Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
As Crônicas de Bridei
Livro II / Primeira Parte
A ESPADA DE FORTRIU
Dois homens se encontraram em segredo numa passagem sombria, por baixo da fortaleza de Dalriada. O local ficava afastado dos olhos e dos ouvidos da corte celta ali presente, sendo pois apropriado a conversas secretas. A informação a ser transmitida era perigosa e, nas mãos erradas, seria mortal. Havia reinos cujo futuro dependia dela.
— O que tens para me dizer? — aquele tipo de encontro seguia um padrão. O homem mais jovem, um indivíduo magro e moreno, de expressão reservada, assumiu o papel com uma facilidade trazida pela prática.
— Um nome — replicou o outro, um indivíduo alto que envergava a túnica avermelhada dos servidores pessoais do rei Gabhran. — Bridei tem de agir depressa e com inteligência se não quiser ser encurralado a norte e a sul.
— Poupa-me às opiniões — disse o homem moreno. — Qual é o nome?
— E em troca?
O homem moreno comprimiu os lábios.
— Receberás a tua informação.
No curto silêncio que se seguiu, o indivíduo alto olhou de relance para ambos os lados da passagem sombria. Tudo estava sereno e o luar, que penetrava pela entrada distante, apenas permitia que os dois homens lessem indistintamente a expressão um do outro. Sob tal luz, era difícil perceber se um homem estava a mentir ou a dizer a verdade. Não era fácil saber o quanto se poderia confiar. Ambos eram peritos neste tipo de discernimento, pois a existência de um espião assentava no risco calculado.
— Um dos chefes Caitt — segredou o homem alto. — Alpin, de Briar Wood. Comanda um grande exército pessoal. A aliança poderá ser selada antes da próxima Primavera, a não ser que os vossos evitem que isso aconteça.
O homem moreno aquiesceu. — Quais dos outros chefes do norte o apoiariam? Umbrig?
— Não creio. Mas eles são próximos. Umbrig acolheu em sua casa um filho bastardo de Alpin. Quanto aos outros, não sei dizer. O líder de Briar Wood tem aliados e inimigos entre os seus.
— Compreendo.
— Seria prudente que o teu rei fizesse uma abordagem célere a Alpin — sugeriu o homem alto. — É melhor que avises Bridei.
A expressão no rosto do homem moreno permaneceu inalterada.
— Não me encontro em posição de fazê-lo — retorquiu, num tom de voz imperturbável. — Sou apenas o portador de informação, não um confidente do rei.
— Não foi isso que ouvi dizer.
— Então te informaram mal — redargüiu o homem moreno.
— Agora me diga o que sabe.
Os olhos do homem moreno tinham-se tornado mais frios.
— Gabhran devia ter em atenção as defesas a leste — avisou. — Caso esta questão do Caitt não lhe cause dificuldades, Bridei poderá estar preparado para uma grande investida contra os celtas na próxima Primavera. Está planejado um conselho para a Reunião e existem grandes esperanças de que Drust, o Javali, finalmente alinhe com Bridei.
O homem alto resmungou a sua aceitação. A troca de informação era justa. O que cada homem depois faria com ela era problema seu.
Os dois separaram-se sem qualquer despedida. O homem moreno tinha um longo caminho a percorrer. O homem alto encontrava-se mais próximo de casa, por isso abandonou a passagem e saiu para a rua, onde as árvores lhe serviam de abrigo, com o pensamento no jantar e numa noite quente na cama de uma certa mulher amável.
Foi encontrado alguns dias mais tarde por um rapaz, que se encontrava a pescar, o corpo inchado e deformado, por ter estado imerso num riacho e ter sido ferido pelas rochas sob as quais ficara parcialmente preso. Foi possível verificar que não morrera afogado, mas que fora habilmente estrangulado por algo resistente e fino, tal como uma corda de harpa.
Quanto ao homem moreno, por essa altura já há muito que saíra de Dunadd e atravessara a fronteira, abandonando o território gaélico de Dalriada e entrando nas terras do rei Bridei, dos Priteni. Escondera o saco de prata que recebera dos seus mestres de Dalriada e haveria mais um pagamento quando chegasse à fortaleza de Bridei, no Monte Branco. Uma riqueza considerável repousava agora no seu local secreto, recursos que seguramente nunca viria a utilizar, pois não tinha nem esposa, nem filhos, nem irmãos ou irmãs com quem gastá-los. Pelo menos, não se sentia preparado para reconhecer nenhum deles, nem mesmo para consigo próprio.
Viajava com a velocidade e a eficiência de um homem que não permite que nada o distraia do seu objetivo. Era lamentável, mas não inesperado, que tivesse havido necessidade de eliminar o seu contato. Pedar não era tolo e Faolan tinha noção de que ele acabaria por descobrir a verdade acerca da relação de proximidade que mantinha com Bridei. Permitira que o seu informante vivesse até ao momento em que o valor daquilo que Pedar tinha para lhe contar já não suplantava o perigo de ser exposto. Era necessário que os seus mestres de Dalriada acreditassem que Faolan era totalmente leal à sua causa. Esperava que Pedar tivesse cumprido os códigos delicados dos serviços secretos e não tivesse partilhado as suas suspeitas com ninguém. Em todo o caso, Faolan teria de se manter afastado de Dunadd durante algum tempo, por via das dúvidas. Talvez Bridei o mandasse juntar-se aos guerreiros de Carnach, os quais se preparavam para a grande guerra que se avizinhava. Talvez fosse enviado para a Fonte do Corvo, onde outro exército se aprontava para a investida final em direção a ocidente, a fim de entrar em Dalriada. Um pouco de combate leal seria bem-vindo. Há já muito tempo que dançava pelas cortes dos reis e começava a ficar cansado de disfarces. Enfim, com um bom ritmo e tempo ameno, deveria chegar ao Monte Branco antes que a lua voltasse a ficar cheia. Talvez, meditou Faolan enquanto percorria o caminho junto à beira do lago, em direção a nordeste sob o céu limpo de um dia fresco de Primavera, pudesse simplesmente regressar à sua antiga tarefa de guarda pessoal. Nos cinco anos que haviam passado desde que Bridei fora eleito rei, em circunstâncias algo incomuns, ninguém se aproximara o suficiente para tocar nele ou na esposa com um dedo que fosse. Faolan certificara-se de que assim fosse. Sempre que partia, instalava um sistema infalível de guardas que assegurassem o período da sua ausência. No entanto, nada era tão eficaz como a sua presença ao lado de Bridei. Para sua surpresa, descobriu que se sentia quase como se estivesse a regressar a casa.
Ana era refém na corte de Fortriu desde os dez anos e meio. Passados oito anos, reconhecia que aquilo que antes lhe parecera uma espécie de prisão, embora a prisioneira comesse na mesa do rei e dormisse em camas de puro linho e lã macia, se tornara mais semelhante a um lar. Quando Bridei construiu a nova fortaleza no Monte Branco e mudou a corte de Fortriu, Ana acompanhou-a. A esposa de Bridei, Tuala, era uma das suas amigas mais chegadas. Enquanto guiava a figura minúscula e cambaleante do filho do rei, Derelei, pelo jardim abrigado que ficava no interior dos muros da fortaleza, Ana pensava em como isso representava um problema para Bridei. O objetivo de fazer reféns era exercer pressão sobre a família. Ela encontrava-se ali como garantia contra uma possível revolta por parte do primo, rei das Ilhas Pequenas e rei vassalo de Bridei. Durante esses oito anos, não existira qualquer sinal de inquietação nas ilhas onde nascera, por isso parecia que o seu cativeiro tivera o efeito desejado. Por outro lado, a família mostrara pouco interesse pelo seu bem-estar. Parecia que a tinham esquecido. Atualmente, o Monte Branco era o seu lar e não podia imaginar que Bridei alguma vez viesse a magoá-la, fosse de que maneira fosse, caso os seus parentes, de repente, o atacassem.
— Ups! — Exclamou Ana, quando os joelhos de Derelei cederam e o pequeno caiu de repente sobre o traseiro almofadado. Por alguns instantes, pareceu ficar surpreendido, a ponderar se deveria ou não chorar, e depois ergueu os braços na direção dela, soltando um som que significava «Para cima!»
— Vamos lá então. — Ana pegou no menino, apoiando-o na anca. Era pequeno para a idade e tinha um pouco do aspecto sobrenatural da mãe, a tez pálida como leite, os olhos grandes e solenes. O cabelo era de Bridei, castanho como uma amêndoa e já muito encaracolado.
Quem diria, nos tempos de Banmerren, em que tinham estudado juntas? Tuala estava casada e era mãe e Ana ainda ali estava, em Fortriu, solteira. Muitas vezes, o fato de possuir o sangue real de Fortriu parecia-lhe mais uma maldição do que um privilégio, sobretudo sendo mulher. Nas terras dos Priteni, a descendência real seguia a linhagem feminina: os reis eram escolhidos, não de entre os filhos de reis, mas de entre os filhos de mulheres como Ana, aquelas que descendiam de uma linhagem pura de mulheres reais. Isso fazia dela um prêmio valioso no grande jogo da estratégia política. Quem casasse com ela poderia ser pai de reis. Um dia, seria Bridei, como rei de Fortriu, quem decidiria quando e para onde ela iria. Poderia existir um pedido de opinião simbólico ao primo mas, com ambos os pais já há muito falecidos e o parente longe nas ilhas, sabia que a escolha seria de Bridei. Em menina, com a cabeça repleta de histórias, tivera esperanças de um dia vir a conhecer o amor. Agora sabia como fora tola.
No entanto, para algumas pessoas, o amor podia ser tudo. Bridei e Tuala, por exemplo. O seu casamento parecera algo impossível. Não recebera a aprovação do poderoso Broichan, o druida do rei e pai adotivo de Bridei. Ana olhou para Derelei, que agarrara uma mão cheia do cabelo longo e agora exercitava nela os seus dentes. Ele devolveu-lhe o olhar, os olhos sérios como os de uma coruja. Não havia dúvidas de que era parecido com a mãe. A herança do Outro Mundo era evidente no rosto minúsculo, as mãos delicadas, a gravidade invulgar. Bridei fizera o impensável: casara por amor e, como resultado, Fortriu tinha um elemento da Boa Gente como rainha. Ana sorriu para consigo. Tuala era uma bela rainha, forte, corajosa e sensata. As pessoas tinham-na aceite, pesasse embora as suas diferenças e o marido amava-a com uma devoção que era visível de cada vez que a olhava. Contudo, Bridei era monarca de um reino cheio de homens poderosos e perigosos. Caso fosse necessário, Ana seria apenas mais uma peça útil ao jogo, preservada para o momento em que pudesse ser utilizada da melhor forma.
— Mamãe! — Declarou Derelei com ênfase, libertando o cabelo de Ana e virando a cabeça em direção à arcada na outra ponta do jardim. Estava um dia soalheiro de Primavera. A luz banhava as trepadeiras que se entrelaçavam no muro de pedra, formando um padrão de tons verdes. Não havia sinal de que alguém ali estivesse, nenhum som, exceto as vozes distantes dos soldados e, mais perto, o chilreio de pequenos pássaros que andavam à caça de materiais para construir os ninhos. A criança estava concentrada na arcada, o corpo agitado nos braços de Ana devido à antecipação. Ela ficou à espera. Pouco depois, Tuala surgiu através da arcada, seguida de outra mulher.
— Mamãe! — Proclamou a voz miúda e a criança inclinou-se para a frente num ângulo perigoso. Ana largou-o para os braços de Tuala.
— Ele sabia que tu vinhas — disse-lhe. — Parece que sabe sempre.
— Ana, vem ver quem está aqui! — Exclamou Tuala, sentando-se num banco de pedra, com o filho ao colo. A outra mulher avançou e só então Ana percebeu quem era.
— Ferada! Que bom ver-te! Conta-me as novidades todas! — Ferada, filha do influente chefe tribal da Fonte do Corvo, partilhara parte da educação com Ana e Tuala, antes de Bridei se tornar rei. Circunstâncias infelizes, grande parte das quais mantidas em segredo, obrigaram-na a regressar para tomar conta da casa do pai e educar os dois irmãos mais novos, e já há muito tempo que não visitava a corte de Bridei, no Monte Branco. Ferada parecia mais velha. Mais velha do que devia, pensou Ana. Os dois anos a mais que tinha em relação às amigas não deviam ser suficientes para causar as rugas de fadiga em redor da boca de Ferada, nem a palidez doentia da sua tez. Uma coisa permanecera inalterada: a túnica de Ferada encontrava-se imaculada, o cabelo cuidadosamente penteado, a postura ferozmente altiva.
— Novidades? — repetiu Ferada, apertando as mãos no colo.
— Receio que não tenha acontecido nada de especial. Aprendi a gerir uma casa. Consegui inculcar alguma sabedoria em Uric e Bedo, com a ajuda de estudiosos que iam até nossa casa... sim, Tuala, nesse aspecto inspirei-me em Broichan, pois sei o excelente trabalho que os vossos velhos tutores fizeram contigo e Bridei. Os rapazes estão bem. Bedo aprende bem e Uric tem vindo a fazer progressos. É claro que agora já se consideram homens, para além de tais passatempos sedentários. Hoje em dia passam a vida com os cavalos e com as armas. O Pai acredita que uma temporada na corte poderá ser bastante educativa.
— Sempre pensei que eram rapazes de boa índole — disse Tuala. Derelei estava no seu colo, com os dedos a agarrar uma prega da túnica. Enquanto falava, Tuala afagava-lhe o cabelo encaracolado com a mão pequena e branca. — Quer dizer que Talorgen busca pretendentes para ti, Ferada? Sabe que em breve vai ter lugar uma grande assembléia? Muitos chefes vão reunir-se no Monte Branco, para debaterem as estratégias para a guerra. É uma oportunidade...
— Imagino que todos os que mostraram interesse em mim quando tinha dezesseis anos já estejam casados — atalhou Ferada. — Se o Pai anda à procura, será entre os mais velhos, homens que já não se sentem desesperados por ter grandes hordas de filhos o mais depressa possível.
— Mirou Derelei e depois reparou nos olhos curiosos e na expressão divertida de Tuala. — Não te sintas ofendida, Tuala, sabe que não me refiro a ti e a Bridei. Vocês não esperaram dois anos de agonia desde o noivado até à cerimônia formal? O que é fato é que as mulheres como eu e Ana somos vistas como meras reprodutoras e, aos vinte anos, julgam que já somos velhas. Por falar nisso, surpreende-me que ainda aqui estejas, Ana. Fico contente, é claro. Senti muito a vossa falta. Mas esperava que tivesses casado há anos. Havia bastantes interessados. Eras tão bela aos treze anos como o és agora. Ana baixou o olhar para as mãos.
— Pelo que sei, Bridei tem alguém em vista. Um chefe do norte, diz ele. Talvez no próximo Verão. Sinto-me como se a minha espera não tivesse fim. — O comentário somos velhas perturbara-a, mas não queria que as amigas o percebessem. Uma filha da linhagem real deveria sempre colocar o dever em primeiro lugar, tal como Ferada fizera de modo admirável, ao regressar ao seu lar para cinco anos como dona da casa. Durante esse tempo, perdera inúmeras oportunidades. A continuar assim, ambas seriam velhas desdentadas, sem marido nem filhos.
— Na verdade — indicou Tuala —, houve alguns desenvolvimentos nessa frente. Faolan regressou e Bridei quer falar contigo mais logo, Ana. Julgo que tem a ver com Alpin, o seu chefe tribal. Não insisti em saber de pormenores. Ele queria falar sozinho com Faolan.
Ana estremeceu.
— Esse homem! De quem será o sangue que tem agora nas mãos, é o que penso sempre que o vejo. Em que buraco se terá andado a esconder? Não sei como Bridei é capaz de confiar nele.
Tuala fitou-a.
— Não me lembro de alguma vez o discernimento de Bridei ter sido errado — disse calmamente. — As informações erradas, os logros, a morte súbita. É essa a essência do trabalho de Faolan. É de grande valor, em boa medida por fazer essas coisas com tanta perícia e sem escrúpulos.
— Virou-se contra o seu povo — contrapôs Ana. — Não vejo como alguém pode fazer isso.
— Não? — Ferada arqueou as sobrancelhas. — Então e tu, que vives satisfeita na corte do povo que te aprisionou quando ainda não tinhas idade para saber o que se passava? Sentes-te em casa entre pessoas que te negaram a oportunidade de crescer com a tua família? Não é muito diferente de Faolan, quando reúne informações em Dalriada.
— Shh — silvou Tuala. — Ferada, admiro a tua franqueza, sempre admirei. Mas agora estás no Monte Branco e deves moderar a linguagem, mesmo quando te encontras entre amigas. Ana não deve julgar o assassino do rei e tu não deves julgar Ana. Muita coisa mudou nesta corte desde que Drust, o Touro, a tomou como refém. Com efeito, já não podemos considerá-la como tal. Para mim, é mais como uma irmã.
— Mesmo assim — acrescentou Ferada —, vejo que Bridei não a enviou para a sua terra.
A sua terra, pensou Ana, enquanto se sentia mergulhar na angústia. As Ilhas Pequenas. Ao início, desejara voltar ao reino onde os lagos refletiam a luz tênue do céu aberto e as colinas verdejantes davam lugar às pastagens. O local onde passara a infância encontrava-se repleto de dolmens vetustos e de misteriosas torres de pedra, falésias inesperadas e bandos de aves marinhas. Mas se Bridei decidisse enviá-la agora de volta, isso pareceria a Ana um novo exílio. Quanto à outra opção, a que se avizinhava, real e imediata, deixava-a gelada com o receio. Os Caitt tinham sangue Priteni, tal como o seu próprio povo ilhéu. Pensou no único chefe Caitt que vira desde a infância: Umbrig, de Storm Crag, um homem grande como um urso, violento e grosseiro. Umbrig surgira inesperadamente na eleição do rei e votara em Bridei, ajudando-o a derrotar Drust, o Javali, monarca de Circinn, reino Priteni do sul. Dizia-se que os Caitt eram todos assim, enormes e ferozes. Ana tremia ao pensar em partilhar a cama de um homem tão selvagem.
— Hoje Derelei andou pelo carreiro, agarrado às minhas mãos — mudou ela de assunto. — Em breve já vai andar sozinho. Muito te honra, Tuala.
— De vez em quando vejo Broichan a olhar para ele, sem dúvida à procura de talentos sobrenaturais, tentando descobrir quanto do meu sangue corre nas veias do nosso filho, e quanto de Bridei.
— Broichan não me engana — comentou Ana. — Ele gosta da criança, tanto quanto um druida do rei se permite mostrar afeto. Experimentem a observá-lo, quando ele julgar que estão distraídas. Derelei até parece seu neto.
— E tem? — perguntou Ferada, olhando para o bebê, sentado muito quieto no joelho da mãe, enquanto lhe analisava os dedos. — Esses talentos, quero dizer.
Ana fez menção de responder, mas Tuala foi mais rápida.
— Gostaria que conseguisse lançar um encanto que mitigasse o sofrimento dos dentes a nascer — comentou. — Todos andamos a dormir muito pouco. O teu olhar diz-me que tens mais novidades, Ferada. Diz-se por aí que Talorgen conheceu uma certa viúva donairosa. Ou serão apenas boatos?
Era interessante, pensou Ana, a mestria de Tuala em evitar discutir alguma capacidade especial que o filho pudesse exibir e, com efeito, até mesmo certos talentos que ela possuía em determinados ramos das artes mágicas. Enquanto rainha, parecia determinada a evitar esses assuntos, como se pudessem ser perigosos. Ana sabia do poder adivinhatório de Tuala, algo que se tornara lendário em Banmerren, a escola das mulheres sábias. E havia ainda uma narrativa bastante peculiar, de quando Tuala fugira e do que lhe acontecera e a Bridei na floresta de Pitnochie, uma história que nenhum deles alguma vez contara na totalidade. Mas era necessário satisfazer os desejos da rainha. Se queria ser normal, se preferia que o filho não fosse excepcional, ter-se-ia de fingir, pelo menos aparentemente, que assim era.
Ferada mudou ligeiramente de posição no banco.
— O Pai está a pensar obter autorização para dissolver o casamento — admitiu. — Não fazemos idéia se a Mãe continua viva, nem onde ela está. Apenas sabemos que viajou para lá do limite de Fortriu. O Pai tem bons motivos para fazê-lo. Segundo julgo, é o druida do rei quem toma essas decisões. Acredito que Broichan o permita.
— E? — incitou Ana.
— O Pai deseja voltar a casar. A viúva chama-se Brethana. É bastante jovem. Gosto dela, na medida em que uma rapariga consegue gostar da segunda esposa do pai. Os rapazes não estão preocupados. Nessa idade, apenas as suas próprias atividades lhes interessam. Quando o Pai se casar, nada mais me prenderá à Fonte do Corvo.
Seguiu-se uma pausa, durante a qual Tuala e Ana trocaram um olhar expressivo.
— Sabes — disse Tuala —, tenho quase a certeza de que o que Ferada nos quer contar de seguida não tem nada a ver com pretendentes ou casamentos. Vejo-lhe uma certa expressão no rosto.
— Mmm — meditou Ana —, a expressão que sempre exibiu antes de dizer qualquer coisa escandalosa.
— Não sei se vos devo contar já — disse Ferada. — Tenho de falar com Fola.
— Fola! Estás a querer dizer que vais regressar a Banmerren para te tomares uma mulher sábia? — O tom da voz de Tuala dava vazão à incredulidade sentida por Ana. Quaisquer que fossem os talentos da amiga, e eram muitos, Ferada nunca parecera destinada a um futuro ao serviço da deusa.
O rosto de Ferada enrubesceu.
— Vou a Banmerren. Ou, se Fola vier à assembléia, falarei com ela aqui no Monte Branco. E não, claro que não pretendo tornar-me sacerdotisa. Tenho uma proposta a fazer a Fola. Preocupa-me que tantas jovens de sangue nobre recebam, quando muito, uma espécie de meia educação e, o que é mais habitual, nenhuma, exceto nas artes domésticas. Sei que Fola lhes concede entrada em Banmerren, tal como fez com Ana e comigo. Mas o que lhes é oferecido peca por falta de estrutura e de profundidade. Assim que uma aluna começa a ficar interessada, é enviada de volta a casa, ou para a corte, a fim de ser exibida aos homens, ou para ser enfiada na cama de um indivíduo que lhe vai encher a barriga de herdeiros. Não me olhes assim, Tuala. Sei que a tua experiência foi diferente mas, acredita, para a maioria das jovens é um assunto brutal e arbitrário. Se houvesse um lugar onde as jovens pudessem ficar mais um pouco, onde pudessem aprender algo mais, ganhar alguma sabedoria, antes de serem lançadas para este mundo de homens, acredito que seria possível prepará-las melhor para se defenderem e para desempenharem um papel mais sério nos assuntos que as rodeiam. É isso que quero fazer. Fundar uma escola. Ou melhor, expandir a de Fola, para que se inclua um ramo para as raparigas que não vão tornar-se sacerdotisas, mas que passarão a vida no mundo. Tenciono pedir a Fola que me deixe organizá-la, que me deixe geri-la. Dei-me muito bem com Uric e com Bedo. Além disso, sou rápida a aprender. O que acham?
Tuala sorria.
— É uma idéia arrojada, algo que seria de esperar, vindo de ti, Ferada — comentou. — Muito me surpreenderia que Fola não se mostrasse interessada. E quanto ao teu pai?
— Não está muito à vontade, mas o novo casamento é o que mais o preocupa. Além disso, está em dívida para comigo. Fiz um bom trabalho a gerir a sua casa e a educar os rapazes. Dei-lhe cinco anos da minha vida.
— Vai deparar-te com alguma oposição, disso podes ter a certeza
— avisou Tuala. — É provável que Broichan se oponha a tal idéia, pois não acredita na educação das mulheres, exceto nas que se destinam a servir a deusa. Muitos homens vão considerá-lo desnecessário, uma perda de tempo. Outros vão encará-lo como um perigo. Nem todos os homens têm um espírito tão aberto como o teu pai, que sempre te encorajou a expressar as tuas opiniões.
— Então e o teu casamento? — perguntou Ana. — Como poderás levar este plano a bom termo, se tiveres de cuidar de um marido e de uma família? Imagino que não os queiras sacrificar?
— Sacrificar? — O tom de Ferada era severo. — Ó, Ana. Será que não concebe que uma mulher possa sentir-se realizada sem um homem?
Ana sentiu as faces a arder.
— Eu... — começou a dizer.
— Desculpa — atalhou Ferada, com um tom diferente. — Incomodei-te. Não era minha intenção. Há muito tempo que não tinha a oportunidade de falar livremente e tenho a mente cheia de idéias. Quero ensinar. Quero marcar a diferença. Quero ter a certeza de que não desperdicei a minha vida.
— Eu não pretendo desperdiçar a minha — replicou Ana, sem conseguir ignorar a insinuação.
— Nesse caso, deves rezar para que o pretendente que Bridei tem em mente seja o paradigma da virtude masculina — retorquiu Ferada.
— Tuala, podes falar com Bridei acerca da minha intenção? O seu apoio à noção geral seria de grande ajuda.
— É claro — asseverou Tuala. E também tu deverias pedir. Tenho a certeza de que ele o aprovaria. Bridei admira-te, Ferada.
Ferada quedou-se num silêncio enigmático e, nesse momento, o bebê contorceu-se e respirou fundo por várias vezes, o que deveria anteceder uma qualquer tempestade.
— É melhor entrarmos — indicou Tuala, que se levantou e apoiou a criança na anca. — Ele está a ficar com fome. Deve ser por ter andado tanto. Tens muito jeito, Ana.
— Gosto de vê-lo crescer — disse Ana. — De observar todas as pequenas mudanças.
— É muito bonito quando são de outra pessoa — observou Ferada.
— Podes devolvê-los quando gritam ou quando se sujam, ou se tiverem pesadelos. Dêem-se por felizes por não terem cinco ou seis agarrados às vossas pernas. Se nos tivessem casado quando começaram a falar de pretendentes, cada uma de nós já teria uma ninhada, por esta altura.
— Gostaria de ter outro filho — sorriu Tuala. — Se A Que Brilha me abençoar com uma filha, Ferada, vou enviá-la, para que a eduque.
— Isso, se Fola não se meter primeiro — comentou Ferada.
A corte do rei no Monte Branco fora erigida no local de uma fortaleza antiga, construída em pedra e madeira endurecida pelo fogo. Ainda existiam restos dessas muralhas na vegetação que rodeava as encostas inclinadas da colina. Aqui e ali, à sombra de pinheiros imponentes, um fragmento de pedra com uma forma artificial sugeria uma parede, uma fonte, uma extensão de pavimento. O ribeiro que ziguezagueava pelos flancos do Monte Branco abastecia lagos e bacias, naturais e construídos pela mão humana. O local era considerado impenetrável. A inclinação da própria colina, as muralhas perpendiculares e sólidas, a vista permitida pelas aberturas estratégicas protegidas pelas árvores, concediam aos ocupantes uma grande vantagem defensiva. A partir dali, era possível ver o oceano a norte e, a sul, as águas do Rio Serpente e as colinas sombrias do Grande Vale. A reserva natural de água doce e a vasta extensão de terreno plano no sopé do Monte Branco, agora coberto pelas habitações e outros edifícios, pelas hortas e oficinas da cidadela de Bridei, tudo dentro dos limites das novas muralhas imponentes, permitiriam que os ocupantes resistissem a um cerco até que os atacantes se fartassem, ou até à chegada de reforços.
Para leste, ao longo da costa, ficava o velho forte defensivo de Caer Pridne, que albergara a corte real de Fortriu durante o reinado do antecessor de Bridei e de muitos outros reis anteriores. Bridei era jovem quando chegara ao trono, mas possuía uma grande vontade de mudança. Aos vinte e um anos de idade, com dois anos de reinado, completara a edificação do Monte Branco e aí estabelecera o seu quartel-general, rompendo com a tradição. A primeira cerimônia da nova corte foi o casamento com Tuala, na altura com meros dezesseis anos de idade. Outras mudanças se seguiram. A mais arriscada foi a decisão por parte de Bridei de alterar a celebração de um certo ritual que marcava a entrada do ano na escuridão. Da última vez que isso fora tentado, o deus ofendido exercera uma terrível vingança. Mas os chefes tribais e os anciãos aceitaram a decisão de Bridei. Era sabido que tanto ele como o seu druida, Broichan, levavam a cabo ritos pessoais, em vez das práticas antigas, e que estes eram de uma natureza exigente. O povo não solicitou pormenores, pois a confiança que depositava no seu jovem rei era forte. O monarca tinha uma personalidade que arrebatava os outros, uma dedicação apaixonada e uma energia ardente, moderada por cautela, sutileza e inteligência. Afinal de contas, Bridei fora educado como filho adotivo de Broichan, e este era um mago poderoso, o principal conselheiro tanto do rei anterior como do novo.
Ao início houvera comentários. Broichan não era estimado. Muitos receavam o seu poder e desconfiavam da natureza esotérica do seu conhecimento. Havia quem tivesse dito que ter o filho adotivo de Broichan como rei seria o mesmo que ter o druida em pessoa no trono. Não era o jovem um títere, elevado a rei a fim de conduzir os assuntos de Fortriu segundo os desejos de Broichan? Contudo, desde o primeiro dia de reinado que se tornou óbvio que Bridei tinha idéias próprias e tencionava tomar as suas decisões de forma independente. Reuniu um conselho, composto por um equilíbrio ajuizado de homens mais velhos e experientes, e pelos chefes tribais mais jovens, preparados para tolerar idéias novas e para aceitar correr riscos calculados. Confrontou druidas com líderes guerreiros, estudiosos com homens de ação. Por vezes, incluía mulheres no seu grupo de conselheiros: não só a sacerdotisa mais velha, Fola, que dirigia o estabelecimento onde se treinavam as jovens para o serviço d'A Que Brilha, mas também Rhian de Powys, a viúva do rei anterior, e, ocasionalmente, a sua própria esposa, Tuala.
Embora a maior parte das decisões fossem tomadas no Monte Branco, Bridei mantinha baluartes noutros locais. Caer Pridne continuava a alojar uma guarnição, estábulos, campos de treino e um arsenal. A Fonte do Corvo, a sudoeste, e Thorn Bend, a sudeste, eram postos avançados estratégicos, liderados por chefes tribais influentes, leais ao rei. Todos sabiam que o plano de Bridei era fortalecer Fortriu, para depois carregar sobre os celtas. Todos sabiam que se aproximava a altura. O momento preciso servia de mote a apostas.
No dia seguinte ao regresso de Faolan ao Monte Branco, Ana foi chamada aos aposentos reais. Derelei estava no jardim com a ama. Na câmara usada para encontros informais, o rei e a rainha aguardavam em silêncio. As expressões sérias alarmaram Ana, que imaginava o que se avizinhava, mas esperara que, pelo menos, Bridei apresentasse as novidades como sendo algo positivo. Ban, o pequeno cão branco, eterno companheiro de Bridei, ergueu-se do seu pouso por baixo da cadeira do rei e assumiu uma postura alerta. Depois, ao ver uma amiga, voltou a deitar-se. Ana penetrou na câmara e viu uma quarta figura presente. Faolan, o assassino de Bridei, o espião do rei, o seu braço direito, estava encostado à parede junto à janela estreita, a forma envolta em sombras. Os olhos do homem perscrutaram-na enquanto a jovem se sentou à mesa. No rosto do assassino, Ana não viu a admiração oferecida por outros homens, mas uma avaliação fria: o celta calculava o seu valor enquanto bem de troca.
— Imagino que saibas por que motivo te chamamos — disse Bridei, enquanto Tuala servia hidromel.
De repente, Ana ficou tensa com os nervos. Anuiu brevemente. Eram seus amigos, pessoas com quem jantava todos os dias. Brincava com o filho deles. Mesmo assim, Bridei detinha tamanho poder sobre o seu futuro que, por breves instantes, ficou com medo.
— Pelo que sei, Faolan tem novidades de Alpin, um chefe Caitt — replicou, com um tom de voz calmo. — Terá evidenciado interesse em casar?
Seguiu-se um silêncio breve. Era óbvio que a opinião de Ana estava errada.
— Encontramo-nos numa posição difícil — explicou Bridei — e, como tal, vamos pedir-te a tua ajuda, Ana. Aquilo que precisamos que faças é difícil. Incômodo. Terá como resultado uma grande mudança.
Ana não fazia idéia do que Bridei queria dizer.
— A chamamos aqui, apenas nós quatro, para que te possamos dar a notícia em privado e para que disponhas de algum tempo para refletir — continuou Bridei. — Esta noite vai realizar-se um conselho formal, durante o qual seremos obrigados a tomar uma decisão sobre este assunto. As novidades de Faolan tornam-no urgente. Crítico.
— Bridei — atalhou Tuala —, de certeza que Ana prefere que lhe expliques tudo. O que vais pedir-lhe é muito importante. Ana precisa de todos os fatos.
Faolan pigarreou.
— Tens conhecimento, é claro — disse Bridei —, do grande empreendimento que estamos a planejar contra os celtas, dentro em breve. Com a ajuda dos deuses, todos os nossos velhos inimigos serão varridos das costas dos territórios Priteni de uma vez por todas, e a fé cristã com eles. Para esta demanda, precisaremos de todos os aliados que conseguirmos reunir. Tal como sabes, Circinn foi convidado para uma assembléia antes do Verão. Desta vez, temos esperança de conseguir a colaboração de Drust, o Javali, mesmo concedendo permissão para que os missionários da cruz atravessem o seu reino. Também pretendo estabelecer as alianças que conseguir com os reinos Priteni do norte.
— O meu parente das Ilhas Pequenas? — Talvez, contra todas as expectativas, Bridei a enviasse para casa.
— Enviei ao teu primo um pedido de homens armados. A mensagem também requisitava o seu consentimento formal para que eu desse a tua mão a determinado pretendente.
— Entendo.
— Ana — o tom de Bridei era gentil —, há muito tempo que sabes que isto ia acontecer. Tens dezenove anos. Já passaste da idade em que poderias esperar casar-te.
— Diz-lhe de uma vez, Bridei — incitou Tuala, com uma aspereza nada típica.
— Tencionava investigar o chefe que temos em vista para ti, Alpin, de Briar Wood, de forma mais aprofundada antes de o abordarmos — explicou Bridei. — Até agora, Umbrig foi o único chefe Caitt que garantiu o seu apoio contra os celtas. Os Caitt são uma casta estranha, são orgulhosos e agressivos. Alpin deverá ser o mais poderoso, mas também o mais difícil de contatar, uma vez que o seu território é distante e situa-se no meio de uma floresta impenetrável. As mensagens viajam com lentidão.
Ana cogitou profundamente.
— Os Caitt não costumam afastar-se das disputas alheias? — perguntou. — Dirigem-se de tempos a tempos às Ilhas Pequenas, nos seus barcos de guerra. Lembro-me deles, na corte de meu primo. Ele costumava suborná-los com oferendas.
— São da nossa raça — adiantou Tuala. — Partilham o mesmo sangue e a mesma língua de todos os Priteni, quer seja em Fortriu, em Circinn ou nas Ilhas Pequenas. E se Umbrig concede os seus guerreiros, também Alpin poderá fazê-lo. Isso pode marcar a diferença.
Ana esperou, julgando que poderia não ter compreendido alguma coisa.
— Faolan — indicou Bridei —, diga à senhora Ana o que descobriu. Pelo menos a parte que concordamos ser seguro revelar.
Faolan cruzou os braços e fitou a distância. Era um homem sem características excepcionais, de altura mediana e constituição seca, o tipo de homem que passaria despercebido numa multidão. A única característica distintiva era a falta de tatuagens faciais, fato que, uma vez que era evidente que não se tratava de um druida, nem de um sábio, o marcava como não sendo de sangue Priteni. Ana interrogou-se sobre se, enquanto espião, treinava continuamente o ser esquecível de imediato.
— Ouvi falar de um segundo território — disse. — Na costa oeste, com um ancoradouro abrigado. Se a informação for correta, a zona tem a localização ideal para se aceder por mar aos territórios de Dalriada. Essa é a primeira informação, o que significa que não devemos ser os únicos a tentar aliciar este líder Caitt com incentivos.
Um incentivo. Era um nome pelo qual Ana nunca tinha sido chamada.
— E a segunda informação? — perguntou-lhe ela com um tom frio.
— Deves compreender — indicou Faolan — que não poderás conhecer todos os pormenores. Nas mãos erradas, a informação pode tornar-se perigosa.
Ana sentiu-se ultrajada.
— Posso ser uma refém — replicou, no seu tom mais majestoso —, mas sou incondicionalmente leal a Bridei. Não me interessa a tua insinuação.
Faolan mirou-a.
— A lealdade do mais forte dos homens pode ceder sob tortura — disse, sem emoção. — Dir-te-ão o que precisas de saber e nada mais. Alpin é um jogador perigoso, muito mais do que julgas. Ouvi dizer que pode estar à beira de uma aliança com Gabhran, de Dalriada. Temos de agir depressa. Não podemos deixar que aquele ancoradouro ocidental caia em mãos celtas, nem que o exército privado de Alpin nos defronte em combate. É tão simples quanto isto.
— Estou a ver. — Ana esforçou-se por se acalmar. — Assim sendo, planeias oferecer-lhe uma noiva real? — perguntou a Bridei. — Deixá-lo ainda mais poderoso, concedendo-lhe a oportunidade de ser pai de um rei?
— Alpin é abastado — retorquiu Bridei. — Possui terras, homens, gado, prata. Não podemos tentá-lo com nada do que é habitual. A nossa vantagem assenta em dois fatos inferidos a partir das investigações de Faolan. Em primeiro lugar, Alpin deseja respeito e estatuto. A história antiga não o deixou muito bem visto pelos outros chefes Caitt, como Umbrig, por exemplo. Em segundo lugar...
— Não é casado — concluiu Ana.
— Exato. É viúvo, sem filhos legítimos. Podes ver a oportunidade que representa.
— Bridei compreende que tal te seja difícil, Ana. — A voz baixa e clara de Tuala tinha um tom apologético. — Embora há muito tempo o esperasses, sei que não deixa de ser assustador enfrentar a realidade. Coloca as questões que te aprouver. Imagino que seja mais fácil agora, de modo informal, do que no conselho desta noite.
Ana engoliu em seco.
— Para quê um conselho? — perguntou. — A decisão não é de Bridei? — Uma coisa era certa, as suas próprias escolhas não interessavam.
— Os meus conselheiros e líderes guerreiros têm de escutar as novidades de Faolan em primeira mão — explicou o rei. — É importante.
Parecia a Ana que todos lhe ocultavam alguma coisa.
— Há mais, não há? — indagou, enquanto fitava, à vez, os olhos grandes e perturbados de Tuala, os azuis honestos de Bridei e a expressão sombria e reservada de Faolan. — O quê?
— Tempo — tomou Faolan a palavra. — Não há tempo. Tens de partir já. Basicamente, é isso que importa.
Ana fitou-o. Bridei suspirou.
— Com efeito, é isso que temos de pedir-te que faças. A natureza da informação de Faolan é de tal ordem, que torna este assunto urgente. Enviei um mensageiro a Alpin, informando-o da nossa oferta. Contudo, é no nosso interesse que não esperemos por uma resposta escrita, enviando-te desde já para Briar Wood. Pelo Verão, precisamos de ti casada e de um acordo assinado. Temos de agir antes que Alpin se comprometa com uma aliança Celta.
— Ir já... mas... — Ana estava sem palavras. De súbito, voltara a ter dez anos, cheia de entusiasmo por ir de visita à corte de Fortriu, vindo depois a saber que era uma refém e que não voltaria a casa. — Mas, Bridei... Tuala... como podem fazer isto? Tal significa que estarei a caminho sem saber se ele aceitou! E se lá chegar e... — Nem era capaz de o dizer. E se ele não me quiser? A simples noção envolvia uma vergonha terrível.
— Ana — disse Bridei —, o homem seria um perfeito idiota para não ficar agradado com tal noiva. Acredita. Basta que olhe para ti. Afasta essas dúvidas da tua mente. Acreditamos que a tua presença física em Briar Wood será um dos nossos melhores argumentos.
As palavras não a fizeram sentir-se melhor.
— Decerto o assunto poderia ser tratado de forma um pouco mais gradual — protestou. — Mesmo que o avanço tenha lugar já na Primavera, não poderíamos esperar que o mensageiro chegue com a resposta de Alpin? — O chefe tribal de Briar Wood até poderia vir buscá-la em pessoa. Dessa forma, teria mais algum tempo para o conhecer antes da cerimônia formal. — Continuaria a haver bastante tempo para viajar até Briar Wood, antes do próximo Inverno — concluiu.
— Tem de ser agora. — O tom de Faolan era decisivo. — Razões estratégicas. Motivos que é melhor que não conheças na totalidade.
— Estou a ver. — Ana tremia. Cerrou os punhos, interrogando-se se o que sentia era raiva ou medo. — E quando, exatamente, é agora?
Os olhos de Bridei transbordavam de compaixão.
— Assim que estejas pronta — respondeu o rei. — Temos certos preparativos a fazer. Alguém da corte irá acompanhar-te e avaliar a situação em Briar Wood, antes que o acordo final seja estabelecido entre ti e Alpin. Vou preparar-te uma escolta adequada. Deves querer algum tempo para preparares as tuas roupas e objetos pessoais. Tuala vai garantir que tens a ajuda necessária. O terreno é difícil em certas zonas, por isso a bagagem terá de ser reduzida ao mínimo.
Seguiu-se um silêncio. Ana olhou para as mãos.
— Alguém da corte — acabou por dizer. — Será Faolan? — Não era possível afastar da voz um certo tom de aversão.
— Correto — asseverou Bridei. — Está preparado para avaliar os riscos, quando chegarem a Briar Wood, e é perito em assuntos de segurança pessoal.
Ergueu o olhar e viu uma expressão no rosto do assassino do rei que espelhava a sua. Sentiu alguma satisfação por, também para ele, aquela situação não ser agradável.
— Pareces cansada, Ana — comentou Tuala com brandura. — É muita informação de uma só vez.
A gentileza da amiga acabou por ser a gota de água. Ana sabia que estava à beira de rebentar em lágrimas ou de apresentar algum protesto irrefletido.
— Estou bem — disse alegremente. — Esse conselho... o que esperam de mim?
— O teu consentimento formal para o casamento. Certos membros do conselho poderão ter perguntas a fazer-te, ou tu a eles.
— Estou a ver. — E estava mesmo. Via um futuro em que as coisas aconteciam sem que as suas escolhas fossem tidas em conta. Um futuro em que seria completamente impotente. Dever: tudo se resumia a isso. Esperava que Alpin, de Briar Wood, fosse um homem bondoso. — Com a vossa licença. — Mantendo a cabeça erguida, conseguiu deixar a sala com a dignidade intacta. Esperou até chegar ao seu quarto para, sozinha, verter a primeira lágrima.
— Não gosto disto — disse mais tarde o rei de Fortriu à esposa, depois de Faolan ter partido, quando os dois ficaram sozinhos. — Sempre esperara encontrar para Ana não só o parceiro estratégico adequado, mas também um homem que soubesse que viria a ser bom para ela. Detesto esta necessidade de pressa.
— Ela está muito perturbada — disse Tuala. — Fez o possível por escondê-lo. Foi muito bem treinada, mas era óbvio que estava à beira das lágrimas. Se houver maneira de lhe tornar as coisas mais fáceis, temos obrigação de encontrá-la.
— Eu sei. — Bridei afagou Ban atrás das orelhas. Com um suspiro, Ban deitou a cabeça aos pés do rei. Desde que o cão surgira misteriosamente, junto ao lago das visões em Pitnochie, no Inverno grave da eleição do novo rei, raramente deixara Bridei sozinho. — Sei bem que é muito, o que lhe é exigido. Mas Ana já é uma mulher e nunca escondeu o fato de desejar filhos seus. Pelo menos não aconteceu quando ela tinha catorze, ou quinze anos, tal como poderia ter acontecido, caso tivesse surgido a oferta adequada.
— Mesmo assim — disse Tuala —, qualquer mulher na situação dela estaria a pensar, e se chegar a Briar Wood e descobrir que o meu noivo é um monstro, e se tiver sífilis, se for bêbado, se bater na mulher?
Seria melhor se Alpin pudesse vir à corte, para descobrirmos que tipo de homem é. Ana é nossa amiga, Bridei.
O monarca entreabriu os olhos. A esposa estava sentada muito direita na cadeira em frente da sua. O cabelo escuro, que ia fugindo das tranças perfeitas, enrolava-se em caracóis atraentes à volta do rosto. Os olhos eram como os de Derelei, grandes, claros e brilhantes.
— Eu sei — disse Bridei. — Se eu fosse apenas isso, um amigo, dir-lhe-ia para recusar o nosso pedido. Iria avisá-la que não deveria empreender uma viagem tão longa e perigosa, a fim de se entregar nos braços de um chefe tribal com a reputação de Alpin. Mas sou rei. As minhas decisões devem visar o bem de Fortriu.
— Bridei, sabe que não te culpo por esta escolha — disse Tuala, gentilmente. — Compreendo, tal como tu, que foi necessária para um bem maior. Ana também o sabe. Mas está chocada e com medo, como qualquer pessoa ficaria, nas mesmas circunstâncias. É mesmo essencial que ela parta antes de recebermos a resposta de Alpin?
— Segundo Faolan, sim. Consultei Broichan e ele concorda. Há anos que nos vimos a preparar para este assalto final contra os celtas. Tudo está a ser executado na perfeição. Fizemos por cobrir todas as eventualidades, até onde nos foi possível. Ou, pelo menos, assim pensamos. Ao que parece, Alpin é um fator imprevisível, o elemento que poderá fazer pender a balança para um lado ou para o outro. Até agora, não nos tínhamos apercebido da influência que ele detinha. Nem sabíamos se tencionava aliar-se a Gabhran. Ana é a nossa solução, Tuala, e, embora me custe dizê-lo, temos de enviá-la de imediato. Cada dia que passa em que esteja no Monte Branco é um dia a mais.
— É perigosa, não é? A viagem?
— Faolan vai garantir a segurança. Vai avaliar Alpin e o risco global. Estabeleceremos termos que exigem um certo espaço de tempo entre a chegada a Briar Wood e o casamento. Dessa forma, pelo menos, Ana terá oportunidade de conhecer melhor o noivo.
— Ela despreza Faolan. É estranho. Ana é uma criatura tão doce e gentil, sem mal a dizer de ninguém, mas, neste caso, não é capaz de abstrair-se da natureza da tarefa.
Bridei franziu o cenho.
— O sentimento parece mútuo. Faolan nunca recusaria uma comissão de serviço, é claro, mas deixou o mais claro que pôde que tomar conta de princesas mimadas e das suas roupas ao longo do território Caitt não é o tipo de tarefa que aprecia. Na verdade, apresentou-me razões bastante válidas para este trabalho ser mais adequado a outro homem qualquer.
— Mimada? — Tuala sorriu. — Não a conhece bem, pois não?
— Está a pensar em pô-la à prova a cavalo todos os dias até à partida. É óbvio que julga que ela mal deve ser capaz de trotar de uma ponta do pátio à outra sem se queixar de cansaço, ou de dores nas costas.
— Não gosto nada disto, Bridei. — O tom da voz de Tuala era sombrio. — Esta situação está repleta de incertezas. Podia ter confiado a Ana a verdadeira razão da urgência.
— Agi segundo o conselho de Faolan — justificou-se Bridei. — É sua opinião que, quanto menos ela souber, menos poderá dizer, caso existam problemas. É para o bem de Ana.
— Mm — disse Tuala. — É claro, ela é inteligente. Os homens tendem a esquecê-lo, quando uma mulher é tão bonita como Ana. Imagino que já o tenha percebido sozinha.
Era de noite. Ana vestira-se de forma simples, com uma túnica e uma saia de lã azul, com debruns creme, bordados a azul mais escuro. Cingira o cabelo louro e abundante numa única trança, que lhe caía pelas costas abaixo. Atravessava agora o jardim, cruzou-se com um par de guardas altos, percorreu uma passagem onde ardiam archotes em suportes de ferro, e subiu até à porta de carvalho de uma determinada câmara. Junto à porta encontrava-se um homem imponente, armado com uma lança: Breth, um dos guardas pessoais de Bridei.
— Estão à tua espera, minha senhora — indicou e abriu-lhe a porta pesada.
Os trabalhos pareciam estar a decorrer há já algum tempo. Sobre a mesa viam-se jarros e copos e, quando Ana entrou, várias pessoas que estavam a falar calaram-se de súbito. Ergueu o queixo e manteve as costas direitas, esforçando-se por acalmar o estômago que andava às voltas.
— Bem vinda, Ana — recebeu-a o rei, levantando-se. Do seu posto, ao lado da cadeira de Bridei, Ban rosnou o seu cumprimento. — Senta-te, por favor.
Ana percorreu o círculo de rostos com o olhar. Era um conselho pequeno e restrito, composto pelos mais poderosos conselheiros de Bridei. Tuala estava sentada ao lado do marido e sorriu a Ana, à laia de encorajamento. Fola, a mulher sábia que chegara nesse dia, mirou a jovem por detrás do nariz aquilino. Sempre recordara a Ana um pássaro selvagem e diminuto. Junto à lareira encontrava-se Broichan, o druida do rei, um homem alto, de vestes escuras, o cabelo uma miríade de tranças minúsculas, enroladas com fios coloridos. A expressão não revelava nada. Era sempre imperscrutável. Aniel e Tharan, conselheiros de Bridei, estavam sentados, os rostos máscaras de sobriedade. Os chefes Carnach e Morleo, juntamente com Talorgen, pai de Ferada, também se encontravam presentes. Atrás da cadeira do rei estava Faolan. Cruzaram o olhar, tendo Ana desviado o dela.
— Muito bem — disse Bridei —, já expus a situação aos membros deste conselho e Faolan relatou as suas viagens e as informações que recolheu. Lamento muito não ter podido dar-te mais tempo para refletir, Ana. Se concordares, o reino de Fortriu ficará para sempre reconhecido. Será que, depois de teres pensado, desejas colocar-nos alguma questão?
Ana pigarreou. Passara a tarde a debater-se com perguntas que não poderiam ser feitas, questões que não tinham nada a ver com estratégia, dizendo antes respeito às suas próprias dúvidas.
— Será que algum de vós conhece Alpin, de Briar Wood? Se alguém pudesse mostrar-me um retrato seu. — Olhou para Talorgen, para Carnach. Os chefes tribais guerreiros viajavam com freqüência e encontravam muita gente.
— Posso responder? — Era Aniel, o conselheiro grisalho. Bridei anuiu. — Infelizmente, a resposta terá de ser não, Lady Ana. Apenas conhecemos Alpin pela sua reputação. É temido e respeitado pelo seu povo. A fortaleza é isolada. Fica numa extensão de floresta densa. Tal localização pode facilmente dar azo ao tipo de conversas que alimentam a incerteza natural dos homens.
— Optar por viver numa floresta não é, necessariamente, algo mau — comentou Tuala. — Segundo sabemos, os territórios dos Caitt estão cheios desses locais ermos. Imagino que todos os chefes tribais enverguem o seu próprio manto de lendas.
— Mencionou-se uma história antiga — disse Ana, que descobrira pouco conforto nas palavras de Aniel. — Qual é essa história?
— Nada de específico — respondeu Aniel. — Algumas das fontes de Faolan sugeriram que Alpin é muito independente, nada mais. O isolamento cria esse tipo de homens. Podem tornar-se perigosos em tempos de guerra, pois as suas fidelidades mudam conforme o vento. Daí a necessidade urgente de estabelecer amizade com este homem. Um casamento no Verão, um herdeiro no prazo de um ano, será a melhor forma de criar um laço forte e duradouro.
— Ou isso, ou eliminar o indivíduo. — As palavras de Faolan não denotavam qualquer ênfase especial.
— Não desejarias fazer isso — replicou Ana —, se precisassem das suas forças do vosso lado e não do lado do inimigo.
Cruzaram o olhar por um momento e Ana arrepiou-se. Eram olhos mortos, os olhos de um homem que se esquecera de como sentir.
— Precisamente — interveio Talorgen. — Na verdade, é essencial impedir que junte as suas forças à resistência de Dalriada. Não podemos permitir que se alie a Gabhran.
— Compreendo — disse Ana. — Broichan, posso ouvir a tua opinião sobre o assunto? — Na qualidade de druida do rei, Broichan estava em contacto com os deuses. Em última análise, se fosse vontade das divindades que ela concordasse, teria de fazê-lo sem hesitar.
— Lancei um augúrio antes do regresso de Faolan — disse Broichan, com a sua voz grave e dominadora. — A minha interpretação revelou uma ameaça vinda do norte. Infelizmente, é muito difícil obter informações de confiança sobre os Caitt. É uma região cerrada, dura e montanhosa, sujeita a rigores que desafiam o mais experiente dos viajantes. — Observou os dedos longos e ossudos, onde brilhava um anel de prata, com a forma de uma serpente minúscula com jóias verdes como olhos. — As dúvidas suscitadas pela minha visão foram reforçadas pelas informações de Faolan. Enquanto celta, poderá chegar mais longe do que outros. Temos de agir rapidamente.
Ana apertou as mãos atrás das costas.
— Sei que tenho de fazer isto — disse, procurando manter-se hirta e digna. — Tal não significa que a situação me deixe satisfeita. Que devo fazer se Alpin me recusar, quando da minha chegada a Briar Wood? É uma viagem demasiado longa para um resultado negativo.
— Ele não vai recusar — garantiu Aniel, fazendo eco dos sentimentos de Bridei nesse dia. Os outros homens na sala anuíram ou murmuraram a sua concordância. Ana podia sentir os olhos no cabelo dourado, na figura de túnica azul, no rosto, o qual fora comparado a uma rosa selvagem por um pretendente fervoroso. Sentiu nas faces o rubor da humilhação.
— Deves compreender — disse Talorgen — que, se te casares com Alpin e ele se tornar nosso aliado, tal fato elimina a possibilidade arriscada de vir a enfraquecer grandemente a nossa estratégia de combate. Não vou enfadar-te com pormenores, mas imagino que tenhas noção que uma força levada por Alpin pelo mar em apoio de Dalriada poderia arruinar os nossos planos. Por outro lado, se tivermos algum controlo sobre o ancoradouro, seria uma grande vantagem.
Ana fitou-o. Seria de pensar que, enquanto pai de Ferada, se apercebesse do que a jovem sentia. Pelo menos não a considerava demasiado estúpida para ouvir pormenores estratégicos.
— Eu compreendo — disse. — Compreendo a guerra e a importância de garantir Alpin como aliado. Apenas me parece demasiado apressado. Mal tive tempo de me preparar...
— A viagem é longa. — O tom de Faolan era neutro, desligado.
— Haverá tempo mais do que suficiente para pensares sobre isso no caminho.
— Quão longa? — Ana franziu-lhe o cenho.
— Para um grupo com mulheres, mais de um ciclo da lua, mesmo que o tempo se mantenha estável. É mais rápido para guerreiros, ou mensageiros.
Ana voltou a encarar Bridei e dirigiu-se a ele formalmente.
— Senhor meu rei, na tua mensagem informaste Alpin de que eu estava a caminho? — perguntou. — Para que tenha alguns dias para pensar sobre o assunto antes da minha chegada?
— Foi essa a minha intenção — respondeu o rei.
Ana ficara sem questões. Todos pareciam aguardar que falasse. Tinha as palavras erradas na ponta da língua, palavras iradas, magoadas, palavras que não eram as de uma princesa Priteni, mas de uma rapariga assustada que se vê oferecida a um estranho. Engoliu-as.
— O meu consentimento, claro está, não passa de uma formalidade.
— Conseguia distinguir o tom duro na voz e forçou-se a moderá-lo.
— Começarei os preparativos pela manhã. Espero que venha a ser uma grande ajuda à causa de Fortriu. Detestaria que fosse um desperdício. — Apesar do esforço, a voz tremia-lhe.
Ninguém disse nada. Ana viu lágrimas nos olhos de Tuala e uma compaixão resignada nos de Fola.
— Boa noite — disse. — Irei retirar-me agora. Que A Que Brilha vos guarde os sonhos. — Até mesmo o rei se levantou quando a jovem saiu.
— Ela não quer ir — disse Tuala a Bridei. — As suas palavras deixaram-no bem claro. Está assustada. Quem sabe o tipo de homem que Alpin poderá ser?
Bridei estava sentado à lareira nos aposentos reais, com o filho pequeno adormecido sobre o joelho. O conselho terminara. A noiva real seria enviada assim que Faolan preparasse a escolta. Enquanto rei, Bridei habituara-se a tomar decisões tendo em conta os riscos e as vantagens. Aquela decisão fora uma das mais difíceis.
— Essa é uma das razões para enviar Faolan — disse. A cabeça começava a latejar-lhe com uma dor persistente. Fechou os olhos e recostou-se na cadeira, o corpo descontraído e quente do bebê uma presença reconfortante nos braços. — Ele pode considerar esta missão pouco digna, mas acredito que vá garantir que Ana ficará em segurança antes de deixá-la em Briar Wood. Tem capacidade de avaliar a verdadeira intenção de Alpin, de prever os movimentos futuros.
— Mas não tem capacidade de reconhecer se dará um bom marido — replicou Tuala em voz baixa.
— Ana compreende a situação — disse Bridei. — Será tão protegida quanto possível. Se por acaso as coisas correrem mal, a escolta irá trazê-la em segurança de volta ao Monte Branco. Faolan vai levar dez guerreiros. Sabes como ele é capaz.
— Ser capaz não chega. Estou preocupada, Bridei. Não me parece correto. Dá-me Derelei. Já devia estar na cama.
Bridei ergueu a criança adormecida e depositou-a nos braços da mãe.
— Ana vai ter saudades dele — disse Tuala. — Ela adora-o.
— Imagino que em breve venha a ter o seu próprio filho.
Tuala levou a criança. Quando regressou, algum tempo depois, Bridei viu o brilho das lágrimas que a esposa tinha nos olhos.
— Estás a chorar — exclamou, alarmado. Pesasse embora a aparência feérica e delicada, Tuala possuía uma força interior que o espantara, mesmo quando ela ainda era uma criança de cinco anos. Era raro que o deixasse ver as suas lágrimas. — Por causa de Ana? Sinto muito... venha cá. — Recebeu-a nos braços, a face contra os cabelos escuros. — Lamento muito a forma como está a ser feito, Tuala. Ao mesmo tempo, sei que tenho de fazê-lo. Se não tomar medidas imediatas para conquistar Alpin, arrisco a vida de centenas de homens.
— Parece tão injusto — disse Tuala, encostada ao marido, com os braços à volta da cintura dele. — Ela, e outras como ela, têm de se sujeitar a estes acordos sem amor, enquanto tu e eu... Quebramos tantas regras para ficarmos juntos, Bridei. Deixamos que o amor fosse o nosso guia. Desafiamos a opinião de Broichan e os protocolos da corte. E, contudo, não damos escolha a Ana. É uma das minhas amigas mais queridas, desde os dias em que aprendíamos o que era o amor.
— Em Banmerren? — Bridei sorriu. — Julgo que o aprendi muito antes disso. — A recordação de uma Tuala minúscula, o cabelo revolto com a brisa, a rodopiar na ponta de uma rocha, surgiu nítida na mente de Bridei, que apertou a esposa com mais força. — Além disso, os deuses abençoaram o nosso casamento. Até os druidas têm de ceder a essa autoridade maior. — Não obtendo resposta, disse: — Tuala? Sinto muito, deveras. Darei a Faolan instruções precisas. Se alguma coisa correr mal, deverá trazê-la de volta a casa. Até hoje, nunca deixou de cumprir uma missão com uma eficiência imaculada.
Tuala soltou-se, agarrou-lhe as mãos e olhou-o.
— Espero que a fé que depositas nele se justifique — disse. — É um bom amigo, reconheço-o, e é espantoso em diversos ofícios. Mas não sabe absolutamente nada sobre mulheres.
Os longos exercícios matinais de Faolan, levados a cabo fizesse chuva ou sol, pareciam excessivos a Ana. Aprendeu a montar e a desmontar com um estalar de dedos e a parar instantaneamente o pônei com um assobio quase inaudível. Desconfiava que ele estivesse a descarregar a irritação em si. Era óbvio que o homem julgava que devia estar em qualquer outro lugar, talvez em batalha, a derramar o sangue dos outros, ou, o que era mais provável, oculto nas sombras, com um punhal grande nas mãos. Não era isso o que os assassinos deviam fazer? Este, contudo, possuía um talento singular para andar por ali, com os olhos semicerrados e os lábios comprimidos, a emanar uma hostilidade quase tangível.
Ana só precisou de um dia de viagem para se aperceber da necessidade do que ele fizera. Ao desmontar no limite da clareira onde iriam montar acampamento, sentiu a dor que se espalhava pela zona lombar. Conseguia andar, mas tinha as pernas bambas. Faolan dirigia as suas ordens aos homens da escolta e cruzou o olhar avaliador com o de Ana. A jovem susteve-lhe o olhar e depois virou-se, para tratar da montada. Não fora possível trazer o seu pônei, Jewel, do Monte Branco. Faolan declarara que a criatura não era suficientemente forte para suportar aquela viagem. Destinara-lhe um animal peludo e robusto, com um temperamento de uma certa impassibilidade, e Ana não dissera nada. Jurara a si própria não deixar transparecer qualquer descontentamento. Não lhe daria essa satisfação. O que ele pensava da jovem era bastante óbvio: que era mimada e fraca, pouco sabendo do mundo exterior às muralhas protetoras da corte.
Ali próximo, a serva que tinha como tarefa cuidar de Ana encontrava-se imóvel, um esgar de dor no rosto, as mãos pressionando as costas. Partilhara um cavalo com um dos homens e parecia exausta.
Ana manteve-se silenciosa. Tinham insistido que precisava de uma serva. Era lamentável que nenhuma das mulheres capazes de tratar do seu guarda-roupa soubesse montar. Mais valia que lhe tivessem atribuído uma camponesa. Não interessava que não soubesse limpar, nem remendar os belos trajes de uma dama, desde que se revelasse útil na altura certa.
— Não se preocupe, Darva — comentou Ana, com severidade.
— Acabas por habituar-te.
Darva respondeu com um gemido. Suspirando, Ana levou o pônei para junto dos outros, peou-o e começou a esfregá-lo. Um dos homens encontrava-se a alimentar e a dar de beber aos animais. A forragem não duraria muito, mas aquelas criaturas robustas estavam habituadas a aproveitar tudo o que podiam dos carreiros dos bosques e das montanhas vazias, pelo que resistiriam bem à viagem.
— Um de nós pode tratar da criatura, minha senhora — disse o homem, indicando a serapilheira com que Ana esfregava a pelagem úmida.
— Já estou a acabar — replicou.
— É melhor que seja um de nós a fazê-lo. — Retirou-lhe o pano da mão e Ana sentiu que quebrara uma das regras do acampamento. Sorriu e afastou-se, sem querer discutir.
Dois dos homens partiram de arco na mão, obviamente em busca do jantar. O acampamento fora erguido rapidamente: um pequeno abrigo semelhante a uma tenda para ela e para Darva, uma fogueira cercada por pedras, um local para as provisões e para as trouxas. Os homens dormiriam ao relento, em cima de um cobertor.
Ana teve uma dúvida, uma questão um pouco delicada para se colocar. Antes de ter tempo de pensar no assunto, Faolan surgiu a seu lado de repente, assustando-a. Mais uma das coisas em que os espiões eram bons, pensou amargamente.
— Deverás querer um lugar para realizar as tuas abluções em privado — disse. — Lá em baixo, junto às árvores, corre um ribeiro. Tenho um homem de guarda a cerca de trinta passos, no bosque. Vai enquanto há luz.
— Alguma vez fazes pedidos educados, ou limitas-te a desfiar ordens? — Arrependeu-se das palavras assim que as disse. Parecera grosseira e descontrolada. Aquele homem parecia capaz de invocar uma faceta que lhe era desconhecida. — Sinto muito — resmungou.
— Vai agora — indicou Faolan, como se ela não tivesse falado. — Leva a tua mulher contigo. Isso, claro está, se for capaz de andar. Sejam breves. — Virou-se e afastou-se pela clareira, a fim de orientar uma outra tarefa. Os guerreiros obedeceram prontamente.
Escavaram uma latrina improvisada nos arbustos, lavaram rapidamente o rosto e as mãos e compuseram sem grande preceito a roupa e o cabelo. Não tiveram oportunidade para mais nada. Darva viu-se obrigada a coxear, apoiada ao braço de Ana. Na manhã seguinte seria difícil voltar a montar. Tinham pela frente três dias como aquele e depois um descanso, pois na quarta manhã deveriam chegar ao baluarte de Abertornie, lar do chefe Ged. Aí teriam camas e água quente. Ana duvidava que Faolan permitisse uma estadia de mais do que uma noite.
Não se arriscava, mesmo no início da jornada. Era óbvio que teria de ser montada guarda durante a noite, a toda a volta do acampamento. Ana nem conseguia imaginar qual o perigo que os espreitaria a um mero dia de viagem do Monte Branco. Parecia-lhe melhor aproveitarem uma boa noite de sono enquanto ainda havia oportunidade para tal.
Tomaram a refeição à volta da fogueira, com o pão e o queijo trazidos do Monte Branco complementados por lebre cozinhada sobre as brasas. Pouco se falou. Faolan observou-a retirar um guardanapo limpo do saco e limpar a gordura da boca e dos dedos. Depois retirou-se com Darva para a cama, se é que se podia chamar cama àquilo. Pouco mais tinha do que uma manta dobrada entre ela e o chão duro e o corpo, que protestava do longo dia de viagem, parecia doer-lhe de uma ponta à outra. A exausta Darva adormeceu de imediato.
Ana espreitou por entre as pregas da abertura do abrigo. Cinco dos homens estavam deitados junto à fogueira, enquanto outros tantos se encontravam de guarda. Faolan, sentado, fitava as chamas, as feições sombrias transformadas num padrão tremeluzente de luz vermelha e dourada e de sombras. À medida que Ana se virava e mexia, agitada e desperta, Faolan manteve a pose inerte. A noite foi-se arrastando e, de tempos a tempos, Ana espreitava, mas não o viu mexer-se. Os olhos, talvez. Havia qualquer coisa, um olhar que ela não compreendia, uma frialdade que a gelava.
Foi dormitando, acordando sobressaltada de vez em quando. A meio da noite, quando as criaturas ganharam vida no bosque, com pios, guinchos, gritos, arrastando-se em volta do acampamento, viu-o levantar-se com um movimento ágil, espreguiçar-se e acordar os outros. O turno mudara. Cinco dos homens vieram acomodar-se nos seus cobertores e outros tantos afastaram-se, de facas ou lanças na mão. Faolan permaneceu junto às brasas, agora de pé, o rosto oculto pelas sombras. Ana percebeu que a tarefa daquele homem deveria ser guardá-la. Considerou que tal era deveras incômodo. Adormeceu perto da alvorada, ao som do ressonar contínuo de Darva.
Viajaram para norte e para o interior. No terceiro dia, atravessaram um rio de largura considerável, com a água a bater nas pernas dos cavalos e a ensopar as botas dos cavaleiros. Faolan atravessou a jusante de Ana, observando com atenção o pônei da jovem. Chegada à outra margem, desmontou para espremer a água da saia e, ao vê-lo por perto, disse, com um tom irritado:
— Fica sabendo que eu sei montar.
— Tanto melhor — replicou Faolan. — Foi apenas o primeiro. Voltou a montar o pônei e a jornada prosseguiu. Uma outra mulher poderia ter exigido uma fogueira para se secar, pensou, ou tempo para descansar, ou comida e bebida. Outra mulher poderia já estar a decidir que não iria mais longe do que Abertornie e que se Alpin, de Briar Wood, não a quisesse a ponto de vir buscá-la, bem poderia esquecê-la. Ana tinha a certeza de que Ferada, por exemplo, já teria batido o pé. Ana não o faria. Ao olhar para as costas direitas de Faolan, que pareciam mostrar-lhe a sua reprovação, à medida que o homem avançava, a fim de garantir a segurança do caminho, Ana sentiu que tinha algo a provar, não só a ele, como também a si própria. Fora educada com um profundo sentido de dever. Tinha um dever para com Bridei e Tuala, que lhe tinham proporcionado o que fora os substitutos de um lar e de uma família. Acima de tudo, tinha um dever para com Fortriu. Enquanto mulher de linhagem real, tinha a obrigação de se casar e produzir filhos, homens que pudessem contestar o trono em anos vindouros, mulheres que fizessem casamentos estratégicos, tal como o seu. Era o que a sua família nas Ilhas Pequenas esperaria dela. A sua família... Desde criança mal os vira. O primo, rei vassalo de Bridei. Os irmãos mais velhos, presenças distantes no mundo de infância. A tia que a criara depois de os pais morrerem. Uma irmã mais nova, Breda, de quem sentia mais falta, quando recordava os dias de Verão na praia, as duas a apanhar conchas debaixo de um céu vasto e pálido. As tardes de Inverno junto à lareira, a bordar lenços de linho. A tia a fingir que não dormitava na cadeira e Ana a emendar às escondidas os pontos desajeitados de Breda. A irmã teria agora dezesseis anos, idade para ter o seu próprio marido. O Monte Branco não distava muito das ilhas. Contudo, quando se era refém, ficava a um mundo de distância.
Ana passou a maior parte do dia a tentar esquecer o vento frio nas roupas úmidas e a dor nos ossos com histórias de heróis, de dragões e de estranhas criaturas da floresta. Cantava em voz baixa, para não pensar no seu suplício. Correu o repertório de melodias que cantara a Derelei: rimas, canções de embalar, cantigas para a semeação, para a colheita ou para a recolha das redes. As ilhas estavam repletas de tais melodias, cada uma com o seu objetivo específico.
A viagem prosseguiu. O caminho era agora mais íngreme, com os cavalos a avançar em terrenos pedregosos. Para oeste avistavam-se encostas cobertas de pinheiros. Além da floresta via montanhas altas e escuras, de picos solitários cobertos de neve. Ana começou a trautear uma peça mais longa, a balada de um viajante em terras distantes e do povo estranho e maravilhoso que encontrou na sua jornada. Com sorte, as dezenas de estrofes que a constituíam iriam estender-se até chegarem a terreno plano e Faolan decidir que chegara a altura de pararem.
Bastante tempo mais tarde, quando Ana chegava à parte onde o herói matava o dragão, alcançaram o sopé da colina e os homens detiveram as montadas, reunindo-se à volta de Faolan. Quando Ana se aproximou, ouviu o assassino a falar.
— ...Bom avanço. Imagino que se continuarmos a bom ritmo, sejamos capazes de chegar a Abertornie antes do pôr do Sol. Assim evitaremos a necessidade de voltar a montar acampamento. Isso significa que poderemos atravessar a fronteira com o tempo ainda bom.
Os homens aquiesciam. Ana olhou para Darva, pálida, sentada atrás de um guerreiro alto, num pônei robusto. Os olhos de Darva estavam rodeados por um tom púrpura. Mal parecia consciente.
— Temos de descansar um pouco — declarou Ana com firmeza. — Temos frio e estamos cansadas. Temos de esticar as pernas e comer e beber alguma coisa. Não é preciso demorar muito tempo. Compreendo que tenhamos de alcançar o nosso objetivo enquanto ainda é dia. Estamos a dar o nosso melhor, mas nem todos somos guerreiros.
Faolan olhou para Ana e depois para Darva, que oscilava na sela, voltando então a fitar Ana.
— Preferes acampar aqui? — perguntou, para surpresa da jovem. — Acrescentar mais um dia à viagem? Imagino que queiras acabar com isto o mais depressa possível.
Ana pestanejou, surpreendida. Briar Wood ainda ficava longe, a mais de uma lua de distância, segundo ele.
— Estás a dar-me a escolher? — indagou Ana, erguendo as sobrancelhas.
— Se continuarmos hoje, estaremos adiantados.
— E tenho a certeza de que estás ansioso por concluir este dever. A expressão de Faolan não se alterou.
— O teu repertório musical pode tornar-se monótono, se repetido demasiadas vezes — replicou.
Para seu profundo aborrecimento, Ana sentiu-se a enrubescer.
— Não deixes que isso te incomode — disse Faolan. — Quem sou eu para te julgar? O que decides? Acampamos ou continuamos?
— Continuamos — respondeu Ana, com um tom severo. — Desde que descansemos primeiro. A perspectiva de companhia civilizada faz com que Abertornie pareça cada vez mais apelativo.
— Se pudesse, dar-te-ia mais homens — explicou Ged, de Abertornie, com um tom apologético, enquanto voltava a encher a taça de Faolan com boa cerveja. — Nunca se sabe o que vão encontrar por aqueles lados. Clãs contra clãs, amigos contra amigos, irmão contra irmão. Por vezes parece que lutam simplesmente porque podem fazê-lo. Imaginas o que Bridei faria com tal poder a seu lado? Mas Umbrig é o único que parece demonstrar algum interesse em colaborar. Os outros mais parecem um bando de gatos selvagens. Ou seriam, se andassem em bandos. No norte, é cada um por si. É uma terra de caçadores solitários, cada um com o seu pequeno domínio a proteger. Mas, no caso de Alpin, é um domínio bem grande. Grande e bem defendido. A tua escolta é pequena, Faolan. A rapariga está vulnerável.
Faolan observou a taça, sem dizer nada. Os dois homens encontravam-se sentados numa antecâmara afastada do salão da casa de Ged, em Abertornie, depois da ceia. A porta estava trancada, com um guarda do outro lado.
— É como te digo — continuou Ged. — Ajudar-te-ia em qualquer outra altura. Tenho homens que conhecem muito bem o território, embora nenhum deles ainda tenha viajado até às terras de Alpin. São montanheiros de confiança. Precisas de alguém assim. Mas não te posso valer. Vou para sul daqui a dias. Os poucos que não vão comigo são necessários aqui, para guardar a casa, as mulheres e as crianças.
— Suspirou profundamente e bebeu uma golada de cerveja. Ged era um homem de constituição robusta e nessa noite vestia uma túnica e calças tecidas com um padrão intricado de quadrados e linhas, tingidas em tons de vermelho, verde e azul. Os seus homens, que tinham estado atarefados nos pátios de Abertornie com os preparativos de uma expedição guerreira, trajavam vestes de brilho semelhante. Se os montanheiros vestissem o mesmo tipo de roupa, pensou Faolan, pelo menos seriam visíveis à distância. Tal indumentária apenas serviria de camuflagem num jardim repleto de flores garridas.
— A escolha do grupo que me acompanha foi minha — explicou Faolan. — Foram todos escolhidos a dedo. Ela estará em segurança.
— Não subestimes a importância daquilo que transportas, meu rapaz — alertou Ged, olhando-o com seriedade.
— Bem feitas as contas — retorquiu Faolan, incapaz de afastar uma certa tensão da voz —, ela não passa de uma mulher. Todos nós somos dispensáveis.
— Disparates. Levar aquela jovem do Monte Branco para Briar Wood é a mesma coisa que escoltar uma carga de peças de ouro, ou uma arca de jóias preciosas. É ainda mais importante e decerto mais perigoso. Se o que me dizes é verdade, Alpin é uma grande ameaça à nossa causa. Os laços de parentesco que este casamento vai trazer vão conferir-lhe um estatuto com o qual nunca sonhou. Além disso, os encantos pessoais de Ana são... digamos que acima da média. Não duvido que isto o vá cativar. A rapariga vale literalmente o seu peso em ouro, Faolan. Ainda mais, por ser magra. Dispensável? Não creio. Esta é uma tarefa vital. Acredito que tenha sido por isso que Bridei a colocou nas tuas mãos.
Faolan respirou fundo. A sua opinião pessoal sobre a missão era irrelevante. Expressara-a a Bridei em privado e falar dela com outrem seria desleal. Aceitara e desempenharia a tarefa até ao fim, na perfeição.
— Assim fez e deu-me liberdade para escolher a segurança que considerasse necessária. Dez homens são suficientes. Espero estar de volta ao Monte Branco o mais tardar pelo solstício de Verão. É claro que, sem as mulheres, a viagem de regresso será bastante mais rápida.
— É claro. — Ged continuava a observá-lo com atenção, como se nada daquilo o convencesse. — E vais estar ansioso por regressar. Diz-me, a jovem sabe o que está planeado para o Outono?
— É mais seguro para ela que não o saiba. Bridei disse-lhe que certas razões estratégicas nos obrigavam a agir depressa. Ela fez poucas perguntas, o que foi assisado de sua parte.
— Mmm. Sinto-me solidário para com a jovem Ana — disse Ged. — É uma boa rapariga. Merece destino melhor.
Faolan não respondeu.
— Pelo menos podemos reabastecer-te — continuou Ged. — Carne seca, queijos, tudo o que os vossos animais de carga sejam capazes de levar. Têm noção de que não vão poder cavalgar durante todo o caminho? Certas zonas do percurso vão obrigar os homens a guiar os cavalos e as mulheres terão de andar. Se as coisas fossem diferentes, poderias tê-la levado pela zona baixa, ao longo dos lagos e pelas Cinco Irmãs. Mas não irias querer deparar-te com um qualquer exército que viesse na direção contrária. Vai ser uma temporada importante. Quem poderia imaginar que Bridei fizesse a sua jogada tão cedo, não é?
Faolan continuou sem responder, pois não havia nada a dizer. Dali a duas luas estaria em Briar Wood, a instalar uma noiva na casa de um estranho, e Bridei estaria prestes a liderar as suas forças pelo Grande Vale, para o confronto das suas vidas. Que Bridei o tivesse planeado assim, que pretendesse que Faolan não se encontrasse a seu lado no momento da verdade, tornava tudo ainda mais difícil. Era melhor concentrar-se nos fatos. Era um homem contratado e concederia o devido valor à prata que lhe pagavam.
A porta abriu-se com um rangido e o guarda espreitou.
— A jovem senhora deseja falar contigo, meu senhor.
Ana surgiu na entrada. Pouco tempo antes, quando entraram em Abertornie, estava pálida e suja. Agora vestia uma túnica e uma saia azuis claras, limpas e passadas, e o cabelo louro tinha sido penteado num pequeno círculo de tranças. Nem valia a pena o trabalho, pensou Faolan, pois teriam de partir na manhã seguinte.
Os dois homens levantaram-se, Ged de um salto, Faolan mais lentamente.
— Por favor, não se levantem — indicou Ana. — Não vou demorar. Ged instalou-a numa cadeira e serviu-lhe cerveja, com os olhos pregados na jovem em admiração. Casado ou não, era de conhecimento geral que se deleitava na companhia de mulheres bonitas, especialmente quando eram inteligentes.
