Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DA PROFECIA / Juliet Marillier
A FILHA DA PROFECIA / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Chegavam todos os Verões. Eu contava os dias pela terra, pelo céu, pelo Sol e pelas pedras. Trepava até ao círculo, sentava-me muito quieta, encostada à rocha tépida a que eu chamava Sentinela e observava os coelhos à luz do crepúsculo, mordiscando a erva que conseguiam encontrar na encosta estéril. O Sol descia a oeste, uma bola de fogo laranja mergulhando, para lá dos montes, nas profundezas escondidas do oceano. A sua luz, ao morrer, agarrava as formas dos dólmanes e esticava as suas estranhas sombras pelo solo pedregoso à minha frente. Ia até ali todos os Verões desde que vira os viajantes pela primeira vez e aprendera a ler os sinais. A cada dia que passava, o Sol, ao pôr-se, alongava um pouco mais as formas pontiagudas, ao longo do cume do monte, para norte. Quando a maior das sombras me chegava aos pés, ali onde me sentava, no centro do círculo, era chegada a ocasião. No dia seguinte poderia ir até à pista, porque eles estavam a chegar.

Havia um padrão. Havia padrões para tudo, se soubéssemos como procurá-los. O meu pai ensinou-me. A habilidade está em ficar de fora, não deixar que eles nos apanhem. Seria um erro pensar que pertencemos a alguém. Pessoas como nós nunca poderiam pertencer a ninguém. Também aprendi isso com ele.

 

 

 

 

Ficava ali ao lado da pista, escondida num arbusto de zimbro, quieta como uma pedra. Ouvia-se, primeiro, o som dos cascos e das rodas das carroças. Em seguida via um ou dois dos rapazes montados em póneis, cavalgando à frente, atentos a qualquer perigo. Quando chegavam ao topo do monte e passavam pelo sítio onde eu estava escondida, baixavam a guarda e seguiam brincando e rindo, porque já estavam perto do acampamento e de um Verão de boa pesca e relativa facilidade, um tempo em que reparavam e construíam coisas. A estação que passavam ali, na baía, era a coisa mais parecida com uma vida fixa que eles conheciam.
Depois, seguia-se uma carroça ou duas, com os velhos e as mulheres sentados no topo e as crianças mais pequenas empoleiradas na carga, ou correndo ao lado. Danny Walker conduzia uma parelha de cavalos e a sua mulher, Peg, a outra. O resto da tribo caminhava, os lenços e cachecóis, de cores vivas, contrastando com a paisagem sombria e cinzenta, que era ali estéril, mesmo sob o calor do Verão que se aproximava. Eu observava e esperava, escondida, sem me atrever a mexer um dedo, sequer. Por fim, vinham os póneis, conduzidos pelos rapazes mais novos. Era o melhor momento do Verão: a primeira vez que avistava Darragh, montado, pequeno e orgulhoso, no seu cavalo cinzento. Vinha pálido após o Inverno no Norte e de sobrolho franzido, vigiando os animais, sempre alerta, não fosse um deles tentar fugir. Aqueles póneis rústicos tinham essa tendência, até serem devidamente domesticados. Aquela manada seria treinada durante a estação quente e vendida quando a tribo regressasse ao Norte.

Eu não permitia que o movimento de um dedo, ou a piscadela de um olho, me denunciasse. Mas Darragh sabia. Os seus olhos castanhos olhavam para os lados, pestanejando e ele sorria, um sorriso que mais ninguém, se não eu, escondida ao lado da pista, notava. Os viajantes passavam, desapareciam a caminho da enseada e do seu acampamento de Verão e eu ia para casa, correndo pelo monte fora, descendo e atravessando a língua de terra até ao Favo de Mel, que era onde eu e o meu pai vivíamos.

O meu pai não gostava muito que eu saísse dali. Mas não me proibia. Era melhor, dizia ele, eu estabelecer as minhas próprias regras. O ofício era muito duro. Em breve descobriria que não deixava tempo para amigos, para brincar, nadar ou pescar e saltar de rocha em rocha, como as outras crianças. Havia muita coisa para aprender. E quando o meu pai estava demasiado ocupado para me ensinar, eu tinha de praticar o que já sabia. As únicas regras que existiam não precisavam de palavras Além disso, não podia ir para longe com o meu pé defeituoso.

Eu sabia que para os da nossa espécie a única coisa que contava era o nosso ofício. Mas Darragh entrou na minha vida sem ser convidado e depois disso transformou-se na minha companhia de Verão e no meu melhor amigo; no meu único amigo, para dizer a verdade. Eu tinha medo das outras crianças e nem sequer imaginava poder juntar-me a elas nos seus jogos violentos. Por seu lado, elas evitavam-me. Talvez tivessem medo, ou talvez fosse outra coisa qualquer. Eu sabia que era mais esperta do que elas. Sabia que podia fazer-lhes o que me apetecesse, se quisesse. No entanto, quando olhava para o meu reflexo na água e pensava nos rapazes e raparigas que via correr pela areia gritando uns para os outros, pescando nas rochas e remendando redes ao lado dos pais e mães, desejava com todo o meu coração ser uma daquelas raparigas errantes, com um lenço vermelho e um xaile de longas franjas, empoleirada no alto de uma carroça a caminho, no Outono, das terras distantes do Norte.

Nós tínhamos um lugar, um lugar secreto, a meio caminho da encosta, por trás de umas grandes pedras, virado a sudoeste. Abaixo de nós, o promontório escarpado e rochoso do Favo de Mel mergulhava no mar. Lá dentro havia uma rede complicada de grutas, câmaras e passagens secretas, a casa ideal para um homem como o meu pai. Por trás de nós a encosta subia, subia até ao topo do monte, até ao círculo de pedras, descendo depois até à pista das carroças. Para lá estava Kerry e, mais longe ainda, lugares cujos nomes eu desconhecia. Mas Darragh sabia-os e falava-me deles enquanto colhia lenha para fazer uma fogueira e procurava silex e mecha nos bolsos, enquanto eu tirava do saco um pequeno pote e umas ervas secas para fazer chá. Falava-me de lagos e de florestas, de desfiladeiros selvagens e de vales suaves e brumosos. Descrevia como os Noruegueses, cujos assaltos às nossas costas eram tão temidos, se tinham estabelecido ali, casado com mulheres irlandesas e dado à luz crianças que não eram nem uma coisa nem outra. Com um brilho de excitação nos olhos castanhos, falava da grande feira de cavalos no norte. Gesticulava de tal maneira, concentrado, com voz entusiasmada, que se esquecia que tinha de acender a fogueira. Assim, acendi-a eu, apontando para os paus com o meu dedo indicador. A macieira começou a arder instantaneamente e o nosso pequeno pote de água começou a aquecer. Darragh calou-se.

Continua disse eu. O velho comprou o pónei, ou não? Mas Darragh fixou-me de sobrolho franzido, os olhos escuros semi-cerrados de desaprovação.

Não devias fazer isso disse ele.

O quê?

Acender a fogueira dessa maneira. Usar truques de feitiçaria. Quando não é necessário. O que é que o silex e a mecha têm de mal? Eu não teria feito isso.

Por que é que te preocupas? Assim é mais rápido. Eu estava a deitar uma mão-cheia de folhas secas dentro do pote. O seu cheiro encheu o ar frio da encosta.

Não devias fazê-lo. Não quando não é necessário. Ele sentia-se incapaz de dar outra explicação e as suas palavras morreram abruptamente. Fizemos o nosso chá, que bebemos em silêncio, sentados, enquanto as aves marinhas voavam e gritavam por cima das nossas cabeças.

Os Verões tinham muitos dias daqueles. Quando não era preciso para trabalhar com os cavalos ou para ajudar no acampamento, Darragh ia ter
comigo e, juntos, explorávamos as encostas rochosas, os carreiros no alto da falésia, as baías escondidas e as grutas secretas. Ensinou-me a pescar apenas com uma linha e mão firme. E eu ensinei-o a saber que dia era, pela maneira como as sombras se moviam no topo do monte. Quando chovia, o que acontecia muitas vezes no Verão, sentávamo-nos juntos no abrigo de uma pequena gruta, na língua de terra que ligava o Favo de Mel à praia, um local que era quase subterrâneo, mas só quase, porque a luz do dia entrava por cima e a pequena extensão de areia fina ficava de um cinzento-azulado delicado. Eu sentia-me sempre segura naquele local. O céu, a terra e o mar encontravam-se, tocavam-se e separavam-se de novo e o som das pequenas ondas na praia subterrânea era como um suspiro, ao mesmo tempo uma saudação e um adeus. Darragh nunca me disse se gostava, ou não, da minha gruta secreta. Limitava-se a ir até lá comigo, sentando-se a meu lado e, quando parava de chover, saía sem uma palavra.

Na encosta crescia uma erva selvagem, uma planta forte, flexível, com um caule verde-claro, sedoso e brilhante. Nós chamávamos-lhe cauda-de-rato, se bem que, provavelmente, tivesse outro nome. Peg e as suas filhas eram excelentes cesteiras e faziam uso daquela erva para os seus melhores e mais bonitos trabalhos, que podiam ser vendidos a uma senhora para, talvez, colher flores, em vez de transportar vegetais ou uma carga pesada de lenha. Darragh também sabia fazer cestos, com dedos longos rápidos e ágeis. Uma ocasião, estávamos junto das pedras, ao fim da tarde, encostados à Sentinela, a olhar para a baía, para o promontório distante e para o mar, a ocidente. As nuvens juntavam-se e o ar estava fresco. Nesse dia eu não podia ler as sombras, mas sabia que nos estávamos a aproximar do fim do Verão e de uma nova separação. Sentia-me triste, zangada comigo mesma por isso, tentando não pensar em mais um Inverno de trabalho duro e dias frios e solitários. Olhava para o chão pedregoso e pensava no ano em si, em como ele se sucedia, como uma serpente mordendo a própria cauda; em como ele rodava como uma roda, sem fim. Os bons tempos regressariam de novo e, depois deles, os maus.

Darragh tinha na mão uma porção de caudas-de-rato e tecia-as com habilidade enquanto assobiava baixinho. Darragh nunca estava triste. Não tinha tempo para isso: para ele, a vida era uma aventura, sempre com novas portas a abrirem-se. Além disso, podia ir-se embora, se quisesse. Não tinha coisas para aprender, ou uma arte para aperfeiçoar como eu.

 

Olhei para os seixos no chão. Sempre à roda, era essa a minha existência, repetindo-se sempre, um ciclo ao qual não podia escapar. Sempre à roda. Eixo e imutável. Fixei os seixos enquanto eles estremeciam e rolavam; enquanto se moviam obedientemente no chão, à minha frente.

Fainne? Darragh olhava, de sobrolho franzido, para mim e para as pedras que se moviam na minha frente.

O que é? A minha concentração quebrou-se. As pedras deixaram de se mover. Agora, formavam um círculo perfeito.

Estende a mão disse ele.

Fiz como ele me pedia, confusa e ele meteu-me no dedo um pequeno anel feito de caudas-de-rato, tão bem feito que não parecia ter qualquer junção, ou fixação.

Para que é isto? perguntei-lhe, virando o círculo sedoso e flexível uma vez e outra. Ele estava a olhar de novo para a baía, observando os pequenos curraghs a regressar da pesca.

Para que não te esqueças de mim disse ele desprendidamente.

Não sejas parvo disse eu. Por que me haveria de esquecer de ti?

Talvez esqueças disse ele virando-se para mim e fazendo um gesto na direcção do círculo perfeito das minúsculas pedras. Pode ser que tenhas de te virar para outras coisas.

Senti-me magoada.

Nunca. Nunca.

Darragh suspirou e encolheu os ombros.

Tu ainda és pequena. Não sabes. O Inverno é muito longo, Fainne. Ainda precisas que tomem conta de ti.

Não preciso nada! respondi eu, levantando-me rapidamente. Quem pensava ele que era, o meu irmão mais velho? Eu sei muito bem olhar por mim, obrigada. E agora vou para casa.

Eu acompanho-te.

Não é preciso.

Eu acompanho-te. Melhor ainda, faço uma corrida contigo. Só até àqueles arbustos, lá em baixo. Anda.

Eu fiquei ali, imóvel, carrancuda.

Eu dou-te avanço disse Darragh. Conto até dez. Não fiz qualquer movimento.

Até vinte, então. Anda lá. Ele sorriu, um sorriso enorme, irresistível.

Eu corri, se se pode chamar corrida ao meu passo desastrado, coxeante. Com uma das mãos a segurar a saia, eu corria relativamente depressa, se bem que o piso, pedregoso, exigisse alguma cautela. Estava a meio caminho dos arbustos quando ouvi os seus passos suaves e rápidos mesmo por trás de mim. Nenhuma corrida entre nós poderia ser igual e ambos o sabíamos. Ele podia ter coberto a distância num quarto do tempo que me levou a mim. Mas, de qualquer modo, chegámos ambos exactamente ao mesmo tempo aos arbustos.

Muito bem, filha de feiticeiro disse Darragh, sorrindo. Caminhemos, agora, para recuperar o fôlego. Amanhã será melhor.

Que idade tinha eu, então? Seis, talvez, e ele um ano ou dois mais velho? Tinha no dedo o anel no dia em que a tribo fez as malas e partiu de novo; no dia em que tive de dizer adeus e ficar à espera. Para ele era óptimo. Tinha lugares aonde ir e coisas para fazer e estava ansioso por montar o seu pónei e partir. No entanto, arranjou algum tempo para se despedir de mim, no alto do monte, sobre o acampamento, porque sabia que eu não me aproximaria do lugar onde a tribo carregava as carroças e se preparava para a jornada. Eu ficava paralisada de timidez, incapaz de aguentar os olhares dos rapazes e das raparigas ou responder às perguntas finas e amáveis de Peg. O meu pai estava junto deles, uma figura alta, encapuçada, falando com Danny Walker, entregando-lhe mensagens e encomendas. À sua volta, as pessoas tinham deixado um círculo amplo, vazio.

Bem... disse Darragh.

Bem... disse eu, tentando utilizar o mesmo tom desprendido e falhando totalmente.

Adeus, Caracóis disse ele, estendendo o braço para puxar gentilmente um caracol dos meus cabelos, que eram tão ruivos como os do meu pai. Vejo-te no próximo Verão. Tem cuidado contigo, até eu voltar. Sempre que se ia embora dizia aquilo; sempre o mesmo. Quanto a mim, nunca tinha palavras.

Os dias ficaram mais pequenos e a parte sombria do ano começou. Com Darragh longe, não havia razão para me afastar de casa e, assim, entreguei-me ao trabalho, tentando não reparar no frio que fazia dentro do Favo de Mel, maior, talvez, do que o que fazia no topo do monte, provocado pelo vento de Outono. Era um sentimento doloroso, que se alojava nos ossos e permanecia ali, como um farelo. Eu nunca me queixava. O meu pai ensinara-me a lidar com ele e esperava que eu me comportasse à altura. Não era que um feiticeiro não sentisse o calor do fogo ou a mordidela do vento norte. No fim de contas, um feiticeiro era um homem, não uma criatura do Outro Mundo. O que tínhamos a fazer era ensinar o nosso corpo a fazer-lhe frente, de maneira que o desconforto não nos tornasse mais lentos, ou ineficazes. Tinha quase tudo a ver com a respiração. Mais, não posso dizer. O meu pai foi, em tempos, um druida.

Ele dizia que atirara tudo isso para trás das costas quando abandonara a irmandade. Mas um homem não se descarta com essa facilidade de tantos anos de treino e disciplina. Eu compreendia que muito do que aprendia era secreto, para ser partilhado apenas com outros da nossa espécie. Não podia mostrar-me a um ignorante, ou àqueles cujas mentes estavam fechadas. Mesmo hoje, ainda há algumas coisas que não posso nem quero dizer.

Havia muitas câmaras no Favo de Mel. Acendíamos lâmpadas durante o ano todo e na grande gruta, onde o meu pai trabalhava, ardiam muitas velas, porque ele armazenava ali os seus rolos e livros, objectos grotescos e prodigiosos metidos em frascos e pequenos sacos com pós de cheiro acre. Havia um basilisco seco e uma taça feita de um corno torcido, encaracolado, a base fixa em pedras vermelhas. Havia uma minúscula caveira, como se fosse de um duende, de olhos vazios. Havia um espesso livro de feitiçaria cuja capa de pele estava escurecida pelos anos e pelo manuseamento. O meu pai passava os dias e as noites naquela gruta, solitário, aperfeiçoando a sua arte, aprendendo, aprendendo sempre.

Eu sabia ler e escrever em várias línguas. Podia contar muitas, muitas histórias e fazer ainda mais feitiços. Mas aprendi cedo que a grande magia não está nos livros nem nos rolos de pergaminho. Os grandes feitiços não são criados por meio de truques de mão, poções, filtros ou velhas palavras. Soube-o porque, quando o meu pai trabalhava arduamente, tudo o que ele fazia era permanecer muito quieto no centro de um espaço vazio com os olhos escuros fixos no nada. Porque a magia mais profunda está na mente, não se encontra gravada em rolos de pergaminho, árvores ou pedras. Não está gravada em parte nenhuma. O meu pai devia a sua primeira aprendizagem aos velhos sábios: os druidas da floresta. E desenvolvera-a por meio de dedicação e estudo. Mas o nosso talento para a arte da feitiçaria estava-nos no sangue. O meu pai era filho de uma grande feiticeira e através dela adquirira certas habilidades que utilizava com sensatez, já que eram ao mesmo tempo poderosas e perigosas. Devemos ter cuidado, dizia ele, para não nos aventurarmos demasiado e tocar em coisas sombrias, que é melhor deixar adormecidas. Eu não me lembrava muito bem da minha avó. Lembrava-me vagamente de uma criatura elegante, de vestido azul, que me olhou nos olhos e me provocou uma dor de cabeça. Lembrava-me vagamente de ela me fazer algumas perguntas, às quais eu respondi zangada, não gostando da sua intrusão no nosso mundo ordenado. Mas isso foi há muito tempo, quando eu era uma criança. O meu pai raramente falava nela, salvo para dizer que o nosso sangue estava infectado pelas suas origens, uma sucessão de feiticeiros que não tinham compreendido que algumas fronteiras não deviam, nunca, ser atravessadas. No entanto, dizia o meu pai, ela era poderosa, subtil e inteligente e era minha avó; uma parte dela estava em nós e nunca devíamos esquecê-lo. O que fazia com que nunca pudéssemos viver as nossas vidas como as pessoas normais, com amigos, família e trabalho honesto. Tínhamos talentos excepcionais e isso podia levar-nos para um destino sombrio.

Eu tinha oito anos. Era Meán Geimbridb e o vento norte prostrava as árvores despidas. Atirava as ondas contra a falésia, forçando a espuma gelada a entrar nos túneis do Favo de Mel. A praia pedregosa estava cheia de vegetação emaranhada e conchas partidas. Os pescadores tinham os curraghs em terra e as pessoas tinham fome.

Concentra-te, Fainne disse o meu pai, enquanto os meus dedos gelados se mexiam desajeitadamente. Usa a cabeça, não as mãos.

Cerrei os dentes, semicerrei os olhos e tentei de novo. Era um truque, nada mais. Devia ser fácil. Estender os braços e olhar para a bola de vidro brilhante na prateleira da parede mais afastada, reflectindo a luz das velas na sua superfície ilusória. Percorrer a distância com a mente; pensar a distância, pensar o salto. Permanecer quieta. Deixar que a bola faça tudo. Ordenar à bola que venha às minhas mãos. Ordenar que a bola venha. Vem. Vem. Vem a mim, frágil e delicada, redonda e bela, vem às minhas mãos. Estava frio, os meus dedos doíam-me, estava tanto frio. Podia ouvir as ondas batendo na rocha, lá fora. Ouvi a bola de vidro esmagar-se no chão de pedra. Os meus braços caíram.

 

Muito bem disse o meu pai calmamente. Vai buscar uma vassoura e varre tudo. Depois, diz-me porque falhaste. Não havia crítica na sua voz. Como sempre, queria que eu julgasse por mim mesma. Desse modo, aprenderia mais depressa.

 

Oh... eu estava a pensar noutra coisa disse eu, varrendo os cacos aguçados como facas. Permiti que o elo se quebrasse. Desculpe, pai. Eu vou conseguir. Da próxima vez, consigo.

 

Eu sei disse ele, regressando ao seu trabalho. Tenta cem vezes com algo inquebrável. Depois, mostra-me.

 

Sim, pai. De qualquer modo, eu tinha demasiado frio para dormir. Era melhor passar a noite a fazer algo útil.

 

Eu tinha dez anos. Estava muito quieta, no meio da gruta do meu pai, com os olhos fixos no nada. Por cima da minha cabeça, a frágil bola pairava, presa por forças invisíveis. Respirei. Lenta, lentamente. Em cada expiração um minúsculo ajustamento. Para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita. Gira, disse eu à bola, e ela girou, brilhando à luz das velas. Pára. Agora, circula à minha volta. Os meus olhos não seguiram o movimento firme. Não precisava de o ver para saber da sua obediência à minha vontade. Pára. Agora, cai. A pausa infinitesimal; então, o mergulho, a descida brilhante e resplandecente para a destruição. Pára. O mergulho parou a um palmo do chão de pedra. A bola ficou no ar, à espera. Pestanejei e inclinei-me para pegar nela. O meu pai acenou com a cabeça, solenemente.

 

O teu controlo está a melhorar. Estes truques são relativamente fáceis, claro; mas, para os fazer, é preciso disciplina. Estou contente com os teus progressos, Fainne.

 

Obrigada. Os seus elogios eram raros. Geralmente, limitava-se a reconhecer que eu alcançara algo e destinava-me a tarefa seguinte.

 

Agora, não te tornes complacente

 

Não, pai.

 

Chegou a altura de te aventurares num ramo mais difícil da arte. Vais ter que arranjar novas reservas de força dentro de ti. Pode ser esgotante. Descansa alguns dias. Começaremos em Imbolc. Que ocasião poderia ser mais apropriada? O seu tom era amargo.

 

Sim, pai. Não lhe perguntei o que queria dizer com aquilo. Eu sabia que fora durante o festival de Brighid que ele conhecera a minha mãe; não que ele falasse alguma vez dela, pelo menos deliberadamente. Essa história estava bem escondida no seu íntimo, e ele era um mestre no que tocava a segredos. O pouco que eu sabia apanhara-o aqui e ali, aos bocados, ao longo dos anos. Ouvira alguma coisa da boca de Peg enquanto esperava por Darragh, escondida por trás de umas árvores.

 

Ela era muito bonita dissera Peg à amiga Molly. As duas mulheres estavam sentadas numa manhã de sol, os seus dedos ágeis confeccionando os seus intrincados cestos. Alta, delgada, com aqueles cabelos cor de cobre a caírem-lhe pelas costas. Parecia uma fada. Mas era um pouco... era um pouco desequilibrada, sabes? Ele tomava conta dela como um lobo olhando pelas crias, mas não conseguiu evitar o que aconteceu Estava escrito nos olhos dela.

 

Hum respondera Molly. A rapariga sai ao pai, então. Que coisinha estranha.

 

Ela não pode evitar ser o que é disse Peg.

 

E lembrava-me de outra vez, num Verão que tinha sido especialmente quente, quando Darragh se mostrara impaciente com a minha recusa em me aproximar da água.

 

Por que é que não me deixas ensinar-te a nadar? perguntara-me ele. É por causa dela? Do que lhe aconteceu?

 

O quê? perguntei. O que é que queres dizer?

 

Sabes muito bem. A tua mãe. Por causa... bem, por causa do que ela fez. Pelo menos, é o que dizem. Que tens medo da água porque ela se atirou do Favo de Mel e se afogou.

 

É claro que não repliquei, engolindo em seco. Não quero, simplesmente. Como poderia ele saber que nunca ninguém me tinha dito nada acerca da morte dela?

 

Tentei imaginar a minha mãe através da figura encantadora que Peg descrevera, mas não consegui. Tudo o que recordava era o meu pai e o Favo de Mel. Algo acontecera há muito tempo, algo que fizera muito mal à minha mãe, ferira o meu pai e marcara o nosso destino. O meu pai nunca me contara nada. No entanto, estava implícito em tudo o que me ensinava.

 

Chegou a hora disse o meu pai, olhando-me severamente. Agora vai ser a sério, Fainne. Pode ser que tenha de te tirar a liberdade este Verão.

 

Eu... está bem, pai.

 

Muito bem. Senta-te aqui ao pé de mim. Olha para o espelho. Olha para o meu rosto.

 

A superfície era de bronze, polida até apresentar um reflexo brilhante As nossas imagens apresentavam-se lado a lado; os mesmos rostos com alterações subtis. Os caracóis vermelhos-escuros; os olhos intensos, escuros como amoras maduras; a pele pálida, sem sardas. O semblante do meu pai era belo, achava eu, se bem que a sua expressão fosse um pouco desagradável. O meu rosto era o de uma criança ainda informe, franco, redondo. Olhei para o meu reflexo e depois para o do meu pai. Prendi a respiração.

 

O rosto do meu pai estava a mudar. O nariz ficou arqueado, os cabelos vermelhos-escuros ficaram grisalhos e a pele enrugada e manchada, como uma velha maçã armazenada durante muito tempo. Olhei, espantada. Ele ergueu uma mão e era a mão de um velho, rugosa, cheia de nós, e unhas como as garras de uma criatura selvagem qualquer. Não conseguia tirar os olhos daquela imagem.

 

Agora, olha para mim disse ele calmamente, e era a sua voz. Obriguei os meus olhos a desviarem-se, se bem que o meu coração se contraísse ao pensar que aquele homem a meu lado pudesse ser aquela casca mirrada e não o meu pai, sempre tão animado, sempre tão saudável. E, ali estava ele, o mesmo de sempre, de olhos escuros fixos em mim, o cabelo ainda encaracolado, castanho-avermelhado, brilhante, em redor das têmporas. Olhei de novo para o espelho.

 

O rosto estava a mudar outra vez. Ondulou por momentos e parou. Desta vez a diferença era mais subtil. O cabelo um pouco mais claro, as feições um pouco mais rectas. Os olhos azuis-escuros, não os invulgarmente escuros, púrpuras, que o meu pai e eu partilhávamos. Os ombros um tudo nada mais largos, a estatura um palmo mais elevada, o nariz e o queixo com um toque de grosseria que não tinha antes. No entanto, era o meu pai; mas era um homem diferente.

 

Desta vez disse ele quando tirares os olhos do espelho, verás o que eu quero que vejas. Não tenhas medo, Fainne. Continuo a ser a mesma pessoa. A isto chamamos Encantamento, uma coisa que fazemos para nos disfarçarmos com um propósito especial. É uma ferramenta poderosa, se utilizada como deve ser. Não é tanto uma alteração da aparência, antes uma mudança na percepção dos outros. Esta técnica deve ser exercitada com extrema precaução.

 

Quando olhei, o homem a meu lado era o homem do espelho; era o meu pai, mas não era o meu pai. Pestanejei, mas ele continuou a não ser ele. O meu coração batia-me no peito e tinha as mãos pegajosas.

 

Muito bem disse o meu pai calmamente. Respira devagar, como te mostrei. Controla o medo e põe-no de lado. Esta habilidade não é aprendida num dia, numa estação, ou num ano. Terás de trabalhar arduamente para a conseguir.

 

Nesse caso, por que razão não ma ensinou antes? consegui dizer, ainda profundamente confusa por vê-lo tão mudado. Teria sido melhor se ele se tivesse transformado num cão, num cavalo, ou até num pequeno dragão; mas aquilo... aquela versão dele próprio.

 

Era muito cedo. Agora, estás na idade certa. Vem. E, subitamente, era ele de novo, tão rápido como um estalar de dedos. Passo a passo. Usa o espelho. Começaremos pelos olhos. Concentra-te, Fainne. Respira pela barriga. Olha para o espelho. Olha para o ponto entre as sobrancelhas. Isso. Obriga o teu corpo a uma imobilidade total... põe de lado o tempo que passa... Vou ajudar-te com algumas palavras. Com o tempo, terás de aprender a fazê-lo sem o espelho e sem o feitiço.

 

Ao anoitecer estava exausta, a cabeça vazia como uma abóbora seca e o corpo frio e encharcado em suor. Descansámos, sentados um em frente do outro no chão de pedra.

 

Como é que eu sei perguntei-lhe como é que eu sei qual é a imagem e qual não é? Como é que eu sei se o que vejo é mesmo o pai? Podia ser um velho feio, todo enrugado, vestido com o Encantamento de um feiticeiro.

 

O meu pai acenou com a cabeça, as suas pálidas feições sombrias.

 

Não sabes.

 

Mas...

 

É possível, para alguém perito nesta arte, permanecer disfarçado durante anos, se necessário. É possível esse alguém enganar toda a gente. Ou quase toda a gente. Como já disse, é uma ferramenta poderosa.

 

Quase toda a gente?

 

Ele ficou silencioso por um momento e depois acenou com a cabeça.

 

Não enganarias outro praticante da nossa arte com esta magia. Há três pessoas, penso, que saberiam sempre quem tu és: um feiticeiro, um vidente e um inocente. Pareces cansada, Fainne. Talvez devas descansar e recomeçar amanhã.

 

Sinto-me bem, pai disse eu, ansiosa por não o desapontar. Posso continuar, a sério. Sou mais forte do que pensa.

 

O meu pai sorriu; uma visão rara. Aquela mudança pareceu-me mais profunda do que a provocada por qualquer Encantamento; como se estivesse a olhar para outro homem, o homem que ele poderia ter sido, se o destino o tivesse tratado com mais gentileza.

 

Por vezes, esqueço-me da tua idade, filha disse ele gentilmente. Sou um professor muito duro, não sou?

 

Não, pai disse eu. Os olhos ardiam-me, como se fosse chorar. Eu sou suficientemente forte.

 

Oh sim disse ele, a boca novamente severa. Nunca duvidei. Vamos, então. Recomecemos.

 

Tinha doze anos e. por algum tempo, fui mais alta do que Darragh. Nesse Verão o meu pai não me deixou sair muito. Quando me dava algum tempo de descanso, saía do Favo de Mel e subia ao topo do monte, já não muito certa de que me era permitido, mas ainda sem estar preparada para pedir autorização e ela ser-me recusada. Darragh estava à minha espera tocando gaita-de-foles, como sempre, porque Dan ensinara-o e o exercício dessa habilidade era, para ele, mais um prazer do que um dever. Já não explorávamos as grutas, não caminhávamos ao longo da praia em busca de conchas nem fazíamos pequenas fogueiras. Ficávamos sentados, a maior parte do tempo à sombra das pedras, ou num buraco na berma da falésia, conversando, e eu regressava depois a casa com o som doce da gaita-de-foles soando no ar atrás de mim. Digo que conversávamos, mas, geralmente, era Darragh que falava e eu ouvia, feliz por estar ali sentada com ele. Porque, de que havíamos nós de falar? As coisas que eu fazia eram secretas, não as podia contar. E o mundo de Darragh era-me desconhecido, estranho, como uma espécie de sonho, que nunca se realizaria.

 

Por que é que ele não te leva para Sevenwaters? perguntou-me ele um dia algo imprudentemente. Nós já lá estivemos uma ou duas vezes, sabes? Ainda lá vive uma velha tia do meu pai. Tu tens uma família inteira naquelas bandas: tios, tias e uma data de primas. Serias bem-vinda, tenho a certeza.

 

Por que o faria ele? Olhei para ele, encontrando alguma crítica, se bem que indirecta, na sua expressão.

 

Porque... Darragh parecia lutar com falta de palavras. Porque... bem, porque é assim com as famílias. Crescemos em conjunto, fazemos coisas em conjunto, aprendemos uns com os outros, tomamos conta uns dos outros e... e...

 

Eu tenho o meu pai. Ele tem-me a mim. Não precisamos de mais ninguém.

 

Isso não é vida resmungou Darragh. Isso não é vida para uma rapariga.

 

Eu não sou uma rapariga, sou filha de um feiticeiro retorqui, erguendo as sobrancelhas para ele. Não preciso de ir para Sevenwaters. A minha casa é aqui.

 

Estás a fazer aquilo outra vez disse Darragh após um momento.

 

O quê?

 

Aquilo que fazes quando estás zangada. Os teus olhos começam a brilhar e umas faiscazinhas percorrem-te o cabelo, como se fossem chamas. Não me digas que não sabias.

 

Muito bem, então disse eu, pensando que teria de exercer mais controlo sobre os meus sentimentos.

 

Muito bem o quê?

 

Que isso demonstra, precisamente, o que eu disse. Que eu não sou apenas uma rapariga. Por isso, deixa de planear o meu futuro. Eu sou muito bem capaz de o planear.

 

Hum-hum. Ele não me pediu pormenores. Ficámos ali sentados em silêncio por um bocado, vendo as gaivotas a voar por cima dos curraghs que regressavam. O mar estava escuro como ardósia; antes do anoitecer estalaria a tempestade. Ao fim de um certo tempo ele começou a falar-me do pónei branco que trouxera dos montes e como o seu pai quereria que ele o vendesse por um bom preço na feira de cavalos, mas Darragh não tinha a certeza se conseguiria separar-se dele, porque havia um entendimento cada vez maior entre ambos. Quando ele acabou, eu estava extasiada e já me tinha esquecido de que me tinha zangado com ele.

 

Tinha catorze anos e o Verão estava quase no fim. O meu pai estava satisfeito comigo, podia vê-lo nos seus olhos. O Encantamento era difícil. Era possível conseguir resultados espectaculares. O meu pai era capaz de se transformar num ser completamente diferente: numa raposa vermelha de olhos brilhantes ou numa estranha criatura, fantasmagórica, parecida com um pouco de fumo. Ele disse-me os seus nomes, mas não me permitiu que tentasse o mesmo. Era perigoso se usado irreflectidamente. O risco estava em não conseguir inverter o processo. Havia sempre a hipótese de não regressar. Além disso, disse-me o meu pai, aquelas transformações provocavam um desgaste nos poderes de um feiticeiro. Quanto mais longe da aparência normal se fosse, maior era o esgotamento. Se eu me transformasse, por exemplo, num feroz monstro marinho, ou numa águia com garras afiadas e depois conseguisse regressar à minha forma. Durante um certo tempo, depois disso, nenhum exercício da arte seria possível. Poderia durar um dia, ou uma noite. Durante esse tempo o feiticeiro estaria por sua conta, totalmente vulnerável.

 

Assim, eu estava proibida de tentar as variantes maiores do feitiço, que diziam respeito a formas não-humanas. Mas as outras, as mudanças mais subtis, descobri que tinha talento para elas. A princípio foi difícil, deixando-me exausta e a tremer. Mas apliquei-me e, com o tempo, era capaz de entrar e sair do Encantamento num abrir e fechar de olhos. Aprendi a esconder o cansaço.

 

Deves compreender disse o meu pai gravemente que o que crias é apenas uma ilusão aos olhos das outras pessoas. Se o teu disfarce é subtil, apenas uma alteração da tua própria pessoa, as pessoas não se aperceberão de que as coisas mudaram. Perguntarão apenas por que razão não repararam antes como eras encantadora, ou como a tua expressão é digna de confiança. Não saberão que foram manipuladas. E quando regressares à tua forma normal, elas não se lembrarão de te terem visto de outra maneira. Um disfarce completo é outra coisa. Deve ser utilizado com muito cuidado. Pode criar dificuldades. É melhor manteres o teu disfarce o mais próximo possível da tua forma original. Dessa maneira podes regressar facilmente e recuperar as forças rapidamente. Desculpa-me por um momento. O meu pai virou-me as costas, reprimindo uma tosse profunda.

 

Sente-se bem? perguntei. Não era normal ele ter mais do que um espirro, mesmo nos Invernos mais rigorosos.

 

Estou bem, Fainne disse ele. Não te preocupes. Lembra-te do que te disse acerca do Encantamento. Se usares as formas diferentes, corres um risco muito grande.

 

Mas eu sou capaz protestei. Transformar-me numa ave, ou numa serpente. Tenho a certeza de que sou capaz. Não posso, ao menos, tentar?

 

O meu pai olhou para mim.

 

Dá-te por feliz disse ele por não precisares. Acredita que é perigoso. É um feitiço de recurso.

 

Já não era possível afastar-me dos meus estudos. Mal tinha visto o Sol em todo o Verão, porque o meu pai conseguira que uma das raparigas locais nos levasse ao Favo de Mel as provisões de pão, peixe e vegetais de que necessitávamos. Havia uma nascente numa das galerias mais profundas e agora era ele que ia lá buscar água. Eu ficava a estudar. Treinava-me para não me importar. A princípio custava-me muito, sabendo que Darragh estaria algures à minha procura, à minha espera. Mais tarde, quando ele deixou de esperar, ainda me doeu mais. Escapava por breves momentos até uma plataforma sobre a água, um local secreto acessível apenas a partir das passagens abobadadas do Favo de Mel. Daquele ponto vantajoso conseguia ver a baía toda, desde o nosso lado, com as falésias a pique e as ondas a baterem, até ao fundo, a ocidente, onde o promontório abrigava as casas espalhadas e o acampamento alegre e desleixado dos nómadas. Conseguia ver os rapazes e as raparigas a correrem na praia e ouvir os seus risos, trazidos pelo vento, misturados com os gritos das gaivotas. Darragh estava entre eles, agora mais alto, porque crescera durante o Inverno. O seu cabelo escuro era atirado para trás pelo vento e o seu sorriso estava mais torcido do que nunca. Havia sempre uma rapariga à volta dele, por vezes duas ou três. Reparei, em particular, numa, uma coisinha esguia com a pele tisnada pelo sol e uma grande trança pelas costas abaixo. Onde quer que Darragh estivesse, ela não estava longe, os dentes brancos faiscando num sorriso e a mão na anca, olhando. Sem qualquer razão especial, odiei-a.

 

Os rapazes costumavam mergulhar das rochas mesmo por baixo do Favo de Mel, inconscientes da minha presença na saliência acima. Estavam na idade em que se acham invencíveis, quando cada rapaz é um herói, que pode matar todos os monstros que se atravessam no seu caminho. A saliência que escolheram era estreita e escorregadia; o mar era sombrio, frio e traiçoeiro. O mergulho tinha de ser calculado ao instante, para evitar a força de uma onda que os esmagaria contra as rochas aguçadas na base do Favo de Mel. Eles mergulharam uma e outra vez, três ou quatro ao mesmo tempo, esperando o momento, os pés descalços agarrando a rocha, os corpos morenos ao sol, enquanto as raparigas e as crianças mais pequenas observavam da praia, silenciosas, em antecipação. Então, subitamente e de modo chocante apesar das muitas repetições, o mergulho para as águas ameaçadoras.

 

Nesse Verão vi-os duas ou três vezes. A última vez que lá fui, vi Darragh abandonar a saliência e subir até mais alto, ágil como um caranguejo, agarrando-se às fendas da falésia, trepando até se empoleirar numa minúscula pedra muito acima do primeiro ponto de mergulho. Prendi a respiração, chocada. Ele não ia... certamente não ia...? Mordi o lábio e senti sangue; fechei as mãos com tanta força que as unhas me cortaram as palmas. O louco. Por que havia ele de tentar tal coisa? Como é que ele podia...?

 

Darragh ficou imóvel por um momento enquanto a audiência se calava e ficava gelada, sentindo, sem dúvida, o mesmo terror fascinante que eu sentia. Lá em baixo, muito lá em baixo, as ondas esmagavam-se e sugavam e lá no alto as gaivotas gritavam avisos. Darragh não ergueu os braços para mergulhar. Inclinou-se apenas para a frente e caiu a prumo, de cabeça, direito como uma seta, os braços encostados ao tronco, sempre, sempre, até que o seu corpo entrou na água como uma ave marinha em busca de peixe; e eu vi uma onda passar por cima do local onde ele tinha desaparecido, e outra, e uma terceira, enquanto o meu coração batia de medo, como um tambor, e então, muito mais longe, na direcção da praia, emergiu da água uma cabeça escura, toda molhada e ele começou a nadar e ouviu-se um viva dos rapazes na saliência e das raparigas na areia e quando ele saiu da água, a escorrer e a rir, lá estava ela para o felicitar e para lhe oferecer o xaile dos seus próprios ombros, para ele se enxugar.

 

Nesse dia não me concentrei muito bem e o meu pai pousou em mim aquele olhar vivo, mas não disse nada. Tinha de decidir se voltaria lá, ou não, para os ver. O que o meu pai me tinha dito era verdade. Um feiticeiro, ou a filha de um feiticeiro não podia fazer as tarefas requeridas, não podia praticar a arte totalmente, se outras coisas se atravessavam no seu espírito.

 

Estávamos a aproximar-nos de Lugnasad e daquele fim de Verão quando o meu pai me contou, por fim, a sua história. Sentámo-nos à lareira após um longo dia de trabalho, bebendo cerveja. Em ocasiões como aquelas ficávamos silenciosos, cada um absorvido nos seus próprios pensamentos. Eu observava o meu pai enquanto ele olhava para as chamas e pensava que ele estava a perder peso, os ossos da face aparecendo por baixo da pele. Até estava mais pálido do que habitualmente. Ensinar-me devia ser um fardo, por vezes. Não admirava que parecesse cansado. Teria de trabalhar mais.

 

Tu sabes que descendemos de uma linha de feiticeiros, Fainne disse ele subitamente, como se estivesse a seguir um pensamento.

 

Sim, pai.

 

E compreendes o que isso quer dizer?

 

Eu não compreendia por que razão ele me estava a perguntar aquilo.

 

Que não somos iguais às outras pessoas, e nunca poderemos ser. Somos uma espécie à parte, nem uma coisa, nem outra. Podemos exercer a arte para o propósito que escolhermos. Mas alguns elementos da magia estão para além de nós. Podemos entrar no Outro Mundo, mas não lhe pertencemos. Vivemos neste mundo, mas nunca lhe pertencemos.

 

Muito bem, Fainne. Em teoria, compreendes, muito bem. Mas não é a mesma coisa ir por esse mundo e descobrir o que isso significa. Tu não sabes a dor que esta semiexistência pode provocar. Diz-me, lembras-te da tua avó? Ela esteve aqui há muito tempo; talvez há mais de dez anos. Talvez te tenhas esquecido dela.

 

Eu franzi o sobrolho, concentrando-me.

 

Creio que me lembro. Ela tinha uns olhos iguais aos seus e olhou para mim de tal maneira que a cabeça me doeu. Perguntou-me o que tinha aprendido e quando eu lhe disse, ela riu-se. Desejei que se fosse embora.

 

O meu pai acenou com a cabeça, de modo severo.

 

A minha mãe já não pode andar por esse mundo. Fica nos lugares mais sombrios; mas não podemos esquecer-nos dela, nem da sua arte. Nós transportamos o seu legado, tu e eu, quer queiramos quer não e é através dela que somos ambos menos e mais do que pessoas normais. Eu não desejava dizer-te mais do que isto, mas chegou a hora. Queres ouvir a minha história?

 

Quero, pai sussurrei, chocada.

 

Muito bem. Ficas a saber, então, que durante dezoito anos da minha vida vivi na floresta sob a protecção e sustento dos sábios. O que aconteceu antes não me lembro, porque fui para a grande floresta de Sevenwaters quando era ainda bebé. Os carvalhos e os freixos eram a minha companhia; dormia nos ramos das sorveira-bravas, os melhores para ouvir as vozes dos espíritos e usava o traje de iniciado. Foi uma infância de disciplina e ordem; frugal na alimentação, suficiente para as necessidades do corpo, mas rica na alimentação da mente e do espírito, privado dos elementos básicos da existência de um homem, rodeado pela beleza das árvores, dos rios, dos lagos e das pedras musgosas. Cresci a gostar de aprender, Fainne. Tentei incutir esse amor em ti, ao longo dos anos da tua infância.

 

Devo a maior parte do meu treino para me tornar num druida a um homem chamado Conor, que foi o líder dos sábios durante o tempo em que lá estive. Ele interessou-se particularmente pela minha educação. Conor era um professor muito difícil. Nunca dava uma resposta directa a uma pergunta. Apontava-me sempre a direcção certa, mas deixava que eu encontrasse, por mim, as respostas. Aprendi rapidamente e queria sempre mais. Progredi; cresci e tornei-me num jovem. Conor não me felicitava facilmente. Mas estava contente comigo e, mesmo antes de eu completar o meu treino e poder, por fim, chamar a mim próprio druida, permitiu-me que o acompanhasse à grande casa de Sevenwaters para o assistir no ritual de Imbolc.

 

Era a primeira vez que eu saía das profundezas da floresta. Era a primeira vez que eu via outras pessoas, para além dos meus irmãos sábios. Conor celebrou o ritual, acendeu o fogo sagrado e eu transportei a tocha por ele. Foi o culminar de longos anos de treino. Depois de comermos, ele permitiu que eu contasse uma história às pessoas reunidas. E estava orgulhoso: podia vê-lo no seu rosto, apesar da sua extraordinária capacidade para esconder os seus pensamentos. Havia uma alegria no meu coração, nessa noite, como se a mão da própria deusa me tivesse tocado o espírito e me tivesse indicado o caminho que eu seguiria alegremente durante o resto da minha vida. A partir de então, pensei, dedicar-me-ia aos caminhos da Luz.

 

Sevenwaters é uma grande casa e um grande túath. Um homem chamado Liam era o senhor, irmão de Conor. E havia uma irmã, Sorcha, de quem se diziam coisas maravilhosas. Era uma contadora de histórias notável, e uma famosa curandeira e a sua própria história era a mais estranha de todas. Os seus irmãos foram transformados em cisnes por uma feiticeira maligna e Sorcha conseguiu que eles regressassem à forma humana por meio de uma grande coragem e sacrifício. Olhando para ela, era difícil acreditar que fosse verdade, porque era tão pequenina, tão frágil! Mas eu sabia que era verdade. Conor dissera-me; Conor, que também ele tomou a forma de uma criatura selvagem durante três longos anos. São uma família de considerável poder e influência e possuem capacidades para além do normal.

 

Naquela noite tudo era novo para mim. Uma casa grande; uma festa com mais comida do que alguma vez vira, travessas de coisas boas, cerveja com abundância, luzes, música e dança. Senti uma certa... dificuldade. Era um estranho. Mas fiquei e observei. Vi uma rapariga linda, maravilhosa, a dançar, a rodopiar e a rir, com os cabelos cor de cobre a caírem-lhe pelas costas abaixo e a pele, dourada, a brilhar à luz dos archotes. Mais tarde, no grande salão, foi para ela que contei a minha história. Naquela noite não foi com a deusa nem com os meus nobres ideais que sonhei, mas com Niamh, filha de Sevenwaters, dançando e girando no seu vestido azul e sorrindo sempre que olhava para mim. Não eram essas as intenções de Conor, quando me levou com ele à festa. Mas, uma vez aquilo começado, não havia regresso possível. Eu amava-a; ela amava-me. Encontrámo-nos na floresta, em segredo. Certamente que haveria dificuldades se tornássemos conhecidas as nossas intenções. Um druida pode casar, se assim o quiser, mas é raro. Além disso, Conor tinha planos para mim e eu sabia que ele não gostaria da ideia. Niamh não estava prometida a ninguém, mas disse que a sua família talvez levasse algum tempo a aceitar a ideia de ela casar com um jovem cuja família era inteiramente desconhecida. No fim de contas, era sobrinha do próprio Lorde Liam. Mas, para nós, não havia alternativa. Não conseguíamos ver um futuro em que estaríamos separados. Assim, encontrávamo-nos sob os carvalhos, longe dos olhares e quando estávamos juntos as dificuldades desapareciam. Éramos jovens. Parecia que tínhamos todo o tempo do mundo.

 

O meu pai fez uma pausa para tossir e bebeu um gole de cerveja. Senti que tinha dificuldade em contar aquela história e guardei silêncio.

 

Com o tempo, fomos descobertos. Como, não interessa. O sobrinho de Conor foi à floresta a cavalo, trouxe o tio e eu ouvi o suficiente para saber que Niamh estava metida em sarilhos. Quando cheguei a Sevenwaters fui metido numa pequena sala e lá estava o próprio Conor, o seu irmão, que era o senhor do túath e o pai de Niamh, o bretão. Esperava encontrar alguma oposição. Esperava defender a minha causa, de maneira a que Niamh se tornasse minha mulher; pelo menos, conseguir apresentar as minhas credenciais e permitir que me ouvissem. Mas isso não aconteceu. Não haveria casamento. Eles não estavam interessados no que eu tinha para dizer. Foi um desastre. Mas não foi tudo. A razão porque aquele casamento nunca se realizaria não era a que eu esperava. Não era a minha falta de nascimento, ou falta de recursos. Era uma questão de sangue. Porque eu não era, como acreditava, um tipo de nascimento obscuro, adoptado e sustentado pelos sábios. Havia uma grande mentira; uma verdade vital escondida. Eu era o fruto de uma feiticeira, uma inimiga de Sevenwaters. Ao mesmo tempo, era o sétimo filho de Lorde Colum, o anterior senhor do túath.

 

Fiquei a olhar para ele. Filho de um chefe de guerra, de sangue nobre, e não lhe tinham dito; não fora justo. O filho de Lorde Colum; mas... isso queria dizer...

 

Sim disse o meu pai estudando o meu rosto com uns olhos muito sérios eu era meio-irmão de Conor e de Lorde Liam, o senhor de Sevenwaters, e de Sorcha. Tinha sangue maldito. E estava demasiado próximo de Niamh. Era meio-irmão da mãe. A nossa união era proibida por lei. Assim, de repente, perdi a minha amada e o meu futuro. Como poderia o filho de uma feiticeira aspirar aos caminhos da Luz? Como poderia o fruto de uma feiticeira tornar-se num druida? Era o fim de uma visão, o fim de todas as esperanças. Quanto a Niamh, tinham o seu futuro planeado. Casaria com outro qualquer, provavelmente um chefe de guerra com influência, que a levaria convenientemente para longe, para que não tivessem de pensar em como estivera quase a manchar a honra da família.

 

Havia uma amargura terrível na sua voz. O meu pai pousou a caneca de cerveja no chão e uniu as mãos.

 

É terrível murmurei. Terrível e triste. Foi o que aconteceu? Mandaram-na para longe?

 

Casou-se e foi para Tirconnell. O marido tratou-a cruelmente. Durante algum tempo não soube nada, porque fui para longe em busca do meu passado. Isso é outra história. Por fim, Niamh escapou. A irmã dela soube da sua situação e ajudou-a. Depois, mandaram-me uma mensagem e eu fui ter com ela. Mas o mal estava feito, Fainne. Ela nunca recuperou.

 

Pai?

 

O que é, Fainne? Parecia terrivelmente cansado; a sua voz estava fraca e rouca.

 

A minha mãe não foi feliz aqui, em Kerry?

 

Pensei, por uns momentos, que ele não ia responder. Pareceu-me que ele teve que procurar as palavras no fundo da alma.

 

A felicidade é relativa. Houve momentos de contentamento; o teu nascimento foi um deles. Niamh acreditou que tinha, por fim, feito algo de bom. E eu pensei que ela tinha recuperado; mas não estava preparado para o que aconteceu no fim. Parece que nunca conseguiu recuperar o que perdera. Talvez a sua resposta final fosse a única que lhe restava.

 

É uma história muito triste disse eu. Mas ainda bem que ma contou.

 

Foi necessário contar-ta, Fainne disse o meu pai muito calmamente. Tenho de ter em consideração o teu futuro. Creio que chegou a hora de seguires em frente.

 

Que quer dizer com isso, seguir em frente? O meu coração começou a bater como um tambor em sinal de alarme. Posso começar a aprender outros ramos da arte? Estou morta por começar, pai. Prometo que trabalharei arduamente.

 

Não, Fainne, não é isso que quero dizer. Chegou a hora de tu partires por algum tempo, para te dares a conhecer à família de quem te falei, aos que já esqueceram por completo que Niamh existiu e lhes poderia causar embaraço e incómodo. Chegou a hora de ires para Sevenwaters.

 

O quê? Estava espantada. Deixar Kerry, deixar a enseada, viajar aquela distância toda para acabar no meio daqueles que tinham tratado os meus pais de maneira tão abominável que nunca mais tinham podido regressar a casa? Como podia ele sugerir tal coisa?

 

Fainne, acalma-te e ouve. O meu pai tinha um ar muito grave; a luz da fogueira permitia-me ver os sulcos do seu rosto, uma sombra do ancião que se aproximava. Reprimi uma porção de perguntas. Estás a ficar mais velha disse ele. Tu és neta de um chefe de guerra do Ulster, o outro lado da tua linhagem não muda isso. A tua mãe não quereria que crescesses aqui sozinha, comigo, conhecendo apenas este círculo restrito de pescadores e nómadas e passando a vida a praticar a arte.

 

Há um mundo lá fora, filha, deves ir em frente e ocupar nele o lugar que te pertence. Os da floresta têm uma dívida a pagar e pagá-la-ão.

 

Mas, pai... As suas palavras não faziam qualquer sentido para mim; eu só sentia o terror de ser mandada embora, de deixar o único lugar seguro que eu conhecia em todo o mundo. A arte, o que me está a dizer, a arte é a única coisa que interessa, passei tanto tempo a aprender e agora sou boa, mesmo boa, o pai disse-o...

 

Calma, Fainne. Respira devagar; acalma a tua mente. Não precisas de te afligir. Não tenhas medo de perder as tuas capacidades ou a oportunidade de as utilizar uma vez afastada daqui. Preparei-te suficientemente bem para que isso aconteça.

 

Mas... Sevenwaters? Uma casa tão grande, com tantos estranhos... pai, eu... eu não consigo explicar como isso me assusta.

 

Não há necessidade de tanta ansiedade. É verdade, Sevenwaters foi um local de tristeza e perda, tanto para mim como para a tua mãe. Mas as pessoas dessa família não são todas más. Eu não tenho querelas nenhumas com a irmã da tua mãe. Liadan fez-me, um dia, um grande favor. Se não fosse ela, Niamh nunca teria escapado daquela farsa de casamento. Não o esqueci. Liadan seguiu o caminho da mãe ao casar com um bretão. Foi contra a vontade de Conor; aliou-se a um fora-da-lei e tirou o filho da floresta. Tanto Liadan, como o marido, são boas pessoas, se bem que possa passar algum tempo antes que os possas ver, porque vivem em Harrowfield, do outro lado do mar. Mas deves conhecer Conor. Quero que ele te conheça. Estarás à altura, Fainne. Irás no próximo Verão; tens um ano para te preparares. As coisas que eu não te posso ensinar, ser-te-ão ensinadas pela minha mãe. Os seus lábios torceram-se num sorriso triste.

 

Oh disse eu em voz baixa. Ela vem cá? A minha avó?

 

Mais tarde replicou o meu pai, friamente. Podemos não gostar muito, mas a minha mãe tem um papel a desempenhar nisto tudo e não há dúvida de que ela tem capacidades que te serão úteis. Num lugar como Sevenwaters tens de ser capaz de te conduzir, em tudo, como a filha de um chefe de guerra. E nunca conseguirás aprender isso comigo. Adquiri conhecimentos profundos na floresta, mas nunca descobri como entrar no mundo como filho de Lorde Colum.

 

Lamento, pai disse eu, consciente de que a minha tristeza não era nada comparada com a dele. Mas pensei... pensei que um dia seria como o pai, um grande erudito, um grande mágico. Aquilo que me ensinou, as longas estações de prática e estudo, não se perderão se eu for para o pé de uma... senhora?

 

Os lábios do meu pai curvaram-se.

 

Creio que empregarás todas as tuas capacidades em Sevenwaters disse ele. Ensinei-te a arte como a minha mãe me ensinou a mim podes ter a certeza acrescentou ele ao ver os meus olhos abertos de surpresa. Ela é uma perita, sem igual, em certos ramos da magia. Como tal, não precisa de estar presente, fisicamente, para te ensinar.

 

Pensei na câmara fechada, nos longos períodos de silêncio. Na verdade, guardara bem os seus segredos.

 

Eu não a convido para aqui de ânimo leve, Fainne. A minha mãe é uma mulher perigosa. Mantive-a afastada de ti enquanto pude, mas agora precisamos dela. Chegou a hora. Não tenhas receio. És minha filha e sinto-me orgulhoso das tuas capacidades e de tudo o que conseguiste. O facto de te mandar para Sevenwaters é um sinal da grande fé que tenho em ti, Fainne, fé nos teus talentos e confiança na tua habilidade para encontrar o caminho certo para eles. Espero que um dia percebas o que quero dizer. Agora, é tarde e temos trabalho para fazer amanhã. É melhor ires dormir, filha.

 

Sentia-me profundamente chocada pelo que o meu pai me dissera e muito perturbada. Mas um ano era muito tempo. Pode acontecer muita coisa num ano. Talvez eu não precisasse de ir. Talvez ele mudasse de ideias. Entretanto, só me restava continuar com o exercício da arte, porque, se acontecesse o pior e o meu pai me mandasse embora sozinha, queria estar em condições de me ajudar a mim própria. Pus de lado os meus receios e dediquei-me ao trabalho.

 

O tempo estava quente, mas o meu pai continuava com uma tosse persistente e com dificuldade em respirar. Ele tentava escondê-la, mas eu ouvia-o à noite, quando estava acordada na escuridão.

