Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DO PAPA / Luís Miguel Rocha
A FILHA DO PAPA / Luís Miguel Rocha

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

             Rorschach, Suíça , 25 de Setembro de 1930

Nada é mais corrosivo que uma dúvida. Imiscui-se numa palavra, num gesto, numa ausência e invade os pensamentos minando a mente com cismas e confabulações.

As bátegas batiam no vidro com violência e as escovas limpa vidros não conseguiam desviá-las com eficácia. Era um exército de pingos de chuva que, ajudado pelo vento, se espalhava por todos os recantos do pára-brisas, como as dúvidas, a coberto da noite negra, que os faróis tentavam, em vão, desbravar.

- Pode ir mais depressa? - pediu o prelado agastado no banco de trás.

- O tempo está perigoso, Excelência - avisou o motorista, em alemão.

- Já estamos perto.

Mesmo assim, o condutor pegou num pano para limpar a névoa do vidro do Mercedes-Benz 770 e acelerou um pouco mais, até ao máximo que a responsabilidade lho permitiu. Contorceu-se no banco. O corpo a pedir clemência da longa viagem. Não se atreveu a olhar pelo retrovisor interior para aquela figura esquelética e frágil que ocupava o lado esquerdo do assento de trás, a mirar o negrume nocturno.

Desconhecia o motorista os ditames nada éticos que faziam o clérigo estar ali naquele carro a novecentos quilómetros de casa, ou não fosse o nosso corpo hábil a esconder as dores da alma... a maior parte das vezes.

O prelado permanecia imóvel a olhar pelo vidro pintalgado de chuva. Um relâmpago iluminou o caminho por breves segundos e deixou-o ver o recorte das árvores que se vergavam à mercê do tempo. Havia uma profunda inquietação naquele passageiro de meia-idade e olhar sorumbático. O barulho do vento e da chuva a atacar o tejadilho abafava a respiração alterada pela ansiedade. O troar do trovão, mesmo por cima dos dois homens, fê-lo saltar do assento.

 

 

 

 

- Isto está mau - murmurou para si mesmo.

- Não se preocupe, Excelência - disse o motorista que dera pela inquietação do prelado. - Ladra mas não morde - acrescentou com um sorriso tímido.

Os homens de Deus não gostavam muito de sorrisos.

Pensou em corrigir o motorista - já não era Excelência, era Eminência, o solidéu vermelho que trazia assim o definia -, mas ele não era obrigado a saber o protocolo das hierarquias da Madre Igreja.

A viatura continuou a abrir caminho através da intempérie com a condução segura e escrupulosa do suíço. Depois de uma curva mais pronunciada à esquerda atravessaram a entrada da propriedade. Os enormes portões, abertos, resistiam ao vento. Ao fundo, avistaram o destino. O clérigo estremeceu e as suas palpitações aumentaram. Estava a chegar a hora. O vidro embaciado deixava discernir um edifício escuro, algumas janelas iluminadas pela luz interior a denotar vida humana.

Um relâmpago iluminou a fachada de três andares em tonalidades de branco e cinzento. O homem de Deus sentiu um aperto no coração à medida que se aproximavam do destino. O suíço parou junto à porta principal e saiu do carro, abrindo desajeitadamente um chapéu-de-chuva para proteger o prelado da chuva forte.

O clérigo olhava fixamente para a porta principal da mansão. O que estou aqui a fazer, meu Deus? O motorista abriu-lhe a porta e o vento inundou o interior do carro sem permissão. O homem respirou fundo antes de sair da viatura.

Chegara o momento de se livrar das dúvidas que o corroíam.

A chuva intensa não deixou ouvir o carro chegar. Não fez diferença. Ela sabia. Ele ausentara-se de Roma há alguns dias e ninguém tinha conhecimento do seu paradeiro. Não precisava que lhe dissessem mais nada. Ninguém o conhecia melhor. A forma como ele pensava, como geria os sentimentos, as dúvidas. Receava que a perspicácia dele o levasse ao retiro, mais cedo ou mais tarde. Não podia vir em pior altura. Um dia depois e ele nunca saberia.

O suor pespegava a roupa ao corpo da freira e a respiração ofegante denotava esforço. Estava deitada de barriga para cima, de pernas abertas, uma posição nada confortável para quem estava habituada a ocultar-se debaixo das roupas. A parteira estava ajoelhada entre as pernas dela com uma mão apoiada no ventre. Sonja, de hábito azul-escuro, entrou afoita nos aposentos segurando toalhas dobradas nas mãos e olhou timidamente a freira que estava deitada.

- Ele chegou, irmã - avisou Sonja, pousando as toalhas em cima de uma cómoda e tentando evitar olhar para a parteira.

Um gemido entrecortado foi a resposta que ela tratou imediatamente de conter, a custo.

- Está quase - observou a parteira.

Levantou-se e pegou nas toalhas que Sonja trazia. Depois acercou-se da parturiente que sofria e colocou-lhe uma mão terna na testa.

Não deu a volta completa. Vai custar um pouco mas vai passar depressa - disse com pena e afoiteza ao mesmo tempo. - Aguenta-te. Estou aqui contigo.

A parturiente agarrou-a no braço e puxou-a para mais perto de si.

- Dá-me algo para morder e não me deixes fazer barulho. - Era uma ordem.

A parteira mirou-a contrafeita e depois anuiu. Seja feita a tua vontade.

- Sonja - chamou a parturiente. - Faz o que te disse.

- Mas, irmã... - contestou Sonja reticente.

- Faz o que te disse - repetiu, com um gemido, quando a dor regressou.

- Vai - tartamudeou.

Sonja saiu do quarto contrariada e fechou a porta atrás de si. A parteira trancou-a à chave e enrolou um lenço lavado que colocou na boca da parturiente.

- Estás preparada? Chegou a hora.

O prelado recusou o chapéu-de-chuva que o motorista lhe ofereceu.

- Espere aqui - ordenou.

- Está a chover, Excelência - protestou o motorista.

O prelado já o não ouviu. Subiu os dez degraus da escadaria, pé ante pé, aproximou-se da porta grande e bateu. A água escorria-lhe pelo cabelo para o rosto e enfiava-se pelo pescoço abaixo. A gabardina também já não conseguia conter a torrente que caía do céu sem desarmar.

Não se apercebeu de nenhuma movimentação no interior, a borrasca não deixava perceber nada. Não saberia dizer quantos minutos passaram até a porta se abrir e reconhecer a irmã que se revelou por trás dela. - Sonja - hesitou.

Entre, por favor, Eminência. Está a chover muito. - Olhou-o apreensiva enquanto fechava a porta. - Está todo molhado.

- Estou bem.

O prelado olhou em redor, pesaroso. Muita coisa lhe passava pela cabeça naquela hora. A iluminação era fraca, mórbida, espalhando mais sombras que luz, e resumia-se a uma lamparina de fraca intensidade em cima de uma pequena mesa. Para além da irmã não se via mais ninguém, tão-pouco se ouvia alguma coisa a não ser a chuva lá fora e um trovão beligerante que fez Sonja benzer-se.

- Valha-nos Santa Bárbara - evocou a irmã, soltando um pequeno grito.

O prelado nem se apercebeu. Continuava a olhar em redor para o vestíbulo até onde a parca luz alcançava e para a escadaria que dava acesso aos andares superiores. A ventania fazia-se ouvir lá fora com mais força como se a tempestade interior que o assolava fosse o motor para a que se abatia sobre os Alpes.

- Deseja tomar um chá, Eminência? - ofereceu Sonja. - Não estávamos a contar com a sua presença mas vamos providenciar os seus aposentos habituais.

- Não, obrigado - respondeu sem na realidade ter escutado a oferta. ­ A irmã? - Era esta a pergunta que lhe queimava a língua.

Sonja baixou a cabeça. O prelado não necessitava de dizer a que irmã se referia.

- A irmã não está - retorquiu, embaraçada.

- Afiançaram-me que estaria cá - arguiu o prelado sem coragem para fitar a irmã.

- Não. A madre partiu... hoje para... Ebersberg... esta manhã. Disse que regressaria em Dezembro.

- Em Dezembro?

Sonja anuiu em confirmação. Ninguém disse nada durante alguns instantes. Só a tormenta perturbava o silêncio que se instalou. Parecia que o vento invadia os pensamentos e os deturpava, assobiando nos ouvidos até à exaustão.

- Disse que partiu para Ebersberg, hoje? - perguntou por fim.

- Sim. Hoje. - Sonja estava agitada.

- Para onde? - quis saber o prelado.

- Para onde?

- Sim. Para Ebersberg, para onde?

- Para a casa dos pais, Eminência.

- Em Ebersberg? - insistiu. A dúvida, sempre a dúvida.

Sonja voltou a fazer que sim com a cabeça.

O prelado continuava a olhar para o vestíbulo até onde a alumiação alcançava. Não parecia convencido. Sonja teria de fazer o que a irmã ordenara.

- Vossa Eminência vai querer pernoitar cá? Posso preparar-lhe os seus aposentos num instante - repetiu a freira.

O prelado reflectiu. As dúvidas, sempre as dúvidas. O que é que eu vim aqui fazer? Não devia ter vindo.

- Tem a certeza? Está a chover muito. - Estava a ir longe de mais.

O prelado lançou-lhe um último olhar e dirigiu-se à porta da rua. Sonja prontificou-se a abri-la e uma baforada de vento e chuva impeliu-se para o interior. O clérigo saiu e olhou para trás enquanto as bátegas lhe caíam em cima.

- Disse que a irmã partiu esta manhã?

- Correcto, Eminência - mentiu Sonja. - Tive oportunidade de dizer ao padre Spellman, quando ele passou cá na segunda-feira, que a irmã ia para Ebersberg no dia de hoje.

Um relâmpago atravessou o céu carregado e seguiu-se um trovão.

- Não será melhor ficar, Eminência? - A freira estava a ser franca. Causava-lhe alguma apreensão saber que o Secretário ia enfrentar aquela borrasca.

- Boa noite, Sonja - despediu-se o prelado virando-lhe as costas e descendo os degraus em direcção ao carro.

Sonja fechou a porta e encostou-se a ela esbaforida. Respirou fundo e tentou acalmar-se.

- O que me obrigou a fazer, irmã Pasqualina? - murmurou para si.

Apressou-se a subir as escadas para saber dela. Lá fora, a tempestade continuava a não dar tréguas. Teve pena do cardeal. Pela tempestade e por tudo o resto. Quando chegou ao corredor do primeiro andar ouviu o choro compulsivo de um recém-nascido. Ajoelhou-se e persignou-se.

 

O telefone soou ao fim da tarde de terça-feira, no preciso momento em que as irmãs da Santa Cruz davam graças ao Senhor pelo jantar, ao redor das duas grandes mesas de carvalho do salão de refeições do retiro, depois das Vésperas. Deixaram tocar até se finar e prosseguiram a oração, pois nada era mais prioritário que o vínculo sagrado com Deus. Que o Rei da eterna glória nos faça participantes da mesa celestial, agradeceu a irmã Bernarda, nascida Mia, a quem se juntou o coro de irmãs de cabeça abaixada e olhos fechados. Ámen.

A refeição era frugal e comeu-se em silêncio no retiro. O lema "Nunca dizer nada. Observar tudo ", era seguido em todas as ocasiões. Existiam para servir em silêncio, sem olhar a quem, embora ali, no sopé sul das Dolomitas, não se abrisse a porta a qualquer um.

A lareira aquentava o salão do retiro com o crepitar indolente da lenha que se consumia, enquanto, lá fora, os flocos de neve se amontoavam pelo quarto dia consecutivo. Era o primeiro grande nevão do ano e iria cobrir toda a região com um manto branco.

Os talheres também colaboravam com as sagradas premissas silenciosas da ordem e não se manifestavam em tilintares acima de um parco decibel, semelhante a um cicio. Ninguém mais se lembrara do telefone que tocara durante a oração de graças pelo jantar até ele tornar a soar, estridente, perturbando a degustação do prato de carne salada, regado com um fio de azeite e vinagre de vinho e acompanhado com pão integral.

Foi a irmã Bernarda, nascida Mia, quem se levantou para o atender. Recuou a cadeira o mais placidamente possível e avançou em passinhos de lã para o aparelho, pousado em cima de uma mesa encostada a um canto da parede do salão, que agredia o ar com o seu toque estridente. A irmã Bernarda fizera os votos perpétuos havia pouco mais de um mês, no dia do seu vigésimo terceiro aniversário, aceitando servir a Jesus Cristo enquanto houvesse vida no seu corpo. Acabara-se a vida de luxo de Mia Gustaffsen, filha de um banqueiro suíço do cantão de Zurique, as viagens, as jóias na 5ª Avenida, as compras em lojas caras em Regent Street, os vestidos, os perfumes na avenue Montaigne ou na George V, as malas e os sapatos na Via Monte Napoleone, os cruzeiros, os safaris, os namorados. Escolhera o nome Bernarda para honrar a prioresa que fundara a ordem das irmãs da Santa Cruz, em 1844, o que, entre as outras, pareceu uma escolha presunçosa. Havia muitas Anas, Marias de Jesus, Teodósias, mas Bernarda só houvera uma, até então.

As outras irmãs continuaram a comer os finos pedaços de carne de alcatra crua, imunes ao telefone que não se rendia, à espera que a irmã Bernarda o atendesse. Murmurou algumas palavras em alemão e acercou-se da prioresa no topo da mesa.

- É uma chamada de Roma, prioresa - sussurrou-lhe ao ouvido.

A prioresa levantou-se imediatamente e foi atender. Roma vinha logo a seguir a Deus na lista das prioridades. Assim que ela se levantou todas as irmãs de ambas as mesas pousaram os talheres.

Nesta ordem, e em todas, o topo da hierarquia era respeitado como se de Deus se tratasse... ou de Roma.

O interlocutor era nada mais nada menos do que o secretário pessoal de Sua Santidade, Giorgio, ou Bel Giorgio, como os italianos lhe chamavam, o que fez a prioresa ficar em sentido por ele ser quem era e ter a importância que tinha e por uma chamada daquelas raramente ou nunca acontecer. As instruções que o secretário pessoal lhe dera, no seu sotaque de Baden, em nome do Santo Padre, eram simples: um certo monsenhor Stephano Lucarelli apresentar-se-ia no retiro das irmãs da Santa Cruz, em Trento, nos próximos dias. Era de esperar que fosse instalado num dos aposentos do andar superior, alocado à madre superiora, à cónega e à alta hierarquia de Roma, quando ali vinha repousar e, rezava o cânone, não devia privar com os simples curas que também escolhiam aquele local alpino e que ficavam alojados nos andares inferiores. Essa alta hierarquia romana raramente aparecera por ali nas últimas décadas. Durante a estada do supracitado monsenhor, o acesso interior ao terceiro piso, o último, pela escadaria geral estaria interditado. Seguramente que o requerente, ou alguém por ele, conhecia muito bem o antigo e imponente retiro, pois sabia que o acesso ao terceiro andar se fazia por duas escadarias: a geral, que percorria todo o edifício, e dava acesso a todos os andares, e outra que ligava directamente o terceiro andar ao exterior, sem desvios de permeio.

Mais: deviam disponibilizar o lugar na garagem exclusiva, e as refeições, se solicitadas, deveriam ser deixadas à porta dos aposentos do monsenhor Lucarelli, que estaria em descanso absoluto por ordem explícita do Santo Padre.

Nenhuma irmã ou qualquer outra pessoa deveria arrumar os aposentos a não ser que tal lhe fosse solicitado. A mais importante de todas as recomendações, depois da de manter o monsenhor afastado de todos os outros hóspedes, era que não se registasse qualquer menção à sua estada, entrada ou saída. Nada.

O retiro estava cheio de hóspedes, das mais variadas nacionalidades, que vinham gozar umas merecidas semanas de descanso. Com mais de um século de existência, o retiro das irmãs da Santa Cruz, no Monte Bondone, era uma estância de férias para padres e religiosos. Apesar da sua ocupação regular, os períodos mais preenchidos eram o Inverno e a Primavera.

Os servidores da Igreja aproveitavam para conversar, confraternizar com colegas, amigos do ofício, meditar, orar em grupo, combinar peregrinações, fazer caminhadas quando o tempo consentia, cantar a beleza da Criação e, claro, esquiar. Podiam fazê-lo livremente, à sua inteira responsabilidade, ou contratar um monitor que os ensinasse. Se alguns não se importavam de arrumar o hábito e o cabeção durante alguns dias, outros não conseguiam separar-se deles, daí que fosse surrealista observar cardeais, bispos, frades ou freiras com eles vestidos a deslizar pela colina abaixo com os esquis debaixo dos pés. Havia entre eles insignes esquiadores, propensos, se tivesse sido essa a Sua vontade, a participar numa qualquer prova digna das olimpíadas de Inverno. Outros representavam um verdadeiro perigo público com aquelas pranchas deslizantes descontroladas.

Para os mais interessados num turismo preferencialmente histórico, a cidade de Trento ficava a cerca de vinte quilómetros. Havia um autocarro que levava os eclesiásticos, diariamente, ao início da manhã e da tarde, para a cidade. Podiam visitar a Piazza Duomo, onde ficava a catedral de San Vigilio, o santo padroeiro da cidade. Não deixavam de aí entrar e, no corredor direito, visitar a capela do Crucifixo e ajoelharem-se perante a cruz de madeira que continha os itens promulgados pelo célebre Concílio. No presbitério da catedral ocorreram algumas sessões dessa magna reunião do século XVI que durou dezoito anos. Mas havia muito mais para ver. Toda a cidade era um museu ao ar livre que deleitava os olhares dos amantes da história e se perdia nos confins dos tempos.

No fim do telefonema, o secretário pessoal mencionou, em nome do Santo Padre e de Deus, que estavam certos que a prioresa corresponderia com o habitual nível de excelência com que sempre presenteara os dignitários da Santa Sé. E assim seria. Nessa mesma noite, três irmãs, entre as quais Bernarda, foram dispensadas das Completas para procederem à limpeza do aposento principal. Os quartos do terceiro andar, à excepção do da prioresa e da cónega, eram limpos semanalmente, pois eram ocupados poucas vezes e, por isso, não requeriam manutenção diária como os outros.

A chegada iminente de um monsenhor, com a venerável avalização do Santo Padre e do secretário, mudava os ditames ordinários.

Limparam o chão, não só do quarto mas de todo o corredor do terceiro piso, e estenderam lençóis térmicos na cama grande. Providenciaram toalhas para todas as funções, roupões, loções e todo o género de fluidos para o bem-estar do corpo. Sabiam muito bem que os pregadores do espírito prezavam os aconchegos terrenos. Os aposentos, apesar de sóbrios, tinham quarto de banho privativo e escritório. Já acolheram cardeais, arcebispos, núncios e até um Papa, em tempos idos. A meio da madrugada, o quarto estava pronto para receber o enviado de Sua Santidade.

O reverendo monsenhor Stephano Lucarelli chegou dois dias depois do telefonema, na quinta-feira ao início da tarde. Estacionou o carro na garagem interior, própria para hóspedes especiais. Era mais jovem do que a prioresa e a irmã Bernarda imaginavam - provavelmente na casa dos 40 anos - mas a faixa e os filamentos violetas agarrados à batina preta não deixavam margem para dúvidas sobre a posição que ocupava.

O nevão dos últimos dias, que prendera os hóspedes junto às lareiras das salas de convívio e de jogos, ou na agradável biblioteca, acalmara na noite anterior, daí que quase todos se tivessem ausentado, pela manhã, para apreciar os prazeres da neve e da, novamente adquirida, liberdade. Saíram com esquis, trenós, bolas, sorrisos e expressões infantis nos rostos. Os poucos que decidiram permanecer no aconchego do retiro não viram o recém­chegado prelado italiano. Foi imediatamente conduzido pela irmã Bernarda aos seus aposentos pela entrada privada nas traseiras do edifício, longe de todos os olhares.

A prioresa encarregara Bernarda de prover todas as necessidades do reverendo monsenhor, a qualquer hora do dia ou da noite, durante a sua estada. A jovem observou o desconhecido prelado. Tão novo e já com um cargo tão importante. Um competente servidor da Igreja, seguramente. Carregava uma pequena mala de quatro rodas pela pega. Não parecia trazer muita roupa. Provavelmente, o repouso ordenado pelo Santo Padre seria breve.

- Como solicitado, o acesso aos aposentos só se poderá fazer por esta via - informou a freira, em italiano, quando subiam as escadas até ao terrenos.

- Espero que o quarto seja do seu agrado.

Lucarelli entrou na divisão e pousou a mala em cima de uma arca que estava encostada a uma parede. Olhou em redor. Abriu a porta do quarto de banho, depois a do escritório. A inspecção levou apenas alguns instantes.

- Perfeito - sentenciou. - Está então ao meu serviço, correcto?

A irmã anuiu, baixando a cabeça duas vezes.

- Sim, reverendo monsenhor...

- Tomo o pequeno-almoço às seis e meia da manhã - recitou, sempre num alemão polido. - Café e pão. Nada mais. Não almoçarei durante a minha estada. O jantar deve ser servido às seis e meia. Deixe ambas as refeições à porta do quarto.

A irmã entregou-lhe uma sineta que deveria ser utilizada caso o prelado necessitasse dos seus serviços. Fê-la tinir antes de lha passar para a mão.

- Como se chama? - perguntou ele, com um olhar penetrante.

- Bernarda, reverendo...

Lucarelli pousou a sineta em cima da cómoda.

- Se precisar de si chamarei pelo seu nome, Bernarda - declarou o prelado, virando-lhe as costas, em jeito de resolução sancionada e ratificada, sem direito a apelo. - Ninguém deve entrar nos aposentos, a não ser que eu o solicite, entendido?

- Sim, reverendo monsenhor. Necessita de mais alguma coisa? - perguntou a irmã antes de deixar os aposentos. Ele já tinha aberto a mala e retirado algumas vestimentas que ia pousando na beira da cama. Confiante, organizado e metódico, acrescentou a irmã à lista de características do enviado de Roma que estava a elaborar mentalmente. "Observar tudo. "

- Sim - disse, sem olhar para ela nem parar o que estava fazer. - Pode, por favor, providenciar-me um fato impermeável e esquis?

 

Matteo Bonfiglioli nunca conhecera os pais. Não que isso importasse muito, ao fim de quase trinta anos. Habituara-se à ideia desde muito cedo, quando se apercebeu que só podia depender de si mesmo e de mais ninguém. As várias famílias de acolhimento haviam-no demonstrado empiricamente. Os inúmeros pais extremosos que tivera não se coibiram de manifestar o seu afecto com o cinto, e até um padre se dignou exibir o seu amor por ele com uma vergasta numa mão enquanto segurava as calças desapertadas com a outra.

Aos dez anos já tinha passado por oito famílias de acolhimento e conhecido quatro assistentes sociais. Só podia ser do feitio irreverente do rapaz que não se acobardava ao cinto nem à vergasta, nem a nenhum outro acessório educador. E depois, aquela mania de meter-se, feito herói de palmo e meio, onde não era chamado, e de estar sempre pronto para defender os irmãos que iam e vinham como os turistas de passagem, e que, a maior parte das vezes, nem aqueciam a cama. Os olhares amedrontados, condoídos, na esperança que os novos tutores gostassem deles, tentando retardar ao máximo o primeiro berro do pai, a primeira surra da mãe. Matteo sabia que era tempo perdido, e a inevitabilidade de o cinto não se manter preso às calças tão certa como a morte. Pareciam escolhidos a dedo, e todos, sem excepção, usavam cinto.

Úrsula, a sua quinta assistente social designada pelo estado, mudou tudo.

A rechonchuda funcionária pública tornou-se, ela própria, a sua nona família de acolhimento quando ele tinha 10 anos, só ela e ele, sem cintos nem más palavras, nem calças desapertadas, nem vergastas.

- Isto é uma relação para a vida inteira, Matteo - avisou-o no primeiro dia. - Não te vou devolver ao estado, aconteça o que acontecer, faças o que fizeres. Isto pode correr muito bem ou muito mal. Portanto, o melhor é que nos dêmos bem desde o início.

Pela primeira vez, alguém lhe ditava regras com algum sentido. Havia horas para estudar, para brincar, para ver televisão, para comer, para dormir. Esperava-se dele que tivesse aproveitamento escolar, que evitasse altercações patetas e inúteis, dentro e fora da escola, que cumprisse as leis civis em vigor, sempre. Podia ser criança mas não piegas, tinha 10 anos, não era um bebé mimado e não podia, em situação alguma, tratá-la por mãe. Desde que fossem cumpridos estes preceitos não haveria problemas, e Matteo não era rapaz para procurá-los deliberadamente, especialmente se não houvesse razão para isso.

Nunca se apercebera que Úrsula tivesse qualquer relação com alguém.

Viu um homem de meia-idade dar-lhe um envelope uma vez que chegou mais cedo da escola, e acabou por vê-lo mais tarde, mais duas ou três vezes, mas não lhe parecia nada sério dada a rapidez com que ele ia embora. Dez anos depois, Úrsula arranjou-lhe uma bolsa que lhe financiou integralmente o curso de Línguas e Literatura na Università Degli Studi. Um cancro nos intestinos levou-a antes da láurea final da licenciatura. Foi a primeira vez que Matteo chorou por alguém. Por vezes pensava que decerto alguma ser, algures no universo, puxava cordelinhos os invisíveis que faziam aparecer as pessoas certas às desorientadas, e durante o tempo necessário para fazer a diferença. A Úrsula das regras quase militares, das leis, das exigências, da falta de instinto maternal, aquela a quem não podia, em situação alguma, chamar mãe ainda teve um último gesto: deixara-lhe em testamento a casa em que viviam e uma conta bancária que a todos os dias trinta de cada mês crescia mil e quinhentos euros. Perguntou ao gerente do banco de onde vinha aquele dinheiro todos os meses e ele respondeu-lhe que se tratava de uma poupança que Úrsula lhe deixara. Gostasse ou não, fora a mãe dele e sê-lo-ia sempre.

Matteo irritava-se quando pensava nos pais. Quem seriam? O que lhes acontecera? Por onde andariam? Porque o abandonaram? As perguntas naturais de um jovem adulto à procura da sua história. Sentia que eram um insulto à memória de Úrsula, que fizera por ele mais do que dezasseis pais funcionais, estáveis e afectuosos, mas não o conseguia evitar. Alguém o trouxera ao mundo e o largara.

Ironicamente, Matteo ganhava a vida a contar a história dos outros, embelezada pela prosa e pelos bardos, pelos poetas, pelos séculos e pelos milénios. Para ele o mundo estava dividido entre os patifes e os simplórios, e os primeiros eram muito mais numerosos que os segundos. Como a mãe, Úrsula, só houvera uma.

As suas visitas guiadas à cidade de Verona tornaram-se famosas. Das nove da manhã até às seis da tarde, o autocarro turístico de Matteo andava apinhado maioritariamente de japoneses, alemães, ingleses, dinamarqueses e alguns compatriotas. Os grupos eram, na sua maioria, femininos, o que não era surpreendente. Insólito era ver o mesmo homem, solitário, repetir a visita pelo terceiro dia consecutivo. Quando isso acontecia só podia significar uma coisa... Era gay.

O dia começava com uma entrada a matar. Guias, panfletos, mapas, tudo era recolhido e guardado. Tinham apenas duas obrigações naquela viagem, e apenas duas: a de abrir bem os olhos e a de se concentrarem na voz dele. O resto era emoção pura, era deixarem levar-se pela narrativa.

Começavam por Castelvecchio, o velho castelo gótico que defendia a cidade na Idade Média, com as suas sete torres e o fosso que outrora estava cheio com águas do Adige, o rio que banhava a cidade, mas que agora estava seco. Para o voltar a imaginar cheio era necessário ouvir a voz teatral de Matteo que, por vezes, se colocava atrás de alguma turista mais absorta, numa das rampas ou na ponte que ligava ao castelo, e lhe propunha o exercício de recuar alguns séculos. Depois visitavam a Arena, um anfiteatro romano do século I, que apesar de se estar a desfazer ainda funcionava. Não havia muitos exemplares daqueles que tivessem resistido ao tempo e aos homens.

Matteo não se limitava a contar as histórias nem as curiosidades que deixavam os turistas deslumbrados e aprisionados à sua voz. Dava sugestões para quando ele não estivesse ali, para quando deambulassem pela cidade sozinhos ou com a sua cara-metade. Dizia-lhes que atravessassem a ponte Pietra e subissem ao castelo de San Pietro. Dali, gratuitamente, podiam assistir a um pôr-do-sol mágico, mesmo em dias de frio como aquele. Deviam também subir a torre Lamberti, a maior da cidade, para uma vista panorâmica invejável. Ainda de manhã, levava-os ao Duomo, claro, depois a Sant'Anastacia e, já que ali estavam, a uma pequena capela, por vezes esquecida, que se chamava San Giorgetta.

Depois da história e da religião vinha o amor, da parte da tarde. Primeiro, nos arredores da cidade, a Basílica de San Zeno e a sua fachada romanesca em travertino. Centro de peregrinações durante séculos, era o local onde o santo patrono da cidade, Zeno, repousava para a eternidade. Mas não era essa a razão por que os levava lá. Ninguém queria saber desse San Zeno. Baixavam à cripta, onde estava o sarcófago do santo, o rosto coberto com uma máscara de prata. Tinha uma nave e oito corredores com quarenta e nove colunas. A atmosfera respirava vida e história e mais qualquer coisa, inidentificável. Uma sensação de mistério pairava no ar. Havia bancos de madeira em dois corredores exteriores à pequena nave central onde Matteo pedia que se sentassem. A seguir, caminhava para o altar, lentamente, alongando o suspense, e colocava-se em frente a ele, de costas para o sarcófago.

- Foi aqui - limitava-se a dizer com um timbre misterioso como se estivesse a contar um segredo.

Os turistas olhavam para ele pasmados. Foi aqui o quê? O turista repetente já sabia o que tinha acontecido naquele espaço mas não ousava perturbar o silêncio sagrado dos mistérios e estragar o ambiente. Era engraçado preservar aquela sensação de desconhecimento por mais alguns segundos.

Matteo aproximava-se da primeira fila de bancos e olhava para o tecto, a pouco mais de meio metro.

- Foi aqui. Exactamente neste local onde me encontro.

E deixava o silêncio espraiar-se mais uns segundos inofensivos. Depois pedia a um casal da fila da frente para se levantar e se colocar à frente dele... como dois noivos. Ele do lado esquerdo, ela do direito.

- Foi assim, estão a ver? Há sete séculos, neste preciso local, nestas posições. Foi aqui que casaram... Romeu e Julieta.

Matteo sabia que não precisava de dizer mais nada. O resto deixava ao coração de cada um. Suspiros, lágrimas, beijos trocados, mãos dadas, nada ficava na mesma após aquela revelação. Para o turista que repetia a visita pela terceira vez, aquilo já não era novidade mas Matteo sabia que ele regozijava como se o tivesse ouvido pela primeira vez. Vira-o descer com o resto do grupo antes de assumir a posição junto ao pequeno altar, de costas para o sarcófago, e encostar-se a uma das colunas ao fundo. O que o guia veronês não imaginava era que o turista não estava minimamente interessado na visita.

 

A rotina do reverendo monsenhor Stephano Lucarelli, nos três dias que se seguiram, não conheceu excepções. Bernarda via-o sair logo depois de tomar o pequeno-almoço, equipado com fato impermeável, esquis e uma mochila que levava ao ombro. Não requisitou instrutor, pelo que Bernarda, nascida Mia, suspeitou que ele soubesse esquiar. Claro que sabe, tonta, convenceu-se. Aquele homem exalava solidez por todos os poros. Via o carro perder-se no fim da rua, pela janela do terceiro andar.

Regressava, Impreterivelmente, às cinco e meia da tarde, subindo os degraus a escadaria; energicamente. Cumprimentava-a com um sorriso cordial e depois entrava no quarto, fechando a porta suavemente.

Minutos depois, Bernarda ouvia a água correr até à hora de ela ter de descer para levar o jantar ao prelado, deixando-o numa mesinha redonda, ao lado da porta dos aposentos, precisamente às seis e vinte e oito. Nessa altura o quarto estava mergulhado em silêncio. Bernarda imaginava-o a enxugar-se e a vestir-se e...depois persignava-se.

A porta abria-se às seis e meia para revelar o reverendo monsenhor, vestido de batina preta com os tons violáceos, a recolher a bandeja com o jantar.

Os serões dele eram passados ao telefone. Bernarda imaginava-o deitado na cama com o aparelho no ouvido. Mas sabia que não devia. Deus me perdoe.

Os telefones do quarto eram sem fios e sentia-o vaguear pelo quarto enquanto falava. O italiano conferia-lhe um tom rude à voz que agradava à serva de Deus. Compreendia o suficiente mas coibia-se de ouvir o que ele dizia. Era indelicado escutar conversas que não lhe diziam respeito. A última chamada era sempre feita noutra língua. Uma mistura entre o italiano e o espanhol, mas que não era nem uma coisa nem outra. Talvez fosse um dialecto da terra do monsenhor, fosse ele de onde fosse. Era a mais curta de todas, não durava mais de três minutos. Depois disso o silêncio instalava-se definitivamente até à alvorada seguinte.

 

Ao quarto dia, segunda-feira, o turista voltou a aparecer no autocarro de Matteo Bonfiglioli. Repetiu o percurso dos três dias anteriores: Castelvecchio, depois a Basílica de San Zeno, ao início da tarde, onde o guia revelava o local de casamento de Romeu e Julieta, deixando os turistas boquiabertos, e, por fim, o clímax: que acontecia a meio da tarde, numa parte do percurso que era feita a pé, quando Matteo apontava teatralmente para um brasão na fachada de um palácio da cor da ferrugem que mais parecia um castelo.

- Esta é a prova, minhas senhoras - declarava com ar enigmático.- Aquele brasão que vêem ali é a prova de que a ficção é real.

-O que é ? - perguntavam elas quase em uníssono.

- Este é o brasão dos Montecchi. Esta é a casa onde Romeu viveu - revelava, depois de mais uma pausa propositada.

