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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTRELA / Danielle Steell
A ESTRELA / Danielle Steell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ESTRELA

Primeira Parte

 

Os pássaros começavam a chamar-se uns aos outros na tranquilidade do amanhecer em Alexander Valley, à medida que o Sol se elevava devagar sobre as colinas, estendendo dedos dourados para o céu que, passados alguns momentos, estava quase púrpura. As folhas das árvores agitaram-se suavemente com a brisa branda enquanto Crystal, de pé sobre a erva húmida, via o céu brilhante explodir em cores tremeluzentes. Durante um breve momento, os pássaros interromperam o seu canto, quase se como também eles admirassem a beleza do vale. Ali havia campos luxuriantes, orlados por colinas suaves onde o gado vagueava, pastando. O rancho do pai dela estendia-se por cerca de duzentos acres, o seu solo fértil dava milho, nozes e uvas e o gado que criavam era a maior fonte de rendimentos. O Rancho Wyatt já dava lucro há duzentos anos, mas Crystal não o adorava por aquilo que ele lhes dava, mas sim pelo que ele era. Parecia estar a conversar em silêncio com espíritos que só ela sabia estarem ali, enquanto via a erva alta a agitar-se suavemente com a brisa, e sentia o calor do Sol no seu cabelo cor de trigo. Começou a cantar docemente. Os seus olhos eram da cor do céu de Verão, os membros longos e graciosos; de repente, começou a correr, calcando a erva húmida com os pés quando se dirigia para o riacho. Sentou-se numa rocha cinzenta lisa, sentindo a água gelada a dançar sobre os seus pés enquanto via a luz do Sol a aproximar-se das rochas. Adorava assistir ao nascer do Sol, adorava correr pêlos campos, adorava estar ali, viva e jovem e livre, em harmonia com as suas raízes e com a natureza. Adorava estar sentada e a cantar nas manhãs calmas, a sua voz rica crescendo em torno de si, mágica até mesmo sem música. Era como se houvesse algo de mágico no facto de ela cantar nessa altura, só com Deus para a escutar.

Havia empregados que se ocupavam do gado e mexicaos que tratavam do milho e das vinhas, mas o pai supervisionava tudo. No entanto, não havia ninguém que amasse tanto a terra como ela, ou o pai Tad Wyatt. O irmão, Jared, ajudava-o após as aulas, mas com apenas dezasseis anos de idade estava mais interessado em levar a carrinha do pai e ir até Napa com os amigos. De carro, levavam cinquenta minutos até Jim Town. Jared era um rapaz bem-parecido, tinha os cabelos escuros do pai e muito jeito para adestrar cavalos. Mas nem ele nem a irmã, Becky, possuíam a beleza lírica de Crystal. Becky casava-se naquele dia, e Crystal sabia que a mãe e a avó já estavam muito ocupadas na cozinha. Ouvira-as quando se esgueirara para ver o nascer do Sol sobre as montanhas. Crystal entrou na corrente, a água batendo-lhe nas ancas, e começou a sentir os pés entorpecidos e os joelhos dormentes. Riu-se alto na manhã de Verão, puxando a fina camisa de dormir de algodão por cima da cabeça e atirando-a para a margem. Sabia que não havia ninguém a observá-la e quedou-se, graciosa, no meio da corrente, não se apercebendo da sua extraordinária beleza, qual jovem Vénus a surgir das águas de Alexander Valley. Vista de longe, parecia mesmo uma mulher, segurando os longos cabelos claros na nuca enquanto as curvas do seu magnífico corpo eram lentamente engolidas pela água gelada. Só os que a conheciam se apercebiam de como era jovem. A um estranho poderia parecer adulta, com dezoito ou vinte anos, o corpo maduro, os olhos enormes e azuis ao olhar para o Sol da manhã e semicerrando-os contente, a sua nudez parecendo esculpida em mármore cor-de-rosa. Mas não era ainda mulher, apenas uma rapariga, contava só quinze anos, embora os fizesse ainda nesse Verão. Riu-se quando se lembrou de que elas deviam andar à sua procura, deviam ter ido ao seu quarto para a acordar, a fim de que as fosse ajudar na cozinha, a fúria da irmã ao ver que ela desaparecera, a avó a cacarejar sem dentes, irritada. Como de costume, fugira-lhes. Era disso que ela mais gostava, fugir das obrigações entediantes e correr livremente pelo rancho, vaguear no meio da erva alta ou pelo bosque durante as chuvas de Inverno, montar sem sela cantando para si própria enquanto corria pelas colinas até aos sítios secretos que descobrira nas longas cavalgadas com o pai. Nascera ali e, um dia, quando fosse muito velha, tão velha como a avó Minerva e ainda mais velha do que isso, morreria ali. Cada centímetro da sua alma amava o rancho e aquele vale. Herdara a paixão do pai pela terra, pelo rico solo castanho, e pelo verde luxuriante que atapetava as colinas na Primavera. Viu um veado ali perto e sorriu. Não havia inimigos nem perigos, nem terrores secretos no mundo de Crystal. Pertencia ali, e nunca duvidara de que ali estava em segurança.

Viu o Sol subir no horizonte e dirigiu-se devagar até à margem, subindo facilmente as rochas com as suas pernas longas. Chegou perto da camisa de dormir e vestiu-a, deixando-a agarrar-se ao corpo molhado e soltando a cabeleira loira. Sabia que estava na hora de regressar, elas já deviam estar furiosas. A mãe já devia ter ido queixar-se ao pai. Na véspera ajudara a fazer vinte e quatro artes de maçã, cozera pão, preparara frangos, ajudara a cozinhar sete presuntos e recheara tomates maduros com manjericão e nozes. Já fizera o seu quinhão, e sabia que nada mais podia fazer a não ser atrapalhar e ouvir Becky a gritar com o irmão. Tinha muito tempo para tomar banho e vestir-se e chegar à igreja às onze. Não precisavam dela, só achavam que sim. Crystal gostava mais de percorrer os campos e banhar-se no riacho ao sol da manhã. O ar já começara a aquecer e a brisa ia ficando cada vez mais fraca. O dia do casamento de Becky adivinhava-se lindo.

Já avistava a casa ao longe quando ouviu a voz da mãe a chamá-la do alpendre junto à cozinha.

—Crysstalll!...

A palavra parecia ecoar em toda a parte e ela riu-se e desatou a correr na direcção da casa, parecendo uma criança de pernas compridas, o cabelo a esvoaçar atrás.

— Crystal!

A avó estava já no alpendre quando ela se aproximou. Minerva trazia o vestido preto que sempre punha quando tinha trabalho importante a fazer na cozinha. Sobre ele colocara um avental branco e uniu os lábios furiosa quando viu Crystal correr na sua direcção, a camisa de algodão húmida colada ao corpo nu. Na rapariga não havia artifícios, apenas aquela estonteante beleza natural de que ela ainda não se apercebia. Na sua mente era ainda uma criança e estava a quilómetros-luz do fardo que era ser mulher.


— Crystal, olha para ti! A tua camisa de dormir está transparente! Já não és uma criança. E se os homens te vêem?

—É sábado, avó... não está cá ninguém. Dirigiu um sorriso para o velho rosto gasto pelo tempo sem revelar atrapalhação nem arrependimento.

— Devias ter vergonha, e devias estar lá dentro a preparar-te para o casamento da tua irmã — murmurou ela em tom desaprovador enquanto limpava as mãos ao avental. — A correr para aí como um animal ao nascer do Sol! Há trabalho para fazer, Crystal Wyatt. Vai já lá para dentro ajudar a tua mãe.

Crystal sorriu, correu à volta do alpendre para entrar pela janela do quarto enquanto a avó batia com a porta de rede e regressava à cozinha para ajudar a filha.

Crystal cou no meio do quarto durante algum tempo, cantarolando enquanto despia a camisa de noite e a atirava para um canto. Depois olhou para o vestido que levaria ao casamento de Becky. Era um vestido simples de algodão branco, com mangas tufadas e gola bordada. Fora a mãe que o fizera, o mais simples que pudera, sem folhos, sem adornos que realçassem a sua já grande beleza. Parecia o vestido de uma criança, mas Crystal não se importava. Depois poderia usá-lo quando fosse à missa. Tinham-lhe comprado sapatos brancos em Napa, e o pai trouxera-lhe uns collants brancos de São Francisco. A avó também resmungara ao vê-los e a mãe dissera que ela era muito nova para os usar.

— Ela ainda é uma criança Tad. — Olivia nunca gostara que ele mimasse a filha mais nova. Ele estava sempre a trazer-lhe presentes, ou roupa de Napa ou São Francisco.

— Assim ela sente que é especial. — Crystal era a filha que ele adorava desde que nascera, e o seu coração doía sempre que a via. Enquanto bebé Crystal tivera cabelo quase branco e uns olhos que o olhavam de uma maneira muito profunda, como se tivesse algo a dizer-lhe, e só a ele. Fora um bebé que nascera com sonhos nos olhos, e uma qualidade mágica que fazia com que as pessoas parassem e a contemplassem. Sempre haviam contemplado Crystal. As pessoas eram atraídas para ela, para uma qualidade interior, bem como para a sua beleza. Não era parecida com ninguém da família, era única, e era a música no coração do pai. Fora ele quem a baptizara assim que a vira aninhada nos braços de Olivia pouco depois de ter nascido. Luminosa e perfeita. Cristalina. O nome adequava-se-lhe na perfeição, os olhos claros e brilhantes e o cabelo loiro macio. Até as crianças que tinham brincado com ela sabiam que era especial, diferente de uma forma intangível. Era mais livre, mais alegre e feliz do que elas, nunca submetida às limitações que os outros lhe haviam imposto, outros como a mãe nervosa, sempre a queixar-se, ou a menos bonita irmã mais velha, ou o irmão, que implacavelmente a atormetava, ou até a avó carrancuda que fora viver com eles quando Crystal tinha sete anos, depois de o avô Hodges ter morrido no Arizona. Só o pai parecia compreendê-la, só ele sabia como ela era extraordinária, como um pássaro raro que era preciso deixar voar de vez em quando, pairando lá no alto sobre o vulgar e o mundano. Ela era uma criatura que lhe fora entregue directamente das mãos de Deus, e ele sempre infrigira as regras por ela, dava-lhe pequenos presentes, abria-lhe excepções, para desagrado dos outros.

— Crystal! — Era a voz aguda da mãe à porta do quarto que Crystal partilhara com Becky durante quase quine anos. A porta abriu-se antes de ela ter tido tempo de responder, e Olivia Wyatt ficou a olhar para ela com uma reprovação nervosa: — Porque é que estás aí parada?

Ela era bela e estava nua, e Olivia não gostava de ver isso. Não gostava de pensar nela dessa forma, já a caminhar para o estado de mulher adulta, mas ainda a mirar com olhos inocentes de criança a mãe no vestido de seda azul que ia levar ao casamento de Becky. Cobrira-o com um avental branco, como zera a avó Minerva.

— Tapa-te! O teu pai e o teu irmão já se levantaram! Olhou muito séria para Crystal e fechou a porta atrás de si, como se eles estivessem lá fora à espera de ver o corpo nu de Crystal. Na realidade, o pai tê-la-ia admirado, surpreendido por a ver já como uma mulher, e Jared teria, como sempre, ficado indiferente à beleza da irmã.

— Oh, mãezinha... — Sabia como a mãe teria ficado furiosa se a tivesse visto nua no riacho, momentos antes. — Eles não vão entrar aqui. — Sorriu e encolheu os ombros com inocência, enquanto a mãe resmungava.

— Não sabes que há trabalho a fazer? A tua irmã precisa de ajuda com o vestido. A avó precisa de ajuda para trinchar o peru e cortar os presuntos. Nunca fazes nada de útil, Crystal Wyatt? — Ambas sabiam que fazia, mas raramente para as mulheres da casa e sempre para o pai. Ela preferia andar de tractor com ele, ou ajudá-lo a juntar o gado quando havia poucos homens. Trabalhava de forma incansável sob tempestades violentas, recolhendo os bezerros tresmalhados, e sabia como lidar com todos os animais. Mas isso nada significava para a mãe. — Veste-te. — E depois, olhando para o vestido branco pendurado na porta do roupeiro, acrescentou: — Põe o vestido de chita até ires para a igreja. Vais sujar-te toda a ajudar a tua avó.

Enquanto a mãe a observava Crystal vestiu a roupa interior e o velho vestido azul de chita. Durante momentos, voltou a parecer uma criança, mas as suas formas de mulher já não podiam ser ocultadas, nem sequer pela chita desbotada. Ainda não o tinha abotoado quando a porta se abriu e Becky irrompeu pelo quarto, a tagarelar muito nervosa e a fazer queixa do irmão. Tinha cabelos castanhos como a mãe, e olhos afastados. O rosto era vulgar mas atraente, o corpo esbelto e comprido como o de Crystal, mas nas suas formas não havia nada de extraordinário. A sua voz soava muito aguda enquanto informava Olivia que Jared encharcara todas as toalhas da única casa de banho do rancho.

— Nem sequer consigo secar o meu cabelo como deve ser. É todos os dias a mesma coisa, mãezinha! Sei que ele faz de propósito!

Crystal observou-a em silêncio, quase como se nunca a tivesse visto. Depois de viverem juntas durante quase quinze anos, as duas raparigas eram mais estranhas do que irmãs. Rebecca era parecida com a mãe, o cabelo e os olhos castanhos, os nervos, os queixumes constantes. Ia casar com o rapaz por quem se apaixonara quando tinha a idade de Crystal, e esperara por ele durante a guerra. Passava exactamente um ano desde que ele viera do Japão, e iam casar-se. E, com dezoito anos, ela ainda era virgem.

— Odeio-o, maezinha! Odeio-o!

Estava a referir-se ao irmão, e o comprido cabelo castanho agitava-se molhado nas suas costas, as lágrimas bailavam-lhe nos olhos enquanto olhava irada para a mãe e para a irmã, repreendendo Jared.

— Bem, a partir de hoje já não tens de viver com ele. A mãe sorriu. Haviam tido uma longa conversa no dia anterior, enquanto passeavam calmamente junto ao celeiro, e a mãe explicara-lhe o que Tom esperava dela na noite de núpcias em Mendocino. Becky já ouvira as amigas falarem daquele assunto: muitas delas haviam-se casado poucos meses após o regresso dos namorados do Pacífico. Mas Tom quisera arranjar emprego primeiro, e o pai de Becky insistira para que ela acabasse o liceu. Terminara-o havia cinco semanas, e agora, dia soalheiro de finais de Julho, os seus sonhos iriam tornar-se realidade. Iria ser a Sra. Thomas Parker. Parecia uma coisa muito adulta e bastante assustadora. E, secretamente, Crystal perguntava-se porque iria a irmã casar com ele. Com Tom, Becky nunca iria para além de Booneville. A sua vida começaria e terminaria ali, no rancho onde tinham crescido. Ela também adorava o rancho, mais ainda do que os outros, e queria instalar-se ali depois de ter visto um bocado do mundo. Sonhava com outros sítios, outras coisas, outras pessoas que não aquelas junto de quem crescera. Queria ver mais do mundo do que o pedaço de terra que ia até às montanhas Mayacama. Na parede do quarto de Crystal havia fotografias de estrelas de cinema Greta Garbo e Betty Grable, Vivien Leigh e dark Gable. Também havia fotografias de Hollywood e São Francisco e Nova Iorque, e uma vez o pai mostrara-lhe um postal de Paris. Às vezes sonhava em ir para Hollywood e tornar-se uma estrela de cinema. Sonhava em ir a locais místicos, como aqueles de que conversava com o pai. Sabia que eram apenas sonhos, mas gostava de pensar neles. E tinha a certeza absoluta que desejava mais do que uma vida presa a um homem como Tom Parker. O pai dela oferecera-lhe um lugar no rancho porque o rapaz não conseguira emprego noutro lado. Saíra do liceu para se alistar, a seguir a Pearl Harbour. E Becky esperara pacientemente, escrevendo-lhe todas as semanas e às vezes esperando meses pelas suas cartas. Ele parecera tão adulto quando regressara, tão cheio de histórias sobre a guerra. Com vinte e um anos, era um homem, ou pelo menos Becky assim pensava. E agora, um ano depois, ele iria ser seu marido.

— Porque é que não estás vestida? — De repente, Becky virou-se para a irmã, descalça com o vestido azul de chita que a mãe lhe mandara vestir. — Já devias estar vestida! — Eram sete da manhã, e só iriam para a igreja às dez e meia.

— A mãezinha quer que eu ajude a avó na cozinha — respondeu Crystal numa voz calma, tão diferente da de Olivia e da de Becky, uma voz sob a qual quase conseguíamos ouvir a sensualidade rouca do seu canto. As canções eram inocentes, mas a voz que as cantava estava cheia de paixão instintiva. Becky atirou a sua toalha molhada para cima da cama que tinham partilhado e que ainda não estava feita porque Crystal fugira para os campos para ver nascer o Sol. — Como é que me posso vestir aqui, nesta confusão?

— Faz a cama Crystal — ordenou a mãe, muito sisuda, indo ajudar Becky a pentear-se. Fora ela quem fizera o véu que a filha iria usar, com uma pequena coroa de cetim branco cheia de minúsculas pérolas brancas e metros de rijo tule branco que comprara em Santa Rosa.

Crystal alisou os lençóis e puxou a pesada colcha que a mãe lhes zera havia alguns anos. Olivia confeccionara outra para Becky, como prenda de casamento. Já fora levada para a pequena casa que iria ser o seu lar, no rancho, e o pai iria deixar Becky e Tom viver ali até terem dinheiro para comprar outra casa. Olivia gostava da ideia de ter Becky perto de si, e Tom ficara aliviado por não ter de alugar uma casa, o que era difícil com aquilo que ganhava. Parecia a Crystal que Becky não se ia embora. Iria viver a menos de um quilómetro, junto ao caminho de terra que ela tantas vezes percorria com o pai no tractor.

Olivia ia penteando cuidadosamente o cabelo de Becky enquanto as duas mulheres conversavam sobre Cliff Johnson e a sua mulher francesa. Ele trouxera-a para casa depois da guerra, e Becky interrogara-se sobre se haveria ou não de os convidar para o casamento.

— Ela não é tão má corno isso — concedeu Olivia pela primeira vez ao fim de um ano, enquanto Crystal as observava em silêncio. Muitas vezes sentira-se a mais junto delas:

sempre a haviam mantido fora das suas conversas. Perguntava-se se agora, que Becky se ia embora, a mãe lhe prestaria mais atenção e ouviria o que ela tinha para dizer, ou se passaria todo o seu tempo livre em casa de Becky. — Deu-te um lindo bordado, disse que fora da avó dela em França. Um dia podes fazer qualquer coisa bonita com ele. — Eram as primeiras palavras amáveis que alguém dizia sobre Mireille desde que ela chegara, no ano anterior. Não era uma rapariga bonita, mas irradiava simpatia e tentara desesperadamente integrar-se, apesar da resistência inicial de todos os amigos e vizinhos de Cliff. Já havia muitas raparigas em casa à espera que os rapazes regressassem da guerra, não era preciso trazer estrangeiras. Mas pelo menos era branca. Não era como a rapariga que Boyd Webster trouxera do Japão. Fora uma desgraça de que a família dele nunca recuperaria. Nunca. E Becky lutara para não convidar Boyd e a mulher para o casamento. Chorara, gritara, enfurecera-se e até implorara. Mas Tom insistira, dizendo que Boyd era o seu melhor amigo, que tinham sobrevivido lado a lado na guerra durante quatro anos, e ainda que ele tivesse feito uma grande estupidez ao casar com a rapariga não iria deixar de convidá-lo para o seu casamento. Aliás, até convidara Boyd para ser o seu padrinho, o que deixara Becky ainda mais furiosa. Mas no fim ela tivera de ceder. Tom Parker era ainda mais teimoso do que ela. Iria ser embaraçoso ter Hiroko ali, e uma pessoa não se podia esquecer daquilo que ela era, com aqueles olhos em bico e cabelo preto brilhante. Ao olhar para ela, todos se lembravam dos jovens que tinham morrido no Pacífico. Era uma desgraça, uma grande desgraça. Tom também não gostava dela, mas Boyd era seu amigo, seu compincha, e ele era-lhe leal. Boyd já pagara o seu preço por ter casado com ela. Ninguém lhe dera emprego quando regressara, e todas as portas da cidade se haviam fechado na sua cara. Finalmente, o velho Sr. Petersen tivera pena dele e empregara-o na bomba da gasolina, o que era uma lástima, pois Boyd era demasiado inteligente para ficar preso àquele trabalho. Antes da guerra tencionara ir para a faculdade, mas agora isso era impossível. Tinha de trabalhar para se sustentar e para sustentar Hiroko. Todos achavam que eles iriam acabar por se sentir desencorajados e por ir viver para outro lado. Pelo menos era o que se esperava. Mas, à sua maneira, Boyd amava tanto o vale como Tad Wyatt e Crystal.

Crystal sentira-se fascinada pela bela e pequena esposa japonesa de Boyd quando ela chegara. Os modos suaves e delicados de Hiroko, a sua fala hesitante, a sua educação e inglês cuidadoso atraíram Crystal como um íman. Mas Olivia não permitia que Crystal falasse com ela, e até o pai achava melhor manter-se afastado deles. Havia coisas de que era melhor não nos aproximarmos, e os Webster contavam-se entre elas.

— O que é que estás a fazer aí especada a olhar para a tua irmã? — Olivia reparou que Crystal as observava, e de repente lembrou-se que ela estava ali. — Disse-te há meia hora que fosses ajudar a tua avó na cozinha.

Sem uma palavra Crystal saiu do quarto, descalça, enquanto Becky tagarelava muito nervosa sobre o casamento. Quando chegou à cozinha, já lá estavam três mulheres, que tinham vindo de ranchos e quintas vizinhas para ajudar. O casamento de Becky iria ser o acontecimento do ano e o primeiro do Verão. Os amigos e vizinhos viriam de muitos quilómetros de distância. Esperavam-se duzentos convidados, e as mulheres trabalhavam afanosamente para ultimar o grandioso almoço que serviriam depois da cerimónia religiosa.

— Onde é que tens andado, menina? — perguntou a avó, apontando de imediato para um enorme presunto. Era costume matarem os seus porcos e curarem o presunto. Tudo o que iriam servir era caseiro, até o vinho.

Crystal meteu mãos ao trabalho sem proferir palavra, e passado momentos sentiu uma palmada no traseiro.

— Que lindo vestido, mana! Foi o pai que to rouxe de São Francisco?

Era Jared, como não podia deixar de ser, mirando-a da sua altura avantajada. Com dezasseis anos de idade, estava sempre ansioso por escarnecer e atormentar. Vestia umas calças novas que já lhe estavam um pouco curtas, e uma camisa branca que a avó engomara até poder aguentar-se de pé. Mas ainda estava descalço, trazia os sapatos na mão e tinha o casaco novo e a gravata sobre o ombro. Ele e Becky haviam sido como cão e gato durante muitos anos, mas no último ano Crystal tornara-se o centro das suas atenções. Serviu-se de uma suculenta fatia de presunto e Crystal deu-lhe uma palmada nos dedos.

— Corto-tos se não tiveres cuidado! — exclamou ela, acenando-lhe com a faca, já um pouco irritada. Ele estava sempre a aborrecê-la. Adorava provocá-la, gozá-la e aborrecê-la. Mais do que uma vez atormentara-a ao ponto de ela tentar dar-lhe um empurrão, que ele evitava com toda a facilidade, e depois dava-lhe umas pancadinhas pouco suaves nas orelhas por ter tentado.

— Afasta-te de mim... vai chatear outro Jar. — Muitas vezes chamava-lhe «Cabeça de Jarro». — Porque é que não está a ajudar?

— Tenho coisas mais interessantes para fazer. Vou ajudar o pai a tirar o vinho da adega.

— Pois... aposto que sim — rosnou ela. Já o vira bêbedo com os amigos, mas teria preferido morrer a fazer queixa dele ao pai. Embora andassem sempre às turras, havia ainda um forte laço entre ambos. — Vê lá se deixas alguma coisa para os convidados.

— Vê lá se te lembras de te calçares.

Ele tornou a dar-lhe uma palmada no traseiro, e Crystal largou a faca e tentou agarrar-lhe no braço, mas era demasiado tarde, pois ele já saíra da cozinha em direcção ao quarto, a assobiar. Parou à porta do quarto de Becky e espreitou lá para dentro quando ela estava apenas com o soutien e as cuecas a ajeitar o cinto-de-ligas.

— Olá, miúda... Uau! — Emitiu um longo assobio de apreciação e Becky lançou um grito muito agudo.

— Sai já daqui!

Atirou-lhe com a escova, mas ele fechou a porta antes de ela lhe acertar. Eram sons familiares na velha casa do rancho e na cozinha ninguém lhes prestou atenção. Tad Wyatt entrou, já com o fato azul-escuro do casamento. Tinha um ar sólido, caloroso e distinto. A sua família já tivera dinheiro, e muito, mas perdera tudo havia muitos anos, nos anos ainda antes da Depressão de 1929. Tinham vendido milhares de acres de terra, e ele conseguira transformar o rancho e torná-lo de novo lucrativo com o suor do seu rosto e Olivia ao lado. Mas já vira um bocado do mundo antes de casar com ela. Às vezes, falava dele a Crystal, quando iam dar os seus longos passeios, se abrigavam durante uma grande chuvada ou quando esperava que uma vaca parisse durante o Inverno. Partilhava com ela coisas já há muito enterradas e quase esquecidas.

— Há um mundo muito grande lá fora, minha menina... com vários sítios bonitos... não muito melhores do que este... mas que mesmo assim merecem ser vistos.

Falara-lhe de sítios como Nova Orleães e Nova Iorque e até mesmo Inglaterra. E quando Olivia o ouvia, resmungava por ele encher a cabeça de Crystal com disparates. A própria Olivia nunca fora mais longe do que o Sudoeste, e até aquilo lhe parecera estranho. Os seus dois lhos mais velhos tinham a mesma visão do mundo. O vale era suficiente, e todas as pessoas que nele moravam. Apenas Crystal sonhava com algo mais, e perguntava-se se alguma vez o veria. Também amava o vale, mas no seu coração havia lugar para mais. Tal como o pai, amava loucamente aquela terra, mas adorava sonhar com sítios distantes.

— Como é que está a minha menina? — perguntou Tad Wyatt ao entrar, olhando orgulhoso para a filha mais nova. Até ali, na cozinha cheia de mulheres, a visão de Crystal enchia-lhe o coração, a sua beleza roubava-lhe o fôlego e era-lhe impossível escondê-lo. Sentia-se grato por aquele não ser o dia do casamento dela. Sabia que não o iria suportar. E não a teria deixado casar com um homem como Tom Parker. Mas ele servia para Becky. Becky não tinha sonhos... não havia estrelas nos céus secretos do seu coração... não tinha visões secretas. Queria um marido, filhos, uma casa no rancho e um marido vulgar como Tom, sem ambição e com poucos sonhos, e era isso que ela iria ter.

— Olá, paizinho. — Crystal olhou-o nos olhos com um sorriso suave e sem palavras: o amor que sentiam um pelo outro dizia tudo.

— A mãezinha fez-te um vestido bonito para o dia de hoje? — Estava sempre a querer que Olivia lhos fizesse. Sorriu, ao lembrar-se dos collants que dera a Crystal para ela usar no casamento, apesar de Olivia pensar que ele tinha agido mal.

Crystal assentiu em silêncio. Era bonito. Mas nada comparado com o que se via nos filmes. Era apenas um vestido. Um vestido branco, bonito. Os collants de nlon, invisíveis e excitantes, iriam ser o melhor da sua indumentária. Mas Tad sabia que ela ficaria bonita com qualquer trapinho.

— Onde está a mãe? — Ele olhou em volta, vendo apenas a sogra, três amigas da mulher e Crystal.

— A ajudar a Becky a vestir-se.

— Tão cedo? Já estará toda amarrotada antes de chegarmos à igreja. — Trocaram um sorriso, o dia já estava quente e a cozinha parecia largar vapor. — Onde é que está o Jared? Há uma hora que ando à procura dele. — Mas parecia bem-

-humorado quando proferiu estas palavras, não se aborrecia com facilidade. Sempre fora paciente para com os três filhos.

— Ele disse que o ia ajudar com o vinho — informou Crystal co um sorriso ao olhar de novo nos olhos do pai. Ofereceu-lhe uma fatia do presunto que ainda há pouco não quisera dar ao irmão.

— Ajudar-me a bebê-lo, com certeza.

Riram-se ambos e ele saiu da cozinha em direcção ao quarto de Jared. A paixão dele eram os carros e não os ranchos, e o pai sabia disso. A única pessoa que amava o rancho, que o compreendia, que amava a terra como ele era Crystal. Passou pelo quarto onde Becky se estava a vestir com a ajuda da mãe e bateu à porta do quarto do filho.

— Anda ajudar-me a juntar as mesas, filho. Ainda há trabalho para fazer lá fora. — Haviam disposto várias mesas, cobertas por toalhas de linho que haviam ficado do casamento da sua mãe, havia meio século. Os convidados iriam ficar à sombra das enormes árvores que rodeavam a casa.

Tad Wyatt enfiou a cabeça no quaro do filho e deparou-se-lhe ele em cima da cama a olhar para uma revista cheia de fotografias de mulheres.

— Posso interromper o que estás a fazer o tempo suciente para me dares uma mãozinha?

Jared levantou-se de um salto com um sorriso nervoso, a gravata de lado e o cabelo puxado para trás com um tónico que comprara em Napa.

— Claro, pai. Desculpe.

Tad teve o cuidado de não desmanchar o penteado cuidado do lho e colocou um braço forte sobre os seus ombros. Parecia-lhe estranho que um deles fosse casar-se tão depressa. Para ele, os filhos eram ainda crianças... lembrava-se de Jared a aprender a andar... e a correr atrás das galinhas... e a cair do tractor quando tinha quatro anos... de ensiná-lo a conduzir quando tinha sete anos... de caçar com ele quando o filho pouco mais alto era do que a carabina... e Becky, apenas pouco mais velha que ele, ia já casar-se.

— Está um belo dia para o casamento da tua irmã. Olhou para o céu e sorriu para o filho, enquanto indicava a Jared e a três empregados onde deviam colocar as mesas. Demorou uma hora até tudo estar ao seu gosto, e quando voltou à cozinha para uma bebida fresca com Jared, Crystal já desaparecera e não havia sinal das outras mulheres. Estavam todas no quarto de Becky e de Crystal, a elogiar o vestido, a suspirarem e a limparem os olhos ao verem Becky já pronta em todo o seu esplendor. Era uma noiva bonita, tal como a maioria das raparigas, e as mulheres aglomeraram-se em seu redor, desejando-lhe boa sorte, fazendo comentários velados sobre a noite de núpcias até ela corar e sé virar para ver Crystal a vestir-se em silêncio a um canto. O vestido não era nada de especial, mas a sua simplicidade parecia realçar ainda mais a beleza dela. Os collants já estavam no lugar, e os sapatos brancos rasos não a faziam mais alta. Crystal estava a um canto em silêncio quando as outras se viraram para ela, com o seu feixe de cabelos louros, um pequeno halo de gipsofilas e rosas brancas: quase parecia um anjo. Comparativamente, Becky parecia estar demasiado vestida, demasiado arranjada e muito menos bela. Crystal parecia estar parada num raro momento entre a infância e o estado adulto; nela não havia artifícios, nada rude, nada agudo, apenas a suavidade subtil da sua extraordinária beleza.

— Bem... a Crystal está muito bonita — disse uma das mulheres, como se com palavras vulgares a pudessem tornarenos bela, mas isso não era possível. Crystal era aquilo que era e nada podia mudar isso, nem sequer o vestido branco simples que vestia. Ao olhar para ela, esquecia-se tudo menos a graciosidade com que ela se movia e o belíssimo rosto sob o halo de inocentes flores brancas. Becky também levava rosas brancas, e as mulheres que estavam no quarto tiveram de se obrigar a olhar para trás e soltar exclamações. Mas ninguém o podia negar: Crystal era a mais bela.

— É melhor irmos andando — disse finalmente Olivia, conduzindo as mulheres lá para fora onde o marido e Jared já as esperavam. Iam em carros diferentes para a igreja. A cerimónia do casamento iria ser breve e pouco concorrida:

os amigos haviam sido convidados para o almoço que se seguia, mas muito poucos para a cerimónia religiosa.

Tad observou as mulheres quando elas desceram as escadas do alpendre, a falar e a rir como adolescentes. Aquilo fê-lo recordar-se do seu próprio casamento. Olivia estivera muito bonita no vestido de noiva da mãe, mas tudo parecia já muito distante. Agora parecia muito cansada e gasta e diferente. A vida não fora fácil para eles, a depressão fora especialmente difícil, mas já tudo passara. O rancho estava a ir bem, os filhos eram quase adultos, estavam em segurança e felizes no seu pequeno mundo confortável naquele pequeno e remoto vale. De repente, susteve a respiraço quando Becky apareceu no alpendre, com um ar tímido e orgulhoso, o véu ocultando-lhe o rosto, o bouquet de rosas nas mãos trémulas. Estava muito bonita e as lágrimas vieram-lhe aos olhos quando a viu.

— Não parece um quadro, Tad? — murmurou Olivia orgulhosa, agradada com o efeito que a filha mais velha provocara nele. Já há muitos anos que tentava que Becky ocupasse um lugar mais especial junto dele, mas fora sempre Crystal quem lhe enchera o coração... Crystal... com os seus modos selvagens e graça desenvolta a correr atrás dele. Mas finalmente Becky conseguira o que a mãe tanto desejara.

— Estás muito bonita, minha querida. — Tad beijou levemente a filha, sentindo o véu entre os seus lábios e a face dela, e apertou-lhe a mão enquanto ambos tentavam reprimir as lágrimas. Depois o momento passou e apressaram-se para os carros, a fim de se dirigirem à igreja onde ela iria tornar-se a Sra. Thomas Parker. Era um grande dia para todos, especialmente para Becky, e quando ele contornava o carro para se sentar ao volante parou de repente, sentindo o mesmo aperto no coração que sentira da primeira vez que a vira. Muito tímida como uma corça no vestido branco simples, hesitante, tímida, o sol a brilhar-lhe no cabelo, os olhos da mesma cor do céu, ali estava Crystal a olhar para ele. Ela também se deteve por um momento e sorriram ambos. Tad sorriu para a filha mais nova enquanto ela entrava no carro em que Jared iria levar a avó, e com um gesto selvagem ela atirou-lhe uma das rosas; ele apanhou-a com uma gargalhada. Era o dia de Becky, não precisava que Olivia lho recordasse, Crystal era quem era. E era tudo para ele. Era a mais rara das raras. Era simplesmente... Crystal.

 

A cerimónia foi simples e agradável e o noivo e a noiva trocaram votos na pequena igreja branca de Jim Town. Becky estava bonita e orgulhosa no vestido que a mãe lhe fizera e Tom parecia nervoso e muito jovem no fato azul novo que comprara para o casamento. Boyd Webster era o padrinho, com o seu cabelo acobreado e um rosto cheio de sardas. E Tad, ao observá-los do banco da frente, reparou como todos eram jovens, pouco mais velhos do que crianças.

Crystal era a única dama de honor da irmã. Colocara-se a um lado, olhando muito tímida para Boyd, esforçando-se por não observar com ar curioso a mulher dele sentada na última fila. Hiroko levava um vestido de seda verde muito simples, um colar de pérolas e sapatos pretos. Esforçava-se para parecer o mais ocidental possível, embora Boyd tivesse querido que ela levasse um quimono. No casamento de ambos no Japão, ela levara um, e parecera uma boneca com o tradicional kanzashi no cabelo, um punhal de ouro e a pequena bolsa brocada cheia de moedas presa ao obi de ouro. Mas tudo isso já estava esquecido e a família mais chegada de Becky e os amigos viram-na tornar-se mulher de Tom. Ele beijou a noiva, Jared deu vivas e Olivia limpou os olhos ao lenço bordado que levara ao seu casamento. Tudo correra na perfeição, e ficaram no adro durante algum tempo, a falar com a família e os amigos e a admirar Becky. O padrinho deu uma palmada nas costas de Tom, que estava radiante, e todos apertaram as mãos, beijaram-se e disseram ter gostado da cerimónia simples. Jared atirou-lhes um punhado de arroz quando entraram nos carros e depois seguiram em fila, de volta ao Rancho Wyatt para o almoço cuidadosamente preparado por Olivia, Minerva e vizinhas ao longo de vários dias.

Assim que chegaram a casa, Olivia foi até à cozinha dar instruções aos empregados do rancho, para que levassem as travessas e os tabuleiros lá para fora. As mulheres deles haviam sido contratadas para ajudar a servir e a limpar tudo depois, e as mesas repletas de comida pareciam não ter fim: perus e frangos, carne de vaca assada, costeletas e presuntos, feijão-frade e batatas-doces, legumes e saladas, galantinas e ovos à Ia diable, bolachinhas, doces e tartes de fruta e um enorme bolo de noiva numa mesa à parte. Parecia comida suficiente para um exército. Tad ajudou os homens a abrir o vinho e Tom sorria para a mulher, com Boyd sorrindo também muito tímido ao lado deles. Boyd era um rapaz bem-parecido com um coração aberto e olhos meigos e sempre gostara muito dos Wyatt. A sua irmã, Ginny, andara na escola com Becky, e ele recordava-se de Jared e de Crystal ainda bebés, embora fosse pouco mais velho que eles. Mas com vinte e dois anos, com quatro anos de guerra vividos, sentia-se muitíssimo mais velho.

— Bem, Tom, conseguiste. Qual é a sensação de estar casado? — Boyd Webster dirigiu um sorriso aberto ao amigo enquanto Tom olhava em volta sem esconder a sua alegria. Casar com alguém da família Wyatt fora uma subida no mundo de Tom Parker. Estava ansioso por viver no rancho e partilhar os seus lucros, se não directamente, pelo menos no estilo de vida. Tad andava a ensiná-lo há meses, falando-lhe do milho, do gado e das vinhas. As nogueiras eram o que menos lucro dava no rancho, mas até mesmo isso não era de desprezar. E na época das nozes, toda a gente do rancho ajudava até terem os dedos manchados de apanhar e descascar as nozes. Mas durante os primeiros meses Tom iria ajudar o sogro nas vinhas.

— Pois, aposto que vais — brincou um dos amigos de Tom sobre os pratos repletos de presunto e peru. — Prova de vinhos, não é o que chamam a isso Tom?

O noivo deu uma gargalhada, os olhos demasiado brilhantes, e Becky riu-se no centro do grupo de raparigas com quem tinha crescido. A maior parte delas também já estava casada. Com o m da guerra, os rapazes regressaram ao lar, as raparigas terminaram o liceu, e no último ano houvera dezenas de casamentos no vale. Algumas das raparigas já tinham filhos. E já estavam a brincar com o facto de Becky ir engravidar.

—Não há-de demorar muito, Becky Wyatt... espera só... mais um ou dois meses, e estarás à espera de um lho!

As raparigas riram-se, e continuavam a chegar carros com os vizinhos; vestiam a sua melhor roupa; repreendiam os filhos e mandavam-nos portar-se bem e não rasgarem as roupas em correrias com os amigos em volta das mesas. Uma hora depois, havia duzentos convidados instalados à mesa e cerca de cem crianças, os pequenos junto das pernas das mães, com medo de se afastarem demasiado, os bebés ao colo, alguns rapazinhos às cavalitas dos pais a alguma distância das mesas postas com todo o cuidado, uma enorme multidão de crianças a correrem e a brincarem à apanhada, tendo já esquecido as palavras de aviso dos pais. Os rapazes corriam uns atrás dos outros à volta das árvores, enquanto alguns mais aventureiros as trepavam, e as raparigas aglomeravam-se em grandes grupos, segredando, falando e rindo, algumas a andarem no baloiço que Tad construíra há muitos anos para os filhos. De vez em quando, juntavam-se aos pais, mas no geral cada um dos grupos limitava-se a ignorar o outro, os pais calculando que os filhos estavam em segurança ali perto e os lhos satisfeitos por os pais estarem demasiado divertidos para se preocupar com o que os seus rebentos faziam.

E, como sempre Crystal estava na extremidade dos grupos mais jovens, quase esquecida, exceptuando um ocasional olhar de inveja ou admiração. As raparigas olhavam-na sempre com cautela, e os rapazes, nos últimos anos, começavam a sentir-se fascinados por ela, embora por vezes o expressassem de forma estranha, dando-lhe encontrões, puxando-lhe o longo cabelo loiro, fingindo dar-lhe murros, empurrando-a, ou fazendo alguma proeza física para lhe chamar a atenção, sem nunca falarem com ela. E as raparigas tentavam não lhe dirigir a palavra. A beleza dela tornava-a muito ameaçadora. Era posta à margem sem perceber porquê. Aquele era o preço que pagava pela sua beleza. Aceitava a forma como era tratada como uma coisa natural, mas não a compreendia. Às vezes, quando os rapazes a empurravam e ela se sentia corajosa, empurrava-os também, batia-lhes, ou passava-lhes rasteiras quando a aborreciam. Era a única forma de comunicar com eles. E durante o resto do tempo ignoravam-na. Conhecia-os a todos desde que tinham nascido, mas nos últimos anos era como se se tivesse transformado numa estranha. As crianças apercebiam-se tanto como os pais da sua beleza arrebatadora. Mas ninguém sabia como lidar com essa beleza. Eram pessoas simples e parecia que nos últimos dois anos ela se transformara em alguém diferente. Depois de quatro anos afastados, os rapazes que voltaram da guerra foram os que mais deram pela mudança e ficaram chocados com o que acontecera a Crystal. Sempre bonita enquanto criança, com dez anos nada nela sugerira a força da sua beleza como mulher. Mas parte do seu encanto era o facto de ela ainda não se aperceber do efeito que provocava nos homens à sua volta, e continuava a ser tão paciente e bem-humorada como em criança. Quando muito, tornara-se mais tímida, porque sabia que o efeito que provocava nos outros se alterara subtilmente, mas não sabia porquê. Só o irmão continuava a tratá-la da mesma forma, com um afecto rude. .Mas a inconsciência que tinha da sua beleza tornava-a ainda mais sensual, facto de que o pai já se apercebera, tendo-lhe ordenado havia dois anos que deixasse de andar por perto dos trabalhadores do rancho. Tad sabia exactamente o que eles pensavam, e porquê, e não desejava que Crystal, sem se aperceber fizesse algo que os provocasse. A sua delicadeza e o seu modo silencioso de andar no meio deles era mais excitante do que passar por eles nua.

Contudo, agora Tad não estava preocupado com ela, e falava com os amigos de política, de desporto, da má-língua local e do preço das uvas. Era um dia feliz para todos: os seus amigos comiam, falavam e riam-se, as crianças brincavam por perto e Crystal observava-os.

Hiroko também se achava um pouco afastada, à sombra de uma árvore, silenciosa e sozinha, os olhos nunca abandonando o marido. Boyd estava a falar com Tom num círculo de amigos, recordando episódios da guerra. Era difícil acreditar que terminara há menos de um ano. Agora parecia-lhes uma coisa que se passara há uma eternidade, com os seus medos e excitações, os amigos que tinham feito e aqueles que haviam perdido. Só restava Hiroko, como uma lembrança viva do local onde tinham estado e do que ainda se recordavam. Ela era encarada com hostilidade e nenhuma das mulheres se aproximava dela. Até a cunhada, Ginny Webster, tinha o cuidado de a evitar. Ginny trazia um vestido cor-de-rosa justo com um grande decote, um casaco igual às bolinhas e uma saia curta presa ao corpete que acentuava o seu traseiro bem feito. Ria-se ainda mais alto do que as outras mulheres e namoriscava com todos os amigos de Boyd, tal como fizera havia muitos anos, quando Boyd levara os amigos a sua casa depois das aulas e ela tentara atraí-los. Mas o efeito que provocava e o seu estilo eram muito diferentes dos de Crystal. Era abertamente sensual com o seu cabelo ruivo, o vestido justo e a maquilhagem. Já há muitos anos que era assunto de conversa, e os homens adoravam pôr o braço à volta dos seus ombros para melhor poderem admirar o grande decote. Isso trazia recordações a muitos deles. Desde os treze anos que Ginny era muito generosa a conceder favores.