 

Continuei a exercitar-me com o espelho. Gradualmente reduzi o encantamento a algumas palavras apenas. Pus os meus olhos azuis, ou verdes, ou cinzentos. Dei-lhes forma longa e oblíqua, redonda como os de um gato, de longas pestanas, bulbosos, afundados nas órbitas e velhos. À medida que a estação avançava evoluí para outras partes do rosto- o nariz, a boca, os ossos da face. O cabelo. A roupa. Uma velha andrajosa, talvez um futuro disfarce. Uma rapariga pescadora com a mão na anca, com o seu sorriso sedutor e dentes brancos, brilhantes. Uma Fainne parecida comigo própria, quase uma gémea, mas com mudanças subtis Os lábios mais doces, as maçãs-do-rosto mais arqueadas, as pestanas maiores. A figura mais delgada e mais curvilínea. A pele pálida e delicada, translúcida, como uma pérola. Uma Fainne perigosa.

 

Muito bem disse o meu pai, observando-me enquanto eu mudava de um disfarce para outro. Tens aptidão para isso, não ha dúvida. A semelhança é muito convincente. Mas, pergunto a mim próprio se conseguirás aguentá-la?

 

É claro que consigo respondi instantaneamente. Experimente.

 

Está bem. O meu pai reuniu um conjunto de rolos de pergaminho, cartas e um saco de pele de cabra muito bem apertado com uma fita, cujo conteúdo podia ser uma coisa qualquer. Leva isto. O passeio vai-te fazer bem.

 

E encaminhou-se para a saída, os seus pés calçados com sandálias sem fazerem ruído no chão de pedra.

 

Onde vamos? Sentia-me desconfiada e apressei-me para o acompanhar, ainda com o disfarce de mim própria.

 

Dan vai para o Norte amanhã. Tenho assuntos que quero que ele resolva por mim e mensagens para ele entregar. Mantém-te assim. Age como tal. Mantém esse disfarce. Quero ver a tua força.

 

Mas... eles não vão reparar que eu estou... diferente?

 

Há um ano que não te vêem. As raparigas crescem muito depressa. Não precisas de te preocupar.

 

Mas...

 

O meu pai olhou para mim por cima do ombro quando saímos do Honeycomb para o carreiro na falésia. A sua expressão era neutra.

 

Há algum problema? perguntou.

 

Não, pai. Não havia problema nenhum. Apenas Dan, Peg e os outros homens e mulheres com os seus olhares penetrantes e os seus comentários. Apenas as raparigas com os seus risinhos e sussurros e os rapazes com as suas brincadeiras. Apenas o facto de nunca ter ido ao acampamento sem a companhia de Darragh, durante todos aqueles anos em que a tribo de Dan Walker passava o Verão na baía. Apenas o facto de ir para o meio de um povo que continuava a aterrorizar-me, apesar de ser filha de um feiticeiro, porque os meus truques não escondiam o meu defeito, o meu passo esquisito e a minha timidez de deficiente.

 

Mas, pensei, enquanto seguia a figura encapuçada do meu pai, que caminhava com grandes passadas pelo carreiro abaixo na direcção da enseada: eu hoje não sou essa rapariga: não sou essa Fainne. Em vez disso, sou o que me apetece. Sou a outra Fainne, envolta no Encantamento, com um vestido elegante, os caracóis suaves como seda, o passo firme, as pestanas longas e reviradas e um belo sorriso. Dan, Peg e os outros ver-me-iam e admirar-me-iam sem repararem na mudança.

 

Pronta? perguntou o meu pai em voz baixa enquanto percorríamos o carreiro e avistávamos a tribo preparando o gado e os pertences para a partida do dia seguinte. Os cães corriam e ladravam, as crianças perseguiam-se umas às outras por entre as carroças, os cavalos e as pernas dos homens e mulheres ocupados nas suas tarefas. Quando nos aproximámos e fomos avistados, as pessoas afastaram-se como era seu hábito, deixando um espaço em redor do meu pai. Ele continuou, imperturbável, com grandes passadas, até que avistou Dan Walker a ajustar uns arreios. Um par de rapazes aproximava-se com dois póneis, vindos da praia, e olharam para mim. Pus uma mão na anca com indiferença e olhei para eles por baixo das pestanas, como vira fazer aquela rapariga, a dos dentes. Um dos rapazes desviou o olhar, como que desconcertado, e afastou-se. O outro assobiou apreciativamente.

 

E entrega isto em St. Ronan estava a dizer o meu pai a Dan Walker. Fico-te grato, como sempre.

 

Não custa nada. Este ano tenho que ir para esses lados. Fica perto de Sevenwaters. Não posso ir para essas bandas sem visitar a minha velha tia. Nunca me perdoaria. Já está velhota, mas continua rija, como sempre. Tem alguma mensagem para as pessoas de lá? A pergunta saíra como que por acaso.

 

As feições do meu pai fecharam-se de maneira quase imperceptível.

 

Desta vez não.

 

Dei um passo em frente, depois outro e reparei que Peg e as outras mulheres estavam a olhar para mim, do sítio onde penduravam a roupa nos arbustos, para secar, e vi que os olhos de Dan também estavam fixos em mim, apreciadores. Olhei para longe, na direcção do mar.

 

A rapariga honra-te, Ciarán disse Dan. O nómada baixara a voz, mas eu ouvi-o na mesma. Quem diria? Está a tornar-se uma verdadeira beleza; sai à mãe. Tens de começar a pensar num marido para ela.

 

Seguiu-se uma pausa.

 

Sem ofensa acrescentou Dan, sem ênfase.

 

A sugestão não foi apropriada disse o meu pai. A minha filha é uma criança.

 

Dan não fez nenhum comentário, mas eu sentia que os seus olhos me seguiam enquanto eu caminhava na direcção dos póneis atados uns aos outros à sombra das árvores, mordiscando a erva. Sentia muitos olhos a seguirem-me, e não eram divertidos, piedosos ou trocistas, antes curiosos, admiradores, intrigados. Fizeram-me sentir estranha.

 

Estendi uma mão para afagar o longo focinho de um plácido animal cinzento e o rapaz que assobiara apareceu a meu lado. Era do género desengonçado, sardento, um pouco mais velho do que eu. Vira-o muitas vezes com os outros e nunca trocáramos uma palavra. Por trás dele estavam outros dois.

 

O nome dele é Silver. Aquilo foi dito com timidez, como se o rapaz estivesse pouco seguro de si. Seguiu-se uma pausa. Era evidente que esperava uma resposta da minha parte. O Encantamento era óptimo, fazendo de mim aquela-parecida-comigo a quem todos eles queriam olhar e falar. As minhas técnicas estavam à altura. Mas tinha, também, de agir em harmonia; encontrar as palavras, os sorrisos, os pequenos gestos. Encontrar a coragem. Meti uma mão na algibeira do meu vestido, repeti silenciosamente as palavras de um velho feitiço e tirei uma maçã enrugada que não estava lá quando saímos de casa.

 

Posso dar-lhe isto? perguntei docemente, arqueando as sobrancelhas e tentando um sorriso tímido.

 

O rapaz acenou com a cabeça, sorrindo. Agora, havia cinco à minha volta, encostados com estudada indiferença à parede ou meio escondidos atrás uns dos outros, espreitando sem se fazerem notados. Pus a maçã na palma da mão e o cavalo comeu-a. As suas orelhas estavam recuadas. Não se sentia à-vontade comigo e eu sabia porquê.

 

É verdade que consegues fazer fogo com as mãos? perguntou subitamente um dos rapazes.

 

Cala a boca, Paddy disse o primeiro com um olhar carrancudo. O que é que te deu, para perguntares a esta jovem dama uma coisa dessas?

 

Não tens nada com isso, parece-me disse outro, se bem que, como os restantes, tivesse uma quota parte nos mexericos acerca da nossa vida solitária no Favo de Mel.

 

O meu pai é que é feiticeiro, não eu disse eu docemente, afagando ainda o focinho do cavalo com dedos delicados. Eu não passo de uma rapariga.

 

Não te vi muito este Verão comentou o rapaz das sardas. Ele mantém-te ocupada, não?

 

Acenei com a cabeça, permitindo que a minha expressão parecesse abatida.

 

Somos só o meu pai e eu, sabes? Imaginei-me uma filha obediente, cozinhando, remendando, varrendo e cuidando do meu pai e podia ver essas mesmas imagens nos olhos deles.

 

É uma pena disse um dos rapazes. Devias vir até cá abaixo de vez em quando. Há danças, jogos e bons momentos, aqui no acampamento. É uma pena perderes isso tudo.

 

Talvez... começou o outro rapaz, mas não cheguei a ouvir o que ele ia dizer, porque foi nesse preciso momento que o meu pai me chamou e os rapazes desapareceram mais depressa do que a neve da Primavera, deixando-me sozinha com o cavalo. E quando me virei para seguir o meu pai obedientemente até casa vi Darragh, na parte mais afastada, escovando o seu pónei branco. O nome

dela era Aoife: discutira durante muito tempo com Dan para poder ficar com ela e, no fim, ganhara. Darragh olhou de relance para mim, afastou o olhar e nem por um franzir de sobrancelhas, ou por um movimento da mão, deu a entender que me reconhecera.

 

Muito bem disse o meu pai enquanto caminhávamos para casa sob o frio crescente do vento vindo de oeste. Muito bem. Estás a apanhar a sensação. No entanto, isto é apenas o princípio. Gostaria que atingisses um maior grau de sofisticação. Vais precisar disso em Sevenwaters. As pessoas lá são algo diferentes dos pescadores e destes nómadas simples. Temos que nos debruçar sobre isso.

 

Está bem, pai.

 

Talvez tenhamos de começar mais cedo do que o planeado. Assim que o povo de Dan se for embora, damos o passo seguinte. Podes descansar um dia. Merece-lo; não podemos esperar mais. Usa o dia com sensatez.

 

Não havia outra hipótese; nunca houvera.

 

Sim, pai disse eu e enquanto subíamos a falésia a caminho dos túneis escuros do Favo de Mel deixei que o Encantamento se afastasse e passei a ser, de novo, eu mesma, com a minha deficiência. Fizera o que o meu pai me pedira. Por que me sentia, então, tão infeliz? não provara que conseguia fazer o que queria? Não mostrara que conseguia fazer com que as pessoas me admirassem e se dobrassem à minha vontade? No entanto, mais tarde, deitada na minha cama e olhando para a escuridão, senti um vazio que não tinha qualquer relação com os feitiços, encantamentos e mestria da arte.

 

Foi uma noite de sonhos inquietos e acordei antes do amanhecer, tremendo por baixo do meu cobertor de lã, escutando o uivo do vento e o rugido do mar a bater nas rochas do Favo de Mel. Não era um dia bom para viajar. Talvez Dan Walker e o seu povo decidissem ficar um pouco mais. Mas nunca acontecia isso. Tinha chegado a ocasião deles, tal como as aves migratórias, as suas chegadas e partidas tão precisas como o movimento das sombras num círculo sagrado. Podia-se contar o tempo por eles. Os dias dourados. Os dias cinzentos. Parecia-me que a voz do vento tinha voz. Vou varrer-te... varrer-te. Levo tudo... tudo... E o mar respondendo. Tenho fome... dá-me... dá-me...

 

Tapei os ouvidos com as mãos e enrosquei-me No fim de contas era suposto ser um dia de descanso. Não conseguiria dormir em paz, pelo menos até ao nascer do Sol? Mas as vozes não se iam embora e eu levantei-me e vesti-me, não muito certa do que o dia me traria, mas pensando que me manteria ocupada e tentando ignorar o sentimento de vazio no estômago. Foi quando estava a calçar as botas que ouvi, muito fraco através do vento, um outro som. Uma nota ou duas, fragmentos de uma canção sobre um firme e sólido zumbido. O som de uma gaita-de-foles. Portanto, ainda não se tinham ido embora. Sem pensar, peguei no meu xaile e subi o monte na direcção das pedras erguidas, o meu cabelo voando ao vento, a espuma do mar perseguindo-me.

 

Darragh parou de tocar quando me viu. Encontrara um local abrigado entre as pedras e estava sentado de pernas estendidas e encostado ao grande dólman a que chamávamos o Guardião, não de forma desrespeitosa, apenas encostado a ele como se lhe pertencesse, tal como os coelhos. Tropecei, afastei os cabelos dos olhos e sentei-me ao lado dele. Apertei o xaile em redor dos ombros. Ainda mal amanhecera e o ar tinha o toque de um Inverno distante.

 

Levei um certo tempo até recuperar o fôlego.

 

Então? disse Darragh, o que não ajudou muito.

 

Então? repeti.

 

Levantaste-te cedo.

 

Ouvi-te tocar.

 

Vim para aqui tocar muitas vezes. Mas tu não apareceste. Vamo-nos embora esta manhã. Mas, suponho que já sabes.

 

Acenei com a cabeça, sentindo-me, subitamente, muito infeliz.

 

Desculpa consegui dizer. Tenho estado muito ocupada. Demasiado ocupada para sair. Eu...

 

Não te desculpes. Pelo menos, se estás a ser sincera disse Darragh.

 

Eu queria... mas não tive hipótese disse-lhe.

 

Darragh fixou-me, os olhos castanhos muito sérios e o rosto ligeiramente franzido.

 

Há sempre hipótese, Fainne disse ele sombriamente. Ficámos ali sentados um bocado e, por fim, ele pegou na gaita-de-foles e recomeçou a tocar uma música que eu não reconheci, suficientemente triste para me levar as lágrimas aos olhos. Não que eu chorasse por causa de uma coisa tão tola, mesmo que fosse capaz.

 

Esta música tem uma letra aventurou-se Darragh. Eu podia ensinar-ta. É muito alegre com a gaita-de-foles.

 

Eu, cantar? Senti-me arrancada da minha infelicidade. Não me parece.

 

Nunca tentaste, pois não? perguntou Darragh. É estranho. Nunca conheci uma alma que não tivesse um pouco de música. Aposto que eras capaz, a cantar, de arrancar as focas ao oceano, se tentasses. O seu tom era de lisonja.

 

Não disse eu, sem graça. Tenho coisas melhores para fazer. Coisas mais importantes.

 

Como, por exemplo?

 

Coisas. Sabes muito bem que não posso falar disso.

 

Fainne.

 

O que é?

 

Não gosto nada que faças aquilo... aquilo... que fizeste ontem.. Não gosto nada.

 

Aquilo o quê? Ergui as sobrancelhas o mais arrogantemente que pude e olhei de frente para ele. Ele devolveu-me o mesmo olhar.

 

Provocar os rapazes. Namoriscar. Portar-te como... como uma rapariga tola. Não está certo.

 

Não sei do que estás a falar retorqui, trocista, se bem que me sentisse atingida pela crítica. De qualquer maneira, não estavas a olhar para mim.

 

Darragh fez o seu sorriso torcido, mas não havia qualquer alegria nele.

 

Estava a olhar, sim. Tu fizeste com que toda a gente olhasse. Fiquei silenciosa.

 

O meu pai tem razão, sabes? disse ele após um momento. Devias casar-te, ter um rancho de filhos, assentar. Precisas que tomem conta de ti.

 

Disparate trocei. Sei muito bem tomar conta de mim.

 

Precisas de alguém que olhe por ti persistiu Darragh. Talvez tu não vejas isso, talvez o teu pai não perceba, mas tu és um perigo para ti própria.

 

Disparate disse eu, amargamente ofendida por ele pensar tão mal de mim. Além disso, quem casaria comigo aqui, na baía? Um pescador? Um latoeiro? Não me parece.

 

Tens razão, claro disse Darragh após um momento. Seria inadequado. Percebo muito bem. Então, levantou-se, colocando a gaita-de-foles ao ombro. Crescera muito, naquele último ano e começava a aparecer-lhe um princípio de barba em redor do queixo. Pusera um pequeno anel de ouro numa orelha, tal como o pai.

 

É melhor ir-me embora, então. Ele olhou para mim sem sorrir. Levava-te no meu bolso se fosses um tudo nada mais pequena, lá isso levava. Não te metas em sarilhos.

 

De qualquer maneira, vou estar muito ocupada disse eu, enquanto a desolação, devido à separação, se apossava de mim uma vez mais. Nunca fora fácil, ao longo dos anos e saber que me iria embora no Outono seguinte ainda piorava as coisas. Tenho um trabalho para fazer. Um trabalho difícil, Darragh.

 

Hum. Ele não parecia ouvir-me, limitando-se a fixar-me. Então, estendeu um braço para me puxar os cabelos, não com muita força e disse o que sempre dizia. Adeus, Caracóis. Vejo-te no Verão que vem. Cuida-te até eu voltar.

 

Acenei com a cabeça, incapaz de dizer fosse o que fosse. De certo modo, apesar de ter aprendido muito durante aquela estação, apesar de me ter tornado quase uma autoridade na minha arte, senti, subitamente, que o Verão se perdera, que desperdiçara algo precioso e irremediável.

 

Olhei para o meu amigo enquanto ele atravessava o círculo de pedras, o vento puxando e afastando as suas velhas roupas e chicoteando o seu cabelo escuro, descia pelo outro lado do monte e desaparecia. estava tanto frio, tanto, que o senti nos ossos, um frio que nenhuma fogueira, ou pele de ovelha conseguiria afastar. Fui para casa ainda com o Sol a espreitar no céu, a leste, vermelho-escuro, por trás de umas nuvens de tempestade. Enquanto regressava ao Favo de Mel, acendendo uma lanterna para me iluminar através das passagens sombrias, regulei a respiração. Uma inspiração, grande e profunda, a partir da barriga. E uma expiração intercalada, como a água de uma grande catarata. Controlo. Tinha de controlar as minhas emoções. Perdê-las tirava todo o sentido à arte. Eu era filha de um feiticeiro. A filha de um feiticeiro não tinha amigos, ou sentimentos; não se podia dar a esse luxo. O meu pai, por exemplo. Tentara viver uma vida diferente e tudo o que conseguira fora desgosto e amargura. Era melhor concentrar-me na arte e pôr o resto de lado.

 

De regresso ao meu quarto tentei imaginar a tribo carregando as carroças, arreando os cavalos e partindo para norte com os cães correndo ao lado e os rapazes fechando a marcha. Tentei imaginar Darragh no seu pónei branco e as suas últimas palavras. Não gosto de te ver fazer aquilo... és um perigo para ti própria. Fizeste com que toda agente olhasse... és um perigo para ti própria... Se era assim que ele me via, era melhor que os nossos caminhos se separassem. Ano após ano, estação após estação esperara por ele, fixando a minha esperança e felicidade no seu regresso. Por vezes, parecia-me que não estava totalmente viva se ele não estivesse ali. Agora, a minha avó estava a chegar e eu ia-me embora; estava tudo a mudar. Era melhor tirar Darragh dos meus pensamentos e continuar. Era melhor aprender a viver sem ele. Além disso, que poderia um rapaz nómada perceber de feitiçaria, de mudanças de forma e das artes da mente? Era um mundo diferente; um mundo para além das suas mais fantásticas fantasias. Um mundo no qual, finalmente, temos de ser suficientemente fortes para continuarmos totalmente sós.

 

 

                                       CAPíTULO DOIS

 

Naquele dia pus todas as minhas coisas em ordem. Fiz a minha estreita cama e enrolei o cobertor. Varri o chão do meu quarto, que era uma das muitas grutas no dédalo de câmaras e passagens do Favo de Mel. Pus de lado o meu xaile e as minhas botas na pequena arca de madeira que continha todas as minhas parcas posses. A nossa vida era muito simples. Trabalho, descanso e comida quando necessária. Precisávamos de pouco, No fundo da arca, meio escondida por baixo da roupa de cama, estava Riona. Era a única coisa que eu possuía que não era uma necessidade vital para a vida. Riona era uma boneca. Quando as pessoas falavam da minha mãe, diziam que ela era linda, esguia, como um jovem vidoeiro, e que o meu pai a amara perdidamente. Diziam que ela fora sempre um pouco desequilibrada e que tinham ficado chocadas com a terrível coisa que fizera. Mas nunca falavam dos seus talentos, do mesmo modo que falavam do facto de Dan ser um campeão das gaitas-de-foles, ou de Molly ser uma cesteira formidável, ou de os bolos de Peg serem os melhores de Kerry. Dir-se-ia que a minha mãe não tinha nenhumas qualidades, salvo a sua beleza e loucura. Mas eu sabia que era diferente. Bastava olhar para Riona para perceber como a minha mãe fora hábil com a agulha. Ao fim de todos aqueles anos, Riona era mais do que uma simples boneca de trapos, apesar das feições um pouco manchadas e do vestido remendado. Fora bem-feita, com pontos tão minúsculos que eram quase invisíveis. Tinha dedos e unhas e pestanas bordadas. Tinha longos cabelos de lã tingidos de amarelo e um vestido sedoso cor-de-rosa por cima de uma combinação de renda. O colar que Riona usava, dando três voltas ao seu pequeno pescoço por razões de segurança, era a coisa mais forte de todas. Fora estranhamente tecido com muitas fibras diferentes, com tanta arte, que não era possível quebrá-lo, por mais força que se fizesse. Suspenso dele havia uma pequena pedra branca com um buraco no meio. Eu não brincava com Riona na presença do meu pai É claro que agora era demasiado velha para brincar. Era uma perda de tempo, como mergulhar perigosamente das rochas quando não havia necessidade. Mas, ao longo dos anos, Riona partilhara inúmeras aventuras com Darragh e comigo. Explorara grutas profundas e barrancos perigosos; quase caíra da falésia para o mar e quase desaparecera na voragem de uma maré. Usara coroas de margaridas entrançadas e capas de pele de coelho. Sentara-se à sombra das pedras, olhando para nós como se fosse uma     rainha vigiando os seus súbditos. Os seus olhos escuros, bordados, olhavam para mim de um modo que, por vezes, me perturbavam. Riona não me julgava, não exactamente. Observava-me.

 

Naquele dia senti uma grande necessidade de me manter ocupada, de canalizar os meus pensamentos para coisas estritamente práticas. Assim, quando o meu quarto ficou varrido e limpo, fui para o local onde guardávamos as nossas provisões, tirei o peixe que a rapariga tinha trazido e algumas cebolas. O peixe já estava limpo e escamado. O meu pai e eu não somos grandes cozinheiros. Comemos porque é necessário, mais nada. Mas eu tinha tempo. Acendi a fogueira, deixei-a morrer e assei as cebolas e o peixe nas brasas. Quando ficaram prontos levei um prato cheio à gruta do meu pai. Mas a porta estava fechada por dentro. Não lhe ouvia a voz entoando cânticos, ou dizendo palavras de magia. O único som era o grito agreste de um pássaro no espaço abobadado. Aquilo significava que Fiacha regressara. O meu coração parou, porque detestava Fiacha. O corvo ia e vinha conforme lhe apetecia e quando ficava durante algum tempo parecia fixar-me com aqueles olhinhos brilhantes, medindo-me e achando-me pouco impressionante. Então, subitamente, ia-se embora de novo, sem sequer um adeus. Talvez trouxesse mensagens. O meu pai nunca me disse.

Eu não gostava do bico afiado de Fiacha, ou do brilho perigoso dos seus olhos. Uma vez, quando eu era pequena, bicou-me e doeu-me imenso. O meu pai disse que foi um acidente, mas eu nunca soube ao certo.

 

Deixei a comida no lado de fora da porta. Havia uma regra que não precisava de ser dita e que dizia que, quando a porta estava fechada, era para não entrar. Alguns elementos da arte têm de ser exercitados em solidão e o meu pai estava sempre a tentar aprofundar os seus conhecimentos. É muito fácil, para um estranho, criticar-nos, ver uma ameaça em tudo o que fazemos, devido, apenas, a uma falta de discernimento. A nossa espécie nem sempre é bem-vinda em todos os recantos de Erin, porque as pessoas contam histórias acerca de nós que são meias verdades e uma mistura dos seus próprios medos e superstições. Não foi por acaso que o meu pai veio viver para este recanto distante de Kerry. Aqui, as pessoas são almas simples, cujas vidas giram em torno do mar e das estações, em cujo mundo não há lugar para o luxo do mexerico e do preconceito.

 

Aceitaram-no e à minha mãe como mais dois habitantes da baía, pessoas corteses, que deviam ser deixadas em paz. E todos sabiam que uma aldeia, com o seu próprio feiticeiro, era o mais seguro dos lugares para se viver. O meu pai demonstrou isso rapidamente, porque um Verão, pouco depois da sua chegada a Kerry, chegaram os noruegueses. Havia histórias acerca das suas incursões ao longo da costa, de mortes brutais, de violações, de incêndios, de roubos de mulheres e crianças e havia histórias sobre os lugares onde eles tinham chegado nos seus grandes barcos e onde se tinham instalado, simplesmente ocupando as casas e as herdades, como se tivessem todo o direito. Mas na nossa enseada não havia nenhuma colónia viquingue. Ciarán tratara disso. As pessoas ainda contavam a história sobre como os grandes barcos, com as suas proas esculpidas, tinham sido avistadas, remando na direcção da praia, tão rapidamente que quase não houve tempo para fugir. O Sol fazia brilhar as achas de guerra e os estranhos elmos que os homens usavam; os remos mergulhavam e saíam da água, ao mesmo tempo que os pescadores ficavam gelados de terror, vendo a morte aproximar-se. Então, o feiticeiro aproximara-se de uma alta saliência do Favo de Mel com o seu bordão de teixo na mão, erguera-o, e um instante mais tarde umas grandes nuvens começaram a correr vindas de oeste e as ondas ergueram-se até se transformarem em montanhas, que se abateram sobre a praia. Os grandes barcos começaram a lutar, a adornar e os remos partiram-se na confusão. No espaço de segundos o céu estava escuro, o oceano fervia e as pessoas observavam, de olhos esbugalhados, enquanto os barcos dos noruegueses se partiam e eram atirados, à vez, contra as rochas. Mais tarde, as crianças encontraram estranhos objectos na praia. Uma pulseira curiosamente lavrada com serpentes e cães. Um colar com a forma de uma minúscula e letal acha de guerra, feito de arame. Uma taça de bronze. O cabo de um remo, finamente trabalhado. O corpo de um homem de pele pálida e cabelos longos, entrançados, da cor do trigo por ocasião de Lugnasad. Por isso, não havia nenhuma colónia viquingue na nossa enseada. Depois disso, o meu pai passou a ser venerado e protegido, um homem incapaz de qualquer mal. Quando a minha mãe morreu as pessoas choraram com ele. E deixaram-no em paz.

 

O meu pai ficou durante todo o dia no seu gabinete com a porta fechada. Quando, por fim, saiu, apanhou o prato de comida do chão e comeu abstractamente, não reparando que estava fria e parecendo pálido e cansado. Sentado junto dos restos da minha fogueira, pegou no peixe gelado e não disse nada. Fiacha seguira-o e empoleirara-se numa saliência, fixando-me. Fixei-o também, carrancuda.

 

É melhor ires deitar-te, filha disse o meu pai e tossiu asperamente. Esta noite não sou boa companhia.

Pai, o pai está doente. Olhei para ele alarmada enquanto ele lutava por respirar. Precisa de ajuda. De um remédio, pelo menos.

 

Disparate. A sua expressão era severa. Não há nada de errado comigo. Vai, vai-te deitar. Isto passa. Não é nada.

 

Não estava nada convencida.

 

Por favor, pai, diga-me o que se passa.

 

Ele deu uma breve risada. Não era um som muito agradável.

 

Por onde havia de começar? Não, chega. Estou cansado. Boa noite, Fainne.

 

E assim fui despedida, deixanclo-o ali, imóvel, olhando para a fogueira a morrer. À medida que me afastava na direcção do meu quarto, o som da sua tosse seguia-me, ecoando nas paredes das grutas subterrâneas.

 

Ela chegou no fim de uma manhã de Outono, quando o meu pai tinha ido buscar água. Eu saí, ouvindo-a chamar da entrada. Nós tínhamos poucos visitantes. Mas lá estava ela; uma anciã envolta em xailes, sem sequer um saco, ou um cesto. A sua face era uma ruga pegada e os olhos tão afundados nas órbitas que mal se podia ver de que cor eram. Tinha uma coroa de cabelos brancos desalinhados e uma voz muito alta.

 

Então, rapariga? Não me convidas a entrar? Não me digas que não era esperada. O Ciarán está a brincar com quê?

 

Passou por mim e desceu o túnel na direcção do gabinete, como se o lugar lhe pertencesse. Eu trotei atrás dela, esperando que o meu pai não se demorasse. Subitamente, virou-se para olhar para mim, muito depressa para uma anciã, e fixou-me intensamente, como se me estivesse a avaliar.

 

Sabes quem eu sou?

 

Sei, avó disse eu, porque, se bem que parecesse muito diferente da mulher elegante de que me recordava, sentia a magia exalar de todos os seus poros, poderosa, antiga e era o suficiente para eu saber quem era.

 

Hum. Cresceste, Fainne. Absolutamente nada impressionada, virou-me as costas e continuou a sua confiante progressão através das sombrias passagens do Favo de Mel. Parou em frente da grande porta do gabinete. Ergueu a mão e empurrou. A porta não se moveu. Feita de carvalho sólido e estruturada de maneira a fixar-se firmemente no arco de pedra, aquela entrada estava selada por meio de ferrolhos de ferro e palavras poderosas. O meu pai guardava ciosamente os seus conhecimentos. A anciã empurrou de novo.

 

Não pode entrar aí disse eu, alarmada. O meu pai não deixa ninguém entrar. Só ele é que entra e eu, às vezes. Tem de esperar.

 

Esperar? Ela ergueu as sobrancelhas e arqueou os lábios num sorriso. Naquelas feições tão velhas, pareceu-me odioso. Os seus olhos trespassaram-me, como se quisesse ler-me os pensamentos. O teu pai não te ensinou este truque, entrar num quarto sem abrir a porta?

 

Eu acenei com a cabeça, devolvendo-lhe o olhar.

 

E como abrir essa porta?

 

Não pense que lha vou abrir disse-lhe eu com a voz a endurecer, zangada, face à sua temeridade. Senti as faces corarem e soube que as faíscas, que Darragh vira uma vez, começariam a aparecer nos meus cabelos. Se o meu pai quer que ela esteja fechada, fica fechada. Eu não a abro.

 

Aposto que não consegues abri-la. Ela estava a tentar-me.

 

Não a abro. Já lhe disse.

 

Ela riu-se, um riso de rapariga, como um toque de pequenas campainhas.

 

Nesse caso, tenho de ser eu a fazê-lo, não tenho? disse ela levianamente e ergueu uma mão rugosa, nodosa, na direcção dos pesados painéis de carvalho. Estalou os dedos e uma brilhante chama percorreu a porta a toda a volta. O ar ficou cheio de fumo e eu comecei a tossir. Não pude ver nada, por momentos Ouviu-se um som de rolha a saltar de uma garrafa e um ranger. O fumo começou a desaparecer. A grande porta estava aberta de par em par, a sua superfície escurecida e empolada, os pesados ferrolhos [pendurados, sem préstimo.

 

Eu fiquei ali à entrada, a olhar, enquanto a anciã dava três passos no interior do quarto secreto do meu pai.

 

Ele não vai ficar nada contente disse eu firmemente.

 

Ele não vai saber replicou ela friamente. Ciarán foi-se embora. Não voltarás a vê-lo até teres aprendido tudo o que tens a aprender, rapariga; só no fim do próximo Verão. Ele não pode ficar, comigo aqui. Não podemos ficar os dois no mesmo lugar. É melhor assim. Nós as duas temos muito trabalho pela frente, Faimne.

 

Fiquei gelada, sentindo o choque do que ela me disse atingir-me o coração. Como podia o meu pai fazer-me aquilo? Para onde fora? Como podia deixar-me sozinha com aquela mulher horrorosa?

 

Ela estava em frente do espelho de bronze, aparentemente admirando-se, porque tirou um pente de um bolso no seu volumoso traje e começou a passá-lo pelos cabelos emaranhados. Contra a minha vontade, aproximei-me.

 

Ciarán não te falou de mim, filha? Não te explicou nada? Ela olhou intensamente para o seu reflexo. Eu aproximei-me por trás, espreitando por cima do ombro dela para a superfície espelhada.

 

A mulher no espelho olhou para mim. Tinha dezasseis anos, não mais. O seu cabelo era uma versão do meu, mas mais brilhante, mais bonito, caindo-lhe aos caracóis pelos ombros com vida própria, de um profundo e rico castanho-avermelhado. A sua pele era leitosa, tão pálida que era possível ver as veias na superfície cor de pérola. A sua figura era esbelta mas curvilínea, com todas as curvas nos seus devidos lugares. Era a figura que eu tentara criar para mim naquele dia, quando fui ao acampamento. Pensava que era habilidosa, mas, comparado com aquilo, os meus esforços não tinham qualquer valor. Aquela mulher era mestre na arte. Olhei-lhe para os olhos. Eram profundos, escuros, da cor das amoras maduras. Eram os olhos do meu pai. Eram os meus olhos. A anciã sorriu para o espelho com os lábios vermelhos, curvos e os pequenos dentes brancos, afiados.

 

Como vês disse ela com um riso sem alegria tenho muito para te ensinar. E é melhor começar já. Transformar-te numa senhora elegante vai ser um desafio.

 

Desde que me lembro que éramos só os dois, o meu pai e eu, trabalhando juntos ou separadamente, os dias devotados à prática da arte. As nossas refeições, o nosso descanso, os nossos contactos com o mundo exterior limitavam-se ao estritamente necessário: a água e a lenha para a fogueira. O peixe entregue à porta por uma rapariga. As mensagens entregues a Dan Walker. Eu tivera os Verões com Darragh. Mas Darragh fora-se embora e eu era, agora, crescida. Esses tempos tinham acabado. O meu pai e eu compreendíamo-nos mutuamente sem muita necessidade de palavras. Por vezes, ele explicava uma técnica, ou uma teoria. Por vezes, eu fazia uma pergunta. A maior parte das vezes ele deixava que eu descobrisse por mim, com uma pequena ajuda aqui e ali. Deixava-me fazer os erros e aprender por mim própria. Dessa maneira, dizia ele, tornar-me-ia mais responsável, retendo as coisas que mais necessitava de fazer. Na verdade, com o tempo, essa disciplina levar-me-ia, não só ao conhecimento, mas também à compreensão. Era uma existência ordeira, bem estruturada, se bem que um pouco à parte dos padrões das pessoas normais.

 

O método de ensino da minha avó era bastante diferente. Começou por me dizer que Ciarán negligenciara gravemente a minha educação; devia ter-me, pelo menos, ensinado a comer polidamente, não a meter a comida na boca com os dedos, como o filho de um latoeiro. Quando tentei defender o meu pai, ela silenciou-me com um pequeno feitiço desagradável, que me engrossou a língua e ma encheu de pêlos, como se tivesse um gato na boca. Não admira que tivesse dito que não podia viver no mesmo local com o filho. Uma das nossas regras mais básicas dizia que a arte não podia ser usada pelo professor contra o aluno, ou pelo aluno contra o professor. O meu pai teria recusado a ideia de usar a magia para infligir castigo. A minha avó usava-a sem qualquer escrúpulo. Odiava a maneira como ela falava dele, do próprio filho.

 

Bem disse ela enquanto me observava a comer o meu peixe, os olhos seguindo cada bocado que viajava do prato para a minha boca ele ensinou-te como mudar de forma, ensinou-te uma data de truques e ensinou-te a deslocar objectos com a mente. De que te servirá isso tudo quando estiveres sentada à mesa com as pessoas educadas de Sevenwaters? Sabes dançar? Sabes cantar? Sabes sorrir a um homem de maneira a fazeres-lhe ferver o sangue e bater o coração como um tambor? Bem me parecia que não. Não bocejes, rapariga. A tua educação tem sido inadequada. A culpa é daqueles druidas que tomaram conta do teu pai e lhe encheram a cabeça de disparates. Ainda bem que ele me chamou. Quando eu acabar contigo, serás perita na arte de trazer um homem pelo beicinho sua coisinha desastrada. Eu sou uma artista.

 

Eu aprendi muito com o meu pai disse eu, zangada. Ele é um grande feiticeiro, profundamente respeitado. Não me parece que precisemos da sua... arte. Eu tenho conhecimentos e capacidades e melhorarei o melhor que sei, porque o meu pai inculcou-me o amor pela aprendizagem. Por que razão hei-de perder tempo e energia com maneiras à mesa?

 

Ela deixou sair o seu riso de rapariga, tão incongruente naquela boca mirrada, sem dentes.

 

Bem, bem. Mal te zangas ficas logo cheia de faíscas. A primeira coisa que precisas de aprender é a não te abrires assim, rapariga. Mas há mais, muito mais. Sei que o teu pai te ensinou umas quantas habilidades. O abecedário, por assim dizer. Mas podes conseguir grandes coisas em Sevenwaters se aproveitares bem as oportunidades. Eu ajudo-te, rapariga. Acredita no que te digo, eu conheço aquela gente.

 

A partir dali, ela passou a comandar. Eu estava habituada às lições teóricas e às lições práticas. Estava habituada a trabalhar muitas horas, a estar perpetuamente cansada e a continuar apesar disso. Mas aquelas lições eram tão entediantes. Como comer como uma carriça, por pequenos bocadinhos. Como dar risinhos e sussurrar segredos. Como manter-me direita ao andar, bamboleando as ancas. Esta última não era fácil, com o meu pé defeituoso. Finalmente, exasperou-se.

 

Nunca andarás direita com a tua própria forma disse ela rudemente. Nunca dançarás sem fazeres figura de parva. Não interessa. Podes usar o Encantamento quando quiseres. Transformares-te na pessoa mais elegante do mundo. Ficares com os pés mais graciosos do mundo, se for preciso. O único problema é que é cansativo. Manteres-te o tempo todo assim, quer dizer. Ficas estafada. Por que é que pensas que tenho estas rugas todas? A nossa espécie vive muitos anos. Por vezes penso que demasiados. Mas estou assim por ter encantado Lorde Colum, mantendo-o na palma da mão. Ela suspirou. Ah, aquilo é que era um homem. Foi pena aquela Sorcha. Se ela não tivesse feito o que fez, não teria havido necessidade disto tudo. Teria sido tudo meu e, por sua vez, de Ciarán. Atua miserável mãe nunca teria existido, nem tu, pequena. Pensa no que eu poderia ter conseguido. Teria sido tudo nosso, como devia ser. Mas ela fez aquilo, foi mais esperta do que eu, ela e aquelas criaturas que dão a si próprias nomes esquisitos. Seres do Outro Mundo. Ah! Subiu-lhes o poder à cabeça há muito tempo, é o problema deles. Fora com os da tua espécie. Nunca fomos suficientemente bons para eles e eles adoram lembrar-nos disso, não adoram? Muito bem, veremos o que pensarão os Fair Folk do meu pequeno presente. Hão-de chorar quando o teu trabalho estiver feito, pequena.

 

Hesitei em perguntar-lhe o que queria dizer. Ela era rápida a ridicularizar e a punir quando achava que eu era lenta, ou estúpida.

 

Era demasiado tarde, disse a minha avó, para eu aprender a tocar harpa, ou flauta. Recusei-me a cantar, mesmo quando ela me castigou, tirando-me a voz. O que não me afligiu muito, já que estava habituada a longos dias de silêncio e, com o tempo, ela desistiu de extrair qualquer forma de música de mim. Descobriu rapidamente que as minhas capacidades para ler e escrever ultrapassavam as suas de longe. Mas o mesmo não aconteceu com a minha habilidade com a agulha; achou-a extremamente rudimentar. Os materiais apareceram subitamente, sedas, tecidos e linho, para começar. À luz da lanterna feri os dedos, entortei os olhos e amaldiçoei-a em silêncio. Aprendi a coser. Ela observava-me zombeteiramente e uma vez disse:

 

Isto faz-me recordar umas coisas. Oh se faz.

 

Ensinou-me outras coisas que me fariam corar, se as dissesse. Necessárias, disse a minha avó, porque eu era uma rapariga e, em qualquer parte do mundo teria de ser capaz de atrair um homem, e segurá-lo. Não era só aprender a andar de uma certa maneira, a olhar de uma certa maneira, a saber dizer determinadas coisas e quando ficar calada. Nem era simplesmente uma questão de usar o encantamento para me tornar numa mulher mais bonita, ou mais sedutora, se bem que isso, certamente, ajudasse. Os ensinamentos da minha avó eram mais específicos. Faziam-me sentir uma pessoa baixa, por vezes. Faziam-me ficar embaraçada, quando ela me pedia que demonstrasse o que aprendera. Só o pensamento de os levar à prática era suficiente para me fazer recuar, horrorizada. Ela achava que eu era uma tola e dizia-o. Recordava-me que tinha quinze anos, que estava em idade de casar e que o melhor que eu podia fazer era aproveitar o pouco que tinha de encantos, aprendendo como usar a magia para os realçar, ou não faria nada de mim. Era claro para mim, enquanto lutava com estes novos conhecimentos, por que razão o meu pai a chamara para me guiar. Se era verdade que eu necessitava de adquirir aquelas capacidades, conhecer aqueles segredos íntimos, também era verdade que ele não mos podia ter ensinado. Há coisas que uma rapariga não pode dizer ao seu pai, por mais íntima que seja dele. Mas eu ficava acordada de noite, pensando na sua decisão, porque a minha avó era uma professora cruel e a sua presença no Favo de Mel lançara uma sombra fria sobre os meus dias e enchera as minhas noites de pesadelos. Por que se fora ele embora, para tão longe, que eu nem sequer sabia onde estava? Seria aquilo uma espécie de teste? Ele nunca me deixara, nem sequer por uma única noite. Tinha saudades, sentia-me só e estava preocupada com ele. Ele era o meu mundo, a minha família, a minha única constante. Precisava dele; e ele, certamente, precisava de mim, porque não tinha mais ninguém a quem conceder aquele sorriso raro, que lhe iluminava as feições sombrias e me mostrava o homem por quem a minha mãe deixara um outro mundo. Teria ele medo da minha avó? Teria sido por isso que ele me deixara à mercê dela? Os meus sonhos mostravam-no magro e pálido, tossindo dolorosamente, algures numa gruta escura, sozinho. Desejei que ele regressasse a casa.

 

O Outono desapareceu, veio o Inverno e as lições continuaram lentamente.

 

Muito bem, Fainne disse a minha avó um dia, abruptamente, quando descansávamos no gabinete. Tinha-me obrigado, durante toda a tarde, a transformar uma aranha noutras formas: num lagarto brilhante; num minúsculo pássaro com asas palpitantes, voando às cegas, confuso, contra as paredes de pedra; num rato que se aproximou para escapar por uma fenda, até que eu estalei os dedos para o transformar num dragão cuspidor de fogo, que soprou uma pequena nuvem de vapor, batendo deficientemente as asas minúsculas. Eu estava exausta, tão cansada na minha cadeira como a aranha que estava agora pendurada, como morta, na sua teia por cima de mim. E agora, uma lição de História. Ouve bem e não me interrompas, a não ser que seja absolutamente necessário.

 

Sim, avó. A obediência era a melhor maneira de lidar com ela. Era engenhosa nos métodos de castigo e não gostava de ser desafiada. Preferia, de longe, os métodos do meu pai, que, se bem que restritos, não eram desagradáveis.

 

Responde às minhas perguntas. Quem foram os primeiros nas terras de Erin?

 

Os Anciãos. Aquele tipo de inquisição era fácil. O meu pai transmitira-me esse conhecimento ao longo dos anos e éramos ambos fluentes nessas perguntas e respostas. Os Fomhóire. Um povo vindo das profundezas do oceano, dos poços e dos lagos. Gente do mar e das profundezas da terra.

 

A minha avó acenou com a cabeça.

 

E quem é que veio depois?

 

Os Fir Bolg. Os homens-saco.

 

E depois deles?

 

Depois vieram os Túatha Dê Danann, do Oeste, que com o tempo mandaram os outros para o exílio e se espalharam pelas terras de Erin. Governaram durante muitos anos até à chegada dos filhos de Mil.

 

Muito bem. Mas, que sabes tu das origens dos da nossa espécie? Os seus olhos eram penetrantes.

 

Os da nossa espécie não estão na História. Somos diferentes. Fomos amaldiçoados e estamos sempre à parte. Não pertencemos aos Túatha Dê. Assim como os mortais, homens e mulheres. Não somos uma coisa, nem outra.

 

Até aqui, tudo bem. Estamos à parte porque nos afastaram. Um de nós transgrediu a lei, há muito tempo e nunca nos perdoaram. Conheces essa história?

 

Abanei a cabeça.

 

Nós somos descendentes deles, quer queiram, quer não. Dos Fair Folk, ou seja lá como for que gostam de ser chamados. Deuses e deusas, todos eles, superiores em tudo, vagueando por toda a parte como se fossem donos de tudo, depois de terem despachado os outros para os seus buracos e fendas. Mas alguém fez o que não devia e foi aí que tudo começou.

 

O que não devia?

 

Disse-te que não interrompesses. A minha avó fixou-me nos olhos e eu senti uma dor penetrante nas têmporas. Naqueles primeiros tempos éramos capazes de fazer tudo, tínhamos a magia na mão. Mudança de forma, transformação. Cura. Domínio do vento e da chuva, das ondas e das marés. Éramos verdadeiros deuses e não admira que os Anciãos tenham gatinhado para as suas grutas com o rabo entre as pernas. Mas há certas coisas na magia que devem permanecer intocadas. Nem sequer um mestre lhes deve tocar. Todos sabiam isso. É perigoso tocar na parte negra da magia; é melhor deixá-la em paz, afastarmo-nos. Infelizmente, houve uma que se deixou levar pela curiosidade. Brincou com um feitiço proibido; chamou o que devia permanecer adormecido. A partir desse dia passou a haver um mal à solta, que nunca mais se foi embora. Assim, ela foi expulsa e uma parte do seu castigo consistiu em retirarem-lhe a capacidade de usar os mais altos elementos da magia: os poderes da Luz, da cura, do voo. Tudo o que lhe deixaram foi a escória, os truques de feitiçaria: podia interferir e transformar um sapo num homem, talvez, ou uma rapariga numa barata. Ficou com o Encantamento. Pouca coisa, comparada com o que perdera. Ligou-se a um mortal homem, já que nenhum dos de mente superior a quis depois do que fizera. E tu sabes o que isso significa.

 

Desta vez esperava uma resposta.

 

Que se tornou mortal?

 

Não exactamente. A nossa espécie vive muitos anos, Fainne; muitos mais do que os humanos. O que significa que, a seu devido tempo, morreria. Sobreviveria para ver a sua família morrer de idade avançada antes de chegar a sua vez. Os seus descendentes transportariam o sangue da amaldiçoada através dos tempos. Todos nós temos os olhos dela. Os teus olhos, rapariga. Todos nós temos a arte, mas só alguma, compreendes? Algumas coisas estarão sempre para além das nossas capacidades. E isso dói. Devíamos ter tudo. O castigo foi injusto; demasiado severo.

 

Abri a boca, pensei melhor no que ia dizer e fechei-a.

 

Estás a pensar no teu pai? perguntou ela sem sorrir. Achas que ele parece ter mais talentos do que os que eu descrevi? Tens razão, claro. Eu escolhi bem o pai dele: nada mais nada menos do que Colum, Senhor de Sevenwaters. Naquela família são todos druidas. Repara como vivem, fechados na sua preciosa floresta, rodeados pelos Outros. Têm o sangue dos Anciãos, misturado com o dos humanos. Ciarán é diferente. Especial. Devia ter substituído Colum. Não é ele o sétimo filho de um sétimo filho? Mas fui derrotada. Derrotada por aquela rapariga miserável e pelos malditos irmãos dela. É com eles que precisas de ter cuidado. Com eles, que descendem dos Fomhóire.

 

Concentrei-me, franzindo as sobrancelhas.

 

Por que é que é perigoso, avó? Os Fomhóire não usavam a alta magia.

 

Ah. Há a alta magia, a magia dos feiticeiros e uma outra espécie. Podes chamar-lhe magia profunda. É essa que os de Sevenwaters possuem e nós não, pequena. Nem todos, repara. Muitos não passam de tolos, como a tua mãe, fracos de vontade e de mente. Nunca conseguirei compreender como o meu filho se apaixonou por aquela cabeça de vento. Niamh arruinou-lhe a vida; enfraqueceu-o terrivelmente. Mas, agora, existes tu, Fainne. Tu és a minha esperança.

 

Eu aprendera que era inútil ripostar, apesar de me magoar muito a maneira como ela falava da minha mãe.

 

Magia profunda? perguntei. O que é isso?

 

É a magia da terra e do oceano. O sítio de onde essa gente veio, há muito tempo. É por isso que eles se agarram às ilhas. Não são feiticeiros. Não fazem feitiços. Mas alguns têm a capacidade de falar com a mente, sem palavras. Não imaginas como tentei desenvolver essa capacidade. Esgotei-me. Mas, ou se tem, ou não se tem. Alguns deles são capazes de prever o futuro. Ferramentas poderosas, ambas. E alguns têm a capacidade de curar, muito maior do que a de um físico qualquer.

 

É tudo?

 

É tudo, pergunta ela! O seu riso envergonhou-me. Não chega? Esses dons impediram-me de atingir os meus objectivos durante duas gerações, rapariga. Levaram-me o meu filho e amoleceram-no. Mas agora vai ser diferente. Tenho-te a ti, Fainne e tenho um novo objectivo, muito maior. Tu tens em ti um pouco de tudo, graças à tua mãe. Foi a única coisa boa que ela fez por ti, patética como era. Nunca o compreendi. Se Ciarán tinha de se perder por uma fedelha qualquer de Sevenwaters, por que não escolheu a outra irmã? O fruto dessa ligação teria tido, sem dúvida, capacidades raras. Mas, não interessa, Fainne. Tu carregas o sangue de quatro raças. Isso tem que contar para alguma coisa.

 

Dessa vez senti que era impossível não a desafiar.

 

Não gosto que fale dessa maneira da minha mãe disse eu, irritada.

 

Não? Eu só digo a verdade, rapariga. Além disso, que te importa a ti? Mal te lembras dela, certamente. Mas, suponho que essas atitudes todas te vêm do teu pai. Ele nunca suportou que se falasse mal da sua amada Niamh. Para ele, era uma princesa, uma criatura perfeita, que não dava um único passo errado. Permitiu que ela o consumisse. Muito bem, Fainne. O seu tom mudou abruptamente. Até agora tens ido bem, pequena; em breve estaremos prontas, se continuares a aprender assim. Amanhã dir-te-ei o que espero que faças em Sevenwaters. Tudo isto, compreendes, os ares, a graça, a conversa fácil, os artifícios do amor, tudo isto são ferramentas, meios para chegar a um fim. Amanhã começarei a explicar-te que fim é esse. Tu tens uma grande tarefa pela frente, neta. Uma grande tarefa. Agora, vai para a cama, precisas de descansar.

 

Nessa noite, sozinha no meu quarto com uma vela por companhia e o oceano rugindo lá fora, abri a arca de madeira e tirei Riona. Ela parecia um pouco amarrotada por estar sob os cobertores e pareceu-me ver-lhe uma sobrancelha franzida nas feições perfeitamente cosidas. Desentrancei-lhe os cabelos amarelos e refiz-lhe o laço na parte de trás do vestido. Nessa noite, subitamente, não me senti crescida e quando apaguei a vela e me deitei na cama, fiquei com Riona junto de mim, algo que não fazia há muito tempo.

 

Será verdade? murmurei na escuridão. Será verdade que a minha mãe era uma rapariga estúpida, que estragou a vida ao meu pai? Será por isso que ele nunca fala dela? Mas, ele disse que a amava. Se falasse, talvez eu me lembrasse dela. Talvez me lembrasse de alguma coisa. Qualquer coisa.

 

Talvez seja melhor assim disse eu para ela, ou para mim própria. Talvez seja melhor eu não saber nada. Ela era um deles, um dos da espécie humana, um dos da família de Sevenwaters. Eu sou da outra espécie; sou a filha do meu pai. É melhor não saber nada. A minha mão afagou o tecido suave da saia de Riona e à medida que ia adormecendo via os dedos da minha mãe, os movimentos rápidos da agulha enquanto ela cosia o pequeno vestido com minúsculos pontos. Um presente para a filha, para que se lembrasse dela; uma pequena amiga para me confortar na escuridão depois de ela partir.

 

Na manhã seguinte a minha avó preparou tudo para mim.

 

Ora bem, Fainne disse ela olhando para mim de perto, ao mesmo tempo que eu me mantinha de pé à sua frente no meu vestido simples, com os sapatos de trazer por casa e com as mãos atrás das costas. Por que é que pensas que o teu pai quer que vás para Sevenwaters? Não é o único lugar que ele deseja obliterar da memória, mas que não consegue? Por que razão mandaria para lá a sua única filha, para o coração do território inimigo?

 

Eu sou neta de um chefe de guerra do Ulster disse-lhe. O meu pai disse que os de Sevenwaters têm uma dívida para pagar. Ele acha que eu devo aprender a mover-me naquele círculo, já que não há futuro para mim aqui, em Kerry. Senti-me percorrida por um arrepio. Ocorreu-me, pela primeira vez, que talvez nunca mais regressasse ao Favo de Mel. Esse pensamento aterrorizou-me. Eu confio no meu pai continuei, tão firme quanto possível. Se ele deseja que eu viaje até ao Ulster, é porque é a coisa certa a fazer.

 

A minha avó fez um esgar, acordando uma rede de profundas rugas no seu velho rosto.

 

A tua confiança no julgamento de Ciarán é tocante, minha querida, se tiver fundamento. A sua decisão é certa, se bem que as suas razões deixem um pouco a desejar. Atribuo isso à sua educação de druida. Aquele miserável do Conor há-de pagá-las. Ele e os irmãos dele roubaram ao meu filho os seus direitos por nascimento, encheram-lhe a cabeça de ideias tolas e por isso é que ele não sabe o que está certo e o que não está. Nunca deveriam ter sobrevivido ao que lhes fiz. Mas a questão não é essa. O teu pai só te disse metade, Fainne. Ciarán está doente. Muito doente. Manda-te embora porque, em breve, não poderá estar aqui para te sustentar.

 

Senti o sangue a fugir-me do rosto.

 

O quê? sussurrei tolamente.

 

Não acreditas em mim? Devias acreditar, porque estou em boa posição para isso. Ciarán não deixa a sua preciosa aprendiz aqui com os pescadores, para se tornar noutra esposa com um bando de crianças tagarelas. Não te pode deixar comigo; eu vou e venho conforme me apetece. Assim, só tinha uma hipótese. O teu tio, Lorde Sean de Sevenwaters; Conor, o arquidruída; a esquiva Liadan; a única família que tens. O teu pai não tinha outra alternativa.

 

Quer dizer... quer dizer que aquela tosse, aquela palidez, quer dizer que... ele está a morrer? forcei a palavra a sair. Mas... mas, como é possível? A nossa espécie não é como os homens e as mulheres normais, vivemos mais tempo... como pode ele estar doente? Ele disse que estava bem. Disse que não havia nada de errado...

 

É claro que disse. Mas há algumas doenças que estão para lá dos remédios mortais, Fainne; que podem atacar até o mais poderoso dos magos. Ele não te disse a verdade porque sabia que não concordarias em ir, se soubesses.

 

E tinha razão disse eu, cerrando os dentes. Não vou. Não o posso deixar. Como foi possível não me dizer? Éramos tão próximos um do outro, partilhámos tanto tempo em perfeita compreensão, em perfeita cooperação. A dor alojou-se profundamente em mim, como uma pedra fria.

 

A minha avó estava calma.

 

Deixa-me explicar-te uma coisa disse ela. Não são os humanos de Sevenwaters que interessam, pequena. É o poder por trás deles: as criaturas do Outro Mundo, com as suas maneiras esquisitas e as suas garras em cima de nós. Irás para Sevenwaters, senão pelo teu pai, pelo menos por mim. Tenho para ti uma tarefa, uma missão que deves levar a cabo. Uma grande missão, Fainne. Maior do que imaginas.

 

Mas o pai disse...

 

Esquece isso. Eu sou a mãe dele. Sei do que estou a falar. Há uma razão para ires para Sevenwaters, uma única. A minha. Por que pensas que vim para aqui, Fainne? Tenho-te observado ao longo destes anos; à espera, até que estivesses pronta para isto. Tu vais completar o que eu comecei. Vais conseguir o sucesso que é negado, há muito, à nossa espécie. Vais mostrar aos Fair Folk que um banido pode ser uma pessoa forte, suficientemente forte para os destruir. Tu vais-lhes frustrar o esquema. Vão cair juntos, os de Sevenwaters e as suas sombras do Outro Mundo É essa a tua tarefa.

 

Olhei para ela.

 

Mas... mas, avó, os Túatha Dê Danann? Quem consegue desafiar um tal poder? Serei esmagada.

 

Ela sorriu tristemente.

 

Eu desafiei-os, e estou aqui. Um pouco gasta, mas continuo dona da minha vontade. E quase venci. Eles estão mais fracos desde que perderam as Ilhas para os Bretões. Eles tinham um plano para aquela rapariga, Sorcha, e para o palerma do amante. E têm um plano para Sevenwaters. Eu quase arruinei o primeiro. Mas a rapariga foi demasiado forte para mim. Esqueci-me dos Fomhóire. Nunca faças isso, Fainne. Tem cuidado com eles. Vais-lhes frustrar o segundo plano. Os Fair Folk querem recuperar as ilhas. Querem que tudo aconteça como na profecia. Até à última palavra. E está tudo pronto para quando se passar mais um ano. Foi o que ouvi dizer.

