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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DA FLORESTA / Juliet Marillier
A FILHA DA FLORESTA / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A FILHA DA FLORESTA

Primeira Parte

 

Três crianças estão estendidas sobre as rochas à beira da água. Uma rapariguinha de cabelo escuro. Dois rapazes, ligeiramente mais velhos. Esta imagem permanece gravada para sempre na minha memória, como uma frágil criatura preservada em âmbar. Eu própria e os meus irmãos. Lembro-me de como a água ondulava à medida que eu corria os meus dedos ao longo da sua superfície brilhante.

 

Não te inclines tanto, Sorcha disse Padriac. Podes cair.

 

Era um ano mais velho do que eu e servia-se dessa pequena diferença para exercer uma certa autoridade sobre mim. O que era compreensível, suponho. No fim de contas, éramos seis irmãos, cinco dos quais mais velhos do que ele.

 

Ignorei-o, tentando alcançar as misteriosas profundidades.

 

Ela pode cair, não pode, Finbar?

 

Um longo silêncio. Como este se prolongasse, olhámos ambos para Finbar, que estava deitado de costas, estendido sobre a rocha tépida. Não estava a dormir; os seus olhos reflectiam o cinzento-pálido do céu outonal. O seu cabelo estava espalhado sobre a rocha num emaranhado negro selvagem. Havia um buraco na manga da sua jaqueta.

 

Os cisnes vêm aí disse Finbar por fim. Sentou-se lentamente e apoiou o queixo nos joelhos dobrados. Vão chegar esta noite.

 

Por trás dele, uma brisa fez mover os ramos de carvalhos e ulmeiros, freixos e amieiros e espalhou em todas as direcções as folhas douradas, cor de bronze e castanhas. O lago estava rodeado por montes cheios de árvores, abrigado como num grande cálice.

 

Como é que sabes? perguntou Padriac. Como é que podes ter a certeza? Pode ser amanhã ou no dia seguinte. Ou podem ir para outro lugar qualquer. Tens a mania de que sabes sempre tudo.

 

Não me lembro de Finbar responder, mas mais tarde, nesse dia, quando a noite se aproximou, levou-me de novo até à margem do lago. Naquela meia luz, sobre a água, vimos os cisnes a regressarem a casa. Os últimos raios de sol apanharam um movimento branco no céu que escurecia. Em seguida já eles estavam suficientemente perto para podermos ver o seu voo em formação ordenada, descendo através do ar frio à medida que a luz desaparecia. O barulho das asas, a vibração do ar. O último deslizar sobre a água e o brilho prateado desta, abrindo-se para os receber. Ao amararem, o som parecia o meu nome, uma vez e outra: Sorcha, Sorcha. A minha mão apertou a de Finbar; ficámos ali imóveis até ser escuro e só depois o meu irmão me levou para casa.

 

Se se tem a sorte de crescer como eu, fica-se com muitas coisas boas para recordar. E algumas não tão boas. Uma Primavera, olhando para as minúsculas rãs verdes que apareciam com os primeiros calores, os meus irmãos e eu mergulhávamos na corrente, fazendo tanto barulho que assustávamos qualquer criatura. Três dos meus seis irmãos estavam comigo, Conor a assobiar uma velha canção; Cormack, o seu gémeo, arrastando-se de costas e ficando com o pescoço cheio de lodo. Ambos rolando na margem, lutando e rindo. E Finbar. Finbar estava mais acima, quieto, numa poça provocada pelas rochas. Não virava pedras à procura de rãs; silenciosamente, encantava-as.

 

Eu tinha na mão um ramo de flores silvestres, violetas, rainhas-dos-prados e daquelas a que nós chamamos campainhas. Perto da margem estava uma nova, com flores em forma de estrela, de um delicado verde-pálido e folhas como penas cinzentas. desci e estendi o braço para a apanhar.

 

Sorcha! Não lhe toques! estalou Finbar.

 

Assustada, olhei para cima. Finbar nunca me dava ordens. Se fosse Liam, que era o mais velho, ou Diarmid, que vinha a seguir, não me espantaria. Finbar apressou-se na minha direcção, abandonando as rãs. Mas porque é que eu lhe havia de prestar atenção? Ele pouco mais velho era do que eu e era apenas uma flor.

 

Sorcha, não... Enquanto os meus pequenos <dedos colhiam um daqueles caules de aparência suave.

 

A dor na minha mão foi como se estivesse a arder uma agonia que me fez contrair o rosto e gritar enquanto tropeçava ao longo da vereda, as flores caídas no chão, calcadas sob os pés. Finbar travou-me bruscamente, as mãos nos meus ombros, parando-me a fuga desordenada.

 

Morugem disse ele olhando para a minha mão, que inchava e enrubescia rapidamente. Por esta altura os meus gritos tinham atraído os dois gémeos, que se aproximaram a correr. Cormack segurou-me, visto que era forte, enquanto eu berrava e me debatia com dores. Conor rasgou um bocado da sua suja camisa. Finbar encontrara um par de aguçados galhos e começou a retirar delicadamente, um por um, os minúsculos espinhos que a planta morugem tinha embebido na minha suave carne. Lembro-me da pressão das mãos de

Cormack nos meus braços enquanto eu lutava por ar entre soluços e ainda consigo ouvir Conor a falar, a falar, numa voz calma, enquanto os longos e hábeis dedos de Finbar continuavam com a tarefa.

 

... e o nome dela era Deirdre, Dama da Floresta, mas nunca ninguém a via, excepto à noite, se se fosse ao longo dos caminhos sob os vidoeiros, quando se podia vislumbrar a sua silhueta alta vestida com uma capa azul, o longo cabelo, selvagem e escuro, flutuando sobre os ombros e a pequena coroa de estrelas...

 

Quando tudo acabou, ligaram-me a mão com uma ligadura feita da camisa de Conor, com algumas pétalas de malmequer esmagadas e pela manhã já estava melhor. Nem uma palavra foi dita aos meus irmãos mais velhos quando voltaram para casa, de como eu fora tola.

 

A partir dessa ocasião fiquei a saber o que era a morugem e comecei a ensinar a mim própria sobre outras plantas que podiam magoar ou curar. Uma criança que cresce meio selvagem na floresta aprende os segredos que nela existem apenas por bom senso. Cogumelos venenosos. Líquen, musgo e picancilho. Folhas, flores, raízes e casca de árvores. Ao longo da floresta enorme, grandes carvalhos, fortes freixos e gentis vidoeiros, escondiam uma miríade de coisas em crescimento. Aprendi a encontrá-las, quando apanhá-las, como usá-las em pomadas, unguentos ou infusões. Mas não fiquei satisfeita. Falei com as velhas das cabanas até elas se cansarem de mim, estudei os manuscritos que pude encontrar e tentei coisas por mim própria. Havia sempre mais coisas a aprender; e havia sempre trabalho a fazer.

 

Quando é que tudo começou? Quando o meu pai encontrou a minha mãe, perdeu o coração e escolheu desposá-la por amor? Ou foi quando eu nasci? Devia ter sido o sétimo filho de um sétimo filho, mas a deusa pregou uma partida e saí rapariga. Após me ter dado à luz, a minha mãe morreu.

 

Não se pode dizer que o meu pai se tenha entregado à dor. Era forte demais para isso, mas, quando a perdeu, alguma da luz que existia dentro dele apagou-se. Era só concelhos e jogos de poder, negociações por trás de portas fechadas. Era tudo o que ele via e com que se preocupava. Assim, os meus irmãos cresceram meio selvagens na floresta em volta da fortaleza de Sevenwaters. Talvez eu não fosse o sétimo filho das velhas histórias, aquele que tinha poderes mágicos e a sorte das Criaturas Encantadas mas segui os meus irmãos e eles amaram-me e criaram-me como só o poderia fazer um bando de rapazes.

 

A nossa casa tinha o nome dos sete riachos que desciam dos montes até ao grande lago cercado de árvores. Era um lugar remoto, calmo, estranho, bem guardado por homens silenciosos que deslizavam pelos bosques

 

Termo sem tradução que engloba as fadas, os gnomos, os duendes, etc.. vestidos de cinzento e que mantinham as armas bem afiadas. O meu pai não arriscava. O meu pai era Lorde Colum de Sevenwaters e a sua túath era a mais segura e mais secreta deste lado de Tara. todos o respeitavam. Muitos temiam-no. Fora da floresta ninguém estava, realmente, seguro. Salteadores contra salteadores, reis contra reis. E havia os assaltantes do outro lado do mar. Casas cristãs de ensino e contemplação eram pilhadas, os pacíficos habitantes mortos ou postos em fuga. Por vezes, em desespero, os santos irmãos pegavam, eles próprios, em armas. A antiga fé entrou para a clandestinidade. Os Nórdicos redamaram as nossas costas, estabeleceram em Dublin um porto para os seus navios, permanecendo ali no Inverno e, assim, nenhuma época do ano era segura. Até eu tinha visto a obra deles, porque havia umas ruínas em Killevy, onde assaltantes tinham matado as santas irmãs e destruído o seu santuário. Só lá fui uma vez. Havia uma sombra sobre aquele local. Andando pelo meio daquelas pedras em desordem podia-se ainda ouvir o eco dos seus gritos.

 

Mas o meu pai era diferente. A autoridade de Lorde Colum era absoluta. Dentro do anel constituído pelos montes, cobertas pela velha floresta, as suas fronteiras eram seguras, atendendo aos tempos conturbados em que vivíamos. Para aqueles que não a respeitavam, ou que não a compreendiam, a floresta era impenetrável. Um homem, ou um bando de homens, que não soubesse que direcção tomar, perder-se-ia irremediavelmente, presa das brumas repentinas, dos ramais, das pistas enganadoras e de outras coisas antigas que um viquingue, ou um bretão, não poderia aspirar a compreender. A floresta protegia-nos. As nossas terras estavam livres de saqueadores, quer fossem assaltantes do outro lado do mar ou vizinhos que quisessem aumentar alguns acres de pastagens, ou cabeças de gado, aos seus domínios. Temiam Sevenwaters e evitavam-nos.

 

Mas o meu pai tinha pouco tempo para falar dos Nórdicos ou dos Pictos, visto que tínhamos a nossa própria guerra. E essa era com os Bretões. Em particular com uma família de bretões, conhecida como os Northwoods. Esta contenda era muito antiga. Eu não me preocupava muito com ela. No fim de contas era uma rapariga e, de qualquer maneira, tinha coisas mais importantes para fazer com o meu tempo. Além disso nunca vira um bretão, ou um nórdico, ou um picto. Eram menos reais para mim do que os dragões ou gigantes de uma velha lenda.

 

O meu pai estava fora a maior parte do tempo, construindo alianças com vizinhos, inspeccionando os postos avançados e as torres de vigilância e recrutando homens. Eu preferia essas ocasiões, quando podíamos passar o tempo como quiséssemos, explorando a floresta, escalando os altos carvalhos, liderando expedições no lago, ficando ao relento toda a noite. Aprendi onde encontrar amoras, avelãs e maçãs silvestres. Aprendi a fazer uma fogueira mesmo com lenha húmida e a cozinhar abóboras-menina, ou cebolas, nas brasas. Conseguia fazer um abrigo com fetos e tripular uma jangada numa corrida.

 

Adorava permanecer ao ar livre e sentir o vento no rosto. No entanto, continuava a ensinar a mim própria a arte de curar, porque o meu coração dizia-me que seria esse o meu verdadeiro ofício. todos nós sabíamos ler, se bem que Conor fosse, de longe, o mais hábil e havia velhos manuscritos e rolos de pergaminho amontoados num andar superior da fortaleza de pedra que era a nossa casa. Eu devorava-os, na minha sede de conhecimento, achando tudo aquilo normal, já que era o único mundo que conhecia. Não sabia que outras raparigas de 12 anos aprendiam a bordar e a entrançar os cabelos umas das outras com intrincadas grinaldas, a dançar e a cantar. Não percebia que poucas sabiam ler e que os livros e pergaminhos que enchiam o nosso pacífico quarto do andar de cima eram um tesouro inestimável num tempo de destruição e pilhagem. Aninhada entre as suas árvores guardiãs, escondida do mundo por forças mais velhas do que o tempo, a nossa casa era, de facto, um lugar à parte.

 

Quando o meu pai estava presente, as coisas eram diferentes. Não que ele se interessasse muito por nós; as suas visitas eram curtas, misturadas com concelhos e encontros. Mas observava os rapazes a praticarem com as espadas e outro material de guerra, ou a atirarem com os machados enquanto galopavam ou volteavam no dorso dos cavalos. Nunca se sabia em que pensava o meu pai, porque os seus olhos nunca mudavam de expressão. Era um homem de constituição forte, de aparência austera e tudo nele indicava disciplina. Vestia com simplicidade; no entanto, havia algo nele que nos dizia, instantaneamente, que era um chefe. Usava o cabelo castanho fortemente atado atrás. Fosse onde fosse, do átrio ao pátio, dos aposentos de dormir aos estábulos, dois grandes cães-lobo seguiam-no silenciosamente. Essa era, suponho, a sua única satisfação. Mas mesmo essa tinha a sua finalidade.

 

Sempre que vinha a casa passava pelo cerimonial de nos falar a todos e certificar-se dos nossos progressos, como se fôssemos uma espécie de seara pronta para a colheita. Nós odiávamos esta parada ritual de identidade familiar, se bem que fosse mais fácil para os rapazes assim que atingiram a idade da virilidade e o meu pai começou a vê-los como coisas úteis para ele. Éramos chamados ao grande átrio depois de sermos rapidamente limpos pelo servo que tinha, no momento, a ingrata tarefa de nos vigiar. O meu pai sentava-se na sua grande cadeira de carvalho, os seus homens em volta a uma respeitável distância, os cães a seus pés, descontraídos mas vigilantes.

 

Chamava os rapazes um a um, saudando-os gentilmente quanto baste, começando por Liam e indo, gradualmente, até ao último. Perguntava-lhes, brevemente, como iam os seus progressos e actividades desde a última vez. Isto demorava um bocado; no fim de contas, eles eram seis e mais eu. Não conhecendo qualquer outra forma de educação paternal, eu aceitava tudo aquilo com naturalidade. Se os meus irmãos se lembravam de um tempo em que as coisas eram diferentes, não falavam dele.

 

Os rapazes cresceram rapidamente. Quando Liam chegou aos 12 anos, começou a passar por um intensivo treino nas artes da guerra e passando cada vez menos tempo connosco no nosso alegre e indisciplinado mundo. Não muito tempo depois, a especial habilidade de Diarmid com a lança valeu-lhe um lugar ao lado do irmão e em breve ambos cavalgavam com o bando de guerreiros do meu pai. Cormack mal podia esperar pelo dia em que teria idade suficiente para se juntar àquelas perseguições; o treino que todos os rapazes receberam de mestre-de-armas do nosso pai nunca era o suficiente para lhe satisfazer a sede de excelência. Padriac, que era o mais novo dos rapazes, tinha um talento especial para os animais e um dom para consertar coisas. Também ele aprendeu a montar a cavalo e a manejar uma espada, mas era mais frequente vê-lo a ajudar uma cria a nascer ou a cuidar de um touro premiado ferido por um rival.

 

Os restantes de nós éramos diferentes. Conor era gémeo de Cormack, mas não podia ter um temperamento mais diferente. Conor sempre gostara de aprender e quando era muito novo iniciou uma combinação com um eremita cristão que vivia numa caverna da encosta sobre a margem sul do lago. O meu irmão levava peixe fresco e ervas do jardim ao padre Bríen, juntamente com um pão ou dois surripiados das cozinhas e, em troca, este ensinava-o a ler. Lembro-me claramente desses tempos. Lá estava Conor, sentado num banco ao lado do eremita, em profundo debate sobre um determinado ponto da língua ou da filosofia e a um canto lá estavam Finbar e eu, de pernas cruzadas no chão de terra batida, quietos como ratos do campo. Os três absorvíamos conhecimento como pequenas esponjas, acreditando, no nosso isolamento, que aquilo era absolutamente natural. Aprendemos, por exemplo, a língua dos Bretões, uma áspera e apertada maneira de falar, sem qualquer música. À medida que aprendíamos a língua dos nossos inimigos, era-nos contada a sua história.

 

Tinham sido, em tempos, um povo parecido com o nosso, temível, orgulhoso, rico em canções e histórias, mas a sua terra era aberta e vulnerável e havia sido invadida vezes sem conta, até que o seu sangue se misturou com o de Romanos e Saxòes e quando por fim veio uma certa paz, a velha raça daquela terra desaparecera e no seu lugar, no outro lado do mar, ficou um novo povo. O santo padre contou-nos isso tudo.

 

Toda a gente sabia de uma história sobre os Bretões. Reconhecíveis pelos cabelos claros, estatura alta e ausência de qualquer decência, fosse ela qual fosse, haviam começado a guerra tomando algo tão intocável, tão profundamente sagrado para o nosso povo, que o seu roubo fora como se nos tivessem arrancado o coração. Era essa a causa da nossa guerra. Little Island, Greater Island e Needle. Lugares de grande mistério.

Lugares de imenso segredo; o coração da velha fé. Nenhum bretão devia ter posto o pé nas Ilhas. Nada estaria bem enquanto não os expulsássemos. Toda a gente dizia isso.

 

Era claro que Conor não estava destinado a ser um guerreiro. O meu pai, rico em filhos, aceitava-o de má vontade. Talvez pensasse que um erudito na família pudesse ter alguma utilidade. Havia sempre registos e contas a fazer, mapas para serem dosenhados e o escriba estava a ficar velho. Conor. portanto, encontrou o seu lugar na família e instalou-se satisfeito. Os seus dias eram cheios, mas tinha sempre tempo para Finbar e para mim e os três tornámo-nos bastante chegados, ligados pela nossa sede de conhecimento e por uma profunda, calada, compreensão.

 

Quanto a Padriac, podia virar-se para onde quisesse, mas o seu grande amor era examinar coisas e descobrir como funcionavam; fazia perguntas até pôr as pessoas malucas. Padriac era o único que conseguia quebrar a guarda do pai; por vezes, podia ver-se o fantasma de um sorriso nas feições severas de Colum quando olhava para o filho mais novo. Para mim, não sorria. Ou para Finbar. Finbar dizia que era porque nós lhe lembrávamos a nossa mãe, que morrera. Fôramos nós que herdáramos os seus cabelos encaracolados, selvagens. Eu tinha os olhos verdes dela e Finbar o dom da quietude. Além disso, apenas pelo facto de ter nascido, eu tinha-a matado. Não admira que o pai tivesse dificuldade em olhar para mim. Mas quando falava com Finbar. os olhos dele eram como o Inverno, Houve uma ocasião em particular. Foi pouco antes de ela chegar e as nossas vidas mudaram para sempre. Finbar tinha 15 anos; ainda não era um homem, mas já não era uma criança.

 

O pai tinha mandado chamar-nos e reunimo-nos todos na grande sala. Finbar ficou ao lado da cadeira de Lorde Colum, as costas direitas como uma lança, à espera da inquisição ritual. Liam e Diarmid eram agora homens e, por isso, poupados à tortura. Mas estavam presentes, sabendo que isso nos acalmava.

 

Finbar. Falei com os teus instrutores.

 

Silêncio. Os grandes olhos cinzentos de Finbar pareciam olhar a direito, através do pai.

 

Disseram-me que as tuas habilidades se têm dosenvolvido bem. Isso agrada-me.

 

Apesar destas palavras de felicitações, o olhar do pai era frio, o tom distante. Liam olhou de relance para Diarmid e este respondeu-lhe com uma careta, como se dissesse agora é que é.

 

A tua atitude, no entanto, deixa muito a desejar. Disseram-me que conseguiste estes resultados sem uma grande aplicação de esforço ou interesse e, em particular, que te ausentas com frequência do teu treino, sem razão.

 

Outra pausa. Naquele momento, teria sido boa ideia dizer alguma coisa, só para evitar problemas; «sim, pai» teria sido suficiente. A suprema quietude de Finbar era, só por si, um insulto.

 

Qual é a tua explicação, rapaz? E não quero nenhum dos teus olhares insolentes, quero uma resposta.

 

O pai inclinou-se para a frente, o seu rosto perto do de Finbar e a expressão no seu rosto fez-me tremer e aproximar de Conor. Era um olhar que aterrorizaria um homem adulto.

 

Estás em idade de te juntares aos teus irmãos ao meu lado, pelo menos enquanto eu estiver aqui; e dentro de pouco tempo, no campo de batalha. Mas não há-lugar para insolências mudas numa campanha. Um homem tem que aprender a obedecer sem perguntas. Bem, fala! Que respondes a esse comportamento?

 

Mas Finbar não ia responder. Se não tenho nada para te dizer, não falo. Eu sabia que as palavras lhe estavam na mente. Agarrei na mão de Conor. Já tínhamos visto a ira do pai antes. Seria loucura atraí-la.

 

Pai. Liam deu um passo em frente diplomaticamente. Talvez...

 

Chega! ordenou o pai. O teu irmão não te pediu que falasses por ele. Ele tem língua e mente próprias, deixa-o usá-las.

 

Finbar parecia perfeitamente calmo. Aparentemente, parecia bastante calmo. Só eu, que partilhava cada exalação dele, que conhecia cada momento de dor ou alegria como se fosse meu, que sentia a tensão que lhe ia na alma, é que compreendia a coragem que lhe era necessária para falar.

 

Eu dou-te uma resposta disse ele. O seu tom era calmo. Aprender a dominar um cavalo e a usar a espada, ou o arco, é uma coisa digna. Eu usaria essas habilidades para me defender, ou à minha irmã, ou para ajudar os meus irmãos em caso de perigo. Mas deves poupar-me às tuas campanhas. Não tomarei parte nelas.

 

O meu pai estava incrédulo demasiado espantado para estar zangado, mas os seus olhos ficaram frios como o gelo. Fosse o que fosse que estava à espera, não esperava uma confrontação daquelas. Liam abriu a boca para falar de novo, mas o pai silenciou-o com um olhar selvagem.

 

Conta-nos mais convidou ele polidamente, como um predador encorajando a sua presa para uma doce armadilha. Estás mimmamente consciente das ameaças às nossas terras, à nossa vida aqui? Todas essas coisas te foram ensinadas; viste os meus homens voltarem cheios de sangue das batalhas, viste a devastação que os Bretões fazem em vidas e terra. Os teus próprios irmãos pensam que é uma honra lutar ao lado do pai para que os restantes possam viver em paz e prosperidade. Arriscam as vidas para reconquistar as nossas preciosas Ilhas, roubadas ao nosso povo por esta ralé, há muitos anos. Tens tão pouca fé no juízo deles? Onde é que aprendeste esse disparate doentio? Campanhas?

 

Limito-me a ver disse Finbar simplesmente. Enquanto tu persegues, estação após estação, esse inimigo por terra e por mar, os teus aldeões adoecem, morrem e não têm senhor para quem se virarem a pedir ajuda. Os que têm falta de escrúpulos exploram os fracos. As searas são maltratadas, as manadas e os rebanhos negligenciados. A floresta guarda-nos. Ainda bem, porque, se não, terias perdido a tua casa e o teu povo para os Finnghaill, há muito.

 

O pai deu um longo suspiro. Os seus homens deram um passo atrás.

 

Por favor, continua disse ele numa voz que parecia a da morte.

 

És perito no que respeita aos Nórdicos, estou a ver.

 

Talvez disse Liam.

 

Silêncio! desta vez foi um rugido, parando Liam quase antes de a palavra lhe sair da boca. Este assunto é entre o teu irmão e eu. Atira tudo cá para fora, rapaz! Que outros aspectos da minha admimstração encontras em falta, na tua grande sabedoria? Não te poupes, já que és tão sincero!

 

Não chega?

 

Detectei, por fim, um toque de insegurança na voz de Finbar. No fim de contas, não passava de um rapaz.

 

Tu persegues um inimigo distante antes de pores a tua casa em ordem. Falas dos Bretões como se fossem monstros. Não são homens como nós?

 

Dificilmente poderás dignificar tal gente com o título de homens

 

disse o nosso pai, espicaçado pela resposta directa, por fim. Vêm com pensamentos diabólicos e maneiras bárbaras para nos tirar o que é, por direito, nosso. Gostarias de ver a tua irmã sujeita à selvajaria deles? A tua casa invadida pela imundície deles? Os teus argumentos mostram a tua ignorância dos factos e uma grande lacuna na tua educação. Que rica filosofia a tua, quando se enfrenta de espada na mão um inimigo pronto a atacar. Acorda, rapaz. Lá fora, o mundo é real e os Bretões estão lá com as mãos cheias do sangue da nossa família. É meu dever, e também teu, procurar vingança e redamar aquilo que nos pertence.

 

O olhar fixo de Finbar nunca deixara o rosto do pai.

 

Não ignoro isso disse ele, ainda calmo. Tanto os Pictos, como os Viquingues, têm perturbado as nossas costas. Deixaram a sua marca nos nossos espíritos, mas não nos destruíram. Reconheço isso. Mas os Bretões também sofreram a perda de terras e vidas com esses ataques. Não sabemos bem quais são os seus propósitos ao atacarem as nossas Ilhas, em manterem esta guerra. Talvez fizéssemos melhor se nos uníssemos com eles contra os nossos inimigos comuns. Mas não: a tua estratégia, tal como a deles, é matar e estropiar sem procurar qualquer resposta.

Com o tempo, perderás os teus filhos, assim como perdeste os teus irmãos, numa perseguição cega a um objectivo mal definido. Para vencer esta guerra, deves falar com o teu adversário. Aprender a compreendê-lo. Se lhe fechas a porta, ele será sempre mais astucioso do que tu. Restará a morte, o sofrimento e muita tristeza no futuro, se seguires esse caminho. Muitos irão contigo, mas tu não estarás no meio deles.

 

As palavras dele eram estranhas; o tom arrepiou-me. Sabia que dizia a verdade.

 

Recuso-me a ouvir mais! trovejou o pai, pondo-se de pé. Falas como um louco de assuntos que não podes compreender. Estremeço só de pensar que um filho meu possa estar tão mal informado e ser tão presunçoso. Liam!

 

Sim, pai?

 

Quero este teu irmão armado para cavalgar connosco na próxima vez que viajarmos para norte. Trata disso. Ele manifesta desejo de compreender o inimigo. Talvez o faça quando testemunhar o primeiro derramamento de sangue.

 

Sim, pai. A expressão e o tom de Liam eram neutrais. O seu olhar para Finbar, no entanto, era complacente. Assegurou-se, simplesmente, de que o pai não estava a olhar.

 

V, agora, onde está a minha filha?

 

Avançando com relutância, passei por Finbar e rocei a minha mão na dele. Os seus olhos chispavam ódio, num rosto sem qualquer cor. Fiquei diante do pai, dividida entre sentimentos que mal compreendia. Não era suposto um pai amar os seus filhos? Não percebia ele a coragem que fora necessária a Finbar para falar daquela maneira? Fimbar via as coisas de maneira diferente de nós. O pai devia saber, já que as pessoas diziam que a nossa mãe possuía o mesmo dom. Se ele se tivesse dado ao cuidado, teria sabido. Finbar conseguia ver mais além e dar conselhos que depois eram ignorades perigosamente. Era uma habilidade rara, perigosa e opressiva. Alguns chamavam-lhe Visão.

 

Aproxima-te, Sorcha.

 

Eu estava zangada com o pai. No entanto, queria que ele me aceitasse. Queria os seus elogios. Apesar de tudo, não podia evitar o profundo desejo que sentia. Os meus irmãos amavam-me. Porque não me amava o pai? Era no que pensava quando olhei para cima. Para ele, eu devia ser uma figurinha bem patética, magricela e desleixada, os caracóis a caírem-me sobre os olhos num total desalinho.

 

Onde estão os teus sapatos, criança? perguntou o pai, cansado. Estava a ficar inquieto.

 

Não preciso de sapatos, pai disse eu sem pensar. Os meus pés são fortes, veja! E levantei um pé pequeno, sujo, para que ele visse.

Não preciso que uma criatura morra para que eu ande calçada. Este argumento tinha sido usado com os meus irmãos, até que eles se cansaram e me deixaram andar descalça, já que era o que eu queria.

 

Qual é o servo que está encarregado desta criança? disparou o pai, irritado. Ela já não tem idade para andar para aí como a... a filha de um remendão. Que idade tens, Sorcha? Nove, dez anos?

 

Como era possível ele não saber? Não coincidira o meu nascimento com a perda daquela que ele mais amava neste mundo? Porque a minha mãe morrera num dia de pleno Inverno, quando eu ainda não tinha um dia de vida, e o povo dissera que fora uma sorte que Fat Janis, a nossa cozinheira, tivesse um bebé e leite suficiente para ambos, ou eu também teria morrido. Talvez fosse a razão de sucesso do pai, fechar a memória àquela vida anterior, deixar de contar as noites sozinho, os dias vazios, desde que ela morrera.

 

Faço 13 no solstício de Inverno, pai disse eu, esticando-me toda. Talvez, se ele me achasse suficientemente crescida, começasse a falar comigo como deve ser, da mesma maneira como falava com Liam e Diarmid. Ou olhasse para mim com aquele meio sorriso que por vezes lançava a Padriac, que era o mais próximo de mim em idade. Por um instante, os escuros, profundos olhos dele encontraram os meus e eu olhei para ele com um olhar verde arregalado que, mal eu sabia, era a imagem do da minha mãe.

 

Já chega disse ele abruptamente e o tom era de despedida. Tirem estas crianças daqui, temos trabalho para fazer.

 

Virando-nos as costas, ficou rapidamente absorvido por um grande mapa que desdobravam sobre a mesa de carvalho. Apenas Liam e Diarmid podiam ficar; já eram homens e privavam com as estratégias do meu pai. Para nós, acabara. Afastei-me da luz.

 

Porque me lembro tão bem disto? Talvez o desgosto do pai, ao ver no que nos estávamos a transformar, o tivesse feito fazer a escolha que fez e assim provocar uma série de acontecimentos mais terríveis de que algum de nós podia imaginar. Na verdade, ele usou o nosso bem-estar como uma desculpa para a trazer para Sevenwaters. Se isso não tinha qualquer lógica, não interessava ele deve ter sabido, bem lá no fundo, que Finbar e eu éramos feitos de matéria sólida, totalmente formados mental e espiritualmente, se não praticamente adultos e que, esperar que nos dobrássemos a outra vontade seria como tentar alterar o curso das marés, ou esperar que a floresta deixasse de crescer. Mas ele era influenciado por forças que não compreendia. A minha mãe tê-las-ia reconhecido. Mais tarde, pensava, com frequência, na minha mãe e como ela sabia tanto sobre o nosso futuro. A Visão nem sempre mostra o que uma pessoa quer ver, mas eu penso que ela deve ter sabido, ao despedir-se de nós, quão estranho e torto seria o caminho percorrido pelos pés dos seus filhos.

Assim que o pai nos despediu da sala, Finbar desapareceu, como uma sombra, pelas escadas de pedra acima, a caminho da torre. Quando me voltei para o seguir, Liam piscou-me o olho. Podia ser um guerreiro inexperiente, mas era meu irmão. E recebi um sorriso de Diarmid, mas ele limpou-o do rosto, assim como qualquer expressão, excepto respeito, quando se voltou na direcção do pai.

 

Padriac já devia ter saído; tinha uma coruja ferida nos estábulos e estava a tratar dela. Era espantoso, dizia ele, como aquela tarefa lhe tinha ensinado os princípios do voo. Conor trabalhava com o escriba do meu pai, ajudando-o nalguns cálculos; não o veríamos muito durante algum tempo. Cormack estaria fora, praticando com a espada, ou aprendendo com os oficiais. Eu estava sozinha quando subi os degraus de pedra, nos meus pés descalços, na direcção do quarto da torre. Dali podia-se subir até mais acima, até uma área do telhado de ardósia, com um parapeito baixo em volta, provavelmente insuficiente para amparar uma boa queda, mas que nunca nos impediu de subir por ali. Era um local de histórias, de segredos; para estarmos sós, juntos, em silêncio.

 

Ele estava, como eu esperava, sentado no mais precário declive do telhado, joelhos encolhidos, os braços em volta deles, a expressão ilegível, enquanto olhava sobre as pastagens cercadas, celeiros, vacarias e cabanas, para o cinzento-fumado, verde-aveludado e azul-enevoado da floresta. Não muito longe, as águas do lago cintilavam como prata. A brisa era fria, subindo-me pelas saias acima enquanto eu subia pela ardósia e me sentava ao pé dele. Finbar estava completamente imóvel. Não precisava de olhar para ele para lhe adivinhar a disposição, porque eu estava tão sintonizada com a mente deste irmão como o arco com a corda.

 

Ficámos ali, quietos, durante longo tempo, enquanto o vento brincava com os nossos cabelos e um bando de gaivotas nos passava por cima, chamando-se umas às outras. Vozes vinham até nós de quando em quando, assim como metal a bater contra metal: homens do pai em combate no pátio e Cormack estava entre eles. O pai devia estar satisfeito com ele.

 

Lentamente, Finbar voltou de longe. Os seus dedos longos moveram-se para afastar um fio de cabelo.

 

Que sabes tu, Sorcha, sobre as terras para lá do mar? perguntou ele calmamente.

 

Não muito disse eu, baralhada. Liam diz que os mapas não mostram tudo; há lugares que até ele conhece mal. O pai diz que os Bretões são temíveis.

 

Ele teme o que não pode compreender disse Finbar. E o padre Brien e os que são como ele? Vieram de leste, pelo mar, mostrando grande coragem ao fazê-lo. Em devido tempo foram aceites aqui e deram-nos muito. O pai não procura conhecer o adversário ou tentar saber o que ele quer. Apenas vê a ameaça, o insulto e passa a vida inteira a persegui-los, matando e estropiando sem fazer perguntas. E para quê? Pensei naquilo por um bocado.

 

Mas tu também não os conheces arrisquei eu com uma certa lógica. E não é só o pai a pensar que eles são perigosos. Liam disse que se as campanhas não tivessem sido levadas até ao norte, e até às costas do mar oriental, seríamos invadidos um dia e perderíamos tudo o que temos hoje. Talvez não apenas as Ilhas, mas também Sevenwaters. Então, os velhos costumes desapareceriam para sempre. É o que ele diz.

 

De certo modo, é verdade disse Finbar, surpreendendo-me. Mas há sempre dois lados em todas as questões. Começa sempre com uma pequena coisa, uma observação fortuita, um gesto ligeiro. E cresce a partir daí. Ambos os lados podem ser injustos. Ambos podem ser cruéis.

 

Como é que sabes?

 

Finbar não respondeu. A mente dele estava-me vedada; não havia aquela comunhão de pensamentos, a silenciosa troca de imagens que passava de um para o outro frequentemente, mais fácil do que a fala. Pensei durante um bocado, mas não encontrei nada que dizer. Finbar mastigou a ponta dos cabelos longos que usava atados na nuca. Os caracóis escuros, tal como os meus, tinham vontade própria.

 

Penso que a nossa mãe nos deixou algo disse ele por fim. Deixou uma pequena parte dela própria a cada um de nós. Com Liam e Diarmid acontece o mesmo. Isso impede-os de crescerem e ficarem como ele.

 

Eu sabia o que ele queria dizer sem perceber por completo as suas palavras.

 

Liam é um chefe continuou Finbar como o pai, mas não exactamente. Liam é equilibrado. Sabe como avaliar um problema. Os homens seriam capazes de morrer por ele. Talvez um dia o venham a fazer. Diarmid é diferente. As pessoas seriam capazes de o seguir até ao fim do mundo só pelo gozo.

 

Pensei naquilo; imaginei Liam a defender-me contra o pai e Diarmid a ensinar-me como apanhar rãs e a deixá-las fugir.

 

Cormack é um guerreiro arrisquei. Mas generoso. E bom. No fim de contas, havia o caso do cão. Um dos cães-lobo cruzara-se

 

com um rafeiro e parira cachorros também cruzados; o pai quis afogá-los a todos, mas Cormack conseguiu salvar uma cadela, uma coisinha magricela e malhada, à qual deu o nome de Linn. A sua bondade foi recompensada pela profunda e inquestionável devoção de que só um cão é capaz.

 

E depois temos o Padriac.

 

Finbar deitou-se de costas nas ardósias do telhado e fechou os olhos.

 

Padriac vai longe disse ele. Há-de ir mais longe do que qualquer um de nós.

Conor é diferente observei eu, mas não fui capaz de pôr essa diferença em palavras. Havia algo de esquivo naquela diferença.

 

Conor é um sábio disse Finbar. Nós todos gostamos de histórias, mas ele adora-as. A mãe tinha algumas maravilhosas, adivinhas e conceitos estranhos de que se ria, de maneira que nunca sabíamos se falava a sério ou a brincar. Conor recebeu dela esse amor por fantasias. Conor é... é ele.

 

Como é que te lembras de tudo isso? perguntei eu, sem saber bem se ele não estaria a inventar aquilo tudo para meu benefício. Só tinhas três anos quando ela morreu. Um bebé.

 

Lembro-me disse Finbar e virou a cabeça para o outro lado. Eu queria que ele continuasse porque estava fascinada por falarmos da minha mãe, que nunca tinha conhecido. Mas ele caíra de novo no silêncio. Estava a ficar tarde; as sombras das grandes árvores alongavam-se sobre a relva, lá em baixo.

 

O silêncio prolongou-se, de modo que pensei que ele tinha adormecido. Mexi os dedos dos pés; estava a ficar frio. Talvez eu precisasse de sapatos.

 

E a ti, Finbar? Mas não precisava de perguntar. Ele era diferente de todos nós. O que é que ela te deu?

 

Ele virou-se para mim e sorriu, a curva da sua boca transformando-lhe o rosto por completo.

 

Fé em mim próprio disse ele simplesmente Para fazer o que está certo, sem hesitar, custe o que custar.

 

Hoje custou muito disse eu, pensando nos olhos frios do pai e no efeito que haviam tido em Finbar.

 

E com o tempo custará muito mais. Não saberia dizer se aquele pensamento veio da minha cabeça ou da do meu irmão. Provocou-me um arrepio na espinha.

 

Depois, ele disse em voz alta:

 

Quero que não te esqueças, Sorcha. Lembra-te que estarei sempre ao pé de ti, aconteça o que acontecer. É importante. Agora, vamos, está na hora de irmos para baixo.

 

Quando recordo os anos do nosso crescimento, a coisa mais importante é a árvore, íamos lá com frequência, os sete, em direcção a sul através da floresta, sobre a margem do lago. Quando eu era bebé, Liam, ou Diarmid, carregavam-me aos ombros; assim que comecei a andar, dois dos meus irmãos seguravam-me pelas mãos e arrastavam-me, por vezes balançando-me entre eles com um, dois, três, enquanto os outros corriam à frente na direcção do lago. Quando nos aproximávamos, calávamo-nos. A margem onde o vidoeiro crescia era um local profundamente mágico e as nossas vozes abafavam-se enquanto nos juntávamos na relva em volta dele.
Todos nós aceitávamos que este mundo é uma porta para o outro, para o reino dos espíritos, dos sonhos e das Criaturas Encantadas, sem qualquer dúvida. O lugar onde crescíamos estava tão cheio dessa magia que ela fazia parte do nosso dia-a-dia para não dizer que encontrávamos um cada vez que íamos apanhar bagas, ou tirar água do poço e que todos nós conhecíamos alguém que sabia de um amigo de um amigo que se perdera na floresta e desaparecera para sempre; ou se aventurara dentro de um anel de cogumelos, tendo desaparecido por um certo tempo, voltando depois subtilmente mudado. Podiam acontecer coisas estranhas nesses lugares. Podia-se desaparecer durante 50 anos e voltar ainda como rapariga; ou apenas por um instante, pelas contas mortais, e voltar velha e encarquilhada. Estas histórias fascinavam-nos, mas não faziam com que tivéssemos cuidado. Se nos fosse acontecer, acontecia, quer quiséssemos, quer não.

 

O vidoeiro, no entanto, era diferente. Era ele que tinha o espírito dela, da nossa mãe, tendo sido plantado pelos rapazes no dia da morte dela, a seu pedido. Assim que lhes disse o que deviam fazer, Liam e Diarmid, de seis e cinco anos, pegaram nas pás, dirigiram-se ao local descrito por ela, escavaram a turfa macia e plantaram a semente ali, na plana margem relvada, sobre o lago. Com as pequenas e sujas mãos, os mais novos ajudaram a nivelar o solo e a carregarem água. Mais tarde, quando lhes era permitido levarem-me com eles, íamos todos juntos, Foi a primeira vez para mim e depois dessa, duas vezes por ano, no solstício do Verão e no solstício do Inverno, reuníamo-nos ali.

 

Os herbívoros podiam tê-la comido, ou ter sido arrancada pelos ventos frios de Outono, mas era uma árvore encantada; e no espaço de alguns anos começou a crescer, graciosa na sua austera nudez invernal e na sua prateada e sussurrante beleza estival. Consigo ver agora o local, daramente no meu espírito, nós os sete, sentados de pernas cruzadas sobre a turfa, em volta do vidoeiro, sem nos tocarmos, mas ligados, como se as nossas mãos estivessem enclavinhadas umas nas outras. Éramos mais velhos, então, mas ainda crianças. Eu teria cinco, talvez, Finbar oito. Liam esperara até sermos suficientemente crescidos para compreendermos, antes de nos contar a história.

 

... havia algo de assustador no quarto. O cheiro era diferente, estranho. A nossa nova irmã tinha sido levada, havia sangue e pessoas com rostos receosos que iam e vinham. O rosto da mãe estava muito pálido, enquanto ela permanecia deitada com o cabelo preto espalhado pela almofada. Mas deu-nos a semente e disse-nos, a Diarmid e a mim «Quero que peguem nesta semente e a plantem ao pé do lago. No momento da minha morte ela começará a crescer com uma nova vida. E então, meus filhos, estarei sempre ali convosco e quando estiverdes naquele lugar, sabereis que fazeis parte da grande magia que nos liga a todos. A nossa força vem dessa magia, da terra e do céu, do fogo e da água. Voai alto, nadai profundamente, dai à terra o que ela vos dá...»

 

Ela estava cada vez mais cansada, perdia sangue, mas teve um sorriso para nós os dois e nós tentámos sorrir também através das lágrimas, mal compreendendo o que ela nos dissera, mas sabendo que era importante.

 

Diarmid disse ela olha pelos teus irmãos. Partilha o teu riso com eles. A voz dela ficou cada vez mais fraca. Liam, meu filho. Receio que vá ser muito duro para ti durante um certo tempo. Serás o chefe deles e o seu guia e és tão novo para carregar tal fardo.

 

Eu consigo fazê-lo disse eu, retendo as lágrimas. As pessoas moviam-se pelo quarto, um físico murmurando para si próprio e abanando a cabeça, mulheres levando as roupas ensanguentadas e trazendo outras novas e depois alguém tentou fazer-nos sair. Mas a mãe disse não, ainda não, e fê-los sair a todos, por um bocado. Então juntou-nos em volta da cama para nos dizer adeus. O pai estava lá fora. Já nessa altura ele guardava a dor para si próprio.

 

Então, ela falou suavemente a cada um de nós, a voz cada vez mais calma. Os gémeos estavam cada um de cada lado dela, deitados, cada um a imagem do outro, os olhos cinzentos como o céu de Inverno, os cabelos castanhos e brilhantes como uma castanha madura.

 

Conor, meu coração disse ela. Lembras-te dos versos acerca do veado e da águia? Conor acenou que sim, as pequenas feições muito sérias. Diz-mos, então murmurou ela.

 

Os meus pés pisarão suavemente, como um veado na floresta disse Conor, as sobrancelhas franzidas devido à concentração. A minha mente será tão clara como a água do poço sagrado. O meu coração será forte como um grande carvalho. O meu espírito abrir-se-á como as asas de uma águia e voará para longe. Este é o caminho da verdade.

 

- Muito bem disse ela. Não te esqueças e ensina-os à tua irmã quando ela for mais velha. Achas que consegues fazê-lo?

 

Outro solene aceno com a cabeça.

 

Não é justo! explodiu Cormack, lágrimas de cólera inundando-lhe o rosto. Colocou os braços em volta do pescoço dela e apertou-a com força. Não podes morrer! Não quero que morras!

 

Ela afagou-lhe o cabelo e acalmou-o com palavras gentis. Conor moveu-se para pegar na mão do irmão gémeo e Cormack sossegou. Em seguida, Diarmid pegou em Padriac, de maneira que o braço da mãe pudesse rodeá-los a ambos por um momento. Finbar, de pé ao lado da almofada dela, estava tão quieto que quase poderia ter passado despercebido, observando em silêncio enquanto ela deixava ir os filhos, um a um. Virou-se para ele, o último dos rapazes e não disse nada, mas fez-lhe sinal para que lhe tirasse a pedra esculpida que trazia ao pescoço e a pusesse no seu. Ele pouco mais era do que um bebé o cordão desceu-lhe até à cintura. Fechou a mão em torno do amuleto. Com ele, ela não necessitava de palavras.

 

A minha filha murmurou ela por fim. Onde está a minha Sorcha? Eu saí para perguntar, Fat Janis entrou e depositou a recém-nascida nos braços da mãe, agora já tão fraca que mal conseguia segurar na pequena trouxa de lã. Finbar aproximou-se, as pequenas mãos ajudando a mãe a segurar na frágil carga. A minha filha será forte disse a mãe. A magia, nela, é poderosa, assim como em todos vós. Sede verdadeiros para vós próprios e para cada um de vós, meus filhos. Deixou-se cair para trás, por fim, os olhos fechados e nós saímos silenciosamente, não testemunhando o momento da morte. Pusemos a semente no solo, a árvore tomou forma e começou a crescer. Ela foi-se, mas a árvore vive e através dela a mãe dá-nos a sua força, que é a força de todas as coisas vivas.

 

O meu pai tinha tantos aliados como inimigos. A parte norte do país era uma manta de retalhos de túaths como a dele, algumas maiores, a maior parte bastante mais pequena, cada uma pertença do seu lorde, numas tréguas precárias com alguns vizinhos. Muito a Sul, em Tara, morava o Rei supremo e a sua consorte, mas no isolamento de Sevenwaters não éramos tocados pela sua autoridade, nem ele, parecia preocupado, pelas nossas rixas locais. As alianças eram feitas à mesa do concelho, reforçadas por casamentos, frequentemente quebradas devido a disputas sobre gado ou fronteiras. Havia muitas pilhagens e guerras, mas não contra os nossos vizinhos, que respeitavam muito o meu pai. Havia, sim, um vago acordo entre eles que os unia contra os Bretões, Pictos e Nórdicos, visto que todos eles nos ameaçavam as costas com as suas línguas estranhas e modos bárbaros. Mas especialmente contra os Bretões, que haviam feito o impensável e escaparam sem castigo.

 

Apercebia-me de que, por vezes, havia prisioneiros, mas estes eram hermeticamente fechados e guardados severamente e nenhum dos meus irmãos falava deles. Nem sequer Finbar. O que era estranho, porque, geralmente, ele mantinha a mente aberta para mim e os meus pensamentos nunca se fechavam para ele. conhecia os seus medos e alegrias; sentia, com ele, os espaços iluminados pelo sol e as profundezas escuras e místicas da nossa floresta, o bater do coração da deusa nas veredas raiadas de luz e na frescura da Primavera. Mas havia uma parte que ele me escondia. Talvez, já então, ele me quisesse proteger. Assim, os prisioneiros eram um mistério para mim. A nossa casa era um local de altas figuras vestidas de armaduras, bruscas trocas, chegadas e partidas precipitadas. Mesmo quando o meu pai estava ausente, o que acontecia durante a maior parte do ano, deixava uma forte guarnição com um mestre-de-armas, Donal, que controlava tudo com mão-de-ferro.

 

Essa era uma parte da casa; a outra, a mais doméstica, era secundária. Os servos que tínhamos faziam as suas tarefas com suficiente eficiência e o povo da aldeia fazia a sua parte, porque havia sempre paredes de pedra para reparar e telhados para arranjar, havia o moinho e a vacaria. As manadas tinham que ser levadas para as terras altas no Verão, para tirar vantagem das pastagens, os pastores de porcos tinham que levar as suas intratáveis varas para os bosques e as mulheres tinham que fiar e tecer. O nosso camareiro adoeceu com uma sezão e morreu; e depois disso Conor tomou conta da bolsa, e das contas, enquanto o pai estava fora. Subtilmente, começou a assumir a autoridade da casa; mesmo aos 16 anos, tinha uma sobriedade perspicaz que desmentia a idade e que parecia inspirar confiança, mesmo entre os rudes soldados. Tornou-se claro, para todos, que Conor não era um mero escriba. Na ausência do pai, começaram a ocorrer mudanças sem qualquer obstrução; provisões antecipadas de turfa seca para os aldeões, prevendo o Inverno, um quarto tranquilo só para mim, com uma mulher para me ajudar e levar poções aos doentes. Quando os duendes apanharam o marido de Maclge Smallfoot e ele se afogou numa longa queda das rochas para o lago (é por isso que a queda se chama Smallfoot), foi Conor que arranjou maneira de Madge vir trabalhar para nós, amassando farinha e depenando galinhas na cozinha. Eram coisas pequenas, mas já era um começo.

 

Finbar não foi na campanha de Outono desse ano. Apesar das ordens do pai, foram Liam, Diarmid e, para sua alegria, o jovem Cormack, que partiram abruptamente numa brilhante e fresca manhã. A chamada às armas foi inesperada e madrugadora. Extraordinariamente, tínhamos hóspedes: o nosso mais próximo vizinho, Seamus Redbeard de Glencarnagh e vários membros da sua casa. Seamus era um dos de confiança, o melhor aliado do meu pai. Mas mesmo ele não entrou na floresta sem uma escolta de homens do meu pai, que se encontrou com ele na fronteira e o acompanhou até à segurança de Sevenwaters.

 

Seamus trouxera a sua filha, que tinha 15 anos e que tinha uma juba da mesma cor surpreendente da do pai. As suas madeixas de cabelo podiam ser ardentes, mas Eilis era uma rapariga sossegada, rechonchuda e de bochechas coradas; de facto, achei-a bastante maçadora, comparada com os meus irmãos. Os nossos hóspedes já estavam connosco há dez dias, mais ou menos, e como Eilis nunca queria subir às árvores, ou nadar no lago, ou até ajudar-me a fazer cerveja, ou compotas, depressa me cansei da companhia dela e deixei-a sozinha. Estava espantada como os rapazes se interessavam tanto por ela, visto que a sua conversação, quando dizia alguma coisa, não tinha qualquer interesse, era superficial. E isso deveria tirar-lhes o interesse. No entanto, Liam, Diarmid e Cormack podiam ser vistos a escoltá-la pacientemente em volta do castelo e no jardim, curvando-se, com aparente fascinação, tentando apanhar qualquer palavra que ela dissesse, pegando-lhe na mão para a ajudar a descer degraus que eu teria transposto com dois saltos.

 

Era estranho e mais estranho ficou se bem que o mais estranho fosse o tempo que demorei a entender o que estava a acontecer. Após os primeiros dias, Eilis submeteu-se a Liam e não o largou mais. Ele, que a mim me parecia sempre o mais ocupado, tinha sempre tempo para ela. Detectei algo de novo no rosto dele, agora já com os traços rudes de um homem adulto. Era um aviso para que os seus irmãos se afastassem; e eles obedeceram. Eilis ia passear para os bosques com Liam, quando não ia comigo. Com um ar muito inocente, quando à mesa, pressentia quando os olhos escuros de Liam se fixavam nela de outro lado do salão barulhento; levantava os olhos timidamente, olhava para ele por um instante e corava atraentemente, antes de as longas pestanas cobrirem de novo os olhos azuis. Mas eu continuei ignorante até à noite em que o meu pai deu um murro na mesa, pedindo silêncio.

 

Meus amigos! Meus bons vizinhos!

 

O silêncio estabeleceu-se entre os hóspedes reunidos; taças a caminho da boca fizeram uma pausa e eu pressenti uma certa expectativa, como se toda a gente soubesse o que o pai ia dizer, excepto eu.

 

É bom, nestes tempos conturbados, divertirmo-nos, beber, rir e partilhar os feitos das nossas pastagens. Em breve, na lua cheia, vamos aventurar-nos de novo, desta vez para, talvez, fazermos com que as nossas costas fiquem salvas de uma vez por todas.

 

Uns tantos assobios e gritos de adamação aqui e ali, mas toda a gente esperava algo mais.

 

Entretanto, sois bem-vindos ao meu salão. Há muito tempo que não dávamos aqui uma festa.

 

Ficou carrancudo por um momento. Seamus Redbeard inclinou-se para a frente, o rosto corado.

 

És um óptimo anfitrião, Colum e que ninguém se atreva a dizer o contrário pronunciou ele, a fala sofrendo um pouco com a qualidade da nossa cerveja. Eilis estava corada e olhava para baixo, para o prato. Pelo canto do olho vi Cormack a alimentar a sua cadela, Linn, que se tinha infiltrado para debaixo da mesa, com bocados de carne. Ele segurava entre os dedos, casualmente, um bocado de carne de vaca, ou de galinha e um instante mais tarde o grande focinho peludo aparecia e desaparecia, enquanto Cormack descansava a mão vazia na beira da mesa, fixando o olhar cuidadosamente num ponto qualquer e mostrando um pouco as covinhas do rosto.

 

E assim exorto-vos, bebei ao feliz casal! Que esta união seja longa e frutuosa e que seja um sinal de amizade e paz entre vizinhos.

 

Eu tinha perdido qualquer coisa; Liam estava em pé, pálido mas incapaz de manter o sorriso ausente do rosto habitualmente severo e no momento seguinte pegava na mão de Eilis e eu finalmente vi a maneira como eles se olhavam e soube porque era.

 

Casado? Liam? disse eu para ninguém em particular. Com ela Mas todos se riam, aplaudiam e até o meu pai parecia quase feliz. Vi o velho eremita, o padre Brien, a falar calmamente com Liam e Eilis no meio da multidão. Apertando a dor contra mim própria, saí do salão, para longe das tochas, das velas e do barulho, para a quietude do quarto que era só meu. Mas não para trabalhar; sentei-me no grande parapeito da janela com um simples toco de vela como companhia e fiquei a olhar para a escuridão da horta. Havia no céu uma lasca de lua e umas estrelas no escuro; lentamente, as formas familiares da horta começaram a revelar-se, se bem que eu as conhecesse tão bem que era capaz de as distinguir na escuridão: o suave azul-esverdeado do absinto, que repelia os insectos; as pontas amarelas da exuberante tanásia, a alfazema cinzenta delicada com os seus espinhos brilhantes roxos e azuis, as ásperas paredes de pedra cobertas de suave musgo, onde florescia uma velha trepadeira. Havia muitas mais; por trás de mim, em prateleiras, os seus óleos e essências brilhavam em frascos, potes ou cadinhos de barro, para curas ou paliativos; as suas flores e folhas secas suspensas sobre a minha cabeça, em molhos ordenados. Um odor curativo delicado pairava no ar calmo. Respirei fundo várias vezes. Estava muito frio; a velha capa que eu deixara num gancho atrás da porta ajudou-me, mas o frio chegava-me aos ossos. O melhor do Verão tinha acabado.

 

Devo ter ficado ali sentada durante muito tempo, já que me sentia gelada, mesmo no meio do conforto das minhas coisas. Era o fim de qualquer coisa e eu não queria que essa coisa acabasse. Mas não havia nada a fazer. Era impossível não chorar. As lágrimas deslizaram-me silenciosamente pelo rosto e não fiz qualquer esforço para as limpar. Após um certo tempo, soaram passos nas lajes, no lado de fora e alguém bateu levemente à porta. Era evidente que tinha de ser um deles. Éramos tão chegados, os sete, que nenhuma ferida infantil passava despercebida, nenhuma ofensa, real ou imaginária, ficava por saldar, nenhuma dor era sofrida sem conforto.

 

Sorcha, posso entrar?

 

Pensei que seria Conor; mas era o meu segundo irmão, Diarmid, que se curvou sob o lintel e entrou, dispondo o seu longo esqueleto num banco perto da minha janela. A chama vacilante da vela mostrou-me o seu rosto em contrastes de sombra e luz; magro, de nariz direito, uma versão mais nova de Liam, excepto a boca mais cheia, sempre pronta a rasgar-se num sorriso cruel. Mas, de momento, estava sério.

 

Devias voltar disse ele, num tom que me fez sentir que se estava nas tintas para as delicadezas. A tua ausência foi notada.

 

Engoli em seco e esfreguei as faces com uma ponta da velha capa. Sentia-me mais zangada do que magoada.

 

Porque é que as coisas têm que mudar? perguntei eu de mau humor. Porque é que não podemos continuar como estávamos? Liam era feliz antes, ele não precisa dela.

 

Felizmente, Diarmid não se riu de mim. Estendeu as pernas ao longo do soalho, aparentemente absorvido em profundos pensamentos.

 

Liam, agora, é um homem disse ele após um certo tempo. Os homens casam-se, Sorcha. Vai ter responsabilidades, uma esposa pode partilhá-las com ele.

 

Ele tem-nos a nós disse eu, furiosa. Então, Diarmid sorriu, mostrando uma série de covinhas que rivalizavam com as de Cormack em encanto. Fizeram-me pensar porque não o escolhera Eilis, em vez do sério Liam.

 

Ouve o que eu te digo, Sorcha. Seja o que for que sejamos, ou façamos, nós os sete nunca nos separaremos. Seremos sempre um todo. Mas estamos a crescer; e as pessoas crescidas casam-se, mudam-se e deixam outras pessoas entrarem nas suas vidas. Até tu farás isso um dia.

 

Eu? Fiquei aterrorizada.

 

Tens obrigação de saber isso. Ele aproximou-se de mim, pegou-me na mão e eu reparei que a dele era grande e áspera, a mão de um homem. Ele estava com 17 anos. O pai já está a planear o teu casamento, dentro de alguns anos e tu terás que te ir embora daqui e viver com a família do teu marido. Nem todos ficaremos aqui.

 

Ir embora? Eu nunca me hei-de ir embora de Sevenwaters! Esta é a minha casa! Prefiro morrer a ir-me embora daqui!

 

Os meus olhos ficaram, de novo, rasos de água. Sabia que estava a ser tola; não era tão ignorante que não soubesse o que eram casamentos e alianças e o que as pessoas esperavam desses dois acontecimentos. Simplesmente, a súbita notícia dos esponsais de Liam chocara-me; o meu mundo estava a mudar e eu não estava preparada para isso.

 

As coisas mudam, Sorcha disse Diarmid sombriamente. E nem sempre como nós queremos. Nem todos nós dosejávamos que Eilis fosse para Liam; mas aconteceu e temos que o aceitar.

 

De qualquer maneira, porque é que ele quer casar com ela? perguntei infantilmente. Ela é tão chata!

 

Liam é um homem disse Diarmid asperamente, pondo de lado, obviamente, as suas próprias penas. E ela é uma mulher. O casamento deles foi arranjado há um certo tempo atrás. Têm sorte por se quererem um ao outro, apesar de nunca se terem visto antes. Ela será uma boa esposa para ele.

 

Eu nunca hei-de ter um marido arranjado disse eu veementemente. Nunca. Como é que se pode passar uma vida inteira com alguém que se odeia, ou com quem não se pode falar? Prefiro não me casar.

 

E ser uma velha sábia entre as tuas bebidas e poções? sorriu, irónico, o meu irmão. Bem, és suficientemente feia para isso. De facto, parece-me que já vejo as rugas a aparecerem, avozinha!

 

Dei-lhe uma palmada no braço, mas também sorri. Ele deu-me um abraço rápido, suficientemente forte para me impedir de chorar de novo.

 

Vamos disse ele. Lava a cara, arranja o cabelo e vamos outra vez para a festa. Liam vai ficar preocupado se ficas fora a noite toda. Ele precisa da tua aprovação. Portanto, é melhor fazeres boa cara!

 

Não dancei durante os esponsais, mas andei por ali entre as pessoas, beijei as faces rosadas de Eilis e disse a Liam que estava feliz por ele. Os meus olhos vermelhos devem ter traído os meus verdadeiros sentimentos, mas no meio do fumo, da luz das tochas e de uma certa quantidade de cerveja a que não estava habituado, Liam não pareceu reparar. Os outros, observavam-me; Diarmid, amável, trazendo-me um pouco de hidromel, assegurando-se de que eu não ficava só durante muito tempo; Connor pouco severo, como se compreendesse demasiado bem os meus pensamentos egoístas. Padriac e Cormack tiravam o melhor partido possível desta rara visita de tantas mulheres, dançando com as mais bonitas damas-de-companhia de Eilis; a julgar pelos risinhos e pestanejares, a juventude dos meus irmãos não era impedimento à sua popularidade. Finbar estava num debate profundo com um velho guerreiro grisalho, um dos da casa de Redbeard.

 

O meu pai estava descontraído; há muito tempo que não o via assim. Abrir a sua casa a convidados fora uma provação, mas necessária, no interesse de uma aliança estratégica com o seu vizinho. O pai tinha notado o meu regresso e quando me tornei útil, conversando com a mais velha das damas-de-companhia de Eilis, até me fez um sinal de contentamento com a cabeça. Era claro, pensei amargamente, que uma filha como Eilis era exactamente o que ele queria dócil, suave, uma coisa fofa sem vontade própria. Bem, eu podia fazer de conta esta noite, por amor a Liam, mas era bom que ele não pensasse que ia continuar assim.

 

A noite continuou; o hidromel e a cerveja continuaram a correr, os pratos de comida iam e vinham. Tudo do melhor: porco assado, pão de trigo, frutos com especiarias e queijo de ovelha aveludado. E também a música e a dança os músicos tinham vindo da casa de Seamus e compensavam com vigor o que lhes faltava em subtileza. O que tocava bodhran tinha braços de ferreiro e o da gaita-de-foles gostava muito de hidromel. Tal era o barulho dos pés a baterem no chão, assobios e aplausos, que só alguns minutos antes da agitação na porta grande, provocada pelo choque de metal contra metal e gritos, chegou aos ouvidos dos nossos hóspedes. Lentamente, o som da pândega foi morrendo e a multidão abriu-se para receber um pequeno bando dos homens do meu pai, ainda vestidos de armaduras e com as espadas nuas. Aproximaram-se da cadeira dele, arrastando, entre eles, um cativo, cujo rosto não pude ver, mas cujo cabelo, seguro por um enorme punho, apanhou os raios de luz dos archotes, brilhando como ondas de ouro.

 

Lorde Colum! rugiu o comandante. Lamento perturbar as tuas festividades.

 

De facto respondeu o meu pai no seu tom mais gelado. O teu assunto deve ser muito urgente, para tal intrusão. Que pretendes? Tenho hóspedes.

 

Estava descontente com a interrupção; mas, ao mesmo tempo, levou a mão à bainha da espada. Lorde Colum conhecia bem os seus homens; não arriscariam a sua ira por uma coisa insignificante. Havia nele uma vigilância permanente, o que sugeria um profissional. A seu lado, Seamus Redbeard estava afundado na sua cadeira, sorrindo beatificamente para nada em particular. Devia ter bebido generosamente, mas o seu anfitrião estava sóbrio.

 

Um prisioneiro, meu senhor, como vês. Encontrámo-lo na orla norte do lago, sozinho; mas deve haver mais por perto. Não me parece um mercenário, Lorde Colum.

 

Houve um movimento violento e a voz do soldado foi cortada pelos safanões do prisioneiro, tentando libertar-se dos braços que o prendiam. As pessoas aproximaram-se para poderem ver melhor, mas a única coisa que vi através dos corpos foi o brilhante cabelo dourado, o grande punho do homem que o segurava pelo cabelo e o modo como o prisioneiro se comportava, como se fosse ele a única pessoa, no mundo, que importasse.

 

Deslizei por baixo de uns tantos braços, puxei para trás um grupo de raparigas que murmuravam umas com as outras e subi para o grande banco de pedra que rodeava o grande salão. A seguir um outro passo precário para a borda de um pilar e fiquei com uma visão desimpedida sobre as cabeças da multidão. A primeira coisa que vi foi Finbar, num local idêntico ao meu, no outro lado. O seu olhar passou por mim e prendeu-se no prisioneiro.

 

O rosto deste estava bastante ferido; o nariz sangrara e os brilhantes caracóis, após uma inspecção mais pormenorizada, caíam-lhe sobre a testa, cheios de suor e sangue. Por trás deles, os olhos brilhavam como brasas enquanto os fixava no meu pai. Era jovem, estava ferido e destilava ódio. Era o primeiro bretão que eu jamais vira.

Quem és tu e o que te traz aqui? perguntou o meu pai. Fala, porque o silêncio não será bom para ti, prometo-te. Para os da tua espécie, só desejamos a morte, porque sabemos bem quais são as vossas intenções. Quem te mandou aqui?

 

O jovem endireitou-se, agitando-se furiosamente contra as cordas que lhe atavam as mãos atrás das costas. Cuspiu violentamente e com perfeita pontaria nos pés do pai. Instantaneamente, um dos captores apertou ainda mais as cordas, torcendo-lhe os braços com força, enquanto o outro lhe assentava um murro no rosto, deixando-lhe uma marca vermelha na boca e na face. O ressentimento e a fúria irradiavam dos olhos do jovem, mas cerrou os lábios e manteve-se silencioso. O pai pôs-se de pé.

 

Esta exibição não é própria para senhoras e não deve ter lugar neste salão de festa disse ele. Talvez seja tempo de todos se retirarem. Percorreu o salão com um olhar de despedida, arranjando maneira, naquele breve instante, de agradecer e desejar boa viagem aos seus hóspedes. Homens, mantende-vos prontos para partirmos rapidamente. Parece que o nosso empreendimento não pode esperar até à lua cheia. Entretanto, vamos ver o que é que este visitante indosejável tem para nos dizer; que os meus capitães venham até mim e que todos os outros se retirem. Meus convidados, lamento que isto acabe com a nossa festa.

 

Toda a casa, num instante, se tornou num acampamento. Apareceram servos; frascos, copos e tabuleiros desapareceram. Eilis e as suas damas-de-companhia desapareceram rapidamente na direcção dos seus aposentos, seguidas pouco depois por Seamus e em breve restavam apenas o pai e uma mão-cheia dos seus homens de confiança. Algures no meio daquilo tudo o prisioneiro era arrastado para fora do salão, ainda silencioso, o rosto vermelho de raiva. Se algumas instruções foram dadas aos seus guardas, não me apercebi delas.

 

E no salão obscurecido, Finbar e eu, cada um no seu lado do salão, escondidos pelas sombras, como tão bem o sabíamos fazer. Não podia explicar porque ficara, mas o padrão que daria forma aos nossos destinos já se estava a formar, sem eu o saber.

 

... já aqui, tão perto; isto quer dizer que eles sabem o suficiente das nossas posições para poderem ameaçar...

 

... erradicá-los, mas rapidamente, antes que as informações...

 

É imperativo que ele fale. Era a voz do pai, autoritária. Dizei-lhes isso. E tem que ser esta noite, porque a rapidez é essencial. Partimos de madrugada. Dizei aos vossos homens que durmam enquanto podem e depois tende tudo pronto. Virou-se para um dos homens mais velhos. Tu supervisionarás o interrogatório. E cuida de que ele seja mantido vivo. Um prisioneiro destes pode ser valioso como refém depois de ter prestado contas. Não há dúvida de que não é um soldado vulgar Pode, até, ser da família de Northwoods. Diz-lhes que vão com cuidado.

 

O homem acenou com a cabeça e saiu do salão, enquanto os outros regressaram aos planos de ataque. Senti uma certa pena de Liam ainda agora ficara noivo e já ia partir em campanha. Talvez a vida fosse assim para um homem, mas não era justo.

 

Sorcha! Um sussurro por trás de mim fez-me gritar, assustada, e revelar o meu esconderijo. Finbar puxou-me pela manga, arrastando-me, silenciosamente, lá para fora, para o pátio.

 

Não me assustes assim! sibilei eu. Os dedos dele nos meus lábios silenciaram-me rapidamente e só quando chegámos à esquina e ele viu, cuidadosamente, que ninguém estava por perto, é que falou.

 

Preciso que me ajudes sussurrou ele. Não te queria pedi-lo, mas não posso fazer isto sozinho.

 

Fazer o quê? O meu interesse despertou imediatamente, se bem que não fizesse a mínima ideia do que ele estava a falar.

 

Não podemos fazer muito agora disse ele mas talvez consigamos libertá-lo de manhã, se me deres o que eu preciso.

 

O quê? perguntei eu. O que queres dizer?

 

Veneno disse Finbar. Conduzia-me rapidamente através das arcadas, para os jardins. Ambos tínhamos a habilidade de nos movermos rápida e silenciosamente em qualquer tipo de terreno. Resultado de crescermos meio selvagens. De facto, tínhamos uma grande variedade de capacidades invulgares.

 

Assim que chegámos ao meu quarto e as portas exterior e interior foram fechadas, fiz Finbar sentar-se e explicar-se. Ele não queria; o seu rosto tinha aquela expressão de teimosia que punha por vezes, quando a verdade era dolorosa, ou nociva, mas que tinha de ser dita. Uma das coisas que nunca tínhamos aprendido era a capacidade de mentir.

 

Vais ter que te explicar disse eu. Não podes dizer apenas veneno e calares-te a seguir. De qualquer maneira, eu posso dizer-te em que estás a pensar. Já tenho 12 anos e meio, Finbar; tenho idade suficiente para poderes ter confiança em mim.

 

Eu confio em ti, Sorcha. Não é isso. É que, se me ajudares, arriscas-te e além disso, é... Começou a torcer as pontas dos cabelos com os dedos, de novo. Calara-se, mas eu estava sintonizada com os pensamentos dele e, por um momento, ele esquecera-se de os esconder. Na escuridão do quarto silencioso apanhei um aterrador vislumbre de um braseiro incandescente, mutilações, carne queimada e ouvi os gritos de um homem. Recuei bruscamente, tremendo. Os nossos olhos encontraram-se no horror da visão comum.

 

Que espécie de veneno? perguntei insegura, as minhas mãos desajeitadamente procurando uma mecha para acender uma vela.

 

Não é para matar. Uma gota suficientemente forte para pôr um homem a dormir até de manhã. O suficiente para quatro homens; e que não saiba mal, de maneira a que possa ser deitado numa caneca de cerveja e não se note. Eu preciso dele antes de o Sol se levantar, Sorcha. Eles tomam o pequeno-almoço cedo e a guarda muda antes do meio da manhã. É pouco tempo. Sabes como fazer tal poção?

 

No escuro, acenei que sim com relutância. Não precisávamos de nos ver um ao outro, bastava que as nossas mentes estivessem em contacto, para nos compreendermos.

 

Vais ter que me dizer disse eu lentamente. Diz-me porque é isto. É ele, não é? Aquele prisioneiro?

 

A vela cintilou e eu cobri-a com a mão. Era muito tarde, já passava da meia-noite, mas lá fora ouviam-se sons de actividade, cavalos a serem ajaezados, armas afiadas, provisões carregadas; já se preparavam para partir de madrugada.

 

Tu viste-o disse Finbar com uma intensidade calma. É apenas um rapaz.

 

Era mais velho do que tu não resisti a alvitrar. Pelo menos 16 anos, pareceu-me.

 

Com idade suficiente para morrer por uma causa disse o meu irmão e eu senti como ele estava retesado, como a sua determinação para fazer o que estava certo o guiava. Se Finbar pudesse mudar o mundo com o esforço da sua vontade, fá-lo-ia.

 

O que é que tu queres que eu faça? Que ponha aquele bretão a dormir? À luz velada da vela procurava nas prateleiras; o pacote que eu queria estava bem escondido.

 

Ele manteve a boca fechada. E vai continuar assim, se o julguei bem. Isso vai-lhe custar muito. Bretão ou não, merece uma possibilidade de liberdade disse Finbar sobriamente. A tua poção pode-lhe comprar isso. Não lhe podemos evitar a dor; é demasiado tarde para isso.

 

Que dor? Talvez eu soubesse a resposta à minha própria pergunta, mas a minha mente recusava-se a juntar as pistas que me haviam sido dadas, recusava-se a aceitar o inaceitável.

