O Flagelo regressou.
A demanda que levou Aewyre Thoryn e os seus companheiros através de meia Allaryia, as provações que tanto lhes custaram em sangue, dor, angústia e morte, tudo isso culminou na libertação d’O Bastardo, que, oculto na própria Ancalach, o instrumento da sua suposta morte, sempre os acompanhara ao longo das suas jornadas.
Presos num imbróglio jurídico em Tanarch por terem morto o líder dos Filhos do Flagelo, Aewyre Thoryn e Allumno foram poupados à pena de morte pela atempada intervenção de Aelgar Moryth, Mandatário de Sirulia, e posteriormente levados com os restantes companheiros para a distante Aemer-Anoth. Aewyre Thoryn, os seus amigos e uma mal-asada guarnição de criminosos tanarchianos foram forçados a defender essa mesma fortaleza de um exército vindo de Asmodeon liderado por um azigoth que empunhava Dalshagnar, a espada do próprio Flagelo, na qual Aezrel Thoryn estava aprisionado. Na subseqüente batalha, tanto o pai de Aewyre como o Anátema foram libertos, e o primeiro morreu para salvar o filho das garras de Seltor. O exército de Asmodeon foi escorraçado, mas o preço foi elevado e teme-se agora pelo que o futuro reserva a Allaryia. Aewyre Thoryn e Kror irão partir para a Cidadela da Lâmina, movidos pela porventura vã esperança de aprenderem a dominar a força pela qual ambos se debatem sem que seja necessária a morte de um deles. Os restantes companheiros comprometeram-se a tentar encontrar um papel nos eventos que seguramente se desenrolarão nos tempos vindouros, sejam eles quais forem.
A Sombra está por fim solta, e as sementes que discretamente disseminou pelos sulcos arados pela charrua do tempo e da circunstância em breve alcançarão a sua certamente infausta fruição numa incauta Allaryia.
E a mim, como o tem sido desde tempos imemoriais, cabe apenas observar e relatar, destacado deste mundo que já foi meu e inextricavelmente ligado a ele...
Pearnon, o Escriba — Crônicas de Allaryia
A Primavera já imiscuída com o Verão de Asmodeon chegara no fim de Saeras, polvilhando o seu escabroso solo com as bênçãos estivais durante um período de dois meses nos quais o sol banhava a Plaga Olvidada, como era conhecida na vizinha Tanarch. O verde era espremido por entre as fragosas frestas do solo, abafando o rígido cinzento-escuro das pedras com viçosos tufos pontilhados de fragrante amarelo e lilás. Lebres de pelagem castanha com reflexos azulados pulavam pelos prados enquanto mobelhas de plumagens veranais migravam para as costas e falésias de Asmodeon naquela que era a época de vida e procriação numa terra tão profundamente estigmatizada com a morte. O tempo era notoriamente instável, e as ferozes tempestades de Verão varriam toda a extensão do território com rápidas e inesperadas aglomerações de nuvens que desencadeavam a relampejante fúria dos céus, cujos rastos se evaporavam pouco depois assim que os estuantes raios do sol abriam brechas por entre o negrume dos cúmulos. Um observador leigo veria uma terra severa, porventura algo inóspita, mas nada nas vastas cordilheiras de austeras montanhas de picos esbranquiçados com brumosos bosques nos seus sopés invocaria a imagem de uma terra de perdição, de um antro do mal. A água que brotava das frescas nascentes era pura, o sol brilhava com a mesma radiante cor com a qual presenteava o resto de Allaryia e a vida germinava, vicejante.
Contudo, havia muito para o qual um leigo não teria o discernimento necessário para ver naquele particular Verão em Asmodeon. Um leigo não estranharia o revoluteante comportamento das nuvens que orlavam a costa e coroavam os picos das montanhas, desculpando-o com o temperamental clima do Verão de Asmodeon. Um leigo ignoraria por completo o nervoso farejar do focinho das lebres, que, rilhadas por um instinto para o qual não encontravam justificação, se erguiam sobre as patas posteriores, atentas. Um leigo não teria como sentir a sutil vibração no escabroso solo há duas décadas dormente, nem tão-pouco associaria a constância da temperatura e a quietude da paisagem a um momento passageiro de calmaria entre duas tormentas. A única coisa que um leigo estranharia seria talvez o ar seco e carregado que lhe eriçaria os pêlos, os indistintos e ásperos murmúrios que o vento suspirava por entre as escarpadas encostas das serranias sem no entanto mover uma única folha, a constante sensação de avistar sombras pelo canto do olho que contudo nunca lá se encontravam. Disso um leigo poderia aperceber-se, e então certamente começaria a imaginar coisas, fantasiando acerca de males ocultos que pairavam em redor, influências vis que permeavam a paisagem desde a ponta das raízes ao mais alto cume... E principiaria a sentir o mais irracional dos medos, o primordial impulso de sobrevivência a palpitar em cada fibra do seu corpo, lançando urgentes sinais de alarme que o levassem a afastar-se do perigo que podia sentir sem contudo o ver.
Mas não havia escapatória. Não havia nada em Asmodeon que se mexesse e respirasse e que não sentisse uma inexplicável atração por o que quer que naquele momento o rodeava, plantando-o no solo, ramo ou falésia com a mesma firmeza de um par de grilhetas de ferro frio. Predador e presa estacavam, expectantes, desde o mais pequeno inseto pendendo imóvel da pétala ao maior quadrúpede de focinho no ar, farejando, aguardando. Aves empoleiravam-se em ramos, relutantes em levantarem vôo no estranho ar que as rodeava. As nascentes ao longo dos vales retraíam-se, humilhadas, brotando a límpida essência vital das montanhas com inusitada parcimônia como feridas estancadas. As águas fluíam morosamente, convergindo num estreito rio que serpenteava por um grande vale fora, vale esse que, caso contemplado por um leigo, por certo o convenceria de que caminhava acordado pelo seu pior pesadelo, um pesadelo que podia muito bem ser coletivo se ao menos as emanações que dele provinham transpusessem a fronteira do Istmo Negro, o único elo que ligava Asmodeon a Allaryia. Na tentativa de apreender aquilo com o qual se deparava, o olhar de um leigo percorreria gradualmente as sobranceiras encostas do vale que se encontravam apinhadas de uma irrequieta hoste, recordando-se talvez das histórias que em criança ouvira acerca da temida progênie d’O Flagelo. Negros drahregs devoradores de humanos, desmedidos ogroblins de focinhos vesiculosos, tacanhos ulkekhlens pardos que raspavam as ásperas pedras com as garras... na umbria do vale as sombras mexiam-se, revelando as discretas silhuetas de harahan desassossegadas enquanto, abrigados nos resguardantes lapedos, grupos irregulares de esgalgados nycatalos aguardavam, escondidos do sol. Esses e outros e diversos filhos d’O Flagelo se encontravam ali numa aglomeração de pesadelo reminiscente de negras eras passadas. O olhar de um leigo estaria por essa altura totalmente retido pela enormidade daquilo que contemplava, pela sensação de estar a pender à beira de um abismo, de ter acendalhas em brasa na mão sobre um mar de betume, pois o que pairava no ar era uma enervante expectativa, uma certeza de algo que se aproximava, inexorável, inevitável, e perante cuja chegada as fundações do mundo iriam tremer. Não se tratando de um leigo, poderia conseguir ver através da hoste negra e apreciar a graça e a beleza perdidas daquele que já fora um frondoso vale abrigado entre o maternal abraço pétreo das montanhas, cujos cumes se haviam delicadamente afastado para permitir que o sol banhasse os outrora verdes prados irrigados pelo curso do rio. A terra batida e espezinhada por botas duras e implacáveis ao longo das eras nada mais ostentava além de ervas crespas, quebradiças e escurecidas; o enrugado e ondulado terreno que antes abrigara vida havia sido despido dela e agora mais parecia evitá-la. Arvores mirradas, desnudas e escurecidas permaneciam como testemunhas da anterior frondosidade das vertentes do vale, assemelhando-se a costelas escuras a brotarem como o legado sangrento de um velho campo de batalha. No centro do vale o rio dilatava-se num lago de água salobra que parecia acolher todas as lágrimas amargas vertidas pela perda da beleza daquele local. O lago era encimado por uma bizarra estrutura na qual todos os olhares incidiam, uma construção que já fora o lar de três ancianos potentados e que posteriormente fora convertido naquele que era visto como o manancial de todos os pesadelos: a fortaleza de Asmodeon. Constituída por uma massiva plataforma circular de pedra assente sobre três desmedidas escoras que serviam como suportes e escadarias, a fortaleza era na realidade um conjunto de três talhadas que formavam um colossal edifício de três partes distintas. Uma fora exclusivamente construída com basalto, a outra com mármore e a última com granito, o que resultava numa contrastante mistura de preto, branco e cinzento. Cada uma fora também elaborada num estilo diferente, sendo a primeira caracterizada por arcos apontados, janelas de lanceta, arcobotantes, remates e pináculos em agulha, toda ela ângulos e protuberâncias de uma negra beleza ameaçadora. Por sua vez, a talhada marmórea era uma ruína, toda a sua anterior harmonia quebrada, as suas colunas adossadas tombadas, as cúpulas de séries de anéis escalonados e galerias em arcada gretadas. Algo de glorioso e magnífico outrora ali residira, mas presentemente nada mais era que a corporificação de memórias destroçadas. A parte granítica, que representava como que um equilíbrio entre ambas, desprovida de grandes ornamentos e balanceada tanto nas suas curvas como nos seus ângulos, afigurava-se toda ela dilapidada e puída, com o aspecto de um desmedido utensílio de pedra gasta caído em desuso. A estrutura era sustida pelas suas três escoras a uma considerável altura da superfície do lago, mas nem uma única das milhares de figuras presentes se achegava sequer a vinte passos da circunferência deste, parecendo incertos, vacilantes, respeitosamente tementes. Tal como toda e qualquer forma de vida a centenas de milhas em redor, sentiam que algo coalescia por perto, algo que se lhes entranhava no âmago dos seus seres, das suas negras almas há tanto tempo carentes de rumo.
E então todos o sentiram.
Violenta, repentina, avassaladora, uma silenciosa vaga propagou-se da massiva estrutura por todo o vale como os anéis de uma poça negra atravessada por um arrebatado seixo, erguendo cabeças, virando olhares, sobressaltando corações. Todas as atenções naquele momento se concentravam no enorme pórtico situado a poente, mas ninguém por um instante sequer considerou percorrer a distância que o separava da escora, subir as centenas de degraus da escadaria angular e espinhosa e entrar para ver o que aguardava no interior. Leigo ou não, qualquer um seria avassalado pela visão com a qual se depararia uma vez atravessado o pórtico com arquivolta de pedra rendilhada. A mera dimensão subjugá-lo-ia, a enormidade da nave ladeada por austeros pilares agrupados que sustentavam um extenso teto de abóbadas de nervuras, lugubremente iluminadas por ásperos candelabros de ferro negro e pela parca luz que era filtrada pelas janelas de lancetas escalonadas com vitrais vermelhos e roxos. Era algo quase fora daquele mundo, algo que não poderia ter sido feito por mãos humanas, não àquela escala, não com tal atemorizante perfeição. O piso de basalto rugoso estendia-se em frente e para os lados, apresentando inúmeras veredas através de arcos lanceolados com corredores iluminados como tumbas que percorriam a vasta extensão da talhada basáltica, polvilhados com nichos, recessos e motivos de uma beleza severa e intimidante. Escadas em espiral adornadas com ornatos curvilíneos e flamejantes sugeriam outros tantos caminhos para as cavas e para os pisos superiores, tantalizando leigos e não só com veladas promessas de segredos ocultos. Seria fácil perder o rumo nas vastas galerias e transeptos, a menos que se seguisse o premente chamamento que praticamente reverberava pelas paredes basálticas, fazendo com que os vitrais tremelicassem de forma quase imperceptível e as bruxuleantes chamas se agitassem como que sopradas por uma brisa que não se fazia sentir. Leigo ou não, quem ousasse penetrar pelas entranhas da fortaleza de Asmodeon adentro, se conseguisse alhear-se do insidioso encanto da sua arquitetura e fosse bem-sucedido em orientar-se através dos seus dolosos meandros, acabaria por deparar com o sacrário no coração do bastião. Não era das maiores salas da talhada basáltica, nem de todo a mais impressionante, mas nela antes residira a negra potestade Luris, que a partir dela tramara os seus nefandos desígnios. Duas colunatas concêntricas centralizavam um estrado sobre o qual se encontrava um ornado pedestal, que por sua vez era encimado por uma vasta abóbada na qual as sombras se pareciam mexer devido aos jogos da difusa e quase sepulcral luz dos candelabros. Leigo ou não, quem tivesse chegado tão longe jamais ficaria retido por tal ilusão, pois era no pedestal que as sombras de fato se mexiam. Desse mesmo plinto entrelaçado por serpenteantes gavinhas de penumbra raiavam cinco sulcos talhados no chão que desciam simétricos pelos degraus do estrado e que terminavam em cavidades rasas situadas entre os cinco pilares da colunata mais próxima. A utilidade de tais cavidades era difícil de discernir numa primeira instância, mas uma delas encontrava-se ocupada por um vulto de cabeça baixa e feições ensombradas que parecia aguardar com os braços enfiados dentro das amplas mangas da sua túnica preta esbranquiçada que roçava o chão. Essa peça velha e puída de indumentária era a única que envergava, cingida à sua cintura por uma singela corda e cuja bainha deixava entrever umas sapatilhas gastas de couro. O único vestígio de cor na túnica era uma mancha vermelho-acastanhada no colarinho que fazia lembrar sangue seco. O seu cabelo era um autêntico ninho de ratos em desalinho, com uma verdadeira insurreição de mechas e madeixas grisalhas cujo cuidado fora havia muito abandonado, o que se poderia igualmente dizer do resto da sua pessoa, avaliando pela forma angulosa com a qual os seus ombros se revelavam debaixo do puído tecido da túnica. Emanava dele uma aura de discreto e negro poder, temperada por um frio calculismo e uma sazonada argúcia que não passariam despercebidos a ninguém, leigo ou não.
Tal como todas as formas de vida na área circundante, também ele sentiu o súbito arroubo, mais ainda por se encontrar no seu epicentro, e por pouco não foi derrubado por este. Tirou os braços de dentro das mangas para se equilibrar ao cambalear para fora da cavidade e ergueu subitamente a cabeça. A sua pele era lívida cor de cinzas e mal se lhe via o branco dos olhos, que pareciam atormentados por perpétuas olheiras e eram ensombrados pelas salientes orlas das órbitas. Porém, seria de longe na sua boca que a atenção de qualquer um recairia, pois fora cosida de forma grotesca com tiras da pele em redor dos seus próprios lábios gretados. Ultrapassado o sobressalto, tornou a cruzar os braços dentro das mangas, olhando com o que apenas debaixo de um atento escrutínio se revelaria como ansiedade, pois o seu infausto semblante dificilmente traía qualquer emoção. As sombras sobre o pedestal coalesciam lentamente, serpenteando pelos altos-relevos que o ornavam e aglomerando-se no seu topo como um ávido ninho de víboras. Tal como serpentes, estas sibilavam enquanto se enrodilhavam, mas os seus silvos pareciam lenta e gradualmente ir subindo de tom, adquirindo um timbre mais audível, mais humano, e infinitamente mais atemorizante.
As sombras gritavam, gritavam de dor.
Dor.
Agonia.
Raiva.
Libertação!
As sombras estorcegaram-se violentamente e concentraram-se numa silhueta, assumindo uma forma vagamente humanóide, e então houve uma muda reverberação centrada no pedestal que se repercutiu por todo o sacrário, acompanhada por um brado tal que os alicerces da própria fortaleza tremeram e que ecoou pelo vale e pela serrania fora, causando um movimento entre a hoste semelhante ao de uma seara negra a ser bafejada por um forte vento. A silhueta sobre o pedestal caiu de joelhos, crispando os punhos e levando a cabeça atrás ao corporificar-se, e o seu derradeiro grito arrancou as já trêmulas chamas dos candelabros de ferro, mergulhando o sacrário na mais profunda escuridão.
Passaram-se alguns momentos silenciosos, durante os quais apenas se ouviu um arquejante ofegar no centro da sala, até que uma curta frase foi enunciada através da Palavra com uma voz rouca e abafada, e as velas nos candelabros se acenderam timidamente. O jogo de sombras que se desenrolava pelo piso poderia perfeitamente dever-se às tremulantes labaredas, mas o homem de boca cosida sabia muito bem que estas apenas Lhe prestavam a justa vassalagem, a Ele que por fim regressara e que agora se encontrava sobre o pedestal, extenuado após quase duas décadas de um sofrimento que mal poderia começar a conceber.
— Meu... senhor... — disse através das tiras de pele que lhe cerziam a boca, levando um joelho ao chão enquanto a ossuda rótula do outro ressaía da saia da túnica.
A única resposta que obteve foi outro grito d’O Flagelo, que o sobressaltou uma vez mais quando o seu senhor pegou na ebanizada couraça do seu arnês cor de sangue pisado e a arrancou com um guincho de metal retorcido, desatarraxando dessa forma também as espaldeiras e arremessando a peça para longe num furioso gesto. A couraça derrapou com grande estardalhaço pelo piso, clangorando contra colunas e embatendo contra a parede. O Flagelo de seguida tornou a crispar os punhos e, com um grunhido de dentes cerrados, fez com que o resto do seu arnês se dissolvesse, dispersando-o pelas sombras em redor e ficando desnudo sobre o pedestal. Ali se deixou ficar, silencioso e ofegante como se estivesse sozinho no sacrário, e o homem de boca cosida nada disse, nada ousou dizer, nada conseguiria dizer mesmo que o ousasse. Finalmente, após tanto tempo, tinha o seu senhor diante de si uma vez mais. O legítimo lorde de Asmodeon regressara por fim...
Como se apenas então se tivesse apercebido da presença de outrem na sala, O Flagelo ergueu a cara, e sedosas madeixas negras de reflexo azulado deslizaram-lhe pela perfeição do seu semblante, revelando a cara da própria perdição que naquele preciso momento foi alumiada por um conveniente bruxulear das chamas dos candelabros. Era difícil separar a íris da pupila dos seus olhos líquidos encimados por expressivas sobrancelhas angulares. A sua cara perpetuamente escanhoada era algo de inatingível para humano ou eahan no seu imaculado primor e transcendental pulcritude, independentemente dos padrões ou critérios pelos quais fosse avaliada, varonil e contudo quase andrógina na sua singular beleza. Qualquer que fosse o seu contemplador, encontraria decerto algo detrás do poder do seu olhar, da altiva testa, do nobre nariz, da boca sensual, dos entalhados ossos da face ou mesmo da quase retilínea linha do maxilar, e partindo dessa singela qualidade descobriria que o conjunto combinava harmoniosamente num todo cabal. O homem da boca cerzida sentia precisamente isso perante o intenso olhar do seu senhor e, quando Ele se ergueu, viu-se forçado a baixar a cabeça, incapaz de contemplar o Seu negro esplendor desnudo.
— Nishekan — disse O Flagelo, a sua voz sedutora, imperiosa, sublime.
— Meu... senhor... — repetiu este, sentindo acentuadamente o quase ofensivo contraste causado pelo seu timbre rouco e abafado pelas tiras de pele que lhe atravessavam a boca.
— Levanta-te — ordenou Seltor, descendo do pedestal com uma graciosidade predadora, cercado por sombras que o cingiam com uma fidelidade canina. — Levanta-te, leal Nishekan, meu Juízo.
O Aesh’alan assim fez, ainda tomado pelo que nele passaria por emoção do momento. Nishekan era o Juízo d’O Flagelo, o seu mordomo e representante; assim fora bem antes de a Guerra da Hecatombe ter começado e mesmo durante os vinte anos que se seguiram ao seu fim, vinte anos de espera paciente e fé no seu senhor que por fim davam frutos.
— Estais... bem... meu senhor? — indagou Nishekan, encarando O Flagelo de frente com deferência.
Seltor olhou para o seu corpo sarado, para a perfeição marfínea dos seus músculos, para a imaculada brancura da sua pele, sabendo bem que o Aesh’alan jamais poderia conceber a profundidade das suas verdadeiras feridas, a brutalidade da sua violação dentro da maldita espada, a ardente agonia que lhe rasgara cada fibra do seu corpo a cada instante, todos os instantes de todos os dias de todos os meses de cada um dos desgraçados últimos vinte anos. Perdera a sua sanidade vezes sem conta, reavendo-a outras tantas ou pelo menos assim o julgando, ora gritando, ora rindo, ora chorando dentro do vazio acerado da lâmina de Ancalach. Mesmo agora estava incerto quanto à sua condição mental. Breves clarões de lucidez intercalados com devaneios insanos, ora lágrimas copiosas de dor de uma carcaça incorpórea com a garganta sangrenta de tanto gritar, ora reflexões introspectivas de uma ilha de calma num mar de tormento. A sua atenção fora por vezes atraída para Allaryia, para fora do seu suplício, quer agonizasse quer relaxasse. Os contatos com o bobo de Ul-Thoryn, o inconformismo e os sonhos por uma demanda do jovem Aewyre... o ataque dos drahregs que por pouco não arruinara tudo, a infiltração da eahanoir que estivera tão perto de revelar ao grupo a verdade acerca da Espada dos Reis, o primeiro confronto com Baodegoth, a morte do tirano Coilen...
Isso e a idiotice do jovem Aewyre que o retivera em Alyun e o enviara a Moorenglade, bem como a sua queda na escuridão que, não fosse pelo seu momento de lucidez, poderia tê-lo deixado e a Ancalach presos para sempre nas entranhas de Tanarch. Tantas ocasiões, tantas decisões precipitadas, tantas ocorrências fortuitas, tantos riscos, uma sucessão de eventos a caminhar sobre o afiado gume de uma lâmina em que um movimento em falso lhe poderia ter custado tudo. Corromper o bobo em Ul-Thoryn fora algo gradual, fácil e feito a seu próprio tempo, permitindo-lhe efetuar as preparações necessárias para o seu eventual regresso. Quando chegara a altura de partir, ordenara ao bobo que providenciasse a todo o custo a libertação de Baodegoth e que se assegurasse da descendência de Aewyre Thoryn através de uma harahan, uma incumbência para a qual lhe concedera o poder necessário. Algum tempo depois, num momento de lucidez ou insanidade, ocorrera-lhe que a harahan se poderia apoderar de Ancalach e dessa forma ser encontrada pelo moorul, feito o qual poderiam tratar do seu regresso. Não conseguira imaginar como tal poderia ter sido feito, e aparentemente a harahan também não, pois falhara nessa incumbência, embora esse mesmo falhanço se tivesse revelado como sendo oportuno, visto que a levara a seguir o jovem Aewyre por meia Allaryia. O filho de Aezrel deparara com outros indivíduos que se haviam juntado a ele pelas mais diversas razões, por afinidade ou por motivos semelhantes aos que haviam levado o próprio a empreender tão pretensiosa demanda. Poderia tê-los influenciado sutilmente — sondando as suas insatisfações e desejos mais profundos e apelando a eles insidiosamente, eventualmente fazendo uso da sua negra atração para arrastar o thuragar e a eahanoir — mas já não se lembrava. Em todo o caso, as sucessivas provações tinham fortalecido os frágeis laços que uniam o grupo de início, tornando-os fiéis companheiros.
O ataque dos drahregs atraídos pela sua essência dormente fora quase desastroso, e apenas graças a um momento de lucidez conseguira impedi-los de matarem e devorarem o grupo como sempre o faziam, impossibilitando-se a si mesmos de sequer poderem manipular Ancalach. Noutro momento de lucidez ou insanidade tentara matar a eahanoir, temendo que esta revelasse aos outros o que se ocultava dentro de Ancalach. Possuíra um peixe num ato que agora considerava bastante embaraçoso, e falhara. Felizmente, a eahanoir surpreendera-o com o brotar de sentimentos pelo eahan fulvo, e, na sua lucidez ou insanidade, O Flagelo permitira-lho deixá-los florescer em todo o seu duvidoso esplendor. Também não sabia se o sucedido se devera à sua insidiosa influência ou à sinceridade dos sentimentos da eahanoir, mas em todo o caso provara ser conveniente. Respeitante a incertezas e com o que agora sabia, o primeiro confronto de Aewyre Thoryn com Baodegoth tanto poderia ter apressado o seu regresso como tê-lo condenado a uma morte definitiva. A harahan fora providencial como uma espécie de filtro para que a sua essência escoasse para o moorul na batalha de Aemer-Anoth; sem ela, poderia bem tê-los destruído e arruinado a sua única hipótese de regressar. Alyun também fora um grande estorvo. Coilen não teria sequer servido de receptáculo, mas ao menos conseguira matar a paixonite do jovem Aewyre e levá-lo a continuar. Está claro que Moorenglade e a demanda pela Manopla de Karasthan fora outro absurdo, outra ridícula demanda heróica que o filho de Aezrel metera na cabeça, mas que felizmente não tivera conseqüências de maior, assim como o casual encontro com Kror, o bizarro drahreg que, lúcido ou insano, na altura não tivera tempo nem ocasião para sondar melhor. Pudera fazê-lo, ou melhor, tentar fazê-lo durante o tempo nas Estepes de Karatai, pois algo no drahreg o resguardara de influências externas e os seus variáveis níveis de consciência e lucidez não lhe haviam permitido ser mais intrusivo. A partida da eahanoir fora ao mesmo tempo um alívio e um problema, pois a sua presença e as suas emoções conturbadas tinham-no ao menos ajudado a manifestar a sua influência no mundo exterior, coisa que tivera grandes dificuldades em fazer nas estéreis estepes nas quais o seu nome era praticamente desconhecido pelos nativos e desprezado pelos poucos e ressentidos exilados de Asmodeon, os udagai.
A chegada a Tanarch poderia ter facilitado tudo graças ao encontro com os seus Filhos, mas os companheiros haviam-se desvencilhado e algo retardara Baodegoth nas estepes. Outra série de ações lúcidas e insanas acabara por ter pouca ou nenhuma influência na subseqüente prisão dos companheiros, e a interferência dos sirulianos fora ironicamente a melhor coisa que poderia ter acontecido.
— ...bem, meu senhor? — imiscuiu-se a voz de Nishekan nos seus pensamentos.
— Estou... melhor, Nishekan — respondeu Seltor, piscando os olhos e erguendo a cabeça que se curvara em reflexão. — Bem melhor. Fizeste conforme te indiquei?
— Até ao mais... ínfimo pormenor, meu senhor. O azathrax estava... ávido. — Enunciar tantas palavras custou ao Aesh’alan um pequeno rasgo debaixo do lábio inferior.
— Sim, calculei que o bom do Bathrazhûl fizesse jus à sua natureza. — O Flagelo começou a caminhar, seguido de perto pelas gavinhas ondulantes de sombra. Nishekan foi atrás. — Foi um gambito arriscado, Nishekan, mas escolheste a melhor altura para o soltar.
— As Vossas... diretivas...
— Foram vagas, bem sei. Não te culpo, Nishekan. Fizeste o melhor que podias com o que tinhas, e no fim resultou. — Seltor percorreu os tetros corredores com o olhar, familiarizando-se uma vez mais com o seu santuário. Lembrou-se de algo com um som gutural e gesticulou com a mão, para a qual voou a couraça que arremessara. A arruinada peça de armadura que o moorul Baodegoth arrastara consigo desde Nolwyn ocultava dentro dela um segredo cuja mera proximidade naquele momento lhe causava dor.
— O sindicante...?
— Serviu como receptáculo — disse o Flagelo concisamente, sem vontade de explicar todo o complicado e praticamente aleatório ritual que fora a sua revivescência. Enquanto falava, a couraça dissolveu-se na sua mão numa névoa escura que deixou um ligeiro odor a sangue no ar. A névoa dissipou-se rapidamente e revelou um pedaço de cristal que, sob um exame mais atento, mostrava revestir uma lasca de metal.
Esse singelo fragmento pertencia a Ancalach, ou melhor, à Lança de Istegard, quebrada ao matar o seu meio-irmão Wrallach. Esse único estilhaço não fora recolhido por Aezrel Thoryn e Zoryan, e Seltor conservara-o em sua posse desde então. Antes do início da Guerra da Hecatombe, ao converter mais um guerreiro humano num moorul, revestira a lasca com uma camada de cristal que inserira dentro da armadura de Baodegoth, que nomeara como o sindicante de Ancalach numa tentativa de eliminar a maior e talvez única ameaça à sua vida prematuramente. Mesmo após a sua morte, a «vida» do moorul fora um tormento, sempre com um único pensamento em mente, o de encontrar a Espada dos Reis a todo o custo. Fora aprisionado por Zoryan quando liderara um ataque a uma aldeia isolada na qual o arquimago e Aezrel Thoryn haviam pernoitado, e aí ficara até o dia em que a sua libertação fora oportuna. O fato de também ter servido como receptáculo fora, uma vez mais, um puro acaso feliz.
— Vamos lá para fora — disse Seltor, algo incomodado com a idéia de outro espaço confinado, de estar preso, sem ter como sair... — Estive vinte anos aprisionado e gostava de um pouco de ar.
O Flagelo encaminhou-se para uma escadaria em espiral, e a lasca cristalizada flutuou até ao pedestal, sobre o qual pousou. Nishekan não seguiu o seu senhor de imediato, admirado com a ligeireza com a qual Ele parecia estar disposto a descartar um objeto de tal perigo latente como se fosse uma bugiganga que mais tarde pudesse vir buscar.
— Deixa-a estar aí, meu bom Nishekan. Ninguém lhe tocará. Diz-me, quando decidiste libertar o Bathrazhûl?
— A Vossa presença... cedo se revelou — relatou o Aesh’alan, seguindo resignadamente o seu amo. — Os Vossos Filhos... tomaram a iniciativa... antes de mim — confessou o Aesh’alan, cujo arrelio apenas era perceptível a quem há muito o conhecia. — A Dalshagnar?
O Flagelo tranqüilizou os seus receios com um curto aceno de cabeça sem sequer olhar para ele. Aparentemente, a Língua Negra estava em segurança.
— Não fosse pela Dalshagnar, poderia tudo ter acabado em Aemer-Anoth. Nem com a maldita Ancalach o jovem estaria apto a defrontar-me, e o seu pai continuaria aprisionado. — Nishekan engoliu em seco. — Não te preocupes, meu Juízo. Tiveste de adaptar as minhas contingências a uma situação que nunca esteve verdadeiramente sob o meu controlo, e a verdade é que a intervenção do Bathrazhûl na batalha foi importante. As venetas do destino até a mim me confundem por vezes, mas não me posso queixar. Regressei, e o que consegui preparar durante o meu aprisionamento já está em marcha.
Os dois terríveis vultos subiram em silêncio uma escadaria em espiral com aguçados ornatos curvos.
— O Othragon?
— Permanece na Cinta... e tem levado a cabo... as Vossas instruções... desde a Vossa partida de Nolwyn.
— Excelente. O bobo já deve ter estabelecido contato entretanto...
— Meu... senhor?
— Explico-te mais tarde, meu bom Nishekan. Entretanto, terei de arranjar uma vestimenta nova, não achas? — indagou O Flagelo, apartando os braços e olhando para a sua nudez encoberta de sombras.
O Aesh’alan não soube o que dizer ao certo. O seu senhor estava a comportar-se de forma estranha, com uma leviandade que não lhe era habitual nem esperada, embora tão-pouco alguma vez tivesse propriamente sido um mestre sobremodo severo. Algo na expressão do seu olhar deve ter traído os seus pensamentos, pois Seltor presenteou-o com um sorriso aparentemente desarmante, mas capaz de gelar o sangue de quem estava familiarizado com a sua fisionomia.
— Os meus modos confundem-te, meu Juízo?
As palavras do Aesh’alan saíram-lhe tão repentinas que rasgou mais um pouco do seu lábio inferior, vertendo um pequeno fio de sangue pelo queixo.
— Meu senhor, eu não...
— Não, não respondas. Vinte anos de agonia dão muito que pensar e sentir, não espero que compreendas. Continuo igual a mim mesmo, meu bom Nishekan. Apenas um pouco mais... esclarecido. Em relação a muitas coisas. Muitas mesmo...
Ambos percorreram a nave, acompanhados pelas revoluteantes sombras d’O Flagelo e pelos ecos dos passos arrastados de Nishekan. Seltor compreendia a confusão do seu Juízo, um dos dois Aesh’alan que haviam sobrevivido à malfadada Guerra da Hecatombe, o mais fiel e o mais poderoso da sua corte. Fora um extraordinário mago por direito próprio e caído em desgraça antes de ter sido tocado por si e feito a Oblação. Fora traído pelos seus, emboscado por um mago rival graças à ajuda de um ambicioso aprendiz, e o confronto e subseqüente deflagração causada pela ruptura de Essência ao ser extraída por três magos haviam-lhe arruinado o corpo e morto o seu rival. O aprendiz sobrevivera, tendo conseguido eliminar os dois únicos contendores ao lugar que almejara. Nishekan não partilhara do destino do seu rival graças à intervenção do seu futuro senhor, que lhe apresentara a escolha entre uma vida de serviço ou a morte. O futuro Aesh’alan optara pela primeira, sacrificando a sua eloqüência como Oblação e, após ter infligido horrenda vingança ao seu aprendiz, passara a servir fielmente o seu novo senhor. A sua boca cerzida com a própria pele não lhe permitia ser eloqüente e carismático como antes o fora, e as feridas que demasiadas palavras lhe causavam acabavam sempre por sarar, embora a dor permanecesse sempre a mesma. Fora essa a derradeira prova da sua lealdade, e desde então sempre o servira com resoluta determinação, como se mais nenhum propósito tivesse na vida, coisa que de fato não tinha.
— Deduzo que as hostes estejam lá fora?
— Aguardam-Vos com ansiedade... meu senhor.
— Imagino que sim — comentou O Flagelo mais para si que para o seu Juízo. Os dois haviam entretanto chegado à vasta nave da talhada basáltica e dirigiam-se ao pórtico da entrada. — Talvez uma entrada dramática fosse apropriada nesse caso, não?
Nishekan não respondeu de imediato e a sua macilenta testa franziu-se.
— A Vossa prole... anseia por Vos ver...
— Então dar-lhes-ei algo para verem.
Dito isto, as sombras em redor de Seltor pareceram adensar-se e a sua face adquiriu uma expressão que poucos haviam sobrevivido para relatar. Uma penumbra líquida começou a escorrer-lhe dos olhos, brotando de seguida e ficando a flutuar em arco como duas tetras sobrancelhas demasiado grandes para a sua cara. No exterior, o ar ficou repentinamente elétrico e as nuvens contorceram-se antes de se começarem a expandir, cobrindo o vale com um opaco teto nublado. Como um homem só, a hoste negra e parda deu um coletivo passo atrás, mais pelo súbito arrebatamento de força que explodiu da fortaleza de Asmodeon que pelas rajadas de vento exaladas pelas montanhas abaixo. Acompanhado pelo seu Juízo, O Flagelo surgiu das trevas do interior da fortaleza, mais negro que qualquer sombra, e as vísceras das nuvens começaram a fulgir com as descargas de uma tormenta iminente. Ao deter-se diante do pórtico, causou uma comoção generalizada na hoste quando os que não tinham vista para a entrada da talhada basáltica se deslocaram como uma morosa avalancha em busca de um lugar que lhes permitisse ver o seu senhor regressado. Por norma, haveria luta e derramamento de sangue em tal situação, mas todos desde o mais corpulento ogroblin ao mais atarracado ulkekhlen estavam subjugados pela presença do filho de Luris, unidos por um invulgar sentimento de fraternidade. As massas de Asmodeon aglomeraram-se diante da escora basáltica, erguendo à medida que se deslocavam nuvens de pó acinzentado que eram acicatadas pelas lufadas de vento. Fez-se um opressivo silêncio no vale quando a horda assentou e Seltor contemplou a hoste que lhe pertencia por direito: o Primeiro Pecado, a malfadada criação da sua mãe, bem como as várias outras criaturas que ele próprio concebera ou criara como os humanos o faziam com cães ou cavalos. Mesmo à distância que se encontrava, o seu olhar retinha todos, a sua presença atemorizava com a certeza de que ninguém em todo o vale lhe poderia escapar mesmo que assim o desejasse. Todos esperavam ansiosamente ser obsequiados com algo, um sinal, uma palavra, um gesto, qualquer coisa.
Tê-la-iam, então.
Os dedos da mão direita de Seltor contraíram-se como se agarrassem algo que não se encontrava lá e o ar em redor dela tornou-se ligeiramente opaco e difuso, assumindo uma forma alongada na qual tentáculos do seu manto de sombra se começaram a enrodilhar. O Flagelo levou o braço atrás e projetou-o como se a arremessar algo, arrojando as sombras que se haviam aglomerado sobre a sua mão como oleosas serpentinas que se dissolveram no ar e revelando a espada bastarda cuja longa lâmina de aço baço teve o mesmo efeito de uma proa num mar negro, afastando as vagas de drahregs e afins com o seu ímpeto. Dalshagnar, a Língua Negra, perdera a sua gema rubiácea, mas conservava todo o seu sombrio esplendor, e a sua insidiosa e sedutora voz feminina sussurrou aos ouvidos de todos, uma voz que ecoou no âmago do Primeiro Pecado e da progênie d’O Flagelo.
— O vosso senhor regressou — trovejou por sua vez a voz de Seltor em sombrio Olgur por todo o vale, cada palavra sua pontuada por um novo fulgor dentro das nuvens. As arqueadas caudas de penumbra que lhe jorravam dos olhos apresentavam uma visão terrífica, dando largas a todo o seu poder oculto para que não restassem dúvidas quanto a quem se encontrava diante da emudecida hoste.
— Todos saúdam o lorde de Asmodeon! — surpreendeu Nishekan ao gritar com a voz ampliada através da Essência, infligindo a si mesmo uns rasgos feios em redor da sua boca.
Foi quanto bastou. Uma autêntica seara de aço brotou do chão quando milhares de armas foram desembainhadas ou desafiveladas e brandidas no ar. Frementes focinhos de ogroblins soltaram sonantes bramidos, harahan gritaram em estridente arrebatamento, nycatalos emitiram sonoros guinchos e toda a restante progênie d’O Flagelo se manifestou numa cacofonia de pesadelo. Porém, nada se igualou ao fragor do Primeiro Pecado quando todos os drahregs escancararam as bocas e urraram numa selvática exteriorização do que lhes ia nas negras almas, que tudo levava a crer que poderia ser ouvida em Sirulia. Tal foi a intensidade do brado, que Seltor o sentiu ressoar no peito e a própria fortaleza de Asmodeon vibrou.
— Odeio-os, Nishekan — confessou ao Aesh’alan, que tornou a virar a cara para o seu senhor como se estivesse a olhar para um estranho. De alguma forma, a voz do seu amo conseguia chegar-lhe através do ensurdecedor ruído. — Os drahregs, isto é. Os ogroblins, ulkekhlens e nycatalos são como predadores, básicos e determinados em sobreviver, nada há a apontar-lhes. As harahans têm o seu encanto, sabem ser aprimoradas e são agradáveis à vista. Todos os outros têm as suas qualidades redentoras, menos os drahregs. São feios, selvagens, odiosos, nada mais querem além de matar e causar sofrimento. Não sentem nada senão ódio para com os outros e para consigo mesmos, destroem por prazer e não por necessidade, e tudo o que fazem é cru, primário, freqüentemente desnecessário e totalmente desprovido de qualquer sofisticação ou de um mínimo de sutileza.
— Meu senhor... — titubeou Nishekan, cujo sangue lhe pingava do queixo para o já manchado colarinho. — Eles... seguem-vos...
— Como um homem perdido segue qualquer indício quando está perdido, seja ele qual for. As vidas deles são desprovidas de propósito, vazias de sentido — escarneceu O Flagelo com o contento nos olhos escondido apenas pela terrífica penumbra que deles emanava. — Está-lhes entranhado, sou o filho da sua criadora e de alguma forma sentem que lhes dou um desígnio às suas miseráveis existências... E verdade, onde estão os eahanoir? Não vejo nenhum.
A estrondosa aclamação prosseguiu como se a hoste extraísse fôlego da presença do seu senhor, abafando a resposta que Nishekan de qualquer forma hesitava em dar, e o lorde de Asmodeon parecia tudo menos emocionado.
— Onde estão? — repetiu O Flagelo, o seu tom de voz impossivelmente baixo para ser ouvido, mas ainda assim chegou ao ouvido do Aesh’alan.
— Os drahregs... meu senhor, fiz o que pude... para o evitar — asseverou Nishekan, convicto de que estava isento de culpa apesar do tom ameaçador da voz de Seltor. — Quiseram partir... após o vosso desaparecimento... não os... impedi. Mortos, todos... nenhum... sobreviveu.
As reticências do Aesh’alan ocultavam muitas palavras, disso O Flagelo estava certo. Os eahanoir haviam passado por tormentos inenarráveis para mortais antes de morrerem, pois o Primeiro Pecado detestava aqueles que via como usurpadores do favor de quem entendia ser o seu desígnio servir. E claro que era apenas mais um pretexto, mais uma mera gota para o cálice de ódio sempre em risco de transbordar que era a alma de qualquer drahreg. As sombras em contínuo jorro dos olhos de Seltor adensaram-se e o céu rugiu morosamente quando crispou os dedos no punho de Dalshagnar. Nishekan temeu o pior, mas, tão depressa quanto viera, o breve assomo de fúria esvaneceu-se, juntamente com a Língua Negra, engolida pela sôfrega penumbra em redor.
— Bom, o que já aconteceu não pode ser alterado; há muito que fazer agora e tenho assuntos prementes a tratar pessoalmente. Nishekan, peço-te que desempenhes mais um pouco as tuas funções de lorde interinado de Asmodeon até eu poder retomar o meu lugar.
— Mas... certamente... meu senhor — afirmou o cada vez mais intrigado Aesh’alan. — O que... ireis fazer?
Os olhos de Seltor estavam postos na urrante hoste, mas parecia fitar o vazio de uma profunda reflexão.
— Há muito a fazer, mas não como dantes, meu bom Nishekan. Não; fiz tudo da forma errada das outras vezes, era um idiota iludido que deveria ter deixado de ser logo após a... — um sorriso e fungadela desprovidos de humor — Era Negra... Era Néscia, isso sim. Admira-me que não tenham escrito mais sátiras acerca do tremendo disparate que aquilo foi...
O branco dos doentios olhos de Nishekan estava mais visível que o normal.
— Não, meu Juízo. Tudo vai mudar... Em breve nada será como dantes. Mas entretanto, trata do meu domínio como tão habilmente o fizeste ao longo destes vinte anos, sim?
Quando a Sua mão lhe pousou no ombro, o Aesh’alan ficou hirto apesar do gesto de confiança e intimidade que obviamente representava e que contudo nunca esperara receber nem sequer através de palavras.
— Vivo... para vos servir... meu senhor — afirmou sem ousar olhar para o seu amo.
— Folgo em sabê-lo. Agora, creio ter uma visita há muito em atraso... Ele continua onde o deixei?
Nishekan levou alguns momentos a reorganizar os seus pensamentos até perceber a quem o seu amo se referia, e a compreensão verteu-lhe uma gota de suor pelo peito cavo abaixo.
— Nunca... fez tenções... de sair... meu senhor.
— Ótimo. Prossegue o bom trabalho, Nishekan — concluiu Seltor, sendo de seguida engolido pelas sombras que o circundavam e que se infiltraram pelo pórtico adentro. O Aesh’alan viu-se sozinho diante das hostes de filhos d’O Flagelo, que não obstante continuaram a urrar e aclamar o regressado Lorde Negro naquele que estavam certos de ser um ponto de viragem nas suas vidas. De uma maneira ou de outra, não tinham como saber o quão certos estavam.
As candeias alumiaram-se gradualmente numa das mais recônditas cavas da fortaleza e as trevas começaram a mexer-se, vivas. O pó que revestia o rugoso piso basáltico daquele nível nem durante o apogeu de Asmodeon fora remexido por mais que um par de pés, e poucos estavam sequer cientes da sua existência. Seltor emergiu desnudo das sombras, visivelmente pouco à vontade com tudo o que não fosse uma manifestação material do seu ser após duas décadas de aprisionamento etéreo, e percorreu a pé a pouca distância que o separava da enorme portada lanceolada. Tratava-se de uma maciça porta de pesado ferro com runas vermelhas em Olgur nele cinzeladas, siglas de poder e contimento que o próprio Flagelo esculpira. Seltor considerou uma vez mais que, tendo em conta a natureza de quem encarceravam, as runas eram mais uma precaução que uma necessidade, mas gostava de ser meticuloso quando não estava aprisionado em lâminas. A portada não tinha qualquer ferrolho visível, mas bastou um toque de quem a elaborara para que a pesada laje de ferro cinzelado começasse a descer, raspando roucamente a pedra e retraindo-se para o seu jazigo de ferro negro vivo. O odor de séculos estagnados bafejou O Flagelo, que esperou até que a barreira se tivesse afundado por completo no solo antes de entrar. A câmara tinha pouco mais de cinco passos de comprimento e quatro de largura, e, quando da entrada de Seltor, um facho de luz difusa vindo do corredor rasgou o cobertor umbral que a cobria e que se recolheu para cima, encolhendo-se na abóbada como um animal assustado. A figura d’O Flagelo ficou recortada em sombra contra a parede oposta, encobrindo dessa forma a única outra presença na sala. Ouviu-se o bater de pequenas asas e dois corvos desceram da ensombrada abóbada como para corrigirem tal asserção e pousarem nos ombros dessa outra presença, que permaneceu sentada de pernas cruzadas, não acusando qualquer reação diante da presença do senhor de Asmodeon. O Flagelo encontrava-se diante de um dos mais ancianos seres de Allaryia, mas o único gesto que esboçou foi um sorriso que poderia passar por franco a olho nu. — Há quanto tempo... pai.
A forja do Esporão destinava-se ao fabrico e à manutenção de utensílios, não armas, mas isso não impediu o martelo de embater contra a ligeiramente enrubescida chapa de metal de um braçal. Worick envergava apenas um par de calças e um avental de couro que só não se arrastava pelo chão porque o thuragar se encontrava de pé sobre um sólido banco que lhe permitia trabalhar na bigorna feita à escala siruliana. O rubor da forja de carvão alaranjava-lhe as costas e dava um brilho inflamado às restantes peças do arnês do thuragar que se encontravam dispostas sobre uma maciça mesa a seu lado, na qual também pousara um sortido de tenazes, martelos, cinzéis, tachas e rebites. Worick reparara as placas danificadas a frio e agora temperava-as individualmente, resmungando ritmicamente enquanto o fazia e esfregando esporadicamente o suor da enrugada testa com o antebraço. A única companhia do velho thuragar era Aewyre, que estava sentado de tronco nu sobre outro banco e raspava a ferrugem de uma greva com um pano embebido em óleo e areia de uma caixa que tinha ao pé. A armadura siruliana que usara durante a batalha oferecia incomparavelmente mais proteção que a que trouxera consigo de Ul-Thoryn, mas iria embarcar numa viagem na qual não se podia dar ao luxo de levar um arnês completo, pelo que decidira reparar a velha. A sua nova camisa negra de fabrico eahlan pendia do pomo de Ancalach, embainhada e encostada à parede ao lado do jovem, que após a batalha passara a conservá-la sempre por perto. Humano e thuragar trabalhavam em silêncio, trocando apenas o ocasional encolher de ombros ou franzir de lábios expressivo quando os seus olhares se cruzavam. Aewyre notava que a linha de cabelo grisalho de Worick estava decididamente a recuar, e a mecha branca que começava debaixo do seu lábio inferior já lhe cobria boa parte da barba. Velhas e variadas lesões pesavam-lhe em cada movimento, embora o estóico thuragar não fizesse caso delas, ignorando-as obstinadamente com uma perpétua careta que apenas fora enfatizada pelo corte de lâmina de nycataal que sofrera no lábio em Val-Oryth e as rasuras infligidas pelos espinhosos nós da mão do azigoth na cara durante a batalha. O resto do seu corpulento e atarracado corpo exibia uma verdadeira coleção de cicatrizes, nem metade das quais adquiridas durante o tempo que passara com os companheiros. O jovem já sentia falta do resmungão thuragar, aprendera bem o quão inestimáveis a sua experiência e argúcia bélica eram, mas a jornada que o aguardava não a poderia empreender com nenhum dos seus amigos...
Worick distraía-se com reflexões semelhantes de cada vez que fitava Aewyre, que remexia Pensativamente o incisivo com a língua enquanto trabalhava. Conhecia o rapaz fazia praticamente um ano, e durante esse período de intenso e forçado convívio vira nele significativas mudanças, freqüentemente em curtos espaços de tempo. Mesmo agora, que fizera a barba e lavara o sangue e carda da batalha, notava-se o quanto as suas feições haviam endurecido. A sua cara perdera o viço da mocidade — que na opinião do thuragar há muito deveria ter desaparecido de qualquer forma — e agora afigurava-se mais angular, endurecida, marcada pelas cicatrizes de quatro arranhões no lado esquerdo da face. A pele da sua cara ainda estava enrubescida e queimada devido ao relâmpago que caíra tão perto dele durante a batalha, e o cabelo crescera-lhe desde que fora cortado na Cinta, embora ainda estivesse longe de adquirir o comprimento «rabilas» que a ver de Worick lhe poderia atenuar a austeridade do semblante. Os escuros olhos de criança eram agora tão ingênuos como dois pedaços de carvão, e ostentavam uma fria determinação que ninguém poderia deixar de ver, uma fixação num novo propósito a caminho do qual seria bom que nada nem ninguém se metessem. O seu corpo também mudara, tendo perdido toda a adiposidade pueril e agora todo ele músculos temperados, ostentando algumas cicatrizes como a que tinha perto do ombro esquerdo, resultado de um ferimento de virote de besta em Alyun que só por milagre não lhe inutilizara o braço. Passara por muito durante a finda demanda até Asmodeon, talvez mais que qualquer outro dos companheiros, mas a morte do pai fora o mais devastador de todos os golpes, cerceando-lhe de vez todos os sonhos e fantasias heróicas que nutrira desde a saída de Ul-Thoryn.
Numa única noite ficara órfão e tornara-se o involuntário escolhido para lidar com uma ameaça — Worick preferia não pensar muito nela, preferia não lhe dar nome sequer nos seus pensamentos como se dessa forma pudesse torná-la menos real — uma ameaça por cuja libertação Aewyre provavelmente também se sentia culpado, só para piorar as coisas... E não era só isso, havia algo mais que o atormentava mas que o jovem se recusava a partilhar, só que Worick era a pessoa errada para tentar fazê-lo desabafar com a sua compreensão.
O thuragar soltou um mal-humorado suspiro e entregou-se à franca simplicidade do metal, que gemia como uma amante deleitada durante uma massagem enquanto era remendado, bastando ouvi-lo atentamente e tocar-lhe nos sítios certos para que tudo ficasse resolvido.
«Pedras me partam, isso já parece uma coisa que o mago diria... Agora que penso nisso, por acaso há já algum tempo que não dou uma bela...»
Como se tivesse sido chamado, Allumno surgiu sem qualquer aviso da porta, empunhando o seu cajado com uma mão e pegando na bainha da sua nova capa roxa por cima do alforje com a outra. Prendera o já longo cabelo negro de cãs brancas num curto rabo-de-cavalo, e desde o fim da batalha que ostentava um restolho de barba sarapintada de branco. Os eahlan haviam arranjado roupas novas para os companheiros, e o mago adquirira uma nova camisa e calças brancas folgadas e grevadas com tiras de feltro à semelhança da sua antiga indumentária. Um par de robustas botas sirulianas completava o conjunto, no qual predominavam motivos selênicos ao longo das linhas de costura, e o som dessas mesmas botas fez com que Aewyre e Worick cessassem de trabalhar. Por norma, o mago não usava um passo tão apressado, devido ao seu joelho, nem as suas passadas ressoavam tanto, mas durante os últimos dias Allumno estivera pior que um musaranho, sempre a caminhar de um lado para o outro, a falar com todos sem dar descanso a ninguém, fazendo preparativos, intervindo pessoalmente nos preparativos dos outros... Os companheiros sempre o haviam considerado em mal guardado segredo o membro mais sorumbático do grupo, mas naquele momento parecia o mais aflito com a vindoura despedida.
— Bons dias. Dormiram bem os dois? — perguntou, cumprimentando Worick com um aceno de cabeça e dirigindo-se a Aewyre.
— Os tanarchianos fartaram-se de ressonar, mas ainda se dormiu alguma coisa — disse Worick, retomando o seu trabalho ao perceber que a certamente sentimental conversa iria deixar de lhe dizer respeito.
O mago pousou uma confortante mão no ombro do seu protegido, transmitindo-lhe silentes condolências, que o jovem aceitou com um curto nuto de olhos fechados e lábios franzidos ao baixar a mão com a greva.
— Estão quase a acabar? A maré alta não tarda aí...
— A minha armadura está quase pronta — disse Aewyre, indicando as restantes peças dispostas no chão a secar. — Queria só ainda olear esta greva. Não demoro.
Allumno não pôde deixar de notar quão diferente a voz do seu protegido estava, mais grossa, endurecida, ou talvez estivesse apenas rouca. O mago bem o ouvira chorar no silêncio das últimas noites. Também ele pesaroso, o que Allumno mais queria era acompanhar Aewyre durante a sua viagem, confortá-lo, cuidar dele como competia a um tutor e amigo, mas não podia contudo deixar que os seus sentimentos interferissem cora o que ainda tinha que fazer. Fizera tudo... quase tudo o que estivera ao seu alcance para o ajudar, mas o seu protegido teria agora de percorrer o seu próprio caminho. Resoluto, inspirou fundo e encostou a mão que empunhava o bastão ao outro ombro de Aewyre, olhando-o nos olhos.
— Aewyre, vou fazer-te uma pergunta estranha, mas preciso que me respondas com sinceridade.
Uma expressão admirada surgiu na até então macambúzia cara do jovem, que franziu ligeiramente o sombrolho.
— O quê...?
— Gostas da Lhiannah?
O martelo de Worick deteve-se a meio caminho quando o interesse do thuragar foi retido, e a cara de Aewyre perdeu toda a expressão.
— Hã?
— Ouviste bem. Gostas da Lhiannah? — insistiu o mago.
O jovem piscou os olhos e abanou ligeiramente a incrédula cabeça.
— Allumno, o que...
— É importante, Aewyre. Gostas dela ou não?
«Mas que raio...?», pensou Worick, esquecendo-se do braçal por uns instantes.
Aewyre ainda balbuciou um pouco, mas o olhar fixo do mago acabou por lhe arrancar uma resposta.
— É claro... é claro que gosto. Depois de tudo por que passamos neste ano, tudo o que aconteceu...
— Não, não. Não é isso. Eu sei que é uma má altura, Aewyre, mas não te perguntava se não fosse necessário sabê-lo. Gostas dela ou não?
Aturdido, o guerreiro ainda levou algum tempo a correlacionar as palavras de Allumno, e embora estas lhe parecessem estranhas, conhecia bem aquele olhar do mago, e sabia que havia algo de importante no que perguntava, embora não conseguisse imaginar o quê. Se gostava da Lhiannah?
— Sim — deu consigo a responder, surpreendendo-se mais a si mesmo que aos seus dois companheiros.
Allumno não o libertou de imediato do seu olhar, parecendo pesar as suas palavras como tantas vezes o fizera enquanto seu tutor durante a infância de Aewyre, freqüentemente após este ter cometido algum disparate. Quando pareceu por fim satisfeito, acenou com a cabeça e tirou-lhe as mãos dos ombros, levando uma delas ao queixo e coçando o restolho de barba na pensativa covinha com o indicador.
— E por que queres saber? — indagou o jovem sem poder deixar de se sentir algo incomodado com o brusco interrogatório.
— Hum?
— Disseste que era importante. Porquê?
— Oh, nada...
— Nada? — Aewyre ergueu-se de súbito, apontando uma ameaçadora greva ao mago. — Nem pensar, Allumno. Não me fazes uma pergunta dessas para «nada», e eu já tenho coisas suficientes em que pensar para que me deixes com mais um enigma. Desembucha.
Como era seu irritante hábito, o ar concentrado e resoluto do mago rapidamente dera lugar a uma postura descontraída que parecia afirmar que tudo estava bem com o mundo, e a mão que lhe tornou a pousar no ombro parecia quase condescendente.
— Era só importante sabê-lo, Aewyre. Não te preocupes. O que eu quero é que te agarres a isso, a seja o que for que sentes por ela. É isso que pode vir a ser importante para ti e para aquilo que vais tentar fazer. Tenta não o esquecer.
A cara de Aewyre era um monumento à incompreensão, e Allumno deu-lhe duas decididamente condescendentes palmadas no ombro antes de aproveitar a deixa para lhe virar as costas.
— Tratem então das vossas armaduras, mas não demorem muito. Eu vou ver como os outros estão. Encontramo-nos depois no pátio — disse, desaparecendo porta fora e deixando os seus dois companheiros para trás a ouvirem o rítmico bater da ponta do seu cajado no chão desvanecer-se rapidamente.
Aewyre permaneceu de pé onde estava, confuso, e lançou um olhar que pedia explicações a Worick. Porém, o thuragar olhava com ar carrancudo para a porta e não lhe deu atenção, contraindo os lábios para roçar as narinas com o bigode. O mago não dissera tudo, nem pouco mais ou menos...
A ocasional janela do corredor que percorria permitia a Allumno ver o que se passava no pátio do Esporão. A lama causada pela intensa tempestade da batalha já secara ao quente sol dos longos dias do Verão, e levantava cortinas de pó ao ser pisoteada pelos ex-conscritos que haviam sobrevivido ao embate final do exército de Asmodeon. Os tanarchianos eram agora homens livres, e os que ainda se encontravam sãos e inteiros haviam trabalhado com afinco nos últimos dias para desobstruírem o portão, que ficara estorvado com a ruína da torre de cerco. Os feridos e aleijados que se conseguiam mexer recusavam-se a permanecer nas suas camas, como se tivessem medo de que partissem sem eles e os deixassem presos para sempre na fortaleza siruliana. Quanto aos mortos, os sirulianos encarregar-se-iam deles, e ninguém teve vontade de perguntar de que forma o fariam nem forças para discutir os seus métodos. Todos estavam ansiosos por regressarem a casa, e ouvia-se um constante resmungar em Leochlan como ruído de fundo daqueles que não dispunham de muita paciência e que achavam que já deveriam ter partido. Contudo, os sirulianos não iriam permitir uma debandada, e a barbacã da muralha leste era atentamente vigiada por Ajuramentados arnesados com afunilados elmos de babeiras em forma de relha de arado e alabardas que aconselhavam prudência.
Sem se deter para observar, o mago subiu uma escadaria em espiral, saiu do torreão do vértice da base da bastilha para o adarve e percorreu-o na direção da torre flanqueante da muralha oeste. Ainda era bem cedo, mas o sol já brilhava quente no céu limpo, tendo-se erguido enquanto muitos ainda dormiam. O cheiro a morte e medo já desaparecera, agora que as muralhas haviam sido limpas de cadáveres, embora as calejadas pedras da fortaleza parecessem conservar consigo um mínimo das fragrâncias de todas as batalhas pelas quais haviam passado, como se tivessem absorvido o sangue de todos os que sobre elas haviam morrido. Ou talvez fosse só o sol a incidir sobre sangue que ficara por lavar... bom, pedras eram a especialidade de Worick e tinha mais com que se preocupar. Entrou sem mais demoras na torre que fora convertida em enfermaria e desceu as escadas para os pisos inferiores, nos quais Lhiannah, e Slayra, e provavelmente Taislin, e Quenestil tratavam dos feridos. Com efeito, encontravam-se lá os quatro, juntamente com um número de tanarchianos que os ajudavam a preparar os últimos mutilados para a vindoura viagem. A palha e os camastralhos espalhados pelo chão estavam manchados de sangue seco, bem como os andrajosos lençóis; havia toalhas e ligaduras ensangüentadas espalhadas em redor, vasilhas de água suja, pinças, fórceps e lâminas que haviam sido intensivamente usados. Aparentemente, a idéia de deixar a desordem para os sirulianos arrumarem fora unanimemente aprovada. Sempre atento, Quenestil foi o primeiro a ver o mago e saudou-o com um aceno da cabeça e um meio sorriso enquanto ajudava Slayra a enfaixar a perna ferida de um homem com tiras de linho limpas. Pela primeira vez desde que o conhecera — o que já fora muito tempo atrás — Allumno via o eahan com roupas civilizadas, e a visão ainda lhe fazia uma certa confusão. Não que a túnica roxa lhe ficasse mal de todo, muito pelo contrário, mas, aos olhos do mago, mais parecia um volverino que tinham enfiado à força dentro de roupas, sentindo-se visivelmente pouco à vontade com a forma como os seus movimentos estavam tolhidos, e o mago sabia que a culpada era Slayra, que o provocara, desafiando-o a vestir-se «como gente». A única coisa que conservara fora a fita de couro na testa para impor um mínimo de ordem na sua já longa cabeleira ruiva, embora tivesse tirado as imundas penas de águia após a batalha. De todos os companheiros, apenas Allumno saíra desta com menos feridas que o eahan, que acusava somente um ferimento no ombro, articulações de joelho ressentidas e umas feridas superficiais na cara. O nuto de Quenestil fez com que a eahanoir olhasse para trás e visse Allumno também, recebendo-o com um sorriso cansado. A sua barriga já bojava de forma bem perceptível do novo vestido negro, um tom invulgar para eahlanas, que contudo lhe haviam feito a vontade quanto à escolha da cor. Prendera o cabelo cor de noite estrelada num rabo-de-cavalo, e, apesar de tudo o que acontecera, os seus olhos azul-claros pareciam cintilar com um brilho interior e a pele pálida da sua cara ligeiramente inchada estava invulgarmente luzente. Os dois iriam para Sirulia com os eahlan, agora que Asmodeon despertara e que o perigo de uma verdadeira invasão se tornara uma vez mais real, e realmente não fazia sentido continuarem a usar as sujas, puídas e andrajosas roupas de viagem.
— Está tudo bem por aqui? — perguntou o mago, cumprimentando o tanarchiano do qual tratavam com um distraído aceno da cabeça.
— É só prepararmos o resto dos rapazes para a viagem, e eles ficam prontos a partir — declarou Slayra, enfaixando a perna do homem enquanto Quenestil mantinha o emplastro sobre a ferida. — Aliás, por vontade deles, já se tinham todos ido embora, com ou sem macas, nem que tivessem de rastejar até Tanarch.
— Nem todos — corrigiu Quenestil, indicando com uma sobrancelha arqueada o paciente de Lhiannah e Taislin, que parecia estar a dar-lhes que fazer.
— Como te sentes, Slayra?
— Além de começar a ficar com tetas de vaca, comer como uma e sentir que vou vomitar as tripas de cada vez que o faço?
Quenestil franziu a discordante testa, mas o gesto passou despercebido.
— Além dessas inconveniências.
— Até estou bem — admitiu, terminando de enfaixar a perna do homem que olhava alternadamente para os interlocutores sem grande interesse, e pousou ambas as mãos sobre o ventre ao virar-se para Allumno, bufando de bochechas cheias. — Mas estes enjôos...
— Tens tomado o chá?
— Há dias que não bebe outra coisa — disse Quenestil, postando-se ao lado de Slayra e cingindo-lhe a cintura com o braço, pousando a mão sobre as da eahanoir.
— Gostava de te ver a ti grávido...
— Toma — interrompeu Allumno, remexendo no seu fiel alforge e tirando dele um maço de pano com folhas secas de erva-cidreira. — Depois fala com os eahlan, se tiveres ocasião. De certeza eles arranjam-te alguma coisa.
— Sim, não me parece que fosse conseguir ajuda dos sirulianos... esses o mais certo era apressarem o parto à facada para não os estorvar...
Quenestil abanou a cabeça ao mago, dando a entender que o melhor era não falar com Slayra quando esta estava em tais condições, e Allumno acatou a recomendação.
— Vemo-nos logo, então — e dirigiu-se a Lhiannah e Taislin, deixando o casal eahan entregue aos seus assuntos.
Humana e burrik pareciam estar a tentar fazer valer um ponto de vista razoável a um intransigente homem calvo de longos bigodes castanho-escuros cujo braço terminava num coto ligado ao nível do antebraço, mais um dos muitos para os quais a única salvação residira na amputação. Outros tanarchianos rodeavam a cama, tentando eles também acalmá-lo, mas o homem parecia irredutível.
— O que se passa? — quis o mago saber, postando-se ao pé da cama. Lhiannah e Taislin sorriram ao verem o mago, como se tivessem pensado exatamente nele.
— Este aqui não quer sair da cama — explicou a princesa, indicando o obstinado tanarchiano.
— Sim, e não pára de dizer que há «chus» drahregs, que a «belona» ainda não acabou, que o «Noto» voltou e que por isso não quer «exir» da fortaleza — acrescentou Taislin com a sua aflautada voz.
O homem queixou-se um pouco mais para não deixar dúvidas de que não seria pelos números que o convenceriam, mas acabou por se calar perante o atento escrutínio do mago. Os outros pareceram perder o interesse assim que o seu conterrâneo parou de reclamar e foram-se afastando aos poucos.