 

Profecia? A minha cabeça andava à roda, incapaz de perceber o horror, a grandeza e a loucura implícitas nas suas palavras.

 

Ciarán não te disse nada? As Ilhas foram tomadas pelos Bretões há gerações atrás. Desde então, Sevenwaters tem estado em guerra com Northwoods. Enquanto as ilhas não voltarem para os Irlandeses, os Fair Folk e os humanos estarão sempre desorientados. Precisam delas. Os poderosos querem as Ilhas bem guardadas. Vigiadas. É a única maneira de se protegerem a si próprios do que vai acontecer. A profecia diz que virá um filho, que não será, nem da Bretanha, nem de Erin, mas das duas terras ao mesmo tempo. E há um disparate qualquer acerca da marca do corvo. Bem, finalmente, chegou esse filho, o líder há muito esperado, neto daquela Sorcha miserável. Já é um homem, está pronto para dar luta a Nortwoods e tem uma força formidável por trás de si. Não falta muito. Não no próximo Verão, mas talvez no outro, é o que se diz. A tua missão consiste em impedi-los. É simples, na verdade. Tens que fazer com que eles não lutem, ou, se lutarem, que percam. Pensa nisto. Nós, os banidos, finalmente por cima dos Fair Folk. Gostaria de ver as expressões nos rostos deles quando isso acontecer.

 

Eu estava tão espantada que mal conseguia falar.

 

Mas, como posso eu conseguir tal coisa? E por que é que o meu pai nunca me falou disso? É impossível uma rapariga deter um exército. Não tentarei semelhante tarefa. É ridículo.

 

A quem é que estás a chamar ridículo? A anciã fixou-me com os seus olhos cor de amora.

 

Senti a nuca a transformar-se em geléia, mas tentei manter-me firme.

 

Não tentarei tal coisa sem a aprovação do meu pai disse eu. Não acredito que ele apoie semelhante ideia.

 

O olhar da minha avó tornou-se mais penetrante. A sua expressão alarmou-me. Senti um arrepio de frio na nuca.

 

Ah disse ela com uma voz suave que me atingiu como uma mão gelada. Tu vais, Fainne. E farás exactamente o que eu te disser a partir de agora. Não quero ver os meus planos frustrados uma segunda vez.

 

Não vou disse eu a tremer. Não abandono o meu pai. Não me interessa quão forte possa ser a sua magia. Não me pode obrigar.

 

A minha avó riu-se. Desta vez não era aquele riso parecido com campainhas, antes um riso abafado, áspero, de divertido triunfo.

 

Oh, Faimne. És tão nova. Espera até começares a sentir o poder dentro de ti, espera até que os homens assassinem por ti, atraiçoem as suas mais fortes lealdades e se virem contra o que lhes é mais querido. Não há prazer igual. Espera até perceberes, bem o que tens dentro de ti. Porque podes ser a filha de Ciarán, teres em ti a influência da sua educação druídica e os seus excessos de consciência, mas também és minha neta Nunca o esqueças. Terás sempre uma parte de mim, algures no teu espírito. Não o podes negar.

 

Não me pode obrigar a fazer coisas más. Não me pode forçar a agir contra a vontade do meu pai. Pelo menos, tenho que lhe perguntar.

 

Hás-de perceber que posso, pequena Isso mesmo. A partir deste momento, vais fazer o que te mandar. Prosseguirás a minha demanda até ao fim e conseguirás o triunfo que me foi negado. Se me desobedeceres, sofrerás as consequências Uma pequena dor de cabeça; um ataque de diarreia. Talvez umas verrugas, ou uma pequena erupção num lugar difícil. Eu não sou para brincadeiras, Fainne. Desobedece-me e não serás tu a ser castigada. Será o teu pai.

 

O meu coração bateu de terror.

 

Não acredito! murmurei. Não era capaz! O seu próprio filho? Não acredito. Mas era verdade. Via-o nos seus olhos.

 

Ela fez um esgar, revelando os dentes aguçados, os dentes de um predador.

 

O meu próprio filho, sim, e que grande desapontamento ele foi. Quanto à minha vontade, já tiveste uma demonstração. A doença do teu pai não é uma maleita que ele apanhou, ou o resultado dos nervos, ou da exaustão. É obra minha. Planeio isto há anos e tenho-vos vigiado a ambos. Talvez ele o tenha sentido; mas apanhei-o desprevenido e agora não consegue afastar-me. Por isso é que te manda embora para o que ele pensa ser um lugar seguro. Para os braços de Conor, o seu arqui-inimigo. Irónico, não é?

 

Mente! retorqui, dividida entre o horror e a fúria. O meu pai é muito rápido em contrafeitiços, nunca deixaria que isso acontecesse. Não há, no mundo, um feiticeiro mais forte do que ele. A minha voz era desafiadora, ao mesmo tempo que o meu coração tremia de pavor; tinha-nos preso numa armadilha, presos pelo amor que tínhamos um pelo outro. Ela era a mais forte; sempre fora.

 

Não ouviste o que eu disse? perguntou-me ela. Ciarán podia ter sido o que disseste. Podia ter sido o mais poderoso de todos. Mas não quis saber. Deixou que a esperança o destruísse. Pode continuar a praticar magia, mas perdeu a vontade Foi uma presa fácil para mim. Precisarás de ter muito cuidado. Vou dar-te algumas instruções antes de partires. À mais ligeira desobediência, o teu pai é que sofre. Viste como ele está. Não são precisos muitos erros da tua parte para que piore; até não ter salvação. Por outro lado, faz as coisas bem e talvez ele melhore. Vê lá tu o poder que ponho nas tuas mãos.

 

Não saberá. A minha voz tremia. Eu estarei em Sevenwaters e a avó disse que não conseguia ler a mente. Posso desobedecer-lhe e nunca saberá. As suas sobrancelhas ergueram-se com desdém.

 

Surpreendes-me, Fainne. Não dominas a arte das bolas de cristal, a arte dos espelhos? Saberei sempre.

 

Rodeei-me a mim própria com os braços, porque sentia um frio dentro de mim que permaneceria mesmo no dia mais quente de Verão. O meu pai doente, sofrendo, a morrer; como poderia suportar uma tal coisa? Era, na verdade, uma crueldade. Uma crueldade inteligente.

 

Suponho... suponho que não tenho escolha murmurei. A minha avó acenou com a cabeça.

 

Esperta. Não falta muito para que te divirtas, acredita. O facto de podermos ver desenrolar-se à nossa frente uma obra de destruição provoca um prazer inaudito. E tu vais poder fazer isso. No fim de contas, só precisas de te adaptar. Eu dou-te algumas ideias. O resto podes fazer por ti própria. É espantoso o poder que uma mulher pode ter se aprender a tornar-se irresistível. Eu mostro-te como identificar, numa multidão de cinquenta, o alvo que será o teu homem; o único com poder e influência. Fiz isso, uma vez, e quase consegui tudo o que queria. Estive quase. Depois, aquela rapariga estragou tudo. Sentir-me-ei tão feliz como Ciarán quando vir, finalmente, aquela família falhar. Vê-la desintegrar-se e destruir-se a si própria.

 

A minha avó meteu uma mão num bolso escondido.

 

Prossigamos. Vais precisar de toda a ajuda que puderes. Isto vai ser-te útil. Um pequeno amuleto. Uma coisa de nada, na verdade. Proteger-te-á de toda a espécie de influência. Passou-me um cordão pelo pescoço. O símbolo pendurado nele parecia uma bugiganga sem valor; um pequeno triângulo de bronze trabalhado, cujo padrão era tão pequeno que mal se distinguiam as formas. No entanto, no momento em que o senti encostado ao coração, pareceu-me ver tudo mais claro; a minha ansiedade desvaneceu-se e comecei a compreender que talvez pudesse fazer, no fim de contas, o que a minha avó queria. Eu sabia que a magia era forte em mim. Talvez precisasse apenas de seguir as suas ordens, e tudo estaria bem. Fechei a mão em redor do amuleto; tinha um calor tépido que parecia fluir através de mim, reconfortante, tranquilizador.

 

Portanto, Fainne disse a minha avó num tom quase amável tens de manter esse amuleto escondido por baixo do vestido. Usa-o sempre.

 

Nunca o tires, compreendes? Ele proteger-te-á daqueles que tentarão frustrar o nosso plano. Ciarán diria que os poderes da mente são suficientes. Isso vem-lhe da disciplina druídica Mas, que sabem eles? Eu vivi no meio deles e posso dizer-te que precisarás de toda a protecção que puderes conseguir.

 

O que ela dizia parecia prático.

 

Sim, avó disse eu segurando o amuleto de bronze.

 

Fortalecerá a tua resolução disse a minha avó. Evitará que fujas quando as coisas começarem a ficar difíceis.

 

Sim, avó.

 

Agora, diz-me. Há alguém de quem não gostes, aqui neste teu cantinho? Detestas alguém?

 

Tinha de pensar bem naquilo. O meu círculo era algo limitado, especialmente ultimamente. Mas havia uma imagem que não me saía da cabeça: aquela rapariga de pele tostada pelo sol e de sorriso muito branco, envolvendo os ombros de Darragh com um xaile.

 

Uma rapariga disse eu com precaução, pensando que fazia uma ideia do que se ia seguir. Uma rapariga pescadora, lá em baixo na enseada. Não gosto muito dela.

 

Muito bem. A minha avó estava a olhar intensamente para os meus olhos. Sabes como transformar um sapo num pássaro e uma barata num caranguejo. Que gostarias de fazer a essa rapariga?

 

Eu...

 

Escrúpulos, Fainne? O seu tom tornou-se mais penetrante.

 

Não, avó. Não tinha dúvidas de que me dissera a verdade e tinha de fazer o que ela me pedia. Se falhasse, o meu pai pagaria as favas. No entanto, não significava que a transformação fosse para sempre. Nem sequer tinha de durar muito tempo. Podia obedecer-lhe e, no entanto, fazer as coisas à minha maneira.

 

Óptimo. Ainda bem que o tempo está bom, não achas? Podes ir dar um passeio esta tarde, para esticar as pernas. Leva contigo esse corvo que ainda anda por aí. Poderás fazê-lo, então. Tens de a apanhar sozinha.

 

Sim, avó.

 

Concentra-te. Lembra-te que o que vais fazer não passa de um ligeiro ajustamento. Sem importância nenhuma no esquema das coisas.

 

Programei a ocasião para quando os barcos ainda estivessem no mar e as mulheres em casa. Se fosse vista, dois e dois seriam quatro. Faltava-me a capacidade de me tornar invisível, porque, como a minha avó me dissera, tínhamos sido despojadas dos grandes poderes. Porém, eu era capaz de deslizar das rochas para os arbustos batidos pelo vento e para a parede de rocha sem chamar a atenção, curvada ou não, e pareceu-me que Fiacha sabia exactamente o que eu estava a fazer, porque se comportava exactamente como outro corvo qualquer que estivesse na aldeia naquele dia. Passou a maior parte do tempo empoleirado a olhar para mim.

 

A rapariga estava no exterior da casa a lavar roupa numa tina. Os seus brilhantes cabelos castanhos caíam-lhe para o rosto e parecia mais vulgar do que eu me lembrava. Duas crianças pequenas brincavam na erva, perto. Observei-a durante um bocado, escondida na sombra de um anexo. Mas não a observei durante muito tempo; não me podia permitir pensar muito. A rapariga olhou para cima e disse algo às crianças, uma delas desatou a rir e a rapariga sorriu, mostrando os dentes brancos. Movi a minha mão, disse o feitiço na minha cabeça, em silêncio e um instante mais tarde um grande bacalhau saltava e arquejava no carreiro de terra e a rapariga de pele morena desaparecera. As duas crianças, aparentemente, não se aperceberam, absorvidas nas suas brincadeiras. Olhei para o peixe, contorcendo-se e saltando, desesperado, Deixá-la-ia assim o tempo suficiente para mostrar que era forte; o suficiente para provar à minha avó que conseguia fazer aquilo. Depois, apontaria o dedo e diria o feitiço que faria o contrário. Talvez agora. Comecei a concentrar-me e a juntar as palavras. Mas antes de conseguir sussurrá-las, uma mulher saiu a correr da casa com uma faca na mão e as sobrancelhas franzidas. Era uma mulher grande e parou no carreiro mesmo à minha frente. E enquanto não pudesse ver a criatura que tinha transformado, não podia fazer o contrafeitiço.

 

Sai daí, disse-lhe eu mentalmente. Sai daí, depressa.

 

Brid! chamou ela. Onde estás, rapariga? Afasta-te. Por favor.

 

Para onde foi a vossa irmã? A mulher parecia estar a falar com as duas crianças, não esperando qualquer resposta. E o que é que isto está aqui a fazer? Perante o meu olhar horrorizado, ela inclinou-se e apanhou algo do chão. Se ao menos ela se virasse um pouco, tudo o que eu precisava era de um vislumbre de uma cauda prateada, um olho, ou uma boca aberta, e poderia transformar de novo a criatura na rapariga. Fá-lo-ia, mesmo que toda a gente ficasse a saber a verdade. Se não o fizesse, seria uma assassina.

 

Quem é que esteve aqui? perguntou a mulher às crianças. Brincadeiras de miúdos? A vossa irmã vai ouvir-me quando regressar, que não haja dúvidas. Deixá-los aos dois sozinhos com uma tina cheia de água é pedir sarilhos. Mas isto vai para a panela com umas couves. Ela fez um movimento rápido com a mão, a que segurava a faca e então, só então, ela se virou um pouco e eu vi o peixe pendurado no seu punho, transformado num pedaço de comida para toda a família. Não podia fazer nada. Era demasiado tarde. Nem sequer o mais poderoso dos feiticeiros tem o poder da vida. Um terror gelado percorreu-me o corpo. Não era só o facto de eu ter feito uma coisa imperdoável. Era muito pior. Não acabara de provar que a minha avó tinha razão? O meu sangue era o sangue de uma descendência maldita, uma linhagem de feiticeiros e proscritos. Parecia que não podia lutar contra essa maldição, que se manifestaria quando lhe apetecesse. Os meus passos não se encaminhavam inevitavelmente para o caminho das trevas? Virei-me e fugi em silêncio. A mulher nunca me viu.

 

Mais tarde soubemos do desaparecimento da rapariga. Fora feita uma busca; procuraram por toda a parte. Mas ninguém mencionou o peixe morto e as crianças eram demasiado pequenas para dizer fosse o que fosse. Nunca encontraram a rapariga. As pessoas esperavam que ela tivesse fugido com um namorado qualquer e que tivesse ido morar para outra terra qualquer. No entanto, era estranho; sempre fora uma boa rapariga.

 

Depois disso, tornou-se cada vez mais difícil adormecer. Riona ficou na arca. Conseguia imaginar os seus pequenos olhos a olharem para mim na escuridão, dizendo-me a verdade sem uma palavra sequer. Não queria ouvir o que ela teria para dizer. Não queria pensar em nada de especial. Conhecia uma data de jogos mentais, truques, que o meu pai me ensinara para aumentar a concentração, uma estratégia para deixar de fora o que não se queria. Mas, agora, nenhum deles parecia funcionar. A voz da minha avó a dizer: Escrúpulos, Fainne? Darragh olhando para mim, vendo-me acender a fogueira com um dedo. Darragh franzindo o sobrolho. Tu és um perigo para ti própria. E a imagem de uma rapariga de cabelos ruivos chorando, chorando, num delírio de desgosto, os olhos fechados, as mãos apertando a cabeça, o nariz a escorrer, a voz rouca de tanto chorar. Acima de tudo, queria-a a ela fora da minha cabeça. Não suportava testemunhar tanta angústia. Fazia-me querer gritar. Fazia-me querer chorar, sentia as lágrimas a aproximarem-se dos olhos. Mas a nossa espécie não chora. Pára, pára, disse eu, tentando afastá-la. Então, ela virou para mim o rosto trágico e inchado, e era eu.

 

Após um Inverno interminável e uma Primavera fria, chegou o Verão e os nómadas regressaram à enseada. Fiz quinze anos. Não subi ao monte para ver as longas sombras que marcavam o dia da chegada de Darragh, apesar de o poder fazer à-vontade, sem as restrições do meu pai. Mas ouvi a voz doce e triste da gaita-de-foles penetrando na suave quietude do crepúsculo e soube que ele estava lá. Uma parte de mim desejava escapar, subir até ao local secreto para me sentar junto do meu amigo e olhar para o mar, conversar ou não conversar, conforme nos apetecesse. Mas, desta vez, era fácil encontrar razões para não ir. Não queria pensar em muitas delas, mas elas estavam lá, escondidas algures, dentro de mim. Aquela rapariga e o que eu fizera. Não fazia diferença o facto de a minha avó me ter obrigado; não fazia diferença o facto de eu só ter querido assustá-la, de eu ter querido transformá-la a tempo. Fora eu que o fizera e isso fazia de mim uma assassina. Sabia que o que fizera fora um abuso da magia. No entanto, tudo o que tinha, tudo o que era, devia-o ao meu pai. Para o salvar, tinha de estar preparada para o impensável. Mostrara a mim mesma que era suficientemente forte. Mas não queria que ninguém me falasse nisso. Especialmente Darragh. E havia outra razão, ainda mais convincente: algo que a minha avó disse, um dia.

 

Ainda falta o passo seguinte disse-me ela. Portaste-te bem. Fizeste mais do que eu esperava em termos de resultado final. Mas, é fácil quando odiamos; muito fácil quando não nos importamos. Pode ser que tenhas de fazer mais do que isto. Diz-me, Fainne, tens algum amigo especial? Alguém de quem gostes muito?

 

Pensei rapidamente e abençoei a falta de capacidade da minha avó para ler a mente.

 

Não, ninguém disse eu calmamente. Excepto o pai, claro. A minha avó fez uma careta.

 

Tens a certeza? Não tens amigas? Não tens um namorado? Não, suponho que não. É pena. Precisas de praticar.

 

Porquê? Que quer dizer? Ela suspirou.

 

Diz-me, quais são as coisas mais importantes para ti? Construí a minha resposta com cuidado

 

A tarefa que me está destinada. Essa é a mais importante.

 

Hum. Parece fácil, não parece? Vais para Sevenwaters, insinuas-te na família, fazes a tua magia e a tarefa está feita. Mas, e se te tornares amiga de alguém? E se gostares deles? Pode não ser assim tão fácil, nesse caso. É então que começa o verdadeiro teste de força. Aquela gente está muito próxima dos Túatha Dê, Fainne, Não magoarás um sem magoares outro.

 

Gostar deles? O meu espanto era genuíno. Tornar-me amiga da família que destruiu a minha mãe e destruiu os sonhos do meu pai? Como poderia eu?

 

Ficarias surpreendida. O tom da minha avó era secamente divertido. Eles não são monstros só porque fizeram o que fizeram. E tu conheceste aqui poucas pessoas, fechada neste fim do mundo com Ciarán. Ele não te fez favor nenhum ao trazer-te para Kerry, pequena. Terás de ser muito prudente. Terás de te lembrar quem és e porque estás lá, a cada momento do dia. Não te podes dar ao luxo de baixar a guarda, nem por um instante. Há pessoas perigosas em Sevenwaters.

 

Como é que eu hei-de saber quem...?

 

Alguns são de confiança. Outros não fazem mal nenhum. E outros têm o poder de te deter, se te abrires. Foi o que me aconteceu. Trata de que isso não te aconteça a ti, porque esta é a tua última oportunidade. Terás de ter cuidado com o da asa de cisne.

 

O quê? Não tinha ouvido bem, certamente.

 

O perigo é ele. Ele é que pode passar para o outro lado e regressar quando muito bem lhe apetece. Tem cuidado com ele.

 

Fiquei ansiosa por saber o que ela queria dizer. Mas, por mais que tentasse, nessa tarde não me disse mais nada. Na verdade, ficou, subitamente, maldisposta e começou a castigar-me com picadelas que pareciam de vespa, por cada pequeno erro no treino de feitiços alternativos. Tive de fazer um grande esforço para me concentrar; demasiado grande para poder fazer perguntas estranhas.

 

Nesse Verão soube o que era a dor. Os truques anteriores da minha avó não eram nada comparados com os castigos que me infligia quando me achava provocadora ou teimosa, ou quando me apanhava a sonhar em vez de me aplicar na tarefa em mãos. Provocava-me dores de cabeça que mais pareciam as garras de um dragão, uma agonia que me desfazia as entranhas e me tirava qualquer vontade que eu ainda pudesse ter. Era capaz de me espetar milhares de agulhas na barriga e de me irritar a pele, fazendo-a arder e supurar e fazendo-me quase gritar por misericórdia. E quase gritei. Ela sabia que eu era jovem e parava antes de a tortura se tornar insuportável. Nunca me disse o que pensava da minha força de vontade. Eu suportava o que ela me fazia, já que não tinha escolha. O meu pai não devia saber que ela me tratava assim, ou não me teria deixado à sua mercê. Eu aprendia e tinha medo.

 

Uma noite mostrou-me uma visão que me aterrorizou ainda mais.

 

Para o caso disse ela de pensares em mudar de ideias quando te fores embora. Para apagar esse último lampejo de desafio dos teus olhos, Fainne. Se calhar, pensas que te menti; que isto é tudo uma grande fantasia. Olha para as brasas, onde as chamas estão mais vermelhas. Respira devagar e esquece-te de tudo o que aprendeste. Olha bem e diz-me o que vês.

 

Mas não foi preciso dizer fosse o que fosse. Ela deve ter lido no meu rosto o horror que senti quando olhei para o fogo e vi uma imagem do meu pai, as suas duras feições contraídas, o seu corpo torcido de dor, o peito torturado por uma tosse que parecia parti-lo em dois. O sangue saía-lhe da boca, as mãos agarravam desesperadamente o ar e os seus olhos escuros pareciam os de um louco. Todo o meu corpo ficou gelado. Ouvi-me a mim própria murmurar: «Oh não, oh não. Ter-lhe-ia suplicado se tivesse força para encontrar as palavras.

 

Oh sim disse a minha avó enquanto a visão se extinguia e eu me deixava cair em cima do tapete junto da lareira. A mim não me interessa se se trata do meu filho ou de um estranho, Fainne. Tudo o que me interessa é a tarefa em mãos.

 

O m... meu pai. Gaguejei. Ele está?...

 

Tu viste o futuro, não o presente. Um futuro possível. Se quiseres uma imagem diferente, terás de me obedecer, fazendo o que te digo. Desafia-me e ele morre, lentamente. Faz o que eu te digo e mantém a boca calada. Espero que acredites no que te estou a dizer, pequena. Serias muito tola se não o fizesses. Acreditas em mim, Fainne?

 

Sim, avó murmurei.

 

Os dias quentes iam passando e as vozes das crianças subiam com a brisa de Verão até às câmaras mais profundas do Favo de Mel. Os barcos saíam da enseada de madrugada e regressavam ao anoitecer, carregados com a sua carga reluzente. As mulheres remendavam redes no pontão, enquanto os rapazes exercitavam os cavalos ao longo da praia, pisando as algas. Eu permanecia acordada, noite após noite, ouvindo o distante lamento da gaita-de-foles. Apesar de Fiacha ir e vir, não havia sinal do meu pai e eu começava a recear que nunca mais o veria, o que me magoava terrivelmente; no entanto, não queria que ele visse o que se aproximava e testemunhasse o mau uso que eu estava a fazer da magia, por isso, de certo modo, a sua ausência era um alívio. Esperava que ele nunca soubesse a verdade, que ao enviar-me para Sevenwaters sacrificava a sua única filha numa demanda imprudente e impossível, pagando com a sua vida o falhanço mais que provável. Quanto à minha avó, eu não passava, para ela, de uma ferramenta bem afinada, uma ferramenta planeada ao longo dos anos, que ia agora ser usada num propósito tão grande que eu mal conseguia compreender.

 

O Verão estava a terminar. A minha avó fizera alguns preparativos. A minha pequena arca tinha agora dois vestidos de melhor qualidade do que os meus habituais trajes e aventais de trabalho. Tinha um par de sapatos novos para além das minhas botas de marcha habituais. Tinham sido feitos especialmente por um homem, resmungando para si próprio enquanto tirava as medidas ao meu pé deficiente. Aquilo era um sofrimento. Poupar-lhe-ia, de boa vontade, o trabalho; mas eu precisava dos sapatos.

 

Não perguntara à minha avó como viajaria para Sevenwaters. Era uma grande jornada, sabia-o, porque Darragh me dissera; quase nos confins de Erin. Mas não sabia quantas luas demoraria. Talvez a minha avó fizesse um feitiço de transporte e me mandasse para o Norte num instante com a minha bagagem. No fim, não foi preciso perguntar, porque, um dia, a minha avó anunciou, simplesmente, que chegara a hora da partida.

 

Farás a viagem para Norte na carroça de Dan Walker disse ela inspeccionando a correia que atava a minha arca. Muito prático, se não mesmo distinto.

 

Prático? perguntei, consternada. Que tem uma viagem assim de prático?

 

Levantarás menos suspeitas se apareceres com os nómadas disse ela secamente em vez de apareceres subitamente no salão do teu tio por entre um chuveiro de faíscas. Assim, ninguém reparará em ti. O que é mais uma rapariga no meio de tantas outras? Não estás nervosa, pois não? Certamente que te ensinei bem. Usa o Encantamento, se precisares. Sê o que te apetecer, pequena. Esta gente não passa de um bando de latoeiros, Fainne. Não são nada.

 

Sim, avó. As suas palavras não eliminaram o nervoso que me enovelava o estômago. Sabia que tinha de ser forte. A missão que ia cumprir para a minha avó, a sua terrível vingança contra os que tinham desprezado a nossa espécie, tinha de ser levada a cabo com a maior das perseveranças. A vida do meu pai estava nas minhas mãos. Não podia falhar. Não falharia. Porém, ainda só tinha quinze anos, torturada pela timidez e de modo nenhum habituada ao mundo exterior. Era isso, suponho, que fazia de mim uma arma tão subtil. Devia parecer tão inócua como um pequeno animal selvagem, que foge ao menor sinal de perigo.

 

Despedi-me da minha avó. Se ainda tinha dúvidas, guardou-as para si própria.

 

Apetecia-me ir contigo suspirou ela e, por um instante, vislumbrei aquela outra transformação de que ela gostava tanto, uma criatura sedutora, curvilínea, de cabelos ruivos e pele cor de pérola. Ainda deve haver belos homens por aquelas bandas, se bem que não devam ser nenhum Colum. Ainda sou capaz de lançar a minha rede, não tenhas dúvidas. E então, abruptamente, voltou a ser ela própria. Mas sei que não daria resultado. Eles reconhecer-me-iam, com Encantamento ou sem ele. O druida reconhecer-me-ia. Assim como o outro. Chegou a tua vez, pequena. Lembra-te do que te ensinei. Lembra-te do que te disse. Lembra-te de tudo, Fainne.

 

Sim, avó.

 

Saímos do Favo de Mel e aproximámo-nos do ponto em que o carreiro descia até à praia e até à parte ocidental da enseada, onde Dan Walker e os seus estariam a fazer os preparativos para a partida. E ali, com a sua capa escura e rosto cor de cinza, estava o meu pai, olhando silenciosamente para o mar. O meu coração saltou.

 

Sou capaz de ir contigo até lá abaixo disse a minha avó. Para me despedir de ti.

 

Não é fácil lançar um feitiço sobre um praticante da arte. Temos de ser rápidos, ou encontraremos uma barreira, ou um contrafeitiço, e os nossos esforços perder-se-ão por completo. Mas fomos excepcionalmente rápidos. Num instante, sem sequer olharmos um para o outro, o meu pai e eu lançámos uma rede que imobilizou por completo a minha avó, deixando-a pregada na rocha, a boca ligeiramente aberta e os olhos gelados de contrariedade.

 

Ela vai ficar zangada observei para o meu pai enquanto descíamos o carreiro, ele carregando a minha pequena arca ao ombro e eu uma trouxa de roupa de cama para a jornada. Fiacha voava por cima das nossas cabeças.

 

Eu, depois, falo com ela disse o meu pai calmamente. Eu olhei para ele e pensei detectar uma sombra de divertimento nos seus olhos. Mas estava magro, tão magro, e parecia mais velho no que no último Outono, as faces cavadas, a boca severa entre novas rugas de dor. Fainne, não temos muito tempo. Estás bem? Foram tempos difíceis para ti, tempos de grandes mudanças. Custou-me muito deixar-te assim; mas foi necessário. Estás pronta para esta viagem, filha?

 

Caminhei com cuidado pelo carreiro estreito. Tinha estado a chover e o piso estava escorregadio. As perguntas atropelavam-se na minha cabeça. Como é possível deixar que a própria mãelhefaça talcoisa, e Por que é que ele não me disse a verdade? E, acima de tudo Voltarei a vê-lo? Não podia fazer-lhe nenhuma delas, porque a minha avó saberia e seria o meu pai a pagar por isso. Desejei lançar-lhe os braços ao pescoço, dizer-lhe toda a verdade e ser de novo uma criança num mundo onde as regras faziam sentido. Mas não lhe podia dizer nada.

 

Sim, estou pronta disse eu, sentindo uma sensação estranha por trás dos meus olhos, como se fosse chorar a qualquer momento.

 

Tens a certeza?

 

Tenho, pai.

 

E assim caminhámos em silêncio e, se bem que caminhássemos lentamente, como se não quiséssemos chegar ao fim, depressa chegámos ao trilho que contornava a praia e junto de Dan, de Peg e do grupo vestido de cores alegres.

 

Pai disse eu abruptamente.

 

Sim, Fainne?

 

Eu quero dizer-lhe... quero agradecer-lhe por ter sido um professor tão bom. Agradecer-lhe pela sua sabedoria e paciência... e... e por me ter deixado descobrir as coisas por mim própria. Por ter confiado em mim.

 

Por um momento, ele não disse nada. Quando falou, a sua voz estava um pouco insegura.

 

Fainne, tenho uma certa dificuldade em dizer-te isto.

 

O quê, pai?

 

Eu... tu não precisas de ir, se não quiseres. Se, no teu coração, sentes que não deves ir, ainda estás a tempo.

 

Não ir? O meu coração bateu com força. Agora, que era demasiado tarde, ele dizia-me para ficar e eu estava proibida de dizer sim. Tossi para clarear a garganta. Quando chegámos a este ponto, não fazer isto por si? Não devo à minha mãe ir para Sevenwaters e ser o que ela desejaria que eu fosse? Certamente que devo ir. E, oh, como desejava dizer-lhe que daria tudo para ficar com ele em Kerry e para que as coisas fossem como antigamente. Mas ele era meu pai e, para seu próprio bem, tinha de arranjar coragem para o deixar.

 

Gostaria... gostaria que compreendesses que, no fim, o que acontecer será determinado por ti. E... Fainne, isto que vai acontecer pode muito bem estar para além do que nós, alguma vez, imaginámos. É tão importante que, não me atrevo a pô-lo em palavras. Nós somos o que... somos por nascimento e pela herança do sangue. Não podemos nada contra isso. Não podemos quebrar os laços da nossa espécie. Mas sempre pudemos praticar a arte, de uma maneira ou de outra, ou pormo-nos de parte. Tu tens essa escolha, filha.

 

Olhei para ele. Não praticar a arte? Mas... há mais alguma coisa?

 

O meu pai não respondeu, limitando-se a acenar levemente com a cabeça. A sua expressão permaneceu impassível. Sempre fora um mestre na arte do controlo. Recomeçámos a caminhar, o nosso último passeio na enseada, com a espuma das ondas a envolver o Honeycomb nas nossas costas, o grito longínquo das gaivotas por cima das nossas cabeças e, na nossa frente, Dan Walker avançando na nossa direcção, uma mão estendida em saudação e um sorriso no rosto escuro, barbudo.

 

Então, Ciarán? Pelo que vejo, trouxeste a rapariga. Dá a tua trouxa ao Darragh, pequena, para te instalarmos na carroça. Estás pronta?

 

Eu acenei com a cabeça nervosamente, olhando para o grupo. Nem sequer olhei para Darragh quando ele se aproximou e me tirou a trouxa das mãos. A arca de madeira foi atirada sem cerimónia para uma das carroças e eu vi-me içada para outra, sentada junto de Molly, a amiga de Peg e de várias rapariguitas de vozes muito altas. O meu pai ficou em baixo e eu achei-o ainda mais pálido, se possível.

 

Eu tomo conta dela, Ciarán disse Dan enquanto subia para a primeira carroça e segurava nas rédeas. Ela, connosco, está segura.

 

O meu pai acenou com a cabeça. Na retaguarda, os rapazes juntavam a manada de cavalos, assobiando agudamente. Os cães ajudavam com os seus latidos excitados. Fiacha retirou para um ponto no alto de uma árvore morta e as gaivotas fugiram espavoridas.

 

Bem, disse o meu pai calmamente. Adeus, filha. Pode ser que passe muito tempo antes de nos vermos de novo.

 

Agora que a despedida final se aproximava, eu mal conseguia falar. A tarefa à minha frente era tão intimidante que eu mal conseguia imaginá-la. Mudar o curso de uma batalha. Derrotar os Fair Folk num jogo que eles jogavam há mais anos do que grãos de areia havia na praia branca da enseada. O que vai acontecer... Tinha de levar a cabo a tarefa que a minha avó começara, tinha de fazê-lo custasse o que custasse, para lhe pagar os anos de paciência e conhecimento sem preço.

 

Adeus, pai sussurrei e então Peg gritou aos cavalos, agitou as rédeas e partimos. Olhei para trás, por cima do ombro, para a figura do meu pai cada vez mais pequena. Lembro-me das cores. A cor ruiva do seu cabelo. A cor cinzenta do seu rosto. A longa capa escura, uma capa de feiticeiro. Por trás dele, o mar ia e vinha, ia e vinha e o céu cheio de nuvens escuras, púrpuras, violetas, sombrias e misteriosas, como se fosse o esconderijo de uma grande criatura do oceano. O vento começou a agitar os arbustos que bordejavam o trilho e as rapariguitas aproximaram-se umas das outras por baixo dos seus cobertores, rindo e sussurrando umas para as outras.

 

Isso passa disse Peg para ninguém em particular.

 

Tudo bem, miúda? perguntou Molly, acanhada. Eu acenei com a cabeça, hirta, e estremeci quando a carroça passou por cima de uma pedra. Então, passámos uma curva e o meu pai desapareceu.

 

 

                                         CAPíTULO TRÊS

 

Não era tempo de olhar para atrás e, assim, cerrei os dentes e continuei o melhor que consegui. O pior era o barulho constante: os relinchos, os latidos, o ranger das rodas das carroças e as pessoas falando todas ao mesmo tempo, como um bando de gansos. Desejei lançar um feitiço de silêncio. Senti-me tentada a tapar os ouvidos com as mãos. Com um esforço, não fiz, nem uma coisa, nem outra.

 

Fizemos uma paragem bastante cedo, a propósito, para que Dan falasse com um homem acerca de um cavalo. As carroças foram colocadas ao abrigo, sob grandes ulmeiros e as mulheres fizeram uma pequena fogueira, onde puseram uma chaleira a aquecer para o chá. Mas os cavalos ficaram arreados e beberam água de um balde. Em breve regressaríamos de novo à estrada.

 

O barulho continuava. As crianças corriam, riam, gritavam e molhavam-se no ribeiro que passava perto. Peg assobiava; Molly resmungava para si própria. As raparigas mais velhas conversavam acerca da feira de cavalos e qual dos rapazes, que tinham conhecido no ano anterior, estaria lá. Os rapazes gracejavam enquanto se moviam por entre os animais com os seus baldes de água.

 

Sentei-me à sombra das árvores e imaginei a quietude sombria do Favo de Mel, onde se podia passar um dia inteiro sem se ouvir uma única palavra; onde os únicos sons eram o sussurro dos pés calçados de sandálias e o rugir distante do oceano.

 

Vem comigo.

 

A voz de Darragh interrompeu os meus pensamentos e a sua mão agarrou na minha, pondo-me de pé antes de eu ter hipótese de dizer sim ou não.

 

Tenho uma coisa para te mostrar. Anda.

 

E, tirando-me da sombra das árvores de modo mais rápido do que seria confortável, puxou-me pelo monte relvado acima até um ponto coroado com um pequeno dólman. Já tínhamos percorrido uma grande distância, desde a costa; a jornada fora dura para os cavalos e as pessoas tinham, por vezes, descido dos veículos e caminhado ao lado. Peg dissera-me para ficar onde estava e eu não discutira com ela. Talvez pensassem que eu não conseguiria devido ao meu pé. Darragh não fazia tais concessões.

 

Ora bem disse ele. Olha para além. É a tua última vista da costa de Kerry. Vais querer recordá-la. Em Sevenwaters não há mar, apenas árvores, montes de árvores.

 

Estava muito longe; tão longe. Não se viam as vagas nem se ouvia o seu som, ou o das aves marinhas brigando na praia enquanto os pescadores descarregavam os barcos. Apenas o brilho do Sol na água distante; apenas o céu cor de pérola e a terra que se estendia, dividida em verde, cinzento e castanho, aqui e ali com grandes pedras e amontoados de árvores batidas pelo vento.

 

Olha até mais longe. Para lá daquele promontório. Diz-me o que vês. Darragh pôs-me uma mão no ombro, virando-me ligeiramente, e com a outra apontou para o que parecia uma extensão de oceano aparentemente vazia. Olha com cuidado.

 

Via-se uma ilha: um minúsculo triângulo de rocha ao longe, nas águas inóspitas. Se semicerrasse os olhos, conseguia detectar a espuma que as vagas faziam ao esmagarem-se na sua base. A seu lado estava outra ilha. Mesmo pelos meus padrões, era um local desolado.

 

Não se vêem da nossa enseada disse Darragh. Rochas Skellig, é como lhes chamam. Vive lá gente.

 

Vive lá gente? Como é possível?

 

Eremitas cristãos. Homens santos. É suposto ser bom para a alma, dizem. Os Noruegueses foram lá uma vez, mataram a maioria dos irmãos e destruíram o pouco que eles tinham. Mas os eremitas regressaram. Deve ser uma vida bem estranha. Imagina.

 

Pelo menos é tranquilo disse eu irritada ainda a olhar para os pequenos pontos no oceano e pensando naquela escolha bem estranha.

 

Não achas de mais? Eu não disse nada.

 

Não estás habituada às pessoas, mais nada. Hás-de habituar-te à medida que formos avançando. Não precisas de ter medo de nós.

 

Medo? irritei-me. Por que teria eu medo? Darragh pensou por um momento.

 

Porque estás habituada à tranquilidade, sozinha com o teu pai, sozinhos e calados todo o dia! Porque não gostas que olhem para ti!

 

A angústia instalou-se em mim como uma pequena e pessoal nuvem cinzenta. Olhei para o mar em silêncio.

 

É verdade, não é? disse Darragh.

 

Talvez.

 

Talvez preferisses ser um eremita a viver numa rocha no mar, comendo algas e mexilhão? Não terias de aturar uma única alma, a não ser tu própria.

 

O que é que isso quer dizer? repliquei eu.

 

Exactamente o que eu disse.

 

Não há nada de errado numa vida desse género disse eu. Pelo menos é... segura.

 

Essa tem piada. E as falésias? E os Noruegueses? E passar fome o Inverno todo? Ou apontavas o teu dedinho e transformavas um dos irmãos num belo e gordo bacalhau?

 

Fiquei gelada, incapaz de olhar para ele. Seguiu-se um silêncio difícil.

 

Fainne? perguntou ele. O que é que se passa?

 

E eu soube que as suas palavras tinham sido inocentes, uma piada, e que fora a minha mente que se enchera de medo.

 

Nada.

 

Preocupo-me contigo. Houve mais alguém este Verão, não houve?

 

A minha avó. Veio visitar-me.

 

Hum. E foi por isso que não pudeste sair?

 

Mais ou menos.

 

Só isso? Ele franzira as sobrancelhas.

 

Eu... eu já não posso fazer as coisas normais. Não posso ter... amigos. Não posso permitir que se intrometam no que faço. É difícil explicar. Já é suficientemente mau ir na carroça, misturada com as pessoas, ter de falar e ouvir e... já não posso fazer essas coisas. Eu... não posso deixar que se aproximem de mim.

 

Darragh não respondeu. Olhei para o chão, sabendo que ele estava a olhar para mim e não querendo ver a expressão daqueles olhos castanhos demasiadamente honestos.

 

Lamento sussurrei.

 

Também eu disse ele lentamente. Parece-me esquisito. Pode ser que sejas muito fina para gente como nós. Mas no sítio para onde vais há pessoas da tua espécie. Família. Vai ser bom para ti, Fainne. Eles hão-de gostar de ti. As pessoas não são assim tão más depois de as conhecermos. E devemos ter família e amigos à nossa volta. Não compreendo como podes passar sem isso.

 

Aconcheguei o xaile em redor dos ombros.

 

Não, suponho que não compreendes disse eu. Mas a nossa espécie não tem amigos.

 

Então, virámo-nos, começámos a descer o monte, ele segurou-me na mão nos pontos mais difíceis e nenhum de nós disse uma palavra até estarmos sob os ulmeiros e ouvirmos Molly a rir de uma piada qualquer de Peg.

 

Mas tens, sabes? disse Darragh suavemente. Por vezes, os amigos aparecem sem que tu os tenhas procurado. E depois de os teres não é fácil livrares-te deles.

 

Eu vou para longe disse eu.

 

Eu sou um viajante, lembras-te? disse Darragh. Sempre em movimento.

 

A jornada era longa. Aprendi a isolar-me do barulho repetindo na minha cabeça, vezes sem conta, as perguntas e respostas que o meu pai e eu fizemos durante os longos anos da minha infância.

 

Quem foram os primeiros na terra de Erín?

 

Os Anciãos. Os Fomhóire.

 

E depois?

 

E assim por diante enquanto as carroças rolavam sob uma suave chuva de Outono e uma brisa viva vinda de oeste e, por vezes, sob uma grande abóbada de estrelas.

 

De onde vieste?

 

Do Caldeirão do Desconhecido.

 

Qual é o teu destino?

 

O conhecimento. A sabedoria. A compreensão de todas as coisas.

 

O conhecimento era tudo o que me fazia prosseguir. O conhecimento significava controlo e sentido no meio das crianças barulhentas, das mulheres palradoras e da companhia constante, mais companhia do que alguma vez teria em toda a minha vida.

 

Peg era suficientemente amável apesar das suas maneiras rudes. Nunca me pedia que a ajudasse a esfolar os coelhos, que fosse buscar água ou que lavasse a roupa das crianças. Tentava arranjar-me sempre um canto sossegado para o meu cobertor depois de me ver uma vez afastar-me das outras raparigas e puxá-lo por cima das orelhas. Quando parávamos apenas por uma noite, dormíamos nas carroças com uma espécie de toldo por cima. Os rapazes dormiam sob as árvores, ao lado dos cavalos. Havia sempre um certo cheiro, com toda aquela gente, e nunca havia um verdadeiro silêncio. Eu ficava muitas vezes acordada a olhar para o céu, pensando no regresso do meu pai a casa e escutando os pequenos sons nocturnos à minha volta, os cavalos bufando, os suspiros das crianças mudando de posição no sono e os roncos dos mais velhos, cansados de um dia de marcha. De madrugada estariam prontos, de novo, para partir, depois de arrumarem tudo com uma rapidez incrível. A mim, parecia-me que cobríamos uma grande distância apesar das muitas paragens para vender cestos, comprar um cavalo ou simplesmente visitar velhos amigos. Acabei por perder a conta aos dias. Uma vez, quando chegámos a um vale desolado com o que parecia serem uns pequenos lagos no fundo, consegui que Darragh parasse por um momento quando ele se aproximou das traseiras da carroça onde eu ia sentada.

 

Já estamos perto? perguntei-lhe em voz baixa, para que mais ninguém ouvisse.

 

Perto de quê? perguntou Darragh.

 

De Sevenwaters sussurrei.

 

Darragh mostrou aquele sorriso torcido e abanou a cabeça.

 

Ainda estamos a meio caminho disse ele. Ainda falta muito, para norte e para leste, antes de atingirmos a floresta. É muito diferente disto aqui. Mas vais poder descansar em breve e divertires-te um bocado.

 

Divertir? Franzi as sobrancelhas, amargamente desapontada por ainda nos faltar muito e furiosa comigo mesma por ter perguntado.

 

Exactamente. Os melhores dias do ano. Lá em baixo, onde o vale se abre, pararemos por uns dias. Para dar descanso aos cavalos. Montaremos um acampamento como deve ser. Não muito longe dali está a Cruz. É onde se realiza a melhor feira de cavalos desta terra. Jogos, corridas, música, muita comida e bebida e mais gente do que noutro lado qualquer. Vais conhecer muita gente. Ele estava a olhar para mim de muito perto. Não fiques tão ansiosa, Fainne. Eu tomo conta de ti.

 

Parámos junto de um lago e os homens percorreram uma certa distância ao longo da margem, até os perdermos de vista. O dia não estava muito frio, apesar de o Outono já ir avançado. Não que fosse muito difícil meter as crianças na água. A dificuldade estava em lavá-las. Observei enquanto as mulheres e as raparigas mais velhas despiam e esfregavam os pequenitos, enquanto estes gritavam, protestavam e se esparrinhavam na água. O banho deu lugar a uma espécie de luta aquática; Peg, Molly e as outras raparigas tiraram as roupas sem uma palavra, sequer, de aviso e começaram a lavar-se com um pedaço de sabão comum e uma série de comentários obscenos. Olhei para longe, sentindo uma mistura de embaraço e inveja. Aquilo parecia extremamente fácil para elas. Eu não gostava da água. Em casa, nunca nadara no mar. Os meus banhos eram tomados numa pequena tina junto da lareira e era eu própria que ia buscar a água e a aquecia. Sempre fizera as minhas abluções na maior das privacidades. Até a minha avó respeitara isso. Sabia que estava suja, que cheirava mal e que tinha dois vestidos lavados na minha pequena arca. Mas aquilo... custava-me muito.

 

Peg saiu da água, o corpo ainda escorreito e curvilíneo apesar dos filhos que tinha tido.

 

Anda daí, rapariga disse ela com um sorriso. É a tua última oportunidade de te pores como nova antes da feira. A água não está muito fria.

 

N... não sei...

 

Anda, pequena, não está ninguém a olhar. Além há uma pequena enseada, um pouco escondida. Não estás habituada, estou a ver. Eu vigio por ti.

 

Assim, com as faces coradas, aproximei-me da água, separada das outras por uma curva da margem e por alguns salgueiros e despi-me, enquanto Peg, já com um vestido lavado e penteando os longos cabelos negros, se sentava num tronco de árvore e afastava as crianças se elas se aproximavam demasiado. A água estava gelada. Para piorar as coisas, o fundo era mole, lamacento e eu escorregava com facilidade. E era cada vez mais fundo. Olhei para o lado e vi as outras raparigas nadando, os braços morenos reluzindo e os cabelos molhados como graciosas algas em redor dos ombros nus. Mais longe, parecia que os rapazes se atiravam dos ramos de uma árvore para a água profunda. Lavei-me o mais depressa que pude, usando o pedaço de sabão no corpo e no cabelo, grata pela oportunidade de me livrar do suor e pó da viagem, aterrada pela possibilidade de dar um passo a mais e mergulhar de cabeça por engano. Peg estava a olhar para o outro lado. Podia afogar-me antes de ela dar conta. Ninguém sabia que eu não sabia nadar. Ninguém, a não ser Darragh. Seria uma maneira horrível de morrer, debaixo de água, arfando, esbracejando, incapaz de encher os pulmões de ar. Seria como... seria o mesmo que... afastei aquilo da mente.

 

Quando saí, Peg estendeu-me um lençol para me secar e depois apareceu Molly com um vestido nas mãos, que não era meu, às riscas azuis e verdes, e sobre o ombro trazia um lenço de pôr ao pescoço com uma fita azul cosida a toda a volta.

 

Fiquei ali a tremer, com o lençol em redor do corpo mal me cobrindo a nudez.

 

Eu tenho outro vestido na minha arca consegui dizer. Não preciso...

 

Este é melhor disse Peg com uma voz que não admitia réplica. Este azul fica-te bem. Vamos, mete aqui os braços, rapariga. Pronto.

 

Elas tinham tudo, até roupa de baixo limpa e umas meias rematadas a azul. Depois de me vestir, Peg virou-me de costas e começou a pentear-me o cabelo.

 

Eu não...

 

Quieta, rapariga. Não dá trabalho nenhum. Tantos caracóis. Tenho uma bonita fita azul, que me ficou desse lenço Molly, vê se a descobres para te atar na ponta da trança. A tua mãe tinha uns cabelos lindos. De uma cor linda, cor de mel.

 

Eu não disse nada enquanto os seus dedos ágeis me entrançavam o cabelo, e o atavam com a fita azul que Molly fora descobrir nas profundezas da carroça.

 

Pronto disse Peg, segurando-me nos ombros com os braços estendidos e olhando-me de alto a baixo. Não está mal, pois não? E agora vamos lavar estas coisas e ala que se faz tarde. Teremos tempo de sobra para as secar amanhã. Esta noite, um acampamento como deve ser; uma boa fogueira, oportunidade para nos descontrairmos e divertirmos. Vais gostar, rapariga. Vais ver.

 

Em breve estávamos de novo em cima das carroças, rodando por entre campos planos. Havia de novo um cheiro a maresia no ar. As rapariguitas tinham ficado invulgarmente silenciosas, olhando para mim com os seus olhos escuros. Talvez, pensei, estivessem cansadas do banho. Então, uma delas falou.

 

Tu és bonita disse ela e explodiu numa risadinha nervosa. As outras mandaram-na calar, mantiveram-se todas em silêncio durante uns momentos e depois desataram todas, de novo, a rir. E como eu não sabia se ela tinha sido sincera, ou se estava a gozar comigo, não disse nada.

 

Foi como Darragh me tinha dito. Chegámos ao nível mais baixo do vale, atingimos uma bifurcação e de repente havia gente por todo o lado, homens a cavalo, rapazes conduzindo póneis, camponeses com carroças carregadas até acima e gente vestida de maneira esquisita com bolas de malabarista ou com pássaros coloridos em gaiolas. Havia uma carroça fechada com um indivíduo vestido de preto, sentado taciturnamente e guiando um velho cavalo escanzelado. A seu lado caminhava um homem mais novo e enquanto caminhava gabava as virtudes dos vários elixires que tinha para vender: filtros de amor, poções mágicas de força, maldições para lançar a um inimigo.

 

Venham, venham gritava ele com grande vigor e maior confidência. Doenças curadas! Fortunas vaticinadas! Procurai o Grande Mestre sob os velhos carvalhos a norte da pista de corrida. Satisfação garantida.

 

Fiquei a vê-los passar e perguntei a mim própria quais seriam as suas misturas. Umas poucas ervas e umas gotas de mel? Nada de grande valor, suspeitei. Mas já alguns corriam atrás da sua carroça, gritando de excitação. Loucos, pensei. Em breve ficariam sem a pouca prata que tinham e para nada.

 

Não partilhámos a estrada com a multidão cada vez maior, tomando antes uma variante para oeste e em breve chegávamos a um extenso relvado abrigado entre amieiros e um ribeiro. Parámos e montámos o acampamento. Desta vez as carroças foram descarregadas, as tendas erguidas e foi construída, entre pedras, uma sólida fogueira no centro do espaço aberto, com espaço suficiente em volta para as pessoas se sentarem confortavelmente. Os cavalos foram desaparelhados, presos sob as árvores e os rapazes começaram a esfregá-los, um de cada vez, procurando ao mesmo tempo algum ferimento ou entorse provocados pela jornada. Achei que ficaríamos ali até a feira acabar, subindo a estrada todos os dias para fazer negócio e regressando ao acampamento à noite. Conseguia ouvir o mar, o persistente ir e vir de pequenas vagas.

 

As mulheres e as raparigas tinham uma grande tenda e nela foi-me dado um pequeno canto, que Peg me mostrou, piscando o olho. Enquanto desdobrava a roupa de cama e verificava o fecho da minha arca de madeira, sussurrei um obrigada e ela retribuiu-me com um sorriso torcido, à imagem do filho. Assim que as minhas coisas ficaram arrumadas escapei-me para fora da tenda e desci por entre as árvores, pelo pequeno carreiro, para oeste. Não era longe. Um pequeno passeio pelo carreiro pedregoso, por entre arbustos enfezados, depois uma pequena subida e lá estava ele. As vagas quebravam preguiçosamente e lambiam a grande e pura praia que se estendia entre grandes promontórios, a norte e a sul. Mais longe via-se a espuma e rochas escuras, a escorrerem água. Uma grande falésia, pelo menos assim parecia, guardava aquela baía tranquila. O Sol, a pôr-se, aproximava-se cada vez mais da vasta extensão de água e dourava a areia. Aqui e ali, na praia, viam-se figuras: dois rapazes galopando com os seus póneis numa corrida louca ao longo da linha de água; um rapaz num cavalo negro, nadando, respirando o poder das ondas e depois regressando à praia, escorrendo, agitando-se para tirar o excesso de água prateada. Havia gente a passear, um par de mãos dadas e uma rapariga dobrando-se em busca de conchas.

 

Sentei-me ali um pouco, a observar. Sentei-me o tempo suficiente para me acalmar, para acalmar a respiração, para dizer a mim própria que conseguia, que havia de conseguir. Talvez, quando se juntassem todos em redor da lareira, nessa noite, não reparassem se eu me retirasse mais cedo para me ir deitar. Talvez, quando se juntassem no dia seguinte à grande multidão na feira de cavalos, eu pudesse ficar para trás e regressar ali, caminhar sozinha pela praia, ou sentar-me e olhar para as ondas, sempre a mudarem, sempre as mesmas. Talvez fosse possível. Se não, teria de usar o Encantamento. Na verdade, a minha avó teria achado uma tolice eu não ter feito nada ainda para disfarçar o meu embaraço, para disfarçar o meu medo dos estranhos. E eu também achava que era uma tolice. Mas havia algo que me impedia de o fazer. Lembrei-me das sobrancelhas franzidas de Darragh e das suas palavras. Não gosto quando fazes isso. Pensei nas palavras da rapariga. Tu és bonita. Decidira, quase, que era uma brincadeira. Mas, por um momento, as suas palavras tinham-me aquecido. Se usasse o Encantamento, toda a gente pensaria que eu era bonita. Mas não era a mesma coisa.

 

Mas não houve escapadela possível às festividades da noite. A minha desculpa esfarrapada foi afastada por Peg, que me atirou para o meio do círculo de pessoas sentadas em troncos e caixas velhas, em redor da fogueira. Sentou-me entre Molly e ela própria, pôs-me uma caneca com algo fumegante e fragrante nas mãos e depois instalou-se, de olhos brilhantes, pronta para o divertimento. Não tinha qualquer hipótese de recusar.

 

Em redor da fogueira estavam muitos rostos, velhos e novos. As mais pequenas das crianças estava sentada nos joelhos de um parente, ou dormia enrolada em cobertores junto de uma irmã vigilante, ou de um irmão. Os mais velhos tinham lugares de honra, os assentos mais confortáveis, o mais próximos possível do calor. Estavam ali todos: Dan Walker com a sua barba escura e o anel de ouro na orelha; o grupo de jovens que eu encontrara na minha visita ao acampamento, na enseada do Favo de Mel; o próprio Darragh, conversando com um par de raparigas vestidas garridamente, que eu não vira antes. Havia outros que eu não conhecia, se bem que fossem, claramente, convidados. As duas raparigas pareciam ter irmãos, ou primos, e havia um mais velho, um homem de cabelos grisalhos sentado junto de Dan, partilhando a bebida quente de uma chaleira junto do fogo. Bebi cautelosamente. Era boa mas forte, qualquer coisa parecida com cidra, com especiarias e mel.

 

E que tal uma história ou duas? perguntou alguém. Quem tem uma boa história? Brian? Diarmuid?

 

Eu não, disse o homem de cabelo grisalho, abanando a cabeça. Estou com dor de dentes. Não posso falar.

 

Ah! troçou outro. Bebe mais um pouco, que isso passa.

 

Há um tipo na feira que arranca dentes sugeriu Molly. Vai visitá-lo. Ele tira-to num abrir e fechar de olhos.

 

Aquele carniceiro? O homem empalideceu visivelmente. Preferia que a minha velha mo arrancasse com umas tenazes.

 

Seguiram-se várias sugestões acerca dos remédios a que ele poderia recorrer, nenhuma delas muito prática. Então, Dan Walker falou.

 

Eu conto uma história disse ele. Ouviu-se um coro de aprovação e depois, silêncio. É acerca de um homem chamado Daithi, Daithi O’Flahirty. Não é parente, sabem, da distinta família com esse nome que vive por estas bandas. Ouviu-se um rugido de risadas apreciativas. Era um camponês. Bem, este Daithi teve a ideia de ir ver a namorada para passar o tempo, estão a perceber? Ia a caminhar pela estrada quando ouviu um barulho, tape, tapiti tape, que vinha de detrás de uns arbustos, ao lado do carreiro. Daithi era um tipo esperto. Não fez um som, acocorou-se, muito quieto e espreitou por entre os ramos para ver o que era. E Deus me ajude se não viu um tipo muito pequenino, com um chapéu pontiagudo e um pequeno avental de pele, um jarro ao lado e junto dele uma pequena concha. O pequenito estava a fazer uma bota do tamanho de metade do meu dedo, que só podia servir no seu próprio pé. Enquanto Daithi observava, prendendo a respiração, o homenzinho pousou a sua ferramenta de sapateiro, meteu a concha no cântaro e serviu-se do licor; em seguida, voltou ao trabalho, tape, tapiti tape.

