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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DA PROFECIA - P.2 / Juliet Marillier
A FILHA DA PROFECIA - P.2 / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

CAPíTULO SETE

 

Tudo o que sabia acerca de cavalos devia-o a Darragh. Mas nunca ouvira as suas histórias com a atenção devida, por isso não sabia muito. A pequena égua que me transportou até casa de Eamonn era muito velha, mas continuava firme como uma rocha. Sabia que era velha porque Eilis mo dissera. Sabia-se pelos dentes, dissera ela. A égua era cinzenta-prateada, de olhos gentis e, tal como Aoife, parecia saber exactamente para onde ia, sem ser preciso guiá-la. Não tremia e não tentava fugir de mim como os outros animais dos estábulos do meu tio. Era claro que, agora que tinha tirado o Encantamento, qualquer animal estava mais pronto para confiar em mim. Mas eu achava que era mais do que isso. Aquela égua parecia, de algum modo, diferente, especial.

 

 

 

 

Onde é que a arranjaste? perguntara a Eamonn, pensandose um grande senhor e possuidor de vastas terras viajaria até uma grande feira, enviaria um homem para negociar por ele ou, simplesmente, evitaria tais lugares vulgares, criando simplesmente os seus próprios cavalos.

 

Foi abandonada, há muito tempo. Eamonn cavalgava a meu lado, como que para se certificar que eu não me perdia. Talvez duvidasse da minha capacidade para conduzir aquele animal tão bem treinado. Por uma dama. É um óptimo animal e notavelmente saudável apesar da idade. Foi pouco usada.

 

Não tem havido dama nenhuma para a montar? aventurei. Ele olhou para mim.

 

É verdade. Há muitos anos que não há uma dama em Glencarnagh. E desde que Aisling casou com o teu tio, o meu domínio de Sídh Dubh tem sido uma casa só de homens. Há muito tempo.

 

Por que não devolveste a égua à sua dona? perguntei-lhe. Pensei que não me ia responder. A sua boca cerrou-se e os olhos castanhos gelaram. Mais uma vez, entrara em território proibido.

 

Não houve oportunidade disse ele finalmente. Ela nunca mais voltou.

 

Eu não o pressionei mais. Ele tinha no rosto a mesma expressão de quando pronunciei o nome Liadan. Perguntei a mim mesma se a égua teria sido dela.

 

Glencarnagh era um sítio bonito. Quando acampei ali com a gente de Dan Walker reparei apenas na casa sólida, bonita e extremamente bem guardada. Nessa ocasião, a minha cabeça estava cheia de pensamentos acerca de Sevenwaters e do que ali descobriria. Agora, tinha tempo para ver e ouvir.

 

Aquela casa fora bem construída para uma família. A mãe de Eamonn crescera ali, até que casara com o pai dele e fora para Sídhe Dubh. Mais tarde, houvera uma noiva na casa, a jovem que casara com o avô de Eamonn, Seamus, quando já era velho. Houvera uma criança; mas parecia que não vivera senão até aos sete anos e o ancião nunca mais recuperara do desgosto. Quando Seamus morreu, a sua esposa regressou para junto da sua gente. Agora, tanto Glencarnagh, como Sídh Dubh, pertenciam a Eamonn: um homem de meia-idade sem mulher nem herdeiros e não parecendo inclinado para adquirir nem uma coisa, nem outra. O que era estranho. Até eu sabia o suficiente para perceber que a súbita morte daquele homem, sempre possível devido à natureza das coisas, levaria a tempos de enorme instabilidade e grande risco para o seu vizinho, Sean de Sevenwaters, cujas terras estavam cercadas, quase por completo, pelas de Eamonn. Haveria chefes de guerra e reis sem importância, de todo o Ulster, reclamando um grau qualquer de parentesco e lutando pelo túath. A meio dos preparativos para a grande batalha pelas Ilhas, seria a última coisa que eles quereriam. E Eamonn? Não se preocupava por não ter um filho para herdar os seus vastos domínios, as duas maravilhosas casas, o exército pessoal, os prados e outros empreendimentos?

 

Havia ali uma oportunidade, um segredo que a minha avó gostaria que eu descobrisse, estava certa. Esse segredo fazia o rosto de Eamonn contrair-se e os olhos escurecerem quando o nome da minha tia era mencionado, depois de tantos anos. O senso-comum dizia-me que se a minha avó queria que aquela gente fosse derrotada, não o seria com números superiores ou estratégias militares, ou até com um espectacular número de magia, supondo que eu tinha a capacidade necessária. A derrota viria deles próprios, atirando aliado contra aliado, irmão contra irmã. Eu sabia-o, sem sequer ter lido qualquer livro, ou ouvido qualquer professor. Sabia-o pela maneira como a minha avó brincara com o meu amor pelo meu pai, usando-o para me apanhar numa armadilha. As armas mais fortes eram as do coração: ódio, dor, medo. E amor, também. Essas armas podiam ser utilizadas com crueldade. A minha avó sabia isso. Não agira por desejo de exercer vingança sobre os que desgraçaram a nossa espécie? O seu ódio era uma força mais poderosa do que qualquer exército. Para ela era fácil dar-me ordens, fazer-me fazer coisas más, mesmo quando eu não queria. Eu nunca teria magoado Maeve, nunca; a criança era inocente, mal começara ainda a sua vida. Nunca teria feito aquilo. Mas fizera-o, com um simples estalar de dedos e a invocação de um feitiço, como se não tivesse mais significado do que uma pequena fogueira no campo para ferver água. E agora, quando vacilava perante a perspectiva de completar a tarefa para a minha avó, apercebi-me de que, se falhasse, havia outros que ela podia fazer com que eu prejudicasse. Quem seria o próximo? A graciosa e sempre alerta Sibeal, com os seus olhos profundos, a volátil Deirdre, que tinha tantos estados de espírito como um dia de Outono? A prática e perceptiva Clodagh, ou o bebé da tia Aisling, a minúscula Eilis? Todas se me tinham tornado queridas apesar dos meus esforços para me manter à parte; tão queridas como quatro irmãs. Não as poria em risco se falhasse os planos da minha avó?

 

Eu sabia o que ela queria que eu fizesse em Glencarnagh. Ela mesma o faria com perícia. Quase conseguia vê-la, com os seus caracóis ruivos e figura suavemente curva, sorriso inocente e olhos alegres bem grandes, sempre junto da sua vítima, cegando-a para a realidade com o seu encanto deslumbrante de borboleta, mantendo-se sempre fora de alcance para a obrigar a sair do caminho da segurança na sua desesperada perseguição. Eu sabia como fazer isso. Ela ensinara-mo pormenorizadamente. Mas eu não o faria, se houvesse outro meio. Havia algo de espalhafatoso ao conseguir atingir um objectivo com tais meios, por mais importante que esse objectivo fosse. Era um ramo da arte que gostaria de deixar intocado. Esperaria um pouco; procuraria uma maneira diferente. E assim, durante algum tempo, instalei-me em Glencarnagh com a gratidão de um prisioneiro libertado inesperadamente, observando as raparigas a jogarem à bola no relvado, perseguindo-se umas às outras no labirinto, assando castanhas na lareira do quarto à luz das velas e sentindo o meu espírito descansar um pouco.

 

Esperava continuar como antes: acompanhar as raparigas durante o dia e espiar à noite, talvez incluída numa conversa adulta de tempos a tempos se isso agradasse ao meu anfitrião. Não tinha talento para a música; não podia entreter. Nem sequer podia recitar o conhecimento druídico aos presentes após a ceia. Os talentos que possuía não eram para ser partilhados. Esperava ter um pouco de tempo para mim própria, para ordenar os meus pensamentos. Não queria pensar além disso.

 

Mas Eamonn tinha ideias diferentes e tornou-as bem claras mal chegámos a Glencarnagh. As raparigas estavam estafadas da viagem e foram para a cama cedo. Eu também planeara retirar-me, pois tinha um belo quarto só para mim e ansiava por sossego. Ultimamente, desde o incêndio, raramente passava as minhas noites sozinha, pois era normal uma das crianças entrar em bicos dos pés no meu quarto, acordada por um pesadelo, em busca de companhia para afugentar a escuridão. Era, realmente, irónico que viessem ter comigo, o que não melhorava a opinião que tinha de mim própria. Mas, ali, as crianças tinham sido alojadas num bem apetrechado quarto para quatro, com uma serva própria e Eamonn disse-me, quando estávamos juntos à lareira, que eu poderia dormir sem ser incomodada. O salão em Glencarnagh era muito mais pequeno do que o grande espaço de Sevenwaters e o calor da lareira espalhava-se pelo compartimento. A mobília estava tão polida que podíamos ver o nosso rosto reflectido nela e os espaldares das cadeiras eram habilmente esculpidos; pequenos animais e arabescos. Bebi um pouco de vinho que me fora dado e concordei sem falar.

 

Vi como a minha irmã se serve de ti em Sevenwaters disse Eamonn num tom uniforme. As tuas origens podem ser obscuras, mas és, de qualquer modo, sobrinha do marido dela e deves ser tratada como tal. Usar-te como serva não é, de modo algum, apropriado. Aqui, és minha convidada.

 

Eu... As suas palavras deixaram-me surpreendida. Apercebi-me, para minha surpresa, de que acabara por aceitar as tarefas que a minha tia me impunha de bom grado. Na realidade, quase que gostava de as executar. A tia Aisling sempre foi muito bondosa. As crianças não me dão nenhum trabalho. Mas agradeço a tua amabilidade. Estou ansiosa por gozar algum tempo de tranquilidade, algum tempo só.

 

Devo confessar disse Eamonn cuidadosamente que isso não é exactamente o que eu pretendia. Apesar de poderes ter solidão e paz, se é isso que desejas. Os meus motivos não são, exactamente, desinteressados. Suponho que sabes isso.

 

Lancei-lhe um olhar rápido e pousei de novo os olhos na minha taça. Quereria ele dizer o que eu estava a pensar? Certamente que não.

 

Tinha esperança continuou ele de que pudéssemos passar algum tempo juntos. É claro que tenho de tratar dos assuntos da propriedade e as crianças parecem gostar da tua companhia. No entanto, restam os fins de tarde. E se este tempo se mantiver, podemos cavalgar juntos. Há aqui boas terras: campos de pastagens, vales arborizados e uma queda de água. Gostaria de te mostrar isso tudo.

 

Andar a cavalo? perguntei. Isso não é o meu forte.

 

Portaste-te bem na viagem para cá, Fainne. Creio que aprendes depressa.

 

Sorri.

 

Já mo tinham dito.

 

Ele olhou para mim fixamente e havia um brilho nos seus olhos que a minha avó teria reconhecido.

 

E Eu sou um bom professor disse ele suavemente. Descobrirás isso quando me conheceres melhor. Senti-me corar.

 

Não tenho dúvidas disso murmurei. Ele queria mesmo dizer aquilo. Mal podia acreditar. Porque não usara nenhum dos pequenos feitiços que a minha avó me ensinara desde que partíramos de Sevenwaters. Não o encorajara de modo algum. No entanto, o que ele me dizia parecia claro. Era ao mesmo tempo estranho e preocupante. Tanto quanto as boas maneiras me permitiam, aleguei cansaço e retirei-me para a segurança solitária do meu quarto.

 

O tempo, apesar de frio, manteve-se bom. As minhas primas exploraram a grande casa com as suas paredes sólidas de pedra e o seu telhado de colmo, exploraram as vacarias e os celeiros, ajudaram a dar de comer às galinhas e levavam pequenos mimos aos habitantes dos bem apetrechados estábulos de Eamonn. Eilis tentava ganhar a amizade de um grande cavalo preto, muito mais alto do que ela. Apercebi-me de que ela tinha esperança de montar aquela criatura assustadora, mal conseguisse convencer o tio. Eu invejava a sua confiança. Clodagh descobriu a saída do labirinto e mostrou-a às outras com uma certa superioridade. Deirdre caiu no lago ao correr atrás de uma boa e tiveram que lhe secar e limpar a roupa à lareira. Mantinham-se ocupadas e os sorrisos regressaram aos seus rostos ansiosos. Sibeal continuava calada. Trouxera a sua pequena tabuinha de Sevenwaters e enquanto as irmãs corriam atrás umas das outras pelos caminhos, atiravam a bola, ou davam cenouras aos cavalos, ela era vista a escrever letras cuidadosamente na superfície de cera com um pequeno estilete. Eu era a única a quem ela mostrava o seu trabalho para ser corrigido, um facto que não passava despercebido.

 

Também escreves bem? perguntou-me Eamonn, mais tarde, quanto estávamos sentados no salão depois da ceia. Tinham estado outras pessoas presentes antes da refeição: o brithem, o feitor, o mestre-de-armas e vários homens pertencentes à casa acompanhados das esposas. Mas Eamonn, assim parecia, não comia acompanhado. Ali não era como em Sevenwaters, onde todos se reuniam à hora da ceia e a conversa era animada e pontuada de gargalhadas; onde as crianças se sentavam à mesa com os pais e os trabalhadores partilhavam o faito do seu trabalho com os donos da casa. Ali, o pequeno grupo de conselheiros de confiança reunia-se para discutir assuntos sérios: disputas territoriais, negócios

 

Espécie de pomba (N.T.)

 

de gado, problemas com as armas, o envio de homens que iam buscar mercadoria a um barco que tinha atracado algures. As mulheres pouco contribuíam, mas eu pude ver que estava a ser atentamente observada. Era só conversa de homens. Eu escutava atentamente, mas não percebia patavina. Já era suficientemente estranho ter sido incluída naquele grupo. A princípio, a minha presença deu azo a alguns sobrolhos levantados e até a uma piscadela de olho de um sujeito, apesar de eu reparar que eles se certificavam, primeiro, de que Eamonn não estava ver. Então, quando chegou a ocasião de servir a refeição, desapareceram todos como se devido a uma ordem silenciosa e eu fiquei com Eamonn, sentada com algum esplendor a uma mesa cuja bela madeira de carvalho brilhava como um espelho. Evitei fazer qualquer comentário, se bem que me teria sentido muito melhor a cear com as minhas primas e a dama-de-companhia delas no seu quarto, ou comendo qualquer coisa a um canto da cozinha, ou onde quer que fosse que as restantes pessoas de Glencarnagh comiam. Pensei em peixe assado numa pequena fogueira, com um nabo ou dois misturados para dar um certo travo. O meu lugar não era na companhia daquele homem, não percebia o que ele queria de mim. Usei as maneiras à mesa que a minha avó me ensinara, disse pouco e, por fim, a refeição terminou e fomos sentar-nos à lareira com uma garrafa de vinho em cima da pequena mesa. Foi então que ele comentou a ajuda que eu dava a Sibeal com as letras.

 

Sim, eu sei ler e escrever disse eu cautelosamente. Sou capaz de transcrever Latim para Irlandês e Irlandês para Latim. Sou capaz de escrever com muita perfeição. O ensino foi excelente.

 

Suponho que foste ensinada numa casa de oração; no entanto, sei que uma santa irmã não pode aspirar à educação que é dada a um jovem nesse estabelecimento. É evidente que planeavam um futuro para ti intramuros. Mas tu não te converteste à fé cristã.

 

Como sabes que não me converti? perguntei-lhe, pensando até onde iria a conversa antes de eu ter que mentir.

 

Sei que Conor ficou impressionado com as tuas capacidades e conhecimento e que falou a Sean na possibilidade de te juntares aos irmãos e irmãs na floresta. De certo modo, herdaste os dons do teu pai. Disseram-me que ele foi um druida. Acho isso interessante.

 

Não lhe dei qualquer resposta. O vinho era bom; aquecia-me o coração e tornava-me a cabeça mais leve. Eamonn parecia capaz de esvaziar taça após taça sem qualquer efeito visível.

 

Queres saber o que eu penso? perguntou. Eu não disse nada.

 

Penso que seria um desperdício.

 

O quê?

 

Tornares-te druida. Tu gostas de crianças, vê-se bem. Penso que não te oporias às... às oportunidades que uma vida cheia te pode oferecer.

 

Olhei para ele o mais de frente que consegui, o que não era fácil depois de todo aquele vinho.

 

Eu posso achar que uma vida cheia é uma vida dedicada ao espírito disse eu severamente. Ao espírito e à mente. Fui educada a pensar assim.

 

Mas não acreditas, pois não, Fainne? Ele aproximara-se e, subitamente, eu senti-me cansada, desconfortável, como se ele me estivesse a sondar, a cheirar, do mesmo modo que um predador cheira a sua presa. Metia-me medo o facto de lhe ter permitido que assumisse o controlo com tanta rapidez.

 

Não sei disse eu engolindo em seco. Só tenho quinze anos e o meu futuro é incerto. Terei de fazer algumas escolhas. Suponho que o meu tio Sean me guiará.

 

Mas, disse ele suavemente, e a sua mão pegou no jarro de vinho que estava em cima da mesa, roçando pelo meu braço ao passar, como que por acaso não deves escolher às cegas. Seria sensato da tua parte se explorasses algumas possibilidades antes de decidires. Não seria?

 

Talvez disse eu, desejando deixar de tremer, desejando que o meu coração deixasse de saltar.

 

Não tens razão para ter medo de mim disse Eamonn.

 

Não era capaz de responder àquela declaração e, assim, ignorei-a. A minha mão moveu-se para agarrar no amuleto, esperando desesperadamente por uma inspiração qualquer. Respirei fundo. Talvez a melhor defesa fosse o ataque.

 

Posso fazer-te uma pergunta? disse eu.

 

As que quiseres.

 

A mim, parece-me que esta casa é uma casa de família. Uma casa confortável, agradável; está cheia de luz. As pequenas gostam dela; é segura e elas sentem-no.

 

Eamonn inclinou a cabeça numa aparente concordância, mas os seus olhos estavam desconfiados.

 

O dono de uma casa assim deve ser um anfitrião cuidadoso continuei. Está impecável, na sua beleza e conforto. É uma casa... é uma casa feita para agradar a uma mulher e para abrigar os seus filhos. No entanto, tu não tens nada disso aqui. Parece-me estranho.

 

Seguiu-se um silêncio e eu comecei a arrepender-me das minhas palavras arrojadas.

 

Peço-te desculpa se te ofendi acrescentei. Eamonn olhou para mim e depois para longe.

 

De facto, tu dizes o que pensas. Quanto a Glencarnagh, pertencia ao meu avô antes de eu a herdar. Seamus Redbeard, era como lhe chamavam. Casou tarde pela segunda vez e melhorou as condições aqui para agradar à sua jovem esposa. Sempre foi uma óptima casa. Mas eu não vivo aqui; venho de visita de tempos a tempos e tenho gente que a mantém. A minha outra casa é diferente.

 

Uma fortaleza rodeada de pântanos? Foi o que eu ouvi.

 

É verdade. Talvez a aches um lugar mais apropriado para um homem de meia-idade solitário.

 

No entanto, decidiste manter Glencarnagh como está. O jardim deve ser muito belo na Primavera. Por que razão te darias a tanto trabalho se mal o vês?

 

Outro pequeno silêncio.

 

Há uma resposta simples para isso. Posso dizer que é para que pessoas como tu, ou como as minhas sobrinhas, o possam gozar quando vêm de visita.

 

Mas?

 

Ele fez uma careta.

 

Interessa a razão? perguntou. A esperança morre, mas as pessoas continuam. Glencarnagh é uma concha vazia, Fainne. Um santuário para o que nunca aconteceu. No entanto, não consigo desfazer-me desta casa. Seria... seria o fim dos meus sonhos. Sonhos que deviam ter sido enterrados há muito.

 

Olhei para ele.

 

Isso é terrível disse eu já sem o medo que sentira. Como podes dizer isso?

 

Eu só queria disse ele suavemente olhando para o vinho na sua taça eu só queria o que qualquer homem razoável quer. Uma esposa, um filho, a minha casa, a minha terra, a oportunidade de poder alimentar a minha gente e cumprir o meu dever. Nunca dei um passo em falso, Fainne. Segui sempre as regras. E então, bastou um estalar de dedos para que tudo me fosse roubado, não por um homem superior, coisa que eu teria compreendido, mas por um miserável que mais valia ter morrido no berço do que viver para ver a luz do dia. Os seus dedos apertavam a taça com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. Roubaram-me tudo o que interessava. Até me roubaram a oportunidade de me vingar. Pior ainda, forçaram-me a uma aliança profana com uma criatura cujo nome desprezo. No entanto, mantenho esta casa alegre e fresca, como se a Primavera caminhasse pelas suas paredes, quando a neve do Inverno enche os campos lá fora. Como se, mesmo agora, houvesse hipótese de ela regressar.

 

Ele tinha-me deixado sem palavras. Fiquei ali sentada calada, esperando que o ritmo do meu coração abrandasse, achando que me tinha enganado em mais do que uma coisa. Achando que, no fim de contas, os pequenos truques da minha avó não seriam de grande ajuda ali, porque aquele homem só desejara uma mulher, a única que nunca poderia ter.

 

Estás... estás a falar da minha tia Liadan, não estás? perguntei, finalmente.

 

Foi Sean que te falou nisso? perguntou ele vivamente.

 

Não disse eu o mais calmamente que consegui. Adivinhei.

 

Tu foste muito claro no teu discurso. Mal suportas ouvir o seu nome; no entanto, parece quereres dizer-me que ainda a amas.

 

Amar? O seu tom era amargo. Em tempos, pensei que compreendia o significado dessa palavra. Mas agora não. Entre um homem e uma mulher tem que haver o dar e o receber. Talvez seja, aliás, a única coisa. Não pode ter sido o amor que fez com que ela tivesse feito o que fez. Foi, antes, uma espécie de luxúria perversa, que a levou a esquecer quem era e o que tinha prometido.

 

Mas isso foi há muito tempo disse eu. E tu pareces ainda zangado.

 

Foi então que ele pareceu lembrar-se de onde estava e com quem estava a falar. Vi-o respirar fundo e forçar as feições a descontraírem-se um pouco.

 

Desculpa, Fainne. Nem acredito que te disse isto tudo. Esqueci-me de mim próprio e só te peço perdão. És demasiado nova para suportares uma tolice destas.

 

Ele era um seguidor de regras. Fora o que Muirrin dissera. Devia ser-lhe doloroso aperceber-se de que se tinha aberto com uma mera rapariga, ainda por cima de recente conhecimento. Formulei a minha resposta com cuidado.

 

Eu não fui criada como as outras raparigas. Por favor, não deixes que isto te perturbe.

 

É a inocência que fala por ti replicou ele, franzindo o sobrolho. Foi incorrecto da minha parte, indisciplinado e inapropriado.

 

Não acho disse eu calmamente. A mim, parece-me que é um fardo que tu carregas há muito tempo. Vais levá-lo contigo para a sepultura?

 

Fainne! Fiquei chocado. Posso ser um velho pelos teus padrões, mas não tenho qualquer intenção de morrer já.

 

No entanto disse eu vais para a batalha este Verão. Uma empresa de grande perigo, de grande risco. Parece que te preocupas pouco com o futuro do teu nome e dos teus domínios. Talvez não temas a morte. Porém, é melhor libertares o teu espírito desse ódio todo. A deusa chama quando lhe apetece, não quando nós escolhemos atravessar a margem.

 

Tu és uma rapariga estranha, Fainne disse Eamonn, pegando na minha mão e levando-a aos lábios. Não sei o que fazer de ti.

 

E eu de ti, disse eu, retirando a minha mão. Não sei o que queres de mim.

 

Neste momento disse ele sem sorrir creio que são horas de te ires deitar. Tira uma vela daquela prateleira, ali ao pé da porta.

 

Eu...

 

É melhor ires, Fainne. Esta noite sou uma pobre companhia. Assim, deixei-o em frente da lareira com o jarro de vinho a seu lado e tentei imaginar quantas taças necessitaria de beber antes de cair no esquecimento.

 

Pus-me em frente do espelho. Um espelho muito bonito; o bronze polido devolveu a luz das velas, brilhando com um calor dourado. Em redor da moldura, o metal estava gravado num padrão intrincado: laços, uma corrente tripla, com embutidos ovais, aqui e ali, de esmalte. Escarlate, dourado, azul-escuro como o oceano insondável. Era o espelho de um homem rico. O meu reflexo olhava para mim, as suas formas suavizadas pelo tom rosado do metal, uma rapariga outonal. Olhei para mim própria e ouvi as palavras de Eamonn. Sou um bom professor, dissera e quando pensei naquilo, deixei de ter dúvidas quanto às artes que ele acreditava poder partilhar comigo. A rapariga no espelho não era a espécie de rapariga que enchia um homem de desejo. Os seus cabelos curtos encaracolados; eram da cor das chamas, avermelhados. Os seus olhos eram de uma cor púrpura intensa, da cor das amoras maduras. Os lábios eram severos A boca era a de um eremita, feita para recitar o conhecimento, ou para orar na solidão. Não eram lábios feitos para beijar, murmurar palavras doces, ou cantar canções de amor. A pele era pálida, as faces sem cor. Mas o meu corpo tinha mudado quase sem eu dar por isso. Estava a desenvolver curvas aqui e ali, de modo que a estranha e alta rapariga estava agora a ficar com tudo nos seus devidos lugares. O pé torcido continuava ali. Não havia cura para aquela herança de um acasalamento proibido, pensei, furiosa. Mas, apesar disso, eu não parecia... desagradável. Sorri para mim própria no espelho e o pequeno amuleto que me pendia do pescoço brilhou, apanhando a luz das velas. O meu sorriso enfraqueceu. Era uma tolice acreditar que pudesse ser outra pessoa. A beleza não era nada. Que tinha conseguido a minha mãe com a beleza? Fora vendida pelo mais alto preço e fora miserável durante o resto da sua curta vida. No entanto, nas observações sugestivas e olhares de viés de Eamonn estava a origem da solução do meu problema; o começo de uma estratégia para atingir o objectivo da minha avó. Podia ouvi-la: Esse homem é poderoso. E é corruptível. Aproxima-te dele, faz com que ele te deseje. Usa-o, Fainne.

 

Mas eu não podia fazê-lo. A perspectiva punha-me doente. Era usar a arte erradamente e sabia que não conseguiria fazê-lo. Vesti a camisa de noite e subi para a cama, consciente do espelho brilhando suavemente à luz da pequena lareira. Faltava-me a força. O meu corpo tremia só de pensar. Como poderia eu fazê-lo, quando as palavras que o homem dissera me faziam tremer? Era errado. Manipular um homem assim, para que ele ansiasse por mim como um cão por um pouco de calor, dobrá-lo à minha vontade para que ele fizesse o que eu queria, era perder o respeito por mim própria. Nunca compreenderia os homens, quanto mais mentir a um e fazer tudo o que a minha avó me dissera que os homens e as mulheres fazem juntos. Só o pensamento me desgostava. Tinha de haver outra maneira. Ir a Glencarnagh fora um erro.

 

Não te estás a esquecer de nada?, disse a pequena voz interior. E o teu pai? Agarra esta oportunidade, Fainne. A aliança já balança no fio de uma faca. Escolhe o ponto mais fraco, porque é o mais frágil. Esse homem fala contigo. Fá-lo falar mais. E lembra-te que é no quarto que os homens dizem os seus maiores segredos. Tapei os ouvidos com os dedos, como se pudesse silenciar aquela voz interior. Enrolei-me sob os cobertores. Mas não tinha ali Riona para me ajudar a manter a voz afastada. Não tinha meios para silenciar a sua mensagem inexorável. Não precisava de olhar para o espelho para ver a imagem do meu pai, arfando, lutando por respirar, usando todos os restos de controlo que ainda possuía para não gritar de dor quando sentia como que uma mão de ferro agarrando-lhe o coração, roubando-lhe o ar. Senti o amuleto quente, pequeno e duro contra o meu peito. Tens de continuar, disse a voz vezes sem conta. Pelo teu pai. Deves-lhe isso. Até ao fim, Fainne. Mesmo até ao fim.

 

A chuva regressou e não se podia andar a cavalo. Eamonn ensinou-me a jogar brandubh

 

Uma versão um pouco mais sofisticada do jogo das pedrinhas. Fiquei feliz por isso. O grau de concentração necessário para antecipar o movimento estratégico seguinte do adversário significava que não se podia manter uma conversação ao mesmo tempo. Sentados defronte um do outro com uma pequena mesa e o tabuleiro do jogo entre os dois, significava que não nos podíamos tocar. As peças do jogo eram maravilhosamente esculpidas, o próprio tabuleiro estava decorado com embutidos intrincados de madeira. Começámos um jogo experimental e quando ele viu que eu já sabia as regras começámos a jogar a sério. O nosso terceiro jogo a sério durou até muito tarde. Os restantes habitantes da casa já estavam deitados e nós os dois continuávamos, sozinhos, à lareira. Eamonn bebia continuamente como era seu hábito. Eu dava pequenos goles do meu vinho, mas bebia o menos possível. Era necessário manter a cabeça lúcida para aquele jogo e também para o jogo ainda mais subtil, mudo, que continuava entre nós por meio de gestos e olhares. Antes do amanhecer, as peças negras tinham vencido as brancas e eu tinha ganho. Eamonn estava bastante surpreendido.(N.T.)

 

Bem comentou ele com o sobrolho ligeiramente franzido. Estou a ver que tenho de ter cuidado contigo, Fainne.

 

Com um grande bocejo, não resisti a acrescentar: Já me tinhas dito que eras um bom professor.

 

E tu disseste que eras uma boa aluna. E era verdade. Tu aprendes muito depressa para o meu gosto.

 

Preferias que te deixasse ganhar? perguntei, erguendo as sobrancelhas.

 

Claro que não. A sua resposta foi brusca. Surpreendeste-me, apenas. Geralmente, a mente da mulher não tem a capacidade de apanhar os padrões intrincados deste jogo e usá-los para vantagem própria. Na próxima vez, estarei de sobreaviso. Não te dei o devido valor como adversário.

 

E não gostas de perder. Aquelas palavras saíram-me antes de eu as poder reter.

 

Ele semicerrou os olhos enquanto me olhava.

 

Um dia, a tua franqueza trar-te-á problemas disse ele suavemente. Será melhor travares um pouco essa língua quando estiveres com outras pessoas. Mas não dizer mais do que a verdade. Eu não aceito facilmente a derrota. Aventuro-me sempre esperando ganhar.

 

E perdes muitas vezes?

 

A longo prazo, nunca.

 

Mas...

 

Um homem que me tire o que é meu, é pago na mesma moeda. Ele pode esquecer o que fez. Eu nunca esqueço.

 

E se esse homem se tornasse teu aliado? perguntei. Não seria, então, uma escolha impossível?

 

Seguiu-se uma pequena pausa. Os dedos dele apertaram a taça de vinho como se estivesse a estrangular um inimigo.

 

Um homem desses nunca pode ser considerado um aliado disse ele severamente. Mais vale confiar num monstro qualquer do Outro Mundo do que num homem assim. Os códigos normais de família e lealdade não se aplicam nessa situação. Mais valia que uma criatura assim nunca tivesse nascido.

 

O seu tom desanimado alarmou-me. Lamentei ter feito a pergunta. Peguei na minha vela e ele pareceu voltar a si.

 

É muito tarde. Está quase a nascer o dia. De manhã, é melhor ficares mais um pouco na cama, porque estás muito cansada.

 

Talvez. Mas eu estou habituada a dias longos e a levantar-me cedo. Obrigada pelo jogo. Gostei muito. E tinha gostado. Era bom exercitar a mente noutra coisa qualquer que não o desafio impossível que a minha avó me tinha exigido. Era bom concentrar-me noutra coisa que não a imagem do rosto queimado de Maeve, que, por algum tempo, desaparecera da minha mente. Quando regressasse a casa, talvez o pudesse ensinar ao meu pai... não, é melhor não pensar nisso. Devia estar mesmo cansada.

 

Sentes-te bem? perguntou Eamonn, dando um passo em frente e pegando-me no braço. Estás pálida. Fiz com que ficasses a pé até muito tarde.

 

Não é nada. Isto já passa.

 

Nesse caso, boa noite. Ou talvez devesse dizer bom dia. Geralmente, ele acenaria com a cabeça ou agarrar-me-ia a mão para se despedir. Desta vez, inclinou-se e deu-me um pequeno beijo na face. Não teve qualquer importância. Foi leve e rápido. Mas eu vi o seu olhar.

 

Boa noite disse eu rapidamente e retirei-me para o meu quarto. Meti-me debaixo dos macios lençóis de linho e dos suaves cobertores de lã, tão cansada que deveria ter adormecido mal a minha cabeça tocou na almofada, mas incapaz de evitar que a minha mente trabalhasse continuamente. Era óbvio o caminho que a minha avó queria que eu seguisse. Na realidade, era evidente que a tarefa que ela me tinha imposto não era, afinal de contas, tão impossível como eu julgara, se me propusesse a fazer o que devia em relação a Eamonn. Mas, como fazê-lo? Como suportá-lo? Quando o dia surgiu e um galo começou a cantar ruidosamente no pátio, adormeci com os meus problemas sempre às voltas na minha cabeça.

 

Não dormi muito. Houve uma alteração no tempo húmido e as raparigas estavam ansiosas por ir para o exterior, apesar do frio cortante. Tinham chegado visitantes, que já estavam reunidos com Eamonn na sala do conselho. Também ele devia ter dormido pouco. Havia belos cavalos a serem tratados nas cavalariças e belas capas a secar diante das lareiras da cozinha. Ninguém parecia disposto a dizer quem eram os visitantes. Talvez ninguém soubesse. Saímos para passear, as cinco, vestidas com pesadas capas de capuz e robustas botas de Inverno. O Sol lutava para emergir das nuvens ainda escuras da chuva e o vento era cortante, mas as raparigas sorriam. Estavam contentes por poderem estar, de novo, ao ar livre.

 

Está-se bem aqui observou Deirdre podemos passear à-vontade sem nenhum homem de armas sempre à nossa frente barrando-nos o caminho.

 

Eilis saltitava por cima das poças de água. Um, dois, três... upa! Um, dois, três... plof! Ia precisar de mudar de roupa quando regressássemos a casa. Enquanto caminhávamos por um carreiro entre sebes de teixo bem aparadas, em direcção a uma pequena clareira de aveleiras de ramos nus, reparei que, afinal de contas, havia guardas. Não surgiam de repente, como Deirdre afirmara. Apenas uma presença discreta a uma distância conveniente. Homens vestidos de verde, bem armados e silenciosos. Uma pessoa podia passear, mas não sem vigilância. Era para nossa segurança, suponho. No entanto, aquilo irritou-me. Pensei em Kerry e o modo como Darragh e eu trepávamos pelos rochedos como cabras selvagens e corríamos para trás e para a frente à beira-mar sem que as nossas famílias pensassem se estaríamos em segurança ou quando regressaríamos a casa. Sabiam que estávamos em segurança porque estávamos juntos. O meu coração doía-me de desejo de voltar a ser essa rapariguinha. Mas não valia a pena reviver o passado; a roda não parava.

 

Deirdre queria trepar às árvores. Entalou as saias no cinto e trepou com uma agilidade impressionante, mostrando as pernas de uma maneira pouco feminina. De imediato, Eilis pediu para a ajudarem a fazer a mesma coisa.

 

Bebés troçou Clodagh, enquanto segurava a irmã mais nova e a ajudava a subir para o ramo inferior, mas o brilho dos seus olhos dizia que não ficaria atrás da irmã gémea e em breve saltitavam as três como esquilos, balouçando-se perigosamente nos ramos sem folhas.

 

Sibeal estava sentada numa pedra lisa, próxima do local onde o ribeiro, engrossado pela água da chuva, desaguava numa pequena lagoa. A água estava coberta de espuma e a corrente forte, mesmo naquele local de repouso temporário. Sibeal estava sentada de pernas cruzadas, as mãos no colo e as costas muito direitas. Estava numa posição de meditação, imitando Conor. O seu olhar estava fixo na água. Instalei-me calmamente nas rochas a seu lado.

 

Passou algum tempo. Os sons surgiam e desapareciam; o riso e os gritos das outras, o gemer dos ramos, o chamamento dos pássaros; a voz da própria água, enquanto descia em cascata para a lagoa. O Sol, subitamente, mostrou o seu rosto por entre as nuvens, a luz tocou a superfície da água, penetrante, estonteante no seu brilho. A espuma ficou dourada e as rochas molhadas cintilaram.

 

No meu outro lado, alguém estava acocorado; alguém mais ou menos do tamanho da minha prima, mas coberto de penas. De certo modo, foi possível falarmos silenciosamente.

 

Tu outra vez.

 

Desapontada? Quem esperavas?

 

Eu não vim para aqui à procura de seres do Outro Mundo.

 

Ah-ah Se a voz da mente pudesse exprimir descrença, aquilo seria o que a criatura estava a transmitir.

 

Eu não vim chamado por ti, mas sim por ela.

 

Pela... minha prima? Ela chamou-te?

 

Ela abriu o caminho, de modo a eu poder vir. O que ela vê é uma coisa totalmente diferente. Ela olha para a água. Vê o futuro e o que ele lhe trará. Eu estou aqui por ti.

 

Por que razão me procurarias? Eu já estava bastante confusa. A última coisa que eu queria era outro diálogo críptico que fazia mais perguntas do que dava respostas.

 

Estás confusa. Sinto-o. Perdeste o rumo, se é que alguma vez o tiveste. E não sabes a quem pedir a direcção.

 

Eu não preciso de perguntar a direcção a ninguém. Eu sou capaz de encontrar o meu próprio rumo. O meu pai ensinou-me a resolver os meus próprios problemas.

 

E resolverás. Não temos dúvidas nenhumas. Mas estás a perder tempo. Que tal um pequeno conselho?

 

Um conselho teu? Acho que não. Nem sequer sei quem és, ou o que és. A pequena criatura parecida com um mocho agitou as penas, soltando uma ou duas que flutuaram no ar à minha frente, delicadas, pequenos fragmentos castanhos, como as últimas folhas de Outono. No meu outro lado, Sibeal continuava sentada, imóvel, o olhar claro fixo na água.

 

O que eu sou? repetiu a criatura. O que somos. Olha para nós, Fainne. Se não consegues adivinhar com esse conhecimento druídico todo, a tua educação foi desperdiçada.

 

Nós? perguntei e enquanto a voz falava na minha mente, vi, sem abrir os olhos, um movimento na paisagem, uma mudança, um desdobramento, como se o pequeno riacho, as grandes rochas e as fendas na terra se enrugassem e se afastassem para revelar o que sempre ali existira se uma pessoa soubesse como procurar.

 

Reuniram-se à minha volta em círculo, silenciosos. Nenhum era mais alto do que uma criança; eram todos diferentes uns dos outros, cada um de algum modo parecido com uma criatura conhecida, uma rã, um esquilo, talvez um bácoro, sem bem que alguns se parecessem como pequenas plantas, ou arbustos; cada um deles era único à sua maneira. Não eram animais, mas também não eram humanos. Olhei mais de perto. Havia um que tinha um único olho no meio da testa e outro tinha apenas uma perna, apoiando-se numa pequena muleta feita de vidoeiro. Outro tinha rugas profundas por todo o corpo como uma maçã encarquilhada; outro parecia estar coberto, da cabeça aos pés, de musgo cinzento-esverdeado.

 

Vocês são... vocês são... hesitei.

 

Continua. A criatura-mocho acenou com a cabeça encorajadoramente. Quem foram os primeiros na terra de Erin?

 

Foram vocês? aventurei-me.

 

Ouviu-se um aprovador coro de risadinhas, murmúrios, pios e grunhidos.

 

Nós somos os Anciãos. Fora a criatura coberta de musgo, parecida com uma rocha, que falara. A sua forma era sólida e sem membros discerníveis, mas, no entanto, tinha uma espécie de rosto; uma fenda no lugar da boca e manchas avermelhadas de líquen que poderiam ser os olhos. Nós somos os teus antepassados.

 

O quê? Quase falei em voz alta de espantada que fiquei. Vocês? Como é possível?

 

Seguiu-se uma série de gargalhadas à minha volta. Sibeal não se mexia.

 

Teus antepassados e da tua prima. Mas ela não nos vê. Ela vê outra coisa. Pareces chocada. A criatura-mocho fixou os seus grandes olhos redondos em mim. Nunca pediste ao druida que te contasse a história, pois não? De que tinhas medo? A história fala de uma união, há muito tempo, entre um homem de Gaels e uma mulher da nossa espécie. A linhagem de Sevenwaters surgiu desse acasalamento. E tu és filha de Sevenwaters.

 

Não me parece. Franzi o sobrolho. Não fui criada a amar a floresta como esta gente. O meu caminho é diferente.

 

Havia ali uma criatura que parecia feita de água; a sua forma modificava-se e fluía e através dessa fluidez eu podia ver os rochedos e a erva para além dela. A sua forma não era muito diferente de uma pequena criança com cachos de algas a fazerem de cabelos.

 

Todas regressam. A sua voz parecia a voz de um riacho a correr por entre seixos lisos. Todas as crianças regressam à floresta. Mas isso já não chega.

 

Tu regressaste disse a criatura-mocho. Podes querer negá-lo, mas és um de nós.

 

Isso é um disparate. Estavam a tentar enganar-me. A tentar fazer-me revelar qual era o meu objectivo. Eu sou uma rapariga mortal, mais nada. Sou meio-irlandesa e meio-bretã. Uma mistura. Estou tão longe de vós como... como...

 

Como um cão vadio está longe dos misteriosos padrões das estrelas? É isso? Agora, irritei-te. E provei o meu ponto de vista.

 

Que ponto de vista? Que queres dizer?

 

Estás a ver as pequenas labaredas que se acendem no teu cabelo quando te zangas? Eu não conheço nenhuma rapariga mortal que faça isso! Nós sabemos quem tu és.

 

Ah sim? A conversa começava a alarmar-me. Reprimi a vontade de utilizar a arte. Não me podia revelar assim sem mais nem menos. E o que é que eu sou?

 

A criatura musgosa falou de novo.

 

Isso mesmo, uma mistura. Uma mistura muito perigosa. Uma mistura de quatro raças. Por que razão te mandou o teu pai para aqui? Por que razão vir agora, no fim de tudo?

 

Aquelas palavras gelaram-me. Tinha de tentar assumir o controlo da situação.

 

Diz-me disse eu. Os Fair Folk querem ganhar a batalha, não querem? Recuperar as Ilhas? É isso que queres dizer com o fim de tudo? Mas eles já têm muito poder. Os deuses e deusas Túatha Dê não são capazes de controlar os ventos e as ondas, capazes de derrotar exércitos inteiros e de destroçar o mais forte opositor? Por que razão não recuperam, simplesmente, as Ilhas sozinhos? Qual é a necessidade de morrerem humanos, geração após geração nesta longa guerra? Esta família já perdeu muitos filhos. Por que é que vocês fazem isto a esta gente? A esta gente... inferior?

 

Seguiu-se uma série de sussurros, murmúrios e resmungos no círculo de pequenas criaturas estranhas. Sobrolhos franzidos; caudas agitadas; penas eriçadas e narizes torcidos de desprezo.

 

Gente inferior? A criatura musgosa falou com voz profunda e seca. Mas eles acharam-nos inferiores quando nos baniram para os poços, cavernas e profundezas do mar; para as ilhas selvagens e para as raízes dos carvalhos. Mas, apesar disso, ainda cá estamos. Estamos e somos sábios. Os tempos mudam, minha filha. A ordem muda. É assim com os Túatha Dê. Com a chegada dos filhos de Mil, a estrela deles começou a apagar-se. Os seus dias ficaram contados. O teu pai e o arquidruida estão entre os últimos sábios desta terra. Bem pode Conor chorar a perda do seu aluno mais capaz, pois não haverá mais nenhum como ele enquanto os homens existirem na terra, nem no tempo dos filhos dos seus filhos, nem dos filhos dos filhos deles. O homem gosta do poder e da influência, busca horizontes longínquos e riquezas inalcançáveis. Pensa que pode possuir o impossível. Derruba as velhas árvores para alargar os seus pastos; mina as grutas profundas e derruba as pedras que estão em pé. Abraça uma fé nova com fervor e, talvez, com sinceridade. Mas afasta-se, cada vez mais, das coisas antigas. Já não ouve o bater do coração da sua mãe terra. Já não cheira a mudança do ar; já não vê o que está para além do véu das sombras. Até o seu novo deus é formado à sua própria imagem, pois não lhe chamam eles o filho do homem? De livre escolha, separa-se dos ciclos antigos do Sol, da Lua e das estações. E, sem ele, os Fair Folk perdem importância e ficam reduzidos a nada. Retiram, escondem-se e ficam reduzidos a duendes com os seus pequenos jarros de cerveja; a duendes que roubam o leite das vacas durante o Sambain; a fadas que, com os seus lamentos, pressagiam a morte. Não passam de uma recordação na mente de um velho frágil; uma história contada por uma velha louca. Isto já aconteceu antes, Fainne. E vai acontecer de novo brevemente. Os machados entrarão na grande floresta de Sevenwaters até não haver nada. Um velho carvalho aqui e além. Um bonito vidoeiro à beira do lago, onde em tempos uma família de crianças de olhos límpidos proferiam, ao mesmo tempo, o nome da sua mãe e o nome da grande Dana. O lago não será mais do que um charco quase seco. Não haverá refúgio para eles. E, depois de desaparecerem, também a nossa espécie desaparecerá. Já assistimos a isso.

 

Aquelas palavras calmas e medidas gelaram-me o sangue.

 

Isso não pode ser impedido? perguntei eu.

 

Já aconteceu antes. É o que tem que ser. Num mundo assim não há lugar para nós. À minha volta, as criaturas suspiraram em uníssono.

 

Nesse caso, por que razão é tão importante recuperar as Ilhas? Por que razão se há-de cumprir a profecia? A marca do corvo, o líder escolhido, etc., etc. Estás a dizer que, de qualquer modo, tudo se perderá. Os anos de fidelidade, a guarda da floresta pela gente de Sevenwaters, tudo para nada?

 

Ah. A questão é essa. Tudo se perderá no tempo; o lago, a floresta, os druidas, os senhores e os Fair Folk. Tudo o que vês. O invisível é que deve permanecer. A semente que espera dentro do fruto encarquilhado do Outono; a jóia guardada dentro da pedra silenciosa. O segredo guardado nas profundezas do coração. A verdade guardada no espírito. Quando as Ilhas não forem mais do que uma recordação entre os homens, o essencial tem de sobreviver. Por essa razão, a batalha tem de ser ganha, as Ilhas têm de ser reconquistadas antes que seja tarde de mais. Tudo deve acontecer de acordo com a profecia. Assim diz a deusa. As Ilhas são o Último Lugar. Lá está guardado o que há de mais precioso. Guardado até a roda girar por completo e chegar de novo o tempo em que o homem ouve de novo o bater do coração da terra e se liga à vida que ela encerra. Com a chegada do Filho da Profecia vem o guardião da verdade, o Vigilante da Needle. Isto tem de acontecer, ou estaremos todos perdidos. Acredita, os Túatha Dê não procurariam a ajuda dos humanos se não fosse preciso. Fere-lhes o orgulho serem forçados a humilharem-se assim. Mas só através da espécie humana poderá a profecia ser cumprida e os mistérios guardados em segurança.

 

Um momento. O Vigilante de Needle? Não me lembro de ter ouvido falar disso antes. Que quer dizer isso? Falas por enigmas.

 

A criatura musgosa abriu a boca parecida com uma fenda. Talvez estivesse a tentar sorrir.

 

Já devias estar habituada, pequena. O teu pai não é um druida?

 

Nós não te podemos dizer o que vai acontecer disse a criatura-mocho. As profecias e as visões nunca são tão simples como parecem. Vai haver uma batalha, derramamento de sangue e morte. Vai haver sacrifícios e choro. Essa parte é óbvia para todos. Mas não é a morte que importa. O que importa é a custódia. Aquilo de que não se fala. A custódia da verdade em tempos de escuridão e ignorância. Sem isso, desaparecemos todos e tu acabas por ter razão. Os anos de perda e dor não terão servido para nada. Por que razão me dizem isso tudo? Tremia como varas verdes. Se aquelas palavras eram verdadeiras, a demanda da minha avó era, seguramente, uma coisa abominável. Sabes quem eu sou e quem é o meu pai. Deves saber o que a minha avó é e o que fez. Não achas que estás a ser inconsciente ao revelares-me os teus segredos?

 

Achas? Disse a criatura aquosa com uma voz suave e calma. Nunca te ocorreu que todas as raparigas têm duas avós? Então, com um ligeiro movimento, um desdobramento, esconderam-se e desapareceram repentinamente. Viste-a? A voz de Sibeal assustou-me tanto que quase caí na lagoa.

 

Vi... quem? gaguejei.

 

A Dama. Viste-a?

 

Que Dama? Olhei para ela, pensando na profunda tranquilidade da sua expressão. Era óbvio que não se tinha apercebido dos meus estranhos companheiros.

 

A Dama da floresta. Não a viste mesmo? Ela esteve mesmo ali, no outro lado da lagoa.

 

Abanei a cabeça.

 

Não vi dama nenhuma disse eu. Ela vem aqui muitas vezes?

 

Algumas. Sibeal levantou-se sacudindo o vestido. Ela mostra-me imagens.

 

Imagens?

 

Na água. Vi Maeve.

 

Senti um arrepio de medo. Não disse nada.

 

Estava crescida, mais crescida do que Muirrin. Soube que era ela. Por causa do rosto.

 

Do rosto? repeti eu estupidamente, sem saber se queria ouvir a resposta.

 

Sim, as cicatrizes. E as mãos ainda feridas, tinha uma bonitas luvas calçadas. Vamos ter com as outras, agora?

 

Não. Conta-me o resto.

 

Que resto?

 

Maeve. Ela estava... ela estava bem? O que estava a fazer? Estava feliz?

 

Sibeal olhou para mim de relance, aparentemente surpreendida.

 

Estava a cantar para um bebé. Por que perguntas?

 

Por que é que achas? exclamei, exasperada, esquecendo que ela era apenas uma miúda. Claro que quero saber! Tu vês o futuro, não vês? Podes mostrar-me se ela vai sobreviver, recuperar e ter futuro! É claro que quero saber!

 

Não chores, Fainne disse Sibeal com ar sério, oferecendo-me o seu pequeno lenço de linho.

 

Eu não estou a chorar disse eu zangada, aborrecida por ter perdido facilmente o controlo de mim própria. De qualquer modo, não poderia chorar, mesmo que quisesse. Na nossa espécie, as lágrimas parecem amontoar-se, amontoar-se dentro de nós e nunca saem; um oceano de lágrimas inundando as profundezas do coração.

 

A única coisa continuou ela enquanto regressávamos lentamente para o maciço de aveleiras é que nunca temos a certeza de que o que vemos vai acontecer, ou se é apenas qualquer coisa que pode vir a acontecer. Ou pode ser apenas um... um símbolo.

 

Sabes o que isso significa? perguntei eu, divertida apesar de tudo.

 

Como a caveira da morte explicou Sibeal com ar sério. Ou um anel de promessa. Ou a luz alegre do Sol, ou o mistério das sombras.

 

Esquece disse eu. Tens a certeza de que só tens oito anos?

 

Acho que sim respondeu Sibeal, perplexa.

 

Naquela noite jantei sozinha. Eamonn tinha-se atravessado no meu caminho quando regressava ao meu quarto para trocar as botas enlameadas por uns sapatos macios e tentar domar o meu cabelo todo despenteado. Como se tivesse pressentido a minha presença, saiu da sala do conselho quando eu passava e fechou a porta atrás de si. Mas eu fora treinada para saber observar e vislumbrei dois homens de pé perto da mesa, dentro da sala. Até ouvi algumas palavras.

 

O filho é que é a chave disse o homem mais alto, de cabelos altos entrançados de modo a ver-se o rosto e de ombros desnivelados, como se tivesse um velho ferimento mal curado. O outro era mais baixo, mais velho, de feições rudes e severas e com uma barba grisalha. Ao fechar-se, a porta impediu que eu ouvisse a resposta.

 

Fainne disse Eamonn amavelmente, olhando-me de alto a baixo. Estou a ver que saíste. Tiveste uma manhã agradável?

 

Tive, obrigada. O seu olhar perspicaz fez-me sentir consciência das minhas faces afogueadas, do meu cabelo despenteado, do meu vestido amarrotado e do facto de estar ainda a arfar depois de ter regressado a correr do arvoredo. As raparigas estiveram a trepar às árvores.

 

Dormiste bem?

 

Bastante bem. E tu? Ele fez uma careta.

 

Hoje em dia, o descanso escapa-me. Pouco importa. Sugiro que esta noite te deites cedo, Fainne. Lamento, mas não posso jantar contigo.

 

Estes homens e eu estaremos sempre reunidos enquanto aqui estiverem. Confesso que gostaria de te mostrar a eles. Mas, nestas circunstâncias, seria pouco sensato. Os meus convidados partirão amanhã de manhã. Talvez possamos, então, dar aquele passeio a cavalo de que te falei, se as tuas primas te dispensarem por um dia.

 

Talvez disse eu, não sabendo se me sentia mais aliviada com a perspectiva de uma ceia descansada com as raparigas, seguida de um bom sono, ou alarmada com a ideia de um dia fora na companhia de Eamonn. Tu estás ocupado. Continua. Virei-me para me afastar e senti a sua mão fechar-se em redor do meu pulso. Para um homem da sua idade, ele era, realmente, muito rápido.

 

Estás zangada? Estás ofendida por eu te excluir? Falei sem me virar.

 

Por que havia de estar ofendida? Esta casa é tua; os assuntos são teus Não tenho a presunção de me querer imiscuir em qualquer um deles. Mal as palavras me saíram, soaram-me bastante agressivas.

 

Não? disse Eamonn suavemente, libertando-me. Ouvi de novo a porta a abrir-se e a fechar-se atrás de mim e fugi, confusa, pelo átrio fora na direcção do meu quarto. Que lugar era aquele no qual, ora estava no campo a falar com criaturas do Outro Mundo que diziam que o fim do mundo estava a chegar, ora estava a jogar um jogo qualquer impossível de entender com um homem que tinha idade suficiente para ser meu pai? Quem me dera ter outra vez cinco anos e a maior das minhas preocupações fosse a necessidade de mover as minhas pernas com velocidade suficiente para acompanhar Darragh! Não que isso, alguma vez, tenha sido um problema; nem uma única vez ele deixou de esperar por mim. Só no dia em que lhe disse que não precisava mais dele e o mandei embora.

 

Não valeu de nada deitar-me cedo, porque não dormi pacificamente. Fui atormentada por pesadelos; pesadelos dos quais acordava com a cabeça a doer e o corpo encharcado em suor, pesadelos dos quais não me recordo, excepto que me deixaram num estado miserável e mais confusa do que nunca. Tudo o que me lembrava era de correr, correr o mais depressa que podia, sem conseguir alcançar o que perseguia.

 

Mas o dia começou bem. Se estava à espera de passear apenas com ele, não pensei com lógica. Tinha de haver guardas, claro, homens vestidos de verde que nos acompanharam à distância. No fim de contas, aproximava-se uma batalha e os membros da aliança mal confiavam uns nos outros, quanto mais na oposição. Eu seguia na pequena égua que me trouxera até Glencarnagh; com ela, quase gostei do passeio. Demos, primeiro, a volta aos campos fechados, aos pastos mais acima e às pequenas aldeias asseadas, cada uma com a sua bem defendida fortificação. A maior parte dos campos era aberta: colinas suaves, grandes vales verdejantes, com aqui e ali um ribeiro franjado de salgueiros e sabugueiros. Havia muitas árvores, mas o local não tinha a quietude opressiva e abafada de Sevenwaters e eu gostava mais assim. Gostava mais ainda do facto de Eamonn parecer gostar de me explicar tudo, sem nunca sugerir que o passeio tinha outros propósitos que não o de me mostrar o que devia ser mostrado a qualquer hóspede. Fiquei mais aliviada e comecei a divertir-me, porque estava um dia lindo, a propriedade era muito bonita e havia muita coisa interessante. Vimos colmeias e falámos com o apicultor acerca das características curativas do mel. Inspeccionámos um pequeno dique e um moinho. Parámos numa das aldeias maiores, um grande recinto fortificado com uma poderosa muralha exterior de estacas, fechando a aldeia e o pequeno forte. Ali, um dos clientes livres de Eamonn, que era o chefe da comunidade, serviu-nos uma refeição de cerveja, pão e carneiro cozinhado com alho e permitiu-nos que descansássemos um pouco.