— Está agitado e ansioso, é normal para quem escapou à morte por pouco — diagnosticou Allumno, compreensivo enquanto remexia no seu alforje. — Taislin, leva isto, aquece um pouco de água e faz uma infusão.
— O que é? — quis o burrik saber, virando na mão o frasco de latão que o mago lhe dera.
— Tridácio. Não ponhas muito, que é forte.
Taislin ainda o fitou com os sempre curiosos olhos felinos, mas não fez mais perguntas e acedeu ao pedido do mago sem mais demoras. O burrik conservava as suas velhas roupas, que haviam sido lavadas pelos eahlan, mas apenas o seu exterior continuava igual. Allumno bem sabia o quanto o burrik mudara por dentro.
— Tridácio? — indagou Lhiannah, olhando de relance para o misterioso alforje do mago, que parecia fazer as vezes de horta e boticário portátil.
— Extrato de alface. E um calmante forte.
— Então por que não disseste logo? Ou usar nomes complicados faz parte do ofício para impressionar os ignorantes como nós?
— Preciosismos lingüísticos, nada mais. Mas como estás, Lhiannah? A princesa suspirou, tirando uma toalha úmida que tinha ao ombro para esfregar as manchas de sangue nas mãos. Entrelaçara os cabelos louros numa longa trança, e Allumno não pôde deixar de notar que as raízes estavam mais escuras que o resto da cabeleira cindida por uma risca ao meio. Os eahlan haviam-lhe oferecido uma bela tiara prateada encastoada entre um crescente com uma pedra-da-lua; bem como uma camisa azul que vestia debaixo da riscada couraça embelezada com relevos dourados acabada de polir. Conservara as velhas calças de couro, já devidamente limpas e remendadas, bem como as botas, e a sua esguia espada com pomo em forma de rosa pendia-lhe embainhada do talim em redor da anca. Os olhos azuis pintalgados de pepitas de ouro retinham o característico brilho desafiador, embora as já indistintas marcas de violência em redor da sua cara dessem prova de como a sua índole fora temperada durante as viagens que empreendera com os companheiros. O seu lábio superior estava cindido por uma pequena cicatriz, bem como a sobrancelha direita; havia uma mancha quase imperceptível sobre o seu malar esquerdo e a princesa já se habituara a virar a cabeça ligeiramente para a esquerda de cada vez que falava com alguém devido ao seu danificado ouvido. A violência não tinha olhos para a beleza, pensou o mago, embora a seu ver a de Lhiannah não ficasse sobremodo maculada com as marcas, quando muito talvez apenas realçada.
— Como é que eu estou? — questionou-se a si mesma. — Vamos separar-nos outra vez, não estou propriamente radiante. O Aewyre vai sozinho com o drahreg para a Cidadela da Lâmina, o Quenestil e a Slayra ficam com os sirulianos, tu vais fazer não sei bem o quê e eu volto com os outros para Nolwyn... Parece que a aventura acabou, não é?
Allumno não pôde deixar de notar como todos haviam procurado evitar mencionar O Flagelo desde o fim da batalha, coisa que podia bem compreender. Ele próprio tentava não pensar demasiado no assunto, embora ninguém se pudesse dar ao luxo de o ignorar nos tempos vindouros.
— Se terminou a aventurai Bem, todos temos os nossos deveres agora, Lhiannah. Resta-nos desempenhá-los o melhor que nos for possível. Já agora, queria aproveitar para te agradecer o teres aceite levar o corpo do Aezrel para Ul-Thoryn.
— Ora essa... ia deixá-lo aqui? Quem mais poderia levá-lo?
— Mesmo assim, obrigado. É muito importante para Nolwyn... e para o Aewyre.
Lhiannah acenou em fingida distração com a cabeça, evitando olhar para o mago enquanto dobrava a toalha manchada.
— A propósito, sabes que ele matou a harahan na batalha? Memórias de sombra e violência soltaram um breve arrepio na princesa, que cedo se recompôs, esfregando o braço e devolvendo o seu olhar a Allumno.
— Sim. A cabra ficou reduzida a uma carcaça carbonizada. Teve o que merecia, e espero que os azigoth a tenham levado...
— Pois. Diz-me, já ouviste falar da maldição da bile?
— Da quê?
— A maldição da bile. Calculei que não soubesses; faz parte do folclore ao qual as vossas educações palacianas não vos dão acesso...
— De que é que estás a falar, Allumno? É mais alguma erva da tua sacola?
— Não, trata-se da conseqüência de matar uma harahan — lecionou o mago. — O perpetrador de tal ato, ou melhor, aqueles que lhe são próximos, tornam-se alvos da retribuição dos filhos da harahan, os haghral.
— Filhos...?
— Sim, as harahan também geram rapazes, e os exemplares masculinos são tão maléficos como as irmãs, embora mais insidiosos e fisicamente mais fracos. O que acontece é que eles vão atrás de alguém da carne do perpetrador, alguém do seu coração, e alguém do seu sangue, por essa ordem.
— Hã, o quê? — Lhiannah estava confusa, sem perceber por que razão o mago lhe contava aquilo.
— Ouve, Lhiannah. Isto é importante. O Aewyre não tem descendentes, e o seu único familiar vivo é o Aereth, por isso peço-te que o avises quando fores entregar o corpo do seu pai. Ele está bem protegido, não sabemos quantos filhos a harahan teve, se os teve sequer ou se estão vivos, mas o melhor é não facilitar. E tu também deves ter cuidado, pois um deles virá atrás de ti, mas não o digas ao Aewyre; ele já está com mais preocupações que as que pode comportar na cabeça. De qualquer forma, há umas coisas que deves saber acerca dos haghral...
A princesa deixou de ouvir Allumno, repetindo as suas anteriores palavras na cabeça. Alguém da carne, do sangue, e do coração? E ela corria perigo também? Mas, se não era nem da carne nem do sangue do Aewyre...
— Espera... mas isso não quer dizer que...?
O mago calou-se, suspirou pelas narinas e pegou delicadamente nos atléticos braços de Lhiannah.
— Sim — disse de modo franco. — Tu... também és importante para ele, embora não to tenha dito e duvido que o venha a fazer agora. Morreu-lhe o pai, vai partir sem os seus amigos para uma viagem da qual não sabe se irá voltar ou não, e em breve o mundo lhe irá pesar nos ombros. Não é... boa altura, compreendes? Mas achei que devias saber, até porque isso te poderá pôr em perigo.
— Eu... sim, claro... obrigada. Por me teres dito... é só que... bem...
A aproximação de Taislin ditou o fim da conversa, e Allumno deu umas palmadinhas reconfortantes no ombro da princesa com um paternal sorriso.
— Falo-te dos haghral depois, então. Ainda temos algum tempo antes de partirmos. Ah, e ainda tenho uma carta para te entregar, para dares ao Aereth. Até logo.
Antes que Lhiannah pudesse dizer algo mais, o mago retirou-se, dando breves instruções ao burrik acerca da infusão sem se deter e desaparecendo na escada em espiral que levava à muralha. Para trás ficou uma perplexa princesa a ajeitar o amuleto prateado no braço esquerdo, e por mais que Taislin tentasse não havia maneira de conseguir mais que uma atenção fugaz de Lhiannah após a partida de Allumno.
A hora da partida aproximava-se e boa parte de Aemer-Anoth encontrava-se reunida diante do fosso que separava os dois afloramentos de pedra sobre os quais a fortaleza residia. Aewyre, Kror, Allumno e os tanarchianos iriam seguir pela ponte de pedra que conduzia ao outro lado do rio, na direção do Istmo Negro, enquanto Lhiannah, Worick e Taislin seriam escoltados por um grupo de Ajuramentados até ao cais onde haviam desembarcado pela primeira vez e onde um barco já os aguardava. Os companheiros tinham como comitiva de despedida uma escolta de Ajuramentados e Miliciares, bem como o Mandatário Aelgar Moryth, o Factoto Caendal e o próprio Castelão Aedreth Caeryth. Um grupo de eahlan fizera também questão de tomar parte nas despedidas, e nele incluíam-se o Patriarca Hanal, a sua esposa Eluana e outros tantos membros e serventes da família Lasan, cuja presença bastara para acalmar os impacientes tanarchianos e fazê-los esquecer pelo menos parte dos horrores pelos quais haviam passado. Naturalmente, os sirulianos não aprovaram a decisão, como jardineiros ciosos que hesitavam expor as suas raras flores aos rigores do mundo exterior, mas os eahan brancos haviam sido invulgarmente resolutos na sua decisão. Aewyre e Kror, que trocara a sua armadura de couro escuro por uma de couro fervido de um comandante drahreg, mantinham-se afastados tanto quanto lhes era possível, com o drahreg a ter uma última conversa com Hanal e o humano a falar com os seus companheiros. Aewyre envergava a sua nova camisa negra e mangas de cota de malha juntamente com a couraça, o que lhe dava um ar solene que nem o seu lenço vermelho atenuava e ao qual os seus amigos não estavam habituados. Estavam todos prontos, mas os companheiros aproveitavam o fato de os tanarchianos estarem a olhar fascinados para os eahlan e procuravam retardar tanto quanto possível a derradeira despedida. Por fim, Aelgar dirigiu-se aos companheiros e interrompeu a conversa quando a sua sombra se projetou sobre boa parte do grupo.
— E assim se separam os nossos caminhos, Aewyre Thoryn — disse o Mandatário, cruzando os braços arnesados e fitando o jovem com os seus penetrantes olhos pardos. — Foi fortuito, o nosso encontro.
— Sem dúvida, Mandatário — admitiu o jovem, ajeitando a alça da mochila ao ombro. — Espero que aos seus olhos tenhamos pago a nossa dívida para com Tanarch — acrescentou com alguma acidez.
— No que a mim diz respeito, saldaram-na. Mas ainda assim recomendo discrição enquanto viajarem por Tanarch, e que se mantenham o mais afastados possível de Val-Oryth.
— Assim faremos, Mandatário. Adeus. — Aewyre já agradecera uma vez ao siruliano e essa única ocasião parecia-lhe suficiente, pelo que se tornou a virar para os seus companheiros. Porém, a sombra de Aelgar permaneceu.
— Aewyre Thoryn — ouviu a profunda voz dizer atrás de si, o que o fez devolver a sua atenção ao siruliano. A sua cabeça estava baixa, e as orlas orbitais sombreavam-lhe os olhos. — Eu... lamento a tua perda. Morreu um... grande homem.
E retirou-se, impossibilitando um algo surpreso Aewyre de responder.
— Olha, quem diria — comentou Worick com a mão sobre a cabeça do martelo. — As vigas afinal têm coração.
O thuragar foi silenciado pelos olhares de censura dos restantes companheiros, que então se fitaram mutuamente num momento de desconfortável silêncio, isolados num grupo no meio da multidão. Nunca mulher para ficar calada, Slayra tomou a iniciativa e foi despedir-se de Aewyre com um beijo na bochecha, afagando-lhe a cara com um condolente olhar azul-claro. O guerreiro apertou-lhe a mão, agradecendo sem quaisquer palavras, que também pareceram faltar à eahanoir, que foi ter com Taislin e se ajoelhou diante deste, ajeitando ainda com falta de prática a barriga entre as coxas.
— Toma conta deles, sim? — disse, puxando-lhe jocosamente o barrete vermelho para cima dos olhos.
Quenestil dirigiu-se a Aewyre, erguendo ambas as sobrancelhas ruivas por falta de algo para dizer. O jovem esboçou um meio sorriso e fungou, aparentemente divertido com a túnica roxa do seu amigo.
— Ficas mesmo estranho com essas roupas.
— O que é que queres? Já não era o único a usar as outras, embora fosse o único com duas pernas.
Aewyre soltou outra fungadela divertida, dando uma palmada no ombro do eahan e apertando-lhe.
— Separados outra vez...
— Pois é... já começa a tornar-se hábito.
— Pois... — Aewyre via como custava ao seu amigo não o poder acompanhar, que talvez estivesse a sentir que o ia abandonar outra vez por causa de Slayra, mas outras responsabilidades prendiam-no e de qualquer forma o jovem só podia contar consigo mesmo para aquilo que ia fazer. — Ouve, tu...
— Eu sei — interrompeu Quenestil. — Mas custa à mesma, sabes? O abraço entre ambos veio de forma natural e sentida. Aewyre bateu-lhe sonoramente nas costas e o eahan puxou-lhe os cabelos da nuca, na qual também desferiu uma pancada por o seu amigo ter o dorso protegido pela couraça.
— Agora vê lá — ouviu a voz de Aewyre dizer, abafada pelos seus cabelos —, não fiques com idéias de fazer outro, senão ainda forças os sirulianos a construírem uma nova estância.
Quenestil riu-se, retribuindo o algo forçado chiste com outra pancada na nuca. Allumno conferenciava com Worick, que entretanto fora inteirado acerca do perigo que a sua protegida poderia eventualmente correr e não parecia nada satisfeito com isso. Slayra dirigiu-se a Lhiannah e Aewyre foi despedir-se de Taislin, que corava com algo que a eahanoir lhe dissera de barrete na mão.
— Então, campeão? — perguntou, ajoelhando-se diante do burrik. — Pronto para a viagem?
— Sim... mas gostava que te pudéssemos ajudar.
— Também eu, Taislin, também eu — admitiu o jovem, assentando a mão sobre a sempre despenteada cabeleira negra do seu pequeno amigo. — Mas desta vez só vais poder ajudar a Lhiannah e o Worick. Tenta só não ser atirado borda fora por ele, está bem?
Um indício do sorriso malicioso de Taislin voltou para as suas feições quando os seus olhos felinos brilharam e o burrik pulou para o pescoço de Aewyre como um esquilo.
— Tem cuidado. E vê se convences o Kror a tomar banho numa ribeira. Cheira mal. — O burrik sentiu o riso gutural do seu amigo ressoar dentro da couraça. — E quando chegar a altura de lutarem, dá-lhe uma valente coça por mim. Ele bateu-me no Vale dos Ventos.
Quando se separaram, Quenestil discutia algo com Allumno e Lhiannah e Slayra pareciam ter terminado a conversa, mas quando o olhar da princesa de cruzou com o de Aewyre, esta abraçou a eahanoir de repente. Worick veio então resmungar um pouco à laia de despedida, e ambos os guerreiros trocaram um aperto de mão de respeito mútuo.
— Tharobar está farto de te martelar, rapazola — disse, naquilo que para um thuragar passaria por uma condolência. — Agora é que vamos ver em que tipo de instrumento te tornaste, no que daí sai.
Aewyre assentiu em silêncio, e a sua postura alterou-se de imediato perante as palavras do thuragar. Estava ciente da sua responsabilidade agora, e isso estava bem patente no seu olhar, duro demais para o jovem folgazão que Worick conhecera. Tão duro, que Worick achava que seria capaz de esculpir aqueles orbes escuros com o seu martelo e cinzel. Foi poupado à intensidade do olhar quando ouviram a voz de Allumno dizer:
— Vá, Lhiannah. Despeçam-se os dois, que os Ajuramentados estão à espera.
O mago pegava na relutante arinnir pelo braço, e atrás deles encontrava-se de fato o Castelão Aedreth, bem como os eahlan que se aproximavam. Príncipe e princesa viram-se por fim frente a frente, e os restantes companheiros principiaram uma afetadamente distraída conversa. Aewyre chorara no colo de Lhiannah dias atrás, e a conversa que poderiam ter tido terminara aí, sem que outra oportunidade se lhes apresentasse durante os últimos tempos. Ambos se fitavam mutuamente, e as pessoas que viam já não eram as mesmas que haviam conhecido, sem que nenhum soubesse dizer ao certo o que achava de tais mudanças. Uma atração mútua que sempre estivera patente mostrava-se agora titubeante, indecisa, reprimida pelo peso das circunstâncias. Aewyre sentia-se um autêntico carpidor, com a sua enlutada camisa negra, garganta rouca e olhos ligeiramente avermelhados. Lhiannah sentia naquele momento cada marca e cicatriz na cara como uma chaga em brasa, além de se julgar fútil e egoísta por pensar em tais trivialidades quando se lembrava do que Aewyre perdera e dos perigos que o aguardavam na estrada que iria percorrer.
— Bem, lá vamos nós outra vez — disse a arinnir por fim, olhando para o lado e coçando a nervosa nuca.
— É... cada um para seu lado.
— Hum-hum...
O silêncio entre ambos era constrangedor e os restantes companheiros procuravam afugentá-lo, proferindo palavras em voz desnecessariamente alta. Os eahlan aguardavam respeitosamente que todas as despedidas tivessem sido feitas, embora o Castelão parecesse ter pouca paciência para tais assuntos e as placas cobertas de tecido vermelho do seu arnês roçagassem impacientemente umas nas outras.
— Olha, obrigado. Por levares o meu pai. Ah... manda cumprimentos ao meu irmão, embora ele me deva odiar assim que souber o que aconteceu...
— Não, não... eu falo com ele — assegurou-lhe Lhiannah. — Está descansado.
— Obrigado.
— De nada.
Outro infinitamente longo momento de silêncio, olhares evitados e membros coçados distraidamente.
— Bom... — ousou Aewyre.
— Então adeus, não é? — alvitrou a princesa, abrindo as conclusivas mãos e dando um dos mais custosos passos em frente da sua vida.
— Sim... — concordou o guerreiro, avançando ele também sem contudo saber como proceder dali para a frente. Lhiannah ficou diante dele, e os seus olhos azuis pareciam maiores com o branco mais visível devido à expectativa.
Estava toda a gente à espera.
Aewyre pegou em Lhiannah pelos braços, aproximou-se, periclitante, e quando a princesa ergueu o incerto queixo num gesto sutil e incerto, o jovem esticou o pescoço e beijou-lhe a testa.
Os companheiros calaram-se e os dois descendentes reais ficaram a olhar um para o outro como dois atores que se haviam enganado nos respectivos papéis. Aedreth não lhes deu oportunidade para retificarem o erro e avançou por entre os companheiros, atraindo a atenção para si através da força da sua mera presença. O seu porte era régio, embora não tivesse quaisquer reivindicações à realeza, mas a sua autoridade como Castelão era suprema em Aemer-Anoth e suas imediações. A sua cabeleira e barba brancas sarapintadas de preto eram nimbadas pelo sol, mas a sua compostura era tudo menos afável. Os seus olhos azuis pesaram em Aewyre, que lhe deu a atenção que Lhiannah aproveitou para se afastar, voltando para perto de Worick e Allumno. O mago lançou-lhe um olhar interrogador, mas a arinnir virou-lhe a cara.
— O destino de todos nós pode bem vir a depender de ti, Aewyre Thoryn — afirmou com a sua voz que parecia reverberar das profundezas do seu arnês revestido a vermelho. — Partes ciente disso, espero?
— Sim — respondeu o jovem concisamente, sem paciência nem vontade de temer o imponente olhar do Castelão, que anuiu com a cabeça, satisfeito.
— Combateste valorosamente, Aewyre Thoryn, tu e os teus companheiros — elogiou o siruliano para grande surpresa destes —, o que me deixa com algumas esperanças de que tu possas ser adequado à tarefa que agora te cabe. Mais que um grande guerreiro, o teu pai foi também um líder inspirado e um adversário indômito dos seus inimigos. Espero que faças jus à sua memória.
— Peido arrogante, emproado com o seu próprio cheiro... — resmungou Worick, sendo refreado pela mão de Allumno na sua espaldeira.
— Também eu — retorquiu Aewyre despreocupadamente, embora com um gume acerado na voz.
Se o Castelão se apercebera ou não dele, não esboçou qualquer reação além de esmurrar o seu ombro esquerdo com o punho direito, esticando de seguida o braço em frente com mão cerrada como se quisesse agredir o jovem e bradando uma curta e enfática exclamação em Eridiaith.
Com precisão e rigor militares, todos os sirulianos presentes fizeram mesmo, e o entrechocar de aço seguido do raspar brusco de placas de arnês ocasionou um breve estrondo de aço que culminou com um brado imenso que inflamou o coração dos companheiros e tanarchianos e lhes arrepiou os pêlos, fazendo com que naquele breve momento sentissem que poderiam defrontar o mundo e vencer. Feito isto, o Castelão girou em si e retirou-se, dando a vez aos eahlan e deixando para trás os companheiros a desencarquilharem os dedos dos pés e a suspirarem fundo para amainarem o coração. Hanal e os restantes eahan brancos vieram então, todos eles serenidade e sorrisos apaziguadores em contraste com a rigidez dos seus irmãos sirulianos. Kror vinha com eles, e os olhares que recebeu dos restantes companheiros não foram de confiança, pelo que fez por ignorá-los.
— Quisemos despedir-nos de vocês pessoalmente, meus amigos — disse Hanal na sua voz canora, envergando a sua túnica roxa e negra sarapintada de cintilantes fragmentos de mica.
— Patriarca, obrigado por tudo — agradeceu Aewyre, e o semblante do eahlan tornou-se solene.
— Lamento a vossa perda, príncipe Aewyre. Todos nós lamentamos.
— Obrigado — repetiu o jovem, que já não sabia como agradecer a mais condolências.
O Patriarca franziu a impotente testa e foi despedir-se dos restantes companheiros, seguido pela sua esposa Eluana, que surpreendeu Aewyre antes que este pudesse falar com um beijo nos lábios.
— Os meus pêsames, príncipe — disse a eahanna branca com idade para ser sua mãe, passando-lhe a suave mão pelas cicatrizes no lado esquerdo da pasmada face antes de se dirigir aos restantes companheiros. Seguiu-se Lusia, a filha mais velha do casal, que pegou nos braços de um indefeso Aewyre e lhe beijou a boca de igual forma, apresentando-lhe também as suas condolências. Slayra olhava desconfiada para Eluana quando esta se aproximou de Quenestil, e Lhiannah mal quis acreditar quando viu a filha mais nova, Alisa, oscular o lábio inferior do guerreiro, por pouco não ignorando o Patriarca quando este se lhe dirigiu. Porém, a gota de água chegou quando Sana, a criada que «consolara» Aewyre na véspera da batalha, veio no encalço dos filhos de Hanal e beijou o guerreiro de igual forma.
«Ai, não. Assim não.»
Contra tudo o que a razão lhe ditava, Lhiannah deu consigo a tirar Alisa do seu caminho e a dirigir-se a passos determinados a Aewyre, que ouvia de grandes olhos atordoados algo que Sana lhe dizia. A eahlana sobressaltou-se ao ser puxada pelo braço pela princesa, que se postou diante do guerreiro, flectiu ligeiramente a perna esquerda e inclinou a anca oposta num gesto quase petulante, arrojando o queixo e cravando os incisivos olhos azuis nos de Aewyre para evitar quaisquer evasões.
— Então? — exigiu saber.
— Então...? — gralhou o apardalado guerreiro.
— Vai ser assim, é? Depois de Vaul-Syrith, depois de Vau do Caar, quase um ano a arreliarmo-nos um ao outro, depois de semanas nas estepes, depois de presos numa caverna, depois do que falamos no pinhal, no barco? — recitou a arinnir, gesticulando expressivamente com as mãos. — Depois de te ajudar com o arnês, de te dar a trança? Um adeus sem mais nem menos, até à próxima e felicidades?
— Eu...
— Eu sei que é má altura, o teu pai morreu e... mas tu disseste que sentias alguma coisa, que não sabias o que era. Depois não chegamos a falar, quer dizer, falamos, mas tu... e tudo aquilo com a eahlana, como agora... agora estás aqui, vais-te embora, se calhar já não nos vemos mais, e o que fazes é pores-te aos...
— Mas...
— Sim, o teu pai morreu, desculpa, não quero ser insensível, eu sei disso, imagino o que devas estar a passar, tudo o que fizemos foi para o encontrares e saber o que lhe tinha acontecido, não tenho nada a ver com isso, mas vais-te embora, e eu também, e ainda há tantas coisas... coisas... que tu sabes, quer dizer, não sabes... e eu também não, não falamos disso. Bem, falamos, mas tu... eu... o que eu quero dizer é...
— Tu...
— E agora estou aqui feita parva, com todos a ouvirem, a dizer o que já devíamos ter dito, talvez se o soubéssemos antes... quer dizer, não sabíamos, eu não sabia, não sei se sabias ou não, mas se sabias também não davas a entender ou... se davas... pelo menos eu... quer dizer... — A cabeça de Lhiannah deu uma valente sacudidela e esta soltou um abespinhado suspiro de frustração. — Oh, cala-te!
— Calo-me...?
A princesa fê-lo, inspirou fundo e tornou a prender os olhos de Aewyre.
— Não me vais envergonhar mais do que isto, Aewyre Thoryn. Nem penses. — E ficou à espera, ainda de perna flectida, anca inclinada e braços aos lados.
Aewyre piscou os olhos uma, duas vezes, tentando reunir os seus pensamentos num emaranhado minimamente lógico e falhando na tentativa. A dureza desaparecera-lhe momentaneamente dos orbes, e através deles viu uma Lhiannah que, apesar de tudo o que nela mudara — e mudara bastante — continuava tão igual a si mesma, igual à princesa temperamental que encontrara às portas de Vaul-Syrith, apenas mais uma das muitas caras bonitas que já vira, mas esta com um fogo que ardia dentro dela e que lhe brilhava nos olhos. A mulher com a qual discutira, pela e com a qual lutara, viajara, dormira, amara, provocara. Teve a sensação de que havia algo que teria de agarrar ou perder para sempre, uma ave sobre a sua mão prestes a bater as asas, o que o impeliu à imediata e irrefletida ação de puxar a arinnir para si pelos ombros e esmagar os lábios dela contra os seus.
O contato foi brusco e violento, e ambos ficaram de enrugados olhos cerrados com o choque dos dentes, Aewyre de ombros e pescoço tensos, e Lhiannah toda ela hirta como a proverbial ave apanhada numa armadilha. O tempo parou então para ambos, quando os seus sentidos se desligaram do resto do mundo e os seus corpos se começaram lentamente a fundir como duas duras barras de cera encostadas à força uma à outra e expostas ao calor. Com as bocas presas e narizes esborrachados, nenhum dos dois se lembrou de respirar ou apartar os lábios para facilitar aquilo que evidentemente queriam fazer, mas que pareciam ao mesmo tempo recear.
— Pronto. Estás satisfeito, mago? — resmungou Worick, abanando a cabeça de braços cruzados.
— Confesso que estava à espera de que os dois conseguissem reagir como adultos ao que lhes disse...
— Ai é? Então por que é que estás a sorrir feito velho rebarbado? Allumno sorria de fato, mas não se pareceu importar muito com isso, bem como os eahlan e restantes companheiros. Os sirulianos não viram o atraso adicional com bons olhos e os tanarchianos tinham opiniões variadas acerca daquilo a que assistiam, ficando-se na maioria por piropos e incentivos em Leochlan.
Aewyre e Lhiannah desprenderam as bocas por fim com um estalo, inspirando fundo, e os lábios de ambos teceram um fio de saliva que se estendeu despercebidamente. A couraça de Aewyre subia e baixava com a sua respiração acelerada, e tanto a sua cara como a de Lhiannah estavam afogueadas. Os olhos da princesa estavam cristalinos, e as pepitas de ouro que neles flutuavam pareciam cintilar.
— Oh! — exclamou o guerreiro ao ver que abrira uma ferida no lábio superior da arinnir com um dente, mas esta agarrou-lhe a mão que se dirigira ao pequeno ferimento e encostou-a à face, afagando-lhe.
Os dois ficaram assim em silêncio durante alguns momentos, limitando-se a fitarem-se mutuamente e a sondarem o que lhes ia na alma através dos olhos.
— Agora, Lhiannah?
— Agora o quê?
Fosse o que fosse, pareceu não importar, pois os dois retomaram simultaneamente o que haviam interrompido, roçando as couraças ao apertarem-se um contra o outro e ocasionando sonoros ruídos labiais muito pouco dignificantes para dois membros da realeza.
— Hmpf. Até eu já beijei com mais jeito... — opinou Worick, pela primeira vez em concordância com os sirulianos. — Que raio de idéia foi a tua, mago? Não foi só para avisar a Lhiannah de que corria perigo, pois não?
Allumno agarrava o cajado com ambas as mãos e parecia realmente satisfeito, o que apenas confundia mais o thuragar.
— Queres ouvir uma história, Worick?
— Parece que aqueles dois não vão parar de esmagar os lábios um do outro tão cedo...
— Na minha aldeia havia uma rapariga muito bonita, chamada Myla. — Worick franziu o surpreso cenho. — Eu gostava bastante dela, mas levei algum tempo até lhe conseguir dizer. — Passaram-se uns instantes silenciosos enquanto o mago observava Aewyre e Lhiannah, e o thuragar pensou que este se arrependera, mas acabou por retomar o assunto. — Nos dias de mercado, vinha freqüentemente um rapaz de outra aldeia, um rufia mal-encarado que se entretinha a humilhar-me e bater-me esporadicamente, e isto durante anos. Cheguei a ter pavor aos dias de mercado e queria ficar trancado em casa, mas o meu pai obrigava-me sempre a sair e o rufia conseguia sempre encontrar-me.
— Sim, pareces ter sido o tipo de cachopo que dá vontade de arriar.
Um dos requerimentos para falar com thuragar era muita paciência e capacidade de ignorar insultos gratuitos, e dessas Allumno dispunha em abundância.
— De qualquer maneira, certo dia deparei com ele longe das barracas dos mercadores, escondido atrás da pilha de lenha de uma casa, e estava com a rapariga, a Myla. — Os dedos do mago apertaram o cajado com quase imperceptível força adicional. — Estava a importuná-la, a beliscar-lhe as nádegas e a rir enquanto ela lhe pedia que parasse.
— E o que fizeste então? — Os pequenos olhos pretos de Worick mostravam um certo interesse.
— Confrontei-o, dei-lhe um pontapé nos testículos com toda a força quando me empurrou, peguei num bocado de lenha e abri-lhe o escalpe. Começou a sangrar bastante, como é normal, e eu fiquei assustado enquanto ele chorava, mas a Myla pegou-me pela mão e fugimos os dois dali.
— E depois?
— Isso já não vai de encontro ao que queria dizer, mas o rufia disse aos pais que tinha caído e batido com a cabeça; deve ter ficado com vergonha.
Worick riu.
— Bem, esperemos que O Flagelo tenha túbaros também, nesse caso. Pela primeira vez viu o mago falhar em conter uma brusca risada que lhe saiu sobretudo pelo nariz, mas este recompôs-se de imediato, sem nunca olhar para o thuragar.
— Às vezes tudo o que é preciso é aquela motivação adicional, Worick. Os deuses bem sabem que o Aewyre vai precisar de tudo ao que se puder agarrar...
— Pedras me partam, já parece daquelas histórias rabilas que as aias liam à Lhiannah...
— Talvez. Mas eu preferia que não fossem só a raiva e a vingança a impelirem o Aewyre em frente.
— Pois, para ti é fácil falar. Quem é que vai ter de aturar os suspiros durante os próximos meses de viagem, hã?
— Estou certo de que já passaste por bem pior, Worick... Alheios a tudo o que era dito a seu respeito, Aewyre e Lhiannah tornaram a parar para respirar, e, enquanto arfavam de olhos postos num ponto indeterminado em baixo, a princesa apoiou a testa debaixo do nariz do guerreiro.
— Ainda a tens? — perguntou Lhiannah entre ofegos.
— O quê?
— A trança.
— Ah. Sim. — A nesga de cabelo de Lhiannah ficara presa nas placas de aço da manopla siruliana durante a batalha. — Ficou um pouco suja...
— Hum. Tens de ir agora, não? Já estão todos à espera... — disse a princesa, roçagando a cana do seu nariz na ponta do de Aewyre.
O guerreiro refletiu um pouco em silêncio, e descobriu que a proximidade de Lhiannah naquele momento lhe dificultava. Por fim, algo lhe ocorreu e os dois afastaram-se para que Aewyre pudesse remexer na sua bolsa. Entre o tilintar de moedas e alguns resmungos de olhos virados para cima, acabou por encontrar o que queria e tirou-o entre polegar e indicador.
Era um dente.
Lhiannah abriu a mão para receber o molar partido na palma, e franziu a testa perante tão estranho lembrete.
— Lembras-te, quando o fomos arrancar em Val-Oryth...?
— Hã... sim, sim...
A princesa nada disse, mas Aewyre podia ler-lhe a expressão e debuxou um sorriso acanhado, coçando a nuca e olhando para o lado, o que fez com que visse as caras atentas dos seus companheiros, que preferiu trocar pelo inexpressivo chão. Lhiannah olhava perplexa e de boca entreaberta para o dente, parecendo não saber o que fazer com ele, e agora que pensava nisso, o guerreiro também não.
— Olha, eu sei que é um bocado esquisito. Se calhar eu...
De repente, a expressão da arinnir suavizou-se e os cantos da sua boca ergueram-se, o que a levou a fechar o punho com o dente lá dentro e a fitar o guerreiro, parecendo abanar a cabeça com o olhar sem contudo o fazer. Era tão pateta, tão infantil, tão descabido, tão... Aewyre. Lhiannah pegou-lhe pelos lados da cabeça e riu-se antes de tornar a beijá-lo, trazendo um sorriso também às caras de Quenestil e Slayra, que observavam de mãos dadas.
— Estava difícil... — comentou a eahanoir, olhando de viés para o shura.
— Sim — concordou este. — Até nós fomos mais rápidos.
— E também só perceberam isso quando um de vocês se foi embora — opinou a aflautada voz de Taislin em baixo. — Bem, um pouco antes, talvez... Eles são capazes de ter encontrado mais vermes que vocês enquanto cavavam, e só agora é que deram com as trufas.
Embora não percebessem a analogia, os dois eahan concederam a razão ao burrik com acenos afirmativos das cabeças, pois de fato assim fora. Na própria noite em que Slayra fora levada por eahanoir para Jazurrieh, ambos se haviam por fim rendido ao que sentiam com um ardor que dificilmente algum dos seus congêneres compreenderia.
— Trata dela, sim, Taislin? — pediu Slayra, puxando distraidamente a ponta do barrete do burrik. — O Worick não é a melhor companhia de viagem.
— Achas que te consegues animar o suficiente para a ajudar? — indagou Quenestil, que também sentia a falta do alegre e brincalhão Taislin, embora não pudesse deixar de achar que a sua atitude mais prudente também era uma mais-valia. — E bom que os queiras proteger, mas todos precisamos de um bom riso nesta altura.
— Vou tentar — asseverou o burrik, quedando-se pensativo assim que o disse e murmurando em surdina: — Ratos, como é que isto nos aconteceu? O que vai ser de todos nós agora?
Malgrado o sentimento mútuo, nenhum dos companheiros sabia a resposta.
O rio que Aemer-Anoth sobranceava corria para sul na direção da costa, serpeando languidamente pelos outeiros até desbocar no mar. Os conscritos haviam aproveitado esse fato para se livrarem dos cadáveres dos sitiantes, atirando-os muralha fora e esperando que a corrente resolvesse o problema, pelo que se encontravam várias carcaças de drahregs, ulkekhlens e mesmo alguns ogroblins espalhados ao longo das margens. Aves e afins necrófagos banqueteavam-se com a dádiva vinda da fortaleza, e durante alguns dias os animais regalar-se-iam com a carne da progênie d’O Flagelo que não fora despejada no mar. O rio corria ao longo de morros boscosos, entre dois dos quais se encontrava uma lezíria de lodo e detritos arrastados pelo degelo primaveril, na qual vários cadáveres haviam encalhado num mórbido amontoado. Porém, entre a carvoenta pele dos drahregs estropiados e a tez parda dos ulkekhlens mutilados, entre musculosos braços negros e nervudos membros munidos de possantes garras imundas, distinguia-se um semblante descorado que destoava acentuadamente do resto. A pálida cara de um eahanoir ainda mais descolorada pela morte encontrava-se soterrada debaixo de uma mortalha de carne, e a sua face ostentava uma máscara de surpresa e incredulidade. A boca permanecia entreaberta, os lábios arroxeados e a intrincada tatuagem vermelha mesmo na morte continuava a realçar o cinzento olho esquerdo em detrimento do azul-claro. Nesse singular orbe pareciam estar expostas todas as angústias e incertezas de uma vida abruptamente terminada, a frustração de um objetivo que ficara por cumprir, a amargura de palavras que haviam ficado por dizer. Todas elas dançavam na conturbada íris cinzenta, ajuntando-se na pupila, amoldando, coalescendo, cada vez mais fundo, mergulhando no profundo negrume, penetrando nos mais recônditos recessos da alma.
Cada vez...
Mais...
Fundo.
Até um local diferente, alienígena, misterioso, permeado por névoas imateriais. Em redor e até aonde a vista alcançava viam-se montanhas de variada envergadura, recortadas contra um céu opaco, altas, baixas, escarpadas, enrugadas, muitas ancianas para além da memória. A mais próxima destacava-se na cordilheira devido ao seu tamanho, claramente maior que muitas à sua volta, e essa pulsava com uma espécie de chamamento enevoado que fatalmente atraía a atenção sobre si.
Tannath estava morto. E aquela era a sua montanha, a que deveria escalar para passar a fosse o que fosse que o aguardava após a sua existência em Allaryia. A névoa em redor tinha um efeito apaziguador, e mesmo as turbulentas repercussões da sua morte e o malogro de objetivos e promessas por cumprir foram por ela serenados, nada mais que meros melindres agora que a sua vida findara e uma nova existência o aguardava. O que nele passava por um corpo parecia mesclado à névoa que nunca deixava de manar em seu redor, com a sua capa e cabelo a adejarem à imperceptível brisa e os tons negros da sua indumentária esbatidos como se desbotados ao sol. Sentia-se calmo como em vida nunca o fora, e a resignação parecia-lhe de fato a alternativa mais sensata. Sabia que em breve iria rever a sua existência de qualquer forma ao escalar a montanha, pelo que não havia necessidade de...
— Se eu te contasse tudo... ainda me quererias mais que às outras? — sussurrou-lhe uma voz feminina ao ouvido. Slayra?
Tannath virou-se bruscamente, arrastando fiapos de névoa ao fazê-lo, mas encontrava-se sozinho na extensão montanhosa. A voz entrara-lhe oleosa pelo ouvido adentro, sibilante, mas fora definitivamente a de Slayra. Não havia nada nem ninguém à vista na brumosa vastidão, mas ouvira-a tão bem como se uma memória sua se lhe estivesse a assomar. A menos que... sim, avistara algo a avançar por entre a névoa, e vinha na sua direção. Tannath quis ir ao encontro dessa outra presença, mas a sua montanha impedia-o de se afastar, de se intrometer nos domínios de outras almas. Por muito que tentasse, havia uma circunferência que lhe era pura e simplesmente impossível de transpor. Optou então por se acalmar, embora não estivesse verdadeiramente agitado, e esperar que a outra presença se aproximasse. A medida que esta se acercava de Tannath, o eahanoir começou a ter uma sensação de iminente oblívio, de que boa parte daquilo que o compunha como pessoa e indivíduo estava prestes a desaparecer. Não sentia medo, pois a névoa parecia aplacar os seus receios como uma atenciosa mãe a afagar a cabeça de uma criança, explicando como a experiência poderia ser penosa, mas que tudo ficaria bem no fim.
A figura já não estava longe, e Tannath pôde distinguir melhor a sua aparência. Deslizava por entre a névoa com os pés afundados nela, e esta escorria-lhe pela bainha da túnica castanha com extensos bordados em forma de caveiras e ossadas. Agarrava com ambas as mãos as asas de um estranho vaso de vidro baço envolto em filigrana de cobre, e ostentava uma lutuosa máscara na forma de uma grande caveira de cobre manchado de verdete à qual estavam acopladas duas espaldeiras semelhantes a omoplatas e dois rebordos laterais abaulados com nervuras semelhantes a costelas. O eahanoir nunca antes o vira, mas soube identificá-lo de imediato por quem era: o Guia, o oposto da Mãe, o orientador dos defuntos. As descrições acerca dele variavam, mas nenhuma que Tannath ouvira correspondia à verdadeira aparência da senecta entidade. Cada vez mais próximo, não era de todo ameaçador como alguns vaticinavam, nem tão-pouco parecia decidido a devorar-lhe a alma. O Guia vinha com a calma e a inexorabilidade da própria morte e o seu propósito era unicamente ajudar, ou pelo menos era o que o eahanoir por alguma razão sentia. A névoa embotava-lhe os pensamentos, refreava emoções, sufocava memórias...
— E como sabes que ela está a mentir? Julgas que conheces aquela víbora? — Uma vez mais, a voz oleosa. Shanaya?
Quando Tannath deu por si, o Guia já se encontrava diante dele, inexpressivo, imoto, infinitamente paciente. As suas mãos estavam cobertas por bizarras armações articuladas na forma de falanges cóbreas sobre os próprios dedos, e estes agarravam as asas do curioso vaso, cuja filigrana agora distinguia como sendo composta por mais motivos ósteos em cobre.
— Tannath — disse o Guia, a sua voz reverberante e oca devido à máscara. Não era sinistra, era simplesmente desprovida de qualquer emoção.
— Sou eu — respondeu o visado. Eahanoir não tinham apelidos, pois não havia união familiar entre eles, e esta de qualquer forma representaria apenas mais um alvo na implacável sociedade dos eahan negros. Ninguém desejava morrer pelos despautérios de familiares, daí que cada eahanoir fosse desvinculado a partir da adolescência.
— A tua vida foi terminada atempadamente. Resta-te escalar a tua montanha e partir para a tua nova existência.
— Continuas a fazê-lo como ninguém, Tannath...
O eahanoir abanou a sua cabeça semimaterial, julgando ser esta a fonte das vozes que o acossavam. Memórias que procuravam ressurgir à força, irrompendo das brumas do esquecimento que lhe enevoavam a mente. O Guia pareceu não reparar, ou, se reparou, tomou o gesto pela habitual negação de quem acabara de falecer e não se resignava com a morte.
— Não tendo servido deus algum, fizeste as tuas sinceras preces a Kispryn suficientes vezes e viveste segundo alguns dos seus preceitos. Desejas servi-lo após a tua morte ou fundir-te ao Pilar? Serventia ou paz eterna?
— Pode... desejo o Pilar. — O que importava agora de qualquer forma? Sentia-se cansado, desejava paz, desejava o descanso merecido após tão atribulada vida. Mas as memórias...
— Seja — ecoou a voz do Guia dentro da máscara e este ergueu o vaso. — Podes beber do Lacrimatório se assim o desejares. As lágrimas de quem lamentou a tua morte dar-te-ão forças para subires à tua montanha.
Tannath assentiu com uma certa indiferença e inclinou a cabeça para trás para receber o obsequioso gargalo de cobre na boca. Tinha um sabor salgado, mas dele nada foi vertido, nem mesmo quando o Guia inclinou o Lacrimatório.
— A tua morte não foi chorada — constatou o Guia sem qualquer malícia na monótona voz. — Terás de escalar a tua montanha e prevalecer pelas tuas próprias forças.
Tanto quanto lhe era possível no seu estado semimaterial, Tannath sentiu uma pontada amarga na garganta. Pois bem, assim seria. Nunca dependera de ninguém além de si mesmo durante a sua vida e não seria agora no fim dela que isso o iria prejudicar. Contavam-se histórias de quem falhava em subir à sua montanha e dessa forma era devolvido ao Nada, à Entropia cujos resquícios permeavam Allaryia e que aguardava as almas perdidas nas pontas do Pilar, rasgando cada fibra do seu ser etéreo e consumindo-as irrevogavelmente.
— Quem queres enganar com essas exibições de honra quando és escumalha traiçoeira igual aos outros? — Quenestil? As memórias eram como ondas a embaterem contra um quebra-mar de esquecimento, arrojando-se espumantes, caindo, recuando e tornando a colidir. Isso e algo mais... mágoa... raiva?
— Não podes permanecer, Tannath — intrometeu-se a voz do Guia nos seus pensamentos. — Deves prosseguir e subir a tua montanha, na qual poderás revisar a tua vida e eventualmente falar com quem a tenha marcado e já tenha feito a sua escalada.
— ...um verme do esgoto que não hesita em apunhalar os seus pelas costas; não passas de escória manhosa como todos os eahanoir. — Outra vez o desgraçado do eahan... mas o que se estava a passar? Sombras começavam a passar-lhe diante dos olhos, sombras que não faziam parte da névoa.
— Será a tua última oportunidade, pois fundindo-te ao Pilar não terás ocasião de fazer o mesmo quando conhecidos teus perecerem — continuou o Guia, aparentemente alheio ao que Tannath estava a sentir.
— Os teus homens abandonaram-te e agora trabalham para mim, as tuas posses foram confiscadas e a tua casa apropriada — agora Illoth. Quem... o que estava a arrancar as suas humilhações e fracassos dos recessos da sua memória? Fosse como fosse, a fúria do eahanoir principiava a borbulhar, afastando a névoa olvidante com o seu calor.
Tannath estava hirto, de cabeça baixa e olhos fechados, mas uma vez mais o Guia tomou os seus gestos por relutância e inconformismo.
— Não vale a pena negares o teu destino. Fizeste as tuas escolhas e o único caminho que te resta encontra-se diante de ti.
— Alguém que julga conhecer tão bem as mulheres faria bem em temer uma eahanoir ciumenta... — Vinxenia, a traidora. Tantas vinganças por cumprir, tantos insultos por saldar...
Serpenteantes gavinhas de penumbra começaram a entrelaçar-se em redor de Tannath e não passaram despercebidas ao Guia, que pela primeira vez hesitou no seu discurso.
— Tannath?
— Morre, desgraçado! — rosnara Quenestil, rebentando-lhe o lábio no adarve da muralha na tempestuosa noite.
— Tannath? — repetiu o Guia, vendo o eahanoir ser envolto em cada vez mais insistentes sombras sem contudo esboçar qualquer reação.
— Não! — A dor do seu próprio estilete enfiado no seu coração, a vida a escorrer-lhe quente pelo peito abaixo...
— Julgas que conheces aquela víbora? Tantas certezas...
— Continuas a fazê-lo como ninguém, Tannath... Mentiras...
— ...não passas de escória manhosa como todos os eahanoir. Verdades...
— Os teus homens abandonaram-te... Perfídia...
— ...temer uma eahanoir ciumenta... Traição...
— Morre, desgraçado! Ódio...
— Tannath? — O eahanoir era todo ele uma penumbra que se contorcia, e uma aura de ar nítido separava-o da névoa, que se revolvia em seu redor, impotente.
— ...víbora...
— ...ninguém, Tannath...
— ...escória manhosa...
— ...abandonaram-te...
E Slayra. Sempre Slayra. A beijá-lo, a gemer e gritar de fingido prazer, atacando-o a lado de Quenestil, a esmurrá-lo... cada riso, cada sorriso, cada carícia e palavra... tudo mentiras, insídias, discretas facadas plantadas nas costas que ardiam todas juntas naquele momento. Tannath gritou numa explosão de emoções extremas, de raiva, rancor, desespero, e as sombras chicotearam em redor, obrigando a névoa a recuar como um animal vergastado. Encolheu-se então numa contraída posição fetal, deixando-se encobrir completamente pelas trevas, afogando a monótona voz do Guia, embebendo-se no azedume das memórias e deixando que a sua fúria o levasse para onde quer que fosse que as sombras o tentavam arrastar.
Quando deu por si, incapaz de determinar o tempo que se passara durante a transição, encontrava-se num lugar menos difuso mas bem mais sombreado. Os contrastes eram nítidos naquele local, e ao contrário do moroso movimento da névoa em que se encontrara, ali as trevas mexiam-se com uma revoluteante vida própria como num antro de víboras. Tudo era sombra, e além de vultos e silhuetas, pouco mais se distinguia, e contudo a visão era incomparavelmente mais nítida que no domínio montanhoso do Guia. O próprio Tannath ondulava como uma oleenta mancha de tinta a ser soprada. A sua mente também já não estava enevoada, os seus pensamentos estavam claros e as memórias fortemente presentes.
— Onde estou? — quis o eahanoir saber, esperando que alguma das sombras lhe soubesse responder.
— Podes pensar nele como a sombra do Pilar — ouviu uma voz serpentear em redor, sobressaltando-o pela primeira vez desde que morrera.
Tannath olhou à sua volta, mas nada mais se via além de sombras e mais sombras naquele domínio tetro. A voz trazia poder consigo, uma força de presença que parecia permear todo o lugar e que mesmo na morte intimidou o eahanoir.
— Quem está aí? O que é que me aconteceu? Mostre-se!
— O que te aconteceu? Muito simples: morreste — respondeu a insidiosamente poderosa voz, que parecia vir de todo o lado e de nenhum. — Estavas prestes a subir a tua montanha, mas foste trazido até aqui para escolheres.
— Escolher? Mas eu já...
— Quanto a quem eu sou... — Como uma só, as trevas estacaram, quedando-se imóveis durante alguns silenciosos momentos. Quando recomeçaram a mexer-se, pareceram fazê-lo apenas aos cantos dos olhos de Tannath, o que resultou numa entontecedora impressão que fez com que o eahanoir se visse no eixo de um mundo que revolvia em seu redor.
Assim que a desorientação passou, Tannath levou ainda algum tempo até compor na sua mente aquilo que diante dele se deparava como um monumento umbral, o verdadeiro âmago daquele que de imediato soube identificar por quem era. Mudo e avassalado, o eahanoir experimentou uma sensação de negra epifania que levou os seus humilhados joelhos ao inexistente chão. Estava diante do seu criador.
— És um indivíduo intrigante, Tannath — afirmou Ele, e o eahanoir não ousou sequer pensar nisso como sendo um elogio. — Tive o prazer de conhecer a Slayra muito antes do primeiro contato que tive contigo, e devo dizer que acho fascinante o que vocês os três originaram, tu, ela e o Quenestil.
Mesmo prostrado como estava, Tannath ainda assim sentiu uma picada de raiva perante a menção de Slayra.
— Mesmo durante a explosão de emoções que foi a batalha em Aemer-Anoth, tu eras como um farol. Tanta raiva, frustração, e outros sentimentos bem mais... peculiares.
Tannath queria dizer algo, mas não podia, não podia sequer ter a desenvoltura de erguer a sua sombria cara...
— Morreste de forma violenta, inglória, e deixaste para trás um resíduo de rancor que me foi muito fácil seguir. Nem todos o conseguem, mas a tua particular situação e trágica morte na minha presença permitiram-me uma medida de acesso à tua alma conturbada. De resto, foi apenas uma questão de dar umas ligeiras pontadas na tua memória embotada pela névoa das montanhas para que não te resignasses com o teu destino. A tua sede de vingança e força de vontade fizeram o resto.
— Meu... meu senhor... — balbuciou Tannath por falta de algo melhor para dizer, julgando que qualquer coisa além de um título dignificante seria blasfêmia.
— Ergue-te, Tannath. Tenho uma escolha a oferecer-te que julgo que possa ser mais aliciante que a que o Guia te apresentou.
O eahanoir assim fez, olhando apenas para os ondulantes rebordos sombrios daquilo que passaria pelos Seus pés.
— Estás morto, mas eu posso trazer-te de volta ao mundo dos vivos mediante certas limitações. Conheces os Fadados, Tannath?
O eahanoir abanou a cabeça.
— Indivíduos que me oferecem a sua alma em troca de uma segunda vida após a sua morte. Tornam-se para todos os efeitos defuntos animados quando isso sucede, com todas as vantagens e inconvenientes que tal condição traz. Posso fazer o mesmo contigo, se o desejares.
A presença de espírito do eahanoir começava a regressar, mas a série de eventos transcendentais pelos quais passara haviam deixado Tannath atordoado como o fariam com qualquer mortal. Tudo fora tão repentino, e as memórias continuavam a atormentá-lo, a provocá-lo, a desafiá-lo a ter a coragem de passar por tudo outra vez.
— Inconvenientes... meu senhor? — conseguiu por fim libertar da sua boca.
— Qualquer ferimento se tornará de pouca monta para ti, embora ainda possas ser incapacitado, mas não poderás sarar de forma alguma. Os teus movimentos estarão algo tolhidos pela rigidez dos teus músculos e, claro, a tua alma tornar-se-á minha, impossibilitando-te de subires à tua montanha ou sequer fundires-te ao Pilar. É o preço que pagarás pela segunda oportunidade de levares a tua vingança a cabo.
Vida na morte? Ou morte na vida? Da maneira que se sentia, Tannath não conseguia conceber de que forma uma seria pior que a outra. Uma segunda oportunidade? As memórias injuriavam-no...
— Existe, contudo, uma maneira de compensar de certo modo as desvantagens que referi, algo que acabaria por nos beneficiar aos dois de uma forma bem mais significativa.
Sem conseguir acreditar na sua ousadia, Tannath ergueu a cara como se estivesse a erguer um pedregulho pela nuca, e fitou-O naqueles que tomava pelos Seus olhos. O gesto pareceu agradar-Lhe.
— Perdi três dos meus Aesh’alan no final da guerra, e agora faltam-me um Braço e dois Passos. Serve-me, Tannath, e mais do que a tua vingança, terás um novo propósito na tua vida. A posição também tem o seu preço, evidentemente, mas julgo que o acharás bastante razoável e uma contrapartida deveras proveitosa. Sei que passaste por muito; se estiver a dizer algo que não entendas, por favor diz-me.
— Eu... não, não... compreendo-Vos. Perfeitamente. Meu senhor.
— Gostava de te poder dar mais tempo, pois bem sei que não é uma decisão que se tome de ânimo leve, mas só o estares aqui é taxativo mesmo para os meus poderes, e não te conseguirei reter muito mais até as montanhas te reivindicarem. Por isso deves escolher agora, se desejas outro destino.
— O... preço?
— Sim, a Oblação. Para regressares ao teu corpo, terás de o fazer através da dádiva negra, e essa providenciar-ta-ei sem qualquer preço além da tua alma. Terás a liberdade para levares a cabo a tua vingança e, caso sejas bem-sucedido, poderás depois fazer o que bem entenderes da tua... vida. Por outro lado, caso escolhas servir-me além disso, terás de fazer um sacrifício adicional, prescindir de algo que seja integral à tua pessoa, e dessa forma tornar-te-ás no meu Aesh’alan. Poderás levar a tua vingança a cabo à mesma, e depois servir-me-ás. Nada mais exigirei de ti que lealdade e obediência. Caso me traias como o fizeram contigo, destruir-te-ei, e a tua alma, que me pertencerá, terá um destino bem pior. Parece-te justo?
— Por que me dais escolha... porquê eu?
— Porquê? Porque achei a tua morte uma grande injustiça, e por que almas são sempre um bem que vale a pena adquirir. Por que estou interessado em ter-te como Aesh’alan? Possuis os requisitos necessários, tens a força de vontade, integridade de caráter, e as habilidades que adquiriste em vida serão muito bem complementadas pelas regalias de seres um dos meus passos. O tempo urge, Tannath. Terei de te pedir que escolhas agora antes que as montanhas te reivindiquem.
A Sua voz era calma e compreensiva, mas Tannath compreendia a urgência e as conseqüências de uma indecisão. Por um lado, a árdua escalada à sua montanha e uma eternidade de paz e sossego ou a aniquilação total, caso falhasse. Por outro, uma segunda oportunidade na vida, seguida de serventia potencialmente eterna ou a sua destruição e paz e sossego uma vez mais. Pelo menos assim o compreendera e assim esperava que realmente fosse, mas não se atreveria a questioná-Lo. A escolha era sua, de qualquer forma, pois Ele ainda não detinha qualquer poder sobre a alma do eahanoir.
Uma singela palavra facilitou bastante a sua decisão, embora não soubesse dizer se viera sozinha ou se a sua memória fora acicatada por alguma influência externa.
Slayra...
— Aceito — disse terminantemente. — Servir-Vos-ei, meu senhor.
Tanto quanto era possível a um vulto sombrio fazê-lo, o Seu sorriu.
— Excelente. A dádiva negra é tua, Tannath. Qual é a tua Oblação? Pensa bem. A escolha é permanente e irreversível, e deve fazer parte daquilo que te compõe como indivíduo.
Tannath sentiu um rasgo de energia negra revigorá-lo, e a sua decisão veio-lhe surpreendentemente rápida e resoluta.
— A herança do meu pai — disse, olhando-O pela primeira vez sem qualquer vacilo.
O Seu sombrio cenho pareceu franzir-se, para grande surpresa de Tannath.
— Tens a certeza?
— Nada mais tenho a oferecer, meu senhor. É essa a minha Oblação.
— Seja. Volta então, Tannath. Leva a cabo a tua vingança e regressa para me servires. Estarei à tua espera.
E o mundo explodiu em escuridão.
A luz queimou Tannath por dentro quando as pálpebras do olho direito se abriram, permitindo aos raios do sol incendiarem-lhe a alma habituada à escuridão. O eahanoir estava soterrado debaixo de algo, mas a sua cabeça ergueu-se de sobressalto e de boca aberta, assustando uma ave próxima da sua cara que se afastou a bater as asas e arquejando longa e profundamente por ar, mas este, por alguma razão, não entrava. Sentia-o em redor, sabia que estava lá, mas os seus pulmões não pareciam conseguir inalá-lo. De alguma forma, o pânico falhou em inflamar-lhe o peito, fazendo-se apenas sentir como uma sensação de impotência perante uma iminente segunda morte. E contudo, esta tardou em chegar, não importava o quão profundamente Tannath arquejasse. Os seus pulmões não absorviam o ar, mas tão pouco se queixavam da ausência deste, e, quando o eahanoir se acalmou por fim, constatou que também não lhe causava grande transtorno. Recostou a nuca a algo rígido e acalmou-se, tentando ordenar a tempestade de pensamentos, sensações e falta das mesmas que lhe invadiu o corpo e a mente. Estava... vivo? Não. Morrera, mas fora-lhe permitido caminhar entre os vivos. Sim... tivera uma segunda oportunidade, concedida pelo seu novo senhor, por Ele que Se dignara a ceder-lhe a Sua atenção e o Seu favor. Tannath nunca fora particularmente devoto, obedecendo a si mesmo, apenas prestando serviços a quem bem entendia e pouco mais oferecendo aos deuses que a ocasional prece. Contudo, ter sido tocado pelo seu criador e por Ele escolhido para ser Seu servo... Somente agora que estava uma vez mais entre os vivos se apercebia da enormidade do que lhe sucedera.
Atordoado, ergueu-se a custo do manto de cadáveres que o cobriam, insensível ao calor do sol que batia contra a sua pele branca como cal enquanto se desvencilhava dos braços e pernas rígidos que pareciam querer retê-lo, ciosos da sua condição e de perderem a companhia. As aves em redor não lhe prestaram grande atenção, concentradas como estavam no seu festim, nem sequer quando o eahanoir começou a executar gestos desajeitados para testar o negro vigor que agora lhe movia o corpo. Sentia-se hirto, desajeitado, embora a tetra pulsação que lhe ressoava onde antes o seu coração batera fosse um claro sinal do vigor da Sombra que agora o animava e que certamente se lhe revelaria assim que tivesse aceite por completo a sua nova condição. Tannath levou ambas as mãos ao peito e olhou para baixo, para a punção no tecido negro manchado com o seu sangue na qual já não se encontrava o seu estilete. Provavelmente pilhado por um qualquer maltrapilho tanarchiano. Resignado, o eahanoir encaminhou-se a coxear até à beira da lezíria, pisando e tropeçando em mãos, caras e pernas sem disso se dar caso. Afundou os joelhos no lodo, apoiou-se num ramo limoso e contemplou o distorcido reflexo da sua cara na água corrente. Tinha feridas arroxeadas na testa, no canto da boca, e o seu lábio inferior fora rebentado durante a luta com Quenestil, mas tais ferimentos passaram despercebidos assim que o eahanoir viu o buraco vermelho onde antes o seu olho esquerdo estivera. Levou os dedos brancos ao pouco sangue que escorrera do orifício e que se mesclara à sinuosa tatuagem vermelha em seu redor. Fora então feita a Oblação...
A sua mão caiu na água, distorcendo ainda mais o reflexo do seu semblante arruinado, e Tannath ergueu-se com a distinta sensação de que perdera irremediavelmente algo que sempre fizera parte de si, algo que o diferenciara de todos os outros eahan negros. Algo que também lhe causara um sofrimento tal que no fim o levara à sua inglória morte, recordou Tannath a si mesmo. Algo que acabara por destruir a sua vida e tudo o que até então com tanto esforço alcançara pelo seu próprio mérito.
E Slayra, sempre Slayra...
Quenestil também, por arrastamento, embora o eahan já fizesse o seu fígado segregar um fel especial dedicado unicamente a ele, o maldito shura que lhe roubara Slayra e que o matara. Vinxenia também, a traidora, e Illoth, o desgraçado etharr oportunista que aguardara a sua queda como uma ave de rapina para lhe escarnar os ossos de seguida. Não, não fora sacrifício algum o que Lhe concedera. Fora uma contrapartida muito proveitosa que lhe iria permitir vingar-se de todos os que haviam conspirado para o derrubar. Uma penumbra raivosa dançou diante do seu único olho, revelando as verdades ocultas do mundo e da sua presente condição, e o eahanoir permitiu-se sentir o negro poder pela primeira vez desde que despertara. A celeridade das sombras seria sua caso a aceitasse, e as trevas o seu novo domínio como Passo d’O Flagelo.
— Aceito-as, meu senhor — sussurrou Tannath, a sua carne morta a estremecer de negro arrebatamento —, e por elas Vos agradeço.
Embora estivesse de cara para o sol, o eahanoir só então reparou que a sua sombra se encontrava diante de si, e parecia mexer-se com uma vida que não era apenas causada pelo correr da água. Fascinado, quedou-se imóvel a olhar para ela, e mais surpreso ficou ainda com a impressão de que o olhar era retribuído. As aves ergueram os bicos ensangüentados, olhando em redor com movimentos bruscos das cabeças, e a um tempo decidiram partir naquele mesmo instante, inexplicavelmente assustadas e batendo as asas em frustração.
A cabana do lenhador Brunken adquirira uma reputação infausta após as misteriosas e horripilantes circunstâncias da morte deste e da sua mulher. Quando os corpos foram encontrados semanas mais tarde, falou-se em sussurros assustados acerca de harahan na aldeia próxima de Llen e esta reivindicara de imediato um grupo de soldados de Vaul-Syrith. Quando surgiu apenas um monteiro e a esposa deste para reocuparem a cabana, Llen ainda tentara adquirir os serviços de um Predador das Sombras, mas estes haviam sido banidos de Nolwyn após o fim da Guerra da Hecatombe e a sua presença não era sancionada pela nação em cuja fronteira Llen se encontrava. Os meses passaram, porém, e nada de mal sucedeu ao monteiro ou à sua mulher, e o sucedido foi lentamente esquecido à medida que se imiscuía no folclore local como apenas mais uma história para contar à lareira. A cabana continuava modesta e pouco ou nada fora remodelada pelos seus novos habitantes, pois tanto o monteiro como a esposa eram pessoas humildes de idade avançada e filhos crescidos com as suas próprias vidas. Haviam aceite habitar a casa já com a idéia de passarem o resto dos seus sossegados dias nela, coisa que veio a acontecer mais cedo do que esperavam.
A habitação era pequena e constituída somente por duas divisões, com uma porta a separá-las. O fogo crepitava à lareira e o seu calor fazia o caldeirão sobre ele exalar um sutil odor a guisado, embora o que estava a ser preparado fosse uma simples sopa de lentilhas. O caldeirão fora encontrado com um guisado inteiro dentro dele, e raspar os conteúdos por completo fora difícil, mas de qualquer forma o monteiro achara que o sutil sabor ficava bem nos sensaborões cozinhados da sua mulher, pelo que não haviam insistido no assunto. A única coisa que mudara em toda a cabana fora a mesa, sobre a qual a esposa do lenhador fora encontrada horrendamente morta e que havia sido cortada para servir de lenha. De resto, os tocos a fazerem as vezes de bancos e a decoração de armações de veado haviam permanecido, bem como a pele de urso a fazer de tapete e sobre a qual o monteiro e a sua mulher naquele momento se encontravam. Estavam mortos, as mãos dele crispadas na garganta dela, e esta com uma faca espetada no peito do seu marido, do qual escorrera o sangue vermelho-escuro para cima do seu avental branco. Os olhos da mulher estavam revirados, a sua língua inchada de fora, como que espremida pelas mãos arranhadas e ainda hirtas do seu marido em volta da sua traquéia. A cara deste estava contorcida num esgar de raiva, algo atenuado pela expressão surpresa ao ter sentido o ferro frio perfurar-lhe o coração, e nela estava espalhada bile amarelo-esverdeada que pingava pelo queixo e nariz. Havia um terceiro ocupante na sala, e esse estava calmamente apoiado com ambas as mãos nas ombreiras da porta, contemplando o quadro de violência que ajudara a pintar. Tratava-se de um homem baixo, sinuoso e de barriga bojuda sobre o qual não recairia qualquer atenção, não fosse pela sua doentia pele amarelada, cabeça careca e palmas das mãos rubras. Envergava uma camisa de pele de cabra e calças de lã grosseira, e as suas feições eram redondas e manchadas por máculas vermelhas das quais radiavam linhas avermelhadas como patas de aranha. A sua expressão, contudo, era impávida e serena perante a cena de morte que observava atentamente, a expressão de um artista que escrutina com olhar crítico uma obra sua que julga não ter saído como esperava.