— Obrigada. — Ana bebeu um gole de cortesia, pousou a taça e dirigiu a atenção a Faolan. — Trata-se de Darva — explicou. — Não pode continuar.
Era a pura verdade. Faolan vira a criada quando tinham chegado. Praticamente caíra do cavalo e fora levada para dentro.
— Ela não vai agüentar mais — prosseguiu Ana. — É melhor que descanse aqui e que regresse ao Monte Branco quando for conveniente.
— Decerto poderemos albergá-la em Abertornie — disse Ged —, mas...
— Espero — disse Faolan a Ana — que não estejas prestes a sugerir que atrasemos a nossa partida por causa disto. Imaginei que fosses escolher uma companheira que pelo menos soubesse montar. — Observou o tom rosado que nascia nas faces de Ana, algo que a jovem parecia capaz de fazer a seu belo prazer.
— Perdoa-me — replicou Ana. — Pensei que fosses tu, e não eu, o responsável por esta expedição. Treinaste-me bem antes de partirmos. Como é possível que a melhor das escoltas não tenha aferido a qualificação da minha companheira?
Estava certa, é claro. A responsabilidade era dele e cometera um erro de julgamento. Mirou-lhe o rosto e observou o ligeiro franzir entre as sobrancelhas elegantes. Desde o início que sabia que aquela noiva real queria tanto ir para Briar Wood como ele.
Ana estava agora a ignorá-lo, dirigindo-se a Ged.
— Esperava — disse-lhe — que houvesse alguma jovem aqui em Abertornie que pudesse substituir Darva na nossa viagem. A sua competência enquanto aia não é importante. Posso ensiná-la depois. Tem de saber montar, montar a sério, e deve ser capaz de sorrir, por mais irritante que seja a situação. — Como que para enfatizar o que dizia, virou-se para Faolan e ofereceu-lhe um sorriso de um brilho calculado, o qual conseguiu transmitir ao mesmo tempo aprovação e uma total falsidade. Faolan não foi capaz de impedir um trejeito dos lábios. Ged riu-se à gargalhada.
— Já falei com a tua mulher — disse Ana ao chefe tribal — e ela prometeu tentar encontrar uma rapariga solícita, alguém que goste da idéia de aventura. Só precisamos da tua aprovação. O problema é que partimos de manhã. Ela teria de preparar as coisas rapidamente e não iria dispor de muito tempo para se decidir.
Voltara a surpreender Faolan, que esperara, no mínimo, um pedido para que permanecessem mais uma noite, a fim de descansarem. Seria do agrado dos homens.
— Estão a impor a vós próprios um ritmo duro — resmungou Ged.
— Tenho a certeza que Loura te vai desencantar uma rapariga. Por estas bandas criamo-las fortes.
— Obrigada — agradeceu Ana. — Não é que precise de uma criada, pois sei tratar de mim sozinha. Não tenho muitos pertences que precisem de cuidados, uma vez que me ordenaram que deixasse o mais possível para trás. Preciso desta jovem, acima de tudo, por razões de decoro.
Ged sorriu.
— O quê, com este homem a comandar? Não há guerreiro que se atreva a ser indecoroso, ou a olhar para onde não deve. Mas tens razão. Já lhe disse que a escolta é demasiado pequena. Três ou quatro mulheres para te servirem e vinte guerreiros seria mais adequado. Há damas que teriam exigido uma lavadeira, uma costureira e um bardo da corte, por via das dúvidas.
— Ela não precisa de um bardo — deu Faolan consigo a dizer.
— A donzela providencia o seu próprio entretenimento.
Ana lançou-lhe um olhar furioso e Faolan garantiu que a sua expressão não revelava nada. Cantara em voz baixa, mas com um tom puro e afinado. Faolan descobrira que, após tê-la silenciado com palavras ditas sem intenção, palavras que sabia serem cruéis, as melodias permaneciam na sua mente, seguindo-o mesmo nos breves momentos em que dormia. Invocavam a memória de canções antigas numa outra língua, de uma música que pertencia a outra vida, a qual deveria ter esquecido. Ter-lhe-ia implorado que não cantasse, mas o código que se impusera a si próprio impedia tal honestidade.
— Tenho razão, não tenho? — perguntou-lhe Ana. O rubor desvanecera-se e os olhos cinzentos que o fitavam eram calmos e frios.
— Devíamos partir assim que possível, pois o mau tempo poderá atrasar-nos mais à frente.
Faolan meneou a cabeça.
— Amanhã — declarou. — Estarás ansiosa por conhecer o teu novo marido.
Os olhos de Ana cintilaram.
— Ansiosa — repetiu. — Não lhe chamaria isso. Tenho um dever a cumprir e, uma vez que me disseram que o tempo urge, seguirei qualquer calendário que seja considerado adequado. Nada mais.
Faolan não respondeu. A voz da jovem tornara-se fria e tensa, um tom diferente do que afastara o enfado com música. Compreendia o sentido de dever. Para ele, o dever era um assunto complexo.
— Talvez não seja assim tão mau, rapariga — comentou Ged, pousando a mão no joelho de Ana e, com um relance para Faolan, voltando a retirá-la. — Pelo menos este Alpin é rico. E relativamente jovem. Pode ser que te venhas a dar bem.
Era difícil perceber se Creisa, a nova rapariga, seria uma ajuda ou um estorvo à expedição. Trouxe o seu próprio pônei e um xale tecido nos tons variegados que destacavam a casa de Ged para onde quer que fosse. Creisa sabia montar, era um fato, e não ressonava. Foi o efeito que teve sobre os homens da escolta de Ana que deu azo a preocupação. Era jovem e tinha a frescura das primaveras: faces rosadas, lábios carnudos, olhos grandes e pestanudos. Tinha uma figura generosa, a qual era evidenciada quando montava o pônei, as costas e os ombros direitos, com a graciosidade natural de uma amazona. Ao serão, conversava com os homens à volta da fogueira, mantendo-os acordados. De dia, gracejava enquanto viajavam e a escolta selecionada a dedo respondia, competindo pela sua atenção, até que Faolan os silenciava com uma ordem breve. Seguia-se um período de calma e de paz, até que Creisa tecia um comentário jocoso ou fazia uma sugestão entre risadas, ao que tudo recomeçava.
Faolan desenvolveu uma linha estreita entre as sobrancelhas e a boca ficou ainda mais tensa do que antes. Para Ana, os gracejos da rapariga e as respostas dos homens eram divertidos e inofensivos. Todos sabiam que as coisas não poderiam ir mais longe numa jornada como aquela. Após os resmungos de Faolan para com os homens, sentiu-se tentada a comentar que para ele as tiradas deveriam ser mais interessantes do que a música, mas não disse nada, pois não queria dar a saber que o escárnio do assassino do rei a magoara. Embalara Derelei vezes sem conta e sentia falta do calor do bebê, dos seus sorrisos francos. Havia muito tempo, ensinara essas canções à irmã mais nova. A música era amor, família, recordações. Não sabia como alguém a poderia rejeitar daquela forma.
Abertornie fora a última casa aliada, a última noite passada no conforto proporcionado por quatro paredes. Considerou-se que seria demasiado perigoso procurar abrigo junto dos habitantes desconhecidos dos vales inóspitos do norte, por poucos que fossem. Uma visita inesperada ao baluarte de um chefe Caitt, especialmente com um dos viajantes sendo uma jovem de especial valor estratégico, poderia acabar com o grupo tomado como refém, ou pior. Era um risco que não valia a pena correr por uma noite abrigada, roupas limpas ou um jantar de maior qualidade.
E assim os viajantes continuaram, mantendo um bom ritmo, à medida que a lua ia passando de nova a crescente e a cheia, voltando depois a minguar. A cada dia, o caminho parecia mais íngreme e as florestas mais escuras, a vegetação mais densa e as encostas mais escarpadas. O tempo limpo ajudou-os, mantendo-se seco, embora frio. A noite, Ana e Creisa dormiam juntas debaixo dos cobertores que partilhavam, mantendo-se quentes uma à outra.
— É melhor do que nada, minha senhora — murmurou Creisa no pequeno abrigo enquanto, lá fora, os homens que não estavam de sentinela se acomodavam em redor da fogueira e as criaturas noturnas davam início aos seus diálogos misteriosos na floresta mais além. — Não que eu não preferisse partilhar a cama com um dos rapazes. Aquele Kinet, por exemplo, tem um belo par de ombros, e um sorriso adorável. Ou talvez o Wrad. Já viste a forma atrevida como me olha? Quando chegarmos ao nosso destino, tenho um pouco de prazer reservado para alguém. Mas até agora ainda não me decidi.
— Shh — silvou Ana, dividida entre a necessidade de repreender a serva, tal como competiria a uma senhora, de silenciar aquelas palavras insensatas, e uma certa inveja por a jovem poder falar tão abertamente, e com tal satisfação, sobre assuntos que permaneciam um mistério para Ana, mesmo quase com dezenove anos de idade. — Não deves falar assim, Creisa. É indecente.
— Desculpa, minha senhora — disse Creisa, em voz baixa. Ficou em silêncio durante alguns instantes e depois recomeçou. — Claro que os mais calados e reservados podem ser muito excitantes. Isso, se lhes conseguirmos despertar o interesse. Sei com quem gostaria de passar uma noite sozinha. Aposto que aquele Faolan é dos que se agüentam muito tempo.
Algo no silêncio no exterior da tenda após tais palavras disse a Ana que teria de apresentar uma resposta célere e que ao mesmo tempo mostrasse a sua admoestação. — Faolan é o emissário pessoal do Rei Bridei. É amigo de confiança do rei. Não voltarás a falar dele nesses termos, Creisa. Espero não ter de o repetir.
— Não, minha senhora. — O tom de Creisa mostrava claramente que estava a sorrir na escuridão. — Mesmo assim...
— Basta! — atalhou Ana, com um tom de voz audível para quem por acaso estivesse a ouvir. Creisa acabou por silenciar-se e, pouco depois, o som da respiração indicou a Ana que a serva adormecera.
Ana, por seu lado, não dormiu. Imaginou a vida de Creisa, enquanto crescia na casa de Ged, a trabalhar na cozinha e nas hortas e, ao que parecia, a formar alianças casuais com vários jovens lascivos. Foi assolada por dúvidas: não recearia Creisa engravidar? Será que tal comportamento dissoluto não lhe prejudicaria a oportunidade de atrair um marido decente? Acima de tudo, por entre a confusão de pensamentos e de sentimentos que as loucuras murmuradas de Creisa tinham despertado em si, Ana reconheceu que tinha inveja: inveja da facilidade com que Creisa falava de união entre homem e mulher, e ainda mais do fato de, a acreditar nas palavras da jovem, para ela tal união não ser uma coisa brutal e arbitrária a ser tolerada, mas algo perfeitamente agradável, simples e natural. Para uma mulher do seu estatuto, pensou Ana, nunca poderia ser assim tão simples. Casar por amor, como Tuala fizera, era uma oportunidade raramente concedida a quem nascia com sangue real. Ana quase desejava ter sido ela a desposar o amável e cortês Bridei, tal como muitas pessoas teriam preferido, entre elas Broichan, o druida do rei. Com efeito, ela própria considerara seriamente essa possibilidade durante algum tempo, mas apenas até ao momento em que ouvira Bridei a pronunciar o nome de Tuala, e esta o do rei. A partir de então, Ana reconhecera a inevitabilidade das coisas, pois entre aqueles dois existia um laço que transcendia o comum. Uma ínfima parte de Ana ainda sonhava com um amor como o das narrativas de outrora: poderoso, terno e apaixonado. Decidiu com severidade que antes de chegarem a Briar Wood teria de eliminar qualquer vestígio de tal anseio, pois uma fantasia assim tão insensata apenas poderia levar ao desgosto.
Com o avançar da jornada, todos iam ficando cada vez mais sujos, cansados e silenciosos, até mesmo Creisa. Não havia oportunidade para se lavar a roupa e poucas condições para a higiene pessoal. Para Ana, habituada a tomar banhos freqüentes em água quente e a ter quem lhe tratasse das túnicas, das saias e da roupa interior, os dias eram passados com a percepção desconfortável da camada de sujidade e de transpiração que se lhe colava à pele, da comichão desagradável, das manchas de lama na bainha da saia e, o que era pior, da textura gordurosa do cabelo longo. Apenas conseguia usá-lo entrançado e apanhado com alfinetes no cimo da cabeça, pois não suportava o seu toque no pescoço.
Certa tarde, pararam junto a um lago profundo na floresta, rodeado de pedras, e Ana sentiu uma necessidade irreprimível de se banhar. Creisa sugeriu que se despissem e mergulhassem de imediato, mas Faolan não o permitiu. Quando Ana tentou argumentar, o emissário do rei atalhou abruptamente.
— Pode ser Primavera, mas a água está fria. E se adoecessem? Não podemos correr esse risco. Além do mais, ficaríamos vulneráveis. Se fôssemos atacados enquanto estivessem a divertir-se, ficariam em desvantagem. Os homens já têm ocupações mais do que suficientes. Não lhes dificultem a vida.
— Os homens bem que precisavam de um banho, também — resmungou Creisa com um tom revoltado.
— Divertir-se? — repetiu Ana. — Só nos queremos limpar. Achas que causaria boa impressão se entrasse em Briar Wood com este aspecto, já para não falar do cheiro?
A boca de Faolan contorceu-se, mas controlou-se antes de esboçar um sorriso.
— Imagino que tenhas alguma roupa limpa de reserva, algures naquela trouxa que está a atrasar o cavalo de carga — disse. — Como deverá ser improvável que encontremos lavadeiras até Briar Wood, e como ainda temos muitos dias de viagem pela frente, sugiro que esperes até chegarmos mais perto. Volta a pedir-me nessa altura. Tens razão, é claro. Este é um empreendimento comercial, um fato de que arriscava esquecer-me. Enquanto líder, sou responsável pela entrega dos bens em boas condições.
Creisa deixou escapar uma risada. A raiva a fez enrubescer. A grosseria daquele homem e a sua própria frustração deixou-a com vontade de gritar como uma peixeira e de lhe cuspir no rosto arrogante. Para seu horror, a voz saiu-lhe trêmula e patética, como se estivesse à beira das lágrimas.
— Não é preciso ser desagradável. Tentei não vos dificultar a vida. Nunca julguei que este pedido fosse algo tão transcendente.
Seguiu-se um breve silêncio enquanto Faolan a fitava, os olhos sombrios a avaliá-la, e Ana fez o possível por suster-lhe o olhar. Tal como era habitual, não fazia idéia do que ele poderia estar a pensar. Imaginou que o seu próprio rosto estivesse vermelho, imundo e longe de evocar rosas frescas.
— Lamento — proferiu Faolan brevemente e, virando-se, foi atarefar-se para outro lado. Ana fitou-o enquanto o homem se afastava. Uma desculpa era a última reação que podia ter esperado.
— Podíamos ir à mesma, minha senhora — sussurrou Creisa. — Quanto a ti não sei, mas sou capaz de agüentar uma reprimenda daquele celta carrancudo pela oportunidade de lavar o cabelo e a minha roupa interior. Podia esfregar algumas coisas e pendurá-las em cima de um arbusto...
— Temos de fazer o que ele diz. — Mesmo com falta de educação, Ana não duvidava de que Faolan fosse um líder experiente e de confiança, alguém que sabia o que era melhor. — Seja como for, é verdade que tenho uma muda de roupa interior no meu saco grande, que o animal de carga transporta. Pode ser até que descubra alguma coisa para ti, se não tiveres nada. Vamos pelo menos lavar as calças e secamo-las onde pudermos. Talvez junto à fogueira...
Creisa soltou mais uma gargalhada.
— Isso vai dar que pensar aos homens, minha senhora. Vou buscar o teu saco e logo vemos.
— Ah, Creisa?
— Sim, minha senhora?
— Por favor, não te refiras a Faolan como celta carrancudo. Pode ser verdade, mas é pouco respeitoso. Lá porque ele se esqueceu das maneiras, isso não quer dizer que façamos o mesmo.
Os dentes brancos de Creisa brilharam num sorriso encantador.
— Sim, minha senhora.
Conseguiram despir as roupas interiores mantendo-se relativamente cobertas. Faolan devia ter dado ordens aos homens, pois estes mantiveram-se no cimo da colina a montar o acampamento, afastados, salvo por um guarda de costas voltadas. As duas mulheres lavaram o rosto, os braços e entraram na água até aos joelhos, aproximando-se o mais possível de um banho sem desobedecerem às ordens de Faolan.
Creisa não deixou que Ana lavasse a roupa interior. Executou ela própria a tarefa, batendo no linho macio com um seixo liso, esfregando o tecido com os dedos e enxaguando com tamanho vigor que conseguiu ensopar-se a si e a Ana. A jovem nobre estava sentada numa pedra chata, a observar Creisa a fazer maravilhas com a roupa suada. Eventualmente, os pequenos insetos que habitam tais sítios na Primavera e no Verão começaram a zumbir à volta da pele exposta das jovens, o que marcou a altura de regressar.
No acampamento recém montado, preparara-se uma refeição e alguém estendera uma corda entre arbustos, pronta a receber a roupa molhada. Creisa estendeu camisas e trajes mais íntimos sobre a linha sem uma ponta de embaraço. Os homens tentaram não olhar. Ana imaginou que em viagens tão longas, deveria ser habitual os guerreiros vestirem a mesma roupa todos os dias, sem se incomodarem. Interrogou-se sobre se Faolan alguma vez viajara com mulheres. Na verdade, nem sabia se ele as perceberia de todo. Em tempos deveria ter tido mãe, talvez irmãs. Esposa? Uma apaixonada? Poderia tê-la deixado para trás, quando se virara contra os seus. Quando decidira ser um traidor. Era quase impossível concebê-lo com uma família. Ana visualizou um Faolan minúsculo, do tamanho de Derelei, o filho bebê de Bridei, a quem ela embalara, cujas mãos segurara enquanto a criança aprendia a andar. Faolan nunca teria deixado que alguém lhe segurasse as mãos. Teria aprendido a andar sozinho.
Tuala estivera a dar ordens para a renovação do alojamento dos hóspedes do Monte Branco. Chamara a formidável Mara, a encarregada da casa de Broichan, de Pitnochie, para supervisionar o afluxo previsto de visitantes. Com a proximidade da assembléia, era importante que tudo corresse bem. Certas esposas reais teriam colocado a preparação do alojamento, das provisões e do entretenimento de tal evento antes de tudo o resto. Tuala, no entanto, sabia que o seu principal dever era ser um apoio sólido para Bridei. O rei era forte, capaz e detentor de uma maturidade espantosa para alguém da sua idade, mas tinha as suas vulnerabilidades. Tuala, que o conhecera e amara toda a vida, sabia de todas elas. Prometera estar sempre ao lado do monarca e Tuala nunca faltava com a sua palavra. De seguida, em ordem de importância, estava Derelei, seu filho. Como a sucessão real provinha da linhagem feminina, Derelei nunca seria rei, mas devia, mesmo assim, ser educado com amor e sabedoria, equilíbrio e discernimento, tal como qualquer criança merecia. Apenas vinha em segundo lugar pois naquele momento havia outros capazes de lhe providenciar tudo aquilo de que necessitava. Derelei era adorado por todos na casa real. As mulheres competiam pela oportunidade de brincar com ele e de lhe satisfazer a mais ínfima das necessidades. Os homens faziam dele uma mascote e era freqüente Tuala ter dificuldade em ficar sozinha com o filho, para falar com ele, cantar-lhe, murmurar-lhe segredos ou simplesmente ficar com ele ao colo, enquanto meditava sobre a nova bênção que os deuses lhe tinham concedido.
A sua união com Bridei estivera prestes a não ser concretizada. Tuala estivera à beira de entrar, ou de voar, para além da fronteira de um mundo sem dor nem mágoa. Se não tivesse hesitado por um momento, se Bridei a não tivesse chamado, ela teria viajado para onde permaneceria imortal. Fora isso que os habitantes do Outro Mundo lhe tinham dito, aqueles que lhe tinham seguido os passos e murmurado ao ouvido ao longo dos dias sombrios e das noites agitadas daquele período difícil. Que viveria para sempre. Teria deixado Bridei sozinho. E não haveria Derelei.
Agora era impensável. Na altura, Bridei fora atrás dela, salvara-a e tudo voltara ao rumo traçado pelos deuses. A Que Brilha estava satisfeita com as suas escolhas, pensou Tuala. Derelei viera ao mundo numa noite de lua cheia, o que parecia totalmente apropriado, pois aquela deusa interessara-se pela vida de Tuala desde o início.
Quanto a Bridei, este tivera um bom início como Rei de Fortriu. Com apenas cinco anos de reinado, reunia já as suas forças contra os Celtas. Quem teria imaginado que tal aconteceria tão cedo ? Também o Guardião das Chamas deveria estar feliz. Enquanto deus dos homens, da coragem, do combate virtuoso, de certeza que veria a sua encarnação física naquele jovem líder, cujos olhos brilhantes e palavras francas animavam a faúlha da inspiração no coração de cada homem.
Mas havia uma questão que permanecia sem resposta e que preocupava Tuala. Nunca descobrira quem era, na verdade. Os visitantes do Outro Mundo nunca lhe tinham dito quem, exatamente, decidira abandoná-la, ainda bebê, à porta de Broichan, em Pitnochie, no pino do Inverno. E Tuala queria sabê-lo. É certo que decidira não empregar os seus talentos mágicos de vidência e de transformação, de conversação com as criaturas da floresta, de conjuro de luz e sombras. No passado, quando tais fontes de informação apresentavam respostas, estas eram com freqüência enigmáticas, difíceis, mais como se fossem novas questões. Isso não significava que não sentisse o impulso de utilizar as suas artes, mas não o faria. Sabia como era perigoso o trajeto que uma mulher da Boa Gente percorria, enquanto Rainha de Fortriu. Haveria sempre quem procurasse minar a autoridade de Bridei e Tuala estava determinada a não deixar que a utilizassem como ferramenta. Tal não impedia que precisasse da verdade, algo que o filho, por sua vez, quereria saber quando crescesse.
Tuala nunca falava disto, nem mesmo com Bridei. Por vezes murmurava-o nas preces, julgando que A Que Brilha poderia ajudá-la, pois a deusa sempre fora benevolente para consigo. Até então, A Que Brilha não lhe concedera qualquer revelação. Quanto aos dois estranhos seres que tinham importunado e adulado Tuala, intimidando-a e assustando-a, a rapariga Teia, com seus olhos clarividentes e trajes esvoaçantes, e o jovem Madressilva, da pele cor de avelã e caracóis envolventes, nunca mais regressaram. Assim que Tuala escolhera ser humana, viver neste mundo, os dois desapareceram como se nunca tivessem existido. Por vezes, Tuala interrogava-se sobre se a estranha seqüência de acontecimentos não teria passado de uma espécie de sonho demente.
A tarde mal começara e Derelei estaria no jardim, a brincar com uma das jovens servas. Tendo as instruções sido dadas, Mara praticamente expulsara Tuala, como se esta voltasse a ter cinco anos, sendo rainha apenas no reino das suas fantasias. Mara pouco mudara com os anos. Preferia trabalhar sozinha e cumpria as tarefas com uma eficiência rígida. Mara não se deixava intimidar pela responsabilidade de uma casa real bastante maior do que a que geria em Pitnochie. Já enviara serviçais em todas as direções, a fim de trazer junco fresco, de esfregar os soalhos, de limpar as teias de aranha e de arejar cobertores.
Tuala atravessou os corredores do Monte Branco, passando em frente da porta onde Bridei consultava os chefes tribais. Preparavam-
-se para a chegada da delegação do reino de Circinn, a sul, o que era sempre um desafio e, dadas as presentes circunstâncias delicadas, transformava-se agora num teste exigente. Percorreu um carreiro de lajes por entre extensões de relva e canteiros de ervas de folhas cinzentas: absinto, camomila, alfazema. Viam-se bancos de pedra, dispostos por forma a apanhar o sol da tarde, e pequenas imagens de deuses e criaturas espalhadas à volta de tanques e em nichos na muralha que rodeava o jardim, abrigando-o dos ventos norte cortantes. Era um lugar de repouso. Ana gostara dele, tendo aí passado momentos felizes, a conversar com Tuala, a brincar com Derelei e a fazer os seus bordados complexos. Tuala sentia a falta da jovem. Tentou imaginar até onde Ana já chegara na sua viagem, e o que pensava dela. Talvez já estivessem em Briar Wood. Quem sabe, Alpin poderia ser um homem gentil, alguém como Bridei. Ana chorara na despedida, apesar do esforço óbvio para se controlar. Por mais que entendesse o sentido de dever, sentira-se triste e assustada. Tuala sabia bem o que isso era. Desejava de todo o coração que tal não tivesse sido preciso tão cedo, de forma tão cruel. Mas era necessário. Era essencial. Alpin teria de ser conquistado antes de as forças de Bridei entrarem em ação contra os Celtas de Dalriada. E, ao contrário do que se dizia, o ataque não teria lugar na Primavera seguinte. O conselho não iria ser realizado na Reunião, mas na festa do Renascimento, altura em que a Primavera se aproximava do Verão. Os homens de Fortriu avançariam no Outono, duas estações antes do esperado pelos inimigos. Iriam dirigir-se para oeste em grande número. Quando Gabhran, de Dalriada, fosse informado do avanço das tropas, seria demasiado tarde para os Celtas prepararem uma oposição forte, demasiado tarde para Gabhran convocar os parentes de Ulaid e de Tirconnell para que estes apoiassem os seus exércitos. Desta vez, os Celtas seriam derrotados. Seriam expulsos de Fortriu. Mesmo que Circinn se recusasse a ajudá-lo, Bridei iria concretizar o objetivo.
Deviam ter contado a Ana, pensou Tuala. Não tê-lo feito era agir como se aquela noiva real fosse demasiado insensata para manter a boca fechada no que dizia respeito a assuntos de importância estratégica. Mais do que isso, fazia com que a decisão de enviar Ana para o território dos Caitt parecesse cruel e desnecessária. Qual a noiva que deseja confrontar o futuro marido antes de este ter concordado em casar-se? Isso era buscar a humilhação. Qual a jovem que deseja casar-se com um homem sobre o qual não sabe nada, para além do fato de que existe uma questão no seu passado? Um casamento arranjado era uma coisa. Isto ia longe de mais.
Tuala cruzou a arcada e deteve-se. A criada não estava ali. Sentado direito na relva, o seu filho bebê Derelei agitava as mãozinhas no ar, imerso numa espécie de jogo. A sua frente, sentado de pernas cruzadas no seu manto escuro, estava Broichan, o druida do rei. Que o druida parecesse distante, grave e intimidante mesmo numa posição tão pouco digna, atestava o poder que dele emanava. Tuala nunca deixara de receá-lo. Sem ser vista, deixou-se ficar de pé, a observá-los. Pela primeira vez, Derelei não sentira que a mãe se aproximara. O druida e a criança encontravam-se profundamente concentrados. Quando Broichan agitou a mão à sua frente, os dedos curvados de determinada forma, Tuala apercebeu-se que o filho não agitava os braços ao acaso, tal como as crianças pequenas fazem quando descobrem o funcionamento do próprio corpo. Os olhos de Derelei estavam fixos nos de Broichan e copiava o gesto do druida. A mão minúscula de dedos roliços assumiu uma forma tão graciosa como a asa de uma gaivota, enquanto imitava os dedos compridos e esqueléticos de Broichan, que se esticaram e detiveram à frente do rosto do bebê. Um pássaro foi pousar no muro ao lado das duas figuras, onde eriçou as penas. Outro pássaro menor chegou momentos depois, indo fazer companhia ao primeiro com um ar confuso. Derelei pairou alegremente.
Broichan baixou a cabeça, as longas tranças caindo para a frente, com madeixas brancas por entre o cabelo negro e fitas coloridas entrelaçadas para cingi-lo, e falou ternamente com a criança na sua voz grave. Derelei não estendeu a mão como de costume, para agarrar algo interessante que se aproximasse. Ficou onde estava, a olhar para cima com atenção, e disse qualquer coisa no seu pairar misterioso. Até ao momento, o vocabulário inteligível do bebê era escasso.
— Faz um círculo, assim... — dizia-lhe Broichan, ao mesmo tempo que usava mais uma vez os dedos para demonstrar, fazendo um sinal discreto um palmo acima da relva. Derelei imitou-o, a mão pequena estendida e a descrever um círculo, tal como lhe era mostrado. A relva abateu-se prontamente, criando um anel perfeito no relvado.
Tuala ficou chocada. Furiosa. O primeiro instinto foi avançar e confrontar o druida, Quem te deu permissão para ensinar o meu filho?
Como te atreves? Mesmo com o terror que sentia por aquele homem, tê-lo-ia feito. A habilidade de Derelei não a surpreendia, pois já vira o que a criança conseguia fazer, o que o seu próprio sangue transmitira ao filho e, se desejasse que os talentos do pequeno se desenvolvessem assim tão cedo, tê-lo-ia ensinado ela própria. O fato de Broichan interferir sem a sua autorização ou a de Bridei, não era apenas injusto, era alarmante. A criança era filha deles, não do druida. No seu esforço de transformar o filho adotivo no rei perfeito, Broichan criara um jovem que era, em essência, profundamente solitário. Claro que Bridei nutria uma fé inabalável nos deuses antigos de Fortriu, era sábio e corajoso e perfeitamente apto a governar o seu reino. Quanto a isso, Broichan cumprira aquilo a que se propusera. Era de todo incapaz de perceber que cometera algum erro.
Tuala permaneceu onde estava, em silêncio, restringida por algo que não era capaz de identificar. Homem e criança repetiam na perfeição cada gesto. Transformaram flores em insetos brilhantes e misteriosos, fizeram sombras percorrer a relva e voltar a recuar. Uma rã saltou para o joelho de Derelei e desapareceu. Um rato correu pelo braço de Broichan acima e perdeu-se no capuz do manto. Não era a magia, a sua simplicidade, que fascinava Tuala. Era a semelhança extraordinária, o eco perfeito do movimento, da postura, da expressão, pesasse embora o contraste entre o mago alto no seu manto e o bebê de perninhas curtas na sua fralda volumosa. Era sinistro. Inquietante. O que via possuía uma beleza estranha, uma simetria peculiar, era a essência de uma lenda impossível ou de um sonho perturbador. Tuala sentiu um formigueiro na espinha, semelhante ao que a assolara na floresta, junto ao lago da visão, o Espelho Negro, da primeira vez que encontrara os Boa Gente.
— Mamãe — disse Derelei, que se virou para olhá-la, e o encanto quebrou-se. Os pássaros afastaram-se e Broichan levantou-se, embora sem a agilidade de dias passados. Tuala percebeu que já era capaz de avançar, de se ajoelhar ao lado do filho e de falar com o druida de forma civilizada.
— Onde está Orva, a criada?
— Está aqui perto. Sentou-se à beira do lago grande. Dei-lhe autorização para partir, mas não o quis perder de vista.
Derelei estava cansado e aninhava-se nos braços de Tuala. A prática da arte de forma tão concentrada era extenuante. Era demasiado para um bebê. Tuala respirou fundo, a fim de o dizer a Broichan. Mesmo agora precisava de toda a sua coragem para confrontá-lo.
— Ainda bem — disse Broichan, antes que a jovem tivesse oportunidade de falar — que ele nunca poderá ser candidato a rei. A criança tem futuro, talvez mesmo excepcional. Deveria ser educado nos santuários.
— Ele não vai a lado nenhum — retorquiu Tuala, agarrando o filho com tanta força que a criança começou a choramingar, assustada. — Pronto, pronto — murmurou, enquanto o acariciava. — Está tudo bem.
— Há tempo — lembrou Broichan. — Não tem de ir antes dos seis ou sete anos de idade. O treino é árduo e deverá esperar que ele tenha força suficiente para agüentá-lo. Não podes negar o talento inato da criança.
— Não o nego — asseverou. — Mas ainda é um bebê, e pode ser o que desejar, sábio, guerreiro, viajante, artesão. Druida, se for esse o caminho que escolher.
— Fará uma escolha assisada com seis anos? Não será melhor que os mais velhos lhe destinem o percurso a seguir?
Tuala pensou na criança Bridei e nas escolhas que lhe tinham sido recusadas.
— Compete ao pai e à mãe guiá-lo — declarou, com a firmeza de que foi capaz. — Não acredito que Bridei gostasse que o filho fosse mandado embora tão jovem. Para ele, a família é um bem precioso.
Broichan não respondeu de imediato. Durante alguns momentos revirou no dedo o anel de prata em forma de cobra e franziu o sobrolho. Nunca olhou para Tuala. Após alguns instantes, disse:
— Seria eu a ensiná-lo. Com a permissão de Bridei. E com a tua. Assim, não haverá necessidade de o enviar para longe, pelo menos até que tenha idade suficiente para se decidir.
Tuala ficou surpreendida, tanto pelo pedido de autorização, como pela proposta em si. Não tinha dúvidas de que o filho tinha à sua frente um futuro no qual os seus talentos especiais seriam de bastante uso. Com efeito, não queria que Derelei se tornasse um guerreiro. Vira os sobreviventes deploráveis e arruinados que regressavam a coxear, ou que eram trazidos dos confrontos de Fortriu com os inimigos, e não percebia como qualquer mãe poderia ficar satisfeita com um filho que fosse combatente. Mas havia um problema.
— Ele é filho do rei... — começou a dizer.
— Sim — admitiu Broichan, com gravidade —, e é teu filho, e ambos sabemos a minha opinião sobre o assunto, embora não a expresse claramente, uma vez que cumpro uma promessa feita a Bridei há muito. Não há razão para que o filho do rei não entre ao serviço dos deuses. Existem precedentes. E se o talento nessas artes que a criança aqui demonstrou hoje são um pouco... Sobrenaturais, digamos assim... que melhor forma de evitar chamar a atenção para as tuas próprias origens do que entregares-me a responsabilidade da educação do rapaz? Posso garantir que ele aprende a domar o seu poder, a dirigir essas habilidades para o fim certo. Posso ensiná-lo a controlar o que tem e a empregá-lo para o bem de Fortriu. Ao fazê-lo, protejo o teu filho e a tua reputação.
Tuala não respondeu. O druida estava a assumir o controlo, tal como sempre fazia. Ia roubar-lhe o filho, transformá-lo em algo dele. Um projeto pessoal, um novo Bridei.
— Não confias em mim. Isso não é uma novidade. O sentimento é recíproco. Há muito que assim é entre nós. Fala com o teu marido. Estabelece condições, se assim te aprouver. É importante, Tuala.
— Quero que o meu filho seja feliz — disse-lhe. — Quero que cresça com a família à volta dele, com irmãos e irmãs, se a deusa assim o entender. As crianças não precisam apenas de educação e de orientação. Precisam de amor.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Tenho consciência — replicou Broichan com rigidez — da tua opinião sobre as minhas deficiências enquanto pai adotivo. Não posso levá-la a sério. Bridei é tudo quanto deveria ser.
Tuala aquiesceu.
— Sim — retorquiu. — Tornou-se perito em ocultar o quanto isso lhe custa. Roubaste-lhe a infância. Não permito que lhe leves também o filho.
— Não permites? — silvou Broichan e Tuala estremeceu ante a expressão nos olhos do druida. O ar pareceu faiscar à volta dele e a sua sombra aumentou. Derelei começou a chorar.
— Ele está cansado. Precisa da sesta — indicou Tuala, ao mesmo tempo que sentia um cansaço súbito no seu próprio corpo. Orva, a criada, aproximou-se rapidamente e fez menção de pegar na criança, mas Tuala dispensou-a de forma mais brusca do que o seu habitual. — Não, Orva, não preciso de ti. Vai-te embora. Mara vai pôr-te a tratar das roupas. Vou levá-lo para dentro — acrescentou, franzindo o cenho a Broichan.
— Bau-ta — pronunciou Derelei claramente, estendendo a mão ao druida. Aprendera um nome novo. Tuala arrepiou-se quando Broichan ergueu a mão, indo pousá-la nos caracóis castanhos do bebê, não exatamente uma carícia, mas o mais aproximado que um homem como ele seria capaz de fazer.
— Não o peço por desejar poder, Tuala — disse o druida calmamente. — Fala com Bridei, por favor.
— Por que falaste comigo primeiro e não abordaste Bridei diretamente? — perguntou Tuala.
— Porque sei que ele não vai concordar se fores contra. Preferes que o faça?
— Não. Já tem preocupações que bastem. E eu também. Em breve irá para a guerra. Partilho os receios comuns a todas as mulheres nestas alturas.
— Sim. — A voz de Broichan parecia uma sombra feita som, como se fosse um poço fundo, repleto de segredos. — Não te sentirás tentada a segui-lo, a procurar alguma segurança na taça das visões? Os homens estarão fora muito tempo, uma estação, ou mais. Decerto o apelo será forte.
— Não o suficiente para que não consiga resistir — respondeu Tuala com severidade. — Ao contrário do que possas imaginar, nunca esqueço a sorte que tive quando este povo me aceitou como esposa de Bridei. Não tenciono dar-lhes motivo para que duvidem da minha capacidade para essa tarefa. O meu marido precisa de mim. A minha lealdade é para com ele e para com o que ele tem de ser.
— Nesse caso, seria muito assisado que concordasses com o meu pedido. Não poderás treinar o rapaz, a menos que voltes a praticar as tuas artes secretas. Eu, no entanto, poderei fazê-lo sem dar azo a comentários. Tais práticas são o dia-a-dia de um druida.
— Não há pressa. Ele não passa de um bebê. — Tuala virou-se, pronta a afastar-se.
— Tuala. — Broichan falou com um tom muito leve. Nele havia qualquer coisa nova, algo que a fez estacar. — Não possuo tanto tempo para isto como gostaria — disse. — Deixa-me oferecer o que posso ao rapaz.
Olhando sobre o ombro para o druida, Tuala viu a palidez do rosto comprido, a forma como os ossos do nariz e das faces se encontravam protuberantes por baixo da pele, as rugas que nem sempre tinham marcado os lábios com tanta severidade. Parecia-lhe existir uma dor reprimida nos olhos sombrios e que ele se apoiava no bordão da mesma forma que um homem muito mais velho faria. Parecia que o usava como simples apoio e não como uma das principais ferramentas do seu ofício.
— Eu... — começou a jovem a dizer, silenciando-se com a expressão nos olhos do mago.
— Tal como dizes — a voz não passava de um murmúrio —, Bridei está muito ocupado com o esforço de guerra que se aproxima e com a assembléia. Não o sobrecarreguemos com outros assuntos numa altura tão crítica. Fala-lhe apenas do filho, daquilo que será melhor para Derelei.
Faolan seguia um mapa mental, elaborado a partir do pouco que tinha observado dos territórios a norte do Grande Vale e do que vários informadores lhe tinham dito. Foi melhorado pela sensibilidade em relação aos sinais de aviso nas condições meteorológicas e geográficas. Conseguia sentir a umidade na mais leve das brisas, portentos numa sombra, no arrefecimento do ar. Em Abertornie, ficara até de madrugada com Ged e um dos guias do chefe tribal, com quem discutiu o percurso que a expedição deveria seguir através das montanhas. Falaram sobre os desfiladeiros estreitos, sobre as encostas íngremes onde não era possível montar a cavalo, sobre os locais onde o terreno facilmente cederia. Até agora, essa preparação fora bastante útil aos viajantes.
Havia certas zonas sombrias no mapa de Faolan, locais que não conseguia ver com clareza na sua mente. Vaus que tinham ceifado vidas. Encostas afamadas pelas avalanchas. Vales cercados, perfeitos para emboscadas. Por fim, chegariam à floresta: Briar Wood, um lugar conhecido pela sua singularidade.
Fez o grupo avançar o mais depressa que julgou serem capazes de agüentar. Os homens eram bons e a serva, Creisa, pelo menos era mais capaz do que a antecessora. Sabia montar e a competência enérgica quando em acampamento servia de alguma compensação pela língua ativa e pelo modo provocante. Não se podia esperar que uma noiva real viajasse sozinha entre homens.
Não sabia o que pensar de Ana. Por vezes desafiava-o, mostrando perspicácia e força. Regra geral era calada, dócil, tão resignada com o seu destino que esse fato incomodaria Faolan, caso esses assuntos lhe interessassem. Parecia uma criatura a caminho do matadouro, toda ela olhos enormes, cabelo dourado e uma atenção mesquinha com a limpeza, a pouco tempo de ser entregue a um guerreiro de reputação duvidosa, o qual provavelmente a utilizaria de forma tão brutal como qualquer criatura imunda da beira da estrada... Estava a deixar a mente vaguear, quebrava as suas próprias regras. Faolan adiantou-se ao grupo, fixando a mente no presente. Não se enganara, havia um leve toque de umidade no ar. Aproximava-se chuva, se não naquele dia, talvez no seguinte. Se não amanhã, um ou dois dias depois. Tinham feito bons progressos e imaginou que chegassem a Briar Wood perto da lua nova, ou pouco depois, mais oito ou nove dias. Se imaginara bem o mapa, havia um rio a noroeste, com um vau a que o homem de Ged se referira de forma preocupante. Quando a chuva chegasse, Faolan queria estar na outra margem.
Chamou Wrad e Kinet para que se aproximassem e conferenciaram brevemente. A julgar pelo território de mata densa que atravessavam, pela cadeia de pequenos lagos a sul e pelo contorno difuso das montanhas longínquas, concordaram que faltariam dois dias de viagem até ao lugar em questão. Talvez a chuva esperasse o suficiente. Talvez os cavalos mantivessem uma boa velocidade. Se Bridei ali estivesse, invocaria o auxílio dos deuses, para que atravessassem em segurança as águas e chegassem a Briar Wood a salvo. Faolan não acreditava em deuses, nem em sorte, apenas numa boa gestão. Reuniu todo o grupo à sua volta na estrada da floresta. Os pinheiros eram altos e nas sombras havia um silêncio estranho, como se o bosque estivesse a escutar, a respirar, à espera. Mal podia esperar que a missão chegasse a bom termo.
— Viajaremos até ao cair da noite — disse-lhes. — Hoje não caçamos. Vamos comer dos suprimentos, depois de escurecer. Partimos assim que o céu clareie.
— Mas... — começou Creisa a dizer, mas silenciou-se perante o olhar de Faolan.
— É importante que avancemos rapidamente — disse o emissário do rei. Não explicou o motivo, pois não valia a pena alarmar as mulheres. Os homens iriam perceber sozinhos.
— Corremos o risco de uma emboscada? — perguntou Ana, surpreendendo-o.
— Por que o sugeres?
Ana hesitou antes de falar. — A mata é densa. Imagino que seja uma boa cobertura. E dizem que existem tribos rivais, por aqui, chefes em guerra...
— Se for inteligente — disse Faolan, sem acreditar nas suas próprias palavras —, Alpin vai estar à nossa espera e terá tomado as providências necessárias para tornar a nossa viagem segura. Por esta altura, já deve ter recebido a mensagem do rei, a informá-lo da nossa jornada até Briar Wood.
— É claro.
Algo no tom da voz de Ana deixou-o alerta. Olhou-a com mais atenção e viu que estava mais pálida do que o habitual, parecendo cansada. — Percebeste? — indagou. — Temos de prosseguir até ao cair da noite, avançar o mais possível.
— É claro que percebi! — retorquiu Ana bruscamente, o que voltou a surpreendê-lo. A jovem tinha as boas maneiras de uma dama e raras eram as ocasiões em que as esquecia, mesmo se pressionada severamente, como no caso do banho. — Não sou idiota. Aproxima-se chuva e temos de atravessar um rio. Até uma criança era capaz de perceber.
Creisa fez menção de voltar a falar, mas desta vez foi Ana quem a silenciou com um gesto brusco.
— Nesse caso, avancemos — indicou Faolan. — Vamos aproveitar enquanto temos luz.
Quando o sol já se encontrava baixo no céu e as árvores escuras lançavam sombras compridas pelo carreiro estreito coberto de caruma, chegaram à margem de um rio. A estrada seguia o curso de água, serpenteando por entre amieiros e salgueiros. O leito do rio era amplo e pedregoso e a água corria rapidamente. Faolan mandou Kinet entrar no rio com um bastão. Viram-no dar dois passos cuidadosos, três, e entrar até à cintura, enquanto se debatia para se equilibrar contra a corrente. Faolan e Wrad ajudaram-no a sair da água.
— Quase de certeza que o vau fica a jusante — disse Faolan, ao mesmo tempo que tentava fixar esse ponto no mapa que imaginara.
— Mantenham o ritmo. Temos de atravessar antes do pôr do Sol.
— Não podia ser o rio sobre o qual o homem de Ged falara. Tinham mantido uma boa velocidade, mas não assim tão boa. Estava convencido de que o principal obstáculo se encontrava a dias de distância, estando situado num vale mais largo do que aquela divisória arborizada.
— Mexam-se! — ordenou, ao ver que as mulheres se demoravam, parecendo relutantes em retomar a marcha. Tinham desaparecido na mata enquanto Kinet experimentava a água e agora, regressadas, tardavam em montar. Trocaram algumas palavras em voz baixa e depois Creisa ajudou Ana a subir para a sela, antes de se dirigir ao seu próprio pônei. — Não se atrasem — avisou-as Faolan. — Não podemos ficar retidos depois do anoitecer. Temos de encontrar a passagem. Vejam se nos acompanham.
Creisa lançou-lhe um olhar mal-humorado. Ana avançou sem dizer palavra. Estaria Faolan a imaginar a lividez do aspecto da jovem? Maldita fosse aquela missão. Já abrandara o ritmo para adaptá-lo à fraqueza das mulheres. No mundo dos homens, teria sido uma viagem relativamente simples, sendo o maior perigo a eventualidade de uma emboscada.
Faolan era capaz de lidar com dificuldades. Aprendera bastante cedo que, quando comparados aos golpes fatais do destino, os assuntos práticos do dia-a-dia eram triviais. Em tempos houvera pessoas, passatempos, idéias que lhe transmitiam algum significado. Tudo isso desaparecera. No espaço de uma decisão única, de uma ação imediata, essa parte dele morrera. Durante bastante tempo, até conhecer Bridei, não existira nada para si, a não ser a necessidade de respirar e de pôr um pé à frente do outro para avançar. Bridei dera-lhe um objetivo, oferecera-lhe uma amizade que Faolan não tinha a capacidade de retribuir. Em vez disso, deu-lhe o que conseguiu: lealdade e um trabalho perfeito. Daí a presente missão. Poderia não ser a seu gosto, mas iria executá-la na perfeição. Não havia dúvida de que as mulheres estavam cansadas daquela vida dura, mas não podia conceber que ameaçassem o grupo deixando-as ficar para trás.
Acompanharam a margem do rio enquanto o sol descia no horizonte e o vale escurecia. Às árvores familiares juntaram-se outras, árvores estranhas cujos ramos e galhos retorcidos se estendiam para o carreiro, arranhando montadas e cavaleiros, numa tentativa de retardar o seu progresso. O solo tornou-se escorregadio, com a erva a dar lugar a uma superfície lamacenta e escorregadia. Ali já chovera. Faolan apertou o ritmo. Tinham de atravessar o vale e chegar a um lugar mais alto. Apenas um idiota passaria a noite em tal sítio.
As mulheres atrasaram-se uma ou duas vezes e Faolan enviou um homem para apressá-las. Refreou a língua com alguma dificuldade. Se a ira se revelasse na sua expressão, tanto melhor. Esperava não ser obrigado a explicar-lhes tudo: chuva, um rio a transbordar, um desfiladeiro estreito na escuridão. Um carreiro definido, encostas cobertas de árvores que ofereciam proteção, um lugar perfeito para uma emboscada a um grupo de viajantes.
— Mexam-se! — voltou a ordenar e, ao mesmo tempo, ouviu um grito mais à frente. Wrad, que avançara para garantir que o caminho estava livre, bradava: — O vau!
Após uma curva, o rio alargava-se, dividindo-se em quatro canais sobre uma vasta extensão de terreno plano coberto de pedras. Do outro lado, o carreiro serpenteava colina acima por baixo de árvores. O grupo parou. Kinet, o homem mais alto, desmontou e atravessou o vau, um, dois, três, quatro pequenos rios. Chegou ao outro lado molhado apenas até aos joelhos. Além dos pinheiros, o sol punha-se. O céu escurecia a caminho do anoitecer.
— Avancem — indicou Faolan. — Devagar. Quando atravessarem, subam o caminho até terreno mais elevado. — Olhou para trás e viu os pôneis das mulheres lado a lado. As jovens tinham desaparecido. Engoliu uma praga. — Onde...?
— Acabaram de entrar na mata — explicou um guerreiro chamado Benard. — Acho que a jovem senhora estava com dor de barriga. Pode ter sido a lebre que comemos ontem. A mim soube-me mal.
— Por tudo quanto é sagrado — resmungou Faolan, obrigando-se a respirar lentamente. — Wrad, esperas comigo. Os outros atravessem e subam a colina. Depois procurem um lugar para acamparmos esta noite. Em breve vai escurecer. Façam uma fogueira.
Esperou com Wrad pelo que pareceu uma eternidade. Homens, pônei e animal de carga atravessaram sem problemas e desapareceram caminho acima. As pedras do vau cintilavam levemente por entre as sombras. Quando as mulheres voltaram a surgir, pouco faltava para que Faolan perdesse a paciência.
— O vosso sentido de oportunidade deixa muito a desejar — disse. — Querem ficar para trás no bosque? Voltem aos pôneis! Temos de atravessar sem mais demoras. — Enquanto falava, Ana vacilou, os joelhos cederam e a jovem tombou para o piso lamacento junto à montada. Creisa, exclamando em alarme, agachou-se ao lado da jovem nobre e levou a mão à sua testa.
Faolan desmontou e dirigiu-se à serva com brusquidão. — Ela está doente? O que se passa?
O tom de Creisa era acusatório.
— Não a devias ter obrigado a continuar. Não se pode tratar uma senhora como se fosse apenas mais um guerreiro. Está com dores. E está cansada.
— Dores?
Na luz que se ia desvanecendo, o rosto de Creisa tingiu-se de vermelho com o embaraço.
— Coisas de mulheres. Ela é daquelas que sofrem bastante quando lhe chegam as regras. Em casa, deveria ficar pelo menos dois dias de cama, no mínimo. É complicado. É uma verdadeira senhora. A dor é muito forte, não que saibas o que isso é. Não a devias ter obrigado a montar.
Ana continuava inerte, a cabeça sobre o joelho da serva, o rosto uma forma oval pálida no lusco-fusco.
— Ela devia ter-me dito — acusou Faolan.
— Como poderia tê-lo feito? — silvou Creisa. — Uma senhora não fala destes assuntos com homens. Eu poderia ter-te dito, mas ela não me deixou. Já que pareces ter sempre resposta para tudo, e agora?
Faolan olhou-a.
— Agora tornas-te útil — respondeu. — Wrad, vem cá. A senhora vai ter de atravessar comigo. Ajuda-me a levantá-la... cuidado... isso mesmo. — Aos poucos, Ana voltava a si, mas não podiam esperar. Ergueram-na para o cavalo de Faolan, sentando-a de lado, e o emissário do rei sentou-se atrás dela, equilibrando-a contra o corpo com um braço e segurando as rédeas com o outro. — Vamos! — bradou. — Wrad, leva o pônei da senhora. Creisa, segue-o de perto e mantém a boca calada. Eu tenho de ir devagar. Não esperem por mim, vão ter com os outros. Quero sair deste vale.
Obedeceram em silêncio, os cavalos a afastarem-se gradualmente pelos canais do rio e pelos baixios pedregosos. Com os joelhos, Faolan guiou a sua própria montada para a frente.
Quando entraram na água, Ana estremeceu nos braços de Faolan e esticou a mão.
— O que... ? — murmurou hesitante, com os olhos fechados. Faolan apertou-a mais. Tinha de garantir que a jovem não os derrubava aos dois na sua confusão. Dores. Estivera a sangrar e ele obrigara-a a montar o dia inteiro. Lembrava-se de como estava pálida, de como optara por não lhe perguntar o que se passava. Recordou a facilidade com que o ignorara, como se não passasse de algo imaginado ou insignificante. Pouco sabia acerca daqueles assuntos, mas os sinais tinham estado à sua frente: o rosto da jovem de uma palidez cadavérica, as pálpebras roxas com as olheiras, as faces cavadas com a exaustão. O cabelo desentrançara-se parcialmente e caía-lhe à frente do peito e dos joelhos, uma cascata de luar prateado. — Como...? — murmurou ela.
— Está tudo bem — disse Faolan. — Estamos quase lá. — Ana ergueu a mão e agarrou-se a uma prega do manto dele, como uma criança que procura a coragem do pai, ou um bebê que busca a proteção da mãe contra o escuro. Não, não era de todo assim. Sentiu-a a aproximar-se, a virar a cabeça à procura do seu ombro. Ouviu-a a suspirar. Sentiu o seu próprio coração a bater mais depressa, o ritmo uma melodia de aviso, de um perigo inesperado. Assim, protegida no seu abraço, guiou o cavalo na penumbra e fez por se lembrar que era um homem que não se podia dar ao luxo de ter sentimentos. Tinha como tarefa levar aquela mulher a Briar Wood. Quando o fizesse, Bridei dar-lhe-ia outro trabalho. Um pé à frente do outro, passo a passo. Tal como se estivesse a atravessar um vau. Em si, havia espaço para isso e nada mais. Contudo, enquanto avançavam no crepúsculo e o corpo dela, abraçado contra o seu, era a única coisa quente no frio do vale, na mente de Faolan surgiu uma canção, uma melodia de outrora, do tempo que julgara ter conseguido esquecer... Como o Verão as suas madeixas, como o primeiro sinal da Primavera a sua pele... Da mente confusa de Fionnbharr fugiu o lar, a arte e o clã... Era a narrativa de uma fada, é claro, uma das daoine sidhe. Ana era real, estava viva, Faolan podia sentir a respiração leve da jovem, sentir-lhe o aroma, doce e agradável, mesmo com os rigores da viagem. Era real, e parte dele desejava atravessar aquele rio para sempre. Algo no seu íntimo queria que nada mais existisse do que aquele momento.
Ana estremeceu nos seus braços.
— Pronto — disse ele. — Fica quieta. Estamos quase em segurança.
— O que...?
— Desmaiaste. Não sabia que estavas doente.
— Oh... oh, pelos deuses, oh, sinto muito...
— Shh. — Mudou de posição, equilibrando o peso da jovem enquanto o cavalo saía do último curso de água e dava início à subida do carreiro íngreme da outra margem. A luz que restava mal iluminava o percurso.
— Estavas a cantar — disse Ana em voz baixa, como se não tivesse a certeza de ter estado a sonhar ou acordada.
— Eu? — replicou Faolan, interrogando-se sobre se teria mesmo pronunciado aqueles versos. — Nem por isso. Quem faz isso és tu. — Baixou a cabeça e encontrou os olhos cinzentos que retomavam a consciência, firmes e límpidos, pesasse embora os círculos escuros que os rodeavam. Pensou se os veria, mesmo na escuridão.
— Sinto muito — desculpou-se Ana, tentando endireitar-se. De certeza que lhe seria desagradável, imaginou Faolan, ver-se no seu abraço, como se fossem um casal de amantes a partilhar um cavalo apenas para que os corpos se tocassem, se aproximassem, a fim de sentir o calor inebriante como bom hidromel, a promessa das maravilhas que se seguiriam. — Atrasei-nos — continuou Ana. — Vou tentar acompanhá-los amanhã. Sei que é importante.
— Shh — repetiu Faolan. Ouvira a tensão na voz, a dor à beira da superfície. — Os homens estão a montar acampamento. Há tempo para decisões pela manhã. E se há desculpas a serem apresentadas, serão de minha parte. Fui desatento. Como líder, não posso dar-me a esse luxo. Lamento-o. — Enquanto pedido de desculpas, talvez deixasse um pouco a desejar. Não dissera o que queria. Mas eram palavras seguras. Era o que teria dito antes de atravessarem o rio.
— Somos os dois culpados — retorquiu Ana. — E nenhum de nós tem culpa, pois é óbvio que ambos gostaríamos de não estar aqui.
Faolan não teve o que dizer. Já não tinha a certeza de qual seria a resposta.
Noite. Os homens estavam cansados, com o esforço da jornada a começar a fazer-se notar. Faolan dividiu-os em três turnos para lhes permitir mais algum descanso. Os que não estavam ao serviço adormeciam assim que se deitavam ao lado da fogueira. O próprio Faolan descansaria perto da alvorada, enquanto Wrad e Kinet, os homens que considerava de maior confiança, mantinham guarda. A sua intenção fora partir cedo e fazer uma viagem rápida até ao rio seguinte. Esse plano tinha agora de ser alterado. Sentia o frio do ar na escuridão, o sabor da chuva. Ana estava deitada no abrigo, com um odre de água quente apertado contra a barriga. Apenas fingia dormir. Pela respiração, Faolan percebeu que estava acordada e em sofrimento. Creisa morrera para o mundo.
A noite arrastou-se. O primeiro turno regressou e acomodou-se para dormir. O segundo partiu para a escuridão. Havia muitos pássaros naquela parte da floresta. Quais, Faolan não sabia. Algo que caçava à noite, talvez corujas. Os gritos eram surdos e graves, o que lhe arrepiava os cabelos da nuca. Havia mais sons no bosque, ruídos estranhos que não conseguia identificar, mesmo com o conhecimento que possuía do reino selvagem: estalidos, silvos, murmúrios. Dirigiu a mente para o dilema imediato: a chuva, o vau, a mulher a quem não podia ser pedido que seguisse viagem pela manhã. Lamentou profundamente não ter deuses nos quais depositar a fé, não ter deidade ou espírito a quem pudesse solicitar que adiasse a chuva, apenas por um dia ou dois, para que chegassem em segurança à fronteira de Briar Wood.
Decidira-se quando atravessara o vau. Tinham de aguardar ali pelo menos um dia e deixar Ana repousar. Com ou sem chuva, não podia deixá-la montar até que terminassem os espasmos. A sua tarefa não era apenas viajar até ao baluarte de Alpin num certo espaço de tempo, mas sim entregar um tesouro de grande valor e alguma fragilidade. Chegar a tempo mas com essa carga danificada de alguma forma era não realizar o trabalho na perfeição, hipótese que não poderia ser considerada. Iriam aguardar. Ao fazê-lo, as opções tornavam-se mais limitadas. Se um dos rios subisse, o mesmo aconteceria a outros. Se a chuva os alcançasse, poderiam ficar encurralados, incapazes de avançar ou recuar. O formigueiro na pele de Faolan, o vago mal-estar na sua mente, diziam-lhe que não se encontravam sozinhos naquele bosque. Pouco crédito dava às histórias de presenças do Outro Mundo. O mais provável seria que um chefe local ambicioso, com o seu bando de guerreiros, estivesse a seguir os viajantes até um local onde pudesse fazer uma emboscada.
— Que cheiro é este? — A voz era de Ana, que se agitava. Viu-a pegar num xale, embrulhar-se e sair do abrigo, dirigindo-se em silêncio até junto da fogueira, por entre as formas adormecidas dos homens. O cabelo pálido brilhava à luz da lua minguante. O clarão do lume dava um rubor falso ao rosto esvaído e infeliz.
— Um dos homens tinha ervas na trouxa, uma mistura para suavizar a dor — explicou Faolan, que ergueu uma pequena taça de junto da fogueira, onde estivera a arrefecer. — Pensei que a infusão pudesse ajudar. Estás muito mal?
— Estou habituada. Não sei se vou ser capaz de beber. Por vezes, a dor faz com que não consiga manter nada no estômago.
Faolan verteu o chá para um copo de metal, sem dizer nada.
— Se quiseres, posso tentar — disse Ana. — Não consigo dormir. Talvez ajude.
Faolan passou-lhe o copo. Quando os dedos de ambos se tocaram, sentiu um arrepio no corpo. Respirou lentamente, tentando dirigir a atenção para o fogo. O que acontecera ao atravessar o vau não era apenas indesejado. Era intolerável.
— Sinto muito por ser um empecilho tão grande — apresentou Ana de forma educada, ao que deu um gole na bebida. Tinha os nós dos dedos brancos, um agarrando o copo, o outro mantendo apertado o xale à sua volta. O cabelo estava solto, completamente liberto do controlo habitual, uma torrente cintilante que lhe conferia uma aparência quase irreal: uma figura onírica. Faolan viajara com ela durante quase uma lua. Vira-a com freqüência na corte, ao longo dos anos desde que chegara a Fortriu, sem nunca ter pensado grande coisa da jovem. Era uma refém, uma rapariga de cabelo louro, amiga de Tuala. Nada mais. Não era de seu interesse. De súbito, tinha dificuldade em afastar da jovem o olhar.
— Pedes muitas desculpas. — As palavras saíram-lhe sem que o pretendesse.
— Que queres dizer com isso? — Não parecia ofendida, apenas cansada. Manteve o tom da voz baixo, tal como Faolan, para não acordar os homens.
— Dadas as circunstâncias, seria perfeitamente razoável que me tivesses solicitado que interrompesse a viagem, para que descansasses. Mas eu não sabia. Um homem não adivinha estas coisas.
Ana fitou-o. Os olhos da jovem pareciam a Faolan profundos, secretos, mas ao mesmo tempo límpidos como uma poça de maré no Verão, repletos de mistérios. Seria néscio da parte de um homem continuar a olhar. Arriscava-se a afogar-se.
— Julgas que sou tola e mimada — disse Ana. — Tenho noção disso. Deixaste-o bem claro desde o início, quando decidiste que precisava de aulas de equitação, mesmo sem me perguntares se já o sabia fazer. Não tive uma vida de homem. Não compreendo a existência de uma pessoa como tu, alguém que segue as suas próprias regras e toma as suas próprias decisões. Mas tenho alguma inteligência e uma certa dose de bom senso. Sei por que motivo temos de continuar. Cheirei a proximidade da chuva há dois dias. Ouvi os sons na floresta. Dizer-te que estava... indisposta... teria sido pouco razoável. Um ato egoísta. Ter-nos-ia feito perder tempo valioso. Faolan observou-a.
— Mesmo assim irei fazê-lo — adiantou.
— Pela manhã já serei capaz de seguir viagem... — Interrompeu-se, com um esgar de dor, pousou o copo e levou a mão à barriga.
— Disparates — censurou Faolan. — Não vou permiti-lo. É óbvio que não estás em condições. Vais precisar de um dia de descanso, pelo menos, talvez dois. Bem podias ter-me contado e poupado um dia de desconforto.
Ana não falou por alguns instantes.
— Que querias dizer — acabou por continuar — com desculpas? Ensinaram-me boas maneiras, algo que poderias utilizar com mais freqüência.
Faolan sentiu os lábios a contorcerem-se com o divertimento. Obrigou-se a pensar em Briar Wood, em Alpin, dos Caitt. O desejo de sorrir abandonou-o.
— Não quis ofender-te — garantiu. — Preocupa-me a forma como aceitas prontamente o teu destino, por mais inconveniente, por mais... desagradável que ele seja. Não gostas do caminho que os outros te traçaram, mas acabas por segui-lo docilmente. Demonstras pesar por atrasar a viagem, quando qualquer pessoa razoável teria exigido que eu parasse ao início do dia para montar acampamento.
— Sou uma mulher — limitou-se Ana a dizer. — Sou de sangue real, um bem de troca. Devo ao meu sangue, a Bridei, ao futuro de Fortriu, fazer o que me ordenam. Devo-o aos deuses.
Faolan ponderou sobre a questão.
— O que farias — perguntou-lhe —, caso não estivesses limitada por essas coisas? Pelo nascimento, pelo dever? Qual seria a tua escolha? Qual o caminho que seguirias?
Ana ficou em silêncio por algum tempo. Faolan atarefou-se com a fogueira, acrescentando lenha suficiente para a manter, sem criar uma chama exagerada. Quando voltou a erguer o olhar, viu o brilho das lágrimas nas faces da jovem.
— Não sei — respondeu, a voz um murmúrio. — Não seria este.
— Mas não fazes por mudar o percurso.
— Faço o que me é exigido. — Pestanejou algumas vezes, esfregou o rosto e endireitou os ombros. O sangue real tornava-se mais evidente do que nunca, pensou Faolan. Brilhava através das lágrimas, pela lividez do rosto, pelo cabelo por pentear e pelo xale lançado sem cuidado sobre os ombros. — No meu caso, não tenho escolha — prosseguiu Ana. — Imagino que seja diferente contigo. Podes determinar o teu futuro. Apenas tens de te justificar perante ti próprio.
Não havia resposta àquelas palavras. Não podia contar-lhe a verdade. Fazê-lo seria quebrar as regras graças às quais sobrevivia, os limites que lhe permitiam seguir em frente. Aquela conversa nunca deveria ter começado. Pensara que tinha conseguido atravessar o rio. Agora parecia-lhe que a travessia o fizera mergulhar de cabeça.
— O que foi? Que disse eu? — A jovem era perspicaz. Mesmo no escuro, percebera que algo mudara no rosto do emissário.
— Devias tentar dormir — sugeriu Faolan. — Há mais infusão. Passa-me o copo para voltar a enchê-lo.
Permaneceram algum tempo em silêncio, salvo pelo leve ressonar em seu redor e, fora da segurança da luz da fogueira, pelos ruídos misteriosos da floresta. Ana segurava o copo nas mãos elegantes e pálidas. Mesmo depois da viagem, daquela vivência árdua, tinha as unhas lustrosas, formas ovais perfeitas. As suas estavam partidas, imundas, roídas até ao sabugo. As mãos de um assassino. Houvera um tempo em que não fora assim. No passado, as suas mãos tinham exercido um ofício diferente.
— Quem foi Fionnbharr? — perguntou Ana, depois de um longo silêncio.
A questão apanhou Faolan desprevenido, tendo este respondido sem pensar. — Um viajante. Ficou encantado por uma mulher dos daoine sidhe, uma fada, e ausentou-se deste mundo durante noventa e nove anos.
— Percebeu demasiado tarde o que tanto pergunta como resposta tinham revelado.
— Compreendo. — Foi tudo o que Ana disse. Entre as mulheres, aquela destacava-se pelo comedimento. Por tal, encontrava-se profundamente grato.
— Falas gaélico? — perguntou-lhe Faolan, pensando que, no futuro, deveria ter mais cuidado com a língua.
— Apenas algumas palavras. No meu lar de origem falávamos a língua Priteni, mas havia monges cristãos nas ilhas. Tinham as mesmas origens que tu.
— Devias dormir — repetiu. — Se precisares de ir ao bosque antes de te retirares, eu fico de guarda. Não vale a pena acordar a rapariga.
Ana aquiesceu.
— Dorme como uma pedra, não é? Obrigada. Quando irás tu dormir?
— Não tens de te preocupar com isso.
— Não concordo. Afinal de contas, é suposto liderares este grupo. A nossa segurança depende da tua vigilância.
Momentos depois, Faolan percebeu que ela o espicaçava. Os lábios esboçavam um sorriso, uma pequena covinha num canto da boca. O rosto continuava marcado pelas lágrimas. A visão parecia deslocada, o que o fez sentir-se estranho. Possivelmente ela tinha razão. Apenas a exaustão poderia estabelecer tamanho caos na sua cabeça.
— Durmo quando o último turno ficar de guarda. Uma vez que só partimos daqui a um dia, tenho muito tempo.
— És humano — disse Ana. — Por vezes devias lembrar-te disso.
— Estás a dar-me ordens?
— Não me chamaste dócil? Os dóceis não dão ordens. Limito-me a frisar o que poderá vir a ser útil. O líder és tu. Vamos?
Penetraram alguma distância na floresta e Faolan aguardou, enquanto Ana desaparecia a fim de realizar as necessidades privadas. A dada altura esquivou-se, quando um pássaro lhe rasou a face, uma aparição tão súbita que nem lhe deu tempo para se desviar. A criatura pousou numa árvore próxima, um borrão de penas e de sombras. Tinha um bico ameaçador e os olhos estranhos e selvagens pareciam os de um vidente em transe.
Quando Ana regressou, disse:
— Viste aquilo? O pássaro, um corvo, ou algo do gênero. Voou tão próximo. Este lugar encontra-se repleto de presenças e ainda nem chegamos a Briar Wood.
— Ficarei satisfeito, se um pássaro for o pior que encontremos. De volta ao abrigo, Ana agradeceu-lhe com os seus modos corteses
e retirou-se para se deitar no cobertor, enquanto Faolan permanecia junto à fogueira. Sentia-se relutante em acordar Kinet e Wrad, os quais se tinham esforçado por ele, estando agora profundamente exaustos.
— Boa noite — disse ele em voz baixa, na direção do abrigo.
— Boa noite, Faolan. — A voz de Ana era baixa mas clara. Ele gostava da forma como a jovem pronunciava o seu nome. — Que A Que Brilha te guarde os sonhos.
Faolan sabia qual a resposta correta. Não era possível viver na corte de Bridei sem assimilar o padrão dos cumprimentos e despedidas formais, a condução da observância ritual entre os habitantes de Fortriu. A resposta correta era, Que o Guardião Das Chamas ilumine o teu despertar. Mas não acreditava em deuses, nem os do povo de Bridei, nem as deidades arrogantes e esquivas da sua pátria. Tais bênçãos não se adequavam ao seu caso. Não havia deus com o poder de eliminar as aparições negras das suas noites. Acompanhavam-no eternamente, um inferno de sua própria criação. Devia amaldiçoar Ana e não abençoá-la. A jovem despertara no seu íntimo algo que ele não queria, uma seqüência de recordações que passara longos anos a reprimir com todas as forças. Não precisava daquilo. Não podia permiti-lo. Tudo o que queria era as ordens, as tarefas, a sua execução minuciosa. Depois, as ordens seguintes.
— Dorme bem — acabou por dizer e viu-a enrolar-se debaixo dos cobertores, a cabeça loura com a mão como almofada. Esperou até ter a certeza que Ana adormecera e depois acordou o terceiro turno, que enviou para os postos de vigia. Acima deles, a partir do ramo de uma árvore contorcida e nodosa, a gralha de olhos brilhantes acompanhava-lhes os movimentos.
No dia seguinte, Ana permaneceu no abrigo a ouvir o tamborilar da chuva no tecido oleado e os sons do acampamento atarefado à sua volta. Não se desperdiçou um único momento da folga inesperada. Peças de caça foram apanhadas, limpas e cozinhadas. As armas foram afiadas. Encheram-se odres e cuidou-se dos cavalos. Alguns dos homens dormiram, mas apenas depois de conquistarem a permissão de Faolan. Ana dormitava ocasionalmente. A tisana acre que Faolan ia fazendo tinha um efeito soporífero óbvio. Ao pôr do Sol, fizeram um caldo de papas de aveia para Ana, que descobriu que estava com fome. Na manhã seguinte, levantaram acampamento e partiram para ocidente.
As cãibras tinham passado. Ana continuava a sentir-se fraca e cansada mas podia ver a expressão nos olhos de Faolan e fez o possível por aparentar estar confiante e forte. A chuva, por enquanto, ainda não era forte. Pelo menos ali. Mas o rio ainda se encontrava distante, caso a estimativa de Faolan estivesse correta, e, naquele terreno elevado cada vez mais sinistro, muitos ribeiros corriam vale abaixo, caindo sobre saliências rochosas, borbulhando através de abismos secretos, alargando-se aqui e além para formar pântanos movediços, à espera para sugar cavalos e cavaleiros. A norte, iam-se acumulando pássaros escuros. Acima dos cavaleiros, os pássaros lamentavam-se. Tantas aves. Aquele lugar estava a abarrotar, quer de espécies bem conhecidas de Ana, como peneireiros, busardos, cotovias, quer de outras novas para ela. De quando em vez, via um pássaro como o que a assustara na mata junto do vau, algo parecido com uma gralha, mas com algo de peculiar, pois os olhos tinham um brilho estranho. Eram conscientes, alerta. Quando os viajantes saíram das regiões mais densas da floresta e entraram num caminho estreito que atravessava baldios íngremes, já avistara um pássaro dessa espécie três vezes e começava a interrogar-se sobre se seria um único pássaro, a mesma ave, que os seguia, ora voando bem alto no céu, ora empoleirado num rochedo alto à beira da estrada, a observar com os seus olhos penetrantes o grupo que passava. Um dos homens puxou de uma funda e agarrou numa pedra. — Não — disse-lhe Faolan. — Já temos carne suficiente para uma refeição ou duas. Deixa-o.
Ouviram o rio antes de este se tornar visível. De início era um sussurro, depois um murmúrio, finalmente um troar insistente que ameaçava abafar-lhes as vozes. A pele de Ana ficou úmida com a ansiedade.
— Não te preocupes. — Faolan acercara-se dela. — Se a água for demasiado profunda, acampamos deste lado da margem e aguardamos. Não vou tentar atravessar até ter a certeza de que o conseguimos fazer em segurança. Não vale a pena arriscar a vida só para tentar chegar a tempo.
— Não é importante que o façamos? — perguntou Ana.
— Deixa-me decidir o que é importante — replicou Faolan. Voltara a assumir a antiga cautela na expressão, o que impossibilitava Ana de saber em que pensava. A estranha conversa, os dois sozinhos na escuridão, parecia cada vez mais o produto de um sonho. — Segundo o homem de Ged, podemos atravessar o rio desde que tomemos as precauções necessárias. Confia em mim. — Sem esperar por uma resposta, avançou até à cabeça do grupo.
— Conheço um nome para homens como aquele — observou Creisa, do seu lugar atrás de Ana. — Mas não ias gostar, minha senhora, por isso não o digo.
— Ele sabe o que está a fazer — retorquiu Ana. — Se continuarmos, será porque julga que é a melhor opção, depois de avaliar todas as alternativas.
— Sim, minha senhora. — O tom sugeria que Creisa não estava convencida. Puxara a saia mais do que o necessário para montar à amazona. Os homens que passavam por ela fitavam aquela porção interessante de perna bem modelada que era assim exibida. Se os cavalos avançavam com segurança pelo carreiro pedregoso, estreito e cada vez mais íngreme, pouco se devia aos cavaleiros. Ana desejou ardentemente que a viagem chegasse ao fim. As costas doíam-lhe e sentia-se tonta e enjoada. Só imaginava um banho quente, o cabelo limpo, roupas lavadas e uma cama confortável onde pudesse dormir debaixo de um telhado. Sozinha. Assim que chegasse sã e salva a Briar Wood, nunca mais daria tais trivialidades como garantidas. Algo dentro de si dizia-lhe que, uma vez casada com Alpin, não voltaria a ter oportunidade de dormir sozinha. Procurou esquecê-lo. Não suportava a idéia.
O carreiro percorria o flanco de um vale. O terreno voltava a ser arborizado, com pinheiros negros nas zonas mais altas e um aglomerado de árvores menors junto ao rio, ocultando-o. O som era forte. Algures lá em baixo, devia haver rápidos. Ana ouviu Faolan gritar uma ordem e, à sua volta, os homens estugaram o ritmo. O seu próprio pônei avançou, seguindo a deixa dos animais maiores.
— Que o Corvo Negro nos ajude — exclamou Creisa —, vou ficar com nódoas negras em sítios que nem sequer imaginava!
Depois Faolan voltou a gritar e não lhes restou fôlego para reclamações. Manterem-se no carreiro estreito exigia toda a energia. Ana sentia-se tonta. Cerrou os dentes e endireitou as costas. Não era altura para fraquezas
Um derradeiro cotovelo, uma descida íngreme e instável por uma encosta perigosa e coberta de cascalho, e avistaram o vau, delimitado por salgueiros. Pássaros voavam sobre a água, as suas rotas cruzando-se numa dança elaborada. Havia um único canal largo, sem rochas visíveis. A superfície da água era serena e o fluxo não parecia excessivamente rápido. Ana pensou que parecia mais seguro do que o curso de água pedregoso e traiçoeiro da primeira travessia. A chuva caía, de forma leve, mas persistente. Se queriam atravessar, a altura deveria ser aquela.
Kinet desmontou, pegou no bastão e, a um sinal de Faolan, entrou na água com cuidado. Tornou-se de imediato evidente que a corrente era mais forte do que aparentava. O guerreiro cambaleou, mergulhou com força o bastão na corrente e recuperou o equilíbrio. A água chegava-lhe às coxas.
— Continua — bradou Faolan sobre o troar da corrente. — Experimenta-o até ao outro lado, se conseguires.
Foi difícil. Por três vezes, Kinet esteve prestes a cair, e era um homem grande. Creisa mordia os nós dos dedos. Finalmente, Kinet arrastou-se para a outra margem, molhado quase até à cintura. Faolan fez-lhe sinal para que regressasse.
Os homens conferenciaram em voz baixa, enquanto as mulheres aguardaram. Sobre um ramo curvado, meio oculto pela folhagem delicada de um salgueiro, estava um pássaro, de olhos brilhantes e sinistramente quietos, por entre as sombras da floresta. Ana retribuiu-lhe o olhar. Tinha quase a certeza de que se tratava da mesma criatura que os seguia. Se tivesse as capacidades de Tuala, poderia saber o que a ave pensava, seria capaz de interpretar os seus gritos. Recordou o que as raparigas em Banmerren diziam da colega do Outro Mundo, a forma como Tuala lhes ensinara a escutar a voz da marta, da enguia, do escaravelho e da carriça. A compreender os pensamentos profundos e lentos de um carvalho. Ana não possuía tais capacidades. O pássaro incomodava-a.
— O que queres? — deu consigo a murmurar. — O que és tu, alguma espécie de espião? — O olhar não a deixou, intenso, fito. Era perturbador.
Viu Faolan a chamar e aproximou-se dos homens, com Creisa atrás de si.
— Muito bem — começou Faolan, a expressão severa. — Vamos... Ana nunca soube o que ele decidira, se atravessariam ou se iriam esperar. Ouviu-se um zumbido e um baque e Kinet, que voltara a sair do rio, tombou ao chão, os olhos arregalados e uma flecha de penas
azuis a sair-lhe do pescoço. Creisa gritou. Os homens moveram-se rapidamente, formando um círculo protetor à volta das mulheres, enquanto dois dos guerreiros desmontavam e agachavam-se junto ao homem caído. Ana ouviu Wrad dizer — Está morto — e Creisa proferir um soluço abafado. Momentos depois surgiu outra flecha, que se enterrou no braço de Faolan com um ruído seco. Olhou para ela e, com uma indiferença fria que impressionou Ana mesmo através do terror que sentia, segurou na haste e arrancou-a fora. A ponta reluzia, vermelha. Os homens mantiveram o círculo, as armas viradas para fora. Ouviam-se agora sons de movimentos na mata em seu redor, galhos que se partiam, o restolhar de arbustos, passos. Uma força considerável aproximava-se de várias direções, oculta, mortífera. Havia apenas uma saída.