 

Estás a coxear observou Eamonn quando me sentei num banco e desapertei um pouco a bota. Magoaste-te?

 

Não é nada. Não consegui evitar a brusquidão na voz. E odiei-me por me preocupar tanto. Não usaria o Encantamento para rectificar a situação. Não depois daquela vez na feira. Não depois de Maeve.

 

Tens a certeza? Talvez seja melhor regressarmos imediatamente. Não quero que te canses.

 

Já disse que não é nada. Tenho um pequeno problema no pé, mais nada. Coxeio um pouco. Não tinhas reparado?

 

Eamonn abanou a cabeça ligeiramente e sorriu. Em seguida voltou a trocar notícias sociais com os seus anfitriões.

 

De regresso da aldeia, Eamonn falou em voz baixa com um dos seus homens de armas. Em seguida, foi ter comigo.

 

Gostarias de ver a cascata? perguntou ele. Deve estar bem grossa depois desta chuva toda. Não estás muito cansada?

 

Abanei a cabeça.

 

Óptimo. É do outro lado do monte, para oeste.

 

Enquanto cavalgávamos nessa direcção reparei que todos os guardas que nos acompanhavam, menos dois, tinham ficado para trás, aparentemente instruídos para esperarem onde estavam até ao nosso regresso. O caminho subia cada vez mais sob os ramos nus e entrelaçados dos vidoeiros e dos freixos e desembocava numa encosta aberta e rochosa. A minha pequena égua escolhia, com cuidado, o caminho pelo carreiro acima. Por cima de nós, o céu de Inverno estava sem nuvens, uma enorme tigela invertida de um azul-profundo e eu apercebi-me de uma enorme extensão à minha direita de campos, árvores e muros de pedra e, mais além, para leste, um escuro manto de árvores que marcavam a fronteira com Sevenwaters.

 

Não olhes ainda disse Eamonn por cima do ombro.

 

Fiquei um pouco alarmada devido a encosta do monte ser íngreme de um lado do carreiro e abrupta do outro, porque só podia confiar no instinto da minha montada. A ansiedade afastou outros pensamentos da minha mente e foi somente quando o som da água que se precipitava se transformou num rugido aos meus ouvidos e o carreiro se alargou, transformando-se numa larga plataforma relvada rodeada por grandes rochedos, que me apercebi de que os últimos guardas tinham sido deixados para trás. Eamonn ajudou-me a descer do cavalo e pareceu-me que as suas mãos se demoraram na minha cintura além do estritamente necessário.

 

O ruído da água estava por toda a parte, ecoando pelas paredes de rocha, martelando-nos os ouvidos, vibrando no solo onde nos encontrávamos. Havia espuma no ar e, sobretudo, uma humidade que tudo cobria.

 

Vem ver disse Eamonn elevando a voz para poder ser ouvido por cima do ruído. Mas tem cuidado. O piso está escorregadio.

 

De pé, num local especial, sobre a escorregadia superfície de pedra, mesmo à beira da plataforma, era possível vê-la. A queda de água estava mesmo ali, cerca de dois metros acima de nós. Podíamos observar a descida repentina e violenta, um véu rodopiante de água rebentando e salpicando por ali abaixo até uma lagoa invisível lá muito no fundo. A escarpa era suavizada por fetos, musgos e pequenas plantas que se agarravam à sua superfície fendida e estalada. Olhei para a torrente que descia e espumava e lembrei-me da plataforma no rochedo acima do Favo de Mel e da minha mãe a dar um único passo para o vazio e cair, cair através do ar impiedoso de encontro aos rochedos e às vagas alterosas em baixo. Pensei na arte e no truque que aprendi com a bola de vidro. Cai. Pára. Desce suavemente. Ninguém parara a sua descida. Nenhuma mão se esticara para a apanhar suavemente na palma e pousá-la docemente no chão. Eis a tua segunda oportunidade. Revive a tua vida. Em vez disso, fora-lhe permitido partir. Talvez o objectivo dela já tivesse sido cumprido. Ser o brinquedo de um homem rico. Quebrar o coração do meu pai. Dar à luz uma filha cuja mente estava tão confusa e infeliz como a dela. Uma vez isso feito, que importância tinha se ela esmagasse o seu pobre, belo e frágil corpo nos rochedos do Favo de Mel?

 

Fainne!

 

Talvez tivesse fechado os olhos. Talvez tivesse cambaleado, ou meu pé defeituoso tivesse deslizado um pouco na superfície traiçoeira. Quando Eamonn me chamou, senti de novo os seus braços em redor da minha cintura, agarrando-me firmemente e puxando-me para trás.

 

Cuidado disse ele abruptamente não me assustes.

 

Mas, quem agora estava assustada era eu. Pois ele não me largava, agora que estávamos de novo em segurança na relva. As suas mãos continuavam a segurar-me com força e ele estava muito próximo, tão próximo que eu sentia o calor do seu corpo e ouvia a sua respiração por cima do som da água.

 

Não quero perder-te, agora que te encontrei disse ele suavemente.

 

Eu... eu não sei o que queres dizer murmurei. Eu só queria afastar-me e libertar-me das suas mãos. Mas receava ofendê-lo. Eamonn virou-me de modo a encará-lo.

 

Pensei... por um momento pensei... não, esquece o que eu disse.

 

Pensaste que eu ia saltar?

 

Cair, talvez. Creio que hoje estás pouco firme. Já te disse, não é nada.

 

Estou preocupado por te ter exigido demasiado. Deixa-me ver esse pé. Talvez possamos improvisar uma almofada para a bota, ou...

 

Já te disse. Não é um ferimento. O meu pé é defeituoso, sempre foi. Nunca hei-de andar como as outras pessoas.

 

Mostra lá. Ele tirou as mãos da minha cintura e sentou-se na rocha de braços cruzados, observando-me calmamente.

 

Eu... Como poderia dizer-lhe que aquela era a coisa mais dolorosa que alguém me podia pedir para fazer? Como poderia explicar-lhe como me sentia envergonhada por mostrar a minha deformidade? Clodagh tinha razão, esta era a marca de uma criança que nunca devia ter nascido. E o homem mal me conhecia. Não compreendia nada.

 

Por que tens medo, Fainne? perguntou Eamonn em voz baixa.

 

Eu não tenho medo respondi bruscamente e, de mãos trémulas, desatei a bota e tirei-a do pé. Enrolei a meia e coxeei até junto dele para me sentar a seu lado. Pronto disse eu abruptamente. Não imagino porque queres ver isto. As minhas faces estavam vermelhas de vergonha.

 

Então, ele ajoelhou-se a meu lado e as suas mãos moveram-se de encontro ao meu pé nu, parecendo não se importar com a sua estranha forma, afagando a curva, seguindo-a, os dedos movendo-se, quentes e fortes, para me rodear o tornozelo.

 

Isto não é uma deformidade que cegue um homem aos teus outros encantos. Mas vejo que estás preocupada observou ele olhando para o pé, apesar de a sua mão parecer estar a subir pela minha perna, sob a saia, de um modo que me era bastante perturbador. que pareces diferente, hoje. Mais distante. Como um animal prestes a fugir. Estás assustada, Fainne? Já te disse, sou um bom professor. Serei meigo contigo e não me precipitarei. Não há necessidade de te afastares com medo.

 

A sua mão continuava a mover-se, afagando-me a canela, levantando a saia, subindo como que por acaso até ao joelho e mais acima ainda.

 

Eu... eu...

 

Estás com medo. Eamonn retirou a mão e sentou-se de novo a meu lado, mas mais perto. Esperava que o meu suspiro de alívio não fosse demasiado audível. não tenho pressa. Só que... tens de compreender que nós, homens, somos precipitados nestes assuntos, temos uma... uma necessidade que é difícil de controlar. Por vezes, pode ser doloroso tentar controlar os nossos impulsos.

 

Mas vais ter de te controlar dizer com a voz trémula de nervoso.

 

Podes encontrar-te comigo a meio caminho.

 

Não... não te estou a compreender.

 

Não? Certamente percebes o que te estou a dizer, Fainne. As tuas palavras e os teus olhares levaram-me a acreditar que não és avessa às minhas atenções. Não negues. Desde que te conheci, em Sevenwaters, que o vejo no teu rosto e nos teus misteriosos olhos escuros. No levantar das tuas sobrancelhas, na maneira como inclinas a cabeça e na maneira como o teu corpo se bamboleia quando andas. Um homem teria de ser monge para não te desejar. Um homem teria de ser louco para não tocar nessa pele branca como a neve, não sentir a pureza desse corpo contra o seu, não olhar para ti deitada na sua cama apenas com a chama escura do teu cabelo escondendo-te a nudez e não saber que serias só dele, uma jóia brilhante a não partilhar com ninguém. Não tenho forças para negar esse desejo, Fainne; tenho de to afirmar, quer tenhas medo, quer não.

 

Fiquei incapaz de responder. O meu coração batia fortemente com o choque. Fizera tudo aquilo sem sequer tentar? Fizera-o sentir daquela maneira sem sequer usar o Encantamento? Entendera mal, certamente, as suas palavras.

 

Choquei-te e peço-te desculpa. Mas, aqui, não há olhares curiosos nem ouvidos abertos. Falaste-me com muita franqueza. Pareceu-me dizeres que era altura de esquecer; altura de continuar. Não sei se consigo, Fainne. Mas tu podes ajudar-me. Contigo, posso começar a apagar o passado.

 

Eu... eu não creio que... cruzado os braços com força no peito, como que para evitar fazer qualquer coisa de que me iria arrepender para sempre.

 

Pronto. Dou-te a minha palavra. Não farei nada de que não gostes. Só tens de me dizer e eu pararei. Mas não podes mentir-me. Sei que me desejas. Vejo-o no modo como coras, como uma labareda repentina sob a pele transparente do teu rosto. Sinto o desejo na tua respiração.

 

Ele tinha muita prática. Antes de eu poder dizer uma palavra já estava presa nos seus braços, as minhas mãos contra o seu peito, as minhas pernas sobre as suas, de modo que estava quase sentada nos seus joelhos e recebia um beijo que me pareceu bastante perito, se bem que eu não tivesse qualquer termo de comparação. Foi um beijo que começou gentilmente e se tornou, pouco a pouco, duro; um beijo que começou com um encontro suave de lábios e se transformou numa húmida e íntima sondagem de línguas, um beijo esfomeado, sugestivo, que me deixou sem respiração e a tremer. Sob a minha mão, o seu coração batia com toda a força e as suas moviam-se de modo experiente, uma nas minhas costas segurando-me contra si e a outra na minha coxa. Havia sensações estranhas no meu corpo nas quais eu não queria pensar e o toque dos seus dedos fez-me arfar e estremecer.

 

Oh, Fainne disse ele. aproxima-te. Põe as tuas mãos em mim, meu amor. Põe a tua mão aqui, deixa-me mostrar-te.

 

E, subitamente, os ensinamentos da minha avó deixaram de me ajudar. Na verdade, estava tão chocada que mal me conseguia lembrar de uma única palavra acerca deles. Sabia apenas que aquilo era errado. Era tão errado que, simplesmente, não podia deixar que acontecesse. Gritar ou lutar seria um sinal de indisciplina e ofensa. Concentrei-me; fiz um esforço para tratar aquilo como um quebra-cabeças a ser resolvido, enquanto as suas mãos me acariciavam o corpo e os seus lábios me beijavam os ouvidos, o pescoço e desciam na direcção dos meus seios. Sentia, sob a minha mão, a parte do seu corpo que ele queria que eu tocasse. Era interessante o modo como mudava entre os meus dedos. Não era totalmente ignorante acerca daqueles assuntos apesar da minha educação estranha. Uma vez, na enseada, vira uma égua que tinha ido ao garanhão; observara o acto com grande admiração e decidira que não devia ser uma coisa muito agradável, pelo menos para a égua. Apercebera-me, no acampamento de Dan Walker, de encontros secretos pelos cantos, sob os cobertores, ou na noite, sob as árvores; de sons e movimentos que aprendi a ignorar. Mas agora, com o corpo de Eamonn contra o meu, a sua respiração cada vez mais apressada e descontrolada e a sua mão desapertando-me o corpete para mostrar os meus seios ao sol de Inverno, sabia que tinha de o fazer parar.

 

Eamonn estava a desapertar o cinto e fazia pressão contra a minha mão. Fosse qual fosse a solução, tinha de ser rápida. Podia usar a arte como antes, causando-lhe uma dor lancinante nos intestinos, uma súbita fraqueza no estômago. Mas isso parecia-me um pouco cruel; e suficientemente arbitrário para ser visto de maneira suspeita.

 

Eu já estava no chão com todo o peso do seu corpo em cima de mim e as suas mãos extremamente insistentes. No outro extremo da plataforma a pequena égua relinchou suavemente. Cavalos. Algo acerca de cavalos. Se, ao menos, conseguisse pensar por uns momentos. Um garanhão não podia levar a cabo o acto, não podia entrar na égua, se o seu equipamento deixasse de ter desejo e se transformasse numa espécie de ferramenta. E que ferramenta impressionante. Evidentemente, com o homem acontecia o mesmo. E, se bem que não conhecesse um feitiço específico, podia adaptar um rapidamente; um feitiço que modificasse a forma das coisas, que transformasse o mole em duro, por exemplo, ou o duro em mole. Mas não repentinamente; para que não houvesse suspeitas.

 

Eamonn arfei não posso fazer isto. Não está certo. Eu sempre... eu sempre disse que esperava. Com a respiração ofegante, murmurei o feitiço enquanto a minha mão tocava aquela parte mais íntima do seu corpo. Que esperava até me casar. O feitiço parecia estar a funcionar com uma rapidez alarmante. Vi a expressão no seu rosto mudar de uma intensa excitação para o espanto primeiro e depois para uma aguda mortificação. Afastou-se rapidamente da minha mão.

 

Desculpa disse eu. Sei que isto deve ser muito difícil para um homem.

 

Na verdade disse ele após um momento ou dois. Na verdade.

 

Eu... eu não posso fazer isto disse eu sentando-me e começando a compor o meu vestido com dedos trémulos. Fui educada a acreditar que este acto é sagrado na cama matrimonial. Para uma mulher, quero dizer. Não quero ofender-te, ou... provocar-te qualquer angústia. Mas fiz o voto de nunca me entregar a um homem antes de ele ter metido a aliança no meu dedo.

 

Eamonn parecia estar a ter alguma dificuldade em acalmar a respiração.

 

Desculpa repeti.

 

Não. Eu é que peço desculpa. Exigi demasiado de ti e demasiado cedo. Esqueci-me que és muito nova. Mas tu fizeste-me esquecê-lo, Fainne.

 

Não tive qualquer intenção...

 

Ah. Agora não me estás a dizer a verdade. Porque penso, do fundo do meu coração, que falamos a mesma linguagem, tu e eu. Vem, é melhor regressarmos a casa. Talvez tenhas percebido mal.

 

Percebido mal o quê?

 

A minha posição. As minhas obrigações. As minhas intenções ao convidar-te para Glencarnagh.

 

Senti-me humilhada, logo a seguir furiosa, e falei sem pensar.

 

É melhor seres franco, Eamonn. Por que razão te darias ao trabalho de me proteger velando a verdade? Queres dizer que pensaste que eu viria e me entregaria a ti, sentindo-me honrada por um grande homem como tu se dar ao incómodo de se deitar comigo? Queres dizer que a tua intenção era apenas ir para a cama comigo, mais nada? Um homem gosta de ter uma virgem de vez em quando, não gosta? conseguia manter a voz firme. Esse meu descontrolo perturbava-me. Pensava que tinha sido esperta com o meu pequeno feitiço. Mas agora sentia-me reles, suja e, pior ainda, tinha sido insultada. Não gostaria de ter aquele homem como inimigo.

 

Mas tinha-o, também, subestimado. Fazia-o um homem mais simples do que era na realidade.

 

Ficas muito bonita quando te zangas disse ele calmamente, olhando para mim. teu cabelo parece que está em chamas. Os teus olhos brilham de fúria. Como pode um homem olhar para ti e não te querer? Tu és perigosa, Fainne. Muito perigosa. Mas eu sempre gostei de desafios. Aproveitemos o passeio de volta a casa, porque está um dia lindo. Nada está acabado entre nós. Somos ambos parecidos, tu e eu. Falaremos disto mais tarde. Estou certo de que encontraremos espaço para... negociarmos.

 

Eamonn ajudou-me a subir para a égua e começámos a descer o monte comigo à frente desta vez. Os homens de armas estavam à espera. O tempo que estivéramos ausentes não fora muito. Conseguia imaginar como eles o interpretariam. A minha reputação, entre aquela gente, não melhoraria. Ao pensar nisso, senti-me enjoada.

 

Como te disse, a voz de Eamonn veio das minhas costas, apenas audível por cima do rugido da grande cascata não gosto de perder. Mas, no fim, verás que isto é um jogo em que ganhamos ambos.

 

 

                                                   CAPITULO OITO

 

Nessa noite retirei-me cedo e Eamonn não me fez perguntas. Mas não dormi. Doía-me a cabeça, debatia-me e virava-me, umas vezes fria como o gelo, outras a ferver de calor. Ouvia chiadeiras e retolhos na casa e os sons dos guardas mudando de turno lá fora, uma troca de palavras em voz baixa, botas caminhando na direcção da cozinha, esperando o seu dono que a lareira ainda estivesse acesa e houvesse algo para comer. Por fim, levantei-me, vesti uma capa por cima da camisa de noite e percorri, também eu, o átrio, sabendo que não dormiria se esperasse na cama pelo sono. Iria buscar um chá de camomila, iria à casinha e se mesmo assim não conseguisse dormir sentar-me-ia muito simplesmente junto da vela e tentaria pôr os pensamentos em ordem. Não era que tivesse quaisquer deveres a cumprir. Poderia descansar o dia todo, se quisesse. Por que outra razão viera para aquele local senão para providenciar algum divertimento a Eamonn, uma diversão picante na sua existência bem ordenada? Era evidente. Fora estúpida em não perceber. Não admirava que me sentisse reles.

 

A casa dormia. No fim do átrio brilhava uma luz vinda da cozinha, a luz da lareira, através da porta aberta. Talvez ainda lá estivesse gente. Mas a passagem estava na sombra, iluminada apenas por uma vela aqui e ali em pequenos recantos para torná-la segura para pessoas como eu, que sentiam necessidade de vaguear durante a noite. Os quartos estavam às escuras. Caminhei suavemente de chinelos, cuidadosamente para não perturbar ninguém. Não me apetecia companhia.

 

Um pequeno som chamou-me a atenção, um arfar rítmico, um ah... ah... ah... baixinho. Fiz uma pausa ao passar pela soleira de um dos quartos às escuras.

 

Devia ter-me afastado imediatamente quando os vi. Mas descobri que não era capaz. Fiquei presa ao chão, a olhar. A luz fraca das velas no corredor revelava vagamente as formas. Reconheci a mulher. Trabalhava nas cozinhas, Mhairi, era esse o seu nome, uma criatura agradável se bem que um pouco desleixada, com uma figura generosa e bonitos olhos escuros. Estava de costas para a parede, de pernas afastadas, a camisa de noite enrolada até à cintura e Eamonn fazia com ela o que não pudera fazer comigo na cascata. Os efeitos do meu feitiço tinham tido pouca duração. Não abraçava a mulher; tinha as duas mãos plantadas na parede de cada lado da cabeça dela e mal olhava para ela enquanto empurrava, empurrava com uma determinação que me pareceu não estar muito longe da ira. Mhairi parecia estar a gostar; tinham sido os seus gritos que eu ouvira e, na sombra do quarto pude ver os seus olhos semicerrados, o rosto corado e os lábios abertos. Não consegui que as minhas pernas se movessem para longe daquele lugar onde não tinha nada que estar. O ritmo dos seus movimentos aumentou, Mhairi deu um súbito gemido, Eamonn gritou, empurrou uma última vez e eu afastei-me silenciosamente, fugindo para a relativa segurança da cozinha, as faces coradas de embaraço e vergonha.

 

Os meus sonhos não fizeram nada para afastar os sentimentos de constrangimento e auto-repugnância e pela manhã descobri, muito simplesmente, que não poderia sair para as minhas tarefas diárias como se nada tivesse acontecido. Em Kerry, quando tínhamos determinados sentimentos, havia sempre uma solução. O meu pai fechava-se no seu gabinete de trabalho para lutar com os seus problemas à sua maneira, ou ia dar um passeio pela praia, sob o vento e a espuma do mar, apenas com Fiacha como companhia. Se estivéssemos no Verão, eu ia ter com Darragh e contava-lhe a minha história angustiante, ou sentava-me com ele em silêncio enquanto o mundo regressava lentamente ao seu sítio. No Inverno, meditaria: fixaria os meus pensamentos numa única frase do conhecimento, ou no fragmento de um verso e deixaria cair o resto. Em Kerry havia tempo e espaço para tais coisas. Ali era diferente. As raparigas andavam sempre por perto, esfomeadas por companhia. E Eamonn estava presente, Eamonn, que tornara claro que o assunto entre nós ainda não tinha acabado. Não podia enfrentá-lo, não podia. Havia gente por toda a parte. Não havia possibilidade de um pouco de tranquilidade.

 

A minha cabeça estava cheia de pensamentos indesejáveis. A minha mente estava tão confusa que era impossível ver o caminho que tinha de tomar. O Inverno estava a chegar e eu ainda não conseguira nada senão uma descida à confusão e à dúvida. Podia agradecê-lo às criaturas que se chamavam a si próprias Anciãos. Não queria acreditar no que me tinham dito acerca da batalha e do seu significado. Não me queria confrontar com isso. Mas tinha de o fazer. Uma serva trouxe-me água quente para me lavar e eu disse-lhe que estava indisposta. Queria passar o dia sozinha no meu quarto, disse-lhe. Não, não queria comida nem bebida para além do jarro de água que já tinha mandado buscar. Tinha lenha para a lareira. Disse-lhe para dizer a toda a gente que não queria ser perturbada. A toda a gente. Ficaria bem, desde que ninguém me incomodasse.

 

Em seguida, fechei a porta, acendi a lareira e sentei-me diante do fogo de pernas cruzadas com um cobertor entre mim e o chão de pedra. Ia ser um dia longo, porque a minha autodisciplina tinha enfraquecido um pouco desde que deixara Kerry. O meu pai sempre me disse que o frio era um estado de espírito. Deve aprender-se a lidar com o modo como ele faz tremer o corpo e fazer-nos desejar um cobertor e um pouco de vinho quente. Deve aprender-se a pôr isso de lado. Eu costumava sentar-me do alvorecer ao crepúsculo junto das pedras, ou nas saliências do Favo de Mel. Mas agora precisava do meu cobertor e da minha pequena lareira. Estava a descuidar-me. Estava a permitir que aquela gente me perturbasse e mudasse.

 

O tempo passou. Comecei pelo conhecimento, que veio quase sem eu pensar. O seu recitamento transportou-me até um certo ponto. Fixei os olhos no fogo; pensei nele em todas as suas formas e comecei a mergulhar profundamente no meu transe, diminuindo o ritmo da respiração, o corpo banhado em luz, a mente começando a libertar-se, já quase na fronteira,... e então ouvi baterem delicadamente à porta.

 

Fainne? Fainne!

 

Era Deirdre. Eu já estava longe e ouvi a sua voz como que através de uma barreira, do fundo de um poço. Ignorei-a, agarrando-me à minha imobilidade com todas as minhas forças.

 

Fainne!

 

Talvez esteja a dormir. a voz de Eilis.

 

Estamos a meio do dia. Não pode estar a dormir.

 

É melhor deixá-la em paz disse a voz de Clodagh, a voz da compreensão. disseram...

 

Sim, mas...

 

Deirdre. Elas disseram para não a perturbarmos por nada deste mundo. Por nada deste mundo.

 

Sim, mas...

 

As suas vozes enfraqueceram. Mas tinham-me perturbado. Percebi que não podia regressar ao meu transe e senti-me mal, como quando alguém nos interrompe abruptamente esse estado de consciência. Agora que as palavras me tinham perturbado, foram seguidas por pensamentos e sentimentos e a minha mente relatou-me de novo os acontecimentos do dia anterior e da última noite, mas não conseguindo que fizessem qualquer sentido. Muito bem, Eamonn quisera uma mulher e como eu o frustrara com o meu pequeno feitiço, ele fora a outro sítio. Isso era lógico. Por que razão me oporia à descoberta de que uma era tão boa como outra? Por que razão me havia de preocupar com a ideia de que ele só me tinha convidado porque pensava que eu era uma presa fácil, pobre, inocente, uma coisa adorável? Não podia ser. Não jogaria o jogo da minha avó com ele. Já decidira isso antes de termos ido passear juntos. Portanto, por que razão me doía ele ter-me achado reles e por que razão me aborrecia o facto de ele ter encontrado uma substituta com tanta facilidade? Pensava que ele me achara, bela? Que eu seria a cura para todos os seus problemas? Talvez que ele pensasse casar comigo?

 

Não és nada, disse eu para mim própria. É Liadan que ele quer. Para ele, as mulheres são todas iguais. Não passaste de mais uma virgem. Não és nada. Toma atenção. Que homem amaria uma rapariga como tu? É melhor contentares-te com aquilo em que és boa.

 

Olhei através do quarto para as teias de aranha na soleira da entrada. A grande aranha ao canto estava no centro da teia maior, escura e muito quieta, esperando. Concentrei-me nela. O animal estremeceu e ali, na parede de pedra, apareceu uma minúscula e brilhante criatura, meio abelha e meio pássaro, agarrando-se à superfície rugosa com pequenos pés parecidos com garras. Parecia sentir-se ali desconfortável, como se preferisse estar num bosque colorido envolta em flores exóticas. Fiz com que a aranha regressasse e observei-a a fugir para se esconder, sem dúvida um pouco abalada.

 

Levantei-me, desaparecida a capacidade para me manter imóvel e servi-me de um pouco de água. Quando estava inclinada, de jarro na mão, algo caiu na taça com um pequeno plof. Era o amuleto de bronze que tinha no pescoço, o que a minha avó me tinha dado. Usa-o sempre Nunca o tires, compreendes? Ele proteger-te-á. Pesquei-o do fundo da taça e sequei-o na saia do meu vestido. O cordão onde estivera seguro estava gasto. Teria de arranjar outro. Meti cuidadosamente o pequeno talismã na arca de madeira que trouxera comigo de Sevenwaters, bem no fundo, onde estaria seguro. Uma das raparigas devia ter um pedaço de guita, ou uma fita, para eu o prender de novo ao pescoço.

 

Talvez a água me tivesse acalmado. Senti a cabeça mais límpida. E o Sol estava a atravessar as nuvens no lado de fora da minha janela. O quarto parecia mais iluminado. Espreguicei-me e pus-me de novo à lareira. Entrelacei as mãos no colo e fechei os olhos. Desta vez usaria o olho da mente para imaginar o meu lugar secreto, o lugar do meu coração. Uma pequena gruta, quase subterrânea. A luz suavemente cinzento-azulada, como se esta e a sombra fossem uma só coisa naquele pequeno espaço misterioso. O único som provinha do vaivém das pequenas ondas numa praia de areia branca a dois passos de distância. Um lugar onde a terra, o mar e o céu se encontravam e tocavam de uma maneira maravilhosa e doce. A minha mente estava calma. O meu coração batia regularmente.

 

Uma espécie de paz entrou no meu espírito. Subtilmente, comecei a caminhar na direcção do reino para além do pensamento, que é o reino da luz.

 

Algum tempo depois ouvi baterem à porta e, de novo, vozes.

 

Fainne! Estás acordada?

 

Desta vez era Clodagh. Mudara de ideias e decidira perturbar-me. Mas as suas palavras passaram por mim sem qualquer significado. Continuei imóvel; estava demasiado longe para regressar assim tão facilmente.

 

Fainne! o tom era insistente. E então ouviu-se uma outra voz, uma voz de homem.

 

Pensei que te tinham dito para deixares a tua prima em paz, hoje.

 

Sim, tio, mas...

 

A tua mãe não te ensinou a obedecer a uma ordem? Um pequeno silêncio.

 

Ensinou, tio Eamonn.

 

Nesse caso, ela ficaria muito zangada se soubesse que preferiste ignorar os seus ensinamentos, agora que estás longe de casa.

 

Sim, mas...

 

Ouve o que te digo, Clodagh. A tua prima está cansada, talvez, até, nem esteja bem. Devias respeitar o desejo dela. Eu trouxe-a para aqui para descansar, não para ser constantemente incomodada. Vai fazer outra coisa qualquer. Tu e as tuas irmãs.

 

Seguiu-se uma espécie de pausa revoltosa. Então, três ou quatro vozes fininhas murmuram:

 

Sim, tio Eamonn. som de passos a afastarem-se e depois o silêncio. Ouvi aquilo tudo, se bem que estivesse no meu lugar secreto, no meu paraíso. Algures, nas profundezas da minha mente, veio-me o pensamento: Chegou a hora de as levar para casa. Para Sevenwaters. Para a floresta.

 

Ao crepúsculo já eu tinha completado a minha meditação e regressara ao presente e ao meu quarto. Sentia-me cansada, mas diferente. Senti que seria capaz de dormir sem pesadelos. A minha mente estava calma. Depois do jejum e do silêncio, o meu corpo parecia, de certo modo, mais limpo. Sentia-me mais perto de mim própria, da rapariga de Kerry, da rapariga que me parecera perdida. Talvez, no fim de contas, tivesse estado presente o tempo todo, essa rapariga que era capaz de tomar decisões e de ver o futuro e que sabia quando começar e quando parar. Talvez só tivesse precisado do silêncio para a encontrar.

 

Não desci para jantar. Queria manter aquele sentimento. Queria que se mantivesse profundamente dentro de mim, para ter coragem de enfrentar tudo de novo. Especialmente para que pudesse encontrar-me de novo com Eamonn, agradecer-lhe polidamente a hospitalidade e dizer-lhe que queria levar as raparigas para casa imediatamente. Tinha acabado tudo, antes mesmo de ter começado. Um erro de ambas as partes. Um equívoco.

 

Deitei-me na cama, tapei-me com o cobertor e ensaiei o discurso mentalmente. Era importante que o dissesse como deve ser. Eamonn era um homem poderoso apesar de todos os seus defeitos e eu não queria ofendê-lo. Mas tínhamos de ir embora. Para mim, era agora claro. Não era capaz, simplesmente, de fazer o que a minha avó queria. Eu não era o que ela pensava. Não podia ser como ela. Mesmo que fizesse o que ameaçara fazer, ferir o meu pai, não conseguiria fazê-lo. Se os Anciãos estavam certos, não se tratava apenas de ganhar ou perder uma batalha. Era muito mais do que isso. Era a diferença entre um possível futuro e futuro nenhum. Era evidente que tais acontecimentos se desenrolariam independentemente do que eu pudesse fazer. Teria de o dizer à minha avó. Teria de recusar fazer o que ela queria e sofrer as consequências. Talvez pedisse ajuda a Conor. Talvez lhe contasse a verdade e me entregasse à sua mercê.

 

Sentia-me sonolenta. O fogo brilhava, dourado e a vela ardia firmemente na sua prateleira. As pessoas da casa deviam estar a jantar, as crianças no seu quarto, talvez discutindo se me deviam ter acordado ou não por uma qualquer razão trivial. Os homens e as mulheres no calor da cozinha. O senhor do Túath sentado sozinho à sua bela mesa. Fiz um esforço para não sentir pena dele. Ele era o culpado da sua solidão. Ele é que a escolhera.

 

Quente e descontraída, deslizei para o sono. Perguntei a mim própria o que quereriam as raparigas. Não tinham regressado depois de Eamonn lhes ter ordenado que se fossem dali embora. Provavelmente algum pequeno drama, um dedo cortado ou um gato perdido. Havia ali muita gente para as ajudar. Não percebia porque vinham sempre ter comigo. Agora ia dormir e teria sonhos maravilhosos acerca do mar e do céu, dos velhos amigos e dos tempos da inocência. De manhã recomeçaria tudo com toda a coragem de que era capaz.

 

Fainne.

 

A princípio recusei acreditar. Fechei os olhos com força, como que para negar a voz familiar que estava a ouvir ali mesmo ao lado da minha cama, à luz da lareira.

 

Fainne! Levanta-te!

 

Ela estava ali. Não apenas a sua imagem nas brasas escaldantes, não apenas o gentil murmúrio da sua voz na minha mente, mas ela mesma, a minha avó, ali comigo, no interior do meu quarto escuro e fechado à chave. Gelada devido ao choque, virei a cabeça e deixei que os meus olhos se certificassem do que o meu coração, aos pulos, já sabia que era verdade. Ali estava ela, a menos de dois passos de mim, na sua forma de anciã, os cabelos desgrenhados, o vestido esfarrapado, os dedos parecidos com garras e o olhar sinistro. A sua voz vibrava de fúria.

 

Levanta-te! Vamos! Coloca-te diante de mim e presta-me contas, pequena!

 

Fiz como ela me ordenou, tremendo dentro da minha camisa de noite. Os meus sentimentos de paz e confiança desvaneceram-se quando reconheci a sua voz.

 

C... como é que entrou aqui? murmurei.

 

Achas que não tenho o poder de me transportar de um lado para o outro? perguntou ela rispidamente. Subestimas-me, pequena. Nunca conseguirás escapar à minha vigilância. Não penses que me enganas. Onde está o amuleto? Que lhe fizeste?

 

Subitamente, fiquei gelada de pavor. O amuleto; um feitiço de protecção, dissera-me ela e eu, louca, tinha acreditado. No momento em que o tirara voltara a ser eu própria. E agora ali estava ela, lívida de fúria, tão cheia de magia destrutiva que até as pontas dos seus dedos estalavam. Escolhi as palavras com cuidado.

 

O cordão partiu-se. Guardei-o para não o perder. Amanhã arranjo outro cordão e ponho-o de novo ao pescoço. Não me esqueci do que me disse para fazer.

 

Mostra-mo.

 

Fui até à arca de madeira, abri-a e comecei metodicamente a tirar as minhas roupas dobradas, a minha escova de cabelo e outras pequenas coisas. As minhas mãos tremiam. Mesmo no fundo estava o amuleto e quando peguei nele encontrei outra coisa; um pequeno objecto há muito esquecido, deixado ali ao longo dos anos, talvez esperando aquele momento. Senti um baque no coração. És capaz de te esquecer, disse uma voz na minha memória.

 

Então? Tem-lo? Mostra-mo!

 

Estendi a mão com o amuleto de bronze na palma. Ela fungou.

 

Muito bem. Amanhã. Sem falta. Atreve-te a tirá-lo outra vez e colocar-te-ás, e aos nossos esforços, em grande risco. Tira-o e perderás a tua última protecção contra esta gente. Olha que eles são fortes. Compreendes, Fainne?

 

Sim avó. Compreendia muito bem, se bem que um pouco tarde. Se não usasse aquele pequeno talismã, o seu pequeno feitiço para me obrigar a fazer o que ela queria, viria rapidamente ter comigo, pronta para me punir a mim e ao meu pai. Aquilo não era nenhum amuleto de protecção, antes um aparelho para distorcer a mente, um feitiço para me controlar. Não admira que sentisse, por vezes, que os meus pensamentos não me pertenciam. Não admira que me tivesse odiado a mim mesma.

 

Ora bem, Fainne. Pergunto a mim própria se te terás esquecido porque estás aqui.

 

Não, avó. Mas...

 

Mas? O tom de ameaça naquela simples palavra quase me gelou. Respirei fundo, outra vez, e disse para mim própria: Filha do Fogo. Procura a tua força, Filha do Fogo.

 

Creio que não sou capaz de fazer o que pretende, avó. Tenho... tenho...

 

Nesse preciso momento senti uma dor, como se fosse um dardo, na minha têmpora direita, uma dor que me fez cair de joelhos e me deixou no chão a vomitar com o sabor amargo da bílis a escorrer-me pelo queixo, já que o meu estômago estava vazio devido ao dia de jejum.

 

Eu... eu...

 

O que é que ias dizer, Fainne? perguntou ela suavemente.

 

Eu... pelo menos ouça-me. Pelo menos, pode deixar-me acabar antes de me castigar pelas minhas palavras.

 

Deixar-te, pelo menos, acabar? Oh, minha querida. Quando é que percebes que posso fazer tudo o que me apetece? Tudo, pequena!

 

Tudo menos praticar alta magia? murmurei. Tudo menos restringir a actividade do meu pai? Isso não é tudo.

 

Como te atreves? Como te atreves a desafiar-me? Como te atreves a responder-me dessa maneira?

 

Outra dor excruciante, desta vez do lado esquerdo. Rastejei a seus pés com a cabeça entre as mãos e o mundo a girar descontroladamente em frente dos meus olhos cerrados.

 

Está enganada. A minha voz era apenas um pequeno murmúrio; mas o meu pai ensinara-me bem. Através da agonia que me perfurava o cérebro, consegui encontrar as palavras. Aquilo que quer. A floresta. As Ilhas. Está completamente enganada. A batalha tem de ser ganha, não perdida. As Ilhas têm de ser salvas, não desperdiçadas. Sem elas, nenhum de nós sobreviverá. Não posso fazer isto, avó. Nem por si, nem pelo meu pai, nem por ninguém.

 

Levanta-te.

 

Pensei que as pernas não aguentariam comigo. A dor estava a passar lentamente, mas o meu corpo estava encharcado de suor e tinha contracções no estômago. Lutei para me pôr de pé, cambaleando.

 

Olha para mim, Fainne.

 

Fiz um esforço para olhar para ela. Os seus olhos brilhavam, escuros; ela olhava para mim como se quisesse ler os segredos mais profundos do meu coração.

 

Eles disseram-te isso. Falaste com eles. Quem foi? A dama da capa azul e voz de mel? Aquele que paira na orla da Visão, esquivo, entre a Luz e a escuridão? A donzela toda caracóis e vestidos sussurrantes, ou o senhor de chamas nos cabelos com as suas maneiras imperiais e joguinhos mentais? Quem foi? Não acredites neles. Eles são os inimigos da nossa espécie. A nossa demanda consiste em contrariar os seus objectivos, não em ajudá-los.

 

Creio que está enganada. E não posso fazê-lo. Arranje outra ferramenta. Já que tem tanto poder, que até consegue estar aqui neste instante, porque não leva a cabo a tarefa? Ao pé de si, eu não sou nada. Não está contente comigo. Tornou isso muito claro. Leve a cabo o seu acto de destruição. Procure a sua própria vingança.

 

Ela olhou para mim sinistramente, de sobrancelhas erguidas em sinal de desprezo.

 

Por vezes, és muito estúpida, Fainne. Há uma maneira certa de isto acontecer e uma maneira errada. A coisa tem de desenrolar-se de acordo com a profecia até ao fim. Por que razão pensas que não te disse para matares os seus chefes, ou vender os seus segredos ao inimigo? Por que achas que te deixei tanto tempo com os teus próprios expedientes? Quero que te insinues, que te intrometas nas suas vidas e nos seus corações, pequena. Quero que eles confiem em ti. Quero que te amem. Então, no fim, apareces. Apareces, sorrindo e desferes o golpe mortal. Tu foste feita para esta tarefa, Fainne. É só tua, tua unicamente.

 

Não faço. Castigue-me como quiser. Não posso continuar a magoar inocentes, a abusar da minha arte e a fazer disparates sem pensar nas consequências. Nem que acreditasse no objectivo a atingir.

 

Silêncio carregado. Continuei a respirar controladamente, pensando onde seria atingida pelo golpe de agonia seguinte.

 

Não te estás a esquecer de nada? a minha avó disse em tom sedoso, apontando para as brasas brilhantes da lareira. Virei-me. Enquanto olhava, as chamas subiram por si próprias, torcendo-se e vacilando até formarem uma imagem. A imagem do meu pai, sozinho no seu gabinete. À sua volta, em vez das prateleiras arrumadas, das filas ordenadas de garrafas e jarros, dos rolos de manuscrito cuidadosamente armazenados, havia um caos total, como se cada acessório, cada talismã, cada formulário de feitiçaria, cada ingrediente secreto tivesse sido tirado do seu lugar por um violento acto do destino. O meu pai rastejava pelo chão, o peito arfante, a boca aberta procurando respirar. As suas roupas estavam em farrapos. Parecia um esqueleto, uma frágil colecção de ossos que parecia unida apenas pela pele pálida e esticada. Ele olhou para mim com os mesmos olhos intensos e escuros da minha avó.

 

Virei-me com o coração a bater com força. Apelei a todas as minhas forças, mas a minha voz continuava trémula.

 

Eu conheço o meu pai disse eu. É terrível ver isto, se é, na verdade, uma visão autêntica. Mas o meu pai busca o caminho da Luz, se bem que lhe esteja vedado. Preferia sofrer e morrer do que ver perecer pessoas inocentes e coisas destruídas só porque eu o quero proteger. Eu conheço o meu pai. Conheço-o melhor do que a avó, porque sou a sua única filha.

 

Então, senti a dor de novo, no pé, desta vez, torcendo-se e ardendo de febre, como se os ossos tivessem sido agarrados e torcidos por um punho de ferro. Deixei escapar um grito de terror.

 

Nunca gostaste desse pé, pois não? observou a minha avó num tom amável. Sempre desejaste ser uma beleza. Quem te pode culpar? Não percebo porque não usas mais o Encantamento. Enfim, estás aqui, em casa de um homem influente ainda solteiro. Que presa. Pensa, Fainne. Uma vez Sevenwaters derrotada, este tipo pode ficar com tudo. Os três domínios num só. O teu filho herdaria tudo. O neto de Ciarán. Um da nossa espécie. Seria o maior possuidor de terras de todo o Ulster. E tu serias a mãe dele. Com um poder assim, quem precisa de beleza?

 

Senti outra excruciante onda de dor no meu pé e cerrei os dentes com força para não gritar. A dor cessou.

 

Estás a ver? disse ela calmamente. Olha para o pé.

 

Olhei para baixo e senti o sangue fugir-me do rosto. Onde antes estivera o meu pé direito, aquele cuja forma era ligeiramente diferente, um pouco curvo, um tudo nada inclinado para dentro, estava agora uma pata horrível igual à de um monstro de uma velha história, a imitação grotesca de um pé peludo, inchado, com dedos bulbosos e garras amarelas, retorcidas, grandes como cornos.

 

Posso fazer mais disse ela. Muito mais. As mãos. O rosto. O próprio corpo. Passo a passo. Os homens fugiriam aos gritos. Nunca mais te atreverias a pôr os pés na rua. Ainda me queres desafiar? A minha avó sentou-se, sorrindo, como que por acaso, na borda da cama.

 

Olhei para a monstruosidade que tinha no lugar do meu pé. Chamei um feitiço para mudar aquilo. Murmurei as palavras.

 

Oh não disse a minha avó em voz baixa. Não é tão fácil como isso. E antes que eu pudesse acabar o encantamento, o contrafeitiço já estava em acção e a minha pata peluda continuou como estava.

 

Muito bem disse eu com as lágrimas a correrem-me pela cara abaixo. Talvez consiga fazer pior ainda. Talvez eu me transforme num monstro. Então, farei como a minha mãe e acabarei com tudo. Corto os pulsos. Atiro-me da torre de Sevenwaters. Vou até ao lago e entro nele até que a água me cubra a cabeça. E depois?

 

Rapariga miserável. O teu pai vai responder por isto. Toma lá. A minha avó estalou os dedos e o meu pé regressou à sua forma primitiva.

 

Prendi a respiração e reprimi o abjecto agradecimento que me veio aos lábios. Não lhe ia dar a saber quão perto estivera de desistir quando vi o que ela era capaz de me fazer.

 

Senta-te, pequena. Enrola-te neste cobertor. Está frio. Estou a ver que tens algumas coisas bem bonitas na tua arca. Uma série de vestidos bem bonitos. Isso é um alívio. Não podes cortejar um homem rico vestida como a mulher esfarrapada de um pescador. E que xaile maravilhoso, todo colorido. Vem do mercado dos latoeiros, não vem?

 

É uma porcaria. Com um grande esforço, mantive o rosto e a voz impassíveis. Sabia onde ela queria chegar. Pode ficar com ele, se quiser acrescentei. Não representa nada para mim.

 

Não? Mas é muito barato e muito vistoso para o meu gosto, Fainne; a espécie de coisinha que um viajante daria à sua namorada. Não seria capaz de usar esta coisa tão garrida.

 

Foi tolice da minha parte sugerir que ficasse com ele disse eu levantando-me e começando a meter de novo as minhas coisas na arca.

 

Por trás de mim, a minha avó falou de novo.

 

Portanto, deixas que o teu pai sofra e morra. Não te importas de te transformar num monstro. Não te preocupas com o teu futuro. Isso surpreende-me, devo admitir. Não és a rapariga que eu pensava que eras. Mas não me desafies, Fainne.

 

Não sei o que quer dizer. Não me pode obrigar a fazer o que quer. Não me pode forçar.

 

Achas que não? E se visses todos aqueles que amas, todos aqueles com que te preocupas, abatidos um a um? E se assistisses à destruição lenta de tudo o que te é querido? Se assistisses a isso sabendo que podes impedi-lo? Que aconteceria, então? Não farias nada para os proteger?

 

Não sei o quer dizer disse eu respirando com dificuldade, mas já um terror profundo se espalhava pelo meu corpo à medida que eu me apercebia do significado das suas palavras. Eu não tenho ninguém. Não me importo com ninguém senão com o meu pai. E já lhe disse, sei muito bem o que ele pensaria disto.

 

Oh, não tenhas dúvidas, ele vai continuar a sofrer. Quanto aos outros, não acredito em ti. Tenho-te observado de vez em quando. Vi um certo olhar nos teus olhos. Vi-te a brincar com as crianças, aconchegando-as na cama, fingindo-te aborrecida com as suas impertinências. Vejo como as tuas mãos lidam com essas tuas coisas, como se as recordações fossem demasiado preciosas para mexer nelas de qualquer maneira. Não duvides, Fainne. Verás tudo, passo a passo, de modo agonizante. Uma queda infeliz de um cavalo. Uma jovem desgraçada pela companhia errada. Um assado comido à beira da estrada com uma má escolha de cogumelos. Um incidente infeliz com um anzol. Tudo acidentes. Quanto a ti, talvez venhas a ser a única a não sofrer nada. O teu trabalho será ver como eles sofrem à tua volta. Ver, sabendo que podias ter evitado tudo. Sabendo que, sem a tua desobediência, nada teria acontecido.

 

Pare! Pare! Como é que sabe que isso é verdade? Pode estar a mentir-me. O meu pai pode, até, nem sequer estar doente. Posso muito bem desafiá-la e não acontecer nada!

 

Achas? Ela olhou para o meu pé. Se quiseres experimentar, não te posso impedir, minha querida. Mas o risco é teu. E tens razão, não podes saber se o teu pai sofre. Não enquanto não regressares a Kerry. E, se regressares, asseguro-te de que os seus ossos estarão na areia, branqueando ao sol, antes de chegares à tua pequena enseada. É claro que podes sempre mandar um latoreirozinho com uma mensagem. A minha avó olhou para a arca de madeira, onde o xaile estava desdobrado. Podes sempre fazer isso. Mas, quem sabe se ele chegaria lá são e salvo com as estradas perigosas como estão? Poderia muito bem ser assassinado, por exemplo, por causa dos seus pequenos haveres antes de atingir o fim da jornada.

 

Pare! Que maldade!

 

Ah! Maldade? Tens muito que aprender. Entre o Bem e o Mal, a sombra e a Luz, há apenas um cabelo a separá-los. No fim, é tudo o mesmo. Diz-me. Diz-me tudo o que fizeste desde que aqui chegaste. Todos os pormenores.

 

Não me tem estado a observar o tempo todo? Não sabe tudo? Ela deu uma risada.

 

Não, não sei. Vejo apenas fragmentos. Um bocadinho aqui, um pouco mais além. Peças de um quebra-cabeças. Um quebra-cabeças que me preocupa. É por isso que estou aqui. E agora conta-me. Depois, veremos o que se segue. Tens andado a perder tempo. Mas isso acabou, ouviste?

 

Sim, avó.

 

Contei-lhe. Com o coração apertado de angústia e a cabeça cheia de lágrimas por derramar, contei-lhe tudo. Tinha de o fazer, porque a culpa era minha. Permitira que aquela gente entrasse no meu coração. Permitira-lhes que me encantassem e eu começara a ser um deles. E agora não podia ficar de lado a ver Sibeal, ou Clodagh, ou as outras a serem magoadas. Não podia ficar de lado vendo a tia Aislimg perder outra filha. Especialmente, não podia permitir que a minha avó se interessasse mais pela família de Dan Walker, estivessem onde estivessem. Estendera-me uma armadilha e eu caíra nela.

 

Por fim, estava tudo contado. A história do incêndio, se bem que tenha deixado de fora o que sentia acerca do meu passeio na floresta com Conor e o que sentira na celebração de Sambain. A história acerca do que dissera a Eamonn, a minha vinda para Glencarnagh e como as coisas tinham acontecido entre nós. Não falei dos Anciãos e o menos possível das crianças. Em especial não mencionei Sibeal e os seus estranhos olhos límpidos, de vidente.

 

Hum disse a minha avó quando eu acabei. Tens de usar esse homem, Eamonn, isso é evidente. Tens e usarás. Eu conheci o pai dele. Este é igual. Um homem muito poderoso, Fainne. E perigoso. Um homem sem honra. Um homem que não hesitará em apunhalar o irmão pelas costas se isso servir os seus interesses. Um homem que nunca esquece nada.

 

De certeza que está enganada. Estranho como era, era difícil acreditar que Eamonn fosse tão convencional. Não me dissera ele que nunca violava as regras?

 

Não acredites nisso. Ele é a resposta para os teus problemas. Usa o seu ódio. Usa o seu desejo. Faz com que te queira de maneira a prometer-te tudo o que lhe pedires.

 

Isso é ridículo. Eamonn pode ter as mulheres que quiser. O interesse dele por mim foi momentâneo. Ele não se quer casar comigo. Tenho a certeza.

 

Então, tens de o fazer mudar de ideias. Assume o controlo. Usa a arte. Faz com que ele arda de desejo por ti.

 

N... não posso. Tenho vergonha e rebaixo-o. N... não é justo.

 

Justo? Justo, diz ela? A minha avó deu outra risada carcarejante. Pensei quanto tempo demoraria até alguém a ouvir e bater à porta para perguntar se estava tudo bem. Esquece o que é justo. Esquece a honra. Isso são conceitos sem qualquer significado. Só uma coisa que interessa aqui, Fainne. O poder. O teu poder sobre esse homem. O seu poder para quebrar a aliança. O nosso poder para derrotar os Fair Folk. Poder e vingança. O resto não interessa.

 

Sim, avó.

 

E agora conta-me outra vez. Conta-me o que ele disse acerca da tua tia Liadan. E conta-me o que ele disse acerca do marido dela.

 

Não preciso de repetir. Sei o que tenho de fazer.

 

Ah! Tu? Custa-me a acreditar pelo que fizeste até agora.

 

Eu sei o que tenho de fazer repeti azedamente. Faria melhor se me deixasse sozinha para continuar.

 

O quê? Continuar o quê?

 

E contei-lhe tudo, passo a passo: um plano baseado no ciúme e na obsessão, que usava subterfúgios e traições para conseguir o objectivo final. Mal acreditava que iria para a frente com ele. Mas parecia não haver outra saída. Quando acabei, a minha avó sorriu com os seus dentinhos aguçados na boca envelhecida pela idade.

 

Muito bem disse ela. bem, Fainne. Talvez, no fim de contas, te tenhas transformado em alguém apesar do teu aspecto pouco atraente.

 

Avó, pode acreditar que vou até ao fim com isto. Não haverá necessidade de vir aqui outra vez. Se vier, posso ter dificuldade em manter a confiança deles.

 

Ela tremeu de alegria.

 

Agora dás-me ordens? Venho se quiser, pequena.

 

Não está a ouvir. Dou-lhe a minha palavra. Farei como quer, desde que... desde que não...

 

Magoe os que amas? Oh minha querida, o amor é uma coisa tão confusa para uma rapariga, não é? Passaríamos todas muito bem sem ele. Quanto mais depressa te aperceberes disso mais fácil a vida te parecerá. Nunca escolhas um homem por amor. Não há futuro nisso.

 

Concorda? Acredita que levarei isto até ao fim por si?

 

Acreditar? Ah! Preciso de uma garantia. E grava as minhas palavras na tua cabecinha: Se não conseguires que esse teu plano funcione, terás de tomar medidas mais drásticas. Dar-te-ei um pouco de tempo extra, apenas o suficiente. Mas quero ver progressos, Fainne. Quero resultados. Tens razão, não venho para estas bandas de bom grado. Usa o amuleto. Saberei se estás em segurança. Não o tires. Nunca, compreendes?

 

Ela estava a olhar outra vez para mim intensamente, como se quisesse ler-me a mente. Graças à grande deusa, nunca aperfeiçoara a arte de ler os pensamentos, de falar sem palavras. E ela só me consegue verse eu o usar. Doce Brighid, era verdade. Tinha sido estúpida. Mesmo ceguinha.

 

Sim, avó. Amanhã arranjo um cordão forte e volto a pôr o talismã ao pescoço. Prometo.

 

Espero que não me estejas a mentir. Saberei se não cumprires a promessa. E haverá outros a sofrer.

 

Mordi os lábios e abstive-me de responder.

 

Muito bem disse ela expansivamente. visita tão agradável. Toma cuidado para que dê tudo certo, Fainne. Não me assustes outra vez. Atreve-te a deixar-me ficar mal e verás como posso ser criativa, prometo-te. Faz as coisas como deve ser e talvez não me vejas de novo durante muito tempo.

 

Sim, avó.

 

Então adeus.

 

Observei enquanto ela se desvanecia lentamente à luz fraca da lareira e da vela solitária. Fiquei a olhar até todos os traços daquela velha desgrenhada e odiosa terem desaparecido. Mesmo depois, passei a mão pelo ar uma, duas, três vezes antes de me dar por satisfeita e de que não havia ali nada. Lá fora estava escuro. O jantar já devia ter acabado e as raparigas deviam estar a preparar-se para irem para a cama. Eamonn devia estar sentado, sozinho, em frente da lareira do salão com um jarro de vinho por companhia. Talvez devesse começar esta noite mesmo. O meu coração fraquejou. Por que acreditara que tinha força suficiente para a desafiar? Por que me permitira pensar que poderia escolher o meu caminho, que poderia ir na direcção da Luz em vez de na da escuridão? Não havia escolha para mim, nunca haveria.

 

E o amuleto. Que tola fora para não reconhecer aquilo como um feitiço de feiticeira! Usa sempre isto. Proteger-te-á. Um aparelho para distorcer a mente, o mais poderoso dos instrumentos de controlo; através dele podia ver-me e dobrar-me à sua vontade. Eu lera, em tempos, acerca daquele feitiço, nas páginas poeirentas de um velho livro. Enquanto o usasse, ela poderia sempre encontrar-me. No momento em que o tirei ela soube; soube e veio ter comigo a toda a velocidade, furiosa e... e também algo mais. Quase assustada. Como se uma Fainne fora de controlo fosse infinitamente mais perigosa para ela do que todos os Fair Folk do mundo. Mas talvez não fosse assim. Como feiticeira semitreinada que era, mal sabia os ramos mais desafiadores da arte, impedida pela minha juventude e inexperiência. Pelo contrário, a minha avó era uma mestra, mais poderosa até do que o meu pai, porque não o adoecera ela fatalmente com o seu feitiço? Devia estar enganada. Olhei de relance para a arca de madeira. O amuleto estava lá. Pô-lo-ia de novo ao pescoço no dia seguinte. Tinha de manter a minha palavra. Era a única maneira. Protegê-los-ia, ao meu pai, às raparigas, à família e... e a todos os que me eram próximos. Não podia permitir que ela os destruísse um a um.