 

A poção é para os guardas. Finbar falou relutantemente. Manifestamente, queria que eu soubesse o menos possível. Prepara-a; eu faço o resto.

 

As minhas mãos encontraram o pacote quase automaticamente: a erva-moira, usada moderadamente e bem misturada com certas ervas. produziria um sono ligeiro com poucos efeitos secundários. O truque era fazer a dose exacta; um pouco mais e a vítima poderia nunca mais acordar. Fiquei quieta, as bagas secas sobre a laje de pedra à minha frente.

 

O que é? perguntou Finbar. Porque é que estás a hesitar? Sorcha, eu preciso de saber se fazes isso, ou não. E tenho que ir. Há outros assuntos a tratar.

 

Ele já estava em pé, morto por se ir embora, a mente trabalhando já na página seguinte da sua estratégia.

 

O que é que eles lhe vão fazer, Finbar? De certeza que não, de certeza que não é o que vi há bocado, naquela visão que me pôs doente.

 

Ouviste o pai. Ele disse, mantenham-no vivo. Deixa, que eu preocupo-me com isso, Sorcha. Faz a poção. Por favor.

 

Mas como é que o pai...

 

É fácil disse Finbar. Vem com o treino; a faculdade de ver o inimigo como algo que não um homem verdadeiro. É de uma raça inferior, definida pelas crenças, aprende-se a fazer com ele o que se quer e a dobrá-lo segundo os propósitos. Ele sentiu o meu horror. Não te preocupes, Sorcha disse ele. Nós podemos salvar este, tu e eu. Faz o que eu te peço e deixa o resto comigo.

 

O que é que tu vais fazer? E se o pai descobre?

 

Perguntas a mais! Não nos resta muito tempo. Podes fazer o que te pedi?

 

Virei-me para olhar para ele, os braços em volta do peito. Na verdade, eu estava toda a tremer e não era de frio.

 

Eu sei que não mentes, Fimbar. Não tenho escolha senão acreditar no que me disseste. Mas eu nunca envenenei ninguém. Sou uma curandeira.

 

Olhei-lhe para o rosto silencioso, para a boca larga e móvel, para os olhos cinzentos-claros que pareciam sempre virados para um futuro de poucas incertezas.

 

Acontece disse ele calmamente. Faz parte da guerra. Por vezes, falam. Por vezes, ficam calados. Frequentemente, morrem. Só ocasionalmente escapam.

 

É melhor ires fazer o que tens a fazer disse eu, numa voz que parecia a de outra pessoa. As minhas mãos procuraram uma faca afiada e comecei automaticamente a partir e a cortar os ingredientes da minha poção do sono. Meimendro. Touca-de-bruxa. O pequeno fungo azul a que alguns chamam os ovos-do-diabo. Erva-moira em pequena quantidade. Vai-te embora, Finbar.

 

Obrigado disse ele com um relâmpago daquele sorriso, aquele generoso sorriso, que lhe iluminou o rosto todo. Nós fazemos uma boa equipa. Uma equipa à prova de tudo. Como é que podemos falhar?

 

Abraçou-me por um momento, o suficiente para lhe sentir a tensão do corpo, o rápido bater do coração. Depois desapareceu, deslizando pelas sombras como um gato.

 

Foi uma longa noite. consciente de que o menor erro podia fazer de mim uma assassina, mantive-me alerta e antes da alvorada a poção do sono estava pronta, rolhada com segurança num pequeno frasco de pedra, convenientemente pequeno para se poder esconder na palma da mão e o quarto estava imaculadamente limpo, os traços da minha actividade desaparecidos. Finbar veio ter comigo quando o tinir dos arreios e o som de apressados pés calçados aumentou lá fora.

 

Acho que também devias fazer esta parte sussurrou ele. Eles mal darão por ti. Lembrei-me, vagamente, de que era suposto ele juntar-se à campanha, desta vez. Não o decretara o pai? Mas então já eu estava demasiado ocupada para pensar, deslizando silenciosamente na direcção das cozinhas sob as instruções sussurradas pelo meu irmão, movendo-me por trás de e entre servos e homens de armas que deitavam a mão a um último bocado de comida, preparavam sacos com provisões, enchiam frascos com vinho e água. Fat Janis, dissera Finbar, vai para onde Fat Janis tem o pote de ferro dela sobre o fogão. Se eles trabalharam de noite, ela levar-lhes-á, logo de manhã, cerveja quente. Fabrico especial dela. Eles dizem que tem alguns efeitos secundários interessantes. É ela que a leva pessoalmente; e talvez ganhe algum favor em troca. Que espécie de favor?, perguntei-lhe eu. Não interessa, disse Finbar. Assegura-te apenas de que ela não te vê.

 

Havia duas coisas em que eu era boa. Uma era as poções e venenos e a outra era ficar calada e invisível quando me convinha. Não seria difícil acrescentar a poção à cerveja quente; Janis virou as costas por um instante, rindo-se de uma piada do homem de armas mais alto enquanto ele metia na boca um último bocado de salsicha e se encaminhava para a porta, afivelando o cinto da espada enquanto caminhava. Eu já tinha acabado e desaparecido antes de ela se voltar de novo. Nunca me chegou a ver. Fácil, pensei, enquanto deslizava na direcção da porta. Devia haver ali 15 pessoas, mas nenhuma me viu. Já estava quase lá fora quando algo me fez olhar para trás. Do outro lado da cozinha, olhando directamente para mim, estava o meu irmão Conor. Estava de pé, no canto mais longínquo, meio na sombra, um rol qualquer numa mão e uma pena na outra. O seu ajudante, de costas voltadas, empacotava provisões num saco de sela. Fiquei gelada com o choque: de onde ele estava, o meu irmão devia ter visto tudo. Como é que eu não o tinha visto? Paralisada entre o instinto de procurar um esconderijo e o chamamento inevitável, hesitei na soleira. Mas Conor baixou o olhar para a sua escrita e continuou com o rol, como se eu fosse invisível. Eu estava demasiado aliviada para me preocupar com uma possível explicação e fugi como um coelho assustado, com os nervos em franja. Finbar não estava à vista. Dirigi-me para o buraco mais seguro de que me lembrava, o velho estábulo, onde o meu irmão mais novo, Padriac, guardava a sua colecção de objectos e animais. Ali, encontrei um canto quente entre a palha e a velha burra, que se afastou, resmungando, quando a empurrei para arranjar lugar. Cheia de fome e frio, confusa e exausta, adormeci.

 

A nossa história não pode ser contada sem nos referirmos ao padre Brien. Eu disse que ele era um eremita e que trocava um pouco de instrução por um pão ou uma mão-cheia de maçãs. Era verdade; mas o padre Brien tinha muito mais que se lhe dissesse. Dizia-se que ele fora, em tempos, um homem de armas e que tinha algumas cabeças de viquingues na sua conta; dizia-se que tinha vindo do outro lado do mar, da América, para pôr a sua habilidade com a pena e a tinta ao serviço da casa cristã de orações de Kells; mas viveu sozinho durante muito tempo e era velho, com 50 anos, pelo menos, pequeno, magro, de cabelo grisalho e no rosto tinha a calma aceitação daqueles cujo espírito permaneceu vivo ao longo de uma vida de provações.

 

Uma viagem até à morada do padre Brien era, por si só, uma aventura. Vivia na encosta sul do lago e levávamos muito tempo a chegar lá, porque fazia parte do gozo. Havia o local em que atravessávamos a corrente pendurados numa corda, balançando livremente entre os grandes carvalhos. Cormack caiu lá, uma vez; felizmente era Verão. Havia a parte em que tínhamos de trepar uma rocha em forma de chaminé, o que provocava ferimentos em joelhos e cotovelos, para não falar nos buracos na roupa. Havia jogos complicados de esconde-esconde. De facto, podia-se chegar lá em metade do tempo, através de um carreiro para carroças, mas preferíamos o nosso meio. Por vezes, o padre Brien não estava, a lareira estava apagada e o chão varrido e limpo. Segundo Finbar, que, não sei como, sabia estas coisas, o santo padre trepava até ao alto do Pico Ogma, um exercício difícil para um homem de idade, e ficava lá, imóvel como uma pedra, olhando para leste, para o mar e para lá, para as terras dos Bretões; ou para as Ilhas. Não se conseguia vê-las dali; mas se se perguntar a qualquer homem, ou mulher, onde elas estão, os dedos apontam, com absoluta confiança, para leste e um pouco para sul. Era como se tivessem um mapa dosenhado no espírito e que nem o tempo, ou a distância, pudessem apagar.

 

Quando o eremita estava em casa, ficava feliz por poder conversar connosco no seu modo calmo, medido e trocar instrução por necessidades da vida. Sabia muitas línguas diferentes; o seu conhecimento de plantas era perfeito e sabia tratar de ossos partidos com perícia. Dele recebi muitos dos conhecimentos do meu ofício, mas a minha obsessão pelas propriedades curativas das plantas levou-me mais além e, nesse aspecto, ultrapassei-o.

 

Havia ocasiões em que nos ajudávamos um ao outro na ajuda aos doentes; ele tinha a força para voltar a pôr no lugar um osso deslocado, ou ligar um membro partido; eu tinha a habilidade de fabricar poções ou preparar a loção indicada para cada caso. Entre os dois ajudámos muita gente e as pessoas habituaram-se a ver-me, desde criança, perscrutar-lhes os olhos, ou as gargantas e prescrever-lhes panaceias. Os meus remédios resultavam e era disso que as pessoas gostavam.

 

Havia alguns que eram difíceis de ajudar. Quando as Criaturas Encantadas tomavam conta de alguém, não havia muita esperança. Houve uma vez uma rapariga que perdeu o namorado para a rainha que vivia debaixo do monte. Iam para a floresta namorar, à noite e entraram num anel de cogumelos venenosos enquanto os seus pensamentos estavam noutro lugar. A rainha apanhou-o, mas não a ela. Tudo o que a rapariga viu foi a pluma vermelha da capa dele a desaparecer numa fenda nas rochas e ouviu grandes risos em voz alta. Quando a rapariga veio ter connosco estava meio louca e nem as orações do padre Brien, nem as minhas poções para dormir, lhe deram muita paz. Ele fez o melhor que pôde, tratando daquele feitiço de amor com o mesmo cuidado com que tratava os cortes e queimaduras dos agricultores e ferreiros. As suas mãos eram fortes, a voz gentil, os modos extremamente práticos. Ouvia muito e dizia pouco.

 

Não tentava impor-nos a sua religião, se bem que tivesse muitas oportunidades. Compreendia que a nossa casa seguia as velhas tradições, apesar de nós as observarmos menos desde a morte da nossa mãe. De vez em quando ouvia-o a discutir com Conor as diferenças das duas fés e o que as aproximava, porque partilhava com o meu irmão a paixão pelo debate. Por vezes, perguntava-me se os pontos de vista tolerantes do padre Brien teriam sido a causa da sua partida da casa de orações de Kells, porque dizia-se que noutras partes de Erin a difusão da fé cristã tinha sido acelerada com a ajuda da espada e do fogo e que agora as velhas crenças eram pouco menos do que memória. Na verdade, o padre Brien nunca tentou converter-nos, mas gostava de dizer algumas orações antes da partida de uma campanha, porque, fosse o que fosse que pensasse dos propósitos do meu pai, não fazia mal nenhum abençoar os homens antes de partirem.

 

O barulho de metal contra metal acordou-me. Pus-me de pé meio atordoada, tirando palha do cabelo. A burra tinha o focinho enfiado na gamela do farelo.

 

Perdeste tudo observou Padriac, ocupado a colocar, com a forquilha, palha fresca dentro do estábulo. Finbar está metido em sarilhos outra vez. Ninguém o conseguiu encontrar esta manhã. O pai estava muito zangado. Levou o Cormack, em vez dele. Havias de ver a cara dele. Do Cormack, não do pai. Eu seja cego se algum dia vi um sorriso assim. De qualquer maneira, lá foram, depois de o velhote ter dito os padre-nossos e os améns. Agora, já podemos voltar ao normal. Até à próxima vez. Não gostava de estar na pele do Finbar quando o pai o apanhar.

 

Pôs a forquilha de lado e foi inspeccionar a coruja, presa num poleiro, num canto escuro do celeiro. A asa do animal estava quase curada e ele esperava libertá-la dentro de pouco tempo. Admirei-lhe a persistência e a paciência, apesar de desviar os olhos dos ratos vivos que ele tinha prontos para a refeição da ave.

 

Finbar tinha desaparecido. Mas isso não era invulgar nele, desaparecer na floresta, ou no lago, e ninguém comentava essas ausências. Não fazia a mínima ideia para onde tinha ido e não abordei o assunto, com medo de atrair a atenção para mim própria, ou para ele, sobre as nossas actividades nocturnas. Também estava preocupada com o meu veneno e foi com algum alívio que vi os quatro guardas emergirem, às primeiras horas da tarde, para se sentarem no pátio, coçando as cabeças, bocejando sonoramente e sentindo pena de si próprios. À hora do jantar já corria a notícia de que o prisioneiro tinha escapado, entre a partida de Colum e o render da guarda e havia muitas e variadas teorias sobre como tinha acontecido uma coisa daquelas. Foi enviado um homem no encalço de Lorde Colum para lhe dar a má-notícia.

 

O bretão não vai longe disse Donal, azedo. Não no estado em que ele estava. Nem nesta floresta. Quase não vale a pena ir à procura dele.

 

No segundo dia Eilis e o seu séquito voltaram para casa, com os seus seis guardas e mais dois nossos, como escolta. O tempo estava a virar; rajadas de vento frio chicoteavam as saias das damas e as capas dos homens de armas e nuvens corriam em frente do Sol. Conor, como filho mais velho e portanto, dono da casa, desejou a Eilis uma boa viagem e convidou-a a regressar quando as coisas acalmassem. Eilis agradeceu-lhe a hospitalidade, sem bem que, por mim, não tivesse sido grande coisa. Imaginei quanto tempo teria ela que esperar até ver Liam de novo e se se preocuparia muito com isso. Depois esqueci-a, porque Finbar apareceu para o jantar na noite seguinte, como se nunca se tivesse ausentado. Padriac, absorvido nas suas actividades, mal tinha reparado na ausência do irmão; Conor não fez qualquer comentário. Olhei para Finbar do outro lado da mesa, mas os pensamentos dele escondiam-se de mim e tinha os olhos fitos no prato. As mãos partiam pão, levantavam uma taça, firmes e controladas. Esperei, inquieta, até que a refeição terminasse e Conor se levantasse, fazendo sinal de que podíamos sair da mesa. Segui Finbar até lá fora, deslizando atrás dele como uma segunda sombra e confrontei-o no longo passeio sob os salgueiros.

 

Que aconteceu? Onde estiveste?

 

Onde é que pensas que estive?

 

Num lugar qualquer, para onde levaste aquele rapaz, é isso que eu penso. Mas onde?

 

Ele ficou calado por um bocado, provavelmente pensando nas consequências de se abrir comigo.

 

Num lugar seguro. É melhor para ti se não souberes.

 

O que é que queres dizer com isso?

 

Pensa, Sorcha. Até tu te arriscaste. Se o pai, ou Liam, descobrissem o que nós fizemos, ficariam... bem, zangados seria pouco.

 

Tudo o que fizemos foi salvar alguém de ser ferido disse eu, sabendo que era muito mais do que isso.

 

Eles veriam isso como uma traição. Apunhalar a própria família pelas costas. Libertar um espião. Para eles é preto no branco, Sorcha.

 

De que lado estás tu, afinal?

 

Aqui não há lados. É mais como tu saberes de onde vens. Os Bretões não vêm aqui para tomar posse da nossa terra, aprender os nossos segredos, destruir o nosso modo de vida? Ajudá-los é ir contra a família, a irmandade e tudo o que é sagrado. É assim que a maior parte das pessoas vê as coisas. Talvez nós devêssemos, também, vê-las assim.

 

Após um longo momento, eu disse:

 

Mas a vida é sagrada, não é? Finbar riu-se entredentes.

 

Devias ter sido uma fada, Sorcha. descobres sempre argumentos para os quais não tenho resposta.

 

Levantei as sobrancelhas para ele. Eu, de pés descalços e cabelo desgrenhado, uma juíza? Eu já tinha dificuldade, por vezes, em diferenciar o bem do mal.

 

Ficámos ambos silenciosos. Finbar encostou-se a uma árvore, descansando a cabeça no áspero tronco, os olhos fechados. A sua figura escura misturava-se com as sombras, como se fizesse parte delas.

 

Portanto, por que o fizeste? perguntei passado um bocado. Ele levou algum tempo a responder. Estava a ficar frio e a humidade pairava no ar. Estremeci.

 

Toma disse Finbar, abrindo os olhos e colocando a sua velha jaqueta sobre os meus ombros. Ainda usava a mesma camisa daquela noite. Já tinham passado três dias?

 

É como se tudo fizesse parte de um padrão disse ele. Como se eu não tivesse escolha, como se tudo tivesse sido dosenhado para mim, numa espécie de mapa da minha vida. Eu penso que a mãe viu o nosso futuro, talvez não com exactidão, mas tinha uma ideia daquilo que seríamos, ou para onde íamos. Tocou no amuleto que trazia sempre pendurado ao pescoço. No entanto, é uma questão de escolha, tão simples como isso. Não seria mais fácil para mim ser um dos rapazes, merecer o amor do pai com a minha espada e o arco (eu sou capaz), tomar o meu lugar ao pé dele e defender a nossa terra e a nossa honra? Seria bom ser reconhecido, ter amigos e algum orgulho. Mas, em vez disso, escolhi este caminho. Ou este caminho foi escolhido para mim.

 

E o rapaz, onde está? Conseguiu fugir?

 

Como já disse, Finbar e eu tínhamos duas maneiras de comunicar. Uma era com palavras, como toda a gente. A outra era unicamente nossa; era uma habilidade silenciosa, a transferência de uma imagem, ou pensamento, ou sentimento, de uma mente para a outra. Era isso que ele estava a fazer agora, mostrando-me a carroça do padre Brien, carregada com fardos e caixas, rolando lentamente ao longo do carreiro cheio de sulcos na direcção da caverna do eremita. Senti dores a cada solavanco da carreta, se bem que o padre Brien mantivesse o velho cavalo numa rota o mais nivelada possível. Uma das rodas ficou presa; o jovem ajudante do bom padre desceu para ajudar a libertá-la. Havia uma espécie de Primavera nos passos daquele jovem que o revelavam como meu irmão, mesmo se o capuz lhe cobria o rosto, porque Finbar andava sempre daquele modo, com grandes passos e com os pés para fora. Depois uma imagem dos dois, no exterior da caverna, tirando um fardo da carroça com cuidados especiais. Um vislumbre de ouro no meio de trapos manchados. Foi tudo; a Visão terminou.

 

Ele não estava em condições de ir mais além disse Finbar sem graça. Mas está em boas mãos. É só o que precisas de saber... não quando eu ia interrompê-lo não te vou envolver mais. Já pus muita gente em risco. Acabou, pelo menos para ti.

 

E foi tudo, de facto, o que consegui tirar-lhe naquela noite. Estava a ficar adepto, de modo alarmante, de me fechar a mente e nem por meio de rogos, ou tentativas de leitura em momentos de distracção, consegui saber mais. No entanto, a sua previsão provou ser completamente errada.

 

Seguiu-se um tempo calmo. Com o pai e os rapazes mais velhos fora, caímos na nossa velha rotina, se bem que a guarda tivesse aumentado em volta da fortaleza e arredores. Conor controlava os assuntos da casa com uma competência calma, arbitrando quando dois aldeões se queixaram de um bando perdido de gansos, inspeccionando o fabrico de cerveja outonal e o fabrico do pão, a selecção de crias e o salgar da carne para o Inverno. Para Finbar, Padriac e para mim, foram bons tempos. Donal ainda punha os rapazes a exercitarem-se com a espada e o arco e eles ainda passavam tempo com Conor, seguindo-o nas mais diversas actividades. Geralmente, eu infiltrava-me nessas lições, pensando que um pouco de erudição não me faria mal nenhum e que podia aprender algo interessante. todos nós sabíamos ler e escrever. Sabíamos as runas e fazer contas, dosenhar um mapa e tínhamos um repertório óptimo de histórias, antigas e novas. Além do mais, sabíamos cantar, tocar o assobio e alguns de nós a pequena harpa. Tivemos, em tempos, um bardo, que passou o Inverno connosco; foi há um certo tempo, mas ele ensinou-nos os rudimentos e tínhamos um instrumento que fora da mãe, uma óptima harpa pequena, com pequenas esculturas de aves. Padriac, com o seu génio para descobrir coisas e consertá-las, substituiu as cavilhas quebradas, encordoou-a de novo e nós tocámo-la no quarto de cima, onde o pai não nos podia ouvir. Sem sequer perguntarmos, sabíamos que tal recordação não seria bem-vinda.

 

A coruja de Padriac melhorou e estava morta por partir. Padriac esperou até a asa estar completamente curada e um dia, ao escurecer, levou-a para a floresta, para a soltar. Vi um esgar de puro prazer no rosto do meu irmão quando a deixou levantar voo da luva que tinha calçada pela última vez e a viu abrir aquelas grandes asas branco-acinzentadas e subir em espiral para cima, para cima, para a copa das árvores. Não lhe disse que lhe tinha visto lágrimas nos olhos.

 

Finbar andava muito quieto. Senti que tinha planos, mas não os partilhava comigo. Em vez disso, nos intervalos das aulas de arco, equitação, cópia e contas, desaparecia para longos passeios, ou encontrávamo-lo sentado sob a sua árvore preferida, ou lá em cima no telhado, mergulhado em pensamentos profundos. Eu deixava-o sozinho; quando ele quisesse falar, eu estaria presente. Tratei de me ocupar com o recolher de bagas e folhas, a destilação, cozimento, secagem, moagem e armazenamento, preparando-me para as doenças de Inverno.

 

Já falei da fortaleza em que a minha família vivia, uma rígida torre de pedra, edificada na floresta profunda, as paredes perfuradas, aqui e ali, por frinchas que faziam as vezes de janelas. O pátio, a muralha, a horta, pouco faziam para adoçar o perfil severo. Mas Sevenwaters era mais do que isso. Sem os campos murados, os celeiros com telhados de colmo para guardar o gado e os rebanhos durante o Inverno, as hortas com filas de cenouras, pastinagas e feijões, o moinho e as ruínas de cereais, nunca teríamos podido sobreviver em tal isolamento, Assim, enquanto deitávamos abaixo o menor número possível de árvores e sempre com o maior respeito, a floresta ia ficando mais esparsa por trás da fortaleza, para norte, para dar lugar à agricultura e algumas aldeias. Não havia necessidade de valas, ou muralhas, para manter afastados os assaltantes. Não havia necessidade de túneis ou câmaras secretas, se bem que utilizássemos as cavernas para armazenarmos a manteiga e o queijo para o Inverno, quando as vacas não davam leite. Aqui e ali, em vários pontos da vastidão da floresta, existiam várias aldeias, todas dentro do perímetro da túath do meu pai. Todas pagavam tributo e recebiam protecção. As pessoas dessas aldeias pertenciam a Sevenwaters. Os seus pais e avós já lá moravam antes delas. Podiam aventurar-se, por vezes, para lá dos limites, até um mercado, ou acompanhando as campanhas do meu pai, quando os serviços de um bom ferreiro, ou ferrador, eram necessários. Podia acontecer, porque eram povo da floresta e conheciam os caminhos. Mas nunca nenhum estranho entrou sem uma escolta e sempre com os olhos vendados. Os que eram suficientemente tolos para o tentar, desapareciam simplesmente. A floresta protegia os seus, melhor do que qualquer fortaleza.

 

As pessoas da nossa aldeia, as que trabalhavam nos campos de Lorde Colum e lhe tratavam dos animais, tinham as suas moradas na orla do terreno aberto, onde corria um ribeiro que fazia funcionar a roda do moinho. todos os dias eu percorria o caminho até essas cabanas para tratar dos doentes. A cadela-lobo, Linn, era minha companheira habitual, porque, com a partida de Cormack, devotara-se a mim, sempre no meu encalço para onde quer que eu fosse. À menor ameaça, uma voz enraivecida, um porco atravessando o caminho em busca de bolotas, colocava-se entre mim e o perigo, rosnando ferozmente. O Outono avançava rapidamente e o tempo tornara-se gelado. A chuva caía pelos telhados de colmo abaixo, transformando os caminhos num lamaçal. Conor tinha reparado algumas das cabanas mais velhas, estruturas precárias de ramos e barro e o Velho Tom, que vivia numa delas com a sua tribo de filhos e netos, saíra para me apertar a mão com gratidão quando passara pela morada dele.

 

O teu irmão é um verdadeiro santo dissera ele meio a soluçar e tu também, minha filha. Um dos sábios, tal como o pai dele podia ter sido, o jovem Conor. Nem uma gota cai lá dentro e a turfa está toda lá dentro, cortada e seca, para os tempos difíceis.

 

O que é que queres dizer? perguntei, intrigada. Sábios? Que sábios?

 

Mas ele já tinha voltado para dentro, morto, sem dúvida, por aquecer os velhos ossos ao calor da turfa que ardia numa pequena lareira e cujo fumo saía, encaracolando, pela chaminé.

 

Visitei uma mulher que dera à luz com muita dificuldade, recentemente, duas filhas gémeas. Prestei assistência à mulher durante a longa noite do parto e mantinha-a debaixo de olho, certificando-me de que tomava os chás de ervas que lhe tinha prescrito para lhe fechar o útero e fazer vir o leite. Escolhi mal a hora da partida, porque as nuvens abriram-se quando estava a meio caminho de casa, ensopando-me até aos ossos e fazendo com que os meus pés pisassem, positivamente, lama líquida. Lutei para continuar; o barulho surdo da chuva fez com que não ouvisse as rodas de uma carroça a aproximarem-se e subitamente o padre Brien estava ao pé de mim com um velho saco sobre a cabeça e os ombros. O cavalo permanecia imperturbável à chuva, as orelhas para trás.

 

Sobe gritou o padre sobre o ruído da tempestade e estendeu uma mão para me ajudar a sentar-me ao seu lado.

 

Obrigada disse eu. Não servia de nada falar com aquele barulho, por isso fiquei sentada em silêncio e aconcheguei melhor a capa sobre mim. O trilho passava por um pequeno bosque de velhos pinheiros, cujos ramos mais baixos tinham sido cortados. Uma vez chegados àquele semiabrigo, o padre Brien parou o cavalo mesmo por baixo; a capota de agulhas filtrava o pior da chuva e o barulho abrandou para um monótono e distante tamborilar.

 

Preciso da tua ajuda, Sorcha disse o padre Brien, afrouxando as rédeas e permitindo que o cavalo baixasse a cabeça para procurar algo que comer.

 

Olhei para ele, surpreendida.

 

Veio até aqui à minha procura?

 

De facto eu devo voltar para casa hoje. Não me aventuraria com um tempo destes sem uma boa razão. Tenho um paciente que não consigo curar; Deus sabe que tenho tentado e que fiz alguns progressos. Mas ele agora precisa de algo que eu não lhe posso dar.

 

Quer que eu o ajude? Para fazer uma infusão, uma cozedura? O padre Brien suspirou olhando para baixo, para as mãos.

 

Quem me dera que fosse assim tão simples disse ele. Já tentei infusões e poções, algumas com bons resultados. Utilizei muitos elementos que tu me ensinaste e alguns meus. Rezei, falei e aconselhei. Não posso fazer mais nada, ele está a fugir-me.

 

Não precisava de lhe perguntar quem era o paciente.

 

Eu ajudo, claro. Mas não sei se serei de grande utilidade. Os meus conhecimentos são mais sobre medicamentos. Parece que é preciso algo mais?

 

Não lhe ia perguntar directamente qual era o problema do rapaz; isso era pisar terreno perigoso. Não fazia ideia de quanto ele sabia sobre o assunto, ou o que era suposto eu dizer-lhe.

 

Verás por ti própria disse ele, pegando nas rédeas. Em qualquer caso, é preciso voltar já para trás, assim que tiveres as tuas coisas. Dei-lhe uma poção para dormir e isso vai mantê-lo calmo durante a maior parte do dia, mas temos que estar lá quando ele acordar, porque não sei o que lhe pode acontecer.

 

Não sei se o Conor me deixa ir disse eu.

 

Por que é que não lhe perguntamos agora? perguntou o padre Brien.

 

Encontrámos Conor sozinho, a escrever. Não se falou de Bretões, nem de prisioneiros evadidos; o padre Brien explicou, simplesmente, que precisava de me consultar acerca de um doente e Conor mostrou uma notável falta de curiosidade quanto aos pormenores. parecia que estava à espera do pedido e concordou, na condição de que fosse apenas por alguns dias e que eu regressaria assim que ele mandasse Finbar buscar-me. Deixei os dois a conversar e fui fazer uma pequena trouxa, pensando, enquanto procurava nas prateleiras do quarto, com o que iria lidar: queimaduras, feridas, febre, choque? O padre Brien não fora muito específico. Empacotei algumas roupas e outras pequenas coisas, o suficiente para alguns dias. Deixei a minha capa a fumegar perto do fogo da cozinha. Peguei noutra maior que pertencia a um dos rapazes. Infelizmente, era forçada a admitir que o começo do Outono exigia que eu calçasse sapatos e meti os pés dentro de um par de botas que eram demasiado grandes para eles. Dava jeito ser a mais nova e a mais pequena.

 

Lembra-te, apenas alguns dias disse Conor, enquanto eu me encaminhava para a carroça. Mando o Finbar buscar-te. E cuidado com os caminhos; depois do último monte é muito perigoso.

 

O padre Brien já estava sentado e apesar da brevidade da paragem, havia um cesto com provisões da nossa cozinha, entalado por trás dele, com pão, queijo e vegetais. Acenou ao meu irmão gravemente. Conor içou-me, com pouca gentileza e começámos imediatamente a rolar, antes que eu pudesse dizer uma palavra, sequer.

 

Lentamente, a chuva abrandou para chuvisco. Rolámos sob salgueiros de ramos nus, entre os primeiros afloramentos rochosos, próximos das águas tristemente cinzentas do lago, onde não se via qualquer ave.

 

Sabes quem é este rapaz, suponho? perguntou o padre Brien com indiferença, sem tirar os olhos do caminho.

 

Sei o que ele é corrigi cautelosamente. Não quem. Tenho uma ideia sobre o que lhe aconteceu. O que não sei é o que é suposto eu fazer-lhe. Seria melhor dizer-me antes de lá chegarmos, no caso de eu ser de alguma utilidade.

 

Ele olhou para mim de lado, aparentemente divertido.

 

É justo disse ele. O rapaz foi ferido. Seriamente ferido. Provavelmente, teria morrido se o teu irmão não o tivesse tirado de lá.

 

Com uma pequena ajuda minha disse eu, um pouco zangada por a minha parte no salvamento já estar esquecida.

É verdade, ouvi falar nisso disse o sábio padre. Arriscaste-te um pouco, não arriscaste?

 

Eu sei fazer as minhas dosagens.

 

É verdade, melhor do que a maioria de nós, Sorcha. Mas como eu disse, este paciente foi medicado, untado e teve muitas orações. Ele foi... tinha muitos ferimentos e por eles fiz o melhor que pude. Se bem que nunca mais venha a ser o que era, o corpo dele está a sarar relativamente bem. A mente, é outra coisa.

 

Quer dizer... que ele enlouqueceu devido ao que lhe fizeram? Como aquele homem que trabalhava no moinho, Fergal, creio que era esse o nome... ficou muito estranho depois de os duendes terem tomado conta dele da noite para o dia. É isso que quer dizer? Lembrei-me do moleiro, a boca torcida, tremendo, encolhido ao canto da lareira, coberto de porcaria.

 

O padre Brien suspirou.

 

Louco... não, não exactamente. Este é de outra fibra, diferente dos Fergals deste mundo. É jovem, mas é um guerreiro; está na sua natureza lutar. Resistiu aos seus atormentadores ao longo daquela noite e não tenho dúvidas de que nem uma palavra lhe saiu dos lábios. Tem estado muito doente. Teve uma febre tremenda e algumas das feridas teriam morto um homem mais fraco imediatamente. Lutou bravamente contra a morte e, durante um certo tempo, pensei que tivesse ganho. Mas a batalha seguinte é a mais difícil; a batalha contra ele próprio. No fim de contas, pouco mais é do que um rapaz e até o mais forte dos homens sofre quando os da sua própria espécie se viram contra ele de maneira tão diabólica. O miúdo não admite que está ferido e assustado; em vez disso, vira a angústia para dentro e atormenta-se.

 

Tentei perceber tudo aquilo

 

Quer dizer que ele quer morrer?

 

Não me parece que ele saiba o que quer. Ele precisa é de paz de espírito, um período de tempo sem ódio, para juntar, de novo, o corpo e o espírito. Pensei em enviá-lo para os irmãos, no oeste; mas está muito fraco para viajar e ainda não pode ser confiado a outras mãos.

 

O silêncio instalou-se durante algum tempo, à excepção do ruído surdo das patas do cavalo e o suspiro do vento por entre as rochas. Estávamos a aproximar-nos. O trilho estreitou e tornou-se mais abrupto, as árvores aproximaram-se mais. Ali, no alto, havia grandes carvalhos, os ramos mais altos despidos de folhas, mas cobertos de musgo dourado e a floresta profunda era escura, de tantas árvores antigas. O velho cavalo sabia o caminho e seguia tranquilamente.

 

Padre, se não conseguiu curar este rapaz, tenho a certeza de que também eu não consigo. Como os meus irmãos passam a vida a dizer-me sou apenas uma criança. Talvez possa curar um peito asmático, ou um caso de urticária, mas isto... nem sei por onde começar.

 

A carroça teve um sobressalto ao saltar sobre uma pedra e a mão do padre Brien moveu-se rapidamente para me segurar.

 

No entanto disse ele no seu modo cuidadoso se tu não puderes, ninguém pode. Conor tinha a certeza de que eras a única a poder ajudar-me. Acredito que saberás o que fazer quando o vires. Também acredito que ele não terá medo de ti, como tem de mim. E o medo é uma grande barreira contra a cura.

 

Conor tinha a certeza? perguntei eu, alarmada. Conor sabia do rapaz? Mas...

 

Não precisas de te preocupar com Conor disse o padre Brien. Ele não trairá o teu segredo.

 

Deu a volta por trás de um grande rochedo e fez parar o cavalo abruptamente. desceu e estendeu os braços para me ajudar a descer.

 

Enquanto estivermos aqui, espero que possamos falar de muitas coisas. Mas, em primeiro lugar, cuidemos deste rapaz. E tu podes decidir, por ti própria, o que podes e o que não podes fazer.

 

O ar dentro da caverna era pesado devido ao cheiro de ervas curativas. O meu nariz disse-me que o padre queimara uma mistura para manter o rapaz na paz de um sono profundo, calaminta para proteger e dar coragem, tomilho para manter os terrores nocturnos afastados. E também, mas mais difícil de detectar, os esporos de uma planta a que chamávamos pata-de-lobo, e eu imaginei como tinha ele conhecimento daquela planta, cujo uso era extremamente perigoso. Uma pessoa não podia ficar sob a sua influência durante demasiado tempo. Quem dorme deve acordar e confrontar-se com os seus medos, senão arrisca-se a perder-se, para sempre, nos lugares ocultos da mente.

 

A primeira parte da caverna era fria e seca, com aberturas no alto das paredes rochosas. Era o lugar de cura do padre Brien. Havia muitas prateleiras cheias de ervas secas e especiarias, tigelas, frascos e montes de roupa dobrada e arrumada. Um par de enormes pranchas de carvalho, suportadas por grandes pedras, servia de mesa de trabalho. Para lá daquele espaço ordenado havia uma pequena câmara e era ali que, numa enxerga de palha, estava estendida a carga do eremita, enrolada num cobertor e enroscada sobre si própria como protecção. O próprio padre Brien comia e dormia naquele pequeno quarto de pedra, pouco maior do que uma cela, aninhado sob sorveiras-bravas, não longe da entrada da caverna. Tinha o ar de quem dormia mal há muito tempo; os seus olhos estavam cheios de olheiras.

 

As queimaduras estão a sarar bem disse o padre Brien suavemente. Teve algumas lesões internas; com essas, fiz o que pude. Com o tempo, sararão. A febre foi muito alta, mas consegui fazê-la descer com uma esponja e infusões de carvalho branco. Quando estava muito alta, falou muito e revelou-me muito da sua personalidade, talvez mais do que tivesse desejado. Mas agora sabe onde está e mantém a boca fechada a maior parte do tempo, mesmo quando falo com ele na sua própria língua. Não aceita as minhas orações nem os meus conselhos. E tive, por duas vezes, de o impedir de chegar a um instrumento qualquer para se destruir a si próprio, ou a mim. Ainda está muito fraco, mas não tanto que não possa provocar danos, se tiver oportunidade. Sufocou um grande bocejo. Talvez queiras descansar até ele acordar; depois, veremos.

 

Escrutinei o rosto sereno do eremita, agora pálido do cansaço.

 

Ainda vai demorar até que acorde disse eu, olhando para a figura enroscada como que num casulo. Deixe-me ficar aqui sentada ao pé dele e vá dormir um pouco.

 

Não devias ficar sozinha com ele disse ele. Ele é imprevisível e, se bem que precise da tua ajuda, tenho ordens precisas para não pôr em risco a tua pessoa, Sorcha.

 

Disparate repliquei, sentando-me no banco de três pernas no canto da câmara. Está ali a sua pequena campainha; e eu tenho uma voz bem sonora. Além disso, não tenho eu seis irmãos para meter na ordem? Vá-se embora; pelo menos uma soneca, ou não será de grande utilidade para ninguém.

 

O padre Brien sorriu lugubremente, porque, na verdade, estava quase a cair de exaustão.

 

Muito bem disse ele mas chama-me imediatamente, assim que ele acordar. Os teus irmãos foram muito directos.

 

Ele disse que eu saberia o que fazer quando visse o rapaz. Bem, ali estava ele e não era uma grande visão, enroscado como um cão castigado, dormindo o sono dos mortos, o sono de alguém torturado para além da resistência humana. As pálpebras eram pesadas e não restava qualquer sinal de Primavera nos caracóis dourados. Tentei imaginá-lo a acordar; talvez ficasse a olhar para mim com olhos de idiota, ou com os de uma criatura selvagem encurralada; mas só me vieram à mente as velhas histórias e a imagem do herói, Culham o Aventureiro, caminhando através dos bosques, silencioso como um veado. Encostei a cabeça à parede de rocha e revivi a sua história sossegadamente, para mim própria. Era uma história contada com frequência, uma daquelas que têm tendência para aumentar e mudar à medida que são relatadas. Culhan teve muitas aventuras; sofreu muitas privações para conseguir a sua dama e reconquistar a sua honra. Levei algum tempo para as reviver a todas em voz alta enquanto o rapaz continuava a dormir.

 

Cheguei à parte em que Culhan tem que atravessar a ponte cheia de lanças em riste para alcançar a ilha mágica onde a sua amada está prisioneira. Enquanto ele tiver fé nas suas capacidades, os seus pés poderão pisar, sem medo, a ponte. Mas, se a mínima semente de dúvida se apoderar do seu coração, as lanças retalhar-lhe-ão os pés.

 

E Culhan deu um passo, depois outro. Os seus olhos eram como um fogo azul e fixou-os na margem distante. À sua frente, a ponte erguia-se como um obstáculo brilhante e os raios do Sol, incidindo nas pontas das lanças, ofuscavam-no.

 

Estava a ficar sonolenta com os fumos que vinham da pequena braseira do padre Brien; naquele compartimento fechado, a pequena porção de ervas soporíferas quase tinha acabado e o ar estava a ficar limpo.

 

«Da alta janela, a dama Edan via os passos dos seus pés nus, enquanto se moviam com segurança e graça sobre a ponte. Então, o Sol obscureceu, ao mesmo tempo que uma grande ave de rapina desceu sobre o herói.»

 

Não estava tão absorvida na minha história que não perdesse o mínimo movimento da enxerga a meus pés. Os olhos do rapaz estavam firmemente fechados, mas ele estava acordado. Continuei, só então consciente da língua em que tinha estado a falar.

 

«Guinchando de raiva, a Feiticeira, em forma de ave, atacou Culhan uma vez e outra com as garras de ferro, o bico cruel e com uma determinação venenosa. Por um instante, o herói hesitou e três gotas de sangue brilhante brotaram-lhe do pé para as águas em turbilhão do lago. Instantaneamente, transformaram-se em três peixes vermelhos, que se precipitaram na direcção dos canaviais. A ave deu um grande grito de triunfo. Mas Culhan respirou fundo e sem nunca olhar para baixo, continuou a caminhar ao longo da ponte; e a grande ave, guinchando de desespero, mergulhou na água. O que aconteceu à Feiticeira ninguém sabe; mas naquele lago, diz-se, vive um grande peixe, de aparência louca e força excepcional. E Culhan atravessou a ponte de lanças, levando de volta a dama Edan. Mas o seu pé direito ficou sempre com a cicatriz, profunda, do seu momento de dúvida. E nos seus filhos, e filhos dos seus filhos, pode ser encontrada essa marca.»

 

A história acabara, até à próxima narrativa. Levantei-me para ir buscar o cântaro da água que estava em cima da mesa e vi-o a olhar para mim com os olhos semicerrados, profundamente azuis e hostis. Ainda existia neles uma sombra da fúria desafiadora que mostrara no salão do meu pai, mas a pele estava pálida e os olhos, cavados. Não gostava nada do aspecto dele.

 

Bebe disse eu na língua dele, ajoelhando-me ao pé da enxerga e segurando na tigela que tinha enchido de água. desta vez, era apenas água; ele teria que viver com as consequências, porque eu conhecia os sinais de quem estivera demasiado tempo sob a influência da droga de certas ervas e tinha que lhe reduzir os efeitos da dosagem. Ele olhou para mim, silencioso.

 

Bebe repeti. Estiveste a dormir durante muito tempo; o teu corpo precisa disto. É só água.

 

Bebi um gole para o descansar. Devia estar sequioso, sem dúvida, após uma grande parte do dia a dormir e com a braseira acesa; mas o seu único movimento foi afastar-se um pouco de mim, nunca tirando os olhos do meu rosto. Levei-lhe a tigela aos lábios, a minha mão roçando-lhe o braço. Reagiu violentamente, apertando o cobertor contra si e encostando-se, com força, à parede, para o mais longe possível de mim. Eu podia cheirar-lhe o medo e sentir a fina vibração que lhe percorria todas as partes do corpo. Era como o estremecimento de um cavalo puro-sangue maltratado.

 

A minha mão manteve-se firme; não entornei uma gota, se bem que o meu coração estivesse aos saltos. Coloquei a tigela ao lado da enxerga e voltei para o meu lugar.

 

Muito bem, bebe-a quando te sentires pronto disse eu, sentando-me e dobrando os braços no regaço. Já ouviste a história do cálice de Isha? É uma história estranha, porque quando Bryn o encontrou, depois de ter derrotado o gigante de três cabeças e ter entrado no castelo de fogo, ao mesmo tempo que estendia o braço para pegar nele, ofuscado pelas esmeraldas e ornamentos de prata, o cálice falou-lhe. Aquele que tiver um coração puro, pode beber de mim, disse ele, numa voz baixa, mas terrível. E Bryn teve medo de pegar nele, mas a voz calou-se, ele pegou no cálice e meteu-o debaixo da capa.

 

Observei-o cuidadosamente enquanto falava; continuava encolhido, meio sentado contra a parede, apertando o cobertor.

 

Só mais tarde, quando Bryn chegou a um pequeno rio, é que se lembrou do cálice e pegou nele para beber. Mas estranhamente, quando o tirou de sob a capa, já estava cheio de água límpida. Sentou-se no chão, confuso e, antes que o pudesse impedir, o seu cavalo inclinou o pescoço e bebeu do cálice. Ainda mais estranho, quanto mais o animal bebia, mais cheio até às bordas ficava o cálice de Isha. A água não parecia ter efeitos nefastos no cavalo; no entanto, Bryn não bebeu, mergulhando antes as mãos no rio e matando a sede daquela maneira. Porque, pensou ele, um animal irracional pode ser puro de coração que não nota a diferença, mas este cálice está encantado e deve estar destinado ao maior homem do mundo e eu não passo de um pobre viajante. Como posso eu ter valor suficiente para beber de tal vaso mágico?

 

O rapaz moveu uma mão; os seus dedos fizeram uma fraca simulação do sinal utilizado para afastar o demónio. Eu já o tinha visto algumas vezes quando à passagem de viajantes, mas nunca dirigido à minha pessoa.

 

Eu não sou nenhuma feiticeira disse eu. Sou uma curandeira; e estou aqui para te ajudar a ficares melhor. Pode ser que te custe a acreditar, mas é verdade. Eu não minto. Não há razão para teres medo de mim, ou do padre Brien. Não te queremos fazer mal.

 

O rapaz tossiu e tentou humedecer os lábios com a língua ressequida.

 

Brincadeiras conseguiu ele dizer e a amargura daquelas palavras indistintas era chocante. Ao gato e ao rato. Porque é que não acabam comigo?

 

Tinha que fazer um grande esforço para as palavras poderem sair. Porém, o facto de ele falar já era qualquer coisa.

 

Demora assim tanto tempo a perceber que não falo? Acabem comigo, malditos.

 

Isto pareceu exauri-lo e deixou-se cair na enxerga olhando para o vazio, o cobertor ainda apertado em volta do corpo. Escolhi as palavras cuidadosamente.

 

Os homens é que brincam disse eu foram os homens que te fizeram isso. Mas eu não te estou a pedir que me contes qualquer segredo, ou seja o que for, só quero que fiques bom. Isto não é o cálice de Isha; bebe e só terás aquilo de que o teu corpo precisa. De qualquer maneira, foi um dos meus irmãos que te salvou e eu ajudei-o. Por que é que te havia de fazer mal depois disso?

 

Ele virou ligeiramente a cabeça e o seu olhar era de rejeição.

 

Um dos teus irmãos disse ele. Quantos irmãos tens?

 

Seis.

 

Seis repetiu ele com desdém. Seis assassinos. Seis demónios do inferno. Mas, como é que tu podes compreender? És uma rapariga.

 

O tom de voz trazia veneno e medo. Fiquei admirada como o padre Brien conseguira chegar até ali; talvez as ervas tivessem conseguido fazer com que o rapaz se tornasse cooperante e dócil, para que o que precisávamos de fazer pudesse ser feito sem disputas.

 

O meu irmão arriscou-se muito para te ajudar disse eu e eu também. Mas tu foste torturado em minha casa, pela minha gente. O meu irmão também faz o que está certo. Nunca trai um segredo. Eu posso parecer-te uma criança, mas sei o que faço, foi por isso que me foram buscar. Não sei o que tencionam fazer contigo, mas com certeza serás ajudado a alcançar um lugar de refúgio e regressar, depois, a casa.

 

Ele deu uma áspera risada, que mais pareceu o latido de um cão.

 

Casa! retorquiu ele amargamente. Não me parece. Tinha abrandado a força com que segurava o cobertor e torceu os dedos. Não há lugar para mim, lá, ou em qualquer lugar. Por que é que tu havias de te ralar comigo? Volta para as tuas bonecas e para os teus bordados.

Mandarem-te aqui foi uma loucura. Pensas que me custa muito matar-te? Agarro-te na cabeça, torço-te o pescoço... podia fazê-lo. Em que é que estava a pensar, esse teu irmão? Flectiu os dedos.

 

Óptimo disse eu aprovadoramente, tentando manter a voz calma. Pelo menos, já começaste a pensar, mas olha à tua volta. Talvez o meu irmão estivesse enganado e o padre Brien também; esperarem que um guerreiro como tu seja capaz de pagar uma dívida. Talvez eles pensassem que há um código de honra entre o teu povo, tal como entre o nosso.

 

Honra? Ah! Ele olhou directamente para mim e eu pensei que o rosto dele podia ser belo para um bretão, não fossem as marcas de dor e exaustão. O nariz era comprido e direito, as faces bem cinzeladas e fortes. Tu não sabes nada, rapariga. Diz ao teu irmão que te leve até uma aldeia depois de ele e os homens dele terem acabado com ela. Ele que te mostre o que restou. Pergunta-lhe se ele alguma vez espetou uma espada numa mulher grávida, como se fosse um porco. Recorda-lhe o hábito do teu povo de cortar os membros das suas vítimas enquanto elas pedem, a gritar, que as matem depressa. A voz dele subiu de tom. Pede-lhe que te fale no uso criativo que dão ao ferro em brasa. Depois, já me podes vir falar de código de honra.

 

Parou, começou a tossir e eu aproximei-me dele sem pensar, levando-lhe a tigela aos lábios. Entre o paroxismo da tosse, a necessidade de respirar e o tremor da minha mão, a maior parte da água caiu sobre a enxerga, mas conseguiu engolir alguns goles. Finalmente a respiração acalmou, continuou a tossir penosamente e olhou para mim sobre a borda da tigela, vendo-me pela primeira vez.

 

Maldita sejas disse ele calmamente, tirando-me a tigela das mãos e bebendo o resto da água. Malditos sejais todos vós.

 

O padre Brien aproveitou aquele momento para aparecer, olhou para mim demoradamente e mandou-me sair. Sentada sob as sorveiras-bravas e escutando os pequenos sons dos pássaros e insectos na sua labuta diária, chorei pelo meu pai, pelos meus irmãos e por mim própria.

 

O padre Brien ficou lá dentro durante bastante tempo. Por fim, as minhas lágrimas cederam e passaram a uns leves soluços, assoei-me, tentei passar para além da dor provocada pelo que o rapaz dissera e concentrei-me na tarefa que ali me trouxera. Mas era difícil; tinha que argumentar comigo própria.

 

Finbar é bom. Conheço-o tão bem como me conheço a mim própria.

 

Por que é que, então, não me disse nada? Porquê esperar, até o mal estar feito, para a operação de salvamento? E os outros? Não fizeram nada.

 

Liam é meu irmão. O nosso guia e protector. A nossa mãe deu-lhe essa tarefa. Ele não pode fazer coisas malvadas.

 

Liam é um assassino como o pai dele. Assim como o sorridente Diarmid. Oferece-nos um rosto radiante, mas, na verdade, procura ser como todos os outros.

 

E Conor? Ele não vai para a guerra. Ele é justo. Ele é um pensador.

 

Ele também podia falar e não o fez.

 

Mas ele ajudou-nos. Pelo menos, penso que ajudou; ele sabia do rapaz e não me impediu.

 

Conor é um grande manhoso.

 

Cormack ainda não sabe nada de guerra; para ele é uma brincadeira e um desporto, um desafio. Não perdoaria a tortura.

 

Ele aprende depressa. Tem sede de sangue.

 

E Padriac? Está inocente em tudo isto, absorvido pelos seus animais, experiências!

 

É verdade. Mas durante quanto tempo? E tu, Sorcha? Tu já não és inocente,

 

E assim guerreei comigo própria, sem conseguir ignorar aquela outra voz. Era uma agonia acreditar: seria possível que aqueles irmãos que me tinham tratado dos joelhos feridos e levado, com razoável paciência, para tantas aventuras infantis, fossem os selvagens cruéis e sem escrúpulos que o rapaz descrevera? E se assim era, qual era a nossa posição, a de Finbar e a minha? Eu não era tão ingénua, mesmo aos 12 anos, que acreditasse que apenas um dos lados daquele conflito era capaz de torturar e provocar dor. Teríamos salvo um inimigo inocente? Não se poderia confiar em ninguém?

 

O padre Brien demorou-se. Fiquei onde estava enquanto o conflito na minha alma ia abrandando e a minha mente era tomada por uma tranquilidade que emanava das velhas árvores e do solo que as alimentava. Era um sentimento familiar, porque havia muitos locais, na grande floresta, onde se podia beber a sua energia, encarnar o seu velho coração. Quando estamos perturbados, podemos encontrar a solução para os nossos problemas em tais locais. Eu conhecia-os e Finbar também; dos outros não tenho a certeza, porque muitas vezes, quando nos sentávamos ambos entre dois ramos de um grande carvalho, ou nas rochas observando a água, os outros corriam, ou trepavam, ou nadavam no lago. Mesmo assim, eu estava a aprender o quão pouco conhecia os meus próprios irmãos.

 

A chuva parara por completo e no abrigo da pequena mata o ar estava húmido e fresco. As aves saíram dos seus esconderijos; as suas canções flutuaram por cima de nós, passando e voltando a passar, lá no alto. Em tais momentos calmos ouvia, muitas vezes, vozes a falarem-me e tomava-as por espíritos da floresta, pelas almas das próprias árvores. Por vezes, sentia que era a voz da minha mãe que falava. Mas naquele dia as árvores estavam calmas e a minha mente estava num lugar distante quando um ligeiro movimento no outro lado da clareira me assustou e me tirou do transe em que estava.

 

Não tinha a mínima dúvida de que a mulher que estava ali, à minha frente, não era deste mundo; era excepcionalmente alta e magra, o rosto leitoso, o cabelo escuro até aos joelhos e a capa da cor de azul-profundo do céu ocidental, entre o entardecer e a noite. Levantei-me lentamente.

 

Sorcha disse ela e a sua voz era como uma música terrível. Tens uma longa jornada à tua frente. Não há tempo para choros.

 

parecia-me crudalmente importante fazer as perguntas certas, enquanto tinha oportunidade. O medo paralisou-me a língua, mas forcei as palavras a sair.

 

Os meus irmãos são demoníacos, como este rapaz diz? Somos todos amaldiçoados?

 

Ela riu-se, um som suave, mas com uma força para lá de qualquer coisa humana.

 

Nenhum homem é verdadeiramente demoníaco disse ela. descobrirás isso por ti própria. E a maior parte deles mente, pelo menos muitas das vezes, ou dizem as meias verdades que lhes convêm. Não o esqueças, Sorcha, a Curandeira.

 

Falaste numa longa jornada. Que devo fazer primeiro?

 

Uma jornada mais longa do que podes imaginar. Já estás no caminho que te foi preparado e o rapaz, Simon, é um dos marcos. Esta noite, apanha musgo dourado. Podes usar essa erva para lhe acalmares a mente.

 

E que mais?

 

Encontrarás o caminho, filha da floresta. Através de desgosto e da dor, através de muitas privações, através da traição e da perda, os teus pés percorrerão o caminho certo.

 

Começou a desvanecer-se perante os meus olhos, a capa azul-escura misturando-se com a escuridão da folhagem por trás dela.

 

Espera comecei a correr através da clareira.

 

Sorcha? Era a voz do padre Brien, chamando-me da caverna. E a mulher desapareceu instantaneamente, como se nada tivesse ali estado senão as sombras da tarde agitando-se sob a brisa. O padre Brien emergiu da entrada da caverna, secando as mãos a um pano.

 

Estou a ver que temos um visitante disse ele suavemente. Olhei para ele vivamente e depois para as sombras. Surgindo cautelosamente na clareira, como se não estivesse segura de ser bem-vinda, apareceu Linn, a cadela. Tinha-me seguido até ali. Falei-lhe gentilmente e ela correu para mim em frenesim, como resposta, o corpo todo agitando-se, abanando a cauda num reconhecimento atrasado e numa necessidade urgente de afecto.

 

Vem para dentro disse o padre Brien. Traz a cadela, ela não deve fazer mal nenhum. Precisamos de falar acerca deste rapaz e rapidamente. Os efeitos da minha poção já desapareceram e eu hesito em dar-lhe mais. E se não o convencermos a cooperar, não lhe conseguirei tratar as feridas. Virou-se para entrar. Já recuperaste? acrescentou ele gentilmente. Ele sabe quais são as palavras que deve pronunciar para provocar mais dano. Deve ser a única arma que lhe resta.

 

Eu estou bem disse eu, com a Visão ainda na minha cabeça. Baixei uma mão para tocar na cadela e a língua dela nos meus dedos assegurou-me que o mundo real ainda estava presente, assim como o outro. Estou óptima.

 

O rapaz estava sentado na enxerga, enroscado, de costas para nós. Devido às suas palavras provocadoras e olhares furiosos, os ombros dele lembravam-me um pequeno animal demasiado castigado, que se retira para dentro de si próprio, desorientado, devido a um mundo malvado.

 

As feridas dele precisam de ser limpas e ligadas disse o padre Brien na nossa língua. desembaracei-me bem enquanto ele estava meio a dormir, apesar do medo. Mas agora...

 

Ele precisa de sair deste ambiente das ervas disse eu se queremos ter alguma hipótese de o mandar para casa com a mente sã. Devíamos limpar o ar por completo e levá-lo lá para fora, para o calor do dia, se conseguirmos. Ele pode andar?

 

Um breve olhar passou pelo rosto plácido do padre Brien; um olhar frio, misturado de desgosto e piedade.

 

Não me atrevi a movê-lo, salvo para lhe tratar as feridas disse cautelosamente. Ainda tem muitas dores e tirar-lhe os soporíferos assim, de repente, vai-lhe custar muito. Sem eles vai-lhe ser difícil dormir, porque tem medo dos sonhos.

 

Com a Visão ainda viva nos meus olhos, pressenti o que devia fazer, se bem que, valha a verdade, a Dama me tivesse dado bem poucas instruções práticas. Mas algo dentro de mim me indicava o caminho.

 

Amanhã disse eu. Amanhã tem que ir para o Sol e para o céu aberto. A partir de agora, só uma erva, só musgo dourado e cortado à noite. Eu faço isso mais tarde. Agora, que tal se lhe ligássemos as feridas?

 

Dirigi-me para a enxerga. Linn, seguiu-me, caminhando confiantemente até ao rapaz com as suas grandes patas. Sabia que ele não era Cormack; mas era parecido. Avançou e pousou o nariz na mão dele.

 

Calma, Linn disse eu na língua que o rapaz conhecia. Após o primeiro gesto instintivo de recuo, ele deixou os dedos relaxarem-se e a cadela lambeu-os entusiasticamente. O rapaz olhou-a com os olhos semicerrados, sem dizer nada.

 

O padre Brien preparou uma tigela com água morna, na qual misturara camomila e raiz de malva; e panos suaves. Devia ter havido uma tentativa para começar o tratamento enquanto eu estava lá fora, porque a ligadura estava em desordem e havia mais água entornada. O eremita moveu-se na direcção da enxerga.

 

Eu disse não. O rapaz foi peremptório.

 

Deves saber replicou o padre Brien, nada perturbado como soldado que és, o que acontece se essas feridas não forem tratadas; atraem humores maléficos, ficam loucas e as febres tomam conta de ti, fazendo com que tenhas aparições, ardas e morras. Gostavas de ter um fim assim? O tom era suave, enquanto lavava as mãos com cuidado e as secava no pano.

 

Ela que faça isso. O rapaz atirou um olhar na minha direcção, sem mexer a cabeça. Ela que veja o que o povo dela me fez e que se penitencie por isso. Eu disse a verdade. O meu corpo é testemunha.

 

Não me parece disse o padre Brien rapidamente e pela primeira vez havia uma leve irritação na sua voz. Sorcha é uma criança; essas feridas não são para os olhos de uma rapariga e devias ter vergonha de fazer tal sugestão. É trabalho de homem e sou eu que o vou fazer.

 

Toca-me outra vez e eu mato-os aos dois. O rapaz era sincero; e talvez tivesse força suficiente para tentar. A rapariga que o faça, ou então prefiro apodrecer. É a minha última palavra.

 

Duvido que conseguisses fazer o que dizes, embora não te falte vontade para isso disse eu. Mas eu trato-te das feridas com uma condição.

 

Condição? estalou o bretão. Que condição?

 

Eu faço tudo o que for necessário disse-lhe eu firmemente. Mas apenas se tu cooperares. Deves ouvir quando falo contigo e fazer o que eu mandar, porque tenho o poder de te curar.

 

Ele riu-se. Não era um som agradável.

 

- És uma bruxinha arrogante, não és? Não sei se não seria melhor deixares-me apodrecer e entregue à febre. No fim, o resultado deve ser o mesmo. O que é que pensas, velho?

 

Não gosto nada disto e os teus irmãos também não deveriam gostar, Sorcha. Devias deixar esse trabalho para mim.

 

Então, porque me trouxe aqui? perguntei simplesmente. E como não tinha resposta, ficou calado.

 

Fora disse o rapaz, conhecendo a vitória quando a via e o padre Brien saiu, relutante, submetendo-se ao inevitável.

 

Eu estou mesmo aqui à porta, Sorcha disse ele na nossa língua, da qual o rapaz parecia não perceber patavina. E desta vez não demores muito tempo a chamar-me. O que vais ver vai-te angustiar e não vou estar aqui para te ajudar. Trata-o como se estivesses a tratar um animal doente e não tentes arcar com as culpas, criança.

 

Eu fico bem disse eu, sentindo que o espírito da Dama da Floresta ainda estava comigo e pronto para fazer o que tinha de ser feito.

 

Não me vou demorar no que se seguiu. despir-se diante de mim e submeter-se ao meu tratamento foi-lhe penoso, tanto física como mentalmente. Testemunhar as suas feridas e constatar a natureza vil da imaginação do homem foi uma experiência que me queimou o coração, do mesmo modo que os instrumentos de tortura lhe tinham queimado o corpo. Nunca mais seria o mesmo, nem conheceria a alegria estouvada da virilidade que eu vira nos meus irmãos ao lutarem juntos, ou a namorarem raparigas. Era inacreditável que outro homem lhe tivesse feito aquilo. Enquanto trabalhava, contei-lhe o resto da história do cálice de Isha, porque isso afastava-nos as mentes daquela tarefa terrível; e Linn sentou-se, ansiosamente, ao lado da enxerga, lambendo delicadamente o punho fechado do bretão. O rapaz ainda tentava recuar ao meu toque, mas tendo concordado com o combinado, foi estóico à dor, tendo gritado apenas uma vez.

 

Por fim a história acabou, assim como a minha tarefa. Com o corpo ensopado em suor e o rosto lavado em lágrimas, deitei o paciente o mais confortavelmente possível e estendi-lhe por cima do corpo ligado de fresco um cobertor lavado. Durante os pequenos momentos que me foram necessários para ir buscar o cântaro, a cadela subiu para a enxerga e estendeu-se ao lado dele, a cauda abanando gentilmente. A sua expressão disse-me que esperava que eu não me importasse.

 

Bom trabalho, Simon disse eu, segurando numa tigela com água para que ele bebesse e, desta vez, ele bebeu: estava demasiado exausto para protestar, apesar do medo. Talvez consigas dormir, agora. Um de nós estará aqui, se precisares. Linn Estalei os dedos. Para baixo!

 

Não... A voz dele era uma sombra de som. Deixa-a. A mão dele pousou no pêlo hisurto, cinzento, da cadela.

 

Virei-me, pensando em ir chamar o padre Brien. Estava demasiado cansada para sentir fome, mas o meu trabalho desse dia ainda não tinha terminado.

 

Não. Olhei para ele.

 

Quieta.

 

Eu não sou um cão para obedecer às tuas ordens disse eu. Preciso de comer e tu também devias.

 

A história disse ele debilmente, surpreendendo-me. Acaba a história. OBryn chegou a beber do cálice, ou duvidou de si próprio para sempre?

Sentei-me de novo, lentamente.

 

Bebeu disse eu, procurando, no meu íntimo, força para continuar. Mas só muito, muito mais tarde, porque após todas as suas aventuras e as doenças que afectaram muitos outros que tentaram utilizar o cálice de Isha, ele colocou-o numa prateleira nas traseiras da sua cabana e esqueceu-o. Ali ficou o cálice com as suas esmeraldas e rubis, entre as velhas canecas e louça de estanho e nem uma única alma reparou nela. Porque Bryn ficou na sua cabana, ao lado da floresta encantada com o seu labirinto de espinhos e ali envelheceu; e guardou a única entrada, não deixando ninguém passar, homem ou animal. Houve muitas raparigas que o teriam desposado, se ele quisesse, mas ele recusou-as a todas polidamente. ”Sou apenas um humilde homem,” dizia ele, ”não presto para vós, damas educadas. Além disso, o meu coração pertence a alguém.”

 

Ao longo dos anos teve imensas oportunidades para sair dali, para a guerra, com soldados, ou para fazer fortuna, com viajantes, mas nada disso fez. ”Esta é a minha vigília,” dizia-lhes ele, ”e aqui fico. Morrerei no meu posto.” E quando acabaram os 30 anos e Bryn era muito, muito velho, com longas barbas até aos pés, a maldição foi levantada e a parede de espinhos dissolvida; e de lá saiu uma dama muito, muito velha, com um vestido branco todo esfarrapado e o rosto enrugado como uma ameixa seca. Mas Bryn reconheceu nela, instantaneamente, a sua amada e caiu de joelhos diante dela, dando graças pela sua libertação. ”Tenho sede,” disse a velha dama numa voz de cana rachada (mas para Bryn era o mais maravilhoso som que ouvira na sua vida). ”Arranja-me de beber, soldado, por favor.” E como só havia na sua humilde casa um cálice digno de uma dama daquela posição, o velho foi buscar o cálice de Isha às prateleiras poeirentas da cozinha e, espantado, viu que estava cheio até às bordas de água límpida e fresca. Com as mãos a tremer, ofereceu-o à dama.

 

””Deves beber primeiro” disse ela e ele não teve força para ir contra a vontade da dama. Bebeu um gole, ela bebeu um gole e as pedras preciosas do cálice brilharam como estrelas. Quando Bryn olhou para cima, lá estava a amada do seu coração, tão nova e bela como no dia em que a perdera. E quando olhou para o cálice de Isha, o reflexo mostrou-lhe uns caracóis negros e um deslumbrante sorriso.

 

Mas, mas, eu pensei...” mal conseguia pronunciar uma palavra, porque o seu coração batia como um grande tambor. A sua amada sorriu e pegou-lhe na mão. ”Devias ter bebido dele há muito tempo”, disse ela, ”porque nenhum homem, que não fosse puro, teria esperado 30 anos pela sua amada!” Ela pousou o cálice sobre uma pedra ao lado do caminho, entraram juntos na pequena cabana e ali viveram juntos o resto das suas vidas. E o cálice de Isha? descansa entre os fetos e as margaridas, esperando que um outro viajante o encontre.

 

O rapaz estava quase a dormir, o rosto próximo do repouso como eu ainda não tinha visto, mas ainda cauteloso. Falou num sussurro.

 

Se não és uma bruxa disse ele como é que sabes o meu nome?

 

Disse-me uma das Criaturas Encantadas. A verdade era essa, mas eu não esperava que ele acreditasse. Pensei rapidamente. Como já disse antes, mentir era uma habilidade que eu não possuía, era tão hábil nisso como o meu irmão Finbar.

 

Responder-te-ei a isso quando te vir em pé e lá fora foi o melhor que consegui arranjar. Agora, deves descansar enquanto eu vejo se o padre Brien tem alguma comida para nós. A cadela também deve estar esfomeada.

 

Mas quando tentei chamar Linn para me seguir, ela meteu o focinho peludo entre as patas e olhou simplesmente para mim com aqueles olhos líquidos, de cão. A mão de Simon descansava-lhe no lombo, os dedos movendo-se contra o pêlo áspero. E assim os deixei, aos dois, por um bocado.

 

Seguiu-se o tempo mais estranho da minha vida, pelo menos até à data, porque o que se seguiu não foi apenas estranho, mas fora da compreensão mortal. Na primeira noite fiz o que a Dama me ordenara, ir até aos grandes carvalhos e trepá-los até ao alto, onde havia uma delicada rede de musgo dourado, suspensa como uma constelação de estrelas entre os maciços ramos dos gigantes da floresta. Utilizei uma pequena foice para cortar a quantidade de que necessitava. O padre Brien estava preocupado com a hipótese de eu poder cair ou cortar-me. Mas eu expliquei-lhe como aquela erva era sagrada para os da antiga fé. Na verdade, é tão mística e poderosa que o seu verdadeiro nome é secreto, não deve ser dito em voz alta nem escrito. Chamávamos-lhe musgo dourado, ou visco, ou outro nome qualquer em vez do seu verdadeiro nome. É uma erva estranha, fora das leis da natureza, porque não cresce virada para a luz como as outras plantas, mas para onde lhe apetece, para cima, para baixo, para leste, para oeste, para onde a fantasia a leva. Nem cresce no solo, apenas nos ramos mais altos dos carvalhos, das madeiras, dos pinheiros ou dos choupos, enroscando-se em volta dos ramos, descansando nas suas copas. Não quer saber das estações, pois pode ter ao mesmo tempo bagas verdes, flores e folhas verdes. A sua colheita tem regras severas e eu segui-as o melhor possível, porque parecia que tinha tido autorização.

 

O musgo dourado podia ser usado de muitas maneiras e eu servi-me da maior parte delas na minha tentativa para ajudar o bretão. Entrançado em círculo e pendurado sobre a enxerga, era eficaz no afastamento dos terrores nocturnos. Fiz uma infusão e todos a bebemos, mas frugalmente.

 

Esperava que a minha cura livrasse, pelo menos parcialmente, o corpo de Simon da influência das ervas que tinham sido essenciais até agora; e ele precisava deste remédio, o mais poderoso de todos. Quando o colhi, numa noite de lua em quarto crescente, vi uma coruja a voar por cima de mim, descendo e subindo no céu nocturno, frio e silencioso. Talvez fosse aquela que eu conhecia, agora de novo parte do mundo da escuridão Os poucos dias que Conor me tinha dado vieram e foram, assim como Finbar. Montava um robusto pónei das montanhas, cuja garupa nos podia levar a ambos, com facilidade, para casa. O padre Brien estava na sua cabana, fazendo um belo trabalho com pena e tintas, enquanto Simon e eu estávamos sentados (ou melhor, deitados) na relva, um pouco mais longe, pelo monte abaixo. Movê-lo pela primeira vez tinha sido um pesadelo. Cada passo era, para ele, uma agonia, mas recusou-se a ser carregado por um velho e uma fedelha magricela que falava de mais, como ele disse. Andou, portanto, mordendo os lábios, em silêncio, e eu senti no meu próprio corpo a dor que o atormentava, enquanto lhe segurava o braço e caminhava a seu lado.

 

Espero que saibas o que estás a fazer, Sorcha disse o padre Brien. parecia ansioso, mas deixava o tratamento nas minhas mãos. Do outro lado de Simon a cadela caminhava firme, refreando a sua boa-disposição habitual, encostando-se ligeiramente para o ajudar a manter-se direito. A mão dele segurava-lhe a coleira.

 

Sei disse eu e o padre Brien ficou descansado.

 

Assim, no dia em que Finbar chegou lá estávamos nós os três, Simon, eu e a cadela, mas esta tinha deixado a nossa companhia para farejar as árvores, a cauda abanando de um lado para o outro ao apanhar o cheiro de um coelho. Por essa altura já nós tínhamos conversado bastante, ou antes, eu falava e Simon ouvia, já que não tinha outra escolha. Eu não lhe perguntava nada e, assim, ele nada respondia; e eu limitei-me às velhas lendas, fragmentos de canções e ocasionalmente falava acerca da minha floresta e de algumas coisas estranhas que ali se passavam. Ele conseguia ser rude e até cruel, e era ambas as coisas quando lhe convinha. Ouvi muita coisa sobre a natureza do meu povo e o que tinha feito, ao longo dos anos ao povo dele; e era imaginativo nos insultos que me fazia e ao padre Brien. Mas com esses podia eu bem; as histórias da guerra é que me custavam, o que fazia com que, provavelmente, eu falasse a maior parte do tempo pelo menos mantinha-o calado. A sua disposição mudava constantemente, passando da tolerância exaustiva para a fúria e para o terror quase instantaneamente e cuidar dele esgotou-me as energias, mais do que qualquer outro paciente que eu tenha tratado. Mudava-lhe as ligaduras duas vezes por dia, porque ele não deixava o padre Brien aproximar-se. Nunca me habituei àquela tarefa.

 

Por essa altura começou a dosenvolver-se uma espécie de aceitação mútua. Se bem que fizesse chacota da improbabilidade das minhas lendas, sei que gostava delas. O ar fresco e os passeios, por mais que lhe custassem, tinham-lhe trazido novas cores ao rosto e os olhos azuis já tinham alguma vida. Escovei-lhe o cabelo; queixou-se mais do puxar dos nós e das madeixas emaranhadas do que das dores cruéis das feridas. Tomei isso como um bom sinal; porque tudo era preferível ao desespero com que ele esperava o fim dos dias e ao terror com que acordava de noite.