— Vamos atravessar! — bradou Faolan. — Wrad, leva Creisa contigo. Ana, vens comigo. Vamos!
Alguém lhe atirara um pedaço de tecido e, enquanto falava, ia enrolando o braço. Numa questão de segundos, Ana regressava ao cavalo de Faolan, desta vez atrás dele, que guiava o animal com uma só mão. Entraram no rio. Como que escarnecendo da decisão tomada, as nuvens escuras encheram o céu e, de um chuvisco constante, a chuva transformou-se num dilúvio.
— Agarra-te bem. — Ana mal conseguia ouvir as palavras de Faolan sobre o troar do rio e o martelar da chuva. — O leito é irregular e a água está a subir.
Ana olhou por cima do ombro. Atrás deles, a certa distância, Wrad entrara no vau com Creisa agarrada às suas costas. Benard guiava o pônei de carga. Outro homem acompanhava a pé um cavalo sobre o qual fora atirada a forma inerte de Kinet. Os restantes continuavam na margem, as armas prontas, perscrutando a extensão da floresta. Os atacantes ainda não tinham surgido. Voltou a olhar em frente, através da cortina de chuva para as sombras escuras da colina na margem ocidental. Será que não poderiam estar mais homens à espera para os apanharem um a um, à medida que saíam do vau? Esperava que Faolan se tivesse lembrado de tal hipótese. A tremer, trauteou entre dentes, quase sem se aperceber de que canção se tratava, esperando apenas que a ajudasse a ser corajosa. Um dois três quatro, galinhas à porta do quarto. Cinco seis sete oito, um corvo a comer um biscoito... Fora útil em pequena, deitada sozinha na escuridão, à espera que o sono chegasse.
Voltou a olhar para trás. Já se encontravam todos dentro de água. Julgou ver figuras com trajes escuros por baixo das árvores, no lado oriental, que emergiam dos esconderijos para a margem. Pareciam trazer fitas azuis na cabeça. Através do dilúvio, pensou distinguir um homem a empunhar um arco e a preparar uma flecha.
— Estão atrás de nós — indicou. — Na margem.
Faolan aquiesceu brevemente. Com um sinal que Ana não detectou, o cavalo avançou mais depressa. O animal tropeçou e a água molhou-os. Faolan tinha o corpo tenso, enquanto se debatia para ajudar a equilibrar a montada. A corrente lembrava mãos ferozes a agarrá-los, como se de uma força inimiga se tratasse, a tentar arrastá-los para baixo. De repente, o animal cambaleou para a margem pedregosa, chegou à elevação coberta de erva e encontraram-se a salvo do outro lado.
Faolan saltou para o chão, um movimento desajeitado, em virtude do braço ferido. O sangue ensopava a ligadura improvisada, tingindo-lhe a manga da camisa de vermelho.
— Leva o cavalo. Vai para terreno mais elevado — indicou. — A água está a subir depressa. Toma. — Tirou qualquer coisa do cinto e enfiou-lha na mão: uma faca, desembainhada, uma arma de aspecto sério, com a lâmina serrilhada. — Fica com ela. Utiliza-a, se precisares. Esconde-te e espera por nós. Vai!
— O que vais...?
— Ana, vai!
A expressão no olhar de Faolan deixava como única alternativa a obediência. Por sobre o ombro, viu a extensa linha de cavaleiros que se alongava pela largura do vau. Avançavam com lentidão. A água estava já mais funda e os cavalos atravessavam sérias dificuldades. Observou Faolan regressar à margem e aguardar à vista de qualquer um que desejasse atirar outra flecha. A aguardar, até que todos os seus guerreiros completassem a travessia em segurança. Depois, Ana puxou as rédeas do cavalo e deu início à subida da encosta.
Pouco avançara quando um som lhe gelou o sangue nas veias. Não sabia de que se tratava, apenas que era a voz da catástrofe. Deu meia volta no carreiro, saindo da proteção dos arbustos cerrados, a fim de obter um bom panorama do vau. O barulho era um ronco troante e profundo, como que anunciando a chegada tumultuosa de um monstro imenso. Os homens na água olhavam para montante. Ana avistou-lhes os rostos no momento anterior ao embate: lívidos, estupefatos, os olhos conscientes da morte que se avizinhava. Depois chegou a onda, uma enchente que estivera aprisionada algures corrente acima e que fora libertada de uma vez, quando a barreira que a detinha cedeu à pressão, lançando a torrente de água rio abaixo. O seu poder arrebatava tudo à sua passagem: grossos troncos de árvores, com raízes como dedos esticados, pedras, terra, arbustos, criaturas esfaceladas, tudo num turbilhão confuso. Era uma chaga na terra que demoraria muito tempo a sarar. A onda varreu a zona mais baixa do rio perante os olhos incrédulos de Ana. Numa fração de segundos, homens, mulher e cavalos foram apanhados, os seus gritos perdidos na música feroz da torrente, levando-os na insanidade branca da onda. A chuva abrandara um pouco e Ana podia agora ver claramente a margem do outro lado, a qual fora arrancada, como que por uma dentada monstruosa do rio. Não havia ninguém. De um lado ao outro, o vale encontrava-se cheio de correntes de água.
Ana podia ouvir o som arrastado da sua própria respiração. Sentia o bater descompassado do coração. Por um momento, o terrível acontecimento deixou-a paralisada. Depois enrolou as rédeas do cavalo a um ramo e, prendendo a bainha da saia à cintura, correu percurso abaixo. A água fizera desaparecer os anteriores limites do rio. Rodeava os troncos das árvores, corria por entre a vegetação e submergia afloramentos rochosos. As coisas que arrastava representavam um novo perigo: troncos embatiam nas árvores que ainda resistiam à enchente e pedregulhos soltos rolavam ao acaso na corrente poderosa. Não conseguia avistar vivalma. Ninguém. A meio do curso de água, preso numa protuberância, algo pequeno e brilhante agitava-se na água em torvelinho: um pedaço do xale multicolorido de Creisa.
Não podia avançar sem fazer uma busca, por mais improváveis que fossem os resultados. As margens eram um pesadelo, todas elas terra a esboroar-se e pedras a deslizar, folhagem escorregadia e ramos quebrados. Ana seguiu a corrente do rio, procurando pontos de referência no terreno, à medida que avançava: aqui um carvalho solitário no cimo da colina, ali uma rocha branca com a forma de uma cabra, mais além um rasgo na terra, a contribuição de um ribeiro à devastação. Ana gritou, a voz fraca e solitária acima da canção triunfante do rio:
— Faolan! Wrad! Creisa! Está aí alguém? — Recusava-se a pensar no local onde estava, nos homens com as flechas, no fato de estar sozinha, fria, molhada, sem suprimentos e sem fazer idéia do caminho a seguir. Continuaria a procurar até que apenas lhe restasse tempo para regressar ao vau e ao cavalo antes de anoitecer. Não pensaria em mais nada.
O tempo deixou de ter significado. Encontrou uma passagem onde não parecia existir nenhuma. Ignorou os arranhões e as mazelas infligidas pelos arbustos espinhosos e partidos ou pelas pedras lascadas. Doía-lhe a garganta de tanto gritar. As lágrimas umedeciam-lhe as faces e faziam-lhe escorrer o nariz. Prosseguiu até que, mais à frente, avistou um obstáculo intransponível. O rio alargado mergulhava numa catarata branca de espuma e, de ambos os lados, grandes muralhas de pedra criavam uma barreira impressionante. Não valia a pena tentar subir. O que procurava, a ser encontrado, estaria na margem. Se alguém tivesse sido sugado para aquele caos remoinhoso de água branca, se alguém tivesse sobrevivido tanto tempo, estaria agora para além do seu alcance. Chegara a altura de regressar.
A percepção da derrota era algo esmagador. Ana sentou-se numa pedra, o olhar vidrado no rio. Se não tivesse desmaiado, se Faolan não lhe tivesse concedido um dia de descanso, teriam atravessado sãos e salvos. Creisa estaria viva, e Wrad e Kinet, e todos aqueles jovens. Tinham morrido por causa dela. Por ser fraca. E Faolan, que atravessara em segurança, que poderia ter sobrevivido, morrera por se preocupar com os seus homens. Esperara por eles e o rio levara-o consigo. A sua entrega ao dever custara-lhe a vida e salvara a dela.
Não havia escolha, teria de regressar. Nada mais podia fazer ali. Com severidade, começou a avaliar as questões práticas. O cavalo de Faolan tinha alforjes, talvez com algum suprimento essencial. Continuava a sangrar. Mesmo molhada, teria de rasgar a camisa, a fim de utilizar o tecido. Deixara tudo no pônei de carga, os sacos, os artigos pessoais, a roupa que trouxera para o casamento, as pequenas coisas que bordara ao longo dos anos, a pensar numa altura em que tivesse os seus próprios filhos. Tudo desaparecido. Tudo levado.
— Vai-te embora, Ana — ordenou a si própria, enquanto fungava e limpava as lágrimas das faces. Pôs-se de pé, trêmula, e, nesse momento, a gralha passou a voar à sua frente, tão próximo do seu rosto que deu um passo atrás com um arquejo. O pássaro dirigiu-se à beira da água com um grito rouco e, acompanhando-lhe o percurso, Ana reparou em algo que não vira antes, quando se arrastara ao longo da margem do rio. Havia qualquer coisa parcialmente submersa por entre um amontoado de detritos presos nas rochas fendidas. O rio açoitava aquela protuberância, como se irado por alguma coisa se atrever a agarrar-se a ela. Na margem, uma grande árvore que fora quase derrubada pela enchente inclinava-se sobre a ilhota de pedra, agarrando-se precariamente à terra. A água devastara a margem por baixo da árvore, deixando exposta uma massa contorcida de raízes. Mais detritos tinham sido empurrados contra elas, ramos e arbustos partidos, galhos e folhas. Ana voltou a olhar para as rochas. Quase por baixo delas, podia ver qualquer coisa escura na água: a túnica de um homem, ensopada e suja. E algo pálido: um rosto exaurido e semiconsciente. Uma mão agarrada a um ramo inclinado, tentando salvar a vida contra a força violenta da corrente.
Ana correu, a tropeçar nas pedras, alarmada. Faolan estava vivo. Ainda se agüentava. Alguma coisa podia ainda ser salva daquele pesadelo.
O pássaro empoleirou-se nos ramos mais altos da árvore tombada, os olhos fitos no homem dentro de água. Ana enfiou-se debaixo do tronco inclinado e arrastou-se ao longo da margem escorregadia que se ia desintegrando, a mente num rodopio. O lugar onde a mão desesperada de Faolan se agarrava ao pedaço de ramo ficava duas vezes o comprimento do seu próprio corpo afastado da margem. Apenas conseguiria alcançá-lo se entrasse na água em remoinho. Era fundo, pois obviamente ele não conseguira tocar no leito com os pés e sair por esse meio. Assim que os dedos se soltassem, Faolan desapareceria. Havia mais rochas a jusante. Quase de certeza que seria despedaçado antes de ter tempo de se afogar. A água agitava-se em seu redor, puxando-lhe as roupas e o cabelo. Tinha os olhos fechados e o rosto estava branco como a cal. Com o maxilar cerrado, a mão apertava, inflexível, o ramo. Se o chamasse, será que o assustaria? Largaria o que por enquanto o salvava? Lá em cima, o pássaro soltou um grito agudo e Faolan abriu os olhos.
— Faolan, estou aqui na margem! Posso chegar a ti! — gritou Ana, com falsa segurança. — Segura-te! — Olhou em seu redor, em busca de algo que estivesse à mão, qualquer coisa que atravessasse aquele espaço. Havia uma confusão de objetos que tinham sido lançados sobre o ressalto lamacento: ramos, raízes, pequenos arbustos, coisas mortas que não tinha vontade de examinar. E... sim! Um pedaço de madeira que em tempos fora parte de uma barraca, de um estábulo ou de uma casa. Madeira perfilada, uma tábua forte, talvez com um palmo de largura. Pensou que talvez o comprimento fosse o suficiente. Se conseguisse prender uma das extremidades entre as raízes que continuavam presas à margem e movesse a outra, por forma a criar uma espécie de ponte até ao local onde Faolan se encontrava, tinha a hipótese de lá chegar para ajudá-lo. Imaginou como estenderia os braços para segurar os dele. Que assim que ele se agarrasse a ela, a força da água os puxaria aos dois. Não iria resultar. Não seria capaz de resistir à corrente nem, mesmo que fosse, ele teria força para subir pelos seus próprios meios. Naquele momento, Faolan parecia ainda mais fraco do que ela. Pensou ver-lhe os dedos a escorregar, os olhos a começarem a ficar vidrados e a revirar-se, a caminho da inconsciência. A tábua seria suficientemente forte, se pelo menos a conseguisse colocar no sítio certo. Mas nada era mais forte do que o rio...
Já sabia o que fazer. Teria de utilizar aquela corrente destruidora em seu proveito. A ponte teria de ficar nas rochas a jusante de Faolan. Se pelo menos o conseguisse fazer, a pressão da água iria mantê-lo firme contra a madeira, enquanto ela o puxava. Voltou a perscrutar o rio, sempre receosa, não fosse Faolan desaparecer na água sem uma palavra, quando a atenção dela estivesse centrada noutra direção. Surgiu-lhe a imagem de como tudo podia correr mal. Não permitiu que ela se demorasse.
— Faolan! — chamou, erguendo o tom de voz acima do troar da corrente.
Estava demasiado exausto para responder. A cabeça moveu-se numa tentativa de aceno.
— Não te mexas! — gritou, sabendo como soaria tola. — Vou buscar-te!
Era fácil de dizer. A tábua era pesada, nem acreditava o quanto. Equilibrando-se nas sombras, esteve muito perto de escorregar para a água profunda antes de conseguir erguer e virar a madeira. Enfiou a extremidade por entre as raízes mais próximas do tronco, procurando o ângulo correto para que se agüentasse, o que a deixou com uma dor lancinante nos braços e nos ombros. Pronto, já estava. Agora a outra ponta. Teria de virar a madeira, mantê-la fora de água, afastada da cabeça de Faolan a qualquer custo...
— Ah! — gritou Ana, quando o pé lhe escorregou na lama e caiu sobre um joelho, batendo com a anca na tábua. A força do rio era impressionante. O coração martelava-lhe no peito. Esforçou-se por se pôr de pé, voltando a agarrar a tábua, e manobrou-a até que a extremidade assentasse com relativa segurança nas pedras menores em redor das quais a água espumava, pouco abaixo da posição de Faolan. Experimentou a ponte improvisada. Oscilou, mas não cedeu.
— Estou a ir!
A chuva ainda caía, deixando tudo molhado. Subiu para a tábua, as mãos agarradas aos lados, a saia subida o mais possível, e gatinhou para fora da margem. A madeira quase tocava na água e o peso da jovem afundava a tábua à medida que avançava. A corrente tentava puxá-la e Ana sentia o coração prestes a rebentar. Tentou não olhar para baixo. Atrás de si, sentia as coisas a deslizar, a gemer e a ranger com a tensão. Imaginou que a tábua não agüentasse muito mais tempo entre as raízes. Um pouco mais, só mais um pouco, mão, joelho, mão, joelho... O coração parecia agora um tambor, marcando o ritmo de uma música de puro terror. Mesmo assim, algures no seu íntimo, ardia uma força de vontade intensa. Ia salvá-lo. Ia consegui-lo.
Já lá estava. Empoleirada perigosamente na extremidade da ponte, a água a correr à sua volta, não se encontrava longe de Faolan. O rosto dele mal se via fora de água, parecia já quase afogado. Como poderia dizer-lhe para se largar? Provavelmente seria arrastado por baixo da tábua, rio abaixo. O salvamento parecia condenado desde o início. Não ia pensar nisso. Apenas havia uma oportunidade e, se não a aproveitasse em breve, nada mais restaria.
— Faolan — chamou —, escuta-me! Estou mesmo aqui, a duas braçadas de ti. Tenho uma tábua acima da água, apoiada na margem. Não te largues ainda. Se conseguires chegar à tábua e agarrar-te, sou capaz de te puxar. Espera pelo meu sinal. Consegues usar o braço esquerdo?
O braço ferido saiu lentamente da água. A mão surgiu, os dedos brancos e engelhados, indo-se agarrar debilmente às raízes.
Tinha de manter as instruções simples. — Ótimo. Tens de ser rápido. Prepara-te para te agarrares com as duas mãos. Ignora, se doer. Tens de me ajudar o mais possível.
— Tu... cais... — A voz de Faolan não passava de um murmúrio.
— Não sejas tonto! — Vacilou enquanto procurava equilibrar-se melhor. A ponte garantia um ponto de apoio mínimo e não havia mais nada para agarrar. Ana enfiou um pé numa fenda entre as pedras, debaixo de água, e equilibrou-se com a barriga na madeira, deixando ambos os braços livres. A água corria por todos os lados. — Agora, quando eu disser, vais respirar fundo e largar-te, e depois agarras-te com as duas mãos. Se conseguires esticar os braços vai ser mais fácil. Percebeste?
Um movimento tênue nas feições esbranquiçadas. Ana tinha de partir do princípio de que fora uma resposta afirmativa.
— Muito bem. Vou contar até três. — A jovem respirava como se tivesse acabado de correr. A água agitava-se em seu redor e mais de metade do corpo de Ana encontrava-se submerso. — Um, dois, três, agora!
Faolan largou-se. No instante seguinte, o corpo embatia na tábua e o braço ergueu-se, tentando prender-se. Ana agarrou-o e deu início à batalha contra o rio, um duelo cujo prêmio era a vida de um homem. Rezou, um grito silencioso ao Guardião das Chamas, vindo do fundo do coração. Os braços pareciam querer saltar-lhe do corpo. A perna ameaçava partir-se por onde se encontrava presa entre as rochas. Aguentou-se. Aquele momento pareceu durar uma eternidade. Puxou e sentiu o esforço desesperado por parte de Faolan de ajudar com o pouco que restava da sua força. Parecia que a qualquer momento seria arrastado por baixo da ponte improvisada, pois a água passava-lhe por cima da cabeça enquanto tentava envolver a madeira com ambos os braços. Ana segurava-o por onde podia, uma prega de roupa, uma mancheia de cabelo, variando freneticamente o ponto de apoio enquanto ele se arrastava ao longo da ponte, procurando onde pisar por entre as pedras e os detritos na ilhota minúscula, um refúgio precário que se desfazia, à medida que Ana lhe segurava o braço e o içava, sem saber bem como, para o seu lado. Faolan deitou-se de braços e pernas abertas em cima da tábua, os olhos fechados, o peito a subir e a descer. A respiração de Ana também estava acelerada. Sentiu o calor das lágrimas nas faces. Doíam-lhe as costas. As pernas eram uma massa de golpes ensangüentados. Os ombros latejavam e tinha os braços dormentes. No céu já sombrio devido às nuvens, a luz começava a desvanecer-se.
— Faolan!
Permanecia inerte, as mãos abertas na água, seguro apenas pelo peso do corpo e por Ana, que enfraquecia. A jovem sentiu o terror a renascer. Se ele desmaiasse naquele momento, estariam perdidos.
— Faolan, acorda!
Não obteve resposta. Ali perto, algo estalou e cedeu. A água começou a passar por cima de Faolan.
— Faolan! — Ana esbofeteou-lhe a face com força. — Acorda imediatamente! Estás de serviço, lembras-te?
Um gemido fraco. Um ligeiro estremecimento. Ana sofria por ele, mesmo quando invocava o seu tom mais real.
— Vá lá, Faolan! É quase de noite. Preciso de ti!
Rastejaram ao longo da ponte frágil, Faolan à frente, Ana atrás dele, incitando-o para que continuasse. O maior peso de Faolan fez a tábua curvar-se de forma ameaçadora, mas não cedeu. Quando pisaram a lama da margem destroçada, Faolan caiu de joelhos. Ana levantou-o, passando-lhe o braço que não estava ferido por cima dos seus ombros. Acima deles, a árvore inclinava-se agora para o rio num ângulo quase impossível. Recebia o seu destino iminente com uma canção gemente de angústia. Ana ouviu o som de asas e sentiu, mais do que viu, a gralha a levantar vôo do seu pouso e afastar-se. A sua missão, se disso se tratara, chegara ao fim. Ana gostaria de poder dizer o mesmo deles.
— Não podes deitar-te, aqui não — disse-lhe bruscamente. -— A menos que queiras uma árvore em cima de ti. Temos de andar. Anda, um, dois, vá lá! Temos de ir buscar o cavalo, encontrar um lugar seco para nos abrigarmos, fazer uma fogueira. — Pelos deuses, esperava que o cavalo ainda lá estivesse. Havia uma pederneira nos alforjes. Se pelo menos Faolan agüentasse a distância que os separava do animal. — Vamos, anda! — ordenou. — Eu ajudo-te, mas não posso fazer tudo sozinha. Não passo de uma princesa mimada, lembras-te? O líder é suposto seres tu. És tu que tens de cuidar de mim. Cuidado, esta zona é pantanosa...
Talvez a sua oração tivesse sido escutada. Talvez tivesse chegado aos ouvidos do Guardião das Chamas, um deus que valorizava a coragem e a tenacidade. A luz aguentou-se até cambalearem de volta ao carreiro junto ao lugar onde ainda nessa manhã existira um vau. A penumbra instalava-se quando subiram a colina e encontraram o cavalo de Faolan no sítio onde Ana o deixara, a aguardar pacientemente.
A escuridão manteve-se afastada enquanto subiam a passo, cada um deles de um dos lados do cavalo, reconfortados pelo calor do animal, pela sua solidez num mundo destroçado. Encontraram um lugar onde uma parede rochosa formava uma saliência. Onde, no seu interior, havia uma extensão seca de terreno plano, com arbustos de ambos os lados e um aglomerado de pinheiros à frente. O corpo de Faolan tremia com violência. Quando Ana soltou os alforjes, ele não conseguiu manter as mãos firmes o suficiente para a ajudar a esvaziá-los. Atrás da sela havia um cobertor enrolado. Foi buscá-lo, depois peou o cavalo e deixou-o procurar forragem. Havia bastante erva e o animal comeria melhor do que eles.
Ana já não pensava no que estava a fazer. O corpo limitava-se a executar as tarefas necessárias na ordem que parecia mais adequada. Faolan tinha o rosto lívido e tremia, ostentando uma expressão que a preocupava mais do que estava disposta a admitir. Soltou os laços que prendiam o cobertor. Estava quase seco na zona onde fora enrolado, de certeza a coisa mais seca que ambos possuíam. Todas as suas roupas estavam ensopadas e a noite ia arrefecendo.
— Toma — indicou. — Despe a camisa e a túnica. Enrola-te com isto. E diz-me que há uma pederneira algures nestes sacos.
— Tu...? — conseguiu Faolan dizer ao receber o cobertor.
— Tenho de fazer uma fogueira. Despe a roupa. Não estamos no Monte Branco. Se me queres ajudar, tens de te aquecer.
Fitou-a, os olhos negros no rosto ainda desprovido de cor. Não tentou despir as roupas molhadas.
— Será que tenho de te despir como se fosses um bebê? Deixa-me explicar-te. Não consigo chegar sozinha a Briar Wood, Faolan. Preciso de ti. Agora, faz o que te digo. Se conseguir fazer lume, pode ser que consigamos secar as nossas coisas. Pederneira? Onde?
Faolan apontou, as mãos a tremer.
— Madeira... molhada... — murmurou, fazendo um esgar de dor enquanto tentava passar a túnica pelo braço ferido.
— Cala-te! — disse Ana, encontrando a pederneira e, para seu grande alívio, mechas secas guardadas num saco impermeável. — Acontece que há uma reserva de lenha antiga ali em cima, debaixo da saliência da pedra. Já cá estiveram outros. Não sou estúpida.
Fazer lume exigiu uma série de tentativas. Também as suas mãos não estavam firmes e tinha os braços tão cansados que mal conseguiu reunir forças para fazer uma faísca. À medida que o Guardião das Chamas mergulhava no horizonte e a noite caía, a sua própria chama minúscula ganhou vida e o tronco seco que arrastara até ao centro daquele espaço aberto começou a arder. Procurou qualquer outra coisa que pudesse ser utilizada como combustível. Ao longo da caverna baixa havia galhos, ramos estreitos e caruma, talvez armazenados à pressa por outros, na eventualidade de um tal acampamento improvisado.
Faolan mal se mexera. As roupas encharcadas encontravam-se num monte. Ele estava sentado enrolado no cobertor, a fitar o lume. Ana interrogou-se se alguma vez voltaria a sentir-se quente. Faolan não dissera nada sobre o que acontecera. Não havia necessidade de o dizer, pensou Ana. Os olhos diziam tudo.
Os alforjes eram os de um viajante experiente. Ana retirou o que teria utilidade imediata: um odre cheio de água, um pacote com tiras de carne seca, escura e dura, uma camisa, de corte simples, feita do que parecia ser um linho de grande qualidade. Um par de calças de lã escura. Tinham estado bem enroladas com uma cobertura protetora e encontravam-se quase secas. Eram as suas roupas boas, para Briar Wood. Afinal de contas, era o emissário pessoal do rei.
— Tu — disse Faolan. — Veste-as. Secas.
— Eu? — Ana fitou-o. — São as tuas roupas especiais. Além disso...
— Havia um argumento nos recônditos da sua mente, algo que tinha a ver com o que era digno para uma dama e com o que as pessoas iriam pensar. Depois do que acontecera naquele dia, parecia irrelevante.
— Devias vesti-las — indicou. — Estás gelado.
— Veste-as — disse-lhe Faolan. — Tenho o cobertor. Veste-te.
— Acho que não... — começou ela a protestar.
— Veste-as, Ana. Eu não olho.
Ela assim fez e sentiu-se estranha por estar vestida como um homem, embora as calças permitissem uma liberdade de movimentos que facilitou bastante o recolher da lenha e o estender a roupa molhada junto à fogueira.
Ana instalou-se em frente do lume com a camisa ensopada numa mão e a faca que Faolan lhe dera na outra, começando a rasgar a peça de roupa em pedaços pequenos e utilizáveis. Pelo menos esses secariam depressa. Faolan observava-a, uma dúvida na expressão.
— Coisas de mulheres — disse ela, pensando que o que apenas no dia anterior fora algo demasiado embaraçoso para comentar não passava naquele momento de uma banalidade. — Vou precisar disto por mais um dia ou dois.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Sinto muito — disse Faolan, com um tom de voz tão baixo que ela mal o ouviu.
— Pelo quê? Por agora termos de falar sobre tais assuntos de forma aberta? Por ser obrigada a rasgar as minhas belas roupas por uma razão tão mundana?
Não houve resposta. O que ficou por dizer pairou entre eles, uma sombra negra.
— A culpa não é tua, Faolan — disse Ana, com um tom diferente. A voz autoritária e brusca que mantivera durante tanto tempo desaparecera subitamente. — Aconteceu. Podia culpar-me por ter causado o atraso. Não vale a pena. Estamos aqui. Por qualquer razão que só os deuses sabem, sobrevivemos. Temos de continuar. Não há mais nada a fazer. Toma. — Entregou-lhe uma faixa do belo linho. — Segura isto para que seque. Vamos ter de enfaixar esse braço de forma adequada.
— Não é nada. É só um arranhão.
— Mesmo assim, prefiro que fique razoavelmente limpo. Imagino que queiras voltar a poder usar o braço como antes. Se deixas que entrem maus humores na ferida, nunca se sabe o que pode acontecer. Eu trato disso, quando a ligadura estiver seca.
Havia coisas a fazer, pequenas tarefas para adiar o momento em que nada mais haveria, a não ser a escuridão e as recordações desse dia. Forçaram-se a comer um pouco de carne seca, mesmo nenhum deles tendo apetite. Beberam do odre. A chuva formara poças por entre as pedras. Juntamente com a erva, o cavalo ficaria bem tratado. Ana enfaixou o ferimento de Faolan, apesar dos protestos do homem, que dizia ser capaz de o fazer sozinho.
— O que é isto? — perguntou Ana quando enrolava com cuidado o tecido em volta do braço musculoso e viu, acima da pele rasgada e da carne ensangüentada da nova ferida, uma cicatriz mais antiga, de um ferimento mais profundo, curado havia muito.
— Isso? Da primeira vez que encontrei Bridei, ele trespassou-me com uma flecha. Felizmente, não pretendia causar-me danos sérios, apenas atrasar-me.
— Bridei? Por que faria ele tal coisa? — Ana nem era capaz de imaginá-lo. Faolan era o mais leal apoiador de Bridei. No passado, considerara que essa era a única característica positiva de Faolan.
— Não gostou do som da minha voz. — O tom de Faolan foi brusco. A narrativa teria de esperar até poder falar pessoalmente com Bridei, ou com Tuala. Não. Isso não ia acontecer. Por momentos, esquecera onde estava e para onde teria de ir. Talvez se passassem anos, antes de voltar a ver os seus amigos. De repente, tudo voltou: Briar Wood, Alpin, o longo futuro entre estranhos. O fato de a sua própria família ter consentido o casamento, sem querer saber o que ela pensava. Era como se tivesse deixado de existir, salvo como peça de um jogo. Mas naquele dia, perante a mágoa e o horror, sentia-se mais real do que nunca.
— O que foi? — Faolan mirou-a, enquanto Ana atava as pontas do linho e voltava a endireitar-se.
— Nada. — Sentia-se à beira das lágrimas. Era tolo, depois de tudo o que acontecera, começar a chorar.
— Alguma coisa foi. Estás perturbada.
Não lhe diria a verdade. Pareceria fraca e patética. — Aqueles homens, os que nos atacaram... e se nos encontrassem aqui? Faolan pareceu meditar antes de responder.
— Poderia descansar-te com uma mentira — disse-lhe —, mas sei que o perceberias. Com toda a sinceridade, neste momento estou muito fraco para te defender, mesmo contra um único homem armado. Faria o melhor que pudesse. Amanhã já estarei mais forte. O mais provável é que eles não tenham homens de ambos os lados do rio. O homem de Ged identificou-o como sendo uma fronteira entre os territórios de chefes rivais.
— Oh. — Ana ponderou por momentos. — Quer dizer que já nos encontramos no domínio de Alpin? Em Briar Wood?
— Devemos estar perto. Era melhor que tentasses dormir, Ana. Estás exausta.
— Tu também. Mas a fogueira... temos de ficar alerta...
— Nunca durmo muito. Toma... — Estava a tirar o cobertor e a entregar-lho. Ana pensou que, dadas as circunstâncias, a visão do peito nu do homem não era nada com que se devesse preocupar. Imaginava o que Creisa diria. Creisa... tão vibrante, tão cheia de vida. Tão jovem...
— Deita-te — disse Faolan. — Tenta descansar.
Ana fitou-o, o cobertor nas mãos, e Faolan retribuiu o olhar. As chamas tremeluziam-lhe na pele. Procedia a um esforço disciplinado para não tremer.
— Faolan — disse Ana.
Envolveu o peito com os braços e, nesse momento, Ana viu um homem diferente, alguém jovem, cansado e profundamente solitário.
— Não acredito que agora te sintas melhor do que eu — comentou Ana. — Está muito frio. Seria estúpido morrer de frio só por causa do que é próprio. Acho que podemos partilhar o cobertor. Ninguém precisa de saber.
— Não tenho necessidade de dormir.
— Se acreditas nisso, não sei por que motivo Bridei te confiou esta missão. Pensa da seguinte forma. Estou gelada até aos ossos e preciso de ti e do cobertor para me aquecer. Por mais indecente e desagradável que isso seja, vais fazê-lo, se queres completar a missão e levar-me a Briar Wood.
— Falaste como uma verdadeira princesa. Ana sentiu a cor invadir-lhe as faces.
— Estou apenas a fazer o que a minha amiga Ferada faria, caso estivesse aqui. A outra Ana, a que gosta de bordar e de cantar, é essa a verdadeira. — Sentiu as lágrimas a escorrer e levou a mão ao rosto para limpá-las.
— Estou preparado para obedecer a ordens razoáveis — declarou Faolan. — Toma.
Ana ficou espantada. Era bom estar deitada com ele atrás de si, encolhido para a acomodar e com o cobertor sobre ambos. O chão era duro. A caverna baixa estava cheia de correntes de ar, mesmo com as árvores que a protegiam e com a fogueira. Visões indesejadas digladiavam-se por um espaço na sua mente, o que fazia com que as lágrimas jorrassem quentes. Mesmo assim, era bom. O braço por cima dela, o coração que batia nas suas costas pareciam forças protetoras de poder imenso.
Faolan dizia qualquer coisa.
— O quê?
— Como conseguiste? Como foste capaz de encontrar forças para me puxar, contra a corrente?
— Rezei. Os deuses ajudaram-me. O Guardião das Chamas não abandona facilmente um homem de grande coração. Foi ele quem te salvou, não fui eu.
Silêncio. Podia sentir a respiração de Faolan, um pouco irregular. Imaginou que as visões que o atormentavam fossem ainda mais sombrias do que as suas. Já sabia que a missão estava em primeiro lugar na mente dele. Chegara a utilizar esse fato para o incitar, quando as forças o abandonavam. Devia acreditar que fracassara profundamente. Que desapontara o seu rei. O seu amigo.
— Não confio nos deuses — disse Faolan.
— Isso não impede que eles te ajudem. Que te amem.
— Então os deuses são idiotas. O seu julgamento é errado. Não sou um homem de grande coração, Ana. Não sou um homem como Bridei.
— Espero que um dia venhas a perceber como estás errado. O que aconteceu foi um acidente, um terrível acaso. Não foi obra tua.
— Não existem deuses — murmurou, virando-se de costas. — Pelo menos para mim. Eles rejeitaram-me há muito.
— Mas...
— A responsabilidade do que aconteceu foi minha, de mais ninguém. Uma maldição, uma escuridão.
Ana não disse nada. Era óbvio que Faolan não se referia apenas ao dia que terminara, mas ao passado, a qualquer coisa que trouxera consigo, talvez o mesmo que o mantivera acordado junto ao lume todas aquelas noites, a velá-la enquanto os seus homens dormiam. Não lhe pediu que se explicasse.
— Tenho frio — disse, após uma pausa. — Importas-te de voltar a aproximar-te?
Quando ele o fez, voltando a envolvê-la com o braço protetor, a confusão de sentimentos que a assolava tornou-se demasiado forte. Começou a chorar como uma criança, a soluçar sem parar.
— Está tudo bem — consolou-a Faolan, e sentiu a mão dele a acariciar-lhe o cabelo. Voltou a falar, mas em gaélico, e o conhecimento limitado que tinha da língua impediram Ana de perceber mais do que uma palavra aqui e ali. Talvez lhe estivesse a contar uma história. O ritmo suave acalmou-a, mesmo fazendo com que chorasse com mais força. A seu tempo, sentiu que já não tinha mais lágrimas e deixou-se ficar, com o calor do toque dele, o som da sua voz uma proteção contra as incertezas da noite e da manhã que se seguiria.
Mais tarde, quando talvez ele pensasse que Ana adormecera, cantou um trecho da melodia que escutara dos seus lábios quando tinham atravessado o outro rio, a canção sobre um viajante e a sua amada do
Outro Mundo. Em casa, na corte do rei das Ilhas Pequenas, Ana escutara os melhores bardos. Ouvira as prestações de músicos talentosos na casa de Bridei, no Monte Branco. Mas nunca, até então, escutara uma voz como aquela, tão doce e cheia de mágoa. Pouco importava que não compreendesse a maioria das palavras. Sabia que ele cantava de esperanças desfeitas, de ideais de juventude dilacerados, de laços de amor severamente cortados. Mesmo assim, a canção era sedutora, como uma melodia para lá da fronteira, chamando-a para um mundo diferente. O som límpido e triste envolveu-a como um manto macio, e adormeceu.
— O Rei Bridei deve julgar que sou um idiota — observou Alpin de Briar Wood, apoiando a face corada na mão, enquanto fitava a taça de cerveja. — A oferta não te deixa curioso em relação ao motivo de tanta pressa?
O companheiro franziu os lábios e as sobrancelhas.
— Não há dúvida de que se trata de uma resposta a alguma informação que recebeu — disse Odhar. — Provavelmente vinda de Dalriada. Quem andará a falar? Pensei que ninguém soubesse das nossas negociações, para além de nós e dos senhores dos Uí Néill. Poderá haver um espião Priteni no coração de Dunadd? Será o Rei Bridei um mago que consegue descobrir segredos onde mais ninguém é capaz de penetrar?
— Diz-se que foi criado por um mago — replicou Alpin com um tom sério. — Um homem chamado Broichan, poderoso e desleal. O que significa que esta história tem muito que se lhe diga. Será possível que pretendam avançar mais cedo? Talvez antes do degelo da Primavera?
— Ou ainda mais cedo — sugeriu Odhar, um homem magro com os farrapos de um vagabundo. Era o tipo de pessoa para quem nunca se olhava duas vezes, uma aparência conquistada com muito esforço.
As sobrancelhas negras de Alpin ergueram-se, descrentes.
— Antes do Inverno? Não pode ser. Pelo que ouvi, Fortriu tem um conselho marcado para a Reunião. Estão à espera do Rei de Circinn em pessoa. Qual poderia ser o objetivo de tal encontro, a não ser planear um assalto concertado contra Gabhran, a ocidente? Bridei não estará a planear o ataque para o Outono, se Drust, o Javali, só vai ser consultado na altura das colheitas.
Odhar aquiesceu. Estava a beber pouco, pois tinha um caminho longo à sua frente.
— O que dizes faz sentido, Alpin. Mesmo assim, tens de pensar que isto pode ser uma tentativa deliberada de te confundir. Um estratagema imaginado pelos conselheiros de Bridei, druidas, magos e mulheres sábias, todos eles inimigos difíceis. Ele chegou mesmo a casar com uma mulher dos Boa Gente. Qual o rei que faria isso? Parece um ato de um jovem tolo.
— Mas?
— Sabes o que tem sido dito, que este rei despertou qualquer coisa em Fortriu, algo velho e perigoso. Que o povo se junta à sua bandeira. Que pode ser ele a conseguir o que nenhum outro rei dos Priteni alcançou até agora: uma vitória total sobre os Celtas de Dalriada.
— E oferece-me uma noiva, assim, sem mais nem menos. Apresenta-me uma iguaria para me levar a afastar-me da aliança com Gabhran. Dezoito anos de idade e dona de uma beleza rara, assim rezava a mensagem. Um exagero, sem dúvida. Se é uma beleza rara, por que não se casou nos últimos seis anos, ou mais?
— Vais recusar, é claro — disse Odhar, com um tom de declaração. — Vais enviá-la de volta de imediato.
Os lábios carnudos de Alpin curvaram-se num sorriso.
— Não necessariamente — replicou. — Primeiro vou examiná-la. Afinal de contas, não sou casado, não tenho herdeiros legítimos e, se a mensagem for verdadeira, esta rapariga tem uma ascendência impecável, nada menos do que a linhagem real de Fortriu. Posso decidir aceitar a generosa oferta de Bridei.
— Mas... — começou Odhar a dizer, mas acabou por reconsiderar.
— Não tires conclusões precipitadas, meu caro amigo celta — disse Alpin. — Sou um homem mais subtil do que este menino rei. Se fizer a jogada certa, irei alcançar o meu objetivo e, ainda por cima, ficarei com o direito a ser pai de um futuro rei dos Priteni. Se gostar do aspecto desta rapariga, experimento-a, para ver se ela dá à luz rapazes. Se não me agradar, envio-a para casa, com uma mensagem para Bridei, a dizer-lhe que não se meta onde não é chamado. Não vejo como posso sair a perder. Assim que tiver levado a rapariga para a cama, Bridei não poderá reclamá-la de volta, quando decidir que já não se importa que eu faça amigos novos.
— A carta dele exige alguma coisa em relação a Dalriada? A oferta está dependente do teu afastamento total do conflito?
— Foi mais implícito do que declarado. Se Bridei não tivesse já enviado a rapariga...
Uma batida rápida numa pequena porta interior sobressaltou os dois homens. A sua conversa era secreta, com um guarda posicionado no exterior da câmara onde falavam acompanhados de cerveja. As visitas de Odhar a Briar Wood eram secretas e poucos da casa alguma vez lhe tinham visto o rosto.
— Não quero ser incomodado — resmungou Alpin. Voltaram a bater.
— Eu disse para não me interromperem! — Alpin levantou-se, um homem imponente, com a cabeleira espessa e a barba exuberante a acentuarem o efeito. Tirou uma chave do bolso, dirigiu-se à pequena porta ao fundo da sala, destrancou-a e abriu-a ligeiramente. Atrás dele, Odhar puxou o capuz para a frente, a fim de ocultar as feições. — É bom que seja importante — disse Alpin com um tom brusco. — Estou em reunião.
— Lamento a interrupção, meu senhor. — O homem à porta era baixo, calvo e possuía ombros largos e um peito vasto. Vestia uma túnica escura comprida, aberta de lado, o que deixava ver calças largas, e trazia um bordão. — O teu irmão deseja ver-te. Diz que é urgente.
— O meu irmão pode esperar — silvou Alpin, enquanto olhava sobre o ombro para o visitante. — Sabes que não podes vir à minha procura sempre que ele o deseja, Deord. Falo com ele depois do jantar, como sempre faço. Pode esperar.
Deord ergueu o olhar para Alpin. A postura descontraída e a expressão calma faziam-no parecer bastante mais alto do que era.
— Ele diz que não, meu senhor. De outra forma, não te viria incomodar. Diz que viu uma coisa que tem de ser imediatamente...
— Não me ouviste? Mais tarde!
— Viajantes — disse Deord calmamente, enquanto a porta se fechava na sua cara. — Um homem e uma rapariga loura de beleza invulgar. A escolta foi atacada pelos Azuis, em Breaking Ford.
A porta deixou de se mover.
— E? — questionou Alpin.
— Drustan poderá contar-te — replicou Deord. — Não fui eu que o vi. Eles estão em perigo.
Alpin praguejou entredentes. Deord aguardou, silencioso e imóvel.
— Diz ao meu irmão que irei ter com ele daqui a pouco — resmungou o chefe tribal.
Deord fez uma vênia e afastou-se. A porta foi fechada.
— Malditos criados — disse Alpin. — Receio ter de te deixar. Já acabamos?
— Quer tenhamos acabado ou não, terei de partir — respondeu Odhar. — Quero estar a caminho do sul antes que chegue a noite. A tua mensagem permanece inalterada? Esta oferta de Bridei não vai interferir com a tua decisão?
Alpin sorriu, os olhos frios.
— De todo, exceto que talvez prepare os meus homens um pouco mais cedo do que imaginava. A frota estará pronta. Vão trabalhar nos barcos ao longo do Verão. Espero ter mais informações em breve. Com efeito, a fonte pode encontrar-se mais próxima do que alguma vez esperei.
— Imagino que não nos voltaremos a encontrar nos tempos mais próximos — declarou Odhar, levantando-se. — A minha esfera de influência não inclui os campos de batalha.
— Nunca se sabe. — O tom de Alpin era ligeiro. — Adeus. Boa viagem.
Com a partida do convidado, o chefe de Briar Wood dirigiu-se, com passos longos e impacientes, à zona distante da fortaleza onde o seu irmão Drustan se encontrava. Era uma grande caminhada, através de telheiros e de passagens estreitas, todos eles acessíveis somente pela entrada trancada nos seus aposentos privados. Ninguém encontraria Drustan por acaso. O último troço levou Alpin a descer um percurso entre muralhas altas, perfuradas por janelas minúsculas. Através delas, viam-se lampejos do mundo exterior: uma faixa de verde pintalgado, um aglomerado escuro de pinheiros, o brilho da água sob o sol primaveril. Acima das muralhas, os imponentes ulmeiros de Briar Wood ofereciam as suas coroas a um céu pálido. Pássaros voaram a gritar e o som arrepiou a pele de Alpin. Detestava ir ali, pois era acometido por recordações. As mãos começaram a tremer-lhe e cerrou os punhos. Se pelo menos conseguisse fazê-lo, se pudesse acabar com tudo aquilo. Avançar, começar de novo. Uma esposa. Uma bela esposa jovem. Seria uma ferramenta poderosa para mudar. Mas não com o irmão preso a si. Não com Drustan ali enclausurado, sempre a arrastá-lo. Por que fora assim amaldiçoado? O que fizera para enfurecer de tal maneira os deuses?
As paredes curvavam-se, acompanhando o trajeto, e avistou o portão de ferro, o portão trancado que dava acesso ao lugar onde Drustan vivia com o seu guardião. Alpin pensou que, bem vistas as coisas, fizera o melhor pelo irmão. Os aposentos interiores eram limpos, privados e de tamanho razoável. Lá fora, havia uma extensão de relva, um banco, um pequeno lago. A área encontrava-se murada, é claro, e encimada por uma grade de ferro. Isso tornava sombrio o pequeno jardim. Drustan nunca mais veria A Que Brilha no seu esplendor, salvo esquartejada pela barras daquela cela aberta. Mas ainda bem. Na lua cheia era quando se tornava mais instável.
Alpin sabia que podia ter sido muito menos generoso. Decerto haveria quem encerrasse o seu irmão numa masmorra, para nunca mais ver a luz do dia. O crime que ele cometera era uma boa razão para tal. Mas Alpin não o fizera. Apesar de todo o mal e da sua estranheza, Drustan era do mesmo sangue. Ele que visse o céu, desde que não pudesse voar para longe.
Deord destrancou a porta de ferro a pedido de Alpin e voltou a trancá-la depois de o chefe ter entrado.
— Onde está ele? — Alpin já se encontrava inquieto. — Não tenho muito tempo.
— Ali, junto à parede.
Alpin espreitou para o canto sombrio do recinto, seguindo o bordão apontado de Deord.
— Está acorrentado?
Um lampejo de expressão percorreu o rosto do homem mais baixo.
— Cumprimos as tuas exigências, meu senhor, como sempre. Alpin fitou-o com severidade, desconfiado do tom obediente, mas
Deord parecia calmo e descontraído, tal como era habitual. Para um homem tão musculoso, alguém cujo menor gesto revelava um poder controlado, o guarda de Drustan exibia um temperamento bastante estável. Alpin julgava que esta combinação era a ideal para o guarda do irmão. Por vezes interrogava-se sobre se Deord seria algo mais do que aparentava, mas o indivíduo nunca exibia grande coisa. Alpin dirigiu-se ao canto onde se encontrava a figura de Drustan, um homem alto, tal como o irmão, mas magro e nodoso, sem a imponência de Alpin. Uma madeixa de cabelo arruivado caía entre os ombros de Drustan. Tinha os punhos cerrados. Estava encostado à parede de pedra, a cabeça inclinada para trás, os olhos fechados. Num nicho próximo, três pássaros estavam empoleirados ao lado uns dos outros, fitando Alpin: uma gralha, um cruza-bico e uma carriça minúscula. Alpin retribuiu-lhes o olhar. Detestava as criaturas que pareciam assombrar aquele lugar, e que entravam e saíam pelas aberturas ínfimas da grade. A sua imobilidade sobrenatural perturbava-o. Drustan mexeu-se quando o irmão se aproximou e ouviu-se o retinir do metal.
— Finalmente! — exclamou Drustan, abrindo os olhos de repente para fitar o irmão com a selvajaria que arrepiava sempre Alpin. — Ela está em perigo... perdida e assustada... precisa de ajuda...
— Então, vá lá. — Alpin procurou usar um tom apaziguador, como o que utilizaria com uma criança assustada, ou com um cavalo temperamental. — Vamos com calma, Drustan. Anda, vem sentar-te no banco, respira fundo e...
— O vau... Breaking Ford... foram apanhados pelos Azuis e um homem tombou, e depois o rio levou-os...
— Drustan! — O tom mudara. Alpin falava agora como se estivesse a dirigir-se a um cão desobediente, uma ordem brusca, e apontou para o banco. O irmão deslocou-se. Foi seguido por uma melodia metálica quando a corrente fina que unia as grilhetas de metal que tinha nos pulsos, seguindo depois até uma argola presa ao banco, se moveu a seu lado. Drustan não se sentou, talvez por não ser capaz, pois encontrava-se tomado por uma energia vibrante, uma agitação profunda, e mudou o peso de um pé para o outro, movendo as mãos e fazendo soar o metal.
— Pára com isso! — disse Alpin bruscamente, irritado. — O que viste? Diz-me com palavras simples, como se fosse uma história. Quem lá estava? Uma mulher, segundo Deord. Que mulher? Tenho de saber tudo. Devagar, Drustan.
— Um grupo de viajantes. Um ataque. Não consegui ajudá-los. Não consegui avisá-los, tentei, mas não fui capaz... os Azuis chegaram. Um homem morto, outro ferido. Uma enchente... uma onda, terrível e repentina, como a fúria da Mãe de Tudo... tantos tombados, desfeitos, espalhados... todos arrastados, arrastados para o fundo...
— E depois? — incitou Alpin, com um suspiro.
— Ela foi corajosa. Tão corajosa. Tão bela. Como a princesa de uma canção. Salvou um homem. Desapareceu tudo, cavalos, homens, bagagem... não sobrou nada. Fria... molhada... solitária... Tens de ajudá-la, Alpin. Vai. Agora!
— Essa mulher. Dizes que era bela como uma princesa. Era jovem? Bem vestida?
Drustan ficara em silêncio. O olhar alterou-se, aqueceu.
— Drustan!
— Uma princesa. — O tom da voz era mais baixo. — O cabelo parece um rio de ouro. Os olhos cheios de coragem. Jovem, sim. E triste.
— Onde estão agora?
— A caminho de Briar Wood, pela estrada velha. Um homem, uma mulher e um cavalo exausto. Um pequeno lume à noite. Tens de ir, Irmão, vai e encontra-a. Ela tem frio.
— Um homem. Que homem? Drustan não respondeu.
— Que homem, Drustan? Que o Corvo Negro nos ajude, tens sempre muito para dizer quando te interessa. Por que não és capaz de dar respostas simples?
Deord moveu-se ligeiramente. Observava à distância, a expressão impassível, o bordão nas mãos. Alpin agradeceu o fato. Nunca sabia o que o irmão poderia fazer, ou para onde se deslocaria. E Drustan era rápido. Sempre o fora.
— Um homem sombrio — disse Drustan. — O seu companheiro.
— Um guarda?
— O seu companheiro.
— Bem vestido? Armado? Um guerreiro? Um cortesão?
— Um homem sombrio — repetiu Drustan. — Vai, Alpin! Ajuda-a!
— Por estranho que pareça — disse Alpin, levantando-se —, desta vez concordo contigo. Trata-se, decerto, da noiva escolhida para mim pelo Rei Bridei, de Fortriu. Jovem, bela e a dirigir-se para cá... não consigo pensar em mais nenhuma explicação. Vou enviar um grupo ao seu encontro. Ou... por que não? Vou buscá-la pessoalmente.
Passaram seis noites em acampamentos miseráveis, seis noites aquecidas por pequenas fogueiras e pelo corpo um do outro debaixo do cobertor partilhado. Faolan começara a recuperar as forças. O braço sarava bem, ajudado pelas ligaduras novas que Ana insistia em aplicar todas as manhãs. O fato de já não sentir o desespero esgotante da primeira noite era, de certa forma, um inconveniente. Assim que a exaustão desaparecera, o desejo físico começou a tornar-se evidente. Os esforços para ocultá-lo de Ana, enquanto esta adormecia encolhida contra ele, mantinham-no acordado até de madrugada. Não podia recusar-se a deitar-se junto dela, pois as noites eram frias. Não podia, de todo, explicar-lhe o que se passava. Mesmo com dezenove anos, pensou, era uma inocente e ficaria chocada e assustada se lhe contasse a verdade. Naquelas circunstâncias, seria demasiado fácil aproveitar-se dela. Ser obrigado a pensar nisso mostrava o ponto onde chegara a sua autodisciplina.
Certa manhã, nenhum deles se sentiu obrigado a continuar. A medida que viajavam, o torpor do choque que se seguira às suas perdas no vau fora gradualmente substituído por uma tolerância entre eles, pela aceitação de que o que lhes acontecera viera alterar a fundo as regras e o constrangimento da missão. A conversa tornara-se mais simples e surgira uma nova confiança na partilha das responsabilidades diárias.
Tinham acampado numa depressão relvada junto a um pequeno ribeiro e o sol nascera trazendo consigo a promessa da Primavera: os pássaros cantavam nas árvores que rodeavam a água; pequenas flores garridas floresciam em maciços aqui e além, no meio da erva, e o ar estava fresco com o aroma da renovação. Mas o coração de Faolan encontrava-se mais uma vez pesado, algo que não desejava exprimir em palavras, nem mesmo para si próprio. Pelos seus cálculos, estavam perto do baluarte de Alpin. Mais um dia ou dois e chegariam, dando por concluída a maior parte da missão. Com tais perdas, nunca poderia considerá-la um sucesso. Mas entregaria aquela noiva ao futuro marido. Selaria a aliança para Bridei e regressaria ao Monte Branco com a novidade. Ao olhar para Ana, sentada do outro lado da fogueira, a soltar os nós do cabelo longo com o pequeno pente de osso que trazia no saco, reconheceu dentro de si o desejo poderoso de não ter de fazê-lo. Não queria entregá-la a um homem desconhecido e deixá-la o resto da vida entre estranhos.
Ana ergueu o olhar, talvez ciente de estar a ser observada.
— Faolan?
— Mmm?
— Quanto tempo julgas que deve faltar? Estamos perto da orla de Briar Wood, não é?
Faolan tentou sorrir.
— Estás a ficar com fome? Ana fitou-o.
— Aceitaria de bom grado uma refeição diferente daqueles pedaços de couro, isso é verdade. Mas não é por isso que pergunto.
— Talvez dois dias — respondeu ele. — Temos de atravessar florestas densas. Os caminhos podem enganar-nos e tornar a viagem mais longa. Sinto muito pela comida. Se tivesse trazido um arco...
— Não serviria de grande coisa com o braço nesse estado — atalhou Ana, com severidade. — Nunca esperei que me desses refeições faustosas e uma cama de penas fofas, Faolan. Cresci na ilha. Não foi uma existência mimada.
— Mesmo assim — replicou. — Gostaria de tas poder dar. Até agora não me saí muito bem.
— Se ajudar — retorquiu Ana —, deixa-me dizer-te que, de todas as pessoas que conheço, é a ti que escolheria para me acompanhar e ser meu protetor numa viagem como esta. Não queria mais ninguém.
Faolan permaneceu em silêncio.
— Não era assim quando partimos do Monte Branco. Não gostei daquelas aulas de equitação. Tinhas um ar de censura e eu não gosto de ser julgada por pessoas que não se tenham dado ao trabalho de me conhecer. Tenho pena que não possas ficar muito tempo em Briar Wood.
— Eu não — disse ele, profundamente desgostoso por ter de vê-la casar-se com um homem que apenas a valorizava pela linhagem. Imaginou que a viagem o tivesse enlouquecido, pois tais pensamentos não tinham lugar na mente de um guarda contratado. E, ao escolher ignorar todo o seu passado, era exatamente isso que ele era.
— Oh — disse Ana, deixando a cabeça pender como uma flor murcha.
— Não era isso que eu... o que eu queria dizer...
— Eu compreendo, Faolan — interrompeu Ana, com uma cortesia ponderada, voltando a agarrar no pente. — Tens de voltar ao Monte Branco. Tens de levar a Bridei a notícia das nossas terríveis perdas, e dizer-lhe que a aliança com Alpin está selada.
— Vou ficar pelo menos um ciclo da lua. As instruções de Bridei foram claras. Não quer um acordo formal até que eu esteja certo da lealdade de Alpin.
Para isso, Ana não teve resposta.
— Ou se tu... se por acaso tu... — Não. Não iria transformá-lo em palavras.
— Se não gostar dele? Acho que isso nunca se pôs em questão — disse Ana, com a voz tensa.
— Ana...
— O que foi?
Faolan ia revirando uma folha entre os dedos.
— Já to perguntei antes, mas vou perguntar mais uma vez. Se tu... se não houvesse dever, se fosses livre de escolher, o que farias agora?
Ana ficou em silêncio por alguns instantes, enquanto ponderava a questão. Depois respondeu num murmúrio:
— Não vou mentir-te. Iria pedir-te que me levasses para casa. Para o Monte Branco. Acho que preferia envelhecer como a tia solteirona de Derelei a concluir esta viagem. No fundo, não passo de uma cobarde. E quanto a ti?
— Eu?
— O que farias, se tivesses liberdade de escolha?
— Não posso dizer-te — respondeu. — Além disso, não posso ter liberdade de escolha. Sacrifiquei-a há muitos anos.
— Para servir Bridei, queres tu dizer? Abanou a cabeça.
— Oh, não. Isso foi uma espécie de libertação. Refiro-me a algo muito anterior. Quando era um rapaz.
— Contas-me essa história?
A voz dela era doce aos seus ouvidos. Sentiu o perigo e reprimiu-se.
— Não vale a pena contá-la — retorquiu. — Temos dois dias. Depois voltas a ser Lady Ana e eu misturo-me no anonimato da casa de Alpin para fazer o trabalho pelo qual Bridei me paga.
— Ainda bem que vais ficar, mesmo que por pouco tempo. Bridei disse-me que eras um bom amigo e na altura respondi-lhe que tal me custava acreditar. Agora acredito.
— Bridei é demasiado rápido a conceder o estatuto de amigo a quem não passa de um servo leal.
— Isso é um disparate e sabe-lo bem — replicou Ana. — Ele confia nos teus conselhos, na tua força, no teu apoio. Vê-te através das muralhas que erigiste em teu redor. Quanto a ti, julgo que estiveste a seu lado em alturas difíceis.
Faolan recordou o Inverno em que pela primeira vez estivera ao serviço de Bridei. Ele e os seus camaradas guardas vigiaram um jovem nobre abalado e doente, após a sua primeira e única observância do sacrifício do Portal, na Fonte das Sombras. Recordou a viagem desesperada pela neve, desde Caer Pridne até Pitnochie, e o velho e bravo cavalo que o levara até Bridei, a tempo de retirar o futuro rei, já meio afogado, do lago da visão. Ana era perspicaz. Vira o que ele julgara ter ocultado.
— Quero pedir-te um favor — disse Ana.
— O quê?
— Se vamos chegar daqui a dois dias, devia tentar limpar-me. Gostaria de estar apresentável quando Alpin me vir. Há um lago a jusante e o dia parece vir a ser quente. Quero tomar banho, lavar o cabelo e vestir as minhas roupas. Podes ficar com estas de volta. Estão mais limpas do que as que estás a usar. E não fazia mal se te lavasses.
Olhou-a então, imaginando-se na pele de Alpin quando os viajantes saíssem do bosque e se dirigissem ao portão da fortaleza. A pele de Ana era pálida como um lírio e tinha o rosto manchado com cinza da fogueira. Com a túnica e as calças, com o cinto apertado em redor da cintura estreita, parecia mais do que nunca uma mulher. As vestes demasiado largas não lhe ocultavam as curvas graciosas do corpo, os seios redondos, a curva das ancas, as coxas bem moldadas. Estava a voltar a entrançar o cabelo. A poeira da viagem escurecera-o até à cor do mel e reduzira-lhe a exuberância, mas não deixava de ter uma beleza rara, era uma catarata sedosa, um feixe de luz viva, um manto primaveril. Fitou-lhe os olhos, cinzentos e límpidos, que pareciam apelar-lhe diretamente ao coração.
— Os teus receios são infundados — disse-lhe. — Alpin vai ficar satisfeito, acredita. — E queria dizer-lhe, És linda, mas silenciou essas palavras antes que lhe deixassem os lábios.
Um rubor delicado deu cor às faces de Ana. Susteve-lhe o olhar, como se procurasse discernir se ele era, deveras, capaz de mentir, simplesmente para lhe agradar.
— Mesmo assim, gostava de lavar-me — disse. — Tanto por mim, como por Alpin. Estar com o melhor aspecto possível, ou pelo menos tentar, dar-me-ia coragem.
— Depois de tudo o que fizeste, precisas de coragem para o que se segue? Depois de tudo o que fizeste no vau? Arriscaste a tua vida para me salvar. — Estava incrédulo.
Ana olhou para as mãos. Quando respondeu, a voz parecia a de uma criança.
— Tenho muito medo disto, Faolan. Preciso de toda a ajuda que consiga.
Deixaram-se ficar junto ao ribeiro. Pouco falaram, descansando em silêncio, satisfeitos com a companhia um do outro. O cavalo pastava solto. Naquela extensão de terra, as ervas cresciam em abundância e o animal não tinha razões para se afastar. Faolan pensou que seria um dia a guardar na memória, a ser usado como um talismã precioso que o encorajaria quando tudo aquilo terminasse. Sabia que, para ele, não voltaria a ter um dia assim, um curto espaço de tempo que parecia destacar-se da vida normal de um homem ou de uma mulher. Um dia que não fazia parte dos afazeres turbulentos, sendo, simplesmente, uma dádiva.
Ao meio-dia, o tempo aqueceu o suficiente para ele descalçar as botas e despir a túnica, e deitou-se na erva com a camisa e as calças sujas da viagem. Ana estava sentada nas pedras junto ao ribeiro, com os pés descalços na água e a trautear uma melodia. Faolan levantou-se, pretendendo dizer a Ana que, se fazia questão de tomar banho, aquela seria uma boa altura. Tinha dado um passo na sua direção, quando um som o fez estacar. Ana ficou muito quieta. Também o ouvira. Havia movimento no bosque mais além do seu pequeno santuário: vozes, o bater de cascos, o tilintar de arneses.
Tinham ensaiado a situação, por mais exaustos que estivessem nos primeiros dias após o desastre no vau. Quando os cavaleiros se deixaram ver por entre os pinheiros na encosta, Faolan assumira uma posição forte e de desafio, uma faca de arremesso na mão esquerda e a espada curta na direita. Ana estava atrás dele, a segurar a arma que lhe fora dada.
Os cavaleiros avançaram em fila única. Aqueles homens não usavam as faixas azuis dos primeiros atacantes. A sua cor parecia ser o vermelho, presente nas túnicas sob a forma de um cão escarlate, identificando-os como membros de uma casa cujo chefe utilizava aquele símbolo. Eram homens grandes, tal como era habitual entre os Caitt, altos, de ombros largos e possuidores de cabelos longos e barbas cerradas característicos, alguns com tranças, outros em estado natural. Desceram a colina e pararam, dispondo-se por forma a que o líder ficasse com um homem de cada lado. Ambos os cavaleiros empunhavam lanças e as extremidades dessas armas apontavam o coração de Faolan. O emissário descontraiu-se, enquanto calculava a trajetória a ser tomada pela faca, mesmo sabendo que não a utilizaria, pelo menos com Ana ali. Tentar uma defesa era garantir o seu extermínio e a captura da jovem.
— Ora, ora — disse lentamente o homem ao centro, a sorrir —, o que temos nós aqui? — Não fez menção de desmontar. — Qual o teu nome e ao que vens? — A pergunta surgiu num tom diferente, brusco e perigoso.
— Posso fazer-te a mesma pergunta — replicou Faolan calmamente. — Como vês, tenho uma dama comigo, e estamos a atravessar algumas contrariedades, pois acabamos de ter um contratempo sério no vau a alguma distância daqui. A senhora está fraca e aflita. Precisamos da vossa ajuda e não de um interrogatório.
O líder Caitt observou-o ainda com mais atenção, com um ar nada amistoso.
— Apenas um idiota cruza aquela passagem na altura do degelo da Primavera — indicou. — Qual é a vossa demanda? Onde estão as tuas marcas de guerreiro? Tens aspecto e pronúncia de Celta. E que história é essa de uma senhora?
— Eu sou... — começou Faolan a dizer, mas nesse momento Ana surgiu de trás dele, de faca na mão, e a atenção de todos centrou-se na jovem. O olhar do líder Caitt percorreu-a de alto a baixo, analisando, avaliando. Ergueu as sobrancelhas em desprezo e franziu o nariz, como se atingido por um cheiro incômodo. Uma fúria cega apoderou-se de Faolan, que agarrou a faca com mais força.
— Apresento-te os meus cumprimentos — disse Ana, com uma voz doce. — Sou familiar de Bridei, rei de Fortriu, e dirijo-me a Briar Wood. O acidente de que fomos vítimas não teve nada a ver com o degelo. Fomos atacados e não tivemos alternativa, a não ser tentar atravessar o vau. Houve uma... — A voz fraquejou-lhe.
— Uma enchente repentina — completou Faolan. — A nossa escolta foi arrastada.
O líder Caitt desmontou, com os dois guardas a manterem a posição das lanças, ao mesmo tempo que outros se aproximavam, de armas em riste.
— Prefiro falar com a senhora — indicou o líder, com uma ligeira ênfase na última palavra, o que a tornava profundamente ofensiva. Os dedos de Faolan tremiam com a vontade de silenciar aquele homem com um golpe rápido na garganta. Não precisaria de mais do que um instante. — O teu nome, minha querida? — perguntou o indivíduo. Ana respirou fundo.
— Ofendes-me — retorquiu calmamente. — Não sou «querida» de ninguém. O meu nome é Ana, filha de Nechtan, princesa da casa real das Ilhas Pequenas. Dirijo-me a Briar Wood como futura noiva do chefe Alpin. Preciso da vossa ajuda. Agradeço a vossa escolta até ao baluarte de Alpin, se a puderes conceder. Viajamos desde o vau com alguma dificuldade. Perdemos a nossa bagagem e o meu companheiro está ferido.
— O teu companheiro. E quem é ele, exatamente? Faolan e Ana responderam ao mesmo tempo.
— Eu sou...
— Eleé...
Cruzaram o olhar. Faolan percebeu em Ana a mesma dúvida que ele começara a sentir. Não podiam ser homens de Alpin, os quais saberiam que se esperavam viajantes de Monte Branco. A situação era perigosa. Ana identificara-se, arriscando-se a ser feita prisioneira enquanto potencial refém, uma moeda de troca importante. E Faolan era uma fonte de informação. Sabia, por experiências passadas, o que tal poderia significar.
— O meu músico da corte — disse Ana, sem alterar o tom, o que o horrorizou profundamente, embora de seguida tivesse reconhecido, mesmo com relutância, a perspicácia que o tornara desde logo inofensivo. — Chama-se Faolan. Foi o único elemento da minha escolta que sobreviveu. — A voz que lhe vacilava não era fruto do artifício.
— Não deves magoá-lo, pois não representa uma ameaça.
O líder Caitt olhou para as armas nas mãos de Faolan, para a pose adotada, as pernas afastadas, os ombros direitos.
— Não me parece um bardo — resmungou.
— Não me resta outra proteção — comentou Ana, sem hesitar.
— Faolan está a fazer o melhor que pode. Por favor, recolhe as lanças. Estão a assustar-nos.
Era desconfortável ser emasculado com meia dúzia de palavras bem escolhidas, mas a artimanha de Ana parecia estar a resultar. O líder acenou brevemente e os guerreiros ergueram as armas um palmo ou dois.
— Se não vais ajudar-nos — continuou Ana —, pelo menos espero que nos deixes passar incólumes. Seguiremos pelos nossos próprios meios até Briar Wood. Isso, se nos encontrarmos no caminho certo.
— Esboçou um sorriso apaziguador. Faolan pôde ver o quão assustada estava, e furiosa.
De repente, o líder Caitt sorriu, os dentes brancos a reluzir no rosto que, acima da barba exuberante, se encontrava coberto por tatuagens elaboradas. Os braços, sólidos como ramos de árvores, ostentavam braceletes com o mesmo tipo de decoração, espirais, tranças e criaturas a correr, cenas de batalha e pássaros em vôo.
— Goban! Encontra um cavalo para a senhora. Erdig! Ajuda-a a recolher os seus pertences. Tu — ordenou, olhando para Faolan —, não te mexas. Larga as armas.
— Não recebo ordens de um homem que não se identifica — retorquiu Faolan calmamente, mesmo sabendo que essa não seria a resposta correta de um músico contratado, mas incapaz de fazer uso de palavras mais servis.
— Mas que pena — disse o líder, aproximando-se e levando a mão à espada.
— Faolan! — interveio Ana bruscamente. — Faz o que ele diz! Com o coração repleto de amargura, Faolan largou a faca e a espada curta e ergueu as mãos.
— Assim está melhor — exclamou o líder Caitt. — Mordec, guarda estas facas num lugar seguro. Não queremos que o nosso bardo se magoe, não é verdade? Espero que mais tarde possamos gozar de um bom entretenimento... um pouco de harpa, talvez? Ouvi dizer que os Celtas têm bastante talento. — Seguiu-se uma gargalhada geral.
— Não temos muito disso, por estas bandas.
— Ele está ferido — disse Ana. — Não haverá música durante algum tempo, pelo menos até que... — silenciou-se. Um dos homens guiava um pônei trazido da retaguarda, uma criatura bem tratada de um tom pérola, cuja sela e cabeçada eram de um couro fino e decoradas com prata elaborada. A crina fora entrançada e a longa cauda escovada e deixada a brilhar. Era, sem dúvida, a montada de uma senhora. Faolan viu-a fitar o líder Caitt, nos olhos uma expressão acusatória.
— Sabias que vínhamos a caminho — disse ela. — Quem és tu? Por que estás a brincar conosco?
O líder voltou a sorrir, como se bastante satisfeito consigo próprio, e acercou-se para agarrar a mão de Ana na sua pata enorme. Faolan obrigou-se a permanecer imóvel.
— Ah, descobriste a minha pequena brincadeira! Sou Alpin, minha querida, e estes são os homens de Briar Wood. Agora estás em segurança. Pensamos que talvez já estivesses perto da nossa fronteira e tomamos a liberdade de te vir receber. Não imaginamos que te viéssemos a encontrar sem escolta e num tal estado de desalinho.
— Percorreu-a mais uma vez de alto a baixo com os olhos. Agora que estava mais próximo, a sua expressão alterara-se um pouco. Faolan gostou ainda menos do novo ar do que do desprezo que o homem exibira antes. — Imagino que o teu bardo tenha sido obrigado a emprestar-te as roupas dele. Ainda bem que não passa de um músico inofensivo. Como teu futuro marido, poderia sentir-me ofendido por tal gesto de familiaridade.
— Esse tipo de jogo não me diverte, meu senhor — replicou Ana.
— Depois de ouvires a narrativa da minha viagem até aqui, talvez percebas que esse tipo de brincadeira não é apropriada. Questões tão mesquinhas como a necessidade de vestir roupas inadequadas são de somenos importância, depois de vermos os nossos companheiros a afogarem-se à nossa frente. É claro que gostaria de ter comparecido na tua presença vestida como uma senhora. Os deuses não o permitiram. Agradeço-lhes que a minha vida tenha sido poupada, bem como a de Faolan. O rio levou dez almas nesse dia, e os homens que nos emboscaram mataram uma outra. O que significa a perda da arca de uma noiva, quando comparada com o que nos aconteceu? O que importa um pouco de humilhação?
— Talvez o nosso humor seja demasiado grosseiro para a parente do Rei Bridei — disse Alpin, já sem sorrir. — Com o tempo vais acostumar-te. Quanto à outra questão, a amenidade da minha casa será posta a tua disposição, bem como trajes mais adequados. Não somos bárbaros. Ainda bem que viemos ao vosso encontro. As profundezas de Briar Wood não se deixam atravessar facilmente por estranhos. Os caminhos podem ser enganadores. Deixa-me ajudar-te a montar. Essa é uma vantagem da roupa masculina, claro está. É mais fácil montar a cavalo.
Faolan ouviu um dos homens gracejar com outro em voz baixa, qualquer coisa sobre a senhora ser boa cavaleira por ter um bardo dócil com quem praticar durante a noite. Viu as faces de Ana tingirem-se de um vermelho-escuro devido à humilhação e sentiu as mãos formarem punhos. No instante seguinte, Alpin estava ao lado do ofensor, as mãos nas ancas, fulminando-o com o olhar.
— Desmonta! — ordenou.
O indivíduo assim fez. Também era um homem grande, mas o chefe agigantava-se.
— Repete o que acabaste de dizer — vociferou Alpin.
— Meu senhor, eu...
— Repete! — Um punho abateu-se na face direita do homem, que cambaleou para trás, contra o flanco do cavalo.
— Sinto muito, meu senhor. Eu...
— És surdo, Lutrin? Repete as tuas palavras imundas para que os deuses as ouçam. Será que ficaste com medo, agora que te apercebeste que o veneno que andaste a espalhar se refere à minha esposa? — Outra pancada, desta vez do lado esquerdo. Parecia que Alpin era destro com ambos os punhos. A volta deles, os guerreiros Caitt montavam os cavalos em silêncio, a observar com o que parecia um ar de apreciação.
— Teci um comentário imundo sobre a senhora e o seu bardo, meu senhor — disse Lutrin debilmente, enquanto cambaleava. — É óbvio que era falso. Lamento-o.
— Não chega — rosnou Alpin, e voltou a espancar o servo. Dessa vez, a vítima foi lançada pelo ar com a força do golpe, caindo imóvel sobre a erva. O cavalo empinou-se nervosamente.
— Fica com este cavalo, bardo — indicou Alpin. — E lembra-te que é a única carne que vais montar no futuro. Deixem-no! — bradou, quando dois dos seus homens tentaram ajudar Lutrin. — Ele que regresse sozinho, se a floresta o permitir. E acautelem-se, todos vocês. Insultem a minha esposa e ficam no mesmo estado. — Virou-se para Ana, cujo rosto continuava vermelho de embaraço. Faolan sabia que tal se devia quer às palavras de Alpin, quer à brincadeira precipitada de Lutrin. — Vem, minha querida — disse Alpin. — Vamos levar-te para casa.
Grassava uma doença no Monte Branco. Revelara-se pouco depois do festival da Harmonia e não parecia ter pressa em deixar a casa real, apesar do recitar de preces, das ervas curativas que eram queimadas e dos remédios antigos. Nos homens e nas mulheres, manifestava-se sob a forma de alguns dias de febre, a par de uma inflamação na garganta que fazia com que fosse difícil engolir. Nas crianças, chegava a ser fatal.
A filha mais nova do porteiro chefe de Bridei morreu no quinto dia de doença. A Mãe de Tudo regressou três dias mais tarde para levar o bebê de uma das mulheres da cozinha. Aquela enfermidade apoderava-se cruelmente dos mais novos, assolando os seus pequenos corpos com ataques de tosse dolorosos e violentos. Havia oito crianças com menos de dez anos a viver no Monte Branco, pelo menos até à chegada da doença. Os gêmeos de Garth, o vassalo de Bridei, e sua esposa Elda foram afetados, mas recuperaram. Eram crianças robustas, com a constituição do pai. Duas meninas tinham sido enviadas para Ban-merren aos primeiros sinais da doença na casa. Agora, era Derelei quem estava doente.
Com pouco mais de um ano de idade e a constituição da mãe, Derelei parecera um pouco corado num dia e no outro encontrava-se deitado numa enxerga, a arder de febre e a respirar com dificuldade. Não chorava muito. Tuala gostaria que ele chorasse. Desejava que lutasse. Seria fácil para a Mãe de Tudo levá-lo, uma criança tão pequena que a deusa poderia enfiá-la no bolso e desaparecer num abrir e fechar de olhos.
Certas coisas podiam ser feitas e Tuala fê-las com a mente confusa, o coração paralisado pelo terror. Fez poções curativas. Manteve um braseiro abastecido de ervas curativas e umedeceu o pequeno corpo do filho com água fria. Cantou-lhe e acariciou-lhe a testa quente. Sempre que ele não conseguia respirar, encostava-o ao ombro a andava de um lado para o outro, pois isso parecia aliviar-lhe o peito. Rezou em desespero À Que Brilha, orações de todo formais: Não sabes o quanto o amamos? Ele não passa de um bebê! Não o magoes mais!
Quando Bridei estava presente, sempre que conseguia afastar-se dos preparativos finais para o grandioso conselho, Tuala procurava ocultar o seu pânico do marido. Havia um bando de servas para ajudar, mas poucas eram aquelas em quem Tuala confiava, a ponto de entregar Derelei numa altura de tanto risco. Mara, a caseira de Pitnochie, continuava no Monte Branco. Não se ofereceu para ajudar a velar sobre Derelei, pois as crianças pequenas nunca tinham sido o seu forte. Limitou-se a assumir a maioria das outras responsabilidades de Tuala, dedicando-se à gestão da casa com a mesma eficiência com que dirigira o domínio de Broichan durante os anos em que Bridei e Tuala tinham sido, eles próprios, crianças. À noite, surgia à porta de Tuala com uma bebida condimentada, ou uma travessa com fatias de pão e queijo, e ordenava à Rainha de Fortriu que descansasse.
— Não vais ajudar ninguém, se ficares esgotada por não dormires.
Também Bridei andava exausto. Passava os dias fechado com os conselheiros, não só a preparar a assembléia iminente, a qual, ao contrário daquilo que os seus espiões espalhavam, não teria lugar por altura das colheitas, mas sim antes do solstício de Verão, mas também a ultimar o grande empreendimento a realizar no Outono, com ou sem o apoio do rei de Circinn. A assembléia seria vital. Fora a primeira vez que Drust, o Javali, se deixara convencer a visitar a corte de Bridei, desde que este derrotara o cristão Drust na eleição para o trono de Fortriu. Drust esperara alargar o seu governo a ambos os reinos. Tal fato teria resultado na tão esperada reunião dos reinos de Fortriu e Circinn, mas sob a fé cristã de Drust. Teria sido uma catástrofe impensável, a negação da fé antiga dos Priteni, uma fé à qual Bridei se mantivera profundamente leal desde os dias de infância na casa de Broichan.
Ao longo dos cinco anos de reinado, Bridei trabalhara com afinco, em busca de uma paz cautelosa com Drust, o Javali. Fazer com que aquele rei do sul concordasse em viajar até à assembléia fora um golpe de mestre e era normalmente aceito como indicador da disposição de Drust em apoiar o combate armado com Dalriada, um inimigo comum. O rei de Circinn seria acompanhado por outros, em especial o seu influente conselheiro Bargoit. Os chefes tribais de Fortriu planeavam o que poderia ser dito e por quem, até ao mais ínfimo pormenor. Trabalhavam horas a fio. Até mesmo Tharan parecia cansado.