 

Ouvi as pessoas a deslocarem-se no átrio. Não era assim tão tarde. A minha avó viera e desaparecera entre o começo do jantar e o apagar das últimas velas. Tinha de ir falar com Eamonn enquanto tinha coragem. Tremendo de frio, despi rapidamente a camisa de noite e vesti um vestido lavado. Atei os cabelos na nuca com uma fita. Calcei os chinelos e disse a mim própria que nunca mais me voltaria a queixar do meu pé defeituoso. Lavei a cara com água tirada do jarro enquanto sentia o bater do meu coração e as garras do medo em todo o meu corpo. Essa sensação só desapareceria quando a tarefa de que ela me incumbira acabasse. Depois disso, nada mais teria importância.

 

Abri a porta cautelosamente, esperando poder deslizar pelo átrio sem que ninguém me visse. Dei um passo e parei. Sibeal estava sentada no chão da passagem, envolta numa capa para resistir ao frio. Estava tão quieta que eu mal a vi ali na sombra. Não falou, olhando antes para mim e a chama da minha vela tremeluziu, pequena mas segura, na superfície límpida como a água dos seus estranhos olhos. A pequenita levantou-se em silêncio total. Quando abri a porta por completo, ela aproximou-se como um pequeno fantasma, passou por mim e entrou no quarto. Fechei a porta atrás de nós.

 

Por um momento, ela não disse nada.

 

O que é, Sibeal? Por que estavas ali à espera?

 

As minhas irmãs disseram-me para não te dizer. Disseram que já era muito tarde.

 

O quê? Dizer-me o quê? Haveria uma coisa ainda pior para me acontecer naquele dia? A minha mente percorreu as possibilidades. Notícias de Sevenwaters. Maeve. Notícias de mais longe. O meu pai. O que é? Diz-me!

 

A criança olhou para mim com ar sério.

 

Nós tentámos dizer-te. Mas tu não respondeste. E então apareceu o tio Eamonn e mandou-nos embora.

 

Agarrei-a pelos braços e abanei-a ligeiramente.

 

Diz-me! disse eu através dos dentes cerrados.

 

Não é preciso magoares-me. Não precisas de te zangar. Recordei a mim própria que ela tinha apenas oito anos e que tinha estado à espera, silenciosa, na escuridão, até que eu estivesse pronta para sair.

 

Desculpa. Eu... eu estou preocupada, mais nada. As notícias são más?

 

Não. É que aquele pónei esteve aqui. O das tuas histórias. Pensámos que gostarias de saber. Pensámos que gostarias de o ver. Mas agora é tarde.

 

Se sentira medo antes, não fora nada comparado com a angústia que me atingiu o coração.

 

Que pónei? murmurei, como se não soubesse a resposta.

 

O pónei branco. Tu sabes, aquele das tuas histórias todas. Ele deixou-nos fazer-lhe festas e a Eilis até lhe deu uma cenoura.

 

Ele? perguntei a custo.

 

O homem. O homem das histórias, aquele que tem um anel de ouro na orelha. Ele perguntou por ti.

 

Darragh? Darragh esteve cá hoje? A minha voz tremia. Ele estivera ali, a minha avó estivera ali e ela dissera... ela dissera: Podias mandar uma mensagem por um latoeirozinho. Ela dissera: Ele pode muito bem ser assassinado no caminho. Talvez não fosse ele disse eu agarrando-me a uma esperança louca. Por que veio ele aqui? Ele tem trabalho longe daqui, a quilómetros de Glencarnagh. Talvez fosse outra pessoa qualquer. Onde é que ele está agora, Sibeal? Depressa, diz-me!

 

O tom de Sibeal era solene.

 

Foi-se embora. Ele e o pónei. O tio Eamonn mandou-o embora. O tio Eamonn estava zangado.

 

Há quanto tempo? Para onde é que ele foi?

 

Para longe. Não sei para onde.

 

Em que direcção? Para leste, para Sevenwaters? Para Oeste? Em que direcção? Há quanto tempo, Sibeal?

 

O que é que se passa, Fainne? Os seus olhos estavam abertos, interrogativos, quase assustados.

 

Desculpa, desculpa. Tudo bem. Fizeste bem em esperar por mim para me dizeres. É que eu... eu...

 

Tens pena de não o teres visto? Pensámos que tinhas. Por isso é que eu tentei dizer-te antes. Mas não respondeste quando bati à porta.

 

Desculpa disse eu de novo. Tinha mais pena do que ela imaginava. Era muito estranho ele ter aparecido em Glencarnagh. Quem saberia por que razão viera ele? Era muito cruel da minha parte não ter aparecido para lhe falar. Mas era melhor assim. Ele tinha-se ido embora e eu nunca mais o veria o que significava que estava a salvo da minha avó. Talvez tivesse aparecido para visitar a sua velha tia Janis. Talvez fosse isso. Em qualquer dos casos, assim era melhor. Muito melhor. Por que razão, então sentia eu uma dor tão grande que quase me despedaçava o coração?

 

Desculpa, Fainne disse Sibeal com uma voz baixinha. Ele foi para Oeste, penso. Antes do pôr do Sol. Disse que tinha de regressar rapidamente. Mas ele queria esperar até tu estares melhor e poderes descer para falar com ele. O tio Eamonn mandou-o embora. O tio Eamonn estava mesmo zangado.

 

Eu... ele... Darragh parecia bem? Ele falou contigo? Ela que me diga tudo, cada palavra, cada gesto. Não que seja suficiente.

 

Ele deu-me uma mensagem para ti disse Sibeal solenemente. Obrigou-me a dizê-la.

 

Esperei.

 

Ele disse: Diz adeus à Caracóis por mim. Diz-lhe que se mantenha afastada de sarilhos até eu voltar. Ele queria que eu dissesse exactamente isto.

 

Mas ele não pode voltar! A minha voz tremeu, ao mesmo tempo que o medo me fez enovelar as entranhas. Não pode! Não posso permitir que volte!

 

O que é que se passa, Fainne? Os olhos límpidos de Sibeal perscrutaram-me com uma expressão ansiosa.

 

Nada murmurei. Nada. Está tudo bem, Sibeal. Fizeste bem, muito bem. Fico em dívida para contigo. Agora, vai para a cama, que estás gelada. Toca a andar, vai para o pé das tuas irmãs. E... Sibeal?

 

Ela virou para mim o seu rosto pequeno e pálido.

 

Não fales nisto. Por favor. Não gosto de te pedir que guardes segredo. Mas não fales nisto ao teu tio, ou às tuas irmãs. É muito importante.

 

Ela acenou com a cabeça e saiu silenciosamente pela porta.

 

Tinha uma noite. Apenas uma noite antes de pôr de novo o talismã ao pescoço e voltar a ser uma criatura da minha avó. Darragh viera e eu não estivera com ele. Darragh dissera que voltaria. Mas não pode voltar. Tinha até ao amanhecer para o encontrar e dizer-lho. Depois disso, não poderia esconder mais segredos à minha avó. Depois disso, deixaria de ser possível ter amigos.

 

Um bom pónei é capaz de percorrer uma grande distância do nascer do Sol até à hora de deitar. Através de campo aberto, quando o seu cavaleiro está com pressa, pode percorrer muitos quilómetros. Para lá das fronteiras de Glencarnagh, Aoife poderia estar ainda a cavalgar para Oeste, para as costas áridas de Ceann Na Mara. Uma coisa eu sabia. Não podia pedir ajuda a Eamonn. Um homem que fica com o que é meu é pago na mesma moeda, dissera ele. Ouvi a vozinha séria de Sibeal. O tio Eamonn ficou muito zangado. Não podia atravessar o átrio e pedir delicadamente um cavalo emprestado e dois homens com archotes. Tinha de fazer a jornada sozinha, sem ser vista e regressar ao meu quarto antes de amanhecer. Tinha de percorrer aqueles quilómetros todos de alguma maneira, tinha de o encontrar.

 

Um grande feiticeiro, como o meu pai, usaria o Encantamento; totalmente, para efectuar uma transformação total. Correria pelos campos fora como um gamo, ou voaria com fortes asas como um mocho, ou outra ave nocturna. Eu sabia, teoricamente pelo menos, como isso era feito. Mas o meu pai proibira-me de tentar. Era muito perigoso. Era possível fazer a transformação e não regressar à primeira forma. Podia ficar armadilhada na segunda forma para sempre, ou, desastradamente, ficar entre as duas formas. E esgotaria a arte; exauriria a força. No entanto, o tempo passava e eu estava suficientemente desesperada para tentar. Com o coração a bater e o sangue a correr, pus-me à janela, olhei para a noite e pensei se me atreveria a diminuir a distância que havia entre uma mulher e uma ave, passando de uma criatura humana terrena para um ser alado. E se falhasse e caísse do céu para me esmagar nas pedras? Mas, de que outro modo poderia chegar a tempo?

 

A luz espreitou por entre as nuvens. A brisa fez restolhar as sebes, fazendo agitar os ramos nus dos velhos ulmeiros que abrigavam os canteiros ordenados do jardim e o lago escuro como tinta. Lá fora, perto da sebe, estava um cavalo. A Lua apanhou o cinzento-escuro do seu pêlo, iluminando-o e fazendo-o ficar de uma cor delicada de pérola. Talvez a mão da deusa me tocasse. Movi-me o mais rapidamente que pude. Uma capa escura; as minhas botas na mão, para não fazer barulho. E depois o feitiço. Não para alterar a minha forma, não muito, de qualquer modo. Uma meia mudança: apenas um efeito sombra, para que pudesse passar despercebida se tivesse sorte. Movi os pés silenciosamente ao longo do átrio e passei pelo salão onde Eamonn estava sentado sozinho. Passei pelas cozinhas, escondi-me num pequeno recanto quando os guardas passaram a rir e a brincar a caminho de um jantar tardio e de uma boa caneca de cerveja. Afastei-me antes que o turno seguinte entrasse de serviço. Segui a linha da sebe até onde estava a pequena égua que montara antes e que esperava por mim placidamente, nada espantada por eu aparecer assim mesmo por baixo do seu nariz. Como escapara ela da cavalariça e aparecera ali sem ninguém a ver? Talvez fosse uma criatura do Outro Mundo, porque tinha mais anos do que aqueles que um cavalo vive e continuava inteligente e nervosa. No fim de contas pertencera, em tempos, a Liadan e dizia-se que Liadan possuía alguns poderes para além do normal. De qualquer modo, a égua estava ali e parecia pronta. Mas não resolvia o problema de como montar nela e cavalgar sem sela nem rédeas. Além de que não ajudava nada o facto de eu não saber para onde ir.

 

Vem murmurei. Vem cá. Depressa.

 

A égua estava a afastar-se de mim, descendo ao longo da linha da sebe, misturando-se com as sombras.

 

Espera. Corri atrás dela. Junto do muro de pedra que protegia a horta dos porcos, a égua parou.

 

Óptimo murmurei. Óptimo. Tu sabes como se faz, estou a ver. Saltei para cima do muro e depois para o lombo do animal, onde me empoleirei precariamente sem sela nem cobertor, sem brida nem rédeas para me ajudarem. Muito bem disse eu em voz baixa. Vou precisar de toda a ajuda que puder conseguir. Vais ter de correr muito. E sem fazer barulho. E sem me deitares ao chão. Compreendes? E agora encontra Aoife. Encontra Darragh por mim. Pus-lhe uma mão no pescoço, desejando que me ouvisse, desejando de que se apercebesse do que tinha de ser feito. Uma tolice, na realidade. Não podia esperar sussurrar ao ouvido de um cavalo e ganhar-lhe amizade eterna. Uma criatura selvagem nunca se viraria para mim em busca de amizade. Mas a égua cinzenta levantou a cabeça, espetou as orelhas e afastou-se firmemente em direcção a Oeste, passando a sebe, atravessando uma pequena ponte e ultrapassando as aveleiras em direcção à noite sombria. Agarrei-lhe na crina com ambas as mãos e apertei os joelhos com força. Não cairia. Não cairia. Iria e regressaria de madrugada. Tinha de o fazer. Quando o encontrasse dir-lhe-ia que devia ir imediatamente para casa de O’Flaherty e que nunca mais se deveria aproximar de mim. Dir-lhe-ia isso, despedir-me-ia e regressaria a Glencarnagh. Era simples, na realidade.

 

O tempo passou e a égua continuou pela noite dentro, a princípio com firmeza, como se o luar fosse suficiente para lhe mostrar o caminho. Estava frio. Tanto, que tinha cãibras nos dedos. Os pés estavam entorpecidos e as orelhas doíam-me. Tinha arrepios por todo o corpo, como ondas de água gelada numa praia árida.

 

A égua parecia saber para onde ir, pensei eu sinistramente, tentando imaginar quanto tempo duraria antes de os meus pés gelados se recusarem a continuar e eu cair no chão duro. Uma coisa era certa. Se caísse, não teria as forças suficientes para voltar a montar.

 

A princípio, aquele mundo nocturno pareceu ser silencioso. Mas à medida que íamos prosseguindo para Oeste, fui ficando cada vez mais consciente de alguns pequenos ruídos. Por cima do som dos passos da égua cinzenta ouvi um restolhar e um estalar, como se as árvores se inclinassem para observar a nossa passagem. Uma vez, pensei ouvir uns uivos distantes, de lobos esfomeados. Disse a mim própria que estava enganada. Algo piou nos escuros ramos por cima da minha cabeça. Um coro de rãs recebeu-nos quando passámos por um pântano escuro, brilhante. Outra vez, ouvi um súbito rufar de asas de pele e uma vibração muito rápida quando um bando de morcegos voou sobre as nossas cabeças na direcção de uma qualquer gruta subterrânea. Tinha tanto frio que mal conseguia manter-me acordada apesar da urgência da jornada. Estava tão cansada que pensei em parar para dormir um pouco enrolada nos fetos. Um belo e longo sono. No fim de contas, quem daria pela minha falta?

 

A égua abrandara o passo. A sua cabeça virou-se para um lado e depois para outro. Deu um passo e parou. Deu outro passo e fez uma pausa. Acordei abruptamente, o coração batendo com toda a força, alarmado.

 

Tu sabes o caminho! disse-lhe eu rispidamente. Tens de saber! Vais desistir depois de chegarmos aqui? Não podes seguir o rasto de Aoife como um cão? O que é que se passa contigo?

 

O animal estremeceu, parado ali na noite. Estávamos na orla de um espaço aberto; o luar deixava ver umas colinas suaves, arborizadas.

 

Anda! disse eu. Depressa, antes que gelemos os dois! Não sabes que temos de chegar lá e regressar antes de amanhecer? Anda! Por favor!

 

Espetei-lhe os calcanhares nos flancos e apertei os joelhos. Restava-me tão pouca força que duvido que ela tenha sentido alguma coisa.

 

Oh, por favor murmurei na escuridão, mas a égua manteve-se imóvel. A minha mente ponderou, a um nível distante, que explicação daria a Eamonn quando fosse descoberta ali no dia seguinte, meio gelada e com um cavalo que não me pertencia. Talvez morresse de frio. Pelo menos, evitaria muitas desculpas.

 

Ouvi um pio por cima da minha cabeça e algo escuro passou por mim a voar com um súbito rufar de asas. Pensei sentir uma pequena pena passar-me diante do nariz. Funguei. Ouvi outro pio. O seu tom pareceu-me uma mensagem clara. Anda, estúpida. Não temos a noite toda.

 

A pequena égua avançou. À nossa frente, o mocho voava de um lado para o outro, esperando num ramo baixo, num muro de pedra, no topo de uma rocha. Impaciente. Vamos. Não podes andar mais depressa? A égua começou a andar a trote e depois, quando emergimos para uma espécie de carreiro, começou a galopar. Fui sacudida para cima e para baixo como um saco de grão. Agarrei-me de novo à crina e inclinei-me para a frente, desejando que os meus joelhos se aguentassem. A dor percorria-me as pernas e as costas. Cerrei os dentes com força.

 

O mocho voava à nossa frente e a égua seguia-o. Pensei em Fiacha, o corvo. Era assim que ele voava: umas vezes à frente, outras atrás, uma pausa aqui e ali, dando a impressão de que achava os humanos incríveis e entediantemente lentos, mas que a sua missão era tomar conta deles e pronto. Tentei imaginar onde estaria ele. Estaria na beira de uma falésia por cima do Favo de Mel observando o feiticeiro Ciarán a tossir, a lutar pela vida no meio das ferramentas destruídas da sua antiga arte? Ou fora banido pela minha avó, deixando o meu pai sozinho? Por que razão apareceriam estas criaturas do Outro Mundo para nos guardar e guiar, já que nenhum mocho normal, ou corvo, tinha a inteligência e a vontade suficiente para isso? A ave voava à nossa frente, guiando a minha égua por montes e vales, pelo meio dos pântanos e dos bosques e passando em segurança as fronteiras de Glencarnagh.

 

Por fim, sob umas macieiras nuas, parámos. O mocho ficou por cima de nós, empoleirado num ramo coberto de musgo, a sua silhueta contra a Lua. Vi-o baixar a cabeça, ansiosamente, para ajustar as penas. Eu sentia-me como se tivesse sido agarrada, agitada como um batedor de leite e pousada de novo. Doíam-me os ossos todos.

 

O bosque à nossa volta estava tranquilo. A égua continuava imóvel. O mocho não emitia som. Esperavam que eu fizesse qualquer coisa. Forcei o meu corpo a mexer-se e quase caí do lombo da égua para o chão. As minhas pernas pareciam de geleia. Consegui ficar de pé agarrando-me à crina do animal. Ela manteve-se firme, imperturbável; um cavalo raro, aquele.

 

Um pouco abaixo de nós havia mais árvores e um curso de água que brilhava sob a luz suave da Lua. Mas havia, também, outra luz, uma luz quente, tremeluzente. Detectei um odor saboroso no ar frio: não era, certamente, o odor de papas de aveia? Então, a égua emitiu um pequeno relincho e da base da colina veio uma resposta, outro relincho suave. Vi uma figura levantar-se junto da fogueira brilhante e virar-se lentamente para mim. Encostando-me pesadamente ao flanco da égua, avancei aos tropeções.

 

Então, as coisas aconteceram rapidamente, sem uma única palavra. O som de passos rápidos e um súbito suster de respiração. Um braço rodeando-me e amparando-me até chegarmos à fogueira. Uma capa sobre os meus ombros, abençoadamente quente. Não me podia sentar, o meu corpo estava demasiado dorido; apareceu um cobertor dobrado, cheirando fortemente a cavalo e eu semideitei-me nele, o mais perto possível do fogo. Ouviu-se um tinir de metal, como se um recipiente estivesse a ser cheio por outro. Em seguida, uma mão meteu-me uma taça com algo quente e a cheirar deliciosamente na mão gelada. Todo o meu corpo tremia e os meus dentes batiam uns nos outros. Não seria capaz de dizer uma única palavra, mesmo que quisesse. Darragh espevitou o fogo, atirando para cima das brasas um ramo ou dois. As chamas crepitaram; o meu rosto começou a aquecer. Bebi um gole da bebida que ele me tinha dado. Era chá, muito quente e muito doce. Nunca provara nada tão bom. Por fim, Darragh instalou-se junto da fogueira e olhou de frente para mim.

 

Tens ali uma óptima égua observou. Estou a ver que aprendeste a montar desde que me deixaste.

 

Fiquei sem saber o que dizer, por momentos. Era só aquilo que ele tinha para dizer? Mas, pensando bem, era típico.

 

Pelo que me lembro, tu é que me deixaste disse eu rispidamente, mas a minha voz saiu trémula e patética. Mas sim, sei montar. Um pouco. Mas não interessa. Tenho de regressar antes de amanhecer.

 

Darragh olhou para mim.

 

Ai sim? disse ele.

 

Não precisas de ser assim retorqui.

 

Assim como, Fainne?

 

Sabes muito bem. Achas que eu sou estúpida por ter vindo. Nem sei porque me preocupo. O meu corpo foi percorrido por outro arrepio e eu apertei a capa em redor dos ombros.

 

Darragh olhou para mim em silêncio durante alguns momentos. O pequeno brinco de ouro na sua orelha brilhou à luz da fogueira.

 

Por que vieste? perguntou ele, por fim.

 

P... para te dizer. Para te dizer uma coisa importante.

 

Ele agitou a panela por cima do lume. Senti de novo aquele odor saboroso. Peg, Molly e as outras mulheres faziam sempre papas de aveia de manhã. Peg dizia que afastava o frio. Darragh tirou o recipiente do fogo e aproximou-o de mim.

 

Aqui não há pratos dourados disse ele. Nem colheres de prata. Não estou habituado a servir damas, sabes? Mas a comida é boa. Anda lá, Fainne. Tens de comer.

 

Estou demasiado cansada para comer.

 

Toma disse ele gentilmente e sentou-se a meu lado. Come e não fales. Ele mergulhou a colher de osso na panela e eu abri a boca, sentindo-me como um pássaro a ser alimentado no ninho. Teria sido humilhante, mas a expressão preocupada no seu rosto e o extremo cuidado como estava a levar a cabo a sua missão fazia com que parecesse tudo natural. Além disso, as papas estavam deliciosas e eu descobri que estava esfomeada.

 

Muito bem dizia Darragh de vez em quando. Muito bem. Boa menina. E em pouco tempo as papas desapareceram.

 

Desculpa disse eu com a voz já um pouco mais forte. E o teu pequeno-almoço?

 

Darragh não respondeu. Ele estava sentado junto de mim, olhando para o fogo, de braços cruzados. O silêncio prolongou-se. Por fim, falou com algum acanhamento.

 

É melhor dizeres-me. É melhor dizeres-me o que se passa.

 

Diz-me tu primeiro. Por que foste a Glencarnagh. E o que andavas a fazer tão longe de casa em pleno Inverno. Não é suposto estares a trabalhar para O’Flaherty?

 

E estou. Vamos para lá agora, Aoife e eu. Ele não me queria deixar ir a Sevenwaters. Tive que pedir a Orla que falasse com ele. Por fim, lá disse que sim, mas eu tive que prometer que regressaria com a Lua nova. Não me resta muito tempo.

 

Fiz os possíveis para compreender o que ele me estava a dizer.

 

Quem é Orla? perguntei. Darragh olhou para mim de lado.

 

A filha de O’Flaherty. A mais nova.

 

Estou a ver.

 

Não estás não, Fainne.

 

Estou sim. Suponho que ela é boa com cavalos, não?

 

Muito boa disse ele, os seus dentes brancos brilhando na escuridão enquanto sorria. Monta muito bem, para uma rapariga. Sabe os truques todos.

 

Sim, deve saber. E também é bonita, não?

 

É disse Darragh estendendo as mãos para as aquecer na fogueira. Cabelos grandes, louros, faces rosadas e os olhos da cor do céu de Verão. Iguais aos da irmã. Têm ambas muitos pretendentes, daqui até Cross.

 

Ele estava a provocar-me.

 

Esquece que eu perguntei disse eu, zangada. Responde à pergunta. Por que estás aqui?

 

Fiquei ansioso. Preocupado. Pareceu-me que estavas metida em sarilhos e que precisavas de ajuda.

 

O quê?

 

Não é preciso ficares chocada. Fui a Sevenwaters e disseram-me que não estavas lá. Fui a Glencarnagh e descobri que não precisavas nada de mim. E agora, vou para casa. É uma história simples. Cometi um erro. Não foi o primeiro, aliás.

 

Não soube o que dizer e, por isso, fiquei calada. Começava, por fim, a ficar quente, com a fogueira, a capa e as papas de aveia. O meu corpo sentia-se melhor apesar das dores e dos arrepios. A minha mente é que parecia não estar a trabalhar muito bem. Tudo o que conseguia pensar era que a noite era muito curta, que tinha muitas coisas para dizer e que cada vez que abria a boca só dizia asneiras.

 

Fainne? A sua voz soou suavemente na escuridão.

 

Hum?

 

Conta-me. Diz-me o que se passa. Por que é que fizeste este caminho todo para me encontrar? Diz-me o que se passa. Que coisa é essa tão importante que quase morreste gelada?

 

A sua gentileza quase me derreteu. Recordei tudo: o meu pai, a minha avó e o amuleto, Maeve e o incêndio, Eamonn. Desejei contar-lhe tudo, absolutamente tudo; tirar de cima dos ombros a culpa e o medo. Mas não consegui. Ele tinha de ficar de fora. Tinha de o deixar de fora.

 

Vim para te dizer que vás para casa e nunca mais voltes. disse eu em tom neutro. Não podes voltar, Darragh. Não tentes ver-me de novo. É importante.

 

Seguiu-se uma pausa.

 

Fizeste este caminho todo para me dizer isso?

 

Sim. Tem de ser. Acredita-me.

 

Estou a ver disse ele com firmeza.

 

Não, não estás. Não conseguia disfarçar a miséria que me ia na voz. Não estás a ver nada. Mas, apesar de tudo, somos amigos. Tenho de te pedir que confies em mim e fazer o que te peço.

 

Ele semicerrou os olhos.

 

Diz-me uma coisa. Esse tipo, o senhor de Glencarnagh, que significa ele para ti? Não é boa rês, esse tipo. Que significa ele para ti?

 

Não tens nada com isso. O que é que ele te disse?

 

Mandou-me embora. Até falou numa escolta até à fronteira. A mim, um viajante. Recusei a amabilidade. Disse-me que não, que não te podia ver, nem hoje nem amanhã, no dia seguinte ou no próximo ano. Disse que estavas ali como sua hóspede especial e que não devias ser perturbada. Que um insignificante como eu devia saber que não se incomoda uma dama. Palavras do género. Por momentos, fez-me desejar ser um guerreiro, em vez de músico. Que quis ele dizer, Fainne? Hóspede especial?

 

Lamento que te tenha tratado assim. A minha voz tremia. Eu estava doente. Indisposta. Não sabia que estavas ali.

 

E não te importas que o tipo tome as decisões por ti? Não te importas que seja ele a escolher os teus amigos?

 

Não respondi.

 

Fainne. Olha para mim.

 

Virei o rosto para ele. Darragh estava muito pálido e muito sério.

 

Vais casar com ele? É isso? Diz-me a verdade.

 

Não tens nada com isso murmurei.

 

Tenho, sim. Diz-me.

 

Com relutância, acenei com a cabeça.

 

Não. é impossível.

 

É um bocado velho para ti, não achas? perguntou ele rudemente.

 

Casamentos desses não são raros. É a idade da mulher que importa se um homem quer um herdeiro.

 

Darragh nunca se zangava. Era uma das boas coisas dele. Pensei que, desta vez, se ia zangar. O seu maxilar cerrou-se, mas a voz manteve-se calma.

 

Portanto, casas-te pelo nome e pela fortuna. E vais dar à luz os filhos de um velho.

 

Não compreenderias.

 

Tenta.

 

Não podes compreender.

 

Darragh ficou silencioso por um momento. Então, disse:

 

Disseste-me isso uma vez, não disseste? Algo acerca de um cão vagabundo, creio que foi isso.

 

Falei sem pensar, dessa vez. Lamento se te magoei. Mas isto é uma coisa que não te posso explicar. Peço-te, simplesmente, que te afastes, mais nada. Desejava tanto contar-lhe a verdade.

 

Ele esperou um pouco. À medida que a noite ia avançando, o ar à nossa volta ia ficando cada vez mais frio. A pequena fogueira já não era suficiente para afastar o sentimento gelado que parecia vir do fundo da minha alma. Pensei que, se fosse capaz de chorar, as minhas lágrimas transformar-se-iam em gelo antes mesmo de caírem dos meus olhos.

 

Amas esse tipo? perguntou Darragh sem olhar para mim.

 

Amor? exclamei, sentando-me repentinamente levada pelo choque e reprimindo um gemido de dor. É claro que não! O amor não é para aqui chamado. Quem é que se casa por amor? Isso é uma tolice. Num casamento desses só há dor e perda. Pensei na minha mãe e no meu pai e como as suas vidas tinham sido destruídas pelos laços que os ligavam.

 

Nesse caso, aconselhas a minha irmã Roisin a não se casar com Aidan, não? Eles estão a planear casarem-se no Outono, quando ela fizer dezassete anos. Aidan já tem um pouco de terra. Achas que eles não deviam seguir em frente?

 

Olhei para ele de sobrolho franzido.

 

Isso é diferente disse eu.

 

Diferente como? Queres dizer, por serem pessoas simples, ao contrário de ti e do teu grande senhor?

 

É claro que não! Pensei que me conhecesses melhor!

 

Também eu disse Darragh suavemente. Mas passas a vida a surpreender-me.

 

É diferente porque... porque... não te posso dizer. Mas é.

 

Hã-hã disse Darragh. Ficámos ali sentados por um bocado. O frio parecia vir de todos os lados. As únicas partes do meu corpo que ainda estavam relativamente quentes era as mãos, que eu mantinha estendidas para o fogo. O resto tremia de frio, para já não falar dos danos que a viagem tinha feito. Pensei, vagamente, em como iria subir outra vez para cima do cavalo quando chegasse a madrugada e fazer o caminho todo de volta.

 

Darragh rodeou os joelhos com as mãos, olhando para as chamas. Tinha um ar solene; não era o Darragh sorridente de sempre.

 

Não me convenceste disse ele.

 

Convencer-te de quê?

 

De que tens razão. De que não precisas que tomem conta de ti. Não acredito numa única palavra. As tuas palavras dizem-me uma coisa e os teus olhos outra. Fainne, podes dizer-me. Não há segredos entre nós. O que é que te preocupa tanto?

 

Nada. A minha voz falhou apesar dos meus esforços. Nada. Acabo de te dizer, vai-te embora e nunca mais voltes.

 

E que vais tu fazer depois de eu me ir embora?

 

Pôr o amuleto e acabar a tarefa para a minha avó, de maneira a ficares livre de perigo.

 

Regressar a Glencarnagh e ir para o meu quarto antes que eles descubram que eu saí disse-lhe. Continuar com a minha vida. Mas isso não te diz respeito.

 

Tenho outra sugestão disse Darragh. Eu não disse nada.

 

Esperamos até de madrugada, ponho-te em cima de Aoife e vamos os dois para casa, para Kerry. É isso que vamos fazer.

 

Aquelas palavras cortaram-me a respiração e, por um momento, fiquei incapaz de responder. A ansiedade tomou conta de mim. Se eu pudesse dizer sim. Se pudesse ir para casa, para o Favo de Mel e para o meu pai, para o tempo em que tudo fazia sentido e a coisa pior da minha vida era ter que esperar o Inverno todo pelo regresso de Dan Walker e do seu clã à enseada. Mas não podia ir. Se não pusesse, na madrugada que se aproximava, o amuleto da minha avó ao pescoço, ela apareceria junto de mim, furiosa e em busca de respostas. E uma vez posto o amuleto, ela poderia ver-me sempre que quisesse. Regressar a Kerry representava a morte para o meu pai e para Darragh. Não levar a cabo a tarefa da minha avó seria o fim para todos nós.

 

Não posso disse eu. E o teu trabalho para O’Flaherty? E os cavalos dele? E Orla?

 

Darragh atirou um graveto para o fogo.

 

Esquece O’Flaherty disse ele. Não te preocupes com isso. Eu estou a dizer que te levo para casa. Estás cansada, tens medo e nem sequer sabes para que lado te hás-de virar. Penso que o teu pai ficará feliz por te ver.

 

Fiz um esforço para falar.

 

Não posso voltar atrás. A minha voz era tão fria como o gelo que me enchia o coração e me gelava as lágrimas por derramar. Mas tu tens de ir. Tu e Aoife. Eu tenho de ficar aqui. Eu sei o que estou a fazer, Darragh.

 

Então, ele não disse nada durante muito tempo e à medida que o silêncio se foi prolongando eu comecei a bocejar, os meus olhos começaram a fechar-se apesar do frio e eu pensei vagamente que não dormia há muito tempo. Mas não podia dormir. Tinha de regressar a Glencarnagh, tinha de...

 

Pega disse Darragh. Ele tinha arranjado outro cobertor não muito maior do que um saco, talvez utilizado para aquecer Aoife, porque, tal como o outro, cheirava fortemente a cavalo. É melhor descansares um bocado. Estás mortalmente cansada. Anda lá, deita-te, que eu cubro-te.

 

Não posso protestei por entre os meus convulsivos bocejos. Já te disse... tenho de estar lá de madrugada... viagem longa...

 

Aoife é rápida disse Darragh. Eu levo-te a tempo. Eu acordo-te, não tenhas medo.

 

Não... tu não compreendes...

 

Compreendo sim, Fainne.

 

Mas... O cobertor sabia tão bem, tão bem. Deixei cair a cabeça e fechei os olhos enquanto continuava a murmurar os meus protestos.

 

Ehhh disse Darragh. Eu fico de vela. Descansa.

 

O sono atingiu-me como uma grande vaga, súbita e imparável. Quase acordei uma vez ou duas, consciente do frio intenso que entrava através do cobertor, da capa e do vestido, tocando no meu espírito com os seus dedos gelados; consciente de que tremia como varas verdes a despeito das brasas e dos meus esforços para me enrolar sobre mim própria o mais possível. E então, subitamente, fiquei quente, maravilhosamente quente, segura e confortável e algures na minha mente o Sol brilhava sobre a água da enseada e era Verão. Mais tarde agitei-me de novo, sabendo que a noite ia passando mas não querendo acordar por completo com medo de que aquela visão se perdesse para sempre. Havia um braço que me rodeava, segurando a capa em redor dos meus ombros e o mesmo velho cobertor cobria-nos a ambos. Darragh estava por trás de mim, o seu corpo encostado ao meu, o seu calor fazendo parte de mim e os meus cabelos sentiam a sua respiração tranquila e lenta. Mantive-me muito quieta. Não queria acordar por completo. Pensei que, se tudo acabasse naquele momento, não me importaria nem um pouco. Que acabasse tudo, para que não precisasse de acordar. E deslizei de novo para o sono.

 

Caracóis.

 

Puxei o cobertor para cima de mim e fechei os olhos com força.

 

Fainne. Acorda, minha querida. Puxei o cobertor para cima do rosto.

 

Fainne. Vamos, acorda.

 

Pestanejei, espreguicei-me e gemi. Sentei-me com alguma dificuldade. Ainda estava escuro. Do outro lado da fogueira, Darragh andava de um lado para o outro e reparei que Aoife já tinha as bolsas da sela e o cobertor dobrado na garupa. A égua cinzenta estava perto, tranquila. O esplendor desvaneceu-se na minha mente como se nunca tivesse existido.

 

Tentei levantar-me. Não foi fácil. A viagem causara mais danos do que eu pensava.

 

Darragh.

 

Hum?

 

Eu quis dizer o que disse. Regressa para junto de O’Flaherty. Eu volto para Glencarnagh sozinha.

 

Hã-hã.

 

Pára com isso! A minha voz era tão fraca e hesitante como a de uma criança. Que se passava comigo? Não podes ir comigo. Eu vou sozinha.

 

Muito bem. Nesse caso, vem até mim.

 

Isso não é justo! Dei um passo e a dor dilacerou-me as costas. Eu posso ir. Eu consigo.

 

Senta-te, Fainne. Se insistes em regressar, Aoife e eu levamos-te, já te disse.

 

Por que não ouves o que eu te digo? protestei, deixando-me cair no chão de modo estranho, porque as minhas pernas não me suportavam.

 

Tu não podes voltar lá. Não podes ser visto comigo. Nem em Glencarnagh nem em qualquer outro sítio.

 

Sentes-te embaraçada, é isso, por seres vista na companhia de um nómada? Ele estava de costas para mim, a tratar da égua.

 

É claro que não!

 

Tu és suficientemente estúpida para tentar regressar sozinha. E eu talvez te deixe, porque estou farto de lutar contigo. Mas não podes montar esta égua daqui até Glencarnagh. Ela está velha e já percorreu um longo caminho contigo, esta noite. Não está em condições de te levar de volta na escuridão. Eu levo-te. Não te preocupes, não te envergonho. Não mostro a cara ao teu grande senhor. Não quero estragar as tuas expectativas.

 

Eu não disse nada. Não valia a pena. Faria o que tinha de fazer e a cada momento agradeceria à deusa por ele estar longe, a Oeste, sem me poder ver. Daria graças todos os dias por ter tido a oportunidade de o afastar dos olhos da minha avó. Mas necessitava da ajuda dele para regressar a Glencarnagh. Teria de aceitar.

 

Muito bem disse ele de modo agradável uns momentos depois. É melhor partirmos.

 

Lamento disse em voz baixa.

 

O quê?

 

Lamento ter feito esta égua percorrer tanta distância na escuridão, ao frio. Lamento tê-la cansado. Não pensei. Tudo o que eu queria era...

 

Não te preocupes com isso disse Darragh. Ela está um pouco cansada, mas nada que um bom descanso e um estábulo quente não resolvam. A pobre não está habituada a uma excitação tão grande. Mas é um animal saudável. Não tenhas medo por ela. Ela faz o caminho de volta com relativa facilidade atrás de Aoife. A mim, parece-me que já tens problemas suficientes.

 

Em seguida ergueu-me para cima de Aoife, montou também, colocando-se atrás de mim e partimos.

 

Foi uma cavalgada estranha; silenciosa a maior parte do tempo e mais rápida do que a jornada anterior, porque Aoife tinha um passo rápido e suave, sem necessidade, aparentemente, de ser guiada. A certa altura, Darragh disse:

 

Vai ali um mocho, umas vezes atrás de nós e outras à frente. Estás a vê-lo? Faz-me lembrar aquele corvo que está sempre perto do teu pai, vá ele para onde for. Como se fosse um guardião.

 

Acenei com a cabeça na escuridão.

 

É da mesma espécie disse eu.

 

Estou a ver. Fainne?

 

Hum? Recusei-me a permitir que a minha mente continuasse a funcionar para lá daquele momento; para lá do passo firme do pónei, do brilho branco do seu pêlo à luz da Lua, de Darragh com o braço em redor da minha cintura e do calor do seu corpo afastando o frio do meu coração. Sentia-me segura. Pensei, tolamente, que faria com que aquilo durasse muito tempo; porque seria a última vez.

 

Eu já vi que não vens comigo. Já vi que não vais regressar a Kerry. E já me disseste que não sou aqui bem-vindo. Mas...

 

Mas o quê?

 

Gostaria que aceitasse o conselho de um velho amigo. Gostaria, pelo menos, que não ficasses em Glencarnagh. Estarás mais segura em Sevenwaters. As pessoas, lá, são boas. O teu tio é bom homem. O meu pai respeita-o muito, assim como toda a família. E... e devias esperar antes de tomares uma decisão. Ainda és muito nova. Tens todo o tempo do mundo.

 

Ah isso é que não tenho. Só tenho até ao Verão. Não mais. O meu destino é medido pelo espaço de tempo entre duas estações. Mas, para ti, posso comprar mais um pedaço.

 

Acabaste?

 

Ele não respondeu.

 

Há algum tempo, se bem me lembro, aconselhaste-me a encontrar um marido e a criar um rancho de filhos disse-lhe. Agora, dizes-me para esperar. Afinal, o que é que vai ser?

 

Não brinques, Fainne. Tu deves casar-te, mas, pelo menos, escolhe um homem bom.

 

Fiquei calada. De certo modo, ele tinha o dom de dizer as coisas mais simples, fazendo-me ficar alegre ou miserável num instante. Continuámos a cavalgar e eu pensei ver o céu a clarear, como se a madrugada não estivesse muito longe. O frio começou a entrar-me de novo no espírito, como se o melhor e mais verdadeiro amigo do mundo não tivesse o poder de deter os seus dedos gelados.

 

Darragh disse eu em voz baixa e até a mim a minha voz me pareceu estranha, como se estivesse a lutar com as lágrimas. Mas os meus olhos estavam secos. Eu era filha de um feiticeiro, e era forte. Não choraria

 

Sim?

 

Se soubesses as coisas que eu fiz, não quererias ser meu amigo. Se soubesses, compreenderias por que razão te peço que fiques longe de mim. Coisas terríveis. Coisas maldosas, das quais não suporto falar.

 

Por que não mas contas e me deixas julgar? O meu coração deu um salto de alarme.

 

Não posso. Não te posso contar.

 

Mas eu posso adivinhar.

 

Não, não podes. Ninguém consegue adivinhar. Está... está para além da compreensão das pessoas normais. Acredita apenas que é melhor ficares longe de mim. Por favor, acredita.

 

Aoife continuava firmemente em frente e agora havia um acinzentar distinto no céu, uma mudança nas sombras à nossa volta.

 

Eu posso adivinhar disse Darragh de novo. A sua mão segurava as rédeas descontraidamente e o seu braço rodeava-me a cintura com firmeza e segurança. Houve um incêndio. A minha tia contou-me. Morreu um homem e outro ficou ferido. E uma criança ficou queimada. Um acidente terrível. Tu sempre foste boa a fazer fogo.

 

Eu não disse nada.

 

Tens razão, foi uma coisa horrível. Podes persuadir-me, sem grande dificuldade, de que tiveste algo a ver com ele. Mas nunca me convencerás que o fizeste de propósito. Magoar e ferir pessoas inocentes, tirar a vida a um homem santo. Não acredito.

 

Há mais murmurei. Darragh esperou.

 

Aquela rapariga na enseada. A rapariga pescadora, aquela que desapareceu. Lembras-te?

 

Ele continuou em silêncio.

 

Cada palavra era um julgamento. Forcei-as a sair, uma a uma, com o coração a bater como um tambor.

 

Eu... eu usei a arte, Darragh. Usei-a de modo errado. Mudei-a e ela morreu. Algo correu mal e ela morreu. Nunca disse a ninguém até agora. Depois disto nunca mais quererás ser meu amigo.

 

E agora ele ir-se-ia embora de boa vontade. Desprezar-me-ia e deixar-me-ia e eu já não teria de me preocupar, porque ficaria a salvo. Paciência se isso lhe doía, paciência se ele sentia uma faca no coração, torcendo-se e virando-se. Eu sofreria sempre pelo que fizera e pelas coisas que teria de fazer.

 

Ela era boa rapariga disse Darragh calmamente. Chegámos a uma ligeira inclinação, entre grandes ulmeiros e ali, à luz da madrugada, estava a grande e baixa casa de Glencarnagh, e um pouco mais perto estavam dois guardas com túnicas verdes e armas nos cintos. Aoife parou.

 

E agora vai-te embora disse eu entredentes. Deixa-me aqui, eu faço sozinha o resto do caminho. Já te aventuraste demasiado.

 

Por trás de mim, Darragh não se mexeu.

 

Darragh! murmurei, aflita. O céu estava cada vez mais claro. Eu tinha de estar dentro de casa, com o amuleto ao pescoço, antes de o dia nascer. Prometera à minha avó. E Darragh tinha de se ir embora antes de ser visto. Eu temia a ira de Eamonn.

 

Por fim, Darragh moveu-se. Deslizou do cavalo e estendeu os braços para me ajudar a desmontar. Senti as pernas pouco seguras e ele segurou-me, franzindo o sobrolho enquanto me perscrutava o rosto à luz pálida da madrugada.

 

Talvez eu vá até Kerry e traga o teu pai murmurou ele. Talvez faça isso.

 

Não! arquejei. Não! Não faças isso! Vai-te embora e deixa-me! Que hei-de dizer para que tu compreendas?

 

Tu precisas que tomem conta de ti. Foi o que eu sempre disse e isso não mudou. Tu estás metida numa coisa qualquer demasiado grande para ti. Não está certo, Fainne.

 

Respirei fundo.

 

Não sejas estúpido disse eu e fiz com que a minha voz parecesse o mais fria possível. É muito simples. Eu quero esquecer-te. Quero apagar cada traço teu da minha mente. Quero que te vás embora, não quero voltar a ver-te. Acredita. É a verdade.

 

Darragh ficou branco como a cal e tirou lentamente as mãos da minha cintura. Descobri que podia manter-me de pé sem ajuda. Ou quase. O seu olhar manteve-se firme no meu rosto. Os seus olhos castanhos, olhando para os meus e perscrutando profundamente.

 

Dá-me a tua mão.

 

Abri a boca para discutir, mas, em vez disso, vi-me a estender a mão e ele a pegar nela. Olhámos ambos para baixo.

 

Não acredito disse Darragh enquanto os seus dedos tocavam no pequeno círculo de erva entrelaçada que eu usava no dedo mindinho; o minúsculo presente que as minhas mãos tinham encontrado, como que por acaso, no canto mais escondido da minha arca de madeira quando pensara desafiar a minha avó e fora derrotada. Ela não vira aquilo e nunca veria, porque voltaria de novo para a arca antes de o amuleto regressar ao meu pescoço. Aquele pequeno círculo era um símbolo de inocência; e eu não o podia usar. No entanto, usara-o esta noite no meu dedo para provar que não me tinha esquecido.

 

Não acredito disse ele de novo e largou-me a mão. Está a amanhecer e é melhor ires para dentro. Os guardas não te vêem?

 

Abanei a cabeça.

 

Há sempre um meio de fazer as coisas. Ele franziu o sobrolho.

 

Não gosto nada disto, Fainne. Não gosto de te deixar aqui.

 

Eu não disse nada. Olhámos um para o outro por um momento e comecei a virar-me para me ir embora.

 

Bem disse Darragh gentilmente e a sua mão estendeu-se para me afastar um caracol do rosto. Os seus dedos percorreram-me a têmpora e retiraram-se. Adeus, Caracóis. Mantém-te afastada de sarilhos até...

 

Não! exclamei. Não digas isso! Tu não podes voltar! Nunca mais, entendes, nunca mais!

 

E virei-lhe as costas, correndo o mais depressa que o meu corpo dorido me permitia por baixo dos grandes ulmeiros, murmurando o feitiço para que os guardas não vissem nada senão um truque da madrugada, um mero movimento dos arbustos e da erva, e não olhei para trás nem uma única vez. Corri ao longo da sebe, atravessei o jardim, deslizei pela porta da cozinha e pelo átrio até ao meu quarto, onde a lareira estava apagada e a vela reduzida a um pedaço de cera. O ar estava gelado, mas não tanto como o meu coração.

 

Tirei o pequeno anel do dedo e meti-o nas profundezas da arca, por baixo do xaile de seda. Não o voltaria a usar. Em seguida, tirei o amuleto da minha avó, o triângulo de bronze estranhamente trabalhado e procurei um cordão ou uma fita, qualquer coisa para o poder pôr ao pescoço, porque não me queria arriscar a que ela voltasse enquanto Darragh não chegasse à fronteira de Glencarnagh. Uma vez posto o amuleto, ela já me podia controlar. Só teria de fazer a sua vontade e os que me eram queridos estariam salvos.

 

Lembrei-me de uma coisa. Um cordão, estranho, que adornara a minha boneca, Riona. Tinha-o tirado para o guardar, juntamente com a pequena pedra branca que o acompanhava. Onde o pusera? No bolso de um dos vestidos, se bem me parecia. O vestido castanho-avermelhado. Estava na arca, dobrado. Sim, lá estava ele, um cordão resistente, entrançado com muitas fibras, tão resistente que parecia inquebrável, as suas pontas atadas com um pedaço de couro. Tentara, uma vez, desatá-lo, mas não conseguira. Mas agora, curiosamente, o nó desfez-se facilmente. Parecia que aquela coisa, que pertencera à minha mãe, não se importava de transportar aquele talismã tão perigoso. Meti a pequena pedra na arca e coloquei o triângulo de bronze no seu lugar. Enquanto apertava o cordão em redor do pescoço, descobri que estava a murmurar: Lamento. Lamento tanto. O amuleto parecia mais leve, como se o cordão que o suportava fosse mais forte do que o anterior, que se partira devido ao seu fardo maldito. Talvez, mesmo naqueles tempos de escuridão, o espírito da minha mãe velasse por mim. Estremeci. Ainda bem que ela não me podia ver; ainda bem que não sabia que eu era, mais uma vez, um instrumento da minha avó. Porque me parecia que, a partir deste momento, os meus passos seguiriam o caminho da feiticeira e a minha história seria a história dela.

 

 

                                                       CAPíTULO NOVE

 

Sabia o que tinha a fazer. Era uma questão de disciplina. Controlo da vontade e concentração mental. Concentrar toda a energia na tarefa e não deixar que nada se interpusesse. Devia ter sido assim desde que subira pela primeira vez para a carroça de Dan Walker e abandonara a costa de Kerry. Era o que devia ter feito na floresta de Sevenwaters, em vez de permitir que as raparigas tivessem entrado na minha guarda e se tivessem instalado no meu coração contra todas as probabilidades. Era assim que me devia ter protegido, em vez de ouvir um druida e as histórias daqueles que se chamavam a si próprios Anciãos.

 

Havia uma estratégia para ser seguida e o primeiro passo era Eamonn. Eamonn não era assim tão difícil, disse eu para mim própria enquanto me lavava e vestia com um cuidado pouco vulgar, franzindo o sobrolho para o meu rosto branco como um fantasma e para os meus olhos sombrios no espelho. Pelo menos, não gostava dele, pensei, enquanto escovava cem vezes o meu cabelo e o penteava no topo da cabeça para parecer mais velha, pelo menos com dezassete anos. Era apenas uma questão de não me esquecer do que devia fazer e por que razão o fazia. Pensar na voz da minha avó a dizer: Ele pode muito bem ser assassinado na estrada por causa dos seus fracos haveres. Pensar nisso e fazer o que ela queria com mãos seguras de feiticeira.

 

Aventurei-me a sair, sabendo que era tarde e que haveria perguntas se não aparecesse pelo segundo dia consecutivo. Estava cansada, cheia de frio e cheia de equimoses. Não parecia nada uma rapariga que estivera a descansar um dia e uma noite. Uma ligeira palidez era uma coisa: uma aparência de completa exaustão era outra. Pelo menos, estava limpa. E não usaria o Encantamento. Tinha de fazer aquilo por mim própria.

 

Estava com sorte. As raparigas não estavam à vista e Eamonn estava só, de sobrolho franzido a consultar uns documentos escritos em letra muito pequena, sentado numa antecâmara onde umas altas e estreitas janelas deixavam entrar a luz do Sol daquela manhã de Inverno. Fiquei à entrada a olhar para ele, pensando que o seu rosto parecia gasto e cheio de rugas sob aquela luz inexorável, reparando que o seu cabelo castanho estava grisalho nas têmporas e lembrando a mim mesma que tinha de aprender que as pessoas eram peões num jogo, nem mais, nem menos. Não fiz qualquer som, mas, subitamente, ele ficou consciente da minha presença e levantou-se rapidamente, quase como se se estivesse a pôr em guarda à vista de um inimigo.

 

Bom dia disse eu polidamente. Peço desculpa se te assustei.

 

De modo nenhum. Ele recuperou rapidamente, aproximando-se de mim para me guiar até um banco junto da pequena lareira. Estava um frio terrível; as tapeçarias agitaram-se sob a corrente de ar. Não consegui reprimir um arrepio.

 

Vem, senta-te aqui disse Eamonn. Ainda não estás bem. Já comeste?

 

Abanei a cabeça, imediatamente foi chamada uma serva, imediatamente foi despachada e pouco depois reapareceu com pão, frango frio e um jarro de cerveja num tabuleiro, que colocou a meu lado. A rapariga foi despedida e a porta fechada.

 

Por favor disse eu perturbei-te no teu trabalho. Por favor, continua. Ignora-me. Eu fico quieta. Ou, se quiseres, posso comer noutro lado qualquer. Não queria...

 

Eamonn fez uma pequena careta.

 

De maneira nenhuma. Isto vai devagarinho; a tarefa não é do meu gosto e não me consigo concentrar. A interrupção é bem-vinda. Além disso, estava mesmo a pensar mandar uma mulher saber como estavas. Deixa-me servir-te.

 

Esperei em silêncio enquanto ele deitava a cerveja na caneca, pensando na mão de Darragh na minha e recordando-o a alimentar-me como a uma criança.

 

Pronto disse Eamonn. Estava preocupado, Fainne. Não tivemos o prazer da tua companhia, ontem.

 

Como vês, já estou bem. Bebi um pouco de cerveja e esmigalhei o pão entre os dedos.

 

Eu... Eamonn estava invulgarmente hesitante. Pensei se a tua indisposição não terá sido resultado de... pensei que talvez te tenha ofendido, afligido. Sei que meu comportamento não foi muito apropriado.

 

Olhei para ele.

 

Não foi bem o teu comportamento que... foi o que tu disseste. Eu fiquei um pouco perturbada, é verdade. Mas, como vês, já recuperei.

 

Então, ofendi-te. Lamento. Parecia sincero. Sentara-se no banco em frente e perscrutava-me de perto. Bebi mais um pouco de cerveja. De facto, tinha fome, porque as papas de aveia não tinham durado muito, mas um bom apetite não se coadunava com a imagem que queria criar. Deixei o pão.

 

Temos de falar sobre isso disse Eamonn em tom pouco entusiasta. Mas não sei por onde começar.

 

Olhei para ele de relance. Parecia um homem que não tinha dormido e pressenti que os manuscritos espalhados sobre a mesa eram a menor das suas preocupações.

 

Tu falaste em compromisso recordei-lhe. Acredito que isso é possível entre nós. Mas não falaremos sobre esse assunto esta manhã. Ainda estou cansada e tu pareces um pouco confuso. Posso fazer uma sugestão?

 

Fazes favor.

 

Talvez eu possa ficar aqui um bocado, tranquilamente. Não precisamos de falar sobre o que aconteceu entre nós. Trouxe algum trabalho de costura comigo; vou comer e beber e trabalhar um pouco porque a luz é boa nesta sala e esta manhã só quero a tua companhia. Podes continuar com o teu trabalho como se eu não estivesse aqui. Mais tarde, talvez depois do jantar, falaremos de outros assuntos.

 

Ele ficou a olhar para mim durante alguns momentos. Então, disse:

 

Esteve aqui ontem um rapaz a perguntar por ti. Um tipo rude. Disse que te queria ver e não gostou nada de receber um não como resposta. Eamonn tinha o sobrolho franzido. Mantive-me impassível.

 

A sério?

 

Trazia um belo pónei, um animal bom de mais para um vagabundo. Completamente branco. As pessoas daqui disseram que tu o conhecias de Kerry.

 

Devia ser um dos nómadas, suponho. Foram eles que me trouxeram para Sevenwaters.

 

Isso foi um arranjo pouco vulgar disse Eamonn, troçando.

 

Talvez, mas foi uma viagem segura, porque uma rapariga não pode viajar sozinha sem uma escolta. As pessoas deixam os nómadas em paz. Esse homem é sobrinho de uma das servas do meu tio Sean. Mais nada.

 

E para ti, Fainne, que significa ele? Ele foi muito persistente. Tolamente. Parecia de compreensão lenta quando lhe disse para sair das minhas terras. Que significa ele para ti?

 

E, subitamente, senti um certo tom na sua voz e um olhar nos seus olhos que me deixaram muito desconfortável. Lembrei-me de que este homem sustentava o seu ressentimento ciumento há mais de dezoito anos. Este homem dissera: Um homem que me tira o que é meu é pago na mesma moeda. Não gostei daquele olhar, mas a voz da minha avó dizia: Sim, sim. Joga com isso.

 

Tentei uma risada suave de desprezo.

 

Para mim? Nada. Eles são boas pessoas, mas simples. Têm o hábito de aparecer, perguntam por um amigo e depois vão-se embora outra vez. Não quer dizer nada.