Novos suspiros seguiam-se a esta revelação de Matteo. A história de Shakespeare seria mesmo verdadeira? Cochichos e sorrisos inundavam o ar como pregões amorosos. A maioria dos visitantes sabia perfeitamente que Verona era a cidade de Romeu e Julieta, mas estar ali, sentir a atmosfera, mesmo com aquele tempo frio, reacendia os corações mais apagados. O tour não incluía uma visita ao interior do palácio acastelado, nomeadamente aos aposentos de Romeu, ainda preservados, segundo Matteo, por se tratar de uma propriedade privada. Algumas expressões de desapontamento apareciam em alguns rostos, mas o guia tinha mais trunfos na manga.

Seguia-se a cereja em cima do bolo a que se acedia por um pequeno túnel com as paredes repletas de painéis brancos preenchidos com grafíti amorosos, na Via Cappello, perto da Piazza delle Erbe. Matteo pedia a todos que parassem a meio do túnel e distribuía algumas canetas de feltro.

- Estas paredes exibem rabiscos de amor - explicava em tom jocoso.

- Declarem o vosso amor ao mundo - clamava num incitamento à expressão amorosa, com os braços levantados no ar. - Declarem o vosso amor.

As mulheres, primeiro, começavam a escrever com um brilho nos olhos, no espaço disponível, que já era escasso. Quando terminavam entregavam a caneta ao marido ou ao namorado para que também exprimissem o amor em toda a sua essência. Outras limitavam-se a passá-la à próxima, à amiga ou à desconhecida, enquanto olhavam para Matteo com um ar pecaminoso. Ele estava ciente do efeito que provocava nelas. O dia já ia longo e a escolha dele já fora feita. Bastava um olhar escrutinador, na primeira passagem que fazia pelo corredor do autocarro, logo pela manhã, antes da partida para Castelvecchio, para identificar a presa e iniciar um ataque velado que, a maior parte das vezes, acabava à noite... na cama dele.

O solitário que repetia a visita pela quarta vez não tirava os olhos dele enquanto ouvia as mesmas explicações dos dias anteriores. Não era participativo, nunca escreveu nada nas paredes, e não reagia às revelações exuberantes do guia.

Estás a perder o teu tempo comigo, dizia Matteo para si mesmo. A cama já está ocupada logo à noite.

-Estes painéis são substituídos duas vezes por ano- explicava o guia desfilando pelo grupo que enchia as paredes de amor. – Antes do dia 14 de Fevereiro, porque Verona enche-se de pessoas nessa altura, e antes do dia 17 de Setembro, data do aniversário de Julieta.

Depois fazia uma pausa teatral como um actor prestes a revelar um segredo.

- Minhas senhoras e meus senhores - dizia num tom sedutor. - Sejam bem-vindos ao Palácio dos Capuleti, a Casa de Julieta.

O grupo apressava-se agora para um pequeno pátio rodeado por fachadas de mármore vermelho, onde se via uma varanda em pedra. Na fachada da casa, e em todos os locais onde fosse possível, centenas de cartas dos mais variados géneros. Envelopes rosados, desenhos, papéis simples, bilhetes, dos mais variados tamanhos e feitios, prendiam-se às pedras numa corrente de desejos de amor. Amuletos, chaves, aloquetes, toda a espécie de bugigangas, até pastilhas elásticas se colavam às paredes em forma de coração. Matteo desaparecia então por momentos, enquanto os turistas se acotovelavam no estreito pátio, admirando, imaginando o que se passara ali entre Romeu e Julieta, séculos antes. Alguns minutos depois davam pela falta dele.

- Onde está o Matteo?

- Onde se meteu o guia?

- O belo italiano?

Não seria a primeira vez que ele aproveitava o primeiro impacto e a atmosfera mágica e romântica da casa para se esconder num qualquer local obscuro, aos beijos sôfregos com a presa do dia, mas o efeito que procurava era outro.

Quando a simples curiosidade se começava a transformar em protesto, ele reaparecia na varanda de pedra sob uma ovação generalizada.

- Romeu! Romeu! Porque és tu, Romeu?

Renega o teu pai, muda de nome;

Se não queres fazê-lo, jura amar-me

E deixo eu de ser Capuleto.

O silêncio espraiava-se pelo pátio com os turistas a olhar para ele. Máquinas fotográficas, telemóveis e outras traquitanas digitais registavam o momento. O solitário estava encostado à parede ao lado do túnel. O sol começava a fraquejar, adornando o espaço com um tom alaranjado, misterioso.

-Renuncia a este nome, Romeu

E em dele que não faz parte da tua existência,

Apodera-te de mim que sou tua.

Um coro de aplausos seguia-se à interpretação do guia.

- Era daqui que Julieta pronunciava estas palavras e Romeu escutava-as daí debaixo, exactamente onde estão agora.

Dava o tempo suficiente para se beliscarem todos e abrandarem os sorrisos apaixonados, plenos de imagens românticas. Omitia, claro, que, apesar de a casa ser muito antiga, a varanda fora construída apenas em 1936 e não parecia haver qualquer relação entre os Capuleti, Julieta e aquela residência. Ali vendia-se magia e não a verdade. Nesta, ninguém estava interessado.

- E agora - anunciava ainda na varanda -, vamos à última paragem.

Já com o sol a dar os últimos suspiros, levava-os ao mosteiro de San Francesco al Corso. A maioria persignava-se ao entrar no secular lugar sagrado. Uns por crença, outros por contágio, os japoneses porque sim. Matteo encaminhava-os por um corredor e desciam a uma cripta abobadada, por debaixo da igreja. A humidade dos séculos agarrava-se a eles e às lápides dos monges que por ali jaziam. Ao fundo, junto a uma parede, agrupavam-se em redor de um sarcófago de mármore vermelho veronês vazio.

Aguardava que o grupo se apertasse no exíguo espaço e depois falava em surdina, muito devagar, novamente como se estivesse a contar um segredo que não podia ser revelado.

- Este é o túmulo de Julieta.

Havia quem fizesse o sinal da cruz e se ajoelhasse a rezar, e quem atacasse o túmulo com flashes fotográficos, prontamente reprimidos por Matteo.

- No photos - alertava em tom repreensivo. - Foi aqui que Julieta ficou quando tomou o veneno.

Do solitário, que repetia a visita pela quarta vez, não havia sinal.

À noite, Matteo continuou, como era habitual, a visita guiada de forma mais íntima, no seu quarto, em cima da cama, com a presa escolhida de manhã. Raramente falhava. Mostrou-lhe os cantos obscuros do prazer, os miradouros mágicos das percepções sensoriais, o fulgor dos corpos sequiosos.

- Ó meu Deus. Ó meu Deus. Ó meu Deus.

Se o Altíssimo estava a ser invocado com tanto vigor era porque Matteo, mais uma vez, cumpria bem o seu papel de amante italiano.

Enquanto o suor se misturava com a respiração ofegante da fome corpórea, a porta do quarto arrombada com estrondo deixou entrar o turista solitário.

- Ó meu Deus - disse a mulher em pânico, saindo de cima de Matteo e procurando refúgio debaixo do lençol.

- Quem é você? - conseguiu perguntar Matteo, ainda desorientado.

- O importante é quem você é, Matteo Bonfiglioli -limitou-se a dizer o homem, muito calmamente.

O desconhecido exibiu uma Beretta de 9mm com cabo de madeira.

- Ó meu Deus - tartamudeou a mulher.

- Ponha-se a andar - ordenou-lhe o homem.

Ela pegou na roupa, atabalhoadamente, e dirigiu-se à saída.

- Sugiro que se esqueça da minha cara, Mary Theresa Goldwin. O seu marido espera-a no quarto número 204 do hotel Due Torri. Pensa que saiu com a sua amiga Jill. Sabemos onde a Jill anda, não sabemos, querida? Não se preocupem. A minha boca é um túmulo - disse, esboçando um ar cínico.

Sentou-se na beira da cama, de costas para Matteo.

- Se por acaso não se esquecer de mim, eu faço uma visita ao Luke e ao Perry no Adams Hall, 63 South Green Dr., 45701, Athens, Ohio - ameaçou, levantando a arma. - E não será para lhes dizer que a mãe se comporta muito, muito mal.

Deixou a informação percorrer todo o corpo da mulher como um calafrio cortante. Ela estava de costas, ainda nua, e ele sabia que as lágrimas jorravam silenciosas pelo bonito rosto. Era suposto ser apenas uma aventura sexual. Nada mais.

- Adeus, Mary Theresa Goldwin.

Ela saiu mas o desconhecido já tinha colado o olhar em Matteo, com a Beretta, ameaçadoramente, apontada na sua direcção.

- Chegou a sua hora, Matteo Bonfiglioli.

 

Na segunda-feira, a irmã Bernarda testemunhou uma alteração à rotina, até ali imutável, do monsenhor Lucarelli. Como fizera nos três dias anteriores, Stephano saiu logo depois do pequeno-almoço, vestido com um fato de esqui lavado que a freira havia providenciado, e levando os esquis e a mochila. Pela janela do terceiro andar, viu o carro desaparecer ao fundo da rua. Como esperado, passou o resto da manhã e a tarde fora do retiro.

Bernarda aproveitava as horas em que o monsenhor se ausentava para ajudar as irmãs nos outros pisos, ainda que a prioresa a tivesse libertado de outros afazeres que não os de cuidar do enviado de Roma. Como não fora autorizada a entrar no quarto e não havia mais o que fazer, a freira obrigava-se a rezar por bons pensamentos e pelo perdão dos mais impuros, durante sessenta minutos, na capela privada do terceiro andar, e depois descia para ajudar a fazer camas de lavado, aspirar e mais o que fosse necessário. Estava ali para trabalhar, servir a Jesus Cristo, à priores a, à cónega, às irmãs e aos religiosos e religiosas que escolhiam aquele pedaço de paraíso para se hospedar.

A alteração à normalidade ocorreu às cinco e meia, quando o prelado não apareceu, como de costume, para tomar o seu banho revigorante antes do jantar. O carro não surgiu ao fundo da rua.

A irmã Bernarda deu por si a pensar no que lhe teria acontecido e não conseguiu evitar um sentimento de inquietação. Quinze minutos depois das seis, desceu à cozinha, no rés-do-chão, para recolher o jantar do seu hóspede e subiu de imediato. Tinha a esperança que ele, entretanto, já tivesse chegado, naquele intervalo.

O coração palpitava de preocupação. Que coisa. Porque se sentiria assim?

Dali a poucos dias ele partiria, certamente, para sempre, e nunca mais o veria.

Nosso Senhor Jesus Cristo, na Sua eterna bondade, cuidai do reverendo monsenhor e fazei com que nada de mal lhe aconteça, pediu mentalmente.

E alivie-me destes pensamentos, acrescentou. Não se atrevia a fazê-lo em voz alta. Seria tornar real aquilo que nunca o poderia ser. Seria confirmar que desde que ele chegara não conseguia focar o seu pensamento em mais ninguém, nem no seu querido Jesus.

Pousou a bandeja na mesinha e deixou-se ficar à escuta. O coração continuava a apertar-se no peito de consumição. Obrigou-se a acalmar-se. Nada acontecera. Não havia razão para estar tão alterada. Não se preocupava quando os outros hóspedes regressavam tarde ou não o faziam de todo. O monsenhor Lucarelli não era diferente dos outros. Como continuava a não sentir vida dentro do quarto, só lhe restava esperar.

O jantar arrefeceu. Teria de pedir para lhe prepararem outro quando ele chegasse. Entrou na capela privada, ajoelhou-se junto ao altar e pediu à estátua de Cristo que mantivesse o prelado debaixo da Sua luz sábia e acolhedora. Rezou durante horas. Até se esqueceu de jantar, mas não se importou. Não tinha qualquer necessidade de comida naquele momento.

Bernarda deixou a capela depois das duas da manhã quando todo o retiro dormia o sono do justo aos olhos de Deus.

Não havia sinal do reverendo monsenhor Stephano Lucarelli, que saíra de manhã, por volta das sete horas, e não voltara a ser visto. Cogitou se deveria informar a prioresa da ausência dele ou esperar pela manhã.

Uma hora depois, considerou... com muitas reticências... entrar no quarto.

Da janela do terceiro andar não via nenhuns faróis a iluminar o escuro da noite.

As reticências foram ultrapassadas uma hora depois e, às quatro da manhã, entrou nos interditados aposentos do reverendo monsenhor Lucarelli.

As luzes estavam apagadas. Apalpou a parede ao lado da porta à procura do interruptor e ligou-o assim que o sentiu. Os aposentos não estavam como esperava encontrá-los ao fim de quatro dias. Parecia que nunca tinham sido utilizados. A cama estava impecavelmente feita, a coberta bem esticada, as almofadas na cabeceira. Havia exemplares do Corriere delle Alpi, do La Repubblica, do L´Arena e do I'Osservatore Romano empilhados simetricamente em cima de uma mesa.

A curiosidade levou-a a abrir a porta do quarto de banho. Para além das loções fornecidas pelo retiro, reparou nas dele, perfeitamente alinhadas. Creme de barbear, aftershave, champô, gel de banho, escova de dentes dentro de um copo, pasta dos dentes ao lado e outros cremes que a irmã não quis saber para que serviam. O seu voto de pobreza cingia-a ao banho diário, obviamente com todos os condimentos comuns mas sem cremes para rugas, esfoliantes, máscaras de beleza, e todas as outras poções da eterna juventude. O outro voto, o de castidade, impedia-a de estar dentro dos aposentos do prelado, sem autorização.

Permitiu-se abrir a porta do escritório, só para se certificar de que não encontraria o corpo dele no chão, inanimado.

Deus nos livre, murmurou para si mesma. Forçou a maçaneta mas não a conseguiu abrir. A porta estava trancada. Infelizmente, sabia onde havia uma chave, na gaveta de cima da cómoda, e nem pensou duas vezes. Destrancou a porta, acendeu a luz e estacou. O contraste com o resto do quarto era evidente. Parecia que alguém deixara a janela aberta e a corrente de ar espalhara papéis por todo o lado. Em cima da secretária, no chão, na cadeira. Por trás da secretária estava afixado um painel cheio de jornais, fotografias, um pequeno mapa do norte de Itália ao centro, com indicadores de várias cores cujo significado desconhecia, outro da Europa no topo superior direito. O que significava aquilo tudo? Concentrou-se nas fotografias para ver se conhecia alguém. Fita adesiva vermelha ligava duas das fotografias... dois homens. Um bem mais velho que o outro. O mais velho vestia um fato preto e saía de um carro grande e preto, ladeado por dois homens de uniforme que pareciam polícias, o outro tinha um aspecto jovem e moderno. Essas duas fotografias estavam encimadas por um recorte do L’Arena com uma notícia antiga, datada de 1983.

"Atropelamento e fuga matam padre em Verona, na Via Carlo Cattaneo."

O artigo trazia um retrato do malogrado padre a fitar a objectiva como se estivesse a posar para um documento oficial. Bernarda não reconheceu nenhum dos homens, e aproximou-se do painel para o observar com mais atenção.

De repente, sentiu um objecto metálico encostar-se à sua cabeça e escutou um ruído mecânico que ouvira tantas vezes na casa de campo da família, quando o pai carregava as armas para a caça, e fechou os olhos apavorada.

- Nunca ouviu dizer - sussurrou-lhe o monsenhor Lucarelli ao ouvido - que a curiosidade matou o gato, irmã Mia Gustaffsen?

 

John Scott preferiria estar na sala de espera do consultório da doutora Pratt M.D., em Nova Iorque, do que ali onde estava. À apreensão e à paranóia juntara-se o pânico, ingrediente essencial para os arrepios e suores frios que tentava esconder a todo o custo.

A audiência com o Secretário de Estado da Santa Sé, na Cidade do Vaticano, em pleno coração romano, estava marcada para aquela segunda-feira às dez e meia da manhã. Não deixava de registar de forma sinceramente Nosso Senhor Jesus Cristo, pretensamente um lugar de paz e amor.

Estava sentado em frente a uma estátua do Nazareno, numa versão violenta, golpeado no ventre, nas mãos e nos pés, num visível esgar de sofrimento inconcebível. Ao lado, outro santo, São Judas Tadeu, de tamanho inferior, pois nada nem ninguém podia cobiçar as alturas de Jesus. O santo, bem a propósito, era aquele a que se devia recorrer em caso de desespero e nas causas perdidas, predição ou coincidência, num mundo onde nada acontecia por acaso.

John segurava um dossiê castanho encostado ao peito, como se nele guardasse um segredo muito valioso. A sua mais recente investigação levara-o ali, a uma audiência com o número dois do Vaticano, Tarcisio, um Salesiano de Piemonte, conhecido pela sua frontalidade, se bem que muitas vezes confundida com arrogância.

Quarenta e sete minutos depois de ter chegado e trinta e dois depois da hora marcada, John foi convidado a entrar no gabinete por um jovem de batina preta. Um homem alto e imponente veio recebê-lo com um meio sorriso e indicou-lhe uma cadeira, em frente a uma enorme secretária, onde se sentar. Tarcisio foi cordato o suficiente, não demasiado, e sentou-se no cadeirão que estava de costas para uma parede onde dominava uma imagem do Papa Bento XVI a fitar austeramente a ampla sala.

John não se lembrava de alguma vez ter entrado num gabinete com tanto fausto, e era um homem que se podia dar ao luxo de dizer, embora nunca o fizesse, que já entrara duas vezes na sala oval da Casa Branca e uma no Primeiro Edifício, mais conhecido como Senado, no Kremlin. A maioria das paredes estava coberta por estantes que iam do chão ao tecto, repletas de livros, pastas, incunábulos, visivelmente inventariados para que ninguém se perdesse nos meandros de séculos de informação. Havia ainda um sofá de pele castanho de três lugares e uma janela que dava para o pátio de São Dâmaso, a entrada oficial do palácio medieval, parte integrante do Palácio Apostólico. Uma porta na parede oposta à da secretária dava para outra divisão que John não conseguiu identificar por estar fechada.

No tampo da secretária de Tarcisio amontoava-se uma pilha de papéis à espera de deliberação ou despacho que justificavam a famosa burocracia vaticana.

Permaneceram em silêncio durante uns momentos, segundos constrangedores que pareceram minutos. O americano pigarreou por fim, para aclarar a garganta. Era de esperar que fosse ele a iniciar a conversa. O... Obrigado por me con... con... con... ceder es... es... esta audiência, Eminência .

- Quando o cardeal-arcebispo de Nova Iorque faz uma recomendação por escrito, é minha obrigação dar-lhe ouvidos. Não tem de agradecer ­ proferiu Tarcisio, numa voz baixa e desinteressada, a roçar o gélido. - A que devo a sua visita?

John Scott obrigou-se a parar de bater freneticamente com o pé no chão e abriu o dossiê. Três folhas caíram no chão alcatifado como se quisessem fugir dali. Ele próprio seguir-lhes-ia o intento se pudesse. Precisava de alinhavar bem as ideias, pois transmiti-las ia ser um problema, por si só.

- Pe... peço des... culpa - escusou-se o jornalista, levantando-se para apanhar as folhas foragidas.

Controlou, finalmente, a situação e tornou a sentar-se. Disse que o motivo da visita se prendia com um pedido, requerimento talvez fosse a designação mais correcta, que desejava fazer a sua Eminência, o Cardeal Secretário de Estado.

O piemontês olhava fixamente para um papel que tinha em mãos e parecia nem sequer estar a prestar atenção ao que o jornalista lhe dizia. A verdade era bem diferente. Nada escapava ao falcão salesiano que superintendia os destinos da Igreja.

John continuou na sua gaguez incorrigível. No âmbito de uma investigação que estava a fazer, gostaria que a Secretaria de Estado lhe concedesse autorização para visitar um edifício. Hesitou antes de fazer o pedido e fê-lo de cabeça baixa como se quisesse ser poupado à reacção do homem de Deus que tinha à sua frente.

- Eu... eu... desejava vi... si... si... tar o Tor... Torreão Ni... co... lau... Nicolau V.

Tarcisio levantou o olhar do papel pela primeira vez e dirigiu-o a um John Scott que se pudesse tornar-se-ia invisível, a mão direita tremia, dominada pela vergonha.

- Está fora de questão. Pedido recusado - limitou-se a dizer o prelado.

Infelizmente, John Scott já contava com aquela decisão, sem sequer um pedido de elucidação sobre as razões de pretensão tão inadequada; apenas um não liminar, sujeito a uma única interpretação.

John insistiu na relevância de tal consentimento, antecipando o mesmo desfecho. Mudaria de estratégia quando esgotasse todas as possibilidades.

- Segundo as minhas informações, o senhor é um jornalista versado em investigações económicas.

A folha para onde Tarcisio olhava era um sumário das habilitações de John Scott, provavelmente, visto, revisto, acrescentado, riscado, até à versão final que estava na mão do Secretário.

John confirmou. Era verdade.

- Não vejo o que possamos ter de interessante no Torreão Nicolau V que mereça a sua atenção.

John respirou fundo e, mentalmente, decidiu que estavam esgotadas todas as possibilidades de uma autorização com base na confiança ou mesmo no currículo. Chegara a hora de mudar de estratégia e passar ao ataque.

Abriu o dossiê e entregou ao secretário uma folha. O piemontês pousou o currículo do americano e ficou pálido assim que examinou o que John lhe passara.

- Como obteve isto?

John registou o facto de o secretário nem sequer ter contraditado a autenticidade do documento, apesar de se tratar de uma fotocópia.

- Não... não es es... tou auto... ri... zado a re... re... velar a iden...identidade da... da da minha fonte - declarou o jornalista com alguma autoridade, ainda que os nervos lhe enriçassem a pele por debaixo da roupa.

- Essas fontes são muito convenientes. Arvoram-se fazer o papel de historiadores com fontes não identificadas.

- Não... não sou historiador, Emi... Eminên... Eminência.

- Pois não, longe disso. Mas quer fazer história.

O dever de um jornalista é para com a verdade, contrapôs John. Era essa a obrigação dele e dos seus colegas.

Explicou também que tinha reunido elementos mais que suficientes para publicar a história mas gostaria de conhecer a versão dos responsáveis pelo Torreão Nicolau V.

- Le... levo muito a... a... a sério o meu... meu... trabalho, Emi... nência.

Tarcisio sabia muito bem quem tinha à sua frente, por isso o recebera.

Uma simples recomendação escrita do cardeal-arcebispo de Nova Iorque não garantia a ninguém qualquer audiência com o número dois da Igreja Católica Apostólica Romana. Mas um telefonema, a meio da noite, desse mesmo prelado, a avisar que um jornalista possuía cópias de documentos autênticos do Instituto per le Opere di Religione, o famígero banco extraterritorial do Vaticano, que ficava num edifício desconhecido do comum dos mortais no Torreão Nicolau V, era motivo mais que suficiente para que esse encontro acontecesse. O papel que segurava nas mãos confirmava o que Timothy lhe dissera. John prosseguiu a sua explanação entre sílabas repetidas. A Fondazione Donato per la lotta dei bambini con leucemia, como sua Eminência podia ver na cópia que segurava, tinha um activo de mais de quarenta milhões de euros. Os movimentos estavam perfeitamente documentados: depósitos astronómicos, avultados débitos, desde 1982, e juros bonificados de nove por cento.

- Sim, estou a ver - interrompeu Tarcisio, secamente.

Pousou o papel em cima da secretária e entrelaçou os dedos uns nos outros, num gesto de cogitação. Matutava o passo seguinte.

- Essa autorização terá de passar, obrigatoriamente, pelo Santo Padre.

- Com... pre... endo per... feitamente.

O pé de John tornou a bater no chão num ritmo frenético que só os seus nervos conheciam. A mão percutia no braço da cadeira.

- Caso seja autorizado - prosseguiu o piemontês -, terá de assinar um acordo de confidencialidade sobre tudo aquilo que vier a ver e a ouvir. Tenha em consideração que não estou, de maneira alguma, a garantir uma resposta positiva do Santo Padre.

John recusou aquela condição. O seu trabalho visava a publicação e não podia pactuar com acordos de confidencialidade. Aquela história estava a esgotar-lhe a paciência. Mais valia recusarem o pedido de uma vez, em lugar de imporem condições impossíveis e fazê-lo perder tempo.

Tarcisio manteve uma expressão pensativa. Avanços, recuos, passos pequenos mas firmes, tudo na Igreja requeria muita ponderação.

- Falarei com o Santo Padre. Terá a nossa resposta amanhã.

John levantou-se da cadeira, fez um aceno em jeito de cumprimento com a cabeça e avançou para a porta. Tarcisio manteve-se sentado.

- Não esqueça, doutor Scott - relembrou o piemontês. - Este encontro não aconteceu.

- Con... consegurei vi….viver com isso, Emi... Eminência. Bom dia.  

Tarcisio assistiu à saída do jornalista americano e pegou no telefone.

Acredito que consiga viver com isso, doutor Scott: Mantenho muitas dúvidas que o deixem - murmurou para si mesmo quando alguém atendeu. - Chamem-me o intendente Comte.

 

Para o Francês o segredo era a respiração. Encher os pulmões de ar e guardá-lo durante o tempo necessário para não interferir com o mecanismo.

Havia outros factores a ter em conta, claro, mas a quantidade de ar que se inalava e a escolha do momento certo para o fazer era o mais importante.

Outros diriam que o factor crucial era a distância, ou as condições atmosféricas ou, ainda, o mecanismo que se usava para o efeito, o foco do anel da objectiva ou o ajuste de paralaxe. Estavam errados, completamente errados e por isso tinham morrido quase todos e os que ainda não haviam entregado a alma ao Criador, fá-lo iam antes dele. No ramo de trabalho do Francês, não havia margem para erro. Era matar ou morrer, literalmente.

Para ele, aqueles que não sabiam viver deviam ter o mérito de morrer e o homicídio era a forma mais extrema de censura. O Francês considerava-se isso mesmo, um censor.

O pior de tudo era a espera. Eram muitas horas à espera. Já devia estar habituado. Afinal, passava mais tempo à espera do que a contemplar o fruto do seu trabalho. Na verdade, o regozijo da missão cumprida não durava mais que uns instantes, uns simples microssegundos, praticamente o clímax de um orgasmo. Os dinheiros eram transferidos para a sua conta especial e passava à espera seguinte, entregue ao seu vício. Mais horas, dias, semanas, vigilante, silencioso, cauteloso, até ao próximo trabalho. Poder-se-ia cognominar de profissional da espera mas, apesar da imensa experiência, nunca se habituara.

Preferia Londres, Madrid, Roma, Sardenha ou qualquer outra ilha mediterrânica. Nunca Paris, Marselha ou mesmo Mónaco. Côte d'Azur estava completamente fora de questão. Avaliava muito bem os seus alvos antes de atacar. Demorava o tempo que fosse preciso. Os seus parcos clientes conheciam o seu modus operandi e não se queixavam. O importante era um trabalho bem feito e esse, o Francês, executava-o como ninguém.

Estava em Roma há três dias e aproveitara para passear pela cidade. O frio era um pormenor de somenos importância numa cidade tão civilizacional. Alugara um Mazda 3, nada vistoso, perfeitamente comum. A morada fora facultada pelo cliente e fez questão de realizar uma ligeira inspecção visual logo no primeiro dia. Nada de muito invasivo. De máquina fotográfica encostada ao peito, a alça suspensa pelo pescoço, visitou o local e ficou maravilhado com os frescos, o mármore, as gárgulas...

A rua era comprida, com prédios residenciais, edifícios públicos e hotéis de ambos os lados. Muito comércio, com ofertas variadas para saciar o corpo, o estômago e os olhos. Várias lojas de artigos religiosos, como não podia deixar de ser, com as montras pejadas de santos, porta-chaves, postais, bandeiras, lenços, pratos, chávenas, não esquecendo as réplicas em vários tamanhos e materiais dos principais monumentos romanos e vaticanos, entre outras bugigangas carimbadas, na sua maioria, com o rosto de Bento XVI e também de João Paulo II. As esplanadas importunavam os passeios, ora estreitos, ora largos, sem regra, à boa maneira romana.

No primeiro dia, milagrosamente para os padrões romanos, encontrou lugar para estacionar a poucos metros do edifício. Se o Francês fosse um homem de fé poderia pensar que seria um bom augúrio mas nem ele o era nem se passou nada de especial além da habitual espera. No segundo dia optou por não levar o Mazda. Andou a pé, vigiou as imediações, fingindo, outra vez, ser mais um dos muitos turistas que por ali passavam. Tirou fotografias, atentou na porta de entrada mas não entrou e depois foi, efectivamente, passear.

Neste terceiro dia jogara pelo seguro. Substituíra o Mazda por um Alfa Romeo e deixou o hotel a meio da tarde. Às seis e meia já estava estacionado a cerca de cem metros do edifício. A cidade fervilhava com o movimento turístico característico. Inúmeras carrinhas e alguns camiões enchiam as artérias romanas para os provimentos vespertinos. Nada podia faltar às lojas que se esvaziavam a todas as horas do dia. Roma era uma cidade buliçosa e queria estar sempre composta para agradar a todos os seus visitantes. Alheio a tudo isto, o Francês observou a entrada do edifício, como nos dias anteriores. Os turistas ainda eram muitos. Deambulavam a espaços, admirando as fachadas e evitando os condutores mais impacientes que poluíam o ar da cidade, indiferentes aos afazeres dos outros, muito menos importantes que os seus.

Os minutos foram lentos a tornar-se em horas. O Francês comeu uma sanduíche que comprara na noite anterior e bebeu água. A alimentação era totalmente descurada quando estava a cumprir um contrato. Ossos do ofício. Em breve, poderia tornar a dar largas à sua paixão. Até lá, tinha de tolerar o frio e a fome. O combinado era entrar na igreja ao fim da tarde e assim fez. O cliente corrigi-lo-ia se o ouvisse ou perscrutasse os seus pensamentos. Não era uma igreja mas uma basílica. E discorreria sobre as diferenças entre uma e outra, mais as de permeio, como uma igreja ser um templo com mais de um altar, ao contrário de uma capela que só tem um, e muito diferente de uma basílica que é um edifício grande, como este, com uma nave larga, com naves laterais, fileiras de colunas, uma abside semicircular. Não esqueceria de mencionar as catedrais, abadias e santuários. Repetiria as vezes que fossem necessárias até que a informação lhe assentasse no cocuruto até que a soubesse repetir de cor. Errar era morrer literalmente, e libertar um homem do erro era dar e não tirar pois o erro fazia mal e prejudicaria o homem que o abrigasse, mais cedo ou mais tarde.

Entrou na basílica como combinado. Desta vez trazia uma mochila comprida às costas, em vez da máquina fotográfica, com as alças enfiadas nos ombros, como se fosse um estudante a caminho da escola.

Os últimos turistas admiravam a fachada barroca, fruto da voluntariedade da duquesa de Amalfi, cujo patrono familiar era o mesmo Andrea que dava nome à basílica. Caminhou até ao altar e observou a imensa nave central, um espaço tão amplo onde caberiam milhares de pessoas. O cliente fora claro. Do lado direito, de quem olha para a nave central a partir do altar. Para que não restassem dúvidas, relembrou as palavras exactas que lhe havia dito, com a habitual voz pausada, no último telefonema. Na sua profissão não havia lugar a mal entendidos; eram fatais.

Os últimos turistas encaminhavam-se, lentamente, para a saída. Não havia rasto de nenhum teatino, os membros da ordem que se encarregava de zelar pelo local.

Olhou em redor e aproveitou o momento. Abriu a pequena porta e entrou. Por fora, o confessionário parecia muito mais pequeno. Dentro havia espaço para se sentar e ficar à vontade. Fechou a porta com cuidado para não levantar suspeitas e abriu a mochila em silêncio. Montou o mecanismo em poucos segundos e testou-o. Fora feito por si, manualmente, peça por peça, para poder ser usado em todas as situações. Entreabriu a porta. Uma menina de 10 anos atravessou a nave a correr, fazendo dela o seu imenso parque infantil. Da sua posição tinha um ângulo de visão de quinze metros para cada lado. Era mais que suficiente. A mãe veio buscá-la e deu -lhe a mão para se irem embora. A criança fez birra, tentando uma chantagem emocional que não resultou. O Francês agradeceu. Era melhor ela não andar por ali. A inocência, uma vez perdida, não podia ser recuperada e, pelo contrário, as trevas, uma vez contempladas nunca seriam esquecidas.

O Francês era um censor, não um monstro. A birra continuava enquanto a mãe a puxava pelo braço em direcção à porta. O Francês assistiu a tudo isto pela mira telescópica. Ajustou o anel da objectiva e focou os alvos, a mãe e a filha, ensaiando o destino de uma e de outra de dentro do confessionário. Os ângulos estavam ajustados. O resto já não dependia dele.

Agora só lhe restava esperar. O pior de tudo era a espera.

 

Alguns filamentos brancos emprestavam ao cabelo um ar grisalho que lhe assentava bem. Era o encanto dos 45 anos que para ele lhe era indiferente, mas fazia as mulheres olharem uma segunda vez para se desiludirem com aquele friso branco no colarinho, o cabeção, sinal de relação, pretensamente exclusiva, com Deus Pai Todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra.

Caminhava a passos firmes, senhores de si, que faziam os cabelos loiros do pupilo, com metade da idade, arrepiarem-se de reverência e temor.

- Lembra-te, Niklas - avisou Luka com uma sedutora voz tonitruante – não lhe dirijas a palavra não ser que ele ta dirija a ti.

- Certamente professor – respondeu, sumido, o jovem.

As vielas ao entardecer perdiam as pessoas. Restavam turistas, a maioria de mochila às costas, roupas descomprometidas com casacos por cima, máquina fotográfica pronta a disparar e olhos de estupefacção. A luz alaranjada do sol moribundo que se dignara aparecer naquele dia sem aquecer os corpos tingia as fachadas dos edifícios de um tom encantador, carregado de impressões, que hipnotizava os estrangeiros que passavam.