 

É melhor ir com cuidado disse Daithi para si próprio. Assim, manteve a voz baixa para não assustar o homenzinho.

 

Bom dia para si, meu caro senhor, disse ele o mais polidamente que conseguiu.

 

E para si também respondeu o pequenito, continuando a bater.

 

-O que é que está a fazer? perguntou Daithi.

 

É uma bota, pois disse o gnomo levemente trocista. E o que é que o senhor anda a fazer, vagueando pelos caminhos em vez de estar a trabalhar?

 

Eu já volto para o trabalho replicou Daithi, pensando, a não ser que te apanhe primeiro. Diga-me, o que é que tem nesse seu pequeno cântaro?

 

Cerveja disse o homenzinho. A mais saborosa que há. Fui eu que a fiz. E lambeu os lábios.

 

A sério? disse Daithi. E que usou para fazer essa cerveja? Malte, não?

 

O gnomo rolou os olhos com desdém.

 

Malte? O malte é para os bebés. Esta bebida é feita de urze. Não há melhor.

 

Urze? exclamou Daithi. Não se pode fazer cerveja com urze.

 

Ah disse o gnomo. Foi o Dubh-ghaill que me ensinou. Uma receita secreta. Só a minha família é que a faz, mais ninguém.’

 

Posso prová-la?

 

Claro disse o gnomo. Mas sinto-me chocado por um camponês tão bom como o senhor pensar em passar o tempo a beber em vez de guardar os seus gansos, que saíram do pátio e andam a dar cabo do jardim do seu vizinho.

 

Daithi ficou chocado e quase se virou para correr para casa, para ver se o gnomo tinha razão. Mas no último instante lembrou-se e, em vez de fazer isso, estendeu uma mão para agarrar no gnomo por uma perna. O cântaro virou-se e a cerveja espalhou-se pelo chão.

 

E agora disse Daithi severamente mostra-me onde guardas o teu pote de ouro, ou ainda te arrependes.

 

Bem, o gnomo ficou encurralado, porque, como todos nós sabemos, só precisamos de segurar num e guardá-lo à vista para que ele tenha de nos mostrar o tesouro. Assim, foram os dois até ao campo de Daithi, até um local com muitas rochas, ainda por amanhar. O gnomo apontou para uma daquelas grandes pedras na direcção sul do campo.

 

Além disse o homenzinho. Por baixo daquilo está o meu pote de ouro, a tua desgraça.

 

Bem, Daithi tentou levantar a rocha, empurrou, sempre segurando o gnomo e percebeu que não conseguiria movê-la sem a sua pá. Mas havia ali tantas pedras, o campo estava cheio de pedras. Teria de marcar aquela, antes de ir buscar a pá. Daithi procurou no bolso. Tinha lá uma fita vermelha que comprara a um nómada e que tencionava dar à namorada. Tirou-a e atou-a em redor da rocha sob a qual estava enterrado o pote de ouro.

 

Pronto disse ele. Daithi franziu o sobrolho para o gnomo. Agora, antes de te libertar disse ele, sabendo como os gnomos eram traiçoeiros quero que me dês a tua palavra. Não tiras dali o tesouro antes de eu regressar com uma pá. E não tiras a fita desta rocha. Promete-me.

 

Prometo, claro disse o gnomo com absoluta sinceridade.

 

Ouviram-se algumas risadas na audiência, da parte daqueles que sabiam o fim da história.

 

-Muito bem, nesse caso disse Daithi.

 

Deixas-me ir embora, então? perguntou o homenzinho, muito educadamente. Daithi libertou-o e o gnomo desapareceu como uma flecha. Dan foi a casa buscar a pá e correu de volta ao campo com a mente cheia das coisas que faria quando pusesse as mãos no pote de ouro. E quando lá chegou, que viu ele? Todas as rochas no campo tinham uma fita vermelha. E, por mais que tentasse, por mais que cavasse, Daithi O’Flahirty nunca encontrou o tesouro do gnomo.

 

Ouviram-se aplausos de satisfação. Apesar de ter gostado, era óbvio que aquela história não tivera a grandeza das contadas pelo meu pai. Então, o homem de cabelo grisalho, aparentemente curado da dor de dentes, ofereceu-se para cantar uma canção. Era uma bela canção, edificante, acerca da vida difícil na terra fria e árida de Ceann Na Mara e como ele gostava dela, de tal modo que o seu coração lhe pedia sempre para voltar. Seguiram-se mais histórias: engraçadas, tristes, melancólicas. No fim, Darragh foi persuadido a tocar a sua gaita-de-foles. Desta vez ele não escolheu a canção triste, de partir o coração, que eu ouvira tantas vezes do outro lado do monte, acima da enseada. Tocou música de dança, os jovens levantaram-se, fizeram um círculo e seguiu-se um bater de pés no chão, um bater de palmas e um vivo redemoinho de saias e xailes à luz dourada e quente da fogueira do acampamento. Eu fiquei sentada a olhar e a beber a minha bebida. Darragh continuou a tocar. Não olhava para os alegres dançarinos, ou para os mais velhos sentados confortavelmente, revivendo amizades depois de anos de afastamento. Olhava para mim. Levanta-te e dança, diziam os olhos dele, desafiando-me. Porque não danças? E, no fundo do meu coração, algo me dizia para o fazer. Aquela música fazia-me ferver o sangue; despertava-me sentimentos adormecidos. Mas eu fora bem treinada. Disse para mim própria severamente: Tu, dançar? Não sejas tola. Nunca dançarás, não sem fazeres figura de parva. Além disso, és o que és. És diferente e sempre serás.

 

Depois daquilo foi fácil levantar-me, dar uma palavra a Peg e retirar-me para a tenda.

 

Divertiste-te, rapariga? perguntou Peg. Acenei levemente com a cabeça e afastei-me na direcção do meu canto escuro e da minha privacidade. Lá fora, a música continuava. Em determinada altura juntaram-se à gaita-de-foles um assobio e um tambor. No meu canto, abri a minha arca de madeira, procurei entre as coisas que lá estavam, encontrei Riona e tirei-a. As suas feições mal se distinguiam nas sombras.

 

A minha mãe dançava?, perguntei-lhe. Isto foi um vestido de baile? Os meus dedos tocaram numa prega do tecido sedoso cor-de-rosa do pequeno vestido de Riona. Certamente, só uma rapariga confiante, encantadora, usaria um tal vestido. No entanto, essa mesma rapariga tornara-se na frágil criatura das palavras de Peg, na mulher que abandonara a filha e o homem que a amava desesperadamente, na mulher que se atirara um dia da falésia e que caíra, caíra através da espuma para as garras geladas do oceano que se atirava contra as rochas do Favo de Mel. Fora a sua própria família que provocara aquilo; o seu pai, os seus tios, o seu irmão, que era ainda o senhor de Sevenwaters. A conversa de Darragh acerca da família era um disparate. Tinham-na matado e tinham destruído o meu pai. À sua maneira, eram tão maus como a minha avó. E agora tinha de enfrentá-los e, de algum modo, tinha de levar a cabo a tarefa de que a minha avó me encarregara. Como podia eu pensar em histórias de fadas, em música e divertimento, quando tinha uma coisa daquelas pela frente? Dan Walker e os seus eram gente simples. Até as histórias que contavam eram simples. Eu não pertencia àquele povo e era louca se pensava que algum dia pertenceria. Tinha de me manter como era e ter a certeza que não atraía as atenções. Com o tempo a viagem acabaria e poderia começar o trabalho que me esperava.

 

Mas não era fácil. Parecia que havia uma pequena conspiração para me afastar de mim própria e fazer com que fizesse parte de tudo, quer quisesse, quer não. Acordaram cedo, na manhã seguinte e já estavam a comer as suas papas quando eu emergi da tenda com os olhos todos ramelosos. Havia uma gamela de água comunal. Salpiquei apenas a cara, tendo já aprendido a não ser muito exagerada.

 

Come depressa aconselhou-me uma das raparigas ao passar por mim a correr e atando o cabelo com um lenço. Ainda é longe. E os negócios começam cedo.

 

Aceitei silenciosamente uma escudela de papas e fui para debaixo das árvores para me sentar num tronco a comê-las. Sentia-me cansada. Deitara-me tarde. De qualquer maneira, não queria ir. Mas pareciam todos tão ocupados; não havia ninguém a quem perguntar. Os póneis tinham de estar impecáveis; Dan inspeccionava-os enquanto os rapazes davam os últimos retoques: o intrincado entrançamento de uma crina aqui e o cuidadoso escovar de uma cauda ali. Peg preparava os seus melhores cestos e dava às raparigas instruções infindáveis sobre o negócio e sobre como não se meterem em sarilhos. Talvez não fosse preciso perguntar se podia ficar. Talvez se esquecessem de mim. Subitamente fui invadida por uma onda de saudades de casa, um desejo de ver o meu pai e regressar a Kerry, um sítio tranquilo, seguro, familiar. Se, ao menos, pudesse empacotar algumas coisas e partir sozinha, regressando pelo mesmo caminho até chegar ao monte onde as pedras erectas marcavam a passagem do tempo e à enseada. Mas não podia regressar. Só podia ir em frente. Sentia-me triste e sem forças. Sentia-me realmente deslocada, como se não pertencesse a lugar nenhum.

 

É melhor lavares essa escudela e preparares-te para partir, rapariga. A voz de Peg interrompeu-me os pensamentos. Vamos todos daqui a pouco. Vai ser um dia em cheio.

 

Olhei para ela, preparando as palavras. Então, Darragh apareceu por trás dela, muito bem-vestido, um lenço verde ao pescoço, as botas muito bem polidas e um ar confiante.

 

É uma caminhada longa de mais para Fainne disse ele para a mãe.

 

Ela aguenta disse Peg olhando para ele de lado com uma expressão esquisita. Não é nenhuma inválida.

 

Eu... eu... gostava... foi tudo o que consegui dizer. Dois pares de olhos fixaram-me intensamente e percebi que ambos sabiam o que eu estava a querer dizer.

 

Fazemos o seguinte disse Darragh com indiferença. Eu levo Fainne comigo. Aoife aguenta bem com os dois. Desço-a perto dos carvalhos e vamos ter consigo antes de eu ir para junto dos outros. Assim é mais fácil.

 

Se é isso que queres disse a mãe secamente. Não te atrases.

 

Não, mãe sorriu Darragh, e avançou para onde eu estava, sob as árvores, de escudela vazia nas mãos. Pronta? perguntou ele com as sobrancelhas erguidas.

 

Eu nem sequer quero ir resmunguei.

 

Bem, não podes ficar aqui sozinha, portanto não tens escolha, pois não? disse ele. Precisas de um lenço na cabeça, por causa do vento. É melhor entrançares o cabelo, também. Queres que te faça isso?

 

É claro que não! ripostei secamente. Não sou nenhum bebé. Eu faço.

 

Não te demores disse ele tranquilamente.

 

Uma das raparigas ofereceu-se para me ajudar com o cabelo e, como estávamos com pressa, deixei-a. Mas depressa me arrependi.

 

Tratamento especial, ha? disse ela enquanto os seus dedos tentavam fazer alguma coisa dos meus espessos e intratáveis caracóis ruivos.

 

Não conseguia olhar para ela, para lhe reprimir o mexerico com uma expressão de desdém. Por isso, perguntei:

 

O que queres dizer?

 

Vais a cavalo com Darragh. Ele nunca fez tal coisa, levar uma rapariga com ele até à Cruz. Andam muitas atrás dele, o problema é esse. O Darragh é muito cuidadoso. Não tem favoritas.

 

Não consegui pensar em algo para dizer. Talvez lhe desse uma bofetada, se não me estivesse a entrançar o cabelo.

 

Não se trata de favoritismo nenhum sussurrei, irritada. Ele está só a tentar ajudar, porque eu não posso andar com rapidez. Movi o meu pé ligeiramente, para lhe mostrar a bota ligeiramente diferente.

 

Isso? disse a rapariga sem cerimónia. Isso não é nada. Aguentavas nas calmas. Tens uma fita?

 

Estendi-lhe a fita azul por cima do ombro.

 

Não. Estás a ser favorecida. Nem parece dele, chegar atrasado logo no primeiro dia de feira. É sempre o primeiro a partir, mal o Sol nasce. É louco por cavalos. Espera até ele aparecer na Cruz contigo na garupa. Vai partir os corações das raparigas todas.

 

Tenho a certeza de que estás enganada disse eu, sentindo as faces corar. Eu não sou uma de vós. Ele só está a ser delicado. Sou uma... uma estranha, uma convidada. Mais nada.

 

A rapariga atou a fita com firmeza.

 

Talvez sim disse ela dando a volta com um pequeno sorriso que a marcava como mais um dos numerosos filhos de Peg. Devia, portanto, ser irmã de Darragh. Nem sequer sabia o seu nome. E talvez não. E então foi-se embora com um frufru de saias encarnadas e um tilintar de brincos de ouro antes de eu ter tempo, sequer, de lhe agradecer.

 

Ela estava completamente errada, claro. Darragh e eu éramos velhos amigos, mais nada. E ele achava que eu seria um incómodo e que me meteria em sarilhos se não me vigiasse. Qualquer coisa para além disso era muito difícil de compreender. Atei o pequeno lenço com a sua orla azul por cima do meu cabelo entrançado e fui até onde ele me esperava sem qualquer sinal de impaciência, enquanto Aoife pastava tranquilamente. Parecia que Dan, os homens e os rapazes já tinham ido. Peg e Molly estavam a organizar as crianças mais velhas no sentido de carregarem as mais pequenas e a aparelharem um par de velhos cavalos, que transportariam os cestos e os bebés.

 

Darragh olhava para mim com uma expressão esquisita, quase como se fosse começar a rir.

 

Pareces uma pequena nómada observou ele. Tudo o que precisas é de um toque final e ficas igual. Toma. Ele procurou no interior da sua jaqueta e tirou um pedaço de tecido sedoso, perfeitamente dobrado. Quando peguei nele, desdobrou-se e eu vi um xaile deslumbrante de muitas cores, cuidadosamente decorado com criaturas minúsculas, delicadas, lagartos verdes, pássaros azuis, borboletas douradas e exóticos peixes com as cores do arco-íris e caudas frondosas. O xaile tinha uma franja brilhante, entre o dourado e o prateado. Era o ornamento mais maravilhoso que eu já tinha visto.

 

Eu não posso usar isto disse eu, olhando para o objecto. Parecia feito para uma princesa.

 

Não? disse Darragh e tirando-mo das mãos, colocando-mo em volta dos ombros e atando-o à frente. Vamos disse ele. Prometi que não chegávamos atrasados. Não tens medo de andar a cavalo, pois não?

 

É claro que não! retorqui.

 

Então, vamos.

 

Com a sua ajuda, não foi muito difícil subir para cima de Aoife. Pensava que iria atrás dele, como dissera a irmã; mas ele colocou-me na frente, sentada de lado como uma senhora, segurando-me com uma das mãos enquanto, com a outra, segurava levemente nas rédeas. Pareceu-me, quando começámos a andar, que Aoife sabia o que queria, sem necessidade de lhe dizerem nada. Quando havia uma bifurcação no trilho, Darragh dizia uma palavra em voz baixa e ela virava. Tocava-a com os joelhos, ou pousava-lhe uma mão morena no brilhante pescoço branco e ela percebia instantaneamente o que o dono queria.

 

Tudo bem? perguntou ele uma vez ou duas, e eu acenei com a cabeça. De facto, ia melhor do que bem. Sentia-me como nos velhos tempos; quando partilhávamos uma camaradagem silenciosa. Esses tempos tinham acabado. Eu sabia. Mas, enquanto aquela cavalgada durasse, podia fingir que nada tinha acontecido. Sentia o toque suave do xaile maravilhoso, com o seu vibrante padrão de vida, envolvendo-me como um talismã de protecção; quase acreditava que era um dos nómadas, cavalgando para a feira, orgulhosa e, por trás de mim, com o braço em redor da minha cintura, um belo rapaz, que era o melhor tocador de gaita-de-foles de Kerry. Ali ia eu, cavalgando o cavalo mais branco e mais inteligente de todos, com o rosto ao vento, as formas rígidas das montanhas distantes de um lado e as águas de uma vasta enseada rochosa do outro, deixando ver aqui e ali uma pequena praia e um barco ou dois em terra, para melhor segurança. Havia pouca gente no caminho. Talvez estivéssemos atrasados. Darragh não parecia aborrecido e Aoife prosseguia como se fosse a única criatura importante na estrada. Ultrapassámos Peg, Molly e as crianças e a irmã de Darragh piscou-me o olho. Passado um bom bocado, perguntei-lhe:

 

Como é que se chama a tua irmã?

 

Qual delas?

 

A que tem uma saia vermelha e um ar altivo. Creio que deve ser logo a seguir a ti.

 

Seguiu-se uma pequena pausa.

 

Por que é que não lhe perguntas? disse Darragh. Não respondi.

 

Elas não mordem, Fainne disse ele, mas não havia qualquer reprovação no seu tom. Deve ser a Roisin. Foi atrevida contigo?

 

Não.

 

Tens de ter cuidado com ela. Ela diz o que pensa.

 

Hum disse eu. Já reparei.

 

Mas é boa rapariga. Todas são.

 

Chegámos depressa de mais. Nunca vira tanta gente num só lugar, nem nunca ouvira tantas vozes. Mas havia uma certa ordem, se se olhasse com cuidado. O verdadeiro negócio desenrolava-se no local onde estavam os cavalos, com pequenos grupos de camponeses, nómadas e alguns com ar de senhores locais, ou mestres-de-armas, inspeccionando dentes e cascos e conduzindo conversações intensas e privadas. Mais perto desenrolava-se o comércio de bens variados, as pessoas conversavam, havia um odor a carne assada vindo de uma pequena fogueira e vi a carroça coberta do Grande Mestre e do seu fluente assistente. Alguém chamou de longe por Darragh. Parámos sob um grupo de grandes árvores.

 

Pronto disse ele, e deslizou do alto de Aoife, leve como uma pena. Chegámos. Segurou-me enquanto eu descia e ficou, depois, por instantes, com as mãos em redor da minha cintura. Ah disse ele. Um sorriso. Coisa rara.

 

Estendi o braço para afagar o flanco reluzente de Aoife.

 

Não vais vendê-la, pois não? perguntei.

 

A ela? Nem pensar. Não me separo dela. Dá-me sorte. Acenei com a cabeça.

 

Está alguém a chamar-te disse eu.

 

Darragh afastou as mãos.

 

Acho que não posso ir já disse ele franzindo o sobrolho. A minha mãe ainda não chegou e eu disse que esperava por ela. E lá em cima não é lugar para uma rapariga disse ele, indicando o lugar onde estavam os cavalos com um movimento de cabeça.

 

Outra voz gritou:

 

Darragh! Precisamos de ti aqui!

 

É melhor ires disse eu com mais coragem do que a que sentia. Eu espero por ela aqui, sob estas árvores.

 

Os olhos castanhos de Darragh olharam para mim fixamente.

 

Tens a certeza?

 

Não sou nenhuma criança. Não me perco.

 

Promete-me que não te metes em sarilhos.

 

Não sejas ridículo.

 

Promete, ou não saio daqui.

 

Darragh! Desta vez era Dan Walker que chamava.

 

Que estupidez. Está bem, prometo.

 

Até logo, então. Puxou-me o canto do lenço, girou nos calcanhares e foi-se embora com Aoife caminhando obedientemente a seu lado, firme como uma rocha no meio de toda aquela multidão.

 

Tencionava cumprir a minha promessa. A sério. Mas não nos podemos esquecer de quem somos e do que somos. Por vezes, as coisas acontecem e temos de agir, não podemos, apenas, ficar parados. Foi o que aconteceu naquela manhã, na Cruz.

 

Misturei-me com as sombras das grandes árvores, desejando ter o poder da invisibilidade. Porque podia ficar ali escondida, com ou sem xaile garrido, já que toda a atenção estava concentrada na carroça do Grande Mestre. Estava a ser aberta e descarregada a dez passos dali para delícia dos muitos pescoços esticados, ooohhhs e aaahhhs da multidão reunida em volta. O assistente esgalgado fazia a maior parte do trabalho e só ele é que falava, enquanto o Mestre permanecia com a sua miserável capa de feiticeiro esfarrapada, olhando para todos com o seu nariz que mais parecia um bico e fazendo os possíveis para parecer altivo e misterioso. Havia menos magia naquele tipo lúgubre, pensei, do que no meu dedo mindinho. Via-se logo que era uma fraude, mas era espantoso ver como as pessoas pareciam atraídas por ele.

 

O assistente era um homem muito irrequieto. Em breve a área em redor da carroça era um festival de bandeiras, redes e muitas gaiolas pequenas penduradas em paus, dentro de cada uma das quais estava uma estranha criatura que podia ser obtida por um determinado preço, para divertir uma namorada ou para provocar ciúmes num vizinho. Aproximei-me um pouco, mas era difícil ver sem ser vista. Na gaiola mais próxima de mim estava um pássaro com ar abandonado, uma espécie de mocho com a plumagem em farrapos. Andava de um lado para o outro no seu poleiro, os movimentos irregulares, os olhos redondos e selvagens. Por baixo dele estava sentada uma criatura penugenta, com uma mão provida de garras em redor de uma das barras da sua pequena prisão e a cabeça inclinada, como se estivesse a dormir. No outro lado, algo lançava guinchos estridentes e as pessoas apontavam, lançando pequenas exclamações.

 

Minhas senhoras, meus caros senhores, meus queridos jovens! O assistente gritava; essencial para se fazer ouvir. Aproximai-vos, aproximai-vos e o Mestre mostrar-vos-á os incríveis remédios que temos para vós este ano, alguns já testados e confirmados, outros maravilhosas descobertas, tudo espantosamente eficaz.

 

Aquela lengalenga continuou durante algum tempo. Olhei em volta. Não havia sinais de Peg, de Molly e das crianças. Aproximei-me. Consegui ver a origem do barulho: um pássaro brilhantemente colorido, preso num poleiro na parte de trás da carroça. Por trás dele outros animais enjaulados. Pombas. Tentilhões. Uma lebre numa gaiola tão pequena que não conseguia virar-se, nem sequer flectir as fortes pernas, ou saltar, como todos os da sua espécie. Estava lá um rapaz, metendo um dedo na gaiola e o animal nem sequer podia fugir. Olhei-lhe para os olhos: sem expressão, olhando em frente, a razão submersa pelo pânico. O pássaro gritou de novo e a mim pareceu-me que aquele grito representava a raiva e o medo de todos os outros, por terem sido metidos em gaiolas, por serem mostrados, por servirem de divertimento a um bando de parolos e depois atirados fora sem um segundo pensamento, sequer.

 

O homem continuava a falar acerca de uma poção de força. Fingiu que bebeu um pouco e depois escolheu, entre a multidão, um grandalhão para lutar com ele. O resultado era inevitável. Os dois fizeram um simulacro de combate e o assistente do Mestre assentou um murro no queixo do seu opositor muito maior. O gigante caiu e a multidão fez um ah! de espanto. Após uma curta pausa, durante a qual se ouviu uma criança perguntar: «Ele está morto, mãe? o sujeito começou a resmungar e foi içado, massajando o queixo e revirando os olhos. Seguiu-se um murmúrio de excitação e os compradores, ansiosos, empurraram-se uns aos outros. Perguntei a mim mesma quanto teriam eles pago ao grandalhão para fazer aquele papel.

 

E agora disse o assistente, aparentemente inchado pela sua proeza o Mestre em pessoa vai fazer a demonstração de um novo e incrível filtro de amor. Feito por ele próprio, esta poção transformará a mais relutante das namoradas numa... caros amigos, não imaginais. Tendes de ver por vós próprios. Meus senhores... o Mestre.

 

Era suposto toda a gente aplaudir, penso. Ainda não conseguia ver muito bem. Mas, se me aproximasse, ficaria no meio da multidão e as pessoas olhariam para mim, aproximar-se-iam, falar-me-iam e... Os meus dedos apertaram o talismã e senti-me mais confiante. Usa o Encantamento, dizia a voz da minha avó, algures na minha cabeça. Sê o que quiseres. Fi-lo rapidamente, antes que mudasse de ideas. Peg e Molly não estavam presentes. Darragh estava ocupado. Ninguém repararia. Escolhi a forma que atrairia menos as atenções, uma versão bastante mais velha de mim própria, uma mulher de meia-idade, com roupas de trabalho, xaile, lenço e cabelos soltos. Podia ser qualquer pessoa. Na verdade, havia muitas assim na multidão. Ninguém reparou quando me aproximei da frente, onde podia ver o homem que se chamava a si próprio Mestre, perscrutando a multidão e mantendo, ao mesmo tempo, a sua pose de desdém.

 

O Mestre está à procura disse o assistente portentosamente. A procura de um homem que se sinta só; à procura de uma pobre alma sem amor. Que tal você, amigo?

 

Esse já tem dono! respondeu uma aguda voz feminina na parte de trás da multidão. Toda a gente se riu.

 

Ah disse o assistente, enquanto o Mestre apontava um dedo ossudo. Eis o homem. Qual é o seu nome, amigo?

 

O homem, embaraçado, corou, sorrindo ao mesmo tempo.

 

O nome dele é Ross disse um amigo prestável, desatando a rir. Não tem os parafusos todos, mas é bom rapaz. Parecia que já tinham ambos uns copos a mais.

 

Gostava de ter uma bela namorada, não gostava, Ross? perguntou o assistente e acenou à sua vítima para que subisse os degraus da carroça, de modo a que toda a gente o pudesse ver. Vamos lá a ver se lhe arranjamos uma. Qual das senhoras quer experimentar o nosso novo elixir?

 

Seguiu-se um arrastar de pés e um silêncio. Aparentemente, ninguém se oferecia. Não fiquei surpreendida. O homem que eles tinham escolhido era escanzelado, não tinha um ar muito limpo e tinha um nariz bulboso, com uma verruga na ponta.

 

Então? aliciou o assistente. Quem quer tentar? Deve haver aqui uma bela senhora que goste de se divertir? Não? Bem, nesse caso, o Mestre terá de suplicar.

 

O homem da capa negra já tinha descido da carroça e começara a passear ao longo da fila da frente, onde as pessoas se amontoavam. Eu tinha-o observado, enquanto os outros prestavam atenção ao que falava. O Mestre segurava na mão uma corrente de ouro com um pequeno e brilhante objecto na ponta e fazia-a oscilar, para um lado e para o outro.

 

Pode ser que haja alguma coisa para a rapariga que tiver coragem insinuou o assistente. O Mestre andou de um lado para o outro. A pequena corrente oscilava para a esquerda e para a direita. O homem parou. Fez uma pausa. Estendeu um dedo e apontou.

 

Ah! exclamou o assistente. Temos ali uma voluntária. Aproxime-se, minha cara, suba até aqui e prove esta poção requintada, feita de uma selecção cuidadosa de ervas, bagas e... um... o homem fez um círculo com o polegar e o indicador ingrediente secreto. Apenas umas gotas.

 

A rapariga escolhida era muito nova, certamente mais nova do que eu e pobremente vestida, com um vestido todo remendado. À parte isso, havia uma frescura nela que era capaz de atrair a atenção de um homem. Ninguém levantou objecções quando os homens a empurraram. Parecia que ela estava ali sozinha. Ninguém reparou na maneira como ela olhou para a pequena corrente de ouro oscilando de um lado para o outro, como se fosse a única coisa que conseguisse ver. Senti a irritação crescer dentro de mim.

 

O Mestre guardou a corrente no bolso. A rapariga colocou-se diante dele, as suas puras feições vazias de qualquer expressão. No outro lado, o homem de nariz bulboso olhou de esguelha para ela e depois para os amigos na multidão, revirando os olhos e estes riram-se, acotovelando-se.

 

O Mestre inclinou-se e segredou qualquer coisa ao ouvido da rapariga. Tudo o que ouvi, foi:

 

Bebe isto, minha querida. Mas ele tinha-lhe dito mais qualquer coisa. E eu era capaz de adivinhar o quê.

 

Ela pegou na pequena taça e bebeu. Seguiu-se um silêncio de expectativa. Por um momento, nada aconteceu. Então, ela virou-se e, sem qualquer expressão, deu um passo na direcção do homem chamado Ross. Pôs-lhe os braços em redor do pescoço, pressionou o corpo contra o dele e beijou-o nos lábios longamente. A multidão deu vivas e aplaudiu. Reparei na maneira como o homem a apalpava e lhe metia a língua na boca. Esperava que o Mestre estalasse os dedos, ou acenasse diante dos olhos da rapariga para desfazer o que tinha feito. Em vez disso, ficou a ver o homem conduzir a rapariga pelos degraus abaixo e através da multidão. Um grupo de homens amontoou-se em redor da carroça, ansiosos por comprar a poção. Senti-me ultrajada Aquilo não passava de um simulacro, de um velho truque, fácil, se se encontrasse um indivíduo susceptível. Fazia-se com facilidade. E desfazia-se com a mesma facilidade.

 

Mas aquele homem não o desfizera. Deixara ir aquela rapariga com aquele tipo e como eu disse, somos o que somos. Por vezes, temos de agir. O pássaro multicolorido continuava no seu poleiro perto do ombro do Mestre, sempre a gritar. Olhei-o nos olhos e disse uma palavra em silêncio.

 

A corda que o prendia quebrou-se. Ninguém viu. O pássaro encolheu-se, aumentou de tamanho e transformou-se. Por momentos, na confusão, ninguém reparou. As penas de cores vivas transformaram-se em escamas brilhantes. Garras e bico desapareceram. Usei a imaginação. O animal tornou-se comprido, esbelto e sinuoso. A serpente enrolou-se no poleiro, sentindo o poder do seu corpo musculoso e o veneno na sua língua bifurcada. Sentindo o quase esquecido poder da liberdade. Uma criança perguntou: O que é aquilo, mãe?

O Mestre ficou gelado quando sentiu o animal circular-lhe pelos ombros e enrolar-se em redor do seu pescoço, por cima da capa esfarrapada.

 

Aaah... conseguiu ele dizer num mero fio de voz. O assistente recuou. A multidão recuou. O homem chamado Ross parou e olhou para trás, segurando ainda a rapariga por um braço. Eu avancei um passo, certificando-me de que o Mestre me podia ver. Desfaz o feitiço disse eu muito calmamente, Os seus olhos esbugalharam-se na minha direcção. O seu rosto estava violeta. Talvez o aperto fosse forte. Não me importei. Chama a rapariga e desfaz o que fizeste disse eu de novo, suavemente, de modo que apenas ele e o assistente pudessem ouvir. Já, ou morres. Não penses que me importa o que te possa acontecer... Aaaah... conseguiu dizer de novo o Mestre, olhando para o assistente com os olhos esbugalhados. A serpente aumentou o aperto e a sua cauda saiu do poleiro para se enrolar em redor do braço do Mestre. Agora, o homem suportava o peso total do animal. A cabeça, pequena e triangular, estava, agora, mesmo em frente dos seus olhos. O assistente mexeu-se e chamou.

 

Tu! Tu aí! Trá-la de volta!

 

A multidão afastou-se do homem e da rapariga. O terror afastou as pessoas da carroça; mas o fascínio mantinha-as suficientemente perto, porque aquele divertimento seria objecto de todas as histórias à volta da fogueira durante o longo Inverno que se aproximava. O assistente agarrou na rapariga pelo outro braço e afastou-a do lúbrico Ross. Não precisou de puxar com muita força. Ross tinha empalidecido à vista dos pequenos e maldosos olhos da serpente. Recuou para o meio da multidão. A rapariga ficou próxima do Mestre. A sua expressão era vazia; o terrível animal até podia ser um porco, ou uma ovelha.

 

Desfaz o que fizeste sibilei. Depressa. Ou ela morde-te. Não tinha a certeza de que conseguiria fazer aquilo, mas pareceu-me convincente. O Mestre ergueu uma mão trémula e estalou os dedos diante do rosto vazio da rapariga. Esta pestanejou e esfregou os olhos. Então, viu a serpente e gritou.

 

Está tudo bem disse-lhe eu a coberto da reacção excitada da multidão. Vai para casa. Vai. Procura a tua família e vai para casa.

 

O meu pai disse ela com a voz em pânico, como se recordasse qualquer coisa. O meu pai mata-me. Olhou em volta desvairada, avistou alguém na direcção dos cavalos e desatou a correr.

 

Argh... ouvi eu a seguir. Não me tinha esquecido do Mestre. Não por completo. E tinha de agir rapidamente e desaparecer, porque tinha avistado Roisin na orla da multidão e sabia que as restantes também deviam lá estar e andariam à minha procura.

 

Olhei para os pequenos e brilhantes olhos da serpente. Sentia-me contente por ter criado um tal animal. Mas, no fim de contas, uma serpente não pode voar. Disse a palavra em silêncio e ela mudou. O Mestre deu um grito de dor no momento em que o pássaro surgiu fincando-lhe as garras momentaneamente no pescoço, abrindo de seguida as suas grandes asas e erguendo-se, algo desajeitado, no ar, circundando a multidão com um grito de despedida, antes de voar para leste. Toda a gente olhava para cima, estendendo o pescoço para ver o fenómeno. Eu não o desejara, mas era boa naquele género de coisa. As portas das gaiolas abriram-se, os trincos desfizeram-se e as dobradiças caíram. Nem todos podiam ser salvos; tinha que transformar alguns. A lebre transformou-se num belo e saudável pequeno pónei, que mandei na direcção dos outros cavalos com uma palmada na garupa. Sair-se-ia bem. A criatura peluda e com garras foi transformada num esquilo, que correu pelo espaço aberto na direcção dos carvalhos, onde faria a sua casa. Os tentilhões e as pombas safar-se-iam. Talvez não estivessem presos há muito tempo, porque se afastaram rapidamente, arriscando-se ao Inverno, às armadilhas e aos falcões. Mas faltava um cativo. O pequeno mocho, cuja gaiola estava aberta para a liberdade, ficou no seu poleiro, trémulo, erguendo um pé e depois outro, incapaz de fazer o primeiro movimento. E as pessoas estavam a olhar, a apontar e o Mestre e o assistente avançavam para o sítio onde eu estava, dizendo à criatura para abrir as asas e voar. Imaginei ouvir a voz de Peg, algures para o lado dos carvalhos, a chamar por mim.

 

Voa, estúpido, disse eu ao pássaro. Não podia transformar aquele; era demasiado frágil e estava demasiado aterrorizado para sobreviver. Precisava de tomar uma decisão rapidamente. Virei-me para o Mestre.

 

Dá-me este mocho. Ou digo a esta gente a fraude que és. Como todos os teus remédios são uma porcaria. Sou capaz de o fazer.

 

Ele olhou para mim.

 

Tu? ele em voz baixa para que a multidão não o ouvisse. mulher de um camponês? Não me parece. Afasta-te, ou mando-te chicotear por me arruinares o espectáculo e roubar os meus animais. Vai, desaparece... homem parou abruptamente quando lhe olhei para o pescoço e disse outro pequeno feitiço.

 

Aã aaaggg...

 

Estás a ver? eu suavemente. serpente foi apenas um divertimento. Não preciso dela para te estrangular lentamente. Dá-me o pássaro.

 

O homem gesticulou selvaticamente com uma mão e levou a outra à garganta. O assistente tirou a pequena gaiola com o seu pequeno habitante do gancho e eu peguei nela.

 

Óptimo eu calmamente, e desfiz o feitiço. O Mestre cambaleou para trás, o rosto branco como a cal, ao mesmo tempo que o seu assistente era cercado pelos espectadores confusos e gesticulantes. Agora que a serpente tinha desaparecido, queriam respostas.

 

O Mestre olhou para mim.

 

Quem és tu? perguntou ele com um verdadeiro medo nos olhos.

 

Sou a filha de um feiticeiro e mais mestre do que tu algum dia serás com os teus taíques baratos Não voltes a tentar isso, levar uma rapariga a comportar-se como uma qualquer para alugar. Nem te atrevas a pensar nisso. para o meu próprio pescoço, como que a avisá-lo das consequências. Então, vi Molly e a seu lado Roisin e desapareci na multidão, onde era mais uma mulher de um camponês em busca de um dia de divertimento.

 

Retirei-me para um canto tranquilo por trás de uma carroça vazia e sentei-me na erva. Disse as palavras em silêncio e voltei a ser eu, uma pequena nómada, com uma saia às riscas, um lenço com uma orla azul, uma longa trança ruiva e um pé defeituoso. Uma rapariga usando o mais belo xaile em toda a Cruz, um xaile com um desenho soberbo de maravilhosos animais de todas as espécies. Uma rapariga transportando uma gaiola quebrada com um mocho maluco lá dentro. Mas não faria essa última parte.

 

Falei ao animal em voz baixa. Este parecia estupidificado de medo, limitando-se a levantar, mecanicamente, ora a pata esquerda, ora a direita.

 

Não tenhas medo eu, pouco certa de que ele me conseguisse ouvir, quanto mais compreender. ir. Voa. Voa para a liberdade. lentamente a mão na gaiola, esperando, pelo menos, umas bicadas nos dedos. O pássaro não fez qualquer movimento, continuando, apenas, a levantar as patas alternadamente. Talvez estivesse mesmo louco. Talvez fosse uma boa acção torcer-lhe o pescoço, Ouvi de novo a voz de Peg sobre o barulho da multidão.

 

Anda lá disse eu. Ajuda-me! Rodeei a ave com uma mão, segurando-lhe as asas para que não se magoasse se resolvesse batê-las e tirei-a cuidadosamente, primeiro a cabeça. Sentia o seu coração a bater como um tambor e a fragilidade do seu corpo, todos os ossos e todas as penas. Usei ambas as mãos para manter a ave mais ou menos direita no chão à minha frente, enfrentando o espaço aberto.

 

Árvores disse eu. Carvalhos. Aquilo, além, são carvalhos. Voa. Usa essas asas. Vai. Soltei as mãos. A ave ficou ali, trémula. Pelo menos parara de saltar de uma pata para a outra. Vai disse eu dando-lhe um pequeno empurrão.

 

O pássaro virou a cabeça e olhou para mim.

 

Por todos os druidas! sussurrei, exasperada. Que hei-de fazer? Não posso ficar contigo, tenho de ir e além disso...

 

A ave olhou para mim com os seus olhos grandes, redondos e loucos.

 

Não me chegam os meus problemas? perguntei-lhe. Oh, está bem, pronto. Aquele patético monte de penas não aguentava uma transformação, sabia-o por experiência. Mais do que um rato, ou escaravelho, fora sacrificado às exigências da minha avó pela perfeição da arte. Mas podia torná-lo mais pequeno. E o meu vestido tinha bolsos fundos, já que uma rapariga nómada precisa de levar consigo agulha e fio, ou uma faca, ou um lenço ou dois. Estendi o braço e peguei na andrajosa criatura. Pronto disse eu pegando nela. Agora, estava mais ou menos do tamanho de um rato: as garras pareciam os pequenos espinhos de uma rosa brava e os olhos estavam minúsculos, escuros e solenes. Piscaram para mim.

 

Espero que não estejas com fome disse eu em voz baixa. Espero que compreendas quando eu disser quieto e calado. Meti o pequeno animal no meu bolso e fui para a feira.

 

Fainne! gritou Roisin, antes que eu tivesse dado cinco passos através da erva. Onde estiveste? A minha mãe está farta de te procurar, disse que não te conseguia encontrar em parte nenhuma. Onde estiveste?

 

Em lado nenhum disse eu. Ela não precisava de se preocupar.

 

Não foi isso que Darragh disse. Olhei para ela intensamente.

 

E o que é que Darragh disse? perguntei-lhe, chocada com a minha falta de timidez.

 

Roisin sorriu.

 

Disse que eras capaz de arranjar sarilhos.

 

Disparate eu. vês, estou bem. Onde é que vamos agora?

 

Vender os cestos. Assim que os vendermos todos podemos dar uma volta. Mas não sozinhas. A minha mãe não deixa. rapariga olhou para mim de lado, as sobrancelhas erguidas.

 

Desculpa disse eu. sabia.

 

Hã-hã Roisin e pareceu mesmo o irmão.

 

Foi tudo o que disse nesse dia. Sentei-me a olhar enquanto Peg, Molly, Roisin e as outras raparigas discutiam o preço dos seus produtos e embolsavam os lucros e a história do que se passou naquela manhã tornou-se mais elaborada. Vimos o Grande Mestre e o seu assistente empacotarem os seus pertences e abandonarem a feira sem mais demoras, deixando clientes descontentes e sem qualquer explicação. Eventualmente, tinham fugido e isso era causa de conjecturas surpreendentes, porque faziam ambos, há muito, parte da feira, disse Peg. As pessoas tinham grande fé nos seus remédios. Quanto a ela, nunca precisara daquelas poções. O que não podemos fazer por nós próprios, não podemos, paciência. As pessoas deviam aceitar isso e deixar de querer ser o que não se é. O tipo arrastava multidões, era a única coisa boa a dizer dele. Instalar a venda perto da carroça do Mestre era sinal de boas vendas.

 

Mantive-me afastada de tudo aquilo. Roisin perguntou-me se eu vira alguma coisa e eu disse-lhe que não, porque havia muitas pessoas mais altas do que eu à minha frente. Só muita agitação e uns pássaros a voarem. Mais nada. Mas as pessoas falaram daquilo durante a manhã toda. Diziam que a magia tinha corrido mal por uma razão qualquer. Uma maldição, talvez. Os animais tinham enlouquecido e uma serpente quase matou o tipo, assim como outro animal maior, com garras afiadas como facas. Nunca tinham visto nada daquilo. E houve uma mulher qualquer que lhe deu uma descompostura. Não gostariam nada de desafiar. Terrível, como uma feiticeira, se bem que não passasse da mulher de um camponês. E então, de repente, desapareceu. Mas o tipo ficou assustado, via-se bem. Ficou da cor do queijo fresco e com uma marca vermelha no pescoço.

 

Os cestos venderam-se rapidamente e Peg ficou contente. Tinha mais no acampamento, disse ela, assim como outras coisas, lenços e outras coisas. No dia seguinte traria mais. Tínhamos a tarde livre. Mas, disse-nos Peg, nada de disparates. Nenhuma de nós poderia andar sozinha e teríamos de voltar antes do Sol tocar nos carvalhos, porque ainda era uma longa caminhada até ao acampamento e não queria que as crianças se cansassem muito. Ela e Molly empacotariam tudo, saboreariam umas canecas de cidra e poriam a conversa em dia com as amigas.

 

Mais uma vez, não tive escolha. Roisin agarrou-se a mim e na companhia de duas outras raparigas levou-me por entre uma data de corpos, desejosa de algum divertimento. Subitamente, senti-me invadida pelo pânico. Havia gente a mais, muito perto e eram todos estranhos. Uma coisa horrível, homens de olhar lúbrico como aquele tipo, Ross, homens estendendo as mãos para beliscar e apalpar, homens dizendo coisas como «Queres vir comigo, querida? e depois rindo ruidosamente como se tivessem dito uma grande piada. Mulheres insultando crianças desobedientes. Donos de barracas gritando os seus produtos com vozes que mais pareciam trompas. Não podia sair dali, porque não tinha para onde ir. Não tinha o poder de lançar um feitiço de transporte. O meu pai recusara-se a ensinar-me isso, dizendo que eu não estava preparada. Brinquei com o pensamento de transformar toda a gente em baratas, ou aranhas. Pelo menos, então, a pequena criatura no meu bolso poderia comer. Mas eu não queria discussões com Roisin, ou Peg, ou Molly. Ou até com Darragh. Não, tinha de fazer outra coisa. Usa o encantamento, Fainne. Já resultara antes, dando-me a confiança necessária para o usar quando precisasse dele. E ninguém reparara em nada. Seria fácil.

 

Fi-lo gradualmente enquanto andávamos por entre a multidão O cabelo, de ruivo entrançado, passou a um dourado-avermelhado, cor de mel, mais suave. Os olhos mais claros, mais azuis, maiores, as pestanas longas e escuras. As sobrancelhas delicadamente arqueadas, os lábios doces e vermelhos. A silhueta, não muito diferente: uma pequena curva ali, uma pequena curva aqui e uma mudança na forma dos ombros. Por fim, os pés. Direitos, belos, perfeitos, em botas que assentavam que nem uma luva. Pés para dançar.

 

Comprámos nozes assadas a um tipo de pele escura que tinha uma braseira. Foram pagas com um beijo. Mas não fui eu que o dei; o Encantamento não era suficiente para me tornar, de repente, corajosa. Foi Roisin, que espetou um beijo em cada uma das faces do homem, com um sorrisinho matreiro. Depois foi a cidra, que era grátis para todos aqueles que vendiam na feira. Fomos tentadas pelo som de um assobio, de um bodhrán e de um especialista em colheres e fomos arrastadas para um grande círculo de gente que se preparava para dançar a jiga e o reehl na relva. Os homens começavam a regressar, tendo terminado os negócios, e Roisin e as outras tinham os olhos postos em certos rapazes de quem gostavam.

 

Ninguém reparou que eu estava diferente. No fim de contas, não me tinha transformado na mulher de um camponês, ou numa velha, ou num dragão. Tudo o que fizera fora melhorar a minha pessoa subtilmente, muito subtilmente.

 

Como o meu pai me dissera, não somos nós que mudamos com o Encantamento. A percepção das pessoas que nos vêem é que muda. Assim, naquela tarde, não me disfarcei. Não queria desaparecer e ter Roisin e as outras à minha procura. Queria, apenas, encaixar-me, aderir, libertar-me do terror que tinha de ser eu mesma e estar sempre deslocada. Além disso, disse eu para mim própria, era uma boa prática para quando estivesse em Sevenwaters.

 

Roisin tinha um namorado. O rapaz apareceu na orla da multidão e eu vi-o a olhar para ela, aproximar-se e pôr-lhe as mãos nos olhos por trás, rindo e pedindo-lhe para dançar. Tinha um queixo determinado e ombros fortes. Pouco tempo depois, outro rapaz pediu-me e eu aceitei, sorrindo como a minha avó me ensinara.

 

Ser elegante era uma sensação estranha. A música parecia transportar-me e eu flutuava de um parceiro para outro, sorrindo naturalmente, sem sequer me esforçar. Estava calor e tirei o lenço. A fita azul perdeu-se e o meu cabelo soltou-se Senti aquele rio dourado-avermelhado nos ombros, a saia às riscas girando à minha volta e o meu belo xaile cintilando ao Sol da tarde. Senti o som do bodhran bem dentro de mim, transportando-me. Senti os olhos dos homens em mim, admirando-me e não me importei nem um bocado. Dancei com o rapaz sardento do nosso acampamento, o que tinha um cavalo chamado Silver, ele sorriu muito e não disse nada. No outro lado do círculo, Roisin continuava com o mesmo rapaz: só tinham olhos um para o outro. Dancei com um homem mais velho, um camponês com um belo casaco de botões de prata e olhos penetrantes. Perguntou-me o nome e eu disse-lhe. Perguntou-me se me poderia ver no dia seguinte e eu disse talvez. Apertou-me mais do que eu gostaria e eu pensei rapidamente. O homem ficou subitamente muito pálido e pediu desculpa. Não lhe fizera nada de mal. Ele é que vomitou a comida toda que tinha dentro. No dia seguinte estaria melhor.

 

O Sol estava perto da copa dos grandes carvalhos e as nuvens amontoavam-se. Mas eu ainda não estava pronta para ir. Ali, era o centro de algo. Era eu e não era eu, era as duas ao mesmo tempo. Tudo se movia à minha volta, os homens de olhos esfomeados, o ritmo e a vibração da música, os lenços e os xailes coloridos, os cabelos ao vento, o movimento, o riso e as luzes.

 

Um tipo alto estava a pedir-me para dançar, empurrado pelos amigos. À distância, podia ver Roisin a despedir-se do jovem. E para lá deles, na parte mais longínqua do círculo estava Darragh, muito quieto, olhando para mim. A sua expressão não estava exactamente zangada. Era mais do que isso. Era o olhar de um homem cujos maiores receios se tinham concretizado mesmo diante dos seus olhos. Deu um trejeito com a cabeça, como que a dizer vamos embora, chegou a hora. Em seguida virou costas e desapareceu na multidão. Nem sequer ia esperar por mim.

 

Desculpe-me sussurrei eu ao meu par seguinte, e fui-me embora calmamente, desfazendo o Encantamento à medida que caminhava na direcção do sítio onde Darragh me deixara nessa manhã, perto dos grandes carvalhos.

 

Aoife estava sob as árvores, à sombra. Darragh estava junto dela, carrancudo e silencioso. Juntou as mãos para me ajudar a subir para a égua, saltou por trás de mim e partimos em passo rápido. Ele não disse nada até estarmos bastante afastados, depois de passarmos pelos pequenos barcos em terra, com as nuvens a amontoarem-se no céu por cima de nós. Não havia mais ninguém à vista.

 

Não te posso perder de vista por um momento, pois não? observou ele.

 

Não sei de que estás a falar.

 

Pensei que me tinhas prometido que não te meterias em sarilhos. E agora, olha para ti.

 

Que queres dizer com isso, olha para mim? repliquei, detestando que ele estivesse zangado comigo. Fui à feira, vendi cestos, fui dançar com a tua irmã e agora vou para casa. Como toda a gente. Não era isso que querias?

 

Silêncio.

 

Então, não era? Até a mim a minha voz soava esganiçada. Ele estava a deixar-me pouco à-vontade.

 

O que eu quero não é para aqui chamado disse Darragh calmamente.

 

Isso é um disparate - respondi, não compreendendo o que ele queria dizer. Continuámos em silêncio, enquanto a chuva começava a cair. Aoife abanou as orelhas.

 

É claro que é bom estar entre as pessoas e divertires-te disse ele, finalmente. Não há nada de errado em dançar. Mas não... assim.

 

Assim como?

 

Exibindo-te. Chamar a atenção. Fazer com que os homens olhem para ti como se quisessem algo mais para além de dançar. Fazer... o que tu fazes.

 

Mordi os lábios e não disse nada.

 

Fainne?

 

Eu não me meti em sarilhos disse eu com toda a dignidade de que era capaz, tentando descobrir por que razão ele conseguia perturbar-me tanto. Tudo o que fiz foi divertir-me um pouco. Além disso, não tens nada com isso.

 

Seguiu-se outro silêncio incómodo, pontuado pelo som de cascos a aproximarem-se. O jovem das sardas, no seu cavalo cinzento, aproximou-se de nós, sorrindo para mim.

 

Querem companhia? ele olhando para Darragh, e eu vi a expressão dele mudar, enterrar os calcanhares nos flancos do cavalo e desaparecer a galope.

 

De qualquer maneira Darragh enquanto virávamos à direita, afastando-nos da água que é que aconteceu antes? Ouvi uma história acerca de uma feiticeira, de animais a fugirem, uma desordem e pássaros transformados em serpentes.

 

Também ouvi.

 

E então?

 

Então o quê?

 

Então, Fainne ele, exasperado, e deteve Aoife. me digas que não tens nada a ver com isso. Alguém me disse que um homem foi quase estrangulado. Diz-me a verdade.

 

Eu não disse nada. Não tive que o fazer, porque nesse momento um pequeno animal todo esfarrapado pôs a cabeça de fora do meu bolso, talvez pensando que os solavancos tinham, por fim, acabado. O minúsculo pássaro saltou e instalou-se no pescoço de Aoife, bicando a plumagem desordenada numa vã tentativa de a alisar. Aoife permaneceu firme como sempre, uma jóia entre os cavalos.

 

Em nome de Brighid, o que é isto? Tossi para clarear a voz.

 

Creio que é uma espécie de mocho. Não quis voar e eu não podia deixá-lo abandonado. Tive de lhe reduzir o tamanho para que as pessoas não reparassem nele.

 

Estou a ver.

 

O homem era uma fraude, Darragh. Tentou fazer com que uma rapariga fizesse uma coisa horrível. Por meio de truques. As suas poções não valem nada. Não se preocupava com os animais, estavam cruelmente engaiolados e... querias que eu ficasse ali sem fazer nada?

 

Darragh suspirou.

 

Não sei. Já não sei nada. um sinal visível por parte do seu cavaleiro, Aoife recomeçou a andar e o minúsculo mocho oscilou um pouco. Baixei a mão para o amparar. Gafanhotos, pensei vagamente. Vermes. Pequenos escaravelhos.

 

Estávamos quase a chegar ao acampamento quando ele falou de novo.

 

Tu precisas de vigilância constante, dia e noite. Não sei em que pensava o teu pai quando te mandou embora assim, por tua conta. É como... como entregar um archote a uma criança e dizer-lhe que vá brincar.

 

Não és só um perigo para ti própria, és um perigo para toda a gente. E o pior é que não te apercebes disso.

 

Que sabes tu? resmunguei, pensando em como me sentia feliz naquela manhã, quando passei por aquele lugar, e como me sentia agora, miserável. Ele conseguira tirar toda a alegria àquele dia.

 

Sei, Fainne disse ele calmamente. Conheço-te melhor do que ninguém. Gostaria que me ouvisses. O que tu fazes é... não está certo. Estás a manchar o teu próprio futuro. Não é por aí que vais lá. Gostaria que me ouvisses.

 

Uma parte de mim ansiava por lhe dizer que lamentava; por ter estragado o nosso dia, por termos discutido, por no Verão seguinte ele regressar a Kerry e eu não estar lá. Mas não podia dizer aquelas coisas, não me podia dar ao luxo de o ouvir dizer que eu não tinha coragem para continuar; para fazer o que a minha avó dissera que eu devia fazer. A vida do meu pai dependia disso. E Darragh ferira-me profundamente, porque a sua opinião era tudo para mim. As palavras saíram-me aos trambolhões antes que eu as pudesse evitar, detestáveis, ofensivas.

 

Tu não sabes nada! Como poderias saber? Como poderias compreender o que devo fazer e porquê? É como... é como se um cão vadio tentasse interpretar o movimento das estrelas. É impossível e ridículo. Gostaria que me deixasses em paz! Já não te consigo ouvir. E não posso ser mais tua amiga. Não preciso de ti, Darragh. Nem agora, nem nunca.

 

Uma vez dito aquilo, não podia recuar. Acabámos a jornada em completo silêncio. Ele desmontou sem uma palavra e ajudou-me, polidamente, a descer, ao mesmo tempo que eu pegava no pequeno mocho e o metia, de novo, no bolso. Olhei para Darragh e ele olhou para mim. Então, o nómada pegou nas rédeas de Aoife, afastou-se e eu fiquei sozinha.

 

 

                                         CAPÍTULO QUATRO

 

A chuva estava pegada e uma das crianças tinha tosse. Ofereci-me para ficar a cuidar dela e Peg aceitou, agradecida. Mas deixou também Roisin. Para me fazer companhia, disse ela. A ideia de fazer de enfermeira agradava-me. A rapariga não me daria trabalho nenhum. Além disso, não podia passear com aquela chuva e nem queria pensar em ir de novo a cavalo com Darragh, quanto mais falar com ele. O facto de pensar nele fazia-me sentir deprimida. Sabia que o tinha ferido. Engraçado, parecia que o meu coração me doía.

 

Enquanto a criança descansava, ocupei-me do meu outro encargo. Passara a noite empoleirado num suporte lateral da tenda, minúsculo, quieto e silencioso. Talvez não quisesse que eu soubesse que era capaz de voar. Não dormiu o dia todo, como qualquer mocho. Em vez disso, manteve os olhos meio abertos, observando-me e parecia feliz ao aceitar os pequenos bocados de comida que eu lhe dava: larvas, escaravelhos e outros insectos. Na tranquilidade da noite, enquanto as pessoas dormiam, vira-o, por duas vezes, erguer as pequenas asas amarrotadas e atacar, súbita e mortalmente, uma criatura qualquer no solo, regressando depois ao poleiro para comer a sua refeição asseadamente com bico e garras miniatura.

 

És uma fraude sussurrei, sentada junto do leito da criança com o mocho empoleirado no meu dedo e dando-lhe um verme recém-apanhado. O pequeno pássaro olhou para mim intensamente, abriu o bico e abocanhou. O verme desapareceu. Uma completa fraude. O pássaro fechou os olhos até não serem mais do que uma fenda, agitou as penas e pareceu adormecer. Então, ouvi cascos no exterior e meti-o no canto escuro do meu bolso.

 

Ouvi a vozes de Roisin e de um homem. Olhei para fora da tenda e voltei para dentro. Pensava que Roisin só via o namorado uma vez por ano. Não era a maneira ideal de conduzir um namoro, se aquilo era um namoro. Sentei-me em silêncio, ouvindo as vozes de ambos, mas sem apanhar as palavras. A minha mente estava longe. Pensava no meu pai e como perdera o amor da sua vida e os seus sonhos. Pensava que era bom ir para Sevenwaters agora e não mais tarde. Algumas coisas podem magoar-nos. Algumas pessoas podem ferir-nos. Na minha vida não havia lugar para isso. E não podia haver outro tipo de vida para mim, ou para a minha espécie. Já sabia isso. Tinha, apenas, de o dizer a mim própria, mais nada, e a dor desapareceria.