— Algo que não tenha ficado do teu agrado, irmão? — inquiriu uma voz atrás de si, uma voz que conhecia muito bem e cuja presença sentira muito antes de esta se revelar.
— Levaste o teu tempo, Hepascar.
O mencionado não respondeu, esperando antes que o seu interlocutor largasse as ombreiras da porta para que pudesse entrar, coisa que fez com calmo interesse enquanto observava o interior. Ao contrário do seu irmão, Hepascar não cultivava uma aparência circunspecta. Envergava uma túnica de mangas folgadas e capuz que abrira ao nível do torso, exibindo dessa forma o seu peito cavo desprovido de pêlos e bojuda barriga com veias azuladas a radiarem do umbigo, também elas características dos haghral, mas poucas vezes grotescamente expostas da forma que o seu irmão o fazia. Cingia a túnica com uma cinta de couro debaixo do estômago, na qual estavam enfiadas uma série de lancetas em patilhas, e repuxara as calças de forma a expor as suas pernas ligadas como as de um mendigo. Era igualmente careca e a sua pele tinha o mesmo tom amarelento, embora ostentasse menos máculas vermelhas que o seu irmão.
— Tem um sabor tão... artificial, Feghrat — comentou Hepascar, puxando o capuz para trás e saboreando o ar com a língua amarelada. — Estes dois gostavam de fato um do outro. Tiveste de regurgitar?
— Quando ele me abriu a porta. Estava farto de esperar por ti. — A voz de Feghrat era mais doentia que a do seu irmão, e condizia com a imagem de trabalhador de campo itinerante e enfermo que se esforçava por passar durante as suas perambulações. Sempre era mais sutil que o seu irmão...
Hepascar fitou aquele que na verdade era seu meio-irmão, pois quem os gerara e quem os parira haviam sido duas pessoas diferentes. A semente da qual provinham também pertencera a dois homens distintos, pois Feghrat era baixo e de olhos escuros, enquanto Hepascar o olhava de cima com orbes esverdeados que causavam um contraste bem mais forte com o branco amarelado que os rodeava característico dos haghral.
— A nossa mãe está morta, Feghrat. A bile chama-nos e urge que ajamos, mas ninguém espera por nós.
Feghrat fez uma careta desagradada e foi sentar-se num dos tocos, farto como estava de aguardar de pé.
— Então foi aqui... — continuou Hepascar, olhando em redor.
— Sim, aqui nasceu o nosso último irmão.
— Irmão?
— Ou irmã. Seja como for, por esta altura ou está a ser criado por pais insuspeitos ou morto, por isso não nos interessa.
— Carrancudo como sempre... — disse Hepascar, abanando a cabeça.
— E tu continuas o mesmo inconsciente. O que pretendes com essas roupas, aparecer nalgum livro de histórias para assustar as crianças?
— Se um de nós algum dia de fato aparecer num livro, estou certo de que eu terei muito melhor aspecto. Achas que alguma criança tem medo de um homem com uma camisa de pele de cabra?
— O que acho é que quanta mais atenção chamas, mais depressa morres. Mas não foi para isso que viemos aqui, pois não?
— Não. Mataram-na, e por isso devem pagar. A bile assim o exige — declarou Hepascar com rara seriedade. — Sente-los?
— Sim — afirmou Feghrat, olhando de repente para lugar nenhum com olhos amareladamente vagos. — A da carne e o do sangue estão próximos daqui. A do coração encontra-se longe, muito longe, mas vem na nossa direção.
— Sorte a nossa, nesse caso. Somos dois, e eles três. És o primogênito, Feghrat. Quem desejas?
O haghral sentado encolheu os ombros, dando mostras de ausência de qualquer preferência.
— Posso encarregar-me da que proveio da sua carne. E tu?
— A do coração.
Feghrat ergueu uma dúbia sobrancelha.
— Porquê ela? Ê a que mais longe se encontra. Escolheste-a só para que eu tenha de lidar com o do sangue também?
— Apetece-me uma mudança de ares, irmão, só isso. E como já disse, não temos ninguém à nossa espera, mas posso tratar daquele que partilha o sangue com quem matou a nossa mãe, se isso te incomoda tanto.
— Hmpf. Não, eu trato dos dois. Muda tu de ares, e tenta não ser morto antes de fazeres o que tens a fazer. Não quero ser eu a ter de matar os três.
— Com o alento que a tua confiança me dá, como poderia falhar? — retorquiu Hepascar.
Feghrat ergueu-se, fixou o seu irmão com os olhos e achegou-se a ele, sério e sorumbático como sempre.
— A progenitora foi morta.
Hepascar retribuiu o olhar, umedecendo os lábios com a língua antes de dar continuidade à litania.
— A bile chama.
— A carne irá sangrar.
— O coração irá verter.
— O sangue irá escorrer.
— Assim reclama a bile — entoaram ambos em uníssono.
— Que o ódio te guie — desejou Feghrat.
— Que o rancor te auxilie — correspondeu o seu irmão.
— A bile chama — repetiram os dois. — A progenitora será vingada.
Os haghral afastaram-se então um do outro, e Feghrat dirigiu-se à porta sem mais demora, dispensando apenas um último olhar ao seu irmão por cima do ombro.
— Não falhes. — E caminhou para as sombras além da porta, nas quais desapareceu.
Hepascar cruzou os braços, contemplando uma última vez o casal morto e abanando a cabeça. Feghrat não tinha o mínimo requinte. Nunca conhecera a sua progenitora, mas só por o ter trazido ao mundo provavelmente merecia mais do que aquilo. E o haghral certificar-se-ia de que a do coração serviria como justo tributo.
Aewyre e Kror viajaram sozinhos por Tanarch durante semanas, tendo-se separado de Allumno e dos restantes conscritos na fronteira com a Sirulia. O mago seguiria o seu próprio caminho, e nem mesmo na despedida dissera ao seu protegido qual este era ao certo.
— Tenho de ver umas pessoas. Agora que O Flagelo regressou, todo o cuidado é pouco... — E com isso partira, abraçando o guerreiro uma última vez e desejando-lhe sorte. — Muito pode vir a depender de ti, Aewyre. Tenho confiança nas tuas capacidades, e espero que sintas o mesmo.
Os conscritos foram pouco mais efusivos, embora todos prestassem respeito à sua maneira ao filho do herói caído e muitos pedissem para tocar em Ancalach como forma de proteção, pois estavam cientes do mal primordial que regressara. Aewyre esperava que espalhassem a palavra, pois Allumno bem o avisara da dificuldade que seria tentar convencer fosse quem fosse de que o Bastardo caminhava uma vez mais nas sombras de Allaryia. Seria a palavra de um príncipe boêmio e foragido, a de criminosos tanarchianos e a dos odiados sirulianos contra a complacência de vinte anos após uma devastadora guerra que ninguém desejava recordar. Apenas mais uma para o rol de preocupações que o jovem teria de resolver nos tempos vindouros. Felizmente, estas haviam apesar de tudo diminuído em número, se bem que não em seriedade. O seu pai morrera e O Flagelo retornara, virando o seu mundo do avesso numa única e repentina noite e arrojando-o para uma nova demanda com a qual nem durante a sua fantasiosa infância alguma vez sonhara. Não que sentisse medo, pois estava demasiado seco por dentro devido às lágrimas vertidas para ter suores frios, e a raiva que sentia para com o assassino do seu pai ajudava-o a defrontar a enormidade do que ninguém lhe dissera, mas todos pareciam dele exigir: matar O Anátema. Isso para não falar de ter de enfrentar o seu irmão, bem como o resto do mundo, e confessar-lhes que era na verdade ele o responsável pelo regresso d’O Flagelo, que se tivesse ficado quieto em Ul-Thoryn nada daquilo teria acontecido. Pois bem, assumiria os seus erros e iria retificá-los, nem que tivesse de podar o seu caminho através de Asmodeon para matar o maldito desgraçado e...
Não, já sentira vezes demais na pele as conseqüências de agir de forma irrefletida, e não iria cometer os mesmos erros. Tinha um objetivo, e para o cumprir teria de realizar outros, passo a passo, com calma e ponderação. Kror era um deles. Mais que um incômodo, o drahreg e a Essência da Lâmina eram agora um elemento fulcral da sua vida, ao mesmo tempo um obstáculo a ultrapassar e um fim a atingir. Continuava a não confiar totalmente nele, nem mesmo após ter ouvido o início da sua insólita história, e tanto quanto lhe fora dado a entender, um deles teria de morrer. Tentaria evitar essa hipótese e procuraria uma alternativa no único local onde tal lhe poderia eventualmente ser indicado, a Cidadela da Lâmina. Não sabia se era possível, mas iria tentar, pois respeitava a perícia de Kror e sabia que o resultado de um combate entre ambos seria no mínimo incerto, e de momento não estava disposto a correr tal risco. A única outra pessoa viva em Allaryia capaz de empunhar Ancalach e ser por ela resguardado dos nefandos poderes d’O Flagelo era o seu irmão, e Aereth não estava pronto para tal fardo. Contava obter respostas na Cidadela, ou pelo menos um mínimo de treino, pois o seu manejo da Essência da Lâmina era errático e nem ele nem Kror a sabiam manusear com um mínimo de proficiência nas raras ocasiões em que a ela tinham acesso. Depois disso, e não antes, seguiria para Ul-Thoryn, onde iria convencer o seu irmão, custasse o que custasse, da dimensão da ameaça e tentaria mobilizar todo o Nolwyn para a combater. Nem o jovem nem Allumno desconfiavam do próximo passo d’O Bastardo, mas, se a Guerra da Hecatombe servira de exemplo, nada mais deveriam esperar além do pior.
Não, decididamente não fora assim que imaginara a sua vida futura, mas aqui estava ele, e decidido a cumprir o que lhe fora forçosamente incumbido da melhor forma possível, pois além do mais não havia ninguém que pudesse culpar pela sua situação além de si mesmo. Beberia da quente nascente da sua raiva sempre que necessário para recobrar as forças, pois ela fervilhava no seu sangue e clamava por um alvo, mas desta vez refreá-la-ia, e para isso podia contar com a inesperada ajuda de Lhiannah. Ainda não entendia ao certo o que levara a arinnir a fazer o que fizera, nem o porquê da altura, mas o seu gesto ajudara-o de fato a aplacar a torrente de fúria e amargura que ameaçava rebentar a qualquer instante. Mesmo que distante, o pensamento de que algo mais o aguardava na sua vida após ter cumprido a sua demanda era reconfortante, e o jovem dera freqüentemente consigo a pensar em Lhiannah quando mexia na trança loura que a princesa lhe dera durante os momentos de silêncio enquanto acampava com Kror. Todavia, não se podia distrair com isso, e sabia-o bem, mas, sempre que procurava desviar os seus pensamentos, acabava por pensar na sua filha. Também não se podia dar ao luxo de pensar nela, pois não sabia quem era, nem onde estava, nem onde a poderia começar a procurar. A maldita harahan tivera a merecida morte, mas ainda conseguira cuspir umas últimas gotas de veneno que lhe queimavam a consciência quando não as abafava. Não, primeiro a Essência da Lâmina e o Kror, depois trataria do resto a seu devido tempo. Tinha de se manter concentrado e não perder de vista o objetivo mais importante, e foi isso que fez enquanto viajava por Tanarch ao lado do drahreg. Os sirulianos haviam-lhes recomendado que evitassem as cidades, pois duvidavam que o príncipe fosse considerado ilibado e achavam uma represália bastante provável. A rota que indicaram implicava que contornassem Dul-Goryn a norte, vadeando o rio e percorrendo os contrafortes das montanhas na direção de Tynsel, a cidade wolhyna mais próxima. Os dois assim fizeram e, excetuando uns encontros fugazes com patrulhas montadas, carroças de camponeses e uma verificação aduaneira na ponte que atravessava o rio entre as duas nações, conseguiram esgueirar-se discretamente para fora de Tanarch. Era a altura da safra, e a maior parte das pessoas estava demasiado ocupada para dar atenção a dois viajantes isolados, um deles com ar doente, pois, sempre que passavam por áreas mais habitadas, Kror fingia padecer de uma maleita da pele e andava com a face e mãos cobertas por ligaduras. Os dias eram longos e os dois aproveitavam a teimosia do sol em se pôr para cobrirem a maior distância possível. A Cidadela da Lâmina situava-se em Laone, e ainda levariam uns bons dois meses a chegar lá, pelo que cada hora que caminhavam era preciosa.
Ao fim de mais um dia de viagem na Wolhynia, montaram acampamento na orla da Floresta das Sombras, escondidos num emaranhado de frondosos fetos e debaixo do abrigo de delgados abetos e zimbros, sobre cuja folhagem incidia a luz do sol poente. O local adquirira o seu nome devido às sombras dos altos pinheiros do seu interior, que o cobriam com um eterno manto de escuridão que os resistentes wolhynos haviam aproveitado para assediar as tropas d’O Flagelo durante a Guerra da Hecatombe, e por alguma razão Kror mostrava-se de fato mais apreensivo que Aewyre, pois deitara-se mais cedo como se quisesse que a noite passasse depressa. O jantar fora um pernil de cordeiro comprado a um fazendeiro, que não falara Glottik, mas que compreendera muito bem o idioma dourado da bolsa do guerreiro. Haviam trazido rações sirulianas equivalentes a um mês de viagem, complementadas com bagas silvestres e um ou outro empréstimo de uma horta, pomar ou capoeira, pelo qual Aewyre fizera sempre questão de deixar umas moedas à porta ou ao portão do insuspeito proprietário. Certa vez tivera de fugir de cães, e noutra ocasião fora forçado a agredir um servo de campo que o apanhara em flagrante delito. Deixara uns cobres adicionais para o homem, mas embora não se manifestasse, Kror não compreendia tal necessidade, pois segundo ele nunca fora apanhado a furtar os bens necessários à sua sobrevivência e duvidava que fizessem grande falta aos proprietários. Viajar com o drahreg era só por si uma provação devido ao «tendão», sempre presente, sempre tenso, sempre a incitar os dois a um combate mortal ao qual só um poderia sobreviver. Aewyre tinha agora uma motivação adicional para resistir, mas não podia dizer o mesmo de Kror, e este na verdade já se virara contra ele durante a batalha de Aemer-Anoth. O que o impediria de o fazer outra vez? Estas e outras questões redemoinhavam na mente do guerreiro enquanto amolava uma faca de trinchar com um desgastado cote. Sempre gostara de ouvir o silvo do aço contra pedra, mas Ancalach nunca perdia o gume e usar uma pedra de amolar na Espada dos Reis era uma perda de tempo e recursos.
«Pois... aquilo que quero fazer depende da cooperação dele, e nem sei se posso confiar no raio do drahreg...», pensou, examinando os riscos brilhantes que deixara no gume da faca à luz da pequena fogueira. Kror estava deitado de lado e de costas para o guerreiro, mas os seus movimentos davam a entender que ainda não tinha adormecido. — Kror?
— Sim? — respondeu o drahreg prontamente, como se tivesse esperado uma conversa.
— Quero fazer-te uma pergunta.
Kror ergueu-se com um grunhido e virou-se para Aewyre de pernas cruzadas, fitando-o com despertos olhos negros de orbes vermelhos. Um crescimento de cabelo crespo já se revelava debaixo das suas tranças sujas, mas, ao contrário de Aewyre, não tinha barba. O guerreiro vira vários drahregs com barba durante a batalha, mas Kror simplesmente não tinha qualquer crescimento piloso na face.
«Raça estranha...», pensou. — O Patriarca contou-me um pouco da tua história, ou pelo menos explicou-me por que é que os sirulianos não te mataram. Mesmo assim, não sei quase nada sobre ti, e cada manhã que acordo a minha vontade é matar-te. Também sentes o mesmo, não?
Kror assentiu com a cabeça, parecendo familiarizado com a sensação. Os dois pouco ou nada haviam falado desde a partida de Aemer-Anoth, tendo procurado evitar todo e qualquer contato além do mínimo necessário para quem viajava acompanhado. A mais inocente palavra ouvia-se como uma provocação, o olhar casual era visto como reptante, a faca usada para trinchar a carne podia ser uma ameaça. As condições de fato não convidavam ao diálogo, mas naquele momento Aewyre sentiu a necessidade de saber os motivos de Kror.
— Já te expliquei por que é que não luto contigo, mas a mim só me disseste que também preferias não lutar e os eahlan disseram-me para ter «fé» em ti. Preciso de mais do que isso, Kror. Preciso de ter a certeza de que não me vais atacar enquanto viajamos ou simplesmente matar-me para acabar com esta maldita sensação. Eu vou fazer isto porque os meus amigos e outras pessoas podem precisar de mim. E tu, por que é que o fazes?
O drahreg pesou as palavras do humano, olhando de relance para a espada que este tinha embainhada e pousada ao seu lado e levou as mãos atrás, pousando ambos os alfanges embainhados sobre o colo. A mão de Aewyre aproximou-se do pomo de Ancalach sem que este se apercebesse do gesto. Kror ficou então a olhar para a pequena fogueira, afagando distraidamente o couro das suas bainhas enquanto parecia ponderar as suas palavras. Aewyre calculou que não fosse algo que o drahreg tivesse contado a muita gente, mas, a seu ver, tinha razões de sobra para ser um dos poucos privilegiados, pelo que tentou ajudá-lo a desabafar.
— Já sei que tu e o teu bando de salteadores foram capturados pelos sirulianos e que foste torturado por informações — começou uma tentativa de prelúdio, conseguindo ao menos que Kror lhe devolvesse a atenção. — Sei que os eahlan pediram que não te matassem e fizeram um acordo contigo, que os alfanges fazem parte desse acordo, que tu és um protegido do Patriarca, por muito difícil que isso seja de acreditar. O resto não sei, mas gostava mesmo de saber.
O drahreg debateu-se um pouco mais numa querela interna que o guerreiro quase pôde ouvir. Partilhar a sua história provavelmente não fizera parte dos seus planos; partilhá-la com o seu inimigo afigurar-se-lhe-ia certamente absurdo.
— Kror, isto é importante. Eu tenho de saber até que ponto... — não valia a pena usar expressões mais complicadas que o necessário com o drahreg — ...se posso confiar em ti.
Todos os seus sentidos se sobressaltaram quando o drahreg desembainhou um dos alfanges pela metade, e a sua mão crispou-se no punho de Ancalach. Kror reparou e os dois guerreiros envolveram-se num breve confronto com os olhos, tentando esquadrinhar as intenções um do outro. Foi o drahreg quem tomou a iniciativa de abanar a cabeça, deslizando lentamente o resto do alfange para fora da bainha sem qualquer tensão indevida nos ombros, o que fez com que Aewyre afastasse cuidadosamente os seus dedos da Espada dos Reis. Foi um esforço mantê-los no lugar quando Kror desembainhou o outro com igual vagar, cruzando ambas as armas sobre os joelhos e ficando a olhar para elas numa espécie de transe que Aewyre temeu que acabasse com a conversa ali mesmo. Porém, tornou a erguer os olhos e com eles prendeu os do humano num olhar cheio de significado que lhes reteve com a sua solene força.
— Os sirulianos quase me mataram — começou, mexendo certas partes do corpo em rememoração de velhas lesões. — Os outros morreram todos, mas os eahlan chegaram antes que me matassem a mim também. Disseram que queriam tentar uma coisa nova, tiraram-me de lá e trataram de mim. Estive doente durante muitos dias, com febre e dores, mas eles trataram sempre de mim. Falaram comigo enquanto estava doente, falaram-me de mudança, da lua, de escolha... disseram que me podiam salvar dos sirulianos, mas que eu tinha de fazer um... um...
— Acordo? — alvitrou Aewyre.
— Sim. Eu disse que sim, e fiquei algum tempo com os eahlan. Tentei fugir uma vez, e os sirulianos quase me mataram outra vez, mas os eahlan não os deixaram. Eles diziam sempre que queriam... mostrar uma coisa aos sirulianos, e estes não gostavam mas deixaram-nos continuar. Falaram muito comigo, mostraram-me muitas coisas, mas eu não queria falar com eles, não queria ver o que eles me queriam mostrar.
A expressão do drahreg adquiriu uns contornos revoltados, e desviou o olhar do de Aewyre para ameaçar a fogueira com os caninos, deixando as labaredas tripudiarem uma dança de ódio no negrume dos seus olhos.
— Estive quatro anos com eles — continuou, desenrugando a testa. — Os sirulianos não estavam... con...
— Contentes?
— Não... con... vencidos?
— Convencidos?
— Sim. Convencidos. Queriam matar-me, e zangaram-se com os eahlan por me deixarem ficar. Eu também não queria ficar, mas eles diziam-me que os sirulianos me matavam se eu não fizesse o que tinha dito.
Aewyre abanou a cabeça, pasmado com a inabalável fé que Kror lhe relatava e que presenciara em Aemer-Anoth. Eram realmente seres à parte, os eahlan, pois mais ninguém em Allaryia albergaria um drahreg de livre vontade debaixo do seu próprio teto...
— Um dia, os eahlan disseram-me que eu não poderia mudar se estivesse sempre a ouvir os sirulianos a ameaçarem-me e a lembrar-me o que eu era. Deram-me estes. — Pousou ambas as mãos sobre as bainhas dos alfanges. — Disseram que tinham vindo de Syntadel, duas armas muito antigas que tinham sido uma... quando uma pessoa diz uma coisa e a outra diz outra, e uma ganha alguma coisa se a outra perder?
— Uma aposta?
— Sim, uma aposta das Entidades. Se um azigoth podia gostar de uma divaroth. Siris fez os alfanges. Sirul e Luris puseram uma divaroth e um azigoth dentro deles, e os dois ficaram sempre juntos. — Kror lançou um aplacante olhar a Aewyre antes de pegar nas armas pelos punhos, mas ainda assim os dedos do humano tornaram a acercar-se do pomo de Ancalach.
O drahreg brandiu ambos os alfanges, revelando-os em todo o seu esplendor artístico, e só então Aewyre se apercebeu de que ambos se poderiam de fato equiparar a Ancalach, pois provinham do mesmo criador. O mais brando tinha um pomo de prata com uma safira nele encastoada, um punho enfaixado por fio azul-turquesa e copos argênteos em contracurva, também eles com gemas azuladas incrustadas nas pontas. O outro, mais agressivo nos seus adornos, tinha pomo e copos de ferro negro, ambos embutidos com pedras rubiáceas e o seu punho era enfaixado por um tecido vermelho. Tal como Ancalach, eram dois sublimes exemplares do artifício, bem como a morte forjada em aço divino. Kror estremeceu como se três vontades se debatessem dentro da sua cabeça ao cruzar as armas, mas pareceu levar a melhor, e Aewyre teve direito à sua atenção uma vez mais.
— São Kerhex e Sassiras’s, o azigoth e a divaroth. Estão juntos há muito tempo e os eahlan não os conseguiram libertar. Deram-me as armas, disseram que a Sassiras’s me podia ajudar a ver as outras escolhas que podia fazer, e que com o Kerhex eu podia ver melhor as diferenças. Disseram que a escolha era sempre minha, e deixaram-me partir com os alfanges. Fui para Karatai, porque me disseram que poucos conheciam os drahregs lá, e que as pessoas me podiam dar uma... oportunidade.
— Mas espera... como é que chegaste lá?
Kror revirou os alfanges lentamente, deixando o rubor da fogueira deslizar em jogos ígneos pelas lâminas.
— Não foi fácil. Quase morri em Tanarch. Tive de matar muitos homens para sobreviver, e o Kerhex dizia-me sempre para matar mais. Só quando estava cansado e ferido e tentei fazer o que a Sassiras’s dizia é que parei de matar. Com as palavras dela, consegui chegar a Karatai, onde encontrei os Cho Tirr, e eles... aceitaram-me. Chamaram-me... filho de cavalo... preto?
— Estou a ver. E nunca tiveste problemas com eles?
— Quando me encontraram, eu tinha fome. Não conseguia caçar na estepe e já não tinha a comida de Tanarch. Dois cavaleiros levaram-me para a tribo, onde me deram de comer e trataram de mim. A Sassiras’s dizia que eu devia ficar, porque eles me podiam ajudar, e o Kerhex achava que eu devia aproveitar a ajuda deles. — Como se estivesse a dispensar a opinião das espadas, Kror embainhou-as e pô-las de lado, enclavinhando os dedos e olhando para as recordações que a fogueira lhe trazia. — Demorei tempo a aprender a língua deles, e aprendi a caçar, a montar um irmão de quatro pernas, a lutar melhor com as espadas. Nunca tinham visto alguém como eu. Fizeram muitas perguntas. Queriam saber como eram os meus, o que é que nós fazíamos, o que ensinávamos aos nossos filhos, o que pensávamos de outras tribos. E eu disse-lhes tudo. A Sassiras’s dizia que eu devia dizer a verdade, o Kerhex que eu mentisse. Eu disse a verdade, mas eles não acreditaram. Não podiam acreditar que uma tribo pudesse ser como eu dizia e pensaram que eu queria assustar as suas crias. A venerável... — Kror fez uma careta, pois fora Hazabel quem lhe ensinara essa palavra. — Ela disse que eu era um filho de cavalo perdido, mas que os Cho Tirr seriam a minha nova...
— Família?
— Sim, família. O Kerhex dizia-me muitas coisas más sobre os Cho Tirr, mas a Sassiras’s lembrava-me sempre de que eles gostavam de mim, que não me queriam fazer mal, e também dizia que eu devia tentar perceber por que é que os Cho Tirr não acreditavam no que eu dizia da minha tribo.
— Mas então... — tentou Aewyre perceber, ajeitando as suas nádegas ao solo. — Quem decide? És tu ou os teus... alfanges?
Kror pegou nos ditos pelas bainhas e ostentou-os diante da sua face, contemplando as fulgentes jóias que adornavam os respectivos punhos. Talvez fosse apenas impressão sua, mas a Aewyre pareceu-lhe que os três mantinham um diálogo silencioso. E que o alfange prateado olhava serenamente com os seus harmoniosos adornos e o negro sorria de forma maliciosa com os seus severos ornamentos. Só podia ser impressão sua...
— Sou eu — disse o drahreg por fim —, mas eles falam comigo, os dois. Dizem-me o que devo fazer, e às vezes conseguem con... vencider-me?
— Convencer-te?
— Sim. Às vezes conseguem. O Kerhex tenta muito, é mais fácil para ele, mas a Sassiras’s já me ajudou muito, e, quando estive com os Cho Tirr, ouvia-a mais vezes. O Kerhex não se importa com nada e só quer que eu faça as coisas que ele acha que eu devia fazer. A Sassiras’s quer ajudar-me, mas não percebo as coisas com que ela se importa, e fico confuso. Quando viu que a Sassiras’s estava a conseguir con... vencer-me de muitas coisas, o Kerhex convenceu-me a sair de Karatai e ver o resto de Allaryia. Foi assim que te encontrei.
Aewyre bufou com a quantidade de informação para digerir. Mais uma variável a ter em conta, como se já não bastassem todas as outras.
— Fala-me mais sobre esses Kereks e Sassarissa. Um azigoth e uma divaroth presos nos teus alfanges pelas Entidades?
— Eles não me falam muito deles, mas sei que a Sassiras’s era a divaroth mais... boa, e aceitou a... aposta para ver se conseguia gostar de um azigoth. O Kerhex não acreditava, e aceitou para mostrar que não tinha medo e que estavam enganados.
— E então?
— O quê?
— Qual foi o resultado da aposta?
Kror refletiu antes de responder, consultando os alfanges com um breve olhar.
— Os dois vivem há muito tempo nas minhas armas. Conseguem falar um com o outro, mas não se conseguem atacar, e isso ajudou-os a... perceberem o que dizem. As armas foram usadas por outros, que andaram em Allaryia e os ajudaram a ver como é o mundo fora do Pilar. — Outro momento de reflexão. — Acho que eles são como o ayan e a Bachula, uma das fêmeas dele. Eles não gostam um do outro e preferiam estar com outras pessoas, mas já não sabem viver... sem um e outro?
— Entendo. E tu? Achas que os eahlan tinham razão? Posso confiar em ti?
Os níveis de tensão subiram de tal e repentina forma que a fogueira pareceu encolher-se quando os olhares dos dois guerreiros entrechocaram, rilhando como duas lâminas em pleno ar. O «tendão» retesara-se, e atraía-os fatalmente, inexoravelmente, desafiando-os a desnudarem o aço e a revesti-lo com a carne um do outro. Aewyre conseguiu atenuar a tempo o fluxo de raiva que se infiltrara quase despercebidamente nos seus pensamentos e relaxou os ombros, um gesto que Kror registrou e imitou, esperando que as batidas do seu coração acalmassem antes de tornar a falar.
— O Kerhex quer que eu lute contigo para ficar com a Essência da Lâmina. A Sassiras’s quer que eu te ajude. — Atirou ambas as armas para trás das costas, cruzando os braços como sinal de que a decisão era inteiramente sua. — Eu sei que tu lutas bem, e, se conseguir ter a Essência da Lâmina sem ter de lutar contigo, vou tentar. Não te vou matar enquanto dormes, porque quero a Essência da Lâmina. O resto não me interessa. As tuas lutas não são minhas.
E com isto virou as quase provocantes costas a Aewyre, tornando a deitar-se. O guerreiro ficou algum tempo a olhar para o drahreg de maxilar tenso e lábios apertados, mas acabou por relaxar e se deitar sobre o saco-cama de braços cruzados atrás da cabeça. Estava uma agradável noite de Verão, e as estrelas cintilavam detrás do entrelaçado da ramagem em cima como uma rede para cabelo enfeitada de brilhantes.
«Bom, ao menos isso fica bem assente», pensou. «Não posso confiar no raio do drahreg.»
Teria o seu primeiro encontro com Kror sido tão fortuito quanto parecera? Não sentira qualquer puxão pela parte da Essência da Lâmina antes de o ter visto, mas tanto quanto sabia isso poderia bem não significar nada. Apenas mais um jogo no qual fora um mero joguete. Seltor, a Essência da Lâmina, o Mandatário Aelgar que o usara como confidente para saber coisas acerca da sua mãe e depois como comandante involuntário dos conscritos, e até certo ponto Allumno, que sempre soubera mais do que aparentara, mas que esperara para ver o que aconteceria. Não sabia se O Flagelo se divertira ou não a manipulá-lo, e não fazia idéia se a Essência da Lâmina se podia ou não divertir, mas desta vez iria jogar segundo as suas próprias regras.
«Acabou-se o ser movido como uma peça ou o carregar em frente como um touro acicatado.»
Mais calmo, deu consigo a remexer na sua bolsa e dela tirou a nesga de cabelo louro de Lhiannah. O couro que a prendia estava gasto, e, apesar dos seus esforços, não conseguira eliminar por completo os vestígios de lama entre os fios de cabelo entrançado. O seu cheiro havia muito que não era o da princesa, mas ainda assim o jovem apoiou polegar e indicador sobre os lábios, afagando o seu nariz com as pontas dos cabelos enquanto os acariciava com o polegar.
«Lhiannah, sua estúpida...», pensou, sentindo uma ridícula necessidade de pelo menos erguer o canto da boca para que um eventual observador soubesse que não fora um pensamento mal-intencionado. Allumno fora provavelmente também culpado pelo sucedido, mas por isso não podia censurar o seu tutor. Se ao menos ele se tivesse decidido a fazê-lo mais cedo... Bem, também podia ele próprio ter tomado a iniciativa, era verdade, mas a Lhiannah...
«Mas nada. Agora não é altura de pensares nisso, homem», admoestou-se a si mesmo, enfiando a nesga de cabelo no seu respectivo lugar. O que tinha a fazer era dormir e acordar cedo no dia seguinte. A Wolhynia era constituída por terreno acidentado e densamente florestado, o que tanto era bom pelo fato de os ajudar a viajar incógnitos como era mau pela dificuldade acrescida que representava para quem queria cobrir a máxima distância possível. Allumno dera-lhe indicações precisas e concisas, e desde que a Cinta estivesse à sua esquerda enquanto se dirigia para oeste, saberia que não estava perdido. Não precisava do Quenestil para se orientar para algo tão simples.
«É claro que precisava de ti para outras coisas, meu amigo. De ti e dos outros. Mas pronto, cada um terá que fazer o que lhe cabe agora.»
A aventura fora boa enquanto durara, e cada um pudera viver as suas fantasias heróicas pessoais e aprender a conhecer-se melhor a si mesmo e ao mundo que o rodeava. Agora todos teriam de fazer uso da dura aprendizagem, pois embora o livro tivesse sido fechado, a verdadeira história estava apenas a começar.
«E esta não sabemos quem a escreve, mas não vai ser para ler à lareira de certeza...»
O navio tanarchiano rasgava a costa leste da Latvonia, impelido por ventos favoráveis que lhe haviam enfunado a única vela quadrada desde a partida de Ul-Syth. Lhiannah, Taislin e Worick tiveram direito a uma escolta siruliana até à cidade costeira, na qual compraram passagem num navio mercador que transportava salmão fumado e peles. O thuragar achara abusiva a comissão que lhes fora exigida para deixarem o caixão de Aezrel no porão, mas Lhiannah pagara sem discutir para não chamarem mais atenção que a necessária. Haviam deparado com algumas patrulhas tanarchianas, e só a presença dos sirulianos evitara um interrogatório potencialmente inconveniente, apesar da distância a que na altura se encontravam de Val-Oryth. Os marinheiros estranharam os passageiros e a carga que traziam consigo, mas o ouro de Lhiannah servira igualmente para comprar o seu silêncio, e tal comodidade vendia-se barata para quem tinha pouca curiosidade e muito espaço nas bolsas. A viagem decorrera até então sem quaisquer percalços além dos periódicos enjôos de Worick, e o capitão previa que levariam no máximo uns dois meses e meio para chegarem a Ul-Thoryn. A comida a bordo era sensaborona e pouco substancial, mas Worick fazia sempre questão de afirmar que era melhor que ratos e leite de égua coalhado enquanto estofava a boca de biscoitos farelentos na esperança de enchumaçar o estômago perturbado. Taislin passava boa parte dos dias a esquadrinhar os recantos mais ocultos do porão e a importunar os marinheiros que manobravam as velas ao trepar pelas adriças e escotas como um esquilo irrequieto, desculpando-se com a insistência de que estava a ficar perro a bordo. Por sua vez, Lhiannah pouco mais fazia além de observar alternadamente a costa sempre à vista a oeste ou a expansão cerúlea a leste, apoiando os cotovelos sobre a amurada e deixando-se ficar nessa posição contemplativa durante horas a fio. Poucos marinheiros se coibiam de ocasionalmente comentar em Leochlan a visão do traseiro da princesa que a posição lhes proporcionava, mas nenhum fora mais longe do que isso, e o capitão tinha a consideração de refrear os mais exaltados com admonições. O fato de Worick ter vomitado sobre um marinheiro mais atrevido para de seguida lhe dar um murro na virilha também contribuíra para a contenção dos homens, bem como uma medida de respeito de boa índole.
O dia nascera havia pouco, e Lhiannah já se encontrava à amurada, perdida em meditações enquanto mexia distraidamente na rosa branca da gargantilha com os dedos de uma mão coberta por um mitene de couro negro. Deixara a armadura com Worick, e o vento fazia a sua camisa azul ondular, libertando também algumas compridas madeixas do cabelo preso numa trança e que, retidas pela tiara prateada, lhe serpenteavam diante da cara. O madeiramento do navio rangia, e as velas açoitadas pelo vento providenciavam um estranhamente relaxante ruído de fundo apenas quebrado pela ocasional frase em Leochlan. Lhiannah não ouviu os passos de Taislin e não esboçou nenhuma reação quando o burrik espetou a pequena cabeça num buraco na amurada para espreitar a paisagem.
— Viste alguma coisa de interessante na costa? — indagou.
— Devolve-me o dente, Taislin.
— Hã?
— Podes ficar com as moedas, se bem que também pudesses ter pedido, mas dá-me o dente.
— Dente? Mas... — Taislin remexeu um pouco na sua bolsa. — Ah. Pois. Desculpa. Os marinheiros gostam de jogar aos dados à noite, e eu precisava de umas moedas e tu tens tantas aí e...
Lhiannah virou a cara e fitou o burrik com um ar severamente maternal.
— Se precisares de mais, dou-lhe. Dá cá o dente.
— Desculpa, não tinha reparado nele... — escusou-se Taislin, algo embaraçado ao entregar o molar à princesa.
Lhiannah suspirou, inclinando a cabeça para o lado ao enfiar o dente na sua bolsa, e afagou a nuca do seu pequeno amigo. A mancha escura nas raízes do seu cabelo começava a alastrar-se, contrastando com o dourado.
— O que tens no cabelo?
— Está a escurecer — disse a arinnir despreocupadamente. — É normal, acontece a quase todas, mas não se fala disso a uma rapariga — admoestou, embaraçando mais um pouco o burrik, que praticamente escondeu a cara no orifício da amurada. Lhiannah acabou por sorrir e lhe enfiar as mãos debaixo das axilas. — Chega aqui.
A princesa alçou Taislin para cima da borda e sentou-o nela, abraçando-lhe a cintura e apoiando o seu queixo sobre o barrete vermelho. O burrik começou a ronronar, recostando-se ao peito de Lhiannah e agarrando-lhe os braços.
— Já tinhas andado no mar antes, Taislin?
— Não, só num lago. Uma vez tive de fugir de uns aldeãos ingratos, que corriam bem depressa graças aos fardos dos quais os aliviei, e escondi-me num barco, onde acabei por passar a noite. Estava tão cansado que, quando acordei de manhã, estava a meio do lago, com um pescador que parecia ter visto um drahreg assim que me pôs os olhos em cima.
— E o que aconteceu?
— Tentou bater-me com o remo e acabou por virar o barco. Tive de me agarrar a um cesto de vime e nadar para longe dele, porque o homem parecia possesso...
Lhiannah deu uma risada gutural.
— É verdade, afinal de onde vens? Onde fica a tua aldeia? Nunca disseste ao certo...
— Olha, nem sei. Quer dizer, se estiver perto ainda dou com aquilo; está a sul de Colm, algures nas vertentes das montanhas próximas.
— Pensas voltar um dia?
Lhiannah sentiu os ombros de Taislin encolherem-se, e este soltou um ruído despreocupado.
— Não, não vou voltar para a minha aldeia para lá ficar, que grande seca. Quando ficamos velhos, nós nunca assentamos na aldeia onde nascemos, já sabemos como ela é. Tem mais piada irmos viver para um sítio desconhecido e partilhar o que ganhamos e aprendemos com gente nova.
— Mas, e família, não tens?
— Sim; se voltar à minha aldeia, será mesmo só para visitar os meus pais, ver como é que eles estão... Sabias que me lembras muito a minha mãe?
— A sério!? — exclamou Lhiannah, inclinando a surpresa cabeça para olhar para Taislin.
— Sim, és decidida, teimosa, carinhosa... e ela também era muito bonita. Quer dizer, um bocado mais cheinha do que tu, e tinha uma cara muito redonda como uma lua cheia. E tinha cabelos castanho-claros encaracolados, mas também agora os teus estão a escurecer, e... e...
O burrik atrapalhou-se ao tornar a pisar o terreno que Lhiannah já dera a entender que não queria trilhado, mas esta sorriu e beijou-lhe a bochecha.
— Que querido — disse, afagando-lhe o flanco e tornando a apoiar o queixo sobre a sua cabeça. — Estás melhor?
— Sim — suspirou este, sabendo a que a arinnir se referia. — O Quenestil e a Slayra disseram que eu tinha de tomar conta de vocês, e é o que vou fazer. Desde que tu rias, já fico contente. O Worick é um caso perdido, mas lá vou tentando.
— Tens visto o... Aezrel?
— Tenho. Não cheira muito mal, mas também não sei se não será da resina. Acho que se vai agüentar até Ul-Thoryn.
Lhiannah suspirou, compadecida com o destino do pobre homem. Os sirulianos haviam-no eviscerado de forma a evitar a acumulação de gases e enfaixado com ligaduras de linho embebidas em resina. Ainda bem que o Aewyre não assistira, pois segundo as descrições do Allumno, fora grotesco. Perder o pai daquela forma e depois ainda ter de o enviar como um bocado de carne preservada... E o seu pai, como a iria receber? Depois de entregar o corpo de Aezrel, o mais acertado seria voltar com Worick para Vaul-Syrith, mas não fazia idéia do que esperar. Provavelmente o maior responso da sua vida, bem como uma dose acrescida de desprezo pela parte de Alnara, a sua madrasta. O mais certo era nunca mais ver o seu meio-irmão Solan à frente, pois a bruxa faria de tudo para a ostracizar definitivamente na corte, e de fato o ter partido de Vaul-Syrith sem avisar ninguém não abonava muito a seu favor.
«Mas quem sou eu para me queixar? O Aewyre perdeu o pai e agora tem de ir sozinho com o maldito drahreg para um lugar que nem conhece, e todos o vêem como o homem que deve derrotar O Flagelo... O Flagelo... como é possível...»
— Lhiannah? — ouviu Taislin dizer.
— O quê? — despertou a princesa, inclinando a cabeça sobre o ombro do burrik, que se limitou a apontar para a costa com um pequeno indicador.
Havia fumo no horizonte.
— Taislin... vai chamar o Worick — pediu a arinnir, agarrando a amurada com força assim que o burrik se esgueirou por entre os seus braços. A sua volta, os marinheiros vociferavam em agitado Leochlan, e o capitão berrava ordens. Não precisava de entender os seus cerrados arcaísmos para perceber que algo de errado se passava.
A aldeia de Tomska era o porto de entrada para a Latvonia para quem vinha do norte, e um freqüente ponto de paragem para os marinheiros tanarchianos. O capitão empreendera inúmeras viagens para sul durante a sua vida no mar, e tanto na ida como na volta, tinha por hábito parar na aldeia para se abastecer de água e mantimentos. Porém, naquele dia os únicos seres vivos a receberem a chegada do navio foram as gaivotas, e essas não pareceram nada agradadas com a sua presença. Tudo o que restava da aldeia eram carcaças carbonizadas de edifícios cujos tetos de colmo haviam ardido por completo, e as ruas de lama seca estavam semeadas de cadáveres de aldeãos. Cães ganiam enquanto focinhavam os corpos de donos, lambendo-os na esperança de que despertassem e uivando quando se apercebiam da inegável realidade.
— Deuses, o que aconteceu aqui? — perguntou Lhiannah aos céus numa voz demasiado baixa para que estes pudessem ouvir.
A princesa, os seus companheiros e boa parte da tripulação haviam desembarcado no periclitante cais e caminhavam por entre as ruas, observando a morte nas suas infinitas posições. Havia mulheres e crianças, mas os corpos que se encontravam fora das casas eram sobretudo os de homens, alguns armados de facas e porretes. Provavelmente haveria mais dentro das habitações, mas esses teriam sido consumidos pelo fogo. Os marinheiros sussurravam entre si, alguns oferecendo preces, outros praguejando, e pareciam estar a especular quanto ao que poderia ter acontecido.
— Vieram durante a noite — constatou Worick, pálido devido aos constantes enjôos, mas naquele momento sólido como um pedregulho. — Vêem marcas de cascos?
— Não — afirmou Taislin, olhando em redor. — Só ali perto do estábulo.
— Infantaria, então. — O thuragar ajoelhou-se diante do corpo de um homem com a garganta talhada cujo sangue ensopara a lama seca em redor. — Cortes limpos, feitos por armas curvas. Não foram cutelos latvonianos, esses deixam marcas parecidas com golpes de açougueiro. — Olhou em redor, tateando o chão, largamente ignorado pelos marinheiros, mas com toda a atenção de Lhiannah e Taislin. — Vieram do mar, e foram minuciosos no ataque.
— Mas quem? — questionou-se Taislin.
— Com lâminas curvas? Poucos as usam. Ou foram ocarr, thyranos ou eahlan. Talvez drahregs, mas nem sei se essas bestas sabem fazer barcos que conseguissem chegar até aqui. E os thyranos e os ocarr nunca devem sequer ter visto o mar. Restam os eahlan...
— Não digas disparates, Worick. Qualquer um pode usar espadas curvas.
— Mas poucos o fazem, cachopa. Estou só a especular. Não faço o grão de uma idéia do que se passou aqui, além de que foi um ataque de noite e que os únicos sobreviventes foram levados... Mas o que é que aquelas animalárias estão para ali a ladrar?
O capitão estava de fato a berrar ordens, e alguns homens contestavam-nas e discutiam-nas, indicando os corpos, os bosques além da aldeia e o navio.
— Capitão, o que se passa? — perguntou Lhiannah, dirigindo-se a ele.
— Vamos exir toste daqui antes que cheguem os ferratos! — disse o homem terminantemente. — Esta não é a nossa plaga. Tragam água do poço e voltem para o baixei, não vamos fazer um mortório!
Alguns homens contestaram a decisão, mas o capitão não tardou a impor a sua vontade e o resto da tripulação começou a regressar lentamente à embarcação. Lhiannah não soube o que dizer ao certo, mas não lhe parecia correto deixarem simplesmente o local de tal forma.
— Anda lá, cachopa — acabou Worick por dizer, puxando-a pelo braço. — Não sabemos o que aconteceu e não podemos fazer nada aqui. Esta vai ter de ficar para outros...
Lhiannah não tinha como contradizer o seu mentor, pelo que se deixou ir resignadamente, olhando freqüentemente para trás para a aldeia destruída e pensando no que teria feito caso estivesse com os seus companheiros. Provavelmente teriam corrido a costa em busca dos responsáveis, determinados a levá-los à justiça ou a puni-los como mereciam por tão atroz ato. Pelo menos seria disso que o Aewyre os tentaria convencer, como tantas vezes o fizera durante as suas viagens por Nolwyn e pela Latvonia...
— Eh, olhem ali — disse Taislin, apontando para a areia acastanhada.
— O que foi, Taislin? — indagou Lhiannah, sem conseguir distinguir o que o burrik avistara.
— Aquelas manchas, olha... — Ao ver que a princesa continuava sem ver, encaminhou-se na direção das referidas.
— Então? O que é que estão a fazer? — chamou Worick, que já se encontrava perto da prancha de embarque e que atraiu os olhares dos marinheiros que se preparavam para partir.
Lhiannah encolheu os ombros, mas Taislin correu excitadamente para um determinado ponto na areia e ajoelhou-se diante dele, apontando triunfalmente para uma mancha mais escura que os seus olhos felinos haviam distinguido.
— Estás a ver? — indicou o burrik, espetando a areia com o indicador e distinguindo o familiar cheiro ao levá-lo ao nariz.
— Sangue. E continuam naquela direção.
A princesa viu então as manchas irregulares que de fato marcavam um trilho que terminava diante de quatro barcos de cascos virados para cima. Com o coração a bater mais depressa devido à involuntária expectativa, Lhiannah dirigiu-se às pequenas embarcações com suficiente rapidez para que Worick e os marinheiros que traziam água do poço em pipos também a seguissem.
— Vês alguma coisa aí em baixo? — perguntou a arinnir, apoiando as mãos sobre os joelhos enquanto Taislin enfiava a cabeça debaixo de cada um dos barcos.
— Não... aqui também não... Olha, está alguém aqui em baixo! — guinchou o burrik excitadamente, pegando de seguida na proa do barco em questão e grunhindo de fútil esforço ao tentar erguê-lo.
Lhiannah fê-lo em seu lugar, erguendo o barco à altura de Taislin e ficando com todos os contornos dos seus atléticos braços retesados ao suster o peso. Os marinheiros ajudaram a princesa assim que chegaram, erguendo a embarcação o suficiente para colocarem a proa em cima do casco do barco ao lado.
— Então, cachopa? — indagou Worick, cujas pequenas pernas o haviam deixado para trás. — Afinal o que...
Tal como os restantes presentes, Worick calou-se ao ver Taislin ajoelhado diante de um corpo com uma flecha espetada nas costas, cercado de pequenos caranguejos que se deslocavam abespinhadamente de lado. O burrik tinha a mão sobre a garganta do homem, que estava com o lado da cara enterrado na areia, e abanou a cabeça quando os olhos inquiridores se viraram para ele. O morto estava pálido e de olhos cor de avelã bem abertos, e o sangue que lhe escorrera do canto da boca na qual um caranguejo se escondera empapara um dos seus longos bigodes castanhos. Uma longa haste projetava-se do seu dorso, tendo-o ferido mortalmente, mas o homem conseguira de alguma forma cambalear ou arrastar-se até aos barcos a coberto da noite que os próprios atacantes haviam usado para surpreender a aldeia.
— Está morto — constatou Taislin, fechando-lhe os olhos com dois pequenos dedos. Alguns marinheiros abanaram as cabeças enquanto outros chamavam pelos seus restantes companheiros e pelo capitão, que já vinham a caminho.
Worick avançou, pisou a omoplata do morto, pegou na haste e arrancou-lha do corpo, erguendo-lhe ligeiramente o tronco que de seguida tornou a baquear. Um marinheiro protestou.
— Então? Devia ter desdouro!
— Está descansado que não vou fazer argel contigo — calou-o o thuragar, estudando a flecha e sopesando-a. — Mas que raio...
— O que foi, Worick? — indagou Lhiannah, curvando-se para ver melhor a flecha.
— Não sou nenhum eahan, mas já mexi em muita flecha, e esta deve ser a mais leve que já vi. Olha para isto, esta porcaria é oca! — proclamou o indignado thuragar, estudando a seta sobre ambas as mãos estendidas. A escura haste fora polida, mas havia vestígios de nódulos que mais pareciam segmentos colados uns aos outros. Abanando a cabeça, Worick revirou a flecha para observar ambas as extremidades e ficando a olhar para a ensangüentada ponta longa com rebarbas. — Isto é sequer madeira? E de que bicho são estas penas? Codorniz?
— O que fazem? — interveio a voz do capitão, que não parecia satisfeito com o atraso. — Já disse que vamos exir daqui!
Lhiannah ignorou-o e pegou na ponta traseira da seta para ver de mais perto as penas listadas de castanho-escuro e bege.
— Não, não me parece — opinou.
— Mas também o que interessa de que bicho são essas penas? — quis Taislin saber.
— Estamos a tentar perceber quem é que fez isto, estúpido.
— Worick...
— Nós vamos exir daqui! Podem acarrar aqui a olhar para a frecha se quiserem! — ultimou o capitão, voltando para trás e puxando dois homens consigo. Apesar da curiosidade, os restantes começaram a ver a sabedoria nas palavras do seu capitão e voltaram eles também para o navio.
— Estão com medo de que cheguem soldados latvonianos que comecem a fazer perguntas — constatou Worick, limpando o sangue da ponta nas roupas do morto. — O melhor é irmos, cachopa. Eles são mesmo capazes de nos deixar aqui.
— Não o enterramos? — perguntou Taislin, olhando para Lhiannah, que por sua vez fitava alternadamente os marinheiros a embarcarem e o latvoniano morto aos seus pés.
— Não, Taislin. O Worick tem razão — acabou por suspirar.
— Vamos lá antes que eles levantem a âncora.
Os três encaminharam-se então para a prancha de embarque, Worick intrigado com a flecha, Taislin irrequieto e cheio de vontade de ficar para explorar melhor, e Lhiannah meditabunda. Questionava-se se o que acontecera não fora já de alguma forma uma seqüela do regresso d’O Flagelo, e o mero pensamento deixava-a arrepiada, considerando a distância à qual a nefanda influência de Asmodeon já se fazia sentir caso fosse verdade.
«Aereth tem de saber. E o meu pai também. Se for essa a única forma de ajudar o Aewyre, por muito pequena que seja, então vou fazê-lo.»
Com a retirada dos marinheiros, as gaivotas retomaram avidamente o seu festim, grasnando como comensais descontentes com a longa interrupção. Lhiannah observou as sôfregas aves enquanto a prancha de desembarque era apressadamente puxada pelos marinheiros a mando do seu capitão, e lembrou-se dos conscritos mortos na batalha de Aemer-Anoth. Nenhum deles significara algo para a princesa, mas tal como ela haviam combatido juntos pela sua sobrevivência, e a vida penhorada da arinnir fora paga por muitas outras na fatídica noite de tempestade.
— Lhiannah? — interrompeu Taislin os seus pensamentos.
— Achas que podíamos ter feito alguma coisa por eles?
— Não — reconheceu a princesa, pousando a reconfortante mão sobre o ombro do burrik. «Mas espero que possamos fazer algo pelos próximos, sejam eles quais forem. Que o Escudo de Gilgethan nos resguarde...»
A guarnição de Aemer-Anoth esperara duas semanas após a partida de Aewyre Thoryn para efetuar os preparativos necessários à deslocação dos eahlan. Hanal opusera-se ao longo de cada um dos dias decorridos, mas o Castelão Aedreth mostrara-se inflexível diante da iminente ameaça de Asmodeon, tangível pela primeira vez em vinte anos. A presença da família Lasan naquele que seria o primeiro baluarte a ser atacado estava completamente fora de questão, e os eahan brancos seriam provisoriamente instalados em Gul-Yrith, a fortaleza na ponta oeste do Istmo Negro. Tristes e conformados, os cerca de oitenta eahlan aquiesceram e foram escoltados por parte de um contingente de Gaul-Anoth, a fortaleza na ponta leste do Istmo, que veio reforçar as defesas da contígua Aemer-Anoth. Acompanhava-os o próprio Aedreth, que se iria reunir com os restantes Castelões em Gul-Yrith para debater a nova situação enquanto as respectivas fortalezas ficavam a cargo dos seus Factotos. Quenestil e Slayra também faziam parte da caravana, embora se sentissem como intrusos e esse sentimento fosse freqüentemente reforçado pelos olhares dos trinta sirulianos com os quais viajavam. Slayra era transportada num dos vagões de suprimentos, aninhada num leito de fardos de lã e paparicada por Lusia e Sana, duas eahlanas perfeitamente encantadas com a sua gravidez e que haviam feito questão de a acompanhar. Os sirulianos ficavam extremamente desagradados ao ver a filha mais velha do Patriarca cuidar de uma eahanna negra, mas os eahlan não se pareciam importar e todos tratavam Slayra como algo de precioso num mundo que repentinamente se tornara hostil. Quenestil também caminhava sobretudo com os eahan brancos, pois embora não fosse escória d’O Flagelo aos olhos dos sirulianos como Slayra, tão-pouco era meritório da sua atenção. Tentara por vezes caminhar na dianteira da caravana para exercitar os seus havia muito destreinados sentidos e bater o terreno, mas fora sempre mandado de volta para o centro com ordens ríspidas de quem não tinha paciência para vagabundos que pusessem em causa a disciplinada ordem de marcha siruliana. Mesmo quando se limitava a falar com eahlan, desde o servente da família ao próprio Patriarca, o peso dos olhares desaprovadores era tal, que por pouco não lhe vergava as costas, e o shura acabava sempre por deixar a conversa a meio. Conseqüentemente, passava boa parte do dia ao lado de Slayra, embora tivesse de admitir a custo que a eahanoir começava a ficar difícil de suportar por vezes. Tão depressa estava abraçada a ele como a mandá-lo embora, farta da sua presença por alguma estranha razão que o eahan não conseguia descortinar. Ora o olhava amorosamente enquanto afagava o seu ventre intumescido, ora o acusava das mais variadas falhas como se o culpasse pela sua presente condição. Não passava tempo suficiente com ela. Estava demasiado tempo com ela. Queria andar com ele em vez de ficar deitada. Os sapatos estavam-lhe apertados, e não queria sair do vagão. O dia estava agradável. Estava um calor infernal. Já lhe dissera o quão bem-parecido ficava com roupas de gente? A túnica ficava-lhe mal.
Quenestil começava a sentir-se perdido, sem ninguém para quem se virar durante a viagem por terras estranhas e contudo forçado a permanecer entre a silenciosa companhia da caravana. O instinto provava ser o mais forte nos seus momentos de indecisão e acabava sempre por ir ter com Slayra, esperando apanhá-la num momento calmo ou agüentando a tempestade temperamental enquanto esta durava. A viagem até Gaul-Anoth durara dois dias, e a caravana e boa parte da guarnição acampara dentro do pátio interior da fortaleza, pois as camas nos dormitórios haviam sido cedidas à família Lasan e ao seu séquito. Slayra estivera algo calma nessa noite, talvez pela sensação de segurança que as inabaláveis muralhas em seu redor certamente providenciavam, mas tudo fora estragado assim que Quenestil a vira enfiar uma lasca de carvão da fogueira na boca, mastigando-a com genuína curiosidade. O shura inquirira-a a respeito, e a sua indiscrição custara-lhe um jantar sossegado, uma noite bem dormida por a ter enervado e por conseguinte obrigado a comer mais, e um despertar a horas decentes ao ser-lhe requisitada a ajuda para ir à latrina, conseqüência de a ter deixado agitada. Partiram cedo na manhã seguinte, pois a passagem pelo Istmo levar-lhes-ia boa parte do dia e seria empreendida a pé, visto que as Marés Negras estavam baixas, um sinal da vindoura ameaça. Os sirulianos trouxeram cavalos de carga de Gaul-Anoth que arrastavam embarcações para o caso de a maré surpreender a caravana, pois apesar de a experiência os ter até então ensinado que — após terem atingido o esto e baixado de seguida — as marés não tornavam a subir antes do fim dos ataques, os outrora protegidos de Sirul nunca deixavam nada ao acaso. A língua de terra rochosa e arenosa que ligava Asmodeon ao continente ofegava após a sua longa submersão, espumando das bordas debruadas a algas achatadas como se recusasse obstinadamente a nova ascensão das águas. O céu estava limpo, o que lhes permitia avistar ao longe sensivelmente a meio da extensão do Istmo um imponente farol que se erguia como um espigão de granito tão arraigado como os seus construtores. O vento exalava um revigorante cheiro a sal e algas, soprando curiosas gaivotas que grasnavam por cima das cabeças da caravana, e o lamber das ondas servia como constante lembrete de que a maré podia subir sem qualquer aviso, o que preocupou Quenestil e fez com que este se enchesse de paciência para ir ter com Slayra. Tal como já se tornara hábito, a eahanoir estava acompanhada por Sana e Lusia e as três empreendiam uma conversa quase unilateral na qual as eahannas brancas lhe faziam perguntas às quais Slayra respondia com mais ou menos sarcasmo, ao qual as eahlanas pareciam imunes. Assim que o shura anunciou a sua vinda, batendo na lona que cobria o vagão, Sana e Lusia levantaram-se e retiraram-se para darem privacidade ao casal, sorrindo ao eahan ao aceitarem a sua mão para as ajudar na descida, um gesto que não passou despercebido aos sirulianos que por norma desempenhavam essa função. Quenestil ignorou-os, pulou para dentro do vagão em andamento e fechou a cobertura de lona atrás de si.
— Não, deixa-a aberta — suspirou Slayra, aninhada na lã no meio de uma parafernália constituída em grande parte por equipamento siruliano encaixotado e bens pessoais dos Lasan. — Fica abafado aqui, r esta lã toda faz-me calor.
O shura assim fez e acocorou-se ao lado da eahanoir, afagando-lhe a cabeça com os dedos.
— Como é que estás?
— Já não sei se aquelas duas vêm cá para me fazerem a cabeça em papas com perguntas ou para sentirem esses teus dedos calejados na pele macia...
— Ora...
— Eu juro que se elas se puserem a consolar-te como o fizeram com o Aewyre, abro-lhes um novo sorriso naqueles pescoços bonitinhos...
— Slayra!
— Achas que estou a brincar, não? — implicou a eahanoir. — Em Jazurrieh, a partir do momento em que se está grávida, fica-se a ver o pai ir visitar outros galinheiros...
— Está calada com essa conversa! Não estamos em Jazurrieh e eu não sou um maldito...!
Slayra ergueu a sobrancelha, expectante.
— Não és um maldito quê... ?
— Um maldito galo... — disse Quenestil em surdina, deixando o assunto morrer ali mesmo. — Esquece. Como é que te sentes?
A eahanoir bufou, deixando a cabeça cair para trás.
— Como é que achas? Olha para mim — descansou as mãos sobre o ventre —, daqui a pouco pareço uma casa...
— Pára de dizer disparates. Pensavas que ias ficar esguia e esbelta?
— Ai vou ficar engelhada depois disto? E isso que queres dizer? Pois, de certeza não vou ficar imaculada como aquelas duas... quando muito, fico com cabelos brancos.
O shura rosnou de frustração, mas fez um esforço por se lembrar do comportamento das eahannas grávidas que conhecera em Edranil, a sua aldeia natal. Recordava-se das palavras do seu pai, que amara a sua mãe tanto quanto era possível, e de como esta em certas alturas lhe testara os limites da paciência quando estava grávida de Quenestil.
— Não acontece com todas, mas temos de ter paciência com essas, meu filho — dissera-lhe anos mais tarde quando o jovem eahan fora escorraçado da casa da mãe grávida de um amigo. — Por muito que nos possam chatear, isso não é nada comparado àquilo pelo qual elas passam. Devemos pensar se nós conseguiríamos fazer o que fazem e tratá-las com respeito.
Extraindo alento do conselho do seu pai, conseguiu sorrir e tornar a afagar o cabelo de Slayra, que notou estar mais oleoso que o habitual.
— Elas só vêm cá porque têm inveja da mulher mais bonita e exótica da caravana.
— Podes balir que não me convences, cabrito-montês. — A eahanoir virou a cara. — A Mãe não gostaria de te ouvir a mentir.
— ...temos de ter paciência...
Com brusca gentileza, Quenestil pegou em Slayra pela cara, curvou-se sobre ela de joelho apoiado no chão e osculou-lhe os lábios. A eahanoir ficou a olhá-lo nos olhos e o shura sorriu.
— Só isso? O que foi, é o hálito? Ou tens medo de inflamar também as gengivas? Está descansado que não se pega...
Quenestil suspirou exasperadamente e levantou-se, apoiando-se num dos suportes da lona.
— Tu também estás implicante, Slayra...
— Implicante? Só por dizeres que sou a mulher mais bonita e exótica da caravana para depois me debicares a boca como um pássaro a uma minhoca?
— Mas o que é que queres que eu faça? — quis Quenestil saber, cruzando os braços.
Os dois tornaram a fitar-se durante outro momento de silêncio, oscilando ao sabor das rodas do vagão.
— Queres mesmo saber?
— Sim! — afirmou o eahan, descruzando os braços e estendendo-os para os lados de mãos abertas.
Slayra juntou as lânguidas pernas e puxou-as para si, arrastando os pés descalços pela lã.
— Então, para começar, podes fechar a lona atrás de ti... Quenestil assim fez de imediato sem sequer refletir, mas, ao ficar de costas para a eahanoir, deteve-se, franzindo as sobrancelhas naquilo que julgava ser compreensão e olhando para a eahanoir por cima do ombro ao fechar a lona. Esta sorriu por fim, o seu sardônico sorriso que parecia sempre ocultar uma certa malícia, mas que naquele momento não teve o habitual efeito desejado.
— Slayra...
— O que foi? — O gelo nos orbes da eahanoir pareceu endurecer, embora a sua postura permanecesse langorosa.
— Tu não estás a pensar...
— E se estiver?
O shura arquejou, incrédulo e de testa franzida.
— Mas... tu estás...
— Pois, bem me queria parecer. Mulher mais bonita da caravana, mas só és capaz de me estender uma mão decepada como Kispryn.
— Slayra...
— «Slayra» nada. Se me queres fazer sentir melhor, então ao menos prova que sentes o que dizes, que de consolos e falinhas mansas já estou eu farta. Para isso tenho aquelas duas.
— Tu queres mesmo? — perguntou o shura calmamente alguns desconfortáveis momentos depois.
— Se tu não quiseres, então não quero.
Com um semblante sério, Quenestil desatou a faixa que lhe cingia a cintura e despiu a túnica roxa, cobrindo a distância que o separava da eahanoir com um desequilibrado passo e meio. Olhando-o de baixo, Slayra apoiou ambas as mãos sobre os fardos de lã e ajeitou a sua posição, erguendo um pé estendido com cujos dedos roçagou o tecido da roupa interior entre as pernas do eahan. Quenestil pegou-lhe pelo tornozelo, ajoelhou-se e afagou-lhe a coxa enquanto a beijava, desta vez com um pouco mais de convicção, embora se detivesse a meio, incerto de como proceder dali para diante com o pouco familiar bojo no ventre de Slayra. A eahanna negra facilitou, passando a outra perna diante da sua cara e assentando-a por cima da outra no braço direito de Quenestil, instigando-o então a deitar-se de lado com ela numa posição que o shura achava decididamente estranha e na qual foi deveras difícil tirar as calças. Slayra estava ávida e o eahan fez os possíveis por corresponder enquanto orava para que ninguém abrisse a lona e que o vagão não estivesse a abanar tanto quanto parecia. Ou que, caso estivesse, não fossem eles os principais responsáveis.
Já seria noite nos países mais a sul quando a caravana se aproximou do seu destino, mas na fronteira com a Sirulia o sol ainda ia no horizonte, recortado pelas altas ameias e torreões da imponente Gul-Yrith. Mais antiga que Aemer-Anoth, a última barreira entre Asmodeon e Allaryia era um autêntico colosso de granito que suportara as arremetidas das forças d’O Flagelo ao longo de séculos. Incontáveis vezes reconstruída e remodelada a par da perícia defensiva dos seus construtores, os seus alicerces eram o definitivo testemunho a toda a solidez e inquebrável força de vontade dos sirulianos. Gul-Yrith podia ser tomada, mas nunca destruída, e os segredos das suas profundas catacumbas assegurariam um inferno a todos os que ousassem ocupá-la. A primeira característica que saltava à vista era a extensa muralha que crescia nas margens e que lhe dera o cognome de Quebra-Mar, apresentando uma imediata barreira a leste com a qual qualquer força teria de contender antes de sequer assentar o pé em solo continental. Uma possante barbacã apresentava o único ponto de entrada por terra, ladeada pelos dois lanços de muralha reforçados por robustos torreões e contrafortes que pareciam irromper das águas como os ossos de um desmedido monstro marinho. Além dela havia ainda dois portões marítimos guarnecidos por gradeamentos de ferro revestido a tinta preta que providenciavam acessos secundários por mar através dos lanços de muralha. A fortaleza principal de Gul-Yrith estava escondida atrás da barreira pétrea, mas os indícios que era possível avistar detrás da muralha davam de imediato a impressão de altaneira soberba que caracterizava igualmente os seus construtores mas que ali se jactava, erigida em imortal pedra.
Mesmo quando a avistou, o carrancudo semblante de Quenestil apenas se alisou ligeiramente perante a enormidade da construção. Saíra bastante mal-humorado do vagão, e digladiara-se seguidamente com vários julgadores olhares sirulianos que em nada haviam atenuado o seu humor. Slayra não ficara satisfeita, mas também o que esperara ela daquela posição? Estando grávida e a meio de uma viagem... a vontade de Quenestil simplesmente não fora a mesma, e ainda assim tentara satisfazer a eahanoir quase só por obrigação, algo que obviamente se refletira na sua atitude durante o ato. «Não me faças favores», acabara a eahanoir por dizer ao descartá-lo como um brinquedo que deixara de lhe agradar. O eahan afagou os músculos da anca na qual sentira uma cãibra, e as suas orelhas de lóbulos pegados ao maxilar ruborizaram com a memória das palavras de desagrado que lhe haviam sido dirigidas. Saíra do vagão antes que a sua raiva levasse a melhor e não voltara desde então, tendo caminhado o resto do dia sozinho e evitando a companhia de eahlan. Porém, um deles abordou-o assim que se aproximaram de Gul-Yrith, um eahan branco que dava pelo nome de Talin, o filho mais novo do Patriarca. Era mais alto que Quenestil, e envergava uma longa túnica negra debruada a roxo, prendendo o alvo cabelo que lhe dava pelo queixo com uma fina tiara argêntea incrustada com uma hematite da cor de um céu estrelado.
— Magnífica, não? — perguntou o jovem, que era mais novo que Quenestil. Os seus olhos azul-escuros açambarcavam o esplendor que a fortaleza deixava entrever, pois havia de fato nela uma quase aterradora beleza que as sulcadas cicatrizes de antigas batalhas não conseguiam macular.
— Sim... acho que nunca vi uma tão grande — respondeu o shura algo secamente, tanto por já estar algo inoculado à feérica presença dos eahan brancos como pelo seu presente mau humor.
— Eles são capazes de tanto — comentou o jovem eahlan, e Quenestil deduziu que se estivesse a referir aos sirulianos ao vê-lo olhar de relance os que caminhavam ao seu lado e desaprovavam a sua presente companhia. — A vontade deles, a sua força, o seu empenho... podiam ter feito de Tanarch uma nova Syntadel, se assim o quisessem. Mas recusam-se a abdicar de... Asmodeon.
— Pensava que a vossa família sentisse o mesmo?
— Sim, tem razão. O meu pai e os mais vetustos entre nós também hesitam em seguir o exemplo das restantes famílias; insistem em que nos encontramos na lua nova e que segundo o ciclo tudo irá melhorar com um mínimo de perseverança. Outros como eu são da opinião de que aqui apenas estorvamos os nossos irmãos sirulianos. Deveríamos ir todos para Sallath Yngil, onde não incomodamos ninguém e onde podemos estar em paz entre os nossos.
Ao ver que capturara o interesse do shura, Talin apressou-se a clarificar quaisquer eventuais mal-entendidos.
— Não me entenda mal, Quenestil Anthalos. Temos todo o respeito pelos sirulianos; amamo-los como irmãos e admiramos a sua dedicação, mas há muito que deixamos de concordar com os seus meios, e francamente eles tratam-nos como animais raros que devem ser mantidos engaiolados...
— Lamento que pensais assim, Talin Lasan — estentoreou a voz de uma sombra cujos ombros cobriram ambos os eahan.
Distraídos a olharem um para o outro durante o seu diálogo, não se haviam apercebido da aproximação de Aedreth Caeryth. O Castelão de Aemer-Anoth envergava a sua armadura revestida de tecido vermelho debruado a amarelo e as suas espaldeiras trilhavam uma ondulante capa branca com um triângulo vermelho com círculos nas pontas nela bordado que lembrava o Esporão de Aemer-Anoth.
— Castelão...
— Aproximamo-nos de Gul-Yrith. Teríeis a amabilidade de ir avisar o vosso pai no seu vagão?
— Certamente, Castelão — acedeu o eahlan, quase obsequioso por lhe ser poupada a necessidade de uma explicação e retirando-se com acenos da cabeça dirigidos a Aedreth e Quenestil, que mesmo com o seu mau humor se sentiu desconfortável e ligeiramente intimidado pela presença do enorme siruliano.
Para sua grande surpresa, este manteve-se a seu lado enquanto caminhavam, embora rapidamente atribuísse a tal o simples motivo de a sua presença nada significar para o Castelão. O fato de Aedreth caminhar em silêncio e de olhos postos no destino em frente apenas reforçou essa noção, que foi contudo estilhaçada quando Aedreth lhe dirigiu inesperada palavra.
— Talin pode ser jovem, mas tem razão, eahan.
O shura perdeu um passo e por pouco não tropeçou, pois a admissão de Aedreth foi para ele o mesmo que uma repentina fenda num glaciar capaz de desencadear uma derrocada de gelo. Reuniu suficiente coragem para virar a cara e constatou com alívio que os olhos azuis do Castelão continuavam a olhar em frente. O bigode e a barba adjacentes aos seus lábios mexiam-se à medida que Aedreth os franzia, como se estivesse a mastigar palavras.
— Castelão...?
— Sei o que pensas de nós, eahan, pelo que viste e pelo que te obrigámos a fazer, a ti e aos teus amigos. Não peço desculpas por tal, mas compreendo — continuou o velho siruliano. — Os Lasan são uma família antiga, e são os que mais perto chegam daquilo que os eahlan na verdade não têm: orgulho. Querem tanto reaver a sua terra ancestral como nós, embora para isso não estejam tão dispostos a... diversificar os seus meios como o fazemos. Se dependesse apenas de mim, teriam ido para Sallath Yngil com os seus, mas nós respeitamos a vontade deles, e essa é uma cedência que nunca se mostraram dispostos a fazer.
— Respeitam a vontade deles? — duvidou Quenestil, e a sua voz saiu-lhe bem mais irônica do que posteriormente considerou prudente. Felizmente, Aedreth pareceu ignorá-lo ou não se aperceber do tom.
— Tanto quanto nos é possível. Eles são os verdadeiros filhos de Sirul, os mais puros, e nós não podemos... nós não permitiremos que nada lhes aconteça. A insistência dos Lasan em permanecerem expostos ao perigo obriga-nos a protegê-los mais do que gostaríamos. Não permitimos que a sua linhagem seja conspurcada como a nossa o está forçosamente a ser em Tanarch, e por conseguinte o nosso contato com eles sofre. E uma situação que também a nós nos é custosa, embora possas não acreditar, eahan. Eu bem sei que para vocês o incesto não é condenável, mas a mim... a mim revolta-me que os Lasan sejam forçados a casar com membros da própria família devido ao isolamento ao qual estão sujeitos. Os próprios serviçais começam a partilhar laços de parentesco, e isso...
Aedreth conteve as palavras, e por uma vez, Quenestil foi capaz de compreender o siruliano. Afinal, embora o incesto não fosse de fato condenável aos olhos dos eahan — que ao contrário dos humanos apenas adquiriam enfermidades uma vez expostos ao mundo, e não como resultado de qualquer mistura de sangue parental — no caso dos eahlan, parecia-lhe de fato... errado. Por muito que o revoltasse, partilhava da opinião dos sirulianos, pois embora já estivesse relativamente habituado à presença dos eahan brancos, não podia deixar de pensar neles como seres puros, imutáveis e desnaturais na forma como pareciam não pertencer a um mundo tão tolhido de imperfeições.
— O que pensais fazer, Castelão? — indagou o eahan.
— A respeito da nova ameaça? Eu e os restantes Castelões iremos debater o assunto. — A brevidade siruliana regressara, e o shura soube de imediato que a conversa terminara ali. — Mantém-te por perto da carroça da tua... companheira, eahan. O Factoto de Gul-Yrith indicar-vos-á os vossos aposentos.
E avançou, afastando-se de Quenestil a pesados passos largos de capa branca a adejar aos calcanhares. O shura considerou brevemente as palavras do Castelão, mas a aproximação da fortaleza despertou-o para outros pensamentos mais importantes. Slayra daria à luz em poucos meses, e qualquer ameaça teria primeiro de passar por dois castelos sirulianos antes de chegar a Gul-Yrith, o que a tornava o sítio mais seguro entre Asmodeon e a potencialmente perigosa Tanarch. Viajar sozinho com Slayra estava fora de questão por ser demasiado arriscado, embora a perspectiva de ter o seu filho a nascer numa terra estranha entre um anel de aço siruliano também não lhe agradasse de sobremodo. Ainda não sabia ao certo o que fazer após o nascimento, mas já se lhe afigurava como uma decisão difícil. Aewyre estava sozinho com o maldito drahreg e os outros certamente voltariam para as suas vidas, pois não tinham como o ajudar, mas Quenestil sentia que podia e devia fazer alguma coisa assim que lhe fosse possível. Mas como, deixando Slayra sozinha com o bebê? O shura pousou a mão sobre o peito e sentiu debaixo da túnica os contornos do dente de volverino que tinha pendurado ao pescoço. Havia muito que o ermo o chamava, insurgindo-se pela sua longa ausência, e a proximidade da Wolhynia enchia-o de fato com um ardente desejo de despir as suas roupas e correr livre pelas planuras em direção aos bosques. Wolhynia fora o seu destino quando da sua Batida, a demanda empreendida por todos os jovens shuras em busca do irmão animal com o qual deveriam estabelecer laços vinculadores. Quenestil deparara com um volverino nas terras do norte, e reconhecera-o de imediato pelo que era antes de o matar, executando de seguida o ritual de enlace que o declarara como um servente da Mãe.
O eahan foi desperto pelo ruído de uma trompa que ressoou do alto da barbacã e que se propagou pelas águas como um lamento das profundezas. Os maciços engenhos do rastrilho rangeram e estrondearam nas entranhas da barbacã, e as escabrosas puas deste ergueram-se morosamente das cicatrizes de feridas infligidas na terra, correntes a roçarem como as articulações perras de um gigante de ferro. A caravana continuou a avançar sem se deter, e foi então que Quenestil teve um vislumbre adicional do austero esplendor de Gul-Yrith. Era uma fortaleza quadrada concêntrica, rodeada por defesas aquáticas escavadas que a deixavam num quase inexpugnável ilhéu artificial. Das bordas desse mesmo ilhéu nasciam as muralhas exteriores do castelo propriamente dito, e no seu interior assoberbavam-se outras mais altas que por sua vez cercavam o edifício principal. Havia apenas uma estreita faixa de terra entre a muralha do Istmo e a margem do lago artificial que cercava Gul-Yrith, cortada por dois cursos de água vindos dos portões marítimos que davam acesso ao lago e que podiam ser transpostos por duas pontes amovíveis, e os seus únicos acessos eram através da barbacã do meio e duas outras nas pontas dos lanços de muralha que eram quase duas fortalezas por direito próprio e que podiam ser defendidas independentemente. A partir dessas era também possível aceder à muralha exterior através de uma combinação de pontes giratórias recolhidas nas mesmas e nos torreões do outro lado da margem. O ilhéu era acessível por terra apenas através de duas pontes levadiças a leste e oeste que se recolhiam em duas outras barbacãs, e foi por uma dessas que a caravana entrou em Gul-Yrith. Quenestil reparou que a água do lago artificial provinha de um canal escavado a norte que provavelmente conduziria a um rio. O pátio exterior da fortaleza não era grande, e sujeitaria o eventual invasor a um fogo cerrado dos arcos longos sirulianos, capazes de quebrar o alento de qualquer ataque, como Quenestil bem o testemunhara em Aemer-Anoth. Para aceder ao pátio interior era ainda necessário passar por outra alta muralha com enormes torreões redondos nos cantos e reforçada com duas maciças barbacãs que pareciam incorporar toda a força e severidade do castelo, apetrechadas com dois rastrilhos cada, totalmente desprovidas de janelas e apenas com seteiras cruciformes ao longo das torres em forma de D que as ladeavam. Do alto das ameias avistavam-se os já familiares elmos afunilados e as pontas de alabardas dos Ajuramentados e Miliciares, sentinelas sempre despertos e prontos a defenderem os respectivos postos com as vidas, com ou sem ameaça em vista. Ao contrário de Aemer-Anoth, estas estavam também providas de trabuquetes que podiam infligir sérios estragos aos sitiantes a uma considerável distância, e a sua visão confortou Quenestil na medida em que reforçaram a convicção de que, dadas as circunstâncias, ao menos se haviam mudado para o lugar mais seguro para Slayra dar à luz. O pátio interior não era ressequido como o do Esporão, pois nele crescia relva amarelecida pelo sol riscada por trilhos pavimentados. O amarelo-vivo de algumas potentilhas que haviam desabrochado dava-lhe uma cor mais vivaz que o eahan não vira em Aemer-Anoth, embora estivesse sitiado pelo austero cinzento das muralhas e dos azerados arneses dos sirulianos que por ele caminhavam. Além de uma cisterna, havia quatro edifícios distintos no interior, três dos quais colados à muralha sul e o que parecia ser um armazém à muralha norte. Os vagões foram dispostos em ordeiras linhas no pátio, e os seus conteúdos e ocupantes, descarregados. Quenestil ajudou Slayra a descer do seu em silêncio enquanto o cortejo de eahlan se reuniu e foi saudado com deferentes acenos de cabeça pela parte da guarnição de Gul-Yrith.
— E agora? — perguntou a eahanoir, olhando para as ameias circundantes.
— Esperamos que nos indiquem onde ficar — respondeu Quenestil sucintamente, cruzando os braços sem olhar para Slayra.
— E depois?
— Logo vemos.
— Está bem.
Não tardou a surgir um batalhão de sirulianos que escoltavam aqueles que deviam ser o Castelão e o Factoto de Gul-Yrith. O primeiro era vetusto e altivo como Aedreth, embora fosse mais baixo que o seu braço direito, esse sim a imagem do gigante siruliano debaixo de cujo comando o férreo punho de Gul-Yrith esmagaria todos os que se lhe opusessem. O Castelão envergava um esplendoroso arnês revestido de tecido verde com as bordas das placas debruadas a verde-escuro e uma capa preta cora um lanço de muralha verde ameada nela bordado. O seu robusto gorjal quase lhe tapava a boca, ocultando parcialmente uma face bem mais enrugada que a de Aedreth e encimada por uma ainda viçosa cabeleira branca penteada para trás. Um bigode basto percorria-lhe a cara de uma orelha à outra, escondendo a boca já encoberta pelo gorjal, mas apesar destes detalhes menos impressionantes, ainda era uma boa cabeça mais alto do que Quenestil e emanava uma presença e carisma que não deixavam dúvidas quanto ao porquê da sua nomeação para o posto. Por sua vez, o grisalho Factoto envergava um típico arnês de placas corrugadas com o braço direito decorado com ornatos gravados a ácido e sobre cuja espaldeira repousava uma clâmide verde-escura. Os dois detiveram-se diante de Aedreth, o Patriarca e a sua esposa Eluana, saudando-os, e o Factoto recebeu instruções especiais do Castelão de Aemer-Anoth enquanto o de Gul-Yrith falava com os Lasan. Quenestil e Slayra aguardaram pacientemente como os restantes sirulianos e por fim o
Factoto veio na sua direção, empunhando um rolo de pergaminho que Aedreth lhe dera. Os sempre atentos Ajuramentados e Miliciares fizeram sentido diante da aproximação do seu superior e este leu cada um dos vinte e nove nomes enquanto o Castelão dialogava com os mais ilustres membros da caravana. Sem saber se também estavam incluídos, Quenestil e Slayra ficaram a ouvir um recital de instruções e indicações de como deveriam pernoitar na torre norte, recebendo uma refeição na manhã seguinte e após a qual deveriam regressar de barco para Gaul-Anoth. O casal esperava atrair as atenções através do seu silêncio, mas de cada vez que o Factoto passava os olhos por eles, não dava qualquer indício de ter registado a sua presença. Sentiam-se profundamente deslocados entre as fileiras de sirulianos de olhares átonos e posturas concentradas, e os únicos que pareciam reparar neles eram os que observavam em redor e das ameias como espectadores de uma encenação na qual os dois eahan não estavam a desempenhar corretamente os seus papéis. Quando já pensavam que iam de fato ser enviados de volta para Gaul-Anoth, Sana veio inesperadamente em seu socorro, sobressaltando o Factoto quando este viu quem lhe chamara a atenção com um leve toque de dedos no braçal ornado. Munida de um sorriso desarmante e de uma — para o siruliano indecorosa — tendência a aproximar-se demasiado, a eahlana pareceu tentar convencer o Factoto de algo que este não tinha ar de estar muito inclinado a aceitar, julgando pela sua testa franzida. Sana sorria e apontava para Quenestil e Slayra, pousando as sugestivas mãos sobre a barriga e indicando o Patriarca com gestos aprovadores, mas tudo o que o Factoto fazia era mostrar-se admirado com o que quer que fosse que a eahlana estava a sugerir.
— São tão estúpidos, estes sirulianos — comentou Slayra. — Ele era capaz de lhe esmagar aquela cabecinha bonita com uma só mão, e afasta-se dela como se mordesse.
— Eles têm-lhes respeito, quase reverência — sentiu-se Quenestil obrigado a referir. — Não te lembras do que a Alija cantou naquela noite em Aemer-Anoth?
— A Ária de Deadran e Ansala?
Quenestil não se lembrara do nome, mas lembrava-se muito bem dos profundos sentimentos que a canção nele havia despertado. Slayra também pareceu lembrar-se de algo, pois a mão da eahanoir encontrou a sua e os dedos de ambos entrelaçaram-se como se por vontade própria. O shura olhou de lado e viu que Slayra fazia o mesmo. Ambos sorriram de bocas fechadas e apertaram as mãos um do outro com mais força, mas antes que pudessem trocar palavras, Sana veio ter com eles, sorridente e obviamente satisfeita consigo mesma.
— Podem ficar conosco no torreão nordeste — disse, olhando para trás para obter uma confirmação que obteve na forma de um aceno de cabeça do sorumbático Factoto. — Venham, vamos instalá-la num sítio confortável onde se sinta bem. Deve estar cansada da viagem.
A eahlana enfiou-se no meio do casal e agarrou-lhes as mãos, conduzindo-os para fora das fileiras de sirulianos que apenas não mostraram o seu desagrado para não serem forçados a cruzar olhares com Sana.
— Tens a certeza de que não há problema? — indagou Slayra, que já deixara de fazer cerimônia com as eahannas brancas com as quais era forçada a partilhar boa parte do seu tempo. — Os sirulianos não parecem muito satisfeitos.
— Não, não — assegurou Sana. — O Patriarca já tinha discutido isto com o Castelão Aedreth. Ele deve ter-se esquecido de o mencionar ao Factoto Saeron, só isso.
— Sim, esquecido — ironizou Slayra, lançando um expressivo olhar de viés a Quenestil. — Claro...
O eahan nada disse e limitou-se a concordar. Slayra parecia menos quezilenta agora que chegara ao seu destino, e não estava disposto a testar o seu temperamento com qualquer palavra que a eahanoir pudesse interpretar da forma errada, uma tendência que recentemente se manifestara com alarmante freqüência. Sana levou-os alegremente de encontro à família Lasan, que parecia estar a terminar a sua conversa com o Castelão de Gul-Yrith, e Quenestil olhou uma última vez em redor. As caras que o fitavam detrás das viseiras de elmos afunilados não eram amigáveis, mas sabia que poderia depender delas para zelarem pela segurança de Slayra e do seu bebê. Podiam não gostar dela por ser eahanoir, mas Slayra provara as suas boas intenções durante a batalha de Aemer-Anoth, e de qualquer forma não o fariam apenas por ela. Afinal, e apesar de tudo o que vira e que o chocara em Asmodeon, os sirulianos continuavam a ser os denominados «defensores de Allaryia», e se havia algo de que estava certo era de que defenderiam a fortaleza e os que dentro dela se encontravam com as suas vidas e tudo o mais de que lhes fosse humanamente possível prescindir. Tinha Slayra ao seu lado, e o seu filho iria nascer em segurança.
Por que razão estava tão desassossegado, então?
A atividade era grande na sala das costureiras em Allahn Anroth, que desde o casamento do seu senhor Aereth não tinham mãos a medir. Uma vez consumado, o matrimônio requeria agora a alteração de tudo quanto fosse constituído de tecido e representasse o brasão de Ul-Thoryn, e houvera mesmo quem tivesse proposto pôr a águia sobre o teixo de Lennhau para que o processo fosse menos moroso, mas a versão purista da esquarteladura acabara por prevalecer e coube então às costureiras dividir cada escudo em quatro partes. Reunidas à volta de uma série de mesas e trilhando os bordados ao longo dos mais variados tecidos com experientes dedos destros, as mulheres tagarelavam e queixavam-se do calor que ainda se fazia sentir a meio do mês de Pikaris, o mês da despedida estivai. Havia bandeiras, pendões, toalhetes, libres de mensageiros e de soldados a bordar, tudo porque alguém achara mais bonito o maldito vestido esquartelado que a princesa Iollina usara no dia do casamento. Na sala encontravam-se mulheres de ambas as cortes, e apesar do ambiente algo tenso que se vivia entre os dois séquitos devido às ubíquas intrigas palacianas, as costureiras confraternizavam amigavelmente, partilhando histórias e rumores. Os homens que cortavam os tecidos mantinham-se sabiamente afastados numa mesa à parte num canto da sala, temendo ser implicados no complexo emaranhado do diz-que-diz-que caso a causticidade das más-línguas abrasasse algum ouvido fora da sala. Por norma, a presença de Smerunda, a governanta de Allahn Anroth, emudeceria tais conversas ou pelo menos reduzi-las-ia a murmúrios discretos, mas esta encontrava-se de momento ocupada a falar com o pajem surdo-mudo de lorde Thoryn através de uma complicada linguagem gestual misturada com inúteis palavras. A mulher vestia uma toga azul com buracos no lugar de mangas sobre um vestido amarelo e um toucado branco que lhe cobria o pescoço encimado por uma chapeleta vermelha sem aba orlada a amarelo. Era robusta e já de idade avançada, com um semblante vincado por rugas, bochechas descaídas e uma boca de cantos baixos que lhe haviam merecido a amigável alcunha de «Sabujo», pois a mulher era afável apesar de autoritária e poucos serventes tinham grandes razões de queixa da sua tutela. O pajem vestia apertadas calças brancas e um folgado gibão vermelho cintado, e nutava obsequiosamente perante cada gesto da governanta enquanto esta lhe tentava explicar as virtudes de bem despir o seu senhor, demonstrando o funcionamento dos novos colchetes das calças acabadas de remendar de lorde Aereth.
— Entra e sai, vês? — explanou a mulher, inclinando a cabeça de um lado para o outro enquanto abotoava e desabotoava o fecho. O pajem acenou com a dele. — Sempre foste um rapaz esperto. Lorde Aereth não gosta de ser despido por homens, nunca gostou, nem em criança, mas agora é um homem casado e não podemos ter aquele tipo de coisas no quarto.
Smerunda dobrou habilmente as calças, indicou ao rapaz que pegasse num dos muitos cestos cheios da sala e meteu-as dentro dele.
— Levas isto agora ao guarda-roupa de lorde Aereth — disse com ajuda da linguagem gestual que o rapaz lhe ensinara e que a mulher adaptara à vida na corte. — Hoje à noite vais despi-lo pela primeira vez, e não te admires se ele resmungar. A princesa Iollina também tem uma aia para... Olha, por falar nela...
O pajem olhou para onde a governanta apontava e viu a rapariga que de alguma forma estava sempre a encontrar. Era freqüente deparar com ela durante os jantares, pois sentava-se perto da princesa Iollina, mas de alguma forma também o conseguia encontrar durante o dia pelo palácio e estabelecia amiúde uma conversa puramente unilateral. Não que não gostasse dela, mas ainda não percebia o que a rapariga queria com toda aquela conversa e por que razão continuava a abordá-lo se até então nunca obtivera uma resposta sua. Não a vira durante quase duas semanas quando lorde Aereth fora para Lennhau, pois Lethia Nehin, a esposa de lorde Tylon, ainda guardava ressentimentos do incidente durante o jantar da boda, e lorde Aereth aparentemente achara por bem obsequiar a mulher, não levando o rapaz para a casa dos seus sogros. Como se o tivesse farejado, a aia viu-o, sorriu-lhe e veio na sua direção. Tinha um vestido verde e alvo com a orla da cinta abainhada a pêlo de coelho branco, e recolhera os cabelos castanho-escuros em dois bandos entrelaçados sobre as orelhas, o que, juntamente com a sua cara oval e grandes olhos castanhos de longas pestanas, lhe dava um ar abonecado.
— Estávamos agora mesmo a falar de ti, rapariga — disse Smerunda.
— Governanta... — saudou a aia com uma delicada vênia, olhando de seguida para o pajem com um sorriso mais aberto ainda. — Faláveis de mim?
— Sim. O nosso rapaz aqui vai passar a assistir lorde Aereth à noite quanto se for deitar. Parece que vocês vão trabalhar juntos.
— Sim? Mas que bom! — sorriu a rapariga ainda mais, batendo com ambas as mãos debaixo do queixo, e o pajem retribuiu com um acanhado trejeito.
— O que vieste aqui fazer, rapariga? Ainda não acabaram de bordar o novo manto da princesa...
— Oh, não, não. Eu só vim cá buscar a bebê. Onde está a Casira?
— Ali naquela mesa — indicou a governanta. A jovem aia esticou o pescoço até avistar a mulher que procurava entre o grupo de atarefadas costureiras toucadas.
— Obrigada, governanta. Aonde vais? — perguntou ao ver que o pajem estava de saída. O rapaz deteve-se a alguns passos de distância ao notar o gesticular na sua direção e olhou para Smerunda, aguardando ordens.
— Ele tem de levar aquele cesto ao guarda-roupa de lorde Aereth. O que queres dele?
— Acha que ele podia esperar por mim? Eu... podia ensinar-lhe umas coisas.
— Ai queres ensinar-lhe umas coisas, é? — A cara da aia enrubesceu e a governanta limitou-se a abanar a cabeça, sem paciência para namoricos. — Vai lá, eu digo-lhe. Mexe-te, rapariga, que aqui há gente a trabalhar.
A aia agradeceu e assim fez, pegando na saia e apressando-se na direção de Casira, a ama de leite que lorde Tylon arranjara para a misteriosa bebê que surgira do nada. Esta estava ocupada a amamentar a criança enquanto cerzia uma das quatro bagas do teixo de Lennhau num saio de homem de armas, aninhando a nuca da bebê no seu braço esquerdo enquanto trabalhava. Ainda era uma mulher relativamente jovem, embora os rigores de vários partos já lhe tivessem vincado os cantos dos olhos esverdeados e a touca lhe desse um imerecido ar de matrona. Já não pela primeira vez, a aia questionou-se quanto às maravilhas e os horrores da gravidez, sabendo que o seu dia também iria chegar e sentindo uma grande incerteza acerca de todas as incógnitas. Porém, ao ver a bebê ser amamentada, não pôde deixar de sorrir com o ar de sereno contentamento patente na sua pequena cara de olhos fechados. Estava cingida com um envolvedouro de linho, e as únicas partes visíveis do seu corpo eram a sua cabeça de cabelos castanhos com uma antecalva e a sua pequena mão de minúsculos dedos que agarrava sofregamente o túmido seio da ama de leite.
— Casira? — disse, curvando-se ao lado da ama de leite para a fitar por cima do ombro.
— Sim? Oh, és tu, rapariga. — A mulher interrompeu o seu trabalho, tirando o dedal e enfiando a agulha com linha vermelha numa caixa compartimentada sobre a mesa. — Vieste buscá-la?
— Sim. A princesa está nos jardins e lorde Tylon disse que podia aproveitar para ficar um pouco com ela, para praticar e...
— Está bem, deixa-me só... — interrompeu Casira, cobrindo o seio e ajudando de seguida a bebê a arrotar com suaves palmadinhas nas costas. — Ela não mama muito, é muito comedida. Quase parece que não gosta, e nunca sei se lhe dei o suficiente ou não.
— Como é que ela se porta? — indagou a aia.
— E uma menina muito calma, não incomoda ninguém.
— Não, não incomoda nada — corroborou uma velha costureira ao seu lado sem tirar os papudos olhos do seu trabalho.
— Está sempre a olhar para as pessoas com curiosidade e não se assusta com nada. Gosta muito de mexer em barrigas, tenho reparado, como se estivesse à procura do sítio onde nasceu.
— Ou então sente que está aí outra coisinha... — comentou uma jovem costureira pálida do outro lado da mesa, trocando um olhar cúmplice com outra à sua direita, que abafou um riso com o dedal diante da boca.
— Estejam caladas e trabalhem. O meu Doreno está mais calmo desde que caiu das escadas, e além disso a loja fechou. Adoro os meus filhos, mas Acquon me cure, daqui não saem mais.
— Foi o que disseste quando o Nerico nasceu... — lembrou secamente a velha costureira, pousando brevemente a agulha e olhando para o vazio com os olhos papudos, acentuando as enrugadas maçãs do rosto com um cansado sorriso sapudo. — E o que eu disse depois do meu quinto. E sexto...
Uma franzina eructação por cima do ombro de Casira terminou a conversa.
— Bom, toma-a lá senão estas gralhas nunca mais se calam. Aperta-lhe só um bocadinho o envolvedouro, que eu deixei-o um pouco folgado.
A aia pegou na bebê com cuidado, temendo apertar com demasiada força a diminuta vida que tinha em mãos, embora esta não mostrasse qualquer receio e a fitasse diretamente com grandes olhos azulados.
— Que olhos tão bonitos que ela tem — admirou a aia, oscilando a bebê nos seus braços e apertando-a ao peito enquanto olhava para ela. — Será que a mãe...
— Não nos compete falar dessas coisas, rapariga — tornou Casira a interrompê-la, pontuando o que dissera com um expressivo olhar que dava a entender que não era assunto que se discutisse enquanto tornava a enfiar o dedal. As outras costureiras retomaram o seu trabalho com interesse subitamente renovado. — Vai, leva-a lá. Eu devo ficar aqui o resto do dia, se ela tiver fome.
— Sim... obrigada — agradeceu a aia, retirando-se. As suas amigas bem lhe diziam que era uma destravada e que falava sempre demais.
A governanta Smerunda estava uma vez mais ocupada a orientar os trabalhos, mas o pajem moreno esperava por ela à porta da sala de cesto em mãos. A aia tornou a sorrir-lhe e ambos partiram corredor fora com os respectivos encargos aos braços. As galerias de Allahn Anroth eram conhecidas pela sua acústica, e alegadamente haviam sido elaboradas para levar sussurros intriguistas a ouvidos indiscretos de forma a evitá-los. Mesmo sabendo isso, e embora algo escaldada por ter sido chamada à atenção, o silêncio que ecoava pelo piso de elaborados mosaicos brancos e azuis e tetos de abóbadas em cúpula era confrangedor para a aia, e esta não resistiu assim que o pajem a olhou de soslaio.
— Gostava que tu tivesses ido conosco a Lennhau. As florestas são muito bonitas e eu podia ter-te mostrado.
O pajem limitou-se a inclinar a perfeitamente neutra cabeça.
— Pois, a senhora Lethia não quis, não foi? Coitado, nem tiveste culpa... — Outro inclinar da cabeça. A rapariga olhou por cima do ombro como para se certificar de que ninguém estava presente, e achegou-se mais ao rapaz, baixando o tom da voz. — Ela é má, sabes? Nunca esquece, e manda sempre o Cortun castigar as pessoas que acha que a ofenderam. Ele não te fez mais nada, pois não?
O rapaz notou o sutil abanar da cabeça da rapariga e as finas sobrancelhas ligeiramente arqueadas, deduzindo que uma resposta negativa seria a mais adequada e fazendo que não com a cabeça.
— É um bruto, podia ter-te magoado a sério naquele jantar. — A aia suspirou um rosnido e afagou a cabeça da bebê para que esta não se assustasse. — Odeio-o, sabes? É um animal que devia estar numa jaula. Já te contei como engravidou uma das outras aias e a pobre rapariga depois foi expulsa, não? Sim, acho que já te contei. Ele parece muito calmo e educado, mas é selvagem que nem um drahreg e porta-se como um quando lorde Tylon ou a senhora Nehin o deixam.
A bebê emitiu um som como se estivesse a sentir a sua hostilidade, e a aia tornou a afagar-lhe a cabeça, reparando que a criança olhava em redor com os seus grandes olhos azulados. Viraram um canto e depararam com uma patrulha de dois guardas arnesados, que passaram por eles sem darem indícios de terem registado a sua presença.
— Uma vez há uns anos também me tocou, o porco. Em pleno jantar! Fiquei tão envergonhada que me fui sentar a correr, mas devia ter gritado e contado ao lorde Tylon... E lorde Aereth devia tê-lo mandado castigar quando ele te fez aquilo, não achas? — A testa interrogadoramente franzida e o baixar do queixo da rapariga levou o pajem a acenar afirmativamente com a cabeça. — Não sei... às vezes parece que lorde Aereth tem medo de lorde Tylon. Pelo menos tem-lhe muito respeito, e a senhora Lethia sabe convencer lorde Tylon a fazer o que ela quer. Sabes, eu tenho ouvido que os regentes das outras cidades não gostaram nada desta aliança entre Ul-Thoryn e Lennhau. Principalmente lorde Sunlar de Vaul-Syrith ficou muito aborrecido. Já se fala de mobilizações de soldados; sei disto porque uma das minhas amigas, a Amatea, teve... bem costumava encontrar-se com um dos sargentos da guarnição, percebes? — Outro aceno da cabeça, e um segundo dirigido a duas serviçais que por eles passaram.
— Pois, ela até gosta dele (apesar de ser bem mais velho e ter um olho torto, mas ela lá sabe) e ele partiu para a fronteira com Vaul-Syrith quando estivemos em Lennhau. Isso não pode ser bom, não achas?
— O rapaz esperava só não estar a fazer figura de parvo com os gestos concordantes da sua cabeça. Felizmente, um gemido da bebê chamou a atenção da aia, que se deteve para olhar para ela.
— O que tens, pequerrucha? — interrogou, ajeitando-a no braço e afastando-a do seu peito para melhor a ver. — Não é tão linda? Já viste os olhinhos? — perguntou ao pajem, que se pôs ao lado dela e sorriu com a expressão da criança, cujos grandes olhos azulados olhavam atentamente em redor sem prestar qualquer atenção aos dois presentes. Os orbes castanhos da aia tocaram nos cantos dos seus olhos ao ver o quão perto o pajem estava, e o quão genuíno o seu sorriso parecia ao olhar para a bebê.
— Sabes uma coisa? — perguntou, mordendo o lábio inferior, olhando para ambos os lados com ar malandro, encostando-se à parede detrás de um pilar de mármore polido e indicando ao rapaz que se achegasse dela com um gesto da cabeça. — Chega aqui.
O sorriso do pajem desvaneceu-se de imediato e o rapaz fitou a aia com dúbias sobrancelhas erguidas.
— Anda, vou contar-te uma coisa.
Hesitante, acabou por dar um passo em frente. A rapariga esticou o pescoço e tornou a olhar para os lados para se certificar de que não se encontrava ninguém nas redondezas. Satisfeita, ajustou a bebê ao seu colo e baixou o tom da voz até a reduzir quase a um sussurro.
— Não é para contares a ninguém, ouviste? Sabes como é que ela apareceu? — Sem conseguir deduzir que tipo de resposta era dele esperada, o pajem limitou-se a encolher os ombros. — Pois, eu também não. Ninguém sabe. Antes de irmos para Lennhau, lorde Tylon convenceu lorde Aereth a organizar uma busca por... Bem, tu sabes que lorde Aereth costumava levar mulheres para os seus quartos, não? Pois, algumas terão tido filhos. Lorde Tylon disse que descendências bastardas podem causar problemas, principalmente nos tempos que aí vêm, e lorde Aereth concordou em fazer um... chamaram-lhe «levantamento». Não sei o que ele queria dizer com aquilo dos tempos vindouros, mas assustou-me, não gostei de ouvir...
Vendo a expressão confusa na cara do pajem, a rapariga abanou a cabeça e franziu o cenho.
— Ah, não ligues. De qualquer forma, parece que encontraram aqui a pequerrucha; não se sabe da mãe, mas lorde Tylon arranjou-lhe uma ama de leite. Quer dizer, ela tem cabelos castanhos como a mãe de lorde Aereth, a senhora Adelayne... Os olhos da avó eram violeta e os dela são claros, mas as criadas mais velhas dizem que se parece com ela. Ainda assim, não é normal trazer uma filha ilegítima para a corte desta maneira, não achas? Pois, eu também não, e há muitos cortesãos descontentes. E como se não bastasse, lorde Tylon ainda faz questão de que seja a princesa a tomar conta dela por vezes, «para praticar e se ir habituando». Isso acho indecente, não te parece?
Perante a clara indignação da rapariga, o pajem teve de acenar com a completamente perdida cabeça.
— Quer dizer, a pobrezinha não tem culpa nenhuma, mas estar a juntar assim uma filha legítima com uma ilegítima? Pelo amor de Assana!
A bebê tornou a gemer, desta vez de forma mais insistente, e a aia sentiu uma tensão nas faixas do seu envolvedouro.
— Oh, coitadinha, desculpa, não estamos aqui a falar mal de ti
— porém, a criança continuava sem lhe dar qualquer atenção, e tinha os olhos fixos num ponto além do rapaz diante dela. — O que foi? Para o que é que estás a...
Com um sobressalto, a aia encostou-se à parede, apertando a bebê instintivamente contra o seu peito. O pajem virou-se e assustou-se ele também ao bater no recém-chegado com o seu cesto de roupas, dando um curto e quase protetor passo para trás para se pôr entre ele e a rapariga. O homem era baixo e barrigudo, e a sua pele amarelada pontilhada por máculas avermelhadas dava-lhe um ar enfermo, bem como os seus doentios olhos de um branco amarelento. Envergava uma camisa feita de pele de cabra e calças de estamenha típicas de um camponês, bem como um chapéu de couro com abas para as orelhas, e, julgando pelo seu ar sórdido e cheiro pouco agradável, decididamente não pertencia ao palácio. E mais, havia algo de assustador no homem, algo na sua postura e na forma como fitava a bebê com os seus olhos morbosos.
— O esmoleiro só irá distribuir as esmolas depois do jantar — disse a aia com um involuntário tremor na voz. — O que faz no palácio? Quem é você?
As suas palavras tiveram o indesejado efeito de atraírem sobre si a insalubre atenção do homem, cujos olhos amarelos a esquadrinharam de forma nojenta.
— Sou Feghrat. Devia ter cuidado com os ódios e rancores, menina. Nunca sabe a atenção que eles podem atrair...
— Você não devia estar aqui! — afirmou a rapariga, soando bem mais nervosa do que seria desejável e abraçando a bebê com mais força, virando a cara para o corredor sem tirar os olhos do homem.
— Guardas? Guardas!
O pajem não percebia o que estava a acontecer, mas sentiu a hostilidade patente nos gestos do homem e no seu olhar, e assim que sentiu a voz da rapariga reverberar pelo mármore do corredor postou-se diante dela com o nervoso peito invulgarmente enfunado. Feghrat olhou para o rapaz como se tivesse reparado nele pela primeira vez e, quando sorriu malevolamente, a sua pele pregueou-se como se não estivesse habituada a cal expressão, parecendo ruborizar as suas máculas. A testa do pajem estava vincada pelas suas sobrancelhas e os nós dos seus punhos brancos com a força com a qual agarrava o cesto de roupas, embora a sua expressão fosse tudo menos resoluta. Feghrat encolheu-se ligeira e subitamente de olhos fixos no rapaz, como se tivesse sido acometido de uma náusea, e as suas bochechas dilataram-se em expectativa. O pajem estremeceu com o gesto, mas, antes que Feghrat fizesse algo mais, um inesperado tilintar reteve quem o ouviu. O som veio do outro lado do pilar à direita da aia e do pajem, e estes foram incapazes de ver o que arregalou os olhos amarelados do ameaçador desconhecido.
— Vejam o que justos rancores nos trouxeram aqui, um filho do fígado, pronto a desencadear um sangrento frenesi — disse uma voz jocosamente musical que pareceu aterrar o homem que ameaçava o jovem casal.
Este recuou e detrás do pilar surgiu a figura de Dilet, o bobo, em todo o seu esplendor colorido e tilintante, envergando um invulgar traje que feria os olhos em tons de vermelho e amarelo e cujo capuz tinha a forma de um bico de águia, empunhando ainda uma vara com uma oscilante bexiga cheia de ar na ponta. Dos seus braços pendiam pedaços de tecido à laia de penas com guizos nas pontas, e uma série dessas caía-lhe do traseiro e arrastava-se pelo chão como uma cauda de penas. Os seus olhos assimétricos fitavam Feghrat com interesse exclusivo, mas a sua mera presença bastou para que o coração do pajem se esquecesse de uma batida, fazendo com que deixasse o cesto de roupas cair e por pouco não apertasse a bebê contra a aia e a parede.
— A que se deve isto, tamanha maleficência? Pelos rancores da aia chamado, ameaça a real descendência? — O homem recuou diante do avanço do bobo, e esfregou algo amarelo-esverdeado dos cantos da sua Doca com as costas da mão de palma ruborizada. — Não é este o vosso lugar, criatura figadal; aqui não estais autorizada a praticar o vosso mester fatal. Ide, ide que cheirais mal!
Para ainda maior surpresa da aia, bastou uma ligeira pancada no ar com a bexiga na ponta da vara do bobo para que o desconhecido se lançasse numa desenfreada corrida pelo corredor fora. Dilet foi atrás, ralando e rindo com jactante regozijo como se estivesse a brincar à apanhada com uma criança, e os dois desapareceram na interseção do corredor. Ouviram-se passos apressados vindos da outra ponta da galeria e a aia foi na sua direção, apertando a bebê contra o colo. O pajem deixou-se ficar onde estava com as roupas do seu senhor aos seus pés, olhando para a esquina da interseção como se esperasse que o bobo tornasse a surgir dela a qualquer instante. Três emproados cortesãos de Ul-Thoryn apareceram e a aliviada aia foi de imediato contar-lhes o que sucedera, apontando para o pajem e para o fundo do corredor, mas o rapaz permaneceu quieto e alheio aos recém-chegados, mesmo quando as vozes dos cortesãos reverberaram nas pedras a chamar pelos guardas. Levou os seus dedos indicador, médio e anelar à testa, invocando a proteção que o Delta já não lhe podia oferecer, e esperou que fosse suficiente para o resguardar do que quer que se estava a passar no palácio.
O minúsculo cubículo escuro era quente durante o Verão, razão pela qual era pouco freqüentado nos dias estivais, mas a luz que entrava esquartelada pela grade cruciforme na janela circular iluminava a silhueta de uma figura acocorada sobre um camastralho estendido no chão. Sobre uma mão de dedos crispados numa adaga assentava o seu queixo, sobre a outra estendida encontrava-se uma víscera coberta de sangue coagulado. Dilet, o bobo, estava em trajes menores devido ao estado em que os exteriores haviam ficado, e ainda assim as extremidades do seu corpo magro pingavam suor, mas o calor não o incomodava durante as suas reflexões. Da parede da entrada estavam dependurados vários punhais e adagas ornamentais, e na oposta encontrava-se, por cima de um velho baú, uma tapeçaria puída que retratava um homem com coroa a ter a garganta cortada por outro. Aguardava-o uma série de outros coloridos trajes que pendiam de uma fina trave de madeira que percorria a parede diante da janela, mas de momento não parecia interessado em vestir-se, toda a sua atenção estava centrada no órgão que tinha em mão.
Um haghral atrás da filha de Aewyre Thoryn. Isso só podia querer dizer uma coisa: Hazabel morrera às suas mãos. O seu longo silêncio estava por fim explicado, e tivera conseqüências imprevistas.
«Carne, coração e sangue», ecoou o bobo na sua cabeça. «Bruxa idiota, mesmo morta consegues fazer asneira. Desde o ritual que a única coisa que conseguiste foi parir um rebento e arrancar fígados.»
Teria Aewyre Thoryn partido com alguma paixoneta por alguma serviçal do palácio? Elas haviam-lhe entrado pelo quarto adentro como galinhas para um poleiro... ou talvez durante as suas viagens? E quantos filhos teria Hazabel? Estaria Aereth em risco? Teria de partir do princípio de que sim. O seu senhor regressara e, pelo que lhe fora anteriormente dado a entender, o primogênito de Aezrel Thoryn representava um qualquer papel nos seus planos. Ainda não fora contactado, e, tanto quanto sabia, todos os shaddens haviam desaparecido, as sombras d’O Flagelo uma vez mais reunidas com o seu mestre, pelo que a sua única ligação de momento era o próprio Othragon, e o Aesh’alan nunca fora particularmente comunicativo. Restava-lhe então prosseguir com as diretivas originais do seu mestre, sendo que manter Aereth vivo era uma prioridade, bem como a filha de Aewyre Thoryn, embora essa sempre lhe tivesse causado confusão quanto à sua verdadeira utilidade. Lorde Tylon arranjara uma insidiosa e discreta forma de a introduzir na corte, criando um encobridor alarido com o levantamento da fictícia prole bastarda de Aereth, e fora com grande embaraço que o irmão de Aewyre recebera a sua alegada filha bastarda, falhando naturalmente na tentativa de o encobrir. O bobo falhava em compreender a importância da filha de Aewyre Thoryn, mas os desígnios do seu mestre tinham raízes profundas, e Dilet sabia bem que na sua insignificância nada mais conseguiria ver além dos seus gravetos.
«Carne, coração e sangue...», tornou a repetir, apoiando então ambos os braços sobre os joelhos e fazendo uma pequena incisão no fígado escurecido. «Uma coisa ao menos me ensinaste, querida Hazabel». Um corte cuidadoso expôs a vesícula biliar do órgão e Dilet removeu-a e segurou-a entre os dedos como um acerbo pólipo. «Ódio e rancor pingam como o fel de um fígado para dentro das nossas bocas, uma bebida amarga que nos revolta e obriga a agir irracionalmente e que amiudamente sufoca antes quem odeia do que quem é odiado.»
O bobo segurou a vesícula sobre a boca e estendeu a língua, espremendo a bile sobre ela e degustando o néctar da amargura com afetado requinte de olhos semicerrados e de pestanas trêmulas.
«Odeio-te, Aewyre Thoryn. A ti e aos teus e tudo o que vocês representam. E agora vejo-me forçado a proteger-vos», refletiu, comparando a amargura do fel com a ironia do destino enquanto se levantava com as mãos manchadas de vermelho e amarelo-esverdeado. «E nisso que somos diferentes, querida Hazabel. A minha bile não ferve, sou paciente, sei que a minha hora acabará por chegar.»
Dirigiu-se à sua janela circular, a única entrada que permitia uma mínima circulação de ar no cubículo, e atirou o fígado mutilado para o ninho que uma gralha fizera na ponta mais afastada do orifício.
«Bom proveito, serás a primeira de muitas antes de eu ter terminado. A seu tempo, as aves de carniça e os vermes empanturrar-se-ão com as vísceras de Ul-Thoryn.»
O mês de Vilius mal começara quando duas figuras solitárias passaram por uma brecha no espigão nas montanhas Deorfheim que penetrava pela nação de Laone adentro. A área na qual entraram era um extenso vale cindido por um rio que nascia na Cinta a leste, delimitado por essa mesma extensão da cadeia montanhosa e pelo espigão a norte, com o Desfiladeiro das Lanças a sul e a cidade de Suassone a oeste. O vale era fértil, irrigado pela rica água da nascente e abençoado com terra frutífera flanqueada por vertentes boscosas que eram uma abundante fonte de caça e madeira. O espigão era na verdade pouco mais que um extenso e alto afloramento inclinado — quase plano a norte e escarpado a sul — que sobranceava uma série de montes que nasciam ao fundo do seu declive, e era por esse que as duas figuras se preparavam para descer, observando a paisagem da sua privilegiada posição na área ensombrada entre duas vertentes de pedra descolorada pelo sol. O Outono tingira o verde e cinzento das encostas de folhagem maioritariamente perene em discretos e cadentes tons de vermelho e amarelo, conferindo-lhe uma especial beleza transitória de algo que em breve se iria perder no incontornável ciclo de queda e regeneração da vida. O meio-dia estava solarengo e de céu claro, e as imponentes montanhas à distância viam-se difusas e azuladas. Em baixo, o rio serpenteava pelas baixadas demarcadas por pequenos avelais e quintas entre os montes, refletindo o sol na sua cintilante superfície.
Aewyre puxou o cabelo para trás e coçou a barba, grato por estar tão perto do fim da primeira etapa da sua nova jornada.
— Seguimos agora para leste; a Cidadela está aninhada na baixa do vale — disse, mais para si mesmo que para Kror, que observava ele também a magnífica paisagem em frente.
— Sim — limitou-se o drahreg a dizer. O seu cabelo estava medonho, mais parecendo uma carpete encrespada sobre a cabeça da qual brotavam tranças.
— Talvez devesses tapar-te outra vez. Se calhar vamos encontrar pessoas...
— E quando entrarmos na Cidadela? O que faço?
Aewyre coçou a barba mais um pouco e abriu a mão num gesto conformado.
— Logo vemos. O Allumno disse-me que na Cidadela aceitam qualquer um. Anda, vamos descer.
Os dois assim fizeram, seguindo o trilho natural de rochas adubado com tufos de ervas que descia da brecha no espigão. Kror foi enfaixando a sua cara e mãos com os habituais trapos e ligaduras sujas enquanto Aewyre revia mentalmente todos os discursos que ensaiara ao longo dos meses de viagem que os haviam levado das terras frias da Wolhynia até às temperadas regiões do Laone. Era uma nação próspera com a qual Ul-Thoryn habitualmente mantinha boas relações a despeito das tensões fronteiriças com Antumnia no rio Olyf, mas o guerreiro também não fazia tenções de estabelecer quaisquer contatos diplomáticos. Iria falar com o alto responsável da Cidadela, tentaria explicar-lhe a situação sem passar por louco, e esperava conseguir obter respostas para as suas muitas perguntas pertinentes à Essência da Lâmina, ou no mínimo receber treinamento para aprender a controlá-la na medida do possível. Já imaginara os piores cenários e tinha contingências preparadas para eles; a sua bolsa continuava suficientemente cheia para o caso de o dinheiro ser um problema, e em último recurso poderia fazer uso do seu sangue real para conseguir uma audiência com o alto responsável.
Assim que desceram o suficiente para tirarem da vista um promontório do espigão que lhes obstruía a visão a leste, os dois viajantes puderam lobrigar a Cidadela à distância, uma estrutura erigida sobre um bizarro penhasco contornado pelo cintilante rio. As chaminés das quintas exalavam o fragrante fumo dos longos e fartos almoços pelos quais os laoneses eram sobejamente conhecidos, o que incitou Aewyre e Kror a mastigarem umas avelãs para enganarem a fome pelo caminho.
— Eles vão atacar-me quando virem a minha pele — lembrou-se Kror de dizer. — Todos fazem isso.
— Já te disse que na Cidadela aceitam qualquer um...
— Queres que eles me matem? — praticamente acusou o drahreg, e Aewyre ouviu os seus pés rasparem no solo pedregoso quando este se deteve subitamente.
O guerreiro estremeceu e os seus dedos contorceram-se espasmodicamente, atraídos pelo punho de Ancalach, mas este refreou o impulso de se virar e confrontar Kror, limitando-se a olhar por cima do ombro.
— Já te disse que preciso da Essência da Lâmina. Não a consigo se outra pessoa te matar, e de qualquer maneira nós vamos para a Cidadela para ver se há alguma maneira de eu conseguir a Essência da Lâmina sem que tu tenhas de morrer.
— Tu conseguires? — arreganhou Kror. — E eu?
O maxilar de Aewyre retesou-se então, e o jovem deu consigo a virar-se para o drahreg de uma forma indesejadamente ameaçadora.
— Agora é uma péssima altura para começares a mudar de idéias — observou o guerreiro, e o perigoso tom da sua voz quase lhe passou despercebido antes que o pudesse atenuar. — A Essência da Lâmina está entre nós. Todos dizem que um de nós tem de morrer para que o outro possa ficar com ela. Queres acreditar nisso e lutar já aqui? Ou vamos fazer como combinámos e vamos para a Cidadela tentar arranjar outra solução?
Passaram-se alguns intermináveis momentos tensos, durante os quais uma garça-real sobrevoou o declive e grasnou, como se pretendesse que Aewyre e Kror se despachassem. Por fim, o drahreg assentiu com um gesto da cabeça, os membros de ambos relaxaram e Aewyre retomou o caminho. Ainda assim, o humano abrandou propositadamente o passo, permitindo ao seu companheiro de viagem avançar o suficiente para que ambos pudessem caminhar lado a lado. Os dois procuraram evitar olhar de esguelha um para o outro, mas foi um gesto do qual não houve falta durante a longa caminhada.
Após umas boas duas badaladas, Aewyre e Kror começaram por fim a subir o trilho do penhasco sobre o qual a Cidadela da Lâmina se encontrava. O rio contornava uma bizarra formação rochosa na forma de uma grande crista inclinada e marcada num dos lados por três sulcos de estratos verticais de pedra calcária que mais lembravam terra lavrada e que expunham enormes barbatanas de rocha com profundos recessos entre elas. A vertente leste era infecunda e nela crescia apenas vegetação rasteira entre lençóis de pedras e cascalho, enquanto a vertente oeste pela qual subiam tinha uma base boscosa que tivera de ser desbastada ao longo do trilho para facilitar o caminho. A Cidadela no topo não era de todo imponente, mais parecendo um forte de província que um dos mais temidos locais de Allaryia. As suas muralhas cercavam uma pequena aldeia, partes da qual eram visíveis devido à inclinação do terreno, e o baluarte situava-se no ponto mais alto do penhasco, sobranceando tudo em redor. Fora construída com a abundante pedra calcária das redondezas, e as suas torres distinguiam-se pelos característicos coruchéus cônicos de telhas pintadas de azul da região, embora as da Cidadela apontassem para um certo desleixo na sua manutenção. O mesmo podia ser dito do resto do forte, que na verdade nunca chegara sequer a servir qualquer função defensiva, pois segundo Allumno lhe dissera fora erigido com o propósito de servir como um porto seguro para os detentores da Essência da Lâmina, e não para desempenhar o tradicional papel de uma fortificação. Ao que parecia, a tendência mais vulgar da maior parte das nações era perseguir quem desse sinais de ser capaz de aceder à Essência da Lâmina, pois esta não parecia ser muito discernente nas suas escolhas, e ilusões de poder facilmente inebriavam as mentes de guerreiros, tornando-os perigosos. O mago não lhe soubera dizer ao certo qual o acordo estabelecido, mas aparentemente muitos haviam aceite a Cidadela como refúgio.
«Bom, pelo menos já estou habituado a turbas de maltrapilhos e criminosos», pensou o guerreiro, esperando não se estar a enfiar num antro de malfeitores com Ancalach. Afinal, cada um dos habitantes da Cidadela seria teoricamente melhor lutador do que ele, e a Espada dos Reis era um troféu que qualquer lutador almejaria...
Um súbito ruído de passos atrás no trilho despertou o guerreiro dos seus pensamentos, e Aewyre e Kror viraram-se para verem três atarracados thuragar, provavelmente saídos de algum esconderijo nas árvores que ladeavam o trilho. Os três estavam inteiramente revestidos de cota de malha com espaldeiras redondas aos ombros, usavam manoplas com espinhos nos nós, as da esquerda com longos rebordos a fazerem as vezes de escudo, singelos elmos bojudos com aventais de cota para a nuca, e empunhavam martelos de guerra de cabos grossos com pronunciados bicos. Embora tivessem as armas empunhadas, não fizeram qualquer movimento hostil e deixaram-se ficar onde estavam, fitando ambos os guerreiros com pequenos olhos escuros e muito pouco amigáveis. Um deles usava bigodes compridos e farfalhudos, outro uma barba semelhante à de Worick e o terceiro uma basta pêra entrançada, mas nem por isso eram menos feios aos olhos de Aewyre, com narizes repolhudos, bocas carrancudas e hirsutas sobrancelhas unidas sobre pequenos olhos escuros. Kror cruzou os braços e levou as mãos por cima dos ombros para desembainhar os alfanges, mas o guerreiro tocou-lhe no braço para o refrear.
— Eyeart qell flànarar rada ògrape norre... — disse um quarto nas costas dos guerreiros.
Com os instintos a dispararem, humano e drahreg puseram-se de costas para os lados do trilho para não perderem de vista nenhum dos intervenientes, e viram o homem que completava o que parecia ser uma cilada. Era um humano, e não usava qualquer armadura, ficando-se por uma despretensiosa túnica vermelha, calças de pele de gamo, botas robustas e uma capa verde semicircular que lhe cobria o braço esquerdo e presa ao ombro direito por um broche dourado que ostentava duas espadas cruzadas. Tinha uma constituição robusta e uma cara quadrada, mas a sua estatura não impressionava, sendo mais baixo que Kror, e o seu bem aparado cabelo grisalho e bigode que praticamente lhe tapava a boca davam-lhe um ar de velho simpático reforçado pela inclinação dos cantos da sua boca. E contudo, havia algo de muito perigoso nos seus olhos verde-acastanhados — o direito com as pálpebras e sobrancelha mais descaídas que o esquerdo — algo que fez com que Aewyre se lembrasse da absoluta confiança e convicção nas próprias capacidades que vira nos orbes dos sirulianos. A despeito da postura relaxada do homem, essa mesma impressão ganhava relevo com a ponta da bainha de uma espada que a capa ocultava parcialmente, e o tom da sua voz parecera a casual afirmação de um caçador ao ver um coelho preso na sua armadilha.
— Glottik? — perguntou Aewyre, mantendo o humano e os três thuragar debaixo de olho e os braços de mãos abertas relaxados.
— Ah, nolwynos por aqui? Tão longe de casa? — indagou o homem num sotaque com eles exagerados e erres guturais, inclinando a cabeça para o lado. — O que fazem em Laone? E o que tem você, com tantas ligaduras?
— Viemos para a Cidadela da Lâmina. Para treinar. Deixam-nos passar?
Kror cheirava um conflito iminente mesmo através das ligaduras que lhe cobriam a cara, e um dos thuragar disse algo em Garogar que mais parecia o som resultante de trincar pedras. Os outros dois crispavam os dedos nos cabos dos martelos.
— Mas sim, está claro que podem passar — disse o homem, coçando o queixo. — Só têm de pagar o nosso... pedágio?
Aewyre deu toda a sua atenção ao homem, que se pareceu divertir como se uma criança o ameaçasse com o olhar. Kror esquadrinhava o terreno em redor, avaliando as melhores posições e eventuais rotas de fuga. Quatro contra dois, os thuragar tinham ar batido e experiente como lâminas com gumes marcados por bocas, e o humano irradiava uma segurança que não se devia de todo a qualquer tipo de arrogância. O drahreg pediu em silêncio o parecer do seu companheiro de viagem com um olhar, mas Aewyre ignorou-o e levou lentamente a mão à bolsa. Os thuragar grunhiram em assentimento, mas o velho humano não esboçou qualquer reação, expectante e teimando em largar os olhos do jovem, que remexeu um pouco nas moedas que trazia ao cinto antes de estender o punho fechado na sua direção. O polegar de Aewyre lançou uma moeda de ouro para os seus pés, e os olhos do homem baixaram-se para ela, arqueando ligeiramente a sua sobrancelha descaída. O jovem levou então a mão ao nível do ombro e outro piparote do seu polegar atirou mais três moedas para os pés dos thuragar, que as viram retinir pelas pedras com um tilintar quase desafiador.
— Com esse ouro podem alimentar as vossas famílias até encontrarem um trabalho honesto — lecionou Aewyre, baixando a mão. — Agora deixam-nos passar?
O bigode do homem enviesou-se, enrugando-lhe a maçã do rosto, e a sua capa mexeu-se ligeiramente, bem como a ponta da bainha.
— O preço é as vossas bolsas — disse prosaicamente.
— Então têm de as vir buscar — afirmou o jovem com a voz perigosamente baixa.
Os olhos do homem passaram brevemente pelos de Kror e pelos dos thuragar antes de tornarem a pousar nos de Aewyre, que, por sua vez, nesse instante, trocou uma breve mensagem com o drahreg, indicando os três adversários atrás com um gesto da sobrancelha. Um dos thuragar murmurou algo certamente obsceno, e as pedras debaixo de um dos seus pés roçaram umas nas outras quando transferiu o peso para uma delas. Uma leve aragem desceu pela encosta abaixo, abanando os ramos dos pinheiros e algures no vale ouviu-se uma vez mais o grasnido de uma garça-real.
Sem qualquer aviso, Aewyre impulsionou-se em frente com um passo e levou a mão direita ao punho de Ancalach ao mesmo tempo que Kror se virava completamente para os thuragar, flectindo os joelhos para saltar para cima de um pedregulho ao seu lado e ganhar uma posição mais elevada e levando as mãos atrás para desembainhar os alfanges. Por sua vez, o velho humano explodiu também ele em ação, atirando a capa para trás com o braço esquerdo e crispando os dedos da mão direita no punho da sua espada. A lâmina deslizou para fora da bainha num arco ascendente no mesmo instante em que os três thuragar investiram, e a passagem do seu gume pelo ar causou uma adelgaçada reverberação que oscilou como uma foice que cortou as correias que prendiam as bainhas dos alfanges de Kror às suas costas com precisão milimétrica. A meio de uma dessas frações de batida de coração, a mão esquerda de Aewyre agarrou o punho de Ancalach debaixo da direita quando a espada alcançou o ápice do movimento resultante de ter sido desembainhada, e com ambas o jovem descreveu um arco oblíquo descendente dirigido ao ombro esquerdo do adversário. Quando Kror se encontrava a meio do salto, as suas mãos agarraram ar, pois os alfanges e as respectivas bainhas haviam caído como resultado do seu impulsionamento para baixo antes do pulo, e a inesperada sensação quase o fez perder o equilíbrio ao assentar com os pés em cima do pedregulho. Um dos thuragar arremessou o martelo na sua direção, e o drahreg foi forçado a desviar-se com um desequilibrado salto, ficando com o pedregulho entre si e os alfanges, que foram pisados pelo thuragar da direita. Enquanto isto acontecia, o velho humano também pegou no punho da sua espada erguida com ambas as mãos, executando um passo semicircular com a perna de trás para se afastar do golpe, que desviou por dentro com o lado da sua lâmina, cuja aguçada ponta surgiu na garganta de Aewyre, bem por cima da jugular, congelando o jovem.
O tempo pareceu parar, e Aewyre estava agudamente ciente das perigosas palpitações da artéria resultantes do acelerar das batidas do seu coração, bem como do quão perto a sua vida estava de lhe jorrar aos borbotões pela garganta. Kror viu-se isolado das suas armas, e permanecia quase acocorado e de punhos cerrados, aguardando o próximo movimento dos thuragar. Um deles tinha os alfanges debaixo dos pés e empunhava o martelo com ambas as mãos, outro avançava lentamente para a esquerda para contornar o pedregulho, e o que arremessara a sua arma desembainhara uma misericórdia, uma adaga de ponta rígida e tetragonal.
— Então — disse o velho humano, sem qualquer ameaça na sua voz —, querem ir para a Cidadela?
Sentindo a morte picar-lhe ao de leve a garganta, Aewyre hesitou antes de responder, temendo que os músculos do seu pescoço fizessem um qualquer movimento indevido.
— Sim — disse numa voz retida, todo o seu corpo hirto e retesado.
— Para treinarem?
— Sim.
— Muito bem. — A aguçada ponta afastou-se do poro no qual se parecera ter alojado e o velho homem embainhou a lâmina, embora Aewyre ainda tivesse Ancalach empunhada. Dirigiu algumas palavras aos três thuragar nas costas do guerreiro, enunciando três nomes que mais pareciam pedregulhos a rasparem uns nos outros e dizendo-lhes algo mais em Llorenc, a língua do Laone. Os atarracados guerreiros deram então espaço a Kror, que olhou para Aewyre antes de ir lentamente buscar os seus alfanges enquanto um dos thuragar pegava nas três moedas no chão.
— Sou Assiòn òt Frèolan — apresentou-se o humano, tornando a cobrir o ombro esquerdo com a capa verde e pegando na moeda aos seus pés, que prontamente restituiu a Aewyre. — Aqueles três são: Rok, Kraac e Grwos. Kraac, devolve essas moedas ao rapaz.
Resmungando, o thuragar assim fez, e o jovem guerreiro teve ocasião de constatar a fraternal semelhança entre os três quando os outros se aproximaram com Kror. Pareciam Woricks mais jovens, azedos e igualmente feios, com feições reminiscentes de uma toupeira cujo focinho fora esborrachado e uma fisionomia sobremaneira atarracada que apenas era enfatizada pelo peso que as apressadamente vestidas cotas de malha colocavam sobre os seus ombros. Aewyre embainhou Ancalach e esfregou a garganta, olhando para o que instantes atrás fora seu adversário com uma reforçada medida de respeito. Desde os seus primeiros meses de treino com o seu mestre Daveanorn que não era tão completamente humilhado. Assiòn deixara-os a ambos indefesos como dois novatos, e apesar do condicionamento mental que o jovem impusera a si mesmo nos últimos meses, mentalizando-se de que iria encontrar na Cidadela homens que seriam bem mais do que adversários à sua altura, ainda assim o seu orgulho saiu ferido da fulminante contenda cuja única seqüela felizmente não passava de um coração que teimava em abrandar.
— E quem sois, viajantes? — perguntou o homem como se tivesse acabado de os ver. Aewyre tentou esconder o orgulho ferido atrás de uma fachada indiferente e lembrou-se das suas maneiras.
— Sou Aer... Aewyre, e aquele é Kror — disse sucintamente, preferindo guardar a arma que esperava que o seu nome completo fosse para mais tarde.
— Aewyre? — repetiu Assiòn, coçando o bigode e olhando o jovem de considerável alto a baixo. — Siruliano?
— A minha mãe.
— Hum. E o seu amigo, está doente?
— Não, só tem umas chagas. Queimou-se.
— Chagas...
— Sim. Você é da Cidadela?
— Sou. — O velho fitou-o e a Kror alternadamente com olhos que pareciam avaliá-los, até que por fim se decidiu. — Sigam-me.
Assiòn virou-lhes as despreocupadas costas e começou a caminhar pelo trilho acima. Os três thuragar grunhiram-lhes para que fizessem o mesmo, e Aewyre e Kror aquiesceram, trocando silenciosas palavras com os olhos. O drahreg parecia estar desagradado com a forma como o seu companheiro de viagem estava a assumir o controlo da situação que dizia respeito a ambos, e o seu olhar foi quase de advertência. Aewyre ignorou-o e olhou em frente para as descontraídas costas de Assiòn enquanto Kror atava como podia as correias dos alfanges às costas.
«Se somos batidos desta forma pelo porteiro, então temos de ter bem mais cuidado do que imaginávamos», pensou o guerreiro, mexendo no nervoso incisivo com a língua. As muralhas da Cidadela já se avistavam sobre a copa das árvores ao longe, e era atrás delas que Aewyre esperava encontrar respostas para pelo menos algumas das suas perguntas.
Após subirem um lanço de escadas esculpidas da própria rocha do penhasco, a entrada foi surpreendentemente fácil, visto que ninguém guardava os portões da baixa muralha e o rastrilho se encontrava convidativamente aberto. Os seis subiram pelas escadas com muro à direita e uma parede de rocha alcantilada com tufos de ervas à esquerda, sendo saudados por dois homens no adarve sobre as suas cabeças. A primeira impressão que Aewyre e Kror tiveram ao entrarem na Cidadela da Lâmina foi a de estarem perante o domínio de um qualquer senhor feudal menor. O primeiro recinto que albergava a pequena comunidade de não mais que duas dúzias de casas subia pelo íngreme solo até uma cortina de muralha que o separava da Cidadela propriamente dita. O chão encontrava-se coberto por terra batida com trilhos bem demarcados e os sulcos escuros de inúmeros regatos resultantes dos dejetos da comunidade que escorriam pelo íngreme terreno abaixo. As casas eram de armação de madeira e amarelada pedra calcária, com telhados de quatro águas de telhas escuras, chaminés fumegantes e adufas abertas. Além do ubíquo choro de bebês e murmúrio de vozes indistintas ouviam-se ainda porcos a grunhir aflitivamente durante as habituais matanças de Vilius, bem como um constante repicar de martelos. Excitadas galinhas negras corriam e cacarejavam em redor enquanto os habitantes se atarefavam nos seus afazeres, prestando pouco mais que um educado aceno da cabeça aos recém-chegados, embora alguma atenção adicional fosse concedida à imponente figura de Aewyre. Como gente, os laoneses não eram fisicamente muito diferentes dos nolwynos, com uma maior ocorrência de peles pálidas e olhos claros, bem como a ocasional cabeleira loura que as características crespinas laonesas de renda branca habilidosamente cerzida e badanas pendentes não ocultavam. As roupas negras pareciam ser favorecidas, aliviadas com a brancura das rendas e pelo debrum amarelo, e pelo menos nisso Aewyre sentiu que ele e Kror não destoavam da multidão. Aparentemente, os habitantes da Cidadela estavam habituados a estrangeiros, e ocasionalmente Aewyre captava uma ou outra palavra familiar em Glottik.
— Aqui na Cidadela temos a nossa pequena comunidade de artesãos e lavradores — explanou Assiòn. — A maior parte das pessoas pensa que todos os que moram cá dormem com uma espada nas mãos, mas não é verdade. Também temos de comer e precisamos de quem nos arranje as roupas e outras coisas.
Aewyre anotou a explicação do homem com um som gutural e esforçou-se por parecer o mais circunspecto possível enquanto olhava discretamente em redor para a apertada ruela que percorriam. Kror ajeitava as ligaduras da sua cara, e o jovem esperava que ninguém tivesse reparado nos seus olhos de orbes vermelhos. Assiòn era obviamente arguto, mas se notara a bizarra cor não fizera caso dela ou descartara-a como resultado dos ferimentos que Aewyre referira. Os três thuragar mastigavam cascalho entre si na sua língua telúrica, mantendo as cinturas daqueles que pareciam ver como prisioneiros sempre debaixo de olho e ainda de martelos empunhados enquanto subiam até ao portão da cortina que separava os dois recintos da fortaleza. Diante desse encontravam-se dois sentinelas, homens de cabelo aparado que envergavam simples briais brancos cingidos por grossas cintas e talins dos quais pendiam as suas lâminas embainhadas, e capas vermelhas presas ao ombro por broches iguais aos de Assiòn. Os dois limitaram-se a fazer uma vênia de laconismo marcial e reconheceram Aewyre e Kror de passagem com igualmente curtos acenos das cabeças. A transição para o segundo recinto fez-se sentir através do piso, que a partir do arco do portão de entrada passou a estar calcetado com lajes calcárias, e os dois visitantes entraram então no pátio que fazia as vezes de campo de treino da Cidadela. Seis indivíduos exercitavam-se no exterior, espalhados numa formação irregular e executando seqüências de movimentos sob a orientação de um homem que andava pelo meio deles, gritando instruções e Confiantemente alheio às lâminas que oscilavam em seu redor. As lajes ostentavam cicatrizes antigas, sulcos certamente causados pelas mortíferas reverberações dos detentores da Essência da Lâmina, e o ar era cortado pelos afiados gumes, produzindo um constante chofre. Havia outros presentes, mas esses mais pareciam auxiliares vindos do primeiro recinto, aguardando as suas ordens, carregando os mais variados objetos e reparando uns quantos estafermos em ruinoso estado. Uma singela cisterna era a única outra estrutura além do baluarte com um torreão poligonal no pequeno recinto, e esse era acessível apenas através de uma escadaria curva que subia pela rocha até uma porta elevada. Esse mesmo afloramento sobre o qual o baluarte assentava tinha ainda incrustada na própria pedra uma portada de ferro forjado suficientemente vistosa para ser a entrada principal, mas que não aparentava sê-lo.
A chegada de Aewyre, Kror e a sua comitiva chamou a atenção de alguns dos auxiliares, mas os homens que treinavam não se deram conta da sua presença, absortos como estavam no treino ou pelo menos a quererem dar essa impressão. Assiòn cobriu a distância que os separava do grupo de treino com passos estugados que afastaram os auxiliares que se encontravam no seu caminho e deteve-se com a mesma pose emproada com a qual se apresentara ao humano e ao drahreg.
— Diacolo Liñar! — chamou, e o visado, o homem que orientava o treino, deteve-se e virou-se na sua direção. A sua boca abriu-se para dizer algo, mas, ao ver Aewyre e Kror, hesitou e deixou Assiòn continuar em Glottik. — Trago-vos estes dois jovens. Estão interessados em treinar. O que achais?
De mão apoiada sobre o pomo da sua espada, Diacolo fitou Assiòn uma vez mais, ergueu o sombrolho e escrutinou ambos enquanto se aproximava a passos lentos. Era mais velho que Aewyre, a tender para os trinta, a sua maneira de andar era econômica nos movimentos que requeria e com cada um deles transmitia a confiança de um guerreiro experimentado. O seu cabelo castanho emoldurava-lhe a cara num penteado de franja aparada e cabelos sobre as orelhas até à linha do maxilar que em Nolwyn seria considerado de muito mau gosto. Embora não fossem ameaçadores, os olhos cor de avelã de Diacolo pareciam desafiar qualquer um a gozar com o penteado, e as suas feições estreitas e comprimidas com um nariz grande eram uma incógnita emocional. Ninguém falava no pátio, mas os olhares lançados aos dois desconhecidos davam claramente a entender que estes eram intrusos indignos de confiança até prova em contrário. Aewyre mirou de relance todas as lâminas desembainhadas e teve de fazer um ligeiro esforço para não mostrar nervosismo, passando a unha do indicador pelas caneluras do punho de Ancalach. Os orbes vermelhos de Kror tocavam constantemente os cantos dos seus olhos.
— Então querem... treinar, não é verdade? — inquiriu Diacolo com o distinto sotaque nasalado de Sathmara.
— Sim, viemos treinar — respondeu Aewyre. — Mas gostava de falar com o alto responsável antes.
— Quem? — Diacolo apoiou os punhos nas ancas e virou a cabeça ligeiramente. Tornava-se evidente que Glottik era a língua padrão na Cidadela, mas que nem todos a dominavam bem.
— Quem manda na Cidadela? Quem é o chefe?
— Ah, o... — Diacolo olhou para cima, de seguida para Assiòn, e pareceu compreender por fim. — O Alto Lamelar?
— Sim.
O sathmaro esfregou o queixo delgado e tornou a erguer o sobro-lho. Kror ia transferindo o peso de um pé para o outro e abria e fechava os dedos, que formigavam pelo contato tranqüilizante com o tecido que revestia os punhos dos seus alfanges.
— Então querem falar com o Alto Lamelar, não é verdade? Ele é um homem muito... ocupado.
— Mesmo assim, gostaria de falar com ele. Por favor.
— E também querem treinar?
— Sim.
— Os dois? Ou só você?
Aewyre tocou ligeiramente no antebraço de Kror, que se sobressaltou ligeiramente e com esse mero gesto fez os níveis de tensão em redor subirem exponencialmente. Quando se recompôs, o drahreg pigarreou antes de responder.
— Sim.
Todos os observavam como animais presos numa armadilha, mesmo os auxiliares, e as espadas em redor ainda estavam por embainhar. O jovem guerreiro olhou para Assiòn, mas este limitou-se a encolher os ombros como se o assunto não lhe dissesse respeito.
— Vocês sabem que só quem tem a Essência da Lâmina pode treinar na Cidadela da Lâmina, não é verdade?
Aewyre acenou com a cabeça e Kror imitou-o.
— Então mostrem-nos o que conseguem fazer — convidou Diacolo, dando uns passos atrás e indicando a todos os outros que fizessem o mesmo com gestos largos das mãos.
Allumno avisara-o de que certamente haveria uma espécie de prova de admissão, e Aewyre refletira longa e intensivamente acerca do assunto. Nem ele nem Kror controlavam a Essência da Lâmina, experimentando-a somente através do «tendão» e em situações de stresse extremo que pusessem a vida de um em risco na presença do outro. Teriam de provar que ao menos haviam sido tocados por ela, e Aewyre esquadrinhou os presentes em busca de um candidato ideal enquanto Kror olhava dubiamente para ele. O jovem pensou depressa e, assim que viu um auxiliar com uma lança de arremesso, chamou-o com um gesto. O indivíduo olhou para Diacolo, que manteve o sombrolho erguido mas acenou com a cabeça. Aewyre imaginara algo parecido durante as inúmeras situações que conjecturara ao longo da viagem, e a presença de thuragar acabara de lhe facilitar as coisas.
— Tu, Qrátch — dirigiu-se ao thuragar com a barba semelhante à de Worick, esperando ter acertado no nome, e indicou-lhe a ele também que se aproximasse com o indicador. O pequeno guerreiro grunhiu de incompreensão, mas o quase condescendente sorriso de Aewyre ao insistir motivou-o a não dar parte de fraco e o thuragar avançou sem sequer olhar para o intrigado Assiòn.
— O meu nome é Kraac , humano estúpido — corrigiu este num Glottik passável. — O que queres?
— Com licença — pediu Aewyre, pegando na lança de arremesso do auxiliar e dispensando-o com um agradecido aceno de cabeça. — Quero que lhe atires isto.
O jovem indicara Kror atrás de si com um quase imperceptível gesto da cabeça, apontando também com o sombrolho para benefício do thuragar, que pegou na lança e olhou alternadamente para Aewyre e Kror com as grossas sobrancelhas franzidas quase a formarem um dúbio V.
— Eu porquê?
— Porque... os thuragar são mais fortes. Podes atirar?
Kraac fez uma enojada careta e mastigou pedras enquanto se afastava a abanar a cabeça. Os seus irmãos olhavam desconfiadamente para Aewyre e o resto da assistência aguardava algo convincente que justificasse tão estranhas ações. Quando Kraac julgou estar à distância correta, sopesou a lança de arremesso na sua mão, girou o braço direito pelo ombro e olhou para o seu alvo como a pedir confirmação. Aewyre inspirou fundo.
— Queres, humano?
— O que é que estás a fazer? — sussurrou Kror a Aewyre, visivelmente pouco à vontade.
— Não te preocupes — assegurou-lhe o guerreiro, exalando. Teria de ser rápido e espontâneo, ou aquilo que pretendia podia não funcionar. — É só para fazer... isto!
Com o corpo relaxado a estalar em movimento, Aewyre agarrou o capuz de Kror com uma mão e fincou-lhe os dedos nas ligaduras da cara com a outra. Ainda se retesavam os braços do drahreg para reagir quando o guerreiro puxou com força para lados opostos, arrancando-lhe as ligaduras da face e descobrindo-lhe a cabeça, o que desequilibrou Kror e o fez cambalear desajeitadamente para a frente antes que se recompusesse numa posição de pernas flectidas, costas arqueadas e grandes olhos vermelhos surpresos. A visão da sua tez e do seu distinto semblante teve o efeito que Aewyre desejara, e um súbito inalar coletivo pareceu sugar momentaneamente todo o ar do pátio, fazendo mesmo com que alguns auxiliares recuassem um passo. Embora inicialmente tão espantado como os outros, a surpresa de Kraac cedo deu lugar ao sentimento que Aewyre esperara, e o thuragar proferiu um odioso grito em Garogar ao avançar três passos e arrojar a lança. Assiòn gritou alguma coisa, e Kror virou a cara a tempo de ver Kraac executar o arremesso. Aewyre concentrou-se no thuragar e no perigo que este representava para o drahreg à exclusão de tudo o resto que o rodeava, e o seu coração, que parecia ter parado instantes atrás, soltou o «tendão» com uma forte batida que lhe contraiu todos os músculos do corpo com uma libertadora convulsão. Kror sentiu o surto de energia que já experimentara em Aemer-Anoth, bem como o radical acutilamento da percepção que lhe permitiu ver com ponderoso detalhe a pontiaguda ameaça que voava na sua direção, arrastando-se pelo ar como se deslizasse por água e deixando para trás um rastro ondulado. Os dedos da sua mão apareceram de súbito no punho de um dos seus alfanges, que deslizou fluidamente para fora da sua bainha enquanto Kror levava um joelho ao chão. O arco descrito pela passagem da lâmina pelo ar causou uma reverberação que se propagou como uma afiada vaga que estraçalhou a lança a meio caminho do seu alvo.
Tão rápido como viera, o «tendão» retraiu-se elasticamente para fora do corpo do drahreg com um violento sacão que o fez cambalear uma vez mais. Aewyre tornou a sentir a perene tensão que o atormentava na presença de Kror, e nessa altura o tempo voltou ao normal e os pedaços da lança caíram ao chão com um ruído xilofônico quebrado pelo retinir da ponta de aço.
O sucedido havia correspondido às expectativas dos presentes, mas as ações de Aewyre e a revelação de Kror ainda assim haviam deixado todos suficientemente surpresos para que ficassem especados a olhar para ambos. Ainda assim, fiéis ao seu temperamento, os três thuragar empunharam os martelos de guerra e preparavam-se para atacar quando Aewyre se interpôs entre eles e o drahreg de braços estendidos.
— Calma aí, calma aí! — vociferou, fitando Diacolo assim que os três irmãos interromperam a sua arremetida, embora conservassem os martelos bem empunhados. — Disseram-me que na Cidadela aceitam todos desde que sejam detentores da Essência da Lâmina. Não é assim?
O guerreiro não obteve resposta, apenas a cada vez mais interessada atenção do velho e de Diacolo. Como Assiòn dera mostras de falar melhor Glottik, o guerreiro preferiu dirigir-se ao laonês.
— Eu e ele partilhamos a Essência da Lâmina, mas nós queremos saber se existe alguma maneira de a conseguirmos obter sem que um de nós tenha de morrer. E importante, e é por isso que eu queria falar com o Alto Lamelar. Por favor, eu sei que é um pedido estranho, mas as vidas de muitas pessoas podem depender disso, não só as nossas. Preciso mesmo de falar com o Alto Lamelar.
Aewyre calou-se, temendo ter revelado demasiado de uma só vez. Os thuragar resmoneavam entre si e os auxiliares sussurravam em nervoso Llorenc, mas os espadeiros mantinham-se marcialmente silenciosos, Assiòn permanecia meramente intrigado e Diacolo teimava em responder.
— Se for preciso dinheiro, eu tenho — tentou Aewyre uma vez mais. — Se o Alto Lamelar não...
— Espera — interrompeu Diacolo, silenciando o jovem com uma mão erguida. — Tu e ele... têm a Essência da Lâmina?
— Sim.
— E vocês os dois querem a Essência da Lâmina, não é verdade?
— Sim.
— Então... só há uma maneira — disse o sathmaro de forma conclusiva e terminante, estendendo as impotentes mãos para os lados.
Aewyre suspirou baixando ligeiramente a cabeça.
— Já disse que não é isso que queremos fazer. Eu não posso correr esse risco, eu...
Por que razão estariam todos a olhar para trás de si? A resposta à pergunta que lhe despontou veio na forma de um visceral aviso de perigo que fez com que o guerreiro se baixasse e desse uma instintiva passada lateral para se afastar tanto quanto possível. A perna que ficou para trás foi mordida pelo gume curvo de uma lâmina, e a dor levou-lhe o joelho ao chão, forçando Aewyre a apoiar-se com uma mão ao girar em si, arrastando a perna ferida para longe da ameaça. A sola da bota de Kror já ia a caminho da sua face, mas os reflexos atempados do guerreiro permitiram-lhe absorver o golpe com o ombro, rebolar pelo chão e ficar acocorado de pé a uma distância segura do drahreg, que o fitava de dentes arreganhados e olhos irados. O seu sangue pingava do alfange que empunhava, o alfange de pedras rubiáceas.
Aewyre não perdeu tempo a desembainhar Ancalach, mas a sua perna cambou ligeiramente ao tentar assumir uma postura de combate. O lado da sua coxa direita ardia e sangrava, forçando o jovem a trocar de perna condutora e a mudar a posição das mãos no punho. O maldito drahreg atacara-o pelas costas!
— Kror, o que é que...
— Tentaste matar-me — rosnou este acusadoramente. — Mentiste-me. Agora morres, humano.
A voz saiu-lhe bestial, e trouxe à memória de Aewyre as pragas em Olgur que ouvira no adarve de Aemer-Anoth ao matar drahreg após drahreg.
— Kror, ouve: tu...
O drahreg avançou um passo e brandiu o seu alfange, respingando o chão com sangue.
— Aqui. Agora — desafiou.
«Maldição, é o maldito alfange. Tal como em Aemer-Anoth, quando ele sentiu a Essência da Lâmina... está desvairado.»
Aewyre cedo percebeu que a situação era séria e que a sua vida corria perigo. Kror ferira-o, e o jovem mancava de uma perna, uma terrível desvantagem num duelo entre dois combatentes de tão equiparável perícia. Olhou rapidamente em redor, e constatou que todos observavam e ninguém fazia tenções de interferir.
— Ouve, tu atacaste-me pelas costas. Se me matares assim, não ficas com a Essência...
— Vou tentar — decidiu Kror, desembainhando o outro alfange. Ao fazê-lo, houve um momento de hesitação que alentou as esperanças de Aewyre, mas estas esmoreceram como flores expostas ao fogo da fúria que acicatava o drahreg. A noção de que o tentara trair fora certamente sugerida e alimentada pelo azigoth do alfange, e as circunstâncias realmente não abonavam a favor de qualquer coisa que pudesse dizer em sua defesa.
A única que lhe restava era a espada, pois Kror investiu com um grito em Olgur e ambos os alfanges silvaram mortíferos pelo ar na dança de aço que Aewyre já tão bem conhecia e com os quais havia tanto tempo que Ancalach ansiava emparelhar. Empunhando a espada com ambas as mãos, o guerreiro aparou o primeiro golpe empinando o punho da arma, levando a ponta da Espada dos Reis abaixo num semicírculo e a perna ferida atrás. A primeira estrídula carícia afastou o alfange, e o guerreiro ripostou com uma estocada à garganta que Kror desviou com um algo apertado movimento, esmurrando para o lado com o alfange empunhado na vertical e levando a perna atrás. Sem alterar a posição, o drahreg inclinou-se para a frente e tentou aferroar Aewyre com a ponta do alfange que surgiu de repente sobre a sua cabeça. O humano recuperou a estocada perdida e recuou, puxando Ancalach para perto de si de forma a deslocar o golpe, mas o movimento saiu-lhe gorado ao transferir o peso para a sua perna ferida, que cambou e que o desequilibrou. A ponta do alfange penetrou a defesa de Aewyre, bem como o seu trapézio esquerdo, falhando a garganta por pouco ao encalhar na espaldeira esquerda. Com a adrenalina em alta, o humano mal sentiu o golpe, mas o braço com o qual Kror desviara a estocada voltou atrás num golpe baixo, visando o joelho esquerdo do adversário com o faminto gume do alfange. Aewyre agiu por desajeitado instinto e deixou o torso cair, bloqueando a lâmina com os copos de Ancalach. Exposto como estava, foi incapaz de fazer mais do que afastar a cara o mais possível do pomo do alfange antes de este colidir contra o lado da sua cabeça, cegando-o com um momentâneo clarão branco. O jovem não teve qualquer mão nos seus seguintes movimentos, mas de alguma forma cambaleou para longe do drahreg, mantendo Ancalach empunhada sem contudo ver o seu adversário ou sequer o mundo que o rodeava. Quando a sua visão regressou, Kror caía sobre ele com alfanges rodopiantes e dentes arreganhados. As desalinhadas tranças que encimavam o seu crescimento de cabelo encrespado serpenteavam furiosamente, e pareceram tentar morder Aewyre quando o drahreg assentou o pé no chão e as lâminas adversárias tornaram a estridular. O humano recuou diante do enraivecido ataque, aparando os golpes que conseguia e desviando-se da maior parte deles. Kror sentia a vantagem que detinha, tentando capitalizá-la com ataques fulminantes de todas as direções enquanto se mantinha perto o suficiente do adversário de forma a impedir que este usufruísse do alcance superior de Ancalach. Aewyre vacilava, defendendo-se com pouca perícia e tentando a todo o custo compensar o seu sofrível trabalho de pés, mas Kror mal lhe dava espaço para respirar. Estava a pensar demais, a permitir que os seus passos fossem guiados em vez de impor o seu próprio ritmo, a procurar alternativas quando devia preocupar-se com a sua sobrevivência, pelo que decidiu bloquear por fim os seus pensamentos e permitir que o seu corpo tomasse as rédeas.
Uma evidente realidade que lhe escapara saltou à vista dos seus olhos, e Aewyre ignorou os ataques de Kror, executando um exagerado passo atrás e baixando a ponta de Ancalach ao nível do joelho. O drahreg hesitou por uma fração de segundo que impediu que a ponta da Espada dos Reis lhe cortasse os ligamentos da rótula, e esse breve intervalo permitiu ao humano afastar-se o suficiente para inspirar como há muito parecia não o fazer. Porém, Kror retomou a ofensiva antes que o adversário recobrasse e executou um golpe baixo pela direita para afastar Ancalach do caminho, preparando um alta-baixo atrás das costas com o outro alfange. Aewyre ergueu a ponta da espada com um brusco movimento de alavanca no punho da arma e investiu com ela em riste. O alfange sibilou inutilmente pelo ar e apenas os notáveis reflexos do drahreg lhe permitiram desviar a mortal estocada com uma desajeitada parada lateral da lâmina com a qual pretendera seguir o ataque, deixando ambos os adversários quase ombro a ombro. Kror girou em si e descreveu um semicírculo com o alfange dirigido à bacia de Aewyre. Este fez o mesmo, aproveitando o ímpeto causado pelo desvio do drahreg para levar o punho de Ancalach sobre a cabeça, resguardando dessa forma as suas costas com a lâmina. Ambas as armas entrechocaram e o lado da lâmina de Ancalach embateu contra as nádegas de Aewyre. Os dois ficaram momentaneamente quase de costas um para o outro, e o humano libertou a mão que se encontrava acima do pomo, cerrando-a num punho e golpeando cegamente aquela que julgava ser a virilha de Kror. Atingiu duro couro fervido, mas o grunhido do drahreg deu a entender que o golpe fora sentido, e o jovem afastou-se a tempo de evitar a desajeitada oscilação do outro alfange que o visara.
Os dois guerreiros interromperam o combate pela primeira vez, ofegando e avaliando-se a si mesmos e à situação. A multidão assistia em silêncio, mas tanto um como o outro estavam completamente alheios à sua muda presença. Ambos transpiravam ao calor do sol da tarde, e foi só então que Aewyre se lembrou de se pôr entre o brilhante astro e o adversário. Kror apercebeu-se do gesto e tentou assumir uma posição mais vantajosa, mas o humano ajustava o posicionamento sem qualquer pressa, recuando quando necessário e dando a entender que iria assumir uma postura defensiva ao afetar coxeios enquanto se mexia. Temporariamente fora do arrebatado ímpeto da dança de lâminas entrechocantes, a mente de Aewyre trabalhava uma vez mais, e sabia que com a perna ferida era quase certo que podia perder o combate e a vida. Teria de tentar outra abordagem, por muito perigosa que fosse, e os alfanges deram-lhe uma idéia.
— Vem — reptou. — Ou estás com medo?
A resposta de Kror veio na forma de um rosnido e este cobriu a curta distância que os separava com furiosos passos, fazendo chover golpes de seguida. Aewyre ia alternando entre uma guarda média, baixa e curta, forçando o drahreg a ter em conta a ameaça às suas pernas, mas nunca fazendo nada mais além de aparar ou desviar ataques e esquivar-se destes, recuando quando necessário com rápidas passadas para trás com a perna esquerda. O pátio ressoou com o estrídulo embate do aço milênios atrás temperado por Siris, e Aewyre ia progressivamente cedendo terreno diante do implacável avanço de Kror, que cedo se apercebeu da repetitiva seqüência do humano. O ombro e flanco direitos do adversário estavam mais expostos com a posição que adotara, o que o levou a tentar um audaz ataque: um golpe oblíquo da direita para distrair o humano e uma estocada sub-reptícia por baixo e pela esquerda. Aewyre aparou de imediato o primeiro golpe, mas ao contrário do que o drahreg esperara, impeliu-se para a frente com a perna ferida e acercou-se de Kror com um golpe de rins para evitar a estocada. Frente a frente com o seu adversário, prendeu o alfange aparado com os copos de Ancalach e agarrou o pulso do drahreg com força, torcendo-o ao mesmo tempo que torcia o punho da espada para reter a arma adversária. Kror ainda girou o pulso esquerdo para fazer um corte arrastado com o alfange livre, mas o humano avançou para cima dele e atingiu-o com um compacto golpe de anca que o desequilibrou, gorando-lhe o ataque enquanto lhe puxava o braço e continuava a torcer o punho. O drahreg grunhiu de dor e acabou por deixar a arma cair, acabando ele próprio por ir ao chão com o humano a imobilizar-lhe o braço direito com o joelho.
Houve um ápice durante os bruscos movimentos no qual Kror poderia ter usado o alfange esquerdo para estocar um dos muitos pontos expostos de Aewyre, mas esse foi marcado por um instante de indecisão pelo qual o humano agradeceu a Gilgethan. Nesse brevíssimo momento, o jovem desencaixou os copos de Ancalach do alfange do braço imobilizado do drahreg e chegou-lhe o gume à garganta ao mesmo tempo que Kror se recompôs e aproximou a ponta do alfange à sua.
«Duas vezes no mesmo dia...», pensou Aewyre com o coração aos pulos. Aparentemente o seu plano funcionara, pois lia as palavras apaziguadoras da azigoth nos orbes vermelhos do drahreg. O alfange de pedras rubiáceas parecia lançar mudos gritos de indignação e frustração a escassa distância dos dois, mas ninguém lhe dava atenção.
— Eu só fiz aquilo para lhes mostrar que nós temos a Essência da Lâmina. Era a única maneira. Se o thuragar te tivesse morto, eu tinha ficado sem ela. Percebes? Posso afastar-me de ti?
Kror fitou longamente os olhos do jovem, mantendo com ele um silente diálogo que Aewyre naquele momento julgou ser o mais importante que até então haviam tido. Riscos e contrapartidas, promessas e propósitos, verdades e mentiras, tudo discutido sem uma única palavra, resolvido com dois acenos de cabeça, acordado com um lento afastamento mútuo das lâminas e uma mão oferecida. Kror aceitou-a, levantou-se, os dois guerreiros embainharam as respectivas armas e ficaram a olhar um para o outro, sentindo o «tendão» ranger de insatisfação.
Palmas despertaram-nos do seu introspectivo diálogo, palmas batidas por Diacolo, que franzia os cantos da boca e fazia que sim com a cabeça.
— Bom combate. Vocês são muito bons — elogiou o sathmaro, batendo as mãos uma última vez e enclavinhando os pesarosos dedos. — Mas agora têm de acabar. É a única maneira, um de vocês morrer.
Aewyre inspirou fundo, suspirou, fitou Kror e este foi buscar o alfange do azigoth. Quando pegou nele, a sua mão pareceu estremecer e Aewyre sentiu um novo calor no peito, mas o drahreg acabou por embainhá-lo e voltar para perto do humano com passos decididos.
Aewyre tornou a suspirar e dirigiu-se então a Diacolo com Kror a seu lado, coxeando ligeiramente da perna ferida.
— Nós viemos à Cidadela, porque queremos descobrir uma maneira de conseguirmos a Essência da Lâmina sem que um de nós tenha de morrer — repetiu calmamente, mas em voz alta e tão imperiosa quanto conseguiu. — Já viu que somos capazes de não nos matarmos um ao outro. Posso... podemos falar com o Alto Lamelar? É mais importante do que eu posso explicar, e não só para nós os dois.
Tal como todos os outros, o sathmaro fitava os dois estranhos guerreiros com interesse não mais dissimulado, e o erguer da sua sobrancelha deixara de ser condescendente, ficando genuinamente intrigado.
— Querem falar com o Alto Lamelar... não é verdade? Começava a tornar-se repetitivo, mas Aewyre estava ciente de que perder a calma de nada serviria, tendo em conta que cada um dos presentes provavelmente os conseguiria matar a ambos com um só golpe.
— Sim. Por favor?
O homem coçou o queixo escanhoado e olhou para trás do ombro de Aewyre, refletindo.
— O Alto Lamelar... isso é...
— Deixa estar, Diacolo. Já vi tudo o que precisava de ver — disse a pessoa para a qual o sathmaro olhara. Aewyre e Kror viraram-se e foi a vez de os dois ficarem surpreendidos ao constatarem que fora Assiòn quem falara.
O velho observava-os de braços cruzados, batendo com os dedos no direito enquanto se aproximava a passos lentos e ponderados. O seu bigode inclinou-se quando sorriu perante o desconcerto patente nas caras de humano e drahreg, e a sua testa vincou-se profundamente ao erguer as sobrancelhas grisalhas em fingida surpresa.
— Nunca aconteceu na Cidadela, tenho de dizer — afirmou, exagerando tanto os us como os erres e eles com o seu sotaque laonês. — Duas pessoas que não queriam lutar uma com a outra por causa da Essência da Lâmina... Vocês querem tentar conseguir isso sem se matarem?
— Eu... nós... quer dizer, sim — respondeu Aewyre, ainda pasmado. Assiòn era o Alto Lamelar, provavelmente o melhor espadeiro de toda Allaryia? O único e despropositado pensamento que lhe ocorreu foi de que ao menos a forma como o humilhara e a Kror não fora assim tão... humilhante. Bem vistas as coisas. — Mas por que...?
— Esta brincadeira? É uma coisa que eu costumo fazer quando temos visitantes armados — admitiu Assiòn com certa puerilidade no tom. — Gosto de ter uma conversa com as pessoas que querem treinar na Cidadela, mas se soubessem que sou o Alto Lamelar... não seria a mesma coisa, compreendem? Estás a sangrar da cabeça. Já tratamos disso e da perna.
Aewyre piscou os olhos antes de compreender e levar a mão à cabeça, constatando que sangrava do lado onde fora atingido pelo pomo do alfange de Kror. Mal o sentira durante o combate, mas o sangue acalorava-lhe agora o escalpe e empapava-lhe o cabelo.
— Além disso, foi um pequeno teste, e vocês saíram-se bem — explicou o Alto Lamelar, detendo-se a menos de um passo de distância dos dois e continuando a estudá-los enquanto falava. — Queria ver qual a vossa primeira reação ao serem cercados por quatro homens armados. Sabem, muita gente vem para a Cidadela só para aprender a lutar e fazer mal, e isso vê-se logo. Tu tentaste não lutar, tentaste resolver a situação sem arriscar uma luta, e eu acho isso muito bom — disse a Aewyre, aprovando com um aceno da cabeça. — Também foste generoso, o que mostra que tens alguma... compaixão. Isso também é importante. Mas quando souberam que ia haver luta, não foram covardes. Estavam prontos para lutar. E como vi agora, vocês são muito bons. Os dois.
Assiòn descruzou os braços, cruzou-os atrás das costas e começou a andar em volta de Aewyre e Kror como se apenas os três se encontrassem presentes no pátio. O drahreg olhou em redor e todos os outros pareciam de fato meros adereços de cenário, pois pouco se mexiam e nada diziam. Por mero acaso, reparou numa nova presença que se revelara do cimo das ameias e que lhe chamou a atenção tanto pelo fulgor louro dos seus cabelos como pelo fato de ser uma mulher. Empunhava uma arma de haste e observava a cena com interesse do topo da cortina da muralha, e Kror teve a estranha sensação de que era sobretudo para si que ela estava a olhar.
— Hum, um humano e um... dràreg — imiscuiu-se Assiòn nos seus pensamentos. — Um dràreg. Que interessante. Nunca aconteceu nada assim na Cidadela. Nem nunca tivemos dois Portadores mais interessados em saberem mais sobre a Essência da Lâmina que em quererem matar-se um ao outro. E... inédito.
O velho laonês deteve-se diante de Aewyre e Kror, batendo com os pés.
— Queriam falar comigo? — dirigiu-se a Kror, estranhando o comparativo silêncio do drahreg que tanto o intrigava.
— Sim — respondeu Kror. — Precisamos... precisamos da vossa ajuda.
— Para conseguirem a Essência da Lâmina sem lutar?
— Sim.
— Sabem que isso nunca aconteceu, não sabem? Todos os que têm ou tiveram a Essência da Lâmina só o conseguiram com a morte do outro.
— Já nos disseram isso — tomou Aewyre a palavra —, mas mesmo assim queremos tentar, e nenhum sítio é melhor do que a Cidadela para o fazermos. E muito importante.
— Muito importante, é...? — indagou Assiòn, criando espaço para uma resposta que evidentemente aguardava. — E por causa dessas vossas curiosas armas?
Aewyre ponderou brevemente as suas opções, e achou que meter descendências reais, artefatos milenares e O Flagelo no assunto acabaria por ser contraproducente naquele preciso momento.
— Sim, muito importante. Pode ajudar-nos?
A evasão não passou despercebida a ninguém. Assiòn aceitou-a, embora o seu olhar de advertência desse a entender que não se iria esquecer do assunto.
— Sim, claro, tentarei ajudar-vos como puder. Foi para isso que a Cidadela foi construída. Quer dizer, não só para isso, mas é para isso que eu e o Diacolo e a Heldrada estamos aqui.
Aewyre procurou instintivamente em redor pela detentora do terceiro nome, sem sucesso, e Kror olhou para o local na muralha onde vira a mulher, constatando que esta desaparecera.
— Podemos falar, mas se vocês querem dominar a Essência da Lâmina, primeiro têm de aprender o que ela é. O Diacolo vai dizer-vos o que vocês precisam de saber e vai levar-te à enfermaria. Depois falamos; gostaria muito de ouvir a vossa história.
Dito isto, Assiòn retirou-se, dirigindo-se à escadaria que levava ao baluarte sem mais uma palavra. Aewyre ainda pensou em chamá-lo de volta, mas achou melhor contentar-se com o fato de já terem sido admitidos na Cidadela e aproveitar o tempo que lhe fora concedido para ponderar melhor o que dizer ao Alto Lamelar. Afinal, para bem ou para mal, o homem não correspondia propriamente às suas expectativas, e Aewyre desconfiava de que ele interrompera a conversa precisamente por se ter apercebido de que o assunto não era para ser partilhado com todos. Uma coisa era certa: Assiòn ocultava muito por detrás da sua fachada de velho simpático, e a sua argúcia poderia ser-lhe tanto vantajosa como prejudicial.
— Bem, então bem-vindos à Cidadela da Lâmina, não é verdade? — declarou Diacolo. — Ah, aí estás, Heldrada. Podes ficar com os homens enquanto eu mostro o lugar a estes dois?
Aewyre e Kror tornaram a virar as cabeças, desta vez para verem a chegada de uma mulher vinda da porta que dava para uma das torres. Era alta, tão alta como o drahreg e de estatura mais elevada que a de Diacolo, com um corpo magro e nervudo de músculos definidos pela falta de gordura e várias cicatrizes na pele pálida. Tinha curtos cabelos louros claros descuidadamente cortados, provavelmente com o gume de uma faca, e usava uma longa e fina trança que lhe partia da nuca e lhe oscilava ao nível dos rins. A sua indumentária consistia num mero revestimento de alça única para o peito quase chato, o que lhe deixava exposto o ventre cingido por uma faixa de feltro com um anel dourado que lhe circundava o umbigo, umas apertadas calças de pele de gamo e um par de botas altas. Apertava as ancas com uma cinta de couro com rebordo duro e rebites de ferro, usava braceletes de couro e empunhava uma foice de guerra, uma arma de haste com uma lâmina de gume único na ponta. Chamava a atenção no pátio, não só por ser mulher, mas porque a sua presença parecia causar um certo desconforto entre os restantes presentes, e embora não parecesse possível, a sua chegada reforçou o silêncio que desde o início se fizera sentir. A sua pequena cara quadrada era invulgar, quase exótica, com malares salientes, nariz petulante, lábios finos, um queixo pequeno e intensos olhos azuis debaixo de claras sobrancelhas descuidadas. Não era bonita segundo os padrões de Aewyre, muito pelo contrário, mas o que era fato era que retinha os olhares que atraía, mesmo contra a vontade destes. Naquele momento eram os de Kror que prendia, e os orbes vermelhos do drahreg correspondiam sem resistir ou vacilar até a mulher ficar à distância de um golpe da sua foice de guerra.
Diacolo pigarreou.
— Heldrada?
A mulher deu a entender que o ouvira virando brevemente os olhos na sua direção para de seguida devolver a atenção a Kror.
— Sim, Diacolo. Eu trato do treino — respondeu com um sotaque que até podia ser laonês, não fosse pela quase expectorante guturalização dos erres e a tendência a deixar a separação das palavras bem definida. A sua voz distinguia-se por uma rouquidão que era tudo menos sedutora, e havia nela uma permanente e velada advertência.
— Ótimo. Os vossos nomes, para todos ouvirem? — pediu Diacolo, como que esquecendo Heldrada.
— Aewyre — respondeu o jovem, olhando de lado para Kror, que continuava a fitar intensamente a mulher. Foram necessários alguns desconfortáveis momentos até o drahreg se aperceber de que algo era aguardado da sua parte.
— Ah, Kror. É o meu nome.
— Aewyre e Kror — anunciou Diacolo para que todos ouvissem.
— Podem conhecer os outros mais tarde, não é verdade? Venham, vou mostrar-vos o lugar e explicar-vos algumas coisas.
O sathmaro partiu prontamente, passando de uma posição imóvel para um estugado passo que quase fez com que Aewyre tropeçasse ao seguir o seu movimento, coxeando. Heldrada ainda manteve os pés de Kror presos ao chão enquanto os outros dois se afastavam, mas soltou-o tão subitamente que o drahreg estremeceu como se lhe tivesse dado uma bofetada, virando-lhe as costas de omoplatas salientes e dirigindo-se aos homens com um grito que os pôs em sentido. O treino recomeçou e Kror acabou por seguir Aewyre e Diacolo, olhando uma última vez para trás sem prestar grande atenção ao que os dois discutiam.
— ...muita gente de muitas nações aqui, não é verdade? Os jantares são muito interessantes, vão ver — dizia o sathmaro excitadamente como se estivesse a tentar vender alguma coisa. Fiel à tempera do seu povo, falava muito e de bom grado, reforçando o seu discurso com amplos gestos. — Vocês recebem comida, roupa e cama. Se quiserem alguma coisa da vila, tem de ser com o vosso dinheiro, ou então podem ajudar os serventes quando não estão a treinar para ganharem algumas moedas. Aqui acordamos cedo, treinamos muito, e obedecemos a mim e a quem o Alto Lamelar diz que manda, sim? Não andamos à luta uns com os outros fora dos treinos, e não usamos a Essência da Lâmina para brincar. São essas as regras e...
— Quando acha que podemos falar com o Alto Lamelar? — interrompeu Aewyre.
Diacolo pareceu desagradado com a interrupção e manifestou o desabrimento com um sério olhar ao jovem.
— Perdão. — Não se podia esquecer de que estava debaixo da jurisdição daquela gente, e Diacolo era claramente um dos homens com mais autoridade na Cidadela.
— O Alto Lamelar vai chamar-te quando quiser falar contigo — disse o sathmaro, prosseguindo então com o tópico original.
— Vocês vão começar os treinos comigo amanhã mesmo, e depois disso vão fazer umas coisas que o Assiòn e os três irmãos inventaram...
— Os três thuragar?
— Sim, esses. Depois disso, talvez treinem um pouco com a Heldrada, não sei. Vocês são um... caso especial, não é verdade? Nunca tivemos pessoas como vocês aqui, e se calhar o Alto Lamelar vai querer alguma coisa convosco.
Aewyre assentiu com a cabeça em silêncio e deixou os seus pensamentos divagarem enquanto Diacolo dava início à visita guiada pela Cidadela da Lâmina, começando pela escadaria que levava ao baluarte. Embora não houvesse grande razão para apreensões, a consciência de tudo o que estava em jogo impedia o jovem de se sentir satisfeito pelo simples fato de ter conseguido superar a primeira etapa. O mais difícil ainda estava para vir, e tudo o que conseguira fora chegar ao sítio onde esperava poder preparar-se para enfrentar o que o futuro lhe reservava. Kror caminhava a seu lado, também ele distraído; o mais certo era nem sequer ter apreendido por completo a sua verdadeira importância nos eventos que se iriam desenrolar. O maldito drahreg e os seus alfanges continuavam uma incógnita e uma variável com a qual Aewyre mal se podia dar ao luxo de lidar. De uma coisa estava certo, contudo. Se tudo o resto falhasse, se o preço da Essência da Lâmina fosse a vida do drahreg, então, pelos seus amigos, pelo seu pai, matá-lo-ia sem hesitar.
O frio regressara a Tanarch, e com ele as cada vez mais longas e solitárias noites para muitos dos seus habitantes. Naquela noite nevava em Val-Oryth, uma neve forte decidida a castigar todos os que haviam recebido o sol estivai de braços abertos e orado para que o Inverno tardasse. Porém, este regressara em força, e o plangente aulido do vento afirmava-o para que todos o ouvissem. Famílias aconchegavam-se nos seus leitos comuns, animais aninhavam-se de caudas diante dos focinhos, e os pobres e indigentes morriam de frio nas ruas sem que ninguém lhes pudesse valer. As suas carcaças congeladas eram um transtorno constante para as autoridades, que se viam forçadas a destacar patrulhas com o expresso propósito de as remover das ruas. Todavia, tanto quanto os membros mais velhos da guarda citadina se lembravam, estava a ser um início de Inverno relativamente misericordioso, pois não se encontravam tantos mendigos quanto a experiência lhes havia ensinado a esperar. Na verdade, eram cada vez menos os mendicantes que se encontravam nas ruas, e o fato chegara à atenção do meirinho Volgo Dokhan, que contudo mostrara uma manifesta falta de vontade de aprofundar o assunto com um inquérito de qualquer espécie. Os laicos de Bellex haviam insistido no assunto, mas a guarda citadina seguira a recentemente adotada tendência de ignorar os fiéis do deus da justiça, outra ordem do meirinho. O tópico tornara-se aliás interdito, e qualquer tentativa de o abordar era retribuída com silêncio ou com um olhar reprovador. Não que a guarda citadina não estranhasse a situação e a atitude de Volgo, mas havia outros assuntos bem mais importantes, e o consenso geral era de que quantos menos mendigos houvesse, mortos ou não, melhor. Além disso, o anafado meirinho sempre desempenhara as suas funções de forma satisfatória, embora já por mais que uma vez tivesse sido acusado de uma conduta desviante da norma legal.
Porém, não eram o seu sentido de justiça ou logística laborai que motivavam as suas decisões, mas sim o terror que tinha a Linsha Akselban, aprendiza do defunto lorde Malagor. Desde a morte do seu mestre que a feiticeira lhe tornara a vida num autêntico inferno, pois, mais que a capacidade de lhe ameaçar a integridade física com a Palavra, a jovem mulher tinha agora a insídia e os recursos dos Filhos do Flagelo do seu lado, tendo sido promovida a Alto Vulto numa aterradora cerimônia à qual o meirinho assistira. Apesar do poder que agora detinha, Linsha andava aterrada com a iminente chegada dos membros sobreviventes do Triunvirato. pois a morte de Malagor chegara-lhes fatalmente aos ouvidos e estes iriam exigir esclarecimentos e satisfações. Volgo bem a advertira contra a insensata decisão de abafar o sucedido, mas Linsha fora obstinada e punira-o pela sua relutância, e agora teria de lidar com a fúria dos dois mais poderosos homens de Tanarch.
Por essas e outras razões, a feiticeira revolvia-se nos lençóis dos seus aposentos privados na residência do meirinho, na qual assentara após a morte de Malagor. Envergava uma simples camisa de noite de linho branco e mangas compridas que lhe aderia ao corpo devido aos suores frios que a acometiam, e os seus rebeldes cabelos negros estavam espalhados pela almofada com farripas soltas coladas à testa. A cama onde dormia estava revestida por um quente dossel de lã e um braseiro coberto acalentava-lhe o colchão por baixo, mas Linsha mexia-se de tal forma que se desvencilhava constantemente dos lençóis e do cobertor, o que já por repetidas vezes a acordara durante as últimas noites. Os seus nervos estavam desgastados e o permanente estado de tensão no qual os seus músculos se encontravam durante as horas despertas deixava-a exausta ao fim do dia, mas nem mesmo o sono lhe concedia um refolgo, pois as suas inúmeras preocupações mantinham-na acordada até altas badaladas da noite, e os subsequentes pesadelos não lhe permitiam repousar tanto quanto seria desejável e necessário. Ser o Alto Vulto implicava todo um lote de responsabilidades e deveres para os quais presentemente desejava ter sido mais intensivamente treinada, e ainda estava longe de se sentir pronta para lidar com a vinda dos dois antigos parceiros de mestre Malagor. Não enviara quaisquer delegações ou mensageiros propositadamente, pois fora do seu interesse manter Val-Oryth agitada durante o período da sua transição, de forma a conseguir consolidar o sutil domínio que os Filhos do Flagelo até certo ponto já detinham na cidade. Contudo, não conseguira alcançar todos os seus objetivos, e a chegada dos dois poderia bem comprometer tudo o que já havia alcançado. Seria certamente punida por não se ter encarregado de avisar o Triunvirato do falecimento de um dos seus membros, e faltavam-lhe as contingências para lidar com a situação. Preocupara-se demasiado com o avigoramento das fileiras dos Filhos, pois conseguira uma aliança provisória com os Fadados, e o sucesso desse empreendimento enlevara-a excessivamente, levando-a a concentrar demasiado do seu tempo ao seu novo desígnio de recolha de mendigos moribundos das ruas, oferecendo-lhes uma nova vida com a Dádiva Negra. Negligenciara vários outros aspectos, e embora tivesse agora suficiente poder bruto para reforçar a sua autoridade dentro da seita, faltavam-lhe alternativas para lidar com os dois magos que já se encontravam a poucos dias de viagem de Val-Oryth.
A transacta semana deixara-lhe os nervos em franja, e esses haviam-na por duas vezes fermentado no estômago ao ponto de Linsha ser forçada a vomitar, e recentemente reparara que certas roupas começavam a ficar-lhe demasiado folgadas. Toda a comida perdera o sabor, e havia já algum tempo que uma tremenda enxaqueca não parava de lhe moer a cabeça por dentro, supliciando-a a cada passo que dava ao longo dos custosos dias. Como se tudo isso não bastasse, as suas noites eram passadas a reviver pesadelos que desde criança não a atormentavam, memórias vagas dos pais que durante tão pouco tempo conhecera, do tio abusivo que a acolhera, do seu duro aprendizado com Malagor. Segundo lhe fora contado, o seu pai fora um honesto e bem-sucedido peleiro de uma vila chamada Ryminak que se afastara da família por ter tomado uma siruliana como esposa, um ato só por si já ilegal, mas com a agravante adicional de já ter estado prometido à filha de um abastado mercador. Linsha nascera sem quaisquer traços do legado de Sirul, e, tanto quanto se lembrava, passara uma infância feliz no seu lar, do qual guardava boas recordações de uma lareira quente, peles lustrosas que o seu pai lhe arranjava e tardes soalheiras no campo que lhe coloriam os saudosos sonhos. Porém, era a perda dessa sensação de conforto e segurança que ultimamente a atormentava, as memórias de punhos de aço a ressoarem contra a porta, vultos enormes de armadura a entrarem de rampante pela casa adentro, o seu pai a gritar, a sua mãe aterrorizada. Linsha chorara de medo, sem perceber o que se passava, e nunca mais esqueceria os frios e cruéis olhos cinzentos que quase a haviam varado contra a parede, silenciando-a como se se lhe tivessem cravado na garganta, nada mais refletindo que nojo e desprezo pela sua existência. Meses atrás, a entrada de rampante do maldito Mandatário no Cenóbio e a forma como a olhara trouxera-lhe à tona todas essas recalcadas lembranças, fazendo-a encolher-se como a criança assustada de então o fizera quando o seu pai, veemente nos seus protestos, fora simplesmente retido por inflexíveis dedos acerados que se crisparam nos seus braços, imobilizando-o enquanto a sua esposa era literalmente encostada à parede pelas duras palavras do mais velho siruliano. Não entendera as palavras, mas embora não lhe fossem dirigidas, mesmo Linsha se sentira por alguma razão irresponsável, culpada, conspurcada. Com os olhos marejados de lágrimas, Linsha vira a mãe entrar de cabeça baixa no quarto com o enorme homem enquanto o seu pai gritava em desespero, incapaz de se libertar das insensíveis mãos que o agarravam. As memórias que se seguiam eram sempre difusas, mas terminavam sempre com o seu pai atônito e a sua mãe chorosa, ambos lamentando a fenda que a partir de então crescera entre ambos e a incapacidade mútua de a transporem. Nunca mais foram capazes de se falar até ao dia em que a barriga da sua mãe tornou a inchar. Houve uma disputa acesa durante uma noite na qual palavras demasiado dolorosas foram proferidas e no dia seguinte a sua mãe abandonava a casa, rumo a um destino incerto. O pai fizera questão de a manter, mas nos meses seguintes Linsha apenas o viu afundar-se lentamente numa espiral de depressão para a qual a única saída que encontrou foi através de um cinto amarrado a uma das traves do teto. A família paterna nunca aprovara o casamento e surgiu apenas para lamentar a morte do filho e repartir os bens pelos restantes familiares. Linsha fazia parte dos bens a compartir e ficou nas mãos de um tio que nunca conhecera por outro nome que não «senhor, meu tio», um homem galgaz, de pernas altas e tortas, com um bigode eriçado e oleosos cabelos negros. Era curtidor em Dul-Goryn, e foi para lá que levou a criança, que passou a viver numa cave e a trabalhar no estabelecimento do tio, onde cheirava a cão e excrementos. Tratara Linsha como o empecilho que esta se passara a sentir, e obrigara-a a fazer outras coisas além de trabalhar, coisas que reprimira ao longo da sua vida, guardando-as numa caixa selada numa parte escura e recôndita da sua mente na qual não mexia. Viera então a Guerra da Hecatombe, e Dul-Goryn fora poupada graças à submissão de lorde Malagor após um longo estado de sítio, embora tanto quanto o povo soubesse, a salvação da cidade se tenha devido a uma avultada soma de ouro cuja existência até então permanecera desconhecida. O fato de a progénie d’O Flagelo pouca ou nenhuma importância dar ao ouro fora esquecido pelas gentes, que louvaram o senhor da Torre Judicante como um herói. Dissera-se mais tarde que as cinzas de Ryminak e das outras aldeias limítrofes se podiam cheirar no vento, e Linsha freqüentemente se lamentou por não fazer parte delas.
Anos mais tarde, enquanto pisava as peles empapadas em excremento numa selha com os pés descalços debaixo da supervisão do seu tio, uma qualquer capacidade que sempre nela estivera latente manifestou-se de forma explosiva num momento de raiva, frustração e medo. As tiras de ferro que uniam a madeira da selha guincharam, as tábuas libertas estalaram e o excremento que Linsha pisava explodiu em redor, revestindo toda a oficina, os trabalhadores e o seu tio com um fétido cobertor fecal. Mais assustado do que propriamente zangado, o homem trancou-a na cave e lá a deixou ficar durante dias a fio, sem água, nem comida, nem uma única palavra que lhe pudesse explicar o que fizera ou o que estava a acontecer. Pouco se lembrava das noites que passara unicamente na companhia de ratazanas, porventura mais uma série de memórias que inconscientemente bloqueara, mas lembrava-se de ser acordada repentinamente por uma faixa de luz que de seguida foi recortada pelo vulto sombreado de um homem com um grande chapéu de topo chato. O primeiro contato com Malagor, o seu futuro mestre, fora rápido e sucinto, e recordava-se de ser transportada para fora da cave aos braços do Alto Vulto; isso e a cara do seu tio ao reivindicar o dinheiro que de alguma forma fora acordado, e ao invés de ouro receber um convite para as masmorras de lorde Malagor. De um antro de escuridão para outro, Linsha mudara definitivamente debaixo da tutela do seu mestre. Ficara-lhe para sempre gravada na memória a imagem do pálido e patético corpo escanzelado do seu tio agrilhoado e completamente exposto diante dela, os aterradores utensílios que lhe haviam sido postos nas ainda inocentes mãos e as palavras de incentivo segredadas ao seu ouvido. Lembrava-se de que se sentia como se se tivesse destacado do seu corpo e se tivesse limitado a observar o que sucedera, incapaz de se identificar com aquela criança com sangue até aos cotovelos, cabelos em desalinho e arregalados olhos maníacos. Ainda hoje se lembrava dos gritos do «senhor, seu tio», de como estes haviam ecoado pelas escuras e frias masmorras, de como lhe haviam ressoado no peito, fazendo o seu coração bater com mais força ainda e acicatando-a como a uma cadela raivosa.
Aprendera dessa forma a primeira lição de lorde Malagor: somos capazes de muito mais que aquilo que julgamos; mas falhara em apreender a segunda: manter sempre as emoções com rédea curta.
Os anos de aprendizado na Torre Judicante ecoavam-lhe na mente como eternas lembranças da sua inabilidade de corresponder às expectativas que ela própria criara após ter aprendido a primeira lição. Não tardara a atingir um estéril planalto na escala de desenvolvimento das suas faculdades, estagnando quando se esperava que progredisse e incapaz de cumprir os objetivos que mestre Malagor lhe propusera. Falhanços sobre falhanços, relegada a mera aprendiz, eternamente refugiada na sombra do Alto Vulto... No fundo, ainda a pequena rapariga a chorar, perdida, carecida, insegura...
O dossel da sua cama agitou-se, embora não soprasse a mínima brisa no interior do quarto resguardado pelas sólidas janelas com cortinas. Tão-pouco se devera o movimento ao estorcegar de Linsha, que se debatia com adversários que não podia tocar, embrulhando as pernas nos lençóis e abanando a cabeça em fútil negação. As sombras que serpentearam pelos postes da cama acima pertenciam à escuridão na qual o quarto estava mergulhado, mas tinham também uma vida própria que as destacava do resto da penumbra. Os dedos da noite tatearam cegamente o seu caminho até encontrarem uma fresta no dossel pela qual pudessem entrar, apartando-a assim que a encontraram e deslizando pela macia lã abaixo, após o que se infiltraram por debaixo do espesso cobertor e dos desalinhados lençóis. As delicadas sobrancelhas de Linsha franziram-se dubiamente, formando gretas alagadas de suor na sua testa.
— A pupila do Alto Vulto... — ouviu uma voz sublimemente sedutora sussurrar nos seus pesadelos, reconfortante, consoladora. — Agora o próprio Alto Vulto. Notável. Deveras notável.
A aprovação da voz manifestou-se num semimaterial sopro perto do seu pescoço e Linsha permitiu que lhe escapasse um baixo gemido pelos lábios ao virar a cara.
— Uma vida tão plena de desgraças e infortúnios, injustos percalços do destino que roubaram a inocência a uma criança. — Segura... a voz fazia-a sentir-se tão segura. Braços paternais abraçaram-na e puxaram-na contra a cama, acomodando-a ao mesmo tempo que, de uma forma que não o deviam fazer e que contudo parecia tão acertada, a acariciavam e afagavam. — Fizeram-te mal, Linsha, minha ambiciosa serva. Privaram-te de muito, aproveitaram-se de ti e ninguém acreditou que alguma vez conseguisses ascender. Mas tu fizeste-o.
Algo de reconfortante lhe deslizou pelo pescoço abaixo, trilhando o caminho até aos seus seios sem se manifestar debaixo dos lençóis ou mesmo da sua camisa de noite, lançando latejos excitados pelo seu corpo dormente. Linsha tornou a virar a cara, e desta vez o seu gemido foi mais audível.
— Tu fizeste-o. Pegaste nas cinzas com a tua mão e com elas reforçaste aquilo que até agora apenas fora tibiamente conservado. Tiveste o arrojo, tiveste a ambição, e tornaste a erguer aquilo que poderia ter caído antes do meu regresso.
Sensações que havia muito tempo não sentia, outras que desconhecia e outras ainda que desde criança temia continuaram a fazer o seu coração palpitar, afogueando-lhe a pele e tornando os seus movimentos cada vez mais bruscos à medida que lhe ia acelerando a já arfante respiração.
— Esperam-te agora duras provações, mas preciso que as ultrapasses, sim? Pelos Filhos. Por... mim. — O gemido de Linsha foi quase um grito, baixando para um prolongado suspiro que subitamente se ergueu numa exclamação expectante. — Eu regressei, minha fiel Linsha. Estive silencioso este tempo todo, mas agora regressei. A hora aproxima-se, e eu preciso que tu pavimentes o chão de Tanarch para a minha vinda. Confio em ti, Linsha; sei do que tu és capaz, e os Filhos apoiar-te-ão. És o Alto Vulto.
Algo deixou a feiticeira à beira do culminante arroubo, pendente por um singelo fio amarrado a um dedo que a separava do êxtase que sentia prestes a rebentar.
— Sei que não me desapontarás.
O grito fez-se ouvir por toda a residência, sobressaltando boa parte dos que nela habitavam para fora das respectivas camas com os corações prestes a caírem-lhes das bocas. Vozes sonolentas pronunciaram-se, acompanhadas de tropeções e praguejos enquanto os que haviam sido acordados tentavam descobrir a causa de tal som. Sergo, o mordomo, e duas criadas já se encontravam à porta do quarto de Linsha quando Volgo Dokhan chegou de olhos pesados e passos ligeiros com o coração aos pulos.
— O que se passa? O que aconteceu? — perguntou, ajustando a camisa de noite à próspera barriga.
Perante a incoerência dos seus serventes, o meirinho bateu à porta.
— Senhora Linsha? Está tudo bem? — indagou, batendo um pouco mais.
Como não obteve resposta e estava com demasiado sono para ter receio, abriu a porta e entrou. Linsha estava de pé, com o cabelo despenteado e de costas para a porta, olhando para fora da janela aberta e de cortinas repuxadas, o que recortava o seu vulto contra o luar. Um vento gelado entrava pelo quarto adentro, e o meirinho sentiu um arrepio.
— Senhora Linsha, passa-se alguma coisa? — Sergo e as duas criadas vieram cuidadosa e respeitosamente atrás, olhando para as ofegantes costas da feiticeira, às quais a camisa de noite branca ficara colada com suor. — Por que abriu a janela?
Linsha pareceu então aperceber-se da sua chegada e olhou por cima do ombro, que subia e descia com a sua arfante respiração, criando um jogo de luz com o lado da sua face que ficou sombreado pelo luar. Porém, o seu olho parecia brilhar como uma das estrelas que se viam no firmamento.
— Saiam — disse, de tão imperiosa forma que os quatro deram de imediato um passo atrás, mas a feiticeira virou-se para eles e estendeu a mão, indicando Volgo com o dedo. — Tu não. Fica.
Sem esperarem pelas ordens ou desejos daquele que era o seu verdadeiro mestre, os serventes fecharam a porta e abandonaram o meirinho, que começava lentamente a acordar e a ficar algo apreensivo.
— Senhora Linsha... — disse, olhando de relance para a porta fechada. — Aconteceu alguma coisa?
— Sim — respondeu a feiticeira sucintamente, pondo uma máscara de concentração na cara. Algo turvou o ar em redor do meirinho, e este sentiu o já familiar formigueiro da magia, mas daquela vez nada aconteceu.
Demasiado ignorante para agradecer os resquícios de Entropia que nele residiam, o homem virou as rotundas costas e agarrou a aldrava com força para fugir do quarto, temendo mais uma punição por algo que nem estava ciente de ter cometido. Linsha soltou um contrariado rosnido e a pura Essência que manuseou foi impelida com força contra a porta, impedindo o meirinho de a abrir. Volgo gemeu de medo, rodando e puxando a aldrava, mas os seus movimentos cessaram brusca e abruptamente quando enormes dedos invisíveis se crisparam no seu rechonchudo corpo, alçando-o no ar, fazendo-o dar uma cambalhota e cair de costas sobre a armação da cama, que cedeu com um audível estalo e com ele tombou juntamente com o dossel sobre o colchão.
— Sim, algo aconteceu, Volgo Dokhan — disse a feiticeira, acercando-se a passos lânguidos do arruinado leito, puxando os cabelos para trás com ambas as mãos. Fora a primeira vez que Linsha o tratara pelo nome, mas o meirinho estava demasiado ocupado a gemer sobre os destroços da cama para reparar. — O nosso senhor está de volta, e há certas coisas das quais ele gostaria que tratássemos com certa celeridade...
Sim, que bem dito. Soara a algo que podia ter saído da boca de lorde Malagor, se ele estivesse vivo. Mas não, agora era ela o Alto Vulto, e tudo iria mudar, a começar pela hierarquia do poder em Tanarch.
— Há muito que fazer. Amanhã vais ter um dia cheio, e vais fazer exatamente o que eu mandar. Não vais?
O gemebundo meirinho articulou a custo uma resposta afirmativa, ainda sem perceber o que fizera para merecer tal tratamento.
— Sim, claro que vais. Pelo nosso senhor... — A feiticeira suspirou e percorreu a sinuosa linha das suas ancas com as mãos enquanto observava os patéticos movimentos de Volgo Dokhan, que mais parecia uma baleia encalhada sobre a sua cama. — Mas agora vais ficar aí e não te vais mexer a menos que eu o diga.
O meirinho gemeu a sua incompreensão e inclinou a nuca para trás para ver o que Linsha estava a fazer. A sua papada foi espremida entre o queixo e a clavícula quando o segundo lhe descaiu ao ver a feiticeira puxar a úmida camisa de noite por cima da cabeça, e os seus olhos arregalaram-se de mudo espanto e admiração quando Linsha se aproximou langorosamente. Foi contudo o olhar da jovem mulher que o deixou aterrado, não por conter qualquer tipo de ameaça como a tal já se habituara, mas pela claridade alterada que nele viu e pela singular clareza de propósito que revelava.
— Mas... senhora Linsha... o que...
— E também não vais falar — disse a feiticeira terminantemente, acercando-se da cama e percorrendo um dos postes partidos com uma mão. — Amanhã terás muito que falar, Volgo Dokhan, não te preocupes. Oh, sim. Muito mesmo. Se fizeres como digo, serás o homem mais poderoso de Val-Oryth...
Com lábio e papada trêmulos, o meirinho não ousou sequer mexer um músculo quando a sombra de Linsha lhe desceu sobre a cara como um aterrador manto de sombras. Sentiu-se tudo menos poderoso, e estava agudamente ciente de que o amanhecer ainda tardava.
— Escusado será dizer que a situação é inaceitável para os nossos empregadores, sim? — afirmou Illoth casualmente, tocando a borda do seu cálice prateado com os lábios antes de o pousar com tal delicadeza, que mal fez barulho ao tocar na madeira marchetada da mesa.
O etharr encontrava-se reunido com quatro dos seus pares, sentados numa sinuosa mesa numa pequena sala retangular com duas portas iluminada por espinhosas tocheiras de ferro enegrecido. As paredes estavam decoradas com belas tapeçarias de lã latvoniana que retratavam motivos rupestres algo destoantes do ambiente da câmara. No meio de tal parcimônia de móveis, destacava-se ainda mais o enorme antroleo empalhado que dominava a mesa atrás da cadeira do anfitrião de ameaçadores braços estendidos sobre ele e boca escancarada. Fora um trabalho bem feito, e embora os carbúnculos que haviam sido encastoados nas suas órbitas fossem desprovidos de alma, havia ainda algo de ameaçadoramente primordial na carcaça estofada. O conclave de quatro eahanoir envergava togas negras de bainhas vermelhas, e a maior parte deles já tinha listas brancas nos sedosos cabelos negros além das intrincadas tatuagens nas testas que os demarcavam como membros da casta dirigente dos eahan negros. Os olhos azul-claros que se cruzavam friamente eram duros como gelo, tendo já visto o pior que a sua sociedade podia infligir aos seus, e as severas expressões cinzeladas nos seus semblantes pálidos eram tão indiferentes como as de estátuas. A única que desarmonizava ligeiramente era a de Illoth, que franzia os lábios para degustar o acre licor latvoniano que fora servido.
— Não estarão eles a dar demasiada importância a uma mera sublevação de aldeia? — inquiriu Insithal, um eahanoir de longos dedos que permaneciam em constante movimento como as patas de uma aranha.
— Não. Periodicamente surge sempre um qualquer idiota de vilória que afirma ser descendente de Bakur Osogrod, e regra geral causam problemas que podem ser facilmente evitados com uma intervenção atempada. Grande parte das vezes não passam de marionetes de senhores da guerra interessados em causar agitação que lhes seja conveniente...
— Porventura mesmo algum dos nossos empregadores? — sugeriu Naffan, o mais baixo dos eahan negros presentes, que mantinha sempre o meditabundo queixo baixo, o que lhe sombreava os olhos num efeito que podia ou não ser intencional.
— Porventura. Em todo o caso, não nos cabe a nós julgar, mas sim agir, que é pelo que nos pagam, sim? Que me dizem, meus caros? Aço frio... — Illoth hesitou e bateu com as pontas dos dedos na mesa, franzindo as sobrancelhas. Os outros estranharam e fitaram-no unicamente a ele. — Aço frio, ou um licor envenenado? — perguntou em voz mais baixa, levando o cálice uma vez mais à boca e soltando o que pareceu ser um gemido nasalado para o seu interior.
— Eu inclinar-me-ia mais para a lâmina — opinou Insiath, o mais alto, delgado e formal dos presentes. — Ou melhor, a ponta de um virote. Da última vez que usámos o veneno, morreu apenas a guarda pessoal e o nosso infiltrado por pouco não cedeu informações sensíveis. Além do mais, começa a gerar-se um certo receio por eshuranwe, se todas elas oferecem o toque frio de uma lâmina em vez do calor de uma mulher.
— Humm... — guturalizou Illoth, arrastando ligeiramente os pés pelo chão. — Sim... ser-nos-ia conveniente... alterar a nossa... abordagem... sim?
Os etharr lançaram olhares interrogadores uns aos outros, vendo a força com a qual o eahan negro agarrava no cálice, mas nada disseram.
— Fica acordado, então. Temos mais algum... hum... assunto pendente? — perguntou com tom de finalidade, inspirando pelo nariz e recuando ligeiramente o pescoço.
— Não. Creio que isto conclui o nosso conclave — disse Insithal por fim, apoiando as mãos na mesa para se levantar.
— Que as... sombras vos ocultem... meus caros — desejou Illoth. — Perdoem-me... humm... por não vos acompanhar...
— Que as sombras te ocultem, Illoth — disseram os outros, retirando-se alternadamente por ambas as portas e deixando o eahanoir sozinho.
Por fim, este foi acometido de uma convulsão que o precipitou para as costas da cadeira, batendo com ambas as mãos na mesa e levando a cabeça para trás para ejacular um sentido gemido de olhos fechados, descaindo de seguida como se os seus músculos se tivessem esfacelado. As pregas da sua túnica mexeram-se então e a cabeça de uma eahanna negra subiu-lhe lentamente pelo tronco acima, apoiando as mãos na cadeira.
— Não me podes fazer isto durante conclaves, Vinxenia... — protestou o etharr sem grande convicção, falando para o ar.
A eahanoir chupou-lhe o queixo através dos dentes até lhe chegar à boca, à qual deu um beijo lascivo enquanto roçava as suas suaves formas parcamente cobertas de apertado couro negro no tronco de Illoth.
— Tu sabes... que eu gosto... quando há outros... — justificou-se Vinxenia entre ósculos, abraçando o pescoço de Illoth e aninhando-se sobre as suas pernas.
— Do que tu gostas é do sabor do poder, sim...? — retorquiu o etharr prosaicamente, pegando em Vinxenia e pousando-a sobre a mesa, derrubando o cálice e despejando o seu conteúdo incolor sobre a mesa.
A eahanoir nada disse, limitando-se a afastar a cara de Illoth com um lânguido indicador e a lamber os lábios da pequena boca cordifor-me enquanto o fitava com provocadores olhos amendoados claros como turquesas. O ponto vermelho de eshuranwe que tinha à testa demarcava-a como mera concubina e meretriz, mas Vinxenia tinha outras ambições e desde que traíra Tannath percorrera vários e rápidos passos para as realizar. As contrapartidas que Illoth requeria eram simples, e agradar ao velho eahanoir como naquele momento o fazia nem era de todo desagradável.
— Conseguiste alguma coisa do Naffan? — perguntou Illoth ao seu pescoço.
— Nada que ele não desejasse que soubesses, imagino... — opinou a eahanna de olhos fechados e queixo erguido.
— Valeu a pena tentar... — murmurou Illoth, deixando o tom suficientemente ambíguo para que pudesse ser interpretado como uma pergunta.
— Não — confessou Vinxenia. — Prefiro-te a ti...
Sem mais palavras, os dois deixaram os seus corpos falarem um brusco diálogo de suspiros e gemidos sobre a mesa. Illoth preparava-se para levantar a sua toga negra quando um ruído abafado vindo do outro lado da porta o fez erguer a cabeça e olhar para o teto.
— O que foi? — perguntou Vinxenia, de cotovelos revestidos a couro apoiados sobre a madeira molhada de licor.
— Não ouviste...? — Um grito sufocado eliminou qualquer dúvida e os dois eahanoir endireitaram-se rapidamente. — Guardas!
Três hasslir surgiram prontamente da porta oposta à dos ruídos, atrás da qual se ouviam os agora distintos sons de uma luta travada com sibilante aço delgado, cordas de bestas soltas e dentes de quebra-espadas a rilharem em gumes afiados. Os grunhidos e rouquejos soltos davam a entender que a contenda estava a ser feroz, e que o intruso penetrara bem mais fundo do que era admissível.
— Incapacitem-no, quero-o vivo, seja ele quem for! — vociferou Illoth, apontando para a porta para a qual os seus homens de qualquer forma já se dirigiam de estiletes e quebra-espadas desembainhados.
A porta abriu-se e os ruídos da luta intensificaram-se, sobretudo os gritos de surpresa dor de quem morria. Vinxenia postou-se atrás de Illoth, um gesto que anos de experiência levaram o eahanoir mesmo a meio da tensão a olhar de esguelha por cima do ombro para verificar se havia alguma lâmina na mão da eshuranwe. Porém, a sua atenção regressou de imediato à porta aberta e aos ruídos do combate que esta relatava, baques surdos de corpos que tombavam, o molhado silvar de aço na carne e mais roucos estertores que o etharr queria acreditar estar a ouvir.
Um último afundar e retirar de aço de carne, outro corpo hirto a cair rodopiante na pedra fria, e de repente fez-se mórbido silêncio. Illoth e Vinxenia não se mexeram, não respiraram, tentando durante breves instantes abafar as pulsantes batidas dos seus corações para tentarem escutar algo que não se fez ouvir. Nem um inalar ou suspiro.
— Homens? — chamou o etharr, e Vinxenia agarrou-lhe o braço com tal força que as unhas se lhe fincaram.
Um passo de bota.
Silêncio. Vinxenia olhou para a outra porta aberta, da qual não vieram mais guardas.
O pomo na garganta de Illoth mexeu-se, nervoso.
Outro passo.
Seguido de outros, regulares, calmos, decididos.
Ambos os eahanoir estavam de olhos fixos na porta, aguardando com cada vez mais nervosa antecipação que esta lhes revelasse o que se acabara de passar, agarrando-se ainda à esperança de que se tratava de um dos homens do etharr. O eahanoir que surgiu à porta não era certamente um dos hasslir, mas foi só quando Illoth e Vinxenia viram para além das feridas e do sangue que os seus corações verdadeiramente se sobressaltaram, gelando-lhes o sangue nas veias.
Uma tira de tecido negro atravessava transversalmente a sua cara, tapando-lhe o olho esquerdo, e as suas roupas estavam tintas do seu sangue e do de outros, rasgadas com golpes e perfuradas com virotes nas coxas, ombros e mesmo um na barriga. Empunhava um estilete e quebra-espadas cruentos e gotejantes, a sua capa esfarrapada conviria a um mendigo, e os seus longos cabelos desalinhados escorriam-lhe pela face pálida, mas ainda assim havia algo na sua postura e linguagem corporal que Vinxenia de imediato reconheceu.
— Tannath... — disse sem ar nos pulmões, fincando ainda mais os dedos no braço de Illoth, que este não sentiu.
O sorriso do eahanoir tirou qualquer sombra de dúvidas que pudessem restar e este avançou com movimentos invulgarmente rígidos para a sua graça felina.
— Coitado do Saffan... imagino que até fosse leal, para estar disposto a morrer pelo seu novo empregador — comentou Tannath casualmente, referindo-se ao antigo capitão da sua guarda. — O que lhe disseste para ele ir trabalhar contigo, Illoth? Que me tinhas na tua teia e por conseguinte a ele, ou simplesmente fizeste-lhe uma oferta melhor? — O eahanoir abriu os braços com a pergunta, encolhendo os ombros.
Illoth manteve-se em silêncio, tentando convencer-se de que o que via diante de si não era um fantasma. Ainda assim, conseguiu aglomerar suficiente sangue-frio para elaborar uma fachada calma.
— Cumpriste a tua incumbência? Podias simplesmente ter-me enviado uma missiva...
Tannath riu-se da arrogância do etharr, exibindo os dentes de cima com um largo sorriso ao abanar a cabeça.
— Não, o eahan e a Slayra estão bem vivos. Digamos que mudei de idéias, ou melhor... — Tannath levou a sangrenta ponta do estilete ao lábio inferior, olhando para cima em fingida reflexão antes de arregalar o olho ao chegar a uma conclusão. — Reordenei as minhas prioridades! Afinal, não podia deixar de fazer uma visita ao responsável pelo fim da minha vida cívica em Jazurrieh.
— Estás gravemente ferido — constatou Illoth, a sua cara uma máscara de indiferença em contraste com a expressão de choque patente na de Vinxenia. — Pára com esta bravata, e arranjarei quem te ajude; quem sabe, pode até ser que te perdoe esta intrusão, sim? Acaba com esse teatro enquanto é tempo, Tannath.
— Ah, isto? — redarguiu o eahanoir, olhando de testa franzida para os virotes que se lhe projetavam do corpo enquanto avançava.
— São só uns arranhões, não vão ser eles a adiar mais uma conversa que há muito devíamos ter tido. Não te preocupes que temos muito tempo. Os outros etharr e os seus homens já partiram, e os teus não nos vão incomodar...
Mais rápido do que o seu porte e inflexão dariam a entender, Illoth empurrou Vinxenia para o lado, enfiou uma mão debaixo da mesa e apontou uma pequena besta carregada a Tannath, que se deteve e ergueu as mãos armadas num pretenso gesto de paz, arregalando o olho diante da arma. A eahanna limitou-se a encostar-se à parede, como que magnetizada pela aparição de Tannath.
— Estás louco, Tannath, a tua sede de vingança ensandeceu-te — avaliou o etharr. — Posso deixar-te esvair em sangue aqui mesmo se tiveres algo de coerente para dizer, ou acabar com a tua miserável vida com este virote envenenado. Como outrora até tive uma medida de respeito por ti, concedo-te a escolha.
Tannath riu, abanando os ombros.
— Quanta magnanimidade, Illoth! A propósito, fizeram um belo trabalho com o pobre do Babaki — disse, indicando o antroleo com o estilete. — Quase sinto formigueiros nas costas só de ver aquelas unhacas...
A estranha inconsequência do eahanoir confundia Illoth, que sempre o conhecera como um assassino frio e eficiente, ocasionalmente dado a devaneios, mas nunca a tais inanidades como as que agora desabafava.
— Não sei o que pretendias alcançar ou provar, a entrar na minha casa desta forma, Tannath — disse o etharr, aprestando a besta.
— Estás a morrer à minha frente, e não me estás a dar razão alguma para te continuar a ouvir, sim?
Tannath abriu os braços, expondo o peito ao qual lhe estava colada a sangue a sua camisa negra rasgada e começou a dar passos falsamente cuidadosos para o lado, acercando-se de Vinxenia e praticamente desafiando Illoth a disparar. A eahanna negra arrastou-se pela parede para longe de Tannath, e o etharr limitou-se a seguir os movimentos do adversário com a ponta do virote.
— Destruíste-me, Illoth. Quer dizer, não me destruíste, mas cravaste-me ao chão depois de eu cair. — Tannath deteve-se de costas para uma espinhosa tocheira, estendendo a sua sombra para os pés do etharr.
— Não sei o que te sucedeu, Tannath, mas estás patético. Acabemos com isto, sim? — sugeriu Illoth, esticando mais um pouco o braço.
— Não entendes, pois não? Eu hoje não passo de uma sombra do que outrora fui...
Pela primeira vez desde que o conhecera, Tannath viu Illoth sorrir.
— Por fim, começas a dizer algo com...
A besta do etharr voou-lhe das mãos, golpeada por algo borrado e sombrio, e o virote foi embater inofensivamente contra a parede. Illoth ficou algum tempo a olhar estupidamente para o vulto umbral que se encontrava entre ele e Tannath, uma sombra com forma humanóide mas totalmente desprovida de relevo ou expressão. E contudo, mesmo com a mente embotada pelo estuporado terror que repentinamente se lhe assomou, de alguma forma soube que só podia ser a de Tannath. Armada com tenebrosos estilete e quebra-espadas, idêntica em todos os trejeitos e emulando perfeitamente os movimentos rígidos que o eahanoir executava, só podia mesmo ser a sombra de Tannath.
— Como...? — conseguiu a custo pronunciar, procurando algo na face da coisa que pudesse fitar. Fiapos sombrios daquilo que podiam ser as sombras de cabelos agitaram-se para o lado quando esta inclinou a cabeça.
— Caí e poderia ter assim permanecido. Mas tu foste uma das razões que me levaram a levantar. Por isso acho que te devo um agradecimento. — Tannath e a sua sombra executaram uma zombeteira vênia. — Obrigado.
Vinxenia levou a mão à boca quando o torso arqueado de Illoth foi ligeiramente erguido, trespassado pelo aço umbral de duas lâminas. Demasiado surpreso para sequer grunhir, o eahan negro limitou-se a olhar Tannath de olhos esbugalhados e bochechas infladas por cima do ombro da sombra antes de ambas as lâminas se apartarem bruscamente, abrindo-lhe o ventre e despejando-lhe as entranhas para fora. Estas chapejaram no chão e Illoth deslizou pela sombra abaixo, agarrando-se fracamente ao seu tronco sombrio, esperando fincar os dedos em vincos de roupas que lá não se encontravam. Caiu de joelhos e tentou uma última vez agarrar a sombra, esforçando-se por articular palavras que apenas lhe saíam como crocitares roucos, mas esta pareceu espalmar-se no chão como as sombras nunca deviam deixar de o fazer e ficou com a cabeça sobre a viscosa cordoalha sangrenta.
O etharr ficou de olhos fixos nela, em choque, enquanto via a sua vida pulsar em tripas vermelhas que se contorciam como cobras vivas.
— Talvez um pouco mais drástico do que rastejar pela areia da arena com as costas abertas, admito, mas a expressão na tua cara está boa demais para esse tipo de considerações. Dá-me só uns momentos que eu já volto...
Deixando o moribundo eahanoir entregue à sua sorte, Tannath virou então a sua atenção para Vinxenia, que se encostou de tal forma à parede, que parecia querer fundir-se a ela.
— Vinxenia — limitou-se a dizer, embainhando as suas lâminas, de cujas bainhas brotou um pouco de sangue ao fazê-lo.
Com passos aflitivamente lentos, Tannath aproximou-se da eahanoir, olhando-a dos pés à cabeça com um único olho avaliador. O seu corpete de couro negro apertava-lhe o tronco de forma reveladora e dificultava-lhe a já de si acelerada respiração. Os seus cabelos estavam soltos, mas não se incomodou a ajeitá-los sedutoramente como sempre o fizera diante do eahanoir.
— Continuas linda, pelo que vejo. Tens-te tratado bem — comentou o eahan negro, pousando uma mão na parede sobre o ombro de Vinxenia e achegando-se a ela o suficiente para que o odor cobreado do sangue que o cobria lhe assaltasse as narinas, fazendo-a afastar ligeiramente a cabeça, sempre de boca entreaberta e sem nunca quebrar o contato visual.
— Desculpa a minha apresentação. Mas não dizes nada? Há quanto tempo não nos víamos?
— Estás... vivo?
— Para todos os efeitos, menos alguns algo incomodativos, mas com os quais terei que aprender a... — uma única risada seca e desprovida de genuíno humor — viver.
A mão da eahanoir tocou-lhe inesperadamente a barriga, afagando-a em redor de um virote que nela estava espetado, e Vinxenia aproximou-a da cara para constatar que estava manchada de sangue.
— Estás ferido. Não precisas de...?
— Não, deixa estar — recusou Tannath, pegando-lhe bruscamente no pulso com a outra mão e beijando-lha nas costas. — Ainda me lembro do que aconteceu da última vez que trataste de mim.
Algo que podia bem ser medo faiscou brevemente pelos amendoados olhos da eahanoir, mas esta conseguiu afetar uma expressão de inocência e impotência capaz de derreter o mais gélido coração eahanoir.
— Tannath, foi a única maneira de te salvar sem que o Illoth te matasse — escusou-se com voz plangente. — Não pude fazer mais nada. Sei que disse algumas coisas, mas estava zangada por só teres levado a Slayra para o teu quarto, e...
— Ah sim? — indagou Tannath, franzindo o sombrolho e os lábios e aproximando-se de Vinxenia até lhe roçar o nariz. — Queres dizer que fizeste aquilo por mim?
— Sim, sim — admitiu a eahanna, afagando a cara de Tannath com a outra mão. — Eu sabia que tu acabarias por dar a volta à situação, que ficarias por cima, como sempre o fazes. Olha para ele, a olhar para as tripas enquanto morre...
Tannath assim fez, virando ligeiramente a cara para assistir a mais uns momentos do tormento de Illoth, cujo torso começava a descair sem que este tirasse os olhos das suas entranhas espalhadas no chão. A mão de Vinxenia pegou-lhe pela nuca e virou-lhe a cara uma vez mais, após o que lhe roçou os lábios com os seus.
— Senti a tua falta... e tu? — sussurrou. — Estás tão frio. Deixa-me aquecer-te...
O eahanoir nada fez, limitando-se a deixar Vinxenia beijar-lhe os lábios e apertar o corpo contra o seu enquanto ronronava aquele particular ruído que tantas vezes lhe enchera o ouvido em longas noites de lascívia. Já dera pela falta da outra mão da eahanna quando de repente algo afiado lhe entrou pelas costas, trespassando-lhe o coração de forma certeira e assassina. Tannath abriu o olho e afastou a sua cara da de Vinxenia, cuja boca cordiforme sorria maldosamente e cujos lábios se apertaram quando torceu o punho da arma, fazendo o eahanoir estremecer involuntariamente.
— Cair duas vezes na mesma cantiga, Tannath? — zombou Vinxenia. — Admira-me como é que te aguentaste tanto tempo em Jazurrieh.
A eahanoir fechou os olhos e deu-lhe um prolongado beijo nos lábios que deveria servir de despedida, mas estes abriram-se bruscamente ao sentir os de Tannath erguerem-se num sorriso. Arfando de susto e surpresa, Vinxenia afastou-se, largando o punhal e achatando-se uma vez mais contra a parede. Tannath ficou exatamente na mesma posição, transbordando pura malícia com a sorridente expressão.
— Uma faca espetada no coração... — refletiu, abanando a desapontada cabeça. — Sinto muito, minha querida, mas já vieste tarde. Houve outro que o fez antes de ti.
Comprimindo os lábios e endurecendo o olho que lhe sobrava, Tannath pegou bruscamente em Vinxenia pelos cabelos e, permitindo-lhe o seu breve instante de terror de olhos arregalados, aproveitou o seu aflito arfar para lhe puxar a boca contra a sua. O grito de Vinxenia foi engolido pelo eahanoir, e o aterrorizado branco dos seus olhos pareceu comprimir-lhe as íris em duas minúsculas contas azuis ao sentir a língua lassa e fria dentro da sua boca. Nauseada com o cheiro a sangue que lhe enchia as narinas, tentou futilmente afastar-se do eahanoir, que lhe puxava a cara com força e parecia beber dos seus gritos abafados, lambendo-a com mórbida voluptuosidade. Quando Tannath lhe puxou a cabeça para trás pelos cabelos e as suas bocas por fim se apartaram, o seu estridente grito foi cortado por uma brusca torção do pulso do eahanoir que lhe deslocou o pescoço e fez com que este rangesse de forma enojante. Uma nova torção, e Vinxenia estorcegou como uma boneca de trapos quando a sua cervical protestou com uma rápida série de estalos, caindo esfacelada ao chão numa confusão de tronco, membros e cabeça.
— Puta — disse Tannath, afastando-se do corpo caído e passando por Illoth, que parecia ainda não ter compreendido ou aceite a sua situação. O eahanoir também o ignorou e postou-se diante do corpo empalhado de Babaki, olhando para cima de mãos nas ancas.
— Ao menos para ti isto já acabou, Babaki. Foi pena, eu até estava disposto a soltar-te e ao teu amigo Quenestil. As coisas não correram bem como esperávamos, pois não? Mulheres, sabes como é...
Tannath suspirou, olhando para o chão e abanando a cabeça. Dedicou um gesto de despedida a Babaki, levando os dedos indicador e médio à têmpora e atirando-os na sua direção antes de lhe virar as costas e voltar para Illoth, diante de cuja chocada cara postou as pernas.
— Estou a precisar de umas roupas novas, Illoth. Decerto não te importarás que eu vá dar uma vista de olhos ao teu guarda-roupa? — Incapaz de responder, o etharr permaneceu curvado sobre os seus intestinos, soltando apenas o ocasional gemido seco. — Obrigado. Só por essa gentileza... — agradeceu Tannath, puxando-lhe a cabeça para cima pelos cabelos listados de branco e passando-lhe o estilete pela garganta num golpe limpo, deixando-o então cair sobre as tripas com um visceral ruído molhado.
Tannath suspirou mais por hábito que por necessidade e contemplou a cena de morte em seu redor. Não soubera bem o que esperara, mas tão-pouco podia negar que se sentia bem mais leve. Além do mais, só pelas expressões na cara dos dois desgraçados, a sua longa viagem já valera a pena. Restava-lhe agora então arranjar roupas novas, retirar os virotes, e limpar o sangue da sua pele macilenta. De contemplativos braços cruzados atrás das costas, pôs-se a caminho pelo corredor de paredes manchadas de sangue e semeado de cadáveres de eahanoir. Sim, sem dúvida a Oblação fora a decisão correta a tomar. Abrira-lhe todo um novo mundo de possibilidades, bem como a ocasião de se vingar daqueles que em vida lha haviam arruinado. A decisão correta, sem dúvida. Só teria de fazer algo a respeito do olho...
Lhiannah não pôde deixar de sentir um vago sentimento de nostalgia quando avistaram Ul-Thoryn do mar, um sentimento causado pela paisagem outonal que se avistava além da metrópole que ainda era unanimemente considerada a jóia de Nolwyn. Os terrenos no exterior das muralhas da cidade eram constituídos sobretudo por ondulantes terras de lavoura desbastadas e extensos pomares colhidos, propriedade de abastados fazendeiros que residiam em opulentas herdades. Finda a safra, a terra cansada envergava agora o esbatido manto outonal que fez com que a arinnir se recordasse da fatídica tarde na qual deparara com dois estranhos viajantes que depois viera a seguir naquele que fora sobretudo um ato de revolta para com o seu pai e as malditas víboras da corte de Vaul-Syrith. Isso e algo mais, como bem o sabia, mas naquele momento não eram tanto as razões da sua partida que lhe avivavam as saudosas memórias, mas sim o que a sua vida antes fora e no que acabara por se tornar. Isso, e o fato de que em breve tudo poderia acabar. Assim que regressasse a Vaul-Syrith, só os deuses sabiam o que o seu pai faria ao vê-la, para não falar da Alnara.
Com um suspiro, a princesa atirou as suas preocupações ao vento fresco que soprava na costa, afagando os braços. Os dedos frios do Inverno acercavam-se lentamente de Nolwyn, e o céu estava cinzento e nublado, parecendo unir-se no horizonte com o mar de tonalidade acerada. Lhiannah vestia um capote de lona igual aos que os marinheiros usavam, pois já chovera por várias vezes ao longo da viagem, mas este pouco fazia para a resguardar do frio.
— Aqueles eahlan fazem roupinhas muito bonitas, mas esquecem-se de que nem toda a gente passa a vida em estâncias com sirulianos a levarem lenha à porta — comentou a voz de Worick, cuja aproximação passara despercebida à distraída princesa. O thuragar assentou os pesados braços sobre a amurada e contemplou a vasta cidade que se espraiava pela costa, opulenta e magnífica como um monumento ao glorioso passado de Nolwyn. — Ainda bem que chegámos. Ainda caias ao mar se passasses muito mais tempo colada aqui...
Lhiannah não respondeu e Worick não insistiu. Ambos ficaram a olhar para o porto de Ul-Thoryn, que lentamente se ia aproximando.
— Onde está o Taislin?
— Foi apanhar ratos no porão. Desde que atracámos em Sardin que tem sido um massacre; o raio do burrik anda divertidíssimo. Faz apostas de quantas caudas de ratos consegue trazer ao fim de cada dia, e parece-me que quer ganhar mais uns cobres antes de chegarmos.
Lhiannah ergueu ligeiramente os cantos da boca, sem contudo esboçar um sorriso definitivo, e os dois continuaram a olhar para a cidade, perdidos nos seus próprios pensamentos até a princesa tornar a quebrar o silêncio.
— Obrigada.
Worick olhou de lado para a sua protegida.
— Porquê?
— Por teres vindo comigo. E por não me teres dado uma martelada quando decidi ir com o Aewyre e o Allumno.
— Hmpf, era o melhor que teria feito — resmungou o thuragar em surdina. — Agora quem vai levar uma martelada vou ser eu quando voltarmos a Vaul-Syrith, e não me cheira que seja na cabeça... — Algo pareceu ocorrer a Worick. — Tu fazes tenções de voltar, não?
Lhiannah limitou-se a olhar em frente durante alguns momentos sem sequer parecer estar a pensar na pergunta, mas acabou por responder:
— Sim, claro. Também tenho de avisar o meu pai do que... do que... — Por mais que tentasse, a arinnir não conseguia ainda conceber a situação, mostrava-se incapaz de apreender a magnitude do que acontecera e do que ainda podia vir a acontecer. Freqüentemente ao acordar esperava que alguém lhe confirmasse que tudo não passara de um pesadelo, e retirava algum conforto da total ignorância dos marinheiros que a rodeavam, mas sempre que abordava Worick era duramente recordada pelo seu pétreo silêncio de que o perigo era bem real. — Ele tem de saber. Todos têm de saber, mesmo que não acreditem de início.
Worick assentiu com um grunhido.
— E ouve lá, cachopa, depois de termos ouvido aquilo em Sardin, ainda achas que é boa idéia ires ter com o irmão do Aewyre?
Lhiannah ponderara longamente o assunto. Quando atracaram em Sardin, fora inquirir o mestre do porto e alguns mercadores acerca dos acontecimentos mais recentes em Nolwyn, e as novidades haviam-na deixado algo apreensiva. Ao que parecia, Ul-Thoryn estava de relações cortadas com Vaul-Syrith devido a uns desentendimentos entre lorde Thoryn e o seu pai, embora as versões e o grau de culpabilidade de ambas as partes variassem consoante a pessoa inquirida e os interesses que esta representava. A regência subira à cabeça de lorde Thoryn e este alimentava megalômanas fantasias imperialistas, tendo já começado a aliciar várias cidades-estado e a ameaçar outras com veladas sanções. Não, era Lorde Syndar quem continuava convencido de que o irmão de Aereth raptara a sua filha, e estava disposto a levar um exército aos portões de Ul-Thoryn se necessário fosse para a reaver. A verdade? A covarde corte de Lennhau fora construir um novo ninho de víboras em Ul-Thoryn para se insinuar nos jogos de poder das grandes casas. Disparate, Ul-Thoryn e Lennhau haviam-se aliado como o primeiro passo na criação de um novo Nolwyn unido, e um clima de tensão e desconfiança instalara-se nas restantes cidades-estado. Nada disso, lorde Thoryn fizera propostas indecorosas à senhora Alnara Syndar num jantar em Allahn Anroth, e lorde Syndar estava determinado a fazê-lo pagar pela afronta. Em suma, Lhiannah podia bem ter chegado na pior altura possível para entregar o corpo do pai de Aereth, e a apreensão de Worick não era de todo infundada, pois podia bem vir apenas a piorar as coisas com a sua presença.
— Tenho de o fazer, Worick. Ele merece saber o que aconteceu ao pai, e eu prometi ao Aewyre. E além do mais — a princesa antecipou-se ao comentário que o thuragar se preparara para fazer —, temos de avisar todos os regentes do que... do que está para vir. Mais vale aproveitar a minha presença para esclarecer aqueles absurdos que ouvimos em Sardin. Não quero saber de cidades-estado nem de política; agora não é a altura para dissensões seja onde for, não concordas?
— Não queres saber de política... — murmurou Worick. — Mas é precisamente nisso que te vais meter. E olha que eu não sou nenhum diplomata.
— Mas eu sou a princesa de Vaul-Syrith.
— E como pretendes prová-lo? Ninguém na corte de Ul-Thoryn te conhece em pessoa, e não tens sinete...
— Está claro que não. A vaca da Alnara alguma vez iria permitir que a bastarda tivesse um? Mas tu tens o teu, o de general, não tens?
O thuragar gemeu guturalmente, baixando a cabeça. — Já te disse que não sou nenhum diplomata, cachopa...
— Worick, queres deitar o corpo do Aezrel borda fora e voltar para casa como se nada tivesse acontecido?
Resignado, o thuragar acabou por encolher os ombros.
— Pronto, pronto, usamos o meu sinete para uma audiência. Mas espero que saibas o que vais dizer, porque eu não faço idéia.
— Há de ocorrer-me alguma coisa — afirmou a arinnir com pouca convicção. — Tenho a carta do Allumno. Além disso, eu fiz uma promessa, e se esta for a única forma de ajudar o Aewyre...
— Estou certo de que já passaste por bem pior, Worick... — recordou-se o thuragar das palavras de Allumno. — Raios te partam, mago...
— O quê?
— Nada, estava a falar do tempo. Mas promete-me que depois disto apanhamos a primeira carruagem que nos leve a Vaul-Syrith...
— Está bem, Worick, eu prometo. Mas não sei quanto tempo isto poderá demorar. Talvez tenhamos de ficar e...
— ...e deixamos o burrik a apanhar ratos em Allahn Anroth. A princesa lançou-lhe um olhar admoestador.
— Bem, valeu a pena tentar.
Lhiannah abanou a cabeça, mas ainda assim pousou uma inesperada mão sobre a espaldeira de Worick. Ainda que o mundo estivesse virado do avesso, podia sempre contar com a embrutecida estolidez do thuragar.
O porto de Ul-Thoryn era incontestavelmente o maior e mais buliçoso de toda Allaryia, o mais importante nexo de inúmeras rotas comerciais e um ponto de troca para os mais diversificados bens e mercadorias. Cercado por um alto molhe ameado com torres providas de catapultas e com uma única entrada entre dois altos torreões, albergava no seu interior um farol e filas de cais de pedra entre as quais se encontravam enormes caracas, pequenos paquetes, saveiros e afins barcos de pesca das terras do sul, bem como galeras de Taygatar e navios norrenos de alto bordo, fundos chatos e velas quadradas. O constante coro repicante de sinos vibrava no ar, sinalizando a permissão para avançar e baixar âncora dos navios com a ajuda de um sistema de bandeiras coloridas acenadas pelos assistentes do capitão do porto. Vastos estaleiros estavam intervaladamente espalhados entre extensos armazéns, cujos grandes guindastes de roldana guinchavam ponderosamente ao erguerem as pesadas cargas dos navios atracados. Após meses com o roçar do mar no casco como único ruído de fundo e apenas algumas curtas paragens em portos menores, Lhiannah, Worick e Taislin sentiram-se avassalados pela sinfonia portuária, e foram forçados a ouvi-la durante bem mais tempo do que desejavam, pois embora fosse quase Inverno e não houvesse tantos barcos como isso, a colocação dos mesmos fazia-se por ordem de chegada e vários outros encontravam-se à sua frente. Os três entretiveram-se então a apreciar a vasta Ul-Thoryn, antiga capital de Nolwyn, a mais movimentada das metrópoles, a Pérola do sul, o empório do mundo civilizado, em cujo oceano de edifícios caiados a branco e encimados por tetos de telhas a vista se podia perder. Em dias solarengos, a refração do sol na cal podia bem ferir a vista, mas naquele baço dia outonal a cidade via-se perfeitamente em todo o seu esplendor marmóreo recortado por vários canais que se entranhavam por ela adentro. Uma única colina arborizada destacava-se no meio da cidade, na cidade velha cercada por outra muralha, e no seu cimo encontrava-se o majestoso palácio de Allahn Anroth. Mesmo à distância a que se encontrava do porto, a sua visão fez com que Lhiannah inalasse de involuntário espanto, pois era verdadeiramente magnífico e nele notou a marca do trabalho das mãos sirulianas que na Sexta Era haviam pela última vez deixado Sirulia para ajudarem os seus irmãos do sul, uma ditosa aliança nunca mais renovada após a Batalha do Sol Nascente. O resto da cidade, porém, embora não deixasse de ser funcional, era dotado de uma beleza clássica e singular que remontava a tempos áureos rememorados com imponentes monumentos de mármore e que também se verificava nas fachadas, pátios e varandas dos edifícios. O único elemento que nela destoava era a grande fortaleza à beira-mar que mais parecia uma velha sentinela a olhar pelo porto e que dava a distinta impressão de ter sido votada ao esquecimento como o membro idoso e não mais produtivo de uma vasta e próspera família.
Lhiannah pagou o restante do combinado com o capitão do barco e requisitou os serviços de um carroceiro moreno e grisalho de basto bigode que passava o seu tempo perto de um armazém de peixe para carregar o caixão de Aezrel. O homem conduziu-os então através das intrincadas ruas pavimentadas do distrito do porto, que pareciam quase impossivelmente limpas após os lamacentos arruamentos tanarchianos que haviam visto; estas tinham mesmo os lados inclinados num ligeiro declive para que aí se recolhesse a água. A princesa e Taislin olharam fascinados para as espaçosas e abertas moradias que ladeavam a larga rua, com fachadas de dimensões consideráveis e embelezadas com ferragens diversas e colunatas de mármore nas janelas e varandas. Havia uma profusão de chaminés com bocas semelhantes a sinos invertidos nas casas que se encontravam junto ao mar e aos canais, locais certamente frios e úmidos naquela época do ano, bem como solários que agora se viam abandonados. Viram variados tipos de edifícios conforme iam avançando pelos distritos, uns maiores e mais suntuosos que outros, e outros ainda que eram autênticos palacetes com esguias torres pretensiosamente ameadas e com belvederes. O fato de não poucos terem três andares era só por si impressionante, bem como a prevalência de janelas de placas de vidro reunidas por redes de chumbo e espaços abertos ao nível da rua por arcadas nos quais se encontravam homens reunidos a conversar. Majestosos arcos de mármore, fontes, renques de choupos-negros e memoriais completavam o quadro, acrescentando-lhe um toque nostálgico que apenas reforçava a afirmação de Ul-Thoryn como a mais gloriosa e plena de significado simbólico das cidades-estado. A carroça atravessou uma ponte sobre um dos vários canais, ao longo da qual também se encontravam habitações e estalas de mercadores, e os três companheiros chegaram a um distrito de edifícios mais modestos que ainda assim seriam a inveja de muitos burgueses noutras cidades.
— Ratos, quanta gente vive aqui? — perguntou Taislin, esfregando o maravilhado pescoço que já lhe doía de olhar constantemente para cima.
— Má de dua centena de milhar, filho — respondeu o carroceiro, que aparentemente tomava Taislin por uma criança. — Quand’eu cheguê aqui em catraio c’a tua idade, já era grande. Agora n’á casa q’chegue p’a tanta gente...
Era verdadeiramente impressionante o constante bulício da cidade, em cujo mar de gente se podia encontrar todo o tipo de pessoas oriundas das mais variadas partes de Allaryia. Mercadores e mercenários, lavradores e dignitários, pisoadores e lapidários, todos tinham um lugar ou motivo para estarem em Ul-Thoryn. Quando por fim atravessaram as muralhas da cidade velha e tornaram a avistar o palácio de Allahn Anroth, já haviam perdido conta do tempo e de alguma forma uma quantidade de bens alimentares havia-lhes ido parar às mãos, embora no caso de Taislin nem todos adquiridos de forma legítima. Lhiannah fora particularmente assediada por mercadores e não só, sendo os seus cabelos louros uma visão rara na cidade sulista, e uma das suas aquisições fora um par de pastéis com pedaços de vitela e aves que comia com Worick para apaziguar a fome, pois o pequeno-almoço fora seco e frugal, e Taislin entretinha-se a testar uns novos botões de peltre na sua camisa. A colina sobre a qual o palácio assentava apresentava uma superfície relativamente plana que subia e depois descrevia uma curva para leste, sendo o resto demasiado íngreme para permitir qualquer tipo de construção. Essa área plana era circunscrita por uma muralha caiada, resguardando uma encosta repleta de euónios cobertos de folhas carmesins, e o carroceiro deteve-se diante dos maciços portões onde os aguardavam guardas armados de partazanas, armas de haste com uma lâmina grande no meio de duas mais pequenas. As suas armaduras caracterizavam-se por traços suaves e arredondados, com uma torneada couraça superior e inferior que juntas formavam uma espécie de ampulheta, e envergavam elmos com aberturas em forma de Y chamados barbudas. A sua libré ostentava a águia e o sol de Ul-Thoryn e também o teixo e as bagas de Lennhau, mas como o carroceiro já havia corroborado boa parte dos rumores ouvidos durante a viagem, isto não constituiu qualquer surpresa para Lhiannah. Os guardas receberam-nos com olhares céticos, e, mesmo quando Worick exibiu o seu sinete, mostraram-se algo dúbios em permitirem a entrada de uma mulher armada, um thuragar couraçado e um burrik que afirmavam trazer algo para lorde Thoryn dentro de um caixão. Worick perdera bastante do seu tão custosamente adquirido tato diplomático, mas Lhiannah pareceu mais régia que nunca ao anunciar quem era e ao exigir ser de imediato levada à presença de lorde Thoryn, embora o sinete nem lhe pertencesse. Taislin limitava-se a ficar de pé sobre a carroça de braços autoritariamente cruzados, acenando com a cabeça perante cada palavra da princesa, enquanto o carroceiro parecia arrependido por não ter cobrado mais pela viagem. Confrontados com a possibilidade de estarem a desagradar a um membro da realeza — e logo da província causadora da mais precária situação diplomática em Nolwyn — os guardas acabaram por aquiescer, enviaram um mensageiro para avisar lorde Thoryn e improvisaram mesmo uma liteira com as suas partazanas para transportarem o caixão. Lhiannah, Worick e Taislin subiram então a escadaria que levava aos portões do palácio, ladeada por uma série de estátuas de mármore e cujos ladrilhos exibiam alternadamente os brasões das oito províncias que anteriormente haviam constituído a nação de Nolwyn. Da escadaria partiam vários trilhos secundários que se estendiam até aos lanços de muralha, cortados por regatos cobertos por pequenas pontes que corriam em cascata e cada um deles representando uma viagem temática pela história da nação sulista com mais estátuas e memoriais. Poucas pessoas freqüentavam os caminhos da memória, serventes na sua maioria que executavam trabalhos de limpeza e alguns bem vestidos membros da corte, e esses olhavam os recém-chegados com interesse. Lhiannah não soube dizer ao certo se o que ouvia nas suas costas eram sussurros ou o mero roçagar das folhas carmesins dos euónios, pois estava demasiado ocupada a tentar domar a repentina apreensão que ameaçava uma rebelião no seu estômago e lhe espalhava um desagradável calor pelas faces acima, acelerando-lhe as batidas do coração à medida que se aproximava do portão que dava para uma praça diante do palácio. Os guardas que o ladeavam permitiram-lhes passagem, e Lhiannah e Taislin tiveram de se esforçar para não ficarem de bocas abertas. Worick já anteriormente estivera no palácio de Ul-Thoryn, mas a princesa e o burrik ficaram pasmados com a praça e as duas ornadas fachadas com colunas coladas à muralha que a ladeavam e que abrigavam cinqüenta armaduras cada, todas elas de mármore com relevos dourados, réplicas fiéis da Hoste Dourada em memória de um dos maiores sacrifícios de antanho. Água escorria de vários ornamentos das fachadas, reunindo-se em longas fontes aos pés das armaduras. No piso estavam representadas quatro enormes águias de asas unidas nas pontas e cujas garras agarravam um vasto sol com um fundo que continha os brasões das restantes províncias num padrão de losangos. Cercada pelo alto muro caiado, a praça tinha ao fundo os portões para o palácio, que por sua vez se estendia até ao início da curva da colina e de seguida subia por ela acima para leste.
— Que coisa tão grande... — murmurou o burrik enquanto percorriam a praça.
A entrada para Allahn Anroth encontrava-se entre as pernas providas de garras de uma desmedida águia de mármore, cujas asas cobriam boa parte da frontaria do palácio flanqueada por duas torres e cujo altivo semblante parecia vigiar atentamente a cidade. Os três ficaram momentaneamente retidos por toda a magnificência e suntuosidade que se lhes depararam no interior, uma verdadeira pletora de frescos e mosaicos de vivas cores que retratavam toda uma cena de fausto e esplendor ao longo da vasta ala — ladeada por colunas sobre as quais assentava outro nível — dentro da qual os passos marciais dos guardas e o cuidadoso arrastar das botas de Lhiannah ecoavam. Era iluminada apenas através de olhos-de-boi e quem a freqüentava eram serventes e cortesãos, que não tardaram a juntar-se aos que vieram do exterior como caudatários de tão estranha procissão. Toda a atenção da qual estava a ser alvo despertou Lhiannah do seu torpor amedrontado e a arinnir assumiu uma postura mais digna da princesa de Vaul-Syrith, caminhando de costas direitas, olhando em frente com firmeza e apoiando propositadamente a mão sobre o pomo da sua espada de forma a dar mais um assunto para os mirones da corte discutirem. A meio das alas, dirigiu-se a eles um aprumado homem grisalho que envergava uma túnica azul de amplas mangas e gola alta e um chapéu circular de pele de castor por cima de um gorro cuja ponta lhe oscilava sobre o ombro. Tinha pele velha esticada sobre uma face de estrutura óssea branda e fidedignos olhos castanho-claros.
— Saudações, princesa Lhiannah, general Worick. Sou Tomenno Eralmo, senescal da casa de Thoryn — apresentou-se com uma elaborada vênia que certamente suscitou protestos das suas articulações. — Perdoai a recepção algo inconsiderada, mas...
— Nós compreendemos, senescal — assegurou-lhe Lhiannah no tom mais imperioso que conseguiu. — A nossa chegada não foi anunciada; porém, estamos cansados da nossa longa viagem, e temos uma certa urgência em ver lorde Thoryn por concernência a um assunto da maior importância para sua senhoria.
— Certamente, princesa — disse o senescal com uma nova vênia, dispensando um mero olhar ao burrik antes de indicar que o seguissem com um ondulante gesto que arrastou a sua prodigiosa manga pelo ar.
A procissão continuou, percorrendo as longas alas palacianas numa ostensiva e quase gratuita demonstração do poder que Ul-Thoryn ainda detinha, e os sussurros de todos os que a precediam viandavam pelas abóbadas, suspeitos e circunspectos.
— Essa lábia não está nada má, cachopa... — comentou Worick com o lado da boca.
— Limitei-me a pensar no que o Allumno diria — gozou Lhiannah numa tentativa de aliviar um pouco a tensão que sentia espalhar-se da sua presença como uma teia de aranha estirada.
Quando por fim chegaram às portas da sala do trono, a arinnir constatou que era aguardada em força pelas cortes de Ul-Thoryn e Lennhau, cujos olhares expectantes lhe recaíram de imediato em cima antes mesmo de entrar. Lhiannah lembrou-se por pouco de aguardar que o senescal a anunciasse, inspirou fundo, e, assim que o seu nome foi proferido, entrou com um largo passo régio que dominou o resto do seu andar até se deter sobre um elaborado círculo de ladrilhos. Lorde Thoryn estava sentado no seu deslumbrante trono na forma de uma águia que o aninhava protetoramente nas suas asas, apoiando o queixo sobre o descontraído punho. Não envergava trajes para a ocasião, somente uma capa vermelha com um broche dourado em forma de sol e uma toga amarela. Uma jovem rapariga com um vestido verde — presumivelmente a princesa Iollina — estava sentada numa cadeira marchetada que fora provisoriamente instalada ao lado do sólio e fitava Lhiannah com grandes olhos azuis de espanto. Do outro lado encontrava-se aquele que devia ser lorde Tylon, um homem alto, careca e com uma basta barba debaixo do queixo. O resto da corte era menos efusivo na sua curiosidade e aguardava a sua palavra com velado e polido interesse. A arinnir fez uma vênia, sem contudo tirar os olhos de Aereth.
— Meu senhor...
— Princesa Lhiannah... — disse o irmão de Aewyre com genuína surpresa que aparentemente ainda não desaparecera. Worick e Taislin postaram-se nos seus flancos e os guardas pousaram o caixão nas suas costas, retirando-se com curtas vênias ao seu senhor. — Agraciais-nos com a vossa inesperada presença. Se ao menos nos tivésseis avisado, poderíamos ter-vos preparado uma recepção à altura...
Aereth olhou então para os outros dois companheiros, tirando o queixo de cima do punho e inclinando-se ligeiramente para a frente. A tiara de ouro com duas asas nas têmporas e o semblante de uma águia na fronte dava-lhe um ar estranhamente... rapinante.
— Worick de Taramon, o famoso general, presumo?
O thuragar acenou com a cabeça e fez uma vênia que acusava falta de prática, evidenciando igualmente um certo desconforto de quem regressara após prolongada ausência a um meio que não lhe agradava.
— E o vosso pequeno companheiro...?
— Taislin Mãosdelã, companheiro e amigo nosso, meu senhor — respondeu Lhiannah convictamente.
— Fala por ti — resmungou Worick em surdina enquanto olhava para os restantes cortesãos. Malditas víboras da corte, não importava em que terra estivesse, pareciam sempre pingar veneno das bocas doces e esconder facas nas mangas debruadas...
— Devemo-vos desculpas pela nossa inoportuna vinda, meu senhor — retomou Lhiannah as formalidades. — Regressamos de uma longa viagem com o vosso irmão, e...
— Ah, sim, o Aewyre... — interrompeu Aereth, incapaz de esconder uma estilha de raiva na voz. — E onde está o meu desnaturado irmão? E o Allumno, o mago que o acompanhava?
«Comecei bem...», repreendeu-se Lhiannah. — Meu senhor, da última vez que vi o vosso irmão, encontrávamo-nos em Tanarch, e presentemente dirige-se para a Cidadela da Lâmina em Laone.
Worick reparou que um dos cortesãos, um homem de meia-idade com barba e cabelo já quase completamente brancos, quase arrebitou as orelhas perante a menção da Cidadela. Tinha todo o ar e porte de um mestre de armas, e o thuragar lamentou que não pudesse ser ele a falar. Estava de longe mais inclinado a dialogar com homens que preferiam espanar a espada em vez da língua; eram mais confiáveis.
— A... Cidadela da Lâmina? — indagou Aereth de sombrolho erguido.
— Meu senhor, a nossa história é longa, e gostaria de vo-la contar, mas antes há algo que deveis saber, a razão pela qual requisitámos uma audiência com tanta urgência. — Algo intrigado, Aereth nutou e pediu à princesa que continuasse com um gesto da mão. — Como deveis saber, o Aew... o vosso irmão partiu para descobrir o destino do senhor vosso pai...
O cortesão robusto no qual Worick reparara baixou a cabeça, algo acabrunhado com o olhar que lorde Thoryn lhe lançou sem virar a cara, e Lhiannah sentiu-se estranhamente compelida a dizer algo em defesa de Aewyre.
— Não acreditava nas histórias que o declaravam como morto, e decidiu descobrir ele mesmo a verdade...
— E como entrais vós na história, princesa, se não vos importais que pergunte?
Lhiannah esperou que o ligeiro rubor nas maçãs do seu rosto não se notasse.
— Eu e o general Worick juntamo-nos a ele, meu senhor. Relatar-vos-ei os detalhes posteriormente... — Ouviu-se um som parecido com o de um riso abafado, mas este foi educadamente ignorado pelos presentes. Ainda assim, um novo e nervoso arroubo de calor fê-la perspirar do lábio superior, e a arinnir acabou por antecipar o que desejava dizer. — Meu senhor... nós encontrámos o vosso pai.
O mudo estrondo com o qual o silêncio tombou na sala do trono quase sobressaltou as duas cortes, e a repentina ausência de som deixou um vácuo no ar que ninguém ousou preencher nos longos instantes que se seguiram. Taislin teve mesmo a impressão de que ninguém respirava enquanto perscrutava individualmente a multidão de caras que os olhavam; embora Lhiannah ainda nem tivesse mencionado O Flagelo, parecia que todos o haviam visto. Lorde Thoryn tentou dizer algo, mas a voz falhou-lhe e viu-se forçado a pigarrear antes de tentar outra vez.
— Princesa...?
Lhiannah ensaiara vários discursos, mas naquele momento, sentindo-se como o epicentro de uma vaga de angústia prestes a rebentar, todos se lhe esvaneceram da mente. Ainda ponderou por um breve instante a relevância de relatar detalhadamente a forma como haviam deparado com Aezrel em Asmodeon, mas, por alguma razão, não lhe pareceu que mencionar gemas anímicas, azigoth e um combate com O Flagelo viesse a contribuir de forma conveniente para a atmosfera. Inspirou fundo, baixou a pesarosa cabeça e indicou o caixão atrás de si.
— Prometi ao vosso irmão antes de este partir que vos traria o senhor vosso pai. — Que mais dizer? — Lamento ter de vos transmitir tal notícia...
Atônitas, ambas as cortes ainda assim conseguiram não eclodir numa deflagração de cochichos e todos se mantiveram respeitosamente silenciosos face à gravidade da situação. Aereth continuava com a incrédula boca estupidamente entreaberta e articulava palavras sem nexo em surdina.
— Worick... — pediu Lhiannah, e o thuragar aquiesceu prontamente, empunhando um cinzel com o qual forçou eficientemente a tampa pregada do caixão.
O som de pregos a soltarem-se causou alguns estremeções entre os cortesãos, e lorde Thoryn piscava os olhos de cada vez que o ouvia, ainda demasiado atordoado para dizer fosse o que fosse. Quando Worick terminou, deslocou ligeiramente a tampa, deu um deferente passo para o lado e cruzou os braços atrás das costas.
— Morreu como viveu, meu senhor — pareceu-lhe correto dizer. — A defender os seus...
Lhiannah concordou com um silencioso aceno da cabeça e convidou Aereth a descer do trono com um olhar triste e compadecido. Este ainda levou mais alguns momentos a reagir até que, instado pelo corpulento cortesão de barba praticamente branca que subiu o estrado e lhe pousou uma mão sobre o ombro, acabou por se erguer e descer lentamente os degraus revestidos por uma alcatifa vermelha brocada a ouro. Lorde Tylon parecia mais intrigado que chocado, mas olhava para os três companheiros com uma certa desconfiança, e os seus dedos permaneciam entrelaçados na sua enraizada barba enquanto Aereth se aproximava temerosamente do caixão. O regente de Ul-Thoryn fora evidentemente apanhado de surpresa pelas palavras de Lhiannah e os seus pés pareciam mexer-se alheios à sua vontade, arrastando-o lenta e dolorosamente para a confirmação de um medo secreto que nunca esperara ter de confrontar. Os seus dedos tocaram a áspera madeira do pé do caixão e foram lentamente percorrendo a borda até Aereth se encontrar à cabeça do fúnebre receptáculo e olhar pela abertura que Worick lhe deixara. O regente ficou hirto e de boca entreaberta, fitando algo que os outros presentes apenas imaginavam e eles próprios temiam ver, e a única manifestação do seu corpo foi o embranquecimento dos nós dos dedos que começaram a agarrar a borda com força, bem como um quase imperceptível tremor do seu braço.
— Lamento muito, meu senhor — disse Lhiannah, sem obter a resposta que de qualquer forma não esperava. Arrependeu-se de não ter entregue a carta de Allumno antes de revelar a terrível verdade, mas era algo que podia fazer mais tarde.
Um pesaroso véu cobriu as bocas de todos os presentes, e apenas o nervoso roçar de tecidos se fazia ouvir na sala. Um ligeiro tinir de guizos destoou como uma risada num funeral, mas poucos registaram a discreta chegada de Dilet, o bobo, com algo mais que um mero olhar de relance. Todos menos lorde Tylon, pois o regente de Lennhau olhou longamente para o bobo, que mantinha uma cara incaracteristicamente calma e serena e fitava a cena com uma curiosidade quase infantil. O desconforto estava patente nas expressões franzidas de todos, mas ninguém se atreveu a sequer pronunciar-se até lorde Tylon bater com as mãos uma na outra para chamar a atenção.
— Nós... deveríamos deixar lorde Thoryn a sós. Por uns momentos. — Enquanto os outros se entreolhavam em silente conferência, Taislin reparou que o homem trocou um olhar cúmplice com o bobo, que este não retribuiu. — Vinde — insistiu, empurrando suavemente dois cortesãos e indo buscar a filha ao cadeirão.
Todos pareceram achar a decisão sensata e contornaram o caixão ao sair. Algumas cortesãs não resistiram a esticar o pescoço para um vislumbre, e muitas levaram a mão à boca, deixando escapar arquejos por entre os dedos que deram origem a murmúrios impressionados assim que as portas foram transpostas. Worick olhou para Lhiannah à espera de uma confirmação que a princesa deu ao acenar com a cabeça, pegando em Taislin pelo ombro e retirando-se ela também com o thuragar para deixarem o imoto e silente lorde Aereth entregue à sua angústia. O burrik foi o único a espreitar para trás, e a última coisa que viu antes de os guardas fecharem as portas foi a sutil aproximação do bobo, que se acercava lentamente do seu senhor, sorridente. Mas isso seria de esperar de um bobo.
— Uma história deveras... invulgar — avaliou lorde Tylon, bebericando vinho aguado de um cálice de prata.
As duas cortes encontravam-se reunidas na grandiosa ante-sala que precedia a sala do trono, todos de pé e servidos por um pequeno batalhão de serventes que fora mobilizado com bandejas e acepipes para atender às necessidades fidalgas dos seus superiores. Formara-se um círculo humano em redor de Lhiannah, Worick e Taislin, que por pouco não haviam sido avassalados pela tempestade de perguntas antes que lorde Tylon pudesse intervir em seu socorro. O senhor de Lennhau assumira perfeitamente o papel de moderador de emoções em tão angustiante situação para todos os presentes, e questionara Lhiannah e Worick a respeito da morte de Aezrel e não só. Taislin aproveitara o monopólio de lorde Tylon para partilhar as suas peculiares versões da saga com todos quantos se mostrassem interessados, sobretudo serventes e serviçais, pois Lhiannah e Worick pareciam patrimônio exclusivo da corte.
— Invulgar, pois, mas verdadeira — asseverou Worick com um pouco mais de firmeza do que seria diplomaticamente aconselhável.
O regente absteve-se sabiamente de comentar e limitou-se a acenar curtamente com a cabeça de olhos fechados ao beber mais um gole.
— A princesa veio de Tanarch até Ul-Thoryn com o corpo de lorde Aezrel? De tão longe? — perguntou Iollina, que já por várias vezes surpreendera o seu pai ao pronunciar-se. Os seus olhos azuis não largavam Lhiannah e parecia beber cada palavra da arinnir.
— Sim, princesa. Fizemos os possíveis para conservar o corpo de lorde Aezrel, e só espero que tenham sido suficientes para lhe fazer jus à memória.
— E não haveis passado pelos domínios do senhor vosso pai? — indagou Tylon, pousando o cálice vazio na bandeja do pajem mudo. — Desejais mais vinho?
— Não, obrigada. E não, paramos somente em Sardin e velejámos diretamente para Ul-Thoryn desde então.
— Entendo... E não haveis deparado com ninguém pelo caminho?
— Não, mantivemos as nossas identidades em segredo. Ouvimos rumores preocupantes em Sardin, e achámos por bem não fazer ou dizer nada que pudesse criar mais problemas indevidos com a nossa presença.
— Uma decisão avisada — elogiou lorde Tylon, deixando contudo a impressão de que tirara outras ilações da resposta da princesa. — A propósito, o que vos levou a...
— ...combater um exército de drahregs?! Deuses, eram muitos? — perguntou a aia de Iollina, levando as mãos ao peito.
— Chegavam até ao horizonte — afirmou Taislin com um amplo gesto da pequena mão, segurando um cálice demasiado grande com a outra. — Berravam tanto, que o chão tremia, e quando soltaram as flechas, o céu de nuvens negras ficava ainda mais escuro!
«Eu sempre disse que o raio do burrik era capaz de se divertir num funeral», pensou Worick, a cujo ouvido as aflautadas hipérboles de Taislin não escaparam, nem mesmo entre o constante murmurar de todas as pessoas que o rodeavam. Sentia-se estranhamente encurralado, mas nem mesmo a sua falta de sensibilidade lhe permitiu perguntar a lorde Tylon quando tempo achava que Aereth iria demorar. Afinal, o regente não passava de um rapaz que acabara de descobrir que perdera o pai, pelo que o thuragar se resignou a comportar um pouco mais o interminável interrogatório da corte, que não parecia ficar minimamente dissuadida com as suas respostas curtas. Assim que Lhiannah chegara à parte do regresso d’O Flagelo, as reações haviam sido muitas e diversas: espanto inicial seguido de incredulidade e de uma quase jocosa negação do que acabara de ser afirmado, como se tudo não tivesse passado de um elaborado esquema de agitação pela parte da princesa. Tal como a arinnir esperara, ninguém ousara ser rude ao ponto de a chamar de mentirosa, mas a maior parte dos seus ouvintes achava difícil ou recusava-se a acreditar no que ela dizia. A princesa Lhiannah, o príncipe Aewyre, o conselheiro Allumno e quatro outros companheiros haviam calcorreado o caminho até Asmodeon? O Flagelo, preso dentro da Espada dos Reis e regressado a meio da batalha para matar lorde Aezrel, por sua vez preso na espada d’O Bastardo? O Anátema vivia uma vez mais e os preparativos para a guerra deveriam começar? O príncipe Aewyre ia treinar para a Cidadela da Lâmina com a Espada dos Reis para combater a vindoura ameaça? Certamente, se a princesa assim o dizia... mas não...? Porventura...? Certamente...? Talvez...? Uma série de reticências e céticos olhares cruzados que irritaram Lhiannah sobremodo, embora esta se esforçasse por ignorá-los, pois de qualquer forma correspondiam ao que esperara. Ainda tinha a carta de Allumno, mas essa estava especificamente dirigida a lorde Thoryn e não a iria mostrar a mais ninguém, pelo menos por enquanto.
— Haveis visto... O Flagelo, princesa? — perguntou Iollina, que parecia estar a falar com a heroína de uma qualquer história lida pelas suas amas durante a infância.
— Não digas disparates, filha — repreendeu-a lorde Tylon com um brusco gesto da mão que fez com que esta se encolhesse. — Não incomodes a princesa Lhiannah.
— Não é disparate algum, meu senhor — asseverou Lhiannah, incapaz de ocultar por inteiro a contrariedade na sua voz. — Embora eu desejasse que assim fosse. Eu vi-o com os meus próprios olhos. Matou lorde Aezrel diante de mim e dos meus companheiros, como o general Worick o poderá corroborar.
O thuragar acenou com a cabeça, grunhindo em anuência, mas lorde Tylon limitou-se a suspirar pelo nariz de ambíguos olhos postos no chão. Ao contrário dos seus companheiros, Taislin não se importava muito com a credibilidade do que contava, até porque centrava as suas histórias nas suas façanhas e nas tropelias dos seus companheiros, e os serventes acompanhavam cada interjeição sua com exclamações de espanto e instigadora incredulidade. O burrik não estava propriamente alheado da seriedade da situação, mas estava certo de que nada podia fazer a respeito, e que eram a Lhiannah e o Worick quem haviam tomado as rédeas da conversa verdadeiramente importante. Além do mais, os eminentes membros da corte açambarcavam-nos aos dois, deixando Taislin como única fonte de informação para todos os restantes, e as aias, serventes e afins serviçais não se coibiam de o incentivar a relatar todos os detalhes das suas aventuras.
Não foi senão quando as portas da sala do trono se entreabriram que o impasse terminou e o silêncio regressou. Os dois guardas postados no exterior hesitaram apenas um mero segundo antes de tomarem a iniciativa de abrirem as portas por completo numa brusca seqüência de eficientes movimentos acerados, regressando de seguida aos seus postos. Aereth estava sentado no trono ao fundo da sala, e olhava para ninguém em particular como se esperasse que entrassem. O caixão continuava aberto, tal como o haviam deixado antes de sair, e o bobo caminhava a trôpegos passos para o sólio dourado, contornando o caixão e fazendo-lhe uma quase jocosa vênia ao passar por ele. Lorde Tylon foi quem deu o primeiro passo, indicando a Lhiannah e Worick com ambas as mãos que o seguissem, e todos os outros assim o fizeram, silenciosos e obedientes. A procissão entrou lenta e hesitantemente, todos de olhos postos em lorde Thoryn, mas este não esboçou qualquer reação e limitou-se a olhar para um ponto indeterminado da sala à medida que os cortesãos se iam dispersando ordeiramente numa formação devidamente hierarquizada atrás do caixão. Como o regente nada disse mesmo após os passos e arrastares de pés terem cessado, Lhiannah tomou a liberdade de avançar, tirando a carta enrolada de Allumno que guardara presa ao cinto antes de entrar no palácio.
— Meu senhor, o conselheiro Allumno escreveu-vos esta carta antes de nos separarmos — explicou, erguendo o objeto referido na mão. — Ele certamente explicará o que sucedeu melhor do que eu.
Os olhos castanhos de Aereth readquiriram então vida e o regente observou atentamente a princesa enquanto esta se aproximava dos degraus do seu estrado. Sabendo bem o que o homem devia estar a passar, a princesa tentou transmitir o máximo de compaixão com o seu olhar antes de subir cinco degraus e ajoelhar-se diante do regente, estendendo-lhe a carta. Aereth pegou nela com um lento e sereno movimento e desenrodilhou o rolo com a placidez de quem estava evidentemente a encurtar as rédeas das emoções. O bobo observava a cena com a cara estúpida que lhe cabia, tinindo o ocasional guizo com um movimento da cabeça. Lhiannah recuou e preparou-se para voltar para o seu lugar, mas lorde Thoryn reteve-a inesperadamente.
— Sinceramente, princesa, se o meu pai me usasse para tão perigoso esquema, eu insurgir-me-ia.
Lhiannah deteve-se abruptamente, como se algo lhe tivesse congelado os pés ao chão.
— E um esquema de tal baixeza e vileza... Não, confesso que não o esperava do vosso pai, mesmo sabendo que ele não aprova a minha aliança com Lennhau.
— Meu senhor...? — perguntou Lhiannah de sobrancelhas franzidas, virando-se uma vez mais para o regente.
— Isto... — continuou, Aereth, abanando ligeiramente a carta na sua mão, com a qual de seguida indicou o caixão — e aquela... farsa obscena... só poderiam provir de uma mente mais maléfica do que eu alguma vez julgara possível.
Ouviu-se um chocado arfar coletivo entre os cortesãos. Demasiado atônita para responder, Lhiannah apenas conseguiu ficar de boca aberta e incrédulos olhos postos nos de lorde Thoryn, que continuava a abanar a carta como um tique de idoso.
— Deturpar a memória do meu pai... trazer o seu destino à tona na forma de uma qualquer carcaça decomposta, e virar contra mim um dos meus conselheiros... Com que objetivo, princesa? — inquiriu Aereth, erguendo-se do trono e apontando para ela com a carta amarrotada na mão. — Desacreditar o prestígio e a honra da minha casa? Fragilizar-me com a confirmação de algo que eu há vinte anos sei?
— Meu senhor... — titubeou Lhiannah, chocada. — Isto não é de todo o que...
— Não, princesa? Não é esta a mão de um dos meus conselheiros? Não foi convosco que o meu irmão desapareceu, após um qualquer encontro com um senhor da guerra latvoniano? Não foi o vosso desaparecimento a causa da erupção de rumores e agitações que desde então têm grassado por todo Nolwyn? — Aereth erguera ligeiramente a voz, sem contudo gritar. A despeito do tom das acusações, parecia mais magoado que verdadeiramente furioso. — E agora isto... uma carcaça decomposta, o pretenso corpo do meu pai...
— Meu senhor, decerto o reconheceis! Eu viajei com o vosso irmão e o vosso conselheiro, digo-vos o que eles me pediram que vos dissesse!
— Deveras? — indagou Aereth, descendo dois degraus e fazendo a princesa recuar involuntariamente. O bobo sorria como se observasse uma burlesca cena de teatro, e a mão de Worick aproximou-se instintivamente do martelo. — O conselheiro e o príncipe fugitivos, a sacra relíquia de Ul-Thoryn roubada, e um fortuito encontro com a princesa de Vaul-Syrith... Sim, porventura ter-me-eis dito o que eles vos disseram... traidores!
Taislin aproximou-se de Worick, ciente de que as coisas não estavam a correr conforme esperado, mas o thuragar limitou-se a pedir-lhe que aguardasse com um gesto da mão. Ao contrário da maioria dos cortesãos, lorde Tylon limitava-se a observar destacadamente como se a cena não lhe dissesse respeito, embora o que devia ser o seu paladino se achegasse discretamente ao thuragar.
— Sim, agora vejo. Traidores, os dois! — acusou Aereth o ar, rasgando a carta com ambas as mãos e atirando os pedaços para os lados. O bobo tapou a cabeça com as mãos e encolheu-se nos degraus do estrado, temente e gemebundo.
O veterano de barba e cabelos praticamente brancos fez tenções de avançar, mas lorde Tylon reteve-o com o braço.
— Deixai lorde Thoryn fazer o que acha melhor.
— Meu senhor...! — exclamou o paladino, empurrando irrefletidamente o braço do regente de Lennhau.
— Silêncio, Daveanorn! — gritou Aereth pela primeira vez. — Em questões de estado a vossa opinião não é requisitada. Guardas!
Com precisão e rapidez mecânica, estes surgiram de imediato das portas, empunhando as partazanas com ambas as mãos e prontos a seguirem as ordens do seu senhor.
— Detenham a princesa Lhiannah, o general Worick e o seu companheiro imediatamente!
O que se seguiu foi confuso e caótico. Homens e mulheres vociferavam de espanto e com uma certa medida de medo mal dirigido diante do avanço dos guardas, o bobo começou a vaticinar desgraça e ruína com gritos teatrais, Worick soltou uma exclamação e tentou avançar já de dedos crispados no cabo do martelo, mas o paladino de lorde Tylon empunhou o machado e ameaçou-o pelas costas, colocando-lhe a ponta recurva da lâmina perto do queixo.
— Por favor, não resista, general — ouviu o homem dizer com a sua profunda voz grossa, pontuando aquele que era mais do que um pedido com a ponta da arma.
Diante da visão do aço, os cortesãos afastaram-se sabiamente, facilitando a passagem dos guardas, que, ao verem que o thuragar armado erguera as mãos, se dirigiram imediatamente à chocada princesa e a Taislin. Lhiannah não resistiu, hipnotizada como estava a olhar para Aereth, cujos ombros erguiam acentuadamente a capa com a sua respiração que teimava em desacelerar. O burrik, contudo, pulou como um gato assustado assim que um dos guardas veio na sua direção e desatou a correr por entre amedrontadas pernas. Mais guardas surgiram da porta, pelo que Taislin mudou de direção e optou por correr para uma das colunas que subiam pela parede até ao teto abobadado. Dando a idéia de que se iria encurralar a si próprio, o burrik porém surpreendeu os seus perseguidores ao pular contra a parede, impelindo-se dessa forma contra o pilar, do qual saltou de corpo esticado para agarrar a ornamentada corda da qual um dos candelabros pendia. Acicatado pelas reverberações dos gritos dos guardas e dos cortesãos, Taislin subiu então agilmente pela corda acima com braços e pernas, oscilando-se de seguida para cima de um ressalto debaixo de um olho-de-boi, cuja colorida vidraça partiu com um pontapé antes de sair pela abertura.
Enquanto o seu companheiro fugia, Lhiannah nem se mexeu, olhando estuporada para Aereth no momento em que um indeciso guarda se postava nas suas costas, aguardando ordens. Worick também deu a entender que não iria reagir, tanto pela surpresa como pelo fato de a ameaça do paladino de lorde Tylon ter um tom inesperadamente real. Por sua vez, o regente de Lennhau mantinha-se calmo e sereno, olhando simplesmente em redor e franzindo o cenho ao ver que Taislin escapara. Iollina fazia o mesmo que o pai, embora com olhos arregalados e a pequena boca pintada entreaberta.
— Apanhem esse burrik! — comandou Aereth, apontando para as portas, e os outros guardas que haviam entrado correram a acatar a ordem. O regente baixou então o braço, inspirou fundo e tornou a olhar para Lhiannah. — Princesa Lhiannah, general Worick, pelo vosso envolvimento nesta insidiosa trama, estais doravante em meu poder. Guardas, tratem-nos com o respeito devido ao seu estatuto, e levem-nos para a torre do belver.
— Lorde Thoryn! — berrou Worick, tirando os olhos da lâmina do machado, mas mantendo o resto do seu corpo imóvel. — Não podeis...!
— Tirem-nos da minha frente! — gritou Aereth, cortando o ar com um brusco gesto do braço.
O guarda atrás de Lhiannah pediu-lhe delicadamente que o seguisse, mas não havia maneira de a arinnir tirar os olhos do regente, pelo que o homem se viu forçado a pegar nela pelo ombro. Os seus ouvidos captavam de forma indistinta as vozes dos cortesãos e os vitupérios de Worick, mas a princesa sentia-se estranhamente destacada de todos os eventos que a rodeavam e que lhe haviam por completo escapado ao controlo. Sentiu que estava a ser delicadamente puxada para longe do trono, mas nem assim parou de fitar Aereth com uma expressão de total incompreensão na cara. Apenas uma coisa a fez baixar o olhar: o sorriso maquiavélico do bobo que por pouco não lhe chegava aos inesperadamente argutos olhos.
Pela primeira vez em semanas, Quenestil sentia-se sereno. Preocupado, inseguro e ainda atormentado por dúvidas e decisões por tomar, mas ao menos sereno e relaxado. Gul-Yrith era sem dúvida o lugar mais seguro onde poderia estar com Slayra, mas as suas opressivas e altas muralhas, a eterna vigilância dos sirulianos, o cheiro seco a aço e pedra e os pátios quase estéreis da fortaleza haviam-no sufocado durante as últimas semanas. Sentira-se como um animal enjaulado, e calcorreara toda a fortaleza numa questão de dias, suscitando comentários incomodados dos sirulianos e queixas de Slayra devido à sua ausência. Alguns dias atrás, não agüentara mais e aproveitara o seu saturado estado de espírito para requisitar a permissão do Castelão de Gul-Yrith para sair da fortaleza e bater o terreno a oeste, uma vez que no mês decorrente já haviam sido apanhadas três harahan e sete nycatalos a tentarem transpor as muralhas. Os sirulianos estavam cientes do chamamento que emanava do outro lado do Istmo Negro, e os adarves andavam bem vigiados para evitar que um rebento sequer da progénie d’O Flagelo respondesse ao sombrio apelo. O Castelão não vira razão alguma para recusar o pedido e concedera-lhe permissão para acampar nos terrenos adjacentes. Slayra, contudo, não ficara nada satisfeita com a idéia. Quenestil tentara explicar-lhe que precisava de respirar, que se sentia demasiado preso, o que a eahanoir de alguma forma interpretara como uma afirmação de que era ela quem o prendia e que queria fugir. Além do mais, era perigoso. Sem paciência para discutir, o shura virara-lhe as costas e saíra de Gul-Yrith sem mais uma palavra com o equipamento às costas, arrependendo-se nesse mesmo dia da forma arrebatada como se separara de Slayra. Devia ter sido mais paciente, sabia-o bem, mas tentara explicar à eahanoir que, se ficasse mais tempo entre as muralhas, o mais certo era enlouquecer, e esta não se mostrara minimamente compreensiva.
De qualquer forma, embora se arrependesse da forma como o fizera, não estava de todo arrependido de ter saído da fortaleza, e sentia-se livre como havia muito tempo não se sentia, em paz com o seu interior e enchendo os pulmões com o ar frio da Sirulia outonal. Fizera um abrigo com um esguio tronco inclinado e apoiado sobre uma árvore bifurcada, coberto com uma treliça de raminhos e gravetos e com um tapete de detritos debaixo do cobertor de peles. Slayra dificilmente compreenderia como era possível que o eahan preferisse dormir ao frio e ao relento — principalmente tendo em conta que já começara a nevar — e comer raízes e tubérculos quando tinha um quarto e comida quentes à sua espera. Fosse como fosse, sentira muita a falta de estar em comunhão com a natureza, e não via as privações pelas quais se forçava a passar como algo mais que a rescisão voluntária de confortos com os quais de qualquer forma nunca aprendera verdadeiramente a viver. Sentado sobre um pedregulho aninhado num pequeno outeiro, envergando as suas peles de volverino e uma de urso que trouxera emprestada, Quenestil bafejava alegremente a sua respiração condensada enquanto se ocupava a tirar o fio de crina de cavalo do arco ocarr de Lhiannah que acabara por ficar para si. O frio da Sirulia era mais úmido que o de Karatai, e incorria no risco de os filamentos de tendão absorverem demasiada umidade se não o fizesse. Além do mais, o arco fora bastante maltratado na tempestuosa batalha de Gul-Yrith, e apenas por milagre o conseguira secar por completo na forja da fortaleza. O trabalho ocarr era exímio, feito de chifre, madeira e tendão, e Quenestil sabia que nunca seria capaz de usar um dos enormes arcos longos sirulianos, pelo que teria de tratar muito bem da arma. Aewyre costumava implicar com ele devido ao aplicado trabalho de manutenção que os arcos requeriam, comparando-os a «rameiras manteúdas e niquentas, sempre com medo do frio ou calor» e enaltecendo as virtudes de uma boa e fidedigna espada, que, tal como a amizade de um bom amigo, apenas requeria uma amolação regular. Quenestil sorriu ao recordar-se do seu eterno remoque de que a «rameira» lhe podia matar o «amigo» à distância, ao qual Aewyre inevitavelmente retorquia com um desafio para o tentar à distância que se encontravam um do outro, e ambos acabariam sempre no chão embrenhados numa luta de boa índole.
— Pois é, meu amigo, esta «rameira» em particular dá muito trabalho — deu o eahan consigo a dizer em voz alta.
A paisagem em redor era relativamente plana com alguns outeiros isolados como aquele em que Quenestil montara o seu acampamento, e encontrava-se coberta por um manto de neve. Pequenos grupos de árvores isoladas e os sulcos de alguns regatos congelados eram as únicas características evidentes do terreno, mergulhado num sossego crepuscular de céu roxo com farrapos de nuvens rosadas, e a quietude era balsâmica para o shura. Terminou a manutenção do arco, que adquirira uma forma de crescente sem o fio, meteu-o dentro de um recipiente de couro macio para o resguardar da intempérie, levantou-se, meteu as luvas de pele de coelho e abriu os braços, estalando o pescoço tenso. Tivera a sorte de apanhar um pequeno lagópode desorientado que dera um bom jantar e preparava-se para entrar em sintonia com o mundo que o rodeava, mas pensar em Aewyre despertara-lhe sentimentos que haviam estado latentes desde a sua separação. Continuava-lhe demasiado vivo na memória o que acontecera da primeira vez que o haviam feito, bem como a constante sensação de culpa por ter abandonado o seu amigo quando este precisava dele. Era certo que lhe dissera que nada podia fazer, que era algo que teria de levar a cabo sozinho, mas não passava um único dia sem pensar no seu amigo a viajar sozinho com o maldito drahreg, carregando consigo uma culpa e responsabilidade que homem algum deveria arcar sem ajuda. Ainda não conseguira conceber ao certo o quanto poderia vir a depender de Aewyre, uma vez que O Flagelo regressara...
Quenestil olhou supersticiosamente em redor e para cima do outeiro, mas tudo estava sossegado. Pensar n’O Bastardo como uma ameaça real em vez de um pesadelo do passado estava a ser mais difícil do que julgara, apesar da exposição diária aos avisos e sermões dos sirulianos, que de uma maneira ou de outra nunca o haviam visto de outra forma. Seriam mesmo todas as muralhas da Sirulia seguras contra O Flagelo, o Usurpador de Deuses, o Segundo Pecado, o Mal Encarnado? Só podia esperar que sim, e que a Mãe os ajudasse a todos. E a Aewyre; mais do que qualquer outro, o seu amigo iria precisar de toda a ajuda que conseguisse arranjar. Também pensava ocasionalmente nos seus restantes companheiros, mas, com a exceção de Allumno, estes haviam ao menos partido na companhia uns dos outros; Aewyre ficara verdadeiramente entregue a si mesmo, destituído de todos os seus sonhos e esperanças e portando aos ombros o fardo de uma incumbência digna dos heróis de tempos lendários: matar O Flagelo. E Quenestil deixara-o ir sozinho. Não podia ter deixado a Slayra, era a mulher que amava e em breve seria a mãe do seu filho, mas o peso da amizade não era nem por isso menos sentido na balança da sua consciência, que já anteriormente permitira ao seu coração vencer. Um amigo seu morrera por isso, e embora a idéia de culpar Slayra pelo sucedido fosse absurda, a própria eahanoir sentira-se responsável e em certos momentos de maior dúvida o shura não podia evitar que determinados absurdos lhe passassem pela cabeça.
«Absurdos... pois, tão absurdos como saber que O Flagelo está de volta e à espera do outro lado do Istmo Negro», deduziu Quenestil. «Maldição, isto é tempo a mais agora que saí de Aemer-Anoth. Ando a pensar demasiado...»
Um arrepio e a impressão de movimento no canto do seu olho fizeram com que o eahan tornasse a olhar em redor. Os seus próprios pensamentos podiam bem estar a estimular-lhe a imaginação, mas Quenestil cedo aprendera a confiar em tudo o que fosse instintivo enquanto no ermo, onde as racionalizações eram freqüentemente mais perigosas que as presas de qualquer predador. Não se encontrava nada que se mexesse à vista, mas esse era um sentido do qual não podia depender quando a ameaça de harahan era uma realidade e as sombras do crepúsculo se espalhavam pela terra. O seu arco estava sem fio e dentro do recipiente, e embora ainda não tivesse descortinado a ameaça que pairava em redor, não estava disposto a dar-lhe o tempo que gastaria a preparar a arma. Em vez disso, levou um joelho ao chão e afundou uma mão enluvada na neve para entrar em sintonia com o pulsar vital do terreno. Tal como esperara, este encontrava-se entorpecido pelo frio, revelando apenas os tíbios movimentos de pequenos animais isolados, o murmúrio modorrento da terra, o escorrer da água por entre indiferentes seixos e o quase inaudível ranger das árvores geladas. Porém, a meio do circundante frio que permeava tudo aquilo que os seus gélidos dedos tocavam, havia um latejar de calor semelhante ao afluxo de sangue a uma ferida infectada. Os olhos de Quenestil abriram-se, despertos, e o eahan levou a mão ao cabo do facalhão ao erguer-se numa posição agachada, tenso e atento como um volverino. Continuava sem ver nada em redor, mas a impressão residual do que sentira latejava como pele abrasada e assegurava-lhe além de qualquer dúvida que algo se encontrava nas redondezas. Quenestil desembainhou lentamente o facalhão, recuou para perto da árvore sobre a qual montara o abrigo e andou em lentos círculos com os seus orbes em ziguezague dentro dos atentos olhos. Sentiu um desnatural calor doentio que parecia ter sido arrastado pelo vento e cujo odor fez com que Quenestil parasse e fechasse a boca, exalando através do nariz para se libertar do cheiro. Porém, este flutuou à sua volta como um miasma, mas antes que Quenestil pudesse tapar a boca, captou uma vez mais um sutil movimento no canto do olho que fez com que se virasse bruscamente, empunhando o facalhão. O repentino movimento obrigou-o a inalar, e embora a sua garganta não ficasse minimamente irritada, o eahan tossiu instintivamente. O calor era sutil e apenas se fazia verdadeiramente sentir devido à fria temperatura circundante, mas havia nele uma qualidade quase febril que parecia espessar o ar que respirava, tornando-o insalubre como o do cubículo de um doente. A sua mente laborava furiosamente para desvendar o tipo de ameaça que se ocultava enquanto o seu instinto se esforçava para a reprimir de forma a mantê-lo vivo, e foi durante esse breve conflito que o eahan sentiu algo arranhá-lo violentamente debaixo da omoplata.
Quenestil grunhiu e girou em si, golpeando o ar com o facalhão e tentando seguir aquilo que o iludia, conservando-se sempre na sua visão periférica como um vulto febril sem nunca se revelar. Levou a mão livre às costas e molhou-a com sangue quente que lhe escorria de arranhões debaixo das suas peles rasgadas. O ferimento ardia em brasa e a temperatura do seu corpo começou lentamente a subir, fazendo gotículas de suor brotarem dos seus poros. O odor doentio permanecia, parecendo ter-se instalado precisamente na pequena área em redor da árvore que Quenestil circundava e à qual se encostou para evitar outro ataque por trás.
— O desdouro, deixarem um homem egro fenecer solito... — disse uma voz febricitante atrás da árvore, e Quenestil tropeçou de imediato ao seu encontro de facalhão em riste, mas, ao contornar a árvore, não havia nada à vista.
O eahan grunhiu e cerrou os olhos ao ser novamente arranhado, desta vez na ilharga, e tornou a cortar o ar em fútil reação. Fosse o que fosse, o seu inimigo estava a engodá-lo como a uma presa, mantendo-se fora de vista, e Quenestil não sabia o que enfrentava. O novo ferimento ardeu tanto como o primeiro, e os músculos das suas costas começaram a retesar-se. Mais um movimento no canto do olho, mais um inútil tropeção na neve ao virar-se para enfrentar um ataque que acabou por não vir.
— Axes árdegas... febre que escocha...
A voz parecia sempre vir das suas costas, sussurrada ao seu ouvido, mas, sempre que Quenestil se virava, não havia nada à vista e sentia que ia ser atacado por trás ou pelo lado, o que o mantinha em constante movimento. Quem falava era claramente tanarchiano e delirante, mas humano algum poderia confundi-lo de tal forma. Antes que o atacasse outra vez, Quenestil abanou a cabeça, esforçou-se a relaxar e levou o joelho ao chão para entrar uma vez mais em sintonia com o terreno. Estava tenso e ferido, mas esperava que o agudo destoar do seu agressor com o pulsar vital da natureza o ajudasse a destacá-lo e prever os seus movimentos. Fechou os olhos, pois estes aparentemente apenas ajudavam à sua confusão, e espalmou a mão contra o solo, inspirando uma lufada de ar insalubre pela boca e sustendo a respiração enquanto fazia os possíveis por se concentrar. Tal como esperara, a presença alienígena era como uma ferida purulenta no terreno, uma indistinta mancha febril numa fresca carpete nívea que pulsava com batidas virulentas. Foi quando esta irrompeu como uma quente lesão lancetada que Quenestil soube que ia ser atacado, e estocou cegamente para a esquerda, rasgando algo com a ponta do facalhão antes de algo por sua vez lhe escarpelar o ombro esquerdo, rápido demais para que visse mais que um vulto borrado. O eahan rebolou pela neve, rolando com o ataque, e ergueu-se numa quase acocorada posição de combate para o seu atacante, que se detivera a alguns passos de distância e se encontrava de costas para ele. O sol pouco mais era que um rebordo sobre os outeiros a oeste, e a sua luz residual e o fato de ter acabado de abrir os olhos pouco mais lhe permitiram distinguir além daquilo que aparentava ser um andrajoso vulto humano numa posição de quem acabara de parar a meio de uma corrida. Estava imóvel, embora pingasse sangue da ponta dos dedos do seu braço ferido, e o shura refreou-se de o atacar para que este assim permanecesse e lhe desse tempo para o identificar.
— Solito ao friasco — prosseguiu o seu adversário com a sua delirante ladainha, erguendo o braço atingido em aparente contemplação da sua ferida. A ponta do facalhão de Quenestil rasgara-lhe a pele ao longo do macilento antebraço, deixando-lhe um feio corte entalhado que todavia era apenas uma ferida superficial. — A mercê dos rabazes...
— Quem é você? — rosnou Quenestil, sentindo que a sua vista começava a adquirir contornos febris que lhe tornavam a visão periférica algo difusa. Os arranhões ardiam como brasas e o eahan sentia-os inchar de vermelhidão.
A voz do shura despertou o seu atacante do seu breve momento meditativo e este olhou por cima do ombro como se se tivesse apercebido da presença do eahan pela primeira vez, virando-se então para ele. Mesmo na fraca luz ambiente, Quenestil reconheceu-o pelo que era. Um corpo esgalgado de carnação macilenta, revestido por meros trapos acastanhados que lhe pendiam dos braços como diáfanas asas rasgadas, cabelos ralos e um bigode escuros e ensopados de suor que lhe escorria da testa, olhos cavos e febris, membros de articulações inchadas, dedos de falanges nodosas com unhas demasiado compridas para a escassez de sabugo e pés revestidos de ligaduras e queimados pelo frio que pareciam vaguear acima do solo numa espécie de delírio flutuante. Era um nekkr, apenas mais uma desafortunada alma caída nos ardis d’O Flagelo, e o pouco que Quenestil sabia acerca de tais criaturas foi o suficiente para o convencer de que podia estar em apuros. Nunca deparara com um nekkr, mas as histórias que ouvira falavam de enfermos que, abandonados pelos seus e pela esperança, sucumbiam a uma nefanda maleita que os tornava doentios parasitas que existiam em parte no mundo dos vivos e em parte no delirante mundo da percepção distorcida dos delírios febris. Já fora afetado pelo seu hálito malsão e arranhado pelas suas infectas unhas, e começava a sentir os febricitantes sintomas do toque do nekkr.
— Estás egro outrossim? — perguntou este com uma voz seca pela febre. — Agora vais saber como é, sofrer solito...
Quenestil retesou-se, pronto para um novo ataque. Nekkr eram almas penadas cuja única alternativa para o fim do seu sofrimento era sugarem a linfa de outros até conseguirem debelar a sua mórbida condição, o que resultava na sua morte definitiva e na propagação da praga, pois a vítima de um nekkr adoecia gravemente e acabava por se tornar no monstro que a apeçonhentara. Embora os seus delírios febris os tornassem adversários perigosos e imprevisíveis, não eram particularmente fortes, até porque andavam em constante sofrimento febricitante, mas o seu doentio toque enfraquecia as vítimas, tornando-as presas fáceis. Determinado a não ser uma, o shura levou a mão ao dente de volverino que lhe pendia do colar e rosnou desafiadoramente, tentando focar a visão turvada pela febre e pelo suor que lhe escorria para os olhos. Fosco e intermitente, o nekkr pareceu flutuar lentamente na sua direção como um predador que via a presa enferma, mas ainda estava incerto quanto à sua vulnerabilidade, e o eahan decidiu tirar proveito dessa incerteza, fingindo um súbito assomo de febre. Deixou-se cair de joelhos ao chão, gemendo de olhos cerrados e levando a mão do facalhão ao ombro arranhado como se este lhe estivesse a causar mais dor que a que sentia. Sabia que não podia depender dos seus sentidos com o nekkr, pelo que manteve os olhos fechados e aguardou o ataque que certamente não tardaria, despertando a sua sensibilidade instintiva para com aquilo que o rodeava. Uma impressão de ameaça iminente aguilhoou-o, e Quenestil estocou em frente, raspando as visíveis costelas do nekkr, mas este caiu-lhe em cima e cravou-lhe as unhas nos braços. Os dois caíram e rebolaram juntos pela neve, e, na sua ânsia de manter o adversário próximo de si para que não lhe escapasse, o shura permitiu-lhe pôr-se atrás das suas costas. Grunhindo, o eahan debateu-se e prendeu o nekkr contra o chão, mas este cingiu-lhe o torso com as pernas, agarrou-lhe a mão que empunhava o facalhão com um inesperadamente forte aperto e obrigou-o a agarrar-lhe a sua mão esquerda que o ameaçava com unhas sujas.
— Não pugnes... deixa-me haurir da tua gorja... — pediu o nekkr de forma quase educada antes de lhe enterrar ambos os afiados incisivos no pescoço, mordendo-lhe os nódulos linfáticos.
Quenestil grunhiu de dor ao ser aferrado pelos infectos dentes e arqueou as costas, tentando libertar o braço do facalhão, mas o seu adversário manteve um aperto firme e começou a chupar-lhe a linfa com repugnantes e sôfregos ruídos. A garganta do eahan ardia-lhe, e o insalubre fedor do nekkr encheu-lhe as narinas, fazendo-o vomitar em seco. O pânico começou a tomar-lhe conta dos movimentos, o quase desesperado impulso de se afastar de tão repulsivo ser, e contorceu o pescoço de tal forma, que os incisivos do seu atacante lhe rasgaram a pele. Estrebuchando cegamente, Quenestil largou o facalhão, que caiu na neve ao seu lado, soltou o braço esquerdo do nekkr e pegou rapidamente na arma com a mão livre. Quando as afiadas unhas se lhe fincaram no couro cabeludo, o shura crispou os dedos no cabo do facalhão e espetou-o na axila direita do adversário. O nekkr chiou-lhe roucamente ao ouvido com a sua boca a pingar sangue e linfa, e Quenestil não perdeu tempo a erguer o torso para afastar o seu pescoço ferido, aproveitando o fato de ter enfraquecido o braço direito do inimigo com o golpe para lhe torcer sobre a cara, obrigando-o a virar-lhe as costas. Possesso pela sede de sangue do volverino e aterrorizado além de qualquer pensamento racional, o shura procedeu então a esfaquear repetidamente o dorso do nekkr, deslizando-lhe a lâmina por entre as costelas e raspando-lhe as omoplatas com golpes cegos e desajeitados até a neve em redor de ambos ficar tingida de sangue.
Quando caiu em si, Quenestil ofegava descontroladamente, e o seu colo e braço esquerdo estavam ensopados de vermelho pouco sadio.
O nekkr não se mexia e o seu delgado braço livre ainda estava de unhas fincadas no flanco do eahan, que inalou através dos dentes ao puxar os dedos rígidos e assentar as nádegas sobre os calcanhares, tentando acalmar-se. O pescoço ardia-lhe mais que os seus arranhões, e a sua cabeça de têmporas latejantes era ainda mais acalentada pelo sangue que lhe escorria do couro cabeludo. Sentia-se muito quente, e as suas roupas e peles abafavam-no, também devido ao pesado fedor que emanava do adversário tombado, que Quenestil virou para se certificar de que estava mesmo morto. O discernimento que se debatia com a febre emergente permitiu-lhe estranhar a bizarra expressão de alívio patente na cara do nekkr, cujos olhos haviam adquirido uma aliviada limpidez com a morte e em cuja boca de grotescos incisivos afiados parecia gravada a enunciação de um agradecimento. Enojado com a condição da miserável criatura, consigo mesmo e com os sintomas da febre que lhe grassavam pelo corpo, o shura afastou-se cambaleante, embainhou o facalhão cruento e levou a mão ao pescoço ao dirigir-se ao abrigo. Mesmo através da pele da luva, sentiu a garganta inchar, e estava tão quente que julgava ser capaz de derreter neve ao toque. O mundo oscilava, periclitante, ameaçando trazer-lhe o chão de encontro ao ombro, mas Quenestil abanou a cabeça, vascolejando o sangue que para ela fluía, e foi desenterrar o seu cantil da mochila, vertendo água sobre o ferimento no pescoço. O alívio foi passageiro, e o shura decidiu sem grande reflexão que não estava em condições de subsistir sozinho; teria de voltar para Gul-Yrith. Não se afastara muito da fortaleza, apenas o suficiente para criar uma reconfortante distância entre si e os sirulianos. Era apenas uma questão de caminhar um pouco, e ao menos isso deveria ser capaz de fazer. Decidido, pegou no recipiente de couro macio cora o arco, a aljava e a mochila, alçando-os ao ombro e pondo-se de imediato a caminho. Os seus passos eram trôpegos, mas de início eram movidos por uma resoluta firmeza que apenas gradualmente se foi perdendo à medida que Quenestil se ia apercebendo de que tomara a direção errada. Rosnando de frustração, voltou atrás, sem se lembrar sequer de olhar para o céu escuro e desprovido de estrelas para se orientar. A lua era ocultada por longas nuvens passageiras e as condições de luz apenas aumentaram a desorientação do shura, que se limitou a seguir em frente na esperança de ter optado pela direção correta.
Sentia as articulações incharem e o seu abdome começou a retrair-se com dores que o forçaram a adotar uma postura curvada para continuar a andar. Grossas bagas de suor escorriam-lhe pela cara, esfriando-lhe com o vento gelado que soprava, e Quenestil mal estava ciente daquilo que o rodeava, apercebendo-se vagamente de que subia alguns outeiros na direção de uns pontos luminosos à distância que esperava serem os de Gul-Yrith. Vários pensamentos passaram-lhe irregular e entrecortadamente pela cabeça, vozes de amigos, familiares e inimigos que o faziam tropeçar com as suas intromissões. Bebeu do seu cantil por várias vezes, despejando também alguma água no ferimento na sua garganta, até que este ficou vazio. Embora o vento lhe esfriasse a cara, a cabeça de Quenestil ardia por dentro, e este deu consigo a enfiar neve na boca e a esfregá-la na cara numa pasta de cristais que de imediato se derretiam. Pareceu-lhe ouvir as admoestações de Slayra, os conselhos dos eahlan, as advertências dos sirulianos, tudo frases recentes que se imiscuíam com palavras da sua mãe dirigidas a ele enquanto estava deitado na cama com uma febre, os resmungos do seu pai ao adoecer, mesmo algumas conversas inconseqüentes partilhadas com amigos e conhecidos. Tinha a cabeça tão quente... Deitar-se um pouco, talvez até fosse boa idéia... Sempre tivera a cabeça quente, era um estouvado. Era o que Slayra gostava nele, o seu temperamento, Slayra, com a qual se deitara noites atrás... atrás... quantas semanas atrás vira o Aewyre? Sozinho, tal como ele, talvez em perigo de vida. A sua vida... Tão sozinho. Talvez morresse ali, ao frio? Como as noites das montanhas, a noite no abrigo com Slayra, frio e calor... tanto calor, como o que agora sentia. Como nas tardes solarengas na encosta da montanha com Aewyre, o amigo que já por duas vezes consecutivas abandonara.
Quenestil tropeçou numa pedra e por pouco não foi de cara ao chão, evitando-o com os cotovelos e deixando algumas flechas caírem da aljava com o solavanco. Os seus músculos cansados protestaram langorosamente, tentando persuadi-lo através da avassaladora perspectiva do esforço para se erguer de que o melhor talvez fosse ficar um pouco ali deitado, não muito, só um pouco, um pequeno refolgo... Braços frios começaram a abraçá-lo, concordantes com as sugestões dos seus músculos, e Quenestil começou a ponderar seriamente a hipótese de descansar e recobrar forças. A sua cara ficou meio enterrada na neve durante o seu longo momento de indecisão, e a neve queimava-lhe a pele ardente com frio, derretendo e entrando-lhe pela boca e pelo nariz.
Ergueu a cabeça de sobressalto, sacudiu-a violentamente e levantou-se de uma só assentada como se todos os seus músculos se tivessem subitamente contraído, cambaleando então para a frente e aproveitando o ímpeto do movimento para prosseguir. Estava vagamente consciente de que se tornasse a cair o mais certo era não se levantar, pelo que se arrastou pela neve movido por pura força de vontade, obrigando um pé a meter-se sucessivamente à frente do outro. Tentou encontrar o seu ritmo com os desajeitados passos, mas só o manter-se de pé já lhe era custoso, e o eahan deu-se por satisfeito por esse pequeno sucesso. Os aulidos do vento eram pesarosos, recalcitrantes devido à sua resistência, mas não eram suficientemente fortes para o desequilibrarem mais, e Quenestil tirou força das suas vaias e protestos para se obrigar a avançar. O mundo continuava escuro e indistinto, mas sabia que as ainda distantes luzes só podiam ser de Gul-Yrith. Tinham de ser de Gul-Yrith, não se enganara no caminho. Estas tantalizavam-no, parecendo fazer pouco do quão longe o shura ainda se encontrava da salvação, e Quenestil de fato não se lembrava de a distância que percorrera desde a fortaleza ter sido assim tão grande, nem de há quanto tempo andava. Quanto faltaria até ao amanhecer? E por que se mantinha a lua escondida, privando-o do precioso luar que ao menos lhe poderia assegurar que seguia o rumo certo? A sua sede obrigava-o a curvar-se repetidamente, arriscando cair ao chão para levar uma mão-cheia de neve à já dessensibilizada boca, esfregando de seguida os dedos enluvados pela ardente cara que prontamente derretia os cristais de gelo, que lhe escorriam pelo queixo abaixo como se o eahan se estivesse a babar. As feridas protestavam virulentamente, vermelhas e acirradas como a mordidela no seu pescoço, embora não tão inchadas, e pesavam-lhe nas costas e no flanco como emplastros. A febre alastrava pelo seu corpo, fervendo-lhe o sangue e drenando-lhe os músculos, que já pareciam apenas mexer-se em seguimento do ímpeto inicial aos tropeções. Os seus órgãos estavam pesados e apertados pelo seu abdome contraído, e as articulações inchadas dos seus membros tornavam cada movimento moroso e doloroso, cada passo uma súplica para parar. Estava frio, tal como na neve com Slayra, quente como no abrigo, como na muralha de Aemer-Anoth, com o coração a bombear-lhe sangue revigorante enquanto combatia ao lado de Aewyre. Revigorante, sim, não o fervente líquido meloso que agora lentamente lhe escorria pelas veias, tornando-lhe os braços e as pernas pesados. Como gostava de se poder apoiar no ombro forte do seu amigo, beber do otimismo que parecia ter irrevogavelmente perdido nos últimos tempos, tempos tão conturbados. Slayra, um bebê, batalhas, mortes de amigos e inimigos. Mesmo delirante, o eahan estava bem ciente do quanto o mundo mudara, o seu e o dos outros, mas mesmo em tempos de conturbações e mudanças, havia certas coisas com as quais sempre contava e que sabia que se mantinham. E abandonara uma delas...
Mãe, estava tão cansado. Ele, que percorrera boa parte de Allaryia pelos seus próprios pés, estava cansado como poucas vezes o estivera na sua vida. Por que o deixava a Mãe sofrer de tal forma, a ele que era um dos seus filhos diletos? Teria errado? Teria falhado para com a Mãe nos últimos tempos? Quando fizera o teste pela última vez? Em Vau do Caar, no regato, no regato de água cristalina, fresca, límpida. Tinha tanta sede... A neve que ia enfiando na boca tinha um sabor terroso e vinha com pedras que cuspia desajeitadamente, mas era o único alívio do qual dispunha para a sua garganta ressequida. Os seus olhos febris já mal viam o que lhe ia à frente, tornando oblíquo o mundo escuro em redor e brincando com as sombras e luzes distantes. Quão longe estariam ainda? Era difícil dizer... Ousaria pensar que estavam mais perto que momentos, horas atrás? O vento e as vozes na sua cabeça deram a impressão de estarem a fazer troça dele, mas pareceu-lhe ouvir entre a indistinta cacofonia umas palavras que se destacavam, cujo significado lhe ardia na mente em chamas e o fizeram pensar se não seria já o seu corpo a enviar as derradeiras mensagens de desistência. Seria isso? Não, quase poderia jurar que as ouvia mesmo, ressoando pelo ar com mais força que quaisquer outras que pudesse estar a ouvir na sua cabeça. A neve que levou à boca estava imunda, enchendo-lhe o nariz com um sabor e um cheiro a terra pisada e, mesmo sequioso, Quenestil cuspiu-a, atrevendo-se a parar. Endireitou-se a custo e tentou focar a visão, inclinando a cabeça para o lado devido ao dolente e inchado pescoço e olhando com uma cara estuporada para a indiferente cantaria. O shura levou algum tempo a relacionar o encaixe das pedras graníticas e as vozes estentorosas que ouvia com a muralha de Gul-Yrith, mas quando olhou para cima, apenas viu os pontos luminosos daquilo que eventualmente poderiam ser tochas. Não, havia também vultos recortados contra eles, e eram eles que berravam.
— Preciso de entrar... — pediu o shura de forma tão entaramelada, que nem mesmo o próprio estava certo do que havia dito.
O esforço de gritar fê-lo oscilar para a frente e Quenestil teve de compensar com um passo que lhe afundou o pé em algo frio e molhado. Outro passo desequilibrado afundou-lhe a perna até ao joelho, e assim que o shura reconheceu a água pelo que era, o seu corpo cedeu voluntariamente e deixou-se cair de cara no gelado fosso. O ruído do chapão afundou-se, emudecido pelo álgido silêncio que envolveu Quenestil, e o entorpecimento que com ele veio foi mais que bem-vindo pelo exausto eahan. Chegara à fortaleza. Agora podia por fim descansar um pouco. Só um pouco...
— Sai da tua toca, sua velha raposa matreira!
Era a voz de Aewyre que o chamava, vinda algures da escuridão. Estariam a brincar aos coelhos e furões, como tantas vezes o haviam feito antes de aprenderem a manejar cajados? Ou teriam acabado de encontrar-se naquele fatídico dia outonal, ainda com Babaki entre eles? Bem, talvez fosse de fato altura para sair, visto que já se encontrava escondido havia tanto tempo. A brincadeira já durara o suficiente...
O despertar foi quase rude na sua forçosa asserção, deixando Quenestil incerto quanto ao seu verdadeiro estado de consciência, embora estivesse de olhos abertos. Quando por fim se apercebeu de que estava de fato acordado, a sua cabeça mexeu-se, enterrada como estava naquilo que devia ser uma almofada, e o eahan estudou o ambiente que o rodeava. Encontrava-se num pequeno quarto austero cuja decoração claramente não lhe pertencia por direito, constituída por tecidos brancos e azuis que revestiam as impenetráveis paredes e móveis delicados com sutis motivos selénicos neles cinzelados. A sua mochila, arco, aljava e facalhão embainhado encontravam-se ordeiramente dispostos sobre uma arca para a roupa revestida por uma manta azulada. Pairava um agradável odor a rosmaninho no ar, que, apesar de tudo, falhou em disfarçar o azedo odor a suor frio que foi bafejado debaixo dos lençóis do shura quando este se mexeu, e um reconfortante fogo estalava numa lareira à sua esquerda. Desse lado havia igualmente uma cadeira desocupada, e foi só então que Quenestil se apercebeu de que o desnível no seu colchão era causado por Slayra, que dormia de cabeça apoiada nos braços sobre ele, sentada numas almofadas estrategicamente posicionadas ao lado da cama.
— Slayra?
A eahanoir gemeu, mas não levou muito tempo a despertar com um sobressalto, levantando a cabeça com fiapos de cabelos negros diante da cara.
— Quenestil? — disse, apoiando-se com ambas as mãos sobre o colchão e erguendo-se com um grunhido pelo nariz. — Estás acordado?
— Sim, eu... — O eahan ergueu um fraco sombrolho. — O que foi? Por que é que estás a olhar dessa forma?
Os olhos de Slayra haviam de fato ficado instantaneamente espertos, sem quaisquer traços de sonolência ou cansaço, e naquele momento pareciam querer brocar-lhe a cabeça.
— Passa-se alguma...
A eahanna teve o cuidado de atingir o lado ileso da cabeça de Quenestil, mas essa foi a sua única atenção ao desferir-lhe uma sonora bofetada acima da orelha.
— Au! — protestou o eahan. — Slayra! Estás...
A eahanoir abraçou-lhe o pescoço de seguida com força, despertando-lhe a entorpecida dor da ferida e magoando-o mais um pouco no processo. O seu ventre inchado roçava-lhe as pernas, obrigando o shura a encolhê-las instintivamente com medo de pressionar algum sítio errado.
— Seu estúpido — insultou-o Slayra, pegando-lhe pela cabeça e beijando-o nos lábios e na cara. — Eu não te disse? Por que é que te foste armar em valente lá para fora e me deixaste aqui sozinha? Olha-me só para ti, seu cabrito-montês idiota.
Ainda combalido, mas apesar de tudo compreensivo para com a explosão da eahanoir, Quenestil ergueu os ainda pesados braços e abraçou-a, afagando-lhe os cabelos.
— Quanto tempo é que estive...?
— Estiveste dois dias a arder em febre aqui na cama. Pregaste-me um valente susto, seu estúpido — respondeu Slayra, puxando-lhe o cabelo ruivo com mais força do que seria de esperar, magoando-lhe o escalpe ferido. Quenestil inspirou através dos dentes e semicerrou os olhos. — Desculpa. Querias provar alguma coisa aos sirulianos, a andar para aí à caça de nekkr? Estavas à espera de quê, de uma ovação quando regressasses? Ias morrendo, eu pensei que ainda te íamos perder...
— Pronto, pronto, não me batas mais. Estou aqui, não estou? — suplicou o eahan.
— E em que lindo estado estás, sim senhor — avaliou Slayra, afastando-se como para o apreçar com o olhar.
Quenestil aproveitou o refolgo para se pôr de costas para a cabeceira da cama, baixar os lençóis e erguer os braços. Estava apenas de traje menor, e o seu torso salgado de suor fora limpo e enfaixado por ligaduras para cobrir os ferimentos nas costas e no flanco com cataplasmas. O seu pescoço estava ligado com faixas que lhe passavam debaixo da axila esquerda, e sentiu com os dedos que já não estava intumescido.
— Como é que sabes que foi um nekkr?
— Foi o que os sirulianos disseram que parecias quando apareceste aos portões — explicou Slayra, já mais calma. — Diziam que estavas a balbuciar coisas sem nexo, que cambaleavas como se estivesses bêbado. Foi por pouco que não te cravejaram de setas, inconsciente! — Distraindo-se ou talvez não, a eahanoir apertou as pernas de Quenestil com força e fincou-lhe as unhas mesmo através dos lençóis.
— Não, realmente na altura não estava propriamente consciente. Começo é a pensar que em vez de tropeçar até aqui para ser espancado, mas valia ter ficado a morrer ali na neve enquanto o nekkr tratava disso.
— E ainda te atreves a vir com piadinhas? — indignou-se Slayra. — Se estás à espera, que alguém tenha pena de ti por me teres deixado sozinha para ires para o frio brincar com nekkr, então o melhor é eu ir chamar uma das eahlanas. De certeza elas aconchegam-te a cabeça no peito e ficam comovidas.
Quenestil suspirou e bateu com a nuca na parede, estalando os lábios secos.
— Trazes-me um pouco de água, se fazes favor?
Slayra fungou, mas ergueu-se da cama, grunhindo sub-repticiamente ao ajustar o peso da barriga enquanto se dirigia a um móvel com um jarro e uma taça prateados. O seu ventre e peito estavam entumecidos e bojavam-lhe debaixo do vestido negro, e os seus longos cabelos pareciam invulgarmente pesados de sebo. Caminhava como se os ligamentos da sua zona pélvica e joelhos estivessem lassos, e ultimamente adquirira o hábito de apoiar a mão esquerda sobre a ilharga como para se equilibrar.
— Quanto tempo falta? — perguntou, tenteando o escalpe ferido.
— Uns quatro meses — bufou Slayra. — Mas como já pareço uma porca parideira, talvez venha mais cedo. Olha para isto, parece que ele me quer sair pelo umbigo...
Quenestil absteve-se a tempo de dizer que estava linda, pois já anteriormente caíra em tal erro. Em vez disso, limitou-se a abanar a cabeça e tentou outra abordagem.
— Vai ser um lindo bebê, tenho a certeza. A minha mãe sempre me disse que eu também lhe infernizei a vida antes de nascer.
— É? Deve ser de família, então. Sorte a minha... — suspirou Slayra, afagando o ventre. — Mas sim, há de ser uma criança forte. Como ele come! Olha-me para esta barriga.
— Por falar nisso... — o eahan lembrou-se de aproveitar a súbita abertura pacífica no gênio de Slayra. — Estive a pensar numas coisas enquanto acampei...
— Eu que te apanhe a fugires assim outra vez. Digo aos sirulianos que andas a fazer olhinhos à Alisa — ameaçou a eahanoir enquanto vertia lentamente água para dentro da taça.
Quenestil ignorou a interrupção.
— É o Aewyre.
Slayra desviou os olhos por um instante daquilo que fazia, e o seu sorriso triste foi inesperadamente indulgente.
— Eu sei. Coitado do Aewyre. Depois de tudo o que lhe aconteceu, ainda teve de ir sozinho com o Kror para partes incertas com todos à espera de que ele venha a enfrentar... o que aí vem.
— Pois. Eu... depois do que me aconteceu, de quase ter morrido sozinho ali na neve... estava a pensar ir atrás dele, tentar ajudá-lo como puder. Sinto que ele pode precisar de mim...
— Claro, foi isso que vocês combinaram, não foi? Por que é que haverias de fazer outra coisa?
— Não, eu quero dizer ir logo, assim que o bebê nascer, e eu tiver a certeza de que vocês os dois ficam bem. — A água deixou de fluir do jarro e Slayra quedou-se imóvel como uma estátua. — Eu sei que o Allumno disse que era algo que ele tinha de fazer sozinho, mas ninguém merece enfrentar sozinho o que ele terá de enfrentar. Eu devia estar a seu lado. Entendes? Ele é meu amigo, e eu devia estar por perto para o ajudar. Já o deixei uma vez, e...
Slayra acenou lentamente com a cabeça, pousou o jarro com um gesto glacial e virou-se para Quenestil com uma expressão rígida e impassível.
— Isto é sobre o Babaki outra vez? — indagou. — Ou sobre teres deixado o teu amigo sozinho para ires atrás de mim?
— És tu que o estás a dizer, não eu. Eu nem falei nisso — replicou o eahan com um tom porventura demasiado defensivo. — Já disse que fico contigo até o bebê nascer; enquanto vocês os dois não estiverem bem, não saio daqui.
— Oh, mas que atencioso da tua parte...
— Slayra, por favor. Vocês vão ficar na fortaleza mais segura de Allaryia, e a Sirulia fica a menos de três meses de viagem do Laone. — A medida que falava, Quenestil ia-se apercebendo de que praticamente delineara um plano durante a sua febre. — Qual é o teu problema? A minha mãe também esperava quando o meu pai ia à caça; achas que ele gostava menos dela por ter de a deixar uma vez por outra?
Vendo o gelo do olhar de Slayra intensificar-se, o shura apercebeu-se de que escolhera muito mal as palavras, bem como o tom e a altura para lhes dar voz.
— Então é assim... — fingiu a eahanna perceber, erguendo o queixo. — Emprenhar a eahanoir e depois deixá-la com o rebento enquanto fazes o trabalho de homem... Ao menos tinhas-me arranjado uma casa com vaquinhas e um avental para eu tratar do resto também, não?
— Slayra, pára de me meter palavras na boca. E só para que saibas, eu não te estou a escolher a ti ou ao Aewyre. Este é o melhor compromisso, e eu já devia de ter dito há mais tempo, mas só pensei nisso a sério quando fui acampar sozinho. Desculpa.
— Não, eu é que peço desculpa — escusou-se Slayra com voz seca, dirigindo-se à porta. — Por ser um fardo tão grande.
— Slayra...
A eahanoir abriu a porta, surpreendendo Talin e Lusia, que se preparavam para entrar.
— Perdoem-nos — pediu o jovem eahlan. — Voltaremos mais...
— Não, deixem estar — disse Slayra, meneando a despreocupada mão. — Não interromperam nada de especial. O fardo já estava de saída.
A eahanoir passou com pouca delicadeza por entre os dois eahan brancos, que se afastaram por deferência para com o seu ventre arredondado, tentando amavelmente perceber se algo de mau se passara e sendo sumariamente ignorados.
— Peço desculpa. Nós íamos bater... — assegurou-lhe Lusia.
— Não se preocupem. Não é convosco que ela está aborrecida, é com a condição dela. — Quenestil começava a ter a sensação de que algo de mais se passava, mas não soube bem dizer o quê. — Entrem, por favor.
Os dois eahlan assim fizeram, fechando a porta e postando-se do lado da cama de Quenestil com as mãos cruzadas diante deles.
— Sente-se melhor? — perguntou Lusia com genuína preocupação, parecendo querer curá-lo com o seu sorriso.
— A sua febre deixou-nos bastante inquietos — disse Talin. — O nosso pai deseja-vos as melhoras, e lamenta não vos poder transmitir os votos em pessoa. Teve assuntos prementes a tratar com o Castelão.
Quenestil acenou com a agradecida cabeça, abanando-a de seguida. Havia meses que já convivia com os eahlan, e estava suficientemente inoculado à sua aura quase mística para não se sentir desconfortável na sua presença, mas ainda assim, o fato de o pai de família de um povo que muita gente morreria sem nunca ter visto lamentar não poder vir desejar-lhe as melhoras em pessoa... era coisa de história para crianças, acordar numa cama após um pesadelo e ser tratado, quase paparicado por seres tão etéreos e contudo tão... compassivos. A filha mais velha do Patriarca estava encantadora como sempre, envergando um vestido azulado com um decote rendilhado que lhe deixava os ombros marfíneos a descoberto e um delicado colar prateado com motivo de crescentes. Talin trazia o cabelo preso pela fina tiara de prata com a qual costumava andar, bem como a habitual túnica negra debruada a roxo. Ambos fitavam Quenestil com cândidos olhos azul-safira alojados em imaculados semblantes de bondade e compaixão. Realmente, o shura podia compreender por que razão os sirulianos agiam de forma tão protetora para com os eahlan. Cada eahan branco era uma benesse que um cada vez mais sombrio mundo não se podia dar ao luxo de perder.
— Obrigado. Salvaram-me a vida.
— Ainda sente dores? — quis Lusia saber.
A bofetada de Slayra não fora assim tão forte, e o eahan não queria dar parte de queixoso, mas sentia que o mínimo que devia fazer diante de tanta solicitude seria permitir à eahlana sentir-se útil.
— Acho que os ferimentos no meu escalpe se abriram...
— Ah, esses. — A eahlana franziu as delicadas sobrancelhas brancas, pegou na cabeça de Quenestil, baixou-lhe o queixo e inclinou-se para a examinar. — Não lhe ligámos a cabeça, porque eram só uns arranhões, mas se calhar abriu-os ao falar ou enrugar a testa.
Quenestil sentiu-se subitamente ridículo, mas Lusia agia como se ele estivesse verdadeiramente em dores e precisasse da sua ajuda. Afagando-lhe o couro cabeludo, enunciou uma curta e maviosa frase em Eridiaith que lhe arrepiou as raízes dos cabelos, irrigando-as com uma sensação de bem-estar e acelerando tenuemente o processo de cicatrização das crostas das suas feridas.
— Obrigado — tornou o eahan a agradecer, algo embaraçado com o sorriso de Lusia. — Talin, o que foi o vosso pai tratar com os sirulianos? Passou-se alguma coisa enquanto estive fora?
Os sorrisos desvaneceram-se das caras dos irmãos, que deram a estranha impressão de assumirem uma postura subitamente mais séria.
— Vieram notícias de Gaul-Anoth anteontem. Aparentemente houve uma mobilização maciça em Asmodeon como há muito não era vista, e os Fronteiros ainda não recuperaram as posições que perderam após o ataque a Aemer-Anoth. Gul-Yrith enviará um contingente para as outras duas fortalezas, pois os Castelãos desejam evitar a todo o custo que as forças d’O Flagelo atravessem o Istmo Negro.
O semblante de Quenestil ensombrou-se perante tais notícias, e o eahan esfregou Pensativamente a ligadura no seu flanco.
— Mas... depois do ataque a Aemer-Anoth? Morreram tantos. Não deveriam ter levado mais tempo? Como é que de repente surgem assim?
— Os Fronteiros relataram que muitos haviam desertado da hoste liderada pelo azigoth, antes e enquanto sitiavam Aemer-Anoth. Além disso, nem todos haviam partido de Asmodeon; ao que parece, o azigoth teve grandes dificuldades em conseguir movimentar um exército de suficiente tamanho para sequer representar uma ameaça. O núcleo duro do poderio de Asmodeon manteve-se, e, agora que o seu senhor regressou, encontra-se em movimento.
— Fala-se de mulheres e crianças entre os drahregs — aditou Lusia, esfregando os braços como seqüela de um arrepio. — A mobilização do Primeiro Pecado parece ter sido geral. Os Fronteiros afirmam nunca terem visto nada igual.
— Valham-nos os deuses... — orou Quenestil. — Quantos? Quanto tempo...?
— Mais rápido do que seria de esperar. Os Fronteiros prevêem que as forças de Asmodeon cheguem a Aemer-Anoth ainda esta semana, talvez na próxima. Dizem que marcham como se tivessem o seu senhor aos calcanhares.
— Quantos? — repetiu Quenestil, pressentindo que o eahlan tentara evitar responder.
De fato, Talin mostrava-se algo relutante, e olhou para a sua irmã, partilhando com o olhar um segredo que mais valia não ser revelado, mas que fatalmente teria de o ser, o que apenas deixou Quenestil mais excitado.
— Quantos, Talin? Lusia?
— Os números não estão confirmados. São apenas estimativas divergentes dos Fronteiros...
— Quantos?
O eahlan soltou um conformado suspiro.
— Cem mil.
Essas duas únicas palavras enunciadas na suave voz do eahan branco atingiram o shura com a força concussora de um golpe, fazendo-o estremecer por dentro.
— Cem? — ainda relativamente inexperiente nas artes da guerra, o shura mal podia conceber tal número. As histórias da Guerra da Hecatombe falavam de números superiores, mas as únicas imagens conjuradas por tal idéia nos tempos hodiernos mais pareciam as de um pesadelo.
— O meu pai disse que muitos são mulheres e crianças, e que os números podem não corresponder à realidade — tentou Lusia atenuar a situação. — Os Fronteiros estão em retirada, e os seus números são comparativamente poucos...
Quenestil nada disse e os dois eahlan deixaram-no ruminar as aziagas notícias em silêncio até este erguer a cabeça e o quebrar.
— E o que é que os Castelãos pensam fazer?
— Que mais podem fazer? — encolheu Talin os ombros. — Não dispõem de homens suficientes para defrontar tal exército. Permanecerão nas suas fortalezas. Os Fronteiros refugiar-se-ão como puderem, assediando as linhas do exército inimigo. Aemer-Anoth e Gaul-Anoth serão reforçadas e Gul-Yrith permanecerá com um contingente reduzido como último recurso.
— Vão... vamos ser removidos daqui?
— Não — respondeu Lusia. — Pelo menos não por enquanto. O Castelão ainda considera que Gul-Yrith é o local mais seguro onde podemos permanecer, pois os fortes a leste não foram feitos para suster tal exército.
— Sim, a sua única opção seria enviar-nos através de Tanarch com uma escolta até Sallath Yngil, o que pelo menos o meu pai acha impraticável. Permaneceremos em Gul-Yrith, e aqui aguardaremos o desenvolvimento da situação.
Quenestil olhava fixamente para o regaço do lençol entre as suas pernas, visualizando nele um extenso campo de batalha no qual as forças de Asmodeon se digladiariam com os reduzidos contingentes sirulianos. Cem mil, assim tão depressa?
— E conscritos? — lembrou-se o shura.
— Os Mandatários tentarão reunir os que conseguirem no curto tempo que lhes resta, mas não acalentam grandes esperanças — explicou Talin abanando a cabeça. — A... recolta para Aemer-Anoth não foi proveitosa, e conta-se que os feridos foram recebidos com grande revolta pela parte dos tanarchianos.
— O Castelão também disse que... espera o vosso contributo na defesa de Aemer-Anoth — disse Lusia, algo desconfortável por ser ela a portar tão aziaga notícia.
— Como? Oh, sim, claro. Não esperaria outra coisa. Obrigado pela informação, Talin, Lusia. E agradeçam ao vosso pai por mim, por favor.
Os irmãos perceberam o desejo de Quenestil de ficar sozinho e acenaram silenciosamente com as cabeças, sorrindo fracamente antes de se retirarem e fecharem a porta atrás de si. O shura deixou o silêncio assentar no quarto, observando distraidamente as pregas e os vincos que os movimentos das suas pernas causavam nos lençóis enquanto refletia acerca da informação recebida. Bem vistas as coisas, acabara de causar um conflito desnecessário com Slayra, visto que o mundo poderia acabar antes de o seu bebê sequer nascer, o que o libertaria para então ir ao encontro de Aewyre. As notícias dos irmãos Lasan invalidavam tudo o que pensara nos últimos dias e decidira nos últimos momentos. As hostes d’O Flagelo vinham a caminho mais cedo do que ousara esperar, o pesadelo que até então apenas o fora ameaçava tornar-se bem real muito em breve, e Quenestil, Slayra e a sua criança por nascer encontravam-se naquele que podia bem vir a ser o ponto de ruptura da Allaryia como a conheciam.
Ainda assim, a meio de tão angustiantes pensamentos e reflexões, o eahan deu consigo a rir estupidamente ao lembrar-se de algo, porventura numa instintiva tentativa de descompressão do seu ainda Convalescente espírito.
Estava com uma sede desgraçada, e esquecera-se de pedir aos irmãos Lasan que lhe dessem a taça de água que Slayra deixara para trás.
Allumno foi fustigado por uma saraivada mística que faiscou diante e em redor do escudo que erguera ainda a tempo. Este cedeu, porém, e o mago aproveitou a energia resultante para se impulsionar para trás, fingindo ter sido atingido. Voando como um pássaro ferido pela sidérea imensidão do Pilar de Allaryia, aguardou que o seu adversário reatasse o ataque, que veio na forma de serpenteantes feixes carmesins. Allumno estacou em pleno vazio, cruzando os braços de mãos abertas bruscamente diante de si e dessa forma coarctando o percurso dos feixes, que se aglomeraram forçosamente numa instável esfera que ficou a pairar sem rumo, crepitando de energia. Outros se lhes seguiram, brancos como relâmpagos incandescentes, e estes Allumno deixou embaterem estralejantes contra uma apressadamente erguida barreira discai. Tendo-os reconhecido como as meras distrações que eram, o mago apressou-se a inverter a posição do escudo e arremessá-lo com um disco contra o devastador feixe energético amarelado que zumbiu na sua direção. O disco cortou o feixe em duas inofensivas listras que se esvaneceram, cerceadas, e o mago retribuiu com o lançamento de duas esferas energéticas roxas que lhe surgiram nas mãos da sua manifestação corporal. O seu adversário eliminou-as a ambas com duas rápidas projeções energéticas que as rebentaram como bolhas de sabão, e Allumno aproveitou para impelir contra ele o inconstante aglomerado de feixes que anteriormente bloqueara. Tal como os outros, também este foi atingido por uma projeção, mas essa serviu apenas para romper o vínculo com o qual Allumno acumulara os feixes, que se soltaram como acirradas serpentes ansiosas por morderem quem inicialmente as soltara. O seu adversário ficou devidamente surpreso e foi forçado a erigir um cintilante globo defensivo em seu redor. Allumno aproveitou a breve interrupção no ataque para se impulsionar para diante, faiscando de energia cerúlea como um projétil coruscante. O embate com o globo do seu adversário foi violento e resultou numa silenciosa explosão que Allumno julgou ter abalado as próprias fundações do Pilar. Imersos na própria fonte da Essência, os magos que se aventuravam pelo Pilar viam as suas capacidades duplicadas, o que os tornaria verdadeiras ameaças se fossem de fato capazes de afetar o mundo material, o que lhes era impossível. Energias capazes de nivelar distritos de cidades eram soltas em combates como o que Allumno estava a ter na vastidão etérea desprovida de gravidade ou ar capaz de causar um mínimo de atrito. A mente e a força de vontade eram os mais valiosos trunfos de um mago no Pilar, e as almas de feiticeiros incautos podiam ser prematuramente fundidas a ele como resultado de uma derrota em conflitos de tal ordem.
Por essa mesma razão, a reação instintiva de Allumno foi de pânico ao aperceber-se de que caíra numa autêntica armadilha para moscas ao colidir com o seu adversário. O globo moldara-se à sua manifestação quando do impacto como uma película aderente, e o mago sentia-a cingi-lo com cada vez mais força, parecendo absorver as palpitações místicas que descarregava para se tentar libertar e através delas reforçar o seu aperto.
— Estás a tentar libertar-te da forma errada, pupilo — ouviu a voz de Zoryan dizer dentro da sua mente. — Não te contorças na teia.
Abespinhado pela consciência de que estava à mercê do seu mestre e de que num verdadeiro combate o seu adversário o teria dominado, o mago ainda assim retraiu-se para dentro da calmaria da sua mente para melhor deduzir a maneira de escapar à armadilha de Zoryan. Esta parecia estar a alimentar-se diretamente das suas descargas energéticas para o apertar ainda mais, e o efeito era análogo ao de uma mosca a estrebuchar numa teia de aranha, pelo que seria necessária uma outra abordagem...
— Dissolveres-te no Pilar seria uma opção, mas presumamos que queres capturar o teu adversário e que ele se escapará caso retires? — especulou o seu mestre, cuja manifestação surgiu diante de Allumno com os braços calmamente cruzados atrás das costas. O seu sorriso bondoso, contudo, não teve o efeito que o arquimago desejara, agastando ainda mais o seu pupilo.
O cenho etéreo do mago franziu-se e Allumno cerrou os punhos, brilhando todo ele de energia e com a gema na testa a fulgurar. Zoryan deslizou lentamente para trás, questionando-se quanto ao que o mago iria fazer e admirado com a aparente falta de sutileza do seu método. Allumno sentiu o aperto do invólucro intensificar-se, mas não cessou a pressão e prosseguiu com o acumular de energia que lentamente o ia tornando num farol multicolorido na imensidão descolorada do Pilar.
— Allumno, o que... ?
O mago sentiu a sua manifestação ser pressionada com uma força desmedida que ameaçava pulverizá-la e dispersá-la pelo Pilar, mas nem por isso abrandou. Bloqueou a sua mente para cortar o contato com o seu mestre e, com um grito que apenas o próprio ouviu, Allumno arrojou-se contra Zoryan, levando-se a si mesmo ao ponto de ruptura com um derradeiro pulsar essencial.
A última coisa que viu antes do estrondo surdo foi a surpresa expressão na cara do seu mestre, cuja boca aberta causou uma fenda negra nas suas barbas. O que se seguiu foi um cegante clarão de energias libertas e um entontecedor rodopio pelas águas etéreas do Pilar que pareceu nunca mais terminar. Quando o mago se conseguiu por fim controlar, a sua manifestação ficou a pairar frouxamente, sacudida até ao cerne incorpóreo daquilo que a compunha. Mesmo longe do seu corpo, Allumno sentia-se como se tivesse sido virado do avesso, uma peça de roupa áspera e sacudida e deixada a secar ao sol. O que lhe acabara de passar pela cabeça?
— O que ê que te passou pela cabeça, Allumno? — ecoou Zoryan, pegando-o com luzentes mãos espirituais e sacudindo-o como o faria com alguém que perdera o juízo. — Ias implodindo! Estás louco?
Ainda abalado, o mago soltou-se do seu mestre e oscilou ebriamente para trás.
— Foi uma forma de me libertar... — justificou-se sem grande convicção. — Obrigar quem me aprisionava a soltar-me ou obrigá-lo a ter de suster uma implosão etérea. De uma forma ou de outra, eu ficaria livre.
— Perdendo a tua alma no Pilar? Ou ficando indefeso em conseqüência de tal disparate? Achas-te capaz de sequer erguer um dedo para me enfrentar agora?
— Qualquer outro além do mestre teria ficado igualmente incapacitado após a ruptura...
— Ai sim? Estás assim tão certo de que estariam em pé de igualdade caso ele se tivesse resguardado do pior, coisa que tu não poderias fazer?
— Tinha o efeito surpresa do meu lado...
— Allumno, nem parece teu! — repreendeu-o Zoryan, verdadeiramente irritado como poucas vezes o mago o vira. — De que falámos na nossa última sessão? Sustentação de energia e ruptura de nexos fulcrais através de feixes concentrados, lembras-te? Para que te serve a gema se não a usas para teu proveito?
Diante do silêncio humilhado do seu pupilo, o arquimago atirou as mãos ao ar e soltou um abespinhado suspiro incorpóreo.
— O que se passa contigo, Allumno? Ultimamente tens sido excessivamente descuidado, irrefletido. Costumavas ser tu mesmo o teu pior crítico...
— Pois desculpe-me por me ter esquecido de uma única lição uma única vez nos últimos vinte anos! — explodiu Allumno, despertando subitamente do seu torpor. — Não sou perfeito como o mestre!
Chocado com a reação do mago, Zoryan nada disse e os dois ficaram simplesmente a olhar para as manifestações um do outro, manifestações essas que retratavam fielmente os traços das suas fisionomias mas que falhavam em servir como espelhos para a alma como os olhos o eram. Ainda assim, Allumno percebeu que as suas palavras haviam atingido o seu mestre profundamente, rasgando uma antiga ferida cicatrizada. Mal podia ele saber que Zoryan sentira nelas toda a raiva e ressentimento que sempre julgara que o seu pupilo albergara dentro de si pelo caminho que o arquimago praticamente o forçara a escolher. O desabafo do mago fora como uma confirmação dos seus receios, e dessa forma ferira Zoryan de uma forma que dificilmente poderia imaginar.
— Eu, perfeito, Allumno? — disse o arquimago quase em surdina. — Que os deuses me ajudem, fui dos maiores desastrados de que tenho conhecimento, cujos erros causaram dos maiores estragos ao mundo que o rodeava. Graças a Nirille, escolher-te como pupilo ainda foi dos meus atos mais inspirados, e mesmo contigo o número de erros que cometi é de tal ordem, que ainda hoje me admiro como te tornaste um mago tão capaz.
Nunca o seu mestre se lhe havia dirigido assim. Allumno ficou sem palavras e os dois continuaram a olhar-se como dois estranhos, duas manifestações flutuantes na vastidão de incolor Essência na qual estavam imersos e que contudo não era capaz de lhes conceder a energia necessária para prosseguirem a conversa. Não era algo ao qual estivessem habituados, sobretudo Allumno, mas acabou por ser o mago a ousadamente quebrar o vasto silêncio.
— Desculpe, mestre. De fato, não tenho andado senhor de mim. Zoryan nada disse, embora parecesse pouco convencido com a justificação.
— Eu... sei que não posso ajudar o Aewyre, mas tê-lo deixado ir sozinho... Não, é o saber que nada posso fazer para o ajudar. Isso tem-me consumido por dentro, mestre. Aquilo que estou a fazer parece-me tão... inútil. O meu papel, o meu dever é protegê-lo.
— Compreendo-te, Allumno. Eu senti o mesmo quando o Aezrel teve de enfrentar O Flagelo sozinho...
— O mestre estava morto — recordou Allumno secamente. — Já tinha feito tudo o que podia, e por muito que quisesse não podia fazer mais. Eu posso.
— Certamente. Mas por alguma razão não o fazes, e não se trata apenas daquilo que te pedi que levasses a cabo por mim, pois não?
Allumno virou a cara etérea como se a quisesse desviar da realidade, um gesto muito pouco típico para o mago que Zoryan notou com tristeza. Não, maldito fosse o seu mestre, não se tratava apenas da tarefa para a qual o incumbira, mas a causa estava diretamente relacionada com ela. No dia após o regresso d’O Flagelo, o arquimago tivera uma longa conversa com Allumno na qual lhe revelara muitas coisas que até então havia omitido pela sua alegada anterior irrelevância. Uma questão antiga para animistas e magos mais existencialistas era a dúvida quanto ao lugar para onde iam as almas de homens e mulheres como os Fadados, que as vendiam a’O Flagelo. Zoryan descobrira que estas se haviam aglomerado ao longo dos tempos numa espécie de sombra do Pilar, um local ao qual fora incapaz de aceder e que crescera durante a ausência d’O Bastardo. Desconhecia o seu propósito, mas a existência de tal mácula no Pilar sempre deixara o arquimago apreensivo, embora não ao ponto de partilhar as suas preocupações. Após o regresso d’O Anátema, ficara deveras desassossegado e temente do nefando desígnio da penumbra na fonte da Essência. Allumno pudera vê-la com a ajuda do seu mestre, que lhe permitira um vislumbre ao tetro domínio que se colava ao Pilar de Allaryia, e de imediato compreendera a sua inquietação, bem como o que devia fazer. Dera a Aewyre todas as diretivas e indicações que lhe haviam ocorrido, assegurara-se de que o seu protegido partira com uma boa percepção daquilo que o esperava e daquilo que dele era esperado, e esforçara-se por aliviar o rancor no coração do rapaz, sabendo que a sua pureza podia bem vir a ser a sua salvação.
— Não, não diretamente, mestre... — admitiu o mago.
Zoryan nada disse, pois entendia o que Allumno queria dizer. O arquimago temia que O Flagelo pudesse estender a sua perniciosa influência através do Pilar, contaminando dessa forma quem dela fazia uso, e pedira ao seu pupilo que procurasse por feiticeiros em Tanarch e que averiguasse todos os que encontrasse. As suas diretivas eram simples: se qualquer um desse mostras de quaisquer falhas morais, devia ser eliminado. Allumno ficara pasmado ao ouvir o que o seu mestre dele exigia, mas o arquimago mostrara-se resoluto na sua decisão e nem mesmo todos os contrapontos e argumentos do seu pupilo o haviam conseguido demover. O Flagelo regressara, e todos os que se mostrassem minimamente abertos à sua influência deveriam ser eliminados por qualquer meio necessário. Afinal, três dos Aesh’alan haviam anteriormente sido feiticeiros, e Zoryan relatara-lhe ao pormenor todas as atrocidades cometidas por magos corrompidos durante a Guerra da Hecatombe, cujas repercussões se haviam sentido em anos de perseguições a todos quantos fizessem uso da Palavra. Por muito brutal que soasse, não havia margem para erros, e Allumno serviria como juiz e executor, um papel para o qual este não se considerava minimamente talhado. Zoryan sabia-o, mas sabia também que Allumno era o único ao qual podia confiar tal informação e tamanha tarefa, e disso o mago estava igualmente ciente, o que não significava que lhe agradasse ou que se conformasse com a situação.
Estabelecera contato com seis magos nos últimos tempos, três dos quais fora forçado a matar, duas vezes devido à reação agressiva dos belicosos inquiridos, outra devido à notória tendência maligna do indivíduo. O terceiro, um mirrado ancião de nome Zharkavet, por pouco não lhe custara a vida, pois fora um mago de superior poder que obrigara Allumno a retirar, forçando-o a atacá-lo através do Pilar com a ajuda de Zoryan, prendendo-lhe a alma e matando-lhe o corpo de seguida. Sentia-se vil e baixo pelos atos que fora forçado a tomar, e nem mesmo a ainda mal assente consciência de que apenas fazia o que era necessário lhe servia de consolo. Zoryan sabia-o também, e embora o seu pupilo por norma partilhasse do seu ponto de vista pragmático, sentia que se ia lentamente formando uma dissensão entre ambos quanto aos métodos a usar para combater aquela que apesar de tudo era uma hipotética ameaça, pelo menos a ver de Allumno. Somado ao fato de ter sido forçado pelas circunstâncias a deixar Aewyre entregue aos seus próprios e ainda inexperientes meios, o caminho que Zoryan praticamente forçara o seu pupilo a tomar era-lhe evidentemente cada vez mais custoso. O arquimago sentiu velhos arrependimentos brotarem-lhe da sua consciência, desabrochando em amargas flores cujo odor lhe trazia a recordação de antigos fracassos e malogros, e usou-o para se fortalecer para o que tinha de ser feito, por muito que lhe custasse e a Allumno.
— Sentes-te com reservas, pupilo? — inquiriu o arquimago, readquirindo o tom didático.
Os dois tornaram a encarar-se quando as manifestações de aluno e mestre se fitaram uma vez mais, pesando em pratos opostos de uma mesma balança.
— Sim, mestre — admitiu o mago. — Mas não será isso a impedir-me de fazer o que achardes necessário. Confio no vosso julgamento e experiência.
— Folgo em sabê-lo. Mas preferia que o fizesses com a consciência tranqüila de que aquilo que te peço se destina unicamente a prevenir um mal maior.
Allumno não respondeu de imediato.
— Tentarei, mestre. Tem mais alguma diretiva?
— Não, prossegue como até agora tens feito. Confio no teu juízo para avaliares os magos que encontrares. E não hesites em invocar-me sempre que achares necessário.
— Assim farei, mestre.
— Escuta, Allumno, se por acaso quiseres falar mais sobre...
— Não será necessário, mestre — assegurou-lhe o mago secamente. — Já me disse tudo aquilo que eu precisava de saber. Adeus.
Antes que Zoryan pudesse dizer mais uma palavra, a manifestação de Allumno dissipou-se nas águas etéreas do Pilar como um pensamento descartado, deixando o arquimago uma vez mais sozinho na acroma vastidão. Zoryan deixou-se ficar no mesmo indefinido lugar durante algum tempo, fitando o vazio com um ar de concentração enquanto cofiava a basta e incorpórea barba. Já não pela primeira vez, questionou-se quanto ao verdadeiro valor das lições que ao longo dos anos tentara transmitir a Allumno. Tornara-o num mago capaz, sem dúvida alguma, e, ao contrário de muitos outros, o seu potencial mantinha-se, prometendo-lhe grande poder caso tivesse a perseverança necessária para o alcançar. O que verdadeiramente o preocupava era o tipo de pessoa no qual praticamente o forçara a tornar-se, na vida da qual o privara, e, acima de tudo, o seu aparente conformismo estóico. Allumno sempre se recusara a falar de tal assunto, agarrando-se com particular força à sua fachada resignada sempre que Zoryan tentava abordá-lo a respeito. Embora o tivesse desejado, nunca pudera verdadeiramente servir de pai para o mago, raras vezes lhe conseguira incutir qualquer moral além da inerente ao uso da Palavra, e menos ainda lhe fora possível falar de coisas inconseqüentes e quotidianas com aquele que lhe era como um filho. Tinha toda a fé na retidão de Allumno, e sabia que o rapaz simples crescera e transforma-se num adulto responsável e atreito ao dever, mas não conseguia deixar de se repreender por o ter arrancado à sua simples existência no campo, arrojando-o para um mundo desconhecido e perigoso cujo único conforto era a solidão. Tanto na vida como na morte, o seu único conforto possível, o único que lhe restava, era sem dúvida a solidão. Assim fora com Zoryan, e a tal condenara o arquimago o seu pupilo...
Com um rosnido de raiva que lhe era tão invulgar na sua clausura no Pilar como um dia quente e solarengo no Inverno de Tanarch, a manifestação de Zoryan curvou-se de punhos cerrados e proferiu um silencioso grito, fulgurando e desencadeando uma violenta pulsação escarlate que se propagou pelo éter como os anéis da perfurada superfície de um lago. Tremendo, Zoryan acabou por relaxar, deixando os braços e a cabeça descaírem com uma humanidade que já lhe era incaracterística e vogando sem rumo pelo vazio. Dispensado por Allumno, o arquimago cessou de resistir ao insistente chamamento do Pilar, e este, rápido e voraz como um predador expectante, destroçou a sua manifestação, que nele se dissipou como um lamentoso suspiro levado pelo vento.
O dia estava frio e escuro em Val-Oryth, e um ligeiro nevar grania o céu opaco de branco. A atividade nas ruas pavimentadas de neve era escassa, e poucas eram as chaminés dos edifícios de madeira que não exalavam fumo, pois a maior parte dos habitantes havia muito que recolhera para o calor dos seus lares. Os dois magocratas haviam chegado à cidade ao fim da tarde, mas a intempérie não permitira a pomposa recepção que lhes teria sido devida. As poucas e resistentes pessoas que haviam assistido à chegada do «Dueto» (assim chamado após a morte do terceiro membro do antigo Triunvirato) e que ainda se encontravam na rua sussurravam entre si, as suas vozes abafadas por felpudos agasalhos, ciciando palavras acauteladas a respeito do que a vinda dos magocratas significaria para o futuro de Tanarch. Uns falavam da ascensão de Linsha Akselban à Torre Judicante, tendo esta sido a aprendiza do falecido lorde Malagor. Outros especulavam quanto a um possível severo castigo da mesma pela forma como tomara as rédeas de Val-Oryth através do meirinho Volgo Dokhan. Havia mesmo quem alvitrasse uma dissolução da magocracia que havia tanto tempo regia Tanarch, mas os únicos que teriam acesso a tal informação em primeira mão seriam os poucos privilegiados que haviam sido convidados para a residência do meirinho além dos proeminentes cidadãos do costume. Por alguma razão, Linsha Akselban convocara certos membros da comunidade para a recepção, artífices e comerciantes menores na sua maioria que nunca teriam sequer sonhado em comparecerem a uma recepção de tão eminentes figuras.
Em todo o caso, todos haviam respondido ao convite, e naquela fria tarde a sala de audiências da residência do meirinho encontrava-se consideravelmente cheia. O ambiente era agradavelmente quente, tanto graças às duas fogueiras que ardiam nas lareiras adornadas como ao calor humano gerado pelos presentes envoltos em coloridos cafetãos debruados a peles. Estava calor suficiente para que os homens estivessem com os chapéus de topos altos nas mãos, exibindo os cortes de cabelo em forma de tigela característicos dos mais prestigiados cidadãos e os descontraídos penteados de quem não tinha ambições de grandeza. As mulheres ornavam as suas cabeças com xales, vistosos diademas e ostentosas bijouterias pendentes de brincos. Não havia quaisquer guardas presentes; esses aguardavam a chegada do «Dueto» no corredor que ligava a sala de audiências à entrada. Os presentes estranhavam a ausência de sequer uma guarda simbólica, mas ninguém se pronunciou a respeito disso, embora essa falta, aliada à recente memória da morte de lorde Malagor num evento semelhante, causasse uma certa apreensão nos convidados. Passos arrastados e bainhas de cafetãos e saias roçavam o piso de ladrilhos axadrezados, imiscuindo-se no baixo murmúrio de discretas conversas privadas que soavam concentradas devido ao baixo teto de traves de madeira. Estas eram ocasionalmente interrompidas por Linsha, que espirrava, fungava e se assoava freqüentemente a um lenço que trazia à mão. Havia quem se refugiasse atrás das cinzeladas colunas aneladas, sussurrando de cabeças chegadas, outros passavam as mãos pela cornija amarela que separava o padrão de triângulos azuis e brancos da vulgar pedra das paredes, discutindo triviais assuntos como a falta de gosto do meirinho patente na sua eclética decoração, uma espécie de aperitivo para o significativo evento que certamente se desenrolaria na sua presença. Pairava um pesado ar de expectação na sala, mas tanto Linsha como Volgo aguardavam paciente e calmamente no estrado, encontrando-se o meirinho sentado no cadeirão de braços esculpidos com um recosto para os pés e a feiticeira numa despretensiosa cadeira a seu lado. Volgo envergava o seu mais suntuoso cafetão, uma peça cor de vinho de mangas apertadas com um Y bordado a ouro e polvilhado de pérolas que lhe descia do pescoço até aos pés. O símbolo de Bellex pendia-lhe do pescoço por uma corrente dourada, e tinha o ceptro prateado do seu cargo apoiado sobre os joelhos. Por sua vez, Linsha estava invulgarmente colorida com um vestido violeta com sinuosas espirais douradas que nele delineavam um errático padrão de lágrimas rosadas e um róseo capelo ondulado debruado com fio de ouro. Usava à cabeça um grande diadema semicircular violeta cerzido a amarelo que lhe despejava sobre os ombros um pesado véu acinzentado com borda fulva, mas abstivera-se modestamente de usar os anéis e brincos pelos quais era conhecida. O seu nariz estava avermelhado, alegadamente por ter dormido certa noite com a janela aberta, e o seu porte não tinha a habitual atitude arrogante à qual os presentes estavam habituados. Contudo, apesar da posição devidamente hierarquizada que os dois ocupavam, ninguém teve razões de dúvida quanto a quem realmente detinha a autoridade naquela sala. O meirinho olhava para Linsha como um cão carente, e o semblante de profunda reflexão da jovem feiticeira dava a entender que seria ela e não Volgo a conduzir o encontro. Na verdade, já não era segredo que o meirinho agia segundo os desejos de Linsha, pois as dissensões com a igreja de Bellex e a recente conscrição nas milícias de Val-Oryth foram tão inesperadas como mal recebidas. O crime atingira um pico sem precedentes no habitualmente pacato Inverno tanarchiano, e muitos falavam já do desfavor do deus da justiça, bem como de um possível afastamento do meirinho da sua posição, outra razão pela qual a vinda do «Dueto» era aguardada com tanta expectativa.
O estrado estava ligado por um tapete vermelho de bordas cerzidas a amarelo à porta de moldura esculpida com motivos florais, na qual um anunciador aguardava pacientemente a chegada do «Dueto». Muitos dos sussurros deviam-se precisamente ao fato de Linsha e o meirinho terem ficado a aguardar as duas mais proeminentes figuras de autoridade de Tanarch em vez de as receberem em pessoa aos portões, servindo-se do mau tempo e da constipação de Linsha como fracas desculpas. Mais ainda que presenciarem a chegada dos senhores das torres Administrativa e Executória, era sobretudo a expectativa de um potencial escândalo que mantinha os convidados excitados e ansiosos por algo que certamente iria correr as bocas da cidade nas vindouras semanas. Os rumores acerca do regresso d’O Flagelo e o retorno dos conscritos estropiados, bem como todas as patéticas demonstrações de solidariedade, tudo isso não passava de terreno já coberto de ervas daninhas; os convidados aguardavam um novo pousio no qual pudessem disseminar novas sementes de polêmica e dissensão. Linsha sentia-o, sabia que estava rodeada de abutres aprumados que apenas aguardavam a sua queda para que lhe pudessem debicar os ossos, mas o seu nariz entupido parecia incomodá-la mais do que semelhante noção. O meirinho não aparentava sequer estar presente, limitando-se a preencher o seu lugar como um cão obediente e olhando constantemente para a feiticeira como se aguardasse ordens. Linsha ignorava-o, absorta como estava nos seus próprios pensamentos, mas mesmo os que a conheciam apenas de vista estranharam o ar de serenidade que era tão invulgar na jovem mulher, que mais parecia uma mera observadora descontraída no meio da excitada multidão.
O ruído de passos vindos do corredor além da porta estilhaçaram o sereno quadro da sala de audiências, dispersando a multidão como um enxame de baratas agastadas. Tropeçando e colidindo uns com os outros, os convivas encaminharam-se apressadamente para os lugares pré-acordados, alisando vestidos com as mãos e ajeitando golas de cafetãos. Volgo ficou alerta e as suas mãos sapudas agarraram o seu cetro com mais força, mas Linsha limitou-se a erguer a cabeça e a olhar em frente. Fez-se silêncio, pontuado apenas pelo ocasional pigarrear de um conviva, o fungar de Linsha e pelos passos apressados que se aproximavam. Surgiu o mensageiro do meirinho, um homem de pequeno cafetão vermelho, capa verde e barba primorosamente aparada, que sussurrou algo ao anunciador antes de se postar ao lado da porta. O homem desempenhou então o seu papel, fazendo pleno uso dos seus dotes vocais.
— Todos se curvam perante lorde Shvetan, Senhor da Torre Administrativa e lorde Gorom, Senhor da Torre Executória.
Os convivas assim fizeram, levando os joelhos em quase perfeita sincronia ao chão mesmo antes de os recém-chegados surgirem à porta. Linsha e Volgo ergueram-se das suas cadeiras e desceram os degraus do estrado para se ajoelharem eles também, embora a feiticeira o fizesse com bem menos pressa que o meirinho. Os passos que agora se ouviam no corredor eram os de pesadas botas, acompanhados pelo tilintar de cota de malha e o bater seco de pontas de bastões. A feiticeira fungou ruidosamente e engoliu, exalando de seguida pela boca. Chegara a hora...
Os magocratas e o seu séquito entraram na sala de audiências, adensando ainda mais o silêncio com a sua mera presença ao mesmo tempo que o pisoteavam sem qualquer cerimônia. O mensageiro saiu, fechando a porta nas suas costas e lançou um olhar cúmplice a Linsha, que baixou a cabeça assim que o captou. Os senhores das torres Administrativa e Executória vinham acompanhados pelos seus Ignotos, homens mudos de identidade desconhecida determinados a darem a vida para protegerem os seus senhores. Havia quatro para cada mago, e todos eram guerreiros de grande porte que envergavam cotas de malha reforçadas com placas de aço aos ombros, braceleiras nos antebraços e chapas no tronco. Usavam elmos em forma de cebola com visores semelhantes a caras humanas que serviam de máscaras e que lhes conferiam semblantes frios, determinados e uniformes, gorjais de escamas e botas altas com grevas. Quatro usavam capas pretas debruadas a vermelho com brasões que retratavam uma pena branca sobre um rolo de pergaminho amarelo, os outros usavam-nas carmesins e com bainhas azuis, ostentando uma mão amarela a empunhar um martelo como brasão. Todos empunhavam achas de armas com lâminas longas e curvas cuja ponta inferior estava presa ao cabo por uma faixa de ferro e tinham ainda talins negros de fíbulas douradas afivelados à cintura que sustinham as bainhas de longas espadas de lâminas delgadas. Os Ignotos eram a defesa física da qual os magocratas dispunham, mas ambos eram magos de grande poder, mais que capazes de se protegerem a si mesmos. Shvetan sempre fora o mais anafado do Triunvirato, e os anos haviam sido generosos com a sua cintura. O mais velho dos magocratas sempre se recusara contudo a ostentar a sua sabedoria através do comprimento da sua barba branca, usando-a sempre curta ao longo da face arredondada de olhos azuis de pálpebras descaídas. Vestia um cafetão azul-escuro e roxo ajustado à sua corpulência, com uma gola alta descaída, padrões lanceolados demarcados a ouro em ambas as lapelas e um manto de pele negra cosido aos ombros com borlas amarelas nas pontas. Trazia um felpudo gorro tubular escuro à cabeça e empunhava um cajado de cuja ponta descaía uma folha de ouro na forma de um rolo de pergaminho. Gorom era mais composto e jovem, com feições quadradas, uma testa acentuada e olhos escuros e pequenos, bem como uma barba negra de longos bigodes com apenas alguns intrusivos fios brancos à mistura. Usava um pequeno gorro vermelho forrado a pele e um cafetão igualmente vermelho bordado a ouro com uma azulada gola alta angular. O seu bastão tinha na ponta um martelo dourado inclinado que a malhava como a uma bigorna.
Ambos haviam sido antigos conhecidos de Malagor, que com eles conspirara para sucederem aos anteriores magocratas de Tanarch, uma antiga tradição fundada no mito de uma feiticeira louca que se dissera visionária e que profetizara durante uma época de fome e guerras civis que somente um «triunvirato daqueles que usam a Palavra entre as palavras» poderia conduzir a nação à paz e à prosperidade. Tudo não passara certamente de um ardil daqueles que vieram a constituir o primeiro Triunvirato e que acolheram a anciã como conselheira, mas o costume rapidamente se instaurara após uma primeira regência relativamente bem-sucedida, e desde então Tanarch fora uma magocracia, a única em Allaryia. Shvetan, Gorom e Malagor haviam até então levado a cabo uma das governações de maior sucesso da história recente, e o último fora também o primeiro Alto Vulto numa tal posição de poder sem que mesmo os seus pares o soubessem. A sua morte augurava tempos difíceis para os outros dois, e a marcha ininterrupta de Shvetan e Gorom na direção do estrado deu a entender que Linsha seria a primeira a sofrer o seu escrutínio. Tanto a feiticeira como o meirinho permaneceram ajoelhados, aguardando a permissão para se erguerem. Esta tardou, pois mesmo após os dois magos e os seus Ignotos se deterem a poucos passos de distância, estes nada disseram e limitaram-se a olhar para as duas figuras de joelhos. Linsha não levantou a cabeça, embora praticamente todos os convivas o fizessem sub-repticiamente, mas podia sentir o peso do olhar dos dois magocratas sobre ela. Via Volgo mexer-se nervosamente na sua visão periférica e teve a sensação de que, caso o meirinho tivesse cauda, esta se encontraria metida entre as suas pernas naquele momento.
— Ergam-se, Linsha Akselban, Volgo Dokhan — disse a rechonchuda voz de Shvetan por fim.
Os dois assim fizeram, Volgo com ambas as mãos crispadas no cetro e Linsha com as suas calmamente ao lado das ancas. Embora fossem desprovidos de expressão, os visores antropomórficos dos Ignotos pareciam tê-los já avaliado e condenado, mas os olhos dos dois magos davam a entender que ainda havia muito para dizer antes da sentença ser proferida, e que esta não seria leniente.
— Linsha Akselban... — disse Gorom, cuja voz continuava tão áspera como a feiticeira dela se lembrava. — Da última vez que te vi, eras ainda uma criança magra de cabelos desgrenhados. O tempo foi magnânimo com as tuas formas.
A feiticeira sabia muito bem que tais comentários se destinavam apenas a diminui-la diante dos outros, classificando-a como nada mais além de uma mulher.
— Sois muito gentil, meu senhor — agradeceu humildemente de olhos postos no chão, fungando.
— Olha para nós quando nos dirigimos a ti, Linsha Akselban — advertiu Shvetan. Linsha ergueu de imediato a cara e fitou-os aos dois com uma expressão impassível. — Temos muito que falar. Desejas dizer algo potencialmente atenuante em tua defesa antes que comecemos?
— Lamento não vos ter podido receber às portas de Val-Oryth como vos era devido meus senhores — tornou a feiticeira a fungar.
— Mas temo estar adoentada.
Gorom franziu as sobrancelhas e inclinou a cabeça em falsa compaixão.
— Tens o nariz entupido? Acquon te cure...
— M-meus senhores... — interveio Volgo, tentando futilmente saltar em defesa da feiticeira. — E-eu é que d-deveria...
Os olhos dos magocratas fizeram o meirinho arfar como se dois projéteis lhe tivessem perfurado a barriga.
— Não tenhais pressa, Volgo Dokhan — recomendou-lhe Shvetan. — Bem sabemos que não estais isento de responsabilidades. Muito pelo contrário. Já falaremos convosco.
O trato mais formal reservado ao meirinho não passou despercebido a ninguém. Os pares de Malagor eram bem menos sutis que o seu falecido camarada, e embora não se lhe comparassem em maldade, pois não passavam de meros homens poderosos e moderadamente corruptos, sempre haviam sido mais maliciosos que este no tratamento dos seus inferiores. Volgo ficou devidamente acovardado e não pareceu capaz de pronunciar uma única palavra mesmo que assim o desejasse.
— Pois muito bem, Linsha Akselban... — retomou Gorom, que deixava os seus olhos vaguearem por Linsha, evitando propositadamente os da feiticeira. — Comecemos pelo princípio. Aliás, ainda não. Antes de mais, a que se deve este circo? — perguntou, indicando a multidão atrás de si com um desinteressado gesto da mão.
— Meus senhores, estou ciente da importância deste encontro. Queria que os mais proeminentes membros de Val-Oryth estivessem a par do que aqui será decidido, bem como os mais desfavorecidos.
— Muito benevolente da tua parte — ironizou Shvetan. — E vejo que a insistência do Malagor (que tenha alcançado o pináculo da sua Montanha) em aprimorares a tua dicção deu frutos. Mas pelo princípio, então. Lorde Malagor foi morto. Por que razão nos chegou tão importante informação aos ouvidos apenas através de terceiros?
— Eu procurei apenas evitar o pânico generalizado em Tanarch — justificou-se Linsha com intencional falta de convicção. — Corriam os rumores de uma invasão de Asmodeon; caso se soubesse que um membro do Triunvirato havia sido assassinado, quem sabe o que poderia ter acontecido?
— E tornaste essa decisão...?
— Sozinha.
— Sem qualquer aconselhamento? — interrogou Goram.
— Nenhum, meu senhor. Fiz apenas o que julguei ir de encontro aos interesses de Tanarch.
Os dois magos ainda a olharam de incrédulo espanto, piscando os olhos diante de semelhante ousadia, mas o inexpressivo semblante de Linsha levou ambos a crer que estavam a lidar com uma mulher ou muito arguta, ou completamente obtusa. As circunstâncias fizeram-nos crer na segunda hipótese.
— Entendo... Estás ciente de que o que dizes é uma inanidade completamente descabida?
Linsha baixou a cabeça, fingindo vergonha mas sem ter de fingir o rubor na sua face, embora este se devesse mais a raiva que a vergonha.
— Adiante... — prosseguiu Shvetan, que dava a idéia de ter idealizado o interrogatório durante a viagem para melhor humilhar a feiticeira. — Segundo nos foi dado a entender, pareces ter tomado as rédeas da cidade, correto?
— Sim, meu senhor. Val-Oryth ficou particularmente desorientada com a morte de lorde Malagor, e, como sua aprendiza, achei que seria o meu dever desempenhar o papel que estou certa de que o meu mestre teria exercido...
— Assumir o poder, entrar em conflito com a igreja de Bellex e incrementar a conscrição para a milícia urbana como se a guerra estivesse à porta — interrompeu Goram. — Acaso estás assustada com o que os sirulianos andam a apregoar, que O Anátema voltou?
Suprimir o sorriso que ameaçou rasgar-lhe a cara foi o ato mais difícil que Linsha até então fora forçada a desempenhar.
— Meu senhor, alguma credibilidade teremos de dar a tantos rumores. Certamente haveis ouvido falar dos conscritos mutilados que regressaram...
— Donde, a aprendiza tornada autocrata decide preparar a cidade para a guerra — concluiu Shvetan, enfatizando com uma batida do cajado no chão que sobressaltou alguns dos presentes, incluindo o meirinho. Linsha não reagiu. — Conseguindo ainda aumentar a criminalidade em Val-Oryth, causar o caos em Dul-Goryn, que apenas há pouco tempo soube o que verdadeiramente sucedera ao seu magocrata residente, e forçar dois outros a deixarem os seus deveres e funções de parte para virem repreender uma estúpida rapariga que pensou que podia fazer da cidade o seu brinquedo, apenas porque o seu falecido mestre lobrigara um qualquer vestígio de inteligência na sua cabeça néscia!
Linsha sentiu as ondulações de Essência que emanavam do homem, que facilmente a poderia esmagar como a um inseto, e afetou uma expressão assustada de olhos arregalados para não o tentar demasiado. Membros da audiência mexeram-se eles também nervosamente, e o meirinho estava pura e simplesmente aterrado.
— Quanto a Malagor... — recordou Goram, desembravecendo o seu camarada com o tom calmo da sua voz áspera. — Como é possível que os seus assassinos tenham escapado?
A feiticeira estava certa de que ambos já conheciam a resposta; a pergunta destinava-se unicamente a humilhá-la um pouco mais diante da audiência, que Linsha sentiu que de repente começava a ser vista com olhos favoráveis pelos magos.
— O Cenóbio da Equidade entendeu que a Lei da Conscrição de Clausura invocada por um Mandatário se sobrepunha aos ditames da lei de Tanarch...
— E justamente assim o fizeram; o Triunvirato sempre respeitou tais leis — relembrou Shvetan hipocritamente, pois nem sempre assim o era. — A verdadeira questão é: por que razão decidiste entregar o caso ao Cenóbio?
— Se o caso tivesse sido entregue ao meirinho, um dos assassinos teria escapado impune...
— O príncipe Aewyre de Ul-Thoryn e Allumno, conselheiro de Aereth Thoryn, correto? — perguntou retoricamente Shvetan. — E por que razão não fomos avisados de tão delicada situação jurídica com conseqüências diplomáticas potencialmente tão desastrosas? Tens algum motivo racional que possa explicar o que fizeste, Linsha? Não, não vos incomodeis a balbuciar, Volgo Dokhan. Bem sabemos que a vossa autoridade há muito foi relegada à nossa jovem e ambiciosa aprendiza.
— Meus senhores... — fingiu-se Linsha acabrunhada. — O meu mestre... lorde Malagor foi morto por aqueles dois desgraçados. Eu tive de... tive de...
Os dois magocratas abanaram as cabeças, sentindo que desperdiçavam a raiva em quem era demasiado estúpido para sequer a compreender.
— Sim, a morte de lorde Malagor deixou-nos a todos transtornados — disse Gorom. — Ainda assim, a tua negligência foi grave, Linsha, e não sei até que ponto se terá tratado de mera inconsciência tua — os felinos olhos castanhos da feiticeira ergueram-se, alarmados —, ou se tudo isto não terá sido por ti deliberado...
O mensageiro que saíra quando da chegada dos magocratas tornou a entrar, chamando para si a atenção dos convivas cativados com o escândalo em decurso. Shvetan e Gorom viraram-se eles também, e Linsha trocou um breve olhar cúmplice com o meirinho, que suava copiosamente e cuja papada tremia. O mensageiro fez uma vênia apologética, virando-se de seguida para o anunciador postado ao lado da porta e segredando-lhe algo.
— A atenção de vossas senhorias, por favor — pediu o anunciador. — O Mandatário Vealdar Dolgyth e sua escolta.
Um surpreso murmúrio irrompeu dos presentes, que olharam confusos uns para os outros. Um Mandatário? Viriam punir Linsha, prendê-la, levá-la para Sirulia? Recrutar soldados forçosamente?
— Que vem a ser isto? — exigiu Shvetan saber, virando-se para a feiticeira, que se limitou a fazer um ar tão surpreso quanto o dos restantes presentes. — Ousaste aprazar um colóquio com um Mandatário no dia da nossa chegada?
— Meus senhores, eu não sabia que ele...
Os dois magocratas preparavam-se para fustigar Linsha verbalmente por tamanha imprudência, mas, antes que o pudessem fazer, foram abruptamente silenciados e imobilizados pelo ruído de aço a ser desembainhado ao fundo do corredor da entrada. O silêncio durou pouco, pois assim que se ouviu o embate de lâminas contra armaduras, despontaram os primeiros gritos entre os convivas. Como um homem só, os Ignotos aprestaram as suas achas de armas e postaram-se entre os seus senhores e a porta, assustando ainda mais os presentes, que se afastaram deles e da entrada como se fluíssem ao sabor de ondulações na água. Os dois magocratas empunharam os seus cajados, e Linsha agarrou-se ao braço do meirinho, que pareceu retirar algum alento de tal gesto e com ela recuou contra a parede. Cota de malha tilintava agudamente ao ser golpeada por lâminas no corredor, e elmos gemiam aflautadamente ao serem amolgados por violentos golpes no feroz combate que se estava a desenrolar longe da vista de todos.
— Os guardas, chamem os guardas! — gritavam uns.
— Traição, traição! — acusavam outros.
Homens e mulheres tropeçavam uns nos outros, pisando saias, empurrando quem não se mexia e procurando a proteção das colunas aneladas. Alguns haviam estado presentes durante o combate que se desenrolara quando do assassinato de lorde Malagor, e nenhum desejava repetir a experiência que já começara a reviver. Alguns correram para a porta, mas o que viram fê-los gritar e recuar apressadamente para a amarfanhada massa de humanidade que se esmagava contra as paredes.
— Como ousam? — trovejou Shvetan de anafadas bochechas vermelhas, dirigindo-se a ninguém em particular. Gorom permaneceu calmo e de olhos fixos na porta, e Linsha sentiu os pêlos do seu pescoço eriçarem-se quando os dois magos moldaram Essência em escudos defensivos ao mesmo tempo.
Um último golpe acerado vindo do corredor terminou o estrépito do combate, pontuado com o baque metálico da queda de um corpo. Os Ignotos permaneceram imóveis e silenciosos, aguardando que o perigo desse mostras de si para explodirem em ação, e alguns convivas tentaram sair pela outra porta da sala, constatando que esta se encontrava trancada. Porém, antes que pudessem manifestar mais o seu pânico, foram retidos pelo ruído de pesados e apressados passos que vinham na sua direção, acompanhados pelo som de metal a raspar em pedra. Três sirulianos de espadões desembainhados e elmos postos irromperam da porta como uma clangorosa tempestade de aço, detendo-se à entrada de armas empunhadas. Os convivas gritaram como ovelhas presas num curral com três lobos, mas os sirulianos limitaram-se a olhar em redor, avaliando a situação. Um deles encontrava-se curvado, pois arrastara o que sobrava da armadura lamelar envolta no brial de um guarda, mas desta nada mais restava além do rastro de uma negra massa purulenta deixada para trás.
— Desgraçados corruptos! — bradou o que arrastara a armadura, arrojando-a para o meio da sala, e fazendo com que expelisse mais da fétida substância como uma fruta podre. A sua voz era algo abafada pela viseira do seu elmo afunilado com babeira em forma de relha de arado, porém suficientemente poderosa para o indicar como sendo o Mandatário. Não era mais alto que os Ajuramentados que o acompanhavam, mas a sua presença arnesada era aterradora e imponente.
— Sirulia sangra pelas vossas míseras vidas há milênios, e vocês rendem-se às insídias d’O Bastardo assim que ele revela a sua vil presença uma vez mais! — acusou o siruliano, percorrendo todos os presentes da sala com a ponta do seu espadão manchado de sangue negro. Os convivas amassaram-se ainda mais contra as paredes, originando gritos sufocados de protesto dos que se encontravam atrás deles. — Vimos pedir a vossa ajuda e somos atacados por vermes corrompidos pela Dádiva Negra no local onde se concentra o poder de Tanarch!
Mesmo os magocratas ficaram momentaneamente sem palavras diante da irada manifestação do siruliano, e embora fossem os mais poderosos homens de Tanarch, a cólera rangedora dos três guerreiros fê-los hesitar em darem a ordem aos Ignotos que apenas a aguardavam. Ambos olharam para a armadura de um dos guardas do meirinho pelos quais haviam passado após a entrada, constatando que vestia um brial que retratava os três brasões do Triunvirato, como era habitual em recepções aos Três.
— Mandatário Vealdar, as palavras que proferis são graves — declarou Gorom, a sua áspera voz apenas uma oitava mais elevada. — Recomendo-vos que pondereis acerca daquele que evidentemente não passa de um mal-entendido antes de...
— Não, eu recomendo que atentais e muito às vossas palavras, lorde Gorom, e vós, lorde Shvetan — contrapôs o Mandatário, avançando uns passos com os Ajuramentados a seus lados, inflamado pelo zelo extremista que o combate claramente lhe trouxera à tona. — Havia muito tempo que estávamos cientes de que Tanarch albergava as sementes d’O Flagelo em habitantes seus, mas nunca ousámos imaginar que os próprios magocratas deles fizessem uso. Explicai-vos e sede lestos, ou juro por Sirul que pagareis por tamanha traição com as vossas vidas.
O peso da ameaça proferida pelo Mandatário apertou as gargantas de todos os presentes na sala, uma autêntica multidão na companhia de oito Ignotos e dois magocratas completamente aterrada por três homens, cujos passos medidos suscitavam inalares assustados e cujas múltiplas sombras estendidas pela luz das tochas afastavam quem por elas era tocado. Somente os Ignotos se mantinham firmes, mas mesmo estes altos homens eram diminuídos pela estatura dos sirulianos, e os enormes espadões destes pareciam sequiosos de mais sangue, independentemente da cor. Shvetan e Gorom estavam demasiado chocados para retorquir, e o seu silêncio apenas alimentou o crescente pânico dos convivas, que ameaçavam estourar a qualquer momento como uma manada alvoroçada. Os malditos sirulianos tinham acabado de ameaçar a vida dos magocratas de Tanarch?
— Assassinos! — gritou Linsha acusadoramente, surpreendendo todos. — Primeiro albergam os homens que mataram o meu mestre, agora vêm assassinar os outros! Querem destruir o Triunvirato!
Antes que alguém pudesse reagir às suas palavras, a feiticeira entoou um cântico arcano que lhe desprendeu uma série de sibilantes filamentos brancos das pontas dos dedos. Estes revelaram ser um ataque ineficaz, pois embateram faiscantes contra as couraças dos sirulianos sem qualquer efeito de maior.
— Pelo meu mestre! — invectivou Linsha. — Por...
— Silêncio, idiota! — gritou Shvetan, esmurrando o ar atrás de si e atingindo a feiticeira com um golpe de pura Essência solidificada, arrancando-a do braço do meirinho e projetando-a contra a parede.
O tempo das palavras e ações refletidas terminou então. Os sirulianos arremeteram contra os Ignotos, bradando o nome de Sirul e de espadões ao alto. A guarda do Triunvirato investiu também, e a multidão de convivas soltou gritos de pânico, atropelando-se uns aos outros e pisando os que eram derrubados na ânsia de se afastarem o mais possível do embate do aço. Gorom proferiu umas enfáticas palavras e um relâmpago trovejou entre os Ignotos, atingindo o Mandatário em cheio e lançando-o rodopiante no ar antes de embater clangorosamente no chão. Os dois Ajuramentados pareceram apenas ficar mais enfurecidos e um deles colheu um Ignoto com um devastador golpe lateral que o varreu para o lado. O outro mergulhou no meio dos inimigos, agarrando a lâmina do espadão com a mão resguardada pela manopla e empunhando a arma como uma espécie de cajado. Desviou um golpe de acha de armas, retribuindo com uma estocada reforçada pelo impulso de ambos os braços que falhou em perfurar o gorjal de escamas do Ignoto, mas que o deixou no chão, agarrado à garganta. Ao ser atacado pela esquerda, o jovem siruliano largou o punho do espadão, deslizou a mão direita quase até à ponta e pegou na lâmina a meio com a mão livre, executando um passo cruzado e oscilando a arma sobre a cabeça, evitando o ataque do adversário e percutindo-o violentamente no elmo com os copos do espadão. Shvetan ergueu o cajado com ambas as mãos e dele projetou uma rajada esverdeada que singrou na direção do outro Ajuramentado que mantinha três Ignotos afastados. O siruliano viu o feitiço e a sua reação instintiva foi a de usar o lado da larga lâmina do espadão para desviar a rajada, que veio a rebentar contra a parede, espirrando triângulos azuis e brancos e pó. A distração custou-lhe um golpe na coxa que lhe fendeu o coxote, mas o jovem siruliano gritou algo em Eridiaith que atordoou os seus três algozes antes que estes lhe caíssem em cima, permitindo-lhe tombar outro com um revés do espadão que arrancou o elmo da cabeça ao adversário.
— Loucos, selvagens! — gritou Goram, palavreando algo místico e executando um gesto para baixo com a mão que vergou o acirrado Ajuramentado, forçando-o a ajoelhar-se. Os dois magos usavam a Palavra alternadamente, receosos da conflagração que poderia resultar do acesso de dois tão poderosos magos à Essência. Os gritos da multidão que corria em pânico em redor também os perturbavam, fazendo-os refrear os seus poderes instintivamente de forma a não causarem uma matança.
Um Ignoto foi rápido a aproveitar a abertura deixada pelo siruliano ajoelhado, e este não se conseguiu desviar a tempo do golpe que lhe amolgou o gorjal, derrubando-o. O outro Ajuramentado viu o risco que o seu companheiro corria e, oscilando o espadão em redor para afastar os seus adversários, deu um largo passo para o lado e atacou o que se preparava para esmagar a cabeça do siruliano caído. O Ignoto viu o perigo e executou um desesperado golpe ascendente contra o espadão, que ficou embebido na haste da sua acha de armas e lha arrancou das mãos, por pouco não lhe deslocando os ossos dos ombros com a força do impacto. Shvetan impeliu ambas as mãos para a frente com uma exclamação arcana e um aríete invisível projetou o siruliano que se encontrava de pé contra uma das colunas aneladas, fazendo-o largar o espadão embebido na acha de armas e originando gritos pela parte de duas mulheres que se haviam escondido atrás da coluna. O Ignoto desarmado desembainhou a sua espada de lâmina estreita e o seu companheiro ergueu a acha de armas para aniquilar o Ajuramentado que já se acocorara, mas este surpreendeu-o ao deixar-se cair para trás, erguendo a ponta do espadão com o bico do pé e impelindo-o para a frente com uma mão apoiada no pomo da arma. A ponta da lâmina trespassou a virilha do Ignoto debaixo da saia de cota de malha, atravessando couro, tecido, tendões e carne e encalhando na bacia. Mudo, o homem não proferiu qualquer som com o horrendo golpe, mas caiu curvado ao chão ao mesmo tempo que o Mandatário Vealdar se erguia, fumegando das frestas do arnês e arrancando o elmo da cabeça de grisalhos cabelos eriçados. A sua cara era uma rubra e enrugada máscara da mais pura fúria. Diante de tal visão, os já espavoridos convivas foram acometidos de uma nova onda de pânico e alguns ousaram mesmo correr pela zona de combate numa desesperada tentativa de chegarem à porta enquanto outros arremedam arrebatadamente contra a que se encontrava trancada. Mesmo os magocratas se atemorizaram quando o siruliano começou a andar tropegamente e Goram preparou-se para eliminar de vez a ameaça com um devastador feitiço alheio à segurança dos presentes. Porém, no momento em que o ia lançar, Linsha atacou o escudo de Shvetan com uma broca de Essência, levando o mago a incrementar a defesa instintivamente. O uso simultâneo da Essência pela parte de três magos causou uma ruptura essencial que fez com que os ouvidos de todos zumbissem agudamente, bafejando o ar com um pungente cheiro a ozono e originando um estampido de tal ordem que o ar foi arrancado dos pulmões de todos e os intervalos entre as pedras das paredes cuspiram argamassa pulverulenta para o chão.
Silêncio. Olhares atônitos. O Mandatário recomeçou a andar.
Os gritos e berros reavivaram-se. O siruliano desarmado desembainhou um rígido punhal, atirou-se contra um Ignoto e puxou-o brutalmente contra a bicuda lâmina, que lhe quebrou os elos da cota de malha entre duas lâminas de metal e lhe rachou o esterno, perfurando-lhe o coração. O Ignoto que desembainhara a espada arremeteu com esta de ponta virada para baixo, enfiando-lhe pelo gorjal adentro e obstruindo-lhe as vias respiratórias com aço frio. O Ajuramentado acocorado ergueu-se de olhos postos nos magos, levou o enorme espadão atrás com ambas as mãos e, com um crescente grito de raiva, deu um passo em frente e arremessou a arma. A enorme lâmina produziu um chofre rotativo ao rodopiar pelo ar na direção de Goram, que ficou a olhar estupidamente para os reflexos ígneos da luz das tochas no aço volante até ser colhido do chão pelo espadão e voar contra o cadeirão do meirinho, contra o qual ficou varado como um estrebuchante boneco de trapos, chiando roucamente de olhos esbugalhados e ferindo as mãos ao agarrar a lâmina. Os convivas gritaram, aterrorizados, e o siruliano que arremessara a arma cambaleou mais uns passos em frente, tentando suster-se com a perna ferida. Não viu o Ignoto atacá-lo por trás e mal pôde erguer a cabeça antes que este lhe fendesse o elmo e lhe enterrasse a acha de armas na nuca com um histérico ruído metálico seguido de um estalo crocante. Os seus joelhos cambaram e o Ajuramentado caiu de frouxa cabeça inclinada e braços lassos, ainda com a lâmina da acha de armas encalhada nos retorcidos lábios do metal do seu elmo. O Mandatário começou a correr tropegamente, empunhando o espadão e fixando Shvetan com os olhos como uma águia o faria com uma presa. O siruliano mortalmente ferido na garganta executara uma brusca torção de ombros que quebrara a lâmina na espada do Ignoto, e parte desta encontrava-se ainda encalhada no seu gorjal, vertendo-lhe sangue pelo interior da couraça. O Ajuramentado atirou-se para cima do seu assassino e caiu com ele ao chão, procedendo então a despedir-lhe repetidos socos acerados na cara resguardada. O homem ainda lhe bateu no elmo com o pomo da espada, tentando de seguida enfiar-lhe a lâmina quebrada pela fresta do visor adentro, mas os brutais murros das manoplas do siruliano caíam ao ritmo das aceleradas batidas do seu coração, fazendo o seu mundo trovejar e ensurdecendo-o com ruídos metálicos a cada impacto. Vealdar passou por ambos, praticamente galopando a passos largos e alheio a tudo menos a Shvetan, que viu a morte vir na sua direção. O Ignoto tentou libertar a sua acha de armas ao ver o siruliano passar, mas o Ajuramentado que matara parecia ainda vivo pela forma como lhe mantinha a arma encalhada na sua nuca. Shvetan reuniu a presença de espírito necessária para invocar um leque de chamas, mas quis o acaso que este se dissolvesse nos resquícios de Entropia presentes no velho siruliano, que baixou a lâmina do espadão para o lado ao encurtar a distância que o separava do mago. O Ignoto conseguiu por fim libertar a acha de armas, empurrando o siruliano morto de cara para o chão com o pé e correndo a acudir o seu mestre. Por sua vez e mesmo com a visão a escurecer com a falta de ar, o moribundo siruliano continuava a esmurrar cegamente o seu adversário, cujo amolgado visor antropomórfico já vertia sangue dos orifícios para os olhos, narinas e boca e cujas mãos se arrastavam debilmente pela couraça do Ajuramentado. Um ligeiro rosnido nasceu na garganta de Vealdar, que levou o espadão em arco sobre a cabeça. Quase gemendo, Shvetan escudou-se com as mãos e ergueu uma barreira de pura Essência entre si e o siruliano, cujo rosnido se tornou num possante grito quando a lâmina do espadão desceu diagonalmente, todo o seu ímpeto incrementado pela torção de ombros e ancas do Mandatário. O espadão estilhaçou o escudo essencial, causando estranhas refrações no ar ao prosseguir com o seu mortal curso, decepando o pulso esquerdo do mago e alanhando-lhe o pescoço de lado num espirro de sangue. A força do golpe foi tal, que a lâmina lhe estilhaçou a clavícula, impelindo reflexamente o lado da cabeça de Shvetan contra o seu ombro, rasgando carne, rachando costelas e deslocando a omoplata até encalhar na coluna vertebral, na qual se deteve. O horrendo talho começou a jorrar ainda mais sangue, e o mago caiu de lado.
Linsha gritou, francamente aterrada com a fúria do siruliano, e o seu horror foi ecoado pelos convivas, alguns dos quais vomitaram e outros que se juntaram aos que já haviam desmaiado ao verem Gorom ser varado contra o cadeirão do meirinho.
— Assassinos! Assassinos! — guinchou a feiticeira, temendo já pela própria vida e gritando algo com a Palavra que lançou coruscantes fagulhas contra a couraça do Mandatário, fazendo-o largar a arma embebida em Shvetan e cambalear para trás.
Momentaneamente cego pelas faíscas e pelo fumo da sua couraça chamuscada, o siruliano não teve oportunidade de reagir antes de o último Ignoto lhe rachar o crânio com um possante altabaixo que lhe enterrou a lâmina quase por completo na cabeça e que por pouco não lhe fez saltar os olhos das órbitas. O único som que proferiu foi um curto e surpreso grunhido antes de o seu executor o puxar para trás e lhe apoiar o pé nas costas para lhe arrancar a acha de armas da cabeça. O tempo parou então, e todos se quedaram imóveis como se os retivesse o pensamento de que um movimento em falso poderia fazer com que o caos e a morte recomeçassem. O arquejar dos vivos e os gemidos dos feridos e moribundos recusavam-se a coexistir com o silêncio dos mortos. Mulheres choramingavam, homens lamentavam-se; uns purgavam o azedo horror que lhes fermentara nos estômagos, outras tapavam as bocas e narizes soluçantes para os resguardarem do cóbreo cheiro a sangue que tingia o ar. Alguns conseguiram vencer os seus receios e gatinharam ou arrastaram-se de costas para a parede na direção da porta de entrada, mas a esmagadora maioria deixou-se ficar, retida pela enormidade da situação. O Triunvirato fora destruído diante dos seus olhos, chacinado como dois porcos numa matança. Lorde Gorom estava empalado contra o cadeirão do meirinho, de pernas estendidas sobre o assento na paródia de uma bizarra posição sentada. A força do impacto do espadão arrancara-lhe o gorro da cabeça inclinada, e os seus cabelos negros cobriam-lhe parcialmente a cara como um enlutado véu. Os seus longos bigodes estavam pegajosos com o sangue que deles pingava sobre o regaço do seu cafetão vermelho, e a sua mão esquerda permanecera agarrada à lâmina que o matara, gotejando ela também dos cortes que se auto-infligira ao tentar libertar-se. Lorde Shvetan estava deitado de lado numa grotesca posição, seu rico cafetão roxo e azul-escuro escurecido pelo sangue que formava uma poça em seu redor e amarrotado no tronco obeso do mago que ficara deformado pelo possante golpe mortal. Os três sirulianos jaziam mortos, dois deles golpeados na cabeça por achas de armas e outro que sufocara em cima de um Ignoto de elmo com visor deformado sobre o qual se encontrava deitado, ainda com a lâmina quebrada da espada enfiada no seu gorjal. Apenas um Ignoto se encontrava vivo e inteiro, o que estava mudo diante de Linsha, empunhando a acha de armas com lâmina empapada de sangue e fluidos. O mais afortunado estava inconsciente; um ferido dificilmente tornaria a andar e ainda podia perecer se a horrenda ferida na virilha infectasse, enquanto o outro provavelmente escaparia apenas com algumas costelas partidas. Um Ignoto morrera agarrado à laringe esmagada, outro esvaíra-se em sangue jorrado pelo coração perfurado por um punhal e um terceiro que estava sem elmo provavelmente partira o pescoço, julgando pelo ângulo no qual este se encontrava.
O meirinho balbuciava incoerentemente de calva suada e mãos sapudas a remexerem o seu cabelo despenteado, não querendo acreditar que tornara a presenciar semelhante cena na sua residência. Linsha levantara-se entretanto, e não teve de fingir muito para fazer um ar estupefacto. Embora tivesse sido a própria a tramar o ardil que vitimara os dois magocratas, chegara a temer verdadeiramente pela sua vida, e, por muito que tentasse, não conseguia parar de tremer. O seu diadema caíra-lhe, deixando os seus negros cabelos rebeldes a penderem-lhe em selvagens madeixas diante da cara, e um fio de muco escorrera-lhe do nariz avermelhado quase até ao queixo antes que a feiticeira desse conta dele e o esfregasse com a manga do vestido. Fungando e olhando em redor, Linsha contemplou a safra das insidiosas sementes que plantara e que Ele a instigara a colher. Caminhou entre os despojos como um corvo num campo de batalha, chamando sobre si os olhares de todos, dos convivas, do meirinho, do mudo Ignoto, do mensageiro, do anunciador. Ouviram-se os primeiros gritos vindos do exterior, causados pelos que haviam saído da sala, mas ninguém lhes deu grande atenção. Linsha curvou-se diante do espadão que ficara embebido na haste de uma acha de armas e ergueu-o pelo punho, deixando a ponta apoiada no chão. Olhou a lâmina atentamente de cima a baixo e deixou-a cair ao chão, sobressaltando todos menos o Ignoto, que a olhava com ar perdido. Linsha levou as mãos à cabeça, crispando os dedos nos cabelos e andou às voltas por uns momentos, respirando fundo e recolhendo calmamente os seus pensamentos, recordando-se de tudo o que planejara, do que tinha de fazer de seguida, e sobretudo das palavras d’Ele. Estas deram-lhe forças, e a feiticeira virou-se para ninguém em especial com ar resoluto ao baixar os braços.
— Albergaram os assassinos de lorde Malagor, impediram-nos de lhes aplicar o castigo que lhes era devido — lembrou a sua silente e invulgarmente receptiva audiência, sem se esforçar muito por controlar as muitas emoções que lhe grassavam pela voz. — Agora... vêm e assassinam os nossos senhores à nossa frente, na mesma casa onde lorde Malagor foi morto...
Ninguém se pronunciou, embora algumas testas enrugadas por olhos arregalados se começassem a franzir e certos olhares dúbios se cruzassem. Linsha caminhou lentamente até ao Mandatário com o crânio rachado, contemplou-o e tornou a sobressaltar os convivas ao pisar-lhe a cabeça. Grunhindo e rosnando de raiva, Linsha deu-lhe três pontapés seguidos, vertendo sangue e outros fluidos da racha na cabeça do siruliano e amaldiçoando os seus fígados e toda a sua raça. Depravadamente fascinados pelo grotesco espetáculo que no fundo dava resposta às suas entranhadas necessidades de ver os responsáveis pelo seu terror punidos, os presentes sentiam-se num estranho estado de espírito no qual dificilmente podiam ser chocados, e nenhum desviou o olhar, nem mesmo quando a feiticeira se acocorou e pegou no Mandatário pelos cabelos, levantando-lhe a grande cabeça. Com o crânio rachado, o siruliano sangrava das narinas e da boca e uma gota vermelha escorrera-lhe da carúncula de um dos olhos esbugalhados até à ponta do nariz. Linsha fitou-o com desprezo, cuspindo-lhe na cara e proferindo um encantamento com a Palavra de raivosos dentes cerrados. Os cabelos grisalhos do Mandatário pegaram fogo e a feiticeira largou-lhos subitamente, deixando-o cair de cara no chão. Morbidamente fascinados, os presentes olharam alternadamente para Linsha e para a cabeça ardente do siruliano.
— Não mais... — murmurou a jovem mulher, cerrando os punhos com sentida raiva. — Não mais! — repetiu, erguendo a cabeça e tirando os cabelos da frente da sua cara com o gesto brusco. — A tirania acaba hoje! Vão deixar de levar os nossos homens para a morte! Vão deixar de tratar as nossas mulheres como gado!
Excitados e empolgados pela adrenalina que lhes havia percorrido os corpos, os convivas deram consigo a proferir gritos de concordância, alguns mesmo de punhos cerrados. Velhas animosidades e rancores vieram ao de cima como se tivesse chegado a oportunidade pela qual estas haviam esperado toda uma vida, recalcadas ao longo de sucessivas gerações oprimidas sem que ninguém alguma vez tivesse ousado dar-lhes convicta e determinada voz. Lentamente, os convivas foram-se afastando das paredes, tanto homens como mulheres, e acercaram-se dos corpos dos sirulianos como aguerridos abutres, rogando-lhes indignadas pragas. Linsha olhou para o meirinho e para o mensageiro, os seus dois cúmplices, mas não deu qualquer atenção à patética careta desejosa de servir do primeiro nem ao sorriso deliberado do segundo. A sua vida de aprendiza terminara com o fogo do cadáver do seu mestre, e com fogo do Mandatário a fazer as vezes de uma ardente efígie representativa dos odiados sirulianos começava agora o seu novo caminho. O caminho para o qual a sua vida a moldara, o caminho para o qual Ele a escolhera.
Não o iria desiludir.
O Outono aproximava-se do seu fim em Nolwyn, e os arrabaldes de Vaul-Syrith já tremiam com o frio bafejado pelas montanhas da Cinta a norte. O tempo estava cerrado e no céu migravam densas nuvens que vaticinavam as previsões dos vilãos de que o Verão estuante daria lugar a um gélido Inverno. Árvores despidas mexiam-se como que embaraçadas e os seus ramos desnudos ciciavam, agitados por uma aragem que esfriava os narizes e as bochechas do séquito que se encontrava acampado à orla do bosquete. Um seleto grupo da corte de Vaul-Syrith reunira-se na coutada de lorde Syndar por ocasião da Dádiva Régia, uma cerimônia importada de Thyr. Vaul-Syrith podia ser uma das cidades-estado de Nolwyn, mas em eras passadas acolhera o perdedor de uma contenda dinástica da nação do outro lado da Cinta, conservando-o a salvo de quem pretendia eliminar a sua pretensa elegibilidade à sucessão do trono de Thyr. Esse perdedor, um mero graveto de uma basta árvore fidalga, acabou por se instalar na cidade com a sua corte de arrivistas, trazendo consigo toda uma moda e série de costumes que os estratos superiores de Vaul-Syrith acabaram por adotar numa das muitas demandas palacianas em busca de distinção social no sempre colorido panorama de Nolwyn. Cabelos ao nível dos ombros, um apreço por cavalos e uma índole mais mundana eram o mais visível legado de Thyr, o que resultava numa profunda asserção de desconformidade das gentes de Vaul-Syrith em relação às restantes províncias de Nolwyn. A Dádiva Régia era uma cerimônia de fim de Outono na qual o rei de Thyr organizava uma caçada ao bisonte, um animal que ainda abundava nas vastas planícies dessa nação, e concedia o primeiro quinhão a um camponês que o acompanhava.
O afortunado daquele ano fora um rapaz magro e simplório de cabelos castanho-escuros cujo nome todos já haviam esquecido e que aguardava em infantil expectativa com parte da corte pelo regresso do grupo de caça de lorde Syndar. Cercado por homens armados de lanças, brigandinas cobertas de peles e elmos globulares, fidalgos cujas roupas de caça poderiam comprar a sua aldeia e a própria Alnara Syndar, esposa do seu senhor, o rapaz olhava em redor com olhos de cachorro curioso em respeitoso silêncio. Na verdade, a senhora Alnara fora bastante afável e simpática, mas era evidente que estava preocupada com alguma coisa e os seus pais bem o haviam avisado de que tinha certamente coisas mais importantes em que pensar que um «rapazola» como ele, que se devia portar bem e não fazer demasiadas perguntas. Não percebia porquê, a esposa de lorde Sunlar já lhe sorrira muitas vezes e falara bastante com ele antes de ficar preocupada; logo iria mostrar aos seus pais como haviam estado enganados. Alnara já não era uma mulher jovem, mas tinha uma beleza madura que não passava despercebida, com um brando semblante oval, olhos castanhos, nariz direito e uma boca de determinados lábios finos pintados a vermelho. Envergava uma peliça de lustrosa castorina azul com compridas mangas pelo cotovelo sobre um vestido roxo e plissado, com um manto preso por um broche na forma de duas cabeças de cavalo enfreadas. Usava um elegante capuz azul sobre a sua mantilha branca, mantendo as enluvadas mãos recatadamente cruzadas sobre o regaço enquanto passeava em círculos, murmurando palavras de apreensão de cada vez que olhava para as árvores despidas. Sempre fizera questão de acompanhar o seu marido nas caçadas, e este já desistira de a tentar dissuadir, embora por vezes parecesse demorar-se mais de propósito apenas para a preocupar. Lorde Syndar embrenhara-se pelo bosquete adentro com o seu grupo e a sua guarda pessoal havia já algum tempo, mas o rapaz não via quaisquer razões de preocupação. O seu regente era um homem forte, um guerreiro experimentado cuja presença era uma inspiração para quem o servia, e decerto nada teria a temer de um mero bisonte, embora pessoalmente o rapaz nunca tivesse visto um e se questionasse quanto à sua aparência e...
Filipe Faria
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