Apesar de estrangeiros, Luka e Niklas não eram turistas, e passavam indiferentes. Prosseguiam a caminhada tenaz com passos gigantes, mais o primeiro, que obrigava o mais novo a esticar bem as pernas para o acompanhar.

Viraram à esquerda na Via dei Santi Apostoli e percorreram os poucos metros da rua para depois virarem à direita na Via Cesare Battisti. Seguiram em frente, passando a Piazza Venezia, entraram na Via del Plebiscito, ignorando o colégio da Companhia de Jesus, que ficava do lado esquerdo, e a Igreja de Jesus, na piazza com o mesmo nome, que se erguia ao fundo, e desembocaram no concorrido Corso Vittorio Emanuele Il, onde ainda havia bastante trânsito. Faltavam vinte minutos para as sete da tarde. Seriam precisas mais algumas horas para esvaziar as principais artérias da cidade dos milhares de veículos que as entupiam durante o dia.

Niklas desorientou-se um pouco, mas Luka colocou-lhe uma mão possante no ombro e indicou-lhe o caminho.

- Por aqui. Atravessamos ali à frente. - Referia-se a uma passagem para peões a cerca de cem metros.

Os homens de Deus seguiam, prudentemente, as regras dos homens... quase sempre ou sempre que podiam, assim Deus o permitisse.

A mão no ombro guiava Niklas, como uma orientação divina, mostrando-lhe o trilho do Senhor, que muito precisaria assim que soubesse para onde se dirigiam. Apesar do temor reverencial sentia-se bem com ele, ou não fosse Luka o seu tutor.

Atravessaram a movimentada rua na passagem para peões que Luka indicara e prosseguiram no mesmo sentido, o do Largo di Torre Argentina. Uma vez lá, meteram pela Via del Sudario, junto ao terminal do eléctrico, uma viela estreita que findava na Piazza Vidoni. Depois voltaram à direita, retomando ao Corso Vittorio Emanuel II.

Cravada como se sempre ali tivesse estado erguia-se imponente a Basilica de Sant’Andrea della Valle, com a fachada barroca a apontar para o céu. E a verdade é que pernoitava naquele exacto local na Corso Vittorio Emanuel II, defronte para a piazza com o mesmo nome da basílica há cerca de 350 anos e vira aquela rua ter outros nomes antes deste, enquanto a sua estrutura permanecia imutável, apenas consumida pelo tempo, como hoje.

Luka e Niklas subiram os seis degraus até à porta verde. Niklas tentou abri-la. Estava trancada.

- Está fechada.

- Não para nós - murmurou Luka enquanto olhava em redor para o movimento da rua.

Em seguida, cerrou o punho e bateu duas vezes com vigor. Uma. Duas.

Luka voltou a desviar a sua atenção para a rua, ignorando a porta da basílica.

- E agora, professor? - perguntou Niklas, a medo.

- Agora esperamos - respondeu o padre alemão sem fitar o jovem.

Duas mulheres, na casa dos 30 anos, passaram e lançaram um sorriso a Luka que lhes retribuiu.

- O fruto proibido... - sibilou, entre dentes, em alemão.

- Buon pomerigio, senhor padre.

Niklas evitou olhar para as mulheres. Um ressentimento antigo. Provavelmente alguma delas, não estas, terá sido a responsável pelo seu apego à batina e pela oferta do seu coração a Deus Nosso Senhor, ou então não queria simplesmente cair em tentação. Ainda era muito novo para quebrar o voto de castidade que todos vinculava a esta provação celibatária.

- Terão ouvido, professor?

Niklas referia -se à porta da basílica e às pancadas que Luka havia dado na madeira.

Nesse preciso momento, ouviu-se a tranca rabujar com a ferrugem. Um homem de idade, descabelado e mal-encarado, surgiu do interior.

- Já terminou a hora da visita. Que desejam? - perguntou com maus modos.

A identificação visual que os rotulava como padres não influenciou o porteiro. Era o que mais via todos os dias ali e por toda a cidade.

Luka não perdeu tempo a tentar cair nas graças dele. Enfiou Niklas pela abertura, desviando o homem de idade, e seguiu-o sem pronunciar uma única palavra.

- Façam de conta que estão em vossa casa - resmungou o porteiro. – Atropelem-me á vontade que eu não sou filho de Deus – A idade não lhe retirara o sarcasmo.

Luka e Niklas não prestaram grande atenção ao local escolhido por Puccini para protagonizar o primeiro acto da ópera Tosca, embora nunca ali tivesse sido apresentada, ou pelos Piccolomini para albergar dois antepassados, Pio II e III, para a eternidade. Nem sequer admiraram a segunda maior cúpula do mundo, projectada por Carlos Maderno, o mesmo que fora nomeado arquitecto principal da Basílica de São Pedro, a pouco mais de dois quilómetros dali. Tinham outras prioridades.

Encontraram-no na parte direita do transepto, joelhos dobrados, mãos sobre o rosto, lábios a sibilar uma ladainha silenciosa ou um pedido pessoal a San Andrea Avellino, o protector das causas imprevistas, a quem era dedicada a capela lateral. Se sentiu os passos deles não o demonstrou. Prosseguiu a oração mais alguns minutos.

Luka tornou a pousar a mão protectora sobre o ombro de Niklas e levou o dedo indicador aos lábios a pedir silêncio.

Do homem de idade que lhes abriu a porta não havia sinal. Talvez estivesse a ver na televisão a sua amada AS Roma a jogar contra o Inter. Já tivera a sua dose diária de crentes e turistas.

Niklas estava tenso. Fitava o homem que rezava. Estrutura semelhante à de Luka, porte atlético, talvez a mesma idade. Uma batina de monsenhor com faixa violácea. Gostava de ser assim quando tivesse a idade deles. Uma gota de suor formou-se num dos lados da testa. A mão paternal de Luka funcionava, duplamente, como um calmante empurrado por uma chávena de café forte. Por um lado, estava ciente de que o clérigo lhe queria bem.

Eram conterrâneos, falavam a mesma língua, o que era bom, ainda que Niklas fosse de Munique e Luka de Nuremberga. Niklas nunca fora a Nuremberga e detestava que Luka conhecesse Munique melhor do que ele. Por outro lado, era um professor demasiado exigente e inflexível. Neste momento, preferia esse lado implacável do Bávaro. Mas não o estava a encontrar.

- Foste seguido? - perguntou o homem que acabara de fazer o sinal da cruz e se libertava do peso oratório para se virar para eles.

- Provavelmente - respondeu Luka, sabendo que a pergunta só podia ser para si.

Niklas estranhou a pergunta e ainda mais a resposta.

O homem levantou-se e fitou o jovem durante alguns instantes. Olhos frios e sedutores ao mesmo tempo. Deus e o Demónio num só. Inspeccionou-o da ponta dos sapatos aos fios louros do cabelo. Niklas sentia-se desconfortável.

- É ele? - perguntou o homem a Luka.

- Niklas Grübbe - apresentou Luka, dando-lhe uma palmada nas costas que o fez dar um passo em frente. - Meu aluno no Colégio Germânico.

Filho do...

O homem ergueu a mão impedindo que o alemão continuasse. O vozeirão de Luka tinha menos força perante aquele homem. Era como se o desconhecido fosse superior. Talvez fosse. Em alguns casos as patentes da igreja não estão tão à vista como no exército. Mas era outra coisa que lhe fazia impressão. Uma certa vassalagem da parte do seu professor, pouco habitual, dava-lhe voltas à barriga. Niklas mirava a batina negra do estranho que não se apresentara. Aqueles olhos frios e sedutores continuavam a avaliá-lo como se se tratasse de uma mercadoria.

- Conta-lhe - pediu Luka a Niklas.

- Aqui não - proferiu o desconhecido.

Aproximou-se dos dois alemães e olhou para a nave. Vazia. Havia um corredor central, livre, ladeado por dezenas de bancos de plástico virados para o altar-mor.

- Vamos arriscar. Sigam-me - indicou o estranho de batina. Não era um pedido.

Niklas seguia entre Luka e o outro padre que liderava. Não estava a gostar do rumo dos acontecimentos. Sentia-se nervoso e com medo, e aqueles dois padres eram a razão do desconforto. Muito secretismo, poucas palavras. Que se estava a passar?

- Tomazzo - chamou o padre que ia à frente.

Não houve resposta.

- Tomazzo - tornou a chamar.

A mesma resposta.

- Quem é o Tomazzo? - perguntou Luka.

- O velho simpático que nos abriu a porta.

Foi então que o viu, em cima, na tribuna, junto ao órgão de tubos. Estático debruçado sobre a balaustrada, inanimado.

- Por aqui - gritou o da frente empurrando Niklas com tanta força que este foi embater num confessionário que estava encostado a uma coluna.

Luka atirou-se para os bancos do lado oposto. O jovem padre, completamente em pânico, tentou levantar-se, desorientado. O estranho puxou-o para baixo e colou-o à parede. Escudavam-se na parede lateral do confessionário.

- Queres morrer? - recriminou-o num alemão polido.

- Não! - respondeu Niklas, ignorando a obviedade da resposta.

- Já nem na casa de Deus se está seguro - ironizou Luka com um sorriso.

Tudo ficou em suspenso durante alguns minutos. Niklas arquejava com os nervos e não reparava na calma dos dois padres que o acompanhavam, mas também quem o faria perante tal situação?

- Consegues ver alguma coisa? - perguntou o desconhecido.

Luka fez que não com a cabeça.

O desconhecido, que estava ao lado de Niklas, enfiou a mão dentro da batina e retirou uma Beretta Cougar 8000 de 9 mm. Niklas sentiu os cabelos loiros eriçarem -se de medo. O coração ia rebentar, tal era a força com que pulsava. O pior foi quando viu o padre Luka, professor de teologia e seu mentor no Collegium Germanicum fazer o mesmo. Se percebesse alguma coisa de armas saberia que era uma 85FS Cheetah.

Niklas estava a ponto de não segurar a bexiga.

- Quem são vocês? - conseguiu perguntar, numa voz, simultaneamente, de pavor e ultraje.

O padre desconhecido olhou para ele muito calma e cautelosamente, e avançou pela frente do confessionário. Nesse preciso momento tombou com a cabeça desfeita para o lado esquerdo, derrubando algumas cadeiras. Segundos depois, foi Luka que caiu para trás e embateu numa coluna da capela de Nossa Senhora do Sagrado Coração. Os olhos abertos a mirar o vazio, esvaídos de vida, a cara salpicada de sangue. Dois tiros na testa. O jovem padre não conseguia acreditar no que estava a acontecer.

A porta do confessionário abriu-se com violência, o que fez Niklas dar um salto de pavor. Não saberia dizer se gritou ou não. Do interior da estrutura de madeira saiu um homem que segurava uma arma estranha com mira telescópica. Sorriu para Niklas e pegou no telemóvel para enviar uma mensagem. A primeira fase estava concluída. Depois tirou um post-it azul do bolso e colou-o na porta do confessionário.

Tirou a luva de uma das mãos para cumprimentar o jovem padre que estava em estado de choque, sem conseguir desviar o olhar dos corpos. Niklas nem se apercebeu da mão forte do homem que estava à sua frente. O Francês sentia-se curioso em relação ao jovem padre alemão. Uma curiosidade que era insubordinação no seu estado mais puro. O Francês era um insubordinado de si próprio, já que não respondia perante mais ninguém.

E se tivesse sido abençoado com o dom da fala, perguntaria ao jovem padre alemão por que razão entregara a sua vida a Deus.

 

Para Jacopo Sebastiani as noites serviam para dormir, excepto ao início da noite de sexta-feira que serviam para cumprir as prerrogativas conjugais com Norma, com quem era casado há mais tempo do que aquele que conseguia lembrar. Era, por isso, uma imbecil anormalidade, segundo palavras dele, ter de se levantar da cama por estarem a tocar à campainha e a bater à porta, incansavelmente. Olhou o relógio da mesa-de-cabeceira e esfregou os olhos para ver se eram mesmo quatro e vinte da madrugada. Raios. Seguramente fora a sonolência que lhe refreara a irritação.

Norma ressonava virada para o outro lado. Era o bom que ela tinha. Se um dia um cataclismo varresse o prédio, Deus o livrasse, ou quem quer que fosse a entidade que geria essas preces, não teria de se preocupar em salvá­la. Morreria tranquilamente, na paz do sono revigorante da eternidade.

A imbecil anormalidade apresentou-se na forma de um jovem, aparentemente adolescente, que continuou a carregar na campainha mesmo depois de Jacopo ter aberto a porta. Foi ele quem sacudiu a mão do rapaz do botão. O miúdo transpirava e parecia que subira ao quarto andar pelas escadas, por causa da forma como arfava. Jacopo reconheceu-o. Era um dos lacaios da câmara pontifícia, um criado do Papa.

- Que queres? - perguntou com maus modos. - Não devias estar a dormir ou a rezar ou...? Lá a o que fazes à noite? e.... o rapaz não conseguiu articular uma palavra. Estava ainda a recuperar o fôlego.

- Não digas nada - disse o outro, arreliado. - Para teu bem, espero que tenha começado o Apocalipse segundo São João. - Lançou-lhe um olhar ameaçador que não era difícil concretizar àquela hora. - Espera aqui. Venho já.

E fechou a porta na cara do rapaz.

Vinte minutos depois, que fizeram o rapaz pensar várias vezes se havia de arriscar tocar à campainha novamente ou não, saíram os dois para o ar frio da Via Britannia e entraram numa viatura Fiat com matrícula SCV, indicadora de pertença do Estado Cidade do Vaticano.

- Já nem se respeitam as segundas-feiras - resmungou Jacopo antes de o carro arrancar.

O jovem ia corrigi-lo e dizer-lhe que, tecnicamente, já era terça mas achou melhor permanecer calado.

Roma era uma cidade que dormia de noite, como Jacopo, sem grandes alaridos. Os locais de diversão nocturna estavam muito bem definidos e ganhavam vida por norma às sextas, como Jacopo e Norma, aos sábados e nas vésperas de feriado. Àquela hora só se via aqueles que não podiam fugir ao trabalho e a libertinagem que vagabundeava pela noite.

Noutros tempos, passaria o resto da curta viagem a perguntar-se sobre as razões de tão inesperada requisição mas, desta vez, limitou-se a puxar o chapéu para a frente dos olhos e ignorou o rapaz e o motorista. Via Cesare Balbo, à direita para a Via Panisperna, novamente à direita pela Via Milano e depois à esquerda para a Via Nazionale. Nem precisava de ver.

Conhecia a cidade como as próprias mãos.

Jacopo Sebastiani já passara os 60 anos, era um descrente ao serviço da crença, eminente especialista em religiões comparadas - o que quer que isso significasse -, historiador, paleógrafo e mais umas quantas qualificações de menor importância. Por vezes, o Santo Padre requisitava a sua sabedoria para um parecer idóneo ou para enviá-lo para onde Judas perdera as botas em busca de uma autenticação ou aquisição difícil. Sempre o servira com competência e lealdade, mas sem nunca silenciar o que lhe ia na alma, fosse o que fosse. Não poupava os seus pensamentos a ninguém, nem mesmo ao Papa. Que raio de documento não podia esperar pelas nove da manhã?

Ao fim de um quarto de hora, passaram a ponte Vittorio Emanuele Il, sobre o Tibre, e, minutos depois, entraram no Estado do Vaticano pela Porta de Sant’Anna. O guarda-suíço, que enfrentava o frio com um capote preto por cima do uniforme azul, fez-lhes a continência e permitiu-lhes a passagem. Jacopo nem o viu, pois só despertou quando o carro estacionou nas imediações do Palácio Apostólico mergulhado na penumbra e no silêncio.

Jacopo conhecia muito bem aquele caminho. Mal-humorado, seguiu o tímido rapaz e entraram no palácio pelo Pátio de São Dâmaso. Ao contrário do que as pessoas pensavam, o Palácio Apostólico não era na realidade um palácio, mas um complexo de palácios interligados. Para seu espanto entraram na residência papal e não no edifício da Secretaria de Estado.

Subiram pelo elevador de serviço e saíram para o imenso corredor do segundo andar. Um homem de fato preto aguardava-os. Era Guillermo Tomasini.

- A culpa disto é tua? - lamuriou-se Jacopo.

- Boa noite, também para ti, Jacopo.

- Boa noite o raio que te parta. Aposto que isto é culpa tua.

- Não tenho nada a ver com isto.

- Tu? Olha quem - atirou Jacopo com um olhar furioso. - Estás metido em tudo e fazes de conta que não é nada contigo.

Guillermo sorriu. Conhecia Jacopo há muitos anos. Sabia como ele era capaz de explodir extemporaneamente. Também sabia que passava depressa.

O homem desviou o olhar para o jovem.

- Obrigado, Filippo. Podes ir descansar.

Imenso corre or estava repleto de tapeçarias gigantes nas paredes.

Estavam nos apartamentos papais, não significando isso que iam ver o Papa.

Os apartamentos ocupavam o segundo e o terceiro andares. O terceiro era o da residência do Santo Padre, onde ele devia estar a dormir o sono dos anjos e dos apóstolos. Aquele onde estavam era onde o Papa e os seus colaboradores trabalhavam, a horas próprias e não àquela em que Jacopo ali estava. Várias estátuas enfileiravam-se de ambos os lados. Pontífices do passado que os observavam com expressões austeras. Os ladrilhos respiravam debaixo dos pés deles, testemunhas silentes de séculos de passadas que transportavam a história dos actos e dos livros, dos sussurros, das intrigas e dos ideais.

- Vais dizer alguma coisa? - quis saber Jacopo, ainda irritado, mas com um tom de voz mais suave.

- Está frio, não está?

Jacopo virou-lhe a cara. Aquele sempre fora bom a desconversar. Só tirou o chapéu quando entrou pela porta que Guillermo lhe indicou. Ao fundo, junto à janela, um homem de meia-idade estava recostado na cadeira a passar o dedo pelo ecrã de um iPad. A tecnologia também marcava presença na casa de Deus.

- Doutor Sebastiani - cumprimentou o homem, levantando-se da cadeira assim que o viu, com um sorriso nos lábios. - Bons olhos o vejam.

Pousou o tablet em cima do tampo da secretária mostrando o cabeçalho do Il Messagero.

- Reverendo Giorgio. Não me importava nada de o ver um pouco mais tarde. - Estendeu a mão para cumprimentar o prelado. Acenou com a cabeça para o tablet. - Ainda acredita em boas notícias?

- Estou a seleccioná-las para a leitura matinal do Santo Padre. Mas nada de novo, de facto. A Europa está a ruir connosco dentro - respondeu o clérigo, bem -disposto, apesar da hora.

- O Santo Padre não se cansa de ler sempre a mesma lengalenga?

- A informação é tudo hoje em dia. Mesmo que seja sempre a mesma coisa.

Apontou para uma cadeira que Jacopo, sem cerimónia, aproveitou, e contornou a secretária para retornar à sua. Guillermo ficou em pé, encostado a uma mesa de reuniões.

- A que se deve a honra de ser chamado a esta hora da madrugada? - atirou Jacopo sem aguardar que o outro se sentasse.

- Pois, peço desculpa por tê-lo feito levantar-se tão cedo, doutor Sebastiani.

- Pode chamar-me só doutor - atalhou o mais velho, corrosivo. - Vá directo ao assunto, por favor.

Giorgio entrelaçou os dedos e exibiu uma expressão pensativa como se estivesse a delinear uma estratégia para começar a falar.

- Já ouviu falar dos irmãos Finaly? - acabou por perguntar.

Jacopo anuiu com a cabeça e franziu o sobrolho em alerta. A que propósito ele perguntara aquilo?

- O que é que sabe deles? - quis certificar-se o secretário.

- A esta hora da noite? - escarneceu o historiador.

Giorgio sorriu com condescendência e pousou as mãos em cima da secretária. Jacopo não conseguia perceber se ele tinha dormido alguma coisa ou se não pregava olho desde a noite anterior. Parecia fresco, enérgico, ainda que os olhos estivessem raiados de vermelho e se notassem as olheiras em volta deles. Talvez descansasse pouco, o que era apanágio do posto que ocupava. Quem servia o Santo Padre oferecia mais do que tempo e dedicação, oferecia a vida. Jacopo ajeitou-se na cadeira e abriu o arquivo de memórias onde, algures entre Pio XII, Adolf Hitler, Segunda Guerra Mundial, Holocausto, nazismo e outros itens relacionados, encontrou o registo correspondente ao dos irmãos Finaly. Era um dossiê simples com informação escassa e nunca verificada.

- Quer mesmo a minha versão? - quis certificar-se.

Giorgio anuiu. Prezava o doutor pela sua frontalidade e honestidade intelectual. Queria ouvir a sua versão da história.

- O que eu sei, e isto é tudo baseado em fontes sem qualquer crédito, portanto, boatos...

- Não se preocupe. Continue.

- Eram dois irmãos judios, crianças, que foram escondidos dos familiares depois da guerra, em França. Robert, o mais velho, e Gérald, o mais novo. Fazem parte dos milhares de crianças judias que, supõe-se, não foram devolvidos às famílias.

Giorgio suspirou. Parecia incomodado.

Mas porque é que estavam à nossa guarda?

Jacopo fitou-o perplexo.

- Não sabe?

O alemão voltou a suspirar e levou uma mão ao rosto.

- Acredite ou não, até hoje nunca tinha ouvido falar deles. Posso ser completamente honesto consigo?

- Não espero outra coisa - respondeu Jacopo com evidente franqueza.

- Estou completamente a leste disto tudo.

Foi a vez de o historiador respirar fundo. Olhou para o relógio que trazia no pulso e perdeu a última esperança que tinha de voltar ao aconchego da cama. Já passava das cinco.

- Tenha em atenção que a informação de que disponho carece de verificação. Se pretender, posso, mais tarde, fazer uma pequena pesquisa e dar­lhe dados mais fundamentados - repetiu a advertência.

Comunicada a qualidade da informação, Jacopo recomeçou o seu relato.

- A partir de 1942 ou 1943, o Papa Pio XII deu ordens a todas as instituições religiosas que albergassem os refugiados de guerra sem olharem à religião. Deviam ser todos vistos como seres humanos. Milhares de pessoas foram acolhidas em mosteiros, conventos, famílias de acolhimento católicas, e onde quer que houvesse espaço.

- Maioritariamente judeus? - questionou Giorgio.

- Sim. No início, o Papa, especialmente em Roma, e por via do, na altura, monsenhor Montini, conseguiu negociar com o General das SS Reiner Stahel, que declarou a extraterritorialidade de todas as instituições religiosas. Aqui mesmo, no Vaticano, refugiaram-se milhares de judeus e o Papa esperava que todas as instituições, através desse acordo com Stahel, fossem tratadas de igual forma. Aqui os nazis nunca se atreveram a entrar sem serem convidados. Porém, os alemães, que não eram burros nenhuns - lembrou-se nesse momento que estava a falar com um -, começaram a fazer inspecções nos mosteiros e nos conventos. Foi uma época muito perigosa. Resumindo, no final da guerra havia, para além dos órfãos, muitas crianças por reclamar. Algumas foram reclamadas mais tarde, outras não.

De qualquer forma, a Igreja não devolveu as que acolheu durante mais tempo.

- Não? Porquê?

- Os mais novos foram entregues às famílias, obviamente os que permaneceram à guarda da Igreja durante muito tempo acabaram por ser educados na religião católica e não sabiam nada de Israel, nem hebreu, nem nada. Esses não foram devolvidos.

- Foi o caso dos irmãos Finally?

- Mais ou menos. Verdade seja dita que Roma mandou devolvê-los aos familiares.

- E o que aconteceu?

- As crianças foram enviadas para um convento em Grenoble mas eram muito novas para lá permanecerem. Acabaram por ser entregues a uma creche. A tutora dos miúdos, de quem não me lembro do nome, se é que alguma vez o soube, afeiçoou-se a eles e antes de cumprir a ordem, baptizou-os, em 1948.

Giorgio escutava com muita atenção, completamente envolvido pelas palavras de Jacopo. Percebera o problema. Pela lei canónica, uma criança, baptizada não podia ser entregue a tutores que professassem outra religião.

- Isto acabou por envolver as autoridades civis. O tribunal de Grenoble deu razão aos familiares, como era justo, e ordenou a entrega imediata aos familiares, depois de infindáveis recursos. Isto já em 1952. O núncio de Paris, na altura o monsenhor Roncalli...

- O Bom Papa João - interrompeu Giorgio em jeito de correcção.

- Exactamente. Na altura não era Papa nem cardeal. O futuro João XXIII - enfatizou a contra gosto - ordenou a entrega dos dois irmãos mas alguém teve a infeliz ideia de os recambiar para Marselha e depois para o País Basco. Foi ainda mais difícil encontrá-los e devolvê-los à família, em Israel. Foi um escândalo internacional, apareceu em todos os jornais...

Prenderam a madre superiora, as freiras, a tutora; foi um descalabro diplomático monumental. Em Julho de 1953, finalmente encontraram-nos e levaram-nos para Israel para sempre.

- Percebo. Obrigado por me elucidar um pouco mais sobre o venerável Pio XII.

Permaneceram em silêncio durante algum tempo. Jacopo estava à espera que ele o dispensasse para poder voltar a casa, tomar um banho e ir aturar os alunos na Sapienza. Giorgio levantou-se e contornou a secretária.

Parou na frente de Jacopo, fitando-o de cima para baixo. Guillermo continuava na mesma posição, impávido e sereno.

- Já ouviu falar do padre Niklas?

Jacopo fez de conta que não percebeu. Mais miúdos? Que raio de conversa é esta?

- Quem?

- Um jovem padre alemão - acrescentou Guillermo.

- Esse não é o... - não sabia como continuar. - Não é o filho do...

- Exactamente - interrompeu Giorgio.

- É o filho do Embaixador da Alemanha em Itália. O Doutor Klaus Grübbe - afirmou Guillermo.

- Exacto - disse Jacopo, aliviado. - É isso.

Guillermo e o monsenhor entreolharam-se de modo suspeito.

- Alguém me vai dizer o que tem o rapaz? - perguntou Jacopo impaciente.

Giorgio entregou-lhe um papel. Era um post-it azul.

- O que é isto? - quis saber o historiador. Não estava a perceber o sentido da conversa.

- Um imprevisto.

- Um imprevisto? - Que raio queria o prelado dizer com aquilo?

- É um assunto muito sensível que pede bastante discrição.

Jacopo tentou devolver o bilhete a Giorgio.

- Pode ficar com ele. Não tenho intenção nenhuma de me meter em assuntos sensíveis e discrição não é qualidade que me tenha calhado.

Giorgio não aceitou o pequeno papel. Pigarreou para aclarar a voz como se as palavras estivessem enferrujadas.

- É um pedido de resgate. O padre Niklas, filho do embaixador da Alemanha, foi raptado há algumas horas em Sant'Andrea.

Jacopo engoliu em seco ao ler o bilhete.

- O que é que os irmãos Finaly... - não quis continuar. - Já informaram a família?

Giorgio fez um meneio negativo com a cabeça.

- Não. A família ainda não sabe. E temos esperança de conseguir resolver este assunto sem que chegue ao conhecimento deles - ouviu-se uma voz áspera dizer da porta.

Jacopo desviou a cabeça nessa direcção e viu o intendente da Gendarmaria Vaticana, Girolamo Comte. Vestia um fato preto por baixo de um sobretudo cinzento-escuro.

- Entre, por favor, Comte - pediu o secretário. - Estava mesmo a colocar o doutor ao corrente da situação.

- Os relatores já foram alertados? quis saber o historiador.

- O intendente enviou um destacamento de segurança - respondeu Giorgio, acenando com a cabeça na direcção de Girolamo. - Como correram as coisas com a Polizia di Stato?

Girolamo esboçou uma expressão mal-humorada. Não tinha corrido bem.

- O Cavalcanti não perde uma oportunidade de nos dificultar a vida - respondeu o intendente. - Mas falei com o Amadeo, o superior dele, e o mais tardar amanhã de manhã teremos acesso aos corpos.

- Quem é que os avisou?

- Não sei - respondeu o intendente, frustrado.

- Provavelmente quem colou o bilhete no confessionário - sugeriu Guillermo.

- Precisamos de saber onde ele está - interveio Girolamo, com acidez, fitando Jacopo.

- Como é que hei-de saber? Falem com quem o raptou - Jacopo sentia-se cada vez mais desconfortável.

- Precisamos de saber onde está o Rafael - precisou Guillermo.

- Ah! Esse - verbalizou Jacopo.

- Ele pediu uma licença de alguns dias ao Tomasini para tratar de assuntos pessoais - explicou o monsenhor.

- Não fazemos ideia onde ele está.

- E acham que eu sei?

Os dois homens que estavam em pé acenaram que sim.

O historiador sorriu cinicamente e olhou para Guillermo.

- Que raio de serviço de espionagem geres tu que nem consegues encontrar os teus homens?

- Precisamos dele aqui com a maior urgência - explicou Guillermo, ignorando o comentário. Não era hora para discussões.

Jacopo ficou com calor de repente. Desapertou o botão de cima da camisa. Sentia um aperto na garganta e as axilas a transpirar. Que desconforto. Estava tudo a começar de novo.

Meu Deus... Quando o Rafael souber disto... Acho que nem Tu o deterás.

- Precisamos que nos digas onde ele está - frisou Girolamo.

Jacopo fez um não categórico com a cabeça antes de se levantar.

- Não posso fazer isso. Como bem disseram, foi tratar de assuntos pessoais – sentenciou.

O intendente acercou-se do historiador, fincou as mãos nos braços da cadeira e fitou-os nos olhos com uma expressão ameaçadora.

- Podes dizer-me onde ele está a bem... ou a mal - rosnou.

- Calma, Comte - insurgiu-se o secretário, colocando uma mão no ombro do polícia.

Jacopo engoliu em seco antes de responder à ameaça.

- Eu vou buscá-lo.

 

John Scott não conseguira pregar olho toda a noite. Um ligeiro tremor nas mãos deixava escapar a apreensão que o angustiava. As duas horas de terapia semanal a que John Scott se submetia haviam-lhe ensinado a identificar com precisão as sensações e os sentimentos que o assaltavam.

Estava apreensivo. Imaginou a doutora Pratt, a psiquiatra, sentada no sofá, a uma terça ou a uma quinta-feira, as pernas cruzadas que ele costumava ver através da despudorada visão periférica, com meias acetinadas que deixavam entrever uma pele bronzeada, um caderno de apontamentos em cima do colo, caneta na boca, o grande relógio de pulso a marcar a duração da relação entre médico e paciente, a voz cândida, a pedir-lhe para definir aquela apreensão, e a janela com vista para o Hudson. A apreensão dele não era diferente da dos outros, continha doses iguais de insegurança e medo, com picos momentâneos de um ou de outro sentimento, à medida que o tempo passava.

John Scott não estava, infelizmente, no consultório da doutora Pratt M.D., na rua Hudson da confortável ilha de Manhattan, mas no quarto número 221 do hotel Napoleon. Era um velho edifício decadente, na Piazza Vittorio Emanuele II, a necessitar de um restauro há muito adiado. John sentia olhos invisíveis atrás de si, ainda que estivesse dentro de um quarto exíguo sem mais ninguém à vista desarmada.

John Scott era um reputado jornalista do The New York Times há mais de vinte e dois anos. O seu aspecto franzino e desmazelado escondia um repórter de investigação sério e escrupuloso que já pusera muitos políticos e empresários em sentido ou mesmo atrás das grades. A sua imagem física desdizia a força do seu nome. John Scott era sinónimo de seriedade, honestidade, zelo. À primeira vista e ao primeiro aperto de mão mole parecia que se podia partir a qualquer momento e quando começava a falar manifestava uma gaguez perturbante.

O jornalista arrastou-se pelo quarto, ainda em roupão, e foi à janela. Uma neblina cúmplice com a sua apreensão descera sobre a Cidade Eterna e não deixava ver sequer as árvores que se perfilavam no meio da praça em frente.

Pegou no telemóvel e voltou a marcar o mesmo número que o registo indicava ter sido utilizado por cinco vezes naquela manhã, sem sucesso.

Começou a tocar no outro lado da linha invisível. Um, dois, três, quatro, cinco... Ligou para Sarah Monteiro... ouviu dizer a voz feminina em inglês. Já deixara mensagem de voz, enviara um sms e três emails, escrevera-lhe pelo Facebook, utilizara todos os meios de comunicação de que dispunha, mas não obtivera ainda qualquer resposta.

- On... on... onde an... andarás, mi... mi... miúda? - murmurou para si mesmo.

Sarah Monteiro era a editora de política internacional do jornal londrino Times. Apesar de mulher, era a pessoa que mais sabia sobre assuntos do Vaticano. Pelo menos que ele conhecesse. Trabalhara com ela há mais de dez anos, ainda estagiária, nervosa, mas muito competente. O jornal, em Londres, informara-o que Sarah estava em Roma há meses. Precisava mesmo de falar com ela.

O telefone do quarto soou nesse preciso instante, deixando-o sobressaltado. Acercou-se da mesa-de-cabeceira e levantou o auscultador. Era da recepção a informá-lo de uma chamada externa. Era estranho, mas John consentiu que lha passassem.

- Bom... bom di... dia, co mo está? - perguntou, em italiano. - Fi... fiz como instruiu. M... m m... mas estou muito nervoso...

E quanto mais nervoso mais a língua travava e atravancava a comunicação. Aproximou-se novamente da janela, esticando o fio do telefone, e olhou para baixo. O nevoeiro abria a espaços revelando um movimento intenso. Era uma das praças mais movimentadas de Roma. Por ali passavam automóveis, autocarros, camiões e havia imensas pessoas no jardim central, todas suspeitas, nenhuma inocente. Até a menina que girava um hula hoop com a anca, que não teria mais de 10 anos, podia ser uma espia a soldo deles. A paranóia era pior que a apreensão.

- Che... gou... chegou hoje - disse, pegando numa caixa embrulhada em papel dourado. - OK. A... aguar... do resposta du... rante o dia. - O interlocutor disse-lhe mais alguma coisa. - Espere. Deixe-me tomar nota.

Pegou no bloco de apontamentos que o hotel fornecia e escreveu o que lhe ditaram.