A noite, quando Derelei se debatia com a tosse, Bridei e Tuala ficavam acordados com o filho. Bridei andava de um lado para o outro com o filho nos braços, dando palmadinhas nas costas da criança. Tuala embalava Derelei sobre o joelho, sentada ao lado de uma bacia com água quente, onde tinham sido mergulhadas folhas aromáticas, calaminta e funcho. O vapor ajudava a criança a respirar. Quando as pálpebras de Derelei se fechavam por alguns momentos, nenhum dos pais se atrevia a dormir, com medo que acontecesse alguma coisa sem que dessem por nada. Ouviam o som leve da respiração e davam as mãos. Sabiam que, de todos os testes impostos pelos deuses no passado, nada era mais difícil do que aquela provação.
No terceiro dia da maleita de Derelei, Bridei foi obrigado a viajar até Caer Pridne. Estaria ausente alguns dias. A fortaleza costeira era agora o quartel-general dos esforços militares do rei, orientados pelo seu parente e líder militar, Carnach, de Thorn Bend. Era ali que se preparava a grande empresa contra os Celtas de Dalriada. Tornara-se necessário que o rei surgisse em pessoa, a fim de encorajar, inspirar e desafiar aqueles que em breve derramariam o sangue por aquela causa. Tuala sabia que Bridei não queria ir, não naquele momento. Mas também sabia que ele tinha de partir. Descansou-o o melhor que pôde.
— Derelei parece um pouco melhor, esta manhã. Já respira melhor. As ervas ajudam. Tenta não te preocupares demasiado, meu querido.
Bridei inclinou-se para lhe beijar a testa, para levar o dedo à face do filho, onde a pele macia estava corada com a febre. Depois partiu. Tinha o rosto exausto e pálido. Parecia a Tuala que ele chegara ao ponto da exaustão em que se deixa de perceber o que os outros dizem, e em que também as próprias palavras fazem pouco sentido. Pelo menos em Caer Pridne dormiria um pouco.
A questão de Broichan não fora discutida entre eles. Sendo um druida, Broichan era bastante entendido em ervas. Mantivera o velho rei vivo durante muitas luas além do que parecera a todos os outros a altura do seu falecimento. Garantira assim que o filho adotivo Bridei estaria pronto a reinar quando tal oportunidade se apresentasse. Tuala sabia que Broichan tinha vindo a cuidar de outras vítimas da maleita. Era um vidente poderoso e os deuses ouviam-no. Por que não pedir-lhe ajuda? Mas Bridei não o sugerira, mesmo com o filho a arder de febre nos seus braços. Não havia necessidade de o dizer. Tuala tinha medo de Broichan. Havia razões para tal, motivos novos e antigos. Não era capaz de confiar nele, especialmente no que dizia respeito ao filho. Não iria pedir-lhe e, sabendo disso, também Bridei não o faria.
Com Bridei fora, Tuala sentiu-se muito sozinha, mesmo com o Monte Branco cheio de gente. Sentia a falta de Ana. A presença da jovem era repousante. Tratava dos seus assuntos em silêncio, espalhando uma sensação de calor e de paz, e adorava Derelei como se fosse seu próprio filho. Se Ana ali estivesse, Tuala poderia ter cedido às lágrimas, sem julgar que desapontava todos em seu redor. Desejava do fundo do coração que Bridei não a tivesse mandado embora. E gostaria também que não tivesse enviado Faolan. Breth viajara para Caer Pridne como guarda-costas de Bridei, mas Tuala nunca tinha como garantida a segurança pessoal do marido a menos que Faolan estivesse por perto. Com a assembléia tão próxima, receava adagas na escuridão, flechas súbitas, copos envenenados. Até o mais adorado dos reis tinha os seus inimigos. Era um mau dia. Derelei não comia, e o peito de Tuala doía-lhe, de tão cheio de leite. Usou um trapo para espremer algumas gotas de água fresca para a boca da criança, mas o que foi engolido saiu pouco depois num espasmo ansioso e doloroso, que o deixou inerte e exausto. Mara chegou e dessa vez permaneceu, garantindo uma reserva de panos frescos e cuidando do lume enquanto Tuala andava de um lado para o outro com Derelei nos braços. Do quarto emanava um cheiro enjoativo, o odor do desespero. De vez em quando, Tuala voltava a dar o peito à criança, e de vez em quando o menino fungava e movia a cabeça, como se estivesse com fome. A esperança renascia no íntimo de Tuala, apenas para voltar a desvanecer-se quando o bebê desviava a cabeça, a pequena boca demasiado cansada para sugar. Tentaram mais uma vez a água. Lavaram-no, com Tuala a segurá-lo, enquanto Mara passava com o pano úmido sobre a pele quente. Tuala podia ver a alteração nas feições do filho, os olhos cada vez mais encovados e distantes, a pele a assumir um tom cinza, as faces rechonchudas a mirrar. Parecia o fantasma de uma criança. A água na bacia de Mara agitou-se quando a caseira mergulhou o pano. Tuala evitou-lhe rapidamente o olhar. Mara não disse nada, mas pareceu a Tuala ver-lhe uma mensagem nos olhos. Pede-lhe. És tonta se não o fizeres, pois não tens nada a perder. E Tuala percebeu que, se não fizesse mais nada para além das caminhadas pacientes, dos banhos, das ervas, o filho não veria outra manhã.
— Vou chamar Broichan — disse. — Assim que voltarmos a vestir Derelei.
— Sim — replicou Mara. — Faz isso. O mais certo é ele estar à tua espera. Vai-te embora, eu trato da criança. Já esperaste de mais. Nunca pensei que fosses tola ao ponto de deixar que o orgulho te roubasse o teu único filho.
E quando Tuala a fitou, gelada com o choque, Mara disse:
— Abre os olhos, rapariga. Não és a única que gosta do miúdo. Se não soubesse que eras contra, Bridei já teria mandado chamar Broichan há dois dias. Não fiques com esse ar. Vá, vai buscá-lo. Talvez ainda haja tempo.
Foi o mais longo discurso que Tuala alguma vez ouvira da boca de Mara. Reprimiu a confusão de sentimentos que a assolavam e dirigiu-se dos seus aposentos à câmara privada de Broichan, sem se aperceber de estar a andar.
Não foi preciso bater à porta. Abriu-se quando Tuala se aproximou, e lá estava o druida, alto e sombrio no seu manto escuro, com um cesto pendurado no braço, onde vários artigos estavam arrumados: um molho de ervas, velas, ramos de vidoeiro, pequenos frascos e potes rolhados. Tuala olhou para ele e viu nas feições do druida o mesmo ar de exaustão e de ansiedade que ensombravam o rosto de Bridei quando da partida do rei. Viu que Mara tinha razão. Broichan estava a espera que ela pedisse ajuda, aguardava, desesperado, que ela não chegasse demasiado tarde, impossibilitando-o de salvar o filho de Bridei.
— Preciso da tua ajuda. — As palavras saíram num murmúrio. Broichan aquiesceu sem falar e acompanhou-a, quando Tuala se virou, dirigindo-se aos seus aposentos.
— Fiz tudo o que pude — disse ela. — Tudo. E ele não melhora.
— Tudo? — O tom de Broichan era calmo. — Olhaste para o teu espelho das visões para examinar o futuro dele? Atreveste-te a fazer isso?
Tuala sentiu um arrepio.
— Não. Isso não. Sabes que já não uso essas artes. Não é apropriado que uma rainha chame a atenção dessa forma. Além disso, não era capaz. Não para isto. Não, podendo ver... — Uma noção terrível apoderou-se dela. Teria sido por isso que Broichan ainda não tinha aparecido? — Tu... tu fizeste-o? Viste... ? — Não o diria em voz alta. Viste a morte do meu filho e não queres enfrentar o desejo da Mãe de Tudo.
— Não, Tuala. — A voz de Broichan era uma melodia sombria, grave e ressonante. — Não sou assim tão forte. Se devo travar uma batalha para esta criança, irei armado com esperança. A minha taça das visões está tapada. Assim permanecerá, até que este flagelo desapareça do Monte Branco.
— Podes salvá-lo? — Tuala ouviu a voz a fraquejar. Estavam à porta do quarto. Lá dentro, podia ouvir-se Mara a atarefar-se, resmungando entre dentes. Derelei não se fazia ouvir.
— A questão não é se o posso salvar — disse Broichan, enquanto abria a porta —, mas se vais permitir que o trate para que possa ser salvo. Sei que o que está no nosso passado é causa de grande desconfiança entre nós. Por que outra razão esperadas tanto tempo, até à doença ser quase irreversível? — Estava agora junto à enxerga onde o bebê se revirava num sono inquieto. Mara, que espremia um pano, observou com uma expressão cuidadosamente neutra. Broichan levou a mão à fronte de Derelei. — Já ultrapassamos a fase das ervas e das poções — indicou. — As chamas desta febre estão a queimá-lo. O coração foi levado ao limite. Confias em mim?
— Sim. — Um murmúrio.
— Muito bem. Preciso de adormecer a criança, um sono tão profundo que vai parecer-te que Derelei está prestes a deixar-nos. Não fiques alarmada. Vou permanecer a seu lado e manter o controlo. Isso vai conceder ao seu pequeno corpo o descanso de que precisa, Tuala. Quase que exauriu as forças a combater a doença. Vou deixá-lo nas mãos d'A Que Brilha durante algum tempo. Pode ser difícil de ver. Podes retirar-te e descansar um pouco. Mara ajudar-me-á no que for preciso.
— Não — gemeu Tuala. — Não vou deixá-lo.
Broichan observou-a sobriamente. — Muito bem. Vais ver uma sombra a passar. Poderás sentir um certo frio. Será de esperar. Confia em mim, Tuala. Não vou perdê-lo.
A rainha voltou a mirar as feições resguardadas, os olhos escuros e impenetráveis, a superfície dura e lisa das faces e do queixo. Broichan raramente mostrava o que sentia. Pousava agora as mãos compridas de cada lado do rosto corado do bebê e falava numa voz doce e baixa, quase como se estivesse a cantar.
— Derelei. Dorme agora, pequenino. Pomba e mocho voam contigo. Salmão e lontra nadam a teu lado. Veado e lebre mostram-te os caminhos secretos. Dorme, Derelei. A Que Brilha vela por ti e dá-te bons sonhos. — Moveu os polegares contra o pequeno rosto. Os olhos estavam diferentes, meigos com o amor, mas brilhantes com o poder do encanto. Ao observá-lo, Tuala percebeu como fora cruel ao mantê-lo afastado. Viu que a criança era, com efeito, tão querida a Broichan como a ela e a Bridei. Não sabia qual a razão para tal, mas sabia que não tinha nada a ver com poder, com ambição ou com jogos. Era algo verdadeiro, algo honesto, e ela não tinha o direito de se intrometer.
— Dorme agora, meu valente. Descansa da tua grande batalha. Descansa agora, abrigado e seguro. Poupa a tua força. Terás bons tempos à tua frente.
Derelei estava descontraído, os olhos fechados, a boca perfeita entreaberta. Tinha os braços esticados, as mãos pequenas fechadas como se contivessem segredos. Broichan começou a desenhar símbolos no ar por cima do rosto da criança e a entoar um cântico rápido numa língua que Tuala não conhecia. O quarto escureceu e o ar arrefeceu, como se um bafo gelado tivesse penetrado através das paredes sólidas. Tuala cerrou os dentes, recordando uma noite durante o Portal, em que a coisa escura que vira na taça das visões fora quase insuportável. Broichan não era infalível. E se estivesse enganado quanto a tudo aquilo? Quase podia sentir as garras do Corvo Negro no quarto silencioso. Era como se ouvisse o bater das asas negras. Deitado indefeso na enxerga, Derelei parecia tão pequeno. O rosto pareceu tornar-se lívido, como se a vida estivesse a ser sugada perante os seus olhos, e viu o movimento ofegante do peito abrandar até que mal se conseguia distinguir a respiração. Uma a uma, as velas do quarto apagaram-se. Na obscuridade, a pele de Derelei parecia acinzentada e morta. Já não transmitia um ar descontraído e calmo, parecendo antes uma vítima à espera do punhal. Mara atiçou o lume, cuja luz irregular mal tocava os cantos escuros do quarto.
O cântico de Broichan prosseguiu, introduzindo-se na cabeça de Tuala, enchendo-lhe a mente com o seu poder insidioso, até que também ela sentiu uma exaustão avassaladora, um desejo profundo de se entregar à guarda da deusa, de descansar, de se curar, de entrar num tempo de escuridão que fosse como uma morte breve. As pernas já não a suportavam.
— Toma, rapariga — disse Mara, empurrando um banco até aos pés da enxerga, e Tuala desfaleceu sobre o assento, à medida que a invocação continuava. Agora, ao mesmo tempo que entoava o cântico, Broichan executava um ritual em volta do bebê adormecido. Espalhava ervas no peito, no baixo-ventre de Derelei e sobre as mãos, untava-lhe a fronte com um óleo pungente e colocava uma pequena flor em cada pálpebra. Tuala estremeceu, pensando na morte. Tinha de ter confiança. Vira o amor nos olhos de Broichan.
O druida abriu um pote minúsculo e, retirando uma pitada de um pó avermelhado, contornou a forma adormecida da criança, formando uma proteção contra intrusos, uma barreira de segurança. O cheiro da erva fez Tuala ter vontade de espirrar. Derelei não se mexeu. Continuou deitado como se nunca mais fosse voltar a mover-se. Na penumbra, Tuala não conseguia distinguir o leve movimento da respiração do filho. Estendeu a mão para lhe tocar, em busca de uma garantia, pois a criança parecia um brinquedo rejeitado, inerte e indefeso. A mão de Broichan saltou, agarrando-lhe o pulso, mantendo-a afastada. O cântico continuou sem interrupção. Tuala sentiu as lágrimas quentes escorrerem-lhe pelas faces. Fechou os olhos e dedicou a sua própria oração À Que Brilha. A deusa sempre velara por ela, sempre, mesmo numa altura em que se julgara completamente só. Como poderia A Que Brilha fazer menos por Derelei? Esperança, dissera Broichan. Irei armado com esperança.
O cântico abrandou, entrando no ritmo de uma canção de embalar, e Broichan, com o seu ritual completo, ajoelhou-se ao lado da criança. Mara encostou um pavio ao lume e começou a acender as velas, uma a uma. Em breve, um brilho quente iluminava o quarto, imerso em silêncio.
— Agora devemos permitir que a criança descanse — indicou Broichan. Não lhe toques. Estás a ver, ainda respira, mas lentamente. Este é um sono mais profundo do que qualquer outro que homem ou mulher conheçam, um sono à beira da morte. Temos de esperar. Velarei por ele. Devias descansar. Não há nada que possas fazer aqui, até que ele se agite.
Tuala tinha palavras de fúria na ponta da língua, mas reprimiu-as, engolindo a mágoa.
— Mesmo assim, eu fico — disse, em voz baixa. — Não tens de velar por ele sozinho.
Broichan mirou-a e desviou o olhar. Os olhos do druida não deixavam transparecer qualquer emoção.
— Quanto tempo? — perguntou Tuala.
— Não te sei dizer. Pareces exausta. Foi um período bastante duro. Descansa enquanto podes.
— Também tu pareces cansado — replicou Tuala. — Acho que não fomos apenas eu, Bridei e o nosso filho a termos sido postos à prova. Ficarei contigo. Mara, importas-te de pedir a uma das mulheres que nos traga hidromel e alguma comida? E obrigada por teres estado aqui. Por teres sido tão paciente. Recolhe à tua cama, agora.
— Paciente? — repetiu Mara. — Não sei se lhe chamava isso. Sei quando devo falar e quando devo calar a boca, só isso. Então vou-me embora. Há quem saiba que não deve recusar o descanso quando lhe é oferecido. Vou mandar alguém trazer-lhes de jantar.
Nas profundezas da fortaleza de Caer Pridne, antiga sede dos monarcas de Fortriu, havia um local de rituais negros. O deus cujo poder habitava aquela caverna negra não tinha nome, ou pelo menos um que pudesse ser pronunciado. Encontrava-se atrás do panteão de deidades que regiam a vida diária do povo de Bridei: A Que Brilha, cuja jornada no céu noturno comandava as marés em todas as coisas vivas; o Guardião das Chamas, que adorava homens corajosos e leais; a bela donzela Todas-as-Flores e a Mãe de Tudo, guardiã dos sonhos. Este deus tinha um pequeno reflexo no íntimo de todos os homens, oculto numa parte recôndita que poucos admitiam ter. Era o outro lado do Guardião das Chamas, a sombra sem a qual a substância não poderia existir, o caos sob a ordem, o tumulto no centro da existência. Ano após ano, a Fonte das Sombras testemunhara a morte de uma jovem em reconhecimento da fome d'O Que Não Tem Nome. Ano após ano, a sacerdotisa chefe de Banmerren preparara a vítima e o rei de Fortriu, com o seu druida ao lado, procedera ao sacrifício. Até que Bridei se tornou rei.
Assistira à cerimônia somente uma vez. Vira-a, participara e percebera que nunca mais a deixaria voltar a acontecer. O ritual do Portal tinha agora lugar no Monte Branco e não havia derrame de sangue, desperdício de uma vida jovem, nem a terrível exigência que era colocar o dever antes do mais desesperado clamor do coração humano. Poucos duvidavam que essa alteração teria o seu custo. Em tempos, um rei desafiara o deus negro. Fora levada a cabo uma vingança chocante, um castigo que quase exterminara os Priteni para sempre. Bridei, mesmo mergulhado na tradição e profundamente leal aos deuses dos ancestrais, sabia, no seu íntimo, que a opção fora a correta. Se houvesse conseqüências, arcaria com elas.
A Fonte das Sombras fora encerrada e um portão de ferro barrava o caminho estreito e íngreme que mergulhava para o interior da colina. Bridei esperou que Breth lhe abrisse o portão. Entrou, seguido do pequeno cão Ban, e voltou a aguardar que Breth fechasse a grade.
— Esperas por mim? — perguntou ao guarda-costas. — Não sei quanto tempo vou demorar.
— Estarei aqui. — Breth instalou-se junto ao portão, uma presença sólida e tranqüilizadora. Mais acima no carreiro, no topo de uma das
rampas ascendentes, ardia uma tocha. A brisa fresca vinda do mar fazia-o crepitar e bruxulear. Bridei desceu os degraus, com um archote menor na mão. A fonte encontrava-se nas profundezas da colina e aquela entrada precipitosa era o único acesso. Os níveis inferiores encontravam-se imersos numa escuridão absoluta e um frio sobrenatural subia da caverna lá em baixo. Ban parou nos degraus, a tremer. Bridei olhou para ele.
— Fica de guarda! — ordenou, concedendo a Ban a dignidade de executar uma tarefa. À pequena criatura não faltava coragem, com provas dadas na sua já longa história. Todavia, entrar na câmara da fonte era mais do que poderia ser esperado de qualquer criatura. Ban sentou-se, uma sombra branca nos degraus de pedra escura, e manteve a sua guarda fiel. Bridei prosseguiu.
Não podia ali entrar sem recordar a primeira vez: a água negra, os archotes, os homens de trajes escuros e a rapariga solitária, como uma flor pálida na sua túnica cerimonial. O velho rei, doente à beira da morte, a sua vontade de ferro esforçando-se para controlar o corpo frágil. Broichan, alto e sombrio, o receptáculo do poder terrível do deus sem nome. E o momento em que o rei Drust pedira ajuda e ele, Bridei, foi o único a oferecer-se. O momento em que ele ajudara a afogar uma jovem...
Deixou a tocha no encaixe de ferro à entrada e foi ajoelhar-se junto à água. O tanque retangular era rodeado por uma estreita saliência de pedra, um palmo acima da superfície escura. O ar era frio, uma presença de morte que sussurrava nos cantos daquele espaço. Bridei fechou os olhos e esticou os braços para os lados, assumindo uma pose de meditação. Imobilizou-se. Permaneceu ajoelhado numa vigília silenciosa, à medida que o céu no exterior da câmara profunda assumia o tom violeta do crepúsculo e o cinza de uma noite primaveril. Tanto Bridei como Broichan cumpriam aquela observância sempre que visitavam Caer Pridne, na convicção de que a obediência silenciosa do rei e do seu druida pudesse aplacar, pelo menos em parte, a fúria da deidade por já não receber os seus tributos sob a forma de sangue quente e carne viva.
Bridei era versado na condução de rituais. Broichan mantivera-o acordado na véspera do solstício de Verão desde os quatro anos de idade, e garantira que o filho adotivo mergulhasse tanto na tradição como qualquer druida. Mas aquela noite representava um desafio particular. Derelei estava a morrer, Bridei sabia que assim era, mesmo com as palavras de conforto de Tuala. Tinha de apresentar orações especiais, palavras sob a forma adequada ao mais perigoso dos deuses, mas o coração de Bridei estava cheio de preces incoerentes, nada que tivesse alguma coisa a ver com práticas rituais. Esforçou-se por reprimi-las, controlando a respiração, mantendo a pose imóvel, fixando a mente na seqüência de frases que Broichan lhe ensinara serem as adequadas ao momento e ao local onde se encontrava:
Respiro na escuridão
Respiro na quietude
Respiro no centro da escuridão
Vergo-me conto o trigo ao vento
Vergo-me como o vidoeiro na tempestade
Vergo-me ante o sopro
Do mais velho de todos...
Mas, sob as palavras solenes, outras ansiavam por serem ouvidas. Sob o movimento do seu peito, jazia o fulgor caótico do pânico. Sob o ritmo calmo do coração que meditava, estava o lamento agressivo da perda iminente, o dilacerar, o pranto, as coisas que um rei não dizia, nem mesmo sendo um pai jovem, com um filho pequeno à beira do longo abraço da Mãe de Tudo.
Debaixo da terra jaz a grande pedra Debaixo da pedra jaz o fogo Debaixo do fogo jaz a cinza e o pó Debaixo do pó, o sopro Ergue-se e baixa.
As palavras saíam livremente, firmes e seguras. Fora bem treinado. As lágrimas que lhe escorriam pelas faces não faziam parte dos ensinamentos de Broichan.
Purifica, Fogo
Limpa até ao osso
Afoga, Enchente
Mais funda do que a baleia
Flagela, Vento
Arrasta amigos e parentes
Engole, Pedra
Silencia toda a história
Que se abra o teu caminho: Mestre das Sombras.
Mais velho de todos.
As palavras ajudaram-no. O padrão fora tão bem aprendido que fluíam quase sem que desse por isso. Ao longo da infância, percebera que tal disciplina resistia ao mais poderoso dos assaltos. As palavras foram ditas e apenas restou a câmara, a água e o silêncio. Bridei manteve a pose, as costas direitas, os braços estendidos. O archote lançava a sua sombra pela caverna, uma águia, o punho de uma espada, uma cruz. As correntes de ar frio deslocavam-se em seu redor, murmurando-lhe aos ouvidos. Morto. Morto. Está morto. E ouviu a própria voz a responder. O tom diferente do cântico firme das preces formais, mas sem ser ainda o grito angustiado do seu coração, mantinha-se um murmúrio.
— Não quero negociar. Sei que isso não é possível. Apenas quero que saibas que sou leal. Amo os deuses de Fortriu e jurei manter o meu povo fiel à tradição antiga. Não peço favores. Por que haveria a vida do meu filho de ser mais valiosa do que as vidas das crianças que a praga já levou? Apenas te digo que é meu filho e que o amo. E que é inocente. Não é só meu, mas também de Tuala. Também ela está ferida de morte, ela que sempre foi a filha adorada d'A Que Brilha. — Na sua mente, Bridei ouviu em resposta: Desde o início que ela sabia que serias rei. Compreendeu o que estaria destinado por te amar.
Bridei engoliu em seco e prosseguiu. — Digo-te que se este é o castigo que escolheste por não ter mantido a tradição, devo aceitá-lo. E digo-te que rivaliza em crueldade com o sacrifício, pois ambos exigem a destruição de uma vida nova, fresca e boa. A obediência que me exiges é um fardo difícil. Mas sou rei e vou suportá-lo.
Fora tola ao dizer que Faolan era um bardo, pensou Ana. O emissário pessoal do rei deveria apresentar a Alpin os termos de Bridei e ter a certeza de que o chefe Caitt não se aliaria aos Celtas. Era suposto preparar o caminho para Ana e garantir que o casamento não se efetuava, a menos que o tratado fosse assinado. Agora não poderia fazer nada disso. Ana não gostara do olhar daqueles homens, pois dava a entender uma execução sumária, ou o arrancar de uma confissão através de quaisquer meios por eles escolhidos. Apenas quisera proteger Faolan. Estavam quase em Briar Wood e, com uma sensação de desânimo, Ana percebeu que teria de ser ela própria a negociar.
Os pinheiros naquela região eram altos como torres, as encostas irregulares e o solo marcado por aglomerados rochosos bizarros, que se assemelhavam a criaturas apenas encontradas nas narrativas: um trasgo sorridente, um dragão, um cão infernal, um monstro agachado. Por vezes, Ana pensava vê-las mover-se, esticando um dedo, uma cauda hirsuta, um par de orelhas peludas. Noutras alturas, ouvia coisas a voar de árvore em árvore, coisas que de certeza não eram aves, pois gemiam e chiavam ao passar. Também havia pássaros, muitos, muitos pássaros, de todos os tipos. Corvos empoleirados ao longo do caminho, a saudar os viajantes com os gritos trocistas. Cotovias e carriças saltitavam por entre a vegetação. Mais acima, ouvia-se por vezes o chamado dos pintassilgos e dos cruza-bicos. Os arbustos restolhavam constantemente e Ana viu criaturas peludas subirem e descerem os pinheiros, os pequenos corpos ágeis como flechas. No ar, zumbia um sem número de insetos. Não era de admirar que os pássaros se reunissem ali.
Os caminhos eram traiçoeiros. Era freqüente os homens pararem para trocar opiniões antes de prosseguirem, mesmo conhecendo a floresta. Por vezes, não parecia haver um verdadeiro caminho, apenas uma inclinação íngreme e pedregosa, ou uma vasta extensão de pântano atulhado de árvores derrubadas, ou um percurso estreito por entre arbustos contorcidos e espinhosos. A zona tinha uma beleza selvagem. Ana interrogou-se sobre como ela e Faolan teriam sido capazes de encontrar o caminho.
Não conseguia ver Faolan. Alpin insistira que ela viajasse na frente do grupo, logo atrás dele, tendo sido o bardo relegado para o fundo da comitiva. No Monte Branco, bem como na corte do primo, nas Ilhas Pequenas, os músicos talentosos eram bastante estimados, pois não eram eles tecelões de sonhos e contadores de verdades? Dos melhores dizia-se que tinham a atenção dos deuses. Era óbvio que as atitudes em Briar Wood eram diferentes. Os Caitt eram tidos como um povo selvagem e guerreiro. Talvez não tivessem música. Ana estremeceu. Os ombros largos e protegidos com ombreiras de couro nunca deixavam a sua vista enquanto ele cavalgava mais à frente. O cabelo castanho-escuro, comprido e denso, caía-lhe pelas costas, não exatamente desleixado, mas sugerindo uma certa qualidade que Ana já percebera no interrogatório a Faolan e nas tentativas grosseiras de fazer gracejos. Não parecia um homem de grande finura. Ana interrogou-se sobre quantas mulheres poderia haver em Briar Wood, e quem elas seriam. Talvez Alpin tivesse irmãs, uma mãe. Alguns daqueles guerreiros poderiam ter esposas. Talvez elas lhe dissessem como suportar a vida entre tais homens.
A floresta crescia espessa em redor das muralhas do baluarte de Alpin. Telhados de colmo surgiram quando os viajantes chegaram ao cimo de uma colina e avistaram o reluzir súbito de um lago próximo, que desapareceu quando voltaram a descer. Mais perto da fortaleza, os pinheiros deram lugar a carvalhos escuros e a ulmeiros imponentes, as folhas novas viçosas ao sol da Primavera. Ana teve uma visão: Faolan deitado na erva em mangas de camisa, ela sentada com os pés descalços no ribeiro, como se fosse uma criança de folga das aulas. Era espantoso que isso tivesse acontecido no mesmo dia que aquela viagem, com aqueles guerreiros estranhos, até muralhas tão altas e ameaçadoras. Com um estranho grosseiro, a quem seria obrigada a tolerar. Com quem, em breve, seria obrigada a partilhar a cama.
Chegaram aos portões, os quais foram abertos a partir do interior a uma ordem de Alpin, e entraram num pátio cercado por edifícios de pedra: uma casa de habitação grande, um estábulo, locais para armazenamento de provisões e, imaginou Ana, tudo o necessário para manter uma casa tão grande num lugar tão remoto. As muralhas envolviam tudo, afastando a floresta, embora aqui e ali os ulmeiros espreitassem por cima da última fileira de pedras.
Alpin ajudou-a a desmontar. Ana não se importou com a forma como as mãos dele lhe permaneceram no corpo ao fazê-lo, nem com o modo como ele sorriu perante a cedência. Deixou-se ficar muito quieta, à espera que Alpin retirasse as mãos. Tentou não cruzar o olhar com o do homem. Dirigiu a atenção aos outros cavaleiros, que já não se encontravam em linha, tendo-se aproximado. Captou o olhar de Faolan, cuja expressão a perturbou, pois aquele era um homem que sempre dominara as feições. Ana sabia, pois Tuala explicara-lhe, que um homem cujo mister era o de espião e assassino, tinha de aprender a tornar-se invisível. Podia ter sentimentos, mas aprendia a ocultá-los. Naquele momento, Faolan não seguia essas regras. Tinha os olhos brilhantes de fúria.
Ana desviou o olhar. O companheiro teria de aprender a seguir o novo jogo. Teria de se adaptar às novas regras que ela criara ao nomeá-lo seu bardo, retirando-lhe assim a autoridade. Era ela a única culpada.
— Estou muito cansada — disse. Alpin largara-lhe finalmente a cintura e olhava-a de forma um pouco trocista. Suja, desalinhada e exausta como estava, já para não falar nos trajes masculinos que envergava, parecia-lhe importante tomar cedo a iniciativa. — Se for possível ter a assistência de uma serva... um quarto sossegado... um pouco de água quente...
— Os meus aposentos estão ao teu dispor, é claro — adiantou Alpin, com um tom melífluo. Sob a delicadeza das palavras havia traços de irrisão que deixaram Ana desconfortável.
— Obrigada, mas isso não seria próprio. Mais tarde irei apresentar-te os termos de Bridei, mas só depois de tomar banho, de mudar de roupa e de descansar. Necessito de aposentos próprios. Um quarto de tamanho razoável. Uma porta com tranca. E espero que o meu homem seja bem tratado. Foi ferido e quase se afogou. Quero a tua garantia de que ele não só estará em segurança, mas que também será bem alimentado e confortavelmente instalado.
— Estás muito preocupada com o seu bem-estar.
— Meu senhor Alpin — declarou Ana. — Parti da corte de Bridei, no Monte Branco, com um escolta de doze pessoas. Este homem é o único que me resta. É claro que estou preocupada. Ficarei bastante desagradada se não quiseres, ou não puderes, satisfazer este meu desejo. E o outro. — Não esperara que fosse necessário apresentar-lhe exigências e descobriu que as mãos lhe tremiam. O medo e a raiva faziam com que fosse cada vez mais difícil manter uma expressão calma.
— Uma tranca, não é? E seria por dentro? — Alpin olhou para os homens que o rodeavam. — Rapazes, ela conhece-me nem há uma tarde e já desconfia de mim! — Os guerreiros soltaram uma gargalhada. — Pois é, o mais certo é que eu já tenha esquecido como se trata uma senhora. Depois de tomares banho e de termos deitado essa roupa para o lixo, talvez seja mais fácil voltar a apanhar-lhe o jeito. — Os serviçais tinham começado a surgir da casa e Alpin estalou os dedos na direção deles. — Orna! Esta senhora precisa da tua assistência. Leva-a para dentro e trata das suas necessidades. Descobre-lhe uma criada. A senhora deseja um quarto próprio. Aloja-a a meu lado.
— Sim, meu senhor. — Orna era alta e larga como os homens, com feições igualmente desagradáveis. Tinha o cabelo apanhado com um lenço de linho de asseio duvidoso.
— Obrigada — agradeceu Ana educadamente.
— É um prazer agradar-te, minha querida. — O tom de Alpin era demasiado lisonjeiro, o que lhe causou um arrepio. Sem saber o que dizer, Ana virou costas e seguiu Orna até ao quarto.
Algum tempo depois, sentada num banco com uma rapariga nervosa a pentear-lhe o cabelo acabado de lavar, Ana foi obrigada a admitir que o futuro marido lhe providenciara, com efeito, tudo o que ela pedira. Exigira. Agora sentia-se embaraçada com a sua própria brusquidão. Uma vez dentro da casa, que se revelou composta por inúmeras divisões e possuir uma escala grandiosa, embora escura e fumarenta, Orna bradara uma série de ordens e os criados apressaram-se a cumpri-las. Ana fora levada para uma câmara com uma cama de tamanho considerável, uma arca de carvalho para arrumação e dois bancos. A única janela era uma abertura minúscula e não havia lareira, mas o quarto estava razoavelmente quente, graças a forras de lã poeirenta penduradas nas paredes, com um padrão que se desvanecera até assumir uma cor parda uniforme.
Foi trazida uma banheira de ferro e um copioso fornecimento de água, quente e fria. Sabão áspero e toalhas ainda mais ásperas. Um pente, óleos perfumados, velas em castiçais pesados. Ervas para o banho: camomila e hortelã. Por fim, uma criada, tímida e a gaguejar. Ludha veio a provar ser bastante destra com os cântaros e esfregou a pele de Ana até arder. Era maravilhoso sentir-se finalmente limpa, mas não tão bom como imaginara ao longo dos dias cansativos da viagem, quando a antevisão de água quente e de uma cama macia a ajudara a suportar os rigores da jornada. Como poderia entregar-se ao prazer de ser penteada, à sensação de roupa limpa contra a pele, ao doce aroma da alfazema nas têmporas, onde Ludha lhe esfregara uma gota de óleo, quando tinha tanto que a preocupava? O tratado, a mentira que contara, Faolan. E Alpin. Como poderia casar-se com um homem cujo toque a enojava?
— Ludha? — perguntou Ana.
— Sim, minha senhora? — A voz não passava de um murmúrio. O pente deslizava com suavidade, desfazendo os nós.
— O homem que veio comigo, Faolan, o meu bardo... sabes onde ele está?
— Não, minha senhora. Queres que o mande chamar?
— Não, Ludha. — Ana esforçou-se por conseguir um tom de autoridade. — É claro que ele não pode vir aos meus aposentos privados. Apenas quero ter a certeza de que ele está em segurança.
— Em segurança? — Ludha parecia espantada. — Ah, sim, minha senhora, aqui estará a salvo. Briar Wood é muito bem defendida. O meu... — um rubor — o meu amigo, Foldec, diz que ninguém consegue chegar até nós. Lorde Alpin tem o maior exército de toda a região norte.
— Ludha silenciou-se de repente.
— Conta-me mais — incitou Ana. — Esse Foldec, é um guerreiro?
— Sim, minha senhora. — Orgulhosa, Ludha ostentou um sorriso encantador. — É um arqueiro das forças do meu senhor. Encontra-se no ocidente. Foldec já tem as marcas de guerreiro há três anos. Conquistou-as quando ainda só tinha quinze.
— Deve ser muito corajoso — comentou Ana, com um sorriso encorajador.
— É, sim, minha senhora.
— E o que fazes enquanto aguardas que ele regresse a casa, Ludha?
— Coso, minha senhora. Há muitas mulheres que podem fazer os trabalhos simples, bainhas e remendos, túnicas e outras roupas para os homens. Mas eu aprendi com a minha mãe, que era costureira de uma senhora. Dão-me os trabalhos mais delicados para fazer.
— Foste tu quem fez isto? — A roupa que fora dada a Ana era simples mas de boa qualidade, uma túnica e uma saia de lã castanho-avermelhada, com guarnições de flores bordadas. Também havia roupa interior e chinelos de peliça.
— Não, minha senhora. Estas estavam guardadas e Orna encontrou-as. Eram de uma rapariga que costumava viver aqui, uma criada da primeira esposa de Lorde Alpin. — Ludha hesitou. — Sinto muito, minha senhora — murmurou.
— Não são precisas desculpas — asseverou Ana. — Sei que Lorde Alpin já foi casado. Diz-me, ele tem família, para além do filho natural de que falam e que, segundo dizem, não mora aqui em Briar Wood? Sei que não tem filhos do primeiro casamento, mas talvez Alpin tenha irmãs, ou irmãos.
Sem razão aparente, Ludha assumiu um rubor profundo.
— Não tenho a certeza, minha senhora. — Voltou a atarefar-se com o pente. Desta vez foi menos cuidadosa e Ana fez um esgar de dor.
— Eu termino, Ludha. Estou habituada a pentear-me sozinha. Espero que venhas a mostrar-me o teu trabalho. Interesso-me por bordados. Tinha uma série de camisas pequenas e outras roupas de bebê. Perderam-se todas na travessia do rio, quando a minha escolta foi arrastada. Não devia ter importância. Comparada com a perda de tantas vidas, tal coisa torna-se insignificante. Mas fiquei com pena, mesmo assim. Aqueles pontos foram feitos com muito amor.
Ludha aquiesceu.
— Sim, minha senhora. Mas uma mãe ama o seu filho, mesmo que apenas tenha trapos com que vesti-lo. Pelo menos é isso que penso.
De repente, Ana sentiu-se à beira das lágrimas.
— Sim, pois — disse com vivacidade —, talvez possamos coser juntas. Tal como vês, não tenho nada para vestir. Nada que seja meu.
— Será um prazer ajudá-la, minha senhora — replicou Ludha.
— Onde posso encontrar rolos de tecido e outros materiais?
— Podes falar com Orna — indicou Ludha. — Ela parece antipática, mas vai ajudar-te no que puder. Todos vão. Todos dizem... — hesitou.
— O que dizem eles?
— Não me compete repeti-lo, minha senhora, mas dizem que uma nova esposa para o meu senhor Alpin pode ser a melhor coisa dos últimos anos em Briar Wood. Orna faz tudo na casa. Dá as ordens todas, mas até mesmo ela preferia trabalhar para uma senhora. E vimos logo que era isso que eras.
Ana pensou no que ouvira.
— Já cá estavas na altura em que a primeira esposa de Lorde Alpin ainda era viva, Ludha? Podes falar-me sobre ela?
— Vim para cá depois de ela ter morrido, minha senhora. Tive de encontrar uma nova casa, quando a minha mãe foi levada por uma doença. Quando viu o trabalho que eu sabia fazer, Orna contratou-me.
— Sinto muito pela tua mãe. Há muitas pessoas que a tivessem conhecido? A primeira esposa?
De repente, Ludha encontrava-se ocupada com a limpeza dos aprestos do banho, a dobrar toalhas, tudo a que pudesse deitar a mão.
— Ludha?
— As pessoas não falam muito sobre isso.
— Como morreu ela?
Não houve resposta. Ludha começou a despejar a água do banho para dentro dos jarros e dos baldes, para uma remoção mais fácil.
— Como morreu ela, Ludha?
— Não tenho a certeza, minha senhora. Estava à espera de bebê, é o que dizem. Os dois morreram juntos. Foi há muito tempo, seis ou sete anos, pelo menos.
— Oh. — Era a explicação mais plausível, é claro. Embora duplamente triste, esse tipo de morte era bastante comum. Ana conseguiu nutrir um laivo de simpatia por Alpin. Deveria tê-la amado muito e sofrido longamente, uma vez que esperara vários anos antes de procurar outra esposa, outra hipótese de ter filhos. Mas também não fora ele que procurara Ana. Fora o inverso.
— Deves querer descansar — disse Ludha. — Vou chamar um rapaz para levar estas coisas e depois deixo-te sozinha, se o preferires.
— O quê? — Ana não estivera a ouvir. — Ah, sim, é claro. Vens chamar-me quando for horas da refeição? Tens razão, estou muito cansada.
Mesmo com o colchão macio e com os bons lençóis, não conseguiu dormir. Não era capaz de deixar de pensar no vau, na onda, nos corpos destroçados e no terror abjeto que sentira ao ficar sozinha. Ana imaginou que isso a acompanhasse para o resto da vida. Havia também os assuntos mais imediatos. Ensaiou, vezes sem fim, o que teria de dizer a Alpin e o modo como o faria. O casamento estava dependente de uma aliança com Bridei e não com Gabhran, de Dalriada. Bridei não lhe pedia que combatesse ao lado dos homens de Fortriu, embora outro chefe Caitt, Umbrig, tivesse disponibilizado um grupo de guerreiros para esse fim. Essa informação em particular talvez não devesse ser adiantada. Mas Alpin teria de entender que era exigido um acordo solene, de preferência escrito, em como ele e os seus homens não pegariam em armas contra Bridei, nem por terra nem por mar. O mais importante era a parte do «por mar». Era o acesso à rota marítima ocidental para Dalriada que fazia de Alpin um elemento tão importante. Se Alpin concordasse com os termos de Bridei, Faolan deveria regressar ao Monte Branco com essa informação e a união teria lugar.
Ana gostaria muito de ter oportunidade de discutir o assunto em privado com Faolan, antes de falar com Alpin, pois apenas tinha conhecimento das linhas gerais. Havia muitos mais pormenores, decerto de extrema importância, e que o emissário pessoal de Bridei guardava na mente. O destino de exércitos estava dependente na execução célere e perfeita daquele acordo. Quanto mais Ana pensava no assunto, mais irritada ficava consigo, pela tentativa desastrada de proteger Faolan com uma mentira. Estragara tudo. A partir daquele momento, teria de garantir que tudo corria na perfeição.
Tentou imaginar o que Alpin poderia desejar saber. Questões sobre estratégias. Teria de responder com sinceridade e dizer que pouco sabia de tais assuntos. E se lhe perguntasse sobre a alternativa? Se ele recusasse a oferta, que faria ela? Não poderia sair de Briar Wood com Faolan e tentar fazer a longa viagem de regresso apenas com um cavalo para os dois e com o vau submerso, já para não falar dos atacantes de azul. Teria de ali permanecer pelo menos até que os rios baixassem de caudal, e seria obrigada a pedir a Alpin uma escolta através das zonas de perigo.
Talvez o melhor fosse contar a verdade: confessar que mentira e porquê e deixar que Faolan desempenhasse a tarefa que viera cumprir. Não havia dúvida de que seria o mais acertado. Era provavelmente o que a sua amiga Ferada iria sugerir. Não sejas tola, Ana, diz a verdade ao homem. Ele não te come. Mas Ana hesitava. A parte o fato de Alpin a vir a considerar mentirosa e estúpida, os modos do homem perturbavam-na. Havia ali perigo, podia senti-lo.
Um som vindo da ranhura que servia de janela interrompeu-lhe o devaneio. Virou a cabeça. No peitoril encontrava-se um pássaro minúsculo, uma carriça, bonita com a sua plumagem castanha e creme. Estava imóvel, a cabeça inclinada para o lado, um olho brilhante fito na jovem. Ana sentiu-se cativada. A criatura parecia tão desprovida de medo. Decerto não haveria pássaro do bosque que se aventurasse tão perto de habitação humana e ali ficasse, tão calma. Com efeito, aquela construção era um local especialmente improvável onde encontrar pássaros. No caminho desde a entrada da fortaleza até ao seu quarto, Ana vira nada menos do que nove gatos, a maioria semelhante aos homens e mulheres de Briar Wood, robustos e musculosos.
Ana sentou-se na cama, os braços em redor dos joelhos, enquanto olhava a pequena visita. Assobiou baixinho. A carriça moveu-se ligeiramente, sem que os olhos deixassem a jovem. Agora que pensava nisso, Ana recordava-se daquele olhar, concentrado, alerta, como se a criatura tivesse um objetivo ao procurá-la. A gralha no vau não lhe dirigira o olhar penetrante com a mesma dose de concentração? Na altura sentira-se incomodada. Mas a gralha revelara-se uma amiga. Sem a sua ajuda, teria perdido Faolan.
— Que coisa és tu? — murmurou, enquanto saía da cama o mais lentamente possível, para não assustar o pássaro minúsculo com um movimento repentino. — De onde vieste?
A carriça saltitou ao longo do peitoril. Não chegou longe, pois a janela era muito estreita. Ana ainda não espreitara para o exterior. Aproximou-se. A carriça ficou onde estava. A jovem poderia ter esticado a mão e tocado nas penas macias. Ana perguntou-se se a ave em tempos teria sido o animal de estimação de uma dama. Provavelmente não. A expressão nos olhos brilhantes não poderia ser considerada mansa.
— Quem te enviou? — sussurrou, enquanto olhava pela janela, para a nesga de panorama que lhe era oferecida. O quarto ficava bem alto e Ana subira degraus de pedra para lá chegar. A partir dali, podia ver uma extensão de floresta, carvalhos e ulmeiros, uma faixa de céu claro e, desviando-se para o lado, parte da muralha alta e comprida que aparentava envolver a fortaleza. Ludha dissera que Briar Wood era bastante segura. Tal parecia inquestionável, pois, sem a autorização de Alpin, ninguém entrava ou saía. Ana sentiu um frio repentino.
A carriça chilreou e, tão depressa quanto aparecera, lançou-se da janela e afastou-se. Ana inclinou o pescoço para a ver a voar ao longo da muralha, sempre a direito, baixando depois para fora do seu campo de visão. Para onde quer que se dirigisse, não entrara na mata, encaminhando-se antes para um local na fortaleza de Alpin.
— Estranho — disse Ana para consigo. — Muito estranho. — Interrogou-se sobre se Alpin teria druidas ou mulheres sábias na sua casa. Isso poderia explicá-lo. Tais praticantes das artes da cura, da adivinhação e da magia podiam ser muito chegados às suas criaturas. Em tempos, Fola tivera um gato enorme, Shade, que não aparentava ser propriamente mágico, mas com quem a mulher sábia partilhava laços bastante fortes. Se aqueles pássaros fossem os companheiros do druida ou da sacerdotisa de Alpin, Ana esperava conseguir obter uma explicação para o motivo por que pareciam buscá-la.
À hora do jantar, Faolan já se familiarizara com a disposição do baluarte de Alpin. A fortaleza de Briar Wood possuía três níveis: caves para armazenamento, zonas de habitação e de trabalho ao nível do chão e algumas câmaras mais altas onde se incluíam os aposentos do chefe tribal. Ana fora instalada ao lado de Alpin. Faolan recebera uma enxerga no quarto dos criados. Assim que fora apresentado como bardo, os guerreiros de Alpin tinham começado a tratá-lo como se fosse uma novidade divertida, em vez de uma pessoa de verdadeiro interesse. Partilhar os aposentos com criados e cozinheiros poderia vir a ser útil. Muitas vezes, tal companhia era uma fonte de boas informações.
O pátio central era delimitado por edifícios colados à enorme muralha que rodeava a fortaleza de Alpin. Havia um ferreiro, uma alcaçaria, uma casa de forno, um canil repleto de cães de caça de aparência temível, um silo para cereais, um arsenal. Mais abaixo, viam-se vacarias e estábulos. Parecia que poucos eram os assuntos daquela casa que tivessem lugar fora da proteção das muralhas. Faolan traçou um novo mapa mental: o perímetro da muralha, os edifícios por ordem, os pontos onde as árvores eram altas o suficiente para serem vistas acima da barreira, e que recordavam os habitantes que se encontravam a um pulo da grande floresta. Procurou entradas e saídas. Algures deveria haver uma abertura menor na muralha, uma porta das traseiras, por assim dizer. Um escoadouro, talvez? Um local por onde se recebessem mercadorias, sem que fosse necessário abrir os portões imensos?
As perguntas que fez não abordaram tais assuntos. As questões foram estruturadas com cuidado, a fim de parecerem inócuas, para que fossem rapidamente esquecidas. Destinavam-se a encorajar as pessoas a darem-lhe aquilo de que precisava, sem que se apercebessem que o tinham feito. Há muito que Faolan era um espião, sendo bom no que fazia.
Não foi possível ir muito longe no primeiro dia. Tinham chegado a Briar Wood ao fim da tarde, com o derradeiro trecho da viagem mais rápido do que julgara, graças à escolta de Alpin que indicava o caminho, e, quando Faolan se instalou e visitou o estábulo para confirmar o cavalo e trocar algumas palavras com os homens que lá trabalhavam, já escurecia. Guardaria as explorações noturnas para uma altura em que os habitantes já se tivessem habituado à sua presença.
Um canto da fortaleza chamou-lhe a atenção, um local onde a muralha parecia dividir-se, criando um espaço apertado, ladeado por altas barreiras de pedra. A primeira vista não havia entrada para a área, mas a muralha exibia uma ligeira curvatura para o interior, ao longo de cerca de quinze passos. Faolan imaginou que atrás dela houvesse espaço para um pátio ou para uma câmara oculta. O que poderia ser valioso a ponto de ser guardado daquela forma? Um depósito de armas? Um carregamento de especiarias ou sedas que pudessem ser oferecidas a um inimigo poderoso como suborno? Ou talvez existisse algo de uma natureza completamente diferente por detrás da estranha construção. Podia não ser um baluarte contra uma invasão, mas uma barreira para conter algo, qualquer coisa demasiado perigosa para ser alojada num cativeiro vulgar, tal como o estábulo, os canis ou a cave. Uma prisão? Não podia ser. Qual o prisioneiro que exigiria uma dissimulação tão elaborada? Grilhetas e um ou dois guardas robustos era tudo de que um chefe competente necessitaria para manter homens presos. É verdade, já por uma ou duas vezes o próprio Faolan escapara desse tipo de segurança, mas não se considerava um prisioneiro normal. O seu dever era estar um passo à frente, um nível acima. Era um dos seus códigos de sobrevivência. Bem, havia tempo para descobrir a verdade sobre aquele e outros assuntos interessantes. Havia tempo, desde que Ana conseguisse fazer passar a mensagem de que o futuro marido só a poderia ter se cumprisse os termos de Bridei. Teria de encontrar forças para insistir num protelamento e frustrar qualquer tentativa por parte de Alpin de a levar para a cama antes de Faolan ter oportunidade de confirmar a promessa de tal indivíduo. Enquanto bardo, não seria difícil obter informações. Nesse aspecto, Ana fizera-lhe um favor. Apenas esperava que ninguém lhe pedisse para tocar.
O que não podia era ajudar Ana com as negociações iniciais. Faolan planeara com Bridei as informações exatas que apresentaria em resposta às questões inevitáveis de Alpin. Parte seria falso e enganador, concebido para reforçar a informação que já veiculara no baluarte celta de Dunadd, antes de conhecer um homem chamado Pedar, o qual fora obrigado a silenciar. Bridei queria que os Celtas tivessem noção da eventualidade de um ataque antecipado. Pretendia que acreditassem que o encontro com Drust, de Circinn, estava marcado para o festival das colheitas da Reunião, e que o avanço propriamente dito fora planeado para a Dança das Virgens, a celebração dos primeiros indícios da Primavera. O boato tinha como objetivo ocultar a verdadeira data do empreendimento, muito mais cedo. Dalriada sentiria os dentes de Fortriu no dia em que as folhas ficariam douradas. A campanha chegaria ao fim antes que a Mãe de Tudo depositasse o seu abraço gelado nas colinas de Grande Vale. A estratégia fora boa, pois não havia nada melhor para esconder a verdade do que informações muito próximas do real, mas imprecisas quanto a um detalhe crucial. Faolan duvidava que o rei Gabhran de Dalriada imaginasse que Bridei estava prestes a atacar.
Ana era uma atriz perigosa naquela representação, pois não podia deter informações cuja importância estratégica não compreendia. Os nomes dos aliados de Bridei, por exemplo, incluindo o chefe Caitt, Umbrig. Faolan estava satisfeito que tivessem ocultado de Ana a verdadeira extensão dos fatos. Sabia bem os métodos que poderiam ser aplicados tanto a homens como a mulheres para extrair informações. Mas a jovem tinha uma vantagem nas negociações. Pelos olhos ávidos e pelas mãos inquietas do maldito Alpin, era óbvio que a desejava. Essa idéia enojava Faolan.
Lavara-se debaixo de uma bomba de água e vestira as roupas simples que um dos criados lhe trouxera, trajes caseiros em tons pardo e cinzento, rústicos e práticos. As suas botas tinham sido deixadas na floresta. Deram-lhe um par de sapatos velhos, de cabedal estalado e pontos grosseiros, os quais calçou sem um queixume. Como a mentira fora contada e não podia ser desdita, iria utilizá-la em seu proveito.
Quanto menos parecesse um emissário real, melhor. Naqueles atavios, seria fácil passar despercebido. Era uma coisa boa. Serviria para que se recordasse de que mulheres como Ana pertenciam a um mundo diferente do dos homens como ele.
Ao jantar, sentaram-no numa mesa comprida, quase do lado oposto onde Ana se encontrava, ao lado direito de Alpin, pálida e de ar cansado nas suas roupas limpas. Tinha o cabelo entrançado em coroa no topo da cabeça e o pescoço muito direito, procurando transmitir um porte real. Alpin mal tirava os olhos de cima da jovem. Faolan, que nunca bebia cerveja durante o serviço, esvaziou a taça de um gole e permitiu que uma mulher voltasse a enchê-la. Alpin ria-se. Dava palmadinhas na mão de Ana com a pata grande e rude. Faolan viu-a estremecer. Concentrou-se na travessa de cabrito assado à sua frente. Espetou uma fatia com o punhal que lhe tinham emprestado e começou a mastigar. Olhou para quem o rodeava. Observou também os cantos do salão de Alpin, as entradas tapadas com colgaduras soltas, as lareiras amplas nos extremos da sala. Dizia-se que os Invernos eram frios de morte no reino dos Caitt.
As pessoas eram barulhentas e pareciam gostar das suas piadas, muitas das quais tinham a ver com as suas proezas na cama de mulheres roliças, ou com a vitória numa qualquer escaramuça. Comiam e bebiam com apetite e, ao início, assediaram Faolan com perguntas: como se chamava, de onde era, se tinha mulher e o que fazia um celta a viver na corte de Fortriu. Apresentou respostas breves, educadas e perfeitamente inócuas. Para sua satisfação, a conversa rumou a outros assuntos. Contou o número de guerreiros ali presentes, imaginou quantos poderiam estar de guarda e comparou o total com a capacidade dos alojamentos destinados aos soldados, uma zona que ele investigara discretamente algum tempo antes. Na casa de Alpin havia espaço para um contingente de oitenta homens. Encontravam-se presentes cerca de trinta, já contando com os que estavam de sentinela. Sabia-se que Alpin tinha um posto avançado na costa ocidental, onde tinha os barcos ancorados, mas não havia informações recentes sobre a sua dimensão ou recursos. Isso era algo que Faolan precisava de descobrir. Algures, encontraria um ponto fraco em Briar Wood. Era perito em descobri-los: um homem com ressentimentos, uma mulher solitária de língua solta, uma criança que escutara algo que deveria ser mantido em segredo. A seu tempo, obteria o que precisava.
Olhou para Ana, no outro lado da mesa, que ao mesmo tempo o fitou, nos seus olhos uma expressão apologética. Faolan permitiu-se um ligeiro aceno de cabeça à laia de tranquilização. Viu nos lábios da jovem um breve esboço de sorriso.
Ana voltara-se para Alpin e gesticulava com uma expressão séria. Esforçava-se por cumprir a sua própria missão: negociar o seu futuro pela causa dos reis que a tinham mantido refém ao longo de metade da vida. Era injusto, profundamente injusto. Ana parecia uma princesa de uma narrativa antiga, que deveria encontrar a felicidade ao conquistar o seu próprio reino, ou com uma vitória transcendente sobre a adversidade. Aquilo não era um triunfo. Cada menear da bela cabeça, cada mirar dos olhos cinzentos e límpidos, cada movimento expressivo das mãos era mais um passo para a entrega ao imbecil sentado ao lado dela. Nenhum dos presentes tinha a capacidade de lhe reconhecer o seu verdadeiro valor...
— Quer dizer — disse alguém — que és um bardo da corte? Há por aí uma harpa velha. Era de um indivíduo que a tocava, há muito tempo, como é que ele se chamava? Umas canções depois da refeição, era uma boa idéia.
Uma harpa. Faolan gelou.
— Daqui a algum tempo, talvez — respondeu, à cautela. — Fui ferido no braço durante a viagem. Ainda vai demorar até que volte a tocar. E se o instrumento não é usado há muito tempo, deve precisar de cuidados.
— Vou mandar um rapaz à procura dela. Podes dar-lhe uma vista de olhos. Não há muita diversão por aqui, sabes? Os bardos não costumam visitar-nos. As mulheres iam gostar de uma canção ou duas.
— Trabalho para a senhora — indicou Faolan. — Se ela concordar, é claro que o farei. Mas vai demorar. Um homem de fita azul na cabeça trespassou-me com uma flecha. Deve ter pensado que era um guerreiro. Se calhar era míope.
Os comensais riram à gargalhada.
— Mostra-nos a tua cicatriz — pediu alguém.
— Está ligada.
— Mostra-nos.
Não havia escolha a não ser fazer o que lhe era pedido. Faolan teve o cuidado de arregaçar a manga apenas até ao novo ferimento, sem revelar a outra cicatriz mais antiga. Que um músico tivesse sido lesionado daquela forma seria plausível enquanto acidente infeliz. Ostentar as marcas de dois iria levantar suspeitas.
— Os Azuis, an? — comentou um homem mais idoso cuja face esquerda estava adornada com fileiras esbatidas de marcas de guerreiro.
— Diz-se por aí que eles atacaram o grupo da tua senhora no vau. Alpin não vai deixar que uma afronta dessas passe em branco.
— Os Azuis? — Faolan simulou ignorância no assunto. — Quem são eles? Vizinhos?
— Podemos chamar-lhes isso. O território de Dendrist, o Lago Azul, fica a leste de Briar Wood. É um homem que nunca parece satisfeito com as fronteiras existentes.
— Ah.
— Viajar por Breaking Ford não é a forma mais segura de cá chegar — comentou um homem de olhar arguto. — O líder do teu grupo devia ser um idiota. Era melhor que tivessem ido pelos lagos e pelos caminhos ocidentais.
— Não percebo nada de tais assuntos — replicou Faolan, cuja observação constante do salão agitado em busca de algo significativo acabara por ser recompensada. Numa bancada de pedra a um lado havia travessas e, entre os servos que as levavam e retiravam da mesa, um homem servia uma pequena travessa, comida e bebida suficiente para dois. O fato não era estranho, talvez levasse comida a alguns dos homens de guarda, ou atendesse às necessidades dos idosos ou dos enfermos. Foi o próprio indivíduo que chamou a atenção de Faolan. Era baixo, com um peito poderoso e ombros muito largos, sendo a sua figura acentuada pela túnica até aos tornozelos que usava. Era calvo e, ao contrário dos guerreiros Caitt hirsutos, tinha o rosto escanhoado e as faces decoradas com marcas de batalha, mas não de clã. Seria um guerreiro experiente e de sangue Priteni, mas não de ascendência nobre. A pose deixava transparecer poder. Nessa energia restringida, havia um controlo que deixou Faolan sem fôlego. Por que estava tal homem a servir pequenas travessas de carne assada e de cerveja como se fosse um criado normal? A cabeça calva virou-se e Faolan reparou numa marca atrás da orelha direita, uma tatuagem pequena e toscamente realizada com a forma de uma estrela. Os olhos claros e impenetráveis cruzaram-se brevemente com os de Faolan, ao que o indivíduo pegou na travessa e saiu. Faolan apercebeu-se da porta que usou, a mais próxima dos aposentos privados de Alpin.
— Bardo! — chamou o chefe tribal.
Com uma pontada de apreensão, Faolan levantou-se.
— Vem cá!
Dirigiu-se ao topo da mesa e fez uma vênia baixa e servil ao chegar a Alpin. — Meu senhor.
— Hoje não há música? — perguntou Alpin com um sorriso.
— Não há melodias para nos divertir?
— Meu senhor... — começou Ana a dizer.
— Deixa que o homem fale, minha querida. Ele tem língua. Já o ouvi a utilizá-la.
— Espero divertir-te a seu tempo, meu senhor Alpin — disse Faolan, com o que esperava ser um tom subserviente. — Seria o mínimo que poderia fazer para recompensar a tua consideração por teres ido ao nosso encontro. Infelizmente, o meu braço está ferido e não posso tocar. Além disso, os meus instrumentos perderam-se no acidente que nos vitimou.
— Não precisas dos teus instrumentos para cantar, nem do teu braço — resmungou Alpin.
— Com efeito, meu senhor. Mas estou deprimido. Não creio que Lady Ana me exija música, tendo em conta as nossas perdas recentes. É difícil invocar melodias belas quando o nosso coração está cheio de mágoa.
— É claro que não precisas de cantar esta noite, Faolan — interveio Ana. — Talvez depois.
— Não estás a pensar manter este indivíduo para sempre, pois não? — desafiou Alpin. Não tenho celtas na minha casa. Só serve para deixar as pessoas desconfiadas.
As faces de Ana assumiram um tom rosa.
— Faolan é de confiança, meu senhor. Um músico afasta-se das questões políticas. Espero que ele permaneça aqui durante algum tempo. Pelo menos até que as nossas negociações estejam concluídas. Gostaria que ele tocasse...
— No casamento — atalhou Faolan por entre dentes cerrados.
— Depois regressarei ao Monte Branco.
Seguiu-se um breve silêncio, após o que Ana ocultou um bocejo com a mão. — Poderás desculpar-me, meu senhor? Estou muito cansada e gostaria de me retirar.
— Com certeza. — Os olhos de Alpin não a largavam. Faolan conseguia ler-lhe o pensamento, ver a imagem de Ana deitada na cama, descontraída de camisa de noite, as curvas do corpo sedutoras, a luz da vela a dançar-lhe na pele clara e no cabelo cintilante. — Bons sonhos, minha querida.
— Só mais uma coisa — disse Ana, enquanto se levantava. — Preciso da tua garantia em como em breve teremos oportunidade de discutir os termos de Bridei para o casamento. Desejo resolver esse assunto antes de tomar uma decisão. Preferia que Faolan estivesse presente durante as negociações, pois é o único homem da minha escolta que sobreviveu. Mesmo não sendo perito em tais assuntos, imagino que seja ele o portador do resultado da nossa conversa ao rei Bridei. Não seria assisado enviar outro mensageiro, tendo Faolan de viajar para lá.
Alpin fitou-a, os lábios carnudos contorcidos num sorriso sardônico. Parecia dividido entre o divertimento e a irritação.
— Não estou habituado a ter mulheres a darem-me ordens — disse.
— Não é uma ordem, meu senhor — replicou Ana. — A enchente levou-me o negociador, a par de muitos amigos. Imagino que não queiras que o rei Bridei saiba que te aproveitaste de mim nas negociações devido a tão infeliz acontecimento. É claro que farás algumas concessões, em virtude da posição desconfortável em que me encontro.
Faolan reprimiu a vontade de aplaudir. Fora muito bem dito. A jovem possuía uma extraordinária capacidade para surpreendê-lo. A conversa atraíra a atenção de todos os homens e mulheres sentados junto a Alpin. Moviam o olhar de um interveniente para o outro, com o interesse ávido dos espectadores de um bom combate. Faolan, ainda de joelhos, assumiu uma pose inexpressiva.
— Discussões, negociações, para que serve isso? — Alpin abriu os braços. — Eu sei o que quero. — Piscou o olho aos homens sentados perto dele. — Minha querida, acho que não terias feito esta viagem tão longa sem teres noção do que vai acontecer no fim, com ou sem escolta. Só precisamos de um dia ou dois para nos conhecermos, e de um druida para a cerimônia, e aqui o teu homem pode voltar ao Monte Branco antes mesmo de ter oportunidade de tocar.
— Faolan — disse Ana —, levanta-te, por favor. Meu senhor, estou demasiado cansada para pensar devidamente. Apenas sei que Bridei estabeleceu termos precisos para este acordo. É meu dever apresentá-los. Se não puderes aceitá-los, não terei... teremos... alternativa, a não ser regressar de imediato ao Monte Branco.
Um novo silêncio. Alpin palitava os dentes com uma lasca de osso de cabrito.
— Deveras — acabou por dizer. Atrás da palavra estava o rio transbordado, os atacantes, a longa e solitária viagem de regresso a sudeste. Uma mulher a viajar apenas com um músico que a protegesse. O fato de que ali em Briar Wood, Alpin era rei e senhor.
— Sim, meu senhor — replicou Ana. O tom cortês era apenas traído pelos punhos cerrados.
— Pois bem — disse Alpin —, já é tarde. Tiveste uma viagem longa. É boa idéia retirares-te. Não te esqueças da tranca, minha querida. Não se pode confiar num bardo, estão sempre a pensar nos acontecimentos impossíveis das histórias, aqueles em que os porqueiros se tornam reis e os escravos vão para a cama com as princesas. — Os homens riram-se. — Boa noite, minha querida. Não me olhes assim, estava só a brincar. Bardo, estás dispensado. Espero que tenhas canções na nossa língua e não só naquele maldito gaélico.
— Farei o possível por agradar o meu senhor, caso a oportunidade se preste. — Faolan regressou ao seu lugar humilde à mesa, enquanto Ana saiu, com a criada atrás dela. Esperava que ela se lembrasse mesmo da tranca. Aquele indivíduo era esperto, muito mais do que o sugerido pelas maneiras grosseiras. Teria de ser vigiado. Agora era Alpin quem se levantava e, com uma palavra ou duas aos homens, seguiu Ana através da porta que dava para os aposentos da família. Aloja-a a meu lado. Se aquele homem julgava que ela a deixaria entrar, estava muito enganado.
— O meu senhor retira-se cedo — murmurou Faolan um pouco depois para Gerdic, o servo que o ajudara nessa tarde com as roupas e a cama, e que agora se sentava a seu lado à mesa.
— Ele volta — retorquiu Gerdic.
E assim Faolan aguardou, enquanto observava as movimentações no salão e ouvia as conversas. Alguns dos homens trouxeram tabuleiros de jogo, o que indicava que não eram todos perfeitos idiotas, e Faolan observou e fez sugestões úteis, mas não jogou. Mais tarde, teve lugar uma série de combates em frente à lareira, com os homens a apostarem na destreza dos adversários. Faolan juntou-se às apostas, embora garantisse que perdia sempre. Não que houvesse alguma coisa a perder, pois não tinha posses materiais, exceto um cavalo que não era seu.
— Há pouco vi um indivíduo que daria um belo oponente nestes combates — comentou, a dada altura. Gerdic parecia afável e pensou que valeria a pena tai observação casual. — Um careca com grandes ombros. Parecia um lutador. Acho que já cá não está. — Olhou à volta, como se procurasse o homem.
— Deve ser Deord. — Nada mais foi adiantado.
— Deord? Quem é ele, um guerreiro?
— Não exatamente. — Gerdic pareceu ficar pouco à vontade. — É o guarda especial de Alpin. Não o vemos muito. É bastante reservado. Ninguém iria desafiar Deord para um combate, a menos que fosse suicida.
— Mm-mm. — Faolan não perguntou, O que guarda ele? De onde veio? Sabia quando pressionar e quando devia calar-se. Havia uma certa reticência. De manhã, procederia a mais investigações, e acabaria por descobrir a informação que Bridei desejava. Imaginou, também, que seria obrigado a tentar reparar uma harpa.
Não conseguiu dormir. Era estranho que ele, que durante tanto tempo passara as noites sozinho ou velara por um Bridei acordado, estivesse agora na escuridão, a sentir a ausência de Ana sob a forma de uma dor aguda no peito. Durante seis noites tivera-a nos braços, protegera-a e aquecera-a, embalara a força e a suavidade da jovem de encontro ao coração. Na altura, ansiara pelo fim da viagem, para que não fosse obrigado a confessar o quanto a desejava. Ao mesmo tempo, gostaria que a jornada fosse eterna, que se desvanecesse na forma de uma melodia, uma narrativa, uma recordação de prazer lancinante e de lamento profundo. Chegara ao fim e a perda daquela mulher fazia da enxerga a cama mais solitária em que alguma vez se deitara. Não, talvez não tanto. Em tempos, houvera uma noite em que teria implorado aos deuses que o deixassem morrer, caso não tivesse já aprendido a lição amarga de que tais escolhas nunca se encontravam ao alcance dos homens. Agora não queria morrer. Ainda havia trabalho a fazer.
O Sol foi-se erguendo no céu pálido e limpo. Enquanto a maré subia com um murmúrio suave e contínuo em redor da base da fortaleza costeira, os guerreiros começaram a reunir-se no espaço aberto do nível superior de Caer Pridne, a fim de ouvirem o seu rei. Tinham chegado homens de muitos postos avançados para aquela ocasião. O lugar estava repleto de guerreiros e cintilava com as armas. Alguns estavam instalados, no exterior das muralhas, em abrigos semelhantes a tendas e podiam ver-se inúmeros cavaleiros nos terrenos entre a fortaleza e a casa das mulheres sábias de Banmerren, ao longo da baía. A visita fora planeada havia muito. Bridei nunca poderia desapontá-los.
O rei de Fortriu não dormira. Após a vigília, deitara-se um pouco em silêncio na cama, com Ban enrolado a seus pés, enquanto Breth aproveitara um breve período de sono exausto. Em tempos, Faolan comentara que a principal qualificação dos guarda-costas de Bridei era a capacidade de passar sem dormir. Bridei tinha a noção desconfortável de que era exatamente isso que os três faziam. Eram amigos leais que ultrapassavam o dever na preocupação que sentiam pelo monarca. Com Faolan ausente e Garth no Monte Branco com a esposa e os filhos (o guerreiro oferecera-se para viajar até Caer Pridne e Bridei recusara), Breth tinha somente o apoio dos homens de Pitnochie, nenhum dos quais um guarda-costas treinado, e o homem robusto estava exausto. Bridei tentou imaginar como Faolan estaria a sair-se com a sua missão, se o chefe tribal Caitt se encontrava preparado para aceitar a oferta rara que lhe tinham enviado. Faolan. Ah, Faolan, o seu amigo misterioso e relutante... Nunca poderia levar Faolan consigo pelo Vale, não seria capaz de exigir que um homem combatesse o seu próprio povo, independentemente da lealdade mostrada. E claro que Faolan sabia desse fato. Percebera-o de imediato. Nada escapava àquele homem. Mesmo assim, aceitara a missão. Ao escolher não ser mais do que um guarda contratado, nunca poderia recusar-se a cumprir a ordem do rei. Quando Faolan e os outros regressassem de Briar Wood, Bridei já teria partido. O exército estaria a dirigir-se para ocidente e a grande empresa já teria sido iniciada. Quando as folhas assumissem os tons castanho, vermelho e dourado da Medida, o sangue dos Celtas banharia a terra que tinham roubado. Quando fosse altura de outro Portal, a guerra teria chegado ao fim. A vitória teria de ser digna de todos os que haviam depositado nele a sua confiança. Os deuses tinham-lhe entregue esta missão, a qual teria de ser cumprida segundo a sua vontade. Teria de acreditar com todo o coração que seria capaz. Que os Priteni triunfariam, por fim, sobre a praga celta que se espalhava através das terras ocidentais desde há três gerações. Que seriam capazes de rechaçar a ameaça insidiosa que era a nova religião. O custo em vidas seria enorme. Só podia rezar para que não fosse demasiado elevado.
Bridei suspirou, ao pensar em Ana e na cruel necessidade de enviá-la para longe. Esperava que o novo lar fosse acolhedor e o marido se encantasse com a bela e jovem esposa. Recusou-se a pensar que, assim que a guerra chegasse ao fim, precisaria de uma nova refém que a substituísse.
Permaneceu imóvel, enquanto lá fora o sol nascia e as canções dos pássaros se transformavam de pios solitários em coros estrondosos de boas vindas. Pensou em Derelei, na deslumbrante manhã em que nascera, no primeiro choro débil, nas pequenas mãos fechadas e nos olhos brilhantes. Na madeixa de cabelo escuro e úmido. Na fragilidade do pequeno crânio. No sorriso de Tuala, exausto e triunfante. Nas suas próprias lágrimas. Sentia ainda o peso quente do filho nos braços. Conseguia sentir o aroma doce do hálito do bebê e ouvir a respiração leve durante a noite. Lembrava-se do grito de espanto de Derelei, quando rebolara pela primeira vez. O ar de espanto nos olhos arregalados quando Bridei o levou para o exterior, para ver a lua cheia a cruzar o céu da noite. Os bravos esforços cambaleantes para andar. O rosto em descanso, a forma adormecida, enroscada no colo de Tuala. O corpo devastado pela febre, as faces afogueadas, a voz transformada no crocitar áspero de um corvo. Tão pequeno na enxerga. Tão pequeno.
Quando o dia amanheceu por completo, Bridei levantou-se e lavou do rosto os vestígios das lágrimas. Breth despertou rapidamente, um hábito adquirido há muito, e foi buscar as roupas boas de que o rei necessitaria, bem como pão fresco, fruta seca e uma infusão de ervas que Broichan garantira que todos os guardas de Bridei sabiam como preparar e quando administrar. Bridei não tinha apetite, mas comeu e bebeu mesmo assim, pois sabia que Breth ali ficaria até que fizesse o que lhe era exigido.
— Ele ainda pode recuperar — comentou Breth em voz baixa. — Os filhos de Garth recuperaram.
Bridei não respondeu. Os filhos de Garth eram grandes para a idade, fortes e robustos. Mesmo eles tinham estado perto da morte.
— Sentes-te bem para esta manhã? — Em privado, os guarda-costas de Bridei não observavam as formalidades quando se lhe dirigiam.
— Tenho de sentir. — O pão sabia a cinzas, a bebida era-lhe amarga na boca.
— Se partirmos logo assim que acabar — disse Breth —, ainda podemos chegar a casa antes de anoitecer.
Bridei conseguiu esboçar um sorriso e deu os restos do pão a Ban, que estava debaixo da mesa.
— Logo veremos — replicou. — Vamos, então, imagino que estejam à minha espera.
Nesse momento, Carnach, o alto chefe tribal, surgiu à porta. Envergava os trajes formais que tal acontecimento exigia: uma túnica de boa lã escura, cingida com cabedal e prata, uma camisa por baixo, de linho claro, calças de lã, botas enceradas. A túnica tinha um debrum bordado, preto sobre vermelho, um padrão de cavaleiros minúsculos, e o broche quase circular que prendia o manto curto do chefe tribal estava decorado com um garanhão empinado em prata. O manto era de um azul muito escuro, a cor da família. Tal como Bridei, Carnach descendia da linhagem real de Fortriu. O cabelo ruivo de Carnach caía-lhe pelas costas em tranças. O rosto exibia agora um padrão impressionante de tatuagens pois, desde que era o chefe militar do rei, liderara os homens de Bridei e os seus próprios guerreiros em inúmeras escaramuças contra os inimigos, tanto Celtas como vizinhos incômodos mais próximos.
— Os homens estão reunidos, senhor meu rei — declarou Carnach com as palavras formais que tal ocasião exigia. — Estão um pouco desalentados desde que se soube que um grupo de homens de Fokel foi emboscado no norte. Perderam-se nove guerreiros. Havia quem tivesse amigos entre os falecidos. A tua visita vai dar-lhes coragem renovada.
Bridei aquiesceu enquanto Breth o ajudava a prender o manto com a águia de prata que o velho rei lhe dera havia anos, em reconhecimento da sua coragem. Interrogou-se sobre como alguém poderia servir de encorajamento, tendo o seu próprio coração partido e ensangüentado. Como poderia sair e unir os homens na causa de Fortriu quando, em boa verdade, lhes estava a pedir que marchassem e morressem por ele? Fechou os olhos.
— Vamos, então — disse Breth em voz baixa. — Quanto mais depressa começares, mais depressa estaremos a caminho de casa. Meu senhor.
Ban estava sentado no pé de Bridei. O rei baixou-se. Olhos ansiosos fitaram-no e uma pequena língua veio lamber-lhe os dedos.
— Lamento pelo teu filho, Bridei — disse Carnach, com um tom de voz diferente. — Soube esta manhã o quanto ele estava doente. É uma coisa terrível.
— Sim. — Naquele momento, era tudo o que Bridei conseguia dizer.
— É melhor irmos. Estão à tua espera.
— Sim.
— Homens de Fortriu! — A voz do rei ecoou clara e límpida através do pátio onde os guerreiros se amontoavam. Por todo o acesso elevado que rodeava o nível superior da fortaleza, mais homens olhavam em silêncio o patamar de pedra onde Bridei se encontrava de pé, com os líderes a seu lado, uma figura elegante de ombros largos nas suas roupas simples e de qualidade. Era um guerreiro entre guerreiros. O rosto jovem ostentava uma boa porção de marcas de guerra, destacando-se entre elas as do primeiro grande confronto em Galany's Reach, onde as suas proezas tinham sido a base de uma série de poemas épicos e de canções arrebatadoras. Era seu rei, mas também era um deles, e os homens gostavam disso. — Estou hoje entre vós para vos rogar que se preparem para o maior empreendimento das vossas vidas. Saúdo-vos como vosso líder e como vosso irmão. Todos somos filhos desta bela terra que é Fortriu, nascidos do seu solo, criados no seu ar puro, mantidos pela doce água das suas muitas fontes e inspirados pelo fogo vivo do Guardião das Chamas, cuja luz arde no coração de todos os homens de coragem. O deus olha-vos com amor e orgulho, meus irmãos. Vejo a sua força nos vossos olhos. A sua firmeza no vosso porte. O seu valor nos vossos corações.
— Em breve, partiremos numa demanda que nos levará ao limite. O parasita insidioso que é Dalriada impôs a sua presença repugnante nas nossas terras durante tempo suficiente. — Fez-se ouvir um pequeno coro de assobios de apoio. — Demasiados dos nossos melhores e mais bravos homens tombaram durante o conflito com esse inimigo. Demasiadas almas valentes pereceram nessa luta. — Aos pés de Bridei, Ban mantinha-se muito quieto, a cauda hirta, as patas firmes, os olhos na multidão. — Chegou a altura da derradeira resistência, de dizer chega. É altura de expulsar o invasor da nossa pátria de uma vez por todas. Homens, chegou a altura da nossa maior batalha e da nossa maior vitória.
O pátio estremeceu com os brados. Os pés bateram, as mãos aplaudiram, as vozes foram elevadas em saudação.