 

A chuva quase parara. Do exterior, junto da fogueira, Roisin chamou-me.

 

Fainne?

 

Emergi da tenda. O jovem estava a acender o fogo e Roisin estava a fazer chá.

 

Anda tomar uma bebida. Está a ficar frio. Este é o Aidan. Aidan, esta é a Fainne. Amiga de Darragh.

 

Já não, pensei, forçando um sorriso.

 

Encantado por te conhecer disse o jovem e eu acenei com a cabeça.

 

Aidan trouxe algumas notícias, Fainne. Roisin parecia invulgarmente hesitante. Não conseguia imaginar que notícias me poderiam interessar. Parece que Darragh, finalmente, tomou uma decisão continuou ela.

 

Acerca de quê? perguntei, aceitando uma taça do seu chá de camomila a ferver.

 

Diarmid O’Flaherty e os cavalos dele disse Aidan, que se sentara num dos bancos com o braço em redor de Roisin.

 

Ele não te disse? perguntou Roisin, quando eu não respondi. Abanei a cabeça.

 

O’Flaherty tem andado em cima dele, e do meu pai, estes últimos dois anos, para que Darragh vá para a herdade dele para o ajudar a treinar os cavalos. Desde que Darragh conseguiu pôr as mãos num cavalo que nem O’Flaherty, nem nenhum dos seus homens conseguia tocar. Foi há um certo tempo atrás. Ele sabe lidar com eles como mais ninguém. Alguns dos melhores cavalos são da coudelaria de O’Flaherty. Seria uma grande oportunidade para Darragh. Mas a nossa espécie não se estabelece. Ele disse sempre que não. Prefere andar na estrada ou regressar a Kerry, com ou sem cavalos.

 

Mas parece que, agora, quer assentar observou Aidan. Talvez haja aí uma rapariga. As duas filhas de O’Flaherty são bem jeitosas.

 

Roisin olhou para ele. Quanto a mim, fiquei ali com a taça nas mãos sem dizer uma palavra.

 

Foi uma surpresa disse Roisin. O meu pai ficou contente e triste ao mesmo tempo. Sabe que é uma grande oportunidade. Mas vamos ter saudades de Darragh.

 

Não vão ser assim tantas disse Aidan. Vocês vão vê-lo por ocasião da feira. Aqui, em Ceann Na Mara, é sempre assim explicou ele, olhando para mim. Os Verões no campo e os Invernos na costa.

O’Flaherty tem muitas herdades. Quem casa naquela família tem o futuro garantido.

 

Quem falou em casamento? zombou Roisin, espetando-lhe um dedo nas costelas.

 

Fala-se.

 

As pessoas dizem o que lhes apetece. Isso não faz com que seja verdade. Nunca pensei que Darragh fizesse uma coisa destas. Deixou-nos a todos surpreendidos. Ela olhou para mim. Pensei que tinhas sido a primeira a saber.

 

Depois daquilo as coisas aconteceram rapidamente. O’Flaherty regressaria a casa no dia seguinte e levaria Darragh com ele. As pessoas reuniram-se em volta da fogueira nessa noite, mas o ar estava frio e ninguém estava com disposição para festas. Eu disse que estava cansada e fiquei na tenda. As pessoas conversaram em voz baixa enquanto bebiam as suas cervejas. Não houve histórias nem grandes risos. Mais tarde, alguém pediu a Darragh que tocasse gaita-de-foles; mas foi Dan Walker que entreteve toda a gente com um par de canções. Eu não via, mas ouvia. A música era melhor do que a de Darragh, mas não tinha a mesma alma.

 

Mais tarde, quando já toda a gente dormia e caía uma chuva fina, ouvi-o ao longe, junto da margem, na escuridão. Tocava para si próprio; uma espécie de adeus à família e aos amigos e à vida que lhe estava no sangue. Eu sou um nómada, percebes, dissera ele. Sempre em movimento. O lamento espalhou-se pela praia vazia e pelas águas escuras e ondulantes, penetrando no mais profundo da minha alma. Antigamente teria sido fácil. Ter-me-ia levantado e teria ido ter com Darragh, sentando-me a seu lado. Não haveria necessidade de palavras entre os dois, porque a minha presença seria suficiente para que ele soubesse que lamentava tê-lo magoado. Ele teria compreendido que continuava a ser meu amigo. Mas, agora, as coisas eram diferentes. Fora eu que as mudara e agora o meu amigo ia deixar-me para sempre. Era melhor assim; melhor para mim, melhor para ele. Nesse caso, por que é que me doía tanto? Apertei o talismã da minha avó, sentindo o seu calor, sentindo a segurança que ele me dava, sentindo que o caminho que escolhera era o caminho certo, o único. Puxei o cobertor para cima de mim e pus as mãos nos ouvidos. Mas a voz da gaita-de-foles chegava-me ao coração e não se calava.

 

Muito tempo mais tarde cheguei a Sevenwaters, já depois de Meãn Fómhair, e havia uma quietude brumosa no ar. Passara muitos dias na estrada, tantos que lhes perdera a conta. O grupo separara-se em dois, deixando uma carroça num acampamento não muito longe da Cruz com a maioria do clã. Sem os velhos e as crianças andámos mais depressa, parando apenas à noite. Dan conduzia a carroça com Peg sentada a seu lado e Roisin fazia-me companhia. Apesar da gentileza de todos, os meus pensamentos estavam na missão que se aproximava; não via mais nada. Dizia a mim própria, vezes sem conta, para esquecer Darragh. O que passara, passara. E tentei, com muita força, não pensar no meu pai.

 

Acampámos durante duas noites num lugar chamado Glencarnagh, onde havia uma grande casa e muitos homens armados vestidos com túnicas verdes, ocupados nas suas tarefas com ares carrancudos. Vi ali mais árvores do que nunca, de todas as espécies, grandes pinheiros cobertos de agulhas e outras mais pequenas, aveleiras e sabugueiros, já preparadas para o sono de Inverno. Mas aquilo não era nada comparado com a floresta. À medida que percorríamos um trilho com grandes rochas à esquerda e à direita, podíamos vê-la à distância, espalhando-se pela paisagem, envolvendo os montes, adoçando os vales. Sobre ela, a bruma, húmida e espessa.

 

Ali está ela, pequena anunciou Dan Walker. A floresta de Sevenwaters.

 

Vamos já para lá? perguntou Peg. O seu tom era tudo menos entusiástico.

 

A minha velha tia matava-me disse Dan se eu passasse por aqui sem a visitar. Além disso, prometi a Ciarán que lhe poria a filha à porta do tio.

 

Se assim tem que ser, que seja disse Peg.

 

Quanto mais não seja, comes lá uma boa refeição disse Dan, olhando para ela de lado. A minha tia trata disso.

 

Ir logo para lá, como Peg dissera, provou ser mais difícil do que eu imaginara. Aproximámo-nos através de campos cultivados e subimos uma encosta até um afloramento rochoso. A floresta ficou para trás, cercada de montes, estendendo-se como um enorme cobertor escuro. Era assustador; um lugar de mistério e sombras, um outro mundo, fechado e secreto. Eu não compreendia como podiam as pessoas viver num lugar daqueles. Não teriam as almas sufocadas, privadas do vento, das ondas e dos espaços abertos? No meu bolso, o pequeno mocho agitou-se. E à nossa frente, no trilho, onde antes não havia ninguém, apareceu subitamente um bando de homens armados, vestidos todos com as mesmas roupas escuras, da cor das pedras e das árvores à nossa volta. O seu chefe vinha à frente, porque, por cima do colete de couro usava uma túnica branca com um símbolo azul: dois colares interligados.

 

Dan Walker, viajante de Kerry disse Dan calmamente enquanto descia da carroça sem que lho ordenassem. Tu conheces-me. A minha mulher e a minha filha. Vimos de Glencarnagh. Espero ter a hospitalidade de Lorde Sean por uma noite ou duas.

 

Os homens rodearam a carroça, acotovelando-se e olhando para os ocupantes. Tinham espadas e facas e dois deles estavam armados com arcos. Havia uma eficiência ameaçadora naquilo tudo.

 

Diz à tua gente que desça enquanto nós inspeccionamos a carroça disse o chefe.

 

Nós somos nómadas disse Dan em tom suave. Só temos potes, panelas e um cesto ou dois. E as raparigas estão cansadas.

 

Diz-lhes que desçam.

 

Fizemos como ele ordenou. De pé, no trilho, ficámos a vê-los fazerem uma busca metódica a todos os artigos na carroça. Nem a minha pequena arca de madeira foi poupada. Não gostei de ver os homens de armas apalpar as saias macias de Riona com as suas grandes mãos. Por fim, terminaram. O chefe percorreu-nos com os olhos. Roisin pestanejou para ele, mas o seu rosto permaneceu impassível. O homem olhou para mim e a sua expressão tornou-se mais penetrante.

 

Quem é esta rapariga?

 

Ele perscrutava-me de perto e eu estava com medo. Eles eram druidas, não eram? Talvez conseguisse ler nos meus olhos as intenções da minha avó. Talvez me detivessem antes de eu começar, sequer, e o meu pai seria punido. Rápida como um relâmpago, usei o Encantamento subtilmente, para dar ao meu rosto uma certa suavidade e aos meus olhos uma humidade inocente. Olhei para o homem de armas através das minhas longas pestanas.

 

É a sobrinha de Lorde Sean, de Kerry disse Dan. Fainne. Foi-me confiada para que a trouxesse aqui. Vai ficar em Sevenwaters por uns tempos, até ao nosso regresso.

 

Sobrinha? disse o homem, mas a sua voz suavizou-se. Não sei de sobrinha nenhuma.

 

Manda uma mensagem a Lorde Sean, se quiseres. Diz-lhe que a filha da irmã dele está aqui. Ele deixa-nos passar.

 

Os homens de armas retiraram-se para conferenciar. Seguiram-se alguns olhares na minha direcção e também na de Roisin.

 

Está pior do que da última vez comentou Peg. A guarda foi reforçada. Deve estar para acontecer alguma coisa.

 

Eles deixam-nos passar disse Dan.

 

Seguiu-se uma longa espera. Passámos a primeira noite acampados ao lado do posto da guarda enquanto um homem corria pelo labirinto da floresta com uma mensagem para o meu tio. Na manhã seguinte, muito cedo, fomos acordados pelo som abafado de cascos de cavalo no solo mole. Ao mesmo tempo que eu punha de lado o meu cobertor e esfregava os olhos, apareceram dois homens, que desmontaram enquanto Dan se aproximava para os cumprimentar. Dois cães cinzentos, do tamanho de pequenos póneis, ficaram de guarda junto dos cavalos.

 

Meu senhor.

 

És Dan Walker, não és? Deixa-te de formalidades. Espero que tenhas dormido bem, aqui.

 

O homem que falara devia ser o meu tio Sean. Tinha uma aura de autoridade que o distinguia como chefe. Era de meia-idade, não muito alto mas de forte compleição, com cabelos escuros encaracolados afastados do rosto. As suas roupas eram simples mas de boa qualidade e também ele usava o símbolo dos colares interligados. Não consegui ver o outro homem a seu lado.

 

Disseram-me disse o meu tio que trazes uma visita inesperada.

 

Dan Walker tossiu ligeiramente.

 

Prometi trazê-la sã e salva até à tua porta, meu senhor. Ela vive perto do local onde passamos o Verão. A rapariga chama-se Fainne.

 

Como não podia esperar mais, coloquei-me ao lado de Dan. Olhei para o meu tio Sean e sorri-lhe

 

Bom dia, tio disse eu educadamente.

 

A sua expressão mudou, como se tivesse visto um fantasma.

 

Brighid nos salve disse ele suavemente. Não há dúvida que és a filha da tua mãe.

 

Então, um dos grandes cães aproximou-se possessivamente para se colocar na sua frente, rosnando baixo enquanto fixava os seus terríveis olhos em mim.

 

Chega, Neassa disse o meu tio e o cão calou-se, mas continuou a fixar-me. És bem-vinda a nossa casa, Fainne. Lorde Sean inclinou-se para me beijar numa face e depois na outra. É uma grande surpresa.

 

Espero não incomodar.

 

Vais encontrar uma certa perturbação, porque estamos no meio de acontecimentos importantes. No entanto, terás uma recepção de boas-vindas em Sevenwaters. Será melhor ires connosco. Trouxemos-te uma montada. Dan e a sua família podem seguir-nos com uma escolta.

 

Não é preciso disse Dan. Além disso, eu fui encarregue de levar a rapariga até Sevenwaters. As minhas instruções foram muito precisas.

 

Os olhos de Lorde Sean semicerraram-se ligeiramente.

 

Só se entra ou sai com escolta, amigo ou inimigo. É para tua protecção. Os dias em que se entrava em Sevenwaters para um casamento, ou para um aniversário, acabaram há muito. Os tempos vão perigosos. Quanto à minha sobrinha, fica em segurança com a família. Suponho que não te opões a isso?

 

Dan sorriu secamente.

 

Não, meu senhor replicou.

 

Pode ser que precises de algum tempo para te preparares. O meu tio olhou para mim mais de perto, talvez observando o vestido amarrotado e o cabelo desgrenhado. Talvez comer qualquer coisa. Mas não te demores. Ainda é uma longa cavalgada.

 

O meu tio afastou-se ligeiramente com Dan, como se desejasse falar com ele em particular e eu pude ver o outro homem, o seu companheiro silencioso, esperando a alguma distância e segurando as rédeas dos três cavalos numa mão. O homem era mais velho, com cabelos lustrosos, macios, que deviam ter sido castanhos, mas que agora eram grisalhos; cabelos nos quais tinham sido feitas muitas pequenas tranças atadas com fitas coloridas. Tinha um rosto curioso, sem rugas e sereno e uns olhos cinzentos sem idade; usava um longo traje branco que ondulava e mudava de forma, se bem que não houvesse vento. E usava um bastão de vidoeiro; e o sol pálido da manhã brilhava no colar dourado em redor do seu pescoço.

 

Creio que sabes quem eu sou. A voz era a de um druida, suave, como música, uma armadilha para os ouvidos e para a mente.

 

És Conor, o arquidruida?

 

Sou. Podes tratar-me por tio, senão achares isso muito confuso.

 

S... sim, tio.

 

Aproxima-te, Fainne.

 

Eu fi-lo relutantemente. Precisava de tempo para me preparar; tempo para me recompor, para reunir todas as forças de que necessitava. Mas não tive tempo. Olhei-lhe para os olhos, sabendo que tinha a memória da minha mãe para me ajudar. Aquele homem planeara a sua queda. Afastara-a de todos os que amava e, com o tempo, isso fora a sua sentença de morte. Ele olhou para mim com os seus tranquilos olhos cinzentos e eu senti-me muito desconfortável, quase como se ele estivesse a ver o que havia dentro de mim. Mas eu aguentei o olhar sem pestanejar; fora bem treinada.

 

Sean está enganado disse Conor. Acho que és muito mais parecida com o teu pai.

 

Mesmo no Outono, com o solo húmido cheio de folhas sob os cascos dos nossos cavalos, a floresta era escura. Parecia estender os seus braços à medida que íamos entrando cada vez mais nela, envolvendo-nos na sombra. Por vezes, havia vozes. Chamavam do ar por cima de nós, em voz alta e de modo estranho, mas quando eu olhava para cima, tudo o que via era um movimento fugitivo na periferia da minha própria visão, por entre os ramos despidos das faias. Era como teias de aranha no ar; era como um manto de bruma movendo-se mais depressa do que a vista. Eu não percebia as palavras. Os dois homens cavalgavam imperturbáveis; se apercebiam aqueles truques de luz e sombra, aceitavam-nos como uma coisa familiar daquela paisagem impenetrável e misteriosa. Era secreta, fechada. Senti-me como numa armadilha.

 

O passo dos cavalos não dava qualquer concessão ao meu cansaço e eu continuei desesperadamente, grata por o meu cavalo parecer seguir a direcção certa sem qualquer incitamento. Ninguém me tinha perguntado se eu sabia montar; e eu também não ia dizer a ninguém que nunca tinha montado sem Darragh a meu lado fazendo tudo. Os cães corriam à frente, procurando odores no chão. O meu tio Sean mantinha uma conversação amigável enquanto prosseguíamos. A princípio foi apenas uma conversa educada. Pensei que tentava pôr-me à-vontade. Deu-me a saber que estava em curso um conselho com muitos visitantes; que eram tempos em que tinham de ter muito cuidado e que ele sabia que eu compreenderia. Mencionou que tinha uma filha mais ou menos da minha idade, que me ajudaria a adaptar-me. A sua mulher, a minha tia Aisling, ficaria encantada por me conhecer, porque também ela conhecera a minha mãe.

 

Sabes, não fazíamos a mínima ideia de que virias, até aquele tipo aparecer, ontem à noite acrescentou ele gravemente. O teu pai não nos tem mandado muitas mensagens. Gostaríamos de te ter conhecido antes. Mas Ciarán estava decidido a limitar o contacto com a nossa família. Nunca mais os vimos depois... depois do que aconteceu.

 

O meu pai tinha as suas razões disse eu para o silêncio extremamente incómodo.

 

Sean acenou com a cabeça.

 

Eles nunca poderiam regressar juntos a Sevenwaters, isso é certo. Continuo convencido de que o que ele fez foi errado. Mas mandou-te regressar a casa. Sou receptivo a isso. Vais achar as pessoas curiosas quando chegares. Muirrin, a minha filha mais velha, vai tomar conta de ti e ajudar-te a lidar com essas questões.

 

Curiosas?

 

- Passou muito tempo. A partida da tua mãe e o que a levou a isso tornou-se tema de histórias; um pouco como a história da tua avó e do tempo que os meus tios passaram sob um feitiço, como criaturas selvagens. As pessoas já mal sabem se aquilo aconteceu mesmo ou se é uma lenda. As coisas são assim. A tua chegada vai levantar conjecturas. As pessoas vão falar durante algum tempo. Não sabem a verdade sobre o que aconteceu à tua mãe. Toda a situação tem de ser encarada com cuidado.

 

Não repliquei. Estava cada vez mais consciente da presença silenciosa do druida; da maneira como ele parecia vigiar-me, se bem que os seus olhos estivessem fixos no trilho à sua frente. Sentia-me como se me estivesse a avaliar sem dizer uma só palavra. Senti-me muito pouco à-vontade.

 

Vamos fazer uma breve paragem disse Sean parando o seu cavalo numa pequena clareira. Havia ali um ribeiro com fetos crescendo junto de uma pequena lagoa e a luz vinda de cima chegava filtrada,

 

dando aos troncos das árvores, cheios de musgo, uma misteriosa luminescência verde. Os grandes ulmeiros estavam coberto de hera. Eu ajudo-te a descer, Fainne.

 

Não consegui evitar um gemido de dor quando os meus pés tocaram no chão, e o meu corpo ficou cheio de cãibras.

 

Não estás habituada a andar a cavalo observou Sean, juntando pedaços de madeira para fazer uma fogueira. Devias ter-nos dito. Esfreguei o traseiro dorido e baixei-me com alguma dificuldade para a manta de sela que me foi dada. Estava mesmo cansada; mas não baixaria a guarda, porque aquele homem continuava a olhar para mim com os seus insondáveis olhos cinzentos, Sean recolhera rapidamente uma pilha de ramos caídos. O facto de ser senhor de Sevenwaters parecia não o ter impedido de adquirir capacidades práticas. Os cães deixaram-se cair pesadamente, as línguas cor-de-rosa de fora das suas grandes bocas.

 

A madeira está um pouco húmida observou Sean, olhando para Conor. Acende-la por mim? Olhei para o druida e ele olhou para mim, impassível. Por que não a acendes tu, Fainne? perguntou ele sem ênfase. Soube naquele momento que, por mais que fizesse, nunca conseguiria mentir-lhe. Não podia alegar ignorância feminina, ou tentar uma mentira qualquer. Aquilo era um teste e só havia uma maneira de o passar. Ergui a minha mão e apontei um dedo para a pilha de pequenos ramos e galhos. O fogo brilhou, pegou e começou a arder, firme e quente.

 

Obrigado disse Sean erguendo as sobrancelhas. O teu pai ensinou-te umas coisas, nesse caso.

 

Uma ou duas repliquei cuidadosamente, aquecendo as mãos. Pequenos truques, nada mais.

 

Conor sentou-se num grande tronco, um pouco afastado do fogo. As chamas mostraram-me o seu rosto estranhamente sombrio, de uma palidez acentuada. Os olhos estavam penetrantemente fixos em mim.

 

Sabes que Ciarán seguiu o caminho dos druidas durante muitos anos observou ele. Seguiu-o muito prometedoramente e com grande aptidão.

 

Acenei com a cabeça, cerrando os dentes de irritação. Ficava-lhe bem dizer aquilo: encorajara o meu pai e mentira-lhe, deixando-o acreditar que poderia tornar-se num dos sábios, quando sabia que o seu estudante era filho de uma feiticeira. Fora uma coisa bem cruel.

 

Dizes que o teu pai te ensinou um ou dois truques. E ele? Como é que ele vive a vida? Ainda exerce as capacidades que tinha com abundância?

 

Que te interessa, pensei, furiosa. Mas respondi cautelosamente.

 

Nós temos uma vida simples, solitária. Ele anda sempre em busca de conhecimento. Pratica a sua arte. Mas raramente a usa. Foi a escolha dele.

 

Conor ficou silencioso por um momento. Em seguida, perguntou:

 

Por que é que ele te mandou para aqui?

 

Sean olhou para ele franzindo ligeiramente o sobrolho.

 

É uma pergunta razoável. O tom de Conor era moderado. Porquê agora? Por que razão educou a filha para a mandar embora após... o quê... quinze, dezasseis anos?

 

Talvez pense que Fainne tem melhores hipóteses de casamento, melhores perspectivas de vida, se viver aqui com a família durante algum tempo disse Sean. É uma questão de bom-senso. Ela tem direitos de nascimento como todos os outros filhos de Sevenwaters, porque todos... O meu tio parou abruptamente.

 

Fainne? Conor não ia deixar que aquela pergunta ficasse sem resposta.

 

Pensámos que chegara a hora. Aquilo pareceu-me uma boa resposta. Era verdade: e não dava a entender nada.

 

Assim parece disse Conor e foi o fim da conversa. Ele não perguntou: a hora para quê?

 

Regressámos aos cavalos e continuámos a jornada.

 

É um pouco esquisito, Fainne disse Sean após um certo tempo. Eu tenho de ser sincero contigo e tu podes não gostar. Revelar a identidade do teu pai aos nossos familiares, aliados e comunidade de Sevenwaters pode trazer algumas dificuldades. Seria extremamente embaraçoso nesta fase das negociações. Mas eu não quero mentir.

 

Mentir? O meu espanto era genuíno. Por que havia de mentir?

 

Ele fez uma careta parecida com um sorriso.

 

Porque mesmo agora, depois de todos estes anos, as pessoas ainda não sabem a verdade. Toda a verdade. Que Niamh enlouqueceu, que fugiu para o Sul e que ficou viúva. Isso sabem. Os da nossa casa sabem um pouco mais, talvez. Mas, geralmente, todos pensam que ela se retirou para um convento cristão e que morreu lá, mais tarde. A súbita aparição de uma filha tem de ser explicada, porque ninguém que conheceu a minha irmã te reconhecerá instantaneamente como filha dela.

 

Senti os olhos de Conor fixos em mim, perturbadores e cheios de intenção, apesar de eu não estar a olhar para ele.

 

Por que não dizer a verdade? Os meus pais amavam-se. Sei que não eram casados; mas isso não é razão para vergonha. Não é como se eu fosse um rapaz que quisesse reclamar terras e ser chefe.

 

Sean olhou para Conor. Conor não disse nada.

 

Fainne, parecia escolher as suas palavras com cuidado o teu pai alguma vez te explicou por que razão não era casado com a tua mãe?

 

Aguentei a irritação.

 

Ele raramente fala dela. Sei que a sua união era proibida por laços de sangue. Sei que o meu pai abandonou a floresta e os sábios quando descobriu a verdade acerca do seu parentesco com a minha mãe. Mais tarde ele voltou a encontrá-la e foi assim que eu nasci. Mas era demasiado tarde para eles.

 

Seguiu-se um pequeno silêncio.

 

Sim Sean. Walker trouxe-me notícias da morte minha irmã, se bem que só tenha dito o que Ciarán lhe disse para dizer, nada mais. Foi há muito tempo. Tu mal te deves lembrar dela.

 

Cerrei os lábios e não respondi.

 

Lamento, Fainne Sean abrandando o passo do cavalo para atravessarmos um ribeiro. que não tenhas tido oportunidade de a conhecer. Apesar de todas as suas faltas, a minha irmã era uma bela rapariga, cheia de vida e beleza. Teria tido muito orgulho em ti.

 

Achas? Nesse caso, por que razão nos deixou sozinhos? Por que razão escolheu aquela morte?

 

Talvez eu.

 

Para o assunto em questão Sean. um pouco embaraçoso. A tua mãe foi casada com um chefe de guerra dos Uí Néill, um clã muito poderoso, com duas facções guerreiras. Em anos recentes apoiámos o chefe do ramo do norte na sua luta contra os Noruegueses e isso custou-nos muito, em recursos e energia. Mas

Aed Finnliath triunfou. Os invasores foram expulsos das costas do Ulster e a paz foi selada com o casamento da filha de Aed Finnliath com um nobre dos Finn-ghaill. O nosso apoio a essa luta foi essencial, não só para a nossa própria segurança, mas também para reforçarmos os nossos laços com os Uí Néill de Tirconnell, que tinha sido posta em causa com o falhanço do casamento da tua mãe. Isso exigiu muita paciência e diplomacia, para além do afastamento das nossas forças da demanda mais querida aos nossos corações. Os Uí Néill do norte sentam-se, hoje em dia, na nossa mesa do conselho em Sevenwaters, enquanto formulamos uma estratégia para a nossa empresa. Esta vai ser a campanha mais importante das nossas vidas. A tua chegada levanta um problema. O marido que escolhemos cuidadosamente para Niamh provou ser um homem cruel e foi para lhe escapar que ela fugiu de um lugar aparentemente seguro. Esse facto não é conhecido fora da nossa família. Deixamos que as pessoas saibam que ela está viva; de uma maneira geral, toda a gente pensa que ela enlouqueceu e que se retirou para uma casa de oração. O marido dela morreu pouco depois; não houve necessidade de falar do que ele fez. Só uma mão-cheia de pessoas sabe que ela se foi juntar ao teu pai. Eu próprio; a minha irmã e o marido. Os meus tios. Mais ninguém. Mesmo a minha mulher não sabe a história toda. Que Niamh abandonou Uí Néill por outro homem e que estava grávida de um homem proibido, é melhor que fique em segredo para teu bem, assim como para o bem da nossa aliança.

 

Estou a ver disse eu firmemente.

 

Lamento se isso te entristece. O tom de Sean era amável; o que só me fazia sentir pior. O que não impede que sejas recebida como deve ser, Fainne. Tu não és responsável pelas acções dos teus pais. Tu és filha desta casa e serás tratada como tal.

 

Prefere que eu finja que não tenho pai, é isso? Aquelas palavras saíram-me sem que eu pudesse impedi-las, antes de conseguir disfarçar a irritação na minha voz. Como se atreviam? Como se atreviam a pedir-me que renegasse o meu forte e inteligente pai, que fora tudo para mim?

 

Eu sei que isso te magoa disse Conor. Ele era um jovem de qualidades excepcionais. Sem dúvida que se transformou num homem de quem te deves orgulhar muito honrosamente. Nós compreendemos isso. Niamh e Ciarán eram jovens. Cometeram um erro e pagaram por ele. Tu não tens de pagar mais nada.

 

Isto pode ser feito sem mentiras. Parecia que Sean tinha tomado uma decisão. Nós só podemos dizer às pessoas a verdade que nos convém. Não há razão para Niamh não ter casado de novo depois da morte do marido. Diremos às pessoas que o teu pai era um druida de boas famílias. Diremos que Niamh deu à luz a sua filha no Sul, algum tempo depois da morte de Fionn. E tu regressas, agora, à tua casa e à protecção da tua família. Deve chegar. Pouca gente fora da floresta sabia da existência de Ciarán, quanto mais a sua identidade. Quanto aos nossos hóspedes da aliança, não daremos a conhecer a tua presença enquanto permanecerem em nossa casa. Eamonn pode ser um problema.

 

É pena Liadan não estar cá observou Conor.

 

Teremos de fazer com que saiba disse Sean. Eu faço isso. Pareces cansada, sobrinha. Talvez seja melhor cavalgares comigo a última parte da viagem.

 

Estou bem eu cerrando os dentes. Era pedir de mais: ir para um lugar desagradável, húmido e lúgubre, onde as árvores bloqueavam o vento vindo de oeste, renegar o meu pai, deixar que uma rapariga qualquer me dissesse o que fazer e ser o meu guarda-costas e ter cuidado para não chamar a atenção para mim própria, tudo por causa da sua preciosa aliança. Tornava-se-me rapidamente claro que teria de ouvir com atenção e aprender com rapidez se queria ter oportunidade de conseguir levar a cabo a missão de que a minha avó me encarregara. Os homens de Sevenwaters eram inteligentes e seguros de si; aqueles dois seriam oponentes formidáveis e talvez houvesse mais como eles. Quem seria Eamonn? Por que razão seria ele um problema? O meu pai nunca mencionara tal pessoa. Teria de descobrir. E, por agora, jogaria o jogo do meu tio Sean. Mas, dentro de mim, nunca esqueceria de quem era filha. Nunca.

 

Atravessámos uma série de ribeiros gorgolejando encosta abaixo à sombra das árvores. Depois saímos de sob um conjunto de salgueiros e à nossa frente estava uma grande extensão cintilante de água, a superfície clara e luminosa sob a luz do Sol, com pequenas ilhas e aves aquáticas: gansos, patos e cisnes brancos, perfeitos. Parámos.

 

O lago de Sevenwaters Sean em voz baixa. nossa casa é do outro lado, para leste. O caminho é fácil a partir daqui. Estás a portar-te bem, Fainne.

 

Respirei fundo e mudei de posição, tentando aliviar o meu traseiro dorido. Estava contente por ver água; por me ver livre da prisão infindável das árvores à minha volta. O lago era muito bonito, com os seus reflexos cor de pérola, a sua grande superfície aberta para o céu, as suas enseadas calmas e a sua vida secreta, invisível.

 

Há sete ribeiros que vêm desaguar no lago Conor. o seu sangue. Só há uma saída; o rio que corre para norte e depois para leste, para a grande água. O lago alimenta a floresta. A floresta guarda as gentes de Sevenwaters e é sua missão secreta defendê-la e protegê-la, a ela e a todos os mistérios que encerra. A seu tempo tomarás conhecimento deles.

 

Talvez eu. E talvez, pensei, venhas a saber que nem tudo é o que parece; que para alguns o rumo não leva sempre à Luz e à Ordem. Talvez venhas a aprender que a vida pode ser cruel e injusta.

 

Podes deixá-lo ir, agora Conor.

 

O quê?

 

Podes deixá-lo ir. O mocho. Repara como ele olha em volta e vira a cabeça para o céu. Está pronto para regressar.

 

Olhei para ele, muda, enquanto o pequeno mocho saía do meu bolso para se empoleirar, oscilando ligeiramente, no pescoço do cavalo. A ave estava agora um pouco mais estável, porque eu tomara conta dela cuidadosamente. Mas aquele cavalo não era Aoife. O cavalo estremeceu, assustou-se e eu agarrei o mocho, impedindo-o de ser atirado ao chão. Num instante, o meu tio Sean agarrava nas rédeas do animal e acalmava-o com palavras tranquilizadoras.

 

O que é isso? perguntou ele num tom parecido com o de Darragh. Quanto a Conor, ficou silencioso. Tendo levantado o problema, deixou-mo para eu o resolver.

 

Estava preso. Eu... comprei-o. Foi tudo. Ele não voa.

 

- Nunca tinha visto um mocho adulto tão pequeno. Deve haver uma magia qualquer nisso. O tom de Sean era lacónico. Suponho que não devia ficar surpreendida, porque estava em Sevenwaters, um lugar onde os velhos mistérios eram mantidos em segredo.

 

Ele não voa enquanto o feitiço não for desfeito disse Conor aproximando o seu cavalo. Posso? O druida estendeu uma mão, passou-a gentilmente por cima da frágil criatura e esta ficou instantaneamente do seu tamanho natural: ainda pequeno, ainda um pouco desgrenhado, mas do tamanho de um mocho e suficientemente forte para voar para os bosques. Sean estava a ter alguma dificuldade para controlar o cavalo de olhos esgazeados.

 

Vai disse Conor e, obedientemente, o animal abriu as asas andrajosas e voou, sem um som sequer, sem olhar para trás; para cima, para o topo das árvores e para longe, para o abraço sombrio da floresta. Eu não disse uma palavra.

 

Fizeste bem ao trazê-lo para casa. O tom de Conor era tranquilo.

 

Eu não o trouxe disse eu, irritada. Ele é que não me deu outra hipótese.

 

Há sempre uma hipótese disse o druida.

 

Estavam todos juntos. Raparigas, aos montes: enchendo a escadaria da casa de pedra onde, por fim, terminámos a nossa viagem, raparigas mais velhas puxando as mãos do pai, falando e rindo enquanto a mãe se aproximava para me receber e raparigas mais pequenas, correndo e provocando os enormes cães.

 

Chega, filhas disse Sean com um sorriso e elas desapareceram num instante, tão obedientes quanto exuberantes. Não conseguira contá-las, eram tão rápidas. Cinco? Seis?

 

Eu sou a tua tia Aisling disse a mulher esbelta e de olhar severo que estava nos degraus da escadaria. Um véu mantinha-lhe o cabelo ruivo no seu devido lugar e o seu rosto sardento era decidido e sério.

 

És bem-vinda, como o meu marido, sem dúvida, te disse. Mas estamos todos muito ocupados. Temos muitos hóspedes. Muirrin tomará conta de ti.

 

Onde está Muirrin? perguntou o meu tio enquanto nos encaminhávamos para o interior da casa. Os cavalos tinham sido rapidamente levados. Quanto a Conor, tinha-se, simplesmente, evaporado. Talvez o bando de raparigas fosse demasiado para ele.

 

Nós encontramo-la disse a minha tia em tom eficiente. É melhor regressares ao Conselho. Eles estão à tua espera.

 

O representante de Inis Eala já cá devia estar disse o meu tio. Talvez consigamos concluir isto, no fim de contas. Virou-se para mim. E agora deixo-te, sobrinha. Foi uma longa cavalgada, para uma noviça. É melhor descansares o corpo. Muirrin deve ter uma poção ou duas, que te ajudarão. Talvez nos voltemos a encontrar ao jantar.

 

Pareciam pensar todos que Muirrin era a resposta para tudo. Formei uma imagem dela na minha mente que era completamente diferente da rapariga que encontrámos mais tarde a trabalhar num quarto muito pequeno e escuro nas traseiras da casa.

 

A primeira coisa em que reparei foi no tamanho dela; pequena e magra, com grandes olhos verdes e os caracóis do pai atados na nuca para lhe permitirem trabalhar. Estava a cortar o que parecia ser uns cogumelos com uma grande faca de aspecto perigoso. Estava extremamente concentrada, prendendo a respiração. À sua volta, as prateleiras estavam cheias de vasos e garrafas; havia montes de flores secas e ervas penduradas por cima da sua cabeça e uma trança de alho engrinaldava a janela. Por trás dela abria-se uma porta para um pequeno jardim.

 

Muirrin disse a mãe com um leve toque de severidade. Está aqui a tua prima Fainne. Esqueceste-te?

 

A rapariga olhou para cima sem qualquer surpresa nos grandes olhos.

 

Não, mãe. Peço desculpa por não estar presente à chegada. Recebi uma mensagem da aldeia precisam disto urgentemente. Como estás, Fainne? Eu sou a tua prima Muirrin. A mais velha de seis. Já conheces as minhas irmãs, suponho? A rapariga lançou-me um sorriso de esguelha e eu vi-me também a sorrir.

 

Eu estou muito ocupada disse a minha tia Aisling. Talvez...?

 

Pode ir, mãe. Eu tomo conta de Fainne. As coisas dela estão aí? Falei, algo relutantemente, em Dan Walker, nas carroças e na minha arca e quando terminei a minha tia já se tinha ido embora.

 

Senta-te disse Muirrin. Preciso de acabar isto e entregá-lo a uma pessoa que está à espera. Depois, mostro-te a casa. Ali, junto do fogo. Queres um pouco de chá? A água está a ferver. Usa o pote da esquerda isso é uma mistura de hortelã-pimenta e tomilho, muito refrescante. As taças estão além. Arranjas-me uma?

 

Enquanto falava, as suas mãos continuavam a cortar firme e meticulosamente os fungos cor de bronze que se encontravam em cima da laje de pedra à sua frente. Observei-a enquanto misturava os condimentos e os óleos, vertendo, finalmente, a mistura de odor acre para um pequeno frasco de barro que rolhou firmemente.

 

Está aqui o teu chá disse eu.

 

Ah, óptimo. Vou só lavar as mãos e desculpa-me por um momento, sim? A jovem espreitou pela porta do jardim. Paddy? chamou.

 

Apareceu um rapaz grosseiramente vestido. A jovem entregou-lhe o frasco e uma data de instruções, obrigando-o a repeti-las para que não as esquecesse.

 

E diz-lhes que passo por lá mais tarde para ver o velhote. Não te esqueças.

 

Sim, minha senhora.

 

Eu sentia-me bem por ter estado ali sentada a observá-la. Agora, enquanto se sentava e colocava a taça entre as pequenas e ágeis mãos, fiquei sem saber o que dizer. Ela era tão confiante e segura.

 

Bem aventurou-se ela. Que grande viagem. Vais querer lavar-te, descansar e ter algum tempo só para ti. E deves estar dorida de tanto cavalgar. Eu tenho uma pomada para isso. E se conversássemos um pouco? Depois, mostro-te o teu quarto, arranjo-te algumas coisas e deixo-te sozinha durante algum tempo. Tenho de ir à aldeia; amanhã, talvez possas ir comigo. Hoje, o principal é proteger-te das minhas irmãs. Elas fazem muito barulho.

 

Já reparei.

 

Não estás habituada a muita gente, pois não? Relaxei um pouco.

 

Em minha casa era tudo muito calmo. Havia pescadores e no Verão apareciam os nómadas. Mas nós vivíamos à parte.

 

Muirrin acenou com a cabeça, os olhos verdes muito sérios.

 

Aqui vai ser precisamente o oposto. Especialmente agora. A casa está cheia de gente por causa do Conselho. E não gostam uns dos outros. Os jantares, às vezes, são interessantes. Vais ter de descobrir quem é quem, aprender alguns nomes. Eu ajudo-te. Mas não já. As primeiras coisas primeiro.

 

Obrigada. Disseste seis irmãs? Muirrin fez uma careta.

 

É verdade; eu e mais cinco, sem um único irmão. Ainda bem que a minha tia teve rapazes, senão Sevenwaters não teria herdeiro.

 

A tua tia? Deve ser...?

 

A nossa tia Liadan. Irmã gémea do meu pai. Ele teve filhas. Ela teve filhos. O túath vai passar de tio para sobrinho como várias vezes antes. O meu pai não se importa.

 

Quais são os nomes das tuas irmãs?

 

Queres mesmo saber? Deirdre, Clodagh, Maeve, Sibeal e Eilis. Vais aprendê-los rapidamente. Elas vão repetir-tos vezes sem conta até os fixares.

 

Fiz uma visita relâmpago à casa, que era mais confortável por dentro do que o seu aspecto exterior fortificado dava a entender. Muirrin manteve-me afastada da sala do conselho, cujas portas estavam fechadas. A cozinha fervilhava de actividade; aves a serem depenadas, pastéis a serem confeccionados, um grande pote de ferro a ferver sobre o fogo. íamos prosseguir quando uma voz peremptória, vinda de junto da lareira, nos deteve.

 

Muirrin! Traz aqui a rapariga, miúda!

 

Pertencia a uma mulher muito velha sentada num banco junto da lareira. Não era nenhuma velha desgrenhada, antes uma criatura seca, erecta, com o cabelo escuro apertado atrás, na base do pescoço, num grande nó e um xaile franjado em redor dos ombros ossudos. A sua pele era enrugada, mas os olhos eram muito vivos. A mim, parecia-me que ninguém se atreveria, ali na cozinha, a pôr o pé em ramo verde enquanto ela ali estivesse.

 

Bem, não pode ser Niamh disse ela quando nos aproximámos. Portanto, deve ser a filha de Niamh, porque é igualzinha a ela. Ora aqui está uma coisa que eu nunca pensei ver.

 

Esta é a Janis disse Muirrin, como se isso quisesse dizer alguma coisa. Ela está em Sevenwaters desde sempre. A jovem virou-se para a velha mulher. Fainne acaba de chegar de Kerry, Janis. Ia agora mesmo levá-la para o quarto dela para descansar.

 

Os olhos escuros semicerraram-se.

 

Kerry, ha? Então, já sei de quem é a carroça em que vieste. Onde está Dan? Por que é que ele não me veio ver? Onde está Darragh?

 

Portanto, aquela era a tia muito falada.

 

Dan está a caminho disse eu e Peg também. Mas Darragh não veio.

 

O quê? Por que é que o rapaz não veio? Parou para ver uns cavalos, não? Vai comprar algum?

 

Não disse eu. Não veio, mais nada. Deixou a vida errante e instalou-se numa herdade a oeste. A treinar cavalos. Uma grande oportunidade. Pelo menos é o que dizem.

 

E o que é que tu dizes?

 

Eu? Não tenho nada a ver com isso. Ela não pareceu convencida.

 

A treinar cavalos, ha? Isso não o afastava da estrada por muito tempo. Deve haver uma rapariga metida no caso. Que outra coisa havia de ser?

 

Não há rapariga nenhuma disse eu severamente. É apenas uma grande oportunidade. Ele fez uma escolha acertada.

 

Achas? disse a anciã olhando para mim fixamente com os seus olhos escuros. Nesse caso, não conheces o meu Darragh muito bem. Ele é um viajante e um viajante nunca assenta. Pode tentar; mas, mais tarde ou mais cedo, a estrada volta a chamar e lá vai ele. São diferentes das mulheres. As mulheres podem ter saudades da estrada, mas adaptam-se por amor a um homem, ou a uma criança. Bem, vai-te lá embora. Muirrin, trata de lhe dar o quarto da mãe dela. Põe as miúdas na parte norte. E não te esqueças de arejar bem a cama.

 

A mulher falava como se fosse a dona da casa e Muirrin uma criada. Mas Muirrin sorriu e quando, depois de subirmos as escadas, entrámos num quarto muito limpo cuja janela estreita dava para a orla da floresta, a primeira coisa que ela fez foi acender a lareira e verificar o colchão de palha e os cobertores de lã. E eu decidi que precisava de mudar de opinião acerca da vida numa casa como a de Sevenwaters.

 

Não desejava nada estar agradecida a Muirrin. Não me queria tornar amiga dela. Não me podia dar ao luxo de ser amiga fosse de quem fosse se queria levar a cabo a vontade da minha avó. Mas fui forçada a admitir que a minha prima era muito sensata. O que eu mais desejava era ficar só. A necessidade de conhecer tanta gente nova, sorrir, ser educada, fora de mais para mim. Muirrin limitou-se a verificar que eu tinha tudo aquilo de que necessitava e deixou-me com a promessa de regressar mais tarde. O quarto, agora, era só meu apesar das duas camas. Deirdre e Clodagh não se importavam nada de mudar, dissera-me ela com um sorriso.

 

Mais tarde ouvi um toque delicado na porta e um homem entrou com a minha pequena arca. Senti uma certa estranheza ao desfazer a bagagem no quarto que pertencera à minha mãe. Talvez ela o tivesse partilhado com a irmã, a tia Liadan de quem todos falavam. Eu tinha poucos haveres. Tirei um dos bons vestidos e coloquei-o em cima da cama para mais tarde. Tirei uma Riona amarrotada e de olhar de viés e sentei-a no parapeito da janela, a olhar para a floresta. Não me parecia que houvesse uma razão, naquela casa, para a esconder. Era uma casa de raparigas; provavelmente, havia imensas bonecas. De facto, Riona parecia até mais em casa do que eu. Eu não conseguia descansar apesar das minhas dores de pernas. A minha mente estava muito ocupada tentando tirar de tudo aquilo algum sentido. A magnitude da tarefa à minha frente exigia que eu não perdesse tempo. Tinha de descobrir o máximo que pudesse e arquitectar, depois, um plano. Não podia ficar sem fazer nada. A minha avó estaria a ver-me. Fora uma louca em duvidar. Era um dos ramos da arte para o qual eu tinha pouca aptidão, que me deixava frustrada e iludida. Mas ela, com o seu espelho sombrio e a sua tigela de água, tinha a habilidade para procurar e os olhos para ver. Quando me encontrasse, não haveria lugar algum onde me pudesse esconder.

 

Levou tempo. E coragem. Havia demasiada gente e demasiado barulho e, à parte Muirrin, ninguém parecia perceber que eu odiava tudo isso. Fazia-me doer o estômago e a cabeça e os meus dedos desejarem fazer uma velhacaria qualquer. Mas não me servi da arte. Em vez disso, observei e aprendi e em breve, com a aplicação que era para mim uma segunda natureza depois de anos de tutela do meu pai, aprendia as complexidades da família e dos seus aliados.

 

Havia as pessoas da casa, a fortaleza de Sevenwaters, que era o centro do vasto túath do meu tio Sean. A ele, conseguia tolerar. Por vezes parecia um pouco distante, mas quando falava comigo era em termos de igualdade e levava o seu tempo a explicar-me as coisas. Nunca o vi ser injusto para nenhum dos membros da casa. Tive de recordar a mim própria que fora ele, entre outros, que banira a minha mãe. Não me parecia que o meu tio Sean fosse perigoso, excepto, talvez, no campo de batalha, ou num debate de estratégia. Depois, havia a minha tia Aisling. Só de olhar para ela, cansava-me. Estava perpetuamente ocupada, supervisionando todos os aspectos da casa com uma energia incrível, que lhe consumia os dias. Como resultado, o local funcionava com a mesma eficiência. Perguntei a mim própria se ela seria feliz. Perguntei a mim própria por que razão teria ela tido tantas filhas quando mal tinha tempo para lhes desejar os bons dias antes de ir tratar de um qualquer assunto urgente.

 

Aquela fortaleza fora, em tempos, a única grande residência da floresta de Sevenwaters. Mas agora havia outras, construídas pelo meu tio e alugadas aos seus clientes livres, cujos bandos de homens de armas podia chamar em caso de necessidade. Assim, o túath era menos vulnerável, com poderosos postos avançados servindo de advertência no caso de vizinhos poderosos pensarem em estender demasiado os braços. Esses clientes livres faziam parte do Conselho, assim como os chefes dos Uí Néill, ricamente vestidos com as suas túnicas brasonadas com o símbolo escarlate da serpente enrolada. Na fortaleza de Sevenwaters havia um brilhem, um escriba e um poeta. Havia um mestre-de-armas, um fletcherm e vários ferreiros. Mas eram os outros, os que não se viam, que me intrigavam.

 

Nota: Aquele que coloca penas nas flechas.

 

A minha tia Liadan era irmã da minha mãe e gémea de Sean. O meu pai dissera-me que ela vivia em Harrowfield. Não me apercebera de como era longe dali. Estranhamente, ela vivia na Bretanha, entre os inimigos de Sevenwaters, porque o seu marido era agora o senhor de um domínio em Northumbria, que pertencera, em tempos, ao seu pai. Quando não estavam lá estavam em Inis Eala, um remoto lugar no norte, tão distante que quase ninguém o conhecia. Mas quando o meu tio Sean falava da irmã era como se ela vivesse ali a um passo, no outro lado dos campos. Conor falava dela como de um velho e respeitado amigo. Tentei lembrar-me do que a minha avó me dissera. Ela dissera algo acerca de ter desejado que Ciarán tivesse escolhido a outra irmã, porque os seus filhos teriam sido mais inteligentes, ou mais capazes. Não fora uma observação muito diplomata. Mas a minha avó era assim.

 

Liadan e o marido tinham filhos. Comecei a saber coisas deles pouco depois da minha chegada. Apesar dos meus esforços para ficar no meu quarto sozinha por algum tempo, para dar um certo descanso ao Encantamento, ou para repetir em paz os encantamentos secretos da arte, não conseguia evitar o afluxo regular de algumas visitantes curiosas. Como Muirrin previra, aprendi rapidamente a distingui-las apesar dos cabelos ruivos muito semelhantes e dos vivos rostos sardentos. Sibeal era a excepção; escura, como a irmã mais velha e muito calma. E tinha uns olhos muito estranhos, claros, sem cor, que pareciam olhar para lá das coisas. Eilis era muito pequena e muito traiçoeira. Tinha que a vigiar o tempo todo. Maeve era a do meio e tinha um cão que a seguia para toda a parte como um escravo fiel. E Deirdre e Clodagh eram gémeas. Quando crescessem mais um pouco seriam como mais duas tias Aisling, percorrendo a casa apressadamente para verem se estava tudo em ordem. Comecei rapidamente a compreender por que razão Muirrin passava a maior parte do seu tempo na sua ervanária, ou na aldeia cuidando dos doentes.

 

Naquele dia tinha as gémeas no meu quarto, cada uma sentada num banco, e também Maeve, com o cão. Este, pelo menos, estava quieto, se bem que o seu enorme corpo impedisse o calor do fogo de chegar até nós.

 

Esta é a tua boneca? Posso pegar nela? perguntara Maeve imediatamente após entrar e pegando em Riona antes de eu poder responder. Podiam acontecer coisas ruins a raparigas que me aborreciam. Podiam picar os dedos numa agulha escondida. Podiam descobrir que os seus cães já não gostavam delas. Ou podiam descobrir que esse mesmo cão desaparecera subitamente, deixando no seu lugar uma formiga, ou uma barata. Com alguma dificuldade, controlei-me.

 

Foi a tua mãe que a fez? perguntou Clodagh. Deirdre olhou para ela.

 

Foi disse eu.

 

Como é que ela se chama? perguntou Maeve inspeccionando a saia cor-de-rosa de Riona e metendo o nariz no colar estranhamente entrançado.

 

Riona.

 

Muirrin, uma vez, fez-me uma boneca. Mas não era tão bonita como esta. Posso brincar com ela?

 

Ela não é para brincar disse eu, aproximando-me e tirando Riona dos braços da criança. Voltei a colocá-la cuidadosamente no lugar que lhe pertencia, a olhar para fora da janela, para a orla da floresta.

 

Bebé disse Deirdre, fazendo uma careta para Maeve.

 

Eu não sou nenhum bebé! Eilis é que é um bebé. Coll é um bebé. Eu tenho dez anos. Já sou crescida.

 

Deirdre ergueu as sobrancelhas e sorriu. Maeve desatou a chorar.

 

Sou, sou e sou! Não sou, Fainne?

 

Mas também podiam acontecer coisas às raparigas que faziam chorar as irmãs por dá cá aquela palha. Os meus dedos estavam cheios de comichão; já tinha passado algum tempo. Fiz um esforço. Tinha de guardar a arte para os meus propósitos.

 

Podes brincar com Riona, se quiseres disse eu magnanimamente.

 

Agora já não me apetece disse Maeve fazendo beicinho, mas pegou novamente em Riona e sentou-se aos soluços com a boneca nos braços.

 

Toma disse eu estendendo-lhe a minha escova de cabelo.

 

Ela precisa de ser penteada. Virei-me para as outras. Quem é o Coll? perguntei.

 

É o nosso primo. Clodagh gostava de explicar as coisas; gostava de partilhar os seus conhecimentos. O que faz com que também seja teu primo, suponho.

 

Filho da tia Liadan?

 

Um dos. Ela tem montes deles.

 

Quatro, na verdade disse Deirdre. Coll é o mais novo.

 

Além dele há o Cormack, que tem catorze anos e pensa que é um guerreiro. Depois, há o Fintan, mas a esse não o vemos muito, está em Harrowfield. E depois há o Johnny. Aquele nome foi pronunciado de um modo especial, como se se estivesse a referir a um deus.

 

Eu vou casar com Johnny quando tiver idade suficiente disse Deirdre com grande segurança.

 

A sua irmã gémea olhou para ela de esguelha.

 

Não vais, não disse Clodagh.

 

Vou sim! Deirdre parecia que ia explodir.

 

Não vais não repetiu a irmã gémea com firmeza. Tu não te podes casar com um primo direito, ou com um sobrinho, ou com um tio. A Janis é que me disse.

 

Por que não? perguntou Deirdre.

 

Porque os teus filhos serão amaldiçoados. Nascerão com três olhos, ou com ouvidos como os de uma lebre, ou com pés defeituosos, ou coisa parecida. Toda a gente sabe isso.

 

O que é que se passa, Fainne? perguntou Maeve subitamente, olhando para mim. Ficaste branca como a cal.

 

Não é nada disse eu tão animadamente quanto pude, se bem que as palavras de Clodagh me tivessem gelado o coração. Diz-me uma coisa. Esses rapazes, esses primos. Eles vivem muito longe, não vivem? No entanto, vocês parecem conhecê-los muito bem.

 

Às vezes estamos com eles. Com Fintan não; ele é o herdeiro de Harrowfield e a tia Liadan diz que ele é igual ao avô, preferindo ficar na herdade a arar a terra e a falar dela a viajar até ao Ulster. E Cormack passa a maior parte do tempo em Inis Eala. Mas a tia Liadan traz o Coll com ela quando vem de visita. Ele e Eilis são terríveis. Nada está a salvo quando eles estão juntos.

 

E o outro? Johnny, não é esse o nome?

 

Johnny é diferente. A voz de Clodagh adoçara-se. Ele vem cá muitas vezes para aprender coisas sobre Sevenwaters, os nomes das pessoas, como dirigem as herdades, sobre as alianças, as defesas e as campanhas.

 

Johnny é um grande cavaleiro acrescentou Maeve.

 

Que é que esperavas? disse Clodagh, trocista. Basta ver a maneira como ele cresceu, no meio dos melhores guerreiros de todo o Ulster. É um verdadeiro guerreiro e um grande chefe, apesar de ainda ser novo.

 

Portanto, é uma espécie de terrível homem selvagem? perguntei.

 

Não. Maeve olhou para mim de sobrancelhas erguidas. É uma jóia.

 

Tão jóia acrescentou Clodagh, sorrindo que me espanta como ainda não se casou. Um dia destes aparece aí com uma bela noiva de boas famílias.

 

Não sabes do que estás a falar - resmungou Deirdre.

 

Sei sim retorquiu Clodagh.

 

Não sabes!

 

É verdade o que dizem arrisquei que esse Johnny é o filho da velha profecia? Sabem alguma coisa acerca disso?

 

Toda a gente sabe dessa história disse Maeve, desdenhosa, enquanto transformava o cabelo amarelo de Riona numa coroa complicada.

 

Bem, é verdade? As gémeas viraram para mim os seus pequenos rostos.

 

É, pois disseram elas em coro e Deirdre suspirou. Achei que não devia fazer mais perguntas sem parecer demasiado curiosa. Mantive-me calada e após um certo tempo elas aborreceram-se e foram incomodar outra pessoa qualquer.

 

Portanto, havia o tio Sean com as suas raparigas e a tia Liadan com os seus rapazes. Um avô muito querido morrera recentemente e fora sepultado sob os carvalhos. E havia Conor. Os druidas viviam no segredo da floresta, como era hábito dos sábios. Mas Conor fazia parte do Conselho e, portanto, ficaria em Sevenwaters enquanto as discussões prosseguissem para lá das portas fechadas. Na verdade, ele era o membro mais velho da família e era muito respeitado. E havia outro tio, irmão da tia Aislling. A esse conheci-o logo no primeiro dia, por acaso, quando descia as escadas com Muirrin para ir jantar. Não me teria interessado por aquele homem de meia-idade bem constituído, ricamente vestido, de feições agradáveis e cabelos castanhos, se não tivesse ficado rígido quando me viu, e branco como a cal.

 

Tio Eamonn disse Muirrin como se fosse a coisa mais natural deste mundo esta é a minha prima Fainne. Filha de Niamh. De Kerry.

 

Uma declaração bem ensaiada, que dizia o suficiente e não deixava lugar a perguntas embaraçosas.

 

O homem abriu a boca e fechou-a logo a seguir. As expressões seguiram-se umas às outras no seu rosto: de choque; de raiva; de ofensa; e,

com um visível esforço, de boas-vindas.

 

Como estás, Fainne? Estou certo que Muirrin te está a ajudar a instalares-te. Esta visita é... inesperada?

 

O meu pai foi buscar Fainne esta manhã disse Muirrin suavemente. Ela vai ficar cá por uns tempos.

 

Estou a ver. Por trás das feições agora sob controlo podia ver que a sua mente trabalhava a toda a velocidade, como que juntando as peças de um quebra-cabeças. Não gostei nada daquilo.

 

Agora temos que ir. Vemos-nos ao jantar, tio Eamonn.