— Que tens aí, Ginny?

O noivo aproximou-se dela, a cheirar a algo mais forte que o vinho que Tad estava a servir. Alguns homens tinham estado a beber uísque no celeiro e Tom havia-se-lhes juntado rapidamente, como aliás era seu hábito. Agora mirava-a com um interesse evidente, e aproximou-a de si, deixando a mão escorregar para debaixo do casaco dela. Ginny tinha na mão o bouquet de Becky, mas ele não se estava a referir às flores. Olhava o meio dos seios dela.

— Apanhaste o bouquet? Parece que vais ser a próxima. Riu-se de forma estridente, exibindo uns dentes perfeitos, e o sorriso que conquistara o coração de Becky havia muitos anos. Mas Ginny conhecia-o melhor, e para muitos isso não era segredo.

— Eu disse-te que me ia casar em breve Tom Parker — retorquiu ela com um sorriso. Ele puxou-a ainda mais para si e Boyd corou, afastando o olhar da irmã e do amigo e viu a sua pequena esposa de marfim que os observava à distância. Sentiu uma grande angústia ao olhar para Hiroko. Era rara a ocasião em que ele se afastava dela, mas naquele dia, como era padrinho de Tom, era difícil prestar-lhe toda a atenção que gostaria. No entanto, enquanto Ginny e Tom se provocavam e riam, Boyd escapuliu-se discretamente na direcção de Hiroko. Ela sorriu ao vê-lo aproximar-se e ele sentiu um aperto no coração como sentia sempre que olhava nos seus olhos doces. Ela confortara-o a muitos quilómetros de casa e era-lhe devotada desde que tinham chegado ao vale. Partia-se-lhe o coração ao ver como as pessoas a tratavam com rudeza. Apesar dos avisos dos amigos no Japão, ele não se preparara para a crueldade das palavras que os esperavam ou para as portas que se lhe haviam fechado. Muitas vezes pensara em ir-se embora, mas o seu lar era ali e não iria fugir, não importava o que lhe dissessem ou fizessem. Mas preocupava-se com Hiroko. As mulheres eram extremamente antipáticas par.a ela e os homens ainda pior. Chamavam-lhe «chinoca», nem as crianças lhe dirigiam a palavra, tendo sido assim instruídas pêlos pais. Estava a uma grande distância da sua querida família no Japão.

— Estás bem? — perguntou ele com um sorriso, e ela inclinou a cabeça e assentiu, e depois olhou-o com timidez, de uma forma que sempre lhe derretera o coração.

— Estou bem, Joyd-san. É festa muito linda. — Ele riu-se com aquela escolha de palavras e Hiroko ficou atrapalhada, mas depois riu-se. — Não?

—Sim!

Ele inclinou-se e beijou-a com doçura, desprezando quem o observasse. Amava-a e ela era a sua esposa e quem não compreendesse isso que fosse para o diabo! O cabelo ruivo e as sardas dele contrastavam com a pele cor de marfim e o cabelo negro como asa de corvo, que ela usava num carrapito muito bem feito. Tudo nela era simples, bonito e bem combinado. E a família de Hiroko ficara tão chocada como a dele quando ambos anunciaram que se iam casar. O pai proibira-a de tornar a ver Boyd, mas no fim, perante a sua bondade, calma e visível amor pela rapariga, e apesar das lágrimas da mãe, haviam consentido. Hiroko não lhes falara da recepção cruel que tivera em Alexander Valley nas cartas que lhes enviara, falara-lhes apenas da pequena cabana onde viviam, da paisagem linda e do seu amor por Boyd, fazendo tudo parecer simples e fácil. Quando chegara nada sabia acerca dos campos de internamento para os japoneses durante a guerra, nem da raiva e desprezo que iria encontrar na Califórnia.

— Não tenho muita fome, Boydan. Está calor.

— Vou buscar-te qualquer coisa. — Ela começava a habituar-se à comida ocidental, embora em casa só confeccio nasse comida japonesa, de que ele aprendera a gostar enquanto lá permanecera. — Volto já.

Tornou a beijá-la e apressou-se em direcção às mesas, ainda repletas com a comida que Olivia e a mãe tinham feito. Em seguida começou a dirigir-se à mulher com um prato na mão, quando, de repente, parou, incapaz de acreditar nos seus olhos. Ainda com o almoço de Hiroko na mão, Boyd avançou na direcção do homem alto e de cabelo escuro que apertava a mão a Tom Parker. Destacava-se do resto dos convidados devido ao blazer azul-escuro, calças brancas, gravata vermelho-viva e uma aura que revelava um mundo de riqueza muito longe do vale. Era apenas cinco anos mais velho que Tom, e estava com um ar diferente, mas haviam sido amigos chegados no Pacífico. Spencer Hill fora o seu comandante e o de Tom, e até fora ao casamento de Boyd e Hiroko em Quioto. Quando Boyd se aproximou com um sorriso de orelha a orelha Spencer estava a apertar a mão de Tom e a felicitá-lo, muito bronzeado e à vontade, e tão confortável ali como estivera no Japão, envergando o uniforme. Era um homem que parecia estar à vontade em todo o lado, os seus olhos azuis profundos pareciam abarcar tudo de um só relance. Momentos depois estava a rir-se para Boyd Webster.

— Ora, raios me partam... você outra vez! O miúdo das sardas! Como é que está a Hiroko?

Boyd ficou sensibilizado por ele ainda se lembrar do nome da sua mulher e sorriu, acenando na direcção das árvores, onde ela estava.

—Está boa! Céus! Já lá vai muito tempo, capitão... — Os seus olhos cruzaram-se numa recordação fugaz da dor que tinham partilhado, e dos medos, mas houvera mais do que isso, uma intimidade que nunca voltaria a existir. Uma proximidade nascida da dor, da excitação, do terror e também da vitória. Mas a vitória parecia um momento ínfimo quando comparada com o resto, e era dos anos que a haviam antecedido que todos se recordavam. — Venha cumprimentá-la.

Spencer desculpou-se e afastou-se do grupo formado por Tom e seus compinchas, já um bocado acelerados e ansiosos por voltaram ao celeiro para mais uísque.

— Como tem passado? Já me tenho perguntado onde é que estaria. Ou se vocês os dois se tinham mudado para a cidade. — Pensara muitas vezes que seria mais fácil para eles viver em São Francisco ou Honolulu, mas Boyd estivera decidido a regressar ao vale de que tanto costumava falar.

Os olhos de Hiroko reflectiram surpresa e fez uma vénia assim que o viu. Spencer sorriu-lhe. Ela parecia tão pequena e delicada como há um ano atrás no seu próprio casamento. Mas agora havia algo mais nos seus olhos, uma sabedoria e uma tristeza que não estavam lá antes, e Spencer calculou que o ano que passara não fora fácil nem benéfico.

— Está muito bonita, Hiroko. É bom tornar a ver-vos. Pegou-lhe na mão com delicadeza e ela corou, sem ousar olhar para ele, enquanto o marido os observava. O capitão fora muito correcto para com ambos: fizera tudo para os dissuadir de casar, mas no m apoiara Boyd, tal como todos os seus homens, dentro ou fora da batalha. Era o tipo de homem com quem os seus subordinados sabiam que podiam sempre contar. Era forte, inteligente, amável e implacável quando o desiludiam, o que aliás raramente acontecia. Houvera poucos homens na sua companhia que não desejassem seguir o exemplo que ele lhes dava. Trabalhara muito, lutara ao lado deles e parecia nunca se cansar de lutar para ganhar a guerra. Agora tudo isso parecia muito estranho... acabara, e ali estavam eles, no outro lado do mundo, de novo em segurança, mas nada daquilo fora esquecido.

—Já passou muito tempo, não passou?

O olhar de Spencer cruzou-se com o de Boyd, e ele viu mais maturidade e sabedoria: haviam ambos visto a dor na guerra. Contudo, sem uniforme, o belo capitão parecia muito mais novo do que da última vez que se tinham encontrado, quando Boyd deixara o Japão rumo a São Francisco.

— Não sabia que iria estar hoje aqui — disse Boyd numa voz tranquila, mais contente por ver Spencer do que ele poderia imaginar. Ele fora a primeira pessoa que falara bem a Hiroko desde que ela chegara à Califórnia em Setembro. — O Tom não me avisou.

— Se calhar estava muito ocupado a pensar na noiva. — Spencer dirigiu a ambos um sorriso rasgado. — Escrevi-lhe a dizer que tentaria estar presente; contudo, só decidi vir há alguns dias. Já devia estar em Nova Iorque. Mas nunca tenho vontade de sair da Califórnia.

Olhou em volta e Boyd entregou o prato a Hiroko, instando com ela para que experimentasse, mas a jovem estava mais interessada no amigo de ambos do que na comida, e pousou o prato com todo o cuidado num tronco atrás dela.

— Está aqui de férias, sir? — Os olhos de Boyd reflectiam o afecto e o respeito que marcara a relação de ambos no Japão, e Spencer abanou a cabeça e soltou uma gargalhada franca.

— Não, não estou, e por amor de Deus, Webster, chamo-me Spencer, ou já se esqueceu?

Boyd Webster corou profundamente, como sempre lhe acontecia mesmo no calor da batalha. Aquilo valera-lhe muitas alcunhas do seu comandante e agora os dois homens voltavam a rir.

— Achei que me podia mandar para tribunal militar se o tratasse dessa maneira.

Hiroko sorriu ao observá-los; recordou-se de uma época mais feliz muito longe dali, quando estava em casa e não era uma estranha indesejada.

— Acredite ou não, voltei a estudar. Não consegui descobrir mais nada para fazer depois da guerra. Acabei o primeiro ano de Direito. — Conseguira fazer quase dois anos num, e acabaria o curso na Faculdade de Direito de Stanford no ano seguinte.

— Na costa leste? — Boyd achava que um homem como Spencer Hill frequentaria Yale ou Harvard. Sabia que ele tinha dinheiro, embora não soubesse quanto. Spencer nunca falava dessas coisas, mas sempre parecera um indivíduo educado e de boas famílias, e havia rumores que pertencia a uma família importante, embora ele nunca tivesse dito nada. Andara na faculdade, todos o sabiam, e era um ocial, mas o resto permanecia um mistério, e quando se rastejava num campo de minas nada disso parecia importante.

Spencer abanava a cabeça, olhando para o amigo, pensando como aquele mundo ficava longe do que conhecia. Parecia estar a anos-luz da sofisticação de São Francisco. Era uma vida em que ele nunca pensava, um mundo de ranchos e quintas e de pessoas que trabalhavam a terra. Era uma vida dura, e com vinte e dois anos de idade o rosto de Boyd parecia mostrá-lo.

— Não, estou em Stanford. Parei lá quando ia a caminho de casa e apaixonei-me pela terra. Inscrevi-me antes de regressar a Nova Iorque. Achei que se esperasse até ao ano seguinte não conseguiria fazer nada. Adoro estar lá. — Era extraordinário o facto de Stanford ficar apenas a três horas de caminho, podia muito bem ser noutro país. — Vou voltar no Outono. Prometi aos meus pais que estaria com eles este Verão. Só estivemos juntos umas semanas depois de eu ter saído da tropa, e depois entrei logo na faculdade. Parece uma coisa estranha na minha idade, mas a guerra atrasou muitos tipos. Alguns são ainda mais velhos que eu. E você, Boyd? O que é que faz?

Hiroko sentara-se em silêncio e ouvia a conversa. Perguntou-se o que iria Boyd contar sobre os seus problemas. Ele nunca se queixava, não junto dela, pelo menos, e já não havia muita gente com quem pudesse falar. Tinham ficado muito admirados quando Tom lhe pedira para ser seu padrinho de casamento. Nunca ninguém os convidava, ou falava com eles, e às vezes o velho Sr. Petersen tinha de ir para a bomba da gasolina porque havia pessoas que se recusavam a ser atendidas por Boyd.

— As coisas não vão mal. Foi difícil arranjar trabalho, com toda a gente a regressar ao mesmo tempo. Mas estamos bem.

Hiroko observou-o, sem denunciar nada no seu olhar, e Spencer assentiu.

— Ainda bem. — Preocupara-se com eles, e repreendera-se mais de uma vez por não terem permanecido em contacto. Preocupara-se muito com Boyd quando ele era um dos seus homens, e principalmente com o seu casamento com Hiroko. Felizmente, as coisas tinham corrido bem. Sabia que havia outros que não tiveram a mesma sorte, homens que se haviam afastado da família por causa das mulheres que trouxeram da guerra e que tinham começado a beber; muitos sentiram-se desprezados e isso levara-os ao suicídio, abandonando as mulheres que haviam trazido para um país que não perdoava. Mas ambos pareciam estar bem, e ainda se encontravam juntos, o que já era alguma coisa.

— Costuma ir a São Francisco?

Boyd sorriu e abanou a cabeça. A vida alija era suficientemente difícil, e para além disso nem teriam dinheiro para a gasolina, mas não disse nada a Spencer. Era jovem e orgulhoso, e sabia que iriam ser bem sucedidos.

— Têm de lá ir visitar-me. Daqui a um ano já sou advogado. É uma ideia estranha, não é? — Riram-se ambos, mas Boyd não estava admirado. O capitão sempre tivera uma aura de êxito, todos gostavam dele, tanto soldados como oficiais. Boyd sempre suspeitara que um dia ele iria ser um homem importante, e o cargo de advogado era apenas um primeiro passo. Spencer olhou em volta, Boyd sorriu e os seus olhares cruzaram-se de novo. — Como é a mulher do Tom? Parece uma rapariga simpática.

— Não é má. É amiga da minha irmã. — Riram-se ambos. Spencer ouvira flar muito de Ginny Webster. Estava sempre a mandar ao irmão fotografias dela em fato de banho, pedindo-lhe que arranjasse soldados que lhe escrevessem. Nessa altura era apenas uma adolescente, com o mesmo cabelo ruivo do irmão e as mesmas sardas, mas com um corpo belíssimo. — Os Wyatt são boa gente. O Tom vai trabalhar no rancho com o pai da Becky. — Para Boyd, aquilo parecia ser uma dádiva de Deus, mas de repente sentiu-se atrapalhado, pensando que essa vida era muito menos confortável do que a vida de um estudante de Direito em Stanford. No entanto Spencer mostrava respeito por eles ao olhar em volta com ar de admiração. O rancho parecia agradável, limpo e próspero, e os convidados que conversavam sob as árvores tinham ar de ser pessoas decentes, sólidas. — O Tad Wyatt é um bom homem. O Tom tem muita sorte.

— Você também.

Spencer disse aquelas palavras muito suavemente, olhando para Hiroko e depois para Boyd com carinho e uma ponta de inveja. Não gostava de ninguém, ninguém que ele amasse ou que o amasse como Hiroko amava o marido. Quase os invejou por isso, mas não tinha pressa. Havia muitas mulheres na sua vida, e estava a divertir-se. Tinha vinte e sete anos, mas nenhuma pressa em assentar. Havia outras coisas que gostaria de fazer primeiro, como acabar o curso e regressar a Nova Iorque. O pai era juiz e dissera-lhe que a melhor coisa que ele podia fazer era tornar-se advogado. Com o curso de Direito e os conhecimentos que faria numa faculdade como a de Stanford, teria uma vida boa. E com o seu aspecto e à-vontade, muitas portas iriam abrir-se para Spencer Hill. Sempre assim fora, a vida corria-lhe bem, e fosse onde fosse todos gostavam dele. Era íntegro, com estilo, e era muitíssimo esperto. Isso salvara-lhe a vida no Pacífico mais do que uma vez, e também salvara a vida dos seus homens. Quando não tinha experiência, compensava com ingenuidade e coragem.

— Acham que me devia misturar com os convidados? Boyd riu-se:

— Claro. Venha daí, vou apresentá-lo à minha irmã.

— Até que enfim — brincou Spencer. — Acha que a vou reconhecer sem o fato de banho?

Assim que se dirigiram para os outros convidados, ele viu imediatamente quem ela era, não só por causa do cabelo ruivo semelhante ao de Boyd, mas também pelo corpo envolto no vestido cor-de-rosa justo e casaco a condizer. A sorridente rapariga, já tocada devido ao vinho, e ainda agarrada ao bouquet á meio murcho de Becky, só podia ser Ginny, a irmã de Boyd. Boyd apresentou-os e Ginny corou, cando quase da cor do vestido quando Spencer lhe apertou a mão e lhe disse como o irmão tinha sido corajoso no Pacífico.

— Ele nunca me disse que o senhor era assim tão bonito, capitão. — Deu uma risada e chegou-se mais a ele, cheirando a perfume barato e a vinho. Em seguida, Boyd apresentou-o ao pai, mas era visível no olhar de reprovação do velho, que apertou a mão de Spencer, que a relação com o filho não ia lá muito bem, e era fácil adivinhar que a causa era Hiroko.

Spencer ficou junto deles durante algum tempo, recordando os velhos tempos com Boyd e Tom, e deixou-os para se servir de um copo de vinho do rancho. Conversou com i   alguns convidados e depois afastou-se em direcção às árvoj   res para ficar sozinho, sentindo que a paz do campo agitava algo dentro dele que há muito estava esquecido. A sua vida estava tão cheia de actividades urbanas e dos estudos em Stanford que raramente tinha tempo para ir sozinho de carro até um sítio como aquele. Era como voltar atrás no tempo, os velhos sentados sob as árvores em frente a mesas cobertas por toalhas de linho que se agitavam levemente com a brisa, e as crianças a correr e a gritar à distância. Se fechasse os olhos, podia imaginar que estava em França, ou quase noutro século, as famílias e os amigos a conversarem e a rirem, as colinas estendendo-se em redor e ele debaixo das árvores enormes. De repente, sentiu que alguém o observava. Virou-se e viu uma criança muito bela a olhar para ele, estava descalça e era mais alta do que a maioria das mulheres que ali se encontrava, mas ele não teve dúvidas de que ela ainda era uma criança. Uma criança com um corpo de mulher e enormes olhos azuis que pareciam espreitar a sua alma. Uma mão esbelta e graciosa afastou uma madeixa de cabelo louro do rosto que o surpreendeu pela sua beleza. Ele permaneceu imóvel e os olhares de ambos cruzaram-se. Nenhum deles falou. Ele continuou a observá-la, incapaz de afastar os olhos dela. Nunca vira ninguém tão belo, nem tão inocente, num vestido branco muito simples, pés descalços em cima da relva. Desejou estender um braço e poder tocar-lhe.

— Olá. — Ele falou primeiro e pareceu-lhe que ela teve medo de responder. Quis sorrir-lhe, mas sentiu-se paralisado pelo efeito dos olhos dela; eram de um azul que ele não se recordava de já ter visto, a cor de um céu de Verão, de manhã muito cedo. — Estás a divertir-te? — O que dissera pareceu-lhe uma estupidez, mas não podia dizer-lhe como ela era bela. Era só isso que lhe apetecia fazer.

A criança continuou a olhá-lo. E então, devagar, sorriu-lhe, avançando lentamente para ele como uma corça a sair da floresta. Sentia-se curiosa a seu respeito Spencer via isso nos seus olhos, e teve medo de a assustar se se aproximasse. Teria de a deixar vir até si, e apeteceu-lhe estender a mão para a puxar.

— É amigo do Tom? — A sua voz era grave e suave, e tão sedosa como o cabelo loiro que parecia implorar a Spencer para ser tocado. Mas tinha de manter-se normal. Ela era apenas uma criança e ficou supreendido com aquilo que estava a sentir. Não havia em seu redor nenhuma da sensualidade que envolvia Ginny Webster no seu vestido cor-de-rosa muito justo; em vez disso, toda ela era sensualidade delicada, como uma flor perfumada que cresce isolada no alto de uma montanha.

— Estivemos juntos no Japão, durante a guerra. Ela assentiu, como se aquilo não a surpreendesse. Sabia que nunca o vira antes. Na verdade, nunca vira ninguém como ele. Havia no homem um verniz e uma sofisticação discreta que a fascinavam. Tudo nele era imaculado e caro, desde o blazer, de excelente corte, às calças brancas impecáveis, passando pela gravata de seda e mãos delicadas. Mas mais do que isso, sentia-se fascinada pêlos seus olhos. Havia algo nele que a atraía como um íman.

— Conhece o Boyd Webster? — inclinou a cabeça para um lado com curiosidade, o cabelo caindo livremente em cascata sobre o ombro. — Ele também esteve no Japão com o Tom.

Ele assentiu, os olhos fixos nela, perguntando-se quem seria a rapariga, como se isso tivesse alguma importância.

— Conhecia-os aos dois. — Não lhes disse que fora comandante deles. Não era importante. — E a Hiroko também. Conhece-la?

Ela abanou a cabeça devagar.

— Ninguém tem autorização para falar com ela. Ele assentiu, triste por eles, mas não surpreendido. Fora isso que temera desde o início, e agora aquela criatura fascinante confirmara-o.

— É pena. Ela é uma excelente rapariga. Fui ao casamento deles.

Era difícil encontrar coisas para lhe dizer, porque ela era muito nova e porque ele se sentia dominado pelo desejo quando olhava para ela. Perguntou-se se seria louco. Ela era uma criança, disse para si, ou pelo menos uma rapariga muito jovem. Não podia ter mais de catorze ou quinze anos e, contudo, tudo nela o deixava ofegante.

— O senhor é de São Francisco?

Tinha de ser. As pessoas do vale não tinham aquele aspecto, e ela não conseguia imaginar que ele fosse de um sítio mais longe do que São Francisco.

— Agora sim. Na verdade, sou de Nova Iorque. Mas ando aqui na faculdade.

Ele sorriu ao dizer aquelas palavras, e ela riu-se abertamente, um som cristalino como um riacho de montanha. Aproximou-se dele. As outras crianças ainda estavam a brincar a uma certa distância e pareciam não ter dado pela falta dela.

— Que tipo de faculdade? — Os olhos dela brilhavam muito vivos, e ele pressentiu que escondida sob a timidez estava a malícia.

— Faculdade de Direito.

— Deve ser difícil.

— E é. Mas é interessante e eu gosto. E tu, o que é que fazes?

Era uma pergunta tola, e ele sabia. O que poderia ela fazer com aquela idade, para além de andar na escola e brincar com os amigos no vale?

— Ando na escola. — Arrancou uma erva do chão e pôs-se a brincar com ela.

— Gostas?

— Às vezes.

— Parece-me bem. — Ele tornou a sorrir e perguntou-se qual seria o nome dela. Provavelmente Sally, ou Jane, ou Mary. Ali as pessoas não tinham nomes invulgares. E depois, como se isso fosse importante para ela Spencer apresentou-se. Ela assentiu em silêncio, ainda a observá-lo com um fascínio cauteloso.

— Eu chamo-me Crystal Wyatt. — O nome parecia assentar-lhe que nem uma luva.

— És da família da noiva?

— Irmã.

Spencer perguntou-se por que motivo não teria Tom esperado por ela, mas talvez as pessoas dali ainda não se tivessem apercebido da sua beleza, embora fosse difícil imaginar tal coisa.

— É um rancho muito bonito. Deve ser agradável viver aqui.

Então ela sorriu, mais abertamente do que antes, como se estivesse ansiosa por partilhar um segredo.

— Nas colinas é ainda mais bonito; há um riacho que não se consegue ver daqui. Eu e o meu pai às vezes vamos de cavalo até às montanhas. São lindíssimas. O senhor monta? — Sentia-se curiosa a seu respeito quase tanto como ele estava a respeito dela, enquanto a ouvia.

— Não muito bem. Mas gosto. Talvez volte cá um dia e tu e o teu pai me possam ensinar.

Crystal assentiu, como se a ideia lhe agradasse, e depois alguém a chamou. A princípio ignorou, e depois virou-se, arrependendo-se logo de seguida. Era o irmão. Spencer sentiu o coração apertar-se. Tinham finalmente dado pela falta dela.

— Gostei muito de falar contigo.

Sabia que dali a momentos ela se iria embora, e desejava poder estender a mão e tocar-lhe por um instante. Receava nunca mais tornar a vê-la, e queria parar o tempo para gravar aquele momento, sob as árvores... antes de ela crescer... antes de ir embora... antes que a vida a mudasse.

— Crystal! — Havia já um coro de vozes a chamá-la. E não havia maneira de as ignorar. Gritou-lhes que iria de imediato.

— Voltará cá outro dia?

Era como se ela também pressentisse. Como se não quisesse que ele a deixasse: nunca vira um homem tão atraente como ele, excepto as estrelas de cinema cujas fotografias colara na parede do quarto. Mas ele era diferente, era verdadeiro. E falava-lhe como se ela não fosse um bebé.

— Gostaria de voltar. Agora que sei que o Boyd está aqui, talvez apareça um dia destes para o ver. — Ela assentiu, como se aprovasse aquela ideia. — Também virei ver o Tom... — A sua voz falhou, querendo dizer «e ver-te também», mas sabia que não lhe podia dizer uma coisa daquelas. Ela haveria de o achar louco e não queria assustá-la. Talvez fosse do vinho, disse para si, talvez ela não fosse tão bonita como ele julgava, talvez fosse por causa da atmosfera, e do dia, e do ambiente do casamento. Mas sabia que era mais do que isso, que ela era mais do que isso. Então, com um último olhar e um sorriso tímido, ela acenou-lhe e dirieíu-se para junto dos outros. Ele ficou a observá-la durante bastante tempo. O irmão disse-lhe qualquer coisa, puxou-lhe o cabelo, e de repente ela desatou a correr atrás dele, a provocá-lo e a rir-se, como seja tivesse esquecido que se tinham encontrado. No entanto, assim que ele começou a afastar-se, viu-a virar a cabeça na sua direcção e parar por um momento, como se lhe quisesse dizer qualquer coisa, mas não disse. Voltou a observar as crianças, enquanto Spencer regressava para junto de Boyd e Hiroko.

Viu-a outra vez antes de se ir embora, no alpendre a falar com a mãe, e era visível que estava a ouvir uma reprimenda. Levou uma travessa pesada para a cozinha e não voltou a sair. Momentos depois, ele afastava-se no carro, ainda a pensar na criança que conhecera. Era como uma corça selvagem, bela, rebelde e livre, a criança com olhos de mulher. Riu-se. Era uma loucura. Tinha uma vida para viver num mundo distante daquele. Não havia razão para se sentir atraído por uma criança de catorze anos na vegetação luxuriante de Alexander Valley. Não havia razão, só que ela não era uma rapariga qualquer. Disse-o a si mesmo enquanto se afastava, lembrando-se da promessa que fizera a Boyd e a Hiroko de que voltaria para os visitar depois do Verão. Talvez voltasse... talvez voltasse mesmo... o estranho é que de repente soube que voltaria.

E enquanto Crystal ajudava a mãe a levar o resto das travessas, deu por si a pensar nele, no belo estranho de São Francisco. Agora sabia quem ele era. Ouvira Tom falar dele, o seu comandante no Japão. Tom ficara satisfeito por ele ter vindo ao casamento, mas tinha coisas mais importantes em que pensar. Ele e Becky partiram sob uma chuva de arroz para a lua-de-mel junto ao mar, em Mendocino. Iriam estar fora duas semanas, e depois regressariam para viver numa casa do rancho, para trabalhar com o pai e para terem filhos. Crystal achava tudo aquilo muito aborrecido. Tão esperado e banal. Não havia magia na vida deles, nada raro e estranho, ao contrário das pessoas com quem sonhava ou das estrelas de cinema sobre as quais lia. Perguntou-se se um dia estaria assim, casada com um dos rapazes que conhecia, um dos amigos de Jared, ou um dos rapazes que ainda odiava. Era estranho, sentia-se impelida em duas direcções: para o mundo familiar que conhecia... e para um mundo muito mais afastado, cheio de mistério e de estranhos bonitos, como aquele que conhecera no casamento da irmã.

Quando acabaram de lavar a loiça e limpar a confusão deixada pelo casamento era já meia-noite. Tudo fora guardado, e a avó já se tinha ido deitar. A casa parecia estranhamente silenciosa. Crystal desejou as boas-noites aos pais, e o pai acompanhou-a até ao quarto, beijando-a na face com um olhar muito terno.

— Um dia será a tua vez... tal como foi agora a da Becky. Ela encolheu os ombros, nada ansiosa, e Jared piou como um mocho ao passar pela porta do seu quarto. O pai tornou a sorrir para Crystal.

— Amanhã queres ir andar a cavalo comigo? Tenho de fazer umas coisas e tu podias ajudar-me.

Tinha muito orgulho na filha, muito mais do que ela imaginava. Sorriu para o pai e assentiu.

— Gostaria muito, paizinho.

— Acordo-te às cnco. Agora vê se dormes. Passou-lhe a mão pelo cabelo e ela fechou a porta devagar. Era a primeira noite que dormiria no quarto sozinha sem a irmã. Ia ser um grande sossego. Finalmente aquele era o seu território. E já deitada, pensou em Spencer antes de adormecer. E na sua cama, num quarto de hotel em São Francisco, Spencer Hill pensava em Crystal.

 

O primeiro filho de Tom e Becky nasceu de meses depois do casamento, na casa do rancho, com Minerva e Olivia a ajudar e Tom a andar de um lado para o outro no alpendre da casa principal enquanto esperava. Era um rapaz saudável e chamaram-lhe William, como o pai de Tom, William Henry Parker. Becky tinha muito orgulho no filho, tal como Tom. Foi um momento feliz num ano bastante difícil para os Wyatt. As colheitas haviam sido fracas depois das chuvas torrenciais e Tad estivera de cama com pneumonia e não parecia ter recuperado. Ainda se sentia fraco quando o bebé nasceu, mas tentou fingir que não estava. Só Crystal sabia como ele se sentia exausto. Faziam agora cavalgadas mais pequenas e ele parecia sempre gostar de regressar a casa e enfiar-se na cama, às vezes ainda sem jantar.

Começou finalmente a melhorar quando baptizaram o-bebé, no dia em que a Índia se tornou independente, dois dias antes do décimo sexto aniversário de Crystal. Foi baptizado na igreja onde Tom e Becky se haviam casado um ano antes, e Olivia convidou sessenta amigos para o almoço. Foi uma festa menos grandiosa que o casamento, mas mesmo assim muito alegre. Ginny Webster foi a madrinha e Tom pediu a Boyd para ser o padrinho, o que não agradou muito aos Wyatt. Hiroko continuava a ser mantida à parte, tal como um ano antes. Crystal era a sua única amiga, e nem ela sabia que Hiroko estava grávida. E o médico local recusara-se a tratá-la. O seu filho morrera no Japão e ele dissera-lhe abruptamente que não ajudaria o filho dela a nascer. Boyd tivera de a levar a São Francisco para procurar um médico, e não tinha dinheiro para ir lá com muita frequência. O Dr. Yoshikawa era um homem bondoso e amável. Nascera em São Diego e vivera toda a sua vida em São Francisco, mas fora internado com o resto da família a seguir a Pearl Harbour. Durante quatro anos cuidara deles no campo, dando-lhes toda a ajuda possível com os poucos medicamentos ao seu dispor. Fora para ele uma época de angústia e frustração, mas ganhara o respeito e a devoção daqueles que tratara e com quem vivera. Hiroko ouvira falar dele pela única japonesa que conhecia em São Francisco, e fora até ele a tremer, depois do embaraço de ter sido recusada pelo médico que todos consideravam no vale. Boyd estivera junto dela enquanto o Dr. Yoshikawa a examinara e lhes garantira que tudo parecia estar a correr bem. Só ele sabia o quanto era difícil para ela estar numa terra estranha com pessoas que a odiavam devido à cor da sua pele, a forma dos olhos e ao facto de ter nascido em Quioto.

— Deve ter um bebé saudável em Março, senhor Webster — disse ele a Boyd, e depois sorriu para Hiroko. Falou com ela em japonês, e Boyd viu-a descontrair-se enquanto o médico se lhe dirigia. Era como se naqueles breves momentos ela tivesse regressado a casa e pudesse confiar nele. O médico mandou-a descansar todas as tardes e comer bem, recomendando uma alimentação japonesa de que ela tanto gostava. Hiroko riu-se.

E estava Boyd a ajudá-la na preparação de um prato japonês quando Crystal lhes bateu à porta no dia seguinte ao da consulta do médico em São Francisco. Ela visitava-os de vez em quando desde o casamento de Becky, só para dizer «olá» e conversar um pouco. Ninguém sabia das suas visitas e Boyd teve a inteligência de não divulgar o seu segredo.

— Olá, está alguém em casa?

Deixara um dos cavalos do pai amarrado lá fora, e entrara com todo o cuidado, o cabelo preso no alto da cabeça sob um chapéu de cowbo. Trazia calças de ganga e uma das velhas t-shirts de Tad. Estava ainda mais bonita do que no ano anterior e já mais madura, mas ainda havia em seu redor uma aura de inocência. Parecia não ter consciência do seu aspecto, o que ajudava a aumentar a sua beleza. Pousou o chapéu em cima de uma cadeira e passou a mão pela testa enquanto a sua cabeleira cor de platina lhe resvalava pêlos ombros.

— Olá, Crystal. — Boyd limpou as mãos a uma toalha da cozinha e Hiroko sorriu, oferecendo-lhe de seguida um pouco do sashimi que haviam estado a preparar. — Já almoçaste?

Era sábado e não havia aulas. O pai estava a descansar e Crystal nada tinha para fazer nesse dia. Já fora visitar Becky e o pequeno Willie, corno lhe chamavam. Era um rapainho gorducho e saudável e já sabia sorrir.

— O que é isso? — perguntou Crystal, olhando para o peixe cru com curiosidade.

— Sashimi — respondeu Hiroko com um sorriso tímido. Ficava sempre maravilhada com o cabelo loiro de Crystal e os seus grandes olhos azuis, e desejava, caso pudesse nascer de novo, ser igual a ela. Hiroko sonhava fazer uma operação plástica e colocar os seus olhos «à ocidental», mas não tinha dinheiro para isso, e Boyd tê-la-ia morto por pensar sequer uma coisa dessas. Adorava-a tal como ela era, com toda a sua delicada beleza japonesa.

Hiroko era apenas três anos mais velha do que Crystal, mas tinha um ar muito sério que aumentara ainda mais com a sua solidão no vale.

— Queres experimentar um pouco de sashimi, Crystal-dM? — O seu inglês melhorara bastante durante o último ano. Lia em voz alta para Boyd todas as noites, esforçando-

-se bastante na pronúncia. Crystal até lhe levara alguns dos seus livros da escola, e Hiroko lia-os muito diligente, aprendendo depressa.

Crystal sentou-se na pequena cozinha com eles, e, com cautela, experimentou um pouco do que lhe haviam dito ser peixe cru. Gostava de experimentar tudo e comia com eles muitas vezes, provando os pitéus que Hiroko preparava com dedos hábeis.

— O teu pai está bem? — perguntou Hiroko. Crystal assentiu com uma expressão preocupada.

— Está melhor. Foi um Inverno difícil para ele. Hoje fui visitar a Becky — continuou ela com um sorriso para a amiga —: o bebé esá a ficar muito engraçado.

Apercebeu-se de um olhar estranho trocado entre os dois. Boyd olhou para a mulher, encorajando-a, as sardas ainda mais destacadas no rosto pálido. Era tão diferente de Crystal, cuja pele era bronzeada, apesar do cabelo loiro e dos olhos azuis. Mas Boyd parecia não se aperceber da sua beleza. Só tinha olhos para Hiroko.

— Conta-lhe. — Sorria para a mulher, e desejava que a única amiga de ambos soubesse da notícia que parecia não ser um problema tão grave depois de terem encontrado o Dr. Yoshikawa. Mal podiam sustentar uma criança, mas ambos desejavam muito tê-la. Só haviam ficado admirados por ter demorado tanto tempo. Hiroko levara mais de dois anos a engravidar. — Vá lá... — incitou Boyd, e Hiroko pareceu muito atrapalhada. Crystal aguardou. Era demasiado nova para suspeitar de alguma coisa. Ter lhos não era uma coisa em que pensasse muito, e observou os amigos com olhos muito abertos e expectantes. Contudo, Hiroko não foi capaz de dizer nada. Finalmente, Boyd foi obrigado a contar. — Vamos ter um bebé na Primavera. — Parecia muito orgulhoso ao anunciar a notícia e Hiroko desviou o olhar com timidez. Ainda não se habituara aos seus modos americanos e à facilidade com que contava aos outros coisas muito particulares. Mesmo assim, gostava do marido como ele era.

— Que maravilha! — Crystal sorriu. — Quando?

— Achamos que vai ser em Março. — Olhou radiante para a mulher, e Hiroko serviu mais um pouco de sashimi a Crystal.

— Parece muito tempo, não parece? — Crystal achava uma eternidade. Parecera-lhe ter esperado muito pelo nascimento do bebé de Becky. A irmã queixara-se noite e dia, dizendo que se sentia muito enjoada e muito desconfortável. No final da gravidez Crystal já não suportava estar junto dela. Até Jared se fartou dela e Tom saía sozinho com os amigos à noite. Só Olivia a compreendia. As duas mulheres estavam mais unidas do que nunca, mas Crystal não se importava. Adorava passar o tempo com o pai. E as suas visitas a Hiroko vinham-se tornando cada vez mais agradáveis. Falavam da natureza, da vida, de ideias e muito pouco de pessoas. Hiroko não tinha amigos de quem falar, só a família no Japão, e já raramente falava dela. Estava tão distante que parecia quase tê-la perdido. Mas uma vez confessou que tinha saudades das irmãs mais novas. E retribuindo essa confidência, Crystal admitira que às vezes sonhava em entrar em filmes. Hiroko parecera fascinada com a ideia, e achava que a amiga era sucientemente bonita. Mas Hollywood ficava muito, muito longe de Alexander Valley. Tão longe para elas que podia mutio bem ficar noutro planeta.

Hiroko e Boyd foram ambos ao baptizado de William. O bebé fartou-se de chorar quando o padre lhe molhou a cabeça. E levava a roupa que fora levada pelo pai da avó Minerva. Hiroko parecia um pouco pálida quando saíram da igreja e Boyd pegou-lhe suavemente no braço, interrogando-a com os olhos. Ela limitou-se a acenar. Nunca se queixava por não se sentir bem, mas ele sabia que ela começara a andar adoentada. Continuava a cozinhar com todos os cuidados, mas mal comia, limitava-se a empurrar a comida no prato, e ele ouvira-a vomitar várias manhãs. O olhar de Crystal cruzou-se com o dela antes de Boyd a levar, e as duas mulheres sorriram uma à outra. Mas ninguém pareceu reparar. Estavam todos muito ocupados a admirar o bebé.

No rancho, o almoço já estava na mesa, tal como acontecera no casamento de Becky, mas desta vez era mais fácil porque os convidados eram em número menor. As mulheres sentaram-se em pequenos grupos, falando de quem se ia casar em seguida e de quem esperava filhos. Ninguém sabia que Hiroko estava grávida, e estavam muito mais interessadas em falar de Ginny Webster. Ela engordara e dizia-se que dormia com Marshall Floyd. Houvera alguém que já os vira sair de um motel em Napa.

— Ela está grávida — anunciou Olivia num tom conspiratório, e Becky acrescentou que Ginny quase desmaiara na semana anterior durante uma missa.

— Acham que ele casa com ela?

— Talvez — comentou uma mulher. — Mas é melhor que o faça depressa, antes de ela ficar mais gorda.

As mulheres falavam e os homens estavam afastados, comendo e bebendo. As crianças brincavam tal como no ano anterior. Passavam dois anos desde o fim da guerra e nada parecia ter mudado muito, excepto as crianças, que estavam mais crescidas. A própria Crystal já não parecia tão infantil. O seu corpo era só curvas, com membros compridos e uma silhueta que despertava a atenção dos homens. Os vestidos Já não a escondiam, e os seus olhos estavam mais calmos e sábios. Preocupara-se com o pai durante todo o Inverno. Jared acabara o liceu em Junho e ia passar a trabalhar a tempo inteiro no rancho com o pai e Tom. O pai queria que ele fosse para a faculdade, mas Jared não era da mesma opinião. Trabalhava com os carros do rancho e saía de automóvel com os amigos. Já tinha uma namorada, em Calistoga.

— Está um belo rapaz — comentou uma das amigas de Olivia —, e vai casar-se em breve. Ouvi dizer que ele anda a ver a rapariga dos Thompson.

A mãe esboçou um sorriso orgulhoso como resposta, e os seus olhos toldaram-se quando olhou para Crystal. Esta trazia um vestido azul da mesma cor dos seus olhos que o pai lhe trouxera de São Francisco.

— Está uma rapariga muito bonita.... uma verdadeira beleza... — A outra mulher reparara que Olivia observava Crystal. — Um destes dias vais ter de a trancar no celeiro — brincou ela, e Olivia fingiu não ouvir. A filha mais nova era ainda uma estranha para ela. Era tão diferente das outras raparigas, em especial da irmã. Era calma, solitária, ao contrário dos outros. Tinha pensamentos profundos, e quando falava deles, o que era raro, a mãe ficava aborrecida. Uma rapariga não precisava de pensar naquelas coisas, nem de sonhar com os locais de que falava com o pai. A culpa era toda dele, que lhe enchia a cabeça daqueles disparates. E também era culpado de ela correr livremente pelas colinas, montada nos cavalos e de nadar nua nos riachos, como uma criatura selvagem, às vezes desaparecendo durante horas.

Não era como as outras raparigas, ou como Becky e a mãe. Nunca fora, e agora isso notava-se mais à medida que crescia. Parecia já nem reparar nos rapazes; preferia estar sozinha, ou a falar horas a fio com o pai sobre o rancho ou os livros que lera, ou acerca dos locais que Tad visitara e onde ela desejava ir. Olivia até os ouvira um dia a falar de Hollywood. E ele sabia que isso era uma loucura. Por aquele andar, não iria ser fácil arranjar-lhe marido, mesmo com toda aquela beleza. A beleza não bastava. Ela era demasiado diferente, e a sua beleza afastava-a ainda mais das restantes pessoas, deixava as mulheres pouco à vontade, fazia os homens olhar, mas não de um modo que lisonjeasse Olivia. Não era um grande consolo ser mãe da rapariga mais bonita do vale: era demasiado bela, livre de mais, e muito diferente. Enquanto as mulheres conversavam Crystal sentara-se sozinha num baloiço, elevando-se nos ares, enquanto os outros jovens brincavam por perto. Parecia não reparar neles, nem sequer vê-los. Tornara-se mais solitária no ano que passara, em vez de mais parecida com eles. E muito ocupado com a sua vida, até Jared a deixava em paz. A única altura em que reparavam nela era quando a ouviam cantar, como nas missas. Tinha um tipo de voz que nos fazia parar e ouvir, quer gostássemos dela ou não. Era a única coisa que se dizia a seu respeito.

Ela cortava os ares no baloiço, sem pensar no que as pessoas estavam a dizer, quase sem se aperceber da festa em seu redor, cantando para si própria. De repente, viu aproximar-se um automóvel e reconheceu-o de imediato assim que ele saiu do carro. Já não o via há um ano, mas tê-lo-ia conhecido em qualquer parte. Não o esquecera, e só de vez em quando ousava perguntar a Boyd se recebera cartas de Spencer. Mas ele viera ao baptizado e Crystal calou-se e abrandou o baloiço, enquanto o observava a apertar a mão ao pai e depois ir à procura de Boyd e Hiroko. Estava tão belo como no ano anterior, talvez ainda mais belo. Crystal não esquecera Spencer Hill durante um único minuto, e o seu coração parou assim que o viu.

Ele trazia um fato de Verão e um chapéu de palha. Crystal achou-o ainda mais bonito do que da última vez e viu-o rir-se enquanto dizia qualquer coisa a Hiroko. Depois, devagar, olhou em volta, para lá dos amigos, e viu-a. Ela permanecia no baloiço em silêncio. Mesmo a distância Spencer soube que ela o olhava, sentia os olhos de Crystal fixos nele. Avançou na direcção do baloiço. O seu rosto estava sério e os olhos azul-escuros. Deteve-se muito próximo dela. O ar entre os dois estava cheio de electricidade devido a algo que nenhum deles compreendia. Algo de que se recordavam que já acontecera havia um ano e que não podiam negar, agora que os seus olhos se encontravam. Era uma espécie de paixão que ia para além das palavras ou do simples entendimento. E no entanto, tal como ambos sabiam, mal se conheciam.

— Ola, Crystal. Como tens passado? — Sentia as mãos a tremer enquanto as enfiava nos bolsos e se encostava à árvore que sustentava o baloiço, esforçando-se por soar normal, tentando não a deixar ver o que estava a sentir. Mas não era fácil. Crystal não se mexia, limitava-se a olhar para ele, e, por um instante, foi como se todas as pessoas da festa tivessem desaparecido. Havia uma magnolia ali perto e o ar estava carregado do seu perfume. E até parecia ouvir-se o rufar de um tambor à distância.

— Acho que tenho passado bem. — Tentou parecer normal, desejando perguntar-lhe porque não voltara, mas não ousou fazê-lo. Nenhum deles conseguia exprimir por palavras os seus sentimentos: ela só era capaz de olhar para ele, impecavelmente vestido como no último ano, o cabelo escuro muito bem penteado, o rosto bronzeado e os olhos que procuravam algo que ela ainda não compreendia. Contudo, sabia que era incapaz de se afastar. Queria ficar junto dele para toda a vida, cheirando o seu perfume, sentindo os olhos dele nos seus. De repente, a tarde abafada pareceu ficar ainda mais quente. Spencer achou que tinha derretido por dentro, e teve de se recordar de que era apenas uma criança. Mas ambos sabiam que o que ele queria dizer era que a amava. Só que não podia, é claro. Mal a conhecia. Era perturbante perceber que a rapariga que ele tentara esquecer durante um ano era ainda mais assombrosa do que se recordava.

— Como é que vão as aulas? — perguntou ela com os olhos a queimarem-no. Fora meio criança, meio sereia, e passado apenas um ano parecia ser já totalmente mulher.

—Já z o exame para a Ordem dos Advogados. Ela assentiu, mas os olhos colocavam-lhe mil e uma perguntas que nenhum deles teria sido capaz de responder. E embora por dentro ele se sentisse como lava a derreter, tudo nele dava a ideia de força, como se nada o pudesse assustar, nada excepto o que sentia por ela, aquela criança que mal conhecia. Mas Crystal era incapaz de ver tudo isso naquele rosto que observava, o cabelo loiro dela a esvoaçar com a suave brisa do Verão.

— E tu? — Só lhe apetecia estender a mão e tocar nela.

— Vou fazer dezasseis anos depois de amanhã — respondeu ela tranquilamente, e ele sentiu o coração apertar-se-lhe. Durante um momento, apenas durante um momento, esperara ter estado enganado, que ela era mais velha. Contudo, houvera uma mudança no último ano. Ela parecia tão crescida, tão mulher no seu vestido azul... Mais mulher, mas ainda criança, e tornou a perguntar-se que espécie de loucura o puxava para ela. Não fora apenas para ver Boyd que regressara. Fora também para a ver, esperando que ela lá estivesse. Queria vê-la mais uma vez antes de deixar a Califórnia. Mas não valia a pena torturar-se. Com dezasseis anos, ela era ainda um bebé. E contudo... os seus olhos diziam-lhe que sentia o mesmo que ele. Com vinte e oito anos, era uma loucura sentir aquilo por uma rapariga de dezasseis.

— Vais ter uma festa de aniversário? — Falava como se falasse com uma criança, mas tudo o que via lhe dizia que ela era uma mulher. Ela riu-se e abanou a cabeça.

—Não... — era impossível explicar-lhe que tinha poucos amigos, que as raparigas a odiavam por causa do seu aspecto, embora ela não conseguisse compreender o motivo.

— O meu pai disse que talvez me levasse a São Francisco no mês que vem. — Queria perguntar-lhe se ele estaria lá, mas não o fez. Nenhum deles podia dizer aquilo que desejava. Tinham de fingir não se importar, não compreender o que sentiam um pelo outro, apesar da diferença de idades e da grande diferença que a vida de ambos havia estabelecido.

E como se lhe lesse o pensamento, ele respondeu à pergunta que ela não ousara colocar: qual seria o destino dele.

— Daqui a uns dias vou voltar a Nova Iorque. Ofereceram-me um lugar numa firma de advogados em Wall Street.

— Sentia-se um idiota por lhe explicar aquilo. — Faz parte do mundo financeiro — esclareceu com um sorriso, transferindo o seu peso para a árvore que parecia estar a sustentá-

  1. Não sabia se naquele momento os seus joelhos trémulos o manteriam de pé. — Parece que é uma coisa importante.

— Queria impressioná-la, mas não precisava de se esforçar. Ela já estava impressionada, e por muito mais do que apenas Wall Street.

— Está excitado? — Olhou-o com os olhos muito abertos, como se quisesse espreitar-lhe o fundo da alma, e ele receou que o fizesse. Não sabia bem o que ela veria, provavelmente um homem assustado com aquilo que sentia por aquela rapariga... aquela rapariga que já não era criança mas que ainda não era mulher, que o perturbava como nenhuma mulher o perturbara até ali. Não sabia se era apenas a beleza dela, ou o mistério que lhe via nos olhos. Não sabia o que era, nem porquê, mas sabia que nela havia algo raro e diferente. Atormentara-o durante o último ano, apesar dos esforços que fizera para a esquecer. E agora, junto a ela, sentia o corpo retesar-se devido à excitação de estar a centímetros de distância.

— Acho que estou excitado. E assustado. — Parecia ser fácil admiti-lo junto dela. — É um trabalho importante, a minha família ficaria desiludida se não correspondesse às expectativas. — Mas naquele momento a sua família parecia não ter importância. Só Crystal importava.

— Alguma vez voltará à Califórnia? — Os olhos dela estavam tão tristes como se ele a abandonasse, e ambos sentiram a perda ainda antes de ela acontecer.

— Gostaria muito. Mas talvez não volte tão depressa. — A sua voz era calma e triste e, por um momento, arrependeu-se de ter regressado. Teria sido mais fácil se não voltasse a vê-la. Mas não fora capaz de resistir já há semanas que sabia que tinha de a ver, e agora que ela o olhava com olhos sábios e tristes, a solidão em que vivia durante a maior parte do tempo surgiu nos olhos que o observavam. Aquele dia era uma prenda, uma prenda que ela nunca esqueceria. Spencer tornara-se um sonho para Crystal, como os sonhos das estrelas de cinema coladas às paredes do seu quarto. Era tão distante e irreal e, contudo, ela conhecia-o, embora isso não o tornasse mais acessível para ela do que as estrelas de cinema. A única diferença entre ele e elas era o facto de Crystal saber que o amava.

— A Hiroko vai ter um bebé na Primavera — anunciou ela para quebrar um pouco o encantamento, e ele suspirou e afastou o olhar, como se tentasse respirar, obrigando-se a pensar noutra pessoa que não Crystal.

— Fico muito contente por eles — dissse ele, dirigindo-lhe um sorriso meigo, perguntando-se se ela casaria e teria filhos. Talvez se ele ali voltasse um dia, ela já tivesse meia dúzia de crianças agarradas às saias, e um marido que bebia deasiada cerveja e a levava ao cinema ao sábado à noite, se tivesse sorte. Essa deia fê-lo sentir-se doente. Não queria que aquilo lhe sucedesse. Ela merecia mais do que isso. Não era como os outros. Era uma pomba, presa num bando de pavões, e se eles tivessem oportunidade, haveriam de a engolir e até talvez destruir. Ela não merecia isso. Mas Spencer sabia que não poderia fazer nada. — Ela vai ser uma excelente mãe — disse ele, referindo-se a Hiroko, mas por um instante perguntou-se se não se teria querido referir a Crystal.

Esta limitou-se a assentir com a cabeça e a empurrar lentamente o baloiço com um pé. Calçava os mesmos sapatos brancos que levara ao casamento de Becky, no ano anterior, mas desta feita ainda os tinha nos pés, com outro par de belos collants.

— Talvez um dia vás a Nova Iorque. — Ele disse aquilo para se consolar, mas ambos sabiam que era muito pouco provável.

— O meu pai foi lá uma vez. Falou-me da cidade. Spencer sorriu. A sua vida era tão diferente da dela. O coração apertou-se-lhe outra vez ao reconhecer essa verdade.

— Acho que irias gostar. — Ele gostaria de ter tido a oportunidade de lha mostrar... talvez se ela fosse mais velha...

— Prefiro ir a Hollywood. — Crystal olhou para o céu com um ar sonhador, e por momentos voltou a ser uma criança aos olhos dele. Uma criança que sonhava com Hollywood, e que sonhava em ser estrela de cinema. Era um sonho tão louco como o sonho dele de a amar, embora não o tenha dito.

— E quem é que querias ver em Hollywood? — Ele queria saber quem eram as estrelas de quem ela mais gostava, de que é que falava, com quem sonhava. Queria saber tudo a respeito dela, talvez na esperança de se desencantar. Tinha de esquecer aquela rapariga, de uma vez por todas, antes de deixar a Califórnia. Ela atormentara-o todo o ano, e mais de uma vez pensara em visitar Boyd, mas sempre que o fazia sabia que era apenas porque desejava ver Crystal. E co receio da loucura que ela parecia provocar nele, recusara-se a ir, até àquele dia... aquela última vez antes de se ir embora. Mas já era demasiado tarde. Sabia que nunca haveria de a esquecer.

Ela ainda estava a pensar na pergunta dele, quem é que gostaria de ver em Hollywood, e finalmente, com um sorriso nos lábios enquanto se baloiçava, respondeu:

— O Clark Gable. E talvez o Gary Cooper.

— Acho justo. E o que é que gostarias de fazer em Hollywood?

Ela riu-se, brincando com os seus próprios sonhos, e também com ele.

— Gostava de entrar num filme. Ou talvez de cantar. Ele nunca ouvira a voz que encantara toda a gente no vale, mesmo aqueles que não gostavam dela.

— Talvez um dia o faças. — Riram-se ambos com a ideia. Os lmes eram para as estrelas de cinema não para as pessoas reais. E a vida não podia ter sido mais real para ela, apesar de toda a sua beleza. Sabia que a sua vida nunca lhe permitiria entrar num lme. — És suficientemente bonita para isso. Es linda. — A sua voz era suave. O baloiço imobilizou-se de novo e ela olhou para ele. Havia algo inquietante no modo como Spencer dissera aquilo. A força das suas palavras surpreendera ambos, fazendo-os calar, e ela abanou a cabeça com um sorriso triste. Já estava cheia de pena por ele se ir embora.

— A Hiroko é linda, eu no.

— Sim, ela é bonita — concordou ele —, mas tu também. — Falou numa voz tão baixa que ela mal o ouviu.

E de repente, cheia de coragem, fez-lhe a pergunta que a atormentava desde que o vira chegar.

— Porque é que veio cá hoje?

Para ver Boyd... Hiroko... Tom... o bebé de Becky... havia meia dúzia de respostas possíveis, e fora apenas uma que o levara ali. E quando a olhou nos olhos, soube que teria de lhe dizer. E que ela tinha de o saber.

— Queria ver-te antes de partir. — Falou baixinho e ela assentiu corn a cabeça. Era o que quisera ouvir, mas agora as palavras assustavam-na um pouco. Aquele homem tão belo, de outro mundo, viera mesmo para a ver. E não compreendia muito bem o que ele queria dela. Nem o próprio Spencer, o que tornava tudo ainda mais confuso.

Ela saiu do baloiço, aproximou-se dele, e olhou-o com aqueles olhos azuis como alfazema que ele nunca esquecera.

— Obrigada.

Ficaram assim durante muito tempo, e depois, pelo canto do olho Spencer viu o pai dela aproximar-se. Acenava para Crystal e, por um momento, Spencer receou que ele estivesse zangado, como se tivesse lido a mente dele e não gostasse do que vira. Aliás, já há algum tempo que ele os estava a observar, e perguntara-se sobre o que estariam a falar. Havia naquele rapaz algo de que gostava, e sabia que ele estava apenas de passagem. E era bom que um homem daqueles a admirasse. Tad Wyatt teve pena que não houvesse no vale mais pessoas como ele. Mas pensava já noutra coisa quando se aproximou dele, com olhos meigos e um sorriso parecido com o de Crystal.

— Estão com um ar muito sério. Por acaso estarão a resolver os problemas do mundo, ha? — As palavras gracejavam, mas os velhos olhos sabedores avaliaram Spencer. Gostou do que viu. Gostara desde o início, embora soubesse que ele era muito velho para Crystal. Viu algo no rosto da filha que nunca vira, excepto uma ou duas vezes, quando ela o olhara com adoração. Mas desta vez era diferente, um misto de alegria e de tristeza. E de repente, Tad Wyatt percebeu que a sua menina se transformara numa mulher. Virou-se para Spencer e falou-lhe na sua voz profunda e calma.

— Vai receber um presente, capitão Hill. — Sorriu orgulhoso para a ilha: — isto é, se a Crystal concordar. Os convidados gostariam que cantasses um bocadinho. Aceitas?

Ela corou e abanou a cabeça, a longa cabeleira loira ocultando-lhe metade do rosto, as árvores lançando sombras na outra metade. Nesse momento, o sol reflectiu-se no seu cabelo cor de platina e ambos os homens se quedaram mudos devido à sua beleza. Então ela olhou para o pai e os olhos cor de alfazema pareceram sorrir com timidez.

—Há aqui muitas pessoas... não é como na igreja.

— Isso não tem importância nenhuma. Vais esquecê-las assim que começares. — Adorava ouvir a voz dela quando cavalgavam pelas colinas, uma voz que tinha a mesma qualidade arrebatadora e explosiva de um nascer do Sol brilhante, e nunca se cansava das suas canções. — Alguns dos homens trouxeram guitarras. É só uma ou duas canções para animar a festa. — Os olhos dele imploraram-lhe, e ela era incapaz de lhe recusar fosse o que fosse, embora ficasse atrapalhada com a ideia de ir cantar em frente a Spencer. Se calhar ele ia pensar que ela era estúpida. Mas ele juntou-se ao pedido de Tad, incitando-a, e quando os olhares de ambos se encontraram houve um longo momento de silêncio entre ambos, um momento que disse tudo aquilo que não ousavam dizer. E, durante um segundo, ela pensou que aquela podia ser a sua prenda para ele, algo que o fizesse recordá-la. Assentiu tranquilamente e seguiu o pai devagar até junto dos outros convidados. Spencer voltou para o pé de Boyd e Hiroko. Ela olhou para trás uma vez e viu que ele a observava. Mesmo à distância, sentia o amor que lhe ia nos olhos. Um amor que nenhum deles compreendia, que fora concebido no ano anterior e alimentado durante um ano inteiro até se reencontrarem. Era um amor que não podia levar a parte alguma, mas pelo menos tinham isso para guardar quando ele se fosse embora.

Ela tirou uma guitarra das mãos de um dos homens e sentou-se num banco. Outros dois homens juntaram-se-lhe e sorriram para ela com admiração. Olivia observava-a do alpendre, aborrecida como sempre com o facto de Tad a ter escolhido para dar espectáculo. Mas também sabia que as pessoas gostavam de ouvir a filha cantar. Até algumas mulheres ficavam mais brandas quando a ouviam cantar na igreja. E quando ela cantava Amaing Grace, as lágrimas vinham-lhes aos olhos. Mas desta vez ela escolheu as baladas preferidas do pai, aquelas que costumavam cantar quando saíam a cavalo de manhã cedo, e dali a minutos a multidão juntou-se à sua volta. Ninguém disse uma palavra enquanto ouviam aquela voz forte e segura a enfeitiçá-los. A sua voz era tão inesquecível como o seu rosto, e Spencer fechou os olhos e deixou-se vogar na sua beleza pura e doce. O poder a voz de Crystal enfeitiçava-o. A jovem interpretou quatro canções, e as últimas notas pareceram subir para o céu de Verão como anjos a voar para o céu. Houve um longo silêncio quando ela parou, e todos a olharam com surpresa renovada. Já a tinham ouvido cantar centenas de vezes, mas de cada vez que a ouviam, ficavam sempre comovidos. Houve uma explosão de aplausos, Tad limpou os olhos, como habitualmente, e passados alguns minutos a multidão dispersou-

-se, regressando às suas conversas e aos seus copos. Mas por um momento ela fizera com que todos se apaixonassem por si. E durante um longo período de tempo depois de a ter ouvido, Spencer foi incapaz de falar com quem quer que fosse. Queria voltar a conversar com Crystal, mas ela fora algures com o pai e só a voltou a ver quando chegou a altura de partr. Estava junto dos pais, a apertar a mão às pessoas que lhes agradeciam o almoço e juntavam os filhos.

Spencer também lhes agradeceu, mas quando ficou com a mão dela na sua, assustou-se com o facto de o momento entre ambos ser tão fugaz. Talvez nunca mais a voltasse a ver, e essa ideia era insuportável. Quando a olhou nos olhos teve vontade de ficar para sempre do seu lado.

— Não me disseste que cantavas tão bem. — Falou num murmúrio, e os olhos acariciavam-na. Mas ela riu-se, parecendo de novo uma rapariga, e ficando um pouco atrapalhada com o elogio inesperado. As canções que cantara haviam-

-lhe sido dirigidas, e Crystal perguntou-se se ele saberia disso. — Afinal talvez vás para Hollywood.

Ela tornou a rir, o som tão musical como o fora o seu canto.

— Não me parece, senhor Hill... não me parece mesmo.

— Espero que nos tornemos a encontrar. — Os olhos dele estavam muito sérios, e ela assentiu.

— Também eu. — Mas ambos sabiam que era pouco provável.

E de repente, Spencer não conseguiu impedir-se de dizer aquelas palavras.

— Não te hei-de esquecer Crystal... nunca... toma cuidado contigo. Tem uma vida boa... não cases com ninguém que não te mereça... não me esqueças... — O que lhe poderia ele dizer sem parecer u idiota? Não podia dizer que a amava.

— O senhor também. — Ela abanava a cabeça com solenidade. Sabia que dali a dias ele iria para Nova Iorque, e os seus caminhos não tornariam a cruzar-se. Um continente, um mundo, toda uma vida os iria separar para sempre.

Depois, sem dizer mais nada, ele inclinou-se e beijou-a ao de leve na face. Momentos depois partira, afastando-se do rancho no seu automóvel, o coração como uma rocha no peito. Crystal permaneceu ligeiramente afastada dos outros, a observá-lo.

 

A caminho de casa Spencer saiu no desvio antes da ponte de Golden Gate e encostou o carro. Precisava de algum tempo para pensar, para se recompor e para recordar. Crystal atormentara-o durante um ano, e agora tornava a fazê-lo, apenas horas depois de a ter deixado. O vale parecia agora uma recordação muito vaga, e só conseguia pensar no rosto dela... nos seus olhos... no modo como o olhara... na sua voz a cantar baladas. Era um pássaro raro e ele sabia que a perdera para sempre na floresta. Não havia maneira de poder voltar para junto dela. Crystal era uma rapariga de dezasseis anos que vivia num remoto vale da Califórnia. Nada sabia da sua vida. E mesmo que soubesse, não a poderia entender. Estava quase fora do seu alcance. O que sabia ela de Wall Street e de Nova Iorque, e das obrigações que ele teria de cumprir? A família esperava muito dele, e em nenhuma parte dos seus planos havia lugar para uma rapariga do campo, a simples criança por quem ele se apaixonara acidentalmente. Uma rapariga que mal conhecia, recordou ele. Os seus pais não teriam entendido. Como o poderiam, se ele próprio também não entendia? E tal como os sonhos dela com Hollywood e com estrelas de cinema Spencer também tinha os seus sonhos. Mas esses sonhos haviam-se alterado quando o seu irmão morrera em Guam. E agora ele tinha não apenas de viver a sua vida como também de seguir as aspirações do irmão. Era isso que a família esperava dele, e pelo menos iria tentar. E que sabia Crystal de tudo isso? Não conhecia nada, excepto o vale onde nascera. Sabia que agora teria de a esquecer. Sorriu com tristeza e olhou para a baía e para a ponte, pensando nela. Recordou-se que estava a ser idiota. Ficara deslumbrado com uma rapariga bonita, o que só servia para lhe provar que a partir de agor precisava de seguir a sua vida. Precisava de mais do que a faculdade e de alguns hambúrgueres em Paio Alto com colegas bonitas para se divertir. Havia um mundo inteiro à sua espera. Um mundo que não tinha lugar para Crystal Wyatt, apesar de ela ser encantadora e de ele se sentir enlevado naquele momento. Spencer regressou ao automóvel, perguntando-se o que diria o pai se lhe contasse que se apaixonara por uma rapariga de dezasseis anos em Alexander Valley.

— Adeus, pequena — murmurou ele ao atravessar a ponte Golden Gate pela última vez. Tinha de ir a um jantar nessa noite. Era um dever, fora o pai quem lhe pedira. Não estava com disposição, mas sabia que tinha de a tirar da cabeça. Ela já partira. Mas longe ou não, sabia que nunca a esqueceria.

Estava instalado no Hotel Fairmont durante os últimos dias que passava na cidade, e ficara num quarto com uma vista arrebatadora, só para se recordar do que nunca mais veria. Quase estava arrependido de não ter procurado emprego em São Francisco, mas esses não eram os seus planos. Prometera aos pais que voltaria a casa, e sabia bem o que esperavam dele. O pai tinha sido advogado até à guerra, altura em que fora nomeado juiz, e as suas aspirações não o levariam mais longe. Mas sempre tivera planos mais grandiosos para os filhos, especialmente para o irmão mais velho de Spencer, Robert. Robert fora morto em Guam, deixando uma viúva jovem e dois filhos. Estudara ciências políticas em Harvard e ambicionava ser político. Falara em querer ser congressista e Spencer sonhara em ser médico. Mas a guerra alterara tudo isso. Com quatro anos de atraso, não se imaginava a passar mais outros tantos anos a estudar Medicina, e a Faculdade de Direito fora a escolha certa. O juiz Hill garantira-lho, e Spencer sabia que o pai ambicionava ser juiz de um tribunal de apelação. Mas o ónus da prova recaía nos ombros de Spencer. Era ele que tinha de seguir as pisadas de Robert. A família Hill era bastante sólida, os antepassados da mãe tinham chegado a Boston com os peregrinos. O pai era de origem mais humilde, mas trabalhara com muito anco para subir e conseguira chegar à Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. E agora davam muita importância a que Spencer fizesse algo de «importante» na vida.

 

Imigrantes ingleses puritanos que se estabeleceram na Nova Inglaterra em 1620 e fundaram a colónia de Plymouth em Massachusetts. (N. do T.)

 

E para eles «importante» não incluía ua rapariga coo Crystal. Robert tinha, é claro, casado bem. Sepre zera aquilo que os pais queriam, e Spencer tivera liberdade para fazer o que bem entendesse. Mas, de repente, com a morte do irmão mais velho, ele achava que era sua obrigação compensá-los, que devia seguir os passos do irmão que nunca haviam sido adequados para si e que agora tinham de ser. A entrada na Faculdade de Direito fizera parte disso. E o regresso a Nova Iorque. E Wall Street... Não conseguia imaginar-se lá, e contudo, fizera os três anos da faculdade em apenas dois precisamente a preparar-se para isso. Mas Wall Street parecia uma coisa tão enfadonha. Se ele conseguisse transformá-la em algo útil, usá-la como degrau para uma coisa melhor, talvez conseguisse suportá-la. Olhou pela janela do quarto enquanto pensava nisso, fitando um ponto vago muito distante, recordando o lugar onde deixara Crystal. ' Suspirou e depois voltou-se para o quarto. A carpete era espessa, a mobília nova e sobre ele encontrava-se um enorme candelabro. Contudo, só conseguia pensar no rancho... e nas colinas... e na rapariga do baloiço. Restavam-lhe mais duas noites. Duas noites antes de ter de prosseguir a vida que tão inesperadamente herdara de Robert. Por que motivo não teria ele ficado vivo? Porque não poderia estar ali a fazer o que os outros esperavam que ele fizesse, a trabalhar na maldita Wall Street? Saiu do quarto com passadas largas e bateu com a porta. Às oito horas tinha de estar em casa de Harrison Barclay. Era um amigo do pai, um juiz federal com ligações políticas muito boas. Até já havia comentários de que um dia talvez chegasse ao Supremo Tribunal. E o pai de Spencer insistira para que o filho o fosse ver. Spencer visitara-o uma vez no ano anterior, e telefonara havia algumas semanas a comunicar que se formara em Stanford e que iria regressar a Nova Iorque para trabalhar numa firma de prestígio. Harrison Barclay ficara muito satisfeito por ele e insistira em tê-lo como convidado para jantar antes de partir. Ia ser uma obrigação, mas Spencer sabia que era apenas a primeira da sua vida e que era melhor começar a habituar-se. Regressara ao hotel a tempo de tomar um duche, de fazer a barba e mudar de roupa, e desceu à pressa para o átrio de entrada. No entanto, não estava com disposição para ver ninguém, muito menos Harrison Barclay.

A residência dos Barclay ficava entre a Divisadero e a Broadway, e era uma casa muito bonita, em tijolo. O mordomo abriu-lhe a porta e quando foi conduzido para o interior ouviu os ecos de uma festa, o que o deprimiu ainda mais. Durante um momento, duvidou que fosse capaz de resistir. Teria de falar e de se mostrar encantador, parecer inteligente junto dos amigos dos anfitriões, e isso era a última coisa que desejava fazer naquela noite. Só lhe apetecia sentar-se calmamente algures, com os seus pensamentos e os seus sonhos com uma rapariga que mal conhecia... uma rapariga que faria dezasseis anos dali a dois dias.

— Spencer! — A voz troante do juiz fez-se ouvir quase no momento em que ele entrou na sala, e Spencer sentiu-se como um estudante que fora empurrado para uma sala cheia de professores.

— Boa noite, sir. — Exibiu um sorriso caloroso e um olhar sério ao cumprimentar o amigo do pai, e apertou a mão à senhora Barclay. — E bom voltar a vê-lo. Boa noite, senhora Barclay.

O juiz Barclay levou-o imediatamente a reboque, apresentando-o às pessoas que se encontravam na sala e explicando que ele acabara de se formar pela Faculdade de Direito de Stanford. Disse quem era o pai dele e Spencer fez um esforço sobre-humano para não se encolher. De repente, apeteceu-lhe sair dali. Mas sentia-se quase incapaz fisicamente de o fazer.

Tinham sido convidadas doze pessoas para o jantar dessa noite, e uma delas cancelara no último minuto. A esposa de outro juiz torcera o pé a caminho de casa depois de uma partida de golfe, mas o marido viera. Era um velho amigo dos Barclay, e sabia que eles não se iriam importar, mas Priscilia Barclay ficou aterrorizada quando contou os convidados. Eram treze, incluindo os anfitriões, e sabia bem como dois dos convidados eram supersticiosos. Com tão pouca antecedência, nada podia fazer para remediar a situação. O jantar iria ser servido dali a meia hora, e só lhe restou pedir à filha que lhes zesse companhia ao jantar. Subiu as escadas a correr e bateu à porta do quarto dela. Elizabeth estava quase de saída para uma festa. Tinha dezoito anos, era atraente e envergava urn vestido coprido preto e um colar de pérolas.

— Querida, preciso da tua ajuda. — A mãe lançou uma olhadela ao espelho, endireitou o seu colar de pérolas, passou uma mão pelo cabelo e virou-se para a filha com um ar suplicante. — A mulher do juiz Armistead torceu o tornozelo.

— Oh! Céus, ela está lá em baixo? — Elizabeth Barclay tinha um ar imperturbável, ao contrário da mãe.

— Não, claro que não. Telefonou a dizer que não podia vir. Mas ele veio. E agora vamos ser treze à mesa.

— Finge que não reparaste. Talvez ninguém dê por isso. — Calçou os sapatos de cetim pretos que a fizeram de imediato mais alta do que a mãe. Elizabeth tinha dois irmãos mais velhos, um no Governo, em Washington, D.C., e o outro advogado em Nova Iorque. Mas era a única filha dos Barclay.

— Não posso fazer isso. Sabes bem como são a Penny e a Jane. Uma delas vai-se embora, e depois fico com duas mulheres a menos. Querida, não me podes ajudar?

— Agora? — Parecia aborrecida. — Mas eu vou ao teatro. — Ia com um grupo de amigos, embora tivesse de admitir que não estava muito excitada com a ideia. Era uma daquelas raras vezes em que não tinha companhia masculina, pois haviam decidido ir todos juntos à última hora.

— É importante? — A mãe olhou-a bem nos olhos. — Preciso mesmo de ti.

— Oh, por amor de Deus! — Olhou para o relógio, e depois assentiu. Talvez não fosse má ideia. Também não lhe apetecia ir. Na noite anterior deitara-se às duas da manhã, pois estivera num baile de debutantes, tal como fazia quase todas as noites desde que acabara o liceu. Tinha-se divertido bastante e na semana seguinte iriam para a casa junto ao lago Tahoe. — Está bem, mãe. Vou telefonar-lhes. — Esboçou um sorriso gracioso e ajeitou a dupla ada de pérolas parecida com a da mãe. Era uma rapariga bonita, mas demasiado reservada para dezoito anos de idade. Em muitos aspectos, parecia bastante mais velha. Conversava com adultos havia muitos anos e os pais haviam-se esforçado por a fazer participar nas conversas, que consideravam interessantes, que tinham com os amigos. Os irmãos tinham dez e doze anos de diferença dela, e durante anos Elizabeth fora tratada como uma adulta. Para além disso, adquirira o grande autodomínio que era peculiar aos Barclay. Era sempre circunspecta e muito bem-comportada, e já com dezoito anos era uma verdadeira senhora. — Desço já.

A mãe dirigiu-lhe um sorriso de gratidão e Elizabeth sorriu também em resposta. Tinha cabelo castanho-avermelhado muito farto, cortado à pajem, e grandes olhos castanhos. Possuía uma pele macia e branca, uma cintura fina e era uma excelente jogadora de ténis. Mas na rapariga não havia muito ardor, havia sim um excesso de boa educação e um cérebro inteligente que lhe granjeara inúmeros admiradores entre os amigos dos pais. Mesmo no seu grupo era temida e respeitada. Elizabeth Barclay não era pessoa com quem se brincasse. Era uma rapariga séria com uma mente curiosa, uma língua afiada e opiniões muito sólidas. Não havia dúvida de que iria para a faculdade no Outono. Tinha de escolher entre Radcliffe, Wellesley e Vassar.

Dez minutos mais tarde, desceu silenciosamenteas escadas depois de ter ligado aos amigos e de se ter desculpado com a explicação de que surgira uma pequena crise, sendo necessária a sua presença em casa. Na vida de Elizabeth a única crise era ter um convidado a menos para o jantar, ou não ter à mão o vestido indicado porque estava na costureira a arranjar. Nunca houvera desastres reais na sua vida, nenhum vestígio de desilusão ou dificuldade. Não havia nada que os pais não fizessem por ela, nada que o pai não suavizasse ou não lhe comprasse. E, apesar de tudo, não era mimada. Esperava apenas um certo tipo de vida e que aqueles que a rodeavam se portassem com decoro. Não era como as outras raparigas da sua idade. A sua infância parecia ter terminado quando ela fizera dez ou onze anos. A partir dali, portara-se como um adulto, alguém bem-vindo a um camarote na ópera ou à mesa de jantar. Mas não se divertia muito. A diversão não era importante para Elizabeth Barclay. Os objectivos, sim. E acções que tivessem significado.

Os convidados estavam a acabar as bebidas quando ela desceu e olhou em redor e busca de rostos familiares. Só hvia um casal que não conhecia, e a mãe apresentou-lho: eram velhos amigos do pai, de Chicago. E depois viu outro rosto desconhecido, por sinal bastante atraente, a conversar calmamente com o juiz Armistead e o seu pai. Observou-o rapidamente enquanto retirava uma taça de champanhe do tabuleiro de prata que o mordomo segurava, e sorriu quando atravessou a sala em direcção ao pai.

— Bem, bem, esta noite temos muita sorte, Elizabeth. — O pai sorriu, dirigindo-lhe um olhar ligeiramente provocador. — Arranjaste tempo para nós na tua agenda tão preenchida? Que espantoso! — Colocou com afecto um braço sobre os ombros da filha e ela sorriu-lhe. Sempre fora muito chegada ao pai, e era fácil ver que ele a adorava.

— A mãe teve a amabilidade de me pedir que me juntasse a vós.

— Que ideia tão acertada! Já conheces o juiz Armistead, Elizabeth, e este senhor é o Spencer Hill, de Nova Iorque. Acabou de se formar em Direito em Stanford.

— Parabéns. — Ela esboçou um sorriso distante e ele avaliou-a com um ar apreciativo. Era muito segura de si, e calculou que tivesse vinte e um ou vinte e dois anos. Havia na rapariga um certo verniz que a fazia parecer mais velha, e um ar de sofisticação provocado pelo vestido preto caro, pelas pérolas e pelo modo como o olhou bem nos olhos quando lhe apertou a mão. Parecia uma rapariga habituada a conseguir tudo o que queria. — Deve estar muito satisfeito — acrescentou com um sorriso cortês enquanto ele a observava.

— Estou. Obrigado. — Perguntou-se o que faria ela, talvez jogasse ténis e fosse às compras com as amigas ou com a mãe, mas ficou admirado com a frase seguinte do pai dela.

— A Elizabeth vai para Vassar no Outono. Tentámos convencê-la a entrar em Stanford, mas não deu resultado. Ela está decidida a ir para oeste e a deixar-nos aqui, cheios de saudades. No entanto, espero que os invernos frios a convençam de que é melhor estar aqui. A mãe e eu vamos sentir muito a falta dela. — Elizabeth sorriu com aquelas palavras, e Spencer ficou admirado com a pouca idade dela. As raparigas de dezoito anos haviam-se modificado muito nos últimos tempos. E quando olhou para ela, apercebeu-se que Elizabeth era tudo o que Crystal não era.

— É uma excelente faculdade Miss Barclay — disse Spencer num tom amigável mas distante. — A minha cunhada estudou lá. Estou certo de que irá gostar.

E devido àquelas palavras, ela presumiu que ele era casado. Nunca lhe ocorreu que pudesse estar a referir-se à mulher do irmão. Por breves momentos, ficou desiludida. Spencer era um homem atraente e havia nele um certo magnetismo.

Nessa altura, o mordomo anunciou que o jantar iria ser servido, e Priscilla Barclay conduziu suavemente os convidados até à sala de jantar. Tinha um chão de mármore preto e branco, paredes com painéis de madeira e um lindíssimo candelabro de cristal sobre uma pesada mesa oval. Nela encontravam-se alguns castiçais com velas acesas, um serviço Limoges branco e dourado e copos de cristal que captavam a luz das velas e a reflectiam para a prata. Os naperões eram grandes e pesados, bordados com o monograma da mãe de Priscilla Barclay, e os convidados ocuparam calmamente os seus lugares indicados pela anfitreã. É claro que à frente de cada lugar havia um cartão, sustentado por um pequeno suporte de prata. Elizabeth ficou contente ao ver-se sentada ao lado de Spencer. Soube de imediato que a mãe tinha reordenado a disposição dos convivas.

A entrada foi salmão fumado e ostras pequenas. Quando veio o prato principal, já Elizabeth e Spencer estavam em amena cavaqueira. Ele ficou de novo admirado com a inteligência dela e com tudo o que sabia. Parecia não desconhecer nada sobre política externa ou interna, história e arte. Era uma rapariga extraordinária, e ele tivera razão; iria sair-se muito bem em Vassar. Em muitas coisas, achava-a parecida com a mulher do irmão, só que melhor. Não era nada exibicionista nem gostava de ostentaçes. Tudo nela era inteligência e boas maneiras. Até fez questão de falar com o homem sentado à sua direita, outro dos amigos do pai, e depois tornou a virar-se para Spencer.

— Então, senhor Hill, o que vai fazer agora, acabado de sair de Stanford? — perguntou ela, olhando-o com interesse e firmeza. Por momentos, ele sentiu-se mais novo do que ela, e se tivesse bebido menos isso tê-lo-ia enervado.

— Vou trabalhar para Nova Iorque.

— Já arranjou emprego? — Mostrava-se interessada e demasiado directa. Não via qual a vantagem de perder tempo. De certa forma, isso agradou a Spencer. Não gostava dejoguinhos, e se ela lhe podia fazer perguntas, ele achava-se no direito de fazer o mesmo. Era ais fácil do que namoriscar.

— Sim, tenho. Na Anderson, Vincent e Sawbrook.

— Estou impressionada. — Bebeu um gole de vinho e sorriu-lhe.

— Conhece-a?

—Já ouvi o meu pai falar nela. E a maior firma de Wall Street.

— Agora sou eu que estou impressionado — brincou ele, mas falava a sério. — Sabe muitas coisas para uma rapariga de dezoito anos. Não admira que vá para Vassar.

— Obrigada. Já há anos que me sento a mesas de jantar. Acho que de vez em quando é bastante útil. — Mas era mais do que isso. Ela era muito inteligente, e se estivesse com melhor disposição, Spencer poderia até ter-se apaixonado. É claro que nela não havia mistério, nem poesia, nem magia, mas sim um espírito muito sagaz e uma frontalidade incrível que o intrigava. E Elizabeth era muito bonita, de uma beleza nobre e tranquila. Isso era cada vez mais visível à medida que a noite passava e ele continuava a beber o vinho de Harrison Barclay. Era uma maneira estranha de terminar o dia, que começara com um baptizado em Alexander Valley. Mas não conseguia imaginar Crystal ali. Apesar do que sentia por ela, a rapariga não tinha lugar naquela mesa. Naquele ambiente não conseguia imaginar mais ninguém senão aquela rapariga, com os seus francos olhos castanhos e maneiras directas. Contudo, enquanto a ouvia, o seu coração chorava por Crystal.

— Quando é que deixa São Francisco?

— Daqui a dois dias. — Disse-o com pena, mas por razões que nenhum deles compreendia inteiramente. Spencer não conseguia entender a dor que sentia desde essa tarde, ao regressar a São Francisco. E ela achava que não havia nada mais excitante do que ir para Nova Iorque. Mal podia esperar por Setembro.

— É pena. Estava com esperança de que nos fosse visitar ao lago Tahoe.

— Gostaria muito, mas tenho imensas coisas a fazer. Começo a trabalhar daqui a duas semanas, e isso não me deixa muito tempo para me instalar antes de submergir num mar de papéis em Wall Street.

— Sente-se excitado? — Os olhos dela tornaram a sondar os dele, e Spencer decidiu não fingir.

— Para dizer a verdade, não sei bem. Ainda estou a tentar descobrir por que motivo fui para a Faculdade de Direito.

— O que é que gostaria de ter feito em vez disso?

— Medicina, se não tivesse ido para a tropa. Acho que a guerra veio alterar a vida de todos... para muitos ainda mais do que para mim. — Ficou pensativo durante um momento, a pensar no irmão. — Tive muita sorte.

— Acho que não tem muita sorte por ser advogado.

— Acha? — Ele sentiu-se de novo divertido. Ela era uma rapariga intrigante, e Spencer pressentiu que não havia uma grama de fraqueza ou de indecisão em Elizabeth Barclay. — Porquê?

— Eu também gostaria de tirar Direito. Depois de Vassar. Ele ficou impressionado, mas não totalmente surpreendido.

— Então é isso que deve fazer. Mas não preferia casar-se e ter filhos? — Parecia-lhe ser uma opção mais natural, e não era provável que um homem gostasse que ela fizesse as duas coisas. Em 1947 era necessário optar por uma ou por outra. Parecia-lhe ser um preço muito elevado a pagar. No lugar dela, ele preferiria ter marido e filhos, mas Elizabeth não parecia convencida.

— Talvez. — Por um instante, pareceu jovem e insegura, depois encolheu os ombros, enquanto a sobremesa era servida. Em seguida, surpreendeu-o com a pergunta seguinte.

— Como é a sua mulher, senhor Hill?

—Desculpe? Eu... lamento... o que é que a fez pensar que era casado? — Parecia horrorizado, mas depois riu-se.

Teria ele um aspecto tão envelhecido que fosse inconcebível não ser casado? Se assim era Crystal devia tê-lo achado muito velho. Ainda pensava nela, mesmo quando se obrigava a conversar com Elizabeth Barclay, embora ela fosse uma pessoa com quem não era difícil falar. Mas o seu espírito vagueava por longe, bem como um pedaço do seu coração que parecia tê-lo traído.

Pela primeira vez, Elizabeth pareceu perplexa, e ele reparou que ela corava sob aquele bem penteado cabelo castanho-avermelhado.

—Julguei que tinha dito... falou na sua cunhada no princípio da noite... calculei...

Ele riu-se enquanto ela gaguejava, e abanou a cabeça, os olhos azuis brilhando à luz das velas.

— Receio bem que não. Estava a referir-me à viúva do meu irmão.

— Ele foi morto na guerra?

— Sim, foi.

— Lamento muito.

Ele assentiu e o café foi servido. As senhoras retiraram-se a um sinal de Priscilla Barclay. Ela agradeceu à filha quando saíram da sala.

— Obrigada, Elizabeth. Teria ficado numa situação difícil se não fosses tu.

Ela sorriu para a mãe e pôs um braço em volta dos seus ombros. Priscilla Barclay ainda era bonita, embora já tivesse mais de sessenta anos.

— Diverti-me. Gosto do Spencer Hill. Aliás, gosto ainda mais agora que ele me disse que não era casado.

— Elizabeth! — A mãe fingiu estar chocada, mas na realidade não estava, e Elizabeth sabia-o. — É demasiado velho para ti. Tem quase trinta.

— É o que me convém, e talvez fosse divertido vê-lo em Nova Iorque. Vai trabalhar para a Anderson, Vincent e Sawbrook.

A mãe assentiu em silêncio e afastou-se para conversar com as convidadas. Passado pouco tempo, os cavalheiros Juntaram-se-lhes. A festa acabou pouco depois disso, e Spencer agradeceu aos Barclay o convite e fez questão de se despedir da filha deles.

— Boa sorte na faculdade.

— Obrigada. — Os olhos dela eram ternos, e pela prieira vez ele apercebeu-se de que gostava dela. Era mais agradável do que a mulher de Robert e, na realidade, muito mais inteligente. — Boa sorte no seu novo emprego. Vai sair-se lindamente, tenho a certeza.

— Tentarei recordar-me disso daqui a um mês ou dois, quando estiver com saudades da vida fácil em Stanford. Talvez nos encontremos em Nova Iorque.

Ela dirigiu-lhe um sorriso encorajador e a mãe aproximou-se deles, agradecendo a Spencer a sua vinda.

— Tem de ir vigiando a Elizabeth por nós lá em Nova Iorque.

Ele sorriu, pensando que seria pouco provável voltar a encontrá-la, mas era sempre muito bem-educado. Achava que as caloiras eram demasiado novas para si... e depois, é claro, havia Crystal...

— Avise-me se for à cidade.

— Assim farei. — Ela dirigiu-lhe um sorriso caloroso, tornando a parecer mais jovem, e pouco depois ele despediu-se. Regressou a Fairmont a pensar nela e nas suas conversas interessantes. Talvez Elizabeth tivesse razão, pensou. Talvez devesse tirar Direito. Seria um desperdício acabar como mulher de alguém, a jogar brídege e a tagarelar com outras mulheres. Mas não foi com Elizabeth que ele sonhou naquela noite, quando finalmente adormeceu já muito tarde... foi com a rapariga de cabelo cor de platina e olhos da cor do céu de Verão... a rapariga que cantara como se o seu coração'se fosse despedaçar... No seu sonho, ela estava no baloiço, observando-o, e ele nunca conseguia alcançá-la. Acordou bastantes vezes durante a noite e dormiu poucas horas. Ao romper do dia já estava levantado, vendo o Sol elevar-se lentamente sobre a baía, enquanto a cento e sessenta quilómetros de distância, Crystal caminhava descalça pelo campo, pensando nele ao dirigir-se para o riacho a cantarolar.

 

Spencer trabalhou afanosamente no dia seguinte, tentando deixar tudo arrumado. Foi despedir-se de alguns amigos e desejar-lhes boa sorte. Lamentou a sua decisão de regressar a Nova Iorque, e prometeu a si próprio que em breve voltaria. Foi um dia triste para ele, e nessa noite deitou-se cedo.

Na manhã seguinte apanhou o primeiro avião para Nova Iorque. Era o dia do décimo sexto aniversário de Crystal. Os pais estavam à sua espera, e ele sentiu-se um idiota ao ser saudado como um herói conquistador. Até Barbara, a viúva de Robert, lá estava, com as duas filhas. Comeram uma refeição tardia em casa dos pais, e Barbara teve de levar as filhas a casa antes que adormecessem à mesa.

— Então, filho? — perguntou o pai, na expectativa depois de a nora e de as netas saírem e de a mulher se ter ido deitar. — Que tal é estar de novo em casa? — Sentia-se ansioso por ouvir uma resposta encorajadora. Spencer estivera ausente durante seis longos anos entre a guerra e os dois anos em Stanford, e estava muito alivado por tê-lo de volta a Nova Iorque, donde nunca devia ter saído. Era altura de Spencer assentar e ser «alguém», tal como teria feito Robert se fosse vivo.

— Não sei bem o que é que sinto. — Spencer foi sincero para o pai. — Está tudo na mesma, mais ou menos, desde a última vez que cá estive. Nova Iorque não mudou. — Não acrescentou aquilo que estava a pensar: «Mas eu sim.»

— Espero que sejas feliz aqui. — William Hill não tinha dúvidas acerca disso.

— Estou certo que sim, pai, obrigado. — Contudo, sentia-se menos seguro do que já alguma vez se sentira. Parte dele ansiava por voltar à Califórnia. — A propósito, estive com o juiz Barclay antes de me vir embora. Ele manda-lhe cumprimentos.

William Hill assentiu, satisfeito.

— Um dia destes vai para o Supremo Tribunal, atenta bem no que te digo. Isso não me surpreenderia nada. Os filhos dele também são homens bons. O mais velho esteve outro dia na minha sala de audiências. É um excelente advogado.

— Espero que um dia alguém diga isso a meu respeito. — Spencer sentou-se no sofá do escritório do pai, e passou a mão pelo cabelo com um suspiro de cansaço. Fora um dia longo, uma semana longa... uma guerra longa... e, de repente, a lembrança do que iria ter de enfrentar deprimiu-o.

— Fizeste o que devias fazer Spencer. Nunca duvides disso.

— Como é que pode ter tanta certeza? — «Eu não sou o Robert, pai... sou eu...» Mas Spencer sabia que não podia dizer aquilo. — E se eu detestar a Anderson, Vincent e Sawbrook?

— Então irás trabalhar para o departamento jurídico de uma empresa. Com um curso de Direito, podes fazer quase tudo o que quiseres. Exercer por conta própria, trabalhar numa empresa... enveredar pela política... — Disse a palavra num tom de esperança: era ali que estavam as suas verdadeiras aspirações, e Spencer seria perfeito para esse cargo. Tal como fora o irmão, antes dele. Robert, a sua esperança, desfeita com tanta rapidez. — A Barbara está com bom aspecto, não está?

— Sim. — Spencer assentiu, perguntando-se se o pai o conheceria. — Como é que ela tem passado?

— As coisas não têm sido fáceis. Mas está a recuperar, creio — disse ele, e virou-se um momento para que Spencer não lhe visse as lágrimas nos olhos. — Creio que estamos todos. — Depois virou-se e sorriu para o filho. — Alugámos uma casa em Long Island. A tua mãe e eu achámos que poderias apreciar a mudança. A Barbara e as crianças estão lá até ao final de Agosto. — Era estranho regressar ao seio da família: já não estava certo de ser ali o seu lugar. Tinha vinte e dois anos quando fora para a guerra e muita coisa mudara desde essa altura. Acontecera muita coisa que o transformara. E agora, com Robert desaparecido, sentia que regressara para viver não a sua vida mas a de Robert.

— É muito simpático da sua parte, pai. Não sei se terei muito tempo livre depois de começar a trabalhar.

— Terás os fins-de-semana.

Spencer assentiu. Esperavam que ele fosse outra vez um rapaz, o filho mais novo. Sentiu que perdera a sua vida algures na viagem de regresso da Califórnia.

— A ver vamos. Tenho de arranjar um apartamento esta semana.

— Podes ficar aqui até te orientares.

— Obrigado, pai. — Levantou os olhos e, pela primeira vez, o pai pareceu-lhe velho; velho e a alimentar esperanças que tinham morrido com o irmão de Spencer. — Fico-lhe muito grato. — E acrescentou, por curiosidade: — A Barbara anda a sair com alguém? — Afinal, já tinham passado três anos, e ela era uma rapariga bonita. Fora o par ideal para Robert. Ambiciosa, calma, inteligente, muito bem-educada, a esposa perfeita para um futuro político.

— Não sei — respondeu o pai com franqueza. — Não falamos no assunto. Devias levá-la a jantar um dia destes. Ela ainda deve sentir-se muito sozinha.

Spencer concordou. Também queria voltar a ver as sobrinhas, mas naquele momento tinha muito em que pensar. E sentia-se muito tenso devido a tudo o que esperavam dele.

Quando caiu na cama nessa noite estava exausto. O impacte daquilo que o esperara parecia ter caído nos seus ombros com um peso esmagador, e teve vontade de chorar antes de adormecer. Sentia-se como uma criança que se perdera a caminho de casa. A única coisa que sabia era que tinha de encontrar um apartamento, a sua vida, e depressa.

 

O resto do Verão pareceu passar devagar. Crystal ajudava no rancho, e de vez em quando ia brincar com o filho de Becky. Tom estava sempre fora, nas vinhas com Tad ou na cidade com os amigos. EJared passava todos os momentos livres com a namorada, em Calistoga. Era como se de repente tivesse cado sozinha, sem ninguém para lhe fazer companhia e sem ninguém com quem conversar. Começou a visitar Hiroko cada vez com maior frequência. Crystal costumava encontrá-la a ler, a coser ou a desenhar com pena e tinta, e uma vez até ensinou Crystal a escrever em haiku. Era uma mulher amável com um coração meigo, que possuía uma cultura que fascinava Crystal. Ensinou-lhe a fazer pequenos pássaros origami, e mostrou-lhe como a mãe a ensinara a fazer arranjos de flores. Nela não havia vaidade por saber tantas coisas, vaidade essa muito comum nas ocidentais; tudo nela era calmo, discreto e muito subtil. E, tal como Crystal, sentia-se muito sozinha. Ainda não tinha amigos nos familiares de Boyd, percebia agora como todos a detestavam e suspeitava que nunca nada se iria alterar. Por esse motivo, sentia-se ainda mais grata pelas visitas de Crystal, e as duas mulheres tornaram-se boas amigas durante a gravidez de Hiroko.

Quando as aulas começaram Crystal ia visitá-la muitas vezes, ficando várias horas junto à lareira a fazer os trabalhos de casa. Detestava ter de ir para casa. A mãe estava sempre com Becky e a avó repreendia-a constantemente. A única pessoa que tinha uma palavra bondosa para ela era o pai, que adoecera de novo. Depois do dia de Acção de Graças1, Crystal confessou a Hiroko que estava muito preocupada com ele. Andava muito cansado e pálido e tossia muito. Aquilo apavorava-a. O homem que lhe parecera invencível durante toda a vida estava agora a cair. Contraíra outra pneumonia, e só melhorara após muitas semanas. Aquilo fazia com que

 

Celebrado a 22 de Novembro. (N. do T.)

 

Crystal não o quisesse largar. Sabia que se o perdesse, a sua vida chegaria ao fim. Ele era o seu colega, aliado, defensor fiel; os outros eram sempre muito rápidos a virarem-se contra ela, a culparem-na por coisas triviais e a repreendê-la por tudo aquilo que ela não era. Não queria fazer as mesmas coisas que Becky. Não queria passar os dias sentada na cozinha a beber café e a fazer bolos, e não queria tagarelar com as outras mulheres, nem casar com um homem como Tom e ter os seus filhos. Tom Parker engordara em menos de dois anos e já tresandava a cerveja, excepto aos fins-de-semana, altura em que fedia a uísque.

Crystal sabia que não era como os outros. Instintivamente, sempre pressentira que era diferente, e estava certa de que o pai também o sabia. E Hiroko. Havia muito que confessara àquela amável japonesa que, às vezes, sonhava em entrar em filmes. Mas agora não podia abandonar o pai. Não o abandonaria por nada deste mundo. Mas um dia... talvez um dia... o sonho de Hollywood nunca morrera... nem os seus sonhos com Spencer. Mas nunca confessou a Hiroko e a Boyd o que sentia por ele, embora lhes contasse tudo o resto. Eram os seus únicos amigos, e ia muitas vezes a cavalo visitá-los. Hiroko era a única amiga que já tivera, e há muito que Crystal aprendera a amá-la. Hiroko dava-lhe a coragem e o carinho que ela não encontrava em mais ninguém, excepto junto do pai.

Confessava os seus medos à amiga, o medo de nunca conseguir fugir do vale, o medo de que nenhum dos seus sonhos se tornasse realidade. Mas também amava o vale. Aquilo que sentia em relação à terra estava muito intricado no amor que sentia pelo pai. Amava a terra, as árvores, o declive das colinas e as montanhas por trás delas. Até amava o seu perfume, especialmente na Primavera, quando tudo era fresco e novo, e amava a chuvas que punham tudo verde-esmeralda. Viver ali para sempre não seria o pior destino do mundo, mesmo se isso significasse desistir dos seus sonhos de actriz. Só não queria casar com um homem como Tom Parker. A ideia fazia-a estremecer.

— Ele é mau para a tua irmã? — Às vezes, Hiroko sentia curiosidade em relação aos outros. Para ela, todos eram estranhos, até a irmã do marido, que se casara, finalmente, mesmo a tempo de ter o filho.

— Acho que ele é mau para ela quando bebe. Não que ela me tenha dito alguma coisa. Há umas semanas atrás apareceu com um olho negro. Disse que tinha tropeçado numa cadeira, mas creio que contou a verdade à nossa mãe.

As duas mulheres hostilizavam Crystal. Todos o faziam, aliás. Ela era perigosamente bonita e isso ameaçava todas as mulheres que a conheciam, excepto esta, que tinha um aspecto tão diferente. Faziam um par estranho: uma alta e magra, a outra pequenina, uma com cabelo preto brilhante, a outra com uma longa cabeleira loira. Uma cultura tão livre e abundante em palavras e gestos, a outra tão frugal e comedida. Tinham vindo de mundos diferentes para o mesmo local, onde se haviam tornado irmãs.

— Talvez um dia vás para Hollywood, e eu e o Boyd vamos depois visitar-te.

Riram-se ambas enquanto se afastavam da casa dos Webster, a falar dos seus sonhos. Hiroko queria ter uma casa bonita e muitos filhos. Crystal queria cantar, e queria ir para um lugar onde as pessoas não a desprezassem. Tinham algo em comum. Por razões diferentes, eram ambas postas à margem.

Hiroko gostava de fazer exercício, mas não queria sair sozinha. Crystal gostava de lhe fazer companhia. Às vezes, conversavam durante horas, e Hiroko reparava nas coisas mais ínfimas enquanto iam andando, nas flores mais pequenas, na planta menos importante, na borboleta mais delicada. Mais tarde desenhava-as. Partilhavam a mesma paixão pela natureza. Mas agora Crystal já se sentia suficientemente à vontade com a amiga para brincar com ela.

— Vês essas coisas todas porque estás mais perto do chão do que eu, Hiroko. — Hiroko ria-se, e ambas desejavam poder ir à cidade, mas sabiam que não podiam ser vistas juntas. Isso daria origem a um grande tumulto. Boyd convidou-a a ir até São Francisco com eles, mas Crystal teve medo de desaparecer durante tanto tempo: a mãe daria com certeza pela sua falta e o pai poderia precisar dela.

Pelo Natal, ele estava demasiado fraco para se poder levantar, e Crystal não visitou os Webster durante várias seanas. Quando regressou no fim de Janeiro, o seu rosto falava por si. Tad Wyatt estava a morrer. Crystal sentou-se na cozinha de Hiroko e chorou, com os braços da amiga em redor dos seus ombros. Sentia o coração a despedaçar-se ao vê-lo enfraquecer de dia para dia. Todos no rancho passavam a vida a chorar. A avó, Olivia, Becky. EJared nunca lá estava, pois não suportava ver o pai a morrer. Crystal sentava-se junto dele durante longas horas, encorajando-o a comer, murmurando suavemente enquanto o cobria com cobertores, e às vezes via-o dormir, as lágrimas rolando-lhe em silêncio pelo rosto. E era Crystal que ele queria sempre junto de si, era Crystal quem ele chamava quando delirava, era por Crystal que procurava quando voltava a abrir os olhos. Raras vezes a mulher, e nunca Becky. Eram ambas estranhas para ele agora, tal como Crystal era para elas. Era ela que cuidava dele cheia de amor, quem até ajudava a mãe a dar-lhe banho. Mas o amor que mostrava ter por ele só fazia com que a mãe se ressentisse ainda mais. Achava que o amor que existia entre ambos não era natural, e se ele não estivesse doente, tê-lo-ia dito. Em vez disso, quase deixara de falar com a filha, mas esta não se importava muito. Só se preocupava com o pai. A paixão que sentia por ele fazia até desvanecer as recordações que tinha de Spencer.

Becky engravidara novamente, e Tom tentava dirigir o rancho, embora a maior parte das vezes estivesse demasiado bêbedo para o fazer. Crystal sentia o coração despedaçar-se de cada vez que o via ir de carro até à casa principal. Precisava de todo o seu autodomínio para não lhe dizer o que pensava dele, mas por causa do pai continha-se. Não queria perturbá-lo e queria que tudo continuasse como dantes, mas em Fevereiro soube que não iria ser assim.

Ficava à sua cabeceira dia e noite, a segurar-lhe na mão sem nunca o deixar, excepto para tomar banho ou para comer qualquer coisa à pressa na cozinha. Receava que se o deixasse ele pudesse morrer. Não voltou à escola e nem sequer saía de casa, a não ser durante alguns minutos para encher os pulmões de ar no alpendre ou para ir rapidamente até ao riacho, antes do cair da noite. Tom seguiu-a uma vez, e ficou a mirá-la enquanto ela peranecia numa clareira mergulhada em pensamentos, a pensar no pai, e depois em Spencer. Não voltara a ouvir falar dele desde o baptizado do pequeno Willie, nem esperava que isso acontecesse. Boyd recebera uma carta dele pelo Natal; parecia feliz em Nova Iorque e gostava do novo emprego. Acrescentava que os avisaria quando pensasse visitar a Califórnia. Mas agora estava demasiado longe para poder ajudá-la. Ninguém podia, excepto Deus. E ela rezava todos os dias para que Ele a deixasse ficar com o pai; contudo, no seu íntimo sabia que não era isso que iria acontecer.

Nessa noite, sentou-se na cadeira à cabeceira do pai, observando-o a dormir, e depois da meia-noite ele abriu os olhos e olhou em volta. Já há muito tempo que não parecia tão bem, perfeitamente lúcido, e sorriu para Crystal. A mãe estava a dormir no sofá e Crystal já há dias que dormia na cadeira junto da cama, mas acordou assim que ele se mexeu e ofereceu-lhe água.

— Obrigado, querida — disse ele com a voz um pouco mais forte. — Devias ir deitar-te.

— Ainda não estou cansada — murmurou ela na penumbra. Não queria sair dali. Se o deixasse, ele podia morrer, e enquanto ela ali stivesse, talvez ele vivesse... talvez... — Quer um pouco de sopa? A avó fez sopa de peru esta noite, está muito boa.

O cabelo loiro escorria-lhe pêlos ombros como uma cortina diáfana, e ele contemplou-a com o amor que sentira por ela durante aqueles dezasseis anos. Queria estar ali para sempre, só para a proteger. Sabia como os outros eram antipáticos, ciumentos e mesquinhos, até a própria mãe da rapariga, e tudo porque ela era bonita. Até os rapazes do vale a temiam, ela era demasiado bela para ser real, e, no entanto, era muito real. Conhecia-a bem, e orgulhava-se daquilo em que ela se tornara. E j á há meses que suspeitava que a filha visitava Hiroko, mas, embora se sentisse apreensivo quanto àquela amizade, não tentou dissuadi-la. Mais do que uma vez teve vontade de lhe perguntar como é que ela era, mas decidiu não o fazer. Tinha direito à sua própria vida, a ter segredos só seus. Desfrutava de muito poucos prazeres. Recusou a sopa, e recostou-se nas almofadas, olhando para a filha rezando para que a vida não a tratasse mal, que um dia encontrasse um homem bom e fosse feliz.

— Nunca desistas disto, pequenita... — Foi pouco mais do que um murmúrio, e a princípio ela não o percebeu.

— O quê, paizinho? — A voz dela era tão baixa como a dele, mas os seus dedos entrelaçados nos do pai eram bem mais fortes.

—O rancho... o vale... pertences aqui... tal como eu... quero que vejas mais do mundo do que... só isto... — parecia estar com dificuldade em respirar — ... mas o rancho há-de... estar sempre... aqui para ti.

— Eu sei, paizinho. — Não queria que o pai falasse daquilo naquele momento. Era como se se estivesse a despedir dela, e Crystal não o podia permitir. — Agora tente dormir.

Ele abanou a cabeça. Não havia tempo. Dormira demasiado, e agora apenas queria falar cora a sua filha mais nova, a sua favorita, o seu bebé.

— O Tom não sabe governar o rancho. — Ela já tinha conhecimento disso, mas não o disse ao pai, limitou-se a assentir em silêncio. — E um dia, o Jar há-de querer fazer qualquer outra coisa; ele não ama a terra... tal como tu e eu... Quando tiveres visto alguma coisa do mundo e a tua mãe tiver morrido Crystal, quero que regresses aqui... encontres um bom homem, alguém que seja bom para a minha menina... — Sorriu-lhe e os olhos dela encheram-se de lágrimas. Apertou a mão do pai. — ... e que tenhas com ele uma boa vida aqui...

—Não fale assim, paizinho... — Mal conseguia falar através das lágrimas. Tocou-lhe no rosto com o seu rosto e beijou-lhe a testa. Estava fria, húmida e pegajosa. Crystal recostou-se e tornou a observá-lo. — O senhor é o único homem que quero. — Contudo, durante um breve momento, quis falar-lhe de Spencer, dizer-lhe que conhecera alguém de quem gostara... de quem gostara muito... e por quem se podia ter apaixonado. Mas ele era apenas um sonho, tal como as estrelas de cinema coladas na parede do seu quarto. Spencer Hill nunca fora real na vida de Crystal Wyatt. — Agora veja se dorme um bocadinho. —Era a única coisa que havia a dizer-lhe, só de falar um pouco ficara ofegante e exausto. — Amo-o, paizinho — murmurou enquanto ele fechava os olhos, mas estes abriram-se de novo e ele olhou para ela com um sorriso.

— Também te amo, pequenita. Serás sempre a minha... pequenita... doce, doce Crystal... — E com isto os seus olhos tornaram a fechar-se. Tinha um ar muito calmo enquanto dormia, e ela pegou-lhe na mão e observou-o. Recostou-se na cadeira, ainda com a mão dele na sua, e minutos depois adormeceu, exausta pela tensão de o vigiar dia após dia, e quando acordou o céu estava cinzento e o quarto frio e o pai morrera a segurar-lhe na mão. As suas últimas palavras, os seus últimos pensamentos e o seu último adeus haviam sido dirigidos a Crystal. Os olhos dela abriram-se muito quando se apercebeu de que ele tinha partido. Devagarinho, largou a mão dele junto do corpo, e com um último olhar cheio de lágrimas saiu do quarto e fechou a porta. Sem dizer nada a ninguém, correu o mais depressa que pôde até ao riacho. Chorava abertamente, o corpo era sacudido por soluços, e ficou por ali durante bastante tempo. Quando regressou, a mãe chorava alto na cozinha, e Minerva fazia café em silêncio. Tinham-no encontrado morto.

— O teu pai morreu. — Disse aquelas palavras iradas quando Crystal entrou na cozinha, com o rosto manchado de lágrimas. Era mais uma acusação do que um lamento, como se Crystal pudesse tê-lo impedido de morrer. Fez que sim com a cabeça, com medo de lhes dizer que já o sabia antes de se ter ido embora, perguntando-se de novo se poderia ter feito algo que o impedisse de morrer. Recordou-se das palavras dele na última noite... «quero que regresses aqui»... Sabia quanto ela amava aquela terra, como aquilo fazia parte dela, tal como fizera parte dele e sempre faria. Crystal veria sempre o pai ali, naquela casa, mas, mais do que isso, nas colinas, a galopar, ou montado no tractor no meio das vinhas.

Mandaram Jared à cidade, e o agente funerário foi buscar Tad ao m da manhã. Os amigos e vizinhos foram prestar-lhe uma última homenagem, enquanto a mulher e a sogra se mantinham por ali, a apertar mãos e a chorar. Olivia dirigiu um olhar grato a Tom através das lágrimas... enquanto Crystal tentava reprimir o seu ódio por ele. Estremecia com a ideia de ele ir dirigir o rancho. Mas Crystal não podia pensar nisso, apenas podia pensar no homem que amara. O seu pai. Ele já partira, e ela ficara, assustada e sem nada, no meio de estranhos.

O funeral foi no dia seguinte, e ele foi sepultado numa clareira junto ao riacho. Era um local que Crystal conhecia bem. Ia ali muitas vezes sentar-se e meditar, ou nadar, e consolava-a a ideia de ter o pai ali perto, a olhar por ela. Sabia que ele nunca a abandonaria. Nessa tarde, desapareceu durante algum tempo e foi visitar Hiroko. O bebé dela deveria nascer dali a umas semanas, e ela levantou-se sem ruído quando a amiga entrou silenciosamente na sua sala. Os olhos dela diziam tudo, e Boyd contara-lhe que Tad Wyatt morrera. Hiroko desejou poder ter ido até junto de Crystal, mas sabia que isso teria sido impossível. Não teriam permitido que ela a visse. E agora ali estava ela, parecendo uma criança despedaçada, e começou a chorar estendendo os braços para Hiroko. O coração doía-lhe ao chorar. Sem o pai, a vida não voltaria a ser a mesma. Ele abandonara-a entre pessoas que ela sabia que nunca a tinham amado.

Crystal ficou com os Webster durante várias horas, e quando regressou ao rancho era de noite. A mãe já estava à espera dela. Encontrava-se sentada muito direita no sofá, sozinha na sala de estar, e olhou furiosa para Crystal quando esta entrou ligeiramente curvada pela dor e pelo cansaço.

— Onde estiveste?

— Tive de sair daqui. — Era verdade. Não suportava aquela atmosfera opressiva nem as pessoas que estavam sempre a chegar, trazendo-lhes prendas e comida para as ajudar a suportar a dor. Mas ela não queria comida, queria o pai.

— Perguntei-te onde estiveste.

— Lá fora, mãezinha. Não interessa. — Fora a casa dos Webster a cavalo. Era demasiado longe para ir a pé, e ela estava demasiado cansada para sequer o tentar depois das emoções dos últimos dias.

— Estiveste na cama com um rapaz, não foi? Crystal olhou para a mãe perplexa. Não saíra de casa durante semanas, mal deixara a cabeceira do pai para ir à casa de banho.

— É claro que não. Como é que pode dizer uma coisa dessas? — Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas devido às palavras cruéis tão características da mãe.

— Sei que andas a tramar alguma Crystal Wyatt. Sei a que horas sais da escola. Só chegas a casa depois do anoitecer. Achas que sou parva? — Estava furiosa, nem parecia que tinha perdido o marido havia poucas horas. De viúva chorosa transformara-se em víbora.

—Mãezinha, não... por favor... — Tinham enterrado o pai apenas nessa manhã, e já começavam o ódio e as acusações.

— Vais acabar como a Ginny Webster. Grávida de sete meses, e com muita sorte por ter casado.

— Não é verdade. — Quase não conseguia falar, pois chorava convulsivamente. Só conseguia pensar no pai que perdera e mal acreditava que a mãe estivesse a fazer-lhe aquelas acusações. Estava a referir-se, é claro, às ausências de Crystal quando visitava Hiroko.

— O teu pai já cá não está para contar as tuas mentiras. Não penses que me enganas. Se tentares armar-te em esperta, podes ir-te embora. Não estou para aturar as tuas espertezas. A nossa família é muito respeitável, não te esqueças disso!

Crystal olhou-a de olhos muito abertos quando ela se dirigiu ao quarto onde o marido tinha morrido agarrado à mão da filha. A filha que estava agora sozinha sem ninguém que a defendesse. Ficou na sala de estar, a ouvir o silêncio, cheia de saudades do pai. Depois dirigiu-se devagar até ao seu quarto e atirou-se para a cama que outrora partilhara com a irmã. Perguntou-se por que motivo a odiariam tanto. Nunca lhe ocorreu que era porque ele a amara. E era mais do que isso, era pelo seu aspecto, pelo modo como se movia... pelo modo como os olhava. Ali no escuro, deitada na cama, ainda vestida, soube que a sua vida nunca mais seria a mesma. Ele abandonara-a junto dos outros, e quando começou a chorar no quarto silencioso Crystal estava apavorada.

 

O bebé de Hiroko nasceu muito tarde: não em Março mas sim no dia 3 de Abril. Crystal fora visitar Hiroko nessa tarde e encontrou-a cansada e agitada, mas, ao contrário de Becky, não se queixou. Era sempre simpática, calorosa e mostrava-se ansiosa pelas visitas da amiga. O pai de Crystal morrera havia quase seis meses e ela visitara Hiroko praticamente todos os dias. Não tinha que fazer no rancho e a mãe era sempre muito rápida a criticá-la e a admoestá-la, atitudes que faziam com que Crystal se sentisse ainda mais sozinha. Suspeitava que havia mais alguma coisa a perturbar a mãe, ou talvez se sentisse sozinha sem Tad e não conhecesse outra forma de expressar essa solidão. Crystal contou os seus pensamentos a Hiroko, e a amiga concordou que tal poderia ser possível, mas mais tarde Boyd contou-lhe que Olivia nunca gostara de Crystal, nem em criança; recordava-se de ela lhe bater sob o mais ínfimo pretexto, ao passo que mimava Rebecca. Boyd suspeitava que era porque Tad fizera de Crystal a sua favorita; até as crianças sabiam disso. Era um segredo conhecido do vale.

Hiroko e Crystal passaram uma tarde tranquila, e ao anoitecer esta foi para casa. A mãe saíra, fora à cidade com Becky, e Crystal ajudou a avó a pôr o jantar na mesa. Perdera peso desde a morte do pai: nunca tinha fome. Na manhã seguinte, quando se levantou, arreou o cavalo e decidiu ir visitar os Webster. Era sábado, não tinha aulas e sabia que a amiga se levantava cedo. Mas quando lá chegou, encontrou Boyd à porta. Parecia preocupado e exausto. Hiroko estava em trabalho de parto desde a noite anterior, e o bebé ainda não nascera. Ele chamara o médico da cidade, que se recusara a ir lá, alegando que a Sra. Webster não era sua paciente. Era o mesmo homem que se recusara a tratá-la oito meses antes, e ainda não mudara de opinião. E Boyd sabia que teria de ser ele a ajudá-la. Não havia maneira de a levar até São Francisco. O Dr. Yoshikawa emprestara-lhe um livro que o poderia ajudar, mas as coisas não estavam a correr conforme o planeado. Hiroko tinha muitas dores, e ele conseguia ver a cabeça do bebé, que se recusava a sar. Boyd explicou rapidamente a situação a Crystal, e ela ouviu Hiroko a gemer no quarto.

— E o velho doutor Chandler? — Reformara-se havia alguns anos e estava quase cego, mas pelo menos poderia ajudar. E havia uma parteira em Calistoga, mas ela também se recusara a tratar de Hiroko.

— Ele está no Texas, de visita à filha. Tentei ligar-lhe a noite passada do posto. — Estava a considerar a hipótese de ir com a mulher de carro até São Francisco, mas receava perder a criança.

— Posso vê-la? — Já ajudara o nascimento de vários animais, mas nunca vira uma mulher em trabalho de parto e sentiu na espinha um arrepio de medo enquanto seguia Boyd até ao quarto. Hiroko estava agachada sobre a cama, de cócoras, e a ofegar furiosamente, como se estivesse desesperada para tirar o bebé de dentro de si, mas lançou a Crystal um olhar desamparado e encostou-se de novo às almofadas.

— O bebé não sai... — Crystal viu-a ser acometida de outra dor, e Boyd foi segurar-lhe nas mãos. Sentiu pena da amiga, da sua luta. Perguntou-se se o bebé iria morrer, ou ainda pior... Hiroko.

Sem pensar Crystal foi lavar as mãos à cozinha e regressou com uma mão-cheia de toalhas lavadas. A cama já estava manchada de sangue e o longo cabelo de Hiroko cobriu-lhe a cara quando ela se tornou a agachar, sem qualquer resultado. E com uma conança que não sentia Crystal falou-lhe com suavidade.

— Hiroko, deixa-nos ajudar-te... — Olhou para os olhos da amiga, incitando-a a viver, e orando em silêncio pelo filho dela. Recordou-se dos potros que ajudara a nascer e rezou para que esse conhecimento lhe pudesse ser útil. Também não havia mais ninguém a quem recorrer. Da cidade ninguém viria, restavam apenas Boyd e Crystal e aquela trémula japonesa. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto, mas não se ouvia um único som, e Crystal olhou e viu a cabeça do bebé. Tinha cabelo avermelhado, num tom entre o de Boyd e o de Hiroko.

— O bebé não sai... — Soluçou desesperada e Boyd disse-lhe para fazer mais força. Desta vez Crystal viu a cabeça do bebé avançar um pouco.

— Vá lá, Hiroko... já está a sair... faz força outra vez...

Mas ela já estava demasiado fraca e a dor tornou a fazer-

-se sentir. Nessa altura Crystal apercebeu-se do que estava errado. O bebé estava de cara para baixo, em vez de virado para cima. Teriam de o virar. Ela já o fizera em animais, mas pensar em fazer isso à amiga era assustador. Olhou para Boyd e explicou-lhe calmamente a situação. Sabia que se não virassem o bebé ele ou Hiroko podiam morrer. Podia já ser demasiado tarde para o bebé. Crystal sabia que tinham de se apressar. A amiga teve outra contracção, e desta vez não lhe disse para fazer força. Tacteou Hiroko com suavidade, sentindo o bebé no ventre dela e, mal ousando respirar, virou cuidadosamente o bebé quando Hiroko gritava. Boyd amparou-a. Veio outra contracção e ela tornou a fazer força, como se quisesse afastar as mãos de Crystal, mas quando esta as tirou, a cabeça tornou a avançar mais um pouco. De repente, Hiroko fez força, uma força que não sabia que possuía. A dor era excruciante quando o bebé começou a ser expelido, e Crystal emitiu um grito de vitória quando a cabeça saiu e, com o corpo ainda dentro da mãe, ele começou a chorar. As lágrimas correram pelo rosto de Crystal enquanto puxava o bebé. Houve um silêncio tenso no quarto quando Hiroko fez novamente força, mas desta vez ria e chorava ao mesmo tempo, pois ouvia o bebé a chorar. De súbito, o bebé saiu. Era uma menina, e os três observaram-

-na cheios de espanto. A placenta saiu pouco depois, e Boyd livrou-se dela, seguindo as instruções do livro. Mas até ali o livro fora inútil. Fora Crystal quem salvara o bebé. Olhou para a minúscula criança cheia de temor. Era tal e qual a mãe, e Hiroko chorou de alegria ao segurá-la nos braços.

— Obrigada... obrigada... — Estava demasiado exausta para dizer mais, e fechou os olhos enquanto segurava a menina. Boyd chorou ao observá-las. Olhou com carinho para a mulher e tocou no rosto da filha com muito cuidado antes de olhar para Crystal.

—Salvaste-a... salvaste as duas... — As suas lágrimas eram de alívio, e Crystal saiu do quarto em silêncio. O Sol já ia alto no céu, e ficou adirada ao aperceber-se de como o tempo passara. As horas haviam voado enquanto trabalhava para salvar a amiga e o bebé.

Boyd foi ter com ela passado algum tempo. Crystal estava sentada na relva, pensando como a natureza era espantosa. Nunca vira nada tão lindo como aquele bebé. Tal como Hiroko, parecia ter sido feita em marfim, e os olhos eram idênticos aos da mãe, oblíquos. Contudo, nela também havia algo de Boyd, e com um sorriso Crystal perguntou-se se um dia ela viria a ter sardas como o pai. De repente, o amigo pareceu-lhe muito adulto ao observá-la, demasiado grato para poder agradecer-lhe por palavras.

— Como é que ela está? — Crystal ainda se sentia preocupada, e desejou que tivessem chamado um médico. Havia sempre o risco de uma infecção.

— Estão ambas a dormir. — Ele sorriu e sentou-se junto de Crystal. — São tão bonitas!

Crystal sorriu-lhe. Eram duas crianças que tinham crescido nessa manhã. A vida nunca mais voltaria a ser a mesma, e naquele momento, pareceu-lhes que o facto de terem presenciado o nascimento do bebé tinha um valor incalculável.

— Que nome é que lhe vais dar?

—Jane Keiko Webster. Queria chamar-lhe só Keiko, mas a Hiroko quis que ela tivesse um nome americano. Talvez tenha razão. — Tinha um ar triste ao dizer aquelas palavras, depois olhou para o vale onde haviam ambos crescido. — Keiko era o nome da irmã dela que morreu em Hiroxima.

Crystal anuiu em silêncio, Hiroko já lhe contara.

— É uma menina muito bonita, Boyd. Sê bom para ela. — Era uma coisa estranha para lhe dizer. Boyd tinha vinte e quatro anos e conheciam-se desde crianças. Becky estivera uma vez apaixonada por ele, mas não dera em nada, e Crystal sempre tivera pena. Ele era um homem bondoso e sério, muito diferente de Tom Parker. Olhou sonhadora para as colinas enquanto falava com ele. Estava um belo dia de Primavera e o Sol brilhava. — O meu pai foi sempre muito bom para mim. Foi a melhor pessoa que conheci. — Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas quando olhou para Boyd, e limpou-as com uma ponta da camisa.

— Deves sentir muito a sua falta.

— Sinto. E... bem, as coisas são tão diferentes agora! Eu e a minha mãe nunca fomos muito chegadas. Ela sempre preferiu a Becky. — Disse-o num tom casual com um pequeno suspiro, recostando-se na relva quente. Depois sorriu, com as recordações. — Acho que ela pensava que o paizinho me estragava com mimos. E creio que ele fez isso. Mas não posso dizer que me tenha importado. — Nessa altura riu-se, e durante um momento pareceu de novo uma criança. Mas Boyd teve pena dela.

— Creio que é melhor voltar para junto delas. Achas que lhe arranje alguma coisa para comer? — Não sabia bem o que fazer, e Crystal sorriu-lhe:

— Quando ela tiver fome. A minha mãe disse que depois do parto a Becky comeu que nem um cavalo, mas o nascimento do Willie foi muito fácil. Diz-lhe para não se preocupar muito. — Levantou-se: — Volto esta tarde ou amanhã, se conseguir escapar-me. — A mãe andava sempre a arranjar-lhe trabalho. E agora, com Becky grávida, no cessava de mandar Crystal limpar a casa ou ajudá-la com a roupa. As vezes sentia-se uma escrava, como quando esfregava o chão da sala de Becky enquanto esta e a mãe bebiam café na cozinha.

— Toma cuidado contigo — disse ele pouco à vontade quando ela foi soltar o cavalo. Depois corou e beijou-a no rosto. — Obrigado, Crystal. — A sua voz estava embargada pela emoção. — Nunca esquecerei o que fizeste.

— Nem eu. — Ela dirigiu-lhe um olhar franco, quase tão alta como ele, segurando as rédeas do seu velho cavalo:

— Dá um beijo meu a Jane. — Subiu para a sela e tornou a olhar para ele. Por um momento, pensou em Spencer. Sentia-se tão próxima de Boyd depois de ter ajudado o bebé a nascer que teve vontade de lhe contar. Mas contar-lhe o quê? Que estava apaixonada por um homem que com toda a certeza já a esquecera? Afinal de contas, só se tinham visto duas vezes, mas enquanto cavalgava e direcção a casa, sorrindo para si própria, pensando no bebé adormecido nos braços de Hiroko, deu consigo a sonhar de novo com ele. Era só o que lhe restava, os sonhos com ele, as recordações do pai e as fotografias que enfeitavam as paredes do seu quarto.

 

— Onde é que estiveste o dia todo? Procurei-te por toda a parte. — A mãe esperava-a na cozinha quando ela regressou do parto de Hiroko. E, durante um momento louco, teve vontade de lhe contar o que acabara de acontecer. Fora lindo e excitante, mas muito assustador. Para uma rapariga que ainda não tinha dezassete anos, ela percebera rapidamente o que significava ser mulher.

— Andei por aí a cavalo. Achei que não ia precisar de nm.

— A tua irmã não se sente bem. Quis que fosses até lá e a ajudasses. — Crystal assentiu. Becky nunca se sentia bem, pelo menos que o admitisse. — Quer que tomes conta do Willie. — A velha história do costume.

— Está bem.

No lava-louça havia pratos que Olivia deixara para ela lavar, e depois de ter cumprido essa tarefa, atravessou os campos e dirigiu-se a casa da irmã. Tom estava a ouvir rádio e a sala cheirava a cerveja. O pequeno Willie andava por ali com uma camisola interior e uma fralda. O aposento estava muito desarrumado, e Becky metera-se na cama, a ler uma revista e a fumar. Crystal ofereceu-se para lhe fazer o almoço e ela concordou sem sequer levantar o olhar. A jovem foi até à cozinha e preparou uma sanduíche.

— Faz-me uma também, oka, querida? — gritou Tom, meio bêbedo. — E traz-me outra garrafa do frigorífico, está bem? — Ela foi até à sala entregar-lhe a cerveja e pegou em Willie. Estivera a fazer um bolo no cinzeiro com o leite do seu biberão meio vazio. Cantarolou todo contente quando Crystal o acariciou. Cheirava mal, e ela percebeu que ninguém se incomodara a mudar-lhe a fralda. — Por onde é que andaste? Ouvi dizer que a tua mãe andou à tua procura. — Ele vestia uma camisola interior com duas meias-luas de suor nos sovacos. Tudo nele era repugnante, mas olhou-a fixamente. Crystal tinha muito bom aspecto, enquanto a mulher estava gorda e cansada e lamentava-se constantemente, nem parecia que as duas raparigas eram da mesma família.

— Fui visitar uns amigos — respondeu ela num tom evasivo, com o bebé nos braços.

— Tens um namorado novo?

— Não, não tenho — ripostou ela regressando à cozinha. As suas pernas pareciam intermináveis nas calças de ganga justas e ele admirou-lhe o traseiro quando ela se afastou para lhe preparar a sanduíche.

Só regressou a casa à hora de jantar, depois de ter limpo tudo, feito o almoço e ter dado banho ao pequeno Willie. Ficava doente quando via o modo como o sobrinho era tratado. E agora iam ter outro filho, para o deixarem andar todo sujo pela casa, a chorar durante metade do tempo com fome porque Becky não estava com disposição para cozinhar. Tom saiu antes de ela partir e Crystal sentiu-se aliviada. No gostava da forma como ele a olhava, nem das perguntas sobre os namorados. Nunca tivera nenhum. Só os seus sonhos inofensivos com Spencer. Os outros temiam-na, o que não lhe importava. Nada tinha em comum com eles. As suas vidas estavam confinadas ao vale. Não faziam ideia de que havia um mundo para além dele, nem desejavam sequer encontrá-lo, ao contrário de Crystal, que ansiava por mais do que aquilo que Alexander Valley tinha para oferecer.

Becky nem se incomodou a agradecer-lhe e ao chegar ao rancho a mãe mandou-a descascar batatas para o jantar. Ela fez o que lhe mandavam, mas quando terminou foi-se deitar, demasiado cansada para se lembrar de comer. Pensou em Hiroko durante algum tempo, antes de adormecer, prometendo que iria visitá-los na manhã seguinte a seguir à missa. Teria de arranjar maneira de se escapulir da mãe e da irmã. Pareciam ter sempre algo para ela fazer. As coisas eram to diferentes de quando o pai era vivo! Ao fim de dois meses Crystal tornara-se apenas noutra empregada, alguém que lhes fazia as coisas e limpava as porcarias, alguém com quem podiam gritar e também desprezar. Via ódio nos olhos da mãe quando esta julgava que ela não estava a olhar. Detestava-a, mas Crystal não sabia porquê. Nunca lhes fizera nada, só amara o pai.

As aulas acabaram em Junho, e só lhe faltava um ano para completar o liceu. Mas o que iria fazer depois disso? A vida continuaria a ser a esa: trabalharia no rancho e veria Tom destruir aquilo que o pai e o avô dela tinham construído, o rancho que Tad tanto amara. Tom ia arrancar as vinhas nesse ano, pois fora incapaz de vender as uvas pela primeira vez em muitos anos, e vendera também grande parte do gado, dizendo que lhe dava muito que fazer. Aquilo aumentara a sua conta bancária mas reduzira bastante os lucros do rancho, e todos o sentiram.

O bebé de Becky nasceu logo após o fim das aulas de Crystal. Desta vez foi uma menina, que era tal e qual o pai. Mas era a filha de Hiroko que alegrava o coração de Crystal. Baptizaram-na numa igreja em São Francisco e pediram a Crystal que fosse a madrinha. Tivera de inventar inúmeras mentiras para explicar à mãe onde iria estar todo o dia, mas fora com eles, fascinada com aquilo que via, e sentiu-se viva e rejuvenescida quando regressou a Alexander Valley.

O Verão foi muito agradável, quando Crystal fez dezassete anos. Passava muitas horas com Boyd, Hiroko e a filha deles. A pequena Jane continuava tão parecida com Hiroko como quando nascera, no entanto, também havia nela algo de Boyd, uma expressão, um sorriso, e o cabelo castanho-avermelhado que combinava tão bem as cores do cabelo dos pais. Crystal ficava horas a fio deitada na relva à sombra da árvore, segurando o bebé junto de si, sentindo o seu calor enquanto ela balbuciava. O tempo que passava junto dos amigos era o melhor da sua vida. Só regressava a casa ao fim da tarde, a tempo de ajudar a mãe e a avó a preparar o jantar. Tal como Tom, de vez em quando a mãe acusava-a de ter um namorado e dizia-lhe que ela devia ajudar a irmã com os filhos, mas ela tinha outras coisas na cabeça, e Becky também. Toda a gente no vale comentava que Ginny Webster tinha um caso com Tom. E Crystal suspeitava que havia nisso alguma verdade. Perguntou uma vez a Boyd, mas ele limitou-se a encolher os ombros e a dizer que não acreditava naquilo que as pessoas diziam, mas ao dizê-lo, corou tanto que o seu rosto ficou quase da cor do cabelo. Então era verdade Crystal não ficou surpreendida, mas perguntou-se se ele teria ousado fazer isso se o pai fosse vivo. Agora já não interessava, Tad morrera e Tom Parker podia fazer o que bem lhe apetecesse.

Tom e Becky baptizaram a menina no final do Verão, antes de as aulas de Crystal começarem. Mas desta vez Spencer não apareceu, e a mãe não deu uma festa muito grande. Convidaram alguns amigos para o almoço depois da cerimónia religiosa. Tom embebedou-se e foi-se embora bastante cedo, enquanto Becky chorava na cozinha com a mãe. E Crystal foi a pé até ao riacho e sentou-se perto do local onde o pai estava sepultado. Era difícil acreditar que ainda há um ano ele estava vivo, e que ela estivera no baloiço a falar com Spencer. Nessa altura era uma criança, compreendeu ela, mas agora já não o era. O ano que passara fora ;

demasiado difícil, as perdas demasiado grandes, a dor demasiado profunda. Crystal tinha apenas dezassete anos, mas já era uma mulher.

 

O convite foi entregue no seu escritório, e Spencer sorriu quando olhou para ele. O pai tivera razão. Eleja lera a notícia nos jornais havia algumas semanas. Harrison Barclay havia sido nomeado para o Supremo Tribunal, e Spencer fora convidado para a sua tomada de posse.

Tivera um bom ano, cheio de trabalho e de pessoas simpáticas. A Anderson, Vincent e Sawbrook era conservadora, mas, para sua surpresa Spencer gostou disso. E saíra-se bem. Já era assessor de um dos sócios. E o pai estava contente com ele. Houvera algumas escaramuças inicais entre os dois homens, especialmente por causa de Barbara. Os pais haviam alugado uma casa em Long Island durante o Verão, e Barbara passara aí a maior parte do mês de Agosto com as duas filhas. E Alicia e William Hill contavam também com a presença de Spencer. Ele acabou por não poder evitar a ida. Passara lá duas semanas, com Barbara a atirar-se a ele, e os olhos dos pais cheios de expectativa. Ela esperara por ele, dissera a mãe. «Ela ama-te», afirmara o pai. E, por fim Spencer explodira. Ela esperara por Robert, não por ele, e não tinha culpa que o irmão fosse morto no Pacíco. Barbara era uma rapariga simpática, e ele adorava as sobrinhas, mas era a viúva do irmão. Já bastava a Spencer ter de ser advogado. Não prometera aos pais nem ao falecido irmão que também casaria com a sua viúva.

Barbara abandonara a casa em lágrimas e Spencer teve uma grande discussão com os pais. Pouco depois, deixou Long Island para nunca mais voltar, e só voltou a vê-los em meados do Outono. Nessa altura já Barbara regressara a Boston com as filhas, e ele soube por um amigo que ela andava a sair com o filho de um político muito importante. Era a escolha perfeita para Barbara, e Spencer desejou que ela fosse feliz. Só queria ter uma oportunidade de se sair bem e talhar uma vida à sua medida. Gostava de Nova Iorque, mas ainda sentia a falta da Califórnia. E, de vez em uando, dava consigo a pensar em Crystal. Mas isso acontecia com menos frequência. Ela estava demasiado distante, e não era real. Fora apenas uma visão rara e muito bela, como uma flor silvestre que paramos para admirar nas montanhas, para não voltar a ser vista, mas nunca esquecida. Recebera uma carta de Boyd quando a filha deles nascera, mas a missiva não falava de Crystal. Também foi informado que Tom e Becky haviam tido outro bebé. Mas agora tudo isso parecia muito distante. Para ele fazia parte da guerra, parte de uma outra vida. Andava envolvido no seu trabalho na Anderson, Vincent e Sawbrook, e começava a aprender muita coisa sobre impostos e legislação. Os seus verdadeiros interesses estavam na área da criminologia, mas nenhum dos seus clientes tinha problemas desses. Ajudava a redigir testamentos complicados, e era um trabalho interessante que podia discutir com o pai.

Quando jantou com os pais nessa noite, descobriu que eles também haviam sido convidados, mas o pai informou-o que estava demasiado ocupado para poder ir.

— Tu vais?

— Duvido, pai, mal o conheço. — Spencer dirigiu-lhe um sorriso. O pai estava muito bem. Participava num caso muito importante e Spencer sentia-se ansioso por saber mais informações do que aquelas que já lera nos jornais.

— Devias ir. Ele é uma pessoa com quem nunca deverias perder o contacto.

— Vou tentar, mas não sei se me poderei afastar do escritório. — Spencer esboçou um sorriso, parecendo ter menos do que os seus vinte e nove anos. Estava bronzeado devido aos fins-de-semana que passara na praia, e nos últimos tempos tinha jogado muito ténis. — Sinto-me um idiota se for, pai. Ele não me conhece assim tão bem. E não tenho tempo para me deslocar a Washington.

— Podes arranjá-lo. Estou certo de que a tua frma gostaria que fosses. — Sempre responsabilidades e obrigações. Às vezes aquilo irritava-o. A vida ali parecia repleta de coisas que eram «esperadas». Fazia parte do mundo adulto, parte de estar no mundo «real», mas ele nem sempre tinha a certeza de gostar.

— Vou ver. — Mas, para sua surpresa, o sócio com quem trabalhava repetiu as palavras do seu pai uns dias mais tarde. Spencer referiu-se ao convite durante um cocktail no River Club, e o seu mentor sugeriu que ele deveria ir à tomada de posse de Harrison Barclay.

— É uma honra ser convidado.

— Mas mal o conheço, sir. — Fora o que dissera ao pai, mas o sócio mais velho abanou a cabeça.

— Não importa. Um dia ele pode vir a ser importante para si. Tem de se lembrar dessas coisas. Aliás, gostaria de recomendar a sua ida. — Spencer assentiu, aceitando o conselho, mas sentiu-se idiota ao aceitar o convite. A firma chegou ao ponto de lhe fazer uma reserva no Shoreham, e ele foi para Washington de comboio na véspera da tomada de posse. O quarto que lhe tinham reservado era arejado e espaçoso, e Spencer sorriu para si próprio quando se sentou numa confortável poltrona de cabedal e pediu ao serviço de quartos um scotch. Era um estilo de vida bastante agradável, e talvez fosse giro tornar a ver os Barclay. Calculou que Elizabeth iria estar presente; não tivera notícias dela desde que ela fora para Vassar. Provavelmente havia outros pretendentes na costa, e ele também tinha a sua quota de senhoras amáveis. No último ano saíra com uma dezena de mulheres. Levara-as a jantar no 21, no Lê Pavilion e no Waldorf. Tinham ido a festas, ao teatro, jogado ténis com ele no Connecticut e em East Hampton, mas não havia ninguém de quem ele gostasse especialmente. E três anos depois do fim da guerra, todas pareciam ainda estar cheias de pressa para casar. Isso para ele não era uma necessidade premente, ainda tinha de pôr muita coisa em ordem na sua vida. O Direito não parecia ser o fim para ele. Gostava mais do que fazia do que aquilo que tinha pensado, mas secretamente admitia para si próprio que era pouco excitante. Ainda tentava descobrir como se integrar em algo mais emocionante e exigente. E aos vinte e nove anos achava que ainda havia muita coisa boa que lhe estava reservada antes de assentar de vez com alguém. Primeiro, era necessário encontrar a rapariga certa, e ela ainda não surgira.

Spencer começava a reencontrar o seu rumo depois da interrupção provocada pela guerra e após o choque que fora a morte do irmão. A dor começava a atenuar nessa altura. Robert falecera havia quatro anos e os pais ainda falavam muito dele, mas Spencer já deixara de sentir que tinha de o substituir. Agora era senhor de si, e havia ocasiões em que se sentia no topo do mundo, a controlar tudo o que fazia. Às vezes, sentia-se sozinho, mas nem sequer tinha a certeza que se importava. Gostava de estar sozinho. E apesar de aquela profissão não ser exactamente a que quisera, acabara por a adoptar.

O dia seguinte nasceu soalheiro e luminoso. Naquela fresca manhã de Setembro, Spencer dirigiu-se ao edifício do Supremo Tribunal para a tomada de posse. Vestia um fato escuro às riscas, uma gravata sóbria, e com o cabelo escuro brilhante e os seus olhos azuis estava muito atraente. Várias mulheres viraram a cabeça para o observar, embora ele parecesse não ter reparado. E depois conseguiu apertar a mão ao juiz Barclay antes de a multidão o engolir e ele ser arrastado. Não viu ninguém conhecido, e teve pena de o pai não ter podido acompanhá-lo.

Nessa tarde visitou o Washington Monument e o Lincoln Memorial, e depois foi ate ao hotel para comer qualquer coisa antes de se vestir para a festa para que fora convidado nessa noite. Os Barclay iam oferecer um jantar dançante no Mayflower Hotel para celebrar o novo cargo.

Spencer saiu do hotel com um smoking, chamou um táxi para se dirigir à festa, e esperou pacientemente atrás dos outros convidados, sendo em seguida calorosamente cumprimentado por Priscilla Barclay.

— Ainda bem que veio, senhor Hill. Tem visto a Elizabeth?

— Obrigado. Não, não tenho.

— Vi-a há poucos minutos. Estou certa de que ela ficará muito contente por vê-lo de novo.

Spencer deslocou-se um pouco para cumprimentar o juiz, e depois avançou rapidamente para deixar espaço para os outros convidados na longa fila atrás de si. Foi até ao bar e pediu um scotch com água, e olhou em volta para o grupo de pessoas que se reunira. A maior parte delas era de mais idade, e as mulheres envergavam vestidos caros. Era um ajuntamento interessante das pessoas mais conhecidas e ais importantes do país, e ele sentiu-se orgulhoso de estar ali. Bebeu um gole da bebida ao reconhecer um dos outros juizes do Supremo, e depois observou uma rapariga que conversava com um homem mais velho. Quando ela se virou, descobriu que era a filha do juiz Barclay. Parecia muito mais velha do que no ano anterior, e de certa forma mais atraente, e quando ela lhe sorriu, reconhecendo-o Spencer recordou-se de como Elizabeth era adulta quando a conhecera e de como era bonita. Era ainda mais bonita do que ele se lembrava. Spencer aproximou-se dela com um sorriso e os calorosos olhos castanhos dela pareceram iluminar-se. O cabelo castanho-avermelhado estava agora mais curto, e Elizabeth vestia um espantoso vestido de cetim branco que ficava lindamente com o bronzeado adquirido nas margens do lago Tahoe. Foi um choque para Spencer perceber quanto ela era bela, muito mais do que ele se recordava.

— Olá, como tem passado? Como é que está Vassar?

— Uma maçada. — Ela sorriu-lhe, os olhos presos nos dele. — Acho que sou demasiado velha para a faculdade. — Achava Vassar muito infantil. Ao fim de três meses, estava ansiosa por terminar e fazer qualquer outra coisa, mas ainda lhe faltavam três anos. E no início do segundo ano, começava a duvidar se conseguiria terminar os estudos. — Poughkeepsie é horrível.

— Depois da Califórnia, também Nova Iorque o é às vezes. Os invernos são um pouco rigorosos, não lhe parece?

— Riu-se. Queixara-se amargamente no ano passado, mas tornara a habituar-se, e gostava da agitação de Nova Iorque, que nada tinha a ver com a sonolenta Poughkeepsie.

— Ainda bem que pôde vir. Tenho a certeza que o meu pai ficou sensibilizado — disse ela cortesmente, e Spencer quase deu uma gargalhada. Na multidão que se agitava à sua volta, constituída por centenas de sócios e amigos, era difícil imaginar que o juiz Barclay cara «sensibilizado» com a presença de um jovem e pouco importante advogado.

— Foi muito simpático da parte dele convidar-me. Deve estar muito contente com a nomeação.

Ela sorriu-lhe, e bebeu um gole do seu gim tónico.

— E está. Bem como a minha mãe. Ela adora Washington. Nasceu aqui, sabe.

— Não sabia. Calculo que para si isto também seja divertido. Consegue afastar-se da faculdade? — Admirou a curva suave dos ombros dela enquanto falava, e decidiu que gostava do novo penteado.

— Não com muita frequência. Mal fui a Nova Iorque no ano passado. Mas vou tentar passar aqui algum tempo com eles, nas férias. É muito mais fácil do que viajar até à Califórnia. — Continuaram a falar durante mais algum tempo, e quando os convidados começaram a sentar-se Spencer consultou uma das muitas listas de lugares e descobriu que estava na mesa dela. Calculou que fora a mãe quem o sentara ali, e não fazia ideia de que fora a própria Elizabeth que o pedira quando revira a lista de convidados com a mãe. Ficara bastante impressionada com ele no ano anterior e sentira-

-se desiludida por ele nunca ter tentado contactá-la em Vassar. — O que acha da firma de advogados em Nova Iorque?

Já não conseguia lembrar-se do nome dela, mas não se esquecera de que era bastante importante.

— Gosto dela. — Ele sorriu enquanto a ajudava a sentar-se, e Elizabeth riu-se para ele.

— Parece admirado.

Os olhos dele dirigiram-lhe um sorriso e Spencer sentou-se ao lado da jovem.

— E estou. Nunca tive muita certeza de que queria vir a ser advogado.

— E agora já tem?

— Mais ou menos. Penso sempre que as coisas hão-de ficar cada vez mais difíceis e excitantes, mas até agora isso não aconteceu. Por acaso até está tudo muito confortável.

Ela anuiu, e depois sorriu orgulhosa na direcção do pai, numa mesa ali perto.

— E veja aonde isso pode levar.

— Mas não leva todos. No entanto, de momento sinto-me satisfeito a fazer aquilo que estou a fazer.

—Já alguma vez pensou na política? — perguntou ela quando chegou o primeiro prato. Era sopa de lagosta, servida com vinho branco, e Spencer observou Elizabeth com um ar divertido. Ela continuava a ter aquele olhar inquisidor aue parecia sondar toda a gente, e não receava colocar perguntas sérias. Ele apreciara aquela qualidade no ano anterior, e tomou a reparar nela. Elizabeth não receava abordar qualquer assunto e ele admirava isso. Tomava a iniciativa e seguia em frente. Era uma mulher com domínio de si própria, do que a rodeava, e ele suspeitou que se tivesse oportunidade, também dominaria as pessoas à sua volta. Naquele momento ela observava-o com interesse, muito envolvida na política por causa do pai.

— O meu irmão tinha aspirações nesse sentido, ou pelo menos assim pensava. Mas não tenho a certeza de que a perspectiva me agrade. — O problema era que ele ainda não sabia o que é que lhe agradava.

— Se eu fosse homem, enveredaria por esse caminho. — Elizabeth parecia tão segura de si que ele a invejou um pouco. Riu-se. Ela era bastante enérgica. Recordou-se que da última vez que a vira ela lhe dissera que queria ser advogada.

— O que é que está a estudar em Vassar?

— Ciências Humanas. Literatura. Francês. História. Nada muito excitante.

— O que é que gostaria de fazer? — Ela intrigava-o bastante, com a sua agudeza de espírito e abordagem directa. Elizabeth Barclay não era uma violeta medrosa.

— Desistir da faculdade e fazer alguma coisa útil. Pensei em vir para Washington durante algum tempo, mas o meu pai ia tendo um ataque quando falei no assunto. Quer que eu termine primeiro o curso.

— Parece-me razoável. Só lhe faltam mais três anos. — Mas ao vê-la, também ele achava esse tempo interminável.

—Já tornou a regressar à Califórnia?

— Não — respondeu com pesar. — Ainda não tive tempo, e o ano passou muito depressa.

Ela concordou. Também o achara muito rápido em alguns aspectos, noutros demasiado lento. Regressara a São Francisco no Natal para debutar no Cotillion e os pais tinham-na apresentado à sociedade no Burlingame Country Club, pouco tempo antes. E depois, é claro que passara o Verão no lago Tahoe. Mas estava mais interessada em visitar Nova Iorque e Washington nesse Inverno. Os pais já a tinham convidado para passar o Natal e Palm Beach.

Nessa altura, a orquestra começou a tocar e Spencer convidou-a para uma dança aos primeiros acordes de Imagination, enquanto esperavam pelo prato principal. Conduziu-a até à pista de dança. Ela dançava lindamente, e ele baixou o olhar para o cabelo castanho-avermelhado e para os ombros bronzeados. Tudo nela sugeria saúde, bem-estar e poder. Ela contou-lhe que no Verão seguinte iria à Europa com os pais, no lie de France, e perguntou-lhe se alguma vez lá estivera. Ele respondeu que não. O pai prometera enviá-lo até lá quando acabasse a faculdade, mas nessa altura começara a guerra, ele alistara-se logo a seguir, e, em vez disso, fora para o Pacíco. Elizabeth também comentou que dali a umas semanas iria a Nova Iorque visitar um dos irmãos. lan Barclay trabalhava numa firma de advogados ainda mais ilustre do que a que empregava Spencer.

— Conhece-o?

Ela levantou o rosto para Spencer com um ar muito jovem e atraente, e ele começou a sentir os efeitos do scotch. Gostava de a sentir sob as mãos, e enquanto dançavam reparou pela primeira vez no perfume dela.

— Não, não conheço. Mas o meu pai conhece. — Lembrou-se de que o pai comentara que Barclay estivera na sua sala de audiências. — Vai ter de mo apresentar. — Era a primeira vez que ele sugeria algo que indicava que a tornaria

a ver.

— Gostaria muito. — Ela parecia vitoriosa e magnificente quando ele a conduziu de volta à mesa. Sentaram-se para terminar o jantar e conversar com os amigos dos pais dela. No fim da noite Spencer achava que a conhecia um pouco melhor. Elizabeth jogava ténis, gostava de esqui, falava um pouco de francês, detestava cães e não parecia muito interessada em crianças. Durante a sobremesa, admitiu que aquilo que pretendia era conseguir fazer algo da sua vida, e não se limitar a jogar brídege e a ter filhos. Para Spencer era óbvio que ela adorava o pai e pretendia casar-se com alguém como ele, um homem que «fosse a algum lado», como ela dizia, não alguém que se contentasse em se sentar numa cadeira e deixar que a vida lhe passasse ao lado. Queria casar com um hoem que fosse importante. Era demasiado nova para ter já tantas certezas, ainda não fizera vinte anos, mas conhecia-se em e tinha muitas oportunidades de conhecer o homem ue pretendia. E quando saíam do salão de baile Spencer apercebeu-se de que ela teria gostado muito mais de Robert do que dele.

— Quer ir beber um copo a qualquer lado? — Ficou admirado ao ouvir-se fazer aquela pergunta, mas gostava de falar com ela.

— Pode ser. Onde é que está instalado? — Os olhos castanhos dela olharam directamente para os dele. Não tinha medo de nada, muito menos de Spencer.

— No Shoreham.

— Nós também. Podemos beber qualquer coisa no bar. Vou só avisar a minha mãe. — Assim foi, e poucos minutos depois partiram. Era quase uma da manhã, a maior parte dos convidados já se tinha ido embora, e a mãe não objectou a que ela saísse com Spencer. Era um homem irrepreensível, atraente, e sabia que podia confiar-lhe a filha. Fez-lhes adeus quando partiram, mas Spencer não quis interromper o que parecia ser uma conversa séria com o presidente da Assembleia Legislativa. Saíram discretamente e apanharam um táxi de volta para o hotel. Instalaram-se numa mesa tranquila a um canto do bar. Spencer reparou que várias cabeças se viraram quando entraram. Faziam um casal muito atraente.

Pediu champanhe, e falaram, durante algum tempo, sobre Nova Iorque, o emprego dele, e acerca da Califórnia. Ele contou-lhe o quanto adorara São Francisco e que um dia gostaria de lá viver, embora não visse como isso seria possível enquanto trabalhasse para uma firma de Wall Street. E ela riu-se, pois queria mudar-se para Nova Iorque quando acabasse a faculdade, ou talvez para Washington, agora que os pais iriam ali passar a maior parte do ano. Comentou que gostaria de ter a sua casa em Georgetown.

Pelo modo como falava, era evidente que Elizabeth nunca tivera falta de nada. Nunca lhe ocorrera que poderia não conseguir aquilo que desejava. Mas ele já tinha calculado isso quando a conhecera em São Francisco. A casa onde ela vivia com os pais era opulenta e bonita, e não era difícil ver que a sua vida não tivera sobressaltos. Ambos os progenitores vinham de famílias muito abastadas.

— Um dia destes tem de ir a Tahoe. O meu avô construiu uma casa lindíssima à beira do lago. Adoro-a desde miúda. — Mas, estranhamente, quando Elizabeth disse aquelas palavras, Spencer pensou em Alexander Valley, e perguntou-lhe se alguma vez lá fora. — Não, mas fui uma vez a Napa visitar um amigo do meu pai. No entanto, não há lá muito que ver, excepto as vinhas e algumas casas vitorianas. — Aquilo parecera-lhe muito monótono, mas ficou intrigada quando Spencer lhe descreveu o vale mais a norte. Viu algo nos olhos dele que lhe despertou uma certa curiosidade. Era um olhar cheio de recordações, um olhar que lhe disse que ali havia mais qualquer coisa. — Tem lá amigos?

Ele concordou, pensativo:

— Dois homens que serviram no Exército comigo moram lá. — Nessa altura falou-lhe de Boyd e de Hiroko e a expressão dos olhos dela tornou-se mais dura enquanto o ouvia.

— Foi uma estupidez da parte dele casar com ela. Ninguém vai esquecer o que aconteceu no Japão. — De repente, parecia uma rapariga mimada e insensível, e isso aborreceu-o. Era exactamente o mesmo tipo de reacção que se deparara a Hiroko desde que chegara à Califórnia.

— Acho que os Japoneses também não irão esquecer o que se passou em Hiroxima — disse ele numa voz calma, mas sem conseguir ocultar a sua ira.

— Não disse que o seu irmão foi morto no Pacífico? — O olhar dela trespassou-o, e Spencer dirigiu-lhe um olhar franco.

— Pois foi, mas não odeio os Japoneses por causa disso. Também lhes causámos muitas mortes. — Era uma visão pacifista a que ela não estava habituada, e que não era semelhante à opinião do pai dela. O juiz Barclay era ultraconservador e aprovara sem reticências o bombardeamento de Hiroxima. — Odeio tudo aquilo que lá fizemos, Elizabeth. Ninguém ganha uma guerra, a não ser talvez os governos. As pessoas perdem sempre, em ambos os lados.

— Não sou da sua opinião. — Ela parecia muito afectada e ele tentou acalmar-se tomando as coisas de ânimo leve.

— Calculo que também gostaria de se ter alistado no Exército. — Tal como gostaria de ser advogada, ou política.

— A minha mãe trabalhou para a Cruz Vermelha, e eu também teria trabalhado se tivesse idade suficiente.

Ele suspirou. Ela era ainda tão nova, tão ingénua e tão influenciada pelas ideias dos pais! Spencer tinha a sua visão da guerra, que por sinal diferia muito da de seu pai. Estava contente por ela ter terminado, mas ainda recordava os amigos que perdera, os homens que tinham lá estado com ele... e o irmão. Então olhou para Elizabeth, e sentiu-se quase suficientemente velho para poder ser pai dela, não apenas com mais dez anos.

— A vida é engraçada, não é, Elizabeth? Nunca se sabe para que lado irá. Se o meu irmão não tivesse sido morto, talvez eu nunca tivesse ido para a Faculdade de Direito. — Sorriu: — Talvez nunca a tivesse conhecido.

— É uma forma estranha de encarar as coisas. — Sentia-se intrigada a respeito dele. Era honesto, meigo e inteligente, mas não tão ambicioso como ela gostaria. Parecia saborear a vida à medida que ela passava, esperando ver para que lado o levaria. — Nós traçamos o nosso próprio destino, não lhe parece?

— Nem sempre. — Vira já demasiada realidade para acreditar naquilo. E se tivesse traçado o seu, a sua vida teria sido muito diferente. — Acha que irá traçar o seu? — Estava tão fascinado por ela como ela por ele. Eram tão diferentes!

— Provavelmente. — Parecia cheia de certezas, e ele admirou-a pela sua confiança e determinação.

— Creio que o fará, se tiver oportunidade.

— Isso surpreende-o? — Estava to segura, tão serena, tão senhora de si depois de uma noite tão longa.

— Nem por isso. Você parece-me ser uma pessoa que sempre teve tudo o que quis.

— E você? — A voz dela tornou-se mais suave. — Teve alguma desilusão Spencer? — Perguntou-se se ele perdera alguém de quem gostara muito, ou rompera um noivado, as não fora esse o caso.

Ele sorriu antes de responder, pensando no que iria dizer-lhe.

— Não uma desilusão; só enviado para outra rota, digamos assim. — E em seguida riu-se enquanto servia o resto do champanhe. O bar iria fechar em breve, e teria de a levar para junto dos pais, ou pelo enos até à suite deles. Sabiam ambos que a noite não se prolongaria. — Quando voltei para casa, os meus pais queriam que eu casasse corn a mulher do meu irmão, ou seja, a sua viúva. Houve alguma agitação por essa altura.

— E porque não casou? — Queria saber tudo sobre ele. Ele olhou-a nos olhos.

— Porque não a amava. Isso para mim é importante. Ela era a mulher do Robert, não a minha. Eu não sou o meu irmã. Sou outra pessoa.

— E que tipo de pessoa Spencer? — A voz dela parecia uma carícia no aposento obscurecido. Fitou-o: — O que é que você quer?

— Alguém para amar... e respeitar... e cuidar. Alguém que se ria quando as coisas correm mal... alguém que não tenha receio de me amar... lguém que precise de mim. — Sentiu-se muito vulnerável ao dizer-lhe aquelas coisas, e não sabia o que o levara a expor-se daquela maneira. Perguntou-se se Crystal se encaixaria naquela descrição. Não era provável. Era estranho como a recordação dela não o abandonara. Era uma rapariga com uma beleza selvagem, de um lugar distante. Apenas sabia como era doce e meiga, e aquilo que sentia quando estava junto dela. Desconhecia o que lhe ia na alma, ou em que se transformaria quando chegasse a adulta. Também não sabia como era Elizabeth no seu íntimo, mas suspeitava que não era frouxa. Era feita de material mais duro, e não conseguia imaginá-la a precisar de alguém, a não ser do pai. — Se tudo fosse como queria, do que é que gostaria, Elizabeth?

Ela sorriu e foi tão franca como ele.

— De alguém importante.

— Isso diz tudo, não diz? — Spencer riu-se, mas as palavras dela tinham atingido o alvo. Elizabeth era exactamente o que ele pensara. Forte, inteligente, interessante, viva, ambiciosa e independente.

Acompanhou Elizabeth ao quarto e despediu-se dela no corredor. Ao abrir a porta, ela virou-se e olhou-o com um sorriso meigo.

— Quando é que regressa a Nova Iorque?

— Amanhã de manhã.

— Eu fico aqui mais alguns dias. Vou ajudar a minha mãe a procurar uma casa. Mas volto para Vassar na próxima semana. Spencer, telefone-me — acrescentou ela numa voz tão baixa que ele mal ouviu.

— Como é que a posso encontrar? — Pela primeira vez pensou em ligar-lhe, embora não soubesse bem porquê. Achava-a demasiado dominadora, mas no entanto poderia ser divertido levá-la a jantar ou ao teatro. Decerto não o iria embaraçar, e era interessante conversar com ela. Havia algo vagamente intrigante no facto de sair com a filha do presidente do Supremo Tribunal.

Ela disse-lhe em que camarata estava, e ele prometeu não se esquecer. Depois agradeceu-lhe a noite.

— Diverti-me muito. — Pareceu hesitar, indeciso quanto ao que dizer a seguir, mas ela parecia bastante à vontade ali à porta do quarto.

— Eu também. Obrigada. Boa noite, Spencer. Depois a porta fechou-se devagarinho e ela desapareceu. Ele regressou lentamente ao elevador, perguntando-se se lhe iria mesmo telefonar.

 

O sócio com quem Spencer trabalhava ficou satisfeito quando este regressou a Nova Iorque e lhe falou da tomada de posse e do jantar que se lhe seguira. Agradava-lhe que os jovens advogados da firma se dessem com pessoas importantes. O facto de o pai de Spencer ser juiz também não lhe fora nada prejudicial. Este ficou muito satisfeito quando o filho lhe contou, e à mãe, a sua ida a Washington. Spencer não falou em Elizabeth, pois o assunto no lhe parecia importante e não queria que eles acalentassem esperanças.

E no m, depois de pensar no assunto durante algum tempo, decidiu não lhe telefonar.

No entanto, Elizabeth tomou o assunto nas suas mãos um mês mais tarde, quando foi a Nova Iorque visitar o irmão. Procurou o nome de Spencer na lista e ligou-lhe. O telefonema ocorreu num sábado, e ele ficou surpreendido por ouvir a voz dela. Ia mesmo a sair para disputar uma partida de squash com os colegas do escritório.

— Liguei em má altura? — Como habitualmente, a voz dela parecia cheia de maturidade, e ele sorriu, olhando pela janela e agitando a raqueta.

— De maneira nenhuma. Como tem passado?

— Bem. Vassar está um pouco melhor este período. — Não lhe contou que andava a sair com um dos professores. Os rapazes da sua idade sempre a tinham aborrecido. — Estava a pensar se você não quereria ir esta noite ao teatro. Temos um bilhete a mais.

— Está com os seus pais?

— Não. Estou em casa do meu irmão e da mulher. Esta noite vamos ver Summer and Smoke no Teatro Music Box. Já viu?

— Não, mas gostaria — respondeu ele, sorrindo. Bolas, que perigo poderia haver com o irmão dela por perto? Não conava no seu comportamento se estivesse sozinho com ela. Não queria envolver-se com uma pessoa que tinha ideias tão denidas a respeito do futuro. Ainda se recordava da resposta que ela lhe dera quando lhe perguntara o que procurava ela na vida e ela lhe respondera «alguém importante».

— Vamos jantar ao Chambord antes da peça. Porque não vai lá ter connosco? Digamos, às seis?

— Óptimo. Encontrar-nos-emos lá. E obrigado, Elizabeth. — Não sabia se deveria pedir desculpas por não lhe ter ligado, mas decidiu que era melhor não o fazer. Ela estava a facilitar-lhe as coisas. O melhor restaurante, o melhor espectáculo, e uma apresentação ao seu famoso irmão, lan Barclay.

Spencer chegou ao restaurante exactamente à hora marcada e reconheceu-a de imediato, com um fato preto de impecável corte e um pequeno chapéu de veludo preto sobre um penteado muito atraente. Ela parecia preocupar-se muito com a sua imagem, e ele apreciava isso. Era bonita e elegante, e sempre muito notada. Para uma rapariga que ainda não completara vinte anos, ela tinha muito estilo, e o irmão lan também. Spencer achou-o um homem muito inteligente, embora um pouco radical quanto às suas ideias políticas. Mas, apesar disso, Spencer simpatizou com ele. A mulher era uma inglesa muito bonita que ele conhecera durante os rais aéreos que fzera com a Royal Air Force. Era filha de Lord Wingham, e Elizabeth não se esqueceu de lho referir. A vida dela estava repleta de nomes importantes e pessoas ilustres, com cargos poderosos. De certa forma Spencer sentia-se também cheio de poder quando estava com ela, como se isso fosse contagioso. Sabiam todos muito bem quem eram e para onde iam e era fácil perceber por que motivo isso tinha tanta importância para Elizabeth. lan e Sarah tencionavam passar o Natal em St. Moritz, e no Verão tinham ido a Veneza. Depois haviam passado por Roma e tido uma breve audiência com o papa Pio, porque este conhecia o pai dela. Sarah possuía o enorme à-vontade da aristocracia e parecia esperar que todos conhecessem as mesmas pessoas que ela.

Gostaram da peça, e depois Spencer convidou-os para o Stork Club. Dançaram, conversaram e riram-se, e por fim foram ao apartamento dos Barclay em Sutton Place. Ainda não tinham filhos, e Sarah parecia muito mais interessada nos seus cavalos. Falou dos que eram usados nos saltos e na caça e convidaram Spencer a ir montar com eles um dia. Era tudo muito agradável, e desta vez, quando ele disse a Elizabeth que lhe ligaria, estava a falar a sério. Sentia que lhe devia algo depois daquela agradável noite, e era precisamente isso que ela queria.

Ligou-lhe duas semanas mais tarde, e ter-lhe-ia telefonado mais cedo, explicou, se não tivesse tido tanto trabalho no escritório. Mas ela não o repreendeu por não lhe ter ligado. Combinaram encontrar-se no fim-de-semana seguinte. Ficou de novo em casa do irmão, e Spencer levou-a a jantar no Stork Club. Não queria impressioná-la, mas Elizabeth era o tipo de rapariga que só se levava aos melhores locais. Falou-lhe dos casos de que se ocupara, na sua maioria litígios que envolviam negócios ou impostos. E nessa noite, quando a levou a casa, pararam à porta do apartamento do irmão dela e ele beijou-a.

— Gostei muito desta noite — disse ela muito calma, mas havia no seu olhar uma expressão carinhosa que não passou despercebida a Spencer.

— Também eu. — E estava a falar a sério. Ela era uma companhia agradável, e estava deslumbrante num vestido prateado que a cunhada lhe trouxera de Paris. — Que vais fazer no próximo fim-de-semana?

— Tenho exames. — Ela riu-se: — É estúpido, não é? Isto dá cabo da minha vida social. — Riram-se ambos, e ele sugeriu que ela poderia regressar a Nova Iorque no fim-de-semana seguinte.

Ela assim fez, e tornaram a sair. Desta vez, os beijos foram um pouco mais fervorosos. O irmão e a cunhada tinham ido passar o fim-de-semana a Nova Jérsia, para participar numa caçada, e ela convidou Spencer para uma bebida no fim da noite. Ficaram no sofá durante bastante tempo, a conversar e a beijarem-se. Depois ele sentiu-se culpado. Ela era demasiado nova para estar a usá-la daquela maneira, e não imaginava que a situação pudesse ir mais longe. O mundo dela estava um pouco para além dele. Spencer não estava apaixonado, mas sentia uma forte atracção física e sabia que gostava da rapariga. Gostava da sensação de poder que vogava tão livremente no mundo dela, mas também se apercebia de uma certa falta de carinho. Tudo era muito calculado e frio. No entanto, como turista nesse mundo, tinha de admitir que o achava divertido.

Elizabeth disse-lhe que iria passar o dia de Acção de Graças com os pais, em São Francisco, mas ele prometeu ligar-lhe assim que ela regressasse. E quando o fez, ela convidou-o para passar o Natal em Palm Beach.

— Não achas que os teus pais se iriam importar? — Ele parecia pouco à vontade, mas ela limitou-se a rir.

— Não sejas tonto Spencer. Eles gostam de ti.

— Eu devia cá ficar. Os Natais são um pouco difíceis para os meus pais. — E Barbara informara-os que não traria as crianças de Boston. Estava envolvida num romance muito sério, e queria os filhos consigo. Sabia que os pais se iriam sentir muito sozinhos; e o Natal recordava-lhes mais o filho que haviam perdido do que aquele que ainda estava vivo. Spencer lembrou-se de tudo aquilo enquanto pensava no inesperado convite de Elizabeth.

— Então porque não vais lá ter depois? Vou lá ficar até depois do Ano Novo. Podes ficar na nossa casa, temos dezenas de quartos de hóspedes. — Uma afirmação que ele suspeitava não ser um exagero. E não se enganava.

— Vou ver se me dispensam nessa altura, e depois telefono-te. — Ligou-lhe antes de ela partir para a Florida, e para sua própria surpresa, aceitou o convite. Ainda não sabia bem o que andava a fazer com ela, mas o que quer que fosse não era desagradável.

No Natal de Spencer não ocorreu nada de especial, e dois dias depois começou a sua semana de férias. Embarcou no avião rumo a Palm Beach, para casa dos Barclay. Estes mostraram-se agradados e amáveis, e a casa parecia estar cheia de convidados como ele. O irmão mais velho de Elizabeth, Gregory, também se encontrava presente. Trabalhava no Ministério das Finanças, era um típico banqueiro conservador. Era casado, mas a mulher não se encontrava presente; ninguém parecia querer tocar no assunto, e Spencer não fez perguntas. Andava demasiado ocupado com Elizabeth para se importar. Foram a todas as festas da cidade, e ele achou que nunca vira tantos diamantes. A própria Elizabeth punha um vestido diferente todas as noites, e uma pequena tiara que os pais lhe haviam oferecido no ano anterior, quando ela fora debutante.

— Então, estás a divertir-te? — perguntou ela um dia, quando estavam deitados na praia.

Ele riu-se com a pergunta. Elizabeth era sempre muito directa, o que ele apreciava. Não havia divagações, rodeios, nem era preciso perguntar o que ela quisera dizer com certas coisas: Elizabeth dizia sempre o que queria.

— É claro que estou. O que é que te parece? Isto é o paraíso. Talvez nunca mais torne a trabalhar nem regresse a Nova Iorque.

— Óptimo. Quando eu acabar a faculdade podemos fugir para Cuba. — Tinham lá ido de avião uma noite, para dançar e jogar no casino. Fora uma semana incrível, e Spencer teve de admitir que adorara. Era uma vida fácil, repleta de gente civilizada com coisas interessantes para dizer e belas mulheres cobertas de diamantes. Seria fácil habituar-se a ela, mas com que nalidade? Era a vida dela, não a dele. Mas, pelo menos durante algum tempo, era divertida.

— Já gostas mais da faculdade agora? — Rolou sobre um ombro para a olhar de frente. Ela estava lindíssima num fato de banho vermelho. Tinha um bronzeado que lhe realçava o cabelo castanho-avermelhado e os olhos escuros. Era uma rapariga muito bonita, e ele gostava dela.

— Nem por isso. Continuo a achar que estou a perder o meu tempo lá.

—Já percebo porquê. — Spencer desviou o olhar para o mordomo que se aproximava com limonada e ponches de rum numa bandeja de prata, e depois tornou a olhar para ela. — É muito difícil largar tudo isto e ir para a faculdade e lembrares-te do motivo por que quiseste ir para lá.

— Para te ser franca, não me apetecia ir — disse ela com um sorriso.

— Mas não podes ser advogada sem andares na faculdade. — Spencer sorriu e serviu-se de uma limonada enquanto ela beberricava um ponche de rum e lhe sorria sob a aba do chapéu.

— Então acho que não vou ser advogada. — Parecia que estava a brincar, e ele riu-se.

— Então o que irá fazer, Miss Barclay? Concorrer a presidente?

— Talvez case com um.

Ele olhou-a com uma expressão meio séria.

— Isso assentar-te-ia que nem uma luva.

— Gostaria de se candidatar um dia a presidente, senhor Hill?

Ele sentiu-se ligeiramente incomodado com o rumo que a conversa estava a tomar, mas limitou-se a sorrir enquanto abanava a cabeça e agitava a limonada. Ela era uma rapariga forte, e a sua família era poderosa. Não se podia brincar com eles durante muito tempo. E, de certa forma Spencer receava isso. No seu íntimo, atrás da expressão tranquila que arvorava junto dela, ele era uma alma delicada e preocupava-se com outras coisas. Coisas com que os Barclay nem sonhavam.

— Ser presidente nunca foi uma das minhas ambições.

— Então senador. Um cargo público seria estupendo para ti.

— Porque pensas isso?

— Gostas das pessoas, trabalhas bastante, és honesto, directo e inteligente. — Tornou a sorrir. — E conheces as pessoas certas.

Spencer não sabia se gostava daquilo que ela estava a dizer, e desviou o olhar para o oceano, em silêncio. Perguntou-se se não teria ido longe de mais com ela. Talvez a ida a Palm Beach tivesse sido um erro, mas já era tarde para o corrigir. Regressaria a Nova Iorque dali a dois dias, e depois disso talvez não a visse durante algum tempo. Ela observou-o enquanto ele meditava, e riu-se.

— Não fiques tão nervoso Spencer. Não vou atacar-te. Estou apenas a dizer-te o que penso.

— Às vezes tens uma maneira muito perturbadora de o fazer, Elizabeth. De vez em quando, acho que consegues sempre o que queres. Ou antes, quero mesmo dizer sempre.

E não queria ser aquilo que ela cobiçava. Pelo menos por enquanto. Não até sentir por ela mais do que sentia naquele momento. E não sabia se chegaria a senti-lo. Eram bons amigos, mas bastante diferentes um do outro.

— Que mal há em conseguirmos o que queremos?

— Nenhum, desde que os outros concordem que é também isso que querem — respondeu numa voz calma, e ela olhou-o como que a sondá-lo.

— E é isso que os outros querem? — Fez a pergunta de forma tão incisiva que ele quase estremeceu.

— Porque não vamos ao banho? — Não queria responder: não estava preparado para dizer o que ela queria ouvir e não sabia se alguma vez o estaria. Ainda acalentava sonhos de vir a encontrar uma mulher que precisasse dele, uma mulher meiga, bondosa, terna, carinhosa. Elizabeth era algumas daquelas coisas, mas não todas. Em vez disso, era outras coisas. Outras coisas a que ele ainda não se acostumara.

— Não respondeste à minha pergunta. — Olhou-o quando ele se levantou. Spencer sabia que não havia maneira de fugir dela. Só lhe restava dizer-lhe a verdade. Elizabeth não exigia menos de ninguém, muito menos de Spencer.

— Ainda não sei.

Ela anuiu, como se desse o assunto por encerrado, e depois tornou a olhá-lo nos olhos.

— Acho que faríamos os dois uma boa equipa. Temos força e miolos para fazer coisas interessantes juntos. — Até parecia que aquilo era um acordo de negócios, e ele sentiu-se deprimido.

— Tais como? Dirigir uma empresa?

— Talvez. Ou na política. Ou ser apenas como o lan e a Sarah.

— Com os cavalos e os amigos, as caçadas e os clubes, e o castelo do pai dela, Elizabeth? — Spencer tornou a sentar-se e olhou para ela. — Eu não sou como eles. Sou diferente. Quero outras coisas.

— Que outras coisas? — Ela parecia intrigada.

— Filhos. Nunca pensas nisso, pois não? Ela ficou admirada quando ele disse aquelas palavras. Os filhos nunca lhe tinham parecido importantes.

— Também os poderíamos ter. — Como diamantes, ou investimentos. Ela fazia-os parecer objectos que deveriam ser guardados no armário. — Mas há outras coisas mais importantes na vida.

— Que outras coisas? — repetiu ele, admirado com a forma como ela via o mundo. — O que é mais importante do que isso?

— Não sejas ridículo Spencer. Realizações, feitos, criar espaço para nós.

— Como o teu pai? — Era uma crítica velada, mas ela não percebeu.

— Exacto. Um dia podias estar no lugar dele, se quisesses.

— O problema é que não sei se é isso que quero — disse ele com pesar. — Consegues compreender?

— Sim — respondeu ela. — Acho que tens medo. Acho que tens medo de voltar a ser confundido com o teu irmo. Mas tu não és ele Spencer; és tu próprio, e há muitas coisas à tua espera no mundo, basta-te sair e procurá-las.

Contudo, ele ainda não sabia se chegaria a importar-se suficientemente com isso para se dar ao trabalho de lutar para o conseguir. Por outro lado, não se imaginava a trabalhar em casos de litígio financeiro durante o resto da vida para a Anderson, Vincent e Sawbrook. O que iria fazer quando fosse grande? Ainda não se decidira quanto ao futuro.

— Quero tomar as decisões certas.

— Também eu. Mas parece-me que vejo mais do que tu.

— Porque pensas isso? Tens vinte anos. Ainda não sabes nada da vida. — De repente, sentiu-se irritado. De modo velado, ela estava a pedi-lo em casamento, e parecia que tentava convencê-lo a comprar algo, uma casa, um carro, ou um objecto. E Spencer queria ser ele a fazer o pedido, se fosse isso que decidisse fazer. Mas não o decidira, e achava que nunca o decidiria. Não a amava.

— Sei mais da vida do que pensas. Pelo menos, sei para onde quero ir, o que é mais do que aquilo que sabes.

— Talvez tenhas razão. — Ele tornou a levantar-se e olhou para o oceano. — Vou dar um mergulho.

Dirigiu-se ao mar, e aí permaneceu durante meia hora. Ela não tornou a pressioná-lo, mas as suas palavras haviam-no abalado. Depois disso, precisava de ter cuidado para não dizer nada que fosse mal interpretado. Contudo, antes de ele se ir embora, Elizabeth foi ao quarto dele e tornou a enfrentá-lo. Daquela vez não havia maneira de evitar aqueles olhos. Spencer observou-a, sentindo-se acossado.

— Só quero que saibas que te amo.

— Elizabeth, não... por favor. — Magoava-o o facto de não poder dizer-lhe que também a amava. — Não faças isso.

— Porque não? E estava a falar a sério quando te disse aquilo na praia. Acho que juntos poderíamos fazer muita coisa.

Ele riu-se e passou uma mão pelo cabelo.

— Sou eu quem devo fazer o pedido de casamento, miúda, e quando o fizer, tu saberás.

— Saberei? — Os olhos dela escarneceram dele quando se aproximou.

— Podes crer. — Então puxou-a para junto de si e beijou-a. Ela era tão forte que ele teve de a seduzir para lhe mostrar quem é que mandava, e se tivesse algum voto na matéria, a sua escolha não seria Elizabeth Barclay. Mas os seus planos tornaram a falhar. Estar com ela era como brincar com o fogo, e ele ficou sem saber quem seduzira quem, só soube que fizeram amor e que fora muito bom. O corpo dela encheu-o de fome e de paixão e sentiu um desejo irresistível de a controlar, pelo menos na cama, se não fosse em mais nenhum local. Era uma amante interessante, e ele soube que já não era virgem.

Elizabeth levou-o ao aeroporto; ele ficou a olhar para ela durante muito tempo, sem saber o que fazer. Precisava de tempo para pensar, e estava ansioso por voltar a Nova Iorque.

— Volto para a faculdade na próxima semana. Beijou-a com suavidade e desejou tornar a fazer amor com ela, aborrecido consigo mesmo por estar de novo a ser controlado. Em muitos aspectos, ela era mais forte do que ele.

— Eu telefono-te.

Spencer acenou ao entrar para o avião e viu-a ali parada no seu vestido de Verão e enorme chapéu enquanto o aparelho deslizava pela pista, os olhos procurando-o mesmo quando o avião levantou voo. Sentia que agora não poderia fugir dela. Já não sabia se era isso que queria. Talvez ela tivesse razão. Talvez ela o pudesse ajudar a descobrir o que queria. Já não tinha a certeza de nada, e o pior de tudo foi que, quando aterrou na neve de Nova Iorque, Spencer soube que sentia a falta de Elizabeth.

 

Nesse ano, o Natal no rancho foi muito deprimente: era o primeiro Natal após a morte do pai e toda a alegria parecia ter desaparecido. Becky levou os filhos e passou o dia com eles, e Tom apareceu à hora do almoço, a tresandar a álcool e a tentar seduzir Crystal de forma descarada. Quando ele se foi embora, Becky desatou a chorar e acusou a irmã de namoriscar com ele, o que a deixou horrorizada. Crystal detestava-o tanto que não conseguia dizê-lo por palavras.

A família foi junta para a igreja, e a mãe chorou amargurada, pensando no marido que perdera e como a sua vida se alterara desde então. A única alegria de Crystal foi o consolo que sempre tinha quando cantava com a congregação. Depois disso regressaram a casa, e a jovem esgueirou-se discretamente para ir entregar as prendas a Boyd e a Hiroko. A pequena Jane já tinha oito meses e gatinhava pela sala de jantar, rindo toda contente e içando-se para os joelhos de Crystal enquanto todos a observavam. Tinham uma minúscula árvore de Natal e Crystal entregou-lhes as suas prendas. Fizera uma camisola para Hiroko, a primeira que tricotara, um cachecol para Boyd e comprara uma boneca para Jane, que ela meteu de imediato na boca. Crystal achava o Natal mais feliz ali. Era uma casa repleta de amor e corações carinhosos que contrastava com o silêncio soturno da sua casa. Becky sabia que Tom a andava a enganar e ouvira os boatos a respeito de Ginny Webster, mas parecia querer culpar Crystal por tudo, como se ela tivesse alguma culpa. Insistia muitas vezes que a irmã andava a seduzir o marido, e Olivia acusou-a mais de uma vez de o estar a encorajar, o que fez as lágrimas surgirem nos olhos de Crystal. Não fizera nada para merecer aquelas acusações, mas parecia impotente perante elas.

Até Jared se virou contra ela. Ouvira pêlos amigos que ela costumava visitar Boyd e a mulher, e ameaçou-a de que contaria à mãe. Era como se todos a odiassem. Tinha uma existência infeliz, exceptuando os momentos que passava com os Webster.

— Não sei que mal lhes fiz — desabafou ela a chorar uma noite em que os foi visitar, depois de um dia angustiante no rancho. — Porque é que me odeiam? — Fazia o que lhe mandavam, trabalhava muito, raramente discutia com eles, mas mesmo assim pareciam todos determinados a fazê-la infeliz.

— Porque és diferente — respondeu Boyd numa voz calma, enquanto Hiroko segurava a filha no colo. — Não és parecida com eles, não pensas da mesma forma. Sempre assim foi.

E o pai já lá não estava para a proteger. Sabia que o que Boyd dissera era verdade, mas não suportava a injustiça de tudo aquilo. Que mal lhes fizera? Nenhum. Mas nascera demasiado bela. Era uma rosa de Verão silvestre num campo de ervas daninhas decididas a destruí-la.

Assoou-se enquanto pensava no assunto. Era insuprável continuar a viver naquela casa, mas não tinha para onde ir. Boyd e Hiroko sabiam-no, e ela também. A única coisa que lhe restava fazer era sair do vale, mas primeiro queria acabar o liceu. Prometera isso ao pai. Ainda pensava em ir até Hollywood. Mas era demasiado cedo: tinha de acabar os estudos... se conseguisse sobreviver. No entanto, sabia que seria capaz. Não iria permitir que pessoas como a mãe ou como o Tom Parker mandassem na sua vida. Tinha muito do pai para que isso acontecesse. Por enquanto iria aguentar a situação, mas sabia que partiria assim que terminasse a escola. Ainda não decidira para onde ir, mas tinha de deixar o vale. Precisaria de dinheiro para tal, e agora que o pai morrera, apesar do amor que sentia por aquela terra, sabia que tinha de a deixar. Os outros constituíam uma força demasiado poderosa para serem eternamente ignorados. Tinha de partir antes que a magoassem. E precisava do dinheiro suficiente.

Em Janeiro começou a trabalhar na cidade como empregada de mesa. E até isso provocou a fúria da mãe. Chamou-lhe meretriz e prostituta e acusou-a de querer encontrar-se com homens, mas tudo o que ela fazia era servir às mesas no snack-bar. De vez em quando, o cunhado ia visitá-la e fazia-a passar um mau bocado, mas sempre que era possível Crystal escapulia-se para a cozinha e tomava a sua vez a lavar a loiça, enquanto ele lá estava. As pessoas do snack-bar eram simpáticas para ela e recebia boas gorjetas. Também ouviu várias propostas de homens. Fazia sempre por ignorá-las ou recusava-as de forma abrupta sempre que necessário. O dono do snack-bar simpatizava com ela e certificava-se de que ninguém ia demasiado longe. Era uma rapariga simpática e ele sempre gostara do pai dela. Não aprecisava muito Tom Parker, nem a forma como ele a tratava. Disse mais de uma vez a Crystal para se manter longe de Tom quando ele estivesse embriagado. Levava-a muitas vezes a casa depois do anoitecer e cava à espera para se certificar de que ela entrava em casa sã e salva. Crystal escondia o seu dinheiro debaixo da cama, e no final de Abril já tinha poupado quatrocentos dólares. Era o seu bilhete para Hollywood, ou pelo menos para a liberdade, e guardava-o com a vida, contando-o ao fim da noite, ao luar, com a porta do quarto trancada. Contava os dias até poder partir. Já não faltava muito. Mas cada dia que passava parecia uma eternidade.

A pequena Jane fez um ano, e Crystal foi no seu velho cavalo visitá-la numa soalheira manhã de domingo. Passou o dia com eles e já era tarde quando regressou a casa, mas conhecia bem a estrada. Já perto do fim, decidiu tomar um atalho, cavalgando pêlos campos, cheirando o ar enquanto cantava baixinho as suas baladas favoritas. Sentiu-se bem pela primeira vez desde há muito tempo. O pai falecera havia mais de um ano e a dor da perda já diminuíra um pouco. Sentia-se forte, jovem e viva e só pensava no futuro.

Quando prendeu o cavalo no celeiro e lhe tirou a sela, cantarolando, ouviu um ruído atrás de si, e virou-se, assustada. Era Tom, sentado numa saca de ração, a beber.

— Onde é que foste nesse velho cavalo? Tens um namorado na cidade?

— Não. — Virou-se para o enfrentar, e não gostou do que viu: Tom tinha os olhos vermelhos, e Crystal apercebeu-se de que a garrafa que ele tinha na mão já estava meio vazia. — Fui visitar uns amigos.

— Aquela chinoca outra vez? — Ele também já ouvira os boatos, e contara a Becky, que, por sua vez, relatara à mãe.

— Não — mentiu ela —, uns amigos da escola.

— Ah, sim? E quem são eles? — A sua voz estava roufenha da bebida; a de Crystal permanecia calma, mas por dentro tremia.

— Não interessa. — Virou-se para sair do celeiro, mas ele agarrou-a com força pelo braço. Apanhou-a desprevenida e ela tombou para trás, tropeçando no pé dele, cambaleando para manter o equilíbrio.

— Para quê tanta pressa?

— Tenho de ir para casa ter com a minha mãe. — Tentou olhá-lo nos olhos, mas teve medo. Embora fosse alta, não era to alta como Tom Parker. Ele gostava de dizer aos amigos que era forte como um touro e ainda maior no sítio que era importante.

— Com a mãe... que querida — escarneceu —: para casa ter com a minha mãe. Ela está-se nas tintas para ti. Seja como for, agora encontra-se com a Becky. A cadela estúpida está outra vez prenhe. Céus, já era altura de ela ter aprendido! Poucas vezes fornicamos, e quando o fazemos, ela engravida.

Crystal assentiu com uma expressão compreensiva, tentando afastar-se dele, mas Tom segurava-lhe os braços como um torno e era óbvio que não fazia tenções de a deixar ir a algum lado, pelo menos nos minutos mais próximos.

— Eu disse-te para ficares por aqui, não disse? — Ela assentiu, muda de terror. Com dezassete anos, nenhum homem lhe tocara, e não lhe servia de consolo pensar que se o pai fosse vivo mataria Tom. — Queres um trago?

— Não, obrigada. — Tinha o rosto muito branco do medo e abanou a cabeça.

— É claro que queres. — Prendeu-lhe os dois braços com uma mão e com a outra levou a garrafa à boca dela. Levantou o fundo, entornando-lhe uísque para a camisa, mas mesmo assim fazendo com que uma boa porção de líquido tivesse entrado pela boca de Cristal, apesar do esforço que ela fazia para lhe resistir.

— Pára! Deixa-me em paz... larga-me!

Ele riu-se, observando o mal-estar dela enquanto as lágrimas lhe enchiam os olhos. De repente, atirou-a para um monte de feno ali guardado para os cavalos.

— Despe-te.

— Tom... por favor... — Ela começou a fcvantar-se e a recuar para longe dele, mas Tom agarrou-lhe, as pernas e empurrou-a para o chão, ajoelhando-se e atirando a garrafa para longe. O celeiro ficou a cheirar a uísque barato. — Por favor... não... — Não lhe disse que era virgem. Não sabia o que lhe dizer. Estava a chorar quando ele lhe arrancou a camisa.

— Costumas dar umas com os outros, não é verdade, mana? Vá lá, sê uma boa menina aqui para um mano.

— Tu não és meu irmão... pára com isso! — A seguir, com um punho fechado, lutando pela vida, ela atingiu-o. Atingiu-o em cheio no olho, e ele gemeu, mas agarrou-a e esbofeteou-a com força. Com tanta força que a deixou sem fôlego.

— Cabra! Disse-te para te despires! — Tirou-lhe as calças de ganga com uma mão, mantendo-a no chão com a outra, com todo o seu peso sobre ela, e Crystal pensou que ele lhe ia partir os braços. Mas não se importava. Ele teria de a matar antes de a possuir. Lutou como um animal selvagem, mas não podia competir com ele. Tom atirou-a várias vezes para o chão, praguejando e insultando-a e, de repente, com um som seco, arrancou-lhe as calças. As coxas pálidas de Crystal surgiram perante os seus olhos. Ela tremia.

— Não... Tom... por favor... — Soluçava quando ele lhe arrancou as cuecas, continuando a segurá-la com uma mão forte, os braços dela bem acima da cabeça, os joelhos mantendo-a quieta. Acariciou-a com a mão livre, e enquanto ela continuava a soluçar e a implorar, baixou as calças apenas o suficiente para que ela o visse. Não hesitou e abriu caminho dentro dela, esmagando-a contra o solo a cada investida enquanto ela gritava e gemia de dor. Tornou a esbofeteá-la, e desta vez o sangue surgiu: escorria-lhe da boca e Crystal jazia numa poça sanguinolenta enquanto Tom a violava. Tinha as costas feridas pela palha e pelo chão, e ofegou de dor e medo quando ele ejaculou, tornando a esbofeteá-la depois com toda a força. Mas já não restavam forças a Crystal. Permaneceu no chão, enroscada e espancada enquanto ele se levantava e puxava as calças para cima. Pegou na garrafa e bebeu um trago, depois olhou para Crystal e riu-se.

— É melhor lavares-te antes de ires para casa, mana. — Tornou a rir-se e bateu com a porta, regressando para junto da mulher e deixando Crystal no chão do celeiro a sangrar, espancada e com vontade de morrer. Ficou ali a chorar até não ter mais lágrimas. Já não restava nada. Quis morrer ali. Demorou muito tempo até se ajoelhar e avançar na direcção da mangueira utilizada para encher o bebedouro dos cavalos. Deixou a água correr enquanto vomitava e molhou-se com o líquido gelado, lavando o rosto e os braços. Depois, olhou para as calças de ganga rasgadas e para as tiras que haviam sido as suas cuecas, e para o sangue que ele espalhara quando a possuíra. Tornou a cair sobre os joelhos, chorando baixinho. Não podia voltar para casa. Não podia explicar-lhes. Não podia contar a ninguém. Já sabia que iriam culpá-la. Com pernas trémulas cambaleou até junto do cavalo. Agarrando-se à crina do animal, levou-o para o exterior e içou-se para cima dele no frio ar da noite. Cavalgando devagar pêlos campos regressou para junto dos Webster. Deixara-os havia apenas duas horas, e quando viu as luzes da casa deles começou a chorar outra vez. Todo o corpo lhe doía, e estava cheia de sangue e meio nua. O cavalo parou no jardim deles, e ela deslizou para o chão. Boyd viu-a pela janela e apressou-se a correr para fora, seguido de Hiroko.

—Crys... oh, meu Deus... oh, meu Deus... —Julgava que alguém quisera matá-la. Crystal caiu misericordiosamente aos pés deles numa poça de sangue, desmaiada.

 

Boyd levou Crystal para dentro, e deitaram-na na cama deles. Pegou no bebé e Hiroko sentou-se junto dela, lipando-a com toalhas mornas. Tocou-lhe ao de leve nos ferimentos, e quando viu as costas dela gritou. As costas e s pernas e o ferimento nos lábios. Era de admirar ele não a ter matado. Crystal ficou a chorar na cama em que tinha ajudado a nascer a filha deles e na manhã seguinte conseguiu sentar-se na cozinha, olhando-os com uma expressão de vazio. Eram as únicas pessoas que ela teria conseguido encarar. Tinham-se tornado a sua família, e tornou a chorar quando Boyd lhe estendeu uma chávena de café.

— Eu levo-te a casa na carrinha. Podes dizer à tua mãe onde estiveste. E depois vamos ao xerife.

Ela abanou a cabeça, muito infeliz. Tinha dores no corpo todo e não pregara olho durante a noite. Mal conseguia ver devido ao olho negro. Com excepção do cabelo loiro, era difícil acreditar que aquela era Crystal. Mas não podia ir ao xerife. Se fosse Tom poderia matá-la.

—Não posso fazer isso.

— Não sejas idiota — resmungou Boyd. Tinha vontade de matar Tom com as próprias mãos.

— Não posso fazer isso à Becky e à minha mãe.

— Estás louca? O tipo violou-te! Crystal começou de novo a chorar, e Hiroko pegou-lhe na mão.

— Ele tem de ser castigado. O Boyd tem razão. Crystal olhou para eles, em silêncio, através das lágrimas. A humilhação era agora sua. E sentia-se confusa com tudo o que sentia, sentia-se furiosa e assustada e dorida, e, por qualquer estranha razão, culpada. Seria a culpa dela? Tê-lo-ia encorajado ao longo dos anos, sem o saber? Ou seria mais um castigo pelo seu aspecto? Não sabia, mas isso agora já não importava. Acontecera. E era mais uma razão para sair imediatamente do vale que outrora amara e que agora odiava. Nada lhe restava ali com excepção de perda, dor e mágoa, além dos Webster.

— Não podes permitir que ele se safe Crystal. — Desta vez, Boyd falou com calma. Mas por dentro ainda tremia de raiva. — Eu levo-te a casa.

Tinham passado toda a noite a tomar conta dela. Crystal deixou lá fícar o cavalo e entrou na carrinha com Boyd. Fez a viagem para casa em silêncio, pensando no que iria fazer. Hiroko abraçara-a com força ao despedir-se, mas ficara em casa com Jane. Crystal fora incapaz de falar antes de a deixar. Emudecera devido ao sofrimento, à vergonha e ao medo.

Boyd seguiu-a até ao interior da casa; a avó estava na cozinha. Olhou para Crystal parada na sala de estar, com as calças de ganga que Boyd lhe emprestara, o rosto ferido e o cabelo ainda emaranhado da noite anterior, e correu a chamar a filha. Crystal já estava lavada, mas ainda em desalinho. E momentos depois, a mãe irrompeu pela sala, ainda a abotoar o roupão.

— Onde raio é que estiveste? Oh, meu Deus... — De seguida, olhando para Boyd, perguntou: — O que estás aqui a fazer?

Ele não era bem-vindo àquela casa desde que casara com Hiroko, excepto para ocasiões como casamentos e baptizados. Mas não fora convidado a voltar desde essa altura.

— Vim trazê-la. Ela ficou connosco esta noite. Não gostou do que viu nos olhos de Olivia Wyatt, não viu neles compaixão, só acusações. Olivia não se aproximou de Crystal, enquanto a rapariga a olhava com os olhos muito abertos. Boyd ajudou-a a sentar-se numa cadeira.

— O que fizeste para que uma coisa destas acontecesse? Boyd virou-se para voltar a encarar Olivia, e com os olhos cheios de raiva contou-lhe o que Crystal era incapaz de dizer.

— O seu genro violou-a.

— É mentira! — Olivia avançou para os dois, e em seguida virou-se para Boyd. — Vai-te embora. Eu trato disto. — E depois, para Crystal: — Como é que tens coragem de lhe contar uma coisa dessas a respeito do teu cunhado?

Ela, perplexa, olhou para a mãe. Esta não se importava nada com o que lhe acontecia. E Crystal já não tinha dúvidas. A mulher odiava-a. Talvez sempre a tivesse odiado. Mas agora já não importava. Para Crystal, acabara tudo. Numa única noite crescera, e o último laço que a prendia à família fora cortado.

Entretanto Boyd continuava a fixar Olivia corn um olhar furioso.

— Olhe para ela! Devia estar no hospital, mas teve medo de ir para lá ontem à noite. — E ele tivera medo de a forçar.

— Ela é uma vagabunda. Com quem é que estiveste ontem à noite? Não chegaste a vir para casa.

— Mas vim... O Tom estava no celeiro... Não me deixou vir. Estava a beber. — A voz dela não tinha qualquer entoação, e os seus olhos nenhuma expressão. Morrera algo nela na noite anterior. Algo nela que, apesar de tudo, chegara a amar a mãe, mas nunca mais o faria. Eles haviam-na traído.

— Devia expulsar-te desta casa. Vai para o teu quarto! Boyd não podia acreditar no que ouvia. Virou-se para Crystal e olhou-a cheio de compaixão:

— Vem para a minha casa Crystal. Não fiques aqui. No entanto Crystal limitou-se a abanar a cabeça. Tinha de resolver as coisas ali, e não partiria até o fazer. Apesar do que isso significasse, apesar do que tivesse de fazer. Mas iria ali ficar até estar boa. E, de alguma forma, suspeitava que a mãe o sabia e estava satisfeita. Não sabia como, mas pressentia que a mãe queria que ela deixasse o rancho. E ela assim faria. A seu tempo. Quando estivesse pronta. Boyd continuava a olhar para ela.

— Crystal, por favor... não fiques aqui.

Contudo, a jovem não se mexeu. Olhava-o sem ver, pensando apenas no que tinha de fazer. A mãe avançou até à porta da rua e abriu-a de repelão.

— Mandei-te sair daqui, Boyd Webster, ou não me ouviste?

Ele não se mexeu, e arqueou as pernas como se fosse lutar com ela.

— Não saio daqui.

— Será que tenho de chamar o xerife?

— Quem me dera que o fizesse, senhora Wyatt.

— Está tudo bem, Boyd... — disse finalmente Crystal.

— Eu fico bem. Vai para casa... — Ele não queria deixá-la. Mas os olhos dela diziam-lhe para o fazer. — Eu fico bem... vai para casa.

Parecia calma e forte, mas os seus olhos haviam envelhecido e tinham uma expressão muito triste. Boyd hesitou durante algum tempo, depois dirigiu-se lentamente para a porta, olhando para Crystal por cima do ombro.

— Eu volto mais tarde.

Bateu com a porta e pouco depois o motor da carrinha roncou. Olivia aproximou-se dela com o olhar cheio de acusações, mas não estava preparada para o que Crystal fez a seguir. Quando a mãe se virou para ela cheia de veneno, o braço levantado para esbofetear a rapariga ferida Crystal agarrou-lhe no braço e segurou-o com tanta força que a mulher fez um trejeito de dor e afastou-se dela, repentinamente cheia de medo.

— Afaste-se de mim, ouviu? Já aguentei de si o que tinha a aguentar, mãe... de si, do Tom e de toda a gente por aqui! A sua voz era trémula e os olhos brilhavam-lhe. Odiava-

-os, odiava-os pelo que lhe haviam feito, pelo amor que nunca lhe tinham dado e pela dor que lhe haviam infligido repetidas vezes. A brutalidade de Tom na noite anterior fora o ponto mais alto. E perguntou-se se Tom teria ousado tocar-lhe se a mãe a tivesse tratado de forma diferente desde a morte do pai. Mas Tom sabia que todos se estavam nas tintas para ela... que diferença faria? No entanto, agora iria fazer muita diferença para ele. Crystal passou pela mãe e foi ao armário onde o pai guardara as armas. Ainda lá se encontravam, excepto aquelas de que Jared se servia. Pegou numa e a mãe começou a gritar. O irmão apareceu à porta e olhou confuso para aquela cena histérica.

— Que raio... Crys... por amor de Deus, mana, o que estás a faer?

Viu a expressão dos olhos dela e pensou que a irmã iria atacar a mãe. Olivia gritava e a avó observava a cena aterrorizada.

— Não te metas nisto Jar! — Apontou a arma para ele, desviando-a logo, e quando Jared a viu olhar para ele, pensou que ela enlouquecera.

— Dá-me isso! — Estendeu a mão para a arma, e Crystal bateu-lhe com el, apenas com força suficiente para ele perceber que estava a falar a sério.

— Ela vai matar o Tom! — gritou a mãe, e Crystal virou-se para ela com uma fúria que nunca lhe tinham visto, a fúria que se acumulara durane meses, fruto da impotência e do desespero e da dor da perda do pai e da frustração de ver Tom destruir tudo o que ele construíra com tanto esforço. Mas nenhum deles compreendia isso.

— Pode crer que vou! — Olhou bem para os olhos dejared sem nenhum resquício de infantilidade. Parecia quase bela ali parada cheia de fúria, apesar do cabelo desgrenhado e das nódoas negras. — E se quiseres saber porquê, vai até ao celeiro.

— Que raio fez ele agora? — Jared pareca preocupado, provavelmente o cunhado tornara a beber e matara um dos cavalos. Mas estava mais preocupado com o que a irmã faria para se vingar.

— Porque não lhe perguntas? — Os seus olhos cor de alfazema pareciam pingentes de gelo, enquanto o seu olhar se desviava da mãe para o irmão.

Mas Olivia tornou a gritar:

— Não acredites! Ela está a mentir.

— O que a faz pensar isso, mãe? — A voz de Crystal estava estranhamente calma, e com a arma apontada na direcção deles, parecia ter recuperado a su compostura. Já não era a vítima, ia matá-lo pelo que ele lhe fizera e a ideia fê-la sentir-se muito melhor. — Porque acha que ele não o faria? Porque é que eu nunca tenho razão? — Começou de novo a chorar, mas eram lágrimas de raiva misturadas com lágrimas de tristeza. Era tão doloroso admitir de uma vez por todas que a mãe não a amava! — Lembra-se... — As mãos tremiam-lhe enquanto segurava a espingarda e a apontava alternadamente para Jared e para a mãe. Fizessem eles o que zessem, não ia permitir que a detessem. — Lembra-se... de quando eu era pequenina, mãe... amava-me nessa altura, não amava?... Disse que eu nunca lhe mentia, como o Jar ou a Becky... e nunca menti, nunca... nessa altura também a amava... — Durante um momento quase fraquejou. — Porque me odeia tanto agora? Desde que o pai morreu, age como se eu lhe tivesse feito alguma coisa... mas nunca fiz... nunca... ou fiz? — Dirigia-se à sala, e a princípio não houve resposta. Mas todo o ódio de que suspeitava surgiu na voz da mãe quando ela grunhiu a resposta.

— Sabes bem o que fizeste. Falavas muito mansinha para o teu pai, não foi... estavas sempre a cantar para ele... andando com ele a cavalo como uma vagabunda... e no fim... deves tê-lo enrolado bem com as falinhas mansas... — Olhou cheia de amargura para Crystal, que continuava sem perceber a causa do ódio e do ressentimento da mãe.

Aquilo que Olivia dizia não fazia sentido.

— De que é que está a falar?

— Sabes muito bem do que estou a falar, sua vagabunda. Conseguiste o que querias, não foi? Mas de mim não levas nada, pelo menos enquanto eu for viva. — De repente, os seus olhos encheram-se de terror enquanto olhava para a filha. Era óbvio que pensava que Crystal a ia matar, ao vê-la mexer na espingarda. Mas Crystal dirigiu-se para a porta e Jared olhou confuso par a mãe. Quando Crystal passou por ele, tentou agarrá-la, mas ela foi demasiado rápida, e sempre fora mais veloz do que ele. Jared correu atrás dela pêlos campos, contudo ela continuava a brandir a espingarda e disparou para o ar e gritou a avisá-lo para que se mantivesse afastado. Ele sabia que algo se passara, mas ainda não sabia o quê. No entanto, tinha de a deter antes de ela fazer qualquer loucura a Tom, ou até a Becky e às crianças. Parecia alucinada e Jared ainda não compreendera o que a pusera louca.

Tom ouvira-os aproximar-se muito antes de eles chegarem junto da sua casa, e ao vê-la voar pêlos campos de espingarda em riste, tirou a sua caçadeira do armário junto à porta e ficou à espera que ela lá chegasse. Crystal já disparara dois tiros para o ar e restavam-lhe quatro quando Becky apareceu aos gritos atrás de Tom, agarrando-se a ele muito histérica. Não sabia o que se estava a passar, mas pressentiu imediatamente que iria acontecer alguma coisa horrível.

— O que estás a fazer? — perguntou Becky a tremer, apavorada, quando o marido a empurrou com brusquidão para trás dele e a mandou fechar-se em casa com os filhos. Ela fez o que lhe mandaram, e assistiu acobardada na sala de estar quando Crystal o enfrentou e lhe apontou a espingarda com as mãos trémulas. Jared apareceu ofegante atrás dela.

— Baixa isso, mana. — Falou com voz calma, com medo do que ela pudesse fazer, mas Tom limitou-se a sorrir. Parecia bêbedo, como de costume, mas as suas mãos pareciam terrivelmente firmes ao apontar a caçadeira para Crystal.

— Que bom ver-te de novo Crystal. Isto é uma visita ou estás apenas a caçar com o Jared? — Parecia imperturbável, e Jared manteve-se impotente ao lado dela.

— Tom, baixa a arma. Parem os dois com isso. — Parecia aterrorizado. Era óbvio que ambos tinham enlouquecido. Quando olhou para a irmã, percebeu de repente o que lhe acontecera e teve vontade de lhe arrancar a arma das mãos e matar ele próprio o cunhado, mas isso era impossível. Ela fez pontaria à cabeça de Tom, depois baixou a arma na direcção das virilhas dele com um ar satisfeito.

— Vim agradecer-te por ontem à noite. — A voz dela tremia enquanto ambos seguravam as armas apontadas na direcção um do outro. — Não vais voltar a fazer aquilo a mais ninguém, pois não Tom? — Queria que ele tivesse medo, que chorasse, implorasse como ela implorara na noite anterior, mas ele limitou-se a olhá-la de esguelha, o gosto dela ainda fresco nos seus lábios, como o sorriso horrível que exibia. E então, sem aviso, ela disparou para o sítio entre as pernas dele, mas falhou. E sem esperar para ver se fora atingido, ele disparou duas vezes. Um projéctil assobiou junto à cabeça de Crystal, mas quando ela se virou horrorizada com o barulho, viu Jared cair a seu lado. A cabeça fora atravessada por uma bala e ele tivera morte instantânea, o sangue a jorrar para todo o lado, e Crystal ajoelhou-se a seu lado. Ouviu-se algures um grito distante, mais tarde ela só se conseguiu lembrar de Tom inclinado sobre ela e de Becky a gritar. Crystal embalou Jared no colo, soluçando e agarrando-o, mas o irmão já partira. E a culpa era dela. Era melhor que tivesse disparado contra si própria... ele estava morto... morto... e com muita calma Tom aproximou-se, tirou-lhe a carabina do pai das mãos e entrou em casa para telefonar ao xerife.

O xerife chegou uma hora mais tarde; Jared ainda se encontrava no chão, nos braços de Crystal. Levaram-na, e mais tarde as suas perguntas eram apenas uma recordação confusa. Recordava-se de a ambulância ter ido buscar Jared, e da mãe a gritar histérica com Becky a soluçar agarrada a ela. Lembrava-se dos sobrinhos a observarem-na e do xerife lhe dizer que ela fizera uma coisa terrível, e depois de lhe tentar explicar que não fora ela quem alvejara Jared. Mas eles sabiam. E depois a verdade veio ao de cima, o que Tom fizera, e foram ao celeiro onde o sangue dela ainda manchava o chão. Levaram-na ao hospital e Boyd e Hiroko foram com ela. Assinaram declarações sobre o estado em que ela estivera na noite anterior e tiraram-lhe fotograas de todos os seus ferimentos. O xerife deixou-a ficar com os Webster em vez de a prender, e eles foram ao interrogatório com ela. Crystal seria acusada de tentativa de homicídio, mas Tom queria que eles retirassem a queixa, porque isso significaria que ele próprio seria acusado de violação e homicídio involuntário. Mas o juiz decidiu que fora um acidente Tom foi acusado de violação, mas no fim todas as queixas foram retiradas e considerou-se que a morte de Jared fora um acidente. Saíram todos do tribunal e Crystal não tornou a ver Tom até ao funeral de Jared. Ela sentou-se ao fundo da igreja com Boyd e Hiroko, e nessa altura a notícia já estava em todos os jornais.

Todos os amigos de Jar estavam presentes, bem como a namorada de Calistoga. Todos choraram, incluindo Tom, que olhou acusadoramente para Crystal quando saiu da igreja. Foi um dos homens que transportou o caixão, o que fez com que o estômago de Crystal se revoltasse, mas Olivia assim quisera. Para ela, a morte do filho não era culpa de Tom, mas sim de Crystal, e ele foi sepultado numa campa rasa ao lado da do pai. Foi um dia que Crystal nunca iria esquecer. Olhou para o céu, pensando nos dois entes queridos e em com a vida já fora tão diferente. Acabara tudo. Para todos. Só restava a raiva, a culpa, as mentiras e a dor pela perda do pai e do irmão. Quando Boyd a levou Crystal deteve-se um momento para olhar para a mãe.

— Não tornes a voltar ao rancho Crystal. O teu pai já cá não está para te defender e sei bem o que és. Todos sabemos. És uma assassina e uma vagabunda e o teu lugar não é aqui, apesar das mentiras em que fizeste o teu pai acreditar. — O veneno dela em relação à filha era infinito, mas Crystal limitou-se a abanar a cabeça, a raiva já desaparecida. Teria de viver toda a vida sabendo que a sua ira custara a vida do irmão. E agora teria feito tudo para mudar isso, mesmo que tal significasse que Tom não seria castigado. Mas era impossível apagar o que ele fizera, alterá-lo, transformá-la no que ela já fora, ou trazer Jared de volta. A vida dele terminara, e a dela estava condenada para sempre.

— Não precisa de lutar comigo, mãe. — Falou com calma. — Não quero voltar. Não quero tornar a ver este sítio. É todo seu. Vou-me embora.

— Que tal pores isso por escrito? — perguntou Tom, junto dela, e o cheiro dele quase a fez vomitar. Tentou ignorá-lo.

— Não precisas disso por escrito. Vou-me embora amanhã. — Só ali deixava um pedaço de terra que uma vez amara. As pessoas de quem gostava haviam partido, e as que ficavam eram como estranhas.

— Vê lá se não voltas. — A voz de Tom era um ronco baixo.

Boyd avançou e pegou no braço dela.

— Anda, Crystal. Vamos embora.

Manteve o braço dela preso e conduziu-a para longe. Quando se afastaram no carro, as lágrimas correram-lhe devagar pelo rosto e Hiroko fez-lhe uma festa na mão enquanto ela olhava pela janela. Não podia dizer nada. É claro que a sua vida fora irreversivelmente afectada e a de Jared findara. Ele era pouco mais velho que um garoto, e morrera. Crystal não proferiu palavra durante toda a viagem; quando chegou a casa dos Webster afastou-se e foi dar um passeio sozinha. Atravessou as ervas altas atrás da casa, e prosseguiu durante quilómetros seguindo o riacho, cantando baixinho para si as canções de que o pai e o irmão tanto haviam gostado. E quando cantou Amazing Grace, a recordação deles assolou-a. Ao regressar a casa de Boyd e Hiroko, sentiu uma solidão que nunca sentira, uma solidão tão forte que, por um momento, se perguntou se lhe conseguiria escapar com vida. Mas sabia que tinha de continuar. Havia que fazer o que prometera ao pai e a si própria anos antes. Tinha de seguir para outros mundos, para outros locais. Sozinha, mas com a recordação deles sempre junto de si. Juntamente com a recordação dejared encontrava-se a culpa que ela sabia que carregaria toda a vida. Se não tivesse ido atrás de Tom com a espingarda do pai, ele nunca teria morrido. De certa forma, foi como se ela própria o tivesse matado, e agora sabia que teria de viver com essa verdade para sempre. Nada a poderia mudar ou mitigar a dor. Nada poderia diminuir a sua culpa e, acontecesse o que acontecesse na sua vida, na mente de Crystal ela matara o irmão, como se tivesse sido ela própria a apertar o gatilho.

Enquanto avançava devagar pela erva alta, cantou as canções que haviam cantado juntos em criança. As lágrimas molhavam-lhe a face e Crystal, cheia de mágoa, olhou para o céu:

—Adeus, Jar... — Em seguida murmurou as palavras que há muito não dizia em voz alta ao irmão: — Amo-te.

 

Crystal ficou alguns dias na companhia de Boyd e Hiroko. Tencionara partir no dia seguinte ao do funeral, as estava com tantos sentimentos de culpa e sentia tanta dor que foi incapaz: precisava de alguns dias para recuperar o fôlego. Brincou com Jane e deu grandes passeios sozinha. Hiroko deixou-a em paz. Sabia exactamente do que ela precisava.

Crystal passara por casa depois do funeral para apanhar as suas coisas, e retirara do esconderijo debaixo do colchão o dinheiro que juntara. Boyd e Hiroko tentaram convencê-la a ficar com eles até acabar a escola, mas ela sabia que não seria capaz. Não se sentia em condições de enfrentar ninguém dali, amadurecera psicologicamente em relação a eles do dia para a noite. Devia acabar o liceu dali a seis semanas, mas isso parecia já não lhe importar. Tinha de ir-se embora já, e sabia-o.

— Mas para onde irás? — perguntou Hiroko, muito preocupada, quando acabaram de jantar, dois dias depois de ela se lhes ter juntado.

— Para São Francisco. — Já se decidira. Tinha quinhentos dólares, com eles alugaria um quarto e estava determinada a arranjar emprego como criada de mesa. Aguentá-lo-ia até poupar dinheiro suficiente, depois iria para Hollywood. Já não tinha nada a perder e sabia que precisava de tentar.

— És muito nova para andar sozinha na cidade — opôs-se Boyd, olhando-a com uma expressão preocupada. Hiroko tinha lágrimas nos olhos, mas Crystal sabia que conseguiria suportar qualquer coisa, a criança que existira nela já estava morta. Tal como a bala de Tom matara Jared.

— Que idade tinhas quando foste recrutado?

— Dezoito.

Ela sorriu-lhe com tristeza.

— Deve ter sido muito mais difícil do que mudar para São Francisco.

— A questão não é essa. Eu não tive escolha.

— Eu também não tenho — disse ela muito calma. Prendera o cabelo numa longa trança, e ele apercebeu-se de que as feridas já estava a sarar, embora o olho de Crystal ainda estivesse muito negro. Mas mesmo com aqueles ferimentos era bela. E possuía uma enorme força. Era tempo de prosseguir, ela sabia-o melhor do que ninguém. Os seus dias no vale haviam acabado definitivamente.

Boyd levou-a ao terminal de autocarros no dia em que ela partiu, e aguardaram ambos pela camioneta. Ela prometeu informá-lo do local onde estava e escrever. Quando ele a abraçou, tiveram ambos de lutar contra as lágrimas. Ela despedira-se de Hiroko em casa e isso fora ainda mais difícil.

— Tem cuidado contigo, miúda — disse Boyd. Via-a como uma irmã, e ele e Hiroko eram tudo o que ela deixava. Eram as únicas pessoas de quem ela gostava, a única família que tinha, e iria ser difícil abandoná-los, mas havia um mundo inteiro à espera dela, um mundo cheio de novas esperanças e promessas. E ela era suficientemente nova para construir algures uma vida para si própria, uma vida livre de pessoas como Tom Parker.

Acenou um adeus a Boyd ao entrar no autocarro e atirou-lhe um beijo enquanto os homens que ali estavam observavam a cena com inveja. Depois, em silêncio, ela viu o vale afastar-se, e apesar das recordações dolorosas que levava consigo, sentiu uma ligeira excitação.

O mundo estava repleto de locais interessantes que ela queria ver, e São Francisco era apenas a primeira paragem. Depois disso, ninguém sabia para onde a levariam os ventos da sorte.

 

O autocarro parou em Third and Townsend e Crystal saiu e olhou em volta. Tudo parecia muito agitado, excitante e sujo. Só estivera duas vezes em São Francisco: uma vez com o pai, ainda era criança, e a outra com Boyd e Hiroko,             ' quando do baptizado de Jane. Mas esta parte da cidade era diferente, gasta e feia. Havia bêbedos deitados no chão, carros a passar, um cheiro a cerveja e vinho e corpos sujos, mas ainda assim ela sentia a aventura. No terminal dos autocarros comprou um mapa e um jornal, e sentou-se para os estudar enquanto os transeuntes lhe lançavam umas miradas. Estava vestida com simplicidade, tinha na mão uma mala velha, mas era muito atraente. E sabia que tinha de arranjar um quarto antes do anoitecer. A pergunta era onde, e não fazia ideia por onde começar a procurar. Havia vários anúncios de quartos e pensões em Chinatown,' mas Crystal não sabia por onde começar. Tinha de arriscar e começar por algures. Escolheu dois endereços, saiu para chamar um táxi e perguntou ao condutor qual das duas zonas era mais segura. Ele percebeu imediatamente que ela era de fora e observou-a no seu vestido azul, com o cabelo preso num rabo-de-cavalo. Parecia jovem, mas ele nunca vira ninguém tão bonito como ela. Perguntou-se o que estaria a fazer sozinha em São Francisco; tinha uma neta da idade dela e não havia de gostar que ela andasse por Third and Townsend.

Olhou para o jornal e sugeriu um endereço em que Crystal não reparara. Era um bairro italiano perto de Telegraph Hill, algures em North Beach.

— Vamos tentar primeiro este. Parece melhor que os outros dois e não deve ser muito caro. — Ela não se apercebeu de que ele não chegara a ligar taxímetro. Podia dar-se ao luxo de dar boleia a uma miúda como ela. Não iria cobrar-

-lhe um cêntimo, e ela era tão jovem e bonita que lhe apeteceu ajudá-la. — Vieste visitar amigos? — De repente, perguntou-se se ela não teria fugido de casa, mas a rapariga não parecia estar a esconder-se. Parecia apenas uma jovem que ia

pela primeira vez à cidade, e tornou a observá-la pelo espelho. Crystal, lançando um olhar cauteloso na direcção dele, explicou que não ia visitar ninguém e tentou mostrar-se confiante enquanto conversavam. Não queria que ele se apercebesse da sua pouca experiência. — Donde és?

— De Alexander Valley. A norte de Napa. — Sentiu uma grande tristeza ao dizer aquilo. Parecia que saíra de lá havia dias, e não apenas horas.

— Estás de visita?

— Não — respondeu ela tranquilamente, olhando pela janela. — Venho viver aqui. — Durante algum tempo. E depois, quem sabia? O mundo estava à espera para lhe abrir as portas, tal como o pai lhe prometera. Contudo, a dor de ter deixado o mundo antigo ainda era recente enquanto seguiam para North Beach.

Atravessaram Market Street e olharam para leste. Passaram pêlos molhes no Embarcadero, e depois subiram para Chinatown, em direcção a North Beach, para o endereço no jornal. Era uma casa pequena, muito simples, com cortinas limpas nas janelas, e duas mulheres idosas tagarelavam no alpendre. Tinham o cabelo preso na nuca e aventais brancos sobre vestidos pretos. Fizeram-na de imediato recordar a avó Minerva, mas Crystal tentou afastar essa ideia da cabeça. Os seus dias no vale e todas as recordações que dele tinha já haviam passado à história. Agradeceu ao condutor e perguntou-lhe quanto devia.

—Nada... não é nada... — Parecia mal-humorado e atrapalhado, mas não aceitou o dinheiro dela. Afinal de contas, era apenas uma miúda, e tão bonita e tão jovem que fora um prazer olhar para ela. Crystal agradeceu-lhe e ele ficou a vê-la aproximar-se das duas velhotas com a mala na mão. Depois partiu, assobiando, esperando que ela ficasse bem ali. Era jovem, mas uma grande beldade, e parecia saber tomar conta de si. As duas velhotas também se aperceberam disso quando ela lhes perguntou o preço da renda. Observaram-na durante um minuto antes de lhe responderem, e falaram uma com a outra em italiano.

— Desculpem? — Quando pousou a mala no chão, Crystal pareceu ainda mais nova, o halo de cabelo loiro emoldurando-lhe o rosto. As duas mulheres olhavam para ela, e perguntou-se o que estariam a pensar. — O quarto?... Sabem alguma coisa acerca dele?

— Porque é que não estás na escola? — perguntou a mais velha, olhando-a com suspeita e passando a mão pelo avental. Tinha grandes olhos negros e um rosto cheio de rugas.

— Acabei o liceu no ano passado — mentiu, e as duas mulheres continuaram a observá-la. — Posso ver o quarto? — Não iria permitir que a intimidassem.

— Talvez. Tens emprego? — Sentou-se nos degraus e Crystal sorriu, tentando mostrar uma confiança que ainda não senti. E se precisasse de um emprego para conseguir o quarto? Que fara nessa altura? Começava a entrar em pânco, mas decidiu contar a verdade, pelo menos parte dela. Tinha de o fazer.

— Ainda não. Acabei de chegar. Vou começar à procura de emprego assim que tiver um quarto.

— Donde és?

— De algumas horas a norte daqui.

— Os teus pais sabem que estás aqui? — Como o condutor, perguntava-se se Crystal teria fugido de casa, mas ela abanou a cabeça com um olhar que nada revelou à mulher.

— Os meus pais morreram. — Disse-o com uma força tão calma que, por um momento, a mulher não falou. Depois, levantou-se devagarinho, ainda a olhar para ela. Nunca vra uma rapariga com aquele aspecto, o cabelo loiro, as longas pernas, o rosto delicadamente esculpido. Parecia uma estrela de cinema, e disse-o à amiga em siciliano.

— Vou mostrar-te o quarto. Depois vês se gostas.

— Obrigada. — Crystl parecia tranquila e muito segura de si ao pegar na mala.

Era um quarto minúsculo, pouco arejado. Num dos andares que outrora fora a casa da mulher havia quatro quartos. Agora ela alugara seis quartos, e todos partilhavam a mesma casa de banho. A mulher era a única a ter um quarto com casa de banho privativa. Ficava no piso térreo, junto à cozinha, que, por mais cinco dólares por mês, os inquilinos podiam utilizar. O quarto custava quarenta e cinco dólares por mês, e no tinha quase nada. A janela dava para o prédio de trás. Mas para Crystal valia a pena. Não sabia para onde mais ir. E era suficientemente limpo. Na porta havia um trinco forte, e ela sentiu que ali estaria a salvo, com a velhota a observar as idas e as vindas dos inquilinos.

— Pagas-me um mês adiantado, dinheiro à vista. Quando quiseres ir-te embora, tens de me avisar com duas semanas de antecedência. — Não que todos fizessem isso. Iam e vinham, mas ela mantinha o local limpo e só aceitava pessoas decentes. Nada de bêbedos, prostitutas nem homens que para ali levassem mulheres. Só queria pessoas limpas e calmas como Crystal. No segundo andar estavam hospedados dois homens de idade e uma rapariga, e no piso de Crystal havia três raparigas e um jovem que vendia seguros. — Se não arranjares emprego não podes manter o quarto, a não ser que tenhas dinheiro sem precisar de trabalhar.

— Vou procurar emprego assim que puder — retorquiu Crystal, olhando-a nos olhos. Tirou do maço de notas, quatro de dez dólares e cinco de um. Era o dinheiro que ganhara a servir às mesas, e ainda bem que o poupara. As outras raparigas da sua idade gastavam-no em meias, no cinema e em Coca-Cola, mas Crystal poupara quase tudo o que ganhara, e escondera-o da mãe. — Há alguns restaurantes aqui perto que precisem de empregadas?

A mulher mais velha riu-se. Havia muitos, mas sabia que nenhum deles empregaria Crystal.

— Falas italiano?

Crystal abanou a cabeça com um sorriso.

— Não, não falo.

— Então tens de ir procurar noutro sítio. Aqui não dão emprego a raparigas como tu. — Era demasiado bonita e nova, e para empregados de mesa os restaurantes de North Beach só cntravam homens italianos. — Talvez lá na baixa da cidade.

Quando Crystal começou a procurar na manhã seguinte, nenhum dos locais onde foi a contratou, embora ela lhes tivesse dito que possuía experiência. Limitavam-se a rir, e a maior parte deles nem queria que ela deixasse o número de telefone de casa da Sra. Castagna. Sentia-se desencorajada, e comprou uma sanduíche, levando-a para o quarto. A Sra. Castagna estava sentada nos degraus, como de costume, observando as idas e as vindas dos inquilinos e conversando no seu dialecto com as pessoas que conhecia ali da rua.

— Arranjaste emprego? — Olhou para Crystal enquanto ela subia lentamente as escadas. Os pés doíam-lhe nos sapatos desconfortáveis, e o vestido azul parecia tão murcho como ela. E tremia de frio à medida que o nevoeiro gelado ia caindo. Era Maio, mas ali na cidade estava mais frio do que no vale e ela ainda não se acostumara. Introduziu um níquel na ranhura e acendeu o pequeno aquecedor a gás que tinha no quarto. A Sra. Castagna certificara-se de que os seus inquilinos nada usufruíam de graça. Não tencionava sustentar ninguém. Criara dez filhos naquela casa e eles já tinham crescido e partido. Agora estava a dar bom uso aos quartos, e a casa proporcionava-lhe um rendimento mensal bastante razoável. Ao contrário de Crystal, que contou as suas economias com dedos trémulos, sentada na única cadeira do quarto, olhando de seguida para o crucifixo por cima da cama. A única decoração era uma pintura a cores da Virgem Maria, pintada por uma das filhas da Sra. Castagna que, veio Crystal a saber mais tarde, estava num convento. As outras eram casadas e com filhos e visitavam muitas vezes a mãe aos domingos.

Crystal palmilhou as ruas durante duas semanas, e começava a entrar em pânico visto que ainda não conseguira arranjar emprego. Uma noite, quando ia a caminho de casa, perguntou-se se alguma vez o iria conseguir. Tentara encontrar qualquer coisa em Chinatown, como caixa, ou até mesmo como lavadora de pratos, mas as pessoas haviam-se limitado a rir dela, tal como as outras em North Beach. Tinha sempre a cor errada, o sexo errado e falava a língua errada. Mas nessa noite, foi para casa passando pela famosa Barbary Coast. Ali havia clubes nocturnos e restaurantes, e casais subindo e descendo a rua, rindo e conversando. Ao contrário de North Beach, parecia um local alegre e vivo, e muito mais vistoso. Ela levava uma saia azul, camisa branca, os sapatos brancos que já tinha havia muitos anos e uma camisola que pedira emprestada à Sra. Castagna. Era preta, como todas as suas peças de roupa, e dez números acima do seu, mas a mulher sentira pena dela, a gelar no frio da noite. A única coisa quente que ela tinha era um velho casaco de pêlo de carneiro que usava sempre que ia montar com o pai pela manhã. O seu guarda-roupa era muito diferente daquilo que ela via ser usado pelas mulheres de São Francisco. Mas já não se importava. Só queria um emprego, fazer qualquer coisa, esfregar o chão, se fosse preciso. Estava muito longe dos seus sonhos com Hollywood, mas tinha de comer e pagar à Sra. Castagna. Precisava de ganhar a vida, de qualquer forma. Decidira tentar os hotéis na semana seguinte, mas achou que devia experimentr pela última vez os restaurantes, por isso, parou junto a uma elaborada fachada com um letreiro que anunciava simplesmente: «HARRY'S». Tudo ali era garrido, e havia um letreiro mais pequeno que oferecia uma pista de dança.

Crystal entrou com alguma hesitação, sem reparar nos olhares dos casais que iam a sair. Estavam bem vestidos e várias mulheres usavam vestidos decotados. Ficou durante algum tempo a observar um homem que se encontrava no palco com dois músicos a acompanhá-lo enquanto cantava Too Darn Hot, de Cole Porter. Depois, o chefe de mesa aproximou-se dela, apressado, e perguntou-lhe com brusquidâo o que desejava.

— Não podes entrar aqui, a menos que venhas juntar-te a algum grupo. — Não queriam ali prostitutas nem curiosos que icavam à porta a assistir ao espectáculo de borla, mas era óbvio, até para ele, que Crystal não era prostituta. Na camisola demasiado grande e nas roupas gastas, mais parecia uma órfã. — O que queres?

Ela olhou-o bem nos olhos e tentou fingir que os seus joelhos não tremiam.

— Emprego. Faço qualquer coisa. Lavar pratos, servir às mesas, qualquer coisa... Preciso muito de emprego.

Ele ia começar a dizer qualquer coisa, mas depois observou-a com mais atenção. Ela eia tão bonita que fazia doer o coração só de a contemplar, e os seus olhos pareciam tocar-lhe na alma. Estivera quase a mandá-la embora, mas de repente perguntou-se se Harry não gostaria dela. Olhou para o relógio, perguntando-se se o patrão ainda estaria no primeiro andar, mas já era muito tarde, e sabia que ele já lá não se encontrava.

—Já trabalhaste em algum restaurante? — Endireitou o laço, lançando um olhar às mesas, mas os seus olhos acabavam sempre por regressar a Crystal. Ela tinha um rosto que fazia uma pessoa parar e querer contemplá-lo durante o resto da vida. Contudo, Crystal não se apercebeu da impressão que causara nele. Parecia ser sincera e aparentava uma boa dose de coragem, apesar do visível nervosismo, e ele gostou imediatamente dela. — Já foste criada de mesa?

— Sim. — Com medo que ele a mandasse embora, não revelou que fora num snack-bar.

Então ele observou-a com mais atenção.

— Que idade tens?

— Dezoito — mentiu ela, como não soubesse como dizer uma mentira.

Ele começou a abanar a cabeça, olhando para a porta pela qual a rapariga entrara.

— Tens de ter vinte e um anos para trabalhar aqui. É a lei.

— Então tenho vinte e um... por favor... — A voz dela era meiga e os seus incríveis olhos azuis sorriam-lhe. Parte          

dele enterneceu-se. — Por favor... ninguém vai saber.              

— Céus — resmungou ele —, o patrão vai dar cabo de mim.

Mas ela sentiu que ele começava a ceder.

— Trabalharei muito. Juro que sim. Experimente-me só por alguns dias... uma semana... qualquer coisa. — Os olhos dela tocaram-lhe na alma, e ele sabia que seria incapaz de recusar. Era tão bonita, tão vulnerável e tão jovem, e algo lhe disse que ela precisava mesmo do emprego e que trabalharia com afinco. Que raio, poderia dizer a Harry que não soubera. E podiam mandá-la embora se ela não prestasse. Tornou a olhar para a rapariga, e viu-a contemplá-lo com um ar muito concentrado.

— Está bem, está bem. Volta amanhã à tarde. Uma das raparigas dá-te um uniforme. E pinta-te. Assim pareces uma miúda. E por amor de Deus — grunhiu —, livra-te dessa camisola.

— Sim, sir. — Ela sorriu, parecendo de novo urna miúda. O homem nunca vira ninguém tão belo como aquela rapariga... e ela tinha dezoito anos... Rezou para que Harry não descobrisse, senão estava metido em maus lençóis.

— Aparece por cá às quatro. Em ponto.

— Sim, ir. Obrigada. — A sua voz estava rouca quando lhe agradeceu. Era de admirar que ninguém a tivesse contratado. Com aquele aspecto, podiam ter feito dela uma dançarina ou até mesmo uma artista de striptease. Mas ela era demasiado inocente para isso. Crystal Wyatt era mais do que ele julgava. Ela apressou-se em direcção à porta antes que ele mudasse de ideias, e quase correu até à casa da Sra. Castagna.

A primeira coisa que fez foi devolver a camisola, com os seus agradecimentos, dizendo-lhe que já arranjara emprego. Anunciou-o com orgulho e confiança, como se tivesse sido eleita presidente da General Motors.

— Arranjaste um emprego decente? — perguntou a Sra. Castagna, olhando-a com suspeita. A rapariga era demasiado bonita para seu próprio bem. O homem que vendia seguros já andava pêlos corredores na esperança de encontrar Crystal a caminho da casa de banho. Mas ela parecia nem sequer vê-lo. Era muito calada, e sabia como comportar-se. Não andava por aí a namoriscar com os homens nem a fazer guras tristes. Era decente e bem-educada. Ficava no quarto e nem sequer utilizava a cozinha. E por razões que ainda não sabia explicar, a Sra. Castagna gostava dela.

— Vou trabalhar num restaurante — explicou Crystal muito orgulhosa, e a velhota sorriu-lhe. Era uma menina muito doce, e fazia-lhe lembrar uma das netas.

— A fazer o quê?

— A servir à mesa.

— Óptimo. — A velha senhora fingiu resmungar, mas era visível que gostava dela. Crystal era uma boa rapariga e nunca lhe causara transtornos. — Certifica-te de que te pagam. Daqui a dez dias tens de me entregar o dinheiro da renda. E este mês já é muito tarde para dizeres que te vais embora. — Metia medo a todos eles. Isso mantinha-os na linha. Mas Crystal limitou-se a sorrir. Conseguia ver na alma da velha senhora, e também gostava dela.

— Eu sei, senhora Castagna. Mas não me vou ebora. _ Ainda bem, ainda bem. — Acenou-lhe e voltou para a cozinha, e Crystal foi para o quarto.

Na tarde seguinte, ela desceu a dezena de quarteirões até ao Harry's, em Barbary Coast, excitada e a pensar no trabalho, perguntando-se se seria muito diferente do do snack-bar no vale.

Apareceu exactamente às quatro, com o cabelo preso num nó, e pusera baton que comprara no Woolworth's nessa manhã. Era vermelho e parecia demasiado vivo no seu rosto branco, mas ao olhar-se no espelho Crystal achara que parecia muito mais velha.

O maítre que a contratara na noite anterior apresentou-se como Charlie, e pô-la sob os cuidados de uma empregada de mesa mais velha mas muito bonita, chamada Pearl. Ela riu-se e disse que o seu nome verdadeiro era Phyilis, mas que ninguém lhe chamava isso desde miúda. Já trabalhava ali havia três anos e antes fora dançarina. De vez em quando ajudava Harry quando uma das dançarinas não aparecia, ou cantava, se ele assim o desejasse. Conhecia Harry há vários anos, mas não disse a Crystal que havia muito tempo fora sua amante. Observou a rapariga com muita atenção, entregou-lhe um uniforme limpo, e mostrou-lhe a cozinha.

— Por volta das oito há muito que fazer. Mas lá pelas dez as coisas abrandam, e depois os clientes tornam a aparecer para o último espectáculo à meia-noite. — Era tanto restaurante como clube nocturno, e Crystal sentia-se muito excitada ao observar tudo aquilo. Desejava que gostassem do seu trabalho. Pearl convidou-a a comer com ela e com o resto dos empregados, antes de abrirem. E quando ouviu as conversas agradáveis em seu redor, soube que adorava tudo aquilo. Havia empregados e empregadas de mesa, ajudantes, e cozinheiros e pessoal de limpeza na cozinha. Era um local maior do que ela imaginara, e achou que era melhor não ter sabido, senão não teria ousado ir ali pedir emprego. E depois, com um sorriso, apercebeu-se de que ainda nem sabia quanto lhe iriam pagar. Pearl informou-a de que podia guardar as gorjetas que recebesse, e que se alguém se embebedasse e lhe dificultasse a vida, bastava dizer a Charlie ou a um dos barmen.

— É um local agradável para trabalhar — explicou Pearl —, não nos fazem muita porcaria. O Harry é um tipo estupendo. — A recordação do que passara com ele assomou aos seus olhos enquanto Crystal a observava. Depois, para pavor dela, perguntou: — És virgem? — Crystal olhou-a em silêncio, e de repente Pearl riu-se. — Não, não dessa maneira, pois quem é que é? — Embora Crystal tivesse ar de ainda o ser. — Quis perguntar seja trabalhaste antes num sítio como este.

Crystal riu-se, aliviada pela explicação. Baixou a voz e respondeu num tom conspirador.

— Na verdade, trabalhei num snack-bar. Pearl sorriu e deu uma palmadinha numa das mãos esguias de Crystal.

— Então tens muito que aprender, queridinha. Não te afastes de mim que eu ensino-te. — Crystal agradeceu à sua boa estrela por ter encontrado alguém como Pearl, especialmente quando chegou a hora da azáfama. Era difícil servir às mesas, com Charlie de olho nela e os clientes a esperarem que se lembrasse dos seus pedidos, mas esforçou-se por não baralhar as coisas, e quando serviu o último jantar, soube que se saíra bem, e Pearl confirmou-o. E fizera vinte e um dólares em gorjetas. Era quse metade de um mês de renda. Teve vontade de correr para casa e contar à Sra. Castagna.

— Queres boleia? — Pearl tinha um carro velho, e nessa noite partiram juntas, pois Crystal aceitou grata o convite. Os pés doíam-lhe muito e pensou em comprar sapatos novos para a noite seguinte.

— Obrigada pela boleia — agradeceu ela à nova amiga com um sorriso quando pararam em Green Street, em frente à casa da Sra. Castagna.

— Sempre ao dispor. É aqui que vives? — Pearl observou a casa com curiosidade. — Vives com os teus pais?

— Não — respondeu Crystal abanando a cabeça —, aluguei aqui um quarto.

Pearl assentiu, pensando que mais tarde ela poderia arranjar melhor. Era o tipo de rapariga a que os homens davam boas gorjetas, só pelo prazer de falarem com ela, e esperarem merecer os seus favores.

— Boa noite — disse ela, enquanto abria com a chave a pesada porta. Pearl afastou-se no seu velho Chevy. E pela primeira vez em semanas, Crystal dormiu bem, pois estava exausta. Mas estava a trabalhar e ganhara uma fortuna. Enquanto adormecia, pensou que adorava São Francisco. Era muito distante de casa, mas exactamente aquilo que ela queria.

 

Crystal conheceu Harry duas semanas depois de ter começado a trabalhar no seu restaurante. O trabalho era árduo, mas o pagamento justo e as gorjetas que recebia todas as noites eram óptimas. As pessoas que ali trabalhavam eram simpáticas, e muitas delas, pressentindo a sua tenra idade, tomaram-na sob sua protecção e tratavam-na como uma filha. Pela primeira vez desde a morte do pai, as pessoas eram amáveis para ela, e Crystal sentia-se bem-vinda. E, de repente, pareceu florescer. Ninguém lhe gritava, ninguém a detestava por ser quem era. Cantarolava todo o dia, e assim que chegava ao trabalho parecia ficar mais feliz. Harry já ouvira falar muito dela, e tinha uma certa curiosidade a respeito da rapariga que todos qualificavam como uma beldade. Tinha a certeza de que estavam a exagerar, mas assim que a viu, deu-lhes razão. Observou-a do outro lado do restaurante, e mais tarde Crystal viu-o conferenciar com Pearl, mas não teve tempo de pensar no que poderiam estar a dizer. Pouco depois Pearl fez-lhe sinal e Crystal sentiu-se muito nervosa quando se aproximou deles. Perguntou-se se ele saberia que ainda não tinha dezoito anos, se iria ser despedida.

— Este é o Harry, Crystal. O patrão.

Crystal apertou-lhe a mão, assustada, mas o seu sorriso nada revelou do seu receio enquanto Harry a observava, fascinado. Ela era ainda mais bonita do que os outros diziam. Era espantosa.

— Ola, Harry — cumprimentou Crystal co uma voz grave e meiga enquanto ele a observava. Olhar para ela era como encontrar diamantes na banheira.

—Já sei que tens feito bom trabalho. — Tinham-lhe dito muito mais do que isso, mas ele não o revelou. — Gostas de trabalhar aqui?

— Sim. Muito. — Ela sorriu com timidez para Pearl, que a olhava orgulhosa. Interessara-se pela miúda, e às vezes era quase como ter uma filha.

— A Pearl disse-me que sabes cantar umas coisas. — Estava a ser cuidadoso, mas queria avançar com cautela. —Já alguma vez pensaste em cantar num palco? — Crystal abanou a cabeça com um olhar divertido. — Talvez gostasses. — Ela parecia hesitar enquanto olhava para Pearl. — A Pearl pode ensinar-te algumas coisas, e com um rosto desses, podíamos pôr-te num palco uma destas noites para ver se gostavas. — Tentava falar num tom casual, para não a assustar, mas já tinha um plano e durante a última meia hora estivera a discuti-lo com Pearl. Era um desperdício ter aquela beldade apenas a entrar e a sair da cozinha com os pratos. — Queres experimentar? — Olhou-a com uma expressão encorajadora e Crystal sentiu-se muito excitada. Adorava cantar, e a ideia de o fazer para uma audiência num restaurante causava-lhe arrepios. Teve vontade de abraçar Harry por ele lhe proporcionar aquela oportunidade, mas tentou mostrar-se calma ao responder.

— Não era má ideia. — E depois soltou uma das suas gargalhadas roucas. — E se me atirarem ovos podres?

— Nesse caso, tiramos-te logo do palco — respondeu ele com um sorriso. Era um homem simpático, e Crystal gostou dele. — Queres ver se aqui a Pearl te pode ensinar algumas coisas? Ela canta muito bem e é uma excelente dançarina, pelo menos foi, antes de ter magoado o tornozelo. — Conhecera-a anos antes, quando ela trabalhara no Teatro Fox, e haviam sido amantes durante anos, embora já não o fossem. Só anos depois é que lhe dera emprego, quando ela ficara incapacitada de dançar e só era capaz de servir às mesas. Mas ainda tinha por ela um fraquinho. Isso era visível na forma como a olhava e como falava da dança dela. — Deixa que a Pearl te ensine uma ou duas coisas, está bem, miúda?

— Está bem — respondeu Crystal, quase ofegante, sorrindo para Pearl enquanto ele se afastava. Perguntou-se o que aconteceria se não fosse capaz. Esperou até ele se encontrar suficientemente longe para não a ouvir e depois olhou para Pearl: — Achas que consigo? — Desejava-o muito, e Pearl anuiu, pensativa, perguntando-se por um momento se Harry se poderia apaixonar por Crystal. Ela era extremamente bonita, mas não fizera nada para o encorajar. Não precisava.

— Não te preocupes. Vais sair-te bem. E quando as pessoas ouvirem a tua voz, vão ficar loucas. Vou ensinar-te uns truques e alguns passos de dança. Vão adorar-te. Aparece amanhã às duas, para brincarmos um bocado com o piano. — Olhou para a rapariga, invejando a sua juventude, mas gostava demasiado dela para ficar ressentida.

— Não te importas de me ajudar? — perguntou Crystal com um olhar cheio de gratidão, e Pearl riu-se.

— Céus, não! Para mim é até divertido. — Nessa altura encolheu os ombros e esboçou um sorriso cheio de nostalgia: — Não me importo de o fazer pelo Harry.

Crystal apareceu no restaurante às duas da tarde do dia seguinte, e Pearl mostrou-lhe alguns passos simples. Crystal ficou impressionada com a sua flexibilidade e graciosidade.

— És muito boa. — Os seus olhos brilhavam de admiração, e Pearl sentiu-se tocada, abanando a cabeça quase timidamente.

—Já não sou. Fui-o em tempos. Mas passou-se muito tempo desde que fracturei o tornozelo. Não o arranjaram como devia ser e isso foi o fim da minha carreira. Mas mesmo antes disso, eu era apenas uma dançarina vulgar.

Estiveram no palco cerca de uma hora. Pearl ensinou-a a mover-se, a segurar o microfone, a dançar o suficiente para que o corpo acompanhasse a música, e depois mandou-a sentar numa cadeira ao lado do piano.

— Agora vamos ouvir-te cantar. Não precisas que te ensine isso. Age com naturalidade. Canta algo de que gostes e vai em frente. — Escolheram uma canção que Crystal sabia ter sido uma das preferidas do pai, e Pearl acompanhou-a. Crystal deixou-se embalar pela música. A princípio cantou baixinho, hesitante e algo tímida. Mas de repente, a recordação do pai e dos anos passados dominaram-na e a voz aumentou juntamente com a dor e a ternura que sentia. Fechou os olhos, e as lágrimas corriam-lhe pelas faces quando acabou. Pearl contemplou-a em silêncio, maravilhada. A rapariga era ainda melhor do que aquilo que ela suspeitara. A voz de Crystal tinha uma pureza e um poder que deixariam o público sem fôlego.

— Deus do Céu! Não sabia que conseguias cantar assim. Devias ir para Los Angeles gravar um disco.

Crystal encolheu os ombros e limpou as lágrimas. As outras empregadas começavam a chegar.

— Talvez um dia. — Mas ainda duvidava que isso viesse a acontecer.

Pearl prometeu ensaiar com ela no dia seguinte, mas sentiam-se ambas muito animadas. Era corno se partilhassem um segredo importante. E nessa noite Pearl contou a Harry as novidades que ele queria ouvir.

— Arranjaste uma vencedora. Ela ainda não o sabe e não quero assustá-la, mas é fantástica. Tem uma voz que te fará cair para o lado. Com algum treino, um dia poderá vir a ser famosa. Espera só até a ouvires.

Harry pareceu gostar das notícias, e na tarde seguinte desceu do seu escritório para a ouvir. Também havia lágrimas no seu rosto, e sorriu para si próprio enquanto regressava ao primeiro andar.

Pearl ensaiou com ela durante Maio e parte de Junho, e numa quinta-feira com pouco movimento Pearl e Crystal souberam que ela estava pronta. Ensaiara mais de vinte canções, e a sua actuação para Pearl fora quase perfeita. Harry sabia que nessa noite ela iria cantar e instalou-se discretamente a um canto, nervoso e expectante. Encontrar uma rapariga como ela era uma coisa que acontecia uma vez na vida.

— Boa sorte — murmurou, mais para si do que para Crystal, quando ela subiu ao palco com um vestido de noite de cetim azul-claro que Pearl lhe emprestara.

Subiu ao palco devagar, dirigindo a Pearl um olhar apavorado, perguntando-se se no seria um erro tentar, mas a sua mentora fez-lhe o sinal da vitória, enquanto os colegas se colocavam nos cantos da sala e aguardavam. De repente, quando a luz do projector incidiu nela e a música soou, Crystal esqueceu-se de que eles estavam ali e começou a cantar. Escolheu God Bless the Child, de Billie Holliday. Todos ouviam, e os amigos olhavam-na, extasiados. Era tudo o que Pearl dissera e tudo o que Harry esperara. Era extraordinária. A sua voz dominou todas as pessoas da sala com o seu inesperado poder e delicadeza. Fez surgir muitas lágrimas, e foi aplaudida durante o que pareceram horas. E ao ouvir aqueles aplausos Crystal soube que estava no seu lugar. Sonhara com um momento como aquele, e agora ele chegara. Já nem sequer precisava de Hollywood, bastavam-lhe aquelas pessoas, aquele local, aquele momento.

Depois Harry ofereceu-lhe uma garrafa de champanhe e convidou-a e a Pearl a sentarem-se com ele. Sorriu radiante para Crystal.

— Alguma vez pensaste que quando fosses grande serias cantora, miúda?

— Não, sir. — Sonhara em ser uma estrela de cinema, mas nunca cantora.

Ele deu-lhe uma palmadinha na mão, encheu outra taça com o vinho borbulhante, e piscou o olho a Pearl antes de tornar a sorrir para Crystal.

— Trata-me por Harry.

Ali sentada, ela sentiu o corpo a vibrar. Adorara. Fora um sonho que se tornara realidade, e, de repente, todas as agonias dos últimos meses foram esquecidas. E quando chegou a casa nessa noite, sentia-se como a «Gata Borralheira». Já não era apenas uma empregada de mesa. Era alguém. Uma cantora. Ao subir as escadas ainda sorria, enquanto no andar de baixo se abria uma porta com um rangido. Um rosto familiar olhou para cima. A Sra. Castagna mostrava-lhe uma carranca. Adorava fingir que aterrorizava toda a gente, mas tinha um fraquinho secreto por Crystal.

— Porque estás tão contente? Tens um namorado? — A sua voz ressoou pelas escadas, e Crystal debruçou-se sobre o corrimão, sorrindo-lhe.

— Melhor que isso... — Não sabia bem como explicar-

-lhe. — Esta noite comecei a fazer uma coisa diferente. — Sorriu cheia de alegria ao recordar-se da sua actuação no Harry's e dos aplausos intermináveis que se lhe haviam seguido.

A carranca da Sra. Castagna acentuou-se.

— Não andas a fazer nada de mal, pois não? — Durante aquele pouco tempo que Crystal vivera com ela, tornara-se uma espécie de mãe para a rapariga. Mas esta abanou a cabeça e sorriu-lhe.

— É claro que não.

— Então o que fizeste?

— Esta noite deixaram-me cantar. — Estava radiante ao dizer aquelas palavras; a velha senhora de negro olhou-a com surpresa. Nunca pensara que Crystal tinha talento. Era apenas bonita e jovem e servia algures às mesas. Pagava a renda sempre a horas e de vez em quando trazia flores à Sra. Castagna quando recebia o salário.

— Cantar como? — A velha senhora continuava a olhá-la com ar suspeito.

— Ora, como num clube, está a ver?

— Não. Não vou a sítios desses. — Era óbvio que este acontecimento merecia desaprovação. — Anda cá abaixo contar-me tudo.

Crystal estava cansada, mas não tinha coragem para lhe dizer que não. Desceu as escadas devagar, o cabelo loiro em cascata sobre os seus ombros. Tornara a vestir as suas roupás, e o vestido azul de Pearl fora cuidadosamente pendura do no seu armário no restaurante.

A Sra. Castagna estava à espera dela ao fundo das escadas, e Crystal olhou-a como uma rapariguinha que regressa a casa depois do seu primeiro baile. A expressão dos seus olhos ainda estava sonhadora e feliz.

— Tens ar de quem não fez nada de bom Miss Crystal Wyatt. 0 que te obrigaram a fazer naquele sítio?

— Não me obrigaram a fazer nada. Deixaram-me cantar num palco, com um lindo vestido de cetim azul.                  

— Cantas bem? — A Sra. Castagna semicerrou os olhos, como se esperasse ver algo diferente, mas só conseguiu ver que Crystal parecia feliz.                                            

— Acho que não canto mal. O público pareceu gostar. A Sra. Castagna anuiu, como se tivesse decidido que aquilo era verdade, e depois tornou a olhar para Crystal.

— Vem até lá dentro e mostra-me. — Deu meia volta e regressou ao seu pequeno apartamento, enquanto Crystal a seguia, sorrindo divertida. Sentou-se na sua cadeira preferida e olhou expectante para a rapariga. — Canta para mim. Depois digo-te se gostei.

Crystal começou a rir, e sentou-se numa cadeira.

— Não consigo cantar assim sem mais nem menos. Aqui não é a mesma coisa.

— Porque não? — perguntou a Sra. Castagna, perplexa. — Eu também tenho ouvidos. Canta.

Crystal tornou a sorrir, lembrando-se de repente da avó. Quando era pequena, a avó Minerva também gostava de a ouvir entoar cânticos relgiosos. Amazing Grace era o seu preferido. — O que gostaria de ouvir? A minha avó costumava gostar de Amazing Grace. Podia cantar isso. — Era uma negociação extraordinária, naquele pequeno quarto, com a senhoria a olhá-la expectante Mas o seu gosto era mais ecléctico do que o de Minerva.

— Foi isso que cantaste esta noite?

—Não... cantei outras coisas.

— Muito bem. Então canta o mesmo para mim. Estou à espera.

Crystal fechou os olhos durante um minuto, perguntando-se se seria capaz. Em seguida, tentou lembrar-se daquilo que sentira essa noite no palco... a excitação... a ansiedade... a entrega à música... e depos, devagar, começou a cantar uma das suas baladas preferidas. Fora a última canção que cantara, e prendera a atenção de todos os espectadores. Tornou a cantá-la, agora sem a luz do projector, sem o piano, sem o vestido azul, mas aparentemente isso não fazia diferença. Tudo o que contava era de novo a canção, e as palavras que ela adorava desde a infância. A Sra. Castagna pareceu desfalecer, mas Crystal conseguia sentir a presença do pai ali com ela enquanto cantava, a magia da sua voz parecendo vogar, levando ambas com ela. E quando tornou a olhar para a Sra. Castagna, viu lágrimas nos seus olhos e sentiu-se tocada. Por um momento, nenhuma falou. Depois a velha senhora concordou:

— Cantas bem... muito bem... nunca me disseste que cantavas assim.

— Nunca me perguntou. — Crystal sorriu-lhe com meiguice, de novo cansada, mais cansada do que dantes. A excitação da noite começava a transformar-se numa nostalgia agridoce. Pensou no pai, no rancho, e nas vezes que cantara para ele. E quando a Sra. Castagna a olhou, parecia conhecer os seus pensamentos. Nessa altura levantou-se, sem uma palavra, e dirigiu-se muito direita a uma antiga credencia. Inclinou-se sobre ela durante um momento, e quando se endireitou, trazia uma garrafa e dois copos.

— Vamos beber um pouco de vinho. Para comemorar. Um dia vais ser muito famosa.

Crystal riu-se, e viu-a abrir a garrafa. Estava meia vazia, e era guardada para ocasiões especiais. Crystal apercebeu-se que era xerez.

— Tens uma bela voz. Isso é uma dádiva de Deus. Tens de a tratar bem, pois é muito valiosa.

— Obrigada. — Durante um momento, ela teve vontade de chorar ao aceitar o copo com o líquido doce. A Sra. Castagna ergueu o copo durante um momento, com um ar cheio de importância.

— Tens muita sorte por conseguir cantar daquela maneira. Brava, Crystal... brava

— Obrigada. — Tocaram com os copos um no outro e a senhoria bebeu o primeiro gole com um olhar de prazer, e depois de terem as duas ingerido parte do xerez, pousou o copo.                                                            

— Quanto te vão pagar por isso?                                

— Nada. Quero dizer, não mais do que já me pagavam antes. É divertido fazer isto, e é tudo... Adorei. — Sentiu-se atrapalhada ao pensar naquilo. Não queria ser paga por fazer             i o que gostava, mas era uma estupidez dizê-lo.

— Vais deixá-los ricos. As pessoas virão de toda a parte para te ouvir — Mas elas já vêm ao Harry's. — Crystal estava embaraçada com o entusiasmo da velha senhora, mas esta dirigiu-lhe um olhar astucioso ao tornar a pegar no copo e a beber outro gole.

— Diz-lhes que queres mais dinheiro. Cantas como um anjo. — Crystal achou que a velhota exagerava, mas era certo que o público gostara dela. — Ouviste? Diz-lhes que agora queres muito mais dinheiro. Dinheiro que se veja, não             porcaria. Um dia serás famosa. E quando o fores, recorda-te do que eu te disse. — Sorriu para Crystal enquanto esta terminava a sua bebida e falou-lhe como teria falado a uma das suas netas. Não que elas tivessem tanto talento, é claro. DePOIS olhou-a com meiguice. — Voltas a cantar para mim?

— Quando quiser, senhora Castagna.

— Óptimo. — Levantou-se co urn olhar satisfeito. — Agora vai-te deitar. Estou cansada.

— Obrigada pelo vinho — agradeceu Crystal, e sentiu uma grande vontade de a beijar. Já há muito tempo que não beijava ninguém, e que ninguém a abraçava... desde a morte do pai... ou desde que deixara os Webster. Mas a velha senhora olhou para ela com um ar solene e não pareceu encorajá-la. — Boa noite... e mais uma vez obrigada.

— Vai-te deitar! — Brandiu a bengala na direcção dela. — Cuida da tua voz... agora tens de descansar!

Crystal tornou a rir, desejou-lhe as boas-noites e fechou devagar a porta atrás de si.

Subiu as escadas com lentidão, e pensou nela enquanto se despia. Atrás daquela imagem de dureza, havia uma alma caridosa, e Crystal gostava dela. Pensou também em Pearl, como ela fora amável, mas quando apagou a luz e se deitou, os seus pensamentos vogaram até ao vale. Sentia-se muito distante de casa, e, depois da excitação da noite, teve de repente saudades da família. E quando fechou os olhos, recordou um dia muito distante... em que estivera sentada no baloiço... e falara com Spencer. Fazia dois anos que não o via. Perguntou-se onde estaria ele agora e se se lembraria dela. Era pouco provável, mas naquele momento Crystal soube que nunca o iria esquecer.

 

O jantar dos sócios da Anderson, Vincent e Sawbrook era uma reunião estúpida organizada todos os anos no clube, mas extremamente importante para os membros mais novos da firma, e depois de reflectir Spencer decidiu convidar Elizabeth Barclay. Estivera com ela apenas meia dúzia de vezes desde Palm Beach. Ela andava muito ocupada na faculdade, e só ia a Nova Iorque uma vez por mês, supostamente para visitar o irmão. Mas quando estava na cidade telefonava sempre a Spencer, e este levou-a várias vezes a jantar. Não que Spencer não gostasse da companhia dela. Apreciava, mais do que queria, aliás, mas, sem saber como, acabavam sempre na cama, e ela conseguia fazer com que ele se sentisse sempre pressionado. Spencer sabia que ela queria mais do que ele tinha para lhe dar, e não se queria envolver muito, nem desiludi-la. Ainda tinha ideias muito fixas a respeito do género de rapariga que procurava, e Elizabeth não era essa rapariga, embora ele não tivesse a certeza disso quando estava com ela, especialmente depois de terem feito amor. Havia uma forte sensualidade sob aquela aparência calculista que o punha louco, mas queria mais do que isso. Desejava apenas o que já lhe dissera, uma mulher que precisasse dele, que o amasse como ele era, que fosse meiga, bondosa e carinhosa, uma mulher por quem estivesse completamente apaixonado. Não pretendia alguém que o remodelasse de acordo com a imagem que tinha do homem ideal, e no caso de Elizabeth, ele suspeitava que essa imagem era a cópia do pai.

Contudo, mesmo assim levou-a ao jantar dos sócios, após o que foram dançar e, como de costume, fizeram amor depois de ele se tentar convencer de que dormir com ela não o envolveria numa relação séria. Ela própria dissera o mesmo em Palm Beach, mas Spencer não tinha a certeza se ela falara a sério.

Estava-se no fim de Junho, e ela acabara o segundo ano em Vassar. Na semana seguinte regressaria a São Francisco, e daí para o lago Tahoe, onde passaria o Verão.

— Porque não vens comigo? — perguntou ela inocentemente.

— Não posso sair do escritório.

— É claro que podes Spencer, não sejas idiota. — Era uma mulher que nunca aceitava um não como resposta. Já zera vinte e um anos e tornara-se mais sofisticada do que nunca. E provocava-o imensas vezes, perguntando-lhe por que razão ele nunca a apresentara aos pais. Mas Spencer sabia que se o fizesse, eles nunca mais o deixariam em paz, especialmente o pai. Era exactamente o género de rapariga que eles escolheriam para nora, mas, com trinta anos, ele sabia que ainda não estava preparado para tal.

— Nem todos podem tirar férias no Verão, minha querida — brincou ele, enquanto estavam deitados. Sabia que teria de levantar-se dali a pouco para a levar ao apartamento do irmão, embora tivesse a certeza que este sabia do caso entre eles, apesar de não saber se Elizabeth lho contara. — Tenho imenso trabalho.

— Também o meu pai, e ele vai tirar dois meses de férias. — Elizabeth estava deitada na cama e olhava para Spencer com um ar feliz. Gostava de sexo, e tinha o cuidado de utilizar anticoncepcionais. Não fazia tenções de engravidar. E às vezes até isso o aborrecia. Ela pensava sempre em si mesma, nunca corria riscos, a menos que assim o quisesse, e talvez significasse mais para ele se ela não tivesse medo de engravidar. Mas em Elizabeth Barclay não havia qualquer vulnerabilidade.

— Não estou propriamente na posição do teu pai — comentou ele com um sorriso —, ou ainda não tinhas reparado? — Elizabeth continuava a pressioná-lo com a política, mas Spencer limitava-se a rir. Andava suficientemente ocupado na firma, e nessa noite ela ficara impressionada com o modo como os sócios mais velhos o respeitavam.

— Espera mais uns aninhs, senhor Hill. A tua estrela ainda não se levantou.

— Talvez... mas prevejo outras possibilidades no horizonte. — Virou-se e tornou a fazer amor com ela, e, como sempre, sentiu-se satisfeito, pelo menos sicamente. Às vezes, isso provocava-lhe sentimentos de culpa. Considerava-se um sacana por dormir com ela não estando apaixonado. Algo lhe dizia que deveria estar, mas não estava. Tinham prazer juntos, dizia ele a si próprio, e talvez isso fosse o suficiente, de momento.

— Bom, e quanto a Tahoe? — recordou ela enquanto acendia um cigarro. — Aparece lá uma semana, ou duas, se conseguires. O meu pai vai ficar encantado por te ver.

— Não sei se ele ficaria tão encantado se nos visse neste momento.

— Não — concordou ela com um sorriso, enquanto soprava o fumo na direcção dele —, tens razão. Mas o meu pai é muito antiquado.

— Que curioso! — exclamou Spencer com um sorriso. Ela era extraordinária.

— E tu também és.

— Eu? Antiquado? — Ficou surpreendido. — O que te leva a dizer isso?

— Tenho sempre a impressão que esperas que apareçam no céu relâmpagos antes de decidires que uma coisa está certa. No que me diz respeito, senhor Hill, isto basta. É tudo o que temos neste mundo, sabes: camaradagem, uma boa queca, bons amigos, um emprego, se assim o desejarmos. Não temos de esperar pêlos violinos, pelas harpas, nem pelas vozes dos anjos. A vida não é isso. — Mas o problema é que ele ainda acreditava que era, e ela não.

— Talvez tenhas razão. — Passou suavemente a mão pela parte interior da coxa dela, mas ainda não estava convencido. Continuava a acreditar nas harpas, nos violinos e nos trovões e relâmpagos. Ela conhecia-o bem, e isso era reconfortante. Mas de vez em quando Spencer ainda era atormentado pela criança que vira havia dois anos, sentada num baloiço com um vestido azul, olhando-o como se fosse gravar a imagem dele no seu coração. Ainda se lembrava da cor dos olhos dela, do toque da pele da sua mão. Mas também sabia que isso era uma loucura.

Elizabeth observava-o atentamente, e ele perguntou-se, nervoso, se ela lhe conseguiria ler a mente.

— Spencer, meu querido. Es muito bom na cama, mas também és um sonhador.

— Deveria agradecer-te pelo primeiro comentário e pedir desculpas pelo segundo? —As vezes ainda se aborrecia por ela ser tão directa. Com Elizabeth não havia poesia, magia; apenas factos concretos. Talvez ela devesse ir para advocacia.

— Não peças desculpa, aparece no lago Tahoe.

— Se o fizer, os teus pais vão pensar que queremos anunciar o noivado. — Isso também o preocupava. Elizabeth não era o género de rapariga com quem se brincasse.

— Eu trato disso.

— O que lhes vais dizer?

— Que foste em trabalho a São Francisco e que te convidei para o lago. Que te parece?

— Plausível, mas o teu pai é demasiado inteligente para engolir isso, não é?

— Sim, mas eu também sou inteligente. Não revelarei nada. Prometo.

Ele não desejava que ela se comprometesse, mas, acima de tudo, não desejava comprometer-se. Contudo, enquanto se vestiam, pensou no assunto e decidiu que se aceitasse o convite poderia passar por Alexander Valley e visitar os Webster. E talvez voltar a ver Crystal. Essa ideia ocorreu-lhe de repente e, com a mesma rapidez, ele reprimiu-a.

— Vou pensar — concedeu ele, enquanto a via enxugar-

-se depois do duche.

— Óptimo. Vou dizer à minha mãe que vais lá aparecer. Que tal em Agosto?

— Elizabeth! Acabei de te dizer que ia pensar no assunto!

— Mas ela limitou-se a sorrir, e ele soltou uma gargalhada. Aquela rapariga era extraordinária. E tinha a subtileza de uma betoneira. Quando a viu calçar as meias, quase perdeu de novo o autodomínio. Já eram quatro da manhã quando a deixou no apartamento do irmão. E estava exausto quando lhe deu um beijo de boas-noites e prometeu ligar-lhe.