— Tenho fé em cada um de vós — continuou Bridei — e nos vossos líderes. Carnach vai garantir que estão preparados a todos os níveis para levar o combate até à porta do inimigo e para saírem vencedores. Ficará a vosso lado até que do seu corpo exale o último fôlego. Não duvidem: nem ele, nem eu, nem qualquer um dos líderes de Fortriu permitirá que os Celtas assombrem as nossas terras para além da próxima Medida. O ocidente voltará a ser nosso e os estandartes das nossas grandiosas casas voltarão a agitar-se sobre os territórios pilhados pelo nosso inimigo. Iremos vê-los ao vento: as cores de Longwater e da Fonte do Corvo, de Thorn Bend e de Abertornie, a estrela e a serpente da antiga casa de Galany e o bravo branco e azul dos reis de Fortriu. Gabhran de Dalriada irá ajoelhar-se perante mim. Vai renunciar aos territórios que roubou. Abandonará estas costas para sempre.
— Isso é bom de mais para ele! — gritou alguém, o que suscitou uma onda de concordâncias iradas.
— Talvez seja — disse Bridei. — Mas não deixarei que no futuro se cante que os homens de Fortriu não foram magnânimos para com os inimigos. Que chacinaram a sangue frio um inimigo já rendido e indefeso. Os que nos encontrarem no campo de batalha irão deparar-se com a sua morte. Não duvidem, guerreiros de Fortriu. Marchamos para a batalha com os nomes dos nossos pais assassinados, dos nossos irmãos perdidos, dos nossos camaradas estropiados e arruinados nos lábios, uma canção de sangue e de vitória. Avançaremos com as vozes dos nossos deuses antigos no coração. Os seus cânticos serão o nosso alento e irão levar-nos aos anais das lendas dos Priteni. E se morrermos, será com as almas cheias de coragem, lealdade e amor, pois somos a personificação da vontade do Guardião das Chamas, e cada um de nós, novo ou velho, guerreiro endurecido de muitas batalhas ou rapaz de olhos vivos e tácticas de guerra acabadas de aprender, é filho do deus.
Um brado de aclamação. Alguns homens bateram nos ombros dos amigos. Não foram poucos os que limparam os olhos.
— Trabalharam muito — prosseguiu Bridei, num tom mais baixo, o que obrigou a multidão a silenciar-se para escutar as palavras do rei.
— Dos vossos líderes apenas ouço bons comentários sobre a conduta neste campo e nos outros locais de reunião. São um grupo excelente, unidos na amizade, na competição, na vontade de se excederem e de serem bem-sucedidos na grandiosa missão que nos espera. Por isso, apresento-vos os meus sentidos agradecimentos. E digo-vos, em cada mestre espadachim, em cada bravo lanceiro, em cada arqueiro de vista apurada, existe um marido com uma esposa jovem que ficou para trás, um pai com um bando de crianças a crescer, um homem com um campo de cevada que tem de ser cuidado, ou um barco de pesca que tem de ser restaurado. Todas essas coisas são reais, são a vossa vida, meus homens, fazem mais parte de vós do que qualquer carga inebriante em batalha alguma vez poderá vir a ser. Mas por agora têm de esquecê-las. Guardem-nas no vosso coração. Elas estarão à vossa espera, quando tudo terminar. Peço-lhes uma estação. Uma estação de heroísmo, de combate e de sangue. Alguns irão morrer. Verão o vosso camarada ser abatido ao vosso lado, o vosso irmão trespassado por uma lança celta, o vosso amigo de infância a sufocar nos vossos braços e a implorar um fim célere. Homens, nós somos guerreiros. Somos o exército leal do Guardião das Chamas, e a nossa coragem não vai fraquejar. Vamos fechar os olhos dos que tombarem e deitá-los em silêncio, e depois avançaremos, de armas nas mãos, e nos lábios o brado dos nossos antepassados: Fortriu!
O rei ergueu o punho e, em uníssono, uma floresta de braços levantou-se à sua frente. O brado de mil vozes parecia o grito do próprio deus, no ar límpido da Primavera:
— Fortriu!
Tornou-se óbvio que não seria possível uma partida rápida de Caer Pridne e um regresso ligeiro ao Monte Branco. Os homens juntaram-se em redor do palanque, o que fez com que Ban começasse a ladrar freneticamente e Breth tentasse abrir caminho à força de ombros, interpondo o próprio corpo entre Bridei e todos os que procuravam aproximar-se demasiado.
— Deixa-os vir — interveio Bridei. — Querem falar comigo, nada mais. — Avançou para a multidão e apertou uma mão aqui, tocou um ombro ali, admirou uma bela arma, recordou uma refeição partilhada, ouviu narrativas de um casamento, de um feito de armas e de um cavalo aleijado com o interesse e atenção de que cada homem precisava. Breth fez o melhor que pôde para manter algum espaço aberto em redor do rei. Ban rosnava para os joelhos e mordia os tornozelos. Quando os homens de Caer Pridne ficaram satisfeitos e começaram a dispersar do pátio, o sol já passara do seu ponto mais alto. Não haveria tempo para chegar a casa antes do anoitecer, nem mesmo com os melhores cavalos de Fortriu.
— Talvez seja pelo melhor — resmungou Breth, enquanto voltavam a entrar com Carnach. — Pelo menos podes dormir um pouco.
Bridei aquiesceu. Não podia dizer o que lhe ia na alma. Por mais idiota que pareça, sinto que se fechar os olhos, por um momento que seja, vou perdê-lo para sempre.
— Ser-me-ia bastante útil se partisses somente amanhã — admitiu Carnach. — Quero discutir algumas idéias contigo, umas tácticas novas que tenho vindo a desenvolver. E os homens esperavam que os visses a treinar as manobras. Planearam uma certa exibição...
Enquanto Bridei mantinha a sua vigília solitária junto à Fonte das Sombras, também outros velavam pela noite fora. Nos aposentos do rei, no Monte Branco, Broichan e Tuala tinham permanecido à cabeceira de Derelei, os sentidos alerta para a mais ínfima alteração do estado da criança. Mas a única mudança ocorreu nos padrões das paredes de pedra, imagens de luz e sombra invocadas pelo tremeluzir da lareira e pela luz das velas. Por duas ou três vezes foi trazida água e comida e Broichan e Tuala tinham-se incitado mutuamente para que se alimentassem. Tuala adormecera e viera a acordar sentada no chão ao lado da cama, a cabeça encostada ao colchão de palha, o pescoço dorido. Broichan não dormira. Ficara de pé, sentado ou ajoelhado onde pudesse ver Derelei, e por vezes recitara orações ou contara trechos de histórias, o tipo de narrativa que uma criança pequena gostaria de ouvir. Mas, durante a maior parte do tempo, o druida mantivera uma pose de imobilidade extrema, uma imobilidade que parecera impossível a um homem normal. Rezara em silêncio. Tuala sentira na câmara o poder de tais preces.
Havia questões que poderia ter colocado. Como era possível que uma criança tão pequena sobrevivesse sem se alimentar durante um dia e uma noite inteiros? A dor que sentia nos peitos cheios era indicadora da fome que o filho deveria ter. Por que motivo Broichan não tapara Derelei, com ou sem febre? A noite arrefecera o quarto.
Não deviam umedecer o corpo do bebê, ou embalá-lo, ou pegar-lhe ao colo? Será que o filho não se perderia na estrada negra que seguia, sem o conforto do toque? Será que a Mãe de Tudo não iria chamá-lo, com um sorriso, o que levaria o pequeno viajante a cambalear de braços estendidos na sua direção? Tuala não o perguntara. Fazê-lo seria duvidar não só de Broichan, como também dos deuses em que ele depositava a sua confiança.
A luz surgiu por fim, um amanhecer pálido, visível através do buraco que servia de chaminé por cima da lareira. Com ela chegou Mara, com uma bacia de água tépida nas mãos e uma toalha limpa sobre o braço. Não disse nada. Limitou-se a depositar a sua carga junto ao lume e aproximou-se para olhar a criança. Broichan e Tuala estavam de pé, cada um de seu lado da cama, os olhos fitos nas pálpebras tapadas de Derelei, no botão de rosa que era a boca, nos bracinhos estendidos. Mara estendeu o braço ao lado de Tuala e levou a mão áspera e avermelhada à testa do bebê. Broichan não tentou impedi-la.
— A febre passou. — A voz da mulher assumia um tom de uma firmeza louvável. — Quando acordar vai ser um rapazinho esfomeado. Imagino que dês graças por isso. Quando eles estão a amamentar as coisas podem tornar-se dolorosas. Já o vi com Brenna, quando tu ainda eras uma coisinha insignificante.
Broichan deixou escapar um suspiro profundo e virou-se de repente. Não queria que Tuala visse a expressão que tinha no rosto. A rainha voltou a olhar para o filho e viu-lhe as pálpebras a estremecer, os braços a moverem-se, as pequenas estrelas que eram as mãos a abrir e a fechar. O bebê agitou-se, esperneou e a linha de pó colorido que Broichan desenhara à sua volta foi quebrada. As flores caíram-lhe das pálpebras, e o azul delicado foi substituído por uma cor ainda mais doce, a dos olhos do bebê, ensonados, mas límpidos e brilhantes. Derelei estendeu os braços à mãe, que lhe pegou ao colo quando o bebê começou a chorar. Nos momentos que precisou para deslocar o banco até junto do lume, desapertar o corpete e levar a criança esfomeada ao peito, Broichan desapareceu.
Assistira a uma exibição enérgica de combate corpo a corpo com varapaus, um concurso de tiro ao alvo e a uma demonstração de equitação. Visitara estábulos, armarias e ferreiros, e elogiara os que se dedicavam a essas profissões. Ceara com Carnach e os seus capitães e escutara um grupo de guerreiros com talento para o canto. O longo dia chegara ao fim e A Que Brilha pairava, estreita como uma foice, no campo escuro que era o céu noturno. Bridei estava na passagem que conduzia aos seus aposentos, os mesmos que partilhara com os seus guardas durante a visita momentosa antes da eleição do rei. As recordações enchiam o lugar. A sombra do pai adotivo, Broichan, era particularmente forte. Broichan, sem o qual nunca viria a tornar-se rei. Broichan, que no fim quase fizera com que tal não se concretizasse. Broichan, o que mais próximo tinha de um pai. Broichan, que nunca compreendera na totalidade o homem que criara. E Tuala... pelos deuses, estava fora havia apenas um dia e a sua falta já se fazia sentir na forma de uma dor lancinante no peito. Como podia tê-la deixado sozinha a lidar com tudo? Derelei...
— Meu senhor. — Era Gwrad, o guarda-costas de Carnach, que descia os degraus do nível superior. — Um mensageiro. Do Monte Branco.
No íntimo de Bridei houve algo que se contraiu, um aperto forte e gelado, em preparação para um golpe mortal. Não conseguia falar. Atrás da figura robusta de Gwrad estava outra, um dos homens de Pitnochie, Uven, que se encontrava ao serviço do Monte Branco. De imediato, Breth chegou ao lado de Bridei. Os guardas escolhidos por Carnach mantiveram a distância.
— Diz-nos, então — indicou Breth, com um tom de voz cuidadosamente firme.
— O teu filho... — Uven estava ofegante.
Bridei manteve-se imóvel, enquanto a coisa gelada no seu interior estendia lentamente os tentáculos para o coração do rei.
— Pelo amor dos deuses — disse Breth com brusquidão —, desembucha de uma vez, homem!
— Meu senhor, a febre do teu filho cedeu — arquejou Uven. — Está muito melhor e deve recuperar...
De súbito, Bridei sentiu os joelhos a fraquejarem-lhe. Tinha a cabeça às voltas. Estendeu a mão, à procura do apoio da parede, e sentiu o braço de Breth em redor dos ombros.
— Que o Guardião das Chamas seja louvado — disse Breth em voz baixa. — São notícias muito bem-vindas. É melhor ires descansar, Uven.
Deve ter sido uma viagem difícil. Se houver mais, talvez possas voltar mais tarde, para falar com o rei.
Quando o mensageiro foi levado por Gwrad até um lume e algum alimento, Breth envolveu o braço de Bridei e fez menção de o levar para dentro.
— Não — disse Bridei. — Não, vou ficar aqui fora mais um pouco, sob o olhar d'A Que Brilha. São necessárias orações...
— Podes ser rei, mas não deixas de ser um homem — retorquiu Breth. — Desabafa. Ri-te, chora, grita, faz o que quiseres. Sou o único que vai ver-te. Não tenho filhos, mas imagino o que possas estar a sentir.
— Estou bem — asseverou Bridei, deixando-se cair de repente. Ficou sentado com as costas contra a parede, as mãos a taparem os olhos. — Estou bem...
Ban levou as patas ao ombro do dono e tentou lamber-lhe o rosto.
— O que eu sempre pensei — disse o guarda-costas corpulento, ignorando a sua posição —, é que os deuses sabem o que nos vai no coração sem que seja preciso dizê-lo. Imagino que em ti, mais do que em qualquer outro, isso seja verdade.
Na manhã após a chegada de Ana, pouco depois de a jovem se ter levantado, lavado e vestido com a ajuda de Ludha, a figura imponente da encarregada da casa surgiu-lhe à porta.
— O meu senhor deseja que tomes o pequeno-almoço com ele nos seus aposentos — informou Orna. — Com a tua criada a acompanhar-te, é claro. Ludha, vais com a senhora e sentas-te em silêncio a um canto. Leva a tua costura contigo.
Era um pedido razoável. Ana interrogou-se sobre se Alpin pretendia resolver o assunto das exigências de Bridei enquanto comiam um prato rápido de papas de aveia. Esperava sinceramente que não. Dormira mal e encontrava-se a braços com uma dor de cabeça.
Os aposentos de Alpin eram espaçosos, com duas janelas estreitas, semelhantes à do seu quarto, na porta ao lado. Havia uma cama de tamanho generoso, com as cobertas ainda amarrotadas, e uma mesa de carvalho com dois bancos compridos. Aí era possível sentarem-se oito pessoas em conferência ou durante uma refeição. Ardia um fogo na lareira. Nas paredes estavam penduradas colgaduras, com cenas de batalha e de caçada, as cores brilhantes, à luz das candeias assentes em duas enormes arcas de carvalho. Junto à lareira havia uma pequena porta, que Ana imaginou desse para uma latrina ou para uma arrecadação. Ficou aliviada por encontrar Alpin já levantado e vestido. Estava de pé junto à mesa, à conversa com outros dois homens. Todos se silenciaram quando a jovem entrou.
— Ah, Ana, minha querida! Espero que tenhas dormido bem. A jovem obrigou-se a sorrir.
— O quarto é muito confortável, meu senhor. Ainda não me encontro recomposta da viagem, mas tal não se deve a qualquer falha na tua hospitalidade.
Alpin riu-se com gosto, deixando-lhe a cabeça a latejar.
— As tuas maneiras também são imaculadas — replicou. — Mordec, Erdig, já têm as vossas ordens. Encontramo-nos no pátio, quando eu terminar este assunto. Preparem-se para sair de imediato.
Após a saída dos dois homens, Alpin dirigiu Ana à mesa.
— Senta-te, minha querida. É claro que deves estar cansada. Devia ter-te deixado dormir em paz.
— Estou acordada desde que amanheceu. — Não lhe diria que outro pequeno pássaro chegara ao peitoril da janela do seu quarto aos primeiros raios de sol: um cruza-bico, resplandecente na sua plumagem de um vermelho intenso e que a olhava com o ar de avaliação ousada que se habituara a esperar daquelas visitas aladas. Ana observara-o a afastar-se. Vira-o desaparecer no mesmo local que a outra ave, ao fundo da muralha do lado norte. — Mas tenho uma ligeira dor de cabeça. Talvez passe se comer alguma coisa.
Sobre a mesa havia papas de aveia, bem como pão e uma tigela de mel. As mãos enormes de Alpin eram firmes e destras enquanto lhe serviam a papa.
— Prova isto — disse Alpin, olhando-a de esguelha. — Espero que te traga alguma cor ao rosto. Imagino que te deva um pedido de desculpas.
— Ah, sim?
— Estou a ver que és uma senhora e que não estás habituada aos nossos modos. Há muito tempo que não temos uma verdadeira senhora entre nós. Habituei-me a viver entre homens. A falar de uma certa maneira, sem ter o tento na língua a que talvez devesse obrigar-me.
Ludha sentara-se num banco a um canto e fingia estar a coser.
— Mas — argumentou Ana — há muitas outras mulheres aqui em Briar Wood. Não só as servas, mas as esposas dos teus guerreiros, algumas das quais se sentaram à mesa conosco, ontem à noite. E quanto aos teus familiares?
Alpin demorou um pouco a responder. Franzia o cenho quando atacou a papa.
— Só tenho uma irmã — acabou por dizer — e ela casou com um chefe tribal do norte. Há anos que não a vejo. Quanto às esposas, creio que nos habituamos a fazer as coisas de uma certa maneira e elas limitam-se a aturar-nos. Não são como tu. És uma jóia, uma estrela, algo tão raro como a seda fina.
Levou a mão à de Ana, sobre a mesa, e a jovem reprimiu o impulso de retirar os dedos.
— Estou habituada a palavras bonitas — disse — e sei bem julgar a sinceridade dos homens que as proferem. Não me conheces, Alpin. Não te sintas obrigado a dizer essas coisas só porque julgas que me podem agradar.
Com um trejeito no rosto, Alpin retirou a mão.
— Esqueces-te — indicou — de um certo assunto, relacionado com um casamento.
— De um possível casamento. Existem pormenores a serem discutidos antes que se decida a sua viabilidade.
— Ah, vai ser viável. — Alpin arrancou um naco de pão e usou a faca para barrar um pouco de mel. — Imagino que te esteja a apressar. Volto a esquecer-me da princesa que és. Nunca te deitaste com um homem, pois não?
Ana sentiu o calor invadir-lhe as faces. Ficou sem palavras, tal era a humilhação. Do seu canto, Ludha arquejou, chocada.
— Estou a ver que não — comentou Alpin, com um tom de satisfação. — Isso concede-te um maior poder de negociação. Nem pensaste nisso, pois não? Coras com facilidade. — Levou a mão à face da jovem, que fechou os olhos e ficou muito quieta, como se fosse uma criatura a tentar evitar ser notada por um predador. O coração martelava-lhe no peito. Os dedos de Alpin moveram-se de encontro à pele quente, numa carícia. — Estou a gostar — murmurou ele. — Mesmo com os teus modos delicados, existe paixão dentro de ti. Não é preciso teres medo do casamento. Já tens idade para ser levada para a cama. Já tens idade para sentir muito prazer com isso. Tens medo de mim?
Era uma pergunta difícil. Não era medo que sentia ao toque de Alpin, mas nojo. Não lhe podia dizer isso.
— Depois de tudo aquilo por que passamos na viagem — disse-lhe —, não sei se ainda sou capaz de sentir receio. Além disso, vim enquanto noiva. Seria uma tolice ter escrúpulos agora. Mas preciso de tempo para me instalar em Briar Wood. E, para ser sincera, o modo como falas tão abertamente sobre esses... assuntos íntimos... não me soam próprios. Parece-me muito cedo para isso. — Pelos deuses, esperava que Ludha não fosse uma alcoviteira. Aquela conversa seria bastante apreciada no alojamento dos criados.
— Já há muito tempo que a minha primeira esposa morreu — disse Alpin. Retirou a mão do rosto de Ana e voltou ao pequeno-almoço.
— Gosto de ter uma mulher na minha cama. Não gosto de acordar sozinho. Talvez os anos me tenham deixado grosseiro. — Ostentou um sorriso, o que lhe transformou as feições largas nas de um menino apanhado a meio de uma traquinice. Por um momento, quase parecia ser possível gostar-se dele. — Como já não és uma noiva jovem de doze ou treze anos, pensei que pudéssemos avançar mais depressa. Se a decisão fosse minha, casávamos ainda hoje. Estou impaciente. Agora que estás limpa, és uma rapariga muito bonita. E gosto da forma como me rejeitas, como se fosses tu a rainha e eu o mais reles dos criados. Desde, é claro, que percebas quem é o mestre de Briar Wood.
Ana pigarreou e esforçou-se por encontrar as palavras corretas por entre um turbilhão de emoções, das quais a mais intensa parecia ser a irritação.
— Mas tenho novidades que te vão agradar — continuou Alpin.
— O ataque sofrido pelo teu grupo em Breaking Ford ofendeu-me. As pessoas que me ofendem têm de pagar um preço. Vou partir esta manhã numa missão de represália. Cinco ou seis dias devem chegar. Talvez esta ação te deixe satisfeita
— Eu... — Ana debateu-se com a falta de palavras. — Vocês são vizinhos belicosos, no território Caitt — comentou.
— Orgulho-me de tomar decisões rápidas e de proceder a uma justiça célere. Faço isto por ti, pelas perdas e dificuldades que sofreste. Aceita-o como prova da minha genuína consideração, com ou sem palavras bonitas. Prezo-te bastante. Quero-te bastante. É tão simples e belo quanto isso.
Ana não era capaz de olhá-lo.
— Não estou habituada a dotes pagos com sangue humano — conseguiu dizer.
— Aqui no norte — retorquiu Alpin —, somos homens a sério. Ana perdera o apetite. Deu um gole no hidromel e tentou não pensar no futuro. Com Alpin e muitos dos seus homens fora, decerto seria capaz de falar com Faolan sozinha. Ele poderia aconselhá-la. Ela poderia desculpar-se por ter contado uma mentira idiota para protegê-lo. Com o líder de Briar Wood ausente, Faolan teria oportunidade de recolher informações de forma discreta.
— Ah, é verdade — disse Alpin, enquanto limpava a boca com as costas da mão —, vou levar aquele teu bardo comigo, como é que ele se chama, Finian? Pode vir a ser-lhe útil.
Ana tentou ocultar o alarme que sentiu.
— Não creio que seja boa idéia de todo — apressou-se a dizer. — Eu sei que Faolan fingiu muito bem, quando nos encontraste na floresta, mas ele não é um guerreiro. A sua presença só vai servir para vos atrapalhar...
— Deixa-me ser eu a julgá-lo. — Alpin levantou-se e estendeu a mão para ajudá-la. — Obrigado, minha querida, gostei muito destes momentos. Coras de uma forma linda. Põe-te à vontade, enquanto eu estiver fora. Dá uma vista de olhos por aí, decide as alterações que gostarias de fazer, aproveita para conhecer as pessoas. Orna é muito competente. Ela trata de tudo o que precisares.
— Mas... — Aos lábios aflorou-lhe uma derradeira súplica.
— Partimos muito em breve — disse Alpin. — Gostaria que te fosses despedir ao pátio. A ver se o teu beijo de despedida é para o teu prometido e não para aquele teu bardo sedutor. Pareces demasiado ligada ao sujeito.
— Não é nada disso... — Ana deteve-se. Por que estava a justificar-se perante aquele rústico?
— Folgo em sabê-lo. Se o teu comportamento à frente do meu povo refletir isso, não vai haver problemas, certo?
Ana ficou nos degraus enquanto os homens se despediam e, quando Alpin inclinou a cabeça na sua direção, a jovem deu-lhe um beijo afetado na face. Alpin pareceu considerar o gesto divertido e, a julgar pelos sorrisos e pelas piscadelas de olho, o mesmo se passou com os elementos da casa ali reunidos. Esforçou-se por não olhar para Faolan mais do que o que seria considerado próprio. Estava montado no cavalo que lhe tinha sido atribuído, uma expressão vazia nos olhos. Parecia não ter qualquer arma consigo. Entre os guerreiros Caitt, fortemente armados, de cabelos soltos, barbas cerradas e tatuagens ameaçadoras, parecia um cordeiro entre lobos. Quando deram a volta ao pátio e atravessaram os portões enormes com Faolan entre eles, pareceu a Ana que o seu bardo era um prisioneiro com uma escolta armada e não um visitante com assuntos reais. Mesmo assim, raciocinou Ana,
Faolan sabia, melhor do que ninguém, tomar conta de si próprio. Na sua ausência, a jovem tinha um trabalho a fazer. Já que ele fora privado dessa oportunidade, Ana iria dedicar-se a um pouco de espionagem.
— Orna — perguntou Ana casualmente —, onde vai dar aquela porta pequenina, ao lado da lareira no quarto de Alpin?
Era normal as mulheres de Briar Wood passarem as tardes numa sala comprida, destinada à costura e à fiação. A sala de trabalho era uma estrutura independente que dava para um pátio isolado, onde tinham sido dispostos bancos de pedra, por forma a aproveitar a luz fria do sol do norte. Era completamente diferente dos jardins cuidados do Monte Branco. Ali, pouco mais crescia do que ervas secas, que se esforçavam por surgir por entre as lajes, e uma pereira raquítica, que se erguia num pedaço enfezado de solo. De um lado, agigantava-se a muralha exterior da fortaleza. Uma parede menor, mas ainda assim alta o suficiente para impedir que se visse o exterior, curvava-se vinda da muralha, até encontrar a pedra da sala de costura.
A atmosfera da sala de trabalho pareceu a Ana desanimadora. As mulheres demoravam a dar-se à confiança, o que dificultava a obtenção de informações úteis. Era o terceiro dia após a partida de Alpin e Ana descobrira que, no interior da fortaleza, certos caminhos eram guardados e certas barreiras se encontravam trancadas. Esgueirara-se para o quarto de Alpin ainda de madrugada, antes que os elementos da casa se tivessem levantado, e tentara abrir a pequena porta mas, sem chave, revelara-se impossível. Isso despertou-lhe a curiosidade. O lugar onde os pássaros tinham desaparecido no interior da muralha ficava para lá da zona da casa destinada à família, algures mais abaixo. A porta em questão parecia dar acesso, mais ou menos, a essa direção.
— Não há aí nada que te interesse. — Orna mantinha os lábios comprimidos, enquanto trabalhava numa bainha. — Despensas, anexos, todas as habitações têm zonas do gênero.
— Quem tem a chave? — perguntou Ana. Os dedos de Orna pararam.
— Alpin — respondeu. — Acredita, não é uma parte da casa que queiras ver.
Algo no silêncio das outras mulheres indicava que Ana se encontrava em terrenos perigosos.
— Deve haver mais alguém que a tenha — disse, com o tom mais majestoso que foi capaz de invocar. — Vi um homem baixo e calvo, aquele de túnica comprida, a entrar nos aposentos de Lorde Alpin com uma travessa de comida, mesmo estando o meu senhor ausente. Parece uma coisa estranha de se levar a um anexo. Como se chama o homem?
— Deord, minha senhora — adiantou alguém.
— Deord — repetiu Ana. — Talvez vá falar com ele. Alpin sugeriu que deveria conhecer todos os elementos da casa. Orna, talvez possas pedir a esse Deord que venha falar comigo.
Seguiu-se um silêncio pesado, durante o qual ninguém trocou olhares. As atenções mantinham-se na roca e no fuso, na agulha e na linha, nas armações de tecelagem ou nos pentes de cardar, mas pouco trabalho se adiantava.
— Orna? — perguntou Ana em voz baixa. — Mora alguém nessa parte da casa?
— É melhor perguntares a Alpin, minha senhora — replicou Orna com um tom sério. — Ele tenciona contar-te a seu tempo.
— Contar-me o quê?
— É melhor que seja ele a dizê-lo. Lorde Alpin regressa daqui a alguns dias. Nessa altura conta-te.
— Nesse caso, por agora falarei com Deord.
— Sim, minha senhora. — Após alguns instantes: — Regra geral, Deord não tem grande coisa a dizer. Duvido que te possa ajudar.
— O que é ele? Um guerreiro? Anda como um lutador.
— É um guarda, minha senhora. Um guarda especial.
— O que guarda ele?
— Guarda algo que é melhor que fique onde está, fora da vista e longe de perguntas. — O tom de Orna era quase de irritação. — Sinto muito, minha senhora, mas às vezes é melhor não perguntar. Tenho estado para te dizer que encontramos um rolo de lã de qualidade, de um azul muito bonito. Ia ficar-te bem. Pensei em pedir aqui à Sorala que te fizesse uma túnica, e par de saias, e Ludha pode fazer os acabamentos. O que dizes?
Se pensavam que a conseguiam distrair com tanta facilidade, estavam muito enganadas.
— Parece ideal — replicou Ana. — Obrigada. Vocês têm sido muito generosas. Gostava de falar com Deord hoje, Orna, antes da ceia. Podes dizer-lhe que vá aos aposentos de Alpin? Também preciso que lá estejas, Ludha.
— Verei o que posso fazer — respondeu Orna. — É Deord quem faz os seus próprios horários e estabelece as suas próprias regras. Por vezes, não pode vir.
— Mesmo assim.
Ana esperou à hora marcada, mas Deord não apareceu. Orna, quando questionada mais tarde, disse que sim, tinha falado com ele, mas que nesse dia não se encontrava disponível.
— Amanhã, então — indicou Ana, sentindo-se bastante aborrecida com a falta de respostas sistemática.
— Se ele puder, minha senhora.
— Isto parece-me estranho — disse Ana, ao mesmo tempo que fitava a responsável pela casa. — Será que os guardas não atendem aos pedidos do seu mestre? Não será razoável que, enquanto futura esposa de Alpin, espere que os habitantes de Briar Wood me satisfaçam os pedidos? Estou a dar-lhe um dia inteiro de prazo.
— Minha senhora — disse Orna —, acredita, todos estamos satisfeitos por teres vindo para cá. Há muito que esperávamos que Lorde Alpin voltasse a casar-se e endireitasse a vida. Foi um golpe terrível, o que aconteceu a Lady Erisa. Não deves sentir-te inquieta ou indesejada entre nós. Mas temos os nossos costumes e podem nem sempre condizer com o que estavas habituada na corte do rei Bridei. Acredita, não passa de uma porta minúscula e de umas velhas arrecadações cheias de pó. Tudo aquilo que precisas saber sobre isso, ou sobre Deord, compete ao meu senhor responder-te. Tenho a certeza de que o fará.
— Muito bem, Orna. Obrigada. Sei que estás a tentar ajudar.
— Sim, minha senhora.
Ainda não escurecera. Os dias aumentavam e as copas altas dos ulmeiros, pontilhadas com ninhos de gralhas, destacavam-se contra a palidez do céu fresco do entardecer. Ana estava à janela a pentear o cabelo e a observar os pássaros da floresta a regressar aos pousos da noite. Talvez, afinal de contas, não importasse de todo: a porta ínfima,
as chaves guardadas com tanto zelo, Deord e a travessa com jantar para dois. Parecia algo retirado de uma narrativa, o pequeno mistério, o pormenor deslocado que se alonga na mente e que custa a esquecer. Iria parecer tola, se insistisse em abrir a porta, apenas para encontrar nada mais do que o sugerido por Orna: arrecadações empoeiradas, anexos negligenciados. E Alpin estaria de regresso dali a poucos dias. Nos contos, normalmente, as jovens que se deixavam apoderar pela curiosidade viam-se a braços com destinos abruptos e desagradáveis. Estava a ser tonta. Devia concentrar-se no tipo de informação que Faolan gostaria de levar a Bridei, observações feitas a homens^ armamento e posições. Não devia preocupar-se com o que aquela casa queria, como era óbvio, manter em segredo.
Ouviu-se o rufiar de asas e, no peitoril à sua frente, a menos de dois palmos, surgiu uma gralha, decerto a mesma que os ajudara em Breaking Ford e que os seguira pela floresta. Parecia andar à cata de materiais para o ninho, pois tinha no bico afiado um fio de qualquer coisa macia e brilhante.
— Então voltaste — disse Ana, em voz baixa. — Estás atrasada com o teu ninho. Ao que parece, aquelas gralhas já fizeram os delas há muito tempo. O que será que tu queres? Que estás a tentar dizer-me, tu e os teus amigos?
O pássaro deu um salto, entrou no quarto e acomodou-se sobre a arca junto à janela. A plumagem aprumada dava-lhe um ar composto. Os olhos eram de um brilho penetrante e pareciam questionar Ana.
— Mesmo que soubesse o que querias, não tenho respostas para te dar — disse-lhe. — Tudo o que tenho são as minhas próprias interrogações.
O pássaro baixou a cabeça e largou sobre a arca a carga que trazia no bico, ao que voltou a olhar a jovem.
— O que tens aí? — Ana inclinou-se para ver com mais atenção. O exame minucioso por parte dos olhos brilhantes não vacilou. A jovem pegou no que a ave largara e ergueu-o contra a luz que se ia desvanecendo. Fios de cabelo, diferentes de todos os que vira nas cabeças de Briar Wood, pois possuíam um tom arruivado pouco comum, eram ondulados e fortes e tinham reflexos brilhantes quando vistos ao sol. Os fios eram compridos e enrolaram-se em volta dos seus dedos. — De quem são? — perguntou Ana, mesmo sabendo que não obteria resposta, pelo menos até buscá-la pelos seus meios.
A gralha olhava-a, a cabeça inclinada. Aguardava. Ana percebeu que apenas poderia haver uma resposta àquele desafio estranho. Arrancou três fios do seu próprio cabelo, de um dourado claro e duas vezes tão compridos como os outros, e apresentou-os na palma da mão. Como um raio, a gralha arrebatou os cabelos e levantou vôo, saindo pela janela. A palma da mão de Ana ardia-lhe. O pássaro tinha um bico afiado.
Nessa noite, os sonhos da jovem encontraram-se repletos de corredores escuros e de presenças intuídas, de degraus para nenhures e de trancas que não podiam ser abertas. Acordou de madrugada com a boca seca e o coração aos pulos. Decidiu passar o dia embrenhada em tarefas domésticas e sem mais curiosidade.
Para sua surpresa, quando regressou ao quarto após uma manhã passada a falar com os inúmeros artesãos que se dedicavam aos seus variados ofícios na casa de Briar Wood, a quem Orna a apresentara, e de uma tarde a provar as roupas novas, Deord esperava por ela no corredor à porta dos aposentos de Alpin. Ana já dispensara Ludha e encontrava-se sozinha.
— Querias falar comigo. — O tom da voz de Deord era estável. Era o homem de aspecto mais calmo que Ana já vira. Ao mesmo tempo, parecia perigoso. Tinha uma constituição poderosa como um javali, o corpo musculoso e sólido por baixo da túnica larga.
— Sim, queria. — Agora que o homem ali estava, não tinha a certeza por onde começar. Sem a presença de Ludha, não poderia falar sozinha com um homem nos aposentos de Alpin. Teria de questioná-lo no corredor. — Desejava conhecer todos os habitantes de Briar Wood. Imagino que saibas que existe a possibilidade de vir a casar com Lorde Alpin. O teu nome é Deord?
O homem inclinou ligeiramente a cabeça calva, sem falar.
— Pelo que sei, és um guarda especial.
— Um guardião, sim, minha senhora. — Tinha os olhos claros e serenos. O ar de serenidade tinha algo em comum com o modo habitual de Faolan, o que deixava Ana incomodada.
— Reparei que o teu local de trabalho parece situar-se para lá daquela pequena porta nos aposentos privados de Lorde Alpin. Estou correta?
— Sim, minha senhora.
Ana pigarreou. — Orna disse-me que é uma zona de arrecadação. Anexos antigos. Será que existem pássaros nesses anexos?
Um lampejo de expressão cruzou as feições controladas. — É possível, minha senhora.
— São teus? Deord sorriu.
— Não, minha senhora.
— Deord — disse Ana —, tenho vindo a deparar-me com alguma dificuldade em obter respostas diretas sobre aquela porta e aquilo a que dá acesso. Poderás dar-me essas respostas?
Olhou-a calmamente.
— Quando não posso dizer a verdade — replicou — permaneço em silêncio. Existem anexos. Há também aposentos, incluindo os meus. E o meu local de trabalho. Alpin contratou-me para garantir a segurança entre aquela parte da casa e esta, e tenho vindo a desempenhar bem essa tarefa ao longo dos sete anos que passei em Briar Wood. É tudo o que posso dizer-te. Se queres saber mais, terás de perguntar ao teu marido.
Ana arrepiou-se com o tom da voz.
— Foi o que Orna me disse. E ele não é meu marido.
— Ainda não.
— Ainda não e talvez não venha a ser de todo. O acordo está dependente de certas condições. — Por que estaria a dizer-lhe isso, a justificar-se perante um servo? — Muito bem, Deord, uma vez que deixaste bem claro que não tencionas dizer-me mais nada, podes ir. Imagino que tenhas de tratar de uma bandeja para a ceia.
— Sim, minha senhora. — Virou-lhe as costas e afastou-se.
— Entra — indicou Deord. — Tens de comer alguma coisa. Há cerveja e bons queijos. Vem, Drustan. Por que estás aí fora? — Dispusera a refeição frugal sobre a pequena mesa. Os aposentos eram compostos por duas divisões, uma com a lareira, o banco e a arca de arrumação, e outra por trás, com duas camas. Tinham uma natureza simples. Não havia tapeçarias e apenas uma candeia. Juncos cobriam o piso de terra. Uma pequena alcova na parede interior albergava uma latrina, escavada no chão, com um balde de cinzas e uma pá sobre uma pedra. Deord mantinha tudo escrupulosamente limpo. Fazia parte da sua disciplina pessoal, aprendida a custo e nunca esquecida.
— Drustan! — voltou a chamar. — A sopa está a arrefecer.
Aquele a quem vigiava surgiu à porta, sem um som, a gralha pousada num ombro e o cruza-bico no outro. A carriça estava empoleirada na cabeça, quase escondida pelo exuberante cabelo brilhante. Os olhos de Drustan deixaram o guardião alarmado, tal era a excitação neles reprimida.
— O que foi? — perguntou Deord, enquanto o observava.
— Nada — respondeu Drustan. Enfiou a mão no bolso e foi sentar-se à mesa. — Deord?
— Sim?
— Tenho de sair. Hoje, amanhã. É como uma torrente que me enche, um fogo que se alastra cada vez mais. É como um grito que tenta soltar-se. Quando podemos voltar a sair?
Deord olhou-o calmamente.
— É fácil ver que tens vindo a planeá-lo — disse. — Hoje, não. Estou cansado de passeios no escuro e a lua está a minguar. E fácil perdermo-nos de vista no bosque. Sabes o que pode acontecer, se não seguirmos as regras que estabelecemos. Amanhã, talvez, se o tempo se mantiver estável.
— Viste-a? — perguntou Drustan. Segurava um pedaço de queijo nos dedos, mas não o comeu. A gralha desceu-lhe o braço.
— Não vou buscar boa comida só para ver essas criaturas a devorá-la — comentou Deord, num tom brando. — Come, Drustan. Tens de manter as forças.
— Para quê? — A boca assumiu de repente uma expressão solene. O brilho nos olhos estranhos desvaneceu-se.
— Para o futuro. Algum dia, qualquer coisa há-de mudar. Isto não é eterno.
— Alpin não vai mudar. Eu não vou mudar. Como posso alguma vez ser mais do que um prisioneiro?
Deord mastigou uma côdea de pão de aveia. — A vida é mudança — replicou. — Sim, vi-a, e ao indivíduo que a acompanhou. Aqueles dois são uma fonte de problemas. Ela com o cabelo dourado e as perguntas, e ele...
— E ele o quê? — A gralha pegara no queijo e regressara ao ombro de Drustan para comê-lo.
— Ele tem uma natureza que não esperava ver aqui em Briar Wood
— explicou Deord.
— Que natureza? É um feiticeiro? Um sacerdote?
— Não — respondeu Deord. — Tem a mesma natureza que eu. Drustan olhou-o em silêncio. Pouco depois, começou a comer a sopa.
— O significado, não o sei — continuou Deord. — Alpin levou-o com um grupo de ataque.
— Viste-a — disse Drustan. — Está melhor? Feliz? Falaste em perguntas. Que perguntas?
Deord assumiu uma expressão zombeteira.
— Então, Drustan — disse. — Não estarás em melhor posição do que eu para o dizeres, com esses teus espiões? Têm andado especialmente atarefados, nos últimos dias.
— Diz-me — insistiu Drustan. — Que perguntas?
— Chamou-me para um breve interrogatório. É razoável que o tivesse feito, pois será esposa do teu irmão, e senhora de Briar Wood. Perguntou-me sobre portas e chaves, e sobre quem vivia nesta parte da fortaleza. Ainda não lhe contou, como é óbvio, e eu também não o fiz. Ah, e colocou uma questão ocasional sobre pássaros.
Drustan sorriu, o que lhe iluminou as feições e lhe instalou um brilho cintilante nos olhos.
— Drustan — disse-lhe Deord em voz baixa. — Tenho de te avisar. Não te envolvas nisto. Não te metas nesta situação, entre Alpin e esta mulher, no casamento, no tratado que procuram, no indivíduo que obviamente não é o bardo que alegam. É um terreno perigoso para ti. O teu irmão fez o que lhe pediste. Salvou a rapariga. Contenta-te com isso e afasta-te, de agora em diante. Pensa nela, se ajudar. É jovem e cheia de esperanças, e não faz idéia do que aconteceu aqui, no passado. É a melhor oportunidade que o teu irmão tem de conseguir um futuro decente. Não ponhas isso em perigo com a tua intromissão.
— Como se chama? — perguntou Drustan, com brandura.
— Ana. É das Ilhas Pequenas e chegou da corte de Bridei. Tem uma linhagem impecável, é de sangue real e, sou obrigado a admiti-lo, não só é bela e aparentemente virtuosa, como também perspicaz. O único defeito parece ser um excesso de curiosidade. Quando Alpin lhe contar a verdade, o problema deixará de existir. Esperemos que o faça em breve.
— Ana... — Os dedos de Drustan, dentro do bolso, tocaram na pequena oferenda que a gralha lhe trouxera na noite anterior.
— Portanto — concluiu Deord —, esperemos que o dia de amanhã nos traga bom tempo. Agora, come o resto da ceia, ou não terás força para chegar à cama, quanto mais para andar pelo bosque.
O grupo de Alpin cavalgou para nordeste e, quando atravessaram o rio, não foi pelo vau, mas sobre uma ponte frágil, construída bem alto sobre um local onde o curso de água se estreitava entre margens rochosas. Os cavalos foram vendados e levados à vez. Parecia um local ideal para uma surpresa por parte do inimigo, mas Faolan não teceu qualquer comentário. Manteve os ouvidos atentos e a boca fechada.
O andamento foi rápido. Ao terceiro nascer do sol, o confronto antecipado com os Azuis era iminente. Os homens de Alpin não falavam muito, mas nos seus olhos havia uma expressão que Faolan reconhecia: os caçadores tinham farejado sangue. Ninguém lhe oferecera uma arma com que se defender, e ele não a pedira. Em vez disso, foi delineando estratégias contra a possibilidade bastante real de Alpin o ter trazido com o único intuito de se ver livre dele, longe da vista de Ana. O teu bardo tombou em combate, minha querida. Tal como seria de esperar, as suas capacidades guerreiras não eram de todo adequadas.
Alcançaram os Azuis numa clareira junto a um ribeiro. A aproximação foi feita a pé, em silêncio. Naquele terreno, um ataque a cavalo seria caótico, com as vantagens da altura e da velocidade sobrepujadas pela capacidade do inimigo de se esconder por entre a vegetação, de se esquivar por caminhos que as montadas não poderiam seguir com facilidade. Tinham deixado os cavalos a alguma distância. Faolan ainda esperara ser incumbido da tarefa de os guardar, mas Alpin, com um esgar selvagem, incitara-o a acompanhar os guerreiros.
— Vamos dar-te inspiração para fazeres canções, bardo! — Continuaram sem lhe oferecer um punhal ou uma faca.
Assim que a investida começou, não houve tempo para pensar em canções. O ataque foi rápido e sangrento. O grupo de Azuis, apanhado desprevenido num acampamento improvisado, tentou defender-se com garra, mas não podiam igualar as espadas e as maças, as lanças de arremesso e os punhais da tropa de Alpin. A clareira encheu-se de novos sons: o raspar de metal contra metal, o gorgolejar de um homem a sufocar no seu próprio sangue, o grito de outro que perdera a mão. Faolan esforçou-se por seguir a ação, ao mesmo tempo que fingia esconder-se atrás de uma árvore, grato por as suas roupas andrajosas de criado o tornarem inócuo.
Os sons alteraram-se passado algum tempo, com menos gritos e gemidos de feridos. Agora prevalecia o ruído sistemático das espadas e das lanças dos guerreiros de Alpin a trespassar os restos dos inimigos. Faolan viu o líder de Briar Wood erguer o punho no ar e soltar uma espécie de brado de vitória. E depois ouviu-se algo que lhe arrepiou os cabelos. De todos os lados vinha o som de passos em corrida. O retinir de metal aproximava-se por entre as árvores. Os reforços tinham chegado.
Havia apenas uma escapatória, para cima e para longe da vista. Faolan saltou, agarrou um ramo com ambas as mãos e içou-se grosseiramente para a faia que lhe proporcionara o abrigo. Subiu no momento em que um grito de guerra lancinante se fez ouvir de todas as direções, quando um novo grupo de Azuis, imaginou que vinte ou mais, carregou vindo da mata com as lanças em riste.
Os homens de Alpin já tinham formado um círculo apertado, as armas apontadas para fora. Não eram um bando de bárbaros, mas uma força de combate disciplinada. Não admirava que os Celtas o procurassem como aliado. Faolan mudou de posição no ramo e espreitou por entre as delicadas folhas novas da faia. Libertou uma mão, que teria de estar pronta para o que desse e viesse. Em caso de necessidade, subiria ainda mais. Não havia razão para que um bardo não possuísse alguma capacidade física.
O pequeno grupo de Alpin resistiu aos atacantes durante algum tempo, mas os homens de Briar Wood não tinham para onde ir. Todo aquele que se afastasse dos camaradas e corresse para o círculo de Azuis seria abatido de imediato. Os Azuis estavam furiosos. A clareira encontrava-se repleta de corpos de camaradas, chacinados no primeiro ataque. Não sairiam dali até que arrancassem uma retribuição em sangue.
Naquelas circunstâncias, um bardo deveria permanecer na árvore em silêncio e deixar que os acontecimentos se desenrolassem. Deveria esperar até que os homens de Alpin se cansassem e começassem a cometer erros, após o que os veria a serem, eles próprios, chacinados. Não fazer nada, ver Alpin a morrer. Levar Ana de volta a casa... Não era possível. O tratado vinha em primeiro lugar. Por isso, era necessário agir. Salvar Alpin. Conquistar a sua aprovação e, com ela, a liberdade para procurar informações. Afinal de contas, era esse o seu trabalho. E tinha uma pequena ferramenta ao seu dispor...
Involuntariamente, Alpin ajudou-o. O líder de Briar Wood, afogueado e a suar, empunhava com as duas mãos a espada pesada e gritava insultos a um dos Azuis, um indivíduo entroncado de barba arruivada.
— Resolveste começar a atacar viajantes inocentes, Dendrist? Aquela que tu quase mataste em Breaking Ford era a minha esposa! Foi a escolta dela que os teus rufiões atacaram! Vais pagar por esse erro, pagar bem caro! Ninguém faz pouco de Alpin, de Briar Wood!
O líder dos Azuis estava um pouco atrás dos seus homens, com a espada embainhada. Parecia satisfeito em deixar que os subalternos lhe fizessem o trabalho sujo.
— Esposa? O quê, mais uma? — troçou. — Então, ainda bem que ela se afogou. É preferível uma morte rápida na água ao tipo de destino que as esposas encontram naquele antro a que chamas casa. Bem podes poupar o fôlego, Alpin. Eu próprio perdi dez homens naquela enchente. Já agora, ouvi dizer que iam duas raparigas naquele grupo. Quem era a outra, uma mulher para o teu irmão?
Os homens de Dendrist receberam este comentário com uma gargalhada trocista. Alpin soltou um rosnado de puro ódio e investiu com a espada. Um dos Azuis avançou com a lança, o que fez com que Alpin recuasse para fora de alcance. Até àquele momento, ainda não deixara que a fúria se sobrepusesse ao bom senso.
— É isso que andas a ensinar ao teu filho? — disse Alpin, à laia de provocação, enquanto mirava o jovem com a lança. — Como matar mulheres inocentes, como travar batalhas com insultos reles? Não é de admirar que esteja a crescer à tua imagem, Dendrist, um cobarde de coração empedernido e sem nada na cabeça, a não ser a ganância pelo que não é dele. Um pai miserável, um filho desprezível.
O jovem voltou a investir, desta vez de forma algo descontrolada. Alpin encontrava-se agora imóvel, e os seus homens também se tinham silenciado, à espera de uma reação. Faolan aproveitou a oportunidade. Puxou do objeto que escondera na bota antes de terem deixado Briar Wood, Semicerrou os olhos e atirou-o.
O jovem caiu de joelhos e deixou cair a lança. Num abrir e fechar de olhos, a espada de Alpin estava nas mãos do guerreiro a seu lado, Mordec, e o chefe tribal tinha o filho de Dendrist imobilizado à sua frente, com um punhal encostado à garganta, enquanto o sangue escorria de um ferimento no ombro do rapaz, que lhe tingia a túnica de vermelho. O rosto do jovem estava pálido com o choque.
— Que tal um acordo? — perguntou Alpin calmamente. Após um breve relance na direção dos ramos da faia, não voltara a olhar para Faolan.
Dendrist deu um passo em frente. A sua própria expressão tinha o seu quê de palidez. — Larga-o! — ordenou. — Os teus homens não têm para onde fugir! Estão em desvantagem, quer numérica quer táctica. Larga o meu filho!
— Por que haveria de o fazer? Repara como ele está a sangrar. De certeza que queres que ele seja visto, ou pelo menos que se ponha uma ligadura para estancar o sangue. E não pode demorar muito.
— Alpin, seu canalha...
— Posso acabar com ele rapidamente, se preferires. Tenho os meios para isso, e também tenho jeito para a coisa. Estás a ver? — O punhal traçou uma estreita linha vermelha no pescoço do rapaz, que inspirou, um fôlego entrecortado e sonoro.
— Não te atrevias! — A voz de Dendrist soou distorcida pela raiva e pelo medo.
— Experimenta, Dendrist. Serei conhecido por me retrair? Não, não digas aos teus homens para atacarem. Se o fizeres, sou obrigado a cortar a garganta ao rapaz para ter os dois braços livres para me defender. Pelos deuses, isto é um trabalho sujo. Estou coberto de sangue. Bem, quanto ao tal acordo.
— Seu porco, Alpin — resmungou Dendrist. — Estabelece as tuas condições, mas liberta o rapaz. Por tudo quanto é sagrado, Alpin, juro que vais pagar por isto.
— Ficas com ele e vais-te embora tratar dele — disse Alpin. — Não envias metade dos teus homens para nos chacinarem assim que virarmos costas. Não começas a matar-me os homens assim que eu libertar o rapaz. Ao ritmo que está a perder sangue, não tens tempo para isso. Tenho a tua palavra?
— Tens a minha palavra — garantiu Dendrist, por entre dentes cerrados. — Agora solta-o.
— Diz aos teus homens que guardem as armas e que dêem cinco passos atrás. Abre espaço para que possamos sair daqui. — Alpin não afrouxara o controlo sobre o jovem. Também o anel defensivo das armas das suas tropas não tinha perdido a disciplina.
— Façam o que ele diz.
Os guerreiros dos Azuis praguejaram e lançaram olhares furiosos enquanto embainhavam as armas.
— Liberta o meu filho!
— Ainda não — disse Alpin. — Acho que não confio em ti, Dendrist. Quero dois dos teus homens. Vamos levá-los e ao rapaz conosco até Beacon Rise. Depois seguimos para casa e os teus soldados podem trazer-te o teu filho. Isso vai reduzir a possibilidade de jogo sujo de tua parte.
— Nessa altura pode já estar morto! — gritou Dendrist, os olhos no rosto do filho, do qual a cor se esvaíra.
Alpin sorriu.
— E nessa altura como te vais arrepender de ter demorado tanto tempo para te decidires. Será que vais querer prolongar muito mais esta agradável conversa?
— Domnach, Omnist, vão com ele. A segurança do meu filho está acima de tudo. Esperamos por vocês na passagem Deeprill. Vou enviar um homem para alertar os curandeiros. Agora, vão!
O círculo de Azuis recuou ainda mais. Alpin e os seus homens começaram a retirar, mantendo sempre uma formação defensiva, com o rapaz ferido amparado por dois dos guerreiros de Briar Wood. Não ia esvair-se em sangue. Faolan sabia-o e imaginou que Alpin também o soubesse. A posição do ferimento significava que haveria uma quantidade espetacular de sangue ao início mas, desde que fosse estancado em breve, o jovem deveria recuperar na totalidade.
Agora, os Azuis encontravam-se de um lado da clareira e os homens de Briar Wood do outro. Estes afastavam-se por entre as árvores, com os guardas na retaguarda a recuarem com as lanças sempre apontadas ao inimigo. Faolan pigarreou. As cabeças viraram-se para ele e um arqueiro Azul levou a mão às flechas.
— Ah — disse Alpin tranqüilamente —, quase que nos esquecíamos do nosso bardo. Desce daí, Finian. Já acabou tudo.
Faolan saltou para o chão e acercou-se do grupo de Alpin, sempre com a pose de um homem em estado de choque, após ter testemunhado a sua primeira batalha. Sentiu-se aliviado por ninguém se ter rido. Enquanto o grupo de Alpin, acompanhado pelos Azuis designados, retiravam em direção a casa, os homens de Dendrist deram início à tarefa macabra de recolher os camaradas tombados. A vingança de Alpin daria azo a uma retaliação posterior, sem dúvida, o que forçaria
o líder de Briar Wood a responder à letra mais uma vez. Dizia-se que fazia parte da natureza dos Caitt guerrearem assim. Naquele dia, Faolan vira com os seus próprios olhos que assim era.
O grupo fez alto no local onde os cavalos estavam presos. Rasgaram a túnica e a camisa do jovem e examinaram o ferimento. Erdig retirou a arma que continuava alojada no ombro do rapaz e um homem que parecia saber o que estava a fazer aplicou uma compressa de linho e uma ligadura apertada. O jovem cerrou os dentes, sem produzir qualquer som. Parecia que no norte os criavam robustos.
Alpin segurava a arma ensangüentada nas mãos e franzia o sobrolho. Ergueu o olhar e cruzou-o com o de Faolan.
— É uma das tuas facas de cozinha — disse Mordec, surpreendido. — Vês a tua marca no cabo, meu senhor?
— Foi-me dada para usar à mesa — comentou Faolan, com um tom de voz propositadamente trêmulo.
— Está um pouco mais afiada do que as costumamos ter — observou Alpin.
— Não tinha ferramentas com que reparar a harpa, meu senhor — justificou-se Faolan. — Um músico não consegue manter os seus instrumentos em condições com uma faca romba.
— E onde é que um bardo aprendeu a lançar com tanta destreza? Faolan tentou soltar uma gargalhada nervosa.
— Até eu fiquei surpreendido, meu senhor. Estou espantado que a minha contribuição tenha sido útil. Para dizer a verdade, limitei-me a fechar os olhos e... bem, atirei.
Os homens riram-se. Alpin sorriu, mas os seus olhos mantinham um escrutínio cerrado.
— Bom, conseguiste material para fazeres uma canção, quando voltarmos. E o rapaz está ligado? Erdig, ele pode montar à tua frente até Beacon Rise. Os outros vão ter de correr, se nos quiserem acompanhar. Depois é sempre a andar até casa. Tenho uma jovem formosa à minha espera e uma inquietação que tem de ser satisfeita.
Faolan lamentou profundamente não ter apontado noutra direção e lançado a faca para a garganta de Alpin. A noção era atraente, salvo pelo fato de que, se o tivesse feito, provavelmente teriam sido todos chacinados.
— Belo lançamento, bardo — elogiou um dos guerreiros. — De olhos fechados? Duvido.
— Se foi um golpe de sorte — comentou Mordec —, como a manta do meu cavalo. A distância ainda era grande.
— Detesto ter de admiti-lo — disse o outro homem —, mas aqui o nosso músico de falinhas mansas salvou-nos a todos.
Chegaram ao local chamado Beacon Rise antes de o Sol atingir o zênite. Os dois homens de Dendrist, que seguiam a pé, tinham ficado muito para trás, à medida que o grupo de Alpin avançava. O filho de Dendrist foi lançado do cavalo sem cerimônias e cambaleou até às rochas que ladeavam o caminho, onde desfaleceu. Estava branco como a cera, os lábios comprimidos, silencioso.
— Diz ao teu pai — indicou Alpin — que é altura de ele aprender a tirar as mãos daquilo que é meu: terra, gado, mulheres. Já devia saber que eu acerto as contas com sangue. — De adaga em riste, desmontou e acercou-se do jovem. — Se a minha futura esposa se tivesse afogado, os homens do teu pai não iam encontrar aqui um rapaz ferido, mas sim um monte de carne com o nome de Alpin, de Briar Wood, gravado. Ela sobreviveu, portanto tu vives. Desta vez. — O punhal estava a um palmo do rosto do jovem e firme como uma rocha. Faolan susteve a respiração. — Pelos vistos, vais aguardar sozinho. Espero que não demorem. Já estás a sangrar pela ligadura. Vamos, homens! Quero estar a meio caminho da ponte ao anoitecer. Só vou descansar quando estivermos do outro lado da fronteira.
— Podíamos esperar — sugeriu Mordec. — Fazer daqueles dois indivíduos um exemplo.
— Desta vez, não — opôs-se Alpin. — Já tivemos a nossa retribuição. Claro que iria gostar de atar aqueles dois e treinar um pouco de tiro ao alvo. Mas não quero deitar mais lenha para a fogueira. Em breve teremos coisas maiores entre mãos. Dendrist e a laia dele podem esperar.
Enquanto se dirigiam a casa, Faolan foi meditando sobre o que ouvira. Coisas maiores. Parte ativa na guerra que se avizinhava? De que lado? A chave estava nas terras de norte, tinha a certeza disso. Com as condições do tratado de Bridei ainda por expor a Alpin, Faolan desconfiava de jogos duplos, mentiras e traição. O tempo o diria. Quanto mais tempo conseguisse manter o disfarce de músico inofensivo, maiores as hipóteses de descobrir a verdade, antes que fosse tarde de mais.
No dia a seguir a ter falado com Deord, a gralha trouxe a Ana uma chave. O pássaro chegou cedo. Acordou-a pouco depois de o Sol nascer, com o saltitar e o raspar da sua passagem do peitoril da janela para a arca, e com a pancada seca que se ouviu quando largou a oferenda sobre a madeira polida, para que a jovem a inspecionasse.
— O que...? — Meio a dormir, Ana esfregou os olhos. O visitante crocitou na sua voz arrastada. Ana endireitou-se na cama e viu o que a ave lhe trouxera. Despertou de imediato. Não tinha dúvidas quanto à porta que a chave abriria.
Pegou no xale, a mente a fervilhar.
— Alguém quer que eu vá visitar arrecadações. — A gralha meneou a cabeça, numa pose como que expectante. — Devo enviar uma mensagem em resposta? Não faço idéia o que pode ser. — Ia acabar por ficar careca como um ovo, se a troca de cabelos fosse o único meio de comunicação com aquela entidade desconhecida. Devia enxotar o pássaro e entregar a chave a Alpin, quando este regressasse. Seria exatamente isso que faria uma rapariga sensível, educada na corte de um rei. Ana estendeu a mão e pegou na chave. — Pronto — disse. — Mas não prometo nada. — Como que satisfeita com as palavras da jovem, a gralha voltou a saltar para o peitoril e, batendo as asas escuras, desapareceu na manhã.
Agora, pensou Ana, com o coração a bater desenfreado. Era o momento ideal. Era tão cedo, que até mesmo os serviçais da cozinha ainda estariam a levantar-se. Quanto a Deord, por mais intimidador que fosse, não passava de um servo. Se Ana lá entrasse e o encontrasse, limitar-se-ia a exigir que o homem lhe mostrasse o local de trabalho. Fora apresentada a todos os artesãos de Briar Wood. Isto não seria diferente, disse para consigo, mesmo sem acreditar. Poderia entrar e sair, antes que alguém desse pela sua falta. Alpin estava fora, o mesmo se passando com Faolan. Enquanto se vestia rapidamente e calçava as macias botas de interior que lhe tinham dado, ocorreu-lhe que Faolan não aprovaria o que estava prestes a fazer. O que se encontrava do outro lado da porta poderia ser verdadeiramente perigoso.
Voltou a pegar na chave e saiu do quarto, apercebendo-se que, antes da viagem até Briar Wood, nunca sonharia em fazer aquilo. Algo mudara em si, algo profundo e vital. Caminhou em silêncio ao longo do corredor até à porta de Alpin, abriu-a e entrou. Esforçou-se por assumir a expressão de quem tinha todo o direito a fazê-lo. A última coisa que queria era que dissessem ao futuro marido que andara a esgueirar-se pela casa, a espiar segredos e a quebrar as regras.
A chave girou sem ruído na fechadura da pequena porta interior. Ana respirou fundo, abriu a porta e entrou.
Encontrou-se numa câmara de pedra cheia de pilhas de sacas, velhos baldes de cabedal e alfaias de ferro enferrujado. A luz era pouca. Dos cantos projetavam-se sombras, e teias de aranha enfeitavam as vigas do telhado como grinaldas. Um gato preto dormia em cima de uma das sacas, a cauda a agitar-se em sonhos. Podia avistar-se outro debaixo de um banco partido, um par de olhos cintilantes, a sugestão de listas. Ana sentiu uma pontada de desapontamento. Não tinha a certeza do que esperava, mas não era daquilo.
Ouviu-se um pássaro a chilrear e o bater de asas algures para lá da arrecadação. O gato preto levantou a cabeça, subitamente desperto.
— Nem penses — murmurou Ana e, seguindo os sons, abriu caminho por entre a confusão até uma segunda sala minúscula, com pouco mais do que prateleiras vazias e montes de pó. A luz tornou-se mais forte. Chegou a uma entrada aberta que dava para um lance inclinado de degraus de pedra, que mergulhava por entre paredes imponentes. Na muralha exterior viam-se janelas ínfimas. Ana contou-as ao passar por elas. Uma: a visão distante de água, um espelho prateado à luz da alvorada. Duas: os troncos dos ulmeiros, tingidos de um dourado quente pelo sol nascente. As copas habitadas pelas gralhas podiam ser vistas acima das pedras. Tornava-se óbvio que aquela era a muralha exterior da fortaleza. Mas, o que era a outra parede interior, tão alta, tão sólida? Qual a sua necessidade, e daquele espaço apertado e estranho entre elas? Três: descia rapidamente e agora avistava as sombras de um verde-escuro por baixo dos pinheiros, onde a floresta quase se colava ao baluarte de Alpin. Imaginou que estivesse a aproximar-se no nível dos edifícios dispostos ao longo do pátio, o salão de jantar, o quarto de costura, os locais destinados à confecção de alimentos e ao fabrico da cerveja, o armeiro e o ferreiro. Quatro: ainda mais baixo, a janela ao mesmo nível do solo no exterior, arbustos espinhosos a crescer de encontro à parede, os seus dedos aguçados a tentar penetrar naquele caminho solitário, as mãos fortes a agarrar-se à pedra, como que a testar até que ponto as defesas de Alpin resistiriam ao poder da flora selvagem. Aquela última abertura seria invisível do exterior. Cinco: uma espécie de janela secreta, que abria para uma depressão no solo. Ali, a folhagem era mais macia, com gavinhas em espiral, frondes e folhas delicadas. O cruza-bico aguardava no peitoril, uma mancha vermelha contra o verde luxuriante. O gato não se aventurara para além da última passagem.
— Estou aqui — disse Ana em voz baixa. — Para onde me levas?
Ao fundo da escadaria, o carreiro prosseguia. Acompanhava a curvatura da muralha exterior e descia cada vez mais, as barreiras de ambos os lados de uma altura formidável. Ana recordou certas narrativas antigas. De cativas presas em torres altaneiras ou por trás de sebes impenetráveis, de heróis que escalavam muralhas ou que abriam caminho por entre sarças e espinheiros, para libertarem o verdadeiro amor. Imaginou que, por cada lenda de demandas cumpridas, existisse uma outra, habitada por prisioneiras esquecidas e solitárias, e por belas donzelas envelhecidas e mirradas, de tanto esperar pela libertação nunca concretizada.
O cruza-bico indicava-lhe o caminho. Um vôo breve, uma pausa para esperar, olhar, garantir que ela ainda o seguia. Acabaram por contornar outra curva do percurso e, à sua frente, surgiu um portão de ferro gradeado, mais alto do que um homem de estatura elevada, tão largo como o caminho e, aparentemente, trancado. Atrás da vedação ficava uma espécie de pátio, ou jardim.
A ave pousou numa das aberturas do portão. Olhou para ela e depois voou para o interior, uma mancha vermelha no ar. No instante seguinte, a carriça tomou o seu lugar.
Ana sopesou a chave na mão. Aproximou-se das grades e espreitou. A carriça saltou-lhe para o ombro. Havia um pequeno pátio fundo, ladeado pela muralha curva e com um telhado de barras de ferro muito juntas. O interior encontrava-se na penumbra, pois o lugar ficava abaixo no nível do solo e pouca era a luz da manhã que ali conseguia penetrar. A custo, conseguiu distinguir uma pequena mancha de erva, um banco de pedra, lajes. Junto à parede interior havia uma qualquer construção, a entrada protegida por uma colgadura de lã de aspecto grosseiro. Seria aquela habitação subterrânea a casa de Deord? Se assim fosse, para quê tal portão, tal telhado? Parecia uma jaula. Ana pensou em animais selvagens. Talvez Alpin fosse um daqueles excêntricos, que mantinham animais exóticos por prazer, na esperança de enaltecer o seu estatuto graças ao domínio aparente de tais criaturas. Um gato selvagem, um dragão, uma manticora... De certeza que não. Será que aqueles pássaros teriam uma tal liberdade, caso a morte se encontrasse à distância de um fechar de mandíbulas? Por outro lado, abrir o portão, partindo do princípio de que o conseguiria fazer, e entrar sem mais demoras seria, talvez, um ato demasiado ousado.
— Está aí alguém? Deord? — chamou, sem a certeza de como agir, caso alguém lhe respondesse. A voz soava-lhe estranha, grave e ressoante, como se aquele lugar recebesse poucas visitas e não se conseguisse adaptar à presença da jovem. — Olá?
Não houve resposta. A carriça alisava a plumagem junto da sua orelha e o cruza-bico desaparecera de vista.
— Olá? — voltou a chamar, mas ninguém apareceu. Experimentou a chave na fechadura. O portão abriu-se com facilidade e Ana entrou, fechando-o atrás de si.
Não precisou de muito tempo para percorrer a extensão daquele recinto triste. Tudo naquele espaço encontrava-se privado da luz do sol, a erva seca e amarelada, o pequeno lago atulhado de vegetação viscosa, as bordas entremeadas com cavidades onde musgo negro cobria a superfície. As lajes de pedra encontravam-se limpas. Ana dirigiu-se ao banco e tropeçou num obstáculo. Ouviu-se o retinir de metal e os pássaros gritaram em uníssono, como se em resposta. Ana olhou para baixo. Uma corrente longa estava presa a um anel de ferro, fixo no banco. A corrente estava em cima do pé de Ana e chegava à muralha, onde uma abertura minúscula fazia as vezes de janela, na parede tão grossa como o comprimento do braço de um homem. A corrente terminava num bracelete de ferro de concepção inteligente. Um mero olhar mostrou que podia ser apertado para se adaptar na perfeição ao pulso ou ao tornozelo de um homem, sendo fechado com uma chaveta. A forma como outro homem o poderia soltar, concedendo a liberdade ao cativo. Ana sentiu um arrepio. Quem vivia ali? Quem seria, que Alpin guardava com tanto zelo? E onde estaria esse guarda naquele momento? Fora burra em ter ido ali, uma perfeita idiota...
Estranhou a posição das grilhetas, esquecidas por baixo da abertura da janela, como se o prisioneiro ali tivesse estado, a observar o mundo para lá da sua cela. O que veria? Colocou-se em bicos de pés e espreitou pela abertura minúscula. Aquele lugar era tão baixo, que a parte inferior da janela ficava soterrada. Através do espaço estreito podia avistar-se, numa elevação, um único carvalho belo, a folhagem da Primavera transformada pela luz da manhã no mais puro dos verdes. Nos seus ramos trinava um coro de pássaros. A sua música era um hino à liberdade. Enquanto olhava, viu-os alçar vôo em bando para o céu aberto, dando as boas-vindas ao novo dia. Será que alguém ali chorara, bradara, implorara aos deuses, ao ver os pássaros? Estava a fantasiar, a colocar os seus pensamentos na mente de outrem. E o tempo ia passando. Daria uma vista de olhos rápida e depois regressaria aos seus aposentos, antes que Ludha chegasse para ajudá-la a lavar-se e a vestir-se.
Uma mesa, uma prateleira, um banco. Um recipiente para água. Na parede, outro anel de ferro à altura da cintura de um homem. Será que o cativo tomava as suas refeições acorrentado? Uma vassoura de cerdas de milho, um balde, panos dobrados, tudo arrumado de forma ordeira. Não havia provisões, apenas um tabuleiro vazio, uma travessa, duas taças, dois copos, duas Colheres. Não havia faca. Ana aventurou-se até à divisão interior, a carriça no ombro direito, à qual se juntara agora o cruza-bico, no esquerdo. Havia tão pouca luz que Ana voltou à divisão da entrada para afastar a colgadura antes de avançar. Uma candeia, apagada, numa prateleira de pedra, com um panelo ao lado, para o azeite. Duas camas rudimentares, com colchões de palha e cobertores de lã, com um ar puído. Estava tudo bem ordenado e o chão fora coberto com uma camada espessa de juncos frescos. Obra de Deord, sem dúvida. Por cima de uma das camas estava mais um anel de ferro. Ana sentiu um arrepio ao vê-lo.
— É um homem que aqui guardam — disse aos pássaros. — Não se alberga um animal selvagem numa cama com mantas, nem se lhe dão restos em louça que se parte. Imaginem: dormir agrilhoado, para que nem sequer nos sonhos possa correr em liberdade... Decerto ficaria insano com a necessidade do céu aberto e do vento no rosto. — A sua maneira, aquele quarto ordeiro era tão miserável como a clausura sombria lá fora. A chave que lhe tinham dado não revelara nada mais, para além de novas questões. Chegara a altura de sair dali. Ana fez menção de se virar e os dois pássaros voaram em par até os juncos ao canto, onde começaram a debicar em frenesi.
— O que foi...? — Ana deu um passo na direção das aves. De repente, o chão desapareceu-lhe debaixo dos pés. Cambaleou para trás, ajoelhou-se e afastou os juncos, o coração aos saltos.
Uma abertura estava tapada com tábuas. Desviou-as e espreitou lá para dentro. Era um túnel. Não um buraco escavado à pressa, mas uma saída bem construída, larga o suficiente para um homem robusto como Deord atravessar sem dificuldade. A abertura e a sua cobertura tinham sido ocultadas pelo generoso tapete de juncos. Ao que parecia, deveria ali estar há muito tempo. As paredes eram forradas a pedra, não fazendo parte da construção original da fortaleza, segundo julgou, mas algo edificado mais tarde, por alguém que sabia o que fazia. A luz entrava naquele caminho subterrâneo pela outra extremidade. Era uma passagem para o mundo exterior, uma travessia sob a grande muralha da fortaleza de Alpin, provavelmente com uma saída no abrigo criado pela mata cerrada. Deveras ousado. O prisioneiro tinha a opção de fugir quando quisesse. A situação tornava-se cada vez mais bizarra.
Ana hesitou à beira da descida. Ainda era cedo, mas não tanto que um ou dois servos não estivessem prestes a levantar-se, para acender lumes, ou tratar dos cães e dos cavalos. Ela tinha a chave. Talvez fosse melhor esperar por outro dia. Mas...
A forma minúscula da carriça lançou-se para baixo, desaparecendo no caminho subterrâneo. O cruza-bico remexeu-se, cofiando as penas.
— Até lá fora, seja — murmurou Ana. — Só até ao outro lado, nada mais. Imagino que esta gente tenha bons motivos para muralhas tão fortes.
A jovem era bastante alta, mas a abertura fora criada a pensar em homens grandes, e atravessá-la foi fácil. O pássaro voava à sua frente e, em breve, chegaram ao exterior, a uma depressão aos pés da muralha da fortaleza, um local coberto de silvas e trepadeiras, e ainda mais oculto por um amontoado de pedras, talvez restos de uma construção anterior, agora em ruínas. Ana estava ofegante, tanto pela antecipação como pelo esforço físico. Pouco passava da alvorada e a luz era suave na folhagem acima dela. O cruza-bico e a carriça estavam empoleirados lado a lado num ramo espinhoso, no extremo da depressão, pelos vistos à espera. Não podia simplesmente regressar, tal como prometera a si própria. Decerto aqueles dois iam levá-la às respostas que procurava. Trepou a inclinação, sempre a olhar para o topo da muralha enquanto subia. Podia haver guardas de patrulha lá em cima, com uma visão ampla da floresta. Naquele momento, não se via ninguém.
— Muito bem — murmurou. — Levem-me onde têm de levar, mas sejam rápidos, ou vou ter problemas.
Se havia um carreiro pela floresta, os pés que o percorriam eram leves, pois mal se via. Ana avançou por entre os arbustos de espinhos afiados, as sarças de pontas salientes e os espinheiros perigosos, sempre a seguir a mancha vermelha que era o cruza-bico. A carriça mal podia ser vista entre a tapeçaria de folhas e luz do sol em constante mudança. Rapidamente o caminho ficou envolto em sombras. Passavam por baixo de carvalhos e a luz era filtrada por uma cobertura de um verde luxuriante. A vegetação espinhosa transformou-se em musgo e fetos, onde se cruzavam fios de água sinuosos. Uma miríade de plantas minúsculas atraídas pela água espalhava pequenas mantas sobre ramos e troncos caídos. Os restos das folhas do Outono tinham criado uma mistura rica e escura e Ana podia sentir criaturas rastejantes nas profundezas, trazendo uma abundância de vida ao solo. Um bando de pintassilgos voava por entre as árvores, chilreando sem parar.
O carreiro começou a subir por entre grandes rochas, onde se tinham espalhado amoreiras, entrelaçando-se até formarem sebes densas. Mais para o fim da estação dariam uma boa colheita. Se ainda estivesse em Briar Wood no Verão, viria apanhar amoras com Ludha. Se casasse com Alpin... A mente de Ana afastou a possibilidade. Franziu o cenho, levantou a saia e subiu até ao topo da elevação.
Os pássaros estavam mais uma vez à espera, lado a lado sobre um ramo. Ana fez uma pausa para escutar. A floresta estava cheia de sons, chilreios, gritos, restolhar, o murmúrio da água. Mas havia mais alguma coisa, um arrastar, um grunhido que não era produzido pelas criaturas pequenas da mata na sua vida normal. Lembrou-se de javalis e pensou no que faria se lhe surgisse um desses animais, todo ele presas e cerdas, uma força impetuosa de músculos poderosos. Gritar? Fugir? Subir a uma árvore e esperar por socorro? Corou ao imaginar o que Faolan pensaria dela, a vaguear por ali sozinha. Nem sequer levara a faca que ele lhe dera.
Os sons vinham de algures ao fundo do carreiro, onde o caminho descia, acompanhando a inclinação daquela encosta. Era um local bem longe da vista das sentinelas de Alpin. O contorno natural do terreno e as árvores cerradas faziam do lugar um território ideal para movimentações secretas. Os homens da expedição de Faolan tinham ouvido inúmeras histórias sobre viajantes perdidos nas florestas dos Caitt, e que nunca mais foram vistos, de mortes súbitas e inexplicáveis, de caminhos que se iniciavam amplos e direitos e que acabavam por se revelar pesadelos contorcidos, levando os incautos a andar em círculos, até morrerem de frio, de sede ou do mais puro terror. Era verdade que tinham perdido a vida, todos eles, mas os únicos culpados eram os Azuis e a estação inclemente. Mas Ana vira com os seus próprios olhos como Briar Wood distava de outras colônias. Ouvira Alpin falar sobre a natureza mutável da floresta e acreditara nele.
Permaneceu imóvel, a tentar identificar os sons, até que os pássaros voltaram a alçar vôo, guiando-a colina abaixo. Avançou com cuidado. Não importava o que aguardasse mais à frente, não desejava vê-lo antes de ter oportunidade de avaliar o perigo.
Saiu para uma clareira rodeada por árvores menores. Cresciam ali amieiros e salgueiros, e o gorgolejar de um ribeiro oculto fazia-se ouvir, vindo de algures na sombra das árvores. Ana deu mais um passo, ao que se deteve de forma súbita. Dois homens lutavam no terreno aberto, os corpos unidos num abraço terrível, músculos retesados contra músculos, as cabeças baixas como se fossem veados em luta, as pernas firmes, à medida que cada um tentava derrubar o adversário. De tronco nu, os corpos cintilavam com o suor do esforço. Na erva próxima estava uma túnica e outras peças de roupa, cintos e camisas. Reconheceu um dos homens, pois era entroncado e calvo, de ombros largos e peito vasto: Deord. Talvez fosse altura de uma folga do guarda especial de Alpin e de um dos seus homens. Era a túnica de Deord e o cinto meio escondido pela roupa trazia as chaves, incluindo, quase de certeza, a que se encontrava segura no bolso da jovem. A gralha estava empoleirada num ramo baixo próximo dos artigos, como se os guardasse.
O segundo homem era alto, pôde vê-lo quando eles se largaram e, com movimentos rápidos dos membros, se rodearam e voltaram a agarrar. Este segundo homem era gracioso, de ombros largos e cintura estreita, pernas compridas e movimentos ágeis. Era rápido. A perícia no esquivar mantinha-o fora do alcance do abraço poderoso de Deord até que estivesse preparado para o receber. O homem tinha um rosto de feições vincadas que lhe pareciam familiares. A pele não tinha marcas, nem de clã, nem de batalha. Tal como Deord, estava escanhoado, mas ostentava uma cabeleira farta, de um tom castanho avermelhado como as penas de uma águia, ou o sol de Outono nos carvalhos, ou a pelagem de uma raposa. Os olhos eram brilhantes. Quer se devesse à manhã amena ou ao prazer que sentia naquele desporto, quer ele fosse um homem naturalmente alegre, aqueles olhos capturavam o esplendor da alvorada, o que lhe deixava as feições radiantes. Ana teve de se obrigar a respirar. Ele era, muito simplesmente, a coisa mais bela que alguma vez vira.
De repente, a necessidade de evitar ser vista tornou-se premente. Fora até onde não devia. Intrometera-se em algo extremamente privado. Recuou para o abrigo dos arbustos.