Espero que sim, Muirrin.

 

E foi tudo; mas apanhei muitas vezes aquele homem a olhar para mim, à mesa, quando os outros estavam embrenhados nalguma conversa, ou do outro lado do salão quando as pessoas se reuniam à noite, ou no jardim, a passear. Era um homem influente, podia ver isso pela maneira como os outros homens da aliança lhe falavam. Muirrin disse-me que ele era senhor de um grande domínio, na verdade de dois, que limitavam a leste e a norte com Sevenwaters. Adquirira Glencarnagh assim como Sídhe Dubh, o que queria dizer que controlava mais homens e terras do que Sean. Ao mesmo tempo, era da família e, portanto, não representava uma ameaça. Mas olhava muito para mim, até que eu me aborreci e comecei também a olhar para ele. Não tenho dúvidas do que a minha avó diria acerca daquele homem. Diria o poder é tudo, Fainne.

 

O tempo passou e Dan Walker foi-se embora. Mal os vi, porque fui apanhada, bem contra a minha vontade, na rotina diária da família e quando não era precisa escapava-me para o meu quarto, ou para o jardim em busca de um certo tempo precioso para mim própria. Tornou-se, então, claro para mim por que razão os druidas preferiam viver isolados, emergindo apenas por ocasião de grandes festivais, para celebrar casamentos ou abençoar as colheitas. Manter a sabedoria, a força interior e a concentração requeria silêncio e solidão, tanto para eles, como para nós. Para um druida era precisa, também, a companhia das árvores, porque as árvores eram símbolos poderosos na aprendizagem dos sábios. Numa paisagem praticamente sem árvores, eu aprendera os seus nomes e formas antes de fazer cinco anos. Sean pusera em causa a sabedoria do meu pai por ele ter escolhido viver em Kerry, um lugar tão remoto, tão longe de Sevenwaters. Para mim, tornou-se claro que o meu pai sabia exactamente o que estava a fazer. Talvez, ao princípio, ele tivesse partido para proteger a minha mãe. Mas eu recordei todos aqueles anos de estudo, de silenciosa meditação, de privações auto-impostas e soube que, se não tivéssemos vivido no Favo de Mel, quase completamente rodeados pelo mar selvagem, quase permanentemente sob um céu coberto de nuvens e vigiados pelas formas secretas das pedras, nunca teria sido o que era. Ele limitara-se a passar-me o que sabia, proporcionando à sua única filha uma espécie de profissão, para que ela pudesse percorrer o seu próprio caminho no mundo. A ironia era que ele forjara uma arma digna de um verdadeiro mestre: a arma da sua mãe. Talvez nunca tenha escapado ao legado que ela lhe deixou, porque, na sua mente, não fizera ele exactamente como ela desejara?

 

A despeito das minhas saudades de casa, fui-me gradualmente acostumando ao padrão de vida de Sevenwaters e cada vez se me tornou mais difícil recordar por que razão estava ali. A recordação das ameaças da minha avó parecia-me quase uma fantasia. As distracções eram muitas. Por vezes, olhava para a animada cena doméstica à minha volta, pensava na magnitude da tarefa de que fora incumbida e dizia para mim mesma: Isto não pode ser verdade. Estas coisas não podem existir ao mesmo tempo neste mundo. Talvez eu esteja a sonhar. Deixem-me sonhar.

 

A minha tia Aisling, ocupada como sempre, não fazia tenção de me deixar desaparecer sempre que me apetecia. Tinha de ajudar Muirrin no seu trabalho de enfermeira; tinha de ajudar Deirdre e Clodagh nas suas lições de leitura e escrita, já que parecia que eu era capaz de ambas as coisas e a educação das raparigas fora algo negligenciada nos tempos recentes, visto que toda a gente andava muito ocupada. E devia supervisionar as mais novas na costura, já que também era hábil nisso. Devia aprender a montar a cavalo como devia ser, porque nunca se sabia se era preciso partir à pressa. E precisava de roupas novas. Perguntava a mim própria o que pensaria a minha tia Aisling que me aconteceria se não fosse ela a organizar-me todos os minutos do dia.

 

Muirrin ajudava. Muitas vezes, quando eu era despachada para a ajudar na ervanária, ou ir com ela numa qualquer missão de misericórdia, olhava para mim com aqueles grandes olhos verdes e dizia-me para me sentar no jardim e conseguir um pouco de paz e sossego, enquanto ela prosseguia com o seu trabalho. Então, trabalhava nas suas misturas e fusões, secagens e preservações, por vezes sozinha e outras vezes assistida pela pequena Sibeal, uma criança silenciosa e diligente. E eu sentava-me no banco de pedra no jardim de ervas, envolta no meu xaile de todos os dias, porque arrumara o presente de Darragh no fundo da minha arca de madeira, a salvo dos olhares indiscretos e das pequenas mãos ansiosas. Ficava ali sozinha ao frio do fim do Outono e dizia para mim própria a litania. Quase conseguia ouvir a voz do meu pai. De onde vens?

 

Do Caldeirão do Desconhecimento.

 

E assim por diante ao longo do dia, ao longo da estação, ao longo do grande ciclo do ano, uma litania tão velha como o padrão de todas as existências. E por vezes, enquanto deixava que o recital familiar fosse desfiando, pensava noutras coisas durante algum tempo, quase sem consciência do que estava a fazer. Talvez houvesse uma mudança subtil na maneira como o musgo crescia nas pedras. Talvez houvesse mais abelhas em volta das últimas flores da lavanda e talvez menos pássaros empoleirados nos ramos nus do lilás. As pedrinhas no chão tomavam o formato de símbolos antigos. Freixos; vidoeiros; carvalhos; zaragatoas. Nada de extraordinário. Apenas para me exercitar, por assim dizer.

 

A minha vida diária era um grande esforço, mesmo depois de se me tornar familiar. Era exaustiva. Sabia que nunca me habituaria às pessoas, à companhia, à necessidade de dizer coisas óbvias, de ouvir outras entediantes e à necessidade de participar. Se somos criados na solidão e no silêncio, nunca perdemos o hábito. Por vezes, sentia-me tentada a fazer uma pequena trouxa e ir-me embora, com ou sem floresta, com ou sem avó. Mas tal aventura estava votada ao fracasso. O sítio estava cheio de homens armados e as raparigas estavam proibidas de ir além de um determinado ponto sem escolta. Em tempos como aqueles, disse-me Clodagh muito séria, todo o cuidado era pouco.

 

O Conselho chegou ao fim. Eu tentara ver quem era o representante de Inis Eala, porque queria saber mais acerca da minha tia Liadan, do marido e do fabuloso Johnny. Mas não vi caras novas ao jantar, nem vi cavaleiros no pátio no dia em que o meu tio Sean falou dela. No fim, acabei por perguntar a Muirrin.

 

Os de Inis Eala não estão representados no Conselho? Tentei parecer casual. E Harrowfield? Se Johnny é o herdeiro de Sevenwaters, por que não está ele presente, ou o seu pai? Não tomam parte no empreendimento, seja ele qual for?

 

Muirrin olhou para mim enquanto punha um pequeno pote no fogo.

 

Harrowfield não tem nada a ver com isto disse ela. Esse domínio sempre esteve fora do feudo; mantém-se à parte de Northwoods, que é o nosso verdadeiro inimigo, se bem que tenham ambos a mesma fronteira. Isso não mudou depois de Liadan e o Chefe terem tomado conta da propriedade. Por essa razão, o Chefe nunca vem a Sevenwaters. Para ele, a tarefa não é fácil, porque continua a ter interesses nos negócios de Inis Eala. E Inis Eala está representada no Conselho. Esta aventura não se pode fazer sem eles.

 

O Chefe? perguntei.

 

O marido da tia Liadan. Toda a gente lhe chama assim. O seu verdadeiro nome é Bran, o Corvo.

 

Quem é que veio de Inis Eala para o Conselho? perguntei. Não vi ninguém chegar.

 

Desta vez, Muirrin franziu ligeiramente o sobrolho.

 

Por que é que estás tão interessada? perguntou.

 

Estou apenas a tentar saber coisas da família. Johnny parece ser muito importante. E a tia Liadan era irmã da minha mãe.

 

Sim, é uma pena ela não estar aqui para te conhecer disse Muirrin, provando um pouco da sua mistura e fazendo uma careta. Ora bolas, creio que preciso de mel. És capaz de mo ir buscar, Fainne? Não admira que não tenhas conseguido ver o homem que eles mandaram. Os homens do Chefe são mestres no disfarce. Ela viu a minha expressão e riu-se. Oh, não há qualquer magia, asseguro-te. É a sua imagem de marca, entram e saem sem serem vistos, adoptam os disfarces de que precisam e assim nunca ninguém se lembra deles. É por isso que o Chefe nunca vem em pessoa. Nunca mais te esquecerias dele. Um homem veio e foi-se embora. Mais nada.

 

Por que razão nunca mais me esqueceria do... do Chefe?

 

Saberás se algum dia o conheceres. Mas ele não vem a um Conselho deste género. Como já te disse, tem que manter uma certa neutralidade. Além disso, tem demasiados inimigos e, mesmo hoje, não tem a confiança total de todos os aliados do meu pai.

 

A sério? Nesse caso, por que é que os homens dele e de Inis Eala, estão involvidos? Isso não é arriscado para ele?

 

Por causa de Johnny. Ela não pronunciou aquele nome no mesmo tom que as irmãs. Mas ficou profundamente séria. Johnny é um símbolo. O filho do corvo. É ele o líder da aventura e não a pode conduzir sem o apoio do pai. Além disso, as capacidades únicas do Chefe e as forças especiais de Johnny são a parte essencial da campanha. Sem eles, esta não pode ser levada a cabo. Pelo menos, é o que o meu pai diz.

 

E onde é que entra o teu tio Eamonn, nisto tudo?

 

Ele tem a maior e mais bem equipada força de guerreiros de todo o Ulster disse Muirrin com desenvoltura. Segura aqui enquanto eu torço. Obrigada. Tem que fazer parte. Todos têm. O trabalho do meu pai é mantê-los afastados das gargantas uns dos outros o tempo suficiente para que a coisa funcione. Um pouco como ser a irmã mais velha, acho eu.

 

Eu tinha a cabeça cheia de perguntas, mas senti que não lhe podia perguntar mais nada sem levantar suspeitas. Em vez disso, observava e escutava, porque o meu pai treinara-me para resolver quebra-cabeças. O homem chamado Eamonn era um livro fechado; difícil, reservado. Sentava-se à mesa do jantar junto da minha tia Aisling e ficava calado, quase anormal. Poder-se-ia pensar que a sua falta de contribuição para a conversação era causada por uma certa indulgência provocada pela boa cerveja, porque ficava sentado a beber permanentemente durante a noite inteira, olhando para o espaço e comendo pouco. Mas os olhos denunciavam-no. Eu era capaz de jurar que ele ouvia tudo, armazenando o que lhe poderia ser útil, um dia. E continuava a apanhá-lo a olhar para mim, vezes sem conta, como se eu fosse a peça final do seu quebra-cabeças e ainda não tivesse decidido onde me colocar. Eu olhava para ele por baixo das minhas pestanas. O seu olhar permanecia constante. É ele, pensei. É ele o alvo, como me diria a minha avó. Encontra um homem influente, Fainne. Uma mulher é capaz de fazer maravilhas com um homem assim. Aquela ideia aterrorizou-me. Fez-me doer o estômago e fiquei com pele-de-galinha.

 

Um a um, os membros da aliança fizeram as suas despedidas e deixaram Sevenwaters sob escoltas armadas. Para sua própria protecção, era-lhes explicado, enquanto os homens de Sean, com os seus trajes da floresta partiam com os visitantes. Como era possível trabalhar lado-a-lado, planear uma grande campanha, perguntei a Muirrin, se havia tanta falta de confiança? Não seria possível um aliado mergulhar uma faca nas costas de outro?

 

Oh, não é só isso disse Muirrin desenvoltamente. É a floresta. A floresta conhece os seus. Os outros não podem ir e vir em segurança. Os caminhos mudam. As raízes crescem sobre os trilhos. As vozes desnorteiam as pessoas e as brumas espalham-se. Ela disse aquilo como se fosse a coisa mais natural deste mundo e eu senti um arrepio na nuca.

 

Vozes? perguntei.

 

Nem toda a gente as ouve disse-me ela. Mas a floresta é muito antiga. Foi confiada à nossa família nos tempos antigos, nós somos os seus guardiões. Não somos, nem de longe, os seus únicos habitantes.

 

Acenei com a cabeça.

 

Ouvi falar na história disse eu cautelosamente. Um dos vossos nossos antepassados não casou com uma mulher dos Fomhóire?

 

É o que dizem. E com ela veio o segredo das Ilhas. Ambas as coisas estão ligadas: as ilhas, a floresta e a confiança dos Fair Folk em nós, há muito tempo. Se uma delas falha, tudo cai. Já deves saber disso.

 

Um pouco. E gostava de saber mais.

 

É melhor perguntares a Conor. Ele conta a história melhor do que ninguém.

 

Mas eu evitava Conor. Ele continuava em Sevenwaters, mas não fizera qualquer esforço para estar comigo. Em vez disso, passava muito tempo a conferenciar com Sean, ou a falar com Muirrin, ou sentado silenciosamente no jardim, olhando para a floresta. Eu tinha a impressão de que ele estava à espera.

 

A minha mente estava noutras coisas. O meu tio Sean decretara que eu tinha de aprender a montar como deve ser, já que poderia ser preciso partir a qualquer momento. Era uma experiência humilhante. Os cavalos não confiavam em mim. E toda a gente sabia montar, até Eilis, que tinha apenas cinco anos. Era muito fácil para ela, pensei eu, irritada, vendo-a galopar em redor do pátio no seu pequeno pónei preto. Crescera naquilo. Quase me senti tentada a fazer com que o pónei se assustasse e a atirasse ao chão. Há muito tempo, num outro mundo, Darragh oferecera-se para me ensinar e eu recusara. Agora, estava amargamente arrependida. Aoife não teria tremido e não se teria afastado de mim. Darragh teria sido paciente. Talvez dissesse alguma piada, mas nunca se riria de mim como Eilis. Não que os rapazes da estrebaria não quisessem ajudar, mas isso tinha mais a ver com a maneira como eu sorria do que com a sua amabilidade natural. Desde a minha chegada a Sevenwaters que não aparecia às pessoas sem vestir o traje mágico de beleza e doçura que o Encantamento permitia. Não admirava que as pessoas dissessem que eu era parecida com a minha mãe. Sem o disfarce do Encantamento ficaria paralisada pela minha própria timidez. Mas ali, no picadeiro, sentia-me tentada a tirá-lo e a mostrar-lhes o tipo de criatura tímida e simples que era na realidade. Podia ter usado um truque ou dois para os colocar nos seus devidos lugares. Mas resisti à tentação e continuei. Ao fim da manhã estava cansada, sentia-me frustrada e os meus professores coçavam as cabeças, desanimados.

 

Os cavalos parecem que não gostam de ti observou um dos rapazes da estrebaria. Nunca vi nada parecido. A seu lado, o cavalo que eu tinha estado a montar rolava os olhos e tremia. Não te preocupes disse eu. Obrigada pelo tempo que perdeste.

 

Foi uma honra, minha senhora disse o rapaz, corando furiosamente. E eu escapei-me. Era suposto levar Eilis e Maeve para se lavarem e começar uma lição de costura. Mas, subitamente, senti que era demasiado e deslizei para a parte de trás dos estábulos, desesperada por uns momentos de solidão. Havia um lugar onde me podia sentar em paz, uma porta com três degraus. Era apenas de uma pequena pausa, sem companhia, que eu precisava.

 

Mas tive companhia. Eamonn estava sentado nos degraus, vestido para montar, as pernas calçadas com botas estendidas à sua frente, os braços cruzados, os olhos fixos na distância e a expressão sombria, como se estivesse submerso em pensamentos profundos. Usava uma túnica verde-escura por cima da roupa de montar.

 

Oh disse eu apanhada de surpresa. Oh... peço desculpa... Ele levantou-se.

 

Fainne, creio que ocupei o teu local de refúgio. Em todo o caso, tenho de ir. Regresso a casa hoje. Tenho muitos assuntos à minha espera.

 

Gelada de timidez apesar do Encantamento, não encontrei o que dizer, ou o que fazer. Automaticamente, falei com a voz doce e sem fôlego que a minha avó me teria recomendado para uma situação como aquela e mexi-me como ela me ensinara, porque não sabia o que havia de fazer.

 

Por favor... fique, se assim o deseja. Não era minha intenção perturbá-lo. Tem razão, este é um bom lugar para onde fugir quando as coisas... quando as coisas se tornam complicadas. Mas... não me importo de o partilhar. Também gosta de paz e sossego? Uma pausa na confusão dos negócios? Parece ser um homem muito ocupado. Aproximei-me hesitantemente e senti-me corar delicadamente, sem recorrer à arte.

 

Por favor disse ele. Senta-te. Estiveste a andar a cavalo, não estiveste? Deves estar cansada.

 

Estou um pouco cansada disse eu com um sorriso de desventura e sentei-me graciosamente no degrau de cima. Ele ficou em pé com a expressão fechada, como sempre.

 

Nunca aprendeste a montar? Isso é pouco vulgar numa rapariga da tua idade observou Eamonn.

 

Eu sei disse eu com a maior das honestidades. E não quero aprender, mas o tio Sean diz que eu devo. Preferia passar o tempo a fazer outras coisas.

 

Outras coisas?

 

Ele parecia querer conversar comigo. Talvez os conselhos da minha avó sobre como lidar com homens fossem melhores do que eu pensava. Não sabia bem qual era a resposta que ele esperava. Tentei adivinhar.

 

Coser, ler, estudar. Não estou acostumada a tanta gente.

 

Ele acenou com a cabeça em sinal de assentimento. Parecia-me que o tinha julgado bem.

 

Não cresceste, então, numa família como a da minha irmã? Cresceste apenas com o teu pai?

 

Era um erro subestimar um homem daqueles. Senti-me corar ainda mais e baixei os olhos.

 

De... desculpe-me, isto entristece-me. Terá de perguntar ao meu tio Sean. Custa-me muito falar disto.

 

Eamonn acocorou-se a meu lado, visivelmente preocupado. Não me passou despercebida a expressão inquiridora nos seus olhos.

 

Lamento disse ele. Perturbei-te. Não era minha intenção...

 

Não faz mal. A minha voz tremeu um pouco. Eu... eu não me importo de falar destas coisas. Levei uma existência muito protegida até vir para aqui. Uma vida calma, de contemplação.

 

Acreditei, durante muito tempo, que a tua mãe se tinha afogado nas minhas terras por negligência minha disse Eamonn. Mais tarde soube que tinha sobrevivido e que estava numa casa de oração. Disseram-me que tinha problemas de saúde. Mas... desculpa-me a franqueza, ninguém me falou de uma filha.

 

Eu não conheci a minha mãe disse eu num sussurro. Aquela conversa estava a deixar-me pouco à-vontade. Não percebia o que ele queria. Se queria saber alguma coisa de especial que lhe pudesse servir para o futuro, certamente não a saberia por mim.

 

Ela era muito parecida contigo disse Eamonn. Niamh era muito admirada como rapariga. Na verdade, nunca houve duas irmãs tão diferentes. A sua boca torceu-se. O seu rosto estava muito próximo do meu.

 

Sem dúvida, está satisfeito por regressar a casa disse eu.

 

Ele olhou para mim em silêncio.

 

A sua família deve ter saudades suas acrescentei.

 

Aislling é a minha única família disse ele após um momento, e olhou para o chão.

 

Fiz uma pausa.

 

Estou surpreendida disse eu. Não tem mulher? Nem filhos?

 

Talvez a minha falta de convivência com o mundo me tenha limitado a compreensão de tais coisas, mas não quer um herdeiro para as suas terras?

Ele sorriu muito levemente.

 

Tu és muito directa, Fainne. Espantosamente directa.

 

Pus de novo em prática os ensinamentos da minha avó e fiz um gesto delicado de confusão, levando os dedos à boca.

 

Desculpe. Não queria ofendê-lo. Eu cresci muito só e nunca aprendi a arte da conversação. Por favor, ignore o que eu disse.

 

Suponho que não é muito vulgar disse Eamonn, movendo-se para sentar a meu lado. Em tempos sonhei com isso. No fim de contas, ter mulher e filhos é um direito básico de qualquer homem. Mas tudo mudou.

 

Como?

 

Ele olhou para as próprias mãos, agora cruzadas uma na outra.

 

Ah. Agora és tu que te aventuras em assuntos de que não posso falar. Todos temos os nossos segredos, acho.

 

Desculpe, Eamonn.

 

Ele olhou para mim de sobrancelhas erguidas.

 

Gostaria mais que o tratasse por tio Eamonn? Parece-me mais apropriado.

 

Na verdade não, Fainne. No fim de contas, não sou teu tio, se bem que pudesse ter sido. Tenho de ir. Os meus homens estão à minha espera. O caminho é longo até Sídhe Dubh.

 

É onde vive?

 

E em Glencarnagh. Gostarias mais deste último lugar. É um local melhor para uma mulher.

 

E eu tenho de regressar para junto das crianças disse eu. Tenho de as segurar e dar-lhes alguns trabalhos de costura para fazer. A tia Aisling mantém-nos a todas muito ocupadas. Eu não me importo. Mas elas são tão barulhentas.

 

Eamonn sorriu. Aquele sorriso melhorava-lhe muito a aparência. Era uma pena ser tão velho. Trinta e nove, pelo menos, pensei. Mais velho do que o meu pai. Gostas de paz e sossego, portanto?

 

Acenei com a cabeça.

 

Teria preferido ficar no Sul e dedicar-me a uma vida de paz e contemplação disse eu docemente, contente por não ter de mentir.

 

Não gostarias de ter a tua própria família, um dia? perguntou Eamonn com ar sério.

 

Pensei no que a minha avó acharia correcto responder.

 

Sim, gostava disse eu num sussurro e pus no rosto a expressão delicada de uma qualquer jovem à beira da descoberta. Um marido, um filho saudável, uma filha encantadora para cuidar... não é esse o desejo de todas as raparigas?

 

Seguiu-se outra pausa.

 

Espero... disse Eamonn espero que Sean seja sensato na escolha que fizer para ti. Não gostaria de ver uma... espero que ele escolha como deve ser para teu bem. E agora tenho de ir. Boa sorte com as tuas lições de equitação. Estou certo de que, no fim, serás tão boa nisso como em tudo o resto que fazes.

 

Lisonjeia-me disse eu.

 

Duvido muito. Adeus, Fainne. Talvez voltemos a conversar quando eu visitar de novo Sevenwaters.

 

Gostaria muito disse eu e segui-o com os olhos. Por fim, conseguira. A minha avó teria aprovado, provavelmente. Mas, por que razão sentia um nó no estômago sempre que pensava naquela conversa? Pensei em tudo o que dissera e não conseguia encontrar qualquer erro. Mas estava sempre a ver o rosto de Darragh a olhar para mim, como quando eu estava a dançar na feira, o rosto de um homem que se sente, de algum modo, traído. E senti-me feliz por Darragh não me ter visto enquanto conversava com Eamonn; por ele não saber o que eu teria de fazer e por não saber em que espécie de pessoa eu teria de me transformar.

 

 

                                               CAPíTULO CINCO

 

A floresta era como que uma capa de escuridão em redor da fortaleza e da sua pequena aldeia. À medida que o ano ia avançando e o tempo ia ficando mais húmido e mais frio, sentia dificuldade em afastar um sentimento de opressão, de estar fechada numa armadilha que me envolvia e asfixiava. A floresta protege os seus, dissera Muirrin. A mim, parecia-me que a floresta vivia, respirava e sentia que um intruso entrara nela, com a destruição no coração. A minha avó fora devastadoramente simples. Faz com que não lutem. Mas se lutarem, faz com que percam. Perder a batalha era perder as Ilhas. Perder as Ilhas era desgraçar a floresta e todos os seus habitantes, humanos ou do Outro Mundo. A mim, parecia-me que a floresta sabia isso, do mesmo modo que um ser vivo sabe uma grande verdade. Pensamentos tolos, disse eu para mim própria vivamente enquanto acrescentava um cavaco à pequena lareira do meu quarto. No fim de contas, não passava de um amontoado de árvores. E as árvores podem ser abatidas e queimadas. As árvores podem ser abatidas para dar lugar a colheitas, ou pasto. Era estupidez da minha parte ligar demasiado àqueles receios. No entanto, no saber antigo, as árvores não podiam ser menosprezadas. Para Conor e para os da sua espécie eram símbolos poderosos. Para Muirrin e para a sua família eram uma responsabilidade sagrada, para serem protegidas custasse o que custasse. Por sua vez, a floresta protegia os que viviam em Sevenwaters.

 

Fiquei à janela a olhar para fora, vendo a chuva a cair de lado, empurrada pelo vento e as silhuetas sem folhas dos grandes carvalhos e faias oscilarem sob as investidas da tempestade, mas, no entanto, mantendo-se firmes, juntos. Era quase noite e eu tinha acendido uma vela, que lutava por se manter acesa ali na janela. O seu brilho dourado tocava nas feições bordadas de Riona, tornando-as vivas, e dava ao seu vestido sedoso uma tonalidade de rosas de Outono. Eu sentia uma coisa qualquer

 

muito estranha naquele lugar, junto da estreita janela. Já a sentira antes: um poder qualquer, um significado, como se uma pessoa tivesse ali esperado interminavelmente, como se os sentimentos dessa pessoa fossem tão fortes que ainda permaneciam ali no ar frio, junto da chama trémula da vela. Senti-me arrepiar ao pensar naquilo. Afastei-me, sentei-me na cama e os olhos de Riona olharam para mim.

 

Medos, disse para mim própria, demasiados medos. Tinha de me livrar deles para que pudesse levar a cabo a minha tarefa. Se a floresta era uma ameaça, tinha de me confrontar com ela. Tinha de responder às vozes e desafiar as sentinelas silenciosas. A minha tarefa não era atingir o coração dos Fair Folk? No entanto, recuei ante a perspectiva de caminhar sozinha à sombra dos carvalhos e ouvir as suas vozes. Sem conhecer aqueles que tinha de derrotar, não conseguiria nada. Não era filha de um feiticeiro? Onde estava a minha coragem?

 

O tempo amainou; os dias tempestuosos deram lugar a manhãs e tardes frias, geladas, sob um sol pálido que não dava descanso aos ossos doridos. As pequenitas pararam de brigar e foram brincar para o exterior, não muito longe da casa. O último trabalho da estação estava feito, os telhados reparados, a lenha empilhada e as provisões para o Inverno cuidadosamente armazenadas. Nos pátios, os homens, com espadas, lanças e adagas, treinavam, interminavelmente, as danças letais da guerra. Chegaram mais cavalos e os rapazes das estrebarias andavam demasiado ocupados para se preocuparem com as lições de equitação de uma das senhoras da casa. Sean parecia carrancudo e preocupado, andando de um lado para o outro com os dois grandes cães nos seus calcanhares. Chegaram mais homens, conferenciaram com ele e partiram de novo. Chegaram provisões em carroças e foram armazenadas antes que alguém lhes pudesse deitar uma olhadela. Muitas vezes, Conor estava presente junto do sobrinho, verificando as coisas e dando conselhos. Não era raro um druida envolver-se numa campanha militar, especialmente quando ela tinha a ver com algo muito querido ao seu coração.

 

A minha avó tinha razão acerca da grande aventura que estava a ser preparada para o Verão seguinte. Era, sem dúvida, nada mais nada menos do que o assalto final aos Bretões de Northwoods, o clã que se apoderara das Ilhas, sagradas para a velha fé durante gerações. Seria naquele Verão que as Ilhas regressariam, finalmente, aos seus devidos guardiões. Não donos; esse termo não era apropriado. A família tinha, apenas, a custódia da floresta, do lago e das Ilhas. Essa responsabilidade antiga fora colocada nos ombros do nosso antepassado pelos Túatha Dê Danann, quando ele pôs o pé na floresta de Sevenwaters. Houvera uma terrível negligência dessa responsabilidade e Northwoods apoderara-se das Ilhas. Ao longo de incontáveis anos, a luta pelo controlo daqueles pedaços de terra, no meio do mar, fora constante e muitos filhos de Erin, assim como da Bretanha, tinham perdido a vida nessa causa. Aquele seria o assalto final. Northwoods seria derrotado e as suas forças destruídas. Chegara a hora; o filho da profecia chegara e era um guerreiro perfeitamente capaz. Com ele a chefiar e com um conjunto de aliados como nunca antes, a aventura não podia falhar.

 

Aprendi tudo aquilo ouvindo e observando. O treino que o meu pai me inculcara tornou-me hábil nas duas coisas. Na verdade, havia ocaIsiões em que ouvia mais do que desejava; ocasiões em que pensava muito na história daquela grande família e dos segredos que lhe estavam ligados. Houve um dia em que, escapando ao barulho das crianças, me fui sentar num velho banco de pedra a um canto do jardim. O ar estava frio; eu estava bem agasalhada com a minha capa. Segurava o amuleto da minha avó na mão e tentava fixar a mente na tarefa que ela me confiara e como levá-la a cabo. Por vezes, quando tocava no pequeno triângulo de bronze, via o rosto dela e ouvia o terrível sussurro da sua voz: Não te esqueças, Fainne. Não te esqueças do teu pai. Recordava os seus castigos e não duvidava dos seus poderes. Por vezes, o meu espírito vacilava perante a impossibilidade da demanda que tinha perante mim. O amuleto ajudava-me naqueles momentos de dúvida. A sua pequena forma na minha mão era sempre tranquilizadora; quando a segurava acreditava’ -me capaz de quase tudo.

 

Naquele dia, estava sentada no meu banco à sombra de uma grande sebe quando ouvi as vozes dos meus tios Sean e Conor. Caminhavam ao longo de um carreiro de cascalho no outro lado das faias e fizeram uma pausa mesmo por trás de mim, de modo que não podia deixar de ouvir as suas palavras. Caso decidissem passar a curva e ver-me, fiz um pequeno feitiço para me confundir com a cerca, para mesclar as minhas roupas com as cores secas das folhas de Inverno e dos ramos escuros. Escutei.

 

... tenho perguntado a mim mesmo sobre as razões de Ciarán, mas não encontro qualquer resposta dizia Conor.

 

Para mim é bastante claro, tio replicou Sean. Até Ciarán sabe que a filha não tem futuro numa aldeia isolada, algures na costa de Kerry. Não a pode trazer para o Norte; sabe que nunca será aqui bem recebido, por mais que partilhe o nosso sangue. Assim, manda-nos a rapariga na esperança de que nós a eduquemos, lhe arranjemos um bom marido e um futuro digno de uma filha de Sevenwaters.

 

Seguiu-se um pequeno silêncio.

 

Há aqui qualquer coisa de errado. O tom de Conor era pensativo, como se lutasse com um quebra-cabeças. Ciarán não tinha amor por Sevenwaters, nem pela sua família, quando daqui saiu. Repudiou-nos a todos, assim como à irmandade, mal soube quem era. Selou essa decisão ao ficar com Niamh, mesmo sabendo que era contra a lei natural das coisas. Ao fazer isso, cortou todos os laços que ela tinha connosco. Por que razão havia, agora, de pôr a filha à nossa mercê? Mesmo quando era criança, Ciarán era um pensador subtil. Há um plano qualquer nisto tudo e não é o de ver a filha casada com um nobre qualquer.

 

Com o devido respeito, tio, penso que está errado. Acho que Ciarán está a fazer exactamente o que Niamh teria desejado. A minha irmã amava este lugar e a sua família; também amava a vida que levava, as coisas boas, a música e a dança, a companhia e as festas. Niamh não era nenhuma eremita. A mim, dói-me nunca saber se a minha irmã nos perdoou a todos ou, se morreu amargurada pelo que lhe fizemos. A presença de Fainne entre nós não poderá ser interpretada como uma espécie de perdão?

 

Gostarias que fosse assim disse Conor calmamente. Acho que não pensas no que a rapariga é; o legado que transporta. Ela é filha de Niamh, certo; vejo isso nos movimentos de cabeça, nos silêncios súbitos, na rapidez com que se sente ofendida. Mas também é filha de Ciarán. Sabes o que isso significa. Manter Fainne aqui é um risco. Temos de ter cautela.

 

Ora vamos, tio, Fainne sabe alguma coisa de magia, isso é verdade, mas qualquer druida teria feito o que ela fez naquele dia, na floresta. Crescer sozinha com o pai, durante aqueles anos todos, pode muito bem ter feito com que tenha adquirido algum conhecimento. Creio que o perigo pode vir de outro lado; Eamonn tem-me feito perguntas às quais eu não sei que responder.

 

Que perguntas? O tom de Conor tornou-se, subitamente, cortante.

 

Acerca do pai da rapariga, quem era ele, os seus antecedentes. As respostas que dei a Aisling não o satisfizeram; não aceita, simplesmente, que o homem fosse um druida de boas famílias. Exigiu-me outras respostas.

 

Hum disse Conor. Que pensas do interesse de Eamonn?

 

Eamonn interessa-se por tudo, armazena tudo, caso lhe possa ser útil, um dia. Não admira que se tenha tornado num homem tão rico e influente.

 

Os dois homens retomaram o passeio ao longo do carreiro. Suave como a brisa, levantei-me e acompanhei-os do outro lado da sebe. Estava habituada a caminhar em silêncio, com ou sem pé defeituoso.

 

... segredos dizia Conor. A história toda acerca do dia em que Niamh fugiu de Sídh Dubh e foi ter com Ciarán! Foi uma grande vergonha para Eamonn; ele nunca se perdoou a si próprio por ter permitido uma tal quebra de segurança na sua própria casa.

 

Não é essa a história que eu gostaria de ouvir disse Sean. Eu gostaria de saber a verdade acerca daquela vez em que a minha irmã foi visitar Eamonn e acabou num posto fronteiriço com dois homens feridos e na companhia de foras-da-lei. Essa história preocupa-me muito. Tem-me preocupado muito ao longo destes anos.

 

Sim; eles guardaram muito bem esse segredo, Liadan e o Bran dela. Estes anos todos. Continuo a ter algumas dúvidas quanto ao envolvimento de Eamonn nisso tudo.

 

No entanto, ele é irmão da minha mulher. É da família, agora.

 

Certo. E um aliado impecável a partir desse dia. O que levanta questões interessantes.

 

Ambos se calaram. Teria de parar de caminhar; aproximava-se o fim da sebe e eles ver-me-iam, com ou sem feitiço. Ainda não era mestra na arte da invisibilidade.

 

Não se preocupe com a rapariga disse Sean. Ela é boa rapariga, tenho a certeza. Um pouco de magia, umas tantas capacidades especiais, onde é que está o mal disso? Veja a Liadan, no fim de contas.

 

Conor riu-se, mas não havia alegria no seu riso.

 

Estás enganado. Creio que esta rapariga é tão poderosa como o pai. Vejo isso nela, sinto-o sempre que me aproximo dela. Tal força numa rapariga demasiado nova pode ser desastroso para nós. Uma coisa sei eu. Preferia um mágico com os talentos dela como aliado, do que como inimigo.

 

Ambos continuaram e eu fiquei para trás. Conor era um druida; não era surpresa nenhuma, portanto, sentir as minhas capacidades e desconfiar de mim. Se eu fosse realmente tão poderosa como ele pensava; então, talvez pudesse ser mais forte do que a minha avó, ser capaz de lhe dizer não e conseguir proteger o meu pai. Mas Conor estava enganado. A minha magia era débil e fraca ao lado da da minha avó. Desafiá-la significava, sem dúvida, a minha própria destruição e a do meu pai. As suas palavras continuavam na minha mente. Não serão necessários muitos erros da tua parte para o fazer ficar muito, muito doente. Ela dissera que saberia se eu falhasse no cumprimento das suas ordens e que seria louca em menosprezá-la. Teria de fazer alguns progressos, ou o meu pai sofreria as consequências.

 

Escolhi um dia sem nuvens, um dia em que, excepcionalmente, a tia Aisling não me deu que fazer. Chegara a hora. Não tinha de ter medo de nada, disse para mim própria enquanto calçava as botas e tirava o xaile que estava pendurado num prego atrás da porta. De nada. Era só dar um passo após outro. E o passo daquele dia era enfrentar as sombras daquela floresta e decidir que não me podiam fazer qualquer mal. Não passavam de truques dos Túatha Dê, sem dúvida, para amedrontar as pessoas e impedi-las de fazer perguntas incómodas. A minha avó sempre dissera que os Fair Folk eram demasiado grandes para as botas que usavam. Arrogantes. Achavam-se melhores do que os outros; bastava ver como tinham expulso os da sua própria espécie, sem terem uma pequena ideia do que era carregar uma maldição para todo o sempre. Era tempo de os enfrentar. Mas, como tudo o que eu fazia, com cuidado. Os meus propósitos tinham de se manter secretos até ao fim, ou o falhanço seria certo.

 

Enrolei-me no xaile. Riona observava-me. Não, parecia ela dizer. Isso não chega e tu sabe-lo. Franzi o sobrolho para ela. Fui até à pequena arca e tirei o belo xaile de seda, bordado com aquelas pequenas criaturas e a franja que ondulava como uma cascata e atei-o em redor dos ombros.

 

Satisfeita? resmunguei. Riona não respondeu, já que não podia. Mas a sua expressão parecia dizer, assim está melhor. Agarra-te ao que tens, já que não é muito. Olhei para ela, pensando de onde teria vindo aquilo e o que significaria. Então, peguei nela, meti-a na arca e fechei a tampa.

 

Estava-se a meio do dia e o gelo continuava a estalar sob os meus pés. No lago flutuavam alguns patos, mergulhando em busca do que pudessem encontrar. O fumo das cabanas pairava no ar; a turfa estava empilhada ordeiramente ao lado das portas baixas. Ultrapassei a aldeia rapidamente e passei por entre as paredes de pedra dos campos na direcção da orla da floresta. E ali, no carreiro, estavam dois dos homens do meu tio Sean, encostados aos seus bordões e observando-me enquanto eu me aproximava.

 

Enderecei-lhes o meu melhor sorriso.

 

Bom dia.

 

Bom dia, minha senhora. É melhor não vos afastardes mais sozinha.

 

- Eu não vou longe. Vou só até à margem do lago. Não me demoro.

 

Tendes de levar um ou dois homens convosco. Ordens de Lorde Sean.

 

Mas...

 

Lamento, minha senhora. Não podemos permitir. Não é seguro. Eram ambos altos e fortes e as suas expressões disseram-me que era

 

inútil discutir. O da esquerda parecia um pato, de boca larga e o cabelo puxado para trás. O outro parecia mais um sapo. Murmurei um encantamento e ergui a mão.

 

Eu vou com a jovem. O problema fica resolvido. E lá estava Conor, atrás de mim, no carreiro, onde um momento antes não havia ninguém.

 

Muito bem, meu senhor.

 

A presença de um arquidruida era, parecia, uma garantia de segurança. Os homens de armas afastaram-se e deixaram-nos passar. Caminhámos em silêncio pelo carreiro que seguia sob as árvores nuas. No chão, as folhas dos carvalhos, freixos, faias e vidoeiros tinham apodrecido, formando um manto húmido, do qual emergiam fungos estranhos e coisas rastejantes. Aconcheguei o xaile em redor dos ombros. Tu tens um propósito qualquer para te aventurares assim. Aquilo era mais uma declaração do que uma pergunta. E gostarias de ir sozinha. Mas, como vês, não é possível. Os dias em que as crianças de Sevenwaters podiam correr livremente pelos caminhos da floresta, sem medo, já lá vão. Muita coisa mudou, aqui. Acenei com a cabeça.

 

Eu não me intrometo, Fainne. O meu sobrinho faz bem em restringir os movimentos através da floresta. Há uma necessidade absoluta de secretismo até ao fim do Verão. Espero que compreendas isso. Até porque disse eu a floresta nem sempre é benigna, segundo me disseram. Aqui, os estranhos nunca estão seguros. Muirrin disse que ela protege os seus.

 

Seguiu-se um silêncio enquanto caminhávamos juntos sob as árvores.

 

É verdade disse Conor após uns momentos. Mas isso não te diz respeito. No fim de contas, tu és um dos nossos.

 

Retive uma resposta amarga. Pensas que engulo essa mentira, como o meu pai engoliu? No entanto disse eu sinceramente não estou acostumada a tantas árvores. Deixam-me pouco... à-vontade.

 

Nesse caso, um druida é a tua melhor companhia.

 

Não respondi e continuei em silêncio até que chegámos a uma clareira no meio de sorveiras-bravas de ramos nus, ainda, aqui e ali, com alguns frutos pendurados. No centro estava uma enorme pedra cheia de musgo. Havia uma tranquilidade especial naquele lugar. Os únicos sons eram os chamamentos ocasionais de um pássaro lá no alto e o rumorejar de um pequeno ribeiro invisível, que corria para o lago.

 

Este local serve perfeitamente disse Conor. Vou meditar aqui um pouco, porque também eu aprecio uma pausa nos afazeres do dia. Faz o que quiseres. Não há pressa. O druida sentou-se de pernas cruzadas em cima da rocha, o traje branco flutuando à sua volta, as costas tão direitas como as de uma criança e os olhos fechados.

 

Parecia não haver outro remédio senão sentar-me também, tão longe dele quanto o permitia a largura da rocha e fazer o mesmo. Sabia o suficiente acerca de magia, transes e poderes do Outro Mundo para perceber que uma pessoa não podia, simplesmente, ir em busca de manifestações e esperar encontrá-las à sua disposição. Era necessário, primeiro, acalmar os sentidos; concentrá-los num símbolo escolhido, ou numa litania familiar; para dar tempo. Mesmo então, era possível não conseguir o que se esperava. Ajudava estar no local certo e era muito mais fácil quando não havia distracções. As escarpas do Favo de Mel eram boas para isso; o rugido do oceano e os gritos das gaivotas transformavam-se numa espécie de paz solitária e sem tempo. A pequena gruta, na base das rochas, onde o mar, a terra e a luz filtrada se encontravam, tocavam e se misturavam delicadamente, era o melhor local de todos. Imaginei as suas sombras azuis-pálidas e o suave marulhar das ondas na areia. Naquele lugar, o meu coração descansava. Mas Kerry estava muito longe e na floresta de Sevenwaters não se podia ouvir a canção do mar. Ali, tinha de pensar na rocha; numa rocha tão maciça e antiga que devia fazer parte da própria terra, como se estivesse no colo da própria Dana. Concentrar-me-ia na rocha e esqueceria as árvores. Abrandar a respiração; senti-la na barriga, sentir o seu poder através do corpo. Para dentro, para fora. Pausa. Para dentro e para fora. Cada vez mais lentamente. Estou aqui. Estou nos braços da terra. Antigamente, sentava-me encostada às pedras, e tornava-me parte dos padrões eternos do Sol e da Lua. Agora sinto a força desta rocha e dos seus velhos desígnios por todo o meu corpo. Pulsando-me no sangue; batendo com o meu coração; agarrando-se à minha alma. Eu pertenço à terra e a terra está em mim.

 

O tempo passou, ou talvez não. Sem me mexer, sem abrir os olhos, senti que estava ali qualquer coisa. Flutuou e pousou, do tamanho de uma coruja e um pouco surrada, na superfície musgosa perto de mim. Fixou os seus estranhos olhos redondos em mim e pestanejou. Seguiu-se uma súbita mudança; não um raio, porque não houve luz. Não uma explosão, porque não houve som. Apenas uma espécie de movimento no ar, um ajustamento nas coisas. Em vez de uma coruja, era um pequeno ser humano mais ou menos do tamanho de Eilis. Mas não era uma criança. Não sabia dizer se era homem ou mulher, porque estava envolto numa volumosa capa de penas castanhas, cinzentas, pretas, amareladas e às riscas e usava um capuz do mesmo tom, de maneira que apenas o rosto era visível, redondo e com olhos de coruja, de nariz achatado e sobrancelhas espessas e por baixo da capa dois pequenos pés metidos em brilhantes botas vermelhas. Não precisava de me mover ou abrir os olhos. Os olhos do espírito viam tudo claramente.

 

Boa passagem, Filha do Fogo disse a aparição. Aprendeste com um druida?

 

Com o meu pai. Parecia-me falar sem emitir um único som.

 

Isso explica tudo. Uma grande perda para os sábios; ele fez algumas escolhas infelizes. Assim como a tua mãe. Pelo menos, foi o que pareceu na ocasião. Mas acabou tudo em bem. As coisas simplificaram-se. Acontece, por vezes.

 

Quem és tu? És um dos... és um dos que se chamam a si próprios Fair Folk?

 

O pequeno ser emitiu uma grande risada que acabou num pio. A lisonja não te leva a lado nenhum observou ele maliciosamente. Bons ou maus, para mim é a mesma coisa. Se me quiseres perguntar alguuma coisa, responder-te-ei. Devo-te um favor. Fiquei surpreendido. Por que me ajudaste? Não fazia parte de um plano qualquer, pois não? Não posso ter-te libertado apenas porque me pareceu a coisa mais certa a fazer? Perguntei algo ofendida. Um acto de pura caridade? Estás à espera de algum agradecimento? Caridade? Tu és a espécie de pessoas que atira fora um tesouro se vires que te atrapalha. A nós, parece-nos que te estás nas tintas para o que deixas para trás.

 

Que queres dizer com isso de deixar para trás? O que é isto, um interrogatório? Eu não vim aqui para isso.

 

Tu usas a tua arte inteligentemente; tens a técnica na ponta dos dedos. Mas usa-la imprudentemente. Não contas com os custos.

 

Que custos? Mas, na minha mente vi a imagem, nítida, de um bacalhau a contorcer-se no chão, lutando pela vida no ar frio e seco. Aquela imagem nunca desaparecera por completo. Limitara-me a pô-la de lado. E lembrei-me de Riona olhando para mim e naquela pequena e estranha voz, que não era uma voz, a dizer, é melhor limitares-te ao que tens. Pareceu-me ouvir, debilmente, o som da gaita-de-foles.

 

É melhor teres cuidado disse a pequena personagem encapuçada. Isso é uma ameaça? disse eu em tom de desafio. Outra risada que acabou num pio. Ameaça? Eu?

 

O que é, então? Que estás a tentar dizer-me?

 

Tens uma grande tarefa na tua frente. A maior de todas, Filha do Fogo. Não desperdices a arte. Não a uses em coisas insignificantes. Estiveste perto algumas vezes, não estiveste? Guarda as tuas forças para mais tarde. Vais precisar delas e de muitas mais ainda.

 

Pensei arduamente por uns momentos.

 

Que me estás a dizer? Não compreendo. Certamente, aquela pequena criatura não sabia qual era o meu objectivo. Provavelmente, era um truque para me fazer falar. Devia pensar que eu era uma simplória qualquer. É estranho, não é? disse a criatura acocorando-se na pedra a meu lado. Era quase impossível perceber o que havia por baixo da extravagante cobertura de penas. Os seus olhos mudaram; as pupilas escuras arredondaram-se e a sua orla amarela retraiu-se. Mesmo nos grandes planos dos Fair Folk, as coisas nem sempre resultam. Aquela rapariga, a Liadan, não entrava no esquema. Eles perceberam demasiado tarde a importância dela. Mas já não lhe puderam mudar a mente; ela seguiu o seu próprio caminho, abandonou-nos, deixou a floresta e nunca mais regressou senão para um acontecimento social qualquer. Levou a criança com ela e quase deu cabo de tudo. Mas a criança há-de regressar. Todos regressam. A floresta chama por eles. Basta olhar para ti. Tu regressaste. E agora, o que vais fazer?

 

Por que hei-de dizer-te? Não sei quem és. Por que hei-de eu dizer seja o que for?

 

Eu posso ajudar, Filha do Fogo.

 

Eu não preciso de ajuda. Não quero ajuda. Por que persistes em chamar-me isso?

 

Quando estás zangada emites faíscas. Isso não te diz nada?

 

Apenas que me descuidei. Não voltará a acontecer.

 

És teimosa, não és? Diz-me, se mudares de ideias.

 

Não mudo. Trabalho sozinha, tal como o meu pai.

 

Hum. Vê o que lhe aconteceu. Devia ter regressado para aqui, onde havia um lugar para ele, se queres saber. Foi um louco.

 

Não quero saber e não admito que o insultes. Ele é um homem bom, sábio, honrado e perito no que faz.

 

Estás a fazê-lo outra vez. Faíscas. És uma filha leal. Certifica-te de que isso não é a tua perda. É melhor fazeres as perguntas agora, se tens algumas para fazer. Está quase a chover.

 

Sem abrir os olhos, podia ver o céu por cima de nós, azul-pálido e sem qualquer nuvem.

 

Muito bem. Achei que era melhor aproveitar a oportunidade, quer as respostas tivesse algum valor, quer não. O que há nas ilhas? Qual é a sua importância para esta família e para os Fair Folk?

 

O mocho-homem pestanejou.

 

Pergunta ao druida.

 

Pergunto-te a ti.

 

Pede ao druida que te conte a história. Ele tem um fraco por ela. As Ilhas são o Último Lugar. É pena não teres o dom.

 

Que dom?

 

O dom de ver o futuro. Em breve, tudo acabará. No tempo da tua neta, ou da neta dela. As árvores. O lago. Não passará tudo de uma porção de campos áridos para as ovelhas pastarem e de uma poça de água com enguias raquíticas tentando respirar. Sem outro lugar para onde ir. Para a minha espécie, para a espécie delas ou até para a tua. Sem as Ilhas, é o nosso fim.

 

Pensava que as Ilhas não passavam de um amontoado de rochas no mar.

 

Se... se, como dizes, tudo se vai perder, como podem elas ajudar as pessoas a sobreviver? Certamente não se pode viver lá?

 

A pequena criatura deu um grande suspiro que fez estremecer todas as suas penas.

 

Já te disse. É o Último Lugar. O druida explica-te.

 

Não lhe quero perguntar nada.

 

Ele quer que lhe perguntes. Está à espera que lhe perguntes. Está à espera desde que o teu pai partiu de Sevenwaters e os sábios perderam o seu futuro líder. Mas tu sabes isso, não sabes?

 

Não o respondi. O ser com penas estava demasiado perto da verdade.

 

Mais alguma pergunta? A chuva vem aí. Queres saber o que a tua tia Liadan disse quando soube que a filha de Ciarán tinha aparecido em Sevenwaters? Queres saber o que o teu pai está a fazer, sozinho, em Kerry? Queres ouvir uma história sobre tocadores de gaita-de-foles e casamentos?

 

Chega! Como é que sabes tanta coisa? Pode ser tudo mentira, apenas para me confundir e afligir.

 

Afligir? Pensei que não eras capaz de um tal sentimento. Como é que sei tanto? Que espécie de pergunta é essa vinda de uma feiticeira ainda agora saída da casca? O teu pai não te ensinou a ver o futuro?

 

Hesitei.

 

Então?

 

Ensinou. Mas eu não sou muito boa.

 

O pequeno ser acenou com a cabeça.

 

Na tua família há alguns que têm um talento especial para isso disse ele. Precisas de um vidente.

 

E então aconteceu de novo, a ligeira mudança das coisas, um bater de asas e o silêncio.

 

Mergulhada em profundo transe, não me conseguia mexer ou abrir os olhos. Quando consegui normalizar a respiração, regressar à minha consciência normal, ao funcionamento normal do corpo e emergir para o tempo e lugar do agora e aqui, não havia uma única ave à vista. Apenas a clareira tranquila e o arquidruida esticando os braços acima da cabeça e pondo-se de pé com a agilidade de um homem com metade da sua idade. O dia estava límpido e o Sol brilhava, cintilando na água do lago na base da colina, entre os salgueiros.

 

Pronta? perguntou Conor calmamente. Acenei com a cabeça e começámos a caminhada de regresso a casa.

 

Aconteceu pouco depois. Tínhamo-nos afastado o suficiente para estarmos certos da solidão e da tranquilidade. Eu ia distraída, a minha mente repetindo aquela estranha conversa e tentando discernir o que fora real e o que fora produto da minha imaginação combinada com a minha natural falta de prática. Após um certo tempo, comecei a reparar que, se bem que estivesse certa de que estávamos a percorrer o mesmo caminho, estávamos a percorrer uma espécie diferente de terreno, onde não tínhamos estado antes; uma espécie de encosta íngreme, cheia de seixos. Ouvia-se um ribeiro perto. Começou a chover, pingos grossos, e depois um vento extremamente frio seguido de verdadeiras cortinas de água. Juraria que o Sol continuava a brilhar. Puxei o meu xaile por cima da cabeça numa vã tentativa para me manter seca.

 

Pára aqui, Fainne! gritou Conor no meio do dilúvio e, agarrando-me na mão, puxou-me para fora do carreiro estreito para o abrigo de umas rochas. Entrámos por uma abertura muito baixa numa enorme gruta com uma grande laje de pedra presa na parede acima do solo e uma pequena abertura redonda no tecto, que deixava entrar a luz. Algures, perto, ouvia-se água a correr.

 

O ribeiro disse Conor, obviamente. Um dos sete. A chuva engrossa-o. Estás muito molhada? Suponho que podemos acender uma fogueira.

 

Com quê? disse eu algo irritada e olhando para o interior vazio da gruta. No exterior, chovia torrencialmente. Havia uma coisa qualquer acerca de druidas e chuva.

 

Podemos improvisar disse ele com um pequeno sorriso. Entre os dois, somos capazes de conseguir alguma coisa.

 

Talvez. O meu tom era tudo menos amável. Não gostava de ser enganada. Não gostava de estar gelada, toda molhada e presa numa gruta com um arquidruida, fosse ele da minha família, ou não. Mas não é preciso. Isto deve passar. O dia parecia estar tão bom.

 

Parecia, não parecia? observou Conor. Mas preferia que não te constipasses. O meu tio tirou a capa que usava sobre o seu longo traje e colocou-ma por cima dos ombros. Senti-a suave, quente e totalmente seca. Assim é melhor.

 

Não me contive por mais tempo.

 

Se pretende deliberadamente irritar-me disse eu secamente está a conseguir.

 

Ele sorriu.

 

E tu estás deliberadamente a fugir a esta situação, porque não queres que eu saiba quanto sabes e, nesse caso, estás a fazer-me perder o meu tempo e o teu.

 

Olhei para ele com ar trocista.

 

Que quer dizer?

 

Não podias ter feito um feitiço de transporte, aparecendo à lareira em casa, a salvo?

 

De facto não, disse-lhe eu de mau humor. O meu pai disse que eu ainda não estava preparada para aprender isso. Conor acenou com a cabeça.

 

Sensato da parte dele. É muito fácil, se soubermos como, sair de casa sempre que as coisas ficam feias. Bem, talvez ainda não saibas esse feitiço. Mas há outros.

 

Quer dizer que eu podia transformá-lo numa rã, já que parece gostar tanto de tempo húmido?

 

Bem, sim. Podias tentar. Mas eu sou bastante mais velho do que tu e apesar de não utilizar truques de feiticeiro, não quer dizer que não os saiba fazer. Acho, apenas, que talvez tivesses alguma dificuldade. Terias de ser excepcionalmente rápida.

 

Olhei para a laje de pedra em que estávamos sentados. O barulho da chuva era medonho; a água entrava em cascata pela abertura acima de nós, rugia no lado de fora da estreita passagem pela qual passáramos. Abaixo de nós, no chão da gruta, a água corria pelas rochas e acumulava-se no centro. As paredes escorriam.

 

Eu queria que ele ficasse disse Conor suavemente. Apesar do barulho, ouvi-o distintamente. Pedi-lhe para ficar, mas ele não quis. Era muito novo e estava magoado. Mas não nos devia ter deixado. Nunca houve nenhum igual a ele; com tanta capacidade e inteligência. Não consigo perdoar a mim próprio. Faz parte do cargo, da tutela, fazer com que cada geração dê um filho, ou uma filha, aos sábios.

 

Houve, certamente, outros disse eu, tentando perceber como podia ele dizer mentiras descaradas e parecer tão convincente. Devia saber das restrições impostas aos da nossa espécie. Devia saber o que Ciarán era e como isso o agrilhoara. No entanto, falava como um pai que perdera o filho amado. E há as minhas primas: as filhas de Sean e os filhos da minha tia Liadan. Certamente que um deles...?

 

Os verdadeiramente capazes são difíceis de encontrar. Não é uma vocação que possamos escolher. A vocação é que nos escolhe. Em tempos, pensei que Liadan faria a escolha, ela ou o filho. Mas ela quebrou o padrão. Quanto a Johnny, poderia ser o que quisesse. Mas ela levou-o. Johnny é um guerreiro e um condutor de homens, apesar da idade. Liadan seguiu o seu próprio caminho. Os estranhos habitantes de Inis Eala e as pessoas da propriedade do marido dela, na Bretanha, vêem-na como sendo o coração das suas comunidades. E ela é uma curandeira muito capaz. Muirrin preenche esse papel em Sevenwaters. Mas não temos nenhum druida.

 

Fiquei silenciosa, vendo a poça no centro da gruta aumentar de tamanho e transbordar, enchendo em turbilhão os cantos da gruta. Não queria dar a entender que estava com medo.