 

Amigo? Certamente, uma dama não pode ser amiga de um tipo assim, um latoeiro?

 

Não tem mal nenhum disse eu espontaneamente. Além disso, eu não sou nenhuma dama. Tu próprio o reconheces, não negues. Um homem da tua posição não pode pensar em casar com uma rapariga como eu, no fim de contas. Uma rapariga cujo parentesco é, pelo menos, irregular. Uma rapariga educada no isolamento, sabendo mais acerca de livros e outras coisas do género do que do governo de uma casa.

 

Fainne...

 

Ah, quebrei as minhas próprias regras. Vamos fazer o seguinte. Tu sentas-te e continuas a decifrar esse teu pequeno manuscrito. Eu vou comer o que tu, amavelmente, mandaste vir e continuar com a minha costura. E só falaremos mais tarde. Estás de acordo?

 

Eamonn sorriu secamente e retirou-se para a sua cadeira junto da mesa.

 

De certo modo observou ele sinto-me como se estivesse a receber instruções, não a ser consultado.

 

Isso não te agrada? perguntei, as sobrancelhas erguidas imitando o estilo da minha avó.

 

Não disse isso.

 

Acabei o meu pequeno-almoço e concentrei-me no meu trabalho de costura. Ainda bem que a minha avó me tinha ensinado a coser. Talvez a qualidade dos meus pontos não a satisfizesse, mas, pelo menos, dava uma imagem de competência doméstica. E a luz era boa. Este homem falara de pele branca e cabelo ruivo como se ambas as coisas lhe agradassem. Sentei-me exactamente onde o sol de Inverno tocava nas minhas faces pálidas; sabia que os seus raios fariam sobressair a cor dos meus cabelos, transformando-os num halo deslumbrante. Concentrei-me no meu trabalho, os meus dedos movendo-se diligentemente. Sabia, sem olhar, que os olhos de Eamonn estavam mais vezes fixos em mim do que no documento à sua frente.

 

O tempo passou num silêncio total. O Sol percorreu o seu caminho no céu e o melhor da sua luz morreu no interior da sala. O solstício de Inverno estava próximo. Por um momento, permiti a mim própria pensar em Darragh e em Aoife transportando-o para oeste, para Seann Na Mara. Regressaria para junto de O’Flaherty, instalar-se-ia, casar-se-ia, talvez, com Orla e criaria um rancho de filhos de cabelos escuros e filhas de belos olhos azuis. Todos eles nadariam como peixes e montariam como se tivessem nascido numa sela. E teria a sua irmã mais nova com ele quando ela se casasse com Aidan. A sua existência seria simples, feliz e cheia de projectos. Viveria para ver os seus filhos crescerem.

 

Fainne?

 

Estremeci, como se me tivesse picado e saí dos meus pensamentos perigosos. Não podia permitir-me tal coisa. Tinha de me concentrar.

 

Hum? perguntei, terminando uma sequência e cortando a linha com os dentes.

 

Eu... nada. Esquece.

 

Quebraste as regras disse eu de modo ligeiro, dobrando o meu trabalho. Não fales. Mas eu já acabei o meu trabalho. Talvez seja melhor ir-me embora.

 

Não vás. É agradável ter-te aqui enquanto trabalho. Parece estranho, mas é agradável. Eu costumava... costumava sonhar que seria assim com... costumava imaginar como seria se fosse um homem casado. Como poderia ser diferente. Tinha uma imagem na cabeça, na qual cavalgava para casa, para Sídhe Dubh e... não, não me parece próprio. Não devo dizer estas coisas diante de ti.

 

Podes dizer disse eu em voz baixa.

 

Eamonn levantou-se e aproximou-se de mim, olhando através da alta e estreita janela para a paisagem de Inverno: os ulmeiros de ramos nus e o jardim escavado, esperando as novas plantações.

 

Vais pensar que sou tolo disse. Mole.

 

Não vou, não, Eamonn. Não te julgarei.

 

Ele olhou para mim de relance, sem expressão.

 

Nesses tempos, sabes, pensei que me casaria e teria filhos, como qualquer homem. Foi então que conheci o Homem Pintado; esse filho do diabo que se tornaria no desejo de vingança da minha vida. Então, não sabia que seria ele a roubar-me tudo o que me era querido; que me tiraria a esperança da minha vida e que ficaria ele com ela. Então, acreditava que a minha vida seria como a dos outros homens. E à medida que ia sentindo a escuridão entrar-me no espírito provocada pela influência desse homem, crescia na minha mente uma pequena imagem, uma imagem pura, a única que permaneceria: a minha mulher à entrada de Sídhe Dubh com o meu filho nos braços. Essa imagem era a minha garantia de que tudo seria como deve ser.

 

Eu não disse nada.

 

Pensamentos tolos de velho observou Eamonn amargamente É isso que estás a pensar.

 

Era Liadan que vias, claro.

 

Claro. Mas ele levou-ma Ela deu à luz o filho dele. Os filhos dela deviam ser meus.

 

Ele dissera uma coisa extraordinária, tão extraordinária que eu mal consegui formular uma resposta.

 

Dissemos que só falaríamos dessas coisas mais tarde consegui dizer. Por que preferiste dizer-me isso agora?

 

Eamonn evitou o meu olhar. Olhou para lá da janela, para um homem no carreiro, em baixo, com uma forquilha ao ombro e um par de cães nos calcanhares.

 

Não sei disse ele após um momento. Suponho que, vendo-te aí muito tranquila, senti uma espécie de... de integridade, do que a minha vida poderia ter sido se as coisas tivessem sido diferentes.

 

Eu não disse nada.

 

Eu não queria falar disto; contei-te sem querer. Foi uma tolice, um sinal de fraqueza. Não podemos recuperar o que nunca tivemos.

 

Levantei-me.

 

Vou-me embora disse eu calmamente. Vou ver as raparigas e depois vou descansar mais um pouco. O passeio à queda de água provocou-me mais dores no corpo do que imaginava.

 

Foi muito imprudente da minha parte. Eamonn franziu o sobrolho, olhando para mim. Muito imprudente.

 

Não tem importância disse eu de modo ligeiro. Depois do jantar talvez possamos jogar brandubh de novo e falar mais sobre essas coisas...

 

Acho que não...

 

Talvez possamos. O meu tom era firme. Mas, antes, gostaria que pensasses numa coisa.

 

Ele esperou.

 

O que é que tu queres? perguntei cuidadosamente. De que é que precisas para continuar? De que estás à espera para agarrares a vida com ambas as mãos e assegurares que és recebido em tua casa de braços abertos e que ouves risos de crianças? Qual é o fantasma que te impede de fazer isso?

 

Tu não podes...

 

Ah disse eu. Posso, sim. Fiz-te uma pergunta e estou à espera da resposta.

 

Não quero falar mais dessas coisas. É melhor esquecermo-nos delas.

 

Não me parece disse eu. Só viveste metade da vida. Se deitas fora o resto, o teu inimigo venceu-te. E agora vou-me embora. És capaz de me fazer uma coisa?

 

Ele inclinou a cabeça com cortesia, mas os seus maxilares estavam cerrados.

 

Põe as mãos atrás das costas disse eu. E fecha os olhos até eu dizer que podes abri-los.

 

Surpreendido, mas condescendente, ele fez como pedido. Coloquei as minhas mãos em ambas as faces do seu rosto e senti o seu corpo retesar-se.

 

Olhos fechados disse eu severamente. Então, fiz um esforço e beijei-o, um beijo que começou como o doce encosto de lábios que se poderia esperar de uma rapariga inocente como eu. Mas a minha avó ensinara-me muitas coisas. Eu sabia como fazer com que o beijo mudasse, com um ligeiro abrir dos lábios e um pequeno toque da língua, para algo mais, algo que faria com que o sangue de um homem fervesse e a sua respiração se acelerasse, tal como estava a acontecer agora com Eamonn. Esperei pelo momento em que ele já não conseguisse controlar as mãos que tinha atrás das costas e nesse momento retirei os lábios e recuei.

 

Fainne! disse ele afogueado e olhando para mim. Que estás a tentar fazer-me?

 

Nada respondi de olhos muito abertos, surpreendida. Só te quis mostrar que também acredito em compromissos. A propósito, se, no futuro, tiveres dificuldade em ler, estarei pronta para te ajudar. Sei ler muito bem e os meus olhos são mais novos.

 

Virei-lhe as costas, saí da sala e Eamonn não disse uma palavra.

 

Não era fácil. Desprezava-me a mim própria pelo que estava a fazer. Senti um arrepio ao pensar no que pensaria Darragh se me pudesse ver. O meu pai sempre me deixara percorrer o meu próprio caminho e fazer os meus próprios erros, mas isto tê-lo-ia chocado profundamente. No entanto, encontrei as forças necessárias para continuar. Havia uma pequena imagem do meu pai na minha mente, tossindo sangue. E havia outra de Darragh e Aoife cavalgando para Oeste, para longe do perigo. E as pequenitas, todas diferentes, cada uma delas fantástica à sua maneira? Tinham confiado em mim espontaneamente; não podia expô-las à fúria destrutiva da minha avó. Só precisava de pensar nisso para, no fim de contas, poder continuar.

 

Passei algum tempo com as pequenas. Estavam invulgarmente deprimidas; Eilis mostrou-me o seu trabalho de costura, as gémeas estenderam-se no tapete em frente da minha lareira e Sibeal sentou-se à janela, tão quieta e calada como se fosse feita de pedra.

 

Muito bem, Eilis disse eu. A tua mãe ficaria muito orgulhosa de ti. Lamento não ter podido ajudar-te ontem. Estive doente.

 

Ajudei-a eu disse Deirdre com um ligeiro toque de presunção Estiveste aqui fechada o dia todo. Nem sequer respondeste quando batemos à porta. O que é que se passa contigo?

 

Tive uma grande dor de cabeça. Mas já estou melhor.

 

Não pareces melhor observou Clodagh. O teu rosto está branco e tens olheiras. Pensámos que talvez tivesses tido uma discussão com o tio Eamonn.

 

O tio Eamonn anda mesmo maldisposto disse Deirdre.

 

Não respondi. Era melhor passar menos tempo com elas a partir dali. Era melhor afastar-me rapidamente, mesmo que isso as magoasse. Ficar perto delas era pô-las em perigo. Além disso, eram muito boas a resolver quebra-cabeças.

 

Não o viste disse Clodagh no meio do silêncio. Darragh. Ele esteve aqui e tu não o viste.

 

Ah, sim ouvi dizer disse eu com firmeza.

 

Nunca pensámos que eles existissem mesmo. Deirdre estava no chão, uma mão a amparar a cabeça e olhando para mim, sentada na cama com Eilis. Ele e o pónei branco. Mesmo a sério. Pensámos que era uma história acerca das aventuras de um rapaz e um pónei. Mas existem mesmo. Ele deixou-nos fazer uma festa em Aoife.

 

Ele disse que tinha estado em Sevenwaters. E viu Maeve, sabias? Ele disse que ela estava melhor. Clodagh estava a segurar um graveto por cima do fogo, deixando-o arder. Podemos ir para casa, Fainne?

 

Subitamente, ficou tudo silencioso no quarto. As quatro olharam para mim intensamente.

 

Em breve disse eu. Muito em breve. Tenho de falar com o vosso tio Eamonn, primeiro. Perguntar-lhe o que pensa, se quiserem.

 

Clodagh olhou de relance para Deirdre e uma mensagem sem palavras passou de uma para a outra.

 

Ele vai dizer que não disse Clodagh. Ele vai querer que tu fiques em Glencarnagh. E tu não podes ficar sem nós. Havias de o ter visto ontem, quando Darragh esteve aqui. Estava furioso.

 

Darragh foi simpático observou Eilis. Deixou-me dar uma cenoura ao pónei.

 

Não te importas? perguntou-me Clodagh. De não o teres visto? Respirei fundo.

 

Foi pena disse eu o mais firmemente que pude. Mas eu não estava em condições de ver ninguém, nem sequer um velho amigo. O vosso tio Eamonn fez o que devia fazer.

 

Senti Sibeal a olhar para mim, apesar de estar nas minhas costas. Mas ela não disse nada.

 

Tu é que sabes disse Clodagh em tom de perfeita incompreensão. Depois de elas saírem tentei descansar, mas não consegui. Ocorreu-me, nesse dia, que as visões que tivera enquanto à lareira, com o braço de Darragh em redor da minha cintura e o calor do seu corpo contra o meu, tinham sido os últimos sonhos bons da minha vida. Agora, enquanto mergulhada num meio sono, as imagens enchiam-me a mente: a minha mãe saltando de uma falésia e caindo, caindo com os seus cabelos brilhantes chicoteados pelo vento e as rochas em baixo estendendo os seus braços antecipadamente para um abraço final; o meu pai, o rosto branco como a cal, cuspindo sangue; Darragh à beira da estrada com uma faca nas costas e Aoife farejando-o delicadamente, os seus olhos fiéis desvairados ao sentir que ele não acordava. E mais tarde outras imagens, que me pareciam falar de coisas que iriam acontecer, ou que poderiam acontecer. Uma rapariga a chorar de olhos cerrados, revelando os meus caracóis ruivos e a minha pele leitosa, as lágrimas caindo-lhe pelas faces, o nariz cheio de ranho e a boca esticada num ricto de angústia. Já vira aquilo antes. As palavras vieram com a imagem: Só mais tarde te aperceberás do que perdeste. E então, subitamente, uma escuridão súbita, como se o mundo estivesse de pernas para o ar devido àquela dor. Homens murmurando e gritando de medo. E uma grande onda, uma parede de água vinda de lado nenhum, uma ondulação tão alta que ao olhar para ela era como se se estivesse a olhar para a morte, como se se respirasse pela última vez. Eu tiro-te tudo... tudo... eu levo tudo... tudo...

 

Reparei, ao jantar, que Eamonn mudara de roupa e que os seus cabelos, tal como os meus, traziam sinais de terem sido escovados. Observei os seus olhos castanhos-escuros e sombrios, as feições quadradas e inflexíveis, a maneira como uma madeixa de cabelo lhe caía por cima da sobrancelha. Pensei que, em tempos, devia ter sido um jovem bem bonito, que qualquer rapariga teria gostado de ter por marido. Quando se pensava na sua riqueza e poder, era difícil imaginar a minha tia Liadan a rejeitá-lo por outro homem, especialmente um tão estranho e tão pouco atraente como o seu marido. Não parecia fazer sentido. Tentei imaginar que espécie de mulher seria ela para tratar um pretendente de maneira tão cruel, tão cruel que lhe assombrara a existência. Então, disse de novo a mim própria que não devia esquecer que os homens e as mulheres eram apenas peças de um jogo, prontos a serem manipulados. Não me competia sentir pena daquele homem solene, pálido e de meia-idade que estava sentado, calado, do outro lado da mesa, comendo pouco e bebendo constantemente. Não me competia sentir o que quer que fosse. Menina bonita, disse a voz da minha avó.

 

Terminámos a refeição. Um dos criados levou os pratos e trouxe vinho. Eamonn deu-lhe instruções para não sermos incomodados fosse pelo que fosse. Diante da lareira estavam duas cadeiras de espaldar, esculpidas, com uma pequena mesa entre elas. A caixa com as peças de brandubh e o tabuleiro, elaboradamente desenhado, estavam prontos.

 

Queres jogar? perguntou Eamonn instalando-se à minha frente. Este jogo não, pensei.

 

Hoje não. Creio que não me conseguiria concentrar. A tua gente não vai tirar conclusões precipitadas se a porta estiver fechada e se souberem que não nos devem incomodar? A minha reputação pode ir por água abaixo.

 

Eamonn olhou de frente para mim.

 

Como vês, não fechei a porta à chave nem vou fechar. Não precisas de ter medo de mim, Fainne. Eu não sou um sedutor, seja qual for a opinião que formaste acerca de mim.

 

O teu comportamento, no outro dia, não abona muito o que estás a dizer agora.

 

Já te pedi desculpa e volto a fazê-lo. Não sei o que me deu. Ergui as sobrancelhas.

 

Mal me atrevo a adivinhar.

 

Também, não me tornaste as coisas fáceis. Esta manhã tu... eu não consigo perceber o que tu queres de mim. Eamonn deitou-me vinho na taça e voltou a encher a sua. A bebida era muito forte, com um paladar doce que fazia lembrar encostas soalheiras e flores campestres. Bebi cautelosamente, consciente de que tinha de me manter lúcida.

 

Vamos ao que interessa disse eu. Tens uma resposta para a minha pergunta? Porque me parece que, se vamos continuar, o passado tem de ser resolvido. E eu posso ajudar, acredita.

 

Não sei como, Fainne. Eamonn olhou fixamente para a sua taça como se pudesse encontrar nela a resposta para um problema qualquer. Tu nunca o conseguirias compreender, por muito que quisesses, porque, no fim de contas, és muito jovem e bastante inexperiente. Nunca compreenderias o que existe entre mim e...

 

E Liadan?

 

E outras. Tu própria o disseste. Que foste criada no isolamento, longe do convívio dos homens. Nem sequer te passa pela cabeça as coisas más que aconteceram. És uma inocente. Como me poderias ajudar?

 

Estou a ver. Levantei-me. Então, isto não teve significado nenhum, não é verdade? Assim sendo, é melhor regressar a Sevenwaters. As pequenas têm perguntado quando poderemos regressar. Vou dizer-lhes que podemos partir amanhã.

 

Não. Eamonn levantou-se bruscamente e senti a sua mão no meu braço. Não foi isso que eu quis dizer. Por favor, senta-te, Fainne.

 

É difícil, não é? perguntei suavemente depois de me sentar de novo e ele abriu os dedos que se tinham crispado no meu braço e regressou ao seu lugar. Tu não percebes o que eu quero e eu não faço ideia do que tu queres. Creio que nem tu sabes. Por que não começas por responder à pergunta que te fiz?

 

Eamonn não respondeu. Tinha a boca cerrada, como se tivesse dificuldade em reprimir as palavras.

 

Estás a fugir à pergunta? perguntei. Achas que é... qual é a palavra de que tu gostas muito... inapropriada?

 

Os seus lábios abriram-se num sorriso pálido.

 

Foi bastante apropriada. Acho que me podes responder.

 

Talvez. Mas eu quero que sejas tu a responder. Outro silêncio.

 

Nunca falei destas coisas disse ele em voz baixa, como se estivesse a pedir desculpa, após um momento. Ao fim destes anos todos. Por que o faria agora? Além disso, estou ligado a uma promessa. Não te posso contar toda a verdade.

 

Eu não disse nada e continuei à espera.

 

Tu disseste uma coisa que ainda não me saiu do pensamento durante o dia todo. Que, se eu não agisse agora para mudar o rumo da minha vida, ele ter-me-ia, de algum modo, derrotado. Se queres te diga o nome do fantasma que devo afastar, digo-to. O Homem Pintado. Ele matou-me os meus homens, roubou-me a minha mulher e roubou-me os meus filhos. Ele roubou-me o futuro. Não consigo imaginar outra vida enquanto não lhe puser as mãos no pescoço e o estrangular. Quero vê-lo sofrer e morrer. Era isto que querias ouvir? Era?

 

Diz-me uma coisa. A minha voz não estava muito firme, mas consegui controlá-la. Não te incomoda que a mulher que em tempos amaste perca o seu marido e enfrente um futuro de dor e solidão? Porque ainda gostas dela, não o negues.

 

Amar? Lá estás tu de novo com essa palavra. Essa palavra não tem significado, Fainne. Hás-de perceber isso mais tarde. Liadan condenou-me a uma vida vazia. Merece mais do que eu? Além disso, Inis Eala está cheia de homens. Criaturas ferozes como ele, todas elas. Ela tem muito por onde escolher. A cama dela não ficará fria durante muito tempo após a morte dele.

 

Isso é um pouco injusto.

 

Achas? Depois do que ela fez?

 

Diz-me uma coisa. Não tens esperança de que, por trás do teu desejo de vingança, uma vez o homem morto, Liadan possa mudar de ideias e voltar para ti? Observei-o atentamente enquanto ia pronunciando as palavras. É por essa razão que continuas solteiro? Não disseste, uma vez, que estes salões continuam à espera dela?

 

Ah! troçou ele. Eu não sou nenhum idiota. E tenho o meu orgulho. Ela aviltou-se ao deixar que aquele homem a possuísse. Já não serve para casar com um homem de posição. Ela assim o quis. Não lhe daria uma segunda oportunidade, nem que ma pedisse de joelhos.

 

Além disso, ela já não tem idade para te dar filhos saudáveis. Eamonn olhou para mim e eu aguentei-lhe o olhar.

 

Portanto, tens de matar esse Homem Pintado. Então, poderás esquecer e recuperar a tua vida. Se é assim por que não tomaste essa iniciativa há anos atrás? Por quê perder tanto tempo? Certamente, tens os recursos necessários? Disseram-me que esse homem é uma espécie de pária, renegado por todas as pessoas respeitáveis, apesar de possuir uma grande propriedade no outro lado do mar. Além disso é bretão. Um inimigo. Teria sido fácil. Por que esperaste?

 

Pensas que não tentei? A voz de Eamonn tornou-se abrupta, ele levantou-se e começou a andar de um lado para o outro na sala. O tipo é escorregadio como uma enguia e não se deixa encurralar; é astuto e não tem escrúpulos nenhuns. Com o casamento, adquiriu um pouco de respeitabilidade. Com o tempo, adquiriu Harrowfield, além da bizarra propriedade no norte. Por isso, tem aliados e inimigos poderosos. Dizes que eu tenho os recursos necessários. Mas não são nada comparados com os dele. Ele é engenhoso, vigarista e consegue que tudo lhe corra de feição. Sabe como escapar da rede mais fina e como fugir ao cão mais rápido. A minha perseguição tem sido incansável ao longo dos anos, Fainne. Nunca me consegui aproximar. O tipo é assim.

 

Esperto.

 

Esperto? Manhoso que nem uma raposa, diz antes. Nojento.

 

Esse homem é aliado de Sean e pai do seu herdeiro. É capaz de ser difícil. Se o Homem Pintado morresse não prejudicaria a campanha do meu tio contra os Bretões? Muirrin disse-me que cada um dos parceiros da aliança tem um papel vital a desempenhar no sucesso da campanha de Sean.

 

Talvez disse ele franzindo o sobrolho. Mas a minha demanda para destruir esse homem não tem nada a ver com Sean.

 

Mas os guerreiros de Inis Eala vão lutar ao lado das tuas forças na batalha pelas Ilhas. Nesse caso, o Homem Pintado não vai ser teu aliado?

 

Esse homem é demoníaco disse ele friamente. Não pode ser considerado aliado em circunstância alguma. Desde há muito que está marcado para morrer às minhas mãos.

 

Que me estás a dizer? perguntei. A tua sede de vingança é mais forte do que o desejo de ver as Ilhas regressarem ao Ulster? Como pode ser isso?

 

Eamonn resmungou qualquer coisa enquanto continuava a andar de um lado para o outro.

 

O quê?

 

Não posso continuar esta discussão. Já te disse. Estou ligado a uma promessa.

 

Uma promessa a quem?

 

A ela. Não me perguntes mais nada, Fainne. Não te posso dizer mais nada.

 

Muito bem. Já sei o que tem de ser feito. Parece-me que precisas de um espião.

 

Não pode haver espiões em Harrowfield. Ninguém entra, ou sai, sem o homem saber. E ele sabe sempre. Já tentei. Quanto a Inis Eala, é inexpugnável. Nem um único dos meus homens conseguiu chegar à aldeia à beira-mar, quanto mais ao outro lado. O Homem Pintado tem uma rede de espiões que rivaliza com a do próprio Northwoods. Ele viaja frequentemente entre o Ulster e a Bretanha e mais longe ainda, mas fá-lo em segredo. Ninguém lhe consegue seguir o rasto. As pessoas costumavam dizer que ele e os seus homens eram uma espécie de criaturas do Outro Mundo, fora das leis dos humanos. Por vezes, estupidamente, até eu próprio quase que acredito.

 

Muito bem disse eu. Não pode ser um espião. Pelo menos, humano.

 

Que outra espécie haverá, então?

 

Ah. Já lá vamos. Mas acredito que posso ajudar-te. Queres mais vinho?

 

Voltei a encher-lhe a taça; acrescentei mais umas gotas à minha. Eamonn fixava-me, mal acreditando no que lhe estava a dizer.

 

Tu, ajudares-me? Desculpa, Fainne, mas não vejo como.

 

Não, não podes ver. Mas, a seu tempo, explicar-te-ei. Primeiro, quero fazer-te outra pergunta.

 

Espero que não seja tão difícil como a última. Parece-me que isto está a ser mais cansativo do que o brandubh.

 

Quero que me digas, honestamente, por que razão achas que não sirvo para tua mulher. Mas fala abertamente.

 

Eamonn abriu e fechou a boca.

 

Achas esta pergunta despropositada? perguntei eu friamente. Parece-me óbvio.

 

A tua educação tem algumas falhas disse ele de lábios semicerrados. Uma jovem não deve fazer uma pergunta dessas a um homem.

 

Já a fiz e quero que me respondas francamente. E se achas que é despropositada, também é despropositado um homem da tua posição levar a sobrinha de um parente para um passeio a cavalo, sozinha, meter-lhe a língua na boca e as mãos...

 

Chega, Fainne! Até ficas... grosseira.

 

Eu não sabia nada até tu me ensinares disse eu recatadamente, detestando o seu olhar de repugnância.

 

Cometi um erro. Já te pedi desculpa. Tu és uma rapariga muito bonita e tens uns modos que atraem o olhar, a imaginação e que fazem um homem desejar abraçar-te e fazer as coisas que tão francamente me fizeste recordar. É natural um homem sentir-se assim, Fainne. Até uma inocente rapariga de convento sabe isso. Anuí com os olhos postos no chão.

 

Uma mulher sente o mesmo. É o que acontece quando duas pessoas se juntam; o sangue ferve e desejam permanecer juntas. Eu sei. Mas já te disse que não me entregarei a um homem fora do casamento. E tu já disseste claramente que não tencionas casar. No entanto, trouxeste-me para aqui e não pareces ansioso por me veres pelas costas.

 

Eamonn olhou para a lareira, relutante em me encarar.

 

Na verdade, não. Como já te disse, acho que és uma companhia agradável, esperta, inteligente e competente. Tens jeito para as crianças; és paciente e dócil. E cheia de surpresas. Começo a aperceber-me de que gosto mais de surpresas do que pensava. Não nego que esperava que pudesses... que pudesses deixar-me ensinar-te a arte do amor, Fainne. Tenho pensado muito nisso desde que te vi pela primeira vez com as tuas primas em Sevenwaters, tão deslocada naquela casa como uma flor exótica entre flores silvestres. Mas, casamento? Nunca pensei em tal coisa.

 

O meu coração ficou gelado de fúria. Respirei lenta e cuidadosamente. Os sentimentos são irrelevantes. Os sentimentos só atrapalham e evitam que se faça o que deve ser feito.

 

Então, achas que eu deveria ficar aqui como uma espécie de... esposa não oficial? É isso? Para te aquecer a cama, para me sentar recatadamente a teu lado enquanto trabalhasses e para me esconderes sempre que recebesses visitas importantes?

 

Não, Fainne.

Ele parecia triste, mas não consegui ter pena dele. Nunca pensei em tal coisa. Portei-me levianamente, por egoísmo e sem pensar nas consequências. Uma falha, que não tornarei a repetir. Foi como se tu fosses uma chama que eu quisesse guardar em minha casa, para me aquecer.

 

Muito poético. Mas não me aceitas como esposa. Por que não?

 

Não pensei em casamento. Parece-me demasiado tarde. Além disso, quando um homem da minha posição casa, a mulher tem que ser de boas famílias. Não penses que não me ocorreu quanto te conheci. Informei-me. Informei-me junto da minha irmã e de Sean. Informei-me junto do druida. Foram todos muito evasivos quanto à identidade do teu pai. Foi o suficiente para me alertar para uma irregularidade qualquer. Um homem não leva o seu melhor garanhão a uma égua qualquer, Fainne. A descendência ficaria manchada e não prestaria.

 

Engoli a humilhação com enorme dificuldade. Apeteceu-me bater-lhe. Em vez disso, corei levemente e bebi um pouco de vinho.

 

Estou a ver. Sabes, um bom casamento seria muito importante para mim. Sou prendada e tenho alguns conhecimentos; na verdade, até tenho alguns que tu nem imaginas, Eamonn. Mas, em casa do meu tio Sean, não sou mais do que uma parente pobre. Sem um bom casamento e um homem digno para me guiar, enfrento um futuro obscuro. Quase de servidão.

 

Eamonn franziu o sobrolho.

 

Eu ofereço-te um lugar aqui. Serás bem tratada. Terás tudo o que desejares; boas roupas, adornos, a administração da casa e da propriedade e a minha qualidade quando aqui vier. Dar-te-ei uma boa vida, Fainne. Não precisas de ser uma criada em casa da minha irmã. E... e iniciar-te-ia, a pouco e pouco, naqueles prazeres que mencionaste. Creio que não serias avessa a isso.

 

Mas não colocarias o teu anel no meu dedo, não me darias o teu nome, nem me deixarias ter os teus filhos. Preferes não ter filhos a enfrentar essa vergonha. Seria, em tudo, uma pobre substituta dela, não é verdade? A voz tremia-me apesar de todos os meus esforços.

 

Oh, Fainne. Agi mal e causei-te um desgosto. Mas o casamento está fora de questão, minha querida. Toda a gente o reprovaria. Tal união seria vista como disparatada e inútil, um indício de que estaria a perder o juízo. Tornar-me-ia alvo de chacota.

 

Se não te casares, não terás filhos legítimos. E, quando morreres, os abutres descerão sobre as tuas propriedades, que ficarão devastadas. É isso que desejas? Perdeste a vontade de lutar pelo que é teu, de preservar o património dos teus filhos? Estou desapontada. Afinal de contas, deixaste que o teu inimigo te vencesse.

 

Seguiu-se outro silêncio.

 

Nesse caso, diz-me disse Eamonn, pousando a taça violentamente na mesa e pegando-me nas mãos. Diz-me quem és realmente e porque estás aqui. Pois, uma coisa é certa, não casarei com uma mulher sem pai.

 

A minha estratégia era arriscada e aquela era a parte mais difícil. Um homem com um sentido tão forte da propriedade recusaria a verdade. Tinha de lhe dizer a verdade e tinha de o manter interessado para que ouvisse o que vinha a seguir.

 

Muito bem disse eu hesitando naturalmente. Vou contar-te a verdade. Não vais gostar do que vais ouvir. Vou ter que te exigir uma promessa. Que me deixarás acabar. Dá-me a tua palavra.

 

Claro disse Eamonn enquanto o seu polegar se movia levemente no meu pulso, como se, mentalmente, os prazeres da carne ainda o possuíssem contra a sua vontade. Se assim era, isso dava-me uma vantagem e eu teria de a usar apesar de me enojar.

 

Muito bem disse eu de novo. Isto é-me muito difícil, sabes? É como admitir que estou... de certo modo, marcada. Eu não sou quem tu pensas, Eamonn. Nunca to disse, mas não fui criada num convento de irmãs católicas. Deixei apenas que acreditasses no que querias, é tudo. Cresci sozinha com o meu pai em Kerry, apenas os dois. O meu pai ensinou-me tudo o que sei. Em tempos foi druida, mas deixou de o ser quando conheceu a minha mãe e a levou. O seu nome era... é... Ciarán e é meio-irmão de Conor de Sevenwaters.

 

Seguiu-se um longo silêncio. Eamonn mantinha as minhas mãos nas dele, mas estas estavam imóveis, como que geladas.

 

O quê? perguntou ele tão baixinho que eu mal o consegui ouvir. Havia um choque profundo nos seus olhos.

 

O meu pai é filho da segunda mulher de Colum de Sevenwaters. Ela levou-o consigo quando era muito pequeno; mas o pai trouxe-o de novo para a floresta e ali foi educado para ser druida. É um homem bom, sábio e honrado. Foi durante todos estes anos a minha única família, o meu guia e o meu mentor.

 

Mas... mas isso quer dizer... sabes o que isso significa, Fainne? Eamonn largou-me as mãos.

 

Sim, sei. Significa que a união entre a minha mãe e o meu pai era proibida. O seu sangue era demasiado próximo, pois a mãe dela era meia-irmã dele. Mas eles não sabiam isso quando se apaixonaram. Ninguém disse ao meu pai de quem ele era filho senão demasiado tarde.

 

Mas... mas a tua mãe, Niamh, era casada. Estava casada com um dos Uí Néill e foi raptada da minha fortaleza de Sídh Dubh. Foi raptada por... por... que Dagda me acuda! Não me digas que Liadan sabia dessa paixão incestuosa e que ajudou a irmã a fugir para os braços do amante? Que Liadan colaborou com a ajuda de... isto é uma aberração inacreditável! Que tal coisa tenha acontecido na minha própria casa, na presença da minha irmã! O Sean sabia disto?

 

Sabia que eles se amavam. Foi por essa razão que a minha mãe foi dada a outro homem e foi para Tirconnell. Ela era muito infeliz. O marido era muito cruel com ela.

 

Talvez ele tenha punido Niamh por ter descoberto que ela cometera um acto abjecto. Parece que tanto ela, como a irmã, tinham pouco juízo.

 

Engoli a raiva.

 

Agora já sabes quem sou, Eamonn. Esta é a verdade. Agora já percebes por que razão os meus parentes foram tão evasivos nas respostas que te deram.

 

Pareceu-me que ele não tinha mais nada a dizer, continuando a fixar o fogo de braços cruzados. Pensei que estava a pensar na sorte que tivera; agradecendo aos deuses por, afinal, não me ter levado para a cama.

 

Já chega disse eu com uma leveza que não sentia. Temos outros assuntos a discutir: o teu inimigo e a tua vingança. Porque parece-me que é isso que mais que te preocupa; de tal maneira que se sobrepõe à tua lealdade para com os teus aliados e parentes.

 

Já não interessa disse Eamonn desprendidamente. Está tudo acabado entre nós. Se quiseres, regressa a Sevenwaters e leva as crianças. Que tudo fique como estava. Não tenho futuro, Fainne. Se eu quiser passar o resto da minha vida a perseguir um fantasma, que tens tu a ver com isso?

 

Talvez nada disse eu baixinho. Mas detesto ver definhar um homem bom. Além disso, disse que te ajudava. Disse a verdade e vou dizer-te o que deves fazer. Antes de mais, era necessário explicar-te tudo acerca do meu pai. Ele foi criado para ser um druida. Mas depois de ter deixado a floresta, aprofundou o conhecimento da feitiçaria. Quando a minha mãe morreu, tornou-se o meu único companheiro; e ensinou-me muitas coisas, tal como um mestre ensina um aprendiz. Era isto que eu queria dizer quando falei em talentos.

 

Isso já não me interessa.

 

- Prometeste que me deixarias falar até ao fim. Eamonn estava hirto. Enchi uma taça de vinho, meti-lha na mão e ele despejou-a de uma só vez. Duvidei de que ele se apercebesse do que fizera.

 

Imagina uma balança disse eu calmamente. De um lado está a tua oportunidade de acabar com o Homem Pintado de uma vez por todas. A certeza da vingança e de que tens a vida dele nas mãos. Do outro lado, está uma jovem; uma rapariga que, tu próprio admitiste, te faz bater o coração e ferver o corpo. Uma rapariga que se guarda para ti; que se mantém fresca e intocável para a tua noite de núpcias. Talvez não seja a que tu amas; mas dar-te-á o que Liadan nunca te deu. Dar-te-á a sua juventude, belos filhos e filhas e nunca olhará, sequer, para outro homem, mantendo a tua casa impecável, a tua lareira permanentemente acesa e que te receberá de braços abertos quando regressares. Com ela, nunca te aborrecerás; surpreender-te-á sempre, vezes sem conta. Mas há um problema. A sua linhagem está um pouco manchada. Tu próprio dizes que não a queres. Afasta-la. E, assim, perdes ambos. Os pratos da balança ficam desequilibrados; perdes o teu futuro e, ao mesmo tempo, desperdiças a oportunidade de destruir o teu velho inimigo e apagar as injustiças do passado. Porque, para teres um, tens de aceitar ambos.

 

Tu falas como um druida. Não te compreendo. Despertara-lhe a curiosidade. Escolhera as palavras cuidadosamente.

 

Para derrotares este inimigo, precisas de um espião. Precisas de saber os seus pontos fracos; Informações acerca dos seus movimentos, para saberes em que ocasião estará só e sem guardas e altura em que estará mais vulnerável. Ambos lutarão lado-a-lado no próximo Verão. Terás, então, muitas oportunidades.

 

Mas...

 

Sim, há um problema. Por um lado, uma propriedade na longínqua Northumbria, bem guardada, em território inimigo. Ninguém se atreve a atacá-la. Por outro, uma fortaleza numa ilha remota e secreta, com uma protecção tão grande que parece quase uma coisa do Outro Mundo. Este homem pode ser encontrado lá de tempos a tempos. Mas, como penetrar em tais defesas? Certamente que não através de um guerreiro qualquer treinado em espionagem. Este homem terá sempre um outro homem bem melhor. Não, tu precisas de algo mais. Precisas de um espião que passe despercebido, que se confunda com o meio, como se não estivesse lá. Um espião que penetre no conselho mais secreto e na reunião mais privada. Um espião que possa descobrir as confidências trocadas num quarto, se as quiseres saber. Isso posso eu providenciar.

 

Eamonn olhava chocado e divertido para mim. As suas maçãs-do-rosto estavam coradas; talvez fosse do vinho, mas detectei nele um novo entusiasmo.

 

O meu pai ensinou-me umas coisas um pouco... vulgares disse eu docemente. Vou demonstrar-tas. Chama o teu criado; Pede-lhe que traga alguma comida ou uns troncos para a lareira.

 

Sem fazer qualquer pergunta, Eamonn fez como lhe pedi. O homem entrou e ficou diante de nós. Um jovem um pouco atarracado, de rosto duro e olhos pequenos. O meu coração bateu com toda a força quando murmurei o feitiço porque via, ao mesmo tempo, a imagem da mulher utilizando a faca para abrir o peixe que era a sua própria filha. Desta vez não posso cometer nenhum erro. Enquanto Eamonn dava instruções em voz baixa ao servo, proferi algumas palavras mágicas em voz baixa, refreando a tentação de transformar Eamonn, talvez, num furão. Enquanto eu pronunciava as palavras, o homem começou a modificar-se, o nariz mais comprido, a pele mais escura e peluda e o corpo a encolher perante o olhar fascinado e horrorizado de Eamonn e ali, defronte dele, ficou um belo cão negro, arfando um pouco, de língua de fora, orelhas arrebitadas e a cauda abanando esperançadamente.

 

Cãozinho bonito disse eu. Senta-te.

 

Eamonn pousou cuidadosamente a taça de vinho na mesa.

 

Será verdade o que estou a ver? murmurou ele. Não será nenhum truque de luz, que desaparecerá mal nos movamos? Como conseguiste fazer isto?

 

Chega-te aqui disse eu. É verdadeiro. Toca-lhe. Depois, é melhor transformá-lo outra vez e mandá-lo embora.

 

Cautelosamente, Eamonn estendeu uma mão e o cão lambeu-lhe os dedos.

 

Dagda me acuda! murmurou Eamonn. Que és tu? Uma praticante de magia negra?

 

Toquei na cabeça do cão, murmurei uma palavra e, num ápice, o criado ficou de novo na nossa frente piscando os olhos, confuso. Senti-me percorrida por uma vaga de alívio; funcionara. Desta vez fizera tudo bem.

 

Vai buscar mais vinho disse eu bondosamente ao homem. E algum pão de trigo, se houver. Lorde Eamonn está com fome. Quando o homem saiu da sala, disse:

 

Não sou nenhuma bruxa má. O meu pai é feiticeiro. Ensinou-me. Mas não somos necromantes. Usamos a arte com sabedoria e cautela. Estás ver como podemos usar isto para alcançar o objectivo que há tanto tempo te foge?

 

Diz-me lá, então. Anda, vamos sentar-nos, esperamos que ele venha e saia de novo. Ele lembrar-se-á de alguma coisa?

 

Depende. Depende de como o feitiço é feito. Este homem pensará que teve uma ligeira tontura, uma confusão momentânea, nada mais. Se eu o tivesse deixado na sua forma alterada durante mais tempo, poderia ser diferente.

 

Tu eras... eras capaz de mandar um homem com a forma de uma criatura qualquer para obter informações? Ele seria capaz de, o fazer e trazer-mas de volta? Eamonn estava ansioso, a mente pesando as possibilidades.

 

Não, Eamonn. Eu vou explicar-te. E verás como a imagem da balança é adequada. Ah, aqui está o teu homem com o vinho. Obrigada. Sorri enquanto o criado pousava um tabuleiro com outro jarro de vinho e um pequeno pão macio

 

É tudo por hoje. Eamonn não conseguia deixar de olhar para o criado, como se esperasse que, de um momento para o outro, ele arrebitasse as orelhas ou abanasse a cauda. Podes ir deitar-te. Os outros também. Fecha a porta quando saíres e diz ao resto do pessoal que não nos incomode.

 

Sim, meu senhor.

 

O homem retirou-se e Eamonn debruçou-se para pôr outro tronco na lareira. A sala estava bastante escura à excepção da luz trémula da lareira e das velas colocadas aqui e além. Lá fora, o vento assobiava por entre as árvores. Ali, em frente da lareira, havia um sentimento de conspiração e segredos partilhados sob o manto da escuridão. Bebi um grande gole de vinho e pousei a taça. Não demasiado. Até ao momento, tudo correra como eu previra. Não podia dar-me ao luxo de agir irreflectidamente.

 

Vou explicar-te tudo, Eamonn. Não posso transformar um homem num cão, numa mosca ou num pássaro e enviá-lo como espião. Com essa forma, não se lembrará das tuas instruções e não entenderá a fala humana. Eu podia modificar-te; podia transformar-te num sapo, ou num furão. Mas tu és da mesma espécie do teu criado; perderias também a tua consciência humana até eu te fazer regressar. Portanto, como vês, seria inútil.

 

Nesse caso, como poderemos consegui-lo?

 

Nem um homem, nem uma mulher, podem ser transformados assim e continuarem a ter o conhecimento de ambas as formas, homem e animal. Para isso, é necessária a sabedoria de um vidente. Ou de um feiticeiro.

 

Queres dizer...?

 

Quero dizer que, se queres fazê-lo, tens de confiar em mim. Porque eu posso transformar-me num mocho, num salmão ou num gamo e posso ir a casa do meu tio, ou às salas secretas de Inis Eala escutar tudo. Posso regressar e trazer-te a chave para a destruição desse homem. Tenho a capacidade e posso fazê-lo.

 

Estás a falar a sério? perguntou Eamonn lentamente. Isso é verdade? Não é uma fantasia de rapariga?

 

A minha avó transformou seis rapazes em cisnes e quase destruiu a casa de Sevenwaters disse eu sinistramente. Podes acreditar que sou capaz de fazer a mesma coisa. O que conta aqui é a tua vontade. Porque, se isto for avante, a campanha do meu tio Sean está condenada. Afinal de contas, a tia Aisling é tua irmã. Gostarias que Sevenwaters caísse e que os Bretões ficassem com as ilhas?

 

Eamonn sorriu amargamente.

 

Nós temos o Filho da Profecia, não é verdade? Talvez não falhe.

 

O filho do homem que tentas destruir? Ele não será tão malvado como o pai, o homem que pensas ser menos do que humano?

 

Por estranho que pareça, o rapaz é um bom líder, muito admirado entre os aliados. É forte, hábil e muito sábio para a idade. Custa-me aceitar que o filho desse homem possa, um dia, vir a ser o senhor de Sevenwaters. Mas um filho não escolhe o pai.

 

Estou a ver. Surpreendera-me. O seu ódio era tal que pensei que se reflectiria em todos aqueles que estavam ligados ao Homem Pintado. Perguntei de novo a mim própria que tipo de homem seria aquele Johnny, em quem toda a gente confiava. Achas, então, que, se o pai morrer, ele comandará os aliados na batalha?

 

Eamonn franziu o sobrolho.

 

Ele comandará em qualquer circunstância. A profecia é bastante clara. Quanto ao papel do pai, nada sei. Podemos ser aliados, mas Sean só diz o que lhe convém e isso irrita-me. Não sei se a perda do Homem Pintado afectará a campanha, ou não. Nem me interessa. Porque, a meu ver, devo confessar-te que uma coisa pesa mais do que a outra. Quero que me mostres, Fainne. Mostra-me que podes fazer o que dizes. A sua voz tremia de antecipação. Mostra-me que és capaz de te transformar.

 

Ah não, isso não faço.

 

Porquê?

 

Porque é muito perigoso, Eamonn. Enfraquece a arte; depois, fica-se vazia e exausta. Tais poderes não podem ser usados levianamente como uma mera demonstração. Acredita, posso fazê-lo e fá-lo-ei quando chegar a ocasião.

 

Tenho dificuldade em entender isto murmurou ele e eu apercebi-me de que a sua mente fervilhava com as possibilidades que eu lhe propunha. Com isto, posso apanhá-lo antes de o Verão acabar. Ficarei a saber os seus pensamentos e segredos mais íntimos. Com isto, certamente a minha demanda não falhará e o homem morrerá às minhas mãos. Tens a certeza, Fainne? Tens a certeza de que queres fazer isto por mim?

 

Oh sim disse eu calmamente. Sem dúvida que quero. Mas há um preço a pagar, Eamonn. Tu não és o único com uma visão e um objectivo.

 

Que preço é esse? Conseguia perceber a excitação na sua voz; naquele momento, poderia pedir-lhe o que quisesse.

 

Já te disse disse eu. A balança, o equilíbrio. Se aceitares um dos lados, tens de aceitar o outro. Se formos parceiros nisto, seremos parceiros em tudo. Eu executo a tua vontade e reuno as informações que tu queres. Partilho a tua lareira e a tua cama. Descobrirás que também ali sei fazer magia. Tenho os teus filhos e tu dás-me o teu nome. Preciso dessa segurança. Preciso de respeitabilidade, de um lar e de um sítio onde me sinta em casa. Sem isso, não farei nada. Porque, se matares esse aliado e a campanha do meu tio falhar, o meu único futuro é contigo.

 

Seguiu-se um silêncio de morte, interrompido apenas pelo estalar da lareira e do piar de um mocho no exterior. Esperei que ele dissesse que não casaria com uma mulher de sangue manchado, apesar de tudo. Se o dissesse, talvez não me conseguisse controlar; manter-me calma. Os poderes mágicos não protegem uma pessoa desse tipo de dor.

 

Fainne? disse ele baixinho. Estava a olhar para as chamas e eu não lhe conseguia ver a expressão.

 

Sim? Maldição, a minha voz começara a tremer, como se fosse chorar a qualquer momento. Fora pateta em beber tanto vinho. O controlo era tudo.

 

Anda cá. Aproxima-te.

 

Levantei-me e ajoelhei-me diante dele, de modo a que a luz da lareira se reflectisse nos meus cabelos e me aquecesse a pele pálida até ficar rosada. Olhei-lhe para os olhos, mantendo no rosto uma expressão de esperança inocente, fresca e sem artimanhas.

 

Juras que estás a dizer a verdade? Que consegues fazê-lo e ser bem sucedida?

 

Juro, Eamonn. Ainda brinquei com a ideia de fazer mais uma magia; como o contrário do feitiço que usara com ele num momento delicado, perto da queda de água, mas vi a expressão no seu olhar e soube que não precisaria de tal ajuda. Havia mais do que simples desejo no seu olhar. Era o olhar de um homem tão consumido pelo ódio que não olhava a meios para obter o que queria; um olhar que me dizia que por mais que o seu corpo sentisse luxúria e necessitasse de ser apaziguado de tempos a tempos, a única coisa que realmente o excitava era o pensamento do pescoço do seu inimigo entre as mãos exalando o último suspiro.

 

Toca em mim, Fainne murmurou ele e eu ouvi a mesma excitação, irritada, perigosa, na sua voz. Deixa-me saborear os teus lábios; deixa-me saborear neles a minha vingança.

 

Senti um forte desejo de lhe cuspir no rosto, pois parecia-me que o homem não me via, afinal, como uma verdadeira mulher, antes como uma ferramenta para os seus tenebrosos propósitos. A raiva e a vergonha cresceram em mim; suprimi ambas. Controlo, disse a voz da minha avó. Não o percas agora, quase no fim. Faz o que ele te pede. Disseste que serias uma boa esposa, não disseste? Demonstra-lho. Faz com que ele te deseje.

 

Mas tu disseste... murmurei.

 

Só um beijo, apenas um disse Eamonn suavemente, abraçando-me, encostando os lábios ao meu pescoço e ao meu rosto e como eu não tinha outra alternativa, deixei que me beijasse nos lábios. Foi o momento mais difícil de todos; fingir que colaborava, rodeando-lhe o pescoço com os braços, abrindo a minha boca para que ele a invadisse com a língua, sentindo as suas mãos no meu corpo e sabendo, o tempo todo, que não havia nenhum sentimento verdadeiro em tudo aquilo. Senti-me enojada, ao mesmo tempo que arquejava de prazer simulado e me encostava a ele. Quanto a Eamonn, sentia-lhe o desejo, mas sabia que não eram os meus encantos que o excitavam. Ele provara que era o sentimento de vingança que o mantinha vivo. Que viria depois, pensei, enquanto a sua mão subia pela minha perna? Não me conseguia imaginar como mulher daquele homem. Se isso viesse a acontecer, tinha as ferramentas necessárias para o punir pela sua arrogância. Mas nunca aconteceria. Ocorresse o que ocorresse, não havia futuro para mim depois do Verão. Falara-lhe em casamento apenas para que a minha oferta de magia parecesse mais convincente, porque era pouco possível eu fazer tal gesto de boa vontade. Talvez o tivesse feito, também, por um certo sentido de orgulho. As suas mãos subiam cada vez mais. Talvez não tivesse percebido o que eu queria dizer.

 

Eamonn... arquejei. Tu prometeste...

 

Só uma vez murmurou ele. Só uma vez, Fainne. Tu vais gostar. Farei com que isso aconteça. Depois, espero... não me digas que não...

 

Ele era muito forte; o suficiente para me impedir de escapar sem usar a arte e eu não podia usar o mesmo truque novamente. Não queria irritá-lo, porque, no fim de contas, ele ainda não dissera que sim, pelo menos por palavras. Além disso, eu não podia pronunciar as palavras de um feitiço enquanto tivesse a sua língua na minha boca e ele não parecia ter pressa de a tirar.

 

Ouvi o pequeno som antes dele. Não passou de um pequeno ranger, de um restolhar, quando a porta se abriu e alguém parou subitamente na soleira. Eamonn retirou os seus lábios dos meus e as mãos do meu corpo. Susteve a respiração, pronto para repreender o eventual criado que se atrevera a entrar onde não devia. Olhou na direcção da porta. Seguiu-se um silêncio de espanto.

 

Vim para levar as minhas filhas para casa. A voz era do meu tio Sean, tão fria como um dia de Sambain. E parece que cheguei a tempo.

 

Virei-me lentamente, sentindo o rubor subir-me às faces apesar de todos os meus esforços. O meu tio usava um fato de montar e o olhar nos seus olhos era tão glacial como a sua voz.

 

Por trás de mim, Eamonn respirou fundo e eu senti quando ele colocou as suas mãos nos meus ombros num gesto que me pareceu de posse.

 

Sean. Surpreendeste-nos disse ele com uma calma digna de louvor. Fainne concedeu-me a honra de ser minha mulher.

 

A repugnância e o choque que vira antes no rosto de Sean não se comparavam com a expressão com que ele ficou depois daquela declaração. Deu deliberadamente dois passos no interior da sala, sem falar, os lábios cerrados com força. Então, retraí-me de dor ao sentir as mãos de Eamonn apertarem-me convulsivamente os ombros e o seu corpo ficar hirto.

 

O meu tio não viera só. Por trás dele, na soleira, estava uma mulher que eu antes não conseguira ver por ser pequena, mal chegando aos ombros de Sean. Pensei que era Muirrin; e então olhei de novo. Aquela mulher tinha os mesmos cabelos escuros e encaracolados da minha prima, entrançados e com madeixas teimosas caindo-lhe pelas feições delicadas. Tinha os mesmos olhos visionários e verdes e a mesma figura delgada. Mas Muirrin não tinha aquela boca doce e curva, uma boca que qualquer homem pensaria ter sido feita para beijar. E Muirrin não tinha aquele ar de autoridade, porque aquela mulher era consideravelmente mais velha e quando ela entrou no quarto, desapertando a capa de capuz, pareceu-me tão formidável como o meu tio, uma mulher que obteria obediência total sem necessitar de a exigir. Como inimiga seria terrível. Não tinha dúvidas de que era a única irmã da minha mãe, a minha tia Liadan.

 

Eu... eu... Eamonn, que lidara com o aparecimento inesperado do meu tio com uma calma surpreendente, parecia agora completamente perdido.

 

Uma noite fria para andar a cavalo observei e coloquei a minha mão sobre a de Eamonn por um momento, tirando-a depois quando ele abrandou o aperto. Gostariam de uma taça de vinho, suponho?

 

Obrigada. Liadan parecia capaz de falar, ao contrário dos dois homens. A minha tia avançou, atirando com a capa para cima de um banco e revelando um vestido e uma túnica extremamente bem-feitos, o primeiro cinzento-escuro e a segunda um pouco mais clara, com um toque de violeta. Apesar da severidade da sua aparência, a sua voz era quente e os seus grandes olhos verdes observaram-me tranquilamente. Enchi a taça e passei-lha, mantendo as mãos firmes.

 

Não os esperávamos disse eu.

 

Liadan olhou de relance para Eamonn e de novo para mim. A sua boca cerrou-se.

 

É verdade. Não vou pedir desculpa, porque me parece que a nossa chegada foi atempada. Tencionamos levar-te a ti e às crianças amanhã para casa. Maeve melhorou um pouco e está sempre a perguntar pelas irmãs.

 

A... ainda bem que ela está melhor disse eu. Fiz um esforço para continuar. E o homem que também foi ferido, o jovem druida?

 

Consegui apaziguar-lhe um pouco a dor. Mas nem um homem jovem e forte recupera de tais ferimentos. Expliquei-lhe isso. Conor levou-o para a floresta.

 

Lamento. A minha voz fraquejou e o seu olhar aguçou-se. Os dois homens não se mexiam nem falavam. O ar na sala escura parecia vivo de tanta tensão. Então, ouvi passos a aproximarem-se e o criado de Eamonn apareceu à porta apertando a camisa, passando a mão pelo cabelo e desculpando-se. Eamonn deu-lhe umas rápidas instruções. Preparar comida, quartos e tratar dos cavalos.

 

Parece-me que temos coisas para discutir. Sean, por fim, mexeu-se, mas apenas para cruzar os braços e para franzir o sobrolho. Coisas que não podem esperar. Quero as pequenas fora daqui logo que tiverem feito as malas.

 

Certamente que não é necessária tanta pressa. Já conhecia suficientemente Eamonn para perceber a hesitação na sua voz e o cuidado que punha em não olhar para a minha tia enquanto ela se sentava num banco, de costas direitas, conseguindo parecer uma princesa apesar do vestido simples.

 

Não tenciono ficar aqui mais do que uma noite disse ´Liadan friamente. É tempo de as pequenas irem para casa. Quanto ao que disseste, está fora de questão. À luz do dia, depois de reflectires, até tu verás isso, Eamonn.

 

Creio que não. O casamento parece-me possível e eu tenho esperança de que Aisling concorde. A minha irmã tem-me pressionado, ao longo dos anos, para que eu me case e eu já estou cansado dessa pressão. E tu não conseguirás que a tua sobrinha se case tão bem noutro lado qualquer.