A gralha crocitou com a sua voz rouca. A carriça e o cruza-bico alçaram vôo no mesmo instante e dirigiram-se aos homens. Seguiu-se uma quietude repentina. Os combatentes soltaram-se e endireitaram-se, virando-se para Ana enquanto a carriça pousava na cabeça do homem alto e o cruza-bico no seu ombro. Era demasiado tarde para fugir. Teria de enfrentar a situação, justificar-se de alguma forma. Estava ofegante e tinha as palmas das mãos úmidas. Deord caminhava na sua direção e dizia alguma coisa, mas ela não sabia o quê, pois o outro homem olhava-a e a expressão daqueles olhos eliminava tudo o resto, salvo a necessidade de retribuir o olhar, olhar, olhar, até sentir que se ia afogar... Ah, como ele a fitava! Eram como estrelas, como lagos ao luar, como fontes cheias de sonhos. Não conseguia desviar-se. Era obrigada a parecer uma rapariga tola, ali de pé, incapaz de dizer uma palavra que fosse, de se recompor e comportar como seria digno de uma mulher de sangue real. Sentia aquele olhar no seu íntimo, fazendo-a arder, derreter, tremer. O que seria ele, um feiticeiro, para exercer tamanho poder sobre ela?
— Minha senhora — dizia Deord quando chegou junto dela —, não devias estar aqui. Como é que...? — Estava bem controlado, mas Ana sentia a raiva e o alarme no tom da voz.
— Eu... — Ainda não conseguia falar. Apertou as mãos e lutou por recuperar o autocontrole. O homem de cabelo fulvo aproximou-se, ficando atrás de Deord, a menos de três passos de Ana. Nunca deixou de fitá-la. Pesasse embora a luz naqueles olhos cintilantes, maravilhosos, espantosos, tinha uma boca severa, os modos cautelosos.
— Encontraste-nos — disse calmamente. Deord retesou-se.
— Drustan — disse bruscamente —, o que andaste a fazer? — Dirigiu-se então a Ana: — Como chegaste aqui? Por que vieste?
A atitude não era de todo a de um servo para com uma dama. Ana, no entanto, tinha bem noção das regras quebradas naquela manhã.
Retirou a chave do bolso e apresentou-a na mão aberta. Deord fez menção de agarrá-la, mas Ana fechou os dedos.
— Como a conseguiste? Decerto que não foi Alpin que ta deu...
— Imagino que seja tua — replicou Ana. — Foi-me entregue de madrugada, por uma pequena visita. Alguém queria que eu viesse aqui.
— Voltamos para o interior — O tom de Deord foi brusco, uma ordem. — Drustan, vai buscar as tuas coisas. Disse-te que não te metesses. Este disparate custou-te tempo ao sol e poderá trazer-te uma pena ainda mais grave. A senhora deve regressar à casa de imediato.
O companheiro não se moveu.
— Apressa-te. Não há discussão. — Quando o outro homem foi buscar as roupas, com uma obediência que surpreendeu Ana, Deord voltou a dirigir-se à jovem. — Uma vez que chegaste até aqui, imagino que tenhas questões. Irei responder-lhes, se puder, mas não aqui, nem agora. Se formos descobertos no exterior da muralha, ou se mencionares este encontro a Alpin, perderemos a pouca liberdade que conquistamos. Drustan e os pássaros dele também são culpados. Temos de regressar imediatamente à nossa clausura.
— Mas...— Ana não terminou. O homem chamado Drustan vestira a camisa à pressa, sem se preocupar em apertá-la, e pegava agora numa corrente ligada a uma bracelete de ferro. A outra ponta alongava-se pelo chão e terminava numa segunda algema. Enquanto ela fitava, horrorizada, o homem de cabelo ruivo colocou um dos anéis em redor do pulso e esperou em silêncio que Deord o apertasse e trancasse. Depois o guarda vestiu a túnica, apertou o cinto e colocou a outra algema no seu próprio braço. Ana permaneceu muda. Era aquele o animal selvagem, o cativo perigoso, aquele jovem belo de feições sinceras, de voz tímida e olhos brilhantes como estrelas. Um prisioneiro que, ao que parecia, deixava livremente o ar fresco e a luz do sol para se dirigir à sua prisão escura, o lugar onde as muralhas vedavam a entrada da manhã. Vira como os olhos mudaram de expressão quando se sujeitou às grilhetas.
— Ainda não — pediu ela, levando a mão ao braço de Deord. — Por favor. Deixa-o gozar o sol mais um pouco. Não queria...
A boca de Deord ficou tensa.
— Isto não é um jogo para jovens nobres, foste tola em vir aqui. Deixar Alpin zangado é um risco muito grande.
De repente, Ana conseguiu voltar a erguer a cabeça, a respirar fundo e a falar como uma filha real.
— Alpin ainda não é meu marido — disse com frieza. — Sou dona de mim própria. Não era minha intenção prejudicar ninguém. Na verdade, foi Alpin quem me disse para estar à vontade na sua ausência. Para explorar o que quisesse.
— Ele não vai gostar que andes sozinha na floresta, nem que abras portas privadas — replicou Deord. — Estás a meter-te em assuntos perigosos. Podes causar um mal muito grande. Temos de regressar.
— Deord. — Drustan ainda falava com uma voz calma, mas o tom fez Ana deter-se. Qual seria a relação entre aqueles dois? Decerto um prisioneiro não usaria um tom como aquele para com o guardião. — Só mais alguns momentos. Ainda temos tempo.
Deord ficou em silêncio. Após um instante, virou as costas e fitou a floresta.
— Sê rápido — disse. — Sabes qual a minha opinião. Por tudo quanto é sagrado, no que estavas a pensar para fazer isto? E não me digas que um daqueles teus amigos levou a chave sem que o soubesses. Está escrito no teu rosto que não foi assim.
— Estava a abrir uma porta — replicou Drustan.
A corrente estava esticada entre os dois homens. Deord segurava uma volta com a mão livre, como se estivesse pronto a puxar Drustan, caso este se aproximasse demasiado da jovem. Ana olhou para o prisioneiro e este retribuiu o olhar. Os seus olhos eram inconstantes, com a cor a refletir os tons variegados da floresta, as folhas pontilhadas pela luz do sol, as distâncias acinzentadas. Não disse mais nada. Talvez, como ela, tivesse perdido a fala por momentos. Ana considerou a atitude próxima da de uma criatura selvagem preparada para voar, fascinada mas cautelosa.
— Sinto muito — conseguiu ela dizer, o coração acelerado a deixar-lhe a voz instável. Era tudo tão estranho, como se os habituais códigos de conduta tivessem subitamente sido eliminados. — Lamento muito, se vos coloquei aos dois em perigo... não sabia...
— Estás bem? — perguntou Drustan, a voz tão pouco controlada como a dela. Pigarreou e voltou a tentar. — Foi uma coisa terrível, quando os teus companheiros se perderam no vau. Um dia negro para ti.
— Sabes o que aconteceu?
Seguiu-se um instante de pausa, ao que Drustan disse:
— Eu e Deord falamos sobre o assunto.
— Enviaste-os? — perguntou-lhe Ana. — Os pássaros?
Um aceno da cabeça, um sorriso passageiro que revelou uma covinha no canto da boca.
— Por que o farias? — Ana procurava saber o que perguntar. Havia tantas questões que nem sabia por onde começar.
Drustan não respondeu. Ana começou a interrogar-se sobre se o homem estaria no seu juízo perfeito. Mesmo com toda a inteligência que os olhos deixavam transparecer, os seus modos eram um pouco estranhos. Será que o cativeiro prolongado o tinham levado a esquecer as convenções de uma casa como a de Alpin, falando apenas quando o decidia, sem as restrições do comportamento reconhecido por todos? Ou existiria Drustan a um nível que se encontrava fora desses padrões, o que o levava a não se importar com as convenções?
— Estás zangada, Ana? — murmurou.
Ao ouvir o seu nome, a jovem sentiu algo a agitar-se no seu íntimo, onde o sangue corria com mais força.
— Não — respondeu. — Apenas confusa. És um druida, ou um feiticeiro, para usares as criaturas desta forma? Por que estás ali fechado?
Drustan baixou o olhar. Os dedos remexeram nos grilhões. Já não tinha os ombros direitos.
— Por necessidade — respondeu. — Não estar seria perigoso. — Depois, após um momento, perguntou: — Tens medo de mim?
Como responder de forma honesta? Não podia dizer-lhe que os seus olhos a deixavam quente, fria e fraca, que a arrebatavam e a levavam para sonhos. Se havia algo que a assustava, era isso.
— Não posso responder a isso, Drustan... é esse o teu nome? — disse, e viu-lhe o corpo a ficar tenso ao pronunciá-lo. — Não sei nada sobre ti, para além do que vejo.
Drustan voltou a erguer o olhar.
— O que vês? — perguntou-lhe. Eram águas perigosas.
— Não posso dizer-te.
Regressaram ao túnel em silêncio, uma procissão estranha. Deord fez Ana entrar primeiro. Seguiu-a, com o prisioneiro em último, a corrente esticada entre os dois homens. Ao olhar para trás, pareceu a Ana que os dois teriam repetido a situação com tanta freqüência que seguiam certos comportamentos de forma inconsciente. Era-lhe evidente que Deord preferia que Drustan não se aproximasse muito dela. Tendo em conta as algemas, as portas trancadas, o cativeiro oculto, teria de supor que o cativo era perigoso, mas era-lhe impossível imaginá-lo como sendo violento. Será que a carriça minúscula se aninharia no seu cabelo e as outras criaturas escolheriam os seus ombros como poleiros, caso ele fosse dado a acessos de fúria?
De volta à clausura sombria, Deord prendeu o recluso às grilhetas no banco, antes de soltar a algema e a corrente que unia os dois homens. Drustan já não olhava para ela. Estava nas sombras junto à parede, a cabeça pendida e sem dizer palavra.
— Vamos — indicou Deord. — Vou acompanhar-te à porta e garantir que não és vista. Dá-me a chave.
Ana fitou-o.
— Sem ela — explicou Deord calmamente — ficamos os dois aqui presos, sem poder ir buscar as nossas refeições, ou água fresca. Não saímos muito. Estas viagens além da muralha não são conhecidas. Talvez não o tivesses percebido.
— Pediste-me para não contar a Alpin — disse Ana. — Imagino que esperes que te devolva a chave e fique de boca fechada, como se não tivesse visto nada. Não o farei, Deord.
Os modos do homem permaneceram inalterados.
— Vou tirar-te a chave, se a tal for obrigado. Preferia que a entregasses de livre vontade. Ele precisa de proteção. Estás a interferir num assunto que não entendes de todo.
— Então explica-me — replicou Ana. — Diz-me quem é ele, e por que razão está aqui fechado. Qual o crime que um homem terá de cometer para merecer tal encarceramento?
— Aqui não. Tens de ir. — Já a empurrava na direção do portão de ferro. Atrás deles, Drustan não se mexera. Vê-lo assim derrubado, a luz nos olhos extinguida, perturbava Ana. Privado do sol e da floresta, parecia a sombra do homem que vira na clareira, uma criatura bela como um pássaro em pleno vôo.
— Muito bem — disse ela. — Vou, mas terás de me contar a história mais tarde. E tens de me deixar voltar aqui.
— As pessoas não vêm aqui — retorquiu Deord, sem emoção na voz. — Não é seguro. É a lei de Alpin. Se queres alterá-la, fala com ele. Agora vai.
Ana não estava habituada a ser tratada assim e sentiu-se ofendida, mas Deord tinha razão em apressá-la, pois o Sol ia subindo no céu. Já estivera ali demasiado tempo.
— Dá-me um instante — pediu Ana e, sem esperar uma resposta, percorreu rapidamente o recinto, indo colocar-se ao lado do Drustan silencioso, à distância de um toque.
— Não — disse Deord bruscamente, mas Ana ignorou a voz. Pegou na mão acorrentada. O toque enviou-lhe um arrepio pelo corpo, surpreendente e inebriante.
— Tenho de ir — disse, olhando para o prisioneiro. — Sinto muito por ter reduzido o teu período de liberdade. Se houver alguma coisa que possa fazer para te ajudar...
— Chega — interrompeu Deord e agarrou no braço de Ana para afastá-la. A mão de Drustan surgiu tão rapidamente que Ana arquejou. A mão do cativo segurou o pulso de Deord, até que os seus dedos se abriram, libertando-a. Naquele momento, reconheceu a força espantosa de Drustan.
— Não lhe toques — disse Drustan calmamente. — Ela vai de livre vontade. Não há necessidade de força. Adeus, Ana. Fiquei feliz por te ver.
Ana sentiu uma estranha sensação de perda. Não a compreendeu. Eram estranhos.
— Adeus — disse. — Espero poder voltar a falar contigo. Não interessa o que fizeste, de certeza que não merecias este destino. — Fez menção de se retirar. Drustan levantou-lhe a mão, levou-a aos lábios e fechou os olhos por um instante. Ana sentiu o sangue subir-lhe às faces e viu um rubor nas feições de Drustan, um reflexo perfeito. Depois soltou-a e virou-se. O encontro bizarro chegara ao fim.
— Não posso falar contigo agora — disse Deord em voz baixa quando chegaram à porta nos aposentos de Alpin. Com um suspiro, Ana depositou a chave na mão estendida. — Vão reparar, se alterar os hábitos do meu dia. Irei ter contigo antes da ceia.
— Com a minha criada presente, não poderei ter as respostas de que preciso — queixou-se Ana.
— A escolha é tua.
— Não — contrapôs a jovem —, parece ser a escolha de Alpin. Trancar este prisioneiro e ocultá-lo atrás de uma teia de segredos. Não interessa o «que tenha feito, decerto Drustan poderia ter visitas. Não parece um homem perigoso.
— Não, não parece — assentiu Deord. Abriu a porta e saiu antes da jovem, para garantir que não havia ninguém por perto. — Mas eu conheço-o. És uma estranha.
— Muito bem — disse Ana. — Falarei contigo mais tarde. Podes contar com a minha discrição. Por favor, diz a Drustan que lamento que tivessem de entrar por minha causa. Compreendo como estas saídas devem ser preciosas.
Deord inclinou a cabeça educadamente. No instante seguinte, desaparecera através da porta e fechara-a.
Era de tarde. Ana estava sentada na sala de costura com as outras mulheres e tentava concentrar-se nos debruns, mas era difícil focar a mente em qualquer outra coisa que não fossem os olhos luminosos de Drustan, a voz calma, as mãos poderosas. A recordação do seu toque voltou a trazer-lhe o sangue às faces. As mãos tremeram-lhe e quase deixou cair a agulha.
— Estás bem, minha senhora? — perguntou Ludha em voz baixa, os olhos ansiosos.
— Estou muito bem, Ludha, apenas um pouco cansada. Dormi mal, esta noite.
— Posso acabar o que estás a fazer...
— Eu acabo! — Ana percebeu o tom de irritação na sua própria voz. Não era justo que a criada sofresse por ela não ser capaz de se concentrar no que estava a fazer. Por estar a agir como uma miúda tola, que não conseguia olhar para um homem bem apessoado sem que lhe fraquejassem os joelhos. Ana endireitou as costas e falou para consigo com a voz de uma descendente real. Não se acorrentam pessoas por nada. Drustan deve ter feito algo de muito errado. Não parecia ajudar. O corpo continuava inquieto, a mente centrada na imagem dele. Voltou a tentar. Estou aqui para conseguir uma aliança para Bridei. Não devia permitir que me distraísse. Depois pensou, Faolan ficaria chocado com o que fiz. O que pensaria de mim? Depois disso, conseguiu voltar a concentrar-se no trabalho por uns instantes. Viu como os últimos pontos tinham ficado tortos. Com um suspiro, começou a desfazer os pontos e viu a peça de roupa ser-lhe retirada das mãos.
— Por favor — disse Ludha. — Deixa-me ajudar. É um vestidinho tão bonito, era uma pena estragá-lo.
Ana aquiesceu.
— Pensei em começar a substituir as roupas de bebê, as que foram perdidas no vau. Mas hoje os meus pontos estão terríveis.
— Não importa, minha senhora. — Ludha estava já a desfazer o trabalho mal feito, os lábios franzidos em concentração, os olhos semicerrados. — Podia acabá-lo com uma guarnição trabalhada, se o aprovares. Tenho umas linhas coloridas muito bonitas, castanho, azul, verde-escuro. Talvez umas flores?
Ana sorriu distraidamente.
— Que tal pássaros? — sugeriu.
— Pássaros? Que tipo de pássaros?
Uma carriça, um cruza-bico, uma gralha. — Deixo à tua consideração — disse Ana. — Tenho a certeza de que vais fazer um bom trabalho, Ludha.
— Obrigada, minha senhora.
Os nós dos dedos de Drustan estavam brancos da força com que agarrava o portão gradeado, os dedos entrelaçados nas barras. O som ritmado do metal enchia o pequeno recinto, um rufar de dor. Os pássaros estavam escondidos lá em cima, ocultos num nicho minúsculo por baixo do telhado de ferro. Sempre que Drustan batia com a cabeça no ferro, os pássaros estremeciam, como se sentissem o golpe nos pequenos corpos frágeis. Do outro lado da clausura, Deord varria calmamente. Vigiava de perto o cativo.
O portão estremecia nas dobradiças. Drustan era forte. Um dia conseguiria arrancá-lo. Não que lhe servisse de muito. Raras vezes Deord fora obrigado a usar de toda a sua força, mas fora contratado pela sua capacidade de lidar com tal situação e era o que faria, se ela surgisse. Esperava que não. Havia outras maneiras de controlar aquele prisioneiro, formas melhores de lhe manter a mente e o corpo razoavelmente sãos durante o longo encarceramento. Deord ia varrendo e observando e, após algum tempo, as pancadas abrandaram e cessaram, ficando apenas o som da respiração de Drustan, um arquejar como o de uma criança que gastou todas as lágrimas.
A vassoura parou.
— Drustan? — perguntou Deord em voz baixa.
Drustan virou-se. Tinha nos olhos uma expressão caótica. A dor que deles emanava atingiu Deord como um golpe no peito.
— Sair! — A voz de Drustan era rouca e insegura. — Quero sair daqui! Quero que isto acabe! — Dirigiu-se a passos largos a Deord, as mãos erguidas à sua frente como se quisesse agarrar o outro homem pelo pescoço.
— Anda — disse Deord, que pousou a vassoura e se aproximou do banco. — Senta-te aqui. Respira devagar. — Pegou nos braços de Drustan e guiou-o para que se sentasse. — Estás a assustar os pássaros.
Drustan ocultou o rosto nas mãos. Os dedos apertavam as madeixas do cabelo cor de fogo. Todo o seu corpo estremecia com a tensão.
— Respira devagar, tal como treinamos — insistiu Deord. — Isso vai passar. — Não tentou manietar o cativo. A algema e respectiva corrente jaziam por baixo do banco. — Fica sossegado. Deixa que a respiração te acalme. Confia em mim, Drustan. Isto vai passar. — Disse mais algumas palavras reconfortantes, a voz com um tom baixo, sempre sentado ao lado do outro homem.
Minutos depois, a respiração de Drustan tornou-se menos esforçada, menos entrecortada. Era óbvio que o homem ruivo se esforçava por recuperar o controlo. Bastante tempo depois, Drustan ergueu a cabeça, sentou-se direito e largou o cabelo, abraçando o próprio corpo como se estivesse gelado. Sem dizer nada, Deord levantou-se e foi buscar um cobertor ao quarto. Quando voltou, os três pássaros estavam empoleirados na cabeça e nos ombros de Drustan.
— Toma — disse Deord e embrulhou o outro homem com a manta. Os pássaros esvoaçaram com uma agitação de asas e voltaram a acomodar-se. — Esta rapariga deixou-te perturbado. Não lhe devias ter espicaçado a curiosidade. O mais certo é que o teu irmão vá ficar irritado, não só conosco, mas também com ela.
— Ela não vai contar-lhe.
— A tua confiança é infantil, Drustan. Pode não ter intenção, mas vi o ar dela quando me devolveu a chave. Um olhar honrado. Ela acredita que o teu encarceramento é injusto e duvido que não confronte o marido com a situação. Como poderá explicá-lo a Alpin, se ele julga que ela não faz idéia que existes?
Drustan encarou-o com um ar grave.
— Ele não é marido dela — disse.
— Mas vai ser — recordou-o Deord. — Ele deseja-a. Dizem que não faz por ocultá-lo. É uma jovem mais atraente do que o habitual. E está aqui para selar um acordo entre Alpin e Bridei, de Fortriu. O casamento terá lugar.
Drustan ergueu a mão e a carriça saltou-lhe para o dedo. Com a outra mão afagou-lhe levemente a plumagem.
— Deord?
— O que foi?
— Ana não devia casar com o meu irmão.
— Não devia? O que é isso? Sabes que tais decisões têm a ver com estratégias, alianças, vantagens territoriais. É evidente que tanto Bridei como o teu irmão julgam que a situação deverá prosseguir. Não te devias ter envolvido com ela.
— Não devia casar com ele. A sua luz vai ser eclipsada. O seu espírito vai ser quebrado.
Deord olhou-o com curiosidade.
— Foste tu quem enviou Alpin para ir buscá-la à floresta — lembrou-o.
Um lampejo da fúria anterior tornou as feições de Drustan subitamente perigosas.
— De que outra forma poderíamos tê-la ajudado? — argumentou. — Se fosse dono de tal liberdade, eu próprio teria ido... tê-la-ia avisado...
— Chega — atalhou Deord. — Estás a ir longe de mais. O teu irmão tem uma oportunidade. Deverão ficar bem, juntos. Concordo, parece demasiado nobre para se sentir em casa por estes lados, mas não lhe falta perspicácia e já mostrou que sabe defender-se. Além disso, as nossas opiniões não contam para nada em tais assuntos. Não devias ter-te envolvido.
— Ela não vai dizer nada.
— Na verdade, a senhora pediu-me para te transmitir uma mensagem nesse sentido — disse Deord, com um tom inseguro. — Que podíamos contar com a sua discrição.
Drustan sorriu, a fúria acalmada.
— Ela tem boas intenções — continuou Deord. — É a sua capacidade de manter essa discrição quando Alpin lhe começar a contar a verdade que me preocupa. O teu irmão vai querer mantê-la o mais possível afastada de ti. Não seria de esperar o contrário.
Drustan não respondeu. O sorriso desvanecera-se rapidamente. Após uns instantes, disse:
— Seria incapaz de magoá-la. — O tom da voz soava constrangida.
— Nunca o faria. Ela sabe-o.
Deord olhou o cativo com compaixão.
— Se avalia os homens com tal rapidez, é muito ingênua — disse.
— Talvez acredite que o sabe. Mas tu não sabes. Não podes ter a certeza, nem o teu irmão. Por esse motivo, tens de te manter afastado. Tens de os deixar viver as suas vidas e deixá-los cometer e reparar os seus próprios erros.
Drustan fitou o guardião.
— E tu, em que acreditas? — perguntou, com a voz calma. — Acreditas que seria capaz de magoá-la? O que vês em mim?
— Um homem de inúmeras qualidades.
— Mas não confias em mim.
— No fundo, nem tu próprio confias. Fizeste o que fizeste. Alpin acredita que possa voltar a acontecer. Se não fosses do seu sangue, há sete anos teria mandado matar-te. Os meus serviços não seriam necessários.
Drustan olhou para as mãos, abertas sobre o colo, e para a carriça minúscula pousada sem receio na palma.
— Isto é uma espécie de morte — disse. — Se tivesse um punhal, hoje estaria à beira de acabar com este encarceramento, de cortar as veias e deixar que a Mãe de Tudo me levasse. Agüentei sete Invernos. Não sou capaz de continuar assim para sempre.
— Ficarias surpreendido com o que um homem consegue suportar — disse Deord. — És forte. Vais suportá-lo. — Após um momento, acrescentou: — Não julgues que não me senti tentado, nas noites de lua cheia, no bosque. Cheguei a pensar em virar as costas um instante a mais e deixar-te desaparecer.
— Depois ele iria castigar-te. Ele matava-te.
— Não sou totalmente desprovido de certas capacidades físicas. Foi por isso que me contratou.
— O meu irmão conta com muitos homens leais, e todos eles adoram caçar. Nem mesmo tu serias capaz de fugir.
— A questão é irrelevante — atalhou Deord. — Tu regressavas. É o que fazes sempre.
— Cem anos não chegariam como retribuição por aquilo que fiz.
— A voz de Drustan reduzira-se a um murmúrio. — Não posso arriscar-me a repetir tal ato. — Drustan ergueu as mãos e o pássaro minúsculo voou pelo recinto, indo pousar no portão de ferro. — Por que não te vais embora, Deord? Nem mesmo uma bolsa pesada de prata chega para pagar tal existência. Guardar-me também te condena a um encarceramento perpétuo.
— Cala-te — disse Deord, enquanto se levantava. — Faço o que faço e, tal como tu, sonho que um dia isto chegará ao fim. Um fim que não terá nada a ver com punhais e veias.
Drustan ficou em silêncio durante algum tempo. O cruza-bico e a gralha mantiveram a vigília, um em cada ombro. Deord foi atarefar-se com o quarto de dormir. O sol percorreu o céu. A luz pálida cruzou brevemente as lajes, a água escura e as paredes de pedra, desaparecendo quase sem ter tempo de tocar aquele espaço fundo. Drustan acabou por levantar-se e dirigiu-se à pequena janela, através da qual fitou a árvore emoldurada por muralhas criadas para resistir ao assalto de armas de cerco. A copa larga do carvalho brilhava com a luz.
— Uma flor apanhada sem cuidado e deixada a murchar — disse em voz baixa. — Um pássaro selvagem preso a um poleiro e forçado a cantar. Como podemos assistir a isso sem interferir? Ela não devia casar-se com ele. — Mas não havia ninguém para ouvi-lo, para além dos dois pássaros e, se estes tinham opinião sobre o assunto, não a deram.
Enquanto o grupo de Alpin regressava a Briar Wood, Faolan foi trabalhando a sua personagem de bardo: um pouco abalado, mas surpreendido e contente por ter podido ajudá-los na escaramuça. Improvisaram um acampamento para a noite e depois apressaram-se a seguir os percursos mal definidos que serpenteavam pela mata labiríntica. Quando se detiveram para confabular antes de atravessarem a ponte difícil que marcava o limite do território de Alpin, Faolan reparou que o nível da água, embora ainda perigosamente elevado, baixara desde a última passagem, quatro dias antes. Em breve, Break-ing Ford voltaria a ser seguro, caso a enchente não tivesse aberto demasiados buracos no leito do rio.
Quando o grupo atravessou os portões da fortaleza, Ana esperava o futuro marido. Parecia absorta quando cumprimentou Alpin, como se a sua mente se encontrasse noutro lugar qualquer. Não olhou para Faolan. O agora bardo deixou que um criado levasse o cavalo, ao que se dirigiu para o quarto onde dormia.
Alguém encontrara a harpa, que se encontrava sobre a enxerga que lhe tinha sido destinada. Era um instrumento de aspecto miserável, cujas cravelhas partidas e cordas a menos revelavam uma longa negligência. Faolan imaginara outra harpa, uma cujas curvas e linhas eram bem conhecidas das mãos de um bardo, cujas cordas reconheciam o seu toque como o de um amante, cuja estrutura tremia nos seus braços, à medida que o instrumento cantava sobre paixão, morte ou prazer. Aquele pobre resto do passado nunca tocaria tal melodia.
— Consegues repará-la? — Gerdic ia a passar, um balde em cada mão, com destino à bomba.
— Dependendo dos materiais, talvez consiga fazer alguma coisa dela. — O desejo de apresentar uma negativa imediata era forte, mas era preciso pensar em Alpin e na importância de lhe conquistar a confiança. — Tenho de substituir pelo menos três cordas e também vai ser preciso fazer um par de cravelhas. Se houver madeira de qualidade e ferramentas que possa usar, começo o trabalho pela manhã. Onde posso encontrar tripa de ovelha?
Faolan não conseguiu falar sozinho com Ana durante a ceia, nem depois. Ficou no seu lugar entre os serviçais de Briar Wood e observou-a discretamente a participar na refeição. Escutava Alpin e os favoritos deste a narrar a história da sua vitória sobre os Azuis. Parecia uma pequena ilha de tranqüilidade entre a companhia barulhenta que eram os Caitt, com os seus gracejos ruidosos, os gestos exuberantes e o entusiasmo que mostravam pela cerveja e pela carne. Faolan interrogava-se sobre se ela alguma vez se sentiria em casa naquele sítio. Imaginou-a idosa. Seria ainda bela. Ficaria sentada em silêncio, enquanto o resto da casa arrotava, gritava e gargalhava à sua volta. Veria os filhos e os netos a tornarem-se parte daquele grupo desordeiro e indisciplinado. Indisciplinado: não, isso não era verdade. No campo de batalha, aqueles guerreiros não eram assim. Tinham um líder astuto e decidido, os homens eram corajosos, controlados e capazes. Poderiam constituir uma ameaça a Bridei, ou uma mais-valia significativa. Não podia esquecê-lo.
Faolan concentrou a atenção na forma de ombros largos do servo calvo, Deord, que entrara com a pequena travessa, a qual enchia junto à mesa de apoio. Um pão pequeno, um jarro baixo, um prato de carne assada, qualquer coisa a fumegar numa tigela. Deord era eficiente e metódico e a tarefa não demorou muito a ser completada. Quando se virou para regressar mais uma vez aos aposentos da família da casa, cruzou por um instante o olhar com o de Faolan e os olhos deixaram transparecer reconhecimento, a compreensão de algo partilhado. Momentos depois, já desaparecera.
Quando a refeição chegou ao fim, as mesas e os bancos foram afastados. Teve lugar uma sessão de combate e, depois desta, uma luta de cães. Faolan obrigou-se a permanecer no salão e a assistir. Fingiu beber a cerveja. Fez o possível por ignorar os gritos e os rosnados, enquanto o cão mais forte despedaçava lentamente o outro. Juntou-se aos aplausos ao dono do animal vitorioso, um indivíduo com aspecto de pugilista, de pescoço largo e uma rede intrincada de cicatrizes no rosto, que se sobrepunha às marcas de batalha.
Ana permanecera no salão. Estava com o rosto lívido, as feições oprimidas pelo horror. A maioria das restantes mulheres tinha saído antes da luta dos animais, apenas com uma ou duas a deixar-se ficar, para acompanhar os homens no círculo ávido e ululante à volta dos combatentes. Faolan vira a mão de Alpin a fechar-se em redor do braço de Ana quando esta tentara ausentar-se. O fato deixara-o gelado de fúria. O líder de Briar Wood não era apenas um rude, era cruel.
Com o fim do entretenimento, a palha ensangüentada foi retirada. Faolan deixou-se ficar com Gerdic e os outros, meditando sobre o que haveria no íntimo de um homem que tais atividades despertavam. Pensou em Bridei e no deus da Fonte das Sombras, um deus que exigia um sacrifício anual como demonstração da obediência do seu povo. Um sacrifício que não assumia a forma de uma galinha ou de uma cabra, mas de uma mulher jovem e inocente. Bridei não falava muito sobre o assunto. A lei da observância dos rituais dos Priteni proibia que se discutisse sobre essa deidade específica e suas exigências. Mas Faolan vira o rosto de Bridei, na noite em que uma rapariga morrera às mãos do velho rei e do seu druida, para aplacar O Que Não Tem Nome. E Bridei dissera-lhe que aquilo que os homens sentiam quando o deus despertava com o seu poder negro não era apenas medo, terror e repulsa, mas também entusiasmo, uma sensação emocionante que tinha tanto de prazer como da mais pura vergonha. Todos os homens tinham esse sentimento dentro de si, dissera Bridei, embora normalmente se encontrasse bem no fundo dos seus corações, e poucos reconhecessem a sua existência. Faolan duvidava que Bridei alguma vez tivesse sentido prazer em derramar o sangue dos indefesos. Bridei era a personificação de tudo o que era justo e bom, equilibrando a autoridade de um rei com a bondade e a generosidade. Com efeito, ele acabara com aquela forma extrema de sacrifício no Portal. Para ele, uma vez fora mais do que suficiente.
Quanto aos outros homens, Faolan já sabia da escuridão que residia no seu íntimo, o desejo não só de derramar sangue, mas também de revirar o punhal enquanto o faziam. A sua lição pessoal sobre a barbaridade humana fora inesquecível. Naquela noite, enquanto assistia ao povo de Briar Wood a gritar e a aplaudir a morte lenta de um cão, sentiu o desejo profundo de estar no Monte Branco. Queria paz. Queria tempo para pensar. Acima de tudo, não queria estar ali sentado a ver a aflição de Ana, sem poder fazer nada para ajudá-la. Quanto à harpa que aguardava a sua perícia, tentou esquecê-la, pois isso, à sua maneira, era o maior de todos os problemas.
— Bardo! — bradou Alpin, de repente.
Faolan dirigiu-se ao lugar onde o chefe tribal estava sentado ao lado de Ana e ajoelhou-se em sinal de deferência.
— Meu senhor.
— A tua presença será necessária pela manhã — disse-lhe Alpin. — A senhora quer que estejas presente quando iniciarmos a discussão formal sobre a questão do casamento. Não vejo qual a necessidade, mas temos de fazer a vontade às mulheres, não é? — Deu uma palmadinha na mão de Ana e piscou o olho.
Faolan manteve uma expressão neutra.
— Uma vez que serei o portador da tua resposta ao rei Bridei, o pedido da senhora parece-me apropriado.
Alpin carregou o sobrolho.
— Não precisamos das tuas opiniões, bardo. É tudo. Serás chamado na devida altura. — Era óbvio que qualquer gratidão que o líder de Briar Wood pudesse ter sentido pela faca lançada naquele momento estratégico se tinha evaporado assim que regressara a casa.
— Sim, meu senhor. — Faolan retirou-se. Sentiu-se observado pelos homens de Alpin enquanto se afastava, não exatamente hostis, apenas interessados. Talvez estivessem mais interessados do que o que seria desejável. Mas isso não importava. Estava satisfeito por as negociações terem lugar tão cedo. Se o assunto ficasse resolvido, poderia ter uma hipótese de regressar ao Monte Branco antes da partida de Bridei. Planeara ficar até que Ana se instalasse, se não feliz, pelo menos em segurança. O seu entusiasmo por tal incumbência, que nunca fora forte, ia-se desvanecendo a cada momento que passava. Apenas queria retirá-la imediatamente de Briar Wood, voltar a casa e nunca mais regressar. Era um sonho insano, impossível por tantas razões que nem queria acreditar que parte de si ainda pensava nele. Se não era capaz de separar os sentimentos pessoais da situação, a jovem passaria bem sem ele.
Reuniram-se na pequena sala do conselho que fazia parte dos aposentos de Alpin. Faolan não apreciou sobremaneira o local do encontro. Não era capaz de olhar para a cama enorme com as exuberantes cobertas de pele sem imaginar Alpin a divertir-se com a esposa nova, o que fez com que fosse difícil concentrar-se na pose que julgava ser a mais adequada à reunião: calmo, calado, talvez um pouco intimidado, pois o que percebe um simples músico de assuntos estratégicos importantes? Pelo menos, seria isso que Alpin iria pensar. Aquele simplório não estabeleceria a ligação lógica entre o repertório bárdico e o conhecimento dos assuntos do mundo. E isso, pensou Faolan, seria pelo melhor. Quando finalmente o forçassem a cantar, apresentaria uma qualquer melodia alegre, cheia de caçadas, bebida e mulheres casadoiras. Com um pouco de sorte, tal espetáculo iria satisfazê-los.
Foi deixado entrar por um guarda. Alpin, sentado à mesa, reconheceu a presença com um ronco, mas não o convidou a acomoda-se. Faolan ficou descontraído, as mãos atrás das costas, o olhar num plano médio. Havia um segundo guarda de pé atrás do chefe tribal e outro homem sentado à mesa.
Aguardaram. Foi servida cerveja. Alpin não ofereceu um copo a Faolan. Após bastante tempo, ouviu-se bater à porta e Ana entrou, acompanhada pela criada.
— Não precisas da rapariga — disse Alpin, com dureza. — Ludha, é tudo...
— Fica, Ludha. — O rosto de Ana estava pálido, os olhos nublados por uma noite acordada, ou atormentada por sonhos indesejáveis. O tom firme era o de uma princesa. — É uma questão de decoro, meu senhor. Não é próprio que assista a uma reunião de homens sem a presença da minha criada. Estou acostumada a certos padrões de comportamento e não tenciono perdê-los, agora que estou num novo lar. — Obrigou-se a esboçar um sorriso educado.
— Muito bem, minha querida, não queremos que percas esses padrões, não é verdade? — bradou Alpin. — Estás atrasada. Perdoo-te por isso. Vejo que não desperdiçaste o tempo. — Os olhos percorreram-na com admiração, desde o cabelo com tranças elaboradas e da túnica e saia impecáveis aos chinelos de pele. Era óbvio para Faolan que o homem avaliava as curvas e linhas gentis da figura em parte oculta pelo traje recatado. Viu a expressão satisfeita no rosto de Alpin. O chefe tribal tinha a vitória como garantida e não escondia o desejo que sentia pelo prêmio. Faolan desviou o olhar.
— Podes sentar-te naquele banco ao lado da porta — indicou Ana a Ludha, ao que se juntou a Alpin, à mesa. — Estes homens vão ficar aqui, meu senhor?
— Parece-me justo — respondeu Alpin, com um sorriso. — Tens o teu bardo, eu tenho Dregard para me aconselhar. Não podemos deixar que o celta vá dizer a Bridei que os assuntos foram conduzidos de forma imprópria.
— E os outros? — Ana olhou para os guardas.
— Deves estar habituada a vigilantes — replicou Alpin. — Não foste uma refém desde criança? A mensagem codificada de Bridei deu-me essa informação. Assumi que fosse a garantia velada de que a minha noiva me chegaria intacta às mãos.
Aos lábios de Faolan subiu um protesto, que foi engolido quando Ana lhe franziu as sobrancelhas.
— Qual o perigo que nos pode ameaçar neste baluarte, meu senhor? — perguntou a Alpin, ao mesmo tempo que lançava um olhar casual à porta interior.
Seguiu-se uma breve pausa, em que Faolan detectou na sala uma certa tensão que não foi capaz de identificar, algo que não era explícito, mas muito perigoso.
— Os guardas são para tua segurança, minha querida — disse Alpin.
— E minha. Não gostamos de surpresas por estas bandas, mas pelo menos sabemos estar preparados. Bom, onde é que nós íamos?
Ana pigarreou.
— Como sabes, o porta-voz oficial de Bridei afogou-se em Break-ing Ford. Trazia mensagens escritas com ele. Todas elas se perderam...
— Qual era o nome desse homem? — A pergunta fora astuta.
— Kinet — disse Faolan, antes que Ana conseguisse responder.
— Kinet, da casa de Fortrenn. Caiu vítima da flecha de um Azul.
— Eu digo-te, quando quiser que fales — disse Alpin, bruscamente.
— A senhora não precisa da tua ajuda para responder a perguntas simples. Esse emissário era parente de Bridei? Um guerreiro?
— Este encontro tem como objetivo discutir os termos para um acordo — retorquiu Ana calmamente. — Não é uma inquisição. Kinet era um bom homem, ao mesmo tempo guerreiro e cortesão, amigo do rei e meu. E está morto. Passarei a expor os termos de Bridei o melhor que conseguir, meu senhor. Peço que me deixes fazê-lo sem interrupções. Será necessário que Faolan me ajude com alguns pormenores. Viajamos algum bastante tempo na companhia do porta-voz do rei e falamos de certos assuntos com ele. Além disso, sou amiga pessoal da Rainha Tuala e...
— Falamos? — Os olhos de Alpin endureceram de repente, os lábios carnudos formando uma linha perigosa.
— O trabalho de um bardo é entreter a sua senhora — replicou Ana. — Animá-la e diverti-la. Éramos um grupo de treze, ao todo. Não era grande. Tornou-se inevitável que Faolan ficasse ao corrente de certas informações.
— Estou a ver.
— Posso continuar com os termos?
— Com certeza. — Alpin recostou-se na cadeira e cruzou os braços. Dregard, o conselheiro, apoiou os cotovelos na mesa.
— Faolan, podes sentar-te — indicou Ana e, por breves instantes, o calor dos olhos da jovem repousou nele. Sentou-se, sem dizer palavra.
Tendo em conta os aspectos da situação de que não tinha conhecimento, Ana fez um bom trabalho. Explicou que Bridei, inimigo de longa data dos Celtas de Dalriada, estava ansioso por garantir o apoio de Alpin. Que desejava assegurar que a lealdade de Briar Wood se encontrava com ele e não com os invasores de ocidente. O rei tinha noção, disse Ana, de que a localização do território de Alpin, tão próxima da zona até onde os Celtas se tinham aventurado em terras Priteni, deveria fazer do chefe tribal um alvo a cortejar por Gabhran. No entanto, como os Caitt e o povo de Fortriu eram ambos de sangue Priteni, descendentes da mesma linhagem e partilhando uma língua e uma fé únicas, Bridei julgou que seria provável que Alpin se mostrasse receptivo a uma aproximação com o Monte Branco.
— Quantos dos outros chefes Caitt já conseguiu ele convencer? — perguntou Alpin. O olhar tornara-se mais arguto. Faolan voltou a sentir que havia uma boa mente estratégica por detrás do exterior rude. Não menciones Umbrig, tentou transmitir a Ana em pensamento. Não havia forma segura de avisá-la. Alpin seguia cada movimento por parte de ambos.
— Não posso responder-te a isso — retorquiu Ana.
— Não podes ou não queres? — O tom de Alpin raiava agora o descortês. Faolan viu Ana vacilar e interveio rapidamente.
— Lady Ana não deverá poder conceder-te esse tipo de informação — disse. — Há muito tempo que os vossos companheiros de tribo não visitam o Monte Branco. Nem imaginas...
— Cala-te! — disse Alpin, com um tom seco. — Estás aqui contra minha vontade e quando quiser que abras a boca eu digo. A questão foi bastante simples, mesmo para uma mulher. E então?
— Não te posso dizer, porque não sei. — A voz de Ana estava menos firme e tinha as feições marcadas pela aversão. — O mensageiro de Bridei não teceu quaisquer comentários sobre esse assunto. E, afinal de contas, só havia uma noiva para enviar. — Conseguiu esboçar um sorriso, respondendo com finura e encanto à grosseria de Alpin. Após um momento de silêncio espantado, o líder de Briar Wood soltou uma gargalhada.
Faolan ficou rígido, num esforço para não deixar que a fúria se sobrepusesse à necessidade de continuar a representar o seu papel. Sentia-se prestes a revelar a verdade a Alpin, pois era incapaz de assistir àquele homem a insultar e a menosprezar a futura esposa. Não veria o que Ana era, uma mulher mais bela e preciosa do que qualquer outra que alguma vez tivesse percorrido os vales de Fortriu, tão justa, honesta e bondosa que merecia o mais elevado dos reis como parceiro e não um miserável que nem sequer era capaz de mostrar educação? As mãos de Faolan cerraram-se em punhos. Respirou fundo e descontraiu-se, ao mesmo tempo que desejava ter à sua disposição alguns dos truques do druida de Bridei.
— Tenho uma pergunta. — Fora Dregard quem falara. Trajava uma batina de lã cinzenta, ao contrário da túnica, calças e botas de um guerreiro. A expressão era a de alguém cuja ocupação o mantinha no interior, pois tinha uma tez pálida e um leve franzir de cenho constante, o que lhe vincara uma ruga dupla na testa alta.
— Faia, Dregard — incitou Alpin. — Imagino que Ana nos queira dizer tudo o que sabe, por menos que seja.
— Bridei procura reforços para as suas tropas? — inquiriu o homem de túnica cinzenta. — É de conhecimento geral que os exércitos dos Caitt são formidáveis, em especial o de Lorde Alpin. Abordagens como esta não são uma novidade. Trata-se então de um pedido de homens e de armas para apoiar um ataque por parte de Fortriu? Uma investida contra Dalriada, por exemplo? Quando teria lugar tal expedição?
Ana respirou fundo.
— São pelo menos quatro perguntas — disse. — Pelo que sei, e o meu senhor tem razão, quando diz que é pouco, julgo que Bridei apenas procura a garantia de que os homens de Briar Wood não vão pegar em armas contra ele. Não espera qualquer contribuição dos Caitt para as suas forças. Não sei dizer qual a empresa planeada, nem quando terá lugar. Tentei, com efeito, fazer algumas perguntas sobre o assunto quando vim a saber que teria de viajar até Briar Wood. Não obtive quaisquer respostas satisfatórias.
Estava muito perto da verdade. Faolan não imaginara que ela viesse a desempenhar um papel tão perigoso.
— És dona de uma grande curiosidade — comentou Alpin, com o esboço de um sorriso. — Mas talvez não seja algo surpreendente numa jovem.
Ana não respondeu.
— Se estivesse no teu lugar — prosseguiu Alpin —, teria perguntado a Bridei por que motivo não esperou por uma resposta à sua mensagem, antes de te enviar. Para quê tanta pressa? É estranho. Estranho e pouco simpático para contigo. Não dizem que esse jovem rei é um modelo de justiça e bondade, como se fosse a personificação do Guardião das Chamas, ou coisa do gênero? — Cofiou a barba. — Ou será uma história criada pelos seus amiguinhos, como o druida Broichan e os outros, para nos recordar de quem detém o verdadeiro poder sobre os territórios Priteni? Pelo que me constou, o druida manobrou bem a eleição.
Ana olhou para Faolan, uma súplica nos olhos.
— Posso falar? — Faolan dirigiu a questão à jovem.
— Por favor, Faolan — respondeu Ana. Depois, virando-se para os outros: — Faolan passou algum tempo na corte de Bridei. Teve oportunidade de observar o rei na companhia do povo.
— O que dizem de Bridei é verdade — atestou Faolan, calmamente. — Por alguma razão lhe chamam a Águia. É possuidor de uma força prudente e de uma devoção profunda aos velhos deuses dos Priteni. Mais recentemente, os homens começaram a dar-lhe outro nome, mais adequado aos planos que tem para o futuro do povo.
— E que nome é esse? — Alpin não conseguia deixar de se sentir interessado.
— Chamam-lhe a Espada de Fortriu, meu senhor. Aquele que vai limpar os territórios ocidentais do invasor Celta.
— Compreendo. — Alpin observou-o com atenção. — Dizes isso com o tom de um homem a quem não lhe interessa o que vai acontecer. E, no entanto, és celta. Se não estou enganado, um celta de origens nobres. Por que não estás a dedilhar as tuas cordas e a soprar as tuas flautas na corte do rei de Dalriada, em Dunadd, ou do outro lado das águas, em Ulaid? Imagino que os senhores dos Uí Néill valorizassem bastante os teus serviços.
— Estou às ordens de Lady Ana, meu senhor, até que ela se encontre instalada em Briar Wood. Nessa altura, à falta de outro mensageiro, levarei ao Monte Branco as informações sobre o que aqui se passou. O meu passado não é relevante. Deixei o ocidente há muito e não faço tenção de regressar. — Alpin estivera próximo da verdade, dolorosamente próximo. Aquele tipo de questões teria de ser eliminado com brevidade.
— Quanto à outra pergunta — acrescentou Ana —, fiquei desconcertada com a necessidade de viajar para cá antes de o rei ter em sua posse a tua resposta. Acredito que devas imaginar o que sente uma jovem em tal situação. — Estava a corar. Por um breve instante, Faolan imaginou que ela tivesse percebido a sua própria confusão e falado para desviar a atenção de Alpin. — Uma mulher prefere saber que é bem-vinda — continuou a jovem. — Prefere casar-se com a certeza da aprovação do futuro marido. Não fazer idéia daquilo que sentias acerca do assunto perturbou-me bastante durante a viagem. É claro que, quando se deu a enchente e perdemos tantas vidas... percebi a irrelevância dessas preocupações mesquinhas... sinto muito... — Ergueu a mão para limpar as lágrimas dos olhos. Num instante, Ludha, a pequena criada, estava junto de Ana com um lenço limpo e algumas palavras murmuradas. — Obrigada, Ludha. Peço desculpa, meu senhor. — Ana endireitou os ombros e ergueu a cabeça. — Como vês, ainda não me recuperei daquela experiência.
— Devias conceder mais tempo à senhora. — Faolan não conseguiu ficar calado. — Decerto que a conversa pode esperar...
— Não, Faolan — atalhou Ana. — Devemos, pelo menos, apresentar já as condições de Bridei. Devemos isso aos que pereceram para que completássemos esta missão.
— Missão? — repetiu Dregard. — Desde quando uma viagem nupcial é uma missão?
— Desde que o casamento está dependente de um tratado assinado e testemunhado — replicou Ana com firmeza. — É o que Bridei exige. As condições deverão ser registradas por um escriba e confirmadas por uma parte independente, como seja um druida. Uma vez que terás de mandar chamar um druida para a cerimônia, tal deverá ser fácil de concretizar. Lorde Alpin concorda que Briar Wood não pegará em armas contra Bridei, nem irá aliar-se aos Celtas. É o que terá de constar. Em troca, terá lugar o casamento entre Lorde Alpin e eu própria.
A voz perdera de súbito o tom confiante, mas Ana prosseguiu com severidade.
— Não pensei ter de ser eu a expor o meu caso, mas parece que assim tem de ser. Faço parte da linhagem real dos Priteni, através do ramo dos reis dos Folk, sujeitos ao domínio do Rei de Fortriu. O meu primo é rei das Ilhas Pequenas. Venho de uma família saudável e fértil. Tenho dezenove anos e vivi na corte de Fortriu desde que era uma criança de dez. Quanto aos motivos de Bridei para enviar o nosso grupo nesta altura, nunca tive conhecimento deles. Enquanto refém real de longa data, aprendi a obedecer às ordens do rei e a não fazer muitas perguntas, meu senhor. Talvez seja dona de uma curiosidade excessiva, mas nunca permitiria que tal colocasse em perigo a vida de outras pessoas, nem a minha.
Seguiu-se um momento de silêncio, ao que Alpin uniu as mãos num aplauso lento.
O rubor de Ana tornou-se mais intenso.
— Troças de mim, meu senhor? — A voz tremia-lhe.
Faolan sentiu a tensão em cada parte do corpo. Não sabia o que era mais forte, se a necessidade de abraçá-la e reconfortá-la, se o desejo de torcer o pescoço hirsuto daquele rufião. Deixou-se ficar imóvel, mantendo uma expressão calma. No seu trabalho, a capacidade de não atrair a atenção era uma ferramenta essencial. Não havia muito que pudesse fazer quanto ao torvelinho que lhe ia no coração, mas podia garantir que ali permanecia, invisível.
— De todo, minha querida — respondeu Alpin. — Deixa-me oferecer-te um pouco de cerveja. Pareces desolada. A minha admiração é genuína. Estás numa situação particularmente constrangedora e, lamento admiti-lo, ver-te a debater-te com ela proporciona um certo divertimento. Mas estás a sair-te bem, para uma mulher jovem. Claro que não espero que tenhas grande conhecimento dos jogos dos homens, especialmente no que toca ao teu Bridei. Imagino que a pouca educação que te deram se tenha limitado aos bordados e à conservação de fruta em mel.
Ana observou-o em silêncio por um momento. Faolan recordava-se que ela fora educada por Fola, em Banmerren, juntamente com um grupo de jovens excepcionais, onde se incluíam Tuala e Ferada, a filha de Talorgen. Fola era venerada pela sua erudição e pela severidade intelectual.
— Os bordados são um dos meus interesses particulares, meu senhor — disse Ana com frieza. — Em relação ao tratado, precisas de algum tempo para te decidires? Tens alguma questão? — Ergueu as sobrancelhas numa atitude nobre e, nesse momento, Faolan sentiu uma admiração especial, pois a jovem transformara a humilhação em triunfo. Cruzaram o olhar por um instante. Faolan permitiu-se um breve aceno, a sugestão de um sorriso.
— Posso falar, minha senhora? — voltou a perguntar à jovem.
— Com certeza, Faolan.
— Creio que existe um pormenor que tem de ser clarificado — disse, erguendo ao de leve os ombros, na pose de um homem pouco habituado a falar na presença de superiores. Esperava não estar a exagerar.
— Que pormenor? — interveio Alpin com brusquidão.
— Continua, Faolan — disse Ana, que entrara no jogo. — Podes ter ouvido alguma coisa importante no Monte Branco, algo que não me foi revelado. Sei que os homens discutem estes assuntos com mais profundidade quando as mulheres se encontram ausentes.
— Foi algo mencionado por Kinet — disse Faolan, num raciocínio rápido. — Algo sobre a outra propriedade do meu senhor Alpin, na costa ocidental, e sobre a necessidade de garantir que a lealdade de ambas as casas seja conseguida com este tratado.
— Na costa ocidental? — meditou Ana, que sabia muito bem a importância do fato. — Mas por que... ah, estou a ver. Providenciaria uma rota marítima até Dalriada... sim, tenho a certeza de que Bridei deseja que o acordo se estenda a todos os teus territórios, meu senhor. Não sabia que tinhas mais terras, para além de Briar Wood. A costa ocidental fica muito longe, não é?
— Fica longe quanto baste — replicou Alpin com brevidade. O tom da voz tornara-se frio. — Esse local, o Vale dos Sonhos, não é meu, é do meu irmão.
Faolan conseguiu ocultar a surpresa. No Monte Branco nunca se falara de um irmão. Se tal fosse conhecido, Bridei teria investigado o caso antes de estabelecer as suas condições. Continuava a pensar na questão certa a colocar quando Ana falou.
— Tens um irmão? Não o mencionaste quando te perguntei pela tua família. Ou talvez não me tenha apercebido. Encontra-se na costa ocidental, imagino. Alpin, o casamento terá de aguardar até que este irmão possa ser consultado. É óbvio que Bridei precisa do consentimento de ambos. Lamento dizê-lo, mas parece que vos vê como uma ameaça em potencial ou, esperemos, um aliado importante.
A jovem era arrojada. Faolan esperava que ela não tivesse ido longe demais, pois julgava não ser capaz de se controlar, caso Alpin reagisse de forma irada. Mas, quando surgiu, a resposta surpreendeu Faolan. O líder de Briar Wood soltou uma gargalhada amarga.
— Consultar o meu irmão? Não creio. Só lhe conseguirias arrancar disparates. Falo por ele, quanto a esses assuntos.
Seguiu-se um silêncio. Ana e Faolan olharam-no, à espera de mais. Pela primeira vez, Alpin parecia desconfortável. As faces largas estavam afogueadas e não olhava para ninguém. Passeava os dedos pela taça de cerveja, uma bela peça com pedras vermelhas incrustadas perto da borda e um padrão de cães em arame.
— Não compreendo — disse Ana, quando se tornou evidente que Alpin não estava disposto a oferecer mais explicações. — Dizes que falas por ele mas, se esse sítio, o Vale dos Sonhos, é dele, decerto controlará as forças aí existentes. A que te referias, meu senhor?
— Briar Wood era a terra do nosso pai — disse Alpin. A sua relutância em adiantar-se sobre o assunto era óbvia. Estava pouco à vontade, remexia-se na cadeira, os dedos num movimento constante. — A outra terra passou para o meu irmão diretamente através da nossa avó materna. Um acordo especial. Mas, infelizmente, o meu irmão não se encontra em condições de assumir a responsabilidade pelas terras, ou pelos homens. Ele está... muito mal.
— Lamento que assim seja — disse Ana. — Espero que melhore em breve. Talvez se possa enviar um mensageiro para ocidente, a fim de obtermos o seu consentimento para o acordo. Imagino que não possa viajar, é claro. Um caminho tão longo e difícil...
— Eu posso ir — ofereceu-se Faolan com um modo diligente. Dregard pigarreou, como se prestes a falar.
— Este não é um assunto que seja discutido abertamente em Briar Wood — disse Alpin, num tom sombrio. — Preferia ter aguardado e transmitido esta informação a Ana em privado. É um assunto de família e de natureza bastante delicada.
Ana e Faolan mantiveram o silêncio, à espera de mais.
— Na verdade — continuou Alpin —, o meu irmão não se encontra no Vale dos Sonhos. Está aqui. Sempre esteve, ao longo dos vários anos da sua... maleita. O que o aflige vai acompanhá-lo toda a vida e é incurável.
— O teu irmão encontra-se aqui? — exclamou Ana. — Nesse caso por que... está demasiado enfermo para ter companhia? Deve ser lamentável para ti! — A jovem já não representava. Falava com uma compaixão genuína. — De que se trata, da doença comicial?
Alpin esboçou um sorriso severo.
— Antes fosse uma maleita tão facilmente suportável, minha querida. Receio que Drustan tenha um problema que o torna uma ameaça, quer para ele, quer para os outros. Foi necessário mantê-lo... enclausurado. Ele... não sei como dizê-lo. Não é bom da cabeça, e nunca foi.
A atenção de Faolan foi desviada para o rosto de Ana, pois durante o último discurso algo mudara na expressão da jovem. Parecia-lhe estranhamente consternada com as palavras de Alpin.
— Perdoem-me — disse, de repente. — Sinto-me um pouco indisposta. Podemos voltar a falar mais tarde? Ludha, vem comigo. — Virou as costas e saiu do quarto, com a criada apressada atrás de si.
Ninguém falou durante alguns momentos. Depois, Alpin pegou no jarro de cerveja, voltou a encher o seu copo e o de Dregard e, após uma breve hesitação, serviu um terceiro e empurrou-o na direção de Faolan.
— Perturbei a donzela — disse o chefe tribal. — Este tipo de notícias nunca é bem recebida, muito menos por uma jovem noiva. Qual a rapariga que deseja saber que vai entrar numa família com membros insanos? Há formas de contar estas coisas às pessoas, e esta não foi das melhores.
— Lamento — disse Faolan em voz baixa, com sinceridade. Não que se preocupasse com a sensibilidade de Alpin, mas iria a extremos para evitar perturbar Ana. A reação da jovem surpreendera-o. Lidara com os insultos velados de Alpin com o discernimento de um conselheiro e as boas maneiras de uma dama. Mas aquela notícia deixara-a abalada.
— Ela vai acabar por aceitá-lo, meu senhor — disse Dregard.
— Espero bem — replicou Alpin, bebendo um gole de cerveja —, pois confesso sentir um grande desejo, um bardo poderia chamá-lo um desejo ardente, de consumar este matrimônio. Esta mulher poderá dar-me belos filhos e muito prazer em concebê-los. É fácil de ver que é mais viva do que sugerem os seus modos recatados. Esperara concluir o assunto rapidamente. Já mandei chamar um druida, logo no dia em que vocês chegaram — indicou, olhando para Faolan. — Deve chegar na próxima lua, talvez mais cedo, caso o tempo o permita. Não existem muitos nas terras do norte e costumam escolher locais um pouco inconvenientes para viver: cavernas a meio de falésias, ilhotas a que mal se consegue aceder, ou buracos nas profundezas das florestas. Há uma pequena comunidade no extremo norte do território de Umbrig. Foi para lá que enviei a minha mensagem. Esperemos conseguir alguém que saiba escrever. Não tenho um escriba em minha casa. A palavra de honra é penhor quanto baste, entre os Caitt.
— Pelo que sei, as condições do Rei Bridei foram bastante específicas, meu senhor — disse Faolan. — Um acordo escrito e com testemunhas, que deverá ser remetido para o Monte Branco.
— Quem assinaria em nome de Bridei? — Alpin Semicerrou os olhos.
— Julgo que vais descobrir que a minha senhora percebe Latim e sabe escrever. — A expressão no rosto de Alpin enquanto ouvia estas palavras deu um grande prazer a Faolan. — Recebeu uma instrução bastante extensa. Para mulher.
— Estou a ver. Uma erudita, não é? Mesmo assim, espero conseguir ensinar-lhe uns quantos truques novos.
— Sim, meu senhor — disse Faolan, por entre dentes cerrados.
— Vocês são muito próximos — comentou Alpin.
— Já há bastante tempo que me encontro ao seu serviço, meu senhor. Mas, afinal de contas, não passo de um servo.
— Mmm. Muito bem, podes ir. Não tenho vontade de continuar a discutir este assunto. Irei concordar com o acordo em nome de Drustan, que não tem capacidade para tais decisões. Para mim, a senhora é mais valiosa do que uma aliança mesquinha. Se Bridei quer que deixemos as suas forças em paz, assim o faremos. Já temos problemas territoriais que nos cheguem, sem termos de nos envolver também com o sul. Assim que o druida chegar, procederemos à conclusão do assunto e poderás regressar a casa, rapaz. Conserta aquela harpa e podes divertir-nos enquanto esperamos que ele chegue. Uma canção nova todas as noites vai manter-te em forma.
— Sim, meu senhor.
Alpin levantou-se. O homem agigantava-se sobre os restantes presentes na sala.
— Afasta-te da senhora — avisou e na voz ouvia-se um tom novo. — Nada de encontros privados. Não passo de um servo não me chega. Ela é minha e qualquer homem que lhe toque com um dedo que seja, ou que olhe para ela de uma forma que eu não goste, vai acabar pendurado numa corda por cima dos portões, com as partes privadas enfiadas na boca. Faço-me entender?
— Sim, meu senhor. — Faolan fervia de raiva.
— Podes ir.
Faolan conseguiu manter uma pose servil enquanto saía do quarto de Alpin. Toda uma lua, pensou, ao passar em frente da porta onde sabia que Ana estava instalada. Ia ser um teste difícil. Talvez a proibição de se encontrar a sós com ela fosse mesmo pelo melhor, pois o seu coração poderia levar a sua avante, levando-o a dizer palavras que lamentaria profundamente. Quem sabe, talvez lhe implorasse que regressasse a casa com ele. Podia fazer por convencê-la a não casar com um homem que nunca a faria feliz.
Faolan encontrou um lugar onde ficar sozinho, no terraço no cimo da muralha, e aí ficou de pé, a pensar, enquanto o sol ia avançado no céu e as sombras se iam alterando no padrão de verdes, castanhos e cinzentos que era Briar Wood. O tratado estava quase garantido, a missão quase completa. Por que seria, então, que apenas desejava voltar atrás, sentir-se cansado, com frio e fome, sentado a uma fogueira minúscula na escuridão da noite, apenas com Ana por companhia? O desejo era tão forte que lhe transmitia uma sensação de dor física. Não podes tê-la, disse para consigo. Não podes agora, nem nunca pudeste. Esquece-a. Faz o teu trabalho. Faz a única coisa que podes fazer.
Após algum tempo, regressou aos aposentos, procurou o material de que necessitava e lançou-se, de faca e madeira em riste, à tarefa de esculpir cravelhas.
Ana passou o dia no quarto, apenas com a companhia de Ludha. Não tinha vontade de ouvir as explicações de Alpin, muito embora ele tivesse batido por três vezes à porta da jovem, a perguntar como ela estava. Irmão dele. Drustan era irmão de Alpin. Como podia ser? Como era possível que aquele homem maravilhoso, de olhos brilhantes e modos gentis, fosse parente de um chefe tribal rude, cujos gostos a nível de divertimento incluíam os desportos sanguinários e o atormentar de mulheres? Mesmo que Drustan sofresse de uma doença mental, como seria Alpin capaz de o manter acorrentado como a um cão selvagem, afastado da luz? Além disso, Drustan não parecia doente. Não parecia insano. Embora com um modo de falar um pouco estranho, mostrara-se tão racional como ela. Enquanto andava pelo quarto, dividida entre a confusão e a indignação, apercebeu-se de que um encarceramento longo acabaria, eventualmente, por deixar os efeitos na mente de um homem. Não estaria Drustan magoado, zangado, ressentido, receoso? Vira-o com um brilho nos olhos quando estava no bosque, livre, com a possibilidade de sentir o sol no rosto e de se movimentar à vontade. Testemunhara a sombra que se abatera sobre ele como um manto negro quando voltara a entrar na clausura subterrânea. Talvez, afinal de contas, o que se passava com ele não fosse nada de anormal. Por que motivo não estaria Alpin a tentar ajudá-lo, em vez de fingir que o irmão não existia? Por que não estaria em busca de uma cura?
Deord podia ter-lhe dado respostas, deveria tê4o feito, tal como prometera quando recuperara a chave. Evitara-a até ao momento, sempre a resmungar que Drustan precisava dele, e que não tinha tempo. E, agora que Alpin regressara, Ana perdera a oportunidade de interrogar o guardião de Drustan.
— O que foi, minha senhora? — indagou Ludha pela décima vez, enquanto fitava a ama com um alarme crescente. — Não te sentes bem? Custa-me ver-te assim.
Ana fez menção de voltar a dizer que não era nada, mas hesitou. Não era justo envolver Ludha naquele assunto, mas não havia mais ninguém que a ajudasse. Faolan encontrava-se fora do seu alcance. Era óbvio que Alpin não permitiria qualquer encontro privado entre a sua senhora e o bardo da jovem.
— Ludha — disse —, imagino que tenhas ouvido o que Lorde Alpin nos contou sobre o prisioneiro, o seu irmão Drustan. — Pronunciar o nome era uma sensação estranha, ateava-lhe um calor no peito.
— Sim, minha senhora. — Ludha não a olhava, dedicando uma atenção fervorosa ao bordado. Uma grinalda delicada de verde-escuro e azul violeta decorava agora a bainha da veste minúscula que Ana entregara à criada para que fosse completada.
— Tinhas conhecimento deste prisioneiro? Sabias que o irmão de Alpin estava fechado em Briar Wood?
— Toda a gente sabe, minha senhora. Disseram-nos para não o comentar até que Lorde Alpin o pudesse explicar-te. Para que não ficasses perturbada, nem assustada. É seguro. Aquele homem, Deord, toma conta dele.
— Não é a minha segurança que me preocupa, Ludha. Fico chocada e incomodada por Alpin tratar desta forma o irmão. Fechá-lo num... — Ana deteve-se. Não revelaria o que vira, nem mesmo a Ludha. Havia uma conspiração de silêncio, da qual a criada fizera parte. Quem podia garantir que não iria a correr ter com Orna, ou com o próprio Alpin, relatar tudo o que Ana lhe dissesse? — É cruel manter um homem prisioneiro a vida toda. Imagino que esteja naquele sítio para onde Deord vai, atrás dos aposentos de Alpin.
— É o que dizem, minha senhora.
— Como é ele, esse Drustan? Alpin disse que ele era... incapaz. Que apenas dizia tolices. — E, uma vez que tal já se provara ser falso, talvez o resto da história também fosse uma mentira.
— Não sei, minha senhora. Nunca o deixam sair. Dizem que é maluco. Violento. Tem ataques, como se fosse possuído por uma espécie de delírio. Deord é o único com força suficiente para lidar com ele. E o que dizem.
Ana sentiu-se gelada.
— Mas estás em Briar Wood há, quantos, seis anos? Estás a dizer-me que durante esse tempo o irmão de Alpin nunca saiu da cela? Nem uma única vez?
— Não, minha senhora. Orna diz que é muito arriscado. Pessoalmente não o posso dizer. Não há por aqui muitas pessoas que o tenham conhecido antes.
— Antes do quê?
Ludha ficara em silêncio. Debruçou-se sobre o trabalho, os lábios franzidos.
— Antes do quê, Ludha? — Talvez, pensou Ana, exasperada, se continuasse a perguntar, eventualmente aquela gente acabasse por dizer-lhe o que precisava de saber. — Fala! — Quando Ludha ergueu a cabeça e revelou os olhos marejados de lágrimas, Ana, embora demasiado tarde, percebeu o quão brusco o seu tom se tornara. — Desculpa, Ludha. Não estou zangada contigo, apenas me irrita que tratem desta forma um homem que não tem culpa da sua condição. Não estou habituada a que as pessoas tenham tantos segredos. Por favor, diz-me o que sabes. Gostaria de ajudar Drustan, se puder. Na verdade, se devo aqui ficar como esposa de Alpin, acredito que seja meu dever fazê-lo.
— Ele fez algo muito mau quando estava em delírio — murmurou Ludha. — Por isso Alpin fechou-o. A maior parte das pessoas que aqui moravam nessa altura já cá não estão. Quase ninguém sabe o que realmente aconteceu e os habitantes não falam sobre o assunto. Mas foi terrível o suficiente para que o irmão de Lorde Alpin não possa sair, nunca mais. É tudo o que sei.
Ana meditou sobre o que ouviu.
— Então e antes? — ponderou. — Quando era criança, um jovem? Quem poderia saber sobre essa altura?
Ludha abanou a cabeça.
— Ninguém. Apenas Lorde Alpin e a irmã, que nunca vem cá. E...
— E quem?
— Falam de uma velhota, que vive sozinha, algures na floresta. Bela, é como se chama. Costumava ser a ama deles, quando eram crianças, Lorde Alpin, o irmão e a irmã. Mas ninguém sabe onde ela está, nem se continua viva.
— Pensei que estes bosques fossem perigosos. Cheios de presenças sobrenaturais, já para não falar dos vizinhos agressivos. Por que não vive essa aia na segurança das muralhas da fortaleza?
— Não sei, minha senhora. Os velhos podem ser muito teimosos. O meu avô, no fim dos seus dias, tornou-se muito difícil. Estava sempre a trazer galinhas para dentro de casa. Dava cabo da cabeça da minha mãe. Talvez esta senhora se tenha fartado de viver no meio das pessoas.
Ana tomou uma decisão.
— Ludha?
— Sim, minha senhora?
— Tenho de saber se posso confiar em ti. Preciso de ter a certeza que não vais falar com Orna nas minhas costas, nem com Lorde Alpin, nem com ninguém com quem eu te diga para não falares. Agora trabalhas para mim. És minha criada e amiga. O que dizes?
— Minha senhora... — Ludha calou-se, olhando para a janela estreita atrás da ama. Ouviu-se um bater de asas e, quando Ana se virou, o cruza-bico voou a pousar-lhe no ombro. Trazia no bico uma pequena flor azul.
— Oh — disse Ludha em voz baixa, ao mesmo tempo que fazia o sinal de proteção com os dedos. As faces rosadas tinham empalidecido. — Dizem... que ele...
— Que os pássaros são enviados por Drustan? — indagou Ana. Ludha aquiesceu, os olhos arregalados, enquanto o cruza-bico alisava as penas e se aninhava, confortável.
— Não é a primeira destas visitas que recebo no meu quarto. Estas criaturas andam em liberdade pela casa?
— Não, minha senhora. As pessoas falam deles. Dele e dos seus pássaros. Nunca tinha visto um deles. Há muitos gatos por aqui e são todos bons caçadores.
— Muito bem, Ludha, responde à minha outra pergunta. Tenho de saber se és capaz de manter a boca fechada. Se a resposta for sim, quero que me ajudes. Sei que és boa rapariga, prestável, e espero que acedas, pois não tenho mais ninguém.
Ludha pousou o bordado.
— Sim — disse. — O que tenho de fazer?
— Nada de perigoso. Primeiro, quero que digas a Orna que estou com dor de cabeça e que vou ficar no meu quarto o resto do dia. Vais buscar-me o jantar numa travessa. Acima de tudo, não quero ver Lorde Alpin.
— Sim, minha senhora.
— E depois, enquanto a casa estiver a cear, preciso que fiques de vigia.
— De vigia? Onde?
— À porta do quarto de Lorde Alpin. Não te preocupes, Ludha, não fiques tão chocada. Só vou fazer umas perguntas que já deviam ter sido respondidas há muito tempo.
Havia bons motivos para que Deord tivesse sido indigitado como guarda especial. Quando abriu a pequena porta interior e entrou no quarto de Alpin, de bandeja na mão, Ana colocou-se à sua frente vinda das sombras. A jovem deu consigo virada, com os dois braços presos atrás das costas, num aperto esmagador. A travessa caiu com estrépito, o conteúdo espalhado. Deord movera-se tão depressa que ela ficara sua prisioneira antes de conseguir respirar. Instantes depois, o homem libertou-a. Ana esfregou os pulsos com um esgar de dor. O pássaro voara na direção do recinto de Drustan no momento em que a porta se abrira.
— Isso foi uma tolice de tua parte. — O tom da voz de Deord era calmo. — Sou obrigado a reagir de imediato a qualquer ameaça. Não houve tempo para te identificar. Não devias aqui estar.
— No quarto do meu futuro marido? Também és obrigado a reagir a isso?
Deord olhou-a sem pestanejar.
— Tenho um dever enquanto guarda — disse. — Protetor. Por esta altura, Alpin já te deve ter concedido a explicação que procuravas. Tenho de ir. Os meus deveres são precisos e devem seguir um horário.
— É de ti que procuro respostas.
— Naquela noite Drustan ficou incomodado. Não esteve bem. Eu avisei-te. Não posso ausentar-me por muito tempo.
— Talvez seja o cativeiro que o perturba. Acredito que períodos tão longos na penumbra devam perturbar o mais equilibrado dos homens.
Deord não disse nada. Baixou-se para apanhar os objetos caídos, travessa, taças, Colheres.
— Por favor — disse a jovem. — Alpin ainda não me disse nada, apenas que Drustan é seu irmão e que ele padece de uma maleita que o impede de ter uma vida normal. Quero que me digas porquê. Por que motivo está trancado? É mesmo perigoso? O que aconteceu que levou a isto? — Ana pegou nos dois copos e pousou-os na travessa.
— Por favor, Deord. Quero ajudar Drustan. Não acredito que a doença dele seja incurável. Parece tão cortês, tão... tão bom.
— É um homem bem apessoado — comentou Deord, sem qualquer ênfase particular.
As faces de Ana tingiram-se de vermelho.
— Isso não tem nada a ver com o caso! — replicou com brusquidão.
— Agora, responde às minhas perguntas.
— As ordens que recebo são-me dadas por Alpin.
— Responde-me, caso contrário digo-lhe que te vi no exterior da muralha. — Tinha a voz a tremer. Esperava que ele não percebesse que não tinha qualquer intenção de fazer o que dizia, pois tal resultaria no fim dos breves momentos de liberdade do prisioneiro.
— Vem. — Deord pousou a bandeja, abriu a pequena porta, puxou Ana pelo braço e fechou a porta atrás deles, pelo que ficaram na arrecadação escura. — Tem de ser rápido. Estás a arriscar a nossa segurança e a tua por te meteres assim. Alpin sabe tudo o que há para saber. É com ele que te vais casar. As respostas de que precisas são as dele.
— Quero as tuas.
— Por quê? — indagou Deord, sem expressão na voz.
— Porque acredito que se me disseres alguma coisa, será a verdade. Porque acredito que és amigo de Drustan. Está mesmo doente? Insano?
Deord hesitou.
— A mente dele não é como a tua, nem como a minha — disse.
— Há pessoas que vêem isso como sendo loucura.
— E como é que tu o vês, Deord?
— Sou um guarda contratado. As minhas opiniões são irrelevantes. Era como estar a falar com Faolan, nos momentos mais difíceis.
— Achas que Drustan está desorientado? Julgas que tal é óbvio?
— Desorientado, ou mais orientado do que nós, pessoas comuns. Partilhamos este lugar há muito tempo. Estar fechado... isso muda a forma como encaramos o mundo e as pessoas que o habitam. Talvez ninguém seja são. Talvez apenas existam níveis diferentes de loucura. Não devias interferir. Esta é uma questão muito profunda, entre ele e Alpin. O estado presente talvez seja o melhor que se consegue. O melhor para ambos.
— O melhor? — Ana sentia-se indignada. — Fechar um homem num buraco escuro, vedar-lhe o sol e a liberdade, mantê-lo afastado das outras pessoas como se fosse um animal perigoso... é um melhor bastante medíocre.
— Sabes muito pouco sobre tais assuntos — comentou Deord —, se julgas que esta é uma forma de cativeiro cruel. Pergunta ao teu amigo bardo o que ele sabe sobre prisões.
— Perguntar a Faolan? O que queres dizer com isso? Conhecê-lo?
— Nunca o tinha visto antes de chegar a Briar Wood. Mesmo assim, temos um passado comum. Estou certo de que Faolan compreende que, dadas as circunstâncias, o que Alpin criou para o irmão é tão generoso quanto possível. Fala com o teu bardo sobre uma prisão chamada Breakstone Hollow, em Ulaid. Um lugar que ambos conhecemos profundamente, do lado de dentro.
— Não posso falar com Faolan — disse Ana secamente. — Alpin não permite que nos encontremos em privado. — Sentia-se desapontada por aquilo ser tudo o que Deord lhe podia oferecer. Parecera-lhe, na manhã na floresta em que vira luz a dançar na pele nua e o desporto que ambos partilharam, que havia um laço entre guardião e cativo que ultrapassava a mera familiaridade. Pensara que ele e Drustan fossem amigos. Quanto ao encarceramento, não achou surpreendente que no passado de Faolan existisse tal história.
— Não posso ajudar-te — declarou Deord, mais uma vez sem expressão. — É melhor que nos deixes em paz. A tua chegada agitou Drustan. Sonha acordado, coisas que não pode dar-se ao luxo de imaginar. Isso faz com que tudo seja ainda mais difícil...
A porta escancarou-se. Alpin surgiu à entrada, as mãos nas ancas, o rosto distorcido pela fúria. Quando Ana recuou, viu Ludha no quarto, encolhida contra a parede, a marca vermelha de um golpe na face. O líder de Briar Wood deu um passo para o interior do corredor estreito, estendendo a mão como que para agarrar Ana pelo ombro. Num abrir e fechar de olhos, Deord encontrou-se entre os dois, a figura robusta de pé, com uma mão aberta contra cada parede, a criar uma barreira entre Alpin e a futura esposa. O coração de Ana martelava-lhe no peito. Sentiu a pele cobrir-se de suor. Deord movera-se em silêncio absoluto.
— O que se passa aqui? — bradou Alpin. — O que fazes aqui com ele? Quem te deu a chave?
Ana engoliu em seco e falou por trás da linha protetora do braço musculoso de Deord.
— Quis fazer uma pergunta ao teu guarda especial — disse.
— Deord não tem culpa. Envidou todos os esforços para não falar comigo, meu senhor. Disse que terias de ser tu a responder-me. Talvez agora o faças. Estaríamos muito mais confortáveis à mesa. E podemos deixar que Deord volte aos seus afazeres. O teu irmão deve estar com fome. — Pelos deuses, tremia como varas verdes. Alpin abria e fechava os punhos como se prestes a atacar Deord, ou Ana, ou ambos ao mesmo tempo. A jovem não sabia o que fazer, para além de agir como se se tratasse de uma situação normal. — Obrigada, Deord. Agora fico bem. Podes ir.
Deord baixou lentamente os braços, os olhos calmos presos nas brasas de fúria que eram os de Alpin. O líder de Briar Wood recuou um passo.
— Vem, meu senhor, ainda não me sinto bem e prefiro sentar-me
— conseguiu Ana dizer, enquanto se dirigia à mesa. — Ludha, vai pôr uma toalha fria no rosto. Pede a Orna que te ajude. Fico bem até que regresses. — Ludha saiu rapidamente. Deord, de bandeja na mão, saiu em silêncio do quarto, o roçagar das vestes compridas nas lajes. Alpin continuou no centro do quarto, as pernas afastadas, um olhar furioso no rosto.