 

E então chegou Finbar. Deixou o pónei a alguma distância e caminhou o resto a pé. Por hábito, movia-se silenciosamente, de maneira que o seu aparecimento na orla do bosque foi repentino. Simon levantou-se num ápice, a rápida admissão de ar, áspera, o único sinal do que lhe custara o movimento e eu senti o meu cabelo a ser apanhado por trás e um objecto de metal no meu pescoço.

 

Dá mais um passo e corto-lhe o pescoço disse ele e Finbar parou imediatamente, pálido como a cera. Não se ouvia qualquer som, salvo o distante pipilar de uma ave chamando um rival; e a respiração apressada de Simon por trás de mim. Finbar estendeu os braços lentamente, mostrando-os descontraídos e vazios; acocorou-se, depois, as costas direitas como uma jovem árvore, o olhar vigilante. As sardas sobressaíam na palidez do rosto e a boca era apenas uma linha fina. Eu conseguia ouvir o padre Brien a falar sozinho na cabana. A pressão da faca afrouxou, ligeiramente, na minha garganta.

 

Este é o teu irmão?

 

Um deles disse eu, a minha voz uma espécie de guincho. Simon abrandou um pouco a prisão. Finbar salvou-te. Foi ele que te trouxe para aqui.

 

Porquê? A voz era sem timbre.

 

Acredito na liberdade disse Finbar com uma firmeza admirável.

 

Tento emendar o mal quando posso. Não foste o primeiro. Já ajudei outros antes. No entanto, o que aconteceu depois, desconheço. Importas-te de libertar a minha irmã?

 

Porque é que hei-de acreditar em ti? Quem é que, no seu perfeito juízo, enviaria a sua irmã para os braços do inimigo, sozinha, com excepção de um clérigo tremeliques? Quem é que trairia a própria família? Que espécie de homem faz isso? Talvez tenhas ali nas árvores um bando de guerreiros preparados para me levarem e acabarem o que começaram.

 

A voz de Simon era controlada, mas eu sentia-lhe a tensão no corpo e sabia a agonia por que passava ao suster-me em pé. Não o conseguiria por muito mais tempo Falei directamente para Finbar, sem palavras, de mente para mente.

 

Deixa isto comigo. Confia em mim.

Finbar pestanejou para mim, baixando a guarda por um momento. Li-lhe nos pensamentos uma ira e uma confusão que nunca lhe tinha visto antes.

 

Não é em ti que não confio, é nele,

 

Nunca me sujeitei muito às características mais fracas de uma mulher; de facto, apesar do meu tamanho pequeno e aparente delicadeza, sou uma pessoa forte e capaz de aguentar muito. Nunca me julguei capaz de tal decepção e arriscava-me muito quanto à provável reacção de Simon. Mas, na ocasião, foi a única coisa que me veio à mente. Soltei um ligeiro gemido, dobrei os joelhos e Simon largou a faca, tentando apanhar-me antes que eu atingisse o chão. Mantive os olhos firmemente fechados, ouvindo Finbar a fazer ruídos de preocupação, Simon a apanhar a faca e a avisar o meu irmão para que se mantivesse afastado. E depois a voz do padre Brien alertado pelo barulho, estava rapidamente ao meu lado, limpando-me o rosto com um pano que cheirava a alfazema. Abrindo os olhos cuidadosamente, vi uma expressão retorcida no rosto do bom padre. Ele não se deixara enganar.

 

Virei a cabeça para o lado. Finbar estava sentado exactamente como antes, de pernas cruzadas, completamente direito, impávido. Virei a cabeça para o outro lado. Simon estava muito perto, encostado a uma grande pedra, a faca mal segura na mão. Senti que me tinha estado a observar, mas agora os olhos estavam virados na direcção das árvores. Não gostei do aspecto dele. O rosto estava pálido e transpirava, coisa que eu pensava já ter desaparecido.

 

Aparentemente, parecia que os quatro não sabíamos o que fazer, ou para onde ir a seguir. O problema foi resolvido inesperadamente pela cadela-lobo, Linn, que se tinha cansado da caça ao coelho e corria na nossa direcção, da floresta, espantada por ver tantos amigos de repente. Atirou-se primeiro a Finbar, plantando-lhe as patas nos ombros e lambendo-lhe o rosto vigorosamente. A seguir virou-se para mim, descuidada do meu aparentemente delicado estado de saúde, plantando-me as pesadas patas no estômago, ao passar. Circulou à volta de Simon, trémula de antecipação, mas ainda cuidadosamente, para não o magoar.

 

Bem, crianças disse o padre Brien, com sentido prático vou buscar uma taça de hidromel, porque me parece que todos necessitamos dele. Depois, falamos. Tentai não vos magoar uns aos outros por uns momentos, peço-vos.

 

Levantou-se e Simon deixou-o ir. No entanto, eu ainda não podia fazer o mesmo, porque assim que fiz tenção de me levantar senti-lhe a mão no meu braço e ainda havia determinação na pressão. Havia uma certa reserva de força nele que eu não imaginava.

 

Ficámos ali pouco à-vontade até o padre Brien regressar, transportando um jarro e umas taças e só então Finbar começou a falar na nossa língua.

 

Não! disse eu rapidamente, cortando-lhe a fala. Fala de maneira a que Simon possa compreender-te. Já chega de segredos. Podemos ser inimigos, mas sejamos civilizados.

 

Achas que sim? perguntou Finbar de sobrancelhas levantadas.

 

Aqui o bretão não se mostrou nada civilizado.

 

Ora bem disse o padre Brien, dando a cada um de nós uma taça simulemos uma trégua, pelo menos, e tentemos resolver isto. Acredito que Finbar veio aqui em paz, jovem; veio buscar a irmã para a escoltar para casa.

 

Como vês, estou desarmado disse Finbar abrindo os braços. Uma mecha de cabelos caiu-lhe para os olhos, mas não fez menção de a afastar. Era para mim que ele agora estava a olhar. Vim buscar Sorcha, só isso. Pensei em te perguntar como estavas, para saber se tinha valido a pena salvar-te; mas não me preocupo mais com isso.

 

Ele não pretende magoar-me. Não percebes?

 

Finbar levantou as sobrancelhas para mim, incrédulo. Simon estava silencioso, a sua taça a seu lado, na relva, intacta. Senti-lhe a mão a arder na minha pele, através do tecido fino do meu vestido. A cadela farejava o hidromel.

 

Algumas notícias do teu pai, Finbar? perguntou o padre Brien casualmente.

 

Ainda não. Penso que ainda vai demorar um bocado. O seu paciente estará em segurança enquanto ele não voltar. Gostaria de poder dizer o mesmo da minha irmã. Para quem foi chamada aqui para curar, parece que não tem sido muito bem tratada. Parece-me que devia ter vindo mais cedo.

 

A voz de Simon era cruel.

 

De que é que estavas à espera? De uma festa de boas-vindas? Gratidão bajuladora? Dá-me uma razão para estar grato pelo meu regresso à vida.

 

Silêncio.

 

Meu filho disse o padre Brien o futuro parece-te negro, agora, e não podemos saber onde te levará. Mas há uma luz em cada caminho. Com o tempo, encontrá-la-ás.

 

Poupa-me a tua fé de trazer por casa disse Simon, fatigado. desprezo-a e a ti também.

 

Não estás em posição de lha atirares à cara disse Finbar suavemente. Ele preocupa-se contigo e com os teus, precisamente por causa dessa fé. Sem ela, seria um assassino como os da minha família. Ou, talvez, como os da tua.

 

Na verdade, fui, em tempos, um homem desses. Conheço o poder de uma causa e como ela pode cegar-nos face à realidade. Finbar sabe isso muito bem. Talvez a tua missão na vida seja aprendê-la. O padre Brien estava pensativo.

 

Quero lá saber das tuas missões! Não sirvo para nada. Assim que ela acabar de tratar de mim, caio para o lado, a cheirar mal. Terias feito melhor se não tivesses interferido, se me tivesses deixado onde estava. O fim teria sido mais rápido. Simon ainda controlava a voz, mas um estremecimento convulsivo percorreu-lhe o corpo. Abri a boca para falar, mas Finbar antecipou-se.

 

Eu vou levar a minha irmã para casa disse ele. Pensei que te podia ajudar e ela também. Mas não posso permitir que seja magoada ou ameaçada. Fizemos o que pudemos e parece que já não precisas dos nossos serviços.

 

Simon riu-se ironicamente.

 

Calma aí, irmãozão disse ele. Ainda tenho a minha faca e ainda valho alguma coisa. A pequena feiticeira fica comigo. Mandaste-a aqui para me curar; portanto, ela que me cure. Ela acredita no impossível. Eu, não.

 

Esqueces-te que ela é apenas uma criança disse o padre Brien.

 

Criança? Ah! Simon deu uma risada triste. Por fora, talvez Mas não se parece com nenhuma criança que eu tenha conhecido. Qual é a criança que conhece as propriedades das ervas e mil histórias, cada uma mais estranha do que a outra e como... A voz dele vacilou. Finbar olhou para o padre Brien, que retribuiu o olhar reflectidamente. O meu braço começava a doer-me no local onde Simon tinha os dedos fincados.

 

Não vos compete a vós decidir disse eu, tão firme quanto pude. Olhei para cada um deles à vez; para Finbar, com o seu rosto pálido e olhos cinzentos e para o suave e penetrante olhar do padre Brien. O punho de Simon no meu braço dava-me a conhecer a sua dor e desespero. Eu tenho um trabalho a dosempenhar aqui e ainda não acabou. todos vós, juntos, acabais de desfazer a maior parte do meu trabalho desta tarde. Finbar, tu deves voltar para casa e deixar-me aqui para que eu faça o que tenho a fazer. Acredita que fico segura. Eu chamo-te quando estiver pronta.

 

Ele precisa de mim, Finbar.

 

Não te deixo aqui.

 

Tentava manter-me afastada dos seus pensamentos, mas não conseguia esconder a culpa e a confusão. O que me preocupava. Não era Finbar o irmão que estava sempre certo, que sabia sempre o que fazer?

 

Deves deixar-me. A escolha é minha.

 

E assim acabou por fazer. Felizmente, o padre Brien acreditava no que eu estava a fazer, porque foi ele que convenceu o meu irmão a ir para a cabana e a deixar-me sozinha com o meu paciente por um bocado.

 

Simon deixou-os ir, silencioso. Só depois de eles estarem afastados e a porta da cabana fechada com um ruído surdo é que o punho fechado sobre o meu braço se abriu e procurou um apoio e o bretão deixou sair um longo e estremecido suspiro. Os dois, a cadela e eu, levámo-lo para a caverna, deitámo-lo e eu quebrei todas as minhas regras, admimstrando-lhe uma poção que lhe provocaria um sono razoável. Depois sentei-me ao pé dele, falando disto e daquilo, vendo-o a retrair-se com a dor e a lutar para se manter silencioso. Após um certo tempo, os efeitos da erva apoderaram-se dele e as feições começaram a descontrair-se e os olhos a enevoarem-se. O meu braço doía-me e fui de mansinho às prateleiras do padre Brien em busca de um unguento, talvez raiz de malva-silvestre, ou flor-de-sabugueiro. Encontrei o que procurava numa tigela pouco profunda com tampa e regressei para o meu banco para untar as minhas equimoses. Tinha um anel vermelho em volta do meu antebraço. Consegui algum alívio massajando-o com o unguento.

 

Algo me fez olhar para cima ao colocar de novo a tampa na tigela. Simon ainda estava acordado, as pesadas pálpebras deixando ainda ver um pouco dos assustadores olhos azuis.

 

Ficas com marcas por uma coisa de nada disse ele indistintamente. Não queria magoar-te. Então, as pálpebras caíram e ele adormeceu. A cadela aproximou-se e aninhou-se ao pé dele na estreita enxerga.

 

Houve então um pequeno intervalo para explicações e decisões. Fui para a cabana e ficámos lá, mas com a porta aberta porque, como disse aos outros, Linn avisar-me-ia se Simon acordasse. O padre Brien insistiu em que Finbar e eu comêssemos e bebêssemos, se bem que nenhum de nós tivesse estômago para tal.

 

Levou algum tempo a persuadir Finbar a ir para casa. Continuava a acreditar que eu estava em perigo e jurou que Conor nunca concordaria que eu ficasse. Usei o seu velho argumento contra ele próprio: não se devia presumir que um bretão era demoníaco só por causa do cabelo dourado, ou da estatura, ou da estranha maneira de falar. Era um ser humano com forças e fraquezas, tal como nós. Não o dissera Finbar muitas vezes, até ao nosso pai?

 

Mas ele ameaçou matar-te disse Finbar, exasperado comigo. Encostou-te a faca à garganta. Isso não quer dizer nada?

 

Ele está doente disse eu. Tem medo. E eu estou aqui para o ajudar. Além disso, disseram-me... interrompi-me.

 

O olhar de Finbar aguçou-se.

 

Disseram-te o quê? Não podia mentir.

 

Disseram-me que era algo que eu devia fazer. Apenas o primeiro passo de um caminho longo e difícil. Eu sei que tenho de o fazer.

 

Quem te disse isso, Sorcha? perguntou o padre Brien gentilmente. Estavam ambos a olhar para mim intensamente. Escolhi as palavras cuidadosamente.

 

Lembras-te da velha lenda de Conor, aquela sobre Deirdre, a Dama da Floresta? Creio que era ela.

 

O padre Brien aspirou ruidosamente.

 

Tu viste-a?

 

Creio que sim disse eu, surpreendida. Fosse qual fosse a reacção que esperava dele, não era aquela. Ela disse-me que este era o meu caminho e eu devo percorrê-lo. Lamento, Finbar.

 

Este bretão disse Finbar lentamente. Não é o primeiro que eu encontro, ou com quem falo. Os outros, no entanto, eram homens de idade, mais calejados e, ao mesmo tempo, mais simples. Ficaram suficientemente contentes por serem libertos e foram-se embora. Este brinca connosco e saboreia a nossa confusão. Se na verdade recebeste essas instruções, não tens escolha senão obedeceres; no entanto, não consigo acreditar que este rapaz não te quer mal. Não me sinto bem por te deixar aqui e creio que Conor concordaria comigo. Mexeu numa mecha de cabelo com os dedos. As cores tinham-lhe voltado ao rosto, mas a boca continuava ameaçadora.

 

Olhei para ele

 

Porque é que Conor havia de decidir? perguntei. É ele que está encarregue de nós, por agora, mas só tem 16 anos.

 

Conor é mais velho do que a idade que tem disse o padre Brien no seu modo calculado. Nisso, parece-se com vós os dois. Também ele tem um caminho preparado para ele. Talvez o tenhais aceitado como ele é; calmo, de confiança, bom e justo, ávido de conhecimento. Mas conhecei-lo menos do que pensais.

 

Ele parece conhecer uma data de coisas estranhas disse eu. Coisas que nos surpreendem.

 

Como o alfabeto Ogham disse Finbar calmamente. Os sinais, onde os encontrar e como interpretá-los. Aquilo que conhecemos disso devemo-lo a Conor.

 

Mas onde é que ele o aprendeu? perguntei. Num livro não foi, tenho a certeza.

 

Conor é perito numa data de assuntos disse o padre Brien, olhando através da sua pequena janela. O Sol de fim de tarde apanhou-lhe os poucos cabelos cinzentos que lhe guarneciam o couro cabeludo, transformando-os numa auréola flamejante. Alguns aprendeu-os comigo. Tal como vós. Outros, aprendeu-os com os manuscritos amontoados na poeira da biblioteca do vosso pai; como tu, Sorcha, com as tuas curas e as tuas ervas. À medida que envelhecerdes, vereis que, tal como estes, Conor tem outros conhecimentos, outras qualidades mais subtis; possui capacidades antigas que pertencem à vossa linhagem, mas que hoje estão esquecidas. Vedes o povo da aldeia, como o venera. É verdade que, na ausência do vosso pai, Conor é um excelente admimstrador e as pessoas reconhecem-no, agradecendo-lhe. Mas esse reconhecimento vai mais longe. Lembrei-me, então, de algo.

 

O velho da aldeia, o velho Tom, que costumava consertar os telhados de colmo, disse qualquer coisa... ele disse que Conor era um dos sábios, como o pai, ou como o pai devia ter sido. Não o compreendi.

 

A família de Sevenwaters é muito antiga, uma das mais antigas desta terra disse o padre Brien. Neste lago e nesta floresta acontecem coisas estranhas, o inesperado é uma coisa vulgar. A minha chegada, e a minha fé, podem ter mudado as coisas à superfície, mas lá no fundo, aqui e ali, a magia continua a existir, tão forte como quando as Criaturas Encantadas vieram do ocidente. Os fios das diversas crenças andam lado-a-lado; de vez em quando emaranham-se e formam uma grossa corda. Tu viste isso por ti própria, Sorcha; e tu, Finbar, sentes o seu poder, compelindo-te à acção.

 

E Conor? perguntou Finbar.

 

O teu irmão herdou um pesado legado disse o padre Brien. E esse legado escolhe quem quer; assim, não caiu sobre o mais velho, ou sobre o segundo, mas sobre aquele mais capaz de o carregar. O vosso pai tinha a força necessária, mas deixou que ela lhe passasse à frente. Conor será o chefe da antiga fé para este povo e sê-lo-á calma e discretamente, de maneira que as antigas tradições possam ainda prosperar e guiar, escondidas, profundamente, na floresta.

 

Quer dizer que Conor é... quer dizer que ele é um druida? Como é que ele podia ter aprendido isso nos livros? perguntei, confusa. conhecia assim tão mal o meu irmão?

 

O padre Brien riu-se suavemente.

 

Não podia disse ele de modo estranho. Esse conhecimento não vem nos livros; os sinais na árvore, que ele te mostrou, são a única forma de escrita. Ele aprendeu, e aprende, com outros da mesma espécie. Não se mostram, ainda, porque tiveram que lutar muito para não desaparecerem. O número está a diminuir. O teu irmão tem ainda, pela frente, um longo caminho a percorrer; ainda mal começou a jornada. 19 anos, é esse o espaço de tempo necessário para aprender tal sabedoria. E não é preciso dizer que não deveis falar disto por aí.

 

Por vezes, ficava admirado disse Finbar. Percorríamos as aldeias e sabíamos, ouvíamos, em quem o povo confiava e porquê. Isso explica porque nos deixa ele seguir o nosso próprio caminho.

 

O que é que queria dizer disse eu, ainda profundamente embrenhada em pensamentos acerca de o nosso pai ser o tal e ter desistido? Pois não conseguia imaginar o pai, com a sua expressão fechada, estanque, e a sua obsessão pela guerra, como condutor de uma qualquer mensagem espiritual. Não podia ser.

 

Precisas de compreender disse o padre Brien gentilmente que o vosso pai nem sempre foi assim. Quando era jovem, era uma criatura completamente diferente, generoso e alegre, um homem que cantava e dançava, contava histórias como os melhores, assim como os batia a todos a montar, a atirar ao arco e a combater com a espada ou de punhos nus. Ele era, diziam, favorecido pelos céus, com todas as bênçãos.

 

Então, o que é que o mudou? perguntou Finbar friamente.

 

Quando o pai dele morreu, Lorde Colum tornou-se senhor de Sevenwaters. Ainda não tinha sido chamado para ser outra coisa, porque havia ainda um muito mais velho e sábio que guardava as antigas tradições vivas, por estas bandas. O vosso pai conheceu a vossa mãe; e, como muitas vezes na vossa família, amou-a instantaneamente e apaixonadamente, de tal maneira que a vida sem ela era como a morte, para ele. Foram abençoadamente felizes durante oito anos; e então, ela morreu

 

A sua face tinha mudado; observei a luz a brincar com as suas feições calmas e pensei que tinha detectado uma profunda pena nelas, enterrada há muito.

 

Conheceu-a? perguntei.

 

O padre Brien virou-se para mim, os olhos mostrando uma leve tristeza. Talvez eu tivesse imaginado o que vi.

 

Oh, sim disse ele. Tinha-me sido dado a escolher. A minha perícia com a pena era estimada na casa de Kells, mas as minhas ideias provocavam... inquietação. Conforma-te, disseram-me, ou vai viver sozinho. Eu tinha conhecido o vosso pai antes de tomar as santas ordens, há muito tempo, quando era um homem de armas. Quando deixei a casa do capítulo ele ofereceu-me um lugar aqui, um acto de alguma generosidade, considerando as diferenças entre nós. Conheci a tua mãe. Vi a alegria entre ambos e como a morte dela retirou, ao teu pai, toda a luz.

 

Ele tinha-nos a nós disse Finbar amargamente. Outro homem qualquer teria pensado que era razão suficiente para viver, e viver bem.

 

Creio que estás a ser demasiado duro disse o padre Brien, mas falou bondosamente. Ainda não conheces a espécie de amor que ataca como um relâmpago; agarra-se-te ao coração, tão irrevogavelmente como a morte; torna-se a estrela pela qual te orientas o resto da tua vida. Não desejo esse amor a ninguém, homem ou mulher, porque pode tornar a vida um paraíso, ou destruí-la. Mas está na natureza da vossa família viver o amor assim. Quando a tua mãe morreu, foi necessária a Colum uma grande força para resistir a semelhante dor. Ele sobreviveu, mas pagou um preço muito alto. Ficou com muito pouco para vós, ou para qualquer outra pessoa.

 

Ele tinha escolha, não tinha? perguntou Fimbar lentamente. Podia ter-se virado noutra direcção após a morte dela, escolhido outro caminho, tornar-se no chefe que, segundo diz, Conor será.

 

Podia, porque o Ancião estava perto do fim dos seus dias e os sábios foram ter com Colum, à procura de um homem da sua linhagem para se lhes juntar. Devem tê-lo desejado muito, para fazerem tal abordagem. Melhor seria terem começado a ensinar uma criança, ou terem escolhido um jovem. No entanto, pediram-lhe a ele. Mas Colum estava profundamente dosesperado. Não fora o seu dever para com a sua túath, e para com os seus filhos e talvez tivesse acabado com a própria vida. desse modo, recusou.

 

E foi então que a escolha recaiu sobre Conor?

 

Nessa ocasião, não. Conor era ainda uma criança; eles esperaram, primeiro e viram-vos crescer, aos sete. Observaram Conor enquanto ele aprendia a ler e a escrever, a exercitar os versos e as lendas, a ensinar-vos a sabedoria das árvores e como olharem uns pelos outros. Com o tempo, tornou-se evidente que ele era aquele e disseram-lho.

 

Ficámos ali sentados, absorvendo toda aquela história, enquanto os raios de sol baixavam através da janela e o ar se tornava mais frio com a chegada da noite. Não vinha qualquer som da caverna. Esperava que o sono de Simon fosse cheio de sonhos.

 

Agora já sabeis disse o padre Brien porque o vosso pai é assim. Segurar as suas terras e reconquistar de volta as Ilhas perdidas há tanto tempo tornaram-se no único propósito da sua vida. Com essa única ideia na cabeça, mantém os lobos da memória ao largo. Quando eles se aproximam, vai de novo para a guerra e silencia-lhes os uivos com sangue. Esse caminho pesa-lhe. No entanto, tornou as suas terras, e as dos seus vizinhos, seguras, ganhando o respeito por todo o norte desta terra com as suas campanhas. Não reconquistou ainda as Ilhas; planeia fazê-lo, talvez, quando todos os seus filhos forem crescidos.

 

Terá de o fazer sem mim disse Finbar. Sei muito bem que as Ilhas são misteriosas, para além de qualquer compreensão, um lugar de espíritos e eu gostaria de visitar as Grutas da Verdade. Mas não mataria para ter esse privilégio. Isso é uma fé louca.

 

Como já disse, uma causa pode cegar um homem face à realidade disse o padre Brien. Os homens lutam, nessas ilhas, desde os dias do trisavô de Colum, desde que o primeiro bretão pôs lá os pés, desconhecendo que pisavam o coração místico das antigas tradições do vosso povo. Assim nasceu a guerra, seguindo-se grandes perdas de vidas e fortunas. Senão, por que haveria Lorde Colum, sétimo filho do seu pai, de ser o herdeiro? Os seus irmãos morreram todos, lutando pela causa. E o pai deixou-os ir, um a um.

 

E agora ele prepara-se para percorrer o mesmo caminho acrescentou Fimbar sinistramente.

 

Talvez replicou Brien. Mas os teus irmãos não partilham da mesma obsessão de Lorde Colum e, aliás, existe Conor, e vós dois. Pode ser que, finalmente, esse padrão seja quebrado.

 

Eu continuava a pensar. Após um bocado, arrisquei:

 

Está a dizer que Conor me deixará ficar para tentar ajudar Simon? Que ele compreende o que a Dama me disse, que tuclo isto faz parte de um grande desígnio preparado para nós?

 

O padre Brien sorriu.

 

Se há alguém capaz de sair de um caminho prescrito, és tu, criança. Mas tens razão acerca de Conor. Ele sabia muito bem porque vinhas para aqui. É a medida da sua força, da sua estatura, ser capaz de harmonizar o conhecimento com a admimstração dos bens do teu pai.

 

Franzi as sobrancelhas.

 

Diz isso como se Conor, um dia, passasse a ser o chefe da família disse eu. E Liam? Ele foi sempre o nosso chefe, desde que a nossa mãe lhe disse para o ser; e ele é o mais velho.

 

Há chefes e chefes. Não subestimes nenhum dos teus irmãos, Sorcha disse o padre Brien. Agora comei, ambos, porque amanhã o trabalho continua.

 

Mas nós não tínhamos apetite e mal tocáramos no pão e no queijo quando Finbar disse adeus e, com alguma relutância, virou a cabeça do pónei na direcção de casa. A sua despedida não me foi feita em voz alta.

 

Continuo a não confiar no teu bretão. Transmite-lhe um aviso da minha parte. Diz-lhe que se te põe outra vez um dedo em cima não terá de se preocupar apenas comigo, mas com seis. Não te esqueças de lho dizer.

 

Recusei-me a levar aquilo a sério. Finbar a fazer ameaças violentas? Não me parecia.

 

Não lhe direi nada disso. Pareces os teus irmãos mais velhos. Agora vai e deixa-me com a minha tarefa. E não te preocupes comigo, Finbar. Eu fico bem.

 

Hum! disse ele em voz alta, de maneira fraterna. Onde é que eu já ouvi isso? Talvez antes de tu teres trepado a sebe para fazeres festas ao touro premiado; ou talvez daquela vez em que tinhas a certeza de que eras capaz de saltar o ribeiro, como Padriac, apesar das tuas pernas curtas! Lembras-te do que aconteceu nessa altura? desaparece! repliquei, dando uma palmada na garupa do pónei. Na caverna, a cadela começou a ladrar. Eram horas de voltar ao trabalho.

Algumas coisas não têm conserto. Outras têm, mas o trabalho deve ser feito lentamente, peça a peça, um passo de cada vez, o que exige muita paciência.

 

Era assim com Simon. A visita de Finbar fora um passo à retaguarda e eu tinha que reparar os danos antes de continuar com o processo de cura. Simon fizera uma combinação comigo e parecia ser um homem de palavra. Assim, se bem que estivesse frequentemente num estado de espírito negativo, com pouca vontade de sobreviver no seu corpo mutilado, cerrava os dentes e seguia sempre as minhas ordens. Passaram seis ou sete dias e nós seguíamos em frente com uma lentidão dolorosa. O período nocturno era o pior. Como Simon não tolerava a ajuda do padre Brien, era eu que o atendia em todas as necessidades, se bem que o bom padre me ajudasse subtilmente, fazendo com que estivessem sempre à mão panos e pomadas, roupa branca lavada e providenciando comida e bebida, como por magia, sempre que eu tinha tempo para a partilhar. Porém, sentia-me cansada, com umas dores no corpo como nunca tinha sentido antes. Utilizava o musgo dourado tão frugalmente quanto podia. Com a sua ajuda, Simon dormia durante algum tempo antes de começarem os pesadelos e eu aprendi a adormecer no momento em que ele o fazia, porque era nessas ocasiões que eu tinha algum descanso.

 

Essas noites tinham um padrão. Simon gritava e eu acordava de repente para o encontrar sentado, as mãos no rosto, tremendo e arfando. Nunca me dizia o que via, mas eu imaginava. Eu acendia uma vela e passava-lhe um pano pelo corpo para lhe limpar o suor, enquanto a cadela se retirava para o pé da porta, ganindo de ansiedade. Percorria as minhas histórias e canções nessas ocasiões tenebrosas e a minha garganta ficava seca e dorida de tanto falar. Simon escutava algumas, enquanto outras passavam por ele como folhas levadas pelo vento. Quando o medo atingia o auge, deixava-me envolvê-lo com os braços e eu cantava-lhe cânticos de embalar, acariciando-lhe o cabelo como se fosse uma criança assustada. Eventualmente acabava, por adormecer e a exaustão tomava conta de mim, sentada à beira da enxerga, acabando por adormecer ali, a minha mão na dele. Tais períodos eram breves. Ele era capaz de acordar quatro, cinco vezes numa noite; a tentação para lhe dar uma dose forte de qualquer coisa que nos permitisse a ambos ter uma noite descansada era forte, mas eu sabia que o trajecto para a sua recuperação se baseava na purificação do corpo e em conseguir viver com o medo. Porque as recordações estariam sempre com ele, de uma forma ou de outra.

 

Simon não deixava que o padre Brien se aproximasse. Tinha que ser eu a fazer tudo, acordar num instante, tratar e confortar, manter as feridas limpas e ligadas, estar ali para qualquer necessidade dele. O que era duro, mas fora o nosso acordo. Porém, à noite, o padre Brien nunca nos deixava sós. Sentava-se na parte exterior da caverna, uma vela ao lado, à espera que a bênção do sono aparecesse. A sua presença silenciosa era reconfortante, porque eu tinha nos demónios nocturnos um formidável desafio.

 

Havia ocasiões em que eu odiava Simon, apesar de não ser capaz de dizer porquê. Suponho que era porque, depois daquilo, a minha vida nunca mais seria a mesma. Além disso, eu tinha apenas 13 anos e pensava com frequência em como seria bom estar em casa, cavalgando um pónei com Padriac ou plantando bolbos de açafrão para florescerem na Primavera. Tinha saudades de trabalhar no meu pequeno jardim, tão calmo e ordenado, cheio de aromas frescos e saudáveis e ver as coisas a crescer.

 

Depois de oito ou nove noites daquelas, o padre Brien e eu parecíamos fantasmas, pálidos e esgotados. Então, houve um dia que amanheceu cheio de sol, o ar um pouco mais quente e eu fiz Simon levantar-se e ir lá para fora, para mais longe do que o habitual, de maneira que ficámos acima da linha das árvores, podendo ter um vislumbre das águas do lago aninhadas nas sombras verde-acinzentadas da floresta.

 

A nossa casa é lá em baixo disse-lhe eu perto da margem do lago, mas está escondida pelas árvores. deste lado, a floresta vai mesmo até à borda de água. No nosso lado há rochas dentro de água e podemos deitar-nos em cima delas e observar os peixes. E há carreiros por dentro da floresta, todos diferentes.

 

Deve ser fácil perderem-se.

 

Não disse eu. Mas acontece, quando as pessoas não sabem o caminho. Pensei naquilo pela primeira vez. Como é que nós sabíamos sempre o caminho?

 

Simon encostou-se ao tronco de um freixo sem folhas, fechando os olhos.

Tenho uma história para te contar disse ele surpreendendo-me. Não tenho a tua habilidade para a contar tão bem, mas é suficientemente simples.

 

Está bem disse eu cuidadosamente, sem saber o que esperar.

 

Havia dois irmãos disse Simon, e a sua voz era monótona e inexpressiva. Eram muito parecidos fisicamente, na força e na inteligência; mas o primeiro era mais velho alguns anos. É engraçado como a diferença de alguns anos pode fazer diferença. O pai deles morreu; e por causa dessa diferença de anos o mais velho herdou tudo. E o outro? Ficou apenas com uma pequena parcela de terreno que ninguém queria. O mais velho era amado por todos; em poucos anos conseguiu insinuar-se nos corações de todos e ganhar a sua lealdade, mas tudo sem um único olhar na direcção do irmão. E este? Se bem que fosse tão bom, forte e talentoso como o irmão, ninguém parecia reparar nele.

 

»O mais velho era um líder e os seus homens olhavam para ele e respeitavam-no. Era um homem incapaz de errar e inspirava total lealdade onde quer que fosse, sem esforço. O mais novo? Fazia o que podia; mas nunca era suficientemente bom. Simon calou-se, como se não quisesse continuar.

 

E depois, o que aconteceu? perguntei.

 

Simon distendeu a boca naquilo que poderia parecer um sorriso, não fora a frieza dos seus olhos azuis.

 

O mais novo teve uma oportunidade para provar que também tinha valor. Fazer algo que todos, mesmo o seu irmão, não poderiam deixar de reconhecer. Depois, pensou ele, serei como ele, tão bom como ele, talvez, até, melhor. Aproveitou a oportunidade e falhou.

 

E depois?

 

Não sei, bruxinha. Esta história parece que não tem um fim. Como é que tu a acabarias? Baixou-se lentamente até ao solo, com muito cuidado.

 

Afastei-me para lhe dar espaço sobre um ramo caído. Linn estava no seu elemento, farejando em volta as folhas outonais, andando de um lado para o outro, voltando para o pé de nós de vez em quando, para se certificar de que ainda ali estávamos e desaparecendo de novo atrás de um outro odor qualquer.

 

Escolhi as palavras com cuidado.

 

Parece uma história de crianças, se bem que nessas os irmãos sejam, geralmente, três e não apenas dois. Creio que o irmão mais novo teria ido por esse mundo fora em busca de fortuna e teria deixado o irmão mais velho para trás. No caminho encontraria três pessoas, ou criaturas... são sempre três.
Tens resposta para tudo disse Simon friamente. Conta-me o resto.

 

Bem, podias acabar a história de várias maneiras diferentes disse eu, animando a perspectiva. Digamos que o irmão mais novo encontra uma velha. Ele tem fome e só tem um pão de aveia, mas dá-lho. Ela agradece-lhe e ele continua o seu caminho. Talvez a seguir ele encontre um coelho preso numa armadilha e o liberte.

 

É mais provável que o esfole e o coma disse Simon. especialmente depois do pão de aveia.

 

Mas este coelho olha para ele com uns olhos verdes muito bonitos disse eu. Ele tem que o libertar. Por fim, encontra um gigante. Este desafia-o para uma luta de paus. O jovem concorda, sentindo que não tem nada a perder. Lutam durante algum tempo e ele dá alguns bons golpes antes de o gigante o derrubar. Quando vem a si, o gigante agradece-lhe polidamente por uma luta tão leal; de todos os viajantes que passaram por ali, ele foi o primeiro que se atreveu a parar e a fornecer ao gigante um pouco de diversão. Em seguida, o gigante parte com ele como guarda-costas.

 

Conveniente disse Simon. E depois?

 

Aparece um castelo e uma dama disse eu, apanhando uma mão-cheia de folhas e bagas caídas e, de modo ausente, comecei a entrelaçá-las. Ele tinha-a visto de longe, talvez cavalgando muito bem-vestida, quando ele e o seu amigo gigante passavam pela estrada e no instante em que a vê apaixona-se e quere-a para si. Mas há um problema. Para a conquistar tem que cumprir uma tarefa.

 

Ou talvez três.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

É o mais comum. E é aqui que as suas boas acções praticadas antes o vão ajudar. Talvez tenha que limpar um grande estábulo antes do nascer do Sol e a velha apareça e faça tudo num instante com um golpe de magia. A seguir, talvez tenha que descobrir um determinado objecto, uma bola dourada, num certo lugar escuro, no fundo de um túnel subterrâneo. O coelho podia fazer isso. A última seria uma prova de força e é aí que entra o gigante. Assim, o nosso herói conquista a dama e vive feliz com ela para sempre.

 

E o irmão dele?

 

Esse? Bem, quando o irmão mais novo termina todas as suas aventuras e conquista o coração da dama já esqueceu o irmão mais velho e os ciúmes que tinha dele. Tem a sua própria vida.

 

Não gosto desse fim disse Simon. Tenta outro. Pensei durante um bocado.

 

E que tal se ele fosse para a guerra e quando voltasse encontrasse o irmão morto e todas as terras passassem para ele?

Simon riu-se e eu não gostei da aspereza da risada.

 

Como é que tu achas que ele se sentiria?

 

Confuso, creio. Consegue o desejo do seu coração, que é tomar o lugar do irmão. Mas nunca mais se esquece dos anos que perdeu invejando o irmão, em vez de tentar conhecê-lo melhor.

 

O irmão dele não estava interessado disse Simon friamente e eu pensei que quase acertara no alvo. Concentrei-me na grinalda que estava a fazer. Folhas avermelhadas, castanho-escuras, amarelo-douradas. Algumas já estavam demasiado frágeis, os últimos traços do Verão já tinham desaparecido do esqueleto dos seus corpos. As bagas vermelhas, como sangue. Ele observava-me.

 

Sorcha disse ele após um certo tempo e era a primeira vez que dizia o meu nome, em vez de «bruxa», ou «rapariga», ou outra coisa pior. Como é que tu acreditas nessas histórias? Gigantes, fadas, monstros. Isso são fantasias de criança.

 

Algumas podem ser verdadeiras, outras não disse eu, entrelaçando uma grande folha pontiaguda por baixo, através, e em volta dela própria. É assim tão importante?

 

Ele levantou-se e eu ouvi a mudança na respiração, quando ele engoliu um gemido de dor; silêncio significava controlo.

 

Nada na vida é como as tuas histórias disse ele. Aqui, vives no teu pequeno mundo; não fazes ideia do que existe fora daqui. desejaria... calou-se. desejarias o quê? perguntei quando ele não continuou.

 

Quase desejaria que nunca o chegasses a descobrir disse ele de costas voltadas para mim.

 

Não achas que já comecei? Levantei-me com a pequena grinalda na mão. Vi o que te fizeram. Tenho ouvido os teus pedides de socorro. E tu próprio já me contaste tantas histórias de crueldade que sou forçada a acreditar nelas. Nunca pensaste em me poupares a isso.

 

Tu manténs esse mundo afastado com as tuas histórias.

 

Não por completo disse eu, enquanto começávamos lentamente o caminho de volta. Nem para ti, nem para mim. As histórias apenas o tornam um pouco mais fácil, é tudo. Mas tu vais ter que falar nesse mundo eventualmente, se te queres curar e voltar para casa.

 

O padre Brien tinha-lhe dado um forte pau de freixo e ele usava-o para o ajudar a andar; ainda o fazia hesitantemente, dolorosamente, mas já se mexia sem a minha ajuda. Naquele local, o caminho estava coberto de folhas caídas e a rede provocada pelos ramos das árvores deixava passar uma luz fria que as tocava, dourando-as e prateando-as. Linn permanecia estática enquanto escavava e farejava aqui e ali. Um pássaro cantou; um outro respondeu-lhe.
Conseguirei alguma vez dormir de novo? perguntou ele de repente, apanhando-me de surpresa. Eu tinha a resposta guardada; eu tinha visto aqueles que haviam sido apanhades pelas Criaturas Encantadas, como a sua loucura nunca os deixara por completo, de noite ou de dia, como o turbilhão das recordações nunca os deixavam em paz.

 

É capaz de demorar ainda bastante tempo disse eu, gentilmente. Fizeste alguns progressos; mas não te vou mentir. O que fizeram ao teu corpo não se cura com facilidade. Mas tu podes ajudar-te a ti próprio, se escolheres o caminho certo.

 

O corpo de Simon estava a sarar. Ele era jovem, forte, resistente e estava a ganhar a luta contra aquela noite terrível e os ferimentos que se seguiram. Após um certo tempo, começou a andar sem a ajuda do pau e trocou as primeiras palavras com o padre Brien quase sem dar por isso. Eu festejava cada pequena vitória com alegria. Uma palavra amável, uma tentativa para fazer algo novo, um sorriso espontâneo, tudo era um presente sem preço. O processo de cura tomou forma, tornou-se mais rápido e eu comecei a acreditar que talvez conseguíssemos enviá-lo de volta para o seu povo.

 

No entanto, era claro que ele ainda não podia passar sem os nossos cuidados. O Outono estava no fim e as noites eram cada vez mais longas e frias. E Simon ainda não podia sacudir os demónios que tinham tomado conta dele durante os tempos de escuridão. Os seus atormentadores visitavam-no vezes sem conta, atormentando-o, e ele lutava contra eles, ou fugia-lhes, ou entregava-se à sua mercê. Uma noite fiquei com um olho negro, quando ele se levantou, meio a dormir e tentou fugir. O padre Brien e eu conseguimos impedi-lo, mas eu apanhei com a força toda do braço dele no meu rosto. Na manhã seguinte, não queria acreditar que tinha feito aquilo. Uma outra vez apanhou-me desprevenida, acordando antes de mim, subitamente e aterrorizado, mas, pela primeira vez, silencioso; e tinha na mão a faca, com a qual se virou contra ele próprio, antes de eu me aperceber. Nunca saberei como me movi com tanta rapidez, mas segurei-lhe o pulso, mantive-me pendurada nele enquanto gritava pelo padre Brien e os dois juntos tentámos acalmá-lo, enquanto ele chorava, delirava e nos pedia que o matássemos. Devagarinho, devagarinho, falei-lhe e cantei-lhe até que se acalmou e quase dormiu, mas só quase. Parara de falar, mas os seus olhos eram bem explícitos e a sua mensagem era bem clara. Sabia muito bem o que o futuro lhe reservava e pedia-me que lhe acabasse com aquela dor. Que direito tinha eu de lho recusar?

 

Contara-lhe muitas histórias. Mas não lhe podia dizer porque acreditava que devia viver, sarar e continuar. Se ele se ria das lendas de Culhan e dos antigos heróis, das sagas do povo do ocidente, se achava as histórias dos duendes e do povo das árvores estranhas, se bem que eu própria os tivesse visto com os meus próprios olhos, como podia eu esperar que ele acreditasse que o destino de ambos estava ligado, de acordo com o que me dissera a Dama da Floresta? Ele nunca acreditaria que eu a tinha visto, na clareira, com a sua capa e as jóias brilhando-lhe no cabelo. Simon era de um povo completamente diferente, prático, terra-a-terra, que só acreditava naquilo que via com os próprios olhos. Porém, se alguma vez encontrei alguém que precisava que a magia e o mistério das velhas tradições lhe entrassem no espírito, esse alguém era ele. Usei essa magia para o curar, quer ele o soubesse, quer não, mas sem fé nele próprio não poderia ir mais longe. Só quando conseguíssemos convencê-lo de que havia uma razão para viver é que o poderíamos deixar ir, mesmo se o corpo estivesse curado, porque não passaria da primeira noite sem nós.

 

Tentei falar-lhe nisso, mas ele mandava-me calar quando eu me aproximava da casa dele, da família, ou do que quer que fosse que o fazia viver. Creio que ao princípio ele se sentia estreitamente ligado à sua condição de soldado, o que o manteve silencioso sob a tortura e que era devida à guerra entre os nossos dois povos. Eu era o inimigo; não devia saber nada dele que me pudesse dar qualquer vantagem, ou pôr os seus em risco. No entanto, aquelas noites de tormento, que nós percorremos juntos, quer o quiséssemos, quer não, mudaram-nos a ambos. Para o fim, ele reconhecia-me, de algum modo, como parte do seu mundo, sabendo, ao mesmo tempo, que eu não estava, nem num lado, nem no outro, da sua longa luta. Com as minhas ervas e histórias eu era, para Simon, um ser estrangeiro, mas lentamente ele começou a confiar um pouco em mim, a despeito dele próprio.

 

O padre Brien fazia planos o melhor que podia. O tempo passava e as noites de terror persistiam. O tempo húmido chegara e eu não podia manter os passeios de Simon; ele andava inquieto, confinado à caverna, mesmo durante o dia e descarregava as frustrações em mim, discutindo tudo. Porque é que havia de comer e beber quando eu dizia de que é que servia? E, frequentemente, porque é que eu não ia para casa, brincar com as bonecas, em vez de fazer experiências com ele? Porque é que eu havia de lhe remendar as roupas se ele nunca haveria de fazer outra coisa senão estar deitado e atormentado por uma rapariga maluca e um velho louco religioso? Estava a pôr-nos, aos dois, loucos, mas, pelo menos, o padre Brien podia dar-se ao luxo de se retirar para a cabana, para escrever ou meditar. Eu tinha feito uma promessa a Simon e estava presa a ele.

 

Estava a tentar coser, com os olhos concentrados no meu trabalho, enquanto Simon andava à minha volta.

 

Afinal, o que é que estás a fazer? perguntou ele, olhando de perto para a túnica que eu tinha nas mãos. O que é isso?

 

Mostrei-lha.

 

Mal darás por ela disse eu. Mas ajudará a proteger-te. A sorveira-brava é das plantas mais sagradas que há; uma cruz, feita dos raminhos desta planta, é cosida em todas as roupas dos meus irmãos quando vão para a guerra. O fio vermelho, com o qual eu tinha cosido a minúscula cruz de sorveira-brava, sobressaía como uma gota de sangue contra a lã creme do debrum. Cortei o fio com os dentes, dobrei a túnica e era como outra peça de roupa qualquer.

 

Eu não vou para a guerra disse Simon. Já não tenho capacidade. E se calhar nunca tive acrescentou ele em voz baixa, virando-me as costas.

 

Voltei a colocar, cuidadosamente, as agulhas e o fio na caixa.

 

O que é que queres dizer? perguntei.

 

Eu... nada disse ele, sentando-se na beira da enxerga e olhando para o chão. Fiquei sentada, quieta. Após um momento, ele olhou para cima e o seu rosto estava branco.

 

O problema disse ele com dificuldade o problema é não saber. Não saber se... fui suficientemente forte.

 

suficientemente forte para quê? Mas eu adivinhava.

 

O problema é que... não me consigo lembrar. Não me consigo lembrar de tudo. Tremia à medida que recordava, não os terríveis pesadelos, durante o sono, mas em plena luz do dia. Nem tudo. Tenho quase a certeza que aguentei. Durante muito tempo, sei-o, porque eles estavam furiosos, estavam tão furiosos...

 

Está tudo bem, Simon disse eu, chegando-me para o pé dele rapidamente, ajoelhando-me e segurando-lhe ambas as mãos. Podes dizer-me. Apertou-me as mãos dolorosamente, como se eu fosse um salva-vidas.

 

Mas no fim, quando eles... quando eles... fechou os olhos, o rosto contorcido devido à dor recordada. Depois eu... eu não sei se... devo ter... parecia incapaz de completar o raciocínio, como se a procura das palavras certas estivesse para além da sua resistência.

 

Achas que lhes podes ter dito algo que não devias, algo secreto? Acenou com a cabeça miseravelmente.

 

Eu disse-te que ele falhou. Traiu a confiança que puseram nele, entregou os seus homens ao inimigo. Como é que podia voltar, depois disso? Retirou as mãos das minhas. Quem é que lhe teria amizade após um tal acto? Mais valia ter morrido.

 

Não tens a certeza disse eu cuidadosamente. Eu acredito em ti... ele...

 

O irmão dele disse Simon. Lembras-te da história? O irmão dele espera que os seus homens regressem, mas eles não regressam. Ele espera um pouco mais e manda um batedor à procura deles. O caminho é longo, através da água. Ele encontra o local onde tinham acampado. Mas estão todos mortos; membros decepados, olhos sem vida abertos para os corvos se alimentarem deles. traídos por um dos deles. Depois disso o irmão amaldiçoou-o, nunca mais devia voltar para aqueles por quem tinha falhado. Mas para o irmão mais novo aquilo não era novidade. Nunca fora amado; devia saber que a sua vida nunca mudaria. O seu irmão é o herói de todas as histórias; mas ele está destinado ao insucesso.

 

Disparate! repliquei, e estava tão zangada com ele que o agarrei pelos ombros e lhe dei um bom abanão. O final da história é teu, de mais ninguém. Podes fazê-lo como quiseres. Há tantos caminhos para o teu herói como ramos numa grande árvore. São maravilhosos, terríveis, simples ou retorcidos. Tocam, quebram, confundem-se e tu podes segui-los da maneira que quiseres. Olha para mim, Simon.

 

Ele piscou os olhos uma, duas vezes; à luz da vela, os seus olhos eram do azul suave da madrugada. E frios de auto-repugnância.

 

Eu acredito em ti disse eu baixinho. Tu és um verdadeiro e corajoso homem; e eu sei, cá dentro, que calaste os teus segredos naquela noite. Confio mais em ti do que tu próprio. Podias-me ter magoado várias vezes, assim como ao padre Brien, mas não o fizeste. Há um futuro para ti. Não me atires à cara o meu dom de curar, Simon. Conseguimos chegar aqui; vamos continuar.

 

Ficou ali sentado, em silêncio, durante muito tempo; tanto, que tive tempo para limpar o lugar, ir buscar água e tratar dos panos e unguentos para as suas feridas. Finalmente, falou.

 

Tu fazes com que seja difícil dizer não.

 

Tu fizeste uma promessa disse eu. Lembras-te? Não podes dizer que não.

 

Quanto tempo ainda é que eu vou andar às tuas ordens? perguntou ele meio a brincar. Anos?

 

Bem disse eu desde que sou pequenina que tenho mantido os meus irmãos mais velhos na linha. Vais ter que te habituar. Até que estejas bom, pelo menos. E retomámos, de novo, a cruel tarefa de lavar, untar e ligar.

 

À medida que escurecia lá fora, contei-lhe a história de uma rainha guerreira que tinha sempre muitos homens à sua volta, como moscas, mas que ela não guardava durante muito tempo; e Simon, que a ouvira muitas vezes antes, comentou secamente as partes mais indecentes da acção. Por fim o trabalho ficou feito, os panos utilizados retirados e o padre Brien apareceu com sopa e vinho de sabugueiro. Estabeleceu-se uma espécie de paz entre os três, nessa noite, enquanto nos sentávamos à lareira com as nossas refeições frugais; e mais tarde Simon adormeceu como uma criança, o rosto apoiado numa mão.

 

Vou ter que vos deixar amanhã, durante o dia disse o padre Brien. Preciso de ir à aldeia a oeste, porque vai lá estar um dos meus irmãos à espera de uns papéis meus; e precisamos de provisões. Não te vou perguntar se te desenvencilhas sem mim, porque é o que tens feito até agora. Mas vou fazer os possíveis por estar aqui ao anoitecer. Não te deixo aqui sozinha de noite.

 

Ele está a ir bem disse eu. Mais uma lua, ou duas e ele é capaz de estar pronto para se ir embora... mas para onde?

 

Também vou tratar disso, amanhã disse o padre Brien. Os irmãos do oeste ficarão com ele, acho eu. Pode ficar lá durante algum tempo e, quanto estiver bom, conduzi-lo-ão, em segurança, a casa dele, seja ela onde for.

 

Como?

 

Arranja-se maneira. Mas tu tens razão; ele não pode sair daqui enquanto for um risco para si próprio. Além disso, não pode montar; quando chegar a ocasião de que falaste, talvez possa ser transportado numa carroça. Amanhã à noite saberei mais qualquer coisa.

 

Fiel à sua palavra, às primeiras horas do dia seguinte já ele ia a caminho, aproveitando uma aberta na chuva persistente. Simon e eu tínhamos dormido melhor, já que ele acordara apenas duas vezes e havia um pouco mais de cor nas suas faces. Ficámos a ver a carroça a afastar-se aos solavancos, sob as árvores.

 

A manhã estava sossegada. Caía uma chuva fina, intermitente, alternando com a luz do Sol, fraca e baixa, como se o dia não se decidisse, se ser mau, ou bom. Apertei o cabelo na nuca e atirei-me ao trabalho, preparando unguentos de alfazema seca. Fiz medidas de óleo e cera de abelha; Simon observava-me. Mais tarde, partilhámos algumas maçãs verdes e uns pães de aveia bastante duros. As nossas provisões estavam mesmo a precisar de reabastecimento. Imaginei onde poderia encontrar farinha suficiente para poder fazer alguns pães.

 

Linn ouviu antes de nós. As orelhas espetaram-se-lhe e rosnou. Olhei para ela; não havia qualquer som vindo do exterior. Então, um instante depois, a mensagem silenciosa relampejou na minha mente com uma claridade urgente.

 

Esconde-o, Sorcha.Já, rapidamente.

 

Não havia tempo para perguntas. Agarrei em Simon por um braço.

 

Vem aí alguém disse eu. Vai para a cabana, rápido. Entra e tranca a porta.

Mas... Não discutas. Faz o que te digo. E mantém-te escondido! Vai, Simon! Ele ficou a olhar para mim por um instante; o meu rosto devia estar branco, porque a mensagem de Finbar tinha o selo da extrema urgência. Linn ladrou uma, duas vezes e correu para o exterior e pelo caminho abaixo, a cauda ondulando como uma bandeira.

 

Depressa! Quase arrastei o relutante Simon através da clareira em direcção à cabana, para onde o empurrei. E agora já o conseguíamos ouvir os dois, o rufar dos cascos, mais do que um homem a aproximar-se pelo caminho acima. Mantém-te escondido. Aqui ficas seguro até eles se irem embora.

 

Mas e...

 

Fecha a porta Depressa! Esperando que ele tivesse o bom senso de me obedecer, deixei-o e corri de volta para a caverna, os meus pés pisando as duas diferentes pegadas na lama.

 

Entrei de rompante, o coração aos pulos e mesmo a tempo, porque as vozes já estavam próximas, misturadas com o rufar dos cascos e os latidos e apareceram três homens na clareira: primeiro Finbar, o rosto tenso de ansiedade e dois soldados vestidos de armadura, com as espadas embainhadas o meu irmão Liam, alto e magro; e Cormack, parecendo ambos incrivelmente crescidos.

 

A cadela estava fora de si e quando Cormack desceu do cavalo os seus latidos atingiram o cúmulo do êxtase. Saltava, plantando-lhe as patas no peito e lambia-lhe o rosto com pequenos sons de alegria. Cormack sorria, coçando-a por trás das orelhas. Mas os rostos dos outros não traziam qualquer sinal de bom humor.

 

Os olhos de Finbar faziam perguntas à medida que se aproximava da entrada da caverna onde eu o esperava de pé. Onde está ele? Mas não havia tempo de responder.

 

Entrem disse eu hospitaleiramente. O padre Brien foi à aldeia; a cabana está fechada. Estou surpreendida por vos ver. O pai já regressou? Sentia-me satisfeita com o discurso, infelizmente as minhas mãos tremiam com os nervos e meti-as nas algibeiras do meu avental.

 

Temos novidades, Sorcha disse Liam, inclinando-se para entrar e tirando a capa molhada ao mesmo tempo. Sobre a armadura ainda trazia a sua túnica de batalha, com o símbolo de Sevenwaters no peito. Dois colares de metal torcido interligados; o mundo exterior e o interior. Este mundo e o Outro Mundo. Porque o lago e a floresta estavam inextricavelmente entrelaçades. Tens que voltar para casa connosco imediatamente continuou ele. Estão a acontecer mudanças e o pai requer a tua presença. Não ficou nada satisfeito ao saber que estavas aqui há tanto tempo, sejam quais forem as tuas qualidades herbáreas.
O pai? perguntei cepticamente. Admira-me muito que ele mostre algum interesse pelo meu paradeiro. Não tem coisa melhor em que se ocupar?

 

Cormack estava a falar com a cadela, acalmando-a e levando-a para dentro. O corpo dela tremia e dava pequenos latidos de excitação, como se não se pudesse conter.

 

Ele não põe objecções a que passes aqui um certo tempo a aprender com o padre Brien disse Finbar mordazmente ou a trocar conhecimentos com ele. Talvez ele esteja a pensar no teu casamento, é um ofício útil para uma mulher. Mas... calou-se e eu notei uma nota de profundo mal-estar na sua voz.

 

Mas o quê? Havia qualquer coisa que nenhum deles me queria dizer.

 

Liam pegou numa vela de cera de abelha de cima da mesa, rolando -a entre dois dedos. Cormack sentou-se na beira da enxerga e a cadela saltou para o pé dele, farejando a roupa. Observei-a, tinha os olhos na entrada, expectante. Haveria ali alguma coisa que nos pudesse denunciar, um par de botas, uma ligadura ensanguentada? Tinha havido tão-pouco tempo. Olhei para Finbar; algo mais o preocupava, para além do risco de que Simon pudesse ser encontrado.

 

O pai regressou disse Liam pesadamente e com uma noiva. Vem do norte e ele quer casar-se dentro de dias. Foi uma coisa rápida e inesperada. Quer que todos os filhos estejam lá para a festa do casamento.

 

Uma noiva? Depois do que o padre Brien nos dissera, aquilo parecia-me absolutamente impossível.

 

É verdade disse Cormack. Quem diria! Ainda por cima é nova, bela e encantadora. Recomeço de vida para o velhote. Devias ver o Diarmid. Segue-a durante todo o dia com olhares de cachorro.

 

Liam franziu as sobrancelhas.

 

Não é assim tão simples disse ele. Não sabemos praticamente nada sobre esta mulher, Lady Oonagh é o nome dela, salvo que ele a conheceu quando estávamos aquartelados nas terras de Lorde Eamonn de Marshes e ela era hóspede da casa. dos seus ele disse muito pouco, creio, ou ele preferiu não o partilhar connosco.

 

Não acredito que ele se vai casar outra vez disse eu, aliviada por eles não terem vindo por causa de Simon e chocada, incrédula. Ele é tão... tão...

 

Inacessível? perguntou Finbar. Para ela, não. Ela é... diferente; tão resplandecente e perigosa como algumas serpentes exóticas. Saberás, quando a vires, porque tomou ele esta decisão.

 

Conor não gosta dela disse Cormack. Liam levantou-se.

Temos que regressar, Sorcha disse ele. Lamento que o padre Brien não esteja em casa, porque esperava falar com ele em privado sobre este assunto. Sem dúvida que o pai há-de mandar chamá-lo para oficiar a cerimónia. Entretanto, a nossa casa está um pandemónio e tu és precisa. Vai buscar as tuas coisas; podes ir montada comigo.

 

Ir embora naquele momento? Já? Deixar Simon sozinho, sem sequer lhe dizer adeus, sem lhe dizer o que estava a acontecer? Enviei uma mensagem dosesperada a Finbar. Não me posso ir embora agora, assim, ele ainda não está pronto, pelo menos deixa-me...

 

Vai andando, Liam disse Finbar. Eu vou ajudar a Sorcha a empacotar as coisas dela e depois levo-a comigo.

 

Tens a certeza? Liam estava com pressa de partir e já vestia a capa. Não te demores muito, então. Temos muito que fazer. Vamos, Cormack, essa tua cadela maluca também deve estar morta por ir para casa.

 

Mas não estava. Os dois subiram para as selas e, ao princípio, ela andou em volta do cavalo de Cormack, toda entusiasmada. Mas quando eles começaram a descer a ladeira ela parou, surpreendida, fez uma pausa e voltou para trás, na nossa direcção. Olhou em volta, farejando, hesitando. A chuva começou a cair com força.

 

Linn Anda! Cormack chamava-a, o cavalo parado mesmo à entrada da floresta. Anda!

 

Ela virou-se e começou a andar timidamente na direcção dele; parou e olhou novamente para trás.

 

Vai, Linn disse eu, lutando contra as lágrimas por ela, por mim, por Simon. Vai para casa!

 

Cormack assobiou e desta vez ela foi ter com ele, mas a ansiedade desaparecera das passadas dela. E desapareceram para lá das árvores.

 

despacha-te disse Finbar. Onde estão as tuas coisas? Enquanto eu as empacoto tu falas com ele e depois vamo-nos embora. Não lhe perguntei quando poderia voltar; havia um terrível carácter definitivo naquilo tudo. Silenciosamente, indiquei-lhe a minha trouxa, a capa e os meus potes e vasos; em seguida encaminhei-me, sob a chuva, para a porta da cabana; mas ela estava trancada de interior. Fiel à sua palavra, Simon tinha feito como eu lhe ordenara.

 

Simon! gritei sobre o rugido da chuva a cair. Sou eu, deixa-me entrar.

 

Devia haver suficiente hrgência na minha voz para lhe abalar a desconfiança, porque a tranca foi retirada e a porta abriu-se rapidamente. Tinha a faca na mão, mas não fez qualquer movimento para me tocar, recuando antes para o canto mais longínquo da cabana, enquanto eu entrava à pressa e fechava a porta com força atrás de mim.
Não havia maneira de dizer aquilo amavelmente.

 

Tenho que ir agora, já. desculpa, não queria que fosse assim. Mas os meus irmãos estão à espera.

 

Ele olhou para mim sem expressão.

 

Eu sei que ainda é muito cedo, mas não tenho escolha. O padre Brien regressa esta noite e olhará por ti tão bem como eu falava depressa demais, a minha aflição era óbvia. Simon pousou a faca em cima da mesa. A voz dele era a sombra de um som.

 

Tu prometeste disse ele. Não consegui olhar para ele.

 

Não tenho escolha disse eu de novo e desta vez as lágrimas começaram-me a correr pelas faces abaixo e eu limpei-as furiosamente. Aquilo não estava nada a ajudar-nos a ambos. Além disso, conseguia ver muito bem as longas noites futuras dele e não me atrevi a olhar para o vazio que regressava aos olhos dele.

 

Houve um silêncio, ele não se mexeu e um momento depois ouvi Finbar a chamar-me, lá fora.

 

Sorcha! Estás pronta?

 

A mão de Simon pegou na faca de novo e, rápida como um raio, saltei e agarrei-lhe o pulso.

 

Não posso manter a minha promessa disse eu toda trémula mas exijo que mantenhas a tua. Aguenta-te durante o dia de hoje; depois, deixa que o padre Brien te ajude. Acaba a história como eu te disse. Deves-me isso, se não mais. Confio em ti, Simon. Não me deixes ficar mal.

 

Larguei-lhe o pulso e ele levantou a faca, aproximando-a de tal modo do meu rosto que fui forçada a olhar para cima. Os olhos azuis dele fixaram os meus e havia um desvario neles que me disse que o pesadelo estava mesmo ali, à frente dele. O seu rosto estava branco como a cal.

 

Não me deixes sussurrou ele, como uma criança com medo do escuro.

 

Não pode ser. Foi a coisa que mais me custou dizer em toda a minha vida.

 

Sorcha! chamou de novo Finbar.

 

Houve um rápido movimento da lâmina e Simon segurou num longo caracol dos meus cabelos com os dedos. Com a outra mão entregou-me a faca com o cabo virado para mim.

 

Toma disse ele. E virou-me as costas, à espera. E eu abri a porta e saí para a chuva.

 

Lady Oonagh. Ainda não a tinha visto e já sentia a sua presença. Senti-a no silêncio de Finbar enquanto cavalgávamos para casa sob um céu trovejante. Soube-o por causa do vento frio que chicoteava os ramos das árvores, numa rendição humilhante à nossa passagem, pela turbulência agitada das águas do lago, pelo grito de uma gaivota, atormentada no seu voo pelas agulhas da chuva gelada. Senti-o na opressão do meu coração, a cada passo do cavalo. Ela estava ali e a sua mão sobre todos nós. Sabia que o perigo tinha chegado. Mas esse conhecimento não me preparou.

 

Finbar depositou-me no pátio e seguiu para os estábulos para tratar do cavalo, porque os rapazes tinham que fazer sempre essa tarefa. Era bom estar em casa, por fim. desejei escapar-me de mansinho para os meus aposentos, ou para a cozinha um pouco de água quente, uma lareira e roupas secas era o que mais queria naquele momento, além de algum tempo para mim própria. Mas a porta abriu-se de rompante e lá estava eu no grande salão, a minha capa escorrendo água para o chão e as minhas botas deixando um rasto de lama e, se bem que o meu pai estivesse presente, apenas consegui vê-la, a noiva, Lady Oonagh.

 

Era esbelta. Cormack tinha razão. O seu cabelo era uma cortina de fogo escuro e a pele branca como o leite. Mas eram os olhos que faziam a diferença. Quando ela olhava para o meu pai, toda doçuras, eram inocentes e amorosos. Mas se se olhasse para as profundezas daquelas amoras, como eu fiz, vacilar-se-ia com o que se via nelas. A sua mensagem para mim era clara: Estou aqui, agora. Não há lugar para ti.

 

A sua voz tilintava como campainhas.

 

É a tua filha, Colum? Oh, tão querida! E como é que te chamas, meu amor? Olhei para ela, muda, enquanto o vapor começava a sair das minhas roupas.

 

Sorcha, não estás em condições de aparecer aqui! disse o pai concisamente e, de facto, tinha razão. Envergonhas-me, aparecer diante da tua mãe nesse estado desalinhado. Sai, arranja-te e depois regressa. Deixas-me ficar mal.

 

Olhei para ele. Mãe?

 

Lady Oonagh quebrou o silêncio incómodo com uma estrondosa risada.

 

Disparate, Colum, estás a ser muito severo com a criança. Estás a ver, embaraçaste-a! Vem cá, minha querida, vamos tirar-te essa capa toda molhada, precisas de te aquecer perto do fogo. Por onde andaste? Colum, não consigo acreditar que adeixes andar por aí sozinha desta maneira... podia apanhar uma constipação mortal. Assim está melhor, queridinha... mas, ai estás a tremer. Mais tarde falaremos, só tu e eu... trouxe algumas coisas muito bonitas e vai ser uma delícia escolher uma coisa linda para tu usares na festa do casamento. Verde, creio. Temo que o teu guarda-roupa tenha sido tristemente negligenciado. Percorreu, com um olhar calculista, o meu vestido tecido em casa, a túnica gasta, cheia de nódoas: tintura de bagas de sabugueiro, óleo de rosmaninho. E sangue.

 

Abri a boca para falar, mas as palavras recusaram-se a sair e em vez disso senti uma grande fadiga. A minha boca abriu-se num grande bocejo e as pernas transformaram-se em geleia.

 

Sorcha! repreendeu-me o pai. Isto é demais! Não podes... Mas ela adiantou-se-lhe de novo, toda solícita.

 

Minha pobre menina, por onde é que andaste? O braço dela em volta dos meus ombros parecia uma grilheta de gelo. Vamos, precisas de repousar... temos muito tempo para conversar. O teu irmão pode levar-te ao teu quarto, porque mal te tens em pé... Diarmid, querido?

 

E foi só então que me apercebi que o meu segundo irmão tinha estado ali o tempo todo, nas sombras, por trás da cadeira de lady Oonagh. Ele avançou, ansioso por ser prestável, mostrando as covinhas do rosto enquanto lhe lançava um olhar de esguelha e pegou-me pelo braço para me escoltar dali para fora. Ela olhou de lado para ele, por entre as pestanas.

 

Diarmid pairou o tempo todo a caminho do meu quarto. Como ela era maravilhosa, quão vibrante e jovem, quão fantástico era uma criatura tão bela ter acedido a casar com o pai que, afinal, estava a envelhecer e já não devia ser tão viril.

 

Talvez a riqueza e o poder tenham alguma coisa a ver com isso. Arrisquei para interromper o fluxo de palavras do meu irmão.

 

Ora, ora, Sorcha ralhou-me Diarmid enquanto subíamos os largos degraus de pedra. Estarei eu a detectar um pouquinho de ciúmes aqui? Tu não ficaste muito feliz com os esponsais de Liam, lembro-me muito bem. Talvez prefiras ser a única dama da casa, é isso?

 

Virei-me para ele, zangada.

 

Conheces-me assim tão mal? Pelo menos Eilis é... inofensiva. Esta mulher é perigosa; não sei porque está ela aqui, mas destruirá a nossa família, se a deixarmos. Tu foste seduzido por ela, tal como o pai. Não a estás a ver a ela... estás a ver uma espécie de... ideal, um fantasma.

 

Diarmid riu-se de mim.

 

E o que é que tu sabes? És apenas uma criança, irmãzinha. E, além disso, mal a conheces. É uma mulher maravilhosa, irmãzinha. Talvez agora, que ela aqui está, possas aprender a crescer como uma dama.

 

Olhei para ele, profundamente ferida pelas suas palavras. O nosso padrão de vida já estava a começar a quebrar-se. Provocámo-nos um ao outro vezes sem fim, brincámos e discutimos como todos os irmãos e irmãs. Mas nunca fomos cruéis um para o outro. O facto de ele não perceber ainda era pior. E não podia falar com ele, pois já não me ouvia. Chegámos ao meu quarto e Diarmid foi-se logo embora, ansioso por estar ao pé da sua nova deusa.

Dispensei a serva que estava ali, hesitante e despi-me sozinha. A lareira tinha sido acesa e eu sentei-me, com um cobertor sobre os ombros, a olhar para as chamas. Apesar de exausta, o sono demorou a vir, porque a minha mente estava cheia de imagens e pensamentos. Talvez eu estivesse a ser tola, talvez ela fosse apenas uma mulher gentil bem intencionada, que se apaixonara pelos encantos do nosso pai. Mas havia algo de errado. Pensei no que Cormack dissera. Conor não gosta dela. Eu vira a mensagem nos olhos de Lady Oonagh, nas suas palavras meladas. Havia algo de inquietante na admiração aduladora de Diarmid e na prontidão do meu pai em se deixar dominar pela sua dama. E o modo como os servos andavam inquietos, nervosos, como se tivessem medo de dar um passo em falso.

 

E Simon? Ainda era dia; teria que esperar, sozinho, pelo regresso do padre Brien. Sem um contador de histórias que lhe preenchesse o dia silencioso, que lhe esborratasse as visões. Sem um amigo para brincar, nem sequer a cadela fiel, inquestionável companhia nos períodos mais negros. Imaginei-o a olhar, enquanto o Sol se movia por cima da sua cabeça e descia por trás das árvores, à espera do som das rodas da carroça. Pelo menos, não estaria só depois de a noite cair.

 

Finalmente, deitei-me e adormeci. O fogo ardeu até se transformar em cinzas, mas a vela continuou a tremeluzir e quando mais tarde acordei de repente, o quarto estava cheio de sombras. Por alguns momentos vi-me de novo na caverna e saltei, os olhos abertos, pronta para me confrontar com o pesadelo. Mas desta vez não houve gritos; as paredes de pedra estavam pesadamente silenciosas e o unicórnio e o mocho na minha tapeçaria moviam-se ligeiramente ao sabor da corrente de ar. Deitei-me de novo, mas Simon estava-me nos pensamentos, talvez lutando com os seus demónios e eu contei-lhe uma história, silenciosamente deitada na minha cama, até que adormeci de novo.

 

Só muitas noites depois quebraria este padrão: o acordar repentino, o coração aos pulos, a lenta consceencialização de onde me encontrava e o sentimento de culpa por o ter abandonado. Nunca dormia mais do que um breve período sem acordar e durante o dia o cansaço juntava-se à confusão e à angústia. Porque Liam tivera razão. As coisas estavam a mudar, quer quiséssemos, quer não.

 

O que eu menos gostava era da mudança em Diarmid, que caíra sob o feitiço de Lady Oonagh. Para ele, ela não tinha defeitos e mantinha-se na sua sombra o dia todo, ou, pelo menos, enquanto ela o deixava. Era impossível manter com ele uma conversa sensata. Era como se, disse eu a Finbar, tivesse sido apanhado pelos duendes.

 

Não disse Finbar não é isso; mas é quase. Isto é mais como o encantamento que se apodera de um homem quando vê uma bela mulher, a deseja, mas que nunca pode ter sem que ela o queira. Esta mulher é capaz de manter assim um homem durante muito tempo, até que o rosto dele perca a juventude e os passos a elasticidade.

 

Já ouvi histórias assim disse eu. Elas cospem-nos como um bocado de casca de maçã, assim que eles perdem o sabor.