 

Spencer sentou-se no avião e olhou pela janela, a caminho da Califórnia. Finalente acedera em ir, depois de vários telefonemas de Elizabeth, já em São Francisco. Ela insistira, dizendo que iria ser divertido, e que iriam lá estar os dois irmãos e vários amigos. Spencer queria ir, mas tinha medo do que faria quando lá chegasse. Há vários meses que sentia que ela andava a influenciá-lo, convencendo-o daquilo que dissera em Palm Beach depois do Natal, que fariam ambos uma boa equipa, e que a vida não tinha muito mais do que isso para oferecer. Ele ainda não estava completamente convencido, mas tinha de admitir que se divertiam muito na cama, e que havia poucas mulheres tão inteligentes como ela. Fizera questão de sair com todas as que conhecia, como que para provar a si próprio que não havia nenhuma melhor do que ela. E nunca ouvira a música e a poesia com que sonhara. Os trovões e os relâmpagos, como ela lhe chamava. Apenas encontrara mulheres que o entediaram, que não sabiam do que é que ele estava a falar durante metade do tempo e que julgavam que Napoleão era apenas uma sobremesa. Enjoara-se de todas elas, nenhuma tinha o fogo dela, e havia algo de lisonjeador no facto de uma rapariga o desejar tanto como ela o desejava. Depois de quase um ano a sair com ela, tinha de admitir que nunca se sentira aborrecido na sua companhia. Mas prometera a si próprio não fazer nenhuma loucura na Califórnia. Só conseguira uma semana de férias, e ainda tencionava ir a Booneville visitar Boyd e Hiroko... e talvez... só talvez... encontrasse Crystal. Sabia que ela já fizera dezoito anos, e perguntou-se quanto teria a rapariga mudado em dois anos, se ainda era tão bela como fora, tão mágica e rara. Ainda se recordava da forma como ela o olhara, e isso fazia com que o seu estômago se agitasse cada vez que pensava nela. Sabia que Elizabeth se riria na sua cara se lho contasse. E comparada com Elizabeth, Crystal fora uma criança, e ainda o era, sem dúvida. Mas já deveria estar mais adulta. E desejou tornar a vê-la, embora fosse difícil imaginar que isso pudesse acontecer.

Quando o avião aterrou em São Francisco, ele tencionava alugar u carro e ir directamente para o lago. Ela dissera-lhe que era uma viagem de seis horas, mas Spencer não desejava perder tempo na cidade. Com apenas seis dias, queria lá chegar o mais depressa possível. E quando se dirigiu para o edifício do aeroporto, apressou-se para o guiché de aluguer de automóveis, e assustou-se quando ouviu uma voz conhecida atrás dele.

— Queres boleia? — Virou-se, e ali estava ela a olhá-lo. Vestia calças brancas e uma camisola vermelha, com o colar de pérolas que sempre trazia. O cabelo castanho-avermelhado estava impecavelmente penteado sob um pequeno chapéu de palha, e trazia também uns minúsculos brincos de diamantes que a mãe lhe oferecera. Elizabeth fora buscá-lo ao aeroporto, o que o deixou sensibilizado. Ela tinha estilo, algo que ele também apreciava. Mas, de repente, sentiu-se aborrecido consigo próprio. Estava constantemente a fazer avaliações, como se para vericar o valor dela. Era tudo tão racional, tão diferente do que ele era normalmente. Durante toda a vida fora um romântico. Mas com Elizabeth não havia lugar para tal. Não era isso que importava.

— Que estás aqui a fazer? — perguntou ele, atrapalhado, mas mostrando o que sentia quando a beijou.

— Vim buscar-te. Calculei que estivesses demasiado cansado para conduzir. Que tal correu o voo? — Não disse «Tive saudades tuas... Amo-te». Mas pelo menos estava ali, e isso significava algo.

— Obrigado por teres vindo, Elizabeth. — Olhou para ela com uns olhos muito meigos, azuis como o oceano Pacífico. — Foi um grande esticão para ti, não foi?

— Dormi na cidade de ontem para hoje. — Sempre prática e bem organizada... era uma das coisas que ele mais admirava nela.

Dirigiram-se de mão dada rapidamente para o local onde Spencer levantaria a bagagem, e ela provocou-o por ele ter trazido uma pasta.

— Pelo menos estive entretido durante o voo.

— Foi pena não teres viajado comigo, pois eu ter-te-ia arranjado algo para fazeres. — Também gostava disso nela: em linguagem simples, aquela miúda era uma brasa. — A propósito, trouxeste os teus tacos de golfe?

— Não. Só a raqueta de ténis. — Enfiara-a na mala juntamente com as roupas.

— Não faz mal, os meus irmãos podem emprestar-te os deles. — Na verdade, ele detestava golfe, mas não queria magoá-la. Todos os homens da família dela jogavam golfe.

Também planeámos uma excursão, e a minha mãe farta-se de insistir num baile no celeiro.

— Parece divertido. É como ir para um acampamento de Verão. Será que recebo uma T-shirt com o meu nome bordado, uma faca de escuteiro e um estojo de primeiros socorros?

— Oh, cala-te! — Elizabeth beijou-o no pescoço, e com a mala na mão, ele seguiu-a até ao carro que ela deixara lá fora. Era uma carrinha Chevrolet nova, corn as partes laterais de madeira, que iria ficar no lago para ser utilizada nas férias. Ela contou-lhe todas as novidades da família e informou-o de que lan e Sarah haviam chegado na véspera. Estavam muito bem-dispostos, e dali a duas semanas iriam até à Europa, visitar os pais de Sarah no seu castelo na Escócia. Era a casa de Verão deles, e as palavras de Elizabeth faziam-na parecer bastante acolhedora. Era uma vida luxuosa. Spencer ofereceu-se para guiar enquanto enfiava a mala no carro.

— Tens a certeza de que não estás muito cansado? — Olhou-o como se se importasse, e ele sorriu-lhe, repentinamente contente por ela ter vindo, apesar de todas as suas dúvidas.

Spencer não estava preparado para a grandiosidade daquela residência estival. Era uma enorme mansão de pedra, com relvados muito bem cuidados, e meia dúzia de «cabanas» para os hóspedes. As cabanas eram maiores do que as casas de muita gente. Chegaram depois da meia-noite, mas o mordomo aguardava-os com leite achocolatado e sanduíches que Spencer devorou. Pouco depois entraram lan e Sarah, com o irmão mais velho de Elizabeth, Greg. Estavam todos muito alegres depois de um banho nocturno no lago, que Sarah garantiu estar gelado. No dia seguinte iriam pescar, e convidaram Spencer a juntar-se-lhes.

Era uma vida fácil e feliz, cheia de gargalhadas e pessoas interessantes. Os convidados chegara de São Francisco, e havia jantares sumptuosos todas as noites quando todo o grupo convergia para uma enorme sala de jantar e se sentava a uma longa mesa. Elizabeth ficava muito bonita à luz das velas; quanto a Spencer teve várias conversas longas com o pai dela. Até jogaram ambos golfe, e ele desculpou-se pela sua inaptidão. Mas o juiz Barclay parecia não se importar, gostava de falar com ele, e achava que a filha fizera uma escolha acertada. Deixava claro a toda a gente que gostava bastante de Spencer.

E este ficou realmente triste quando a semana chegou ao fim. Tencionara partir um dia antes, mas não teve vontade de ir a outro lado. Nem sequer lhe apetecia regressar a Nova Iorque e à firma.

— Porque não lhes pedes mais uma semana? — sugeriu Elizabeth, quando estavam os dois no barco a apanhar banhos de sol. Mas Spencer riu-se e olhou para ela. Apesar de toda a sua inteligência, ela parecia julgar que todos eram tão importantes como o pai.

— Não me parece que a ideia lhes fosse agradar.

— Detesto ver-te partir — disse ela baixinho, e durante um momento, olhou-o com tristeza. — Vou sentir-me muito sozinha sem ti.

— Rodeada pela família e por dez mil amigos? Não sejas tolinha, Liz. — Mas tinha de admitir que também iria sentir a falta dela. Até desistira de visitar os Webster em Alexander Valley. Não havia tempo, e era muito agradável estar ali com aquelas pessoas. Tão agradável que começava a pensar que a amava. — Quando é que voltas para Nova Iorque? — Haviam visitado às escondidas os quartos um do outro, e de repente, ao pensar que estaria um mês sem ela, sentiu-se deprimido.

— A seguir ao Dia do Trabalho1. E depois tenho de voltar para aquela maldita universidade. — Virou-se de barriga para baixo, e olhou-o com tristeza. Encontravam-se num dos dois barcos a motor dos Barclay.

 

1 Nos Estados Unidos, a primeira segunda-feira de Setembro.

 

— Até parece que vais para a prisão — comentou ele com uma gargalhada, e ela sorriu, tocando os lábios dele com os seus dedos delicados.

— É verdade. Sem ti, às vezes até parece que estou numa. — De repente, ele desejou que ela fosse para Nova Iorque. Sabia agora que queria estar com ela. Então, dirigiu-lhe um olhar pensativo, perguntando-se se os relâmpagos o haviam finalmente atingido. Ficou em silêncio, a ouvir as suas vozes interiores e interrogando-se se também iria haver trovões.

— Em que estás a pensar? — perguntou ela, semicerrando os olhos, preocupada com o que lhe poderia estar a passar pela cabeça. Ele era sempre muito esquivo.

— Estava a pensar que vou sentir muito a tua falta. — O lago Tahoe exercera finalmente efeito sobre ele: era o local mais belo que Spencer já vira, com pinheiros altos, grandes lagos e belas montanhas ao fundo. Tudo ali era tão fácil, tão saudável, natural e feliz! Adorava sítios como aquele, e desejou que a semana nunca terminasse. Ela olhou-o com uma nova ternura. Gostava do que lhe via nos olhos e do que ouvia.

— Também vou sentir a tua falta, Spence. — Ele sorriu com aquele diminutivo idiota, no mais idiota que «Liz», que por acaso não lhe era nada adequado.

E então, sem uma palavra, puxou-a para os seus braços e beijou-a. Parecia confundido quando finalmente a afastou, e lhe disse o que ela esperava ouvir desde a primeira vez que o encontrara. — Acho que estou apaixonado por ti.

Ela sorriu, feliz.

— Levaste muito tempo. Ele riu-se.

— Que raio de coisa para dizer! Apercebo-me finalmente de que estou apaixonado por ti, e tu queixas-te de que o deveria ter feito há mais tempo?

— Começava a pensar que iria ficar para tia.

— Com vinte e um anos não te devias preocupar com essas coisas. — Nessa altura apercebeu-se do que ela dissera e soube com toda a certeza que teria de fazer algo com o que sentia. Não podia mante-la eternamente à espera. «Desta é que é», disse a si próprio, ela era uma rapariga estupenda, e, tal como dissera, juntos poderiam fazer grandes coisas. — Casas comigo, Elizabeth?

— Isto é um pedido formal? — perguntou ela muito ex citada, e ele levantou-se, mantendo um joelho no chão, sor rindo-lhe.

— Agora é. Casas?

— Raios, sim! — Elizabeth deu um salto de alegria e lançou os braços para o pescoço dele, quase virando o barco.

— Espera! Não nos afogues, por amor de Deus! Esta história não é para ser uma tragédia.

— Não será, meu amor. Prometo-te. Vai ter um final muito feliz. — E ele teve a certeza disso quando a beijou de novo. Finalmente ligaram o motor, e dirigiram-se a terra para contar à família. Mas ao atracarem, ele sentiu-se um nadinha idiota. Era difícil partilhar um dos momentos mais íntimos da vida com toda a família. Não havia nada de privado na vida com os Barclay.

Encontraram o pai dela na sala, a falar para Washington. Mas quando ele desligou, o juz virou-se para eles com um sorriso. Spencer soube, pela expressão do seu rosto, que ele suspeitava de algo. Elizabeth parecia ter engolido um bando de canários.

— Sim, Elizabeth? — perguntou ele, sorrindo para os dois. Ela já sabia que ele gostava de Spencer.

Não esperou que o noivo falasse. Queria ser a primeira a contar-lhe.

— O Spencer acabou de me pedir a mão. — Estava radiante, e virou-se para o futuro marido como se aguardasse confirmação.

—Já o devia ter feito há muito tempo, sir. Dá-nos a sua bênção?

Harrison Barclay levantou-se rapidamente e apertou a mão de Spencer, olhando para os dois com uma expressão muito benévola, especialmente para a lha.

—Já a têm há muito tempo. Desejo-vos muitas felicidades. — Abraçou a lha e depois olhou-os, muito sério. — Quando tencionam casar?

— Receio que ainda não tenhamos ido tão longe. Teremos de discutir o assunto.

— Se fosse eu a decidir, gostaria que Elizabeth terminasse os estudos, mas creio que dois anos é pedir muito a dois apaixonados. E que tal um? Podiam casar-se, digamos, em Junho, e Elizabeth poderia transferir-se para Columbia, para o último ano, isto é, se tencionam ficar em Nova Iorque.

— Tanto quanto sei, tencionamos. Junho parece-me uma boa altura. — Spencer estava satisfeito, mas Elizabeth parecia um pouco desapontada.

— Porque é que tenho de continuar na faculdade? — queixou-se ela, quase como uma criança, mas o pai respondeu-lhe com firmeza.

— Porque és demasiado inteligente para não continuares, e Vassar é uma excelente faculdade. Só faltam dez meses para Junho. No Outono daremos a festa de noivado e anunciaremos as coisas formalmente, e depois disso andarás, com a tua mãe, muito ocupada a preparar o casamento. — E como se estivesse a seguir uma deixa, a esposa entrou na sala, exibindo um sorriso luminoso. — Priscilia, temos grandes novidades para ti. — Olhou para a filha e depois para Spencer, enquanto ela aguardava. — Os miúdos acabaram de ficar noivos.

— Oh, querida... — Priscilla Barclay foi rápida a abraçar a filha, beijando em seguida o futuro genro, enquanto ele cava com a sensação de que fora apanhado por uma onda e arrastado para o alto mar. Numa questão de minutos ficara noivo, e iria casar-se em Junho. Mas fora isso que quisera.

Todos conversaram muito excitados e deram a notícia aos outros durante o almoço. lan ficou encantado, e Sarah extasiada. Spencer telefonara aos pais. Ficou combinado que a festa de noivado teria lugar em São Francisco, depois do dia de Acção de Graças. Spencer garantiu-lhes que pedira aos pais para virem de avião até lá. E Elizabeth anunciou que desejava casar-se em Grace Cathedral. Ainda estava aborrecida por ter de passar mais um ano na faculdade, mas Spencer consolou-a, lembrando-lhe que ela iria a Nova Iorque todos os fíns-de-semana.

Foi um dia extenuante para ele, e quando se deitou e esperou por ela, sentiu-se subjugado pelas suas emoções. Mal teve forças para fazer amor, e quase adormeceu nos seus braços. Teve de obrigar-se a ficar acordado para lembrar Elizabeth de voltar para o seu quarto, e quando deu por si já era de manhã.

Elizabeth levou-o ao aeroporto. Disse que tinha de fazer umas compras e que queria passar uns dias na cidade. Mas ele ainda se sentia atordoado quando se despediu dela e entrou no avião. Sentou-se e viu São Francisco a diminuir de tamanho enquanto se dirigia a Nova Iorque. Foi nessa altura que se apercebeu do que lhe acontecera. Ia mesmo casar com Elizabeth Barclay.

 

Como seria de esperar, os pais de Spencer mostraram-se encantados com a notícia. Na realidade, caram delirantes, e prometeram ir a São Francisco a seguir ao dia de Acção de Graças para a festa de noivado. Quando Spencer saíra do lago Tahoe, os planos para a festa já estavam a ser delineados e pareceu-lhe que os Barclay iriam convidar pelo menos quinhentas pessoas.

— Ela deve ser encantadora, querido — disse a mãe. — Quando é que se encontram? — Estava um pouco magoada por nunca n ter conhecido, mas Spencer prometeu apresentar-lhes Elizabeth quando ela regressasse de São Francisco.

As semanas seguintes passaram a correr. Pareciam ter decorrido apenas alguns minutos quando ele foi buscar Elizabeth a Idlewild e a levou a Poughkeepsie. Comprara o anel de noivado no Tiffany's. Custara tudo o que ele pudera pagar, mas mesmo assim era um belo diamante com safiras de cada lado, e ela gritou de alegria quando o viu. As pedras não eram grandes, mas muito boas, e o anel era bonito.

— Spencer, era precisamente isto que eu queria! — Ele colocou-lho no dedo já no carro, e decidiram ir até ao apartamento dele por algumas horas, antes de seguirem para Vassar. Já na cama, Elizabeth estava muito sorridente e fartou-se de lhe exibir o anel. De repente, parecia muito mais nova e muito feliz. — Céus, tive tantas saudades tuas! O resto do Verão foi horrível.

— Eu também me senti sozinho. — Já estava melhor desde que a vira. Tinha chegado a pensar duas vezes no que fizera, e passara várias noites apavorado, perguntando-se o que teria feito e porquê, mas um dos seus amigos mais chegados garantiu-lhe que isso era normal. E assim que a tornara a ver, tivera a certeza de que agira bem. Fizeram amor durante horas, e na manhã seguinte, ao regressar de Poughkeepsie, teve imensas saudades dela. No fim-de-semana seguinte ela iria a Nova Iorque para conhecer os seus pais.

E quando os conheceu, eles adoraram-na. Era exactamente o tipo de rapariga que o pai esperara que ele encontrasse, e ficou muito impressionado com os seus conhecimentos sociais. Falava jovialmente de pessoas que eles apenas conheciam de jornais e revistas, e até a mãe dele ficou impressionada com o facto de ela se vestir tão bem, de ser tão inteligente e tão senhora. Aprovaram a escolha de Spencer. O pai já se andava a gabar junto de todos que Spencer ia casar com a filha do juiz Barclay.

Depois disso, Elizabeth foi a Nova Iorque quase todos os fins-de-semana, e em Novembro voaram todos até à Califórnia. Os Barclay deram um belo jantar de Acção de Graças para a família, fazendo com que os recém-chegados se sentissem bem-vindos. Os dois casais mais velhos gostaram da companhia um do outro, e as duas mães adoraram-se. Era obviamente um casamento que estivera predestinado. lan e Sarah tinham vindo para o dia de Acção de Graças e par a festa de noivado, mas Gregory estava demasiado ocupado em Washington, o que deixou Elizabeth um nadinha triste, mas não muito. Ela e Greg não eram muito chegados. Ele levava uma vida muito distante, e estava ausente na maior parte dos acontecimentos familiares e férias.

E nessa altura, todos sabiam que ele estava a atravessar um processo de divórcio muito conturbado.

A festa do dia seguinte foi espectacular. Para os cocktails e jantar volante havia quatrocentos convidados, e o lar dos Barclay encheu-se com as pessoas mais importantes de São Francisco, até o presidente da câmara compareceu, e houve baile até altas horas da noite. Spencer achou que Elizabeth nunca estivera tão bonita, com um vestido de veludo preto, e segurou-a muito apertada a si enquanto dançavam, sorrindo-lhe.

— Feliz, meu amor?

— Nunca estive tanto. — Adorou apresentá-lo às amigas. Spencer era extremamente atraente, e todas as raparigas a invejaram. Ele conversou um pouco com elas, e Elizabeth soube que todas queriam estar no seu lugar.

No dia seguinte, os jovens foram dar uma volta de carro e pararam para almoçar em Sausalito. Era sábado, e todos estavam de muito bom humor, embora cansados devido à noitada. Iriam jantar todos juntos nessa noite, e talvez dançar um pouco, enquanto os pais iriam ao Bohemian Club para um serão mais sossegado. Na segunda iriam todos embora, os jovens e os Hill mais velhos para Nova Iorque, o juiz e a Sra. Barclay para Washington. Tinham apenas mais dois dias e duas notes, e queriam aproveitá-las.

— Foi uma excelente festa, ontem à noite, não foi? — perguntou lan ao futuro cunhado, já em Sausalito, enquanto contemplavam a baía.

— Fabulosa! — Spencer ainda achava que estava a sonhar. Tudo lhe parecia muito irreal, as pessoas, o local. E, por um momento, pensou de novo em visitar os amigos em Alexander Valley. Mas, mais uma vez, não dispunha de tempo. Era mesmo uma visita agitada.

— Espera até veres o casamento que a mãe irá preparar — comentou Sarah, que iria ser a dama de honor de Elizabeth.

Regressaram a casa para descansar um pouco durante a tarde, e quando saíram nessa noite estavam muito alegres. Sarah levava um espectacular vestido de cetim cor-de-rosa e Elizabeth um de chffon azul-escuro que comprara na I. Magnin. Disse que realçava o anel de noivado, e Spencer sorriu, beijando-a.

O jantar foi excelente nessa noite, e depois foram ao Top of the Mark para beber qualquer coisa e admirar o panorama. Spencer olhou para a noite reluzente e apertou a mão de Elizabeth. Era um panorama muito belo, ela era uma rapariga muito bela, e ele amava-a. Ficaram ali até às onze horas, e quando saíram, lan disse ter ouvido falar de um sítio óptimo para dançar. Era relativamente perto dali e até tinha espectáculo. O grupo concordou em uníssono que era uma excelente ideia. Voltaram a meter-se no carro e dirigiram-se ao local que lan lhes indicara. Parecia um clube acolhedor, e embora já estivesse cheio quando chegaram, o chefe de mesa arranjou-lhes lugar graças a uma boa gorjeta de Spencer. Havia uma banda a tocar Some Enchanted Evening e Spencer conduziu Elizabeth à pista de dança, segurando-a muito junto de si. Adorava senti-la assim tão perto, e quando voltaram a sentar-se, ele pegou-lhe na mão. As luzes apagaram-se e apareceu uma rapariga com um microfone na mão. Trazia um vestido de ceim azul-claro e o cabelo loiro que lhe ocultava o rosto. A luz do projector iluminou-a. Spencer susteve a respiração e observou-a. Quando ela começou a cantar, teve a sensação que ia desmaiar. Parecia que o seu coração estava a ser apertado por um torno. A rapariga era Crystal.

Estava ainda mais bela do que Spencer se lembrava, e ele quase não conseguiu pensar enquanto a ouvia cantar. Parecia dez anos mais velha, e o corpo moldado pelo vestido de cetim revelava formas de que ele nunca suspeitara. Mas não era para o corpo dela que ele olhava, era para o rosto que o atormentara, para os olhos de que tão bem se recordava, olhos da cor do céu de Agosto. A voz dela rasgou-lhe a alma, tão triste e dolorida que ele sentiu essa tristeza e essa dor ao escutá-la. Mal conseguia respirar enquanto a contemplava, sem reparar que Elizabeth o estava a observar. Queria que aquele momento nunca chegasse ao fim, mas ela acabou por desaparecer e as luzes acenderam-se. A banda tornou a tocar música de dança. Mas Spencer sentia-se incapaz de falar com eles. Só queria tocar em Crystal. E quando Elizabeth o observou mais de perto, viu que ele empalidecera. Largara-lhe a mão, sem disso se aperceber, enquanto olhara extasiado para Crystal.

— Conheces aquela rapariga? — perguntou Elizabeth, franzindo o sobrolho, perturbada pela forma como ele olhara a cantora. Também observara a rapariga com atenção, mas não a conheceu. Crystal não podia ver contra a luz, e não se apercebera de que Spencer estava ali, enquanto cantava cheia de emoção sobre um amor perdido e uma vida destroçada.

— Não... não... Eu... ela era muito boa, não era? — Bebeu um longo trago de uísque enquanto lan tagarelava com Sarah.

— Era muito bonita, se é isso que queres dizer. — Elizabeth parecia aborrecida e perguntava-se se ele estaria bêbedo, mas achava que não. Estivera como que hipnotizado e agora mostrava-se acabrunhado. Convidou-a de novo para dançar, mas depois manteve-se em silêncio. Passado pouco tempo, foram-se embora. Era uma e meia da manhã, e aliando lan disse que estava cansado, todos concordaram que eram horas de partir.

No carro, Spencer falou com eles sobre coisas sem importância, mas Elizabeth pressentiu que ele estava perturbado. Esperou até terem entrado em casa para repetir a pergunta, olhando-o bem nos olhos.

— Spencer, a cantora do restaurante a que o lan nos levou. .. conheciala?

— Não — respondeu ele numa voz calma. Sabia que tinha de mentir. Ela não compreenderia aquela história, nem ele próprio a compreendia. Nunca compreendera. Mas o sentimento ainda estava lá. Mais forte, até. — Era parecida com uma pessoa que conheci.

— Nunca olhas para mim daquela maneira! — Era a primeira vez que a via zangada, e não sabia o que lhe dizer.

— Não sejas tolinha. — Tentou não dar importância ao assunto, e deu-lhe um beijo de boas-noites. Mas nessa noite ela não foi ao quarto dele, o que também não fez mal. Spencer ficou a pé ainda durante quase mais uma hora, a contemplar a baía e a pensar em Crystal. Era muito mais bela do que aquilo que ele se recordava, e havia nela uma grande tristeza. Fora apenas uma canção, sabia-o, mas era capaz de pressentir que lhe estava subjacente a angústia, a dor e a solidão... ainda a conseguia escutar... juntamente com os trovões e os relâmpagos. Sorriu para si próprio, imaginando vozes de anjos, violinos e harpas. Era uma loucura, e ele sabia-o. Mas quando fechou os olhos nessa noite, só conseguia ver Crystal.

 

Na manhã de domingo Spencer desceu cedo para tomar o pequeno-almoço e conversou com o juiz Barclay e lan durante os ovos mexidos, o bacon estaladiço e o café. Tal como a mãe, Elizabeth tomava o pequeno-almoço no quarto, e só voltou a ver o noivo a meio da manhã. Nada foi dito a respeito da noite anterior, e ela não lhe tornou a fazer perguntas sobre Crystal. No entanto, Spencer sentiu uma grande tensão entre os dois até à noite.

Era o último jantar deles com a família dela, e todos iriam regressar a Nova Iorque no dia seguinte. Com uma sensação de pânico Spencer apercebeu-se de que não teria oportunidade de voltar a ver Crystal. Pensara nisso durante todo o dia, e à tarde fizera um telefonema. E fora informado de que o Harry's estaria aberto nessa noite. Tomou uma decisão e sentiu-se muito mal por ter de mentir a Elizabeth, mas sabia que era forçado a isso. Quando saiu do pequeno gabinete onde estava o telefone, esboçou um sorriso e informou-a de que telefonara a um ex-colega da faculdade.

— Queres convidá-lo para vir cá a casa beber um copo? — Ela já voltara a descontrair-se. Spencer mostrara-se amoroso durante todo o dia, e ela achou que fora uma idiota na noite anterior. Não tinha motivo para se preocupar, se calhar ele já bebera de mais, e achara apenas que a rapariga era bonita.

Spencer abanou a cabeça:

— Disse-lhe que iria visitá-lo depois de jantar. — Mas não a convidou a ir com ele. De qualquer das formas, ela tinha de fazer as malas, e queria falar com a mãe acerca do casamento. Tinham muitos planos a fazer antes de Elizabeth regressar a Vassar.

Jantaram cedo, e o pai de Spencer fez um brinde à futura nora. Estavam a passar um fim-de-semana extremamente agradável todos juntos. Mas o casamento parecia muito distante. Ela detestava ter de regressar à faculdade, embora Spencer lhe tivesse dito que esse ano passaria depressa.

Spencer saiu de casa às nove horas e apanhou um táxi até ao restaurante. Permaneceu em silêncio, olhando pela janela durante a viagem, sentindo-se desesperadamente culpado. Acabara de ficar noivo, e já saía às escondidas para ver outra rapariga. Era o tipo de coisa que não se imaginava a fazer, mas sabia que tinha de voltar a ver Crystal antes de partir, ou pelo menos tentar. Talvez ela tivesse mudado ainda mais do que ele julgava, talvez fosse apenas uma aldeã amorosa, ou talvez se tivesse tornado uma meretriz. Spencer desejava que ela fosse isso, desejava que ela fosse vulgar, maçadora e estúpida. Não queria que ela fosse nenhuma das coisas que sonhara. Queria finalmente poder esquecê-la. Mas antes disso, tinha de a ver de novo, só uma vez, disse a si próprio, enquanto pagava ao taxista e entrava à pressa no Harry's.

Pediu um uísque, e esperou que ela voltasse ao palco. Decidiu abordá-la apenas depois da actuação. Queria ouvi-la outra vez. E quando ela apareceu, deixou-o de novo sem fôlego. Cantou à alma de Spencer, enquanto ele permanecia sentado e a observava. E quando desceu do palco, ele pediu ao chefe de mesa que lhe levasse um bilhete. Nele, recordava-lhe os encontros de ambos em Alexander Valley, primeiro no casamento da irmã, depois no baptizado do filho dela. Era estranho aperceber-se de repente de que ela podia já não se lembrar dele. Mas ela apareceu no restaurante, ficou a olhar para ele durante algum tempo, parecendo olhar para um fantasma, e quando ele se levantou soube de imediato que ela guardara consigo aquela recordação durante anos, tal como ele. Crystal trazia um vestido de seda branco muito simples, e com o seu longo cabelo loiro espalhado sobre os ombros, parecia um anjo. A sua voz estava mais grave do que dantes, e ela, alta e graciosa. Ele nunca vira olhos como os dela, olhos tão cheios de amor e de dor, olhos de corça, recordava-se ele agora, de uma corça que surgia lentamente vinda da floresta. Estendeu-lhe uma mão, e quando ela lhe pegou Spencer julgou que iria derreter com aquele toque. Teve de obrigar-se a largá-la. Tudo o que queria era abraçá-la. Era o mesmo sentimento que ela provocara nele, mas nessa altura Crystal era pouco mais velha do que uma criança.

— Ola, Crystal. — Sentiu a voz tremer, e perguntou-se se ela se teria apercebido. — Já há muito que não nos víamos.

—É verdade. — Ela sorriu-lhe timidamente. — Eu... pensei que já não se lembrava de mim.

Ele pensara o mesmo, e não lhe disse que nunca a esquecera.

— É claro que me lembro de ti. — Tentou tratá-la como uma criança, mas já não era capaz. Não havia nada de infantil na Crystal de agora, com aquelas roupas justas que Pearl a ajudara a escolher com o dinheiro que Harry lhe dera para o «guarda-fato». E compensara. As pessoas começaram a ir ao restaurante só para ver Crystal. — Podes sentar-te um bocadinho?

— Claro. — Sentou-se ao lado dele, só voltaria a actuar à meia-noite.

— Quando é que vieste para São Francisco? — Tentava recordar-se da idade dela, mas achou que Crystal não podia ter mais de dezoito anos, embora parecesse bastante mais velha. Soube instintivamente que a vida não a tratara com benevolência. Isso era visível na forma como ela cantava, e perceptível agora no seu olhar. Havia aí algo oculto, algo terrível e doloroso, e ele sentiu-o sem que ela precisasse de falar, como se soubesse, e sempre tivesse sabido tudo sobre ela. Era como se Crystal fizesse parte dele. E tal como há dois anos, sentiu-se muito atraído por ela. Fora precisamente isso que receara.

— Na última Primavera — respondeu ela. — Nessa altura andava a servir às mesas, mas tenho cantado durante todo o Verão.

— És ainda melhor do que aquilo que eu me lembrava.

— Obrigada. — Sentia-se muito tímida junto dele. Só queria ficar ali sentada e senti-lo perto. — É fácil. Acho que é por eu gostar tanto do que faço. — Mas as palavras de ambos pareciam nada significar. Olhavam-se intensamente, cada um perguntando-se o que estaria o outro a pensar. Nessa altura ele não se conseguiu conter, tinha de saber como é que ela estava, e por que razão sentia que algo lhe acontecera.

— Estás bem? — A sua voz era meiga, e ela ficou sensibilizada com a pergunta. Nunca ninguém lhe perguntara aquilo, pelo menos da mesma forma. Já há muito tempo que ninguém o fazia, e as lágrimas vieram-lhe aos olhos quando respondeu:

— Não estou mal.

E então, sentindo que havia mais Spencer continuou:

— O que te fez vir para São Francisco?

Ela hesitou durante um longo momento, e depois suspirou, atirando o cabelo por cima dos ombros. Por um instante, voltou a parecer uma criança, a mesma rapariga que falara com ele no baloiço, noutro local, noutra vida.

— O meu pai morreu. Isso fez com que muita coisa mudasse para mim.

— A tua mãe vendeu o rancho? Ela abanou a cabeça, e quase se engasgou com as palavras seguintes.

— Não, agora quem o dirige é o Tom.

— E o teu irmão? — Spencer ainda se lembrava dele, um rapaz de cabelo desgrenhado com pernas compridas, que gostava de provocar a irmã. Recordava-se de ele puxar o cabelo de Crystal, e de ela o empurrar, mas tudo na brincadeira. Nessa altura haviam-lhe ambos parecido crianças, mas já não o eram.

— O Jared morreu na Primavera passada. — Ela mal conseguia dizer aquelas palavras enquanto Spencer a observava. As coisas tinham sido difíceis, mas ela não lhe disse quanto. Nem como Jared tinha morrido. Nem porquê. Tudo fora culpa dela. Ainda era dessa opinião.

— Lamento... foi um acidente? — Não podia ter sido de doença. Ele era demasiado novo. O coração de Spencer compreendeu a emoção dela quando a viu hesitar. Depois Crystal assentiu. Olhava para as mãos para não ter de o encarar, depois ergueu lentamente a cabeça e ele quase recuou com a força daquilo que viu neles. Era raiva e ódio e medo, e sonhos perdidos. Eram coisas poderosas. Num gesto calmo, pegou na mão dela e segurou-a entre as suas.

— O Tom alvejou-o. — Os olhos dela fixaram os dele como dois relâmpagos.

— Meu Deus... tinham ido os dois à caça? O que aconteceu?

— Não — respondeu ela, abanando devagar a cabeça. Não podia dizer-lhe que Tom a tinha violado. Nunca contara a ninguém, excepto a Boyd e a Hiroko, e sabia que nunca mais o contaria. Teria de viver para sempre com aquela vergonha. — A culpa foi toda minha. — Falava com calma. A culpa era demasiado forte para a deixar chorar. — Aconteceu uma coisa entre mim e Tom, e eu fiquei louca. — Respirou fundo, como se precisasse de mais ar, e Spencer segurou-lhe a mão ainda com mais força. — Fui atrás dele com a carabina do meu pai. Tom disparou contra mim e acertou no Jared.

— Oh, meu Deus... — Olhou para ela horrorizado, mal ousando imaginar o que a teria levado a ir atrás do cunhado com a arma do pai. Percebeu de imediato a culpa que ela carregava.

— O xerife disse que o Jared morreu por acidente. E vim-me embora uns dias depois de ele ter sido enterrado. — Aquelas palavras eram muito simples, mas o curso da sua vida alterara-se completamente. Enquanto ele ia a festas em Washington, no lago Tahoe e em Palm Beach, Crystal perdera o pai e o irmão. Era horrível pensar nisso, e ficou impressionado por ela conseguir sobreviver. Sentiu-se grato por a ter encontrado em São Francisco.

— A minha mãe e eu não nos dávamos muito bem desde a morte do meu pai. E agora acho que ela pensa que fui eu quem matou o Jared. De certa forma, fui. A culpa foi minha. Não devia ter ido atrás do Tom, mas... — De repente, os seus olhos encheram-se de lágrimas. Sabia que não podia explicar nada a Spencer. Mas ao ouvi-la, ele teve vontade de a beijar e de a abraçar. — Eu e a minha mãe nunca nos demos bem. Acho que ela me odiava por eu ser tão chegada ao meu pai.

—Já tiveste notícas dela desde que partiste?

— Não — respondeu Crystal, abanando a cabeça. — Isso acabou. — Sorriu animosamente. — Agora estou aqui. Isto é a minha vida. Isso é o passado. Tenho de pensar no que estou aqui a fazer. Não posso olhar para trás. Deixei tudo isso. Já passou. — Levantou os olhos para Spencer. — Tem visto o Boyd e a Hiroko?

Ele abanou a cabeça, com uma expressão de culpa. Já era a segunda vez que não conseguia ir ao vale.

— Não, não tenho. Tencionava ir, mas só cá estive meia dúzia de dias. Sabes se eles estão bem?

Ela dirigiu-lhe um sorriso triste, e Spencer enterneceu-se. Crystal fora uma criança incrível, e agora era uma mulher incrível. Havia nela uma grande sensualidade, uma meiguice e uma feminilidade que o faziam querer ficar junto dela e protegê-la, mas também uma enorme força. Fora essa força que a ajudara a sobreviver.

— Recebi uma carta de Hiroko na semana passada. Está à espera de outro bebé. Acho que desta vez querem um rapaz, mas a Jane é tão amorosa! — Contou-lhe algumas histórias acerca da pequenita, e depois chegou a hora de voltar a actuar. Ele prometeu esperar. Era capaz de conversar com ela durante horas. Não queria deixá-la. Nunca mais. Sentia que ela precisava dele. E queria estar ali para a ajudar.

Desta vez parecia que ela cantava apenas para Spencer, a sua voz vogando até ele como dedos travessos. Havia nela uma certa sensualidade misturada com inocência que fazia com que os homens quisessem tocar-lhe. Era quase uma da manhã quando saiu do palco, e falaram durante mais uma hora até o Harry's fechar. Spencer ofereceu-se para a levar a casa. Esperou que Crystal mudasse de roupa, e quando ela apareceu com uma saia de lã, uma blusa branca e um casaco de xadrez que comprara numa loja barata, foi como se estivesse a olhar para o passado. Parecia outra vez uma rapariguinha, mas os olhos que olhavam para os dele eram os olhos de uma mulher. A mulher com que ele sonhara durante três anos e que nunca esquecera. A mulher que sonhara com ele, sabendo sempre quanto o amava.

Ele acompanhou-a a pé, devagar, até à rua onde ela morava, em casa da Sra. Castagna, e ficaram à porta durante bastante tempo, falando sobre a vida dele em Nova Iorque, os seus amigos, sobre tudo o que a pudesse reter ali fora, e depois, como se fosse aquilo por que ambos haviam esperado toda a noite, ele puxou-a para si e beijou-a.

— Spencer... — A voz dela foi um murmúrio no ar frio da noite, enquanto ele a apertava para a manter quente e para a ter junto de si. — Sonhei contigo todos estes anos... às vezes dizia para comigo que se tivesses lá estado as coisas teria sido diferentes. — Mas ela sobrevivera, mesmo sem ele. Spencer respeitava isso. E Crystal estava a tornar-se alguém. Spencer interrogou-se se ela ainda pensava em ir para Hollywood, mas não lhe perguntou.

— Quem me dera ter lá estado. — Levantou o rosto dela com um dedo meigo sob o queixo. — Nunca te esqueci. Pensei em ti muitas vezes... mas nunca pensei que te recordasses de mim. Calculei que estarias diferente, ou talvez já casada. — Essa fora a última fantasia dele. Nunca pensou que a iria encontrar sozinha, a cantar num clube de São Francisco, e maravilhou-se com a mão do destino que o conduzira até ela. Podia ter regressado a Nova Iorque sem sequer saber que ela estava ali, sem a ter visto. Mas agora que a vira, não sabia o que fazer. Viera a São Francisco para ficar noivo de Elizabeth Barclay. E agora estava à porta de uma casa na Green Street, a apaixonar-se por Crystal Wyatt.

— Amo-te, Spencer — sussurrou ela, como se receasse não voltar a ter oportunidade de lho dizer, e Spencer sentiu o coração a derreter-se. Como poderia ele falar-lhe da rapariga com quem iria casar?

Apertou-a nos braços, e manteve-a junto de si. Queria mante-la ali para sempre.

— Também te amo, oh, meu Deus, Crystal... Amo-te... — Como podia estar a dizer-lhe aquelas palavras? Nada podia prometer-lhe, só podia estar junto dela por breves momentos, e na manhã seguinte teria de regressar a Nova Iorque com Elizabeth. Será que tinha mesmo de fazer isso? Porque não podia ficar com Crystal? Não havia nisso nada de errado. Durante um momento, teve a certeza absoluta de que sempre a amara. E apesar do que isso lhe pudesse custar, tinha de lho confessar. — Amo-te desde que te vi pela primeira vez. — Sentiu-se bem ao dizer-lhe aquelas palavras, como se a tivesse procurado durante três anos para lhas dizer. Nada mais importava agora. Nada nem ninguém.

Então ela afastou-se para o olhar, e sorriu-lhe. A criança que ele vira uma vez no baloiço transformara-se numa mulher, e quando a abraçou, Spencer soube que a amava desesperadamente, para além das palavras, para além da razão. para além de tudo. Ela era tudo o que queria.

— Costumava estar sempre a pensar em ti... estavas tão bonito quando foste pela primeira vez ao rancho, com aquelas calças brancas e a gravata vermelha. — Ele nem sequer se lembrava do que levara vestido, mas ela sim, tal como ele se recordava do vestido branco com que a vira pela primeira vez, e do azul, na vez seguinte. Depois, como se tivesse lido a sua mente, levantou o rosto e perguntou: — Quando é que voltas para Nova Iorque?

— Amanhã de manhã. — Aquilo parecia-lhe uma loucura. Só lhe apetecia ficar ali com ela. Para sempre. Mas tinha de resolver toda a sua vida naquele momento. E de enfrentar Elizabeth. Mas nada disso importava agora. Nada importava. Só Crystal. Era por ela que ele esperara quando se sentira tão relutante. E agora sabia porquê. Era aquilo que desejava. Não faria sentido para ninguém, mas fazia para ele. Fazia muito sentido quando a abraçou.

— Voltarás à Califórnia? — O coração de Crystal batia com toda a força.

— Sim. — Os seus olhos encontraram-se e permaneceram assim durante muito tempo. Agora sabia que iria voltar. Teria muitas explicações a dar. Mas seria capaz de caminhar sobre carvões em brasa só para estar com ela. — Voltarei logo que puder. Primeiro tenho de resolver umas coisas em Nova Iorque. Mas depois telefono-te. — Fê-la escrever o seu número de telefone e beijou-a de novo, sentindo a doçura dos seus lábios e saboreando a promessa do futuo. Era um futuro por que ansiava, não um que temia. Já não tinha dúvidas, no calor do momento.

Escrevinhou à pressa o nome da firma onde trabalhava, e o seu número de telefone, e escreveu a morada dela, tomando-a de seguida nos braços pela última vez. Não queria deixá-la. Mas parecia-lhe que dali a umas horas todo o seu futuro teria de ser decidido, e desta vez era um futuro que ele desejava.

— Não quero ir-me embora — murmurou para o cabelo dela enquanto a apertava com força, e Crystal fechou os olhos, sentindo como era bom ser abraçada por alguém que ela amava. Sentia-se segura e feliz só por estar junto dele, mas mal conseguia acreditar no que ouvia. Era como um sonho tornado realidade, e era tão bom que a assustava. E se ele não regressasse? Se desaparecesse? Mas sabia que não o faria. Crystal afastou-se de Spencer e quase sentiram ambos uma dor física quando ela o fixou, como para gravar na memória a sua imagem para o ter junto a si para sempre. Ou durante o tempo que ele levasse a voltar. Mal poderia viver à espera desse momento.

— Amo-te, Spencer.

— Então não fiques tão triste.

— Tenho medo. — Estava a ser sincera com ele. Sabia instintivamente que o poderia ter.

— Medo de quê?

— E se não voltares?

— Voltarei. Prometo. — E era uma promessa feita com toda a sinceridade. Todo o seu ser estava vivo e cheio de esperança. Ela era tudo o que queria. — Amo-te, Crystal. — Acompanhou-a até à porta e beijou-a de novo. Ela agarrou-se a ele, e um momento depois tinha entrado, passando em bicos de pés em frente ao apartamento da Sra. Castagna. Ele ouviu os passos de Crystal a subir as escadas, e pouco depois viu que a luz do seu quarto se acendia. Ela apareceu à janela, acenou-lhe, e então, como um homem que tivesse encontrado o seu sonho Spencer partiu a pé para a casa na Broadway. Durante um momento de loucura, pensou em entrar no quarto de Elizabeth e contar-lhe tudo. Mas sabia que tinha de pensar muito bem no assunto e falar com ela durante o dia, para que não pensasse que ele estava bêbedo ou louco. Contudo, Spencer não estava louco. Sabia que estava mais lúcido do que alguma vez estivera, e sabia exactamente o que pretendia. Só tinha de descobrir como o conseguir.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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