— Agrediste a minha criada? — perguntou Ana, procurando assumir um ar de superioridade. Os dentes batiam-lhe. Cerrou o maxilar, ergueu as sobrancelhas e procurou a expressão majestosa que tantas vezes lhe trouxera confiança.
— O que estavas a fazer ali dentro com ele? — exigiu Alpin, ignorando a questão. Não fez menção de se sentar à mesa com a jovem.
— A minha mulher não está sozinha com nenhum homem, a não ser comigo, qualquer homem, seja ele bardo, cortesão ou servo, percebeste? Se aquele indivíduo não fosse tão valioso, tê-lo-ia vergastado por quebrar essa regra...
— Alpin, senta-te. — Ana reprimiu a fúria e conseguiu esboçar um sorriso. — Por favor. Fiquei incomodada, quando falaste do teu irmão e da sua doença. Ter-te-ia pedido que o explicasses mas... não me senti à vontade. Por isso, perguntei a Deord, pois não pude deixar de reparar na sua rotina como guarda especial. Sinto muito se transgredi alguma regra de que não tinha conhecimento. Pouco deves confiar em mim, se julgas necessário impor tamanha restrição à minha liberdade. Não estou habituada a ser tratada como se fosse falsa.
Alpin sentou-se à frente da jovem, as mãos grandes sobre a mesa, o sobrolho carregado.
— Gostaria que me explicasses tudo — continuou Ana. — Mas primeiro, tenho de te dizer que, agora que Ludha trabalha como minha criada pessoal, ela responde-me a mim, não a ti. Isso significa que, caso seja necessária alguma repreensão, alguma... disciplina... serei eu a ministrá-la. Sei como lidar com os servos, Alpin. Cresci numa casa real e passei muitos anos na corte de Drust, o Touro, em Caer Pridne, e mais tarde com Bridei, no Monte Branco. — Onde, escusou-se a acrescentar, os servos eram tratados com cortesia e justiça em todas as ocasiões. Não se lembrava de um único caso de violência física.
— Não é em ti que não confio, minha querida — resmungou Alpin —, é nos homens. Não vês os teus próprios encantos, mas eles vêem, todos eles. Sempre que passas, aquele teu Faolan ficar com um olhar inflamado. E, afinal de contas, é um celta. Deles pode esperar-se tudo. Quanto a Deord, imagino que sinta uma certa dose de frustração, tal como seria de esperar com qualquer homem que é obrigado a passar a maior parte do tempo longe da companhia feminina. Não quero que nenhum deles fique sozinho contigo. Nem agora, nem nunca.
Ana refreou-se de frisar que o casamento ainda não fora consumado. Havia perguntas a fazer e, se queria respostas, deveria agir com cuidado e mantê-lo calmo.
Ludha regressou com um pedaço de tecido apertado contra a face. Ana ofereceu-lhe um sorriso tranqüilizador. A rapariga era corajosa. Alpin era um homem imponente e a sua fúria assustadora.
— Comentaste a maleita do teu irmão — disse Ana. — Devo dizer-te que, durante a tua ausência, observei Deord com as travessas e fui informada pelas mulheres que ele é um guarda especial. Tornou-se evidente que aquela pequena porta deveria conduzir a um local onde se guardam prisioneiros. Talvez apenas um prisioneiro, pois as bandejas tinham alimentos para dois. Já antes tentara questionar Deord, mas ele nunca falou comigo. Orna disse-me que devia aguardar e obter as respostas da tua pessoa.
— Orna deu-te um bom conselho. É pena que não o tenhas acatado. Podias ter-nos poupado contrariedades a todos. — Alpin dirigiu o olhar à criada silenciosa, regressando depois a Ana. — Por que entraste na área de Deord? Por que estavas no meu quarto? Foi mentira, não foi, o teres passado o dia indisposta. A mim pareces-me muito bem. O que estás a tentar fazer? — Voltava a irritar-se. Era visível no maxilar tenso, nos punhos cerrados, no tom de voz que ameaçava transformar-se em grito.
Ana levou a mão à de Alpin, o que teve o condão de o acalmar de imediato.
— É verdade que te enganei, meu senhor — comentou, tornando a voz hesitante. — Pensei que gostasses desse tipo de jogos, os que as mulheres e os homens jogam entre eles. Fiquei muito perturbada, esta manhã. Uma rapariga não gosta desse tipo de informação sobre a futura família. Mas tenho de confessar que deixei Ludha de guarda à porta e depois abordei Deord, tencionando perguntar-lhe se era deveras o teu irmão que se encontrava encarcerado aqui em Briar Wood, somente por ter tido o infortúnio de padecer de uma maleita para a qual ainda ninguém procurou a cura. Lamento se te ofendi, Alpin. — Apertou a mão dele, meneou a cabeça e sorriu, esperava que de uma forma apaziguadora. Parecia-lhe óbvio que ele perceberia de imediato a insinceridade e rebentaria em nova fúria mas, em vez disso, Alpin pousou a outra mão na de Ana e falou calmamente.
— Pede à tua criada que vá buscar hidromel e alguma comida. Não comes desde manhã.
— É claro. Ludha, pedes a um dos homens que nos traga algo? Obrigada.
Aguardaram. Era óbvio a Ana que ele não iria falar até que não fossem interrompidos. Alpin limitou-se a segurar-lhe a mão, algo que Ana considerou ainda mais difícil de suportar do que a fúria, pois o toque daquele homem não lhe era de todo agradável, mesmo quando oferecido gentilmente. Saber que desta vez fora ela quem o proporcionara dava-lhe uma sensação desagradável, como se, de algum modo, se tivesse conspurcado.
Um servo trouxe comida e bebida. Pouco depois, Deord voltou a atravessar o quarto com a bandeja da ceia, agora cheia, ao que desapareceu pela pequena porta sem olhar para o casal. Ludha voltou ao seu lugar.
— Não me surpreende que isto te perturbe — retomou Alpin. — Vais pensar nos teus filhos, num possível mal de família. Receias que a tua linhagem pura seja maculada por algo feroz e imprevisível. É possível. Não posso negá-lo. Como sabes, já fui casado. Devia terum filho. Não viveu o suficiente para nascer. Nunca vim a saber o que poderia ter sido, um futuro líder ou um demente. — Baixou a cabeça.
— Sinto muito — disse Ana. — Sei que perdeste um filho, bem como a tua primeira esposa. É muito triste. E, vais perdoar-me se for um assunto incômodo, julgo que tens um filho natural.
Alpin aquiesceu.
— Foi enviado para outro lar. Não pode herdar, claro está. Não há necessidade de te preocupares com ele. Tem o que precisa. Não há sinais de loucura, se é a isso que te referes.
— Tenho de admitir que não é a ameaça de uma herança maculada que me preocupa — disse Ana. — É... é pensar no teu irmão, ali fechado, há tantos anos, sem a menor esperança de liberdade. O que se passa com ele, exatamente? Não há nada que possa ser feito?
— Não há ajuda que lhe valha.
O tom de Alpin encerrava uma finalidade tremenda, mas Ana prosseguiu.
— Já procuraste o conselho de curandeiros experientes? O druida do rei, Broichan, é conhecido pela sua capacidade...
As palavras de Ana foram interrompidas quando Alpin bateu com o punho na mesa, fazendo estremecer copos e facas.
— Não me venhas com conversas de curas e de conselhos! Drustan é uma ameaça a todos os que vivam! Nunca poderá ser libertado!
Ana respirou fundo e esperou que o coração deixasse de lhe martelar no peito.
— Compreendo — disse, embora Alpin ainda não lhe tivesse explicado nada.
— A pior altura é na lua cheia — resmungou Alpin. — Perde a cabeça, fica totalmente imprevisível. Não há como chegar-lhe à razão. E é forte. Na lua cheia, tem de ser encerrado, para que não possa ver o céu. Há alturas em que o ataque não é tão forte, mas é sempre difícil. E chega sem aviso. Deixá-lo sair seria irresponsável. Ninguém sabe o que pode fazer. — Bebeu um gole longo do hidromel. — Não queria dizer-te tudo isto. Não queria entrar em pormenores. Imaginei que, quanto menos soubesses, mais feliz serias.
Ana não o contradisse. Sentia a mágoa no coração. Pensou, finalmente, ver-lhe a verdade nos olhos e descobriu que, afinal de contas, não a queria.
— Mas... — arriscou — podias, ao menos, deixar-lhe a prisão mais tolerável. Durante o dia, decerto poderia ficar onde visse o céu, a floresta... onde o sol chegasse a ele, sem barras entre eles. Ser encerrado naquele lugar escuro por uma maleita que o aflige sem que tenha culpa... é cruel, Alpin. É bárbaro. Ele é teu irmão. — Acabou por calar-se. Os olhos de Alpin estavam fitos nela, duros, e a expressão no rosto aterrorizava-a.
— Mas não sabes nada sobre os seus aposentos. — A calma na voz era ameaçadora. — Tu própria me disseste que ninguém te dera respostas. Por que falas de um sítio onde o cativo não pode ver a floresta, um lugar onde o céu apenas é visível através de barras? Tudo o que viste foi uma porta e a passagem para a arrecadação. Ou será que me mentiste?
— Eu... quer dizer... — As palavras expeditas de que precisava tinham-na abandonado.
— Responde-me! — bradou Alpin, fazendo menção de se levantar. Ergueu o punho.
As palavras chegaram-lhes: as palavras erradas. Se me bateres, Faolan vai matar-te.
— Sou obrigada a dizer-te — esforçou-se a dizer, no tom mais senhoril que foi capaz de invocar — que se me levantares a mão, destróis qualquer hipótese de me veres a concordar com o casamento. Não faço tenção de ser o bode expiatório da tua raiva para com as injustiças do mundo. Senta-te, por favor.
— Diz-me a verdade! — gritou Alpin, mas já baixara a mão. — Quem te deixou entrar? Viste-o, não foi? Estiveste com ele!
Ana sentiu um inexplicável rubor a subir-lhe às faces, talvez o pior que poderia ter acontecido naquele momento. Que Todas-As-Flores a ajudasse, estava prestes a destruir o tratado de Bridei e a colocar-se e a Faolan numa posição ainda mais precária, já para não falar do pobre Drustan e do leal Deord.
— Não estive — replicou —, mas tenho uma pequena confissão a fazer. Espero que me perdoes, meu querido. — Conseguiu não se engasgar com as palavras.
— O quê? — bradou Alpin.
— Durante a tua ausência, aventurei-me por aquela porta e desci ao lugar onde o teu irmão está aprisionado. Não estava ninguém à vista. O teu irmão e o seu guarda deviam estar recolhidos, nesse dia. Saí rapidamente de lá, não querendo ir onde não devia.
— Estás a mentir — disse Alpin sem expressão.
— Não, meu senhor.
— Como conseguiste entrar? Deord tem uma chave e eu a outra. Não me digas que ele deixou a porta destrancada.
— N-não, meu senhor. Foi muito estranho. Um pássaro levou-me a chave. Entrou pela minha janela e deixou-a junto à cama. Não espero que acredites, mas é a mais pura verdade.
Alpin empunhou a faca da carne e espetou-a com violência na mesa de carvalho.
— Aquela maldita aberração! — resmungou — Como se atreve a meter-se!
— Deixei a chave junto ao portão de ferro — disse Ana —, onde sabia que Deord a encontraria. Espero não ter feito mal.
Alpin encarou-a.
— Ainda bem que foi Deord que a encontrou — retorquiu — e não o meu irmão. É óbvio que não fazes idéia do perigo envolvido.
— Sinto muito, meu senhor. Devo culpar a curiosidade feminina. Não volto a fazê-lo.
— O que é isso de «meu senhor»? — perguntou Alpin de repente. — Acho que preferia o outro tratamento.
Tornava-se cada vez mais difícil forçar um sorriso.
— Preciso de tempo para me acostumar, meu querido. Nunca me dirigi assim a um homem. Tudo isto é novidade para mim.
— Mmm — resmungou Alpin. — Tens de refrear a tua curiosidade, aqui em Briar Wood. Isto não é um jogo, é uma tragédia, e os perigos são bem reais. Deixa-me ser honesto contigo. Se Drustan não fosse meu parente, tê-lo-ia enforcado em frente aos portões, pelo que ele fez.
— O q-que fez ele? — Ana sentiu um arrepio na espinha. Tinha a certeza de que não queria saber o que ia ser dito.
— Ele matou-os — disse Alpin, com um tom de voz que agora parecia calma, dormente, muito além da raiva ou da mágoa. — A minha mulher, Erisa. O meu filho por nascer. No meio do delírio, levou-os à morte. Perseguiu Erisa pela floresta. Ela caiu de um local onde um penhasco se agiganta sobre uma catarata. Partiu o pescoço. Foram precisos três dias para recuperarmos o corpo.
Ana sentiu um calafrio.
— Mas... porquê? — murmurou.
— Com um louco, não há motivos. Ana debateu-se, em busca de palavras.
— Houve testemunhas? Tens a certeza de que ele...?
— Apenas uma. Estava lá uma velha, a nossa ama. Bela já não está entre nós. Mas não houve qualquer dúvida. Ele próprio admitiu o que fizera.
Ana ficou em silêncio.
— Tranquei-o no dia em que trouxeram o corpo da minha mulher. O nosso filho teria nascido daí a uma lua. Tive vontade de enfiar a minha adaga no coração de Drustan e acabar com ele. Mas um homem não mata o irmão. Em vez disso, construí aquela prisão e contratei Deord como guardião. Os laços de sangue são fortes. Será o meu fardo para o resto da vida.
Ana estava horrorizada. Queria protestar, dizer que nada daquilo era verdade, não podia ser, Drustan seria incapaz de um ato de tamanha violência. Mas recordou as palavras de Deord: Dadas as circunstâncias, o que Alpin criou para o irmão é tão generoso quanto possível. As referências veladas ao perigo por parte de Deord indicavam que o caso era verídico. E, algures, havia uma testemunha. Alpin tinha toda a razão, ela interferira no que não devia e apenas viera agitar as águas da perda e da angústia.
— Não sei o que dizer — murmurou Ana. — Lamento mais do que alguma vez poderei dizer. — Junto à parede, Ludha estava paralisada. Pela expressão, era óbvio que nunca antes ouvira a narrativa completa.
— Imagino que Bridei não te teria enviado tão rapidamente caso soubesse da nossa triste história — disse Alpin. — Não duvido que tivesses inúmeras ofertas bem melhores, de chefes tribais sem segredos tão sombrios.
— Tive, é verdade — asseverou Ana. — Contudo, estou aqui em Briar Wood, e devo aproveitá-lo. Obrigada por me contares a verdade. Prefiro a honestidade, por mais desagradáveis que possam ser os fatos. Não irei interferir neste assunto, meu senho... meu querido. Em troca, espero que não me mantenhas outros segredos. Não, quando for tua esposa. — Falou por entre dentes cerrados. O fato de Alpin ter sido honesto para com ela não ajudou a mitigar a repulsa física. Agredira Ludha e teria agredido a própria Ana. A perspectiva de vir a partilhar a cama com aquele homem causava-lhe arrepios.
— Vamos beber a isso — declarou Alpin, que serviu mais hidromel. — Ao casamento. Ao futuro. Se os deuses nos sorrirem, na próxima Primavera teremos um filho.
Ana sorriu e tentou ignorar a visão que não a abandonava: Drustan, na floresta, o corpo elegante e forte, o cabelo exuberante que parecia fogo, os olhos brilhantes com o prazer de viver. Os pássaros, aninhados junto a ele, tão confiantes. A voz doce. Aquele homem era um assassino insano. Ana daria tudo para que não fosse verdade. Mas o desejo não chegava para transformar os fatos numa mentira. Alpin dissera que o irmão confessara. Com efeito, o próprio Drustan fizera-o novamente quando Ana lhe perguntara por que motivo estava preso, embora na altura a jovem não o tivesse percebido. «Não estar seria perigoso.» Por isso, deveria ser verdade. Mesmo assim, o seu coração gritava-lhe que não podia ser. Ferada sempre dissera que o coração era um guia falível e que as pessoas assisadas seguiam os ditames do intelecto. Desejava que Ferada ali estivesse naquele momento.
— Ao casamento — disse Ana com um tom severo, e ergueu o copo.
Na véspera do festival do Renascimento, Drust, o Javali, monarca do reino sul de Circinn, chegou ao Monte Branco acompanhado dos conselheiros e de uma modesta escolta de guerreiros, a fim de participar na assembléia de Bridei. No segundo dia, já todos da casa de Fortriu sabiam que as negociações tinham fracassado. Drust não fazia tenção de conceder apoio contra Dalriada, nem sob a forma de guerreiros, nem de uma forma menos prática, mais simbólica. Não importava que ao longo dos últimos dois anos tivesse vindo a trocar mensagens com Bridei, aproximando-se lentamente de interesses comuns. Alguém lhe fizera a cabeça, alguém influente, e agora o rei de Circinn encontrava-se irredutível.
A questão territorial com os Celtas era um problema local, disse aos chefes tribais de Fortriu ali reunidos. Teriam de o resolver sozinhos. As suas forças já tinham o suficiente com que se ocupar no seu próprio território, sem que fossem chamados para marchar até ao ocidente. Além do mais, o projeto estava condenado à partida. Os Celtas encontravam-se demasiado enraizados para serem expulsos. Era já a terceira geração que nascia nas suas colônias. Bargoit, o conselheiro de Drust, deitou sal na ferida, adiantando a opinião de que os habitantes das regiões ocidentais que tinham deixado de resistir e permitido que os invasores se instalassem, se casassem com mulheres Priteni e gerassem filhos mestiços, tinham revelado bom senso. Chegara a altura de aceitar que os Celtas tinham vindo para ficar, e a fé cristã com eles.
Era ultrajante e apenas com dificuldade Bridei foi capaz de manter a compostura que a sua posição lhe exigia. Outros houve que exibiram menos rodeios. Broichan quase lançara uma maldição. Talorgen ergueu a voz e o punho. O conselho chegara ao fim quase antes de ter começado.
Ainda assim, Drust, o Javali, ficaria mais algum tempo na corte de Bridei. O gesto de ter empreendido a longa viagem desde Circinn deveria ser reconhecido, mesmo tendo a decisão tomada sido desfavorável. A comitiva teria, mesmo assim, de ser acomodada no Monte Branco, e havia outros assuntos a discutir, questões comerciais e fronteiriças. Mas a verdade era que, com o objetivo principal perdido tão rápida e decididamente, os conselheiros de Bridei não tinham grande vontade de prosseguir com os pontos de trabalho da assembléia.
Durante o dia, os representantes dos dois reinos encontravam-se à mesa de reuniões e cumpriam os ditames da diplomacia. Foram organizadas outras atividades: caça, equitação, desporto. Ao serão, havia banquetes e música. Ao mesmo tempo, o rei de Fortriu encontrava-se à porta fechada com o seu círculo interno de líderes, a fim de tomar uma decisão crucial. O avanço fora planeado para a altura da Reunião, o ritual das colheitas. A escala monumental do empreendimento implicava o movimento, em breve, das forças. Não seria uma deslocação em massa pelo vale, nem um avanço arrojado por barco. O exército Priteni seria composto por várias forças numerosas, cada uma com os seus próprios líderes e, quando chegasse o momento do assalto, Dalriada ver-se-ia atacada por várias frentes ao mesmo tempo, sendo pressionada cada vez mais para sudoeste. Mesmo que o segredo não fosse essencial, tal empresa nunca poderia ser preparada rapidamente.
Avançar sem o apoio de Circinn seria um risco. O fracasso não custaria a Bridei apenas a vida de homens e talvez mais territórios para Dalriada. A longo prazo, seria um retrocesso na sua causa, no seu sonho: ver os Celtas expulsos de vez de Fortriu e todos os territórios Priteni mais uma vez unidos sob os deuses antigos. O fracasso macularia a imagem brilhante que o povo tinha do monarca, diminuindo assim as hipóteses de um sucesso futuro. A questão era se, caso atrasassem a investida um ou dois anos, seriam capazes de convencer Drust, o Javali, a vir em seu auxílio. Com os exércitos de Circinn ao lado dos de Fortriu, haveria uma maior probabilidade de vitória.
— Ele não vai recuar — disse Talorgen, sem emoção na voz. Estavam reunidos numa pequena sala sem janelas. Tinham sido dispostas candeias pela câmara, o que transformava o rosto dos homens em máscaras tremeluzentes, o de Bridei composto, o de Talorgen furioso, o de Aniel pensativo. As feições de Broichan estavam impassíveis, os olhos, como sempre, inescrutáveis. Tharan, o outro conselheiro, a par de Aniel, estava inquieto. Cruzava os braços, trocava a perna, pegava em coisas e volta a pousá-las. Carnach, o líder de guerra de Bridei, estava de pé, com as mãos nas ancas. Para ele, a decisão implicava a escolha entre uma estação em marcha e um confronto sangrento à chegada, ou o destroçar das forças que ele preparara de todo o coração para a causa de Fortriu. Se as coisas tivessem sido diferentes cinco anos antes, Carnach poderia agora ser rei, enquanto Bridei viveria uma existência pacífica como erudito. Os deuses, contudo, tinham resolvido sorrir a Bridei nessa época de mudança. Ninguém sabia o que os deuses tramavam naquele momento.
— É Bargoit quem está por trás disto. — O tom de Tharan era amargo. — Há muito que aquele miserável manipula as opiniões de Drust a seu bel-prazer. Além disso, se as nossas informações estiverem corretas, em Circinn há missionários cristãos por todo o lado. Os conselheiros religiosos de Drust terão dado ouvidos aos argumentos de Bargoit. Terão pressionado Drust a abster-se dos conflitos com os Celtas, seguidores da mesma fé disparatada. Esperava que o rei de Circinn tivesse conseguido forças para tomar as suas próprias decisões. Se pelo menos se tivesse libertado da rede envenenada que o aperta cada vez mais.
— Houve algo que mudou — disse Bridei. — Ainda nem há duas estações estava à beira do acordo. Recebi uma mensagem sua de apoio provisório. Apenas verbal, lamento dizê-lo. Seria difícil Drust honrá-lo, agora. Será que pesa sobre ele uma nova influência?
— Devíamos analisar esse caso a seu tempo — disse Aniel. — Entretanto, a questão é: será que nos arriscamos a prosseguir sem eles? Há muito a perder.
Na mente de Bridei estavam os olhos brilhantes e os rostos ansiosos e determinados dos soldados a quem se dirigira em Caer Pridne, todos eles prontos a lutar e a morrer pela nobre causa do seu rei. Alguns eram pouco mais do que rapazes, outros jovens pais, outros ainda veteranos de inúmeros conflitos. Se não ponderasse bem, estaria a pedir-lhes que pagassem o maior de todos os preços pelo seu próprio orgulho. Mas, se cancelasse o avanço, poderia estar a desperdiçar a melhor das oportunidades de garantir o futuro de Fortriu. Era sabido que, a seu tempo, Gabhran de Dalriada sonhava em conquistar todas as terras do norte. Ter Gabhran como rei significava um jugo estrangeiro. Com a fé cristã a disseminar-se rapidamente em Circinn, governada com pulso fraco por Drust, e com os Celtas a implantarem as suas cruzes a ocidente, Fortriu já se encontrava cercada. Se deixassem que Gabhran avançasse mais, não seria apenas o território que perderiam. O domínio celta viria a significar a morte dos deuses antigos.
— A estação está a chegar ao fim — disse. — Seja qual for, a decisão terá de ser tomada rapidamente.
— Se desistirmos agora — disse Carnach —, não só perdemos a força conseguida por uma temporada de preparação dedicada, como podemos também sacrificar o elemento surpresa que os nossos espiões e a nossa segurança apertada nos concederam. Se esperarmos um ano, o inimigo tem esse ano de oportunidades para conseguir informações sobre a data, a forma e a escala da nossa operação.
— É verdade — asseverou Talorgen. — Não nos podemos dar ao luxo de manter os homens nesta incerteza muito mais tempo. Estão à espera de uma iniciativa no prazo de uma lua que os leve aos variados destinos. Esperam um assalto total por altura da Reunião. Já estão impacientes. Se não avançarmos tal como planeado, não nos resta outra alternativa que não seja fazer destroçar os exércitos e enviar os homens de volta a casa. Se isto não der em nada, da próxima vez vai ser ainda mais difícil preparar as armas de guerra.
— Se os enviarmos para casa, viverão mais um ano para fazer uma colheita, para serem pais, para trabalharem nos seus ofícios. — O tom de Bridei era calmo. Fora bem treinado na arte de ocultar o que sentia. — Se avançarmos e o nosso grande empreendimento falhar, quantos regressarão inteiros à sua aldeia, à sua fazenda, ao salão do seu chefe tribal? É possível que as forças que reunimos, por mais impressionantes que sejam, não cheguem para cumprir os objetivos.
— Temos o apoio dos Caitt — lembrou Aniel. — Umbrig prometeu uma força considerável, e sabem bem qual a sua reputação.
— Começo a lamentar não ter pedido a Alpin, de Briar Wood, o seu empenho com homens armados, em vez de ter limitado os meus termos à garantia de tréguas — lastimou-se Bridei. — Agora é demasiado tarde, a menos que o grupo de Faolan regressasse depressa. Apenas podemos esperar que o acordo tenha sido assinado. Se adiássemos o ataque até ao próximo ano, ou até ao ano seguinte, teríamos tempo de garantir ajuda mais prática desse quadrante. Por essa altura, queiram os deuses, já Ana terá dado um filho a Alpin.
— Falei com Ged, esta manhã — disse Talorgen. — Com Morleo, também. Nenhum deles ficou satisfeito por faltar a esta reunião, mas frisei-lhes que alguém teria de manter Drust, o Javali, e seus lacaios ocupados enquanto falávamos em privado. Julgo que os levaram a pescar. Ged está de acordo em que avancemos como planeado. Acredita que o entusiasmo dos homens é a nossa maior valia e que um atraso tornaria difícil o alcançar da mesma disposição. Morleo foi mais cauteloso, mas acredita que somos em número suficiente.
— Qualquer que seja o entusiasmo, não desejo levá-los à morte certa — contrapôs Bridei. — Conhecemos os pontos estratégicos. Ponderamo-os bastante durante o longo período da nossa preparação. Agora precisamos de algo mais, algo que nos guie para além do nosso conhecimento de riscos e oportunidades. Talvez Broichan seja quem melhor nos possa aconselhar.
Olharam para o druida, uma figura alta e pálida nas suas vestes escuras. Permanecera invulgarmente calado ao longo do debate.
— Devia ser lançado um augúrio. — A voz de Broichan, sempre a mais grave e elevada no Monte Branco, parecia quase hesitante naquele dia. Só por si, esse fato sugeria presságios menos favoráveis. — Devemos buscar a sabedoria dos deuses. Até agora, a sua orientação levou-nos a este conflito. A luz do Guardião das Chamas brilhou sobre Bridei e sobre toda a empresa. É difícil de acreditar que a sua vontade mude de direção só porque o rei de Circinn não tem coragem de nos acompanhar.
— Podes lançar as varas de vidoeiro aqui? — perguntou-lhe Bridei. — Dessa forma, todos nós poderemos observar o padrão que vão assumir e testemunhar a tua interpretação de imediato.
Broichan demorou alguns momentos a responder. Os restantes anuíam, pois tal augúrio geralmente representava uma forma poderosa de compreender a intenção do Guardião das Chamas e d'A Que Brilha, cujos desejos tinham orientado os passos dos Priteni durante toda a sua longa história.
— Agora não — respondeu o druida. — É uma questão demasiado importante para ser determinada por apenas um vidente, mesmo sendo ele druida do rei. É melhor que seja lançado sob o olhar d'A Que Brilha, com a presença de Fola. Acredito que a deusa mostre com mais clareza o caminho a seguir, se a sua sacerdotisa principal tomar parte no ritual. Depois da ceia, quando Drust, o Javali, estiver ocupado com o melhor hidromel e com a mais bela música do Monte Branco, lançaremos as varas no pátio superior. Esperemos que os deuses nos mostrem respostas claras, pois precisamos delas com urgência.
As nuvens cruzavam o rosto brilhante d'A Que Brilha, obscurecendo o padrão lançado sobre a mesa de pedra. A deusa esforçava o druida e a mulher sábia até ao limite das suas vastas capacidades. Broichan servira como druida pessoal de dois reis e era conhecido por todos os territórios dos Priteni como sendo sábio, competente e extremamente poderoso. Fola liderava a escola de Banmerren, onde as mulheres aprendiam tudo o que precisavam para servir A Que Brilha como sacerdotisas. Era inteligente, discreta e reputada pela honestidade inabalável. Se aqueles dois velhos amigos, entre eles, não conseguissem ler uma mensagem dos deuses, teria de se partir do princípio de que as deidades recusavam deliberadamente a sua sabedoria.
Tuala já olhara para o padrão e formara a sua própria opinião quanto ao significado. Precisara apenas de um momento. Era algo para o qual possuía uma habilidade natural, semelhante à facilidade com que via o futuro: as respostas pareciam surgir-lhe completamente formadas na mente, antes mesmo de elaborar as questões. Manteve o silêncio. Mais tarde, quando estivesse sozinha com Bridei, iria transmitir-lhe o que os deuses tinham dito.
Um grupo seleto observou Broichan e Fola rodearem a mesa, olhando com atenção para a disposição das varas. Cada pequeno ramo de vidoeiro estava entalhado com símbolos antigos, tendo estes uma série de possíveis significados. Cada lançamento oferecia uma série de interpretações possíveis. A verdadeira habilidade do vidente consistia na identificação da que mais se adequava à pergunta colocada. Os deuses de Fortriu eram criaturas complexas e os conselhos que ofereciam raras vezes assumiam uma forma simples e clara.
Fola trouxera a sua assistente, Derila. Fora um acaso feliz que ambas se encontrassem já presentes no Monte Branco. Para além delas, do druida, de Tuala e do próprio Bridei, os únicos presentes eram Garth, o guarda-costas de Bridei, e Wid, o velho estudioso, que se apoiava no bordão enquanto olhava com esforço para as varas, à luz irregular. Wid nunca dissera ser um canal da voz dos deuses. A sua perícia tinha a ver com capacidades mais mundanas, tais como a leitura do olhar e dos gestos dos homens e a interpretação dos silêncios entre as palavras.
Tanto Bridei como Tuala tinham aprendido com ele. A seu tempo, ensinaria também Derelei, que passava agora parte das tardes na companhia de Broichan, e que tinha por hábito adormecer à noite a trautear sozinho, o que instava as sombras a dançar de forma estranha aos cantos, e fazia aparecer sapos do cesto da madeira.
— É bastante obscuro — disse Fola. — Segundo a minha interpretação, vejo um par de caminhos, cada um deles que volta a dividir-se. Por minha fé, não consigo decidir qual o predominante. Só vejo cães e pássaros. Não há exércitos à vista. O que dizes, velho amigo?
O luar concedera uma palidez fantasmagórica ao rosto de Broichan. Tuala conseguia discernir as rugas, mais do que as prováveis num homem da idade do druida, que ainda não era velho.
— Vejo morte, neste aqui — indicou. — Mas isso seria de esperar. A nossa questão trata de guerra, e as guerras vencem-se com a perda de vidas. Concordo, Fola, parecem ver-se pássaros ao fundo. A águia estende-se de oriente para ocidente. Isso só pode ser visto como sendo um sinal positivo. A sombra está atrás dela. A frente... à frente temos uma série de caminhos e aí a mensagem transforma-se num desafio.
— Talvez seja caótico simplesmente por as guerras o serem sempre.
— Fora Derila, a jovem sacerdotisa, quem falara. Subira rapidamente entre as mulheres sábias de Fola e era respeitada pela sua erudição.
— Vejo o sol e a lua a ocidente. Apesar de a águia estar cercada por estas outras varas, vejo essa disposição como um sinal de que tanto o Guardião das Chamas como A Que Brilha favorecem um avanço contra os Celtas.
— Concordo com a tua interpretação, Derila. — Bridei aproximou-se para examinar o padrão com mais atenção. — Mas não vejo nada que nos diga se o empreendimento deverá ter lugar agora, ou mais tarde. — Lançou um olhar a Tuala sobre o ombro. Não lhe pediria que comentasse.
— Tuala — disse Fola. — Estando entre amigos, não nos poderás dar a tua opinião? És jovem e arguta. Talvez vejas algo que nos escapa.
Broichan abriu a boca, voltando a fechá-la com a força de uma armadilha.
— Estou muito próxima — disse Tuala, reprimindo um arrepio. Manteve a voz calma, pois aprendera com a Rainha Rhian a dominar o tom e a expressão. — Qual a esposa, concedida que fosse tal oportunidade, não se pronunciaria de modo a manter o marido em casa, longe do perigo? Vocês são peritos. Talvez apenas precisem de mais tempo para pensar.
— Não há tempo! — disse Broichan, com brusquidão. A irritação mostrada não era habitual e Bridei fitou-o, surpreendido.
— Temos esta noite, pelo menos — disse o rei calmamente. — Se não há mais respostas a serem encontradas aqui, então que cada um de nós procure a sabedoria dos deuses sozinho. Veremos o que nos surge. Amanhã, depois de nos voltarmos a encontrar, tomarei a minha decisão.
Mais tarde, já sozinhos, Tuala contou a Bridei o que vira: um sinal claro d'A Que Brilha de que deveria avançar de imediato e, em contrapartida, a referência inegável a um risco maior do que poderiam imaginar, caso o fizesse.
— Havia qualquer coisa oculta — disse, em frente ao lume, nos seus aposentos privados —, algo que não era para os nossos olhos. Talvez ainda esteja oculto dos próprios deuses. Seja o que for, é um risco que vai além dos perigos inerentes a um conflito armado. Gostava que pudesses levar Faolan contigo.
— Julgas que esse sinal representa perigo para a minha pessoa? É preferível ao tipo de perigo que poderá afligir as minhas forças. Uma grande tempestade, talvez, ou uma praga, ou a fuga de informações essenciais ao nosso inimigo.
— Não fiques tão contente — replicou Tuala, com um tom seco. — Podes não te preocupar com a tua segurança, mas outros há que estimam bastante a tua vida.
— Se julgasse que isso traria o ocidente de volta a Fortriu — declarou Bridei —, daria de bom grado a minha vida.
— Sem ti, eles não terão sucesso — disse Tuala. — És o seu coração, Bridei. És a Espada de Fortriu. Sei que existem outros líderes fortes, homens que te poderiam substituir, Carnach, em especial. Mas é a ti que estes homens adoram. É a ti que vão seguir até à morte. A deusa colocou-te perante um teste difícil. Deseja que vás de encontro ao perigo. Ao fazê-lo, podes recuperar os nossos territórios perdidos, ou poderás perder tudo e ser recordado como um rei de cinco belos Verões. Não podia dizê-lo em frente dos outros, mas parece-me que as varas apresentaram dois caminhos possíveis, e ambos começam da mesma forma: com um movimento para ocidente no fim do Verão. Fizeste a pergunta errada aos deuses. Não te apresentaram alternativas para a data da tua empresa, apenas te deram a saber que, antes que as folhas caiam dos carvalhos, irás triunfar, ou irás morrer.
A lua cresceu e voltou a minguar. Os dias voavam, todos iguais. A cada alvorada, Ana percebia com mágoa que o casamento com Alpin estava um dia mais próximo. Agradecia à deusa cada dia em que o druida voltava a não chegar. Rezava para que nunca aparecesse.
Alpin tentava fazê-la sentir-se em casa. Oferecia-lhe presentes, tomava com ela o pequeno-almoço todas as manhãs e fez um esforço por moderar a linguagem, algo nem sempre bem sucedido. Ana tentou ocultar o fato de que o toque dele ainda a gelava e que as suas conversas a enfadavam ou ofendiam. Agüentou os seus beijos com uma determinação severa, desviando o rosto para que não lhe chegassem à boca. Escutou com paciência os relatos contínuos sobre as caçadas a veados imponentes e as derrotas infligidas a inimigos ferozes. Comeu frugalmente das refeições copiosas e fez por melhorar o conforto da sala de costura e dos seus próprios aposentos. Seria essencial manter um espaço privado depois de casar. Sem um refúgio de Alpin, decerto ensandeceria. Decidiu esquecer Drustan e Deord e todo esse assunto, e aproveitar ao máximo as coisas.
Não tivera oportunidade de falar a sós com Faolan. Já só o via à mesa, durante a ceia, e, uma vez que Alpin ameaçara qualquer homem que se limitasse a olhá-la, Ana esforçou-se por evitar o olhar do seu bardo. Até então, ainda não lhe fora ordenado que cantasse. Começou a pensar que Alpin poderia tê-lo esquecido e ficou satisfeita, embora, se possível, gostasse de uma oportunidade de procurar os conselhos de Faolan. Tornara-se um amigo, durante a viagem. Sabia que poderia confiar nele. Imaginou que, em Briar Wood, lhe fossem faltar os amigos. E queria perguntar-lhe sobre Breakstone Hollow.
Tentou esquecer a lamentável investida como espiã e respectiva conclusão perturbante. Havia outras coisas para mantê-la ocupada. Era preciso fazer um vestido de casamento, a par de outros trajes para si própria e uma nova túnica elegante para o futuro marido, com uma bainha bordada de cães, a qual Ana começara a fazer com as próprias mãos. Após ter completado a veste do bebê, Ludha fazia o trabalho delicado no vestido de casamento. A expressão nos olhos da criada quando lhe entregou a peça de roupa minúscula e maravilhosamente trabalhada disse a Ana, sem qualquer necessidade de palavras, que Ludha entendia a ambivalência sentida pela ama em relação ao casamento iminente.
Os pássaros continuavam a surgir. Com eles vinha uma série de pequenas oferendas: uma flor delicada, uma pena cinzenta, fios de lã de um cobertor, entrançados com delicadeza em forma de anel. Ana resistiu à tentação de enviar algo em troca. Aquele homem era um assassino e ela jurara manter-se afastada do assunto. Por vezes, a gralha, o cruza-bico ou a carriça limitavam-se a entrar e a ficar empoleirados no peitoril da janela ou nas costas da cadeira, e observavam-na durante algum tempo com os olhos brilhantes. Em certas alturas, quando Ludha se encontrava ausente, Ana dava consigo a falar com as visitas e obrigava-se a parar, pois sentia que tais conversas eram o mesmo que estar a falar com Drustan, e que estaria a brincar com o fogo, se o fizesse.
O desenho da túnica de casamento de Alpin não saía bem. Ana executou uma série de amostras em pequenos quadrados de linho, a fim de aperfeiçoar o motivo com o cão, mas os pontos não fluíam e os pequenos sabujos saíam-lhe repelentes. Ludha observava e mantinha-se calada, embora fosse óbvio que ansiava poder ajudar. Aquela noiva oferecera-se para fazer a roupa do marido com as próprias mãos. O simbolismo presente no gesto era bastante claro e Ana não podia falhar na sua tarefa. Com severidade, continuou a produzir um desenho medíocre atrás do outro até que, numa tarde quente um ciclo da lua depois de ter chegado a Briar Wood, ela e Ludha levaram o seu trabalho para um pequeno terraço reservado, no nível superior da fortaleza. Era um lugar cujo acesso se fazia por um lance de escadas estreito e íngreme, cuja natureza implicava que as mulheres se afastassem do local, apesar da atração proporcionada pela vista das árvores e pelo espaço abrigado e solarengo onde poderiam trabalhar e falar.
Instalaram-se com um silêncio confortável, cada uma reservando para si e para o cesto de lavoures um banco de pedra. Podia ouvir-se as canções de uma miríade de pássaros, vindas das profundezas de Briar Wood, do outro lado das muralhas. Ludha começou a trautear baixinho, uma melodia que Ana reconheceu como sendo uma narrativa de amantes há muito separados e reunidos por fim. Não havia dúvida que a rapariga pensava em Foldec, o seu arqueiro ausente. Quando Ludha voltou ao refrão, Ana acompanhou-a, cantando em voz baixa. Ludha sorriu com prazer e atacou outra estrofe.
Durante algum tempo, foi possível esquecer tudo: o casamento, a perspectiva terrível de partilhar a cama de Alpin, o futuro ao lado daquele homem, na companhia dos seus amigos rudes. Drustan e a sua maleita, o assassinato da inocente, o encarceramento atrás de muralhas de pedra e grades de ferro. Bridei e o tratado crucial. Faolan, cuja segurança não lhe saía da mente. Faolan, com quem estava proibida de falar sozinha. Ana continuou a cantar e, enquanto o fazia, as mãos trabalhavam com a agulha e a linha e criou mais um pequeno motivo noutro pedaço de tecido. Desta vez, a imagem não era a de um cão. Os pontos eram vermelhos e castanhos-escuros e, quando a canção e o bordado foram concluídos, a criatura de olhos brilhantes que a fitava do linho era um cruza-bico com uma madeixa de cabelo ruivo no bico. Ana mirou-o, chocada consigo própria. Quando Ludha olhou para ela, o seu instinto foi enfiar o pequeno quadrado no cesto, escondê-lo como se fosse uma prova incriminatória. Reprimiu o impulso. Não tinha de se sentir culpada. Não havia qualquer motivo para tal.
— Que belo desenho! — exclamou Ludha, que se aproximou para ver. — Ficava uma maravilha numa camisa de criança. Podia ficar no peito e acompanhar o vermelho do remate.
— Mm — disse Ana à cautela, escolhendo uma linha mais clara para fazer a bainha das extremidades da criação minúscula. Não estava concentrada. A mente pregava-lhe partidas arriscadas, pois a criança que imaginara com essa pequena camisa tinha cabelo ruivo flamejante e olhos brilhantes como estrelas. — Devia estar a fazer cães, mas não me saem bem. E o tempo está a passar, Ludha. Está a passar muito depressa. O druida pode chegar a qualquer momento.
— O pássaro é uma maravilha — disse Ludha em voz baixa.
— Tens um grande dom, minha senhora. Posso mostrar-te uma coisa em que tenho vindo a trabalhar?
— Por favor.
Ludha tirou do cesto uma faixa de tecido meticulosamente dobrada.
— Fiz isto à noite, à luz das velas. É claro que não tens de usar o meu desenho, mas pensei que pudesse ajudar. Sei que não me compete, mas...
E lá estava, o desenho do cão, executado na perfeição e muito bonito, com uma regularidade nobre que seria exatamente o que Alpin desejaria para representar o símbolo do clã. Espirais e tracejados ligavam os pequenos animais, formando uma guarnição equilibrada e fluida. Era apenas uma amostra, dois cães, três elos, mas era óbvio como ficaria bem no tecido vermelho da túnica nova do noivo.
Ana suspirou.
— Espero que não fiques ofendida, minha senhora, é só... vi que andavas incomodada com isto. Às vezes acontece-me. Sei que consigo fazer uma coisa, mas não sou capaz de começar.
Ana sorriu.
— Não estou ofendida, sinto-me muito grata, Ludha. Se me deixares usar o teu desenho, começo a trabalhar na guarnição amanhã.
Ludha aquiesceu.
— Sabes que há três pássaros? — aventou, enquanto observava a agulha de Ana atravessar o quadrado minúsculo. — Podias... isto é, se quisesses...
— Mm — disse Ana, pensando que era bom que estivessem as duas sozinhas naquela zona remota da fortaleza de Alpin. — É para meu divertimento, apenas, claro está. Sabes que, com as coisas como estão, um desenho destes nunca poderia surgir na roupa de uma criança de Briar Wood.
— Não, minha senhora. Embora seja uma pena, não é? — Depois, quando Ana completou a bainha e cortou o fio com os dentes, perguntou: — Conheces a canção do Grande Fergal, que era uma espécie de gigante, e de como ele domou o Dragão Monstruoso?
— Costumava cantá-la com a minha irmã, há muito tempo. Começa, e vamos ver aquilo de que me lembro.
Com as canções, com o calor e a privacidade do terraço, a mente de Ana acalmou-se e as mãos começaram a executar um segundo quadrado, desta vez em tons de preto e cinzento. Para o fim da terceira balada, a história de uma rapariga que se apaixonou por um sapo, sentiu um arrepio na espinha e a agulha imobilizou-se. Olhou para Ludha, imóvel no banco oposto. Silenciaram as vozes, deixando apenas a do terceiro cantor, cuja versão mais grave e hesitante de «A dama do lago» chegava até elas de sob o piso de lajes do seu santuário, o que parecia impossível. Quando pararam de cantar, a voz prosseguiu mais um pouco — «E ela suspirou, que pena para mim! O meu amor jaz nas trevas.» — Depois, quando o cantor se apercebeu que era o único que continuava, também ele se silenciou repentinamente.
Ana pigarreou. Ludha tinha as mãos a tapar a boca, como se demasiado chocada para falar. Rapidamente, Ana calculou a posição dos vários aposentos em Briar Wood e o movimento do sol. Olhou mais uma vez sobre a muralha e viu, enquadrada pelos ramos altos dos ulmeiros, uma elevação coroada por um único carvalho majestoso. Pássaros alçavam vôo e pousavam na copa ampla. Engoliu em seco.
— Ludha? — disse, num murmúrio.
— Mm?
— Quais os aposentos que estão por baixo deste terraço?
— Somente arrecadações, minha senhora. Uma parte restrita da casa. E...
— E os aposentos de Deord. Mesmo por baixo de nós. — Tinha de ser. Mesmo que a rápida estimativa da distância não o tivesse deixado claro, sabia de quem era aquela voz, uma voz que ouvia todas as noites em sonhos. O telhado gradeado da prisão de Drustan deveria ficar abaixo delas, para oeste, oculto pela muralha daquele lado do terraço. A divisão onde dormiam devia estar diretamente por baixo delas. Um qualquer pormenor da construção fazia com que fosse possível ouvir claramente, mesmo com a diferença considerável de altura. O coração de Ana incomodava-a, batendo como se tivesse acabado uma corrida. Sentia as faces afogueadas. O bom senso dizia com nitidez, Arruma as coisas e vai-te embora. Sai daqui em silêncio. Nas mãos tinha ainda o pequeno quadrado onde a forma da gralha começara a ser bordada, a bela plumagem brilhante com o seu melhor fio de seda. Afagou a imagem do pássaro com um dedo que não se encontrava tão firme como deveria.
— Minha senhora! — silvou Ludha, abanando a cabeça na direção dos degraus. Ficara pálida, o medo estampado nos olhos.
— Ainda não, Ludha — disse Ana. — Estaremos em segurança por mais algum tempo. Vamos pelo menos acabar a canção, e reunir Linia com o seu amor verrugoso. Onde é que nós íamos?
— «Uma bela manhã ela se pôs a caminho...» — Ludha parecia cantar por entre dentes cerrados, mas recomeçara o trabalho e cosia com uma determinação severa.
— «De ramo em ramo as aves a esvoaçar...» — cantou Ana, sem saber o motivo do nó na garganta e das lágrimas nos olhos.
— «E o dedo espetou na ponta de um espinho...» — fez-se ouvir a voz hesitante lá em baixo, não um tom sonoro e bem colocado, como o de Faolan, mas o de um homem quase esquecido de como fazer música, tanto era o tempo passado desde que sentira vontade ou tivera oportunidade.
— «E à vista de todos o sangue foi espalhar» — cantaram as três vozes em coro, unindo-se numa melodia doce que ecoou pelo terraço solarengo. A balada prosseguiu e narrou a forma como Linia voltou a conquistar o amante graças a uma dose de abnegação e a um pequeno feitiço caseiro. Enquanto cantavam, Ana identificou o local onde a terceira voz era mais audível, uma racha entre as lajes e a muralha interior, e, quando terminaram, foi ajoelhar-se junto da abertura estreita.
— Drustan? — perguntou em voz baixa. Ludha fitava-a, impressionada ou aterrada, Ana não o sabia dizer.
— Ana? — O tom era inseguro. Talvez ele acreditasse que, sabendo que ali estava, a jovem fugiria para nunca mais voltar.
— Onde estás?
Uma pausa. — Onde poderia estar, se não aqui? — respondeu.
— Onde, exatamente? Deord está aí?
— Estou no nosso quarto. Ouvi-te a cantar. E a falar. Lamento se te ofendi...
— E Deord?
— Foi buscar água. Darei pelo seu regresso. O portão range. Então, de repente, Ana ficou sem palavras. A única questão na sua mente era, Foste mesmo tu que os mataste? Era uma pergunta que não podia ser feita, não de forma tão direta. Não podia ser feita de todo.
— Estás bem? — sussurrou Drustan. — Deord contou-me que Alpin ficou zangado. Que poderia ter-te magoado.
— Deord fez um bom trabalho a evitá-lo — conseguiu dizer —, embora o teu irmão já tivesse agredido a minha criada. O teu guarda é um homem muito capaz. Alpin tinha razão para estar zangado comigo, mas não com Ludha. Fui eu quem quebrou uma regra. Mais do que uma. Contou-me a tua história, Drustan.
A declaração não obteve resposta. Ao olhar para Ludha, Ana surpreendeu uma expressão que tinha mais de fascínio do que de horror. Já fora longe de mais. Teria de esperar que a criada fosse de confiança.
— Contou-me uma coisa terrível, sobre o que aconteceu há tantos anos.
Mais silêncio.
— Drustan, fala comigo.
— O que posso dizer? — Era um tom abatido.
As lágrimas voltaram aos olhos de Ana. A verdade surgiu de repente, por mais que tentasse evitar.
— Creio que estou à espera que me digas que é mentira. Que não o fizeste. É algo em que não quero acreditar.
Foram precisos alguns instantes para que ele dissesse:
— Estás perturbada. Será melhor que não fales comigo. É a opinião de Deord.
Ana sentiu a raiva a crescer.
— Essa decisão é minha, não é de Deord, nem de mais ninguém. A não ser, é claro, que não queiras falar...
— Não quero deixar-te triste. Não desejo assustar-te. Foi um dia negro. Lançou sobre Briar Wood uma sombra que nunca será levantada.
O coração de Ana estava ainda acelerado. Obrigou-se a respirar fundo.
— Podes falar sobre isso? Contas-me? É verdade, o que Alpin disse?
— O que te contou o meu irmão?
Ana cerrou os dentes. Não queria dizer as palavras em voz alta.
— Ana? O que disse ele?
— Disse-me que... sofres de uma espécie de delírio. Que te acomete de tempos a tempos, e que nessas alturas ages como se estivesses insano. Disse que lhe mataste a esposa. Que tu... a levaste à morte.
— Um homem não mente sobre um assunto que lhe diz tanto ao coração. — O tom da voz perdera a expressão.
— O-o que estás a querer dizer, Drustan?
— Quem me dera poder dizer-te que o meu irmão está enganado. Mas não posso.
A jovem tinha o coração pesado como o chumbo. Fechou os olhos, incapaz de falar. Não fazia idéia por que motivo tudo aquilo lhe interessava tanto. Mal conhecia aquele homem. No entanto, parecia-lhe o mais duro dos golpes.
— Obrigada pela tua sinceridade — disse, após recobrar a voz. — Fico triste. Não acreditava que pudesse ser verdade. Não me pareces um... um...
— Monstro? Louco? Já me chamaram muito nomes, alguns bem piores do que esses. O meu irmão tratou-me melhor do que aquilo que merecia.
Ana ia guardando o trabalho, agulha e linho, no cesto de vime. No outro banco, Ludha fazia o mesmo. O silêncio prolongou-se.
— A tua canção foi como luz — ouviu-se o murmúrio de Drustan. — Obrigado. Já esquecera esses sons tão belos.
Ana reprimiu a vontade que sentia de fazer mais perguntas. Algo no seu íntimo continuava incapaz de aceitar a verdade sobre aquele prisioneiro, mesmo depois de ouvir a sua confissão. Não podia deixar que esses pensamentos suplantassem o bom senso.
— Temos de partir — disse-lhe a jovem. — Já é tarde e está a ficar frio, aqui em cima.
— Regressas? — A palavra soara triste, como se ele soubesse que a resposta seria não.
— E-eu... não sei — murmurou Ana, sentindo ódio da fraqueza que não lhe permitia conceder-lhe uma resposta firme, Não posso voltar.
— Admite. — A voz de Drustan alterara-se. Sugeria agora um desafio. — Diz-me a verdade. Não voltarás porque me desprezas. Porque tens medo de mim. Admite!
— Não é verdade! Não te desprezo! — Os olhos marejaram-se subitamente de lágrimas.
— Então voltas?
— E Deord? — Pelos deuses, por que não ficava de boca calada e se afastava como qualquer mulher de juízo faria?
— Por vezes está aqui, outras vezes vai até à casa. Tem de ir buscar o que faz falta. Se cantares, ficarei a saber que aí estás. Se eu falar, saberás que é seguro.
Ana olhou para a criada. Havia muito que dependia da lealdade da jovem aia. A rapariga aquiesceu brevemente.
— Em tempos — disse Ana ao seu interlocutor oculto —, uma amiga aconselhou-me a confiar no intelecto e não nas emoções. Foi um conselho assisado. Se o seguisse, dir-te-ia que não posso regressar aqui. O teu irmão prometeu castigar de forma rápida e cruel qualquer homem que sequer olhe para mim de um modo que ele não goste. Imagino o que pensaria deste nosso encontro. Repeti-lo seria insensato, arriscado e totalmente impróprio.
O silêncio indicava que Drustan aguardava algo mais.
— Virei, se puder, Drustan.
— Estarei à tua espera — replicou Drustan. — Adeus, Ana.
Nessa noite, Ana deu ao cruza-bico o seu retrato feito com finas sedas e recebeu em troca a oferta de uma pequena lasca de pedra, na qual, desenhado de forma tosca, estava o contorno de um coração. Se, até então, ela se recusara a admitir que o seu interesse por Drustan ia mais além da curiosidade, da compaixão e da necessidade de ver ser feita justiça, foi obrigada a fazê-lo no momento em que a ave deixou a oferenda na mesa do seu quarto. Ludha retirara-se para a noite. A criatura entrara pela janela vinda da escuridão da rua e aguardara a uma distância segura da vela que Ana colocasse a oferta debaixo da almofada.
Quando o pássaro saiu, Ana deitou-se na cama a pensar em Alpin, que a encostara à parede após a ceia e lhe dera um beijo descaradamente longo. Suportara-o, enquanto imaginava como seria se fosse outro o homem que a agarrava, alguém cujo beijo seria tão gentil quanto aquele era rude, tão terno quanto aquele era brutal. O abraço de Alpin gelava-a e assustava-a. Sabia que o outro beijo lhe lançaria um calor ardente pelo corpo, enfraquecendo-lhe os membros e acelerando-lhe o coração com o entusiasmo. Era algo que nunca viria a acontecer, o produto de sonhos insanos. Desejava-o como nunca desejara qualquer outra coisa na vida.
O druida tardava em chegar. Quando um ciclo lunar se transformou em dois, Ana reconheceu o atraso como sendo uma dádiva e iniciou uma espécie de dança delicada, uma dança com um parceiro invisível. Cada passo, cada movimento, estava cheio de perigos. Muitas vezes o ritmo era interrompido, pois Ana não podia fugir todos os dias para o pequeno terraço sem atrair atenções indesejadas. Quando lá se dirigia, com freqüência Drustan permanecia em silêncio, o que significava que Deord estava presente. Ana imaginou que Deord estivesse desconfiado, pois se alguma vez tivesse estado naquele quarto com pessoas a conversarem lá em cima, decerto teria conhecimento do segredo da construção. Mas o guarda especial de Alpin ia e vinha com as bandejas da ceia e mantinha os olhos tranqüilos afastados da futura noiva do chefe tribal. Deord nunca deu a entender que algo fora do normal se passava e, graças a isso, o coração de Ana batia com mais calma.
Os dias da jovem giravam em redor daqueles momentos breves, os momentos breves e mágicos em que podia falar com Drustan, podia murmurar-lhe ao ouvido escondido e agachar-se junto à parede para escutar as respostas doces. Terminou o segundo quadrado de tecido e enviou-o pela gralha, quando o pássaro a visitou. Chegou a planear fazer um terceiro, mas não o começou, pois não tinha as cores certas para reproduzir com exatidão a plumagem da ave menor. Além disso, tinha de acabar as roupas de casamento de Alpin e, agora que Ludha lhe dera o desenho, não havia desculpa para não prosseguir com o trabalho. Era essa a obra que tinha consigo na tarde em que Ludha se esqueceu de guardar uma determinada fita no cesto e foi obrigada a regressar à sala de costura.
Era a primeira vez que Ana estava sozinha com Drustan. Até então, tivera cuidado com o que lhe dizia. Não tinham comentado o encontro na floresta, nem o fato de ele e Deord terem forma de escapar ao encarceramento. Se Ludha desconfiara de algo estranho na forma como Ana se tornara tão rapidamente amiga do futuro cunhado, não o comentara. Muitas vezes, cantavam os três juntos e, ocasionalmente, trocavam velhas histórias e rimas de infância. Em dada ocasião, Ana perguntou a Drustan sobre os pássaros, como se tinham tornado tão próximos, como viviam em segurança numa casa cheia de gatos. A resposta foi enigmática. Era difícil interpretar as suas palavras. Ana contou-lhe um pouco sobre a infância passada nas Ilhas Pequenas, sobre como se tornara refém e como se sentira.
Com o avançar do Verão, as conversas que mantinham eram mais fluidas. A jovem perguntou-lhe sobre a infância, vindo a saber de um menino que muitas vezes estava sozinho, mas nunca solitário. Tinha as criaturas por companheiros, os sonhos por sustento. Vivera em Briar Wood com o irmão e a irmã até aos sete anos. Depois partira para ocidente, para a casa do avô, uma casa que mais tarde viera a pertencer ao próprio Drustan, antes de ser encarcerado.
— É um lugar que se chama Vale dos Sonhos — disse-lhe com um orgulho tímido. — É banhado por uma luz suave, que não se vê em mais nenhum local do território Caitt. É como uma bênção de outro mundo. Sempre pensei que naqueles montes protetores, naquela água plácida, se encontrava o toque dos deuses. Existem dois lagos perto de minha casa. Tinha os meus próprios nomes para eles, nomes que lhes dera logo quando o meu avô me levara com ele.
— Quais eram os nomes?
— O primeiro lago, perto da casa, é cercado por vidoeiros trêmulos. Parece refletir um brilho superior ao do sol ou da lua, como se criasse o seu próprio fulgor. Chamei-lhe a Taça do Céu. O outro é um lugar onde a névoa se mantém ao de cima da água, mesmo durante o calor do dia. Tem plantas de grandes folhas à superfície, com flores brancas no Verão, e pássaros de pernas compridas entram e saem do vapor como se fossem visitas de outro plano. Esse lago era a Taça do Orvalho. Nomes de criança.
— Esses nomes pintam-me um quadro. Um dia, adorava ver o Vale dos Sonhos. Drustan, por que foste enviado para lá viver ainda tão jovem?
— Não havia lugar para mim em Briar Wood. Era uma vergonha para os meus pais. Os meus irmãos afastavam-se. O meu avô criou-me um lar.
Drustan perguntou sobre o casamento e Ana ofereceu respostas prudentes. Não sabia se a comoção de sentimentos no seu íntimo, o desejo de vê-lo, de tocá-lo, algo impossível e ridículo, era audível na sua voz. Pensou ouvir um eco desses sentimentos na voz de Drustan, mas Ana atribuiu-o ao desejo de companhia que o ajudasse a suportar os dias intermináveis do encarceramento.
Naquele dia, Ludha não estava presente e, de repente, Ana sentiu-se diferente.
— Drustan?
— Sim, Ana?
— Ludha foi à casa buscar uma coisa. Temos alguns momentos sozinhos.
Uma pausa.
— Alguns momentos mal chega para começar — disse a voz dele.
— Para encontrar as palavras com que começar.
— Eu sei — replicou Ana com doçura. Sentara-se nas lajes junto à base da muralha, os joelhos puxados para baixo da saia. Mesmo naquele dia de Verão, as pedras eram frias. Lá em baixo deveria ser gelado.
— Gostava de falar contigo devidamente. Gostava de poder ver-te.
— Isso não pode acontecer.
— Eu sei. Sei o que aconteceu aqui. Ouvi-o dos lábios de Alpin e dos teus. Creio... creio que gostaria de refazer o passado. Mas nem mesmo os deuses podem levar a cabo tal tarefa.
— Gostavas de nunca ter vindo para Briar Wood? Quem sabe ter casado com um homem das Ilhas Pequenas ou de Fortriu e nunca ter visto estes dois tristes irmãos dos Caitt?
— Não — garantiu-lhe Ana, abraçando-se em busca de conforto. — Não o desejo de todo. Apenas que o que aconteceu pudesse ser reparado. Sei que é uma tolice, mas ainda gostava de ouvir que o que me contaste não é verdade. Mas, mesmo que seja, nunca irei lamentar ter-te conhecido, Drustan. Se cometeste aquele ato, parece-me que já pagaste por ele. Parece-me que mudaste. Não acredito que o homem que conheço agora fosse capaz de tal ação. — Sentiu o rubor nas faces e ficou satisfeita por ele não poder vê-la.
— O que tenho para te oferecer é pobre — disse Drustan. — Se pudesse, dar-te-ia tesouros feitos de luz e de riso, de cor e de sombra, de vida e fôlego. Iria envolver-te num manto de luar e calçar-te com as ondas do mar. Eu... — A voz fraquejou. Ana permaneceu imóvel, enfeitiçada. — Tocava-te e despertaria a alegria — murmurou. — Soube-o assim que te vi, sozinha no rio furioso, no rosto uma máscara de terror e de coragem. Soube-o quando te vi adormecida junto ao teu pequeno fogo, com o corpo de outro homem a aquecer-te. Quis ser esse homem, abraçar-te como ele. Soube-o quando nos encontraste na floresta, no dia em que tinhas de saber o que eu fizera. Era uma esperança vã. Mesmo assim, não consegui matar esse desejo. Permanece em mim sempre que estou acordado. Acompanha-me em sonhos.
Ana não era capaz de falar.
— A tua amiga vai regressar em breve — indicou Drustan. — Não desperdices este tempo com silêncio. Fala comigo. Diz alguma coisa. Deixa-me ouvir a tua voz.
A mente de Ana fervilhava com tudo o que lhe queria dizer, as mensagens do coração, mas os hábitos inculcados por uma vida passada em casas reais custavam a desaparecer. Não podia dizer o que sentia. Estava prometida a outro homem e havia a questão do tratado.
— Eu... como me viste, em Breaking Ford? — perguntou. — A gralha estava lá, mas...
— Em determinadas alturas vejo através de olhos diferentes — respondeu. — Estamos unidos, eu e os meus amigos. Ajudamo-nos mutuamente. Sem eles, sem os meus pequeninos, teria perecido neste lugar, mesmo com a atenção paciente de Deord. Envio-os e eles permitem-me viajar para longe da minha jaula.
— Os teus pássaros têm nome? — Pelos deuses, estava a desperdiçar tempo precioso.
— Esperança — respondeu Drustan. — Chama. Ânimo.
— É lindo, Drustan.
— Fazem parte de mim. E tu és parte de mim, Ana. Não quero que cases com o meu irmão.
A jovem arquejou.
— Não devias dizer tais coisas — alertou-o. — O casamento firma um tratado. Foi por isso que o rei Bridei me enviou. Não tenho escolha.
— Não cases com ele, Ana. — O tom tornara-se mais duro e transmitia um aviso. — Se fosses um pássaro, diria para voares para longe enquanto podes.
— Drustan, estou aqui sentada com a túnica de casamento do teu irmão a meu lado. Vem um druida a caminho para realizar a cerimônia e registrar o tratado por escrito. Se tivesse chegado quando devia, já estaria casada. Alpin aceitou todas as condições exigidas pelo rei. Não posso mudar esse fato.
— É isso que queres? Ver a tua luz extinta, o teu coração cingido, a tua liberdade perdida? Casar com um homem que não vais conseguir amar?
Ana fechou os olhos.
— Aquilo que eu quero nada tem a ver com isto — disse. — Sempre soube que este seria o meu futuro. O sangue que trago comigo é demasiado valioso para me permitir liberdade de escolha. Uma mulher de linhagem real não casa por amor. — A voz vacilou-lhe com a última palavra. — Creio que estou a ouvir Ludha a regressar. Temos de parar com este assunto.
— Ludha continua na sala de costura, à procura da fita — replicou Drustan, calmamente. — Há tempo para me dizeres o que pensas, o que sentes. Ainda há tempo para me contares a verdade.
— Como podes saber... Oh! Um pássaro. Isso deixa-me transtornada. A tua carriça tem pousado na minha janela e vê-me a despir, à noite. Observa-me enquanto adormeço. O teu cruza-bico tem recebido o meu despertar com ofertas. Parece que não consigo fugir à tua vigília, onde quer que esteja, faça o que fizer. Isso... é outra forma de cativeiro.
— Não é verdade, Ana. Nunca te observaria, se tal te fizesse infeliz. Apenas quando há necessidade. Dizes que não gostarias de te despir à minha frente?
— Eu... — A questão ousada, apresentada com um tom de extrema delicadeza, inflamou-lhe cada parte do seu ser. Sentiu o sangue acorrer-lhe à face e não foi capaz de responder.
— Não te agradaria?
— Não posso responder a essa pergunta, Drustan. É... indecorosa. Existem inúmeras razões para não prosseguir uma conversa sobre tais assuntos contigo, mesmo partindo do princípio de que o desejaria. — Respirou fundo, obrigando-se a calar-se, antes de dizer algo profundamente inadequado. — Desejo fazer-te uma pergunta. Verás que ainda te será mais difícil responder. Mas, como falas em honestidade, preciso que o sejas comigo.
— Nunca te menti. Sei que desejas que o tivesse feito.
— Então conta-me o que aconteceu naquele dia, quando Erisa morreu. Diz-me por que fizeste o que fizeste.
Houve um silêncio, ao que Drustan indagou:
— Se responder com sinceridade à tua pergunta, responderás depois à minha?
— Parece-me justo — replicou Ana, fremente com a antecipação, pois estava prestes a ouvir a verdade, toda a verdade por fim. Não sabia se tudo acabaria por fazer sentido, ou se apenas serviria para lhe partir o coração. — Temos de ser rápidos. Ludha não vai precisar da tarde toda para ir buscar uma fita. Sei que é difícil para ti. Conta-me apenas os fatos.
Ouviu Drustan respirar fundo, soltando depois um suspiro entrecortado.
— Não sei por onde começar — disse.
— Começa no dia em que aconteceu e diz-me o que fizeste. — O coração de Ana martelava-lhe no peito. A verdade era que estava a pedir um relato em primeira-mão de um assassino. Era um acordo profundamente injusto.
— Primeiro, devo explicar que... quando lá entro, nem sempre me recordo das coisas. Por vezes tenho uma recordação clara, mas outras vezes perde-se e nunca recupero essa memória.
— A que te referes? Não entendo. Entras onde?
— No outro sítio.
— Que sítio?
— Para onde vou, quando... o delírio, como lhe chama o meu irmão... se apodera de mim. Está errado ao chamar-lhe isso. Não diria que é um delírio, mas uma jornada. Mesmo assim, seja o que for, fico à sua mercê. Se me deixa louco, como as pessoas dizem, sou o último a poder argumentar o contrário, pois tudo o que digo tem de ser colocado em dúvida.
— Como acontece? O que sentes? Seguiu-se um silêncio longo.
— Drustan? Podes contar-me?
— É como se ganhasse vida — disse, num murmúrio. — É como acordar de um sono longo. É como água fresca para um homem a morrer de sede. E como o primeiro toque do sol. É como ser libertado. Mas fez-me realizar um ato terrível. Torna-me perigoso. Dizem que voltaria a matar se fosse libertado. Devo acreditar neles. Por que mentiriam sobre uma coisa dessas?
Ana sentia-se profundamente confusa.
— Mas Deord libertou-te — replicou. — Quando te vi estavas no bosque, sem correntes. — Quando te vi e pensei que eras o homem mais belo do mundo.
— Deord é muito forte e rápido — argumentou Drustan. — Arrisca-se muito. Sabe que perderia o juízo de vez, se não tivesse estes breves momentos de liberdade. Ele espera que eu regresse ao interior e, ao longo de sete anos, nunca o desiludi. Ele sabe o que é ser um prisioneiro. Sem ele, há muito que o desespero se teria apoderado de mim.
— Eu... — Ana obrigou-se a esperar e a recuperar a calma. — Não vou fingir que entendi tudo o que acabaste de dizer, Drustan. Perturba-me e deixa-me perplexa. Lembras-te do que se passou no dia em que ela morreu? Podes narrar-me o que aconteceu?
— Chegara da minha casa, a ocidente, de visita ao meu irmão. Estava na floresta. Saí de manhã. Havia uma neblina, que envolvia as árvores e entrava nos covis dos lobos e dos texugos, que velava o caminho das martas e das lebres. Estávamos quase no Inverno. Ela estava a gritar. A correr. Caiu. Ausentei-me. Quando regressei da jornada, tinham encontrado o seu corpo.
Respira com calma, disse Ana para consigo.
— Foi isso que te disseram quando regressaste? Apenas isso?
— É aquilo de que me lembro.
— E antes? Por que estava Erisa a gritar? Alpin disse que tu... — não, não era capaz de dizê-lo.
— O meu irmão disse que levei a sua esposa à morte. Que fiz com que ela caísse. Foi esse o relato dele.
— E qual é o teu relato, Drustan? É isso que eu quero e parece que te é difícil apresentá-lo em palavras simples.
— Imagino que a narrativa do meu irmão seja verdadeira.
— Que estás a dizer-me? Que não te lembras do que aconteceu?
— Algures dentro de Ana, despertara uma esperança impossível.
— Estava no outro sítio. Aquilo de que me lembro é... diferente. Quando lá estou, não vejo da mesma forma. Não consigo explicá-lo com palavras que te façam sentido, ou a Alpin, ou a qualquer homem ou mulher que me pergunte. Não posso ter a certeza das minhas ações antes de ouvir os gritos de Erisa, antes de a ver fugir pela floresta. Não me lembro de a ter magoado. Mas há coisas de outras jornadas das quais não me lembro. Dizem que a matei. Dizem que a velha o viu e que ficou tão perturbada que pouco depois fugiu para a floresta. O que Alpin te contou é verdade.
Ana sentiu as lágrimas quentes correrem-lhe pelo rosto.
— Drustan — disse —, como podes fazer isto? Como podes dizer-me que queres... tocar-me, estar junto a mim, para logo a seguir dizeres que és demasiado perigoso para estar em liberdade? O que esperas que faça? Qual esperas que seja a minha reação?
— Não sei, Ana — respondeu gentilmente. — Talvez a forma como te ponho à prova seja mais um sinal da minha insanidade. Respondes agora à minha pergunta? Ouço o portão a ranger. Deord vem aí.
— Oh, pelos deuses, Drustan, como podes esperar que te responda, depois... Muito bem, a resposta é, se não estivesse prometida ao teu irmão, o que sugeriste iria agradar-me bastante, assim que me habituasse à idéia. Mas, uma vez que vou desposar Alpin, não posso sequer imaginar tal coisa, e muito menos prolongar a sua discussão. Temos de parar com isto. Adeus, Drustan.
— Adeus, minha luz.
Ana fechou os olhos. Era demasiado. Era muito difícil. Queria regressar ao Monte Branco e que tudo não passasse de um pesadelo. Ainda assim... o que lhe dissera era verdade. Assassino ou louco que fosse, nunca poderia desejar não ter conhecido Drustan, mesmo que tudo viesse a terminar em mágoa. Já não se conseguia imaginar realmente viva até ao momento em que o conhecera.
— Adeus, meu querido — murmurou Ana, num tom baixo o suficiente para que fosse impossível a Drustan ouvi-la. Depois levantou-se e regressou ao banco. Quando, pouco depois, Ludha subiu os degraus, a ama encontrava-se ocupada a bordar os pequenos cães na túnica nova do prometido. Se os olhos de Ana pareciam avermelhados, a criada não teceu qualquer comentário.
O tempo estava ameno. A floresta estival adornava a fortaleza de Alpin com uma veste suave de inúmeros tons de verde e o líder de Briar Wood anunciou à ceia que, pela manhã, a sua casa ia caçar.
Faolan mantivera-se ocupado. A falta de comparência do druida concedera-lhe mais tempo para investigar do que o antecipado, ao longo do qual conquistara a confiança de vários membros da casa de Alpin. Garantiu que a harpa fosse difícil de reparar e fugiu à exigência de cantar, desenvolvendo uma tosse cavernosa, a qual foi atribuída à prolongada imersão na água fria de Breaking Ford. Passou muito tempo a escutar e ainda mais a pensar. Os habitantes de Briar Wood eram como avelãs: difíceis de partir e, mesmo então, pouco gratificantes. Faolan não se recordava de outra ocasião em que demorasse tanto a extrair informação de valor tão reduzido.
Ana estava infeliz, nervosa, irritável. Era visível no rosto da jovem e, devido ao olhar atento de Alpin e à garantia de punição de qualquer homem que chegasse sequer a olhar para ela com mais atenção, Faolan era incapaz de ajudá-la. A mesa da ceia, observando-a sem que fosse visto, Faolan deduziu que Ana estivesse a pedir a Alpin que fosse libertada da obrigação de acompanhar a caçada do dia seguinte. Deveria estar a dizer que os desportos sangrentos não eram a sua opção de passatempos ao ar livre, a explicar que outras tarefas a prendiam à casa. A amargura tomou conta de Faolan, quando viu Alpin a soltar uma gargalhada, a pousar a mão pesada no ombro delicado da futura esposa e a abanar a cabeça. Dizia-lhe que teria de acompanhá-los, ia gostar e, além do mais, que melhor oportunidade de apreciar a extensão do domínio do novo marido?
— Cuidado, amigo — aconselhou Gerdic do banco ao lado de Faolan. — Estás a espetar a faca no queijo como se ele estivesse prestes a atacar-te. Cuidado com os vossos dedos, companheiros, hoje o nosso bardo não está na melhor das disposições.
— Só tem uma disposição — comentou outro homem. — Carrancudo. É um celta típico.
Faolan não respondeu e a conversa dirigiu-se para outros assuntos, nomeadamente a caçada prevista. Haveria caça para a panela. Gerdic e os outros auxiliares da cozinha bem podiam esperar um dia de trabalho longo. Os guerreiros, sentados mais acima na mesa, trocavam teorias sobre o que poderia ser encontrado naquele início de estação. Veados não, com toda a certeza, mas os cães talvez farejassem um javali ou dois e, com a ajuda dos falcões, talvez se pudesse espantar galos silvestres, ou outras aves, embora não devessem ter grande carne nos ossos, naquela altura do ano.
Faolan fez grande alarde a fatiar queijo, a partir pão e a cortar uma cebola. Pelo canto do olho, viu o braço de Alpin rodear a cintura estreita de Ana e depois erguer a mão, a fim de tocar a curva do seio através da fina lã cinzenta da túnica da jovem. Uma mancha vermelha surgiu em cada face de Ana.
— Caçar, não é? — disse Gerdic, com um tom meditativo. — Imagino que não seja uma ocupação para bardos.
— Ah, ele vai fazer questão que eu vá. — O tom de Faolan era tão sombrio como a disposição. — Espera para veres. Não tarda nada vai chamar-me para que me ajoelhe e vai dizer-me que tem a generosidade de me incluir na expedição e que espera uma canção sobre a caçada quando regressarmos.
— Sshh — silvou Gerdic. — Não o deixes ouvir-te a falar assim, nem aos guerreiros dele.
— Ele não me ouve. E tu não vais repeti-lo. Gerdic olhou-o com nervosismo.
— Podes ter a certeza que não, contigo a olhar-me dessa maneira. Mas tem cuidado.
— Eu tenho.
— E se fizer o que disseste? Tens a harpa pronta?
— Não há mais nada que lhe possa fazer — comentou Faolan, com um tom acrimonioso. — Só tenho de me afastar do caminho das lanças para javalis, amanhã, e de usar esta faca com cuidado, esta noite, e pode ser que fique com dedos suficientes para tocar uma melodia ou duas sobre os feitos do nosso chefe, atrás do maior javali das terras do norte. Quanto à voz, isso já é outra questão.
— Faz um bom refrão — aconselhou Gerdic, a expressão séria. — Cria uma melodia daquelas que são fáceis de recordar, do tipo que não nos sai da cabeça, sabes? Assim, todos nós podemos acompanhar-te e ajudar-te.
Faolan esboçou o que parecia um sorriso.
— Obrigado — disse-lhe. — Vou precisar de toda a ajuda que conseguir encontrar.
Tudo fazia parte de um jogo bem treinado, é claro. Faolan executava as suas missões sem a ajuda de ninguém. Era mais simples dessa forma. Preferia confiar apenas em si próprio, o que minimizava os riscos. Se servisse o objetivo de agradar a Gerdic, o qual ocasionalmente deixava escapar pequenas informações que não poderiam ser obtidas noutro lugar, assumia um comportamento agradável. Como nessa noite era necessário ser um bardo, sê-lo-ia. Ana nunca teria imaginado a provação a que o submetera quando mentira de forma tão expedita na floresta. Faolan preferiria enfrentar nu e desarmado os guerreiros mais ferozes de Alpin a ser obrigado a tocar harpa perante um salão repleto. Seria como arrancar-lhe o coração. Precisaria de todo o seu vasto autocontrole para sobreviver à experiência com a máscara intacta. A culpa não era de Ana. Como poderia ela saber que tal exposição lhe escoriaria o próprio espírito? No Monte Branco, dera o seu melhor para se tornar uma criatura fria, uma ferramenta eficiente, um homem cuja única aliança era com o mestre que lhe oferecesse a mais pesada bolsa de prata. Com o passar dos anos, ele próprio viera a acreditar nessa personagem cuidadosamente inventada. A máscara protegera-o. Mantivera-o a salvo das recordações. A harpa iria trazê-las de volta, numa enxurrada.
Mas isso seria nessa noite. Antes, era a caçada, e uma oportunidade que teria de ser aproveitada. Encontrava-se fora da muralha, tinha um cavalo, só para si, dessa vez, e a natureza da caçada iria permitir-lhe afastar-se sem ser visto, caso agisse devidamente. Havia algo que ainda não investigara e o dia apresentava uma oportunidade para fazê-lo. Não podia regressar ao Monte Branco sem a certeza absoluta da lealdade de Alpin para com Bridei. Uma marca num pergaminho, uma promessa sob juramento, nada disso tinha valor se o homem que as tivesse feito não conhecesse a honra.
As estranhas disposições familiares de Alpin intrigavam Faolan e espicaçavam-lhe a desconfiança. Dois irmãos, duas propriedades. Um dos irmãos acusado de um crime horrendo e fechado para o resto da vida em condições decididamente bizarras. O outro irmão a controlar ambos os territórios, sendo que um deles com um porto estratégico. A situação levantava dúvidas e o comportamento de Alpin não ajudava a mitigá-las. Uma vez que nenhum dos elementos da casa estava disposto a falar sobre Drustan, Faolan teria de se dirigir à fonte.
E depois havia Deord. Um homem de Breakstone. Tal como ele próprio, um dos poucos sobreviventes do poço negro que era a Hollow. Se um homem conseguisse sair daquele sítio, tal como acontecera com Faolan, decerto a última ocupação que escolheria seria a de guarda de uma prisão. Foi meditando enquanto descia uma encosta íngreme por baixo de abetos imponentes, à medida que seguia o grupo de caça de Alpin. Diziam que o indivíduo lá estava há sete anos. Sete anos de recordações sombrias. Sete anos de pesadelos. Por que não se instalara Deord noutro local, com uma mulher com quem criar família? Por que não escolhera um ofício num lugar seguro, o mais afastado possível dos Uí Néill? Voltar a estar atrás das grades era a atitude de um louco. Bem, se o que se dizia era verdade, Deord guardava um louco. Talvez fossem uma boa companhia um para o outro.
Nesse dia, a floresta pregava as suas partidas. As narrativas que Faolan ouvira sugeriam presenças mais do que humanas, mais do que animais: criaturas de osso e escuridão, monstros de longas presas e braços estendidos, velhas ressequidas com pequenas bolsas de encantos perigosos, guerreiros tombados com armas mortíferas e invisíveis. Havia ainda as próprias árvores, os caminhos tortuosos e as névoas sobrenaturais. Quem ouvisse o povo a falar, poderia pensar que as próprias pedras tinham olhos, pernas e uma tendência para a maldade. Faolan pouco caso fazia dessas lendas, pois sabia bem como os medos dos homens se alimentavam a si próprios, criando um monstro poderoso a partir de um ruído no escuro, um demônio furioso de uma sombra. Na sua opinião, os atos dos homens eram bastante mais assustadores do que os fantasmas surgidos de um pesadelo ou do excesso de hidromel. Ainda assim, aqueles caminhos eram traiçoeiros. A intervalos cada vez mais regulares, o grupo parava numa clareira ou junto à margem de um ribeiro e debatia qual a bifurcação a seguir, qual o caminho a tomar.
Ana viajava à frente com Alpin. Faolan encontrava-se ao fundo, com os últimos cavaleiros do grupo, na sua maioria servos da casa que guiavam cavalos de carga, cuja tarefa seria transportar a caça de volta a Briar Wood em triunfo. Faolan cavalgava em silêncio, tentando passar o mais despercebido possível e memorizando cada volta, cada ramificação do caminho. Com sorte, mal dariam pela sua falta, caso se ausentasse durante algum tempo. Assim que os cães encontrassem o rasto de um javali, a última coisa em que alguém pensaria seria no número de homens do grupo e a sua localização exata. Esperava que não tivessem de avançar muito antes de lhe surgir tal oportunidade. A sua presa não se encontrava na floresta, mas sim em Briar Wood. Pretendia encontrar Deord e sacar-lhe algumas verdades. A sua espécie estava ligada por laços forjados na adversidade e na sobrevivência. Eram obrigados a entre ajudar-se, quer lhes conviesse ou não. Se o guarda não falasse, talvez Drustan o fizesse.
Quando o grupo voltou a parar, avistou Ana, montada no seu cavalo, aguardando pacientemente que Alpin explicasse qualquer coisa aos homens. Os cães de caça rodeavam as pernas dos cavalos, voltando as cabeças na direção de cada restolhar nos fetos. Eram criaturas hirsutas e de pernas compridas, mais altas do que os sabujos do Monte Branco, com olhos implacáveis e mandíbulas que sugeriam que um javali seria presa fácil. Ana tinha um ar pálido e cansado.
A medida que avançavam, Faolan permitiu que os cavaleiros o ultrapassassem, até que ficou atrás das bestas de carga. Não demorou muito até que os cães dessem início a uma cacofonia ululante de sons e o monteiro principal de Alpin os libertasse. Os cães desapareceram na floresta, cada animal um aríete de poder muscular. Os cavaleiros lançaram-se em perseguição. Os carreiros eram estreitos e rodeados de vegetação. Rapidamente, o grupo ficou espalhado a ponto de não ser possível a cada indivíduo ver mais do que um ou dois cavaleiros, com os cães bem mais adiantados, levando a presa a um ponto em que seria obrigada a voltar-se e a enfrentá-los no seu último reduto.
Os homens com os animais de carga encontraram uma pequena clareira e instalaram-se a aguardar. Enquanto descarregavam os materiais e prendiam os cavalos para que estes pastassem, Faolan esgueirou-se por entre as árvores, a montada obediente ao toque do cavaleiro. Regressou em silêncio por onde viera. Até ali, tudo bem. Não tinha qualquer vontade de participar na caçada. Vira demasiadas mortes violentas durante a sua carreira, chegando mesmo a infligir muitas delas com as próprias mãos. A batalha de um javali contra a matilha rapace não lhe interessava. Tinha a sua própria caçada e teria de ser rápido, pois deveria voltar a juntar-se ao grupo tão discretamente como o deixara, a fim de obter o relato do sucesso, para compor uma canção.
Assim que se encontrou a distância suficiente dos caçadores de Alpin, começou a trautear em voz baixa o início de uma melodia que ficava no ouvido. Gerdic tinha razão. Aquelas pessoas ficariam satisfeitas com qualquer coisa simples e aquele bardo bastante mais seguro ao apresentar tal música, algo insignificante, sem grande emoção, nem temas elevados. Mas a canção que o perseguia, insinuando a sua forma na melodia que trauteava, era a balada que cantara quando atravessara um vau com a noiva de Alpin: a narrativa de um homem enfeitiçado por uma fada, um homem que nunca mais voltaria a ser o mesmo.
Deord estava cansado. Quando Drustan tinha uma noite má, nenhum deles dormia. Aquela fora uma das piores, com o cativo a percorrer a prisão no escuro, a bater no portão de ferro, a esmurrar as paredes com os punhos cerrados, até ficar com as mãos em carne viva, a agachar-se com os braços sobre a cabeça, a saltar para se agarrar ao telhado gradeado da jaula, como se planeasse ultrapassar a barreira apenas com a força de vontade. Mais tarde, Drustan rasgara um cobertor em tiras e começara a atá-las umas às outras com um qualquer objetivo sombrio. Deord sentira-se tentado a manietá-lo, para evitar que se magoasse a si próprio. Mas não o fizera. Talvez as más noites fossem o resultado de uma mente perturbada, mas era o encarceramento que as provocava. Imobilizar Drustan enquanto estivesse naquele estado, seria particularmente cruel. A prisão do louco em Briar Wood era espaçosa e confortável, segundo os padrões de Deord. Qualquer homem que tivesse vivido a experiência do inferno que era Breakstone Hollow veria o que Alpin concedera ao irmão como sendo generoso e justo. Mas Drustan não era um homem normal e aquele aprisionamento era para ele uma tortura tão medonha como as celas geladas e fétidas da prisão secreta dos chefes Uí Néill tinham sido para
Deord. Recusar a Drustan o sol, o céu, a liberdade do bosque era tão mau como os espancamentos, os desnudamentos, a humilhação e o aviltamento que Deord suportara às mãos dos captores celtas.
Um homem nunca esquecia tais experiências. Tinham-lhe recusado a luz, fazendo-o perder a noção do dia e da noite. Tinham-no mantido acordado, dias a fio, com archotes, barulhos e súbitos dilúvios de água gelada. Tinham-no pendurado pelas mãos, pelos pés. Tinham-lhe feito outras coisas, as quais enterrara nas profundezas da memória, cercadas por barreiras impenetráveis. Se alguém fosse suficientemente forte para sobreviver, para fugir, não podia dar-se ao luxo de sucumbir à amargura. Poucos eram os que regressavam ao mundo com a marca de Breakstone. Aprendera uma lição, que lhe dizia como era fácil um homem deixar-se possuir pelo mal, quando detinha demasiado poder sobre outra pessoa. Vira-o nos guardas em Hollow. A forma como começavam por ser indivíduos comuns e bem-intencionados, e a rapidez com que isso mudava. Após algum tempo, Deord deixara de se esforçar por fazer amizades entre os novos prisioneiros. Deixara de tentar ajudá-los a sobreviver. Ver os camaradas a tombar, um a um, enfraquecera a sua própria determinação. Por fim, na sua mente havia espaço para apenas uma coisa: um intenso desejo egoísta de sobreviver. Esqueceu o passado. Não via um futuro além do único pensamento, o seu talismã: fugir. Tornou-se cego para o presente, cheio de sangue, gritos e desespero silencioso. Por fim, surgira-lhe uma oportunidade e ele aproveitara-a. Sabia que, se tivesse desperdiçado a pouca energia que lhe restava a ajudar os outros, nem ele nem mais ninguém viveria para ver a liberdade. Não se permitiu sentir remorsos.
E Drustan: pobre, belo e triste Drustan, a gritar e a chorar na noite, Drustan, que não podia ficar sozinho por mais do que um breve momento, não fosse acabar com tudo... O que poderia ser feito por Drustan? Toda a compaixão que Deord suprimira como prisioneiro, deixava agora fluir enquanto carcereiro. Sabia o que o cativo fizera, um ato hediondo e imperdoável. Sabia da selvajaria de Drustan, da sua diferença, como talvez mais ninguém soubesse. Deord aprendera a ser forte de corpo e mente. Desenvolvera um autocontrole temível. Usava agora a sua força para conceder ao prisioneiro a pouca liberdade que podia ser obtida. Quebrava as regras de Alpin, mas com prudência, para que não fosse ministrado um castigo ainda mais duro àquele prisioneiro infeliz, o qual, apesar da maleita de que padecia, era um homem de raros talentos, grande encanto e vasto intelecto. Interrogou-se sobre se Alpin, em sete anos de visitas noturnas, alguma vez teria considerado a hipótese de consultar Drustan em assuntos de comércio, alianças, guerra ou gestão dos dois territórios bastante extensos que o irmão mais velho agora controlava. Nunca os ouvira a falar sobre tais questões. Parecia que Alpin decidira que os delírios do irmão significavam uma mente confusa, um certo grau de idiotia, apesar dos modos gentis e de um discurso habitualmente racional. Tornara-se cego à humanidade de Drustan.
Antes do amanhecer, Deord conseguiu levar Drustan a um estado de calma razoável. Levou-o para dentro, passou-lhe um cobertor sobre os ombros e convenceu-o a beber um copo de água. Para o conseguir, fora obrigado a prometer uma saída das muralhas, um breve rasgo de liberdade. Alpin estaria ausente, a caçar, bem como a maioria dos seus homens. Seria tão seguro como sempre, contanto que o passeio fosse breve e respeitasse as regras a que se obrigavam. Após a promessa, Drustan acalmara-se consideravelmente, a ponto de os pássaros terem descido do esconderijo a um canto do telhado, vindo alojar-se mais uma vez junto ao homem ruivo. Era um sinal infalível de que o ataque passara.
Nesse dia, o sol estava quente. Deord dobrara as vestes e deixara-as no chão, pousara o bordão ao lado das roupas e treinava os movimentos de uma forma de combate desarmado que aprendera havia muito com um marinheiro de pele dourada, num porto do sul. O exercício era fundamental para manter o corpo pronto a entrar em ação e para conservar a argúcia do espírito. No seu trabalho, nunca se sabia quando surgiriam problemas. Ensinara os movimentos a Drustan, a par de outras técnicas, pois sabia a rapidez com que um homem perdia a esperança quando deixava que o cativeiro lhe enfraquecesse o corpo. Não admirava que Drustan se conseguisse movimentar tão rapidamente, a ponto de assustar o irmão. Dada a força dos membros, não surpreendia que fosse capaz de saltar e agarrar-se à grade de ferro do telhado e depois içar-se. Talvez tivesse sido um erro permitir que Drustan aprimorasse o corpo de modo tão eficaz. Quando a frustração o enlouquecia, a força do cativo permitia que se prejudicasse ainda mais. Tal como fazia com todas as suas decisões, Deord ponderara sobre a que tomara. Sem a disciplina que praticavam juntos, Drustan teria morrido de desespero ao fim do terceiro Verão de cativeiro. Pelo menos era essa a opinião de Deord.
Quanto a Deord, tinham sido muitas as ocasiões, logo ao início, em que estivera prestes a desistir, a dizer a Alpin que não seria capaz de continuar o trabalho. Depois de Breakstone, estivera em casa apenas uma vez. Tentara. Um homem tinha de tentar. Mas não era capaz. <O período de trevas destruíra-lhe algo, qualquer coisa essencial para que um homem conseguisse ser marido, pai, irmão. Vagueara durante algum tempo. Depois surgiu Briar Wood e aquela incumbência estranha e imprevisível, e Deord nunca fora capaz de desistir. Drustan precisava dele e, para sua surpresa, ele próprio parecia necessitar de Drustan. Depois do sangue e do desespero de Breakstone Hollow, os deveres em Briar Wood davam-lhe algo que provar. O quê, não sabia ao certo. Talvez que, mesmo nas trevas, pudesse existir compaixão. Talvez apenas que os carcereiros não tinham de perder a capacidade para a bondade, nem os prisioneiros a esperança.
Deord rodopiou, pontapeou, bloqueou com um braço. Agora para o outro lado, baixando-se, rolando, erguendo-se ao mesmo tempo que se contorcia, a fim de se esquivar ao adversário imaginário. Nesse dia não se digladiaria com Drustan, pois era um momento de liberdade para o ruivo. Os grilhões jaziam no chão ao lado das vestes dobradas, da corrente meticulosamente enrolada. Dois pássaros estavam pousados lado a lado no ramo de um sabugueiro, a observar Deord a ensaiar os graciosos passos de combate. Não havia sinal de Drustan. Ele regressaria. Era esse o acordo. O prisioneiro reconhecia o perigo que representava para os outros. Não tardaria a voltar de livre vontade para as correntes e para a escuridão.
Faolan não teve a certeza de quem primeiro viu o outro. Estava a guiar o cavalo, avançando com bastante cuidado, agora que voltava a estar à vista das muralhas da fortaleza de Alpin, pois nelas continuava de guarda um certo número de guerreiros. O seu plano era utilizar uma certa abertura que descobrira, uma conduta de drenagem revestida a pedra que atravessava a muralha no lado sul. A partir daí, treparia um pouco, a fim de emergir, pelo menos assim o esperava, por cima do telhado gradeado das divisões que o irmão de Alpin partilhava com o guarda especial. A partir daí, improvisaria e esperaria que Deord não o trespassasse com uma lança antes de ter oportunidade de se identificar. Era arriscado, mas não em demasia. Faolan estava habituado a confrontar o perigo com as oportunidades.
Por alguns instantes, o sol cegou-o quando avançava por entre os vidoeiros. Levou a mão aos olhos para protegê-los e viu um relance de movimento na clareira ao fundo do carreiro, seguido da imobilidade repentina do outro homem, quando este se apercebeu de que já não se encontrava sozinho. Mais três passos e Faolan reconheceu o homem no espaço solarengo entre as árvores: Deord, com calças largas práticas e o tronco nu, e uma adaga de lâmina comprida na mão, que estivera vazia um instante atrás. Faolan continuou a aproximar-se, mas ergueu as mãos, continuando a segurar as rédeas do cavalo, em sinal de intenções pacíficas. A adaga permaneceu imóvel. O olhar sereno que sustinha o de Faolan era o de um homem tão ciente das suas capacidades que pouco ou nada receia.
— O que pretendes daqui? — perguntou Deord, quando Faolan se deteve junto ao bordão e à roupa dobrada. — A caçada já terminou?
— Alpin continua atrás dos javalis — respondeu Faolan, que prendia as rédeas a um ramo de um arbusto. — Fui o único a regressar, mas voltarei ao seu encontro assim que puder. Mais cedo do que esperava. Poupaste-me um percurso dentro de água fétida e a escalada de uma muralha. Podes baixar a adaga. — Enquanto falava, Faolan afastou o cabelo e virou-se um pouco, para que o outro homem pudesse ver a minúscula tatuagem em forma de estrela atrás da orelha direita, idêntica à marca que o próprio Deord ostentava no mesmo lugar.
Deord baixou a adaga e embainhou-a no cinto. Foi buscar a túnica.
— Já a tinha visto — disse. — Procurei-a quando vi a tua pose e uma certa expressão no olhar. Quando lá estiveste?
— Há muito tempo. Era jovem. E tu?
— Pouco antes de vir para cá. Há oito anos. Devo lá ter estado depois de ti. Não estás a fazer-me nenhum favor, vindo aqui. E se Alpin perceber que te vieste embora e enviar um grupo atrás de ti?
Faolan olhou-o calmamente.
— Por que haverias de ficar preocupado? — indagou. — Um homem pode dar um passeio no bosque no seu dia de folga, sem que tenha necessidade de olhar por cima do ombro não é verdade?
— Não sabes do que falas — replicou Deord. — Sejamos breves. Não tenho grande vontade que aqui estejas, mas parece que vieste falar comigo. Ou com Drustan. O que queres?
— Não te vou colocar em perigo. Espero que me ajudes, enquanto homem de Breakstone. O que me puderes dar, retribuirei na medida do possível. Quero informações. As minhas questões têm a ver com o teu mestre, Alpin, de Briar Wood. Tenho de confirmar se ele é um homem de palavra.
— Mestre? Não é o termo que utilizaria, bardo.
— O meu nome é Faolan. Deord Semicerrou os olhos.
— Eu sei. E és celta, da mesma raça dos que governam o inferno que ambos vivemos. Na verdade, és parecido com um ou dois dos indivíduos cujas gargantas vou abrir, se por acaso voltar a cruzar o meu caminho com o deles. Isso incomoda-me, Faolan. E acho interessante que tenhas vindo como músico de corte. Se essas mãos alguma vez usaram algum pedaço de tripa, acho mais provável que tenha sido para estrangular um inimigo do que para produzir boa música.
— Tenho vários talentos — replicou Faolan. — Quanto à minha linhagem, ela é irrelevante. Apenas devo lealdade ao homem que me estiver a pagar e, neste momento, esse homem é Bridei, Rei de Fortriu. Disseste que tinhas pressa. Enganei-me quando falei em dias de folga?
Deord exibiu um sorriso severo.
— Não tenho dias assim. Não há ninguém que me substitua.
— Percebo. — Faolan olhou para os grilhões no chão, para a corrente enrolada. — Não os tens, mas o teu prisioneiro sim?
— Sei o que estou a fazer — retorquiu Deord. — Não está longe e vai regressar em breve. Isso, se não tiveres metade dos homens de Alpin atrás de ti. O líder desta casa tem-te debaixo de olho, celta. Já deves tê-lo percebido.
— É verdade. Esta noite tentarei distrair esse olho, ao apresentar as minhas qualidades como bardo.
Deord sorriu. Parecia agora verdadeiramente divertido.
— Vai ser uma ceia interessante. Diz-me, onde é que a dama se encaixa, no meio de tudo isto?
Faolan sentiu-se a carregar o sobrolho, apesar do esforço que fazia para evitá-lo.
— Ela é exatamente o que parece — disse. — E sou eu que tenho as questões prementes. Imagino que tenhas conhecimento do tratado de cuja validade depende este casamento. És o único homem de
Breakstone que alguma vez encontrei fora daquele lugar. O único, para além de mim, que sei ter sobrevivido. Posso confiar na tua discrição? Que não vais falar desta conversa a Alpin?
— Surpreendes-me — disse Deord. — Se houve algo que aprendi naquele sítio, por certo não foi o altruísmo.
— Saímos de lá. Sobrevivemos. Continuar a sobreviver é o mínimo que devemos um ao outro.
Houve um silêncio, ao que Deord declarou:
— Tens a minha palavra.
Faolan aquiesceu em reconhecimento. Estava a ser assaltado por uma sensação cada vez mais estranha, como se o bosque em seu redor tivesse olhos fitos na sua pessoa. Talvez pudesse ignorar as lendas de bruxas, monstros e sortilégios, mas não havia dúvida de que Briar Wood era um local inquietante. Ficaria satisfeito quando tudo terminasse.
— O meu dever para com Bridei é garantir que Alpin vai cumprir os termos do acordo.
— Ele já concordou, não foi? Faolan não respondeu.
— Estás a perguntar-me se ele é um mentiroso? A mim, um guarda contratado? Decerto viste o pouco que convivo. Mal tive oportunidade de saber se ele prefere carne a queijo, quanto mais ter conhecimento das suas tendências políticas. Como posso julgar tal coisa?
— Talvez não possas. Mas, e quanto a Drustan? Um irmão deve conhecer bem o outro. Alpin não visita Drustan todas as noites, depois da ceia? Decerto terá algumas idéias.
— O meu trabalho é a segurança — indicou Deord. — O que se passa entre eles não me diz respeito.
Faolan suspirou.
— É pena — murmurou. — Se tivesses respostas, poderia sair daqui rapidamente e ter uma maior possibilidade de regressar antes que o grupo perceba a minha ausência. Não desejo atrair atenções indevidas, por razões que acredito que compreendas, guarda contratado ou não. Mas parece-me que terei de aguardar aqui até que o teu prisioneiro regresse. Se ele regressar. Quero saber o que ele tem a dizer-me sobre o líder de Briar Wood.
Deord era um homem cuja expressão e pose eram sempre de um controlo exemplar, mesmo nos momentos em que era obrigado a entrar em ação. Mas agora, pela primeira vez desde que Faolan aparecera, o homem parecia ansioso.
— Não podes ficar aqui — disse-lhe. — Há quanto tempo chegaste a Briar Wood? Pelos meus cálculos, vai para dois ciclos da lua. Tempo suficiente para que um homem do teu calibre se aperceba do temperamento de Alpin. És tolo se pensas que a tua ausência não vai ser notada. És um tolo suicida se ficares aqui mais do que o necessário.
— Então é bastante inconveniente que o homem por que és responsável não esteja aqui. Que as grilhetas que o prendem tenham sido abertas no dia em que o irmão se ausentou de casa.
— Espero que não nos estejas a ameaçar, bardo. — O tom de Deord era muito calmo. — A dama já tentou usar esse método para me extrair informações e não me preocupei muito. Se contares a Alpin onde nos encontraste hoje, vais estar a quebrar a tua própria regra. Acabaste de invocar Breakstone como razão para te ajudar. Agora estás a sugerir que vais trair-me.
Faolan não ouvira nada a partir de dada altura.
— O que disseste sobre a dama? — Percebeu a ansiedade na própria voz. — Como é que ela...?
— Andou a fazer um pouco de espionagem por conta própria — explicou Deord. — Pensei que te tivesse contado. Isso, é claro, se as damas e os seus bardos forem tão próximos como as pessoas dizem. Mas Alpin é um homem ciumento. Não prepares os punhos, celta. Tenho noção do teu caráter. Vocês dois deviam manter-se afastados da vida de Drustan. Ela já o instigou quanto baste, deixou-o agitado e imprevisível. Não venhas tornar as coisas ainda piores. Agora quero que partas.
— Quando? — exigiu Faolan. — Quando é que Ana andou a espiar? Onde esteve? Estás a dizer-me que falou com o prisioneiro? O que te perguntou? — Por tudo quanto era sagrado, como podia não ter percebido?
— Teve acesso a uma chave do local onde habitamos, pouco tempos depois da vossa chegada. Veio aqui, uma manhã cedo. Viu-me e a Drustan. Garanti que poucas fossem as palavras trocadas. Fiquei com a chave e disse-lhe que não regressasse, também pelo bem dela. Tenho a certeza de que Alpin nunca o veio a saber.
Faolan escutava, emudecido. Em redor da clareira havia movimentos: pássaros iam chegando e pousando nos ramos curvados dos amieiros, nas copas dos ulmeiros, não um bando homogêneo, mas muitas aves de espécies diferentes. Enquanto Faolan observava, uma carriça minúscula passou por ele, indo pousar ao lado dos outros dois pássaros que permaneciam imóveis no ramo perto de Deord, um cruza-bico e uma gralha. O cavalo de Faolan estava inquieto, revirando as orelhas e mexendo as patas na vegetação rasteira. Acima deles, nos ramos de um carvalho jovem, moveram-se asas de maior envergadura e uma plumagem castanho-avermelhada brilhou por momentos ao sol. Um falcão, os olhos de um brilho penetrante, fitava-os, instalado lá em cima. Os pássaros menores pareciam estranhamente ignorantes do perigo. Faolan sentiu os cabelos da nuca a eriçarem-se.
— A visita dela incomodou Drustan — dizia Deord. — Ele tem um humor instável. Perturbou-o. Não o quero novamente agitado. Não podes falar com ele. Da segunda vez, dei à senhora a informação que pude.
— Segunda vez — repetiu Faolan. — Quando foi isso?
— Há algum tempo, pouco depois de se terem encontrado. Ameaçou expor o nosso segredo se não lhe contasse a história toda. Ficou chocada por Alpin ter condenado o irmão a um encarceramento perpétuo. As mulheres têm o coração fraco. Não entendem tais assuntos.
— Ana ameaçou-te? Não pode ser verdade.
Deord recolhia a corrente e as grilhetas, parecendo fazer tenção de partir de imediato.
— Mesmo assim — disse —, foi o que ela fez, e acreditei que a ameaça fosse real, caso contrário não lhe teria dado o que queria. Não conheço a senhora como tu. Drustan contou-me que ela dormiu nos teus braços durante a viagem desde Breaking Ford. Talvez fosse uma ameaça vã.
— Drustan contou-te...?
— O teu segredo está a salvo conosco — declarou Deord com severidade. — Drustan vê o que os outros não conseguem. Fizeste o que tinhas de fazer. As noites são frias, aqui no norte. Ambos possuímos segredos perigosos, tu e eu, e agora temos conhecimento deles. Talvez Breakstone nos obrigue à ajuda mútua, mas não te darei informações que ponham Drustan em risco. Peço-te que vás. A tua sobrevivência depende disso, tal como a minha e a dele. Se tiveres oportunidade, pede à senhora que se afaste. Ele sonha com ela. Isso não o ajuda.
— Como pôde ele saber... ?
— Vai — ordenou Deord, as feições de súbito ameaçadoras. — Vai-te embora, celta. A tua presença coloca-nos a todos em risco.
Novamente aquela sensação terrível, de olhos à volta da clareira, a observar, à espera, tensos com a antecipação. Faolan apercebeu-se de que sustivera a respiração. Abriu a boca para falar e depois recuou quando o falcão mergulhou até ficar a um palmo do seu rosto, com um sussurro das asas graciosas, todo ele bico e garras afiadas. Faolan levantou as mãos involuntariamente, fechou os olhos e deu um passo atrás. O cavalo relinchou. Quando Faolan voltou a abrir os olhos, havia um segundo homem ao lado de Deord. A gralha e o cruza-bico continuavam imperturbáveis no seu poleiro. A carriça minúscula que vira antes fora instalar-se nas madeixas ruivas revoltas do recém-chegado. Do falcão, não havia sinais. Faolan respirou fundo a custo, sem saber se o que acontecera não passara de imaginação, de um truque bem feito ou de algo que nunca julgara possível: a manifestação de magia verdadeira. Estava sem palavras.
— Senta-te um pouco, Drustan — indicou Deord calmamente. — Recupera o fôlego. Como podes ver, temos uma visita. Não é uma ameaça. Na verdade, estava mesmo de partida. — Depois, virou-se para Faolan enquanto o homem de cabelo ruivo se sentava num ramo caído, as pernas compridas esticadas à sua frente. — É melhor partires. Ele vai estar enfraquecido e confuso durante algum tempo. Não vai ser capaz de falar contigo. Isto exige-lhe muito. Assim que recuperar, teremos de voltar. Peço-te novamente que partas. Como homem de Breakstone, deves compreender a importância destes preciosos momentos de liberdade, e o que significaria perdê-los. — Deord inclinou-se e levou a mão ao ombro de Drustan, ao que disse algumas palavras reconfortantes. O ruivo tremia, uma vibração rápida e febril que lhe percorria o corpo. Mas, quando ergueu a cabeça e se voltou para olhar Faolan, os olhos tinham um brilho penetrante e uma inteligência quase assustadora.
Faolan não conseguiu invocar uma única palavra. A sua mente esforçava-se por explicar o que acontecera ali, por unir as peças, a fim de lhe permitir encaixar o que se passara na sua visão pessoal do mundo. Foi invadido por recordações: o encanto de ocultação de Bridei, um feitiço invocado para retirá-los de uma fortaleza, durante a madrugada. Uma visita arrepiante a um local conhecido por Espelho Negro e o estranho surgimento de um pequeno cão, vindo das águas profundas.
Com efeito, não era o seu primeiro encontro com forças para além do explicável. Mas era algo mais do que as anteriores manifestações. Delírio, ataques de insanidade, isso conseguia entender. Mas, um pássaro que se transformava em homem? Isso era matéria de narrativas fantasiosas, de baladas antigas de maravilha e feitiçaria. Tinha a sua conta dessas histórias. No folclore da sua terra natal havia relatos de princesas transformadas em cisnes, de uma bela dama enfeitiçada na forma de uma mosca, ou de criaturas que eram parte uma coisa e parte outra completamente diferente. Mas aquilo, ali, naquele momento, à frente dos seus olhos... Uma revelação era bastante óbvia: fosse o que fosse, não era loucura.
— Eu espero — disse, e agachou-se ao lado do homem ruivo. Drustan esforçava-se por controlar a respiração e por evitar cãibras, esticando os membros, movendo os dedos, rodando os ombros com cuidado. Faolan sentiu uma pontada momentânea de inveja: qual o homem que nunca sonhara em voar?
— És o companheiro de viagem dela — disse Drustan. A voz era calma mas forte. Parecia totalmente controlada, embora continuasse a exercitar o corpo, flexionando os braços e as pernas e movendo o pescoço, tal como faz um homem após um exercício violento. — O protetor nas pequenas fogueiras, à noite. Parte músico, parte espião, parte assassino. Protegeste-a bem.
— Drustan. — A voz de Deord oferecia um tom de aviso. — Temos de nos apressar. Aqui o nosso amigo Faolan deixou o grupo do teu irmão às escondidas e tem de regressar antes de chamar a atenção. Nós dois temos de voltar ao interior das muralhas, antes que alguém venha à procura.
Drustan olhou-o e depois virou a cabeça na direção dos dois pássaros empoleirados ali perto.
— Vão — disse e, num abrir e fechar de olhos, ambos alçaram vôo na direção das profundezas sombrias de Briar Wood. Olhou para Faolan. — Vão trazer-nos avisos, se forem necessários — indicou. — Aqui a menor — disse, apontando para a carriça que continuava instalada no seu cabelo — vai acompanhar-te. Arriscaste-te.
— Tal como tu e o teu guardião — replicou Faolan, interrogando-se sobre como poderia alguém considerar louco aquele homem cortês e de palavras gentis. — Diz-se que Alpin declarou que nunca poderias sair. Que estás acorrentado dia e noite.
— Quando me vê, estou acorrentado. Quando me vê, estou no interior daquelas paredes que ordenou que me rodeassem. O que queres de mim, Faolan?
— Já sabes o meu nome. Imagino que não devas ficar surpreendido com isso. Pareces saber mais do que deveria ser possível. O que és tu, uma espécie de mago?
Drustan sorriu. O rosto assumira uma beleza rara, transformado por uma luz quase sobrenatural. Faolan não tinha por hábito avaliar as pessoas ou os objetos segundo padrões de beleza, com talvez uma única exceção. Regra geral, julgava as suas experiências unicamente pela posição que assumiam na balança dos riscos e das oportunidades da missão que tivesse entre mãos. Em tempos, valorizara a beleza. Em determinada altura da vida, deixara de ter qualquer significado. Por tudo isso, as feições daquele homem eram cativantes. Por instantes, faziam com que as pessoas se esquecessem de respirar.
— Não sou mago. Possuo certas capacidades. Vejo por mais olhos do que os meus. De certo modo, viajo, mesmo limitado pelas paredes de uma prisão. Quando Deord o permite, aproveito os meus momentos de voo. Entro no outro lugar apenas nessas ocasiões. Mudar de forma dentro das barreiras apertadas impostas pelo meu irmão poderia ser desastroso. Eu e Deord concordamos que deveríamos evitar tal risco. Estas transformações estão cheias de riscos. Se Deord fosse menos compassivo, não as permitiria. Nesse caso, enlouqueceria mesmo, pois fazem tão parte de mim como a minha mente ou o meu coração. Gostaria de te pedir um favor, Faolan.
— Um favor? — Faolan nem imaginava o que poderia ser. Ainda se esforçava por apreender o fato de que a sua própria existência e a daquele ser de olhos brilhantes e palavras gentis, parte homem, parte criatura, pudessem coexistir no mesmo mundo. — Pede-o. De minha parte, tenho algumas perguntas a fazer-te.
— Irei ajudar-te, se puder. — Drustan levantou-se, um pouco hesitante. Era mais alto do que Faolan por uma cabeça. Com efeito, assemelhava-se ao irmão, que era um homem imponente. Mas tudo o que era grosseiro, rude e carregado na aparência de Alpin parecia assumir uma diferença subtil na do irmão: os olhos de Drustan eram maiores, o nariz mais estreito, a boca mais delicada. A juba de cabelo exuberante, ruivo, enquanto a de Alpin era de um castanho-baço, parecia refletir o Sol, brilhante de vida e cobrindo os ombros largos. Embora alto, não era um homem robusto como Alpin, mas muito bem proporcionado e de constituição atlética. Os músculos eram impressionantes. Como teria um homem aprisionado havia sete anos conseguido desenvolvê-los, interrogava-se Faolan.
— O que desejas perguntar? — continuou Drustan. — Temos de ser rápidos. Os avisos de Deord são assisados.
Deord silenciara-se, dando por findos os protestos. O equilíbrio do poder alterara-se com as primeiras palavras de Drustan. Faolan já não tinha dúvidas de que era o ruivo quem controlava a situação. Isso fê-lo hesitar.
— Desejas questionar-me sobre o meu irmão?
O indivíduo era astuto. Na verdade, havia uma questão que destronava as restantes.
— Vi o que aconteceu, a forma como mudaste. Se consegues transformar-te de homem em pássaro, de pássaro em homem, a teu bel-prazer, por que razão ficas aqui? Por que não voas para longe do teu irmão? Ninguém poderia encontrar-te.
A expressão de Drustan alterou-se, parecendo fechar-se em si próprio.
— Não posso — retorquiu. — O que fiz aconteceu comigo na outra forma. Por vezes, quando regresso, não me lembro claramente dessas alturas. Quando estou no outro lado, muitas vezes apenas tenho recordações vagas do meu estado humano. Seria uma irresponsabilidade arriscar a repetição de tal ato. Não posso ser libertado mais do que os breves momentos que Deord me concede.
— Segundo me pareceu, tens consciência suficiente para regressar a Deord, e para fazê-lo de imediato. Talvez estejas a subestimar-te.
— Desenvolvi um controlo maior, é verdade — admitiu Drustan. — Mas não vou arriscar a segurança dos inocentes pelo bem da minha própria liberdade. Matei uma vez e regressei sem memória do fato. Qual o homem que poderá garantir que não voltará a acontecer? Além disso, não sou uma criatura selvagem, sou um homem com uma certa... diferença. Não posso viver o resto da vida na outra forma.
— Percebo — disse Faolan, dividido entre a admiração pela força de vontade de Drustan e o espanto por ele ter feito tal escolha.
— Não é essa a questão que desejavas colocar — indicou Drustan.
— É sobre Alpin — disse Faolan. — Concordou com um tratado. Conheces a situação entre Fortriu e Dalriada? Já devias ter sido feito prisioneiro quando Bridei foi eleito rei...
Drustan anuiu com gravidade.
— Sei em que ponto está a situação. O meu território, o Vale dos Sonhos, a ocidente, possui uma localização estratégica em relação ao domínio Celta. Isso faz do meu irmão uma pessoa muito popular. Tanto Dalriada como Fortriu têm motivos para o adular, para lhe oferecer incentivos.
— Com efeito — concordou Faolan, aliviado por o seu instinto se mostrar correto. Aquele homem tinha consciência do que perdera quando o irmão o declarara insano e o fechara. — Desta vez é um incentivo raro, na forma de uma jovem com o sangue real dos Priteni, o que significa que o filho de Alpin poderá um dia vir a ser rei de Fortriu. Em troca desta noiva, o teu irmão aceitou um tratado. A garantia de que não atacará Bridei a partir de qualquer um dos territórios, Briar Wood e o Vale dos Sonhos, a par da promessa de não se aliar a Gabhran, de Dalriada.
— É o que se poderia esperar — acrescentou Deord. — É óbvio onde reside a ameaça a Bridei: no ancoradouro ocidental.
— Os Celtas estiveram aqui? — perguntou Faolan sem rodeios, pois o tempo escasseava. Não seria preciso uma eternidade para encurralar e matar um javali e levar a carcaça de volta ao acampamento. — Também apresentaram uma proposta?
Deord e Drustan trocaram olhares.
— Não posso dar-te essa informação — disse Drustan. — Alpin é meu irmão. O sangue implica uma certa lealdade. Espero que não me peças que o deixes vulnerável.
— Se recebemos a visita de um emissário de Gabhran — indicou Deord —, ocorreu em segredo. Alpin não é burro. — A expressão no seu olhar convidava Faolan a interpretar as palavras cuidadosas como bem lhe aprouvesse.
— Entendo. Devem compreender que tenha de garantir que Alpin vai cumprir a sua palavra. Não deixarei Lady Ana aqui até ter a certeza de que ele cumprirá os termos do acordo.
— Tu não vais deixar? — indagou Deord, calmamente.
— Sou o emissário de Bridei — explicou Faolan. O instinto dizia-lhe que podia confiar na palavra de Deord, a palavra de um homem de Breakstone, selada pelo sofrimento. No caso de Drustan, seria obrigado a arriscar. — Quando chegamos, as circunstâncias levaram Ana a dotar-me de outra identidade. Os modos de Alpin não transmitiam uma garantia de segurança. A dama acreditou que a minha vida corria perigo.
— Tal como neste momento, caso não regresses à caçada — adiantou Deord.
— As regras de Alpin são duras para quem visita a sua casa.
— O que farias... — a voz de Drustan assumira um tom muito baixo e o ruivo já não olhava Faolan, fitando agora a floresta. — O que farias, se te dissesse que julgo que o meu irmão fará as suas escolhas independentemente de qualquer juramento? Levarias Ana para longe de Briar Wood?
— Drustan... — Deord tentou interromper, mas a atenção de Faolan encontrava-se no rosto de Drustan. De repente, a expressão transformara-se na de um homem desesperado. Sentiu um arrepio na espinha.
— Se tivesse a certeza de que tal era verdade, garantiria que o casamento nunca teria lugar — declarou cuidadosamente. — Sim, iria levá-la de volta ao Monte Branco. Não deixaria que se sacrificasse por uma aliança que não passaria de um embuste.
— Sacrificasse... — o tom de Drustan transformara-se num murmúrio.
Faolan não disse nada. Não confessaria, nem mesmo a um homem de Breakstone, que parte de si queria que Alpin fosse um vira-casaca, desejava que o tratado se revelasse inútil, para ter uma razão para impedir o casamento. Não admitiria o quanto ansiava por levar Ana de regresso a casa, onde poderia sorrir, cantar e rir-se, onde teria uma cama à sua espera, que não seria obrigada a partilhar com aquele imbecil rude que apenas a magoaria e aviltaria. Esses pensamentos nunca seriam postos em palavras, pois menosprezavam a missão que Bridei lhe confiara. No fim de contas, a lealdade a Bridei era tudo o que interessava.
— Ama-a — disse Drustan, os olhos brilhantes presos aos de Faolan. Faolan sentiu as palavras gelarem-lhe o coração. Pela primeira vez, a expressão que via no rosto de Drustan era claramente perigosa.
— Conta-nos a verdade — disse Drustan. — Não te ajudaremos se nos mentires. Não temos paciência para esses jogos.
Faolan respirou fundo.
— Sou um guarda-costas contratado — explicou, olhando para Deord. — Trabalho para ganhar a vida. Bridei paga-me. Aceitei esta viagem como protetor da senhora e como emissário pessoal do rei pois, por estranho que pareça, ele parece julgar-me adequado ao trabalho. Que um homem como eu nutra o tipo de sentimentos a que te referes, especialmente quando a donzela em questão é do sangue real dos Priteni é... — Não tinha a certeza do termo mais adequado: risível? Patético?
— É a verdade — concluiu Drustan. — Tens as tuas próprias razões para quereres ver este casamento impedido. O teu instinto está correto. Mas não te direi que o meu irmão é um mentiroso. Lesei-o profundamente. Não agravarei as coisas espetando-lhe uma faca nas costas.
— Alguma vez te ocorreu — aventou Faolan, irado por o seu interlocutor ter aberto uma ferida numa parte de si que julgava intocável —, que é muito conveniente ao teu irmão que sejas considerado incapaz de gerir os teus bens? Que lhe é bastante favorável ter-te afastado do mundo da estratégia, do comércio e das alianças? Que lhe é útil controlar aquele domínio tão bem situado na costa ocidental, bem como o seu próprio território vasto e exército poderoso? Não admira que os poderosos o adulem com ofertas. Isso não te incomoda, quando acordas durante a noite, Drustan?
Drustan fitou-o, os olhos límpidos como lagos florestais a céu aberto. A fúria desaparecera.
— Tenho vontade de regressar — disse. — Que tudo volte a ser como antes. Mas o passado não pode ser desfeito. Depois de amarmos, o nosso coração não volta a mirrar. Depois de matarmos, o nosso espírito carrega em si essa mácula eterna. Nunca regressarei à minha casa do ocidente. Bani-a de vez dos meus sonhos.
A gralha fez um vôo rasante e Faolan conseguiu não recuar. O pássaro aterrou no ombro esquerdo de Drustan com um dobrar de asas gracioso.
— Parte agora — indicou Drustan — e terás tempo de voltar ao grupo sem ser visto. Se esperares mais, Alpin vai decerto notar a tua ausência e o teu regresso. Não te arrisques. Ele é um homem violento.
Faolan não quis saber que tipo de comunicação silenciosa tivera lugar entre homem e pássaro. Tal ia muito além da sua compreensão. Montou a cavalo e depois lembrou-se de qualquer coisa.
— Disseste que tinhas um favor a pedir-me — disse a Drustan.
— Peço-te que não contes a Ana o que viste aqui — rogou Drustan, os olhos de súbito sem expressão. — Não quero que ela saiba desta... maleita.
Foi algo inesperado e bastante estranho.
— Duvido que tenha oportunidade de dizer seja o que for de relevante à senhora — indicou-lhe Faolan —, pois Alpin não aceita que um homem sequer olhe para ela de forma incauta. Desde que estamos em Briar Wood que ainda não falei com ela a sós.
— Não lhe contes. Quero a tua palavra. — A voz de Drustan assumiu de repente um tom férreo. A mudança era alarmante.
— Muito bem, prometo. Se ela passar a viver aqui como esposa do teu irmão, eventualmente acabará por descobrir, mesmo que eu não veja que isso seja importante... Mas sim, tens a minha palavra. — Era o mínimo que poderia conceder, pois Drustan dera-lhe melhores respostas do que as esperadas. Mesmo assim, o encontro deixara-o perturbado e isso não se devia apenas à estranheza do que testemunhara. — Disseste que o assassínio macula um homem — continuou, respirando fundo. — Deixaste claro que julgas que ficar preso o resto da vida é um castigo justo pelo que fizeste. Estive algumas luas encarcerado. Antes de Breakstone, apenas tinha morto um homem. Apenas um. Mas o que fiz destruiu a minha família. Acabou com tudo o que dava sentido à minha vida. Foi um crime inenarrável. A seu lado, o teu delito é algo menor. Na verdade, a minha estadia na prisão dos Uí Néill não se deveu ao crime, mas simplesmente à minha recusa em colaborar. Aqui o teu guardião — indicou, com um aceno para Deord, um sinal de respeito e de reconhecimento — sabe pela experiência que partilhamos como é fácil um homem cair em desgraça ante os poderosos chefes de Ulaid. Carrego comigo a marca do que fiz. Mudou-me para sempre. Não me impediu de viver um certo tipo de vida. Talvez te julgues com demasiada severidade. Talvez o teu irmão seja menos justo do que pensas.
— Vai — foi tudo o que Drustan replicou. — Vai, enquanto ainda podes.
À medida que se dirigia à floresta, o coração de Faolan martelava-lhe no peito como um tambor de guerra. Esforçou-se por abrandar o seu ritmo, por acalmar a respiração e por se preparar para o ressurgimento discreto entre o grupo de caça de Alpin. Fez por voltar a encerrar os fantasmas na zona mais profunda da sua mente, a parte que estivera tanto tempo fechada que o levara a pensar que talvez pudesse ter começado a esquecer. Fora a primeira vez em muitos anos que falara sobre aquele dia, a única vez. Agora estavam todos a seu lado, a mãe, lívida, o pai, em silêncio, Aine, os olhos arregalados e aterrorizada, na sua camisa de noite. E Dubhán. Dubhán a sorrir e a dizer, Fá-lo, e depois o sangue.
Regressavam finalmente a casa, levando em triunfo as carcaças de dois javalis, as bocas escancaradas e a pelagem coberta de sangue. Ludha acercara-se da ama, montada num pônei robusto. As feições jovens ostentavam um ar preocupado.
— Estás muito pálida, minha senhora. Sentes-te indisposta? Tendo em conta o espetáculo horrendo e agitado da matança, as manchas de sangue no rosto de todos os homens envolvidos e as cãibras que começava a sentir na barriga, Ana pensou que não seria de espantar que tivesse uma aparência menos aprumada. Felizmente, ainda não começara a sangrar. Pelo menos, seria capaz de regressar à fortaleza antes que a dor se tornasse excruciante.
— Estou bem — garantiu e, quando Alpin se virou para elas, conseguiu esboçar um sorriso franco para o futuro marido.
— Esta noite deverá ter lugar um belo festim, meu senhor — observou Ana.
— Apreciadora de javali assado? — As manchas de sangue nas feições de Alpin estavam a secar e assumiam um tom de castanho quase idêntico ao da barba. — Sim, vai ser uma noite de grande festividade. É pena que não possa acabar com uma celebração mais pessoal, só nós dois, um lume agradável no quarto, um cobertor ou dois, um jarro de hidromel condimentado... Por uma noite assim, esquecia de bom grado o porco assado e os acompanhamentos. O que dizes? — Estendeu o braço e levou a mão enorme à coxa de Ana, que apertou. A jovem conseguiu não gritar de dor.
— Parece-me... agradável, meu senhor. Infelizmente, receio que deva estar indisposta. Começo a sentir cãibras na barriga. O habitual...
— Mm-mmm — resmungou Alpin, claramente embaraçado. — É pena. Se tiveres de faltar à ceia, vais perder a música. O teu bardo... onde é que ele está, ah, ali, com os outros criados... prometeu-me uma bela descrição da caça e da matança de hoje, cantada com acompanhamento da harpa. Há anos que não temos esse tipo de entretenimento por aqui. Não que eu não prefira o outro. És uma mulher bela, Ana. Gostava que o malfadado do druida chegasse. Estou a ficar cansado de esperar.
— Vou fazer um esforço por comparecer no salão para a ceia — disse Ana, que não gostou da expressão nos olhos de Alpin. — É merecido, pela coragem que demonstraste na caçada. É óbvio que és excelente nessa atividade.
Alpin exibiu um sorriso rasgado e deu uma palmada na coxa. — Sou mesmo, minha querida. E em breve vais descobrir que não é o único passatempo para o qual tenho talento. Não é verdade, rapazes?
Ana mal ouviu as gargalhadas dos homens. Pouco espaço tinha na mente para Alpin, para o casamento ou para o tão importante tratado. Pesasse embora a sóbria avaliação feita por Deord no que dizia respeito à situação de Drustan, e o reconhecimento de culpa por parte do próprio Drustan, Ana continuava sem acreditar que o irmão de Alpin tivesse feito tal coisa. Ana sempre se considerara uma pessoa equilibrada, que tomava as decisões de forma calma e ponderada. Sabia que estava a pensar como uma jovem tola que desperdiça a vida por amor. Contudo, era incapaz de parar de pensar em toda a situação: Drustan, o assassinato, aquele dia estranho... Havia uma testemunha. Bela, a idosa, estivera lá. Se pelo menos a encontrassem... Se Bela confirmasse o relato de Alpin, Ana iria aceitá-lo. Acomodar-se-ia, casaria com Alpin e dar-lhe-ia os filhos que ele desejasse. Teria o futuro que sempre soubera estar à sua espera. Se Bela contasse uma história diferente... arrepiou-se. O seu futuro era imutável. A culpa ou a inocência de Drustan não afetaria o casamento, nem o tratado, nem o fato inegável de que o druida chegaria em breve e que não haveria desculpa para adiar mais a cerimônia. Se, por algum motivo, Drustan viesse a provar-se inocente, seria libertado do encarceramento. Tal seria um alívio para o coração da jovem. Mas não lhe mudaria o futuro, não poderia fazê-lo. Tinha de deixar de pensar no outro futuro, no doce e maravilhoso futuro que via nos sonhos que tinha desde que o irmão de Alpin a cativara com a sua voz gentil e os seus olhos brilhantes. Com o corpo elegante. Tais pensamentos eram deveras arriscados. Teria de eliminá-los.
O rei Bridei e o seu druida Broichan celebraram o festival do solstício do Verão no Monte Branco. O povo falaria desse ritual como um dos maiores e mais arrebatadores alguma vez vistos. Que melhor altura do ano para invocar o poder da guerra do que o dia em que o Guardião das Chamas atingia o auge e a forma do ritual honrava todos os homens pela sua bravura, sabedoria e vigor?
Completada a cerimônia, o ano dirigia-se rapidamente ao festival da Reunião, mas seriam os idosos, os rapazes e as mulheres a trazer a colheita da estação. De todos os cantos de Fortriu, grupos de guerreiros deram início a um movimento rigidamente controlado em direção a Dalriada. Era como uma maré que se deslocava para ocidente, regulada com a subtileza possível aos vários líderes, pois quanto mais os Celtas permanecessem ignorantes dos planos de Bridei, maiores as hipóteses de um sucesso retumbante quando por fim os dois velhos inimigos se encontrassem.
A envergadura da demanda de Bridei era de tal ordem que até mesmo um líder guerreiro experiente hesitaria ante a sua visão. Carnach liderou uma enorme força conjunta a partir de Caer Pridne, antiga sede dos reis de Fortriu. Os seus próprios guerreiros de Thorn Bend, na fronteira com Circinn, encontravam-se entre os que marchavam sob o seu comando, mas um grande número de outros chefes tribais viera juntar-se a ele, trazendo consigo guerreiros bem treinados. Esses homens tinham apenas precisado do treino ministrado no acampamento a norte para ficarem prontos para a batalha. Wredech, primo do velho rei, partiu ao lado de Carnach, com um bando de arqueiros excepcionais que envergavam as suas cores.
Talorgen regressara a casa, na Fonte do Corvo, às margens do Lago da Donzela. Na altura combinada, levou o exército pessoal na direção oposta à que os Celtas poderiam esperar, dirigindo-se para noroeste, por entre passagens desertas e vales solitários, até um certo domínio costeiro, onde um líder tribal chamado Uerb tinha vindo a preparar navios e a treinar homens para os navegar. Nas terras inóspitas a norte de Grande Vale, erguiam-se os imponentes desfiladeiros chamados as Cinco Irmãs. De um acampamento remoto nessa região, Fokel de Galany, líder deposto de um território dominado agora pelos Celtas, enviou a sua força mais reduzida, com uma missão específica. Esses guerreiros tinham desenvolvido capacidades particulares durante os longos anos de exílio: perícia como caçadores e batedores, capacidade de percorrer grandes distâncias em terrenos difíceis rápida e secretamente, o dom de encontrar soluções originais para problemas aparentemente impossíveis. Havia quem julgasse questionáveis os métodos de Fokel. Os resultados falavam por si.
Bridei partiu sem fanfarra. Haveria tempo para discursos inflamados e para ações heróicas e, nessa altura, invocaria ambos. Um rei tinha de estar pronto para isso. A partir do momento em que tomou a decisão e deu ordem para iniciar o avanço, tornou-se mais um líder de guerra do que um monarca, tendo partido da forma que um guerreiro experiente o faz, com o mínimo de alarido. A maior parte do exército de Fortriu já se encontrava em andamento. O rei partiu com uma companhia de doze homens de armas, muitos deles velhos amigos da casa de Broichan, em Pitnochie, e vários outros homens de habilidades especiais. Bridei levou Breth como guarda pessoal. Os homens de Pitnochie providenciariam apoio. Garth implorara para ir, dando como argumentos que a sua capacidade de combate seria desperdiçada no Monte Branco, que fora um servidor leal durante mais de cinco anos, que qualquer verdadeiro homem de Fortriu devia aos deuses a participação em tal empresa. Que o braço que empunhava a espada tinha sede de um pescoço celta ou três. Bridei frisou, gentil mas firmemente, que, se Garth também o acompanhasse, não restaria um único dos seus homens de confiança no Monte Branco para proteger Tuala e Derelei. Não poderia avançar descansado se Garth ou Breth não cumprissem esse dever, pelo menos até que Faolan regressasse, e ninguém sabia quando tal viria a acontecer. Garth não teve de perguntar por que motivo fora Breth o escolhido. Garth tinha mulher e filhos. Breth não tinha ninguém.
— Confio em ti como amigo. Sei que és o homem adequado a esta tarefa especial — dissera o rei calmamente. — Guarda bem os meus amados e protege os teus.
— Sim, meu senhor. — O guarda-costas dera um abraço breve ao monarca. Eram velhos amigos. Assim ficou concluído.
Abaixo das muralhas íngremes do complexo fortificado do rei, as encostas do Monte Branco eram densamente arborizadas. Do ponto onde Tuala se encontrava com o filho nos braços, observando com os olhos secos a partida do marido para os perigos e incertezas da guerra, o carreiro apenas se deixava ver por uma curta distância. Viu Bridei olhar na sua direção e erguer a mão em despedida. O rei sorriu. No instante seguinte desaparecia, o cavalo, Snowfire, a tornar-se uma mancha pálida por entre o verde. Ban corria de um lado do terraço para o outro, a ganir em angústia. Era óbvio que só queria desobedecer à ordem do dono e segui-lo. O seu coração, bem maior do que o corpo diminuto, tê-lo-ia feito correr ao lado de Bridei para o meio da batalha.
— Papai — disse Derelei, enquanto se debatia para que o pousassem.
— O papai foi-se embora — disse-lhe Tuala. — Agora vamos para dentro, sim? — E, sem esperar por uma resposta, virou-se de repente e percorreu o terraço, o filho nos braços.
— Não vai chorar à frente de ninguém — comentou Fola com o velho amigo Broichan, de pé a seu lado a observar o grupo de Bridei a desaparecer na sombra dos pinheiros. — Ferada deve chegar esta tarde. Mandei chamá-la. Vem de Banmerren com uma escolta. Não é bom que Tuala guarde tudo dentro dela. Precisa de uma amiga.
— Mm — murmurou Broichan. Era evidente que não escutara uma palavra do que a companheira dissera.
— Surpreendes-me. — O tom de Fola era neutro.
— O quê? — Agora estava a ouvir.
— Estava certa de que irias com ele. Não é apenas o sonho dele que está a ser realizado, mas também o teu. Este empreendimento é tudo por que trabalhaste durante os anos em que o educaste. Entraste em combate muitas vezes, ao lado de Drust, o Touro, e deste-lhe bons conselhos. Nestas alturas, um rei precisa do seu druida.
— Passaram-se anos desde que Drust foi rei e ainda mais desde que entrou em combate — disse Broichan, com um tom definitivo.
— E contudo — replicou Fola, apoiando as mãos pequenas e delicadas no muro à sua frente —, não és velho.
Broichan permaneceu em silêncio, enquanto fitava a distância por cima das árvores. Sempre fora um homem que se obrigava a um controlo rígido, cujos pensamentos e sentimentos ocultava mesmo dos que lhe eram próximos. Poucos o eram. O filho adotivo, Bridei, era uma dessas pessoas, e Fola era outra.
— Se tivesses dado a saber antes que não ias acompanhar Bridei — disse-lhe a mulher sábia —, os druidas poderiam ter encontrado um homem mais jovem e mais apto para te substituir.
— Mais apto?
Fola olhou o velho amigo. Os olhos escuros eram perspicazes, sendo pouco o que lhes escapava.
— Não creio que seja a idade que te impede de fazer parte desta investida heróica para ocidente — disse gentilmente —, mas algo diferente. Algo que ocultaste até mesmo de Bridei e que tens relutância em assumir publicamente, pois considera-o uma forma de fracasso.
Outro silêncio. Fola reparou na ligeira tensão das mãos de Broichan nas ameias.
— Conhecemo-nos há muito tempo, meu caro — disse Fola. — Se estás enfermo devias contar-me. Talvez possa ajudar-te. Temos uma herbolária muito competente em Banmerren. Gostava que Uist continuasse conosco. Tirando as tuas, as mãos dele não tinham rival a curar.
— Estou muito bem. Não fiques agitada, Fola.
— Agitada? — repetiu, as sobrancelhas erguidas. — Alguma vez me viste agitada? Apenas sugiro que reconheças o que tem vindo a tornar-se cada vez mais evidente para mim e para Tuala, e que tomes medidas quanto a isso.
— Tuala? O que tem isto a ver com ela?
— Não fales assim, Broichan. Ainda não fizeste as pazes com a rapariga, depois de tantos anos?
— Nem me apercebi de que estávamos em guerra.
Fola suspirou. — Já há bastante tempo, Tuala comentou que julgava que estivesses em sofrimento. Que talvez a tua saúde não estivesse bem. Tinha noção de que o querias ocultar de Bridei. Nunca falou do caso com ele.
— Trocamos algumas palavras sobre Derelei e o eventual treino da criança. Parece que ela me compreendeu melhor do que julguei.
— Por que será que, ainda agora, vocês dois não confiam um no outro? Por que não se tornam amigos?
— Não há necessidade. Somos de mundos completamente diferentes.
— Tolices — retorquiu Fola com brusquidão. — Receiam-se mutuamente, não por isso, mas exatamente pela razão oposta. Nela reside um grande talento. Tive um breve vislumbre do seu potencial quando esteve entre nós, em Banmerren. Devido à posição que detém aqui, nunca vai permitir-se empregar os seus poderes em público, algo que eu compreendo, pois tem de se proteger, e a Bridei, da influência corrosiva dos boatos e das insinuações. Por tua causa, não utiliza as capacidades de adivinhação e de augúrio, nem mesmo em privado ou entre amigos de confiança. Receio que isso nos prive de uma ferramenta que faria toda a diferença no futuro.
— Disparates. Então e tu e as mais capazes das tuas sacerdotisas em Banmerren? Então e os druidas da floresta? Por que precisaríamos da intervenção de uma... uma dos Outros?
— Nem mesmo eu sou capaz de invocar as visões de uma taça de vidência a meu bel-prazer — replicou Fola. — A minha escolha limita-se à interpretação do que me é mostrado. A capacidade de Tuala vai mais além. Há uma certeza inquestionável no que faz. Nessas alturas, é possível pensar-se nela como um canal direto para a deusa.
Broichan cruzou os braços, as feições ossudas a formar uma máscara implacável. — É um talento natural — disse —, sem controlo, ingênuo e perigoso. Reconheço a sua lealdade para com Bridei e para com a criança. Não irei negar esse laço. Mas não podemos ignorar as suas origens. Não pertence à nossa espécie. A sua própria natureza é imprevisível. Mais valia confiar nas visões de um fogo-fátuo.
— Onde julgas que Derelei foi buscar as habilidades sobrenaturais, Broichan? Por que razão consegues encontrar espaço no coração para ele, já para não falar do tempo que lhe dedicas todos os dias, se tratas a mãe com palavras de desprezo? Se Tuala não teve acompanhamento, de quem é a culpa? Esteve conosco em Banmerren menos de um ano. Esteve em tua casa perto de treze. Pensa no que lhe poderias ter ensinado.
Após um momento, o druida disse:
— O que tenho para transmitir iria perder-se numa rapariga. Elas absorvem conhecimentos durante algum tempo mas depois, quando têm idade para marido e filhos, perdem o interesse. — O tom da sua voz era desdenhoso.
— A filha de Talorgen já provou que estás errado — retorquiu Fola. — Possui ambições para a sua escola e para ela própria e está empenhada em recuperar o tempo perdido. Neste momento tem construtores a trabalhar e espera as primeiras alunas no Outono. Ferada poderia ter-se casado, e um bom casamento, por sinal. Escolheu outro caminho.
Broichan ergueu as sobrancelhas numa expressão de desdém.
— Se fosse homem de jogos — disse —, apostaria uma mancheia de peças de prata em como Ferada vai aceitar a proposta de um chefe bem apessoado em menos de dois anos e abandonar o projeto da educação das mulheres. Se acreditasse que levaria o seu intento a bom porto, nunca teria consentido o plano dela. As jovens são todas iguais: no fundo, o que mais querem é um lar e uma família.
— Não foi essa a minha escolha.
Broichan meneou a cabeça em sinal de cortesia.
— É claro que excluo dos meus argumentos aquelas que entram ao serviço d'A Que Brilha. Além disso, Ferada não é apenas de boas famílias, também é jovem e bonita.
Seguiu-se uma pausa.
— Revelas muito tacto na maneira de te expressares, Broichan — disse Fola. — Acredites ou não, na nossa juventude eu e Uist estivemos a isto — ergueu a mão, com o polegar e o indicador quase juntos — de abandonarmos o dever por amor. Todos nós fomos jovens e atraentes, em tempos. Imagino que até mesmo tu.
Broichan não respondeu ao comentário mas, pouco depois, disse:
— Falaste em abrir o coração. Preciso de melhor razão para ensinar a criança, do que o fato de ser filho de Bridei?
Fola fez menção de falar, mas deteve-se. Passou a capa pelos ombros, como se tencionasse partir.
— O que foi? — O tom de Broichan era ríspido. — O que ias dizer?
Fola suspirou.
— Há coisas que é melhor que não sejam ditas. Vamos, o vento está frio. Já o vimos a caminho. O empreendimento está agora nas mãos do Guardião das Chamas.
— Fola — insistiu Broichan —, o que ias dizer?
— Algo que não vais querer ouvir.
Broichan aguardou, alto e pálido no seu manto negro.
— Muito bem. Ele é filho de Bridei. Mesmo com os seus caracóis castanhos e os olhos claros, é também igualzinho a ti. Imita os teus gestos como se fossem um único ser. Copia o tom da tua voz, mesmo sendo demasiado jovem para formar palavras. Até se senta como tu. Esta semelhança vai tornar-se mais acentuada quando a criança ficar mais velha e as pessoas vão começar a falar, pessoas que sejam menos perspicazes do que Tuala ou do que eu.
Broichan não falou, nem se moveu. Era quase como se não a tivesse ouvido.
— Sabia que não ias gostar — disse Fola, num tom seco. — Lembra-te disso, é tudo o que te digo. Pode não ser mau, se a criança decidir tornar-se druida. A corte poderá não ser o melhor lugar para ele. Não duvido que a promessa inicial venha a transformar-se num talento prodigioso, um talento semelhante ao teu. Terá de ser protegido.
Ao ver que o druida não teceria qualquer comentário, Fola virou costas e dirigiu-se bruscamente aos aposentos que lhe tinham sido destinados, interrogando-se sobre se atiçara o que a seu tempo poderia vir a tornar-se um incêndio.
— Pronto — disse Tuala, enquanto se assoava a um pedaço de linho. — Já chorei o suficiente para uma noite. Todos sabíamos que esta altura chegaria. A sério, estou tão orgulhosa do que Bridei está a fazer, que é ridículo chorar por ele ter de partir. Ridículo e egoísta.
— De todo — garantiu Ferada, que estava sentada à frente da amiga, nos aposentos privados do rei. Deitado sobre um tapete de pele de borrego à frente da lareira, Derelei examinava uma bola ruidosa presa a um cordel, a qual herdara dos gêmeos de Garth e Elda. — É perfeitamente natural que as mulheres sofram quando os seus homens partem para a guerra. Ainda mais quando a mulher em questão possui poderes divinatórios. Imagino que tenhas visto alguma coisa no futuro de Bridei que te deixou perturbada e que estás a tentar não comentá-lo com ninguém.
Tuala procurou sorrir.
— É assim tão óbvio?
— Só para os teus amigos. Não te preocupes, não tens de me contar. Sei que desejas apresentar-te ao povo de Fortriu como sendo uma mulher comum, igual a qualquer esposa e mãe, sem talentos especiais. E, enquanto esposa e mãe comum, tens direito a algumas lágrimas com a partida do teu marido para uma expedição tão perigosa. Fico satisfeita por não ter um homem com que me preocupar, não contando o meu pai, e ele já sobreviveu a tantas batalhas que perdi o hábito de me preocupar com ele. Agradeço aos deuses que os meus irmãos, com doze e treze anos, sejam ainda muito novos para a guerra.
— Desta vez, Bridei corre um perigo acrescido. — Tuala falou com um tom muito baixo. — Não sei de que se trata, mas existe a possibilidade de o preço da expulsão dos Celtas ser a sua própria vida. Foi o que vi no augúrio que Broichan lançou. Também vi a vitória.
— Deste a conhecer o que viste?
— Contei a Bridei. A mais ninguém.
— E, mesmo assim, ele partiu?
— Dá mais valor à liberdade de Fortriu do que à própria vida. Tenho de confiar n'A Que Brilha para o guardar nos seus braços e para o trazer de volta a casa quando tudo terminar. — Tuala olhou para o filho, que segurava a bola de madeira nas mãos imóveis. O objeto chocalhava alegremente. — Diz-me o que tens andado a fazer, Ferada. Como vai a construção?
— Muito bem, obrigada. Ah, por falar nisso... trouxe um presente a Derelei. Deixa-me ir buscá-lo ao saco. — Ferada levantou-se e dirigiu-se à trouxa que deixara sobre a arca junto à abertura estreita que servia de janela. Vestia roupas mais práticas do que os trajes elegantes de outrora e tinha o cabelo ruivo mais simples, mas Tuala reparou, com um sorriso, que os preparos da amiga continuavam imaculados como sempre, a postura ereta. As novas alunas ficariam demasiado intimidadas para pisar em ramo verde.
— Olha — disse Ferada, retirando um pequeno objeto dos recônditos do saco. — Pensei que ele fosse gostar. Foi Garvan quem o fez. Está a realizar alguns trabalhos para Fola e não quis desperdiçar os restos de pedra. Posso dá-lo a Derelei?
— É claro. — Tuala observou a amiga a ajoelhar-se no chão e a esconder o cavalo minúsculo debaixo da saia, fazendo-o aparecer e desaparecer até que Derelei, depois de abandonar a bola ruidosa, o agarrou com um grito triunfante de «Cãozinho!» Talvez, afinal de contas, as alunas não fossem recear Ferada assim tanto, pelo menos depois de a conhecerem.
— É uma estatueta muito bonita — comentou Tuala —, que faz jus ao talento do gravador real. Olha só o xairel, todo coberto de símbolos pequeninos. E a expressão do cavalo. Faz-me lembrar o velho Lucky. Até parece que a criatura vai começar a relinchar de prazer. Não fazia idéia que Garvan possuía tal sentido de humor. Nem que tinha tempo de fazer brinquedos para crianças. — Olhou da criança com o brinquedo novo para Ferada, que continuava no chão. Em redor do pescoço, a jovem trazia um ornamento pendurado de um belo cordão, uma raposa minúscula esculpida ao mais ínfimo pormenor. Não era de pedra, mas de madeira escura, talvez carvalho. Tuala tinha a certeza de que Ferada nunca antes trouxera aquela miniatura encantadora para a corte. No passado, a filha de Talorgen preferira jóias em prata, incrustadas com pedras preciosas.
— Garvan começou a esculpir madeira também? — perguntou Tuala. Os dedos de Ferada cobriram bruscamente a pequena raposa, após o que voltou a pousar as mãos no regaço.
— Não tires conclusões precipitadas, Tuala — disse, com severidade. — Julgo que posso ter um amigo homem, sem que as pessoas comecem a mexericar.
— Quem é que está a mexericar? — replicou Tuala, com um sorriso. — Não digo nada, prometo. Que está ele a fazer para Fola, estátuas de deuses e criaturas?
— Está a gravar símbolos numa arcada que liga o jardim principal de Banmerren à área exterior da nova ala — explicou Ferada. — A minha ala, quero eu dizer. A maior parte do trabalho de alvenaria está completo. Garvan e o assistente estão a fazer a decoração. E algumas estátuas. É uma grande empreitada.
— Mm-mm — disse Tuala.
— Não faças isso! — disse Ferada com brusquidão. — Estou demasiado ocupada para pensar em homens. Nunca os quis e continuo sem querê-los. Tenho coisas melhores onde gastar as minhas energias.
— Desculpa — disse Tuala. — A sério. E não me referia a homens, mas a um homem em particular.
— Se te referes a Garvan, a única mulher por quem alguma vez se interessou foste tu, Tuala. Depois de o recusares, escolheu dedicar a energia ao trabalho.
— Recusá-lo? Eu mal tinha treze anos. Sinto-me afortunada por Fola me ter oferecido uma alternativa ao casamento. Na altura, achei Garvan um homem bondoso e perspicaz, embora não pudesse ser considerado atraente.
Ferada sorriu.
— Dito com muito tacto, Tuala. É um homem normal. Garvan seria o primeiro a admiti-lo. A nossa amiga Ana diria que não é o aspecto que interessa, mas o que reside no interior.
— E tu, o que dizes?
Ferada não respondeu. Concentrara-se em Derelei, o qual estava agora deitado de bruços no tapete, as duas mãos estendidas na direção do pequeno cavalo de pedra. A seu lado, a roca vibrava levemente para si própria, mostrando que não fora esquecida, mas a atenção da criança estava na criatura esculpida. Ao seu sinal, a estátua levantou um casco delicado, depois outro, ergueu a cabeça e relinchou suavemente, começando depois a mordiscar a pele de borrego.
— Ele costuma fazer este tipo de coisas — disse Tuala, com um tom apologético.
— Foi Broichan quem lhe ensinou? — sussurrou Ferada, que observava a pequena criatura a contornar o tapete a trote.
— Broichan está a dar-lhe os meios para controlar os talentos naturais — explicou Tuala. — Não interessa o que eu pense desse homem, reconheço a sua sabedoria em relação à necessidade de tal aprendizagem. Derelei faz o que faz sem pensar. Pode ser extraordinariamente dotado para a arte, mas isso não muda o fato de ter menos de dois anos de idade.
Ferada observou, concentrada, o cavalo minúsculo completar o circuito em redor da pele de borrego e regressar à criança. Afagou-lhe a face com uma pancadinha do focinho. Derelei riu-se. Momento depois, a mão moveu-se com um gesto controlado, de todo pertencente a uma criança, e o pequeno garanhão voltou a ser um mero artefato esculpido em pedra lisa.
— Tuala — começou a jovem a dizer, à cautela, mas deteve-se.
— Deixa-me servir-te uma taça de hidromel — ofereceu a rainha de Fortriu. — Tenho aqui uma bela mistura, feita para ocasiões especiais. Vou dar-te um jarro para levares para casa contigo. Podes partilhá-lo com o teu mação. Imagino que um dia longo passado com cinzel e maço deixem um homem sedento.
— Pára! — Ferada levantou-se e voltou a instalar-se na cadeira.
— Sim, partilhemos uma bebida. Quase não a temos, em Banmerren. O teu filho faz-me lembrar alguém, mas não sei exatamente quem.
— Imagino que seja Bridei. O cabelo é o mesmo.
— É mais uma sensação, não é nada assim tão óbvio. Pode ter herdado os caracóis e a calma de Bridei, mas o que me intriga é o que veio do teu lado. Os talentos que pareces ansiosa por não revelar. Quando for mais velho, Derelei vai perguntar-te sobre as suas origens, Tuala. O que tencionas dizer-lhe?
Tuala servia o hidromel para copos de vidro azul, uma oferta de um chefe tribal do sul que os visitara.
— Não tenho respostas para lhe dar — replicou. Nunca contara a Ferada sobre o par de visitantes do Outro Mundo que a tinham consolado e atormentado no final da infância. Como lhe tinham prometido que descobriria a verdade sobre os pais, esperança essa que lhe fora roubada quando escolhera ficar com Bridei e esquecer o mundo para além das fronteiras. Desde que ouvira o filho a tagarelar com o que pareciam ser companheiros invisíveis, os seres marcavam presença nos seus pensamentos. O vocabulário de Derelei era ainda limitado, dizendo palavras como Papai, Mamãe, Broichan e poucas mais. Ouvira-o utilizar cada vez com mais freqüência dois nomes novos, que a língua infantil pronunciava como Tia e Massilva. Tuala reconhecera-os de imediato. Era prova de que os Boa Gente, que tinham brincado de forma inteligente e cruel com a sua vida e a de Bridei, interferiam já na do filho. Derelei ainda era um menino. Pesasse embora o talento prodigioso, era completamente vulnerável.
— Tenho de acreditar que Broichan vai protegê-lo enquanto cresce — disse a Ferada. — Garth está conosco para afastar os perigos mundanos e Faolan deverá regressar em breve. O druida do rei tem o poder e o talento para rechaçar os outros tipos de ameaças. Mas é claro que me preocupo com o meu filho. Tenho perfeita noção de que lhe abri um caminho difícil nesta vida. Fui eu quem lhe transmitiu os poderes sobrenaturais. Devido às minhas opções, terá de viver entre os humanos. Enquanto filho do rei, vai andar nos olhos do mundo. As pessoas vão falar.
— Se queres que seja invisível, é melhor que o envies aos druidas. Tuala assumiu uma expressão carregada e envolveu-se com os braços.
Derelei rebolara, ficando deitado de costas, e parecia estar a adormecer.
— Não quero que se vá embora — disse. — Bridei precisa da presença da família. Somos a sua força. Até mesmo Broichan prefere que Derelei receba a educação na corte. Parece gostar muito dele. Quase como um avô. Nunca imaginei que tivesse essa capacidade.
— Interessante — comentou Ferada. — Talvez as coisas venham a ser mais fáceis quando tiveres mais filhos.
— Não, se forem como Derelei. — O menino ia cantando sozinho, um trauteio sem palavras no seu tom infantil. Embora as mulheres não o tivessem visto a mover-se, o cavalo de pedra assumira a postura equídea para dormir, com as pernas recolhidas debaixo do corpo e os olhos fechados. A roca vibrava lentamente, a um palmo do braço estendido de Derelei.
— Bem, lembras-te do que te disse. Quaisquer meninas que tenhas com Bridei serão bem-vindas à minha escola. Se os talentos vierem a revelar-se mágicos, entrego-as a Fola.
— Nessa altura talvez já tenhas um ou dois filhos teus — sorriu Tuala.
— Queres o hidromel pela cabeça abaixo?
— Prefiro bebê-lo. Prometo não voltar a falar desses assuntos. Pelo menos esta noite. É um prazer ver-te feliz, Ferada. Não resisto a provocar-te para ver esse brilho nos teus olhos, aquele que tinhas antes de... antes de tudo acontecer. — Tuala assumiu de repente uma expressão solene.
— Sim — replicou Ferada, com um tom sóbrio. — É estranho dizer isto, mas imagino que se a minha mãe pudesse ver o que estou a fazer, ficaria orgulhosa. Não sei se deva ficar satisfeita ou com medo.
— Não és como ela — asseverou Tuala. — Só nas características positivas, a tua força e determinação. E no teu inegável sentido de estilo.
Ferada tinha a mão fechada em redor da pequena raposa de madeira.
— Tinha tanto medo dela — disse, a expressão de súbito gelada. — Se eu tivesse uma filha, seria terrível que sentisse o mesmo em relação a mim.
Tuala não respondeu. Derelei estava quase a dormir. Pegou-lhe ao colo e levou-o para a cama. Quando regressou, Ferada voltara a servir os dois copos e parecia mais calma.
— Sabes — disse Tuala —, foi a primeira vez que te ouvi a falar sobre a maternidade, mesmo como sendo uma possibilidade remota.
— Não estava a falar a sério. Tenciono envelhecer sozinha e feliz, tal como Fola.
— Mm-mm. Uma coisa é certa. Serás tu própria a fazer as tuas escolhas. Não precisas de ter medo de ser como a tua mãe, Ferada. Tens uma personalidade forte, és bondosa e inteligente. Uma verdadeira amiga.
— Obrigada — disse Ferada, passados alguns momentos, com um tom de verdadeira surpresa. — Imagino que seja Ana a próxima a ter filhos. Será que nos virá visitar, com o belo chefe tribal do norte ao lado e um rancho de guerreiros Caitt em miniatura agarrados às saias?
— Vejo Ana com filhas — disse Tuala, que olhava com um ar pensativo para o hidromel.
Ferada olhou-a fixamente.
— Dizes isso por ela ser uma rapariga doce e feminina? Ou viste alguma coisa no seu futuro? Sabes se está feliz?
Tuala hesitou.
— Não sei. Um relance, algo estranho... não sei dizer, a sério. Já não faço este tipo de coisas. — Não olhou para Ferada.
— Devido ao que poderias ver? Por Bridei?
— Não é assim tão simples. Às vezes tenho rasgos acidentais de visão. Estou muito preocupada com Ana. Os poucos vislumbres mostram-na a chorar, ansiosa, com medo. É claro que podem ser imagens do passado, ou do presente, ou de um tempo ainda por vir. E... e vi Faolan a tocar harpa.
Ferada soltou uma gargalhada breve.
— Ora aí está uma coisa que só pode ser imaginação. Talvez se deva a hidromel a mais. É óbvio que tenho de te ajudar a acabar com este jarro. Vamos fazer um brinde? Aos amigos ausentes: que os deuses velem por eles e que os tragam de volta em segurança.
— Que A Que Brilha lhes conceda bons sonhos, esta noite. Que o Guardião das Chamas lhes ilumine o despertar — disse Tuala, mas uma sombra encobria-lhe os olhos. Quantos seriam esses despertares, até que a Mãe de Tudo percorresse o campo do sangue e da dor, recolhendo os filhos chacinados e levando-os para o mais longo de todos os sonos?
Faolan bem podia estar a tocar a música da guerra, pois...
O melhor da literatura para todos os gostos e idades