 

Sabias disse Conor em tom de conversa que tinha quase vinte anos quando fui para a floresta? Tinha estudado, claro, e tinha começado a entrar no conhecimento e na disciplina. Mas entrei tarde. Com essa idade já Ciarán tinha quase completado a sua aprendizagem. Sentir-me-ia melhor se acreditasse que esse saber não se tinha perdido. A água parece estar a subir.

 

Acenei com a cabeça.

 

Quem foram os primeiros em Erin? perguntou ele suavemente.

 

Os Anciãos. Os Fomhóire. Gente das profundezas do oceano, dos poços e dos lençóis de água subterrâneos. Gente do mar e das profundezas da terra.

 

E depois deles?

 

Os Fir Bolg. Os caçadores.

 

Serias capaz de continuar?

 

Até o tio querer. Suponho que é uma maneira como outra qualquer de morrer: recitar o conhecimento enquanto me afogo lentamente.

 

Ele olhou para o chão da gruta. A água não escorria apenas pelas paredes abaixo, entrava também pela abertura da gruta, como se fosse um rio. Não poderíamos sair por ali. O nível aproximava-se rapidamente da nossa plataforma. O rugido, lá fora, continuava.

 

Realmente, sobe cada vez mais observou Conor.

 

Cerrei os dentes e tentei parecer totalmente despreocupada. Torturei o cérebro em busca de um feitiço apropriado, mas nada me ocorreu. O meu pai é que era bom com o tempo.

 

Não estás com medo, pois não? perguntou Conor, afastando-se ligeiramente da beira da plataforma. A água já nos chegava quase aos dedos dos pés. Ele não te criou em Kerry, num lugar qualquer onde as ondas são tão altas como os carvalhos? Tenho a certeza que foi o que a pequena Maeve me disse.

 

Bem, sim, eu estou habituada a olhar para a água, a cheirá-la e a ouvi-la, mas isso não quer dizer que queira estar dentro dela disse eu firmemente.

 

Não. Diria que o fogo é o teu elemento disse o druida calmamente. Parece que estou a ficar com os pés molhados. Vamos tentar escapar? Ele ergueu-se, olhando para a pequena abertura no tecto da gruta, por cima de nós. Talvez conseguisse, pensei, fugir por ali. Talvez. Se conseguisse subir até lá. A água já me chegava aos tornozelos e continuava a subir.

 

O que achas? perguntou Conor e nesse preciso momento uma cascata de água entrou pela abertura por cima da sua cabeça, uma súbita queda de água que continuou implacavelmente, fazendo com que fosse impossível ouvir e ver fosse o que fosse. O nível subia de modo alarmante e já me chegava à cintura; senti o vestido a puxar-me para baixo. O meu coração batia como um tambor e, mesmo que quisesse transformar-me num peixe, ou numa rã e salvar-me, o terror impedia-me.

 

Conor gritava-me ao ouvido.

 

Anda! Eu ajudo-te! Respira fundo e sobe!

 

O quê? Subir por ali com água no nariz, nos olhos e nos ouvidos, sem saber o que havia do outro lado? Aquele pensamento paralisou-me.

 

Rápido! gritou Conor e agarrou-me no braço, ao mesmo tempo que o meu pé escorregava na plataforma, sob a água e eu quase desaparecia sob a superfície. Depressa, enquanto somos capazes de ver onde está a saída.

 

Eu... eu...

 

És filha de Ciarán, ou não? disse ele e, rodeando-me a cintura com os braços, ergueu-me na direcção do círculo de luz através do qual a água caía em catadupas. Prendi a respiração, lembrando-me de encher o peito lentamente de ar, estendi os braços e ergui-me com todas as minhas forças contra o peso da água que descia. Agarrei-me às rochas escorregadias e tentei agarrar uma raiz, um ramo, qualquer coisa, ao mesmo tempo que prendia a respiração até o peito me parecer estoirar, amaldiçoava o vestido comprido, dava pontapés com as botas, encontrava uma pequena saliência nas rochas, fazia força para cima e... por fim, encontrei ar. Agarrei-me às raízes expostas de um salgueiro, arfando e tossindo e subi para as rochas por onde a água corria e corria, precipitando-se pela estreita abertura para a gruta.

 

Conor! gritei, inclinando-me e espreitando para a escuridão por baixo da torrente. Conor! Não ouvi qualquer resposta. Olhei em volta, desesperada, pensando numa corda, numa escada e até numa lanterna, se a conseguisse acender. Luz. Fogo. Pelo menos, então, ele conseguiria ver a saída. Estalei os dedos, murmurando. Um estalo, um silvo e uma pequena nuvem de vapor. Oh, anda lá disse eu e voltei a tentar. Surgiu uma chama, que ficou suspensa no ar por cima do buraco negro nas rochas. Despacha-te, Fainne, pensei, sinistramente. O homem tem idade para ser teu avô e salvou-te. Olhei de novo em volta, mesmo a tempo de agarrar num robusto ramo de freixo que passava levado pela água. Agarrei-me às raízes da árvore com uma mão enquanto a água passava por mim em turbilhão e estendi o ramo para baixo. A gruta já devia estar totalmente inundada. Quanto tempo conseguiria um ancião reter a respiração? Movi o ramo em círculos, os meus dedos segurando-o com força contra a força da água. Nunca tinha visto chover daquela maneira, Maldita floresta. As palavras vinham-me à mente. Achamos que não queres saber das baixas que deixas para trás. Malditos Fair Folk e amigos com cabeça de mocho. Que sabiam eles? Estendi de novo o ramo, procurando algo, uma coisa qualquer. Onde estava ele? A chuva corria-me pelo rosto, lavando-o, levando tudo na frente. Chorar era aquilo?

 

Senti um puxão no ramo. Larguei as raízes da árvore e segurei-o com ambas as mãos, entrelaçando os pés nas raízes para não ser arrastada. Por cima da minha cabeça, o clarão da chama mantinha-se, iluminando a subida. Puxei com quantas forças tinha, sentindo a dor do esforço espalhar-se pelas costas. Vamos, velhote, vamos. Falta pouco. Falta pouco.

 

Uma mão longa e pálida apareceu agarrando o ramo e depois outra, emergindo através da cascata para se agarrarem às raízes lamacentas a meu lado. Inclinei-me, agarrei-lhe o braço e puxei de novo com toda a força. A sua cabeça emergiu da água, as pequenas tranças coladas às faces, a boca aberta em busca de ar, como um peixe. Apesar disso, o seu ar continuava digno.

 

Graças a Manannan gaguejou ele não quero repetir de novo esta experiência. Dá-me a tua mão, Fainne. Já não sou tão ágil como era... ah, pronto. Por tudo o que é sagrado. E perdi o meu bordão.

 

Vamos disse eu levantando-me com alguma dificuldade no solo traiçoeiro. Deixe-me ajudá-lo. É melhor sairmos destas rochas e irmos para terreno seco, se conseguirmos encontrar algum.

 

Muito sensato, Fainne disse ele tossindo ruidosamente enquanto olhava para o círculo de luz que pairava sobre o buraco no solo. A água continuava a entrar no buraco e ouvíamo-la sair na base da colina.

 

Murmurei uma palavra e a chama morreu.

 

Vamos disse eu de novo e continuámos cambaleando, de braço dado por uma questão de segurança, por cima das rochas e ao longo dos restos do carreiro na encosta, agora desmoronando-se, até que encontrámos um amontoado de pinheiros de copa frondosa e um espaço à sua sombra, atapetado de agulhas e abençoadamente seco. Sentámo-nos no solo, lado-a-lado, respirando com dificuldade.

 

Ele vai voltar observei.

 

O quê?

 

O bordão. Não precisa de se preocupar. Eles voltam sempre. Foi o que o meu pai me disse.

 

Disse? Eu nunca o tinha perdido. Mas há histórias. Talvez sejam verdadeiras e talvez não.

 

Por que é que fez isso? Por que pensou fazer tal coisa? Dizem-me que não se deve usar a arte insensatamente e quase morreu por causa disso. E é um arquidruida. Porquê?

 

Fiz o quê, Fainne?

 

Aquilo. A chuva e... tudo o mais. Na sua idade devia ter mais juízo.

 

Por que pensas que fui eu que o fiz?

 

Olhei para ele de lado enquanto tirava o xaile dos ombros e o torcia.

 

A tinta não saíra. As suas cores vivas e o padrão, delicado e belo, continuavam intactos.

 

O meu pai sempre disse que você era bom com o tempo.

 

Hum. Agora que recuperara o fôlego, Conor parecia de novo ele próprio; como se nada tivesse acontecido.

 

O meu pai também é bom com o tempo disse eu cautelosamente. Em tempos dominou os ventos e as vagas da enseada. As pessoas de lá acham que ele é um herói.

 

Acredito que seja verdade disse Conor baixinho. Um herói comete erros e torna-se forte. Mas ele seria a última pessoa a admiti-lo.

 

Escuta. A chuva parou. Vamos para casa?

 

Pusemo-nos a caminho. As minhas botas estavam cheias de água e o meu vestido parecia chumbo. Algures, na água, perdera a capa de Conor e só tinha o meu xaile encharcado para me proteger do frio. A chuva transformou-se em pequenas gotas e parou, totalmente. O vento abrandou. Na margem, onde o carreiro emergia das árvores, jazia um grande bordão de vidoeiro trazido pela água, a sua lisa e pálida superfície gravada com símbolos minúsculos.

 

Tinhas razão disse Conor, dobrando-se para o apanhar. Pareceu-me que o bordão se elevou para se aninhar na sua mão, como que regressando a casa. Espantosamente, enquanto percorríamos os últimos metros de carreiro entre a floresta e os campos em redor, senti a minha roupa a secar, os cabelos leves e secos e as botas mais uma vez à prova de água e confortáveis. Quanto a Conor, poder-se-ia dizer que tinha ido dar, apenas, um passeio.

 

Pensei no que tinha acontecido. Juntei as peças todas, tentando perceber o que acontecera; olhando para além do físico e do imediato em busca do menos óbvio, tal como o meu pai me ensinara. A escuridão da gruta no subsolo. A subida através da água, a saída pela estreita abertura para a luz e o ar. O fogo que eu fizera. A mão estendida em sinal de amizade e companheirismo. E o estranho sentimento de paz que sentia agora contra toda a lógica. Parei de andar.

 

Que se passa, Fainne? perguntou Conor suavemente sem olhar para mim.

 

Não sabia bem como formular a pergunta.

 

Acho que não é capaz de o fazer disse eu olhando para ele de sobrolho franzido. Tentar iniciar-me, suponho que foi isso, sem o devido consentimento. Creio que não resulta se o aprendiz não tiver sido devidamente preparado e não estiver pronto para colaborar de livre vontade. Além disso... Parei. Não me cabia a mim lembrar-lhe que o descendente de uma linhagem de feiticeiros nunca se podia tornar um druida. Isso já ele devia saber.

 

Além disso o quê, Fainne? Ele sorria; só Dana sabia o que aquele velho manhoso estava a pensar.

 

Nada. Raspei a terra com a minha bota, sentindo a raiva a subir.

- Apenas... que devia saber que isso não funciona comigo. Sabe muito bem de quem sou filha. Eu não posso... não posso fazer parte disto. Da floresta, da família, da... da irmandade. Tem obrigação de saber isso.

 

Conor recomeçou a andar firme e calmamente nas suas velhas sandálias de cabedal.

 

Eu não planeei isto disse ele. Suponho que não acreditas em mim, mas, no entanto, é verdade. Talvez tivesse sido, como dizes, um teste; se o foi, creio que o passaste. Um teste levado a cabo por outros e não por mim. Pode ser que leve algum tempo até o seu significado se tornar claro para nós. Podes utilizá-lo como base de meditação e consideração, Fainne. Aprende-se sempre qualquer coisa com uma experiência como esta.

 

O quê? disse eu abruptamente. Não era justo; parecia mesmo o meu pai. Que um druida pode afogar-se com a mesma facilidade de um homem?

 

Já devias saber que não me podes perguntar isso. És a única que podes descobrir, por ti própria, a lição contida nesta experiência. Talvez tenha a ver com quem sou e o que sou. Podemos passar uma vida inteira em busca de respostas para tais perguntas. Claro que tens razão. A experiência continha todos os indícios da entrada de um druida para a irmandade; damos aos da nossa espécie um novo nascimento, uma nova entrada na luz, vindos do corpo da nossa mãe terra. Pergunta a ti própria por que razão te foi concedida uma tal experiência.

 

Um erro, certamente. Talvez eles, sejam eles quem forem, me tenham confundido com outra pessoa.

 

Conor riu trocistamente.

 

Duvido muito. Tu és filha do teu pai. Agora, quero pedir-te uma coisa, Fainne. Um favor. Gostaria que me ajudasses.

 

Chegáramos ao carreiro perto da aldeia.

 

Se for alguma coisa a ver com água, a resposta é não. Ele sorriu.

 

Gostaria que me ajudasses na celebração de Sambain. Suponho que te ensinaram o ritual?

 

Sim, mas... deve compreender que o meu pai e eu não somos druidas. O que aconteceu hoje não altera nada.

 

Conor olhou para mim com ar sério.

 

Duvidas de ti própria. Mas isto, podias fazê-lo com facilidade. Isto e muito mais, creio eu.

 

Eu... eu não sei gaguejei, achando tudo demasiado fácil, pois senti um repentino desejo de confessar tudo àquele ancião tranquilo; contar-lhe a razão da minha presença, o que a minha avó fizera e o meu medo pelo meu pai. Tu também o amaste. Ajuda-me. Mas não consegui dizê-lo.

 

Pensa nisso, Fainne. Terás de optar enquanto aqui estiveres.

 

Opções difíceis, talvez mais do que imaginas.

 

Se soubesses no que estou apensar, tremerias de medo.

 

Vou pensar nisso disse eu.

 

Conor acenou com a cabeça e subimos até casa em silêncio. Quando cheguei ao meu quarto, tirei o xaile, que estava completamente seco e guardei-o na arca. Hesitei um instante antes de tirar Riona e colocá-la de novo à janela. Então, acendi o lume, que ficou com uma cor quente e rosada e sentei-me diante dele. Fora um dia muito estranho. De certo modo, conseguira o que me propusera fazer. Confrontara-me com a floresta e sobrevivera à experiência. Ouvira uma voz do Outro Mundo, talvez não aquela que esperava, mas, de qualquer modo, uma voz. Mas não aprendera nada. A mensagem que a criatura com aspecto de mocho me dera não fora nenhuma mensagem. As palavras não tinham sentido. Não fizera a Conor as perguntas que desejava ver respondidas. No entanto, sentia um calor dentro de mim, como se, finalmente, tivesse acertado em qualquer coisa. Não fazia sentido. Malditos druidas. Eram demasiado confusos. Mochos que falavam, roupa que secava num ápice, bonecas que nos seguiam com os olhos e nos falavam através da mente. Dei um enorme bocejo, seguido de outro, enrosquei-me em frente da lareira e adormeci.

 

Discretamente, sem ruído, como se fossem sombras sob o céu de Inverno, os druidas chegaram a Sevenwaters. Não eram muitos: um velho de barbas cinzentas, uns poucos muito mais novos, homens e mulheres de cabelos entrançados e rostos pálidos e calmos. Impenetráveis, como o seu chefe. Ficaram albergados num anexo próximo das cavalariças, preferindo ficar do lado de fora das paredes de pedra da fortaleza e mais perto da floresta. Aguardaram.

 

Samhaim é o mais sombrio e secreto de todos os grandes festivais. Em Kerry, o meu pai e eu celebrávamos o nosso próprio ritual, apenas os dois e, por sermos o que éramos, a sua forma fora subtilmente alterada. Não como as pessoas pensavam. Podemos ser feiticeiros, mas não somos adoradores do mal. Não somos necromantes nem praticantes de magia negra. Reconhecemos as antigas divindades. Saudamos os elementos, o Fogo, o Ar, a Agua e a Terra. Do quinto, que é a pura essência do espírito, não nos conseguimos aproximar. Veneramos a passagem do ano e os seus pontos de viragem. Mas usamos a arte para os nossos próprios fins.

 

Não aderimos à maneira druida. No entanto, o que fazemos é, sob muitos aspectos, muito parecido. Compreendia a cerimónia e qual seria o meu papel nela. Conor mostrara-se perspicaz, era forçada a admiti-lo. Conhecera o meu pai suficientemente bem para ter a certeza que eu tinha compreendido o conhecimento e o seu significado. Tinha razão; se se olhasse apenas para a educação, eu tinha capacidade suficiente para ser druida. Além disso, que outras perspectivas tinha? Não tinha grandes probabilidades de caçar um homem rico ou influente para marido, quer se soubesse, ou não, a verdade acerca da minha família. Ou era a filha bastarda de um acasalamento proibido ou, pior ainda, uma desconhecida, uma rapariga cuja paternidade não era reconhecida. Talvez circulasse a história de que eu era filha de um druida, mas quem poderia saber ao certo? Poderia ser filha de um leproso, de um ladrão mesquinho, de uma criatura qualquer do Outro Mundo, ou talvez de um gnomo. Que chefe de guerra, consciente da sua linhagem, pensaria, sequer, em olhar para mim?

 

Naquela noite foi-me extremamente difícil recordar por que razão estava em Sevenwaters. Como já disse, a celebração do Sambaim é secreta. Os druidas tinham saído da floresta apenas porque sabiam que seria a última vez antes da batalha final. O festival marcava o começo de um novo ano, o ano em que os Bretões seriam escorraçados das Ilhas e o equilíbrio, finalmente, restabelecido. Talvez, comentara Conor, o próximo Sambain fosse celebrado como anteriormente sob as sobreiras-bravas sagradas que coroavam a Needle, lá longe, no mar oriental. Se conseguisse testemunhá-lo, partiria feliz desta vida, dissera ele. As suas palavras fizeram-se sentir um arrepio na espinha, mas não disse nada.

 

O ritual seria, também, celebrado no coração da floresta, onde os druidas levavam a sua existência solitária, protegidos por aqueles outros habitantes de vozes estranhas e manifestações meio vislumbradas. No coração da floresta ficaram uns tantos iguais de Conor para cumprir esse propósito. Os que tinham aparecido em Sevenwaters celebrariam uma cerimónia para a qual tinham sido convidados os membros mais velhos da família e, mais tarde, esses outros apareceriam para saudar toda a família e partilhar com ela o ritual de Sambain. Deste modo, todos seriam incluídos. Mas as palavras sagradas e a maneira de as dizer só seriam testemunhadas por um círculo restrito e eu não as posso mencionar aqui. As raparigas mais novas eram excluídas, sabendo-se a sua total incapacidade para ficarem quietas por mais de uns momentos. Achei que era uma decisão sensata.

 

Sambain é um tempo perigoso. Durante os três dias que marcam a viragem do ano e a sua descida para a escuridão, as barreiras são afastadas e as diferenças entre os mundos tornam-se menos definidas. Deixa de haver dificuldade em ver as manifestações do outro mundo, pois as suas sombras aproximam-se nesta época de caos. As coisas não parecem ser o que são. À luz da fogueira de Sambain pode-se olhar para a pessoa ao lado e, repentinamente, ver o rosto de um amigo há muito falecido. Pode-se acordar de manhã e encontrar as coisas fora do sítio. O gado vagueia, mesmo quando vedado. Podem ser vistas luzes estranhas na escuridão da noite e ouvirem-se pequenos trechos de música antiga. Se se quisesse tentar ver o futuro, seria a altura ideal para o fazer. Certamente ver-se-ia algo. E então, desejar-se-ia ter deixado tudo como estava.

 

Havia uma parte do ritual para o druida mais jovem e essa parte foi preenchida por mim. Não era proferir as palavras com significado e sentimento. A voz de Conor tinha um poder solene que parecia entrar directamente no espírito. Eu concordara em ajudá-lo. Decidi que se quisesse cumprir a vontade da minha avó, teria de ganhar a confiança daquele homem; teria de encontrar um lugar naquela casa. Disse a mim própria que estava apenas a representar um papel; que pouco significado tinha para mim. Mas, à medida que a cerimónia se desenrolava na câmara iluminada por velas que fora destinada para aquele propósito, tornou-se impossível ignorar a presença de outros seres invisíveis entre nós, algures nos cantos sombrios, ou nas chamas do fogo ritual. Parte desse ritual

 

é a repetição solene de nomes; os nomes dos que partiram desta vida e seguiram o seu caminho; os dos que pudessem, naquela noite, ouvir as nossas palavras, pois no festival de Sambain os seus espíritos estavam tão próximos que quase os sentíamos. De certo modo, aquilo tocava-me mais profundamente do que qualquer outra coisa que se tivesse passado anteriormente e, contra mim própria, por um momento, esqueci que não pertencia e nunca pertenceria ali. Esqueci a minha avó. Estávamos juntos, como uma família, os vivos de mãos dadas em círculo e os outros entre nós e à nossa volta.

 

Eram muitos; tantos, mesmo os que tinham partido. Tanta saudade. Mantinham-se perto, as almas de Sevenwaters, ligando e fortalecendo os laços daquela família.

 

Meus irmãos disse Conor calmamente. Diarmid, sempre audaz e obstinado. Cormack, irmão gémeo e camarada, leal e verdadeiro. Liam, em tempos senhor desta casa. Deixastes o vosso legado no grande homem que é o vosso sobrinho, mais um igual a vós.

 

Sorcha, filha da floresta disse Sean. Curandeira sem igual e de grande espírito. lubdan, homem da terra, forte e sábio. A minha mão está na vossa, vós guiais os meus passos.

 

Eilies, minha mãe disse Aisling. Deste a vida para que eu nascesse. Nunca te conheci, mas amo-te e venero-te.

 

Então, olharam para mim e as palavras saíram-me sem pensar.

 

Niamh murmurei. Dançaste durante Imbolc e brilhaste. És a minha mãe e filha de Sevenwaters. Continuas connosco, assim como todos aqueles que partiram.

 

E também os filhos desta casa, meus irmãos, que pouco viveram neste mundo acrescentou Muirrin, pegando na mão da sua mãe. Os pequenos Liam e Seamus; brilhantes como cintilantes estrelas no firmamento; belos como gotas de orvalho sobre o espinheiro-alvar; vivos como chamas ardentes nas nossas mentes e corações.

 

Esta noite estamos convosco e tocamo-nos.

 

Através das sombras, sentimos a vossa presença a nosso lado disse Conor erguendo as mãos pois nesta noite não há qualquer barreira entre nós. Partilhai a nossa festa; sede bem-vindos e andai entre nós.

 

Conor continuou o ritual. À vez, o sal, o pão, o vinho e o mel foram partilhados entre os presentes e a dose dos espíritos foi atirada para as chamas. Movi-me em redor do círculo, desempenhando o meu papel de druida. Constatei que as terríveis perdas daquela família era as minhas próprias perdas e suas as minhas. Sabia que os mortos ainda estavam entre nós. O seu legado estava nos feitos e escolhas dos que viviam. Estaria a minha mãe a olhar através do véu que dividia este mundo do outro e sorriria com o que via? Que caminho quereria ela que eu seguisse?

 

O círculo desfez-se e o ritual terminou.

 

Vem disse Conor. A boa gente desta casa aguarda a nossa presença. Festejemos juntos e preparemo-nos para o tempo da escuridão.

 

Dirigimo-nos para o grande salão onde estavam reunidas as pessoas da casa e da aldeia. Era uma grande reunião. O número de habitantes de Sevenwaters aumentara com a chegada de muitos guerreiros e de outros que tinham um papel a desempenhar nos preparativos para a guerra. Ferreiros, armeiros, homens especializados em cavalos e homens especializados em mantimentos e na deslocação rápida e silenciosa de muita gente.

 

A tia de Dan Walker estava presente. Olhava para mim com os seus olhos escuros e penetrantes.

 

Colocaram-se bancos, deixando alguns vagos para quaisquer visitantes do Outro Mundo que quisessem reunir-se a nós. As portas estavam escancaradas, pois naquela noite nenhuma entrada era proibida ou recusada. As lareiras estavam apagadas. No exterior, na clareira entre a fortaleza e os estábulos, ardia uma grande fogueira, lançando faúlhas para o ar. A Lua estava cheia e pequenas nuvens moviam-se através da sua superfície pálida e brilhante.

 

Morrigan observa-nos por trás do seu véu disse Conor. Vem comigo, Fainne. Espevitemos a fogueira e caminhemos na direcção do novo ano.

 

Conor acendera a fogueira umas horas antes usando as mãos e um feitiço e outros tinham-na mantido acesa com meios mais terrenos, tais como ramos de freixo bem secos. O druida pegou num archote, aproximou-o das chamas e este acendeu-se, ardendo com um brilho dourado na noite.

 

Este é o fogo do novo ano. A sua voz era forte e clara e os seus olhos estavam cheios de uma esperança serena. Este é o ano do ajuste de contas. Contamos os dias de escuridão e preparamo-nos com cuidado. Preparamo-nos para o tempo do Sol e da alegria e para o dia da vitória. Juro ao povo da floresta, de ambos os lados do mundo, que antes do próximo Sambain as Ilhas serão reconquistadas. O filho da profecia liderar-nos-á e nós cumpriremos a nossa missão sagrada. Juro. Então, Conor colocou o archote na minha mão. Sabes o que deves fazer? perguntou ele suavemente. Acenei com a cabeça. Tinha a estranha sensação de que já fizera aquilo antes; era como se uma cena do passado estivesse a ser repetida, mas com diferenças subtis. Os meus pés moveram-se sem eu querer. Levei o archote a arder para o grande salão e, perante a assembleia presente, aproximei-o dos troncos já colocados na grande lareira. Estes pegaram fogo e arderam. Depois, andei pela casa, tendo o cuidado de me afastar das tapeçarias, até ter aceso todas as lareiras, mesmo a do meu quarto. Pelo canto do olho pareceu-me ver um pequeno sorriso na boca bordada de Riona, mas, quando me virei, ela estava a olhar solenemente para o exterior.

 

O meu dever terminado, regressei ao salão. Subitamente, percebi que não temia nem a multidão que ali se encontrava, nem as suas conversas, nem o seu esplendor. Havia vinho e pão de aveia, algumas carnes frias e um pouco de queijo macio, feito de leite de ovelha. Mas pouco, porque não haveria mais leite fresco até à chegada da Primavera e a maior parte da nossa manteiga e queijo estava guardada nas caves. O excesso de gado tinha sido abatido e as últimas colheitas armazenadas. A criação, os melhores rebanhos e manadas estavam confinados em redis e estábulos, ou nos campos murados próximos da aldeia. O pouco cereal que ainda se encontrava no campo seria deixado para os espíritos. Chegara a ocasião de trocar a luz do Sol pelo calor da lareira; os trabalhos da herdade, da floresta e da guerra pela atmosfera aconchegada do lar e da família e planear o que viria a seguir.

 

Não era exactamente uma celebração. As pessoas conversavam entre si, em voz baixa. Até as minhas primas estavam mais caladas do que habitualmente. Já passava da sua hora de irem para a cama e Eilis estava sentada ao colo da minha tia Aisling, de polegar na boca como um bebé. Maeve, que me seguira pela casa passo a passo, de olhos esbugalhados de admiração, sentou-se perto da lareira, encostando-se sonolentamente ao seu grande cão. Sibeal estava ao lado da velha Janis, que parecia contar-lhe uma história. As raparigas mais velhas moviam-se atarefadas, certificando-se de que as taças e as travessas estavam sempre cheias.

 

Portaste-te muito bem esta noite, Fainne disse Muirrin, aproximando-se com uma garrafa de vinho para me encher de novo a taça. Como se tivesses sido predestinada. Foi uma grande honra teres participado na cerimónia. Foi uma honra ainda maior teres acendido as lareiras. Nunca vi Conor confiar essa missão a outro que não um druida.

 

A sério? disse eu, e bebi um pouco de vinho.

 

Ele dá-te valor, Fainne. Não subestimes isso. De todos os irmãos-cisnes, Conor é o único que continua na floresta. Mantém viva a memória dos velhos tempos. Não permite que esqueçamos quem somos e o que temos pela frente. E não tenho dúvida de que tem um papel para ti nisto tudo.

 

Talvez disse eu. Muirrin, tu disseste-me que os teus pais tiveram filhas e que a tia Liadan tinha filhos. Mas...

 

Ela teve um meio sorriso.

 

Houve dois irmãos gémeos. Entre Maeve e Sibeal. Viveram menos de um dia. Eu tinha mais ou menos sete anos quando eles nasceram. Peguei neles ao colo por alguns instantes. Tinham umas mãos tão pequeninas.

 

Lamento. Não devia ter falado no assunto. Disseste que o teu pai se sentia feliz por Johnny herdar. Mas não sabia que tinham tido filhos e que os tinham perdido.

 

O desgosto deles foi terrível. Mas o meu pai conseguiu ultrapassá-lo. É um homem muito forte. Ama e respeita Johnny. Com a minha mãe é um pouco diferente. Muirrin hesitou.

 

Não gosta que um sobrinho seja o herdeiro? perguntei.

 

Ela nunca o admitiria. É uma boa esposa, devotada ao meu pai e dedicada à administração da casa. Nunca o diria em voz alta, mas acha que falhou por não lhe ter dado um filho saudável. E há uma certa... reserva, se assim se pode dizer. Ela gosta de Johnny. Não poderia ser de outra maneira. Ele há-de ser o chefe ideal de Sevenwaters. Mas tem algumas dúvidas.

 

Dúvidas? perguntei-lhe enquanto nos sentávamos num banco a um canto. Por que razão há-de ter dúvidas se toda a gente acredita que Johnny é a pessoa ideal?

 

Ela fez uma careta.

 

Ele é perfeito. Tenho a certeza de que concordarás comigo quando o conheceres. Os sentimentos da minha mãe têm mais a ver com o seu parentesco. Ele é nosso primo, claro, mas...

 

A tia Aisling tem dúvidas quanto ao pai de Johnny?

 

Ela não se opõe. Não diria isso. A minha mãe submete-se às decisões do meu pai. Só que... há sentimentos duvidosos entre o meu tio Eamonn e o Chefe. Ninguém sabe o que é, ou o que aconteceu entre ambos. Eu acho que a minha mãe acredita que o seu irmão nunca aprovará que Johnny seja o futuro senhor destas terras. Isso deixa-a pouco segura em relação ao futuro. O Chefe nunca mais cá veio desde que a tia Liadan se foi embora. Quando precisa de ver o meu pai, encontram-se noutro lugar qualquer; num lugar sempre diferente. Eu própria só o vi uma vez. E o tio Eamonn faz os possíveis por estar bem longe quando Liadan está cá. É como se tivessem de estar afastados uns dos outros para haver paz.

 

Que estranho. Há quanto tempo é que isso dura?

 

Desde que o Johnny nasceu. Há quase dezoito anos.

 

Estou a ver disse eu, se bem que não muito bem. Havia ali muitos segredos; segredos interessantes. Lamento, Muirrin. Acerca dos teus irmãos. Era a pura das verdades. Vira o ar de desolação nas feições pequenas e sardentas da minha tia Aisling quando os seus nomes tinham sido pronunciados.

 

Obrigada, Fainne. Tu és uma óptima rapariga. Sinto-me feliz por teres vindo para cá. É óptimo ter irmãs, mas é maravilhoso ter uma amiga com quem falar. Com o tempo, a minha mãe há-de concordar com os planos do meu pai para Sevenwaters. Primeiro, temos de ganhar a batalha. Depois, trataremos do futuro. O seu rosto estava iluminado de esperança e propósito.

 

Desculpa disse eu. De repente, senti-me muito cansada. Achas que o tio Sean se importa se eu me for deitar?

 

Oh, Fainne, coitadinha! Desculpa, esqueci-me que trabalhaste arduamente, ajudando Conor e transportando aquele grande archote... vai, vai-te deitar. Eu digo-lhes que estás muito cansada.

 

Escapei-me para o meu quarto, fechei a porta, desfiz o Encantamento e troquei o vestido por uma simples camisa de noite. Retirei Riona da janela e sentei-me à lareira com ela a meu lado. Os meus dedos tocaram a superfície gravada do amuleto em redor do meu pescoço, percorrendo as minúsculas inscrições. Se bem que a lareira estivesse bem acesa, o quarto estava frio: mais frio do que a madrugada gelada; mais frio do que o toque da espuma das ondas a meio do Inverno; mas não tão frio como o frio que me enchia o espírito e que não desaparecia. Era a garra gelada da incerteza. Peguei no atiçador para dar mais calor à lareira. Aproximei o ferro das brasas e de imediato o quarto ficou iluminado com uma luz alaranjada, enchendo-me o nariz e a boca com um fumo sufocante. O ar parecia estralejar e assobiar à minha volta e o meu coração bateu, assustado. As chamas esmoreceram de novo, ficaram arroxeadas, escuras como amoras e, no fundo, surgiu o rosto enrugado da minha avó, coroado por labaredas, os olhos penetrantes fixando-me e, no estralejar da madeira que ardia, ouvi a sua voz trocista.

 

Devias ter vergonha, Fainne. Esqueceste o sofrimento do teu pai? Perdeste o sentido de disciplina tão rapidamente que brincas aos druidas, esquecendo o teu propósito?

 

Fiquei incapaz de falar. O meu coração batia como um tambor e a minha pele estava suada e pegajosa. Sabia que ela me procuraria. Sabia que viria, mais cedo ou mais tarde. Mas não já. Não assim.

 

Eu... eu... gaguejei, lutando para me controlar. Eu não me esqueci, juro, não me...

 

Oh, Fainne. Tão fraca. Tão facilmente ludibriada. Por que salvaste o druida da inundação? Por que não deixaste afogar-se no escuro o causador da desgraça do teu pai? Sim, eu vi tudo. Não és tão forte como pensavas.

 

Conor faz o seu jogo. Os meus dentes batiam uns nos outros. Que ela não me mostrasse a imagem do meu pai. Isso nunca. Eu sei o que ele quer; hei-de trocar-lhe as voltas. Ele é um homem velho.

 

Ele é um druida. Não me convences, Fainne. Tenho de ir aí em corpo e espírito para te espevitar? Esqueceste a razão por que estás aí, pequena?

 

N... não, avó.

 

Então, por que perdes tempo a sonhar à lareira?

 

P... porque foi necessário ganhar a confiança desta gente gaguejei. Aquilo não era nada bom, tinha de me controlar rapidamente. Os olhos dela pareciam facas, pareciam penetrar no fundo da minha alma, procurando todos os meus pequenos segredos. Parecer amiga deles; desempenhar o papel de familiar. A minha mãe... parei. Naquela noite, parecera-me que Niamh me observava através do véu das sombras.

 

A tua mãe teria vergonha de ti. A voz da minha avó era fria e dura como uma pedra. Ela despreza essa gente pelo que lhe fizeram, a ela e a Ciarán. Estás a perder a vontade, Fainne. E sabes porquê?

 

Que quer dizer?

 

Essa gente é manhosa. Parece que te aceita, mas não é verdade. Conor adormece-te, fazendo com que quase acredites na mesma mentira que pregou ao teu pai. Começas a pensar que, afinal de contas, talvez consigas. Talvez possas atingir a Luz; seguir o caminho dos sábios até te transformares no que ele é. Ah! Olha para ti, Fainne. Olha para ti sem a roupagem do Encantamento. Tu és um ser à parte; não pertences a essa gente. Tu transportas o meu legado, o sangue dos banidos e Conor sabe isso muito bem. Ele está, apenas, a brincar contigo. Até o teu pai te usa para os seus fins. É assim connosco. Não há amor. Não há Luz. Não há aceitação. Apenas confusão e escuridão. Ao menos, tenta ter algum objectivo.

 

A avó diz que não há amor, mas eu amo o meu pai e ele ama-me.

 

Isso deve valer alguma coisa.

 

Isso é um disparate sentimental. Ciarán achava que amava a tua mãe.

 

Foi o seu maior erro. Se ele te amasse, nunca te teria mandado para aí. O teu pai sabe, e eu sei, que nunca serás outra coisa senão o que és. Presta atenção. Olha para o fogo.

 

Estou a olhar.

 

’’ Olha de novo.

 

Obedeci e as chamas modificaram-se, encaracolando-se, espalhando-se e mostrando-me, mesmo no centro, uma imagem pequena e nítida: o meu pai, dobrado, tossindo como se o seu peito fosse rebentar e o sangue, vermelho-vivo, escorrendo-lhe por entre os dedos que mantinha encostados à boca. Pestanejei e a imagem desapareceu. O meu coração ficou gelado.

 

Viste bem? Foste tu a causadora. O que vês está a acontecer. É difícil um homem engolir com uma tosse assim. Não admira que esteja tão magro. Às vezes, torna-se difícil respirar. E, no Inverno, Kerry é muito frio. Os olhos dela trespassaram-me.

 

Por favor! A voz tremeu-me de angústia. Não podia deixar de lhe suplicar. Por favor, não faça isso. O meu pai não tem culpa. Por favor, não o magoe assim! Estou a fazer o que a avó quer, estou mesmo, tenho planos. Está a castigá-lo para nada.

 

Os planos são uma coisa. A acção é outra. O que tens feito, desde que chegaste aí? Tens usado a arte? Encontraste um homem que seja o teu instrumento? Que fizeste até agora?

 

Eu... eu fui até à floresta em busca dos Fair Folk. Falei com um deles.

 

E?

 

Um... um homem interessou-se por mim gaguejei eu, agarrando-me desesperadamente àquele episódio. Um homem influente. Ele faz parte do meu plano.

 

Se ele se interessou por ti, onde está ele neste momento?

 

Foi para casa. Mas disse que se sentia ansioso por me ver de novo. Aquilo não chegava, sabia que não chegava. A tosse abafada do meu pai ecoava na minha cabeça como um toque a finados.

 

Isso não chega, Fainne. Cada vez mais digna de pena. Lembras-te do bacalhau? Fizeste aquilo com muita facilidade. A etapa seguinte é que é o verdadeiro desafio. Foste pateta em deixar essa gente começar a insinuar-se no teu coração. É melhor agires rapidamente, antes que te esqueças de como o fazer. De outro modo, perderás a vontade. Tornar-te-ás, simplesmente, um deles. Talvez gostes de ver sofrer o teu pai.

 

Pare com isso! Não foi fácil. Todas as noites, antes de adormecer, vejo aquele peixe na minha mente. Foi terrível. Usei a arte indevidamente.

 

Ela era dispensável. Todos são. Onde está a tua coragem, pequena? Mostra-ma. Mostra-me que ainda a tens. Mostra-me que não queres saber dessa gente. Foi essa gente que mandou a tua mãe para os braços de um homem, tão cruel que ela nunca mais recuperou. Foi essa gente que colocou a esperança no coração do teu pai, apenas para lha arrancar depois. Essa gente não se preocupa contigo. Nada. Tudo o que lhe interessa é a sua querida floresta, as suas Ilhas e a vontade dos Fair Folk. A tua mãe morreu. Matou-se devido ao que essa gente lhe fez. Já te esqueceste? Preferes ser atraída para a sua estranha compreensão do mundo, dando mais valor a uma profecia qualquer, à imaginação deturpada de um bardo, do que à existência de uma mulher. Acorda, Fainne. Onde está a tua raiva? Mostra-me a tua força.

 

Então, senti-a, a arte em toda a sua força, emergindo de todas as partes do meu corpo. Era capaz de fazer o que ela queria, sabia que era capaz; só precisava de pôr em prática tudo o que o meu pai me ensinara. No entanto, ele dissera:

 

Por vezes sussurrei é preciso muita força para não agir...

 

O que é isso? Um disparate qualquer dos druidas? Acredita em ti própria. Reconhece a tua herança. Mostra que és capaz. Há quanto tempo não usas a arte? Mostra-me, Fainne. Talvez um pouco de fogo. Um pequenino. Mas que seja bem quente. Assusta-os. Transtorna-os. Não consegues, pois não? Perdeste a raiva. Perdeste a vontade. Afinal de contas, o amor que dizias ter pelo teu pai não era verdadeiro.

 

Eu consigo! Ainda agora senti as chamas na ponta dos dedos! Mas... mas parece não haver um propósito nisso... não passa de um truque...

 

Falas-me em propósito? Nesta noite, entre todas as noites? A tua mãe não esperou, ano após ano, entre dois mundos, ver-te através do véu numa noite de Sambain? Ver-te, por fim, mostrar ao irmão, ao tio e a toda essa gente que não podem pisar alegremente um caminho cheio do sangue de inocentes? Esta noite, a tua mãe está a ver-te, Fainne. Fá-lo por ela. Eles tiraram-lhe o poder; forçaram-na às trevas e ao desespero. Recupera-o por ela. Mostra-lhe o que a sua filha é capaz de fazer.

 

Eu sentia a força em mim, a chama que parecia empurrar-me, se bem que, por qualquer razão, eu continuasse a lutar contra ela. Aquela gente era a gente da minha mãe, apesar do mal que lhe tinha feito.

 

Eu... eu não sei bem...

 

Se não consegues reunir em ti a força necessária, és, na verdade, uma pobre estudante. Não devias hesitar, nem sequer por um momento. Ciarán perdeu o seu tesouro, Fainne; o seu amor e a sua esperança. Perdeu a própria identidade. E tu renegaste-o ao apresentares-te aí como órfã, em Sevenwaters. Sabes bem que o farei sofrer se te recusares a obedecer às minhas ordens. Faz o que te digo. Mostra-me que não esqueceste o teu pai. Procura a fúria bem dentro de ti. Acende o fogo.

 

Fechei os olhos por um momento, incapaz de aguentar o poder do seu olhar por mais tempo, e quanto os abri de novo o fogo morrera, transformando-se em brasas, e ela desaparecera.

 

Pai sussurrei. Pai, aguente-se, esteja onde estiver. Seja forte.

 

Peguei em Riona e guardei-a na arca, mesmo no fundo, por baixo do xaile de Darragh. No fundo, na escuridão, onde não poderia ver nada. Cerrei o fecho. Em seguida, fui até à janela. Era muito tarde. Estivera sentada, sozinha, durante muito tempo. Parecia que toda a gente se tinha ido embora, mas devia haver guardas; havia sempre guardas. A família, os druidas, as pessoas da casa e da aldeia já deviam estar a dormir. Estava tudo calmo. Apaguei a vela e fechei os olhos. Respirei lenta e profundamente, evocando o olho do espírito; lenta e profundamente, aumentando gradualmente o poder como as vagas do grande oceano. Na mente vi a fogueira que Conor acendera, ardendo ainda lá em baixo, junto das muralhas da fortaleza. Vi-a nitidamente. Havia guardas junto dela, alerta na escuridão, aproximando-se uns dos outros para se aquecerem. A noite estava calma, suficientemente fria para enregelar um homem através da pele de carneiro, da capa de lã e de tudo o mais. Pensei naquela fogueira, vendo-a com tanta nitidez como se estivesse mesmo diante de mim. Grandes toros no centro, brilhando, dourados e laranja, transformando-se em cinza. Faúlhas subindo no ar quente, dançando no ar como insectos brilhantes. Uma centelha ou duas. O fumo encaracolando-se. De manhã, não restaria muito mais. Eu era capaz de acender uma fogueira. Tudo o que tinha a fazer era apontar o dedo. Mas aquilo seria diferente. Seria um acidente. Não teria nada a ver comigo. Não estava no meu quarto a dormir, na parte mais afastada da fortaleza? Da minha janela nem sequer conseguia ver o pátio onde o fogo, infelizmente, se descontrolou e espalhou por onde não devia. De olhos bem fechados, mantive o fogo na mente. A mudança foi rápida. Tinha de ser, antes de os guardas poderem acorrer com paus e sacos de serapilheira para apagarem as chamas. Um súbito fulgor e estas espalharam-se pelo solo, apanhando tudo o que pudesse arder. Homens gritando, homens correndo. As chamas eram de uma cor linda, dourado-avermelhadas, como o sol de Outono atravessando o mel.

 

Está a ver, avó? Está a ver o que eu consigo fazer?

 

As chamas atingiram as vedações dos edifícios exteriores e ergueram-se, esfomeadas, na direcção do céu. Cantavam. Chiavam. Rugiam. E havia outros sons, não já na minha cabeça, mas lá fora na noite, demasiado reais, sons de pessoas gritando, transportando baldes e a voz do meu tio Sean gritando em todas as direcções. Cavalos relinchando, um som de esmagamento quando algo grande caiu ou foi arrastado, um súbito e terrível som de dor, um homem gritando, gritando, gritando. Eu não queria ouvir aquilo. Tapei as orelhas com as mãos, mas não senti qualquer diferença. Ouviram-se mais sons de coisas esmagadas e o som de cascos nas pedras do pátio. Abri os olhos e vi, por baixo da minha janela, homens conduzindo cavalos aterrorizados para a segurança dos campos e correndo de volta para o inferno. O brilho da conflagração espalhava as suas sombras pelo espaço entre a fortaleza e a floresta. Fiquei muito quieta. Não havia necessidade de desfazer o feitiço. Eles apagariam o fogo. Os animais estavam salvos. Sentia-me feliz por isso. A família não seria desalojada. Tal acontecimento, na noite de Sambain, podia sugerir que as esperanças do arquidruida para o ano seguinte tinham saído frustradas. Lançaria a semente da dúvida. Correra tudo bem. Mas, por que razão me tremiam as mãos como as folhas de um vidoeiro sob um temporal de Outono? Agarrei com força no amuleto que tinha em redor do pescoço, para me acalmar.

 

Alguém bateu à porta do meu quarto.

 

Fainne! Estás acordada?

 

Era Muirrin. Não pude fazer outra coisa senão abrir a porta e deixá-la entrar.

 

O que é? O que é que se passa? Fiz os possíveis para parecer meio adormecida e confusa.

 

Oh, Fainne! Não ouviste o barulho? Houve um fogo terrível. Um dos druidas morreu e há outras pessoas muito feridas. E não conseguimos encontrar Maeve. Esperava... pensava que ela pudesse estar contigo. Mas estou a ver que não. Oh, Fainne, que faremos se... Naquele momento, a competente e reservada curandeira de Sevenwaters levou as mãos aos olhos e irrompeu em lágrimas. Senti um arrepio terrível percorrer-me o corpo, que não tinha nada a ver com a hora tardia ou o frio da época.

 

Eu ajudo-te a procurá-la disse eu com uma voz incerta que não tinha nada de artificial. Deixa-me pôr a capa. Tenho a certeza de que ela está bem, Muirrin. Quando chegarmos lá abaixo já eles a encontraram, acredita. Brighid me ajude, por que não parei aquilo a tempo e horas? Por que não parei quando as chamas começaram a lamber as paredes? Por que não me lembrei do local onde os druidas estavam a dormir?

 

Se havia uma resposta para aquelas perguntas, eu não a tinha. Em vez disso, enquanto descíamos as escadas à pressa e saíamos para o pátio, ouvi uma pequena voz interior. Foi a mesma coisa outra vez. O mesmo da outra vez, com o peixe. Não podes fazer nada; está-te no sangue...

 

Naquela noite senti que havia duas pessoas dentro de mim. A Fainne que ajudava Muirrin em busca de Maeve pela casa, pelo jardim, com uma lanterna na mão, pela aldeia onde os anciãos e as crianças estavam agora acordados e receosos e os novos a caminho da fortaleza para combater as chamas. O gado era reunido nos campos e os rapazes e os cães faziam os possíveis para manter alguma ordem naquela caótica manada de animais aterrorizados. Perguntámos a toda a gente, mas ninguém tinha visto Maeve. E quando regressámos para o que restava dos edifícios queimados, chegámos mesmo a tempo de ver Sean carregando-a para o exterior; o seu rosto parecia o de um velho à luz dos archotes e Muirrin lançou um enorme grito de angústia antes de correr na direcção do pai e da silhueta mole, como uma boneca, que ele segurava nos braços. E durante esse tempo todo a outra Fainne observava tudo aquilo. Ninguém a podia ver. Ninguém podia ouvir a sua voz senão eu; a pequena voz que era a voz da minha avó.

 

Foste tu que fizeste isto. Vê como podes ser forte. Amanhã, o teu pai respirará com mais facilidade.

 

Levei as mãos aos ouvidos e respirei profundamente uma vez, duas, três. Depois, obriguei-me a aproximar-me e abri a boca para fazer uma pergunta cuja resposta temia ouvir. Mas não precisei de perguntar.

 

Muito bem dizia Muirrin com vivacidade, se bem que o seu rosto estivesse cheio de lágrimas e pálido. Leve-a para o quarto a seguir ao meu e mande também os feridos para o outro ao lado. Leve-a com cuidado. Vamos precisar de muito linho limpo e pessoas para nos ajudar. Depressa.

 

Portanto, Maeve estava viva. Tossi para clarear a voz.

 

On... onde está o cão? perguntei hesitantemente. Ela é capaz de querer o cão ao pé dela quando...

 

O cão morreu disse Sean pesadamente. Ela não quer que ele durma no quarto; ele foi em busca de calor e os druidas acolheram-no.

 

Ela andava à procura do cão? murmurei enquanto caminhávamos em procissão, tristes, em direcção à fortaleza. Algures, à distância, um homem continuava a gritar de dor. No fogo?

 

Sean acenou com a cabeça.

 

Não sei como, perdemo-la. Deve ter-se afastado para o ir buscar.

 

Que aconteceu? Está muito ferida? Forcei-me a perguntar-lhe.

 

Parece que tropeçou e ao tentar não cair agarrou-se a um ferrolho de ferro, não sabendo que estava quente. As mãos dela estão... estão queimadas. A voz do meu tio tremeu. O cabelo dela estava em chamas. Apagámo-las. O rosto e as mãos ficarão marcados para sempre, se sobreviver. Não perdoo a mim mesmo. Como pode ter acontecido uma tal coisa?

 

Pálida como a cera, Muirrin ordenou tudo com rapidez e eficiência. Linho, água, ervas. Foi colocada em linha uma série de enxergas. Pessoas traziam os feridos. Havia um jovem druida com queimaduras terríveis nas pernas e nos pés. Apesar do treino, não era capaz de conter os gritos e o som dilacerou-me. Quanto a um outro, o mais velho, a enxerga onde estava deitado estava coberta da cabeça aos pés com um pano branco. Aquele sábio não regressaria para ver o solstício de Inverno sob os carvalhos nus. Alguém colocara um ramo de teixo em cima do pano branco como a neve que o cobria. Havia cinco homens feridos; alguns com queimaduras, outros tontos e tossindo devido ao efeito do fumo. No quarto onde os puseram, Conor ia de um a outro, inclinando-se para murmurar palavras suaves, tocar uma mão ou afagar uma testa. Levaram Maeve para o quarto seguinte e eu fiquei à entrada, desamparada, enquanto a deitavam. Pela primeira vez, vi a minha tia Aisling completamente perdida. Ajoelhou junto da filha, olhando sem expressão para os cabelos, rosto e mãos queimadas, enquanto o som áspero da respiração da criança se ouvia no quarto iluminado por velas.

 

Muirrin estava a acender mais lanternas. Podia ver-lhe as mãos a tremer.

 

Pai disse ela. Sean olhou para ela.

 

Há demasiados feridos disse ela calmamente. E isto pode estar para além das minhas capacidades. Precisamos de Liadan.

 

O meu tio acenou com a cabeça.

 

Felizmente, ela está em Inis Fala, não na Bretanha. Pelo menos, não precisa de atravessar o mar e em breve estará aqui. Que podes fazer por Maeve?

 

Muirrin hesitou.

 

Farei o melhor que sei, pai murmurou ela. E agora, vá. Estou a ouvir os homens a chamarem por si. A mãe também.

 

Eu fico com ela. A voz da minha tia Aisling estava irreconhecível; ténue e pouco segura, nada de acordo com a sua personalidade. Fiquei assustada por as coisas poderem mudar com tanta rapidez. E se ela acorda e...

 

Eu chamo-a logo disse Muirrin com uma voz de comando firme. Prometo. Tem razão, ela há-de querê-la junto de si. Mas eu vou dar-lhe um remédio para as dores; para já, não acorda. As pessoas vão precisar de si lá em baixo, para lhes dizer o que fazer e para as tranquilizar. Isto perturbou toda a gente.

 

Tens razão, claro. Aisling levantou-se, uma silhueta pequena e delgada dentro de um bonito vestido. Sem o véu, os seus cabelos eram brilhantes como malmequeres à luz das velas. Vou para baixo. Vi-a endireitar os ombros e engolir as lágrimas. Alguém a chamou e ela desapareceu.

 

Eu... posso fazer alguma coisa? Muirrin olhou para mim.

 

Não, Fainne. Isto tem que ser feito por mãos capazes; e tenho gente que me vai ajudar para ir buscar água e apanhar ervas. Mas... estava a olhar para além de mim, na direcção da porta. Virei-me.

 

Elas estavam ali, imóveis, como uma fila de pequenas estátuas. Deirdre, Clodagh, Sibeal e a pequena Eilis, nas suas camisas de noite, descalças no chão de pedra. Oito olhos, grandes e temerosos, fixavam-se em mim em busca de alguma coragem. Em mim. Nas minhas costas, Muirrin falou firmemente.

 

Está tudo bem, meninas. jovem aproximara-se, bloqueando a visão do quarto. um incêndio e Maeve feriu-se. Eu estou a cuidar dela. Fainne vai levá-las de volta à cama e vai contar-vos uma história. Amanhã saberão tudo. baixou a voz. favor, Fainne? O tom da sua voz revelava um medo terrível por trás das palavras calmas.

 

Eu quero a mãe Eilis, esfregando os olhos.

 

Podemos ver Maeve? Deirdre, pondo-se em bicos dos pés para tentar ver alguma coisa que é que ela tem?

 

Não podia fazer outra coisa senão o que me tinham pedido.

 

Vamos embora eu imitando o estilo de voz de Muirrin. A vossa mãe está ocupada e Muirrin também. Eu sei uma história muito bonita acerca de um homem que apanhou um gnomo e outra acerca de um cavalo. E tu eu, olhando para a exausta e lacrimosa Eilis podes levar Riona contigo para a cama. Se te portares bem.

 

Por trás de nós, a porta fechou-se suavemente. No outro quarto, um homem soluçava de dor. Ouvi a voz suave de Conor, cadenciada e calma.

 

Fainne Clodagh em voz baixa enquanto nos afastávamos. Quem é que está a chorar?

 

Um homem que se feriu eu, pensando que não valia a pena mentir dos druidas. Estão a tratar dele. Ficou muito queimado.

 

Seguiu-se um silêncio, coisa rara entre elas. Nenhuma delas disse uma única palavra até estarem as cinco no quarto, ao mesmo tempo que eu distribuía os cobertores e acendia a lareira. Era bom encher a mente com coisas práticas e imediatas.

 

Contei-lhes a história do gnomo, depois a outra e aconcheguei Riona ao lado de Eilis. Em breve dormiam todas menos Clodagh, que continuava sentada à lareira, segurando o meu xaile de seda nas mãos, tocando nas pequenas criaturas com uns dedos surpreendentemente cuidadosos.

 

Este xaile é tão bonito disse ela em voz baixa para não acordar as irmãs. Foi o teu namorado que to deu?

 

Eu não tenho namorado disse eu. Foi-me dado por um amigo. Ainda bem que ele se tinha ido embora depois de mo dar. Pelo menos, não podia ver o que eu tinha feito naquela noite.

 

Fainne?

 

Hum?

 

A Maeve vai morrer?

 

Estremeci. Era como se estivesse a ver a criança sentada à janela, penteando os cabelos amarelos de Riona enquanto o seu grande cão ressonava junto da lareira.

 

Não sei disse eu. Muirrin é uma curandeira muito competente, todos o dizem. E o tio disse que Liadan vem aí, se bem que possa demorar ainda algum tempo a chegar, é que é difícil fazer chegar lá uma mensagem para a trazer para Sevenwaters.

 

Clodagh olhou para mim.

 

Oh não disse ela. O pai fala com ela. Ela já deve estar a caminho.

 

Fala com ela?

 

Como eu com Deirdre. Tu não consegues? Falar sem dizer palavras, quer dizer. O pai é capaz de dizer coisas a Liadan instantaneamente, mesmo quando ela está em Harrowfield, que fica muito longe, em Northumbria. Ela vem o mais depressa que puder. A tia Liadan é capar de curar seja quem for.

 

Muito bem, então disse eu com um sorriso. Suponho que isso quer dizer que Maeve tem boas hipóteses de recuperar. E agora tens de dormir. Vais ter de te encolher aqui ao pé de mim. Espero que os teus pés não estejam muito frios.

 

Mas enquanto ela, finalmente, adormecia, eu ficava de olhos abertos, vendo a luz da madrugada entrar pela janela e a casa recomeçar a viver lentamente à nossa volta. Fiquei ali a olhar para as paredes de pedra e pensei na minha mãe. Imaginei se o seu espírito infeliz vaguearia por ali, algures, observando-me, observando tudo o que eu fazia. Que dissera o meu pai? Houve tempos de felicidade... o teu nascimento... ela acreditava que, finalmente, fizera uma coisa boa. Mas, no fim, não fora capaz de acreditar. Talvez a sua resposta final fosse a única que lhe restava. Era uma boa saída. Cortar os pulsos, saltar de um telhado, ou mergulhar nos braços do lago. Mas eu não podia fazer o mesmo que ela. Isso destruiria o meu pai. Tinha de fazer o que a minha avó queria. Devia-lhe tudo e não podia permitir que ela o torturasse. No entanto, como podia conciliar aquilo com o que tinha feito naquela noite? Era a segunda vez que matava. E tinha feito uma coisa horrível a Maeve e àquele jovem druida. Qual seria o preço a pagar pela segurança do meu pai? A maldade que fizera naquela noite não tinha relação, certamente, com a batalha que se aproximava e com os Fair Folk? Por que me forçara ela a fazer aquilo?