 

Não é possível disse Sean pesadamente. Por razões que não vamos discutir aqui.

 

Se te referes ao parentesco de Fainne, eu estou ao corrente. Ela disse-me tudo, foi muito corajosa. Penso que, se debater o assunto esta noite, ela não deve estar presente. Fainne não tem andado bem e está muito cansada. Estes assuntos devem ser discutidos entre homens.

 

Vi a boca da minha tia Liadan torcer-se num dos cantos, mas os seus olhos continuaram mortalmente sérios. Ela olhou para o irmão, ele olhou para ela e eu lembrei-me que Sean e Liadan eram gémeos. Lembrei-me do que Clodagh me dissera; que as mensagens fluíam de um para o outro em silêncio, fosse qual fosse a distância. Da escura e sombria floresta de Sevenwaters ao secretismo impenetrável de Inis Eala, ou a Harrowfield, no outro lado do mar, mensagens mentais, rápidas como uma flecha ou como o mais veloz dos gamos.

 

Pela primeira vez, concordo contigo, Eamonn. Liadan levantou-se, bocejando. Certamente que podemos poupar Fainne aos pormenores; quanto a mim, estou muito cansada e só quero um lugar bem quente para dormir. Vou-me certificar de que a nossa escolta está instalada e depois retiro-me. Acredita que não quero ficar aqui nem mais um instante do que o necessário. Vens, Fainne?

 

Enquanto saíamos as duas da sala, deixando os homens num pesado silêncio, olhei para Eamonn por cima do ombro. A sua expressão era uma mistura de agonia provocada por um amor impossível e de ódio alimentado por anos de frustração. Eu tinha razão. Era nela que os seus olhos estavam fixos e a escuridão neles mostrava a sua luta interior. Para ele, nada mais interessava.

 

 

                                               CAPíTULO DEZ

 

Ela era delgada, elegante, de boas maneiras e muito segura de si. Os criados de Eamonn correram para satisfazer os seus pedidos. Eu segui-a, sentindo-me como um gigante desajeitado, sem palavras e desastrada, até que tudo ficou a seu gosto e ela anunciou, sem consultar ninguém, que partilharia o meu quarto, já que seria mais fácil para todos. Enquanto caminhávamos à luz de uma vela, perguntei-lhe rudemente:

 

Não confia em mim, tia?

 

Ela olhou para mim de lado, os seus olhos verdes friamente calculistas.

 

Não confio em Eamonn disse ela azedamente. Sei-o capaz de muitas coisas. Acho que tenho de acrescentar à lista o abuso de raparigas.

 

Não respondi até chegarmos ao quarto e fecharmos a porta. Liadan tinha um pequeno saco com uma camisa de noite e uma escova. Era evidente que não tencionava ficar muito tempo. Observei-a enquanto desfazia as tranças.

 

Está zangada comigo? perguntei-lhe. Ela fez uma pausa e olhou-me fixamente.

 

Não, minha querida disse ela. Não estou zangada. Apenas um pouco triste. Há tanto tempo que desejo conhecer-te. Na verdade, ter-te-ia vindo buscar imediatamente, mas Maeve precisava de mim em Sevenwaters e Aisling pediu-me muito ajuda. Se eu estivesse presente, não teriam vindo para aqui. Mas a culpa é de Eamonn, não tua. Sei que agiste inocentemente; nem poderia ter sido de outra maneira com uma rapariga da tua idade.

 

Estava a ficar confusa.

 

Desejava conhecer-me? perguntei, ao mesmo tempo que me sentava na cama para tirar os sapatos. Porquê?

 

Porquê? Liadan parecia espantada. Como é possível fazeres-me essa pergunta, Faimne? Fazes ideia do que passámos, afastados de Niamh durante aqueles anos todos? Ciarán nunca nos deixou aproximar.

 

Quando ele levou a tua mãe para Kerry, foi o fim. Eu compreendi as suas razões, mas nunca achei que tivesse razão. Niamh era minha irmã e de Sean. Nós amávamo-la. Foi um choque terrível quando soubemos que ela tinha morrido; e quando soubemos que não podíamos ver-te. É uma dádiva dos deuses o facto de estares aqui, Fainne. Uma dádiva que quase perdemos por descuido. Partimos de madrugada. Não quero que estejas de novo a sós com Eamonn.

 

Amor disse eu friamente. Por que é que toda a gente usa essa palavra? O meu tio Sean, Conor e os outros não demonstraram grande amor quando expulsaram a minha mãe de Sevenwaters. Não houve grande amor na educação de um jovem para que ele fosse druida, atirando-lhe depois com todos esses anos à cara. Não acredito que o amor exista; ou, se existe, só provoca dor e perda. A minha mãe matou-se. Isso não lhe diz nada? Eu não queria falar daquela maneira. Queria mostrar-me segura de mim própria. Mas ela fizera-me zangar, ali sentada muito direita e bela, com as suas suaves palavras de boas-vindas. Ela não via, nenhum deles via que o meu pai e eu nunca lhes pertenceríamos? Não compreenderiam que tinham sido eles os culpados?

 

Tu és muito parecida com ela disse Liadan suavemente, olhando para mim com aqueles olhos enormes, visionários. Muito mais do que pensas. Recordas alguma coisa da tua mãe?

 

Abanei a cabeça, furiosa comigo própria por ter dito demasiado. Estava a deixar escapar a minha autodisciplina, quando não me podia dar ao luxo de baixar a guarda.

 

É pena disse ela. Niamh, por vezes, era muito... difícil. Azeda, dura. Mas nunca era de propósito. Mas sentia tanta coisa, tanta, que, por vezes, transbordava. Não podes afastar o amor, Fainne. Se o fazes é porque ainda não aprendeste a reconhecê-lo. Niamh amava o teu pai; amava-o mais do que tudo no mundo. Teria mudado toda a sua vida por ele; e mudou, quando chegou a ocasião. E ele não fez menos por ela. É por isso que custa tanto a acreditar.

 

O quê? Enfiei a camisa de noite pela cabeça o mais rapidamente que pude, porque não gostava de me despir em frente de outras pessoas.

 

Liadan pareceu pensativa.

 

Que ela tenha posto fim à vida. Que a sua escolha tenha sido a morte. Uma vez, ouvia-a ameaçar que se matava, quando ainda estava casada com Uí Néill. Não tenho dúvidas de que estava a ser sincera. Mas fazê-lo depois de Ciarán a ter ido buscar e depois de te ter a ti... sempre me pareceu impossível. Nunca consegui compreender. Tudo o que ela queria era estar com ele e dar-lhe filhos. Desejava isso. E amava-te muito, Fainne. Eu sei.

 

Não pode saber disse eu. Acaba de me dizer que nunca mais a viu. Não pode saber. Deitei-me na cama e olhei para o tecto.

 

Estou a ver disse Liadan e pareceu-me que estava dividida entre as lágrimas e o riso que começámos mal. Perdoa-me, tenho de me beliscar para me lembrar que és tu aí deitada em vez da minha irmã, porque ficas extremamente parecida com ela quando te zangas.

 

Pensei que tinha dito que a amava. Liadan suspirou.

 

Toda a gente a amava, Fainne. Ela era como um belo animal no Verão, encantadora, divertida e cheia de vida. O que aconteceu mudou-a de modo terrível. O que lhe aconteceu, a ela e a Ciarán foi muito mau. Reconheço-o; na verdade, o teu pai e eu conversámos muito acerca disso há muito tempo. Mas Ciarán e eu nunca fomos inimigos. Quanto a Niamh, ela disse-me, uma vez, que gostaria muito de ter um filho dele. Compreendi o que ela disse porque, então, eu estava grávida, o pai do meu filho estava longe e parecia-me pouco provável que alguma vez pudéssemos viver juntos. Compreendi perfeitamente o seu desejo. Ela manteve essa esperança, mesmo nos momentos mais difíceis.

 

Talvez disse eu de má vontade. Mas ela não me amava. Como podia ter-me amado? Se me amasse, se houvesse amor, como foi possível ela morrer quando eu era demasiado pequena para me lembrar dela?

 

Eu sei o que ela sentia por ti. A voz de Liadan era suave mas firme na escuridão, depois de ter apagado a vela. Vi-o. Por vezes, tenho visões. Foi há muito tempo, antes de tu nasceres, que eu vi. Uma imagem. Niamh sentada num lugar estranho, um lugar de luz azulada e sombras suaves, como uma pequena gruta meio enterrada sob o mar e lavada pela maré. Niamh e tu. Faziam ambas desenhos na areia, cuidadosamente, em silêncio. Nunca esquecerei o olhar no seu rosto ao olhar para ti. Depois disso, nunca consegui compreender por que razão... A sua voz desvaneceu-se.

 

Por um momento, não consegui dizer nada. As suas palavras tinham-me feito recordar: a pequena gruta por baixo do Favo de Mel, o lugar dos desejos, o refúgio onde me sentara em silêncio tantas vezes, sozinha ou com Darragh a meu lado, observando o jogo de luzes suaves sobre as pedras macias, deixando a areia brincar por entre os meus dedos e ouvindo as pequenas ondas irem e virem, irem e virem. Aquele lugar fazia-me ter saudades de Kerry. Tentei imaginar a minha mãe sentada na pequena praia observando a pequenina Fainne a brincar na areia. Mas era apenas isso: uma imagem. Desejava recordar, mas não me lembrava dela. Ainda bem. Estava em perigo de sentir demasiado e os sentimentos só tornavam as coisas mais difíceis.

 

Tia Liadan?

 

Hum?

 

É assim tão impossível eu casar com Eamonn? Seguiu-se uma longa pausa.

 

É disse ela finalmente.

 

Porquê? perguntei. A tia sabe o meu passado. Onde hei-de eu encontrar um marido com a posição de Eamonn? Ele não me honrou com a escolha? Não compreendo.

 

Não vou falar disso aqui, nesta casa, Fainne. O seu tom não admitia discussão. Esse assunto pode esperar. Tu podes esperar. Ao contrário de Eamonn, tu só tens dezasseis anos e tens todo o tempo do mundo. Agora é melhor dormirmos, porque amanhã partimos cedo.

 

Eu não disse nada, já que não tinha qualquer resposta. Pensei que ela estava adormecida, mas, pouco depois, disse:

 

Sabes que é possível casar por amor. Na verdade, a nossa família é sobejamente conhecida por fazê-lo contra tudo e todos. Seria muito triste casar apenas por segurança ou por interesses estratégicos. Talvez seja prático, mas é muito triste. Tens algum namorado, Fainne?

 

Não retorqui, demasiado depressa.

 

Nesse caso... disse a tia Liadan na escuridão. Por vezes, o ataque é a melhor defesa.

 

Certamente não casou por amor? perguntei em ar de desafio.

 

Por que dizes isso? Liadan não pareceu ficar ofendida, apenas surpreendida.

 

Desculpe, mas, para todos os efeitos, o seu marido não parece o tipo de homem por quem uma rapariga desistisse da perspectiva de um excelente casamento e por quem deixasse a casa paterna para sempre. Como é que o conheceu?

 

Seguiu-se um pequeno silêncio.

 

Tanto quanto me lembro disse Liadan, e eu percebi que ela estava a sorrir os homens dele bateram-me na cabeça e raptaram-me. Nessa ocasião, achava-o bastante assustador e ele achava que eu não passava de uma miúda incómoda.

 

Portanto disse eu, perguntando a mim própria se não estaria a inventar tudo para troçar de mim não casou por amor?

 

O amor encontrou-nos e surpreendeu-nos disse ela docemente. Eu casei apenas por isso, Fainne. Quando o vires, podes achá-lo estranho, selvagem e totalmente diferente de um chefe de guerra respeitável como Eamonn de Glencarnagh. Bran não respeita nem as leis nem as convenções, excepto as que ele próprio faz. E a sua aparência coloca-o tão à parte como a sua reputação. Mas é cinquenta vezes mais homem do que Eamonn. O que existe entre nós está para além do amor, Fainne. Ele é meu marido, meu amante e amigo, aquele a quem eu posso confiar os meus maiores segredos. Espero que um dia também tu tenhas a alegria de encontrar um parceiro assim pois nada é mais importante.

 

Fui forçada a admitir que a minha tia tinha qualquer coisa. Adormeci com as mãos nas orelhas, não fosse começar a acreditar que o que ela dissera era verdade.

 

Estávamos prontos para partir pouco depois da alvorada do dia seguinte. As pequenas estavam excitadas por regressarem a casa e falavam ininterruptamente como um bando de pássaros até Sean as mandar calar com um aviso firme e bondoso. Eamonn parecia estar longe. O que eventualmente fora dito entre ele e o meu tio não o deixara de bom humor. No último minuto, quando Sean estava de costas e Liadan respondia a uma comprida pergunta que Clodagh lhe fizera, conseguimos trocar algumas palavras. A pequena égua que me transportara tão corajosamente na peugada de Aoife estava selada e pronta para mim; Eamonn dissera que podia regressar a casa nela, visto que parecia adequada para mim. Não lhe podia dizer que ela estava demasiado cansada depois da sua aventura nocturna. Estava de pé ao lado da égua e Eamonn fingiu ajustar o freio. Olhou para mim de relance, de olhos semicerrados e boca severa.

 

Promete-me murmurou ele. Promete-me que farás o que disseste.

 

O meu coração parecia um tambor. Havia morte naquele olhar, um olhar sombrio.

 

Está combinado, lembras-te? disse eu a tremer. Dois pratos. Como tencionas equilibrar o teu?

 

Duvidas de mim? A mão de Eamonn cerrou-se na minha com força, os seus dedos magoando-me. Resisti à dor e ao medo e olhei para ele sem pestanejar.

 

Eu mantenho a minha promessa se tu fizeres o mesmo disse eu firmemente. Se o meu tio recusa este casamento, por que haveria eu de correr um tal risco por ti?

 

Ele não vai recusar. Não havia lugar a dúvida no tom de Eamonn. Ele há-de ceder aos meus desejos. São loucos, se não se apercebem do meu poder sobre eles. A campanha de Sean não pode realizar-se sem mim. Hei-de ter o Homem Pintado; e hei-de ter-te a ti. Não duvides.

 

Eu...

 

Promete-me, Fainne.

 

Acenei com a cabeça, sentindo um arrepio na espinha.

 

Di-lo!

 

Prometo. Terei o que queres quando o Verão vier.

 

O aperto abrandou e ele levou os meus dedos aos lábios.

 

Nesse caso, também tu terás o que queres murmurou ele. E esperarei esse dia com grande ansiedade, minha querida.

 

A ansiedade não será grande, pensei, enquanto Mhairí estiver disponível. Reprimi o comentário que me veio aos lábios.

 

Adeus, Eamonn disse eu. Então, a minha tia Liadan colocou-se a meu lado e o momento passou.

 

É esta a escolta? Eamonn correu os olhos pelos três homens com as cores de Sean em cima dos seus cavalos com as quatro pequenas entre eles. Não chega, certamente. Estou espantado por teres vindo assim desprotegido. É melhor eu mandar alguns dos meus guardas contigo. Ele franziu o sobrolho na direcção de Liadan.

 

Por favor, não mandes disse ela friamente. Eu tenho os meus próprios homens.

 

A sério? São criaturas do Outro Mundo? Não vejo homens nenhuns.

 

Não, não vês. Eles são bons nisso. Eu não vou a lado nenhum sem protecção, Eamonn. Bran assegura-se disso.

 

Ele olhou para ela, sem palavras. Então, cuspiu deliberadamente para o chão, para os cascos do cavalo dela. Foi chocante; um gesto estranho da parte de um homem que, aparentemente, fazia sempre o que era correcto. Liadan não disse nada, limitando-se a dar a volta ao seu cavalo e a afastar-se sem um único olhar para trás.

 

Foi estranho. Cavalgámos para leste através dos jardins e bosques de Eamonn, passámos pelos seus campos e aldeias e Sean e os seus três homens iam à frente e nos flancos, sempre alerta apesar de estarmos em segurança, dentro das fronteiras de Glencarnagh. Só quando nos afastamos dos bosques e entrámos em terreno mais selvagem, mais aberto e cheio de rochas é que eu me apercebi, gradualmente, de outros cavaleiros a nosso lado, não muito distantes, uma presença constante e invisível. A minha pele arrepiou-se. Pensei em criaturas do Outro Mundo, mensageiros dos Túatha Dê Danann, talvez, seguindo-me para descobrirem os meus segredos. Após um certo tempo tornaram-se visíveis, como se só então fosse seguro mostrarem-se. Eram seis ou sete e tinham a aparência de umas criaturas quaisquer de uma velha história, porque estavam todos vestidos de cinzento-acastanhado, misturando-se com a paisagem de Inverno e nas cabeças tinham capuzes justos, que lhes escondiam as feições à excepção dos olhos, boca e nariz; não era possível distinguir aqueles guerreiros uns dos outros. E eram mesmo guerreiros; iam todos armados com adagas e espadas e alguns transportavam também arcos e bordões, machados ou facas de arremesso. Fiquei alarmada, mas os outros continuaram a cavalgar como se a presença daquelas criaturas ferozes fosse uma coisa normal e percebi tardiamente que deviam ser os homens da minha tia Liadan. Tinham formado uma guarda silenciosa à nossa volta e o meu tio, cujo papel como parte da escolta pareceu subitamente supérfluo, refreou o andamento do seu cavalo para se aproximar da irmã, que ia mesmo à minha frente.

 

Eilis escolheu aquele preciso momento para falar.

 

Da próxima vez que formos a casa do tio Eamonn, hei-de montar aquele grande cavalo preto anunciou ela alegremente.

 

Fainne disse Deirdre vais casar com o tio Eamonn? Clodagh disse que sim.

 

Não disse nada! exclamou Clodagh. O que eu disse foi: Como é que ela pode casar com o tio Eamonn se tem um homem como Darragh? Não ouviste o que eu disse.

 

Ouvi, sim.

 

Chega. Sean não precisava de erguer a voz para as silenciar. Deirdre franziu o sobrolho. Detestava não ter razão.

 

Quem é Darragh? perguntou a tia Liadan com indiferença. Ninguém respondeu. Parecia que a pergunta me era dirigida.

 

Ninguém murmurei.

 

Liadan ergueu as sobrancelhas, como se achasse a minha resposta não adequada. Cavalgávamos por um caminho estreito entre paredes de rocha; a escolta silenciosa seguia atrás e nos flancos numa demonstração de controlo total sem necessidade de quaisquer palavras. Fui poupada à resposta, já que tivemos de seguir em fila. Quando emergimos, Clodagh respondeu por mim.

 

Darragh é o rapaz das histórias de Fainne sobre nómadas. Tem um cavalo branco.

 

O nome do cavalo é Aoife acrescentou Deirdre. Estiveram ambos em Glencarnagh. Nunca pensámos que fossem reais, mas eles foram lá para ver Fainne. O tio Eamonn mandou-os embora.

 

Ele veio de... de... gaguejou Clodagh.

 

De Ceann na Mara disse eu rudemente.

 

Eu dei uma cenoura ao pónei. Eilis tinha de falar. Não podia permitir que aquilo continuasse.

 

Ele não é ninguém disse eu repressivamente, sentindo os olhos de Sibeal em mim, assim como os de Liadan. Não passa de um rapaz que eu conheci em Kerry, mais nada. Aquela velha, que está sempre sentada na vossa cozinha, Janis, creio que é esse o seu nome, é uma espécie de parente dele. Ele foi lá vê-la.

 

Sean e Liadan olharam um para o outro.

 

Foi esse o rapaz que foi a Sevenwaters à tua procura? perguntou Sean. Do clã de Dan Walker?

 

É filho dele disse eu.

 

Dan tocou gaita-de-foles no funeral da minha mãe disse Liadan docemente. Foi a música mais bela que ouvi em toda a minha vida e também a mais triste. Ele deve ser o melhor tocador de todo o Erin.

 

Darragh é melhor disse eu sem pensar. Os meus dedos subiram para tocar no amuleto. Não podia falar dele. Tinha-se ido embora. Estava esquecido. Tinha de manter isso sempre presente, para que a minha avó não se lembrasse dele.

 

A sério? disse Liadan, sorrindo. Deve ser um músico formidável.

 

Mas eu não fiz qualquer comentário e continuámos em silêncio com a nossa estranha escolta sempre a nosso lado, como sombras vigilantes.

 

Foi no segundo dia que aquilo aconteceu. Tínhamos parado para passar a noite numa das aldeias avançadas do meu tio Sean e eu tinha partilhado o quarto de dormir com as pequenas. Aquilo agradava-me. A sua conversação incessante podia ser cansativa, mas era melhor do que ter de suportar outra das estranhas conversas com a minha tia, nas quais ela parecia compreender mais das minhas palavras do que eu própria. Consciente de que tinha de continuar desde que começara, consciente das implicações do que prometera a Eamonn, não queria que Liadan se tornasse minha amiga, nem revelar-lhe nenhum dos meus segredos. Na verdade, estava na hora de pôr de lado todas as amizades, concentrando-me no que tinha de ser feito. Tinha de ter isso presente. Tinha de ser forte; seria forte, porque, não me treinara o meu pai para ser autodisciplinada, e não era ele um modelo de autocontrole?

 

Continuámos a cavalgar por um carreiro estreito que dava para um vale coberto de árvores. Nevara durante a noite e os pinheiros ainda tinham neve nos ramos. Os cães de Sean corriam à frente, deixando um rasto gémeo no carreiro. Estava um dia tranquilo, com o céu densamente nublado e baixo. Entre este e as árvores, não conseguia escapar à velha sensação de me sentir aprisionada, fechada. Continuei sorumbaticamente sozinha, tentando encontrar, algures nos meus pensamentos, uma imagem clara da enseada, com as gaivotas gritando lá no alto, o ar impregnado do cheiro do sal da vagas e o trovão do oceano nas rochas do Favo de Mel. Mas tudo o que conseguia ver era o rosto do meu pai, gasto e pálido e tudo o que conseguia ouvir era a sua luta para poder respirar, enquanto tossia e vomitava no seu gabinete destruído.

 

Os nossos cavalos seguiam cuidadosamente ao longo do carreiro. Este era muito estreito e à nossa direita a encosta erguia-se abruptamente, mergulhando a pique à nossa esquerda, onde uma série de pedras marcava o sítio de uma velha derrocada. Três dos homens mascarados iam à frente e depois o meu tio, seguido por Clodagh e Sibeal. Eu ia a seguir com as outras atrás. Que sorte, pensei, a minha pequena égua ser um animal notável, porque continuava a saber montar muito mal. Mas aquele animal gentil sabia o caminho e eu confiava nele. Devia-lhe muito; usara-o abusivamente, exaurira-o e ele continuava a transportar-me de boa vontade. Quando chegássemos a casa certificar-me-ia de que teria um merecido descanso, cuidados e tudo aquilo de que os cavalos gostam, talvez cenouras.

 

Aconteceu subitamente. Ninguém soube exactamente o que foi: um pássaro, um morcego ou algo mais sinistro. Veio de lado nenhum, rápido como uma flecha, descendo, voltando a subir em completo silêncio e desaparecendo quase antes de eu ter tempo de ver o que era. O meu coração bateu apressadamente, em choque. A égua estremeceu e parou. Mas à nossa frente, onde a sombra passara, o pónei de Sibeal relinchou, ergueu as patas dianteiras e a pequenita foi atirada ao chão. Não havia tempo para pensar. Vi a sua figura pequena encapuçada voar na direcção da encosta rochosa à nossa esquerda. Ouvi, nas minhas costas, o grito de Deirdre. A arte fluiu através de mim, se bem que mal me tivesse apercebido de que a tinha chamado. Os longos anos de prática deram resultado. Alto. A criança ficou subitamente no ar, suspensa a menos de três palmos da pedra rugosa onde iria embater com alguma violência. E agora suavemente para baixo. Fiz os ajustamentos necessários. Um pouco para a direita, de modo a que aterrasse num estreito ressalto ao lado das rochas instáveis. Mas lentamente; a pequenita poderia assustar-se e cair. E pronto. Eu tremia da cabeça aos pés e sentia-me incapaz de falar, como se aquele uso limitado da arte me tivesse exaurido.

 

Os homens da tia Liadan eram bons. Quase antes de Sibeal ter tempo de se aperceber do que estava a acontecer, já dois deles se tinham precipitado para o barranco e descido até onde ela estava, amparando-a para se assegurarem de que não resvalaria. Com palavras de conforto, transportaram-na até ao carreiro. Liadan, pálida como a cera, inspeccionou a criança em busca de ossos partidos; a própria Sibeal já estava praticamente recomposta; uma fungadela ou duas e um ligeiro tremor do lábio eram os únicos sinais de angústia. Eilis, pelo contrário, chorava de susto. Assim que se soube que Sibeal não estava ferida, foi colocada no cavalo do pai e a nossa guarda guiou-nos eficientemente pelo monte abaixo até um lugar seguro sob os pinheiros, onde poderíamos fazer uma pausa e recuperar forças. Foi feita uma pequena fogueira; o chá ferveu. Tratei de tentar fazer parar os berros de Eilis, porque a última coisa que queria era responder a perguntas. Agira instintivamente; fizera a única coisa possível. Se voltasse a acontecer, sabia que faria novamente a mesma coisa. No entanto, continuava a usar o amuleto da minha avó; continuava a seguir o seu rumo. Senti uma mudança em mim, ou no talismã que trazia. Desde a noite em que ela viera ter comigo, a noite em que ameaçara destruir todos aqueles que me eram queridos, que me parecia não poder continuar a fazer-lhe a vontade cegamente, sem reservas. O poder do amuleto teria de algum modo diminuído por causa do cordão que o sustentava? Tinha o coração gelado. Talvez o incidente tivesse sido casual. Mas talvez tivesse sido obra da minha avó; uma espécie de teste. Se fora assim, não havia dúvida de que falhara miseravelmente. Fizera exactamente o oposto do que ela teria querido. Talvez nunca viesse a saber. Talvez, dali em diante, tivesse de olhar com atenção para todas as quedas, todos os pequenos incidentes e, mesmo assim, não ficar com a certeza.

 

És uma boa amazona, Eilis disse eu em voz baixa, afagando os caracóis da criança. Quando chegarmos a casa, vou dizer à tua mãe como seguraste o cavalo quando aquilo aconteceu e como foste corajosa. Lentamente, ela foi-se acalmando. Alguns minutos depois Deirdre deu-nos um pouco de chá e eu vi, à distância, Liadan examinando Sibeal de novo, mais cuidadosamente desta vez, olhando-lhe para os olhos e fazendo-lhe perguntas. O pónei da pequenita parecia também ter recuperado; estava junto dos outros, pastando a magra erva invernal.

 

É engraçado observou Deirdre. Geralmente, quando as pessoas caem de um cavalo abaixo, geralmente... caem. Mas Sibeal... ela parece que flutuou o último bocadinho. Nunca vi nada parecido.

 

Magia soluçou Eilis. Como na história.

 

Ela podia ter morrido. Deirdre estava a pensar. Mas antes que pudesse tirar conclusões, Liadan apareceu a nosso lado e as crianças foram mandadas para junto de Sibeal para lhe darem mais chá e fazerem mais perguntas.

 

A minha tia sentou-se ao meu lado num ramo de árvore caído. A sua expressão era séria, quase severa.

 

O meu irmão não viu o que aconteceu; mas eu vi, Fainne disse ela calmamente. A princípio pensei que estava a imaginar coisas. Mas Sibeal disse: Fainne salvou-me.

 

Não respondi.

 

Talvez não saibas que o teu pai me salvou a vida uma vez utilizando as artes druídicas. Fizeste uma grande coisa hoje, Fainne. Ciarán teria orgulho de ti. Foste tão rápida; tão subtil.

 

Senti-me miserável; teria chorado, se pudesse.

 

Pareces triste disse Liadan. Tens muitas saudades dele? Contra a minha vontade, acenei com a cabeça.

 

Hum disse ela. Estamos muito longe de Kerry. Tenho perguntado a mim própria por que razão Ciarán não veio contigo, porque és muito nova para fazer uma viagem tão longa sozinha. Conor tê-lo-ia recebido bem. Tenho a certeza que ele te recebeu bem. Um talento desses seria o suficiente para que o meu tio tentasse recrutar-te para a irmandade. Ele nunca mais encontrou ninguém com o talento do teu pai.

 

Não seja tola! disse eu, furiosa comigo própria por deixar que os meus sentimentos me dominassem. A nossa espécie não pode aspirar aos patamares superiores da arte druídica. Estamos amaldiçoados, nunca poderemos trilhar os caminhos da Luz.

 

Liadan ergueu as sobrancelhas. Os seus olhos eram do verde das folhas de Inverno à luz do Sol; o seu rosto era da cor da neve.

 

A mim disse ela docemente parece-me que acabas de provar exactamente o contrário.

 

Ela estava errada, claro. Não sabia das outras coisas que eu fizera, coisas terríveis. Não sabia das coisas que eu ainda tinha de fazer.

 

Estás a tremer, Fainne. Tiveste um grande choque, minha querida. Vamos, dá-me a tua mão, deixa-me ajudar-te.

 

Não! A minha voz soou-me áspera. Não lhe permitiria que olhasse para os meus olhos e lesse neles o que me ia na mente. Talvez pensasse que eu não sabia que ela era uma visionária. Eu estou bem, tia Liadan acrescentei polidamente. O que eu fiz foi... foi simplesmente um truque, nada mais. Sinto-me feliz por ter podido ajudar. Não foi nada.

 

Ela não fez qualquer comentário, mas eu senti o seu olhar pousado em mim, perspicaz, avaliador. Cavalgou o resto do caminho até casa ao lado do irmão e não falaram um com o outro em voz alta, mas pareceram-me ambos muito sérios. Perguntei a mim própria se falariam de mim, mentalmente, da mesma estranha maneira dos Fomhóire, de quem, a acreditar na minha avó, tinham herdado aquele talento.

 

Algo se alterara em Sevenwaters desde que eu partira. Não sabia exactamente o que era; era como que um pressentimento, mas a sombra passara e a ordem parecia recomposta. Era como se, de algum modo, a família tivesse recuperado a alma. Aisling abraçou as filhas, sorrindo; Muirrin apareceu a seguir e junto dela estava Maeve com uma grande ligadura em redor da cabeça. As irmãs correram para a abraçar, falando todas ao mesmo tempo.

 

Cuidado avisou Muirrin. É só um bocadinho, porque ela tem de voltar para a cama.

 

Os sorrisos e as lágrimas eram mais que muitos. Mantive-me afastada, porque não fazia parte daquilo. Esperei que acabassem, de maneira a poder ir para o meu quarto, fechar a porta e ficar sozinha. De maneira a poder ir para qualquer lado e não ver aquilo. Salvar uma criança não invalidava o que fizera a outra. Não era assim tão simples.

 

As pequenas sorriam. E Deirdre corava. Os maiores sorrisos e os cumprimentos mais efusivos não eram, de facto, para Aisling, ou para Maeve, mas para um outro alguém. Junto da família estavam outros dois homens de Liadan nas suas roupas escuras, se bem que estes dois não estivessem mascarados. Eu pensava que eram guardas. Eram ambos jovens; um atraía os olhares imediatamente, porque a sua pele era tão escura como um carvalho e o seu cabelo tinha pequenas tranças, como as dos druidas, mas decoradas com contas alegres e penas nas pontas. Estava junto de Maeve, amparando-a com um braço. Vi Muirrin murmurar-lhe qualquer coisa ao ouvido e ele sorrir, mostrando uns dentes muito brancos. Mas era o outro que atraía a atenção das minhas primas, se bem que eu não percebesse porquê. Era um tipo vulgar, de feições agradáveis, entroncado mas bem constituído e o cabelo castanho encaracolado cortado muito curto. Virou-se ligeiramente e eu vi, surpreendida, umas marcas no seu rosto, uma tatuagem delicada, subtil, que lhe torneava o olho e rodopiava audaciosamente pelas sobrancelhas e faces. Era um excelente trabalho; era uma ligeira sugestão de um bico, e penas, nada mais. À nossa volta, os homens que tinham formado a nossa guarda tinham desmontado e, à vez, tinham tirado as máscaras e eu vi que todos eles usavam tatuagens no rosto, na maior parte deles simples e noutros um pouco mais elaboradas, mas todas diferentes. Todos eles tinham representado um animal um texugo, uma foca, um lobo, um veado. Eu era a única que estava a olhar. Para os outros, aquele bando de guerreiros pintados devia ser familiar.

 

Fainne. Era Clodagh, que aparecera a meu lado e me puxava pela manga. Este é o Johnny.

 

O jovem de aspecto vulgar estava ali a meu lado com um sorriso amistoso nas feições pintadas. Engoli em seco. Aquele era Johnny, o fabuloso Filho da Profecia? Aquele jovem pouco atraente que não parecia diferente de um dos da sua própria guarda? Certamente que havia algo errado. Esperara... bem, esperara, pelo menos, um guerreiro de estatura formidável, ou talvez um sábio cheio de arte e saber. Não... não alguém que poderia muito bem ser um moço de estrebaria, ou um cozinheiro.

 

Tantos primos e todos raparigas disse Johnny. Prazer em conhecer-te, Fainne. Maeve falou-me muito de ti e contou-nos todas as tuas histórias. Ele estendeu a mão e apertou-me a mão. O seu aperto foi quente e forte. Olhei-lhe para os olhos e percebi instantaneamente de que me enganara. Eram cinzentos e profundos. Avaliaram-me rapidamente, registaram o que viram e guardaram-no para referência futura. O homem era inteligente. Era um estratega. E era difícil resistir ao seu olhar. Descobri que estava a sorrir para ele.

 

Assim é melhor disse ele. Este é o meu amigo Evan. Evan é aprendiz da mãe. Ela dir-te-á que ele tem os predicados necessários para vir a ser um curandeiro de primeira. Ele e Muirrin fizeram maravilhas com Maeve. Fazem ambos uma óptima equipa.

 

Johnny sorriu para o homem de pele escura e depois para Muirrin. Muirrin corou; Evan olhou para o chão. Então, Liadan disse que Maeve devia voltar para a cama e na agitação da entrada na casa e da separação da bagagem consegui fugir para o meu quarto, onde fechei a porta à chave sem perceber muito bem porquê.

 

Não gosto dele, pareceu-me dizer a mim própria. Não posso gostar dele. Torna as coisas mais difíceis. Sentei-me no chão em frente da lareira, mas não a acendi apesar do dia frio que estava. Receava as visões que, eventualmente, veria nas suas brasas; as coisas terríveis que estavam no meu caminho, as que eu própria faria e as que não poderia impedir. É fácil, disse para mim própria. É um jogo de estratégia. Como o brandubh. Sabes o que tens afazer. Limita-te a fazê-lo.

 

Fácil de dizer. As coisas tinham mudado em Sevenwaters e não era só por causa da vinda de Liadan e por Maeve estar a melhorar mais depressa do que as pessoas pensavam. Era por causa dele, de Johnny. Era visível a maneira como os homens iam ter com ele em busca de respostas e a maneira como ele falava com eles, amigavelmente, respeitosamente mas confiante, como se fosse um homem muito mais velho, maduro e sábio. Era visível no seu sorriso e no seu comportamento; na maneira como usava as roupas simples com orgulho, como se fazer parte de uma equipa lhe desse mais satisfação do que qualquer símbolo de liderança. No entanto, era ele o líder. Os homens mais velhos calavam-se para o ouvir. As mulheres apressavam-se para lhe servir uma refeição ou para lhe encher a taça e coravam quando ele lhes dirigia uma palavra amável. Ele estava em toda a parte; exercitando os homens de Sean no pátio, inspeccionando a construção de um novo celeiro, conversando com Janis na cozinha. Era muitas vezes visto à cabeceira de Maeve contando uma história ou ouvindo as suas confissões murmuradas. Fora o seu sorriso doce que aquecera aquelas paredes; fora a sua oferta de ajuda que devolvera a cor ao rosto pálido de Aisling; era o seu conselho que Sean procurava todas as noites quando os homens tinham longas conversas acerca de mapas e diagramas. Por sua causa, a casa recuperara a sua força e objectivo, que desaparecera no festival de Samhain, na noite do incêndio. Eu trouxera a escuridão. Johnny restaurara a Luz.

 

Meán Gemhrídh estava próximo. Muitas vezes, na enseada, por essa ocasião, o tempo estava tão mau que era impossível ler o dia a partir das pedras; tudo era sombrio, com as nuvens a cobrirem o sol de Inverno. No entanto, eu sabia; subia o monte à chuva ou ao vento e sentava-me sob o dólman virado para oeste, tentando ver suficientemente longe para conseguir vislumbrar Tir Na n’Og, a ilha dos sonhos. Mas nunca consegui. Então, ficava ali sentada, com a capa sobre a cabeça para me proteger do vento, sentindo a força da rocha nas minhas costas como uma grande mão protectora e sonhava os meus sonhos de Verão. O Verão vinha sempre. Era apenas uma questão de esperar e ser forte. Tudo isso tinha acabado, claro. Dissera adeus à enseada e ao meu pai. Mandara Darragh embora para muito longe, onde estaria em segurança e, para mim, nunca mais haveria Verões.

 

Era necessário praticar. Fazer o que tinha de fazer, exercitar-me na arte para ir mais longe do que o meu pai me permitira. Na verdade, ele proibira-mo expressamente e com boas razões. Por isso, tinha de aperfeiçoar as minhas capacidades, disciplinar a mente e fortalecer-me. Então, só então, tentaria transformar-me numa criatura selvagem e, ainda mais difícil, regressar, depois, ao meu próprio corpo. A perspectiva aterrorizava-me. E se subestimasse a minha própria habilidade? E se me condenasse a viver como um pato, ou um sapo, ou, pior ainda, se ficasse presa entre uma forma e outra? Então, seria impotente para proteger aqueles que procurava defender dela. Esse feitiço era fortíssimo, um dos mais difíceis da arte; esgotava as forças e sobrecarregava a mente. O meu pai não achava que estivesse pronta para o tentar. E se ainda não estivesse? O tempo passava rapidamente; os homens, sob o frio do solstício, já se reuniam para uma partida iminente e a tia Liadan já falava em regressar a casa. Mesmo na escuridão do Inverno, aquela gente estava com os olhos postos na vitória do Verão. E o Verão não estava longe. Tinha de me preparar.

 

Mas, como ensaiar o feitiço ali, em Sevenwaters? Não havia solidão, privacidade, salvo no meu quarto e, mesmo aí, estava a ser constantemente interrompida. A casa estava cheia de gente, a família sempre ocupada e a minha ajuda estava sempre a ser pedida para numerosas tarefas, a muitas das quais não estava acostumada. Aprendi a fazer muitas coisas, mas eram as coisas erradas: como coser bainhas, como preservar maçãs em mel e fazer geleia de língua de porco, como depenar um pato e a melhor maneira de medicar um punho torcido.

 

À noite era difícil passar despercebida. Com a chegada de Johnny e o seu bando de guerreiros pintados, o jantar tornara-se uma ocasião festiva, seguida frequentemente pela narrativa de histórias e canções. Um dos jovens tinha uma bela voz e um outro não era mau de todo com o assobio. Havia uma harpa pequena, finamente trabalhada e tanto Deirdre, como Clodagh, eram capazes de tirar sons muito doces das suas delicadas cordas. No acampamento de Dan Walker havia o mesmo sentimento de bem-estar; o mesmo companheirismo. No entanto, era estranho. Aquela gente era da minha família, mas eu sentia-me menos parte dela do que da família colorida e simples dos nómadas. Gostava mais de pensar em Peg, que me dera um lenço e o seu sorriso, do que na tia Liadan com os seus olhos perspicazes e os seus silêncios. Ouvia a sua música e só pensava nos lamentos solitários da gaita-de-foles.

 

Pensei na floresta. Lá, havia, certamente, muitos espaços abertos, vazios: clareiras, pedaços de terreno desertos na margem do lago, grandes rochas cheias de musgo. Esses locais eram óptimos para a prática secreta da arte. Mas não tinha nenhum druida para ir até lá comigo e os guardas eram muitos. Além disso, que seres estranhos estariam à espreita na escuridão selvagem, prontos para me espiar os segredos e antecipar os meus movimentos? Não podia ir para lá.

 

Fiquei bloqueada pelas dúvidas e aterrorizada pela minha falta de progressos. Se assim continuasse, se me permitisse pensar demasiado no que tencionava fazer e no que isso significava, arriscava-me a perder a vontade. Agora, quando tocava no cordão em redor do meu pescoço, ele não parecia fazer com que me concentrasse na tarefa que tinha pela frente, antes murmurava uma mensagem diferente: tu és filha de Sevenwaters, dizia ele. Tu és uma de nós. Mas eu não esquecera o aviso da minha avó. Ela queria resultados. Sem resultados, regressaria e faria com que outros pagassem pela minha desobediência. No entanto, quando pensava nisso, parecia-me que, fizesse o que fizesse, a gente de Sevenwaters estava sempre condenada. Podia proteger os inocentes da ira da minha avó obedecendo às suas ordens. Se o fizesse, não haveria mais incêndios, quedas inesperadas e todas as coisas que ela enumerara, tais como envenenamentos, ou desaparecimentos. Os que eu tentava proteger estariam em segurança em Sevenwaters, em Kerry e, mais a oeste, em Ceann na Mara. Talvez o conseguisse. Mas, a longo prazo, se cumprisse a sua demanda, a batalha seria perdida, assim como as Ilhas e aquela família mergulharia no caos e no desespero. Não seria uma catástrofe maior do que as perdas pessoais que eu tentava evitar? Na verdade, se ouvisse as vozes dos que se chamavam a si próprios Anciãos, a desgraça das Ilhas significaria, nem mais nem menos, do que a morte das grandes raças de Erin: os Fair Folk, os mais velhos e os muitos e estranhos habitantes do Outro Mundo que viviam por baixo da terra. Quanto à espécie humana, perderia para sempre os mistérios do espírito. Que homem ou mulher poderia viver sem isso? Deixariam de ser os guardiões da terra e do mar, passando a ser parasitas, sem se preocuparem com o significado das coisas e sem respeito pela confiança sagrada depositada neles. Seria essa a vontade da minha avó? A escolha que eu enfrentava não era escolha nenhuma; ambos os caminhos iam dar à escuridão. E eu não podia esperar outra coisa, devido ao sangue amaldiçoado que me corria nas veias e nas do meu pai; sangue maculado, o que significava que nunca poderíamos pisar os caminhos da Luz. Eu não era filha de Sevenwaters. Fosse para onde fosse, não podia fazer outra coisa senão destruir a minha família e tudo aquilo que ela tentava, tão arduamente, salvaguardar.

 

Praticava o melhor que podia no interior do meu quarto até altas horas da noite. De manhã emergia pálida, a bocejar e de mau humor. E a tia Liadan vigiava-me com as suas feições pequenas e doces e sem qualquer expressão. A tia Aisling também me vigiava, franzindo o sobrolho, e ordenava-me que descansasse de tarde e às filhas que me deixassem um pouco em paz. Eu agarrava esse tempo, grata e usava-o para praticar ainda mais. Ainda não me atrevia a fazer a transformação completa, mas estava cada vez mais perto. Entretanto, ia fazendo outras coisas: a manipulação de objectos, que se tornara fácil, o deixar cair e apanhar, as deslocações subtis e os ajustamentos de forma e tamanho. Uma vez, apanhei um susto com uma barata gigante; felizmente consegui desfazer o feitiço com um estalar de dedos. Perdi uma aranha, fazendo-a tão pequena que não consegui vê-la quando quis fazer o inverso. Ainda não conseguia fazer esse truque de olhos fechados. Ensaiei transformações em frente do espelho, primeiro as mais fáceis, já que o tempo era sempre limitado: a mais bonita e mais bem-feita rapariga da feira; uma versão mais simples, estrábica, de cabelos frisados e ralos; uma matrona com uma criança na barriga e rugas nas sobrancelhas; uma velha extremamente parecida com a minha avó. Desfazia esta última rapidamente, porque me arrepiava a ideia de que, no futuro, talvez eu ficasse como ela. Depois, um pouco mais difícil, uma Fainne com cerca de oito anos de idade, do mesmo tamanho da minha prima Sibeal. A criança olhava para mim da superfície de cobre polido do espelho, as feições inocentes, ainda informes; os cabelos caindo-lhe pelos ombros, como uma capa de fogo. No dedo usava um pequeno anel de erva. E por trás dela, em vez das paredes de pedra escura do meu quarto, vi as falésias do Favo de Mel, as ondas do oceano e o céu enevoado de Kerry. Pensei ouvir a voz do meu pai a dizer: muito bem, filha. Tens talento para isso. Desfiz a transformação abruptamente, demasiado abruptamente, porque quase desmaiei devido à súbita perda de energia que acompanha tais transições e quando olhei de novo para o espelho vi-me a mim própria pálida e exausta, como uma rapariga doente. Dia e noite aperfeiçoei aqueles talentos. Em breve, muito em breve, teria de dar o último passo, de rapariga para animal selvagem, de animal selvagem para rapariga.

 

Recebi uma carta de Eamonn. Não directamente; teria sido inapropriado e Eamonn acreditava que devia, sempre que possível, fazer tudo segundo as regras. A carta era para o meu tio Sean e era um pedido formal de casamento. Uma carta daquelas não podia ser ignorada, nem podia haver uma recusa imediata se quem a escrevera era um parente e um aliado. Parecia não ter importância o facto de já ter sido dito a Eamonn que tal casamento estava fora de questão. Na verdade, o homem parecia não conhecer a palavra não. Fazia o pedido com cortesia, indicando que um dote não estava em causa sendo as minhas circunstâncias o que eram; acrescentava que, devido aos riscos iminentes do Verão, preferia que o casamento tivesse lugar na Primavera, talvez em Imbolc. Havia outra mensagem nas entrelinhas. Eu iria para Glencarnagh antes do Verão como sua mulher. E era evidente que me deixaria com uma criança no ventre quando partisse para a grande campanha. Se morresse, deixaria, pelo menos, um herdeiro. Sean percebeu perfeitamente essa mensagem. Quanto a mim, as intenções de Eamonn eram evidentes. Queria impor os seus direitos de propriedade. Agora que sabia do que eu era capaz, queria ter a certeza de que faria a sua vontade e não a de outros. Informações; segredos; espionagem. Comigo a seu lado, nenhuma oportunidade lhe seria negada. E era melhor deixar isso bem claro antes de começar a campanha. Ocorrera-lhe, talvez, que havia possibilidades na nossa união que iam além da eliminação de um inimigo particular.

 

Sean mostrou-me a carta em privado. Eu apreciei o gesto, não desejando ter a tia Aisling a vigiar aquele encontro. Li rapidamente a missiva e devolvi-lha.

 

Muito formal comentei.

 

O meu tio ergueu as sobrancelhas.

 

Estou a ver que lês bem disse ele.

 

O meu pai ensinou-me. E Conor ensinou-o a ele. Suponho que poderia ser chamada de letrada. Talvez, se não me permitires que me case, eu possa arranjar um emprego como escriba.

 

Sean olhou zombeteiramente para mim.

 

Não me parece. Conor disse que tu eras uma druida nata. Achas que serias capaz de responder à chamada?

 

A minha espécie não pode trilhar esse caminho. O meu tom era frio. Devia saber isso, tio. No fim de contas, sou filha do meu pai.

 

E da tua mãe, Fainne. Ela era minha irmã. Devo escolher bem por ti em memória dela.

 

Mas escolheu bem mal para ela disse eu amargamente.

 

Talvez sim; e talvez não. É verdade que ela teve azar. No entanto, na ocasião, a família fez o que lhe pareceu melhor. Ninguém sabia o que viria a acontecer. Não penses mal de mim, Fainne, mas, de certo modo, Niamh comeu o fruto que colheu. Escolheu um homem que não podia ter.

 

Olhei para ele, irritada.

 

Mas, nesse caso, eu não existiria, tio. Eu sou o fruto de uma ligação proibida. Não acha que este casamento é a melhor hipótese para mim?

 

Sean suspirou e sentou-se à pequena mesa.

 

Devias falar com Liadan acerca disto disse ele. Alguns aspectos deste assunto devem ser discutidos entre mulheres.

 

Não disse eu rapidamente. Isso não é necessário. Dê-me apenas uma boa razão para que Eamonn e eu não nos casemos; uma razão para além da diferença de idades, porque essa não tem importância, já que eu não me importo.

 

Pensei que o tinha encostado a um canto, onde me revelaria a verdade sobre Eamonn e Liadan, um segredo bem guardado, que originara uma grande amargura. Mas ele era um bom estratega.

 

Muito bem disse ele. Precisamos da autorização do teu pai. Liadan diz que tem a certeza que ele não a dará. Mas, se tu estás disposta, façamos uma experiência. Diz-me onde poderemos encontrar Ciarán e eu mando-lhe um mensageiro com a notícia, pedindo-lhe a sua bênção para o teu casamento.

 

Não! Não consegui controlar o medo. Não, não pode fazer isso! Uma vez cá fora, não podia retirar as palavras.

 

Sean olhou para mim com olhos perspicazes.

 

Estou a ver disse ele. No entanto, temos de responder a esta carta de uma maneira ou de outra, ou Eamonn aparece aí a exigir uma resposta. Puseste-me numa situação muito delicada, sobrinha.

 

Peço desculpa murmurei.

 

Não interessa. Conor chega amanhã para celebrar o ritual do solstício; discutiremos isto com ele e com Liadan antes de decidirmos a nossa resposta. Que Brighid nos salve. Por vezes, penso que recuei até à data em que a tua mãe recusou uma oferta semelhante. Já então, a feiticeira que era a velha inimiga da nossa família tinha de novo a mão em cima de nós, movendo-nos como peças de um jogo qualquer da sua própria invenção. Talvez, quando chegou a ocasião, Niamh não tenha tido hipótese.

 

Fiquei gelada. Pensei na minha mãe saltando para o vazio e nas palavras de Liadan: Sempre me pareceu impossível. Um terrível pensamento introduziu-se na minha mente, recusando-se a sair.

 

Não precisas de ter medo de Liadan disse Sean com um pequeno sorriso. Ela amava a irmã e não te quer mal nenhum.

 

Medo? É claro que não tenho medo. Até a mim aquilo me parecia pouco convincente. Olhei de novo para o meu tio. Ele estava tranquilamente sentado, os dedos afagando a cabeça do grande cão sentado a seu lado. Os olhos do animal estavam meio fechados de prazer. Aos pés de Sean, o outro cão dormia. - Só que...

 

Diz, Fainne. A sua voz era amável. Eu quero que te sintas aqui como em tua casa, sabes isso. Quero que te sintas como mais uma das minhas filhas enquanto estiveres connosco.

 

É que ela tem... o... o poder, a capacidade de falar sem palavras, de ler os pensamentos das outras pessoas, eu sei que ela tem. E eu... tenho medo disso, tio. Medo que a tia Liadan me leia o pensamento e veja coisas que são... privadas. Por que dissera aquilo? Só servia para lhe aumentar as suspeitas. Uma rapariga da minha idade tem segredos acrescentei apressadamente. Coisas que é capaz de dizer à sua melhor amiga, mas a mais ninguém.

 

Devias falar com ela disse Sean de novo. É verdade, há pessoas na família com essa habilidade. A sua força varia de pessoa para pessoa; Liadan tem um dom poderoso, partilhado apenas por mais uma pessoa, que eu saiba. Mas ela nunca o usa para espiar, ou meter-se onde não é chamada, Fainne. Tal dom acarreta uma grande responsabilidade. Não pode ser usado de ânimo leve. Só se soubesse que aqueles que ama estão em perigo mortal é que o usaria dessa maneira.

 

As suas palavras não fizeram nada para me tranquilizar.

 

Estou a ver. Talvez fale com ela. Isto tem de ser discutido em alguma espécie de... fórum familiar, com Conor e com os outros?

 

O meu tio acenou gravemente com a cabeça.

 

Acho que sim, Fainne. Temos de escolher as palavras com cuidado quando elaborarmos uma resposta para Eamonn. Ele é um homem muito influente; não nos podemos dar ao luxo de o enfurecer.

 

Não via Conor desde o incêndio. E ele não me via desde que levara o velho druida para descansar sob a tranquilidade dos grandes carvalhos. Não sabia o que lhe diria. Parecia-me que o sentimento de culpa estaria espelhado no meu rosto e eu achava que ele sabia ver essas coisas. Parecia-me que o espírito maligno que eu herdara da minha avó se veria nos meus olhos e que isso não passaria despercebido a um homem com as capacidades do arquidruida.

 

Eu estava sentada ao lado de Maeve, contando-lhe uma história. Apesar dos meus melhores esforços, descobri que não conseguia recusar os seus repetidos pedidos para a visitar e, uma vez sentada a seu lado, era incapaz de lhe recusar uma história. Desta vez começara com uma história acerca de dois pequenos amigos e como quase foram apanhados pela maré. Maeve e eu não estávamos sós; Muirrin estava ocupada a bater qualquer coisa num almofariz e o jovem de pele escura, Evan, estava no quarto ao lado a cuidar de um sujeito com uma grande dentada no traseiro. Os bosques estavam cheios de porcos selvagens e nos seus esforços para arranjar um bom espécimem para a festa do solstício conseguira mais do que previra. A presa entrara e saíra com uma limpeza a toda a prova; Evan falava de modo a tranquilizar o paciente enquanto lhe suturava a ferida. Johnny estava em frente da pequena lareira. Aparecera depois de eu ter começado e eu pensara interromper a história, já que não me queria revelar a ele daquela maneira. Mas Maeve, com a sua vozinha delicada, disse:

 

Continua, Fainne, por favor.

 

Johnny abriu a boca num sorriso grande e desarmante e eu continuei.

 

Bem, que haviam eles de fazer? As ondas estavam a ficar cada vez maiores, o dia cada vez mais escuro e tudo o que restava da praia era um pedaço de areia, suficiente apenas para a pequena Fainne pousar os pés. Ela estava assustada, mas não abandonaria Darragh e, assim, não disse nada, apertou Riona contra o peito, olhou para a água que se aproximava cada vez mais e sentiu a rocha inclinada por trás de si; demasiado inclinada para poder trepá-la.

 

Maeve olhava para mim com ar solene. A sua cabeça ainda estava ligada; mas o olho, pelo menos, tinha sarado, o inchaço desaparecera e a vista estava intacta. As mãos estavam enfaixadas. Sabia que Muirrin mudava as ligaduras duas vezes por dia e que a obrigava a dobrar e mexer os dedos. Ouvira a criança chorar de dor ao sentir a pele queimada esticar. A própria Muirrin saía daquelas sessões com os olhos vermelhos.

 

Então, Darragh disse: Vamos ter de nadar. Não é longe... só até àquelas rochas além e depois podemos saltar para o paredão. Dá-me a Riona, que eu levo-a. E Fainne disse em voz baixinha: «Eu não sei nadar.» Darragh olhou para ela, com a água a chegar-lhe aos tornozelos e disse: «Achas que vou deixar que te afogues? Não podes deitar-te de costas e flutuar sem entrar em pânico? Eu nado pelos dois. Tem que ser; as ondas estão cada vez mais perto.» Dito isto, meteu Riona no cinto e entrou na água. As ondas já rebentavam na base da falésia. Fainne sentiu a água nos joelhos, ensopando-lhe o vestido. Só o pensamento de entrar na água fazia-lhe tremer o corpo todo. Mas não daria a entender a Darragh que tinha medo. Assim, fez o que ele lhe pedira: entrou no mar revolto e deixou que ele a envolvesse, sentindo o frio percorrer-lhe o corpo; sentiu os braços de Darragh sob os seus e em redor do peito, segurando-a e começaram a deslocar-se na água, deixando que ela os levasse. Fainne nunca tivera tanto medo. Por vezes, a água esparrinhava por cima dela, entrava-lhe para a boca e para o nariz e uma vez o aperto de Darragh abrandou e ela quase se afogou. A água estava gelada e ela sentiu a força do oceano erguendo-os e baixando-os, para cima e para baixo. Outra vez, atreveu-se a abrir os olhos e olhou para trás; mas fechou-os logo a seguir porque estavam muito longe da praia, tão longe que parecia impossível Darragh conseguir nadar de volta com o seu peso a retardá-lo. Fainne fechou os olhos com força.

 

«Olha, Fainne,» disse Darragh. «Temos companhia. Que visão rara.» Era mesmo dele; nada como um rapaz que estava quase a afogar-se nem sequer tinha a respiração acelerada. Cautelosamente, ela abriu um pouco os olhos. E ali, ao lado deles, à direita e à esquerda, nadavam duas grandes criaturas de pele macia das profundezas, mantendo a mesma velocidade deles, como guardiões elegantes. Eram sereias, filhas de Manannán mac Lir, que tinham vindo para os levar a salvo para a margem. Durante toda a travessia através da baía elas brincaram, mergulharam e nadaram em círculos, dançando na água e Fainne olhava de olhos esbugalhados, quase se esquecendo que tinha medo. E, por fim, chegaram às rochas macias no outro extremo da baía e Darragh e Fainne saíram da água, tremendo de frio e com sorrisos de orelha a orelha. As duas sereias foram-se embora sem um único olhar para trás, mas, durante algum tempo, puderam vê-las brincar ao gato e ao rato para lá das ondas.

 

Dizem, disse Darragh a olhar para elas, que as sereias são meio humanas. Sabias? Por vezes, saem da água, tiram as peles e tornam-se homens e mulheres de novo, por um certo tempo. Mas têm sempre de regressar. O mar chama-as. Estão sob um feitiço. Pelo menos é o que dizem.

 

Fainne acenou com a cabeça e foram os dois para casa, cheios de frio, ensopados e cansados, mas felizes. Quanto a Riona, tomou um banho que não queria tomar, mas secou depressa em frente da lareira e o que ela ficou a pensar da aventura nunca ninguém soube, porque ela não diz.

 

Maeve deu um pequeno suspiro de satisfação, eu olhei para cima e na soleira da porta estava Conor.

 

Uma história verdadeira, sem dúvida observou ele solenemente enquanto se aproximava para cumprimentar Muirrin e Johnny e tocar na cabeça da criança com uma mão gentil.

 

Oh sim disse Maeve com toda a segurança. Todas as histórias de Fainne são verdadeiras. Bem, aquela do duende talvez não. Mas as de Darragh são verdadeiras.

 

A sério? Johnny sorria de sobrancelhas erguidas enquanto olhava para mim. E que grande nadador ele é. Acho que gostava de o conhecer. Parece ser um tipo bom para termos junto de nós.

 

Bem, isso é pouco provável disse eu reprimidamente. Ele vive muito longe, para Oeste. E as histórias são verdadeiras e não são.

 

As melhores histórias são todas assim disse Conor. Aprendeste essa arte com o teu pai, sem dúvida acrescentou ele calmamente. Ele tinha a habilidade de nos manter suspensos das suas palavras.

 

Desculpem-me. Levantei-me de repente e desapareci murmurando algo acerca de coisas a fazer. Quando fiquei a salvo no meu quarto, fiz um esforço para me acalmar, coloquei-me em frente do espelho e chamei a arte. Mas a minha mente estava confusa e triste e não consegui escapar às minhas próprias feições, que olhavam para mim ameaçadoramente. Por fim, desisti. Abri a minha arca e, procurando lá bem no fundo, tirei o xaile de seda que levara uma vez, há muito tempo, numa outra vida, numa ida à feira a cavalo. Sentei-me no chão com as suas cores alegres de Verão em redor dos ombros, fechei os olhos com força e comecei a oscilar para trás e para a frente, murmurando: Lamento, lamento. Mas se estava a falar do meu pai, ou de Darragh, não sabia.

 

Ceder daquela maneira à fraqueza era perigoso. Demonstrava uma lamentável falta de autocontrole. O meu pai nunca deixara que os seus sentimentos o dominassem. Como ficaria desapontado se me pudesse ver. No entanto... no entanto, lembrava-me daqueles longos períodos de tempo em que ele se fechava no seu gabinete e não me deixava, sequer, aproximar. Lutaria com a prática complexa da arte, ou lutaria com outra coisa qualquer? E via-o sair ao fim do dia com a expressão confusa e de aversão por si próprio que eu via agora nas minhas próprias feições. Então, atribuía aquilo aos grandes desafios que ele punha a si próprio como mestre feiticeiro que era. Mas agora, subitamente, já não tinha tanta certeza. Como filha dele, teria feito tudo para lhe aliviar a tristeza, para lhe fazer chegar aos lábios aquele raro sorriso, mas, quando estava assim, evitava o contacto e cortava pela raiz as minhas perguntas ansiosas. Mais tarde, fazia o possível para me recompensar, contando uma história à lareira e escutando pacientemente enquanto eu relatava os pequenos acontecimentos do dia. E eu desejava que o seu mundo fosse melhor, mas sabendo que era impossível. O meu amor por ele dera cor à minha vida e ainda dava. Era essa a arma mais poderosa da minha avó, que me condenava a um futuro de trevas e traições.

 

Não pude escapar a Conor. Ele encontrou-me antes do jantar, quando fazia um recado à tia Aisling. Eu estava na cozinha, onde havia outro par de olhos que eu preferia não ter encontrado. A anciã, Janis, não dissera grande coisa desde o meu regresso de Glencarnagh, mas o que dissera deixara-me bastante desconfortável.

 

Eu sempre soube observou ela, fixando o seu escuro e perscrutador olhar em mim que a tua mãe só arranjaria sarilhos. E arranjou. Parece-me que tu não és diferente.

 

Que quer dizer? disse eu, ultrajada com aquela ridícula acusação.

 

Ele encontrou-te? foi o esforço seguinte dela.

 

Quem? perguntei, olhando irritada para ela.

 

De quem pensas tu que estou a falar?

 

Seguiu-se uma pausa. Percebi que tinha as mãos cerradas. Fiz um esforço para as relaxar.

 

Não o vi disse-lhe eu friamente.

 

Não o viste, ou não o quiseste ver?

 

Que tem com isso? Como se atreve a interrogar-me assim?

 

Miúda, eu sou suficientemente velha para dizer a verdade sem medo. Talvez não tenhas ouvido. Niamh nunca ouvia quando eu lhe dizia o que lhe convinha. Arrepender-te-ás para sempre se despedaçares o coração do rapaz.

 

Que disparate disse eu tremendo, mas o tom da minha voz perdera a sua certeza. Os corações não são para aqui chamados. Darragh é... era... meu amigo, mais nada. Foi-se embora. Tem uma namorada em Ceann Na Mara, uma rapariga muito bonita que sabe tudo acerca de cavalos e que tem um pai rico. É... é óptimo para ele. Aqui não há corações, nem para ele, nem para mim.

 

Janis suspirou e sorriu tristemente.

 

Eu vi o olhar nos olhos dele, miúda. A mim, parece-me que não sabes o valor do que deitaste fora. A mim, parece-me que tu não sabes nada de nada.

 

Sei, sim murmurei, perguntando a mim própria porque estava ali a ouvi-la, deixando-a magoar-me tanto com as suas palavras. Só que... só que, precisamente, por saber o que sei é que faço o que devo fazer. É melhor assim. Melhor para Darragh e melhor para toda a gente.

 

Janis perscrutou-me de perto.

 

Não é assim que as coisas funcionam, miúda disse ela em voz baixa. Não podes dispor das vidas das outras pessoas e dos seus sentimentos só porque achas que é melhor. Cresceste com Darragh, não cresceste?

 

Acenei com a cabeça, de lábios cerrados.

 

Hum. Ele disse-me. E alguma vez ele te deixou decidir por ele? Abanei a cabeça.

 

Estás a ver, então.

 

Eu sei o que é melhor disse eu, furiosa.

 

Janis estendeu a mão rugosa e pegou-me na minha. O seu toque era surpreendentemente suave.

 

Há aí muitas lágrimas, miúda disse ela.

 

Tudo o que consegui foi acenar com a cabeça, porque as suas palavras tinham-me feito recordar a pequena imagem que vira em sonhos, noite após noite, desde o dia em que transformara uma rapariga num peixe e permitira que a sua própria mãe pusesse fim à sua vida com uma faca de cozinha. Via-me a mim própria com uma angústia que ameaçava rasgar-me a alma.

 

Não posso fazer nada disse eu com a voz estrangulada, e fugi. Depois daquilo fiz os possíveis para me manter afastada de Janis. No entanto, havia os recados e era impensável não os fazer, porque naquela casa a palavra da tia Aisling era lei. Portanto, estava eu na cozinha, pedindo à cozinheira para mandar alguns homens buscar algumas galinhas e Janis estava sentada silenciosamente à lareira a olhar para mim. E no outro lado do fogão estava Conor, fazendo exactamente o mesmo.

 

Ah disse ele com um sorriso precisamente a rapariga com quem eu queria falar. Vem, Fainne, vamos dar um pequeno passeio juntos. Tenho uma proposta para te fazer.

 

Não podia recusar. Encontrei uma capa pendurada perto da lareira; Conor puxou para cima o seu capuz. Tinha nevado de novo e deixámos as marcas das nossas botas na neve enquanto caminhávamos pelo carreiro na direcção da floresta. No ar havia aquele calor que pressagia mais neve antes do cair da noite. Esperei que o druida falasse. Tentei antecipar as perguntas, formando as convenientes respostas na minha cabeça. Talvez me fizesse perguntas acerca do incêndio e o meu papel nele. Talvez falasse de mortes e ferimentos. Talvez me perguntasse, de novo, porque viera para Sevenwaters. Talvez quisesse falar do meu casamento; para me dizer que era impossível.

 

Amanhã celebramos Meán Geimhridh disse Conor. Provaste ser uma boa assistente na última vez, Fainne. Estás disposta a desempenhar de novo o mesmo papel?

 

Lutei para encontrar uma resposta.

 

Eu... não percebo porque quer que eu faça isso. Não seria de modo nenhum apropriado.

 

Não? perguntou Conor sorrindo um pouco. E por que não? Não lhe podia contar a verdade: que seria uma falsidade. Na noite de Sambain eu fizera de conta que pertencia à família. A minha avó aparecera na noite de Sambain e eu provocara o incêndio.

 

Não posso disse eu rudemente. Sabe que eu nunca poderei pertencer à Ordem dos sábios. E sabia que o meu pai também não podia, mas mentiu-lhe e deixou-o pensar, durante aqueles anos todos, que era possível. Foi como... foi como prometer a alguém um prémio maravilhoso se esse alguém trabalhasse arduamente e depois, no fim, tirar-lho. Não admira que o meu pai fale de si com amargura. Eu não posso ser uma druida, tio. Não posso fazer as coisas próprias de um druida. Não sou capaz.

 

Passou-se muito tempo antes que Conor respondesse. Se o tinha feito zangar, disse a mim mesma, não me importava; já era tempo de ele enfrentar a verdade. Ele sentou-se no muro de pedra, perto do local onde o carreiro passava por baixo das árvores nuas a caminho das sombras da floresta. E eu fiquei ao lado dele, olhando para lá do lago.

 

Lembro-me de o teu avô reconstruir este muro, pedra a pedra observou ele finalmente. Hugh de Harrowfield era um grande professor, sábio e paciente. Ensinou aos homens daqui como se faziam as coisas, mas fazia sempre a sua parte; dava sempre o exemplo. Há um truque nisto, um certo saber. Tens de dispor as pedras ao comprido ao longo da linha do muro com o lado mais estreito para baixo; desse modo, as pedras amparam-se umas às outras e não quebram sob pressão. Estas pedras são como uma grande família; os fortes apoiam os fracos, mas cada um desempenha o seu papel no todo.

 

Não fiz qualquer comentário. Aquilo pareceu-me um conto educativo.

 

O que disseste não é verdade, Fainne disse Conor solenemente. Creio que percebo por que razão pensas assim, pois isso era o que o teu pai pensava: por ser filho de uma feiticeira, foram-lhe interditados os poderes da Luz, a prática mais elevada da arte. Uma vez a ideia na sua mente, nenhum argumento a abalou. Tentei dizer-lho naquela noite em que ele veio a Sevenwaters e lhe contamos a verdade acerca dos pais. Mas recusou ouvir.

 

Como é possível eu estar errada? O nosso sangue é mau. Por mais que tentemos, todas as nossas alternativas conduzem à escuridão. E isso não se pode controlar. Eu sei.

 

Conor suspirou.

 

És muito jovem, Fainne. Como podes ter tanta certeza?

 

Porque... porque é o que me acontece murmurei. Não vale a pena pensar de outra maneira.

 

Não acredito numa coisa dessas, filha.

 

É verdade, tio. Não se trata apenas do que o meu pai preferiu acreditar. É uma coisa antiga, muito antiga. A história do que nós somos. Nós descendemos de uma dos Túatha Dê, os Fair Folk; de uma que foi banida por praticar o lado negro da arte. Ela originou algo de demoníaco e libertou-o no mundo. Por isso, os Fair Folk baniram-na e interditaram-lhe a magia mais elevada. É assim com todos os seus descendentes.

 

Conor olhou para mim intensamente.

 

Uma história interessante disse ele. Mas, no fim de contas, não passa de uma história. Onde ouviste isso, Fainne?

 

O meu... o meu pai disse que foi assim.

 

E onde terá ele ouvido isso, pergunto a mim próprio? Uma pessoa pode ou não acreditar nessas histórias. Mas eu retribuo-te com um argumento que não podes deixar de acreditar que é verdadeiro, pois baseia-se em factos verídicos.

 

Esperei.

 

Diz-me uma coisa. Alguma vez viste o teu pai usar a arte com fins maléficos?

 

Não respondi contrafeita. Mas isso é diferente. O meu pai fez uma escolha. Ele disse-me que a nossa espécie é atraída pelo mal. Mas uma pessoa pode sempre escolher não utilizar a arte.

 

Conor acenou com a cabeça solenemente.

 

Então, ele não exerce a arte? Franzi o sobrolho.

 

Exerce; para quê, ninguém sabe. Talvez o faça para se desafiar a si próprio; para preencher os dias vazios. Ele costumava fazer demonstrações para me ensinar. Mas... na realidade, exerceu-a apenas uma vez. Olhei de relance para o druida. Ele salvou a população da enseada quando os Nórdicos a invadiram. Ainda hoje falam disso.

 

Então disse Conor a única vez que ele a exerceu foi para praticar o bem.

 

Mas houve pessoas que morreram disse eu. Houve um guerreiro de cabelos louros muito claros, que o mar atirou para a praia no meio da madeira dos navios destruídos.

 

É um assunto complicado. Às vezes é difícil separar o que está certo do que está errado, Fainne. E tu ainda és muito nova e mal começaste o teu treino.

 

O que é que isso quer dizer? perguntei abruptamente, um pouco ofendida por ele me considerar uma principiante.

 

Já falámos do teu pai. E de ti? Dizes que só podes trilhar um caminho para a escuridão por seres quem és. Digo-te que isso está errado. Tu, realmente, podes escolher. Sim, tu és neta de uma feiticeira. Mas a tua outra avó era a minha irmã Sorcha, a quem as pessoas chamam, por vezes, a Filha da Floresta. Ela era uma mulher extremamente forte; de grande coração, espírito puro, muito ’amada nesta casa e na comunidade. O teu avô, Hugh de Harrowfield, era um homem forte e admirável, porque, no fim de contas, era bretão. Tu também recebeste essa herança, Fainne. Quer queiras, quer não, também és uma de nós. E estás errada no que diz respeito à arte. Liadan contou-me o que aconteceu com Sibeal no regresso de Glencarnagh. Usaste as tuas capacidades para praticar o bem. Estou certo que já o fizeste noutras ocasiões.

 

Senti que ia chorar.

 

Fiz muitas coisas más, tio. Parecia que as palavras me estavam a ser extraídas à força apesar dos meus esforços. Coisas terríveis que não lhe posso contar. Se a família soubesse, seria banida como o meu pai.

 

Ciarán nunca foi banido. A voz de Conor era calma, mas a sombra de uma dor antiga permanecia nela. Ele preferiu partir. Preferiu um rumo perigoso. Acredito foi em busca de Lady Oonagh.

 

Lady Oonagh?

 

Ele ergueu as sobrancelhas.

 

A mãe dele, a feiticeira.

 

É esse o nome dela? Eu sempre lhe chamei apenas avó.

 

Por vezes, dizemos coisas, mas as palavras saem, sabemos que nunca as devíamos ter dito. Mas é tarde de mais para voltar atrás. Vi a expressão de Conor mudar; vi a confiança serena desaparecer para dar lugar a uma rigidez pálida que era quase medo. Afastei o olhar, virando o rosto para as águas do lago, naquele dia cinzentas e escuras sob o pesado céu de Inverno.

 

Tu... balbuciou ele, tossindo levemente. Diz-me uma coisa, Fainne disse ele já mais calmo. A tua... a tua avó esteve sempre em Kerry enquanto tu lá viveste?

 

Achei que ele estava a escolher as palavras com o máximo cuidado. Quanto a mim, deixara que a conversa enveredasse por águas muito perigosas. Perdera totalmente o controlo. Era assim que os druidas agiam. Com a educação que tive, tinha obrigação de não me ter deixado enredar.

 

Não, tio. Ela esteve lá pouco tempo. Eu cresci sozinha com o meu pai, como já lhe tinha dito.

 

Se ele acreditava que a arte te conduziria ao mal, por que ta ensinou? Não tinha resposta para aquilo.

 

Vem disse ele. O tempo está a refrescar. Regressemos.

 

Sim, tio.

 

Encaminhãmo-nos para a fortaleza em silêncio. Fui assaltada por sentimentos contraditórios, um deles o medo da fúria da minha avó caso tivesse ouvido aquela troca de palavras. Mas, para além desse medo, sentia um enorme terror, o de que talvez Conor tivesse razão. Seria possível, então, eu não ser totalmente má e poder aspirar a algo diferente? Este pensamento era cruel. Certamente, não passava de uma esperança vã, a mesma esperança que o meu pai tivera e que lhe foi rudemente sonegada. Enquanto caminhávamos na direcção da porta principal, onde uns rapazes estavam atarefados a varrer a neve dos caminhos e umas raparigas bem agasalhadas com xailes e lenços penduravam grinaldas de verdura em redor da porta, lembrei-me daquela ocasião na feira. Eu não tive razão quando impedi aquele tipo de executar os seus truques maldosos; Não devia ter libertado os animais julgando que estava certa. Mas fizera-o. Usava o amuleto, mas fizera-o na mesma.

 

A ideia que Conor colocara na minha mente era tão aterradora que desejei, do fundo do meu coração, nunca a ter ouvido. Mas, uma vez alojada na minha mente, não a podia afastar. Apercebi-me de que a verdade se aproximava sorrateiramente de mim há já muito tempo, desde o momento em que enfiei o pequeno talismã da minha avó no estranho cordão feito de várias fibras. Havia qualquer coisa neste colar que funcionava contra a maldade do talismã. Algo de maravilhoso e belo. Talvez fosse o amor, ou a família; talvez ambos. Sentia-me feliz por a minha avó nunca ter conseguido dominar a arte de ler os pensamentos alheios. A arte que a minha tia Liadan possuía em abundância. Pois a ideia que me ia na mente nunca poderia ser vista pela minha avó.

 

Naquela noite, apaguei a lareira do meu quarto e sentei-me, gelada, à luz vacilante de uma pequena vela, enquanto as sombras dançavam nas paredes ao ritmo do bater do meu coração. Lá fora, nevava; o silêncio era profundo. Acreditara que não podia fazer senão o que a minha avó queria: levar a cabo uma missão terrível, de enormes proporções. Apesar de me parecer impossível, planeara fazê-la, pois estava ligada pelo medo e pela crença de que, mais cedo ou mais tarde, não poderia fazer outra coisa senão o que ela queria e seguir o rumo demoníaco ligado ao meu sangue amaldiçoado. Assustador, mas, ao mesmo tempo, fácil, porque era inevitável e estava fora do meu controlo.

 

Mas estava errada. O poder do amuleto distorcera-me a mente e enfraquecera-me a capacidade de raciocinar. Cegara-me a tudo, excepto ao que ela queria que eu visse. Através do talismã, a minha avó provocara o mal e fizera-me acreditar que fora eu a praticá-lo. Na verdade, era uma feiticeira formidável. Mas, talvez, não fosse assim tão formidável. Ela nunca me explicara por que razão não podia ela própria matar o Filho da Profecia e acabar, de uma vez por todas, com tudo. Tudo que dissera era que os acontecimentos deviam desenrolar-se de acordo com as profecias antigas. E, naquela noite, quando tirei o amuleto, ela precipitou-se para ver o que eu estava a fazer. Estava com medo de mim; medo do que eu pudesse fazer se escapasse ao seu controlo. Uma revelação importante, dissera o meu pai, e mais qualquer coisa acerca de encontrar o rumo certo para os meus dons. Muito bem, parecia-me que acabava de encontrar esse rumo, apesar de estremecer ao contemplá-lo. Poderia devolver a vida ao meu pai. Poderia mostrar-lhe que a nossa espécie podia, na verdade, aspirar à Luz. Poderia fazer com que àquela gente não fosse roubada a oportunidade de ganhar a batalha e salvar as Ilhas. Nunca poderia compensá-la pelo terrível mal que causara. O passado não podia ser apagado. Mas podia, de agora em diante, pisar, se tivesse coragem, um caminho diferente. Um caminho de medo e sacrifício; com o tempo, talvez um caminho de redenção. Lady Oonagh era forte. Mas eu tinha de ser ainda mais forte.

 

 

                                                 CAPíTULO ONZE

 

A minha mente começou a trabalhar muito depressa. A minha avó apareceria se pensasse que eu era muito lenta, disso tinha eu a certeza. Tinha de agir primeiro. Tinha de me antecipar à sua visita. Tinha de ser eu a chamá-la, apesar de a perspectiva de ela aparecer em Sevenwaters me arrepiasse. Tinha de assumir eu o controlo; demonstrar-lhe-ia os meus progressos. Não podia ter a mínima dúvida de que eu continuava a ser a sua boneca e decidida a fazer a sua vontade. Era uma hipótese perigosa; ninguém poderia saber a verdade. Graças à deusa, Darragh estava a salvo em Ceann Na Mara, suficientemente longe para que a minha avó não se lembrasse dele. Quanto ao meu pai, confiava nas minhas decisões e apesar de esta ser a maior da minha vida, aplicava-se a mesma regra. Ele educara-me de modo a fazer as coisas sem ajuda e eu honraria os seus ensinamentos.

 

Precisava de uma razão para chamar a minha avó; um relatório era capaz de ser do seu agrado. O plano que elaborara para ela incluía espiar para Eamonn, descobrindo as informações de que ele necessitava para destruir o seu velho inimigo, aquele a quem chamavam Chefe. Tinha de arranjar algumas notícias para lhe mostrar que não tinha estado inactiva. Como era que o sujeito se chamava? Bran? E não podia espiar se não me transformasse. Eram horas de exercitar a arte.

 

Óptimo disse uma vozinha estranha mesmo por trás de mim. Fiquei gelada ali onde estava, na semiescuridão, junto da lareira apagada. Por um momento, pensei... pensei mesmo... mas não, aquele piar suave não pertencia de todo à minha avó.

 

Achas? perguntei cautelosamente enquanto o meu coração regressava lentamente ao seu ritmo normal, e virei-me para observar a criatura-mocho empoleirada na minha janela com a sua capa de penas e pequenas botas vermelhas. Devia, realmente, ter estado muito absorvida nos meus pensamentos, pois não a ouvira chegar e mudar de forma.

 

Acho sim, Rapariga de Fogo. Vejo-o no teu rosto. Um olhar diferente. Portanto, o que vai ser? Um gato agressivo, talvez? Uma pulga? Poderias entrar em muitos sítios. Saberás muitas coisas esta noite, porque eles estão todos sentados a conversar por trás de portas fechadas. É melhor apressares-te.

 

Franzi o sobrolho.

 

Agora lês-me os pensamentos? perguntei-lhe, pensando se me arriscaria a confiar naquela pequena personagem que parecia saber tanta coisa.

 

Uma gargalhada parecida com um gorgolejar.

 

Nós não lemos os pensamentos. Limitei-me a esperar que tu descobrisses por ti própria, mais nada. Mas estamos em toda a parte, se bem que as pessoas não nos possam ver. Vemo-lo nos teus olhos. Levaste tempo, filha única de druida, a descobrir este quebra-cabeças.

 

Parecia não haver resposta possível para aquilo, salvo, talvez, outra pergunta.

 

Achas... achas que o meu pai tencionava...?

 

Terias de lhe perguntar. Mas, agora, toca a andar, o tempo passa. O que é que vai ser?

 

Estremeci.

 

Tenho que entrar sem ninguém me ver na sala onde eles estão, entrar por uma porta fechada, ficar lá o tempo que for preciso invisível e regressar para aqui sã e salva. Não pode ser um gato, isso é certo. Um animal nocturno, bastante pequeno; um que possa entrar por uma greta.

 

Uma barata? sugeriu a criatura, prestável.

 

Não, estava a pensar numa traça disse eu com a voz a tremer, excitada.

 

Boa ideia. Anda lá, então.

 

Lembrei-me, tardiamente, que um mocho também era um animal nocturno e recordei o acampamento dos nómadas e um certo predador miniatura, picando sobre a presa com as garras abertas e a boca escancarada.

 

Espero que não tenhas vindo à procura de comida disse eu franzindo o sobrolho.

 

Já comi, obrigado respondeu polidamente a criatura. Anda lá, despacha-te. Podes fazê-lo, ou não?

 

Nunca tentei antes.

 

Nós sabemos. Por isso é que eu estou aqui. Para te vigiar. É sempre preciso, a primeira vez. É uma espécie de segunda natureza para a nossa espécie. Ficas avisada. Senti-lo-ás depois. Custa bastante. Certifica-te de que regressas para aqui antes de desfazeres o feitiço.

 

Primeiro passo. Era preciso criar uma imagem na mente, uma espécie de mapa do que tinha de ser feito, suficientemente simples para que até a mais ínfima das criaturas o pudesse compreender. Fechei os olhos e obriguei-me a visualizar o caminho que teria de seguir: sair do meu quarto por baixo da porta, por onde entrava uma corrente de ar gelada e seguir ao longo do corredor na escuridão até ao local onde eles estavam reunidos, uma pequena sala no topo das escadas. Retive na mente os contornos da porta, com réstias de luz passando por baixo e por cima. Teria de passar pela fenda no alto da porta e depois segurar-me a uma parede, ou ao tecto, e tentar ouvir algo que pudesse convencer a minha avó de que o meu plano estava a avançar. Em seguida, revi mentalmente o regresso através da minúscula ranhura, voando rapidamente ao longo do corredor, pousando na minha porta e passando por baixo. Tinha de fixar o plano antes de começar, assim como o feitiço para regressar à minha forma. Tinha de fixar essas duas coisas, assim como a percepção de mim própria, ou ficaria perdida para sempre na outra forma. O meu coração batia com toda a força, com a ansiedade. Tinha de fazer aquilo. Tinha de fazer aquilo.

 

Agora disse a criatura-mocho.

 

Segundo passo. Pensei no animal, na traça. Senti a forma, a leveza e a alteração de equilíbrio, de modo que, em vez do plano acima e abaixo, chão e tecto, havia simplesmente diferentes espécies de planos e diferentes espécies de contacto. Senti a força das asas e o estranho aumento da luz. Senti a minha consciência diminuir, alterar-se e concentrar-se em algo muito mais simples e directo. Murmurei as palavras na mente e transformei-me.

 

Por um momento senti apenas um pânico cego. Não conseguia despegar as patas das asas, os olhos não funcionavam como deve ser e andei em círculos no chão, tropeçando, caindo e batendo as asas à toa.

 

Porta disse uma voz e eu assustei-me, mas senti, algures, que havia um plano e compreendi que devia segui-lo. Voei erraticamente na direcção da minúscula fenda de luz e passei por baixo da porta. Luz. Calor. Era o que eu queria. Queria luz e lá estava ela, por cima de mim, não muito longe. Voei, agora mais ousadamente, atraída pelo seu brilho, sabendo que tinha de voar na sua direcção, que tinha de me aproximar...

 

Não, Rapariga de Fogo. Isso não. Lembra-te de quem és. Lembra-te do plano.

 

A voz. Tinha de prestar atenção à voz. Mas a luz estava ali. A luz chamava-me com tanta força...

 

Queimas-te se voares para a lanterna. Segue o plano. Não te percas. Algures, o sentido do ego, lá muito no fundo, o treino do meu pai. Eu era Fainne, filha de Ciarán. Aquela forma, como traça, era apenas uma concha e eu tinha de ignorar o modo como ela me empurrava na direcção daquele brilho e daquele calor. As minhas frágeis asas transportaram-me ao longo do corredor, por cima da tentadora chama da lanterna. Não conseguia ver o meu estranho companheiro; talvez a criatura tivesse ficado fechada no meu quarto. Mas a sua voz continuava a guiar-me.

 

Muito bem, Rapariga de Fogo. Não percas a consciência. Não te entregues a essa outra mente, ou não passarás de parte da próxima refeição de um mocho. E agora, entra.

 

Chegara à entrada da pequena sala do conselho. Havia apenas o espaço suficiente para eu rastejar por entre a porta de carvalho e a soleira. No lado de dentro havia luz; duas lanternas e algumas velas. Aquelas luzes chamaram-me do mesmo modo que um ribeiro de água límpida chama um homem sedento após uma longa jornada. Com um esforço de vontade, agarrei-me à parede junto da porta. A minha visão era estranha: não havia cor, apenas luz e escuridão e podia ver em redor, não em frente. Não conseguia interpretar o que os meus olhos novos me mostravam; para o conseguir, precisava de aprender a ver de novo. Concentrei-me na audição e, com um esforço, consegui separar as vozes de Conor, de Sean, de Liadan e, para minha surpresa, de Johnny. Ocorreu-me que devia a Johnny o facto de a conversa decorrer em voz alta. Não fora a sua presença e os restantes teriam usado a voz da mente, conduzindo a conversa em silêncio total. Só um vidente seria capaz de compreender o que se passava naquele conselho.

 

Era difícil ouvir e mais difícil ainda compreender. Uma parte de mim só ouvia sons, sons de perigo e outra parte só via e sentia escuridão e luz: a escuridão de predadores invisíveis escondidos nas sombras e o apelo forte, maravilhoso, trémulo, da luz em cima da mesa. As palavras, o plano, Não me podia perder. O plano era escutar, porta, voar, porta, segurança. Depois, o feitiço do regresso. Primeiro, escutar.

 

O que quer dizer que não posso adivinhar dizia Conor solenemente, como se tivesse chegado ao fim de uma narrativa. Tremo só de pensar nas influências que terá sofrido. A questão é, que fazemos agora?

 

Seguiu-se um breve silêncio.

 

Está a dizer-nos o tom de Sean era cuidadoso que acredita que Fainne veio para Sevenwaters como emissária de Lady Oonagh? Isso parece-me fantasista, não consigo acreditar. Nunca concordei com as suas dúvidas acerca dela. Ela é boa rapariga. Aisling fala muito bem dela. Teve, apenas, uma educação estranha e é um pouco tímida e desajeitada, mas mais nada.

 

Estás a esquecer-te da magia. A voz de Liadan era fria. Nós vimos. Ela é forte; forte e capaz, tal como o pai. E é típico de Lady Oonagh, não é, tio, procurar fazer-nos mal usando como arma uma criança que desejamos ter connosco há muito tempo, que desejamos amar? A filha de Niamh. É uma crueldade, na verdade, e tem o selo indiscutível dessa feiticeira. Não disseste que Fainne sabe conjurar o fogo com os dedos? Isso não te diz nada?

 

Estás a sugerir... mas isso é absurdo, Liadan! Sean murmurou em tom chocado. Eu aproximei-me para ouvir melhor, passando da parede para o tecto e ficando de cabeça para baixo na sombra. Em baixo, um dos grandes cães de Sean torceu as orelhas e começou a rosnar baixinho, sinistramente. Pressenti o movimento precipitado de outras criaturas pequenas junto de mim; senti um súbito terror sem perceber a causa.

 

Isso é impossível, mãe. Johnny falou com absoluta confiança. Eu vi Fainne com as crianças. Ela adora-as. Devia ouvi-la a contar histórias, ou vê-la à cabeceira de Maeve. Não há nela qualquer maldade: na verdade, o que há nela é uma enorme simplicidade, que torna essa ideia impensável.

 

Liadan suspirou.

 

Tu não sabes. Mas Conor pode dizer-te que Lady Oonagh era assim, não pode?

 

Não exactamente disse Conor lentamente. Nós nunca confiámos na feiticeira, nem no primeiro momento, quando o meu pai a trouxe para Sevenwaters como sua noiva. Mas ela tinha um certo encanto; uma espécie de Encantamento, que usava para convencer as pessoas de que era pura e bem-intencionada; para as apanhar na armadilha. O meu pai foi enfeitiçado assim, assim como o meu irmão Diarmid. As feiticeiras têm essa capacidade. Mas não resulta com pessoas como eu, ou como Liadan. Mas contigo, filho, ou com Sean, é possível.

 

Não pode ser disse Johnny, nada convencido. Eu posso não ser vidente, mas sei ler o carácter no rosto de um homem, ou de uma mulher. Fainne está confusa, assustada; a verdade é essa. Por baixo, não passa de uma criança inocente. De que é que têm medo?

 

Eu digo-te disse a sua mãe numa voz estranhamente constrangida. Há muito tempo, foi-me dada uma oportunidade. Os Fair Folk vieram ter comigo e ordenaram-me que ficasse aqui na floresta para que o meu filho ficasse ao abrigo da influência da feiticeira. Conor pode confirmá-lo; ele deu-me o mesmo conselho. Chegaram a dizer que a profecia não se cumpriria se eu não fizesse o que eles exigiam.

 

Mas a mãe desobedeceu disse Johnny. Porquê?

 

Na ocasião, pareceu-me não ter outra hipótese. Ou te mantinha a salvo, ou punha em risco o teu futuro e o futuro de Sevenwaters, da floresta e das Ilhas. Muitas pessoas não compreenderam o que fiz. E havia Bran. Ele não podia ficar aqui comigo, na floresta. Para proteger o meu filho, teria de afastar o homem que faz parte de mim; negar-lhe o próprio filho. Não podia fazer isso. Desafiei as ordens deles e virei costas a Sevenwaters. Fui contra os conselhos de Conor. E foi por causa da minha intervenção que Niamh escapou ao marido e fugiu com Ciarán. Se não fosse isso, Fainne não existiria. Eles avisaram-me. Os Fair Folk disseram-me que... que... não consigo dizê-lo por palavras. Esperava nunca ter de falar disto, Johnny. Nunca contei nada disto ao teu pai.

 

Está a dizer que a presença de Fainne é, de algum modo, uma ameaça para mim? Para a minha segurança? Johnny estava estupefacto. Como é isso possível, mãe?

 

Lady Oonagh tentou, em tempos, dominar Sevenwaters disse Sean lentamente. Então, foi derrotada pela força da minha mãe; pela força humana. Pode ser que tenha tentado de novo através de Ciarán; e agora tenta mais uma vez através da filha dele. A minha mãe acredita nisso. Quando Niamh e Ciarán puseram os olhos um no outro pela primeira vez nesta casa, ela viu a mão de Lady Oonagh estender-se para nós uma vez mais. Ela acredita que aquela mulher vai continuar a estender as garras, geração após geração, até a profecia se cumprir e tudo se componha. É capaz de ser verdade. Se Lady Oonagh continua viva, deve continuar a mover-se por entre nós, tentando contrariar-nos, porque a nossa campanha, no próximo Verão, pode muito bem ter sucesso. Mas se não tivermos o Filho da Profecia, estamos condenados.

 

A rapariga anda perturbada disse Conor. Ela tem muito do pai, da sua inteligência e da sua sensibilidade. Se não fosse esta loucura por causa de Eamonn e da pressão que temos sobre os ombros, gostaria de lhe ganhar a confiança e convencê-la de que os seus poderes podem ser para o bem apesar do que lhe foi ensinado. Não me parece que Fainne esteja inclinada para o mal.

 

Desculpe-me, tio, mas penso que os seus sentimentos o fazem esquecer a verdade disse Liadan com firmeza. O tio sentiu muito a perda de Ciarán; nunca mais encontrou outro com os mesmos talentos e a irmandade está a degenerar. Não confie demasiado, não veja em Fainne unicamente o que quer ver.

 

A resposta de Conor foi imediata.

 

Ela salvou Sibeal. Ela é filha da tua irmã e só tem dezasseis anos. Que queres que eu faça?

 

O bom senso diz-me que devemos mandá-la para casa disse Liadan firmemente. Que Ciarán se responsabilize por ela, já que preferiu educá-la no conhecimento das artes dos feiticeiros e a expôs à influência da mãe dele.

 

Creio que não podemos fazer isso disse Sean com autoridade. A minha sobrinha está assustada; vi isso quando lhe disse que devia pedir autorização a Ciarán para casar com Eamonn.

 

Tu o quê? A voz da sua irmã soou chocada.

 

A ideia é repugnante, reconheço; mas a experiência ensinou-me umas coisas. Não lhe podia recusar o pedido sem uma explicação. Ela recusou mandar uma mensagem ao pai. A rapariga anda aterrorizada por uma razão qualquer; aterrorizada pela perspectiva de entrar em contacto com ele.

 

Mas não está com medo dele acrescentou Conor calmamente.

 

Ela fala dele com grande lealdade e respeito.

 

Eu não a mando para Kerry disse Sean num tom que indicava que a decisão estava tomada. Contra a vontade dela, não. Não sabemos quais são as forças que estão em campo. A mim, custa-me acreditar que Fainne queira fazer-nos mal, mas confio no teu julgamento, irmã. Não quero pôr em risco a nossa campanha, ou a nossa família.

 

Liadan ficou silenciosa.

 

Só há uma solução, então. Johnny falou com grande confiança.

 

Levamo-la connosco para o Norte. Pomos Eamonn polidamente de fora; dizemos que a sua pretensa noiva quer esperar pela aprovação do pai e que Ciarán não pode ser contactado neste momento. Entretanto, afastamos Fainne e tudo fica bem. Não lhe faltarão pretendentes entusiastas em Inis Eala e todos eles mais novos e mais prometedores do que Eamonn de Glencarnagh, apesar de menos dotados de bens materiais. Ela esquece-o depressa.

 

Não ouviste nada do que eu disse disse Liadan com ar cansado.

 

Eu ouço sempre, mãe disse Johnny com um sorriso na voz. Até faço uma aposta consigo, se quiser. Aposto que sou suficientemente grande e forte para ficar fora de perigo, com feiticeira ou sem feiticeira. Que tal? Além disso, se acha que Fainne está confusa, ou assustada, há algum lugar melhor do que Inis Eala para ela encontrar equilíbrio? Se ela quer respostas, é lá que as encontra, certamente.

 

LadyOonagh tentou matar-te, uma vez.

 

E eu estou aqui, não estou? disse Johnny alegremente. Enquanto escutava com toda a concentração possível, esquecera-me, por momentos, que era ao mesmo tempo uma traça e uma rapariga. Aproximei-me, mas um dos pés ficou preso em algo, tentei soltá-lo e as pernas ficaram-me, subitamente, enredadas. Bati as asas, lutando por me libertar, mas a teia pegajosa apertou-se em redor das asas palpitantes e das pernas frágeis sem que eu pudesse quebrá-la. Nas trevas, por trás de mim, pressenti uma presença, esfomeada, à espera. A parte de mim que continuava a ser a Fainne, disse-me: teia, aranha. Liberta-te, depressa. A parte de mim que continuava a ser uma traça estava paralisada por um terror cego que me mantinha presa, ao mesmo tempo que batia as asas num esforço frenético, fútil. A presença aproximou-se, movendo-se como uma bailarina nos delicados fios.

 

Depressa! disse a voz do meu guia coberto de penas, enquanto eu sentia a morte nas minhas costas. Um salto rápido, curto. Depressa!

 

Puxei para um lado, usando todo o peso do meu corpo, leve como era, batendo as asas o mais que podia, ao mesmo tempo que a aranha fazia um súbito ataque na minha direcção e, por fim, consegui libertar-me descendo em espiral, descontrolada, ainda com fragmentos pegajosos de teia agarrados às pernas. O meu voo disparatado levou-me até junto da lanterna; quente. Caí na direcção da mesa e aterrei de costas; senti de novo a morte muito perto. Os cães começaram a ladrar. Uma grande mão pegou em mim; e uma outra aproximou-se, aprisionando-me. Lutei e bati as asas, até que consegui pôr-me de pé. E esperei pelo esmagamento final.

 

Pobre coisinha disse Johnny. Não sabe para onde há-de ir. Senti um movimento, as mãos abriram-se e eu rastejei para longe do calor da pele humana para as pedras junto da soleira da porta, nas sombras. Tendo-me libertado, o meu primo voltou para a mesa e com a minha estranha visão de insecto pensei vê-lo pousar uma mão tranquilizadora no ombro da sua mãe. Está combinado, portanto disse ele enquanto eu me escapulia pela fenda entre a porta e a soleira e fugia pelo corredor, por cima da aura de luz da lanterna, até alcançar a minha própria porta. Rapidamente para baixo e sob a porta. Salva. Descansar.

 

E agora o feitiço. O meu companheiro do Outro Mundo estava empoleirado na janela; senti as pequenas botas vermelhas não muito longe de mim e a ameaça dos seus duros tacões. Mas não queria mexer-me. Estava escuro; podia ficar ali quieta.

 

O feitiço. Ainda não acabou. Diz as palavras, Rapariga de Fogo. Debilmente, recomecei a pensar: o feitiço, o plano. Porta, voar, porta.

 

Escutar. Porta, voar, porta, salva. O feitiço. Algures, bem lá no fundo, estavam as palavras do contrafeitiço e eu chamei-as no silêncio da minha mente de traça, palavras que pareciam não ter qualquer significado, apenas poder. À minha volta, o quarto oscilava e mudava de forma; começaram a aparecer umas cores difusas, o dourado da lanterna, o castanho-avermelhado de um vestido estendido em cima da cama e o verde e carmesim de uma grinalda sagrada que Clodagh atara por cima da minha janela para dar as boas-vindas aos espíritos de Meán Geimhrídh, O quarto desvaneceu-se e iluminou-se, desvaneceu-se e iluminou-se; a figura da criatura-mocho flutuou em frente dos meus olhos. Olhei para baixo e vi que era eu de novo. Olhei para cima e à minha volta a vela, a janela e a criatura-mocho mexeram-se e oscilaram ao mesmo tempo. Em seguida caí, e ficou tudo escuro.

 

Nunca discuti com o teu pai acerca de um ponto de estratégia e não o vou fazer contigo. Os homens contam contigo para que tomes as decisões certas, e eu também.

 

Aquela voz entrou na minha consciência enquanto vinha lentamente a mim. Mantive os olhos fechados. Estava na cama, aconchegada por baixo dos cobertores e ouvia o estralejar do fogo na lareira. Um cheiro delicioso; uma bebida de ginja e cravo-da-índia. Tinha dores no corpo todo. Pensei que era melhor adormecer de novo...

 

Além disso desta vez era a voz de Johnny lá no fundo, a mãe quer que ela vá. Vejo-o por trás dessa atitude austera. Tem de concordar que Fainne é uma rapariga encantadora, filha de feiticeiro ou não. Não vê como ela pode brilhar, como uma pequena lâmpada, na nossa austera casa de homens?

 

A mãe dela, certamente, atraiu-os como a chama atrai as traças disse Liadan retorcidamente. Mas, na verdade, por vezes penso que estou outra vez na presença de Niamh, teimosa, espinhosa e ao mesmo tempo uma rapariga fácil de amar. Leste bem os meus pensamentos, filho. Gosto muito dos meus quatro filhos; mas sempre desejei uma filha. Talvez seja verdade. Talvez Fainne precise de protecção. Mas também é um risco terrível, sei isso melhor do que ninguém, salvo, talvez, Ciarán.

 

Confie em mim, mãe. É melhor assim.

 

Suponho que não vale a pena falar-te em perigo, como também nunca valeu a pena com Bran. O conceito de autoprotecção é desconhecido de vocês os dois. Esperava que ele se tornasse um pouco mais cuidadoso, como qualquer homem perto dos quarenta com filhos crescidos. Mas continua na frente de tudo, arriscando a pele como se tivesse tantas vidas como um gato.

 

E não tem? zombou Johnny.

 

Ele não tem de ser assim. Há outros, homens mais novos, que só estão à espera de uma oportunidade. Sinto... sinto que é perigoso, Johnny. Tenho medo de vos perder aos dois.

 

Conhece o Chefe. Ele calcula os riscos. Isto foi planeado até ao último pormenor e, apesar da idade, ele é um dos que nada melhor e conhece o terreno e o local de atracagem melhor do que ninguém. Seleccionaremos os outros homens. É verdade, há perigo, mas também há perigo nos ventos e nas marés. E veja se não há homens no mar. Não podemos afundar a esquadra inimiga pela calada sem nos expormos ao perigo.

 

Vocês serão tão poucos e longe de qualquer ajuda. Se isto se sabe, vocês ficarão tão vulneráveis como uma galinha no ninho.

 

Pensa que não contamos com isso? Quanto à espionagem, quem acreditaria que até o Homem Pintado seria louco a ponto de tentar semelhante operação? Ninguém contorna a Needle pelo lado leste. Quanto a chegar a terra a nado, nunca ninguém o tentou antes, sendo as correntes o que são. Tais rumores seriam instantaneamente associados a fantasia.

 

As tuas palavras fazem pouco para me tranquilizar disse Liadan. Lembro sempre a mim própria que foi minha a escolha de te educar à imagem do teu pai; um guerreiro e um estratega, que não sabe o que é o medo. As coisas teriam sido muito diferentes se tivesses sido educado como letrado e místico na floresta.

 

Lamenta essa escolha, mãe?

 

Até àquele momento, quando Conor nos disse que Lady Oonagh continua viva e nos ameaça, não. Tive muitos anos de felicidade; não sei se Bran e eu teríamos podido viver as nossas vidas um sem o outro. Sinto-me feliz com os meus filhos, a excelente comunidade de Harrowfield e os amigos de Inis Eala. Sinto-me orgulhosa de ter sido capaz de gerar herdeiros, não só para os domínios do meu pai, mas também para Sevenwaters. Mas há coisas que lamento; a dor e o sofrimento por Niamh mantêm-se no meu coração, assim como a indiferença de Ciarán pela sua família e o seu chamamento. É por essa razão que gostaria de ter a filha deles comigo, como se fosse minha. Mas agora... uma vez, há muito tempo, disseram-me: Tu queres mais do que o que podes ter. Disseram-me que havia sangue e lágrimas na minha escolha. Talvez tenha chegado a hora de eu pagar por esses anos de felicidade. Pergunta-me de novo, depois do Verão, se lamento alguma coisa.

 

Tem saudades dele disse Johnny docemente.

 

Mais do que consigo pôr em palavras. A minha casa é aqui; mas o meu coração está onde ele estiver.

 

Partiremos assim que Fainne possa viajar disse Johnny. Então, ouvi baterem à porta, o ranger desta a abrir-se e a voz de Clodagh. Seguiu-se uma conversação sobre se eu tinha desmaios antes e por que razão estivera doente em casa do tio Eamonn durante um dia inteiro e não vira o pónei branco. Por fim, pareceu-me seguro abrir os olhos e dar-lhes a conhecer que estava acordada.

 

Estivera inconsciente durante um dia e uma noite inteiros, disseram-me, desde que Sibeal me encontrara no chão do meu quarto, de manhã cedo, até ao dia seguinte. Talvez mais tempo ainda, porque eu estava gelada quando a minha prima me descobriu e deu o alarme, se bem que estivesse tapada com um cobertor e tivesse uma almofada sob a cabeça, o que era estranho. Dormira durante as celebrações do solstício de Inverno, que Conor levara a cabo sozinho. Perdera a grande fogueira, disse-me Eilis, a cidra e os bolos. Na verdade, estava ainda tão fraca que quase não conseguia virar-me na cama. Tive uma série de pequenas visitantes e contaram-me muitas histórias. Johnny apareceu e deu-me a notícia de que iria para norte a cavalo com ele e a mãe, para conhecer a outra parte da minha família. Sibeal apareceu sozinha com Riona. Os meus protestos foram indeferidos.

 

Já expliquei tudo a Maeve disse-me a criança solenemente, como se fosse uma mulher mais velha e ela concorda. Nós vamos fazer-lhe uma boneca nova. A mãe vai-nos ensinar. Tu precisas de Riona. Tens de a levar quando te fores embora.

 

O esgotamento continuou. Estava espantada como o esforço da transformação me exaurira, se bem que tivesse sido avisada. O corpo tremia-me e recusava-se a qualquer esforço; a mente ainda mantinha o terror do insecto indefeso, algures no interior da consciência humana. Na próxima vez, pensei, escolheria algo maior, mais forte e mais capaz de olhar por si próprio. Passaram-se três dias antes que estivesse suficientemente recuperada para continuar com o meu plano.

 

Sentei-me à lareira naquela terceira noite. Pusera de parte tudo o que pudesse ser perigoso. Riona estava no fundo da arca, junto do xaile de Darragh e do minúsculo anel de fibras entrançadas. Se tivesse forças, talvez tivesse atirado fora aquelas coisas preciosas; talvez as tivesse destruído, não fossem atrair o olhar da minha avó e dar-lhe alguma ideia. Mas, filha de feiticeiro ou não, não estava suficientemente forte.

 

Quando tudo estava arrumado em segurança e a porta fechada à chave, fechei o amuleto na minha mão e concentrei-me nas chamas. Um distorcer mental tem um objectivo duplo. Liga quem está a usá-lo a quem o outorgou; prende um à vontade do outro. É também uma espécie de condutor, um olho, que se abre entre os dois quando quer. Fora assim, pensava eu, que a minha avó fora capaz de me ver de vez em quando para saber o que eu estava a fazer apesar de estar longe. Ela dissera que não me podia ver o tempo todo, apenas de vez em quando e por breves períodos. Tais feitiços possuem as suas próprias subtilezas, os seus próprios truques. A ligação sempre me parecera forte quando eu tocava no amuleto, ou o segurava. Se o fizesse agora e a invocasse, ou convocasse, talvez ela viesse. Respirei fundo e abri o olho do espírito. Disse as velhas palavras e chamei-a.

 

Ela apareceu num instante; não em carne e osso, como no nosso último encontro memorável, mas ali nas brasas da lareira, um par de brilhantes olhos escuros e uma voz poderosa, exigente.

 

Ah! Não estava à espera que me chamasses assim. Estou morta por ouvir as novidades, pequena. Conta, conta!

 

Saí-me bem, avó. Não consegui evitar o tremor na voz.

 

Sou toda ouvidos. Continua.

 

O meu plano está em prática, como lhe disse que estaria. O homem chamado Eamonn fez-me uma oferta, formalmente, em troca das informações que eu lhe possa dar. Quer destruir um outro, que faz parte da aliança. Transformei-me para obter o que ele queria. Se ele for em frente, certamente provocará o insucesso da campanha. Eles não podem vencer sem este homem a quem chamam Chefe.

 

Tu fizeste uma transformação completa? Com sucesso?

 

Sim, avó.

 

Sem ajuda?

 

Sim, avó. Olhei de frente para o fogo e mantive uma expressão sincera.

 

Estou a ver. E que informação é essa?

 

De certo modo, sabia que ela me poria à prova. Não bastava fabricar uma história. No entanto, senti relutância em lha dizer; nas suas mãos, uma tal informação podia ser muito perigosa.

 

S... significaria muito pouco para si, avó; trata-se simplesmente de algo que pode dar a Eamonn a oportunidade de fazer o que deseja. Depois de eu lhe dizer, fará o que entender.

 

Os olhos da minha avó semicerraram-se alarmantemente.

 

Fainne disse ela muito suavemente tu preocupas-me, pequena. Pensei que soubesses qual é o resultado se tentares desobedecer-me. Mas parece que não. Queres que te mostre outra vez? O fogo pareceu ficar mais brilhante em redor das suas feições, uma chama dourada e vermelha terrível, com excepção das brasas escuras que eram os seus olhos. Certamente que não adivinhara a verdade? Certamente não sabia que eu tencionava desafiá-la?

 

Eu... eu não queria... gaguejei.

 

Diz-me, Fainne! Qual foi a informação que descobriste? Não estás a brincar comigo, pois não? As brincadeiras fazem-me pensar em crianças. As crianças adoram brincar, não adoram? Trepar, balançar, girar. Tudo coisas arriscadas, especialmente para as mais pequenas. E o teu tio tem muitas filhas; demasiadas, na realidade.

 

Eu tremia como varas verdes. Punha-me furiosa o facto de ela ter o poder de me manipular; o seu desprezo pelas crianças aterrorizava-me. Parecia que não podia fazer outra coisa senão dizer-lhe. Senti o amuleto aquecer contra o meu peito, como se tivesse algo da sua ira.

 

Tem a ver com nadar disse eu, tentando dar-lhe o menor número de detalhes possível. Um pequeno grupo de homens. E é perigoso.

 

Mais ordenou a minha avó.

 

Eles vão nadar de uma ilha para outra para afundar os navios do inimigo. Durante esse empreendimento, o homem que Eamonn despreza estará em grande risco. Tenciono dizer isso a Eamonn; deixar que ele agarre a oportunidade.

 

Hum. Não é grande coisa. E se não der resultado?

 

Dará, avó. E há mais. Vou para norte com a minha tia Liadan, para Inis Eala. Lá, estarei perto do centro da campanha; perto dos seus segredos. Estarei no local ideal para continuar a sua missão.

 

Estou a ver.

 

Não se sente contente com tudo o que fiz, avó?

 

Há más influências naquele lugar. É antigo e cheio de mistérios. O teu pai sentir-se-ia em casa, sem dúvida. Vê lá se não acontece o mesmo contigo. Lembra-te, os únicos bons conselhos são os meus. E não tentes tirar o amuleto. Precisas dele, porque estes tempos vão ser muito difíceis para ti. Se o tirares, pode ser o teu fim.

 

Compreendo, avó disse eu em tom suficientemente doce. Na verdade, compreendia demasiado bem, porque já acontecera antes, no dia em que Darragh apareceu em Glencarnagh. Tira-o, ela saberá imediatamente e pintará a manta, obrigando-me a fazer a sua vontade com todas as armas que possui. Ela precisava de mim. Não podia fazer aquilo sem mim, isso era claro. Se bem que desejasse tirar aquele talismã sinistro, tinha de o usar até ao fim; até ao momento do conflito final. Tinha de usar o seu feitiço até ao instante em que ela soubesse, finalmente, que eu não era nenhuma ferramenta para seu uso, antes uma adversária. O que aconteceria então, não sabia, mas sabia, lá no fundo, que tinha de acontecer tudo até ao fim, como tinham dito os Anciãos; como ela própria dissera: o momento precede o acontecimento...

 

E esse Eamonn? perguntou subitamente a minha avó. Como é que lhe vais dar a informação se ele está num lugar e tu noutro?

 

Não levara muito tempo para descobrir a fragilidade da minha estratégia. Tentei não mostrar o meu receio.

 

Hei-de arranjar uma maneira disse-lhe com um tom que eu esperava ser de confiança. Ele vai fazer parte da campanha final; há-de haver uma altura em que vão estar todos reunidos. Inis Eala é a chave de tudo, avó. É lá que eu devo estar.

 

Pareces diferente, pequena. Algo mudou. Não te esqueças. Não te esqueças do que te mostrei.

 

Estremeci perante a suavidade ameaçadora da sua voz.

 

Não me esqueci, avó. E mudei. Agora que sei... agora que senti a satisfação de fazer com que um homem me deseje, agora que experimentei o poder da transformação, começo a compreender. Começo a perceber por que razão age como age; começo a compreender que ser feiticeira tem as suas recompensas.

 

Pode ser fungou ela, mas percebi no tom da sua voz que estava satisfeita. Acreditara em mim, portanto. Ainda bem que não estava presente de corpo e alma, ou teria farejado o meu medo. Era perigoso, o meu jogo com ela.

 

E se não der resultado? perguntou ela. Sabes o que deves fazer?

 

Vai resultar. Se não, arranjo outra maneira.

 

Não é preciso, Fainne. Eu digo-te. É óbvio. Mas, agora, responde-me a uma coisa. Ele está aí, o rapaz, aquele a quem chamam o Filho da Profecia? Já o viste?

 

Já, avó disse eu cautelosamente, não gostando do tom da sua voz.

 

Lembra-te disse ela no fim, a única coisa que interessa é ele. Ele é a única peça de real valor neste jogo. O resto, o druida, o guerreiro, o chefe de guerra, a dama, estarão todos a seu lado, darão tudo por ele e morrerão por ele se necessário, para conseguirem o objectivo final. Ele está na profecia e todos contam com isso. A sua confiança vem daí, dele. No fim, tudo o que é preciso é tirar o Filho da Profecia e tudo entrará em colapso. Espera até ao último momento e faz com que ele falhe. Se não tiveres, outra vez, estômago para o matar, há outras maneiras. E tu sabes quais são. É fácil arranjar alguém que faça o trabalho sujo por ti. Como é ele? Espero que não te apaixones por ele, estás a ouvir?

 

Não, avó. Não sou assim tão estúpida.

 

Hum. Não sei se será verdade. Tu és muito mole com essas crianças. Suponho que é bonito; e tu és filha da tua mãe, no fim de contas.

 

Acredite disse eu com pouca firmeza não me atreveria a mentir-lhe.

 

Muito sensato, Fainne. Mas acho que gostaria de uma pequena demonstração de lealdade. Vamos fazer o seguinte. Vamos pôr esse jovem guerreiro à experiência, assim como tu. Veremos se é assim tão forte; veremos quanta dor é capaz de suportar. Será útil, mais tarde. Essa viagem para o Norte representa a oportunidade ideal. Não precisas de fazer um feitiço, neta; guarda o teu poder para o fim, porque nessa altura terás de estar no teu melhor. Eu farei o necessário. Não vou matar o sujeito, esse é o teu trabalho e virá mais tarde. Vou só brincar um bocadinho com ele.

 

Senti um arrepio pela espinha acima; era-me difícil para os seus olhos rodeados de chamas e manter o rosto calmo.

 

Não compreendo disse eu. Qual é a finalidade?

 

Já te disse, Fainne. É um teste. Um teste fácil para ti, porque não precisas de fazer seja o que for. Vais simplesmente observá-lo. Não é pedir muito.

 

Fiquei em silêncio quando percebi o significado das suas palavras.

 

Compreendo murmurei. Que tipo de feitiço tenciona usar? A minha avó cacarejou de divertimento.

 

Precisas de me perguntar? Tu, que desfiguras crianças? Ora vamos, onde está a tua imaginação? Que usarias tu?

 

Aquilo era, na verdade, um teste. Mantive a minha expressão impassível enquanto o meu estômago se retorcia de repugnância.

 

Teria de ser subtil disse-lhe. A minha tia Liadan é desconfiada. Se tenciona inverter o feitiço mais tarde, terá de ser algo invisível.

 

Noites de terror, talvez disse a minha avó encorajadoramente.

 

Podia enlouquecer o tipo com visitações de morte e desastre.

 

Recordei a firmeza nos olhos cinzentos de Johnny.

 

Não penso que isso dê resultado disse-lhe.

 

Então? Ela estava a ficar impaciente. O que é que há-de ser? Eu sabia a resposta, se bem que não lhe quisesse dizer qual era. Pelo menos, aquilo que tinha na ideia era facilmente reversível. E para manter a confiança dela em mim, tinha de continuar a brincar.

 

Uma dor de barriga disse eu que até pode ser natural, algo que comece como um distúrbio pequeno e aumente de intensidade. Que pretende de Johnny? Subserviência? O reconhecimento da sua fraqueza? Que espera provar?

 

Os seus lábios arquearam-se, mostrando os dentes nitidamente pontiagudos.

 

Quanto tempo consegue aguentar disse ela. Mas, mais importante, durante quanto tempo és capaz de assistir sem o ajudar. Se forem ambos fortes, a conclusão final será muito mais satisfatória, Fainne. Muito mais. Na verdade, mal posso esperar para ver. Muito bem, seja uma dor de barriga; e tu perceberás o que se passa, já que te fiz, em tempos, uma demonstração. Pequenos dentes roendo a carne, uma dor que irrita os nervos e faz tremer os tendões, uma agonia que faz com que um homem ache que a morte é uma bênção. E lembra-te, não penses em fazer seja o que for, minha querida; limita-te a ver. Mais nada. Acenei com a cabeça, tentando não tremer.

 

Tu não me verás disse a minha avó. Mas eu ver-te-ei, Fainne. Trata de agir de acordo com as minhas instruções.

 

Sim, avó disse eu.

 

Não te preocupes continuou ela eu deixo que o tipo recupere a tempo. Quero que esteja bem para tomar o seu lugar na batalha afinal. Quero que esta gente saboreie o gosto do sucesso até ao último momento. Então, tiramos-lhes a vitória, mas só então. Os humanos e os Fair Folk afundar-se-ão juntos, mesmo diante dos nossos olhos. Que momento! Provavelmente, acrescentarei uns pequenos toques da minha lavra. Não serei capaz de resistir.

 

Farei como diz disse eu. E o meu plano com Eamonn vai dar resultado, prometo. Mas vou estar muito tempo longe. Provavelmente, só terá notícias minhas no fim.

 

Eu saberei onde estás e o que estás a fazer disse Lady Oonagh.

 

Eu sei sempre.

 

Nem sempre, pensei.

 

Então, adeus disse eu.

 

Adeus, pequena. Tenho muita esperança em ti. Não me desapontes. Não esqueças o teu pai e esse outro que nunca está longe dos teus pensamentos.

 

Não, avó. Pronunciei as minhas palavras com firmeza e segurança enquanto as chamas e os olhos brilhantes se iam desvanecendo, assim como a voz demoníaca.

 

Esperei durante muito tempo e quando achei que era seguro fui à arca, tirei Riona e deitei-me na cama embalando-a como a um bebé. Não conseguia deixar de tremer, mesmo com um cobertor a tapar-me e após algum tempo levantei-me e fui até à janela para ver a neve a cair através do ar escuro da noite de Inverno. Pensei no meu pai, sozinho no Favo de Mel e disse docemente, usando a ferramenta que ele me dera para manter a coragem: concentrar-me no que foi, é e terá de ser.

 

De onde vieste?

 

Do Caldeirão do Desconhecimento.

 

Que procuras?

 

Sabedoria. Entendimento. Procuro o caminho da Luz.

 

Era uma época estranha do ano para viajar, com o tempo inclemente e os dias curtos. Mas não fiz qualquer pergunta. Mandáramos uma mensagem a Eamonn com o texto sugerido por Johnny. Prevíamos que o destinatário ficaria pouco satisfeito com a missiva, não perdendo tempo com uma visita nem a fazer perguntas. A nossa partida, por isso, teve lugar no dia em que a mensagem foi despachada. Se Eamonn fosse a Sevenwaters, nós já não estaríamos lá. Essa suposição não foi dita por palavras, mas eu compreendi-a perfeitamente. Talvez devesse protestar um pouco. Mas a minha mente estava ocupada com outras coisas e deixei passar a ocasião.

 

Para meu espanto, as pequenas ficaram desgostosíssimas com a minha partida. Eilis chorou. Nunca pensara que a criança gostava de mim; no fim de contas, eu era uma amazona péssima. Talvez as suas lágrimas não passassem de um hábito. Mas Clodagh abraçou-me, assim como Deirdre e a expressão de ambas era lastimável.

 

Regressa quando puderes disse Clodagh.

 

Vamos ter muitas saudades tuas fungou Deirdre. Vai ser tão aborrecido sem ti.

 

Adeus, Fainne disse Sibeal solenemente. Vais ter de ter cuidado com os gatos. Olhei para ela, compreendendo que ela tivera uma visão, talvez uma transformação. Não lhe podia perguntar o que queria dizer enquanto os outros estavam por perto, mas acenei em reconhecimento. Muirrin beijou-me em ambas as faces e deu-me um vestido macio de lã cinzenta, que disse ser bonito e muito quentinho, porque os ventos, no norte, eram muito frios. Muirrin não chorava. O aprendiz de feiticeiro da minha tia, Evan, ficaria em Sevenwaters até à campanha, já que tinha a força necessária em caso de fracturas ósseas e a capacidade cirúrgica que a minha prima não tinha. Já vira o modo como ambos se tocavam as mãos e trocavam olhares tímidos quando pensavam que ninguém estava a ver e compreendi a razão do brilho que iluminava as feições pálidas de Muirrin. Quando a Maeve, despedira-me dela em privado e a última história que lhe contei era só para nós. A imagem dos ferimentos da pequenita, e a sua coragem, estavam profundamente alojadas em mim. Usá-las-ia para me darem forças.

 

Antes de partirmos, fiz um esforço e fui à cozinha em busca da velha tia de Dan Walker, Janis. Ela estava sentada na sua cadeira junto do fogão, como sempre, como um velho guardião daquele domínio, uma espécie de espírito caseiro, velando por tudo com benigna disciplina. Era uma fantasia minha; ela não era uma criatura do Outro Mundo, antes uma simples mulher de avançada idade. A pele enrugada e as faces encovadas diziam-no; e a mão nodosa, segurando um galho seco, confirmava-o. Mas os seus olhos escuros continuavam brilhantes e perspicazes

 

Bem, pequena. Parece que te vais embora? O que é que eu digo ao nosso rapaz quando ele te vier procurar?

 

Ele não vem disse eu decididamente. Talvez a idade avançada desse coragem às pessoas. Ela tinha uma maneira muito própria de dizer o que tinha a dizer, por mais desagradável que fosse. Ele sabe isso. Nunca mais vem. De qualquer modo, ele agora vive no Oeste. Já lhe tinha dito.

 

Um nómada nunca assenta. O que é que lhe digo? Não tens nenhuma mensagem? Ou invento eu uma? Digo-lhe o que leio nos teus olhos, talvez?

 

Ele não vem. Mas se... se viesse, dir-lhe-ia...

 

As palavras faltaram-me. A única mensagem que tinha no coração estava errada; não a podia dizer. Darragh devia sabê-lo; ele não podia vir atrás de mim enquanto a minha avó pudesse exercer nele a sua magia demoníaca.

 

Se viesse ousei dizer dir-lhe-ia, ou antes, ordenar-lhe-ia que regressasse a casa e nunca mais voltasse. Dir-lhe-ia que ele e eu nunca serviremos um para o outro. Se vier atrás de mim só provocará dor e tristeza. Diga-lhe que eu sei tomar conta de mim própria. É melhor assim.

 

Mais alguma coisa? Janis cerrou os lábios enrugados e ergueu as sobrancelhas negras. Era óbvio que não ficara impressionada.

 

E... e diga-lhe murmurei diga-lhe que não me esqueci. Diga-lhe que estou a tentar fazer o que tem de ser feito.

 

Seguiu-se um silêncio entre as duas no meio do ranger do espeto onde assava um flanco inteiro de carneiro, do bater dos pratos, das risadas e brincadeiras dos guerreiros enquanto usufruíam de um momento de calor e companhia, antes de regressarem aos infindáveis treinos e preparativos para a campanha.

 

Escolheste um caminho solitário observou Janis em voz baixa. E ainda não tens dezasseis anos; ainda és uma criança. Um caminho longo e solitário.

 

Já estou habituada disse eu ferozmente. Talvez fosse a expressão dos olhos de Janis, ou a bondade da sua voz, não sei dizer ao certo. Mas fizeram-me recordar imagens do passado, de tal modo que me apeteceu chorar. Mas tenho as recordações disse-lhe. E essas ficarão para sempre.

 

Não chega para construíres a tua vida disse Janis.

 

Cavalgámos para norte. Assim que partimos da fortaleza de Sevenwaters, Johnny tornou-se num dos guardas, o capuz escuro do uniforme tornando-o indistinto dos seus camaradas. Tudo parecia correr bem. A vozinha da minha avó mantivera-se silenciosa desde a noite em que a conjurara e soubera dos seus planos para Johnny. Cavalgávamos todos ininterruptamente; ninguém mostrava sinais de doença ou dor. Não sabia, ao certo, quando ela o atingiria, apesar de, agora, sentir o amuleto permanentemente quente no peito, sabendo, assim, que ela me observava. Os nossos guardas mantinham a sua presença silenciosa e vigilante, rodeando-nos, a mim e à minha tia Liadan enquanto atravessávamos encostas arborizadas e caminhos, florestas, lagos e riachos gelados. Conduziram-nos por caminhos estreitos e pântanos; através de desfiladeiros onde grandes aves de rapina voavam e o solo duro como pedra devido ao gelo. Acamparam connosco num lugar de pedras erectas, onde dormimos abrigados sob um antigo túmulo com símbolos secretos gravados. Nunca tiraram as máscaras, a não ser para comer. Não os conseguia diferenciar.

 

Uma forma de protecção explicou Liadan. Necessária por causa das tatuagens.

 

Se são tão perigosas, por que as fizeram? perguntei. Liadan sorriu.

 

Um símbolo de orgulho; de pertença. Os nossos guerreiros consideram isso uma grande honra. Nem todos são aceites no bando.

 

Quais são os... requisitos? Sangue nobre? Feitos heróicos?

 

Cada homem é único. Cada um tem as suas próprias qualidades. Se puder contribuir com algo, algo de que nós necessitemos, será aceite desde que passe o teste.

 

Teste? Que teste?

 

Um teste de perícia e lealdade. Varia. Encontrarás gente de toda a espécie em mis Eala. Homens de toda a espécie; de todas as cores e credos.

 

E mulheres?

 

Ah, sim, também há algumas. Mas têm de ser muito especiais para viver num lugar daqueles, Fainne. Muito especiais.

 

Tia Liadan perguntei enquanto nos deitávamos no estranho espaço abobadado da velha sepultura. Este lugar, por exemplo. Já leu os sinais? As inscrições?

 

Seguiu-se uma pequena pausa.

 

Não, Fainne disse ela com um tom de voz estranho. Estas inscrições são de uma língua ainda mais antiga do que qualquer outra que eu aprendi a decifrar. Não consigo lê-las. Parecia haver uma pergunta por trás das suas palavras.

 

Sabe disse eu isto é tão antigo que ninguém o consegue decifrar. Mas eu cresci num lugar onde havia umas pedras como estas; os pedreiros do caminho do Sol foram os meus companheiros diários durante a minha infância. Eu reconheço alguns destes sinais.

 

Eu sei que é um dos locais dos Anciãos disse a minha tia suavemente um lugar de grande força e magia. Ela hesitou e depois continuou: Eles falaram-me aqui. Os Fomhóire.

 

Olhei para ela espantada.

 

Está a falar... está a falar das criaturas que são meio rocha, meio água, criaturas com pêlo e penas ao mesmo tempo? Esses seres pequenos que se consideram os nossos antepassados? Devia falar com mais cuidado, mas ali, no coração da terra, pareceu-me seguro.

 

Eu nunca os vi disse Liadan, sonhadora. Só lhes ouvi as vozes. Vozes profundas, vindas da terra e da água, guiando-me. De qualquer modo, nunca pensei que fossem pequenos. Sempre pensei que seriam enormes, velhos e imensamente poderosos. Eles aconselharam-me a seguir os desejos do meu coração; seguir os meus instintos. Foi aqui, neste local, que... que foram tomadas decisões de grande importância, decisões que mudaram o rumo das coisas. Já viste essa gente, Fainne, para falares deles assim, como se os conhecesses?

 

Acenei com a cabeça.

 

Os sinais falam de uma ligação antiga. Falam de sangue e trevas. E falam de esperança. Pelo menos, isso consigo entender.

 

A minha tia olhou para mim em silêncio. A nossa lanterna brilhava suavemente na escuridão daquele espaço subterrâneo. Mais abaixo, na enorme câmara vazia, estavam instalados e já dormiam alguns dos homens de Johnny e, por isso, falámos em voz baixa. Após um momento, Liadan perguntou cautelosamente:

 

Essa gente também te acompanha, minha querida? Achas que eles são... bons?

 

Aquela conversa estava a tornar-se perigosa. Eu não podia saber ao certo se a minha avó estava a ouvir, ou não. Aquele local parecia-me seguro; mas nenhum local era seguro enquanto eu usasse o amuleto e tirá-lo era o mesmo que chamá-la.

 

Eles têm as suas próprias teorias acerca de como as coisas devem ser feitas. Mas têm o hábito de não as explicar, de me obrigarem a descobrir os significado das coisas. E consigo, como foi? Seguiu as instruções deles, ou seguiu o seu próprio caminho?

 

Liadan suspirou.

 

Ambas as coisas, creio. Foi às ordens de outros que eu desobedeci. E tu, Fainne? Qual é o caminho que tu segues?

 

Pergunta perigosa.

 

Um caminho solitário disse eu. Pelo menos, foi o que me disseram.

 

Igual ao de Ciarán? perguntou ela baixinho.

 

Eu não quero falar do meu pai. Deitei-me e tapei o rosto com o cobertor. O amuleto pesava-me; a sua forma, pequena e maligna, parecia queimar-me permanentemente, obrigando-me a recordar o olhar inquiridor da minha avó e o meu papel no jogo. Perguntei a mim própria se ela lhe teria reforçado o poder, agora que nos aproximávamos do fim. Talvez as minhas suspeitas fossem verdadeiras. Talvez ela me temesse. Não liguei à queimadura. A dor não significava nada. O meu pai ensinara-me a resistir-lhe.

 

Em breve soube que Johnny não era unicamente um rapaz bondoso, que salvava insectos aflitos e dava a mão a crianças doentes. Era costume da nossa guarda silenciosa cavalgarem dois à frente, dois atrás, com vários nos flancos nem sempre visíveis, mas suficientemente perto para se poderem aproximar rapidamente de nós em caso de perigo. Liadan e eu vestíamos simples capas escuras, túnicas confortáveis, saias e robustas botas de Inverno. Ela montava uma égua castanha e eu a pequena égua cinzenta que Eamonn me emprestara. Liadan parecia não se importar.

 

Essa égua é minha disse a minha tia com simplicidade. Um presente, mas não de Eamonn. E, certamente, não foi por culpa minha que ela ficou em Glencarnagh. Esse animal já viu muita coisa, Fainne. Coisas tristes; coisas terríveis. Acho que chegou a ocasião de a levarmos para casa.

 

Passámos por uma clareira. Estava uma manhã extremamente fria, o solo gelado e não se via um único pássaro nos ramos despidos dos espinheiros. Passávamos por um espaço onde estranhos aglomerados de pedras salpicavam a encosta do monte ao acaso, aglomerados esses que ninguém podia dizer ao certo se eram obra do homem, ou de algo mais antigo e onde as sombras invernosas transformavam essas rochas em duendes, fantasmas, gigantes e dragões. Até a vegetação parecia maligna, pequenos arbustos escuros estendendo longos ramos num abraço espinhoso, prontos a rasgar um vestido, ou umas meias. O nosso passo era vivo; parecia que nem os guerreiros mascarados tinham desejo de permanecer naquelas paragens mais tempo do que o necessário.

 

O carreiro estreitou até que só um dos cavaleiros da escolta podia ser visto, o homem que ia à nossa frente. Alguém gritou e ele estacou. Ambas desviámos os nossos cavalos para parar a seguir a ele e Liadan estendeu uma mão tranquilizadora na minha direcção.

 

À nossa frente, no carreiro, estava um grupo de homens de ar feroz armados de facas, mocas e pequenos machados. O seu líder aparente, um sujeito enorme com uma pala num dos olhos e dentes amarelos e podres, avançou e apontou a sua arma para o nosso grupo.

 

Toca a descer dos cavalos ordenou ele. E nada de brincadeiras. Nós somos seis e vocês um, se não contarmos com as damas. Devagarinho. Dá-me essa espada. E a faca. Vira-te. E agora...

 

Para meu espanto, o nosso homem fez exactamente o que o outro lhe disse sem uma palavra de protesto. Os atacantes aliviaram-no das suas armas e seguraram nas rédeas do seu cavalo, como que para o levarem. Fiquei cada vez mais alarmada quando o homem com a pala no olho se aproximou de nós sorrindo. A minha tia permaneceu quieta e de olhar calmo. Os atacantes tiraram o capuz ao nosso homem. Não se via sinal do resto da escolta.

 

Bem, bem disse o líder com uma risadinha sufocada, aproximando-se do meu pequeno cavalo. Que temos nós aqui?

 

Eu ergui a mão, pronta para pronunciar as palavras de um feitiço.

 

Não, Fainne disse Liadan suavemente. Não é preciso. Atrás do líder, os seus homens tinham tirado a máscara do guerreiro, revelando as distintas marcas do seu rosto. Alguém praguejou e eu ouvi as palavras Homem Pintado proferidas num murmúrio aterrado. O sujeito a meu lado estacou e depois recuou, o rosto subitamente branco como a cal em redor da pala. Então, ouviram-se vários sons pequenos: um zumbido, uma vibração e o som de uma flecha penetrando no alvo; o homem que eles tinham desarmado rodopiou e desarmou um dos atacantes com um pontapé estrategicamente colocado. Subitamente, sem qualquer sinal de luta aparente, havia seis homens no chão duro, gemendo, arquejando, ou, mais sinistramente, totalmente silenciosos. À nossa frente, dos lados e atrás, os homens de Johnny emergiram da cobertura das rochas ou das árvores, metendo pequenas coisas nos cintos, ou nos bolsos. Uma flecha foi arrancada de um corpo de modo descuidado. Uma faca curta foi usada com eficiência. Fechei os olhos.

 

Fainne? Desculpa. Estavas com medo? O guerreiro mascarado falou com a voz de Johnny. O homem que os atacantes tinham desarmado reclamava as suas armas, recolocando o capuz como se aqueles encontros fossem tão vulgares como, por exemplo, juntar ovelhas ou cortar uma fatia de pão.

 

Eu sei tomar conta de mim disse eu com brusquidão, forçando o meu coração a abrandar o ritmo. Pareceu-me uma maneira estranha de enfrentar uma emboscada, mais nada. Podias ter-nos avisado.

 

Nós temos os nossos métodos. E isto não se pode bem chamar uma emboscada, tal foi a inépcia.

 

Não precisavam de os matar.

 

Eles foram loucos em tentar e não mereciam melhor. Além disso, nem todos estão mortos. Alguns vão levar uma história para casa; uma história acerca do Homem Pintado. Esta passagem vai ser segura durante algum tempo, até eles esquecerem e tentarem de novo. Mas desta vez escolheram mal a vítima. Ninguém toca na minha mãe. Viajar com ela é ter, também, a melhor protecção. A sua voz era firme e as suas maneiras seguras, como sempre. A minha avó ainda não tinha lançado o feitiço, então? Seria possível ela ter preferido não exercer aquela crueldade?

 

Continuámos a viagem e eu ponderei na estranheza de tudo aquilo, que o homem que a minha avó me mandara destruir fosse aquele que fizera com que aquela força de especialistas me salvasse. Ele transportava a morte consigo, guardando-a cuidadosamente, como se fosse o mais precioso dos tesouros. Ainda bem que era forte, porque se ela fosse em frente com o seu pequeno plano, o sofrimento seria terrível. A maestria da minha avó com aqueles feitiços só era superada pela sua total falta de escrúpulos. Ela estivera na origem da morte de muitos pequenos animais ao demonstrar este ou aquele feitiço; observara desapaixonadamente a minha própria agonia enquanto me castigava com facas de vidro na cabeça, com bizarros inchaços de língua ou garganta e cruéis alterações de visão, ou audição. Não assistia calmamente à morte lenta do próprio filho? A minha avó usaria a arte fria e eficientemente no meu primo. Só esperava que não por muito tempo.

 

Aprendera a reconhecer Johnny no meio dos seus idênticos e vestidos de igual companheiros de armas. Era o mais baixo, pouco mais alto do que eu, o dorso tão direito como um de uma criança, a cabeça orgulhosa e os ombros quadrados. Mudavam de cavalo de vez em quando, mas eu reconhecia-o. Enquanto continuávamos a jornada para norte, para as costas mais a norte do Ulster, fui observando-o, pensando que em breve, muito em breve, teria de parar e desmontar, ou cair do cavalo com convulsões. Sabia qual era o feitiço; ela usara-o em mim uma vez. Nem o mais forte dos homens o suportaria por muito tempo.

 

Os montes e os vales, os riachos escondidos e os bosques enublados iam passando. À minha frente, o meu primo continuava a cavalgar, porte altivo como sempre, a mão nas rédeas, frouxa. Procurava, em vão, um sinal qualquer de doença. Ao escurecer comecei a perguntar a mim própria se o Filho da Profecia estaria de algum modo protegido contra aquele feitiço, talvez pelos poderes da floresta que a minha avó tanto detestava. Senti o calor do amuleto contra o corpo e soube que ela estava próximo; o pequeno triângulo parecia cada vez mais ligado à sua presença, o seu calor uma mensagem clara de que ela me estava a observar, observava Johnny e que iria, realmente, testar-nos aos dois.

 

Acampámos para passar a noite na carcaça de uma velha casa, onde as paredes de pedra se desfaziam e os restos de traves e de colmo ofereciam um abrigo precário contra o frio do Inverno. Os homens retiraram os capuzes e comeram uma refeição frugal. Johnny estava um pouco pálido e não o vi partilhar a comida, mas a sua voz continuava firme; sorria com as anedotas dos homens e deu-nos uma cortês boa-noite antes de se retirar para fazer o seu turno de ronda. Não parecia haver nada de errado com ele.

 

Dentro de dia e meio alcançaríamos a costa, disse-me Liadan enquanto cavalgávamos na manhã seguinte. Ali, um barco levar-nos-ia até à ilha. Havia uma nota na sua voz que falava de alegria antecipada; não conseguia disfarçar o desejo de chegar ao destino. Não perguntou ao filho se estava tudo bem e eu também não.

 

Olhei para o meu primo enquanto percorríamos um carreiro íngreme e perigoso. Mantive os olhos nele enquanto o jovem nos precedia, seguia ou guiava e as suas costas continuavam direitas e orgulhosas e o seu cavalo movia-se firmemente em frente. Johnny erguia a cabeça como se fosse o herói de uma história muito antiga. O amuleto queimava-me o peito. Ela estava a observar-me e a observá-lo a ele. Subitamente ocorreu-me que tinha estado errada. Não só ela já exercera o feitiço, talvez há já alguns dias, como o reforçava permanentemente, perfurando, apunhalando, triturando. Não era a ausência de magia que fazia aquela coisa malévola invisível, era a fantástica força moral do homem que a suportava. Prossegui a jornada com os dentes cerrados e a testa cheia de suor; as minhas mão tremiam enquanto seguravam nas rédeas. Desiste, disse eu mentalmente. Não sejas tão forte. Quanto mais depressa desistires, mais depressa isso pára. À nossa volta os outros continuavam, ignorantes da batalha que se desenrolava no meio de nós. Apenas três pessoas sabiam o que estava a acontecer: o meu primo, eu e a feiticeira que ninguém podia ver.

 

Acampamos para passar a noite. Johnny foi deitar-se cedo. Não comeu. Apercebi-me da palidez cinzenta no seu rosto e reparei no modo como ele evitava o olhar da mãe. Durante a noite acordei e ouvi o som de vómitos para lá das rochas, nas sombras, e Liadan agitar-se sob o cobertor, mas não acordou. Partimos de madrugada e os homens cavalgavam ao nosso lado, silenciosos. O cheiro no ar era como em Kerry, cortante e salgado. Gaivotas passavam por cima de nós, gritando. Conseguia ouvir o distante rugido do mar. Mas não sentia alegria naquelas coisas familiares, não ali, naquele local distante, com todo o Erin a separar-me do meu pai. Não quando nunca mais escalaria aquelas falésias com um amigo a meu lado e nunca mais me sentaria ao abrigo das rochas num companheirismo silencioso, numa confiança total. Nunca mais teria isso. Não merecia; nunca merecera. O amuleto magoava-me; O seu cordão tocava-me nos seios. Mas não era nada comparado com o que o meu primo devia estar a sofrer. Ela estava a observar-nos; estava perto. Eu não o podia ajudar, se bem que soubesse qual era o feitiço inverso, se bem que o tivesse na ponta dos dedos. Mas não podia.

 

A paisagem abriu-se. O céu parecia iluminar-se e alargar-se à medida que avançávamos para norte. Havia poucas árvores; e as que havia naquele canto da terra varrido pelo vento aninhavam-se em ravinas, ou agrupavam-se em bolsas abrigadas por trás de pequenas colinas. Dois homens afastaram-se a galope, sem dúvida para anunciarem a nossa chegada. Os outros continuaram espalhados ao longo do trilho, sempre silenciosos. A nossa jornada terminaria em breve. Quando chegámos a uma elevação e avistamos o oceano pela primeira vez para lá de uma pálida linha de falésias, ouvi-a murmurar-me na cabeça. Tentador, não é? picou-me ela. Sabes como a dor o come; reconhece-la. O rapaz é forte; é um daqueles Fomhóire ancestrais, além de ser um guerreiro, treinado para suportar tudo. Trabalho do pai. Subestimei-o. Mas não cometeremos o mesmo erro na próxima vez. E tu estás quase lá; e as oportunidades escasseiam. Acho que vou prolongar isto mais um pouco. Até ao ponto em que o corpo dá de si, até ao ponto em que o coração enfraquece e falha... tão, tão perto... sabes como é, Fainne...

 

Eu sabia. Uma criatura selvagem banqueteando-se no meu corpo vivo enquanto eu permanecia deitada, consciente e desamparada perante o seu apetite rapace. A dor percorrendo cada parte do meu corpo, cada fibra do meu ser. Eu sabia, porque já o tinha sofrido. Esperei, tremendo enquanto olhava para ele. Os meus dedos agitaram-se com o esforço que eu estava a fazer para reter o contrafeitiço; obriguei-me a engolir as palavras que o libertariam. Por fim, houve uma reacção. A sua montada tremeu, parou e Johnny escorregou da sela para o chão do trilho. Conseguia ouvir-lhe a respiração; cortante, rápida. No entanto, mantinha-se de pé, quando qualquer outro homem se espojaria no chão, gritando e agarrando-se à barriga. Atrás dele, o meu cavalo tinha também parado e tremia.

 

Sentia-me incapaz de dizer fosse o que fosse. Não chegava? Por que não caía Johnny, ou não gritava, ou reconhecia a derrota para que ela parasse? Eu sabia que ela não podia continuar, já que se arriscava a matar o homem ali mesmo, onde ele estava. Seria ele Cu Chulainn renascido, para conseguir suportar uma tal agonia? Um dos homens voltou para trás e foi feita uma troca discreta. Liadan vinha lá atrás, fora de vista.

 

O outro homem desmontou e segurou as rédeas dos dois cavalos. Por trás da sua máscara, Johnny olhava para mim. Indicou, com um pequeno gesto de cabeça, que eu devia continuar e meter por um trilho lateral em direcção a leste, onde um grupo de três velhas rochas fora colocado no topo de uma elevação. Sobre elas crescia uma crosta de líquen cinzento e eu lembrei-me daquela estranha criatura parecida com uma rocha que me falara uma vez de confiança antiga e caminhos futuros. Desci do cavalo e deixei-o com os outros. Johnny começou a caminhar e eu segui-o e se os meus passos eram vacilantes devido ao meu pé defeituoso e ao desnível do solo, os passos de Johnny ainda eram mais. No entanto, continuou a andar sem falar, mas eu percebi, pela sua respiração, que fazia um esforço para continuar silencioso quando tudo dentro dele gritava de dor. Perguntei a mim própria, então, por que razão a minha avó não tornava o amuleto ainda mais forte e matava, de uma vez por todas, o Filho da Profecia. Seria certamente mais fácil do que aquele cruel jogo de testes e provas. Ela não precisava de mim para extinguir a esperança de vitória de Sevenwaters. Johnny já vacilava às portas da morte e sem Johnny a batalha não podia ser ganha. Parámos à sombra de umas pedras antigas no lado leste, longe da vista do trilho onde os outros esperavam. O meu primo retirou a máscara. Olhei para ele e ele para mim, o seu rosto cinzento, os olhos brilhando de febre, e ferozmente determinados. Há algo aqui que ela não consegue derrotar, pensei eu. Talvez seja a extrema coragem, ou talvez algo mais; uma magia mais antiga e profunda do que a dela, uma força que vela pelos seus passos, que o guia em direcção ao destino que lhe foi predestinado. Johnny respirou fundo, estremecendo e nesse preciso momento o calor contínuo do amuleto enfraqueceu e morreu, até não passar de um pequeno triângulo de metal num cordão em redor do meu pescoço. Ela desaparecera, mas o feitiço ainda o possuía.

 

Não me parece disse Johnny numa voz que denotava imensa dor que saibas exactamente com o que estás aqui a lidar. A sua mão, pousada na pedra gasta para se apoiar, mostrava os nós dos dedos brancos.

 

Respirei fundo.

 

O que queres dizer?

 

Diz-me conseguiu ele dizer, tentando controlar-se. Quanto tempo mais? Não por mim; nós estamos treinados para suportar tudo. Mas não quero que a minha mãe sofra.

 

Olhei-lhe para o rosto pálido, tatuado com a cabeça de um corvo e cheio de suor; um rosto cujo olhar corajoso não parecia ter vacilado por um só instante. Ele pensava que era eu a culpada. Pensava que era eu a única responsável pela sua tortura cruel. Não admira que não tivesse dito nada. E a minha avó desaparecera sem o libertar. Com um murmúrio e um pequeno movimento da mão, inverti o feitiço. Então, ele perdeu momentaneamente o controlo. Expirou repentinamente e deslizou para o chão, as costas de encontro à rocha, de olhos fechados. Quanto a mim, fiquei instantaneamente exaurida de forças e sentei-me abruptamente a seu lado. O céu estava claro e a brisa fresca; os pássaros voavam por cima de nós em círculo, gritando. Tudo aquilo me parecia errado; como se estivéssemos deslocados. Tudo aquilo parecia pertencer a um tempo longínquo, a um tempo de inocência, mas não àquele, onde tudo era perigoso e difícil, doloroso e onde o medo imperava.

 

Deves saber disse Johnny um pouco depois sem abrir os olhos que eu tenho um caminho a seguir e uma missão a cumprir e que nada me deterá. Nada. A sua voz não passava de um feroz murmúrio, assustador na sua certeza. Se alguma vez tive dúvidas de que ele era o herói de que falava a profecia, deixei de as ter.

 

Eu não fui responsável por isto disse eu, trémula. Mas não espero que acredites em mim. Não lhe podia dizer mais do que aquilo. Já falhara no teste da minha avó; ela não me deixara outra alternativa, senão a de intervir. Não me arriscaria a revelar-lhe a verdade.

 

Estou a ver disse o meu primo num tom que poderia não querer dizer nada.

 

Por que me trouxeste contigo? perguntei-lhe rudemente. Ele abriu os olhos e conseguiu um pequeno sorriso.

 

Desobedeci à minha mãe disse ele pouco seguro. Ela não queria que tu fosses para Inis Eala. Porquê, não sei, salvo que tu pareces andar perturbada e precisas de protecção e isso é uma coisa que nós sabemos fazer muito bem.

 

E estás arrependido dessa decisão?

 

Não, prima, não estou. Raramente me engano.

 

Algumas pessoas diriam que isso é uma tolice disse eu cautelosamente.

 

E tu, achas que é uma tolice, Fainne?

 

Não me arrisquei a responder em voz alta. Mas abanei a cabeça e ofereci-lhe a minha mão quando vi que ele estava a tentar levantar-se.

 

Tu tens uma grande força de vontade disse eu enquanto fazíamos o caminho de regresso. Ele caminhava cuidadosamente, como se fosse a experimentar cada parte do corpo para se assegurar de que a dor tinha mesmo desaparecido.

 

Sou filho do meu pai disse Johnny.

 

Eu também sou filha do meu pai, disse-me o meu coração. E, de regresso ao trilho, montámos nos nossos cavalos como se tivéssemos, apenas, ido esticar as pernas e continuámos o nosso caminho na direcção da costa norte do Ulster e de Inis Eala: a Ilha do Cisne.

 

 

                                             CAPíTULO DOZE

 

Se a minha mente não andasse ocupada, ter-me-ia lembrado que, para se chegar a uma ilha, é preciso ir de barco, que um barco deve estar no mar e que, apesar de ter crescido na costa de Kerry, tinha medo do mar. Só quando chegámos a uma pequena aldeia fortificada no alto de uma falésia profundamente recortada e olhei para uma ilha, a norte, e vi a considerável extensão de água de aspecto turbulento entre nós e aquele lugar inóspito, é que senti os órgãos vitais revolverem-se de terror. Mas não permitiria que o meu primo, ou a minha tia, ou um único daqueles jovens e sombrios guerreiros soubesse da minha fraqueza. Havia uma baía e um ancoradouro. Também este estava muito bem guardado por homens quase todos mais velhos do que o bando de Johnny e de aspecto extremamente estranho. Não usavam capuzes, máscaras, ou uniforme, antes trajes personalizados feitos de pele de raposa ou coelho, de uma coisa parecida com pele de serpente, e onde o couro, a prata e o bronze desempenhavam diversos papéis na sua confecção. Até os homens, em si, eram distintos, com a pele tatuada como os guerreiros mais novos, mas cada um deles possuía um toque extraordinariamente pessoal: cabelos até à cintura penteados para trás e atados com uma fita; uma cabeça meio rapada; um anel perfurando um sobrolho, ou um nariz; um colar de penas escuras. Apesar da sua aparência espectacular, comportavam-se como profissionais, fazendo o seu trabalho com rapidez, calmamente e sem espalhafato. Tratavam Liadan como se ela fosse uma rainha. Quanto a mim, trataram-me com grande respeito, sem uma piscadela, um assobio ou um comentário despropositado, apesar da conversa de Johnny acerca de prováveis pretendentes. Senti, no entanto, um exame minucioso por parte de um sujeito cujo nome me pareceu ser Snake, um homem de meia-idade, de aspecto ameaçador, cujos olhos se semicerraram nas feições duras enquanto me ajudava a entrar para um barco extremamente pequeno e que balouçava de modo alarmante, assegurando-se de que ficava sentada ao meio, de modo a não atrapalhar ninguém. Os homens remaram. O barco subiu e desceu. Fiz um grande esforço para manter os olhos abertos e as feições calmas enquanto o meu estômago se retorcia e o meu rosto se enchia de gotas de suor. Apertei as mãos uma contra a outra e vi a ilha a aproximar-se. Não olhei para trás. Pensei que estava a fazer boa figura até o sujeito chamado Snake dizer, olhando na minha direcção:

 

É melhor teres cuidado com as serpentes marinhas. Nestes dias assim, costumam aparecer.

 

Olhei para ele horrorizada, o coração a bater com toda a força, e depois para além dele, para as grandes vagas e os misteriosos e escuros vales entre elas, onde esperava ver aparecer uma coisa qualquer. Então, Liadan olhou para mim, depois para ele e disse asperamente:

 

Que vergonha, Snake, atormentar a pobre rapariga dessa maneira! Já tens idade para ter juízo.

 

Snake sorriu para ela.

 

Estamos quase a chegar disse ele num tom diferente.

 

Liadan acenou com a cabeça. Os seus olhos estavam fixos na ilha e havia uma brilhante antecipação neles, que lhe dava um ar de mulher bastante mais nova.

 

Eu não sabia o que esperar. Pelo menos, esperava que o marido estivesse à espera dela no embarcadouro, apesar de não ter ido ao outro lado buscá-la. Mas, se bem que estivessem ali muitos homens para nos ajudar a sair do barco e carregar a nossa bagagem por uns degraus íngremes acima, talhados na falésia, não vi nenhuma figura que correspondesse às minhas expectativas. Havia um jovem muito parecido com Johnny, com o mesmo sorriso encantador e olhar firme. Recebeu Liadan com um beijo em cada face; filho dela, portanto, aquele que as pequenas tinham dito imaginar-se um grande guerreiro. A mim parecia-me mesmo um guerreiro, com o seu rosto duro e maneiras seguras, para não falar da grande faca e do machado de arremesso que trazia à cintura. E havia um rapaz, este parecido com o meu tio Sean, de pele pálida e cabelos escuros encaracolados que lhe caíam para os olhos. Devia ser o mais novo, Coll. Eles eram quatro, mas um estava em Harrowfield. Onde estava o pai deles? Liadan parecia imperturbável. Os homens juntaram-se para a cumprimentarem; os sorrisos eram muitos, mas havia também uma espécie de deferência que os mantinha a uma certa distância, como se não se achassem dignos de se aproximar. Subimos os degraus; eram vinte e sete. As minhas pernas doíam-me. No topo havia um planalto desprovido de árvores na sua maior parte e um grupo de edifícios baixos rodeado por uma robusta parede de pedra. À distância, os contornos da ilha erguiam-se e desciam e os agrupamentos rochosos, cheios de espuma do mar, pareciam guardar buracos, praias secretas, talvez grutas.

 

É um lugar selvagem disse uma voz calma à minha direita. Mas é um bom lugar, depois de o conhecermos.

 

Olhei em volta. O homem que falara tinha a pele tão escura como o carvão e uma dentadura muito branca, na qual faltavam dois dentes. Usava uma pena no cabelo entrançado.

 

Bem-vinda à ilha disse ele. Suponho que já conheces o meu filho.

 

Olhei para ele por um momento, retomei a compostura e tentei adivinhar.

 

Evan? Eu... sim, conheço.

 

Ele estendeu uma mão, eu apertei-lha e senti imediatamente um defeito; o seu aperto era muito firme, mas a sua mão só tinha três dedos.

 

Vamos disse ele vamos para casa, para comeres qualquer coisa e para te arranjarmos um lugar para dormires. É uma coisa rara aqui na ilha, a visita de uma jovem dama. O meu nome é Gull; com o tempo, conhecer-nos-ás a todos.

 

Liadan desaparecera; Johnny e os irmãos tinham desaparecido no meio do grupo de homens, que seguiam na direcção do maior dos edifícios de pedra. Mais longe, podia ver algumas ovelhas a pastar; fumo a sair de uma chaminé; roupas a secar ao vento. Uma cena confortavelmente doméstica, apesar de remota.

 

Que espécie de lugar é este? perguntei enquanto seguia Gull para dentro de casa. Que fazem aqui?

 

Ele fez uma pausa e olhou para mim com as escuras sobrancelhas erguidas.

 

Fizeste este caminho todo sem perguntar? É uma espécie de escola, miúda. Uma escola como muitas outras desde Wessex a Orkney, de Munster às costas mais longínquas da Gália. Podes chamar-lhe uma escola de guerra. Mas é mais do que isso. Muito mais. Mas, vais querer beber qualquer coisa e um lugar qualquer para descansar. Biddy!

 

A casa era quase exclusivamente um espaço aberto, mobilado com grandes mesas e bancos. Num dos cantos havia um espaço para cozinhar e nele uma grande mulher, de olhar competente e rosto doce, enchia de sopa as gamelas dos homens, cada um à vez.

 

A jovem dama está aqui disse-lhe Gull. A sobrinha de Liadan, Fainne.

 

Portanto, sabiam da minha vinda; até sabiam o meu nome. Os mensageiros de Johnny eram eficientes.

 

A minha mulher Biddy acrescentou Gull. Ela toma conta de ti. Senta-te aqui, descansa.

 

Mas eu estava a olhar para além da entrada da cozinha, para um pequeno jardim com um muro em volta, um local abrigado, onde as ervas e os vegetais cresciam a despeito do ar do mar. Através da soleira podia ver a minha tia Liadan e um homem que devia ser o Chefe, porque estavam os dois perfeitamente imóveis, abraçados e de olhos fechados, como dois jovens que tivessem descoberto pela primeira vez o amor. As mãos dele estavam enterradas nos cabelos sedosos dela, que tinham escapado da fita e lhe caíam pelas costas. A testa dela descansava na curva do pescoço dele. Eu tinha a certeza de que nenhum deles estava consciente de outra coisa que não aquele abraço e o bater de ambos os corações. Não conseguia desviar o olhar e não era só o intrincado desenho, finamente gravado, que parecia cobrir um dos lados do corpo daquele homem que me prendia a atenção, por mais espantoso que fosse. Nunca pensara que um homem e vima mulher de trinta e cinco anos de idade, ou mais, pudessem possuir tais sentimentos um pelo outro, fazendo com que tudo o mais desaparecesse das suas mentes. Pensava que o amor era uma fantasia, uma ilusão da juventude, como a paixão que destruíra o meu pai e a minha mãe, ou o rubor e os olhares tímidos de Muirrin para o seu apaixonado, que, certamente, não durariam muito mais após o casamento e a perda da graciosidade da juventude devido às tarefas domésticas e à família. Era por isso que olhava, sabendo, do fundo do meu coração, que o que estava a ver era tão encantador e contínuo quanto totalmente inesperado. Enchia-me de uma estranha e dolorosa tristeza.

 

Ela não a cumprimenta diante das outras pessoas disse Biddy docemente. E, estendendo uma mão, fechou a porta para que aqueles dois não fossem perturbados por olhares indiscretos. Corei de embaraço.

 

Não faz mal, miúda acrescentou ela amavelmente. E agora, queres um pouco de cerveja? Um pouco de sopa? E vamos arranjar-te uma cama. Que sabes fazer? Costura? Cozinha? Aqui, todos trabalham.

 

Eu... bem, dizem que sou muito boa a cuidar de crianças disse eu, atrapalhada. Aquela gente parecia imensamente competente, à semelhança de Liadan e dos filhos. Procurei na memória qualquer coisa que pudesse ser útil. Não lhe podia dizer que podia usar a magia para acender o fogo da cozinha, ou, talvez, transformar pedras num armazém novo. E sei ler e escrever, um pouco. E sou capaz de apanhar peixe com uma linha.

 

A sério? sorriu Biddy. Não vais demorar muito a encontrar um marido com esses talentos. Eu tenho dois filhos já crescidos, para além de Evan. Ferreiros, os dois, bastante fortes. Aposto que vai haver competição, com uma coisinha bonita como tu a andar por entre as ovelhas e a cozinha. Olha, estás a corar. Bebe a tua cerveja, miúda. Aqui estás segura. Temos regras e as pessoas cumprem-nas. Os rapazes adoram o chão que Johnny pisa. Nenhum deles põe em risco o seu lugar aqui na ilha; nem pela rapariga mais linda do mundo.

 

A vida, ali, era diferente. As pessoas talvez pensassem que não me sentiria à-vontade, que não me adaptaria àquele lugar desagradável, com os seus ventos fortes, falésias perigosas e isolamento, para não falar das actividades perigosas dos seus habitantes masculinos. Mas não sabiam nada acerca da maneira como fora criada. Talvez fosse no lado oposto da terra, mas, em muitas coisas, Inis Eala era como Kerry. Aqui, nenhuma floresta encobria a luz. Acordava ao som do mar na pequena cabana que partilhava com três outras raparigas solteiras. Tinha o meu próprio canto. Elas acabaram por descobrir que eu preferia estar sozinha. De qualquer modo, havia sempre trabalho. Uma rapariga ajudava Biddy na cozinha; outra parecia ter jeito para tudo, quer fosse matar e depenar galinhas, ou arrancar marisco das rochas com uma faca. A terceira rapariga, Brenna, era alfageme. Devo ter erguido as sobrancelhas, surpreendida; ela disse com orgulho que fora a profissão do pai e, quando ele morrera, ela, por assim dizer, ocupara o seu lugar. Agora, era um dos melhores alfagemes do Ulter. Se não fosse, não estaria ali. Na ilha só se usavam armas da melhor qualidade.

 

Algumas das coisas, em Inis Eala, eram executadas abertamente. Havia uma padaria e uma forja; havia um lugar na baía onde pareciam estar a construir barcos grandes e pequenos. Havia um telheiro onde o peixe era seco e fumado. Havia uma enfermaria dirigida pelo homem chamado Gull, aquele que usava uma pena no cabelo e só tinha cinco dedos nas duas mãos. Havia um padre cristão e um druida. Estes dois passavam a maior parte do tempo juntos, em debates amigáveis. Ambos executavam rituais: as pessoas, ou assistiam aos de um, aos do outro, ou a nenhum, conforme lhes apetecia. Havia uma pequena latoaria, um lugar onde se fiava e tecia e um outro onde se faziam velas.

 

E depois havia as outras coisas, razão pelas quais todos estavam na ilha. Apercebi-me disso na forja, onde dois fortes homens, chamados Sam e Ciem, fabricavam não só forquilhas, pás e ferramentas para trabalhar o solo pedregoso, mas também uma grande variedade de armas: espadas, pontas de lança, punhais, machados de arremesso e numerosos outros artigos que eu não me atrevia a adivinhar para que serviriam. Sam e Ciem eram filhos de Biddy, mas não de Gull. Ambos eram brancos, louros, de faces rosadas como duas leiteiras e possuíam braços grossos como troncos de árvores. À noitinha, depois da ceia, Sam tocava bodhrãn, Ciem assobio e eu ficava espantada por aqueles dois gigantes possuírem uma leveza de toque tão grande. Havia uma mulher que tocava uma harpa de joelho, mas não havia nenhum tocador de gaita-de-foles. Enquanto o vento de Inverno assobiava lá fora e o mar rugia, as pessoas batiam palmas, cantavam e algumas vezes dançavam abrigadas naquele aconchegante edifício e ao calor da lareira. Eu não dançava. Olhava.

 

Observava e pensava como as coisas podiam ser tão diferentes do que imaginara. Aquele homem, por exemplo, o Chefe. Bran, era esse o seu nome, mas só Liadan o chamava assim. Em tempos, pensei que ele seria uma peça facilmente sacrificável no jogo; pensei em deixar Eamonn destruí-lo, quebrar a aliança e, assim, fazer com que perdesse a batalha. Dissera à minha avó que o faria. Pois, que sabia eu acerca do homem até então? Tinham-me dito que ele era um foragido, escumalha; que roubara cruelmente a apaixonada de Eamonn e lhe arruinara a vida. Era considerado, pelo menos, um pouco estranho. Fizera tantos inimigos ao longo dos anos, que jamais poderia regressar a Sevenwaters. Mas, mais estranho ainda, conseguia, ao mesmo tempo, ser o senhor de um grande domínio na Bretanha, o que era, certamente, uma coisa incrível. Esperava um enigma. Mas ninguém me dissera que a mulher desse homem o amava mais do que à própria vida. Não sabia que os seus filhos o respeitavam e admiravam; que a sua gente o via como um homem acima do comum dos mortais. À medida que o tempo ia passando em Inis Eala, ia-me apercebendo de que, se bem que Johnny administrasse o local, o taciturno e ameaçador Chefe era o pilar de toda a comunidade, a força que garantia o sucesso da campanha. E que campanha; apesar do tempo inclemente, os homens chegavam e partiam de barco, por trás dos altos muros do pátio o treino fazia-se até à perfeição e por trás de portas fechadas ensinava-se outra coisa: a leitura de mapas, a espionagem, o conhecimento de venenos e antídotos, subterfúgios e disfarces. Todos tinham de conhecer um pouco de tudo. Entretanto, havia regras e uma das principais era o secretismo. Ainda bem que já não precisava de arranjar informações para Eamonn, porque não o poderia ter feito sem me transformar. E não o podia tentar sem levantar suspeitas a Liadan. Ela vigiava-me de perto; outro período de doença misteriosa denunciar-me-ia. Estava imensamente grata a Johnny por me ter trazido para Inis Eala, onde não precisava de pensar em Eamonn.

 

O Chefe não era grande coisa para que se olhasse. Havia aquelas tatuagens flamejantes, é certo; aquilo era uma obra de arte, cobrindo-lhe toda a parte direita do corpo, desde a cabeça rapada à ponta dos dedos da mão e do pé. Mas, à parte isso, ele era muito parecido com Johnny, um homem pequeno, muito bem constituído e de perspicazes olhos cinzentos. A sua boca era dura; não tinha o sorriso encantador do filho. As únicas vezes que havia alguma doçura nas suas feições era quando olhava para Liadan e, mesmo então, eu achava que ele não queria que outros vissem tal fraqueza na sua imagem severa. Mas revelava-se através de pequenos toques, pequenos olhares. Era evidente que não conseguiam estar muito tempo longe um do outro. E ele procurava sempre solenemente a opinião dela; tratava-a sempre como igual, devendo sempre ser consultada e respeitada. Eu não gostava muito dele, mas gostava daquilo.

 

Havia um círculo restrito, um grupo de homens mais idosos que parecia representar o papel principal nos conselhos e tomada de decisões e que tinham o controlo de vários aspectos da campanha. As visitas do Chefe eram raras; o seu domínio de Harrowfield necessitava da sua presença e ele e Liadan passavam a maior parte do seu tempo em casa, em Northumbria. Era esse grupo de homens, liderado por Johnny, que dirigia o trabalho em Inis Eala. Uma coisa que partilhavam era os nomes estranhos, que não eram nomes de homens, mas sim de animais selvagens. Além de Gull, o curandeiro, e de Snake, que tratava dos assuntos da guerra, havia guerreiros chamados Spider, Rot, ou Wolf. Os mais novos não tinham tal pretensão, se bem que os seus nomes tivessem uma variedade de origens muito grande: Corentin, Sigurd e Waerfrith; Mikka, Gareth e Godric. Algum tempo depois, Biddy explicou-me amavelmente que nos velhos tempos, quando o Chefe fundou a sua força de guerra, os homens que se juntaram a ele puseram de lado os nomes que traziam e assumiram uma nova identidade. Os seus nomes de animais não diziam nada acerca das suas origens, ou história; só falavam das qualidades de cada um, como por exemplo a lealdade de um cão, ou a habilidade de uma gaivota para voar e ver longe. A esses nomes juntavam uma marca própria: a tatuagem gravada na pele, que era ao mesmo tempo um símbolo de pertença e de feroz individualidade. Agora, que já tinham assentado, por assim dizer, já não precisavam dos nomes; mas até os mais novos tinham as tatuagens. Podia saber-se quem estivera com o Chefe desde o princípio pelos nomes. E podia saber-se quem provara ter valor pela pele. Todos respondiam perante Johnny; a sua juventude não era impedimento à sua autoridade.

 

Havia trabalho para mim. A escrita, por exemplo. Demonstrei a minha capacidade quando me exigiram e foram-me designadas tarefas. Nada que dissesse respeito à estratégia e coisas da guerra, claro; nada que dissesse respeito à campanha do Verão ou a outro assunto secreto. O padre e o druida tratavam desses assuntos. Nem me foram dados mapas para que trabalhasse neles, se bem que os mapas e as cartas marítimas fossem muito usados pelo círculo restrito. No entanto, havia livros para serem copiados, cartas que diziam respeito a importações domésticas e registos para serem arquivados. Havia as contas da comunidade, um trabalho entediante, mas que, para mim, era tão fácil que até o podia fazer de olhos fechados e ainda receber elogios. Faziam-me perguntas acerca de quem me tinha ensinado, eu dizia-lhes que fora um druida e tentava não pensar no meu pai.

 

E como mencionara, tolamente, crianças, fiquei encarregue do meu primo Coll. Fora ideia de Johnny, não da sua mãe. Talvez, pensei sinistramente, fosse uma espécie de teste. Descobri rapidamente que os rapazes são algo diferentes das raparigas. Não se pode esperar que escutem histórias como as que eu tinha no meu repertório, nem que mordam a língua de concentração a costurar, ou que brinquem com bonecas. Na verdade, eu própria nunca fizera tais coisas quando era criança. Riona sempre me parecera mais uma companheira de aventuras do que uma coisa para brincar. Estávamos no Inverno e Coll andava inquieto. Era demasiado novo para aprender as artes da guerra; não se concentrava durante muito tempo na aprendizagem das letras com o estilete e a cera; achava o jogo das pedras aborrecido; não gostava de tocar assobio. Em vez disso, ia até à janela fechada, espreitava pelas gretas para a tempestade no exterior e suspirava pesadamente. Eu via nos seus olhos o anseio do Verão, que fazia eco em mim própria como muitas vezes antes.

 

Estava a tentar copiar um livro acerca do conhecimento das ervas. Era em Latim e eu ia traduzindo enquanto escrevia, o que requeria muita concentração. Coll estava sempre a interromper. Conseguia imaginá-lo com Eilis. No fim, pousei a pena e fui ter com ele à janela.

 

Quando o tempo melhorar disse eu esperançosa, olhando para o exterior, para o céu cinzento talvez me possas mostrar o resto da ilha. Aposto que há grutas e praias visitadas pelas sereias. Costumas ir até à ponta? No exterior, a paisagem estava velada por uma cortina de nevoeiro e chuva.

 

Às vezes disse ele cautelosamente.

 

Só às vezes? É muito perigoso? As falésias, lá, eram, certamente, mais altas. As vagas explodiam, brancas, quando rebentavam nas rochas. Porém, não eram mais íngremes do que no Favo de Mel.

 

Claro que não disse Coll de imediato, franzindo o sobrolho. Realmente, ele era muito parecido com o tio Sean; um rosto longo e magro, sobrancelhas escuras e cabelos pretos encaracolados. Olhei para ele muito séria. Mais um como Sibeal? Certamente que não. Este era... era... bem, para dizer a verdade, ele era muito rapaz. Lembrei-me de uma coisa que a minha avó me disse uma vez acerca dos filhos que poderiam ter nascido se o meu pai tivesse escolhido Liadan em vez da irmã. Se Liadan tivesse tido uma filha, pensei cautelosamente, poderia, então, ter gostado bastante dela.

 

Aonde é que vais, então?

 

Há pequenas baías no lado oeste. Há uma falésia com papagaios do mar. Grutas, túneis. Às vezes, as sereias aparecem. Está-se lá bem. Ele franziu o sobrolho. Mas acho que tu não consegues lá ir. Tens que descer até ao fundo.

 

Ficarias espantado disse eu friamente. No sítio onde eu cresci, é preciso descer por falésias como essas sempre, que se precisa de água. Eu sou ágil como uma cabra.

 

Coll não parecia convencido.

 

Mas, tu não passas de uma rapariga.

 

Hum. Bem, o meu melhor amigo era um rapaz e tudo o que ele fazia, também eu fazia. Aquilo era tão pouco verdadeiro que me senti na obrigação de emendar: Excepto a nadar. E com a música, e com os cavalos.

 

E ele era capaz de fazer tudo o que tu fazias? Tentei sorrir.

 

Nem tudo disse-lhe.

 

Depois daquela conversa, Coll e eu tornámo-nos amigos e, juntos, contámos os dias até as tempestades de Inverno amainarem e o céu ficar límpido de novo, com os tons cor de pérola de Imbolc. Chegámos a uma espécie de acordo. Ele aperfeiçoaria as letras durante um certo tempo, ao mesmo tempo que eu trabalhava com a pena. Corrigir-lhe-ia o trabalho. Então, à vez, contaríamos uma história inventada por cada um de nós acerca de um rapaz que viajava para terras estranhas num pequeno barco e vivia toda a espécie de aventuras. Coll confiava plenamente, com a segurança inocente de uma criança de sete anos, que seria essa a sua vida dentro de alguns anos; não apenas as viagens, mas também a descoberta de ilhas exóticas e as lutas com monstros marinhos, que venceria e talvez até casasse com uma princesa, mas isso só quando já fosse bastante velho, pelo menos vinte e um anos, porque se estaria a divertir muito

 

O tempo passou. O amuleto mantinha-se fresco ao toque e eu perdera o receio constante de que a minha avó pudesse surgir inesperadamente, talvez para me ralhar por ter libertado Johnny do feitiço. Cautelosamente, perguntava a mim própria se aquele local seria seguro. Talvez fosse essa a razão porque ela não me queria ali. Ela dissera algo acerca de influências. Mas não havia sinal algum de gente do Outro Mundo. Nem os grandes, nem os mais pequenos se tinham manifestado desde que eu saíra de Sevenwaters. Havia apenas um forte contingente de humanos extremamente capazes, uma grande quantidade de armas de aspecto perigoso, o vento e o mar. Não havia cavalos na ilha; estes eram guardados na aldeia, no outro lado. E não havia cães, sequer, para ajudar a guardar os carneiros e as cabras. Havia um gato, que pairava na cozinha e estava sempre debaixo dos pés de Biddy. Era um dos animais mais estranhos que eu jamais vira, com uma pequena concavidade no sítio onde devia estar a cauda e saltitava quase como um coelho. Coll disse-me que ele viera da ilha de Manannan, onde todos os gatos eram assim. Quando ergui as sobrancelhas, descrente, ele disse que toda a gente sabia da história. Fora obra dos Finn-ghaill, com a sua propensão para adornarem tudo o que usavam na cabeça. Tinham desenvolvido a moda de pendurar caudas de gato nos elmos, como uma espécie de pluma, às manchas, listradas, ou brancas. E as costas de Man estavam agora cheias de aldeias viquingues. Por isso, as gatas cortavam as caudas das crias mal nasciam, para evitar a crueldade que lhes seria imposta mais tarde. Era uma história interessante e não menos plausível do que qualquer uma das minhas.

 

À parte Coll, a família mantinha-se afastada. O Chefe não era um homem com quem se fizesse amizade facilmente, e eu sentia-me satisfeita por ele limitar o seu discurso comigo a um cumprimento de quando em quando, ou um aceno brusco de cabeça ao passar. Porém, eu sabia o suficiente para constatar que, enquanto ele estivesse em Inis Eala, nada aconteceria sem o seu conhecimento. Johnny era o mais amigável. Tinha sempre um sorriso e uma palavra amável para mim e brincava com o seu pequeno irmão por este monopolizar a rapariga mais bonita da ilha, o que demonstrava quão poucas raparigas existiam lá, na realidade Johnny nunca mencionou o que acontecera entre nós durante a viagem para Norte e eu tão-pouco. Era-me impossível saber se ele ainda acreditava que o feitiço fora obra minha. O outro irmão, Cormack, andava tão intensamente envolvido no treino e no fabrico de armas, que não tinha tempo para conversar. Dizia-se que ele era tão bom como o pai no combate corpo-a-corpo e só tinha catorze anos.

 

E havia Liadan. Ouvira o que ela dissera acerca do seu desejo de querer ter uma filha, e eu pressentia que ela gostaria de conversar comigo, talvez acerca da minha mãe e dos seus tempos de infância. Mas ela andava ansiosa. Parecia-me que contava os dias que faltavam para o Verão, do mesmo modo que eu, mas as suas feições pálidas pareciam serenas e os seus olhos verdes muito solenes. Os seus homens só pensavam em desafios, conflitos e vitórias. Eu achava que Liadan pressentia um Verão que lhe traria sangue e perda, como em tempos lhe tinham dito. Receava por todos, mas, especialmente, por Johnny. Observava-o com olhos sombrios. A minha tia não me fez qualquer pergunta incómoda, talvez por saber que não obteria resposta. No entanto, permitiu que eu me tornasse amiga do filho mais novo. Era a presença dele, irrequieta, questionadora e simples, que me permitia passar o Inverno num razoável estado de espírito. Isso e o silêncio da minha avó.

 

A estação decorreu chuvosa e tempestuosa, com noites gélidas, e quanto mais a Primavera se aproximava, mais clara se tornava, na minha mente, a tarefa a meu cargo. Para satisfazer a minha avó, tinha de permanecer ali até os aliados vencerem o inimigo. Assim, tinha de tomar as medidas necessárias para que a vitória não acontecesse. Eu achava que era capaz de transformar um exército de homens num exército de sapos, apesar de a utilização desse feitiço, numa escala tão grande, estivesse, provavelmente, para além das minhas capacidades. Ou podia fazê-lo de um modo mais simples, como ela sugerira. Podia matar o Filho da Profecia. Não havia dúvida alguma de que, sem ele, a empresa não teria sucesso, mesmo que ele perdesse a vida no auge da batalha. No fim de contas, uma profecia era uma profecia e todos dependiam dela. Por que outra razão era Johnny que conduzia a campanha em vez de Sean de Sevenwaters, ou um chefe de guerra dos Uí Néill, ou até mesmo Bran de Harrowfield, que era um homem que nunca fora vencido? Por que não Eamonn, de Glencarnagh, o líder rico e influente? Mas aquela campanha não seria vulgar, não seria uma mera disputa territorial rapidamente resolvida. Era uma luta antiga, cheia de mistério e de simbolismo pesado. Eles tinham falhado contra os Bretões, no passado, porque não tinham Johnny. Só podiam vencer se o Filho da Profecia estivesse presente para os chefiar. Toda a gente sabia isso. Se perdessem o Filho da Profecia, perderiam a coragem e a esperança.

 

Muito bem, então. Teria de fingir colaborar com o plano da minha avó até ao fim. Usaria o amuleto mesmo até ao fim; desse modo, ela acreditaria que continuava a dominar-me. Então, quando chegasse a ocasião, em vez de fazer o que ela queria, desafiá-la-ia; teria de me interpor entre ela e Johnny, para que ele pudesse vencer e salvar as Ilhas. Suponho que me castigará. Se me matar, talvez eu o mereça pelas coisas más que fiz.

 

Matutei naquilo, segurando a pena, imóvel, por cima do manuscrito. A batalha desenrolar-se-ia nas Ilhas; estas estavam próximas das terras dos Noruegueses e das dos gatos sem cauda. Uma longa viagem. Muito longe de Kerry e da propriedade de O’Flaherty em Ceann Na Mara. Ainda bem. Os barcos teriam uma longa viagem pela frente. Haveria, certamente, uma escala na rota, um qualquer porto seguro, onde as forças do Chefe se reuniriam às de Sean, de Eamonn e dos Uí Néill para o ataque final. Depois, haveria uma travessia a nado; uma travessia perigosa, a partir de um local a que eles chamavam Needle, para afundarem a armada dos Bretões. Um golpe de mestre, se conseguissem. Todos apostavam nisso. Então, suponho que fariam a travessia nos barcos, atracariam e chacinariam o inimigo. Certamente, não era o tipo de feito para o qual os homens levassem uma jovem prima. Para estar lá, precisaria de um outro tipo de transformação. Traças não. Desta vez, não. E também não tinha ajuda; os meus amigos Fomhóire parecia terem-me abandonado. No entanto, sentia-me capaz de o fazer. Escolheria outra forma, acompanharia a missão do Chefe e então... então, teria de regressar à minha forma e, durante uns tempos, estaria demasiado fraca para usar a arte. Era essa a grande falha no meu plano. Não fazia ideia alguma de quanto tempo duraria tal batalha; quão bem armados estariam os Bretões, quão difícil seria o terreno e que efeito a perda da sua armada poderia ter na determinação do inimigo. Não sabia durante quanto tempo a minha avó estaria disposta a vigiar-me e a esperar que eu agisse. Teria de voltar à minha forma e esconder-me até recuperar as forças. Johnny era capaz de ganhar a batalha sozinho. Eu via-lhe isso nos olhos. Mas, no fim, a minha avó acabaria por aparecer e ele precisaria de mim; e sem a arte eu não era nada.

 

O treino no mar estava a começar, com ou sem tempestades. Já não havia navios semiconstruídos nos abrigos, antes pequenos barcos de muitos tipos fundeados na pequena praia, ou no ancoradouro da baía. Cada vez havia menos homens; soube que a partir de agora e até ao Verão, nenhum regressaria a Inis Eala. Todos os recursos iam para a campanha. Todos os homens trabalhavam com esse propósito e cada um tinha um papel a desempenhar. Havia travessias todos os dias, desde que o mar o permitisse, e um grande movimento de homens e provisões.

 

Por vezes, quando não estava a chover, Coll e eu sentávamo-nos na falésia e ficávamos a olhar para aquilo tudo. Para ele era um intervalo agradável na sua luta contra a escrita, apesar de ser um rapaz inteligente. Para mim era agradável estar ao ar livre e sentir o vento nos cabelos. Gull deixara a responsabilidade da enfermaria para Liadan e agora trabalhava o dia todo nos barcos. A sua figura escura podia ser vista movendo-se agilmente nas docas e a sua voz chegava-nos trazida pelo vento, dando ordens curtas no convés. Parecia ensaiarem uma manobra particular, para norte da ponta do promontório atingida pela maré, entre ilhotas rochosas. O pequeno barco, remado por seis homens, mantinha-se para lá do redemoinho da corrente, os remos usados com grande habilidade para o manter imóvel até receberem uma ordem, deixando depois que a maré os transportasse para mar aberto. Praticaram aquilo vezes sem conta, indo e vindo e uma vez vi um homem na água gelada, nadando, com os outros inclinando-se para o puxarem para dentro do barco. Apesar da distância, identifiquei Johnny.

 

O teu irmão é um grande nadador observei, ajustando o xaile em redor dos ombros por causa do vento.

 

Também eu respondeu Coll imediatamente. Quando for grande, vou ser melhor do que ele. Vou nadar daqui até à outra margem. Nunca ninguém fez isso.

 

Fez-me lembrar Eilis. Talvez aquela espécie de confidência existisse em todas as famílias.

 

Tu sabes nadar? perguntou Coll. Abanei a cabeça.

 

Não gosto muito da água.

 

Se quiseres, eu ensino-te. No Verão. Se quiseres.

 

Apercebi-me, pelo seu tom de voz, que aquele era um gesto extremamente generoso.

 

Obrigada disse eu solenemente. Talvez. Não sei bem se sou capaz de aprender.

 

Toda a gente pode aprender disse Coll. É fácil. Como andar a cavalo, pensei.

 

Vais precisar de saber nadar se vais viver aqui observou ele.

 

Não me parece. Depois do Verão, já não.

 

Não foi isso que Johnny disse. Ele disse que tu ias casar com um dos rapazes, provavelmente com Corentin, porque ele é inteligente e fala três línguas, mas talvez também com Gareth, porque ele é um sujeito simpático e paciente e que ficarias aqui na ilha. Foi o que ele disse. Mas não precisas de casar com eles se não quiseres acrescentou ele apressadamente, sem dúvida ao ver a minha expressão de incredulidade.

 

Fui salva da resposta pela chegada inesperada do Chefe, que se dirigia na nossa direcção vindo do pátio de treino.

 

Coll! Tenho um recado para ti, filho. Vai ao cais e espera que Gull regresse. Diz-lhe que as provisões já chegaram à aldeia. Ele há-de querer mandar alguém com um barco maior.

 

Sim, Chefe. Havia um olhar de orgulho no rosto de Coll enquanto descia rapidamente pelo carreiro abaixo, rápido como um cabrito. Eu fiz menção de me levantar e ir-me embora, mas o Chefe fez-me parar e surpreendeu-me, sentando-se a meu lado nas rochas e olhando para a baía. Seguiu-se um pequeno silêncio, silêncio esse que me fez aperceber que ele mandara Coll embora com essa finalidade.

 

Os seus homens vão estar bem preparados para a campanha comentei eu casualmente. Gull está a treiná-los arduamente na arte da marinharia.

 

Os homens de Johnny, não os meus disse o Chefe calmamente. Harrowfield não tem nada a ver com isto; sempre esteve à parte desta luta. Mas tens razão acerca de Gull. A sua perícia com barcos pequenos é inultrapassável. Os seus olhos cinzentos estavam fixos no barco que flutuava entre os ilhéus. Cada um daqueles homens é o melhor no que faz.

 

No entanto, é espantoso como um homem com tão poucos dedos consegue fazer tanta coisa. Isso deve exigir uma imensa força de vontade.

 

É verdade.

 

Ele parecia bastante amistoso. Pensei que podia atrever-me a fazer-lhe outra pergunta.

 

Como é que ele... como é que Gull perdeu os dedos?

 

A boca cerrada do Chefe distendeu-se num sorriso um tanto ou quanto desagradável.

 

Um homem chamado Eamonn cortou-lhos com uma faca disse ele em voz baixa.

 

Fiquei gelada.

 

O quê? murmurei.

 

Aconteceu numa tentativa para conseguir informações acerca de mim. Eamonn queria ver-nos a ambos suplicar por misericórdia, antes de acabar connosco. Liadan nunca te poderia dizer isto, nem sequer o próprio Gull. A minha mulher prometeu a Eamonn o seu silêncio e Gull já pôs isso tudo para trás das costas. Mas eu acho que algumas promessas são feitas para serem quebradas. É bom que saibas isso. O homem com quem pensavas casar é um carniceiro, Fainne. As suas mãos cheiram a sangue e traição. Acredito que esta história nunca será contada; poucos a conhecem. Estás melhor longe dele e tens de te manter assim.

 

Mas... ia eu a dizer, mas o homem parecia ser bom e honrado. Ia a dizer que ele era um chefe respeitado e aliado do seu filho. Mas lembrei-me do que Eamonn dissera acerca do Homem Pintado, lembrei-me do brilho dos seus olhos quando se apercebeu de que eu poderia vingá-lo e, por isso, calei-me.

 

Se o teu pai quer um bom casamento para ti continuou o Chefe sempre a olhar para o local onde os homens deslizavam suavemente do barco para a água gelada, enquanto outros tentavam mantê-lo firme não precisa de procurar fora de Inis Eala. Surpreender-me-ia muito se Cearán ligasse a grandes aparatos, como a riqueza, a respeitabilidade, ou grandes propriedades. Ele gostaria de um bom homem para ti, um homem firme e aqui há muito por onde escolher. Terás pretendentes. Ainda não, claro; ainda não ninguém lhes disse, não pode haver namoros antes do Verão e eles obedecem às regras. Mas mais tarde, haverá oportunidades. E há trabalho para ti, aqui. A comunidade tem falta de gente letrada.

 

Fala do meu pai como se o conhecesse disse eu surpreendida.

 

Estive uma vez com ele. E com a tua mãe. Há muito tempo, muito antes de tu nasceres.

 

Im... importa-se de me falar disso?

 

Não te posso dizer tudo. Mas fiquei impressionado com Ciarán. Um jovem de força considerável; pelo menos, foi o que depreendi. Um homem assolado por grandes paixões, creio; amor, raiva, determinação. Nós encontrámo-nos numas circunstâncias muito difíceis.

 

E a minha mãe?

 

Ele pensou por um momento antes de responder. A sua mão continuou apoiada na rocha a seu lado; o desenho complexo percorria-lhe a pele como se fosse uma linguagem antiga, críptica.

 

As circunstâncias também eram pouco... vulgares. Mas ela não era nada parecida com a irmã.

 

Quer dizer disse eu amargamente que era fraca, estúpida e egoísta? Que a beleza era a sua única qualidade?

 

O Chefe virou a cabeça para mim. Os seus olhos estavam muito sérios; pareciam julgar-me.

 

Toda a gente tem uma coisa única disse ele. Em algumas pessoas, essa qualidade tarda em se afirmar. Eu nunca julgaria um homem, ou uma mulher dessa maneira, Fainne. A tua mãe estava sob uma grande pressão quando eu fui incumbido de a tirar de onde estava. Ela era muito bela, sim, de uma beleza digna de uma história. Mas também estava confusa, ferida e assustada e a aparência de Gull, assim como a minha, pouco fizeram para a tranquilizar. Depois disso, deixámos de ver Niamh. Ciarán tratou de que fosse assim. Mas posso dizer-te três coisas totalmente verdadeiras. A tua mãe era uma mulher extremamente corajosa. Uma pessoa que, como ela, vive persistentemente debaixo de um medo terrível, mostra mais bravura do que um guerreiro que vai para uma batalha sem pensar nas consequências. Ela amava profundamente Ciarán. Havia uma ligação entre eles que durou até ao fim, apesar de tudo. Uma ligação tão forte como... ele parou.

 

Tão forte como a que há entre si e Liadan? perguntei eu suavemente.

 

Ele acenou com a cabeça.

 

Qual é a terceira coisa? perguntei.

 

Essa pode magoar-te. Ouvimos dizer que ela se matou. Eu sei julgar os homens, Fainne, e as mulheres. Vi o olhar da tua mãe quando percebeu que estava salva, por fim, e que Ciarán iria buscá-la. Não era o olhar de uma mulher que deita fora uma inesperada segunda oportunidade. Quem te disse que ela se matou, mentiu-te.

 

O meu pai acredita que sim disse eu com a voz a tremer. Como é possível não ter sido assim?

 

Ficaste perturbada. Lamento. Mas devias ponderar nalgumas possibilidades. Se uma tal morte tivesse acontecido na minha própria casa, eu teria investigado intensamente. Uma queda de uma falésia, sem testemunhas, pode ser muita coisa. Suicídio, certamente. Mas também pode ser um acidente. Ou um assassínio.

 

Um assassínio? Isso não é possível. Não estava lá ninguém senão nós e eu era uma criança. Não está a sugerir...

 

Não, não estou. A tua mãe era o tesouro mais precioso de Ciarán. Porém, devias ter em atenção as minhas dúvidas. Eu não acredito que ela quisesse abandoná-lo alguma vez; ou que o tenha abandonado.

 

Fiquei ali quieta, a olhar para o mar enquanto sentia a cabeça encher-se com as lágrimas de uma dor antiga.

 

Houve uma época disse o Chefe calmamente em que eu jurei que nunca seguiria esse caminho, o caminho da família e da comunidade, por causa dos perigos. Os laços do amor são muito fortes. Transportam uma dor muito maior do que qualquer dor física; dilemas insolúveis, que deixam apenas angústia e perda.

 

Mas você seguiu-o, na mesma. O caminho. Ele acenou com a cabeça.

 

E não me arrependo. Mas, agora, é preciso evitar que fiquemos paralisados pelo medo. Os meus filhos falam muito bem de ti, Fainne. Respeitam-te.

 

Não respondi.

 

Eu confio na opinião de Johnny. Ele acha que devias ficar aqui connosco.

 

Mas?

 

Não posso deixar de pensar na desconfiança de Liadan. As suas visões deixam-na pouco à-vontade; e não fala delas. Eu compreendo, porque nem sempre a Visão mostra a verdade e agir de acordo com as suas mensagens seria como andar à deriva num mar de terror. Mas o que ela vê não a deixa dormir de noite. Custa-me acreditar que ela tenha medo de ti; no entanto, é o que parece. Assim, e a despeito da minha opinião, devo deixar claro uma coisa. Quem tenta fazer mal à minha mulher, ou aos meus filhos, tem de se haver comigo.

 

Os medos dela são infundados. À medida que falava, sentia o peso do amuleto suspenso no meu pescoço.

 

Nesse caso, por que não lho dizes?

 

Não sei se ela acreditará em mim disse eu em voz baixa.

 

Estávamos perto de Imbolc, o festival que anuncia a Primavera e eu já estava em Inis Eala há tempo suficiente para saber os nomes das pessoas e ganhar um pouco mais da sua confiança. Também descobrira que Johnny não fazia ameaças em vão. Um dos jovens, ainda pouco habituado à vida da ilha, cometera o erro de tentar visitar uma rapariga sem ser convidado, à noite. Não testemunhei o que aconteceu entre ele e o seu líder, mas vi-o deixar a ilha sob escolta no dia seguinte, o rosto cor de cinza e os olhos traindo a angústia que sentia por esse erro tolo lhe ter tirado a oportunidade de fazer parte daquilo tudo. Era a única maneira, disse-me Johnny. E não havia perigo de aquele homem dizer o que vira. Fazia parte do treino, aprender sobre o destino que podia esperar aquele que fosse suficientemente estúpido para revelar qualquer segredo. O braço do Homem Pintado chegava longe.

 

Depois disso, os jovens ficaram muito tranquilos durante um dia ou dois. O moreno e belo Corentin, que me oferecera cerveja variadas vezes e me falara da vida na sua Armórica natal, evitava-me. Quando ao sorridente Gareth, que era uma dos maiores amigos de Johnny, vivia sempre segundo as regras. O máximo que fazia era olhar para mim de relance, timidamente, de vez em quando. Agora, até ele era sombrio. Todos eles sabiam que tais coisas podiam esperar. Sam e Ciem tinham planos para o Outono; um casaria com Brenna, a alfageme e ou outro com Annie, a jovem cozinheira. Para aquela gente, a vida, por vezes, podia ser difícil, mas, pelo menos, era honesta.

 

Consciente do pouco à-vontade que reinava no acampamento, Johnny propôs uma viagem à outra banda para ir buscar provisões. Se bem que pudéssemos subsistir à base de peixe, cabrito e couves, cenouras e alho-porro bravo do jardim murado, não podíamos cultivar cereais na ilha, nem tínhamos gado, por isso era necessário, por vezes, comprar aveia ou cevada, queijo ou manteiga. E havia necessidade de provisões mais especializadas. Desta vez, Brenna iria à outra banda para trazer algum equipamento que encomendara e, por isso, eu também fui autorizada a ir, já que era mais decente viajarmos juntas. Era interessante como Johnny não via necessidade de uma acompanhante, como, por exemplo, Biddy, ou outra das mulheres mais velhas. Era deliberado, pensei; assim, mostrava àqueles jovens que, apesar do que acontecera, confiava neles.

 

O dia estava límpido e o mar agitado. Brenna ia conversando animadamente enquanto o barco subia e descia e eu, de dentes cerrados, mantinha os olhos na costa do outro lado, até que, por fim, a viagem terminou até chegar a hora de regressar. A escolha de Gareth e Corentin, por parte de Johnny, para nos guardarem, fora, talvez, um pouco cruel. Ambos iam armados até aos dentes. Brenna desatou o fardo que esperava por ela no armazém e começou uma inspecção apertada do conteúdo, murmurando para si própria. Eu observava Johnny, Godric e os outros, enquanto colocavam sobre os ombros vários pacotes e se dirigiam para o barco. A aldeia estava muito ocupada devido às carroças de mantimentos que tinham chegado recentemente; havia homens armados por toda a parte. Snake não corria riscos e mantinha uma força considerável naquele lado da água. Nenhum barco atravessava o canal e ninguém entrava sem autorização naquele lugar fortificado. Brenna não se apressava. Sentei-me num banco no exterior, gozando o dia límpido e achando o ar um pouco quente de mais. Os meus pensamentos regressaram à ilha. Em breve teria de me aventurar e descobrir um lugar secreto para aperfeiçoar a transformação e avivar as minhas capacidades para a tarefa à minha frente. Talvez no dia seguinte, ou no dia a seguir.

 

Fainne? Dei um pulo ao ouvir a voz de Johnny.

 

Chegou a hora de partir? perguntei, levantando-me.

 

Ainda não. Os rapazes hão-de querer primeiro uma caneca de cerveja. Está além um tipo que diz conhecer-te.

 

Um tipo? Que tipo? Deve ser engano. Não conheço ninguém. Johnny sorriu.

 

Tenho um pressentimento de que conheces este. Ele foi muito persistente.

 

Senti um arrepio pela espinha abaixo. Segui o meu primo, sem uma palavra, até onde estava amarrado um par de velhos cavalos, junto a uma fila de carroças. E ali, afagando o focinho de uma feia égua baia, estava um sujeito escanzelado, de cabelos pretos até aos ombros, um assomo de barba e uma argola de ouro numa das orelhas.

 

Olá, Caracóis disse Darragh.

 

Senti um baque no coração, que foi mais de horror do que de alegria. Se tivesse sido capaz, talvez tivesse dito a Johnny que o homem era um completo estranho para mim e ter-lhe-ia pedido que o mandasse embora. Mas nem sequer tinha voz; fiquei ali a olhar. E, subitamente, Johnny tinha desaparecido juntamente com o hesitante Corentin. Amaldiçoei o tacto do meu primo.

 

Estás com bom aspecto disse Darragh. Consegui, finalmente, falar.

 

Que estás a fazer aqui? Não devias estar aqui! Onde está Aoife? Houve uma pausa.

 

Vendi-a disse ele.

 

Não podia estar a ouvir bem. Vendera-a, a bela Aoife, que fazia tanto parte dele que até parecia meio-humana? Aoife, que lhe dava tanta sorte?

 

Vendeste-a? repeti. Impossível. Darragh olhou para o chão.

 

Um homem não rompe um contrato de trabalho e não percorre meio Erin sem ter com quê, Fainne. O acordo foi esse. O’Flaherty ficou com a égua. Ela há-de ser bem tratada.

 

Mas, porquê?

 

Silêncio. Ele olhou para mim e depois para longe. Pensei ver nos seus olhos uma nova mágoa, como se duvidasse da sabedoria da sua escolha.

 

Aqui não há nada para ti disse eu num sussurro feroz, furiosa com ele por ter vindo e comigo própria pelos sentimentos que se atropelavam dentro de mim, sentimentos que não tinham nada a ver com a filha de um feiticeiro quando esta tinha coisas mais importantes pela frente. Não devias ter vindo. É perigoso. Tens de ir para casa, Darragh. Imediatamente.

 

Ah disse ele como que por acaso, mas eu podia ver a sua mão a tremer enquanto afagava o longo focinho do cavalo com dedos gentis. Creio que não vou fazer isso.

 

Tens de fazer! disse eu com firmeza Não podes ficar aqui! Vais arruinar tudo! Tens de partir imediatamente! Não posso fazer nada contigo aqui...

 

Fazer o quê, Caracóis?

 

Fazer o que tenho de fazer. Por favor, Darragh, por favor, se gostas um bocadinho de mim, vai-te embora, depressa, antes... antes... Antes que a minha avó te veja. Mas não podia dizer aquilo.

 

Sabes, não é assim tão simples.

 

Por que não? Olhei para ele. Darragh olhou para cima, para além do meu ombro e, subitamente, lá estavam eles, quatro, Johnny e Gareth, Godric e Corentin, armados até aos dentes e com um aspecto feroz. Todos eles tinham a sua tatuagem especial no rosto; todos eles pareciam prontos a matar. Comparado com eles, Darragh era... uma espécie de cotovia no meio de aves de rapina. Exactamente no sítio errado. Certamente que até ele via isso.

 

Amigo teu? perguntou Johnny, com um sorriso que não atingia os olhos.

 

Conheço um pouco este jovem disse eu rigidamente. Há muito tempo.

 

Como te chamas? O olhar de Johnny era extremamente perscrutador. Achei o seu comportamento um pouco estranho. Não falara ele já com Darragh?

 

Darragh, filho de Dan Walker, de Kerry.

 

E qual é a causa da tua viagem até estas bandas? Surpreende-me que venhas até tão longe.

 

Darragh olhou de relance para mim.

 

Pode-se dizer que vim à procura de uma velha amiga. Ajudei um homem com um cavalo, no caminho; apanhei uma boleia.

 

Johnny não fez qualquer comentário. Limitou-se a esperar. Por trás dele, Gareth mexeu-se pouco à-vontade e ouviu-se o tinir de metal.

 

Ouvi dizer disse Darragh ouvi dizer que poderiam precisar de homens, por estas bandas. Uma campanha qualquer. Vim oferecer os meus serviços.

 

O quê? exclamei eu, chocada, antes de me poder conter. Os companheiros de Johnny não fizeram qualquer tentativa para conter o divertimento.

 

Estou a ver disse Johnny polidamente. E que sabes tu fazer, que aches que nos pode ser útil?

 

Nada! disse eu rapidamente antes que Darragh pudesse abrir a boca para responder. A minha voz não tinha nada de firme. Nada! Este homem não sabe lutar, não sabe como usar uma arma, nunca matou ninguém na vida. Ser-te-ia completamente inútil. Acredita no que te digo.

 

Johnny olhou para mim calmamente e depois para Darragh.

 

Ouviste a dama disse ele. Nós, aqui, precisamos de guerreiros. Não creio que te possamos utilizar, a não ser que saibas fazer outra coisa qualquer.

 

Sei tocar gaita-de-foles disse Darragh. E tenho jeito para cavalos. Os guerreiros precisam de cavalos.

 

Desta vez, não disse Johnny. Esta campanha será por mar. Talvez encontres trabalho nos estábulos deste lado, se demonstrares capacidades.

 

Não. A voz de Darragh era áspera. Olhei para ele, espantada. Não veria ele que era impossível? Como estava a ser tolo? Perdera o senso-comum? Isso não me serve. Quero ir para a ilha. Posso aprender a lutar. Serei bom aluno. Você parece-me boa pessoa. Dê-me uma oportunidade, ao menos.

 

Johnny olhou de alto a baixo para ele.

 

Não me parece disse ele.

 

É muito fino para ter o filho de um latoeiro no seu bando? Eu não tenho vergonha de ser filho de um nómada. E provarei o meu valor.

 

Em Inis Eala disse Johnny, que agora olhava para Darragh intensamente estamo-nos nas tintas para as origens dos nossos homens. O que eles têm para oferecer é que conta. De onde vens?

 

De Oeste. De Ceann Na Mara.

 

Estou a ver. És persistente. Mas, como a minha prima aqui acaba de dizer, tu não és um guerreiro; e um músico, se bem que desejável, não é uma das minhas prioridades. Tens a certeza de que não sabes fazer mais nada?

 

Não digas, Darragh, disse-lhe eu em pensamento.

 

Sei nadar disse Darragh. Um pouco.

 

Já ouvi dizer disse Johnny suavemente. Bem, vou pensar. Talvez volte aqui antes do Verão. Se ainda estiveres por aqui, talvez voltemos a falar. E, girando nos calcanhares, encaminhou-se para o barco, onde Brenna estava a supervisionar o carregamento do seu precioso fardo. Segui o meu primo cegamente, fazendo um esforço para respirar calmamente e para não olhar para trás. Fora uma coisa cruel, talvez; mas fora a decisão certa. Darragh não podia ir connosco. Não podia.

 

Os homens tiveram que remar com força contra a maré, no regresso e progredimos com lentidão. A minha mente estava perturbada e o meu coração pesado. Era uma tolice, mas o que mais me perturbava era não me ter despedido do meu amigo. Pelo menos, podia ter-lhe dito uma palavra amável; um aperto de mão, ou um beijo no rosto. Teria preferido nunca mais o ver, a encontrá-lo assim e não me despedir.

 

Os homens remavam com força de costas para a ilha e iam a falar de coisas a que eu não estava a prestar muita atenção.

 

Tipo teimoso observou Corentin.

 

É preciso ser maluco para tentar semelhante coisa sorriu Godric. E contra a maré.

 

Johnny ia calado. Limitava-se a olhar para trás, para o local de onde saíramos, com o mesmo olhar calculista que eu vira no seu pai. Lembrei-me de ele dizer que era capaz de avaliar o carácter de um homem, ou de uma mulher. Olhei para ele e senti-me gelar de horror ao perceber o significado das suas palavras. Virei-me e olhei para trás.

 

Algures, entre o nosso pequeno barco e a costa, uma cabeça escura aparecia e desaparecia de vista nas águas agitadas. Ágil como uma sereia, aparecia para respirar e desaparecia depois nas águas turbulentas, para aparecer novamente após uma espera de fazer parar o coração.

 

Lembro-me de tu dizeres que ele era um óptimo nadador observou Johnny. É o que vamos saber daqui a pouco.

 

Agarrei o braço de Brenna, aterrorizada. E as serpentes do mar? E o frio? E Coll não dissera que nunca ninguém o tinha feito?

 

Johnny disse eu em voz baixa. É uma distância muito grande. Não vais...?

 

Todos os homens devem passar por um teste. Mas, achas que deixaria o teu namorado morrer afogado? Além disso, precisamos dele. A meio caminho, talvez, ou um pouco depois. Ele já percorreu uma distância maior do que qualquer um de nós e continua com uma boa braçada. Recolhemos os remos além, perto daquelas rochas e deixamos que ele nos apanhe.

 

O tipo não sabe pegar numa espada; não tem estômago para matar um homem resmungou Gareth. Sabe nadar, e depois?

 

É uma responsabilidade queixou-se Corentin recolhendo o seu remo.

 

Pode aprender O tom de Johnny era sério. Foi o que ele disse, não foi? E nós temos os melhores professores, em Inis Eala.

 

Fiquei para morrer. A minúscula figura ficou cada vez mais pequena, as ondas cada vez maiores e o ar cada vez mais frio, à medida que nos afastávamos da costa. As cristas pareciam ter longos dedos na ponta; e as depressões monstros de grandes dentes, traiçoeiros. Não sabia se o meu rosto denunciava algo. Johnny olhou para mim e a sua boca torceu-se um pouco, mas havia preocupação nos seus olhos e também alguma surpresa.

 

Brenna segurou-me na mão e disse:

 

Tudo bem, Fainne. Nós já estamos quase nas rochas. Eles esperam lá por ele. Gareth tinha o semblante carregado. Corentin tinha os lábios cerrados. Godric e Mikka tinham apostado se pescariam da água um latoeiro arrogante ou um cadáver. A cabeça doía-me, tal era a força com que cerrava os dentes. Agarrei firmemente a mão de Brenna e mantive os olhos naquele ponto escuro que aparecia e desaparecia. Talvez tivesse sido ela, pensei. Talvez a minha avó o tivesse feito vir ali e agora forçava-me a vê-lo afogar-se, mostrando-me, assim, o preço da desobediência. Ela queria mostrar-me quão louca eu era, se achava que era forte.

 

O teu rapaz é muito corajoso, Fainne disse Brenna enquanto nos aproximávamos das rochas e Johnny ordenava aos rapazes que aguentassem o barco contra a maré.

 

Eu acho é que é estúpido murmurei, mas ela tinha razão, claro. Ele aproximou-se firmemente, como se não soubesse o que era o medo, como se não conhecesse as limitações de um ser mortal. A despeito do terror e da fúria, eu estava tão orgulhosa dele que pensei que o meu coração se ia partir em dois. E não é o meu rapaz.

 

Não? perguntou Johnny. Bem, uma coisa é certa. Não são as lições de esgrima que o fazem comportar-se assim.

 

Esperámos; os homens utilizaram a mesma técnica que tinham aperfeiçoado no promontório, contrabalançando com os remos o avanço da maré, o que mantinha o barco relativamente imóvel. Mantiveram-se ligeiramente afastados das rochas. A espera parecia interminável, mas a cabeça escura ficou cada vez menos parecida com uma criatura do mar e mais com a de um homem, o ritmo forte dos braços morenos e esbeltos podia ser visto no meio das ondas, assim como o rosto pálido e os olhos escuros, cheios de determinação. Por fim, ele atingiu o barco, foi içado e depositado, sem qualquer cerimónia, a meus pés, branco, tremendo e incapaz de dizer uma palavra. Os homens pegaram de novo nos remos e seguimos para casa.

 

Eu sentia as lágrimas, algures, mas não as podia limpar. Lágrimas de alegria, lágrimas dor, terríveis, lágrimas de medo e frustração. Tirei o meu xaile e coloquei-lho sobre os ombros.

 

Como te atreves a assustar-me assim? disse-lhe eu em voz baixa, furiosa. Devias ter vergonha!

 

Então, ele inclinou-se, apenas um pouco, encostou a cabeça ao meu joelho e eu ouvi-o murmurar por entre o bater dos dentes:

 

N... n... não me obrigues a d... d... dizer adeus outra vez.

 

Nem a mais poderosa feiticeira do mundo teria conseguido impedir, naquele momento, que os meus dedos se movessem para lhe tocar no rosto e ficarem ali durante o espaço de um bater do coração. Vi um sorriso torcido nos seus lábios; então, retirei a mão e fechei os olhos. Não olharia para ele; no entanto, desejava-o loucamente, desejava olhar, olhar e armazenar tudo, como um tesouro guardado para os dias de chuva. Queria aquecer-lhe as faces com as minhas mãos, atraí-lo ao meu peito até que parasse de tremer. Queria ver as cores regressarem às suas feições geladas, ver o seu doce sorriso e os seus olhos alegres. Queria o que não podia ter. Era a minha grande fraqueza e se não a reprimisse agora, seria a minha perda, a de Darragh e a ruína da grande campanha de Sevenwaters. Seria o triunfo de LadyOonagh sobre tudo o que era recto e bom. Essa fraqueza era a melhor ferramenta que a minha avó tinha para me manipular. Não podia permitir que isso acontecesse. Teria, de algum modo, de fazer com que Darragh compreendesse isso. Assim, mantive os olhos fechados, sentindo com todas as fibras do meu corpo onde ele estava sentado, qual o seu aspecto, desejando que ficasse e desejando que se fosse embora, tudo isso despedaçando-me o coração.

 

Quando Darragh desembarcou em Inis Eala, tremendo e todo sujo, passou a ter uma reputação. Ninguém escapa ao efeito de uma tal demonstração de coragem. Aquela gente gostava daquilo. Era algo que compreendiam. E gostavam dele; como seria possível não gostar? Fosse a falta de pretensão, o sorriso torcido, ou o desejo de aprender, o que é facto é que ao fim de alguns dias já era amigo de toda a gente. Até Gareth e Corentin admitiram, resmungando, que o tipo trabalhava bem. Tinha de ser; havia muita coisa para aprender e faltava pouco tempo. Talvez Johnny esperasse um milagre.

 

Ainda bem que Snake se encarregou pessoalmente da educação de um nómada nas artes da guerra, o que significava eu não via Darragh durante a maior parte do dia, por trás de muros altos, tomando conhecimento dos seus progressos apenas à hora do jantar. Assegurei-me de que ele ficava sentado bem longe de mim. Mantinha os olhos no prato, ou conversava com Brenna, ou com Annie, excluindo todos os outros. Se bem que desejasse ardentemente olhar para ele, não o fazia. Se bem que desejasse ardentemente falar-lhe, assegurei-me de que não teria qualquer oportunidade.

 

O tempo começou a melhorar e a estação mudou. Imbolc tinha passado; estávamos quase na Primavera e eu tinha de agir com rapidez. Uma manhã encontrei Johnny sozinho, olhando para uns mapas na cabana que usávamos para efeitos de instrução. Ainda era cedo; Coll ainda nem sequer tinha acordado.

 

Johnny?

 

Hum?

 

Preciso de te dizer uma coisa. Pedir-te uma coisa. É importante. Ele olhou para cima de olhos semicerrados.

 

O que é, prima?

 

D... Darragh. Ele não devia estar aqui. Falei furtivamente, olhando em volta; uma tolice, era o que era. Se a minha avó se lembrasse de olhar, veria tudo, tinha a certeza. Quero que o mandes embora.

 

Johnny ergueu as sobrancelhas.

 

Eu tenho um trabalho para ele. É certo que o teu amigo ainda tem muito que aprender no que toca ao treino de combate; no que toca a tudo, para dizer a verdade. Mas ele está a aprender. Tem força de vontade e é esperto. E é rápido, ágil. Eu preciso dele, Fainne.

 

Por favor disse eu, furiosa por ouvir como a minha voz falhava. Por favor, manda-o para casa. Darragh não é um guerreiro. Não tem nele a vontade de matar. Por favor, Johnny. Tu podes, perfeitamente, encontrar outro nadador. É... é muito importante. Baixei o tom de voz. Mais importante do que... parece.

 

Ele olhou para mim por um momento.

 

Esta missão é fundamental, pode estar para além da nossa compreensão disse ele solenemente. Até o meu papel nela pode não atingir o que as pessoas esperam. Havia uma tristeza nos seus olhos que eu não compreendia.

 

Que queres dizer? perguntei, despertando, alarmada, do meu próprio dilema pelas suas palavras.

 

Parece fácil, ter o destino marcado desde que se nasce; um grande e glorioso futuro, o cumprimento de uma profecia antiga, nem mais, nem menos; a reconquista do solo sagrado de um povo. Para as pessoas é fácil: ganhar a batalha, reconquistar as Ilhas e regressar a Sevenwaters como herdeiro a seu devido tempo. Eu sei isso desde criança.

 

Mas não é assim tão simples, pois não? perguntei, recordando o que os Anciãos me tinham dito, aos bocados, e que eu nunca tinha percebido bem. Não é só ganhar a batalha.

 

Johnny acenou com a cabeça.

 

Acredito que não. Há algo por dizer nisto tudo, que não corresponde às expectativas desta boa gente; de modo nenhum. O destino não é nada glorioso. A minha mãe vê a minha morte, se bem que não o diga. E eu vejo algo parecido com a morte, mas que não é bem a morte; algo muito para além do destino do guerreiro. Quem sabe o que acontecerá? Isso assusta-me.

 

Tu, assustado? Achava aquilo difícil de acreditar. Mas, eles têm tanta fé em ti. Não têm uma única dúvida.

 

Eu não posso escolher o meu próprio futuro disse Johnny. E lamento muito isso. Mas farei o que devo fazer. Vencerei a batalha e enfrentarei o que estiver para vir com os olhos bem abertos. Mas o teu Darragh, por exemplo, é um homem que escolhe o seu destino. E este é o destino dele, Fainne. És capaz de lhe negar isso?

 

Mordi os lábios.

 

Ele não sabe. Não sabe o que isto significa. Ele quer ajudar-me, ou proteger-me e é por isso que me segue, mas não percebe que é a pior coisa que pode fazer. Ele tem de ir para casa, Johnny. Por favor, manda-o embora.

 

Johnny ficou a olhar para mim.

 

Tu mudaste desde que ele veio para cá disse ele suavemente. quase choras, a pedir por ele. Mas a escolha é dele, prima, não tua. E eu respeito a escolha de um homem. Além disso, precisamos dele Precisamos de cinco nadadores; e só temos quatro com a força e a resistência necessárias para levar a cabo a missão. Eu, o meu pai, Sigurd e Gareth. Foi um milagre o aparecimento deste filho de latoeiro. Não posso fazer o que me pedes.

 

Senti-me, mais uma vez, desesperada. Quem me poderia ajudar, se ele não queria?

 

Fainne. O tom de Johnny era gentil. Eu raramente perco homens; eles são únicos no que fazem. Seria muito estúpido se, com tão pouco treino, mandasse um tipo para a frente de combate.

 

Não é isso, se bem que também seja. É... é... não lhe podia dizer. Não lhe podia dizer: se o deixares prosseguir, ela colocá-lo-á em perigo e então... então... não sei se terei forças para continuar. Não sei se o conseguirei suportar. No fim de contas, se calhar, fica provado que sou, apenas, um instrumento da minha avó.

 

- Tu tens visões? perguntou-me ele. Sombras de coisas que estão para acontecer, tal como a minha mãe? Abanei a cabeça.

 

Não. Mas fui avisada e... não, não te posso dizer. Não devia ter falado nisto. Vejo que não me ajudarás.

 

Os meus instintos e o meu treino dizem-me que a minha decisão está certa disse Johnny. Não ponho um homem em risco, a não ser que seja necessário. Coll já chegou e é melhor eu ir-me embora antes que me ponha a fazer exercícios com estilete e cera, coisa que nunca foi do meu agrado. Até logo, prima.

 

Falei com o Chefe, mas também não serviu de nada, porque o único argumento que pude usar com ele foi o da inexperiência de Darragh como guerreiro e como a sua ajuda, uma vez em terra, seria praticamente nula apesar de toda a sua força na água. E que preferia que ele não se deixasse matar ainda. O chefe escutou solenemente e depois disse-me que Snake estava muito satisfeito com os progressos do rapaz; para um tipo escanzelado, ele tinha bastante força de braços, muita perícia com o pau e não era mau de todo no combate sem armas, também. Talvez fosse coisa que se aprendesse na vida errante. Quanto à espada e ao punhal, esses precisavam de prática, mas ainda havia tempo. Quando tentei protestar, o chefe disse que a decisão era de Johnny e que confiava no juízo do filho Além disso, não era o que o rapaz queria?

 

Havia uma última possibilidade. Liadan estava na enfermaria, moendo uma coisa acre qualquer num almofariz. Não havia mais ninguém. Esteiras vazias aguardavam as vítimas da guerra, de um acidente doméstico, ou de uma febre sazonal. Por cima da sua cabeça havia tranças de alho penduradas numa viga; e as prateleiras estavam cheias de frascos com ervas.

 

Fainne! exclamou ela, surpreendida, quando eu entrei. Não estava nada à espera da tua visita. Ela usava o seu vestido escuro do costume com uma túnica por cima, sóbria como o uniforme de uma enfermeira; os cabelos estavam presos com uma fita, mas os caracóis escapavam e caíam-lhe para a testa pálida. Franziu o sobrolho.

 

Vens, sem dúvida, pedir-me que mande Darragh para casa? perguntou ela enquanto moía o pó vermelho na tigela.

 

Olhei para ela.

 

Aqui, toda a gente sabe tudo? perguntei. A minha tia sorriu.

 

Nós falamos uns com os outros, Fainne. Isso é costume nas famílias. Além disso, Darragh veio ter comigo.

 

Ele o quê?

 

Ele está muito preocupado contigo. E eu sei que tu estás muito preocupada com a segurança dele. Darragh sugeriu uma coisa que eu estou pronta a fazer, se tu concordares.

 

Não tinha a certeza se queria concordar, mas, de qualquer maneira, perguntei:

 

Que coisa?

 

Vocês saírem daqui juntos e regressarem a Kerry. Desse modo, não o perdes; e ele terá o que veio aqui procurar. Podem estar bem longe antes de esta campanha começar. A salvo.

 

A salvo? repeti com alguma amargura. Ela estudou-me atentamente com os seus intensos olhos verdes. Esperei que não me estivesse a ler a mente. Não ficaríamos de todo a salvo, tia. Não pode ser. Eu tenho de ficar aqui; não posso regressar a Kerry. Mas Darragh pode e deve. Ele não pertence a Inis Eala. Nem nunca quis pertencer. Ele só lhe apeteceu aparecer, sem ser convidado. Foi o que ele fez.

 

A mim parece-me uma boa sugestão disse ela suavemente. Darragh foi muito convincente. Ele ama-te, Fainne. Não vês isso?

 

Aquilo não é amor cortei eu. É... é teimosia. Ele acha que eu não sou capaz de tomar conta de mim própria. Não sabe o que é bom para ele e o que não é. Nunca soube.

 

E tu? perguntou Liadan. As suas mãos tinham deixado de trabalhar e estavam pousadas na mesa. É o amor que faz com que queiras vê-lo longe daqui, quando ele arriscou a vida para estar perto de ti?

 

A nossa espécie não sente o amor murmurei, sabendo que era mentira. Torna a vida demasiado complicada. Im... impede-nos de fazer o que deve ser feito. Como o meu pai. O amor arruinou-lhe a vida.

 

Ele tem uma filha disse ela docemente. Suponho que ele tem muito orgulho em ti. Tu és inteligente, és dotada e... astuta, tal como ele. E teimosa. Pergunta a Ciarán se ele está arrependido de ter conhecido a minha irmã antes de despedires assim, com tanta ligeireza, o amor. Põe-no de lado e não viverás a vida, apenas uma sombra de vida.

 

De qualquer modo disse eu não desejando continuar com a conversa Johnny não deixará Darragh partir. Diz que precisa dele.

 

Liadan suspirou.

 

Se tu também quisesses ir, eu falava com Johnny. Abanei a cabeça.

 

Tenho de ficar aqui. Não posso regressar a casa.

 

Sim disse ela com ar cansado, sentando-se num banco. Já calculava; mas quis tentar, de qualquer modo. Darragh é bom rapaz, Fainne. Ele não merece isto.

 

A culpa é dele disse eu num murmúrio. Ela acenou com a cabeça.

 

Talvez tenhas razão. Os homens têm a mania de se meter onde não são chamados. Não vale a pena tentar mudar o rumo das coisas, mas nunca consegui... ficar quieta e deixar as coisas acontecerem como o meu tio Conor me aconselha. Acho que devemos seguir em frente, se pudermos. É assim que Darragh faz; ele tem uma grande força de vontade.

 

Ele não sabe o que se passa disse eu sem ênfase.

 

E tu, sabes? A sua voz era calma. Parecia que tinha pena de mim.

 

Pelo menos murmurei sei o que tem de ser feito.

 

E hás-de chegar ao fim disse Liadan num tom de voz que me assustou; um tom que falava de uma verdade incontestável. Como, não sei, mas, tanto Johnny, como tu, estarão lá. Já o vi.

 

Fiquei gelada.

 

O que é que viu? E Darragh?

 

Eu não posso falar disso. Posso estar enganada.

 

Não se pode dizer nada? Mesmo nada?

 

O meu filho enfrentava a morte. E tu choravas. Choravas como quem perde um tesouro inestimável. Nunca vi uma dor assim.

 

Engoli em seco.

 

Eu também vi essa parte. Se tiver de acontecer, acontecerá, suponho. Liadan acenou com a cabeça.

 

Devias pedir a Coll que te levasse, um dia destes, à ponta do promontório disse ela num tom de voz totalmente diferente. A nossa conversa terminara e eu perdera a última oportunidade de conseguir mandar Darragh embora. O tempo está a mudar; vêm aí dias claros. Precisas de te afastar das tuas tarefas, de respirar ar puro e de fazer exercício. Far-te-á bem. O tom de voz dela era vulgar, como o de uma mãe qualquer. Algures, por trás de todos os medos que me enchiam a mente, achei que devia ser bom ter uma mãe que se preocupasse comigo. Talvez, se a minha mãe não tivesse morrido, tivesse sido assim. Talvez, se o Chefe tinha razão, ela nunca tivesse pensado em deixar-nos; talvez nos tivesse amado e tivesse esperança no futuro. Nunca mais me esqueceria disso nem das palavras de Liadan: Ele deve ter muito orgulho de ti, minha querida. Guardaria essas palavras no coração e transformaria a minha história numa história viva, verdadeira e sem lágrimas. Não podia fazer outra coisa.

 

                                                                                       CONTINUA

 

 

Eles treinaram vezes sem conta o barco, a corrente e os nadadores. E Darragh estava entre eles enquanto deslizavam para a água gelada. Faziam-no durante o dia. Faziam-no à noite com lanternas na proa. Habituaram-se a fazê-lo com máscaras no rosto, roupas escuras e justas, de modo a parecerem-se com criaturas do oceano, verdadeiros filhos de Manannán. Faziam-no ao luar, sem as lanternas; eu ouvia-os a subir os degraus vindos da enseada, rindo. Parecia-me que eram muito temerários, um bando de camaradas, ligados por uma fé mútua e inabalável.

 

 

 

 

Sentia-me preocupada por Darragh se ter transformado num deles tão rapidamente. E não era apenas o meu receio pela sua segurança que me dava noites de insónia. Era algo que eu tinha vergonha de admitir. Ele era meu e eu não queria partilhá-lo. Não queria que ele mudasse e se transformasse num homem duro e sem escrúpulos como os outros. Por vezes, o que me dava forças para continuar, era a imagem de Darragh, com o seu sorriso torcido, cavalgando tranquilamente o seu belo pónei branco por um carreiro iluminado pelo Sol entre sorveiras-bravas. Se perdesse isso, que me restava?

Então, Coll adoeceu. Um dia, teve uma ligeira dor de cabeça, coisa pouca, apenas o suficiente para o fazer resmungar um pouco mais do que o costume enquanto trabalhava. No dia seguinte, tinha febre e não saiu da cama. Eu não o fui ver. Fiquei à minha mesa, atarefada com a pena, registando as qualidades medicinais de uma erva chamada escrofulária, geralmente conhecida como ficaria. Não falei com ninguém.

Liadan não esteve presente ao jantar, assim como Gull. O Chefe estava muito calado, mas isso não era nada invulgar. Johnny também não dizia grande coisa e...

 

 

 

                      

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