 

Cormack e Padriac evitavam problemas, mantendo-se longe dela. Quando eram chamados, um tinha ido montar, ou praticar tiro ao arco, o outro tinha ido para o celeiro, ou algures para os campos. Finbar não se desculpava com as suas ausências. Simplesmente, não estava ali. Lady Oonagh tinha tendência para nos chamar quando muito bem lhe apetecia e, se bem que as suas maneiras fossem sempre infalivelmente cordiais e doces, as desobediências eram sublinhadas com sobrancelhas carregadas. O pai impusera esta regra, como aliás parecia acatar todas as suas ordens. No entanto, com ele, ela comportava-se com mais cuidado do que com o desafortunado e sorridente Diarmid. Fosse o que fosse, Lorde Colum não era um homem fraco e, afinal, ainda não estavam casados.

 

Faltavam poucos dias para o casamento. Seamus Redbeard e a sua filha também vinham; reparei, por acaso, nas mudanças que Liam fez para colocar Eilis e a sua dama-de-companhia o mais longe possível dos aposentos de Lady Oonagh. Em vez de parecer feliz por ir ver de novo, dentro de pouco tempo, a sua prometida, o meu irmão mais velho andava carrancudo e silencioso. Fez várias tentativas para falar em particular com o pai, mas Oonagh, com o seu riso tilintante, separava-os e o pai declarou, rudemente, que qualquer coisa que ele lhe quisesse dizer, que o fizesse diante da sua dama, porque não havia segredos entre eles.

 

Eu queria falar com Conor, mas ele andava ocupado. Muitos dos preparativos do casamento passavam por ele e não tinha tempo, ocupado como andava com a supervisão da cozinha, o arejamento das toalhas, os arranjos de última hora dos estábulos e do pátio. Apanhei-o por momentos, na segunda noite, entre o jantar e o deitar, num canto escuro da grande escadaria. Era um local bom, sem muito eco e, contra o costume, não havia ninguém em volta. Olhei para o meu irmão de novo, imaginando-o vestido de druida, todo de branco, o cabelo castanho brilhante entrançado e atado com uma fita colorida, à moda dos sábios. Tinha um olhar sereno, distante, completamente diferente do do seu irmão gémeo, Cormack, que era um homem de acção e que vivia para o presente.

 

Vou mandar chamar o padre Brien, Sorcha disse ele gravemente. Achas que ele virá?

 

Acenei com a cabeça que sim.

 

Se for só por um dia, para a cerimónia do casamento, ele vem. Quem é que vais mandar?

 

Ele olhou para mim, lendo a pergunta muda nos meus olhos.

Suponho que terei que mandar Finbar, se o conseguir encontrar. Tu não podes ir, Sorcha. Ela vigia-te de perto. Tens de ter muito cuidado.

 

Então, também o sentes? Senti-me gelada ao olhar para o rosto pálido do meu irmão.

 

Ele estava calmo como sempre, mas o seu mal-estar era palpável. Disse que sim com a cabeça.

 

Ela vigia cuidadosamente aqueles de nós que são uma ameaça maior. Diarmid e Cormack não contam para ela, pobres inocentes e não vê qualquer ameaça em Padriac, novo como é. Mas tu, Finbar e eu... temos força suficiente, talvez, para lhe resistir, se permanecermos juntos. Isso deixa-a desconfortável.

 

E Liam? Conor suspirou.

 

Ela tentou seduzi-lo também, não tenhas dúvidas. Ela descobriu logo que ele era de outra cepa. Liam combate-a à sua própria maneira. Se ele conseguisse falar com o pai, talvez conseguisse avisá-lo para que se acautelasse. Mas também tem o seu ponto fraco. Não gosto do rumo que as coisas estão a tomar, Sorcha. Gostaria que tivesses tido oportunidade para te manteres afastada disto tudo.

 

Também eu disse eu, pensando no trabalho que tinha abandonado. Pelo menos, o padre Brien estava a chegar e dar-me-ia notícias.

 

Sorcha.

 

Olhei de novo para Conor. Ele devia estar em luta consigo próprio não muito certo do que me devia dizer, para não me assustar.

 

O que é?

 

Deves ter muito cuidado disse ele lentamente. Eles vão-se casar, não tenho qualquer dúvida. Quer consigamos falar com o pai antes do dia da cerimónia, quer não, o resultado não será diferente. Que poderíamos dizer? Lady Oonagh não dá um passo em falso; os nossos medos baseiam-se em fantasias, dir-nos-ia ele, receosos da mudança, ou por ignorância. Assim que ela se insinua, deixamos de a poder ver como é na realidade. Ela reveste-se de uma aura de fascínio; os fracos e vulneráveis não têm qualquer hipótese de lhe resistir.

 

E depois de se casarem?

 

Os lábios de Conor transformaram-se numa linha.

 

Talvez, nessa altura, consigamos ver alguma da verdade. Acredita-me, se te pudesse tirar daqui para fora antes do casamento, fá-lo-ia. Mas o pai ainda é o senhor da casa e tal pedido, antes do dia da cerimónia, pareceria estranho. Tanto eu, como Liam, tomaremos conta de ti o melhor que pudermos; mas tem cuidado. Quanto a Finbar...
Quem é ela, Conor? Que mulher é ela? Devido aos novos conhecimentos que tinha sobre o meu irmão, achava que ele era a única pessoa que me podia responder àquela pergunta.

 

Não sei. Nem sequer tenho a certeza das razões porque faz isto. Não tens outra hipótese senão esperar, por mais que te custe. Deve haver um padrão nisto tudo, tão vasto, tão complexo, que só o tempo esclarecerá. Mas é demasiado tarde para evitar o casamento. Agora, toca a andar, pequena coruja... estás a precisar de um bom sono. Como é que ele estava?

 

Eu sabia de quem ele estava a falar, apesar da súbita mudança de conversa.

 

Estava a ir bem, até que fui forçada a vir-me embora. Achas que até isso faz parte do plano dela?

 

Ela não podia ter conhecimento do caso. É melhor não acrescentares isso às tuas preocupações. Dá-me ideia de que lhe foste bastante útil; talvez agora ele se possa curar a si próprio, com a ajuda do padre Brien. E há outros que o podem ajudar, guiando-o até à sua salvação. Talvez seja altura de o deixar e te dedicares a ti mesma. Vai, vai-te deitar.

 

No dia seguinte houve um pouco de sol, filtrando-se ligeiramente entre as sempre presentes nuvens e eu recomecei o meu trabalho no meu jardim, determinada a recuperar o tempo perdido. Atei o cabelo com uma fita, vesti um velho avental de serapilheira e Annei-me com uma faca e uma foice. A alfazema demasiado crescida e o absinto espalhado levaram um bom corte; as ervas daninhas foram arrancadas e os carreiros limpos. A medida que ia trabalhando, a minha mente começou, lentamente, a sair da confusão de medos e preocupações que a atormentavam e a tarefa que tinha em mãos tornou-se a única coisa importante.

 

Por fim, o jardim ficou mais ou menos limpo e eu fui buscar os bolbos que pusera a secar na última estação, para repintar. Narcisos amarelos do cesto maior; açafrão, íris e lírios de cinco espécies diferentes. E outros que cresceriam tão bem nos sítios mais recônditos da floresta como nos” meus vasos abrigados: orelha-de-porco, campainhas e delgados e pálidos bolbos de balsamina. Se atirarmos uma mão-cheia das suas folhas para uma fogueira à noite, dormiremos de um sono só.

 

Padriac tinha-me feito um pequeno utensílio de vidoeiro para fazer os buracos. Enquanto me movia pelo jardim, cavando, plantando cada bolbo no seu lugar com cuidado, alisando o rico solo, aconchegando-os para o Inverno, recordei as palavras que Conor dissera no dia em que Padriac se oferecera para me fazer aquele pau. Não cortes a madeira viva, dissera ele. Procura um ramo que o vento, ou um raio, possam ter arrancado da árvore, ou um vidoeiro que tenha caído durante uma grande tempestade. Corta a madeira que precisares desse modo. Se precisares de cortar madeira nova, assegura-te de que pedes autorização. As dádivas da floresta não devem ser tomadas sem a devida licença. todos nós conhecíamos aquela lição. Umas palavras rápidas e se eram dirigidas à própria árvore, ou a algum espírito que nela habitava, não tinha muita importância. E, por vezes, deixávamos um pequeno presente nada de muito valor, mas sempre de algum significado para quem dava uma pedra favorita, uma pena especial, uma conta de vidro brilhante. A floresta era sempre generosa nos seus favores para com nós os sete e nunca o esquecíamos.

 

Agora já fazia sentido ser o Conor a dar-nos aquelas lições.

 

Já tinha quase terminado; ajoelhei-me para plantar o último açafrão entre as pedras cheias de musgo, o que o protegeria, mais tarde, das brisas geladas da Primavera. O açafrão cresce rapidamente. A porta da ervanária abriu-se com um gemido.

 

Minha senhora? Era uma criada muito jovem, nervosa e pouco à vontade. Por favor, LadyOanagh chama-a. Imediatamente, disse ela. Balbuciou uma desculpa e desapareceu.

 

Até ali fora quase feliz. Agora, enquanto permanecia ali de joelhos, as mãos cobertas de terra e o cabelo caindo-me pelo rosto, o coração gelou-se-me de novo, mesmo ali, no centro do meu pacífico mundo. Não podia ignorá-la, nem sequer ali.

 

Voltei para trás, pelo meio dos alfobres de alfazema. Tinham florido bem, naquele ano e as espigas remanescentes ainda respiravam memórias do Verão enquanto eu as afagava com a mão. Lá dentro lavei as mãos, mas as unhas continuaram negras. Voltei a atar o cabelo o melhor que pude e pendurei o avental num prego. Bem, teria que servir. Não me ia dar ao trabalho de me arranjar para agradar a Lady Oonagh.

 

Tinham-lhe sido cedidos os melhores aposentos, cujas estreitas janelas davam para o lago e recebiam o sol da tarde. Ela estava à minha espera, em pé, com ar inocente, ao lado da cama, coberta de rolos de tecido, rendas e fitas. O cabelo ruivo brilhava, atenuando a beleza daqueles ornamentos, retendo a luz nos anéis escuros. Estava só.

 

Sorcha, minha querida! Porque demoraste tanto? Era uma reprimenda, se bem que gentil. Avancei cautelosamente pelo chão empedrado.

 

Estava a trabalhar no meu jardim, minha senhora disse eu. Não estava à espera de ser chamada.

 

Hum disse ela e o seu olhar viajou pela minha pessoa, da cabeça desgrenhada aos pés cheios de lama. E já tens quase 13 anos. É o que acontece quando se cresce numa casa cheia de rapazes, suponho. Mas vamos mudar tudo isso, minha querida. Quão desapontada ficaria a tua mãe ao ver-te assim tão selvagem, no começo da tua condição de mulher. Ainda bem que ela não está aqui para ver como a tua educação foi negligenciada.

 

Senti-me profundamente ofendida.
Ela não ficaria desapontada! disse eu, zangada. A nossa mãe amava-nos, confiava em nós. Disse aos meus irmãos para tomarem conta de mim e eles assim fizeram. Talvez eu não seja para si uma senhora, mas.

 

Ela interrompeu-me com uma cascata de riso e com um braço em volta dos meus ombros. Fiquei tensa ante aquele toque.

 

Oh, minha querida ronronou ela és tão nova. Claro, defendes os teus irmãos; e eu creio que eles fizeram o melhor que puderam Mas são apenas rapazes, no fim de contas, e não há nada como o toque de uma mulher, não concordas? E nunca é demasiado tarde para começar Temos à nossa frente um ano ou dois, antes de pensarmos em esponsais para ti; é tempo suficiente. O teu pai quer um bom casamento para ti, Sorcha. Precisamos de polir as tuas maneiras e aparência, antes disso.

 

Afastei-me dela.

 

Por que haveria eu de ser polida e melhorada como um objecto para venda? Talvez nem me queira casar! Além disso, tenho muitas qualidades, sei ler e escrever, tocar flauta e harpa. Por que haveria eu de mudar para agradar a um homem qualquer? Se ele não gosta de mim como sou, então que arranje outra rapariga para esposa.

 

Ela riu-se de novo, mas já não de maneira tão agradável e o seu olhar era mais penetrante.

 

Não tens medo de dizer o que pensas, não é verdade? Uma característica que partilhas com alguns dos teus irmãos, segundo me parece. Bem, falaremos disto mais tarde. Espero que aprendas a confiar em mim, Sorcha.

 

Fiquei silenciosa.

 

Oonagh dirigiu-se para a cama, onde uma profusão de tecidos estava espalhada. Levantou o canto de um pano verde transparente.

 

Pensei neste para o casamento. Há uma excelente costureira na aldeia, segundo me disseram, que to fará num dia. Chega aqui, minha querida.

 

Senti-me impotente para recusar. Colocou-me em frente de um espelho que eu nunca tinha visto antes. A sua superfície plana estava rodeada por criaturas entrelaçadas. Os seus olhos, jóias vermelhas, fixavam-me enquanto eu olhava para o meu reflexo. Pequena, magricela, pálida. Um conjunto desleixado de caracóis negros, atados atrás de qualquer maneira. Nariz perfeito, boca larga, olhos verdes desafiadores. A minha versão do rosto familiar não tinha a serenidade de Conor ou a intensidade pálida de Finbar. Era mais suave do que o de Liam e mais delicado de ossos do que o de Padriac. As covinhas que davam tanto encanto aos sorrisos de Cormack e Diarmid estavam ausentes das minhas delicadas faces. No entanto, via os rostos dos meus irmãos quando olhava para o meu.

 

Lady Oonagh pegou numa escova de osso e enquanto eu permanecia ali de pé desfez o rude nó que me afastava os cabelos do rosto e começou a pentear-me aquela confusão. Fechei os punhos e permaneci quieta. Houve algo no movimento continuado da escova e no modo como os olhos dela me olhavam através do bronze polido do espelho que me provocou um arrepio. Uma voz minúscula, quente, falava-me, de dentro de mim; concentrei-me nas palavras. Encontrarás o teu caminho, filha da floresta. Os teus pés encontrarão o caminho certo.

 

Tens um cabelo bonito disse ela. A escova movia-se ritmicamente. descuidado, mas bonito. Devias deixar-me cortar-to. Um pouquinho mais curto... ficaria melhor sob um véu. Oh! O que aconteceu aqui? Os dedos predadores dela afloraram a minha sobrancelha, onde a faca de Simon provocara uma pequena ferida.

 

Eu... Procurava uma desculpa quando os meus olhos encontraram os dela no espelho. O rosto dela era frio, tão frio, que não pareciam humanos. A escova caiu no chão; os seus dedos continuaram a mexer-me no cabelo e era como se ela conseguisse ver dentro de mim, pudesse ler-me os pensamentos, soubesse exactamente o que eu tinha andado a fazer. Afastei-me dela.

 

Aquilo durou apenas um momento. Ela sorriu e os olhos mudaram de novo. Mas eu tinha visto e ela também. Reconhecemos que éramos inimigas. Não sabia quem ela era, ou o que queria, mas o meu coração vacilou. No entanto, tive a impressão de que ficou de pé atrás com a força que viu em mim.

 

Eu mostro-te como é que te vamos pentear para o casamento disse ela como se nada se tivesse passado. Entrançado dos lados e puxado para cima, atrás...

 

Não disse eu, afastando-me e puxando-lhe os cabelos das mãos. Isto é, não obrigado. Eu penteio-o, ou a Eilis. E hei-de encontrar algo para vestir. Olhei de relance para a porta.

 

Eu agora sou a tua mãe, Sorcha disse Oonagh, friamente. O teu pai espera que me obedeças. A tua educação, a partir de agora, está a meu cargo e tu vais aprender a fazer as coisas como eu digo. Portanto, vais usar o vestido verde. A mulher vem cá amanhã para te tirar as medidas. Entretanto, tenta manter-te limpa. Há aqui servos suficientes para arrancar cenouras e mexer no estrume... de futuro, o teu tempo será melhor aproveitado.

 

Fugi. Mas sabia que não podia escapar à vontade dela. Usaria o vestido verde no casamento, quer quisesse, quer não e estaria ao lado dos meus irmãos a assistir ao casamento de Lorde Colum com uma... o que era ela? Uma baixa? Uma feiticeira como aquelas das velhas lendas, bonita mas malvada? Ela tinha um certo poder, isso era certo, mas não era um Deles. A Dama da Floresta, que eu acreditava ter visto com uma capa azul, inspirava mais temor... mas era benigna, se bem que terrível. Achava que Oonagh era de outra espécie, menos poderosa, mas mais perigosa.

 

Fiquei em frente do espelho no meu vestido verde enquanto ela me entrançava fitas no cabelo e me atormentava acerca dos meus irmãos. De novo as estranhas criaturas fixaram em mim aqueles olhos cor de rubi e respondi contra a minha vontade.

 

Seis irmãos murmurou ela. Que sorte que tu tens, crescer numa casa cheia de homens maravilhosos! Não admira que sejas diferente de outras raparigas da tua idade. Da pequena Eilis, por exemplo. Uma rapariga encantadora. Bela cabeleira. Vai ter muitos filhos e em breve perderá toda a frescura. Afastou a pobre Eilis com um estalido dos dedos enquanto dava um nó na fita verde e apertava com força. O teu irmão podia ter arranjado melhor. Muito

melhor. É um rapaz muito sério, não é? Tão intenso.

 

Ele gosta dela! proferi precipitadamente em defesa de Liam, sem pensar. Talvez me tenha ressentido do amor dele para com Eilis, mas não ia ficar ali, sem fazer nada, ouvindo aquela mulher criticar a escolha do meu irmão. Há alguma coisa melhor do que casar por amor?

 

Esta saída foi saudada com cascatas de riso; até a severa criada sorriu ante a minha ingenuidade.

 

Claro que não! disse Oonagh docemente, colocando-me sobre o cabelo encaracolado e entrançado um pequeno véu. A imagem no espelho estava irreconhecível, uma rapariga distante, pálida, de olhos sombrios, o elegante vestido contrastando com a expressão assombrada. Assim parece muito melhor, Sorcha. Vês como te suaviza a linha do queixo? Ainda hei-de ter orgulho em ti, minha querida. Diz-me, parece que os gémeos são habituais na família, apesar de nunca ter visto uns de carácter tão diferente como os jovens Cormack e Conor. Como duas ervilhas, fisicamente, claro. Vocês são todos parecidos, com esses rostos longos e olhos grandes. Cormack é um rapaz encantador e o teu pai disse-me que ele se está a fazer um guerreiro prometedor. O gémeo dele é muito... reservado. Quase como um velho, em muitas coisas.

 

Não fiz qualquer comentário. A criada, de lábios finos, enrolava fitas. Por trás de mim, a costureira da aldeia continuava a trabalhar na bainha da saia. Era um vestido bonito; outra rapariga qualquer usá-lo-ia com orgulho.

 

Creio que Conor não gosta de mim disse Oonagh. Parece mergulhar nas tarefas de admimstração da casa com uma determinação pouco usual num jovem da idade dele. Achas que tem ciúmes por o gémeo dele ser tão brilhante? Este quer mesmo ser guerreiro e brilhar aos olhos do pai?

Olhei para ela. Viu muito e, no entanto, tão pouco.

 

Conor? Dificilmente. Ele segue um caminho escolhido por ele.

 

E que caminho é esse, Sorcha? Um jovem viril deseja mesmo ser um escriba, um admimstrador da casa do pai? Um intendente glorioso? Que rapaz não preferiria antes montar e lutar, viver a vida plenamente?

 

Os olhos dela encontraram os meus no espelho; e as criaturas de bronze ganharam força através daquele olhar, fixando o sinistro e intenso brilho em mim. Fui incapaz de ficar em silêncio.

 

Existe uma vida interior sussurrei. O que vedes é apenas a parte superficial de Conor, uma parte ínfima. Nunca conhecereis Conor se olhardes apenas para o que ele faz. Tendes de descobrir o que ele é.

 

Houve um pequeno silêncio, apenas quebrado pelo roçagar do vestido de Oonagh enquanto ela se aproximava de mim.

 

Interessante. Tu és uma rapariga estranha, Sorcha. Por vezes pareces uma criança, para logo a seguir te saíres com algo que faz lembrar uma velha.

 

Posso... posso ir-me embora, agora? Isto já está? Subitamente, senti-me infeliz. Que mais me faria ela dizer? Por que não conseguia eu controlar a minha língua na presença dela? As suas últimas palavras tinham-me lembrado Simon e eu não podia permitir-lhe que entrasse nos meus pensamentos acerca dele, porque, se descobrisse a verdade, não hesitaria em dizer ao pai e então não seria apenas Simon, mas também Finbar, eu e Conor, que ficaríamos em perigo.

 

parecia que a prova tinha acabado. A costureira começou a tirar os alfinetes, um a um. Eram muitos.

 

Tenho visto muito pouco o teu irmão mais novo disse Oonagh, sorrindo. Tinha-se sentado na beira da cama, balançando um pé suavemente. parecia ter 16 anos naquele vestido branco, com o cabelo a cair-lhe pelos ombros. Até que se olhava para os olhos dela. Sempre longe, a fazer qualquer coisa, o Padriac. Quase se poderia pensar que me anda a evitar. O que é que o mantêm tão ocupado desde manhã até à hora do jantar?

 

Aquilo parecia seguro.

 

Ele gosta de animais e de consertar coisas disse eu. A costureira despiu-me o corpete. Estava frio naquele quarto, apesar do fogo. Guarda-os no velho celeiro. Se há um pássaro qualquer com uma asa quebrada, ou um cão ferido, Padriac cura-os. E sabe fazer quase tudo.

 

Hum! disse ela. Portanto, mais um que não será guerreiro. O tom dela era frio.

 

Os meus irmãos são todos adeptos da espada e do arco disse eu à defesa. Talvez não escolham todos o caminho do pai, mas não lhes faltam as habilidades da guerra.

 

Mesmo Finbar?
Os olhos das criaturas brilharam. Olhei para elas e, reunindo toda a minha vontade, mantive a boca firmemente fechada. Ela voltou a colocar-se atrás de mim, subitamente, com a escova de cabelo na mão. Esperou enquanto a criada, severamente, desfazia a rede de fitas verdes que me subjugava o cabelo.

 

Tu tens relutância em falar. Como é que eu posso ser uma boa mãe para aqueles rapazes se não os conheço? Suspirou expressivamente, com o rosto triste. Receio que Colum tenha favorecido alguns dos seus filhos em detrimento de outros. Detecto uma atmosfera gelada no que diz respeito ao jovem Finbar. O que é que ele fez para merecer tal censura? Será apenas relutância em participar nas perseguições da guerra? Ou nunca perdoou à mãe por ter morrido, deixando-o sozinho?

 

Isso não é justo! Levantei-me e girei para a fixar, arrancando o meu cabelo às mãos da criada. Esqueci a dor. A mãe não quis morrer! É claro que ele tem saudades dela, todos nós temos, ninguém pode preencher o vazio que ela deixou. Mas não estamos sós, nunca estivemos, temo-nos uns aos outros. Não conseguis perceber isso? Somos amigos, família, parte uns dos outros, como folhas do mesmo ramo, gotas de água da mesma corrente. Corre entre nós um único fluxo de vida. Falar de ciúmes é estupidez.

 

Senta-te, querida. A voz de Oonagh era calma; não reagiu à minha explosão. Defendes os teus irmãos, é natural, já que não tiveste outra companhia durante estes anos todos. Que termos de comparação tens tu neste teu mundo tão pequeno? Não é surpreendente, portanto, que não vejas as suas limitações.

 

Finalmente, consegui escapar, mas não havia maneira de esquecer as palavras dela e perguntei a mim mesma de novo que queria ela de mim, de nós. Senti um forte desejo de ter todos os meus irmãos ao pé de mim, para os tocar e falar com eles, para lhes sentir a força e identidade reconfortante. Assim, procurei-os; mas Cormack estava ocupado num treino de luta com paus, mostrando os dentes, ferozmente, desafiando Donal a descobrir uma maneira de o atacar, girando a arma e jogando com os pés. E Padriac estava ocupado com uma maquineta qualquer que estava a construir. Um corvo mantinha-se empoleirado perto dela, virando a cabeça para um lado, ou para o outro, â medida que os dedos dele cumpriam a delicada tarefa.

 

O que é isso? perguntei ao meu irmão mais novo, olhando para o intrincado esqueleto de ripas de madeira e linho esticado.

 

Não é uma asa nem uma vela resmungou Padriac, à medida que os seus dedos ágeis apertavam mais uma união. Com isto, um pequeno barco pode viajar mais depressa sobre a água; mesmo com o menor dos ventos. Vês como os painéis viram quando eu puxo este fio?

Na verdade, era engenhoso; e disse-lho. Dei uma palmada no velho burro e espreitei para os estábulos, onde uma ninhada de gatos malhados estava aninhada num canto quente, cheio de palha.

 

O corvo seguiu-me, coxeando ainda um pouco da ferida (atacado por outros pássaros, pensou Padriac, mas estava a curar depressa). Evitou os gatos.

 

Havia uma longa alameda, entre salgueiros e rodeada por plantas de floração tardia, cujo nome de infância era olhos de anjo, devido às suas flores azuis redondas, que pareciam reproduzir as cores do céu na Primavera. Estavam vivas, com tantas flores, mas o céu, hoje, estava cor de chumbo; não haveria anjos a sorrir naquele casamento. Lá em baixo, no lago, Liam passeava com Eilis. Mantinha a sua capa sobre os ombros dela com a ajuda do braço, com cuidado, porque podia alguém estar a ver e a sua cabeça inclinava-se enquanto lhe falava solenemente. Eilis tinha o rosto virado para cima, para ele e olhava-o como se pretendesse fechar-se ao resto do mundo. Por um momento senti um mau presságio, uma sombra sobre ambos, que trouxe até mim um frio de morte. Depois, eles desapareceram para lá das árvores e eu continuei na direcção da casa.

 

Havia muita actividade na cozinha, com carroças a irem e virem, barris de cerveja e bocados de carne a serem carregados aos ombros e armazenados. Aromas de cozinha e de assados espalhavam-se pelo ar frio e os cavalos escarvavam e resfolgavam. Linn recebeu-me à porta, metendo o focinho molhado dentro da minha mão, mas não entrou. Só então reparei, entre as carroças paradas na calçada, num veículo familiar, manifestamente de trabalho, em cujos varais um velho cavalo esperava pacientemente a sua vez de ser desatrelado e levado para um estábulo quente, para descansar. E aquilo era estranho. Por que estaria ali, agora, o padre Brien, uma noite antes do casamento? Tinha a certeza de que ele viria de manhã e regressaria antes do anoitecer, porque, como poderia ele deixar Simon sozinho depois de escurecer?

 

Entrei, mas nenhum dos meus irmãos estava ali e Fat Janis correu comigo de novo, dizendo que já lhe bastavam os cozinhados esquisitos e os homens sempre a entrarem e a servirem-se, para ainda por cima lhe andar uma fedelha debaixo dos pés. Ao mesmo tempo que me empurrava pela porta fora, meteu-me um bolo de mel quente na mão, com uma piscadela de olhos.

 

Encontrei-os onde tinha começado, no meu jardim de ervas. Provavelmente, era o local mais privado que havia, com os muros altos de pedra e a única porta que dava para a ervanária; menos o telhado, claro, mas só Finbar e eu é que íamos até lá. O padre Brien estava sentado no banco de pedra cheio de musgo e Conor estava estendido ao lado dele, falando seriamente, enquanto Finbar se sentava na relva, de pernas cruzadas.
quando fiz ranger a porta da ervanária, ao abri-la, calaram-se e os três viraram as cabeças em uníssono, para olharem para mim. Foi como se tivessem estado à minha espera e havia, nitidamente, algo errado.

 

O que é? perguntei o que é que se passa?

 

Os meus dois irmãos olharam para o padre Brien, este suspirou e levantou-se, segurando-me nas mãos quando eu corri para ele.

 

Não vais ficar satisfeita com as notícias, Sorcha disse ele gravemente. Gostaria que fossem melhores.

 

O que é? perguntei, evitando pensar.

 

O teu paciente foi-se embora disse o padre Brien, sem cerimónia. No dia em que saí, fiz de maneira a regressar com o pôr do Sol, como tínhamos planeado. Quando cheguei, o local estava às escuras. A princípio receei o pior; mas pude ver que as vossas coisas já não estavam lá e não havia, pelo menos aparentemente, danos. Além disso, parecia que o cão também já lá não estava, nem havia sinais de que tivesse sido ferido. Sabia que Linn não deixaria que tu fosses levada sem que fosse derramado sangue. Era claro que as marcas deixadas pelos cavalos no solo pertenciam aos teus irmãos.

 

Mas Simon... eu deixei-o em segurança... disse que esperaria por si...

 

Não havia sinal dele, filha disse o padre Brien gentilmente. As roupas dele tinha desaparecido, assim como a muleta; no entanto, parece que não levou comida nem água, nem uma capa para agasalho e deixou ficar as botas. Não faço a mínima ideia de quais são as intenções dele.

 

Ele não se importava se vivia ou morria. Mas ele tinha-me prometido.

 

Nem sequer o procurou? Por que não nos mandou buscar? Eu tenho tido visões de Simon sozinho na floresta, de noite, rodeado pelos seus demónios pessoais, enfraquecendo lentamente de frio e de dores. Talvez ele já esteja deitado e silencioso debaixo dos grandes carvalhos, com o musgo a cair-lhe sobre o corpo sem vida.

 

Calma, filha. É claro que procurei; mas ele é um guerreiro e, se bem que ferido, sabe como desaparecer quando quer. E como é que eu havia de te mandar buscar, ou aos teus irmãos? Pensei que, provavelmente, tinha sido feito prisioneiro de novo e trazido para aqui por quem te tinha ido buscar. Soube por Finbar que isso quase aconteceu.

 

De facto disse Finbar. Talvez ele, quando viu com que facilidade podia ser apanhado de novo, tenha escolhido ir-se embora, Sorcha. Há uma raça de homens que prefere morrer a viver cativa. E ele era teimoso que se farta.

 

Mas ele prometeu disse eu infantilmente, tentando reter as lágrimas. Como é que ele, depois de chegar tão longe, deita tudo fora?

Não conseguia esquecer que também eu tinha quebrado a minha promessa. Agora, já sabia o que isso significava.

 

Conor pôs-me uma mão reconfortante em volta dos ombros.

 

O que é que ele te prometeu exactamente, minha corujinha? Tive um soluço.

 

Que viveria, se pudesse.

 

Não sabes se ele quebrou ou não essa promessa disse Conor. Provavelmente, nunca saberás. Por mais que te custe, tens de atirar isso para trás das costas, porque não há maneira nenhuma de poderes, agora, ajudar o bretão. Consola-te, sabendo que fizeste tudo o que podias por ele e pensa no dia de amanhã, porque todos nós temos outros testes e provações à nossa frente.

 

O teu irmão diz a verdade disse o padre Brien. Não temos escolha, senão ir em frente. Há um casamento para celebrar; não me dá grande prazer fazê-lo, mas o teu pai convidou-me e eu não pude recusar. Achais que ele consente em falar a sós comigo?

 

Pode tentar disse Conor. A última coisa que ele quer, neste momento, é um bom conselho, mas, vindo da sua parte, pode ser que seja menos desagradável. Tanto eu, como Liam, tentámos falar com ele à parte, mas não conseguimos.

 

De que vale? perguntou Finbar. Ele está enfeitiçado. Até pode tentar alterar as marés de oeste, ou parar as estrelas no firmamento, porque com ele não consegue nada. Lady Oonagh tem-no dominado, de corpo e alma. Nunca pensei vê-lo tão fraco; e no entanto, estranhamente, não estou surpreendido. Durante perto de 13 anos purgou-se de qualquer sentimento humano, fechou-se a qualquer calor espiritual. Não admira, portanto, que tenha sido uma presa tão fácil para ela. O tom dele era amargo.

 

Estás a julgá-lo com demasiada rudeza disse o padre Brien, perscrutando o rosto do meu irmão. A decisão dele não é sensata, certamente, mas fê-la com boas intenções. Porque vê, com certeza, na sua nova noiva, um guia e um mentor para os seus filhos mais novos, alguém que os mantenha com as rédeas curtas e que lhes traga à vida um pouco de calor. Ele está de nte das suas limitações como pai. Se não consegue chegar até vós, talvez pense que ela consegue.

 

Finbar riu-se.

 

Está-se mesmo a ver que ainda não conhece Lady Oonagh, padre.

 

Ouvi falar dela pelo Conor e pelo teu irmão mais velho, que me recebeu quando cheguei. Sei muito bem o que enfrentais, acredita-me, e rezo por todos vós. É uma tragédia, na verdade, que o vosso pai esteja cego face ao carácter dela. Procuro apenas evitar que a julgueis precipitadamente. De novo.

 

Vai falar, então, com ele, pelo menos?

 

Vou tentar. O padre Brien levantou-se lentamente. Talvez o encontremos sozinho. Conor, acompanhas-me? Oh, a propósito enfiou a mão numa grande algibeira da batina, tirando algo de lá. O teu amigo não desapareceu por completo sem deixar uma lembrança, Sorcha. Deixou isto onde eu pudesse encontrá-lo. Deduzi que era para ti. O seu significado não me parece muito claro.

 

Colocou o pequeno objecto na minha mão e os dois foram-se embora calmamente. Finbar ficou a olhar em silêncio para mim enquanto eu o virava e revirava, tentando ler a mensagem. O pequeno pedaço de vidoeiro pertencia, pensei, à reserva especial do padre Brien, mantida seca para o fabrico do pão sagrado e outras coisas de natureza mais secreta. Tinha sido polido e moldado até caber, confortavelmente, numa mão pequena como a minha. Não tinha sido, de certeza, trabalho de uma tarde; era preciso e intrincado, mostrando um grau de perícia que me surpreendeu. Não conseguia perceber o seu significado. Havia um círculo e, no centro, uma pequena árvore. Pelo formato, pensei que era um carvalho. Na base do tronco tinha duas linhas onduladas, um rio, talvez? Sem palavras, passei-o a Finbar, que o estudou em silêncio.

 

Por que é que um bretão deixa uma mensagem destas? perguntou ele, finalmente. Procura pôr-te em perigo, no caso de ser encontrado? Qual terá sido o propósito dele? Não tenho dúvidas de que aqui está revelada a sua identidade, de uma maneira qualquer desconhecida para nós. Devias destruí-lo.

 

Arranquei-lhe a pequena lembrança das mãos.

 

Isso é que eu não faço.

 

Finbar olhou para mim suavemente.

 

Não sejas sentimental, Sorcha. Estamos em guerra, lembra-te. E tu e eu quebrámos as regras, muito simplesmente. Talvez tenhamos salvo a vida deste rapaz e talvez não. Mas não esperes que ele to agradeça. Os soldados não deixam pistas atrás de si, a não ser que queiram ser encontrados. A não ser que se trate de uma emboscada.

 

Eu guardo-o disse eu. Escondo-o. E sei muito bem o perigo que corro.

 

Não estou muito certo disso, Sorcha disse o meu irmão. Lady Oonagh está só à espera de encontrar um ponto fraco. Depois, como um lobo na noite, atacará para matar. Não és muito boa no que toca a esconder os teus sentimentos, ou a esconder a verdade. Ela não terá piedade de ti; e o pai, assim que ela lhe disser, cai em cima de nós os dois. E pensa no que acontecerá a Conor, se o papel dele nesta história for conhecido. Já estou arrependido por te ter falado nisto tudo. Teria sido melhor se só me tivesses ajudado naquela noite, mais nada.

Esta reprimenda fraternal nem merecia qualquer comentário. Além disso, os meus pensamentos estavam virados para outras coisas.

 

Ele não consegue sobreviver, pois não? perguntei eu bruscamente.

 

Sabes quais são as hipóteses dele, melhor de que eu disse Finbar, franzindo as sobrancelhas. Um homem em forma, nestas condições, com recursos para poder fazer uma fogueira e caçar, pode conseguir atravessar o país, mantendo-se escondido. Basta saber para onde vai.

 

Que desperdício! Não conseguia expressar o que sentia, mas Finbar leu os meus pensamentos claramente. Ele conseguia sempre passar para além de qualquer escudo que eu tentasse levantar.

 

Esquece, Sorcha disse ele. O padre Brien tem razão, nenhum de nós pode fazer nada. Ele foi-se embora, é tudo. De qualquer maneira, as hipóteses de ele se salvar nunca foram grandes.

 

Então, por quê fazê-lo? Por quê correr tantos riscos?

 

Não preferias morrer livre? perguntou ele.

 

Passei algum tempo sozinha na ervanária, quase só a pensar, o leve trabalho de Simon recordando-me, permanentemente, as más-notícias; estava bem escondido num pequeno saco que eu usava à cintura, se bem que necessitasse de um lugar mais seguro, brevemente. Fiz uma pomada de sabugueiro e varri o chão. Mais tarde saí, decidindo que, no final de contas, tinha fome. O bolo de mel de Fat Janis não tinha durado muito. O jantar não me atraía muito, porque neste dia importante era suposto aparecer a família toda. Talvez acontecesse um milagre e o padre Brien conseguisse convencer o meu pai a anular o casamento. Talvez.

 

No lado de fora da porta estava Linn, enroscada num canto da passagem ventosa. Quase não a vi por estar na sombra, mas os meus ouvidos captaram o fraco latido dela.

 

O que é, Linn! O que é que se passa? Olhei mais de perto e reparei, espantada, no grande corte gotejante que lhe atravessava o focinho, desde um dos olhos até ao canto da boca. Os dentes viam-se através do sangrento golpe no lábio.

 

Chamei-a; a cadela tremia e hesitou ante o meu toque amigável, mas continuei a falar calmamente, fazendo-lhe festas e conseguindo levá-la até aos velhos estábulos, onde Padriac me recebeu com os protestos de indignação que eu esperava. Resmungando contra certas pessoas e porque eram admitidas junto dos animais e do que lhes faríamos quando descobríssemos quem eram, o meu irmão mais novo limpou e suturou a ferida, enquanto eu segurava a pobre Linn e lhe falava de prados verdes e ossos. Padriac era muito eficiente, mas, mesmo assim, demorou muito tempo. Depois de acabar, a cadela deu um grande suspiro, bebeu meia tigela de água e deitou-se na palha, ao lado do burro.

 

Já estava escuro e eu lembrei a Padriac que era melhor lavarmo-nos para o jantar; Lady Oonagh não gostava nada de esperar. Quando nos virámos para nos irmos embora, vimos Cormack, na sombra, o rosto branco como a cal.

 

Há quanto tempo estás aí? perguntei, surpreendida.

 

Ela já está boa disse Padriac e havia um estranho tom na voz dele. Por que é que não fazes uma festa à tua cadela, para que ela veja que estás aqui para a ver? Por que é que não fazes isso, irmão?

 

Houve um silêncio estranho e depois:

 

Não posso disse Cormack com voz tensa. Olhei de um para o outro.

 

O que é que se passa? perguntei, confusa.

 

Pergunta-lhe disse Padriac, furioso. Pergunta-lhe por que não entra e faz uma festa à cadela dele. A culpa está-lhe escrita na cara, vê-se. desculpem-me se não fico para conversar. E foi-se embora, roçando pelo irmão mais velho como se ele não estivesse ali.

 

É verdade? perguntei, horrorizada e incrédula. Foste tu que fizeste isto? Padriac estava enganado, de certeza. Fora Cormack que salvara aquela cadela de se afogar, fora Cormack que a criara desde cachorrinha, Cormack, cujos passos ela seguia com devoção de escrava. Os meus irmãos podiam mostrar pouca misericórdia para com os inimigos deles no campo de batalha, mas nunca magoariam, de propósito, uma criatura a seu cargo.

 

Fiquei a olhar em silêncio para Cormack enquanto ele se dirigia para a Stalls e ficava a olhar para a cadela ferida. Pôs os braços em volta de si mesmo, como se tivesse frio e quando me aproximei pude ver que as faces dele estavam molhadas.

 

É verdade, foste tu murmurei. Cormack, como foste capaz? Ela é uma boa cadela, fiel e tem bom feitio. Que te deu para a ferires assim?

 

Ele não olhou para mim.

 

Não sei disse ele finalmente, a voz fraca devido às lágrimas. Estava no pátio, a praticar, ela aproximou-se por trás e eu... não sei o que me deu, deixei ir o pau. Foi como se tivesse sido outro qualquer a fazê-lo.

 

Abri a boca para falar, mas depois achei melhor não o fazer.

 

Foi como se ela nem estivesse ali, Sorcha. Foi... foi de repente, eu estava furioso e acertei-lhe.

 

Fala com ela disse eu. Ela perdoa-te, vê.

 

Ao ouvir a voz dele, Linn tinha levantado a cabeça ferida da palha e a longa cauda abanava levemente. O burro resmungou no sono.

Não posso disse Cormack tristemente. Como é que eu sei que não lhe volto a fazer o mesmo? Não fui feito para ter companhia, animal ou humana.

 

Fizeste uma coisa cruel disse eu lentamente. Mas não a podes desfazer. Tens sorte em ter um irmão capaz de remediar o mal. Mas ela precisa do teu amor, também, para melhorar. Um cão não é capaz de te julgar. Ela gosta de ti, por mais que faças.

 

Linn gemeu.

 

Vai lá disse eu. Faz-lhe uma festa, fala com ela. Ela, depois, adormece facilmente.

 

Mas e se...

 

Não o voltas a fazer disse eu de modo severo. Confia em ti, Cormack.

 

Ele ajoelhou, finalmente e deslocou a mão, hesitantemente, sobre o pescoço da cadela, nunca deixando de olhar para aquela ferida pavorosa, desfiguradora. Linn virou a cabeça com alguma dificuldade e lambeu-lhe a mão. Foi assim que os deixei.

 

desloco-me, com relutância, para uma parte da nossa história que é difícil de contar; se bem que não a mais difícil. Jantámos e Cormack não estava presente, nem Finbar. O pai fez um comentário sobre isso e foi recompensado com um muro de silêncio por parte dos restantes filhos. O padre Brien estava tranquilamente sentado perto da cabeceira. Comeu frugalmente e despediu-se cedo. Eilis deitava olhares nervosos na direcção de Lady Oonagh, como um animal assustado. Liam segurava-lhe na mão sob a mesa, mas o seu rosto parecia de pedra. Ninguém precisava de me dizer que a conversa do padre Brien com o pai não mudara nada.

 

Depois, mais tarde, a maioria das pessoas dormia. Como única rapariga, tinha o luxo único de um quarto só para mim e era ali que todos os meus irmãos se reuniam. Estávamos todos presentes salvo Diarmid. Os olhos de Cormack estavam vermelhos e não se sentou ao lado do irmão mais novo. Finbar apareceu do nada, como uma sombra. Acendemos sete velas brancas, queimámos bagas de zimbro e sentámo-nos em silêncio durante algum tempo, pensando na nossa mãe e tentando partilhar a força que tínhamos. Não tivéramos hipótese de visitar o vidoeiro juntos e, assim, comungámos com ela o melhor que pudemos. O fogo estava em brasas e as velas espalhavam uma luz regular sobre rostos solenes e mãos unidas.

 

Em tais ocasiões, falávamos se nos vinham as palavras, mas contentávamo-nos em passar a força de uns para os outros através do toque e dos nossos pensamentos partilhados. Nem todos éramos capazes de comunicar através da mente, como eu e Finbar. Era uma capacidade reservada a poucos e como a conseguimos é um mistério. No entanto, conseguíamos sintonizar-nos uns com os outros e podíamos sentir, sem palavras, a dor, a alegria e o medo, como irmãos. Naquela noite sentimos a ausência de Diarmid como a perda de um ramo, porque estávamos unidos na compreensão de um destino que pendia sobre nós e o nosso trabalho conjunto de protecção era incompleto sem ele. Ninguém duvidava do paradeiro dele.

 

Liam mexeu-se ligeiramente e a chama de uma vela agitou-se, fazendo dançar sombras nas paredes altas.

 

Obtemos a nossa força dos grandes carvalhos da floresta disse ele calmamente. Assim como eles tiram o alimento do solo e das chuvas que o alimentam, assim nós encontramos a coragem no exemplo das coisas vivas que nos rodeiam. Elas resistem às tempestades, crescem e renovam-se. Tal como um bosque de jovens carvalhos, somos fortes.

 

Conor, que estava sentado à sua esquerda, continuou.

 

A luz destas velas não passa do reflexo de uma luz maior. Esta brilha desde as ilhas para lá do mar ocidental. Cintila no orvalho e no lago, nas estrelas do céu nocturno e em todos os reflexos do mundo espiritual. Esta luz está sempre nos nossos corações, guiando o nosso caminho. E se algum de nós perder essa luz, logo outro irmão, ou irmã, o guiará, porque nós os sete somos um.

 

A seguir era a vez de Cormack, mas ele ficou em silêncio tanto tempo que eu pensei que ele decidira não falar. Por fim, proferiu abruptamente:

 

Hoje fiz uma coisa má. Tão má, que eu não deveria estar aqui, agora. Diz-lhes, Sorcha. Diz-lhes, Padriac. Já começou a vergonha, o assalto. Creio que não poderei fazer isto de novo; não o mereço.

 

Liam, Conor e Finbar olharam para ele. Padriac abriu a boca, mas eu falei primeiro.

 

Ele feriu a cadela disse. Feriu-a muito e sem razão. Ela há-de recuperar graças à competência de Padriac. Mas ele culpa-se a si próprio; erradamente, creio.

 

Erradamente, como? irrompeu Padriac. Foi ele que o fez, disse-o ele.

 

O que ele disse foi que aconteceu como se mais alguém estivesse ali a fazê-lo disse eu. E se estava lá realmente alguém a fazê-lo

 

Queres dizer...

 

Eu já o senti continuei miseravelmente. Ao olhar para o espelho. Não sei como, mas ela fê-lo, enquanto me escovava o cabelo, com a mente, com a voz. Tentou arrancar-me a vontade, fazer-me dizer e fazer coisas que eu não queria. E foi muito forte. Não a consegui manter fora da minha mente.

Ela estava lá disse Cormack lentamente, incrédulo. Nas escadas, no pátio onde treinamos. Estava com o pai, a olhar para mim. Ela estava lá. Terá ela... não, de certeza que não.

 

Mas por quê? perguntou Padriac, zangado. Por que quereria ela fazer tal coisa? Não há razão para tal, não passa de uma brincadeira insignificante. Ela vai casar com ele, não tem já o que queria? E Linn é um animal inocente. Ela é capaz de lhe provocar sofrimento sem razão?

 

A mente de Conor seguia outra pista.

 

Que tentou ela arrancar-te, Sorcha? Que queria ela saber?

 

Apenas... coisas. Acerca de mim, de todos... fez perguntas acerca de todos. Pequenas coisas. Mas eu senti-me mal, não como se ela nos quisesse conhecer, mas... Senti um arrepio. Não sei. Como se fosse capaz de guardar a informação para a usar mais tarde. Contra nós.

 

Conor virou-se para o irmão gémeo.

 

Tu adoras aquela cadela disse ele, fixando o olhar em Cormack. Ela faz parte de ti. Ela deve-te a vida. Não a feririas de propósito.

 

Mas feri. Não interessa se houve algo que me levou a fazê-lo, se me colocou o pensamento na cabeça, foi a minha mão que desferiu o golpe.

 

O que está feito está feito disse Conor. Não o podes mudar. Mas podes melhorá-lo e tu sabes como. Sê a cadela, sente-lhe a dor, sente-lhe o sentimento de traição. Sente-lhe também a simplicidade, o perdão, o amor e a confiança em ti. Ambos podem curar-se mutuamente. Deixou cair a minha mão e segurou na de Cormack, levando-o para o círculo. Após um momento Padriac moveu-se também, segurou na outra mão do irmão e ficámos de novo sentados, tranquilamente.

 

Pedimos orientação disse Finbar. Levamos as nossas luzes e, por vezes, o caminho fica iluminado. Mas muitas vezes elas estão indistintas e não podemos confiar nelas. Espíritos da floresta, espíritos da água, fantasmas do ar, seres das profundezas e lugares secretos, ajudai-nos neste nosso tempo de necessidade. Porque à nossa frente estão as trevas e a confusão.

 

As palavras dele provocaram-me um arrepio. Teria visto algo no nosso futuro?

 

Ouvi, uma vez, uma história disse eu acerca de um herói que teve um desastre após longas jornadas e proezas formidáveis, quando encontrou uma criatura monstruosa com mandíbulas de ferro e a força de três gigantes. Ao herói foi-lhe arrancado membro após membro; e quando o monstro acabou com ele, as partes que restavam foram espalhadas por todos os lados. Assim, uma tíbia caiu numa caverna profunda onde a água pingava constantemente pelas paredes; o cabelo foi levado pelo vento de leste até que ficou emaranhado numa aveleira num canto longínquo da terra. O crânio foi usado como tigela durante algum tempo, depois abandonado num rio, que o levou a todas as costas do mar ocidental. Um cão selvagem levou-lhe os pequenos ossos dos dedos para alimentar as crias. E após um certo tempo parecia que nada restara dele. Os anos passaram e uns pequenos cogumelos cresceram no sítio em que estava o osso da perna e as folhas da aveleira cresceram em volta do cabelo brilhante dele. Na orla do mar, o crânio, cheio de terra, viu nascer e florescer sementes de feto-real; e entre os ossos dos dedos, que as crias tinham deixado brancos e limpos, cresceram espigas de açafrão. E dizem que, se um viajante alguma vez colher um feto-real, arrancar a casca da aveleira e os cogumelos secretos e os misturar com o açafrão da floresta onde os últimos ossos do herói ficaram, surgirá um feitiço poderoso. O herói renascerá, não como era antes da sua destruição, mas muito mais poderoso, física e espiritualmente; porque estará cheio com a força da terra, do mar e do ar. Penso em nós os sete como parte de um só corpo. Poderemos ser separados e poderá parecer que não há amanhã para nós. Poderemos seguir caminhos diferentes, poderemos cair, partirmos um braço e curarmo-nos. Mas no fim, tão certo como o Sol e a Lua fazerem as suas viagens em arco pelos céus, a força de um será a força de sete. Não vos esqueçais do que a nossa mãe nos disse no leito de morte. Devemos tocar a terra, devemos olhar para o céu e sentir o vento. Tal como gotas de água da mesma corrente, devemos encontrar-nos, partir e encontrar-nos de novo. Pertencemos à água do lago e ao coração vivo da floresta. A chama das velas estava, agora, mais baixa e nós caímos no silêncio. Era uma época do ano em que os espíritos estavam muito próximos, porque faltavam apenas duas luas para o solstício do Inverno e eu quase conseguia ouvir pequenas vozes nas sombras, à nossa volta. Padriac não voltara a falar, mas pousou a mão, por momentos, no ombro de Cormack e este acenou com a cabeça. E Conor disse ao seu irmão gémeo, muito calmamente:

 

Eu volto contigo para o celeiro, por um bocado.

 

Obrigado disse Cormack.

 

Finbar ficou para trás quando todos os outros saíram. Ficou sentado a olhar para o fogo. A disposição geral era sombria. Apesar das nossas grandes palavras, estávamos a olhar para um abismo.

 

Em que é que estás a pensar, Finbar?

 

Numa coisa que não posso partilhar.

 

Aproximei-me do fogo, metendo as mãos nas algibeiras, em busca de calor. A superfície suave do objecto de Simon encaixava-se perfeitamente na palma da minha mão.

 

Diz-me Diz-me o que vês.

 

Tentei olhar-lhe para a mente, mas havia uma barreira, um muro escuro, em volta dos pensamentos dele.

Não posso partilhar isto. Não te quero assustar.

 

Apanhei uma imagem de mim própria, quando pequenina, correndo descalça através da floresta sob a luz do Sol pintalgada.

 

Tens medo?

 

Um sentimento de frio intenso. Água. O sussurro do ar a passar pelo corpo, a sensação estranha de cair, voar, cair. Isso, ele revelou-me. Depois, fechou-se abruptamente. Não posso partilhar isto contigo.

 

Não te podes fechar ao mundo disse eu em voz alta, já exausta devido à tentativa para lhe entrar na mente. Como é que nos podemos ajudar se temos segredos?

 

Partilhar o meu último segredo não te ajudou muito disse ele, sem graça. Ou o bretão. Pergunto-me agora se os meus esforços para desfazer o que o meu pai fez valeram a pena. Tu ficaste ferida e o rapaz... o destino dele ficou um pouco melhor devido à minha interferência. Talvez eu devesse deixar de me intrometer. Talvez devesse aceitar que na nossa espécie somos todos assassinos, no fundo. Se Lady Oonagh nos quer como joguetes, qual é a diferença? Deu uma risada torcida.

 

Tu não acreditas nisso, Finbar! Sentia-me chocada; poderia ele ter mudado tão rapidamente? Olha-me nos olhos e diz isso de novo. Segurei-lhe firmemente o rosto com as duas mãos. E quando lhe vi a expressão, os olhos estavam mais límpidos e viam mais longe do que nunca.

 

Está tudo bem, Sorcha disse ele gentilmente. Tenho pensado muito, só isso. Não mudei assim tanto. Mas a minha mente diz-me que um grande mal vai cair sobre nós; e penso se a nossa força será suficiente para o aguentar. Gostaria que estivesses a salvo num outro lugar qualquer, não aqui, no meio de tudo. E preciso de ter confiança nos meus irmãos; tenho que ser capaz de confiar neles, em todos eles.

 

Podes confiar neles disse eu. Ouviste o que eles disseram. Temos todos o mesmo espírito e sempre teremos. Sempre que um estiver em dificuldades, haverá seis para o ajudar.

 

O forte deles é a tortura e a morte. Como podem eles ter o mesmo espírito que tu, ou Conor, ou eu próprio?

 

Não posso responder a isso. Simplesmente... simplesmente, se acreditas nas histórias, está na natureza do nosso povo ir para a guerra e matar, assim como cantar, brincar e contar histórias. Talvez sejam duas metades do mesmo todo. Eu sei que nós, os sete, somos uma família e que só nos temos a nós próprios. Tem que ser suficiente.

 

Mas tinha faltado um irmão; e quando abri a porta para Finbar sair, vimo-lo em baixo, no vasto vestíbulo, escapando-se sorrateiramente de um quarto que não era o dele. Ela mantinha-se do lado de dentro da porta para lhe dizer adeus, vimos-lhe o braço branco esticar-se e os dedos moverem-se suavemente pela face dele e Diarmid afastou-se, descalço, o rosto confuso e cego, como qualquer rapaz enfeitiçado por uma fada. Finbar olhou para mim e eu olhei para ele; mas não pronunciámos qualquer palavra.

 

E eles casaram, ela no seu longo vestido de um profundo castanho-avermelhado e o meu pai olhando para ela como se não houvesse outra alma no mundo senão eles os dois, enquanto em volta a família, os convidados, os homens da guarnição, os criados e os camponeses murmuravam e trocavam olhares. Eu estava para ali no meu vestido verde, com o cabelo entrançado com fitas e ao meu lado estavam os meus seis irmãos, em linha. Não me pareceu, de todo, uma cerimónia como devia ser. Nas histórias, tais coisas aconteciam ao ar livre, sob um carvalho maciço e havia peças de teatro, lutas a fingir e adivinhas e os druidas saíam da floresta para celebrar o ritual dos pulsos ligados. Não havia anciãos no casamento do meu pai, nem qualquer concessão aos velhos costumes. Talvez Lady Oonagh viesse de uma família cristã, mas não havia maneira de o saber, porque ninguém do clã dela estava presente. O Padre Brien disse as palavras tranquilamente, como era seu costume, mas pareceu-me que o rosto dele estava fechado e o tom de voz remoto. Assim que as formalidades terminaram, carregou a sua carroça e partiu. Seguiu-se um banquete de mesa cheia com a respectiva cerveja. E no dia seguinte, as coisas começaram a acontecer.

 

Eilis adoeceu por qualquer coisa que comeu, pensou-se, mas ficou muito tempo de cama e eu fui chamada para a tratar. O rosto tinha perdido aquele aspecto roliço e rosado e havia sangue nos fluidos. Mandei um rapaz em busca do padre Brien, mas ele não veio e eu segurei-lhe na cabeça, falei com ela, fi-la andar de um lado para o outro do quarto e quando estava quase moribunda fiz-lhe um preparado, sentando-me depois a seu lado na cama, até que caiu num sono irrequieto. Liam andava de um lado para o outro lá fora, assim como o pai de Eilis, murmurando baixinho.

 

Fiquei com ela toda a noite e fiz o que tinha a fazer. No dia seguinte ela estava fraca, mas parecia um pouco melhor. Precisava de descanso e cuidados intensos. Fora algo que comera, de certeza. Reconheci os sintomas de envenenamento por acónito e sabia que não fora acidente. A quantidade devia ter sido calculada com precisão, porque uma pessoa apenas podia sobreviver com uma dose extremamente pequena daquela substância letal. A intenção fora magoar, não matar. Não podia dizer como a raiz daquela erva entrara no banquete de casamento e especificamente no prato de determinada pessoa. E não podia acusar a minha nova madrasta, se bem que os olhos dela estivessem pousados em mim quando Seamus Redbeard fez as suas despedidas apressadas. Aprontou-se uma padiola coberta e ele levou a filha para casa, para Glencarnagh. Liam fez-me intensas perguntas, com uma raiva branca no rosto que eu nunca tinha visto antes; mas eu disse-lhe para ter cuidado, conhecendo Lady Oonagh melhor do que ele. Ela sabia o suficiente das minhas qualidades para perceber que a origem da misteriosa doença de Eilis não ficaria por detectar durante muito tempo. Uma acusação era o que ela esperava, visto que nada melhor do que uma clivagem entre pai e filho! Além disso, disse eu a Liam, Eilis iria ficar boa. Era uma rapariga forte e eu detectara o veneno cedo. Era melhor ela regressar a casa por uns tempos, pelo menos.

 

Diarmid arranjou um olho negro e Cormack um golpe feio na face. Talvez uma determinada informação não tivesse ficado secreta, no fim de contas. Nesta questão não interferiria, mas vi Diarmid a observá-la, a observá-la, ficando cada dia um pouco mais magro e mais pálido, como um homem que tivesse provado a fruta mágica apenas uma vez e estivesse a ser consumido pelo próprio desejo. O rosto do meu pai tinha uma sombra parecida, se bem que continuasse os seus negócios mais ou menos como de costume. Oonagh sentava-se à mesa com o seu sorriso sereno e olhos dominantes. As pessoas apressavam-se, nervosas, para lhe obedecerem. Para onde quer que nos virássemos, parecia que ela lá estava, olhando. Os homens de armas mantinham-se à distância.

 

Então os animais de Padriac começaram a adoecer e a morrer. Primeiro foi o velho burro, encontrado já frio e hirto uma manhã, no estábulo. Ficámos tristes; mas ele já tinha vivido o seu tempo, mais ou menos e aceitámos a sua perda com um olhar saudoso para o canto vazio. A seguir, a gata desapareceu, deixando para trás o ninho e as crias. Padriac tentou alimentá-las e eu ajudei, mas, uma a uma, defimharam, enfraqueceram e as suas pequenas vidas desapareceram. Chorei quando a última me morreu nas mãos, os seus olhos, antes brilhantes, enfraquecendo, gradualmente, até ficarem cinzentos transparentes. Dois dias mais tarde, encontrei Padriac a esmurrar a parede do celeiro, os nós dos dedos sangrentos e os olhos marejados de lágrimas. E a seus pés o corvo, cuja perna ferida estava quase curada e cuja plumagem ficara de novo brilhante e saudável; mas agora jazia imóvel, a cabeça torcida para trás de modo estranho e os olhos, sem vida, fixos na imensidão do céu invernoso. O velho celeiro estava vazio. A dor e a cólera sem palavras de Padriac revolveram-me as entranhas. Sentia-se consumido pela fúria e não o podíamos consolar. Para mim, o pior estava para vir. Tinha obrigação de estar preparada, mas não estava.

Lady Oonagh tinha-me dito que as minhas viagens à aldeia deviam cessar; era inadmissível, dizia ela, que a filha de Lorde Colum andasse pela vizinhança como a filha de um qualquer remendão, com os pés cheios de lama e misturada com toda a espécie de canalha. Eu tinha que pôr todo aquele disparate de parte e começar a aprender a ser uma senhora. A música isso já era apropriado. Passei uma manhã a tocar flauta para ela e, com relutância, harpa, porque ela ordenara que o nosso pequeno instrumento fosse colocado no vestíbulo. Felizmente o meu pai, nesse dia, andava ocupado algures. Rapidamente se lhe tornou claro que eu pouco mais precisava de aprender. A costura, então. Pediu para ver os meus trabalhos e fui obrigada a confessar que não tinha nenhum. Oh, eu sabia coser e fazer a bainha de um vestido ou de uma túnica. Mas naquela casa de homens nunca fora preciso um trabalho requintado. Oonagh mostrou-me um véu da mais fina cambraia, salpicado com uma quantidade infinita de pequenos pássaros e flores. Na verdade, era belo; disposto sobre o seu brilhante cabelo, dava-lhe o ar de uma rainha. Ensinar-me-ia as técnicas de que eu necessitava para fazer um trabalho semelhante. Exigiria muito tempo e aplicação, por isso, fim às visitas aos doentes com um cesto de loções e poções. Outra qualquer que o fizesse.

 

Mais ninguém tem as minhas capacidades disse eu sem pensar. Era a verdade pura. Os olhos de Oonagh estreitaram-se e as belas e arqueadas sobrancelhas estreitaram-se de aborrecimento.

Que pena disse ela. Então, essa gente terá de fazer o que fazia antes de tu apareceres, minha querida. Quero que estejas aqui com as tuas agulhas e linhas amanhã, logo a seguir ao pequeno-almoço. Temos muito tempo perdido a recuperar.

 

Durou apenas alguns dias. Os meus dedos, tão ágeis com ligaduras, misturas e medidas, eram desastrados e grosseiros com a agulha e a seda.

Sob o seu olhar escrutinador quebrei a linha, deixei cair a agulha e manchei o tecido delicado com o sangue do meu dedo picado. Ansiei por um dos meus irmãos para que me interrompesse e socorresse, mas nenhum deles o fez. Faziam-se planos para outra jornada para lá das nossas fronteiras e eles consultavam mapas, exercitavam os cavalos ou poliam e afiavam, interminavelmente, as armas.

 

Até o meu pai andava preocupado na presença de Lady Oonagh e ela não gostava nada. Algo o perturbava. Mas eu continuei a manejar a agulha, com ela sempre a observar-me. Por vezes, fazia perguntas e por vezes sentava-se em silêncio, o que era pior, porque conseguia sentir-lhe a mente a tentar penetrar na minha, como se soubesse os meus pensamentos mais profundos. Tentei escudar-me, da mesma maneira que Finbar aprendera a escudar a mente dele da minha. Mas ela era muito forte e se não conseguia ler-me os pensamentos, era muito esperta com as palavras, sabendo como estender-me armadilhas.

 

O teu pai tem andado muito ocupado nestes últimos dias disse ela de modo agradável uma manhã, olhando para mim enquanto eu cosia, laboriosamente, um longo caule com cambiantes de verde. Parece que vai partir outra vez em campanha. Esperava que ele ficasse mais tempo em casa, mas os homens tornam-se irrequietos. Deu uma pequena gargalhada, encolhendo os ombros estreitos dentro do vestido de veludo azul. As esposas habituam-se a isso, eventualmente, suponho.

 

Odiava os esforços que ela fazia para ser tagarela, mais do que a hostilidade.

 

É o trabalho deles disse eu, franzindo as sobrancelhas para a minha agulha.

 

No entanto, a última campanha foi na última estação disse Oonagh, olhando pela estreita janela que dava para o pátio, onde Liam e Diarmid passavam e voltavam a passar a cavalo, praticando a descida e a subida para a sela em andamento, sempre com a espada na mão, um truque que eles usavam, ocasionalmente, em combate corpo-a-corpo, a acreditar no que eles me diziam. Provocava um efeito surpreendente no inimigo, diziam. O que será que os chamará de novo tão cedo? Mais intrusos nas nossas fronteiras, talvez?

 

Não sei disse eu, desfazendo uma série de pontos.

 

Ou talvez andem à procura de prisioneiros evadidos disse ela suavemente. O meu senhor disse-me que tenciona despedir o mestre-de-armas, porque parece que houve alguma negligência de deveres, aqui. Que estranho. Põem tanta energia naquilo que fazem. No entanto, os prisioneiros evadem-se misteriosamente de noite. Pergunto-me como pôde acontecer semelhante erro.
Fiquei subitamente gelada até aos ossos. Ela sabia. Permaneci em silêncio enquanto ela voltava para o pé de mim, sorrindo.

 

Pobre Sorcha, estou a aborrecer-te, minha pobre criança. Que interesse tem tudo isto para uma rapariga, no fim de contas? Rixas sangrentas e reféns desaparecidos. Na verdade, tens tido uma infância estranha, nesta casa. Ainda bem que eu estou agora aqui para cuidar da tua educação. Mostra-me lá o que já fizeste. Oh, querida, isto está tudo torcido. Receio que tenhas que desfazer tudo outra vez.

 

Finalmente fiquei livre e fui à procura de Finbar; porque, de certeza, o pai não tencionava ver-se livre de Donal, que fazia parte da guarnição desde que eu me lembrava, que supervisionara todo o treino dos meus irmãos desde pequeninos, cujas feições severas e robusta constituição faziam parte da nossa família, tanto como as próprias muralhas. Mas não consegui encontrar Finbar; em vez disso, fui surpreendida por uma rapariga da aldeia, vinda em busca de socorro para a avó, cuja febre não havia maneira de descer. Como é que lhe podia dizer que estava proibida de ajudar? Aquela gente contava comigo. Fui buscar o meu saco, atirei para cima dos ombros uma velha capa, calcei as minhas rudes botas e segui a rapariga.

 

Assim que me viram na aldeia, outros aldeões vieram ter comigo em busca de ajuda. Após cuidar da mulher com febre, fui a casa do velho Tom, para o tranquilizar acerca de um furúnculo que lhe aparecera num local estranho. Tratei-o e ele acumulou-me de agradecimentos, louvando também o meu irmão Conor, que dera trabalho nos estábulos aos seus netos, tirando-os, disse Tom, de roda das saias da filha e ensinando-lhes, ao mesmo tempo, uma coisa útil. Depois, fui chamada para ir tratar um minúsculo e doente bebé. Deixei à ansiosa e jovem mãe algumas ervas para fazer um chá que lhe fortaleceria o leite e prometi trazer legumes frescos da minha horta.

 

Quando acabei já a tarde ia a meio e voltei para casa tão depressa quanto pude. Já passara muito tempo desde o pequeno-almoço e já quase sentia no seco e frio ar do Inverno o sabor dos bolos de aveia de Janis. Uma névoa começava a descer sobre os bosques de espinheiro-alvar enquanto eu subia a calçada na direcção da horta. Ia mergulhada nos meus pensamentos e quase tropecei no pai e em Donal quando virei uma esquina. Estavam absorvidos numa conversação e não me viram. Estaquei e voltei para trás da esquina, porque a calma intensidade da voz de Donal disse-me que aquela troca de palavras era extremamente privada.

 

... não é minha intenção contestar a vossa decisão, meu senhor. Mas, pelo menos, ouvi-me, antes de eu me ir embora. A voz de Donal estava sob o mesmo tenso controlo que exercia para com as suas montadas, a sua espada e os seus homens de armas.

O que é que tens para me dizer? retorquiu o pai, friamente. A minha decisão está tomada. Que mais há?

 

Tinham parado mesmo à minha frente e eu não me podia mexer sem ser detectada. O pai tinha as costas voltadas para mim. Donal mantinha-se erecto como sempre, mas os profundos sulcos em volta da boca e do nariz traíam as suas emoções.

 

Eu aceito total responsabilidade pelo que aconteceu. Não há desculpa para tamanho erro. Os meus homens foram exemplAnnente punidos e eu recebi o vosso castigo. O passado não pode ser desfeito. Mas este grau de punição é injustificado, meu senhor Colum.

 

Um prisioneiro escapou. Não foi o primeiro. Um prisioneiro importante, desta vez. Como posso eu deixar passar isso em claro? Saí daqui com o homem preso, não apenas bem guardado, mas inconsciente, que mal podia andar, quanto mais fugir. No dia seguinte, recebo uma mensagem a dizer que o cativo tinha desaparecido. Os teus homens estavam drogados. Deve ter havido ajuda do interior. Como resultado da tua negligência, a nossa posição ficou enfraquecida. Quem sabe a vantagem que tal refém nos poderia ter conferido? Não me posso dar ao luxo de um outro erro parecido. Se não consegues controlar os teus homens, não há aqui lugar para ti. Devias dar-te por contente por ter permitido que continuasses ao meu serviço enquanto o assunto era investigado. Devia ter-te despedido no dia em que regressei.

 

Pai. Não tinha percebido, até que ele falou, que Liam estava presente, fora do meu campo de visão. As botas dele fizeram barulho nas pedras da calçada. Ouve Donal, por favor. Não tem ele sido o nosso guia e tutor ao longo destes 14 anos e mais? Devemos-lhe e a toda a sua paciência, todas as nossas capacidades. Com certeza que o despedimento é um castigo demasiado pesado por uma infracção?

 

A decisão é minha, não tua cortou o pai. Ainda és muito novo para te meteres em tais assuntos. Talvez não estejas a ver bem a importância desta infracção. Devido a esta inaptidão e à demora em ser informado do que acontecera, o nosso prisioneiro bretão pode muito bem ter regressado a casa, conhecedor do número das nossas tropas, do nosso terreno e das nossas posições. O grupo dele não era um simples bando. Não nos podemos dar ao luxo de nos expormos desta forma.

 

Ele estava quase morto naquela noite disse Donal. Não pode ter viajado para longe. Além disso, já tínhamos concordado em que ele não tinha nada para dizer. Creio que tereis subestimado a sua importância.

 

Eu subestimei? Eu? A voz do pai subiu de tom. Não estás em posição de questionar o meu julgamento.

 

Talvez não disse Donal. Mas há a questão da lealdade. Servi-vos bem, como diz o vosso filho, durante estes 14 anos. desde os dias da vossa esposa, quando esta casa era um lugar de alegria. Transformei os vossos filhos em jovens e bons guerreiros, prontos para lutar ao vosso lado pelas vossas ilhas perdidas; bem treinados em todas as artes da guerra, para defender as vossas terras e trazer honra ao vosso nome. Gastei com eles o tempo que vós não podíeis dispensar. Vi a vossa filha crescer à imagem da mãe dela, uma rapariga tão doce e visionária como estas florestas nunca viram nascer. Treinei os vossos homens física e espiritualmente e a lealdade deles para convosco está fora de questão. Mas agora... pela senhora, Colum, devo falar, já que não tenho mais nada a perder.

 

Recuso-me a ouvir disse o pai severamente e o manto dele esvoaçou quando ele rodou nos calcanhares.

 

Tens de o ouvir pai. As mãos de Liam pousaram nos ombros do pai, detendo-o e eu vi o punho fechado do pai erguer-se como que para esmurrar o filho e depois descer lentamente.

 

Sentis dificuldade em olhar para mim e ouvir as minhas palavras. Donal falava com alguma dificuldade. Podeis crer, a mim ainda me é mais difícil e só o faço porque tenho de deixar este lugar que se tornou a minha casa. Meu senhor, nunca vos pedi muito, para além do meu sustento e a possibilidade de fazer um bom trabalho. Mas peço-vos que me oiçais.

 

Houve um silêncio. E depois o meu pai disse:

 

Então?

 

Vou ser directo, meu senhor. Conheço-vos bem, por vezes melhor do que vós próprio. Durante estes anos todos nunca vi o vosso julgamento falhar. Como dizem os vossos homens, por vezes sois duro, mas sempre fostes correcto. É por isso que eles vos seguem até à morte, se for preciso. É por isso que sois dono de tantas terras, da grande floresta até aos pântanos, temido e respeitado por todo o norte. Não cometeis erros. Até agora. Até...

 

Continua disse o pai no tom gelado que utilizava, geralmente, para com Finbar.

 

Até conhecerdes Lady Oonagh disse Donal pesadamente. desde então, a vossa mente não vos pertence. A vontade dela está por trás de todas as decisões que tomais e a sua influência cega-vos...