 

Ela não te forçou afazer aquilo, disse a voz involuntária dentro de mim. Tu é que o fizeste de livre vontade. Está-te no sangue. Não podes fazer nada Além disso, foi um castigo pelo que fizeram.

 

Não se pode castigar uma criança pelos erros dos adultos, disse eu a mim própria.

 

Errado. Veio a propósito. Perturbaste o teu tio e puseste dúvidas no coração do povo. Enfraqueceste o druida. Três passos na direcção do grande objectivo. Veio mesmo a propósito.

 

Cr... creio que não quero ser quem sou.

 

E que queres tu ser? A mulher de um latoeiro qualquer, com uma criança na barriga, mais três a teus pés e uma vida errante? Pensas que tens escolha? Foi o que o teu pai pensou. Vê o que lhe aconteceu. E sentes simpatia por essa gente?

 

Fiz força para que aquela voz deixasse de me atormentar, mas não consegui. A voz era minha e não podia ser silenciada. As crianças dormiam tranquilamente à minha volta e enquanto a luz da madrugada enchia o quarto com um brilho dourado, pareceu-me que as sombras me enchiam a mente e o coração e que o próprio Sol era incapaz de as afastar.

 

 

                                                     CAPíTULO SEIS

 

O fogo é uma coisa terrível. Começa com uma simples centelha, o mais pequeno pedaço de fumo. Cresce, ganha poder e espalha-se até se transformar numa grande conflagração, consumindo tudo o que encontra. Se não for detectado, consome tudo. A força destrutiva do que eu soltara aterrorizava-me. Não fora apenas o trabalho das chamas em si, os edifícios arruinados, um ancião lutando desesperadamente num pesadelo de fumo, ou os jovens sofrendo enquanto tentavam sobreviver. Não fora apenas Maeve, que agora pairava entre este mundo e o outro. Fora a maneira como todos tinham sido apanhados desprevenidos, a maneira como as chamas se tinham espalhado, tocando e ferindo cada pessoa em Sevenwaters. Se a minha avó desejava ver-me destruir a família e semear a dúvida nos seus esforços, deve ter achado tudo um grande sucesso. Não queria pensar no que o meu pai teria pensado. Tentei imaginá-lo usando a arte para fazer exactamente o que eu fizera, mas não consegui. As pessoas falaram quando ele expulsou os Finn-ghaill da enseada. Morreram homens afogados por causa do que ele fez. Mas aquilo era diferente.

 

Vi a incerteza aumentar lentamente quando os destroços ficaram à vista, a família mudando da esperança pura e da inspiração do ritual de Sambain para uma introspecção ansiosa. O tempo à mesa foi reduzido. A conversa escasseou. Atearam-se pequenas discussões que nem sempre foram resolvidas rapidamente. Sean estava sempre ausente e silencioso e Aisling nervosamente ocupada. Conor só ficou mais um dia após o incêndio, partindo depois para a floresta com quatro dos seus irmãos transportando o corpo do ancião numa tábua. Teria de ser ele a dar a terrível notícia ao seu povo, disse calmamente o druida a Sean, não permitir que a soubessem por outros meios. O seu ancião tinha de seguir o seu caminho com os rituais apropriados e o seu corpo depositado onde pertencia, sob os carvalhos.

 

Era evidente que Conor queria ficar, porque, se bem que alguns já tivessem recuperado, havia ainda três homens sob os cuidados de Muirrin e as perspectivas para o mais novo não eram nada animadoras, a não ser que conseguisse aguentar até a minha tia Liadan chegar. A fé de todos nas suas capacidades curativas espantavam-me. No fim de contas, Liadan não passava de uma mulher, tivesse ou não sangue dos Fomhóire. Que podia ela fazer que Muirrin e os seus ajudantes não pudessem? Regressaria assim que pudesse, disse Conor. O druida sabia que os seus irmãos feridos teriam os cuidados devidos pela lei e pelos laços de sangue. Entretanto, tinha obrigações, que tencionava cumprir, para com os que tinham ficado na floresta. A fria formalidade das suas palavras marcou entre ele e o seu sobrinho uma distância que não havia antes. Eu pensava que Conor era infatigável. Vira-o suportar um quase afogamento com uma serenidade que muitos homens de vinte anos teriam tido dificuldade em aguentar. Mas o incêndio abalara-o. Saiu de Sevenwaters apoiando-se pesadamente no seu bordão de vidoeiro, o capuz subido para esconder as feições. Não se podia ver a sua expressão. A pequena procissão afastou-se pelo caminho sob as árvores nuas e desapareceu. Conor nunca mais me falara desde a noite do incêndio. Se sabia, ou desconfiava, ou estava simplesmente demasiado distraído para reparar em mim, não havia maneira de saber.

 

Muirrin era uma rapariga forte, se bem que fosse delgada de corpo. Orientou tudo a partir da ervanária e havia uma actividade constante. As mulheres passavam esponjas pelas testas a arder de febre, mudavam compressas e ferviam poções de ervas à lareira. Os homens transportavam lenha e baldes de água. Mas o lugar estava calmo, com excepção do som das respirações aflitivas, ou da voz de Muirrin dando instruções precisas e suaves. Quando passei pela porta fechei os ouvidos à voz do jovem druida, gemendo de dor. Não visitei Maeve na sua cama. Mas o olho da minha mente mostrou-me o seu rosto, brilhando com borbulhas cheias de pus no lado esquerdo, e os seus olhos fixos, aterrorizados. As crianças andavam muito irrequietas e a minha tia Aisling parecia incapaz de fazer fosse o que fosse. Movia-se através da rotina restrita da casa, como se isso a impedisse de se desfazer. Não chorava quando as pessoas a podiam ver. Só quando se sentava sozinha com Maeve, enquanto Muirrin ia comer qualquer coisa ou descansar um pouco, é que se permitia chorar. Mais tarde, isso era visível na sua palidez e olhos avermelhados.

 

A coisa terrível que eu fizera atormentava-me os pensamentos dia e noite Quebrara uma das regras mais básicas da arte. Fora levada à ira e deixara que ela me vencesse. Sabia que era errado. No entanto, não sabia que outra coisa poderia ter feito. À medida que o tempo passava, a voz interior, que eu não gostava de ouvir, aparecia frequentemente para me atormentar.

 

Cresceste, murmurou ela. Sabes agora que é verdade. A nossa espécie só pode percorrer o caminho do caos e da destruição. A Luz está-nos proibida. Porque estás surpreendida? Foi-te dito. Até o teu pai te disse.

 

O meu pai não usa a arte para provocar sofrimento, disse eu a mim própria.

 

Não te guies por ele. Ele perdeu-se, quando a perdeu. É um homem sem rumo. A esperança era a sua fraqueza e ele deixou que ela o destruísse.

 

Todas as noites, enquanto ficava de olhos abertos desejando dormir, aquela voz sussurrava-me, cada vez mais difícil de ignorar. Era como se eu transportasse a minha avó dentro de mim, a minha alma gémea, e sentia que ela ficava cada vez maior, aproximando-se cada vez mais para expulsar a outra Fainne, a rapariga que fervia, em tempos, chá numa pequena fogueira, se sentava de encontro às pedras e cavalgava um pónei branco. Eu estava a perder essa rapariga rapidamente. As paredes de Sevenwaters e o grande cobertor da floresta pareciam comprimir-se sobre mim a cada dia que passava e eu sentia a última recordação de Kerry afastar-se lentamente de mim. Doía. Doía tanto que fiz coisas loucas para tentar melhorar a situação. Mantive Riona junto da minha almofada, aconchegada num lindo xaile com borlas prateadas. Enquanto permanecia deitada, podia tocar nas suas dobras sedosas e sonhar com um futuro que me era proibido. Enquanto afagava o cabelo de lã da boneca, podia imaginar um passado que me era desconhecido, no qual uma jovem mãe costurava amorosamente, com pequenos pontos perfeitos, um tesouro para a sua pequena filha. Os meus dedos moveram-se de encontro ao fino, forte e estranho colar de Riona e algo murmurou dentro de mim.

 

Agarra-te. Agarra-te ao que te resta.

 

Havia magia naquela pequena recordação; não a magia sábia e hábil que tinha à minha disposição, antes uma magia mais antiga e mais profunda, que falava de família e união. Aquele cordão de muitas cores e texturas, com as suas fibras curiosamente entrelaçadas, estava cheio de poder. Sentia-o puxar-me, tentando-me, atraindo-me suavemente para um caminho que eu não podia seguir.

 

Não há muito tempo, teria ficado satisfeita se as pessoas estivessem demasiado preocupadas para se incomodarem comigo. Teria aceitado de bom grado a oportunidade de estar só, para recitar o conhecimento, meditar em silêncio ou praticar feitiços de transferência ou manipulação. Mas, agora, andava à deriva. Não conseguia meditar. A minha mente recusava livrar-se de pensamentos inoportunos. O conhecimento já não parecia ajudar-me. Fazia-me recordar o druida deitado, com dores, no salão e o outro que partira para sempre. Jurei não exercer a arte, pois poderia descobrir de novo que só a poderia usar para destruir. Ninguém tinha tempo para mim e ninguém tinha tempo para as crianças. O resultado era inevitável. Sentava-me sozinha, fingindo estar ocupada com uma coisa ou outra e elas surgiam em bicos dos pés com um pretexto qualquer. Clodagh pedindo ajuda para a sua escrita. Deirdre à procura de Clodagh. Eilis em pranto e com um arranhão no joelho, que Muirrin não podia tratar por estar demasiado atarefada. Sibeal, como uma pequena sombra, sem qualquer motivo. Deslizava para dentro do meu quarto e sentava-se a meu lado sem um único som. Eu era obrigada a tentar descobrir o que se passava. Aprendera algumas histórias na viagem desde Kerry. Nem todas eram apropriadas para os ouvidos das pequenitas. Por isso, fiz alguns ajustes aqui e ali. As minhas histórias foram bem recebidas e fui obrigada a inventar mais. Não conhecia nenhuns jogos, por assim dizer, mas as raparigas ensinaram-me o jogo do anel e alguns truques com os dedos e uma guita. Tentaram ensinar-me uma canção, mas eu aleguei que não tinha boa voz. Assim, cantaram elas para mim. Juntas, lutávamos com a nossa costura. Fizemos bainhas em lençóis e remendámos vestidos. A minha tia Aisling agradeceu-me por mantê-las distraídas e longe do caminho de toda a gente.

 

Pude dizer, com toda a franqueza, que me sentia feliz por ajudar. Os dias eram assim preenchidos. O tagarelar das crianças afastava a voz da minha mente. A sua companhia deixava-me exausta e, assim, conseguia dormir. No entanto, não podia estar com elas o tempo todo. Muirrin falava pouco, mas eu sabia que nem Maeve, nem o jovem druida, estavam a melhorar. Ouvi Sean dizer que era um milagre terem conseguido mantê-lo vivo aquele tempo todo e que esperava que Liadan tivesse algumas respostas quando chegasse. Muirrin andava muito pálida, os olhos com olheiras e uma pequena ruga sempre na fronte. Quando as raparigas não estavam a dormir, ou comigo, estavam quase sempre no salão, na entrada, no lado de fora do quarto dos doentes, de pé ou sentadas em fila, silenciosas. Em tempos, teria achado o seu silêncio solene uma bênção rara. Agora, não tinha tanta certeza. Dava-lhes demasiado tempo para pensar. Começaram a fazer perguntas, às quais eu não queria responder.

 

Por que acontecera uma coisa tão má a Maeve? Quando poderia ela sair para poder brincar? Por que estava a mãe zangada o tempo todo e por que discutiam, ela e o pai, constantemente?

 

Finalmente, Muirrin proibiu-as de permanecer no lado de fora da porta. Maeve estava demasiado doente para ser vista e ela dava o seu melhor. Teriam de aguardar, disse-lhes Muirrin com aspereza, reentrando no quarto dos doentes e fechando-lhes a porta na cara. Eilis desatou a chorar. Sibeal fechou-se em si própria. Deirdre resmungou. E Clodagh disse:

 

Muirrin nunca se zanga. Maeve deve estar a morrer. E aquele homem também.

 

No quarto dia após o incêndio choveu tanto que me lembrou a estadia na gruta com Conor. Não havia vento. O céu estava cinzento como chumbo e a água caía em torrentes, rugindo sobre o telhado, cobrindo os caminhos e transformando os campos em charcos. Se Liadan estivesse realmente a caminho, aquilo atrasaria, certamente, a sua chegada a Sevenwaters. O estado de espírito das pessoas, já em baixo, pior ficou. Meteu-se na cabeça de Eilis que a doença de Maeve fora causada por si, porque em tempos chamara ao cão um grande bruto sujo, que devia estar no pátio dos estábulos. Começou a chorar e não consegui consolá-la nem com doces, nem com histórias, nem com carícias. Após um curto espaço de tempo, começaram a correr lágrimas sentidas dos olhos de Sibeal, e então as outras começaram também a chorar, até o meu quarto se transformar num antro de tristeza. Como que por contágio, esta tinha-se espalhado por todos os cantos daquela grande casa. Entrou subtilmente no meu coração, onde o sentimento de culpa e de dúvida já lutava com o grande objectivo que me propunha atingir. Tirou-me as forças e a coragem. Pensei que não suportaria estar um minuto mais com aquela família naquela casa, encurralada pela chuva, abafada pela floresta, afogada em lágrimas e encarcerada pelo que fizera. Pensei para mim própria que daria tudo para fugir, nem que fosse por pouco tempo; apenas para respirar e fortalecer-me de novo.

 

A salvação veio de onde eu não esperava. As raparigas estavam a atingir um estado de tristeza total e eu arrisquei-me a sair em busca de qualquer coisa para as distrair, pois estava a ficar sem ideias. Caminhei sozinha pelo vestíbulo superior, imersa em pensamentos, mal me apercebendo do sítio para onde me dirigia. Passei o quarto dos doentes e não espreitei. Mas ouvi ruídos. Não consegui afastá-los, por mais que tentasse. Quando alcancei as escadas, as minhas pernas enfraqueceram repentinamente. Sentei-me no primeiro degrau e pousei a cabeça nas mãos. Se conseguisse deixar de pensar. Se conseguisse, ao menos, afastar as vozes que me atormentavam.

 

Pensávamos que não te importavas com os danos que deixas atrás de ti.

 

Fainne?

 

Afastei as mãos do rosto e levantei os olhos. Três ou quatro degraus abaixo de mim estava Eamonn vestido com roupas de montar. O seu cabelo castanho escorria e o seu rosto tinha uma expressão de sincera preocupação.

 

Não estás com bom aspecto comentou ele franzindo o sobrolho. Deves estar exausta. Ouvi dizer que tens ajudado com as pequenas. Lamento muito o que aconteceu. Vim mal o mensageiro de Aisling chegou com as notícias. Foi-me difícil conter a surpresa.

 

Está um tempo péssimo disse eu bruscamente pensei que ninguém se aventurasse a sair com tal tempo. A tia Liadan vai atrasar-se. Pelo menos, é o que dizem.

 

A expressão de Eamonn mudou ligeiramente, demasiado rapidamente para eu a compreender.

 

Pensei que pudesse ser necessário aqui disse Eamonn.

 

Estou certa de que a tia Aisling ficará contente por te ver disse eu delicadamente. Ela tem andado muito preocupada. Maeve está muito mal.

 

Ele acenou com a cabeça.

Estás contente por me ver, Fainne? perguntou ele em voz baixa.

 

Estou disse eu, e era verdade. Ele estava fora da situação, do choro, das paredes de pedra e da escuridão abafante da floresta. Podia olhar para ele sem recordar o que fizera, porque ele não tomara parte.

 

Ah disse ele e estendeu a mão para me colocar uma madeixa rebelde de cabelo atrás da orelha, um gesto curiosamente íntimo. Que coisa notável em ti, Fainne. Dizes sempre o que pensas de chofre.

 

Senti-me corar de novo.

 

Talvez eu não tenha as maneiras que uma rapariga deve ter numa casa como esta. Realmente, digo o que penso. Nunca aprendi outra coisa. Mas não gostaria de te embaraçar dizendo algo pouco apropriado.

 

Tu não me embaraças, minha querida disse ele com um meio sorriso. Gosto da tua honestidade. Vem, não fiques sentada nesse chão de pedra fria. Vamos procurar uma lareira e talvez alguma cerveja. Depois, tenho uma proposta para te fazer.

 

Eamonn estendeu uma mão para me ajudar a levantar e eu aceitei-a. Era seca e quente e o aperto muito forte. Não fazia ideia do que tinha para me dizer, mas, fosse o que fosse, era preferível àquele pequeno quarto cheio de raparigas choramingonas. A sua tristeza só aumentava a vergonha que eu sentia pelo que tinha feito.

 

A cozinha era o único lugar realmente quente, por isso sentámo-nos ambos a um canto. Não havia nenhuma privacidade; os criados e as criadas entravam e saíam, havia galinhas a serem depenadas, pudins a serem cobertos para irem a cozer e um fluxo permanente de homens de armas molhados para uma rápida caneca de cerveja, um pedaço de pão de aveia ou um momento ou dois junto da grande lareira. Pelo menos, com tanto barulho e actividade, uma conversa tranquila passaria despercebida.

 

A velha Janis estava sentada exactamente no mesmo sítio onde a vira pela primeira vez, direita na sua cadeira, os olhos escuros e argutos fixos em tudo e em todos. Tirei cerveja de um jarro e coloquei uma caneca nas mãos de Eamonn.

 

Obrigado, Fainne disse ele com ar sério. E agora, conta-me coisas. Ainda não vi a minha irmã, ou o teu tio. Há inundações numa das aldeias e Sean foi ver o que se pode fazer pelos habitantes. Disseram-me que Aisling está indisposta. A situação aqui deixa-me pouco à-vontade. Tu viste tudo desde o princípio. A criança vai morrer? E o druida? Como é que o incêndio se espalhou tão depressa e não pode ser detido antes de causar tantos prejuízos? Nem parece coisa de Sean, deixar que uma coisa destas aconteça. Fico preocupado com a sua segurança.

 

Olhei para ele.

 

Suspeitas de alguma traição? Um inimigo infiltrado?

 

Não sei do que suspeito. As circunstâncias parecem-me... invulgares, mais nada. Não gostaria de pensar que um acidente destes ocorreu para nos minar. Nos tempos que correm não podemos permitir-nos, sequer, uma escorregadela. E se o fogo tivesse atingido as armas, ou as provisões cuidadosamente armazenadas? Quero que me digas, exactamente, o que aconteceu.

 

Não posso. Eu estava deitada quando o incêndio começou. E o meu quarto fica no outro lado. Quando desci, o mal já estava feito. Aquilo era verdade.

 

E a criança?

 

Está muito mal. Queimada no rosto e nas mãos. O druida ainda está pior. Mas ainda há esperança. Estão à espera da minha tia Liadan a qualquer momento. Não me passou despercebida a mudança de expressão que passou pelas feições de Eamonn quando mencionei aquele nome. Fosse o que fosse que acontecera entre ambos, há muito tempo, deixara uma impressão que ainda permanecia, dolorosamente, sob a superfície. Dizem que ela é uma curandeira maravilhosa. Muirrin acredita que ela faz a diferença.

 

Estou a ver. As suas feições, agora, estavam impassíveis. E a minha irmã? Ela também não está bem?

 

A tia Aisling anda muito transtornada. Era de esperar. Está muito preocupada com Maeve.

 

Não admira.

 

Anda muito aflita. E as raparigas sentem isso. Tem pouco tempo para elas e acha a sua presença um fardo. Teme perder outra filha. A família depende da sua força, penso eu, e sente-se de algum modo à deriva por ela estar no estado em que está.

 

Eamonn acenou com a cabeça.

 

Analisaste bem. Eu senti o mesmo pela maneira como fui recebido. A vida continua, mas não como dantes. Esperemos... esperemos que a irmã de Sean consiga um milagre.

 

Pelo menos, eles pensam que sim. Diz-se que ela possui poderes para além do normal.

 

Eamonn sorriu sinistramente.

 

Oh sim. Isso é verdade. Os juízos que faz é que a deixam ficar mal. Mas, voltemos à presente situação. Eu tenho uma sugestão a fazer que, penso, convirá à minha irmã. Mas preciso de saber, antes, se tu estás de acordo.

 

Ergui as sobrancelhas numa expressão de interrogação.

 

Eu tenho uma óptima casa vazia em Glencarnagh, com muitas Dessoas que tratam dela. Demasiado grande para um homem sozinho, jardins para passear, cavalos para montar, calor e espaço. Estas crianças estão a deixar-te exausta e a preocupar a minha irmã. Podiam ir comigo e ficar lá até a situação aqui estar resolvida de uma maneira ou de outra. tu podias acompanhá-las, não como ama, compreendes, mas para lhes providenciar um rosto familiar. Eu gostaria muito, Fainne. Gostaria de ver essas faces com alguma cor. Gostaria de ter hipótese de te mostrar a minha casa. E há lá mulheres que podem muito bem tratar das crianças, terias tempo para descansar e recompores-te. Que achas?

 

Eu... eu não sei gaguejei, apanhada de surpresa. Suponho que as raparigas gostariam muito; Eilis está sempre a falar dos teus estábulos maravilhosos. Mas... Não lhe podia dizer o que me ia na mente; que a sua sugestão me oferecia a hipótese de fazer exactamente o que a minha avó gostaria e que esse pensamento me enchia de maus pressentimentos. Farei o que a tia Aisling desejar, claro disse eu com voz fraca. A tia Aisling recusaria, pensei; não me parecia apropriado ser incluída numa tal visita familiar.

 

Está combinado, então disse Eamonn. Falarei com Sean assim que ele regressar. Duvido que se oponha. É uma solução prática. Poderemos partir amanhã se a chuva abrandar.

 

Talvez disse eu, conseguindo arvorar um sorriso. Desse modo, estaremos longe quando a tia Liadan chegar.

 

O seu olhar tornou-se mais penetrante.

 

Que queres dizer? perguntou.

 

Do outro lado da cozinha, a anciã olhava para nós.

 

Eu... eu ouvi dizer que vocês os dois fazem os possíveis para se evitarem um ao outro disse eu. Não quero parecer metediça. Não gostei do tom súbito da sua voz.

 

Não é um assunto para mexericos.

 

Ofendi-te. Lamento. Seja o que for que aconteceu entre ti e a tia Liadan, ainda te magoa. Vejo isso muito bem.

 

São coisas que pertencem ao passado. Não gosto de falar delas. A sua boca ficou cerrada e os olhos castanhos cheios de amargura.

 

Fiquei sem palavras. Parecia que entrara em águas onde não sabia navegar.

 

Fainne! Estás aí! Era Clodagh, entrando na cozinha com as outras todas atrás. Havia ainda olhos vermelhos e feições marcadas, mas, pelo menos, o choro tinha parado. Oh, olá, tio Eamonn. Onde estavas, Fainne?

 

Em lado nenhum disse eu com um sorriso fraco. Por mais maçadoras que as raparigas fossem, havia ocasiões em que eram bem-vindas. O vosso tio Eamonn teve uma ideia. Vamos dizer-vos qual é. Mas só se o vosso pai concordar, não se esqueçam.

 

Sean pôs algumas reservas quando finalmente regressou a casa e lhe pediram permissão. Já havia muita perturbação, disse ele e, além disso, eu ainda mal me instalara em Sevenwaters. Ainda era cedo para outra mudança. E o tempo estava péssimo. Mas a tia Aisling decidiu contra.

 

É uma sugestão bem prática disse ela vivamente. Far-me-ia muito jeito. É melhor as raparigas ficarem longe de Muirrin, por agora. Podiam parar em St. Roman para passar a noite. É uma viagem tão longa.

 

Longa para Fainne disse Eilis, que estivera a ouvir. Ela nem sabe montar e todos os cavalos têm medo dela.

 

Eilis! exclamou a mãe. Isso não se diz. Tens de aprender a dobrar a língua.

 

Mas é verdade disse Deirdre, vindo em auxílio, contra o costume, da irmã mais nova.

 

Quanto a isso disse Eamonn como que por acaso trouxe um cavalo para Fainne. Uma égua de temperamento excepcional, óptima para uma jovem. Iremos por etapas. Não é motivo para grandes preocupações.

 

Sean e Aisling olharam um para o outro fixamente. Eu olhei para o chão algo embaraçada, mas, ao mesmo tempo, contente. Era evidente que tinha havido um planeamento anterior, ao contrário do que sugeria aquele convite acidental.

 

Estou a ver disse Sean franzindo o sobrolho. Não sei.

 

As raparigas devem ir. Aisling parecia determinada. Esta casa não é o melhor lugar para elas, agora; há demasiada tristeza. É melhor elas irem, Sean.

 

Pensei em partirmos amanhã, se a chuva abrandar. Eamonn parecia ansioso por aproveitar a vantagem que tinha.

 

Muito bem disse Sean muito sério, olhando para a mulher. Mas não há pressa. As raparigas precisam de tempo para se despedirem.

 

Desculpem. A tia Aisling virou-se abruptamente e dirigiu-se para a porta quase a correr. Pensei que ela estava a reprimir as lágrimas.

 

Venham, meninas disse eu vivamente. É melhor irmos ver as vossas coisas, vermos se as vossas botas estão limpas e as vossas capas secas. Olhei para Eamonn. Obrigada pela tua amabilidade disse eu em voz baixa.

 

A expressão dele era muito séria. Era quase sempre. Pensei que seria um desafio persuadir aquele homem a sorrir. A minha avó não tinha nenhum truque para isso.

 

Não é nada, Fainne disse ele.

 

Em Glencarnagh, o jardim é bonito observou Deirdre quando já estávamos no andar de cima. Eu abrira a minha arca de madeira e estava a tirar as minhas desprezíveis coisas, pensando no que seria apropriado para aquela visita. Tem um lago com peixes, um labirinto de arbustos e nogueiras.

 

E montes de cavalos disse Eilis. O tio Eamonn deixar-me-á montar o preto?

 

As tuas pernas são muito curtas. Espera dez anos e depois pensa nisso disse Deirdre secamente.

 

Fainne disse Clodagh.

 

O que é? perguntei com ar ausente.

 

Acho que o tio Eamonn gosta de ti.

 

É claro que gosta dela disse Eilis, confusa. Ele é nosso tio, gosta de todas.

 

Ele não é tio de Fainne disse Clodagh. Além disso, eu disse que ele gosta dela. Tu não compreendes, ainda és muito pequena.

 

Queres dizer, como se fossem namorados? - As sobrancelhas de Deirdre cerraram-se. Mas, ele é velho. Mais velho do que o pai.

 

Eu sei o que digo disse Clodagh. Vais ver se não sei.

 

Eu acho que devias ir fazer as tuas malas disse eu, asperamente. Tirar as tuas coisas da tua arca. No fim de contas, é provável que partamos amanhã.

 

Sibeal não falava muito. Naquele momento, a sua voz soou suave, mas as suas palavras provocaram-me um arrepio no corpo todo.

 

E se Maeve morrer e nós não estivermos aqui?

 

As gémeas ficaram muito quietas, os rostos sardentos brancos como a cal. O lábio inferior de Eilis começou a tremer ameaçadoramente.

 

Não digas disparates. Mantive a voz o mais firme que pude. A vossa tia Liadan não vem aí, e não é ela a melhor curandeira de todo o Ulster? É claro que Maeve não vai morrer. Quando regressarmos já ela estará como nova, vais ver. Era uma imitação credível do estilo positivo de Peg Walker. Mas, como convencê-las se eu própria não acreditava?

 

Fainne? A voz de Clodagh não tinha a sua confiança habitual.

 

O que é?

 

Precisamos de ver Maeve. Antes de irmos. Muirrin disse que não podíamos. Mas nós temos que a ver. Pedes-lhe? A ti, ela ouve-te.

 

Quatro pares de olhos redondos fixaram-se em mim com a mesma expressão. Não duvidava de que Clodagh falava por todas e eu pensei de novo nas mensagens telepáticas e quem teria herdado essa habilidade.

 

Eu... eu acho que... gaguejei.

 

Por favor, Fainne disse Sibeal num pequeno sussurro delicado.

 

Muito bem disse eu. Eu peço-lhe. Mas têm que me fazer duas coisas. Primeira, vão para os vossos quartos e preparem as vossas coisas. Ponham de parte o que gostariam de levar. E mantenham-se longe do quarto dos doentes até eu as chamar. Não esperem por mim no lado de fora da porta. Sabem como Muirrin detesta isso.

 

Desapareceram todas sem um som. Eu tremia, o meu coração gelado de medo. Usara todas as desculpas que encontrara desde a noite do incêndio para me persuadir de que não precisava de ir ao quarto dos doentes e ver o que fizera. Muirrin não precisava de mim. Tinha ajudantes suficientes e mais capazes do que eu. De qualquer maneira, eu não pertencia à família. Seria uma intrusão. Estava melhor a tratar das crianças. A maior parte das desculpas era verdadeira. Mas a razão porque não entrara no quarto não era nenhuma daquelas. Mantivera-me longe porque temia que, depois de ver o que estava naquele quarto, não teria a vontade para continuar a tarefa que me impusera. E se eu falhasse, o meu pai morreria de agonia. Mas, assim, não tinha escolha. Prometera. Tinha de ir, imediatamente, antes de perder a pouca coragem que estava a tentar reunir. Era apenas uma questão de fazer com que os meus pés atravessassem o átrio, um depois do outro e quando chegasse à porta, em vez de passar rapidamente tentando não ouvir os sons, entraria, simplesmente, e...

 

Tirei Riona da arca e meti-a debaixo do braço. E o xaile, que estava em redor dela, o xaile maravilhoso, cheio de sol. Como podia pô-lo? Seria como permitir que Darragh visse o que eu fizera, fingir que era digna de um presente tão bonito, quando o que visse confirmaria que era verdade, que a minha espécie era capaz apenas de destruição e mentira. Mas algo me fez pô-lo. Por cima pus o xaile de lã, de maneira que apenas se via a franja, apenas um pouco, em baixo. Em seguida caminhei ao longo do átrio, bati à porta e entrei, o coração batendo como um tambor e a pele cheia de suor.

 

Fainne! exclamou Muirrin, surpreendida. A jovem estava a mexer qualquer coisa dentro de um pequeno pote, à lareira. Maeve jazia numa esteira sobrelevada e a tia Aisling estava sentada junto dela, escondendo a criança da minha vista. Havia um pequeno fogo, quente, na lareira e um cheiro agradável a ervas. Junto da janela, duas servas dobravam lençóis lavados. O quarto onde os druidas estavam era ao lado, mas eu não conseguia ver nada. Estava silencioso, com excepção da voz de um homem lendo ou recitando em voz baixa.

 

Ainda bem que vieste disse-me Muirrin em voz baixa, acenando com a cabeça na direcção da mãe. Vê se consegues que a mãe vá descansar um pouco. Está completamente arrasada e isso não é nada bom. Aqui, pode fazer muito pouco. Agora que vieste, talvez ela se vá. Fiz um esforço para caminhar até à cama; fiz um esforço para olhar para baixo, para a criança que ali jazia numa espécie de sono inquieto. As suas mãos estavam ligadas. Mal imaginava os ferimentos que sofrera, agarrada ao ferro quente no voo de cabeça. Mas a sua cabeça já não tinha nenhuma ligadura e, de um dos lados, os seus cabelos brilhantes estavam todos frisados e queimados, a pálpebra esquerda grosseiramente inchada e as sobrancelhas e as pestanas tinham desaparecido. Uma medonha exsudação, roxa, vermelha e castanha, espalhava-se, como um cancro, do olho até à pequena orelha. Desse lado, o seu rosto parecia o de um monstro. Fiz um esforço muito grande para continuar a olhar. Controlei a minha expressão. Após um curto espaço de tempo, descobri que conseguia falar.

 

Eu fico com ela um bocadinho, tia Aisling. Vá descansar. Eilis perguntou por si. Ela quer mostrar-lhe o lenço que bordou. Está muito orgulhosa dele.

 

Aisling olhou para mim, os olhos azuis sem qualquer expressão. Por um momento, senti que ela não sabia quem eu era.

 

Eu fico com Maeve. Tudo bem, tia. Pode ir.

 

Usei a arte subtilmente, de modo a fazer a minha voz mais convincente, de modo a que ela pudesse confiar em mim. Mas, no meu espírito, tremia com a minha duplicidade.

 

A tia Aisling pestanejou e pareceu acordar.

 

Creio que é melhor disse ela relutantemente. Obrigada, Fainne. Muirrin, volto mais tarde.

 

Fiquei, durante muito tempo, a olhar para a criança. Olhar para ela era castigar-me a mim própria. Mas, nem toda a culpa do mundo podia desfazer o mal que lhe fizera. Se aquela gente soubesse, se soubesse que era eu a responsável, seria, sem dúvida, expulsa. Seria odiada e maldita, tal como a minha avó. Não interessava que eu o tivesse feito para evitar o sofrimento do meu pai. Não interessava se tinha de levar a cabo uma tarefa imensa, tão grande que as suas vidas nunca mais seriam as mesmas. Olhei para a criança e percebi que lhe tinha roubado o futuro. O que eu fizera era tão mau como o que Conor fizera ao meu pai. Se Maeve vivesse, ficaria deformada e medonha. Eu achava-me simplória e maljeitosa, com os cabelos muito encaracolados e o pé torcido, a minha estatura desmedida e a minha timidez. Mas a minha pele era suave e pálida, as minhas mãos ágeis e desprovidas de cicatrizes e o meu corpo saudável, porque, como Roisin dissera, o coxear não era nada. Não era desfigurada. Não assim. Foi naquele momento que jurei a mim mesma nunca mais usar o Encantamento para parecer mais bonita. Agradeceria à deusa a minha sorte e continuaria como eu própria. Lentamente, deixei que o véu de beleza desaparecesse, sabendo, pela natureza das coisas, que as pessoas não reparariam na mudança.

 

Está a acordar disse Muirrin em voz baixa. Estas gotas são eficazes, mas não duram muito. Estamos todas com o sono atrasado. A dor tem sido muita. Importas-te de ficar aqui um pouco enquanto eu lhe ponho ligaduras novas?

 

Acenei com a cabeça e voltei para junto da cama. Apertando Riona contra o peito, observei a criança a acordar, um olho transformado numa fenda devido à pele inchada e o outro muito aberto e assustado, observei Muirrin a lavar-lhe a pele queimada com água fria de ervas e escutei os seus fracos queixumes transformarem-se num lamento doloroso quando um cataplasma de pele de cebola lhe foi colocado no rosto e couro cabeludo queimados e atado com uma ligadura lavada. Mantive-a no lugar enquanto Muirrin fazia os nós e senti os seus gritos vibrarem-me na cabeça, como se fossem ficar ali para sempre. Em seguida, a cama foi mudada enquanto uma das servas erguia a criança nos braços com tanto cuidado como se estivesse a segurar num cesto de ovos. Quando, finalmente, Maeve regressou à sua esteira e tentou beber uns goles de uma taça que Muirrin lhe levou aos lábios, eu estava gelada de horror.

 

E agora, Maeve disse Muirrin calmamente tens uma visita. Fainne está aqui para te ver. Já viste? Bebe isto tudo e depois ela fica aqui contigo um bocadinho. Talvez até te conte uma história.

 

A criança engoliu tudo obedientemente, com muito custo. Aquela bebida, provavelmente, dar-lhe-ia algum descanso. Pensei na força de vontade de Muirrin. Não chorava com medo da própria fraqueza. Não se queixava aos deuses por lhe terem atingido a irmã. Não sucumbia de exaustão nem me perguntava porque demorara tanto tempo a visitar a criança. Continuou, simplesmente, a fazer o que tinha de ser feito, aceitando as coisas como elas eram e ocupando o seu lugar no esquema com um propósito que não deixava lugar a qualquer dúvida. No entanto, isso tinha o seu preço, que era visível nos seus olhos sombrios.

 

Maeve deixou-se cair nas almofadas com um pequeno queixume que poderia muito bem ser um suspiro. Os seus olhos viraram-se para mim.

 

Maeve disse eu tão firmemente quanto pude, sentando-me num banco junto da sua cama. Trouxe alguém para te ver. Ergui Riona para que a criança pudesse ver os caracóis amarelos da boneca, os seus argutos olhos escuros e a boca delicadamente bordada. O vestido cor-de-rosa espalhou-se sobre o linho rígido da colcha da cama de Maeve. Os lábios da criança rasgaram-se num pequeno sorriso.

 

Óptimo disse eu. Ela também está contente por te ver. Quero pedir-te um favor. Vou visitar o teu tio Eamonn e vou estar ausente durante algum tempo. Riona não pode ir. Mas não quero deixá-la sozinha, já que estamos as duas aqui há muito pouco tempo. Gostaria que tomasses conta dela enquanto estou fora. Tens de lhe fazer companhia, manter-lhe o cabelo limpo e penteado e talvez possas deixá-la dormir contigo. És capaz de fazer isso?

 

O pequeno e doloroso sorriso apareceu de novo.

 

Óptimo disse eu e tirei o estranho colar que a boneca usava, sabendo algures dentro de mim que, se bem que pudesse deixar a minha pequena companheira com alguém que tinha mais necessidade dela, não podia deixar também aquele último elo com a minha mãe. Meti o colar no bolso do meu vestido e aconcheguei Riona ao lado de Maeve, sob os cobertores. A boneca ficou acomodada na concha do braço da criança como se sempre ali tivesse estado. A expressão dos seus traços bordados parecia quase condescendente.

 

Agora vou contar-te uma história, mas depois tenho de me ir embora. Gostavas de ouvir uma história?

 

Uma resposta muito fraca.

 

Hum. Foi tudo o que conseguiu dizer. No outro extremo do quarto, Muirrin sentou-se à lareira e uma das mulheres pôs-lhe uma caneca de cerveja nas mãos. A jovem ficou a olhar para as chamas como se estivesse demasiado cansada para fazer qualquer movimento.

 

Que espécie de história se conta a uma criança que olha para o outro lado do quarto e vê a morte à espera na sombra? Eu sabia muitas, mas nenhuma delas me parecia adequada. Que truque pode divertir uma rapariga enquanto a sua pele se transforma numa rede de cicatrizes? Como manter o seu coração forte e o espírito animado quando falamos por trás do tumulto da nossa própria culpa? Os meus dedos brincaram com a franja do meu xaile de todos os dias. Sedoso e alegre. Recordações inocentes. O delicado padrão rendado de pequenas ondas lambendo a areia na minúscula gruta secreta. Sons de uma melodia erguendo-se na quietude da alvorada.

 

As pessoas com quem viajei, quando vim para aqui, contam muitas histórias à noite, em redor da fogueira. Para ajudar a combater o frio, compreendes? Os mais pequenos e os velhos sentam-se à frente, onde está mais quente. Em seguida instalam-se os rapazes, as raparigas e os adultos. Depois, os animais. Os cães que guardam o acampamento, os patos e as galinhas metidos em pequenos cestos, e os cavalos. Cavalos suficientes para fazerem o seu próprio círculo. Se falassem, também contariam uma história ou duas. Algumas dessas histórias são nobres e grandes, outras são tolas e outras fazem-nos chorar e rir ao mesmo tempo. A história que te vou contar é acerca de um rapaz e de um pónei. É nova. Tu és a primeira pessoa a ouvi-la. Tu e Riona.

 

Maeve deu um pequeno suspiro e virou ligeiramente a cabeça na minha direcção, como se não quisesse perder uma única palavra.

 

Muito bem, então disse eu esse rapaz era um dos nómadas. Tinha crescido na estrada. Era ao que estava acostumado. Para ele, não havia casa nem cama; nem servos que lhe fizessem a comida ou o lavassem, nem trabalhadores que lhe tratassem dos cavalos ou trabalhassem os campos. Apenas uma carroça e um par de cavalos, o céu, o mar e o horizonte cheio de aventuras. Não ficava muito tempo no mesmo sítio. Está na natureza de um nómada estar sempre em movimento, sabes?

 

Maeve estava a tentar dizer algo. Inclinei a cabeça para lhe apanhar as palavras fracas. ... nome? Engoli em seco.

 

O seu nome era Darragh. Viajava com o pai, a mãe, as irmãs e os irmãos, alguns primos, tios, tias e o velho avô. Muita gente e ainda mais cavalos. Porque era isso que eles faziam. Apanhavam póneis selvagens, ou compravam-nos baratos, treinavam-nos e vendiam-nos em Cross. É onde existe a melhor feira de cavalos de todo o Erin.

 

O quarto estava silencioso. Não só a criança estava absorvida na história, como o olhar de Muirrin estava fixo em mim, assim como os das servas, que tinham parado o seu trabalho e se tinham sentado num banco perto da janela para ouvirem.

 

Darragh tinha um raro dom com os cavalos. Havia algo nele, algo que ninguém sabia, mas os animais confiavam nele. Custa muito um pónei abandonar a sua manada e passar a viver entre homens, sabes, custa muito e é assustador. É como dizer adeus à tua família. É como ir para um lugar tão diferente que até parece um mundo novo. Eles chamam a isso domar um cavalo, domesticá-lo de modo a aceitar uma sela e submeter-se à vontade do cavaleiro. Por vezes, o que eles fazem pode parecer muito cruel; atar um animal, obrigá-lo a vergar-se e a aceitar a supremacia do homem. Quebrar-lhe o espírito, muito simplesmente. É a única maneira, dizem os viajantes, se se quiser que o cavalo tenha algum valor para o comprador. Ninguém quer um animal que não saiba obedecer.

 

Darragh não gostava de dizer domar. Ele tinha uma táctica totalmente diferente. Se os outros achavam os seus métodos um pouco estranhos, nunca o diziam, porque eram sempre os cavalos trazidos por Darragh os mais procurados e mais bem vendidos em Cross.

 

Uma vez, quando estavam acampados na base de um monte e os homens e os rapazes foram em busca de póneis selvagens, pensando apanhar alguns para os preparar para a feira de Outono. Os póneis pastavam a erva verde da encosta do monte. Eram esquivos, as orelhas sempre a moverem-se, as caudas agitando-se como se pressentissem alguma coisa. Prontos a fugirem ao menor movimento. Os seus pêlos eram da cor da paisagem, negros, cinzentos, castanhos, da cor das rochas, do líquen e das cascas das árvores. Mas havia um que sobressaía. Uma égua, movendo-se entre os outros como uma bela lua cheia por entre nuvens escuras, mais branca e brilhante do que algum dia poderias imaginar. A sua crina e a sua cauda caíam como a franja sedosa do xaile de uma dama. Lustrosos e brilhantes.

 

Aquela é minha disse Darragh baixinho.

 

- Aquela? murmurou o pai, que sabia mais de cavalos do que a maioria das pessoas. Não me parece. Olha-lhe para os olhos. Aquele animal é louco. Há orgulho e raiva nela, o que quer dizer que nunca a domarás. Pode causar-te a morte. Escolhe outro.

 

Mas Darragh estava decidido. Habitualmente, uma vez escolhidos os que valia a pena levar, regressavam com os seus próprios cavalos e cães, separavam os póneis da manada e levavam-nos para o acampamento. Ali, ficavam presos e sujeitos à disciplina habitual até estarem suficientemente dóceis para serem montados.

 

Darragh sabia que aquele pónei era diferente. Vira o que o seu pai também vira: o seu olhar selvagem, o fremir das narinas e o porte altivo da sua bela cabeça. Parecia uma princesa dos velhos contos, altiva e intocável e muito senhora de si. E assustada. O animal pressentira a sua presença. Aquele pónei não podia ser capturado e conduzido com varas, com cães ladrando-lhe e mordendo-lhe as patas. Isso faria com que ela enlouquecesse. Aquela princesa só podia ser domada com amor.

 

Ainda bem que os nómadas estavam acampados naquela região durante o Verão, pois Darragh precisava de tempo. Disse à mãe que talvez estivesse ausente durante algum tempo e que dissesse ao pai, mas não imediatamente. Então, subiu o monte muito cedo, de manhã, enquanto a bruma ainda dormia nas reentrâncias e fendas e só os pássaros mais atrevidos cantavam os seus desafios aos primeiros tons rosados da aurora. Partiu silenciosamente, sozinho, com um pequeno cabresto numa das algibeiras, um pedaço de pão e queijo na outra e os olhos e ouvidos bem abertos. O pónei estava só, debaixo de umas sorveiras-bravas. Sonhava; e tão silencioso foi Darragh a aproximar-se, que ela não ouviu nada até ele estar muito perto, sentado numa pedra, imóvel. Ela olhou para ele. Ele não fez um único movimento, apesar de, verdade seja dita, estar um tempo gélido e ele ter dificuldade em não tremer de frio. Darragh manteve-se quieto e certificou-se de que o seu olhar estava na erva, nas árvores ou no céu que lentamente clareava transformando-se num ténue lilás e após um certo tempo ela pareceu esquecê-lo, baixou a cabeça e começou a pastar. Mas ele sabia que ela tinha os olhos postos nele.

 

Foi um processo longo. Por um lado, Darragh tentava cansá-la com a sua paciência. Por outro lado, ela tentava cansá-lo com a sua resistência. Para onde quer que o pónei branco fosse, lá estava Darragh, silencioso, imóvel, não tentando nada. Mantendo-se, apenas, a seu lado. Ela corria, corria rápida como o vendo de oeste, atravessando vales, desfiladeiros e campos de erva viçosa, e Darragh corria atrás dela com a rapidez possível das suas pernas, ficando para trás vezes sem conta. Mas ele encontrava-a sempre. Ele era um rapaz magro, mas ficou ainda mais magro. Havia sempre alguém, numa cabana, que lhe dava de comer, uma mão-cheia de amoras, qualquer coisa, mas nunca o suficiente. As suas botas estavam quase gastas. No acampamento, a sua gente contava os dias que iam passando.

 

-Aquele rapaz é doido disse o pai. Eu disse-lhe que nunca conseguiria domar aquele pónei. Qualquer pessoa vê que o animal é louco. A mãe não dizia nada. Ela tinha a sua opinião, mas guardava-a para si.

 

Darragh estava exausto. Corria de manhã à noite, tinha um tornozelo ferido e bolhas nos pés. Tinham passado muitos dias desde que partira e estava de regresso à encosta onde tudo tinha começado. O pónei observava-o e ele estava perto, muito perto. Quase conseguia ouvir o que o animal pensava: que achava o comportamento dele muito estranho e não percebia o que queria dela. Que deveria estar do outro lado do monte, para leste, com a manada, mas, por qualquer razão, estava ali com ele. Tinha de partir, os outros estavam à sua espera, mas... mas...

 

Muito bem, disse Darragh, dando um passo em frente e colocando a sua mão morena e magra, muito suavemente, no pescoço do pónei branco. Vou para casa. É melhor ires ter com os teus. Não te metas em sarilhos. E virou as costas, descendo o monte de regresso ao acampamento.

 

Fiz uma pausa. O quarto estava silencioso e até a voz no quarto ao lado tinha cessado a sua cadência firme. No exterior, os pássaros cantavam.

 

O fim não pode ser esse disse Muirrin.

 

Olhei para Maeve. A pequenita continuava acordada, o rosto virado para mim, expectante.

 

É evidente que não disse eu. Darragh foi para casa, meteu os pés num balde com água quente, comeu uma grande tigela de guisado, enrolou-se no seu cobertor e dormiu do anoitecer até muito depois do galo cantar. A sua irmã Roisin, era esse o seu nome, teve de acordá-lo, tão profundo era o seu sono depois de toda aquela correria, de todo aquele tempo quieto e de tanto tentar perceber como pensava o pónei.

 

Levanta-te, Darragh disse-lhe a irmã ao ouvido. Olha. Olha para além.

 

-Ele saiu de sob o cobertor, pestanejando e esfregando os olhos. E então, delicado e gracioso sob o sol da manhã lá estava o pónei branco, esperando por ele no outro extremo do acampamento, no meio dos cestos, barricas e diversa tralha. O animal pôs a sua bela cabeça de lado, olhou para ele com aqueles olhos que o seu pai tinha achado loucos e relinchou suavemente, como se dissesse: estou aqui; e agora?

 

No Verão seguinte, o pai de Darragh perguntou-lhe se tencionava vender Aoife, foi esse o nome que foi dado ao pónei. Conseguiria um bom preço por ela na feira, porque era um animal de inteligência extraordinária, se bem que, na verdade, só desse o seu melhor quando Darragh a montava. No entanto, uma vez, tinha levado uma rapariga para um passeio e as suas maneiras tinham sido perfeitas. Mas Darragh não se separaria dela.

 

Não posso disse ele ao pai. Ela não é minha.

 

Que disparate é esse? perguntou-lhe o pai. Foste tu que a apanhaste, foste tu que a domaste. É claro que é tua. Conheço uns cinco homens que dariam bom dinheiro por uma fêmea assim.

 

Não foi tal respondeu Darragh, acariciando o pêlo cor de neve de Aoife. Eu escolhi-a e ela escolheu-me. Não a apanhei e não me pertence Ela é livre de partir quando quiser. Além disso, não me quero separar dela. Dá-me sorte.

 

À medida que o tempo foi passando, Darragh foi ficando cada vez melhor com os cavalos. Nem toda a gente tem a habilidade e a paciência para domar uma criatura selvagem só com amor. Nunca se separava de Aoife nem ela dele. Tornaram-se ambos uma espécie de lenda. As pessoas apontavam e murmuravam quando viam o jovem moreno com o seu pequeno brinco de ouro passando pelas suas cabanas em cima do belo pónei.

 

- Aquele rapaz é meio cavalo dizia um.

 

Não foi isso que ouvi dizia outro. Dizem que o animal é um pónei mágico. Transforma-se numa bela rapariga à noite e volta a ser animal de manhã. Não admira que não se queira separar dela.

 

Mas Darragh limitava-se a sorrir, afagava o flanco de Aoife suavemente e cavalgavam juntos na direcção do crepúsculo. E é este o fim da história, por agora.

 

Maeve parecia estar a dormir, a respiração mais calma e Riona continuava aconchegada nos seus braços. Cobri-a com o cobertor.

 

Essa história é verdadeira? perguntou a grande serva com alguma hesitação. Tinha chegado enquanto eu a contava.

 

É disse eu, pensando que ainda bem que a minha espécie não chorava, ou estaria a fazer uma triste figura. Na verdade, eu própria a montei, uma vez. É tão inteligente e bonita como a história diz.

 

Contaste-a muito bem. Muirrin levantou-se da sua cadeira e espreguiçou-se. Fez-te parecer... uma pessoa completamente diferente.

 

Não respondi. Nem todas as melhores histórias do mundo, ou todas as belas recordações, poderiam repor as coisas no seu devido lugar. Para Maeve; para nenhum de nós. Ainda bem que Darragh se tinha ido embora. Sentia-me feliz por nunca mais o ver. Que rapaz, no seu perfeito juízo, quereria uma rapariga como eu para ser sua amiga?

 

Muirrin disse eu, lembrando-me, finalmente, porque tinha ido ali. Já sabes que vamos todas para Glencarnagh, as raparigas e eu?

 

Já, disse Muirrin com um sorriso seco. Foi uma surpresa. Pergunto a mim mesma o que terá levado o tio Eamonn a esse gesto súbito de apoio familiar?

 

Eu acho que ele está só a querer ajudar disse eu.

 

Pode ser. As raparigas nunca lá foram antes, excepto em visitas formais com a mãe, ou o pai. O tio Eamonn é muito rigoroso. Faz tudo segundo as regras.

 

Mas ele não está a quebrar nenhuma regra. É tio delas, no fim de contas.

 

Hum. Muirrin olhou para mim de modo zombeteiro. Desde que saibas no que te metes.

 

Eu... eu quero pedir-te um favor disse eu. As crianças querem ver Maeve antes de irem. Para elas é importante. E mandaram-me aqui para te persuadir a deixá-las entrar por uns momentos.

 

Muirrin franziu o sobrolho.

 

Elas vão ficar perturbadas e vão perturbar Maeve. Talvez não te apercebas de como ela está doente, Fainne. Foi muito ferida e está muito fraca. Não quero arriscar-me a que os ferimentos piorem; isso pode acabar com ela. Desculpa-me por ser tão fria, mas devo fazer tudo o que estiver ao meu alcance até à chegada da tia Liadan. Não é boa ideia elas virem aqui.

 

Por favor, deixa-as vir. Utilizei a arte, o mais subtilmente que sabia, para fazer com que as minhas palavras parecessem convincentes. Não quero dar-te mais preocupações, mas... mas Sibeal disse-me. «E se Maeve morre e nós não estamos cá»? Elas estão a pensar nisso. Eu digo-lhes para guardarem qualquer comentário para elas próprias, para não a perturbarem. Por favor, Muirrin.

 

Muirrin estava a olhar fixamente para mim e tinha uma expressão estranha no rosto, como se estivesse a tentar perceber as palavras que eu dissera, uma linguagem ao mesmo tempo familiar e desconhecida.

 

Muito bem disse ela após um momento ou dois. Não posso dizer que não depois das tuas palavras. Eu mando-te chamar quando ela acordar. E as raparigas têm de sair antes de lhe mudarmos de novo as ligaduras. Não podem estar presentes quando isso acontecer. Fainne... A jovem engoliu as palavras.

 

Sim? perguntei.

 

Tu pareces... diferente, mais nada.

 

Que queres dizer com isso, diferente? Estava alarmada. Certamente, ela não percebera que eu utilizara a arte?

 

Não sei disse Muirrin. É como se umas vezes fosses uma pessoa e outras outra. Como se fosses duas pessoas. É uma estupidez, não é? Devo estar muito cansada.

 

Não chega ser apenas uma pessoa? disse eu com ligeireza, mas percebi que me tinha descuidado. Não contara com os estranhos poderes que alguns membros daquela família possuíam. Teria de ter mais cuidado.

 

Como que para facilitar a nossa partida, as nuvens dissiparam-se e o Sol apareceu na manhã fria. Cavalos e póneis estavam prontos em frente da porta principal e muitos homens de armas, cujas túnicas verdes-escuras, brasonadas com a torre negra, os identificavam com a casa de Eamonn, estavam reunidos, compondo uma escolta impressionante. Desta vez, parecia, nenhum dos homens de Sevenwaters iria connosco. Eamonn era da família e assim seria poupado à indignidade de ser acompanhado até à fronteira pelos guardas do meu tio. Podia-se confiar na família. Portanto, Darragh tinha razão; a mensagem era bem implícita na sua conversa jovial acerca das alegrias de crescer rodeado de irmãos e irmãs. Via-se bem, pensei amargamente, como eu era pouco aceite ali; Eamonn podia passar como quisesse, mas, a mim, nem sequer me deixavam dar um passeio na floresta sem uma escolta armada. E eu era parente, ao passo que Eamonn não.

 

As crianças estavam silenciosas. A visita a Maeve fora difícil; guardar para si próprias os comentários e as lágrimas de desgosto fora ainda mais difícil. Tinham-se portado corajosamente, as quatro, e eu fizera questão de lho dizer, mais tarde, quando a porta se fechou, deixando para trás o sofrimento da irmã. Houvera lágrimas, que eram tanto de raiva como de desgosto.

 

Não está certo! resmungara Clodagh, franzindo furiosamente o sobrolho enquanto olhava para os punhos cerrados. Estas coisas não deveriam acontecer. Como podem os deuses permitir que isto aconteça?

 

Não é justo acrescentara Deirdre, sem olhar para ninguém em especial.

 

As mais pequenas não tinham dito nada. Sibeal era uma sombra de si mesma; Eilis chuchava no dedo. De manhã, desceram com as suas capas e botas de montar, foram ajudadas para cima dos seus póneis e em breve estávamos a caminho através da floresta na direcção de Glencarnagh.

 

 

                                                           CONTINUA

 

 

                                                 CAPíTULO SETE

 

Tudo o que sabia acerca de cavalos devia-o a Darragh. Mas nunca ouvira as suas histórias com a atenção devida, por isso não sabia muito. A pequena égua que me transportou até casa de Eamonn era muito velha, mas continuava firme como uma rocha. Sabia que era velha porque Eilis mo dissera. Sabia-se pelos dentes, dissera ela. A égua era cinzenta-prateada, de olhos gentis e, tal como Aoife, parecia saber exactamente para onde ia, sem ser preciso guiá-la.

 

 

Não tremia e não tentava fugir de mim como os outros animais dos estábulos do meu tio. Era claro que, agora que tinha tirado o Encantamento, qualquer animal estava mais pronto para confiar em mim. Mas eu achava que era mais do que isso. Aquela égua parecia, de algum modo, diferente, especial.

Onde é que a arranjaste? perguntara a Eamonn, pensando se um grande senhor e possuidor de vastas terras viajaria até uma grande feira, enviaria um homem para negociar por ele ou, simplesmente, evitaria tais lugares vulgares, criando simplesmente os seus próprios cavalos.

Foi abandonada, há muito tempo. Eamonn cavalgava a meu lado, como que para se certificar que eu não me perdia. Talvez duvidasse da minha capacidade para conduzir aquele animal tão bem treinado. Por uma dama. É um óptimo animal e notavelmente saudável...

 

 

                                                                  Juliet Marillier

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades