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Series & Trilogias Literarias
10
A Congregação das Trevas
Torga, o ore, encarava Grock, o goblin, com franco desdém. Suas respectivas tribos haviam guerreado durante muitos anos, tantos quantos qualquer membro vivo de ambos os grupos era capaz de lembrar. Dividiam um vale na Espinha do Mundo e competiam por território e alimento com a brutalidade típica de suas raças belicosas.
E agora encontravam-se no mesmo espaço sem que as armas fossem desembainhadas, arrastados para aquele lugar por uma força ainda maior que o ódio que nutriam um pelo outro. Em qualquer outro lugar, em qualquer outro momento, as tribos jamais teriam permanecido assim tão próximas sem que se travasse uma batalha feroz. Mas, agora, elas tinham de se contentar com ameaças vãs e olhares perigosos, pois haviam recebido ordens para deixar de lado suas diferenças.
Torga e Grock viraram-se e caminharam lado a lado em direção à estrutura que abrigava o homem destinado a ser seu mestre.
Entraram em Crishal-Tirith e apresentaram-se diante de Akar Kessell.
Mais duas tribos haviam se juntado a suas fileiras em expansão. Por todo o planalto que abrigava sua torre encontravam-se os estandartes de vários bandos de goblinóides: os Goblins das Lanças Serpeantes, os Ores Acutiladores, os Ores da Língua Partida, e muitos outros, todos ali para servir o mestre. Kessell até mesmo recolhera um grande clã de ogros, um punhado de trolls e quarenta verbeeg desgarrados, os mais insignificantes dos gigantes, mas gigantes apesar de tudo.
No entanto, o remate de suas conquistas foi um grupo de gigantes do gelo que simplesmente fizera uma peregrinação até ali, desejando apenas agradar o portador de Crenshinibon.
Kessell estava satisfeito com sua vida em Crishal-Tirith, com todos os seus caprichos obedientemente atendidos pela primeira tribo de goblins que ele encontrara. Os goblins tinham conseguido até atacar uma caravana mercante e prover o mago com algumas mulheres humanas para seu prazer. A vida de Kessell era fácil e agradável, exatamente do jeito que ele gostava.
Mas Crenshinibon não estava satisfeita. O desejo de poder da relíquia era insaciável. Ela aceitava os pequenos ganhos durante algum tempo e depois exigia que seu portador partisse para conquistas mais grandiosas. Não se oporia abertamente a Kessell, pois, na constante guerra de vontades dos dois, Kessell, em última análise, tinha o poder de decisão. A pequena estilha de cristal controlava uma incrível reserva de poder, mas, sem um portador, era como uma espada embainhada à espera da mão que a empunharia. Portanto, Crenshinibon exercia sua vontade por meio da manipulação, insinuava ilusões de conquista nos sonhos do mago, permitia a Kessell enxergar as possibilidades do poder. Acenava ao aprendiz outrora titubeante com algo que ele não poderia recusar: respeito.
Kessell, a eterna escarradeira dos pretensiosos magos de Luskan - e, aparentemente, de todo o mundo -, era presa fácil dessas ambições. Ele, que beijara as botas de pessoas importantes, ansiava pela chance de reverter os papéis.
E agora tinha a oportunidade de transformar suas fantasias em realidade, era o que Crenshinibon com freqüência lhe garantia. A mando a relíquia, ele poderia se tornar o conquistador; poderia fazer as pessoas, até mesmo os magos da Torre das Hostes, tremerem diante da simples menção de seu nome.
Ele precisava ainda ser paciente. Passara vários anos aprendendo as sutilezas do comando sobre uma, e depois duas tribos de goblins. No entanto, reunir e subjugar dúzias de tribos naturalmente inimigas era muito mais desafiador. Precisava recolhê-las, a princípio uma a uma, e garantir que as tivesse submetido sinceramente a sua vontade antes de se atrever a convocar outro grupo.
Mas estava funcionando, e agora ele havia recolhido duas tribos rivais simultaneamente, e com resultados positivos. Torga e Grock haviam entrado em Crishal-Tirith, cada um deles à procura de uma maneira de matar o outro sem acarretar a ira do mago. Ao partirem, porém, depois de uma pequena discussão com Kessell, conversavam como velhos amigos sobre a glória de suas futuras batalhas no exército de Akar Kessell.
Kessell reclinou-se nas almofadas e ponderou sua boa sorte. Seu exército estava realmente ganhando forma. Tinha os gigantes do gelo como comandantes, ogros como guarnição, verbeeg como uma letal força de ataque e trolls - perversos trolls de meter medo - como sua guarda pessoal. E, segundo seus cálculos até ali, dez mil soldados goblins fanaticamente leais para levar a cabo sua onda de destruição.
- Akar Kessell - gritou, contemplativo, para a moça do harém que lhe fazia as longas unhas, apesar de a mente da menina já ter sido destruída por Crenshinibon. - Toda a glória para o Tirano do Vale do Vento Gélido!
Bem ao sul das estepes congeladas, nas terras civilizadas onde os homens tinham mais tempo para o lazer e a contemplação e nem todas as ações eram determinadas por pura necessidade, os magos e os pretensos magos não eram tão raros. Os verdadeiros magos, estudantes perpétuos das artes arcanas, praticavam sua profissão com o devido respeito pela magia, sempre precavidos em relação às possíveis conseqüências de seus encantamentos.
A menos que fossem consumidos pelo desejo de poder, o que era algo muito perigoso, os verdadeiros magos temperavam seus experimentos com cautela e raramente provocavam catástrofes.
Os pretensos magos, entretanto, homens que de algum modo haviam adquirido um certo grau de habilidade mágica, quer tivessem encontrado um pergaminho, o grimório de um mestre ou alguma relíquia, eram geralmente os perpetradores de calamidades colossais.
Esse era o caso naquela noite, num país a mil milhas de distância de Akar Kessell e Crenshinibon. Um aprendiz de mago, um rapaz que parecera muito promissor a seu mestre, obteve o diagrama de um poderoso círculo mágico e depois procurou e encontrou um encanto de invocação. O aprendiz, atraído pela promessa de poder, conseguiu extrair o nome verdadeiro de um demônio das anotações confidenciais de seu mestre.
A feitiçaria, a arte de invocar entidades de outros planos e submetê-las à servidão, era a paixão particular do rapaz. Seu mestre permitira-lhe trazer homúnculos e manes por meio de um portal mágico - rigorosamente supervisionado -, esperando demonstrar os possíveis perigos da prática e reforçar as lições de cautela. Na verdade, as demonstrações só fizeram agravar a inclinação do rapaz para essa arte. Ele implorou ao mestre que lhe permitisse tentar um verdadeiro demônio, mas o mago sabia que o rapaz não estava preparado para um teste dessa magnitude.
O aprendiz discordava.
Ele completara a inscrição do círculo naquele mesmo dia. Tão confiante estava em seu trabalho que não dedicou mais um dia (alguns magos levariam uma semana) para a verificação das runas e dos símbolos, nem se deu ao trabalho de testar o círculo com uma entidade inferior, como um mane.
E, agora, ele estava sentado no centro do círculo, com os olhos focalizados no fogo de um braseiro que serviria como o portal para o Abismo. Com um sorriso arrogante e excessivamente orgulhoso, o pretenso feiticeiro invocou o demônio.
Errtu, um demônio importante e de proporções catastróficas, ouviu indistintamente seu nome sendo pronunciado no plano longínquo. Normalmente, o grande monstro teria ignorado um chamado tão fraco; o conjurador com certeza não era bastante habilidoso para obrigar o demônio a obedecer.
Entretanto, Errtu ficou feliz com aquele chamado fatídico. Alguns anos antes, o demônio sentira uma onda de poder no plano material que ele acreditava ser a culminação de uma demanda milenar. O demônio suportara impacientemente os últimos anos, ansioso para que um mago lhe abrisse uma trilha e ele pudesse vir ao plano material para investigar.
O jovem aprendiz sentiu-se atraído pela dança hipnótica do fogo do braseiro. As labaredas uniram-se numa única chama - como a de uma vela, só que muitas vezes maior - e oscilavam torturantemente, de um lado para outro, de um lado para outro.
O aprendiz mesmerizado sequer percebeu a intensidade crescente do fogo. A chama saltava cada vez mais alto, acelerava-se seu bruxuleio e sua cor movia-se pelo espectro da luz em direção ao calor máximo da brancura.
De um lado para outro. De um lado para outro.
Mais rápido, agora, agitava-se desvairadamente e ganhava força para sustentar a poderosa entidade que aguardava do outro lado.
De um lado para outro. De um lado para outro.
O aprendiz transpirava. Sabia que o poder do encantamento estava passando dos limites, que a magia havia assumido o comando e ganhava vida própria. Que ele não teria o poder de detê-la.
De um lado para outro. De um lado para outro.
Agora, ele via no interior da chama uma sombra escura, grandes mãos providas de garras e asas coriáceas como as de um morcego. E o tamanho do monstro! Um gigante até mesmo pelos padrões de sua espécie.
- Errtu! - chamou o rapaz, e as palavras foram arrancadas pelas exigências do feitiço. O nome não havia sido identificado completamente nas anotações de seu mestre, mas era óbvio que pertencia a um demônio poderoso, um monstro do escalão logo abaixo dos lordes-demônios na hierarquia do Abismo.
De um lado para outro. De um lado para outro.
Agora, a cabeça bizarra e simiesca - com a boca e o focinho de um cão e os incisivos desproporcionais de um javali - já era visível, e os imensos olhos vermelhos como sangue entrecerraram-se lá de dentro da chama do braseiro. A saliva ácida crepitava ao cair no fogo.
De um lado para outro. De um lado para outro.
O fogo cresceu, num último estertor de poder, e Errtu deu um passo adiante. O demônio nem mesmo se deteve para examinar o aterrorizado rapaz que estupidamente invocara seu nome. Ele começou a caminhar lenta e ameaçadoramente pelo círculo mágico, em busca de pistas sobre a extensão do poder daquele mago.
O aprendiz finalmente conseguiu se controlar. Ele havia invocado um demônio importante! O fato o ajudou a restabelecer a confiança em suas habilidades como feiticeiro.
- Apresente-se diante de mim! - ordenou, consciente de que era necessário pulso firme para controlar uma criatura dos caóticos planos inferiores.
Errtu, impassível, prosseguiu com seu andar ameaçador. O aprendiz irritou-se.
- Você há de me obedecer! - gritou. - Eu o trouxe aqui e guardo a chave de seu tormento! Você há de obedecer minhas ordens e depois, misericordiosamente, eu o libertarei para que retorne a seu mundo abjeto! Agora, apresente-se diante de mim!
O aprendiz era ousado. O aprendiz era orgulhoso.
Mas Errtu encontrara um erro no traçado de uma runa, uma imperfeição fatal num círculo mágico que não poderia se dar ao luxo de ser quase perfeito.
O aprendiz estava morto.
No plano material, Errtu sentiu mais distintamente a tão conhecida sensação de poder e teve pouca dificuldade para discernir de onde provinham as emanações. Sobrevoou com suas grandes asas as cidades dos humanos, espalhando o pânico sempre que notado, mas não retardou sua jornada para saborear o caos que irrompia lá embaixo.
Direto como uma flecha e a toda velocidade, Errtu voou sobre lagos e montanhas, através de grandes extensões de terra desabitada. Em direção à cordilheira mais setentrional dos Reinos, a Espinha do Mundo, e à antiga relíquia que ele passara séculos procurando.
Kessell soube da aproximação do demônio muito antes que suas tropas ali reunidas começassem a se dispersar com medo da investida daquela sombra de trevas. Crenshinibon comunicara a informação ao mago, pois a relíquia viva antecipara os movimentos da poderosa criatura dos planos inferiores que a vinha perseguindo havia incontáveis séculos.
Kessell, porém, não estava preocupado. Em sua torre de poder, ele se acreditava capaz de lidar até mesmo com uma nêmesis tão poderosa quanto Errtu. E ele levava uma distinta vantagem sobre o demônio. Era o portador de direito da relíquia. A estilha estava em sintonia com ele e, como muitos outros artefatos mágicos da aurora dos tempos, Crenshinibon não poderia ser arrancada de seu dono pela força bruta. Errtu desejava empunhar a relíquia e, portanto, não ousaria se opor a Kessell e invocar a ira de Crenshinibon.
A saliva ácida escorreu da boca do demônio assim que ele viu a cópia da relíquia em forma de torre.
- Quantos anos? - ele bradou, vitorioso.
Errtu enxergou claramente a porta da torre, pois o demônio não era uma criatura do plano material, e aproximou-se imediatamente. Nenhum dos goblins de Kessell, nem mesmo um dos gigantes barrou a entrada do demônio.
Franqueado por seus trolls, o mago esperava Errtu no aposento principal de Crishal-Tirith, o primeiro nível da torre. O mago sabia que os trolls seriam de pouca utilidade contra um demônio que tinha o fogo como arma, mas os queria presentes para acentuar a primeira impressão que o demônio teria dele. Sabia que detinha o poder de livrar-se facilmente de Errtu, mas ocorrera-lhe uma outra idéia, mais uma vez implantada por uma sugestão da estilha de cristal.
O demônio poderia ser muito útil.
Errtu deteve-se abruptamente ao passar pela entrada estreita e dar com o séqüito do mago. Devido à remota localização da torre, o demônio esperara encontrar um ore ou talvez um gigante com a estilha nas mãos. Ele alimentara a esperança de intimidar e enganar o obtuso portador, convencendo-o a entregar a relíquia, mas a aparição de um homem de túnica, provavelmente um mago, frustrou-lhe os planos.
- Saudações, poderoso demônio - disse Kessell educadamente, com uma reverência. - Bem-vindo a meu humilde lar.
Errtu rugiu de fúria e avançou, esquecendo-se dos inconvenientes de destruir o portador tamanhos eram o ódio devorador e a inveja que sentia pelo presunçoso humano.
Crenshinibon refrescou a memória do demônio.
As paredes da torre emitiram um súbito clarão de luz que envolveu Errtu na luminosidade dolorosa de doze sóis do deserto. O demônio deteve-se e cobriu os olhos sensíveis. A luz logo se dissipou, mas Errtu continuou onde estava e não se aproximou novamente do mago.
Kessell sorriu com afetação. A relíquia o apoiara. Transbordando de confiança, ele voltou a se dirigir ao demônio, dessa vez com um quê de severidade na voz.
- Você veio para levar isto - disse, enfiando a mão nas dobras da túnica para dali retirar a estilha. Os olhos de Errtu estreitaram-se e fixaram-se no objeto que ele perseguira por tanto tempo.
- Não pode ser sua - disse Kessell, categoricamente, e devolveu-a a seu lugar. - É minha, foi encontrada legitimamente, e você não tem nenhum direito sobre ela! - O estúpido orgulho de Kessell, o defeito fatal de sua personalidade que sempre o impelira por uma estrada em que era certa a tragédia, desejava que ele continuasse escarnecendo do demônio e da situação irremediável em que este se encontrava.
- Basta - avisou uma sensação dentro dele, a voz silenciosa que ele suspeitava ser a vontade consciente da estilha.
- Não é de sua conta - Kessell respondeu, com um grito.
Errtu olhou em volta da sala, imaginado a quem o mago se dirigia. Os trolls com certeza não lhe haviam dado atenção. Como precaução, o demônio invocou vários encantos de detecção, temendo um agressor oculto.
- Você escarnece de um adversário perigoso - persistiu a estilha. - Eu o protegi do demônio, porém você insiste em indispor-se com uma criatura que pode vir a ser um aliado valioso!
Como era geralmente o caso quando Crenshinibon se comunicava com o mago, Kessell começou a enxergar as possibilidades. Decidiu-se por um compromisso, um acordo mutuamente benéfico tanto para ele quanto para o demônio.
Errtu refletiu sobre sua difícil situação. Não poderia matar o humano impertinente, embora viesse realmente a saborear o ato. No entanto, partir sem a relíquia, protelar a demanda que havia sido sua principal motivação durante séculos, não era uma opção aceitável.
- Tenho uma proposta a fazer, uma barganha que pode interessar você - disse Kessell, convidativo, evitando o olhar fatal que o demônio lhe lançava. - Fique a meu lado e sirva como o comandante de minhas forças! Com você na liderança e o poder de Crenshinibon e de Akar Kessell, elas devastarão o norte!
- Servir a você? - gargalhou Errtu. - Você não tem nenhuma autoridade sobre mim, humano.
- Você encara a situação de maneira incorreta - retorquiu Kessell. - Pense nisso não como servidão, mas como uma oportunidade para se juntar a uma campanha que promete destruição e conquista! Você tem meu maior respeito, poderoso demônio. Eu não me atreveria a intitular-me seu mestre.
Crenshinibon, com suas intrusões subconscientes, havia instruído Kessell muito bem. A postura já menos ameaçadora de Errtu demonstrava que ele estava intrigado com a proposição do mago.
- E pense em seus ganhos futuros - continuou Kessell. - Os humanos não vivem muito tempo em comparação à estimativa de vida de alguém que não envelhece. Quem, então, haverá de tomar a estilha de cristal quando Akar Kessell deixar de existir?
Errtu sorriu perversamente e curvou-se diante do mago.
- Como eu poderia recusar uma oferta tão generosa? - chiou o demônio com sua horrível voz espectral. - Mostre-me, mago, que gloriosas conquistas encontram-se em nosso caminho.
Kessell quase dançou de alegria. Seu exército estava, enfim, completo. Tinha seu general.
11
Garra de Palas
O suor formava gotas na mão de Bruenor, e ele inseriu a chave na fechadura empoeirada da pesada porta de madeira. Era o início do processo que colocaria definitivamente à prova toda a sua habilidade e experiência. Como todos os mestres ferreiros entre os anões, ele vinha esperando por aquele momento com emoção e expectativa desde o início de seu longo treinamento.
Precisou usar de força para abrir a porta da pequena câmara. A madeira rangeu e gemeu em protesto, tendo empenado e se acomodado desde que fora aberta pela última vez, muitos anos atrás. Contudo, foi um alívio para Bruenor, pois ele tinha pavor só de pensar que alguém pudesse fazer uma visitinha a seus bens mais estimados. Relanceou o olhar pelos corredores escuros daquele setor pouco utilizado do complexo dos anões, certificando-se mais uma vez de que não o haviam seguido, e depois entrou na sala, levando a tocha diante dele para queimar as franjas pendentes de inúmeras teias.
A única peça de mobília na sala era uma caixa de madeira ferrada, envolta em duas pesadas correntes unidas por um imenso cadeado. Teias de aranha entrecruzavam-se e pendiam de cada ângulo do baú, e uma espessa camada de pó cobria-lhe o topo. Outro bom sinal, observou Bruenor. Olhou novamente para o corredor lá fora, depois fechou a porta de madeira o mais silenciosamente possível.
Ajoelhou-se diante da arca e depositou a tocha no chão, a seu lado. Várias teias, tocadas de leve pela chama, explodiram num sopro alaranjado por apenas um instante e, em seguida, extinguiram-se. Bruenor retirou de sua escarcela um pequeno bloco de madeira e removeu a chave de prata que pendia da corrente que trazia em volta do pescoço. Segurou com firmeza o bloco de madeira a sua frente e, mantendo os dedos da outra mão abaixo do nível do cadeado tanto quanto possível, inseriu gentilmente a chave na fechadura.
Agora vinha a parte delicada. Bruenor girou a chave lentamente e prestou atenção ao menor ruído. Ao ouvir o estalido do volteador da fechadura, preparou-se para o pior e soltou rapidamente a chave, permitindo que o volume do cadeado se afastasse do próprio aro, o que liberou uma alavanca armada com uma mola comprimida entre a tranca e a arca. O pequeno dardo bateu no bloco de madeira e Bruenor deixou escapar um suspiro de alívio. Apesar de ter preparado a armadilha quase um século atrás, ele sabia que o veneno da serpente mil-viúvas-da-tundra conservara sua picada letal.
O mais absoluto entusiasmo suprimiu a reverência de Bruenor por aquele momento, e ele precipitadamente atirou as correntes por cima da arca e soprou-lhe o pó do tampo. Segurou o tampo e começou a erguê-lo, mas, de repente, voltou a fazer tudo com vagar, recuperando a calma solene e lembrando a si mesmo da importância de cada ação.
Ninguém que tivesse encontrado aquela arca e conseguido passar pela armadilha mortal ficaria satisfeito com os tesouros que ali acharia. Um cálice de prata, um saco de ouro e um punhal incrustado, porém mal balanceado, estavam misturados entre outros objetos mais pessoais e menos valiosos: um elmo amassado, velhas botas e outras peças similares que pouco encanto exerceriam sobre um ladrão.
No entanto, aqueles objetos eram simplesmente ouro-de-tolo. Bruenor tirou-os da arca e, sem hesitação, largou-os no chão imundo.
O fundo da pesada arca ficava logo acima do nível do chão, mas não dava a menor indicação de que existiria ali algo mais. Bruenor havia astuciosamente cavado um buraco sob a arca e acomodado ali a caixa com tamanha perfeição que mesmo um ladrão observador juraria que ela jazia sobre o chão. O anão tateou o fundo da caixa até encontrar um pequeno nó na madeira e enganchou um dedo hirsuto na abertura. Aquela madeira também havia se acomodado ao longo dos anos e Bruenor teve de puxar com muita força para finalmente liberá-la. O fundo soltou-se com um estalo repentino e fez Bruenor cambalear para trás. Ele estava de volta à arca um instante depois e, por sobre a borda, examinava cautelosamente seus maiores tesouros.
Um bloco do mais puro mitral, uma pequena bolsa de couro, um cofre dourado e um tubo de prata para o transporte de pergaminhos, tendo um diamante como tampa numa de suas extremidades, estavam dispostos exatamente como Bruenor os deixara tanto tempo atrás.
As mãos de Bruenor tremiam, e ele precisou parar e enxugar-lhes a perspiração várias vezes enquanto removia os preciosos objetos da arca, colocava em sua mochila aqueles que ali cabiam e depositava o bloco de mitral numa manta que havia desenrolado. Depois, ele recolocou rapidamente o fundo falso, tomando o cuidado de encaixar perfeitamente o olho do nó de volta na madeira, e colocou seu tesouro falso mais uma vez no lugar. Acorrentou e trancou a caixa, deixando tudo exatamente como encontrara, exceto que não viu motivo para se arriscar a um acidente armando novamente a agulha venenosa.
Bruenor construíra sua forja ao ar livre num recesso escondido, remotamente aconchegado no sopé do Sepulcro de Kelvin. Era uma região raramente visitada no vale dos anões, a extremidade setentrional, com a Via de Bremen a se perder na vasta tundra e a contornar a encosta ocidental da montanha, e o Desfiladeiro do Vento Gélido a fazer o mesmo no leste. Para sua surpresa, Bruenor descobriu que a pedra ali era resistente e pura, profundamente impregnada com a força da terra, e serviria muito bem como seu pequeno templo.
Como sempre, Bruenor aproximou-se daquele lugar sagrado com passos calculados e reverentes. Ele agora carregava os tesouros de sua herança, e sua mente viajou pelos séculos até o Salão de Mitral, o antigo lar de seu povo, e aquilo que o pai lhe dissera no dia em que recebera seu primeiro martelo de ferreiro.
- Se 'cê tiver mesmo talento para a arte - dissera-lhe o pai - e tiver a sorte de viver bastante tempo e sentir a força da terra, 'cê vai encontrar um dia especial. Uma bênção especial, ou uma maldição, dizem alguns, foi lançada sobre nosso povo, pois uma vez na vida, e apenas uma vez, o melhor de nossos ferreiros é capaz de criar uma arma de sua escolha que supera qualquer obra feita por ele anteriormente. Cuidado com esse dia, filho, pois você vai colocar um bom tanto de si mesmo nessa arma. Nunca mais na vida 'cê vai igualar a perfeição dela e, sabendo disso, vai perder boa parte daquele desejo de artífice que impele seu martelo. Pode ser que 'cê ache a vida vazia depois desse dia, mas se 'cê for bom como sua estirpe diz que é, 'cê vai ter fabricado uma arma lendária que vai continuar viva muito tempo depois de seus ossos terem virado pó.
O pai de Bruenor, abatido quando as trevas chegaram ao Salão de Mitral, não viveu o suficiente para encontrar seu dia especial, muito embora, caso o tivesse, vários dos objetos que Bruenor agora carregava teriam sido usados por ele. Mas o anão não via nenhum desrespeito em tomar os tesouros como seus, pois sabia que criaria uma arma para deixar orgulhoso o espírito do pai.
O dia de Bruenor chegara.
A imagem de um martelo de duas cabeças, oculta no bloco de mitral, ocorrera a Bruenor num sonho, no início daquela semana. O anão compreendeu o sinal no mesmo instante e sabia que devia se mexer rapidamente a fim de deixar tudo pronto para a noite de poder que célere se aproximava. A lua já estava imensa e brilhante no céu. Atingiria sua plenitude na noite do solstício, aquela época intermediária entre as estações quando havia magia no ar.
A lua cheia só aumentaria o encanto daquela noite, e Bruenor acreditava que ele capturaria um poderoso encantamento ao pronunciar as palavras mágicas.
O anão tinha muito trabalho pela frente caso quisesse estar preparado. Seu esforço começara com a construção da pequena forja. Essa parte era fácil, e ele ocupou-se dela mecanicamente, tentando manter seus pensamentos fixos na tarefa imediata e longe da perturbadora expectativa pela criação da arma.
Agora havia chegado o momento pelo qual ele tanto aguardara. Tirou o pesado bloco de mitral de sua mochila, sentindo-lhe a pureza e a força. Já havia antes segurado blocos similares e ficou apreensivo por um instante. Ele fitou o metal prateado.
Durante um bom tempo, o metal permaneceu um bloco de ângulos retos. Depois, os lados pareceram se arredondar quando a imagem de um maravilhoso martelo de guerra mostrou-se claramente ao anão. O coração de Bruenor disparou e ele ofegava.
Sua visão fora real.
Ele acendeu a forja e imediatamente deu início a sua obra, trabalhando noite adentro até que a luz da aurora dispersasse o encanto que pairava sobre ele. Voltou à casa naquele dia apenas para apanhar o bastão de adamantita que havia reservado para a arma, retornando à forja para dormir e, mais tarde, andar nervosamente de um lado para outro enquanto esperava pelo cair da noite.
Assim que a luz do dia desapareceu no horizonte, Bruenor voltou ansiosamente ao trabalho. O metal deixava-se moldar com facilidade por suas habilidosas mãos, e ele sabia que, antes de o amanhecer vir interrompê-lo, a cabeça do martelo estaria pronta. Embora ainda tivesse horas de trabalho pela frente, Bruenor sentiu uma onda de orgulho naquele instante. Sabia que cumpriria seu exigente programa. Ele fixaria a empunhadura de adamantita na noite seguinte e tudo estaria pronto para o encantamento sob a lua cheia na noite do solstício de verão.
A coruja precipitou-se silenciosamente sobre o pequeno coelho, orientada em direção à presa por sentidos incomparavelmente aguçados. Seria uma morte rotineira e o desafortunado animal sequer perceberia a aproximação do predador. No entanto, a coruja estava estranhamente agitada e sua concentração de caçador vacilou no último instante. Raramente a grande ave errava, mas, dessa vez, ela voou de volta a seu abrigo na encosta do Sepulcro de Kelvin sem a refeição.
Bem longe, na tundra, um lobo solitário aguardava, imóvel como uma estátua, ansioso, mas paciente, enquanto o disco de prata da imensa lua de verão rompia a orla plana do horizonte. Ele esperou até que o orbe fascinante aparecesse inteiro no céu e então retomou o antigo uivo de sua raça. Responderam-lhe, inúmeras vezes, os lobos distantes e outros habitantes da noite, todos a invocar o poder dos céus.
A noite do solstício de verão, quando havia magia no ar e agitavam-se todas as criaturas com exceção dos seres racionais que rejeitavam impulsos instintivos tão simples, começara.
Em seu estado emocional, Bruenor sentia distintamente a magia. Mas, absorvido na culminação dos esforços de sua vida, ele atingira um nível de calma concentração. As mãos já não tremiam quando ele abriu a tampa dourada do pequeno cofre.
O pujante martelo de guerra jazia preso à bigorna diante do anão. Representava a melhor obra de Bruenor, poderosa e lindamente trabalhada mesmo então, mas aguardando ainda as delicadas runas e os encantamentos que a transformariam numa arma de poder especial.
Bruenor reverentemente retirou do cofre o pequeno macete e o cinzel de prata e aproximou-se do martelo de guerra. Sem hesitação, pois sabia que tinha pouco tempo para um trabalho tão intrincado, ele apoiou o cinzel sobre o mitral e martelou-o solidamente com o macete. Os metais imaculados emitiram uma nota pura e clara que fizeram o grato anão sentir um frio na espinha. Ele sabia, no âmago de seu ser, que todas as condições eram perfeitas e estremeceu novamente ao pensar no resultado dos trabalhos daquela noite.
Ele não viu os olhos escuros que o examinavam atentamente desde um cômoro a uma pequena distância dali.
Bruenor não precisava de modelo para os primeiros entalhes: eram símbolos gravados em seu coração e em sua alma. Solenemente, ele inscreveu o martelo e a bigorna de Moradin, o Forjador da Alma, na lateral de uma das cabeças do martelo de guerra, e os machados cruzados de Clangeddin, o Deus das Batalhas para os anões, diametralmente opostos ao primeiro símbolo, na lateral da outra cabeça. Depois, ele pegou o tubo de prata para pergaminhos e gentilmente removeu-lhe a tampa de diamante. Suspirou aliviado ao ver que o pergaminho sobrevivera às décadas. Enxugando o suor oleoso de suas mãos, ele removeu o rolo e lentamente o desenrolou, depositando-o na parte plana da bigorna. De início, a página parecia branca, mas, aos poucos, os raios da lua cheia persuadiram seus símbolos, as runas secretas de poder, a aparecer.
Eram a herança de Bruenor e, embora ele nunca as tivesse visto antes, suas linhas e curvas arcanas pareciam familiares. Com mão firme e confiante, o anão colocou o cinzel de prata entre os símbolos dos dois deuses e começou a gravar as runas secretas no martelo de guerra. Sentiu a magia das runas transferindo-se do pergaminho para a arma através dele e assistiu, assombrado, a cada uma delas desaparecer do rolo depois de ter sido inscrita no mitral.
O tempo já não tinha mais significado, e ele sentiu-se profundamente perdido no transe de seu trabalho, mas, ao completar as runas, notou que a lua havia ultrapassado seu ponto culminante e começava a minguar.
O primeiro teste real da perícia do anão deu-se quando ele superpôs às runas a jóia no interior do símbolo da montanha de Dumathoin, o Guardião dos Segredos. Os contornos do símbolo do deus alinhavam-se perfeitamente com os das runas, obscurecendo os secretos desenhos mágicos.
Bruenor soube então que sua obra estava quase completa. Removeu o pesado martelo de guerra de sua tenaz e tirou da mochila a pequena bolsa de couro. Precisou inspirar profundamente várias vezes para se acalmar, pois este era o teste final e mais decisivo de sua competência. Ele soltou a corda que fechava a bolsa e maravilhou-se com as suaves cintilações do pó de diamante sob a tênue luz da lua.
Por trás do cômoro, Drizzt Do'Urden retesou-se de expectativa, mas teve o cuidado de não perturbar a total concentração de seu amigo.
Bruenor acalmou-se mais uma vez e, depois, subitamente, agitou o mais alto que pôde a pequena bolsa, liberando no ar da noite seu conteúdo. Atirou a bolsa de lado, agarrou o martelo de guerra com as duas mãos e o ergueu acima da cabeça. O anão sentiu a própria força sendo sugada ao pronunciar as palavras de poder, mas ele só saberia se teve êxito quando a obra estivesse completa. O nível de perfeição dos entalhes determinava o sucesso das entoações, pois enquanto ele gravava as runas na arma, a força que delas emanava fluíra para seu coração. Esse poder era o que atrairia o pó mágico para a arma e o poder desta, por sua vez, seria avaliado pela quantidade de partículas cintilantes que capturasse.
As trevas acometeram o anão. A cabeça girava e ele não entendia o que o mantinha ainda de pé. Mas o poder devorador das palavras era maior do que ele próprio. Embora nem mesmo tivesse consciência de suas palavras, elas continuavam a fluir de seus lábios numa inegável torrente, exaurindo cada vez mais as forças de Bruenor. Nesse momento, ele caiu misericordiosamente, mas o vácuo da inconsciência o arrebatou muito antes de sua cabeça atingir o solo.
Drizzt virou-se e recostou-se novamente ao cômoro rochoso; ele também estava exausto com o espetáculo. Não sabia se seu amigo sobreviveria à provação daquela noite, mas estava emocionado. Pois ele testemunhara o momento de triunfo do anão, apesar de Bruenor tê-lo perdido, quando a cabeça de mitral do martelo tremeluziu com a magia viva e atraiu a chuva de diamante.
E nem uma única partícula do pó cintilante escapara ao chamado de Bruenor.
12
O Presente
Bem no alto da face setentrional da Ladeira de Bruenor, sentava-se Wulfgar, com os olhos focalizados na extensão de vale rochoso lá embaixo, atento a qualquer movimento que pudesse indicar o retorno do anão. O bárbaro vinha com freqüência àquele local para ficar sozinho com seus pensamentos e o pranto do vento. Diretamente diante dele, do outro lado do vale dos anões, ficavam o Sepulcro de Kelvin e a seção norte do Lac Dinneshir. Entre eles, estendia-se o trecho plano de terreno conhecido como Desfiladeiro do Vento Gélido, que seguia para nordeste e levava à planície vasta.
E, para o bárbaro, ao desfiladeiro que levava a sua terra natal. Bruenor explicara que se ausentaria durante alguns dias e, no início, Wulfgar ficou feliz por se livrar dos resmungos e das críticas constantes do anão. Mas descobriu que seu alívio durara pouco.
- Está preocupado com ele, não é? - veio uma voz detrás dele. Não precisou se virar para saber que era Cattiebrie.
Deixou a pergunta sem resposta, imaginando que, em todo caso, ela perguntara retoricamente e não acreditaria se ele o negasse.
- Ele vai voltar - disse Cattiebrie, com indiferença na voz. - Bruenor é tão resistente quanto a pedra da montanha e não existe nada na tundra capaz de detê-lo.
O jovem bárbaro voltou-se para observar a moça. Tempos atrás, quando um nível confortável de confiança se estabelecera entre Bruenor e Wulfgar, o anão apresentara o jovem a sua "filha", uma garota humana da idade do bárbaro.
Era uma moça aparentemente serena, repleta, porém, de uma paixão interior e um espírito que Wulfgar não estava acostumado a esperar encontrar numa mulher. As moças bárbaras eram ensinadas a guardar para si mesmas seus pensamentos e opiniões, insignificantes segundo os padrões dos homens. Como seu mentor, Cattiebrie dizia exatamente o que lhe passava pela cabeça e deixava poucas dúvidas em relação a como se sentia sobre uma determinada situação. A disputa verbal entre ela e Wulfgar era praticamente constante e geralmente acalorada, mas, ainda assim, Wulfgar alegrava-se por ter uma companheira de sua idade, alguém que não o olhasse de cima para baixo desde um pedestal de experiência.
Cattiebrie ajudara-o a enfrentar o difícil primeiro ano de seu compromisso, tratando-o com respeito (apesar de raramente concordar com ele) quando ele próprio não tinha nenhum por si mesmo. Wulfgar até mesmo tinha a sensação de que ela indiretamente tivera algo a ver com a decisão de Bruenor de tomá-lo sob sua tutela.
Eram da mesma idade, mas, em muitos aspectos, Cattiebrie parecia muito mais velha, com uma sólida noção interior da realidade que mantinha seu temperamento num nível equilibrado. Em outros aspectos, entretanto, tal como o andar saltitante, Cattiebrie seria eternamente uma criança. Esse equilíbrio incomum de espírito e calma, de serenidade e desenfreada alegria, intrigava Wulfgar e deixava-o sem saber o que pensar toda vez que falava com a moça.
Naturalmente, havia outras emoções que deixavam Wulfgar em desvantagem com Cattiebrie a seu lado. Inegavelmente, ela era linda, com densas ondas de um magnífico cabelo castanho-avermelhado a esparramar-se por seus ombros; e os olhos penetrantes, do mais profundo azul, que fariam qualquer pretendente corar sob seu sagaz escrutínio. Ainda assim, o interesse de Wulfgar ultrapassava a mera atração física. Ele não conseguia compreender Cattiebrie, uma jovem que não se encaixava no papel feminino que lhe fora definido na tundra. Ele não estava bem certo se gostava ou não daquela independência. Mas achava-se incapaz de negar a atração que sentia por ela.
- Você vem aqui em cima com freqüência, não é? - perguntou Cattiebrie. - O que você procura?
Wulfgar deu de ombros, sem saber inteiramente a resposta.
- Seu lar?
- Isso e outras coisas que uma mulher não entenderia. Cattiebrie afastou o insulto involuntário com um sorriso.
- Explique-me, então - pressionou, e as insinuações de sarcasmo afiaram-lhe o tom da voz. - Pode ser que minha ignorância traga uma nova luz a esses problemas.
Ela desceu pela rocha para rodear o bárbaro e sentar-se ao lado dele na mesma saliência.
Wulfgar maravilhou-se com os movimentos graciosos dela. Assim como a polaridade de sua curiosa mistura emocional, Cattiebrie também se mostrava um enigma fisicamente. Era alta e esbelta, aparentemente delicada, mas, como havia se transformado em mulher nas cavernas dos anões, estava acostumada ao trabalho pesado e árduo.
- Aventuras e uma promessa não cumprida - disse Wulfgar misteriosamente, talvez para impressionar a moça, mas antes de tudo para reforçar a própria opinião sobre as coisas com as quais uma mulher deveria e não deveria se preocupar.
- Uma promessa que você tem a intenção de cumprir - raciocinou Cattiebrie - assim que tiver a oportunidade.
Wulfgar assentiu solenemente.
- É minha herança, um fardo que me foi passado quando meu pai foi morto. Chegará o dia... - Ele deixou a voz extinguir-se e voltou a olhar com saudade para a inanidade da vasta tundra além do Sepulcro de Kelvin.
Cattiebrie meneou a cabeça, e os cachos castanho-avermelhados balouçaram em seus ombros. Ela enxergava além da fachada de mistério de Wulfgar, o bastante para entender que ele tinha a intenção de empreender uma missão muito perigosa, provavelmente suicida, em nome da honra.
- O que o motiva, não sei dizer. Que você tenha sorte em sua aventura, mas se a estiver aceitando por nenhuma outra razão além das que você nomeou, você estará desperdiçando a própria vida.
- O que uma mulher entende de honra? - Wulfgar devolveu com raiva. Mas Cattiebrie não se intimidou nem recuou.
- O que, não é mesmo? - repetiu ela. - Você acha que a única razão para levar o fardo em seus ombros descomunais é isso aí que carrega entre as pernas?
Wulfgar ficou extremamente vermelho e deu as costas à moça, incapaz de lidar com tamanha petulância numa mulher.
- Além disso - continuou Cattiebrie -, você pode dar o motivo que quiser para ter subido aqui hoje. Sei que está preocupado com Bruenor e não vou aceitar uma negativa.
- Você só sabe o que deseja saber!
- Você é muito parecido com ele - disse Cattiebrie abruptamente, mudando de assunto e desconsiderando os comentários de Wulfgar. - Mais semelhante ao anão do que jamais admitirá! - Ela riu. - Ambos teimosos, ambos orgulhosos e nenhum dos dois é capaz de admitir um sentimento sincero um pelo outro. Faça como quiser, então, Wulfgar do Vale do Vento Gélido. Para mim você pode mentir, mas para si mesmo... é outra história!
Ela pulou do lugar onde estava e desceu saltitando as rochas rumo às cavernas dos anões.
Wulfgar observou-a partir, admirando o balanço de seus quadris esbeltos e a dança graciosa de seu andar, apesar da raiva que sentia. Não parou para considerar por que estava tão irritado com Cattiebrie.
Ele sabia que, caso o fizesse, descobriria, como sempre, que estava furioso por terem as observações dela atingido o alvo.
Drizzt Do'Urden guardou estóica vigilância sobre seu amigo inconsciente durante dois longos dias. Mesmo preocupado como estava em relação a Bruenor e curioso quanto ao espantoso martelo de guerra, o drow manteve-se a uma distância respeitosa da forja secreta.
Por fim, quando raiava a manhã do terceiro dia, Bruenor mexeu-se e espreguiçou-se. Drizzt afastou-se em silêncio e percorreu a trilha que sabia que o anão tomaria. Encontrando uma clareira apropriada, ele montou às pressas um pequeno acampamento.
A princípio, a luz do sol chegou a Bruenor apenas como um borrão, e ele levou vários minutos para se reorientar em relação aos arredores. Em seguida, a visão que retornava focalizou a glória resplandecente do martelo de guerra.
Rapidamente, ele relanceou os olhos a seu redor, à procura de sinais do pó que deveria ali ter caído. Não encontrou nenhum e sua expectativa aumentou. Estava tremendo novamente ao erguer a magnífica arma, revirá-la nas mãos e sentir seu perfeito equilíbrio e sua incrível força. O fôlego de Bruenor fugiu-lhe quando ele viu os símbolos dos três deuses no mitral e o pó de diamante magicamente fundido àquelas linhas tão profundamente gravadas. Extasiado pela aparente perfeição de sua obra, Bruenor compreendeu o vazio de que seu pai falara. Ele sabia que jamais duplicaria aquele mesmo nível de arte e questionou se, sabendo disso, seria algum dia capaz de erguer novamente seu martelo de ferreiro.
Tentando pôr em ordem suas emoções confusas, o anão devolveu o macete e o cinzel de prata a seu cofre dourado e recolocou o rolo de pergaminho em seu tubo, embora o documento estivesse novamente em branco e as runas mágicas jamais viessem a reaparecer. Ele se deu conta de que não se alimentava havia dias e sua força não fora completamente restaurada depois de exaurida pela magia. Recolheu tudo o que ainda conseguia carregar, ergueu ao ombro o imenso martelo de guerra e partiu, caminhando penosamente em direção à casa.
O delicioso odor de coelho assado saudou-o assim que ele topou com o acampamento de Drizzt Do'Urden.
- Então, 'cê já voltou de suas viagens - gritou ao cumprimentar o amigo.
Drizzt fixou os olhos nos do anão, não querendo trair sua irresistível curiosidade pelo martelo de guerra.
- A seu pedido, meu bom anão - disse ele, com uma reverência. - Não tenho dúvida de que você colocou gente suficiente a minha procura para contar com meu retorno.
Bruenor anuiu, embora no momento oferecesse distraidamente como explicação apenas um "eu precisava de você." Uma necessidade mais urgente apoderara-se dele diante da visão de carne assada.
Drizzt sorriu astuciosamente. Ele já havia se alimentado e capturara e cozinhara o coelho especialmente para Bruenor.
- Me faz companhia? - perguntou.
Antes mesmo de ele ter terminado a oferta, Bruenor já estava se esticando avidamente sobre o fogo para pegar o coelho. Entretanto, o anão estacou de repente e lançou um olhar desconfiado para o drow.
- Faz quanto tempo que 'cê 'tá aqui? - perguntou, nervoso.
- Cheguei apenas esta manhã - mentiu Drizzt, respeitando a privacidade da cerimônia especial do anão.
Bruenor esboçou um sorriso pretensioso diante da resposta e atacou o coelho enquanto Drizzt colocava outro no espeto.
O drow esperou até que Bruenor estivesse absorto com a própria refeição, depois apanhou o martelo de guerra. Quando Bruenor reagiu, Drizzt já havia erguido a arma.
- Grande demais para um anão - comentou casualmente Drizzt. - E pesado demais para meus braços esguios. - Ele olhou para Bruenor, que se levantara, tinha os braços cruzados e batia o pé impacientemente. - Para quem, então?
- 'cê consegue meter o nariz onde não é chamado, elfo - respondeu o anão rispidamente.
Drizzt riu da resposta.
- O rapaz, Wulfgar? - perguntou com fingida descrença. Ele sabia muito bem que o anão nutria fortes sentimentos pelo jovem bárbaro, embora também ele reconhecesse que Bruenor jamais o admitiria abertamente. - Uma arma excelente para dar a um bárbaro. Você mesmo a forjou?
Apesar da brincadeira, Drizzt estava realmente admirado com a habilidade de Bruenor. Embora o martelo fosse pesado demais para que ele o empunhasse, o extraordinário equilíbrio da arma era claramente perceptível.
- É um velho martelo, só isso - resmungou Bruenor. - O garoto perdeu a clava dele; eu não podia soltar ele por aí neste lugar selvagem sem uma arma!
- E o nome do martelo?
- Garra de Palas - replicou Bruenor sem pensar, e o nome saiu de seus lábios antes mesmo que tivesse tempo de pensar a respeito. Ele não recordava o incidente, mas determinara o nome da arma quando a havia encantado como parte das entoações mágicas da cerimônia.
- Entendo - disse Drizzt, entregando o martelo a Bruenor. - Um velho martelo, mas bom o bastante para o rapaz. Mitral, adamantita e diamante devem dar para o gasto.
- Ah, cale a boca - disse Bruenor bruscamente, com o rosto enrubescido de constrangimento. Drizzt desculpou-se com uma reverência.
- Por que solicita minha presença, meu amigo? - perguntou o drow, mudando de assunto.
Bruenor pigarreou.
- O garoto - resmungou baixinho. Drizzt percebeu claramente o nó desconfortável na garganta de Bruenor e abortou a próxima provocação antes mesmo de pronunciá-la.
- Ele ganha a liberdade antes do inverno - continuou Bruenor - e não foi treinado direitinho. E mais forte do que qualquer homem que eu já tenha visto e se move com a graça de um gamo em fuga, mas ainda está verde para a batalha.
- Você quer que eu o treine? - perguntou Drizzt, incrédulo.
- Bem, eu é que não posso fazer isso! - disse Bruenor subitamente. - Ele tem sete pés de altura e não se acostumaria às cutiladas baixas de um anão!
O drow fitou seu frustrado companheiro com curiosidade. Como todos os que eram íntimos de Bruenor, ele sabia que um vínculo se estabelecera entre o anão e o jovem bárbaro, mas até então não fazia idéia de que esse elo fosse tão forte.
- Eu não cuidei do moleque durante cinco anos só pra deixar que fosse abatido por um fedorento yeti da tundra! - Bruenor falou abruptamente, impaciente com a hesitação do drow e temeroso de que seu amigo tivesse adivinhado mais do que deveria. - Então, 'cê faz isso por mim?
Drizzt sorriu novamente, mas dessa vez sem provocações. Lembrou-se do próprio confronto com os yetis da tundra cinco anos atrás. Bruenor salvara-lhe a vida naquele dia e não havia sido a primeira nem seria a última vez em que ficaria em débito com o anão.
- Os deuses sabem que devo a você mais do que isso, meu amigo. É claro que eu o treinarei.
Bruenor grunhiu e agarrou o outro coelho.
O retinir do martelar de Wulfgar ecoava pelos salões dos anões. Furioso com as revelações que fora forçado a enxergar em sua discussão com Cattiebrie, ele retornara ao trabalho com todo o ardor.
- Pare de martelar, garoto - veio uma voz rouca detrás dele.
Wulfgar girou sobre os calcanhares. Ele estava tão absorto em seu trabalho que não ouviu Bruenor entrar. Um sorriso involuntário de alívio espalhou-se por seu rosto. Mas ele percebeu logo a demonstração de fraqueza e repintou uma máscara austera.
Bruenor avaliou a grande estatura e a corpulência do jovem bárbaro e o princípio irregular de uma barba loura sobre a pele dourada daquele rosto.
- Não dá mais pra te chamar de "garoto" - admitiu o anão.
- Você pode me chamar do que quiser - retorquiu Wulfgar. - Sou seu escravo.
- 'cê tem um espírito tão selvagem quanto a tundra - disse Bruenor, sorrindo. - 'cê nunca foi, nem jamais vai ser um escravo de anões ou de homens.
Wulfgar foi apanhado de surpresa pelo elogio atípico do anão. Tentou responder, mas não encontrou palavras.
- Nunca te encarei como um escravo, garoto - continuou Bruenor. - 'cê me serviu pra pagar pelos crimes do seu povo e eu te ensinei muita coisa em troca. Agora deixe o martelo de lado.
Deteve-se por um momento para examinar a excelente arte de Wulfgar.
- 'cê é um bom ferreiro e compreende bem a pedra, mas seu lugar não é na caverna de um anão. Já 'tá na hora de sentir o sol na sua cara de novo.
- Liberdade? - murmurou Wulfgar.
- Vá tirando o cavalinho da chuva! - disse Bruenor bruscamente. Apontou um dedo hirsuto para o bárbaro e rosnou uma ameaça. - 'cê é meu até os últimos dias do outono e não se esqueça disso!
Wulfgar teve de morder o lábio para refrear uma risada. Como sempre, a combinação bizarra de compaixão e raiva limítrofe do anão o confundira e o apanhara desprevenido. No entanto, não foi mais um choque. Quatro anos ao lado de Bruenor o ensinaram a esperar - e a desconsiderar - aquelas súbitas explosões de mau humor.
- Termine aí seja o que for que veio fazer aqui - instruiu Bruenor. - Amanhã de manhã vou te levar pra conhecer seu professor e, segundo seu juramento, você vai obedecer a ele como se fosse eu!
Wulfgar contorceu o rosto só de pensar em servir a ainda outra pessoa, mas ele aceitara incondicionalmente seu compromisso com Bruenor por um período de cinco anos e um dia e não desonraria a si mesmo voltando atrás em seu juramento. Ele assentiu com a cabeça.
- Eu não vou te ver muito a partir de agora - continuou Bruenor -, então quero seu juramento de que nunca mais vai erguer uma arma contra o povo de Dez-Burgos.
Wulfgar continuou imóvel e firme.
- Isso não - respondeu com audácia. - Quando eu tiver cumprido os termos que você me apresentou, hei de deixar este lugar como um homem de vontade própria.
- É justo - cedeu Bruenor, pois o orgulho obstinado de Wulfgar na verdade aumentava o respeito que o anão tinha por ele. Deteve-se por um momento para examinar o orgulhoso jovem guerreiro e flagrou-se contente com seu próprio papel no crescimento de Wulfgar.
- 'cê quebrou aquele seu maldito mastro na minha cabeça - começou Bruenor tentativamente. Pigarreou. Essa última questão deixava o irredutível anão constrangido. Não tinha bem certeza de como conseguiria dar cabo da tarefa sem parecer sentimental e tolo. - O inverno vai chegar logo depois de terminado o seu período aqui comigo. Não seria justo te mandar para os ermos sem uma arma.
Ele rapidamente enfiou um braço pela passagem que dava para o corredor e apanhou o martelo de guerra.
- Garra de Palas - disse rispidamente ao jogá-lo para Wulfgar. - Não vou impor restrições a sua vontade, mas quero seu juramento, para ter a consciência limpa, de que jamais vai erguer esta arma contra o povo de Dez-Burgos!
Assim que suas mãos se fecharam em volta da empunhadura de adamantita, Wulfgar sentiu o valor do martelo mágico. As runas preenchidas pelo diamante capturaram o brilho da forja e uma miríade de reflexos começaram a dançar pela câmara. Os bárbaros da tribo de Wulfgar sempre haviam se orgulhado das boas armas que possuíam, chegando a medir o valor de um homem pela qualidade de sua lança ou de sua espada, mas Wulfgar jamais vira algo que se equiparasse ao refinado detalhamento e à força bruta de Garra de Palas. Equilibrava-se tão bem em suas mãos descomunais, e o tamanho e o peso do martelo adaptavam-se tão perfeitamente a ele que chegou a sentir como se tivesse nascido para empunhar aquela arma. Disse a si mesmo, imediatamente, que oraria muitas noites aos deuses do destino por confiar a ele aquela recompensa. Eles mereciam sem dúvida sua gratidão.
Assim como Bruenor.
- Você tem minha palavra - balbuciou Wulfgar, tão desconcertado com o magnífico presente que mal conseguia falar. Controlou-se para que pudesse acrescentar algo, mas, quando finalmente conseguiu desviar o olhar do magnífico martelo, Bruenor desaparecera.
O anão percorreu os longos corredores com passos duros, rumando para seus aposentos, murmurando imprecações a sua fraqueza e esperando que nenhum dos seus o encontrasse. Com um olhar cauteloso ao redor, ele enxugou a umidade dos olhos cinzentos.
13
Como o Portador Assim Desejar
- Reúna seu pessoal e vá, Sorrisão - disse o mago ao enorme gigante do gelo diante dele na sala do trono em Crishal-Tirith. - Lembre-se de que representa o exército de Akar Kessell. Vocês são o primeiro grupo a entrar na área e o segredo é a chave de nossa vitória! Não me decepcione! Estarei observando cada um de seus movimentos.
- Não vamos te decepcionar, mestre - respondeu o gigante. - O covil vai estar montado e pronto pra sua chegada!
- Confio em você - Kessell tranqüilizou o imenso comandante. - Agora, suma-se.
O gigante do gelo ergueu o espelho velado que Kessell havia lhe dado, ofereceu uma última reverência a seu mestre e saiu da sala.
- Não devia tê-lo enviado - silvou Errtu, que permanecera invisível ao lado do trono durante a conversa. - Os verbeeg e seu líder, o gigante do gelo, serão facilmente notados numa comunidade de humanos e anões.
- Sorrisão é um líder sensato - devolveu Kessell, furioso com a impertinência do demônio. - O gigante é esperto o bastante para manter as tropas fora de vista!
- Mas os humanos teriam sido mais apropriados para esta missão, como lhe mostrou Crenshinibon.
- Eu sou o líder! - gritou Kessell. Retirou a estilha de cristal de sob as vestes e brandiu-a ameaçadoramente diante de Errtu, debruçando-se para enfatizar a ameaça. - Crenshinibon aconselha, mas eu decido! Não esqueça sua posição, poderoso demônio. Sou o portador da estilha e não tolerarei que você questione cada um de meus passos.
Os olhos vermelhos como sangue de Errtu estreitaram-se perigosamente e Kessell endireitou-se em seu trono, reconsiderando subitamente a sensatez de ameaçar o demônio. Mas Errtu logo se acalmou e aceitou a pequena inconveniência das tolas explosões de Kessell em troca de seus prováveis ganhos futuros.
- Crenshinibon existe desde a aurora dos tempos - disse o demônio, com voz estridente, lançando um último argumento. - Orquestrou mil campanhas muito mais grandiosas que esta que você está prestes a empreender. Talvez você devesse dar mais crédito aos conselhos dela.
Kessell contorceu-se, nervoso. A estilha de fato o aconselhara a utilizar na primeira incursão pela região os humanos que ele em breve comandaria. Ele inventara uma dúzia de desculpas para validar sua opção de enviar os gigantes, mas, na verdade, mandara o pessoal de Sorrisão mais para ilustrar seu indiscutível comando para si mesmo, para a estilha e para o demônio impertinente do que em função de vantagens militares.
- Seguirei o conselho de Crenshinibon quando eu o julgar apropriado - disse a Errtu. Sacou uma outra estilha, uma duplicata exata de Crenshinibon e do cristal que utilizara para erguer a torre, de um dos muitos bolsos de sua túnica. - Leve isto ao local apropriado e realize a cerimônia de soerguimento - instruiu ele. - Hei de me juntar a você por meio de um espelho-portal quando tudo estiver pronto.
- Você quer erguer uma segunda Crishal-Tirith enquanto a primeira ainda está de pé? - refugou Errtu. - Isso vai exaurir imensamente a relíquia!
- Silêncio! - ordenou Kessell, tremendo visivelmente. - Vá e realize a cerimônia! Deixe que a estilha continue a ser uma preocupação minha!
Errtu pegou a réplica da relíquia e fez uma reverência. Sem mais uma palavra, o demônio deixou a sala. Compreendeu que Kessell estava estupidamente demonstrando seu controle sobre a estilha às custas do devido comedimento e de táticas militares sensatas. O mago não tinha a capacidade nem a experiência necessárias para orquestrar aquela campanha, mas a estilha continuava a apoiá-lo.
Errtu secretamente se oferecera para se livrar de Kessell e assumir o papel de portador. Mas Crenshinibon recusara o demônio. Ela preferia as demonstrações exigidas por Kessell para aplacar as próprias inseguranças à luta constante pelo controle que travaria com o poderoso demônio.
Apesar de caminhar entre gigantes e trolls, a estatura do orgulhoso rei bárbaro em nada diminuíra. Ele atravessou desafiadoramente a porta de ferro da torre negra e passou pelos perversos trolls sentinelas com um rosnado ameaçador. Odiava aquele lugar de feitiçaria e decidira ignorar o chamado quando a extraordinária espineta da torre apareceu no horizonte como um dedo glacial surgido do chão plano. Mas, por fim, não conseguiu resistir às invocações do mestre de Crishal-Tirith.
Heafstaag odiava o mago. Segundo todos os padrões de sua tribo, Akar Kessell era fraco, pois usava truques e invocações demoníacas em lugar da força. E Heafstaag o odiava ainda mais por não conseguir refutar o poder do mago.
O rei bárbaro afastou os cordões aljofrados que pendiam do teto e serviam de porta à sala de audiência privada de Akar Kessell no segundo nível da torre. O mago estava reclinado sobre uma imensa almofada de cetim bem no meio da sala e tamborilava impacientemente o chão com as unhas longas e pintadas. Várias escravas nuas, as mentes subjugadas e dominadas pela relíquia, atendiam a cada capricho do portador da estilha.
Enfurecia Heafstaag ver mulheres escravizadas por um arremedo de homem tão insignificante e deplorável. Não pela primeira vez, ele pensou em enterrar seu grande machado no crânio do mago numa repentina investida. Mas a sala estava repleta de biombos e pilares estrategicamente localizados, e o bárbaro sabia, mesmo recusando-se a acreditar que a vontade do mago fosse capaz de anular sua fúria, que o demônio de estimação de Kessell não estaria longe do mestre.
- Que bom que pôde se juntar a mim, nobre Heafstaag - disse Kessell de modo calmo e conciliatório. Errtu e Crenshinibon estavam logo ali. Ele se sentia bastante seguro, mesmo na presença do rude rei bárbaro. Acariciou uma das escravas distraidamente, exibindo seu domínio absoluto. - De fato, você deveria ter vindo antes. Muitas de minhas forças já se encontram reunidas; o primeiro grupo de batedores já partiu.
Inclinou-se em direção ao bárbaro para enfatizar seu propósito.
- Se eu não encontrar um lugar para seu povo em meus planos - disse, reprimindo um sorriso maldoso -, então seu povo não terá qualquer utilidade para mim.
Heafstaag não vacilou nem alterou sua expressão o mínimo que fosse.
- Venha agora, poderoso rei - entoou o mago -, sente-se e compartilhe das riquezas de minha mesa.
Heafstaag apegou-se ao próprio orgulho e permaneceu impassível.
- Muito bem! - disse Kessell bruscamente. Cerrou o punho e pronunciou uma palavra de comando. - A quem você deve lealdade? - exigiu.
O corpo de Heafstaag ficou rígido.
- A Akar Kessell! - respondeu, para seu próprio asco.
- E diga-me mais uma vez quem é que comanda as tribos da tundra.
- Elas seguem a mim - replicou Heafstaag - e eu sigo Akar Kessell. Akar Kessell comanda as tribos da tundra!
O mago desfez o punho e o rei bárbaro caiu para trás.
- Pouco me agrada fazer isso com você - disse Kessell, lixando uma rebarba numa de suas unhas pintadas. - Não me obrigue a repeti-lo. - Ele sacou um rolo de pergaminho detrás da almofada de cetim e o lançou ao chão.
- Sente-se diante de mim - ele instruiu Heafstaag. - Fale-me novamente de sua derrota.
Heafstaag assumiu seu lugar no chão, em frente ao mestre, e desenrolou o pergaminho.
Era um mapa de Dez-Burgos.
14
Olhos Cor de Lavanda
Bruenor havia readquirido sua aparência austera quando acordou Wulfgar na manhã seguinte. Ainda assim, comovia profundamente o anão, embora ele fosse capaz de ocultar o fato, ver Garra de Palas pousado casualmente sobre o ombro do jovem bárbaro, como se sempre houvesse estado ali e ali sempre tivesse sido seu lugar.
Wulfgar também ostentava uma máscara taciturna. Fingia raiva por ser colocado a serviço de outra pessoa mas, se ele tivesse examinado suas emoções mais atentamente, teria reconhecido que estava verdadeiramente triste por se separar do anão.
Cattiebrie esperava por eles na junção da última passagem que levava ao mundo exterior.
- Mas que dupla rabugenta vocês formam nesta linda manhã! - disse, quando eles se aproximaram. - Mas deixe estar, o sol colocará um sorriso nesses rostos.
- Você parecia contente com esta despedida - respondeu Wulfgar, um pouco perturbado, mas o brilho em seus olhos ao ver a moça desmentiu sua raiva. - Você sabe, é claro, que hoje deixarei a vila dos anões?
Cattiebrie fez um gesto indiferente com a mão.
- Você logo estará de volta. - Ela sorriu. - E alegre-se com a partida! Considere necessárias as lições que logo aprenderá caso algum dia queira alcançar seus objetivos.
Bruenor virou-se em direção ao bárbaro. Wulfgar nunca discutira com ele o que pretendia fazer depois do período de compromisso, e o anão, embora tivesse a intenção de prepará-lo o melhor que pudesse, não havia sinceramente aceitado a determinação do rapaz em partir.
Wulfgar franziu o cenho e deixou bem claro para a jovem que a discussão que haviam tido sobre a promessa não cumprida era um assunto particular. De qualquer maneira, Cattiebrie não tivera a intenção de aprofundar a questão. Simplesmente gostava de provocar Wulfgar e arrancar dele alguma emoção. Cattiebrie reconhecia a paixão que ardia no orgulhoso rapaz. Enxergava-a sempre que ele olhava para Bruenor, seu mentor, quer o admitisse ou não. E também a percebia toda vez que Wulfgar olhava para ela.
- Eu sou Wulfgar, filho de Beornegar - vangloriou-se ele com orgulho, atirando para trás os ombros largos e endireitando o queixo firme. - Cresci entre a Tribo do Alce, os melhores guerreiros de todo o Vale do Vento Gélido! Nada sei sobre esse tutor, mas ele dificilmente terá o que me ensinar sobre as leis da batalha!
Cattiebrie trocou um sorriso conhecedor com Bruenor quando o anão e Wulfgar passaram por ela.
- Adeus, Wulfgar, filho de Beornegar - gritou para eles. - Quando nos encontrarmos de novo, tomarei nota cuidadosamente de suas lições de humildade!
Wulfgar olhou para trás e franziu o cenho novamente, mas o largo sorriso de Cattiebrie em nada diminuíra.
Os dois deixaram a escuridão das minas logo depois do amanhecer e percorreram o vale rochoso até o local designado onde deveriam encontrar o drow. Era um dia quente de verão, sem nuvens, e o azul do céu era descorado pela neblina matinal. Wulfgar esticou os braços o mais que pôde, atingindo os limites de seus longos músculos. Seu povo nascera para viver nas vastas extensões da tundra e ele se sentia aliviado por deixar a asfixiante estreiteza das cavernas destinadas aos anões.
Drizzt Do'Urden já os esperava quando eles chegaram. O drow estava encostado ao lado sombreado de um matacão, em busca de alívio para a luz ofuscante do sol. Cobria o rosto com o capuz do manto como uma proteção adicional. Drizzt considerava uma maldição de sua herança seu corpo jamais se adaptar completamente à luz do sol, não importava quantos anos permanecesse entre os habitantes da superfície.
Ele continuou imóvel, mas tinha total consciência da aproximação de Bruenor e Wulfgar. Eles é que tomem a iniciativa, pensou, com a intenção de julgar como o rapaz reagiria à nova situação.
Curioso em relação à misteriosa figura que deveria ser seu novo mestre e professor, Wulfgar audaciosamente venceu a pequena distância e postou-se diretamente em frente ao drow. Drizzt observou-o aproximar-se sob as sombras de seu capuz, maravilhado com a graciosa interação dos músculos bem torneados daquele homem gigantesco. O drow originariamente planejara fazer a vontade de Bruenor, atender a seu ultrajante pedido durante algum tempo e depois inventar uma desculpa qualquer e desaparecer. Mas, ao notar a fluência e a energia dos passos largos do bárbaro, uma desenvoltura incomum em alguém daquele tamanho, Drizzt flagrou-se começando a se interessar pelo desafio de desenvolver o potencial aparentemente ilimitado do rapaz.
Drizzt percebeu que a parte mais dolorosa do encontro com aquele homem - assim como com todos aqueles que conhecia - seria a reação inicial de Wulfgar. Ansioso para acabar logo com aquilo, ele jogou para trás o capuz e encarou diretamente o bárbaro.
Os olhos de Wulfgar esbugalharam-se de horror e asco.
- Um elfo negro! - gritou, incrédulo. - Cão enfeitiçado! - Virou-se para Bruenor como se tivesse sido atraiçoado. - Você não pode me pedir isto! Não tenho a necessidade nem o desejo de aprender artifícios mágicos com esta raça decrépita!
- Ele vai te ensinar a lutar e nada mais - disse Bruenor. O anão já esperava aquilo. Não estava nem um pouco preocupado, completamente ciente, como Cattiebrie, de que Drizzt ensinaria ao rapaz excessivamente orgulhoso um pouco da necessária humildade.
Wulfgar riu desdenhosamente, desafiador.
- O que posso aprender sobre o combate com um elfo débil? Os bárbaros já nascem verdadeiros guerreiros! - Ele fitou Drizzt com franco desprezo. - E não cães trapaceiros como a laia dele!
Drizzt tranqüilamente olhou para Bruenor, pedindo permissão para começar a aula do dia. O anão sorriu afetadamente diante da ignorância do bárbaro e acenou com a cabeça seu consentimento.
Num piscar de olhos, as duas cimitarras saltaram de suas bainhas e desafiaram o bárbaro. Instintivamente, Wulfgar ergueu o martelo de guerra para atacar.
Mas Drizzt foi mais rápido. As laterais das armas atingiram em rápida sucessão as faces de Wulfgar, desenhando finos traços de sangue. Mesmo quando o bárbaro posicionou-se para um contra-ataque, Drizzt girou uma das lâminas mortais num arco descendente, e o fio aguçado visou a parte de trás do joelho do bárbaro. Wulfgar conseguiu desviar a perna da trajetória da arma, mas esse movimento, como Drizzt antecipara, tirou-lhe o equilíbrio. O drow casualmente fez com que as cimitarras deslizassem de volta às bainhas de couro enquanto atingia o ventre do bárbaro com o pé, escarrapachando-o na terra e fazendo o martelo mágico voar de suas mãos.
- Agora que 'cês já se entenderam - declarou Bruenor, tentando esconder o riso pelo bem do frágil ego de Wulfgar -, vou deixar vocês aí. - Olhou interrogativamente para Drizzt para se certificar de que o drow estava à vontade com a situação.
- Dê-me algumas semanas - respondeu Drizzt com uma piscadela, devolvendo o sorriso do anão.
Bruenor voltou-se para Wulfgar, que havia recuperado Garra de Palas e apoiava-se num joelho, fitando o elfo com absoluto assombro.
- Preste atenção às palavras dele, garoto - instruiu o anão uma última vez - Ou ele vai te picar em pedacinhos pequenos o bastante para a goela de um abutre!
Pela primeira vez em quase cinco anos, Wulfgar estendeu o olhar para além das fronteiras de Dez-Burgos, para o vasto trecho do Vale do Vento Gélido que se alargava diante dele. Ele e o drow haviam passado o resto de seu primeiro dia juntos percorrendo toda a extensão do vale e contornando os contrafortes orientais do Sepulcro de Kelvin. Ali, logo acima do sopé da encosta setentrional da montanha, ficava a caverna pouco profunda que Drizzt transformara em seu lar.
Esparsamente mobiliada com algumas peles e panelas, não havia o que se mencionar de luxuoso na caverna. Mas ela servia muito bem ao despretensioso ranger, permitindo-lhe a privacidade e o isolamento que ele preferia aos insultos e às ameaças dos humanos. Para Wulfgar, cujo povo raramente ficava num mesmo lugar mais do que uma noite, a caverna em si parecia um luxo.
Quando o crepúsculo começou a baixar sobre a tundra, Drizzt, nas sombras confortáveis do fundo da caverna, despertou de seu breve cochilo. Wulfgar sentiu-se lisonjeado pelo fato de o drow confiar nele o suficiente para dormir tranqüilamente, tão obviamente vulnerável, em seu primeiro dia juntos. Isso, mais a surra que Drizzt lhe dera um pouco antes, levara Wulfgar a questionar seu ultraje inicial ao ver o elfo negro.
- Começamos nossas sessões esta noite, então? - perguntou Drizzt.
- Você é o mestre - disse Wulfgar com amargura. - Sou apenas o escravo.
- Não mais um escravo do que eu - replicou Drizzt. Wulfgar voltou-se para ele, curioso.
- Estamos ambos em dívida com o anão - explicou Drizzt. - Devo a ele minha vida inúmeras vezes e, portanto, concordei em ensinar a você minha perícia na batalha. Você cumpre um juramento que fez a ele em troca de sua vida. Portanto, você está obrigado a aprender o que eu tenho a ensinar. Não sou senhor de homem nenhum, nem jamais gostaria de ser.
Wulfgar voltou-se para a tundra. Ele ainda não confiava totalmente em Drizzt, mas não conseguia imaginar que outros motivos o drow poderia ter em mente apresentando uma fachada amistosa.
- Juntos saldamos nossas dívidas com Bruenor - disse Drizzt. Ele entendia as emoções de Wulfgar ao olhar as planícies de sua terra natal pela primeira vez em anos. - Aproveite esta noite, bárbaro. Ande por aí como bem entender e volte a recordar a sensação do vento em seu rosto. Devemos começar amanhã ao anoitecer. - Deixou-o, então, para permitir a Wulfgar a privacidade que este desejava.
Wulfgar não podia negar que apreciava o respeito que o drow lhe demonstrara.
Durante o dia, Drizzt descansava nas sombras frescas da caverna enquanto Wulfgar aclimatava-se à nova área e caçava algo para a ceia.
A noite, eles lutavam.
Drizzt pressionava implacavelmente o jovem bárbaro, atingindo-o com a parte chata de uma cimitarra toda vez que ele abria uma brecha em sua guarda. As justas geralmente levavam a uma perigosa escalada, pois Wulfgar era um guerreiro orgulhoso e acabava furioso e frustrado com a superioridade do drow. Isso só deixava o bárbaro em maior desvantagem, pois, em sua fúria, toda e qualquer disciplina lhe escapava. Drizzt sempre prontificava-se a apontar o erro com uma série de golpes e fintas que acabavam deixando Wulfgar escarrapachado no chão.
Justiça seja feita, Drizzt nunca escarnecia do bárbaro nem tentava humilhá-lo. O drow ocupava-se de seu trabalho metodicamente, pois compreendia que sua primeira tarefa era aguçar os reflexos do bárbaro e ensiná-lo a se preocupar minimamente com a defesa.
Drizzt estava realmente impressionado com a habilidade natural de Wulfgar. O incrível potencial do jovem bárbaro o desconcertava. A princípio, ele receara que o orgulho obstinado e o rancor de Wulfgar impossibilitassem seu treinamento, mas o bárbaro mostrara-se à altura do desafio. Reconhecendo os benefícios que poderia obter com alguém tão habilidoso com as armas quanto Drizzt, Wulfgar ouvia atentamente. Seu orgulho, ao invés de fazer com que ele se limitasse a acreditar que já era um poderoso guerreiro e que não precisava de mais instrução, forçava-o a aproveitar toda e qualquer vantagem se isso o ajudasse a atingir seus ambiciosos objetivos. Ao final da primeira semana, durante os momentos em que conseguia controlar seu temperamento volátil, ele já era capaz de aparar muitos dos ataques ardilosos de Drizzt.
Drizzt pouco disse durante aquela primeira semana, apesar de ocasionalmente elogiar uma boa defesa ou um contra-ataque perfeito do bárbaro, ou mais comumente o progresso que Wulfgar já demonstrava em tão pouco tempo. Wulfgar flagrava-se ansioso para ouvir os comentários do drow sempre que executava uma manobra particularmente difícil e temeroso do golpe inevitável toda vez que abria estupidamente a guarda.
O respeito do jovem bárbaro por Drizzt continuava a crescer. Algo em relação ao drow, que vivia, sem jamais se queixar, em estóica solidão, comovia o senso de honra de Wulfgar. Ele ainda não conseguia imaginar por que Drizzt escolhera aquela existência, mas estava certo, pelo que já vira do drow, de que tinha algo a ver com princípios.
Lá pela segunda semana, Wulfgar tinha o total controle de Garra de Palas, girava habilmente a empunhadura e a cabeça do martelo para bloquear as duas cimitarras sibilantes e respondia com os próprios golpes cuidadosamente calculados. Drizzt pôde acompanhar a mudança sutil em andamento à medida que o bárbaro deixava de simplesmente reagir às ágeis cutiladas e estocadas das cimitarras e começava a reconhecer as próprias áreas vulneráveis e a antecipar o ataque seguinte.
Quando se convenceu de que a guarda de Wulfgar estava suficientemente fortalecida, Drizzt deu início às lições de ataque. O drow sabia que seu estilo de ofensiva não seria o mais eficiente no caso de Wulfgar. O bárbaro poderia usar sua força sem igual mais efetivamente do que as fintas e desvios enganadores. O povo de Wulfgar era formado por combatentes naturalmente agressivos que aprendiam a atacar mais facilmente do que a defender. O pujante bárbaro era capaz de abater um gigante com um único golpe bem colocado.
Tudo o que ele precisava aprender era paciência.
No início de uma noite escura, sem lua, enquanto se preparava para a aula seguinte, Wulfgar notou o brilho de uma fogueira ao longe na planície. Mesmerizado, viu várias outras aparecerem repentinamente e imaginou se poderiam ser as fogueiras de sua própria tribo.
Drizzt aproximou-se em silêncio, sem que o bárbaro absorto o notasse. Os olhos penetrantes do drow haviam percebido a agitação do acampamento distante muito antes da luz do fogo ter se intensificado o suficiente para que Wulfgar a enxergasse.
- Seu povo sobreviveu - disse ele para consolar o rapaz. Wulfgar sobressaltou-se com o súbito aparecimento de seu professor.
- Você sabe como eles estão? - perguntou. Drizzt posicionou-se ao lado dele e fitou a tundra.
- Foram grandes as perdas na Batalha de Brin Shander - disse. - E o inverno que se seguiu foi cruel com as mulheres e as crianças que não tinham um homem para caçar por elas. Fugiram para o oeste, para encontrar as renas, e juntaram-se às outras tribos em busca de apoio. Os povos ainda mantêm os nomes das tribos originais, mas, na verdade, existem apenas duas remanescentes: a Tribo do Alce e a Tribo do Urso.
- Você era da Tribo do Alce, creio eu - continuou Drizzt, arrancando um assentimento de Wulfgar. - Seu povo sobreviveu. Eles dominam a planície agora e, apesar de muitos anos serem ainda necessários para que o povo da tundra readquira a força que possuía antes da batalha, os guerreiros mais jovens já são quase homens.
Wulfgar foi tomado de alívio. Ele temera que a Batalha de Brin Shander tivesse dizimado seu povo de tal maneira que a tribo jamais se recuperaria. A tundra era duas vezes mais cruel no inverno congelado, e Wulfgar costumava pensar na possibilidade de que a perda repentina de tantos guerreiros - algumas das tribos haviam perdido todos os seus homens - viesse a condenar os remanescentes à morte lenta.
- Você sabe muita coisa sobre meu povo - comentou Wulfgar.
- Passei muitos anos a observá-lo - explicou Drizzt, imaginando qual seria a linha de raciocínio que o bárbaro traçava -, aprendendo suas tradições e truques para prosperar numa terra tão inóspita.
Wulfgar casquinou baixinho e chacoalhou a cabeça, ainda mais impressionado com a sincera reverência que o drow demonstrava toda vez que falava dos nativos do Vale do Vento Gélido. Ele conhecia o drow havia menos de duas semanas, mas já compreendia o caráter de Drizzt Do'Urden bem o bastante para saber que sua próxima observação sobre o drow seria certeira.
- Aposto que você até abateu alguns gamos no silêncio da noite para serem encontrados à primeira luz do dia por um povo faminto demais para questionar a própria boa sorte.
Drizzt não respondeu ao comentário nem mudou a direção de seu olhar, mas Wulfgar confiava no próprio palpite.
- Você sabe algo sobre Heafstaag? - perguntou o bárbaro depois de alguns momentos de silêncio. - Ele era o rei de minha tribo, um homem de muitas cicatrizes e grande renome.
Drizzt lembrava-se muito bem do bárbaro de um olho só. A mera menção de seu nome produzia uma dor embotada no ombro do drow, onde havia sido ferido pelo pesado machado daquele homem gigantesco.
- Está vivo - replicou Drizzt, resguardando um pouco seu desdém. - Heafstaag fala por todo o norte agora. Não resta ninguém de sangue real para se opor a ele em combate ou desafiá-lo e impedi-lo.
- É um rei poderoso - disse Wulfgar, alheio ao veneno na voz do drow.
- É um combatente selvagem - corrigiu Drizzt. Seus olhos cor de lavanda cravaram-se em Wulfgar e apanharam o bárbaro completamente de surpresa com o repentino lampejo de fúria. Wulfgar vislumbrou o incrível caráter naquelas fontes lilases, uma força interior cuja virtude genuína faria inveja ao mais nobre dos reis.
- Você se tornou um homem ao lado de um anão de caráter indiscutível - ralhou Drizzt. - Será que não lucrou nada com a experiência?
Wulfgar ficou estarrecido e não conseguiu encontrar palavras para responder.
Drizzt decidiu que chegara a hora de expor os princípios do bárbaro e julgar a sabedoria e o valor de ensinar o rapaz.
- Um rei é um homem forte de caráter e convicção que lidera pelo exemplo e realmente se importa com os sofrimentos de seu povo - instruiu ele. - Não um bruto que governa simplesmente por ser o mais forte. Achei que você havia aprendido a entender a diferença.
Drizzt notou o constrangimento no rosto de Wulfgar e compreendeu que os anos nas cavernas dos anões haviam estremecido a própria base sobre a qual o bárbaro crescera. Ele esperava que a fé de Bruenor na consciência e na noção de princípios de Wulfgar se mostrasse verdadeira, pois ele também, como Bruenor anos antes, viera a reconhecer uma certa promessa no inteligente rapaz e descobrira que se importava com o futuro de Wulfgar. Virou-se subitamente e partiu, deixando o bárbaro sozinho para encontrar as respostas às próprias perguntas.
- E a aula? - Wulfgar gritou-lhe, ainda confuso e surpreso.
- Já teve sua aula por esta noite - Drizzt respondeu sem se virar nem diminuir o passo. - Talvez tenha sido a mais importante de todas as que eu posso lhe ensinar. - O drow desapareceu nas trevas da noite, mas a imagem distinta dos olhos cor de lavanda continuou nitidamente gravada nos pensamentos de Wulfgar.
O bárbaro voltou-se para a fogueira distante. E pôs-se a pensar consigo mesmo.
15
Nas Asas da Destruição
Chegaram encobertos por uma violenta borrasca que veio do leste, escapou à barreira das montanhas e assolou Dez-Burgos. Ironicamente, eles seguiam a mesma trilha ao longo da encosta do Sepulcro de Kelvin que Drizzt e Wulfgar haviam percorrido apenas duas semanas antes. O bando de verbeeg, porém, ia para o sul, em direção aos povoados, e não para o norte e a extensa tundra. Apesar de altos e magros - os menores entre os gigantes -, eles ainda constituíam uma força formidável.
Um gigante do gelo liderava o grupo avançado do vasto exército de Akar Kessell. Despercebidos em meio às rajadas uivantes de vento, ele se dirigiam a toda velocidade para um covil secreto que fora descoberto por batedores ores num contraforte rochoso na encosta meridional da montanha. Havia mal e mal vinte dos monstros, mas cada um deles carregava um imenso fardo de armas e suprimentos.
O líder prosseguia vigorosamente a toda velocidade em direção a seu destino. Seu nome era Sorrisão, um gigante esperto e imensamente forte cujo lábio superior havia sido arrancado pelos dentes afiados de um lobo descomunal, o que deixou a grotesca caricatura de um sorriso eternamente estampada em seu rosto. A desfiguração só aumentava a estatura do gigante e instilava o respeito devido ao medo em seus soldados normalmente indisciplinados. Akar Kessell pessoalmente escolhera Sorrisão como o líder de seus batedores de vanguarda, embora o mago tivesse sido aconselhado a enviar um grupo não tão conspícuo - parte da gente de Heafstaag - naquela delicada missão. Mas Kessell tinha Sorrisão em alta conta e estava impressionado com a enorme quantidade de suprimentos que o pequeno bando de verbeeg era capaz de carregar.
A tropa se estabeleceu nos novos alojamentos antes da meia-noite e ocupou-se imediatamente de adaptar dormitórios, despensas e uma pequena cozinha. Depois, puseram-se a esperar, silenciosos e preparados para desferir os primeiros golpes fatais do glorioso assalto de Akar Kessell a Dez-Burgos.
Um mensageiro ore vinha a cada dois dias para ver como se comportava o bando e passar as mais recentes instruções do mago, informando Sorrisão sobre o avanço da próxima tropa de suprimentos que estava programada para chegar. Tudo procedia de acordo com o plano de Kessell, mas era com preocupação que Sorrisão notava que muitos de seus guerreiros ficavam mais impacientes e ansiosos a cada vez que um novo mensageiro aparecia, pois esperavam que a hora de marchar para a guerra finalmente tivesse chegado.
No entanto, as instruções eram sempre as mesmas: permanecer escondidos e aguardar.
Em menos de duas semanas na tensa atmosfera da caverna abafada, a camaradagem entre os gigantes havia se desintegrado. Os verbeeg eram criaturas de ação, e não de contemplação, e o tédio levou-os inevitavelmente à frustração. As discussões tornaram-se a regra, o que muitas vezes levava a brigas violentas. Sorrisão estava sempre por perto e o imponente gigante do gelo geralmente conseguia dissolver os tumultos antes que um dos soldados saísse gravemente ferido. O gigante não tinha a menor dúvida de que não conseguiria manter por muito mais tempo o controle sobre aquele bando ávido de batalhas.
O quinto mensageiro introduziu-se na caverna numa noite particularmente quente e desagradável. Assim que entrou na sala comum, o desafortunado ore foi cercado por vinte verbeeg rabugentos.
- E aí, o que é que manda? - um deles perguntou, impaciente. Imaginando que o apoio de Akar Kessell fosse proteção suficiente, o ore fitou o gigante em franco desafio.
- Vá buscar seu mestre, soldado - ordenou.
De repente, uma mão descomunal agarrou o ore pelo cangote e chacoalhou rudemente a criatura.
- A gente fizemos uma pergunta, seu escroto - disse um segundo gigante. - O que é que manda?
O ore, agora visivelmente amedrontado, disparou uma ameaça furiosa ao gigante que o agredia:
- O mago vai lhe arrancar o couro!
- Já ouvi o bastante - rosnou o primeiro gigante, abaixando-se para prensar o pescoço do ore em sua mão descomunal. Ergueu a criatura do solo, usando apenas um de seus poderosos braços. O ore distribuiu tapas e contorceu-se lastimavelmente, sem que sequer chegasse a incomodar o verbeeg.
- Ah, aperta esse pescocinho nojento! - veio um grito.
- Arranca os olhos dele e joga essa coisa num buraco escuro! - disse um outro.
Sorrisão entrou na sala, atravessou rapidamente as fileiras para descobrir o motivo da comoção. O gigante não se surpreendeu ao encontrar os verbeeg torturando um ore. Na verdade, o líder dos gigantes achou graça no espetáculo, mas compreendeu o risco que era enfurecer o volátil Akar Kessell. Já tinha visto vários goblins indisciplinados sofrerem uma morte lenta por desobediência, ou simplesmente para satisfazer o distorcido senso de diversão do mago.
- Solte essa coisinha miserável - ordenou Sorrisão placidamente. Queixas e resmungos irados brotaram em torno do gigante do gelo.
- Arrebenta a cabeça dele! - gritou um.
- Morde o nariz dele! - berrou outro.
Aquela altura, a cara do ore já estava inchada devido à falta de ar e ele mal e mal esperneava. O verbeeg que o segurava retribuiu o olhar ameaçador de Sorrisão durante algum tempo ainda, depois atirou sua vítima indefesa contra a bota do gigante do gelo.
- Fica com ele, então - rosnou o verbeeg para Sorrisão. - Mas se ele matraquear comigo de novo, pode crer que eu vou comer ele!
- Já 'tou cheio deste buraco - reclamou um gigante das fileiras de trás. - E um vale inteiro de anões nojentos dando sopa!
Os resmungos recomeçaram com maior intensidade.
Sorrisão olhou ao redor e avaliou a fúria fervilhante que havia se insinuado em todos os soldados e ameaçava trazer abaixo o covil inteiro num súbito acesso de violência irreprimível.
- Amanhã de noite, a gente começa a dar umas voltas por aí pra ver como 'tão as coisas - ofereceu Sorrisão como resposta. O gigante do gelo sabia que aquela era uma manobra perigosa, mas a alternativa era o desastre certo. - Só três de cada vez e ninguém pode saber!
O ore readquirira um certo domínio de si e ouviu a proposta de Sorrisão. Começou a protestar, mas o líder dos gigantes silenciou-o imediatamente.
- Cala a boca, seu ore canalha - ordenou Sorrisão, olhando para o verbeeg que havia ameaçado o mensageiro e sorrindo obliquamente. - Ou vou deixar meu amigo aqui almoçar você!
Os gigantes berraram de alegria e trocaram com os companheiros palmadas nos ombros, novamente camaradas. Sorrisão devolvera a eles a promessa de ação, embora o vigoroso entusiasmo dos soldados estivesse muito longe de desfazer as dúvidas do líder dos gigantes quanto àquela decisão. Aos gritos, várias receitas preparadas com anões e inventadas pelos verbeeg - "Anão na Maçã" e "Barbado, Regado e Cozido", para nomear duas delas - foram anunciadas e acabaram em ensurdecedores apupos de aprovação.
Sorrisão temia o que poderia acontecer se os verbeeg encontrassem algumas das pessoas pequenas.
Sorrisão deixava os verbeeg saírem do covil em grupos de três e só durante a noite. O líder dos gigantes achava improvável que os anões se deslocassem até o extremo norte do vale, mas sabia que estava assumindo um risco enorme. Um suspiro de alívio escapava da boca do gigante toda vez que uma patrulha retornava sem incidentes.
Somente o fato de terem permissão para sair da caverna apinhada já melhorou dez vezes o moral dos verbeeg. A tensão no covil praticamente desapareceu assim que os soldados recobraram o entusiasmo com a guerra iminente. Do alto da encosta do Sepulcro de Kelvin, eles costumavam ver as luzes de Caer-Konig e Caer-Dineval, e Termalaine do outro lado, a oeste, e até mesmo Brin Shander bem mais ao sul. Avistar as cidades permitia-lhes fantasiar sobre as futuras vitórias e esses pensamentos eram suficientes para ampará-los em sua longa espera.
Mais uma semana transcorreu. Tudo parecia estar indo muito bem. Em vista da melhoria que aquele pequeno grau de liberdade trouxera aos soldados, Sorrisão gradualmente começou a relaxar em relação à arriscada decisão.
Mas, então, dois anões, tendo sido informados por Bruenor que havia uma pedra excelente sob a sombra do Sepulcro de Kelvin, foram até a extremidade norte do vale para investigar seu potencial de mineração. Eles chegaram às encostas meridionais da montanha rochosa no final de uma certa tarde e, ao crepúsculo, já tinham montado acampamento numa laje ao lado de um riacho veloz.
O vale pertencia a eles e não tinham problemas havia anos. Eles tomaram poucas precauções.
E foi assim que a primeira patrulha de verbeeg a deixar o covil naquela noite logo avistou as chamas de uma fogueira e ouviu o característico dialeto dos odiados anões.
Do outro lado da montanha, Drizzt Do'Urden abriu os olhos depois de seu sono diurno. Ao sair da caverna e adentrar a crescente escuridão, ele encontrou Wulfgar no lugar de sempre, equilibrado meditativamente sobre uma pedra alta, fitando a planície.
- Tem saudades de casa? - perguntou o drow retoricamente.
Wulfgar deu de ombros, aqueles ombros imensos, e respondeu distraidamente:
- Talvez.
O bárbaro vinha se fazendo muitas perguntas inquietantes a respeito de seu povo e de seu modo de vida desde que aprendera a respeitar Drizzt. O drow era um enigma para ele, uma combinação perturbadora de brilhantismo em combate e absoluto controle. Drizzt parecia capaz de avaliar cada um de seus passos segundo os padrões das grandes aventuras e de princípios morais indiscutíveis.
Wulfgar lançou um olhar inquisitivo para o drow.
- Por que você está aqui? - perguntou de repente.
Agora era Drizzt quem fitava com ar meditativo aquela lhanura diante deles. As primeiras estrelas da noite haviam aparecido e seus reflexos cultuavam distintamente nas fontes escuras que eram os olhos do elfo. Mas Drizzt não as enxergava; sua mente vislumbrava imagens antigas das cidades escuras dos drow em seus imensos complexos de cavernas muito abaixo do solo.
- Eu me lembro - recordou Drizzt vividamente, pois as lembranças terríveis geralmente são vividas - da primeira vez que vi este mundo da superfície. Era um elfo muito mais jovem na ocasião, um membro de um grande grupo de assalto. Saímos sorrateiramente de uma caverna secreta e nos precipitamos sobre uma pequena aldeia élfica. - O drow encolheu-se diante das imagens que lampejavam mais uma vez em sua mente. - Meus companheiros mataram todos os membros do clã de elfos da floresta. Todas as mulheres. Todas as crianças.
Wulfgar ouvia com horror crescente. O ataque que Drizzt descrevia poderia muito bem ter sido um dos perpetrados pela feroz Tribo do Alce.
- Meu povo mata - continuou Drizzt sinistramente. - Mata sem piedade. - Ele cravou os olhos em Wulfgar para se certificar de que o bárbaro estava prestando atenção.
- Mata sem paixão.
Deteve-se por um momento para deixar o bárbaro absorver todo o peso de suas palavras. A descrição simples, porém exata de assassinos tão frios confundira Wulfgar. Ele fora criado e educado entre guerreiros passionais, combatentes cujo único propósito na vida era a busca pela glória na batalha: lutar em louvor a Tempus. O jovem bárbaro simplesmente não conseguia entender uma crueldade assim tão desprovida de emoção. Mas, Wulfgar era obrigado a admitir, a diferença era sutil. Drow ou bárbaro, os resultados dos ataques eram os mesmos.
- A deusa-demônio a quem os drow servem não admite outras raças - explicou Drizzt. - Particularmente as outras raças de elfos.
- Mas você jamais será aceito neste mundo - disse Wulfgar. - Sabe por certo que os humanos sempre o evitarão.
Drizzt assentiu.
- A maioria - concordou ele. - Existem uns poucos a quem posso chamar de amigos, mas estou satisfeito. Entenda, bárbaro, tenho meu próprio respeito, sem culpa, sem vergonha. - Levantou-se, pois estava agachado, e afastou-se na direção das trevas. - Venha - instruiu ele. - Lutemos bem esta noite, pois estou satisfeito com seu progresso e esta parte das aulas já está quase no fim.
Wulfgar continuou sentado durante algum tempo ainda, pensativo. O drow levava uma existência dura e materialmente vazia, porém era mais rico que qualquer homem que Wulfgar já conhecera. Drizzt mantivera-se fiel a seus princípios diante de circunstâncias esmagadoras, abandonou o mundo familiar de seu próprio povo pela opção de permanecer num mundo onde nunca seria aceito ou apreciado.
Olhou para o elfo que se afastava, agora uma mera sombra na escuridão.
- Talvez nós dois não sejamos tão diferentes assim - murmurou a meia-voz.
- Espiões - sussurrou um dos verbeeg.
- Que estúpido espionar com uma fogueira acesa - disse um outro.
- Vamos esborrachar eles! - disse o primeiro, partindo em direção à luz alaranjada.
- O chefe falou que não! - lembrou-lhes o terceiro. - E pra gente vigiar, nada de esborrachar!
Eles desceram a trilha rochosa rumo ao pequeno acampamento dos anões com toda a dissimulação de que eram capazes, o que os tornava tão silenciosos quanto um matacão a rolar montanha abaixo.
Os dois anões logo perceberam que alguém ou alguma coisa se aproximava. Sacaram suas armas como precaução, mas imaginaram que Wulfgar e Drizzt, ou talvez alguns pescadores de Caer-Konig, tivessem avistado a fogueira e vinham partilhar com eles o jantar.
Assim que avistaram o acampamento logo abaixo deles, os verbeeg viram os anões em posição, com as armas nas mãos.
- Eles viram a gente! - disse um gigante, abaixando-se e procurando abrigo na escuridão.
- Ah, cala a boca - ordenou o segundo.
O terceiro gigante, sabendo tão bem quanto o segundo que não havia como os anões saberem ainda de quem se tratava, agarrou o ombro deste e piscou maldosamente.
- Se eles viram a gente - raciocinou -, nós não tem escolha a não ser esborrachar eles.
O segundo gigante casquinou baixinho, levou a pesada clava ao ombro e partiu em direção ao acampamento.
Os anões ficaram completamente aturdidos quando os verbeeg apareceram, saltando e contornando os matacões a apenas alguns metros do acampamento, e vieram direto para cima deles. Mas um anão acossado é inabalável, e aqueles dois pertenciam ao clã do Salão de Mitral, que a vida toda travara batalhas na tundra implacável. A luta não seria tão fácil quanto os verbeeg esperavam.
O primeiro anão abaixou-se, evitando um golpe desajeitado do verbeeg na vanguarda do ataque, e respondeu dando com o martelo nos dedos do pé do monstro. O gigante instintivamente levantou o pé ferido e começou a saltar numa perna só, e o experiente guerreiro anão prontamente o derrubou com uma pancada no joelho.
O outro anão reagira rapidamente, arremessando o martelo com extrema precisão. Atingiu o outro gigante no olho e fez a criatura girar e cair estrondosamente sobre algumas pedras.
Mas o terceiro verbeeg, o mais esperto dos três, apanhara uma pedra antes de partir para a investida e retribuiu o arremesso do anão com força extraordinária. A pedra bateu na têmpora do desafortunado anão, partindo-lhe violentamente o pescoço. A cabeça pendeu de um ombro a outro quando ele caiu morto no chão.
O primeiro anão teria logo dado cabo do gigante que derrubara, mas o último dos monstros precipitou-se sobre ele no mesmo instante. Os dois combatentes esgrimiram e, na verdade, o anão até conseguiu uma pequena vantagem. Uma vantagem que durou apenas até o gigante atingido no olho pelo martelo arremessado se recuperar o suficiente para entrar na refrega.
Os dois verbeeg fizeram chover golpes cada vez mais pesados sobre o anão. Ele conseguiu se esquivar e aparar alguns deles, mas foi atingido em cheio no ombro e caiu de costas. Recuperou o fôlego em pouco tempo, pois era tão resistente quanto a pedra na qual aterrissara, mas uma pesada bota o esmagou e o manteve prostrado.
- Esborracha ele! - implorou o gigante ferido que o anão derrubara. - Aí a gente leva ele pro cozinheiro!
- Não leva, não! - grunhiu o gigante por cima do anão. Enterrou no solo a bota descomunal e, lentamente, foi arrancando a vida da desafortunada vítima.
- Sorrisão vai levar a gente pro cozinheiro se ele descobrir isto!
Os outros dois ficaram genuinamente amedrontados ao serem lembrados da ira de seu líder cruel. Olharam desamparadamente para o companheiro mais inteligente, esperando uma solução.
- A gente coloca eles e essas coisas nojentas num buraco escuro e ninguém fala mais nisso!
Muitas milhas a leste dali, em sua torre solitária, Akar Kessell esperava pacientemente. No outono, a última - e a maior - das caravanas mercantes viria de Luskan até Dez-Burgos, carregada de riquezas e suprimentos para o longo inverno. Seus vastos exércitos estariam reunidos e já em movimento àquela altura, marchando gloriosamente para destruir os lastimáveis pescadores. Simplesmente imaginar os frutos de sua fácil vitória fazia o mago estremecer de gozo.
Ele não tinha como saber que os primeiros golpes da guerra já haviam sido desferidos.
16
Covas Rasas
Quando Wulfgar acordou pouco antes do meio-dia, recuperado da canseira da longa noite, surpreendeu-se ao ver Drizzt já de pé e ativo, a preparar diligentemente a mochila para uma longa caminhada.
- Hoje começaremos com um tipo diferente de aula - explicou Drizzt ao bárbaro. - Partiremos assim que você tiver comido alguma coisa.
- Para onde?
- Primeiro, as minas dos anões - replicou Drizzt. - Bruenor vai querer dar uma olhada em você para poder avaliar seu progresso pessoalmente. - Sorriu para o grandalhão. - Ele não vai se decepcionar!
Wulfgar sorriu, confiante que sua recém-descoberta perícia com o martelo impressionaria até mesmo o rabugento anão.
- E depois?
- Para Termalaine, às margens do Maer Dualdon. Tenho um amigo por lá. Um dos poucos - acrescentou Drizzt rapidamente com uma piscadela, arrancando um sorriso de Wulfgar. - Um homem chamado Agorwal. Quero que você conheça algumas das pessoas de Dez-Burgos para que possa julgá-las melhor.
- O que há para julgar? - Wulfgar perguntou, colérico.
Os olhos sagazes e escuros do drow cravaram-se nele. Wulfgar claramente compreendeu o que Drizzt tinha em mente. O elfo negro estava tentando individualizar as pessoas que os bárbaros haviam declarado como inimigas, estava tentando mostrar a Wulfgar a existência cotidiana dos homens, das mulheres e das crianças que poderiam ter sido as vítimas do pesado mastro do rapaz caso o resultado da luta nas encostas tivesse sido outro. Intrépido em qualquer batalha, Wulfgar estava realmente com medo de encarar aquelas pessoas. O jovem bárbaro já começara a questionar as virtudes de sua gente belicosa; os rostos inocentes que encontraria na vila que seu povo casualmente marcara para ser queimada poderiam muito bem completar a destruição das fundações de todo o seu mundo.
Os dois companheiros puseram-se a caminho pouco depois, retraçando os próprios passos e contornando as trilhas orientais do Sepulcro de Kelvin. Um vento poeirento soprava constantemente do leste e assaltava-os com grãos finos de areia lancinante enquanto cruzavam a face exposta da montanha. Apesar de o sol fulgurante exaurir Drizzt, ele manteve um ritmo forte e não parou para descansar.
No fim da tarde, quando finalmente contornaram um dos contrafortes meridionais, eles estavam exaustos mas bem-humorados.
- No abrigo das minas, eu havia me esquecido da crueldade do vento da tundra! - riu Wulfgar.
- Teremos alguma proteção sob a orla do vale - disse Drizzt. Ele bateu de leve o cantil vazio contra o próprio flanco. - Venha, sei onde poderemos reabastecer estes aqui antes de continuarmos.
Ele levou Wulfgar para o oeste, sob as encostas meridionais da montanha. O drow conhecia um riacho glacial, a uma pequena distância dali, cujas águas se alimentavam da neve derretida no topo do Sepulcro de Kelvin.
O córrego cantava alegremente, dançando por entre as pedras. As aves da vizinhança chilrearam e crocitaram com a aproximação dos companheiros, e um lince esgueirou-se silenciosamente para longe. Tudo parecia em ordem, mas a partir do momento em que chegaram à grande laje comumente usada pelos viajantes como acampamento, Drizzt sentiu que algo estava terrivelmente errado. Aproximando-se tentativamente, ele procurou algum sinal palpável que confirmasse suas crescentes suspeitas.
Wulfgar, porém, deitou-se de bruços na pedra e mergulhou avidamente o rosto coberto de suor e terra na água gelada. Ao retirar a cabeça do riacho, o brilho havia retornado a seus olhos, como se a água glacial tivesse lhe devolvido a vitalidade.
Mas, então, o bárbaro notou manchas carmesins na rocha e seguiu-lhes o rastro sangrento até um pedaço hirsuto de pele que ficara preso na ponta afiada de uma pedra logo acima do riacho impetuoso.
Ambos rastreadores habilidosos, o ranger e o bárbaro tiveram pouca dificuldade para determinar que uma batalha fora recentemente travada naquele local. Reconheceram o pêlo grosseiro no fragmento de pele como um pedaço de barba, o que, naturalmente, levou-os a pensar nos anões. Encontraram três conjuntos de pegadas gigantescas nas proximidades. Seguindo uma linha tangente de rastros que se estendia por uma pequena distância em direção ao sul até um trecho arenoso de terreno, logo encontraram as covas rasas.
- Não é Bruenor - disse Drizzt, carrancudo, examinando os dois cadáveres. - Anões mais jovens: Bundo, filho de Martelocruel, e Dourgas, filho de Argo Espadimplacável, creio eu.
- Devemos chegar às minas o mais rápido possível - sugeriu Wulfgar.
- Daqui a pouco - replicou o drow. - Ainda temos muito a descobrir sobre o que aconteceu aqui, e esta noite pode ser nossa única oportunidade. Esses gigantes eram simplesmente desgarrados de passagem ou estão se entocando na área? Será que há mais dessas criaturas abomináveis?
- Precisamos contar a Bruenor - argumentou Wulfgar.
- E assim o faremos - disse Drizzt. - Mas, se esses três ainda estiverem nas proximidades - como acredito que estejam, já que se deram ao trabalho de enterrar suas vítimas - podem muito bem retornar em busca de mais caça ao cair da noite. - Ele dirigiu o olhar de Wulfgar para o oeste, onde o céu já começara a assumir os tons róseos do crepúsculo. - Está pronto para uma luta, bárbaro?
Com um grunhido determinado, Wulfgar retirou Garra de Palas do ombro e bateu a empunhadura de adamantita na mão espalmada.
- Vamos ver quem será a caça esta noite.
Esconderam-se atrás de um rochedo ao sul da laje e aguardaram enquanto o sol passava sob o horizonte e as sombras escuras aumentavam e transformavam-se em noite.
Não foi uma espera muito longa, pois os mesmos verbeeg que haviam matado os anões na noite anterior foram mais uma vez os primeiros a deixar o covil, ansiosos por novas vítimas. Logo, a patrulha desceu estrondosamente pelo declive da montanha até a laje ao lado do riacho.
Wulfgar imediatamente preparou-se para uma investida, mas Drizzt o deteve antes que entregasse a posição deles. O drow tinha toda a intenção de matar aqueles gigantes, mas primeiro queria ver se conseguia descobrir algo sobre o motivo pelo qual estavam ali.
- Ora bolas, carambolas - resmungou um dos gigantes. - Nem um anãozinho só!
- Mas que sorte maldita - gemeu um outro. - E é a última noite da gente também.
Os companheiros do monstro olharam para ele com curiosidade.
- O outro grupo 'tá chegando amanhã - explicou o verbeeg. - Vai ter o dobro da gente, e ogros e ores fedidos de lambuja, e o chefe não vai deixar a gente sair até tudo ficar calmo de novo.
- Mais vinte naquele buraco fedido - reclamou um dos outros. - Vê se não é pra deixar a gente doido!
- Vamos nessa, então - disse o terceiro. - Aqui não tem caça e não dá pra gente jogar a noite fora.
Os dois aventureiros atrás do rochedo ficaram involuntariamente tensos quando os gigantes falaram em partir.
- Se chegarmos àquela rocha - raciocinou Wulfgar, apontando, sem saber, para o mesmo matacão que os gigantes haviam usado em sua emboscada na noite anterior -, estaremos sobre eles antes mesmo que percebam que estamos aqui - Voltou-se ansiosamente para Drizzt, mas recuou imediatamente ao ver o drow. Os olhos cor de lavanda ardiam com um brilho que Wulfgar jamais testemunhara antes.
- Há apenas três deles - disse Drizzt, e sua voz encerrava uma frágil margem de calma que ameaçava explodir a qualquer momento. - Não precisamos pegá-los de surpresa.
Wulfgar não soube muito bem como julgar essa inesperada mudança no elfo negro.
- Você me ensinou a procurar toda e qualquer vantagem - disse ele, cauteloso.
- Na batalha, sim - respondeu Drizzt. - Isto é vingança. Deixe que os gigantes nos vejam, deixem-nos sentir o terror do fim iminente! - As cimitarras apareceram subitamente em suas mãos magras assim que ele contornou o rochedo, trazendo assustadoramente no passo firme a promessa inabalável da morte.
Um dos gigantes gritou, surpreso, e todos ficaram paralisados ao verem o drow aparecer diante deles. Apreensivos e confusos, formaram uma linha defensiva na laje. Os verbeeg conheciam lendas sobre os drow, até mesmo algumas nas quais os elfos negros haviam unido forças com os gigantes, mas a repentina aparição de Drizzt pegou-os totalmente de surpresa.
Drizzt desfrutou dos espasmos nervosos das criaturas e deteve-se para saborear o momento.
- O que é que 'cê quer? - um dos gigantes perguntou cautelosamente.
- Sou amigo dos anões - replicou Drizzt, com uma gargalhada perversa. Wulfgar saltou para o lado dele quando o maior dos gigantes investiu sem hesitar. Mas Drizzt o deteve. O drow apontou uma de suas cimitarras para o gigante que avançava e declarou com calma mortal:
- Você está morto.
Imediatamente, o verbeeg foi delineado por chamas púrpuras. Gritou de terror e retrocedeu um passo, mas Drizzt acossou-o metodicamente.
Apoderou-se de Wulfgar um impulso irresistível de atirar o martelo de guerra, como se Garra de Palas estivesse exercendo a própria vontade. A arma zuniu pelo ar noturno e explodiu contra o gigante do meio, arremessando-lhe o corpo alquebrado no volumoso riacho.
Wulfgar estava verdadeiramente pasmo com o poder e a letalidade do arremesso, porém preocupava-se agora em descobrir com que eficácia poderia rechaçar o terceiro gigante com um pequeno punhal, a única arma que lhe restara. O gigante também reconheceu a vantagem e investiu furiosamente. Wulfgar fez menção de sacar o punhal.
Mas, em vez disso, encontrou Garra de Palas magicamente de volta a sua mão. Não fazia idéia desse poder especial que Bruenor imbuíra na arma e, no momento, não tinha tempo para se deter e refletir.
Aterrorizado, mas sem ter para onde correr, o maior dos gigantes atacou Drizzt com abandono, o que deu ao elfo mais do que uma simples vantagem. O monstro ergueu bem alto sua pesada clava - o movimento exagerado pela fúria -, e Drizzt rapidamente enfiou as espadas pontiagudas através da túnica de couro e do ventre exposto. Com apenas uma ligeira hesitação, o gigante deu continuidade a seu possante golpe, mas o ágil drow ainda teve bastante tempo para se esquivar. E, como o golpe deixasse o desajeitado gigante desequilibrado, Drizzt abriu mais duas minúsculas perfurações no ombro e no pescoço da criatura.
- Está vendo, garoto? - o drow gritou alegremente para Wulfgar. - Este monstro luta como um dos seus.
Wulfgar estava completamente envolvido no combate com o gigante remanescente, manobrando Garra de Palas com facilidade para aparar os poderosos golpes do monstro, mas conseguiu vislumbrar a batalha que ocorria a seu lado. A cena retratava um lembrete soturno do valor daquilo que Drizzt lhe ensinara, pois o drow estava brincando com o verbeeg, usando a fúria descontrolada do gigante contra ele mesmo. Repetidas vezes, o monstro ergueu os braços para um golpe fatal, e Drizzt sempre foi rápido o bastante para atingi-lo e afastar-se com graça. Sangue de verbeeg escorria livremente de uma dúzia de ferimentos, e Wulfgar sabia que Drizzt poderia dar cabo do serviço a qualquer momento. Mas ele se admirava por estar o elfo negro deleitando-se com seu joguinho torturante.
Wulfgar ainda não atingira seu oponente com um único golpe consistente, pois aguardava o momento oportuno, como Drizzt lhe ensinara, até o verbeeg enfurecido se cansar. O bárbaro já podia ver que os golpes do gigante vinham com menos freqüência e menor vigor. Por fim, coberto de suor e respirando pesadamente, o verbeeg errou e baixou a guarda. Garra de Palas acertou em cheio uma vez, e mais outra, e o gigante foi ao chão numa massa informe.
O verbeeg que lutava com Drizzt agora apoiava-se num joelho, pois o drow havia habilmente cortado-lhe um dos tendões. Quando Drizzt viu o segundo gigante cair diante de Wulfgar, decidiu dar fim ao jogo. O gigante tentou mais um golpe inútil e Drizzt investiu na esteira da trajetória da arma, estocando com uma cimitarra e, dessa vez, acompanhando a ponta cruel de todo o seu peso. A lâmina atravessou o pescoço do gigante e subiu até o cérebro.
Mais tarde, uma pergunta atormentava Drizzt enquanto ele e Wulfgar, apoiado num joelho, consideravam os resultados de sua obra.
- O martelo? - perguntou simplesmente. Wulfgar olhou para Garra de Palas e deu de ombros.
- Não sei - respondeu com sinceridade. - Voltou para minha mão por sua própria mágica!
Drizzt sorriu consigo mesmo. Ele sabia. Maravilhosa era a arte de Bruenor, pensou. E o quanto o anão devia se importar com o rapaz para dar a ele tamanho presente!
- Uma vintena de verbeeg a caminho - gemeu Wulfgar.
- E mais vinte deles já estão aqui - acrescentou Drizzt. - Vá direto até Bruenor - instruiu ele. - Estes três acabaram de deixar o covil; não vou ter muito trabalho em seguir-lhes os rastros e descobrir onde está o resto deles.
Wulfgar assentiu com a cabeça, mas olhou para Drizzt com preocupação. O ardor atípico que vira nos olhos do drow antes de atacarem os verbeeg havia assustado o bárbaro. Ele não estava bem certo de até onde a audácia do elfo negro poderia chegar.
- O que você pretende fazer quando encontrar o covil?
Drizzt nada disse, mas sorriu obliquamente, o que aumentou a apreensão do bárbaro. Por fim, ele aliviou as preocupações de seu amigo:
- Encontre-me novamente neste local pela manhã. Garanto que não vou começar a festa sem você!
- Devo estar de volta antes da primeira luz da aurora - replicou Wulfgar, carrancudo. Girou sobre os calcanhares e desapareceu na escuridão, abrindo caminho o mais rápido possível sob a luz das estrelas.
Drizzt também partiu, seguindo a trilha dos três gigantes em direção ao oeste pela face do Sepulcro de Kelvin. Por fim, ouviu as vozes de barítono dos gigantes e, logo depois, viu as portas de madeira construídas às pressas que marcavam o covil, astuciosamente escondidas por trás de umas moitas, a meio caminho do topo de um contraforte rochoso.
Drizzt esperou pacientemente e logo viu uma segunda patrulha de três gigantes emergir do covil. E mais tarde, quando estes retornaram, um terceiro grupo saiu. O drow tentava discernir se algum alarma fora dado devido à ausência da primeira patrulha. Mas os verbeeg eram quase sempre indisciplinados e indignos de confiança, e os pequenos fragmentos de conversa que Drizzt foi capaz de ouvir tranqüilizaram-no de que os gigantes haviam presumido que seus companheiros desaparecidos tivessem se perdido ou simplesmente desertado. Quando se esgueirou para longe algumas horas depois, com a intenção colocar em andamento seus próximos planos, o drow estava confiante de que ainda tinha o elemento surpresa a seu lado.
Wulfgar correu noite afora. Entregou sua mensagem a Bruenor e partiu de volta em direção ao norte sem esperar que o clã fosse despertado. Seus passos largos o levaram até a laje mais de uma hora antes do primeiro sinal de luz, antes mesmo de Drizzt ter retornado do covil. Ele foi para trás do rochedo a fim de esperar Drizzt, e sua preocupação pelo drow crescia a cada segundo.
Por fim, incapaz de agüentar por mais tempo aquela expectativa, ele procurou a trilha dos verbeeg e começou a rastreá-la em direção ao covil, determinado a descobrir o que estava acontecendo. Não havia se deslocado nem vinte pés quando uma mão deu-lhe um tabefe na nuca. Seu reflexo foi girar para encarar o atacante, mas seu espanto transformou-se em alegria ao ver Drizzt de pé diante dele.
Drizzt retornara à rocha logo depois de Wulfgar, mas permanecera escondido, observando o bárbaro para ver se o jovem e impulsivo guerreiro respeitaria o pacto de ambos ou decidiria fazer tudo sozinho.
- Nunca duvide de um encontro marcado até ter passado a hora - ralhou o drow com severidade, mesmo que emocionado pela preocupação do bárbaro por seu bem-estar.
O bárbaro não teve tempo de responder, pois, de repente, os dois companheiros ouviram o grito rouco de uma voz familiar.
- Me arranja um gigante guinchando como um porco pra mim matar! - gritou Bruenor desde a laje às margens do riacho, logo atrás deles. Anões furiosos podem se deslocar a uma velocidade incrível. Em menos de uma hora, o clã de Bruenor havia se reunido e partido atrás do bárbaro, quase igualando seu ritmo frenético.
- Bons olhos o vejam - gritou Drizzt ao se juntar ao anão. Encontrou Bruenor fitando os três verbeeg mortos com impiedosa satisfação. Cinqüenta anões de aparência férrea e prontos para a batalha, mais da metade do clã, cercavam seu líder.
- Elfo - cumprimentou Bruenor com sua costumeira consideração. - Um covil, é isso?
Drizzt assentiu.
- Uma milha a oeste daqui, mas que essa não seja sua primeira preocupação. Os gigantes de lá não vão a lugar algum, mas estão esperando convidados ainda hoje.
- O garoto me contou - disse Bruenor. - Uns vinte deles como reforços. - Brandiu o machado casualmente. - Não sei por que, mas tenho o pressentimento que não vão chegar ao covil! Alguma idéia de onde eles 'tão vindo?
Pelo norte e pelo leste, é o único caminho - raciocinou Drizzt. - Em algum lugar ao sul do Desfiladeiro do Vento Gélido, contornando o norte do Lac Dinneshir. Seu povo vai recebê-los, então?
- É claro - replicou Bruenor. - Eles vão passar pela Valvertente com certeza. - Uma piscadela excitou-lhe o olho. - O que 'cê pretende fazer? - perguntou a Drizzt. - E o que a gente faz com o garoto?
- O garoto fica comigo - insistiu Drizzt. - Ele precisa descansar. Vamos vigiar o covil.
O ávido fulgor nos olhos de Drizzt deu a Bruenor a impressão de que o drow tinha mais alguma coisa em mente do que simplesmente vigiar.
- Elfo maluco - disse, a meia-voz. - Provavelmente vai enfrentar o bando inteiro sozinho! - Olhou curiosamente ao redor, para os gigantes mortos. - E vai vencer! - Em seguida, Bruenor estudou os dois aventureiros, tentando comparar suas armas com os tipos de ferimento dos verbeeg.
- O garoto abateu dois deles - Drizzt respondeu à pergunta muda do anão.
A insinuação de um raro sorriso abriu caminho até o rosto de Bruenor.
- Dois, contra um seu, hein? 'cê 'tá perdendo a forma, elfo.
- Bobagem - retorquiu Drizzt. - Reconheci que ele precisava de prática!
Bruenor chacoalhou a cabeça, surpreso pela extensão do orgulho que sentia por Wulfgar, apesar de obviamente não desejar dizer isso ao rapaz e envaidecê-lo demasiadamente.
- 'tá perdendo a forma! - gritou ele novamente ao assumir mais uma vez a vanguarda do clã. Os anões retomaram uma cantilena rítmica, uma melodia antiga que outrora ecoara pelos salões prateados de sua perdida terra natal.
Bruenor olhou para trás, para seus dois amigos aventureiros, e perguntou-se sinceramente o que restaria do covil dos gigantes quando ele e seus companheiros anões retornassem.
17
Vingança
Infatigáveis, os anões tremendamente sobrecarregados seguiram marchando. Vieram preparados para a guerra, alguns deles carregavam pesadas mochilas e outros levavam nos ombros o enorme peso de grandes vigas de madeira.
A hipótese do drow em relação à direção da qual viriam os reforços parecia o único caminho possível, e Bruenor sabia exatamente onde interceptá-los. Somente uma passagem propiciava acesso fácil ao vale rochoso: Valvertente, um pouco acima da tundra, mas abaixo das encostas meridionais da montanha.
Embora tivessem marchado sem descanso metade da noite e a maior parte da manhã, os anões puseram-se imediatamente a trabalhar. Não faziam idéia da hora em que chegariam os gigantes, mas isso provavelmente não aconteceria à luz do dia; queriam se certificar de que tudo estaria pronto. Bruenor estava determinado a liquidar aquele destacamento rapidamente e com o menor número possível de baixas entre sua gente. Sentinelas foram posicionadas nos pontos altos da encosta e batedores enviados à planície. Sob a orientação de Bruenor, o resto do clã preparou a área para uma emboscada. Um grupo pôs-se a cavar um fosso e um outro começou a armar duas balistas com as vigas de madeira. Os besteiros procuraram os pontos mais vantajosos por entre os matacões da encosta próxima, a partir dos quais lançariam seu assalto.
Em pouco tempo, tudo estava pronto. Mas os anões, ainda assim, não pararam para descansar. Continuaram a examinar cada polegada da área, à procura da menor vantagem que conseguissem obter sobre os verbeeg.
Ao fim do dia, com o sol já a imergir suas fímbrias inferiores no horizonte, um dos atalaias na montanha anunciou que avistara uma nuvem de poeira a crescer no leste distante. Logo depois, um batedor chegou da planície para relatar que uma tropa de vinte verbeeg, alguns ogros e pelo menos uma dúzia de ores dirigia-se a Valvertente.
Bruenor sinalizou para os besteiros em suas posições dissimuladas. As equipagens das balistas inspecionaram a camuflagem sobre os grandes arcos e acrescentaram alguns toques finais. Em seguida, os mais fortes guerreiros do clã - e Bruenor entre eles - enterraram-se em pequenas tocas ao longo do caminho batido de Valvertente e cortaram cuidadosamente os tufos de relva densa de modo que pudessem novamente recolocá-los sobre si mesmos.
Seriam eles a desferir os primeiros golpes.
Drizzt e Wulfgar haviam se posicionado entre os matacões do Sepulcro de Kelvin, acima do covil dos gigantes. Passaram o dia dormindo em turnos. A única preocupação do drow em relação a Bruenor e seu clã era que alguns gigantes deixariam o covil para encontrar os reforços que chegavam e arruinariam a vantagem que os anões tinham na surpresa.
Depois de várias horas de monotonia, as preocupações de Drizzt se mostraram verdadeiras. O drow descansava à sombra de uma saliência enquanto Wulfgar mantinha vigilância sobre o covil. O bárbaro mal conseguia enxergar as portas de madeira ocultas atrás das moitas, mas ouviu claramente o rangido de um gonzo quando uma delas se abriu. Esperou alguns instantes antes de se mexer para despertar o drow, desejando certificar-se de que alguns dos gigantes estavam realmente saindo da toca.
Em seguida, ouviu os gigantes conversando na obscuridade da porta aberta e, de repente, meia dúzia de verbeeg emergiu na luz do sol. Voltou-se para Drizzt, mas encontrou o sempre alerta drow já de pé atrás dele, com os grandes olhos entrecerrados a observar os gigantes na luz brilhante.
- Não sei o que estão tramando - Wulfgar disse a Drizzt.
- Estão procurando os companheiros desaparecidos - replicou Drizzt. Com seus ouvidos aguçados, ele ouvira mais claramente que seu amigo, fragmentos distintos da conversa que tivera lugar antes dos gigantes aparecerem. Aqueles verbeeg haviam sido instruídos a exercer toda a cautela possível, mas deviam encontrar a patrulha havia muito atrasada ou ao menos determinar para onde os gigantes desaparecidos tinham ido. Esperava-se que eles retornassem naquela mesma noite, com ou sem os outros.
- Temos de avisar Bruenor - disse Wulfgar.
- Este grupo acabará encontrando os companheiros mortos e alertando o covil muito antes de conseguirmos retornar - replicou Drizzt. - Além disso, acredito que Bruenor já tem gigantes demais com os quais lidar.
- O que fazer, então? - perguntou Wulfgar. - Sem dúvida, será dez vezes mais difícil derrotar o covil se estiverem esperando encrenca. - O bárbaro notou que a chama incandescente havia retornado ao olhar do drow.
- O covil de nada saberá se estes gigantes nunca retornarem - disse Drizzt, de maneira prosaica, como se a tarefa de deter seis verbeeg em expedição de caça fosse um obstáculo insignificante. Wulfgar ouviu, descrente, apesar de já ter adivinhado o que Drizzt tinha em mente.
O drow notou a apreensão de Wulfgar e abriu um sorriso largo.
- Venha, garoto - instruiu ele, usando o título condescendente para incitar o orgulho do bárbaro. - Você treinou duro durante muitas semanas em preparação para um momento como este. - Saltou agilmente um pequeno precipício até a saliência de pedra e voltou-se mais uma vez para Wulfgar, e seus olhos cintilavam ferozmente ao capturar o sol da tarde.
- Venha - o drow repetiu, acenando com uma mão. - Há apenas seis deles!
Wulfgar chacoalhou a cabeça, resignado, e suspirou. Durante as semanas de treinamento, ele viera a conhecer Drizzt como um espadachim controlado e mortífero que ponderava cada finta e cada golpe com serena precisão. Mas, nos dois últimos dias, Wulfgar vira uma faceta excessivamente ousada - e até mesmo imprudente - do drow. A resoluta confiança de Drizzt era a única coisa a convencer Wulfgar de que o elfo não era suicida, e a única coisa a impelir Wulfgar a segui-lo, malgrado o próprio bom senso. Imaginou se haveria algum limite para sua confiança no drow.
Ele soube, naquele exato momento, que Drizzt um dia o levaria a uma situação sem escapatória.
A patrulha de gigantes foi para o sul durante algum tempo com Drizzt e Wulfgar secretamente a reboque. Os verbeeg não encontraram nenhum vestígio imediato dos gigantes desaparecidos e, temendo chegar muito perto das minas dos anões, viraram-se bruscamente para nordeste, na direção geral da laje onde a escaramuça ocorrera.
- Temos de atacá-los logo - Drizzt disse ao companheiro. - Vamos cercar nossa presa.
Wulfgar assentiu. Pouco tempo depois, aproximaram-se de uma área irregular de pedras pontudas, onde o caminho estreito serpeava e apresentava curvas repentinas. O terreno começava a ficar íngreme, e os companheiros reconheceram que o caminho que percorriam levaria à beira de um pequeno precipício. A luz do dia havia enfraquecido o bastante para proporcionar alguma cobertura. Drizzt e Wulfgar trocaram olhares perspicazes: chegara o momento de agir.
Drizzt, de longe o mais experiente dos dois, rapidamente discerniu o modo de ataque que ofereceria a melhor chance de sucesso. Em silêncio, fez sinal para que Wulfgar se detivesse.
- Temos de atacar e nos afastar - sussurrou -, e depois atacar novamente.
- Não é uma tarefa fácil com um inimigo desconfiado - disse Wulfgar.
- Tenho algo que pode nos ajudar.
O drow soltou a mochila das costas, retirou dela a pequena estatueta e chamou por sua sombra. Quando o espantoso felino apareceu abruptamente, o bárbaro, boquiaberto e horrorizado, saltou para longe.
- Que demônio você conjurou? - gritou tão alto quanto podia ousar, e os nós de seus dedos perderam a cor sob a pressão do punho que apertava Garra de Palas.
- Guenhwyvar não é nenhum demônio - Drizzt tranqüilizou seu corpulento companheiro. - É uma amiga e uma valiosa aliada. - O gato rosnou, como se compreendesse, e Wulfgar afastou-se mais um passo.
- Não é um animal comum - retorquiu o bárbaro. - Não vou lutar ao lado de um demônio conjurado com feitiçaria! - Os bárbaros do Vale do Vento Gélido não temiam homens nem animais, mas as artes negras eram absolutamente estranhas a eles, e sua ignorância os deixava vulneráveis.
- Se os verbeeg descobrirem a verdade sobre a patrulha desaparecida, Bruenor e sua gente estarão em perigo - disse Drizzt, sombriamente. - O gato nos ajudará a deter este grupo. Você vai permitir que seus próprios temores impeçam o resgate dos anões?
Wulfgar aprumou-se e recuperou um pouco da compostura. A manobra de Drizzt, apelando ao orgulho dele e à ameaça extremamente real aos anões, pressionava-o a temporariamente deixar de lado sua aversão pelas artes negras.
- Mande o animal embora, não precisamos de ajuda.
- Com o gato, é certo pegarmos todos eles. Não arriscarei a vida do anão por causa de seu desconforto.
Drizzt sabia que Wulfgar levaria várias horas para aceitar Guenhwyvar como uma aliada - se isso um dia viesse a acontecer -, mas, por enquanto, ele só precisava da cooperação de Wulfgar no ataque.
Os gigantes já vinham marchando havia várias horas. Drizzt observou pacientemente a formação começar a se desfazer, sendo que um ou dois dos monstros ficavam ocasionalmente para trás. As coisas estavam se encaixando em seus respectivos lugares, exatamente como o drow havia esperado.
O caminho dobrava-se uma última vez por entre dois matacões gigantescos, depois alargava-se consideravelmente e inclinava-se mais ainda no trecho final até a beira do precipício. Fazia uma curva abrupta e depois continuava ao longo da saliência, com um sólido paredão de rocha de um lado e uma vertente rochosa do outro. Drizzt fez sinal para Wulfgar se preparar, depois deixou o grande felino agir.
O destacamento - vinte verbeeg, três ogros e uma dúzia de ores - avançava num ritmo indolente e chegou a Valvertente bem depois do cair da noite. Havia mais monstros do que os anões originariamente tinham esperado, mas eles não estavam excessivamente preocupados com os ores e sabiam lidar com os ogros. Os gigantes eram a chave daquela batalha.
A longa espera em nada ajudou a acalmar os nervos à flor da pele dos anões. Os membros do clã já não dormiam havia praticamente um dia e continuavam tensos e ansiosos por vingar seus parentes.
Os primeiros verbeeg pisaram no campo íngreme sem incidente, mas quando os últimos do destacamento invasor alcançaram os limites da zona de emboscada, os anões do Salão de Mitral atacaram. O grupo de Bruenor atacou primeiro, saltando de suas tocas, em geral bem ao lado de um gigante ou de um ore, e estraçalhando o alvo mais próximo. Os golpes visavam aleijar os inimigos, segundo o princípio básico da filosofia de combate a gigantes dos anões: o fio aguçado do machado corta o tendão e os músculos da parte de trás do joelho; a cabeça chata do martelo esmaga a patela na parte da frente.
Bruenor derrubou um gigante com um golpe, depois virou-se para fugir, mas encontrou-se cara a cara com a espada em riste de um ore. Sem tempo para trocar golpes, Bruenor arremessou sua arma no ar e gritou: "Pega!" Os olhos do ore estupidamente seguiram o vôo diversivo do machado. Bruenor derrubou a criatura, chocando-se contra o queixo do ore com a testa protegida pelo elmo, apanhou o machado que caía e fugiu precipitadamente para as trevas, detendo-se apenas por um segundo para dar um pontapé no adversário.
Os monstros foram apanhados completamente de surpresa, e muitos já estavam gritando no chão. Em seguida, as balistas abriram fogo. Projéteis do tamanho de lanças fulminaram as fileiras de vanguarda, arremessaram gigantes para os lados e uns contra os outros. Os besteiros saltaram de seus esconderijos e lançaram uma barragem letal, depois deixaram cair seus arcos e arremeteram encosta abaixo. O grupo de Bruenor, agora em sua formação de combate em "v", atirou-se de volta à refrega.
Os monstros jamais tiveram a oportunidade de se reagrupar e, quando finalmente foram capazes de erguer as armas em resposta, suas fileiras haviam sido dizimadas.
A Batalha de Valvertente terminou em três minutos.
Nenhum anão sequer foi ferido gravemente e, dos monstros invasores, somente o ore que Bruenor havia nocauteado sobreviveu.
Guenhwyvar compreendeu os desejos de seu mestre e saltou silenciosamente por entre as pedras fragmentadas até a margem da trilha, deu a volta e postou-se à frente dos verbeeg no paredão de rocha que sobranceava o caminho. Manteve-se abaixada, apenas mais uma sombra escura. O primeiro gigante passou lá embaixo, mas o gato esperou obedientemente o momento oportuno, imóvel como a morte. Drizzt e Wulfgar esgueiraram-se para mais perto, movendo-se furtivamente para ter visão total da linha de retaguarda da patrulha.
O último dos gigantes, um verbeeg extraordinariamente gordo, deteve-se um instante para recuperar o fôlego.
Guenhwyvar atacou rapidamente.
A ágil pantera saltou do paredão e, com as garras, rasgou a cara do gigante. Em seguida, deu continuidade ao salto, usando o ombro descomunal do monstro como um trampolim, de volta a um outro ponto no paredão. O gigante uivou de agonia e levou a mão à face dilacerada.
Garra de Palas atingiu a criatura na nuca e lançou-a no pequeno abismo.
O gigante na retaguarda do grupo remanescente ouviu o grito de dor, virou-se imediatamente, arremeteu trilha abaixo e contornou a última curva bem a tempo de ver seu desafortunado companheiro tombando pela vertente rochosa. O grande felino não hesitou e precipitou-se sobre a segunda vítima, e suas garras afiadas enterraram-se no peito do gigante. O sangue jorrou furiosamente quando as presas de cinco centímetros cravaram-se profundamente no pescoço carnudo. Sem correr riscos, Guenhwyvar usou as quatro patas poderosas para desviar um possível contragolpe, mas o gigante atordoado mal conseguiu erguer os braços em resposta antes que a mais intensa escuridão se fechasse sobre ele.
Com o resto da patrulha agora se aproximando rapidamente, Guenhwyvar saltou para longe e deixou o gigante ofegante afogando-se no próprio sangue. Drizzt e Wulfgar assumiram posições atrás dos matacões de cada lado da trilha, o drow desembainhou as cimitarras e o bárbaro fechou o punho em torno do martelo que retornara a suas mãos.
O felino não vacilou. Havia ensaiado aquela situação com seu mestre muitas vezes antes e compreendia perfeitamente bem a vantagem da surpresa. Esperou um momento, até que os outros gigantes a tivessem avistado, depois arrancou trilha abaixo, disparando por entre as rochas que ocultavam seu mestre e Wulfgar.
- Eta! - gritou um dos verbeeg, indiferente ao companheiro agonizante. - Um gato muito, muito grande, é sim! E preto como os caldeirão do meu cozinheiro!
- Atrás dele! - gritou um outro. - Vai dar um casaco novo pra quem pegar ele! - Saltaram por sobre o gigante abatido, sem pensar duas vezes, e arremeteram trilha abaixo atrás da pantera.
Drizzt era o mais próximo. Ele deixou passar os dois primeiros e concentrou-se nos outros dois. Eles passaram pelo matacão lado a lado; o drow saltou para o caminho, logo à frente deles, enterrou a cimitarra esquerda no peito de um dos gigantes e cegou o outro com uma cutilada da direita por sobre os olhos. Usando a cimitarra fincada no primeiro gigante como um pivô, ele girou por trás do adversário cambaleante e impeliu a outra espada com uma torção sutil, depois afastou-se quando o gigante mortalmente ferido tombou ao chão.
Wulfgar também deixou o líder passar. O segundo havia estacado praticamente ao lado do bárbaro quando Drizzt atacou os dois na retaguarda. O gigante deteve-se e rodopiou, com a intenção de ajudar os demais, porém, detrás do matacão, Wulfgar brandiu Garra de Palas, traçando um arco devastador, e acertou o pesado martelo em cheio no peito do verbeeg. O monstro caiu de costas, e o ar foi literalmente arrancado de seus pulmões. Wulfgar reverteu o movimento do martelo rapidamente e arremessou Garra de Palas na direção oposta. O líder fez a volta bem a tempo de recebê-lo na cara.
Sem hesitação, Wulfgar precipitou-se sobre o gigante que derrubara e passou os braços fortes ao redor do pescoço maciço do monstro. O gigante recuperou-se rapidamente e atracou-se ao bárbaro e, embora ainda estivesse sentado, não teve dificuldade para erguer do chão o adversário muito menor. Mas os anos que ele passara a brandir um martelo e a talhar a pedra nas minas dos anões haviam impregnado o bárbaro com a força do ferro. Ele apertou ainda mais o pescoço do gigante e girou lentamente os braços nodosos. Com um estalido alto, a cabeça do verbeeg pendeu para um lado.
O gigante que Drizzt cegara distribuía golpes desvairadamente com a imensa clava. O drow mantinha-se constantemente em movimento, saltava agilmente de um flanco a outro sempre que tinha a oportunidade e atingia o monstro indefeso com uma estocada depois da outra. Drizzt mirava qualquer área vital que conseguisse atingir com segurança, esperando eficientemente dar cabo de seu oponente.
Com Garra de Palas agora firmemente nas mãos, Wulfgar caminhou até o verbeeg que atingira na cara para se certificar de que o monstro estava morto. Vigiava cautelosamente a trilha, em busca do menor sinal do retorno de Guenhwyvar. Tendo visto o poderoso felino em ação, ele não tinha o menor desejo de enfrentá-lo pessoalmente.
Morto o último gigante, Drizzt desceu pela trilha para se juntar ao amigo.
- Você ainda não compreende sua perícia na batalha! - ele riu, espalmando o homenzarrão nas costas. - Seis gigantes não são demais para nós dois!
- Agora podemos ir encontrar Bruenor? - perguntou Wulfgar, apesar de ver a chama que ainda tremeluzia perigosamente nos olhos cor de lavanda do drow. Ele percebeu que ainda não estavam de partida.
- Não há necessidade - replicou Drizzt. - Estou certo de que os anões tem tudo sob controle. Mas temos, de fato, um problema - continuou ele. Conseguimos matar o primeiro grupo de gigantes e ainda reter o elemento surpresa. Muito em breve, porém, com outros seis desaparecidos, o covil estará alerta para o menor sinal de perigo.
- Os anões devem retornar pela manhã - disse Wulfgar. - Podemos atacar o covil antes do meio-dia.
- Tarde demais - disse Drizzt, fingindo decepção. - Receio que você e eu tenhamos de atacá-los esta noite, sem delongas.
Wulfgar não se surpreendeu nem mesmo discutiu. Temia que ele e o drow estivessem se aventurando em demasia, que o plano do drow fosse por demais ultrajante, mas estava começando a aceitar um fato indiscutível: ele seguiria Drizzt em qualquer aventura, não importava quão improváveis fossem as chances de sobrevivência.
E ele estava começando a admitir para si mesmo que gostava de se arriscar ao lado do elfo negro.
18
A Casa de Sorrisão
Para Drizzt e Wulfgar, foi uma surpresa agradável encontrar a entrada dos fundos do covil dos verbeeg. Ficava bem no alto da íngreme vertente ocidental do afloramento rochoso. Pilhas de lixo e ossos espalhavam-se por todo o terreno na base das rochas, e um filete fino mas constante de fumaça saía da caverna aberta, perfumado com o aroma de carneiro assado.
Os dois companheiros permaneceram algum tempo agachados entre as moitas logo abaixo da entrada, observando o grau de atividade. A lua já havia saído, brilhante e clara, e a noite havia se iluminado consideravelmente.
- Será que chegaremos a tempo para o jantar? - comentou o drow, ainda ostentando um sorriso pretensioso e oblíquo. Wulfgar chacoalhou a cabeça e riu do extraordinário domínio do elfo negro.
Apesar de ambos ouvirem muitas vezes os sons provenientes das sombras logo depois da abertura - o retinir de panelas e vozes ocasionais -, nenhum gigante pusera a cabeça para fora da caverna até um pouco antes da lua se pôr. Um verbeeg gordo, presumivelmente o cozinheiro do covil pelas roupas que usava, arrastou os pés até a soleira e despejou encosta abaixo o lixo de uma grande caçarola de ferro.
- Ele é meu - disse Drizzt, subitamente sério. - Você pode arranjar uma distração?
- O gato o fará - respondeu Wulfgar, embora não estivesse muito entusiasmado com a idéia de ficar sozinho com Guenhwyvar.
Drizzt esgueirou-se pelo aclive rochoso, tentando permanecer nas sombras escuras. Ele sabia que, ao luar, estaria vulnerável até passar a entrada, mas a escalada mostrou-se mais difícil do que havia esperado e ele progredia lentamente. Quase na abertura, ouviu o cozinheiro movimentando-se ao lado da entrada, aparentemente erguendo uma segunda caçarola de lixo para despejar.
Mas o drow não tinha para onde ir. Um grito proveniente da caverna distraiu o cozinheiro. Percebendo que tinha pouquíssimo tempo para alcançar lugar seguro, Drizzt cobriu rapidamente a distância que o separava do nível da porta e espiou a cozinha iluminada por tochas.
O cômodo era mais ou menos quadrado, com um grande forno de pedra na parede oposta à entrada da caverna. Próxima ao forno, ficava uma porta de madeira ligeiramente entreaberta e, por trás dela, Drizzt ouviu várias vozes de gigantes. Ele não viu o cozinheiro, mas uma caçarola de lixo jazia no chão bem ao lado da entrada.
- Ele logo estará de volta - o drow murmurou consigo mesmo enquanto se esgueirava sem ruído pelo paredão, escolhendo as agarras, elevando-se acima da entrada da caverna. Na base da encosta, um nervoso Wulfgar aguardava absolutamente imóvel enquanto Guenhwyvar, diante dele, andava de um lado para o outro.
Alguns minutos depois, o cozinheiro dos gigantes saiu com a caçarola. Enquanto o verbeeg despejava o lixo, Guenhwyvar fez-se notar. Um grande salto levou o gato à base da encosta. Erguendo a cabeça em direção ao cozinheiro, a pantera negra rosnou.
- Ah, sai fora, seu bichano sarnento - disse bruscamente o gigante, pelo jeito nada impressionado nem surpreso com o repentino aparecimento da pantera -, antes que eu esborrache sua cabeça e te jogue numa panela de ensopado!
Foi vã a ameaça do verbeeg. Enquanto brandia o punho descomunal, a atenção totalmente voltada para o gato, a forma escura de Drizzt Do'Urden saltou do paredão para as costas do monstro. Com as cimitarras já nas mãos, o drow não perdeu tempo para entalhar na garganta do gigante um sorriso de orelha a orelha. Sem emitir um único grito, o verbeeg tombou pelas rochas e foi depositar-se com o resto do lixo. Abruptamente, Drizzt deixou-se cair até a entrada da caverna e girou sobre os calcanhares, rezando para que nenhum outro gigante tivesse entrado na cozinha.
Ele estava seguro por ora. O cômodo estava vazio. Assim que Guenhwyvar e depois Wulfgar galgaram a saliência, Drizzt fez sinal para que o seguissem. A cozinha era pequena (para gigantes) e encontrava-se mal abastecida. Havia uma mesa na parede à direita que ostentava várias panelas. Próxima a ela, ficava um grande cepo no qual estava fincado um cutelo vistoso, enferrujado, denteado e aparentemente havia semanas sem lavar. Acima e à esquerda de Drizzt, ficavam prateleiras com temperos, ervas e outras provisões. O drow foi examiná-las enquanto Wulfgar adiantava-se para espiar o cômodo adjacente. E ocupado.
Também quadrada, essa segunda área era um pouco maior que a cozinha. Uma mesa comprida dividia a sala ao meio e, do outro lado, diretamente em frente ao ponto em que se encontrava, Wulfgar viu uma segunda porta. Três gigantes estavam sentados no lado da mesa mais próximo de Wulfgar, um quarto estava de pé entre eles e a porta, e mais dois sentavam-se do outro lado. O grupo deleitava-se com carneiro assado e sugava ruidosamente um ensopado espesso, o tempo todo xingando e escarnecendo uns dos outros. Um típico jantar comunitário dos verbeeg. Wulfgar notou com um interesse nada passageiro que os monstros arrancavam a carne dos ossos com as mãos nuas. Não havia armas na sala.
Drizzt, segurando um saco que encontrara nas prateleiras, desembainhou novamente uma de suas cimitarras e, com Guenhwyvar a seu lado, juntou-se a Wulfgar.
- Seis - sussurrou Wulfgar, apontando a sala. O imenso bárbaro ergueu Garra de Palas e meneou a cabeça, ansioso.
Drizzt espiou pela porta e rapidamente formulou um plano de ataque. Apontou Wulfgar e depois a porta.
- Direita - sussurrou. Depois, indicou a si próprio. - Atrás de você, esquerda.
Wulfgar compreendeu-o perfeitamente, mas perguntou-se por que ele não incluíra Guenhwyvar. O bárbaro apontou o gato.
Drizzt meramente deu de ombros e sorriu, e Wulfgar compreendeu. Mesmo o cético bárbaro acreditava que Guenhwyvar entenderia onde ela se encaixava melhor no plano.
Com um estremecimento, Wulfgar livrou-se do formigamento nervoso em seus músculos e apertou Garra de Palas com força. Com uma rápida piscadela do companheiro, ele irrompeu pela porta e precipitou-se sobre o alvo mais próximo. O gigante, o único do grupo de pé naquele momento, conseguiu virar-se e encarar o atacante, mas foi só isso. Garra de Palas traçou um arco baixo e ergueu-se com precisão letal, chocando-se contra o ventre do verbeeg. Impelido para cima, o martelo esmagou a base do peito do gigante. Com sua incrível força, Wulfgar chegou realmente a levantar o monstro descomunal a uma boa distância do chão. Prostrada e sem fôlego, a criatura caiu ao lado do bárbaro, mas ele não lhe deu mais atenção; já planejava o segundo golpe.
Drizzt, com Guenhwyvar logo em seus calcanhares, passou correndo pelo amigo em direção aos dois atordoados gigantes sentados mais à esquerda da mesa. Com um gesto brusco, ele abriu o saco que segurava e girou o corpo assim que alcançou os alvos, cegando-os com uma nuvem de farinha. O drow jamais afrouxou o passo, abriu com a cimitarra a garganta de um dos verbeeg cobertos de farinha e, em seguida, jogou-se para trás e rolou por sobre o tampo da mesa de madeira. Guenhwyvar saltou sobre o outro gigante, e suas poderosas mandíbulas estraçalharam a virilha do monstro.
Os dois verbeeg do outro lado da mesa foram os primeiros do grupo a realmente reagir. Um deles ficou de pé num salto, pronto para receber a investida rodopiante de Drizzt, enquanto o segundo, destacando-se involuntariamente como o próximo alvo de Wulfgar, disparou para a porta de trás.
Wulfgar rapidamente mirou o gigante em fuga e arremessou Garra de Palas sem hesitação. Se Drizzt, que naquele instante rolava pela mesa, tivesse percebido o quão perto estivera de interceptar o vôo do martelo de guerra, teria dedicado algumas palavras amáveis ao amigo. Mas o martelo atingiu seu alvo, golpeou o verbeeg no ombro e arremessou o monstro contra a parede com força suficiente para quebrar-lhe o pescoço.
O gigante que Drizzt retalhara contorcia-se no chão e levava a mão à garganta numa tentativa inútil de estancar o jorro de sangue. E Guenhwyvar já despachava o outro sem dificuldades. Restavam apenas dois verbeeg.
Drizzt completou a manobra e caiu de pé do outro lado da mesa, esquivando-se habilmente das mãos do verbeeg que esperava por ele. Fez a volta rapidamente, colocando-se entre o oponente e a porta. O gigante, com as mãos descomunais estendidas, girou sobre os calcanhares e atacou. Mas a segunda cimitarra do drow já fazia companhia a primeira e ambas se entrelaçavam numa fascinante dança mortal. A cada cintilação das espadas, mais um dos dedos nodosos do gigante caía girando no chão. Não demorou muito e o verbeeg tinha apenas dois cotos ensangüentados em lugar das mãos. Insanamente enfurecida, a criatura brandia desvairadamente os braços como se fossem clavas. A cimitarra de Drizzt enfiou-se sob a têmpora do monstro, pondo um fim a sua loucura.
Entrementes, o último gigante atacara o bárbaro desarmado. Ele passou os braços imensos em torno de Wulfgar e ergueu-o no ar, tentando espremê-lo até a morte. Wulfgar retesou os músculos numa tentativa desesperada de impedir que o inimigo muito maior lhe partisse a espinha.
O bárbaro teve dificuldade para recuperar o fôlego. Enfurecido, ele deu com o punho no queixo do gigante e ergueu a mão para um segundo golpe.
Mas nesse momento, obedecendo ao encantamento de Bruenor, o martelo de guerra mágico estava de volta em sua mão. Com um grito de júbilo, Wulfgar deu com a ponta romba de Garra de Palas no olho do gigante e o arrancou. O gigante afrouxou o abraço e cambaleou para trás em agonia. O mundo havia se tornado uma tal mancha indistinta de dor para o monstro que ele sequer viu Garra de Palas traçando um arco sobre a cabeça de Wulfgar e ganhando velocidade em direção a seu crânio. Ele sentiu uma explosão quente quando o pesado martelo abriu-lhe a cabeça. O corpo sem vida quicou sobre a mesa e derramou ensopado e pedaços de carneiro por todo o chão.
- Não entorne a comida! - gritou Drizzt, fingindo ira enquanto corria para apanhar uma costeleta de aparência particularmente suculenta.
De repente, eles ouviram passos de botas pesadas e gritos que se aproximavam pelo corredor atrás da segunda porta.
- Para fora! - berrou Wulfgar e voltou-se para a cozinha.
- Espere! - gritou Drizzt. - A festa está só começando! - Ele apontou um túnel sombrio, iluminado por tochas, que partia da parede esquerda da sala. - Por ali! Rápido!
Wulfgar sabia que estavam abusando da sorte, mas novamente flagrou-se dando ouvidos ao elfo.
E novamente o bárbaro sorria.
Wulfgar passou pelos pesados suportes de madeira no início do túnel e correu em direção à obscuridade. Tinha percorrido uma distância razoável, com Guenhwyvar incomodamente correndo bem a seu lado, quando percebeu que Drizzt não o seguia. Ele deu meia-volta, bem a tempo de ver o drow deixar casualmente a sala e passar pelas vigas de madeira. Drizzt havia embainhado as cimitarras. Segurava um longo punhal cuja ponta cruel fincava-se firmemente num pedaço de carneiro.
- E os gigantes? - perguntou Wulfgar em meio à escuridão.
Drizzt deu um passo para o lado e colocou-se atrás de uma das imensas vigas de madeira.
- Logo atrás de mim - explicou tranqüilamente enquanto arrancava com os dentes outro pedaço de sua refeição. O queixo de Wulfgar caiu quando um bando de verbeeg furibundos investiu túnel adentro, sem sequer notar o drow ali escondido.
- Prayne de crabug ahm keike rinedere be-yogt iglo kes gronl - gritou Wulfgar ao girar sobre os calcanhares e disparar pelo corredor, esperando que este não levasse a um beco sem saída.
Drizzt retirou o pedaço de carneiro da ponta do punhal e acidentalmente deixou-o cair no chão, praguejando em silêncio por desperdiçar boa comida. Limpando o punhal com a língua, ele esperou pacientemente. Assim que o último verbeeg passou, ele deixou o esconderijo, enfiou o punhal nas costas do joelho do gigante retardatário e voltou a esconder-se do outro lado da viga. O gigante ferido uivou de dor mas, quando ele ou seus companheiros houvessem se virado, o drow já teria desaparecido.
Wulfgar fez uma curva e grudou na parede, adivinhando facilmente o que interrompera a perseguição. O bando dera a volta ao descobrir que havia um outro intruso mais perto da saída.
Um gigante saltou por entre os suportes e postou-se de pernas bem abertas e a clava preparada, os olhos movendo-se de uma porta à outra enquanto tentava descobrir que rota o atacante invisível havia tomado. Atrás dele, e bem mais para o lado, Drizzt puxou duas pequenas facas, uma de cada bota, e perguntou-se como os gigantes poderiam ser tão estúpidos a ponto de caírem duas vezes no mesmo truque em questão de dez segundos. Sem querer discutir com a boa sorte, o elfo lançou-se por trás de sua próxima vítima e, antes que os verbeeg ainda no corredor conseguissem emitir um grito de alerta, enfiou fundo uma das facas na coxa do gigante, cortando-lhe o tendão do jarrete. O gigante cambaleou para o lado e Drizzt, entre saltos ligeiros, admirou-se com os maravilhosos alvos que davam as veias grossas no pescoço de um verbeeg quando a mandíbula do monstro se contraía de dor.
Mas o drow não teve tempo para se deter e refletir sobre os sucessos da batalha. O resto do bando - cinco gigantes furiosos - já havia atirado para um lado o companheiro ferido no túnel e estava apenas a alguns passos de distância. Ele enterrou a segunda faca no pescoço do verbeeg e dirigiu-se para a porta que dava acesso ao interior do covil. Ele a teria alcançado não fosse pelo fato de o primeiro gigante a voltar para a sala carregar uma pedra. Em geral, os verbeeg são exímios atiradores de pedras, e este era melhor que a maioria. A cabeça desprotegida do elfo era seu alvo e o arremesso foi certeiro.
O arremesso de Wulfgar também atingiu o alvo. Garra de Palas estilhaçou a espinha do gigante retardatário no momento em que ele passava pelo companheiro machucado no túnel. O verbeeg ferido, esforçando-se para arrancar o punhal de Drizzt do joelho, fitou, descrente, o companheiro morto tão repentinamente e a ensandecida e fatal investida do feroz bárbaro.
Com o canto do olho, Drizzt viu a pedra chegando. Conseguiu encolher-se o bastante para evitar que sua cabeça fosse esmagada, mas o pesado projétil atingiu-o no ombro e o fez voar até o chão. O mundo começou a girar como se Drizzt fosse seu eixo. Ele lutou para se reorientar pois, em algum canto de sua mente, entendia que o gigante se aproximava para dar cabo dele. Mas tudo parecia um borrão. Nesse momento, algo bem perto de seu rosto conseguiu chamar-lhe a atenção. Fixou os olhos na coisa, esforçando-se para encontrar o foco e obrigar tudo o mais a parar de girar.
Um dedo de verbeeg.
O drow recuperou-se. Sem hesitação, ele tentou sacar a arma.
Compreendeu que era tarde demais quando viu o gigante, com a clava erguida para um golpe fatal, elevando-se acima dele.
O gigante ferido deu um passo em direção ao meio do túnel para receber a investida do bárbaro. A perna do monstro estava dormente e ele não conseguia firmar os pés. Wulfgar, com Garra de Palas confortavelmente de volta a suas mãos, empurrou-o para o lado com um tapa e continuou até entrar na sala. Dois gigantes esperavam por ele.
Guenhwyvar trançou-se por entre as pernas de um gigante quando este se voltava e saltou tão alto quanto permitiam os músculos fortes. No exato momento em que o verbeeg começava a brandir sua clava contra o elfo prostrado, Drizzt viu uma sombra negra passar logo em frente a seu rosto. Um rasgão recortado sulcava a face do gigante. Drizzt compreendeu o que acontecera quando ouviu as patas acolchoadas de Guenhwyvar assentarem-se na mesa e impulsionarem o gato quase até o outro lado da sala. Apesar de um segundo gigante agora ter se juntado ao primeiro e ambos sustentarem no ar as clavas, prontos para atacar, Drizzt ganhara todo o tempo de que precisava. Rápido como um raio, ele desembainhou uma das cimitarras e a enfiou na virilha do primeiro gigante. O monstro dobrou-se de agonia, servindo de escudo a Drizzt, e recebeu na nuca o golpe de seu camarada. O drow murmurou um "obrigado" enquanto rolava sobre o cadáver, apoiou os pés no chão e novamente desferiu uma estocada para cima, mas dessa vez ele ergueu o corpo para acompanhar a espada.
A hesitação custara a vida de mais um gigante. Pois, enquanto o verbeeg atordoado fitava, estarrecido, os miolos do amigo espalhados por toda a clava, a lâmina recurva do drow enfiava-se sob sua caixa torácica, atravessava-lhe os pulmões e atingia o coração do monstro.
O tempo passou devagar para o gigante mortalmente ferido. A clava que havia largado pareceu levar minutos para atingir o chão. Com o movimento sutil de uma árvore em queda, o verbeeg escorregou pela cimitarra. Ele sabia que estava caindo, mas o chão jamais veio recebê-lo. Jamais...
Wulfgar esperava ter acertado o gigante ferido no túnel com força suficiente para mantê-lo fora de combate durante algum tempo: ele estaria numa situação realmente difícil caso a criatura o atacasse pelas costas naquele momento. Já estava atarefado demais, trocando golpes com os dois gigantes que agora enfrentava. Entretanto, ele não precisava ter se preocupado com a retaguarda, pois o verbeeg ferido afundou-se na parede do túnel, alheio ao que acontecia a seu redor. E, na direção oposta, Drizzt acabara de matar os outros dois gigantes. Wulfgar gargalhou alto ao ver o amigo limpar o sangue da espada e atravessar mais uma vez a sala. Um dos verbeeg também notou o elfo negro e abandonou a luta com o bárbaro para enfrentar esse novo adversário.
- 'tá legal, nanico. 'cê acha que pode me encarar de igual pra igual e viver pra contar a história? - berrou o gigante.
Fingindo desespero, Drizzt olhou ao redor. Como sempre, ele encontrou uma maneira fácil de vencer aquela luta. Com o ventre rente ao chão, Guenhwyvar havia se esgueirado por trás dos corpos dos gigantes, tentando se colocar numa posição favorável. Drizzt deu um pequeno passo para trás e incitou o gigante a colocar-se no caminho do grande felino.
A clava do gigante colidiu com as costelas de Wulfgar e jogou-o para cima, contra a viga de madeira. O bárbaro, porém, era de uma natureza mais resistente que a madeira e recebeu estoicamente o golpe, retribuindo-o com duas vezes mais força usando Garra de Palas. Mais uma vez, o verbeeg golpeou e novamente Wulfgar respondeu. O bárbaro vinha lutando sem descanso havia mais de dez minutos, mas a adrenalina corria em suas veias e ele sequer estava esbaforido. Passou a dar valor às horas intermináveis que trabalhara para Bruenor nas minas e aos muitos quilômetros que Drizzt o fizera correr durante as primeiras sessões quando seus golpes começaram a se abater com maior freqüência sobre o oponente cada vez mais cansado. O gigante avançou sobre Drizzt.
- Argh! Fica quieto, seu rato miserável! - grunhiu. - E não me venha com os seus truquezinhos! Quero só ver como 'cê se sai numa luta justa.
Assim que os dois se aproximaram, Guenhwyvar disparou pela pequena distância que a separava deles e afundou as presas no tornozelo do verbeeg. O gigante involuntariamente relanceou os olhos em direção ao inimigo que o atacava pelas costas, mas recuperou-se rapidamente e voltou a olhar para o elfo...
... Bem a tempo de ver a cimitarra entrar em seu peito.
Drizzt respondeu à expressão perplexa do monstro com uma pergunta:
- Em qual dos nove infernos você foi achar a idéia de que eu lutaria de maneira justa?
O verbeeg cambaleou para longe. A lâmina não lhe atingira o coração, mas ele sabia que o ferimento logo se mostraria fatal caso não recebesse cuidados. O sangue escorria livremente pela túnica de couro do monstro, e ele sofria visivelmente ao tentar respirar. Drizzt alternou seus ataques com Guenhwyvar, golpeando e esquivando-se das respostas desajeitadas do monstro enquanto a parceira atacava pelo outro lado. Eles sabiam, e o gigante também, que a luta logo chegaria ao fim.
O gigante que lutava com Wulfgar já não conseguia mais sustentar uma postura defensiva com sua pesada clava. Wulfgar também começava a ficar cansado, de modo que deu início a uma velha canção de guerra da tundra, a Canção de Tempus, e as notas em crescendo inspiraram-no a desferir uma derradeira salva de golpes. Ele esperou até a clava do verbeeg inevitavelmente se abaixar um pouco e golpeou com Garra de Palas, uma, duas, três vezes. Wulfgar quase desmaiou de exaustão depois do terceiro golpe, mas o gigante jazia todo enroscado no chão. Cansado, o bárbaro apoiou-se na própria arma e assistiu aos dois amigos fazerem o verbeeg deles em pedaços.
- Muito bem! - riu Wulfgar assim que o último gigante tombou. Drizzt caminhou até o bárbaro, com o braço esquerdo a pender flacidamente. A jaqueta e a camisa haviam se rasgado onde a pedra o atingira, e a pele exposta do ombro estava inchada e escoriada.
Wulfgar fitou o ferimento com genuína preocupação, mas Drizzt respondeu-lhe a muda indagação erguendo o braço acima da cabeça, embora um esgar de dor acompanhasse o esforço.
- Vai sarar logo - ele tranqüilizou Wulfgar. - É só um inchaço feio e acho que é um preço pequeno a se pagar em comparação aos cadáveres de treze verbeeg!
Um gemido baixo fez-se ouvir no túnel.
- Doze, por enquanto - corrigiu Wulfgar. - Parece que um deles não está bem morto. - Inspirando profundamente, Wulfgar ergueu Garra de Palas e virou-se para completar o serviço.
- Só um instante - insistiu Drizzt, pois um pensamento assediava-lhe a mente. - Quando os gigantes investiram contra você no túnel, você berrou algo em sua língua materna, creio eu. O que foi que disse?
Wulfgar gargalhou entusiasticamente.
- Um antigo grito de guerra da Tribo do Alce - explicou ele. - Força para os amigos e morte aos inimigos!
Drizzt fitou o bárbaro, desconfiado, e perguntou-se quão bem Wulfgar conseguiria mentir de improviso.
O verbeeg ferido apoiava-se ainda contra a parede do túnel quando os dois companheiros e Guenhwyvar o encontraram. O punhal do drow continuava enterrado profundamente no joelho do gigante e a lâmina estava presa firmemente entre dois ossos. O gigante fitou os homens com olhos cheios de ódio, porém estranhamente serenos, quando eles se aproximaram.
- 'cê vai pagar por isto - ele cuspiu em Drizzt. - Sorrisão vai brincar com você antes de te matar, pode ter certeza!
- Ah, esta coisa fala - disse Drizzt a Wulfgar. E depois para o gigante - Sorrisão?
- É o dono da caverna - respondeu o gigante. - Sorrisão vai querer conhecer vocês.
- E nós vamos querer conhecer Sorrisão! - vociferou Wulfgar. - Temos uma dívida a pagar; uma pequena questão referente a dois anões!
Assim que Wulfgar mencionou os anões, o gigante cuspiu de novo. A cimitarra de Drizzt cintilou e deteve-se a uma polegada da garganta do monstro.
- Me mata logo e acaba com isso - riu o gigante, genuinamente indiferente. A despreocupação do monstro enervava Drizzt. - Eu sirvo ao mestre! - proclamou o gigante. - É a glória morrer por Alçar Kessell!
Wulfgar e Drizzt entreolharam-se, apreensivos. Nunca tinham visto ou ouvido falar desse tipo de dedicação fanática num verbeeg, e a visão os perturbava. O principal defeito dos verbeeg, algo que sempre os impedira de dominar as raças menores, era sua relutância em se dedicar sinceramente a uma causa e sua inabilidade de seguir um líder.
- Quem é Akar Kessell? - indagou Wulfgar.
O gigante riu maldosamente.
- Se 'cês são amigos dos aldeão, logo vão ficar sabendo!
Pensei que você tivesse dito que Sorrisão era o dono desta caverna - disse Drizzt.
- Da caverna - respondeu o gigante. - E antes de uma tribo. Mas Sorrisão segue o mestre agora.
- Estamos encrencados - murmurou Drizzt para Wulfgar. - Você alguma vez ouviu falar de um chefe verbeeg cedendo a liderança a um outro sem uma briga?
- Temo pelos anões - disse Wulfgar.
Drizzt deu as costas ao gigante e decidiu mudar de assunto a fim de extrair informações de relevância mais imediata para a situação em que eles se encontravam.
- O que há no fim deste túnel?
- Nada - disse o verbeeg, rápido demais. - Hã, é onde a gente dorme, só isso.
Leal, mas estúpido, observou Drizzt. Virou-se novamente para Wulfgar.
- Precisamos apagar Sorrisão e quaisquer outros na caverna capazes de voltar para avisar esse tal Akar Kessell.
- E o que fazemos com este aqui? - perguntou Wulfgar. Mas o gigante respondeu à pergunta por Drizzt. Devaneios de glória forçaram-no a ir ao encontro da morte a serviço do mago. Ele retesou os músculos, ignorando a dor no joelho, e investiu contra os companheiros.
Garra de Palas esmagou a clavícula e o pescoço do verbeeg ao mesmo tempo em que a cimitarra de Drizzt se enfiava por entre suas costelas e Guenhwyvar abocanhava-lhe o ventre.
Mas a máscara mortuária do gigante era um sorriso.
O corredor atrás da porta dos fundos da sala de jantar estava escuro, e os companheiros foram obrigados a tirar do suporte uma das tochas do outro corredor para levar com eles. Serpeando pelo longo túnel, aprofundando-se cada vez mais no interior da colina, eles passaram por várias câmaras pequenas, a maioria delas vazia, mas algumas com engradados de provisões de vários tipos: víveres, peles, clavas e lanças sobressalentes. Drizzt presumiu que Kessell planejava usar a caverna como uma base de operações para seu exército.
A escuridão continuou absoluta por uma boa distância e Wulfgar, sem a visão noturna de seu companheiro élfico, começou a ficar nervoso quando a tocha se pôs a arder com menor intensidade. Mas, então, eles chegaram a uma câmara ampla, de longe a maior das que haviam visto, e, para além de seus limites, o túnel abria-se na noite clara.
- Chegamos à porta da frente - disse Wulfgar. - E está entreaberta. Você acha que Sorrisão saiu?
- Psiu - Drizzt o silenciou. O drow achava ter ouvido algo na escuridão, bem à direita deles. Fez sinal para que Wulfgar permanecesse no centro da sala com a tocha enquanto ele se esgueirava pelas sombras.
Drizzt deteve-se assim que ouviu vozes ríspidas de gigantes logo adiante, apesar de não conseguir entender por que não lhes enxergava os vultos corpulentos. Quando topou com uma grande lareira, ele compreendeu tudo. As vozes ecoavam pela chaminé.
- Sorrisão? - perguntou Wulfgar quando o drow reapareceu.
- Deve ser - raciocinou Drizzt. - Você acha que consegue passar pela chaminé?
O bárbaro assentiu. Ergueu Drizzt primeiro - o braço esquerdo do drow continuava inútil - e depois o acompanhou, deixando Guenhwyvar de vigia.
A chaminé seguia para cima, serpenteando por alguns metros, e depois chegava a uma intersecção. Um dos ramos descia até a sala de onde provinham as vozes e o outro estreitava-se à medida que subia até a superfície. A discussão, agora, mostrava-se ruidosa e acalorada, e Drizzt desceu para investigar. Wulfgar segurou os pés do drow para ajudá-lo a completar lentamente aquela última descida, já que a inclinação tornava-se quase vertical. Pendurado de ponta cabeça, Drizzt espiou pela borda da lareira para dentro de uma outra sala. Viu três gigantes: um ao lado da porta na extremidade mais distante da sala, com cara de quem queria sair, e um segundo, de costas para a lareira, sendo repreendido pelo terceiro, um gigante do gelo imensamente alto e corpulento. O sorriso desfigurado e desprovido de lábios levou Drizzt a concluir que ele olhava para Sorrisão.
- Pra contar tudo pra Sorrisão! - defendia-se o gigante menor.
- 'cê fugiu do combate - disse Sorrisão, carrancudo. - 'cê abandonou os amigos pra morrer!
- Não... - protestou o gigante, mas Sorrisão já ouvira o bastante. Com uma pancada violenta de seu imenso machado, ele arrancou a cabeça do gigante menor.
Os homens encontraram Guenhwyvar diligentemente de vigia quando saíram da chaminé. O grande felino voltou-se e emitiu um rosnado de reconhecimento assim que viu seus companheiros. Wulfgar, não entendendo o ronrom gutural como um som amistoso, afastou-se cautelosamente um passo.
- Deve haver um túnel lateral em algum lugar do corredor principal - raciocinou Drizzt, sem tempo para achar graça do nervosismo de seu amigo.
- Vamos acabar logo com isto, então - disse Wulfgar.
Eles encontraram a passagem como o drow havia predito e logo chegaram a uma porta que imaginaram levaria à sala com os gigantes remanescentes.
Trocaram palmadas nos ombros, para dar sorte, e Drizzt acariciou Guenhwyvar, embora Wulfgar declinasse do convite para fazer o mesmo. Em seguida, irromperam sala adentro.
O cômodo estava vazio. Uma porta, antes invisível para Drizzt desde seu ponto de observação na lareira, encontrava-se entreaberta.
Sorrisão enviou o único soldado remanescente pela porta lateral secreta com uma mensagem para Akar Kessell. O imenso gigante fora desmoralizado e sabia que o mago não aceitaria facilmente a perda de tantos soldados valiosos. A única chance de Sorrisão era cuidar dos dois guerreiros invasores e esperar que as cabeças deles satisfizessem o patrão inclemente. O gigante grudou a orelha à porta e aguardou até suas vítimas entrarem na sala contígua.
Wulfgar e Drizzt passaram pela segunda porta e entraram numa câmara extravagante, com o chão adornado com peles suntuosas e almofadas grandes e fofas. Duas outras portas levavam para fora da sala. Uma delas estava ligeiramente aberta e dava para um corredor escuro, a outra encontrava-se fechada.
De repente, Wulfgar deteve Drizzt com a palma esticada de uma das mãos e fez sinal para que o drow ficasse quieto. A virtude intangível de um verdadeiro guerreiro, o sexto sentido que lhe permite sentir o perigo invisível, entrara em ação. Lentamente, o bárbaro virou-se para a porta fechada e ergueu Garra de Palas acima da cabeça. Deteve-se um instante e aprumou a cabeça, esforçando-se para ouvir um som confirmador. Nada. Mas Wulfgar confiava em seus instintos. Urrou para Tempus e arremessou o martelo. Rachou a porta com um estrépito ensurdecedor, pondo abaixo as tábuas. E Sorrisão também.
Drizzt notou o vaivém da porta secreta do outro lado da sala, atrás do chefe dos gigantes, e concluiu que o último dos gigantes devia ter fugido. Rapidamente, o drow acionou Guenhwyvar. A pantera também compreendeu a situação, pois partiu como um raio, transpôs com um grande salto a forma convulsa de Sorrisão e disparou para fora da caverna a fim de dar caça ao verbeeg fugitivo.
O sangue escorria de um dos lados da cabeça do imenso gigante, mas o osso espesso do crânio rejeitara o martelo. Drizzt e Wulfgar observaram, incrédulos, o imenso gigante do gelo chacoalhar as papadas sob o queixo e erguer-se para enfrentá-los.
- Isso não vale - protestou Wulfgar.
- É um gigante teimoso - Drizzt deu de ombros.
O bárbaro esperou até Garra de Palas retornar a sua mão, depois posicionou-se juntamente com o drow para enfrentar Sorrisão.
O gigante permaneceu à porta, para impedir que qualquer um dos adversários o flanqueasse, enquanto Wulfgar e Drizzt avançavam, confiantes. Os três trocaram olhares ameaçadores e alguns golpes leves enquanto mediam uns aos outros.
- Sorrisão, eu presumo - disse Drizzt, com uma reverência.
- O próprio - proclamou o gigante. - Sorrisão! O último inimigo em que 'cês vão botar os olhos!
- Além de teimoso, é confiante - comentou Wulfgar.
- Homenzinho - retorquiu o gigante -, já esborrachei uns cem da sua raçazinha!
- Mais razão ainda para que nós o matemos - declarou Drizzt tranqüilamente.
Com súbita rapidez e ferocidade, algo que surpreendeu seus dois oponentes, Sorrisão brandiu o imenso machado num movimento amplo. Wulfgar deu um passo para trás, colocando-se fora de alcance do golpe fatal, e Drizzt conseguiu abaixar-se a tempo, mas o drow estremeceu ao ver a lâmina do machado arrancar um naco de bom tamanho da parede de pedra.
Wulfgar voltou a investir contra o monstro assim que o machado passou por ele e golpeou com Garra de Palas o peito largo de Sorrisão. O gigante encolheu-se, mas recebeu a pancada.
- Vai ter que me acertar com mais força do que isso, homenzinho! - berrou a criatura ao lançar um poderoso contragolpe com a cabeça chata do machado.
Novamente, Drizzt abaixou-se para escapar ao golpe. Wulfgar, entretanto, cansado como estava dos combates, não se moveu rápido o bastante para recuar e colocar-se fora de alcance. O bárbaro conseguiu erguer Garra de Paias diante de si, mas a força bruta da pesada arma de Sorrisão fez com que ele colidisse violentamente contra a parede. Desmaiou e foi ao chão.
Drizzt sabia que estavam encrencados. Seu braço esquerdo continuava inútil, os reflexos ficavam cada vez mais lentos devido à exaustão, o gigante era simplesmente forte demais e de nada adiantaria tentar bloquear-lhe os golpes. Ele conseguiu fazer passar uma estocada curta da cimitarra enquanto o gigante se recuperava para o próximo golpe e, em seguida, fugiu para o corredor principal.
- Corra, seu cão negro! - berrou o gigante. - Vou ficar no teu calcanhar e vou te pegar! - Sorrisão lançou-se atrás de Drizzt, farejando a presa.
O drow embainhou a cimitarra ao alcançar a passagem principal e procurou um bom lugar para emboscar o monstro. Nada encontrou. Depois, seguiu meio caminho até a saída e aguardou.
- Onde 'cê vai se esconder? - escarneceu Sorrisão, assim que seu corpanzil descomunal entrou no corredor. Pairando nas sombras, o drow atirou as duas facas. Ambas atingiram o alvo, mas Sorrisão mal e mal afrouxou o passo.
Drizzt saiu da caverna. Sabia que, se Sorrisão não o seguisse, ele teria de voltar lá para dentro; certamente não poderia abandonar Wulfgar para morrer. Os primeiros raios da aurora haviam chegado à montanha e a preocupação de Drizzt era a luz crescente arruinar as poucas chances que teria de armar uma emboscada. Trepando numa das pequenas árvores que ocultavam a saída, ele sacou o punhal.
Sorrisão saiu impetuosamente à luz do sol e olhou ao redor, em busca de sinais do drow em fuga.
- 'cê já era, seu cachorro miserável! 'cê não tem pr'onde fugir!
De repente, Drizzt estava sobre o monstro, retalhando-lhe a cara e o pescoço com uma saraivada de punhaladas e golpes cortantes. O gigante uivou de fúria e arremessou violentamente para trás o corpo enorme, fazendo com que Drizzt - incapaz de se agarrar com firmeza devido ao braço enfraquecido - voasse de volta ao túnel. O drow caiu pesadamente sobre o ombro machucado e quase desfaleceu de agonia. Ele se contorceu um instante, tentando ficar novamente de pé, mas topou com uma bota pesada. Sabia que Sorrisão não teria conseguido chegar a ele tão rápido. Virou-se lentamente até ficar de costas, imaginando de onde saíra aquele novo gigante.
Mas a perspectiva do drow alterou-se dramaticamente ao ver Wulfgar de pé ao lado dele, com Garra de Palas firme em suas mãos e um olhar sinistro estampado no rosto. Wulfgar jamais tirou os olhos do gigante enquanto este entrava no túnel.
- Ele é meu - disse impiedosamente o bárbaro.
A aparência de Sorrisão era realmente hedionda. O lado da cabeça atingido pelo martelo estava empastado com sangue escuro e seco, enquanto o outro - e vários pontos da cara e do pescoço - brilhava com o sangue de ferimentos frescos. As duas facas que Drizzt arremessara ainda estavam cravadas no peito do gigante como mórbidas medalhas de honra.
- Vai agüentar mais um? - provocou Wulfgar, arremessando Garra de Palas mais uma vez contra o gigante.
Em resposta, Sorrisão estufou o peito desafiadoramente para bloquear o golpe.
- Agüento tudo o que 'cê tiver aí! - gabou-se ele.
Garra de Palas atingiu o alvo e Sorrisão deu um passo cambaleante para trás. O martelo quebrara-lhe uma ou duas costelas, nada que o gigante não conseguisse suportar.
Entretanto, com conseqüências bem mais letais e sem que Sorrisão percebesse, Garra de Palas impelira uma das facas de Drizzt através do revestimento do coração do gigante.
- Já posso correr - Drizzt murmurou para Wulfgar quando viu o gigante avançar novamente.
- Eu fico - insistiu o bárbaro, sem o menor tremor na voz. Drizzt sacou a cimitarra.
- Belas palavras, meu bravo amigo. Vamos derrubar esse animal imundo: a comida nos espera!
- 'cê vai ver que é mais fácil falar! - retorquiu Sorrisão. Sentiu uma repentina aguilhoada no peito, mas ignorou a dor com um grunhido. - 'cês já deram o que tinham pra dar e eu continuo atacando! 'cês não têm a menor chance!
Tanto Drizzt quanto Wulfgar temeram que as bazófias do gigante fossem mais verdadeiras do que qualquer um deles admitiria. Estavam nas últimas, feridos e fatigados, porém determinados a ficar e a terminar o serviço.
Mas a total confiança do imenso gigante, aproximando-se sempre no mesmo ritmo, era mais do que ligeiramente assustadora.
Sorrisão percebeu que algo estava terrivelmente errado quando chegou a apenas alguns passos dos dois companheiros. Wulfgar e Drizzt também o perceberam, pois o passo do gigante afrouxou-se visivelmente.
O gigante olhou para eles, ultrajado, como se tivesse sido enganado.
- Canalhas! - disse, com voz entrecortada e uma golfada de sangue a irromper de sua boca. - Que truque...
Sorrisão caiu morto sem mais uma palavra.
- Devemos ir atrás do gato? - perguntou Wulfgar quando eles voltaram à porta secreta.
Drizzt envolvia uma tocha com alguns trapos que encontrara.
- Tenha fé na sombra - respondeu. - Guenhwyvar não deixará o verbeeg escapar. Além disso, uma boa refeição espera por mim lá na caverna.
- Vá você - disse Wulfgar. - Ficarei aqui, vigiando, até o gato retornar. Drizzt apertou o ombro do homenzarrão antes de deixá-lo. Eles haviam passado por muita coisa no breve período de tempo em que estiveram juntos, e Drizzt desconfiava que a emoção estava apenas começando. O drow entoava uma canção de banquete enquanto se dirigia à passagem principal, mas apenas para ludibriar Wulfgar, pois a mesa de jantar não seria sua primeira parada. O gigante com quem haviam falado antes fora evasivo quando indagado sobre o que jazia no fim do túnel que lhes restava explorar. E, com tudo o mais que descobriram, Drizzt acreditava que aquilo só poderia significar uma coisa: tesouro.
A grande pantera corria por sobre as pedras fragmentadas e ganhava terreno em relação ao gigante de passos pesados. Não demorou muito e Guenhwyvar já podia ouvir a respiração difícil do verbeeg a cada esforço da criatura para saltar e galgar as rochas. O gigante seguia na direção de Valvertente e da vasta tundra. Mas tão frenética era sua fuga que não trocava a encosta do Sepulcro de Kelvin pelo terreno menos acidentado do vale. Buscava uma rota mais direta, acreditando que aquele seria o caminho mais rápido para a segurança.
Guenhwyvar conhecia a região tão bem quanto seu mestre, sabia onde cada criatura da montanha tinha sua toca. O gato já discernira aonde queria conduzir o gigante. Como um cão pastor, ela cobriu a distância remanescente e arranhou os flancos do gigante, desviando-o na direção de um profundo lago alpestre. O aterrorizado verbeeg, certo de que o letal martelo de guerra ou a célere cimitarra não estavam muito distantes, não ousava deter-se para enfrentar a pantera. Escorregava às cegas pelo caminho que Guenhwyvar escolhera.
Pouco tempo depois, Guenhwyvar separou-se do gigante e passou-lhe à frente. Quando o gato alcançou a margem do lago gelado, inclinou a cabeça e concentrou os sentidos aguçados, esperando avistar algo que pudesse ajudá-lo a completar a tarefa. Foi então que Guenhwyvar percebeu um minúsculo movimento na água, sob as cintilações da luz matutina. Os olhos penetrantes distinguiram a forma alongada que ali jazia imóvel como a morte. Satisfeita com a armadilha já preparada, Guenhwyvar escondeu-se atrás de uma saliência rochosa ali perto e esperou.
O gigante arrastou-se até o lago, respirando com dificuldade. Recostou-se a um matacão por um instante, malgrado seu terror. Tudo parecia suficientemente seguro por ora. Assim que recuperou o fôlego, o gigante olhou rapidamente ao redor, em busca de sinais de seu perseguidor, depois voltou a seguir em frente.
Havia apenas um caminho através do lago, um tronco caído que lhe tomava o centro, e todas as rotas alternativas em torno do lago, embora este não tosse muito largo, serpeavam por vertentes íngremes e rochas protuberantes, Prometendo uma lenta travessia.
O verbeeg experimentou o tronco. Parecia firme e, portanto, o monstro cautelosamente começou a travessia. O gato esperou até o gigante chegar ao centro do lago, depois abandonou impetuosamente o esconderijo e lançou-se contra o verbeeg. O gato caiu com todo o seu peso sobre o gigante surpreso, fincou as patas no peito do monstro e ricocheteou de volta à segurança da margem. Guenhwyvar chapinhou nas águas glaciais, mas escalou a margem rapidamente e saiu do perigoso lago. O gigante, porém, balançou os braços desvairadamente por um instante, tentando manter seu precário equilíbrio, e depois caiu, espalhando água para todos os lados. As águas afluíram para cima e sugaram-no para baixo. Em desespero, o gigante atirou-se a um tronco que flutuava ali por perto, a forma que Guenhwyvar reconhecera pouco antes.
As mãos do verbeeg ainda baixavam quando a forma que ele pensara ser um tronco explodiu num movimento repentino. A serpente aquática de um metro e meio de comprimento lançou-se sobre a presa com rapidez vertiginosa. As espirais implacáveis rapidamente imprensaram os braços do gigante contra o próprio flanco e deram início a seu impiedoso abraço.
Guenhwyvar chacoalhou-se para remover a água enregelante de sua brilhante pelagem negra e olhou mais uma vez para o lago. Quando mais uma volta da monstruosa serpente passou sob o queixo do verbeeg e puxou o monstro indefeso para dentro d'água, a pantera deu a missão por completada. Com um rugido alto e prolongado, proclamando a vitória, Guenhwyvar partiu aos saltos em direção ao covil.
CONTINUA
10
A Congregação das Trevas
Torga, o ore, encarava Grock, o goblin, com franco desdém. Suas respectivas tribos haviam guerreado durante muitos anos, tantos quantos qualquer membro vivo de ambos os grupos era capaz de lembrar. Dividiam um vale na Espinha do Mundo e competiam por território e alimento com a brutalidade típica de suas raças belicosas.
E agora encontravam-se no mesmo espaço sem que as armas fossem desembainhadas, arrastados para aquele lugar por uma força ainda maior que o ódio que nutriam um pelo outro. Em qualquer outro lugar, em qualquer outro momento, as tribos jamais teriam permanecido assim tão próximas sem que se travasse uma batalha feroz. Mas, agora, elas tinham de se contentar com ameaças vãs e olhares perigosos, pois haviam recebido ordens para deixar de lado suas diferenças.
Torga e Grock viraram-se e caminharam lado a lado em direção à estrutura que abrigava o homem destinado a ser seu mestre.
Entraram em Crishal-Tirith e apresentaram-se diante de Akar Kessell.
Mais duas tribos haviam se juntado a suas fileiras em expansão. Por todo o planalto que abrigava sua torre encontravam-se os estandartes de vários bandos de goblinóides: os Goblins das Lanças Serpeantes, os Ores Acutiladores, os Ores da Língua Partida, e muitos outros, todos ali para servir o mestre. Kessell até mesmo recolhera um grande clã de ogros, um punhado de trolls e quarenta verbeeg desgarrados, os mais insignificantes dos gigantes, mas gigantes apesar de tudo.
No entanto, o remate de suas conquistas foi um grupo de gigantes do gelo que simplesmente fizera uma peregrinação até ali, desejando apenas agradar o portador de Crenshinibon.
Kessell estava satisfeito com sua vida em Crishal-Tirith, com todos os seus caprichos obedientemente atendidos pela primeira tribo de goblins que ele encontrara. Os goblins tinham conseguido até atacar uma caravana mercante e prover o mago com algumas mulheres humanas para seu prazer. A vida de Kessell era fácil e agradável, exatamente do jeito que ele gostava.
Mas Crenshinibon não estava satisfeita. O desejo de poder da relíquia era insaciável. Ela aceitava os pequenos ganhos durante algum tempo e depois exigia que seu portador partisse para conquistas mais grandiosas. Não se oporia abertamente a Kessell, pois, na constante guerra de vontades dos dois, Kessell, em última análise, tinha o poder de decisão. A pequena estilha de cristal controlava uma incrível reserva de poder, mas, sem um portador, era como uma espada embainhada à espera da mão que a empunharia. Portanto, Crenshinibon exercia sua vontade por meio da manipulação, insinuava ilusões de conquista nos sonhos do mago, permitia a Kessell enxergar as possibilidades do poder. Acenava ao aprendiz outrora titubeante com algo que ele não poderia recusar: respeito.
Kessell, a eterna escarradeira dos pretensiosos magos de Luskan - e, aparentemente, de todo o mundo -, era presa fácil dessas ambições. Ele, que beijara as botas de pessoas importantes, ansiava pela chance de reverter os papéis.
E agora tinha a oportunidade de transformar suas fantasias em realidade, era o que Crenshinibon com freqüência lhe garantia. A mando a relíquia, ele poderia se tornar o conquistador; poderia fazer as pessoas, até mesmo os magos da Torre das Hostes, tremerem diante da simples menção de seu nome.
Ele precisava ainda ser paciente. Passara vários anos aprendendo as sutilezas do comando sobre uma, e depois duas tribos de goblins. No entanto, reunir e subjugar dúzias de tribos naturalmente inimigas era muito mais desafiador. Precisava recolhê-las, a princípio uma a uma, e garantir que as tivesse submetido sinceramente a sua vontade antes de se atrever a convocar outro grupo.
Mas estava funcionando, e agora ele havia recolhido duas tribos rivais simultaneamente, e com resultados positivos. Torga e Grock haviam entrado em Crishal-Tirith, cada um deles à procura de uma maneira de matar o outro sem acarretar a ira do mago. Ao partirem, porém, depois de uma pequena discussão com Kessell, conversavam como velhos amigos sobre a glória de suas futuras batalhas no exército de Akar Kessell.
Kessell reclinou-se nas almofadas e ponderou sua boa sorte. Seu exército estava realmente ganhando forma. Tinha os gigantes do gelo como comandantes, ogros como guarnição, verbeeg como uma letal força de ataque e trolls - perversos trolls de meter medo - como sua guarda pessoal. E, segundo seus cálculos até ali, dez mil soldados goblins fanaticamente leais para levar a cabo sua onda de destruição.
- Akar Kessell - gritou, contemplativo, para a moça do harém que lhe fazia as longas unhas, apesar de a mente da menina já ter sido destruída por Crenshinibon. - Toda a glória para o Tirano do Vale do Vento Gélido!
Bem ao sul das estepes congeladas, nas terras civilizadas onde os homens tinham mais tempo para o lazer e a contemplação e nem todas as ações eram determinadas por pura necessidade, os magos e os pretensos magos não eram tão raros. Os verdadeiros magos, estudantes perpétuos das artes arcanas, praticavam sua profissão com o devido respeito pela magia, sempre precavidos em relação às possíveis conseqüências de seus encantamentos.
A menos que fossem consumidos pelo desejo de poder, o que era algo muito perigoso, os verdadeiros magos temperavam seus experimentos com cautela e raramente provocavam catástrofes.
Os pretensos magos, entretanto, homens que de algum modo haviam adquirido um certo grau de habilidade mágica, quer tivessem encontrado um pergaminho, o grimório de um mestre ou alguma relíquia, eram geralmente os perpetradores de calamidades colossais.
Esse era o caso naquela noite, num país a mil milhas de distância de Akar Kessell e Crenshinibon. Um aprendiz de mago, um rapaz que parecera muito promissor a seu mestre, obteve o diagrama de um poderoso círculo mágico e depois procurou e encontrou um encanto de invocação. O aprendiz, atraído pela promessa de poder, conseguiu extrair o nome verdadeiro de um demônio das anotações confidenciais de seu mestre.
A feitiçaria, a arte de invocar entidades de outros planos e submetê-las à servidão, era a paixão particular do rapaz. Seu mestre permitira-lhe trazer homúnculos e manes por meio de um portal mágico - rigorosamente supervisionado -, esperando demonstrar os possíveis perigos da prática e reforçar as lições de cautela. Na verdade, as demonstrações só fizeram agravar a inclinação do rapaz para essa arte. Ele implorou ao mestre que lhe permitisse tentar um verdadeiro demônio, mas o mago sabia que o rapaz não estava preparado para um teste dessa magnitude.
O aprendiz discordava.
Ele completara a inscrição do círculo naquele mesmo dia. Tão confiante estava em seu trabalho que não dedicou mais um dia (alguns magos levariam uma semana) para a verificação das runas e dos símbolos, nem se deu ao trabalho de testar o círculo com uma entidade inferior, como um mane.
E, agora, ele estava sentado no centro do círculo, com os olhos focalizados no fogo de um braseiro que serviria como o portal para o Abismo. Com um sorriso arrogante e excessivamente orgulhoso, o pretenso feiticeiro invocou o demônio.
Errtu, um demônio importante e de proporções catastróficas, ouviu indistintamente seu nome sendo pronunciado no plano longínquo. Normalmente, o grande monstro teria ignorado um chamado tão fraco; o conjurador com certeza não era bastante habilidoso para obrigar o demônio a obedecer.
Entretanto, Errtu ficou feliz com aquele chamado fatídico. Alguns anos antes, o demônio sentira uma onda de poder no plano material que ele acreditava ser a culminação de uma demanda milenar. O demônio suportara impacientemente os últimos anos, ansioso para que um mago lhe abrisse uma trilha e ele pudesse vir ao plano material para investigar.
O jovem aprendiz sentiu-se atraído pela dança hipnótica do fogo do braseiro. As labaredas uniram-se numa única chama - como a de uma vela, só que muitas vezes maior - e oscilavam torturantemente, de um lado para outro, de um lado para outro.
O aprendiz mesmerizado sequer percebeu a intensidade crescente do fogo. A chama saltava cada vez mais alto, acelerava-se seu bruxuleio e sua cor movia-se pelo espectro da luz em direção ao calor máximo da brancura.
De um lado para outro. De um lado para outro.
Mais rápido, agora, agitava-se desvairadamente e ganhava força para sustentar a poderosa entidade que aguardava do outro lado.
De um lado para outro. De um lado para outro.
O aprendiz transpirava. Sabia que o poder do encantamento estava passando dos limites, que a magia havia assumido o comando e ganhava vida própria. Que ele não teria o poder de detê-la.
De um lado para outro. De um lado para outro.
Agora, ele via no interior da chama uma sombra escura, grandes mãos providas de garras e asas coriáceas como as de um morcego. E o tamanho do monstro! Um gigante até mesmo pelos padrões de sua espécie.
- Errtu! - chamou o rapaz, e as palavras foram arrancadas pelas exigências do feitiço. O nome não havia sido identificado completamente nas anotações de seu mestre, mas era óbvio que pertencia a um demônio poderoso, um monstro do escalão logo abaixo dos lordes-demônios na hierarquia do Abismo.
De um lado para outro. De um lado para outro.
Agora, a cabeça bizarra e simiesca - com a boca e o focinho de um cão e os incisivos desproporcionais de um javali - já era visível, e os imensos olhos vermelhos como sangue entrecerraram-se lá de dentro da chama do braseiro. A saliva ácida crepitava ao cair no fogo.
De um lado para outro. De um lado para outro.
O fogo cresceu, num último estertor de poder, e Errtu deu um passo adiante. O demônio nem mesmo se deteve para examinar o aterrorizado rapaz que estupidamente invocara seu nome. Ele começou a caminhar lenta e ameaçadoramente pelo círculo mágico, em busca de pistas sobre a extensão do poder daquele mago.
O aprendiz finalmente conseguiu se controlar. Ele havia invocado um demônio importante! O fato o ajudou a restabelecer a confiança em suas habilidades como feiticeiro.
- Apresente-se diante de mim! - ordenou, consciente de que era necessário pulso firme para controlar uma criatura dos caóticos planos inferiores.
Errtu, impassível, prosseguiu com seu andar ameaçador. O aprendiz irritou-se.
- Você há de me obedecer! - gritou. - Eu o trouxe aqui e guardo a chave de seu tormento! Você há de obedecer minhas ordens e depois, misericordiosamente, eu o libertarei para que retorne a seu mundo abjeto! Agora, apresente-se diante de mim!
O aprendiz era ousado. O aprendiz era orgulhoso.
Mas Errtu encontrara um erro no traçado de uma runa, uma imperfeição fatal num círculo mágico que não poderia se dar ao luxo de ser quase perfeito.
O aprendiz estava morto.
No plano material, Errtu sentiu mais distintamente a tão conhecida sensação de poder e teve pouca dificuldade para discernir de onde provinham as emanações. Sobrevoou com suas grandes asas as cidades dos humanos, espalhando o pânico sempre que notado, mas não retardou sua jornada para saborear o caos que irrompia lá embaixo.
Direto como uma flecha e a toda velocidade, Errtu voou sobre lagos e montanhas, através de grandes extensões de terra desabitada. Em direção à cordilheira mais setentrional dos Reinos, a Espinha do Mundo, e à antiga relíquia que ele passara séculos procurando.
Kessell soube da aproximação do demônio muito antes que suas tropas ali reunidas começassem a se dispersar com medo da investida daquela sombra de trevas. Crenshinibon comunicara a informação ao mago, pois a relíquia viva antecipara os movimentos da poderosa criatura dos planos inferiores que a vinha perseguindo havia incontáveis séculos.
Kessell, porém, não estava preocupado. Em sua torre de poder, ele se acreditava capaz de lidar até mesmo com uma nêmesis tão poderosa quanto Errtu. E ele levava uma distinta vantagem sobre o demônio. Era o portador de direito da relíquia. A estilha estava em sintonia com ele e, como muitos outros artefatos mágicos da aurora dos tempos, Crenshinibon não poderia ser arrancada de seu dono pela força bruta. Errtu desejava empunhar a relíquia e, portanto, não ousaria se opor a Kessell e invocar a ira de Crenshinibon.
A saliva ácida escorreu da boca do demônio assim que ele viu a cópia da relíquia em forma de torre.
- Quantos anos? - ele bradou, vitorioso.
Errtu enxergou claramente a porta da torre, pois o demônio não era uma criatura do plano material, e aproximou-se imediatamente. Nenhum dos goblins de Kessell, nem mesmo um dos gigantes barrou a entrada do demônio.
Franqueado por seus trolls, o mago esperava Errtu no aposento principal de Crishal-Tirith, o primeiro nível da torre. O mago sabia que os trolls seriam de pouca utilidade contra um demônio que tinha o fogo como arma, mas os queria presentes para acentuar a primeira impressão que o demônio teria dele. Sabia que detinha o poder de livrar-se facilmente de Errtu, mas ocorrera-lhe uma outra idéia, mais uma vez implantada por uma sugestão da estilha de cristal.
O demônio poderia ser muito útil.
Errtu deteve-se abruptamente ao passar pela entrada estreita e dar com o séqüito do mago. Devido à remota localização da torre, o demônio esperara encontrar um ore ou talvez um gigante com a estilha nas mãos. Ele alimentara a esperança de intimidar e enganar o obtuso portador, convencendo-o a entregar a relíquia, mas a aparição de um homem de túnica, provavelmente um mago, frustrou-lhe os planos.
- Saudações, poderoso demônio - disse Kessell educadamente, com uma reverência. - Bem-vindo a meu humilde lar.
Errtu rugiu de fúria e avançou, esquecendo-se dos inconvenientes de destruir o portador tamanhos eram o ódio devorador e a inveja que sentia pelo presunçoso humano.
Crenshinibon refrescou a memória do demônio.
As paredes da torre emitiram um súbito clarão de luz que envolveu Errtu na luminosidade dolorosa de doze sóis do deserto. O demônio deteve-se e cobriu os olhos sensíveis. A luz logo se dissipou, mas Errtu continuou onde estava e não se aproximou novamente do mago.
Kessell sorriu com afetação. A relíquia o apoiara. Transbordando de confiança, ele voltou a se dirigir ao demônio, dessa vez com um quê de severidade na voz.
- Você veio para levar isto - disse, enfiando a mão nas dobras da túnica para dali retirar a estilha. Os olhos de Errtu estreitaram-se e fixaram-se no objeto que ele perseguira por tanto tempo.
- Não pode ser sua - disse Kessell, categoricamente, e devolveu-a a seu lugar. - É minha, foi encontrada legitimamente, e você não tem nenhum direito sobre ela! - O estúpido orgulho de Kessell, o defeito fatal de sua personalidade que sempre o impelira por uma estrada em que era certa a tragédia, desejava que ele continuasse escarnecendo do demônio e da situação irremediável em que este se encontrava.
- Basta - avisou uma sensação dentro dele, a voz silenciosa que ele suspeitava ser a vontade consciente da estilha.
- Não é de sua conta - Kessell respondeu, com um grito.
Errtu olhou em volta da sala, imaginado a quem o mago se dirigia. Os trolls com certeza não lhe haviam dado atenção. Como precaução, o demônio invocou vários encantos de detecção, temendo um agressor oculto.
- Você escarnece de um adversário perigoso - persistiu a estilha. - Eu o protegi do demônio, porém você insiste em indispor-se com uma criatura que pode vir a ser um aliado valioso!
Como era geralmente o caso quando Crenshinibon se comunicava com o mago, Kessell começou a enxergar as possibilidades. Decidiu-se por um compromisso, um acordo mutuamente benéfico tanto para ele quanto para o demônio.
Errtu refletiu sobre sua difícil situação. Não poderia matar o humano impertinente, embora viesse realmente a saborear o ato. No entanto, partir sem a relíquia, protelar a demanda que havia sido sua principal motivação durante séculos, não era uma opção aceitável.
- Tenho uma proposta a fazer, uma barganha que pode interessar você - disse Kessell, convidativo, evitando o olhar fatal que o demônio lhe lançava. - Fique a meu lado e sirva como o comandante de minhas forças! Com você na liderança e o poder de Crenshinibon e de Akar Kessell, elas devastarão o norte!
- Servir a você? - gargalhou Errtu. - Você não tem nenhuma autoridade sobre mim, humano.
- Você encara a situação de maneira incorreta - retorquiu Kessell. - Pense nisso não como servidão, mas como uma oportunidade para se juntar a uma campanha que promete destruição e conquista! Você tem meu maior respeito, poderoso demônio. Eu não me atreveria a intitular-me seu mestre.
Crenshinibon, com suas intrusões subconscientes, havia instruído Kessell muito bem. A postura já menos ameaçadora de Errtu demonstrava que ele estava intrigado com a proposição do mago.
- E pense em seus ganhos futuros - continuou Kessell. - Os humanos não vivem muito tempo em comparação à estimativa de vida de alguém que não envelhece. Quem, então, haverá de tomar a estilha de cristal quando Akar Kessell deixar de existir?
Errtu sorriu perversamente e curvou-se diante do mago.
- Como eu poderia recusar uma oferta tão generosa? - chiou o demônio com sua horrível voz espectral. - Mostre-me, mago, que gloriosas conquistas encontram-se em nosso caminho.
Kessell quase dançou de alegria. Seu exército estava, enfim, completo. Tinha seu general.
11
Garra de Palas
O suor formava gotas na mão de Bruenor, e ele inseriu a chave na fechadura empoeirada da pesada porta de madeira. Era o início do processo que colocaria definitivamente à prova toda a sua habilidade e experiência. Como todos os mestres ferreiros entre os anões, ele vinha esperando por aquele momento com emoção e expectativa desde o início de seu longo treinamento.
Precisou usar de força para abrir a porta da pequena câmara. A madeira rangeu e gemeu em protesto, tendo empenado e se acomodado desde que fora aberta pela última vez, muitos anos atrás. Contudo, foi um alívio para Bruenor, pois ele tinha pavor só de pensar que alguém pudesse fazer uma visitinha a seus bens mais estimados. Relanceou o olhar pelos corredores escuros daquele setor pouco utilizado do complexo dos anões, certificando-se mais uma vez de que não o haviam seguido, e depois entrou na sala, levando a tocha diante dele para queimar as franjas pendentes de inúmeras teias.
A única peça de mobília na sala era uma caixa de madeira ferrada, envolta em duas pesadas correntes unidas por um imenso cadeado. Teias de aranha entrecruzavam-se e pendiam de cada ângulo do baú, e uma espessa camada de pó cobria-lhe o topo. Outro bom sinal, observou Bruenor. Olhou novamente para o corredor lá fora, depois fechou a porta de madeira o mais silenciosamente possível.
Ajoelhou-se diante da arca e depositou a tocha no chão, a seu lado. Várias teias, tocadas de leve pela chama, explodiram num sopro alaranjado por apenas um instante e, em seguida, extinguiram-se. Bruenor retirou de sua escarcela um pequeno bloco de madeira e removeu a chave de prata que pendia da corrente que trazia em volta do pescoço. Segurou com firmeza o bloco de madeira a sua frente e, mantendo os dedos da outra mão abaixo do nível do cadeado tanto quanto possível, inseriu gentilmente a chave na fechadura.
Agora vinha a parte delicada. Bruenor girou a chave lentamente e prestou atenção ao menor ruído. Ao ouvir o estalido do volteador da fechadura, preparou-se para o pior e soltou rapidamente a chave, permitindo que o volume do cadeado se afastasse do próprio aro, o que liberou uma alavanca armada com uma mola comprimida entre a tranca e a arca. O pequeno dardo bateu no bloco de madeira e Bruenor deixou escapar um suspiro de alívio. Apesar de ter preparado a armadilha quase um século atrás, ele sabia que o veneno da serpente mil-viúvas-da-tundra conservara sua picada letal.
O mais absoluto entusiasmo suprimiu a reverência de Bruenor por aquele momento, e ele precipitadamente atirou as correntes por cima da arca e soprou-lhe o pó do tampo. Segurou o tampo e começou a erguê-lo, mas, de repente, voltou a fazer tudo com vagar, recuperando a calma solene e lembrando a si mesmo da importância de cada ação.
Ninguém que tivesse encontrado aquela arca e conseguido passar pela armadilha mortal ficaria satisfeito com os tesouros que ali acharia. Um cálice de prata, um saco de ouro e um punhal incrustado, porém mal balanceado, estavam misturados entre outros objetos mais pessoais e menos valiosos: um elmo amassado, velhas botas e outras peças similares que pouco encanto exerceriam sobre um ladrão.
No entanto, aqueles objetos eram simplesmente ouro-de-tolo. Bruenor tirou-os da arca e, sem hesitação, largou-os no chão imundo.
O fundo da pesada arca ficava logo acima do nível do chão, mas não dava a menor indicação de que existiria ali algo mais. Bruenor havia astuciosamente cavado um buraco sob a arca e acomodado ali a caixa com tamanha perfeição que mesmo um ladrão observador juraria que ela jazia sobre o chão. O anão tateou o fundo da caixa até encontrar um pequeno nó na madeira e enganchou um dedo hirsuto na abertura. Aquela madeira também havia se acomodado ao longo dos anos e Bruenor teve de puxar com muita força para finalmente liberá-la. O fundo soltou-se com um estalo repentino e fez Bruenor cambalear para trás. Ele estava de volta à arca um instante depois e, por sobre a borda, examinava cautelosamente seus maiores tesouros.
Um bloco do mais puro mitral, uma pequena bolsa de couro, um cofre dourado e um tubo de prata para o transporte de pergaminhos, tendo um diamante como tampa numa de suas extremidades, estavam dispostos exatamente como Bruenor os deixara tanto tempo atrás.
As mãos de Bruenor tremiam, e ele precisou parar e enxugar-lhes a perspiração várias vezes enquanto removia os preciosos objetos da arca, colocava em sua mochila aqueles que ali cabiam e depositava o bloco de mitral numa manta que havia desenrolado. Depois, ele recolocou rapidamente o fundo falso, tomando o cuidado de encaixar perfeitamente o olho do nó de volta na madeira, e colocou seu tesouro falso mais uma vez no lugar. Acorrentou e trancou a caixa, deixando tudo exatamente como encontrara, exceto que não viu motivo para se arriscar a um acidente armando novamente a agulha venenosa.
Bruenor construíra sua forja ao ar livre num recesso escondido, remotamente aconchegado no sopé do Sepulcro de Kelvin. Era uma região raramente visitada no vale dos anões, a extremidade setentrional, com a Via de Bremen a se perder na vasta tundra e a contornar a encosta ocidental da montanha, e o Desfiladeiro do Vento Gélido a fazer o mesmo no leste. Para sua surpresa, Bruenor descobriu que a pedra ali era resistente e pura, profundamente impregnada com a força da terra, e serviria muito bem como seu pequeno templo.
Como sempre, Bruenor aproximou-se daquele lugar sagrado com passos calculados e reverentes. Ele agora carregava os tesouros de sua herança, e sua mente viajou pelos séculos até o Salão de Mitral, o antigo lar de seu povo, e aquilo que o pai lhe dissera no dia em que recebera seu primeiro martelo de ferreiro.
- Se 'cê tiver mesmo talento para a arte - dissera-lhe o pai - e tiver a sorte de viver bastante tempo e sentir a força da terra, 'cê vai encontrar um dia especial. Uma bênção especial, ou uma maldição, dizem alguns, foi lançada sobre nosso povo, pois uma vez na vida, e apenas uma vez, o melhor de nossos ferreiros é capaz de criar uma arma de sua escolha que supera qualquer obra feita por ele anteriormente. Cuidado com esse dia, filho, pois você vai colocar um bom tanto de si mesmo nessa arma. Nunca mais na vida 'cê vai igualar a perfeição dela e, sabendo disso, vai perder boa parte daquele desejo de artífice que impele seu martelo. Pode ser que 'cê ache a vida vazia depois desse dia, mas se 'cê for bom como sua estirpe diz que é, 'cê vai ter fabricado uma arma lendária que vai continuar viva muito tempo depois de seus ossos terem virado pó.
O pai de Bruenor, abatido quando as trevas chegaram ao Salão de Mitral, não viveu o suficiente para encontrar seu dia especial, muito embora, caso o tivesse, vários dos objetos que Bruenor agora carregava teriam sido usados por ele. Mas o anão não via nenhum desrespeito em tomar os tesouros como seus, pois sabia que criaria uma arma para deixar orgulhoso o espírito do pai.
O dia de Bruenor chegara.
A imagem de um martelo de duas cabeças, oculta no bloco de mitral, ocorrera a Bruenor num sonho, no início daquela semana. O anão compreendeu o sinal no mesmo instante e sabia que devia se mexer rapidamente a fim de deixar tudo pronto para a noite de poder que célere se aproximava. A lua já estava imensa e brilhante no céu. Atingiria sua plenitude na noite do solstício, aquela época intermediária entre as estações quando havia magia no ar.
A lua cheia só aumentaria o encanto daquela noite, e Bruenor acreditava que ele capturaria um poderoso encantamento ao pronunciar as palavras mágicas.
O anão tinha muito trabalho pela frente caso quisesse estar preparado. Seu esforço começara com a construção da pequena forja. Essa parte era fácil, e ele ocupou-se dela mecanicamente, tentando manter seus pensamentos fixos na tarefa imediata e longe da perturbadora expectativa pela criação da arma.
Agora havia chegado o momento pelo qual ele tanto aguardara. Tirou o pesado bloco de mitral de sua mochila, sentindo-lhe a pureza e a força. Já havia antes segurado blocos similares e ficou apreensivo por um instante. Ele fitou o metal prateado.
Durante um bom tempo, o metal permaneceu um bloco de ângulos retos. Depois, os lados pareceram se arredondar quando a imagem de um maravilhoso martelo de guerra mostrou-se claramente ao anão. O coração de Bruenor disparou e ele ofegava.
Sua visão fora real.
Ele acendeu a forja e imediatamente deu início a sua obra, trabalhando noite adentro até que a luz da aurora dispersasse o encanto que pairava sobre ele. Voltou à casa naquele dia apenas para apanhar o bastão de adamantita que havia reservado para a arma, retornando à forja para dormir e, mais tarde, andar nervosamente de um lado para outro enquanto esperava pelo cair da noite.
Assim que a luz do dia desapareceu no horizonte, Bruenor voltou ansiosamente ao trabalho. O metal deixava-se moldar com facilidade por suas habilidosas mãos, e ele sabia que, antes de o amanhecer vir interrompê-lo, a cabeça do martelo estaria pronta. Embora ainda tivesse horas de trabalho pela frente, Bruenor sentiu uma onda de orgulho naquele instante. Sabia que cumpriria seu exigente programa. Ele fixaria a empunhadura de adamantita na noite seguinte e tudo estaria pronto para o encantamento sob a lua cheia na noite do solstício de verão.
A coruja precipitou-se silenciosamente sobre o pequeno coelho, orientada em direção à presa por sentidos incomparavelmente aguçados. Seria uma morte rotineira e o desafortunado animal sequer perceberia a aproximação do predador. No entanto, a coruja estava estranhamente agitada e sua concentração de caçador vacilou no último instante. Raramente a grande ave errava, mas, dessa vez, ela voou de volta a seu abrigo na encosta do Sepulcro de Kelvin sem a refeição.
Bem longe, na tundra, um lobo solitário aguardava, imóvel como uma estátua, ansioso, mas paciente, enquanto o disco de prata da imensa lua de verão rompia a orla plana do horizonte. Ele esperou até que o orbe fascinante aparecesse inteiro no céu e então retomou o antigo uivo de sua raça. Responderam-lhe, inúmeras vezes, os lobos distantes e outros habitantes da noite, todos a invocar o poder dos céus.
A noite do solstício de verão, quando havia magia no ar e agitavam-se todas as criaturas com exceção dos seres racionais que rejeitavam impulsos instintivos tão simples, começara.
Em seu estado emocional, Bruenor sentia distintamente a magia. Mas, absorvido na culminação dos esforços de sua vida, ele atingira um nível de calma concentração. As mãos já não tremiam quando ele abriu a tampa dourada do pequeno cofre.
O pujante martelo de guerra jazia preso à bigorna diante do anão. Representava a melhor obra de Bruenor, poderosa e lindamente trabalhada mesmo então, mas aguardando ainda as delicadas runas e os encantamentos que a transformariam numa arma de poder especial.
Bruenor reverentemente retirou do cofre o pequeno macete e o cinzel de prata e aproximou-se do martelo de guerra. Sem hesitação, pois sabia que tinha pouco tempo para um trabalho tão intrincado, ele apoiou o cinzel sobre o mitral e martelou-o solidamente com o macete. Os metais imaculados emitiram uma nota pura e clara que fizeram o grato anão sentir um frio na espinha. Ele sabia, no âmago de seu ser, que todas as condições eram perfeitas e estremeceu novamente ao pensar no resultado dos trabalhos daquela noite.
Ele não viu os olhos escuros que o examinavam atentamente desde um cômoro a uma pequena distância dali.
Bruenor não precisava de modelo para os primeiros entalhes: eram símbolos gravados em seu coração e em sua alma. Solenemente, ele inscreveu o martelo e a bigorna de Moradin, o Forjador da Alma, na lateral de uma das cabeças do martelo de guerra, e os machados cruzados de Clangeddin, o Deus das Batalhas para os anões, diametralmente opostos ao primeiro símbolo, na lateral da outra cabeça. Depois, ele pegou o tubo de prata para pergaminhos e gentilmente removeu-lhe a tampa de diamante. Suspirou aliviado ao ver que o pergaminho sobrevivera às décadas. Enxugando o suor oleoso de suas mãos, ele removeu o rolo e lentamente o desenrolou, depositando-o na parte plana da bigorna. De início, a página parecia branca, mas, aos poucos, os raios da lua cheia persuadiram seus símbolos, as runas secretas de poder, a aparecer.
Eram a herança de Bruenor e, embora ele nunca as tivesse visto antes, suas linhas e curvas arcanas pareciam familiares. Com mão firme e confiante, o anão colocou o cinzel de prata entre os símbolos dos dois deuses e começou a gravar as runas secretas no martelo de guerra. Sentiu a magia das runas transferindo-se do pergaminho para a arma através dele e assistiu, assombrado, a cada uma delas desaparecer do rolo depois de ter sido inscrita no mitral.
O tempo já não tinha mais significado, e ele sentiu-se profundamente perdido no transe de seu trabalho, mas, ao completar as runas, notou que a lua havia ultrapassado seu ponto culminante e começava a minguar.
O primeiro teste real da perícia do anão deu-se quando ele superpôs às runas a jóia no interior do símbolo da montanha de Dumathoin, o Guardião dos Segredos. Os contornos do símbolo do deus alinhavam-se perfeitamente com os das runas, obscurecendo os secretos desenhos mágicos.
Bruenor soube então que sua obra estava quase completa. Removeu o pesado martelo de guerra de sua tenaz e tirou da mochila a pequena bolsa de couro. Precisou inspirar profundamente várias vezes para se acalmar, pois este era o teste final e mais decisivo de sua competência. Ele soltou a corda que fechava a bolsa e maravilhou-se com as suaves cintilações do pó de diamante sob a tênue luz da lua.
Por trás do cômoro, Drizzt Do'Urden retesou-se de expectativa, mas teve o cuidado de não perturbar a total concentração de seu amigo.
Bruenor acalmou-se mais uma vez e, depois, subitamente, agitou o mais alto que pôde a pequena bolsa, liberando no ar da noite seu conteúdo. Atirou a bolsa de lado, agarrou o martelo de guerra com as duas mãos e o ergueu acima da cabeça. O anão sentiu a própria força sendo sugada ao pronunciar as palavras de poder, mas ele só saberia se teve êxito quando a obra estivesse completa. O nível de perfeição dos entalhes determinava o sucesso das entoações, pois enquanto ele gravava as runas na arma, a força que delas emanava fluíra para seu coração. Esse poder era o que atrairia o pó mágico para a arma e o poder desta, por sua vez, seria avaliado pela quantidade de partículas cintilantes que capturasse.
As trevas acometeram o anão. A cabeça girava e ele não entendia o que o mantinha ainda de pé. Mas o poder devorador das palavras era maior do que ele próprio. Embora nem mesmo tivesse consciência de suas palavras, elas continuavam a fluir de seus lábios numa inegável torrente, exaurindo cada vez mais as forças de Bruenor. Nesse momento, ele caiu misericordiosamente, mas o vácuo da inconsciência o arrebatou muito antes de sua cabeça atingir o solo.
Drizzt virou-se e recostou-se novamente ao cômoro rochoso; ele também estava exausto com o espetáculo. Não sabia se seu amigo sobreviveria à provação daquela noite, mas estava emocionado. Pois ele testemunhara o momento de triunfo do anão, apesar de Bruenor tê-lo perdido, quando a cabeça de mitral do martelo tremeluziu com a magia viva e atraiu a chuva de diamante.
E nem uma única partícula do pó cintilante escapara ao chamado de Bruenor.
12
O Presente
Bem no alto da face setentrional da Ladeira de Bruenor, sentava-se Wulfgar, com os olhos focalizados na extensão de vale rochoso lá embaixo, atento a qualquer movimento que pudesse indicar o retorno do anão. O bárbaro vinha com freqüência àquele local para ficar sozinho com seus pensamentos e o pranto do vento. Diretamente diante dele, do outro lado do vale dos anões, ficavam o Sepulcro de Kelvin e a seção norte do Lac Dinneshir. Entre eles, estendia-se o trecho plano de terreno conhecido como Desfiladeiro do Vento Gélido, que seguia para nordeste e levava à planície vasta.
E, para o bárbaro, ao desfiladeiro que levava a sua terra natal. Bruenor explicara que se ausentaria durante alguns dias e, no início, Wulfgar ficou feliz por se livrar dos resmungos e das críticas constantes do anão. Mas descobriu que seu alívio durara pouco.
- Está preocupado com ele, não é? - veio uma voz detrás dele. Não precisou se virar para saber que era Cattiebrie.
Deixou a pergunta sem resposta, imaginando que, em todo caso, ela perguntara retoricamente e não acreditaria se ele o negasse.
- Ele vai voltar - disse Cattiebrie, com indiferença na voz. - Bruenor é tão resistente quanto a pedra da montanha e não existe nada na tundra capaz de detê-lo.
O jovem bárbaro voltou-se para observar a moça. Tempos atrás, quando um nível confortável de confiança se estabelecera entre Bruenor e Wulfgar, o anão apresentara o jovem a sua "filha", uma garota humana da idade do bárbaro.
Era uma moça aparentemente serena, repleta, porém, de uma paixão interior e um espírito que Wulfgar não estava acostumado a esperar encontrar numa mulher. As moças bárbaras eram ensinadas a guardar para si mesmas seus pensamentos e opiniões, insignificantes segundo os padrões dos homens. Como seu mentor, Cattiebrie dizia exatamente o que lhe passava pela cabeça e deixava poucas dúvidas em relação a como se sentia sobre uma determinada situação. A disputa verbal entre ela e Wulfgar era praticamente constante e geralmente acalorada, mas, ainda assim, Wulfgar alegrava-se por ter uma companheira de sua idade, alguém que não o olhasse de cima para baixo desde um pedestal de experiência.
Cattiebrie ajudara-o a enfrentar o difícil primeiro ano de seu compromisso, tratando-o com respeito (apesar de raramente concordar com ele) quando ele próprio não tinha nenhum por si mesmo. Wulfgar até mesmo tinha a sensação de que ela indiretamente tivera algo a ver com a decisão de Bruenor de tomá-lo sob sua tutela.
Eram da mesma idade, mas, em muitos aspectos, Cattiebrie parecia muito mais velha, com uma sólida noção interior da realidade que mantinha seu temperamento num nível equilibrado. Em outros aspectos, entretanto, tal como o andar saltitante, Cattiebrie seria eternamente uma criança. Esse equilíbrio incomum de espírito e calma, de serenidade e desenfreada alegria, intrigava Wulfgar e deixava-o sem saber o que pensar toda vez que falava com a moça.
Naturalmente, havia outras emoções que deixavam Wulfgar em desvantagem com Cattiebrie a seu lado. Inegavelmente, ela era linda, com densas ondas de um magnífico cabelo castanho-avermelhado a esparramar-se por seus ombros; e os olhos penetrantes, do mais profundo azul, que fariam qualquer pretendente corar sob seu sagaz escrutínio. Ainda assim, o interesse de Wulfgar ultrapassava a mera atração física. Ele não conseguia compreender Cattiebrie, uma jovem que não se encaixava no papel feminino que lhe fora definido na tundra. Ele não estava bem certo se gostava ou não daquela independência. Mas achava-se incapaz de negar a atração que sentia por ela.
- Você vem aqui em cima com freqüência, não é? - perguntou Cattiebrie. - O que você procura?
Wulfgar deu de ombros, sem saber inteiramente a resposta.
- Seu lar?
- Isso e outras coisas que uma mulher não entenderia. Cattiebrie afastou o insulto involuntário com um sorriso.
- Explique-me, então - pressionou, e as insinuações de sarcasmo afiaram-lhe o tom da voz. - Pode ser que minha ignorância traga uma nova luz a esses problemas.
Ela desceu pela rocha para rodear o bárbaro e sentar-se ao lado dele na mesma saliência.
Wulfgar maravilhou-se com os movimentos graciosos dela. Assim como a polaridade de sua curiosa mistura emocional, Cattiebrie também se mostrava um enigma fisicamente. Era alta e esbelta, aparentemente delicada, mas, como havia se transformado em mulher nas cavernas dos anões, estava acostumada ao trabalho pesado e árduo.
- Aventuras e uma promessa não cumprida - disse Wulfgar misteriosamente, talvez para impressionar a moça, mas antes de tudo para reforçar a própria opinião sobre as coisas com as quais uma mulher deveria e não deveria se preocupar.
- Uma promessa que você tem a intenção de cumprir - raciocinou Cattiebrie - assim que tiver a oportunidade.
Wulfgar assentiu solenemente.
- É minha herança, um fardo que me foi passado quando meu pai foi morto. Chegará o dia... - Ele deixou a voz extinguir-se e voltou a olhar com saudade para a inanidade da vasta tundra além do Sepulcro de Kelvin.
Cattiebrie meneou a cabeça, e os cachos castanho-avermelhados balouçaram em seus ombros. Ela enxergava além da fachada de mistério de Wulfgar, o bastante para entender que ele tinha a intenção de empreender uma missão muito perigosa, provavelmente suicida, em nome da honra.
- O que o motiva, não sei dizer. Que você tenha sorte em sua aventura, mas se a estiver aceitando por nenhuma outra razão além das que você nomeou, você estará desperdiçando a própria vida.
- O que uma mulher entende de honra? - Wulfgar devolveu com raiva. Mas Cattiebrie não se intimidou nem recuou.
- O que, não é mesmo? - repetiu ela. - Você acha que a única razão para levar o fardo em seus ombros descomunais é isso aí que carrega entre as pernas?
Wulfgar ficou extremamente vermelho e deu as costas à moça, incapaz de lidar com tamanha petulância numa mulher.
- Além disso - continuou Cattiebrie -, você pode dar o motivo que quiser para ter subido aqui hoje. Sei que está preocupado com Bruenor e não vou aceitar uma negativa.
- Você só sabe o que deseja saber!
- Você é muito parecido com ele - disse Cattiebrie abruptamente, mudando de assunto e desconsiderando os comentários de Wulfgar. - Mais semelhante ao anão do que jamais admitirá! - Ela riu. - Ambos teimosos, ambos orgulhosos e nenhum dos dois é capaz de admitir um sentimento sincero um pelo outro. Faça como quiser, então, Wulfgar do Vale do Vento Gélido. Para mim você pode mentir, mas para si mesmo... é outra história!
Ela pulou do lugar onde estava e desceu saltitando as rochas rumo às cavernas dos anões.
Wulfgar observou-a partir, admirando o balanço de seus quadris esbeltos e a dança graciosa de seu andar, apesar da raiva que sentia. Não parou para considerar por que estava tão irritado com Cattiebrie.
Ele sabia que, caso o fizesse, descobriria, como sempre, que estava furioso por terem as observações dela atingido o alvo.
Drizzt Do'Urden guardou estóica vigilância sobre seu amigo inconsciente durante dois longos dias. Mesmo preocupado como estava em relação a Bruenor e curioso quanto ao espantoso martelo de guerra, o drow manteve-se a uma distância respeitosa da forja secreta.
Por fim, quando raiava a manhã do terceiro dia, Bruenor mexeu-se e espreguiçou-se. Drizzt afastou-se em silêncio e percorreu a trilha que sabia que o anão tomaria. Encontrando uma clareira apropriada, ele montou às pressas um pequeno acampamento.
A princípio, a luz do sol chegou a Bruenor apenas como um borrão, e ele levou vários minutos para se reorientar em relação aos arredores. Em seguida, a visão que retornava focalizou a glória resplandecente do martelo de guerra.
Rapidamente, ele relanceou os olhos a seu redor, à procura de sinais do pó que deveria ali ter caído. Não encontrou nenhum e sua expectativa aumentou. Estava tremendo novamente ao erguer a magnífica arma, revirá-la nas mãos e sentir seu perfeito equilíbrio e sua incrível força. O fôlego de Bruenor fugiu-lhe quando ele viu os símbolos dos três deuses no mitral e o pó de diamante magicamente fundido àquelas linhas tão profundamente gravadas. Extasiado pela aparente perfeição de sua obra, Bruenor compreendeu o vazio de que seu pai falara. Ele sabia que jamais duplicaria aquele mesmo nível de arte e questionou se, sabendo disso, seria algum dia capaz de erguer novamente seu martelo de ferreiro.
Tentando pôr em ordem suas emoções confusas, o anão devolveu o macete e o cinzel de prata a seu cofre dourado e recolocou o rolo de pergaminho em seu tubo, embora o documento estivesse novamente em branco e as runas mágicas jamais viessem a reaparecer. Ele se deu conta de que não se alimentava havia dias e sua força não fora completamente restaurada depois de exaurida pela magia. Recolheu tudo o que ainda conseguia carregar, ergueu ao ombro o imenso martelo de guerra e partiu, caminhando penosamente em direção à casa.
O delicioso odor de coelho assado saudou-o assim que ele topou com o acampamento de Drizzt Do'Urden.
- Então, 'cê já voltou de suas viagens - gritou ao cumprimentar o amigo.
Drizzt fixou os olhos nos do anão, não querendo trair sua irresistível curiosidade pelo martelo de guerra.
- A seu pedido, meu bom anão - disse ele, com uma reverência. - Não tenho dúvida de que você colocou gente suficiente a minha procura para contar com meu retorno.
Bruenor anuiu, embora no momento oferecesse distraidamente como explicação apenas um "eu precisava de você." Uma necessidade mais urgente apoderara-se dele diante da visão de carne assada.
Drizzt sorriu astuciosamente. Ele já havia se alimentado e capturara e cozinhara o coelho especialmente para Bruenor.
- Me faz companhia? - perguntou.
Antes mesmo de ele ter terminado a oferta, Bruenor já estava se esticando avidamente sobre o fogo para pegar o coelho. Entretanto, o anão estacou de repente e lançou um olhar desconfiado para o drow.
- Faz quanto tempo que 'cê 'tá aqui? - perguntou, nervoso.
- Cheguei apenas esta manhã - mentiu Drizzt, respeitando a privacidade da cerimônia especial do anão.
Bruenor esboçou um sorriso pretensioso diante da resposta e atacou o coelho enquanto Drizzt colocava outro no espeto.
O drow esperou até que Bruenor estivesse absorto com a própria refeição, depois apanhou o martelo de guerra. Quando Bruenor reagiu, Drizzt já havia erguido a arma.
- Grande demais para um anão - comentou casualmente Drizzt. - E pesado demais para meus braços esguios. - Ele olhou para Bruenor, que se levantara, tinha os braços cruzados e batia o pé impacientemente. - Para quem, então?
- 'cê consegue meter o nariz onde não é chamado, elfo - respondeu o anão rispidamente.
Drizzt riu da resposta.
- O rapaz, Wulfgar? - perguntou com fingida descrença. Ele sabia muito bem que o anão nutria fortes sentimentos pelo jovem bárbaro, embora também ele reconhecesse que Bruenor jamais o admitiria abertamente. - Uma arma excelente para dar a um bárbaro. Você mesmo a forjou?
Apesar da brincadeira, Drizzt estava realmente admirado com a habilidade de Bruenor. Embora o martelo fosse pesado demais para que ele o empunhasse, o extraordinário equilíbrio da arma era claramente perceptível.
- É um velho martelo, só isso - resmungou Bruenor. - O garoto perdeu a clava dele; eu não podia soltar ele por aí neste lugar selvagem sem uma arma!
- E o nome do martelo?
- Garra de Palas - replicou Bruenor sem pensar, e o nome saiu de seus lábios antes mesmo que tivesse tempo de pensar a respeito. Ele não recordava o incidente, mas determinara o nome da arma quando a havia encantado como parte das entoações mágicas da cerimônia.
- Entendo - disse Drizzt, entregando o martelo a Bruenor. - Um velho martelo, mas bom o bastante para o rapaz. Mitral, adamantita e diamante devem dar para o gasto.
- Ah, cale a boca - disse Bruenor bruscamente, com o rosto enrubescido de constrangimento. Drizzt desculpou-se com uma reverência.
- Por que solicita minha presença, meu amigo? - perguntou o drow, mudando de assunto.
Bruenor pigarreou.
- O garoto - resmungou baixinho. Drizzt percebeu claramente o nó desconfortável na garganta de Bruenor e abortou a próxima provocação antes mesmo de pronunciá-la.
- Ele ganha a liberdade antes do inverno - continuou Bruenor - e não foi treinado direitinho. E mais forte do que qualquer homem que eu já tenha visto e se move com a graça de um gamo em fuga, mas ainda está verde para a batalha.
- Você quer que eu o treine? - perguntou Drizzt, incrédulo.
- Bem, eu é que não posso fazer isso! - disse Bruenor subitamente. - Ele tem sete pés de altura e não se acostumaria às cutiladas baixas de um anão!
O drow fitou seu frustrado companheiro com curiosidade. Como todos os que eram íntimos de Bruenor, ele sabia que um vínculo se estabelecera entre o anão e o jovem bárbaro, mas até então não fazia idéia de que esse elo fosse tão forte.
- Eu não cuidei do moleque durante cinco anos só pra deixar que fosse abatido por um fedorento yeti da tundra! - Bruenor falou abruptamente, impaciente com a hesitação do drow e temeroso de que seu amigo tivesse adivinhado mais do que deveria. - Então, 'cê faz isso por mim?
Drizzt sorriu novamente, mas dessa vez sem provocações. Lembrou-se do próprio confronto com os yetis da tundra cinco anos atrás. Bruenor salvara-lhe a vida naquele dia e não havia sido a primeira nem seria a última vez em que ficaria em débito com o anão.
- Os deuses sabem que devo a você mais do que isso, meu amigo. É claro que eu o treinarei.
Bruenor grunhiu e agarrou o outro coelho.
O retinir do martelar de Wulfgar ecoava pelos salões dos anões. Furioso com as revelações que fora forçado a enxergar em sua discussão com Cattiebrie, ele retornara ao trabalho com todo o ardor.
- Pare de martelar, garoto - veio uma voz rouca detrás dele.
Wulfgar girou sobre os calcanhares. Ele estava tão absorto em seu trabalho que não ouviu Bruenor entrar. Um sorriso involuntário de alívio espalhou-se por seu rosto. Mas ele percebeu logo a demonstração de fraqueza e repintou uma máscara austera.
Bruenor avaliou a grande estatura e a corpulência do jovem bárbaro e o princípio irregular de uma barba loura sobre a pele dourada daquele rosto.
- Não dá mais pra te chamar de "garoto" - admitiu o anão.
- Você pode me chamar do que quiser - retorquiu Wulfgar. - Sou seu escravo.
- 'cê tem um espírito tão selvagem quanto a tundra - disse Bruenor, sorrindo. - 'cê nunca foi, nem jamais vai ser um escravo de anões ou de homens.
Wulfgar foi apanhado de surpresa pelo elogio atípico do anão. Tentou responder, mas não encontrou palavras.
- Nunca te encarei como um escravo, garoto - continuou Bruenor. - 'cê me serviu pra pagar pelos crimes do seu povo e eu te ensinei muita coisa em troca. Agora deixe o martelo de lado.
Deteve-se por um momento para examinar a excelente arte de Wulfgar.
- 'cê é um bom ferreiro e compreende bem a pedra, mas seu lugar não é na caverna de um anão. Já 'tá na hora de sentir o sol na sua cara de novo.
- Liberdade? - murmurou Wulfgar.
- Vá tirando o cavalinho da chuva! - disse Bruenor bruscamente. Apontou um dedo hirsuto para o bárbaro e rosnou uma ameaça. - 'cê é meu até os últimos dias do outono e não se esqueça disso!
Wulfgar teve de morder o lábio para refrear uma risada. Como sempre, a combinação bizarra de compaixão e raiva limítrofe do anão o confundira e o apanhara desprevenido. No entanto, não foi mais um choque. Quatro anos ao lado de Bruenor o ensinaram a esperar - e a desconsiderar - aquelas súbitas explosões de mau humor.
- Termine aí seja o que for que veio fazer aqui - instruiu Bruenor. - Amanhã de manhã vou te levar pra conhecer seu professor e, segundo seu juramento, você vai obedecer a ele como se fosse eu!
Wulfgar contorceu o rosto só de pensar em servir a ainda outra pessoa, mas ele aceitara incondicionalmente seu compromisso com Bruenor por um período de cinco anos e um dia e não desonraria a si mesmo voltando atrás em seu juramento. Ele assentiu com a cabeça.
- Eu não vou te ver muito a partir de agora - continuou Bruenor -, então quero seu juramento de que nunca mais vai erguer uma arma contra o povo de Dez-Burgos.
Wulfgar continuou imóvel e firme.
- Isso não - respondeu com audácia. - Quando eu tiver cumprido os termos que você me apresentou, hei de deixar este lugar como um homem de vontade própria.
- É justo - cedeu Bruenor, pois o orgulho obstinado de Wulfgar na verdade aumentava o respeito que o anão tinha por ele. Deteve-se por um momento para examinar o orgulhoso jovem guerreiro e flagrou-se contente com seu próprio papel no crescimento de Wulfgar.
- 'cê quebrou aquele seu maldito mastro na minha cabeça - começou Bruenor tentativamente. Pigarreou. Essa última questão deixava o irredutível anão constrangido. Não tinha bem certeza de como conseguiria dar cabo da tarefa sem parecer sentimental e tolo. - O inverno vai chegar logo depois de terminado o seu período aqui comigo. Não seria justo te mandar para os ermos sem uma arma.
Ele rapidamente enfiou um braço pela passagem que dava para o corredor e apanhou o martelo de guerra.
- Garra de Palas - disse rispidamente ao jogá-lo para Wulfgar. - Não vou impor restrições a sua vontade, mas quero seu juramento, para ter a consciência limpa, de que jamais vai erguer esta arma contra o povo de Dez-Burgos!
Assim que suas mãos se fecharam em volta da empunhadura de adamantita, Wulfgar sentiu o valor do martelo mágico. As runas preenchidas pelo diamante capturaram o brilho da forja e uma miríade de reflexos começaram a dançar pela câmara. Os bárbaros da tribo de Wulfgar sempre haviam se orgulhado das boas armas que possuíam, chegando a medir o valor de um homem pela qualidade de sua lança ou de sua espada, mas Wulfgar jamais vira algo que se equiparasse ao refinado detalhamento e à força bruta de Garra de Palas. Equilibrava-se tão bem em suas mãos descomunais, e o tamanho e o peso do martelo adaptavam-se tão perfeitamente a ele que chegou a sentir como se tivesse nascido para empunhar aquela arma. Disse a si mesmo, imediatamente, que oraria muitas noites aos deuses do destino por confiar a ele aquela recompensa. Eles mereciam sem dúvida sua gratidão.
Assim como Bruenor.
- Você tem minha palavra - balbuciou Wulfgar, tão desconcertado com o magnífico presente que mal conseguia falar. Controlou-se para que pudesse acrescentar algo, mas, quando finalmente conseguiu desviar o olhar do magnífico martelo, Bruenor desaparecera.
O anão percorreu os longos corredores com passos duros, rumando para seus aposentos, murmurando imprecações a sua fraqueza e esperando que nenhum dos seus o encontrasse. Com um olhar cauteloso ao redor, ele enxugou a umidade dos olhos cinzentos.
13
Como o Portador Assim Desejar
- Reúna seu pessoal e vá, Sorrisão - disse o mago ao enorme gigante do gelo diante dele na sala do trono em Crishal-Tirith. - Lembre-se de que representa o exército de Akar Kessell. Vocês são o primeiro grupo a entrar na área e o segredo é a chave de nossa vitória! Não me decepcione! Estarei observando cada um de seus movimentos.
- Não vamos te decepcionar, mestre - respondeu o gigante. - O covil vai estar montado e pronto pra sua chegada!
- Confio em você - Kessell tranqüilizou o imenso comandante. - Agora, suma-se.
O gigante do gelo ergueu o espelho velado que Kessell havia lhe dado, ofereceu uma última reverência a seu mestre e saiu da sala.
- Não devia tê-lo enviado - silvou Errtu, que permanecera invisível ao lado do trono durante a conversa. - Os verbeeg e seu líder, o gigante do gelo, serão facilmente notados numa comunidade de humanos e anões.
- Sorrisão é um líder sensato - devolveu Kessell, furioso com a impertinência do demônio. - O gigante é esperto o bastante para manter as tropas fora de vista!
- Mas os humanos teriam sido mais apropriados para esta missão, como lhe mostrou Crenshinibon.
- Eu sou o líder! - gritou Kessell. Retirou a estilha de cristal de sob as vestes e brandiu-a ameaçadoramente diante de Errtu, debruçando-se para enfatizar a ameaça. - Crenshinibon aconselha, mas eu decido! Não esqueça sua posição, poderoso demônio. Sou o portador da estilha e não tolerarei que você questione cada um de meus passos.
Os olhos vermelhos como sangue de Errtu estreitaram-se perigosamente e Kessell endireitou-se em seu trono, reconsiderando subitamente a sensatez de ameaçar o demônio. Mas Errtu logo se acalmou e aceitou a pequena inconveniência das tolas explosões de Kessell em troca de seus prováveis ganhos futuros.
- Crenshinibon existe desde a aurora dos tempos - disse o demônio, com voz estridente, lançando um último argumento. - Orquestrou mil campanhas muito mais grandiosas que esta que você está prestes a empreender. Talvez você devesse dar mais crédito aos conselhos dela.
Kessell contorceu-se, nervoso. A estilha de fato o aconselhara a utilizar na primeira incursão pela região os humanos que ele em breve comandaria. Ele inventara uma dúzia de desculpas para validar sua opção de enviar os gigantes, mas, na verdade, mandara o pessoal de Sorrisão mais para ilustrar seu indiscutível comando para si mesmo, para a estilha e para o demônio impertinente do que em função de vantagens militares.
- Seguirei o conselho de Crenshinibon quando eu o julgar apropriado - disse a Errtu. Sacou uma outra estilha, uma duplicata exata de Crenshinibon e do cristal que utilizara para erguer a torre, de um dos muitos bolsos de sua túnica. - Leve isto ao local apropriado e realize a cerimônia de soerguimento - instruiu ele. - Hei de me juntar a você por meio de um espelho-portal quando tudo estiver pronto.
- Você quer erguer uma segunda Crishal-Tirith enquanto a primeira ainda está de pé? - refugou Errtu. - Isso vai exaurir imensamente a relíquia!
- Silêncio! - ordenou Kessell, tremendo visivelmente. - Vá e realize a cerimônia! Deixe que a estilha continue a ser uma preocupação minha!
Errtu pegou a réplica da relíquia e fez uma reverência. Sem mais uma palavra, o demônio deixou a sala. Compreendeu que Kessell estava estupidamente demonstrando seu controle sobre a estilha às custas do devido comedimento e de táticas militares sensatas. O mago não tinha a capacidade nem a experiência necessárias para orquestrar aquela campanha, mas a estilha continuava a apoiá-lo.
Errtu secretamente se oferecera para se livrar de Kessell e assumir o papel de portador. Mas Crenshinibon recusara o demônio. Ela preferia as demonstrações exigidas por Kessell para aplacar as próprias inseguranças à luta constante pelo controle que travaria com o poderoso demônio.
Apesar de caminhar entre gigantes e trolls, a estatura do orgulhoso rei bárbaro em nada diminuíra. Ele atravessou desafiadoramente a porta de ferro da torre negra e passou pelos perversos trolls sentinelas com um rosnado ameaçador. Odiava aquele lugar de feitiçaria e decidira ignorar o chamado quando a extraordinária espineta da torre apareceu no horizonte como um dedo glacial surgido do chão plano. Mas, por fim, não conseguiu resistir às invocações do mestre de Crishal-Tirith.
Heafstaag odiava o mago. Segundo todos os padrões de sua tribo, Akar Kessell era fraco, pois usava truques e invocações demoníacas em lugar da força. E Heafstaag o odiava ainda mais por não conseguir refutar o poder do mago.
O rei bárbaro afastou os cordões aljofrados que pendiam do teto e serviam de porta à sala de audiência privada de Akar Kessell no segundo nível da torre. O mago estava reclinado sobre uma imensa almofada de cetim bem no meio da sala e tamborilava impacientemente o chão com as unhas longas e pintadas. Várias escravas nuas, as mentes subjugadas e dominadas pela relíquia, atendiam a cada capricho do portador da estilha.
Enfurecia Heafstaag ver mulheres escravizadas por um arremedo de homem tão insignificante e deplorável. Não pela primeira vez, ele pensou em enterrar seu grande machado no crânio do mago numa repentina investida. Mas a sala estava repleta de biombos e pilares estrategicamente localizados, e o bárbaro sabia, mesmo recusando-se a acreditar que a vontade do mago fosse capaz de anular sua fúria, que o demônio de estimação de Kessell não estaria longe do mestre.
- Que bom que pôde se juntar a mim, nobre Heafstaag - disse Kessell de modo calmo e conciliatório. Errtu e Crenshinibon estavam logo ali. Ele se sentia bastante seguro, mesmo na presença do rude rei bárbaro. Acariciou uma das escravas distraidamente, exibindo seu domínio absoluto. - De fato, você deveria ter vindo antes. Muitas de minhas forças já se encontram reunidas; o primeiro grupo de batedores já partiu.
Inclinou-se em direção ao bárbaro para enfatizar seu propósito.
- Se eu não encontrar um lugar para seu povo em meus planos - disse, reprimindo um sorriso maldoso -, então seu povo não terá qualquer utilidade para mim.
Heafstaag não vacilou nem alterou sua expressão o mínimo que fosse.
- Venha agora, poderoso rei - entoou o mago -, sente-se e compartilhe das riquezas de minha mesa.
Heafstaag apegou-se ao próprio orgulho e permaneceu impassível.
- Muito bem! - disse Kessell bruscamente. Cerrou o punho e pronunciou uma palavra de comando. - A quem você deve lealdade? - exigiu.
O corpo de Heafstaag ficou rígido.
- A Akar Kessell! - respondeu, para seu próprio asco.
- E diga-me mais uma vez quem é que comanda as tribos da tundra.
- Elas seguem a mim - replicou Heafstaag - e eu sigo Akar Kessell. Akar Kessell comanda as tribos da tundra!
O mago desfez o punho e o rei bárbaro caiu para trás.
- Pouco me agrada fazer isso com você - disse Kessell, lixando uma rebarba numa de suas unhas pintadas. - Não me obrigue a repeti-lo. - Ele sacou um rolo de pergaminho detrás da almofada de cetim e o lançou ao chão.
- Sente-se diante de mim - ele instruiu Heafstaag. - Fale-me novamente de sua derrota.
Heafstaag assumiu seu lugar no chão, em frente ao mestre, e desenrolou o pergaminho.
Era um mapa de Dez-Burgos.
14
Olhos Cor de Lavanda
Bruenor havia readquirido sua aparência austera quando acordou Wulfgar na manhã seguinte. Ainda assim, comovia profundamente o anão, embora ele fosse capaz de ocultar o fato, ver Garra de Palas pousado casualmente sobre o ombro do jovem bárbaro, como se sempre houvesse estado ali e ali sempre tivesse sido seu lugar.
Wulfgar também ostentava uma máscara taciturna. Fingia raiva por ser colocado a serviço de outra pessoa mas, se ele tivesse examinado suas emoções mais atentamente, teria reconhecido que estava verdadeiramente triste por se separar do anão.
Cattiebrie esperava por eles na junção da última passagem que levava ao mundo exterior.
- Mas que dupla rabugenta vocês formam nesta linda manhã! - disse, quando eles se aproximaram. - Mas deixe estar, o sol colocará um sorriso nesses rostos.
- Você parecia contente com esta despedida - respondeu Wulfgar, um pouco perturbado, mas o brilho em seus olhos ao ver a moça desmentiu sua raiva. - Você sabe, é claro, que hoje deixarei a vila dos anões?
Cattiebrie fez um gesto indiferente com a mão.
- Você logo estará de volta. - Ela sorriu. - E alegre-se com a partida! Considere necessárias as lições que logo aprenderá caso algum dia queira alcançar seus objetivos.
Bruenor virou-se em direção ao bárbaro. Wulfgar nunca discutira com ele o que pretendia fazer depois do período de compromisso, e o anão, embora tivesse a intenção de prepará-lo o melhor que pudesse, não havia sinceramente aceitado a determinação do rapaz em partir.
Wulfgar franziu o cenho e deixou bem claro para a jovem que a discussão que haviam tido sobre a promessa não cumprida era um assunto particular. De qualquer maneira, Cattiebrie não tivera a intenção de aprofundar a questão. Simplesmente gostava de provocar Wulfgar e arrancar dele alguma emoção. Cattiebrie reconhecia a paixão que ardia no orgulhoso rapaz. Enxergava-a sempre que ele olhava para Bruenor, seu mentor, quer o admitisse ou não. E também a percebia toda vez que Wulfgar olhava para ela.
- Eu sou Wulfgar, filho de Beornegar - vangloriou-se ele com orgulho, atirando para trás os ombros largos e endireitando o queixo firme. - Cresci entre a Tribo do Alce, os melhores guerreiros de todo o Vale do Vento Gélido! Nada sei sobre esse tutor, mas ele dificilmente terá o que me ensinar sobre as leis da batalha!
Cattiebrie trocou um sorriso conhecedor com Bruenor quando o anão e Wulfgar passaram por ela.
- Adeus, Wulfgar, filho de Beornegar - gritou para eles. - Quando nos encontrarmos de novo, tomarei nota cuidadosamente de suas lições de humildade!
Wulfgar olhou para trás e franziu o cenho novamente, mas o largo sorriso de Cattiebrie em nada diminuíra.
Os dois deixaram a escuridão das minas logo depois do amanhecer e percorreram o vale rochoso até o local designado onde deveriam encontrar o drow. Era um dia quente de verão, sem nuvens, e o azul do céu era descorado pela neblina matinal. Wulfgar esticou os braços o mais que pôde, atingindo os limites de seus longos músculos. Seu povo nascera para viver nas vastas extensões da tundra e ele se sentia aliviado por deixar a asfixiante estreiteza das cavernas destinadas aos anões.
Drizzt Do'Urden já os esperava quando eles chegaram. O drow estava encostado ao lado sombreado de um matacão, em busca de alívio para a luz ofuscante do sol. Cobria o rosto com o capuz do manto como uma proteção adicional. Drizzt considerava uma maldição de sua herança seu corpo jamais se adaptar completamente à luz do sol, não importava quantos anos permanecesse entre os habitantes da superfície.
Ele continuou imóvel, mas tinha total consciência da aproximação de Bruenor e Wulfgar. Eles é que tomem a iniciativa, pensou, com a intenção de julgar como o rapaz reagiria à nova situação.
Curioso em relação à misteriosa figura que deveria ser seu novo mestre e professor, Wulfgar audaciosamente venceu a pequena distância e postou-se diretamente em frente ao drow. Drizzt observou-o aproximar-se sob as sombras de seu capuz, maravilhado com a graciosa interação dos músculos bem torneados daquele homem gigantesco. O drow originariamente planejara fazer a vontade de Bruenor, atender a seu ultrajante pedido durante algum tempo e depois inventar uma desculpa qualquer e desaparecer. Mas, ao notar a fluência e a energia dos passos largos do bárbaro, uma desenvoltura incomum em alguém daquele tamanho, Drizzt flagrou-se começando a se interessar pelo desafio de desenvolver o potencial aparentemente ilimitado do rapaz.
Drizzt percebeu que a parte mais dolorosa do encontro com aquele homem - assim como com todos aqueles que conhecia - seria a reação inicial de Wulfgar. Ansioso para acabar logo com aquilo, ele jogou para trás o capuz e encarou diretamente o bárbaro.
Os olhos de Wulfgar esbugalharam-se de horror e asco.
- Um elfo negro! - gritou, incrédulo. - Cão enfeitiçado! - Virou-se para Bruenor como se tivesse sido atraiçoado. - Você não pode me pedir isto! Não tenho a necessidade nem o desejo de aprender artifícios mágicos com esta raça decrépita!
- Ele vai te ensinar a lutar e nada mais - disse Bruenor. O anão já esperava aquilo. Não estava nem um pouco preocupado, completamente ciente, como Cattiebrie, de que Drizzt ensinaria ao rapaz excessivamente orgulhoso um pouco da necessária humildade.
Wulfgar riu desdenhosamente, desafiador.
- O que posso aprender sobre o combate com um elfo débil? Os bárbaros já nascem verdadeiros guerreiros! - Ele fitou Drizzt com franco desprezo. - E não cães trapaceiros como a laia dele!
Drizzt tranqüilamente olhou para Bruenor, pedindo permissão para começar a aula do dia. O anão sorriu afetadamente diante da ignorância do bárbaro e acenou com a cabeça seu consentimento.
Num piscar de olhos, as duas cimitarras saltaram de suas bainhas e desafiaram o bárbaro. Instintivamente, Wulfgar ergueu o martelo de guerra para atacar.
Mas Drizzt foi mais rápido. As laterais das armas atingiram em rápida sucessão as faces de Wulfgar, desenhando finos traços de sangue. Mesmo quando o bárbaro posicionou-se para um contra-ataque, Drizzt girou uma das lâminas mortais num arco descendente, e o fio aguçado visou a parte de trás do joelho do bárbaro. Wulfgar conseguiu desviar a perna da trajetória da arma, mas esse movimento, como Drizzt antecipara, tirou-lhe o equilíbrio. O drow casualmente fez com que as cimitarras deslizassem de volta às bainhas de couro enquanto atingia o ventre do bárbaro com o pé, escarrapachando-o na terra e fazendo o martelo mágico voar de suas mãos.
- Agora que 'cês já se entenderam - declarou Bruenor, tentando esconder o riso pelo bem do frágil ego de Wulfgar -, vou deixar vocês aí. - Olhou interrogativamente para Drizzt para se certificar de que o drow estava à vontade com a situação.
- Dê-me algumas semanas - respondeu Drizzt com uma piscadela, devolvendo o sorriso do anão.
Bruenor voltou-se para Wulfgar, que havia recuperado Garra de Palas e apoiava-se num joelho, fitando o elfo com absoluto assombro.
- Preste atenção às palavras dele, garoto - instruiu o anão uma última vez - Ou ele vai te picar em pedacinhos pequenos o bastante para a goela de um abutre!
Pela primeira vez em quase cinco anos, Wulfgar estendeu o olhar para além das fronteiras de Dez-Burgos, para o vasto trecho do Vale do Vento Gélido que se alargava diante dele. Ele e o drow haviam passado o resto de seu primeiro dia juntos percorrendo toda a extensão do vale e contornando os contrafortes orientais do Sepulcro de Kelvin. Ali, logo acima do sopé da encosta setentrional da montanha, ficava a caverna pouco profunda que Drizzt transformara em seu lar.
Esparsamente mobiliada com algumas peles e panelas, não havia o que se mencionar de luxuoso na caverna. Mas ela servia muito bem ao despretensioso ranger, permitindo-lhe a privacidade e o isolamento que ele preferia aos insultos e às ameaças dos humanos. Para Wulfgar, cujo povo raramente ficava num mesmo lugar mais do que uma noite, a caverna em si parecia um luxo.
Quando o crepúsculo começou a baixar sobre a tundra, Drizzt, nas sombras confortáveis do fundo da caverna, despertou de seu breve cochilo. Wulfgar sentiu-se lisonjeado pelo fato de o drow confiar nele o suficiente para dormir tranqüilamente, tão obviamente vulnerável, em seu primeiro dia juntos. Isso, mais a surra que Drizzt lhe dera um pouco antes, levara Wulfgar a questionar seu ultraje inicial ao ver o elfo negro.
- Começamos nossas sessões esta noite, então? - perguntou Drizzt.
- Você é o mestre - disse Wulfgar com amargura. - Sou apenas o escravo.
- Não mais um escravo do que eu - replicou Drizzt. Wulfgar voltou-se para ele, curioso.
- Estamos ambos em dívida com o anão - explicou Drizzt. - Devo a ele minha vida inúmeras vezes e, portanto, concordei em ensinar a você minha perícia na batalha. Você cumpre um juramento que fez a ele em troca de sua vida. Portanto, você está obrigado a aprender o que eu tenho a ensinar. Não sou senhor de homem nenhum, nem jamais gostaria de ser.
Wulfgar voltou-se para a tundra. Ele ainda não confiava totalmente em Drizzt, mas não conseguia imaginar que outros motivos o drow poderia ter em mente apresentando uma fachada amistosa.
- Juntos saldamos nossas dívidas com Bruenor - disse Drizzt. Ele entendia as emoções de Wulfgar ao olhar as planícies de sua terra natal pela primeira vez em anos. - Aproveite esta noite, bárbaro. Ande por aí como bem entender e volte a recordar a sensação do vento em seu rosto. Devemos começar amanhã ao anoitecer. - Deixou-o, então, para permitir a Wulfgar a privacidade que este desejava.
Wulfgar não podia negar que apreciava o respeito que o drow lhe demonstrara.
Durante o dia, Drizzt descansava nas sombras frescas da caverna enquanto Wulfgar aclimatava-se à nova área e caçava algo para a ceia.
A noite, eles lutavam.
Drizzt pressionava implacavelmente o jovem bárbaro, atingindo-o com a parte chata de uma cimitarra toda vez que ele abria uma brecha em sua guarda. As justas geralmente levavam a uma perigosa escalada, pois Wulfgar era um guerreiro orgulhoso e acabava furioso e frustrado com a superioridade do drow. Isso só deixava o bárbaro em maior desvantagem, pois, em sua fúria, toda e qualquer disciplina lhe escapava. Drizzt sempre prontificava-se a apontar o erro com uma série de golpes e fintas que acabavam deixando Wulfgar escarrapachado no chão.
Justiça seja feita, Drizzt nunca escarnecia do bárbaro nem tentava humilhá-lo. O drow ocupava-se de seu trabalho metodicamente, pois compreendia que sua primeira tarefa era aguçar os reflexos do bárbaro e ensiná-lo a se preocupar minimamente com a defesa.
Drizzt estava realmente impressionado com a habilidade natural de Wulfgar. O incrível potencial do jovem bárbaro o desconcertava. A princípio, ele receara que o orgulho obstinado e o rancor de Wulfgar impossibilitassem seu treinamento, mas o bárbaro mostrara-se à altura do desafio. Reconhecendo os benefícios que poderia obter com alguém tão habilidoso com as armas quanto Drizzt, Wulfgar ouvia atentamente. Seu orgulho, ao invés de fazer com que ele se limitasse a acreditar que já era um poderoso guerreiro e que não precisava de mais instrução, forçava-o a aproveitar toda e qualquer vantagem se isso o ajudasse a atingir seus ambiciosos objetivos. Ao final da primeira semana, durante os momentos em que conseguia controlar seu temperamento volátil, ele já era capaz de aparar muitos dos ataques ardilosos de Drizzt.
Drizzt pouco disse durante aquela primeira semana, apesar de ocasionalmente elogiar uma boa defesa ou um contra-ataque perfeito do bárbaro, ou mais comumente o progresso que Wulfgar já demonstrava em tão pouco tempo. Wulfgar flagrava-se ansioso para ouvir os comentários do drow sempre que executava uma manobra particularmente difícil e temeroso do golpe inevitável toda vez que abria estupidamente a guarda.
O respeito do jovem bárbaro por Drizzt continuava a crescer. Algo em relação ao drow, que vivia, sem jamais se queixar, em estóica solidão, comovia o senso de honra de Wulfgar. Ele ainda não conseguia imaginar por que Drizzt escolhera aquela existência, mas estava certo, pelo que já vira do drow, de que tinha algo a ver com princípios.
Lá pela segunda semana, Wulfgar tinha o total controle de Garra de Palas, girava habilmente a empunhadura e a cabeça do martelo para bloquear as duas cimitarras sibilantes e respondia com os próprios golpes cuidadosamente calculados. Drizzt pôde acompanhar a mudança sutil em andamento à medida que o bárbaro deixava de simplesmente reagir às ágeis cutiladas e estocadas das cimitarras e começava a reconhecer as próprias áreas vulneráveis e a antecipar o ataque seguinte.
Quando se convenceu de que a guarda de Wulfgar estava suficientemente fortalecida, Drizzt deu início às lições de ataque. O drow sabia que seu estilo de ofensiva não seria o mais eficiente no caso de Wulfgar. O bárbaro poderia usar sua força sem igual mais efetivamente do que as fintas e desvios enganadores. O povo de Wulfgar era formado por combatentes naturalmente agressivos que aprendiam a atacar mais facilmente do que a defender. O pujante bárbaro era capaz de abater um gigante com um único golpe bem colocado.
Tudo o que ele precisava aprender era paciência.
No início de uma noite escura, sem lua, enquanto se preparava para a aula seguinte, Wulfgar notou o brilho de uma fogueira ao longe na planície. Mesmerizado, viu várias outras aparecerem repentinamente e imaginou se poderiam ser as fogueiras de sua própria tribo.
Drizzt aproximou-se em silêncio, sem que o bárbaro absorto o notasse. Os olhos penetrantes do drow haviam percebido a agitação do acampamento distante muito antes da luz do fogo ter se intensificado o suficiente para que Wulfgar a enxergasse.
- Seu povo sobreviveu - disse ele para consolar o rapaz. Wulfgar sobressaltou-se com o súbito aparecimento de seu professor.
- Você sabe como eles estão? - perguntou. Drizzt posicionou-se ao lado dele e fitou a tundra.
- Foram grandes as perdas na Batalha de Brin Shander - disse. - E o inverno que se seguiu foi cruel com as mulheres e as crianças que não tinham um homem para caçar por elas. Fugiram para o oeste, para encontrar as renas, e juntaram-se às outras tribos em busca de apoio. Os povos ainda mantêm os nomes das tribos originais, mas, na verdade, existem apenas duas remanescentes: a Tribo do Alce e a Tribo do Urso.
- Você era da Tribo do Alce, creio eu - continuou Drizzt, arrancando um assentimento de Wulfgar. - Seu povo sobreviveu. Eles dominam a planície agora e, apesar de muitos anos serem ainda necessários para que o povo da tundra readquira a força que possuía antes da batalha, os guerreiros mais jovens já são quase homens.
Wulfgar foi tomado de alívio. Ele temera que a Batalha de Brin Shander tivesse dizimado seu povo de tal maneira que a tribo jamais se recuperaria. A tundra era duas vezes mais cruel no inverno congelado, e Wulfgar costumava pensar na possibilidade de que a perda repentina de tantos guerreiros - algumas das tribos haviam perdido todos os seus homens - viesse a condenar os remanescentes à morte lenta.
- Você sabe muita coisa sobre meu povo - comentou Wulfgar.
- Passei muitos anos a observá-lo - explicou Drizzt, imaginando qual seria a linha de raciocínio que o bárbaro traçava -, aprendendo suas tradições e truques para prosperar numa terra tão inóspita.
Wulfgar casquinou baixinho e chacoalhou a cabeça, ainda mais impressionado com a sincera reverência que o drow demonstrava toda vez que falava dos nativos do Vale do Vento Gélido. Ele conhecia o drow havia menos de duas semanas, mas já compreendia o caráter de Drizzt Do'Urden bem o bastante para saber que sua próxima observação sobre o drow seria certeira.
- Aposto que você até abateu alguns gamos no silêncio da noite para serem encontrados à primeira luz do dia por um povo faminto demais para questionar a própria boa sorte.
Drizzt não respondeu ao comentário nem mudou a direção de seu olhar, mas Wulfgar confiava no próprio palpite.
- Você sabe algo sobre Heafstaag? - perguntou o bárbaro depois de alguns momentos de silêncio. - Ele era o rei de minha tribo, um homem de muitas cicatrizes e grande renome.
Drizzt lembrava-se muito bem do bárbaro de um olho só. A mera menção de seu nome produzia uma dor embotada no ombro do drow, onde havia sido ferido pelo pesado machado daquele homem gigantesco.
- Está vivo - replicou Drizzt, resguardando um pouco seu desdém. - Heafstaag fala por todo o norte agora. Não resta ninguém de sangue real para se opor a ele em combate ou desafiá-lo e impedi-lo.
- É um rei poderoso - disse Wulfgar, alheio ao veneno na voz do drow.
- É um combatente selvagem - corrigiu Drizzt. Seus olhos cor de lavanda cravaram-se em Wulfgar e apanharam o bárbaro completamente de surpresa com o repentino lampejo de fúria. Wulfgar vislumbrou o incrível caráter naquelas fontes lilases, uma força interior cuja virtude genuína faria inveja ao mais nobre dos reis.
- Você se tornou um homem ao lado de um anão de caráter indiscutível - ralhou Drizzt. - Será que não lucrou nada com a experiência?
Wulfgar ficou estarrecido e não conseguiu encontrar palavras para responder.
Drizzt decidiu que chegara a hora de expor os princípios do bárbaro e julgar a sabedoria e o valor de ensinar o rapaz.
- Um rei é um homem forte de caráter e convicção que lidera pelo exemplo e realmente se importa com os sofrimentos de seu povo - instruiu ele. - Não um bruto que governa simplesmente por ser o mais forte. Achei que você havia aprendido a entender a diferença.
Drizzt notou o constrangimento no rosto de Wulfgar e compreendeu que os anos nas cavernas dos anões haviam estremecido a própria base sobre a qual o bárbaro crescera. Ele esperava que a fé de Bruenor na consciência e na noção de princípios de Wulfgar se mostrasse verdadeira, pois ele também, como Bruenor anos antes, viera a reconhecer uma certa promessa no inteligente rapaz e descobrira que se importava com o futuro de Wulfgar. Virou-se subitamente e partiu, deixando o bárbaro sozinho para encontrar as respostas às próprias perguntas.
- E a aula? - Wulfgar gritou-lhe, ainda confuso e surpreso.
- Já teve sua aula por esta noite - Drizzt respondeu sem se virar nem diminuir o passo. - Talvez tenha sido a mais importante de todas as que eu posso lhe ensinar. - O drow desapareceu nas trevas da noite, mas a imagem distinta dos olhos cor de lavanda continuou nitidamente gravada nos pensamentos de Wulfgar.
O bárbaro voltou-se para a fogueira distante. E pôs-se a pensar consigo mesmo.
15
Nas Asas da Destruição
Chegaram encobertos por uma violenta borrasca que veio do leste, escapou à barreira das montanhas e assolou Dez-Burgos. Ironicamente, eles seguiam a mesma trilha ao longo da encosta do Sepulcro de Kelvin que Drizzt e Wulfgar haviam percorrido apenas duas semanas antes. O bando de verbeeg, porém, ia para o sul, em direção aos povoados, e não para o norte e a extensa tundra. Apesar de altos e magros - os menores entre os gigantes -, eles ainda constituíam uma força formidável.
Um gigante do gelo liderava o grupo avançado do vasto exército de Akar Kessell. Despercebidos em meio às rajadas uivantes de vento, ele se dirigiam a toda velocidade para um covil secreto que fora descoberto por batedores ores num contraforte rochoso na encosta meridional da montanha. Havia mal e mal vinte dos monstros, mas cada um deles carregava um imenso fardo de armas e suprimentos.
O líder prosseguia vigorosamente a toda velocidade em direção a seu destino. Seu nome era Sorrisão, um gigante esperto e imensamente forte cujo lábio superior havia sido arrancado pelos dentes afiados de um lobo descomunal, o que deixou a grotesca caricatura de um sorriso eternamente estampada em seu rosto. A desfiguração só aumentava a estatura do gigante e instilava o respeito devido ao medo em seus soldados normalmente indisciplinados. Akar Kessell pessoalmente escolhera Sorrisão como o líder de seus batedores de vanguarda, embora o mago tivesse sido aconselhado a enviar um grupo não tão conspícuo - parte da gente de Heafstaag - naquela delicada missão. Mas Kessell tinha Sorrisão em alta conta e estava impressionado com a enorme quantidade de suprimentos que o pequeno bando de verbeeg era capaz de carregar.
A tropa se estabeleceu nos novos alojamentos antes da meia-noite e ocupou-se imediatamente de adaptar dormitórios, despensas e uma pequena cozinha. Depois, puseram-se a esperar, silenciosos e preparados para desferir os primeiros golpes fatais do glorioso assalto de Akar Kessell a Dez-Burgos.
Um mensageiro ore vinha a cada dois dias para ver como se comportava o bando e passar as mais recentes instruções do mago, informando Sorrisão sobre o avanço da próxima tropa de suprimentos que estava programada para chegar. Tudo procedia de acordo com o plano de Kessell, mas era com preocupação que Sorrisão notava que muitos de seus guerreiros ficavam mais impacientes e ansiosos a cada vez que um novo mensageiro aparecia, pois esperavam que a hora de marchar para a guerra finalmente tivesse chegado.
No entanto, as instruções eram sempre as mesmas: permanecer escondidos e aguardar.
Em menos de duas semanas na tensa atmosfera da caverna abafada, a camaradagem entre os gigantes havia se desintegrado. Os verbeeg eram criaturas de ação, e não de contemplação, e o tédio levou-os inevitavelmente à frustração. As discussões tornaram-se a regra, o que muitas vezes levava a brigas violentas. Sorrisão estava sempre por perto e o imponente gigante do gelo geralmente conseguia dissolver os tumultos antes que um dos soldados saísse gravemente ferido. O gigante não tinha a menor dúvida de que não conseguiria manter por muito mais tempo o controle sobre aquele bando ávido de batalhas.
O quinto mensageiro introduziu-se na caverna numa noite particularmente quente e desagradável. Assim que entrou na sala comum, o desafortunado ore foi cercado por vinte verbeeg rabugentos.
- E aí, o que é que manda? - um deles perguntou, impaciente. Imaginando que o apoio de Akar Kessell fosse proteção suficiente, o ore fitou o gigante em franco desafio.
- Vá buscar seu mestre, soldado - ordenou.
De repente, uma mão descomunal agarrou o ore pelo cangote e chacoalhou rudemente a criatura.
- A gente fizemos uma pergunta, seu escroto - disse um segundo gigante. - O que é que manda?
O ore, agora visivelmente amedrontado, disparou uma ameaça furiosa ao gigante que o agredia:
- O mago vai lhe arrancar o couro!
- Já ouvi o bastante - rosnou o primeiro gigante, abaixando-se para prensar o pescoço do ore em sua mão descomunal. Ergueu a criatura do solo, usando apenas um de seus poderosos braços. O ore distribuiu tapas e contorceu-se lastimavelmente, sem que sequer chegasse a incomodar o verbeeg.
- Ah, aperta esse pescocinho nojento! - veio um grito.
- Arranca os olhos dele e joga essa coisa num buraco escuro! - disse um outro.
Sorrisão entrou na sala, atravessou rapidamente as fileiras para descobrir o motivo da comoção. O gigante não se surpreendeu ao encontrar os verbeeg torturando um ore. Na verdade, o líder dos gigantes achou graça no espetáculo, mas compreendeu o risco que era enfurecer o volátil Akar Kessell. Já tinha visto vários goblins indisciplinados sofrerem uma morte lenta por desobediência, ou simplesmente para satisfazer o distorcido senso de diversão do mago.
- Solte essa coisinha miserável - ordenou Sorrisão placidamente. Queixas e resmungos irados brotaram em torno do gigante do gelo.
- Arrebenta a cabeça dele! - gritou um.
- Morde o nariz dele! - berrou outro.
Aquela altura, a cara do ore já estava inchada devido à falta de ar e ele mal e mal esperneava. O verbeeg que o segurava retribuiu o olhar ameaçador de Sorrisão durante algum tempo ainda, depois atirou sua vítima indefesa contra a bota do gigante do gelo.
- Fica com ele, então - rosnou o verbeeg para Sorrisão. - Mas se ele matraquear comigo de novo, pode crer que eu vou comer ele!
- Já 'tou cheio deste buraco - reclamou um gigante das fileiras de trás. - E um vale inteiro de anões nojentos dando sopa!
Os resmungos recomeçaram com maior intensidade.
Sorrisão olhou ao redor e avaliou a fúria fervilhante que havia se insinuado em todos os soldados e ameaçava trazer abaixo o covil inteiro num súbito acesso de violência irreprimível.
- Amanhã de noite, a gente começa a dar umas voltas por aí pra ver como 'tão as coisas - ofereceu Sorrisão como resposta. O gigante do gelo sabia que aquela era uma manobra perigosa, mas a alternativa era o desastre certo. - Só três de cada vez e ninguém pode saber!
O ore readquirira um certo domínio de si e ouviu a proposta de Sorrisão. Começou a protestar, mas o líder dos gigantes silenciou-o imediatamente.
- Cala a boca, seu ore canalha - ordenou Sorrisão, olhando para o verbeeg que havia ameaçado o mensageiro e sorrindo obliquamente. - Ou vou deixar meu amigo aqui almoçar você!
Os gigantes berraram de alegria e trocaram com os companheiros palmadas nos ombros, novamente camaradas. Sorrisão devolvera a eles a promessa de ação, embora o vigoroso entusiasmo dos soldados estivesse muito longe de desfazer as dúvidas do líder dos gigantes quanto àquela decisão. Aos gritos, várias receitas preparadas com anões e inventadas pelos verbeeg - "Anão na Maçã" e "Barbado, Regado e Cozido", para nomear duas delas - foram anunciadas e acabaram em ensurdecedores apupos de aprovação.
Sorrisão temia o que poderia acontecer se os verbeeg encontrassem algumas das pessoas pequenas.
Sorrisão deixava os verbeeg saírem do covil em grupos de três e só durante a noite. O líder dos gigantes achava improvável que os anões se deslocassem até o extremo norte do vale, mas sabia que estava assumindo um risco enorme. Um suspiro de alívio escapava da boca do gigante toda vez que uma patrulha retornava sem incidentes.
Somente o fato de terem permissão para sair da caverna apinhada já melhorou dez vezes o moral dos verbeeg. A tensão no covil praticamente desapareceu assim que os soldados recobraram o entusiasmo com a guerra iminente. Do alto da encosta do Sepulcro de Kelvin, eles costumavam ver as luzes de Caer-Konig e Caer-Dineval, e Termalaine do outro lado, a oeste, e até mesmo Brin Shander bem mais ao sul. Avistar as cidades permitia-lhes fantasiar sobre as futuras vitórias e esses pensamentos eram suficientes para ampará-los em sua longa espera.
Mais uma semana transcorreu. Tudo parecia estar indo muito bem. Em vista da melhoria que aquele pequeno grau de liberdade trouxera aos soldados, Sorrisão gradualmente começou a relaxar em relação à arriscada decisão.
Mas, então, dois anões, tendo sido informados por Bruenor que havia uma pedra excelente sob a sombra do Sepulcro de Kelvin, foram até a extremidade norte do vale para investigar seu potencial de mineração. Eles chegaram às encostas meridionais da montanha rochosa no final de uma certa tarde e, ao crepúsculo, já tinham montado acampamento numa laje ao lado de um riacho veloz.
O vale pertencia a eles e não tinham problemas havia anos. Eles tomaram poucas precauções.
E foi assim que a primeira patrulha de verbeeg a deixar o covil naquela noite logo avistou as chamas de uma fogueira e ouviu o característico dialeto dos odiados anões.
Do outro lado da montanha, Drizzt Do'Urden abriu os olhos depois de seu sono diurno. Ao sair da caverna e adentrar a crescente escuridão, ele encontrou Wulfgar no lugar de sempre, equilibrado meditativamente sobre uma pedra alta, fitando a planície.
- Tem saudades de casa? - perguntou o drow retoricamente.
Wulfgar deu de ombros, aqueles ombros imensos, e respondeu distraidamente:
- Talvez.
O bárbaro vinha se fazendo muitas perguntas inquietantes a respeito de seu povo e de seu modo de vida desde que aprendera a respeitar Drizzt. O drow era um enigma para ele, uma combinação perturbadora de brilhantismo em combate e absoluto controle. Drizzt parecia capaz de avaliar cada um de seus passos segundo os padrões das grandes aventuras e de princípios morais indiscutíveis.
Wulfgar lançou um olhar inquisitivo para o drow.
- Por que você está aqui? - perguntou de repente.
Agora era Drizzt quem fitava com ar meditativo aquela lhanura diante deles. As primeiras estrelas da noite haviam aparecido e seus reflexos cultuavam distintamente nas fontes escuras que eram os olhos do elfo. Mas Drizzt não as enxergava; sua mente vislumbrava imagens antigas das cidades escuras dos drow em seus imensos complexos de cavernas muito abaixo do solo.
- Eu me lembro - recordou Drizzt vividamente, pois as lembranças terríveis geralmente são vividas - da primeira vez que vi este mundo da superfície. Era um elfo muito mais jovem na ocasião, um membro de um grande grupo de assalto. Saímos sorrateiramente de uma caverna secreta e nos precipitamos sobre uma pequena aldeia élfica. - O drow encolheu-se diante das imagens que lampejavam mais uma vez em sua mente. - Meus companheiros mataram todos os membros do clã de elfos da floresta. Todas as mulheres. Todas as crianças.
Wulfgar ouvia com horror crescente. O ataque que Drizzt descrevia poderia muito bem ter sido um dos perpetrados pela feroz Tribo do Alce.
- Meu povo mata - continuou Drizzt sinistramente. - Mata sem piedade. - Ele cravou os olhos em Wulfgar para se certificar de que o bárbaro estava prestando atenção.
- Mata sem paixão.
Deteve-se por um momento para deixar o bárbaro absorver todo o peso de suas palavras. A descrição simples, porém exata de assassinos tão frios confundira Wulfgar. Ele fora criado e educado entre guerreiros passionais, combatentes cujo único propósito na vida era a busca pela glória na batalha: lutar em louvor a Tempus. O jovem bárbaro simplesmente não conseguia entender uma crueldade assim tão desprovida de emoção. Mas, Wulfgar era obrigado a admitir, a diferença era sutil. Drow ou bárbaro, os resultados dos ataques eram os mesmos.
- A deusa-demônio a quem os drow servem não admite outras raças - explicou Drizzt. - Particularmente as outras raças de elfos.
- Mas você jamais será aceito neste mundo - disse Wulfgar. - Sabe por certo que os humanos sempre o evitarão.
Drizzt assentiu.
- A maioria - concordou ele. - Existem uns poucos a quem posso chamar de amigos, mas estou satisfeito. Entenda, bárbaro, tenho meu próprio respeito, sem culpa, sem vergonha. - Levantou-se, pois estava agachado, e afastou-se na direção das trevas. - Venha - instruiu ele. - Lutemos bem esta noite, pois estou satisfeito com seu progresso e esta parte das aulas já está quase no fim.
Wulfgar continuou sentado durante algum tempo ainda, pensativo. O drow levava uma existência dura e materialmente vazia, porém era mais rico que qualquer homem que Wulfgar já conhecera. Drizzt mantivera-se fiel a seus princípios diante de circunstâncias esmagadoras, abandonou o mundo familiar de seu próprio povo pela opção de permanecer num mundo onde nunca seria aceito ou apreciado.
Olhou para o elfo que se afastava, agora uma mera sombra na escuridão.
- Talvez nós dois não sejamos tão diferentes assim - murmurou a meia-voz.
- Espiões - sussurrou um dos verbeeg.
- Que estúpido espionar com uma fogueira acesa - disse um outro.
- Vamos esborrachar eles! - disse o primeiro, partindo em direção à luz alaranjada.
- O chefe falou que não! - lembrou-lhes o terceiro. - E pra gente vigiar, nada de esborrachar!
Eles desceram a trilha rochosa rumo ao pequeno acampamento dos anões com toda a dissimulação de que eram capazes, o que os tornava tão silenciosos quanto um matacão a rolar montanha abaixo.
Os dois anões logo perceberam que alguém ou alguma coisa se aproximava. Sacaram suas armas como precaução, mas imaginaram que Wulfgar e Drizzt, ou talvez alguns pescadores de Caer-Konig, tivessem avistado a fogueira e vinham partilhar com eles o jantar.
Assim que avistaram o acampamento logo abaixo deles, os verbeeg viram os anões em posição, com as armas nas mãos.
- Eles viram a gente! - disse um gigante, abaixando-se e procurando abrigo na escuridão.
- Ah, cala a boca - ordenou o segundo.
O terceiro gigante, sabendo tão bem quanto o segundo que não havia como os anões saberem ainda de quem se tratava, agarrou o ombro deste e piscou maldosamente.
- Se eles viram a gente - raciocinou -, nós não tem escolha a não ser esborrachar eles.
O segundo gigante casquinou baixinho, levou a pesada clava ao ombro e partiu em direção ao acampamento.
Os anões ficaram completamente aturdidos quando os verbeeg apareceram, saltando e contornando os matacões a apenas alguns metros do acampamento, e vieram direto para cima deles. Mas um anão acossado é inabalável, e aqueles dois pertenciam ao clã do Salão de Mitral, que a vida toda travara batalhas na tundra implacável. A luta não seria tão fácil quanto os verbeeg esperavam.
O primeiro anão abaixou-se, evitando um golpe desajeitado do verbeeg na vanguarda do ataque, e respondeu dando com o martelo nos dedos do pé do monstro. O gigante instintivamente levantou o pé ferido e começou a saltar numa perna só, e o experiente guerreiro anão prontamente o derrubou com uma pancada no joelho.
O outro anão reagira rapidamente, arremessando o martelo com extrema precisão. Atingiu o outro gigante no olho e fez a criatura girar e cair estrondosamente sobre algumas pedras.
Mas o terceiro verbeeg, o mais esperto dos três, apanhara uma pedra antes de partir para a investida e retribuiu o arremesso do anão com força extraordinária. A pedra bateu na têmpora do desafortunado anão, partindo-lhe violentamente o pescoço. A cabeça pendeu de um ombro a outro quando ele caiu morto no chão.
O primeiro anão teria logo dado cabo do gigante que derrubara, mas o último dos monstros precipitou-se sobre ele no mesmo instante. Os dois combatentes esgrimiram e, na verdade, o anão até conseguiu uma pequena vantagem. Uma vantagem que durou apenas até o gigante atingido no olho pelo martelo arremessado se recuperar o suficiente para entrar na refrega.
Os dois verbeeg fizeram chover golpes cada vez mais pesados sobre o anão. Ele conseguiu se esquivar e aparar alguns deles, mas foi atingido em cheio no ombro e caiu de costas. Recuperou o fôlego em pouco tempo, pois era tão resistente quanto a pedra na qual aterrissara, mas uma pesada bota o esmagou e o manteve prostrado.
- Esborracha ele! - implorou o gigante ferido que o anão derrubara. - Aí a gente leva ele pro cozinheiro!
- Não leva, não! - grunhiu o gigante por cima do anão. Enterrou no solo a bota descomunal e, lentamente, foi arrancando a vida da desafortunada vítima.
- Sorrisão vai levar a gente pro cozinheiro se ele descobrir isto!
Os outros dois ficaram genuinamente amedrontados ao serem lembrados da ira de seu líder cruel. Olharam desamparadamente para o companheiro mais inteligente, esperando uma solução.
- A gente coloca eles e essas coisas nojentas num buraco escuro e ninguém fala mais nisso!
Muitas milhas a leste dali, em sua torre solitária, Akar Kessell esperava pacientemente. No outono, a última - e a maior - das caravanas mercantes viria de Luskan até Dez-Burgos, carregada de riquezas e suprimentos para o longo inverno. Seus vastos exércitos estariam reunidos e já em movimento àquela altura, marchando gloriosamente para destruir os lastimáveis pescadores. Simplesmente imaginar os frutos de sua fácil vitória fazia o mago estremecer de gozo.
Ele não tinha como saber que os primeiros golpes da guerra já haviam sido desferidos.
16
Covas Rasas
Quando Wulfgar acordou pouco antes do meio-dia, recuperado da canseira da longa noite, surpreendeu-se ao ver Drizzt já de pé e ativo, a preparar diligentemente a mochila para uma longa caminhada.
- Hoje começaremos com um tipo diferente de aula - explicou Drizzt ao bárbaro. - Partiremos assim que você tiver comido alguma coisa.
- Para onde?
- Primeiro, as minas dos anões - replicou Drizzt. - Bruenor vai querer dar uma olhada em você para poder avaliar seu progresso pessoalmente. - Sorriu para o grandalhão. - Ele não vai se decepcionar!
Wulfgar sorriu, confiante que sua recém-descoberta perícia com o martelo impressionaria até mesmo o rabugento anão.
- E depois?
- Para Termalaine, às margens do Maer Dualdon. Tenho um amigo por lá. Um dos poucos - acrescentou Drizzt rapidamente com uma piscadela, arrancando um sorriso de Wulfgar. - Um homem chamado Agorwal. Quero que você conheça algumas das pessoas de Dez-Burgos para que possa julgá-las melhor.
- O que há para julgar? - Wulfgar perguntou, colérico.
Os olhos sagazes e escuros do drow cravaram-se nele. Wulfgar claramente compreendeu o que Drizzt tinha em mente. O elfo negro estava tentando individualizar as pessoas que os bárbaros haviam declarado como inimigas, estava tentando mostrar a Wulfgar a existência cotidiana dos homens, das mulheres e das crianças que poderiam ter sido as vítimas do pesado mastro do rapaz caso o resultado da luta nas encostas tivesse sido outro. Intrépido em qualquer batalha, Wulfgar estava realmente com medo de encarar aquelas pessoas. O jovem bárbaro já começara a questionar as virtudes de sua gente belicosa; os rostos inocentes que encontraria na vila que seu povo casualmente marcara para ser queimada poderiam muito bem completar a destruição das fundações de todo o seu mundo.
Os dois companheiros puseram-se a caminho pouco depois, retraçando os próprios passos e contornando as trilhas orientais do Sepulcro de Kelvin. Um vento poeirento soprava constantemente do leste e assaltava-os com grãos finos de areia lancinante enquanto cruzavam a face exposta da montanha. Apesar de o sol fulgurante exaurir Drizzt, ele manteve um ritmo forte e não parou para descansar.
No fim da tarde, quando finalmente contornaram um dos contrafortes meridionais, eles estavam exaustos mas bem-humorados.
- No abrigo das minas, eu havia me esquecido da crueldade do vento da tundra! - riu Wulfgar.
- Teremos alguma proteção sob a orla do vale - disse Drizzt. Ele bateu de leve o cantil vazio contra o próprio flanco. - Venha, sei onde poderemos reabastecer estes aqui antes de continuarmos.
Ele levou Wulfgar para o oeste, sob as encostas meridionais da montanha. O drow conhecia um riacho glacial, a uma pequena distância dali, cujas águas se alimentavam da neve derretida no topo do Sepulcro de Kelvin.
O córrego cantava alegremente, dançando por entre as pedras. As aves da vizinhança chilrearam e crocitaram com a aproximação dos companheiros, e um lince esgueirou-se silenciosamente para longe. Tudo parecia em ordem, mas a partir do momento em que chegaram à grande laje comumente usada pelos viajantes como acampamento, Drizzt sentiu que algo estava terrivelmente errado. Aproximando-se tentativamente, ele procurou algum sinal palpável que confirmasse suas crescentes suspeitas.
Wulfgar, porém, deitou-se de bruços na pedra e mergulhou avidamente o rosto coberto de suor e terra na água gelada. Ao retirar a cabeça do riacho, o brilho havia retornado a seus olhos, como se a água glacial tivesse lhe devolvido a vitalidade.
Mas, então, o bárbaro notou manchas carmesins na rocha e seguiu-lhes o rastro sangrento até um pedaço hirsuto de pele que ficara preso na ponta afiada de uma pedra logo acima do riacho impetuoso.
Ambos rastreadores habilidosos, o ranger e o bárbaro tiveram pouca dificuldade para determinar que uma batalha fora recentemente travada naquele local. Reconheceram o pêlo grosseiro no fragmento de pele como um pedaço de barba, o que, naturalmente, levou-os a pensar nos anões. Encontraram três conjuntos de pegadas gigantescas nas proximidades. Seguindo uma linha tangente de rastros que se estendia por uma pequena distância em direção ao sul até um trecho arenoso de terreno, logo encontraram as covas rasas.
- Não é Bruenor - disse Drizzt, carrancudo, examinando os dois cadáveres. - Anões mais jovens: Bundo, filho de Martelocruel, e Dourgas, filho de Argo Espadimplacável, creio eu.
- Devemos chegar às minas o mais rápido possível - sugeriu Wulfgar.
- Daqui a pouco - replicou o drow. - Ainda temos muito a descobrir sobre o que aconteceu aqui, e esta noite pode ser nossa única oportunidade. Esses gigantes eram simplesmente desgarrados de passagem ou estão se entocando na área? Será que há mais dessas criaturas abomináveis?
- Precisamos contar a Bruenor - argumentou Wulfgar.
- E assim o faremos - disse Drizzt. - Mas, se esses três ainda estiverem nas proximidades - como acredito que estejam, já que se deram ao trabalho de enterrar suas vítimas - podem muito bem retornar em busca de mais caça ao cair da noite. - Ele dirigiu o olhar de Wulfgar para o oeste, onde o céu já começara a assumir os tons róseos do crepúsculo. - Está pronto para uma luta, bárbaro?
Com um grunhido determinado, Wulfgar retirou Garra de Palas do ombro e bateu a empunhadura de adamantita na mão espalmada.
- Vamos ver quem será a caça esta noite.
Esconderam-se atrás de um rochedo ao sul da laje e aguardaram enquanto o sol passava sob o horizonte e as sombras escuras aumentavam e transformavam-se em noite.
Não foi uma espera muito longa, pois os mesmos verbeeg que haviam matado os anões na noite anterior foram mais uma vez os primeiros a deixar o covil, ansiosos por novas vítimas. Logo, a patrulha desceu estrondosamente pelo declive da montanha até a laje ao lado do riacho.
Wulfgar imediatamente preparou-se para uma investida, mas Drizzt o deteve antes que entregasse a posição deles. O drow tinha toda a intenção de matar aqueles gigantes, mas primeiro queria ver se conseguia descobrir algo sobre o motivo pelo qual estavam ali.
- Ora bolas, carambolas - resmungou um dos gigantes. - Nem um anãozinho só!
- Mas que sorte maldita - gemeu um outro. - E é a última noite da gente também.
Os companheiros do monstro olharam para ele com curiosidade.
- O outro grupo 'tá chegando amanhã - explicou o verbeeg. - Vai ter o dobro da gente, e ogros e ores fedidos de lambuja, e o chefe não vai deixar a gente sair até tudo ficar calmo de novo.
- Mais vinte naquele buraco fedido - reclamou um dos outros. - Vê se não é pra deixar a gente doido!
- Vamos nessa, então - disse o terceiro. - Aqui não tem caça e não dá pra gente jogar a noite fora.
Os dois aventureiros atrás do rochedo ficaram involuntariamente tensos quando os gigantes falaram em partir.
- Se chegarmos àquela rocha - raciocinou Wulfgar, apontando, sem saber, para o mesmo matacão que os gigantes haviam usado em sua emboscada na noite anterior -, estaremos sobre eles antes mesmo que percebam que estamos aqui - Voltou-se ansiosamente para Drizzt, mas recuou imediatamente ao ver o drow. Os olhos cor de lavanda ardiam com um brilho que Wulfgar jamais testemunhara antes.
- Há apenas três deles - disse Drizzt, e sua voz encerrava uma frágil margem de calma que ameaçava explodir a qualquer momento. - Não precisamos pegá-los de surpresa.
Wulfgar não soube muito bem como julgar essa inesperada mudança no elfo negro.
- Você me ensinou a procurar toda e qualquer vantagem - disse ele, cauteloso.
- Na batalha, sim - respondeu Drizzt. - Isto é vingança. Deixe que os gigantes nos vejam, deixem-nos sentir o terror do fim iminente! - As cimitarras apareceram subitamente em suas mãos magras assim que ele contornou o rochedo, trazendo assustadoramente no passo firme a promessa inabalável da morte.
Um dos gigantes gritou, surpreso, e todos ficaram paralisados ao verem o drow aparecer diante deles. Apreensivos e confusos, formaram uma linha defensiva na laje. Os verbeeg conheciam lendas sobre os drow, até mesmo algumas nas quais os elfos negros haviam unido forças com os gigantes, mas a repentina aparição de Drizzt pegou-os totalmente de surpresa.
Drizzt desfrutou dos espasmos nervosos das criaturas e deteve-se para saborear o momento.
- O que é que 'cê quer? - um dos gigantes perguntou cautelosamente.
- Sou amigo dos anões - replicou Drizzt, com uma gargalhada perversa. Wulfgar saltou para o lado dele quando o maior dos gigantes investiu sem hesitar. Mas Drizzt o deteve. O drow apontou uma de suas cimitarras para o gigante que avançava e declarou com calma mortal:
- Você está morto.
Imediatamente, o verbeeg foi delineado por chamas púrpuras. Gritou de terror e retrocedeu um passo, mas Drizzt acossou-o metodicamente.
Apoderou-se de Wulfgar um impulso irresistível de atirar o martelo de guerra, como se Garra de Palas estivesse exercendo a própria vontade. A arma zuniu pelo ar noturno e explodiu contra o gigante do meio, arremessando-lhe o corpo alquebrado no volumoso riacho.
Wulfgar estava verdadeiramente pasmo com o poder e a letalidade do arremesso, porém preocupava-se agora em descobrir com que eficácia poderia rechaçar o terceiro gigante com um pequeno punhal, a única arma que lhe restara. O gigante também reconheceu a vantagem e investiu furiosamente. Wulfgar fez menção de sacar o punhal.
Mas, em vez disso, encontrou Garra de Palas magicamente de volta a sua mão. Não fazia idéia desse poder especial que Bruenor imbuíra na arma e, no momento, não tinha tempo para se deter e refletir.
Aterrorizado, mas sem ter para onde correr, o maior dos gigantes atacou Drizzt com abandono, o que deu ao elfo mais do que uma simples vantagem. O monstro ergueu bem alto sua pesada clava - o movimento exagerado pela fúria -, e Drizzt rapidamente enfiou as espadas pontiagudas através da túnica de couro e do ventre exposto. Com apenas uma ligeira hesitação, o gigante deu continuidade a seu possante golpe, mas o ágil drow ainda teve bastante tempo para se esquivar. E, como o golpe deixasse o desajeitado gigante desequilibrado, Drizzt abriu mais duas minúsculas perfurações no ombro e no pescoço da criatura.
- Está vendo, garoto? - o drow gritou alegremente para Wulfgar. - Este monstro luta como um dos seus.
Wulfgar estava completamente envolvido no combate com o gigante remanescente, manobrando Garra de Palas com facilidade para aparar os poderosos golpes do monstro, mas conseguiu vislumbrar a batalha que ocorria a seu lado. A cena retratava um lembrete soturno do valor daquilo que Drizzt lhe ensinara, pois o drow estava brincando com o verbeeg, usando a fúria descontrolada do gigante contra ele mesmo. Repetidas vezes, o monstro ergueu os braços para um golpe fatal, e Drizzt sempre foi rápido o bastante para atingi-lo e afastar-se com graça. Sangue de verbeeg escorria livremente de uma dúzia de ferimentos, e Wulfgar sabia que Drizzt poderia dar cabo do serviço a qualquer momento. Mas ele se admirava por estar o elfo negro deleitando-se com seu joguinho torturante.
Wulfgar ainda não atingira seu oponente com um único golpe consistente, pois aguardava o momento oportuno, como Drizzt lhe ensinara, até o verbeeg enfurecido se cansar. O bárbaro já podia ver que os golpes do gigante vinham com menos freqüência e menor vigor. Por fim, coberto de suor e respirando pesadamente, o verbeeg errou e baixou a guarda. Garra de Palas acertou em cheio uma vez, e mais outra, e o gigante foi ao chão numa massa informe.
O verbeeg que lutava com Drizzt agora apoiava-se num joelho, pois o drow havia habilmente cortado-lhe um dos tendões. Quando Drizzt viu o segundo gigante cair diante de Wulfgar, decidiu dar fim ao jogo. O gigante tentou mais um golpe inútil e Drizzt investiu na esteira da trajetória da arma, estocando com uma cimitarra e, dessa vez, acompanhando a ponta cruel de todo o seu peso. A lâmina atravessou o pescoço do gigante e subiu até o cérebro.
Mais tarde, uma pergunta atormentava Drizzt enquanto ele e Wulfgar, apoiado num joelho, consideravam os resultados de sua obra.
- O martelo? - perguntou simplesmente. Wulfgar olhou para Garra de Palas e deu de ombros.
- Não sei - respondeu com sinceridade. - Voltou para minha mão por sua própria mágica!
Drizzt sorriu consigo mesmo. Ele sabia. Maravilhosa era a arte de Bruenor, pensou. E o quanto o anão devia se importar com o rapaz para dar a ele tamanho presente!
- Uma vintena de verbeeg a caminho - gemeu Wulfgar.
- E mais vinte deles já estão aqui - acrescentou Drizzt. - Vá direto até Bruenor - instruiu ele. - Estes três acabaram de deixar o covil; não vou ter muito trabalho em seguir-lhes os rastros e descobrir onde está o resto deles.
Wulfgar assentiu com a cabeça, mas olhou para Drizzt com preocupação. O ardor atípico que vira nos olhos do drow antes de atacarem os verbeeg havia assustado o bárbaro. Ele não estava bem certo de até onde a audácia do elfo negro poderia chegar.
- O que você pretende fazer quando encontrar o covil?
Drizzt nada disse, mas sorriu obliquamente, o que aumentou a apreensão do bárbaro. Por fim, ele aliviou as preocupações de seu amigo:
- Encontre-me novamente neste local pela manhã. Garanto que não vou começar a festa sem você!
- Devo estar de volta antes da primeira luz da aurora - replicou Wulfgar, carrancudo. Girou sobre os calcanhares e desapareceu na escuridão, abrindo caminho o mais rápido possível sob a luz das estrelas.
Drizzt também partiu, seguindo a trilha dos três gigantes em direção ao oeste pela face do Sepulcro de Kelvin. Por fim, ouviu as vozes de barítono dos gigantes e, logo depois, viu as portas de madeira construídas às pressas que marcavam o covil, astuciosamente escondidas por trás de umas moitas, a meio caminho do topo de um contraforte rochoso.
Drizzt esperou pacientemente e logo viu uma segunda patrulha de três gigantes emergir do covil. E mais tarde, quando estes retornaram, um terceiro grupo saiu. O drow tentava discernir se algum alarma fora dado devido à ausência da primeira patrulha. Mas os verbeeg eram quase sempre indisciplinados e indignos de confiança, e os pequenos fragmentos de conversa que Drizzt foi capaz de ouvir tranqüilizaram-no de que os gigantes haviam presumido que seus companheiros desaparecidos tivessem se perdido ou simplesmente desertado. Quando se esgueirou para longe algumas horas depois, com a intenção colocar em andamento seus próximos planos, o drow estava confiante de que ainda tinha o elemento surpresa a seu lado.
Wulfgar correu noite afora. Entregou sua mensagem a Bruenor e partiu de volta em direção ao norte sem esperar que o clã fosse despertado. Seus passos largos o levaram até a laje mais de uma hora antes do primeiro sinal de luz, antes mesmo de Drizzt ter retornado do covil. Ele foi para trás do rochedo a fim de esperar Drizzt, e sua preocupação pelo drow crescia a cada segundo.
Por fim, incapaz de agüentar por mais tempo aquela expectativa, ele procurou a trilha dos verbeeg e começou a rastreá-la em direção ao covil, determinado a descobrir o que estava acontecendo. Não havia se deslocado nem vinte pés quando uma mão deu-lhe um tabefe na nuca. Seu reflexo foi girar para encarar o atacante, mas seu espanto transformou-se em alegria ao ver Drizzt de pé diante dele.
Drizzt retornara à rocha logo depois de Wulfgar, mas permanecera escondido, observando o bárbaro para ver se o jovem e impulsivo guerreiro respeitaria o pacto de ambos ou decidiria fazer tudo sozinho.
- Nunca duvide de um encontro marcado até ter passado a hora - ralhou o drow com severidade, mesmo que emocionado pela preocupação do bárbaro por seu bem-estar.
O bárbaro não teve tempo de responder, pois, de repente, os dois companheiros ouviram o grito rouco de uma voz familiar.
- Me arranja um gigante guinchando como um porco pra mim matar! - gritou Bruenor desde a laje às margens do riacho, logo atrás deles. Anões furiosos podem se deslocar a uma velocidade incrível. Em menos de uma hora, o clã de Bruenor havia se reunido e partido atrás do bárbaro, quase igualando seu ritmo frenético.
- Bons olhos o vejam - gritou Drizzt ao se juntar ao anão. Encontrou Bruenor fitando os três verbeeg mortos com impiedosa satisfação. Cinqüenta anões de aparência férrea e prontos para a batalha, mais da metade do clã, cercavam seu líder.
- Elfo - cumprimentou Bruenor com sua costumeira consideração. - Um covil, é isso?
Drizzt assentiu.
- Uma milha a oeste daqui, mas que essa não seja sua primeira preocupação. Os gigantes de lá não vão a lugar algum, mas estão esperando convidados ainda hoje.
- O garoto me contou - disse Bruenor. - Uns vinte deles como reforços. - Brandiu o machado casualmente. - Não sei por que, mas tenho o pressentimento que não vão chegar ao covil! Alguma idéia de onde eles 'tão vindo?
Pelo norte e pelo leste, é o único caminho - raciocinou Drizzt. - Em algum lugar ao sul do Desfiladeiro do Vento Gélido, contornando o norte do Lac Dinneshir. Seu povo vai recebê-los, então?
- É claro - replicou Bruenor. - Eles vão passar pela Valvertente com certeza. - Uma piscadela excitou-lhe o olho. - O que 'cê pretende fazer? - perguntou a Drizzt. - E o que a gente faz com o garoto?
- O garoto fica comigo - insistiu Drizzt. - Ele precisa descansar. Vamos vigiar o covil.
O ávido fulgor nos olhos de Drizzt deu a Bruenor a impressão de que o drow tinha mais alguma coisa em mente do que simplesmente vigiar.
- Elfo maluco - disse, a meia-voz. - Provavelmente vai enfrentar o bando inteiro sozinho! - Olhou curiosamente ao redor, para os gigantes mortos. - E vai vencer! - Em seguida, Bruenor estudou os dois aventureiros, tentando comparar suas armas com os tipos de ferimento dos verbeeg.
- O garoto abateu dois deles - Drizzt respondeu à pergunta muda do anão.
A insinuação de um raro sorriso abriu caminho até o rosto de Bruenor.
- Dois, contra um seu, hein? 'cê 'tá perdendo a forma, elfo.
- Bobagem - retorquiu Drizzt. - Reconheci que ele precisava de prática!
Bruenor chacoalhou a cabeça, surpreso pela extensão do orgulho que sentia por Wulfgar, apesar de obviamente não desejar dizer isso ao rapaz e envaidecê-lo demasiadamente.
- 'tá perdendo a forma! - gritou ele novamente ao assumir mais uma vez a vanguarda do clã. Os anões retomaram uma cantilena rítmica, uma melodia antiga que outrora ecoara pelos salões prateados de sua perdida terra natal.
Bruenor olhou para trás, para seus dois amigos aventureiros, e perguntou-se sinceramente o que restaria do covil dos gigantes quando ele e seus companheiros anões retornassem.
17
Vingança
Infatigáveis, os anões tremendamente sobrecarregados seguiram marchando. Vieram preparados para a guerra, alguns deles carregavam pesadas mochilas e outros levavam nos ombros o enorme peso de grandes vigas de madeira.
A hipótese do drow em relação à direção da qual viriam os reforços parecia o único caminho possível, e Bruenor sabia exatamente onde interceptá-los. Somente uma passagem propiciava acesso fácil ao vale rochoso: Valvertente, um pouco acima da tundra, mas abaixo das encostas meridionais da montanha.
Embora tivessem marchado sem descanso metade da noite e a maior parte da manhã, os anões puseram-se imediatamente a trabalhar. Não faziam idéia da hora em que chegariam os gigantes, mas isso provavelmente não aconteceria à luz do dia; queriam se certificar de que tudo estaria pronto. Bruenor estava determinado a liquidar aquele destacamento rapidamente e com o menor número possível de baixas entre sua gente. Sentinelas foram posicionadas nos pontos altos da encosta e batedores enviados à planície. Sob a orientação de Bruenor, o resto do clã preparou a área para uma emboscada. Um grupo pôs-se a cavar um fosso e um outro começou a armar duas balistas com as vigas de madeira. Os besteiros procuraram os pontos mais vantajosos por entre os matacões da encosta próxima, a partir dos quais lançariam seu assalto.
Em pouco tempo, tudo estava pronto. Mas os anões, ainda assim, não pararam para descansar. Continuaram a examinar cada polegada da área, à procura da menor vantagem que conseguissem obter sobre os verbeeg.
Ao fim do dia, com o sol já a imergir suas fímbrias inferiores no horizonte, um dos atalaias na montanha anunciou que avistara uma nuvem de poeira a crescer no leste distante. Logo depois, um batedor chegou da planície para relatar que uma tropa de vinte verbeeg, alguns ogros e pelo menos uma dúzia de ores dirigia-se a Valvertente.
Bruenor sinalizou para os besteiros em suas posições dissimuladas. As equipagens das balistas inspecionaram a camuflagem sobre os grandes arcos e acrescentaram alguns toques finais. Em seguida, os mais fortes guerreiros do clã - e Bruenor entre eles - enterraram-se em pequenas tocas ao longo do caminho batido de Valvertente e cortaram cuidadosamente os tufos de relva densa de modo que pudessem novamente recolocá-los sobre si mesmos.
Seriam eles a desferir os primeiros golpes.
Drizzt e Wulfgar haviam se posicionado entre os matacões do Sepulcro de Kelvin, acima do covil dos gigantes. Passaram o dia dormindo em turnos. A única preocupação do drow em relação a Bruenor e seu clã era que alguns gigantes deixariam o covil para encontrar os reforços que chegavam e arruinariam a vantagem que os anões tinham na surpresa.
Depois de várias horas de monotonia, as preocupações de Drizzt se mostraram verdadeiras. O drow descansava à sombra de uma saliência enquanto Wulfgar mantinha vigilância sobre o covil. O bárbaro mal conseguia enxergar as portas de madeira ocultas atrás das moitas, mas ouviu claramente o rangido de um gonzo quando uma delas se abriu. Esperou alguns instantes antes de se mexer para despertar o drow, desejando certificar-se de que alguns dos gigantes estavam realmente saindo da toca.
Em seguida, ouviu os gigantes conversando na obscuridade da porta aberta e, de repente, meia dúzia de verbeeg emergiu na luz do sol. Voltou-se para Drizzt, mas encontrou o sempre alerta drow já de pé atrás dele, com os grandes olhos entrecerrados a observar os gigantes na luz brilhante.
- Não sei o que estão tramando - Wulfgar disse a Drizzt.
- Estão procurando os companheiros desaparecidos - replicou Drizzt. Com seus ouvidos aguçados, ele ouvira mais claramente que seu amigo, fragmentos distintos da conversa que tivera lugar antes dos gigantes aparecerem. Aqueles verbeeg haviam sido instruídos a exercer toda a cautela possível, mas deviam encontrar a patrulha havia muito atrasada ou ao menos determinar para onde os gigantes desaparecidos tinham ido. Esperava-se que eles retornassem naquela mesma noite, com ou sem os outros.
- Temos de avisar Bruenor - disse Wulfgar.
- Este grupo acabará encontrando os companheiros mortos e alertando o covil muito antes de conseguirmos retornar - replicou Drizzt. - Além disso, acredito que Bruenor já tem gigantes demais com os quais lidar.
- O que fazer, então? - perguntou Wulfgar. - Sem dúvida, será dez vezes mais difícil derrotar o covil se estiverem esperando encrenca. - O bárbaro notou que a chama incandescente havia retornado ao olhar do drow.
- O covil de nada saberá se estes gigantes nunca retornarem - disse Drizzt, de maneira prosaica, como se a tarefa de deter seis verbeeg em expedição de caça fosse um obstáculo insignificante. Wulfgar ouviu, descrente, apesar de já ter adivinhado o que Drizzt tinha em mente.
O drow notou a apreensão de Wulfgar e abriu um sorriso largo.
- Venha, garoto - instruiu ele, usando o título condescendente para incitar o orgulho do bárbaro. - Você treinou duro durante muitas semanas em preparação para um momento como este. - Saltou agilmente um pequeno precipício até a saliência de pedra e voltou-se mais uma vez para Wulfgar, e seus olhos cintilavam ferozmente ao capturar o sol da tarde.
- Venha - o drow repetiu, acenando com uma mão. - Há apenas seis deles!
Wulfgar chacoalhou a cabeça, resignado, e suspirou. Durante as semanas de treinamento, ele viera a conhecer Drizzt como um espadachim controlado e mortífero que ponderava cada finta e cada golpe com serena precisão. Mas, nos dois últimos dias, Wulfgar vira uma faceta excessivamente ousada - e até mesmo imprudente - do drow. A resoluta confiança de Drizzt era a única coisa a convencer Wulfgar de que o elfo não era suicida, e a única coisa a impelir Wulfgar a segui-lo, malgrado o próprio bom senso. Imaginou se haveria algum limite para sua confiança no drow.
Ele soube, naquele exato momento, que Drizzt um dia o levaria a uma situação sem escapatória.
A patrulha de gigantes foi para o sul durante algum tempo com Drizzt e Wulfgar secretamente a reboque. Os verbeeg não encontraram nenhum vestígio imediato dos gigantes desaparecidos e, temendo chegar muito perto das minas dos anões, viraram-se bruscamente para nordeste, na direção geral da laje onde a escaramuça ocorrera.
- Temos de atacá-los logo - Drizzt disse ao companheiro. - Vamos cercar nossa presa.
Wulfgar assentiu. Pouco tempo depois, aproximaram-se de uma área irregular de pedras pontudas, onde o caminho estreito serpeava e apresentava curvas repentinas. O terreno começava a ficar íngreme, e os companheiros reconheceram que o caminho que percorriam levaria à beira de um pequeno precipício. A luz do dia havia enfraquecido o bastante para proporcionar alguma cobertura. Drizzt e Wulfgar trocaram olhares perspicazes: chegara o momento de agir.
Drizzt, de longe o mais experiente dos dois, rapidamente discerniu o modo de ataque que ofereceria a melhor chance de sucesso. Em silêncio, fez sinal para que Wulfgar se detivesse.
- Temos de atacar e nos afastar - sussurrou -, e depois atacar novamente.
- Não é uma tarefa fácil com um inimigo desconfiado - disse Wulfgar.
- Tenho algo que pode nos ajudar.
O drow soltou a mochila das costas, retirou dela a pequena estatueta e chamou por sua sombra. Quando o espantoso felino apareceu abruptamente, o bárbaro, boquiaberto e horrorizado, saltou para longe.
- Que demônio você conjurou? - gritou tão alto quanto podia ousar, e os nós de seus dedos perderam a cor sob a pressão do punho que apertava Garra de Palas.
- Guenhwyvar não é nenhum demônio - Drizzt tranqüilizou seu corpulento companheiro. - É uma amiga e uma valiosa aliada. - O gato rosnou, como se compreendesse, e Wulfgar afastou-se mais um passo.
- Não é um animal comum - retorquiu o bárbaro. - Não vou lutar ao lado de um demônio conjurado com feitiçaria! - Os bárbaros do Vale do Vento Gélido não temiam homens nem animais, mas as artes negras eram absolutamente estranhas a eles, e sua ignorância os deixava vulneráveis.
- Se os verbeeg descobrirem a verdade sobre a patrulha desaparecida, Bruenor e sua gente estarão em perigo - disse Drizzt, sombriamente. - O gato nos ajudará a deter este grupo. Você vai permitir que seus próprios temores impeçam o resgate dos anões?
Wulfgar aprumou-se e recuperou um pouco da compostura. A manobra de Drizzt, apelando ao orgulho dele e à ameaça extremamente real aos anões, pressionava-o a temporariamente deixar de lado sua aversão pelas artes negras.
- Mande o animal embora, não precisamos de ajuda.
- Com o gato, é certo pegarmos todos eles. Não arriscarei a vida do anão por causa de seu desconforto.
Drizzt sabia que Wulfgar levaria várias horas para aceitar Guenhwyvar como uma aliada - se isso um dia viesse a acontecer -, mas, por enquanto, ele só precisava da cooperação de Wulfgar no ataque.
Os gigantes já vinham marchando havia várias horas. Drizzt observou pacientemente a formação começar a se desfazer, sendo que um ou dois dos monstros ficavam ocasionalmente para trás. As coisas estavam se encaixando em seus respectivos lugares, exatamente como o drow havia esperado.
O caminho dobrava-se uma última vez por entre dois matacões gigantescos, depois alargava-se consideravelmente e inclinava-se mais ainda no trecho final até a beira do precipício. Fazia uma curva abrupta e depois continuava ao longo da saliência, com um sólido paredão de rocha de um lado e uma vertente rochosa do outro. Drizzt fez sinal para Wulfgar se preparar, depois deixou o grande felino agir.
O destacamento - vinte verbeeg, três ogros e uma dúzia de ores - avançava num ritmo indolente e chegou a Valvertente bem depois do cair da noite. Havia mais monstros do que os anões originariamente tinham esperado, mas eles não estavam excessivamente preocupados com os ores e sabiam lidar com os ogros. Os gigantes eram a chave daquela batalha.
A longa espera em nada ajudou a acalmar os nervos à flor da pele dos anões. Os membros do clã já não dormiam havia praticamente um dia e continuavam tensos e ansiosos por vingar seus parentes.
Os primeiros verbeeg pisaram no campo íngreme sem incidente, mas quando os últimos do destacamento invasor alcançaram os limites da zona de emboscada, os anões do Salão de Mitral atacaram. O grupo de Bruenor atacou primeiro, saltando de suas tocas, em geral bem ao lado de um gigante ou de um ore, e estraçalhando o alvo mais próximo. Os golpes visavam aleijar os inimigos, segundo o princípio básico da filosofia de combate a gigantes dos anões: o fio aguçado do machado corta o tendão e os músculos da parte de trás do joelho; a cabeça chata do martelo esmaga a patela na parte da frente.
Bruenor derrubou um gigante com um golpe, depois virou-se para fugir, mas encontrou-se cara a cara com a espada em riste de um ore. Sem tempo para trocar golpes, Bruenor arremessou sua arma no ar e gritou: "Pega!" Os olhos do ore estupidamente seguiram o vôo diversivo do machado. Bruenor derrubou a criatura, chocando-se contra o queixo do ore com a testa protegida pelo elmo, apanhou o machado que caía e fugiu precipitadamente para as trevas, detendo-se apenas por um segundo para dar um pontapé no adversário.
Os monstros foram apanhados completamente de surpresa, e muitos já estavam gritando no chão. Em seguida, as balistas abriram fogo. Projéteis do tamanho de lanças fulminaram as fileiras de vanguarda, arremessaram gigantes para os lados e uns contra os outros. Os besteiros saltaram de seus esconderijos e lançaram uma barragem letal, depois deixaram cair seus arcos e arremeteram encosta abaixo. O grupo de Bruenor, agora em sua formação de combate em "v", atirou-se de volta à refrega.
Os monstros jamais tiveram a oportunidade de se reagrupar e, quando finalmente foram capazes de erguer as armas em resposta, suas fileiras haviam sido dizimadas.
A Batalha de Valvertente terminou em três minutos.
Nenhum anão sequer foi ferido gravemente e, dos monstros invasores, somente o ore que Bruenor havia nocauteado sobreviveu.
Guenhwyvar compreendeu os desejos de seu mestre e saltou silenciosamente por entre as pedras fragmentadas até a margem da trilha, deu a volta e postou-se à frente dos verbeeg no paredão de rocha que sobranceava o caminho. Manteve-se abaixada, apenas mais uma sombra escura. O primeiro gigante passou lá embaixo, mas o gato esperou obedientemente o momento oportuno, imóvel como a morte. Drizzt e Wulfgar esgueiraram-se para mais perto, movendo-se furtivamente para ter visão total da linha de retaguarda da patrulha.
O último dos gigantes, um verbeeg extraordinariamente gordo, deteve-se um instante para recuperar o fôlego.
Guenhwyvar atacou rapidamente.
A ágil pantera saltou do paredão e, com as garras, rasgou a cara do gigante. Em seguida, deu continuidade ao salto, usando o ombro descomunal do monstro como um trampolim, de volta a um outro ponto no paredão. O gigante uivou de agonia e levou a mão à face dilacerada.
Garra de Palas atingiu a criatura na nuca e lançou-a no pequeno abismo.
O gigante na retaguarda do grupo remanescente ouviu o grito de dor, virou-se imediatamente, arremeteu trilha abaixo e contornou a última curva bem a tempo de ver seu desafortunado companheiro tombando pela vertente rochosa. O grande felino não hesitou e precipitou-se sobre a segunda vítima, e suas garras afiadas enterraram-se no peito do gigante. O sangue jorrou furiosamente quando as presas de cinco centímetros cravaram-se profundamente no pescoço carnudo. Sem correr riscos, Guenhwyvar usou as quatro patas poderosas para desviar um possível contragolpe, mas o gigante atordoado mal conseguiu erguer os braços em resposta antes que a mais intensa escuridão se fechasse sobre ele.
Com o resto da patrulha agora se aproximando rapidamente, Guenhwyvar saltou para longe e deixou o gigante ofegante afogando-se no próprio sangue. Drizzt e Wulfgar assumiram posições atrás dos matacões de cada lado da trilha, o drow desembainhou as cimitarras e o bárbaro fechou o punho em torno do martelo que retornara a suas mãos.
O felino não vacilou. Havia ensaiado aquela situação com seu mestre muitas vezes antes e compreendia perfeitamente bem a vantagem da surpresa. Esperou um momento, até que os outros gigantes a tivessem avistado, depois arrancou trilha abaixo, disparando por entre as rochas que ocultavam seu mestre e Wulfgar.
- Eta! - gritou um dos verbeeg, indiferente ao companheiro agonizante. - Um gato muito, muito grande, é sim! E preto como os caldeirão do meu cozinheiro!
- Atrás dele! - gritou um outro. - Vai dar um casaco novo pra quem pegar ele! - Saltaram por sobre o gigante abatido, sem pensar duas vezes, e arremeteram trilha abaixo atrás da pantera.
Drizzt era o mais próximo. Ele deixou passar os dois primeiros e concentrou-se nos outros dois. Eles passaram pelo matacão lado a lado; o drow saltou para o caminho, logo à frente deles, enterrou a cimitarra esquerda no peito de um dos gigantes e cegou o outro com uma cutilada da direita por sobre os olhos. Usando a cimitarra fincada no primeiro gigante como um pivô, ele girou por trás do adversário cambaleante e impeliu a outra espada com uma torção sutil, depois afastou-se quando o gigante mortalmente ferido tombou ao chão.
Wulfgar também deixou o líder passar. O segundo havia estacado praticamente ao lado do bárbaro quando Drizzt atacou os dois na retaguarda. O gigante deteve-se e rodopiou, com a intenção de ajudar os demais, porém, detrás do matacão, Wulfgar brandiu Garra de Palas, traçando um arco devastador, e acertou o pesado martelo em cheio no peito do verbeeg. O monstro caiu de costas, e o ar foi literalmente arrancado de seus pulmões. Wulfgar reverteu o movimento do martelo rapidamente e arremessou Garra de Palas na direção oposta. O líder fez a volta bem a tempo de recebê-lo na cara.
Sem hesitação, Wulfgar precipitou-se sobre o gigante que derrubara e passou os braços fortes ao redor do pescoço maciço do monstro. O gigante recuperou-se rapidamente e atracou-se ao bárbaro e, embora ainda estivesse sentado, não teve dificuldade para erguer do chão o adversário muito menor. Mas os anos que ele passara a brandir um martelo e a talhar a pedra nas minas dos anões haviam impregnado o bárbaro com a força do ferro. Ele apertou ainda mais o pescoço do gigante e girou lentamente os braços nodosos. Com um estalido alto, a cabeça do verbeeg pendeu para um lado.
O gigante que Drizzt cegara distribuía golpes desvairadamente com a imensa clava. O drow mantinha-se constantemente em movimento, saltava agilmente de um flanco a outro sempre que tinha a oportunidade e atingia o monstro indefeso com uma estocada depois da outra. Drizzt mirava qualquer área vital que conseguisse atingir com segurança, esperando eficientemente dar cabo de seu oponente.
Com Garra de Palas agora firmemente nas mãos, Wulfgar caminhou até o verbeeg que atingira na cara para se certificar de que o monstro estava morto. Vigiava cautelosamente a trilha, em busca do menor sinal do retorno de Guenhwyvar. Tendo visto o poderoso felino em ação, ele não tinha o menor desejo de enfrentá-lo pessoalmente.
Morto o último gigante, Drizzt desceu pela trilha para se juntar ao amigo.
- Você ainda não compreende sua perícia na batalha! - ele riu, espalmando o homenzarrão nas costas. - Seis gigantes não são demais para nós dois!
- Agora podemos ir encontrar Bruenor? - perguntou Wulfgar, apesar de ver a chama que ainda tremeluzia perigosamente nos olhos cor de lavanda do drow. Ele percebeu que ainda não estavam de partida.
- Não há necessidade - replicou Drizzt. - Estou certo de que os anões tem tudo sob controle. Mas temos, de fato, um problema - continuou ele. Conseguimos matar o primeiro grupo de gigantes e ainda reter o elemento surpresa. Muito em breve, porém, com outros seis desaparecidos, o covil estará alerta para o menor sinal de perigo.
- Os anões devem retornar pela manhã - disse Wulfgar. - Podemos atacar o covil antes do meio-dia.
- Tarde demais - disse Drizzt, fingindo decepção. - Receio que você e eu tenhamos de atacá-los esta noite, sem delongas.
Wulfgar não se surpreendeu nem mesmo discutiu. Temia que ele e o drow estivessem se aventurando em demasia, que o plano do drow fosse por demais ultrajante, mas estava começando a aceitar um fato indiscutível: ele seguiria Drizzt em qualquer aventura, não importava quão improváveis fossem as chances de sobrevivência.
E ele estava começando a admitir para si mesmo que gostava de se arriscar ao lado do elfo negro.
18
A Casa de Sorrisão
Para Drizzt e Wulfgar, foi uma surpresa agradável encontrar a entrada dos fundos do covil dos verbeeg. Ficava bem no alto da íngreme vertente ocidental do afloramento rochoso. Pilhas de lixo e ossos espalhavam-se por todo o terreno na base das rochas, e um filete fino mas constante de fumaça saía da caverna aberta, perfumado com o aroma de carneiro assado.
Os dois companheiros permaneceram algum tempo agachados entre as moitas logo abaixo da entrada, observando o grau de atividade. A lua já havia saído, brilhante e clara, e a noite havia se iluminado consideravelmente.
- Será que chegaremos a tempo para o jantar? - comentou o drow, ainda ostentando um sorriso pretensioso e oblíquo. Wulfgar chacoalhou a cabeça e riu do extraordinário domínio do elfo negro.
Apesar de ambos ouvirem muitas vezes os sons provenientes das sombras logo depois da abertura - o retinir de panelas e vozes ocasionais -, nenhum gigante pusera a cabeça para fora da caverna até um pouco antes da lua se pôr. Um verbeeg gordo, presumivelmente o cozinheiro do covil pelas roupas que usava, arrastou os pés até a soleira e despejou encosta abaixo o lixo de uma grande caçarola de ferro.
- Ele é meu - disse Drizzt, subitamente sério. - Você pode arranjar uma distração?
- O gato o fará - respondeu Wulfgar, embora não estivesse muito entusiasmado com a idéia de ficar sozinho com Guenhwyvar.
Drizzt esgueirou-se pelo aclive rochoso, tentando permanecer nas sombras escuras. Ele sabia que, ao luar, estaria vulnerável até passar a entrada, mas a escalada mostrou-se mais difícil do que havia esperado e ele progredia lentamente. Quase na abertura, ouviu o cozinheiro movimentando-se ao lado da entrada, aparentemente erguendo uma segunda caçarola de lixo para despejar.
Mas o drow não tinha para onde ir. Um grito proveniente da caverna distraiu o cozinheiro. Percebendo que tinha pouquíssimo tempo para alcançar lugar seguro, Drizzt cobriu rapidamente a distância que o separava do nível da porta e espiou a cozinha iluminada por tochas.
O cômodo era mais ou menos quadrado, com um grande forno de pedra na parede oposta à entrada da caverna. Próxima ao forno, ficava uma porta de madeira ligeiramente entreaberta e, por trás dela, Drizzt ouviu várias vozes de gigantes. Ele não viu o cozinheiro, mas uma caçarola de lixo jazia no chão bem ao lado da entrada.
- Ele logo estará de volta - o drow murmurou consigo mesmo enquanto se esgueirava sem ruído pelo paredão, escolhendo as agarras, elevando-se acima da entrada da caverna. Na base da encosta, um nervoso Wulfgar aguardava absolutamente imóvel enquanto Guenhwyvar, diante dele, andava de um lado para o outro.
Alguns minutos depois, o cozinheiro dos gigantes saiu com a caçarola. Enquanto o verbeeg despejava o lixo, Guenhwyvar fez-se notar. Um grande salto levou o gato à base da encosta. Erguendo a cabeça em direção ao cozinheiro, a pantera negra rosnou.
- Ah, sai fora, seu bichano sarnento - disse bruscamente o gigante, pelo jeito nada impressionado nem surpreso com o repentino aparecimento da pantera -, antes que eu esborrache sua cabeça e te jogue numa panela de ensopado!
Foi vã a ameaça do verbeeg. Enquanto brandia o punho descomunal, a atenção totalmente voltada para o gato, a forma escura de Drizzt Do'Urden saltou do paredão para as costas do monstro. Com as cimitarras já nas mãos, o drow não perdeu tempo para entalhar na garganta do gigante um sorriso de orelha a orelha. Sem emitir um único grito, o verbeeg tombou pelas rochas e foi depositar-se com o resto do lixo. Abruptamente, Drizzt deixou-se cair até a entrada da caverna e girou sobre os calcanhares, rezando para que nenhum outro gigante tivesse entrado na cozinha.
Ele estava seguro por ora. O cômodo estava vazio. Assim que Guenhwyvar e depois Wulfgar galgaram a saliência, Drizzt fez sinal para que o seguissem. A cozinha era pequena (para gigantes) e encontrava-se mal abastecida. Havia uma mesa na parede à direita que ostentava várias panelas. Próxima a ela, ficava um grande cepo no qual estava fincado um cutelo vistoso, enferrujado, denteado e aparentemente havia semanas sem lavar. Acima e à esquerda de Drizzt, ficavam prateleiras com temperos, ervas e outras provisões. O drow foi examiná-las enquanto Wulfgar adiantava-se para espiar o cômodo adjacente. E ocupado.
Também quadrada, essa segunda área era um pouco maior que a cozinha. Uma mesa comprida dividia a sala ao meio e, do outro lado, diretamente em frente ao ponto em que se encontrava, Wulfgar viu uma segunda porta. Três gigantes estavam sentados no lado da mesa mais próximo de Wulfgar, um quarto estava de pé entre eles e a porta, e mais dois sentavam-se do outro lado. O grupo deleitava-se com carneiro assado e sugava ruidosamente um ensopado espesso, o tempo todo xingando e escarnecendo uns dos outros. Um típico jantar comunitário dos verbeeg. Wulfgar notou com um interesse nada passageiro que os monstros arrancavam a carne dos ossos com as mãos nuas. Não havia armas na sala.
Drizzt, segurando um saco que encontrara nas prateleiras, desembainhou novamente uma de suas cimitarras e, com Guenhwyvar a seu lado, juntou-se a Wulfgar.
- Seis - sussurrou Wulfgar, apontando a sala. O imenso bárbaro ergueu Garra de Palas e meneou a cabeça, ansioso.
Drizzt espiou pela porta e rapidamente formulou um plano de ataque. Apontou Wulfgar e depois a porta.
- Direita - sussurrou. Depois, indicou a si próprio. - Atrás de você, esquerda.
Wulfgar compreendeu-o perfeitamente, mas perguntou-se por que ele não incluíra Guenhwyvar. O bárbaro apontou o gato.
Drizzt meramente deu de ombros e sorriu, e Wulfgar compreendeu. Mesmo o cético bárbaro acreditava que Guenhwyvar entenderia onde ela se encaixava melhor no plano.
Com um estremecimento, Wulfgar livrou-se do formigamento nervoso em seus músculos e apertou Garra de Palas com força. Com uma rápida piscadela do companheiro, ele irrompeu pela porta e precipitou-se sobre o alvo mais próximo. O gigante, o único do grupo de pé naquele momento, conseguiu virar-se e encarar o atacante, mas foi só isso. Garra de Palas traçou um arco baixo e ergueu-se com precisão letal, chocando-se contra o ventre do verbeeg. Impelido para cima, o martelo esmagou a base do peito do gigante. Com sua incrível força, Wulfgar chegou realmente a levantar o monstro descomunal a uma boa distância do chão. Prostrada e sem fôlego, a criatura caiu ao lado do bárbaro, mas ele não lhe deu mais atenção; já planejava o segundo golpe.
Drizzt, com Guenhwyvar logo em seus calcanhares, passou correndo pelo amigo em direção aos dois atordoados gigantes sentados mais à esquerda da mesa. Com um gesto brusco, ele abriu o saco que segurava e girou o corpo assim que alcançou os alvos, cegando-os com uma nuvem de farinha. O drow jamais afrouxou o passo, abriu com a cimitarra a garganta de um dos verbeeg cobertos de farinha e, em seguida, jogou-se para trás e rolou por sobre o tampo da mesa de madeira. Guenhwyvar saltou sobre o outro gigante, e suas poderosas mandíbulas estraçalharam a virilha do monstro.
Os dois verbeeg do outro lado da mesa foram os primeiros do grupo a realmente reagir. Um deles ficou de pé num salto, pronto para receber a investida rodopiante de Drizzt, enquanto o segundo, destacando-se involuntariamente como o próximo alvo de Wulfgar, disparou para a porta de trás.
Wulfgar rapidamente mirou o gigante em fuga e arremessou Garra de Palas sem hesitação. Se Drizzt, que naquele instante rolava pela mesa, tivesse percebido o quão perto estivera de interceptar o vôo do martelo de guerra, teria dedicado algumas palavras amáveis ao amigo. Mas o martelo atingiu seu alvo, golpeou o verbeeg no ombro e arremessou o monstro contra a parede com força suficiente para quebrar-lhe o pescoço.
O gigante que Drizzt retalhara contorcia-se no chão e levava a mão à garganta numa tentativa inútil de estancar o jorro de sangue. E Guenhwyvar já despachava o outro sem dificuldades. Restavam apenas dois verbeeg.
Drizzt completou a manobra e caiu de pé do outro lado da mesa, esquivando-se habilmente das mãos do verbeeg que esperava por ele. Fez a volta rapidamente, colocando-se entre o oponente e a porta. O gigante, com as mãos descomunais estendidas, girou sobre os calcanhares e atacou. Mas a segunda cimitarra do drow já fazia companhia a primeira e ambas se entrelaçavam numa fascinante dança mortal. A cada cintilação das espadas, mais um dos dedos nodosos do gigante caía girando no chão. Não demorou muito e o verbeeg tinha apenas dois cotos ensangüentados em lugar das mãos. Insanamente enfurecida, a criatura brandia desvairadamente os braços como se fossem clavas. A cimitarra de Drizzt enfiou-se sob a têmpora do monstro, pondo um fim a sua loucura.
Entrementes, o último gigante atacara o bárbaro desarmado. Ele passou os braços imensos em torno de Wulfgar e ergueu-o no ar, tentando espremê-lo até a morte. Wulfgar retesou os músculos numa tentativa desesperada de impedir que o inimigo muito maior lhe partisse a espinha.
O bárbaro teve dificuldade para recuperar o fôlego. Enfurecido, ele deu com o punho no queixo do gigante e ergueu a mão para um segundo golpe.
Mas nesse momento, obedecendo ao encantamento de Bruenor, o martelo de guerra mágico estava de volta em sua mão. Com um grito de júbilo, Wulfgar deu com a ponta romba de Garra de Palas no olho do gigante e o arrancou. O gigante afrouxou o abraço e cambaleou para trás em agonia. O mundo havia se tornado uma tal mancha indistinta de dor para o monstro que ele sequer viu Garra de Palas traçando um arco sobre a cabeça de Wulfgar e ganhando velocidade em direção a seu crânio. Ele sentiu uma explosão quente quando o pesado martelo abriu-lhe a cabeça. O corpo sem vida quicou sobre a mesa e derramou ensopado e pedaços de carneiro por todo o chão.
- Não entorne a comida! - gritou Drizzt, fingindo ira enquanto corria para apanhar uma costeleta de aparência particularmente suculenta.
De repente, eles ouviram passos de botas pesadas e gritos que se aproximavam pelo corredor atrás da segunda porta.
- Para fora! - berrou Wulfgar e voltou-se para a cozinha.
- Espere! - gritou Drizzt. - A festa está só começando! - Ele apontou um túnel sombrio, iluminado por tochas, que partia da parede esquerda da sala. - Por ali! Rápido!
Wulfgar sabia que estavam abusando da sorte, mas novamente flagrou-se dando ouvidos ao elfo.
E novamente o bárbaro sorria.
Wulfgar passou pelos pesados suportes de madeira no início do túnel e correu em direção à obscuridade. Tinha percorrido uma distância razoável, com Guenhwyvar incomodamente correndo bem a seu lado, quando percebeu que Drizzt não o seguia. Ele deu meia-volta, bem a tempo de ver o drow deixar casualmente a sala e passar pelas vigas de madeira. Drizzt havia embainhado as cimitarras. Segurava um longo punhal cuja ponta cruel fincava-se firmemente num pedaço de carneiro.
- E os gigantes? - perguntou Wulfgar em meio à escuridão.
Drizzt deu um passo para o lado e colocou-se atrás de uma das imensas vigas de madeira.
- Logo atrás de mim - explicou tranqüilamente enquanto arrancava com os dentes outro pedaço de sua refeição. O queixo de Wulfgar caiu quando um bando de verbeeg furibundos investiu túnel adentro, sem sequer notar o drow ali escondido.
- Prayne de crabug ahm keike rinedere be-yogt iglo kes gronl - gritou Wulfgar ao girar sobre os calcanhares e disparar pelo corredor, esperando que este não levasse a um beco sem saída.
Drizzt retirou o pedaço de carneiro da ponta do punhal e acidentalmente deixou-o cair no chão, praguejando em silêncio por desperdiçar boa comida. Limpando o punhal com a língua, ele esperou pacientemente. Assim que o último verbeeg passou, ele deixou o esconderijo, enfiou o punhal nas costas do joelho do gigante retardatário e voltou a esconder-se do outro lado da viga. O gigante ferido uivou de dor mas, quando ele ou seus companheiros houvessem se virado, o drow já teria desaparecido.
Wulfgar fez uma curva e grudou na parede, adivinhando facilmente o que interrompera a perseguição. O bando dera a volta ao descobrir que havia um outro intruso mais perto da saída.
Um gigante saltou por entre os suportes e postou-se de pernas bem abertas e a clava preparada, os olhos movendo-se de uma porta à outra enquanto tentava descobrir que rota o atacante invisível havia tomado. Atrás dele, e bem mais para o lado, Drizzt puxou duas pequenas facas, uma de cada bota, e perguntou-se como os gigantes poderiam ser tão estúpidos a ponto de caírem duas vezes no mesmo truque em questão de dez segundos. Sem querer discutir com a boa sorte, o elfo lançou-se por trás de sua próxima vítima e, antes que os verbeeg ainda no corredor conseguissem emitir um grito de alerta, enfiou fundo uma das facas na coxa do gigante, cortando-lhe o tendão do jarrete. O gigante cambaleou para o lado e Drizzt, entre saltos ligeiros, admirou-se com os maravilhosos alvos que davam as veias grossas no pescoço de um verbeeg quando a mandíbula do monstro se contraía de dor.
Mas o drow não teve tempo para se deter e refletir sobre os sucessos da batalha. O resto do bando - cinco gigantes furiosos - já havia atirado para um lado o companheiro ferido no túnel e estava apenas a alguns passos de distância. Ele enterrou a segunda faca no pescoço do verbeeg e dirigiu-se para a porta que dava acesso ao interior do covil. Ele a teria alcançado não fosse pelo fato de o primeiro gigante a voltar para a sala carregar uma pedra. Em geral, os verbeeg são exímios atiradores de pedras, e este era melhor que a maioria. A cabeça desprotegida do elfo era seu alvo e o arremesso foi certeiro.
O arremesso de Wulfgar também atingiu o alvo. Garra de Palas estilhaçou a espinha do gigante retardatário no momento em que ele passava pelo companheiro machucado no túnel. O verbeeg ferido, esforçando-se para arrancar o punhal de Drizzt do joelho, fitou, descrente, o companheiro morto tão repentinamente e a ensandecida e fatal investida do feroz bárbaro.
Com o canto do olho, Drizzt viu a pedra chegando. Conseguiu encolher-se o bastante para evitar que sua cabeça fosse esmagada, mas o pesado projétil atingiu-o no ombro e o fez voar até o chão. O mundo começou a girar como se Drizzt fosse seu eixo. Ele lutou para se reorientar pois, em algum canto de sua mente, entendia que o gigante se aproximava para dar cabo dele. Mas tudo parecia um borrão. Nesse momento, algo bem perto de seu rosto conseguiu chamar-lhe a atenção. Fixou os olhos na coisa, esforçando-se para encontrar o foco e obrigar tudo o mais a parar de girar.
Um dedo de verbeeg.
O drow recuperou-se. Sem hesitação, ele tentou sacar a arma.
Compreendeu que era tarde demais quando viu o gigante, com a clava erguida para um golpe fatal, elevando-se acima dele.
O gigante ferido deu um passo em direção ao meio do túnel para receber a investida do bárbaro. A perna do monstro estava dormente e ele não conseguia firmar os pés. Wulfgar, com Garra de Palas confortavelmente de volta a suas mãos, empurrou-o para o lado com um tapa e continuou até entrar na sala. Dois gigantes esperavam por ele.
Guenhwyvar trançou-se por entre as pernas de um gigante quando este se voltava e saltou tão alto quanto permitiam os músculos fortes. No exato momento em que o verbeeg começava a brandir sua clava contra o elfo prostrado, Drizzt viu uma sombra negra passar logo em frente a seu rosto. Um rasgão recortado sulcava a face do gigante. Drizzt compreendeu o que acontecera quando ouviu as patas acolchoadas de Guenhwyvar assentarem-se na mesa e impulsionarem o gato quase até o outro lado da sala. Apesar de um segundo gigante agora ter se juntado ao primeiro e ambos sustentarem no ar as clavas, prontos para atacar, Drizzt ganhara todo o tempo de que precisava. Rápido como um raio, ele desembainhou uma das cimitarras e a enfiou na virilha do primeiro gigante. O monstro dobrou-se de agonia, servindo de escudo a Drizzt, e recebeu na nuca o golpe de seu camarada. O drow murmurou um "obrigado" enquanto rolava sobre o cadáver, apoiou os pés no chão e novamente desferiu uma estocada para cima, mas dessa vez ele ergueu o corpo para acompanhar a espada.
A hesitação custara a vida de mais um gigante. Pois, enquanto o verbeeg atordoado fitava, estarrecido, os miolos do amigo espalhados por toda a clava, a lâmina recurva do drow enfiava-se sob sua caixa torácica, atravessava-lhe os pulmões e atingia o coração do monstro.
O tempo passou devagar para o gigante mortalmente ferido. A clava que havia largado pareceu levar minutos para atingir o chão. Com o movimento sutil de uma árvore em queda, o verbeeg escorregou pela cimitarra. Ele sabia que estava caindo, mas o chão jamais veio recebê-lo. Jamais...
Wulfgar esperava ter acertado o gigante ferido no túnel com força suficiente para mantê-lo fora de combate durante algum tempo: ele estaria numa situação realmente difícil caso a criatura o atacasse pelas costas naquele momento. Já estava atarefado demais, trocando golpes com os dois gigantes que agora enfrentava. Entretanto, ele não precisava ter se preocupado com a retaguarda, pois o verbeeg ferido afundou-se na parede do túnel, alheio ao que acontecia a seu redor. E, na direção oposta, Drizzt acabara de matar os outros dois gigantes. Wulfgar gargalhou alto ao ver o amigo limpar o sangue da espada e atravessar mais uma vez a sala. Um dos verbeeg também notou o elfo negro e abandonou a luta com o bárbaro para enfrentar esse novo adversário.
- 'tá legal, nanico. 'cê acha que pode me encarar de igual pra igual e viver pra contar a história? - berrou o gigante.
Fingindo desespero, Drizzt olhou ao redor. Como sempre, ele encontrou uma maneira fácil de vencer aquela luta. Com o ventre rente ao chão, Guenhwyvar havia se esgueirado por trás dos corpos dos gigantes, tentando se colocar numa posição favorável. Drizzt deu um pequeno passo para trás e incitou o gigante a colocar-se no caminho do grande felino.
A clava do gigante colidiu com as costelas de Wulfgar e jogou-o para cima, contra a viga de madeira. O bárbaro, porém, era de uma natureza mais resistente que a madeira e recebeu estoicamente o golpe, retribuindo-o com duas vezes mais força usando Garra de Palas. Mais uma vez, o verbeeg golpeou e novamente Wulfgar respondeu. O bárbaro vinha lutando sem descanso havia mais de dez minutos, mas a adrenalina corria em suas veias e ele sequer estava esbaforido. Passou a dar valor às horas intermináveis que trabalhara para Bruenor nas minas e aos muitos quilômetros que Drizzt o fizera correr durante as primeiras sessões quando seus golpes começaram a se abater com maior freqüência sobre o oponente cada vez mais cansado. O gigante avançou sobre Drizzt.
- Argh! Fica quieto, seu rato miserável! - grunhiu. - E não me venha com os seus truquezinhos! Quero só ver como 'cê se sai numa luta justa.
Assim que os dois se aproximaram, Guenhwyvar disparou pela pequena distância que a separava deles e afundou as presas no tornozelo do verbeeg. O gigante involuntariamente relanceou os olhos em direção ao inimigo que o atacava pelas costas, mas recuperou-se rapidamente e voltou a olhar para o elfo...
... Bem a tempo de ver a cimitarra entrar em seu peito.
Drizzt respondeu à expressão perplexa do monstro com uma pergunta:
- Em qual dos nove infernos você foi achar a idéia de que eu lutaria de maneira justa?
O verbeeg cambaleou para longe. A lâmina não lhe atingira o coração, mas ele sabia que o ferimento logo se mostraria fatal caso não recebesse cuidados. O sangue escorria livremente pela túnica de couro do monstro, e ele sofria visivelmente ao tentar respirar. Drizzt alternou seus ataques com Guenhwyvar, golpeando e esquivando-se das respostas desajeitadas do monstro enquanto a parceira atacava pelo outro lado. Eles sabiam, e o gigante também, que a luta logo chegaria ao fim.
O gigante que lutava com Wulfgar já não conseguia mais sustentar uma postura defensiva com sua pesada clava. Wulfgar também começava a ficar cansado, de modo que deu início a uma velha canção de guerra da tundra, a Canção de Tempus, e as notas em crescendo inspiraram-no a desferir uma derradeira salva de golpes. Ele esperou até a clava do verbeeg inevitavelmente se abaixar um pouco e golpeou com Garra de Palas, uma, duas, três vezes. Wulfgar quase desmaiou de exaustão depois do terceiro golpe, mas o gigante jazia todo enroscado no chão. Cansado, o bárbaro apoiou-se na própria arma e assistiu aos dois amigos fazerem o verbeeg deles em pedaços.
- Muito bem! - riu Wulfgar assim que o último gigante tombou. Drizzt caminhou até o bárbaro, com o braço esquerdo a pender flacidamente. A jaqueta e a camisa haviam se rasgado onde a pedra o atingira, e a pele exposta do ombro estava inchada e escoriada.
Wulfgar fitou o ferimento com genuína preocupação, mas Drizzt respondeu-lhe a muda indagação erguendo o braço acima da cabeça, embora um esgar de dor acompanhasse o esforço.
- Vai sarar logo - ele tranqüilizou Wulfgar. - É só um inchaço feio e acho que é um preço pequeno a se pagar em comparação aos cadáveres de treze verbeeg!
Um gemido baixo fez-se ouvir no túnel.
- Doze, por enquanto - corrigiu Wulfgar. - Parece que um deles não está bem morto. - Inspirando profundamente, Wulfgar ergueu Garra de Palas e virou-se para completar o serviço.
- Só um instante - insistiu Drizzt, pois um pensamento assediava-lhe a mente. - Quando os gigantes investiram contra você no túnel, você berrou algo em sua língua materna, creio eu. O que foi que disse?
Wulfgar gargalhou entusiasticamente.
- Um antigo grito de guerra da Tribo do Alce - explicou ele. - Força para os amigos e morte aos inimigos!
Drizzt fitou o bárbaro, desconfiado, e perguntou-se quão bem Wulfgar conseguiria mentir de improviso.
O verbeeg ferido apoiava-se ainda contra a parede do túnel quando os dois companheiros e Guenhwyvar o encontraram. O punhal do drow continuava enterrado profundamente no joelho do gigante e a lâmina estava presa firmemente entre dois ossos. O gigante fitou os homens com olhos cheios de ódio, porém estranhamente serenos, quando eles se aproximaram.
- 'cê vai pagar por isto - ele cuspiu em Drizzt. - Sorrisão vai brincar com você antes de te matar, pode ter certeza!
- Ah, esta coisa fala - disse Drizzt a Wulfgar. E depois para o gigante - Sorrisão?
- É o dono da caverna - respondeu o gigante. - Sorrisão vai querer conhecer vocês.
- E nós vamos querer conhecer Sorrisão! - vociferou Wulfgar. - Temos uma dívida a pagar; uma pequena questão referente a dois anões!
Assim que Wulfgar mencionou os anões, o gigante cuspiu de novo. A cimitarra de Drizzt cintilou e deteve-se a uma polegada da garganta do monstro.
- Me mata logo e acaba com isso - riu o gigante, genuinamente indiferente. A despreocupação do monstro enervava Drizzt. - Eu sirvo ao mestre! - proclamou o gigante. - É a glória morrer por Alçar Kessell!
Wulfgar e Drizzt entreolharam-se, apreensivos. Nunca tinham visto ou ouvido falar desse tipo de dedicação fanática num verbeeg, e a visão os perturbava. O principal defeito dos verbeeg, algo que sempre os impedira de dominar as raças menores, era sua relutância em se dedicar sinceramente a uma causa e sua inabilidade de seguir um líder.
- Quem é Akar Kessell? - indagou Wulfgar.
O gigante riu maldosamente.
- Se 'cês são amigos dos aldeão, logo vão ficar sabendo!
Pensei que você tivesse dito que Sorrisão era o dono desta caverna - disse Drizzt.
- Da caverna - respondeu o gigante. - E antes de uma tribo. Mas Sorrisão segue o mestre agora.
- Estamos encrencados - murmurou Drizzt para Wulfgar. - Você alguma vez ouviu falar de um chefe verbeeg cedendo a liderança a um outro sem uma briga?
- Temo pelos anões - disse Wulfgar.
Drizzt deu as costas ao gigante e decidiu mudar de assunto a fim de extrair informações de relevância mais imediata para a situação em que eles se encontravam.
- O que há no fim deste túnel?
- Nada - disse o verbeeg, rápido demais. - Hã, é onde a gente dorme, só isso.
Leal, mas estúpido, observou Drizzt. Virou-se novamente para Wulfgar.
- Precisamos apagar Sorrisão e quaisquer outros na caverna capazes de voltar para avisar esse tal Akar Kessell.
- E o que fazemos com este aqui? - perguntou Wulfgar. Mas o gigante respondeu à pergunta por Drizzt. Devaneios de glória forçaram-no a ir ao encontro da morte a serviço do mago. Ele retesou os músculos, ignorando a dor no joelho, e investiu contra os companheiros.
Garra de Palas esmagou a clavícula e o pescoço do verbeeg ao mesmo tempo em que a cimitarra de Drizzt se enfiava por entre suas costelas e Guenhwyvar abocanhava-lhe o ventre.
Mas a máscara mortuária do gigante era um sorriso.
O corredor atrás da porta dos fundos da sala de jantar estava escuro, e os companheiros foram obrigados a tirar do suporte uma das tochas do outro corredor para levar com eles. Serpeando pelo longo túnel, aprofundando-se cada vez mais no interior da colina, eles passaram por várias câmaras pequenas, a maioria delas vazia, mas algumas com engradados de provisões de vários tipos: víveres, peles, clavas e lanças sobressalentes. Drizzt presumiu que Kessell planejava usar a caverna como uma base de operações para seu exército.
A escuridão continuou absoluta por uma boa distância e Wulfgar, sem a visão noturna de seu companheiro élfico, começou a ficar nervoso quando a tocha se pôs a arder com menor intensidade. Mas, então, eles chegaram a uma câmara ampla, de longe a maior das que haviam visto, e, para além de seus limites, o túnel abria-se na noite clara.
- Chegamos à porta da frente - disse Wulfgar. - E está entreaberta. Você acha que Sorrisão saiu?
- Psiu - Drizzt o silenciou. O drow achava ter ouvido algo na escuridão, bem à direita deles. Fez sinal para que Wulfgar permanecesse no centro da sala com a tocha enquanto ele se esgueirava pelas sombras.
Drizzt deteve-se assim que ouviu vozes ríspidas de gigantes logo adiante, apesar de não conseguir entender por que não lhes enxergava os vultos corpulentos. Quando topou com uma grande lareira, ele compreendeu tudo. As vozes ecoavam pela chaminé.
- Sorrisão? - perguntou Wulfgar quando o drow reapareceu.
- Deve ser - raciocinou Drizzt. - Você acha que consegue passar pela chaminé?
O bárbaro assentiu. Ergueu Drizzt primeiro - o braço esquerdo do drow continuava inútil - e depois o acompanhou, deixando Guenhwyvar de vigia.
A chaminé seguia para cima, serpenteando por alguns metros, e depois chegava a uma intersecção. Um dos ramos descia até a sala de onde provinham as vozes e o outro estreitava-se à medida que subia até a superfície. A discussão, agora, mostrava-se ruidosa e acalorada, e Drizzt desceu para investigar. Wulfgar segurou os pés do drow para ajudá-lo a completar lentamente aquela última descida, já que a inclinação tornava-se quase vertical. Pendurado de ponta cabeça, Drizzt espiou pela borda da lareira para dentro de uma outra sala. Viu três gigantes: um ao lado da porta na extremidade mais distante da sala, com cara de quem queria sair, e um segundo, de costas para a lareira, sendo repreendido pelo terceiro, um gigante do gelo imensamente alto e corpulento. O sorriso desfigurado e desprovido de lábios levou Drizzt a concluir que ele olhava para Sorrisão.
- Pra contar tudo pra Sorrisão! - defendia-se o gigante menor.
- 'cê fugiu do combate - disse Sorrisão, carrancudo. - 'cê abandonou os amigos pra morrer!
- Não... - protestou o gigante, mas Sorrisão já ouvira o bastante. Com uma pancada violenta de seu imenso machado, ele arrancou a cabeça do gigante menor.
Os homens encontraram Guenhwyvar diligentemente de vigia quando saíram da chaminé. O grande felino voltou-se e emitiu um rosnado de reconhecimento assim que viu seus companheiros. Wulfgar, não entendendo o ronrom gutural como um som amistoso, afastou-se cautelosamente um passo.
- Deve haver um túnel lateral em algum lugar do corredor principal - raciocinou Drizzt, sem tempo para achar graça do nervosismo de seu amigo.
- Vamos acabar logo com isto, então - disse Wulfgar.
Eles encontraram a passagem como o drow havia predito e logo chegaram a uma porta que imaginaram levaria à sala com os gigantes remanescentes.
Trocaram palmadas nos ombros, para dar sorte, e Drizzt acariciou Guenhwyvar, embora Wulfgar declinasse do convite para fazer o mesmo. Em seguida, irromperam sala adentro.
O cômodo estava vazio. Uma porta, antes invisível para Drizzt desde seu ponto de observação na lareira, encontrava-se entreaberta.
Sorrisão enviou o único soldado remanescente pela porta lateral secreta com uma mensagem para Akar Kessell. O imenso gigante fora desmoralizado e sabia que o mago não aceitaria facilmente a perda de tantos soldados valiosos. A única chance de Sorrisão era cuidar dos dois guerreiros invasores e esperar que as cabeças deles satisfizessem o patrão inclemente. O gigante grudou a orelha à porta e aguardou até suas vítimas entrarem na sala contígua.
Wulfgar e Drizzt passaram pela segunda porta e entraram numa câmara extravagante, com o chão adornado com peles suntuosas e almofadas grandes e fofas. Duas outras portas levavam para fora da sala. Uma delas estava ligeiramente aberta e dava para um corredor escuro, a outra encontrava-se fechada.
De repente, Wulfgar deteve Drizzt com a palma esticada de uma das mãos e fez sinal para que o drow ficasse quieto. A virtude intangível de um verdadeiro guerreiro, o sexto sentido que lhe permite sentir o perigo invisível, entrara em ação. Lentamente, o bárbaro virou-se para a porta fechada e ergueu Garra de Palas acima da cabeça. Deteve-se um instante e aprumou a cabeça, esforçando-se para ouvir um som confirmador. Nada. Mas Wulfgar confiava em seus instintos. Urrou para Tempus e arremessou o martelo. Rachou a porta com um estrépito ensurdecedor, pondo abaixo as tábuas. E Sorrisão também.
Drizzt notou o vaivém da porta secreta do outro lado da sala, atrás do chefe dos gigantes, e concluiu que o último dos gigantes devia ter fugido. Rapidamente, o drow acionou Guenhwyvar. A pantera também compreendeu a situação, pois partiu como um raio, transpôs com um grande salto a forma convulsa de Sorrisão e disparou para fora da caverna a fim de dar caça ao verbeeg fugitivo.
O sangue escorria de um dos lados da cabeça do imenso gigante, mas o osso espesso do crânio rejeitara o martelo. Drizzt e Wulfgar observaram, incrédulos, o imenso gigante do gelo chacoalhar as papadas sob o queixo e erguer-se para enfrentá-los.
- Isso não vale - protestou Wulfgar.
- É um gigante teimoso - Drizzt deu de ombros.
O bárbaro esperou até Garra de Palas retornar a sua mão, depois posicionou-se juntamente com o drow para enfrentar Sorrisão.
O gigante permaneceu à porta, para impedir que qualquer um dos adversários o flanqueasse, enquanto Wulfgar e Drizzt avançavam, confiantes. Os três trocaram olhares ameaçadores e alguns golpes leves enquanto mediam uns aos outros.
- Sorrisão, eu presumo - disse Drizzt, com uma reverência.
- O próprio - proclamou o gigante. - Sorrisão! O último inimigo em que 'cês vão botar os olhos!
- Além de teimoso, é confiante - comentou Wulfgar.
- Homenzinho - retorquiu o gigante -, já esborrachei uns cem da sua raçazinha!
- Mais razão ainda para que nós o matemos - declarou Drizzt tranqüilamente.
Com súbita rapidez e ferocidade, algo que surpreendeu seus dois oponentes, Sorrisão brandiu o imenso machado num movimento amplo. Wulfgar deu um passo para trás, colocando-se fora de alcance do golpe fatal, e Drizzt conseguiu abaixar-se a tempo, mas o drow estremeceu ao ver a lâmina do machado arrancar um naco de bom tamanho da parede de pedra.
Wulfgar voltou a investir contra o monstro assim que o machado passou por ele e golpeou com Garra de Palas o peito largo de Sorrisão. O gigante encolheu-se, mas recebeu a pancada.
- Vai ter que me acertar com mais força do que isso, homenzinho! - berrou a criatura ao lançar um poderoso contragolpe com a cabeça chata do machado.
Novamente, Drizzt abaixou-se para escapar ao golpe. Wulfgar, entretanto, cansado como estava dos combates, não se moveu rápido o bastante para recuar e colocar-se fora de alcance. O bárbaro conseguiu erguer Garra de Paias diante de si, mas a força bruta da pesada arma de Sorrisão fez com que ele colidisse violentamente contra a parede. Desmaiou e foi ao chão.
Drizzt sabia que estavam encrencados. Seu braço esquerdo continuava inútil, os reflexos ficavam cada vez mais lentos devido à exaustão, o gigante era simplesmente forte demais e de nada adiantaria tentar bloquear-lhe os golpes. Ele conseguiu fazer passar uma estocada curta da cimitarra enquanto o gigante se recuperava para o próximo golpe e, em seguida, fugiu para o corredor principal.
- Corra, seu cão negro! - berrou o gigante. - Vou ficar no teu calcanhar e vou te pegar! - Sorrisão lançou-se atrás de Drizzt, farejando a presa.
O drow embainhou a cimitarra ao alcançar a passagem principal e procurou um bom lugar para emboscar o monstro. Nada encontrou. Depois, seguiu meio caminho até a saída e aguardou.
- Onde 'cê vai se esconder? - escarneceu Sorrisão, assim que seu corpanzil descomunal entrou no corredor. Pairando nas sombras, o drow atirou as duas facas. Ambas atingiram o alvo, mas Sorrisão mal e mal afrouxou o passo.
Drizzt saiu da caverna. Sabia que, se Sorrisão não o seguisse, ele teria de voltar lá para dentro; certamente não poderia abandonar Wulfgar para morrer. Os primeiros raios da aurora haviam chegado à montanha e a preocupação de Drizzt era a luz crescente arruinar as poucas chances que teria de armar uma emboscada. Trepando numa das pequenas árvores que ocultavam a saída, ele sacou o punhal.
Sorrisão saiu impetuosamente à luz do sol e olhou ao redor, em busca de sinais do drow em fuga.
- 'cê já era, seu cachorro miserável! 'cê não tem pr'onde fugir!
De repente, Drizzt estava sobre o monstro, retalhando-lhe a cara e o pescoço com uma saraivada de punhaladas e golpes cortantes. O gigante uivou de fúria e arremessou violentamente para trás o corpo enorme, fazendo com que Drizzt - incapaz de se agarrar com firmeza devido ao braço enfraquecido - voasse de volta ao túnel. O drow caiu pesadamente sobre o ombro machucado e quase desfaleceu de agonia. Ele se contorceu um instante, tentando ficar novamente de pé, mas topou com uma bota pesada. Sabia que Sorrisão não teria conseguido chegar a ele tão rápido. Virou-se lentamente até ficar de costas, imaginando de onde saíra aquele novo gigante.
Mas a perspectiva do drow alterou-se dramaticamente ao ver Wulfgar de pé ao lado dele, com Garra de Palas firme em suas mãos e um olhar sinistro estampado no rosto. Wulfgar jamais tirou os olhos do gigante enquanto este entrava no túnel.
- Ele é meu - disse impiedosamente o bárbaro.
A aparência de Sorrisão era realmente hedionda. O lado da cabeça atingido pelo martelo estava empastado com sangue escuro e seco, enquanto o outro - e vários pontos da cara e do pescoço - brilhava com o sangue de ferimentos frescos. As duas facas que Drizzt arremessara ainda estavam cravadas no peito do gigante como mórbidas medalhas de honra.
- Vai agüentar mais um? - provocou Wulfgar, arremessando Garra de Palas mais uma vez contra o gigante.
Em resposta, Sorrisão estufou o peito desafiadoramente para bloquear o golpe.
- Agüento tudo o que 'cê tiver aí! - gabou-se ele.
Garra de Palas atingiu o alvo e Sorrisão deu um passo cambaleante para trás. O martelo quebrara-lhe uma ou duas costelas, nada que o gigante não conseguisse suportar.
Entretanto, com conseqüências bem mais letais e sem que Sorrisão percebesse, Garra de Palas impelira uma das facas de Drizzt através do revestimento do coração do gigante.
- Já posso correr - Drizzt murmurou para Wulfgar quando viu o gigante avançar novamente.
- Eu fico - insistiu o bárbaro, sem o menor tremor na voz. Drizzt sacou a cimitarra.
- Belas palavras, meu bravo amigo. Vamos derrubar esse animal imundo: a comida nos espera!
- 'cê vai ver que é mais fácil falar! - retorquiu Sorrisão. Sentiu uma repentina aguilhoada no peito, mas ignorou a dor com um grunhido. - 'cês já deram o que tinham pra dar e eu continuo atacando! 'cês não têm a menor chance!
Tanto Drizzt quanto Wulfgar temeram que as bazófias do gigante fossem mais verdadeiras do que qualquer um deles admitiria. Estavam nas últimas, feridos e fatigados, porém determinados a ficar e a terminar o serviço.
Mas a total confiança do imenso gigante, aproximando-se sempre no mesmo ritmo, era mais do que ligeiramente assustadora.
Sorrisão percebeu que algo estava terrivelmente errado quando chegou a apenas alguns passos dos dois companheiros. Wulfgar e Drizzt também o perceberam, pois o passo do gigante afrouxou-se visivelmente.
O gigante olhou para eles, ultrajado, como se tivesse sido enganado.
- Canalhas! - disse, com voz entrecortada e uma golfada de sangue a irromper de sua boca. - Que truque...
Sorrisão caiu morto sem mais uma palavra.
- Devemos ir atrás do gato? - perguntou Wulfgar quando eles voltaram à porta secreta.
Drizzt envolvia uma tocha com alguns trapos que encontrara.
- Tenha fé na sombra - respondeu. - Guenhwyvar não deixará o verbeeg escapar. Além disso, uma boa refeição espera por mim lá na caverna.
- Vá você - disse Wulfgar. - Ficarei aqui, vigiando, até o gato retornar. Drizzt apertou o ombro do homenzarrão antes de deixá-lo. Eles haviam passado por muita coisa no breve período de tempo em que estiveram juntos, e Drizzt desconfiava que a emoção estava apenas começando. O drow entoava uma canção de banquete enquanto se dirigia à passagem principal, mas apenas para ludibriar Wulfgar, pois a mesa de jantar não seria sua primeira parada. O gigante com quem haviam falado antes fora evasivo quando indagado sobre o que jazia no fim do túnel que lhes restava explorar. E, com tudo o mais que descobriram, Drizzt acreditava que aquilo só poderia significar uma coisa: tesouro.
A grande pantera corria por sobre as pedras fragmentadas e ganhava terreno em relação ao gigante de passos pesados. Não demorou muito e Guenhwyvar já podia ouvir a respiração difícil do verbeeg a cada esforço da criatura para saltar e galgar as rochas. O gigante seguia na direção de Valvertente e da vasta tundra. Mas tão frenética era sua fuga que não trocava a encosta do Sepulcro de Kelvin pelo terreno menos acidentado do vale. Buscava uma rota mais direta, acreditando que aquele seria o caminho mais rápido para a segurança.
Guenhwyvar conhecia a região tão bem quanto seu mestre, sabia onde cada criatura da montanha tinha sua toca. O gato já discernira aonde queria conduzir o gigante. Como um cão pastor, ela cobriu a distância remanescente e arranhou os flancos do gigante, desviando-o na direção de um profundo lago alpestre. O aterrorizado verbeeg, certo de que o letal martelo de guerra ou a célere cimitarra não estavam muito distantes, não ousava deter-se para enfrentar a pantera. Escorregava às cegas pelo caminho que Guenhwyvar escolhera.
Pouco tempo depois, Guenhwyvar separou-se do gigante e passou-lhe à frente. Quando o gato alcançou a margem do lago gelado, inclinou a cabeça e concentrou os sentidos aguçados, esperando avistar algo que pudesse ajudá-lo a completar a tarefa. Foi então que Guenhwyvar percebeu um minúsculo movimento na água, sob as cintilações da luz matutina. Os olhos penetrantes distinguiram a forma alongada que ali jazia imóvel como a morte. Satisfeita com a armadilha já preparada, Guenhwyvar escondeu-se atrás de uma saliência rochosa ali perto e esperou.
O gigante arrastou-se até o lago, respirando com dificuldade. Recostou-se a um matacão por um instante, malgrado seu terror. Tudo parecia suficientemente seguro por ora. Assim que recuperou o fôlego, o gigante olhou rapidamente ao redor, em busca de sinais de seu perseguidor, depois voltou a seguir em frente.
Havia apenas um caminho através do lago, um tronco caído que lhe tomava o centro, e todas as rotas alternativas em torno do lago, embora este não tosse muito largo, serpeavam por vertentes íngremes e rochas protuberantes, Prometendo uma lenta travessia.
O verbeeg experimentou o tronco. Parecia firme e, portanto, o monstro cautelosamente começou a travessia. O gato esperou até o gigante chegar ao centro do lago, depois abandonou impetuosamente o esconderijo e lançou-se contra o verbeeg. O gato caiu com todo o seu peso sobre o gigante surpreso, fincou as patas no peito do monstro e ricocheteou de volta à segurança da margem. Guenhwyvar chapinhou nas águas glaciais, mas escalou a margem rapidamente e saiu do perigoso lago. O gigante, porém, balançou os braços desvairadamente por um instante, tentando manter seu precário equilíbrio, e depois caiu, espalhando água para todos os lados. As águas afluíram para cima e sugaram-no para baixo. Em desespero, o gigante atirou-se a um tronco que flutuava ali por perto, a forma que Guenhwyvar reconhecera pouco antes.
As mãos do verbeeg ainda baixavam quando a forma que ele pensara ser um tronco explodiu num movimento repentino. A serpente aquática de um metro e meio de comprimento lançou-se sobre a presa com rapidez vertiginosa. As espirais implacáveis rapidamente imprensaram os braços do gigante contra o próprio flanco e deram início a seu impiedoso abraço.
Guenhwyvar chacoalhou-se para remover a água enregelante de sua brilhante pelagem negra e olhou mais uma vez para o lago. Quando mais uma volta da monstruosa serpente passou sob o queixo do verbeeg e puxou o monstro indefeso para dentro d'água, a pantera deu a missão por completada. Com um rugido alto e prolongado, proclamando a vitória, Guenhwyvar partiu aos saltos em direção ao covil.
CONTINUA
10
A Congregação das Trevas
Torga, o ore, encarava Grock, o goblin, com franco desdém. Suas respectivas tribos haviam guerreado durante muitos anos, tantos quantos qualquer membro vivo de ambos os grupos era capaz de lembrar. Dividiam um vale na Espinha do Mundo e competiam por território e alimento com a brutalidade típica de suas raças belicosas.
E agora encontravam-se no mesmo espaço sem que as armas fossem desembainhadas, arrastados para aquele lugar por uma força ainda maior que o ódio que nutriam um pelo outro. Em qualquer outro lugar, em qualquer outro momento, as tribos jamais teriam permanecido assim tão próximas sem que se travasse uma batalha feroz. Mas, agora, elas tinham de se contentar com ameaças vãs e olhares perigosos, pois haviam recebido ordens para deixar de lado suas diferenças.
Torga e Grock viraram-se e caminharam lado a lado em direção à estrutura que abrigava o homem destinado a ser seu mestre.
Entraram em Crishal-Tirith e apresentaram-se diante de Akar Kessell.
Mais duas tribos haviam se juntado a suas fileiras em expansão. Por todo o planalto que abrigava sua torre encontravam-se os estandartes de vários bandos de goblinóides: os Goblins das Lanças Serpeantes, os Ores Acutiladores, os Ores da Língua Partida, e muitos outros, todos ali para servir o mestre. Kessell até mesmo recolhera um grande clã de ogros, um punhado de trolls e quarenta verbeeg desgarrados, os mais insignificantes dos gigantes, mas gigantes apesar de tudo.
No entanto, o remate de suas conquistas foi um grupo de gigantes do gelo que simplesmente fizera uma peregrinação até ali, desejando apenas agradar o portador de Crenshinibon.
Kessell estava satisfeito com sua vida em Crishal-Tirith, com todos os seus caprichos obedientemente atendidos pela primeira tribo de goblins que ele encontrara. Os goblins tinham conseguido até atacar uma caravana mercante e prover o mago com algumas mulheres humanas para seu prazer. A vida de Kessell era fácil e agradável, exatamente do jeito que ele gostava.
Mas Crenshinibon não estava satisfeita. O desejo de poder da relíquia era insaciável. Ela aceitava os pequenos ganhos durante algum tempo e depois exigia que seu portador partisse para conquistas mais grandiosas. Não se oporia abertamente a Kessell, pois, na constante guerra de vontades dos dois, Kessell, em última análise, tinha o poder de decisão. A pequena estilha de cristal controlava uma incrível reserva de poder, mas, sem um portador, era como uma espada embainhada à espera da mão que a empunharia. Portanto, Crenshinibon exercia sua vontade por meio da manipulação, insinuava ilusões de conquista nos sonhos do mago, permitia a Kessell enxergar as possibilidades do poder. Acenava ao aprendiz outrora titubeante com algo que ele não poderia recusar: respeito.
Kessell, a eterna escarradeira dos pretensiosos magos de Luskan - e, aparentemente, de todo o mundo -, era presa fácil dessas ambições. Ele, que beijara as botas de pessoas importantes, ansiava pela chance de reverter os papéis.
E agora tinha a oportunidade de transformar suas fantasias em realidade, era o que Crenshinibon com freqüência lhe garantia. A mando a relíquia, ele poderia se tornar o conquistador; poderia fazer as pessoas, até mesmo os magos da Torre das Hostes, tremerem diante da simples menção de seu nome.
Ele precisava ainda ser paciente. Passara vários anos aprendendo as sutilezas do comando sobre uma, e depois duas tribos de goblins. No entanto, reunir e subjugar dúzias de tribos naturalmente inimigas era muito mais desafiador. Precisava recolhê-las, a princípio uma a uma, e garantir que as tivesse submetido sinceramente a sua vontade antes de se atrever a convocar outro grupo.
Mas estava funcionando, e agora ele havia recolhido duas tribos rivais simultaneamente, e com resultados positivos. Torga e Grock haviam entrado em Crishal-Tirith, cada um deles à procura de uma maneira de matar o outro sem acarretar a ira do mago. Ao partirem, porém, depois de uma pequena discussão com Kessell, conversavam como velhos amigos sobre a glória de suas futuras batalhas no exército de Akar Kessell.
Kessell reclinou-se nas almofadas e ponderou sua boa sorte. Seu exército estava realmente ganhando forma. Tinha os gigantes do gelo como comandantes, ogros como guarnição, verbeeg como uma letal força de ataque e trolls - perversos trolls de meter medo - como sua guarda pessoal. E, segundo seus cálculos até ali, dez mil soldados goblins fanaticamente leais para levar a cabo sua onda de destruição.
- Akar Kessell - gritou, contemplativo, para a moça do harém que lhe fazia as longas unhas, apesar de a mente da menina já ter sido destruída por Crenshinibon. - Toda a glória para o Tirano do Vale do Vento Gélido!
Bem ao sul das estepes congeladas, nas terras civilizadas onde os homens tinham mais tempo para o lazer e a contemplação e nem todas as ações eram determinadas por pura necessidade, os magos e os pretensos magos não eram tão raros. Os verdadeiros magos, estudantes perpétuos das artes arcanas, praticavam sua profissão com o devido respeito pela magia, sempre precavidos em relação às possíveis conseqüências de seus encantamentos.
A menos que fossem consumidos pelo desejo de poder, o que era algo muito perigoso, os verdadeiros magos temperavam seus experimentos com cautela e raramente provocavam catástrofes.
Os pretensos magos, entretanto, homens que de algum modo haviam adquirido um certo grau de habilidade mágica, quer tivessem encontrado um pergaminho, o grimório de um mestre ou alguma relíquia, eram geralmente os perpetradores de calamidades colossais.
Esse era o caso naquela noite, num país a mil milhas de distância de Akar Kessell e Crenshinibon. Um aprendiz de mago, um rapaz que parecera muito promissor a seu mestre, obteve o diagrama de um poderoso círculo mágico e depois procurou e encontrou um encanto de invocação. O aprendiz, atraído pela promessa de poder, conseguiu extrair o nome verdadeiro de um demônio das anotações confidenciais de seu mestre.
A feitiçaria, a arte de invocar entidades de outros planos e submetê-las à servidão, era a paixão particular do rapaz. Seu mestre permitira-lhe trazer homúnculos e manes por meio de um portal mágico - rigorosamente supervisionado -, esperando demonstrar os possíveis perigos da prática e reforçar as lições de cautela. Na verdade, as demonstrações só fizeram agravar a inclinação do rapaz para essa arte. Ele implorou ao mestre que lhe permitisse tentar um verdadeiro demônio, mas o mago sabia que o rapaz não estava preparado para um teste dessa magnitude.
O aprendiz discordava.
Ele completara a inscrição do círculo naquele mesmo dia. Tão confiante estava em seu trabalho que não dedicou mais um dia (alguns magos levariam uma semana) para a verificação das runas e dos símbolos, nem se deu ao trabalho de testar o círculo com uma entidade inferior, como um mane.
E, agora, ele estava sentado no centro do círculo, com os olhos focalizados no fogo de um braseiro que serviria como o portal para o Abismo. Com um sorriso arrogante e excessivamente orgulhoso, o pretenso feiticeiro invocou o demônio.
Errtu, um demônio importante e de proporções catastróficas, ouviu indistintamente seu nome sendo pronunciado no plano longínquo. Normalmente, o grande monstro teria ignorado um chamado tão fraco; o conjurador com certeza não era bastante habilidoso para obrigar o demônio a obedecer.
Entretanto, Errtu ficou feliz com aquele chamado fatídico. Alguns anos antes, o demônio sentira uma onda de poder no plano material que ele acreditava ser a culminação de uma demanda milenar. O demônio suportara impacientemente os últimos anos, ansioso para que um mago lhe abrisse uma trilha e ele pudesse vir ao plano material para investigar.
O jovem aprendiz sentiu-se atraído pela dança hipnótica do fogo do braseiro. As labaredas uniram-se numa única chama - como a de uma vela, só que muitas vezes maior - e oscilavam torturantemente, de um lado para outro, de um lado para outro.
O aprendiz mesmerizado sequer percebeu a intensidade crescente do fogo. A chama saltava cada vez mais alto, acelerava-se seu bruxuleio e sua cor movia-se pelo espectro da luz em direção ao calor máximo da brancura.
De um lado para outro. De um lado para outro.
Mais rápido, agora, agitava-se desvairadamente e ganhava força para sustentar a poderosa entidade que aguardava do outro lado.
De um lado para outro. De um lado para outro.
O aprendiz transpirava. Sabia que o poder do encantamento estava passando dos limites, que a magia havia assumido o comando e ganhava vida própria. Que ele não teria o poder de detê-la.
De um lado para outro. De um lado para outro.
Agora, ele via no interior da chama uma sombra escura, grandes mãos providas de garras e asas coriáceas como as de um morcego. E o tamanho do monstro! Um gigante até mesmo pelos padrões de sua espécie.
- Errtu! - chamou o rapaz, e as palavras foram arrancadas pelas exigências do feitiço. O nome não havia sido identificado completamente nas anotações de seu mestre, mas era óbvio que pertencia a um demônio poderoso, um monstro do escalão logo abaixo dos lordes-demônios na hierarquia do Abismo.
De um lado para outro. De um lado para outro.
Agora, a cabeça bizarra e simiesca - com a boca e o focinho de um cão e os incisivos desproporcionais de um javali - já era visível, e os imensos olhos vermelhos como sangue entrecerraram-se lá de dentro da chama do braseiro. A saliva ácida crepitava ao cair no fogo.
De um lado para outro. De um lado para outro.
O fogo cresceu, num último estertor de poder, e Errtu deu um passo adiante. O demônio nem mesmo se deteve para examinar o aterrorizado rapaz que estupidamente invocara seu nome. Ele começou a caminhar lenta e ameaçadoramente pelo círculo mágico, em busca de pistas sobre a extensão do poder daquele mago.
O aprendiz finalmente conseguiu se controlar. Ele havia invocado um demônio importante! O fato o ajudou a restabelecer a confiança em suas habilidades como feiticeiro.
- Apresente-se diante de mim! - ordenou, consciente de que era necessário pulso firme para controlar uma criatura dos caóticos planos inferiores.
Errtu, impassível, prosseguiu com seu andar ameaçador. O aprendiz irritou-se.
- Você há de me obedecer! - gritou. - Eu o trouxe aqui e guardo a chave de seu tormento! Você há de obedecer minhas ordens e depois, misericordiosamente, eu o libertarei para que retorne a seu mundo abjeto! Agora, apresente-se diante de mim!
O aprendiz era ousado. O aprendiz era orgulhoso.
Mas Errtu encontrara um erro no traçado de uma runa, uma imperfeição fatal num círculo mágico que não poderia se dar ao luxo de ser quase perfeito.
O aprendiz estava morto.
No plano material, Errtu sentiu mais distintamente a tão conhecida sensação de poder e teve pouca dificuldade para discernir de onde provinham as emanações. Sobrevoou com suas grandes asas as cidades dos humanos, espalhando o pânico sempre que notado, mas não retardou sua jornada para saborear o caos que irrompia lá embaixo.
Direto como uma flecha e a toda velocidade, Errtu voou sobre lagos e montanhas, através de grandes extensões de terra desabitada. Em direção à cordilheira mais setentrional dos Reinos, a Espinha do Mundo, e à antiga relíquia que ele passara séculos procurando.
Kessell soube da aproximação do demônio muito antes que suas tropas ali reunidas começassem a se dispersar com medo da investida daquela sombra de trevas. Crenshinibon comunicara a informação ao mago, pois a relíquia viva antecipara os movimentos da poderosa criatura dos planos inferiores que a vinha perseguindo havia incontáveis séculos.
Kessell, porém, não estava preocupado. Em sua torre de poder, ele se acreditava capaz de lidar até mesmo com uma nêmesis tão poderosa quanto Errtu. E ele levava uma distinta vantagem sobre o demônio. Era o portador de direito da relíquia. A estilha estava em sintonia com ele e, como muitos outros artefatos mágicos da aurora dos tempos, Crenshinibon não poderia ser arrancada de seu dono pela força bruta. Errtu desejava empunhar a relíquia e, portanto, não ousaria se opor a Kessell e invocar a ira de Crenshinibon.
A saliva ácida escorreu da boca do demônio assim que ele viu a cópia da relíquia em forma de torre.
- Quantos anos? - ele bradou, vitorioso.
Errtu enxergou claramente a porta da torre, pois o demônio não era uma criatura do plano material, e aproximou-se imediatamente. Nenhum dos goblins de Kessell, nem mesmo um dos gigantes barrou a entrada do demônio.
Franqueado por seus trolls, o mago esperava Errtu no aposento principal de Crishal-Tirith, o primeiro nível da torre. O mago sabia que os trolls seriam de pouca utilidade contra um demônio que tinha o fogo como arma, mas os queria presentes para acentuar a primeira impressão que o demônio teria dele. Sabia que detinha o poder de livrar-se facilmente de Errtu, mas ocorrera-lhe uma outra idéia, mais uma vez implantada por uma sugestão da estilha de cristal.
O demônio poderia ser muito útil.
Errtu deteve-se abruptamente ao passar pela entrada estreita e dar com o séqüito do mago. Devido à remota localização da torre, o demônio esperara encontrar um ore ou talvez um gigante com a estilha nas mãos. Ele alimentara a esperança de intimidar e enganar o obtuso portador, convencendo-o a entregar a relíquia, mas a aparição de um homem de túnica, provavelmente um mago, frustrou-lhe os planos.
- Saudações, poderoso demônio - disse Kessell educadamente, com uma reverência. - Bem-vindo a meu humilde lar.
Errtu rugiu de fúria e avançou, esquecendo-se dos inconvenientes de destruir o portador tamanhos eram o ódio devorador e a inveja que sentia pelo presunçoso humano.
Crenshinibon refrescou a memória do demônio.
As paredes da torre emitiram um súbito clarão de luz que envolveu Errtu na luminosidade dolorosa de doze sóis do deserto. O demônio deteve-se e cobriu os olhos sensíveis. A luz logo se dissipou, mas Errtu continuou onde estava e não se aproximou novamente do mago.
Kessell sorriu com afetação. A relíquia o apoiara. Transbordando de confiança, ele voltou a se dirigir ao demônio, dessa vez com um quê de severidade na voz.
- Você veio para levar isto - disse, enfiando a mão nas dobras da túnica para dali retirar a estilha. Os olhos de Errtu estreitaram-se e fixaram-se no objeto que ele perseguira por tanto tempo.
- Não pode ser sua - disse Kessell, categoricamente, e devolveu-a a seu lugar. - É minha, foi encontrada legitimamente, e você não tem nenhum direito sobre ela! - O estúpido orgulho de Kessell, o defeito fatal de sua personalidade que sempre o impelira por uma estrada em que era certa a tragédia, desejava que ele continuasse escarnecendo do demônio e da situação irremediável em que este se encontrava.
- Basta - avisou uma sensação dentro dele, a voz silenciosa que ele suspeitava ser a vontade consciente da estilha.
- Não é de sua conta - Kessell respondeu, com um grito.
Errtu olhou em volta da sala, imaginado a quem o mago se dirigia. Os trolls com certeza não lhe haviam dado atenção. Como precaução, o demônio invocou vários encantos de detecção, temendo um agressor oculto.
- Você escarnece de um adversário perigoso - persistiu a estilha. - Eu o protegi do demônio, porém você insiste em indispor-se com uma criatura que pode vir a ser um aliado valioso!
Como era geralmente o caso quando Crenshinibon se comunicava com o mago, Kessell começou a enxergar as possibilidades. Decidiu-se por um compromisso, um acordo mutuamente benéfico tanto para ele quanto para o demônio.
Errtu refletiu sobre sua difícil situação. Não poderia matar o humano impertinente, embora viesse realmente a saborear o ato. No entanto, partir sem a relíquia, protelar a demanda que havia sido sua principal motivação durante séculos, não era uma opção aceitável.
- Tenho uma proposta a fazer, uma barganha que pode interessar você - disse Kessell, convidativo, evitando o olhar fatal que o demônio lhe lançava. - Fique a meu lado e sirva como o comandante de minhas forças! Com você na liderança e o poder de Crenshinibon e de Akar Kessell, elas devastarão o norte!
- Servir a você? - gargalhou Errtu. - Você não tem nenhuma autoridade sobre mim, humano.
- Você encara a situação de maneira incorreta - retorquiu Kessell. - Pense nisso não como servidão, mas como uma oportunidade para se juntar a uma campanha que promete destruição e conquista! Você tem meu maior respeito, poderoso demônio. Eu não me atreveria a intitular-me seu mestre.
Crenshinibon, com suas intrusões subconscientes, havia instruído Kessell muito bem. A postura já menos ameaçadora de Errtu demonstrava que ele estava intrigado com a proposição do mago.
- E pense em seus ganhos futuros - continuou Kessell. - Os humanos não vivem muito tempo em comparação à estimativa de vida de alguém que não envelhece. Quem, então, haverá de tomar a estilha de cristal quando Akar Kessell deixar de existir?
Errtu sorriu perversamente e curvou-se diante do mago.
- Como eu poderia recusar uma oferta tão generosa? - chiou o demônio com sua horrível voz espectral. - Mostre-me, mago, que gloriosas conquistas encontram-se em nosso caminho.
Kessell quase dançou de alegria. Seu exército estava, enfim, completo. Tinha seu general.
11
Garra de Palas
O suor formava gotas na mão de Bruenor, e ele inseriu a chave na fechadura empoeirada da pesada porta de madeira. Era o início do processo que colocaria definitivamente à prova toda a sua habilidade e experiência. Como todos os mestres ferreiros entre os anões, ele vinha esperando por aquele momento com emoção e expectativa desde o início de seu longo treinamento.
Precisou usar de força para abrir a porta da pequena câmara. A madeira rangeu e gemeu em protesto, tendo empenado e se acomodado desde que fora aberta pela última vez, muitos anos atrás. Contudo, foi um alívio para Bruenor, pois ele tinha pavor só de pensar que alguém pudesse fazer uma visitinha a seus bens mais estimados. Relanceou o olhar pelos corredores escuros daquele setor pouco utilizado do complexo dos anões, certificando-se mais uma vez de que não o haviam seguido, e depois entrou na sala, levando a tocha diante dele para queimar as franjas pendentes de inúmeras teias.
A única peça de mobília na sala era uma caixa de madeira ferrada, envolta em duas pesadas correntes unidas por um imenso cadeado. Teias de aranha entrecruzavam-se e pendiam de cada ângulo do baú, e uma espessa camada de pó cobria-lhe o topo. Outro bom sinal, observou Bruenor. Olhou novamente para o corredor lá fora, depois fechou a porta de madeira o mais silenciosamente possível.
Ajoelhou-se diante da arca e depositou a tocha no chão, a seu lado. Várias teias, tocadas de leve pela chama, explodiram num sopro alaranjado por apenas um instante e, em seguida, extinguiram-se. Bruenor retirou de sua escarcela um pequeno bloco de madeira e removeu a chave de prata que pendia da corrente que trazia em volta do pescoço. Segurou com firmeza o bloco de madeira a sua frente e, mantendo os dedos da outra mão abaixo do nível do cadeado tanto quanto possível, inseriu gentilmente a chave na fechadura.
Agora vinha a parte delicada. Bruenor girou a chave lentamente e prestou atenção ao menor ruído. Ao ouvir o estalido do volteador da fechadura, preparou-se para o pior e soltou rapidamente a chave, permitindo que o volume do cadeado se afastasse do próprio aro, o que liberou uma alavanca armada com uma mola comprimida entre a tranca e a arca. O pequeno dardo bateu no bloco de madeira e Bruenor deixou escapar um suspiro de alívio. Apesar de ter preparado a armadilha quase um século atrás, ele sabia que o veneno da serpente mil-viúvas-da-tundra conservara sua picada letal.
O mais absoluto entusiasmo suprimiu a reverência de Bruenor por aquele momento, e ele precipitadamente atirou as correntes por cima da arca e soprou-lhe o pó do tampo. Segurou o tampo e começou a erguê-lo, mas, de repente, voltou a fazer tudo com vagar, recuperando a calma solene e lembrando a si mesmo da importância de cada ação.
Ninguém que tivesse encontrado aquela arca e conseguido passar pela armadilha mortal ficaria satisfeito com os tesouros que ali acharia. Um cálice de prata, um saco de ouro e um punhal incrustado, porém mal balanceado, estavam misturados entre outros objetos mais pessoais e menos valiosos: um elmo amassado, velhas botas e outras peças similares que pouco encanto exerceriam sobre um ladrão.
No entanto, aqueles objetos eram simplesmente ouro-de-tolo. Bruenor tirou-os da arca e, sem hesitação, largou-os no chão imundo.
O fundo da pesada arca ficava logo acima do nível do chão, mas não dava a menor indicação de que existiria ali algo mais. Bruenor havia astuciosamente cavado um buraco sob a arca e acomodado ali a caixa com tamanha perfeição que mesmo um ladrão observador juraria que ela jazia sobre o chão. O anão tateou o fundo da caixa até encontrar um pequeno nó na madeira e enganchou um dedo hirsuto na abertura. Aquela madeira também havia se acomodado ao longo dos anos e Bruenor teve de puxar com muita força para finalmente liberá-la. O fundo soltou-se com um estalo repentino e fez Bruenor cambalear para trás. Ele estava de volta à arca um instante depois e, por sobre a borda, examinava cautelosamente seus maiores tesouros.
Um bloco do mais puro mitral, uma pequena bolsa de couro, um cofre dourado e um tubo de prata para o transporte de pergaminhos, tendo um diamante como tampa numa de suas extremidades, estavam dispostos exatamente como Bruenor os deixara tanto tempo atrás.
As mãos de Bruenor tremiam, e ele precisou parar e enxugar-lhes a perspiração várias vezes enquanto removia os preciosos objetos da arca, colocava em sua mochila aqueles que ali cabiam e depositava o bloco de mitral numa manta que havia desenrolado. Depois, ele recolocou rapidamente o fundo falso, tomando o cuidado de encaixar perfeitamente o olho do nó de volta na madeira, e colocou seu tesouro falso mais uma vez no lugar. Acorrentou e trancou a caixa, deixando tudo exatamente como encontrara, exceto que não viu motivo para se arriscar a um acidente armando novamente a agulha venenosa.
Bruenor construíra sua forja ao ar livre num recesso escondido, remotamente aconchegado no sopé do Sepulcro de Kelvin. Era uma região raramente visitada no vale dos anões, a extremidade setentrional, com a Via de Bremen a se perder na vasta tundra e a contornar a encosta ocidental da montanha, e o Desfiladeiro do Vento Gélido a fazer o mesmo no leste. Para sua surpresa, Bruenor descobriu que a pedra ali era resistente e pura, profundamente impregnada com a força da terra, e serviria muito bem como seu pequeno templo.
Como sempre, Bruenor aproximou-se daquele lugar sagrado com passos calculados e reverentes. Ele agora carregava os tesouros de sua herança, e sua mente viajou pelos séculos até o Salão de Mitral, o antigo lar de seu povo, e aquilo que o pai lhe dissera no dia em que recebera seu primeiro martelo de ferreiro.
- Se 'cê tiver mesmo talento para a arte - dissera-lhe o pai - e tiver a sorte de viver bastante tempo e sentir a força da terra, 'cê vai encontrar um dia especial. Uma bênção especial, ou uma maldição, dizem alguns, foi lançada sobre nosso povo, pois uma vez na vida, e apenas uma vez, o melhor de nossos ferreiros é capaz de criar uma arma de sua escolha que supera qualquer obra feita por ele anteriormente. Cuidado com esse dia, filho, pois você vai colocar um bom tanto de si mesmo nessa arma. Nunca mais na vida 'cê vai igualar a perfeição dela e, sabendo disso, vai perder boa parte daquele desejo de artífice que impele seu martelo. Pode ser que 'cê ache a vida vazia depois desse dia, mas se 'cê for bom como sua estirpe diz que é, 'cê vai ter fabricado uma arma lendária que vai continuar viva muito tempo depois de seus ossos terem virado pó.
O pai de Bruenor, abatido quando as trevas chegaram ao Salão de Mitral, não viveu o suficiente para encontrar seu dia especial, muito embora, caso o tivesse, vários dos objetos que Bruenor agora carregava teriam sido usados por ele. Mas o anão não via nenhum desrespeito em tomar os tesouros como seus, pois sabia que criaria uma arma para deixar orgulhoso o espírito do pai.
O dia de Bruenor chegara.
A imagem de um martelo de duas cabeças, oculta no bloco de mitral, ocorrera a Bruenor num sonho, no início daquela semana. O anão compreendeu o sinal no mesmo instante e sabia que devia se mexer rapidamente a fim de deixar tudo pronto para a noite de poder que célere se aproximava. A lua já estava imensa e brilhante no céu. Atingiria sua plenitude na noite do solstício, aquela época intermediária entre as estações quando havia magia no ar.
A lua cheia só aumentaria o encanto daquela noite, e Bruenor acreditava que ele capturaria um poderoso encantamento ao pronunciar as palavras mágicas.
O anão tinha muito trabalho pela frente caso quisesse estar preparado. Seu esforço começara com a construção da pequena forja. Essa parte era fácil, e ele ocupou-se dela mecanicamente, tentando manter seus pensamentos fixos na tarefa imediata e longe da perturbadora expectativa pela criação da arma.
Agora havia chegado o momento pelo qual ele tanto aguardara. Tirou o pesado bloco de mitral de sua mochila, sentindo-lhe a pureza e a força. Já havia antes segurado blocos similares e ficou apreensivo por um instante. Ele fitou o metal prateado.
Durante um bom tempo, o metal permaneceu um bloco de ângulos retos. Depois, os lados pareceram se arredondar quando a imagem de um maravilhoso martelo de guerra mostrou-se claramente ao anão. O coração de Bruenor disparou e ele ofegava.
Sua visão fora real.
Ele acendeu a forja e imediatamente deu início a sua obra, trabalhando noite adentro até que a luz da aurora dispersasse o encanto que pairava sobre ele. Voltou à casa naquele dia apenas para apanhar o bastão de adamantita que havia reservado para a arma, retornando à forja para dormir e, mais tarde, andar nervosamente de um lado para outro enquanto esperava pelo cair da noite.
Assim que a luz do dia desapareceu no horizonte, Bruenor voltou ansiosamente ao trabalho. O metal deixava-se moldar com facilidade por suas habilidosas mãos, e ele sabia que, antes de o amanhecer vir interrompê-lo, a cabeça do martelo estaria pronta. Embora ainda tivesse horas de trabalho pela frente, Bruenor sentiu uma onda de orgulho naquele instante. Sabia que cumpriria seu exigente programa. Ele fixaria a empunhadura de adamantita na noite seguinte e tudo estaria pronto para o encantamento sob a lua cheia na noite do solstício de verão.
A coruja precipitou-se silenciosamente sobre o pequeno coelho, orientada em direção à presa por sentidos incomparavelmente aguçados. Seria uma morte rotineira e o desafortunado animal sequer perceberia a aproximação do predador. No entanto, a coruja estava estranhamente agitada e sua concentração de caçador vacilou no último instante. Raramente a grande ave errava, mas, dessa vez, ela voou de volta a seu abrigo na encosta do Sepulcro de Kelvin sem a refeição.
Bem longe, na tundra, um lobo solitário aguardava, imóvel como uma estátua, ansioso, mas paciente, enquanto o disco de prata da imensa lua de verão rompia a orla plana do horizonte. Ele esperou até que o orbe fascinante aparecesse inteiro no céu e então retomou o antigo uivo de sua raça. Responderam-lhe, inúmeras vezes, os lobos distantes e outros habitantes da noite, todos a invocar o poder dos céus.
A noite do solstício de verão, quando havia magia no ar e agitavam-se todas as criaturas com exceção dos seres racionais que rejeitavam impulsos instintivos tão simples, começara.
Em seu estado emocional, Bruenor sentia distintamente a magia. Mas, absorvido na culminação dos esforços de sua vida, ele atingira um nível de calma concentração. As mãos já não tremiam quando ele abriu a tampa dourada do pequeno cofre.
O pujante martelo de guerra jazia preso à bigorna diante do anão. Representava a melhor obra de Bruenor, poderosa e lindamente trabalhada mesmo então, mas aguardando ainda as delicadas runas e os encantamentos que a transformariam numa arma de poder especial.
Bruenor reverentemente retirou do cofre o pequeno macete e o cinzel de prata e aproximou-se do martelo de guerra. Sem hesitação, pois sabia que tinha pouco tempo para um trabalho tão intrincado, ele apoiou o cinzel sobre o mitral e martelou-o solidamente com o macete. Os metais imaculados emitiram uma nota pura e clara que fizeram o grato anão sentir um frio na espinha. Ele sabia, no âmago de seu ser, que todas as condições eram perfeitas e estremeceu novamente ao pensar no resultado dos trabalhos daquela noite.
Ele não viu os olhos escuros que o examinavam atentamente desde um cômoro a uma pequena distância dali.
Bruenor não precisava de modelo para os primeiros entalhes: eram símbolos gravados em seu coração e em sua alma. Solenemente, ele inscreveu o martelo e a bigorna de Moradin, o Forjador da Alma, na lateral de uma das cabeças do martelo de guerra, e os machados cruzados de Clangeddin, o Deus das Batalhas para os anões, diametralmente opostos ao primeiro símbolo, na lateral da outra cabeça. Depois, ele pegou o tubo de prata para pergaminhos e gentilmente removeu-lhe a tampa de diamante. Suspirou aliviado ao ver que o pergaminho sobrevivera às décadas. Enxugando o suor oleoso de suas mãos, ele removeu o rolo e lentamente o desenrolou, depositando-o na parte plana da bigorna. De início, a página parecia branca, mas, aos poucos, os raios da lua cheia persuadiram seus símbolos, as runas secretas de poder, a aparecer.
Eram a herança de Bruenor e, embora ele nunca as tivesse visto antes, suas linhas e curvas arcanas pareciam familiares. Com mão firme e confiante, o anão colocou o cinzel de prata entre os símbolos dos dois deuses e começou a gravar as runas secretas no martelo de guerra. Sentiu a magia das runas transferindo-se do pergaminho para a arma através dele e assistiu, assombrado, a cada uma delas desaparecer do rolo depois de ter sido inscrita no mitral.
O tempo já não tinha mais significado, e ele sentiu-se profundamente perdido no transe de seu trabalho, mas, ao completar as runas, notou que a lua havia ultrapassado seu ponto culminante e começava a minguar.
O primeiro teste real da perícia do anão deu-se quando ele superpôs às runas a jóia no interior do símbolo da montanha de Dumathoin, o Guardião dos Segredos. Os contornos do símbolo do deus alinhavam-se perfeitamente com os das runas, obscurecendo os secretos desenhos mágicos.
Bruenor soube então que sua obra estava quase completa. Removeu o pesado martelo de guerra de sua tenaz e tirou da mochila a pequena bolsa de couro. Precisou inspirar profundamente várias vezes para se acalmar, pois este era o teste final e mais decisivo de sua competência. Ele soltou a corda que fechava a bolsa e maravilhou-se com as suaves cintilações do pó de diamante sob a tênue luz da lua.
Por trás do cômoro, Drizzt Do'Urden retesou-se de expectativa, mas teve o cuidado de não perturbar a total concentração de seu amigo.
Bruenor acalmou-se mais uma vez e, depois, subitamente, agitou o mais alto que pôde a pequena bolsa, liberando no ar da noite seu conteúdo. Atirou a bolsa de lado, agarrou o martelo de guerra com as duas mãos e o ergueu acima da cabeça. O anão sentiu a própria força sendo sugada ao pronunciar as palavras de poder, mas ele só saberia se teve êxito quando a obra estivesse completa. O nível de perfeição dos entalhes determinava o sucesso das entoações, pois enquanto ele gravava as runas na arma, a força que delas emanava fluíra para seu coração. Esse poder era o que atrairia o pó mágico para a arma e o poder desta, por sua vez, seria avaliado pela quantidade de partículas cintilantes que capturasse.
As trevas acometeram o anão. A cabeça girava e ele não entendia o que o mantinha ainda de pé. Mas o poder devorador das palavras era maior do que ele próprio. Embora nem mesmo tivesse consciência de suas palavras, elas continuavam a fluir de seus lábios numa inegável torrente, exaurindo cada vez mais as forças de Bruenor. Nesse momento, ele caiu misericordiosamente, mas o vácuo da inconsciência o arrebatou muito antes de sua cabeça atingir o solo.
Drizzt virou-se e recostou-se novamente ao cômoro rochoso; ele também estava exausto com o espetáculo. Não sabia se seu amigo sobreviveria à provação daquela noite, mas estava emocionado. Pois ele testemunhara o momento de triunfo do anão, apesar de Bruenor tê-lo perdido, quando a cabeça de mitral do martelo tremeluziu com a magia viva e atraiu a chuva de diamante.
E nem uma única partícula do pó cintilante escapara ao chamado de Bruenor.
12
O Presente
Bem no alto da face setentrional da Ladeira de Bruenor, sentava-se Wulfgar, com os olhos focalizados na extensão de vale rochoso lá embaixo, atento a qualquer movimento que pudesse indicar o retorno do anão. O bárbaro vinha com freqüência àquele local para ficar sozinho com seus pensamentos e o pranto do vento. Diretamente diante dele, do outro lado do vale dos anões, ficavam o Sepulcro de Kelvin e a seção norte do Lac Dinneshir. Entre eles, estendia-se o trecho plano de terreno conhecido como Desfiladeiro do Vento Gélido, que seguia para nordeste e levava à planície vasta.
E, para o bárbaro, ao desfiladeiro que levava a sua terra natal. Bruenor explicara que se ausentaria durante alguns dias e, no início, Wulfgar ficou feliz por se livrar dos resmungos e das críticas constantes do anão. Mas descobriu que seu alívio durara pouco.
- Está preocupado com ele, não é? - veio uma voz detrás dele. Não precisou se virar para saber que era Cattiebrie.
Deixou a pergunta sem resposta, imaginando que, em todo caso, ela perguntara retoricamente e não acreditaria se ele o negasse.
- Ele vai voltar - disse Cattiebrie, com indiferença na voz. - Bruenor é tão resistente quanto a pedra da montanha e não existe nada na tundra capaz de detê-lo.
O jovem bárbaro voltou-se para observar a moça. Tempos atrás, quando um nível confortável de confiança se estabelecera entre Bruenor e Wulfgar, o anão apresentara o jovem a sua "filha", uma garota humana da idade do bárbaro.
Era uma moça aparentemente serena, repleta, porém, de uma paixão interior e um espírito que Wulfgar não estava acostumado a esperar encontrar numa mulher. As moças bárbaras eram ensinadas a guardar para si mesmas seus pensamentos e opiniões, insignificantes segundo os padrões dos homens. Como seu mentor, Cattiebrie dizia exatamente o que lhe passava pela cabeça e deixava poucas dúvidas em relação a como se sentia sobre uma determinada situação. A disputa verbal entre ela e Wulfgar era praticamente constante e geralmente acalorada, mas, ainda assim, Wulfgar alegrava-se por ter uma companheira de sua idade, alguém que não o olhasse de cima para baixo desde um pedestal de experiência.
Cattiebrie ajudara-o a enfrentar o difícil primeiro ano de seu compromisso, tratando-o com respeito (apesar de raramente concordar com ele) quando ele próprio não tinha nenhum por si mesmo. Wulfgar até mesmo tinha a sensação de que ela indiretamente tivera algo a ver com a decisão de Bruenor de tomá-lo sob sua tutela.
Eram da mesma idade, mas, em muitos aspectos, Cattiebrie parecia muito mais velha, com uma sólida noção interior da realidade que mantinha seu temperamento num nível equilibrado. Em outros aspectos, entretanto, tal como o andar saltitante, Cattiebrie seria eternamente uma criança. Esse equilíbrio incomum de espírito e calma, de serenidade e desenfreada alegria, intrigava Wulfgar e deixava-o sem saber o que pensar toda vez que falava com a moça.
Naturalmente, havia outras emoções que deixavam Wulfgar em desvantagem com Cattiebrie a seu lado. Inegavelmente, ela era linda, com densas ondas de um magnífico cabelo castanho-avermelhado a esparramar-se por seus ombros; e os olhos penetrantes, do mais profundo azul, que fariam qualquer pretendente corar sob seu sagaz escrutínio. Ainda assim, o interesse de Wulfgar ultrapassava a mera atração física. Ele não conseguia compreender Cattiebrie, uma jovem que não se encaixava no papel feminino que lhe fora definido na tundra. Ele não estava bem certo se gostava ou não daquela independência. Mas achava-se incapaz de negar a atração que sentia por ela.
- Você vem aqui em cima com freqüência, não é? - perguntou Cattiebrie. - O que você procura?
Wulfgar deu de ombros, sem saber inteiramente a resposta.
- Seu lar?
- Isso e outras coisas que uma mulher não entenderia. Cattiebrie afastou o insulto involuntário com um sorriso.
- Explique-me, então - pressionou, e as insinuações de sarcasmo afiaram-lhe o tom da voz. - Pode ser que minha ignorância traga uma nova luz a esses problemas.
Ela desceu pela rocha para rodear o bárbaro e sentar-se ao lado dele na mesma saliência.
Wulfgar maravilhou-se com os movimentos graciosos dela. Assim como a polaridade de sua curiosa mistura emocional, Cattiebrie também se mostrava um enigma fisicamente. Era alta e esbelta, aparentemente delicada, mas, como havia se transformado em mulher nas cavernas dos anões, estava acostumada ao trabalho pesado e árduo.
- Aventuras e uma promessa não cumprida - disse Wulfgar misteriosamente, talvez para impressionar a moça, mas antes de tudo para reforçar a própria opinião sobre as coisas com as quais uma mulher deveria e não deveria se preocupar.
- Uma promessa que você tem a intenção de cumprir - raciocinou Cattiebrie - assim que tiver a oportunidade.
Wulfgar assentiu solenemente.
- É minha herança, um fardo que me foi passado quando meu pai foi morto. Chegará o dia... - Ele deixou a voz extinguir-se e voltou a olhar com saudade para a inanidade da vasta tundra além do Sepulcro de Kelvin.
Cattiebrie meneou a cabeça, e os cachos castanho-avermelhados balouçaram em seus ombros. Ela enxergava além da fachada de mistério de Wulfgar, o bastante para entender que ele tinha a intenção de empreender uma missão muito perigosa, provavelmente suicida, em nome da honra.
- O que o motiva, não sei dizer. Que você tenha sorte em sua aventura, mas se a estiver aceitando por nenhuma outra razão além das que você nomeou, você estará desperdiçando a própria vida.
- O que uma mulher entende de honra? - Wulfgar devolveu com raiva. Mas Cattiebrie não se intimidou nem recuou.
- O que, não é mesmo? - repetiu ela. - Você acha que a única razão para levar o fardo em seus ombros descomunais é isso aí que carrega entre as pernas?
Wulfgar ficou extremamente vermelho e deu as costas à moça, incapaz de lidar com tamanha petulância numa mulher.
- Além disso - continuou Cattiebrie -, você pode dar o motivo que quiser para ter subido aqui hoje. Sei que está preocupado com Bruenor e não vou aceitar uma negativa.
- Você só sabe o que deseja saber!
- Você é muito parecido com ele - disse Cattiebrie abruptamente, mudando de assunto e desconsiderando os comentários de Wulfgar. - Mais semelhante ao anão do que jamais admitirá! - Ela riu. - Ambos teimosos, ambos orgulhosos e nenhum dos dois é capaz de admitir um sentimento sincero um pelo outro. Faça como quiser, então, Wulfgar do Vale do Vento Gélido. Para mim você pode mentir, mas para si mesmo... é outra história!
Ela pulou do lugar onde estava e desceu saltitando as rochas rumo às cavernas dos anões.
Wulfgar observou-a partir, admirando o balanço de seus quadris esbeltos e a dança graciosa de seu andar, apesar da raiva que sentia. Não parou para considerar por que estava tão irritado com Cattiebrie.
Ele sabia que, caso o fizesse, descobriria, como sempre, que estava furioso por terem as observações dela atingido o alvo.
Drizzt Do'Urden guardou estóica vigilância sobre seu amigo inconsciente durante dois longos dias. Mesmo preocupado como estava em relação a Bruenor e curioso quanto ao espantoso martelo de guerra, o drow manteve-se a uma distância respeitosa da forja secreta.
Por fim, quando raiava a manhã do terceiro dia, Bruenor mexeu-se e espreguiçou-se. Drizzt afastou-se em silêncio e percorreu a trilha que sabia que o anão tomaria. Encontrando uma clareira apropriada, ele montou às pressas um pequeno acampamento.
A princípio, a luz do sol chegou a Bruenor apenas como um borrão, e ele levou vários minutos para se reorientar em relação aos arredores. Em seguida, a visão que retornava focalizou a glória resplandecente do martelo de guerra.
Rapidamente, ele relanceou os olhos a seu redor, à procura de sinais do pó que deveria ali ter caído. Não encontrou nenhum e sua expectativa aumentou. Estava tremendo novamente ao erguer a magnífica arma, revirá-la nas mãos e sentir seu perfeito equilíbrio e sua incrível força. O fôlego de Bruenor fugiu-lhe quando ele viu os símbolos dos três deuses no mitral e o pó de diamante magicamente fundido àquelas linhas tão profundamente gravadas. Extasiado pela aparente perfeição de sua obra, Bruenor compreendeu o vazio de que seu pai falara. Ele sabia que jamais duplicaria aquele mesmo nível de arte e questionou se, sabendo disso, seria algum dia capaz de erguer novamente seu martelo de ferreiro.
Tentando pôr em ordem suas emoções confusas, o anão devolveu o macete e o cinzel de prata a seu cofre dourado e recolocou o rolo de pergaminho em seu tubo, embora o documento estivesse novamente em branco e as runas mágicas jamais viessem a reaparecer. Ele se deu conta de que não se alimentava havia dias e sua força não fora completamente restaurada depois de exaurida pela magia. Recolheu tudo o que ainda conseguia carregar, ergueu ao ombro o imenso martelo de guerra e partiu, caminhando penosamente em direção à casa.
O delicioso odor de coelho assado saudou-o assim que ele topou com o acampamento de Drizzt Do'Urden.
- Então, 'cê já voltou de suas viagens - gritou ao cumprimentar o amigo.
Drizzt fixou os olhos nos do anão, não querendo trair sua irresistível curiosidade pelo martelo de guerra.
- A seu pedido, meu bom anão - disse ele, com uma reverência. - Não tenho dúvida de que você colocou gente suficiente a minha procura para contar com meu retorno.
Bruenor anuiu, embora no momento oferecesse distraidamente como explicação apenas um "eu precisava de você." Uma necessidade mais urgente apoderara-se dele diante da visão de carne assada.
Drizzt sorriu astuciosamente. Ele já havia se alimentado e capturara e cozinhara o coelho especialmente para Bruenor.
- Me faz companhia? - perguntou.
Antes mesmo de ele ter terminado a oferta, Bruenor já estava se esticando avidamente sobre o fogo para pegar o coelho. Entretanto, o anão estacou de repente e lançou um olhar desconfiado para o drow.
- Faz quanto tempo que 'cê 'tá aqui? - perguntou, nervoso.
- Cheguei apenas esta manhã - mentiu Drizzt, respeitando a privacidade da cerimônia especial do anão.
Bruenor esboçou um sorriso pretensioso diante da resposta e atacou o coelho enquanto Drizzt colocava outro no espeto.
O drow esperou até que Bruenor estivesse absorto com a própria refeição, depois apanhou o martelo de guerra. Quando Bruenor reagiu, Drizzt já havia erguido a arma.
- Grande demais para um anão - comentou casualmente Drizzt. - E pesado demais para meus braços esguios. - Ele olhou para Bruenor, que se levantara, tinha os braços cruzados e batia o pé impacientemente. - Para quem, então?
- 'cê consegue meter o nariz onde não é chamado, elfo - respondeu o anão rispidamente.
Drizzt riu da resposta.
- O rapaz, Wulfgar? - perguntou com fingida descrença. Ele sabia muito bem que o anão nutria fortes sentimentos pelo jovem bárbaro, embora também ele reconhecesse que Bruenor jamais o admitiria abertamente. - Uma arma excelente para dar a um bárbaro. Você mesmo a forjou?
Apesar da brincadeira, Drizzt estava realmente admirado com a habilidade de Bruenor. Embora o martelo fosse pesado demais para que ele o empunhasse, o extraordinário equilíbrio da arma era claramente perceptível.
- É um velho martelo, só isso - resmungou Bruenor. - O garoto perdeu a clava dele; eu não podia soltar ele por aí neste lugar selvagem sem uma arma!
- E o nome do martelo?
- Garra de Palas - replicou Bruenor sem pensar, e o nome saiu de seus lábios antes mesmo que tivesse tempo de pensar a respeito. Ele não recordava o incidente, mas determinara o nome da arma quando a havia encantado como parte das entoações mágicas da cerimônia.
- Entendo - disse Drizzt, entregando o martelo a Bruenor. - Um velho martelo, mas bom o bastante para o rapaz. Mitral, adamantita e diamante devem dar para o gasto.
- Ah, cale a boca - disse Bruenor bruscamente, com o rosto enrubescido de constrangimento. Drizzt desculpou-se com uma reverência.
- Por que solicita minha presença, meu amigo? - perguntou o drow, mudando de assunto.
Bruenor pigarreou.
- O garoto - resmungou baixinho. Drizzt percebeu claramente o nó desconfortável na garganta de Bruenor e abortou a próxima provocação antes mesmo de pronunciá-la.
- Ele ganha a liberdade antes do inverno - continuou Bruenor - e não foi treinado direitinho. E mais forte do que qualquer homem que eu já tenha visto e se move com a graça de um gamo em fuga, mas ainda está verde para a batalha.
- Você quer que eu o treine? - perguntou Drizzt, incrédulo.
- Bem, eu é que não posso fazer isso! - disse Bruenor subitamente. - Ele tem sete pés de altura e não se acostumaria às cutiladas baixas de um anão!
O drow fitou seu frustrado companheiro com curiosidade. Como todos os que eram íntimos de Bruenor, ele sabia que um vínculo se estabelecera entre o anão e o jovem bárbaro, mas até então não fazia idéia de que esse elo fosse tão forte.
- Eu não cuidei do moleque durante cinco anos só pra deixar que fosse abatido por um fedorento yeti da tundra! - Bruenor falou abruptamente, impaciente com a hesitação do drow e temeroso de que seu amigo tivesse adivinhado mais do que deveria. - Então, 'cê faz isso por mim?
Drizzt sorriu novamente, mas dessa vez sem provocações. Lembrou-se do próprio confronto com os yetis da tundra cinco anos atrás. Bruenor salvara-lhe a vida naquele dia e não havia sido a primeira nem seria a última vez em que ficaria em débito com o anão.
- Os deuses sabem que devo a você mais do que isso, meu amigo. É claro que eu o treinarei.
Bruenor grunhiu e agarrou o outro coelho.
O retinir do martelar de Wulfgar ecoava pelos salões dos anões. Furioso com as revelações que fora forçado a enxergar em sua discussão com Cattiebrie, ele retornara ao trabalho com todo o ardor.
- Pare de martelar, garoto - veio uma voz rouca detrás dele.
Wulfgar girou sobre os calcanhares. Ele estava tão absorto em seu trabalho que não ouviu Bruenor entrar. Um sorriso involuntário de alívio espalhou-se por seu rosto. Mas ele percebeu logo a demonstração de fraqueza e repintou uma máscara austera.
Bruenor avaliou a grande estatura e a corpulência do jovem bárbaro e o princípio irregular de uma barba loura sobre a pele dourada daquele rosto.
- Não dá mais pra te chamar de "garoto" - admitiu o anão.
- Você pode me chamar do que quiser - retorquiu Wulfgar. - Sou seu escravo.
- 'cê tem um espírito tão selvagem quanto a tundra - disse Bruenor, sorrindo. - 'cê nunca foi, nem jamais vai ser um escravo de anões ou de homens.
Wulfgar foi apanhado de surpresa pelo elogio atípico do anão. Tentou responder, mas não encontrou palavras.
- Nunca te encarei como um escravo, garoto - continuou Bruenor. - 'cê me serviu pra pagar pelos crimes do seu povo e eu te ensinei muita coisa em troca. Agora deixe o martelo de lado.
Deteve-se por um momento para examinar a excelente arte de Wulfgar.
- 'cê é um bom ferreiro e compreende bem a pedra, mas seu lugar não é na caverna de um anão. Já 'tá na hora de sentir o sol na sua cara de novo.
- Liberdade? - murmurou Wulfgar.
- Vá tirando o cavalinho da chuva! - disse Bruenor bruscamente. Apontou um dedo hirsuto para o bárbaro e rosnou uma ameaça. - 'cê é meu até os últimos dias do outono e não se esqueça disso!
Wulfgar teve de morder o lábio para refrear uma risada. Como sempre, a combinação bizarra de compaixão e raiva limítrofe do anão o confundira e o apanhara desprevenido. No entanto, não foi mais um choque. Quatro anos ao lado de Bruenor o ensinaram a esperar - e a desconsiderar - aquelas súbitas explosões de mau humor.
- Termine aí seja o que for que veio fazer aqui - instruiu Bruenor. - Amanhã de manhã vou te levar pra conhecer seu professor e, segundo seu juramento, você vai obedecer a ele como se fosse eu!
Wulfgar contorceu o rosto só de pensar em servir a ainda outra pessoa, mas ele aceitara incondicionalmente seu compromisso com Bruenor por um período de cinco anos e um dia e não desonraria a si mesmo voltando atrás em seu juramento. Ele assentiu com a cabeça.
- Eu não vou te ver muito a partir de agora - continuou Bruenor -, então quero seu juramento de que nunca mais vai erguer uma arma contra o povo de Dez-Burgos.
Wulfgar continuou imóvel e firme.
- Isso não - respondeu com audácia. - Quando eu tiver cumprido os termos que você me apresentou, hei de deixar este lugar como um homem de vontade própria.
- É justo - cedeu Bruenor, pois o orgulho obstinado de Wulfgar na verdade aumentava o respeito que o anão tinha por ele. Deteve-se por um momento para examinar o orgulhoso jovem guerreiro e flagrou-se contente com seu próprio papel no crescimento de Wulfgar.
- 'cê quebrou aquele seu maldito mastro na minha cabeça - começou Bruenor tentativamente. Pigarreou. Essa última questão deixava o irredutível anão constrangido. Não tinha bem certeza de como conseguiria dar cabo da tarefa sem parecer sentimental e tolo. - O inverno vai chegar logo depois de terminado o seu período aqui comigo. Não seria justo te mandar para os ermos sem uma arma.
Ele rapidamente enfiou um braço pela passagem que dava para o corredor e apanhou o martelo de guerra.
- Garra de Palas - disse rispidamente ao jogá-lo para Wulfgar. - Não vou impor restrições a sua vontade, mas quero seu juramento, para ter a consciência limpa, de que jamais vai erguer esta arma contra o povo de Dez-Burgos!
Assim que suas mãos se fecharam em volta da empunhadura de adamantita, Wulfgar sentiu o valor do martelo mágico. As runas preenchidas pelo diamante capturaram o brilho da forja e uma miríade de reflexos começaram a dançar pela câmara. Os bárbaros da tribo de Wulfgar sempre haviam se orgulhado das boas armas que possuíam, chegando a medir o valor de um homem pela qualidade de sua lança ou de sua espada, mas Wulfgar jamais vira algo que se equiparasse ao refinado detalhamento e à força bruta de Garra de Palas. Equilibrava-se tão bem em suas mãos descomunais, e o tamanho e o peso do martelo adaptavam-se tão perfeitamente a ele que chegou a sentir como se tivesse nascido para empunhar aquela arma. Disse a si mesmo, imediatamente, que oraria muitas noites aos deuses do destino por confiar a ele aquela recompensa. Eles mereciam sem dúvida sua gratidão.
Assim como Bruenor.
- Você tem minha palavra - balbuciou Wulfgar, tão desconcertado com o magnífico presente que mal conseguia falar. Controlou-se para que pudesse acrescentar algo, mas, quando finalmente conseguiu desviar o olhar do magnífico martelo, Bruenor desaparecera.
O anão percorreu os longos corredores com passos duros, rumando para seus aposentos, murmurando imprecações a sua fraqueza e esperando que nenhum dos seus o encontrasse. Com um olhar cauteloso ao redor, ele enxugou a umidade dos olhos cinzentos.
13
Como o Portador Assim Desejar
- Reúna seu pessoal e vá, Sorrisão - disse o mago ao enorme gigante do gelo diante dele na sala do trono em Crishal-Tirith. - Lembre-se de que representa o exército de Akar Kessell. Vocês são o primeiro grupo a entrar na área e o segredo é a chave de nossa vitória! Não me decepcione! Estarei observando cada um de seus movimentos.
- Não vamos te decepcionar, mestre - respondeu o gigante. - O covil vai estar montado e pronto pra sua chegada!
- Confio em você - Kessell tranqüilizou o imenso comandante. - Agora, suma-se.
O gigante do gelo ergueu o espelho velado que Kessell havia lhe dado, ofereceu uma última reverência a seu mestre e saiu da sala.
- Não devia tê-lo enviado - silvou Errtu, que permanecera invisível ao lado do trono durante a conversa. - Os verbeeg e seu líder, o gigante do gelo, serão facilmente notados numa comunidade de humanos e anões.
- Sorrisão é um líder sensato - devolveu Kessell, furioso com a impertinência do demônio. - O gigante é esperto o bastante para manter as tropas fora de vista!
- Mas os humanos teriam sido mais apropriados para esta missão, como lhe mostrou Crenshinibon.
- Eu sou o líder! - gritou Kessell. Retirou a estilha de cristal de sob as vestes e brandiu-a ameaçadoramente diante de Errtu, debruçando-se para enfatizar a ameaça. - Crenshinibon aconselha, mas eu decido! Não esqueça sua posição, poderoso demônio. Sou o portador da estilha e não tolerarei que você questione cada um de meus passos.
Os olhos vermelhos como sangue de Errtu estreitaram-se perigosamente e Kessell endireitou-se em seu trono, reconsiderando subitamente a sensatez de ameaçar o demônio. Mas Errtu logo se acalmou e aceitou a pequena inconveniência das tolas explosões de Kessell em troca de seus prováveis ganhos futuros.
- Crenshinibon existe desde a aurora dos tempos - disse o demônio, com voz estridente, lançando um último argumento. - Orquestrou mil campanhas muito mais grandiosas que esta que você está prestes a empreender. Talvez você devesse dar mais crédito aos conselhos dela.
Kessell contorceu-se, nervoso. A estilha de fato o aconselhara a utilizar na primeira incursão pela região os humanos que ele em breve comandaria. Ele inventara uma dúzia de desculpas para validar sua opção de enviar os gigantes, mas, na verdade, mandara o pessoal de Sorrisão mais para ilustrar seu indiscutível comando para si mesmo, para a estilha e para o demônio impertinente do que em função de vantagens militares.
- Seguirei o conselho de Crenshinibon quando eu o julgar apropriado - disse a Errtu. Sacou uma outra estilha, uma duplicata exata de Crenshinibon e do cristal que utilizara para erguer a torre, de um dos muitos bolsos de sua túnica. - Leve isto ao local apropriado e realize a cerimônia de soerguimento - instruiu ele. - Hei de me juntar a você por meio de um espelho-portal quando tudo estiver pronto.
- Você quer erguer uma segunda Crishal-Tirith enquanto a primeira ainda está de pé? - refugou Errtu. - Isso vai exaurir imensamente a relíquia!
- Silêncio! - ordenou Kessell, tremendo visivelmente. - Vá e realize a cerimônia! Deixe que a estilha continue a ser uma preocupação minha!
Errtu pegou a réplica da relíquia e fez uma reverência. Sem mais uma palavra, o demônio deixou a sala. Compreendeu que Kessell estava estupidamente demonstrando seu controle sobre a estilha às custas do devido comedimento e de táticas militares sensatas. O mago não tinha a capacidade nem a experiência necessárias para orquestrar aquela campanha, mas a estilha continuava a apoiá-lo.
Errtu secretamente se oferecera para se livrar de Kessell e assumir o papel de portador. Mas Crenshinibon recusara o demônio. Ela preferia as demonstrações exigidas por Kessell para aplacar as próprias inseguranças à luta constante pelo controle que travaria com o poderoso demônio.
Apesar de caminhar entre gigantes e trolls, a estatura do orgulhoso rei bárbaro em nada diminuíra. Ele atravessou desafiadoramente a porta de ferro da torre negra e passou pelos perversos trolls sentinelas com um rosnado ameaçador. Odiava aquele lugar de feitiçaria e decidira ignorar o chamado quando a extraordinária espineta da torre apareceu no horizonte como um dedo glacial surgido do chão plano. Mas, por fim, não conseguiu resistir às invocações do mestre de Crishal-Tirith.
Heafstaag odiava o mago. Segundo todos os padrões de sua tribo, Akar Kessell era fraco, pois usava truques e invocações demoníacas em lugar da força. E Heafstaag o odiava ainda mais por não conseguir refutar o poder do mago.
O rei bárbaro afastou os cordões aljofrados que pendiam do teto e serviam de porta à sala de audiência privada de Akar Kessell no segundo nível da torre. O mago estava reclinado sobre uma imensa almofada de cetim bem no meio da sala e tamborilava impacientemente o chão com as unhas longas e pintadas. Várias escravas nuas, as mentes subjugadas e dominadas pela relíquia, atendiam a cada capricho do portador da estilha.
Enfurecia Heafstaag ver mulheres escravizadas por um arremedo de homem tão insignificante e deplorável. Não pela primeira vez, ele pensou em enterrar seu grande machado no crânio do mago numa repentina investida. Mas a sala estava repleta de biombos e pilares estrategicamente localizados, e o bárbaro sabia, mesmo recusando-se a acreditar que a vontade do mago fosse capaz de anular sua fúria, que o demônio de estimação de Kessell não estaria longe do mestre.
- Que bom que pôde se juntar a mim, nobre Heafstaag - disse Kessell de modo calmo e conciliatório. Errtu e Crenshinibon estavam logo ali. Ele se sentia bastante seguro, mesmo na presença do rude rei bárbaro. Acariciou uma das escravas distraidamente, exibindo seu domínio absoluto. - De fato, você deveria ter vindo antes. Muitas de minhas forças já se encontram reunidas; o primeiro grupo de batedores já partiu.
Inclinou-se em direção ao bárbaro para enfatizar seu propósito.
- Se eu não encontrar um lugar para seu povo em meus planos - disse, reprimindo um sorriso maldoso -, então seu povo não terá qualquer utilidade para mim.
Heafstaag não vacilou nem alterou sua expressão o mínimo que fosse.
- Venha agora, poderoso rei - entoou o mago -, sente-se e compartilhe das riquezas de minha mesa.
Heafstaag apegou-se ao próprio orgulho e permaneceu impassível.
- Muito bem! - disse Kessell bruscamente. Cerrou o punho e pronunciou uma palavra de comando. - A quem você deve lealdade? - exigiu.
O corpo de Heafstaag ficou rígido.
- A Akar Kessell! - respondeu, para seu próprio asco.
- E diga-me mais uma vez quem é que comanda as tribos da tundra.
- Elas seguem a mim - replicou Heafstaag - e eu sigo Akar Kessell. Akar Kessell comanda as tribos da tundra!
O mago desfez o punho e o rei bárbaro caiu para trás.
- Pouco me agrada fazer isso com você - disse Kessell, lixando uma rebarba numa de suas unhas pintadas. - Não me obrigue a repeti-lo. - Ele sacou um rolo de pergaminho detrás da almofada de cetim e o lançou ao chão.
- Sente-se diante de mim - ele instruiu Heafstaag. - Fale-me novamente de sua derrota.
Heafstaag assumiu seu lugar no chão, em frente ao mestre, e desenrolou o pergaminho.
Era um mapa de Dez-Burgos.
14
Olhos Cor de Lavanda
Bruenor havia readquirido sua aparência austera quando acordou Wulfgar na manhã seguinte. Ainda assim, comovia profundamente o anão, embora ele fosse capaz de ocultar o fato, ver Garra de Palas pousado casualmente sobre o ombro do jovem bárbaro, como se sempre houvesse estado ali e ali sempre tivesse sido seu lugar.
Wulfgar também ostentava uma máscara taciturna. Fingia raiva por ser colocado a serviço de outra pessoa mas, se ele tivesse examinado suas emoções mais atentamente, teria reconhecido que estava verdadeiramente triste por se separar do anão.
Cattiebrie esperava por eles na junção da última passagem que levava ao mundo exterior.
- Mas que dupla rabugenta vocês formam nesta linda manhã! - disse, quando eles se aproximaram. - Mas deixe estar, o sol colocará um sorriso nesses rostos.
- Você parecia contente com esta despedida - respondeu Wulfgar, um pouco perturbado, mas o brilho em seus olhos ao ver a moça desmentiu sua raiva. - Você sabe, é claro, que hoje deixarei a vila dos anões?
Cattiebrie fez um gesto indiferente com a mão.
- Você logo estará de volta. - Ela sorriu. - E alegre-se com a partida! Considere necessárias as lições que logo aprenderá caso algum dia queira alcançar seus objetivos.
Bruenor virou-se em direção ao bárbaro. Wulfgar nunca discutira com ele o que pretendia fazer depois do período de compromisso, e o anão, embora tivesse a intenção de prepará-lo o melhor que pudesse, não havia sinceramente aceitado a determinação do rapaz em partir.
Wulfgar franziu o cenho e deixou bem claro para a jovem que a discussão que haviam tido sobre a promessa não cumprida era um assunto particular. De qualquer maneira, Cattiebrie não tivera a intenção de aprofundar a questão. Simplesmente gostava de provocar Wulfgar e arrancar dele alguma emoção. Cattiebrie reconhecia a paixão que ardia no orgulhoso rapaz. Enxergava-a sempre que ele olhava para Bruenor, seu mentor, quer o admitisse ou não. E também a percebia toda vez que Wulfgar olhava para ela.
- Eu sou Wulfgar, filho de Beornegar - vangloriou-se ele com orgulho, atirando para trás os ombros largos e endireitando o queixo firme. - Cresci entre a Tribo do Alce, os melhores guerreiros de todo o Vale do Vento Gélido! Nada sei sobre esse tutor, mas ele dificilmente terá o que me ensinar sobre as leis da batalha!
Cattiebrie trocou um sorriso conhecedor com Bruenor quando o anão e Wulfgar passaram por ela.
- Adeus, Wulfgar, filho de Beornegar - gritou para eles. - Quando nos encontrarmos de novo, tomarei nota cuidadosamente de suas lições de humildade!
Wulfgar olhou para trás e franziu o cenho novamente, mas o largo sorriso de Cattiebrie em nada diminuíra.
Os dois deixaram a escuridão das minas logo depois do amanhecer e percorreram o vale rochoso até o local designado onde deveriam encontrar o drow. Era um dia quente de verão, sem nuvens, e o azul do céu era descorado pela neblina matinal. Wulfgar esticou os braços o mais que pôde, atingindo os limites de seus longos músculos. Seu povo nascera para viver nas vastas extensões da tundra e ele se sentia aliviado por deixar a asfixiante estreiteza das cavernas destinadas aos anões.
Drizzt Do'Urden já os esperava quando eles chegaram. O drow estava encostado ao lado sombreado de um matacão, em busca de alívio para a luz ofuscante do sol. Cobria o rosto com o capuz do manto como uma proteção adicional. Drizzt considerava uma maldição de sua herança seu corpo jamais se adaptar completamente à luz do sol, não importava quantos anos permanecesse entre os habitantes da superfície.
Ele continuou imóvel, mas tinha total consciência da aproximação de Bruenor e Wulfgar. Eles é que tomem a iniciativa, pensou, com a intenção de julgar como o rapaz reagiria à nova situação.
Curioso em relação à misteriosa figura que deveria ser seu novo mestre e professor, Wulfgar audaciosamente venceu a pequena distância e postou-se diretamente em frente ao drow. Drizzt observou-o aproximar-se sob as sombras de seu capuz, maravilhado com a graciosa interação dos músculos bem torneados daquele homem gigantesco. O drow originariamente planejara fazer a vontade de Bruenor, atender a seu ultrajante pedido durante algum tempo e depois inventar uma desculpa qualquer e desaparecer. Mas, ao notar a fluência e a energia dos passos largos do bárbaro, uma desenvoltura incomum em alguém daquele tamanho, Drizzt flagrou-se começando a se interessar pelo desafio de desenvolver o potencial aparentemente ilimitado do rapaz.
Drizzt percebeu que a parte mais dolorosa do encontro com aquele homem - assim como com todos aqueles que conhecia - seria a reação inicial de Wulfgar. Ansioso para acabar logo com aquilo, ele jogou para trás o capuz e encarou diretamente o bárbaro.
Os olhos de Wulfgar esbugalharam-se de horror e asco.
- Um elfo negro! - gritou, incrédulo. - Cão enfeitiçado! - Virou-se para Bruenor como se tivesse sido atraiçoado. - Você não pode me pedir isto! Não tenho a necessidade nem o desejo de aprender artifícios mágicos com esta raça decrépita!
- Ele vai te ensinar a lutar e nada mais - disse Bruenor. O anão já esperava aquilo. Não estava nem um pouco preocupado, completamente ciente, como Cattiebrie, de que Drizzt ensinaria ao rapaz excessivamente orgulhoso um pouco da necessária humildade.
Wulfgar riu desdenhosamente, desafiador.
- O que posso aprender sobre o combate com um elfo débil? Os bárbaros já nascem verdadeiros guerreiros! - Ele fitou Drizzt com franco desprezo. - E não cães trapaceiros como a laia dele!
Drizzt tranqüilamente olhou para Bruenor, pedindo permissão para começar a aula do dia. O anão sorriu afetadamente diante da ignorância do bárbaro e acenou com a cabeça seu consentimento.
Num piscar de olhos, as duas cimitarras saltaram de suas bainhas e desafiaram o bárbaro. Instintivamente, Wulfgar ergueu o martelo de guerra para atacar.
Mas Drizzt foi mais rápido. As laterais das armas atingiram em rápida sucessão as faces de Wulfgar, desenhando finos traços de sangue. Mesmo quando o bárbaro posicionou-se para um contra-ataque, Drizzt girou uma das lâminas mortais num arco descendente, e o fio aguçado visou a parte de trás do joelho do bárbaro. Wulfgar conseguiu desviar a perna da trajetória da arma, mas esse movimento, como Drizzt antecipara, tirou-lhe o equilíbrio. O drow casualmente fez com que as cimitarras deslizassem de volta às bainhas de couro enquanto atingia o ventre do bárbaro com o pé, escarrapachando-o na terra e fazendo o martelo mágico voar de suas mãos.
- Agora que 'cês já se entenderam - declarou Bruenor, tentando esconder o riso pelo bem do frágil ego de Wulfgar -, vou deixar vocês aí. - Olhou interrogativamente para Drizzt para se certificar de que o drow estava à vontade com a situação.
- Dê-me algumas semanas - respondeu Drizzt com uma piscadela, devolvendo o sorriso do anão.
Bruenor voltou-se para Wulfgar, que havia recuperado Garra de Palas e apoiava-se num joelho, fitando o elfo com absoluto assombro.
- Preste atenção às palavras dele, garoto - instruiu o anão uma última vez - Ou ele vai te picar em pedacinhos pequenos o bastante para a goela de um abutre!
Pela primeira vez em quase cinco anos, Wulfgar estendeu o olhar para além das fronteiras de Dez-Burgos, para o vasto trecho do Vale do Vento Gélido que se alargava diante dele. Ele e o drow haviam passado o resto de seu primeiro dia juntos percorrendo toda a extensão do vale e contornando os contrafortes orientais do Sepulcro de Kelvin. Ali, logo acima do sopé da encosta setentrional da montanha, ficava a caverna pouco profunda que Drizzt transformara em seu lar.
Esparsamente mobiliada com algumas peles e panelas, não havia o que se mencionar de luxuoso na caverna. Mas ela servia muito bem ao despretensioso ranger, permitindo-lhe a privacidade e o isolamento que ele preferia aos insultos e às ameaças dos humanos. Para Wulfgar, cujo povo raramente ficava num mesmo lugar mais do que uma noite, a caverna em si parecia um luxo.
Quando o crepúsculo começou a baixar sobre a tundra, Drizzt, nas sombras confortáveis do fundo da caverna, despertou de seu breve cochilo. Wulfgar sentiu-se lisonjeado pelo fato de o drow confiar nele o suficiente para dormir tranqüilamente, tão obviamente vulnerável, em seu primeiro dia juntos. Isso, mais a surra que Drizzt lhe dera um pouco antes, levara Wulfgar a questionar seu ultraje inicial ao ver o elfo negro.
- Começamos nossas sessões esta noite, então? - perguntou Drizzt.
- Você é o mestre - disse Wulfgar com amargura. - Sou apenas o escravo.
- Não mais um escravo do que eu - replicou Drizzt. Wulfgar voltou-se para ele, curioso.
- Estamos ambos em dívida com o anão - explicou Drizzt. - Devo a ele minha vida inúmeras vezes e, portanto, concordei em ensinar a você minha perícia na batalha. Você cumpre um juramento que fez a ele em troca de sua vida. Portanto, você está obrigado a aprender o que eu tenho a ensinar. Não sou senhor de homem nenhum, nem jamais gostaria de ser.
Wulfgar voltou-se para a tundra. Ele ainda não confiava totalmente em Drizzt, mas não conseguia imaginar que outros motivos o drow poderia ter em mente apresentando uma fachada amistosa.
- Juntos saldamos nossas dívidas com Bruenor - disse Drizzt. Ele entendia as emoções de Wulfgar ao olhar as planícies de sua terra natal pela primeira vez em anos. - Aproveite esta noite, bárbaro. Ande por aí como bem entender e volte a recordar a sensação do vento em seu rosto. Devemos começar amanhã ao anoitecer. - Deixou-o, então, para permitir a Wulfgar a privacidade que este desejava.
Wulfgar não podia negar que apreciava o respeito que o drow lhe demonstrara.
Durante o dia, Drizzt descansava nas sombras frescas da caverna enquanto Wulfgar aclimatava-se à nova área e caçava algo para a ceia.
A noite, eles lutavam.
Drizzt pressionava implacavelmente o jovem bárbaro, atingindo-o com a parte chata de uma cimitarra toda vez que ele abria uma brecha em sua guarda. As justas geralmente levavam a uma perigosa escalada, pois Wulfgar era um guerreiro orgulhoso e acabava furioso e frustrado com a superioridade do drow. Isso só deixava o bárbaro em maior desvantagem, pois, em sua fúria, toda e qualquer disciplina lhe escapava. Drizzt sempre prontificava-se a apontar o erro com uma série de golpes e fintas que acabavam deixando Wulfgar escarrapachado no chão.
Justiça seja feita, Drizzt nunca escarnecia do bárbaro nem tentava humilhá-lo. O drow ocupava-se de seu trabalho metodicamente, pois compreendia que sua primeira tarefa era aguçar os reflexos do bárbaro e ensiná-lo a se preocupar minimamente com a defesa.
Drizzt estava realmente impressionado com a habilidade natural de Wulfgar. O incrível potencial do jovem bárbaro o desconcertava. A princípio, ele receara que o orgulho obstinado e o rancor de Wulfgar impossibilitassem seu treinamento, mas o bárbaro mostrara-se à altura do desafio. Reconhecendo os benefícios que poderia obter com alguém tão habilidoso com as armas quanto Drizzt, Wulfgar ouvia atentamente. Seu orgulho, ao invés de fazer com que ele se limitasse a acreditar que já era um poderoso guerreiro e que não precisava de mais instrução, forçava-o a aproveitar toda e qualquer vantagem se isso o ajudasse a atingir seus ambiciosos objetivos. Ao final da primeira semana, durante os momentos em que conseguia controlar seu temperamento volátil, ele já era capaz de aparar muitos dos ataques ardilosos de Drizzt.
Drizzt pouco disse durante aquela primeira semana, apesar de ocasionalmente elogiar uma boa defesa ou um contra-ataque perfeito do bárbaro, ou mais comumente o progresso que Wulfgar já demonstrava em tão pouco tempo. Wulfgar flagrava-se ansioso para ouvir os comentários do drow sempre que executava uma manobra particularmente difícil e temeroso do golpe inevitável toda vez que abria estupidamente a guarda.
O respeito do jovem bárbaro por Drizzt continuava a crescer. Algo em relação ao drow, que vivia, sem jamais se queixar, em estóica solidão, comovia o senso de honra de Wulfgar. Ele ainda não conseguia imaginar por que Drizzt escolhera aquela existência, mas estava certo, pelo que já vira do drow, de que tinha algo a ver com princípios.
Lá pela segunda semana, Wulfgar tinha o total controle de Garra de Palas, girava habilmente a empunhadura e a cabeça do martelo para bloquear as duas cimitarras sibilantes e respondia com os próprios golpes cuidadosamente calculados. Drizzt pôde acompanhar a mudança sutil em andamento à medida que o bárbaro deixava de simplesmente reagir às ágeis cutiladas e estocadas das cimitarras e começava a reconhecer as próprias áreas vulneráveis e a antecipar o ataque seguinte.
Quando se convenceu de que a guarda de Wulfgar estava suficientemente fortalecida, Drizzt deu início às lições de ataque. O drow sabia que seu estilo de ofensiva não seria o mais eficiente no caso de Wulfgar. O bárbaro poderia usar sua força sem igual mais efetivamente do que as fintas e desvios enganadores. O povo de Wulfgar era formado por combatentes naturalmente agressivos que aprendiam a atacar mais facilmente do que a defender. O pujante bárbaro era capaz de abater um gigante com um único golpe bem colocado.
Tudo o que ele precisava aprender era paciência.
No início de uma noite escura, sem lua, enquanto se preparava para a aula seguinte, Wulfgar notou o brilho de uma fogueira ao longe na planície. Mesmerizado, viu várias outras aparecerem repentinamente e imaginou se poderiam ser as fogueiras de sua própria tribo.
Drizzt aproximou-se em silêncio, sem que o bárbaro absorto o notasse. Os olhos penetrantes do drow haviam percebido a agitação do acampamento distante muito antes da luz do fogo ter se intensificado o suficiente para que Wulfgar a enxergasse.
- Seu povo sobreviveu - disse ele para consolar o rapaz. Wulfgar sobressaltou-se com o súbito aparecimento de seu professor.
- Você sabe como eles estão? - perguntou. Drizzt posicionou-se ao lado dele e fitou a tundra.
- Foram grandes as perdas na Batalha de Brin Shander - disse. - E o inverno que se seguiu foi cruel com as mulheres e as crianças que não tinham um homem para caçar por elas. Fugiram para o oeste, para encontrar as renas, e juntaram-se às outras tribos em busca de apoio. Os povos ainda mantêm os nomes das tribos originais, mas, na verdade, existem apenas duas remanescentes: a Tribo do Alce e a Tribo do Urso.
- Você era da Tribo do Alce, creio eu - continuou Drizzt, arrancando um assentimento de Wulfgar. - Seu povo sobreviveu. Eles dominam a planície agora e, apesar de muitos anos serem ainda necessários para que o povo da tundra readquira a força que possuía antes da batalha, os guerreiros mais jovens já são quase homens.
Wulfgar foi tomado de alívio. Ele temera que a Batalha de Brin Shander tivesse dizimado seu povo de tal maneira que a tribo jamais se recuperaria. A tundra era duas vezes mais cruel no inverno congelado, e Wulfgar costumava pensar na possibilidade de que a perda repentina de tantos guerreiros - algumas das tribos haviam perdido todos os seus homens - viesse a condenar os remanescentes à morte lenta.
- Você sabe muita coisa sobre meu povo - comentou Wulfgar.
- Passei muitos anos a observá-lo - explicou Drizzt, imaginando qual seria a linha de raciocínio que o bárbaro traçava -, aprendendo suas tradições e truques para prosperar numa terra tão inóspita.
Wulfgar casquinou baixinho e chacoalhou a cabeça, ainda mais impressionado com a sincera reverência que o drow demonstrava toda vez que falava dos nativos do Vale do Vento Gélido. Ele conhecia o drow havia menos de duas semanas, mas já compreendia o caráter de Drizzt Do'Urden bem o bastante para saber que sua próxima observação sobre o drow seria certeira.
- Aposto que você até abateu alguns gamos no silêncio da noite para serem encontrados à primeira luz do dia por um povo faminto demais para questionar a própria boa sorte.
Drizzt não respondeu ao comentário nem mudou a direção de seu olhar, mas Wulfgar confiava no próprio palpite.
- Você sabe algo sobre Heafstaag? - perguntou o bárbaro depois de alguns momentos de silêncio. - Ele era o rei de minha tribo, um homem de muitas cicatrizes e grande renome.
Drizzt lembrava-se muito bem do bárbaro de um olho só. A mera menção de seu nome produzia uma dor embotada no ombro do drow, onde havia sido ferido pelo pesado machado daquele homem gigantesco.
- Está vivo - replicou Drizzt, resguardando um pouco seu desdém. - Heafstaag fala por todo o norte agora. Não resta ninguém de sangue real para se opor a ele em combate ou desafiá-lo e impedi-lo.
- É um rei poderoso - disse Wulfgar, alheio ao veneno na voz do drow.
- É um combatente selvagem - corrigiu Drizzt. Seus olhos cor de lavanda cravaram-se em Wulfgar e apanharam o bárbaro completamente de surpresa com o repentino lampejo de fúria. Wulfgar vislumbrou o incrível caráter naquelas fontes lilases, uma força interior cuja virtude genuína faria inveja ao mais nobre dos reis.
- Você se tornou um homem ao lado de um anão de caráter indiscutível - ralhou Drizzt. - Será que não lucrou nada com a experiência?
Wulfgar ficou estarrecido e não conseguiu encontrar palavras para responder.
Drizzt decidiu que chegara a hora de expor os princípios do bárbaro e julgar a sabedoria e o valor de ensinar o rapaz.
- Um rei é um homem forte de caráter e convicção que lidera pelo exemplo e realmente se importa com os sofrimentos de seu povo - instruiu ele. - Não um bruto que governa simplesmente por ser o mais forte. Achei que você havia aprendido a entender a diferença.
Drizzt notou o constrangimento no rosto de Wulfgar e compreendeu que os anos nas cavernas dos anões haviam estremecido a própria base sobre a qual o bárbaro crescera. Ele esperava que a fé de Bruenor na consciência e na noção de princípios de Wulfgar se mostrasse verdadeira, pois ele também, como Bruenor anos antes, viera a reconhecer uma certa promessa no inteligente rapaz e descobrira que se importava com o futuro de Wulfgar. Virou-se subitamente e partiu, deixando o bárbaro sozinho para encontrar as respostas às próprias perguntas.
- E a aula? - Wulfgar gritou-lhe, ainda confuso e surpreso.
- Já teve sua aula por esta noite - Drizzt respondeu sem se virar nem diminuir o passo. - Talvez tenha sido a mais importante de todas as que eu posso lhe ensinar. - O drow desapareceu nas trevas da noite, mas a imagem distinta dos olhos cor de lavanda continuou nitidamente gravada nos pensamentos de Wulfgar.
O bárbaro voltou-se para a fogueira distante. E pôs-se a pensar consigo mesmo.
15
Nas Asas da Destruição
Chegaram encobertos por uma violenta borrasca que veio do leste, escapou à barreira das montanhas e assolou Dez-Burgos. Ironicamente, eles seguiam a mesma trilha ao longo da encosta do Sepulcro de Kelvin que Drizzt e Wulfgar haviam percorrido apenas duas semanas antes. O bando de verbeeg, porém, ia para o sul, em direção aos povoados, e não para o norte e a extensa tundra. Apesar de altos e magros - os menores entre os gigantes -, eles ainda constituíam uma força formidável.
Um gigante do gelo liderava o grupo avançado do vasto exército de Akar Kessell. Despercebidos em meio às rajadas uivantes de vento, ele se dirigiam a toda velocidade para um covil secreto que fora descoberto por batedores ores num contraforte rochoso na encosta meridional da montanha. Havia mal e mal vinte dos monstros, mas cada um deles carregava um imenso fardo de armas e suprimentos.
O líder prosseguia vigorosamente a toda velocidade em direção a seu destino. Seu nome era Sorrisão, um gigante esperto e imensamente forte cujo lábio superior havia sido arrancado pelos dentes afiados de um lobo descomunal, o que deixou a grotesca caricatura de um sorriso eternamente estampada em seu rosto. A desfiguração só aumentava a estatura do gigante e instilava o respeito devido ao medo em seus soldados normalmente indisciplinados. Akar Kessell pessoalmente escolhera Sorrisão como o líder de seus batedores de vanguarda, embora o mago tivesse sido aconselhado a enviar um grupo não tão conspícuo - parte da gente de Heafstaag - naquela delicada missão. Mas Kessell tinha Sorrisão em alta conta e estava impressionado com a enorme quantidade de suprimentos que o pequeno bando de verbeeg era capaz de carregar.
A tropa se estabeleceu nos novos alojamentos antes da meia-noite e ocupou-se imediatamente de adaptar dormitórios, despensas e uma pequena cozinha. Depois, puseram-se a esperar, silenciosos e preparados para desferir os primeiros golpes fatais do glorioso assalto de Akar Kessell a Dez-Burgos.
Um mensageiro ore vinha a cada dois dias para ver como se comportava o bando e passar as mais recentes instruções do mago, informando Sorrisão sobre o avanço da próxima tropa de suprimentos que estava programada para chegar. Tudo procedia de acordo com o plano de Kessell, mas era com preocupação que Sorrisão notava que muitos de seus guerreiros ficavam mais impacientes e ansiosos a cada vez que um novo mensageiro aparecia, pois esperavam que a hora de marchar para a guerra finalmente tivesse chegado.
No entanto, as instruções eram sempre as mesmas: permanecer escondidos e aguardar.
Em menos de duas semanas na tensa atmosfera da caverna abafada, a camaradagem entre os gigantes havia se desintegrado. Os verbeeg eram criaturas de ação, e não de contemplação, e o tédio levou-os inevitavelmente à frustração. As discussões tornaram-se a regra, o que muitas vezes levava a brigas violentas. Sorrisão estava sempre por perto e o imponente gigante do gelo geralmente conseguia dissolver os tumultos antes que um dos soldados saísse gravemente ferido. O gigante não tinha a menor dúvida de que não conseguiria manter por muito mais tempo o controle sobre aquele bando ávido de batalhas.
O quinto mensageiro introduziu-se na caverna numa noite particularmente quente e desagradável. Assim que entrou na sala comum, o desafortunado ore foi cercado por vinte verbeeg rabugentos.
- E aí, o que é que manda? - um deles perguntou, impaciente. Imaginando que o apoio de Akar Kessell fosse proteção suficiente, o ore fitou o gigante em franco desafio.
- Vá buscar seu mestre, soldado - ordenou.
De repente, uma mão descomunal agarrou o ore pelo cangote e chacoalhou rudemente a criatura.
- A gente fizemos uma pergunta, seu escroto - disse um segundo gigante. - O que é que manda?
O ore, agora visivelmente amedrontado, disparou uma ameaça furiosa ao gigante que o agredia:
- O mago vai lhe arrancar o couro!
- Já ouvi o bastante - rosnou o primeiro gigante, abaixando-se para prensar o pescoço do ore em sua mão descomunal. Ergueu a criatura do solo, usando apenas um de seus poderosos braços. O ore distribuiu tapas e contorceu-se lastimavelmente, sem que sequer chegasse a incomodar o verbeeg.
- Ah, aperta esse pescocinho nojento! - veio um grito.
- Arranca os olhos dele e joga essa coisa num buraco escuro! - disse um outro.
Sorrisão entrou na sala, atravessou rapidamente as fileiras para descobrir o motivo da comoção. O gigante não se surpreendeu ao encontrar os verbeeg torturando um ore. Na verdade, o líder dos gigantes achou graça no espetáculo, mas compreendeu o risco que era enfurecer o volátil Akar Kessell. Já tinha visto vários goblins indisciplinados sofrerem uma morte lenta por desobediência, ou simplesmente para satisfazer o distorcido senso de diversão do mago.
- Solte essa coisinha miserável - ordenou Sorrisão placidamente. Queixas e resmungos irados brotaram em torno do gigante do gelo.
- Arrebenta a cabeça dele! - gritou um.
- Morde o nariz dele! - berrou outro.
Aquela altura, a cara do ore já estava inchada devido à falta de ar e ele mal e mal esperneava. O verbeeg que o segurava retribuiu o olhar ameaçador de Sorrisão durante algum tempo ainda, depois atirou sua vítima indefesa contra a bota do gigante do gelo.
- Fica com ele, então - rosnou o verbeeg para Sorrisão. - Mas se ele matraquear comigo de novo, pode crer que eu vou comer ele!
- Já 'tou cheio deste buraco - reclamou um gigante das fileiras de trás. - E um vale inteiro de anões nojentos dando sopa!
Os resmungos recomeçaram com maior intensidade.
Sorrisão olhou ao redor e avaliou a fúria fervilhante que havia se insinuado em todos os soldados e ameaçava trazer abaixo o covil inteiro num súbito acesso de violência irreprimível.
- Amanhã de noite, a gente começa a dar umas voltas por aí pra ver como 'tão as coisas - ofereceu Sorrisão como resposta. O gigante do gelo sabia que aquela era uma manobra perigosa, mas a alternativa era o desastre certo. - Só três de cada vez e ninguém pode saber!
O ore readquirira um certo domínio de si e ouviu a proposta de Sorrisão. Começou a protestar, mas o líder dos gigantes silenciou-o imediatamente.
- Cala a boca, seu ore canalha - ordenou Sorrisão, olhando para o verbeeg que havia ameaçado o mensageiro e sorrindo obliquamente. - Ou vou deixar meu amigo aqui almoçar você!
Os gigantes berraram de alegria e trocaram com os companheiros palmadas nos ombros, novamente camaradas. Sorrisão devolvera a eles a promessa de ação, embora o vigoroso entusiasmo dos soldados estivesse muito longe de desfazer as dúvidas do líder dos gigantes quanto àquela decisão. Aos gritos, várias receitas preparadas com anões e inventadas pelos verbeeg - "Anão na Maçã" e "Barbado, Regado e Cozido", para nomear duas delas - foram anunciadas e acabaram em ensurdecedores apupos de aprovação.
Sorrisão temia o que poderia acontecer se os verbeeg encontrassem algumas das pessoas pequenas.
Sorrisão deixava os verbeeg saírem do covil em grupos de três e só durante a noite. O líder dos gigantes achava improvável que os anões se deslocassem até o extremo norte do vale, mas sabia que estava assumindo um risco enorme. Um suspiro de alívio escapava da boca do gigante toda vez que uma patrulha retornava sem incidentes.
Somente o fato de terem permissão para sair da caverna apinhada já melhorou dez vezes o moral dos verbeeg. A tensão no covil praticamente desapareceu assim que os soldados recobraram o entusiasmo com a guerra iminente. Do alto da encosta do Sepulcro de Kelvin, eles costumavam ver as luzes de Caer-Konig e Caer-Dineval, e Termalaine do outro lado, a oeste, e até mesmo Brin Shander bem mais ao sul. Avistar as cidades permitia-lhes fantasiar sobre as futuras vitórias e esses pensamentos eram suficientes para ampará-los em sua longa espera.
Mais uma semana transcorreu. Tudo parecia estar indo muito bem. Em vista da melhoria que aquele pequeno grau de liberdade trouxera aos soldados, Sorrisão gradualmente começou a relaxar em relação à arriscada decisão.
Mas, então, dois anões, tendo sido informados por Bruenor que havia uma pedra excelente sob a sombra do Sepulcro de Kelvin, foram até a extremidade norte do vale para investigar seu potencial de mineração. Eles chegaram às encostas meridionais da montanha rochosa no final de uma certa tarde e, ao crepúsculo, já tinham montado acampamento numa laje ao lado de um riacho veloz.
O vale pertencia a eles e não tinham problemas havia anos. Eles tomaram poucas precauções.
E foi assim que a primeira patrulha de verbeeg a deixar o covil naquela noite logo avistou as chamas de uma fogueira e ouviu o característico dialeto dos odiados anões.
Do outro lado da montanha, Drizzt Do'Urden abriu os olhos depois de seu sono diurno. Ao sair da caverna e adentrar a crescente escuridão, ele encontrou Wulfgar no lugar de sempre, equilibrado meditativamente sobre uma pedra alta, fitando a planície.
- Tem saudades de casa? - perguntou o drow retoricamente.
Wulfgar deu de ombros, aqueles ombros imensos, e respondeu distraidamente:
- Talvez.
O bárbaro vinha se fazendo muitas perguntas inquietantes a respeito de seu povo e de seu modo de vida desde que aprendera a respeitar Drizzt. O drow era um enigma para ele, uma combinação perturbadora de brilhantismo em combate e absoluto controle. Drizzt parecia capaz de avaliar cada um de seus passos segundo os padrões das grandes aventuras e de princípios morais indiscutíveis.
Wulfgar lançou um olhar inquisitivo para o drow.
- Por que você está aqui? - perguntou de repente.
Agora era Drizzt quem fitava com ar meditativo aquela lhanura diante deles. As primeiras estrelas da noite haviam aparecido e seus reflexos cultuavam distintamente nas fontes escuras que eram os olhos do elfo. Mas Drizzt não as enxergava; sua mente vislumbrava imagens antigas das cidades escuras dos drow em seus imensos complexos de cavernas muito abaixo do solo.
- Eu me lembro - recordou Drizzt vividamente, pois as lembranças terríveis geralmente são vividas - da primeira vez que vi este mundo da superfície. Era um elfo muito mais jovem na ocasião, um membro de um grande grupo de assalto. Saímos sorrateiramente de uma caverna secreta e nos precipitamos sobre uma pequena aldeia élfica. - O drow encolheu-se diante das imagens que lampejavam mais uma vez em sua mente. - Meus companheiros mataram todos os membros do clã de elfos da floresta. Todas as mulheres. Todas as crianças.
Wulfgar ouvia com horror crescente. O ataque que Drizzt descrevia poderia muito bem ter sido um dos perpetrados pela feroz Tribo do Alce.
- Meu povo mata - continuou Drizzt sinistramente. - Mata sem piedade. - Ele cravou os olhos em Wulfgar para se certificar de que o bárbaro estava prestando atenção.
- Mata sem paixão.
Deteve-se por um momento para deixar o bárbaro absorver todo o peso de suas palavras. A descrição simples, porém exata de assassinos tão frios confundira Wulfgar. Ele fora criado e educado entre guerreiros passionais, combatentes cujo único propósito na vida era a busca pela glória na batalha: lutar em louvor a Tempus. O jovem bárbaro simplesmente não conseguia entender uma crueldade assim tão desprovida de emoção. Mas, Wulfgar era obrigado a admitir, a diferença era sutil. Drow ou bárbaro, os resultados dos ataques eram os mesmos.
- A deusa-demônio a quem os drow servem não admite outras raças - explicou Drizzt. - Particularmente as outras raças de elfos.
- Mas você jamais será aceito neste mundo - disse Wulfgar. - Sabe por certo que os humanos sempre o evitarão.
Drizzt assentiu.
- A maioria - concordou ele. - Existem uns poucos a quem posso chamar de amigos, mas estou satisfeito. Entenda, bárbaro, tenho meu próprio respeito, sem culpa, sem vergonha. - Levantou-se, pois estava agachado, e afastou-se na direção das trevas. - Venha - instruiu ele. - Lutemos bem esta noite, pois estou satisfeito com seu progresso e esta parte das aulas já está quase no fim.
Wulfgar continuou sentado durante algum tempo ainda, pensativo. O drow levava uma existência dura e materialmente vazia, porém era mais rico que qualquer homem que Wulfgar já conhecera. Drizzt mantivera-se fiel a seus princípios diante de circunstâncias esmagadoras, abandonou o mundo familiar de seu próprio povo pela opção de permanecer num mundo onde nunca seria aceito ou apreciado.
Olhou para o elfo que se afastava, agora uma mera sombra na escuridão.
- Talvez nós dois não sejamos tão diferentes assim - murmurou a meia-voz.
- Espiões - sussurrou um dos verbeeg.
- Que estúpido espionar com uma fogueira acesa - disse um outro.
- Vamos esborrachar eles! - disse o primeiro, partindo em direção à luz alaranjada.
- O chefe falou que não! - lembrou-lhes o terceiro. - E pra gente vigiar, nada de esborrachar!
Eles desceram a trilha rochosa rumo ao pequeno acampamento dos anões com toda a dissimulação de que eram capazes, o que os tornava tão silenciosos quanto um matacão a rolar montanha abaixo.
Os dois anões logo perceberam que alguém ou alguma coisa se aproximava. Sacaram suas armas como precaução, mas imaginaram que Wulfgar e Drizzt, ou talvez alguns pescadores de Caer-Konig, tivessem avistado a fogueira e vinham partilhar com eles o jantar.
Assim que avistaram o acampamento logo abaixo deles, os verbeeg viram os anões em posição, com as armas nas mãos.
- Eles viram a gente! - disse um gigante, abaixando-se e procurando abrigo na escuridão.
- Ah, cala a boca - ordenou o segundo.
O terceiro gigante, sabendo tão bem quanto o segundo que não havia como os anões saberem ainda de quem se tratava, agarrou o ombro deste e piscou maldosamente.
- Se eles viram a gente - raciocinou -, nós não tem escolha a não ser esborrachar eles.
O segundo gigante casquinou baixinho, levou a pesada clava ao ombro e partiu em direção ao acampamento.
Os anões ficaram completamente aturdidos quando os verbeeg apareceram, saltando e contornando os matacões a apenas alguns metros do acampamento, e vieram direto para cima deles. Mas um anão acossado é inabalável, e aqueles dois pertenciam ao clã do Salão de Mitral, que a vida toda travara batalhas na tundra implacável. A luta não seria tão fácil quanto os verbeeg esperavam.
O primeiro anão abaixou-se, evitando um golpe desajeitado do verbeeg na vanguarda do ataque, e respondeu dando com o martelo nos dedos do pé do monstro. O gigante instintivamente levantou o pé ferido e começou a saltar numa perna só, e o experiente guerreiro anão prontamente o derrubou com uma pancada no joelho.
O outro anão reagira rapidamente, arremessando o martelo com extrema precisão. Atingiu o outro gigante no olho e fez a criatura girar e cair estrondosamente sobre algumas pedras.
Mas o terceiro verbeeg, o mais esperto dos três, apanhara uma pedra antes de partir para a investida e retribuiu o arremesso do anão com força extraordinária. A pedra bateu na têmpora do desafortunado anão, partindo-lhe violentamente o pescoço. A cabeça pendeu de um ombro a outro quando ele caiu morto no chão.
O primeiro anão teria logo dado cabo do gigante que derrubara, mas o último dos monstros precipitou-se sobre ele no mesmo instante. Os dois combatentes esgrimiram e, na verdade, o anão até conseguiu uma pequena vantagem. Uma vantagem que durou apenas até o gigante atingido no olho pelo martelo arremessado se recuperar o suficiente para entrar na refrega.
Os dois verbeeg fizeram chover golpes cada vez mais pesados sobre o anão. Ele conseguiu se esquivar e aparar alguns deles, mas foi atingido em cheio no ombro e caiu de costas. Recuperou o fôlego em pouco tempo, pois era tão resistente quanto a pedra na qual aterrissara, mas uma pesada bota o esmagou e o manteve prostrado.
- Esborracha ele! - implorou o gigante ferido que o anão derrubara. - Aí a gente leva ele pro cozinheiro!
- Não leva, não! - grunhiu o gigante por cima do anão. Enterrou no solo a bota descomunal e, lentamente, foi arrancando a vida da desafortunada vítima.
- Sorrisão vai levar a gente pro cozinheiro se ele descobrir isto!
Os outros dois ficaram genuinamente amedrontados ao serem lembrados da ira de seu líder cruel. Olharam desamparadamente para o companheiro mais inteligente, esperando uma solução.
- A gente coloca eles e essas coisas nojentas num buraco escuro e ninguém fala mais nisso!
Muitas milhas a leste dali, em sua torre solitária, Akar Kessell esperava pacientemente. No outono, a última - e a maior - das caravanas mercantes viria de Luskan até Dez-Burgos, carregada de riquezas e suprimentos para o longo inverno. Seus vastos exércitos estariam reunidos e já em movimento àquela altura, marchando gloriosamente para destruir os lastimáveis pescadores. Simplesmente imaginar os frutos de sua fácil vitória fazia o mago estremecer de gozo.
Ele não tinha como saber que os primeiros golpes da guerra já haviam sido desferidos.
16
Covas Rasas
Quando Wulfgar acordou pouco antes do meio-dia, recuperado da canseira da longa noite, surpreendeu-se ao ver Drizzt já de pé e ativo, a preparar diligentemente a mochila para uma longa caminhada.
- Hoje começaremos com um tipo diferente de aula - explicou Drizzt ao bárbaro. - Partiremos assim que você tiver comido alguma coisa.
- Para onde?
- Primeiro, as minas dos anões - replicou Drizzt. - Bruenor vai querer dar uma olhada em você para poder avaliar seu progresso pessoalmente. - Sorriu para o grandalhão. - Ele não vai se decepcionar!
Wulfgar sorriu, confiante que sua recém-descoberta perícia com o martelo impressionaria até mesmo o rabugento anão.
- E depois?
- Para Termalaine, às margens do Maer Dualdon. Tenho um amigo por lá. Um dos poucos - acrescentou Drizzt rapidamente com uma piscadela, arrancando um sorriso de Wulfgar. - Um homem chamado Agorwal. Quero que você conheça algumas das pessoas de Dez-Burgos para que possa julgá-las melhor.
- O que há para julgar? - Wulfgar perguntou, colérico.
Os olhos sagazes e escuros do drow cravaram-se nele. Wulfgar claramente compreendeu o que Drizzt tinha em mente. O elfo negro estava tentando individualizar as pessoas que os bárbaros haviam declarado como inimigas, estava tentando mostrar a Wulfgar a existência cotidiana dos homens, das mulheres e das crianças que poderiam ter sido as vítimas do pesado mastro do rapaz caso o resultado da luta nas encostas tivesse sido outro. Intrépido em qualquer batalha, Wulfgar estava realmente com medo de encarar aquelas pessoas. O jovem bárbaro já começara a questionar as virtudes de sua gente belicosa; os rostos inocentes que encontraria na vila que seu povo casualmente marcara para ser queimada poderiam muito bem completar a destruição das fundações de todo o seu mundo.
Os dois companheiros puseram-se a caminho pouco depois, retraçando os próprios passos e contornando as trilhas orientais do Sepulcro de Kelvin. Um vento poeirento soprava constantemente do leste e assaltava-os com grãos finos de areia lancinante enquanto cruzavam a face exposta da montanha. Apesar de o sol fulgurante exaurir Drizzt, ele manteve um ritmo forte e não parou para descansar.
No fim da tarde, quando finalmente contornaram um dos contrafortes meridionais, eles estavam exaustos mas bem-humorados.
- No abrigo das minas, eu havia me esquecido da crueldade do vento da tundra! - riu Wulfgar.
- Teremos alguma proteção sob a orla do vale - disse Drizzt. Ele bateu de leve o cantil vazio contra o próprio flanco. - Venha, sei onde poderemos reabastecer estes aqui antes de continuarmos.
Ele levou Wulfgar para o oeste, sob as encostas meridionais da montanha. O drow conhecia um riacho glacial, a uma pequena distância dali, cujas águas se alimentavam da neve derretida no topo do Sepulcro de Kelvin.
O córrego cantava alegremente, dançando por entre as pedras. As aves da vizinhança chilrearam e crocitaram com a aproximação dos companheiros, e um lince esgueirou-se silenciosamente para longe. Tudo parecia em ordem, mas a partir do momento em que chegaram à grande laje comumente usada pelos viajantes como acampamento, Drizzt sentiu que algo estava terrivelmente errado. Aproximando-se tentativamente, ele procurou algum sinal palpável que confirmasse suas crescentes suspeitas.
Wulfgar, porém, deitou-se de bruços na pedra e mergulhou avidamente o rosto coberto de suor e terra na água gelada. Ao retirar a cabeça do riacho, o brilho havia retornado a seus olhos, como se a água glacial tivesse lhe devolvido a vitalidade.
Mas, então, o bárbaro notou manchas carmesins na rocha e seguiu-lhes o rastro sangrento até um pedaço hirsuto de pele que ficara preso na ponta afiada de uma pedra logo acima do riacho impetuoso.
Ambos rastreadores habilidosos, o ranger e o bárbaro tiveram pouca dificuldade para determinar que uma batalha fora recentemente travada naquele local. Reconheceram o pêlo grosseiro no fragmento de pele como um pedaço de barba, o que, naturalmente, levou-os a pensar nos anões. Encontraram três conjuntos de pegadas gigantescas nas proximidades. Seguindo uma linha tangente de rastros que se estendia por uma pequena distância em direção ao sul até um trecho arenoso de terreno, logo encontraram as covas rasas.
- Não é Bruenor - disse Drizzt, carrancudo, examinando os dois cadáveres. - Anões mais jovens: Bundo, filho de Martelocruel, e Dourgas, filho de Argo Espadimplacável, creio eu.
- Devemos chegar às minas o mais rápido possível - sugeriu Wulfgar.
- Daqui a pouco - replicou o drow. - Ainda temos muito a descobrir sobre o que aconteceu aqui, e esta noite pode ser nossa única oportunidade. Esses gigantes eram simplesmente desgarrados de passagem ou estão se entocando na área? Será que há mais dessas criaturas abomináveis?
- Precisamos contar a Bruenor - argumentou Wulfgar.
- E assim o faremos - disse Drizzt. - Mas, se esses três ainda estiverem nas proximidades - como acredito que estejam, já que se deram ao trabalho de enterrar suas vítimas - podem muito bem retornar em busca de mais caça ao cair da noite. - Ele dirigiu o olhar de Wulfgar para o oeste, onde o céu já começara a assumir os tons róseos do crepúsculo. - Está pronto para uma luta, bárbaro?
Com um grunhido determinado, Wulfgar retirou Garra de Palas do ombro e bateu a empunhadura de adamantita na mão espalmada.
- Vamos ver quem será a caça esta noite.
Esconderam-se atrás de um rochedo ao sul da laje e aguardaram enquanto o sol passava sob o horizonte e as sombras escuras aumentavam e transformavam-se em noite.
Não foi uma espera muito longa, pois os mesmos verbeeg que haviam matado os anões na noite anterior foram mais uma vez os primeiros a deixar o covil, ansiosos por novas vítimas. Logo, a patrulha desceu estrondosamente pelo declive da montanha até a laje ao lado do riacho.
Wulfgar imediatamente preparou-se para uma investida, mas Drizzt o deteve antes que entregasse a posição deles. O drow tinha toda a intenção de matar aqueles gigantes, mas primeiro queria ver se conseguia descobrir algo sobre o motivo pelo qual estavam ali.
- Ora bolas, carambolas - resmungou um dos gigantes. - Nem um anãozinho só!
- Mas que sorte maldita - gemeu um outro. - E é a última noite da gente também.
Os companheiros do monstro olharam para ele com curiosidade.
- O outro grupo 'tá chegando amanhã - explicou o verbeeg. - Vai ter o dobro da gente, e ogros e ores fedidos de lambuja, e o chefe não vai deixar a gente sair até tudo ficar calmo de novo.
- Mais vinte naquele buraco fedido - reclamou um dos outros. - Vê se não é pra deixar a gente doido!
- Vamos nessa, então - disse o terceiro. - Aqui não tem caça e não dá pra gente jogar a noite fora.
Os dois aventureiros atrás do rochedo ficaram involuntariamente tensos quando os gigantes falaram em partir.
- Se chegarmos àquela rocha - raciocinou Wulfgar, apontando, sem saber, para o mesmo matacão que os gigantes haviam usado em sua emboscada na noite anterior -, estaremos sobre eles antes mesmo que percebam que estamos aqui - Voltou-se ansiosamente para Drizzt, mas recuou imediatamente ao ver o drow. Os olhos cor de lavanda ardiam com um brilho que Wulfgar jamais testemunhara antes.
- Há apenas três deles - disse Drizzt, e sua voz encerrava uma frágil margem de calma que ameaçava explodir a qualquer momento. - Não precisamos pegá-los de surpresa.
Wulfgar não soube muito bem como julgar essa inesperada mudança no elfo negro.
- Você me ensinou a procurar toda e qualquer vantagem - disse ele, cauteloso.
- Na batalha, sim - respondeu Drizzt. - Isto é vingança. Deixe que os gigantes nos vejam, deixem-nos sentir o terror do fim iminente! - As cimitarras apareceram subitamente em suas mãos magras assim que ele contornou o rochedo, trazendo assustadoramente no passo firme a promessa inabalável da morte.
Um dos gigantes gritou, surpreso, e todos ficaram paralisados ao verem o drow aparecer diante deles. Apreensivos e confusos, formaram uma linha defensiva na laje. Os verbeeg conheciam lendas sobre os drow, até mesmo algumas nas quais os elfos negros haviam unido forças com os gigantes, mas a repentina aparição de Drizzt pegou-os totalmente de surpresa.
Drizzt desfrutou dos espasmos nervosos das criaturas e deteve-se para saborear o momento.
- O que é que 'cê quer? - um dos gigantes perguntou cautelosamente.
- Sou amigo dos anões - replicou Drizzt, com uma gargalhada perversa. Wulfgar saltou para o lado dele quando o maior dos gigantes investiu sem hesitar. Mas Drizzt o deteve. O drow apontou uma de suas cimitarras para o gigante que avançava e declarou com calma mortal:
- Você está morto.
Imediatamente, o verbeeg foi delineado por chamas púrpuras. Gritou de terror e retrocedeu um passo, mas Drizzt acossou-o metodicamente.
Apoderou-se de Wulfgar um impulso irresistível de atirar o martelo de guerra, como se Garra de Palas estivesse exercendo a própria vontade. A arma zuniu pelo ar noturno e explodiu contra o gigante do meio, arremessando-lhe o corpo alquebrado no volumoso riacho.
Wulfgar estava verdadeiramente pasmo com o poder e a letalidade do arremesso, porém preocupava-se agora em descobrir com que eficácia poderia rechaçar o terceiro gigante com um pequeno punhal, a única arma que lhe restara. O gigante também reconheceu a vantagem e investiu furiosamente. Wulfgar fez menção de sacar o punhal.
Mas, em vez disso, encontrou Garra de Palas magicamente de volta a sua mão. Não fazia idéia desse poder especial que Bruenor imbuíra na arma e, no momento, não tinha tempo para se deter e refletir.
Aterrorizado, mas sem ter para onde correr, o maior dos gigantes atacou Drizzt com abandono, o que deu ao elfo mais do que uma simples vantagem. O monstro ergueu bem alto sua pesada clava - o movimento exagerado pela fúria -, e Drizzt rapidamente enfiou as espadas pontiagudas através da túnica de couro e do ventre exposto. Com apenas uma ligeira hesitação, o gigante deu continuidade a seu possante golpe, mas o ágil drow ainda teve bastante tempo para se esquivar. E, como o golpe deixasse o desajeitado gigante desequilibrado, Drizzt abriu mais duas minúsculas perfurações no ombro e no pescoço da criatura.
- Está vendo, garoto? - o drow gritou alegremente para Wulfgar. - Este monstro luta como um dos seus.
Wulfgar estava completamente envolvido no combate com o gigante remanescente, manobrando Garra de Palas com facilidade para aparar os poderosos golpes do monstro, mas conseguiu vislumbrar a batalha que ocorria a seu lado. A cena retratava um lembrete soturno do valor daquilo que Drizzt lhe ensinara, pois o drow estava brincando com o verbeeg, usando a fúria descontrolada do gigante contra ele mesmo. Repetidas vezes, o monstro ergueu os braços para um golpe fatal, e Drizzt sempre foi rápido o bastante para atingi-lo e afastar-se com graça. Sangue de verbeeg escorria livremente de uma dúzia de ferimentos, e Wulfgar sabia que Drizzt poderia dar cabo do serviço a qualquer momento. Mas ele se admirava por estar o elfo negro deleitando-se com seu joguinho torturante.
Wulfgar ainda não atingira seu oponente com um único golpe consistente, pois aguardava o momento oportuno, como Drizzt lhe ensinara, até o verbeeg enfurecido se cansar. O bárbaro já podia ver que os golpes do gigante vinham com menos freqüência e menor vigor. Por fim, coberto de suor e respirando pesadamente, o verbeeg errou e baixou a guarda. Garra de Palas acertou em cheio uma vez, e mais outra, e o gigante foi ao chão numa massa informe.
O verbeeg que lutava com Drizzt agora apoiava-se num joelho, pois o drow havia habilmente cortado-lhe um dos tendões. Quando Drizzt viu o segundo gigante cair diante de Wulfgar, decidiu dar fim ao jogo. O gigante tentou mais um golpe inútil e Drizzt investiu na esteira da trajetória da arma, estocando com uma cimitarra e, dessa vez, acompanhando a ponta cruel de todo o seu peso. A lâmina atravessou o pescoço do gigante e subiu até o cérebro.
Mais tarde, uma pergunta atormentava Drizzt enquanto ele e Wulfgar, apoiado num joelho, consideravam os resultados de sua obra.
- O martelo? - perguntou simplesmente. Wulfgar olhou para Garra de Palas e deu de ombros.
- Não sei - respondeu com sinceridade. - Voltou para minha mão por sua própria mágica!
Drizzt sorriu consigo mesmo. Ele sabia. Maravilhosa era a arte de Bruenor, pensou. E o quanto o anão devia se importar com o rapaz para dar a ele tamanho presente!
- Uma vintena de verbeeg a caminho - gemeu Wulfgar.
- E mais vinte deles já estão aqui - acrescentou Drizzt. - Vá direto até Bruenor - instruiu ele. - Estes três acabaram de deixar o covil; não vou ter muito trabalho em seguir-lhes os rastros e descobrir onde está o resto deles.
Wulfgar assentiu com a cabeça, mas olhou para Drizzt com preocupação. O ardor atípico que vira nos olhos do drow antes de atacarem os verbeeg havia assustado o bárbaro. Ele não estava bem certo de até onde a audácia do elfo negro poderia chegar.
- O que você pretende fazer quando encontrar o covil?
Drizzt nada disse, mas sorriu obliquamente, o que aumentou a apreensão do bárbaro. Por fim, ele aliviou as preocupações de seu amigo:
- Encontre-me novamente neste local pela manhã. Garanto que não vou começar a festa sem você!
- Devo estar de volta antes da primeira luz da aurora - replicou Wulfgar, carrancudo. Girou sobre os calcanhares e desapareceu na escuridão, abrindo caminho o mais rápido possível sob a luz das estrelas.
Drizzt também partiu, seguindo a trilha dos três gigantes em direção ao oeste pela face do Sepulcro de Kelvin. Por fim, ouviu as vozes de barítono dos gigantes e, logo depois, viu as portas de madeira construídas às pressas que marcavam o covil, astuciosamente escondidas por trás de umas moitas, a meio caminho do topo de um contraforte rochoso.
Drizzt esperou pacientemente e logo viu uma segunda patrulha de três gigantes emergir do covil. E mais tarde, quando estes retornaram, um terceiro grupo saiu. O drow tentava discernir se algum alarma fora dado devido à ausência da primeira patrulha. Mas os verbeeg eram quase sempre indisciplinados e indignos de confiança, e os pequenos fragmentos de conversa que Drizzt foi capaz de ouvir tranqüilizaram-no de que os gigantes haviam presumido que seus companheiros desaparecidos tivessem se perdido ou simplesmente desertado. Quando se esgueirou para longe algumas horas depois, com a intenção colocar em andamento seus próximos planos, o drow estava confiante de que ainda tinha o elemento surpresa a seu lado.
Wulfgar correu noite afora. Entregou sua mensagem a Bruenor e partiu de volta em direção ao norte sem esperar que o clã fosse despertado. Seus passos largos o levaram até a laje mais de uma hora antes do primeiro sinal de luz, antes mesmo de Drizzt ter retornado do covil. Ele foi para trás do rochedo a fim de esperar Drizzt, e sua preocupação pelo drow crescia a cada segundo.
Por fim, incapaz de agüentar por mais tempo aquela expectativa, ele procurou a trilha dos verbeeg e começou a rastreá-la em direção ao covil, determinado a descobrir o que estava acontecendo. Não havia se deslocado nem vinte pés quando uma mão deu-lhe um tabefe na nuca. Seu reflexo foi girar para encarar o atacante, mas seu espanto transformou-se em alegria ao ver Drizzt de pé diante dele.
Drizzt retornara à rocha logo depois de Wulfgar, mas permanecera escondido, observando o bárbaro para ver se o jovem e impulsivo guerreiro respeitaria o pacto de ambos ou decidiria fazer tudo sozinho.
- Nunca duvide de um encontro marcado até ter passado a hora - ralhou o drow com severidade, mesmo que emocionado pela preocupação do bárbaro por seu bem-estar.
O bárbaro não teve tempo de responder, pois, de repente, os dois companheiros ouviram o grito rouco de uma voz familiar.
- Me arranja um gigante guinchando como um porco pra mim matar! - gritou Bruenor desde a laje às margens do riacho, logo atrás deles. Anões furiosos podem se deslocar a uma velocidade incrível. Em menos de uma hora, o clã de Bruenor havia se reunido e partido atrás do bárbaro, quase igualando seu ritmo frenético.
- Bons olhos o vejam - gritou Drizzt ao se juntar ao anão. Encontrou Bruenor fitando os três verbeeg mortos com impiedosa satisfação. Cinqüenta anões de aparência férrea e prontos para a batalha, mais da metade do clã, cercavam seu líder.
- Elfo - cumprimentou Bruenor com sua costumeira consideração. - Um covil, é isso?
Drizzt assentiu.
- Uma milha a oeste daqui, mas que essa não seja sua primeira preocupação. Os gigantes de lá não vão a lugar algum, mas estão esperando convidados ainda hoje.
- O garoto me contou - disse Bruenor. - Uns vinte deles como reforços. - Brandiu o machado casualmente. - Não sei por que, mas tenho o pressentimento que não vão chegar ao covil! Alguma idéia de onde eles 'tão vindo?
Pelo norte e pelo leste, é o único caminho - raciocinou Drizzt. - Em algum lugar ao sul do Desfiladeiro do Vento Gélido, contornando o norte do Lac Dinneshir. Seu povo vai recebê-los, então?
- É claro - replicou Bruenor. - Eles vão passar pela Valvertente com certeza. - Uma piscadela excitou-lhe o olho. - O que 'cê pretende fazer? - perguntou a Drizzt. - E o que a gente faz com o garoto?
- O garoto fica comigo - insistiu Drizzt. - Ele precisa descansar. Vamos vigiar o covil.
O ávido fulgor nos olhos de Drizzt deu a Bruenor a impressão de que o drow tinha mais alguma coisa em mente do que simplesmente vigiar.
- Elfo maluco - disse, a meia-voz. - Provavelmente vai enfrentar o bando inteiro sozinho! - Olhou curiosamente ao redor, para os gigantes mortos. - E vai vencer! - Em seguida, Bruenor estudou os dois aventureiros, tentando comparar suas armas com os tipos de ferimento dos verbeeg.
- O garoto abateu dois deles - Drizzt respondeu à pergunta muda do anão.
A insinuação de um raro sorriso abriu caminho até o rosto de Bruenor.
- Dois, contra um seu, hein? 'cê 'tá perdendo a forma, elfo.
- Bobagem - retorquiu Drizzt. - Reconheci que ele precisava de prática!
Bruenor chacoalhou a cabeça, surpreso pela extensão do orgulho que sentia por Wulfgar, apesar de obviamente não desejar dizer isso ao rapaz e envaidecê-lo demasiadamente.
- 'tá perdendo a forma! - gritou ele novamente ao assumir mais uma vez a vanguarda do clã. Os anões retomaram uma cantilena rítmica, uma melodia antiga que outrora ecoara pelos salões prateados de sua perdida terra natal.
Bruenor olhou para trás, para seus dois amigos aventureiros, e perguntou-se sinceramente o que restaria do covil dos gigantes quando ele e seus companheiros anões retornassem.
17
Vingança
Infatigáveis, os anões tremendamente sobrecarregados seguiram marchando. Vieram preparados para a guerra, alguns deles carregavam pesadas mochilas e outros levavam nos ombros o enorme peso de grandes vigas de madeira.
A hipótese do drow em relação à direção da qual viriam os reforços parecia o único caminho possível, e Bruenor sabia exatamente onde interceptá-los. Somente uma passagem propiciava acesso fácil ao vale rochoso: Valvertente, um pouco acima da tundra, mas abaixo das encostas meridionais da montanha.
Embora tivessem marchado sem descanso metade da noite e a maior parte da manhã, os anões puseram-se imediatamente a trabalhar. Não faziam idéia da hora em que chegariam os gigantes, mas isso provavelmente não aconteceria à luz do dia; queriam se certificar de que tudo estaria pronto. Bruenor estava determinado a liquidar aquele destacamento rapidamente e com o menor número possível de baixas entre sua gente. Sentinelas foram posicionadas nos pontos altos da encosta e batedores enviados à planície. Sob a orientação de Bruenor, o resto do clã preparou a área para uma emboscada. Um grupo pôs-se a cavar um fosso e um outro começou a armar duas balistas com as vigas de madeira. Os besteiros procuraram os pontos mais vantajosos por entre os matacões da encosta próxima, a partir dos quais lançariam seu assalto.
Em pouco tempo, tudo estava pronto. Mas os anões, ainda assim, não pararam para descansar. Continuaram a examinar cada polegada da área, à procura da menor vantagem que conseguissem obter sobre os verbeeg.
Ao fim do dia, com o sol já a imergir suas fímbrias inferiores no horizonte, um dos atalaias na montanha anunciou que avistara uma nuvem de poeira a crescer no leste distante. Logo depois, um batedor chegou da planície para relatar que uma tropa de vinte verbeeg, alguns ogros e pelo menos uma dúzia de ores dirigia-se a Valvertente.
Bruenor sinalizou para os besteiros em suas posições dissimuladas. As equipagens das balistas inspecionaram a camuflagem sobre os grandes arcos e acrescentaram alguns toques finais. Em seguida, os mais fortes guerreiros do clã - e Bruenor entre eles - enterraram-se em pequenas tocas ao longo do caminho batido de Valvertente e cortaram cuidadosamente os tufos de relva densa de modo que pudessem novamente recolocá-los sobre si mesmos.
Seriam eles a desferir os primeiros golpes.
Drizzt e Wulfgar haviam se posicionado entre os matacões do Sepulcro de Kelvin, acima do covil dos gigantes. Passaram o dia dormindo em turnos. A única preocupação do drow em relação a Bruenor e seu clã era que alguns gigantes deixariam o covil para encontrar os reforços que chegavam e arruinariam a vantagem que os anões tinham na surpresa.
Depois de várias horas de monotonia, as preocupações de Drizzt se mostraram verdadeiras. O drow descansava à sombra de uma saliência enquanto Wulfgar mantinha vigilância sobre o covil. O bárbaro mal conseguia enxergar as portas de madeira ocultas atrás das moitas, mas ouviu claramente o rangido de um gonzo quando uma delas se abriu. Esperou alguns instantes antes de se mexer para despertar o drow, desejando certificar-se de que alguns dos gigantes estavam realmente saindo da toca.
Em seguida, ouviu os gigantes conversando na obscuridade da porta aberta e, de repente, meia dúzia de verbeeg emergiu na luz do sol. Voltou-se para Drizzt, mas encontrou o sempre alerta drow já de pé atrás dele, com os grandes olhos entrecerrados a observar os gigantes na luz brilhante.
- Não sei o que estão tramando - Wulfgar disse a Drizzt.
- Estão procurando os companheiros desaparecidos - replicou Drizzt. Com seus ouvidos aguçados, ele ouvira mais claramente que seu amigo, fragmentos distintos da conversa que tivera lugar antes dos gigantes aparecerem. Aqueles verbeeg haviam sido instruídos a exercer toda a cautela possível, mas deviam encontrar a patrulha havia muito atrasada ou ao menos determinar para onde os gigantes desaparecidos tinham ido. Esperava-se que eles retornassem naquela mesma noite, com ou sem os outros.
- Temos de avisar Bruenor - disse Wulfgar.
- Este grupo acabará encontrando os companheiros mortos e alertando o covil muito antes de conseguirmos retornar - replicou Drizzt. - Além disso, acredito que Bruenor já tem gigantes demais com os quais lidar.
- O que fazer, então? - perguntou Wulfgar. - Sem dúvida, será dez vezes mais difícil derrotar o covil se estiverem esperando encrenca. - O bárbaro notou que a chama incandescente havia retornado ao olhar do drow.
- O covil de nada saberá se estes gigantes nunca retornarem - disse Drizzt, de maneira prosaica, como se a tarefa de deter seis verbeeg em expedição de caça fosse um obstáculo insignificante. Wulfgar ouviu, descrente, apesar de já ter adivinhado o que Drizzt tinha em mente.
O drow notou a apreensão de Wulfgar e abriu um sorriso largo.
- Venha, garoto - instruiu ele, usando o título condescendente para incitar o orgulho do bárbaro. - Você treinou duro durante muitas semanas em preparação para um momento como este. - Saltou agilmente um pequeno precipício até a saliência de pedra e voltou-se mais uma vez para Wulfgar, e seus olhos cintilavam ferozmente ao capturar o sol da tarde.
- Venha - o drow repetiu, acenando com uma mão. - Há apenas seis deles!
Wulfgar chacoalhou a cabeça, resignado, e suspirou. Durante as semanas de treinamento, ele viera a conhecer Drizzt como um espadachim controlado e mortífero que ponderava cada finta e cada golpe com serena precisão. Mas, nos dois últimos dias, Wulfgar vira uma faceta excessivamente ousada - e até mesmo imprudente - do drow. A resoluta confiança de Drizzt era a única coisa a convencer Wulfgar de que o elfo não era suicida, e a única coisa a impelir Wulfgar a segui-lo, malgrado o próprio bom senso. Imaginou se haveria algum limite para sua confiança no drow.
Ele soube, naquele exato momento, que Drizzt um dia o levaria a uma situação sem escapatória.
A patrulha de gigantes foi para o sul durante algum tempo com Drizzt e Wulfgar secretamente a reboque. Os verbeeg não encontraram nenhum vestígio imediato dos gigantes desaparecidos e, temendo chegar muito perto das minas dos anões, viraram-se bruscamente para nordeste, na direção geral da laje onde a escaramuça ocorrera.
- Temos de atacá-los logo - Drizzt disse ao companheiro. - Vamos cercar nossa presa.
Wulfgar assentiu. Pouco tempo depois, aproximaram-se de uma área irregular de pedras pontudas, onde o caminho estreito serpeava e apresentava curvas repentinas. O terreno começava a ficar íngreme, e os companheiros reconheceram que o caminho que percorriam levaria à beira de um pequeno precipício. A luz do dia havia enfraquecido o bastante para proporcionar alguma cobertura. Drizzt e Wulfgar trocaram olhares perspicazes: chegara o momento de agir.
Drizzt, de longe o mais experiente dos dois, rapidamente discerniu o modo de ataque que ofereceria a melhor chance de sucesso. Em silêncio, fez sinal para que Wulfgar se detivesse.
- Temos de atacar e nos afastar - sussurrou -, e depois atacar novamente.
- Não é uma tarefa fácil com um inimigo desconfiado - disse Wulfgar.
- Tenho algo que pode nos ajudar.
O drow soltou a mochila das costas, retirou dela a pequena estatueta e chamou por sua sombra. Quando o espantoso felino apareceu abruptamente, o bárbaro, boquiaberto e horrorizado, saltou para longe.
- Que demônio você conjurou? - gritou tão alto quanto podia ousar, e os nós de seus dedos perderam a cor sob a pressão do punho que apertava Garra de Palas.
- Guenhwyvar não é nenhum demônio - Drizzt tranqüilizou seu corpulento companheiro. - É uma amiga e uma valiosa aliada. - O gato rosnou, como se compreendesse, e Wulfgar afastou-se mais um passo.
- Não é um animal comum - retorquiu o bárbaro. - Não vou lutar ao lado de um demônio conjurado com feitiçaria! - Os bárbaros do Vale do Vento Gélido não temiam homens nem animais, mas as artes negras eram absolutamente estranhas a eles, e sua ignorância os deixava vulneráveis.
- Se os verbeeg descobrirem a verdade sobre a patrulha desaparecida, Bruenor e sua gente estarão em perigo - disse Drizzt, sombriamente. - O gato nos ajudará a deter este grupo. Você vai permitir que seus próprios temores impeçam o resgate dos anões?
Wulfgar aprumou-se e recuperou um pouco da compostura. A manobra de Drizzt, apelando ao orgulho dele e à ameaça extremamente real aos anões, pressionava-o a temporariamente deixar de lado sua aversão pelas artes negras.
- Mande o animal embora, não precisamos de ajuda.
- Com o gato, é certo pegarmos todos eles. Não arriscarei a vida do anão por causa de seu desconforto.
Drizzt sabia que Wulfgar levaria várias horas para aceitar Guenhwyvar como uma aliada - se isso um dia viesse a acontecer -, mas, por enquanto, ele só precisava da cooperação de Wulfgar no ataque.
Os gigantes já vinham marchando havia várias horas. Drizzt observou pacientemente a formação começar a se desfazer, sendo que um ou dois dos monstros ficavam ocasionalmente para trás. As coisas estavam se encaixando em seus respectivos lugares, exatamente como o drow havia esperado.
O caminho dobrava-se uma última vez por entre dois matacões gigantescos, depois alargava-se consideravelmente e inclinava-se mais ainda no trecho final até a beira do precipício. Fazia uma curva abrupta e depois continuava ao longo da saliência, com um sólido paredão de rocha de um lado e uma vertente rochosa do outro. Drizzt fez sinal para Wulfgar se preparar, depois deixou o grande felino agir.
O destacamento - vinte verbeeg, três ogros e uma dúzia de ores - avançava num ritmo indolente e chegou a Valvertente bem depois do cair da noite. Havia mais monstros do que os anões originariamente tinham esperado, mas eles não estavam excessivamente preocupados com os ores e sabiam lidar com os ogros. Os gigantes eram a chave daquela batalha.
A longa espera em nada ajudou a acalmar os nervos à flor da pele dos anões. Os membros do clã já não dormiam havia praticamente um dia e continuavam tensos e ansiosos por vingar seus parentes.
Os primeiros verbeeg pisaram no campo íngreme sem incidente, mas quando os últimos do destacamento invasor alcançaram os limites da zona de emboscada, os anões do Salão de Mitral atacaram. O grupo de Bruenor atacou primeiro, saltando de suas tocas, em geral bem ao lado de um gigante ou de um ore, e estraçalhando o alvo mais próximo. Os golpes visavam aleijar os inimigos, segundo o princípio básico da filosofia de combate a gigantes dos anões: o fio aguçado do machado corta o tendão e os músculos da parte de trás do joelho; a cabeça chata do martelo esmaga a patela na parte da frente.
Bruenor derrubou um gigante com um golpe, depois virou-se para fugir, mas encontrou-se cara a cara com a espada em riste de um ore. Sem tempo para trocar golpes, Bruenor arremessou sua arma no ar e gritou: "Pega!" Os olhos do ore estupidamente seguiram o vôo diversivo do machado. Bruenor derrubou a criatura, chocando-se contra o queixo do ore com a testa protegida pelo elmo, apanhou o machado que caía e fugiu precipitadamente para as trevas, detendo-se apenas por um segundo para dar um pontapé no adversário.
Os monstros foram apanhados completamente de surpresa, e muitos já estavam gritando no chão. Em seguida, as balistas abriram fogo. Projéteis do tamanho de lanças fulminaram as fileiras de vanguarda, arremessaram gigantes para os lados e uns contra os outros. Os besteiros saltaram de seus esconderijos e lançaram uma barragem letal, depois deixaram cair seus arcos e arremeteram encosta abaixo. O grupo de Bruenor, agora em sua formação de combate em "v", atirou-se de volta à refrega.
Os monstros jamais tiveram a oportunidade de se reagrupar e, quando finalmente foram capazes de erguer as armas em resposta, suas fileiras haviam sido dizimadas.
A Batalha de Valvertente terminou em três minutos.
Nenhum anão sequer foi ferido gravemente e, dos monstros invasores, somente o ore que Bruenor havia nocauteado sobreviveu.
Guenhwyvar compreendeu os desejos de seu mestre e saltou silenciosamente por entre as pedras fragmentadas até a margem da trilha, deu a volta e postou-se à frente dos verbeeg no paredão de rocha que sobranceava o caminho. Manteve-se abaixada, apenas mais uma sombra escura. O primeiro gigante passou lá embaixo, mas o gato esperou obedientemente o momento oportuno, imóvel como a morte. Drizzt e Wulfgar esgueiraram-se para mais perto, movendo-se furtivamente para ter visão total da linha de retaguarda da patrulha.
O último dos gigantes, um verbeeg extraordinariamente gordo, deteve-se um instante para recuperar o fôlego.
Guenhwyvar atacou rapidamente.
A ágil pantera saltou do paredão e, com as garras, rasgou a cara do gigante. Em seguida, deu continuidade ao salto, usando o ombro descomunal do monstro como um trampolim, de volta a um outro ponto no paredão. O gigante uivou de agonia e levou a mão à face dilacerada.
Garra de Palas atingiu a criatura na nuca e lançou-a no pequeno abismo.
O gigante na retaguarda do grupo remanescente ouviu o grito de dor, virou-se imediatamente, arremeteu trilha abaixo e contornou a última curva bem a tempo de ver seu desafortunado companheiro tombando pela vertente rochosa. O grande felino não hesitou e precipitou-se sobre a segunda vítima, e suas garras afiadas enterraram-se no peito do gigante. O sangue jorrou furiosamente quando as presas de cinco centímetros cravaram-se profundamente no pescoço carnudo. Sem correr riscos, Guenhwyvar usou as quatro patas poderosas para desviar um possível contragolpe, mas o gigante atordoado mal conseguiu erguer os braços em resposta antes que a mais intensa escuridão se fechasse sobre ele.
Com o resto da patrulha agora se aproximando rapidamente, Guenhwyvar saltou para longe e deixou o gigante ofegante afogando-se no próprio sangue. Drizzt e Wulfgar assumiram posições atrás dos matacões de cada lado da trilha, o drow desembainhou as cimitarras e o bárbaro fechou o punho em torno do martelo que retornara a suas mãos.
O felino não vacilou. Havia ensaiado aquela situação com seu mestre muitas vezes antes e compreendia perfeitamente bem a vantagem da surpresa. Esperou um momento, até que os outros gigantes a tivessem avistado, depois arrancou trilha abaixo, disparando por entre as rochas que ocultavam seu mestre e Wulfgar.
- Eta! - gritou um dos verbeeg, indiferente ao companheiro agonizante. - Um gato muito, muito grande, é sim! E preto como os caldeirão do meu cozinheiro!
- Atrás dele! - gritou um outro. - Vai dar um casaco novo pra quem pegar ele! - Saltaram por sobre o gigante abatido, sem pensar duas vezes, e arremeteram trilha abaixo atrás da pantera.
Drizzt era o mais próximo. Ele deixou passar os dois primeiros e concentrou-se nos outros dois. Eles passaram pelo matacão lado a lado; o drow saltou para o caminho, logo à frente deles, enterrou a cimitarra esquerda no peito de um dos gigantes e cegou o outro com uma cutilada da direita por sobre os olhos. Usando a cimitarra fincada no primeiro gigante como um pivô, ele girou por trás do adversário cambaleante e impeliu a outra espada com uma torção sutil, depois afastou-se quando o gigante mortalmente ferido tombou ao chão.
Wulfgar também deixou o líder passar. O segundo havia estacado praticamente ao lado do bárbaro quando Drizzt atacou os dois na retaguarda. O gigante deteve-se e rodopiou, com a intenção de ajudar os demais, porém, detrás do matacão, Wulfgar brandiu Garra de Palas, traçando um arco devastador, e acertou o pesado martelo em cheio no peito do verbeeg. O monstro caiu de costas, e o ar foi literalmente arrancado de seus pulmões. Wulfgar reverteu o movimento do martelo rapidamente e arremessou Garra de Palas na direção oposta. O líder fez a volta bem a tempo de recebê-lo na cara.
Sem hesitação, Wulfgar precipitou-se sobre o gigante que derrubara e passou os braços fortes ao redor do pescoço maciço do monstro. O gigante recuperou-se rapidamente e atracou-se ao bárbaro e, embora ainda estivesse sentado, não teve dificuldade para erguer do chão o adversário muito menor. Mas os anos que ele passara a brandir um martelo e a talhar a pedra nas minas dos anões haviam impregnado o bárbaro com a força do ferro. Ele apertou ainda mais o pescoço do gigante e girou lentamente os braços nodosos. Com um estalido alto, a cabeça do verbeeg pendeu para um lado.
O gigante que Drizzt cegara distribuía golpes desvairadamente com a imensa clava. O drow mantinha-se constantemente em movimento, saltava agilmente de um flanco a outro sempre que tinha a oportunidade e atingia o monstro indefeso com uma estocada depois da outra. Drizzt mirava qualquer área vital que conseguisse atingir com segurança, esperando eficientemente dar cabo de seu oponente.
Com Garra de Palas agora firmemente nas mãos, Wulfgar caminhou até o verbeeg que atingira na cara para se certificar de que o monstro estava morto. Vigiava cautelosamente a trilha, em busca do menor sinal do retorno de Guenhwyvar. Tendo visto o poderoso felino em ação, ele não tinha o menor desejo de enfrentá-lo pessoalmente.
Morto o último gigante, Drizzt desceu pela trilha para se juntar ao amigo.
- Você ainda não compreende sua perícia na batalha! - ele riu, espalmando o homenzarrão nas costas. - Seis gigantes não são demais para nós dois!
- Agora podemos ir encontrar Bruenor? - perguntou Wulfgar, apesar de ver a chama que ainda tremeluzia perigosamente nos olhos cor de lavanda do drow. Ele percebeu que ainda não estavam de partida.
- Não há necessidade - replicou Drizzt. - Estou certo de que os anões tem tudo sob controle. Mas temos, de fato, um problema - continuou ele. Conseguimos matar o primeiro grupo de gigantes e ainda reter o elemento surpresa. Muito em breve, porém, com outros seis desaparecidos, o covil estará alerta para o menor sinal de perigo.
- Os anões devem retornar pela manhã - disse Wulfgar. - Podemos atacar o covil antes do meio-dia.
- Tarde demais - disse Drizzt, fingindo decepção. - Receio que você e eu tenhamos de atacá-los esta noite, sem delongas.
Wulfgar não se surpreendeu nem mesmo discutiu. Temia que ele e o drow estivessem se aventurando em demasia, que o plano do drow fosse por demais ultrajante, mas estava começando a aceitar um fato indiscutível: ele seguiria Drizzt em qualquer aventura, não importava quão improváveis fossem as chances de sobrevivência.
E ele estava começando a admitir para si mesmo que gostava de se arriscar ao lado do elfo negro.
18
A Casa de Sorrisão
Para Drizzt e Wulfgar, foi uma surpresa agradável encontrar a entrada dos fundos do covil dos verbeeg. Ficava bem no alto da íngreme vertente ocidental do afloramento rochoso. Pilhas de lixo e ossos espalhavam-se por todo o terreno na base das rochas, e um filete fino mas constante de fumaça saía da caverna aberta, perfumado com o aroma de carneiro assado.
Os dois companheiros permaneceram algum tempo agachados entre as moitas logo abaixo da entrada, observando o grau de atividade. A lua já havia saído, brilhante e clara, e a noite havia se iluminado consideravelmente.
- Será que chegaremos a tempo para o jantar? - comentou o drow, ainda ostentando um sorriso pretensioso e oblíquo. Wulfgar chacoalhou a cabeça e riu do extraordinário domínio do elfo negro.
Apesar de ambos ouvirem muitas vezes os sons provenientes das sombras logo depois da abertura - o retinir de panelas e vozes ocasionais -, nenhum gigante pusera a cabeça para fora da caverna até um pouco antes da lua se pôr. Um verbeeg gordo, presumivelmente o cozinheiro do covil pelas roupas que usava, arrastou os pés até a soleira e despejou encosta abaixo o lixo de uma grande caçarola de ferro.
- Ele é meu - disse Drizzt, subitamente sério. - Você pode arranjar uma distração?
- O gato o fará - respondeu Wulfgar, embora não estivesse muito entusiasmado com a idéia de ficar sozinho com Guenhwyvar.
Drizzt esgueirou-se pelo aclive rochoso, tentando permanecer nas sombras escuras. Ele sabia que, ao luar, estaria vulnerável até passar a entrada, mas a escalada mostrou-se mais difícil do que havia esperado e ele progredia lentamente. Quase na abertura, ouviu o cozinheiro movimentando-se ao lado da entrada, aparentemente erguendo uma segunda caçarola de lixo para despejar.
Mas o drow não tinha para onde ir. Um grito proveniente da caverna distraiu o cozinheiro. Percebendo que tinha pouquíssimo tempo para alcançar lugar seguro, Drizzt cobriu rapidamente a distância que o separava do nível da porta e espiou a cozinha iluminada por tochas.
O cômodo era mais ou menos quadrado, com um grande forno de pedra na parede oposta à entrada da caverna. Próxima ao forno, ficava uma porta de madeira ligeiramente entreaberta e, por trás dela, Drizzt ouviu várias vozes de gigantes. Ele não viu o cozinheiro, mas uma caçarola de lixo jazia no chão bem ao lado da entrada.
- Ele logo estará de volta - o drow murmurou consigo mesmo enquanto se esgueirava sem ruído pelo paredão, escolhendo as agarras, elevando-se acima da entrada da caverna. Na base da encosta, um nervoso Wulfgar aguardava absolutamente imóvel enquanto Guenhwyvar, diante dele, andava de um lado para o outro.
Alguns minutos depois, o cozinheiro dos gigantes saiu com a caçarola. Enquanto o verbeeg despejava o lixo, Guenhwyvar fez-se notar. Um grande salto levou o gato à base da encosta. Erguendo a cabeça em direção ao cozinheiro, a pantera negra rosnou.
- Ah, sai fora, seu bichano sarnento - disse bruscamente o gigante, pelo jeito nada impressionado nem surpreso com o repentino aparecimento da pantera -, antes que eu esborrache sua cabeça e te jogue numa panela de ensopado!
Foi vã a ameaça do verbeeg. Enquanto brandia o punho descomunal, a atenção totalmente voltada para o gato, a forma escura de Drizzt Do'Urden saltou do paredão para as costas do monstro. Com as cimitarras já nas mãos, o drow não perdeu tempo para entalhar na garganta do gigante um sorriso de orelha a orelha. Sem emitir um único grito, o verbeeg tombou pelas rochas e foi depositar-se com o resto do lixo. Abruptamente, Drizzt deixou-se cair até a entrada da caverna e girou sobre os calcanhares, rezando para que nenhum outro gigante tivesse entrado na cozinha.
Ele estava seguro por ora. O cômodo estava vazio. Assim que Guenhwyvar e depois Wulfgar galgaram a saliência, Drizzt fez sinal para que o seguissem. A cozinha era pequena (para gigantes) e encontrava-se mal abastecida. Havia uma mesa na parede à direita que ostentava várias panelas. Próxima a ela, ficava um grande cepo no qual estava fincado um cutelo vistoso, enferrujado, denteado e aparentemente havia semanas sem lavar. Acima e à esquerda de Drizzt, ficavam prateleiras com temperos, ervas e outras provisões. O drow foi examiná-las enquanto Wulfgar adiantava-se para espiar o cômodo adjacente. E ocupado.
Também quadrada, essa segunda área era um pouco maior que a cozinha. Uma mesa comprida dividia a sala ao meio e, do outro lado, diretamente em frente ao ponto em que se encontrava, Wulfgar viu uma segunda porta. Três gigantes estavam sentados no lado da mesa mais próximo de Wulfgar, um quarto estava de pé entre eles e a porta, e mais dois sentavam-se do outro lado. O grupo deleitava-se com carneiro assado e sugava ruidosamente um ensopado espesso, o tempo todo xingando e escarnecendo uns dos outros. Um típico jantar comunitário dos verbeeg. Wulfgar notou com um interesse nada passageiro que os monstros arrancavam a carne dos ossos com as mãos nuas. Não havia armas na sala.
Drizzt, segurando um saco que encontrara nas prateleiras, desembainhou novamente uma de suas cimitarras e, com Guenhwyvar a seu lado, juntou-se a Wulfgar.
- Seis - sussurrou Wulfgar, apontando a sala. O imenso bárbaro ergueu Garra de Palas e meneou a cabeça, ansioso.
Drizzt espiou pela porta e rapidamente formulou um plano de ataque. Apontou Wulfgar e depois a porta.
- Direita - sussurrou. Depois, indicou a si próprio. - Atrás de você, esquerda.
Wulfgar compreendeu-o perfeitamente, mas perguntou-se por que ele não incluíra Guenhwyvar. O bárbaro apontou o gato.
Drizzt meramente deu de ombros e sorriu, e Wulfgar compreendeu. Mesmo o cético bárbaro acreditava que Guenhwyvar entenderia onde ela se encaixava melhor no plano.
Com um estremecimento, Wulfgar livrou-se do formigamento nervoso em seus músculos e apertou Garra de Palas com força. Com uma rápida piscadela do companheiro, ele irrompeu pela porta e precipitou-se sobre o alvo mais próximo. O gigante, o único do grupo de pé naquele momento, conseguiu virar-se e encarar o atacante, mas foi só isso. Garra de Palas traçou um arco baixo e ergueu-se com precisão letal, chocando-se contra o ventre do verbeeg. Impelido para cima, o martelo esmagou a base do peito do gigante. Com sua incrível força, Wulfgar chegou realmente a levantar o monstro descomunal a uma boa distância do chão. Prostrada e sem fôlego, a criatura caiu ao lado do bárbaro, mas ele não lhe deu mais atenção; já planejava o segundo golpe.
Drizzt, com Guenhwyvar logo em seus calcanhares, passou correndo pelo amigo em direção aos dois atordoados gigantes sentados mais à esquerda da mesa. Com um gesto brusco, ele abriu o saco que segurava e girou o corpo assim que alcançou os alvos, cegando-os com uma nuvem de farinha. O drow jamais afrouxou o passo, abriu com a cimitarra a garganta de um dos verbeeg cobertos de farinha e, em seguida, jogou-se para trás e rolou por sobre o tampo da mesa de madeira. Guenhwyvar saltou sobre o outro gigante, e suas poderosas mandíbulas estraçalharam a virilha do monstro.
Os dois verbeeg do outro lado da mesa foram os primeiros do grupo a realmente reagir. Um deles ficou de pé num salto, pronto para receber a investida rodopiante de Drizzt, enquanto o segundo, destacando-se involuntariamente como o próximo alvo de Wulfgar, disparou para a porta de trás.
Wulfgar rapidamente mirou o gigante em fuga e arremessou Garra de Palas sem hesitação. Se Drizzt, que naquele instante rolava pela mesa, tivesse percebido o quão perto estivera de interceptar o vôo do martelo de guerra, teria dedicado algumas palavras amáveis ao amigo. Mas o martelo atingiu seu alvo, golpeou o verbeeg no ombro e arremessou o monstro contra a parede com força suficiente para quebrar-lhe o pescoço.
O gigante que Drizzt retalhara contorcia-se no chão e levava a mão à garganta numa tentativa inútil de estancar o jorro de sangue. E Guenhwyvar já despachava o outro sem dificuldades. Restavam apenas dois verbeeg.
Drizzt completou a manobra e caiu de pé do outro lado da mesa, esquivando-se habilmente das mãos do verbeeg que esperava por ele. Fez a volta rapidamente, colocando-se entre o oponente e a porta. O gigante, com as mãos descomunais estendidas, girou sobre os calcanhares e atacou. Mas a segunda cimitarra do drow já fazia companhia a primeira e ambas se entrelaçavam numa fascinante dança mortal. A cada cintilação das espadas, mais um dos dedos nodosos do gigante caía girando no chão. Não demorou muito e o verbeeg tinha apenas dois cotos ensangüentados em lugar das mãos. Insanamente enfurecida, a criatura brandia desvairadamente os braços como se fossem clavas. A cimitarra de Drizzt enfiou-se sob a têmpora do monstro, pondo um fim a sua loucura.
Entrementes, o último gigante atacara o bárbaro desarmado. Ele passou os braços imensos em torno de Wulfgar e ergueu-o no ar, tentando espremê-lo até a morte. Wulfgar retesou os músculos numa tentativa desesperada de impedir que o inimigo muito maior lhe partisse a espinha.
O bárbaro teve dificuldade para recuperar o fôlego. Enfurecido, ele deu com o punho no queixo do gigante e ergueu a mão para um segundo golpe.
Mas nesse momento, obedecendo ao encantamento de Bruenor, o martelo de guerra mágico estava de volta em sua mão. Com um grito de júbilo, Wulfgar deu com a ponta romba de Garra de Palas no olho do gigante e o arrancou. O gigante afrouxou o abraço e cambaleou para trás em agonia. O mundo havia se tornado uma tal mancha indistinta de dor para o monstro que ele sequer viu Garra de Palas traçando um arco sobre a cabeça de Wulfgar e ganhando velocidade em direção a seu crânio. Ele sentiu uma explosão quente quando o pesado martelo abriu-lhe a cabeça. O corpo sem vida quicou sobre a mesa e derramou ensopado e pedaços de carneiro por todo o chão.
- Não entorne a comida! - gritou Drizzt, fingindo ira enquanto corria para apanhar uma costeleta de aparência particularmente suculenta.
De repente, eles ouviram passos de botas pesadas e gritos que se aproximavam pelo corredor atrás da segunda porta.
- Para fora! - berrou Wulfgar e voltou-se para a cozinha.
- Espere! - gritou Drizzt. - A festa está só começando! - Ele apontou um túnel sombrio, iluminado por tochas, que partia da parede esquerda da sala. - Por ali! Rápido!
Wulfgar sabia que estavam abusando da sorte, mas novamente flagrou-se dando ouvidos ao elfo.
E novamente o bárbaro sorria.
Wulfgar passou pelos pesados suportes de madeira no início do túnel e correu em direção à obscuridade. Tinha percorrido uma distância razoável, com Guenhwyvar incomodamente correndo bem a seu lado, quando percebeu que Drizzt não o seguia. Ele deu meia-volta, bem a tempo de ver o drow deixar casualmente a sala e passar pelas vigas de madeira. Drizzt havia embainhado as cimitarras. Segurava um longo punhal cuja ponta cruel fincava-se firmemente num pedaço de carneiro.
- E os gigantes? - perguntou Wulfgar em meio à escuridão.
Drizzt deu um passo para o lado e colocou-se atrás de uma das imensas vigas de madeira.
- Logo atrás de mim - explicou tranqüilamente enquanto arrancava com os dentes outro pedaço de sua refeição. O queixo de Wulfgar caiu quando um bando de verbeeg furibundos investiu túnel adentro, sem sequer notar o drow ali escondido.
- Prayne de crabug ahm keike rinedere be-yogt iglo kes gronl - gritou Wulfgar ao girar sobre os calcanhares e disparar pelo corredor, esperando que este não levasse a um beco sem saída.
Drizzt retirou o pedaço de carneiro da ponta do punhal e acidentalmente deixou-o cair no chão, praguejando em silêncio por desperdiçar boa comida. Limpando o punhal com a língua, ele esperou pacientemente. Assim que o último verbeeg passou, ele deixou o esconderijo, enfiou o punhal nas costas do joelho do gigante retardatário e voltou a esconder-se do outro lado da viga. O gigante ferido uivou de dor mas, quando ele ou seus companheiros houvessem se virado, o drow já teria desaparecido.
Wulfgar fez uma curva e grudou na parede, adivinhando facilmente o que interrompera a perseguição. O bando dera a volta ao descobrir que havia um outro intruso mais perto da saída.
Um gigante saltou por entre os suportes e postou-se de pernas bem abertas e a clava preparada, os olhos movendo-se de uma porta à outra enquanto tentava descobrir que rota o atacante invisível havia tomado. Atrás dele, e bem mais para o lado, Drizzt puxou duas pequenas facas, uma de cada bota, e perguntou-se como os gigantes poderiam ser tão estúpidos a ponto de caírem duas vezes no mesmo truque em questão de dez segundos. Sem querer discutir com a boa sorte, o elfo lançou-se por trás de sua próxima vítima e, antes que os verbeeg ainda no corredor conseguissem emitir um grito de alerta, enfiou fundo uma das facas na coxa do gigante, cortando-lhe o tendão do jarrete. O gigante cambaleou para o lado e Drizzt, entre saltos ligeiros, admirou-se com os maravilhosos alvos que davam as veias grossas no pescoço de um verbeeg quando a mandíbula do monstro se contraía de dor.
Mas o drow não teve tempo para se deter e refletir sobre os sucessos da batalha. O resto do bando - cinco gigantes furiosos - já havia atirado para um lado o companheiro ferido no túnel e estava apenas a alguns passos de distância. Ele enterrou a segunda faca no pescoço do verbeeg e dirigiu-se para a porta que dava acesso ao interior do covil. Ele a teria alcançado não fosse pelo fato de o primeiro gigante a voltar para a sala carregar uma pedra. Em geral, os verbeeg são exímios atiradores de pedras, e este era melhor que a maioria. A cabeça desprotegida do elfo era seu alvo e o arremesso foi certeiro.
O arremesso de Wulfgar também atingiu o alvo. Garra de Palas estilhaçou a espinha do gigante retardatário no momento em que ele passava pelo companheiro machucado no túnel. O verbeeg ferido, esforçando-se para arrancar o punhal de Drizzt do joelho, fitou, descrente, o companheiro morto tão repentinamente e a ensandecida e fatal investida do feroz bárbaro.
Com o canto do olho, Drizzt viu a pedra chegando. Conseguiu encolher-se o bastante para evitar que sua cabeça fosse esmagada, mas o pesado projétil atingiu-o no ombro e o fez voar até o chão. O mundo começou a girar como se Drizzt fosse seu eixo. Ele lutou para se reorientar pois, em algum canto de sua mente, entendia que o gigante se aproximava para dar cabo dele. Mas tudo parecia um borrão. Nesse momento, algo bem perto de seu rosto conseguiu chamar-lhe a atenção. Fixou os olhos na coisa, esforçando-se para encontrar o foco e obrigar tudo o mais a parar de girar.
Um dedo de verbeeg.
O drow recuperou-se. Sem hesitação, ele tentou sacar a arma.
Compreendeu que era tarde demais quando viu o gigante, com a clava erguida para um golpe fatal, elevando-se acima dele.
O gigante ferido deu um passo em direção ao meio do túnel para receber a investida do bárbaro. A perna do monstro estava dormente e ele não conseguia firmar os pés. Wulfgar, com Garra de Palas confortavelmente de volta a suas mãos, empurrou-o para o lado com um tapa e continuou até entrar na sala. Dois gigantes esperavam por ele.
Guenhwyvar trançou-se por entre as pernas de um gigante quando este se voltava e saltou tão alto quanto permitiam os músculos fortes. No exato momento em que o verbeeg começava a brandir sua clava contra o elfo prostrado, Drizzt viu uma sombra negra passar logo em frente a seu rosto. Um rasgão recortado sulcava a face do gigante. Drizzt compreendeu o que acontecera quando ouviu as patas acolchoadas de Guenhwyvar assentarem-se na mesa e impulsionarem o gato quase até o outro lado da sala. Apesar de um segundo gigante agora ter se juntado ao primeiro e ambos sustentarem no ar as clavas, prontos para atacar, Drizzt ganhara todo o tempo de que precisava. Rápido como um raio, ele desembainhou uma das cimitarras e a enfiou na virilha do primeiro gigante. O monstro dobrou-se de agonia, servindo de escudo a Drizzt, e recebeu na nuca o golpe de seu camarada. O drow murmurou um "obrigado" enquanto rolava sobre o cadáver, apoiou os pés no chão e novamente desferiu uma estocada para cima, mas dessa vez ele ergueu o corpo para acompanhar a espada.
A hesitação custara a vida de mais um gigante. Pois, enquanto o verbeeg atordoado fitava, estarrecido, os miolos do amigo espalhados por toda a clava, a lâmina recurva do drow enfiava-se sob sua caixa torácica, atravessava-lhe os pulmões e atingia o coração do monstro.
O tempo passou devagar para o gigante mortalmente ferido. A clava que havia largado pareceu levar minutos para atingir o chão. Com o movimento sutil de uma árvore em queda, o verbeeg escorregou pela cimitarra. Ele sabia que estava caindo, mas o chão jamais veio recebê-lo. Jamais...
Wulfgar esperava ter acertado o gigante ferido no túnel com força suficiente para mantê-lo fora de combate durante algum tempo: ele estaria numa situação realmente difícil caso a criatura o atacasse pelas costas naquele momento. Já estava atarefado demais, trocando golpes com os dois gigantes que agora enfrentava. Entretanto, ele não precisava ter se preocupado com a retaguarda, pois o verbeeg ferido afundou-se na parede do túnel, alheio ao que acontecia a seu redor. E, na direção oposta, Drizzt acabara de matar os outros dois gigantes. Wulfgar gargalhou alto ao ver o amigo limpar o sangue da espada e atravessar mais uma vez a sala. Um dos verbeeg também notou o elfo negro e abandonou a luta com o bárbaro para enfrentar esse novo adversário.
- 'tá legal, nanico. 'cê acha que pode me encarar de igual pra igual e viver pra contar a história? - berrou o gigante.
Fingindo desespero, Drizzt olhou ao redor. Como sempre, ele encontrou uma maneira fácil de vencer aquela luta. Com o ventre rente ao chão, Guenhwyvar havia se esgueirado por trás dos corpos dos gigantes, tentando se colocar numa posição favorável. Drizzt deu um pequeno passo para trás e incitou o gigante a colocar-se no caminho do grande felino.
A clava do gigante colidiu com as costelas de Wulfgar e jogou-o para cima, contra a viga de madeira. O bárbaro, porém, era de uma natureza mais resistente que a madeira e recebeu estoicamente o golpe, retribuindo-o com duas vezes mais força usando Garra de Palas. Mais uma vez, o verbeeg golpeou e novamente Wulfgar respondeu. O bárbaro vinha lutando sem descanso havia mais de dez minutos, mas a adrenalina corria em suas veias e ele sequer estava esbaforido. Passou a dar valor às horas intermináveis que trabalhara para Bruenor nas minas e aos muitos quilômetros que Drizzt o fizera correr durante as primeiras sessões quando seus golpes começaram a se abater com maior freqüência sobre o oponente cada vez mais cansado. O gigante avançou sobre Drizzt.
- Argh! Fica quieto, seu rato miserável! - grunhiu. - E não me venha com os seus truquezinhos! Quero só ver como 'cê se sai numa luta justa.
Assim que os dois se aproximaram, Guenhwyvar disparou pela pequena distância que a separava deles e afundou as presas no tornozelo do verbeeg. O gigante involuntariamente relanceou os olhos em direção ao inimigo que o atacava pelas costas, mas recuperou-se rapidamente e voltou a olhar para o elfo...
... Bem a tempo de ver a cimitarra entrar em seu peito.
Drizzt respondeu à expressão perplexa do monstro com uma pergunta:
- Em qual dos nove infernos você foi achar a idéia de que eu lutaria de maneira justa?
O verbeeg cambaleou para longe. A lâmina não lhe atingira o coração, mas ele sabia que o ferimento logo se mostraria fatal caso não recebesse cuidados. O sangue escorria livremente pela túnica de couro do monstro, e ele sofria visivelmente ao tentar respirar. Drizzt alternou seus ataques com Guenhwyvar, golpeando e esquivando-se das respostas desajeitadas do monstro enquanto a parceira atacava pelo outro lado. Eles sabiam, e o gigante também, que a luta logo chegaria ao fim.
O gigante que lutava com Wulfgar já não conseguia mais sustentar uma postura defensiva com sua pesada clava. Wulfgar também começava a ficar cansado, de modo que deu início a uma velha canção de guerra da tundra, a Canção de Tempus, e as notas em crescendo inspiraram-no a desferir uma derradeira salva de golpes. Ele esperou até a clava do verbeeg inevitavelmente se abaixar um pouco e golpeou com Garra de Palas, uma, duas, três vezes. Wulfgar quase desmaiou de exaustão depois do terceiro golpe, mas o gigante jazia todo enroscado no chão. Cansado, o bárbaro apoiou-se na própria arma e assistiu aos dois amigos fazerem o verbeeg deles em pedaços.
- Muito bem! - riu Wulfgar assim que o último gigante tombou. Drizzt caminhou até o bárbaro, com o braço esquerdo a pender flacidamente. A jaqueta e a camisa haviam se rasgado onde a pedra o atingira, e a pele exposta do ombro estava inchada e escoriada.
Wulfgar fitou o ferimento com genuína preocupação, mas Drizzt respondeu-lhe a muda indagação erguendo o braço acima da cabeça, embora um esgar de dor acompanhasse o esforço.
- Vai sarar logo - ele tranqüilizou Wulfgar. - É só um inchaço feio e acho que é um preço pequeno a se pagar em comparação aos cadáveres de treze verbeeg!
Um gemido baixo fez-se ouvir no túnel.
- Doze, por enquanto - corrigiu Wulfgar. - Parece que um deles não está bem morto. - Inspirando profundamente, Wulfgar ergueu Garra de Palas e virou-se para completar o serviço.
- Só um instante - insistiu Drizzt, pois um pensamento assediava-lhe a mente. - Quando os gigantes investiram contra você no túnel, você berrou algo em sua língua materna, creio eu. O que foi que disse?
Wulfgar gargalhou entusiasticamente.
- Um antigo grito de guerra da Tribo do Alce - explicou ele. - Força para os amigos e morte aos inimigos!
Drizzt fitou o bárbaro, desconfiado, e perguntou-se quão bem Wulfgar conseguiria mentir de improviso.
O verbeeg ferido apoiava-se ainda contra a parede do túnel quando os dois companheiros e Guenhwyvar o encontraram. O punhal do drow continuava enterrado profundamente no joelho do gigante e a lâmina estava presa firmemente entre dois ossos. O gigante fitou os homens com olhos cheios de ódio, porém estranhamente serenos, quando eles se aproximaram.
- 'cê vai pagar por isto - ele cuspiu em Drizzt. - Sorrisão vai brincar com você antes de te matar, pode ter certeza!
- Ah, esta coisa fala - disse Drizzt a Wulfgar. E depois para o gigante - Sorrisão?
- É o dono da caverna - respondeu o gigante. - Sorrisão vai querer conhecer vocês.
- E nós vamos querer conhecer Sorrisão! - vociferou Wulfgar. - Temos uma dívida a pagar; uma pequena questão referente a dois anões!
Assim que Wulfgar mencionou os anões, o gigante cuspiu de novo. A cimitarra de Drizzt cintilou e deteve-se a uma polegada da garganta do monstro.
- Me mata logo e acaba com isso - riu o gigante, genuinamente indiferente. A despreocupação do monstro enervava Drizzt. - Eu sirvo ao mestre! - proclamou o gigante. - É a glória morrer por Alçar Kessell!
Wulfgar e Drizzt entreolharam-se, apreensivos. Nunca tinham visto ou ouvido falar desse tipo de dedicação fanática num verbeeg, e a visão os perturbava. O principal defeito dos verbeeg, algo que sempre os impedira de dominar as raças menores, era sua relutância em se dedicar sinceramente a uma causa e sua inabilidade de seguir um líder.
- Quem é Akar Kessell? - indagou Wulfgar.
O gigante riu maldosamente.
- Se 'cês são amigos dos aldeão, logo vão ficar sabendo!
Pensei que você tivesse dito que Sorrisão era o dono desta caverna - disse Drizzt.
- Da caverna - respondeu o gigante. - E antes de uma tribo. Mas Sorrisão segue o mestre agora.
- Estamos encrencados - murmurou Drizzt para Wulfgar. - Você alguma vez ouviu falar de um chefe verbeeg cedendo a liderança a um outro sem uma briga?
- Temo pelos anões - disse Wulfgar.
Drizzt deu as costas ao gigante e decidiu mudar de assunto a fim de extrair informações de relevância mais imediata para a situação em que eles se encontravam.
- O que há no fim deste túnel?
- Nada - disse o verbeeg, rápido demais. - Hã, é onde a gente dorme, só isso.
Leal, mas estúpido, observou Drizzt. Virou-se novamente para Wulfgar.
- Precisamos apagar Sorrisão e quaisquer outros na caverna capazes de voltar para avisar esse tal Akar Kessell.
- E o que fazemos com este aqui? - perguntou Wulfgar. Mas o gigante respondeu à pergunta por Drizzt. Devaneios de glória forçaram-no a ir ao encontro da morte a serviço do mago. Ele retesou os músculos, ignorando a dor no joelho, e investiu contra os companheiros.
Garra de Palas esmagou a clavícula e o pescoço do verbeeg ao mesmo tempo em que a cimitarra de Drizzt se enfiava por entre suas costelas e Guenhwyvar abocanhava-lhe o ventre.
Mas a máscara mortuária do gigante era um sorriso.
O corredor atrás da porta dos fundos da sala de jantar estava escuro, e os companheiros foram obrigados a tirar do suporte uma das tochas do outro corredor para levar com eles. Serpeando pelo longo túnel, aprofundando-se cada vez mais no interior da colina, eles passaram por várias câmaras pequenas, a maioria delas vazia, mas algumas com engradados de provisões de vários tipos: víveres, peles, clavas e lanças sobressalentes. Drizzt presumiu que Kessell planejava usar a caverna como uma base de operações para seu exército.
A escuridão continuou absoluta por uma boa distância e Wulfgar, sem a visão noturna de seu companheiro élfico, começou a ficar nervoso quando a tocha se pôs a arder com menor intensidade. Mas, então, eles chegaram a uma câmara ampla, de longe a maior das que haviam visto, e, para além de seus limites, o túnel abria-se na noite clara.
- Chegamos à porta da frente - disse Wulfgar. - E está entreaberta. Você acha que Sorrisão saiu?
- Psiu - Drizzt o silenciou. O drow achava ter ouvido algo na escuridão, bem à direita deles. Fez sinal para que Wulfgar permanecesse no centro da sala com a tocha enquanto ele se esgueirava pelas sombras.
Drizzt deteve-se assim que ouviu vozes ríspidas de gigantes logo adiante, apesar de não conseguir entender por que não lhes enxergava os vultos corpulentos. Quando topou com uma grande lareira, ele compreendeu tudo. As vozes ecoavam pela chaminé.
- Sorrisão? - perguntou Wulfgar quando o drow reapareceu.
- Deve ser - raciocinou Drizzt. - Você acha que consegue passar pela chaminé?
O bárbaro assentiu. Ergueu Drizzt primeiro - o braço esquerdo do drow continuava inútil - e depois o acompanhou, deixando Guenhwyvar de vigia.
A chaminé seguia para cima, serpenteando por alguns metros, e depois chegava a uma intersecção. Um dos ramos descia até a sala de onde provinham as vozes e o outro estreitava-se à medida que subia até a superfície. A discussão, agora, mostrava-se ruidosa e acalorada, e Drizzt desceu para investigar. Wulfgar segurou os pés do drow para ajudá-lo a completar lentamente aquela última descida, já que a inclinação tornava-se quase vertical. Pendurado de ponta cabeça, Drizzt espiou pela borda da lareira para dentro de uma outra sala. Viu três gigantes: um ao lado da porta na extremidade mais distante da sala, com cara de quem queria sair, e um segundo, de costas para a lareira, sendo repreendido pelo terceiro, um gigante do gelo imensamente alto e corpulento. O sorriso desfigurado e desprovido de lábios levou Drizzt a concluir que ele olhava para Sorrisão.
- Pra contar tudo pra Sorrisão! - defendia-se o gigante menor.
- 'cê fugiu do combate - disse Sorrisão, carrancudo. - 'cê abandonou os amigos pra morrer!
- Não... - protestou o gigante, mas Sorrisão já ouvira o bastante. Com uma pancada violenta de seu imenso machado, ele arrancou a cabeça do gigante menor.
Os homens encontraram Guenhwyvar diligentemente de vigia quando saíram da chaminé. O grande felino voltou-se e emitiu um rosnado de reconhecimento assim que viu seus companheiros. Wulfgar, não entendendo o ronrom gutural como um som amistoso, afastou-se cautelosamente um passo.
- Deve haver um túnel lateral em algum lugar do corredor principal - raciocinou Drizzt, sem tempo para achar graça do nervosismo de seu amigo.
- Vamos acabar logo com isto, então - disse Wulfgar.
Eles encontraram a passagem como o drow havia predito e logo chegaram a uma porta que imaginaram levaria à sala com os gigantes remanescentes.
Trocaram palmadas nos ombros, para dar sorte, e Drizzt acariciou Guenhwyvar, embora Wulfgar declinasse do convite para fazer o mesmo. Em seguida, irromperam sala adentro.
O cômodo estava vazio. Uma porta, antes invisível para Drizzt desde seu ponto de observação na lareira, encontrava-se entreaberta.
Sorrisão enviou o único soldado remanescente pela porta lateral secreta com uma mensagem para Akar Kessell. O imenso gigante fora desmoralizado e sabia que o mago não aceitaria facilmente a perda de tantos soldados valiosos. A única chance de Sorrisão era cuidar dos dois guerreiros invasores e esperar que as cabeças deles satisfizessem o patrão inclemente. O gigante grudou a orelha à porta e aguardou até suas vítimas entrarem na sala contígua.
Wulfgar e Drizzt passaram pela segunda porta e entraram numa câmara extravagante, com o chão adornado com peles suntuosas e almofadas grandes e fofas. Duas outras portas levavam para fora da sala. Uma delas estava ligeiramente aberta e dava para um corredor escuro, a outra encontrava-se fechada.
De repente, Wulfgar deteve Drizzt com a palma esticada de uma das mãos e fez sinal para que o drow ficasse quieto. A virtude intangível de um verdadeiro guerreiro, o sexto sentido que lhe permite sentir o perigo invisível, entrara em ação. Lentamente, o bárbaro virou-se para a porta fechada e ergueu Garra de Palas acima da cabeça. Deteve-se um instante e aprumou a cabeça, esforçando-se para ouvir um som confirmador. Nada. Mas Wulfgar confiava em seus instintos. Urrou para Tempus e arremessou o martelo. Rachou a porta com um estrépito ensurdecedor, pondo abaixo as tábuas. E Sorrisão também.
Drizzt notou o vaivém da porta secreta do outro lado da sala, atrás do chefe dos gigantes, e concluiu que o último dos gigantes devia ter fugido. Rapidamente, o drow acionou Guenhwyvar. A pantera também compreendeu a situação, pois partiu como um raio, transpôs com um grande salto a forma convulsa de Sorrisão e disparou para fora da caverna a fim de dar caça ao verbeeg fugitivo.
O sangue escorria de um dos lados da cabeça do imenso gigante, mas o osso espesso do crânio rejeitara o martelo. Drizzt e Wulfgar observaram, incrédulos, o imenso gigante do gelo chacoalhar as papadas sob o queixo e erguer-se para enfrentá-los.
- Isso não vale - protestou Wulfgar.
- É um gigante teimoso - Drizzt deu de ombros.
O bárbaro esperou até Garra de Palas retornar a sua mão, depois posicionou-se juntamente com o drow para enfrentar Sorrisão.
O gigante permaneceu à porta, para impedir que qualquer um dos adversários o flanqueasse, enquanto Wulfgar e Drizzt avançavam, confiantes. Os três trocaram olhares ameaçadores e alguns golpes leves enquanto mediam uns aos outros.
- Sorrisão, eu presumo - disse Drizzt, com uma reverência.
- O próprio - proclamou o gigante. - Sorrisão! O último inimigo em que 'cês vão botar os olhos!
- Além de teimoso, é confiante - comentou Wulfgar.
- Homenzinho - retorquiu o gigante -, já esborrachei uns cem da sua raçazinha!
- Mais razão ainda para que nós o matemos - declarou Drizzt tranqüilamente.
Com súbita rapidez e ferocidade, algo que surpreendeu seus dois oponentes, Sorrisão brandiu o imenso machado num movimento amplo. Wulfgar deu um passo para trás, colocando-se fora de alcance do golpe fatal, e Drizzt conseguiu abaixar-se a tempo, mas o drow estremeceu ao ver a lâmina do machado arrancar um naco de bom tamanho da parede de pedra.
Wulfgar voltou a investir contra o monstro assim que o machado passou por ele e golpeou com Garra de Palas o peito largo de Sorrisão. O gigante encolheu-se, mas recebeu a pancada.
- Vai ter que me acertar com mais força do que isso, homenzinho! - berrou a criatura ao lançar um poderoso contragolpe com a cabeça chata do machado.
Novamente, Drizzt abaixou-se para escapar ao golpe. Wulfgar, entretanto, cansado como estava dos combates, não se moveu rápido o bastante para recuar e colocar-se fora de alcance. O bárbaro conseguiu erguer Garra de Paias diante de si, mas a força bruta da pesada arma de Sorrisão fez com que ele colidisse violentamente contra a parede. Desmaiou e foi ao chão.
Drizzt sabia que estavam encrencados. Seu braço esquerdo continuava inútil, os reflexos ficavam cada vez mais lentos devido à exaustão, o gigante era simplesmente forte demais e de nada adiantaria tentar bloquear-lhe os golpes. Ele conseguiu fazer passar uma estocada curta da cimitarra enquanto o gigante se recuperava para o próximo golpe e, em seguida, fugiu para o corredor principal.
- Corra, seu cão negro! - berrou o gigante. - Vou ficar no teu calcanhar e vou te pegar! - Sorrisão lançou-se atrás de Drizzt, farejando a presa.
O drow embainhou a cimitarra ao alcançar a passagem principal e procurou um bom lugar para emboscar o monstro. Nada encontrou. Depois, seguiu meio caminho até a saída e aguardou.
- Onde 'cê vai se esconder? - escarneceu Sorrisão, assim que seu corpanzil descomunal entrou no corredor. Pairando nas sombras, o drow atirou as duas facas. Ambas atingiram o alvo, mas Sorrisão mal e mal afrouxou o passo.
Drizzt saiu da caverna. Sabia que, se Sorrisão não o seguisse, ele teria de voltar lá para dentro; certamente não poderia abandonar Wulfgar para morrer. Os primeiros raios da aurora haviam chegado à montanha e a preocupação de Drizzt era a luz crescente arruinar as poucas chances que teria de armar uma emboscada. Trepando numa das pequenas árvores que ocultavam a saída, ele sacou o punhal.
Sorrisão saiu impetuosamente à luz do sol e olhou ao redor, em busca de sinais do drow em fuga.
- 'cê já era, seu cachorro miserável! 'cê não tem pr'onde fugir!
De repente, Drizzt estava sobre o monstro, retalhando-lhe a cara e o pescoço com uma saraivada de punhaladas e golpes cortantes. O gigante uivou de fúria e arremessou violentamente para trás o corpo enorme, fazendo com que Drizzt - incapaz de se agarrar com firmeza devido ao braço enfraquecido - voasse de volta ao túnel. O drow caiu pesadamente sobre o ombro machucado e quase desfaleceu de agonia. Ele se contorceu um instante, tentando ficar novamente de pé, mas topou com uma bota pesada. Sabia que Sorrisão não teria conseguido chegar a ele tão rápido. Virou-se lentamente até ficar de costas, imaginando de onde saíra aquele novo gigante.
Mas a perspectiva do drow alterou-se dramaticamente ao ver Wulfgar de pé ao lado dele, com Garra de Palas firme em suas mãos e um olhar sinistro estampado no rosto. Wulfgar jamais tirou os olhos do gigante enquanto este entrava no túnel.
- Ele é meu - disse impiedosamente o bárbaro.
A aparência de Sorrisão era realmente hedionda. O lado da cabeça atingido pelo martelo estava empastado com sangue escuro e seco, enquanto o outro - e vários pontos da cara e do pescoço - brilhava com o sangue de ferimentos frescos. As duas facas que Drizzt arremessara ainda estavam cravadas no peito do gigante como mórbidas medalhas de honra.
- Vai agüentar mais um? - provocou Wulfgar, arremessando Garra de Palas mais uma vez contra o gigante.
Em resposta, Sorrisão estufou o peito desafiadoramente para bloquear o golpe.
- Agüento tudo o que 'cê tiver aí! - gabou-se ele.
Garra de Palas atingiu o alvo e Sorrisão deu um passo cambaleante para trás. O martelo quebrara-lhe uma ou duas costelas, nada que o gigante não conseguisse suportar.
Entretanto, com conseqüências bem mais letais e sem que Sorrisão percebesse, Garra de Palas impelira uma das facas de Drizzt através do revestimento do coração do gigante.
- Já posso correr - Drizzt murmurou para Wulfgar quando viu o gigante avançar novamente.
- Eu fico - insistiu o bárbaro, sem o menor tremor na voz. Drizzt sacou a cimitarra.
- Belas palavras, meu bravo amigo. Vamos derrubar esse animal imundo: a comida nos espera!
- 'cê vai ver que é mais fácil falar! - retorquiu Sorrisão. Sentiu uma repentina aguilhoada no peito, mas ignorou a dor com um grunhido. - 'cês já deram o que tinham pra dar e eu continuo atacando! 'cês não têm a menor chance!
Tanto Drizzt quanto Wulfgar temeram que as bazófias do gigante fossem mais verdadeiras do que qualquer um deles admitiria. Estavam nas últimas, feridos e fatigados, porém determinados a ficar e a terminar o serviço.
Mas a total confiança do imenso gigante, aproximando-se sempre no mesmo ritmo, era mais do que ligeiramente assustadora.
Sorrisão percebeu que algo estava terrivelmente errado quando chegou a apenas alguns passos dos dois companheiros. Wulfgar e Drizzt também o perceberam, pois o passo do gigante afrouxou-se visivelmente.
O gigante olhou para eles, ultrajado, como se tivesse sido enganado.
- Canalhas! - disse, com voz entrecortada e uma golfada de sangue a irromper de sua boca. - Que truque...
Sorrisão caiu morto sem mais uma palavra.
- Devemos ir atrás do gato? - perguntou Wulfgar quando eles voltaram à porta secreta.
Drizzt envolvia uma tocha com alguns trapos que encontrara.
- Tenha fé na sombra - respondeu. - Guenhwyvar não deixará o verbeeg escapar. Além disso, uma boa refeição espera por mim lá na caverna.
- Vá você - disse Wulfgar. - Ficarei aqui, vigiando, até o gato retornar. Drizzt apertou o ombro do homenzarrão antes de deixá-lo. Eles haviam passado por muita coisa no breve período de tempo em que estiveram juntos, e Drizzt desconfiava que a emoção estava apenas começando. O drow entoava uma canção de banquete enquanto se dirigia à passagem principal, mas apenas para ludibriar Wulfgar, pois a mesa de jantar não seria sua primeira parada. O gigante com quem haviam falado antes fora evasivo quando indagado sobre o que jazia no fim do túnel que lhes restava explorar. E, com tudo o mais que descobriram, Drizzt acreditava que aquilo só poderia significar uma coisa: tesouro.
A grande pantera corria por sobre as pedras fragmentadas e ganhava terreno em relação ao gigante de passos pesados. Não demorou muito e Guenhwyvar já podia ouvir a respiração difícil do verbeeg a cada esforço da criatura para saltar e galgar as rochas. O gigante seguia na direção de Valvertente e da vasta tundra. Mas tão frenética era sua fuga que não trocava a encosta do Sepulcro de Kelvin pelo terreno menos acidentado do vale. Buscava uma rota mais direta, acreditando que aquele seria o caminho mais rápido para a segurança.
Guenhwyvar conhecia a região tão bem quanto seu mestre, sabia onde cada criatura da montanha tinha sua toca. O gato já discernira aonde queria conduzir o gigante. Como um cão pastor, ela cobriu a distância remanescente e arranhou os flancos do gigante, desviando-o na direção de um profundo lago alpestre. O aterrorizado verbeeg, certo de que o letal martelo de guerra ou a célere cimitarra não estavam muito distantes, não ousava deter-se para enfrentar a pantera. Escorregava às cegas pelo caminho que Guenhwyvar escolhera.
Pouco tempo depois, Guenhwyvar separou-se do gigante e passou-lhe à frente. Quando o gato alcançou a margem do lago gelado, inclinou a cabeça e concentrou os sentidos aguçados, esperando avistar algo que pudesse ajudá-lo a completar a tarefa. Foi então que Guenhwyvar percebeu um minúsculo movimento na água, sob as cintilações da luz matutina. Os olhos penetrantes distinguiram a forma alongada que ali jazia imóvel como a morte. Satisfeita com a armadilha já preparada, Guenhwyvar escondeu-se atrás de uma saliência rochosa ali perto e esperou.
O gigante arrastou-se até o lago, respirando com dificuldade. Recostou-se a um matacão por um instante, malgrado seu terror. Tudo parecia suficientemente seguro por ora. Assim que recuperou o fôlego, o gigante olhou rapidamente ao redor, em busca de sinais de seu perseguidor, depois voltou a seguir em frente.
Havia apenas um caminho através do lago, um tronco caído que lhe tomava o centro, e todas as rotas alternativas em torno do lago, embora este não tosse muito largo, serpeavam por vertentes íngremes e rochas protuberantes, Prometendo uma lenta travessia.
O verbeeg experimentou o tronco. Parecia firme e, portanto, o monstro cautelosamente começou a travessia. O gato esperou até o gigante chegar ao centro do lago, depois abandonou impetuosamente o esconderijo e lançou-se contra o verbeeg. O gato caiu com todo o seu peso sobre o gigante surpreso, fincou as patas no peito do monstro e ricocheteou de volta à segurança da margem. Guenhwyvar chapinhou nas águas glaciais, mas escalou a margem rapidamente e saiu do perigoso lago. O gigante, porém, balançou os braços desvairadamente por um instante, tentando manter seu precário equilíbrio, e depois caiu, espalhando água para todos os lados. As águas afluíram para cima e sugaram-no para baixo. Em desespero, o gigante atirou-se a um tronco que flutuava ali por perto, a forma que Guenhwyvar reconhecera pouco antes.
As mãos do verbeeg ainda baixavam quando a forma que ele pensara ser um tronco explodiu num movimento repentino. A serpente aquática de um metro e meio de comprimento lançou-se sobre a presa com rapidez vertiginosa. As espirais implacáveis rapidamente imprensaram os braços do gigante contra o próprio flanco e deram início a seu impiedoso abraço.
Guenhwyvar chacoalhou-se para remover a água enregelante de sua brilhante pelagem negra e olhou mais uma vez para o lago. Quando mais uma volta da monstruosa serpente passou sob o queixo do verbeeg e puxou o monstro indefeso para dentro d'água, a pantera deu a missão por completada. Com um rugido alto e prolongado, proclamando a vitória, Guenhwyvar partiu aos saltos em direção ao covil.