 

Chega! O punho do meu pai atravessou o ar e chocou, duramente, contra a face de Donal. O mestre-de-armas aguentou-se, ao mesmo tempo que uma marca vermelha lhe aparecia no rosto.

 

Eu digo a verdade e no vosso coração sabeis que é assim disse ele muito calmamente. Nunca me haveis batido antes. Fizeste-lo por causa dela. Envenenou-vos os pensamentos e haveis perdido a capacidade de julgamento. Tende cuidado, meu senhor, porque se os vossos homens perdem a fé em vós, as vossas terras correm perigo.

Cala-te! A raiva do meu pai era palpável. Não fales no nome da minha senhora, porque as tuas palavras conspurcam aquilo que não tem mancha. É assim que me pagas a confiança que depositei em ti? desaparece da minha vista.

 

Pai, ele está simplesmente a pedir-te que o oiças A voz de Liam tremia ligeiramente. Donal não está só nestes pensamentos. Lady Oonagh tem um poder que... que nos afecta a todos. Os teus homens não se sentem à vontade, a casa toda está intranquila. Eilis e o pai dela foram forçados a partir. A tua senhora procura dividir o irmão do irmão, o pai do filho e o amigo do amigo, até que cada um de nós esteja só. destruirá esta família, se a deixares.

 

desta vez houve uma longa pausa e eu podia ouvir a respiração do pai e ver o rosto branco e ansioso de Liam. Arriscara imenso. Após uns momentos, o pai disse lentamente:

 

O que é que queres dizer, forçados a partir? A rapariga estava mal do estômago, é tudo. O que é que isso tem a ver com a minha senhora?

 

Havia veneno na comida disse Liam calmamente. Um veneno específico, apenas no prato dela. Tentámos dizer-to. Sorcha sabe muito dessas coisas, que foi o que valeu a Eilis, senão teria morrido. Não há provas, mas os boatos espalham-se depressa.

 

Culpar a minha mulher é tão estúpido como culpar a minha filha disse o pai, mas o tom mudara, como se, por fim, estivesse a ouvir o que lhe diziam. Por que faria ela semelhante coisa?

 

Para dividir pai e filho, pensei, para que o seu próprio filho possa herdar. Ou talvez o seu plano seja ainda maior.

 

Houve veneno antes disse o pai. Fixou o olhar no de Donal. Tu disseste que deram aos teus homens uma droga para eles dormirem, no dia em que o prisioneiro escapou. E isso foi antes da chegada de Lady Oonagh. Essas teorias não passam de invenções, fantasias para salvares o teu orgulho, um estratagema para que eu mude de ideias e te mantenha no cargo por mais algum tempo.

 

Isso não é verdade disse Donal e pegou no pequeno pacote que tinha ao lado. Reparei, então, na espada e no arco, que ele tinha ao ombro. O meu coração está aqui, assim como o trabalho da minha vida, mas sairei daqui como cheguei. Apenas te peço que prestes atenção às minhas palavras e às do teu filho. Fica avisado e toma cautela. Estendeu o braço para tocar no cotovelo de Liam e havia lágrimas nos olhos do meu irmão mais velho. E Donal partiu, desaparecendo da nossa vista pelo caminho abaixo. Ouvi o barulho dos arreios quando ele montou o seu cavalo e o som dos cascos desaparecendo lentamente na distância. O pai olhava em frente por entre os olhos semicerrados.

Primeiro, Eilis e o pai dela, agora Donal disse Liam. Se não acordas rapidamente, perdes-nos a todos, um a um.

 

O pai olhou para ele.

 

Talvez fosse melhor dizeres-me o que queres dizer disse ele. Liam aproximou-se, pousando uma mão pelo ombro do pai e começou a falar muito suavemente. Um momento mais tarde ouviu-se o repique de um riso e o som de passos leves e Lady Oonagh apareceu, uma visão vestida de veludo, correndo pelo caminho, os pés metidos em delicados chinelos. Uma nuvem de cabelos vermelhos envolvia-lhe as faces coradas e os seios estavam mal cobertos pelo corpete apertado do vestido azul. Uma rede de pequeninas veias sobressaía-lhe na carne cor de pérola e subitamente percebi, talvez mesmo antes dela, que estava grávida do meu pai. A sua pele de alabastro brilhava a partir de dentro. Atrás trotava o meu irmão Diarmid, cheio de covinhas fervorosas no rosto.

 

Meu senhor! Abanava-se a si própria com a mão, fingindo exaustão. Tão solene, tão sério! Deixai-me alegrar-vos! Está um dia bonito demais para olhares tão agoirentos! Pôs-se em bicos de pés, as pequenas mãos segurando a frente da túnica e beijou-o nos lábios. O momento de Liam perdera-se para sempre. O braço do meu pai rodeou a sua mulher possessivamente e ela encostou-se a ele como uma trepadeira à sua árvore, enquanto regressavam ambos a casa. Eu fiquei a olhar enquanto Diarmid os seguia, abatido e confuso. Fiquei a olhar enquanto Liam apanhava uma mão-cheia de pedras do chão e as atirava de novo, com força, contra o solo. Vi-o afastar-se a passos largos na direcção dos estábulos, com a frustração nitidamente estampada no rosto. Então e só então saí do meu esconderijo.

 

Levou-me um momento ou dois, depois de atravessar a casa e chegar à ervanária, a perceber que algo estava errado. Quando um local nos é tão familiar, quando é nosso, tomamo-lo como certo, mal nos apercebendo das cores e formas à nossa volta, como se fosse uma extensão de nós próprios. Assim, demorei uns momentos. Tirei a minha capa e pendurei-a num prego. Virei-me para colocar o saco sobre a mesa. E depois, vi. As prateleiras estavam vazias, as ervas penduradas de qualquer maneira, e as tranças de cebolas e alhos, assim como as plantas secas, tinham desaparecido. As minhas especiarias, os meus unguentos e tinturas, as minhas roupas, badas e trouxas, todas as ferramentas do meu ofício tinham sido levadas. Havia alfazema seca espalhada pelas lajes e a porta exterior estava escancarada. De coração aos pulos, saí para o jardim.

 

Ao fundo, encostada ao muro, ardia uma pequena fogueira e o seu fumo odorífico espalhava uma suave nuvem sobre a devastação à minha frente. De cada lado do carreiro central, todos os canteiros haviam sido mexidos, todas as plantas desenraizadas e uma confusão de caules quebrados, raízes expostas e solo calcado cobria toda a área. Tropecei por ali, espantada. Alfazema, absinto, tanásia e camomila. Malva silvestre e rosmaninho. Andei pelo meio daqueles restos calcados e o aroma suave das folhas pisadas evolava-se num adeus. Os ramos maiores estavam atirados pelo chão ou empilhados para serem queimados. A minha árvore lilás fora cortada. Não cortes, nunca, madeira viva, dissera Conor, a não ser que precises. E nunca sem pedires ao espírito que vive dentro dela. Não lhe destruas a casa sem uma boa razão. Vagueei por ali, silenciosa, a tremer, cega, de uma vítima para outra. Os bolbos precoces, cuja vida secreta permanece escondida, profundamente, no interior das suas coberturas protectoras; os cogumelos que eu cobrira com tanto cuidado contra o frio do Inverno. cortados, esmagados, expostos, no solo revolto. A minha trepadeira, arrancada do muro e cortada em mil bocados; nunca chegaria a abrir as suas minúsculas flores brancas para dar as boas-vindas, de novo, ao sol da Primavera. Continuei a andar. O pequeno carvalho, a mais querida árvore de todas, que me chegava mais ou menos aos ombros, acarinhada e guardada desde os meus oito anos; esperara vê-la crescer, ano após ano, dar sombra e proteger o meu domínio. Fora arrancada pela base e nunca mais germinaria de novo com a vida da nova estação. Caí de joelhos, remexendo selvaticamente o solo, num vão esforço para salvar alguma coisa; mas não conseguia chorar. Aquilo estava para além das lágrimas, para além do pensamento. No meu coração dei um grande grito de angústia.

 

Não chamei os meus irmãos em voz alta, mas dois deles ouviram-me. Finbar foi o primeiro a chegar, envolvendo-me com os braços, afagando-me o cabelo, praguejando entre cada respiração. Um momento mais tarde apareceu Conor, avançando pelo carreiro com o rosto atormentado, chamando em altos berros pelos jardineiros, virando a sua fúria para os dois homens em quem eu não reparara, que se escondiam por trás da fogueira, de pá e ancinho na mão, encolhidos sob o interrogatório furioso do meu irmão.

 

Agarrei com força o gibão de Finbar e lutei para controlar a respiração. A minha cabeça explodia de raiva, desgosto e choque. Após uns momentos, ele parou de falar e tentou acalmar-me com a mente.

 

Chora, Sorcha. Deixa lá. O que está feito, está feito.

 

Até as minhas violetas! Até o meu pequeno carvalho! Podiam ter deixado ficar o carvalho!

 

Tu sobreviveste. Nós somos fortes. E estas coisas voltam a crescer.

 

Como podem elas crescer se o demónio está aqui? Como pode crescer seja o que for? As minhas ervas, as minhas ervas desapareceram, todas as minhas coisas... como é que eu posso fazer o meu trabalho sem as minhas coisas?

 

Chora, Sorcha Deixa lá. Nós estamos todos aqui contigo. Deixa lá, irmãzinha. A terra guarda o teu jardim no coração. Ela chora contigo.

Ele era convincente e finalmente sucumbi, com grandes soluços, encharcando-lhe a camisa enquanto ele me abraçava; e depois chegou Conor.

 

Foram ordens directas de Lady Oonagh disse ele firmemente. Ordens específicas, sem omitir qualquer pormenor. Os homens não podem ser culpados, não tinham escolha; agora já sabem que, de futuro, têm que me perguntar primeiro. Mas para ti é demasiado tarde, pequena coruja. Lamento. Sei como trabalhaste neste paraíso e amaste os seus habitantes. Sei o que isto significa para ti e para aqueles que tu tratas.

 

Só porque... só porque... disse eu entre dois soluços.

 

Ofendeste-a em alguma coisa? perguntou Conor gentilmente.

 

Não é preciso ofender. A voz de Finbar estava fria como eu nunca a ouvira antes. parecia-se com a do pai. Lady Oonagh não precisa de provocação para fazer semelhante coisa. Ela vai destruir-nos, um a um, se não for detida!

 

Ela... ela disse-me para não ir à aldeia consegui eu dizer, assoando-me no lenço que Conor me ofereceu. Mas eles mandaram-me chamar e nunca pensei... eu só queria... e ela... e ela...

 

Os meus irmãos trocaram olhares.

 

Sorcha, respira fundo disse Conor, levando-me para o banco de pedra, que era o único sobrevivente solitário daquela desolação. Agora senta-te. Assim está melhor.

 

Ajoelharam-se os dois a meu lado e Conor segurou-me as mãos nas dele.

 

Menina bonita.

 

Junto da fogueira, os dois jardineiros juntavam destroços, atirando mais ramos arrancados para a pilha. Atiravam olhares nervosos na nossa direcção.

 

Muito bem, Sorcha. Quero que vás para o meu quarto e que fiques lá esta noite. Não tentes vê-la, ou ao pai, até termos todos falado e decidido o que fazer. Sei que estás triste; mas Finbar tem razão. As plantas crescem de novo e com a tua habilidade e amor voltarão a florescer no mais difícil dos lugares. Tu não sofreste nada. Isso é que é mais importante.

 

Eu não conseguia falar. A dor no coração ainda era avassaladora e as lágrimas caíam-me pelas faces abaixo. Agora que começara a chorar, parecia que não me era possível parar.

 

Precisamos de falar, todos disse Conor. Creio que tu tens a chave disto tudo, Sorcha. Mas primeiro deves ir para dentro, precisas de tempo para te recompores.

 

Aqui fora não é seguro para ela disse Finbar rudemente. Isto atingiu-a profundamente e, através dela, atingiu-nos a todos. Foi um golpe bem calculado e levado a cabo com perícia. Não podemos ficar parados e deixar que a nossa irmã suporte tal coisa. Devíamos mandá-la daqui para fora, antes que seja tarde.

 

Agora, não disse Conor. Sorcha precisa de descansar. E tu, irmão, tem cuidado, porque palavras duras, agora, podem pôr-nos ainda em maior perigo. Não tentes pedir contas disto a LadyOonagh, ou ao nosso pai. Não é essa a maneira.

 

Por quanto tempo? Por quanto tempo temos de esperar antes de entrarmos em acção? Por quanto tempo, antes de o fazermos ver quem ela é, do que é capaz?

 

Não muito disse Conor, ajudando-me a levantar. O braço dele em volta dos meus ombros era forte, pesado e reconfortante. Amanhã agiremos, porque, tal como tu, acredito que chegou a altura. Entretanto, fala aos outros no que aconteceu e manda-os ao meu quarto depois de escurecer. Mas mantém a boca fechada, irmão e mantém a tua mensagem afastada dos olhos. Lady Oonagh lê melhor em ti do que pensas.

 

Também tu, pensei. Apercebera-me gradualmente e ainda não era totalmente claro. Mas ele viera ajudar-me, logo a seguir a Finbar e algo que ele dissera confirmava-o. Acreditara que o encontro sem palavras era apenas para Finbar e para mim. Imaginei há quanto tempo conseguia Conor ler os nossos pensamentos e sentimentos e porque nunca nos deixara tomar conhecimento disso. Estava ligado, não sei como, ao que o padre Brien nos explicara. Supunha que, se as pessoas olhassem para nós como uma espécie de guia espiritual, pudesse querer dizer que tínhamos alguns poderes para lá do normal, talvez alguns de que ninguém suspeitasse.

 

Conor disse eu enquanto subíamos as escadas com cuidado, para não sermos vistos.

 

Não faz mal disse Conor, abrindo-me a porta para eu entrar. Os teus pensamentos ficam seguros comigo. Raramente uso esta habilidade e só quando necessito. A tua dor, por vezes, transborda, assim como a de Finbar. Estou aqui para ajudar.

 

Chegámos ao quarto partilhado por Conor e Cormack. Não muito tempo depois de nós chegou Cormack, o rosto crispado, com Linn trotando logo a seguir e saltando para se instalar perto de mim, na cama estreita. Seguiram-se Padriac e Liam, o primeiro com uma taça de vinho de especiarias que era suposto eu beber, o outro segurando-me na mão, beijando-me a face e depois afastando os irmãos para falar rapidamente e em voz baixa, quase em sussurro. Após um certo tempo, foram-se todos embora menos Cormack, que ficou dentro do quarto com uma faca na mão. Finbar não voltou a aparecer. Após espalhar a notícia, tinha desaparecido para tratar de qualquer assunto seu. Eu sentia-me ferida e vazia e permaneci deitada por um bocado vendo a luz a desaparecer e deixando o cão lamber-me os dedos. E após um certo tempo o vinho fez efeito e eu caí num sono inquieto.

 

Mais tarde, muito mais tarde, vieram todos, todos menos Diarmid. Eu estava acordada e eles trouxeram-me pão de cevada com mel, mas eu não conseguia comer e dei-o à cadela. Talvez estivesse a sofrer do que nas histórias se chamava doença do coração. Este, o estômago e todo o interior do meu corpo sentiam-se vazios, ocos e doridos.

 

Pensa nos bons tempos disse Conor, mas eu não conseguia. Finbar, quando entrou, colocou um pequeno fardo a meu lado, na cama. Linn farejou-o, esperançada. desfiz o pacote. Lá dentro estava o meu jardim em embrião: delgadas estacas de alfazema, tanásia, ruda e absinto; uma lasca de madeira de lilás que podia ser enxertada; uma pedra branca, redonda, do carreiro destruído; uma simples bolota. Voltei a embrulhar tudo cuidadosamente. Talvez, talvez pudesse recomeçar. O meu irmão permaneceu de costas voltadas para mim. Senti o amor dentro dele, assim como a raiva.

 

Agora disse Conor tenho de te perguntar, Sorcha, se partilhas um segredo com os teus irmãos. Com todos.

 

Que segredo? Receava o que ele ia dizer a seguir. Lady Oonagh não conseguira fazer-me tropeçar no meu mais perigoso segredo, aquele que, certamente, poria irmão contra irmão. Porque três deles eram guerreiros, comprometidos com a causa, sempre prontos para a vingança sangrenta; e três deles procurariam sempre arbitrar, emendar, lutar com palavras, não com golpes violentos.

 

Ele está a falar na Visão, no espírito que viste na floresta, Sorcha disse Finbar do seu canto escuro. Conor crê que isso nos pode ajudar. Podes dizer-lhes.

 

Ela veio ter comigo disse eu. A Dama da Floresta. Tal como nas histórias. Ela... ela falou-me, acerca do que eu devo fazer da minha vida. Que o percurso seria longo e difícil e que eu devia manter-me nesse caminho. Foi tudo.

 

Nem tudo. Mas eu não contaria o resto.

 

Se lhe pedisses, achas que essa Visão te apareceria de novo? perguntou Liam. O quarto estava escuro, apenas com uma única vela acesa e os meus irmãos pareciam altos e severos nas sombras, três deles em volta da cama, Finbar no canto mais distante e Padriac de guarda junto da porta.

 

Ela não me aparece só porque eu lhe peço disse eu, recordando quão dosesperadamente eu procurara orientação nas minhas tentativas para ajudar Simon. Ela só aparece quando acha necessário.

 

Lady Oonagh abre as asas cada vez mais a cada dia que passa disse Conor. O poder dela está a crescer. Eu acho que precisamos de arranjar uma força ainda maior para a combater. Tu podias tentar. No local certo, na altura própria, connosco à tua volta, podias tentar.

 

Fazes isso por nós, Sorcha? Cormack só se apercebeu mais tarde daquilo que estava em questão. Linn levantou a cabeça ao ouvir o som da voz dele. A ferida dela estava a começar a sarar muito bem.

 

Como? perguntei. Quando?

 

Olharam todos para Conor. Subitamente, ele parecia ter mais de 16 anos, como se outra sombra dele próprio lhe pairasse por cima.

 

Amanhã disse ele. Ao pé da árvore da nossa mãe, ao amanhecer. Tratarei do que for necessário e Sorcha vai comigo. Tu, Liam, tens de fazer com que Diarmid também lá esteja. Não me interessa como, trata de o levares lá. Temos de estar todos presentes. Sem cavalos; vão a pé. Sorcha, leva um pacote com coisas para uma noite ou duas, porque não vais voltar para aqui por uns tempos. Tu também, Padriac. Não vou deixar a Sorcha longe, sozinha. Depois de acabarmos, vão os dois ter com o padre Brien e ele arranja-vos um lugar seguro. Acho que o próximo passo dela será matar, talvez virando-nos uns contra os outros. Seremos um bando bem miserável, se não conseguirmos proteger a nossa irmã de tal poder demoníaco.

 

Quais são os teus planos, Conor? perguntou Cormack, olhando de perto para o irmão gémeo.

 

Não me perguntes disse Conor. Quanto menos souberem, melhor. Não podemos levantar quaisquer suspeitas. Por que é que tu pensas que afastei Sorcha e Finbar da nossa refeição da noite? Ambos são como livros abertos, dizem a verdade com risco das próprias vidas e quando guardam silêncio os pensamentos deles ardem-lhes nos olhos como um farol. É admirável, mas perigoso. Já foi suficientemente mau com o nosso irmão mais velho, aqui, sentado de lábios fechados e franzindo as sobrancelhas às polidas perguntas de Lady Oonagh.

 

Ela está furiosa, apesar das boas maneiras disse Liam. Ela impediu-me, esta tarde, de falar com o pai. Mas não antes de ele sentir qualquer coisa; não antes de uma pequena semente de dúvida ter sido plantada. Ela deve estar pronta para agir muito brevemente; leio-lhe essa intenção nos olhos.

 

Também eu disse Conor gravemente. Portanto, fica longe esta noite. Quando o Sol se levantar sobre o lago, encontramo-nos na margem onde cresce a árvore da nossa mãe. Acredito que conseguiremos invocar um poder perante o qual até Lady Oonagh será forçada a recuar.

 

Cormack deixou o cão dele comigo, como companhia, foi dormir num local qualquer e foi o próprio Conor que ficou de guarda à porta nessa noite, com uma arma perto. Eu dormi aos repelões, acordando muitas vezes sobressaltada, como nas longas noites junto do padre Brien; e de todas as vezes o meu irmão estava ali, de pé, com o olhar fixo numa distante visão qualquer, entoando cânticos, suavemente, numa língua desconhecida para mim. Talvez a meia luz me estivesse a pregar uma partida, ou talvez não, mas pareceu-me que ele permanecia com um pé ligeiramente levantado do chão e um braço flectido atrás das costas; e só um dos olhos estava aberto. permanecia imóvel como uma pedra. A única vela provocava sombras na parede e, por um momento, vi uma ave de grandes asas brancas a voar e uma grande árvore. deslizei de novo para o sono.

 

O dia seguinte amanheceu cheio de orvalho e uma névoa persistente cobria a margem do lago. Partimos antes da alvorada e a barra do meu vestido em breve estava ensopada. Segurei com força no pequeno pacote que trouxera comigo. Não tinha muitos tesouros. Percorremos os caminhos da floresta em completo silêncio e sem qualquer luz. Conor ia vestido de branco e eu seguia-o como uma pequena sombra confiante. Atrás de mim, Linn seguia os meus passos. Sentindo uma necessidade de secretismo, refreava a vontade de perseguir qualquer som na vegetação e permanecia em silêncio.

 

Fomos os primeiros a chegar ao nosso destino. No entanto, já outros lá tinham estado antes de nós, porque na relva ao lado do jovem vidoeiro, onde nos juntáramos tantas vezes antes, havia objectos ali depositados com precisão, esperando a nossa chegada. Os primeiros sinais de pré-alvorada permitiam distinguir margaridas brancas e amarelas, espalhadas pela relva a leste da árvore, onde o solo subia na direcção da floresta. No meio delas estava uma faca, desembainhada, com cabo de osso. No lado ocidental, onde a margem descia para o lago, uma tigela de barro, pouco profunda, permanecia encostada à árvore e, como o cálice de Isha, estava cheia, até às bordas, de água límpida. A sul e a norte, uma delgada vara de vidoeiro e uma pedra cheia do musgo do coração da floresta. Tais eram os preparativos para a nossa cerimónia. Não sabia quem ali pusera os objectos rituais nem o ia perguntar a Conor, porque sentia a necessidade de guardar silêncio, um imenso secretismo e a importância do momento. No entanto, tentava imaginar quem os teria levado para ali, já que o meu irmão estivera comigo toda a noite.

 

Lentamente, foram chegando. Cormack, uma figura alta, saindo da névoa. Logo a seguir a ele Padriac, transportando um pequeno pacote como o meu. Conor mantinha-se perto da árvore, à espera. Um a um ocupámos os nossos lugares ao lado dele, sem falar. Subitamente, senti Finbar ao meu lado, se bem que não o tivesse visto ou ouvido chegar. O seu sussurro urgente quebrou o silêncio.

Sorcha. Olha para isto. Diz-me o que é. Uma pequena garrafa com uma tampa de vidro. Um pequeno vaso elegante, próprio para o perfume de uma senhora. Retirei a tampa, cheirei e retirei uma pequena quantidade de pó negro para a palma da minha mão. Já havia suficiente luz para confirmar a conclusão a que chegara o meu nariz. Era um dos venenos mais mortais que havia. Olhei para Finbar e ele leu a resposta nos meus olhos.

 

É acónito sussurrei. Onde é que o encontraste?

 

Nos alojamentos dela, entre as coisas dela. Pelo menos, prova o que aconteceu a Eilis.

 

Silêncio disse Conor. Esperai pelos outros. Ainda não amanheceu.

 

E assim permanecemos, em silêncio e eu tentei esvaziar a minha mente dos pensamentos turbulentos que nela grassavam e focá-la no nosso objectivo. A floresta mantinha-se calma; ainda não chegara a hora de os habitantes das árvores começarem as suas canções à alvorada. Era um momento de verdade e nós devíamos fazer dele o nosso. Mas ainda não estávamos todos juntos. E, sem os sete, o nosso objectivo não seria atingido.

 

Pareceu uma eternidade, mas, provavelmente, durou pouco tempo até que ouvimos umas leves, rítmicas pancadas na água e um pequeno barco acostou à margem. Era Liam que remava; Diarmid vinha sentado à proa, desinteressado, enrolado numa capa cinzenta, como se fosse um xaile. Cormack desceu pela margem para os ajudar a vir para terra; foram precisos ambos, ele e Liam, para transportar Diarmid e depositá-lo na relva. Havia um cheiro forte a cerveja. Diarmid cambaleava entre os dois irmãos, meio inconsciente, os olhos avermelhados. Liam não parecia melhor. parecia que tinha competido com o seu prisioneiro, bebida atrás de bebida, no seu esforço para o embriagar.

 

Já estamos todos e faltam só alguns minutos para a alvorada disse Cormack.

 

Senti de novo a presença de outros, mais sábios, mais fortes, mais velhos, sentando-se em volta dele, como um manto. Em vez de um jovem de cabelos escuros, vestido de branco, era como se um velho sábio estivesse ali ao nosso lado e a clareira parecia, de qualquer modo, alargar-se em volta dele.

 

Vamos começar dentro de pouco tempo. Mas aviso-vos. Devemos manter-nos unidos, os sete; aquela que tenta cortar os laços que nos unem fá-lo por sua conta e risco. Este mistério é grande e pode alcançar o fim a que nos propomos. Mas, como em todas as coisas, apenas retiraremos do mundo espiritual a ajuda e a força que os seus habitantes nos quiserem dar. Para além disso, teremos de confiar na nossa própria inteligência, coragem e capacidade de resolução. Agora, vamos começar a nossa cerimónia. E quando acabar, separar-nos-emos por algum tempo. Tu, Sorcha, e tu Padriac, deveis esconder-vos. O padre Brien dar-vos-á abrigo e procurar-vos-á um local seguro. Quanto tudo aqui estiver terminado, iremos buscar-vos. E quer o que vamos fazer nos ajude, quer não, nós, os restantes, agiremos hoje, para o bem ou para o mal. Temos a prova; o nosso pai tem de ser confrontado com a verdade e escolher.

 

Fizemos um círculo em volta da pequena árvore, como muitas vezes antes, bastante perto uns dos outros, de maneira que, se cada um esticasse um braço, poderia tocar na mão do que lhe estava a seguir. Mas não havia necessidade de nos tocarmos. Aquele era o nosso local ritual de unidade; os velhos carvalhos e faias tinham ouvido os nossos versos infantis, os nossos segredos juvenis, tinham testemunhado a nossa comunhão com o espírito da nossa mãe. Por vezes tínhamos sido solenes e sérios e por vezes tínhamos brincado e rido. Aquelas árvores guardavam nos seus corações a história dos anos do nosso crescimento e agora iam testemunhar um mistério maior do que qualquer outro da nossa existência.

 

O primeiro raio do Sol nascente iluminou a abóbada celeste. Conor virou-se para sul e levantou diante de si a vara de vidoeiro.

 

Criaturas do fogo, espíritos que viveis no meio do fogo disse Conor crianças das chamas purificadoras, inabaláveis nos vossos propósitos, saudámos-vos! Pareceu-me que o ar se movera, num momentâneo tremeluzir de luz; mas a clareira continuava envolta em nevoeiro.

 

Liam permanecia no lado ocidental e olhava para lá das águas do lago. Diarmid não conseguia manter-se direito no seu lugar, encostando-se ao ombro de Cormack, pestanejando face à luz cada vez maior. Cormack apertava com força o braço do seu irmão cambaleante. Liam levantou a taça para colher a pálida alvorada.

 

Espíritos da água, mutáveis e fugidios, de grande coragem, sábios, guardiões de mistérios, saudámos-vos disse ele e baixou de novo a taça.

 

Finbar virou-se para norte, onde as pedras desordenadas formavam uma espécie de caminho para gigantes por entre as grandes árvores. As suas longas mãos seguravam a pedra coberta de musgo; a luz, que acordava, mostrava a sua superfície, cheia de pequenas marcas e símbolos gravados.

 

Habitantes da terra, guardiões de segredos, narradores da verdade, sábios e dignos, nós veneramo-vos disse ele. Virou-se para o interior do círculo e pousou cuidadosamente a pedra sobre a relva.

 

Agora tu, Sorcha disse Conor calmamente. Olhei para cima, para as árvores majestosas, espreguiçando-se, perante os meus olhos, para leste. Lá no alto, uma cotovia começou a cantar e Padriac, a meu lado, sorriu, de puro prazer, ao ouvir aquele som. A luz no céu mostrou-nos que a aurora estava a chegar, se bem que a floresta mascarasse o momento do nascer do Sol.

 

Eu tinha a faca na mão e flores em volta dos pés.

 

Sílfides da floresta sussurrei. Espíritos dos carvalhos, das faias e dos freixos, dríades das sorveiras-bravas e das aveleiras, ouvi-nos. Vós, que tendes guiado e guardado todos os nossos passos, vós, cujas copas abrigaram o nosso crescimento, veneramo-vos. Dama da Floresta, Dama do manto azul, ouve-me. Ajuda-nos nesta hora, vem até nós neste tempo de escuridão. Vem até nós, se assim o quiseres.

 

Baixei a faca, virando-me para completar o círculo. Em volta da clareira os pássaros cantavam, enchendo o ar com aqueles sons de flauta. Em volta dos nossos pés e sobre a superfície do lago, a névoa começou a dissipar-se com o Sol nascente. Permanecemos em silêncio, de cabeças baixas. O nosso círculo não podia ser desfeito. Esperámos enquanto o céu passava de cinzento a azul e o brilho das águas do lago furava o nevoeiro rasante.

 

E então ela apareceu. Era como se tivesse estado sempre ali, connosco, uma leve figura encoberta, de pé, onde a água de lago tocava a areia; e por trás dela, um pequeno barco, escuro, encostado ao outro. Ela ouvira-me e viera. Deu um passo na nossa direcção e depois outro. A névoa chegava-lhe ao vestido. Mas algo estava errado. Linn rosnou, profundamente. E depois um súbito e silencioso aviso vindo de Finbar, de Conor.

 

Foge, Sorcha, foge.

 

Para a floresta. Já. Foge!

 

Vi os primeiros dedos de névoa predadora estenderem-se e enrolarem-se em volta dos corpos dos meus irmãos, segurando-os com força e depois virarem-se para onde eu estava, no outro lado da árvore. E depois vi os olhos dela, escuros como amoras, sob as sobrancelhas arqueadas, e os caracóis castanhos-escuros sob o grande capuz. Levantou uma mão branca para retirar o capuz e o triunfo estava escrito nas feições delicadas de Lady Oonagh. Virei-me e corri, o terror dando asas aos meus pés, sobre as pedras e os seixos, escorregando na lama e no cascalho, subindo sempre pela colina acima até que a floresta me escondeu nas suas sombras quietas. À minha frente corria Linn, com a cauda entre as pernas.

 

Quando já me tinha afastado o mais que podia, subi para um grande carvalho, que me acolheu nos seus maciços ramos, enquanto eu lutava para recuperar a respiração e o coração me batia desordenadamente. Linn escondeu-se no solo, deixando escapar gemidos de desassossego. Não precisava de ver a margem do lago, porque podia ver através dos olhos de Finbar, sentir com o meu irmão, momento cruel após momento cruel, o inevitável desenrolar da intriga.
Foge, Sorcha, foge! A nossa irmã vira-se e corre através da clareira como uma pequenina coruja e um poder desconhecido esconde-a na segurança das árvores. Mas nós, os seis, estamos imóveis, à medida que os húmidos farrapos de névoa se movem como uma qualquer criatura viva, pelos nossos corpos acima com um propósito inexorável. As nossas pernas estão presas ao chão, os nossos braços atados, as nossas línguas silenciadas. Apenas as nossas mentes ainda lutam, infrutiferamente, por liberdade

 

Ela retira o capuz e a luz da manhã dança-lhe no cabelo encaracolado. Atira a cabeça para trás num riso triunfante.

 

Oh, se vós pudésseis ver a vós próprios, irmãozinhos! Tão cómicos, tão divertidos! A voz dela escurece. Pensáveis que me iludíeis com esta reles representação, esta patética tentativa de feitiçaria? Que vergonha! Teríeis feito melhor se vos tivésseis limitado aos vossos brinquedos de guerra e não vos metêsseis em assuntos para lá do vosso entendimento. Bem, aí tendes a vossa recompensa, meus rapazes, veremos como ficareis depois de eu tratar de vós. Porque receio que me tenhais subestimado.

 

Ela anda em volta do círculo em que nós nos mantemos, impotentes Junto de cada um ela pára e fala.

 

Liam. Protector e chefe. Não foi esse o papel que a tua infortunada mãe reservou para ti? Fizeste um mau trabalho hoje, primogénito. Mas não faz mal. O teu pai pode ter mais filhos como tu. Estas terras nunca serão tuas. Oh, Colum sentirá a tua falta, não duvido, mas só por algum tempo. Eu conforto-o. Além disso, eleja esqueceu o teu aviso.

 

Move-se na direcção de Diarmid, que continua encostado ao ombro do irmão, mal compreendendo o que se passa.

 

Ora, ora, meu doce amante, meu querido. Pensaste que podias tomar o lugar do teu pai, não pensaste? Mas tu não és nada, nada. Ela dá ênfase ao insulto fazendo estalar os dedos sob o nariz dele. Diarmid pestaneja. Porque haveria eu de perder tempo com uma criança como tu, quando posso ter um homem a sério na minha cama?

 

Vira-se para Cormack.

 

Gostaste do corte da tua faca em carne viva, belo guerreiro? Talvez estejas interessado em saber no que a tua irmã anda metida quando estás longe de casa. Porque nem todos vós partilhais o mesmo inimigo, receio bem. Aprendeste bem a lição do teu pai, bate primeiro, pergunta depois. Talvez devesses tentar essa técnica em mim.

 

Vejo os olhos de Conor, porque está de frente para mim. Brilham de coragem. Retine todos os fragmentos de vontade para lhe resistir. Mas ainda é muito novo.

 

Falhaste, druidazinho. Falhaste por completo. E aqueles que se atravessam no meu caminho não têm segunda hipótese. Pensaste na verdade que o poder dela era superior ao meu? Sabes muito pouco, mas pensas que sabes muito. Somos ambas a mesma.

 

Volta-se e fica de frente para mim. Não vou ter medo dela Chega-me de novo o frio, a estranheza, o grande bater de asas. Vejo a face da morte.

 

Tu eras capaz de me desafiar em frente do teu pai diz ela. Sinto arrepios gelados pela espinha acima. Terias salvo a tua irmã a qualquer preço. Mas eu conheço-te e vejo-te como aquilo que és, meu velho inimigo. A tua irmã nunca se livrará de mim; hei-de encontrá-la e há-de sofrer até me pedir a morte. E hei-de enviar-te para onde não haja grandes ideais, conceitos morais, bem, ou mal. Apenas sobrevivência. Que preço terão, então, os teus grandes feitos heróicos?

 

Por fim, vira-se para Padríac, em estado de choque.

 

Tu querias saber tudo. Os segredos do voo, as voltas e reviravoltas de tudo o que se move e tem vida, o ideal de todas as criaturas vivas. Vais saber o que é voar e sentirás o terror e a dor de um animal selvagem. Viverás assim até que pedirás para regressarão mundo dos humanos. Sofrerás e depois morrerás; e não haverá remédio para isso.

 

Permaneci enroscada na grande árvore, de olhos cerrados, as mãos encostadas, com força, aos ouvidos. As imagens passavam-me pela mente. Não conseguia tirar Finbar do pensamento, por mais que tentasse. A angústia dele estava para lá de qualquer controlo que pudesse ter sobre os seus próprios pensamentos e eu era una com ele à medida que a intriga se dosenrolava.

 

Ela levanta as mãos lentamente. A capa escura cai para trás, mostrando o vestido azul e o transparente lenço de delicada arquitectura de pétalas e flores. As mãos apontam para o céu e os olhos escuros parecem puxar as sombras para baixo. Começa a entoar um cântico misterioso em voz alta, numa língua desconhecida, carregada de ameaças. Subitamente, em volta dos nossos corpos, que continuam imóveis, começam a tremeluzir raios de luz. Esses raios vêm-lhe das mãos, do céu, da terra. A clareira fica cheia de raios e chamas. As aves fogem, assustadas. O cântico atinge o seu auge e cessa, E então, acontece. O frio, o ímpeto, a mudança. Onde havia pesadas botas de pele, aparecem os pés com membrana interdigital de grandes aves aquáticas. Onde as capas ocultavam jovens e musculosos braços, aparecem asas de penas brancas, grandes e arqueadas. Por fim, a mente, o espírito. Adeus, Sorcha. Adeus, pequena coruja. A luz, a manhã, a água. Agora somos cisnes. O lago e nós somos um. Somos... desapareceram. Os meus irmãos tinham desaparecido. Mas a voz deles continuava, sonora, na minha cabeça.

 

Não me esqueci de ti, Sorcha, irmãzinha. Quando estiveres cansada e com fome, quando a floresta não for capaz de te abrigar, encontrar-te-ei. Quando menos esperares, estarei ao pé de ti Porque sem os teus irmãos tu não és nada. Primeiro, vou tratar do teu pai; e depois vou atrás de ti.

 

A minha passagem pela floresta nesse dia, a caminho do eremitério do padre Brien, aparece confusa na minha memória. Rasguei as roupas, arranhei os joelhos e feri o corpo saltando de rocha em rocha, de árvore em árvore. Linn manteve-se sempre ao pé de mim, olhando-me ansiosamente, esperando enquanto eu lutava para atravessar o rio e me arrastava pela falésia acima. Sentia a cabeça vazia, a garganta inchada e seca, de angústia. Subi e chorei, chorei e voltei a subir, chegando, por fim, à caverna do eremita.

 

O Sol brilhava e o dia estava agradável. A tarde ia a meio; a minha fuga disparatada fora rápida e tivera alguns custos, porque me sentia tonta e sem fôlego e todo o corpo me doía.

 

Foi Linn a primeira a ver a silhueta escura de uma mulher alta, sentada tranquilamente no banco à sombra das sobreiras-bravas, o cabelo escuro esvoaçando-lhe pelo dorso. O seu longo manto era do azul das montanhas distantes ao anoitecer. O cão fez uma pausa e continuou depois lentamente em frente, a cauda agitando-se hesitantemente. A mulher estendeu uma mão.

 

Vem, filha da floresta. A sua voz era profunda e ressonante. Não me movi. Linn submeteu-se aos dedos acariciadores; também ela estava cansada da nossa corrida precipitada e lambeu ligeiramente a mão da mulher, antes de se dirigir à gamela da água para beber com goles longos, sedentos.

 

Vem, Sorcha. Sabes quem sou? Não fez qualquer movimento na minha direcção. Funguei e levei uma mão ao nariz para me assoar. Onde estava o padre Brien?

 

Vem, pequena. Chamaste-me quando precisaste de ajuda. Estou aqui, venho ajudar-te.

 

Então, a ira subiu dentro de mim e eu avancei, ficando à sua frente e fixando-lhe os profundos olhos azuis.

 

Não vieste! Chamámos-te, todos... e agora os meus irmãos... os meus irmãos desapareceram... e ela disse, ela disse que tu e ela eram a mesma pessoa, foi a ela que chamámos. Não conseguia apagar a imagem de todos eles a transformarem-se, a mudarem, a mudarem de homens para cisnes e o terrível vazio enquanto as suas mentes se afastavam de mim e se perdiam para sempre. Como é que sei em qual das duas hei-de acreditar?

 

O olhar dela era cortante.

 

A espécie dela dir-te-á que não há negro nem branco, apenas sombras. Que tanto pode haver o errado como o certo, que o bom e o mau são duas faces da mesma moeda. Acredita nela, se quiseres. Talvez diga a verdade e eu seja uma mentira. Tens de decidir e tens de escolher o teu próprio caminho. E tens de o fazer agora.

 

Não há escolha possível lamentei-me. Ela levou-os, transformou-os e desapareceram para sempre! Que outra coisa posso fazer senão correr e esconder-me e estar só? Ela disse que vinha atrás de mim, não posso ficar aqui, tenho de encontrar o padre Brien...

 

Chega disse ela levantando a mão, o que eu fiz, aspirando o ar aos solavancos. Ele não te pode ajudar desta vez. Escuta.

 

E eu escutei, sentindo-me subitamente atingida pela ausência de qualquer som. Até os insectos pareciam ter parado de viver. O bosque estava profundamente silencioso.

 

És capaz de te perguntar por que razão este local está tão calmo. É a imobilidade do sono, do adeus. Ele está aqui, mas não está aqui.

 

O que queres dizer? Pensei que não era capaz de sentir mais nada; mas as palavras dela gelaram-me.

 

Temos pouco tempo disse ela levantando-se e eu senti o poder da sua presença, tal e qual como da primeira vez naquele mesmo local; era como se o coração da grande floresta estivesse ali concentrado. Deves escutar e escutar bem. Porque tens uma escolha. Podes fugir e esconder-te, esperando ser encontrada. Podes viver os teus dias em permanente terror, sem o quereres. Ou podes fazer a escolha mais difícil e salvá-los.

 

Olhei para ela. Linn saciara-se e estava deitada ao sol, com a língua de fora. Houve um pequeno silêncio.

 

Salvá-los? sussurrei após um bocado. Queres dizer... este feitiço pode ser desfeito?

 

Pode disse a Dama mas não será fácil. Tu és a única que o pode conseguir e, portanto, tens de ter muito cuidado, porque ela suspeita disso e procurar-te-á, de modo a impedir-te. O aviso dos teus irmãos salvou-te, mas eles não conseguiram salvar-se a si próprios. Só tu o podes fazer.

 

Mas ela disse-lhes... ela disse não há remédio. Eu ouvi as palavras dela, como se fosse um sino a dobrar a finados.

 

Ela quis deixá-los sem esperança, pensando apenas que tinham falhado, não apenas na tentativa de se salvarem a si próprios, mas também na tentativa de te protegerem e resgatarem o vosso pai. Sem esperança ficarão vulneráveis, com menos capacidade para sobreviverem. Ou assim pensa ela.

 

Que crueldade disse eu. Por que é que ela fez isto?

 

Está-lhe na natureza disse a Dama tranquilamente. De acordo com os seus caprichos, pratica o mal, de uma maneira ou de outra; algumas vezes prejudica muito, outras nem tanto. Este plano dela é grande; mas não sabe que há outros padrões, mais velhos e maiores do que os dela. Tu podes desfazer-lhe o feitiço, desta vez, se tiveres vontade.

 

Senti renascer em mim um pequeno lampejo de esperança.

 

Que devo fazer?

 

Demorará tempo, será árduo e doloroso, Sorcha. Terás força suficiente?

 

Sim! Sim! Diz-me o que devo fazer.

 

Os olhos dela mostravam compaixão enquanto se sentava de novo no banco.

 

Senta-te aqui ao pé de mim, minha filha. Assim está melhor. Agora, ouve com atenção. Tens de fazer uma camisa para cada um dos teus irmãos. Tanto o fio, como a tecelagem, como todos os pontos, têm de ser feitos por ti.

 

Eu consigo fazer isso, eu posso...

 

Silêncio. Seria uma tarefa bem fácil, mesmo para um animalzinho selvagem como tu. Mas há mais. A partir do momento em que abandonares este local, até ao momento do regresso final dos teus irmãos à humanidade, nenhuma palavra deve passar pelos teus lábios, nenhum suspiro. Nem contarás a tua história através de desenhos, ou letras, ou sob qualquer outra forma a qualquer criatura viva. Permanecerás silenciosa, muda como os cisnes. Se quebrares o silêncio, a maldição será para sempre.

 

Compreendo disse eu tranquilamente. E que mais? Como é que eu encontro os meus irmãos, para lhes vestir essas camisas?

 

Ah, mais devagar disse ela e tomou-me as mãos entre as dela. As dificuldades ainda mal começaram. As camisas não serão feitas de lã, linho, ou pele. Serão tecidas e cosidas a partir das fibras da morugem. Os ramos aguçados cortar-te-ão, os espinhos rasgar-te-ão a carne. Não terás qualquer irmão para te confortar e lavar-te as mãos feridas. Chorarás em silêncio, mordendo os lábios para não chorares em voz alta. Consegues fazer isso?

 

Consigo sussurrei. Linn aproximou-se de mim, enfiando o nariz frio na minha mão. Percorri-lhe o pêlo suave com os dedos. Voltarei a ver os meus irmãos?

 

Vê-los-ás. No próximo ano, na véspera do solstício de Verão e depois duas vezes por ano, no solstício de Verão e no solstício de Inverno, entre o anoitecer e a alvorada, eles retomarão por algum tempo a forma humana e virão ter contigo, se puderem. Mas lembra-te, não deves emitir qualquer som, não deves contar a tua história, mesmo a eles, ou serão cisnes para sempre. A tarefa será longa, Sorcha. Deves deixar este local e ir em busca de segurança, tal como os teus irmãos planearam. Segue o rasto da carroça para oeste. Antes do cruzamento há um velho trilho para a direita, que volta para trás, para a floresta. Olha com atenção, ou não darás por ele, porque está escondido. Segue esse caminho ao longo da margem do lago. Levar-te-á a um lugar seguro, onde a floresta te esconderá, pelo menos por algum tempo. Leva daqui o que precisares. Escolhe com cuidado. Falei hesitantemente.

 

Por vezes, os meus irmãos... por vezes, falamos sem palavras. Através de imagens na mente. Até isso é proibido? Como poderia eu sobreviver se até aquele laço seria quebrado? Olhei para cima, para ela. As suas feições eram muito severas. Pensei que me estava a avaliar, tentando descobrir se eu era tão forte como dizia. Abriu a boca para falar e depois hesitou. Respirei profundamente.

 

Farei o que tiver de fazer disse eu. Mas os meus irmãos fazem parte de mim e... não lhe podia pedir mais nenhum favor.

 

A Dama teve um pequeno sorriso, como se compreendesse demasiado bem.

 

Não fui eu que lancei este feitiço; apenas procuro contra-atacar. Creio que a fala silenciosa é segura. Lady Oonagh joga com forças que não compreende na totalidade. A ligação entre os teus irmãos e tu própria é muito mais poderosa de que ela alguma vez poderia imaginar. Não conseguirás chegar até eles, dessa maneira, enquanto forem cisnes. Mas podes fazer uso dela quando eles regressarem. Arriscas-te, se o fizeres. Lembra-te, não lhes deves contar a tua história porque, se o fizeres, o feitiço não será quebrado. Deves aprender a manter a tua mente fechada, até para eles.

 

Mas e se...

 

Silêncio, filha. Os feitiços são assim, assim como os encantamentos, determinam-nos estas tarefas. Podes escolher fazer como eu te disse, ou não. Lembra-te, quando as camisas estiverem feitas, deves colocá-las no pescoço dos cisnes, um a seguir ao outro e, se mantiveste silêncio, os teus irmãos voltarão a ser homens de novo.

 

Senti um restolhar de vento nos arbustos à nossa volta e no espaço de uma piscadela de olho ela tinha desaparecido.

 

Já tinha visto gente morta antes. A natureza de meu ofício tornava-o inevitável. Mas nunca, até agora, acontecera com uma pessoa chegada. O padre Brien jazia no chão da caverna, onde caíra. Não havia tempo para tristezas. Se houvesse, talvez o tivesse chorado e descoberto a causa da sua morte. Talvez tivesse sido natural, um espasmo do coração, ou humores doentes no sangue. Também podia ter sido veneno, ou um dedo aplicado no pescoço com habilidade, Fechei-lhe os olhos sem vida e toquei-lhe na face. Fosse o que fosse que tivesse acontecido, o rosto dele, agora, irradiava a tranquilidade de uma profunda e permanente aceitação. Estava onde queria e desejava infinitamente continuar assim. Dizem que o espírito não deixa o corpo por completo até à terceira manhã após a morte. O meu velho amigo não partira há tanto assim, mas o seu interior tinha voado para longe, para a grande vastidão abobadada do céu, que ele costumava observar do alto de Ogma’s Peak, por sobre o topo das árvores escuras, as águas do lago e para oeste. Coloquei-lhe a cruz de madeira entre as mãos e as palavras de um cristão vieram-me à mente, mas não as disse. Quem sabe para onde teria voado o seu espírito? Sempre fora um homem aberto para os dois lados; na morte, muitas portas se abririam para ele.

 

Não tinha qualquer desejo de abandonar o corpo, mesmo desabitado, sem qualquer cerimónia. Devia cremá-lo, mas atear uma fogueira era chamar a atenção. Além disso, precisava de empacotar umas coisas e sair dali enquanto era dia. Havia apenas tempo para lhe deitar por cima ruda, folhas de tanásia e um pouco da sua reserva de acónito. Linn rondava a entrada; não entraria. Não o chorei. Em vez disso, senti um frio sentimento de resolução apoderar-se de mim. A dor ainda estava presente, assim como o vazio. Mas conseguia concentrar-me no que devia ser feito e mexi-me rapidamente para levar a cabo as tarefas necessárias.

 

Abençoei mais de uma vez o bom padre pelo seu espírito prático. O seu velho cavalo estava ali, atado sob as árvores. Devido à necessidade de rapidez e disfarce, não levaria a carroça, mas o animal poderia carregar as coisas e, assim, ajudar-me. Porque não tinha dúvida de que devia partir sozinha e defender-me a mim própria durante bastante tempo. Se tivesse sabido quanto, talvez me faltasse a coragem. Seis camisas, pensei. Isso duraria, pelo menos, até meio do Verão. E como não encontraria ninguém durante esse período, precisaria de comida, sementes, ervas medicinais e o necessário para fazer fogo, coser, fiar e tecer. O padre Brien não previra isso, mas, de qualquer maneira, preparara-se bem, esperando aprovisionar-me e ao meu irmão para uma viagem para lá das fronteiras da floresta. Eu tinha abandonado o meu próprio pacote na margem do lago, quando fugi aterrorizada. Não teria as minhas roupas, as salvas e remédios, ou os restos de meu jardim arruinado, que Finbar reunira com tanto cuidado. Procurei na algibeira de meu vestido. A pequena e suave peça de madeira, com os seus símbolos gravados, continuava lá.

 

O padre Brien guardava as suas coisas nas traseiras da cabana e eu levei tudo o que me pareceu útil. Um saco de cevada, um saco de feijão seco, uma pequena caneca de mel. O tempo já estava fresco. Vesti uma velha capa e uma túnica mele. As botas de Simon ainda ali estavam e apropriei-me delas. Uma faca afiada, uma foice e um pote para cozinhar. Ia ser difícil alimentar a cadela. Esperei que ela desenvolvesse uma súbita habilidade para caçar. O padre Brien não tinha roca nem fuso, nem tear. Mas até o vestuário de um santo padre precisa, por vezes, de ser remendado, por isso descobri agulhas de osso e um rolo de fio, coisas que meti no pequeno saco. Uma garrafa de água e uma pá. O cavalo olhou para mim um pouco queixosamente, retorcendo as orelhas. Coloquei no topo alguns cobertores amarrados e atei a carga com firmeza. O pequeno pacote, que continha algumas coisas cuidadosamente seleccionadas da reserva de ervas e especiarias de padre Brien, carregá-lo-ia eu mesma. E usaria o seu bordão de carvalho para me facilitar a jornada.

 

Permaneci ali um momento, antes de me despedir. A clareira estava cheia de recordações. A chegada do padre Brien, as suas orações, leituras, curas, a sua vida solitária na floresta e os seus ensinamentos. Os seus jovens visitantes: o solene Liam e o alegre Diarmid, os gémeos, como se fossem imagens de um espelho. Cormack, corajoso e temível, Conor, profundo e subtil. Finbar, com a sua integridade apaixonada. Padriac, sedento de conhecimento. E a pequena irmã deles, que não era o sétimo filho do sétimo filho, mas que ia com eles para toda a parte. Ensinara-nos muito ao longo dos anos e agora tinha partido. Agora, o lado humano dos meus irmãos também era só isso, uma recordação, até eu conseguir trazê-los de volta. Ali estava a sorveira-brava, junto da qual eu vira a Dama da Floresta pela primeira vez. Ali, o local onde Simon encostara a sua faca ao meu pescoço e nos perguntara porque não acabávamos com a sua vida miserável. As árvores sussurravam as recordações das minhas histórias e o ar quieto segurava ainda os sons da sua voz; não me deixes, dizia a voz, não me deixes só.

 

Passei uma mão com força pelas faces e fiz estalar os dedos para chamar Linn. Aprenderia rapidamente que não poderia voltar a chamá-la, ou elogiá-la com palavras amáveis. Peguei na corda que segurava o cavalo, virei o rosto para a floresta e caminhei firmemente para oeste.

 

A Dama da Floresta escolhera bem o nosso refúgio. Ficava perto da margem norte do lago, num local onde a curva de um pequeno promontório arborizado abrigava da vista uma pequeníssima baía. No local onde a terra se elevava a partir daquela baía havia uma caverna que devia tanto a uma engenharia astuta como à natureza. Apesar de estar muito próxima da margem,

nodosas sorveiras-bravas e pendentes trepadeiras escondiam-na completamente da vista, de maneira que ficaria invisível de qualquer pista ou caminho público. Um pouco mais longe, no alto da encosta, numa pequena clareira, havia uma pequena nascente e ali as ervas cresciam meio selvagens, no local onde haviam sido cultivadas por um vagabundo qualquer, como eu. E ao longo de leito da corrente, até ao lago, cresciam os grandes caules e as folhas leves da morugem. Esta planta não morre no Inverno, permanecendo verde sob o frio mais intenso. Assim, poderia começar imediatamente.

 

A caverna, em si, fora uma surpresa. As suas paredes tinham marcas de escavações cuidadosas e aqui e ali havia símbolos misteriosos gravados, cujo significado apenas adivinhei indistintamente. Pensei que Conor devia ter sabido que aviso, ou protecção davam, que história contavam. Havia cavidades nas paredes e nem todas estavam vazias. Encontrei cobertores num embrulho oleoso, várias capas velhas e um par de facas com cabos de osso decorados e lâminas maravilhosamente bem conservadas. parecia que outros se haviam abrigado ali antes de mim, talvez protegidos pelas Criaturas Encantadas. Ainda mais útil, havia papas de aveia numa panela, um stock de doce e maçãs secas.

 

Os cobertores eram a melhor descoberta, porque se estava perto do solstício do Inverno e não me sentia muito segura a acender senão uma pequena fogueira, para que a minha presença não fosse detectada. Eu já tinha frio, que entrava até aos ossos durante as longas noites e que era muito doloroso nas manhãs cheias de geada. Enrolei os cobertores em volta de mim mesma e tentei não o sentir.

Talvez eu fosse estúpida ao acreditar que poderia quebrar o feitiço. Demasiadas histórias, se calhar, uma cabeça cheia de lendas, onde o herói cumpre determinadas tarefas e ganha, depois, o coração da sua amada. Mas eu não era assim tão tola, mesmo então. Uma vez, disse a Simon que ele podia terminar a sua história da maneira que quisesse. O que não era totalmente verdade. Escolhi o meu caminho; mas havia outros que influenciavam o seu curso, que divergiam, o mudavam e confundiam. E como a Dama da Floresta me avisara, até o princípio seria muito difícil. Muito mais difícil do que acreditara ser quando primeiro a ouvi, pálida, descrever-me a minha tarefa.

 

Fiar e tecer com linho, ou lã, estraga as mãos, com o pente e os torções a rasparem e ferirem os dedos, ao mesmo tempo que o movimento do fuso começa a provocar uma dor grande nas articulações. Pode-se descobrir uma fiandeira pelas mãos. Enquanto dão beleza ao seu trabalho, estas vão ficando nodosas, torcidas e velhas. As damas nobres das velhas lendas, Etain e Sadb, que se transformou num veado, e Niamh, dos cabelos dourados, cujo nome a minha mãe partilhara, não podiam ter sido fiandeiras e tecedeiras, porque as suas mãos são descritas como brancas e perfeitas, decoradas com anéis de prata, mãos para um bravo guerreiro beijar quando regressa vitorioso de uma batalha. Mãos feitas para bordar, ou para tocar harpa. dedos esguios para esconder um bocejo delicado, ou para tocar na face de um amante. As damas das velhas lendas nunca ouviram falar da morugem.

 

Já falei antes desta planta, como parece suave como as penas de uma pomba, com a sua folhagem cinzenta-esverdeada delicada e flores parecidas com estrelas. Como enterra as suas minúsculas agulhas na carne, queimando, furando e torturando como se fosse fogo. Como a carne incha, fica vermelha e lateja, como a dor permanece até que o último vestígio de veneno seja retirado. Mal sabia por onde começar, porque não havia maneira de proteger as mãos e fazer a tarefa. Podia utilizar uma faca para cortar os caules e segurá-los com um bocado de tecido. Essa era a primeira coisa. Mas não podia cortar os caules e as folhas e transformá-los em fio com as mãos enluvadas. Além disso, sabia o suficiente sobre magia para reconhecer que não podia fazer batota. Para salvar os meus irmãos, teria que sofrer o que eles sofriam. Como o meu pai, de certeza, sofria à sua própria maneira, porque nem ele poderia ficar indiferente ao súbito desaparecimento de todos os seus filhos de uma vez só. Perguntava a mim própria que explicação lhe dera Lady Oonagh. Não, eu teria de arrancar aquela planta e fazer aquelas camisas com as mãos nuas, sangrando e fá-lo-ia, porque sabia que era a única maneira de quebrar o feitiço.

 

Não tinha ferramentas nem muita habilidade. Sabia como fazê-lo porque observara as mulheres da aldeia, sentadas nos seus bancos altos, extraindo a fibra de lã, alimentando-a alternadamente da roca para o fuso, deixando o fio entrançar e crescer, enquanto o fuso rodava lentamente ao nível do solo. Em seguida o fio enredava-se no eixo, giravam o fuso e recomeçava tudo de novo. O trabalho era rítmico e muitas vezes elas cantavam durante a operação. parecia uma coisa simples. Mas eu não ia trabalhar com lã. Uma planta fibrosa, como a morugem, teria que ser ensopada, batida e seca antes de conseguir fabricar o respectivo fio. Teria de começar de qualquer maneira.

 

Primeiro, fiz o fuso. Havia muitos pinheiros no alto da encosta e até uma extensão de ramos finos, despidos de galhos, que serviriam como fuste do fuso. Quando cortei a madeira com o machado não me esqueci de agradecer silenciosamente aos espíritos da árvore. Se ia viver ali sozinha, a sua boa vontade seria essencial. Linn resolveu a minha parte seguinte do problema enquanto farejava o solo, procurando aromas interessantes. Ela aprendera o jogo da busca e trouxe-me uma pinha que caíra da árvore antes de amadurecer e deixou-a cair, expectantemente, aos meus pés, esperando que eu a atirasse para longe, de maneira a ela poder ir buscá-la. A pinha era bem modelada, simétrica e pesada. E assim arranjei o meu fuso. Afaguei Linn e atirei outra pinha para ela correr atrás. Quando regressei à caverna, utilizei a pequena faca para fazer um buraco na base da pinha e nele enfiei a ponta do fuste. Fiz um entalhe na outra ponta, onde o fio seria preso. Até agora, tudo bem. Em seguida, peguei na faca e fui cortar morugem.

 

Não me demorarei muito neste processo. Cortei os caules e meti-os em sacos, o que me poupou um pouco as mãos, mas mesmo assim as agulhas alojavam-se-me na carne e as mãos doíam-me mais do que eu julgava ser possível. Apesar da quantidade de plantas, a tarefa decorria lentamente. Quando tinha um conjunto de caules pronto, fui até à margem do lago à procura de um lugar onde pudessem ser encharcados. Tive sorte. A corrente passava por entre grandes pedras cheias de musgo e aqui e ali formavam-se pequenas poças. Mesmo acima da margem pedregosa havia um lugar onde podia mover uma pedra ou duas, de maneira que apenas uma pequena corrente passava por uma poça pouco profunda. Ali abri os braços cheios de caules espinhosos. Com algumas plantas e madeira de freixo fiz uma fogueira para apressar a preparação da fiação. Sabia isso devido ao meu estudo das ervas.

 

Decidindo que não fazia mal nenhum tentar, esperei até que a minha pequena fogueira arrefecesse e de manhã peguei num punhado de cinza mole e levei-a para a borda-d’água. Borrifei com ela os caules e usei uma pedra redonda para bater e quebrar as duras fibras até ficarem com o aspecto de fios isolados. Torci cada um daqueles novelos duros em volta de um pau, coisa que consegui fazer entre as pedras da poça, de maneira que a água rodeava-os por completo. Depois, esperei. Três dias demorou a espera, tempo suficiente para retirar das mãos os espinhos da morugem e para lhes aplicar uma pomada, tempo suficiente para fazer um inventário das minhas magras provisões e para perceber que, sem provisões, ou sem roubar, não duraria até à Primavera. Tempo suficiente para aprender a ferver aveia em água sobre a fogueira para fazer umas papas simples e para explorar um pouco a minha nova casa. Fiquei surpreendida ao descobrir que não estava muito longe do cume da encosta ocidental e que, de onde estava, podia ver uma extensão de terreno aberto, liberto de floresta, para efeitos de pastagem. Havia lá pequenas casas de fazenda, uma ou duas. Estavam suficientemente perto para, talvez, me poderem fornecer provisões. E estavam suficientemente perto para serem uma ameaça à minha segurança.

 

No quarto dia retirei a morugem da água, bati de novo as fibras e pendurei-as dentro da caverna até ficarem quase secas. No dia seguinte comecei a fiar.

 

Pobre Linn. Estava bem adaptada ao meu estado de espírito e mantinha-se humilde e fiel como só um bom cão o pode ser. Estava-lhe para além do entendimento o porquê do meu choro, porque todo o meu corpo estava tenso devido à dor e porque não me conseguia fazer sentir melhor ao lamber-me, gemendo e sentando-se tão perto de mim quanto podia. A sua aflição incomodava-me e tentei trabalhar enquanto ela estava fora, caçando; mas a tarefa era lenta, tão lenta, fio atrás de fio quebradiço que se partia, se desenredava e não torcia, a tentativa para continuar e em breve a dor se tornou demasiado insuportável, deixei cair o fuso e corri para mergulhar as minhas pobres mãos na corrente para suavizar a dor.

 

Foram tempos difíceis e eu ouvia uma voz interior que me dizia que aquela tarefa era impossível. Porque não desistir? Vê, as tuas mãos estão inchadas e arruinadas, choras dia sim, dia não e qual é o resultado? Um pequeno carretel de fio de má qualidade, rugoso e frágil, que mal dá para fazer a bainha de uma jaqueta para uma borboleta, quanto mais para uma camisa de homem. Esta tua tarefa não pode ser levada a cabo. Além disso, como podes ter a certeza de que a Dama da Floresta não te mentiu? Talvez isto não passe de um truque cruel e o teu trabalho não sirva para nada.

 

Era difícil ignorar semelhante voz. Mais do que uma vez tirei da algibeira a pequena peça de madeira e olhei para a pequena árvore gravada nela, imaginando-me a falar com Simon, falando, falando sempre do seu desespero, ódio por si próprio e miséria. E comecei a contar histórias a mim própria, não em voz alta, mas mentalmente; e procurava concentrar-me nessa história, quer fosse sobre um herói, um gigante ou três irmãos que saíam de casa em busca de fortuna. Se não me lembrava de uma, inventava-a, ou melhorava outra que conhecesse.

 

Durante todo o dia, as minhas mãos iam fazendo aquele terrível trabalho e a dor permanecia, assim como o inchaço, que tanto dificultava o controlo do fuso e do fio. Mas a minha mente ultrapassava a dor e ia viver com damas encantadoras, nobres guerreiros ou viajantes cheios de sorte, dragões, serpentes e desejos mágicos.

 

Quando o anoitecer tornava o trabalho impossível, punha de lado o que tinha feito, tentando não ver quão magra fora a quantidade de fio que produzira. Não havia nenhum irmão para me arrancar da carne as agulhas da morugem, nenhum trovador para me confortar, nenhum amigo para me tratar as mãos com unguentos curativos. As farpas ficavam-me na pele, porque os meus dedos inchados e dormentes não tinham o controlo suficiente para as extrair. De vez em quando a carne supurava e os humores surgiam e escorriam das lesões. Então, ficava febril e tonta. Mas tinha escolhido bem entre o stock de remédios do padre Brien. Trouxera uma pomada de erva-férrea e consolda e fiz uma infusão de casca seca de salgueiro e de uma erva medicinal com água de nascente que utilizava, tanto para me lavar, como para beber. Pouco tempo depois senti-me suficientemente bem para recomeçar, se bem que mais fraca. parecia que o meu corpo aceitava o inevitável e as minhas mãos ficaram cheias de cicatrizes e ásperas devido ao tratamento precário. A dor mantinha-se, mas eu podia continuar.

 

O Inverno transformou-se em Primavera e eu emagreci. Conseguia contar as costelas e sentia o frio de noite, se bem que Linn dormisse ao meu lado. E tinha fome. Pois um saco de alimento não dura muito, mesmo para uma rapariga e a não ser que mendigasse, ou roubasse, tinha de contar com o que encontrava. Não comia carne ou peixe desde miúda, porque sempre sentira uma relação muito forte com as outras criaturas, o que fazia com que os meus sentidos se revoltassem à ideia de as comer. Linn aprendera a caçar na floresta; a fazer desaparecer os restos das presas habilmente e longe da vista da sua companheira humana. Para mim era mais difícil. Precisava de encontrar comida, agora que o tempo estava mais quente, uma boa provisão de cogumelos, agriões nas nascentes e cebolas selvagens. Ainda era muito cedo para outras coisas e racionei o que me restava de cevada e a decrescente provisão de feijão para quando chegasse a ocasião das bagas e nozes maduras. Apesar da fome, detestava todo o tempo perdido à procura de comida vegetal.

 

O cavalo estava cada vez mais esquelético e de olhar selvagem e eu já não podia continuar com ele. Um dia, quando o Sol estava descoberto e os primeiros calores da Primavera pairavam no ar, levei-o através do bosque para o local onde a terra fora desbravada para ser transformada em pastagem, de onde se podia ver os campos verdes, os muros de pedra, uma vaca ou duas à distância e uma coluna de fumo saindo de uma pequena cabana. Pousei-lhe a testa no pescoço durante um momento, tentando dizer-lhe que o padre Brien gostaria que ele ficasse em segurança, fosse útil e bem alimentado. Então, dei-lhe uma palmada no flanco e apontei para a frente. O animal partiu cautelosamente através do campo e eu deslizei de regresso às árvores e deixei-o. Espero que tenha encontrado gente bondosa e um estábulo quente.

 

No princípio da Primavera houve uma grande trovoada que açoitou a floresta durante um dia e uma noite, chicoteando o topo das árvores numa dança frenética e empurrando agulhas de chuva gelada para dentro do meu abrigo, de maneira que cada cobertor, peça de roupa, canto de solo, estava saturado. A minha fogueira tornou-se inútil e eu sentei-me e tremi desamparadamente, enquanto a cadela fazia os possíveis para me manter quente. Na segunda manhã, quando a trovoada amainava lentamente, fui acometida por convulsões e só conseguia pensar no grande fogão do vestíbulo de casa, com os seus toros de pinho a estalarem e a pequena lareira do meu quarto, que iluminava a coruja e o unicórnio tecidos na tapeçaria. Meio a sonhar, imaginei uns braços fortes a embrulharem-me num cobertor e a embalarem-me até adormecer, quente e segura. Acordar deste sonho, ensopada e a tremer de frio, foi muito cruel. Após um certo tempo, Linn cansou-se de mim e saía de manhã, enquanto eu ficava a chorar silenciosamente, pensando que ia desistir de tudo, ou quase, se alguém me trouxesse uma malga de cerveja forte da Fatjanis.

 

Não sei quanto tempo fiquei assim, mas o meu sentido de autopiedade foi interrompido pelo ladrar de Linn e eu coxeei para o exterior, os membros entorpecidos a protestar, para ver que um dos grandes freixos tinha caído durante a noite, trazendo com ele muitos dos seus irmãos mais pequenos e jazendo agora no lado de fora da minha porta. Linn estava mais acima, na encosta, procurando algo no solo.

 

A morte desta grande árvore abrira um grande espaço na densa floresta em volta da minha caverna e eu podia ter um vislumbre do lago, entre os jovens ulmeiros e salgueiros. Permaneci ao lado do gigante caído, pousando-lhe na casca cinzenta e suave as minhas mãos inchadas e falei intimamente com o espírito que vivera dentro dele, porque a trovoada levara-o com um gesto violento. Agradeci-lhe pelos anos de abrigo que a árvore dera às pequenas criaturas, pelo alimento que deixara cair no solo e pela permanente paz e compreensão. Disse-lhe que daria bom uso à madeira, fabricando novas ferramentas para o meu ofício, alimentando a minha fogueira e assegurei-lhe que a luz que agora banhava a encosta, branca e fria, no seu brilho após a trovoada, daria origem a nova vida no solo. Com o tempo, outro vidoeiro cresceria ali. Disse-lhe isso e a fria suavidade da casca acalmou-me a dor dos dedos. Senti o conhecimento e o mistério da grande árvore absorvidos pelo meu espírito, senti-lhe a singularidade, a solidão, a vida e a morte. Ainda não lhe cortaria a madeira. Esperaria que o espírito se afastasse e então, na altura própria, cortaria, secaria e moldaria uma nova roca e um novo fuso e tentaria fabricar um tear, porque pensava que já tinha fiado fio suficiente para começar a fazer a primeira camisa. A minha força ainda não era suficiente para atacar o maciço tronco ou os grandes membros de tamanho gigante, mas o meu pequeno machado podia cortar os ramos mais baixos. Olhei para as minhas mãos inchadas e flecti os dedos doridos. Ia ser duro.

 

Entretanto, o grande freixo ficaria onde estava, o musgo trepar-lhe-ia para o tronco e as pequenas criaturas fariam os seus ninhos nos pequenos buracos. Até na morte seria um elo na grande cadeia dos seres da floresta.

 

A estação continuava. As abelhas atacavam as doces flores da alfazema e os bosques estavam atapetados de flores resplandecentes. O dia e a noite equilibravam-se, as aves andavam em busca de pedaços de palha e pequenos ramos, preparando os ninhos para novos nascimentos. Aventurando-me até à margem do lado, uma manhã, vi bandos de aves aquáticas lá longe, na direcção das pequenas ilhas, vagueando sobre a superfície prateada da água, subindo para o céu em grandes nuvens de asas batendo ou mergulhando, à procura de peixe. Não conseguiria dizer, àquela distância, se alguma delas era um cisne.

 

A água estava mais quente e eu consegui despir-me, lavar-me e limpar o meu vestuário coberto de lama. Durante todo este tempo, não vira qualquer sinal de vida humana na margem. Era como se este canto selvagem estivesse, de alguma maneira, protegido de interferência mortal e talvez fosse verdade, pelo menos por algum tempo. A floresta esconder-te-á, dissera a Dama da Floresta. Quem poderia saber quanto da sua influência não estaria presente?

 

O tempo passou e a floresta explodiu com vida nova. todos os dias eu dava uma volta pelas redondezas. Levantava-me de madrugada para me lavar na água do lago, soprava as brasas da minha pequena fogueira para a trazer de novo à vida e fervia água com, talvez, uma mão-cheia de agriões e cebolas selvagens, para um pequeno-almoço frugal. Depois, Linn desaparecia ao longo da margem, ou nos bosques, em busca de caça e eu ia à procura de comida. À medida que a Primavera se aproximava do Verão, esta tarefa tornou-se mais fácil. As amoras amadureciam e havia por aqui e por ali groselhas, prontas a serem colhidas. Os sabugueirosestavam cobertos de branco. As ervas selvagens eram abundantes, os pés-de-leão, a salva, a manjerona e a ficaria. Reparei onde cresciam as madeiras e as aveleiras, porque me forneceriam uma boa colheita mais tarde, no Outono. Já sabia, então, que iria viver aqui, pelo menos, mais um Inverno, já que a tarefa era terrivelmente lenta. Ainda mal tinha fio para uma camisa e já estávamos quase no Verão. Quando regressava da minha busca de comida, pegava na roca e no fuso, no inesquecível fardo de fibras e fiava, fiava, sentindo as farpas entrarem-me na carne, e contava a mim própria histórias em silêncio, com os olhos fixos no vazio. De vez em quando levantava-me para dar um passeio sob as árvores, encostando as costas e ombros doridos

a um grande carvalho ou robusto ulmeiro. Então, a minha mente procurava-os, para lá do lago, no céu, algures, onde os meus irmãos pudessem estar.

 

Ond? estás, Finbar?

 

Mas não havia qualquer resposta. E podiam estar mortos, caídos por terra, vítimas da seta de algum caçador, de um lobo, ou um javali.

 

Onde estais?

 

Não me podia permitir fazer isto durante muito tempo. Linn voltava lambendo os beiços, sentava-se ao pé de mim para me fazer companhia e eu voltava para a roca. Mais tarde, durante o dia, pegava no fio que fizera de manhã e acrescentava-o ao que já tinha. Estava para além das minhas capacidades fazer um tear cerro os que vira as mulheres, em casa. utilizar. Mas encontrara um bocado de casca de árvore liso, com duas mãos de comprimento, um pouco menos de largura. Arredondara-lhe os cantos e atara-lhe o fio em volta. A trama tecia-a à mão, com uma agulha de osso, trazida do padre Brien. Por baixo e por cima, por baixo e por cima. O tecido era rugoso e irregular, mas aguentava-se. Mais tarde teria tempo para pensar em como aquilo poderia ser transformado numa camisa.

 

O solstício do Verão apanhou-me quase de surpresa. Estava a trabalhar tão regulAnnente quando podia e comecei a procurar morugem mais longe, porque já quase tinha esgotado o stock perto da caverna e tinha de o deixar de lado, para que recuperasse. Um dia, aventurei-me pelo velho carreiro por onde tinha levado o cavalo, pela encosta acima, por entre vinha virgem e trepadeiras, fetos e musgo, pela luz verde-escura filtrada da velha floresta, até estar quase ao pé do local onde o tinha deixado. Havia um sentimento estranho dentro de mim, como se tivesse que me certificar que o resto do mundo não se fora embora enquanto eu permanecia escondida na minha caverna, a fiar. Porque, que era das histórias dos rapazes e raparigas levados pelas Criaturas Encantadas para debaixo da encosta? Passavam uma noite com elas, cantando e dançando e, quando voltavam para casa, descobriam que se tinham passado cem anos e que todos os seus familiares tinham morrido. Quem poderia dizer que não me aconteceria o mesmo?

 

Aproximei-me o mais que me atrevi da orla da floresta e trepei calmamente para os braços abertos de uma nogueira. Linn ficou a guardar-me a trouxa, feliz por ficar no meio dos fetos, porque o Sol estava quente e o ar pesado, anunciando trovoadas de Verão. Do meu ponto privilegiado olhei por cima de uns amieiros jovens, para um trilho de carroças bordejado por espinheiros-alvar e para lá, para campos divididos por muros, alguns semeados de cevada ou centeio e outros utilizados para pastagens. Havia uma cabana ou duas, bastante longe. Aqui e ali a terra elevava-se em pequenas colinas cónicas, algumas cobertas de pinheiros ou carvalhos no topo. E para lá das terras cultivadas, recomeçava a floresta. Fiquei sentada tranquilamente naquela quietude, praticamente não pensando em nada. O doce cheiro da flor do espinheiro-alvar sentia-se no ar e eu sentia o movimento das pequenas criaturas na sua labuta, insectos indolentes no calor do Verão, o restolho de coelhos e esquilos no solo e os misteriosos e pouco vistos habitantes das árvores, cujas vozes flutuavam no ar como música frágil, sussurrante.

 

Olá, Sorcha. Sorcha, nossa irmã. O tinir de um riso e o brilho súbito de uma asa delicada ou de uma teia de aranha, meio escondida na luz malhada. Por vezes, podemos cruzar-nos com uma grande mecha de cabelo dourado, ou uma delicada pegada, no local onde passaram. Vem dançar connosco, irmã. Agradeci-lhes em silêncio, sabendo que elas sabiam que não podia segui-las. E então, numa grande agitação, desapareciam; porque ao longo do trilho de carroças vinha um bando de jovens, rapazes e raparigas, rindo, assobiando, gritando, com flores e fitas nos cabelos. Observei-os calmamente e Linn permaneceu silenciosa no sítio onde estava; um gesto seco da minha parte fora o suficiente para a obrigar a obedecer. À medida que o bando passava por entre os espinheiros-alvar, fazia pausas para envolver os ramos, ainda perfumados da floração, com bandeirolas, cantando uma velha canção, pedindo à Grande Mãe uma colheita abundante. Os jovens cantavam com faces e olhos brilhantes; e quando terminaram as raparigas desataram aos risos e correram pelo trilho abaixo com os rapazes a perseguirem-nas, recomeçando tudo de novo.

 

Dois dos rapazes levavam às costas feixes de lenha e o grupo separou-se, as raparigas continuando pelo trilho fora até cada espinheiro-alvar ficar com a sua bandeirola dourada e branca e fitas verdes. Os rapazes encaminharam-se para a colina mais próxima, vi-os preparar uma fogueira no topo e percebi que eram os preparativos finais para o Meãn Samhraidh, o solstício do Verão.

 

Esta noite haveria oferendas passadas por cima da fogueira e ervas a arder seriam transportadas para os estábulos e celeiros, para os campos e cabanas, pedindo a bênção de Dana, a mãe-deusa, para todas as criaturas neles residentes.

 

E chegara a hora. A hora para descobrir, se queria acreditar no que a Dama me dissera. Hora de saber se era verdade que eu podia quebrar o feitiço. Porque recordava muito bem a sua promessa; duas vezes por ano, no solstício do Verão e no solstício do Inverno, eles virão ter contigo, se puderem e do anoitecer ao amanhecer poderão retomar o seu aspecto humano. Aquelas palavras estavam cheias de incerteza. Mas eu acreditava que os meus irmãos viriam e que tinha que voltar para o lago para os esperar.

 

As raparigas ainda estavam à vista no carreiro e não me atrevi a mexer-me enquanto pudesse ser vista. E agora havia outro rapaz que se aproximava, hesitantemente, muito atrás dos outros. Era atarracado e tinha as feições grosseiras e inocentes de um mal-nascido, um que estaria sempre um passo atrás dos outros. Corria ao longo do carreiro o melhor que podia, coxeando um pouco, as grandes mãos abrindo-se para tocar uma fita aqui, uma flor ali, o grande sorriso revelando um conjunto de dentes salientes.

 

Os outros tinham-se afastado, mas ele parecia não se importar. Em vez disso, escolheu o local, mesmo por baixo da minha árvore, para se sentar e vasculhar nas algibeiras. Eu queria ir-me embora, mas não me podia mexer. O rapaz tirou um bocado de pão e queijo e começou a comer sem pressa. Quase podia tocar-lhe; no fim de contas, ele escolhera o mesmo local que eu para gozar a vista e os cheiros deste glorioso dia de Verão. Assim, esperei, enquanto ele ia enchendo a boca. Há muito tempo que eu não provava pão. Depois de acabar, o rapaz pareceu adormecer, o chapéu sobre os olhos, as mãos penduradas nos joelhos, aparentemente alheio ao que o rodeava. Esperei um pouco mais. Ele não mostrava sinais de que se iria mexer. Pensei nos meus irmãos e na grande caminhada até ao lago e comecei, muito lentamente, a descer da árvore.

 

Houve tempos em que podíamos mexer-nos através da floresta, os meus irmãos e eu, com rapidez e em total silêncio. Ninguém nos poderia ver, ou ouvir, ou apanhar. Mas agora as minhas mãos tinham perdido muita da sua sensibilidade. Estavam inchadas e calejadas e as falanges doíam-me, mesmo com o calor do Verão. Não consegui segurar-me, por um momento, agarrei-me a um ramo e ouvi a madeira a estalar, um som mínimo. Num relâmpago, ele estava de pé, olhando-me de frente e os seus redondos olhos castanhos estavam cheios de espanto.

 

Uma fada! exclamou ele em voz alta, ligeiramente indistinta. Uma fada!

 

O seu sorriso era enorme e jubiloso, como se o seu mais caro sonho se tivesse tornado realidade; como se tivesse visto o objecto mais maravilhoso da sua imaginação. Por um instante, fiquei também a olhar para ele. Depois, deslizei para o solo, peguei na minha trouxa e desapareci na floresta, certificando-me de que o meu rasto seria tão difícil de descobrir, que ninguém me poderia seguir. Pobre rapaz. Imagino quantas vezes terá ele esperado, naquele local, pela visita de uma fada. Muitas vezes, era a pessoas assim que elas apareciam. Esperava, se ele contasse a sua história, que lhe pusesse muita imaginação. Com sorte, acreditariam que tinha sido, na verdade, uma pequena fada que ele tinha visto.

 

O encontro abalara-me. Fora uma grande loucura, arriscando-me a ser descoberta no dia do regresso dos meus irmãos. Jurei nunca mais voltar ali, por maior necessidade que tivesse de contacto humano, por maior que fosse o meu isolamento. Nenhuma desconfiança deve chegar à minha aldeia e dali a LadyOonagh. Porque viria atrás de mim, não tinha qualquer dúvida. Além disso, perdera tempo precioso. Já se estava a meio do Verão e mal começara a primeira camisa. Por aquele andar ficaria ali durante muitas luas. Apressei-me através da floresta, ansiosa pelo cair da noite.

 

Para dizer a verdade, mal acreditava que eles aparecessem aquela primeira vez, como ela me dissera. Mas preparei-me para eles, lavando-me, passando um pente pelos caracóis em desordem e pondo a melhor ordem que podia na minha simples morada. Deixei o fogo aceso, se bem que abafado e encaminhei-me para o lago muito antes do pôr do Sol. Ali, cumpri o ritual, sozinha e em silêncio. Tive o cuidado de não deixar nada de lado. Agradeci à vez aos espíritos do Fogo, do Ar, da Água e da Terra. Não pedi qualquer favor. Em vez disso, abri a mente para o que viria. Disse-lhes que o aceitaria, fosse o que fosse. Pedi-lhes que me aceitassem pelo que era na grande teia da vida e que fizessem de mim o que quisessem. Quando terminei, peguei no bordão de carvalho que pertencera ao padre Brien e desenhei o círculo na areia branca à minha volta. Sentei-me de pernas cruzadas no meio e esperei, com as vastas e vazias águas do lago defronte. Gradualmente, os sons da floresta começaram a entrar-me na consciência. As árvores restolhavam e as aves chamavam e respondiam, lá no alto. Não podia fazer mais nada.

 

O céu tornou-se rosa, violeta e cinzento-escuro. Uma coruja voou por cima de mim, invisível, o seu grito queixoso flutuando no ar de fim de tarde. Faltava pouco. Faltava pouco, agora. Linn tinha estado tranquila, agachada na relva, observando-me cuidadosamente. Mas aproximou-se, rosnando ligeiramente. E eles apareceram, na água, deslizando juntos, fantasmas brancos na ondulação escura. O meu coração saltou, mas fiquei sentada e esperei. Os trovões ouviam-se lá longe, a ocidente e o ar pegava-se, húmido, à pele.

 

O último raio de sol extinguiu-se; a noite estendeu os braços sobre a floresta. Quando o crepúsculo se transformou em escuridão, houve um movimento na água e eles vieram à margem, um a um. O momento da transformação foi-me vedado pela noite, porque a Lua ainda não se tinha mostrado através das nuvens muito juntas. Vi vagamente a forma de uma grande asa, o curvar de um forte e curvo pescoço. E então eles estavam ali, os meus irmãos, os meus queridos, na areia, à minha frente, aturdidos e molhados, meio vestidos com os mesmos trajes usados antes e então, bálsamo para o espírito, veio a saudação silenciosa de mente para mente, aos tropeções e incoerente, a princípio, mas enchendo-me o coração com a maior das alegrias.

 

Sorcha. Sorcha, estamos aqui.

 

Aproximei-me e toquei em cada um deles, mal me apercebendo, à luz da minha pequena lanterna, da desolação e confusão nos olhos deles, ouvindo as suas vozes hesitantes. Nada estava bem com eles. Se eu esperava que eles viessem ter comigo inteiros como antes, bravos e verdadeiros, rindo como eu os recordava, então não compreendia a natureza dos encantamentos.

 

Não é assim tão mau. Conor passou-me o braço pelos ombros enquanto eu lhe ouvia a voz interior. Lembras-te da história das quatro pequenas fadas de Lir? Foram transformadas em cisnes durante novecentos anos e quando por fim voltaram à forma humana eram velhinhos e velhinhas, dobrados e deformados. Nós voltámos incólumes, pelo menos de corpo e mais cedo do que elas.

 

Estas palavras pouco me tranquilizaram. Não sabiam os meus irmãos nada do feitiço e do contrafeitiço? Nada da duração do seu encantamento e do método de o desfazer? Como lho explicaria eu sem o poder da fala e com a exigência do silêncio no meu discurso? E havia outra coisa qualquer que estava mal.

 

Onde está Finbar? Porque a minha mente conseguia tocar apenas na mente de um dos meus irmãos e as minhas mãos contavam apenas cinco.

 

Ele vem. Dá-lhe tempo disse Conor em voz alta e eu fiquei tranquilizada porque o som da voz dele era quase o mesmo de antigamente. E os outros estavam agora a levantar-se, resmungando ligeiramente como se tivessem bebido cerveja demais, ou tivessem estado a lutar no pátio e como as suas consciências humanas regressavam lentamente, juntaram-se à minha volta, abraçaram-me, agarraram nos ombros uns dos outros, como se quisessem ter a certeza de que não era outra visão, ou truque, ou feitiçaria. A cadela encaminhou-se de esguelha para Cormack, cautelosa. Ele curvou-se para lhe afagar as orelhas e passou-lhe uns dedos carinhosos pela cicatriz do focinho. E então ela conheceu-o, saltando e pousando-lhe as patas no peito, latindo em êxtase. Vi-o recuar por um segundo e um olhar, quase de medo, passou-lhe pelo rosto; mas depois passou, quando ele lhe afagou o pêlo, rindo.
Tomei conta da jaqueta de Conor, afastando-o da margem. Na outra mão transportava a pequena lanterna. Os meus irmãos seguiram-me pela encosta acima até à caverna, mas eram lentos no regresso ao reconhecimento total e estavam quase todos silenciosos, seguindo-me sem qualquer pergunta. Chegámos à caverna, reavivei o fogo e acendi outra lanterna. Não seria perigoso. Esta noite todas as almas estariam reunidas para os festejos do solstício e apenas os mais temerários, ou um mortal ignorante qualquer, se aventuraria nas profundezas da floresta àquela hora.

 

Os meus irmãos sentaram-se em volta da pequena fogueira como espíritos perdidos que tinham sido afastados do caminho escolhido. A princípio houve alguma conversa; pareciam atordoados e de vez em quando um estendia um braço para tocar na mão de outro, como que para se assegurarem que tinham, na realidade, voltado à forma humana. Ao fim de um certo tempo apercebi-me de que Finbar também estava presente, saído silenciosamente da água para se juntar ao nosso pequeno círculo. Foi quando estendi uma mão para atirar outro toro de freixo para o fogo que a mão dele me agarrou; os seus olhos sempre tinham sido perspicazes.

 

As tuas mãos disse ele severamente o que aconteceu às tuas mãos? E os seus longos dedos moveram-se por cima dos meus, sentindo as rugosidades, o inchaço e a rigidez das articulações. Sorcha, que aconteceu? Por que não falas connosco?

 

Eu estava atenta ao facto de que a minha história não podia ser contada, nem sequer aos meus irmãos. Assim, toquei nos lábios fechados com os dedos, juntei as mãos, abri-as rapidamente e abanei a cabeça. Não posso falar. Nada. Não vos posso dizer. Colocara um forte escudo em redor dos meus pensamentos, mas não contara com a intuição de Conor.

 

Ela também te amaldiçoou disse Conor. É claro. Com que fim? Terá isto um fim?

 

Abanei a cabeça miseravelmente, mostrando-lhe de novo, com os dedos nos lábios, que não lhe podia dizer.

 

Não podes dizer nada? Tentou Diarmid com o rosto cheio de frustração. Mas então, como é que nós havemos de saber... como é que nós...

 

Não tens memória do tempo passado? perguntou-lhe Conor cautelosamente.

 

Memória? Não. É mais como se...

 

Um sentimento, mais do que um pensamento disse Padriac que, de todos, parecia o mais parecido com ele próprio, talvez um pouco mais calmo. Fome, medo, calor, frio, perigo, abrigo. É tudo o que os cisnes sentem. É... diferente. Muito diferente. Vi-o olhar para os braços, por um momento e suspeitei que desejava que, como homem, ainda pudesse voar.

 

Precisas de compreender, Sorcha disse Conor no seu modo comedido que a mente de uma criatura selvagem não é como a de um homem, ou de uma mulher. Creio que muito pouco passa connosco, quando mudamos. Como cisnes, podemos ver as coisas que acontecem aos homens e às mulheres, mas não as compreendemos como tu; e uma vez de volta à nossa forma humana, apenas recordamos a outra vida muito levemente, como se através de uma névoa de Outono. Padriac resumiu-a bem. Uma criatura selvagem conhece a necessidade de se esconder, de se proteger, de fugir, de procurar comida e refúgio. Mas consciência, justiça e razão, isso está-lhe para além da mente. Finbar acha este castigo demasiado duro, porque valoriza estas coisas acima de todas as outras. Até parece que LadyOonagh escolheu esta maldição especialmente para ele; quanto aos restantes, é suficientemente duro. Olhou em volta do círculo iluminado pela fogueira, para Finbar, que nos observava em silêncio, com o rosto na sombra.

 

O castigo de Sorcha ainda foi pior disse Cormack sobriamente. Ficar sozinha na floresta, longe de tudo e sem poder falar. Olhou para mim de perto.

 

Ao menos regressámos e poderemos endireitar as coisas para ti disse Liam, que estava a esticar cuidadosamente as suas longas pernas, como que para verificar se ainda funcionavam. Ou será isto uma visão, desaparecermos antes de termos tempo para um pensamento, ou um gesto? Por quanto tempo regressámos às nossas formas humanas?

 

Mas eu não lhe podia responder. Responder era contar parte da história e isso era proibido.

 

Suspeito que não por muito tempo, a julgar pelo olhar miserável de Sorcha disse Diarmid amargamente.

 

Creio que será por uma noite disse Conor. Nas velhas lendas é entre o anoitecer e o amanhecer que as coisas mudam. Devemos estar preparados para o pior.

 

Uma noite? Diarmid sentia-se insultado. O que é que se pode fazer numa noite? Eu gostava de me vingar; gostaria de desfazer o mal que ajudei a criar. Mas estamos muito longe de casa, demasiado longe para regressar. Por que é que estás aqui, Sorcha? E que é feito do padre Brien, que devia ter-te ajudado?

 

Aquela história era diferente e podia ser contada. Contei-lha com mímica. Uma cruz cristã; dedos nos olhos fechados. Um voo para o alto, para o céu infinito e para ocidente. todos me compreenderam suficientemente bem.

 

Portanto, o nosso amigo está morto disse Liam.
E não de causas naturais, aposto acrescentou Cormack. Aquele tipo era como um carvalho, por mais frágil que parecesse; tinha uma força interior maior do que a de um grande guerreiro.

 

O braço de Lady Oonagh chega longe disse Diarmid. Conor olhou para ele.

 

Haverá vingança disse ele. Uma vingança total e terrível. Os assassinos dele serão cortados aos bocados e os corvos hão-de comer-lhes a carne até aos ossos.

 

Olhámos todos para ele. O tom nem sequer tinha mudado.

 

Acreditamos em ti disse Diarmid, levantando uma sobrancelha.

 

Ele era cristão acrescentou Padriac. Talvez tenha desejado perdão, em vez de retribuição.

 

Conor olhou para o fogo.

 

A floresta protege os seus disse.

 

Esta foi uma grande perda para ti, Sorcha disse Liam. Não tens nenhuma companhia aqui, salvo a solidão?

 

Ela não to pode dizer disse Conor. Mas tudo isto tem um propósito qualquer, não tenho dúvida. Sorcha, sabes quanto tempo vai durar este encantamento? Terá um fim? E quando é que poderemos regressar aqui?

 

Abanei a cabeça, levando ambas as mãos à boca. Por que não paravam eles de me fazer perguntas? Senti uma lágrima a escorrer-me pela face.

 

Penso que vai durar muito tempo. A voz de Finbar era muito suave. Um tempo para ser medido em anos, em vez de luas. Não deves pressionar Sorcha em busca de perguntas.

 

Nenhum deles questionou o que ele disse. Porque quando Finbar falava dizia sempre a verdade.

 

Anos! exclamou Liam.

 

Ela não pode ficar aqui sozinha esse tempo todo disse Diarmid. Não é seguro, nem nada que se pareça.

 

Não há outra alternativa disse Conor. Além disso, conheces as velhas lendas tão bem como nós. Tem que haver um propósito nisto tudo, só que ela está proibida de falar nele. Certo, Sorcha?

 

Tarefas disse Cormack tranquilamente de onde estava, com os braços em volta da cadela. Há tarefas para cumprir antes do fim. Viu o meu sinal de assentimento. Podemos fazer alguma coisa, Sorcha?

 

Abanei a cabeça e afastei as mãos.

 

Nada. Nada, mas mantende-vos a salvo. Permanecei vivos o tempo que for preciso.

 

Tem algo a ver com as mãos dela disse Conor lentamente e a voz dele era sombria devido a um sentimento qualquer que eu não conseguia compreender totalmente. Tu não te magoavas assim sem um propósito. Há um poder maligno qualquer nisto tudo, tenho a certeza.

 

Abanei a cabeça para baixo e para cima porque ele tinha meia razão.

 

Não. Maligno, não. Mas é a única maneira. Deveis deixar-me fazê-lo. Posso salvar-vos.

 

Olhai disse Padriac por trás de mim. Não o tinha visto entrar na caverna e ele emergia dela com o meu fuso numa mão e uma quantidade de fio pendurado na outra, acerado e quebradiço. A luz da fogueira incidia no seu enganador e delicado aspecto. Houve um parar colectivo de respiração e Padriac sentou-se entre os outros, o fuso balançando-lhe entre as mãos capazes.

 

O que é isto? perguntou Liam ultrajado, ao mesmo tempo que os seus dedos tocavam na fibra. Este fio está cheio de finíssimas agulhas. Não admira que as mãos dela estejam como estão. Este fio é...

 

É morugem disse Padriac. Sorcha tem as fibras prontas para fiar e já tem algumas tecidas.

 

Fiar com morugem! exclamou Cormack. Quem é que já ouviu semelhante coisa?

 

Tu próprio falaste em tarefas lembrou Conor ao irmão gémeo. Parece que tinhas razão.

 

Não precisas de estar tão surpreendido disse Cormack com um esboço do seu velho sorriso.

 

Seis irmãos Finbar estivera muito quieto e agora a sua voz saía-lhe constrangida, como se só falasse porque tinha necessidade. Seis irmãos, seis trajes, talvez?

 

Trajes de morugem? Nunca usaria de bom grado uma camisa desse material comentou Diarmid.

 

O olhar de Conor percorreu-os a todos, calculando-os.

 

Talvez as usassem de boa vontade disse ele lentamente se elas tivessem o poder de desfazer o feitiço. Não precisara de muito tempo para perceber tudo.

 

Por um momento, enquanto olhavam todos uns para os outros por cima da fogueira, pareceu-me que havia uma comunicação qualquer entre os meus irmãos que não precisava de palavras e que eu ficava de fora. Olhei em volta do círculo, sentindo que estavam agora mais próximos uns dos outros do que nunca e então encontrei os olhos de Finbar, do sítio onde estava sentado, um pouco à parte, observando-me. Havia uma prudência na expressão dele que eu nunca vira antes, uma incerteza que me dizia respeito porque, de todos eles, fora sempre o mais seguro de si. Tentei chegar até ele com a mente.

 

O que é, Finbar?

 

Mas foi Conor que respondeu.
É duro voltar, Sorcha, e mais duro para uns do que para outros.

 

Talvez nos reste pouco tempo aqui disse Liam, pondo-se de pé. Se o que Conor sugere está correcto, talvez tenhamos só até de madrugada. Devemos fazer os possíveis para abastecer a nossa irmã.

 

Apenas uma noite e estamos aqui enfiados na floresta disse Diarmid, amargo. Por onde havemos de começar, quando há tanto a fazer?

 

Algumas coisas podem ser feitas disse Liam, assumindo o controlo. Pequenas coisas, talvez, mas úteis. Acredita-me, Sorcha, magoa-nos muito e envergonha-nos sermos forçados a deixar-te aqui sozinha. Mas, pelo menos, podemos assegurar-te um pouco de conforto. Cortar lenha e preparar este local para o Inverno, porque receio que não regressemos antes de a neve começar a cair aqui com força: isto pode ser feito à luz da lanterna. Tens um machado?

 

Acenei com a cabeça.

 

Para ocidente há terra de pastagens e grão armazenado disse Conor.

 

A que distância? perguntou Cormack.

 

Consegues chegar lá e voltar antes de amanhecer respondeu-lhe o irmão gémeo. Leva a Linn. Está escuro e os caminhos são traiçoeiros. Ela guia-te. Penso que não consentiria em ficar para trás, de qualquer dos modos.

 

Eu vou contigo disse Padriac. Ou gostaria de ir, mas estas botas matam-me. É este o problema das transformações. Continuamos a crescer, mas as roupas ficam do mesmo tamanho. Talvez as tuas me sirvam, Finbar. Serviam-lhe o suficiente, porque o meu irmão mais novo estava meia cabeça mais alto do que quando o vira pela última vez. O seu par de botas talvez me servisse um dia, se eu crescesse o suficiente. E lá foram Padriac e Cormack, desaparecendo entre as árvores, a pequena lanterna na mão e facas nos cintos, porque também as tinham encontrado. Esperei que as armas não fossem necessárias. Pensei que talvez passassem despercebidos entre os que festejavam o solstício, andassem por onde andassem. Linn seguiu-os. Pelo menos, dos três, ela conhecia o caminho.

 

Liam e Diarmid foram com o machado e a machadinha cortar pernadas do vidoeiro morto e armazená-las sob um alpendre natural. Trabalharam com uma rapidez e precisão que me espantou e não pararam por comida ou bebida. Levaram a segunda lanterna para lhes iluminar a tarefa, deixando os restantes na semiescuridão, junto da lareira.

 

Bem disse Conor agora quero ver essas mãos. Tens alguns unguentos? Cera de abelha?

Mostrei-lhe a minha diminuta provisão, guardada num nicho da caverna.

 

Isto não vai durar muito disse ele com gravidade. E depois, o que farás? Há alguma outra maneira de esta tarefa ser levada a cabo?

 

Abanei a cabeça.

 

Então, pelo menos, posso tratar-te esta noite e talvez arranjar-te alguma ajuda. Precisas de compreender, corujinha, que isto é o que mais nos custa. Não estar aqui contigo, ter de te ver sofrer à nossa custa, ver-te sacrificar a tua vida por nós, custa-nos muito. Para Finbar ainda é pior. Ele, de todos nós, é o que mais precisa de seguir o seu caminho, forem quais forem os obstáculos que encontre no meio. Tirar-lhe isso, pelo que parece ser pouco mais do que um capricho, destrói-lhe o coração. E agora, ainda tem de magoar aquela que mais ama.

 

Voltámos para junto da fogueira, onde Finbar continuava sentado em silêncio. Conor tomou a minha pequena mão na dele e começou-me a espalhar o unguento gentilmente sobre a pele, rolando e dobrando-me os dedos com os dele. Deixou de falar e começou a murmurar suavemente uma pequena canção monótona sem princípio nem fim, continuando sempre e que parecia ir bem com a estranha quietude da noite. Longe, o lento som surdo do machado na madeira ritmava com a canção. Comecei a relaxar. Ao princípio tinha hesitado, porque magoa ter alguém a mexer-me nas mãos; mas após um bocado a canção embalou-me e comecei a ouvir as corujas nas árvores em volta e o coaxar das rãs nas pequenas poças em volta do lago. E depois Finbar veio sentar-se ao pé de mim e segurou-me a outra mão na dele. A mão de Conor estava quente e cheia de vida; a de Finbar estava fria como o gelo. Ficámos ali sentados por um bocado e eu entreguei os meus pobres dedos aos cuidados dos meus irmãos, armazenando imagens e sensações que me durariam até ao solstício de Inverno. Teria de ser suficiente. Conor continuava a murmurar fragmentos de canção a cada respiração, usando a força das suas mãos nas minhas e, através delas, entrando dentro de mim. Por fim, Finbar falou.

 

Lamento, Sorcha. Nem sei o que dizer. Uma noite. Tão pouco tempo para acordar as nossas memórias deste mundo. A minha mente tem tantas e eu tenho visto... eu... não, algumas coisas, é melhor ficarem por dizer.

 

Virei-me para ele e desta vez o olhar dele encontrou o meu. Vi luz a tremeluzir-lhe nos olhos cinzentos e havia dúvida neles.

 

O que é que se passa? Não podes desistir! Tu, acima de todos. O que é que está errado?

 

Mas ele manteve o véu descido.

 

Podes falar connosco, Finbar disse Conor calmamente. Aqui, nós os três estamos ligados, mão com mão. Conhecemos-te. Conhecemos a tua coragem. Fala no que te perturba, se não nos abres a tua mente. Conor disse aquilo com gentileza, mas havia uma tal autoridade nas suas palavras que Finbar pareceu não ter escolha.

 

Porquê Sorcha? disse ele. Porquê ela para tanto sofrimento? Ela está inocente de qualquer maldade, incapaz de um pensamento mau. Por que há-de ela fazer este sacrifício por nós?

 

Porque é a mais forte disse Conor simplesmente. Porque dobra com o vento, mas não quebra. Sorcha é o fio que nos liga a todos. Sem ela somos como folhas ao vento, sopradas de um lado para o outro.

 

Nós somos fortes. Somos todos fortes.

 

À nossa maneira, sim. Mas cada um de nós quebraria ante uma tempestade como esta. Até tu, porque há ocasiões em que o caminho se esboroa sob os pés, ou é levado pelas correntes e então, se não tomas outro, perdes-te. Só Sorcha nos pode levar para casa.

 

Falas por enigmas disse Finbar, impaciente. E tu? Como podes estar tão calmo, tão disposto a aceitar, quando vês a tua irmã magra como um fantasma, vestida de farrapos e com a carne a supurar? Eu preferia morrer, ou ficar sob esta maldição para sempre, do que deixá-la sofrer desta maneira por mim. Como podes tu aceitar isto?

 

Conor olhou para ele com gravidade.

 

Não me julgues mal. Eu sinto profundamente a dor de Sorcha e ela sabe-o. Mas já passei por isto; e estive no limiar, entre o outro mundo e este. Talvez isso tenha facilitado as coisas porque, ao contrário de vós, carrego ambos dentro de mim. Para ti, a mudança será cada vez mais difícil. Mas as tuas dúvidas não facilitam em nada a tarefa de Sorcha. Ela precisa da nossa força, enquanto estamos aqui. Precisa de nos tocar enquanto aqui estivermos.

 

Ficámos sentados calmamente por um bocado. Ocorreu-me que Conor não tinha respondido, na realidade, à pergunta do irmão. Já era tarde e a floresta estava tranquila, com excepção do som dos golpes de machado na escuridão. Lembrei-me de uma ocasião, quando li uma vez a mente de Finbar, apesar dos seus esforços para se fechar; o frio, a queda, o voo... era isso o que ele temia, as visões, que lhe diziam o que estava para vir? O que veria ele? E seria o futuro tão mau, que ele não se atrevia a partilhar essas visões?

 

A minha mente estava bem escudada, mas Finbar falou como se conhecesse os meus pensamentos.

 

Sorcha disse ele suavemente. Acredita-me quando te digo que não devias estar a fazer isto; seria melhor se te fosses embora, para longe e nos esquecesses. Deixa a floresta e procura protecção entre os santos irmãos do oeste. Nunca estarás segura aqui. Torceu as pontas dos cabelos com dedos irrequietos.

Vamos morrer todos? perguntou Conor calmamente. Lady Oonagh ficaria muito satisfeita com isso. Ofendes a tua irmã com tal sugestão, Fimbar. Nós somos irmãos dela; ela ama-nos, assim como nós a amamos; ela não poderia fazer tal escolha.

 

Ela não deve ficar aqui disse Finbar. O escudo da mente dele era firme; fosse qual fosse o conhecimento sombrio que nela guardava, não era para nos ser mostrado.

 

Essas imagens da mente disse Conor, mexendo nas brasas com um pau comprido podem ser, em si mesmas, enigmas. Aquilo que vês pode ser a verdade, ou meia verdade, ou um pesadelo imaginado por ti próprio, nascido dos teus medos e desejos. O encantamento de Lady Oonagh até pode estar a funcionar, neste momento, dentro de ti. Talvez ela interfira com as tuas vozes interiores, da mesma maneira que te muda a forma. Não podes confiar nessas visões.

 

Em que outra coisa posso eu confiar? replicou Finbar. Sem o conhecimento do tempo que não estivemos presentes, que outro mapa temos para guiar as nossas hipóteses? Mal temos tempo para nos recordarmos de quem éramos, antes de sermos, de novo, apagados. O nosso pai até pode estar morto. Ou pior.

 

Ele ainda está vivo disse Conor suavemente. Enfraquecido pela perda dos filhos e atado pelo feitiço da mulher, mas não totalmente sob o seu domínio. Tem sobrevivido, até agora.

 

Como é que sabes?

 

As suas palavras tinham-nos chocado, aos dois; fizemos a mesma pergunta ao mesmo tempo, eu mentalmente, Finbar em voz alta. Os nossos olhos estavam fixos intensamente em Conor. A nossa expressão, penso, era a mesma.

 

Conor olhou para baixo, para as nossas mãos unidas, sorrindo um pouco lugubremente.

 

Tendes razão, claro disse ele. Não se pode ser pássaro e homem ao mesmo tempo. Ao entrar nesse novo estado de consciência, perde-se a memória do velho. Não se pode ser homem sob as penas de um cisne; não é assim tão simples. Muda-se por completo; e a visão do mundo é a de uma criatura selvagem: voar, segurança, perigo, sobrevivência. O lago; o céu. Pouco mais há. Durante esse tempo, pode-se voar sobre a fortaleza de Lorde Colum, ou nadar perto da margem onde Eilis e as suas damas jogam à bola, mas não se vêem, não como um homem. Não se pode; mas eu posso.

 

Finbar suspendeu a respiração sonoramente.

 

Eu devia saber disse ele lentamente. Estás muito mais longe no teu caminho do que eu pensava. Lamento, tanto como estou contente; o teu fardo pode ser mais pesado, assim.

Lady Oonagh. Que é dela?

 

Ainda manda, Sorcha. E dará à luz uma criança por ocasião das colheitas. A sua influência é grande. Continua à tua procura, mas sem sucesso, porque os habitantes da floresta protegem-te.

 

O pai. Disseste que ele não estava totalmente sob o feitiço dela. Que querias dizer? perguntou Finbar firmemente. Olhei para ele, surpreendido. Talvez não o conhecesse tão bem como pensava. Ele apanhou-me a expressão.

 

O poder do encantamento é grande, Sorcha disse ele mais calmamente. O poder da perda também é grande. Começo agora a perceber porque agiu ele como agiu. Portanto, é preciso que ele sobreviva. É preciso que ela seja detida. Mas há um limite para o preço que todos nós devemos pagar.

 

Podia-te falar no pai disse Conor. O som do machado na madeira cessara; os meus dois irmãos mais velhos desceram a encosta, respirando com dificuldade e sentaram-se ao pé de nós. Podia dizer-te mais; mas, por vezes, é melhor não saber.

 

Não saber o quê? perguntou Liam, sentando-se entre mim e Conor e pondo-me um braço em volta dos ombros.

 

O que se passa e o que muda no mundo, enquanto estamos naquele outro estado disse Conor. Liam olhou para ele vivamente.

 

Então, tu sabes disse ele, não aprovando de imediato.

 

Algumas coisas, sim, mas outras, não. Não posso estar em toda a parte ao mesmo tempo; o meu corpo é igual ao vosso. Simplesmente, vejo as coisas de outra maneira. Fica tranquilo, que o teu pai continua vivo e não está completamente perdido, se bem que o seu desgosto seja terrível. O que ele mais deseja é ver a filha, em cujo rosto está a última recordação daquela que mais amou e perdeu. Lady Oonagh odeia isso disse Conor.

 

O meu queixo caiu, de surpresa. Eu? Mas, ele mal reparava em mim quando lá estava.

 

Qual foi a história que ela lhe contou, para ele achar que ela está inocente? perguntou Diarmid com grande amargura na voz.

 

Isso não te sei dizer disse Conor. Além disso, porquê aprofundar a dor e as frustrações? Não podemos fazer nada por ele, ou contra ela, até o encantamento ser quebrado. Portanto, devemos fazer como Sorcha quer e deixá-la aqui para completar a sua tarefa, por mais que isso nos destroce os corações.

 

Foi terrível como o resto da noite passou. Sentámo-nos à lareira, falando disto e daquilo, tentando não olhar para o céu muitas vezes, à procura dos primeiros vestígios da alvorada. Mais tarde, muito mais tarde, os rapazes e Linn voltaram da sua expedição. Tinham escapado à parte mais triste da noite, preenchendo-a com actividade. Seria uma noite longamente recordada pela gente local, um Meán Samhraidh de actividade fora de normal; vários estendais ficaram sem peças, umas poucas vacarias e adegas ficaram com espaços vazios nas prateleiras. Padriac passou-me um quente vestido de lã de um vivo vermelho, vários tamanhos maior, um grande xaile e algumas meias, bem remendadas. Seriam óptimas coisas para o Inverno. Cormack trouxe uma grande saca de carne e um molho de cebolas, um queijo redondo e uma robusta corda. Ambos traziam as algibeiras cheias de pequenos tesouros. Linn lambia os beiços.

 

Espero que tenhais tido cuidado para não serdes vistos disse Liam, franzindo as sobrancelhas. Não quero que se saiba nada sobre Sorcha entre essa gente, sabes como são as línguas. Basta um viajante para a história ir parar aos ouvidos de Lady Oonagh e isso enquanto o diabo esfrega um olho.

 

Tudo bem, irmãozão riu-se Cormack. Podemos não ter a certeza se somos homens ou pássaros, mas não perdemos as nossas habilidades. Garanto-te que não deixámos qualquer vestígio. Até a cadela cooperou, não foi, Linn

 

A cadela dançava em volta dele alegremente; ele estava de volta e o mundo estava de novo no seu lugar. Podia ter chorado por ela, sabendo quão curta a sua estadia ia ser.

 

Teremos que recompensar esta gente quando formos nós outra vez disse Diarmid. É errado roubar; além disso, são pobres e mal podem dispensar tais coisas. No entanto, acredito que Sorcha, neste momento, precisa mais de que eles.

 

Não te preocupes disse Padriac levemente, sentindo que aquela prelecção lhe era destinada. Não nos esqueceremos. Numa véspera qualquer de um solstício qualquer, nos anos que vêm, os duendes hão-de deixar-lhes à porta uma saca de madeira, um barril de cerveja e alguma quinquilharia. Havemos de voltar.

 

Talvez disse Finbar.

 

Chega! A voz de Liam era cortante. Para terminar a sua tarefa, Sorcha precisa do nosso apoio, precisa da nossa confiança. Não disseste sempre que nós os sete temos de estar sempre presentes para cada um, que a nossa força está na nossa união? Claro que Sorcha há-de completar a sua tarefa e nós havemos de voltar. Não tenho dúvidas nenhumas disso.

 

Tão certo como o Sol se segue à Lua disse Conor calmamente. Tão certo como sete ribeiros se tornarem um grande rio que corre e rodopia sobre pedras e sob grandes penhascos, nunca hesitando na sua jornada em direcção ao mar.

 

Na próxima vez, Sorcha disse Padriac hei-de fazer-te um tear melhor. Pus a secar uns bons bocados de vidoeiro debaixo daquele alpendre nas traseiras da caverna. Devem estar bons no solstício de Inverno, se mantiveres a chuva longe deles. E guarda essa corda, vou precisar dela.

 

Sorri para ele; tão desejoso de ajudar e ainda tão novo. Talvez as botas já não lhe servissem, mas, na sua essência, não tinha mudado nada, Não, não era com o meu irmão mais novo que eu estava preocupada.

 

Pergunto a mim próprio disse Finbar com uma nota de teimosia na voz que todos reconheceram por que é que isto tem de ser assim. Por que é que Sorcha tem que sofrer, por que se há-de sacrificar tanto, quando podia estar a salvo, protegida e continuar com a sua vida em paz? Por que não deixar-nos como estamos? Pelo que sei, quando a tarefa estiver terminada, se puder ser terminada, talvez o nosso pai já esteja morto, ou mudado para sempre; por que precisamos, então, de ser salvos e arruinar a vida da nossa irmã?

 

Olhámos todos para ele. Houve uma ligeira pausa. Foi Conor o primeiro a falar.

 

Porque não devemos permitir que o mal triunfe disse ele.

 

Porque devemos Redamar aquilo que é nosso acrescentou Liam.

 

E salvar o nosso pai, se pudermos disse Cormack. Ele é um bom homem, apesar de todos os seus defeitos e sem a sua liderança as nossas terras estão perdidas. Os Bretões, os Viquingues e os Pictos invadem as Ilhas e chegam às nossas portas.

 

Porque Sorcha acredita que é a coisa certa a fazer disse Padriac com uma simplicidade devastadora.

 

Não posso permitir que Lady Oonagh escape sem castigo disse Diarmid. Se não fosse a minha estupidez, talvez a pudéssemos ter impedido. A minha honra exige-me que a encontre e lhe ponha um fim.

 

Ouvi disse Padriac. Está quase a amanhecer.

 

Ficaram todos em silêncio. Um pássaro solitário começou a cantar lá em cima, nos ulmeiros. E o céu já começava a clarear com a primeira palidez cinzenta da madrugada.

 

Encaminhámo-nos para a margem. Liam ia à frente, transportando a lanterna. Eu ia ao lado de Finbar e tentei dar-lhe a conhecer os meus sentimentos, mas não sabia se ele me ouvia.

 

Vai correr tudo bem. Acredita-me. Aguenta-te e vive. Por todos nós.

 

Era como enviar pensamentos para o vazio, ser levada por uma brisa qualquer.

 

Esperámos pela luz de mãos dadas, em círculo, calados, passando força e amor de uns para os outros. Finbar estava entre Conor e eu; deixou-nos pegar-lhe nas mãos, mas estas continuavam geladas, como se nada conseguisse, nunca mais, aquecê-las. Mesmo antes da alvorada, Conor pediu-me que voltasse para a caverna, porque, disse ele, seria melhor se eu não os visse partir. Abraçaram-me, um a um; primeiro Conor e depois os outros à vez, até que só faltava Finbar. Pensei que ele se iria sem uma palavra; mas tocou-me na face e, por um momento, deixou-me entrar.

 

Mantém-te a salvo, Sorcha Até a próxima. Continuo aqui, para ti.

 

O coro das aves aumentou. Era como naquela outra manhã, naquela manhã em que a névoa subira do lago e os levara de mim. Subitamente, foi de mais para mim e senti os lábios tremerem-me e as lágrimas encheram-me as faces.

 

Vai-te embora, corujinha disse Conor gentilmente e a voz dele chegou até mim como se viesse de um profundo e estreito túnel.

 

Até ao nosso regresso disse Cormack, ou talvez fosse outra coisa e então a madrugada chegou e houve o som de um vento apressado, águas que se agitaram, asas a baterem e eu corri, cega pelas lágrimas, para a caverna, onde fiquei a chorar, porque perdê-los agora não era mais fácil do que da última vez e não queria ver, ou sequer imaginar, o desaparecimento das suas mentes e a transformação deles próprios em criaturas selvagens.

 

Lá fora, Linn começou a uivar terrivelmente, ecoando pelos bosques, por sobre a água e para cima, para o vasto rosa, laranja e deslumbrante azul do céu, à medida que a madrugada se transformava em dia.

Como vivia ao relento há tanto tempo, comecei a sentir-me como se fizesse parte da própria floresta. Era como uma velha lenda, talvez a de uma jovem cruelmente abandonada pela família, que cresceu com capacidade para falar com as aves e os peixes, com um corvo, um salmão ou um veado. Teria gostado disso. Infelizmente, a presença de uma perpetuamente esfomeada Linn fazia com que as criaturas selvagens evitassem a nossa morada. Havia uma família de ouriços-cacheiros que se aventurava até perto de nós assim que o tempo começou a aquecer e sempre que eu podia dispensar um pouco de comida, colocava-a sobre uma pedra lisa, sob uns arbustos, para eles, fazendo com que Linn permanecesse dentro da caverna até eles regressarem ao mato.

 

As mudanças de disposição da floresta tinham repercussão no meu estado de espírito. À medida que as noites foram sendo mais longas, as bagas amadureceram nos silvados e nos espinheiros-alvar, e os frutos pendiam, pesados, das aveleiras e dos castanheiros, também eu passei por algumas mudanças. Continuava a ser uma coisa pequena, magricela e a minha dieta era das mais frugais. No entanto, naquele Outono o meu corpo começou a mudar de criança para mulher e eu tive a minha primeira menstruação. Coisa que devia ter sido, suponho, motivo para uma celebração qualquer, mas eu achei-a uma inconveniência, porque toda a minha vontade e energia estavam concentradas nas tarefas de arranjar morugem, fiar e tecer as minhas seis camisas. Mas arranjei tempo, nessa noite da minha primeira menstruação, para me banhar à luz da Lua, beber depois um chá de rosmaninho para as cãibras e sentar-me sob as estrelas para ouvir as comjas e a quietude. Nessa noite senti que a Dama da Floresta estava muito próxima e pressenti um movimento, à minha volta, de uma grande e profunda magia, mas não a vi.

 

Tornou-se necessário ir mais além em busca de morugem, porque as provisões de fio quebradiço e espinhoso estavam a acabar. Seis quadrados de tecido entrançado tinham sido suficientes para fazer uma rude camisa e já tinha começado a segunda, mas só tinha fio suficiente para uma manga, talvez, não mais. Saí com um pequeno saco e uma faca afiada, à procura das plantas cinzentas, penugentas, que cresciam nas clareiras da floresta, onde a luz do Sol sarapintada conseguia penetrar através da canópia outonal. Esta planta gostava da humidade e crescia nas margens das pequenas correntes juntamente com os fetos e o musgo. Era uma época de abundância e muitas vezes tinha sorte, trazendo também punhados de avelãs e bagas de sabugueiro.

 

Comecei a perceber, ao explorar os carreiros esquecidos e as sombrias clareiras da floresta, onde Finbar deve ter estado quando desaparecia durante dias e regressava com os olhos cinzentos fixos numa visão distante qualquer que mais ninguém conseguia ver. Vi entalhes Ogham em troncos de árvores e aqui e ali em pedras cheias de musgo; e soube que as misteriosas artes que Conor começara a aprender tinham as suas raízes ali, naquele velho local.

 

Um dia, por sorte, descobri um dos lugares mais secretos. Subia o leito de uma corrente em busca da planta espinhosa e Linn seguia à minha frente, chapinhando entusiasticamente, sorvendo imensa água límpida ao passar. Fizemos uma curva e passámos sob um grande rochedo. Então, ela parou. E eu parei atrás dela. Do lado de lá de uma poça redonda estava um enorme e venerável carvalho, as raízes estendendo-se em volta do tronco, enredadas profundamente no solo. A sua copa espalhava-se densamente lá no alto, de maneira que a luz mal chegava aos ramos mais baixos. No entanto, as folhas em breve cairiam, porque estavam todas vermelhas e bronzeadas. O musgo dourado pendia, espesso, dos ramos mais altos. E gravado na casca, olhando para mim do outro lado da água sombria, estava um velho rosto, ali desenhado por alguém que buscava a verdade. Não era macho nem fêmea, amigável ou sinistro. Estava simplesmente ali.

 

Linn não se aproximou, sentando-se e esperando por mim, as orelhas alerta em busca de perigo. E eu contornei a poça para poder ver melhor. Antes do rosto, junto à água, estava uma grande pedra com a superfície lisa, brilhante e suave, devida ao tempo e aos muitos toques.

 

E depois fiquei gelada. Já lá tinham estado outros antes de mim e recentemente. Porque tinha sido colocada, junto daquela pedra, uma oferenda. Um pedaço de pão caseiro. Uma fatia de queijo. Olhei para trás, para a cadela, fazendo-lhe sinal para estar quieta. Não havia qualquer som de actividade humana nas redondezas, apenas o som do canto de pássaros e o leve roçagar das folhas lá no alto, onde a seca brisa de Outono agitava a copa da árvore. Suspendi a respiração. Talvez quem deixara aqueles presentes já se tivesse ido embora, mas Linn e eu devíamos sair dali, porque aquelas coisas não tinham qualquer sinal de formigas ou outros insectos; não estavam ali há muito tempo. Mas a comida despertou-me os sentidos. Se bem que fosse a época anual dos frutos, eu fora frugal como um esquilo, armazenando nozes e bagas secas para o Inverno e tinha fome. As provisões arranjadas pelos meus irmãos estavam a esgotar-se rapidamente. No fim de contas, eu ainda nem sequer tinha 14 anos e quase sentia na boca o sabor granuloso daquele pão de cevada e daquele queijo fofo. Linn emitiu um pequeno queixume e aquilo fez-me decidir. Acenei respeitosamente com a cabeça para o velho rosto no carvalho, acreditando que não se oporia. Meti o pão e o queijo na algibeira e fomos para casa.

 

A intuição é uma coisa óptima. Na ocasião, resguardadas pela pequena fogueira e partilhando aquele maravilhoso e inesperado festim à medida que anoitecia, gostei da protecção da floresta e nunca pensei que uma pequena atitude daquelas me pudesse trazer tão terríveis consequências. Na verdade, na ocasião acreditei que aquela herança inesperada nos fora oferecida, uma dádiva, que nos viera parar às mãos pela boa vontade dos espíritos da floresta, ou da própria Dama. Mas tive algum bom senso, no entanto e assim não voltei lá durante muito tempo. Não era suficientemente louca para provocar a minha possível descoberta.

 

O tempo passou e eu fiei o fio para a segunda camisa. A primeira tinha um aspecto desolador, os quadrados de tecido mal cozidos uns aos outros, as mangas estranhamente desiguais. Uma manhã o chão estava gelado e os arbustos vestiam mantos de prata cintilante que derretiam por meio de gotículas devido à subida do sol brumoso num céu cinzento de alfazema. O Inverno estava a chegar e com ele os meus irmãos. Eu trabalhava constantemente, o melhor que podia e sabia, sempre grata pela lenha seca que eles tinham deixado, porque os meus dedos doíam-me do frio. Arrisquei-me a fazer um fogo maior e assei cebolas roubadas nas brasas. A neve caiu uma vez ou duas, flocos suaves escapando-se da rede de ramos para caírem silenciosamente no chão, no lado de fora da caverna. Aqui, onde as árvores cresciam perto da água, ela não era muita; e eu sentia-me grata por isso. Usava o meu velho vestido, o de lã vermelha por cima, um cobertor pelos ombros e nos pés as botas de Padriac. E continuava com frio.

 

Quando os meus irmãos regressaram, eu estava a tecer as costas da segunda camisa. Quase me deu vontade de rir ao pensar no dia em que tinha partido do eremitério do padre Brien. parecia-me ser há tanto tempo. Algumas luas, entre o Inverno e o Verão, talvez, parecera-me o tempo necessário para esta tarefa. E ali estava eu, quase um ano mais tarde e mal tinha começado. Tornara-me um pouco mais rápida com a prática, mas nem sempre as mãos me obedeciam, tão disformes e maltratadas estavam pelo tratamento que lhes dava. Ainda bem, dizia para mim própria, que não me preocupava com o meu casamento e tudo o que vinha com ele. Que homem olharia para uma rapariga com as mãos cheias de calos como as de uma velha? Esse estilo de vida, com casamentos e banquetes, música, leitura e bordados, parecia tão longe que não conseguia imaginar nenhum de nós a voltar para ele. Nunca pensei no que aconteceria depois de eu, finalmente, passar a sexta camisa pela cabeça do meu último irmão, trazendo-os, assim, de volta a este mundo uma vez mais. Trabalhava o mais depressa que podia e deixava a minha mente viajar até uma certa distância, não muita.

 

Não me lembro tão bem da segunda visita deles como da primeira. Foi na véspera do solstício de Inverno, Meãn Geimhndh. Foi no dia do meu décimo-quarto aniversário. Uma parte dele, suponho, foi apagado pelas coisas que aconteceram depois. Lembro-me que Finbar chegou um pouco mais tarde do que os outros, tal como na primeira visita. Lembro-me do olhar dele, selvagem, que não conseguia esconder de mim.

 

Houve novidades. Conor sentiu que eu ansiava por elas, mas disse-as com alguma relutância.

 

A criança nasceu em Samhain disse ele. Um rapaz. Chamaram-lhe darãn.

 

Liam atirou um pau para a fogueira.

 

É um bom nome, forte disse ele de má vontade.

 

Virei as palmas das mãos para a luz cintilante. Estava um frio de rachar, mas sentámo-nos no exterior, porque a pequena fogueira dava um calor que aquecia o coração, assim como reconfortava os ossos. Ali podíamos sentir alguma semelhança com o nosso velho círculo, pretender algumas parecenças com a nossa velha unidade.

 

Mostrei os cindo dedos de uma mão e mais dois da outra. Os meus irmãos compreenderam; e os olhos deles também deixavam ver a dor que sentiam ao verem as minhas mãos retorcidas.

 

É verdade, Sorcha. É o sétimo filho de um sétimo filho. Isso deve ser respeitado.

 

Respeitado? cuspiu Diarmid, furioso. Não acho. Ele é filho dela, é prole do mal. Devia ser destruído, juntamente com a feiticeira.

 

Os outros olharam para ele e houve um pequeno silêncio.

 

Ele é teu irmão observou Padriac um pouco depois.

 

É filho do nosso pai disse Liam concordando e está inocente do mal que nos foi imposto. Não poderemos ter a esperança de que este nascimento venha mudar as coisas para melhor?

 

Ninguém respondeu. O pai sempre tornara claro que desejava que Liam, como seu filho mais velho, herdasse Sevenwaters. Se bem que qualquer homem da linha de Colum pudesse desafiar essa decisão, porque era a lei, não parecia provável. Até agora. Quem poderia assegurar que o nosso pai não preferia o novo filho que a nova mulher lhe tinha dado? parecia que Conor tinha novidades ainda piores para Liam, porque levou o irmão mais velho para fora do grupo. Ficaram a falar durante algum tempo, a uns metros de distância. Algum tempo depois Conor regressou, mas Liam permaneceu a olhar para o escuro e a cor cinzenta, gelada, da sua expressão, lembrou-me o nosso pai.

 

O que é que se passa com ele? perguntou Cormack com pouco tacto.

 

Conor lançou ao seu irmão gémeo um olhar de viés.

 

Problemas com a mulher.

 

Referes-te a Eilis? Ela não morreu? Conor abanou a cabeça.

 

Não. Recuperou bem do envenenamento e Seamus tem-na guardado muito bem, desde então. Fez com que ela não fizesse mais visitas a Sevenwaters. Na realidade, nem era preciso, desde que os filhos do primeiro casamento de Colum desapareceram convenientemente com destino desconhecido. Não, Eilis está bem. De facto, está a desabrochara está pronta para o casamento. O pai dela prometeu-a a Eamonn de Marshes. Se não consegue segurar a fronteira de leste casando-a com um de nós, tenta segurar a de norte.

 

Diarmid respirou com força.

 

Isso será uma aliança formidável. E se eles se virarem contra o pai? Espero que ele tenha reforçado as nossas defesas até para lá do rio. Seamus era nosso aliado antes, mas essas notícias deixam-me pouco à-vontade. Devíamos concentrar as nossas forças, juntas, contra Northwoods e para fazer isso com eficácia precisamos de confiar nos nossos vizinhos.

 

Sei muito pouco das defesas dele disse Conor, aborrecido Não há sinais da recolocação de Donal e não vejo muita actividade no local. Mas estamos no Inverno. Talvez quando o tempo começar a aquecer o pai ganhe coragem e reúna os homens.

 

E Eilis? perguntou Padriac, as mãos ocupadas. Trabalhava com rapidez e precisão, à luz da pequena lanterna, num novo tear, com a madeira do freixo cortado por ele e pelo irmão gémeo. Agrada-lhe casar com esse tipo? Ele não é um pouco velho para ela?

 

É contra o desejo dela disse Conor calmamente, olhando de soslaio para o nosso irmão mais velho que continuava nas sombras, de cabeça curvada. Mas é uma boa filha e fará o que lhe disserem. Nunca compreendeu como pôde Liam partir sem lhe dizer nada. O coração dela ainda chora por ele, mas será uma esposa fiel e uma mãe dedicada. É melhor assim.

Melhor para quem? perguntou Diarmid amargamente.

 

Foi uma visita sem vida. Gostaria de ser capaz de falar, porque podia ver o desgosto deles, a cólera, o sentimento de culpa e sentia que isso lhes despedaçava o coração, até os virava uns contra os outros, mas sem palavras pouco podia fazer por eles. Dei um abraço a Liam, mas não lhe pude dizer que sabia que Eilis o amava e teria esperado por ele se tivesse podido. Segurei as mãos de Diarmid nas minhas e estudei a amargura que lhe ia no rosto; ter-lhe-ia dito que todos nós lhe perdoávamos pela sua leviandade; que Oonagh podia ter escolhido qualquer um deles; fora apenas o azar que o escolhera para brinquedo dela. Gostaria de lhe pedir que não odiasse tanto. Mas eu não podia falar. Quanto a Finbar, estava sentado sozinho, com os braços em volta dos joelhos, o longo cabelo despenteado e esvoaçando-lhe sobre os olhos enquanto ele olhava na direcção da água escura do lago. Não olhou para mim e não disse nada.

 

E assim se passou a noite e Padriac terminou o tear. Cormack remendou-me as botas, observado de perto por uma Linn algo enervada. Aqueles dois irmãos não tinham mudado muito, pensei. Padriac estava sempre concentrado numa determinada tarefa, ou problema, talvez a coisa terrível que lhes tinha acontecido fosse, para ele, mais um desafio interessante. parecia, na verdade, contente por passar a sua única noite de liberdade a construir e consertar e atirar de vez em quando uma palavra ou duas para a conversa geral. Pelo menos, ele sobreviveria, pensei. No caso de Cormack, era provavelmente a falta de imaginação que o ajudava a enfrentar a situação. Não era gentil da minha parte, suponho; mas Cormack tinha tendência para ver o mundo a preto e branco e, nalguns aspectos, isso facilitava-lhe a vida. A sua agressividade era o seu ponto fraco, como Lady Oonagh deduzira antes de qualquer um de nós. Virando isso contra a sua mais querida e de mais confiança companheira, fizera com que ele duvidasse da sua própria integridade e essa dúvida ficaria sempre com ele para toda a vida.

 

Mais tarde voltaram a falar das Ilhas e qual a estratégia a utilizar para as recuperar; e desenharam mapas no solo arenoso, substituindo homens e árvores por folhas e galhos. Eu mal escutava; o suficiente para ouvir Conor dizer-lhes que as Ilhas nunca seriam recuperadas pela força. Nunca tinham ouvido a lenda, dizia ele, sobre aquele que viria um dia, que não seria originário de Erinw nem de Bretanha, mas de ambos; aquele que traria a marca do corvo e restauraria o equilíbrio? Só então uma ponte poderia ligar o abismo que existia entre os nossos dois povos.

 

Isso não passa de uma história disse Cormack em tom de rejeição. Bem podemos esperar cem anos por tal tipo. Até podemos esperar

 

Antigo nome da Irlanda.

para sempre. As árvores sagradas é que não podem esperar, enquanto os golpes de machado se ouvem através da água.

 

Nem os espíritos vão estar à espera da sua hora enquanto a bota do estrangeiro conspurca as cavernas da verdade acrescentou Diarmid.

 

Além disso disse Liam não sei se estaremos interessados em construir uma ponte sobre o abismo entre os nossos dois povos. Reconquistar o que é nosso por direito e expulsá-los das nossas terras para sempre, isso já está mais próximo daquilo que tenho em mente.

 

Essas velhas lendas, muitas vezes, tornam-se realidade observou Padriac. Por vezes, elas não querem dizer exactamente o que dizem. Talvez Conor tenha razão. As coisas estão a mudar; vede o que nos aconteceu a nós. A nossa história é tão estranha como uma velha lenda.

 

Hum disse Diarmid, duvidoso. A Fé é muito bonita. Mas eu prefiro a minha escudada por uma espada afiada e uma tropa de bons homens.

 

Um pouco de estratégia antecipada nunca fez mal a ninguém disse Cormack, concordando com o irmão. Quando regressarmos, devemos estar prontos. O pai pode não estar em condições de assumir o comando e o nosso velho inimigo pode ter usado a nossa fraqueza para fazer um movimento. Precisamos de ter a certeza de que as nossas anteriores vitórias não foram desperdiçadas.

 

Conor falou pouco, nessa noite. Fora forte; suportar a consciência dos dois mundos era um fardo e isso via-se. Mas Finbar e o seu isolamento era outra coisa. Fui-me sentar ao pé dele quando a madrugada se aproximava, porque me fartara de esperar que ele me falasse e ele não o fizera. Era lua nova e eu mal lhe podia distinguir as feições. Mas não precisava dos olhos para o ver, porque todas as faces dos meus irmãos me estavam gravadas no coração. Nariz comprido, boca larga, a pele pálida cheia de sardas, maxilares bem assentes e sob o cabelo escuro, caído sobre as sobrancelhas, olhos tão límpidos como a mais límpida das águas. Esse era Finbar.

 

desculpa pôr-te de parte Falou após um longo silêncio, espantando-me. Já não posso abrir-te a minha mente.

 

Porque não? Já não confias em mim?

 

Querida Sorcha. Era capaz de te confiar a vida. Aliás, não estão elas todas nas tuas mãos? Simplesmente, eu vi... eu vi coisas que daria tudo para apagar do pensamento. Coisas terríveis. Acontece-me esperar, para além da esperança, que Conor tenha razão, que estas visões não sejam a Visão, antes um mal qualquer implantado na minha cabeça pela mulher do nosso pai com um propósito só dela conhecido. Talvez queira enlouquecer-me. Estas imagens são muito partilhar. Nem contigo, nem com ninguém. A voz dele dizia-me que, lá no fundo, acreditava que eram verdadeiras.

 

Porque não? Partilhá-las pode aliviar-te o fardo.

 

Ele mudou ligeiramente de posição, encolhendo os ombros e torcendo com os dedos um caracol.

 

Este fardo, não. Além disso, se for falso, por que provocar dor aos outros? O que mais me preocupa é não saber o que fazer. Se vejo coisas que vêm aí, coisas más, devia agir para tentar preveni-las. Mas, mesmo que tivesse tempo para fazer alguma coisa, quase não saberia por onde começar. Além de que talvez seja exactamente isso que Lady Oonagh quer. E talvez, de novo, estas coisas sejam premeditadas; talvez não possam ser impedidas. Antes, eu sabia sempre qual era o caminho recto. Agora, perdi essa certeza.

 

Tu continuas o mesmo. Forte.

 

Mas, serei suficientemente forte? É cada vez é mais difícil. Estou continuamente a mudar, de maneira que o homem é cada vez mais cisne; mas o cisne nunca pode ser homem. Oh, Sorcha, eu vi o meu próprio fim; nenhum homem deve ver isso. Vi os meus irmãos serem passados a fio de espada, morrerem afogados e vi um deles ir para longe, muito longe, mais longe do que é possível imaginar. E tu... vi um grande mal cair sobre ti e não sei como impedi-lo. Se te puderes ir embora daqui, deves fazê-lo e o mais depressa possível.

 

Diz-me o que é. Como é que eu posso fazer alguma coisa se não sei o que é?

 

Não. Pode não ser verdade.

 

Estava insensível e não lhe consegui tirar mais nada sobre o assunto. Ficámos ali sentados os dois, calados. Após uns momentos, ele segurou-me na mão e, sem qualquer razão, tive um terrível pressentimento de que nunca mais me tocaria. Os últimos momentos do nosso tempo precioso escoaram-se e eu lutei contra as lágrimas à medida que o céu clareava com a aproximação da madrugada. Chorar não ajudaria ninguém.

 

Juntámo-nos na margem para nos despedirmos e ali Finbar fez uma coisa que me aterrorizou mais do que todas as palavras de aviso. Retirou o amuleto que trazia ao pescoço, a pedra suave, esburacada, com inscrições rúnicas e passou-ma pela cabeça, para que evi a usasse junto ao coração.

 

Levantei uma mão em protesto... Não, é tua, foi a mãe que ta deu... mas ele já se tinha virado e não lhe consegui ver o rosto. Fora um gesto de uma finalidade terrível. Nunca o vira, durante toda a minha vida, sem aquele presente da nossa mãe ao pescoço.

 

Adeus, até à próxima vez. Adeus, meu querido.

Dissera a Simon que ele podia terminar a sua história como muito bem quisesse. A escolha era dele, dissera eu; havia tantos caminhos na vida como fios numa grande tapeçaria e ele era o tecelão. Oh, mas a minha história. Por que não conseguia eu fazer o mesmo com a minha? Por que é que os fios desta teia formam um tecido de violência, ficam vermelhos de sangue e traição, levam à via da corrupção, da angústia e da separação? Com o olhar confiante de um inocente, eu fizera ver a Simon a necessidade de ele assumir o controlo do seu destino, nunca pensando encontrar-me, eu própria, indefesa perante os seus sopros, dois anos mais tarde.

 

Fimbar sempre buscara a verdade e eu viria a descobrir que a sua visão não era falsa. Mas só aconteceu mais tarde; tão tarde que eu varri da mente o seu aviso, continuando na minha vida como de costume, gozando o tempo quente, porque já tinha passado meio ano e já se estava quase de novo no solstício de Verão. Já tinha duas camisas guardadas e a terceira estava meia feita. Da minha caverna, observava o percurso do Sol, via o amadurecimento gradual das bagas e acreditava que os meus irmãos chegariam numa das próximas noites. Talvez na próxima. Havia cisnes no lago, alguns com crias; lá longe, algures, talvez Conor me estivesse a observar com o seu olhar humano enquanto voava no seu traje branco. Linn aprendeu a apanhar peixe nas poças pouco profundas, coisa rara para um cão. Ficava espantada ao ver a paciência dela, completamente imóvel na água, os olhos fixos numa pedra qualquer invisível, até que a presa prateada se aproximava para uma patada fatal. Enquanto ela praticava este novo jogo, eu fiava, tecia, manejava a agulha e só faltava a manga direita à camisa.

 

Então, um dia, de repente, tudo mudou. O Sol chamou-me para o exterior da caverna e eu fui sentar-me nas rochas à beira do lago, levando o meu trabalho comigo. Mergulhei os pés quentes na água, rolando os seixos com os dedos. Havia um grupo de cisnes não muito longe da margem, flutuando, limpando as penas, pescando calmamente. Pensei que estavam à espera. Estava com dificuldades para coser a manga e curvei-me sobre a agulha, ignorando as farpas nos dedos devido à longa prática, desejando, mais uma vez, ter prestado mais atenção quando uma das servas tentara ensinar-me a coser como deve ser.

 

Tinha-me esquecido de Linn até ela ladrar, algures ao longo da margem. Regressava da caça, pensei. Já era tarde para ela continuar longe. Então, começou a ladrar de novo e havia um aviso naquele ladrar. Levantei-me e procurei-a com os olhos, servindo-me da mão como protecção, ao longo da margem e para cima, por entre as árvores. Nada. Um momento mais tarde ouvi uma voz a praguejar e os latidos dela terminaram num horrível, gorgolejante gemido e depois, silêncio. Um pressentimento gelado subiu-me pela espinha. Comecei a subir o carreiro na direcção do abrigo das árvores, caminhando o mais suavemente que podia. Os meus sentidos estavam aguçados pelo medo, mas mesmo assim os homens foram rápidos demais para mim. Eram três, um vindo através do bosque por trás da entrada da caverna, um sorriso preguiçoso mostrando uns dentes amarelos desiguais. Na mão tinha uma faca ensanguentada. Um outro, subitamente por trás de mim, quando se deixou cair de cima de umas rochas e me agarrou pelo pescoço, o desagradável cheiro da sua respiração enchendo-me as narinas. E por trás deles, um mais familiar, cuja voz se fez ouvir, descontrolada, meio excitada, meio aflita.

 

A fada! Não magoem a fada!

 

É difícil dizer o que se seguiu. Na verdade, só o disse uma vez antes, quando precisei e di-lo-ei de novo agora, apenas porque é um fio no tecido da minha história e se entretece no que veio a seguir. Tenho tentado apagar as palavras e as acções deles da minha memória, mas não consigo. Disseram e fizeram coisas terríveis. Creio que não demorou muito tempo, mas pareceu-me muito, muito tempo; e as palavras deles queimavam-me a cabeça, deixando marcas como as de Simon, que nunca cicatrizavam por completo.

 

Então esta é que é a tua fada, Will? A mim, parece-me de carne e osso. E bem madurinha! Olha-me para ela!

 

Levou uma mão à minha túnica e rasgou-a na frente, expondo-me o corpo do pescoço até às ancas. Tentei cobrir-me, mas os braços estavam-me presos nas costas.

 

E esta, hein? disse o outro, quase a babar-se de excitação. Mexeu desajeitadamente no cinto. Carne fresquinha! Mesmo como eu gosto, nova e sumarenta. Deve ser bem gostosa. Virou-se para o simplório, que choramingava à entrada da clareira, retorcendo as mãos. desaparece, Will. A tua vez há-de chegar, rapaz. Primeiro, os meninos crescidos.

 

Não a magoes! Não magoes a fada! Não magoes o cão! Mas eles magoaram.

 

És capaz de te calar? disse o primeiro e o segundo deu semelhante murro na orelha do rapaz que o pôs de joelhos a gemer.

 

Então, enquanto um me segurava, o outro espetou os dedos, enfiou-os dentro de mim e eu mordi os lábios, estrangulando um grito e sentindo o sangue e as lágrimas molharem-me as faces, ao mesmo tempo que ele tirava as calças e entrava dentro de mim. Doeu; doeu tanto e eu não tinha voz para o amaldiçoar. Tentei o nosso velho truque, contar uma história para bloquear a dor... o nome dela era Deirdre, dama da floresta... Fechei os olhos para não ver os rostos vermelhos deles, suados, excitados. Se te mantiveres quieta, tão quieta como um... como um rato, talvez a vejas... Tentei e voltei a tentar enquanto aquilo continuava, um estremecendo e afastando-se e o outro tomando o seu lugar.

 

Estás a ver? Nem uma palavra! Ela gosta, não gostas, putéfia? Rica fada; esta é mortal, pertence ao terreiro. Aposto que foi a melhor coisa que lhe aconteceu.

 

Os salgueiros sussurravam à medida que ela passava... Ele era enorme, dentro de mim, demasiado grande; mal podia acreditar quão grande. O outro agarrou-me pelo peito, os dedos ferindo-me a pele, a respiração quente nos meus ouvidos... no seu manto de um azul tão escuro, e no cabelo, uma coroa de pequeninas estrelas... empurrava, empurrava, até eu pensar que conseguiria rasgar-me, até eu pensar que ia desmaiar de dor... caminhando... caminhando sob os grandes carvalhos e... Perdi a noção da história e sentia apenas o martelar horrível, sem fim, as vozes repelentes, o grito crescente que ameaçava sair-me do peito, por mais que cerrasse os dentes.

 

Não queiras que ela te abrace disse o primeiro. Já viste as garras dela?

 

Ela é uma fada, não é? disse o outro. Talvez a mãe dela fosse um sapo.

 

Gargalhadas grosseiras.

 

Por fim, tudo terminou. O homem grunhiu, relaxou, saiu de mim, o outro largou-me e eu caí, redonda, no chão, os braços em volta da cabeça.

 

Anda lá, atrasadinho disse um. Está aqui a tua sorte grande! Anda lá! Aposto que é a tua primeira vez, ha, labrego? Deu-me um pontapé nas costelas. Ela está prontinha para ti, não estás, rapariga-sapo? Esteve sempre caladinha. Mesmo o que tu querias, não era? Não te aflijas, que de onde este veio há mais.

 

despacha-te disse o outro Ela vai desmaiar. Depois, não tem piada.

 

Mas o atrasadinho choramingava e eu ouvi-o virar-se e correr através da floresta em direcção a casa.

 

Raios o partam disse um Vai dar à língua se chegar antes de nós. Vamos, não vale a pena ficar mais aqui. É melhor apanhá-lo. Ela fica para outra altura.

 

Adeus, coração disse o outro de modo chocante. Levantou-me a cabeça pelos cabelos e riu-se-me na cara enquanto se curvava. desculpa deixar-te tão depressa. Havemos de voltar, coisinha fofa. Sente aqui. Forçou-me a cabeça entre as pernas dele, roçando-se no meu rosto e eu engasguei-me, fiquei sem ar e lutei para me manter silenciosa.

Oh, a propósito, o teu cão está lá em cima disse o outro, rindo com ar trocista. Ficou um pouco maltratado.

 

Deu-me uma grande mordidela, o malandro observou o primeiro, deixando-me cair de novo no chão. O grande bruto.

 

As vozes deles desapareceram lentamente sob as árvores e eu fiquei ali, incapaz até de chorar. Então, levantou-se um vento estranho e todas as árvores começaram a restolhar e a vergar, se bem que no solo o ar estivesse quieto. Era como se as trevas tivessem caído sobre a floresta.

 

Não sei quanto tempo estive deitada no chão. Ficou cada vez mais escuro, mas se era o dia a transformar-se em noite, ou parte do estranho silêncio de mau presságio que se apossou do meu abrigo nessa tarde, não o sabia dizer. Sentia-me perdida na minha miséria. Por cima de mim, as árvores mexiam-se, suspiravam ao vento e havia vozes nelas. Sorcha, Sorcha, sussurravam. Oh, irmãzinha. No chão, nada se mexia. As aves estavam silenciosas.

 

Após um certo tempo, tive que me mexer. Estava a sangrar; e havia Linn. Não tinha esperança de que ela voltasse, correndo por entre as árvores com a alegre cauda erecta como uma bandeira ao vento; mas, pelo menos, precisava de a encontrar antes do anoitecer. E precisava de água.

 

Tudo representava o inimigo. Tudo era demasiado difícil. Mexi-me muito lentamente. As minhas roupas estavam rasgadas e imundas. Nunca mais lhes queria tocar. Deixei-as cair junto do fogo. Sentia-me desesperada por me limpar, mas tinha medo de ir até à margem do lago. Havia um balde de água e um pano áspero e eu lavei a imundície deles do meu corpo, sempre a tremer, se bem que o dia estivesse quente. Lavei-me e voltei a lavar-me e quando a água acabou, continuei a esfregar o corpo com o pano até a pele ficar vermelha e dorida. Havia muito sangue; mas não parecia meu, limpei-me o melhor que pude, enrolei-me depois numa das velhas capas e subi a encosta, as pernas trémulas, vendo as árvores turvas dançando perante os meus olhos. Ela vai desmaiar. Depois, não tem piada.

 

Cheguei ao topo da encosta e quase tropecei em Linn, que jazia onde tinha caído, as mandíbulas segurando ainda um bocado de tecido da túnica do homem. Os dentes estavam arreganhados num último desafio e os olhos fixavam, cegos, o céu. A cauda jazia, também, na poeira do caminho. O pêlo estava ensopado de sangue do profundo golpe na garganta e havia pequenas poças vermelhas entre as pedras e as ervas. Suponho que foi uma boa morte para um cão, perder a vida em defesa daquela que amava. Eu só sabia que a minha amiga se tinha ido e que agora estava, realmente, só.

Linn era uma grande cadela e eu continuava a ser uma miúda. No entanto, antes de escurecer consegui carregá-la até à entrada da caverna e deitei-a na relva. Depois, tremendo da cabeça aos pés, arrastei-me até ao mais ínfimo espaço que pude encontrar na parede de rocha, enrolei-me na capa e tentei fazer com que a minha mente ficasse tão silenciosa como uma pena ao vento tão imóvel como uma pedra. Mas o meu corpo abanava e tremia, o meu espírito estava cheio de medo, ódio e vergonha. Pensei que nunca mais ficaria limpa.

 

Eles voltaram ao anoitecer. Ouvi as vozes deles e não me mexi. Viram logo o que acontecera. Mais tarde pensei que, se tivessem sido os meus irmãos que eu vira flutuando nas águas tranquilas, o que deve ter sofrido Conor, ao ver tudo aquilo, incapaz de agir até ao pôr do Sol. Trocaram palavras com vozes baixas, furiosas.

 

Diarmid? Cormack? interrogou Liam.

 

Não, deixa o Cormack ficar aqui a tratar da cadela. Eu vou. Este trabalho é para mim. A voz de Finbar tremia.

 

Então, espreitando por entre os dedos naquela meia luz, vi os três pegarem em capas e facas na caverna e desaparecerem na floresta com a morte nos olhos.

 

Conor sabia onde eu estava. Senti a mente dele à procura, para tocar na minha, mas eu retraí-me ainda mais. Ele não se aproximou logo de mim. Padriac, com lágrimas de raiva e confusão nos olhos, avivou o fogo, acendeu as lanternas e aqueceu água. O rosto de Cormack parecia talhado na rocha quando pegou na pá e começou a cavar um buraco de descanso para os restos ensanguentados da cadela.

 

Após um certo espaço de tempo, Conor veio sentar-se perto do buraco onde eu estava. Ainda me lembro da sensação da rocha sólida por trás de mim, como me encostei ainda mais, enroscada em mim própria, tentando fazer-me o mais pequena possível, mordendo os nós dos dedos, um braço sobre a cabeça procurando protecção. Lembro-me de desejar que a terra me absorvesse, me levasse e chupasse toda a minha dor, culpa e miséria. Eu estava cheia de ódio; ódio pelos homens que me tinham feito aquilo, ódio pelo inocente que os tinha levado até mim, ódio por Lady Oonagh, que me fizera ir para aquele lugar tão solitário. Odiava o meu pai pela sua fraqueza. Odiava também os meus irmãos, por não estarem ali quando necessitara deles. Além disso, eles também eram homens. Portanto, como se atreviam a tentar melhorar as coisas?

 

Mas Conor estava ali sentado, não muito perto e falou comigo naquele tom calmo, medido e o fogo que Padriac tinha reacendido espalhou a sua luz dourada pelas raízes das árvores, pelos fetos e até por aquela fenda estreita na rocha; e após um bocado olhei para fora através da confusão de cabelos que me cobria o rosto e vi a dor e o amor nos olhos deles.

Sais cá para fora, corujinha? disse Conor gentilmente. Temos pouco tempo para te ajudar.

 

Era difícil, muito difícil. Não conseguia suportar que eles me tocassem. Padriac tinha mãos hábeis, que tinham ajudado muitos animais doentes durante a sua ainda curta vida e, tremendo, deixei-o tratar-me as feridas. Finalmente, envolta em cobertores, apesar do calor da noite, estendi-me ao pé do fogo e eles falaram em voz baixa, ao mesmo tempo que o aroma das ervas curativas subia no ar nocturno.

 

A cruel tarefa de Cormack chegou ao fim e ele regressou para o pé do fogo.

 

Linn já estava morta há um bom bocado disse ele sobriamente. Quem fez isto já deve ter saído da floresta. Os nossos irmãos não conseguem seguir-lhes a pista e regressar antes de amanhecer. Mais valia terem ficado aqui, a ajudar-nos. Talvez pudéssemos ter levado Sorcha para um lugar seguro.

 

Conor olhou para o irmão gémeo e depois para longe. Cormack parecia calmo; mas os seus olhos estavam vermelhos e as faces estavam cheias de terra, no local onde secara as lágrimas.

 

Não me parece disse Conor. Sorcha não pode ser movida esta noite. Para o melhor e para o pior, tem que ficar aqui, por agora. Quanto a esse outro assunto, acontecem coisas estranhas na floresta, à noite. especialmente nesta. Por vezes, as pessoas perdem-se no escuro, até em caminhos familiares. Não é raro aparecer uma névoa súbita, escondendo o caminho certo, ou vozes misteriosas, que conduzem um viajante por um trilho enganador. Podem aparecer clareiras onde não as havia antes e um emaranhado de ramos pode, subitamente, esconder outras. Muitos morreram sob estas árvores e os seus corpos nunca foram encontrados.

 

Os dois irmãos olharam para ele e depois um para o outro.

 

Hum disse Cormack. Tu lá sabes.

 

Pois é. Eu sei disse Conor.

 

Padriac estava a ferver uma taça com mais ervas; o cheiro disse-me que estava a usar erva-férrea, por vezes chamada coração-da-terra e os esporos do licodópio, a erva cujo poder deve ser manuseado com tanto cuidado. Já me tinham obrigado a beber, mas o meu estômago até rejeitava o que lhe era benéfico. Voltei a beber, mas pouco. Não tinha vontade de dormir, porque nenhuma infusão me podia prometer um sono sem pesadelos. Observei as estrelas enquanto os meus irmãos falavam em voz baixa. Eu sou uma curandeira; era e continuo a ser. Que estranho, portanto, como naquela noite senti, no fundo da minha alma, que nunca ficaria curada, como se nunca mais conseguisse sair daquele poço de desespero. Eu ajudara Simon e outros antes dele. Mas quem me ia ajudar a mim? Até a minha cadela desaparecera. Olhei para as estrelas até parecerem rodar sobre mim, até as suas imagens se misturarem com as minhas lágrimas.

 

Também era estranho que naquela noite eu não me preocupasse com quem podia magoar. O rosto de Conor estava branco e repuxado; carregava o fardo do que acontecera à sua irmã, a culpa por não ter estado presente para o impedir, culpa essa que todos sentiam, aliás, assim como conhecia os meus mais íntimos sentimentos, melhor do que os outros. Estava sintonizado com as minhas maldições sem palavras e gritos silenciosos e com o meu angustiado sentido de traição. Não estavas presente. Precisei de ti e tu não estavas presente. Era tal o fluxo de emoção, que não podia ficar escondido. A minha mente extravasava de dor, ele absorveu-a toda, mas não a mencionou uma única vez. Mas podia-se lê-la no rosto dele. O pior era que eu já não queria saber. O meu irmão também era homem. Talvez devesse partilhar o mal que outros homens tinham feito.

 

Devo ter dormitado por momentos, porque me lembro de acordar sobressaltada quando Liam atirou uma faca ensanguentada para o chão, ao lado da fogueira e limpou as mãos à capa. Os três tinham regressado. O rosto de Diarmid era uma máscara de fúria, o de Liam estava severamente reprimido. Finbar mantinha-se à parte e tinha as mãos encostadas à cabeça, como se os seus pensamentos ameaçassem rebentar. Tinha-as cheias de sangue. Em tempos, o mestre-de-armas Donal treinara-os com disciplina de ferro. Até eu sabia que uma arma deve ser escrupulosamente limpa depois de usada; limpa, oleada e guardada. Esta noite era diferente. As três adagas deles estavam por terra, junto do fogo e os seus reflexos vacilantes mostravam o metal brilhante incrustado de sangue. Fora uma caçada, não uma batalha. Eu não queria saber quantos tinham morto, se dois, se três. Não chorei pelo inocente apanhado em algo que não compreendia. Era tarde, demasiado tarde. O corpo doía-me, estava assustada e mesmo com os meus seis irmãos à minha volta, sentia-me só.

 

Oonagh pagará com sangue por isto disse Diarmid, a voz densa devido à fúria. A sua sede de vingança não fora saciada pelas mortes. Eu próprio lhe hei-de cortar a garganta, se mais ninguém o fizer.

 

Ela é responsável por isto, se bem que indirectamente concordou Liam. Mas não é chegada a ocasião. Fizemos o que tínhamos de fazer. Agora, devemos cuidar de Sorcha. Ela deve sair daqui e já. Quando é que ela se pode mexer, Conor?

 

Falaram de mim como se eu fosse uma pedra no jogo de estratégia deles; uma pedra importante, mas ainda assim um objecto a ser manobrado para adquirir vantagem. Fiquei ali de olhos esgazeados, silenciosa, na escuridão. O corpo latejava-me de dor, a mente recordava-me, repetidamente, o que me acontecera. Não conseguia impedi-lo e quase desejei ter bebido infusão suficiente para apagar tudo por uns tempos com um sono drogado, com ou sem pesadelos. A minha mente não tinha descanso; não conseguia concentrar-me numa história, contar as estrelas, ou assimilar convenientemente o que os meus irmãos diziam.

 

As vozes deles entravam e saíam da minha consciência, Conor dizendo que eu não podia ser movida dali esta noite, Diarmid furioso, Liam tentando fazer planos. Clarões de dor, recordações de outras vozes. Levantei uma mão para cobrir os olhos e senti a sua aspereza roçar-me pela pele. Talvez a mãe dela fosse um sapo. Também havia outras imagens. O meu jardim desfeito. Simon gritando no escuro. Oonagh penteando-me, penteando-me e as criaturas retorcendo-se no espelho dela. Dor e medo. As vozes deles, de novo e mais uma vez. Carnefresquinha, hein? Mesmo como eu gosto, nova e sumarenta. Como é que os meus irmãos podiam continuar a falar, a planear, a argumentar como se eu não estivesse ali?

 

Isso é impossível! Está fora de questão! gritava Diarmid. Não podemos deixá-la aqui! Deve haver outra maneira qualquer!

 

Não há outra maneira disse Conor calmamente. Tinha o rosto virado para o outro lado.

 

Então, por Deus, acabemos com este encantamento de uma vez por todas disse Cormack e havia uma nota temerária na sua voz. Levantou-se e fixou o seu irmão gémeo no outro lado da fogueira. Não a podemos abandonar, agora. Digo que devemos aproveitar o tempo que nos resta para a levar para a herdade mais próxima, contar a nossa história e colocarmo-nos à mercê dessa gente. Pelo menos, Sorcha terá mais hipóteses. Se a deixarmos aqui, não chega ao fim da estação.

 

Essa gente mostrou pouca mercê quando violou a nossa irmã disse Diarmid selvaticamente.

 

De qualquer maneira, não podemos fazer isso e voltar aqui antes do amanhecer disse Padriac. Havia uma pergunta velada na sua voz.

 

Padriac tem razão, não o podemos fazer disse Liam. Se contares a história a esses camponeses, amanhã Lady Oonagh já sabe do paradeiro de Sorcha, ou no dia seguinte. Se estiveres longe da água ao amanhecer, ainda acabas, amanhã, na mesa de jantar de alguém. Espero que não sejais loucos a esse ponto.

 

O que é que queres dizer? Diarmid tinha apanhado a adaga do chão e passava-a de uma mão para a outra, irrequieto.

 

Que este plano é impossível. Acho que o melhor é deixarmos Sorcha o mais segura e confortável possível aqui. Talvez na próxima vez a possamos tirar daqui; deve haver outras grutas ao longo da margem. Liam não parecia feliz com a sua própria sugestão.

 

Que dizes tu, druida? O tom de Diarmid estalou como um chicote. Nenhuma declaração sábia, nenhuma retórica para nos inspirar? E as tuas capacidades místicas? Talvez seja hora de cessarmos de seguir os teus conselhos e tomarmos o assunto em mãos. parecia um cão de caça na ponta da trela esticada.

 

Isso não é justo disse Cormack, indo em defesa do seu irmão gémeo, a despeito das suas próprias dúvidas.

 

Nem é exacto disse Liam firmemente. Com certeza não te esqueceste de como fomos capazes de seguir, com tanta rapidez, a pista das nossas presas, esta noite. Raramente vi uma névoa descer tão rapidamente ou tão selectivamente. Ou dissipar-se de repente, quando acabámos. Nem nunca vi antes os fetos e o musgo rastejarem e espalharem-se, numa questão de momentos, para esconderem os ossos e a carne dos homens. Houve magia aqui, esta noite; deves agradecer ao teu irmão por isso.

 

Tretas grunhiu Diarmid, mas sentou-se de novo com a faca ainda na mão. As palavras deles evaporaram-se da minha consciência e as imagens demoníacas regressaram. Tentei de novo bloqueá-las, mas elas não desapareciam. Queria gritar, berrar, deixar sair a ira e a dor; mas, não sei como, cerrei os dentes, engoli os sons que ameaçavam sair e as lágrimas escorreram silenciosamente. Os meus irmãos tinham boas intenções. Mas quase desejei que fosse madrugada e que se fossem embora. As vozes continuavam a discutir e após um certo tempo Padriac trouxe-me mais de beber, eu bebi e ele foi-se de novo. As imagens passavam e voltavam a passar-me pela mente. A marca do ferro quente na carne humana. Eilis cheia de convulsões, o belo rosto distorcido pelo esforço de vomitar. A cadela com os olhos confiantes e a faca espetada, profundamente, na garganta. O grande sorriso do atrasadinho quando olhou para cima, para as árvores. Não façam mal à fada! A seguir é a tua vez, labrego. Sob a espessa capa, eu tremia.

 

Estou aqui, Sorcha.

 

A princípio não queria acreditar; há tanto tempo que ele não me tocava assim a mente.

 

Estou aqui. Tenta esquecer, minha querida. Eu sei que te dói. Encosta-te a mim; deixa-me carregar o teu fardo por um bocado.

 

Mal o podia ver; estava na parte mais afastada da fogueira, por trás dos outros e meio virado de lado, com a cabeça ainda entre as mãos. parecia que mal se tinha mexido desde que chegara.

 

Como? Como é que sabes?

Sei. Deixa-me ajudar-te.

 

Senti a força da mente dele entrar na minha e, não sei como, ele conseguiu fecharas coisas terríveis, escuras e secretas que receara partilhar comigo, enchendo-me a cabeça com imagens de tudo o que era bom e corajoso. Eu própria dançando alegremente, em criança, ao longo dos caminhos da floresta, abrigada pelos grandes ramos, iluminada pelo sol pintalgado. Aquela imagem era antiga, armazenada profundamente na consciência dele e que influenciava tudo o que fazia. Depois, os dois, deitados nas rochas ao lado das lagoas provocadas pelas nascentes, de rosto para baixo, o rosto seguro pelas mãos, quietos como pequenos lagartos a aquecerem-se ao sol, observando as pequenas rãs saltando e mergulhando por entre os agriões. Finbar, extraindo-me, pacientemente, as agulhas de morugem das mãos enquanto Conor contava a história de Deídree, a Dama da Floresta. Os sete em volta do pequeno vidoeiro, de mãos unidas.

 

Não me dava tempo para pensar, inundava-me a mente, apagava-me, pelo menos por agora, a miséria e o medo. Era como se a mente dele se misturasse com a minha para a livrar do mal. E mais: ele e eu de novo, sentados nas lousas de telhado, olhando para longe, para lá da floresta e do lago. Uma pequena imagem do padre Brien, com a língua entre os lábios, trabalhando com um pincel na página intrincada de um manuscrito. Conor no seu traje branco, lendo nos entalhes do tronco de uma grande sorveira-brava. Diarmid e Liam lutando nos baixios, ombro contra ombro, até que um cedia e o desafio acabava na água, rindo os dois perdidamente. Padriac colocando talas na asa de uma coruja, as mãos ágeis movendo-se sem pressa, para não assustar. Cormack e Linn correndo ao longo da margem e o vento de oeste chicoteando a água para lhes cobrir as pegadas na areia.

 

As lágrimas começaram a correr-me de novo pelas faces, mas a dor, agora, era diferente.

 

Chora, minha querida. O nosso amor envolve-te como um cobertor. A nossa força é a tua e a tua mantém viva a nossa esperança.

 

A floresta segura-te pela mão. Esta voz era diferente, era a de Conor. O caminho abre-se à tua frente. Os restantes tinham caído no silêncio, talvez sentindo que a madrugada se aproximava e que algo estava a acontecer, que era mais vital do que todos os planos que pudessem arquitectar.

 

Que... vês tu para mim? Custou-me muito perguntar. O que é que me vai acontecer? Mostra-me, desta vez.

 

Houve uma imagem, decomposta, difícil de discernir. Uma rapariga, eu própria, supunha, à deriva num pequeno barco. Uma coruja piando. Ou era agora e aqui e não parte de uma imagem da mente? Um par de mãos, segurando uma pequena faca, gravando um pequeno bocado de madeira. Uma fogueira verde, púrpura e laranja. A imagem desvaneceu-se e desapareceu. Se era tudo o que Finbar vira, ou se ele fechara a imagem, não sei. E durante todo aquele tempo ele não disse uma única palavra, limitando-se a ficar sentado com a cabeça entre as mãos, como que em transe.

 

Em breve os primeiros traços cinzentos da alvorada tocaram o céu e quase chegara a hora de eles partirem. A minha respiração estava calma e o meu corpo mais descansado, se bem que ainda me doesse. A minha cabeça estava cheia de luz, fragmentos de histórias de heróis, imagens da nossa infância, um bastião de recordações para manter afastadas as sombras. Finbar não permitiu que qualquer pensamento mau, ou imagem feia, me tocasse. Fiquei quieta, enrolada no meu cobertor e o céu, que clareava, parecia-me suave e a copa das árvores, benigna. Ouvi a voz de uma coruja, chamando através da madrugada tranquila e tocando-me profundamente o espírito. Os meus irmãos permaneceram sentados em silêncio e de rostos crispados em volta das últimas brasas da fogueira.

 

Sorcha. Conor falou em voz alta, desta vez, de maneira que todos pudessem ouvir. Há uma hipótese, na qual nenhum de nós falou. Quero apresentar-ta. descobri que conseguia sentar-me e acenei, compreendendo. A garra na minha mente abrandou um pouco o aperto; mas Finbar segurou-me. Olhei para ele no lado oposto do círculo. O rosto do meu irmão chocou-me; estava branco, enrugado como pergaminho e havia sombras púrpuras sob os olhos. parecia um velho, ou alguém que tivesse passado a noite com as Criaturas Encantadas e nunca mais voltasse a ser o mesmo.

 

Está tudo bem, Sorcha. Escuta o Conor. Finbar não moveu um músculo.

 

todos pensamos nela, sem dúvida; mas nenhum de nós estava preparado para falar nela, se bem que Cormack se tenha aproximado, penso. Quero que sejas tu a decidir, Sorcha. Leva o tempo que quiseres e escolhe por ti, não por nós.

 

Liam continuou.

 

Não fales por enigmas, Conor. Isso deve ser dito com clareza. Sorcha, o que ele está a tentar dizer é que talvez tenha chegado a altura de parar com a tarefa. Para mim, pelo menos, o preço parece ser muito alto. todos nós daríamos de boa vontade as nossas hipóteses de futuro em troca da tua segurança.

 

Daríamos as nossas vidas por ti. O que mais custa suportar é o sentimento de culpa; porque tu arriscas-te diariamente nessa luta para completar esta tarefa por nós. A voz de Cormack era friamente lógica.

 

Não te podemos proteger disse Diarmid rudemente. Somos piores do que inúteis, não passamos de um fardo para ti. Reparei, então, que ele segurava descuidadamente a pequena trouxa de camisas de morugem nas mãos, apesar das farpas e perto, muito perto das brasas. Eu digo que se devem destruir estas camisas mágicas, abandonar esta tarefa que te consome e procurar abrigo junto dos santos irmãos, que te podem proteger da feiticeira. Poderemos ficar perdidos para o mundo humano. E depois? Isso pouco interessa.

 

Este discurso deve ter-lhe custado muito, porque eu sabia que o desejo de vingança lhe ardia no coração. Sabia como Liam desejava regressar a casa e endireitar as coisas, com o pai e as terras, antes que fosse tarde demais para salvar fosse o que fosse. E o futuro de Conor, os seus anos de aprendizagem, o temor com que os aldeões falavam dele, como sendo um dos sábios? Quem o substituiria se ele nunca mais regressasse ao mundo mortal?

 

Devíamos ter construído um barco, ou uma jangada disse Padriac subitamente. Aqui há pouca gente; podíamos deslocar-nos ao longo do lago, navegando suavemente ao anoitecer ou de madrugada, sob as árvores e perto da margem. Devia ter pensado nisso. Os outros olharam para ele. Bem, foi só uma ideia disse ele.

 

Não tens estado a ouvir nada? disse-lhe Liam, franzindo as sobrancelhas.

 

Padriac estava, de novo, a pôr a taça ao lume, fervendo suficiente chá de ervas para me durar um dia ou dois.

 

Tenho, sim disse ele tranquilamente. Sorcha vai escolher por nós. Que mais há a acrescentar?

 

Senti o aperto de Finbar na minha mente abrandar e desaparecer lentamente, deixando-me limpa e vazia. A presença de Conor também desapareceu, retirando-se tão subtilmente como entrara. Queriam que tomasse a decisão sozinha. Mas não havia escolha para mim. Estendi o braço em busca da trouxa das camisas e Diarmid passou-ma.

 

Tens a certeza, Sorcha? perguntou Liam calmamente. Acenei com a cabeça. Ao contrário de Finbar, ainda sabia qual era o caminho que tinha de seguir. parecia-me que, acontecesse o que acontecesse, isso não mudaria.

 

Muito bem disse Liam. Honraremos a tua decisão. Sobreviveremos e regressaremos de novo no solstício de Inverno.

 

Não regressaremos aqui disse Finbar com a mais fraca das vozes e, ao virarmo-nos todos para ele, oscilou e caiu no chão como morto. Conor foi o primeiro a chegar até ele e ajoelhou, escondendo o rosto do irmão dos outros.

 

Levanta-o disse Diarmid rudemente. É quase madrugada.

 

O que é que se passa com ele? Cormack foi um pouco mais compreensivo. Não ouvi uma única palavra dele toda a noite.

 

Saboreou o primeiro sangue disse Diarmid. Por vezes, acontece isto. Não tem estômago. No entanto, foi bem rápido. Nunca vi um homem espetar tão fundo, nem torcer a faca com tanto prazer. Olha para as mãos dele.

 

Com tacto, Padriac levou-me dali para me falar de cataplasmas e fricções, de como tivera que me suturar e cujos pontos eu própria teria que retirar, coisa que seria um pouco dificultosa, mas não impossível. Eu só ligeiramente o escutava. Não precisava de me explicar o meu próprio ofício. Liam estava a esbofetear as faces brancas como a cal de Finbar; Conor apalpava-lhe o pescoço com os dedos, sentindo-lhe as veias sob a pele, falando em voz baixa.

 

despacha-te disse Diarmid. Pela Dama, que hora para ter um ataque de histerismo. O Sol já está a tocar nas copas das árvores da outra margem do lago. Bate-lhe com força, fá-lo acordar rapidamente. Ainda nos trama a todos.

 

Cuidado com a língua! disse Liam, numa voz parecida com a do pai. Uma voz que provocava o silêncio, subitamente, em homens feitos.

 

Estás enganado a respeito de Finbar disse Conor, ao mesmo tempo que ele e Liam punham o irmão em pé e começavam a andar lentamente na direcção do lago. Porque Diarmid tinha razão; chegara a hora. Meio consciente, Finbar cambaleava entre os dois, movendo os pés como se pesassem toneladas. Ele deu mais de si, esta noite, do que imaginas. Não julgues com tanta leviandade aquilo que não compreendes.

 

Compreendo muito bem grunhiu Diarmid, mas não tentou interferir mais. E assim chegaram à margem e de novo se despediram de mim. E desta vez, de pé e oscilando, envolta na minha grande capa, não queria que nenhum deles me tocasse e eles sabiam-no sem necessidade de palavras. Assim, deslizaram para a água, um a um e eu senti no coração que passaria muito tempo, mais do que a diferença entre o Verão e o Inverno, até voltar a vê-los. O meu amor por eles não diminuíra, mas penso que não conseguiria, nunca mais, abraçá-los, se bem que fossem meus irmãos. Não poderia voltar a confiar neles, porque não estavam presentes quando precisei deles. Não que tivesse sido culpa deles. Tal era o poder de mal que me tinham feito. E enquanto se encaminhavam para a água, com Finbar ainda amparado pelos dois irmãos e a primeira luz dourada do Sol tocando-lhe as feições pálidas, não o chamei com a minha voz interior. Não disse obrigada ou adeus, meu querido. Virei as costas e encaminhei-me, solitária, para o abrigo dos freixos, com a mente e a língua silenciosos como a morte. Não houvera adeus para os meus irmãos, à medida que as águas os envolviam uma vez mais.

 

Cormack previra que eu não duraria muito sozinha na floresta com as feridas que tinha. Não tomara em consideração a minha força de vontade, nem as minhas capacidades como curandeira. Não previra a intervenção da própria floresta, por intermédio dos seus mais secretos habitantes.

O tempo passou, a Lua cresceu, diminuiu e os quentes dias de Verão transformaram-se, lentamente, nos duros e frios dias dos princípios de Outono. Estava tudo calmo, tão calmo que até o súbito chilreio de um pássaro me fazia saltar. Demasiado calmo. A pilha de pedras redondas do rio, que marcava a última morada de Linn, falava-me todos os dias do vazio que a morte dela deixara no meu pequeno mundo. Os meus dias eram ordenados pelos padrões dela, tanto como pelos meus. O meu tempo a tecer e a fiar e as jornadas dela pelos bosques à procura de coelhos, ou pelo lago à procura de peixe, as minhas refeições tomadas aquando do regresso dela e as nossas sonecas debaixo do mesmo cobertor. Uma vez encontrei as pegadas dela ainda marcadas na areia, no local onde tinha dado uma corrida e eu chorei e senti o que perdera.

 

O meu corpo sarava graças aos cuidados de Padriac e aos meus próprios conhecimentos. Após um certo tempo soube que não estava grávida e dei graças por isso. Mas continuava assustada e por vezes até a minha rotina diária era demasiada. O abrigo que se tornara a minha casa já não era um refúgio, transformado, para sempre, pelo mal que aqui acontecera. Imaginava as minhas ervas a morrerem lentamente, ou a crescerem desordenadamente, as flores disformes e as bagas enrugadas. Não me aventurava a sair para colher uma nova provisão da planta de que necessitava, nem sequer com uma faca afiada à cintura.

 

O mais leve som punha-me o coração aos saltos. Tinha sonhos e esses não os contarei. Tentei lutar contra eles. Fazia os possíveis para dormir de dia e permanecer acordada durante a escuridão. Mas as minhas velas já quase tinham acabado e os sonhos vinham até durante a luz do dia. Recorri ao uso das ervas e durante algum tempo elas deram-me algum descanso. Mas a dosagem que eu precisava começou a crescer, a crescer. Após um certo tempo tomei a decisão de parar, sabendo o poder que tais poções podem exercer sobre os fracos. E os demónios regressaram.

 

Pensei muito em Simon. Pensei nas suas feridas e como o obrigara a prometer que sobreviveria. Senti que estava fraca, mas que devia dedicar-me, de novo, à minha tarefa. Mas havia dias em que, simplesmente, não tinha vontade e o fio de morujem ficava por fiar, enquanto me sentava encostada ao tronco do freixo, olhando para o vazio. Senti-me como se estivesse à espera, mas não sabia de quê.

 

Não tinha muita comida, já que tinha medo de me afastar. Não tinha, nem a vontade, nem a energia de preparar bagas para secar e o meu pequeno canteiro de ervas estava cheio de ervas daninhas. Tinha um pequeno saco de ervilhas secas que encontrara há algum tempo ao lado do trilho de carroça, caído da carga de algum camponês. Tinha andado a poupá-las e agora cozia algumas, de manhã, para fazer uma espécie de caldo, quando tinha forças para tal. Alguns dias, até pentear-me me custava.

Emagreci e dava comigo a adormecer inesperadamente, para acordar com pesadelos. À medida que os dias iam ficando cada vez mais pequenos, o meu trabalho progredia pouco. Então, finalmente, ela veio. Silenciosa como um cervo, apareceu subitamente nas sombras, entre os troncos cinzentos dos freixos, os olhos profundos dela olhando para mim com uma expressão que eu não compreendia. desta vez não trazia a capa azul-escura, nem havia jóias nos seus longos cabelos escuros. Em vez disso, o traje era simples, caindo-lhe pelas ancas, cor de musgo; e os braços sobressaíam, pálidos, sob a luz filtrada pelas árvores. As folhas e os ramos agitavam-se em volta dela e eu senti o profundo e palpitante bater do coração da floresta, como se nascesse para a vida à medida que ela passava. Na última vez dera livre curso à ira e ao medo. desta vez, apenas senti um profundo vazio.

 

Chegas tarde.

 

O rosto dela estava impassível. Se havia nela alguma expressão, era de ligeira desaprovação.

 

Chegou a hora, Sorcha disse ela. A hora de continuar. Continuar o quê? Pensei eu debilmente. Tudo me parecia demasiado

 

duro, demasiado esforçoso. Talvez fosse melhor rastejar outra vez para debaixo da rocha e fechar os olhos.

 

Estou cansada de ser forte.

 

Ela riu-se. Riu-se de mim, como se eu não passasse de uma pessoa ridícula.

 

Tu és o que és disse ela naquela voz baixa, musical. E agora, vamos, levanta-te. Não és a primeira mulher da tua raça a ser violada por homens, nem serás a última. Nós vimos, com pena, o que te aconteceu; mas a vingança foi rápida e justa. Agora, deves continuar a partir daqui.

 

Senti um começo de raiva dentro de mim, lutando para sair através da profunda fadiga que me fazia a cabeça andar à roda e os membros pesados e doridos. Levantei-me e as árvores pareceram estremecer e mover-se à minha volta.

 

Óptimo disse ela calmamente. Agora, vamos sair daqui. Podes levar contigo algumas coisas. Escolhe com cuidado. Encontrarás um pequeno barco ancorado sob os salgueiros, não muito longe do lado norte da baía. Levar-te-á onde precisas.

 

Pestanejei para ela. As árvores pareciam agitar-se, à minha volta, em todas as direcções, a luz do fim de tarde tremeluzindo entre as folhas em tons de cinzento, verde, dourado, castanho-avermelhado e castanho. A imagem dela começava a desvanecer-se.

 

Mas e se... eu não posso... e onde...

 

Mas ela desaparecera. Fiquei ali quieta, desejando que a Visão ficasse. Lentamente, o mundo voltou ao que era, mais ou menos. Pensei vagamente que talvez não tivesse comido desde o dia anterior. Talvez fosse esse o problema. Sentia-me muito estranha. Mas não havia mais nada a fazer ali. Além disso, se eu podia levar comigo apenas um saco, certamente não ia enchê-lo com maçãs secas ou montes de agrião.

 

Quando as Criaturas Encantadas nos dão instruções, seguimo-las, quer nos agradem ou não. Era assim. De qualquer maneira, não tinha escolha. Não estava preparada para o Inverno e os meus irmãos tinham mais em que pensar do que cortar lenha ou procurar provisões para mim, como na outra vez. Assim, deixei o meu bordão de carvalho, que tinha sido do padre Brien, as botas de Inverno, as capas quentinhas e as três adagas com os cabos gravados. Deixei a pilha de pedras redondas onde jazia a minha cadela, o último ramo de alfazema seca, que guardava ainda o aroma do calor do Verão e o diminuto monte de lenha de freixo. Até deixei o fuso e o pequeno tear que o meu irmão construíra para mim. Mas levei as duas camisas de morujem e a terceira meio acabada, juntamente com as fibras que ainda não fiara, a agulha e o fio e, no fundo do saco, o pedaço de madeira de Simon. Levava o meu velho vestido e em volta do pescoço o amuleto de Fimbar, que fora da nossa mãe. Afastei-me da caverna sem um único olhar para trás. Mas ouvi umas vozes fracas sussurrando, restolhando e o bater delicado de asas dentro e fora da copa das árvores.

 

Sorcha, oh Sorcha. Adeus, adeus Os sons seguiram-me ao longo da margem do lago enquanto eu caminhava de pés descalços por entre as pedras e através do cascalho, até que encontrei a chata com um longo pau dentro, para empurrar. Irmã, oh irmã. Onde vais? Quando voltas?Enterrei o pau na areia, desloquei o barco para a corrente e a água levou-me.

Se na ocasião me restasse ainda alguma vontade, teria seguido a sugestão de Padriac e mantido junto à margem do lago, deslocando-me perto dos salgueiros pendentes até chegar a um lugar de relativa segurança. Pensei, de modo indistinto, que a Dama assim quisera e me fizera mudar para me proteger, enquanto completava a minha tarefa. Mas não tinha energia para governar o barco. A minha mente estava enublada devido à fome e eu supunha que estava doente; o fraco balanço do barco parecia-me estranhamente errático, a água estava turbulenta e as árvores, à passagem, inclinavam-se e oscilavam, provocando-me tonturas. Senti, vagamente, que outras mãos faziam mover o pequeno barco numa direcção que não da minha escolha.

 

As sílfides da floresta desapareceram lá atrás e na ondulação das águas do lago outras vozes se ergueram, líquidas, evasivas, murmurando umas para as outras, à medida que as suas ondas empurravam o pequeno barco rapidamente, com demasiada rapidez, para longe, para as cada vez mais agitadas águas. Pestanejei e olhei, tentando perceber quanto era real e quanto era imaginação febril. Havia longas e pálidas mãos na água, rostos com grandes olhos e cabelos parecidos com ervas daninhas, cinzentos, verdes e azuis. Havia caudas de escamas brilhantes.

 

Depressa, depressa cantavam, umas para as outras. Chegou a hora.

 

E assim o barco deslocava-se cada vez mais depressa, como se num rio rápido. Do céu pendiam pesadas nuvens e o dia ficou escuro. Gordas gotas de chuva começaram a salpicar-me e ouvi um distante trovão. A pequena parte de mim que ainda estava acordada registou aquelas coisas e também que estava sozinha naquela grande extensão de água, de pés descalços e no meu velho vestido, num barco construído para pacíficas lagoas. O vento levantou-se e a pequena barca baloiçava enquanto continuava a sua rota.

Pequenas ondas entravam pelos lados, ensopando-me até à cintura. Mas eu não tinha frio; em vez disso, sentia-me em brasa e ouvia as vozes delas chamando-me, em volta, por baixo, por trás e à minha frente, na água cada vez mais escura.

 

É fácil, fácil, Sorcha. Atira-te, atira-te pela borda fora e vem ter connosco. Aqui, debaixo de água, está fresco. Atira-te.

 

E outra.

 

Vem, vem cá para baixo. Diz adeus à tua dor, deixa que a água a lave. Vem, deixa que a água te leve. Vem e dança connosco no fundo.

 

As vozes delas coaxavam suavemente. Eu queria sentir a água fresca na testa a escaldar, queria dormir e esquecer. Seria tão simples deixar-me cair, desaparecer sob a água, para longe de tudo.

 

Atira a tua trouxa! Atira! Deixa cair o teu fardo!

 

Vi os dedos longos e em forma de garra estenderem-se para cima, na minha direcção, acordei e apertei a trouxa contra o peito, sem querer saber das farpas, que me feriam através do tecido.

 

Não. Não deixo,

 

Então ouvi-as rir, vozes altas, profundas e o esparrinhar das caudas na água, à medida que se moviam em volta do barco. E depois desapareceram, deixando-me a enfrentar o vento e a água.

 

Suponho que quase me afoguei, nessa noite. Mas sentia-me doente e cansada e na ocasião o perigo parecia-me pouco importante. Pouco depois o céu escureceu e a luz fendeu a escuridão como grandes lanças brancas, atiradas com tremenda força contra a terra. Uma chuva tempestuosa começou a cair e o barco ficou meio cheio de água. Agarrei-me com as duas mãos para manter o equilíbrio e soube que era apenas uma questão de tempo, antes de me afogar. Soube, também, que não viveria muito mais tempo na água. Há muito que o lago se estreitara até formar um rio rápido e a margem estava agora perto; um raio de luz iluminou paredes de rocha e pequenos bosques de arbustos. Estávamos para lá dos limites da floresta, em campo mais aberto. Aqui e ali podia ver fendas nas rochas e pequenas áreas de terra seca para onde poderia nadar, se tivesse a força necessária. Agarrei no pau, esperando guiar o barco para a margem, porque talvez ali fosse pouco profundo. Mas a minha mente não parecia capaz de me guiar as mãos e o pau fugiu-me e caiu à água, flutuando rapidamente para fora de alcance. Eu estava demasiado fraca para o apanhar, nadando, quanto mais conseguir chegar à margem. E se não me afogasse, o frio acabaria comigo antes da manhã seguinte. Ardia em febre e não sentia o frio, mas a curandeira que havia em mim sabia como aquele calor era enganador e como podia gelar até à morte.

 

As nuvens tempestuosas afastaram-se por instantes e a Lua apareceu. Uma luz pálida estendeu-se, subitamente, sobre a superfície das águas.

Havia também uma luz na margem e, um momento mais tarde, a voz de um homem gritando:

 

Hei! O que é aquilo? E outra.

 

Além... olha! Está alguém lá dentro! Parece-me uma rapariga

 

O vento uivava, emaranhando-me os cabelos em frente dos olhos. O barco estava outra vez a afastar-se da margem Perscrutei na direcção da pequena luz. Havia dois homens, um transportando uma espécie de lanterna, enquanto o outro tirava a camisa e se atirava à água, nadando, lutando, na minha direcção.

 

És maluco! gritou o outro.

 

O homem aproximava-se Apesar do vento e da corrente, o seu corpo poderoso, branco à luz da Lua, movia-se, em linha recta, na minha direcção. Era um homem grande, nadando com grande determinação O meu corpo estava tenso de medo e subitamente o pensamento de me deixar cair borda fora, de me afogar, deixando este mundo, pareceu-me tão bom, a única coisa sensata a fazer. Agarrei na trouxa com ambas as mãos e fiquei de pé, pouco segura. O vento fez o resto, inclinando o barco, de maneira que ele se encheu de água e se afundou. A água fechou-se sobre a minha cabeça.

 

Durante alguns momentos o frio foi uma bênção e o desejo de esquecimento suficientemente forte para apagar tudo o resto. Depois, os pulmões começaram a pedir ar e o espírito disse Não Ainda não. E eu vim à superfície sufocada, tossindo, tremendo e aterrorizada. Vim à superfície ao mesmo tempo que o homem dava as últimas braçadas e me agarrou em volta da cintura com um par de braços que pareciam de ferro. Não conseguia gritar, mas lutei contra ele com quantas forças tinha, arranhando e dando pontapés com as forças que me restavam.

 

Pára de lutar, estúpida disse ele e tapou-me a boca com uma grande mão, virando-me de costas e puxando-me para a margem. Mordi-o. Ele praguejou, utilizando uma palavra que eu ouvira apenas uma vez, porque a língua que ele falava era a dos bretões. O abraço dele abrandou o suficiente para me permitir deslizar para a água de novo e tentei nadar para longe dele, de qualquer maneira, mas o meu nariz encheu-se de água, o peito doeu-me, ele agarrou-me pelos cabelos e eu senti-me, inexoravelmente, rebocada para a margem, segura num amplexo demasiado forte para mim. Eu chorava, o ranho corria-me pelo nariz e desta vez eu estava tão assustada que desejava, verdadeiramente, ter-me afogado.

 

Chegámos à margem, onde ele me pôs aos ombros sem a menor cerimónia, como uma peça de caça.

 

Maluco observou o companheiro.

Começaram os dois a andar na direcção dos arbustos, para longe da água. Reparei que ele levava a minha trouxa na outra mão. Ambos tinham facas nos cintos. Pensei que roubaria uma quando eles parassem e me pusessem no chão. Antes que me fizessem alguma coisa, matar-me-ia. Por que haveriam dois homens como aqueles de me salvar, senão para se servirem do meu corpo e o atirarem depois fora? Que mais quereriam de uma rapariga miserável, meio morta de fome, meio afogada? Mas não os deixaria violarem-me. desta vez, não. Impedi-los-ia por todos os meios ao meu alcance.

 

Mas quando chegámos ao abrigo sob uma parede de rocha e eu vi que havia um terceiro homem à espera na escuridão, não tive forças para me proteger e fiquei ali, indefesa, onde ele me deixou cair. Tinham diminuído a chama da lanterna, mas pude ver que eram bretões e vestidos para viajarem, depressa e em silêncio, pelo país.

 

Vamos ter que acender uma fogueira. Era a voz do meu salvador.

 

És maluco disse o outro, o que tinha a lanterna. E Redbeard e os homens dele? Não devem estar muito longe.

 

Ouviste o que ele disse. Acende uma fogueira. Era o terceiro homem, que parecia mais velho do que os outros. Não me atrevi a abrir os olhos mais do que uma pequena fenda. Uma fogueira pequena. Esta tempestade vai manter os nossos perseguidores longe de nós até de madrugada. Nessa altura já estaremos longe.

 

Ouvi alguém a mexer na lanterna e após alguns instantes um suave crepitar. Espalhou-se um pequeno brilho, lançando-lhes para os rostos severos reflexos cor de laranja. Falaram baixo uns com os outros e após alguns momentos consegui dar-lhes nomes. O mais velho chamava-se John; aquele que transportara a lanterna, jovem, de cabelos dourados, chamava-se Ben. Quanto ao alto, que me pescara do rio, o nome dele parecia ser Red, por mais estranho que parecesse. Este encaminhou-se para a minha trouxa. Fechei os olhos e tentei não tremer.

 

Ela estava agarrada a isto com todas as forças. O que é que está lá dentro, as jóias da família?

 

Não houve resposta. Pouco depois abri os olhos um pouco. Red estava a fechar a trouxa.

 

Não tem grande coisa disse ele. A voz soava de modo estranho. Ele também parecia estranho, o rosto focado e desfocado à medida que se inclinava para mim. Cerrei os dentes de repulsa.

 

Creio que está doente. Dá-me a tua capa, Ben.

 

Hei, está frio. E eu? A réplica era queixosa, mas o companheiro deu-lha e eu senti o seu calor cobrir-me. A mão do homem tocou-me no ombro e eu estremeci, gritando. Por um momento olhei-o nos olhos, que eram azuis e tinham um ar baralhado. Tinha as sobrancelhas franzidas.

 

Calma disse ele. Calma! Como se falasse com um cavalo nervoso, ou um cão meio selvagem. É agora, pensei. É agora que vão agarrar em mim e eu... e eu... mas a minha mente não conseguiu ir mais além porque eles eram três, todos armados e muito maiores do que os outros. Estes eram viajantes endurecidos. Não tinha qualquer hipótese. Mas tinha dentes e unhas afiados e usá-los-ia até as forças me faltarem.

 

despe-te disse Red e o meu corpo enroscou-se de terror. Senti-me estremecer. O meu coração, aos pulos, media o silêncio. Quanto tempo demoraria ainda a porem-me as mãos em cima? Por quanto tempo ainda sufocaria o grito de ultraje que me brotava da garganta?

 

O que é que se passa contigo? A sua voz era de exaspero. Toma. Segurava algo na minha direcção. Ben falou.

 

Ela não te compreende, Red. No fim de contas, é nativa e novinha.

 

É mais provável que tenha sido magoada disse o homem mais velho. Demasiado aterrorizada para te deixar aproximar. Dá-lhe as roupas e afasta-te. Não vale a pena tentar falar com ela; duvido que ela consiga compreender-te, para já não falar da língua. Tens que lhe mostrar que não lhe queres fazer mal.

 

O meu salvador arqueou as sobrancelhas e pousou o que transportava no chão, ao pé de mim. Depois os três afastaram-se para a borda da plataforma e, trocando olhares, viraram-me as costas.

 

Isto é uma estupidez disse Ben, de costas voltadas para mim. Quem é ela, afinal, uma princesa de sangue? Primeiro, é uma bárbara; segundo, é pouco esperta e terceiro, os homens de Redbeard estão-nos nos calcanhares, armados até aos dentes e estamos nós para aqui a olhar para os escrúpulos da modéstia femimina Acho que esta miúda da floresta vos deu a volta à cabeça.

 

Cala-te, Ben disse Red e o companheiro calou-se.

 

Reparei que me tinham dado uma camisa enorme de linho cru e um cinto para a atar. Cheirava a suor, mas estava seca. Havia também uma espécie de camisola interior.

 

Red olhou por cima do ombro.

 

É suposto tu tirares as tuas roupas molhadas e vestires essas disse ele, mas era evidente que não esperava que eu o compreendesse. Virou-se e gesticulou na minha direcção enquanto eu olhava para ele.

 

Talvez, pensei, eles não quisessem mesmo fazer-me mal. Em qualquer dos casos, tinha pouco a perder. Podia sentir a febre a subir, queimando-me. Tinha suficiente senso comum para saber que umas roupas secas me ajudariam. Red virou-me, de novo, as costas.

Para que é que te maças a falar com ela? perguntou Ben, Parecia alguns anos mais novo do que o amigo, talvez a idade suficiente para uma expedição como aquela, fosse ela qual fosse. Se, na verdade, eram bretões, estavam muito longe de casa. Basta olhar para ela para ver que lhe falta qualquer coisa. Podes ter as tuas razões para vir até aqui, mas tens de admitir que foi uma perda de tempo. E agora arriscamos as nossas hipóteses de fuga por uma rapariga meio maluca. É a última vez que me arrastas para uma coisa destas.

 

Tu falas assim agora disse John a quente. Mas quando ele te pedir outra vez, vais logo. Portanto, cala a boca, antes que digas coisas piores.

 

E, enquanto discutiam, eu lá ia, de coração aos pulos, despindo o meu vestido ensopado e lutando com as roupas secas, atando a grande camisa, o melhor que podia. O cinto dava-me duas vezes a volta à cintura e continuava largo.

 

A discussão chegou ao fim. Os três viraram-se e, sentada, fui escrutinada, ainda tremendo, ao pé da minúscula lareira. Havia uma sombra de divertimento no rosto do homem mais velho quando olhou para mim. Suponho que o meu aspecto devia ser bem estranho.

 

Até agora, tudo bem disse Red, cuja expressão não deixava transparecer nada. Põe a capa, também. Não dei a entender que tinha compreendido. Ele pegou nela e deixou-ma cair sobre os ombros. Recuei quando as mãos dele se aproximaram, mas o calor da capa era bem-vindo e puxei as abas.

 

Óptimo disse ele. Agora, descansa. Descansa. Apontou para o chão perto da lareira e pousou o rosto nas mãos. Aquilo parecia, subitamente, uma ideia sensata e eu deitei-me, ainda a tremer e em breve caía num meio sono febril, na bruma do qual as vozes baixas deles me chegavam, a intervalos.

 

Tu és maluco, Red. Temos menos de um dia para chegar à costa e encontrar o barco. Que vamos fazer com ela? Era Ben, aquele que segurava a lanterna na margem.

 

Em todo o caso, não ia deixá-la afogar-se disse John. Amanhã já ela está boa, se lhe deixarmos um cobertor.

 

Pergunto-me o que anelava ela a fazer por aqui. Tempo esquisito para pescar observou Ben.

 

Esta gente é estranha disse o homem mais velho. Ouvi dizer que, por vezes, se afastam, à deriva, das margens, como se fosse um castigo. Talvez esta rapariga tenha ofendido alguém.

 

Devias tê-la deixado afogar-se.

 

Aquele a quem chamavam Red parecia ser um homem de poucas palavras. Quando falou, fê-lo mais calmamente do que os seus companheiros.
Ela tem febre. Mais do que isso, tem um medo de morte.

 

Bem, deve ter disse Ben. É um deles, não é? O que faz de nós o inimigo. Talvez ela espere a mesma espécie de tratamento que o povo dela dá àqueles de quem não gosta.

 

Até agora, não falou observou John. Nem um único som. Talvez seja muda. Parece meio selvagem. Pode muito bem ter sido abandonada pelo povo dela, ao verem que tinha uma deficiência, deixando-a por sua conta. Eu não me preocuparia muito com ela, Red. Já fizeste a tua boa acção. Ela recupera.

 

Houve um silêncio durante alguns instantes. Os homens partilharam uma garrafa de água e umas tiras de carne seca. Deixaram uma ração ao pé de mim, mas eu não conseguia tocar em carne salgada e bebi apenas um gole ou dois da taça. Depois, Red ofereceu-se como voluntário para ficar de vigia e apagaram a lanterna. Os outros enrolaram-se nos cobertores e em breve dormiam. Pareciam homens que estavam em movimento há muito tempo e sabiam como fazer as coisas de maneira ordenada e com pouco barulho. Mas a minha presença ali era tudo menos ordenada.

 

Espantosamente, devo ter dormido durante algum tempo, para acordar abruptamente antes de amanhecer, o coração aos pulos, devido a um sonho qualquer. Até no sono devo ter guardado silêncio, mas o bretão viu-me sentar-me e levantou-se. Suponho que o meu rosto reflectia os demónios que ainda me espreitavam pelos cantos da consciência. O homem ficou ali sentado, muito quieto, à luz dos restos da minúscula fogueira, observando-me. Podia ver, agora, de onde vinha aquele nome, Red. O cabelo dele estava cortado muito curto, mas, juntamente com a barba de alguns dias, era iluminado pelo brilho do fogo, parecendo as folhas dos carvalhos no Outono. O rosto era formidável, se bem que fosse um homem novo, talvez da idade de Liam. O nariz era longo e direito, os maxilares firmes, a boca larga e de lábios finos. Não gostaria de ter aquele homem como inimigo. Mais longe, os dois companheiros dele continuavam a dormir, enroscados nos cobertores. Parecia que tinha ficado de vigia dois turnos, para os deixar descansar. A plataforma rochosa tinha-nos mantido secos; lá fora, a tempestade amainara e o único som que se ouvia era o da água a correr por entre as pedras.

 

Enrosquei os braços em volta de mim própria, segurando nas pontas da capa com ambas as mãos. Sentia a cabeça mais clara e o pesadelo estava em retrocesso. Talvez tivesse força suficiente para fugir. Talvez, quando ele virasse as costas, pudesse escapar-me devagarinho. Ficariam satisfeitos por se verem livres de mim. Parecia-me que a velocidade seria essencial e, pelo aspecto, aquele jovem gigante preferiria não me ter ao pé para atrasar a expedição, para onde quer que fossem. Não havia dúvida de que já estava arrependido por me ter pescado das águas do lago. Eu estava concentrada, calculando quantos passos precisaria para me pôr ao largo, entre os arbustos. E então ele falou, fixando-me.

 

É melhor comeres alguma coisa. E beber.

 

Fiquei muito quieta. Parecia-me sensato não dar a entender que compreendia a língua deles. Se pensassem que era uma rapariga selvagem dos bosques, uma idiota qualquer da aldeia, estaria salva. Não seria um grande trofeu, nem mereceria um resgate. No fim de contas, eu era a filha do meu pai.

 

Hum. Ele escrutinou-me enquanto eu estava ali sentada, confusa, na semiescuridão. E então ele tentou de novo, baixando a voz para não acordar os outros.

 

Tu... comida? Tu... água? Parecia que tinha aprendido algumas palavras da nossa língua. O sotaque era de rir. Olhei para ele e ele segurou numa taça de campanha. Afastei-me dele porque, por mais amáveis que fossem as suas palavras, era um homem, muito alto e largo de ombros, suficientemente grande e forte para fazer o que lhe apetecesse comigo. A minha febre baixara, mas eu não parecia capaz de parar de tremer.

 

Ele pousou a taça no chão, perto de mim e afastou-se. Quando não respondi, tentou de novo.

 

Tu... água repetiu ele. A não ser continuou na sua própria língua que tenhas, tal como eu, engolido metade da água do lago. Fizeste uma boa tentativa para me afogares.

 

Por um momento, senti uma curiosa sensação, como se já tivesse visto aquela cena, numa ocasião qualquer da minha vida, mas algo diferente. Mas depois essa sensação desapareceu, peguei na taça, aborrecida com a maneira como a minha mão tremia e bebi.

 

E ele tinha razão, senti-me melhor.

 

Óptimo disse ele, não desviando de mim os olhos vigilantes. Bebi de novo, a minha mão mais segura na taça, desta vez. Dentro de um minuto tentaria levantar-me. Veria se poderia andar. Se poderia correr, o suficiente para fugir. Porque os bretões tinham a sua própria expedição desesperada. Não perderiam tempo a procurar-me, ficariam antes aliviados por perderem um fardo inesperado. Então, eu... mas, então, o meu pensamento ficou em branco. Estava em território desconhecido, sem roupas adequadas, sem comida, ferramentas ou ajuda de qualquer espécie. E, se bem compreendera, um bando de homens, armados e perigosos, marcharia rapidamente sobre nós assim que amanhecesse. Eles disseram Redbeard. Seria Seamus Redbeard, o pai de Eilis? E se eles me encontrassem? Haveria homens que me conheceriam, mesmo depois
daqueles dois anos. O que aconteceria? Nem me atrevia a pensar nisso. Haveria um rápido regresso à casa do meu pai e a Lady Oonagh. O pensamento fez-me ficar com pele de galinha. Naquela direcção havia apenas escuridão e morte, para mim e para os meus irmãos. Eu estava em perigo, tanto por causa dos hretões, como dos seus perseguidores. Tinha de fugir.

 

Toma. Come. O bretão segurava numa tira de carne seca, como se a estivesse a dar a um cão nervoso. Abanei a cabeça. Come repetiu ele, franzindo as sobrancelhas. Os olhos dele eram tão azuis como o gelo, tão azuis como o céu numa manhã gelada de Inverno. Eu tinha fome; mas não tanta que conseguisse comer carne crua. Então, ele voltou a pôr a carne no saco onde parecia que conservavam as suas rações de viagem, procurou outra coisa qualquer e os olhos desviaram-se-lhe, por um momento. Movi-me rápida e silenciosamente, usando todas as minhas capacidades. Para cima, para a frente, sob a plataforma, para fora...

 

A mão dele moveu-se com tanta velocidade que mal a vi. Agarrou-me no braço dolorosamente, fazendo-me dobrar os joelhos a seu lado. Sufoquei um grito de frustração e meclo.

 

Não me parece. Nem sequer levantara a voz. Os outros continuavam a dormir. Não afrouxou o aperto da mão; sabia como usar a mínima força para causar a maior dor possível, isso era certo. Puxou-me para cima, de encontro a ele, demasiado perto para meu agrado, porque lhe cheirava o suor e a fúria, sentia-lhe a respiração no rosto e via-lhe o gelo nos olhos. A sua força e rapidez alarmaram-me: como pudera pensar em fugir? A febre deve ter-me estupidificado. Mas também estava zangada. Que jogo estava ele a jogar? Por que manter-me ali, quando precisavam de continuar em frente, rapidamente e livres de qualquer estorvo?

 

Mal se movera do lugar onde estava sentado, o suficiente para me aprisionar o braço e segurar-me contra ele. Os seus dedos cravaram-se-me na carne. Tinha umas mãos muito grandes. Não pude evitar um queixume de dor e o aperto diminuiu, mas pouco.

 

Raios te partam disse ele, sempre naquela voz calma e sempre no mesmo timbre. Há mais de três meses que estou neste malfadado país, à procura de respostas. Já viajei até aos mais estranhos lugares da terra; já segui todas as pistas, virei do avesso todas as pedras que encontrei. Pus a vidas de amigos em risco. E para quê? Por fome, freio e uma faca no escuro. Não há uma única verdade nesta tua ilha. Em vez disso, há tantas verdades como estrelas no céu; e todas diferentes.

 

Olhei para ele, espantada. Fosse o que fosse que esperava da boca dele, não era aquilo, de certeza.

 

Juraria que me entendes disse ele, olhando directamente para os meus olhos. No entanto, como seria possível?

O que é que Conor dissera uma vez, a propósito de mim e de Finbar? Ambos são como livros abertos... os pensamentos deles chispam como raios a saírem-lhes dos olhos... Esperava que aquele bretão não conseguisse ver isso tão bem. Começava a haver luz; ouvi os companheiros dele a mexerem-se.

 

Tu queres ir-te embora disse ele. Para onde, não consigo imaginar; mas suponho que tens um esconderijo perto daqui. Talvez para te esconderes até chegarem os teus conterrâneos; talvez penses em vê-los cortar-nos aos pedaços. Não pensei em ti como nossa inimiga; nem sequer quando impedi que te afogasses. Talvez sejas uma inocente, como os meus amigos acreditam; demasiado simplória para seres perigosa.

 

Tentei arrancar o braço àquele aperto.

 

Não disse ele sem ênfase. Três meses sem respostas e agora, no último dia, no último, encontro a primeira peça do quebra-cabeças. E quem encontro eu para a explicar? Uma rapariga que não pode falar, ou não quer. Estás a ver isto? Metera a mão na algibeira e pela primeira vez havia um tom na sua voz que ia além do seu habitual timbre de conversação. Diz-me onde arranjaste isto.

 

E lá estava aquilo. A pequena peça de madeira de Simon, o pequeno carvalho dentro do seu círculo protector e das linhas onduladas, que podiam ser, ou não, água. Nada de interesse na minha trouxa, dissera ele aos amigos. Nada de especial. Só por si, aquela afirmação fora estranha; pensar-se-ia que as camisas de morugem valiam um comentário. Mas fora aquela coisa que lhe chamara a atenção.

 

Diz-me disse ele. Quem te deu isto?

 

E agora ele estava realmente a assustar-me. Tentei ficar impávida. Não pensar em nada. Não o deixar saber nada. Ainda bem que fora obrigada ao silêncio. Não era nenhuma mentirosa; mas pense-se como soaria a verdade. Foi-me dado por um da tua raça. Foi torturado em casa do meu pai e quase morreu devido ao ferro quente. Quase morreu e quase enlouqueceu. Nós salvámo-lo e eu tentei ajudá-lo, ele estava a melhorar e então... e então deixei-o só, quando mais precisava de mim. Foi-se embora para a floresta sem meios de sobrevivência. O musgo deve, agora, cobrir-lhe os ossos brancos, algures por baixo dos grandes carvalhos. As aves devem puxar-lhe o cabelo dourado para fazerem os seus ninhos e os seus olhos vazios olham para cima, para as estrelas. Aquela era a verdade.

 

Raios te partam disse o bretão de novo. Porque é que não falas? Eu sou capaz de te arrancar a resposta antes de te deixar ir. E então os outros estavam a acordar, levantando-se em silêncio, enrolando os cobertores, guardando os utensílios, verificando as armas e aprontando tudo para uma partida rápida. E eu pensei, vais esperar muito por uma resposta. Porque tens que esperar até as seis camisas de morugem estarem fiadas, tecidas e cozidas; até ao dia em que os meus irmãos regressarem e eu lhas passar pelas cabeças, quebrando o feitiço. Até esse dia, não ouvirás qualquer resposta da minha boca. E nenhum homem tem paciência para esperar tanto tempo.

 

Na luz cinzenta antes do amanhecer, observei-os a prepararem-se e maravilhei-me com a silenciosa compreensão entre eles, que falava dos longos dias e noites no campo ou em fuga. Não sabia o que eram, ou onde iam. Talvez fossem espiões, como os que o meu pai capturara e mantinha na sua câmara secreta; ou talvez fossem mercenários. Os rostos vigilantes, os corpos robustos, o material leve e as armas cuidadosamente tratadas falavam de grande experiência e vontade férrea.

 

Em breve estavam prontos, arranjando tempo, até, para me permitirem uns momentos de privacidade para as necessidades do corpo. Sabia agora que não poderia tentar fugir. Ele agarrar-me-ia, fosse eu para onde fosse. Vencer-me-ia pela astúcia, por mais que eu tentasse. Por agora. Quando regressei das minhas abluções, os três estavam a falar em voz baixa.

 

... não vale a pena discutir. Se Red diz para a levarmos, levamo-la. Vamos devagar; é melhor partirmos agora e cobrirmos a maior distância possível antes de ser dia claro.

 

Ben estava zangado; as palavras saíam-lhe como se sibilasse, porque estavam a abafar as vozes. Supunha que os homens que os procuravam deviam estar por perto.

 

Isto é um loucura completa! Esquece a rapariga; ela fica bem aqui, mas, se não ficar, que te interessa? Os da raça dela são uns selvagens, todos uns assassinos. Quantos homens já se perderam nestes bosques malditos, ou voltaram para casa meras imagens do que eram anteriormente? Não sei que impulso cavalheiresco te deu, Red, mas sei que não arrisco a minha pele por ela. Quanto a ti, John, deves estar louco para o deixares ir em frente com isto. É pura loucura.

 

Red não lhe ligou, colocando antes a sua trouxa às costas e estendendo-me uma mão.

 

Anda disse ele estalando os dedos e eu olhei para ele. Não me deixaria tratar como um cão qualquer que segue o dono à mínima ordem. Anda disse ele de novo e desta vez agarrou-me no braço no local onde antes me tinha magoado e eu sufoquei um grito de dor.

 

Ela tem algumas nódoas negras observou John. Espero que saibas o que estás a fazer, Red.

 

Red olhou para ele.

 

Sei disse ele. Agora separamo-nos, para que aqui o meu amigo não se possa queixar de que a rapariga o atrasa. Vocês dois sigam a rota original que vai dar à enseada. Se partirem agora, conseguem manter-se à frente deles e o barco deve estar lá, pronto para vós, antes de eles lá chegarem. Com sorte.

 

E tu? perguntou Ben.

 

Eu levo a rapariga. Dou a volta pela falésia e desço pelo carreiro da escarpa. É, se calhar, mais perigoso, mas é mais directo. É provável que eles vos sigam, creio. Atravesso o rio o mais longe que puder. Se não estiver lá a tempo de apanhar o barco, não esperem. Atravessem. Encontramo-nos no priorato.

 

Como? perguntou John coçando a cabeça. Mas não houve resposta e ninguém ia discutir. Parecia ser sempre assim. Red escolhia e os outros aceitavam, mesmo quando, como parecia ser o caso, lhes fazia confusão. Como podia um homem, que agia de maneira tão imprevisível, que tomava decisões tão erráticas, ser o chefe deles? Se fosse o caso de Liam, consultaria os seus homens e teria chegado a um compromisso sensato. Aqui, não havia lugar para discussão. Ben e John puseram as trouxas às costas e desapareceram por entre os arbustos, silenciosos, e Red segurou-me no pulso e puxou-me de volta ao rio. Eu resisti, fazendo força suficiente para que ele se virasse, exasperado.

 

Assim, não vamos longe disse ele. Eu... Ele viu para onde eu estava a apontar. A minha trouxa, com a sua carga de moaigem, continuava onde fora deixada, sob a plataforma, perto dos restos da pequena fogueira.

 

Está bem disse ele, pegando nela e atirando-ma. Mas és tu que a carregas.

 

Foi uma manhã longa e desesperante. Tentei acompanhá-lo, mas sabia que estava a atrasá-lo. O andamento não era fácil, especialmente uma vez que o terreno subia, escarpado e cheio de arestas, o estreito carreiro atravessando rochas, cascalho e vegetação enfezada, subindo sempre e afastando-se do curso tumultuoso do rio. O lago e a floresta ficavam cada vez mais longe à medida que nos movíamos na direcção de leste e um pouco para norte. O Sol subia, firme, no céu. Fizera muitos passeios pela floresta com os meus irmãos, dormindo ao relento, vivendo de modo selvagem durante um dia ou dois. Era rápida e sabia caminhar pelos bosques e escolher um carreiro. Mas isto era diferente. Para começar, estava muito mais fraca do que pensara e tinha que parar cada vez mais vezes para recuperar o fôlego, antes de continuar. E estava descalça. Apesar de os meus pés estarem calejados, as rochas cortavam-nos e sangravam. Red dava poucas concessões, para além de me agarrar no pulso, ou no braço, para me arrastar ou esperar, silenciosamente, que eu o apanhasse. A expressão dele era sombria. Arrependido da decisão que tomara, pensei, e não admirava. Tinha água numa vasilha de pele e partilhou-a comigo. O Sol subiu alto, prometendo um dia quente. Atravessámos o rio; ou antes, ele atravessou-o, caminhando com segurança com água até à cintura e carregando-me ao ombro. Quando chegámos à outra margem deixou-me cair sobre uma rocha lisa.

 

Até agora, tudo bem disse ele, acocorando-se para que os seus olhos ficassem ao nível dos meus. Olhou para mim de perto. O brilho azul-claro era perspicaz. Eles ainda estão lá para trás disse ele. Mas não muito. Penso que dividiram forças. Podes continuar? Tentei não mostrar que o compreendia. Não era fácil. Os meus pés doíam-me e sentia de novo, na cabeça, aquele estranho e impreciso sentimento. No entanto, sabia que não tinha escolha, senão continuar.

 

Homens disse ele, tentando a linguagem que sabia que eu podia compreender. Homens maus. Eu... tu... caminhar? Usou gestos para me ajudar a compreender e eu senti vontade de rir, apesar da seriedade da situação. Fechei a boca com firmeza, determinada a não mostrar qualquer fraqueza ou emoção. Tentei lembrar-me vagamente do rumo que eu devia ter seguido quando a Dama da Floresta me mandou para o lago num pequeno barco. Onde teria errado? Porque este, de certeza, era o rumo errado, para leste, sempre para leste, com a cabeça a palpitar, os pés a sangrarem e um estranho de rosto severo como companhia. Como me encontrariam os meus irmãos, tão longe de casa?

 

Olhei de novo para Red. Ele estava a observar-me os pés, depois as mãos e a sua expressão era esquisita. De troça, pensei; mas essa expressão não me era destinada, era íntima.

 

És teimosa, não és? disse ele, tirando a trouxa do dorso e procurando algo dentro dela. Tirou de lá uma velha peça de vestuário de linho, que rasgou às tiras, segurando uma ponta entre os poderosos dentes brancos. Mas esses pés não aguentam mais hoje. Deixa cá ver. As mãos dele trabalharam com agilidade, atando-me os pés, firmemente, com as tiras do tecido. Ele era bom; eu não teria feito melhor. Deixei-o fazer o trabalho, agradecida pelo breve descanso. Não importava se aquelas ligaduras não iam durar um dia de marcha. Supunha que o fazia por bem. No fim de contas, se eu não conseguisse percorrer a distância, ele também não conseguiria. A não ser que me deixasse para trás.

 

Óptimo disse ele e agora precisas de comer alguma coisa, para depois terminarmos a nossa jornada. Há maçãs por aqui, reparaste? Parece que amadurecem cedo, por aqui. Talvez gostes mais do que da minha ração. E eram mesmo maçãs; pequenas, verdes, com pequenas manchas cor-de-rosa na casca. Redondas e perfeitas. Ele apanhou uma e cortou-a em quatro com uma faca pequena, letal. Toma disse ele, oferecendo-me um bocado. Peguei nele, espantada. Na verdade, tinham amadurecido antes de tempo e de modo estranho. Havia várias árvores naquele local abrigado, mas apenas uma tinha frutos, que pareciam prontos a ser comidos. Nas outras pendiam duros e verdes. Há muitas histórias no nosso país acerca de maçãs; são os frutos das Criaturas Encantadas e são usados, mais do que uma vez, para tentar os mortais, homens ou mulheres, a ficarem por baixo do monte mais tempo do que o devido. As maçãs são um sinal de amor, uma promessa. Era evidente que Red nunca ouvira falar no que significava o facto de um homem partilhar uma maçã com uma rapariga. Talvez, pensei, não resultasse com bretões. Além disso, eu tinha fome e ainda havia muito caminho para andar. Assim, aceitei o presente dele e comi-o, e mais um bocado, e foi a melhor coisa que alguma vez provei. Quando acabámos, levantei-me para começar a andar, mas ele fez-me parar.

 

Não disse ele. Assim é mais rápido. E pegou em mim ao colo como se eu fosse uma criança. Segura-te disse. Não te preocupes, não mordo.

 

Era uma corrida perdida desde o princípio. Talvez, se as suas previsões estivessem certas e os perseguidores fossem atrás dos seus dois companheiros, talvez conseguíssemos chegar a tempo. O bretão marchava sem descanso, carregando-me sem aparente dificuldade, pousando-me para escalar uma parede de rocha, puxando-me com um braço, ao mesmo tempo que subia; ou ajudando-me a contornar uma plataforma, ou a descer um talude pouco seguro. Mas em breve se tornou evidente que eles se estavam a aproximar. Eu não sabia quanto faltava ainda. Havia no ar um cheiro húmido, fresco, que sugeria uma grande extensão de água e muitas aves voavam por cima de nós. Passávamos por bosques cerrados de sorveiras-bravas e, à medida que avançávamos, as nossas roupas eram rasgadas por silvados e os rostos e braços chicoteados e arranhados por ramos e espinhos. O passo era rápido; senti o bater do coração do bretão quando ele começou a correr com cuidado sob as árvores. Praguejava a cada fôlego. E eu ovivia o som inegável de muitas botas esmagando folhas, à nossa direita, à nossa esquerda, à nossa retaguarda e o silvo de uma seta por cima do ombro dele, indo alojar-se, vibrando, no tronco de uma imponente sorveira-brava carregada de bagas. O bretão murmurou uma praga e deixou-me cair.

 

Foge disse ele, desembainhando a sua curta espada e encostando-se à árvore. Vai, foge! Fez um movimento premente com o braço; queria que eu continuasse sozinha, enquanto ele lutava com os perseguidores. Foge, raios te partam, foge! Descobri que não me conseguia mexer; e então era tarde. Eles estavam à nossa volta, homens armados da mesma maneira que os meus irmãos, homens com as longas faces inteligentes e os cabelos escuros encaracolados da minha raça. Homens com ódio e vingança nos olhos. Um estava a rearmar um arco; os outros tinham as espadas desembainhadas. Avançaram com cuidado.
Tenho uma faca na bota esquerda murmurou Red, mudando a espada de uma mão para a outra. Pega nela. Usa-a. E foge, se puderes.

 

Agarrei-a, ele olhou para mim rapidamente antes de dar um passo em frente, puxando-me para trás dele e o primeiro dos nossos atacantes carregou, gritando e brandindo a espada de um modo que eu reconheci igual ao praticado nos treinos efectuados no pátio do nosso castelo. Os meus irmãos teriam respondido mergulhando e cortando as pernas do oponente. Red não mergulhou. Em vez disso, a sua bota ergueu-se, rápida e arrebatou a espada da mão do seu atacante, apanhando-a com a sua. Num instante pusera o homem a vacilar, com sangue na manga direita.

 

Reuniram-se em semicírculo, não muito perto. Entre eles havia homens que eu já vira antes, à mesa do meu pai. Fiquei por trás de Red, o mais afastada que pude.

 

Ele sabe lutar disse um. O filho-da-mãe sabe lutar. Quem é o próximo?

 

Era como a lenda de Cu Chulainn, quando o filho deste vai à luta. Mas eu não sabia que os homens continuavam a jogar este jogo mortal. Uma espécie de combate singular, no qual cada um tem a sua vez com o intruso, até que por fim este é vencido, ou os adversários se cansam e o atacam em conjunto para acabar com ele. Podia ser uma maneira bem lenta de morrer.

 

Eu tomo conta dele disse outro, erguendo a espada. O meu irmão morreu na emboscada de Ardruan; é verdade, assim como outros amigos. Ele vai pagar com sangue o sangue que foi lá derramado. O arqueiro recuou, a arma apontando para o solo; era evidente que, por mais que escolhessem qual deles teria a sua vez com o bretão, o resultado seria apenas um, no fim. O segundo homem preparou-se, ameaçadoramente, para o combate; era mais hábil do que o anterior e a sua táctica era evidente, afastar Red do seu local defensivo, da sorveira-brava onde estava encostado, levando-o para uma posição mais vulnerável. Mas Red tinha a vantagem de ser mais alto e mais pesado; e também era hábil com a espada. Além disso, era ágil de pés, para um homem da sua estatura e o entrechocar das lâminas e o som das respirações pesadas continuou durante algum tempo. Os homens que observavam iam fazendo comentários; trocistas quando o companheiro cometeu um erro e a lâmina de Red desenhou uma delicada linha escarlate no rosto do seu oponente; chocantes e injuriosos quando dirigidos ao bretão. Acusavam-no das coisas mais vis. Era um desporto bem cruel.

 

Red continuou a lutar sem uma palavra, aparentemente sem se cansar. Creio que ele compreendia o que os seus adversários pretendiam, se não o que diziam. O seu silêncio, penso, enervou o seu oponente, porque por um momento este desviou o olhar do bretão. Foi o suficiente; a parte plana da lâmina de Red bateu-lhe no braço e ele deixou cair a espada, o braço, subitamente, inútil. Talvez partido.

 

Filho-da-mãe sibilou ele através dos dentes cerrados. És um porco a lutar, como todos os do teu povo. Então, os restantes aproximaram-se e de súbito eram quatro ou cinco contra um e o caos instalou-se à minha volta. Red mantivera-me sempre atrás dele; mas agora era forçado a rodiar para um e outro lado, à medida que um homem, após outro, o atacava. Mais longe, o arqueiro esperava, silencioso. Mantive a pequena faca na minha mão, perguntando-me se conseguiria servir-me dela, se tivesse ocasião. Corpos caíam pelo chão, ouviam-se gemidos e maldições e pude ver que pelo menos um homem estava morto; a cabeça dele estava num ângulo improvável. Red afastara-se da árvore e girava em volta dos seus oponentes. Dei-lhe mais uns momentos.

 

Foge! gritou ele sem olhar para mim. Foge, raios te partam!

 

Então, um dos homens avançou e ele evitou-o, mas ao mesmo tempo outro feriu-o nas pernas, outro atacou-o por trás e ele deixou sair um suspiro quando a espada lhe caiu no chão. Senti-me agarrada pelo ombro e pelos cabelos e virei-me para dar de caras com um dos homens de Seamus.

 

Eu conheço-te disse ele lentamente. Conheço-te de um lado qualquer, tenho a certeza. O que é que um cuzinho como o teu anda a fazer por estas bandas com um aborto destes? Ou talvez não sejas nenhuma menina bem comportada. Talvez lhe andes a vender segredos juntamente com o teu corpo? Veremos o que o meu senhor tem a dizer a isso.

 

Puxou-me o cabelo dolorosamente.

 

Espera aí disse um dos outros. Não é... não, não pode ser. Ela morreu. Há uns dois anos, ou talvez mais. Não pode ser ela.

 

Queres dizer...

 

É ela. Olha para os olhos verdes. Como os de um gato. É ela.

 

Ata-lhe as mãos. Vamos levá-la.

 

Fazê-la prisioneira? Podes arranjar sarilhos por causa disso. Sabes de quem ela é filha. Pensa no que os irmãos te fariam, se soubessem. Ela é da nossa raça.

 

Poucas probabilidades têm de voltar. Além disso, por que estava ela com ele? Ata-lhe as mãos.

 

Quando o homem me procurava os pulsos, de corda na mão, fiz um movimento para cima com a faca e ele deixou sair uma praga, soltando-me. O sangue brotou-lhe da mão. Deixei cair a faca. Red era atacado por todos os lados; parecia ter dificuldade em se manter de pé, como se uma das pernas lhe faltasse. Um dos homens mais altos tinha uma faca perto do pescoço de Red; este agarrou no pulso do homem e afastou a faca, os músculos tensos. Por cima da lâmina brilhante os seus olhos encontraram os meus e a sua expressão mostrou-me algo para lá da serenidade gelada. Ia morrer e eu seria levada para casa. Para o pé de Lady Oonagh e para uma morte certa dos meus irmãos.

 

Gritei por socorro. Se alguma vez precisara da ajuda das Criaturas Encantadas, era agora. Não que me tivessem ajudado muito até agora. Chamei por eles, por alguém que pudesse estar a ouvir, num grito silencioso, do fundo do coração.

 

Ajudai-o. Ele não deve morrer assim. Ajudai-me. Porque se eu morrer, também os meus irmãos morrem.

 

E veio a chuva. Veio de um céu claro subitamente cinzento, ao mesmo tempo que o dia quente se transformava num dia gelado de Inverno. Uma chuva torrencial, misteriosa, druídica, que cegava e ensurdecia; que isolava os homens do mundo. Era como estar por baixo de uma grande catarata; era como estar no coração de uma tempestade. Eu não conseguia ver ninguém, não ouvia senão o rugido da torrente à medida que caía, encharcando-me num instante, transformando o chão em lama sob os meus pés descalços. Então procurei por entre o lençol de água, uma grande mão apanhou a minha e os dois começámos a correr, aos trambolhões, escorregando na lama, por entre arbustos e ramos, respirando com dificuldade, os rostos e os corpos a escorrer, os pés fazendo sons de sucção no solo molhado. Desta vez conseguia ouvir a respiração de Red; o som entrecortado, difícil, de um homem ferido seriamente, que exige o máximo de si próprio. Pensei que ele não iria muito mais longe; e então faltou-nos o chão e começámos a deslizar, a cair por uma encosta íngreme, tentando agarrar-nos a ramos, chocando com a folhagem, embatendo em rochas que nos feriam e magoavam, até que finalmente parámos em solo duro e seco. O som da nossa descida precipitada morreu lentamente; pequenas pedras continuavam a cair, deslocadas pela nossa passagem. E depois tudo ficou calmo, com excepção do som da chuva e dos dois lutando por ar.

 

Estás bem? perguntou Red com voz estranha. Afastei a água dos olhos, usei ambas as mãos para afastar os cabelos saturados de água do rosto e tentei secá-los, torcendo-os. Estávamos no interior de uma caverna; olhando para cima, conseguia ver o estreito orifício pelo qual tínhamos, afortunadamente, caído naquele local abrigado. O chão era de rocha dura. Por trás de nós, uma estreita passagem que parecia ir dar a outra caverna maior, mas que dava uma curva, obscurecendo a visão. Olhei para o outro lado. A luz entrava através de uma cortina de folhagem que dissimulava a entrada; a chuva parecia ter parado, tão abruptamente como começara. Movi-me na direcção da entrada.

 

Cuidado disse Red, segurando-me na parte de trás da camisa, quando passei por ele. Dei um safanão para me libertar, mas continuei lentamente, porque as rochas estavam escorregadias à entrada da caverna, devido à chuva. Espreitei para fora por entre a folhagem. E fiquei imóvel, maravilhada.

 

Nunca tinhas visto o mar observou Red, calmamente. Era verdade. Se bem que os meus irmãos me tivessem falado da grande extensão de água selvagem, da miríade de aves e da luz que brilhava, mudava e brincava na superfície ondulada, nada me preparara para aquilo. A caverna onde estávamos situava-se no alto de um declive íngreme, que mais abaixo se transformava numa falésia a pique e eu podia observar até uma grande distância e toda essa distância era água, água até ao horizonte. O céu era azul, não havia qualquer nuvem. As rochas em volta fumegavam gentilmente ao sol. Em breve qualquer sinal da súbita tempestade de chuva teria desaparecido. Excepto, talvez, mais tarde, em lendas. E os nossos perseguidores ir-se-iam embora. Virei-me para o bretão.

 

Ele estava sentado de costas contra a parede de rocha, com uma perna estendida à frente, de qualquer maneira. Tinha sangue nas roupas, muito sangue. Agora que olhava para ele como deve ser, reparei que tinha o rosto muito branco e os lábios arrepanhados. Os homens conseguem ser um pouco estúpidos acerca dos ferimentos recebidos em batalha, como se, fingindo que está tudo bem, esse ferimento desapareça, ou que as pessoas não notem, se não disserem nada.

 

Eles hão-de vir atrás de nós disse ele. E nem um punhal, ou um pedaço de ferro temos. Receio que não tenhamos escolha, senão ficarmos aqui até escurecer. Talvez então consigamos escapar. Há uma aldeia mais acima, na costa, e pequenos barcos ancorados lá.

 

Olhei para ele, pensando na grande extensão de água e evitando pensar nas implicações do que ele acabava de dizer. Mas, pelo aspecto daquela perna, já teria sorte se conseguisse coxear até à entrada da caverna, quanto mais descer a falésia e ir até à aldeia. E que aconteceria depois? Decidi que o amigo dele, Ben, tinha razão. Ele era louco. Dito isto, ele precisava da minha ajuda e eu estava determinada a dar-lha. Porque não tinha dúvidas de que me salvara a vida, pelo menos uma vez, talvez duas. Devia-lhe algo, fossem quais fossem os motivos dele.

 

Ainda tinha a minha pequena trouxa e ele a sua. Uma pequena mercê. Ele olhou para mim quando me acocorei à sua frente, examinando-lhe o ferimento. Portanto, tinha perdido a espada e a outra arma. O que constituía um problema. Mas, e a pequena faca que utilizara para cortar tão perfeitamente aquela maçã? Procurei na trouxa. Ele continuava silencioso. Encontrei-a, juntamente com os restos da velha camisa que ele utilizara para fazer ligaduras para os meus pés. Olhei para baixo; estas tinham quase completamente desaparecido e os meus pés eram uma mistura de sangue e lama.
Água disse ele para ajudar. Vais precisar de água. Consegues compreender-me, não é verdade?

 

Acenei com a cabeça; parecia que o tempo dos fingimentos tinha acabado. Ele soubera, pensei, quando me dissera para agarrar no punhal, para me defender e eu assim fizera. Apontei para diversos locais da caverna; ouvia-se o som de água a correr e a pingar e soube que descobriria água fresca mais abaixo. Que fazer primeiro? As roupas dele estavam completamente rasgadas; cortei mais um bocado e consegui tirar-lhe a bota deteriorada, o que lhe deve ter causado muita dor, mas à parte uma súbita inalação de ar, pareceu não dar por isso. Havia luz suficiente para eu poder ver o corte feio que lhe percorria a perna, do joelho à anca; para poder ver o sangue que continuava a brotar, para poder ver a profundidade do ferimento e o brilho do metal alojado profundamente na coxa. Olhei-lhe para o rosto.

 

És teimoso, não és?

 

O ferimento não o mataria; não se fosse tratado rapidamente por um curandeiro hábil, com uma faca e bons cuidados posteriores. Mas aqui, presos numa caverna, sem provisões e ambos cobertos de lama e detritos e a necessidade de tranquilidade, o caso mudava de figura.

 

Nada bom, ha? disse ele expressivamente. Consegues consertá-la? Enrolares uma coisa qualquer em volta? Acenei com a cabeça, tentando mostrar-me capaz e tranquilizadora. Não penso que o tenha conseguido; vi-lhe um canto da boca firmemente fechada torcer-se por um segundo, no que parecia ser um sorriso. Pensando melhor, devia ser uma careta involuntária de dor. Os Bretões não tinham sentido de humor; como podia um povo sem magia, sem vida espiritual, conhecer o riso?

 

Descobri a vasilha de água em pele na trouxa de Red e embrenhei-me na caverna. Mais abaixo, abria-se de modo assombroso. Estava muito escuro, mas conseguia ver as formas sombrias de grandes rochas que subiam e de outras que se estendiam de cima, tentando alcançá-las; senti que havia pequenas criaturas a dormir muito por cima de mim, na escuridão. E encontrei água fresca, gotejando e caindo, gentilmente, em pequenas poças, na rocha. Enchi a vasilha e regressei.

 

Desejei desesperadamente o padre Brien, ou outro com a sua habilidade, naquele dia. Fiz o melhor que pude. Pelo menos, podia lavaras mãos e limpar a ferida. O fluxo de sangue era bom, escorrendo apenas e não golfando numa maré mortal. Ajudaria se os humores maléficos deixassem o corpo. Recordei o homem que tinha ferido com o punhal de Red; devia ter perdido muito sangue. Podia ter-lhes dito como estancá-lo; mas não o fiz. Ao vê-los rodearem Red, esquecera-me que era uma curandeira.

 

Até agora, tudo bem. O meu espectáculo mudo é que se estava a tornar mais dificultoso. Tentei indicar a Red que havia algo na perna dele; algo que eu precisava de ter, que me ajudaria se ele fosse um pouco menos estóico, ou se houvesse um pouco de hidromel, ou cerveja, ou umas ervas bem escolhidas para uns goles adormecedores.

 

Não tenho a certeza do que estás a dizer disse ele. Precisas de fazer algo mais? Vai doer? Bem, continua.

 

Por meio de gestos fi-lo compreender que devia permanecer muito quieto, porque tinha apenas a ponta afiada da pequena faca para desalojar o objecto de metal. Ele acenou com a cabeça, muito sério. Pensei para comigo porque não me dissera ele para não me intrometer e deixá-lo em paz. Não tinha qualquer razão para confiar em mim.

 

Demorou um bocado. Aprendi outra praga na língua inglesa. À parte isso, ele manteve-se quieto, se bem que lhe ouvisse a respiração entrecortada e o rosto a ficar pegajoso de suor. As minhas mãos já não eram tão ágeis como antigamente, mas já há algum tempo que não fiava ou tecia morugem, já que, na minha miséria, negligenciara a minha tarefa e o inchaço estava a desaparecer. Ainda bem. A operação era delicada. A pequena lasca, produto da pancada dada no osso pelo punhal ou espada, estava profundamente alojada e fiquei com as mãos cobertas de sangue antes de a conseguir tirar. Limpei a ferida de novo com água fresca e sequei-a o melhor que pude. Não tinha camomila, alfazema, nem nenhum cataplasma de bagas de zimbro. Não havia mãos hábeis, nem fio para suturar a ferida. Respirei profundamente algumas vezes e peguei numa agulha de osso, a mais pequena que tinha, a que usara para coser os colarinhos das camisas. E na trouxa havia um rolo de fio, fio esse que não era de morugem, antes suave e forte, que um dos meus irmãos tinha roubado naquela noite de solstício de Verão. Cerrei os dentes e comecei a trabalhar, com um ouvido na respiração do bretão. Ele mantinha-a lenta e firme, mas um pouco esforçada. Não me apressei; o trabalho foi feito com tanta limpeza e cuidado quanto pude. Ficaria com uma cicatriz, mas a perna sararia. Terminei, mordi o fio e senti a grande mão dele cobrir a minha.

 

Diz-me disse ele sem levantar a voz como é que uma rapariga bem-nascida, de pele branca como o leite, tem as mãos de uma peixeira? Quem te infligiu semelhante castigo? O teu crime deve ter sido hediondo.

 

Foi demais para as minhas forças, creio. De repente, a fome, o choque e a exaustão tomaram conta de mim e deixei-me cair no chão, o mais longe dele que pude e levei as minhas pobres mãos ao rosto, ao mesmo tempo que grossas lágrimas me corriam pelas faces. Não estava zangada com ele, com os homens que nos tinham atacado, nem com ninguém em particular. Sentia-me encharcada, miserável, cansada e queria os meus irmãos, o meu jardim e o meu cão, queria poder contar histórias de novo e voltar a rir. Chorei de autocompaixão e porque sabia que nunca mais poderia voltar. Escolhe-se um determinado caminho e pronto. Chorei pelo padre Brien e por Linn, pelo que os meus irmãos poderiam ter sido e pela minha inocência perdida. Chorei porque tinha umas mãos horrorosas. No fim de contas, só tinha 14 anos.

 

Lamento disse ele de modo estranho, o que não ajudava nada. Descobri que, uma vez a chorar, não conseguia parar, Tal como uma criança pequena, cuja angústia ultrapassa, muitas vezes, a dor, como se o choro, em si próprio, engendrasse mais lágrimas. Chorei até me doer a cabeça e ver estrelas diante dos olhos e finalmente deitei-me sobre a rocha dura e adormeci, ainda a fungar. Ele deve ter feito um grande esforço para se mover, colocando-me uma capa por cima e uma camisa dobrada sob a cabeça, porque foi assim que acordei, mais tarde. Estava tudo escuro, lá fora era noite. Por um momento senti-me completamente desorientada, tacteando em volta, tomada de pânico. Forcei-me a ficar sentada, quieta e a respirar lentamente. E após um certo tempo vi um pálido luar, os seus finos raios entrando por entre a folhagem da entrada da caverna e àquela luz pude ver o bretão a dormir, encostado à parede mais longínqua, o rosto pálido, as pestanas pesadas por um sono de completa exaustão. A ligadura parecia limpa, pelo menos pelo que podia ver dela. Não havia sangue novo. Isso era bom.

 

Permaneci sentada por um bocado, à medida que a luz aumentava e pequenos sons me entravam na consciência, aos poucos e poucos. Uma coruja a piar, muito perto. Por cima, devia haver outra entrada para a caverna, porque sentia, mais do que ouvia, uma miríade de pequenas criaturas entrando e saindo, uma chiadeira e um roçagar. E para lá, um rugido distante, penetrante, um grande, calmo, movimento sem fim. O mar. O mar, que era tão vasto que não tinha margens; o mar, que se espraiava para oeste, para as ilhas das velhas lendas. O mar, que provocava um rasto de luar na direcção de leste; para a morada dos Bretões. Não precisava de pôr a cabeça de fora da caverna; a sua vastidão estava-me gravada na mente e eu receava que me tivesse capturado o espírito. Não tínhamos nós, em tempos, condenado os nossos criminosos para lá da nona vaga, para morrerem ou serem atirados para uma costa qualquer, segundo a vontade dos deuses? E aquele estrangeiro, que dormia a meus pés, não tinha ele vindo não só do lado de lá da nona vaga, como ainda de mais longe? Falara de barcos e amaldiçoara a terra que não lhe dera qualquer resposta. Ia para casa. Um arrepio invadiu-me o corpo, eriçando-me os pequenos pêlos do pescoço. Ele ia para casa; e obrigar-me-ia a ficar com ele até lhe dizer aquilo que, tão desesperadamente, queria saber. Percebi, com uma certeza que me pesava, como uma pedra no coração, que também eu viajaria para lá da nona vaga, deixando os meus irmãos para trás.

Podias fugir agora, dizia-me a minha voz interior. Podias fugir enquanto ele dorme, talvez para aquela aldeia. Pega nalgumas coisas, volta para a floresta e começa de novo. Ele não acorda tão cedo; e quando acordar será um homem lento. Ouvia-me a mim própria e respondia a mim própria. Não o posso deixar. Tem a perna ferida, os inimigos dele estão perto. Não o posso deixar.

 

Ainda havia duas maçãs na trouxa dele. Peguei numa e comi-a, pevides, caroço e tudo. Bebi um pouco de água da vasilha; era fria e leve. E então ouvi as vozes. Do interior profundo da caverna, suaves, apelativas, ecoando da escuridão da câmara abobadada.

 

Vem. Vem, Sorcha. E havia luzes vacilantes, douradas e prateadas, luzes torturantes, coagindo-me a segui-las.

 

Senti-me compelida a segui-las, os braços abertos tocando nas paredes de rocha, os pés descalços no chão duro, de pedra. Descendo, descendo sempre, para onde o ar era frio e húmido e o peso da terra me pesava nos ombros. Descendo até onde as raízes das árvores pendiam da abóbada; até onde a água cristalina gotejava, fazendo poças na escuridão, sob os pilares de rocha. As luzes acenaram-me, tochas, lanternas, sempre para lá da próxima curva. Tropecei e pensei ouvir uma risada. E música, o fraco sussurrar de uma harpa, o canto melodioso e ritmado de um violino, um assobio, tecendo uma grinalda de notas em volta de uma velha canção. Portanto, até no leste, até na costa mais longínqua as Criaturas Encantadas tinham morada. Porque não duvidava que aquele lugar, onde a sorte nos trouxera, era uma das portas de entrada, de que se falava nas velhas lendas, uma daquelas portas entre o nosso mundo e o delas. Eram encontradas muitas vezes em tais locais, numa caverna ou numa fenda, uma abertura na terra, onde os dois mundos se tocavam por breves momentos, na ocasião propícia.

 

Cheguei, finalmente, a uma câmara, mais vasta e grandiosa do que qualquer das outras precedentes, onde os pilares de rocha viva iam do solo macio até ao tecto arqueado, as suas formas imponentes reflectidas numa poça grande e calma. Eles estavam ali e o seu riso e canções cessaram abruptamente quando eu avancei para a luz das tochas. Muitos olhos em mim. Vi um rosto conhecido, palidamente belo, com olhos escuros, intensos e o cabelo como seda negra, sussurrante. Acenou-me com a cabeça, solenemente. Mas à sua volta havia muitos mais da sua espécie, todos mais altos um palmo do que os comuns mortais e vestidos com tecidos difusamente brilhantes, trajes de gaze, como asas de borboletas, ou negros e brilhantes como as penas de um corvo. As suas cabeças estavam cobertas com estranhos adornos, penas, conchas e algas, nozes, bagas e folhas. Os seus olhos eram estranhos, profundos, conhecedores, perscrutadores; os seus rostos eram ao mesmo tempo belos e terríveis. Observaram-me em silêncio. Então o círculo de tochas fechou-se ligeiramente e o mais alto dos homens avançou.

 

Bem, bem disse ele, olhando-me de alto a baixo. Estou a ver que finalmente vieste. Avança, mostra-te. Olhei para cima, para ele. O seu rosto era brilhante, mais brilhante do que a luz das tochas; alguma da luz parecia fazer com que a sua pele se tornasse dourada e prateada. O seu cabelo afastava-se do rosto como se estivesse coroado por chamas e era de um vermelho-brilhante, excepto onde a geada lhe tocava nas têmporas e na barba cerrada. Os seus olhos não tinham cor e tinham todas as cores. Trajava um vestido branco e quando a luz incidia nele o tecido chispava, como se estivesse cheio de minúsculas pedras preciosas.

 

Meu senhor.

 

Saudei-o silenciosamente. Virei-me para a Dama da Floresta, que se mantinha a seu lado.

 

Minha senhora. Que quereis dizer finalmente vieste?

 

Ele riu-se atirando a cabeça para trás, deixando o som reverberar pela grande câmara rochosa. Ouviu-se um sussurro de vozes, que morreu instantaneamente quando ele se calou. A Dama não se riu, limitando-se a olhar para mim solenemente.

 

Não imaginas que estás aqui por acidente, pois não? perguntou o Resplandecente. Imaginas? Esqueço-me quão pouco a tua espécie compreende, quão limitada é. O vosso tempo no mundo é breve e assim o vosso conhecimento está de acordo com esse tempo.

 

Eu não vim aqui para ser insultada. Descobri que fervia em pouca água. A sua ajuda tinha sido bem pequena até agora, à parte a tempestade de chuva, que eu tinha de admitir, fora bem oportuna. Mas, Criaturas Encantadas ou não, não deixaria que oprimissem. Que quereis de mim?

 

De ti, nada, criança da floresta. Fora ela que falara, a Dama e a sua voz, pelo menos, tinha um tom de calor. Nada para além do que sabes que tens a fazer. Mostra-me as tuas mãos, Sorcha.

 

Estendi-lhas, pestanejando, ao mesmo tempo que uma lanterna se aproximava de mim. As minhas mãos foram inspeccionadas.

 

Estas mãos não têm sinais de trabalho recente disse o do cabelo em chamas, franzindo as sobrancelhas. Como hão-de os teus irmãos viver, se tu negligencias a tua tarefa? Como hão-de essas camisas ser feitas sem o fuso ou o tear?

 

Olhei para ele. Isso não é justo.

 

E todos se riram de novo, eles e elas, enchendo-me os ouvidos de desdém com as suas vozes musicais.

 

Justo! arfou o Resplandecente por entre o riso. Justo, diz ela? Que criança esta. Tendes a certeza, minha senhora, de que esta é a criança certa? Porque me parece que é maluquinha, para além de preguiçosa.

 

Aproximou-se de mim e, tomando-me o rosto entre as suas mãos, inclinou-me a cabeça para trás para me examinar mais de perto. Os seus olhos eram muito brilhantes, movendo-se, mudando. Era difícil olhar para eles sem ficar tonta.

 

Não tendes necessidade de mo perguntar disse a Dama da Floresta. Sabeis muito bem que é ela. No fim de contas fez-vos frente e mantém a cabeça bem alta. Não há razão para duvidar da sua força.

 

Negligencia o trabalho. O tempo urge disse ele e segurou-me nas mãos, virando-as para cima e para baixo. Será isto vaidade? Choras por as tuas mãos nunca mais serem suaves e brancas?

 

Deixa-a.

 

A minha cabeça virou-se rápida, como um relâmpago; o Senhor e a Dama, assim como todos os seus companheiros, viraram as cabeças estranhas e luminosas para a entrada da caverna, a mesma por onde eu entrara. A luz tremeluzente das tochas mostrou um Red cambaleante, o rosto pálido como giz, uma mão pousada na rocha, à procura de equilíbrio. A sua expressão era feroz.

 

Eu disse, deixa-a.

 

As mãos do Resplandecente afastaram-se das minhas e ele teve um pequeno sorriso, perigoso, mas totalmente inútil para o bretão.

 

Toca-a de novo e responderás com sangue disse Red muito calmamente e avançou, colocando-se a meu lado. Houve um silêncio breve e então os presentes juntaram as mãos e bateram palmas, lentamente, ironicamente. Red começou a levantar um braço e eu levantei uma mão, detendo-o. Era evidente que não fazia a menor ideia de com quem, ou quê, se estava a meter.

 

O Resplandecente cruzou os braços e olhou para nós com um meio sorriso. Se ele falou na língua dos Bretões, ou noutra qualquer, não me lembro. Só sei que todos o compreendemos.

 

Lorde Hugh de Harrowfield, creio ser esse o teu nome? Diz-se que o que se vê não é o que parece; carregas muito ódio sob essa máscara de controlo, jovem. Estás muito longe de casa; demasiado longe, dirão alguns. Que te traz a este lado do mar e à floresta, só, entre estranhos?

 

Red olhou-o nos olhos. Utilizou o meu ombro para se equilibrar; parecia que a perna não o aguentaria por muito mais tempo.

 

Não sou responsável perante ti disse ele.

 

Disparate, exijo-te que respondas replicou o Resplandecente e eu vi um clarão, como um minúsculo raio de luz, sair-lhe dos olhos na direcção do bretão. Red suspendeu a respiração; fosse o que fosse, tinha-o magoado.
Responde.

 

O bretão permaneceu silencioso e obrigou-me a ficar ligeiramente por trás dele. Vi o rosto do Resplandecente ficar contraído e os olhos adquirirem laivos vermelhos. Estava desejoso de uma batalha de vontades e eu sabia que só haveria um vencedor. Não se podia esperar brincar com as Criaturas Encantadas e sair ileso.

 

Deixai-o em paz. Enviei a minha mensagem ao da coroa flamejante, mas também à Dama. Ele não sabe como jogar este jogo. Deixai-o.

 

Diz-me, Lorde Hugh. Agora era a Dama que falava. Por que levas a nossa rapariga contigo, quando sabes que ela apenas quer ir para casa? Ela não pertence ao teu mundo.

 

Aquelas palavras levaram-no a responder.

 

A rapariga não é vossa, nem minha, nem de ninguém. Por agora, viaja sob a minha protecção e aquele que lhe puser uma mão em cima terá de responder perante mim.

 

Belas palavras disse a Dama. Mas perdeste a tua espada e o punhal. A tua perna está aberta até ao osso, tens fome e sono e estás em território inimigo. As tuas ameaças têm pouca substância.

 

Tenho os meus dois braços e a minha vontade disse Red girando, de maneira a servir-me de escudo contra os dois. Chega. Ele que se atreva. As costas dele eram suficientemente sólidas; até em bicos de pés eu tinha dificuldade em lhe olhar por cima dos ombros. Era pena a perna, que não duraria mais do que um momento, se fosse posta à prova. Era louco; bravo, mas louco.

 

Sai daí disse o Resplandecente, cansado. Deixa que a rapariga se mostre. Não lhe queremos fazer mal; ela é um dos nossos. E o momento de crise parecia ter passado.

 

Sabes escolher, filha da floresta observou a Dama, olhando para Red e depois para mim.

 

Que queres dizer sei escolher? Eu escolho? Eu não escolhi nada. Estaria aqui se tivesse possibilidade de escolha?

 

Silêncio, criança. Há sempre possibilidade de escolha; sabia-lo quando puseste os pés neste caminho.

 

Não respondeste com a verdade, Lorde Hugh de Harrowfield disse o Resplandecente. Nem sequer respondeste. Por que levas a rapariga para longe da floresta dela? Por que tem ela de atravessar o mar? Que queres tu dela?

 

Diz a verdade disse a Dama e havia um aviso na voz dela.

 

Não tenho qualquer obrigação para contigo disse Red. Não te darei qualquer resposta.

 

És louco. O Resplandecente estendeu as mãos na direcção do céu numa pantomina exasperada. Pensei que gostarias de saber o que aconteceu ao teu irmão, a sério que pensei. Mas mantém-te silencioso, se assim o queres; se não consegues fazer as perguntas certas, não deves esperar respostas sensatas.

 

O efeito deste discurso no bretão foi electrizante. Começou a andar em frente, esquecendo a perna ferida, tropeçou e quase caiu; endireitou-se à custa de muito esforço, o rosto alagado em suor. Algo de novo acordara nos seus olhos pálidos, frios.

 

O meu irmão! arquejou ele. Sabes algo acerca do meu irmão! Conta-me!

 

Ah... ah... ah... mais devagar disse o Resplandecente, astutamente. Nenhuma informação é de graça, aqui. Além disso, ela é que te pode contar, não eu. E apontou um longo dedo na minha direcção.

 

É por isso que queres levá-la contigo, não é? Não porque ela esteja só, sem ajuda e precise de protecção; mas pela informação que te pode dar. E ela pode dar-ta; ela viu-o, falou com ele e ele deu-lhe a coisa que tu guardas, de maneira tão ciumenta, na tua algibeira. Pergunta-lhe e ela dir-te-á tudo o que queres saber sobre o teu precioso irmão; e outras coisas que não quererás saber.

 

A rapariga não pode falar disse Red e eu percebi que lutava para manter a voz controlada ou não quer. Dizes que ela falou com o meu irmão. Mas ela, agora, não fala.

 

Oh, ela sabe falar muito bem disse o Senhor com leveza. Nós ouvimo-la. Ela pediu-nos para não te atormentarmos. Diz que és demasiado estúpido para ser perigoso.

 

Mas, eu não consigo ouvir nada disse Red. Ela está silenciosa. Está sempre silenciosa.

 

A Dama olhou para ele.

 

Isso é porque tu não aprendeste a ouvir como deve ser disse ela. Mas, um dia, ela falará contigo. És um homem paciente?

 

Red olhou selvaticamente de um para outro.

 

Diz-me só uma coisa disse ele. O meu irmão ainda vive? Hei-de encontrá-lo?

 

Mas as tochas começavam a apagar-se, os duendes brilhantes com elas, os sinais de risos e seda sussurrante e as fracas notas de harpa pareciam dissipar-se lá em cima, na fria humidade da caverna, frágeis como o perfume de uma flor de Outono.

 

A Dama ficou diante de mim depois de todos os outros já terem desaparecido.

 

Leva isto para te iluminar o caminho, filha da floresta disse ela.

 

Disseste-me que estavas cansada de ser forte. Talvez já não precises de ser forte. Pousou uma pequenina vela redonda, cheirando a ervas, na minha mão aberta. Virou-se para o bretão.
Magoaste-a com as tuas palavras precipitadas disse ela e os seus olhos tinham perdido qualquer calor que tivessem tido antes. Procura não a magoares de novo. E antes que ele pudesse recuperar a respiração, ela virou-se e desapareceu.

 

Fizemos o caminho para a superfície no mais completo silêncio, as nossas mãos tocando-se para não nos perdermos um do outro na mais completa escuridão, alumiados apenas pela luz tremeluzente da vela. Era eu que transportava a pequena chama na palma da minha mão; cheirava a rosmaninho, rainha-dos-prados e alcaravia. Tal como a partilha de uma maçã, também ela estava cheia de propósitos escondidos. Pus-me a pensar, não pela primeira vez, no que andavam a fazer as Criaturas Encantadas.

 

Lá em cima, na primeira caverna, fazia um frio de rachar, porque soprava um vento cortante de leste. As nossas roupas ainda estavam húmidas da chuva e a capa não estava melhor. Ia ser uma noite bem desconfortável. Não que o sono fosse possível, de qualquer maneira. A minha mente girava e voltava a girar e não me deixava descansar. Deitei-me no meu lado da caverna e fechei os olhos, mas não conseguia parar de tremer. E pensei, o irmão dele! Devia ter adivinhado. O irmão dele! Não admirava que perseguisse aquela demanda de maneira tão teimosa. E depois pensei, Lorde Hugh. Lorde Hugh de... de qualquer coisa. Como é que eles sabiam o nome dele? Ele não parecia um lorde de coisa nenhuma, com o cabelo cortado à escovinha e as roupas usadas, a maneira como os amigos lhe falavam, como se fosse um igual. Por outro lado, no entanto, pensei em como o meu pai avisara os seus homens para que se certificassem de que Simon permaneceria vivo naquela noite. Fora um prisioneiro de alguma importância; uma pessoa de valor no futuro, talvez como moeda de troca. Assim, talvez o irmão dele fosse Lorde Hugh de qualquer coisa. Achei que Red lhe ficava melhor. Pela Dama, estava frio. Desejei que a manhã viesse; mas ao mesmo tempo a minha mente encolhia-se perante os problemas do dia seguinte. Mudei de posição, tentando arranjar algum conforto.

 

Estás a tremer disse o bretão do outro lado da caverna. É melhor vires para aqui e deitares-te ao pé de mim. Essa capa pode cobrir-nos a ambos. Mas eu abanei a cabeça, apertando a capa molhada contra mim. Depois do que me fora feito, creio que nunca mais seria capaz de me deitar ao lado de um homem, nem sequer para dormir, nem sequer com alguém em quem confiasse. E eu não confiava nele com aqueles olhos tão frios e os seus silêncios.

 

Não precisas de ter medo de mim disse ele. Ficaríamos muito mais quentes. Mas eu encolhi-me, cruzei os braços no peito, encolhi as pernas de encontro ao peito, fazendo-me pequenina sob a capa. Olhei para a vela; ainda ardia, pequenina e dourada, no espaço entre os dois. Por uns momentos, fez-se silêncio.

 

Como queiras disse Red. Ele estava deitado de costas, olhando para o tecto abobadado da caverna e a luz da vela tremeluzia-lhe na alta ponta do nariz, na maxila firme e na boca severa, fechada. Andei à deriva num sono irregular, com fragmentos de pesadelos, penosas recordações e visões de um inimaginável futuro. E de cada vez que acordava olhava para o outro lado e via-o esticado, com a cabeça sobre a trouxa, o rosto branco à luz da Lua e os olhos abertos. Mas uma vez, ao acordar, vi-o sentado, imóvel, olhando na direcção da abertura da caverna. Quando olhei para lá, num ramo escuro que se estendia em frente da abertura, estava empoleirada uma coruja totalmente branca, debicando as penas fastidiosamente com um bico delicado, observando-nos de tempos a tempos, com os seus olhos brilhantes, antigos. Suspendi a respiração, olhando-a e quando por fim ela abriu as grandes asas e levantou voo, senti como que um fim das coisas, uma continuação e uma despedida que não seria detida por qualquer erva mágica a arder, nem por qualquer intervenção humana ou espiritual. Era tão inevitável como a morte e eu levei as mãos à boca, para me manter silenciosa.

 

Que fogo é este disse Red num sussurro que fogo é este na minha cabeça que não me deixa descansar? Olhei para ele; mas não era para mim que ele falava.

 

Perto da madrugada caímos ambos num sono exausto. E foi assim que, quando os primeiros raios de sol começaram a espalhar-se pelo céu, fomos encontrados por um dos dele, não pelos homens de Seamus. Acordei com um sobressalto e comecei a levantar-me, tremendo, assim como ele, mas mais lentamente, por causa da perna; fôramos ambos acordados por um roçagar nos arbustos, no exterior. Nem sequer havia tempo para pensar. Então, ouvimos o chamamento de uma ave marinha, muito perto; e Red espantou-me, levando as mãos em concha à boca e emitindo o mesmo chamamento. Era um sinal; e um minuto mais tarde uma figura de cabelos loiros como o milho, com roupas de viagem manchadas e botas muito usadas, apareceu na entrada da caverna, afastando a folhagem para entrar, sem fôlego.

 

Que subida difícil disse Ben, porque era um dos companheiros do bretão, dobrando-se para recuperar a respiração, as mãos apoiadas nos joelhos. E por trás dele o outro homem, John. Este olhou para mim e depois para Red, com uma expressão zombeteira.

 

Ainda a tens contigo observou ele. Red franziu as sobrancelhas.

 

Eu disse-vos para continuardes sem mim disse ele. E Redbeard e os homens dele? Não fostes perseguidos?
Ben deu uma risada trocista.

 

Fomos; mas nós somos rápidos e discretos e tínhamos alguns truques na manga. Houve um pequeno problema no promontório, mas nada que não pudéssemos resolver.

 

Disse-vos para continuardes sem nós repetiu Red. Parecia que não gostava de ser desobedecido. Por mim, nunca me senti tão contente por ver alguém, como aqueles dois. Pelo menos agora sempre havia uma hipótese de o descer pela falésia inteiro, mesmo com a perna naquele estado.

 

Ficámos ao largo durante a noite disse John, não parecendo nada apologético.

 

Suficientemente mau para me revirar as entranhas acrescentou Ben pitorescamente. E aqui estamos. Talvez te queiras matar, armado em herói, mas não contes com a nossa ajuda.

 

O barco está à espera aqui em baixo, debaixo das rochas disse John. Diria que temos tempo antes de amanhecer por completo; com sorte, podemos estar longe antes de eles aparecerem. Mas precisamos de ir já e rapidamente. Tivemos sorte por te encontrarmos tão depressa. Red não disse nada, mas agarrou na trouxa e avançou, a coxear.

 

Maravilhoso disse Ben, olhando para as ligaduras improvisadas e para o rosto de Red. Como é que pensavas escapar sem nós? Não terias conseguido descer metade do caminho; é tão escarpado como o telhado de uma igreja, e a desfazer-se.

 

Cá nos teríamos arranjado disse Red. Os companheiros olharam para mim, um para o outro e nada mais foi dito.

 

Quando íamos a sair da caverna, olhei em volta em busca dos restos da vela, porque o seu aroma herbário ainda se mantinha, ligeiro, no ar matinal. Mas era demasiado tarde. Foi Red que se inclinou, estranhamente, para levantar a pequena sobra de cera da rocha e segurá-la na mão por um momento, antes de a meter numa algibeira.

 

Disparate, claro disse ele para si próprio. Os outros estavam à entrada da caverna, Ben olhando lá para fora e John afastando os ramos e a folhagem para abrir uma passagem segura. Apenas um sonho. No entanto, que sonho. Um homem é capaz de perder o juízo neste país maldito.

 

Então o bretão virou-se, saiu e eu segui-o, já que me parecia ser a única coisa a fazer.

Mais tarde, surpreendi-me por não ter ficado com o coração destroçado ao ter que atravessar o mar, para longe da floresta, não deixando qualquer sinal que pudesse ser lido pelos meus irmãos, nenhum mapa, ou carta, pelos quais eles me pudessem encontrar. O barco rumou a leste e talvez um pouco a sul; supus que íamos a caminho da Bretanha. Mas para onde? Se eu tivesse conseguido pensar, se estivesse em mim, teria sido um dia quase impossível de suportar. Mas o mar, além de ser vasto para lá da imaginação, estava agitado por ventos caprichosos e em breve eu estava deitada de lado no pequeno barco à vela, vomitando convulsivamente, enquanto o meu corpo rejeitava a mais pequena quantidade de comida. Entre todos aqueles espasmos, ouvi os comentários cáusticos dos dois homens, Ben e John e do severo barqueiro que ia ao leme. Red estava ocupado e não disse nada. Perguntei-me até quando ele os deixaria falar, antes de lhes dizer que eu compreendia as piadas e as pragas deles. Apesar disso, fizeram turnos para me segurarem na cabeça, limparem-me o rosto e cobrirem-me do vento. A viagem parecia que ia durar para sempre e eu desejei que, quando por fim regressasse a casa, fosse a única e última vez sobre a água. Sentia-me destroçada, mal conseguia pensar para além do meu estômago revoltado e da minha pobre cabeça, sempre a latejar. E assim a minha terra desaparecia no horizonte e eu mal sentia a dor da partida.

 

Por fim, o balanço terminou e o barco ficou quieto. Estava a escurecer e eu podia ouvir as gaivotas a chamarem. Os homens mantinham as vozes baixas. Nórdicos, diziam, e abaixa-te. Então, fui arrancada do barco e carregada para o abrigo de uma caverna pouco profunda, pouco mais do que a saliência de uma rocha, por baixo da qual o vento se sentia ligeiramente menos. Ali fiquei embrulhada na minha capa, tremendo. Nem sequer tinha a energia para olhar em volta, à última luz do dia, para ver onde tínhamos atracado.

Nada de fogueiras disse Red. John, ficas com o primeiro turno. Acorda-me, depois. Temos de partir antes da madrugada; quanto menos atenções atrairmos por estas bandas, melhor. As ilhas providenciam-nos uma atracação segura, mas de novo em águas abertas somos presa fácil para os Dinamarqueses ou Pictos.

 

O meu coração parou de bater, íamos partir de novo, de madrugada. Portanto, ia haver mais. Devíamos estar, talvez, a meio caminho e teríamos de continuar para cima e para baixo, para cima e para baixo...

 

A rapariga não está bem disse John, sem cerimónias. É melhor dar-lhe, pelo menos, alguma água, se queres que ela dure mais um dia.

 

Não houve qualquer resposta, mas algum tempo depois foi colocada uma taça de água ao pé de mim e eu peguei nela e bebi-a, sabendo muito bem o que era bom para mim. Consegui mantê-la no estômago e comecei a sentir-me um pouco melhor. Mas tinha frio, tinha cãibras nos braços e nas pernas e dores no corpo todo. Sentei-me e olhei em volta.

 

A pequena extensão de areia e as pedras pontiagudas que a rodeavam estavam banhadas por um luar frio. Estávamos muito perto da água, já que o trecho de costa que subia até àquele meio abrigo era estreito; e sobre o sussurro suave das pequenas vagas, à medida que avançavam e recuavam, penso que conseguia ouvir as profundas e fracas vozes de estranhas criaturas, lá longe, na escuridão, chamando-se umas às outras. Ao longo das rochas que entravam pelo mar dentro, estava John, perscrutando.

 

Toma. Os outros dois, Ben e Red, estavam sentados perto de mim, encostados à parede de rocha e comiam. O barqueiro parecia estar a dormir. Ben oferecia-me uma tira de carne seca e eu estremeci, como resposta.

 

Ela só come maçãs disse Red. Toma, tenta isto.

 

O meu estômago começava a estabilizar e eu percebi que tinha fome. Ele cortou o fruto com firmeza e passou-mo bocado a bocado, até que desapareceu.

 

Óptimo disse ele, aprovador. Agora levanta-te e caminha para afastares as cãibras das pernas, porque temos outra viagem amanhã. Mas mantém-te calada. Atracados aqui, estamos em segurança, mas é melhor não arriscar.

 

Caminhei ao longo do areal, estiquei as pernas doridas e olhei por sobre a água, tentando descobrir o que havia para lá dela. Mas era noite e não tinha a certeza se teria visto terra, ou se simplesmente desejava que estivesse lá, na escuridão. Mais tarde, apesar do frio, dormi e depois chegou a madrugada e eram horas, de novo, de embarcar.

Ouvi Red dizer ao barqueiro que navegasse a direito na direcção do priorado. Ouvi os homens a falarem sobre cavalos, quão rapidamente poderiam chegar a casa e antecipando, animados, a comida, o vinho e um coração quente. E então olhei para trás, para o caminho que tínhamos feito. Olhei para trás, para o local onde nos abrigáramos e percebi o que era. As águas estavam calmas, transformadas em azul-pérola, cinzento e rosa pela madrugada. Havia uma grande ilha um pouco para norte de nós; baixa, arborizada e com sinais de habitação humana. Mas não fora ali que ancoráramos.

 

Não acostámos ali disse Red, que me observava. Se acostares numa daquelas enseadas, tanto podes dar de caras com um picto, um dinamarquês, ou um amigo. É por isso que nos servimos de Little Island.

 

Não dera por ela antes, quando falámos do assunto. Estava demasiado cansada e enjoada para pensar. Mas ali, atrás de nós, nas águas brilhantes, já quase desaparecendo da vista à medida que o nosso pequeno barco rumava a leste, estavam três ilhas. Pouco mais eram do que rochedos na vasta imensidão do mar, locais onde as aves deviam nidificar e as ervas daninhas deviam crescer, precariamente, nas encostas escorregadias. Eram locais por onde os pescadores deveriam passar, sem lhes prestar grande atenção, preocupados apenas com os rochedos afiados que rodeavam a mais alta. Mas mesmo sem lhes saber os nomes, reconheci-as pelo que eram. Greater Island, Little Island e Needle. Dormira no solo mítico das Ilhas e não me apercebera disso até já estar longe. Olhei para trás, até que o alto pilar de rocha, que era Needle, desapareceu da vista; e então o meu estômago agitou-se, deitei-me de lado e tudo recomeçou.

 

Foi preciso uma boa parte de outro dia, velejando para leste e depois um pouco para norte, para vermos de novo terra. Havia falésias e vagas a quebrarem nos rochedos e do outro lado erguia-se, ondulada, uma verde colina, dotada de bosques de carvalhos e faias. Havia também um longo e baixo edifício construído no alto e uma torre com uma cruz. Parecia que íamos passar a noite ali, antes de continuar.

 

Era uma casa de mulheres; irmãs consagradas, dedicadas, tal como o padre Brien, à fé cristã, mas vivendo em comunidade, ao contrário do meu solitário amigo. O que elas pensavam da nossa súbita aparição à sua porta era difícil de dizer. Parecia que conheciam Lorde Hugh, a quem tratavam com algum respeito, quase deferência. Fui introduzida rapidamente no interior e os homens retiraram-se para outro local qualquer, para recuperarem forças. John tinha carregado comigo desde o local da acostagem; as boas irmãs olharam para mim e ordenaram-lhe que me entregassem aos cuidados delas. Enquanto me levavam, olhei em volta, descontroladamente, em busca da minha trouxa; estivera no barco, tinha a certeza, mas com aquele enjoo todo, esquecera-me dela. Não deve haver qualquer negligência da minha parte, a partir de agora, em relação à minha tarefa, tinham-no dito as Criaturas Encantadas. Onde estavam as minhas três camisas de morugem? Tinham de ser bem guardadas, era a única coisa que interessava. Os cisnes podiam morrer com tanta facilidade; a seta de um caçador, as mandíbulas de um lobo, a mordedura do Inverno. Como pudera esquecer-me deles assim? À medida que as irmãs me conduziam, virava-me para olhar por cima do ombro. Os homens estavam a abandonar o edifício. À saída, Red virou-se por um momento. Encontrou o meu olhar desorientado e fez um gesto para a minha pequena trouxa, colocada por cima da dele. Em seguida, desapareceu. Dentro dos claustros apenas podiam circular mulheres. Veríamos os homens mais tarde, informou-me a irmã, na refeição da noite. Agora devia ir com ela, porque, como me disse o seu nariz retorcido, eu estava a precisar de me lavar.

 

Eu continuava enjoada e exausta. Deixei-as deitar-me água quente por cima e lavar-me dos pés à cabeça, exclamando como os meus ossos me furavam a pele, falando das minhas mãos defeituosas, apontando as minhas outras feridas, ainda não saradas, perguntando-me gentilmente, mas de maneira perspicaz, quem eu era e de onde vinha. Lavaram-me o cabelo com óleo de rosmaninho e enxaguaram-mo com alfazema. Encontraram-me um vestido caseiro e um cinto e alimentaram-me com pão e leite, enquanto uma jovem noviça, de tez fresca e rosada, tentava levar a cabo a tarefa de me pentear. Tiveram o cuidado suficiente em não me deixarem comer demasiado; eu própria sabia o efeito que poderia provocar comer demasiado depois de ter passado fome. Após aquilo tudo descansei, com o meu cabelo entrançado de novo pelas costas abaixo e as roupas novas, ásperas e desconfortáveis, contra a pele. Gradualmente, o mundo deixou de girar à minha volta e o meu estômago estabilizou. Uma tranquila irmã sentou-se ao pé de mim por um bocado, mas quando pensou que eu adormecera, deixou-me sozinha na minúscula cela de paredes brancas, com uma cruz de madeira de freixo como único ornamento. Não conseguia dormir e fiquei a pensar; e mais tarde levantei-me e saí para o jardim, sombrio e sereno à luz do crepúsculo. Estava bem tratado, com ervas culinárias em canteiros bem ordenados, flores para secar e vegetais para a mesa, em companhia harmoniosa, umas das outras, naquele pequeno espaço. Sentia-me melhor ali, na terra, entre as couves, com as mãos em volta dos joelhos. Há muito tempo que não dormia dentro de casa.

 

Havia um saudável cheiro a pão recém-cozido e a sopa a ferver. Havia luz no edifício, no canto mais longínquo do jardim e ouvia-se o som de pratos a baterem uns nos outros. Antes, ouvira o som de sinos; talvez as irmãs estivessem a rezar. No entanto, ouvi vozes no lado de fora da parede do jardim.

 

... seria melhor deixá-la aqui. Ela já não tem forças para continuar. Precisa de descanso, comida e conselho espiritual.

 

Isso não é possível. Há muito que estamos longe de casa. A vossa hospitalidade, por esta noite, é bem-vinda, mas teremos de continuar amanhã.

 

O suspiro da irmã foi audível.

 

Perdoai-me, Lorde Hugh Espero que sejais capaz de ouvir os conselhos de uma mulher de idade e não os acheis impróprios. Ela não passa de uma criança e foi ferida, penso, talvez mais do que pensais. Deixai-a connosco e continuai a vossa viagem, se assim achais. Ela ficará melhor aqui e para vós será melhor se a deixardes connosco.

 

Houve uma pausa.

 

Não posso fazer isso disse ele. A rapariga viaja comigo.

 

Já pensastes como reagirá a vossa família, se regressardes com ela a Harrowfield? A raça dela não é aqui bem-vinda; e vós tendes inimigos poderosos.

 

Achais que não consigo protegê-la?

 

Meu senhor, não duvido da vossa força e da vossa integridade. Penso, antes, que não compreendeis bem o que está aqui em jogo. Talvez não avalieis, na sua totalidade, o sentimento contra este povo. Não podeis dar abrigo a uma coruja órfã no vosso galinheiro e esperar que não haja penas pelo ar. Insistindo, não apenas colocais a rapariga em perigo, como arriscais a vossa própria segurança e a da vossa família.

 

Não houve resposta. Ouvi-lhes os passos num carreiro de saibro, que devia passar, para baixo e para cima, do outro lado da horta.

 

Devo perguntar-vos acrescentou a freira num tom tímido e não tomeis isto de modo errado. Há muito que vos conheço, meu senhor, e é a partir desse conhecimento que falo de um assunto tão delicado. Disse-vos antes que a rapariga fora ferida Ela pouco mais é do que uma criança; cansada, esfomeada e doente da alma. Quanto ao resto, é uma mulher; e houve um homem que abusou dela recentemente. Devo perguntar-vos se confiais nos vossos companheiros. Não vos insultarei sugerindo...

 

Red praguejou de modo explosivo e ouvi o som de botas a baterem nas pedras do caminho, como se ele tivesse feito um súbito movimento violento.

 

Sendo assim continuou a irmã calmamente talvez reconsidereis a sensatez de a levardes para vossa casa? O silêncio e a contemplação que praticamos talvez lhe curem o corpo e o espírito. E aqui não andará assustada.

 

Houve outra longa pausa

Obrigado pelos vossos conselhos disse ele finalmente e o tom formal distanciou-a. Vou esperar mais esta noite, até a rapariga estar descansada. Em seguida seguiremos para Harrowfield. Parecia que a conversa tinha terminado e ambos se afastaram.

 

Durante o dia e as duas noites que passei naquele local, adquiri duas coisas. Passeei pelo jardim, de manhã cedo e por trás dos canteiros ordenados de vegetais, das estacas, dos fios prontos para receber a cobertura de ervilhas ou feijões e do recente monte estrume, vi uma planta familiar. Não estava deslocada naquela cena doméstica, com as suas folhas de um amarelo agradável, se se estiver preparado para manusear os seus implacáveis caules. Estavam duas irmãs a trabalhar tranquilamente no jardim e eu consegui transmitir-lhes, por meio de gestos, o que pretendia. Consultaram-se uma à outra seriamente e uma delas afastou-se, talvez para pedir a opinião da prioresa, ou para perguntar a Red. Quando voltou, trazia um saco e uma faca e deu-mos sem qualquer pergunta. Devia ter escrito no rosto o contentamento que sentia, porque as irmãs sorriram e continuaram metodicamente com o seu trabalho, ao mesmo tempo que eu começava com todas as minhas forças. Pelo fim da manhã já eu tinha um saco cheio de morugem, o suficiente para me durar até ao solstício do Inverno, pensei. Tentei não pensar no que aconteceria se não me deixassem fiar, tecer e coser, no sítio para onde íamos.

 

A segunda coisa que adquiri foi um nome. O priorado podia ser um local de calma contemplação, mas as irmãs não eram isentas de sentido de humor e a refeição da noite era ocasião para conversas relaxantes e até espirituosas. Algumas delas, pensava eu, tiravam grande prazer da inesperada presença de três homens à mesa e eu supunha que as mais velhas deviam pensar que um pouco de alegria também faz bem à alma após longos dias de tranquila meditação. Quando nos sentámos à mesa, na segunda noite, uma das irmãs abordou o assunto.

 

A vossa jovem companheira precisa de um nome disse ela. Não podeis continuar a chamar-lhe «rapariga», como se ela fosse um cão seguindo os vossos passos. Ela tem nome?

 

Se tem, não nos pode dizer qual é disse John. Mas tendes razão, irmã. Todas as coisas vivas precisam de um nome.

 

Ela devia receber um antes de regressardes a casa disse a prioresa. Um bom nome cristão, Elizabeth, talvez, ou Agnes. Agnes é um bom nome.

 

Uma das jovens noviças falou.

 

Ela lembra-me um passarinho, talvez um jenny-wren disse ela sorrindo com os ossos delgados e os olhos claros. Jenny é que seria um bom nome. Sob o olhar da superiora calou-se, corando.

 

Carriça.

Mais valia ter o nome de uma ave de rapina, daquelas que têm o bico afiado resmungou Red, que estava sentado ao meu lado. Talvez uma coruja, que só fala quando os outros dormem. Falou de maneira a que todas o pudessem ouvir. Mas Jenny serve perfeitamente.

 

E assim fiquei a chamar-me Jenny, um estranho nome, pouco parecido com o meu, mas que era melhor do que ser chamada com um estalido dos dedos. E na segunda manhã havia cavalos prontos para nós e partimos após a alvorada, deixando as irmãs calmamente em pé à porta do priorado e uma delas, pelo menos, com as sobrancelhas franzidas de preocupação. Mas parecia, mais uma vez, que o que Red queria, fazia-se. E assim cavalgámos na direcção de Harrowfield.

 

Imagine-se um vale todo forrado de verde, onde manchas suaves de freixos e faias são interrompidas, aqui e ali, pelos perfis mais fortes de carvalhos ainda vestidos com os trajes de Outono. Ao longo desse vale ondula um rio brilhante com as margens cheias de salgueiros inclinados. O caminho segue ao longo do rio, curvando aqui e ali, entre campos bem tratados, passando por cabanas e redis de ovelhas, vacarias e celeiros. Os camponeses saem para ver passar os viajantes e os seus rostos abrem-se em boas-vindas quando reconhecem os três homens, cada um dos quais veste uma capa branca sobre as roupas sujas de viagem. Estas capas, tiradas do fundo das trouxas antes da entrada no vale, têm um brasão desenhado nas costas e na frente. É um sinal de quem os homens são e a quem pertencem; é a imagem de um carvalho, com nobres e largos ramos, fechado num círculo e por baixo umas linhas, que poderiam significar água.

 

Os camponeses clamam:

 

Bem-vindo, meu senhor! Boa colheita, Lorde Hugh! E tudo do melhor no vosso regresso!

 

Aquele a quem eles se dirigem não sorri; parece que raramente sorri. Mas reconhece as saudações com uma cortesia grave, abrandando o andamento do cavalo uma ou duas vezes para agarrar uma mão que se estende, para tocar uma criança oferecida em busca de bênção. E, quando abranda, o povo consegue ver mais de perto a pálida jovem que vai na garupa do seu cavalo, embrulhada numa capa escura, os caracóis negros açoitados pelo vento e as mãos seguras no cinto dele para manter o equilíbrio após uma viagem tão longa. Não fazem perguntas; não lhes cabe fazê-las. Mas calam-se e depois de os cavaleiros passarem murmuram entre si e um ou dois fazem sinais discretos com os dedos, para afastar o demónio.

 

Foi assim a nossa chegada a Harrowfield. O vale abriu-se e surgiu uma grande e baixa herdade. Tinha muitos edifícios, um óptimo celeiro, estábulos e cabanas encostadas à casa principal. As paredes eram de pedra, bem construídas e havia uma avenida de árvores altas, direitas. Os cavaleiros fizeram uma pausa e Red olhou para trás, por cima do ombro.

 

Tudo bem? perguntou ele. Eu acenei com a cabeça. Era tudo novo, diferente. Eu não estava exactamente assustada; mas não fazia ideia de como seria, quando chegássemos à grande casa. Vira e ouvira o suficiente para não esperar boas-vindas. Seria eu uma prisioneira, uma refém? Uma serva? Iria ser guardada até lhe dar, por fim, a informação que ele queria e libertada depois? Ou iriam tentar fazer-me falar por outros meios, como a minha família fizera ao irmão dele? Creio que não aguentaria isso. A Dama da Floresta ordenara-lhe que fizesse de maneira a que eu não fosse ferida de novo. Mas um bretão não era capaz de aceitar o mundo subterrâneo e as maravilhas que ele continha; Red afastara-as como se tivessem sido um sonho. Nunca compreenderia porque procedia eu assim; era mais fácil catalogá-las como uma espécie de loucura, uma doença estranha da mente, que fazia com que eu me magoasse a mim própria para além da razão. Devia amar o irmão com uma intensidade feroz; mas nunca se compararia com aquilo que eu tenho de fazer pelos meus.

 

Sem qualquer sinal visível, os três homens incitaram os cavalos a um galope ligeiro e eu tive que me segurar com força. Seguimos rapidamente por entre os álamos dourados e Ben deixou sair um grito exuberante, mostrando os dentes ao mesmo tempo que o vento lhe chicoteava a cabeleira loira como se fosse uma bandeira. Os olhos de John brilhavam de antecipação. E assim entrámos ruidosamente num pátio tão limpo e ordenado como tudo o resto, parando perante uns largos degraus e uma maciça porta de carvalho, que estava completamente aberta. As pessoas tinham sido avisadas, sabe-se lá como, da nossa chegada, porque nos esperava um grupo de boas-vindas nos degraus. Servos bem treinados apareceram para segurar nas rédeas e levar os cavalos cansados e uma pequena multidão reuniu-se. A primeira coisa que Red fez, depois de me fazer descer do cavalo, foi tirar a sua trouxa, fazendo sinal ao servo para que a deixasse com ele. Depois avançou e com a mão livre segurou-me no pulso, de maneira que fui obrigada a segui-lo.

 

A mulher que esperava, no cimo dos degraus, não me viu. Apenas tinha olhos para Red.

 

Mãe disse ele em voz baixa.

 

Hugh disse ela e exercia o mesmo controlo que eu tinha visto nos seus dois filhos. Via-se bem que fazia um grande esforço para não quebrar e chorar, ou dar-lhe um grande abraço, ou comportar-se de modo indecoroso perante o pessoal. Bem-vindo. Bem-vindos, Ben e John. Há tanto tempo. Havia perguntas desesperadas nos seus olhos, que ficariam por esclarecer até mais tarde.

 

Bem-vindo, sir. Bem-vindo, meu senhor. Estavam ali muitos servos para saudar Lorde Hugh; empurravam-se, tocavam-lhe nos ombros, agarravam-lhe na mão. Ele pousou a trouxa no chão, mas não me largou; eu estava em vias de desaparecer no meio da multidão. Olhei para Ben, que continuava a mostrar os dentes com ar louco, rodeado por um bando de lindas raparigas. Mais longe vi John com uma mulher pequena, loira, alguns anos mais nova do que ele. Estava grávida; calculei que daria à luz dentro de três luas, mais ou menos. Era a mulher dele. Ela pendurou-se no braço dele e ele olhou para ela como se não houvesse mais ninguém no mundo. Pensei que também ele exercia o mesmo controlo. Como deve ter ansiado pelo regresso a casa, como o seu coração devia andar apertado, durante todas aquelas luas no outro lado do mar. No entanto, seguira Red sem hesitar. Havia ali uma lealdade que ia para além da minha compreensão.

 

Só quando conseguimos desprender-nos daquela alegre e dolorosa manifestação de boas-vindas é que a dama reparou em mim. Um servo foi enviado em busca de vinho; entrámos num vestíbulo onde estava preparada uma grande lareira com toros de freixo e espinheiro-alvar, mas ainda não acesa, porque o dia não estava frio. Ela sentou-se numa cadeira perto da lareira e fez sinal ao filho para que se sentasse ao pé dela. Havia outros familiares presentes, mas a uma distância discreta. Os nossos companheiros de viagem tinham desaparecido. Cada um deles tinha, supunha eu, a sua própria manifestação de boas-vindas. E assim Red sentou-se ao pé da mãe, estendendo a perna ferida com alguma precaução. A longa cavalgada fora o último tratamento de que ela necessitara para sarar convenientemente. E eu fui deixada em pé ao lado da cadeira dele, sentindo-me só num círculo de olhares curiosos. Ele continuava a segurar-me no pulso, de maneira que não podia mexer-me. A mãe dele olhou-me nos olhos. O rosto dela era redondo e suave sob o delicado tecido do véu; tinha uma rede de finas linhas em volta dos olhos e da boca. Pequenos caracóis escapavam-se da coifa que lhe cobria a cabeça, de um louro-claro. Em tempos, o seu cabelo deve ter sido da mesma cor do do seu filho mais novo; e os seus olhos eram do mesmo azul-brilhante. Li-lhe choque na expressão, medo e também um pouco de irritação. Não falou. Red deixou-me cair o pulso.

 

Lamento disse ele. Esperava trazê-lo para casa. Mesmo depois de tanto tempo, esperava poder fazê-lo. Como vedes, não o encontrei. E não tenho qualquer notícia para vós. Lamento não ter podido... não...

 

Aprendi a não esperar demasiado disse a mãe dele e a dama fazia esforço para não chorar. Se chorasse, seria mais tarde, quando estivesse só. Regressaste são e salvo. Devemos estar gratos por isso.

 

É como se ele se tivesse desvanecido no ar disse Red. Aquele país é, na realidade, muito estranho e está cheio de lendas acerca de casos parecidos. Disparates, claro. Mas nós estivemos perto, muito perto, do local onde tantos dos homens de Richard morreram. Que ele esteve ali, não resta qualquer dúvida. Mas não havia qualquer sinal de que Simon tivesse estado com eles. Falámos com quem pudemos, a coberto da escuridão. Ninguém sabia de prisioneiros, fugitivos ou reféns. Voltei de mãos vazias, mãe. Lamento muito a dor que a minha ausência vos causou; lamento não trazer respostas.

 

Confesso que tinha alguma esperança disse ela. Não que ele regressaria ao fim deste tempo todo. Mas algo, um pequeno sinal, que me dissesse que ele estava vivo, ou que tinha morrido, uma resposta qualquer para acabar com esta terrível espera.

 

Houve uma pequena pausa.

 

Não havia nada disse Red. Absolutamente nada. Descobri que tinha estado a suspender a respiração e deixei-a sair

 

rapidamente. Mas ainda não estava segura.

 

Parece que não regressaste de mãos completamente vazias disse a mãe dele e olhou para mim, de cima a baixo, como se inspeccionasse um bocado de carne para a mesa, mas que não a satisfazia. Devolvi-lhe o olhar, firme. Não tinha vergonha de ser a filha de Lorde Colum, apesar do que ele fizera. O meu povo era antigo, muito mais antigo do que o dela e eu era.

 

Como foste capaz de trazer uma... um deles para a tua própria casa? Como consegues, sequer, estar perto dela? Essa gente levou-te o teu irmão; mataram os homens de Richard barbaramente, de modo inimaginável, com uma crueldade inconcebível. Os modos deles já nem sequer são estranhos; perderam qualquer bondade. Como foste capaz de a trazer para minha casa? A voz dela tremia de emoção. É agora, pensei. Ele agora vai-lhe dizer que eu sou a única ligação com o filho mais novo. E ela vai-me exigira informação imediatamente, algo que a convença de que o filho ainda está vivo. E tentarão fazer-me falar, seja de que maneira for. Como poderá ele dizer que não à própria mãe? Estranhamente, compreendi como ela se sentia.

 

Red pôs-se de pé, colocou-se por trás de mim e eu senti-lhe as grandes mãos nos meus ombros.

 

O nome dela é Jenny disse ele em voz baixa. Está aqui como minha hóspede enquanto lhe apetecer, o que pode demorar um bocado. E será tratada com respeito. Por todos. A dama olhou para ele com a boca ligeiramente aberta. A minha expressão devia ser semelhante, porque eu não esperava aquilo. Trabalhar na cozinha, talvez, a lavar pratos; era o que eu esperava. Não quero insultar-vos, mãe. Estou apenas a dizer-vos como será. Ele levantou a voz, o suficiente para que todos o ouvissem. Esta jovem é bem-vinda a minha casa. Será tratada como membro da família. Dar-lhe-eis a bondade e a hospitalidade que daríeis a outro hóspede qualquer. Não o direi mais vez nenhuma. Que fique claro. Havia uma ameaça, pensei, naquelas últimas palavras, mas ele não precisou de dizer mais nada. Um silêncio mortal caiu na sala.

 

O servo apareceu com o vinho. Red fez-me sentar e pegar numa taça, mas apenas bebi um gole ou dois. O meu estômago ainda estava destabilizado e sentia-me muito cansada. E havia pessoas a mais, demasiada luz, demasiados sons. Tudo o que eu queria era estar só por um bocado e descansar. E queria uma roca, um fuso, um tear e tempo, muito tempo.

 

Não me parece grande coisa disse a mãe de Red, fungando ligeiramente. O que é que ela vai fazer aqui? Será capaz de fazer qualquer coisa útil?

 

A boca de Red curvou-se num sorriso que não lhe chegou aos olhos.

 

Penso que descobrireis que Jenny sabe fazer muita coisa disse ele. Maneja muito bem a agulha e o fio. Mas não é para lhe arranjarem um emprego como serva; espero que as vossas damas a acolham como uma igual.

 

Sinto-me chocada por me pedires isso, Hugh. Talvez eu tenha alimentado esperanças, demasiadas, de que me trarias Simon são e salvo para casa. Em vez disso, trazes o inimigo que o destruiu e pedes-me que faça desse inimigo um amigo. Sob a máscara da gentileza, ela estava furiosa com ele.

 

Red olhou para ela e depois para mim.

 

Jenny não fala disse ele porque não pode. Mas faz-se compreender muito bem, vereis. E compreende tudo o que dizeis. Com aquela resposta, que não era de todo uma resposta, ela teve de contentar-se, mas havia um delicado franzido entre as suas sobrancelhas e eu vi uma profunda angústia nos seus olhos.

 

Não nos dás possibilidade de escolha disse ela de modo fatigado. Pensei em Simon e nas coisas que dissera acerca da sua família. Na

 

sua história acerca dos dois irmãos, o mais novo nunca fora suficientemente bom; nunca estivera à altura do mais velho. Por que pensara que não gostavam dele? Por que pensara em si próprio como uma segunda escolha? Até na sua ausência estava entre a sua mãe e o outro filho, tão vivo como se estivesse ali em carne e osso.

 

A conversa mudou para terreno mais seguro. Falaram dos assuntos da casa, das colheitas e do gado, do bem-estar dos camponeses. Red fez pergunta atrás de pergunta; parecia ansioso por pegar, de novo, nas rédeas da casa. A minha mente vagueava, revivendo aqueles dias em que Simon estivera ao meu cuidado, recordando as longas histórias, as noites febris, demoníacas, a lenta cicatrização do corpo e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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