, sim.
- Diz que valem meio joe cada uma - informou o timoneiro, surpreendido, pois meio joe equivalia quase a duas libras.
Stephen entregou o dinheiro, e a vendedora, com um olhar malicioso, acrescentou três urinóis ao pacote.
- Não sei... - disse o timoneiro. - Nunca vi nenhuma menina chinesa com nada como isto, e tampouco a uma moura.
Quando a falua do governador começou a navegar em direção ao junco, Stephen pensou na pobreza em que se encontrava de novo, mas muito superficialmente. Não analisou
quais eram seus sentimentos, isto é, o sentimento que se estava formando no profundo de seu ser. De momento, só sentia tristeza por ter perdido algo e certa inquietação.
Pensou que às vezes, nas batalhas, tinham lhe levado homens que malferidos que não se davam conta disso, sobretudo se as feridas não se viam.
"Eu me esquecerei disto em uma semana", pensou. Isso é o que havia feito quando lhe ocorrera outras desgraças e sofrera por causa de perdas e infidelidades. Ainda
que tinha algumas desvantagens e às vezes os sonhos o atormentavam durante a noite, ainda lhe parecia que era o melhor modo de enfrentar uma situação em que provavelmente
não se poderiam controlar a emoção e a angústia. Amiúde a importância relativa do assunto era menor que a que lhe outorgava nos primeiros momentos de confusão mental.
Quando subiu a bordo do junco chamou Mai-mai, Lou-Mêng e Pen T'sao e lhes deu seus presentes. Elas lhe agradeceram cortesmente, fizeram repetidas inclinações de
cabeça e pegaram com cuidado os objetos envolvidos cuidadosamente em papel de presente. Porém, pelo assombro com que olharam as bonecas e a expressão surpresa e
ao mesmo tempo indignada que puseram ao reconhecer os urinóis com adornos, Stephen compreendeu que não lhes havia proporcionado o prazer que esperava, ainda que
não estava muito seguro.
Teve melhor sorte na cabine que compartia com Jack Aubrey. Quando caminhava pelo labiríntico interior do grande junco, avançando pelas cobertas curtas e largas,
deu-se conta de que já teria recebido o convite da senhora Raffles, pois nos lugares sombrios havia penduradas elegantes casacas (feitas para resistir a uma tempestade
no pólo ártico), escovadas e arrumadas, junto às quais estavam seus donos vestidos com calções brancos tratando de manter afastados o calor e a poeira.
- Ah, está aqui, Stephen! - exclamou Jack com um sorriso involuntário que arruinou a gravidade de seu tom. - E provavelmente terá dado muito prestígio à Armada.
Admira-me que os cachorros não o tenham perseguido. Ahmed e Killick se ocuparam de preparar sua roupa quanto chegou o convite, e já está sobre o baú. Vou chamar
o barbeiro da fragata.
- Antes que venha deixe dizer-lhe duas ou três coisas - disse Stephen. - A primeira é que Raffles tem um barco para você, uma escuna de vinte canhões que esteve
totalmente imersa a propósito durante vários meses e acaba de ser tirada da água.
- Oh! - exclamou Jack radiante de alegria, quer dizer, com a cara vermelha, onde ressaltavam seus dentes brancos e seus olhos de um azul intenso, e apertou a mão
de Stephen com uma força tremenda.
- A segunda é que quando nos encontramos com Wan Da e me disse, como sabe, que a Cornélie zarparia logo, não lhe contei que tomaria uma rota muito parecida à que
deveria ter seguido a Diane e terá que seguir a corveta holandesa recém recuperada, a que quase obrigatoriamente passa pelo estreito de Salibabu. Tampouco lhe disse
que tem escassez de pólvora e que, como o comércio desta é um monopólio do Estado, pedi a ele que persuadisse ao vizir a não lhe dar mais.
Jack baixou a vista e a cor vermelho-ameixa que denotava sua alegria desapareceu de sua cara.
- Naquele momento pensei no mercante que pensávamos comprar e queria evitar que o capturassem ou o destruíssem no meio do mar. Mas provavelmente a Cornélie tenha
um pouco de pólvora, quer seja porque a conservaram ou porque a compraram dos comerciantes chineses, e, também, não sei se Wan Da terá êxito.
Pensou que era melhor não dizer nada sobre os livros da fragata nesse momento. Fez uma pausa e então começou o toque de um tambor anunciando a monção, um toque forte,
cada vez mais forte.
- Bem - disse Jack, recuperando um pouco do colorido do princípio -, não tenho palavras para expressar o contente que estou pelo barco do governador.
Depois, alçando a voz, gritou:
- Killick, Killick! Diga ao barbeiro que venha.
- Cavalheiros - disse o governador -, não encontro palavras para expressar a alegria que sentimos a senhora Raffles e eu ao ver-lhes sentados a esta mesa. Sinceramente,
gostaríamos que estivessem aqui mais homens de seu grupo, todos os de seu grupo - acrescentou, fazendo uma inclinação de cabeça para os feridos e sorrindo para Reade,
que se ruborizou e olhou para seu prato -, ainda que há muitos precedentes gloriosos...
Foi um discurso de boas-vindas bem estruturado e sincero, pronunciado com uma alegria que amiúde lhe havia permitido ter êxito ante os comitês, mas chegou a alcançar
o tom dos da Armada. Ademais, os ouvintes de Raffles, que geralmente comiam muito mais cedo, estavam famintos, afogados de calor e sedentos apesar da chuva que havia
traspassado suas capas de chuva, e qualquer discurso lhes teria parecido muito longo. Não mostraram desgosto, mas tampouco prestaram muita atenção, e quando Reade
se pôs pálido, o governador terminou repentinamente, saltando cinco parágrafos, e bebeu por seu feliz retorno uma taça de clarete frio, que nesse clima se considerava
mais são para os enfermos e os jovens.
Comeram um prato depois de outro com alegria propiciada pela cordialidade da senhora Raffles, por sua habilidade natural para ser uma anfitriã e pela fresca brisa
que seguiu à chuva. Foi maravilhoso ver quanto chegaram a comer os enfermos e os jovens e com que amabilidade lhes persuadiram de que partissem sem formalismos quando
sentissem o menor cansaço.
Foi um grupo mais reduzido o que chegou a tomar o vinho do porto e um ainda menor o que se reuniu com a senhora Raffles e as outras duas damas para tomar café e
chá. E só Jack, Stephen e Fielding chegaram a entrar na biblioteca com o governador. Jack já havia mostrado seu agradecimento, seu profundo agradecimento a Raffles
por ter tido a amabilidade de oferecer-lhe a escuna holandesa, a Gelijkheid, e agora o governador lhe entregou uma pasta que continha os planos, um esboço do costado
e outro do convés, uma seção longitudinal e todos os dados que lhe permitiriam formar uma idéia de sua forma e saber suas medidas exatas. Os marinheiros os examinaram
detalhadamente enquanto Ahmed trazia as espécies botânicas sobreviventes da viagem. Antes de abrir o pacote, Stephen contou sucintamente a Raffles como era Kumai,
o outro edén, com seus orangotangos, seus tarsios e suas tupaias.
- Se dispusesse de quinze dias de descanso, eu iria ali amanhã mesmo - disse Raffles. - A desculpa perfeita seria uma visita de cortesia ao sultão para ratificar
a aliança, e a corveta Plover, que chegará de Colombo no final do mês, proporcionaria a pompa necessária. Mas não se pode imaginar quantas preocupações tem em mente
quem ostenta uma parte de uma coroa, ainda que seja minúscula. Em Java e nos territórios que estão sob seu domínio há grande quantidade de rajás, sultães e grandes
latifundiários, e todos com tendência a cometer parricídio e fratricídio e a dar golpes de estado. Além disso, sempre há conflitos entre javaneses, madureses, simples
malaios, naturalmente, kalangs, buduwis, amboneses, bugis, hindus, armênios e os outros. Detestam-se uns aos outros, mas estão dispostos a se unir para enfrentar
os chineses, e uma pequena revolta pode estender-se com uma rapidez extraordinária.
Olhou com atenção o pacote e depois perguntou:
- Quer uma faca?
- Acho que poderei desfazer o nó - respondeu Stephen, pegando-o com os caninos. - Os marinheiros detestam ver cortarem cabos, cordas e mesmo barbantes - acrescentou
com voz apagada. - Aí está. Neste primeiro pacote há uma coleção do que cresce no bosque que há atrás da casa de Van Buren. Provavelmente a maioria das plantas lhe
sejam familiares.
- Em absoluto! - exclamou Raffles, e enquanto as distribuía em dois montes comentou: - Esta tarde vem um homem que sabe muito das epifitas. Ele se chama Jacob Sowerby
e publicou vários trabalhos em Transactions. Recomendaram-no para o posto de naturalista do Governo. Já entrevistei a um ou dois mais, mas... Oh, nunca vi nada como
isto, nem sequer parecido! - exclamou, apoiando no alto uma planta murcha que só poderia ter atraído a atenção de um devoto botânico.
- Sua excelência - interrompeu um secretário. - O major Bushel mandou um mensageiro para rogar-lhe que compareça ao mercado chinês porque sua presença terminará
com o distúrbio imediatamente. O capitão West já convocou a guarda para se o senhor estimar conveniente ir. E o senhor Sowerby já está aqui.
- Sinto muito - o governador desculpou-se para Stephen. - Depois voltou-se para seu secretário e disse: - Muito bem, senhor Akers. Sairei pelo Pátio do Leão. Por
favor, apresente minhas desculpas ao senhor Sowerby. Espero voltar dentro de meia hora.
E depois, da porta mais distante, gritou:
- Seria melhor que o mandasse subir!
O senhor Sowerby entrou na habitação. Era um homem magro e de uns quarenta anos. Pela expressão tensa que tinha era óbvio que estava nervoso; por suas primeiras
palavras era claro que o nervosismo o fazia adotar uma atitude agressiva.
Stephen fez uma inclinação de cabeça e disse:
- O senhor deve de ser o senhor Sowerby, verdade? Meu nome é Stephen Maturin.
- O senhor é botânico, não é verdade? - perguntou Sowerby olhando para os espécimes.
- Não me atreveria a dizer que sou botânico - respondeu Stephen -, ainda que publiquei um pequeno trabalho sobre as fanerógamas de Upper Ossory.
- Então, é naturalista?
- Acredito que poderia me definir como naturalista - respondeu Stephen.
Sowerby não respondeu imediatamente, permaneceu sentado roendo as unhas. Stephen se deu conta de que o considerava um rival, mas como suas maneiras eram tão grosseiras,
não o tirou de seu erro. Por fim Sowerby, olhando suas unhas roidas, disse:
- As fanerógamas de Ossory cabem em um minúsculo livro. Ossory fica na Irlanda, e não seria necessário trabalhar muito para estudar todo o país, salvo, talvez, as
formas de vida primitivas dos pantanais. Estive lá, sim, estive lá, e ainda que tinham me falado de sua pobreza, surpreendeu-me ver o pobre que eram na realidade
a flora, a fauna e a população.
- Vamos! Não é qualquer ilha que pode gabar-se de ter o medronheiro e o falaropo.
- Não é qualquer ilha que pode gabar-se de ter a capital cheia de líquen islandês e de crianças selvagens e descalças. Há extrema pobreza...
Ainda que a pobreza de que falava Sowerby nesse momento tinha relação com as aves (não havia pássaros carpinteiros, nem picanços, nem rouxinóis), a palavra lembrou
a Stephen a quebra do Smith e Clowes, o que acrescentou um novo elemento aos seus já complexos sentimentos. Estava decidido a não demostrar a Sowerby quanto o incomodavam
e quanta raiva lhe causavam seus comentários, mas lhe resultou difícil suportar que comparasse o Trinity College de Dublim e "o raquítico edifício de tijolo onde
se alojam os estudantes" com "as esplêndidas residências do Trinity em Cambridge, que faz parte de uma universidade muito maior" e que dissesse que "as diferenças
entre as duas ilhas guardam a mesma proporção". Também lhe foi quase impossível escutar com integridade a comprida série de diatribes que lançou contra "os vergonhosos
fatos de 1798, quando um numeroso grupo de traidores se sublevaram contra seu soberano natural, queimaram a reitoria de meu tio e lhe roubaram três vacas" e a afirmação
de que a pobreza e a ignorância sempre foram e seriam o destino dessa desafortunada comunidade dominada pelo clero enquanto seguissem sendo adeptos da superstição
romana.
- Ah, governador! - exclamou Stephen, voltando-se para a porta aberta por onde Raffles entrava com a expressão própia de alguém que cumpriu sua missão. - Alegro-me
de que tenha chegado no momento oportuno para ouvir-me destroçar a... não direi meu oponente, mas meu interlocutor, com uma citação muito apropiada que acaba de
vir a minha mente. O senhor Sowerby sustenta que os irlandeses sempre foram pobres e ignorantes e eu digo que isso nem sempre foi assim, e apoio minha afirmação
não em palavras de crônicas como as dos Quatro Mestres, pois em tal caso poderia ser tachado de parcial, mas nas de um erudito inglês, Beda o Venerável, que Deus
o tenha em sua glória. Na História Eclesiástica, Beda diz: "no ano 664, uma epidemia de peste aniquilou a população da costa sul da Inglaterra". Em irlandês a chamamos
buidhe connail, que significa "praga amarela". E continua: "Pouco depois passou ao território de Northumbria, estendendo-se por toda parte e causando a morte de
uma multidão de homens... Não causou menos danos na Irlanda, onde muitos dos nobres e das pessoas da classe mais baixa... - Tossiu e prosseguiu: - Onde muitos dos
nobres e das pessoas da mais baixa classe da nação inglesa se encontravam então estudando teologia ou vivendo em monastérios, e recebendo dos irlandeses comida e
livros e ensino grátis pró Deo".
Jack o estivera observando atentamente e com grande angústia. Notou que Stephen estava furioso e sabia o que era capaz de fazer. Quando seu amigo se sentou, a quem
lhe haviam deixado de tremer as mãos, exclamou:
- Muito boa citação, doutor! Muito boa citação, palavra de honra. Eu não poderia ter dito nenhuma nem a metade de apropiada se não fosse o Código Naval.
- Indubtavelmente, foi um argumento contundente, meu querido Maturin - disse Raffles. - Foi uma resposta como as que geralmente se dá depois de um sucesso importante.
Que tem a dizer, senhor Sowerby?
O senhor Sowerby só tinha que dizer que não era sua intenção ofender a outra nação, que não sabia que o cavalheiro era da Irlanda e que lhe pedia perdão por qualquer
agravo que involuntariamente lhe tivesse feito. Depois, aproveitando que os marinheiros saiam, partiu.
- Espero que tudo tenha ido bem - disse Stephen.
- Oh, sim! - exclamou Raffles. - O Ramadã está a ponto de terminar, sabe?, e os muçulmanos mais estritos se tornam irritáveis ao final do dia, sobretudo em um dia
tão quente como este. Amanhã voltarão a ser amáveis pessoas manchadas de gordura de cordeiro. Sinto que tenha tido que suportar a este tipo. A entrevista deve ter
lhe parecido eterna.
- O segundo nome do cavalheiro é Prolixo - brincou Stephen.
Durante um tempo ambos classificaram as orquídeas em silêncio e depois, em tom vacilante, Raffles disse:
- Sem dúvida, o senhor costuma estar rodeado de cavalheiros e de seus companheiros oficiais, de pessoas que conhecem sua origem e seu valor. Não sei se saberá que
as más opiniões como essa com respeito à pobreza, a ignorância e a Igreja Católica Romana estão muito propagadas e que os que se relacionaram de alguma maneira com
a sublevação sentem um profundo ressentimento. Se o senhor nunca se relacionou com o tipo de pessoas que têm a autoridade em Nova Gales do Sul, temo que se terá
uma grande surpresa se ficar ali um longo período.
- Relacionei-me brevemente com as que governavam o infortunado William Bligh, pois fizemos escala na baía de Sidney para carregar algumas provisões essenciais no
Leopard. O povoado tinha começado uma insurreição, e pelo pouco que tratei com os oficiais, pareceram-me um monte de déspotas a cavalo, com toda a arrogância e a
vaidade que o termo implica.
- Por desgraça, as coisas não melhoraram desde então.
- É estranho que quando os habitantes das colônias inglesas da América se separaram da Inglaterra - disse Stephen depois de uma pausa -, muitos ingleses os apoiaram,
inclusive James Boswell, em oposição ao doutor Johnson, e em troca, quando os irlandeses tentaram fazer o mesmo, ninguém, que eu saiba, falou a favor deles. É verdade
que Johnson, ao referir-se à desonrosa união com Kevin FitzGerald, disse: "Não se una a nós, senhor. Nós nos uniríamos ao senhor só para roubar-lhe", mas isso foi
muito antes da sublevação.
- Maravilha-me que Johnson fosse tão paciente com o simples de Boswell e que o este tenha escrito um livro tão importante. Recordo de uma passagem na qual o doutor
expressa sua aversão pelos colonos insurretos e diz que formavam "uma raça de convictos que deveriam nos agradecer por tudo o que lhes damos menos a morte na forca".
E também outro no qual diz: "Estou preparado para amar a todos os homens, exceto aos americanos", depois os chama de "pilantras, ladrões, piratas" e afirma que os
vai "queimar e destruir". Mas então a intrépida senhorita Steward diz: "Senhor, este é um exemplo de que sempre atuamos com extrema violência contra aqueles a quem
ferimos". Talvez agora se age com essa mesma violência contra os irlandeses. Gostaria de tomar um ponche comigo?
- Não me apetece, Raffles, ainda que lhe agradeço muito a sua amabilidade. De fato, tão logo como tenhamos classificado este monte, eu me retirarei para descansar.
O dia foi bastante fatigoso.
Quando atravessava a galeria onde ficavam os quartos dos secretários sentiu o odor de ópio, uma droga que tomara durante muitos anos em uma forma mais conveniente,
transformada em láudano. Ele a havia tomado umas vezes por prazer e para relaxar; outras, para aliviar dores; outras, as mais numerosas, para eliminar a excitação
emocional. Abandonou-a quando se reconciliou com Diana, e foi impulsionado a fazê-lo por muitas razões, uma das quais era a crença de que um homem deve arrumar-se
sem fortaleza engarrafada e de que a foça verdadeiramente importante é a que procede de seu interior. Mas ao reconhecer aquele odor, pensou que se tivesse um frasco
a mão seria tentado a quebrar sua resolução, pois sabia que essa noite necessitaria de uma extraordinária presença de ânimo. Em primeiro lugar, porque tinha se chateado
muito e achava que isso não o ajudaria a dormir em absoluto; em segundo, porque provavelmente a parte mais loquaz de seu ser, por muita disciplina que lhe impulsesse,
atormentar-lhe-ia quando estivesse distraído ou próximo a dormir com observações sobre sua atual pobreza: a impossibilidade de manter Diana, dotar uma cátedra de
osteologia, fazer boas obras de vez em quando, pagar algumas rendas vitalícias que prometera, viajar a lugares remotos na Surprise quando por fim se firmasse a paz...
E pensava que, se conseguisse dormir, o despertar seria pior, pois a sua mente limpa compareceriam todas estas idéias, acompanhadas, indubtavelmente, por outras
que ainda não lhe haviam ocorrido.
Mas os fatos demonstraram que as duas suposições eram errôneas. Dormiu quase sem transição, com a conseguinte confusão das últimas palavras do pai nosso. Foi um
sono profundo e relaxado, do qual não saiu até que, ao riscar a alvorada, percebeu que era um luxo estar deitado ali, experimentando um grande bem-estar e sentindo-se
quase liberado do corpo; lembrou com satisfação que tinham um barco, notou que uma enorme figura se interpunha entre a fonte da débil luz e ele, e ouviu que Jack,
com voz suave e apagada, perguntava se estava acordado.
- E se estiver, meu amigo? - perguntou Stephen.
- Bem - disse Jack, e seu vozeirão, como costumava acontecer, encheu o quarto -, então lhe direi que Bonden encontrou um esquife verde, de algum modo, e pensei que
você gostaria de vir comigo para ver a escuna holandesa, cujo nome eu nunca lembro.
- Claro que sim! - exclamou Stephen, saltando da cama e pondo rapidamente a roupa.
- Suponho que poderá se lavar e barbear logo - disse Jack. - Temos que desjejuar com o governador, lembra?
- Sim. Bem, acho que devo, ainda que uma peruca ocultaria uma multidão de pecados.
A cidadela de Batavia, em cujo interior ficava a residência do governador, encontrava-se em um estado quase caótico. A última administração holandesa, em uma tentativa
de acabar com a alta mortalidade causada pelas febres, tinha fechado boa parte do fosso e eliminara ou desviara temporariamente muitos canais, e devido a tudo isso,
Stephen pôde descer desde a janela até o esquife, onde Bonden lhe ajudou a se sentar na popa sobre uma almofada e Jack se reuniu a ele. Percorreram lentamente umas
cem jardas pelo apertado e sinuoso canal, onde em uma ocasião puderam ver de perto às assombradas pessoas que estavam em uma cozinha, e em outra, as ruborizadas
caras de quem se encontrava em um quarto; depois atravessaram a desconjuntada comporta; seguiram avançando por outro canal de águas pouco profundas; e finalmente,
empurrados suavemente pela corrente, chegaram à baía. Era um dia aprazível, e somente havia ali alguns paraús de pescadores que, na bruma, moviam os remos produzindo
um suave burburinho.
Stephen voltou a dormir. Quando despertou, Bonden ainda remava no mesmo ritmo, mas o sol nascente, situado atrás deles, havia dissipado toda a névoa. O mar estava
em calmaria e tinha um colorido azul delicado e uniforme, e Jack Aubrey, através do luminoso ar, olhava para frente com grande atenção.
- Aí está - anunciou ao notar o movimento de Stephen.
Stephen, seguindo seu olhar, viu uma ilhota com um cais e diante dele o casco de um barco pequeno e de cor marrom apagado.
- Oh! - exclamou antes de recuperar do toda sua capacidade de razoamento. - Não tem mastros!
- Que linhas tão delicadas! - exclamou Jack e depois, voltando-se para Stephen, fez um parêntese: - Será rebocada até o dique seco dentro de um ou dois dias, e tem
mastros em abundância. Já viu alguma vez linhas tão delicadas, Bonden?
- Nunca, senhor, excetuando a Surprise, claro.
- De que barco é? - gritou alguém.
- Diane! - respondeu Bonden com voz clara e aguda.
O ajudante de capitão interino recebeu o capitão da Diane com tanta formalidade e cortesia, como era possível com uma brigada de quatro homens, mas a cerimônia acabou
por se estragar quando de baixo chegou um grito em tom enfático e irritado:
- John, se não vier neste momento, os ovos ficarão duros e o bacon queimará!
- Por favor, vá tomar o café da manhã, senhor - disse Jack. - Posso encontrar meu caminho sem dificuldade, pois sua excelência me deu os planos ontem à noite.
De fato, a escuna lhe parecia familiar porque estudara os planos na noite anterior; contudo, enquanto guiava Stephen pelas escadas e cobertas e o levava ao porão,
não parava de exclamar:
- Que embarcação mais bonita! Que embarcação mais bonita!
E quando estavam de novo no castelo, olhando para Batavia, disse:
- Não se preocupe com a pintura nem com os mastros, Stephen. Em poucas semanas de trabalho no estaleiro tudo isso será providenciado. Mas somente a mão de um homem
brilhante com madeira nobre ao seu alcance é capaz de criar uma pequena obra prima como esta. Percebeu suas perfeitas balizas?
Ficou um tempo pensando e sorrindo e depois disse:
- Diga-me, qual foi o epíteto com o qual o pobre Fox se confundiu na primeira vez que o sultão nos recebeu em audiência?
- Resegaran mawar, bunga budi bahasa, hiburan buah pala.
- Está bem, mas o que queria saber era a tradução. Qual era o último?
- Fruto do consolo.
- É isso! Essas eram as palavras que há um tempo estavam em algum canto de minha mente. Acho que para esta pequena escuna de bonitas linhas e placas de cobre novas,
que por ser estanque e ter a popa larga, pode dar consolo a qualquer homem, seria um nome excelente o de um fruto pequeno, por exemplo, noz-moscada Querida Noz-moscada!
Que encanto!
CAPÍTULO 4
Em Batavia ocorriam poucas coisas que tardassem em saber-se em Pulo Prabang, e pouco depois que a Noz-moscada foi incorporada à Armada como correio, com todas as
formalidades que as circunstâncias permitiam, chegou uma carta de Van Buren na qual felicitava Stephen por ter sobrevivido, falava sobre um orangotango de curta
idade, afetuoso e de muito talento que o sultão lhe havia presenteado e terminava dizendo: "Fui encarregado de lhe dizer que o barco se fará ao mar no dia 17, e
ainda que meu informante não pôde dizer se está muito bem abastecido ou não, espera que seus desejos tenham se cumprido pelo menos em parte".
O dia 17. E a Noz-moscada apenas tinha os paus inferiores dos mastros colocados e a bodega, muito limpa, cheirosa e seca, pois inumeráveis trabalhadores indígenas
haviam lixado as paredes até chegar à madeira em estado natural e a haviam secado com os quartéis tirados e as portalós abertas durante as últimas rajadas sufocantes
do passado monção (não havia baratas, nem pulgas, nem piolhos, muito menos ratos ou sujeira do antigo lastro incrustado), estava vazia, tão vazia que a embarcação
quase não estava afundada na água e se via grande parte das brilhantes placas de cobre da proa à popa.
Os encarregados do estaleiro holandês, e sobretudo os trabalhadores, eram muito competentes e conscienciosos inclusive comparados com os da Armada Real; contudo,
formavam uma corporação e não podiam suportar os intrusos. Estavam dispostos a trabalhar tão rapidamente como o limitado número de membros o permitisse e também
(por consideração) várias horas mais das estipuladas, mas não permitiam que se contratasse a nenhum artesão de fora, por mais perícia que tivesse. Somente admitiam
aos que se dedicavam a lixar, um trabalho realmente mesquinho que só se atribuía a uma casta de bugis, e pensavam que não necessitavam de nenhum tipo de ajuda de
nenhum tripulante da Noz-moscada. No estaleiro, a escuna era o terreno dos trabalhadores. Se o senhor Crown, o contramestre, que estava muito impaciente, punha um
dedo em uma vinhateira, algo que estritamente concernia aos aparelhadores, ouvia-se o grito "Todos para fora!" e os membros de todos os grêmios largavam as ferramentas
e desciam pela prancha lavando as mãos simbolicamente, e, depois de longas negociações e de receberem um pagamento pelas horas perdidas, eram chamados ao trabalho
outra vez. Eram, teoricamente, membros de uma nação conquistada, e o estaleiro, a madeira, os cabos e a lona que usavam pertencia ao rei Jorge, mas um observador
objetivo não o perceberia, e o velho chefe, a pobre vítima, que fazia julgamentos muito subjetivos e ficava pálido de frustração, gritava duas ou três vezes por
dia: "Traição!", "amotinamento!", "vão ao inferno!" ou "açoitem a todos diante de todos os barcos da frota!"
- Suponho que os senhores, os cavalheiros da Armada, opõe-se redondamente à corrupção - disse Raffles.
- A corrupção, senhor? - perguntou Jack. - Encanta-me essa palavra. Desde que tive o comando de um barco pela primeira vez, corrompi a todos os encarregados de estaleiros
e de serviços de material de guerra ou de aprovisionamento com um mínimo apego à tradição que puderam ajudar-me a conseguir que meu barco zarpasse mais rápido e
preparado para o combate ligeiramente melhor que outros. Corrompi na medida de minhas possibilidades, e às vezes pedi emprestado para fazê-lo, mas acho que não feri
seriamente a reputação de nenhum homem e que valeu a pena fazê-lo pela Armada, por meus companheiros de tripulação e por mim. Se eu soubesse que cordas mover aqui,
ou se ainda estivessem comigo o contador ou meu escrevente, ambos especialistas no assunto a um nível inferior, faria igual em Batavia, com todo meu respeito, senhor,
e numa escala muito maior, porque tenho mais recursos agora que então.
- É uma lástima, mas até dentro de dois meses não virá nenhum dos barcos que fazem o comércio com as índias, pois seus capitães entendem esta questão perfeitamente
bem. Apesar de tudo, acredito que se o empregado que se ocupa de todas as construções falasse com o superintendente, poderia conseguir algo. Certamente que nem o
senhor nem eu podemos aparecer nem, obviamente, usar fundos oficiais, mas extra-oficialmente farei tudo o que esteja ao meu alcance para ajudar-lhe a zarpar o mais
cedo possível. Detesto que seja necessário untar as pessoas que deveriam agir por si mesmas, mas reconheço que essa necessidade existe, sobretudo nesta parte do
mundo. E no caso da Noz-moscada quero ajudar a satisfazê-la com tudo o possível.
- Fico-lhe sumamente agradecido, senhor, e se por meio de seu valioso empregado posso averiguar o preço aproximado da solução, farei todo o possível para pagá-lo
com o dinheiro que tenho aqui. E se não posso, provavelmente poderei encontrar algum estabelecimento que aceite letras emitidas em Londres.
- Qual é seu banco, capitão Aubrey?
- Hoare, senhor.
- O senhor não mudou como o pobre Maturin?
- Não, não, por Deus! - exclamou Jack, golpeando a palma de uma mão com o punho da outra. - O pior ato que cometi em minha vida foi o de falar-lhe do banco Smith
e Cloves e me maldigo por tê-lo feito. No que me diz respeito, tinha vários milhares de libras depositados ali, por conveniência, mas o restante o deixei no Hoare.
- Nesse caso, um amigo de Maturin e meu, Shao Yen, proporcionar-lhe-á o dinheiro.
Shao Yen lhe proporcionou o dinheiro, e os diversos grêmios relacionados com o caso foram persuadidos de que abandonassem suas práticas habituais por um tempo, pelo
que em menos de trinta e seis horas a escuna se encheu de entusiastas trabalhadores, incluídos todos os tripulantes da Noz-moscada que podiam encontrar um lugar
onde ficar de pé. Amiúde, muito amiúde, Jack e seus oficiais haviam tido que animar aos tripulantes (Fielding o fazia extraordinariamente bem e Crown não ficava
atrás), mas nunca antes haviam tido que instar-lhes a que se abstivessem de fazer muitas coisas, a rogar-lhes que não fizessem muitos esforços naquele clima úmido
e pouco saudável nem corressem tantos riscos no alto. Os tripulantes da Noz-moscada e os integrantes da guarda de popa que não tinham que fazer tarefas de tipo técnico,
pintavam a escuna supervisionados a distância por Bennett, o mais improvável sobrevivente da batalha, que de um esquife imóvel na água dava gritos do tipo: "Meia
polegada mais para debaixo da portaló!", enquanto a Noz-moscada ia se cobrindo de quadros brancos e negros ao estilo de Nelson. Essa era, na opinião de Jack, o desenho
mais apropriado para um barco de guerra, e pôde encontrar muita tinta em Batavia para fazê-lo, pois apesar da Armada Real só estar representada ali por um tenente
e uma vintena de empregados de diversas categorias, estivera no porto uma grande esquadra que, ante a possibilidade de regressar, deixara grande quantidade de apetrechos,
a maioria procedentes de capturas. Com esses abundantes apetrechos Jack Aubrey armou a Noz-moscada. Passeava com inteira liberdade pelo armazém, como pela caverna
de Ali Babá; isto é, as cavernas, pois a parte onde ficava a vasta seleção de cabos estava completamente separada do recinto encouraçado onde se encontrava a pólvora.
Tudo o que um marinheiro, de profissão, podia desejar, estava ali em perfeita ordem.
Fazia algum tempo chegara à conclusão de que se se encontrasse com a Cornélie, tinha somente duas possibilidades (a menos que o objetável plano de Stephen tivesse
êxito): fugir ou lutar penol a penol. A Noz-moscada, com seus vinte canhões de nove libras, não poderia sustentar um longo combate com a fragata francesa de trinta
e dois canhões de dezoito libras, sobretudo se os canhões franceses estavam tão bem apontados como geralmente o estavam; contudo, se a armasse com caronadas de trinta
e duas libras e conseguisse que ambas ficassem situadas a tocar penóis, poderia disparar uma descarga de trezentas e vinte libras em vez de noventa e seus homens
passariam para a abordagem ocultos pela fumaça.
Então, caronadas. Em companhia do condestável e seus ajudantes percorreu o escuro armazém situado atrás do cais do serviço de material de guerra, e todos se assombraram
com a abundância que tinham ante a vista e de que tinham a liberdade de escolha (porque o governador dera carta branca ao capitão Aubrey). Iam apressadamente de
uma peça de artilharia a outra, provando-as para encontrar as que se pudessem apontar à perfeição, e lhes era quase impossível decidir-se. Com uma mistura de alegria
e angústia escolheram finalmente as vinte caronadas e depois tiveram que ocupar-se das balas, uma questão delicada, pois nas caronadas, ao contrário do que sucedia
com os canhões longos, quase não podia ficar folga entre a bala e o cilindro, e era necessário que as balas fossem quase perfeitamente esféricas para disparar com
precisão ainda que fosse a curto alcance. Cada bala pesava trinta e duas libras; cada caronada requeria muitas balas (tinha que ter uma grande quantidade para fazer
práticas, já que todos os tripulantes estavam acostumados a usar os canhões da pobre Diane); e entre todas rodaram toneladas e toneladas pelo empoeirado piso e o
círculo de prova.
Apesar de suas virtudes (pouco peso, carga ligeira, brigadas de poucos artilheiros, grande poder letal), as caronadas eram peças delicadas. Eram tão curtas que,
em ocasiões, ainda que as tivessem sacado completamente, o clarão podia incendiar a exárcia, sobretudo se estivessem inclinadas para os lados. Ademais, esquentavam
com facilidade e podiam saltar e se soltar. Como Jack decidiu que a Noz-moscada fosse armada principalmente com caronadas (ainda que tenha conservado seu velho canhão
de bronze de nove libras e outro muito parecido para usar nas perseguições), passou horas com as pessoas indicadas para conseguir que as portalós fossem perfeitamente
adequadas para as pequenas e rebeldes criaturas e assegurar-se de que nenhuma parte da exárcia ficasse perto de suas bocas por mais que se inclinassem para os lados.
Por outra parte, a custa de quantiosos subornos para os holandeses, conseguiu que um grupo de excelentes carpinteiros se incorporasse ao trabalho e trocasse as ordinárias
carretas por outras inclinadas, que absorveriam boa parte da energia no retrocesso. E não foi essa sua única extravagância.
- Para que serve ser quase rico se um não pode fazer grandes gastos em certas ocasiões? - perguntou a Raffles quando Stephen não podia ouvir-lhe.
Nessa ocasião em particular, gastou muito em velas, velas para todo tipo de tempo, desde o acompanhado de um vento suave e errático até o que era provável encontrar
frente ao cabo de Hornos, e também em cabos, pois queria pôr o melhor cânhamo de Manila quase em toda parte, especialmente na exárcia fixa, onde, conforme ele, nenhum
outro tipo podia superar em resistência ao caro cânhamo de três cabos.
Entre tudo isto e a procura de um carpinteiro, um contador, um escrevente e dois ou três jovens aptos para ser guardas-marinhas (Reade e Bennett, ainda que tivessem
boa vontade, não podiam subir na exárcia nem estavam em condições de fazer guarda de noite quando havia mau tempo), quase não via Stephen. Além disso, posto que
os pacientes que sobreviveram estavam melhorando muito, Stephen passava boa parte de seu tempo com Raffles, quer na cidadela, quer em Buitenzorg, a residência de
verão do governador, onde se encontravam seus jardins e a maioria de suas coleções, que examinava com sumo interesse.
Pouco depois que os carpinteiros chineses subissem a bordo, numa calorosa manhã em que o céu ameaçava chuva, Stephen, que se dirigia a Buitenzorg, desceu de sua
bonita égua e, enquanto Ahmed segurava com paciência as rédeas, perguntou-se se valia a pena levar uma capa de chuva grande, pesada e não totalmente impermeável
enrolada atrás da sela, com a possibilidade de ficar rígido e molhar-se se chegava o mau tempo, ou se era melhor arriscar-se a empapar-se, ainda que isso lhe permitiria
ficar um pouco mais descansado. Depois pensou que possivelmente não choveria. E enquanto estava fazendo estas considerações viu que Sowerby se aproximava com passo
vacilante e que às vezes inclusive se detinha. Quando já se achava a pouca distância tirou o chapéu e lhe cumprimentou:
- Bom dia, senhor.
- Bom dia, senhor - respondeu Stephen, pondo o pé no estribo.
Apesar do gesto, Sowerby se aproximou e disse:
- Estava a ponto de deixar esta carta para o senhor, senhor, mas agora que tive a satisfação de encontrar-lhe, espero que me permita agradecer-lhe pessoalmente sua
generosidade. Sua excelência me disse que devo minha recomendação a sua nomeação, quero dizer, minha nomeação a sua recomendação.
- A verdade é que não tem muito o que me agradecer - disse Stephen. - Mostraram-me os currículos apresentados pelos diversos candidatos e pensei que o seu era muito
melhor que os outros, e isso foi o que disse, nada mais.
- Mesmo assim, senhor, estou-lhe profundamente agradecido. E em prova de minha estima pelo senhor, se me permite, darei um nome em sua honra a uma planta não descrita.
Mas não quero entreter-lhe. Por favor, aceite esta carta que contém o exemplar de uma planta e uma completa descrição. Bom dia, senhor. Que tenha um boa viagem.
Nesse momento Sowerby estava quase cego pela tensão nervosa, a cor de sua cara ia e vinha e suas palavras se empilhavam, mas por milagre entregou a carta em vez
de deixá-la cair, passou sem sofrer danos pela frente do intranqüilo cavalo de Ahmed, pôs o chapéu, esquivou-se de um poste no caminho por meia polegada e se afastou
caminhando muito rapidamente.
Cavalgaram sem parar e choveu sem parar. De vez em quando as tartarugas fluviais cruzavam o caminho, às vezes caminhando e outras nadando, mas sempre em direção
sudoeste. Com mais freqüência e em maior quantidade, depois da primeira hora, volumosos sapos de ventre avermelhado cruzaram em grupos também em direção sudoeste.
Mas os cavalos, que haviam pulado ao ver as tartarugas, já estavam muito cansados para assustar-se inclusive com um grupo de sapos e continuaram avançando pesadamente
com as orelhas baixas e com o lombo jorrando água.
As costas de Stephen também jorravam água, pois como decidira não usar capa, a chuva se metia entre a casaca e a pele. E o espécime de Sowerby também teria jorrado
se não fosse porque Stephen economizava exageradamente no que gastava em perucas. Sua comodidade, a posição que ocupava como médico e seu senso de correção, recomendavam
que tivesse uma peruca, mas era resistente a pagar por ela. Agora somente lhe restava uma peruca como a que os médicos usavam, e como lhe parecia que os fabricantes
de perucas de Batavia cobravam preços exorbitantes por elas, usava-a em todas as ocasiões. Nesse momento a inestimável peruca estava protegida por um chapéu sombreiro,
por sua vez coberto com uma capa de lona alcatroada para que não se molhasse com a chuva torrencial, e estava amarrado por debaixo do queixo com dois pedaços de
merlín branco e preso ao cabelo com um forte grampo que ia de um lado ao outro, pelo que estava tão fortemente seguro em sua cabeça como seu própio couro cabeludo.
E sob a copa do chapéu se encontrava a carta de Sowerby.
Quando já estava sentado na sala de desjejum de Buitenzorg e usava uma bata do governador enquanto esperava que sua roupa se secasse em outra parte, levantou o envelope,
que estava completamente seco, e disse:
- Estou a ponto de alcançar a imortalidade. O senhor Sowerby quer pôr em minha honra um nome a uma planta não descrita.
- Então conseguirá a glória! - exclamou Raffles. - Podemos vê-la?
Stephen rompeu o selo e, do interior de um envoltório de muitas capas do papel usado para recobrir espécimes, tirou uma flor e duas folhas.
- Nunca a vi antes - disse Raffles, observando o receptáculo de cor marrom e púrpura. - Parece-se um pouco com a Stapelia, porém, sem dúvida, tem que pertencer a
uma família totalmente distinta.
- E é indubitável que também cheira como a Stapelia mais fétida - brincou Stephen. - talvez deveria pô-la no parapeito da janela. Quando ele a encontrou vivia como
planta parasita sobre o liso tronco de uma árvore. Pela forma das folhas, com as bordas curvadas para o interior, e sua viscosidade e grossura, inclino-me a pensar
que também é insetívora.
Ambos observaram a planta em silêncio, respirando, por assim dizer, de lado, e depois Stephen perguntou:
- O senhor acha que o cavalheiro tencionava ser sarcástico?
- Não, de nenhuma maneira - respondeu Raffles. - Nunca lhe ocorreria algo assim. É um homem metódico e sem senso de humor. Dedica-se a classificar e não se ocupa
do valor moral.
- Oh, Raffles! - exclamou sua esposa ao entrar -, De que é esse odor? Terá algo morto detrás do painel de madeira?
- Minha querida, é da planta à qual darão um nome em honra do doutor Maturin.
- Bem, é melhor que ponham um nome em honra de um em uma planta do que em uma doença ou uma fratura. Pensem no pobre doutor Ward e a hidropisia. Sem dúvida, é uma
planta muito curiosa, mas talvez deveria dizer a Abdul que a leve ao alpendre. Meu querido doutor, disseram-me que sua roupa estará totalmente seca dentro de meia
hora, assim que almoçaremos cedo. Deve estar morto de fome.
- Nomear as criaturas em honra de um amigo ou colega é um costume muito bonito - observou o governador quando ela se foi. - E ninguém, ao segui-lo, demostrou mais
generosidade do que o senhor com a Testudo aubreii, esse magnífico réptil. A propósito de Aubrey, faz dias que não o vejo. Como está?
- Muito bem, obrigado. Vai correndo de um lado para outro de dia e de noite para que seu barco possa fazer-se ao mar ainda mais rapidamente que a pressa demente
característica da Armada. Vai correndo com tanto entusiasmo que me alegra dizer que tem pouco tempo para comer e nenhum para comer em excesso.
- Necessita de mais marinheiros?
- Acredito que não. restaram cento e trinta homens da tripulação, e como a Noz-moscada não necessitará de grandes brigadas de artilheiros mas só três ou quatro homens
por caronada, se não me equivoco, pensa que são suficientes para tripulá-la. Ademais, agrada-lhe a idéia de ascender ao ajudante de carpinteiro ao posto do pobre
senhor Hadley. Mas ainda lhe falta um contador, um escrevente e dois ou três guardas-marinhas.
- Com respeito ao contador, apesar das averiguações que fiz, não encontrei a nenhum homem que possa recomendar. Mas encontrei um excelente escrevente, um homem que
ficou ferido quando tomamos este lugar mas que se recuperou e agora é bastante ágil, e dois guardas-marinhas que talvez sejam adequados. Acha que Aubrey poderá almoçar
conosco na quinta-feira? Poderia apresentar-lhe aos candidatos antes ou depois, como prefira. Também poderia formular-lhe perguntas gerais sobre seus planos imediatos.
Confio em que poderei fazê-lo sem que o considere uma indiscrição, pois independentemente de ter uma grande curiosidade em saber se vai se arriscar a enfrentar a
Cornélie ou fugir dela, tenho a possibilidade de estender um pouco minha autoridade e ordenar que uma corveta, a Kestrel, acompanhe-o até o estreito, se assim desejar.
A corveta chegará no final desta semana.
- Quem sou eu para dizer... - começou Stephen. - Que é isso que está na janela?
- Um tangalung, uma espécie de civeta de Java - respondeu Raffles, abrindo a jaula. - Venha, Tabitha.
Depois de um momento, a bonita criatura com riscas negras se aproximou dele e se sentou em seu colo olhando para Stephen com o cenho franzido.
Stephen baixou a voz em sinal de respeito e continuou:
- Quem sou eu para dizer isto, mas me atrevo a assegurar que nenhuma oferta seria pior acolhida.
- Ah, é?
- Tenho a impressão, e é só uma impressão, assim que não revelo uma confidência muito pelo contrário uma consulta, de que Aubrey tentará atacar a Cornélie se puder
encontrá-la. A presença da Kestrel não influiria no resultado do combate, pois só leva catorze canhões e não é mais apta para enfrentar-se com uma fragata que uma
fragata com um barco de linha; contudo, teria uma péssima influência no resultado moral. Se Aubrey fracassasse em sua tentativa, a Cornélie teria que afundar ou
apresar a Kestrel também, e assim venceria a dois oponentes e se cobriria de louros; em troca, se Aubrey, queira Deus, triunfasse em sua tentativa, seriam dois oponentes
em conjunto que derrotariam a Cornélie, e a Kestrel não sofreria danos nem Aubrey alcançaria a glória, pois deve o senhor saber que os jornalistas e o público quase
não se fixam na potência relativa de dois barcos que atacam juntos.
- Aubrey se importa muito com a glória?
- Certamente! Venera a Nelson. Mas acho que não tem nem um pingo de vaidade, ao contrário de seu herói. Para Aubrey não lhe importa o triunfo pessoal nesse hipotético
combate, mas o seu objetivo principal, como ele própio distingue com total claridade, é minar o amor própio dos franceses, especialmente o dos membros da Armada.
Eu lhe asseguro que isso é tão importante que eu chegaria... já cheguei a extremos surpreendentes...
A natureza dos extremos nunca foi revelada, pois a porta se abriu e o mordomo inglês, que em seu tempo era um digno exemplar roliço e rosado e agora estava amarelado
e encolhido devido à febre intermitente de Java, anunciou a sua excelência que o almoço estava servido.
- Oh, Richardson, meu amigo, que confusão! - exclamou Stephen ao subir a bordo da Noz-moscada. - Que está fazendo toda esta gente?
- Bom dia, senhor - disse Richardson. - Estão colocando os amantilhos.
- Que Deus os proteja - suspirou Stephen. - Esse trabalho me parece muito perigoso. E estará ele na escuna?
Estava na cabine, tomando café tranqüilamente depois de uma manhã muito dura que havia começado quando ainda estava escuro. Estava pálido e parecia cansado mas contente.
- Nunca teria acreditado que se pudessem fazer tantas coisas em três dias, porque não hão passado mais desde que estive aqui - disse Stephen olhando ao redor. -
A cabine está quase igual à nossa antiga cabine: cômoda, arrumada e limpa. E as pequenas caronadas deixam muito mais espaço livre. Que alegria! Raffles nos convidou
para almoçar na quinta-feira aqui em Batavia. Encontrou um escrevente de cuja valia está seguro e dois guardas-marinhas de cuja valia não o está, mas não encontrou
nenhum contador honrado.
- Na quinta-feira? - perguntou Jack. - Havia planejado rebocar a escuna mar adentro amanhã para nos reunirmos com a barcaça que transporta a pólvora pela manhã,
carregar o gado durante a maré baixa e fazer-me ao mar pela noite quando mudasse a maré.
- Sei que amanhã tem uma reunião com o conselho e depois oferece um almoço para uma vintena de potentados em Buitenzorg.
- Está muito ocupado, sem dúvida - confirmou Jack e, depois de refletir um momento, continuou: - Esperar quinta-feira significa perder dois dias; contudo, desagradaria-me
muito não ser cortês com o governador, que foi tão amável comigo. Mas lhe direi uma coisa, Stephen. Se visse ao governador antes da quinta-feira, seria melhor que
lhe rogasse que não se ocupasse com o escrevente nem com os guardas-marinhas, mas que simplesmente dissesse a um secretário que lhes desse uma nota minha. Assim
nem ele nem a senhora Raffles teriam que suportar a um par de mal-educados e eu poderia julgar melhor suas qualidades. Por que os expulsaram do barco?
- Por embriaguez, fornicação e preguiça. Mas não os expulsaram, os abandonaram. Saíram de um bordel ao meio-dia, percorreram cambaleantes o caminho até a praia e
viram que a esquadra havia zarpado ao amanhecer. Viveram na miséria desde então, pois apesar do governador ter se ocupado indiretamente deles, parece que seus amigos
não lhes ajudaram, talvez por falta de tempo, não de vontade. Afinal de contas, os mercantes que fazem o comércio com as índias demoram uma eternidade em ir e vir.
Jack esteve olhando o Mar da China Meridional por um momento. Debaixo do brilhante sol, as inumeráveis embarcações locais se moviam de um lado para outro sobre as
águas verdosas e, a um palmo do horizonte, ao sul havia nuvens carregadas de chuva. Então serviu outra xícara de café para Stephen e disse:
- Com relação ao contador, posso passar sem ele. O pobre Bigh tinha um despenseiro inteligente e bastante honesto e um ajudante de contador sensato; e o capitão
Cook era seu própio contador. Mas receberia de braços abertos um bom escrevente. Eu ficaria triste se nos desfizéssemos, como sugeriu, de todas as nossas anotações,
em parte porque estão mescladas com as observações que fiz para entregar a Humboldt, e talvez um homem entendido e acostumado a usar os livros dos barcos poderia
fazê-las inteligíveis. Ademais, há o caso de Macintosh. Recorda-se de Macintosh? Capturou a Sybille, de trinta e seis canhões, em uma batalha que se desenrolou ao
longo do Canal. Tratou de solucionar as coisas da mesma maneira quando desembarcou nas ilhas Cicladas e perdeu a metade de seus papéis. Envolveu a outra metade em
uma lâmina de chumbo onde escreveu: "À m... a Junta Naval. Que se f... o Almirantado. Vá tomar no c... o Comitê de Ajuda aos Enfermos e Feridos" e a jogou pela borda.
Uma semana depois um pescador de esponjas grego a encontrou, levou-a ao navio insígnia em perfeitas condições e pediu uma recompensa.
- Cantou vitória antes da hora - disse Stephen.
- Sim. Quanto aos guardas-marinhas, eu lhes darei uma espiada, naturalmente, mas se não têm recomendação e, também, já são um pouco mais velhos... Estive pensando
em Conway, um dos gavieiros do traquete, mas seria difícil para ele deixar a coberta inferior de seu própio barco e dar ordens aos homens que até ontem sentavam-se
ao seu lado na mesa do refeitório e, como se fosse pouco, trasladar-se ao camarote de guardas-marinhas, que está cheio de homens que eram seus superiores. Além disso,
amiúde as ascensões que concedi foram desafortunadas. O castelo de popa é um lugar muito perigoso nas batalhas, sabia?
- Não entendo muito de batalhas - respondeu Stephen -, mas achava que nelas os guardas-marinhas ficavam com as brigadas de artilheiros ou com os homens que disparavam
as armas leves no cesto da gávea.
- A maioria deles ficam ali, mas sempre há algum no castelo de popa com o capitão e o imediato, cumprindo funções, por assim dizer, de assessor.
Na quarta-feira a Noz-moscada se trasladou da baía e ancorou no ancoradouro que a Diane havia usado; e o capitão, o oficial de derrota e seu ajudante a inspecionaram
rigorosamente. Nem no estaleiro nem quando estava abordada com a barcaça que transportava a pólvora puderam afastar-se o bastante para apreciar bem a forma com que
se mantinha na água, mas agora tinham todo o espaço do mundo e os três concordaram em que tinha a popa um pouco mais afundada. A colocação do lastro e da carga era
um processo exageradamente laborioso e que requeria muita perícia. Já havia chegado até a incorporação do gado, pelo que o conhecido odor dos porcos saía agora pela
escotilha de proa e se estendia pelas cobertas. Ainda que eliminar tudo aquilo talvez não provocasse um motim, sem dúvida daria lugar a burburinhos de protesto.
Por sorte, o senhor Warren, que conhecia o afã de Jack por conseguir uma perfeita distribuição do carregamento e fazer que seu barco navegasse tão rapidamente como
pudesse, colocara as mangueiras de maneira que poderia trasladar várias toneladas de água de um lado para outro da coberta inferior.
- Acredito que com meia fileira da coberta bastará, senhor - anunciou.
Jack consentiu e, depois de encher os pulmões, gritou:
- Senhor Fielding, por favor, que comecem a bombear na proa!!!
- Que voz tem o capitão! - exclamou Stephen, dirigindo-se para o bote com o senhor Welby. - Chega a uma grande distância. Mas devo dizer que não é áspera nem metálica,
como as vozes de leiloeiros, políticos ou mulheres de mau caráter.
- Na parte da Inglaterra de onde sou, há um pássaro que chamamos de touro dos lamaçais que é quase tão bom como ele. Em uma noite com o vento em calmaria se pode
ouvir seu grito a três milhas de distância. Mas aposto que sabe tudo isto, doutor.
- Oh, senhor, por favor! - gritou atrás deles um jovem que corria ofegante pelo cais. - Se vão para a Noz-moscada, poderiam nos levar com os senhores por favor?
Temos uma nota para o capitão.
- Que queres dizer com nos? - perguntou Welby, franzindo o cenho.
- Meu amigo também vai, senhor. Está justo do outro lado da ponte. Seu salto do sapato caiu.
- Então diga-lhe que tire o outro e que venha com os dois na mão - disse Welby. - E rápido, porque não vamos esperar aqui toda a noite!
- Vamos, Miller, vamos! - gritou o jovem com todas suas forças. - Venha com os dois sapatos na mão, que o cavalheiro não vai esperar aqui a noite toda!
Enquanto o bote deslizava pelas tranqüilas águas, Stephen observou os garotos. Viu que tinham a cara amarelada e eram só pele e ossos, e se perguntou qual seria
a tradução de âge ingrat. Estavam magros e mal nutridos, e ainda que era óbvio que tinham se esforçado muito para ter boa aparência e para arrumar a roupa gasta
que ainda conservavam e que agora estavam folgadas, estavam escassamente apresentáveis. Na realidade, seus cuidados lhes haviam prejudicado, pois nenhum dos dois
tinha prática em se barbear, tinham se cortado e esfolado a cara, e como ambos estavam na idade de ter acne, seu aspecto de adolescentes normais resultava repulsivo.
Inspiravam-lhe lástima como qualquer outro jovem ansioso e desconcertado, mas não lhe pareceram interessantes até que um deles, ao notar que o olhava fixamente,
justo antes que o bote chegasse, murmurou:
- Acho que temos um aspecto lamentável, senhor. - Mas olhou para Stephen com uma confiança em sua boa vontade tão óbvia que o comoveu.
- Oh, não, não! - exclamou.
Quando subia pelo costado, pensou: "Não sei o que Jack pensará deles. Espero que sejam bons marinheiros, pois do contrário terão que trabalhar em um tear ou arar
a terra". Uma mão amiga lhe ajudou a subir o último degrau, e depois viu a Fielding sorridente.
- Ah, o senhor está aqui, doutor! - exclamou. - O capitão me pediu que lhe dissesse que o espera na cabine com uma surpresa.
Na cabine viu mais sorrisos, um amplo no rosto avermelhado de Jack e um tímido no do homem que havia junto a ele, um homem baixo que se estava de pé atrás de um
monte de papéis.
- Ah, está aqui doutor! - exclamou Jack. - E aqui está um velho companheiro de tripulação nosso.
- Senhor Adams! - Stephen o cumprimentou, apertando-lhe a mão. - Alegro-me muito de voltar a vê-lo. E o felicito por sua recuperação.
- O senhor Adams assegura que poderá pôr em ordem este caos, fazer as necessárias substituições e proporcionar-nos um equipamento completo. Conservaremos tudo e
poderemos arrumar nossas contas!
- Confio no senhor Adams e em seu poder taumatúrgico - disse Stephen, falando com toda sinceridade.
Adams ocupava o posto de escrevente e secretário do capitão na Lively quando esteve sob o comando de Jack temporariamente, e era conhecido por seu talento no Mediterrâneo,
onde muitos contadores de outros barcos com problemas iam vê-lo secretamente para pedir conselho e muitos capitães haviam escrito despachos em que relatavam com
exatidão a resolução complicadas batalhas graças a sua caneta. Há tempos poderia ter sido um contador, mas não gostava de ter que contar as coisas e, também, para
um escrevente era mais fácil tomar parte em ataques surpresa, que era o que mais gostava.
- Deveria tê-lo visitado quando chegou - disse Adams a Jack -, mas estava no balneário de Barlabang e não me informei de que havia chegado até a terça-feira, quando
o governador, que Deus o bendiga, chamou-me para dizer.
Quando soaram as três badaladas e houve uma pequena pausa, Stephen exclamou:
- Mas me esqueci desses desgraçados jovens! Vieram em nosso bote e estão esperando... aí fora!
- Eu os receberei assim que possa - disse Jack.
- Por mim pode recebê-los imediatamente, senhor - interveio Adams, ordenando os papéis. - Vou ver o ajudante do contador, e se tem um pouco de cabeça, juntos poderemos
preencher todas estas lacunas.
Cinco minutos depois fizeram entrar os jovens, que estavam pálidos pela espera e o medo. Jack os recebeu com indiferença. A alegria que sentia não afetou sua capacidade
de julgamento em assuntos relacionados com a escuna, e a primeira impressão não foi muito favorável. Pensou que eram de um tipo de guardas-marinhas que qualquer
capitão largaria em terra sem fazer uma rigorosa investigação. Imediatamente soube que sua folha de serviços era medíocre e que suas aptidões eram escassas. E depois
de refletir um pouco disse:
- Não sei nada sobre os senhores. Não sei nada dos capitães a cujas ordens serviram nem tenho nenhuma nota deles. O secretário somente os menciona, não lhes recomenda.
Por outra parte, haverá sem dúvida um R junto aos seus nomes nos livros da Clio, assim que os senhores são teoricamente desertores. Não posso admitir-lhes em meu
castelo de popa. Mas se quiserem, posso inscrever-lhes nos livros como marinheiros de primeira.
- Obrigado, senhor - disseram com voz débil.
- Não lhes agrada a idéia de ficar na coberta inferior? - perguntou Jack. - Está bem. Não me fazem falta tripulantes e não vou recrutá-los à força. Tampouco vou
aprisionar-lhes como desertores. Podem ir para a costa no próximo bote.
- Preferiríamos ficar, senhor, por favor - solicitaram.
- Está bem - disse Jack. - Naturalmente, a vida na coberta inferior é dura, como sabem muito bem, mas a tripulação da Noz-moscada é formada por homens honestos,
e se os senhores se mantiverem calados, cumprirem com suas obrigações e não procurarem problemas, sobretudo se não procurarem problemas, passarão muito bem; e além
do mais, entenderão melhor o que é a Armada. Muitos bons oficiais começaram sua carreira como marinheiros ou foram degradados quando eram guardas-marinhas e finalmente
chegaram a almirantes. Killick, Killick, diga ao senhor Fielding que venha! Senhor Fielding, Oakes e Miller serão inscritos nos livros da corveta como marinheiros
de primeira. Formarão parte da guarda de estibordo e trabalharão como gavieiros do traquete. O ajudante do contador deve entregar-lhes calças, macas e colchonetes
sob a supervisão de Adams.
- Sim, senhor - consentiu Fielding.
- Muitas obrigado, senhor - disseram Oakes e Miller, ocultando, isto é, tratando de ocultar seu desgosto atrás de uma expressão de gratidão bastante bem fingida.
Na quinta-feira Ahmed entrou na cabine de Stephen com gesto preocupado e com um discurso preparado. Ajoelhou-se, bateu a escrivaninha com a testa e lhe rogou que
lhe desse permissão para ir embora. Disse que sentia saudade de sua família e de seu povoado e que sempre acreditara que voltaria a Java com tuan, mas agora o barco
estava a ponto de zarpar rumo a um mundo desconhecido, pior que a Inglaterra. Acrescentou que como presente de despedida havia trazido a tuan uma caixa para guardar
folhas de betel, onde ele poderia levar suas folhas de coca, e uma peruca, que, ainda que não fosse muito boa, era a melhor que se podia encontrar na ilha.
Stephen esperava isto, sobretudo porque tinham visto a Ahmed acompanhar a uma bonita jovem de Sumatra. Quando lhe deu permissão para ir embora, entregou-lhe uma
bolsa com johannes e grandes moedas de ouro portuguesas, e depois escreveu uma boa recomendação caso desejasse buscar emprego outra vez. Separaram-se amigavelmente
e Stephen pôs a peruca, adequadamente empoada, para ir ao almoço do governador.
A refeição transcorreu de maneira agradável, e ainda que Jack e Stephen eram os únicos homens convidados, a senhora Raffles tinha convidado nada menos que a quatro
damas holandesas para que lhes fizessem companhia. As damas holandesas, que falavam bastante inglês, haviam se arrumado para proteger sua delicada pele do clima
de Batavia e para manter-se roliças e alegres. Stephen se deu conta pela primeira vez em sua vida de que Rubens e ele eram da mesma opinião, sobretudo ao notar que
seus generosos decotes e seus diáfanos vestidos permitiam ver amplos pedaços da carne firme e da pele nacarada que pintava Rubens e que tanto lhe haviam desconcertado.
A idéia de estar na cama com uma dessas criaturas alegres e de exuberantes formas lhe turbou um momento, e lamentou que a senhora Raffles fizesse um sinal para que
todas se fossem enquanto os homens se agrupavam em um extremo da mesa.
- Aubrey - começou o governador -, suponho que Maturin lhe disse como acolheu minha proposta de mandar a Kestrel até o estreito quando ela chegue.
- Sim, senhor - respondeu Jack, sorrindo.
- Sem dúvida, tinha razão, ainda que falou como um homem cuja principal preocupação é o aspecto político, e eu gostaria de escutar a opinião de um oficial, de um
capitão combativo.
- Bem, senhor, do ponto de vista tático, lamentaria ser acompanhado pela corveta. Sua presença poderia ter como consequência que não houvesse combate. É possível
que a Cornélie, ao avistar-nos quando ainda não pudesse ver o casco das embarcações, fizesse um cálculo exagerado da potência da Kestrel, pois tem aparelho de navio,
e fugisse e não voltasse a aparecer jamais. Por outra parte, a corveta não chegará até dentro de vários dias e logo terá que repor apetrechos, água e provisões,
e cada dia perdido significa deixar de avançar cento e cinqüenta ou duzentas milhas para o leste com o vento que sopra agora. E quanto ao demais, ao aspecto político,
que eu chamaria espiritual, estou totalmente de acordo com Maturin: quanto mais oportunidades aproveitemos para tentar persuadir a Armada francesa de que sempre
vai ser derrotada, menos probabilidades terá de que ganhe. Assim que, com sua permissão, senhor, vou soltar as amarras cinco minutos depois de despedir-me da senhora
Raffles. E assim que tenha perdido de vista a costa, a escuna navegará com rumo leste com a maior quantidade de velas desdobradas que possa levar.
- Querida - disse o governador no salão -, não devemos reter o senhor Aubrey mais tempo que o necessário para o café. Está impaciente para navegar para o leste e
convencer aos franceses de que sempre vão ser derrotados.
- Antes de ir tem que me dizer o que fez com aqueles pobres e infortunados jovens. Partia meu coração vê-los perambular pelo mercado chinês tão pálidos, tristes
e descuidados. Isso teria causado em suas mães uma tristeza indescritível.
- Eu lhes permiti ficar a bordo, senhora, mas não no castelo de popa, mas na coberta inferior.
- Entre simples marinheiros? Que barbaridade, capitão Aubrey! São filhos de cavalheiros!
- Eu também o era, senhora, quando me degradaram e me mandaram para a coberta inferior. Foi muito duro e na guarda de meia, quando ninguém me via, chorava como uma
menina, mas me fez bem. E lhe asseguro, senhora, que em geral, os simples marinheiros são homens honestos. Todos meus companheiros da coberta inferior, exceto um,
eram muito amáveis. Eram grosseiros às vezes, mas estive em camarotes de guardas-marinhas e em câmaras de oficiais onde havia homens muito mais grosseiros.
- Seria uma indiscrição perguntar-lhe por que o degradaram, verdade? - disse a dama holandesa que falava inglês com mais soltura.
- Bem, senhora - respondeu Jack com um olhar malicioso -, foi em parte foi por minha devoção ao sexo, mas principalmente porque roubei a lingüiça do capitão.
- Sexo? - perguntaram com rubor as damas holandesas. - Lingüiça?
Depois cochicharam algo entre elas, ruborizaram, puseram uma expressão grave e guardaram silêncio.
Em meio do silêncio Jack explicou à senhora Raffles:
- Voltando aos infortunados jovens, acho que têm madeira de oficial, mas quero ver como se comportam na coberta inferior durante umas semanas. Se minha impressão
é acertada, eu os levarei ao castelo de popa, o que farei coincidir com a ascensão de um estupendo jovem gavieiro do traquete. Esse jovem que virá ao castelo de
popa com eles não se sentirá só nem como um estranho no camarote de guardas-marinhas, pois lhes designei a mesma guarda e a mesma mesa do refeitório.
Os tripulantes da Noz-moscada receberam ao seu capitão sem cerimônia e imediatamente içaram sua falua e soltaram amarras. Enquanto uma pequena banda (formada por
um trompete marítimo, dois violinos, um oboé, duas gigas e, certamente, um tambor) tocava Loath to Depart, clara expressão da dor da partida, a Noz-moscada saía
do porto passando entre os barcos com os últimos movimentos da maré e com um vento muito débil. Ainda que os tripulantes estiveram muito ocupados, tiveram tempo
para fazer amizades em terra, e um pequeno grupo de jovens de Java, Sumatra, Madura e Holanda agitaram seus lenços no ar até que os perderam de vista e a escuna
parecia uma pequena mancha branca na capa de névoa que rodeava o cabo Krawang.
Ainda estava lá na sexta-feira e no sábado e no domingo, pois o monção, que era tão forte e tão estável enquanto permaneceram em Batavia, dera passagem a ventos
tão fracos e desfavoráveis que parecia que a Noz-moscada nunca poderia dobrar o maldito cabo. Jack tentou de tudo o que os marinheiros podiam tentar, ancorar com
três amarras juntas para resistir o embate da corrente e depois aproveitar a baixa-mar, sair para o alto mar para encontrar algum vento favorável, navegar dando
bordejadas de modo que a Noz-moscada alcançasse uma velocidade tão grande como a atenção e a perícia dos bons marinheiros permitia; contudo, a escuna não avançava
porque a massa de água pela qual deslizava se movia em direção oeste a uma velocidade igual ou maior. Algumas vezes, quando o vento se acalmava, tentava avançar
a remo, pois os tripulantes, apesar de que fosse uma embarcação maior que as que recorriam ao uso dos enormes remos, não se incomodavam em avançar uma ou duas milhas
da costa através de um trabalho penoso e de certa forma ignominioso. Outras vezes mandava rebocá-la, e os tripulantes dos botes remavam com todas suas forças. Mas
a maior parte do tempo, como o ar se movia um pouco, podia navegar, e embora não avançasse para o leste, Jack pôde conhecer muitas de suas características. Não navegava
fácil nem rapidamente com o vento pela alheta, mas era muito veloz navegando com o vento em contra, tão veloz como a Surprise, e não tinha a mesma tendência de mudar
de bordo, mais ainda, a proa para o lugar de onde vinha o vento se não estava no leme um experimentado marinheiro. Durante os freqüentes e inoportunos períodos de
calmaria, ele e o oficial de derrota fizeram mudanças na exárcia até que encontraram a disposição das velas que mais convinha para a Noz-moscada (além da troca de
meia traca{6} que tinham feito no início), e a escuna aumentou sua capacidade de manobra.
Apesar da disposição das velas ser perfeita, não podia desafiar a natureza, não podia avançar com o vento e a maré contrários para sudoeste do mar de Java. No domingo,
na hora do café da manhã, Jack disse:
- Raras vezes agi por princípio, e quando o fiz me dei mal. Uma vez uma jovem me disse: "Senhor Aubrey, apelo a sua honra para que responda com sinceridade a minha
pergunta: o senhor acredita que Caroline é mais bonita que eu?". E, de acordo com o princípio que diz que a honra é sagrada, eu lhe respondi que sim, que era um
pouco mais bonita, e ela se chateou tanto que rompeu relações comigo, sabia? Agora, outra vez simplesmente por princípio, eu fiquei até a quinta-feira para assistir
ao almoço do governador... Não te ponho a culpa, Stephen, e sei que, em realidade, nunca poderei fazer-te compreender que o tempo e a maré não esperam ninguém. E
quando penso em que desperdicei um vento do sudoeste que faria levar as gáveas com dois rizes e com o qual teríamos chegado aos 112º leste, maldigo os princípios.
- Há mais geléia?
Jack lhe passou e continuou:
- Mas a religião é outra coisa, compreende? Quero celebrar a cerimônia religiosa esta manhã e não sei se será inapropiado rogar a Deus que o vento seja favorável.
- Sem dúvida, é permitido rogar a Deus que chova, e sei que se faz amiúde. Mas com relação ao vento... Não acha que teria uma grande semelhança com um de seus costumes
pagãos? Não acredita que pareceria um reforço dos arranhões que faz nas brandais e os assobios que dá até que ficar com a cara roxa? Ou acaso, Deus não o queira,
um reforço do papismo? Martin nos teria dito qual é o costume da Igreja anglicana. Nós, os papistas, rogamos a nosso padroeiro ou outro santo mais apropriado que
interceda, e isso é o que vou fazer em minhas orações. Independentemente do que dissesse Martin, acho que não terá problemas se formular um desejo mentalmente ou
mesmo em voz alta.
- Eu gostaria muito que Martin estivesse aqui, ou melhor ainda, que nós estivéssemos lá, do outro lado do estreito. Como estarão? Como terão ido as coisas? Chegarão
a tempo? Meu Deus, eu me faço tantas perguntas!
- Quem é esse Martin do qual falam na cabine? - perguntou o novo ajudante de Killick, um marinheiro do Thunderer, originário de Wapping, que tinha ficado em terra
com outros seis para recuperar-se da febre de Batavia e era o único sobrevivente do grupo. Como tinha a baixa oficial e uma recomendação de seu capitão e viajara
com Jack e Killick em várias ocasiões, fora admitido na escuna imediatamente. Não tinha nenhuma habilidade especial e não era um servente delicado (era inclusive
mais rude que Killick) nem era um experto marinheiro (fora classificado como marinheiro de primeira só por cortesia), mas era um homem alegre e serviçal e, sobretudo,
um velho companheiro de tripulação.
- Não ouviu falar do senhor Martin? - perguntou Killick, interrompendo a limpeza de uma bandeja de prata.
- Não, companheiro, nem uma palavra - respondeu o marinheiro, que se chamava William Grimshaw.
- Nunca ouviu falar tampouco do reverendo Martin?
- Tampouco do reverendo Martin.
- Tem um só olho - disse Killick e, depois de refletir, acrescentou: - Claro que não. Chegou quando você havia partido. Ocupou o posto de capelão da Surprise quando
estávamos no Pacífico porque é muito amigo do doutor. Iam juntos para recolher animais selvagens e mariposas nas colônias espanholas. Encontraram serpentes, cabeças
reduzidas, bebês dissecados... em fim, curiosidades, e as puseram em álcool.
- Uma vez vi um cordeiro com cinco patas - disse William Grimshaw.
- Depois, quando ocorreu aquela desgraça ao capitão e ele teve que fazer-se corsário, o reverendo Martin veio conosco porque também a ele havia sofrido uma desgraça.
Foi algo em relação com a mulher do bispo de sua diocese, conforme me contaram.
- Os bispos não têm esposas, companheiro - corrigiu Grimshaw.
- Bem, então sua amante, ou sua namorada. Mas viajou como ajudante de cirurgião, não como capelão, porque nos barcos corsários os capelões não são bem recebidos.
- Nem tampouco nos barcos de guerra.
- Neste momento trabalha como cirurgião da Surprise, cortando seus companheiros de tripulação com a navalha, que já maneja com grande habilidade depois de ter dissecado
tantos crocodilos, babuínos e animais parecidos. E provavelmente, se Deus o permite, estará esperando-nos frente a umas ilhas do outro lado do estreito. É um cavalheiro
calado e agradável. Além disso, não se incomoda de escrever uma carta em nome de alguém ou uma petição em nome da tripulação, e sempre faz rezar aos peticionários.
Navegou com os outros para o oeste e nós para o leste, e teremos que reunir-nos nos confins do mundo, sabia? E o capitão queria que o reverendo estivesse aqui neste
momento para perguntar-lhe se é correto rogar a Deus que sopre o vento ou se é algo que tem que ver com o papismo.
- Pobrezinhos! - exclamou Grimshaw, sem se importar com a questão das orações.
- Por que diz isso? - perguntou Killick.
- Porque se um navega direto para o oeste e chega à linha onde muda a data, e, por exemplo, cruza-a numa segunda-feira, o dia seguinte também é segunda-feira, assim
que um perde um dia de pagamento.
Killick, receioso e mal-humorado, refletiu alguns momentos, mas depois, com o rosto radiante, anunciou:
- Mas nós estamos navegando direto para o leste, assim que, se a cruzarmos numa segunda-feira, o dia seguinte será quarta-feira, e nos pagarão a terça-feira sem
trabalhar, ah, ah, ah! Não é verdade, companheiro?
- Tão certo como que dois e dois são quatro.
- Que Deus lhe bendiga, William Grimshaw!
A magnífica notícia se difundiu por toda a escuna e provocou um entusiasmo que durou até o dia seguinte. E quando tudo estava preparado para a cerimônia religiosa,
Jack notou que os marinheiros não estavam tranqüilos nem sossegados nem prestavam toda sua atenção, como era usual, assim que depois de cantar vários hinos e salmos,
fechou o livro, fez uma pausa como prelúdio do final e disse:
- E todos os que o considerem oportuno, podem formular humildemente o desejo de que sopre um vento favorável, mas não uma petição formal.
Em resposta se ouviu um conjunto de sons bastante altos, composto pelos burburinhos que costumavam ouvir-se nas capelas (muitos dos homens da região ocidental da
Inglaterra eram partidários do inconformismo), numerosos "sim" e algumas frases como "sigamos". Era uma onda de adesões, mas tão ruidosa que lhe desgostou.
Tão ruidosa que desgostou ainda mais a muitos dos tripulantes da Noz-moscada, que culparam abertamente a falta de discrição de seus companheiros de que fizesse um
tempo totalmente mau durante um período que lhes pareceu inconcebível, interminável. Nesse período, em que as águas brilhantes e cálidas se moviam tumultuosamente
e se amontoavam no castelo, tinham que manter as linhas de vida colocadas de proa a popa e permanecer na convés boa parte da noite.
Jack já sabia como a Noz-moscada navegava com vento fraco, acalmado ou desfavorável, e nesse tempo descobriu como se comportava nas tormentas com ventos fortes de
diversas intensidades. Às vezes eram tão fortes que, se a escuna tinha espaço suficiente, navegava empopada, com o velacho rizado e os tripulantes vigiando para
ver se viam algum arrecife que não figurasse nas cartas marítimas, e se não o tinha, como quando passou pelo estreito de Macassar, onde havia perigosos arrecifes
e ilhotas, punha-se ao pairo com a vela de estai maior mantendo-se tão seca como um pato. Além de manter-se ao pairo admiravelmente, quando o vento era de grande
intensidade, conservava sua capacidade de navegar bem de bolina, e se aproximava dos 60° ou um pouco mais da direção do vento com escasso abatimento. E isso tinha
que fazê-lo com freqüência, quando inesperadamente aparecia a silhueta de alguma ilha e tinha que mudar o leme de bordo para esquivá-la.
Era verdade que, além das três ou quatro rajadas que lhes pegaram desprevenidos frente às ilhas Celebes, cada vez que tinha uma forte tormenta, o vento era favorável,
pois passava acima das ondas de brancas cristas em direção sul ou sudoeste; era verdade que todos os tripulantes da Noz-moscada, quando viajavam na desaparecida
Diane rumo leste pelas altas latitudes sul, tinham navegado com ventos muito mais fortes e entre ondas muito mais altas com vários inconvenientes acrescentados,
como ter as mãos geladas, gelo cobrindo o convés e a exárcia e o risco durante a noite de encontrar-se com perigosos icebergs do tamanho de uma catedral; mas agora
consideravam injusto o mau tempo porque tinha chegado inesperadamente e lhes parecia antinatural haver tido que trocar a distribuição de todo o velame três vezes,
até que acharam a complexa disposição que geralmente usavam para fazer uma difícil viagem para o sul do cabo de Hornos. Também, ainda que trabalhassem duramente,
a Noz-moscada avançava muito pouco, pois apesar dos ventos serem favoráveis, não podiam aproveitá-los naquelas águas perigosas e em boa parte desconhecidas.
Só quando chegaram perto do Equador de novo, o monção não voltou a ser como devia, e então puderam voltar a colocar os mastaréus. Isso ocorreu numa sexta-feira,
e esse dia e a maior parte do seguinte todos se dedicaram a trocar, secar e reparar as velas, enquanto a Noz-moscada deslizava suavemente pelas plácidas águas, avançando
a quatro nós de velocidade e com serviolas nos lugares mais altos. Ao final, quando chegou a paz da noite, ela foi destroçada pelo estrondo das caronadas e o ruído
mais grave dos isolados disparos dos canhões longos fazendo práticas de tiro.
Durante os dias anteriores de calmaria, todos os marinheiros tinham chegado a ter muita prática com as pequenas caronadas, que só pesavam dezessete quintais cada
uma, e os artilheiros inclusive lhes tinham tomado afeto. Jack tinha razões para dizer:
- Foi uma boa prática, Fielding. - E acrescentou: - Mas teria sido melhor com mais guardas-marinhas. Necessitamos de pelo menos mais dois na proa e outro no castelo
de popa.
- Estou completamente de acordo, senhor - disse Fielding e, ao notar que o capitão não pensava em falar mais, perguntou: - Vai celebrar a cerimônia religiosa amanhã,
senhor?
- Acho que não - respondeu Jack. - talvez seja melhor deixar que as coisas passem por si mesmas. Contentemo-nos com a revista e a leitura do Código Naval por hora,
ao menos até que cheguemos ao alto mar. E creio que tampouco chamaremos a todos para seus postos de combate. Os marinheiros precisam de um descanso.
Fez uma pausa e depois propôs:
- Vamos tomar um copo de vinho abaixo tão logo a cabine exista de novo.
Os marinheiros haviam descido para o porão os anteparos e os móveis da cabine, o violino do capitão, a miniatura de Sophie e tudo o que interferia no funcionamento
dos canhões (os obstáculos que impediam que as cobertas dos barcos sob o comando de Jack Aubrey estivessem vazias de proa a popa todas as noites) em quando ouviram
o toque do tambor que chamava todos a seus postos de combate. Agora o jovem carpinteiro e seus ajudantes, que eram realmente hábeis, estavam recolocando tudo com
extraordinária rapidez e após cinco minutos voltou a existir uma habitação cristã com xerez e bolachas sobre uma bandeja.
- Estive pensado em ascender Conway, Oakes e Miller - anunciou Jack. - Tem alguma observação que fazer?
- Sem dúvida, Conway é um jovem excelente - disse Fielding. - E Oakes e Miller se comportaram bem no recente período de mau tempo.
- Eu me dei conta. E sei muito bem que não são perfeitos, mas necessitamos de guardas-marinhas. Pode recomendar algum outro marinheiro que seja melhor?
- Não, senhor - respondeu Fielding depois de refletir um momento. - Sendo sincero, não.
A idéia que tinham os marinheiros do descanso poderia desconcertar aos homens do interior. Tiveram que subir as macas meia hora antes do costume e durante o café
da manhã o contramestre se assomou na escotilha central e gritou:
- Ouvem-me de proa a popa? Lavem-se para a revista quando soem as cinco badaladas! Com calças brancas e casaca!
Entretanto, seus companheiros gritavam na proa:
- Ouvem-me? Barbeiem-se e ponham camisa limpa para a revista quando soem as cinco badaladas!
Esses gritos eram tão comuns em um barco de guerra como as flores na primavera.
Desde o final do café da manhã começou, como sempre, uma grande atividade. Todos os marinheiros, exceto os poucos grumetes que ainda não tinham barba, barbeavam-se
com suas própias navalhas ou se submetiam à ação do barbeiro da Noz-moscada. Ademais, os que usavam trança as penteavam e voltavam a fazê-las uns nos outros. Depois
que muitos deles limparam o convés com a pedra arenito seca e todos lavaram as mãos e a cara em bacias junto ao tonel situado no convés, fizeram sua aparição as
impecáveis calças e casacas que haviam lavado na quinta-feira, quando o vento fazia usar as gáveas rizadas, e que em muitos casos estavam adornadas com fitas nas
costuras, também nos chapéus de palha de aba larga com fitas que já tinham bordado o nome da escuna. Ao mesmo tempo, os infantes da marinha abrilhantaram, limparam
com calcário e escovaram o que não haviam abrilhantado, limpado com calcário nem escovado no sábado pela tarde. E certamente, todos os tripulantes subiram suas trouxas
e as colocaram formando uma pirâmide onde ficavam amontoados os paus. Ainda que os oficiais puderam esperar até o último momento para pôr seu melhor uniforme, já
estavam assando antes que Richardson ordenasse a Bennett, seu companheiro de guarda:
- Toque para a revista.
Bennett se voltou para o homem que tocava o tambor e ordenou:
- Toque para a revista.
Ao primeiro golpe do tambor, os infantes da marinha foram para a popa, ao final da popa, caminhando pesadamente, e quando ouviram os primeiros gritos militares formaram
em filas de um lado ao outro da convés com Welby na frente, flanqueado pelos suboficiais e o homem que tocava o tambor. Enquanto isso, os marinheiros se dirigiram
aos seus postos e formaram em filas na parte do castelo de popa que restava livre, os corrimãos e o castelo enquanto os oficiais e os guardas-marinhas gritavam:
- Em fila! Malditos marinheiros de água doce! Em fila!
Quando estavam mais ou menos ordenados, o oficial de cada brigada informou a Fielding de que seus homens estavam presentes, limpos e adequadamente vestidos. Fielding
atravessou a coberta, aproximou-se de Jack e, tirando o chapéu, anunciou:
- Todos os oficiais deram seu informe, senhor.
- Muito bem, senhor Fielding - respondeu Jack. - Então percorreremos a escuna.
Fizeram isso e, como era habitual, começaram inspecionando os infantes da marinha. Depois inspecionaram os marinheiros da guarda de proa e os aleijados (que na Noz-moscada
formavam uma só brigada), sob as ordens do senhor Warren e Bennett; depois os artilheiros, sob as ordens do senhor White, por falta de um oficial no castelo de popa,
e Fleming; e depois os gavieiros, sob as ordens de Richardson e Reade. Estes últimos eram os membros da tripulação mais jovens, mais ágeis e mais esmerados. Gostavam
de estar elegantes, e muitos, também de enfeitar-se com fitas e bordados de cima abaixo, exibiam várias tatuagens. Entre eles estavam Conway, um jovem alegre que
usava fitas azuis costuradas nas costuras das calças, e Oakes e Miller, que eram menos alegres, mas também gostavam de se vestir bem, até tal ponto que tinham se
atrevido a pôr uma cinta rosa por toda a borda da casaca, e em cada revista estavam menos pálidos e com menos espinhas. Chegou a vez dos marinheiros do castelo,
mais velhos e mais experientes, que estavam sob as ordens de Seymour. Nem mesmo entre estes marinheiros, que em alguns casos navegavam há quarenta anos, havia algum
que tivesse feito a circunavegação do globo, nem tampouco alguém que tivesse previsto que ganhariam um dia, e também eles tinham ainda um pouco daquele inusual entusiasmo.
Em cada brigada o oficial cumprimentava e os marinheiros tiravam os chapéus, alisavam o cabelo e se endireitavam. Jack caminhava pela fila olhando atentamente a
todos e cada um dos homens, a todos e cada um dos rostos conhecidos.
Isso era quase uma façanha quando o mar estava agitado, pois como todos estavam convencidos de que a Noz-moscada quase podia se considerar uma fragata, porque apesar
de ser pequena seu aparelho era semelhante ao de um navio, formavam filas no portaló sem ter em conta que deixavam pouco espaço entre elas para que passasse um corpulento
capitão e muito menos para que inspecionasse a um robusto marinheiro.
Em pouco tempo terminou essa etapa. Depois, Jack inspecionou a imaculada cozinha com suas brilhantes panelas de cobre e o imediato revisou os camarotes, que estavam
adornados com quadros, brilhantes vasilhas de cerâmica e penas de pavões reais de Java e uma vela sobre o baú mais alto, e juntos inspecionaram a coberta inferior
e os paióis. Finalmente foram à enfermaria, onde Stephen, Macmillan e um garoto recém contratado como ajudante lhes receberam e informaram sobre os cinco obstinados
casos de sífilis procedentes de Batavia e sobre o enfermo que tinha a clavícula quebada (um marinheiro encarregado da âncora de emergência que estava tão contente
porque ia ganhar um dia, que decidiu ensinar a seus companheiros a dançar uma dança típica irlandesa em cima de uma bita).
O capitão voltou ao castelo de popa e à brilhante luz do sol. Os infantes da marinha apresentaram armas com um estalido seguido de um golpe seco. Todos os oficiais
cumprimentaram e todos os marinheiros tiraram os chapéus.
- Muito bem, senhor Fielding - disse. - Nós nos contentaremos em ler os artigos do Código Naval e depois almoçaremos.
O móvel onde se guardavam as espadas que utilizavam como atril e as tabuinhas onde estavam escritos os artigos estavam preparados. Jack leu com rapidez o conhecido
texto e terminou dizendo:
- Todos os outros delitos não castigados com a pena capital que sejam cometidos por qualquer pessoa ou pessoas da Armada e não estejam mencionados nestes artigos
e, por isso, não tenham um castigo atribuído a eles, serão castigados de acordo com os costumes e as leis aplicadas nesses casos no mar.
depois virou-se para o senhor Fielding e disse:
- Senhor Fielding, como resta pouco tempo antes que soem as oito badaladas, pode ordenar que arriem as sobrejoanetes e a bujarrona.
Para ele, em troca, faltavam mais de duas horas para almoçar, mas esse tempo foi ainda pior para seus convidados, Richardson e Seymour, porque os oficiais geralmente
comiam muito antes que o capitão, e os guardas-marinhas ainda antes, ao meio-dia.
Mas foi uma refeição pela qual valia a pena esperar. Wilson, o cozinheiro de Jack, havia se esmerado em preparar uma sopa de pescado e mariscos, feita principalmente
com lagostins que haviam comprado a um paraú que passou perto, uma perna de cordeiro assada e várias sobremesas. Ademais, o fino xerez que beberam não se ressentira
de sua passagem pelo Equador pelo menos três vezes. Para Stephen era um mistério como podiam tragar tudo aquilo a uma temperatura de oitenta graus Farenheit, em
uma atmosfera carregada e vestidos com casacas de pano. Agora os três, a quem desejava que Deus protegesse, estavam comendo com aparente bom apetite arroz com leite,
bolo de melaço, pudim de sagu e doces de Shrewsbury. Porém, sob a jocosidade de Jack, um observador acostumado a vê-lo podia distinguir um estado de ânimo completamente
diferente.
- É estranho que todos tenham se surpreendido e alegrado tanto de ganhar um dia - observou Jack. - Afinal de contas, há mais de vinte anos os barcos ingleses usam
convictos a Botany Bay e regressam à Inglaterra pelo cabo de Hornos, assim que era de esperar que fosse do domínio público. Mas me alegro de que haja a bordo tanta
alegria como se todos estivessem de férias, porque é apropiada para o que penso fazer esta tarde.
- Com sua permissão, senhor - disse Killick, irrompendo na cabine com uma grande bandeja de prata em chamas que pôs diante de Jack, uma bandeja com uma fritada açucarada
flameada que era o broche de ouro do banquete, e o orgulho de Wilson.
Só depois de comê-la e de brindar ao rei e a várias pessoas mais que Jack continuou:
- Desculpem-me se por um momento falo de assuntos da Armada. Tenho a intenção de promover Conway, Oakes e Miller a guardas-marinhas antes da segunda guarda de quartilho.
Posso contar com o senhor para facilitar-lhes a adaptação ao camarote, senhor Seymour? Entrar nele pode ser difícil.
- Eu o farei com muito prazer, senhor - respondeu Seymour. - E Bennett e eu lhes emprestaremos os uniformes até que possam ir ver a um bom alfaiate. Compramos as
coisas do pobre Clerke quando as venderam junto ao mastro maior, e estava muito bem abastecido, pois tinha três peças de cada coisa.
- Bem, senhor - disse Richardson, levantando-se -, alegro-me muito de ouvir essa notícia, e ainda que não tenho a presunção de felicitar-lhe por sua escolha, devo
dizer que facilitará muito o trabalho na Noz-moscada. E, naturalmente, quero agradecer-lhe de todo coração a esplêndida refeição.
O dia languideceu, e a brisa, com ele. Quando chamaram os marinheiros para trocar a guarda, a Noz-moscada deslizava pelas águas tranqüilas e quentes como caldo com
uma velocidade mais que suficiente para manobrar. Quase todos os tripulantes estavam tomando ar, bastante fresco, no convés. Fazia muito calor e umidade para bailar,
mas podia ouvir-se a muitos marinheiros cantando no castelo e na entrecoberta. Também cantavam os guardas-marinhas no camarote, onde os três novos, com fio, agulha
e tesouras, estavam arrumando os tão ansiados uniformes.
- O que acha de um pouco de música, Jack? - perguntou Stephen, entrando com uma partitura na mão. - Faz muito que não tocamos e acabo de encontrar aquela peça de
Clementi com a qual desfrutamos tanto no Mediterrâneo.
- Para dizer a verdade, Stephen - respondeu Jack -, não estou de humor para isso. Eu a converteria em um maldito canto fúnebre; converteria qualquer coisa em um
maldito canto fúnebre. Estive comparando meus cálculos com os do oficial de derrota e são muito parecidos. Tomei uma decisão equivocada. Devia ter esperado na entrada
do estreito de Salibabu com a escuna a pairar em frente ao extremo oriental da ilha, porque assim poderia atacar a fragata quando estivesse a um tiro de mosquete
e depois penol a penol.
Então mostrou a Stephen a grande carta marítima que estava estendida sobre a mesa.
- Com o monção do sudoeste, a Cornélie tinha que navegar para o norte e contornar Bornéu para chegar ao mar de Sulú, e depois fazer rumo e atravessar o estreito
de Sibutu para chegar ao mar de Celebes, pois ninguém em seu juizo perfeito se atreveria a passar pelo arquipélago de Sulú. Então, depois de cruzar o estreito, tinha
que mudar de bordo e fazer rumo a Salibabu. E ali, se meus planos tivessem saído bem, eu a estaria esperando. Mas meus planos estavam baseados na regularidade do
monção, e o monção foi irregular. O mau tempo que nos forçou a navegar lentamente e com prudência no estreito de Macassar ajudou a fragata a chegar rapidamente ao
mar de Celebes, e se eu tivesse me dirigido diretamente para Sibutu em vez de desviar-me para o leste com estes miseráveis ventos e ao abrigo da costa, acho que
teria chegado ali primeiro. Estou convencido de que já passou o estreito e agora navega velozmente rumo a Salibabu. Possivelmente, se tem poucos víveres e uma tripulação
lerda, possa alcançá-la antes que chegue, mas isso não me beneficiará muito. O tipo de combate que quero entabular não consiste em uma perseguição pela popa, mas
um ataque penol a penol seguido da abordagem em meio da fumaça. Mas há mil, dez mil possibilidades de que não volte mais a vê-la. Acho que estes dias de calmaria
foram fatais.
- Mas se a Cornélie passar pelo estreito de Salibabu, não se topará com Tom Pullings e a Surprise?
- A primeira condição é que Tom Pullings esteja lá.
- E isso não é provável?
- Há muitas possibilidades de que não seja assim porque os separa de nós a metade do mundo e sabe Deus quantos mares. A segunda condição é que a Cornélie se mantenha
na parte direita do canal, afastada da melhor rota, porque assim a poderiam avistar, mesmo sem ver ainda o casco, de Kabruang, onde espero que Tom esteja com a fragata
a pairar até o dia 20. E não só têm que ser capazes de avistá-la, como também de reconhecê-la de certa distância, pois quem esperaria ver um barco francês nessas
águas? Inclusive se essas três condições se cumprissem, Tom teria que abandonar o lugar do encontro para empreender uma perseguição que lhe afastaria duzentas ou
trezentas milhas, e não sei se o faria. Não é provável que se dêem essas condições em separado, e para que as quatro coincidam... Pelo que vejo, nossa única esperança
é navegar a toda vela, rindo de tudo outra vez, para recuperar esses condenados dias que passamos a pairar. Afinal de contas, os fundos da escuna estão limpíssimos.
- Quando fala do ataque surpresa e da abordagem em meio da fumaça, esqueceu da possibilidade de que não tenha pólvora?
- Não a esqueci - respondeu Jack secamente. - Certamente que não a esqueci. E capturar um barco nessas circunstâncias seria tão honroso como... Sem dúvida, existe
essa possibilidade, mas não posso baseiar nela meu plano de ataque. Só o que está claro é que tenho que tratar de encontrar-me com ela e agir em consequência...
agir como um bom marinheiro - acrescentou, sorrindo com amabilidade depois de ter usado um tom agressivo, pois, como Stephen sabia perfeitamente, estava muito nervoso.
Quando chegou a guarda da alvorada, já estavam navegando a toda vela, e quando todos os marinheiros terminaram de desjejuar e subiram para o convés, aumentou de
velocidade porque colocaram os mastaréus de sobrejoanetes e içaram as correspondentes velas, de uma lona de grande qualidade. Como o vento, um vento estável que
permitia usar abertas as joanetes, soprava agora pela alheta, logo fizeram sua aparição as alas no costado de barlavento, quatro no pau traquete e duas no maior,
e uma multidão de velas de estai. Também apareceram a cevadeira e a sobrecevadeira, certamente, e todos as bujarronas que podiam desdobrar-se. Era um magnífico conjunto
de velas. Pouco depois assomaram as monterillas{7} acima das sobrejoanetes e os marinheiros observaram como a água subia pelos lados da proa, descia até as placas
de cobre detrás do pescante de proa, passava rapidamente pelos costados produzindo um som sibilante e formava uma esteira ampla e reta que se estendia para o sudoeste.
CAPÍTULO 5
Miller, o mais feio dos dois guardas-marinhas ressuscitados, havia sido elogiado por sua vista aguda e por sua diligência como serviola, e não só Richardson, o oficial
de sua brigada, como também o própio capitão, e agora quase nunca podiam tirar-lhe do tope do mastro maior. Sentia um imenso respeito pelo capitão Aubrey, em parte
porque Jack tinha autoridade natural, fama de capitão combativo e capacidade para enaltecer ou difamar os outros; contudo, o que fazia que esse respeito alcançasse
o grau de veneração era o caráter de Jack de navegar a toda vela. Nos cinco anos que passara no mar nunca vira nada igual, e seus companheiros de tripulação, alguns
dos quais estavam no mar dez vezes esse tempo, asseguraram que nunca voltaria vê-la. Sem dúvida, posto que Jack Aubrey tinha uma embarcação robusta, com novos mastros
e nova exárcia e os fundos limpos, podia fazê-la navegar agora a grande velocidade pelas profundas águas do mar de Celebes. Também, tinha bons oficiais, uma tripulação
bastante boa (ainda não era como a da Surprise, mas era muito melhor que a maioria) e se sentia angustiado e culpado por ter tomado uma decisão equivocada. Dia após
dia a Noz-moscada avançava velozmente para o leste, com enormes pirâmides de velas, enquanto Jack ficava colado ao castelo de popa e Miller ao tope do mastro maior.
Miller desejava mais do que tudo comprazer e assombrar ao capitão Aubrey com o anúncio de que as joanetes da Cornélie acabavam de aparecer no horizonte.
Dia após dia largava atrás muitos graus de longitude. Enquanto isso, Jack e o oficial de derrota comprovavam e voltavam a comprovar sua posição com os cronômetros
e as medições lunares e Miller passava inclusive o tempo de descanso justo acima deles e às vezes levava para cima a comida envolvida em um lenço. Miller sempre
levava a luneta que Reade lhe dera dizendo-lhe: "Não é útil para um tipo com um só braço, sabe? Pode convidar a Harper e a mim para um pote de ponche quando chegarmos
a Botany Bay". Viu muitos paraús, sobretudo a oeste dos 123º E, e ocasionalmente algum junco que vinha das Filipinas. Comunicava sua presença em tom indiferente,
amiúde irritando os serviolas oficiais, e raras vezes recebia muitas mostras de agradecimento dos oficiais. Contudo, durante os dois últimos dias permanecera calado
não só porque não tinha avistado nenhum barco, como também porque não se podia ver o horizonte. Uma massa de diminutas e cálidas gotas de água enchia o ar, fazendo
difícil respirar e quase impossível diferenciar o mar do céu, pelo que o mundo parecia não ter limites. Foi graças a uma providencial clareira na névoa, a nor-noroeste,
que pôde avistar um barco aproximadamente a duas milhas de distância, um barco que navegava rumo sudeste, com apeas as gáveas desdobradas. Em tom convencido, olhando
para abaixo, gritou:
- Convés, um barco pela alheta de bombordo rumo sudeste! Já se lhe vê o casco!
Um momento depois sentiu uma vibração, que transmitiram sucessivamente distintos fragmentos da exárcia e foi produzida pelo rápido movimento ascendente de um corpo
pesado, e depois ouviu a voz do capitão, que do cesto da gávea lhe pedia que desse passagem. Colocaram-se um de cada lado do mastaréu maior, junto aos amantilhos,
e Jack perguntou:
- Onde está, senhor Miller?
- Mais ou menos a cinco graus pela alheta, senhor. Mas se vai e volta.
Jack se sentou na cruzeta e dirigiu a vista para o nor-noroeste acima do aprazível mar azul. Aumentaram suas esperanças, que quase tinham dado passagem à resignação,
fazendo seu coração bater tão rapidamente que lhe parecia que o tinha na garganta. Voltou a surgir uma clareira na névoa, de modo que o barco pôde ser visto muito
perto, e as esperanças diminuiram até um nível razoável. Certamente que uma embarcação que navegasse rumo sudeste não podia ser a Cornélie, contudo, Jack deu as
ordens necessárias para que içassem a bandeira, e a Noz-moscada, descrevendo uma elegante curva, se aproximasse do barco desconhecido, um mercante holandês de aspecto
abandonado, largo e pesado. O mercante não tentou escapar, aliás permaneceu ali com a gávea em pairo até que a Noz-moscada se aproximou pelo lado de barlavento.
Seus tripulantes, a maioria homens negros ou de pele de cor marrom-cinzento, alinharam-se no lado com expressão satisfeita e não sacaram nenhum de seus canhões,
que provavelmente eram de seis libras.
- Que barco vai? - perguntou Jack.
- Alkmaar, senhor, que vai de Manila a Menardo.
- Que se apresente o capitão com seus documentos.
Um bote caiu na água e o capitão foi nele para a escuna. Todos seus documentos estavam em ordem e entre eles se achava uma licença de comércio emitida pela administração
de Raffles em Batavia. Jack os devolveu ao holandês e lhe ofereceu um copo de vinho de Madeira.
- Para dizer a verdade - disse o holandês -, preferiria um barrilete de água, ainda que não fosse fresca.
Depois, em resposta às perguntas de Jack, acrescentou:
- Agradeceria se me desse dois ou três barris, se puder. Durante os últimos dias só havemos tomado meio balde por dia, porém, apesar disso, duvido que possamos chegar
a Menardo sem reabastecer. Os marinheiros estão mortos de sede, senhor.
- Acredito que poderemos dá-los, capitão - Jack lhe tranqüilizou. - Mas antes beba o vinho e conte-me como é que fala tão bem o inglês e por que tem pouca água.
- Com relação ao inglês, senhor, passei minha infância e minha juventude navegando em arenqueiros holandeses e ingleses indistintamente, entrando e saindo de Yarmouth.
Ali me recrutaram a força e me mandaram ao Billy Ruffian, que estava sob as ordens do capitão Hammond, e permaneci a bordo por dois anos, até que a paz foi assinada.
No que diz respeito à água, jogamos pela borda os barris de água das duas filas superiores para escapar de um par de juncos de piratas diante das ilhas Cagayan,
e quando nos livramos deles me dei conta de que algum tonto, contra de minhas ordens, havia jogado quase todos os da inferior. Esta viagem foi muito desafortunada,
senhor. Depois disso fomos capturados por uma fragata francesa, pode acreditar, senhor?, uma fragata francesa.
- Quantos canhões tinha?
- Trinta e dois, senhor. Muitos para que me atrevesse a opor-me a ela. Também tinha pouca água, mas quando demostrei ao seu capitão que apenas tínhamos o suficiente
para chegar ao nosso destino e que encontraria um bom lugar para pegar água em sua rota, já que navegava rumo ao estreito e um tempo depois, ela nos deixou. Devo
dizer que todos se comportaram muito bem, tendo em conta que não houve pilhagem nem tocaram nada do carregamento nem fizeram nada cruel, e ainda que tenham levado
toda a pólvora e todas as velas menos as que o senhor vê, senhor, o capitão me falou com cortesia e me deu uma letra emitida para um banco de Paris que espero receber
algum dia.
- Quanta pólvora?
- Quatro barris, senhor.
- Barris pela metade?
- Não, senhor, barris inteiros, e da melhor pólvora de grãos grandes de Manila.
- Onde fica esse lugar onde se pode pegar água?
- Em uma ilha que se chama Nil Desperandum, senhor. Mas não é a que se encontra no mar de Banda, mas a que fica mais ao norte. Demora-se muito para pegar água ali
porque tem que passar por um estreito sinuoso, a corrente de água é muito pequena e não há nenhuma laguna. Eu mesmo teria ido com ele se não fosse porque meu barco
nunca poderia regressar navegando em direção contrária ao monção. Meu barco não é a Gelijkheid. Como a chama agora, senhor?
- Noz-moscada - respondeu Jack.
Depois de conversar um pouco mais sobre a fragata francesa, que indubtavelmente era a Cornélie, de sua tripulação e suas qualidades, e também do lugar onde se podia
pegar água em Nil Desperandum, Jack disse:
- Desculpe-me, capitão, mas tenho pressa. Eu lhe darei a água empregando a bomba. Aproximarei a escuna tanto como possa e mandarei colocarem a mangueira. É melhor
que volte ao seu barco agora e prepare tudo.
As embarcações se separaram depois do mais desagradável quarto de hora que Fielding passara em todos seus anos de serviço como imediato. Havia uma forte marejada,
a mangueira da bomba era muito curta, os tripulantes do Alkmaar não tinham cuidado ao empurrar a escuna com o croque, não cuidavam da pintura, e os da Noz-moscada
não eram mais cuidadosos que eles. Além disso, ouvia ao capitão Aubrey dizer-he uma e outra vez que não tinha nem um momento a perder. Inclusive depois que a faixa
d’água que separava as duas embarcações chegou a uma milha de largura e os gritos de agradecimento da tripulação do mercante holandês se ouviam debilmente no ar,
estava tão irritado que deu um chute em um grumete por arrancar pedaços de tinta que haviam desgrudado da faixa negra.
Imediatamente depois foi chamado à cabine e, cheio de preocupação, aproximou-se da popa coxeando e estirando a roupa. Não lhe agradava a idéia de que o repreendessem
e sabia muito bem que o capitão não gostava de chicotadas, chutes, golpes com varas e dos que se batiam no traseiro com tábuas, além de palavras de censura como
"marinheiro de água doce" ou "malditos sejam teus membros", a menos que ele mesmo as dissesse.
Sem embargo, quando abriu a porta, encontrou o capitão inclinado sobre uma carta marítima com o doutor de um lado e o senhor Warren do outro.
- Senhor Fielding - disse Jack, levantando a vista e sorrindo -, sabe o que quer dizer nil desperandum?
- Não, senhor - respondeu Fielding.
- Significa "não há que dar-se por vencido" ou "enquanto há vida há esperança" - explicou Jack. - E esse é o nome de uma ilha situada a umas trezentas milhas a bombordo,
justo antes do estreito.
- Ah, é, senhor? Achava que ficava ao leste de Timor.
- Não, não, essa é outra. Ocorre o mesmo que com a Desolação. Há muitas ilhas chamadas Desolação e muitas chamadas Nil Desperandum, ah, ah! Com um pouco de sorte
encontraremos a Cornélie carregando água na ilha. Meu objetivo é ir até lá e aproximar-me dela o mais possível, e para isso é necessário que a escuna se pareça o
mais possível a um mercante. Oxalá se me tivesse ocorrido trocar com o capitão do Alkmaar suas velas finas, velhas e cheias de remendos por um conjunto nosso. Mas
a diligência dos marinheiros fará maravilhas.
- Sim, senhor - disse Fielding.
- Não se preocupe com a pintura, senhor Fielding - murmurou Jack. - E tampouco com as bonitas vergas enegrecidas e mantidas perpendiculares aos paus pelos moitões
e braças. Tome como modelo o Alkmaar e ao diabo a limpeza.
- Sim, senhor - replicou de novo Fielding, que se preocupava muito com a pintura e tinha cuidado excepcionalmente da aparência da Noz-moscada, até tal ponto que
era a escuna de vinte canhões da Armada de melhor aspecto, uma escuna pronta para passar pela inspeção de qualquer almirante.
- Ah, ah, ah! - estourou Maturin de repente. - Recordo-me quando fizemos com que nossa querida Surprise se parecesse com uma draga para enganar ao Spartan. Havia
porcaria por toda parte.
- Oh, senhor! - exclamou o oficial de derrota em tom de protesto.
- Na realidade, senhor Fielding, a sujeira não é fundamental, porque a escuna não vai ser submetida a uma rigorosa inspeção. Só tem que se parecer com um mercante
o suficiente para que possa se aproximar até que a fragata esteja ao alcance dos canhões, porque quando começarmos a disparar teremos que fazê-lo sob nossa própia
bandeira, certamente.
Stephen os deixou discutindo os detalhes da horrível mudança e foi fazer a ronda. Macmillan o recebeu com uma expressão angustiada.
- Sinto muito comunicar-lhe, senhor, que chegaram dois casos de problemas dentais, e devo confessar que estou desorientado, completamente desorientado.
Macmillan disse essas palavras o melhor que pôde em latim, porque os pacientes estavam ali mesmo, com a vista fixa nos dois cirurgiões. O latim os tranqüilizou porque
era a língua dos sábios, não de curandeiros de animais que entravam na Armada para receber uma gratificação e davam uma de médicos no castelo.
- Não vai ser fácil - confirmou Stephen depois de examinar os dentes, que em ambos os casos se encontravam em lugares difíceis e tinham cáries muito profundas. -
Contudo, faremos todo o que possamos. Deixe-me ver de que instrumentos dispomos...
Depois de olhá-los negou com a cabeça e disse:
- Bem, pelo menos poderemos untá-las com óleo de alho e depois completar as cavidades com chumbo. Espero que não se rompam sob a pressão do fórceps.
Uma vã esperança. E quando por fim deixou os marinheiros aos cuidados de seus companheiros e o açougueiro do barco, que lhes havia segurado a cabeça, estava mais
pálido do que eles.
- É estranho... - queixou-se ao voltar para a cabine, onde Jack, sentado sobre a capa do leme, brincava com as cordas de seu violino enquanto observava como se estendia
a ampla esteira. - É estranho que apesar de poder cortar um membro destroçado, abrir o crânio de um homem, cortar um homem para tirar-lhe um cálculo e ajudar uma
mulher em um difícil parto de nádegas como corresponde, e sem sentir náuseas, não direi que indiferente à dor nem ao dano sofrido, mas com o que talvez poderia se
chamar de tranqüilidade profissional, apesar de tudo isso, não posso arrancar um dente sem ficar nervoso. O mesmo sucede a Macmillan, ainda que é um jovem excelente
em qualquer outro aspecto. Não voltarei partir para o mar sem um experiente dentista, ainda que seja um ignorante.
- Sinto que tenha passado tão mal momento - disse Jack. - Tomemos uma xícara de café.
Considerava o café a panacéia universal, como Stephen considerava a tintura de ópio em outro tempo, e o pediu em voz alta e clara.
Killick pôs uma expressão que parecia mais mal-humorada que outras vezes, pensando que não era costume servir café a essa hora do dia.
- Terá que ser puro - anunciou. - Não posso ordenhar a Nanny em todas as horas. Se o faço, ela ficará seca. Uma cabra não é uma cisterna, senhor.
- Café forte puro! - exclamou Stephen vários minutos depois. - Que bem sinto! E me alegro muito de não ter satisfeito o desejo de mascar as folhas de coca quando
terminei a ronda na enfermaria, como tinha pensado. Indubtavelmente, acalmam a mente, mas anulam o senso do gosto. Não obstante, mascarei três quando a cafeteira
acabar.
Vira as folhas de coca pela primeira vez na América do Sul, e atualmente as considerava a panacéia. Ainda que viajava com uma grande quantidade guardada em suaves
bolsas de couro, uma quantidade que bastava para dar duas vezes a volta ao mundo, procurava abster-se delas, e com essas três folhas que mascaria mais tarde faria
uma inusual concessão ao seu capricho.
- Sem dúvida, a escuna navega a uma extraordinária velocidade - observou, olhando ao seu redor. - Olha só como a água é projetada para longe, o quanto longe chega
a turbulência! Ao nosso redor já há tanto ruído que nos obriga a levantar a voz, como terá notado, um ruído geral que não se pode definir, mas cuja nota predominante
é quase exatamente esse si que está tocando com o polegar.
Apenas terminou de dizer estas palavras, Reade chegou dando saltos. Suas feridas haviam sarado estupendamente, mas Stephen ainda o obrigava a usar uma bandoleira
com uma almofadinha para proteger o toco em caso de que caísse ou de que a escuna desse solavancos, e a manga vazia ficava presa a ela. Todos os marinheiros o tratavam
com extraordinário afeto, e já tinha recuperado o ânimo e adquirira uma agilidade que quase compensava sua perda.
- O senhor Richardson presenta seu;s respeitos e pensa que lhe agradará saber que navegamos quase exatamente a doze nós e uma braça. Eu mesmo o escrevi na tabuinha.
Jack riu a gargalhadas.
- Doze nós e uma braça apesar de ter o vento pela alheta! Obrigado, senhor Reade. Por favor, diga ao senhor Richardson que pode desdobrar uma sossobre no pau traquete
se o estima oportuno e que não passaremos revista esta tarde.
- Sim, senhor. E, com sua permissão, pediu-me que se visse o doutor lhe dissesse que nos segue uma ave muito curiosa. Ela parece muito com o albatroz e tem algo
no bico.
Stephen subiu correndo para o convés e chegou a tempo de ver a longa luta da ave para tirar de seu bico a concha interna de uma sépia estava enganchada. Quando a
concha interna saiu, o albatroz virou para o sul, afastou-se voando com grande rapidez e quase imediatamente desapareceu entre as nuvens.
- Agradeço-lhe de todo coração por ter me mostrado a ave - disse a Richardson.
- Não por isso, senhor - respondeu Richardson e depois, pegando-lhe pelo cotovelo, acrescentou: - E se ficar aqui e se inclinar um pouco para ver o cesto da gávea
do traquete, dentro de um minuto lhe mostrarei uma sossobre. Nós a colocamos voando, sabia?
Stephen se inclinou e olhou para lá. Em meio de uma série de ordens, apitos e gritos como "amarrar!", sob o brilhante sol, apareceu um pequeno triângulo branco acima
de todas as outras formas brancas, para satisfação dos numerosos marinheiros que estavam na imaculada coberta, que acabava de ser varrida pela segunda vez depois
do almoço.
- Era um dos albatrozes menores - anunciou ao regressar. - Estava lutando para tirar uma concha interna de uma sépia do bico. Provavelmente a levara ali ao longo
de mil milhas ou mais.
- Oxalá tivesse sido uma carta de casa - brincou amargamente Jack e, depois de um momento em que ambos permaneceram em silêncio, continuou: - Sempre relacionara
os albatrozes com as altas latitudes sul. De que tipo é este?
- Não sei. Só sei que não é o Diomedea exulans de Linneo, ainda que tenha dito que ele também habita os trópicos. Também já descreveram uma espécie do Japão e uma
das ilhas Sandwich. Este pode pertencer a uma delas ou a outra espécie desconhecida, mas teria que tê-lo matado para saber e estou cansado de matar... Suponho que
terá notado que agora o horizonte se vê claramente.
- Sim, a névoa se dissipou durante a noite. Pudemos fazer medições muito exatas com relação a Rasalagui e a lua, que coincidiram quase até o último minuto de longitude
não só com o cálculo de nossa posição feito com o cronômetro, como também com a estimativa, o que é bastante satisfatório, creio.
Ao ver que essa esplêndida notícia não provocava emoção, senão nada mais que uma cortês inclinação de cabeça, propôs:
- Que acha de retomarmos o jogo onde o deixamos? Eu estava ganhando, como se recordará.
- Ganhando? - perguntou Stephen, pegando seu violoncelo. - Como te atraiçoa sua memória em pleno envelhecimento, meu pobre amigo!
Ambos se puseram a afinar seus instrumentos, e a pouca distância dali, Killick disse ao seu companheiro:
- Já começam outra vez: ñii, ñii, pum, pum. E quando começam a tocar não é melhor. Não se pode distinguir uma coisa da outra. Não tocam nunca nada que um homem seja
capaz de cantar, nem mesmo que esteja bêbado como um gambá.
- Recordo-me deles na Lively. Mas isto não é tão grave como uma câmara dos oficiais cheia de cavalheiros com flautas travessas queixando-se dia e noite, como havia
no Thunderer. Não. Como eu digo, viva e deixe viver.
- Vá à merda, William Grimshaw.
O jogo consistia em um improvisar um fragmento musical de algum eminente compositor (o melhor que sua moderada habilidade e sua falta de inspiração permitiam) e
o outro, depois de adivinhar o compositor, tinha que acompanhá-lo e continuar o fragmento até um ponto subentendido por ambos e depois começar outro, do mesmo autor
ou de outro. Pelo menos eles desfrutavam muito com esse exercício e seguiram tocando até a noite, fazendo só uma pausa ao final da guarda do primeiro quartilho,
quando Jack subiu ao convés para medir a temperatura e a salinidade da água com Adams e diminuir o velame para a navegação durante a noite.
Ainda estavam tocando quando chegou a guarda de prima, e Killick, enquanto punha a mesa na cabine-refeitório, disse:
- Isto deterá esse lixo por um tempo, graças a Deus. Tire seus dedos gordurentos dos pratos, Bill. Ponha as luvas brancas. Corte rente o pavio das velas com as malditas
espevitadeiras e não deixe cair cera nem fuligem. Não, não, dá-me.
Killick se encantava ao ver a louça de prata brilhando na mesa, mas detestava vê-las sendo usadas por uma infinidade de razões menos por uma: que o costume lhe permitia
voltar a poli-las. Não obstante, o costume devia ser moderado, mais que moderado.
Abriu a porta que dava para a grande cabine, iluminada pela lua e cheia de música, e ficou ali de pé com um gesto grave até que fizeram a primeira pausa, na qual
anunciou:
- O jantar está servido, senhor, com sua permissão.
A janta foi boa e consistiu, graças à amabilidade da senhora Raffles, em espaguetes, costeletas de cordeiro e torradas com queijo, seguidas, também graças à amabilidade
da senhora Raffles, de pudim de passas. Durante a refeição fizeram os brindes costumeiros, e com as últimas taças de vinho Jack disse:
- Por nossa querida Surprise e para que nos reunamos com ela logo.
- De mil amores - respondeu Stephen.
Permaneceram uns minutos silenciosos e pensativos enquanto a água sussurrava ao passar pelo costado até que Jack disse:
- Acho que seria melhor que dormisse lá embaixo esta noite. Vou encarregar-me da guarda de meia e estarei entrando e saindo constantemente. Penso em deixar que navegue
a toda vela durante a noite e começar a prepará-la para combate pela manhã. Na primeira hora esvaziaremos a cabine e levaremos os canhões para o final da popa.
Na maioria dos barcos que Jack Aubrey tivera sob seu comando, Stephen, por ser o cirurgião, tinha outra cabine que dava para a sala dos oficiais, e em uma dessas
cabines se encontrava agora, balançando com o cabeceio e o balanço da Noz-moscada enquanto navegava velozmente na escuridão. Estava deitado de costas, com as mãos
atrás da cabeça, e se achava muito à vontade. Não dormia, pois o café e as folhas de coca lhe haviam feito mais efeito que o vinho do porto, mas isso não lhe importava.
Suas idéias fluíam com a mesma facilidade com que a Noz-moscada se movia, e com um ouvido estava atento aos habituais ruídos de uma embarcação com a exárcia tensa
e grande quantidade de velame desdobrado, os invariáveis sons navais, as badaladas que se ouviam debilmente na deviada sucessão, o grito "tudo bem!", que se repetia
por todo o convés, o ruído surdo dos passos dos marinheiros descalços, que se sentiam durante a troca das guardas. Não seguiam um determinado curso, umas iam seguidas
de outras com as quais tinham uma vaga associação, até que chegaram as relacionadas com a possibilidade, bastante remota, de encontrar a Surprise - do outro lado
do estreito de Salibabu. Quando lembrou o nome, viu sua imagem e sorriu na escuridão. E de repente voltou para sua mente a perda de sua fortuna, sua relativa pobreza.
Apesar da Surprise lhe pertencer, não poderia fazer nenhum daquelas esplêndidas viagens que se prometera realizar quando a paz voltasse, viagens em que nenhuma voz
em tom imperioso diria: "Não há nem um momento a perder", e em que Martin e ele poderiam percorrer a seu arbítrio litorais desconhecidos e ilhas remotas nunca vistas
pelos naturalistas nem por nenhum outro homem, ilhas onde era possível pegar uma ave, examiná-la e voltar a pô-la em seu ninho.
Relativa pobreza. Não poderia fazer viagens; não poderia dotar cátedras de osteologia comparada; teria que vender a casa da rua Half Moon. Ainda que estivesse comprometido
a pagar certo número de anualidades, conforme seus cálculos (tal como eram então), ainda teria uma modesta quantia para cobrir suas necessidades se continuasse na
Armada, e talvez poderia conservar a nova propriedade de Diana em Hampshire, a destinada a seus cavalos árabes.
De qualquer maneira, estava completamente seguro de que ela se sairia bem, ainda que tivessem que ir viver em seu castelo meio em ruínas situado na zona montanhosa
da Catalunha. Seu único temor era que Diana, ao ouvir a notícia, vendesse seu famoso diamante, um grande diamante azul que era a alegria de sua vida, pois ao fazê-lo
não só perderia a alegria, como adquiriria uma imensa superioridade moral, e estava convencido de que a superioridade moral era um perigosíssimo inimigo do matrimônio.
Conhecia muitos poucos matrimônios felizes entre seus amigos e conhecidos, e nesses poucos parecia haver equilíbrio. Por outro lado, causava-lhe mais satisfação
dar que receber e detestava ter que agradecer algo, até tal ponto que às vezes, quando ficava deprimido, era totalmente incapaz de mostrar gratidão.
Superioridade moral. Depois da morte de seus pais, passara grande parte de sua infância e juventude na Espanha vivendo na casa de vários membros da família de sua
mãe, até que encontrou um verdadeiro lar na casa de Ramón, seu primo e padrinho. A dois desses parentes, seus primos Francesc e Eulalia, a quem conhecia bem, vira-os
em três períodos diferentes de sua vida: na infância, na adolescência e na idade adulta. Quando os visitou pela primeira vez, eram recém casados e pareciam muito
enamorados um pelo outro, ainda que fossem muito sérios e tivessem uma moral estrita (todos os dias iam a missa na gelada catedral de Teruel); durante a segunda
permanência em sua casa, o carinho só se notava nas mostras de altruísmo que davam ao respeitar a vontade do outro; na terceira compreendeu que qualquer que fosse
o carinho que havia entre eles, a luta pela superioridade moral havia acabado com ele. Sua vida se convertera em uma competição para o martírio: pelo jejum, pela
santidade, pela fortaleza e pelo sacrifício. Em sua antiga casa de pedra fria e úmida tinha uma espantosa alegria carregada de resignação, uma repreendida concorrência
que só podia ganhar quem morresse primeiro. Mas Eulalia lhe contou um segredo que não devia divulgar, que durante os últimos três anos gastara o dinheiro que tinha
para vestir-se e o que Ramón lhe presenteava em orações e missas pelo bem-estar espiritual de seu esposo.
Não pensava que Diana se aproveitasse de sua superioridade, em caso de que a tivesse, porque esse não era seu estilo. O que ocorria era que ele tinha um caráter
inferior e se sentiria constrangido por sua generosidade.
Soaram claramente as seis badaladas. Perguntou-se que guarda seria aquela. Notou que a escuna, sem dúvida, estava navegando ainda mais rapidamente, pois o som dominante
aumentara meio tom. Pensou que não tinha uma vida mais chata que a dos marinheiros, pois eram obrigados perpetuamente a sair da maca e correr por entre a umidade.
Recordou-se de sua filha, que provavelmente, quase com toda segurança, era pouco mais que uma larva, ainda incapaz de manter uma conversa interessante, mas com muitas
possibilidades. Nesse momento começou a cantarolar mentalmente um quarteto de cordas de Mozart.
- Por favor, senhor - disse uma voz que se ouvia há um tempo e que ele relacionou com o movimento irregular da maca. - Por favor, senhor.
- O senhor está movendo os cabos ou os moitões de minha maca, senhor Conway? - perguntou Stephen, lançando-lhe um olhar malévolo.
- Sim, senhor - respondeu Conway. - Desculpe, senhor. O capitão lhe apresenta seus respeitos e informa que já acabou tudo. Diz que espera que não lhe tenham incomodado
muito e que vá desjejuar com ele.
- Apresente meus respeitos ao capitão, por favor, e diga que irei visitá-lo com muito prazer.
- Ah, já está aqui, Stephen! - exclamou o capitão Aubrey. - Bom dia. Pensei que te assombraria.
De fato estava assombrado, e pela primeira vez transparecia em seu rosto. Ainda que o anteparo da parte anterior da cabine já estivesse colocado outra vez, de modo
que pôde entrar na cabine-refeitório pela porta habitual, junto à qual estava de sentinela um infante da marinha, o resto era um espaço vazio, sem nenhum anteparo
que separasse a cabine-refeitório da grande cabine. Naquele imenso espaço só havia duas cadeiras, a mesa de desjejum e, ao fundo, os dois canhões de nove libras
encostados nas portalós da popa, que eram quase imperceptíveis. Haviam tirado a lona de quadros com que cobria o piso, e a habitação parecia maior por estar quase
vazia, sem baús nem estantes nem cadeiras com braços e com os canhões sobre as pranchas descobertas junto com a cevo, os calços, os atacantes, as chilleras{8} e
as outras coisas. O único conhecido que restava na cabine eram a mesa, as distantes janelas de popa, as caronadas de cada lado e os deliciosos aromas do café e do
bacon frito, trazidos para a popa por desconhecidos e complexos redemoinhos e correntes de ar.
Jack fez soar a campainha enquanto dizia:
- Não convidei nenhum oficial nem nenhum guarda-marinha porque estão muito sujos e porque é muito tarde. Você se assombrará ainda mais quando suba ao convés. Começamos
a arruinar a aparência da Noz-moscada, quando normalmente limpamos o convés, e asseguro que o castelo já tem um aspecto asqueroso e abominável.
Chegou o café da manhã, um café da manhã calculado para um homem corpulento, pesado e forte que se levantara antes do amanhecer e não tinha comido mais que um pedaço
de bolacha até esse momento. Ouvia-se o ruído das facas e dos garfos ao se chocarem e o rumor dos objetos de porcelana ao se moverem, e também o som do café ao vertê-lo.
A conversa se reduzia a frases do tipo: "Quer que lhe sirva outro ovo?".
- Não é possível que essas sejam as quatro badaladas - disse Stephen, aguçando o ouvido e levantando a vista do prato.
- Temo que sejam - replicou Jack, que agora havia agarrado a geléia e a segunda cafeteira.
- É muito amável por me esperar, meu amigo - continuou Stephen. - Eu lhe agradeço muito.
- Espero que tenha dormido um pouco apesar de tudo.
- Dormir? Por que não ia dormir?
- Tão logo como chamaram os limpadores do convés - explicou Jack -, fizemos um ruído capaz de levantar os mortos trasladando os canhões para trás e abrindo as portalós.
Duvido que as tenham aberto quando tiraram a escuna do fundo do mar, porque estavam muito apertadas. Ademais, naturalmente, para embelezar a parte superior da abobadilha
as pintaram de modo que não se pudessem ver. Pensei que o coração de Fielding se partiria ao ver como as golpeávamos para que desempenhassem sua função, mas parecia
um pouco menos triste quando pusemos os canhões em seu lugar. Agora as retrancas e os aparelhos ocultam algumas das cicatrizes. Então estava dormindo enquanto isso.
Bem, bem.
Stephen franziu o cenho e disse:
- Não posso imaginar o que espera conseguir pondo-os ali e arruinando nossa sala de estar e a sala de música, nosso lazer no seio do oceano. Mas é que não sou um
bom marinheiro.
- Oh, não, nunca diria isso! - exclamou Jack. - Não, não, de nenhuma maneira! Porém, se quiser, explicarei o motivo contando meu plano de ataque, se a algo que depende
de uma conjetura bem fundada e inumeráveis imprevistos se pode chamar de plano.
- O escutarei com muito prazer.
Como sabe, esperamos encontrar a Cornélie carregando água em Nil Desperandum, na enseada que fica ao sul. Esta esperança é bastante razoável, porque pegar água ali
é um processo muito lento e seus tripulantes necessitam de muita para fazer a etapa seguinte de sua viagem. No melhor dos casos, a escuna, com aspecto de mercante
holandês e, certamente, com bandeira holandesa, aproximar-se-á da ilha como se também necessitasse de água. Só terá abertas umas gáveas descuidadas, e, se tivermos
sorte, poderá se aproximar muito da fragata e colocar-se paralela a ela. Então içarei nossa bandeira, dispararei uma descarga e a abordarei em meio da fumaça. Não
será difícil passar para a abordagem, pois há pelo menos um pequeno grupo de homens em terra, o número de tripulantes de ambas embarcações será quase igual, e, também,
temos a vantagem do fator surpresa. Mas isso ocorrerá no melhor dos casos, e tenho que me preparar para outros. Suponhamos, por exemplo, que esteja ancorada de uma
maneira inapropiada ou que não encontro o canal; quer dizer, suponhamos que a Noz-moscada não possa se aproximar muito nem se colocar paralela a ela. Então terei
que mudar de bordo em redondo, porque de nenhuma distância posso entabular um combate no qual nos disparemos descargas, em que oponhamos nossas caronadas a canhões
de dezoito libras. Terei que mudar de bordo e atrai-la para que saia. Não duvido que vá nos perseguir, pois sei que tem poucas provisões, provavelmente muito poucas.
Pelo fato de ter ficado sem água tão cedo, deduzo que saiu de Pulo Prabang muito depressa.
- Nada seria mais provável que um motim nessas circunstâncias. Os franceses haviam perdido o crédito.
- Assim que estou certo de que nos perseguirá, como poderá compreender. E também estou seguro de que a Noz-moscada navega mais rapidamente tanto de bolina como ao
largo. O holandês me assegurou que a proa não pode formar um ângulo menor de 75º com a direção do vento e que está muito mal equipada para pegar o vento pela alheta.
A lona que tinha era tão pouca e tão má que o capitão pegou a do Alkmaar, que estava feita farrapos, porque lhe pareceu melhor. Meu plano consiste em fazer com que
o capitão da fragata pense que tentamos escapar, um velho estratagema. Depois que atravessarmos o estreito de Salibabu de noite, e nos escondermos atrás de uma ilha
perto do extremo mais distante, mandar um bote bem iluminado seguir avançando e, finalmente, sair após a fragata passar. Quando ela passar nós estaremos a barlavento
e seria estranho que não pudéssemos nos colocar junto dela para abordá-la em trinta minutos ou uma hora.
- Acha de verdade que nos perseguirá por toda a noite nestas águas perigosas?
- Acredito que sim. Salibabu é um estreito de águas profundas e melhor conhecido que o mar da China Meridional. Além disso, o capitão é um homem de brio e arrojado.
Querenou a fragata em Pulo Prabang, algo que não me atreveria a fazer, e, como disse, tem muito poucas provisões. Como ainda tem que percorrer uma enorme extensão
de mar, arriscaria qualquer coisa para apresar um barco bem aprovisionado, tanto se for um barco de guerra como se não. Por outro lado, o estreito se encontra em
sua rota, assim que não terá que desviar-se dela nem uma polegada. Estou tão seguro de que tentará nos pegar que coloquei os canhões para trás, como pode ver. É
indubitável que nos disparará enquanto fugimos e gostaria de poder responder. Poderá dizer que um canhão de nove libras - acrescentou, olhando afetuosamente para
Belzebu, o canhão de bronze de sua propriedade -, à distância que penso manter a escuna, não pode derrubar a verga traquete nem o velacho de uma fragata, o que é
totalmente verdade; contudo, sempre há disparos afortunados que podem cortar um brandal ou o cabo de um moitão e provocar uma grande confusão. Recordo-me que quando
estava nas Antilhas, aindo menino, um canhão de seis libras do castelo disparou e cortou as adriças da carangueja da presa, uma valiosa escuna que fugia de nós a
toda velocidade. Então o mastro maior caiu e, certamente, capturamos a presa. Porém, indubtavelmente, isso pode ocorrer nos dois sentidos, e às vezes os franceses
apontam os canhões endiabradamente bem.
- De acordo com a suposição, talvez disparatada, de que a Cornélie só tenha os quatro barris de pólvora que tomou da Alkmaar, quanto acha que durariam os disparos?
Arrependeu-se de ter feito essa pergunta assim que a formulou, e Jack respondeu secamente:
- Quatro barris permitem fazer cento e vinte disparos com um canhão de nove libras ou disparar quatro descargas com uma bateria de canhões de dezoito libras sem
incluir o de proa, como se faz amiúde.
Mas nesse momento chegou Fielding, bastante olheirudo, para informar-lhe dos progressos.
- Qual a reação dos marinheiros? - perguntou Jack.
- Um encontra certa resistência aqui e ali, como o senhor mesmo notou, senhor - respondeu Fielding -, mas agora todos parecem interessados nesta empresa e alguns
dos gavieiros mais jovens, em vez de animados, tem que ser freados. Agora a proa parece uma andrajosa feira: há flâmulas irlandesas penduradas, os costados estão
manchados de barro e os sanitários da proa estão sujos o bastante para ruborizar os residentes de um manicômio.
- Subirei tão logo o doutor termine esta xícara - respondeu Jack. - Eu lhe prometi que se assombraria.
- Agora mesmo vou com os senhores - disse Stephen, levantando-se. - Por favor, vão na frente.
- Aqui está - exclamou Jack quando os três estavam junto à grade do castelo de popa olhando para frente.
Havia vários oficiais no lado de sotavento do castelo de popa e eles também observaram atentamente o rosto de Stephen.
- Aonde tenho que olhar? - perguntou.
- Ora, para todas as partes! - exclamaram Jack e Fielding.
- Para mim parece que tudo está quase igual - disse Stephen.
- Deveria tar vergonha! - Jack o admoestou em meio de um burburinho de desaprovação. - Não nota o aspecto repulsivo da coberta?
- Nem os pedaços de fio que pendurados por toda a exárcia? - inquiriu Fielding.
- Nem os rizes soltos? - perguntou o oficial de derrota, tão alterado que não podia dissimular.
- Nem os extremos de cabos soltos por todas as partes?
- Há um remendo azul nessa gávea que não estava aí ontem - observou Stephen, ansioso por comprazer-lhes. - E acho que a vela tem um colorido menos brilhante que
o habitual.
Mas não teve êxito e viu que os que lhe rodeavam franziam os lábios, negavam com a cabeça ou se olhavam com perspicácia, e ouviu detrás um involuntário grunhido
do suboficial que governava a escuna.
- Acho que é melhor que ir ocupar-me de coisas que estou mais capacitado para julgar - anunciou. - Vou fazer a ronda matutina. Quer acompanhar-me, senhor?
Geralmente Jack visitava os enfermos com o cirurgião para perguntar-lhes como estavam, uma atenção que eles apreciavam muito, mas nessa manhã desculpou-se e disse:
- Deve estar confuso porque não trocamos as outras velas, mas depois do almoço verá tudo mais claro.
Inclusive antes do almoço a mudança era mais apreciável. Stephen subiu para o convés a tempo de ver como mediam a altitude do sol quando este passava o meridiano.
Presenciara essa cerimônia inumeráveis vezes; contudo, nunca vira levá-la a cabo com a embarcação nessas condições e poucas vezes com tanto zelo, com todos os sextantes
e quadrantes da Noz-moscada e com todos os guardas-marinhas cotovelo a cotovelo no corrimão de bombordo. A onda de sujeira havia se estendido para a popa e quase
chegara ao castelo de popa, e nem mesmo uma pessoa pouco observadora poderia deixar de notar a sujeira e os remendos das gáveas (cujo colorido contrastava com o
branco brilhante pelo sol das maiores, das joanetes e das sobrejoanetes e suas imaculadas abas), o cuidadoso oscurecimiento do bronze, a desigualdade entre os enfrechates,
os baldes sujos pendurados aqui e ali desafiando toda decência e o aspecto geral de degradação avançada. Muitos dos tripulantes passaram a vida em barcos de linha,
onde havia que varrer quase a cada meia hora e onde nunca, nunca se recorria a coisas deste tipo, e no início ficaram horrorizados com aquela deliberada profanação.
Mas pouco a pouco lhes convenceram de que a levassem a cabo, e agora, com um entusiasmo própio de convertidos, sujavam os costados quase excessivamente.
A cerimônia chegou ao seu invariável fim quando o imediato atravessou a coberta, tirou o chapéu que pusera para a ocasião e informou ao capitão Aubrey de que era
meio-dia. Então o capitão, dando existência legal a um novo dia na Armada, respondeu:
- Que assim seja, senhor Fielding.
Imediatamente depois disto, quando soaram as oito badaladas e chamaram os marinheiros para almoçarem com os habituais gritos seguidos por fortes passos, notou que
Jack e o oficial de derrota se fizeram uma inclinação de cabeça que indicava satisfação, do que Stephen deduziu que a Noz-moscada, que navegava velozmente formando
grandes ondas de proa e lançando espuma longe dos lados, avançava pelo paralelo correto.
Seu própio almoço, que também comeram sozinhos na grande cabine, agora austera e retumbante, era apenas comestível, pois o entusiasmo fizera Wilson perder a cabeça.
Mas Jack não lhe prestou muita atenção e só se referiu a ela dizendo:
- Bem, pelo menos o vinho cai bem. E acho que vão trazer arroz com leite.
Depois de beber um ou dois copos de vinho, explicou:
- Compreende que isto é provisório e que foi feita para o caso da Cornélie ter feito exatamente o que eu queria que fizesse, né, Stephen?
Stephen assentiu com a cabeça e, sorrindo, disse:
- E compreendo como se pode tratar de esquivar o mau-olhado.
Jack prosseguiu:
- Esta manhã não lhe falei da seqüência de nossas ações, ainda que seja sumamente importante. Em primeiro lugar, temos que avistar a ilha amanhã com as primeiras
luzes para saber se a Cornélie está lá ou não, pois seria absurdo fazer alguns dos estratagemas mais extravagantes que tenho em mente antes de determinar isso. Tenho
boas razões para acreditar que poderemos conseguir e que nos sobrará a maior parte da noite. A estima do oficial de derrota, a de Dick Richardson e a minha quase
coincidem, e, além do mais, poderemos fazer uma medição lunar muito precisa esta noite porque o céu está limpo. Se essa medição nos indicar que estamos onde acreditamos
que estamos, diminuiremos velame e avançaremos devagar até a alvorada, quando espero avistar Nil Desperandum muito longe a sotavento.
- Ah, ah! - riu Stephen, inflamado pela primeira vez de fervor guerreiro. - Direi a Welby que me chame a... às quatro badaladas seria uma boa hora? Dorme na cabine
ao lado, quer dizer, dorme quando não está tentando aprender francês, o pobre.
- Mandarei o ajudante do oficial de guarda - disse Jack. - Então, supondo que se encontre lá, desceremos os mastaréus para o convés muito antes que nos vejam no
horizonte e faremos os outros estratagemas. Aí nos aproximaremos da ilha só com as gáveas desdobradas e muito devagar, sabe?, porque se as circunstâncias não forem
as adequadas, e tudo depende das circunstâncias, ou se fracassa nosso ataque direto, teremos que atrai-la para que saia depois do meio-dia com o fim de que ambas
embarcações possam atravessar o estreito de noite. Quando a lua se ocultar, poderemos mudar de bordo e nos esconder atrás de uma ilha, diminuir o velame até que
não se veja nem um pingo e deixar a escuna ancorada com uma só âncora até que a fragata passe guiada pelas luzes do bote que teremos mandado continuar avançando.
Quando a fragata se encontre a sotavento, pois, ali é onde estaremos. E ficaremos a barlavento!
- Ah, muito bem! Quer que te sirva um pouco de vinho?
- Sim, por favor. É um vinho do porto excelente. Raras vezes bebi um melhor. Stephen, sabe a importância que tem de estar a barlavento, né? Não necessito explicar
que a embarcação situada a barlavent além de mais veloz e pode obrigar a outra a combater como e quando queira. A Noz-moscada não pode sustentar uma longa batalha
com a Cornélie, não pode combater fazendo descargas a longa distância, mas se cruzar com rapidez sua esteira pode colocar-se paralela a ela, e então poderemos disparar
um descarga e abordá-la. Porém, naturalmente, não necessito explicar-te isso.
- Seria estranho que tivesse que explicar a importância de ficar a barlavento a um lobo do mar como eu, ainda que devo confessar que houve um tempo em que acreditei
que tinha relação com essa coisa chiante que se põe no teto e que indica a direção do vento. Porém, não poderia conseguir essa posição vantajosa por algum meio menos
difícil que percorrendo com rapidez umas cem milhas na escuridão e escondendo a escuna atrás de uma ilha mais ou menos mítica, que ninguém nunca viu, um procedimento
perigoso em qualquer lugar?
- Oh, não! Não se pode colocar a barlavento da fragata sem se arriscar a que lhe dispare uma descarga de certa distância, o que não poderia suportar. Por outra parte,
se diminuirmos velame para deixar que a fragata se aproxime, naturalmente, ela se negará, virará e disparará na Noz-moscada a uma distância superior ao alcance das
caronadas. E não posso agir baseando-me na suposição de que a Cornélie não tem mais pólvora que os quatro barris da Alkmaar. Com relação à ilha, não é mítica em
absoluto. Lá há duas ilhas que foram exploradas a fundo, duas ilhas com altas montanhas e rodeadas de águas de cinqüenta braças. Os holandeses usavam muito o estreito
e Raffles me deu uma excelente carta marítima. Mesmo assim, espero que o primeiro plano de aproximar-nos da ilha e abordá-la imediatamente possa dar raizes, isto
é...
Fez uma pausa e franziu o cenho.
- Floresça?
- Não... não.
- Dê fruto?
- Maldito seja! O problema contigo, Stephen, se não se importa que lhe diga, é que, ainda que de todos os companheiros de tripulação que já tive, é o que mais línguas
sabe, como o Papa, que sabe cem, ou como os que estavam juntos no dia de Pentecostes ou como...
- Estava pensando em Magliabechi?
- Acredito que sim. De toda maneira, era um estrangeiro. E estou certo de que fala tantas línguas como ele e como se fosse um nativo ou melhor, mas o inglês não
é uma delas. Não se dá muito bem com as figuras retóricas e agora me tirou a palavra da mente.
O lobo do mar apareceu no convés ao amanhecer do dia seguinte, com o mesmo aspecto de outros lobos do mar quando lhes tiravam inoportunamente de sua guarida, com
o cabelo emaranhado por não tê-lo penteado nem escovado. Mas nada disso era excepcional. Quase todos os oficiais usavam sua roupa de trabalho mais velha e alguns
se levantaram há muito mais tempo. Mas ainda que o doutor Maturin estivesse coberto de breu e plumas, não teria provocado nenhum comentário. Todos tinham a vista
fixa no serviola que estava sentado na cruzeta e o serviola tinha a vista fixa no nítido horizonte para o este-nordeste. O sol havia saído e já estava muito separado
do mar. Parecia uma bola incandescente e seus raios iluminavam quase toda a parte superior da ilha. Os que estavam no convés não podiam ver mais; somente o serviola
que estava no alto podia ver pela luneta a distante costa. Agora o vento soprava pela alheta e, como havia amainado, quase não se produziam sons na exárcia. Todos
os tripulantes da escuna estavam ali de pé e em silêncio enquanto os raios do sol desciam pela parte sudoeste de Nil Desperandum.
Warren deixou escapar um sonoro peido, mas ninguém sorriu nem franziu o cenho nem afastou a vista do tope do mastro. A Noz-moscada atravessava as altas cristas das
ondas que vinham do sudoeste a intervalos compridos e regulares e o quebra-mar produzia um som sibilante.
Por fim se ouviu abaixo o grito emocionado:
- Convés!
Houve uma pausa na qual passaram duas ondas.
- Está aí, senhor! Quero dizer que vejo um barco com as vergas colocadas a meia milha da margem. Tem as gáveas soltas para que se sequem.
- Vire rapidamente - ordenou Jack ao timoneiro e, alçando a voz, disse: - Muito bem, senhor Miller! Agora desça para o convés! Senhor Fielding, por favor, vamos
tirar os mastaréus imediatamente.
Quando os mastaréus estavam no convés e a Noz-moscada estava segura porque não podia ser vista desde a costa, Jack explicou seus planos:
- Depois de aferrar todas as velas exceto as gáveas e a vela de estai de proa, começaremos a pintar as faixas. Mas tem que aferrar sem apertar muito, deixando penduricalhos
por toda parte, entendeu, senhor Seymour?
Ainda que tenha se dirigido formalmente a Seymour, que estava no castelo, na realidade se dirigia a todos os tripulantes. Até então eles tinham sido animados a aferrar
com extrema precisão, com a mesma correção e firmeza que em um iate real, e agora se olhavam inquisitivamente, pois apesar de tudo o que passara antes, aquilo era
tão inapropiado que mesmo para os mais liberais era inconcebível.
As faixas a que o capitão se referia eram tiras de lona onde se pintavam portalós, como as quais muitos mercantes com poucos ou nenhum canhão colocavam nos costados,
com a esperança de dissuadir os piratas de que os atacassem. Os marinheiros ocupavam muito espaço no convés para prepará-las, como Stephen sabia muito bem porque
vira Jack usá-las antes, mas agora, como aquela tripulação não estava acostumada às coisas que o capitão Aubrey fazia, ocupavam mais ainda, e Stephen tinha que retroceder
mais e mais. Quando chegou ao coroamento pensou que realmente estava incomodando e decidiu ir embora, apesar de que o mar e o céu eram de uma extraordinária beleza
e o ar mostrava as qualidades do champanhe, algo raro entre os trópicos e que o doutor Maturin nunca vira antes porque não se levantava cedo.
- Bonden, por favor, diga a seus companheiros que parem um momento - pediu ao seu velho amigo, o timoneiro do capitão. - Desejo descer, mas por nada desse mundo
gostaria de pisar seu trabalho.
- Sim, senhor - disse Bonden. - deem passagem, por favor, deem passagem ao doutor.
Levou-lhe pela mão por entre os potes de tinta e as broxas até a escada do castelinho, pois a Noz-moscada estava a pairar com as ondas de través e o doutor Maturin
não podia manter o equilíbrio salvo montado em um cavalo. Quando o deixou agarrado fortemente à grade, com um sorriso de cúmplice, disse:
- Acho que teremos um pouco de diversão depois do almoço, senhor.
Stephen encontrou Macmillan tentando livrar-se de um pouco de tinta das calças e, depois de falar um pouco sobre o álcool como solvente e a extraordinária diligência
com que os marinheiros cooperavam em qualquer ação que fosse pelo menos um pouco enganosa e tivesse certa falta de legitimidade, acrescentou:
- Certamente, como provavelmente terá notado, o trabalho da escuna se desenrola, por assim dizer, por inércia: vira-se o relógio de areia, tocam-se as badaladas,
a guarda é substituída. E quando é necessário ajustar uma braça ou apertá-la, como nós dizemos, lá estão os marinheiros; e a carne de porco salgada está de molho
nos potes para que se possa almoçar um pouco melhor, e estou seguro de que os marinheiros a comerão quando soem as oito badaladas. Vamos à enfermaria.
Ali passaram ao latim e depois de examinar um caso de hérnia e os dois obstinados casos de sífilis, os que restavam dos que foram contraídos em Batavia, Stephen
perguntou:
- Como está o quarto homem?
Referia-se a Abse, um membro da guarda de popa afetado de uma doença que se manifestava com cólicas no mar e espasmos intestinais em terra, uma doença cuja causa
Stephen desconhecia e cujos sintomas só podia fazer um pouco suportáveis mediante a administração de opiáceos, mas que não podia curar.
- Acho que se irá dentro de uma hora mais ou menos - aventurou Macmillan ao afastar a antepara.
Stephen observou o rosto do enfermo comatoso, observou sua respiração entrecortada e lhe tomou o pulso, que era quase imperceptível.
- Tem razão - disse. - Será um alívio como nenhum outro. Eu gostaria de abri-lo. Gostaria mais que tudo no mundo.
- Eu também - exclamou Macmillan com entusiasmo.
- Mas isso molestaria seus companheiros e amigos.
- Não tem nenhum. Era um ajudante de cozinha que comia sozinho. Ninguém veio vê-lo exceto o capitão e o oficial chefe de sua brigada.
- Então talvez tenhamos a oportunidade de fazê-lo - disse Stephen e voltou a colocar a antepara. - Que descanse em paz.
O doutor Maturin se equivocou com respeito à carne de porco salgada. O vento, contrariamente ao que prometia o céu e ao que indicava o barômetro, amainou tanto durante
a guarda da manhã que o capitão Aubrey adiantou seu plano em uma hora e, portanto, os marinheiros comeram a carne, meio crua no centro, quando soaram as seis badaladas.
Mas os marinheiros não se queixaram. Já haviam conseguido que a Noz-moscada tivesse o mesmo aspecto miserável que o Alkmaar e se aproximavam da ilha com a esperança
de sustentar um combate extraordinariamente rápido dentro de uma hora mais ou menos. Entre eles não havia tanta tensão como emoções intensas, e não aumentaram quando
lhes deram o grogue, aliás foram complementadas com uma grande alegria. Houve muitos comentários graciosos sobre os homens que seriam autorizados a permanecer no
convés enquanto se aproximavam, vestidos como marinheiros holandeses, e os que não.
- Há alguns tipos magros como os holandeses a quem permitem se exibir. E por quê? Porque parecem inofensivos e ninguém os temeria. Nenhuma virgem e tampouco suas
esposas os temeriam, ah, ah, ah!
- Raras vezes vi os marinheiros tão contentes - observou Stephen no paiol onde se guardavam as posses do capitão.
Depois de colocar cuidadosamente o cadáver de Abse entre dois baús, continuou:
- Acredito que irei ao convés para perguntar ao capitão se teremos tempo de fazê-lo antes do combate, porque é terrível ter que lutar contra o rigor mortis.
Mas quando subiu as sucessivas escadas viu com tristeza e surpresa que a Noz-moscada já estava perto de terra e que, apesar de navegar lentamente, como um mercante,
não teria tempo para a autópsia que pensava fazer. Jack estava comendo um sanduíche e falando com Richardson, mas dirigiu a vista para onde Stephen aparecera e sorriu.
O doutor Maturin havia posto a velha casaca negra com que geralmente operava e lhe podiam tomar pelo sujo responsável pelo carregamento de um mercante. Por sua parte,
Jack estava em mangas de camisa e com calças amplas e usava um chapéu de Monmouth, um horrível chapéu de flanela achatado que alguns marinheiros antiquados ainda
usavam e que tinha a vantagem de que lhe cabia dentro todo o cabelo, já não tão brilhante como nos tempos em que era conhecido como Cachos de ouro, mas ainda chamativo.
- Lá está - disse, voltando-se para Stephen.
De fato, ali, sob o céu azul, estava a fragata ancorada, um barco bonito e elegante com as vermelhas portalós abertas para arejar a coberta. Havia adentrado dois
terços da baía onde entrava agora a Noz-moscada, e estava rodeada de uma faixa branca de costa, e as montanhas florestadas que se elevavam atrás dela, com algumas
zonas de cor verde-brilhante. Havia muito fluxo de ondas e se podia ver a espuma do outro lado da amura de estibordo da Cornélie e em diversos pontos da baía.
- A maré está alta - explicou Jack. - Subiu lentamente desde meia hora atrás. Estava muito ocupado? Se quiser tomar algo, há sanduíches e café na cabine. O almoço
tardará bastante. Faz séculos que se apagaram os fogos da cozinha.
- Estivemos trabalhando como formigas, levando os enfermos para a coberta inferior e preparando tudo na enfermaria: montes de linhas, tampões, bolas-de-algodão,
correias, serras e mordaças. Quando supõe que a batalha vai começar?
- Dentro de uma hora aproximadamente, a menos que nos descubram. Como vê, não há um arrecife de coral contínuo formando uma espécie de laguna, mas dois arrecifes
independentes com um sinuoso estreito no meio e um enorme banco onde termina a corrente d’água. Sem dúvida, é por isso que a fragata está tão longe da costa. É pouco
conveniente para seus botes, e faz um momento, quando um de seus cúteres o atravessou, pensei que havia roçado na ponta do banco. Vê o grupo que está pegando água?
- Acho que sim.
- Está ao pé do negro escarpado, a vinte e cinco graus pela amura de estibordo. Pegue minha luneta.
Então viu muito de perto o escarpado, a corrente de água que caía para ele e os marinheiros ao redor dos tonéis.
- Deve de ter plantas muito interessantes nessa parede rochosa - disse Stephen. - Posso observar a Cornélie?
- Seria uma indiscrição olhá-la do castelo de popa. É melhor fazê-lo do quarto de asseio que fica na galeria. Vê a Dick na verga do velacho? Vai governar a escuna
dali. Teria que ser feito pelo oficial de derrota, mas está com o estômago revirado. Temos que avançar quase em direção ao lugar onde se pega a água, depois passar
duas curvas pronunciadas separadas por quase meia milha e depois orçar para podermos nos colocar junto a ela.
- Vou observá-la do quarto de asseio enquanto como um sanduíche.
- Stephen - murmurou Jack -, poderia tentar encontrar a Pierrot, o sobrinho de Christy-Pallière? Espero que não o veja, porque isso confirmaria minha idéia de que
está em terra. Tenho muito medo de que possa matá-lo.
- Refere-se ao jovem oficial sobrinho de nosso amigo com quem se encontrou em Pulo Prabang? Você se esquece de que nunca o vi antes, nem menino nem homem.
- É verdade - disse Jack. - Desculpe-me.
A Noz-moscada seguiu avançando. No castelo de popa só estava o capitão, além do homem que levava o leme e de Hooper, que parecia um grumete e se encontrava no lado
de sotavento. Richardson seguia trepado na verga, observando as águas cristalinas que tinha na frente, de cor azul-escuro no estreito, onde eram muito profundas,
e de cor azul-claro de ambos os lados, onde tinham pouca profundidade. Uma vintena de marinheiros estavam No castelo, com as mãos nos bolsos, ou descansavam no corrimão,
alguns deles apoiados na borda. Os demais tripulantes estavam ocultos abaixo do castelo e dos corrimãos, na entrecoberta e na cabine. Todos os artilheiros estavam
em seus postos e todos os que podiam ver algo pelas frestas das portalós ou pelos vãos das faixas pintadas contavam a seus companheiros o que viam em voz baixa e
com grande exatidão. Os que iam fazer a abordagem tinham preparadas suas armas: sabres, pistolas, machados de abordagem e piques. As mechas de combustão lenta já
ardiam dentro de recipientes de metal junto às caronadas, pois Jack nunca gostava de depender apenas da pederneira. Agora o ambiente era tenso.
A porta corrediça da galeria a afastava da multidão e do ruído de suas vozes. Ali ficava o recinto onde o capitão se lavava, barbeava e empoava, e, assim como seu
companheiro situado do outro lado (o sanitário), era um dos poucos lugares da parte superior da escuna que permaneciam intactos quando se fazia preparativos de combate.
Se a bacia fosse tirada, era um lugar de onde se podiam observar comodamente os fatos, e Stephen, por estar ali, considerava-se mais afortunado que a centena de
homens que estavam abaixo do convés, exceto aqueles que podiam ver por um escotilhão.
Como eles, viu que a Cornélie foi se aproximando da Noz-moscada enquanto a escuna atravessava obliquamente a baía, depois desapareceu de seu campo visual quando
a escuna dobrou a primeira curva do canal e reapareceu dez minutos depois, quando dobrou a segunda, muito mais perto, ainda firmemente ancorada. E quando a Noz-moscada
continuou sua viragem, a estática Cornélie, junto com as águas que a rodeavam, moveu-se para frente a velocidade constante quase até o extremo de seu campo visual.
Foi nesse momento que viu um sinal aparecer no tope do mastro maior. Eram somente duas bandeiras, mas o sinal foi reforçado por um canhonaço disparado do castelo
de popa. Viu a fumaça e imediatamente ouviu o estalido, que ressoou no silêncio da espera. Ouviu no convés uma potente voz que gritava:
- Atenção! Atenção! Todos para as braças de sotavento!
Então a fragata desapareceu atrás da borda do quarto de sanitário.
Mas Jack ainda podia vê-la claramente e não necessitava de luneta para ver como os canhões de dezoito libras assomavam pelas portalós.
A Noz-moscada continuava dobrando a curva que a conduziria até a fragata, que agora se encontrava justo diante e do lado. Nesse momento apareceu a bandeira francesa
no tope do pau mezena. Jack esperou ouvir o canhonaço de advertência.
Não houve canhonaço de advertência. Em vez disso, os três canhões posteriores dispararam mortalmente quase simultaneamente.
- Todos para o convés! - gritou Jack quando as balas passavam acima da escuna pelo lado de estibordo à altura das gáveas.
Era evidente que haviam descoberto que usavam um disfarce, mas apesar de poderem disparar-lhe um bombardeio de proa a popa, tinha a esperança de aproximar a Noz-moscada
da fragata o suficiente para lançar um ataque realmente efetivo. Abaixo dele, no castelo, o contramestre repetiu a chamada. Os oficiais subiram correndo ao castelo
de popa.
- Maiores e velas de estai! - ordenou Jack. - Tire uma mão, tire uma mão! Senhor Crown, tire as faixas pintadas. Senhor Fielding, ice a bandeira e o galhardete.
Stephen ouviu o estrépito de uma bala ao cair em algum lugar da proa. Depois, em meio de uma confusão mais aparente que real, a porta corrediça se abriu e Seymour
entrou no quarto sanitário e lhe disse ao ouvido:
- Nos descobriram, senhor. O capitão deseja que o senhor vá para baixo.
Os canhões restantes da bateria da Cornélie dispararam em rápida sucessão e o costado ficou oculto pela fumaça. Apareceram buracos nas gáveas e nas maiores; soltou-se
o moitão da vela maior, que estava recém ajustado; algumas balas lançaram jorros de água desde o castelo até a popa e outras formaram penachos de água perto dos
costados; a última bala destroçou o pescante de bombordo.
- Boa pontaria, a tanta distância - disse Jack.
- Digna de elogio, senhor - consentiu Fielding. - Mas espero que não melhore.
Houve uma pausa durante a qual a Noz-moscada, apesar da instabilidade da vela maior, avançou duzentas jardas. Depois fizeram fogo um atrás do outro todos os canhões
da bateria de bombordo da Cornélie. Seis balas acertaram o casco, nos mastros ou nas velas; uma destruiu a metade da galeria de bombordo; a décimo sexta passou de
uma ponta a outra da corveta à altura do peito e causou a morte de dois homens no castelo e outros três no castelo de popa: Miller, que estava junto a Jack Aubrey,
um marinheiro que levava o leme e o oficial de derrota.
- Braças de sotavento! - ordenou Jack, enxugando o sangue do rosto de Miller. Depois, voltando-se para os homens que haviam agarrado o leme, gritou: - Leme a bombordo!
A Noz-moscada virou rapidamente para estibordo, e então Jack, com uma voz que chegou até a coberta inferior, deu a ordem que todos ansiavam ouvir:
- Disparem agora!
Então na enfermaria, além de retumbar o estrépito das balas do inimigo, ouviu-se o ruído ainda mais forte das caronadas de trinta e duas libras e o chiado das carretas
quando retrocediam. Ainda que Stephen, Macmillan e Suleiman, o ajudante, já estivessem muito ocupados (curando feridas provocadas por grandes pedaços de madeira
pontiagudos, contusões e um antebraço quebrado por causa da queda de um moitão), enquanto davam pontos e punham vendas e ripas, mostravam sua satisfação fazendo
inclinações de cabeça uns para os outros. Nesse momento Bonden trouxe Harper nos braços e disse:
- Nós os estamos triturando, senhor. Dá gosto de ver.
Assim era, e no céu retumbava e voltava a retumbar aquele ruído ensurdecedor, um estrondo contínuo sob os sucessivos estalidos.
A Noz-moscada, como todos os mercantes holandeses de vinte canhões, tinha todo o armamento em uma só coberta. Como estava disparando contra o vento, a fumaça se
dissipava imediatamente, e, portanto, era fácil ver desde o castelo de popa onde caiam as balas de trinta e duas libras. Disparava com rapidez, pelo menos duas vezes
mais rápido que a Cornélie, e as brigadas de artilheiros trabalhavam com perfeita coordenação e as munições chegavam da santa-bárbara com pontualidade; não obstante,
quando estavam muito elevadas, os disparos eram erráticos, e quando as desciam, ainda que as apontassem na direção adequada, as balas não chegavam a acertar o alvo.
Ainda que a Cornélie disparasse com lentidão, em comparação com qualquer outro barco (em parte porque o fazia de sotavento e a nuvem de fumaça fazia com que seus
homens não vissem nada), mesmo a três quartos de milha de distância seus disparos eram exageradamente precisos. Ademais, ainda que economizasse pólvora, pois nunca
desperdiçava nenhum tiro, era óbvio que não tinha somente quatro barris ou uma quantidade parecida.
- Preparem os canhões - ordenou Jack. - Senhor Fielding, vamos mudar de bordo.
A Noz-moscada virou, colocando-se de maneira que tinha o vento pela alheta, e depois voltou a mudar de bordo para estibordo e começou a afastar-se por onde havia
vindo. Quando virava, os canhões de popa lograram disparar três balas cada um, dois dos quais deram indubtavelmente no alvo. Mas a Cornélie lançou duas descargas,
das quais a primeira teria desaparelhado a Noz-moscada se não tivesse virado o leme muito rápido no momento oportuno, e a segunda não a alcançou. "Se seus disparos
tivessem sido tão rápidos como precisos - pensou Jack -, necessitaríamos atar tantos cabos que as facas não teriam bastado para cortar as ligaduras". Contudo, não
confiou o que pensava ao imediato.
- Parece que têm problemas para recolher a âncora.
Sem a luneta pôde ver que os poucos tripulantes da Cornélie tinham dificuldades no cabrestante, e com ela viu seus rostos avermelhados pelo esforço que faziam para
que o chapéu girase e notou que em algumas barras só haviam três homens. Então viu que tentaram recolher a outra amarra, depois afrouxaram a primeira e depois tentaram
recolhê-la de novo, em vez de largar as amarras e as âncoras, porque teriam que percorrer milhares de milhas de distância para encontrar peças.
- Pois me atreveria a dizer que tampouco foram mais afortunados com o bote - observou Fielding com um elegante tom irônico.
Jack virou-se e, em um pequeno arrecife, a menos de um quarto de milha da costa, viu o enorme bote da Cornélie imóvel no meio da maré que baixava. A julgar pela
espuma que havia em ambos os lados, o timoneiro, ao se apressar em reunir-se com a fragata, tentara atravessar uma passagem estreita que havia no arrecife de coral,
que era o caminho mais curto, e calculara mal o vento, o calado do bote, o abatimento ou as três coisas. Então Jack, com verdadeira satisfação, viu que o oficial
que de um esquife coordenava os esforços para descarregar urgentemente os tonéis e pôr o bote flutuando outra vez, era Pierrot Dumesnil, o alegre jovem que agora
estava exasperado.
- Levarão um certo tempo para terminar seu trabalho, mas espero que não muito - disse Jack, olhando para o sol. - Não temos todo o tempo do mundo. O que houve, senhor
Walker?
- Há um pé de água na sentina, com sua permissão, senhor - informou o carpinteiro -, mas meus ajudantes e eu pusemos três espigões bem ajustados nos buracos, e é
que só três balas acertara abaixo da linha de flutuação. Mas o bote e vários paus de ambos os lados sofreram muitos danos e a galeria de estibordo está destroçada.
Jack também ouviu o relatório do contramestre, que contribuía poucas surpresas porque ele podia ver os cabos dos aparelhos cortados e as velas estragadas por toda
parte. Depois disse a Fielding:
- Pararemos a Noz-moscada em pairo no canal e colocaremos um salva-vidas no costado, como se corressemos o perigo de afundar. Meia dúzia de marinheiros podem fazer
a representação enquanto os demais fazem nós e atam. Também, bombearemos a água, mas do outro lado. Senhor Conway, por favor, pergunte ao doutor se acha oportuno
que desça agora.
- Senhor Adams, tomou nota de tudo? - perguntou ao seu escrevente.
- Bem, senhor - respondeu Adams -, não sabia muito bem o que fazer. Como não chamou todos a seus postos, oficialmente não entabulamos um combate, assim que fiz algumas
anotações que poderia qualificar de extra-oficiais. E como nossos companheiros de tripulação não morreram em uma batalha normal, disse ao veleiro que pensava que
não deviam ser sepultados da forma habitual, mas metendo-lhes em suas macas e costurando depois as bordas. Espero ter feito bem, senhor.
- Muito bem, senhor Adams.
Desceu para a coberta inferior. Quando chegou, seus olhos já haviam se acostumado bastante à escuridão abaixo do convés e pôde ver sob a luz da lâmparina pingente
que Stephen tinha as mãos tingida de vermelho vivo.
- Quantas vítimas tivemos? - perguntou.
- Três homens feridos por grandes pedaços de madeira morreram por causa da hemorragia ao chegar ou antes - anunciou Stephen. - Além deles, há outros seis que ficarão
bem, se Deus quiser. Também há um homem com o braço quebrado e vários com contusões. Nada mais. Com respeito aos mortos, você debe saber mais do que eu.
- O oficial de derrota, lamentavelmente; o jovem Miller; Gray, um bom timoneiro; e dois homens mais no castelo. Uma única bala...
Sentou-se entre Semple, um de seus barqueiros, e Harper, os dois feridos por grandes pedaços de madeira, e lhes perguntou como estavam.
- Nos bateu muito duro e nós quase não pudemos revidar...
- Nosso Agag o perfurou no casco duas vezes justo detrás do talha-mar - disse Harper, que estava enjoado porque perdera muito sangue. - Vi cair as balas com meus
própios olhos. Como gritamos de alegria!
- Estou seguro de que foi assim. Mas agora tentaremos que nos siga, a esperaremos ao final do estreito e depois a atacaremos penol a penol. Tem a âncora travada
e seu bote está encalhado, mas acredito que dentro de uma hora tudo terá se resolvido, e nós podemos esperar uma hora.
CAPÍTULO 6
O capitão Aubrey não teve que esperar tanto. Em quarenta e sete minutos os homens da Cornélie lograram liberar a fragata, desencalharam o bote e o subiram a bordo
como bons marinheiros e começaram a perseguir a Noz-moscada. Assim que terminaram de atravessar o canal que ia de Nil Desperandum para o alto mar começaram a longa
perseguição que os levaria ao estreito de Salibabu, e ficou claro que seu propósito não era avançar mais rapidamente que a Noz-moscada e aproximar-se dela para pegá-la.
Viram chegar a bordo algumas de suas balas de trinta e duas libras e não tinha desejos de ver mais, por isso tinham a intenção de entabular um combate a certa distância.
Cada vez que Jack lhes dava a oportunidade de se aproximar, desperdiçavam-na. Seu plano era reduzir a velocidade da escuna causando danos às velas e aos aparelhos
e depois dar uma guinada e disparar-lhe um bombardeio pela popa a uma distância de meia milha ou mais.
Também estava claro para Jack que fizera um cálculo exagerado da capacidade da Cornélie. Tinha suposto que a fragata, por ter os fundos limpos e uma disposição do
velame bastante adequada, podia navegar no mínimo a oito ou nove nós com o forte monção do sudoeste pela alheta, ainda que tivesse amainado um pouco durante o dia;
contudo, equivocara-se. Mesmo com todas as gastas e remendadas velas desdobradas, a Cornélie não podia navegar a mais de sete e meio, e apesar da Noz-moscada arrastar
uma pesada baliza que não podia ser vista, era difícil simular que fugia a toda velocidade, que tratava de escapar, ainda que o conseguia porque usava as escotas
um pouco menos esticadas do que devia, fazia rápidas viradas (Bonden era um mestre nisso e sabia fazer vários truques com o leme) e não tinha muito bem colocadas
as braças das vergas. Portanto, a escuna avançava com rapidez para o oeste, disparando constantemente para a fragata, situada quase ao alcance máximo de seus canhões.
Jack permaneceu no castelo de popa até que a velocidade da Noz-moscada se adaptou o melhor possível à da Cornélie e depois chamou Seymour para dizer-lhe:
- Senhor Seymour, vou designar-lhe o posto de terceiro de a bordo provisoriamente. Já informei ao senhor Fielding, assim que poderá pôr-se de acordo com ele sobre
os assuntos concernentes a isso depois da cerimônia.
Era de esperar. Seymour tinha que encarregar-se da guarda do oficial de derrota, por mais jovem que fosse. Apesar de tudo, Seymour ruborizou e, em um tom que denotava
sua emoção, respondeu:
- Obrigado, senhor, muito obrigado.
Enquanto falava, o canhão de popa de estibordo fez fogo, justo abaixo deles. Jack assentiu com a cabeça e desceu correndo pela envolvida pela fumaça, entrou na cabine
também cheia de fumaça (o vento, que chegava pela alheta, enchia de fumaça todo aquele espaço por um minuto após cada disparo) e, apesar da escuridão, viu as duas
brigadas de artilheiros olhando-se uma para a outra com raiva e a alguns de seus membros, os mais afortunados, com a cabeça para fora das portalós.
A discussão foi diminuindo a medida que se aproximava, e por fim o condestável disse:
- Desta vez lhe acertamos no casco, senhor.
- Acredito que passou acima - replicou Reade, alçando a voz.
- Cale-se, senhor Reade.
- Sim, senhor. Perdoe-me, senhor.
Jack pegou uma luneta, inclinou-se para frente e olhou para fora, acima do extenso mar, onde se moviam em diagonal ondas longas, pequenas e de abundante espuma,
cujo colorido branco fazia o mar parecer mais escuro. A esteir da Noz-moscada era muito comprida e mais larga que o normal devido à turbulência provocada pela baliza
que levava escondida, e justo na prolongação da linha em que estava situada se encontrava a Cornélie, que formava com a proa ondas bastante grandes nas mesmas águas
pelas quais a Noz-moscada passara oito minutos antes. A fragata tinha desdobradas todas as velas que possuía e provavelmente tinha muito poucas ou nenhuma de reserva.
Jack se achava em uma situação difícil. Se lhe causasse danos leves que a obrigassem a reduzir a velocidade um ou dois nós, provavelmente desistiria da perseguição
por considerá-la inútil; se não disparasse com razoável precisão, os franceses não acreditariam que estava fugindo. Por outra parte, se um desafortunado disparo
fizesse a Noz-moscada navegar mais devagar, ainda que fosse poucos minutos, a Cornélie poderia mudar de bordo e disparar-lhe uma descarga com seus canhões de dezoito
libras terrivelmente bem apontados. E era mais provável que houvesse um desafortunado disparo da Cornélie que o contrário, pois disparava com os canhões de proa
situados no castelo, que estava aproximadamente oito pés mais alto que a coberta da Noz-moscada. Além disso, disparava para a popa da escuna, onde ficava a vulnerável
prancha do leme. Enquanto esses pensamentos cruzavam sua mente, observou que os tripulantes da fragata estavam bombeando água e lançavam um grosso jorro por sotavento.
"Quando terminem de tirá-la, talvez a fragata navegue mais rápido", pensou. Depois, em voz alta, perguntou:
- Com que elevação estão disparando?
- Não mais de seis, senhor - respondeu o condestável, colocando o canhão de estibordo enquanto Bonden colocava o Belzebu.
A Cornélie disparou nesse momento, quando subia com o balanço, e ainda que a bala não alcançou a Noz-moscada, quicou várias vezes junto ao costado e o último quase
lançou um jorro de água para bordo.
Jack inclinou-se sobre Belzebu, apoiando a mão sobre o morno cilindro, e enquanto Bonden tirava com a alavanca a cunha com que se subia e descia, o puxava para trás.
Os dois se entendiam só com grunhidos e inclinações de cabeça. O capitão se encantava em apontar os canhões e ambos tinham feito esses movimentos milhares de vezes.
Quando o elevaram de modo que apareceu o centro da verga velacho na mira, projetando a voz para a escotilha gritou:
- Senhor Fielding, senhor Fielding! Por favor, olhe se pode ver onde cai a bala! Vou lançá-la muito alto!
- Sim, senhor - disse Fielding.
Então Jack procedeu para pôr o canhão na posição exata, e enquanto os artilheiros o moviam delicadamente com as alavancas, ia indicando-lhes:
- Um pouco mais para a direita... Um pouco mais... Um cabelo para trás...
Sem afastar a vista da mira moveu a mão para pegar a mecha. A Noz-moscada subiu com o balanço e, justo antes que o canhão estivesse dirigido para o alvo, aproximou
a mecha ardendo da isca. Ouviu-se um som sibilante que apenas durou um instante e depois o canhão disparou e imediatamente retrocedeu por baixo dele com extraordinária
força, enchendo a popa de fumaça e de pedaços de madeira dos calços. Já havia colocado a cabeça pela portaló quando a retranca impediu o canhão de seguir retrocedendo,
com o desagradável mas satisfatório chiado de sempre, e, graças a um afortunado movimento do vento, pôde ver por mais de um segundo a trajetória da bala, que era
como uma borrada mancha negra que pouco a pouco diminuía.
- A pouca distância do pescante de popa de estibordo, senhor! - gritou Fielding.
Jack assentiu com a cabeça. Havia outras manobras possíveis, como avançar a toda vela e finalmente colocar-se a barlavento da fragata, mas tardavam muito, pelo que
poderiam atrasar a chegada ao encontro, e pôr em perigo a escuna. Ainda que, indubtavelmente, essa fosse uma estratégia perigosa, era a melhor.
- Sigamos assim, senhor White, mas com discrição, não como se fosse a noite de Guy Fawkes.
Seguiram disparando com regularidade. Em uma ocasião, uma bala da Cornélie que quicou causou danos à grinalda que havia abaixo do coroamento da Noz-moscada, e em
outras duas, apareceram buracos na vela maior e na traquete. Belzebu já estava muito quente quando Jack notou que Reade estava muito perto e parecia querer lhe dar
uma mensagem. Na realidade queria fazer-lhe um convite. Disse que como o capitão ainda não pudera almoçar, os oficiais o convidavam para uma colação fria com eles.
Jack notou que tinha muita fome. Ao pensar na comida, ficou com água na boca e sentiu uma pontada no estômago.
- Irei com muito prazer - disse, afastando-se dos aglomerados artilheiros.
Bonden ocupou seu lugar e ele se dirigiu à galeria para lavar as mãos. Abriu a porta ainda olhando para o canhão e esteve a ponto de cair de cabeça na água, mas
logrou evitá-lo dando um rápido salto para trás.
- Amarrem este atirador ao degrau da escada de corda da galeria - ordenou -, porque se não, o doutor poderia ter problemas.
O doutor já estava na câmara dos oficiais, e ele e os outros oficiais deram as boas-vindas a Jack com carne e anchovas em conserva, ovos duros, presunto, pepinos
curtidos, cebolas e mangas. Foram tão amáveis como puderam e Welby inclusive fez ponche com aguardente de palma, mas como a cadeira de Warren estava vazia, a refeição
foi triste. Ao final, Adams trouxe um livro de orações e, alçando a voz para que pudesse ser ouvido apesar do estrondo produzido por um canhão de popa ao disparar
e retroceder, sussurrou ao ouvido de Jack:
- Marquei a página com um pedaço de merlín, senhor.
- Obrigado, senhor Adams - disse Jack e, depois de ficar pensativo alguns minutos, acrescentou: -Parece, cavalheiros, que nossos queridos companheiros de tripulação
nos perdoarão se os despedirmos da maneira mais simples e vestidos com roupa de trabalho.
Houve um burburinho de aprovação, um movimento de cadeiras e certa vacilação antes de terminar o ponche.
Cinco minutos depois soaram as oito badaladas e em continuação várias outras que duraram meio segundo. Imediatamente, Jack se colocou junto à grade do castelo de
popa. Os canhões agora estavam guardados e silenciosos; todos os marinheiros estavam presentes. Jack leu as palavras bonitas e solenes; as macas, com um peso adicional,
deslizaram-se pelo lado um atrás do outro quase sem salpicar, justo onde a água subia depois de formar um buraco atrás das ondas de proa.
A Noz-moscada virou vinte e cinco graus para celebrar a cerimônia e os homens da Cornélie, depois de fazer um disparo sem obter resposta, compreenderam o que se
passava e não voltaram a fazer fogo.
Quando Jack fechou o livro, os tripulantes voltaram ao trabalho e a Noz-moscada retomou o rumo. Depois disse a Fielding:
- Devemos fazer uma salva para bombordo em sua honra.
Fielding encarregou a Oakes que se ocupasse disso e, para evitar erros, acrescentou:
- A última caronada de bombordo.
Como Oakes ainda estava muito alterado pela morte de seu amigo e nunca antes estivera em uma batalha, era melhor manter-lhe entretido.
O capitão e o imediato se aproximaram do coroamento, e quando a caronada disparou, Jack tirou o chapéu. Ele e o capitão francês se haviam visto mutuamente pela luneta
muitas vezes e tinha bastantes razões para acreditar que o capitão francês estava no castelo.
- Ainda estão bombeando - observou Fielding.
- Acho que sim - assentiu Jack sem prestar-lhe muita atenção. - Meu Deus, como o sol se moveu rápido pelo céu! E a maldita lua já está aí.
De fato, lá estava, claramente visível no fulgurante céu. Estava pálida, inclinada para um lado e mais horrível que nunca. Há mais de uma hora se via a vinte graus
da negra silhueta da terra.
- A esta velocidade não conseguiremos que a fragata atravesse o estreito antes do amanhecer. Espero que navegue mais rápido quando tenha tirado toda a água da sentina.
- Senhor, acho que está içando algo - disse Fielding. - É uma monterilla.
Ambos a observaram com a luneta.
- São dois lençóis - aclarou Jack. - Dois lençóis costurados lado a lado e com uma ponta dobrada. Temos que admitir! Não lhe falta boa vontade.
Inclinou-se sobre a escotilha e, projetando a voz para abaixo, gritou:
- Parem de disparar!
- Já - disse o infante de marinha que estava onde habitualmente se encontrava a porta da cabine, girou o relógio de areia e depois deu um passo para frente para
dar duas badaladas.
Como figuras em um relógio antigo, o guarda-marinha e o suboficial de guarda abandonaram seus respectivos postos e se reuniram junto ao lado de bombordo, um com
a nacela e o carretel e o outro com um pequeno relógio de areia. O suboficial deixou cair a nacela e imediatamente o barbante começou a separar-se do carretel.
- Volta! - gritou.
O guarda-marinha mantinha fixa a vista no relógio enquanto o cordel se desenrolava.
- Parar! - disse.
Então o suboficial examinou o cordel.
- Quanto mediu, senhor Conwall? - perguntou Jack.
- Sete nós e pouco mais de três braças, senhor.
Jack moveu a cabeça de um lado para o outro, desceu e disse:
- Senhor White, pode animar a fragata fazendo fogo mais amiúde, ainda que somente com um canhão de cada vez. E dispare as balas de modo que lhes falte pouco para
atingir o alvo, porque se queremos que atravesse o estreito antes da alvorada não devemos tocar-lhe nem um cabelo, e mesmo depois teremos que cuidá-la. Disparos
que pareçam reais, mas de trajetória curta, compreende?
- Sim, sim, senhor, disparos que pareçam reais, mas de trajetória curta - respondeu o condestável, mas era evidente que não estava satisfeito.
- Senhor Fielding - disse Jack ao regressar ao castelo de popa -, quando tenha falado com Lascas, subirei a exárcia. Se essa monterilla aproximar um pouco a Cornélie
e suas balas chegarem a bordo, trate de adiantar-se mais.
O carpinteiro e seus ajudantes estavam muito ocupados no castelo. Estavam fazendo um marco com a forma do janelão de popa da Noz-moscada, uma parte essencial do
plano de Jack para enganar a Cornélie quando a lua se ocultasse.
- Como vai isso, senhor Walker? - perguntou.
- Muito bem, senhor, obrigado, mas temo que isto entorpecerá o bote.
- Não se preocupe com isso, Lascas - Jack o tranqüilizou. - Se tudo for bem, não terá que navegar mais de meia hora.
Então repetiu para si: "Se tudo for bem". Subiu ao cesto da gávea do traquete e, sem pausa, seguiu até a cruzeta e se colocou perto de um extremo da verga. Sentado
ali podia ver perfeitamente a metade oriental do céu, claro e sóbrio, que parecia uma cúpula, e abaixo as claras e serenas águas que se estendiam até a metade da
distância que havia até o horizonte, onde, formando uma linha reta como um meridiano, mudava da cor azul-claro para azul-escuro manchado de branco e depois para
o tom que o Mediterrâneo tinha no outono e que Stephen costumava chamar de vermelho-vinho. Além dessa linha se elevava a escura terra por ambos os lados e se estendia
para o sudeste até onde a vista não alcançava, mas parecia que os lados convergiam em um ponto, a saída do estreito de Salibabu. Navegando a essa velocidade ainda
tardariam muito em chegar, e a julgar pela posição da maldita lua, o sol, agora oculto pela gávea maior, estava muito baixo pelo oeste.
- Não há dúvida de que o vento soprará com mais força no estreito - sentenciou -, porque tem a forma de funil. Mas a maré é o que tem que ser levada em conta. Terá
que dar uma maldita corrida.
Olhando para o convés deu a ordem de que desviassem a Noz-moscada cinco graus de seu rumo para que se mantivesse mais perto da costa sul. Isso seria necessário quando
tivesse que mudar de bordo, ainda que agora o objetivo era atenuar a força da maré, que começaria a se mover para oeste ao cabo de poucas horas.
Quando Jack Aubrey estava no mar, quando tinha tão perto o presente e o futuro imediato e, sobretudo, quando participava de uma batalha, ainda que fosse de tão pouca
envergadura como essa, passava pouco tempo pensando no passado; contudo, agora era diferente, pois se sentia abatido. Contrário à sua própia lógica, era supersticioso,
como muitos marinheiros, e não gostava do aspecto daquela terra escura nem das horríveis cores do mar que tinha em frente, com seu maciço banco de areia. E a morte
de Miller, além de penalizar-lhe, havia confirmado muitas idéias irracionais.
Permaneceu sentado ali por muito tempo. Sentiu em duas ocasiões como se movia a verga quando os marinheiros a bracejavam para melhorar sua posição em relação ao
vento, e enquanto refletia, os canhões seguiam disparando, ainda que os da Noz-moscada com menos freqüência, a intervalos mais compridos.
O tempo passava, e enquanto isso se ouviam ordens, marteladas no castelo e os ruídos própios de uma embarcação que navegava sem muita pressa. Ali acima o efeito
do balanço e do cabeceio constantes parecia maior, ainda que não o suficiente para interromper seus pensamentos.
Soaram as três badaladas justo abaixo e na parte de sua mente mais ou menos autônoma se formou o pensamento:
"Três badaladas na guarda do primeiro quartilho". Essas palavras o fizeram sentir de novo certa alegria, porque lhe recordaram a resposta à pergunta "Por que chamam
de penico o joanete do mastro mezena?" que dera Stephen Maturin: "Porque quando a fragata aumenta de velocidade lhe saem asas". Essa lhe parecia a melhor idéia que
ouvira em sua vida. Considerava-a extraordinária, e com freqüência, talvez demasiada, contava a anedota, ainda que aos mais lerdos da tripulação e a alguns que não
tinham senso de humor tinha que explicar. A resposta foi dada por Stephen muitos anos atrás, mas parecia ter melhorado com o tempo. Sorrindo Jack se deixou cair
da verga ao mesmo tempo que se segurava em um brandal e deslizou por ele até o castelo. Quando se dirigia ao castelo de popa pelo corrimão notou novos buracos em
um lado da vela maior e viu que Fielding e o contramestre, por meio de aparelhos, colocavam antecipadamente para fora da borda o bote chamariz.
- Como vamos, Richardson? - perguntou, olhando para atrás dele para a distante Cornélie.
- Somente oito nós quando soaram as quatro badaladas, senhor. Como estava se aproximando e outra bala deu na galeria de bombordo, movi as escotas para a popa.
- Maldita galeria! tinha posto uma bacia nova, uma bacia linda de autêntica porcelana.
- Sim, senhor. Quer que voltem a medir a velocidade, senhor?
- Não. A guarda quase já terminou.
Começava a se dissipar a escassa névoa que cobria o céu a oeste, de colorido rosa-pálido e dourado, e o sol estava separado do mar por uma distância quase igual
ao seu diâmetro. Jack se inclinou sobre um costado, olhou com atenção o rastro e pensou que provavelmente a fragata ganhara outra braça, mas o desejava mais do que
o acreditava. Então disse:
- Bem, talvez. É muito mais fácil fazer uma precisa leitura do tempo quando há luz.
- Oito nós e só uma braça, senhor, com sua permissão - propôs Reade, o guarda-marinha de guarda uns momentos depois.
A Cornélie, que se mantinha à mesma distância, fez fogo e a bala formou um penacho de água a apenas cinqüenta jardas da popa.
- Isto é alentador! - exclamou Jack.
Ficou ali observando como o sol se punha, rodeando por alguns momentos a fragata francesa com uma bonita auréola, e cinco minutos depois, quando desceu para a cabine,
a escuridão já cobria o mar pelo leste e a lua ganhara visibilidade.
- Senhor - disse Killick ao pé da escada do castelinho. - Levei sua maca para a cabine do pobre Warren. O senhor Seymour está encantado de ficar no camarote dos
guardas-marinhas até que sua cabine dormitório esteja disponível.
Killick tinha o rosto impassível, como ficava quando omitia a verdade ou sugeria algo que era falso, e Jack sabia perfeitamente que obrigara Seymour e os oficiais
a aceitarem aquele acordo, mas desnecessariamente, porque, sem dúvida, todos teriam oferecido.
- Compreendo. Então traga uma caixa de vinho do porto de oitenta e sete - disse, e se dirigiu à câmara dos oficiais, onde encontrou todos menos a Richardson agrupados
ao redor de uma carta marítima estendida sobre a mesa.
- Cavalheiros - começou -, vou abusar de sua hospitalidade esta noite, se me permitirem. A cabine tem que ficar acesa e terá que responder à Cornélie se continuar
disparando, porque assim a manteremos animada. Os oficiais disseram que estavam encantados e Jack prosseguiu:
- Senhor Fielding, perdoe que fale aqui de questões da Armada, mas tenho que dizer que quando estejamos no estreito seria conveniente fazer medições com a barquilha
cada vez que soem as badaladas. Ademais, os marinheiros podem levar as macas abaixo para dormir um pouco até amanhã e os fogos da cozinha podem voltar a serem acesos.
Por último, vou encarregar-me da guarda da alvorada e me deitarei após jantarmos... Senhor Seymour, agradeço-lhe muito a sua amabilidade.
Seymour baixou a cabeça e procurou uma resposta elegante, mas antes que a encontrasse, Jack continuou:
- Doutor, podemos visitar a enfermaria quando acenderem os faróis?
Quando caminhavam para lá, Jack disse:
- Stephen, como sei que os oficiais devem se reprimir de fazer muitas coisas quando o capitão está entre eles, pois têm que se sentar retos e não podem arrotar nem
contar histórias obscenas, ordenei que tragam uma caixa de nosso vinho do porto de oitenta e sete. Espero que não se importe.
- Importa-me muito. Dar esse insubstituível líquido a meus companheiros é uma ação ímpia.
- Mas eles apreciarão o gesto. Além do mais, tirará um pouco da solenidade e será um alívio para mim, pois não pode fazer idéia do desagradável que é sentir-se como
um desmancha-prazeres. Você é mais afortunado do que eu. Eles não lhe têm respeito, ou seja, não um respeito indevido. Quero dizer que lhe respeitam muito, sem dúvida,
mas não o consideram um ser superior.
- Ah, não? Indubtavelmente me consideram um muito desagradável desde esta tarde. Discuti, maldisse e insultei a todos.
- Você me deixa assombrado. O que lhe incomodou?
- havia afastado um cadáver para abri-lo. Era um interessante caso de cólicas. Ia pedir sua permissão, como é meu dever, mas antes que tivesse oportunidade de fazê-lo,
algum delinqüente ou talvez algum marinheiro muito atarefado costurou as bordas da maca em que estava e o colocou entre os outros que sepultaste.
- É um demônio, Stephen, eu te asseguro.
O jantar foi solene, mas muito copioso. Ainda que não fizesse muito tempo que os oficiais navegavam juntos, passaram tantas vicissitudes que lhes parecia que estavam
a cinco anos nessa missão, o que, sem dúvida, diminuia a formalidade do ambiente. Seymour, que comia pela primeira vez com os oficiais, não dizia nada, naturalmente;
Stephen, como sempre, ficava absorto em suas meditações; mas Fielding e Welby se animaram a contar compridas anedotas. Apesar das profecias do demônio, todos se
deleitaram com o vinho do porto de 1787, possivelmente até certo ponto porque Killick, em tom enfático, havia dito:
- Destampei o vinho de oitenta e sete, senhor, e como é tão envelhecido, a rolha estava muito incrustada.
Estavam fazendo a rodada com a terceira garrafa quando de repente Stephen, alçando a voz para que o ouvissem apesar do ruído do canhão que estava acima deles, perguntou:
- Isto é uma escuna?
Tinham ouvido o doutor dizer algumas coisas muito estranhas, mas nenhuma tão pouco provável, e durante um momento houve silêncio absoluto.
- Refere-se à Noz-moscada, doutor? - perguntou Jack por fim.
- Naturalmente, a Noz-moscada, que Deus a bendiga.
- Que Deus a bendiga. Não pode ser uma escuna enquanto esteja sob meu comando, sabia? Se estivesse sob o comando de um capitão de escuna, seria uma escuna, mas eu
tenho a honra de estar na lista de capitães de navio e isso a converte em um navio equiparável a um de três pontes da Armada. Como lhe ocorreu essa idéia tão rara?
- Estava refletindo sobre as escunas. Um amigo meu escreveu um romance e me mostrou para que eu desse minha opinião como marinheiro.
Os oficiais baixaram a vista para o prato com uma expressão bastante serena.
- Pensei que era uma história muito bonita - continuou -, mas objetei que se o herói estava ao comando de uma escuna, não podia capturar uma fragata. Contudo, acaba
de me ocorrer que a Cornélie, indubtavelmente, é uma fragata, que nós, ainda que a Noz-moscada seja pequena, aspiramos capturá-la, e que talvez minha objeção não
tinha fundamento, que as escunas realmente podem capturar fragatas.
- Oh, não! - exclamaram.
Acrescentaram que o doutor tinha toda razão e que em toda a história da Armada real nunca nenhuma escuna capturara uma fragata, porque isso seria desafiar o destino.
- Porém, por outro lado - disse Jack -, alguns navios com um calado e baterias similares aos de uma escuna o fizeram. A presença de um capitão de navio e sua autoridade
moral são o que inclinam a balança. Bebamos a sua saúde, estimado senhor. Bem, cavalheiros, dentro de poucos minutos começará a guarda, assim que lhes agradeço o
esplêndido jantar, darei uma espiada no céu e depois me deitarei.
- E nós lhe agradecemos o esplêndido vinho, senhor - disse Fielding. - Será meu padrão de excelência desde que beba vinho do porto de agora em diante.
- Tem razão, tem razão - concordou Welby.
No convés observava-se que o vento, que agora chegava pela alheta, aumentara bastante de intensidade. À luz da bitácula podia se ver que a velocidade aumentara para
oito nós. A Cornélie seguia na mesma distância. A lua era claramente visível, mas não brilhava o bastante para que não se notasse a luz dos faróis preparados para
a batalha no castelo nem o tênue resplendor que havia nas portalós abertas ao longo do costado muito menos as línguas de fogo que saíam do canhão de popa de estibordo
quando disparava. Ambas as embarcações haviam adentrado bastante no estreito. Jack pôde ver as luzes de um povoado de pescadores ao sul, justo onde indicava a carta
marítima. A outra margem estva muito distante para vê-la com nitidez, mas lá estava, prateada pela luz da lua e salpicada de sombras negras.
Soaram as oito badaladas. Seymour substituiu Richardson. Chamaram os marinheiros de guarda e os outros desceram para dormir o quanto podiam apesar dos rugidos dos
canhões na coberta. Fielding havia subido para ajudar Seymour na primeira guarda que tinha a seu cargo e agora estava no castelo dando os passos necessários para
colocar o marco e os faróis no bote isca, situado de maneira que poderia ser baixado em um momento, passos que já tinha sido feito uma outra vez pela brigada integrada
por Bonden, dois ajudantes do contramestre e um forte marinheiro negro encarregado da âncora a quem chamavam de Negro.
Jack os observou um pouco e depois se foi para a proa com Fielding.
- Surpreenderia-me que a Cornélie não parasse de disparar agora - disse. - Contudo, quero separar a escuna dela um par de cabos a mais para evitar que alguma bala
perdida lhe cause sérios danos, ainda que, naturalmente, tem que seguir vendo bem a popa iluminada. Vou ordenar que ajustem as braças e alarguem a bóia e depois
irei dormir. Boas noites.
- Boa noite, senhor.
Quando Jack descia, o fogo cessou, e foi a Noz-moscada a última que disparou. Quando foi deitar-se viu que não teria que dormir na maca do pobre morto porque a sua,
extraordinariamente longa, estava lá pendurada de proa a popa. Killick era um servente espantoso em muitos aspectos e um homem irritável, avarento, abusador dos
que tinham uma classe inferior e grosseiro, mas em outros era uma pérola. Durante alguns momentos pensou em outros elogios e depois de decidir que não tinha preço
dormiu.
Despertou, como tantas vezes, ao ver a débil luz de uma lanterna na escuridão, e ouviu as palavras:
- Senhor, quase vão soar as oito badaladas.
Despertou imediatamente, como o havia feito desde sua infância, e, saltando da maca, disse:
- Obrigado, senhor Conway.
Uma parte de sua mente que não estava adormecida de tudo, advertira o progresso da Noz-moscada durante todo esse tempo, por isso Jack não se assombrou ao notar pela
água que passava pelos costados que tinha perdido velocidade.
Pôs a camisa, as calças e os sapatos de lona e saiu devagar da escura câmara dos oficiais. Ao chegar ao convés iluminado pela lua, formou uma tigela com as mãos,
pegou um pouco de água do tonel que ficava junto ao escotilhão, molhou a cara e se dirigiu à popa quando o sentinela avançava para tocar as oito badaladas.
- É um alívio que tenha chegado, senhor - Seymour o cumprimentou. - Sinto dizer-lhe que o vento amainou.
- Já! - gritou Conway junto ao lado de bombordo e depois se aproximou e informou. - Sete nós, senhor. Sete nós.
- Desejo boa noite aos dois - disse Jack.
Quando o timoneiro, o vigia e os artilheiros foram substituídos, Jack se aproximou do coroamento. A Cornélie estava agora pela alheta de bombordo, ainda perto da
entrada do estreito, e um pouco mais distante e escura. A lua, cujos raios atravessavam um véu de nuvens, estava próxima do zênite, e a maré aumentaria quando começasse
a descer para o sul. Ainda que, conforme o que havia dito o capitão do Alkmaar, ali era três horas mais tarde que em Nil Desperandum, a maré estivera se movendo
para o oeste há algum tempo. Aproximou a tabuinha com os dados da navegação de um farol de popa e acrescentou as cifras que refletiam o progresso nas últimas quatro
horas. Trinta e uma milhas. Não era tanto como desejava, mas não estava mau. Ainda havia possibilidades. A guarda atual, a guarda de meia, era um período decisivo,
porque agora se notaria o efeito da maré. Naturalmente, solicitara informação sobre o estreito quando soube que a Cornélie ia atravessá-lo, e lhe disseram que, ao
contrário de outras partes do Pacífico, havia duas mudanças de maré em um dia lunar, a primeira com um fluxo débil e a segunda, com o qual a Noz-moscada se encontraria
durante essa guarda, com um fluxo mais forte. Mas em Batavia ninguém pôde lhe dizer se era pouco ou muito mais forte. Certamente que isso dependia da lua, e a julgar
por sua atual forma convexa, não exerceria muita influência. Por seus cálculos e pelos poucos dados obtidos por Darlymple, Horsburgh e outros em suas observações,
o oficial de derrota (um excelente navegante) e ele tinham deduzido que nesse momento do mês lunar provavelmente haveria um fluxo em direção oeste de dois nós e
meio, e fizera o plano considerando que seriam três nós.
Poucas coisas eram mais difíceis do que julgar o movimento relativo com relação a uma costa desconhecida com poucos pontos de referência e de noite. Quase todos
os escassos povoados de pescadores espalhados por ela já tinham apagado as luzes e era ainda mais difícil localizá-los pelas fogueiras para queimar matos que ainda
ardiam nos bosques.
Hora depois de hora o guarda-marinha de guarda lhe informava sobre a velocidade: sete nós, sete nós e duas braças, sete nós e uma braça. Também hora após hora o
carpinteiro ou um de seus ajudantes lhe informava sobre a profundidade da água na sentina: nunca mais de seis polegadas. Enquanto isso Jack observava a costa com
a luneta, tratando de encontrar uma marca que lhe permitisse ter uma idéia aproximada da velocidade da corrente. Uma vã tentativa, porque não apareceu um ponto fixo
e claro de que necessitava.
Justo depois de soar as três badaladas, apareceram pela amura de estibordo quatro pontos fixos em vez de um, quatro barcos de pescadores ancorados a dois cabos de
distância que tinham luzes brilhantes para atrair os peixes.
- Senhor Oakes, traga a tabuinha, o giz, um relógio de areia de meio minuto e uma lanterna - ordenou.
Correu para a proa pelo corrimão e quando o primeiro barco estava pelo través gritou:
- Vire!
A partir de então o seguiu com a bússola para medir o azimute até que Oakes disse:
- Já!
Então marcou a diferença. Depois fez o mesmo com o segundo, o terceiro e o quarto, todos separados entre si o suficiente para lhe dar tempo de calcular aproximadamente
o surpreendente valor dos ângulos.
Desceu e fez os cálculos com sumo cuidado. Eram piores do que supunha. Havia um fluxo de cinco graus e meio, e quando a lua estivesse um pouco mais para oeste, seria
ainda mais rápido. O fluxo continuaria por seis horas. A velocidade da escuna com relação à costa era de duas milhas e uma hora menor do que calculara e o final
do estreito estava doze milhas mais longe do que pensava. Quando chegassem lá, o sol já estaria no alto do céu.
O plano não serviria. Por uma questão de consciência revisou os cálculos outra vez, mas comprovou que os que obtivera na primeira e na segunda vez estavam corretos
e se decepcionou muito.
Quando regressou ao convés diminuiu a velocidade pela segunda vez porque a Cornélie, por causa da forte corrente, estava ficando afastada, e ainda que não estivesse
seguro do que devia fazer, não queria perder contato com ela. Ficou apoiado no coroamento olhando afastar-se a esteira levemente fosforescente iluminada pela lua.
Era óbvio que não havia esperanças de poder levar a cabo o plano e, cheio de tristeza e amargura, esteve refletindo durante um tempo. Enquanto isso, continuou a
silenciosa vida noturna da escuna, própia de um barco de guerra: a voz baixa do suboficial que a governava, as respostas do timoneiro, o burburinho dos homens de
guarda abaixo da escada do castelo e o dos artilheiros que ficavam abaixo e das badaladas, seguidas por "tudo bem, o serviola do castelo!" e depois "tudo bem!" de
todos os postos de uma ponta a outra da escuna.
Porém, por seu caráter otimista, recobrou o ânimo pouco antes das cinco badaladas, quando começava a parte mais tranqüila da noite, e cumprimentou Stephen com bastante
alegria:
- Ah, Stephen, está aqui! Alegro-me de vê-lo.
- Lamento chegar tão tarde. Caí em um sono profundo.
- Suponho que queria ver como Menkar se ocultava.
- Não. Queria vir para sentar-me aqui contigo, pois, conforme entendi, não haverá batalha até que a lua se ponha.
- É muito amável, meu amigo, mas lamento dizer que não haverá nenhuma batalha, ou ao menos nenhuma até dentro de muito tempo e não será como eu esperava. A Cornélie
tem muito pouca facilidade para navegar, é muito lenta, e, por outra parte, cometi um erro tão bobo ao calcular o fluxo da maré que é impossível que atravessemos
o estreito antes do amanhecer.
Cinco badaladas e a medição ritual com a barquilha.
- Sete nós, com sua permissão - anunciou Oakes, e sua cara cheia de espinhas parecia mais pálida e tinha um aspecto mais desagradável àluz da lua.
- Parece uma boa cifra, né? - perguntou Jack quando se foi. - Mas a massa de água por onde a escuna navega a sete nós se move para o oeste a cinco ou mais, assim
que nos aproximamos da boca do estreito somente duas milhas por hora, em vez de quatro, como esperava. Isso me desanimou bastante, eu lhe asseguro, e durante um
tempo o vi tudo negro; contudo, logo pensei que não chegar ao encontro com Tom não era o fim do mundo e que o correto era não perder de vista a Cornélie, levá-la
além do estreito e, depois de fazer uma ampla virada, aproximar-nos por barlavento em alto mar. Com este vento a escuna pode alcançar doze nós, frente aos sete da
fragata.
- Não poderia comparecer ao encontro com Tom Pullings e também perseguir a Cornélie?
- Oh, não! Tom está ou deve estar situado bastante ao norte. A Noz-moscada teria que desdobrar todo o velame que possue para chegar até lá a tempo e o capitão da
Cornélie descobrirá imediatamente o que tramamos. Não é nenhum tonto. Lembre-se como nos descobriu em Nil Desperandum. Teria que correr muito para reunir-me com
Tom e possivelmente não o encontraria e perderia de vista a Cornélie. Não pode fazer idéia de como e fácil para um barco escapulir, apenas em algumas horas, em uma
zona do mar salpicada de ilhas.
- Estou seguro de que tem razão. Além do mais, há outro encontro ao qual se pode chegar mais comodamente, em um lugar melhor, o encontro em Botany Bay ou, para ser
mais exato, na baía de Sidney. Não tenho palavras para expressar quanto desejo ver um ornitorrinco.
- Lembro de que me falau dele da última vez que estivemos lá.
- Foi uma horrível ocasião, garanto. Os militares nos olhavam com receio e quase não nos deram tempo para descer em terra. Tivemos que partir rapidamente, quase
sem provisões, e o único que consegui foi uma catorra conhecidíssima e comum. Que vergonha! Nova Holanda me deve muito.
- Não importa. Desta vez será muito melhor. Poderá ver a vontade como voam os ornitorrincos.
- Meu amigo, é um mamífero, um animal com pêlo.
- Acreditava que havia dito que punha ovos.
- Sim, ele os põe. Isso é o extraordinário. Também tem bico como o pato.
- Não me admira que queira vê-lo.


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A noite era mais cálida que o habitual e eles seguiram ali sentados tranqüilamente em dois colchonetes, falando de coisas desconexas: aquela viagem que fizeram no Leopard, os aromas que agora vinham de terra, umas vezes o da fumaça produzido pela madeira ardendo e outras o de plantas, às vezes distinguíveis entre si, a água que jorrava do nariz de um pouco tempo após estar no mar e a extraordinária limpeza e a ausência de maus odores na Noz-moscada, inclusive na bodega.
A lua se pôs e as estrelas brilharam ainda mais. Então Jack falou do observatório que tinha em Ashgrove Cottage e comentou que em Batavia um inteligente holandês o havia ensinado uma forma melhor de colocar a cúpula, uma forma baseada nos métodos dos moendeiros de seu país, que, naturalmente, trabalhavam com moinhos de vento.


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Oito badaladas. Fielding se encarregou da guarda, mas Jack permaneceu na coberta e um pouco depois, quando Bonden foi até o convés na escuridão, disse:
- Bonden, terá que dizer a seus companheiros que o plano não serve. O fluxo da maré é muito forte e a fragata francesa lenta demais.
- Sim, senhor - respondeu Bonden. - Só vim para dizer que Killick já tem uma cafeteira e uma bandeja de mingau na prateleira da chaminé, e quer saber se gostaria de tomá-los aqui ou abaixo.
- Que acha, doutor? Encima ou abaixo?
- Abaixo, por favor, porque muito logo terei que ir ver meus pacientes.
- Você se importa de esperarmos cinco minutos? Queria ver Vênus sair.
- Vênus? - perguntou Stephen desconcertado. - Meu Deus! Sim, certamente. Provavelmente terá notado que o mar está muito menos agitado.
- Sim, isso costuma ocorrer antes da mudança da maré, como recordará. Dentro de pouco começará a baixar e toda esta massa de água, de milhões e milhões de toneladas, se moverá para o leste. E acho que se moverá mais rápido porque será impulsionada pelos aguaceiros e o vento que o céu promete, um vento que fará levar as gáveas rizadas.
Stephen não pôde perceber nenhuma promessa, além da total escuridão a oeste, mas como sabia que as salamandras, os gatos e os animais marinhos tinham sentidos que ele não possuía, deu-lhe razão. Também ele observou como saía Vênus, uma figura borrada que...

 

 

                                                                                                    Patrick O'brian

 

 

 

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