- Eu sei... eu sei... que... que ela é essen... cial pa... para o caso. Até lo... go.

Pousou o auscultador e acendeu um cigarro. Precisava de um para acalmar os nervos, a apreensão e a paranóia. Nestas ocasiões até a pensar gaguejava, um descalabro mental que o impedia de funcionar. Aspirou a nicotina sofregamente e obrigou-se a não pensar em nada. Mais fácil de dizer do que de fazer; no caso dele, nem uma coisa nem outra.

Abriu o dossiê castanho que estava em cima da cama ainda por fazer e tentou concentrar-se nos números. Era nisso que John era, tremendamente, bom. Analisar números. Perceber se se interligavam coerentemente ou não.

Bastava um olhar, um cálculo e entrevia logo se estava tudo correcto ou não.

Tirou a primeira folha, uma mapa de movimentos com depósitos e débitos e leu-os um por um, linha por linha, coluna por coluna, data por data.

Ao fim de alguns minutos começou a acalmar. Deixou de ouvir o protesto do coração dentro do peito e a respiração também retomou a normalidade. Uma ponta de cinza do cigarro caiu ao chão mas ele nem deu por isso. Sentiu uma sede súbita. Abriu a porta do minibar: mas estava vazio. Era apenas um objecto de decoração.

Como é que esta merda tem quatro estrelas?

Pegou no telemóvel e voltou a ligar para a Sarah Monteiro. A resposta foi idêntica às seis vezes anteriores. Atirou o telefone para cima da cama e abriu o roupeiro. Tirou umas calças e uma camisa de ganga, e colocou-as em cima da cama. Apagou o cigarro no cinzeiro e despiu o roupão.

Desembrulhou o papel dourado que envolvia um estojo aveludado e abriu­o. Dentro estava um revólver Amtec de calibre 38 que ele retirou do encaixe. Duas filas com cinco balas alinhavam-se por cima do encaixe da arma. Foi tirando uma de cada vez até encher o tambor. Fechou-o e fez pontaria para um alvo imaginário. Em seguida, pousou a arma e começou a vestir-se.

- Se Maomé não vai à montanha...

 

O comboio número 9406, procedente de Roma Termini, chegou à estacão de Santa Lúcia trinta e oito minutos depois das onze da manhã, de terça-feira. Uma chuva miudinha saudou os passageiros que saíram da gare. Para muitos era o início de uma viagem de sonho pela candura veneziana, as ruas, os canais, os palácios, para Jacopo Sebastiani era a conclusão de um trabalho que não queria fazer.

Agasalhou-se o melhor que pôde, apertando o casaco e levantando as golas, e saiu para o exterior, em direcção à Ferrovia, a estação dos vaporetti que ficava à esquerda, mesmo em frente à igreja degli Scalzi. O Canal Grande agitava-se à sua frente enquanto esperava pelo autocarro aquático. Ao lado da estação viam-se táxis de água que aguardavam pelos clientes que pretendiam um serviço mais exclusivo. A ponte degli Scalzi ligava o Sestiere de Cannaregio ao de Santa Croce e muitos dos passageiros atravessaram-na. A cidade sem carros era mais agradável no inverno, apesar de tudo, quando o número de turistas era drasticamente inferior ao dos meses de calor. Por outro lado, a inclemente Lagoa de Veneza, auxiliada pelo incomplacente Adriático, não dava tréguas à cidade nesta época. As sirenes que anunciavam a acqua alta soavam frequentemente. Fosse como fosse, Veneza não era um roteiro turístico que agradasse a Jacopo e dificilmente a escolheria se o motivo da sua viagem fosse o lazer.

Depois da reunião com o secretário do Papa, Guillermo, e o intratável intendente, se assim se podia chamar ao encontro que tiveram, Jacopo teve apenas tempo de ir a casa vestir algo mais adequado, devidamente acompanhado por um motorista que, mais tarde, o deixou na estação de Termini. Roma começara a acordar lentamente mas quando chegou à estação já milhares de pessoas se deslocavam como autómatos para onde a agenda os mandasse, mirando os painéis informativos espalhados pela gigantesca gare à procura do destino e da linha certos.

Não foi a tempo de apanhar o primeiro comboio para a Sereníssima mas conseguiu apanhar o segundo quando faltavam quinze minutos para as oito.

O objectivo da sua missão atemorizava-o. Não queria estar na pele do Rafael e também não queria ser o mensageiro maldito a que se propôs, ainda que contra a sua vontade. Jacopo vira Rafael por duas vezes, depois da questão jesuíta, e ambas de forma muito fortuita. A primeira fora junto à Gregoriana quando ele saía de uma reunião do conselho pedagógico. Rafael estava com Sarah. Tinham parado na Piazza della Pilotta porque ela cansara-se durante o passeio. Uma das consequências do tratamento a que estava a ser sujeita. Se não morrer do cancro morre da cura, certamente, lembrou-se de ter pensado. Sarah estava muito diferente de quando a havia conhecido, meses antes. Magra, fraca, frágil, esmaecida. A vida era mesmo uma folha de papel, vulnerável, à mercê de qualquer advento mais ou menos quezilento, que a faria esfumar-se como se nunca tivesse existido. Cumprimentou-os e fugiu logo que pôde para bem longe. Vê-la era tornar real uma história que ouvira e na qual não quisera acreditar.

Ficavam bem, juntos, aqueles dois, apesar de ela ser jornalista e ele padre.

Na segunda vez, dias antes, viu apenas Rafael, quando passou pelo edifício da Gendarmaria Vaticana. O padre estava a entrar mas parou para o cumprimentar. Jacopo inventou uma desculpa qualquer para apressar o encontro e desmobilizar antes que a conversa chegasse ao inevitável ponto sobre o estado de Sarah. A pressa. Demasiados afazeres. Reuniões muito importantes no supermercado do Vaticano, livre de impostos, e no posto de abastecimento de combustível onde ia de quinze em quinze dias abastecer o carro a trinta e três cêntimos de euro o litro. A pressa.

Jacopo era um egoísta, sabia-o, preservava o seu bem-estar, por isso era com esforço que estava ali e foi a custo que entrou no vaporetto da linha 1.

O cheiro a gasóleo misturado com a maresia inundou-lhe as narinas e fê-lo tossir. Tapou a boca e o nariz com as golas do casaco. A água acastanhada evidenciava ondas criadas pela passagem do barco que se propagavam até embaterem na ondulação criada pelas outras embarcações que enchiam o canal. Não ia muita gente no vaporetto. Entrou na zona coberta e sentou-se. Levaria uns bons quarenta minutos até à estacão de Salute, na Fondamenta della Salute.

A chuva engrossou na parte final da viagem. Um vento frio começou a soprar de leste transportando um uivo nas suas entranhas. Saiu na estação de Salute, no Sestiere de Dorsoduro, quarenta minutos depois, já os vendedores indianos de chapéus-de-chuva se amontoavam, uns em cima dos outros, na esperança de servirem de arautos à protecção diluviana. Eram melhores que qualquer balão meteorológico, pois sabiam sempre se era hora de vender chapéus-de-chuva e capas impermeáveis ou lenços e leques. Recusou todas as ofertas e avançou para o largo. Em frente, a imponente Basílica octogonal de Santa Maria della Salute, uma pérola em estilo barroco, pareceu-lhe um excelente abrigo. Olhou para o relógio. Um trejeito de frustração inundou-lhe o rosto molhado. Subiu ainda mais as golas do casaco, se tal era possível, e seguiu para a direita. Não havia tempo para se abrigar. Virou as costas à basílica e ao Seminário Patriarcal de Veneza e atravessou uma ponte em direcção ao Campiello Barbaro. Avançou pelo Campo de San Gregório e pela Via Bastion, debaixo de uma chuva que lhe atingia os olhos e o resto do corpo como dardos inteligentes e perversos.

Cinco minutos depois e encharcado até aos ossos, abriu a porta gradeada do número 352 de Dorsuduro, o palácio Dário, uma pérola em mármore branco do gótico veneziano com restaurações renascentistas. Uma das fachadas estava plantada no Canal Grande com vista para o Sestiere de San Marco e outra, lateral, para o rio delle Torreselle. As janelas com arcadas redondas, no rés-do-chão e nos dois piani nobili, não deixavam indiferentes os turistas que navegavam no Canal Grande, que também não deixavam de reparar na ligeira inclinação do edifício para o lado esquerdo.

O piso inferior era um espaço amplo, repleto de colunas. Apesar de o palácio ser propriedade privada, a família que o detinha acordara com o município albergar exposições temporárias de pintura, escultura, artes plásticas, tudo em nome da cultura. Para Jacopo era apenas um abrigo acolhedor da intempérie que caía na rua.

Algumas pessoas, poucas, deambulavam naquele piso admirando quadros pertencentes a uma colecção da Tate Gallery. Na recepção, uma senhora com alguma idade lia uma revista à espera de visitantes mais interessados.

Olhou para o relógio e para a porta. Depois tentou ver se reconhecia alguma das pessoas. Não. Ninguém lhe era familiar. Rafael estava atrasado.

Que raio de sítio para marcar um encontro, pensou para si. Que estaria ele a fazer em Veneza?

Apetecia-lhe um chá quente para aquecer o corpo, despachar o assunto e enfiar-se no comboio de regresso a Roma. A conversa não ia ser rápida mas não tinha qualquer intenção em pernoitar ali. Rafael tinha de regressar à capital com urgência, relembrou as palavras do secretário e de Guillermo, e o rosnado de Comte. Por que raio não marcaste num café ou num restaurante? Tinha de ser logo neste palácio maldito.

A porta abriu-se para deixar entrar um casal encharcado e o uivo do vento. Não havia sinal dele. Tornou a olhar para o relógio e aproximou-se de uma das janelas para mirar o Canal.

Onde estás, Rafael?

 

Monsenhor Stephano Lucarelli deixou o retiro das irmãs da Santa Cruz, no Monte Bondone, em Trento, pouco depois das seis da manhã de terça-feira. Antes de se meter no carro e acelerar para Sul, limpou o escritório de todas as fotografias, recortes de jornais e mapas do painel, apagou as impressões digitais de tudo aquilo em que tocara e deixou uma carta, dentro de um envelope, dirigida à prioresa. Nela agradecia-lhe a estadia muito aprazível: pudera repousar como desejara o Santo Padre, e a assistência prestada pela irmã Bernarda fora de uma qualidade inexcedível ao ponto de ter decidido requisitá-la, com efeitos imediatos, para o assessorar em Roma.

Um e-mail com endereço do gabinete papal já estava na caixa de correio electrónico do retiro com a ordem de requisição da freira e a assinatura de um dos assistentes por baixo da imagem de linhas pretas do brasão pontifício.

Deixou a cidade ainda adormecida, já com o sol a despontar timidamente deixando um rasto de penumbra atrás de si. Rumou a Sul, pela auto­estrada A22, acompanhando o lago Garda e, uma hora depois, passou ao largo de Verona.

Parou numa estação de serviço. Na casa de banho despiu a batina de reverendo monsenhor e vestiu um fato preto com camisa azul-escuro, e pôs uns óculos de sol. Desfez o telemóvel e o cartão SIM em peças e envolveu-os, separadamente, em papel higiénico. Atirou-os para dentro da sanita e puxou o autoclismo. Enfiou a batina dentro do saco da roupa e retomou a viagem, desta vez para leste, pela A4, deixando o Lago Garda para trás.

Conduziu durante uma hora e meia debaixo de uma chuva miúda e depois estacionou na Piazzale Roma, em Veneza. Não demorou mais de quinze minutos a encontrar lugar no maior parque de estacionamento da Europa, pelo que se podia considerar um homem com sorte. Atravessou a ponte pedonal della Constituzione, que ligava a ilha artificial onde ficava o parque ao Sestiere de Cannaregio. Tomou o pequeno-almoço na estação de Santa Lúcia - café preto e pão com manteiga - e esperou. Faltava ainda algum tempo. Mirou os indicadores informativos. O comboio chegaria dentro do horário previsto.

Posicionou-se perto de um quiosque quando a composição chegou ao terminal, de forma a vê-lo sem ser visto. Não foi difícil. Estava enfiado num casaco grosso com as golas subidas e cara de poucos amigos. Viu-o sair da gare a caminho da estação da Ferrovia, no Canal Grande. Atentou na retaguarda para ver se alguém o seguia. O caminho estava livre. Assim que o vaporetto aportou na estação; Lucarelli requisitou um táxi aquático, uma embarcação de cor branca que fazia o mesmo na água que os seus congéneres em terra. Viu-o entrar no autocarro de água e inspeccionou os outros passageiros antes de indicar ao barqueiro que seguisse o vaporetto.

O taxista ainda sugeriu alguns locais turísticos que não podiam deixar de ser vistos por quem visitava a cidade, sob pena de ficar amaldiçoado, mas desistiu após alguns minutos sem resposta do passageiro. Saiu na estação de Salute, em frente à basílica que dava nome à paragem. Comprou um chapéu-de-chuva, aplacar os pingos que caiam com mais intensidade, a um vendedor de Mumbai no largo e seguiu o percurso outro. O passeio terminou no Palazzo Dario para onde o viu entrar, completamente encharcado. Deu uma volta pelas vielas vizinhas, mirou as janelas dos edifícios, recuou ao Campo di San Gregorio e, satisfeito com a inspecção, regressou ao Palazzo Dario. Não havia ninguém a segui-lo. Fechou o chapéu-de-chuva e entrou.

Não estavam muitas pessoas e foi fácil detectá-lo junto a uma das janelas com um olhar vazio para o Canal. Os demónios. Ninguém era imune aos seus.

- Jacopo Sebastiani - disse, quando chegou perto dele.

Jacopo olhou-o com uma expressão terna e triste e esboçou um meio sorriso.

- Até que enfim, Rafael.

 

- Não podias ter escolhido outro sítio? - protestou Jacopo.

- É uma questão de coerência.

- Coerência?

- Como arauto da desgraça, não há local que te assente melhor que este - disse com um sorriso cáustico.

- Pois. Tu és o verdadeiro trevo da sorte. Lembras-te daquele episódio em que eu tinha uma arma apontada à nuca numa basílica jesuíta? Ou terá sido imaginação minha? Nem sei porque ainda não recuperei do trauma – atirou Jacopo para contrabalançar o ataque retórico -

- As últimas vezes que te vi estavas a fugir e não estou a falar daquela vez em que te escapuliste a sete pés dessa mesma basílica jesuíta.

Jacopo lembrou-se da mente perspicaz de Rafael e que o seu encontro com ele durante a questão jesuíta, de má memória, tinha começado com uma má notícia que ele próprio anunciara. A morte de um amigo.

- A que se deveu a demora?

- Imprevistos - limitou-se a dizer Rafael.

- Imprevistos? Estudaram todos pela mesma cartilha - praguejou.

- Sabes a história deste sítio? - perguntou o historiador, apontando para o edifício.

- Não. Mas tu vais contar-ma, não vais?

Jacopo não percebeu se ele estava a ser irónico ou não. Era difícil percebê-lo.

O problema do Palazzo Dario, que deixava Jacopo um pouco indisposto, era que quando alguém o adquiria, e isto desde a sua construção, no século XV, ou se arruinava financeiramente ou sofria uma morte violenta. A lista era extensa. O próprio Woody Allen esteve interessado em comprar o palácio mas desistiu quando lhe contaram a maldição que o atravessava desde que existia ali, no Canal Grande, ligeiramente tombado para a esquerda. Jacopo tinha razões para se sentir apreensivo. Naquele edifício ninguém estava seguro.

- Descansa - tranquilizou-o Rafael. - Não estás a pensar comprar o palácio, pois não?

Deambularam pelo piso térreo adoptando um interesse fingido pelos quadros que estavam dispostos nas paredes e em mostruários próprios para esse efeito.

- Como foi em Trento? - perguntou o historiador.

- Deu para descansar - respondeu Rafael, desinteressado. - Não estamos aqui para a visita guiada, pois não?

Jacopo engoliu em seco. A história do palácio inquietava-o de tal maneira que se esquecera da razão que os levara até li. Chegara a hora de revelar o motivo daquele encontro. Inspirou fundo para ganhar fôlego e estruturou o pensamento. Rafael apreciava a organização das ideias.

- O que é que sabes sobre o Eugenio Pacelli?

- Não tenho ido às aulas de História da Igreja - zombou o mais novo, enquanto caminhavam pelo salão.

Jacopo manteve o silêncio à espera da resposta. Lá fora, a chuva caía com menos intensidade e o uivo do vento começou a perder força. Rafael encolheu os ombros.

- Não percebo a pergunta.

- Não sei como posso ser mais claro. O que é que sabes sobre Eugenio Pacelli? - repetiu Jacopo.

- O que é que queres saber? A versão oficial?

- Para início de conversa.

Rafael respirou fundo. O despropósito daquilo tudo raiava o absurdo.

- Nasceu em 1876, descendente de advogados intimamente ligados à Igreja.

- A Nobreza Negra - completou Jacopo.

- Eram tão nobres como nós. Ou então eram nobres tesos. Eles alinharam com a Nobreza Negra e, por consequência, com a Igreja, mas não lhe pertenciam.

- As coisas que tu sabes - escarneceu o historiador.

- Quem devia saber isto eras tu. O avô dele, Marcantonio Pacelli, foi um fiel seguidor de Pio IX, subsecretário do Ministério das Finanças Papal e Secretário do Interior até 1870, e foi o fundador do I'Osservatore Romano.

É interessante; toda a família esteve ligada à Questão Romana do início ao fim. O pai, Filippo, era deão do tribunal da Rota Romana e o irmão de Eugenio, Francesco, era advogado canónico no mesmo tribunal e foi o negociador de Pio XI para a resolução da Questão Romana com Mussolini, em 1929.

- O Tratado de Latrão.

- O Eugenio foi o compilador do primeiro Código de Direito Canónico da história, publicado em 1917, altura em que partiu para Munique onde foi núncio da Baviera. Em 1925 trocou a nunciatura de Munique pela de Berlim, ainda que fosse núncio dos dois locais. Deixou a Alemanha em 1929, por ordem de Pio XI, tornou-se Secretário de Estado em 1930 e Papa em 1939. Morreu em 1958. Chega?

Jacopo suspirou. Que história tão pobre. Até ele sabia muito mais do que Rafael dissera.

- E podres?

-Um papa não tem podres, nem faltas, nem falhas.

Cuidado com a língua, Jacopo - alertou o outro.

O historiador lançou -lhe um olhar de impaciência, ainda que não soubesse se ele estava a falar a sério ou não.

- Tu tratas de suprimir essa parte, não é?

- Vá, Jacopo. Chamaste-me para te dar uma lição sobre Pio XII? Onde está a má notícia?

A porta voltou a abrir-se para deixar entrar dois casais de turistas. Pousaram os chapéus-de-chuva num cesto de verga ao lado da porta e desceram os degraus até à recepção. Eram loiros, provavelmente nórdicos.

- Algum boato, alguma história mal contada? - insistiu o mais velho.

- Nada de mais, tirando as partes que já conheces e aquela lengalenga da Segunda Guerra. Foi um homem como os outros. Um árduo defensor da centralização do poder da Igreja, como o seu antecessor, como Pio X, Leão XIII e o próprio Pio IX. A diferença é que ele foi bem-sucedido nesse propósito. E foi o único Papa a conseguir um aumento do número de fiéis, na ordem dos 150 milhões, coisa que já não acontecia desde o Renascimento. Salvou mais judeus que as organizações não-governamentais e particulares todas juntas, ao contrário do que se pensa. Renunciou ao papado na primeira votação...

- Renunciou?

Jacopo desconhecia este facto. Rafael anuiu com a cabeça.

- Sim. Ganhou a eleição e quando o cardeal Caccia-Dominioni lhe perguntou se aceitava a sua eleição canónica ele recusou e pediu que não o incluíssem na votação seguinte.

- E o que aconteceu para ele ter mudado de ideias?

Rafael considerou, durante uns instantes, a melhor forma de o dizer.

- Por detrás de um grande homem há sempre uma... não completou.

- Uma quê, Rafael? - insistiu Jacopo, completamente transtornado.

Rafael não respondeu.

- Uma grande mulher? É isso que ias dizer?

- Eu não disse nada.

- Então diz, raios.

A mesma resposta.

- Sempre é verdade? Ela tinha esse poder? - conjecturou o historiador, ciente que era praticamente impossível arrancar uma informação a Rafael se ele não a quisesse dar. O padre era inflexível.

- Pacelli abandonou a Capela Sistina - continuou o padre -, e quando regressou, algum tempo depois, a votação seguinte já tinha começado. Ele não exerceu o seu voto.

- E depois? - perguntou Jacopo, decidido a ignorar momentaneamente aquilo que faltava dizer. Um pequeno recuo estratégico.

- E depois os cardeais votaram e ignoraram o pedido dele. Teve ainda mais votos que na votação anterior. Foi eleito por unanimidade. Não se repetiu o cenário de 1922.

- Que cenário?

- Tu és fraco historiador, não és? - atirou Rafael em tom de provocação.

- Tão bom como tu és padre.

- Na eleição de Achille Ratti, que adoptou o nome de Pio XI, o primeiro eleito, o cardeal Camillo Laurenti, renunciou e pediu que o excluíssem da votação. Nessa altura respeitaram a vontade dele.

- E em 1939 não.

- Em 1939 não. Foi o início do último pontificado ao estilo imperial.

- Ainda não disseste nada verdadeiramente interessante - contestou o historiador.

- Já somos dois.

Voltaram a acercar-se de uma das janelas grandes com vista sobre o Canal. Já não chovia mas o vento recuperara a intensidade. A mesquinhez do clima não importunava o tráfego marítimo que mais parecia uma selva de barcos e barcas, batéis e botes, para um lado e para o outro, segundo regras que só eles conheciam, talvez, torturando a água acastanhada.

- Como é que ela está? - perguntou Jacopo depois de engolir em seco.

- A recuperar. Vai ficar bem - respondeu, ao mesmo tempo que lhe colocava uma mão em cima do ombro. Sabia como a vida real era difícil para o historiador. - Vai ficar bem, Jacopo.

Rafael atentou nas pessoas que estavam na sala. Os dois casais nórdicos, a recepcionista idosa de cabelo apanhado, mais outro casal. Todos pareciam, tal como eles, admirar os quadros expostos. Um dos casais contemplava-os com auscultadores nos ouvidos que explicavam cada uma das obras expostas na língua desejada.

Rafael encaminhou-se para a porta.

- Anda, vamos sair aqui - disse peremptório.

O ar estava empestado com um odor nauseabundo e o pavimento molhado tornara-se escorregadiço em algumas partes. O Palazzo Dario, amaldiçoado e tombado para o lado esquerdo, como numa penitência, ficou para trás. Deambularam sem destino e taciturnos nos primeiros instantes. Rafael saberia o que dizer e quando, ou assim pensava Jacopo, ansioso por atrasar o mais possível o que tinha para lhe contar. O historiador não era um operacional nem sequer o moço de recados que estava a ser naquele momento. O seu trabalho consistia em estudar, examinar, certificar, validar, no conforto do seu gabinete ou de um laboratório, junto às estantes dos livros, dos velinos, com a lupa sempre por perto. A vida real era demasiado perigosa para homens como ele. Lidara com muitas tragédias, com cataclismos, pestes, guerras, milhares e milhares de mortos, mas todos impressos no conforto de um papel, nos caracteres inanimados da história.

Os ossos deixava-os para os seus colegas arqueólogos... e para homens como Rafael.

- Temos um problema - acabou por dizer. Já não podia voltar atrás.

- Temos sempre.

- O secretário do Papa abordou-me com uma conversa muito estranha sobre os irmãos Finaly - prosseguiu, ciente de que pisava terreno perigoso.

Rafael torceu o nariz

- O Tomasini e o Comte querem-te em Roma o mais rapidamente possível.

- O Comte que vá dar ordens aos homens dele - insurgiu-se Rafael.

- Contaste-lhes?

- Se lhes tivesse contado não estava aqui.

- Ainda não posso voltar - confidenciou o padre, contemplando o Canal.

- Tens de voltar. O Niklas foi raptado - atirou, quase lhe apetecendo fechar os olhos para não assistir à reacção de Rafael.

O padre respirou fundo. Já não estava ali, a mente fugira para outras paragens.

- És um mensageiro de merda, Jacopo. O Luka?

O historiador abanou a cabeça em jeito de negação.

- Não teve hipótese nenhuma.

- E os homens do Gumpel?

Como é que sabes deles? - perguntou o historiador. Não tinha mencionado nada sobre os relatores - Estão em segurança? - insistiu Rafael.

- Não sei.

Rafael mirava o Canal que se arrastava indiferente aos sentimentos de quem o olhava. Jacopo tentou perscrutar alguma sensação de comoção, de abalo, no padre mas não conseguiu detectar nada. Rafael era um homem de acção.

- Já informaram a Nicole?

Jacopo fez que não com a cabeça.

- Ainda bem - disse o padre. - Ela tem de saber. Ela e o embaixador; mas prefiro ser eu a contar-lhes.

- Há um pedido de resgate.

- Quanto?

Jacopo entregou-lhe o pequeno post-it azul.

- Não é quanto, Rafael... é quem.

 

O mundo parara há mais de seis meses ou, pelo menos, era o que Sarah sentia desde que soubera da notícia. Aquilo que apenas acontecia aos outros bateu à sua porta quando menos esperava, se é que alguém espera uma coisa destas.

Num dia estava ao serviço do Vaticano, na tentativa de recuperar documentos valiosos sobre Jesus Cristo, e no outro internada na policlínica Gemelli, em Roma, onde lhe largaram o bombástico diagnóstico de coriocarcinomas.

Afinal não és eterna, Sarah. És como os outros e podes morrer. Há muito que sabia que não era imortal. Encarregaram-se de lho explicar quando, anos antes, atentaram contra a sua vida... E muitas outras vezes depois disso. Um pouco antes do internamento na clínica teve uma arma apontada à nuca. Talvez por isso estivesse convencida que mais depressa morreria por causa de um tiro ou qualquer outro factor externo do que atraiçoada pelo seu próprio corpo.

O Papa Bento fora preponderante nestes últimos meses. Não deixou que Sarah regressasse a Londres e ordenou que não se olhasse a despesas no tratamento. Se fosse necessário podiam até convocar especialistas estrangeiros que estivessem na vanguarda no tratamento dos coriocarcinomas.

Os oncologistas da policlínica não viram necessidade de chamar ninguém.

Os tratamentos estavam a par dos que se faziam por toda a Europa. Começariam imediatamente com a quimioterapia à base de metotrexato.

Quando deixou a policlínica, alguns dias depois, ficou alojada num apartamento com três quartos, propriedade da Santa Sé, no Borgo Pio, em Roma. Era um terceiro andar mobilado, a cerca de 500 metros da Porta de Sant'Anna, que dava acesso ao Estado Pontifício.

Rafael cuidou dela. Preparou-lhe as refeições, viram filmes, trouxe-lhe alguns livros. Histórias de amor maioritariamente. Ela torceu o nariz.

- Por que raio é que achas que gosto de histórias de amor, Rafael? - perguntou quando ele trouxe três livros do Nicholas Sparks. - Tenho cara de romântica?

Ele ficou atrapalhado.

Pensei que todas as mulheres gostassem de histórias de amor que façam sonhar com o príncipe encantado.

Ela olhou-o de modo reprovador.

- O Nicholas Sparks faz chorar, não faz sonhar. O máximo que vais conseguir é que eu me desfaça em baba e ranho. É isso que queres?

Nunca mais lhe trouxe histórias de amor.

Durante os primeiros dias não saíram a não ser para ir à policlínica fazer os tratamentos. Sarah não se desligou do jornal onde era editora de política internacional. Estava em contacto via correio electrónico e fazia uma reunião telefónica todas as manhãs. O resto ficava ao cuidado do subeditor em Londres. Não se queria sentir inútil. Precisava de trabalhar. Era uma forma de ocupar a mente com algo que a distanciasse da enfermidade.

Rafael dormia no quarto ao lado do seu, sempre diligente, atento, afectuoso. Preparava-lhe o pequeno-almoço de manhã. Caffellatte, fatias de panino ciabatta, tartes de maçã, suco de laranja e pêssego, chá, croissants, manteiga, queijos e fruta. Depois começaram a sair a meio da tarde para dar um passeio. Não era bom para a recuperação de Sarah ficar fechada em casa o tempo todo. Por vezes jantavam num restaurante num qualquer ponto turístico. Sarah gostava imenso da área junto ao Panteão e das calejas que o circundavam. Era... romântico. Nunca falavam da doença. Ele não perguntava como ela se sentia, ela também não o dizia. Na verdade, ele ocupava tanto os dias dela que não havia tempo para pensar em mais nada. Nem mesmo quando o cabelo começou a cair. Foi Rafael quem o cortou com muita delicadeza numa noite de intenso temporal e trovoada.

Não podia vir mais a propósito. Ouvia-se o vento a zumbir e a chuva a bater fortemente nas portadas quando ela o viu rir-se pelo espelho da casa de banho.

- Qual é a graça? - perguntou, ofendida.

Ele esboçou um sorriso mais amplo. Era muito raro ver Rafael sorrir.

Era lindo.

- Lembrei-me que não é a primeira vez que lhe corto o cabelo.

Ela sorriu também ao relembrar aquela primeira noite em Londres em que Rafael lhe cortou o cabelo contra a sua vontade para que ela não fosse reconhecida.

- Odiei-te da primeira vez que o fizeste - confessou.

- Eu sei.

- E acabou por não servir de nada.

- Eu sei - repetiu Rafael. - Mas foi divertido.

Sarah mostrou um melindre artificioso.

- Divertido?

A verdade é que, apesar do cancro que a destruía por dentro, ela nunca se sentira tão feliz. Uma felicidade estranha. Sentia-se tão bem na companhia dele. Só à noite se deixava chorar, no quarto, para ele não ouvir. Não chorava porque tinha medo de o perder. Chorava porque não o queria perder. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, quer a doença a vencesse ou não, perdê-lo-ia. A relação deles era complexa. Uma jornalista influente de um grande jornal britânico e um padre ao serviço da Igreja Católica Apostólica Romana. Não era um padre qualquer. Pelo contrário. Era ele quem resolvia os problemas que a Igreja enfrentava. Era também o padre que Sarah amava, o que, por si só, não era pouca coisa. Não era fácil quando o seu rival, aquele com quem tinha de competir, era Deus.

Um dia, poucos anos antes, salvara-a da morte certa, em Londres, e o coração dela ficara agarrado àquele homem que, em nenhum momento, revelou qualquer intenção de trair o Altíssimo. Não podia deixar de sorrir com a ironia. O seu homem de sonho, quiçá de qualquer mulher, tinha uma relação com algo tão abstracto em que nem ela sabia se cria. De qualquer maneira absorvia o mais que podia daqueles momentos preciosos que passava com ele, ciente de que podiam acabar a qualquer instante.

Ao fim de algumas semanas, Rafael começou a sair para despachar assuntos que não podiam ser resolvidos por outros. Ficava sempre alguém com Sarah, embora ela o considerasse um exagero. A doença era silenciosa. Havia dias em que se sentia um pouco cansada, especialmente depois da quimioterapia, mas, exceptuando essas alturas, não havia razão para alarme. A maior parte das vezes ele regressava para fazer o jantar, o que a confortava. Só por uma vez se demorou quase uma semana. Não fosse a sentinela que ficava com ela e pronunciava um Correu tudo bem a Rafael antes de ir embora e quase pareciam um casal.

Sarah não permitiu que ele avisasse os pais dela que moravam em Portugal. Falava com eles regularmente por email ou telefone. Disse-lhes que iria chefiar a delegação italiana do jornal durante alguns meses. Rafael discordou. Não devia mentir aos pais, mas não a quis contrariar. A jornalista acordou em contar-lhes se a primeira fase de quimioterapia não resultasse. Por ora preferia ficar sozinha com ele, só os dois, mas isso não lhe disse, obviamente.

Se isto não é amor, o que serás, perguntava-se Sarah. Era certo que o sacerdócio preceituava o fazer o bem ao próximo mas... era melhor não pensar nisso. Mais cedo ou mais tarde, ela regressaria a Londres e ele ficaria em Roma se... não acontecesse o pior e a doença levasse a melhor. Qualquer que fosse o desfecho, seria como se aqueles meses nunca tivessem existido. Os filmes, as conversas, os passeios, os temperos dele, tudo isso seria uma memória feliz e pungente ao mesmo tempo. Não. Era melhor não pensar nisso também.

Naquela tarde de terça-feira, tivera consulta na clínica e, pela primeira vez, Rafael não tinha podido acompanhá-la. Ausentara-se há cinco dias.

Um assunto improtelável que necessitava de resolução urgente. Dissera-lhe pelo telefone que regressaria antes do previsto, ao final da tarde, mas a noite já caíra e ainda não havia sinal dele. Provavelmente não se preocuparia tanto se não soubesse por que teias se movia Rafael. Era um mundo perigoso, o da Igreja. Pregava a fé e os bons costumes mas guardava segredos, e as pontas soltas que por vezes surgiam necessitavam de ser sanadas rapidamente. Assim sobrevivia havia mais de dois mil anos.

Fora um dia ambíguo para ela mas Rafael merecia ter estado na clínica para ouvir os médicos dizerem que a doença estava controlada, que a quimioterapia resultara e o tumor regredira, que apenas tinha de ser vigiada nos próximos tempos, mas que o perigo passara. Que podia voltar a Londres e fazer a sua vida normal e fazer o acompanhamento a partir de lá.

Talvez por isso quisesse tanto vê-lo. Faltava-lhe o ar. Ele ajudara-a a vencer a doença, não havia dúvidas disso, mas... ia ser tudo tão doloroso. Ia doer mais que o cabelo perdido, que as sessões de quimioterapia, que as dúvidas, que o medo da morte... A mulher que se olhava no espelho com um lenço a tapar o cabelo inexistente, que cresceria em breve, não era a mesma Sarah de há seis meses. Essa morrera assim que entrara na policlínica Gemelli.

Acalma-te, Sarah. O que for será, disse a si mesma. Não vai doer para sempre. Isso era certo. Mas já doía o suficiente para a fazer chorar. Deixou as lágrimas escorrerem pelo rosto livremente. Não ia evocar a injustiça da vida ou que era uma vítima das circunstâncias. As coisas eram como eram e era suficientemente inteligente para sabê-lo. Mas precisava de chorar... e de apanhar uma bebedeira, se pudesse. Nada a impedia, mas seria imprudente fazê-lo. Não depois de tantos tratamentos e agressões ao seu corpo. Recompôs-se, vestiu uma camisola desportiva com capuz e foi até à sala.

Arturo, o padre de plantão, ainda lá estava.

- Se quiser pode ir embora. Estou bem e já tive alta médica - disse, com algum escárnio.

- O padre Rafael não deve tardar. Não se preocupe - proferiu o clérigo com um sorriso plácido.

Padre Rafael. Bah! zombou mentalmente.

- Vou apanhar um pouco de ar à rua - avisou a jornalista.

- Acompanho-a - prontificou-se o padre.

- Não é necessário, Arturo - disse Sarah. Preferia estar sozinha.

- Só vou apanhar um pouco de ar.

O padre percebeu que a jornalista precisava de espaço. Não estava vestida para ir longe.

Sarah saiu para a fria noite romana. Os dias estavam cada vez mais curtos e o sol escondia-se antes das oito horas. Andou uns metros em direcção à Via di Porta Castello. Passou por debaixo de uma das arcadas do Passeto. O trânsito era intenso mas ela nem reparou. Parecia um zombie a andar sem destino. Demorou-se alguns minutos numa montra e depois decidiu regressar. Talvez Rafael já tivesse chegado a casa. Desejava muito vê-lo naquela noite. Quando chegou ao prédio viu o padre Arturo à porta.

Tê-Ia-ia seguido? Os servidores de Rafael eram sempre muito diligentes. Ele sabia escolhê-los a dedo. Também este não seria um simples padre, era certamente um elemento da igreja sempre pronto a acobertar os segredos da Santa Sé. A mesma que lhe pagara todas as despesas dos últimos seis meses. Quão irónico. Sarah sorriu para o padre que lhe abriu a porta.

- O Rafael já chegou? - perguntou a jornalista.

Arturo fez que não com a cabeça.

Um táxi parou mesmo junto à entrada e apitou. Sarah olhou para o interior do veículo enquanto Arturo, sobressaltado, levou a mão ao coldre de ombro que tinha debaixo do casaco. Ela colocou-lhe uma mão no braço como que a pedir que tivesse calma e sorriu para o passageiro que vinha no banco de trás.

- O que estás aqui a fazer?

 

- O que estás aqui a fazer?

A mesma pergunta na quente atmosfera da Don Chisciotte, uma cafetaria elegante, na Via della Conciliazione, a poucos metros da Praça de São Pedro e do Castelo de Sant’Angelo e da residência provisória de Sarah há mais de seis meses.

- Tam... tam... também gosto de te ver - disse John Scot num tom sarcástico.

Sarah ajeitou o lenço na cabeça como se tivesse vergonha que ele visse mais do que ela desejava. Sorveu um pouco do chá quente que pedira, enquanto o copo de cerveja Peroni de John permanecia intocado.

- Quando chegaste?

- Há... há tr... três dias - suspirou enquanto brincava com um cigarro por acender entre os dedos e exibia um olhar de frustração. - Far... fartei-me de... de te li... gar.

- Não tenho andado com o telemóve1. Ganhei-lhe aversão.

- Per... per... cebi - fitou-a com complacência.

- Co... como te... te sentes?

Sarah tentou impedir, em vão, que uma lágrima se desprendesse do olho e sentiu-a descer pela face.

- Como se a casa tivesse aguentado um terramoto mas sem saber se suportará as sequelas.

John esticou a mão e tocou na dela.

- Tem... tem cal... calma, miúda.

Não imaginava sequer o que ela tinha passado. Nem sabia se teria forças para lidar com uma provação idêntica. Sugeriu-lhe, com uma expressão paternalista, que não pensasse no futuro. Que se congratulasse com a batalha ganha. Fora a Waterloo ou a Trafalgar ou a Gettysburg dela, e nada mais importava. Não valia a pena lutar contra inimigos invisíveis.

Sarah sorriu, timidamente. John tinha razão, embora parte das palavras não fossem dele mas da doutora Pratt M.D., facto que omitira à sua amiga e colega de ofício. Não fazia mal nenhum usar as palavras dos outros quando se aplicavam à situação, como era o caso.

- Como é que me encontraste?

John não respondeu imediatamente. Levou o copo de cerveja à boca e bebeu o líquido dourado até meio. Limpou a espuma que se alojara no lábio superior com as costas da mão.

- Te... temos um... um a... migo em... em comum.

Sarah não se deu sequer ao trabalho de pensar em quem seria. A verdade é que a sua estada não era segredo para ninguém. O seu alojamento não era secreto. Claro que haveria sempre coisas que não poderia contar mas...

- Pre... preciso da... da... tua ajuda - acabou por despejar o americano, de rompante.

Sarah focou o olhar nele pela primeira vez naquela noite. Estivera a desfiar as suas desgraças mas ainda não o fitara como devia ser. O mesmo ar franzino que lhe conhecia, como um boneco de trapos a desfazer-se, calças de ganga roçadas e uma camisa do mesmo tecido com botões de mola.

Tudo nele respirava pragmatismo. Tinha a mente demasiado ocupada com assuntos importantes para se dar ao luxo de se preocupar, minimamente, com o seu aspecto físico ou mesmo com a forma como se vestia. A Sarah bastava-lhe saber que ele tinha 50 anos e era de confiança. Conhecera-o em Londres, no primeiro ano do primeiro mandato de George W Bush.

Ela fora contratada como estagiária para assisti-lo numa investigação que ele liderava sobre dinheiros da lotaria usados de forma fraudulenta. Ele gostara do profissionalismo dela e ela aprendera os truques e vícios da profissão com ele. Zelou por ela, alertou-a, guiou-a, sempre com a mesma atitude paternalista que lhe é característica, apesar de John não ter filhos.

Dez anos depois, Sarah era a editora de política internacional do Times e ele um jornalista de prestígio num jornal de referência.

- Não... não quero sa... saber quem... quem são as... as tuas fontes começou o americano -, mas... mas não é difícil ver... ver que tu... tu... és de longe a jor.... jornalista mais... mais bem co... tada dentro da Igreja.

- Bah! Não precisas de me dar graxa, John. Se eu puder ajudar-te sabes que não te direi que não.

John sorriu. Era a Sarah de sempre, mais frágil, mais assustada, mas frontal e sempre com a resposta pronta na ponta da língua.

- Es... tou a fa... zer outra in... in... investigação.

- Tu nunca consegues parar, pois não? Não me digas que andas a investigar o Banco do Vaticano - gracejou.

John não respondeu. Neste ramo, quem cala consente. Sarah baixou a voz e aproximou-se mais do americano.

- Andas a investigar o lOR?

John assentiu com a cabeça.

- Como?

John explicou-lhe, em voz baixa, sílaba a sílaba, que um alto funcionário da Igreja o contactou, sigilosamente, e lhe fornecera um número considerável de cópias de documentos relacionados com o lOR.

- Esse alto funcionário não será bispo em Washington? - lançou Sarah em jeito de adivinhação e provocação, com um sorriso nos lábios.

- Ou arcebispo em Nova Iorque?

- Esse al... alto fun... cio... cionário per... permanecerá incó... incógnito declarou John com uma expressão séria:

- Assunto encerrado. Continua.

John voltou a recorreu ao seu dossiê castanho e entregou um documento a Sarah. Ela olhou para ele mas ficou na mesma.

- Era suposto isto dizer-me alguma coisa? É que não me diz nada.

O americano sorriu e levantou-se para mudar a pesada cadeira para junto dela. Pegou no papel e posicionou-o de modo a que ambos o pudessem ler. Segundo John, aquilo era um extracto de movimentos de uma conta sediada no IOR. Nada de mais. Mostrou-lhe o número de conta, no canto superior esquerdo, OOl-3-14774-C, e o nome. As contas no Instituto per le Opere de Religione não eram iguais às dos bancos dos outros países, eram constituídas por fundações ou fundos por uma causa solidária.

- Nes... te ca... caso a Fond...

- Fondazione Donato per la lotta dei bambini con leucemia - completou Sarah, atenta. - Fundação Donato para a luta das crianças com leucemia.

- E... exactamente.

Havia várias colunas com movimentos, uma com depósitos, outra com débitos e data-valor das transacções.

Sarah assobiou quando viu o total em activos, mais de quarenta milhões de euros. John olhou em redor para ver se mais alguém se interessava pela conversa deles. A cafetaria era um ponto de passagem e um local apetecível para lanchar ou mesmo jantar depois de uma tarde de lazer. Ficava a escassos metros de um dos locais mais visitados do mundo. Todas as mesas estavam ocupadas e havia até várias pessoas à espera de mesa. Uma senhora descalçara-se e aguardava sentada no chão, junto a uma das portas de entrada. Ninguém parecia interessado no que aqueles dois jornalistas estavam a observar, ainda que no meio de tanta gente fosse difícil entrever olhares suspeitos.

- Es... estás a ver aqui?

Sarah fez um gesto negativo. Para ela eram só números, aparentemente bem somados e subtraídos.

-Dei... deixa-me ex... plicar.

As contas do IOR tinham, como nas dos outros bancos, um ou vários titulares, mas com uma particularidade: só os gestores de conta é que podiam movimentá-las, devidamente autorizados pelos clientes. Mas havia mais: Apenas os gestores, e só eles conheciam a verdadeira identidade dos titulares, dentro da carteira de clientes que geriam. Um exercício de privacidade levado ao extremo. Aquela conta, explicou John, entre travamentos e destravamentos de língua, pertencia a uma pessoa que já tinha falecido.

- Como assim?

- O ti... titular é... é um padre que já... já mo... morreu.

- E qual é o problema?

John fez notar que a conta continuava a ser movimentada como se nada tivesse acontecido. Exemplificou dizendo que era como se ele e ela morressem e alguém, que não eles, continuasse a movimentar as suas contas como se eles continuassem vivos.

- OK. Isso é um pouco estranho. Mas a conta não terá passado para a tutela da Igreja, depois da morte do tal padre? - questionou Sarah.

- Foi... foi o que eu... eu pen... pensei.

John retirou outro documento do dossiê e colocou-o por cima do primeiro. Era a cópia da titularidade da conta. Dois titulares, um gestor autorizado. Um conjunto de informações técnicas como o número de conta e de clientes, dígitos de controlo próprios da instituição, entre outros algarismos ininteligíveis para Sarah mas perfeitamente lógicos para John.

- O que é este Piccolo? - inquiriu Sarah, intrigada.

John sorriu. As contas do IOR que tinham a peculiaridade de serem designadas por fundações ou fundos de solidariedade, próprias do nome do banco, Instituto para as Obras de Religião, para além de terem um gestor dedicado e só ele saber a identidade dos clientes, mantinham o nome oculto sob um pseudónimo.

- Wow. Isso é a privacidade levada ao extremo - censurou Sarah.

- Ou... ou... um ní... nível de se... secretismo para evi... tar cha... cha...tices - contrapôs John.

- Quer dizer que a este Piccolo corresponde um nome real que só este gestor conhece?

John fez que sim com a cabeça, mostrando um sorriso nos lábios de contentamento. Parecia uma criança com um brinquedo novo quando se envolvia nestas investigações e seguia a frieza harmónica dos números. Mas Sarah estava ciente do quanto aquelas coisas podiam ser perigosas.

O IOR, ao contrário do que se pensava, não era um banco nacional, como os de outro país qualquer. O organismo papal reconhecido pelo Fundo Monetário Internacional como o Banco Nacional do Vaticano era, na realidade um dicastério que tinha o nome de Administração do Património da Sé Apostólica, mais conhecido pela sua sigla APSA. O IOR era um banco de investimentos, que beneficiava da extraterritorialidade vaticana e, na verdade, era até muito mais que qualquer banco nacional, explicou o americano, que ia pensando enquanto falava no seu jeito sofrível. O IOR estava ao nível de um Banco Central Europeu e, ao mesmo tempo, de um banco de investimentos, e não era, nem podia ser, escrutinado por qualquer autoridade independente e os seus funcionários não podiam ser detidos nem interrogados.

- A Igreja não se gere com Avé-Marias - relembrou Sarah, uma frase do falecido arcebispo Paul Marcinkus, compatriota de John, que presidira aos destinos do IOR durante mais de vinte anos.

- Po... po... pois.

O jornalista americano continuou a sua explicação. Só o gestor de conta, por norma um clérigo ou um leigo autorizado, tinha acesso à identificação real do titular. Cada gestor tinha uma carteira de clientes, maior ou menor, e nenhum sabia que contas geriam os outros, nem quem eram os seus titulares. Cada um só conhecia os seus.

- Parece uma organização mafiosa.

John explicou que, na verdade, o IOR era composto por um conselho de supervisão que geria as operações mas que respondia a uma comissão de cardeais que as avalizava. Claro que a maioria dos prelados que compunham essa comissão não tinha formação económica e era possível ludibriá-los ou manipulá-los.

John chamou a atenção para um conjunto de movimentos mensais, débitos de baixo valor, na ordem dos poucos milhares de euros, que saíam sempre ao dia 30 de cada mês, excepto em Fevereiro, que saíam ao dia 28, mesmo nos anos bissextos. Eram transferências para outro fundo que tinha o nome de Pondo Giulietta per i bambini non protetti. Fundo Julieta para as crianças desprotegidas. Retirou mais um documento do dossiê que na parte superior, abaixo do número de conta, indicava o nome da conta que o extracto de movimentos indicara. John estava muito bem documentado.

Os débitos da conta Donato batiam, religiosamente, certo com os créditos do tal Pondo Giulietta na data e no valor, do primeiro euro ao último cêntimo. A esse valor de entrada era feito um levantamento, no próprio dia acreditação, de metade do valor, supostamente, em dinheiro. Sarah assobiou quando viu o último movimento, três milhões de euros, que tinham sido levantados há dez dias.

- Para onde foi esse dinheiro? - quis saber Sarah. O novelo enredava-se cada vez mais.

- Nã... Não sei - respondeu John,

Mais importante que Para onde ia o dinheiro? era de onde vinha, alertou John. Os depósitos eram feitos aleatoriamente em lotes de dez a trezentos mil euros, sempre em dinheiro.

- Então como consegues localizar a proveniência?

- Ve... Ve... Veneza - revelou o jornalista.

O dinheiro vinha de Veneza. Alguém reunia o dinheiro, proveniente de vários pontos do globo, e levava-o para Roma, duas ou três vezes por mês.

E a Fondazione Donato não era o único fundo que recebia estes depósitos avultados.

- Como é que conseguiste descobrir isso tudo?

Sarah estava, visivelmente, fascinada.

John hesitou em responder mas acabou por decidir fazê-lo. Se confiara nela tinha de ir até ao fim. Quem, durante muitos anos, recolhia o dinheiro do Piccolo em Veneza e o levava para o Torreão Nicolau V era o seu informador. Trazia o dinheiro dentro de caixas de sapatos.

- Em caixas de sapatos? Como?

O passaporte diplomático e a batina evitavam qualquer inspecção alfandegária.

- Quer dizer que a tua fonte sabe quem é o Piccolo?

O americano confirmou.

Sarah reflectiu sobre aquilo tudo durante alguns instantes. Mais uma vez, quando pensava que a Igreja até nem era tão má como pensava, alguma coisa a fazia desconfiar e voltar a ficar de pé atrás. Pensou em Rafael. Sabia que ele não era nenhum santo, mas será que ele tinha conhecimento disto, ou, melhor, será que estaria interessado em saber?

- O Vaticano anda a lavar dinheiro em grandes quantidades, é isso que me estás a dizer?

John anuiu com uma expressão triunfal.

- Mostraste isto a aIguém? - acabou por perguntar. John baixou a cabeça de modo comprometedor.

- A quem?

- Ti... ti... ve uma au... audiên... cia com... com o... o Secretário de Es... Estado ontem... de manhã.

Sarah esbugalhou os olhos e fez os possíveis por não lhe gritar, e tanto se esforçou que a voz acabou por lhe sair um murmúrio.

- Tu és doido? Foste mostrar isto à toca do lobo?

John admitiu que Sarah tinha razão. Talvez não o devesse ter feito. Mas precisava de saber, tinha de pedir autorização para entrar no Torreão Nicolau V nem que fosse só para tirar nabos da púcara. Contou-lhe o pedido que fez para visitar o edifício e falar com alguém que o pudesse esclarecer. Sarah sorriu. Ele era completamente louco.

- Achas que te vão autorizar?

- Nã... não... sei.

Explicou que deviam ter dado a resposta durante o dia e ainda não tinham dito nada.

- És completamente doido.

Sarah olhou para o relógio e viu que eram quase onze da noite. O tempo passara a correr. Precisava de ir para casa. Será que o Rafael já chegou? Deu mais uma olhada aos documentos que tinha à sua frente. O do Fondo Giulietta estava por cima dos outros. Sorriu ao ver o nome do pseudónimo do titular.

- Que... que foi? - perguntou John.

- É preciso ter muito descaramento para escolher um pseudónimo desses - respondeu Sarah, apontando com o dedo para o nome.

-Não… não é um pseu…pseudónimo – explicou o americano. – É ..é o ver…verdadeiro ti..tular da conta.

Sarah ficou lívida. Se fosse verdade então aquilo ia até ao topo. O nome era o de Bento XVI.

 

Assim que Jacopo deu a notícia a Rafael, em Dorsoduro, apanharam um táxi aquático em Salute, em frente à basílica, que subiu o Canal até à Ferrovia. Não falaram mas Jacopo notou um poço de fúria a formar-se dentro de Rafael. Talvez até o odiasse. Mensageiros como ele mereciam ser mortos. Atravessaram a ponte pedonal em direcção ao enorme parque de estacionamento onde Rafael deixara o carro. Inspeccionou a viatura, por dentro, por fora, por baixo e quando se deu por satisfeito deixaram Veneza, o Sol mal se aguentava no horizonte, estava prestes a tombar nos lados da Península. A viagem foi feita em silêncio e com o acelerador colado ao fundo. Tinham cerca de 550 quilómetros pela frente e Rafael queria chegar depressa.

Rumaram a Sul pela A13, com destino Bolonha.

Deixaram rapidamente para trás a região do Véneto e entraram na Emília-Romanha, passando por Ferrara. A maior parte do percurso foi feita por auto-estrada, daí que fosse fácil manter uma velocidade elevada. Jacopo segurou-se como pôde no lugar do pendura. Esteve tentado, algumas vezes, a dizer a Rafael que abrandasse mas considerou que, dadas as circunstâncias, talvez fosse melhor relevar. Se morresse disso sempre teria quem inculpar no além para onde os mortos vão viver eternamente.

A lua estava em crescendo no céu nocturno e dois pontos brilhantes realçavam o seu domínio, um por cima e outro por baixo. Pareciam estrelas, mas Jacopo lera no jornal, aquando da viagem de comboio para Veneza nessa manhã, que eram Vénus e Júpiter. Fora uma daquelas que os chamados reis magos seguiram quando Jesus nasceu. Não deixava de ser interessante notar, e Jacopo fazia sempre questão disso quando o debatia com alguém, que a chamada estrela guia dos reis magos era, na realidade, um planeta e que os, supostos, reis magos eram, na realidade, astrónomos. Os Apeninos dominaram a paisagem durante grande parte do caminho até se transformarem em negrume, juntamente com a noite. Pararam apenas uma vez para abastecer. Rafael nem perguntou a Jacopo se desejava comer ou beber alguma coisa ou, simplesmente, ir aos lavabos. Por três ou quatro vezes deixaram a auto-estrada para que Rafael visse se estavam a ser seguidos. Contornaram rotundas, entraram em estradas secundárias e, quando a análise era dada como concluída, regressavam à auto-estrada.

Em Bolonha seguiram pela A1, que os levaria directos a Roma, e entraram na Toscana. Cruzaram Florença, Arezzo, entraram na Umbria e saíram em Orvieto para verificar novamente se estavam a ser seguidos. Seguiu-se a província de Lácio e, ao fim de cinco horas e um quarto de viagem, entraram no trânsito que se aglomerava para entrar em Roma. Jacopo já dormia e só se apercebeu que tinham chegado porque acordou quando uma travagem mais brusca o sacolejou dos braços de Orfeu. Estavam à porta de sua casa na Via Brittania.

- O que vais fazer, Rafael? - quis saber, antes de sair do carro.

Rafael esticou o braço para o manípulo que abria a porta do passageiro, invadindo o espaço de Jacopo, e abriu-a.

- Vou precisar que me faças um favor, Jacopo.

E contou-lhe o que necessitava que o historiador fizesse.

- Tens a certeza? - perguntou o historiador.

- Tenho. Eu telefono quando chegar o momento.

Jacopo fitou-o, conformado. Não queria nada fazer-lhe aquele favor mas não estava em condições de lhe recusar nada. Aquela prometia ser uma noite longa.

- E depois como é que vou saber o que fazer? - inquiriu Jacopo.

- Vais saber, não te preocupes.

Jacopo resignou-se às vontades do padre.

- Vais contar à Nicole?

- Dá cumprimentos meus à Norma - respondeu Rafael, ignorando completamente a pergunta.

Jacopo saiu vagarosamente. Uma perna, depois a outra e olhou para Rafael antes de se levantar. Era estranha a sensação que o invadia. Por um lado desejara chegar a casa o dia todo, por outro parecia que estava a abandonar um amigo.

- Conta comigo; o meu telemóvel está sempre ligado.

Rafael não disse nada. Limitou-se a olhar para a frente, mantendo as duas mãos pousadas no volante. Se tivesse acelerado uma ou duas vezes pareceria um piloto à espera do sinal verde para iniciar uma corrida. Jacopo queria dizer mais qualquer coisa mas as palavras não lhe saíam.

- Eu... - balbuciou o historiador.

- Eu sei, Jacopo -limitou-se a dizer Rafael.

Jacopo saiu, finalmente, e ficou a ver o carro arrancar a grande velocidade assim que ele bateu com a porta.

 

Rafael não tinha tempo a perder. Eram quase onze da noite. Pensou em Luka, o bom amigo alemão, e em como fora possível levar dois tiros na cabeça sem qualquer reacção. Luka era tão experiente como ele. Ou foi manietado ou confiava na pessoa que o matou. E Niklas. Não passava de um miúdo e... era melhor não pensar nisso.

Atravessou a ponte Vittorio Emanuele II e desembocou na Via della Conciliazione, poucos metros à frente. Percorreu-a até São Pedro, verificando sempre se estava a ser seguido. Estava sozinho ninguém.

Procurou estacionamento numa das vielas, perpendiculares à Conciliazone, e foi a pé até ao apartamento. Subiu ao terceiro andar e encontrou-o vazio.

Nem Sarah, nem Arturo. Pegou no telemóvel e esperou que Arturo atendesse; enquanto isso dirigiu-se ao quarto de Sarah e colocou a mala de viagem dela em cima da cama.

Pousou o telemóvel por falta de resposta e abriu o enorme roupeiro.

Começou, com cuidado, a colocar as roupas dela dentro da mala.

- O que é que estás a fazer, Rafael? - ouviu então Sarah perguntar.

- Onde é que vocês andaram?

- O que é que estás a fazer? - disparou Sarah, enrubescida de raiva. Que raio estás tu a jazer?

Rafael não respondeu, continuou a encher a mala com calças, blusas, camisolas, tudo excepto as peças mais íntimas - nessas não se atreveria a tocar.

- Não me estás a ouvir?

- A Sarah vai regressar a Londres - comunicou, com uma voz seca, como se fosse uma decisão consumada e inapelável.

Sarah fechou-lhe a mala de rompante, com violência, quase não lhe dando tempo para tirar as mãos.

- Deixa, Rafael. Eu faço a minha mala.

A sua voz, apesar de trémula, não deixava margem para dúvidas. Era melhor ele não argumentar e afastar-se.

Muito calmamente, Sarah tirou toda a roupa de dentro da mala e começou a dobrá-la e a colocá-la em montes organizados em cima da cama. As calças, as blusas, a roupa interior, que ela foi buscar a uma gaveta na cómoda, e as meias, tudo obedecendo a uma lógica própria, seguramente científica.

- O Arturo vai consigo e vou destacar uma equipa para zelar pela sua segurança em Londres, Sarah - informou Rafael, na tentativa de pôr fim ao silêncio pesado que, entretanto, se instalara.

- Não quero mais padres atrás de mim - sentenciou ela, enquanto continuava a empilhar a roupa. Não quero mais nenhum a não ser tu. Mas isto ela não disse. - Além disso, não vou já para Londres. Estou a fazer uma investigação com um colega para o jornal.

- Que investigação é essa? - Desconhecia que ela tivesse regressado ao trabalho de campo. - Fico muito mais descansado se tiver segurança Sarah.

Ela começou a colocar a roupa, metodicamente, dentro da mala numa organização, absolutamente perfeita.

- A tua missão acabou, Rafael. Decerto alguém da clínica já te informou que estou curada, por agora. Mais uma vida salva. Obrigada por tudo.

Não conseguiu disfarçar o cinismo nem a amargura que sentia. Não imaginara uma despedida assim. Imaginara muitos cenários onde havia lágrimas e choro e tristeza; era um desfecho inevitável, sabia que iria doer, sempre, mas nenhum começava assim.

- Não está a compreender, Sarah. Eu não estou a mandá-la embora.

- Ah! Espera! Então isto é uma surpresa? Vamos de fim-de-semana para um local paradisíaco? Ah! Não. Hoje é terça-feira.

Rafael calou-se. Mais valia deixar que ela pensasse o que quisesse. Doeria muito mas o tempo encarregar-se-ia de apagar a mágoa.

Sarah foi ao quarto de banho e arrumou todos os cremes e loções que usava, dentro de um estojo próprio para essa função. Meteu os medicamentos que ainda tinha de tomar dentro de um saco e regressou ao quarto para os enfiar num espaço que havia deixado na mala para esse efeito. A eficácia feminina, sempre admirável. Fechou a mala e a mente a mais de seis meses de recordações, medos, rotinas, e a Rafael. Tudo acabado, no fim, deitado ao cesto do lixo das memórias. Fora apenas mais uma missão para ele? Piedade? Dívida? Fosse por que razão fosse, preferia que nada daquilo tivesse acontecido. Pegou na pesada mala e colocou-a no chão.

Elevou a pega e transportou a mala para fora do quarto.

- Adeus, Rafael.

O padre ficou especado, mudo, quedo, a vê-la sair com a mala. O lenço que lhe cobria a cabeça caiu ao chão e ela ainda fez menção de apanhá-lo mas, depois, lançou um olhar enfurecido a Rafael, os olhos raiados de vermelho, e saiu com a cabeça descoberta. Adeus, Rafael.

Segundos depois, ele ouviu a porta da rua abrir-se e bater para a deixar sair. Adeus, Sarah.

Arturo apareceu à entrada do quarto. Rafael mirou-o.

- Segue-a - ordenou-lhe. - Não deixes que ela te veja mas não a largues nem um segundo. Liga-me de hora em hora.

Arturo desapareceu para cumprir o que lhe foi ordenado e Rafael sentou-se na beira da cama a fitar as paredes. Não queria que nada daquilo tivesse acontecido. Não assim. Levantou-se apanhou o lenço caído no chão.

Levou-o ao nariz e inspirou. Sarah fechou os olhos e tentou não sentir nada.

Precisava de não sentir nada. Chamou o Rafael insensível, frio, o operacional que mentia, matava, feria em nome do Santo Padre e, por consequência directa, de Deus Todo- Poderoso, mas ele não veio. Só o cobarde que ficara a vê-la fazer a mala, sem dizer nada. Lembrou-se de Londres e da pergunta dela - O que há entre nós? -, há mais de um ano, há uma eternidade, e da sua resposta, o mesmo incompreensível silêncio de agora.

Deitou-se de lado, na parte esquerda da cama, pois Sarah preferia a direita, as pernas encolhidas, e abraçou-se ao lenço como se estivesse a abraçar-se a ela. Sentiu o perfume dela e fechou os olhos.

Adeus, Sarah. Não queria que fosse assim.

 

Os dias sucedem-se uns aos outros numa cadência repetitiva que transforma o segundo em minuto, hora, dia, semana, mês, ano, depois tudo se repete, os invernos, os natais, os verões, uma renovação permanente numa sucessão incessável.

Sarah já vira este filme. Lembrou-se do Walker's Wine and Ale Bar, em Londres, há mais de um ano, e das palavras dela e do silêncio dele. Um interlúdio na forma de um Adónis escultural chamado Francesco que não aguentou a pressão que era a vida dela. Coitado. Depois veio a doença e toda a atenção de Rafael, os Caffellatte, fatias de panino de chiabatta, tartes de maçã, suco de laranja e pêssego, chá, croissants, manteiga, queijos e fruta, os filmes, as conversas, os passeios, os temperos dele... No dia da vitória sobre o tumor acontecia isto... isto que nem sabia descrever o que tinha sido.

- Esse tipo ainda não percebeu que Deus não está à tua altura? - reclamou Vincenzo.

Sarah sorriu, enquanto subiam no elevador ao oitavo andar.

- Não devias estar em casa?

Vincenzo era o director do Grand Hotel Palatino, onde normalmente Sarah ficava hospedada quando estava em Roma, excepto nos últimos meses. Deu um pouco de folga à gravata como se de repente tivesse sentido que o nó não deixava passar o ar.

- O hotel está cheio. Três grupos grandes. Há jogo da Liga dos Campeões. Sabes como eu gosto de hooligans no meu hotel.

Saíram no oitavo andar e percorreram o corredor sóbrio, de paredes creme e alcatifa aveludada carmesim a suportar-lhes fofamente os passos.

As portas e os rodapés eram de madeira de cor preta. Vincenzo usou o cartão para lhe abrir a porta do quarto e antes de a deixar entrar enfiou-o na ranhura que ligava a corrente eléctrica. Parecia que estava num quarto em sua casa, talo à-vontade com que se movimentava. Era director do hotel há dezassete anos, mas tinha uma experiência de mais de trinta naquele ramo. Desviou umas cortinas que tapavam uma porta e abriu-a. Dava para uma varanda com uma mesa e duas pesadas cadeiras de ferro. Dali assistia-se em lugar privilegiado à noite romana, ao ruído da cidade viva que mais não era que um eco da respiração. Estava frio, mas nada de insuportável. Aliás, para Sarah, depois do que tinha passado com Rafael, tudo era suportável.

A jornalista saiu para o ar da noite e abraçou Vincenzo.

- Obrigada, querido.

As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, livremente.

- Então, menina?

Vincenzo correspondeu ao abraço paternal e afagou-lhe o cabelo.

- Queres que lhe vá bater? - perguntou o italiano.

Sarah sabia que ele estava a falar a sério, mas ignorava no que se estaria a meter. Ela esboçou um sorriso débil.

- Eu vou ficar bem, Vincenzo.

Ficaram a olhar para os telhados que se espalhavam até onde o negrume da noite deixava entrever e para os pontos de luz que saíam das janelas, reivindicando vida humana no meio do escuro. Lá em baixo, invisíveis ao olhar deles, ouviam-se os motores dos carros e das lambretas, das vozes e dos passos, que se misturavam num ronco desconexo, gutural, que chegava à varanda como um latido.

- Vai para casa. Não precisavas de ter subido.

- Não sejas tonta, Sarah. As tuas dores são as minhas.

Sarah sorriu com os olhos marejados.

- Os teus filhos já estão criados, querido.

Foi a vez de Vincenzo sorrir com uma expressão de "pobrezita, não sabe o que diz:

- Nunca estão, Sarah. Quando fores mãe saberás.

O italiano arrependeu -se do que disse mal se ouviu a proferir aquelas palavras.

- Desculpa.

- Não disseste nenhuma mentira. Suponho que deves ter razão.

Vincenzo deu-lhe um beijo no rosto e outro na testa.

- Vou embora. Tenho de ir ter com a minha outra mulher - disse a sorrir. - Qualquer coisa de que necessites manda-me chamar. O Riccardo está de serviço na recepção esta noite.

- Eu sei. Obrigada por tudo.

- "Obrigada" são cinco euros, já sabes - brincou Vincenzo, a tentar aliviar o ambiente.

- E "desculpa" são dez - acrescentou Sarah.

- Exactamente. "Desculpa" são dez. Deu-lhe outro beijo na testa.

Descansa. Tenta dormir. Amanhã venho ver como estás e tomamos o pequeno-almoço juntos. Vincenzo bateu a porta ao sair mas deixou o silêncio entrar. Sarah apagou todas as luzes do quarto e saiu para a varanda. O frio entrava pelas frinchas da roupa provocando-lhe arrepios na pele, mas ela gostava da sensação. Pareciam agulhas a sacudi-la da letargia e a acordá-la para a vida.

Sentou-se numa das pesadas cadeiras de ferro e fitou a imponência do céu silente majestoso, estrelado. Doía. Recriminava-se por não poder controlar a dor que a fazia que a fazia sofrer tanto. O dia começara tão bem com uma notícia de vida, um prazo de existência prorrogado, uma carta de alforria que a libertava do peso da morte que havia pairado, constantemente, nos últimos meses, e nem essa grandiosidade a fazia feliz.

Queria ouvir os grilos, as cigarras, os zumbidos dos insectos, mas só lhe chegava o rufar artificial e cruel da natureza humana. Sarah fechou os olhos e deixou-se ficar a ouvir. Um carro, uma motoreta, uma gargalhada conivente, duas, uma voz masculina, uma donzela indefesa com vontade de acreditar no amor e entregar o coração, um coro de rapazes a discutir a virilidade, conversas e mais conversas, numa verborreia ininterrupta, em crescendo. Roma adormecia tarde, quase sempre muito depois da meia-noite, mas acabava sempre por adormecer.

Pensou nele, outra vez, os passeios cúmplices nas vielas, os jantares, o cuidado, os livros do Nicholas Sparks. Sabia que, inevitavelmente, a vida de casal idílico terminaria e que ia doer mais que uma faca entranhada no ventre, mas não tinha de ser assim...

Ouviu o seu telemóvel soar no quarto e levantou-se com esforço. Não queria falar com ninguém, não estava para aturar ninguém, mas o toque estridente incomodava-a. Tirou o aparelho da bolsa e leu o nome no ecrã.

Era John Scott. Atendeu e preparou-se para repreendê-lo devido ao adiantado da hora, mas o americano não lhe deu tempo.

- Des... des... culpa es tar a li li... ligar-te - começou ele com alguma agitação na voz. - Re re re mexeram-me o quar... to e... e …e a... acho que es... estou a ser ser se... seguido.

 

Os homens não são todos iguais. Essa ilusão vai-se desfazendo com o tempo, de desilusão em desilusão, até que cada um assuma a sua real posição na escala hierárquica da vida. Os poderosos mandarão sempre naqueles que detêm menos poder, os quais, por sua vez, imporão a ordem a outros menos poderosos ainda, e assim sucessivamente até se chegar aos que não têm poder nenhum, no fundo da cadeia alimentar da sociedade.

Rafael não respondia apenas a Deus e ao Santo Padre pelas suas acções.

Tinha um superior, alguém que lhe dizia o que fazer, que lhe transmitia as directrizes enviadas pelo topo da cadeia, onde residia o chefe do chefe de Rafael.

Jacopo já lhe havia transmitido a peremptória ordem que clamava a sua presença no edifício administrativo, apenso ao Palácio Apostólico, com a máxima urgência. Levantou-se da cama que fora a de Sarah nos últimos meses, mal-humorado, dobrou o lenço que ainda segurava na mão e guardou-o no bolso. Foi ao quarto de banho lavar o rosto e depois saiu do apartamento.

Poucos minutos depois, entrou no Estado Papal pela porta de Sant'Anna.

À excepção dos guardas suíços de vigília às portas e dos gendarmes que faziam segurança ao perímetro do pequeno Estado, não se via vivalma.

Estacionou no parque junto às casernas da Guarda Suíça, enfiou as mãos nos bolsos do casaco e caminhou os escassos metros que o separavam do edifício administrativo, onde entrou já passava da meia-noite.

Guillermo não estava no seu escritório, no rés-do-chão e não parecia haver mais ninguém em todo o edifício. Era dali, daquele recôndito espaço desconhecido, colado ao palácio mais influente do mundo, que partiam as ordens dos servidores da Igreja e saíam os emissários para as cumprir aonde o Vigário de Cristo entendesse. Tinha o simples epíteto de Edifício Administrativo, mas ali não se administrava nada, executava-se. O seu nome correcto raramente era usado. Ali operavam os serviços de espionagem do Vaticano, a Santa Aliança, mais conhecidos como A Entidade.

Rafael puxou uma das cadeiras que estava alinhada ao lado de outras duas na parede e sentou-se no interior do gabinete do chefe, à espera. Estava cansado e exasperado. A imagem revoltada de Sarah colou-se-lhe ao cérebro e não despegava. Arturo ligara-lhe a informar que Sarah se alojara no Grand Hotel Palatino, na Via Cavour. Imaginara que o fizesse. Era o seu porto de abrigo em Roma quando outros lhe falhavam. Faltavam alguns minutos para Arturo fazer novo ponto da situação.

- Ah! Já cá estás - ouviu Guillermo dizer atrás de si. Parecia que tinha vindo a correr, tal era a forma como arfava.

Guillermo Tomasini, o quinquagenário chefe dos agentes secretos papais, de quem nunca ninguém ouvira falar, nem era provável que viesse a ouvir, entrou no gabinete e cumprimentou Rafael com um forte aperto de mão. Rafael nem se levantou.

- Ui. Estás um caco, homem. Dormiste alguma coisa? - perguntou Guillermo sentando-se no tampo da secretária.

- Não deixaste - protestou o subordinado.

- Pois. Desculpa, mas por aqui tem sido um pandemónio.

- É sempre.

- A Polizia di Stato não nos larga a mão.

- Já libertaram o corpo do Luka? - Sentiu um aperto no coração quando disse o nome do colega, mais um que transitara para a, já longa, lista dos mártires.

Guillermo fez que não com a cabeça.

- Estão a fazer finca-pé para ver se lhes damos alguma coisa. Sabes muito bem como é quando o Comte e o Cavalvanti estão ao barulho - explicou, ao mesmo tempo que, com a mão direita, pegava numas moedas que estavam espalhadas em cima da caótica secretária. - Queres um café?

- Quero. Esses dois nunca se deram bem.

- Nem se darão.

Guillermo saiu do escritório e Rafael levantou-se para segui-lo. O caminho não era longo, pararam junto a uma máquina automática de bebidas quentes mesmo ao lado do escritório. Privilégios da chefia. Guillermo enfiou algumas moedas na ranhura da máquina e pressionou um botão que a fez emitir bipes e ruídos eléctricos para cumprir o pedido.

- O café aqui ainda não é de graça? - reclamou Rafael.

- O que é que aqui é gratuito?

A primeira bebida ficou pronta em poucos segundos e a máquina, bem comportada, remeteu-se ao silêncio. Guillermo entregou o copo de plástico a Rafael e enfiou mais moedas para tirar outro para si.

- Obrigado. Fazes ideia do que aconteceu em Sant'Andrea? - perguntou Rafael depois de um gole na bebida quente.

Guillermo encolheu os ombros. A vida e o ofício, em medidas iguais, encarregavam-se de lhe esfriar os sentimentos. Nada era, verdadeiramente, importante ou impressionante. Claro que preferia Luka vivo, mas a morte dele não lhe iria tirar o sono.

- O Luka foi direitinho à toca do lobo. Só não conseguimos perceber porque é que o rapaz foi com ele.

- O Luka era muito experiente - argumentou Rafael. - Ser surpreendido não faz o género dele.

- Eu sei, Rafael... Talvez... Já não tenho certeza de nada. Ele tinha a arma na mão e levou dois tiros na cabeça – comentou Guillermo, retirando o seu copo da máquina. - Que te parece?

Rafael respirou fundo antes de responder, a tentar imaginar a cena na sua cabeça, mas Sarah continuava a invadir-lhe os pensamentos. Sempre ela.

- Ele tinha a arma na mão?

- É o que diz o relatório preliminar.

Entraram novamente no escritório e Guillermo tentou encontrar algo em cima da secretária. Fez uns trejeitos de impaciência com a língua.

- Isso estava por aqui. Ainda há pouco estive com ele na mão.

Acabou por encontrar um molho de papéis que entregou a Rafael. Este sentou-se para os ler.

- Encostado à coluna da capela de Nossa Senhora do Sagrado Coração, com dois tiros na testa?

- É o que diz o relatório.

- E a Beretta na mão.

Continuou a ler o relatório preliminar da polícia italiana, com atenção.

Posição dos corpos, ferimentos visíveis, disposição do terreno, condicionantes, entre muitos outros itens, na maioria ainda à espera de resposta laboratorial.

- O outro padre tinha dois tiros na têmpora direita. Quem era ele?

Guillermo expeliu um ui de desapontamento.

- Lamentável. Ficou com a cabeça desfeita. Os homens do Cavalcanti ainda não sabem quem é. Estão a tentar identificá-lo.

- E nós sabemos?

- Um dos relatores - revelou Guillermo apreensivo. - O Domenico.

- E o nosso relatório preliminar? - perguntou Rafael.

- Podes..não....acreditar mas, desta vez o Cavalcanti chegou primeiro.

- Como é que isso aconteceu?

- Alguém o avisou. Ainda não descobrimos quem foi. O Comte ficou possesso. Acho que ainda não lhe passou - disse o chefe da espionagem, a sorrir.

Em qualquer crime perpetrado em solo católico, salvo raríssimas excepções, uma equipa de agentes sob a tutela do intendente da Gendarmaria Vaticana, Girolamo Comte, avaliava, antes de qualquer outra entidade, a cena do crime. Comte enviava uma mal tinha conhecimento do caso. Só depois de efectuada esta análise preliminar é que se entregava o caso às autoridades civis. Isto era prática corrente em todos os edifícios católicos do mundo. Desta vez a equipa de Comte chegou depois dos agentes da Polizia di Stato.

Guillermo tornou a perder-se no meio do caos da sua secretária até encontrar outro molho de papéis presos por um clipe. Era a análise pericial da equipa pontifícia. Rafael também avaliou este documento atentamente.

- Porque é que ele levou o rapaz? - perguntou Rafael, mais para si próprio, como se estivesse a falar sozinho, com uma nota de incredulidade na voz.

- O Luka ligou-me a falar de um encontro com o Domenico. Mas nunca me disse que ia levar o rapaz. Aliás, eu não sabia quem era o rapaz até ontem.

Quem fez isto sabia que o Luka era o tutor do miúdo e que ia levá-lo. Mais: sabia onde iam estar e a que horas.

Guillermo contornou a caótica secretária, retirou o telefone de cima da sua cadeira e sentou-se. Rafael continuou a ler o que os seus colegas encontraram em Sant'Andrea.

- Quem é que o Comte enviou para Sant'Andrea? - quis saber Rafael.

- Foi lá ele pessoalmente. Depois deixou o Davide encarregue das operações. Claro que o Cavalcanti fez-lhe a vida negra.

Rafael conhecia Davide. Era extremamente competente e acima de qualquer suspeita, apesar de ser muito chato. Havia sempre uma rivalidade latente entre os homens de Guillermo e os de Girolamo, alimentada pelos dois chefes, mas Rafael tentava ignorá-la. O profissionalismo era tudo.

O relatório não apresentava diferenças em relação ao da polícia italiana.

- Quem recebeu o pedido de resgate?

- Ninguém. Foram os italianos que descobriram o bilhete colado num confessionário. Está limpo. Por isso no-lo deram.

Rafael tirou o post-it azul do bolso e atirou-o para cima da secretária, mais um papel não faria diferença. Guillermo já sabia o que dizia mas leu-o em voz alta.

- Os relatores do Gumpel andam a fazer um mau trabalho. A punição não tardará. Anna P. e padre Rafael S. 36 horas. Aguardem instruções. Se as seguirem o rapaz vive, se não o rapaz morre.

- O que é que os relatores do Gumpel andam a fazer? - perguntou Rafael.

Guillermo encolheu os ombros desinteressado.

- Não faço ideia. O Comte e é que está a tratar disso e o sacana retirou-me acesso à investigação. Não percebo o interesse deles em ti.

- Nem eu. O Comte não pode fazer isso.

- Teoricamente não. Na prática tem o apoio do Cardeal Secretário de Estado como sempre teve e...

- Não podemos ir contra as ordens do Cardeal Secretário de Estado ­ completou Rafael. - Teremos de contornar essas ordens e agir nas costas do Comte.

Os dois homens deixaram as palavras elevar-se no ar e impregnar o ambiente, e adoptaram uma pose pensativa. Precisavam de respostas mas, neste momento, só tinham dúvidas, entraves e perguntas, perguntas e mais perguntas.

- Como é que eles tiveram conhecimento dela? E de ti?

- E como é que souberam do rapaz?

- Por onde é que andaste? - perguntou Guillermo, do nada.

- A tratar de assuntos pessoais.

- E correu bem?

- Sim, exceptuando alguns imprevistos.

- O homem planeia, Deus sorri - atirou Guillermo com um sorriso.

- Já mo tinham dito - afirmou Rafael, endireitando-se na cadeira.

- Voltando ao assunto... Como procedemos então?

- Por mim devíamos ignorar. Não podemos negociar com terroristas, ponto final. O Federico que contenha os estragos. Esse é o trabalho dele.

Claro que é uma pena isso do rapaz, é jovem, tem a vida pela frente, blá, blá, blá, mas muitos nem sequer chegam à idade dele e...

- E o que dizem os do terceiro andar? - interrompeu Rafael. Esperava que não pensassem como Guillermo.

- A mesma coisa. Que devemos ignorar as instruções e eliminar mulher o mais rapidamente possível e de uma vez por todas. É uma pedra no sapato, diga-se. Sempre o foi. Por mim eliminamos as duas.

Pesaram os prós e os contras, cada um para si, ainda que a decisão já tivesse sido tomada por instâncias superiores à vontade deles, insondáveis e, sobretudo, inquestionáveis. Nunca podiam esquecer que eles eram o braço que executava e não a cabeça que pensava.

Rafael pousou os relatórios periciais e levantou-se.

- Dois tiros na testa - repetiu Rafael, um facto longínquo de um assunto que já ficara para trás, pelo menos para o chefe. - Foi projectado para a capela de Nossa Senhora do Sagrado Coração.

Guillermo fitava-o em silêncio. Rafael parecia ter encontrado uma explicação plausível.

- O outro ficou com a cabeça desfeita com dois tiros na têmpora direita. Quem disparou sobre eles estava do lado direito.

- Exacto, Einstein.

- Ao lado deles, não à frente.

- Captaste a minha atenção.

- Era alguém em quem eles confiavam ou, pelo menos, não consideravam uma ameaça.

- Mas eles tinham ambos as armas na mão - contrapôs Guillermo.

Rafael tentou imaginar a cena. Conhecia bem SantAndrea e mesmo que não conhecesse, quem já viu uma igreja viu todas, era apenas uma questão de tamanho. No caso da Basílica de Sant'Andrea della Valle, ela era bastante grande, com a segunda maior cúpula de Roma a seguir à de São Pedro.

- Talvez tivessem sacado a arma por outro motivo.

- Que motivo, Rafael? - questionou Guillermo, sem paciência. - Não estarás a ver coisas onde elas não existem? Eu também desejava que ele não tivesse falhado, mas se calhar baixou simplesmente a guarda.

Rafael negou com a cabeça.

- Não levas dois tiros na testa se desconfiares que o gajo ao teu lado te vai matar. Eu já saquei muitas vezes a minha arma sem razão, apenas por me sentir ameaçado.

- Isso é tudo muito relativo.

- Aposto que o relatório forense vai dizer que os tiros foram dados a curta distância. Caramba, um ficou com a cabeça desfeita... - Depois parou como se estivesse a pensar.

- O que foi?

- O Domenico.

- Que tem?

- Dois tiros na têmpora direita.

- Dois tiros na tromba. Pum. Pum - zombou Guillermo com o indicador apontado a simular uma arma. - Cabeça desfeita.

- Esse foi o primeiro a morrer. A ameaça veio seguramente da direita, mas ele nem sequer se deu conta do que lhe aconteceu. O relatório menciona o corpo do zelador na varanda da tribuna. Se eles o viram, sacaram imediatamente as armas. Portanto, eles sabiam que havia perigo mas não se aperceberam que estava tão perto? Talvez dentro do confessionário.

Guillermo levantou uns papéis da secretária. Estava novamente à procura de qualquer coisa. Acabou por encontrar um bloco de notas e uma caneta que atirou para a frente de Rafael.

- Para que é isto?

- Para escreveres a morada.

Rafael olhou para o chefe com perplexidade.

- Para quê?

- Para irmos tratar da mulher.

- São ordens do Santo Padre?

- Evidentemente. Já falámos sobre o que decidiu o terceiro andar - advertiu Guillermo. - Não teríamos importunado o doutor Sebastiani se a Rafael torceu o nariz.

- Por alguma razão só eu é que sei onde está a Anna - refutou o prelado inferior. - Se bem te lembras, a ideia foi do Cardeal Secretário de Estado. Quando ele assumiu o cargo disse-me que não queria saber onde ela estava e que não devia mencionar o paradeiro dela a ninguém. Nem a ele.

O único a quem o posso revelar é ao próprio Santo Padre.

- Eu sei, Rafael. E é o próprio Santo padre quem o solicita. A situação alterou-se e saiu do nosso controlo. Ameaçam matar uma pessoa por causa disto...

- Não podemos deixar que isso aconteça - interrompeu Rafael.

- Pois não. Não se trata de um jovem padre qualquer. Mas não está nas nossas mãos e o destino do Niklas já foi traçado.

Rafael sabia bem porquê e não precisava que Guillermo lhe refrescasse a memória. Niklas era filho de um diplomata alemão e isso devia ser levado em conta.

- Alguém mais sabe do rapto?

- Além de nós? Sabem os raptores. O embaixador ainda não sabe, por enquanto - respondeu Guillermo enquanto se levantava. - Trinta e seis horas, lembras-te? Perdemos mais de dois terços desse tempo a tentar contactar-te, Temos menos de oito horas para resolver isto. Não percebo como é que eles tiveram conhecimento da existência dela. Estamos a ser atacados por todos os flancos.

- O que queres que faça?

- Já te disse. Que escrevas a morada dela - declarou Guillermo, peremptório, ao mesmo tempo que apontava com o indicador para o bloco de notas que atirara para a frente de Rafael. Era uma ordem.

- E porque não me deixas, simplesmente, ser eu a ir buscá-la?

- Olha para ti. Não podes com uma gata pelo rabo. Além disso, preciso de ti aqui em Roma.

- Para quê?

Guillermo atirou-lhe outro molho de folhas para a frente, derrubando outras tantas que acabaram por cair no chão. Estavam presas por uma mola e eram encimadas por uma fotografia de um homem em tamanho dez por quinze.

- Ainda hoje, Rafael. Os de lá de cima querem isso resolvido com urgência. Rápido e sem percalços.

- Depois posso ser eu a ir buscá-la? - insistiu Rafael.

- Depois quero que faças uma visita aos relatores.

- O quê? - Rafael não queria crer no que acabara de ouvir.

- Isso mesmo.

- O Comte destacou uma equipa de segurança para as residências deles, suponho. Não precisam de ama-seca.

- Não sejas insolente. Escreve a morada, Rafael. Irra, que feitio.

Rafael fitou Guillermo e resignou-se. Acabou por rabiscar algo no bloco de notas e atirou-o para o chefe, que arrancou a folha onde ele escrevera a morada.

- E este quem é? - perguntou Rafael apontando para a fotografia do homem.

- Ninguém -limitou-se a dizer Guillermo. - Assim que receber a tua visita não será ninguém.

Rafael levantou-se, libertou a fotografia da mola e pousou o resto das folhas em cima da caótica secretária.

- Trata disso. Esteja ele com quem estiver - acrescentou o chefe.

- E se ele estiver num café ou num restaurante... ou numa igreja? Trato da saúde a todos? - perguntou Rafael para provocar Guillermo.

- Não o faças numa igreja, por favor... - pediu o chefe, e depois olhou para Rafael com maus modos. - Tu percebeste muito bem o que eu quis dizer. - Rabiscou algo apressadamente no mesmo bloco de notas onde Rafael escrevera e arrancou a folha. - Este é o hotel onde ele está.

Rafael fez um meio sorriso, pegou na folha de papel e saiu do gabinete sem um boa noite ou outro qualquer cumprimento. As cortesias não eram apanágio destes homens.

Deixou o edifício e caminhou em direcção ao carro, estacionado a poucos metros dali. Nesse momento, o seu telemóvel tocou. Era Arturo.

- Sim? Santini. - Escutou o relato conciso do colega. - Onde é que ela vai? - esperou pela resposta. - Está bem. Avisa-me assim que saibas para onde ela vai.

Desligou a chamada e guardou o telemóvel no bolso. Abriu a porta do carro e, antes de entrar, olhou uma última vez para o rosto impresso na fotografia que o chefe lhe entregara. Tirou a Beretta de cabo de madeira do coldre de ombro e verificou o carregador antes de o voltar a enfiar no mesmo sítio.

- Qual terá sido o teu pecado, John Scott?

 

John Scott aspirou, sofregamente, o fumo do tabaco até encher os pulmões, ao mesmo tempo que o cigarro lhe tremia nos dedos. Estava sentado ao balcão do bar do hotel com um copo de uísque à sua frente, enquanto, junto ao lavatório, o empregado limpava copos e chávenas. Além do empregado, um grupo de ingleses sentado em três mesas encostadas a um canto, cheias de garrafas de cerveja, discutia em grande algazarra.

Todos lhe pareciam suspeitos mas antes preferia estar ali do que subir novamente ao quarto no segundo andar. Talvez fossem todos espiões, mas não soubessem que a missão de cada um deles era a mesma: apagá-lo do mapa para todo o sempre e limpar o rasto da sua existência. Arrepiou-se ao pensar nisso.

Quando se despediu de Sarah, no Don Chisciotte, cerca das onze da noite, não lhe apeteceu vir logo para o hotel. Preferiu deambular pela cidade, admirar as luzes, o movimento, sempre agarrado ao dossiê castanho como se a vida dependesse disso. Demorou-se muito tempo na Piazza Papa Pio XII, em frente à outra praça, a de São Pedro, na fronteira que separava a República Italiana do Estado Cidade do Vaticano, encostado às grades cinzentas, a contemplar o poder silencioso que a basílica emanava. Ao lado direito, por cima da Colunata de Bernini, dominava o Palácio Apostólico. Sentiu um calafrio. As luzes ainda estavam acesas nas janelas do terceiro andar, na esquina do lado direito do edifício, dos apartamentos papais. John perguntou-se se seria ele o motivo da falta de sono do Papa, se estariam a falar dele dentro daquelas paredes onde estivera na manhã do dia anterior.

Contemplou as duas colunatas, o Obelisco Egípcio, as fontes, e temeu pela sua vida.

Pensou, pela primeira vez, que talvez aquele dossiê lhe abreviasse o destino, em vez de o salvar.

Olhou ao redor e viu dezenas de pessoas, entre meros turistas e profissionais e membros do clero, de sorriso aberto, a tirar fotografias. A praça estava interdita a todos a partir das seis da tarde e tornava a abrir-se às sete da manhã. As fotografias nocturnas eram tiradas do lado de fora da grade.

John viu um homem com uma máquina fotográfica apontada para ele e sentiu os pelos do corpo eriçarem-se. Depois viu o mesmo homem abrir-se num sorriso para uma mulher que passou pelo jornalista coma a mão esticada como se quisesse, tapar a lente da câmara e um sorriso envergonhado a dizer Basta! Basta!

Dali, seguiu pela Via della Conciliazione em direcção ao Castelo Sant'Angelo e passou a outrora chamada ponte de Adriano, que actualmente tem o mesmo nome do castelo. As estátuas dos anjos que repousavam em cima das balaustradas de mármore travertino mais se pareciam com figuras demoníacas a lançarem-lhe olhares suspeitos. Até as estátuas de Pedro e Paulo pareciam estar contra ele. Havia muita gente na rua nas zonas turísticas era sempre assim, o ano inteiro, todos os dias, fizesse chuva, frio ou sol. Ao fundo, a cúpula da Basílica de São Pedro ainda dominava os céus, no meio dos prédios do Corso Vittorio Emanuele II, o pai da pátria, a avenida mais movimentada de Roma.

Chegou ao hotel depois da meia-noite. Pediu a chave na recepção e subiu ao quarto. Assim que abriu a porta recuou, amedrontado. Depois entrou a medo, passo a passo, pé ante pé. Estava tudo remexido. Uma cadeira tombada em cima da cama, a mala de viagem no chão, a roupa espalhada pela cama e em cima das mesas-de-cabeceira. Quem ali entrara quis, obviamente, que ele soubesse que ali tinha estado. Era uma mensagem clara.

Deu por si com o revólver Amtec, de cinco balas, a tremer-lhe na mão, como se soubesse usá-lo. Sentiu-se um idiota e um cobarde. Era melhor levá-lo à cabeça e premir o gatilho.

Pegou no telemóvel e ligou a Sarah, em pânico, a apreensão e a paranóia ganhando o lugar cimeiro nos batimentos cardíacos. Mesmo não sendo crente rezou a Deus e a todos os santos para que ela atendesse e não o deixasse pendurado. Ela atendeu, tranquilizando-o imediatamente. Disse-lhe que fosse para o bar e que iria ter com ele dentro de dez minutos. Ele ainda procurou por alguma mensagem que lhe tivessem deixado, mas não encontrou nada e desceu para o bar, a correr, descendo pelas escadas de dois em dois degraus. Levou o copo de uísque à boca mas teve de o segurar com as duas mãos, tais eram os nervos. Acalma-te, gritou mentalmente. Mas o coração continuava a latejar como um louco dentro do peito. O empregado lançou-lhe olhares impertinentes e perguntou-lhe se estava bem por duas vezes.

- S... s... sim. Es... tou bem... bem - respondeu em ambos os momentos.

Decerto o empregado era um espião e esperava que o veneno que pusera no uísque fizesse efeito. Decerto ele, John Scott, era um idiota. Já passara por situações semelhantes, evidentemente. Ninguém fazia o que ele fazia sem criar alguns inimigos. Alguns telefonemas a meio da noite com uma voz séria a ameaçá-lo de morte ou da quebra de alguns ossos do corpo ou do corte de algumas partes sensíveis. Mas nunca passou disso. Sabia que o seu nome impunha algum respeito. Fazer-lhe mal era perder. Preferiam caminhos mais subtis como um carro, uma viagem, uma oferta em dinheiro, ou uma mulher deslumbrante que de repente se apaixonava perdidamente por ele e queria despir-se na sua cama ou em qualquer quarto desde que ele estivesse presente. Os criminosos americanos e ingleses tinham estilo, atentavam ao carácter, aos vícios, às fraquezas humanas. Ali, na Cidade Eterna, nada disso se aplicava. Era um estrangeiro no meio de uma investigação muito estranha. Não tinha ninguém a quem recorrer, a não ser Sarah. Sem ela teria de pedir ajuda à Embaixada do seu país ou meter-se num avião e fugir dali a sete pés. Conhecia bem os métodos italianos, muito diferentes dos americanos e ingleses. Não perdiam tempo com subtilezas nem com as convenientes explorações do género humano. Em Roma, os inconvenientes eram eliminados e atirados ao Tibre, sem apelo nem agravo, sem justiça.

Olhou para a entrada do bar pela milionésima vez desde que ali entrara. Qualquer ruído ou movimento brusco, real ou imaginário, fazia-o desviar os olhos para a única entrada que havia. Não havia porta. Era apenas uma abertura grande que dava acesso a outras zonas do hotel. O empregado parecia estar sempre a limpar o mesmo copo, ou seria outra?

O grupo de ingleses continuava a berrar sobre as suas aventuras e desventuras, sempre com muito álcool, grandes gargalhadas e movimentos de braços exagerados.

Estava prestes a dar em doido quando Sarah chegou. Foi como se um anjo protector tivesse aparecido no bar para acabar com todos os seus medos.

- Então, John?

John abraçou-a com força, quase não a deixando respirar.

- Menos, John, menos - pediu ela.

Ele largou-a. Tinha os olhos marejados, Libertara uma enorme pressão.

- Des... culpa. Des... des... culpa - pediu o americano. - Des... culpa por tudo… tudo, por …por te ter...ter li…ligado, por ter i ….i…ido ter com…tigo…

- Ena, tanta desculpa - zombou Sarah, deixando a mente vaguear para outra pessoa de quem queria ouvir aqueles pedidos de desculpa. - Calma, John, Senta-te e conta-me tudo devagar.

John contou tudo como se de um relato jornalístico se tratasse. O passeio nocturno por Roma até à Praça de São Pedra e o percurso que fez a pé de regresso ao hotel. Sarah ouviu-o com atenção. Era uma forma de evitar os seus próprios fantasmas e imiscuir-se nos dos outros, nos de John, que estava visivelmente alvoroçado.

- Parece que chamaste a atenção de alguém, John - alvitrou Sarah.

- Que não está muito satisfeito com o que estás a investigar.

John bebeu mais um pouco de uísque e olhou para Sarah, fixamente.

- A... achas que eles me po... podem ma... mat... mat...

Sarah não o deixou terminar a frase. - Não, John. Que ideia. - Esboçou um sorriso tranquilizador enquanto dizia a mentira.

Sarah sabia muito bem do que as pessoas eram capazes naquele mundo, mas não o queria alarmar enquanto não tivesse uma noção mais precisa do que se estava a passar. Apesar de estar eternamente grata por tudo aquilo que lhe haviam proporcionado, as condições de tratamento, a clínica, a casa, Rafael... sabia perfeitamente que tudo era uma questão de gestão de equilíbrios. Os aliados do presente podiam ser os inimigos do futuro. A verdade era que, desde que os conhecera pela primeira vez, em 2006, aquando de um caso relacionado com a morte do Papa João Paulo I, sempre a haviam tratado bem. Talvez até lhes devesse o facto de ainda estar viva. Mas a pergunta que John queria ver respondida, embora não a tivesse verbalizado, era se a Igreja era capaz de matar para zelar pelos seus bens. E a resposta era sim, claro que sim. Rafael e um exército de outros homens como ele encarregavam-se disso. Se seriam eles por detrás desta ameaça a John Scott? Não sabia. Mas tinha forma de descobrir.

John olhou para a entrada e viu dois homens entrarem e sentarem-se numa mesa perto da saída e longe dos ingleses. Estremeceu. Seriam aqueles os carrascos dele? Ou apenas dois hóspedes à procura de uma bebida?

Fossem quem fossem, o certo era que um deles não desviava os olhos de si e de Sarah, descaradamente.

- A... acho que... que temos com... compa... companhia - disse John, a medo.

Sarah olhou para os desconhecidos e depois novamente para John. Em seguida dirigiu-se à mesa junto à saída do bar onde os dois homens estavam e sentou-se.

- Vieste pedir-me desculpa, Rafael?

Para o cliente, as últimas oito horas eram as mais importantes. Fora muito específico quando dissera que não toleraria qualquer falha. Para o Francês, a falha significava a morte. Um contrato fechado era um contrato executado e depois passava ao próximo, se houvesse, ou entraria no seu tão benquisto modo letárgico. No fundo, ele matava para alimentar o seu próprio vício que, na maior parte das vezes, se revelava caro. Não tinha por hábito aceitar adendas ao contrato, nem tão-pouco modificações. Um contrato era um contrato cumpria-se e terminava. A dupla liquidação foi feita na Basílica de Sant’Andrea Della Valle e o miúdo levado para o local combinado. Primeira fase encerrada. Olhou para o temporizador do relógio que recuava inexoravelmente... Um objectivo sem um plano não passava de um desejo.

O cliente revelara-se cumpridor. Não estaria ali se não o fosse. O dinheiro referente à primeira fase já tinha sido transferido. Todos os homens tinham um preço, não havia ilusões sobre isso, e o dele era muito alto. Três milhões de euros mais alto. Ele não lidava com urgências. O cliente sabia-o e por isso, para a conclusão da segunda fase, além do dinheiro, acenou com um pagamento especial para lhe sustentar o vício por uns tempos. Era algo precioso que fez o Francês aceitar o contrato sem reservas.

Se não estivesse interessado, a conversa não se teria alongado. O cliente sabia-o. Se continuava a ouvir era porque aceitara as condições.

- Como pagamento pelo seu trabalho arranjo-lhe uma verdadeira pérola - propôs-lhe o cliente.

E que pérola seria essa que o cliente podia, idiotamente, ousar sugerir?

A revelação surpreendeu-o.

- Uma obra do século XlV. O Inventio Fortunata, já ouviu falar?

Depois daquela revelação não podia permitir-se não fazer o trabalho.

Muito poucas pessoas conheciam a sua paixão, o seu vício, por livros raros.

Eram a sua perdição. Ler a edição mais próxima, temporalmente, do autor ou autores era imperativo. Gostava de partir à descoberta de um manuscrito que nem sabia se existia, só porque se falava dele no mundo subterrâneo dos coleccionistas e alfarrabistas. Seguir as vontades dos homens, a imponderabilidade incomplacente da vida que fazia com que objectos valiosíssimos andassem de casa em casa ou de sótão em sótão ou de cave em cave, esquecidos, perdidos, sem que tantas vezes os seus detentores se dessem conta do real valor do que tinham em mãos. Eram até capazes de os usar como papel para acender a lareira. Se alguma vez encontrasse alguém a fazê-lo seguramente lhe daria um tiro nos miolos, com um sorriso nos lábios. Sabia que um vício era uma fraqueza, e que uma paixão era a morte. A falha, o fracasso não estava nas paixões mas na falta de controlo sobre elas.

O Francês não se importava de sofrer uma morte simples... a ler.

Sofria dessa maldição de querer saber tudo, uma avidez de conhecimento capaz de o levar à loucura. Se pudesse leria tudo o que já fora escrito pelos homens. Lia para poder viver. Era louco, sabia-o. Mas quando nos lembramos que somos todos loucos, os mistérios desaparecem e a vida torna-se simples. O cliente conhecia o seu vício. Poucos o conheciam.

Naquele momento, necessitava de descer à terra, esquecer a Inventio Fortunata, desprender-se desse cheiro a papel velho e a pó que já conseguia sentir. A descrição do Polo Norte por um monge franciscano do século XIV que se julgava perdida para sempre. Uma coisa de cada vez. Concentrou-se nas palavras do cliente.

- Deve seguir o plano como estipulado no contrato. Informe-me de qualquer imponderabilidade e eu dar-lhe-ei as instruções para lidar com ela.

Um cliente que lidava com o imponderável. O Francês nunca dizia nada.

Nem podia. As palavras não lhe saíam da boca desde que nascera. Apenas escutava. Era um censor. Servia para punir aqueles que já não podiam viver.

O manuscrito da Inventio Fortunata. O pensamento voltou a debandar para o vício. Uma mente educada era capaz de entreter um pensamento sem o aceitar. Os poetas e os filósofos tinham a resposta para todas as dúvidas da alma humana. Quem precisava da ciência quando os fantasmas que amaldiçoavam os grandes pensadores podiam responder das profundezas do pensamento deles? Alguns até se tinham matado na procura das respostas ou, simplesmente, porque não aguentaram mais. Eles aventuraram-se pelas vísceras do ser mais que quaisquer outros.

O Francês não se ligava aos vivos. Só aos mortos. Aos poetas e aos filósofos. Tinha trocado o Alfa Romeo por um Fiat. Misturou-se no trânsito nocturno e deixou-se andar. Olhou para o temporizador do relógio de pulso que recuava implacavelmente, insensível, como um censor. Estacionou na Via dell’Erba e saiu para a fria noite romana. Seguiu para norte e virou à esquerda na Via dei Corridori, depois seguiu em frente e encontrou-o na praça, como o cliente dissera.

- Se se despachar vai encontrá-lo na Piazza Papa Pio XII, junto a São Pedro. Não precisarei de lhe dizer para esperar pela ocasião certa como foi contratado. Para o caso de não chegar a tempo, enviei-lhe uma mensagem com a morada onde o poderá encontrar.

 

- Viemos tomar café. Ou é proibido? Isto é um local público - atirou Rafael.

Arturo sorriu timidamente perante a tirada do seu superior.

- E foste logo escolher este bar, neste hotel?

- Está aqui hospedada? - perguntou o padre, com desapego.

O empregado do bar chegou nesse preciso momento para satisfazer o pedido daqueles clientes tardios. Com os ingleses a pedir mais cerveja e os recém-chegados, a noite ia ser longa.

Dois cafés - pediu Rafael sem sequer consultar Arturo.

- Com certeza - disse o empregado, retirando-se para ir cumprir o pedido. Sarah fez um gesto a John Scott para que se juntasse a eles.

- Sabes muito bem onde estou hospedada, Rafael - contra-atacou Sarah.

- Ou achas que eu não vi o Arturo a seguir-me?

Por acaso não tinha visto. Atirou para o ar em jeito de adivinhação. Soube que acertara em cheio quando viu o ar de comprometido de Arturo. Fora apanhado.

John chegou até eles, timidamente, pé ante pé, com o dossiê castanho encostado ao peito com ambas as mãos, e ficou de pé sem saber o que fazer. Sarah puxou uma cadeira e indicou-lhe que se sentasse. O americano não conseguia compreender o que se estava a passar. Nem como Sarah podia estar tão à vontade.

- Senta-te John. Este é o padre Rafael Santini, enviado especial de Sua Santidade. Posso dizer assim, não posso, Rafael? - A sua voz expressava um cinismo dolorido enquanto fazia as apresentações. - E este é o Arturo, responsável pela minha segurança até há poucas horas. Meus senhores, este é o meu amigo John Scott, um reputado jornalista do The New York Times.

Um homem famoso.

- Olá, John - cumprimentou Rafael, ao mesmo tempo que estendia a mão num cumprimento para confirmar, fisicamente, a palavra .... Muito prazer.

O americano estava, visivelmente, constrangido, mas concedeu o cumprimento como preconizava a boa educação.

Mu... mu... ito... pra... zer.

Arturo também cumprimentou o jornalista.

- Tomam alguma coisa? - perguntou Rafael, numa voz bem disposta.

- Não... não. O... obrigado - respondeu John de imediato.

- Aceita, John. Não é todos os dias que bebes uma cerveja paga com dinheiro do Papa - atirou a inglesa sem desviar o olhar de Rafael.

John não estava a perceber nada. No seu entender, essa era uma razão mais que suficiente para não aceitar bebida alguma. Nunca a vira tão arisca e ofensiva.

- Não... não que... quero. O... obrigado - repetiu.

Os olhares mantiveram-se estáticos, como se de uma fotografia se tratasse. Sarah e Rafael, como se não existisse mais ninguém, só eles. Arturo atento ao grupo galhofeiro de ingleses e John, o único que destoava daquele cenário, olhando ora para uns ora para outros, ora para a entrada, sem perceber quem era quem ou o quê.

Parecia que estavam ali há imenso tempo, naquelas posições, a medirem-se uns aos outros, mas os cafés ainda não tinham sido servidos e não levava assim tanto tempo prepará-los.

- Porque é que foram ao quarto do John? - acabou por perguntar Sarah de supetão, quebrando o silêncio e aumentando a tensão.

- Chegámos agora - respondeu Rafael. Era ele o único interlocutor do duo de clérigos. - Não fomos ao quarto de ninguém. Seria má educação.

E nós não somos mal-educados, pois não Arturo?

O outro padre, visivelmente inferior em estatuto, não respondeu.

- Podiam ao menos ter tido a decência de o arrumar - continuou Sarah, ignorando deliberadamente a resposta de Rafael.

Rafael desviou o olhar para Arturo, visivelmente incomodado.

- Sabes alguma coisa disto?

O outro fez um meneio negativo com a cabeça.

- Podes falar livremente, Arturo - insistiu Rafael. - Sabes alguma coisa sobre este assunto?

Sarah começou a acreditar que nenhum deles tinha conhecimento daquilo que ela os estava a acusar... Ou ainda estariam dentro das personagens?

Arturo voltou a negar.

- Não, Rafael. Estive o tempo todo com a... Sarah - respondeu, baixando o olhar envergonhado.

Rafael virou-se para o americano.

- Levaram alguma coisa?

- Não... não.

- Tem a certeza?

John assentiu, agarrando bem o dossiê castanho contra o peito. Na verdade, não tinha a certeza, não inventariara os seus bens, mas não queria dizer que tinha fugido para ali o mais depressa que pôde.

- O que é que guarda aí? - quis saber o padre, sem cerimónias.

- N... na .. nada - respondeu o jornalista um pouco intimidado. Quem raio seria este homem?

- Então, Rafael? Onde estão os teus bons modos? - atacou Sarah em defesa do colega. - Ah! Tinha-me esquecido. Não os tens.

Rafael olhou para a única entrada que dava acesso ao bar, também a única saída, e para o balcão. Uma porta lateral de serviço à cozinha. As janelas estavam tapadas por cortinas pesadas. Inspeccionou os ingleses que se continuavam a divertir no outro canto. O empregado acercava -se da mesa com uma bandeja com os cafés e um brigadeiro de chocolate para cada um.

Rafael virou-se para Arturo.

- Vai lá fora e vê se alguém está a vigiar o hotel. Depois traz o carro pela Via Machiavelli.

-Mas...

- Faz como te digo - repetiu Rafael com cara de poucos amigos.

Os dois padres levantaram-se. Arturo saiu no momento em que o empregado pousava as chávenas de café e os brigadeiros.

- Dê-me a chave do quarto - pediu Rafael, com a mão estendida, apesar de mais parecer uma ordem.

- Vais arrumar o quarto? - zombou Sarah.

- Es... es... tás im... possível, Sa... Sarah - disse John, entregando a chave ao padre. - É o 221.

Rafael sorriu e debruçou-se sobre o americano com uma expressão intimista, de maneira a que Sarah também o ouvisse.

- Acho que podemos ser amigos, John - disse com um sorriso sarcástico nos lábios. - Esperem aqui. Não saiam daqui! - ordenou, peremptório.

Viram-no sair pelo único caminho possível em direcção ao quarto do jornalista. Sarah queria ter dito "Cuidado'' mas não conseguia dizer -lhe nada que não estivesse repleto de rancor, amargura e cinismo.

- Que... quem sa... são eles? - quis saber John.

- O Arturo é o meu segurança, o Rafael é o meu namorado - disse Sarah, sem pensar.

John lançou-lhe um olhar severo e franziu o cenho. Não estava a gostar nada da maneira como Sarah se estava a comportar. Que se estava a passar com ela?

- Con... con concentra-te. Es... tou a... a... falar a sério. O... o que é que... que tu tu tens?

Sarah respirou fundo e tentou acalmar o coração nervoso e zangado. O padre deixava-a fora de si, para o bem e para o mal.

- Desculpa - declarou numa voz muito mais serena. - Oficialmente são meros padres.

John fez-lhe uma expressão com o rosto à espera que ela dissesse o que eles eram oficiosamente.

- A verdade? - Acercou-se dele e baixou a voz para um tom quase inaudível. - Santa Aliança. Mais especificamente, Sodalitium Pianum.

John abriu bem os olhos a mostrar o seu espanto.

- Sa... Sa... Santa... Pen... pensei que era um mi... mito.

- Com o Vaticano habitua-te sempre a uma coisa - recomendou Sarah.

- Não há mitos. E se hoje o são é porque foram realidade algum dia.

John deixou aquela revelação assentar. Santa Aliança. Sodalitium Pianum. As organizações de espionagem e contra-espionagem da Santa Sé, mais conhecidas como A Entidade. Como era possível? Ouvira dizer que a Sodalitium Pianum, fundada no papado de Pio X, em 1907, acabara com Bento XV em 1922. Não podia crer que a criação do monsenhor Umberto Benigni, na época para combater o modernismo, perdurara e se tornara num serviço de contra-espionagem efectivo.

- A... achas que... me... me vão ma... tar?

Sarah deu-lhe a mão para tentar acalmá-lo.

- Não, John. Acho que não. - Pelo menos não na frente desta gente toda, pensou, sem coragem para verbalizar.

- San... Santa Ali... Ali... - Ainda não conseguia acreditar.

- Santa Aliança - completou Sarah.

- A Santa Aliança não existe - ouviu-se Rafael dizer.

O padre regressara do quarto no segundo piso e não ficou na mesa com eles. Dirigiu-se ao balcão. Viram-no entregar uma nota de cinquenta euros ao empregado, que a guardou subtilmente, olhando em redor, e sorriu, enquanto Rafael falava com ele e apontava para a mesa deles. Depois regressou à mesa.

- Vamos embora, querida - disse-lhe, pegando na mão dela. Desviou o olhar para o americano. - Venha, John.

Saíram pela porta de serviço que dava para a cozinha industrial que servia o restaurante do hotel, naquele momento vazia de gente. Atravessaram­na de uma ponta à outra, por entre bancadas e armários metaliformes, fornos e fogões, tudo impecavelmente asseado. O empregado ia à frente a indicar o caminho, seguido de Sarah e John, com Rafael a fechar o grupo.

- De onde veio esta gentileza repentina? - perguntou Sarah em português, para que só ela e o padre entendessem.

- Disse-lhe que a Sarah era uma grande amiga do peito e que a minha mulher me tinha seguido até ao hotel, e que eu estava a ver o caso mal parado...

- OK. OK. Já entendi - vociferou Sarah, furiosa, sem olhar para trás, limitando-se a seguir o empregado.

A porta seguinte dava para um corredor estreito e sujo, o oposto da cozinha, iluminado por lâmpadas fracas e tímidas, atacadas por teias de aranha e onde havia caixotes de um lado e do outro, fruta podre, peças de vestuário espalhadas; parecia uma espécie de depósito de maus sonhos e roupa suja. Mais duas portas, um corredor de serviço e, por fim, a rua.

Rafael piscou o olho ao empregado e entregou-lhe mais cinquenta euros.

Este tornou a fazer a mesma fita ao guardar a nota como se tal gesto afectasse, de algum modo, a honradez do sujeito. O padre foi o primeiro a sair. Perscrutou ambos os sentidos da rua. Havia poucos carros a passar.

Mirou as fachadas com uma expressão séria.

- Onde vamos? - perguntou Sarah.

Um carro dobrou a esquina com a Piazza Vittorio Emanuele II e fez­lhes sinais de luzes. Parou junto deles. Rafael abriu as portas com desvelo, sempre a olhar ao redor como um falcão à procura da presa. Depois de Sarah e John terem entrado para o banco de trás, entrou ele para o da frente.

- O caminho está livre - afiançou Arturo, agarrado ao volante.

Rafael concordou. Ninguém estava a vigiar o hotel. E agora? Para onde? – quis saber o Arturo. Não lhe pagavam para pensar, apenas para executar.

Rafael segredou-lhe a morada. Arturo olhou-o espantado.

- Tens a certeza?

O padre superior fez que sim com a cabeça.

- A que horas é que acha que aconteceu a intrusão? - questionou Rafael.

John não tinha percebido que a pergunta era para ele até o padre que liderava toda aquela situação repetir a pergunta.

- Ah! N... não... não sei.

- Quanto tempo esteve ausente do quarto?

- u... um... umas três ou... ou qua... quatro horas.

Arturo desceu a Via Machiavelli e virou à esquerda em direcção à Piazza Dante, seguiu até à Via Petrarca e passou a Piazza di Porta San Giovanni, entrando na Via Appia Nuova.

- O que é que se está a passar, Rafael? - voltou a perguntar Sarah.

- Provavelmente o John chateou alguém ou não nos está a contar tudo.

Ainda não sei.

John engoliu em seco, tenso.

- Porque é que não começas por nos contar o que foste fazer ao hotel, Rafael?

Rafael tirou do coldre de ombro, por debaixo do casaco, a Beretta de cabo de madeira e exibiu-a aos dois passageiros do banco de trás.

- Fui lá para matar o John Scott - disse com uma voz seca. - E quem quer que estivesse com ele.

 

A noite acoberta todos os mistérios, demónios e vilões. Até o frio se torna mais abespinhado e intrépido quando o sol abala, e arrepanha os ossos como se a treva concedesse autorização a todos os furores e abrisse as portas da obscuridade. O inferno anda à solta no céu nocturno.

Bertram corria com passos trémulos e trôpegos como se a qualquer momento fosse tombar nas lajes gélidas do passeio. Não escolhera o melhor trajecto. Deixara a Piazza Papa Pio XII e entrara numa encruzilhada de ruas escuras, óptima para passar despercebido mas não para fugir.

Não se atrevia a olhar para trás.

Oh, meu Deus! Ajuda-me, implorou.

As sombras espraiavam-se ameaçadoras pelas paredes encardidas das traseiras de um prédio qualquer, esquecidas pela desfortuna de pertencer a um lugar secundário, arredado dos olhares.

Ouviu um ruído atrás de si, ou seria apenas o coração a esmurrar o peito, aflito por sair dali? Olhou por cima do ombro mas não viu nada. Um candeeiro iluminava pobremente o fundo da caleja, de onde ele viera, e o resto estava imerso nas sombras.

Bertram arquejava e o ar frio que sofregamente inalava arranhava-lhe a garganta. Sentia-se encharcado de suor mas não tinha calor. O sobretudo cinzento antracite pesava-lhe nos ombros e dificultava-lhe o andamento.

Estava cansado, no limiar do esgotamento físico. Lidara com demasiadas emoções nas últimas horas. O pior de tudo foram as ameaças.

Senhor, dai-me forças, voltou a suplicar, mentalmente.

Escutou movimento mais à frente. Automóveis, autocarros, pessoas, havia vida para além das vielas. Acelerou o passo ainda mais. Faltava pouco para deixar aquele lugar esconso e entrar na luz da cidade. Trinta metros.

Uns míseros trinta metros que pareciam trezentos.

Ouviu novo ruído. Um restolhar. Soava-lhe a passos. Como se alguém não quisesse ser ouvido. Ou seriam os seus passos? Maldito breu, amante dos segredos e das conjurações, cúmplice do pavor e da suspicácia.

Queria ouvir melhor mas o barulho da cidade intrometia-se. O frio, a lassidão e o medo... principalmente o medo também não ajudavam. Tentou olhar novamente pelo ombro quando, subitamente, foi empurrado e quase caiam no chão, não fosse uma mão possante agarrá-lo.

- Perdão - ouviu uma voz jovem desculpar-se.

O velho fitou-o depois de recuperar do susto. Um grupo de jovens irrompera da rua principal numa vozearia desembestada, trazendo garrafas de cerveja na mão. Vinham de algum bar e provavelmente dirigiam-se a outro. O rapaz alto que o segurava derrubou-o, sem querer.

- Sente-se bem? - perguntou o rapaz.

- Sim - respondeu o velho, recompondo-se.

O rapaz repetiu as desculpas e seguiu os amigos que haviam continuado.

O velho olhou para a ruela de onde saíra. Não estava lá ninguém. O coração acalmou-se à medida que os metros se interpunham entre si e a viela e era envolvido pela algazarra da rua. Estava repleta de bares apinhados de gente sequiosa da dose de álcool que lhes haveria de dar a coragem, o estímulo galhofeiro, o desprendimento do feitio, ou o afogamento das mágoas ou do vício, conforme o objectivo ou o grau de dependência. Reconheceu o local onde estava, o Campo dei Fiori.

Serenou, por fim, focando o olhar em algumas pessoas, a gargalhada contagiante de uma mulher, um jovem a atirar uma lata de cerveja para o chão depois de ter despejado o líquido alarvemente, um casal a beijar-se como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte... , uma garrafa a estilhaçar-se em mil pedaços que o assustou. Seguiu-se um coro de risos pela exultação ritualista do macho que mostrava às fêmeas ou aos outros machos a sua habilidade na arte de partir garrafas.

Bertram virou à esquerda deixando para trás a alegria ébria do local e deu por si noutra rua. Sucediam-se os carros e as lambretas e os grupos de peões. Desembocou numa rua mais larga. Havia menos pessoas ali. Pequenos grupos e alguns casais que seguiam em sentido contrário ao dele. Aos poucos, a rua esvaziou-se e ele começou a olhar para trás, incomodado.

Não viu ninguém.

Decidiu apanhar um táxi. Seria mais seguro e rápido. Fez sinal a um que ia a passar e quinze minutos depois estava em casa, na Via Tuscolana.

Chamou o elevador mas este não acudiu ao seu pedido. Carregou mais um par de vezes no botão de chamada como se isso fizesse alguma diferença.

Nada.

Subiu pelas escadas até ao quarto andar. Já não tinha fôlego para ascensões sem ajuda da tecnologia. Chegou à sua porta a arfar e a suar. Carregou no interruptor da luz do corredor mas nada aconteceu. Apenas uma pequena luz de emergência aspergia um ténue fio de claridade.

Que raios, praguejou para si.

Recuperou o fôlego e procurou a chave da porta no bolso. Inseriu-a na ranhura e abriu a porta. Por fim o descanso. Nesse exacto momento foi empurrado para dentro do apartamento com tanta violência que bateu com o queixo na pequena mesa do hall de entrada e caiu no chão. Virou-se a tempo de ver um homem entrar nos seus domínios e fechar, calmamente, a porta. O homem endireitou o casaco e virou-se para o velho que o mirava desorientado no chão de mármore, agarrado ao queixo.

- Que…quem é o Senhor? -Titubeou Bertram a custo.

O homem debruçou-se sobre ele e colocou-lhe uma mão no ombro. Depois, esboçou o sorriso.

- O que é que quer de mim?

O intruso tirou um retrato do bolso de dentro do casaco e mostrou-lho.

Bertram corou e desviou o olhar assim que reconheceu a figura de Pio XII.

- Eu não tive culpa. Juro. Foi uma decisão do colégio - disse, cheio de medo.

O homem tirou uma arma de dentro do casaco. Pegou num post-it amarelo que tinha no bolso e começou a escrever algo nele, em cima da mesa de canto. Depois, olhou para o temporizador do relógio de pulso que recuava implacavelmente, insensível, como um censor.

 

John estava sentado no banco traseiro do carro, encostado com a cabeça para trás, imerso nas palavras sentenciosas do padre. O Vaticano mandara matá-lo. Não havia dúvidas. O padre que seguia no banco do pendura fora bem claro. Aquela visita à Secretaria de Estado selara o seu destino. A toca do lobo. Foram estas as palavras de Sarah. Ela sabia o que dizia. Conhecia bem os meandros daquele mundo e ainda estava viva para contar a história…ainda. E agora? Estava dentro do carro dos seus executores, os verdugos que tinham como missão adiantar-lhe a hora de saída do mundo os vivos. Apetecia-lhe abrir a porta do carro e atirar-se para o exterior, fugir para salvar a vida, mas ele não era esse tipo de homem.

Sarah deu -lhe a mão. Certamente sabia o que lhe estava a passar pela mente. E quem quer que estivesse com ele. Foram estas as palavras do carrasco. Também lhe dizia respeito mas, ao contrário dele, Sarah não parecia preocupada. Alguma coisa a ligava ao padre algoz. Disso deu-se conta.

Não eram indiferentes um ao outro. Por outro lado, se bem conhecia Sarah, ela preferia partir que vergar.

- Conte-me os seus pecados - ordenou Rafael sem olhar para trás.

- O... o... quê? - perguntou John, presumindo que a pergunta fosse para ele.

- Quais são os seus pecados? Se a Igreja o quer ver morto, algum pecado terá. E não deve ser pequeno.

- O John é perito em assuntos económicos - interveio Sarah, servindo de intermediário. - E descobriu algumas contas mal feitas no IOR - acrescentou de forma sardónica. - Para onde estamos a ir?

- Desembuche. Que contas mal feitas são essas? - perguntou Rafael com maus modos, ignorando, deliberadamente, a pergunta dela.

John contou tudo o que sabia de forma concisa e escorreita, para que não restassem dúvidas. Já bastavam as suas limitações comunicativas para dificultar as coisas. Falou dos fundos, das fundações, dos pseudónimos, dos gestores, da forma como o IOR funcionava. Manifestou uma sabedoria e um profissionalismo acima de todas as suspeitas e referiu, mais de uma vez, estar na posse de documentos que o comprovavam, apesar de não considerar aquele o lugar mais apropriado para os mostrar. Lembrou-se de dizer também que tinha mais cópias guardadas em locais seguros, esperava que isso funcionasse como argumento que fizesse os padres pensar duas vezes antes de premir o gatilho.

- E qual é o problema dessa Fondazione Donato e do Fondo Giulietta?

Onde está a ilegalidade? - questionou Rafael, sem olhar para trás e com uma voz seca, desconfiada.

- O... o... pro... proble... ma...

- O problema é que a Fondazione Donato, cujo titular é um tal Piccolo, é financiada com dinheiro ilegal. - interveio Sarah.

Rafael olhou para trás e fitou os dois jornalistas.

- O que é que isso quer dizer, exactamente?

Sarah continuou com um olhar fulminante cravado no padre.

- Que o John identificou a proveniência do dinheiro. Sabe de quem vinha e para quem ia.

John omitiu apenas a fonte. Essa tinha de ser preservada a todo o custo.

Era um imperativo profissional e ético. Levaria o segredo para a cova, que lhe parecia agora mais próxima que nunca. Pensou no que aconteceria ao seu corpo. Talvez o atirassem ao Tibre, que o tomaria gentilmente no seu leito até se fartar e o expelir para uma margem. Era pouco provável que o queimassem. Dava muito trabalho. Imaginou-se vendado, com o cilindro frio da arma a arrepiar-lhe a nuca, a cabeça coberta por um capuz, a pedir, como última vontade, que o cremassem, por favor. Depois lembrou-se que nestes casos ninguém lhe perguntaria sobre a última vontade, que não teria direito a uma. Ali não havia os privilégios do corredor da morte.

Pensou na doutora Pratt M.D., nas pernas cruzadas e no sorriso. Quem lhe dera estar em Manhattan, no consultório dela, com vista para o Hudson, e não ali. Será que acreditaria na sua história ou simplesmente o mandaria internar numa instituição psiquiátrica? Apreensão, paranóia e pânico.

Era isto que sentia, diria a sua psiquiatra que nunca saberia a razão por que ele era seu paciente há onze anos. Que vivia toda a semana a pensar naquela hora, das três às quatro, às terças e quintas, em que falava pouco, no seu jeito travado e tímido, e... que só lá ia por ela, pela doutora Pratt M.D., pelas pernas cruzadas, o sorriso, a voz melodiosa, a pele acetinada, morena devido à ascendência africana. Morrer sem lhe dizer que se apaixonara por ela era um desgosto insuportável.

Viraram à direita para a Viale Tito Labieno, passaram a Piazza di Cine­città. As ruas sucediam-se umas a seguir às outras, as praças, os parques iluminados. A noite esfriara ainda mais e os carros estacionados ao longo do caminho estavam cobertos de geada. Entraram numa rua larga e Arturo abrandou à procura de lugar.

- Onde estamos? - perguntou Sarah, olhando em redor.

John também tentava perceber onde estavam, procurando referências visuais. Não reconheceu nada. Era uma rua com prédios residenciais de um lado e do outro. Não costumava andar por ali. Estava cada vez mais apreensivo.

Rafael não respondeu à pergunta de Sarah. Percorreram mais alguns metros, devagar, e o padre apontou para um carro que estava a arrancar.

- Estaciona ali. Aquele Fiat, além, vai sair.

Arturo seguiu a sugestão do superior e, em poucos segundos, estacionou o carro. Rafael foi o primeiro a sair, o mesmo olhar de falcão a inspeccionar a área com atenção. Abriu a porta de trás para deixar sair os dois jornalistas para o frio da rua. De imediato, o bafo da respiração começou a fazer nuvens de vapor no ar, anunciando a temperatura baixa. Sarah estava irritada com o comportamento de Rafael e tentou encontrar uma placa que lhe dissesse onde estava, já que ninguém lhe dava essa informação. Encontrou-a mesmo em frente, pregada na parede de um prédio.

- Via Tuscolana - disse ela em voz alta. - O que estamos aqui a fazer?

Andaram alguns metros até chegarem a uma porta. Rafael tocou à campainha.

- Viemos tratar de um assunto -Limitou-se a dizer o padre.

Ninguém respondeu ao toque da campainha. Rafael debruçou-se sobre a fechadura e enfiou uma gazua no canhão e, instantes depois, ouviu-se um dique que permitiu a entrada deles no edifício.

- Um cavalheiro - escarneceu Sarah.

- Vá, entrem.

John engoliu em seco. Seria aquela a sua última morada? Um prédio, na tal Via Tuscolana? Queria enfiar ambas as mãos nos bolsos, na tentativa de debelar o frio, mas não podia largar o precioso dossiê. Enfiou a mão que tinha livre e nessa altura sentiu-o. Era frio e metálico. Sentiu-se um idiota enquanto acariciava, dentro do bolso, o revólver Amtec de cinco balas.

 

Ninguém era mais importante em horas de desespero que Nosso Senhor Jesus Cristo, filho unigénito de Deus Pai Todo-Poderoso, um e outro a mesma pessoa, a origem e o fim de todas as coisas, o detentor da centelha da divindade, Criador e titereiro deste mundo, Senhor de mil e duzentos milhões de católicos, mais oitocentos milhões das outras Igrejas cristãs, o mesmo Cristo de todas.

A capela, no secondo piano, era sua e só sua. Tinha três filas de bancos de madeira e fora adornada com frescos de Giorgio Vasari. O piemontês estava ajoelhado aos pés de Cristo, cuja autoria era atribuída a Miguel Ângelo, com aspecto dolorido que perdurava há mais de quatro séculos. O mármore de Carrara fora desbastado até ao nervo e fazia transparecer contagiosamente o sofrimento daquele Cristo a quem quer que o estivesse a contemplar. Tarcisio sentia o tormento Dele como seu, desde que nascera.

Vivia para a Sua glória e ao Seu serviço. Por vezes era um fardo difícil de suportar, como nesta noite, mas Ele colocara-o a dirigir a Sua Igreja.

Competia-lhe fazê-lo o melhor que sabia e podia.

- Pai e Senhor do Universo. Sois o Rei dos Reis. Vós que fizestes o paralítico andar, o morto voltar a viver, o leproso sarar. Vós que vedes as minhas angústias, as minhas lágrimas, bem sabeis como preciso alcançar sabedoria e ponderação. Iluminai os meus passos, assim como o Sol ilumina todos os nossos dias. Jesus, tenho confiança em Vós.

Estava cansado. A noite ia a meio e já há alguns dias que não conseguia dormir. Insónias provocadas pelo peso do mundo. A indesejada interrupção chegou antes do final da oração. Guillermo entrara na benta capela, timidamente, mas a porta rangera anunciando a sua presença. Tarcisio elevou uma mão a pedir silêncio. Ao fim de alguns instantes, elevou-se com esforço. Os 78 anos pesavam-lhe nos ossos implacavelmente. O tempo comandava sempre, contra tudo e contra todos.

- O que queres? - perguntou Tarcisio, com maus modos.

O chefe da espionagem fez uma vénia e deu mais alguns passos tímidos para o interior da capela privada. Fez uma segunda vénia e ajoelhou-se para beijar a mão do Secretário.

- Está resolvido? - perguntou o Secretário.

- Não, Eminência - respondeu Guillermo com apreensão. Não era normal as ordens que Tarcisio dava não serem cumpridas.

Tarcisio fixou-o com uma nota de afronta no rosto. Parecia que não tinha entendido. Não estava cumprido? O que queria dizer com isso?

- Explica-te - ordenou o piemontês, com um modo altivo.

- A mulher. A Sarah Monteiro estava com o americano no hotel - respondeu, com a cabeça baixa.

Tarcisio cruzou os braços atrás das costas e caminhou de um lado para o outro a cogitar nas informações que Guillermo trouxera.

- Mais uma razão para resolvermos isso rapidamente.

- Vamos tratar disso, Eminência.

- Precisamos de resolver esse assunto com urgência - prosseguiu o Secretário. - Não pode ficar pendurado por pontas. É uma bomba-relógio, Tomasini.

- Compreendo, Eminência. Não deixaremos que isso aconteça.

- É bom que não.

Tarcisio respondeu mecanicamente. A sua mente vagueava por entre teses e teorias, concepções e estratégias. Contemplou novamente o esgar dolorido de Jesus; o Seu sofrimento penetrava-lhe profundamente na alma.

Era aquela dor que o fazia suster o fardo pesado.

- Precisamos desse dossiê - sentenciou. - Já têm a mulher?

Guillermo continuava de cabeça baixa, perto da porta, como um menino a ser repreendido pelo mestre-escola.

- Estão a caminho da casa dela neste preciso momento. Mas... - Guillermo não continuou. Era outro assunto que o apoquentava.

Tarcisio desviou o olhar para ele.

- Desembucha, homem.

- A Sarah Monteiro estava com o americano. Não creio que o Rafael seja o homem indicado para...

Tarcisio parecia escandalizado. Conhecia muito bem Rafael. Era um grande servo do Servo de Deus. Ali ninguém estava acima Dele, o único a quem eles serviam.

- Não controlas os teus homens, Tomasini? - proferiu o intendente Girolamo Comte que acabara de entrar na capela com passos largos e um modo intimidatório. Beijou o anel do Secretário. - O dossiê não estava no quarto. Os meus homens procuraram em todo o lado. Deve estar com ele.

- Foram ao hotel dele? - perguntou Guillermo, desiludido. Não gostava que agissem nas suas costas.

- Alguém tem de fazer alguma coisa - contrapôs o intendente, com maus modos.

- A mulher não fazia parte da equação, Eminência - argumentou o chefe da espionagem, ignorando a crítica do intendente.

- Ela tem um historial connosco.

Tarcisio tornou a ajoelhar-se aos pés da estátua. Sempre ela, a imagem da dor, do peso, da mágoa, do sofrimento, a lembrar-lhe que havia uma força muito superior a eles para preservar, acima de qualquer ser humano.

Fechou os olhos e balbuciou uma oração ininteligível. Um ciciar entre ele e Deus que pedia sabedoria, ponderação, iluminação. Outros, antes dele, foram confrontados com situações semelhantes, colocados perante graves dilemas morais e pessoais. Ninguém ocupava aquele ofício sem ter a noção exacta do que ele comportava. Ninguém imaginava que um simples administrador de duas secções, a nacional e internacional, tivesse de dispor da vida e da morte dos outros. Tornou a levantar-se com os ossos a esboçarem novo protesto pelo esforço.

- O Rafael onde está? - perguntou o Cardeal Secretário de Estado.

- Deixou o hotel com eles e com Arturo.

O piemontês reflectiu durante alguns segundos, levando o indicador ao

lábio numa pose pensativa. Não havia manual de instruções para aqueles casos. A decisão tinha de partir dele. Por isso Guillermo estava ali, para procurar novas instruções. Consultou Comte com um olhar.

- Quando o saudoso Papa Paulo VI publicou a encíclica Humanae Vitae, o futuro Papa João Paulo I, o bispo Luciani, que não a viu com bons olhos, disse: Roma pronunciou-se, cabe-nos cumprir - relatou Tarcisio.

- Aqui cumpre-se, não se questiona. Repete-lhes a ordem - ordenou o intendente, com rispidez. - Eliminar o americano... e quem quer que esteja com ele. - Desviou o olhar para o Secretário. - Se Sua Eminência permitir, eu posso tomar conta da situação. Precisamos da moeda de troca em Roma o mais depressa possível. E escusado será lembrar que temos de recuperar o dossiê do americano o quanto antes.

Guillermo escutou as palavras do intendente com atenção, um certo rubor a invadir o rosto. Quem é que ele julgava que era? Não lhe cabia dar-lhe ordens. Ficou a olhar para o Secretário à espera de instruções.

- O Tomasini já tem os homens no local. Basta que cumpram.

- Lançou um olhar frio ao homem da espionagem. - Faz o que o Comte disse.

- E se o Rafael não acatar?

- Arranja quem o faça - alvitrou Girolamo, já farto daquela conversa.

- Tu mesmo disseste que o Arturo está com ele. São estas as tuas ordens.

Guillermo sentiu-se humilhado, recuou para o exterior da capela sem virar as costas ao Secretário, pois era considerado ofensa. O intendente exercia demasiada influência junto do Cardeal Secretário de Estado. Ele tinha de estar atento a isso.

- Tomasini - chamou Tarcisio, de novo virado para ele. - Se ele não cumprir, certifica-te de que isso não volta a acontecer.

- Perfeitamente, Eminência.

Tarcisio ajoelhou-se de novo aos pés de Cristo. Havia novos pecados pelos quais queria pedir penitência. Girolamo acompanhou-o no gesto e partilhou com ele a oração. Não queria pedir penitência pelos pecados. Um homem como ele não perdia tempo com isso. A sua oração contemplava o irmão Giovanni que o deixara há mais de trinta anos.

- Não nos podemos dar ao luxo de ter ovelhas tresmalhadas no rebanho - sentenciou o Secretário.

Subiram as escadas a pé porque o elevador não respondeu. Também não havia luz nas áreas comuns do edifício, facto que os dois padres estranharam. Subiram até ao primeiro patamar e Rafael mandou-os parar. Pegou numa pequena lanterna que difundia uma luz forte e sacou a Beretta.

- Fica aqui com eles - ordenou a Arturo. - Eu já venho.

Arturo tirou também a sua arma por precaução.

O que é que se está a passar?

Perguntou Sarah alarmada. Que lugar é este?

Rafael olhou para ela. Desta vez não havia qualquer animosidade no seu rosto.

- Ainda não é hora de explicações. Vão ter de esperar.

Deixou-os ali com Arturo atento como um falcão às possíveis ameaças. A parca iluminação provinha apenas da porta envidraçada da entrada que deixava entrar a luz da rua.

John continuava com o coração acelerado. Sentia-se desorientado. Não percebia nada do que se estava a passar. Ainda que tivesse o raciocínio toldado pela apreensão, pela paranóia e pelo pânico, dadas as circunstâncias, não lhe parecia que estivessem no local da execução. Embora não soubesse como seria um local propício a esse fim. O comportamento dos dois padres era notoriamente defensivo e não ameaçador.

Rafael não deu sinais de vida durante alguns minutos. Subira pelas escadas com a pequena lanterna a iluminar-lhe o caminho até desaparecer da vista deles. Os seus passos silenciosos foram engolidos pela penumbra e a espera aumentou ainda mais a ansiedade.

As luzes da área comum acenderam-se minutos depois, expulsando a escuridão. Rafael apareceu no patamar de cima e fez um gesto para que subissem. Parecia transtornado.

Subiram ao quarto andar e percorreram um corredor com paredes de cor creme e tecto coberto com traves de madeira. Havia portas que, suspeitavam, davam para apartamentos. O edifício estava imerso num silêncio constrangedor, apenas ameaçado pelos passos deles. Parecia que não morava lá ninguém. Não se ouviam vozes, nem televisões, nem frigoríficos nem quaisquer outros gemidos eléctricos. Sarah ia à frente, seguida de John. Arturo fechava o grupo atento à retaguarda.

Encontraram uma porta aberta, ao fundo do corredor, e luz no interior do apartamento. Rafael estava lá dentro, debruçado sobre um... cadáver.

Sarah levou uma mão à boca, chocada com a cena que estava a testemunhar.

- O... o... que é que... que o se... senhor fez... fez? - deixou sair John, visivelmente nervoso e desorientado. Não era todos os dias que se via um cadáver. No seu caso era a primeira vez.

- Não fui eu - respondeu Rafael, enquanto fazia uma inspecção visual ao corpo. - Já estava assim quando entrei.

- Mi... minha No... No... Nossa Senhora - balbuciou o jornalista numa invocação à divindade da qual nem era crente.

Entraram todos no apartamento e Arturo fechou a porta, o que provocou um calafrio aos jornalistas.

- É ele? - perguntou Arturo.

- É. O Bertram.

Sarah fitou o cadáver com dificuldade. Manteve o olhar por dois segundos antes de o desviar. Não queria estar ali na presença daquilo. Era

um velho, pele enrugada pelos anos, um olhar vítreo de horror no rosto sem vida. Tinha dois orifícios na testa, da qual saíam dois fios de sangue que confluíam no queixo.

- Não morreu há muito tempo - disse Rafael.

- Quem... quem era?

- Um homem bom - limitou-se a dizer Rafael. - O último homem bom que ainda existia.

Levantou-se e dirigiu-se a outras divisões do apartamento. Estava indignado. Girolamo, o intendente da Gendarmaria Vaticana, devia ter providenciado segurança para Bertram e para os outros relatores. Era o mais lógico a fazer. Entrou num quarto e saiu de lá com um lençol azul claro que usou para tapar o corpo. Fez uma reza interior, só para si e para Ele, e persignou-se.

- Descansa em paz, Bertram. - Virou-se para Arturo. - O Comte não mandou para aqui ninguém.

- Ele disse que tratava disso.

- Não está cá mais ninguém - protestou Rafael, apontando para o lençol que tapava o corpo de Bertram.

- Cabrão.

Sarah apercebeu-se do transtorno que Rafael tentava disfarçar. Provavelmente era um amigo, mais um a deixá-lo sozinho no mundo, cada vez mais sozinho. Os padres deram uma vista de olhos ao apartamento. Era espaçoso, sobriamente decorado, confortável. Devia ser um local acolhedor para se viver, antes disto.

- Olha ali, Rafael - apontou Arturo para um espelho.

Nele estava colado um post-it amarelo. Rafael arrancou-o e leu-o.

Os dois jornalistas ficaram parados a olhar para ele, à espera que desvendasse o mistério do papel amarelo e acabasse com a curiosidade deles, mas o padre limitou-se a mostrá-lo a Arturo e depois guardou-o no bolso do casaco.

- O que fazemos com eles? - perguntou Arturo, referindo-se a Sarah e John.

O jornalista americano ficou com a boca seca de repente e agarrou no revólver Amtec de cinco balas, sem o tirar do bolso. Não era nenhum pistoleiro. Nunca tinha disparado um tiro na vida. Na verdade, abominava aqueles objectos. Esperava não dar um tiro em si próprio. Com a outra mão agarrava o dossiê contra o peito como um escudo protector.

- Eu trato deles - disse Rafael peremptoriamente.

No acaso das coincidências que Deus controla a seu bel-prazer, alimentando o drama, os telemóveis de Rafael e Arturo tocaram ao mesmo tempo, anunciando a recepção de uma mensagem. Ambos leram o texto espelhado nos aparelhos respectivos e entreolharam -se. Rafael imaginava que tipo de mensagem Arturo recebera. Os dois homens mediram-se em silêncio durante alguns momentos. As circunstâncias haviam mudado.

- Eu trato deles, Arturo - reiterou Rafael.

- Então trata - disse o outro, com um olhar desafiador, à espera.

Rafael estava numa situação difícil. Recebera uma ordem que não tencionava cumprir e tinha a seu lado uma sentinela que, como missão, tinha de se certificar que o serviço era cumprido e, pior, bem cumprido. O padre sentia que devia uma justificação a Arturo, devido aos seus fiéis serviços dos últimos meses. Só por isso. Arturo não conhecia a história toda, nada daquilo lhe dizia respeito. Guillermo jogara mal e colocara-o numa posição de ter de matar um colega que estimava. Se mais alguém tivesse de morrer naquele apartamento, seria Arturo e não ele

- É nesta altura que me sinto obrigado a dizer-te que um homem inteligente virava as costas e ia embora.

A tensão acumulava-se. Os jornalistas observavam mudos e quedos, sem saberem o que pensar, muito menos o que fazer. Estavam ali dois homens a decidir o destino deles como se fossem simples objectos inanimados, sem direito a opinião.

- E o que digo ao Tomasini? - perguntou Arturo. - Que virei as costas?

- Que eu te disse que trato deles.

Aquilo era um teste. A resposta àquela pergunta confirmaria a Rafael as suas suspeitas. Não queria fazer mal a Arturo, Deus era sua testemunha.

- E porque não o fazes já? - insistiu Arturo, visivelmente nervoso e inseguro.

Aquela fora a confirmação que Rafael necessitava.

- Mata-os aqui e agora - sentenciou Arturo.

 

Matteo Bonfiglioli abriu um olho e depois o outro, estremunhado. Parecia ter ouvido uma porta a fechar-se mas devia ter sonhado. Habituou-se à luz frouxa e mirou o tecto de madeira que fazia lembrar o convés de um barco virado ao contrário. Estava deitado numa cama de solteiro que não era a sua, num quarto que, seguramente, não era o seu. Cobria-o um cobertor castanho de lã grossa. Estava transpirado e o coração palpitava nervoso dentro do peito.

Levantou-se e pisou o soalho frio de madeira. A cabeça doía-lhe e sentiu uma tontura que lhe provocou náuseas. Sentou-se na beira da cama. Lembrou-se do homem que lhe apareceu no quarto, na casa de Verona e depois o vazio, o escuro. Não se recordava de mais nada. Sentiu um calafrio. A imagem da arma que o homem lhe apontou não lhe saía da cabeça. Deitou-se novamente e fechou os olhos. Precisava de se acalmar. Quantas horas dormira? Onde estaria? As perguntas bombardeavam-lhe a cabeça como o coração que lhe latejava nas têmporas. Deixou-se ficar assim durante alguns minutos e depois voltou a abrir os olhos e a levantar-se lentamente. Sentia uma moedeira na cabeça, um zumbido nos ouvidos e uma dor no pescoço. Procurou os sapatos mas não os encontrou. Caminhou devagar pelo quarto, os passos faziam ranger as tábuas do soalho.

Um candeeiro em cima de uma cómoda, ao lado de uma porta fechada, era a única fonte de luz da divisão. A janela estava fechada. Não sabia se era dia ou noite. Para além da cómoda, havia uma grande cruz de Cristo por cima da cabeceira da cama e pouco mais. Uma secretária com alguns livros com encadernação de capa dura antiga em cima, e uma cadeira, e era tudo. Nem molduras com retratos, nem quadros, nem quaisquer outros objectos decorativos. Uma divisão despida dos bens materiais mais usuais, sem vida.

Ao fim de uns minutos, Matteo começou a sentir-se melhor. A dor de cabeça passara, restava apenas a dor do pescoço, talvez devido ao excesso de horas na cama. Tentou encontrar um relógio mas não havia nenhum no quarto. Não havia sinal dos seus sapatos.

Dirigiu-se à porta fechada e rodou a maçaneta que, não tinha dúvidas, lhe diria que estava trancado no quarto. Enganara-se. Estava aberta. Olhou para o espaço desconhecido fora do quarto. O coração voltou a acelerar.

Era um corredor estreito e escuro e conseguiu enxergar um rasto de luz; uns metros à frente. Caminhou devagar, descalço, os pés já habituados ao soalho frio, a tentar não fazer qualquer ruído. Escutou o som de louça e água a correr, e um tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque. Talvez pratos ou chávenas. Chegou a uma sala. Estava vazia, pelo menos na parte que conseguia entrever. Em frente, havia uma porta encostada de onde partiam os sons da água a correr e da louça. Devia ser a cozinha. Sentiu passos ligeiros do outro lado da porta e viu uma sombra movimentar-se.

Entrou na sala e viu um relógio de pé, antigo, com um pêndulo prateado que marcava as quatro e meia. Tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque.

Faltava saber se era de tarde ou de noite. Deu por si a caminhar em direcção à porta encostada. Alguém devia estar a fazer alguma coisa do outro lado.

- Boa noite - ouviu uma voz masculina e rouca dizer atrás de si.

A saudação fê-lo dar um pulo para trás. Era um homem de idade que estava sentado numa poltrona e o fitava atentamente. Ao seu lado, apoiada ao braço da poltrona, repousava uma bengala. A porta que estava encostada abriu-se de repente para deixar sair uma jovem mulher que carregava uma bandeja com uma chávena de chá fumegante. Passou por Matteo, que estava completamente desorientado e sem reacção, e pousou­a numa mesa de centro em frente à poltrona do idoso. Pegou na chávena e na colher e abriu a tampa do açucareiro.

- Três - disse o homem com um sorriso maroto. - Sou um guloso.

Matteo viu a jovem colocar três colheres de açúcar e entregar o pires e a chávena ao idoso.

- Obrigado, minha querida Mia. Seria um anjo do céu, se eu acreditasse nisso - agradeceu o idoso, desviando o olhar corrosivo para Matteo.

- Sente-se, por favor.

Matteo continuava sem reacção, atónito. Nunca tinha visto aquelas pessoas que agiam como se o conhecessem. Sentia-se uma carta fora do baralho. Tinha tantas perguntas para fazer e nenhuma lhe assomava à boca. Mia colocou uma cadeira ao lado da poltrona e Matteo deu por si a seguir a indicação e a sentar-se ao lado do velho que sorvia lentamente o chá quente.

- Onde... onde é que estamos? - acabou por perguntar, ainda que tal lhe tivesse soado como uma pergunta idiota. Havia outra bem mais importante, pelo menos. O que se está a passar?

- Não importa - respondeu o homem de idade sem acrescentar mais nada.

- O que pretende de mim? - acabou por ganhar coragem para perguntar. Afinal, tratava-se de um idoso e de uma rapariga; seguramente dava conta dos dois.

- Nada.

- Então porque me trouxeram para aqui?

O homem de idade não respondeu e continuou atido ao seu chá.

- Os meus sapatos? - perguntou, já sem paciência, colocando uma nota de irritação na voz e no rosto.

- Perderam-se pelo caminho.

- Matteo levantou-se de rompante e agarrou nas golas da camisa do idoso de tal forma que a chávena e o pires caíram ao chão e se quebraram, derramando o líquido quente sobre os pés descalços sem que ele se desse conta disso. No momento em que o ia levantar pelos colarinhos sentiu algo colar-se à nuca e um estalido.

- Comporte-se - ordenou-lhe uma voz masculina vigorosa. - Sente-se imediatamente. Não vou repetir.

A jovem mulher levou as suas mãos às de Matteo, com uma serenidade contagiante e afastou - as do idoso que o fitava impávido e sem qualquer apontamento de medo. Fez-lhe uma carícia na face e tornou a sentá-lo na cadeira ao lado do velho. Parecia hipnotizado. Matteo olhou para o homem que guardava a arma no interior do casaco. Não era o mesmo que tinha entrado no seu quarto, em Verona, mas tinha o mesmo vigor físico. Vestia um fato de fino corte Armani, e viu que mancava de uma perna quando ele se dirigiu à cozinha, a resmungar entre dentes.

- Mia, importas-te de me trazer outro? - pediu o idoso enquanto se sentava novamente, como se se tivesse tratado de um infortúnio acidental.

- Com certeza, senhor.

Matteo voltou a focar o olhar no frágil homem de idade que tinha ao seu lado.

- Quem é o senhor? O que é que eu estou aqui a fazer? Onde é que eu estou? - perguntou Matteo, desnorteado, com as mãos na cabeça. Queria tanto que aquilo não passasse de um sonho mau.

- Calma, Matteo. O mundo é feito de vilões e heróis. Eu não sou uma coisa nem outra. Divirto-me em ambos os lados conforme me dá jeito. Desta vez, e ao contrário do que possas pensar, estamos aqui para defender os heróis dos vilões que lhes querem fazer mal. - Depois o idoso fez um sorriso cáustico. - E podes tratar-me por JC.

 

- Que conversa é essa? - interveio Sarah, a medo. Matar-nos aos dois?

Estão doidos?

Rafael e Arturo continuavam a medir-se, como num duelo do velho Oeste, à espera de saberem quem era mais rápido a disparar. A bola estava do lado de Rafael e não lhe restava muito tempo para reagir. Os jornalistas estavam incrédulos. Sarah não conseguia crer que Rafael lhes fizesse mal.

Seria o desfecho mais triste de sempre. Cuidar dela durante tantos meses para, no dia da esperança, terminar tudo assim? Seria uma tragédia grega.

Os dois padres. Rafael e Arturo. Tudo dependia deles agora.

- Pa... pa... parem - ouviu-se a voz trémula de John dizer, com o revólver Amtec de cinco balas apontado aos padres.

Não queria morrer naquela noite, naquele dia. A imagem da doutora Pratt M.D. veio-lhe à cabeça. As pernas cruzadas com meias acetinadas, o sorriso plácido.

Sarah ficou boquiaberta com a atitude do colega.

- O que estás a fazer, John? Guarda isso.

O que se passou depois aconteceu muito rapidamente. Arturo recuou um passo, atento ao revólver de John, e Rafael investiu na direcção do colega. Um pontapé forte nas partes baixas, primeiro, e um potente soco na cabeça, depois. Arturo caiu no chão de mármore, inconsciente. Em seguida, Rafael tirou-lhe a arma. Guardou o carregador no bolso do casaco e desmontou-a em segundos, deixando as peças espalharem-se no chão, e guardou a culatra e o cano para que ele não a pudesse voltar a montar.

John assistiu àquilo tudo atónito, sem se mexer, e continuou estático quando Rafael se acercou dele com uma expressão ameaçadora e imponente. Sem tirar a arma da mão do jornalista, abriu o tambor e fez as balas caírem no chão sem nunca tirar os olhos de John.

- Na próxima vez que apontar uma arma a alguém - disse com uma voz fria - certifique-se que tem coragem para disparar.

Debruçou-se sobre Arturo e tirou-lhe a chave do carro.

- Desculpa – balbuciou. – Não me deste outra alternativa.

Abriu a porta do apartamento e saiu.

- Vamos - disse para o jornalista.

Sarah olhou para John a sorrir.

- Não ouviste? Vamos.

Sarah seguiu-o. Desconhecia grande parte do que se estava a passar, mas de uma coisa estava segura, ele não cumprira uma ordem directa. John também saiu a correr, receoso que o padre que estava caído no chão, inconsciente, acordasse de repente e ainda quisesse cumprir o que lhe tinham ordenado. Pelo sim, pelo não, fechou a porta do apartamento. Sarah e o padre já iam um pouco mais abaixo nas escadas.

- Vais contar-me? - perguntou a jornalista.

- É uma longa história.

- Porque é que eles querem matar o John.

- Porque sabe de mais.

- E agora?

Saíram para a rua e percorreram os poucos metros que os distanciavam do carro. John apanhou-os. Rafael sentou-se ao volante e Sarah no outro lugar da frente. John enfiou-se no banco de trás, resignado.

- Quem era aquele homem que mataram? - perguntou Sarah enquanto o carro arrancava.

- Um relator - acabou por dizer Rafael, com os olhos postos na estrada vazia.

- Um relator? Vais obrigar-me a perguntar o que raio é um relator?

- É um historiador, um hagiógrafo, que investiga detalhadamente a vida dos candidatos a santos. Através do relatório deles é que o processo de canonização avança ou não.

- E que mal é que um relator pode fazer?

- Depende da perspectiva e do candidato.

Sarah não percebeu o que queria Rafael dizer com aquilo, e, embora lhe parecesse que ele tinha outros assuntos em mente, teria de insistir.

O padre pegou no telemóvel e fez uma chamada. O interlocutor atendeu ao fim de alguns instantes.

- Boa noite, Jacopo. - Fez uma pausa para ouvir o resmungo sonolento do historiador. - Chegou a hora. - Nova pausa para dar tempo à reacção do interlocutor. - Sim. Agora.

Sarah ficou alarmada ao ouvir as palavras que Rafael disse a Jacopo Sebastiani. Ela tivera ocasião de o conhecer meses antes.

- O que é que esse relator fez de mal, Rafael? - insistiu Sarah, preocupada, quando Rafael desligou a chamada.

Rafael não respondeu logo. Estava longe, a matutar, à procura de caminhos alternativos. Acabou por tirar o post-it amarelo do bolso e dá-lo a Sarah. A jornalista acendeu a luz interior do lado dela e leu-o. Ficou perplexa.

- O que é que... - Sarah olhou para o relógio. - Temos menos de sete horas.

- Eu sei.

Rafael fez inversão de marcha e acelerou pela rua abaixo o mais que pôde.

- Lá vamos nós outra vez - anunciou Sarah, segurando-se ao banco.

- Não podemos ter um momento de paz?

O carro deixou para trás o corpo de Bertram a arrefecer no quarto andar do prédio da Via Tuscolana. Alguém trataria do corpo. Havia outros assuntos prementes para tratar e o relógio, inclemente, não parava.

- Para onde vamos? - perguntou Sarah a um Rafael concentrado na condução.

- Procurar respostas.

Sarah voltou a olhar para o papel e releu-o.

A filha da freira pode ter um pai beato. Anna P. e Rafael S. no Obelisco do Vaticano, às 8 horas, sozinhos ou o rapaz morre.

 

 

                    VIRGO POTENS

 

Ainda vai necessitar muito de mim. Deus tratará de mostrar-lhe isso, Excelência.

Frase da imã Pasqualina numa carta ao monsenhor Eugenio Pacelli, da nunciatura de Berlim, em Dezembro de 1929, quando este se recusou a levá-la para Roma.

Levante-se e mostre o seu arrependimento à madre Pasqualina.

Ordem de Pio XII ao cardeal Tisserant, no Palácio Apostólico, em 1955.

Castelo Gandolfo 6 de Outubro de 1958

.Tudo é como tem de ser, segundo a vontade de Deus Pai Todo-Poderoso, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, omnipresente, omnipotente, escrevinhador de vidas certas por linhas tortas, amo de todos os destinos... ámen.

Quis o Senhor do Universo chamar à Sua companhia eterna a alma do Seu servo Eugenio, ao fim de oitenta e dois anos de vida, quase todos dedicados a Ele na sua plenitude.

O chamamento ocorreu às três horas e cinquenta e dois minutos da madrugada do dia 9 do décimo mês de 1958, na villa papal de Castelo Gandolfo, onde o Vigário de Cristo estava a passar sérias desde 24 de Julho. Na realidade, férias era um termo desacertado em toda a latitude para alguém que trabalhava dezoito horas por dia, mesmo doente.

O seu último acta consciente, antes de entrar num estado comatoso irreversível, no final da tarde do dia 6 do mesmo mês, foi dar um beijo fraterno na testa da madre Pasqualina - amiga, confidente, mãe, protectora, sem a qual Eugénio não podia nem conseguia viver, provavam-no os mais de quarenta anos que passaram juntos - depois de esta o ter admoestado por ele querer ir alimentar a Gretel, o seu bem-querido pintassilgo.

- Eu vou alimentá-la, Santidade - comunicou a madre, com autoridade.

- Os médicos ordenaram-lhe repouso absoluto. Ainda ontem caiu na cama esgotado de cansaço. O corpo castiga aqueles que não têm juízo.

Em Roma, Eugénio ordenara que a gaiola de Gretel se mantivesse aberta para ela poder voar livremente. Por vezes, de manhã, Pasqualina encontrava o Papa a fazer a barba e a falar para o pássaro canoro que, habitualmente, pousava no seu ombro. Quem imaginaria que o Papa se comportava como um petiz brincalhão?

Muitas línguas aleivosas pronunciaram-se sobre a relação deles - Eugenio e Pasqualina - sem entenderem, nem se esforçarem por fazê-lo, o que unia o pontífice à freira. Um descaramento, disseram uns nos corredores do Palácio Apostólico. Inadmissível, criticaram outros sem nunca darem a cara, ocultos pelos ciciamentos cobardes lançados ao ar. No fundo, tinham medo do poder que o amor puro de um homem dera a uma mulher num mundo misógino.

Depois do beijo, ela viu-o entrar no gabinete, trajado na sua imaculada sotaina branca que combinava, assustadoramente, com o descuramento do rosto.

- Há muito trabalho para fazer, madre - disse ele cheio de genica, fechando-se solitariamente no gabinete.

Pasqualina sabia que ele estava a mentir-lhe. Há dois dias ele estivera tão mal que lhe haviam dado a extrema-unção. Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam, era o que Santo Padre dizia a toda a hora.

O fim estava próximo, cada vez mais próximo, e ele queria enganá-la da mesma maneira que enganava a morte há quatro anos, fazendo um esforço por parecer que estava de perfeita saúde. Não queria que ela sofresse, mas Pasqualina andava com o coração nas mãos desde que ele tivera o primeiro ataque, ali mesmo, naquela sala onde lhe beijara a testa e para onde fugiam dos incessantes problemas de Roma que, embora tão perto, parecia tão distante. Era um bálsamo para os dois, ainda que Eugenio não abrandasse o ritmo. O excesso de trabalho haveria de matá-lo. Foi por insistência dela que permaneceram na villa mais tempo do que o previsto. Eugenio não estava em condições de enfrentar as intrigas do palácio, os desmandos, as celeumas, as ininterruptas solicitações. Actores, políticos, diplomatas, todos queriam beijar o annulus piscatoris e tocar, nem que fosse ao de leve, a mão do santo homem que geria os destinos da Igreja há quase vinte anos. E depois, as birras insuportáveis das Eminências, das Excelências, das Reverências que se alimentavam da sua mente e do seu corpo como abutres esfaimados a rondarem o moribundo. Apenas o espírito se mantinha imune à ralação, esse pertencia - Lhe.

Pasqualina ouviu o matracar persistente da máquina de escrever durante alguns minutos, depois tudo cessou inesperadamente. Aflita, a madre entrou no gabinete de Eugenio e encontrou-o caído no chão, inanimado. O branco impoluto sobre o tapete carmesim. A idosa madre conseguiu reunir forças para içar o corpo sumido do Santo Padre até ao sofá encostado a uma das paredes.

- Santidade - chamou aflita. - Meu... meu amor - ouviu-se a si mesma dizer.

As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto abaixo enquanto repetia o chamamento dando palmadinhas no rosto pálido do Papa, apelando ao Senhor que adiasse esta última viagem.

- Santidade, por favor, não me deixe - suplicou desesperada, batendo com mais força no rosto dele. - Que será de mim, Eugenio? Que será de nós?

Eugenio já estava na anteporta do céu, preparado para encontrar o Criador de todas as coisas e ser julgado pelos pecados e pelas virtuosidades. A suprema das justiças a quem ninguém é poupado, nem mesmo o Servo dos Servos de Deus.

Pasqualina sentiu-lhe a pulsação, um murmurejo distante, abafado, débil; a vida esvaía-se rapidamente do corpo do Santo Padre.

- Oh! Meu Deus! - evocou Pasqualina. - Na Tua infinita sabedoria, ilumina-me. - Os olhos estavam marejados de lágrimas de dor. Agarrou as mãos de Eugenio e levou-as ao peito. - Quis tanto contar-te... mas... Eugenio não esboçava qualquer reacção. Pasqualina levantou-se e dirigiu-se ao telefone que estava em cima da imponente secretária onde o Santo Padre trabalhava. No meio dos papéis, encontrou-o. Discou o número do médico, um pateta, no seu entender, que não passava de um simples oftalmologista mas em quem Eugenio depositava uma confiança cega na resolução de todas as enfermidades. O seu nome estava no topo dos dezoito profissionais de saúde de prevenção para acudir ao Papa onde ele estivesse. Seria uma falsidade da sua parte passar ao segundo, sabendo que o doutor Galeazzi-Lisi estava, seguramente, disponível.

A chamada completou-se rapidamente. O médico estaria na villa dentro de quinze minutos e levaria consigo dois especialistas, os doutores Gasbarrini e Mingazzini, para melhor auscultarem o pontífice. Pasqualina sabia que o que o doutor dos olhos queria era não ser acusado de ineptidão agora que o fim estava próximo.

Precisava de chamar Robert e Augustin e o Francis e a marquesa e os príncipes, as pessoas mais chegadas. Não tardaria, a villa estaria repleta de almas maledicentes, vulturinas, prontas para rapinar os despojos. Tisserant, o diácono do Colégio, seria o primeiro, sem dúvida. Antes de o fazer, acercou­se de Eugenio. Estava tudo a acabar-se. Conseguia sentir a alma dele a deixar o corpo. Nada voltaria a ser igual. Tinha a certeza disso. Juntou os seus lábios aos dele por uns instantes, como naquela longínqua noite em Berlim.

Estavam gélidos. Admirou aquele rosto nobre e sacrossanto enquanto lhe tocava delicadamente nos lábios.

- Vai, meu amor. Que Deus te aconchegue nos Seus braços - disse em voz baixa. - Nós as duas vamos ficar bem.

 

                     Roma 14 de Outubro de 1958

Cinco dias depois, o corpo de Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, o décimo segundo Papa a usar o nome Pio, foi a sepultar na cripta da Basílica de São Pedro, enterrando para a posteridade um pontificado que havia começado no dia do seu sexagésimo terceiro aniversário, a 2 de Março de 1939.

Nunca um último suspiro mudara tanta coisa em tão pouco tempo. Pio cultivara mais inimigos do que amigos ao longo dos anos. Afastara-se da hierarquia romana, despira de todo o poder o Colégio dos Cardeais. Rodeou-se de boches e de estrelas de Hollywood, acusavam os cardeais do Sacro Colégio enciumados pela perda de protagonismo junto do Papa. Porém, o poder daqueles em quem Pio confiava terminou com o seu sepultamento. Ainda o corpo não esfriara e já os cardeais se atropelavam uns aos outros à procura daquele que sucederia a Pio como Bispo de Roma, Sumo Pontífice da Igreja Universal, Servo dos Servos de Deus.

Eugêne Tisserant, deão do Sacro Colégio dos Cardeais, um francês com uma barba farta que descia rebelde pelo queixo, tomara as rédeas da situação mal entrara na villa papal, em Castelo Gandolfo, na noite do dia 6.

Fizera-se acompanhar do seu séquito mais fiel e, como íntegro cumpridor do protocolo, iniciou os rituais mal a morte foi confirmada pelos médicos, na madrugada do dia 9, no quarto descorado onde jazia o corpo do Sumo Pontífice.

Chamou o nome Eugénio três vezes. Não houve qualquer resposta.

- O Papa está morto - proclamou o francês com a sua voz troante.

Mandou que os sinos de San Sebastiano tocassem a finados. Ao longo da noite, os badalos dos sinos de todas as igrejas de Roma juntar-se-iam ao carpido de San Sebastiano no triste anúncio da morte do Papa. Depois, Tisserant retirou o annulus piscatoris do dedo do Santo Padre e entoou o De Profundis.

Mandou notificar os cardeais da má nova e, completamente transpirado pelo imenso calor que fazia nessa noite, ajoelhou-se aos pés da cama, junto de mais alguns prelados, dos três príncipes, sobrinhos do Papa, e das irmãs da Santa Cruz, onde se incluía Pasqualina, e rezou um rosário pela alma do Santo Padre.

- Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis, e acendei neles o fogo do vosso amor. Enviai o Vosso Espírito, e tudo será criado, renovareis a face da terra - suplicou Tisserant.

Durante a hora que se seguiu, o francês comandou com fervor os mistérios do Rosário, sendo a sua voz a que mais ressaltava do coro que rezava.

- A marquesa? - perguntou Tisserant, com maus modos, à madre Pasqualina quando terminaram.

- Passou mal quando viu o irmão. Está num dos aposentos a repousar - respondeu a madre, cabisbaixa.

Tisserant debateu os procedimentos do embalsamento com o doutor Galeazzi – Lisi, que havia cordado, explicitamente, com o Papa, um novo procedimento, inovador, que não só conservava o corpo como também todos os órgãos internos.

- Sua Santidade queria manter-se como Deus o trouxe ao mundo - reiterou o médico. - Com este procedimento durará séculos.

- Não é verdade - intrometeu-se Pasqualina. - Nunca Sua Santidade tomou qualquer resolução a favor desse novo processo.

- Cale-se, mulher - ordenou Tisserant, aproximando a sua boca do ouvido dela. - Lembra-se quando lhe disse que os seus dias estavam contados?

Tisserant aprovou o inovador método de embalsamento que seria executado assim que fossem cumpridos os prazos de espera legais.

- Este calor não é nada bom - reclamou o médico.

Tisserant mandou fechar as janelas e ordenou às irmãs alemãs, que juntamente com Pasqualina cuidavam do Papa, que mantivessem o aposento o mais arejado possível.

Em seguida, já com os primeiros raios do sol matutino a iluminarem a villa, o cardeal francês instruiu o Colégio para que se elegesse um camerlengo, o chefe de estado interino da Igreja Católica Apostólica Romana em período de sede vacante, pois o Papa não o fizera desde que o cardeal Lorenzo Lauri falecera nos idos de 1941. Pio certificara-se de que seria o último Pontifex Maximus absoluto, imperial. Já quando o Secretário de Estado Luigi Maglione se finara, em 1944, o Papa encarregara-se pessoalmente da Secretaria de Estado, nomeando dois Pró-secretários, os monsenhores Domenico Tardini e Giovanni Montini. Este último fora depois degredado para o Arcebispado de Milão em 1953. Nunca tal se havia visto antes.

- Foi ideia daquela mulher - rugiu Tisserant numa reunião do inepto Colégio. - Ela ainda vai ser a nossa perdição. Escutem o que vos digo.

E como se não bastasse, Pio terminou com a hegemonia italiana no Colégio. Pela primeira vez na história da Igreja, havia mais cardeais estrangeiros que italianos. Os consistórios de 1946 e de 1953 criaram tantos desequilíbrios na composição do Colégio que o próximo conclave podia pela primeira vez não eleger um pontífice italiano, como era tradição. Tisserant não se opôs muito a isso, pois era francês e, não fossem os inimigos que a sua personalidade frontal cultivara ao longo dos anos, poderia muito bem ser o próximo Pontifex Maximus devido a essa alteração.

O cortejo fúnebre saiu de Castelo Gandolfo no dia 10 em direcção à Basílica de São Pedro onde o ataúde repousaria. Milhares de pessoas aguardavam ao longo da Via Ápia e por toda a cidade para verem passar aquele que os guiou em períodos tão conturbados.

Pasqualina, pela primeira vez em quarenta anos, vira-se privada de motorista. O Cadillac preto já não estava ao seu dispor.

- Lamento, madre - escusou-se Angelo Rotta, o motorista, cabisbaixo.

- As minhas ordens são para levar os cardeais Tisserant e Roncalli.

- Não te preocupes, meu filho - tranquilizou-o Pasqualina, levando uma mão terna ao ombro dele.

Estava habituada a que Rotta a levasse para todo o lado. Era motorista dela e de Pio havia mais de vinte anos. Na viagem para Castelo Gandolfo, em Julho, Pio e ela pediram a Rotta que acelerasse o mais possível. O motorista sabia que o Papa era amante da velocidade e gostava que ele fizesse aquele percurso em menos de dezoito minutos. Quando não conseguia, o Papa e a madre exibiam uma expressão de decepção no rosto. Mal sabia Rotta que era uma forma de eles se divertirem. Na verdade, não estavam, minimamente, arreliados.

- Não te preocupes, Angelo - repetiu Pasqualina. - Procurarei quem me possa levar.

E encontrou. Uma boleia de um grupo de jardineiros ruidosos da villa trouxe-a até à entrada da cidade. O resto do caminho fê-lo a pé. Chegou à atulhada Praça de São Pedro ao início da noite, suada, estafada. Andar mais de três quilómetros a pé era um esforço considerável para uma mulher de 64 anos. Mas de outra forma nunca conseguiria lá chegar. Roma estava a rebentar pelas costuras.

Ela sabia que Tisserant não lhe arranjara nenhum lugar especial nas exéquias fúnebres. Só a família chegada, os cardeais e os dignitários estrangeiros teriam acesso privilegiado. Havia apenas um canto, bem atrás, longe da vista, reservado aos serviçais, na cerimónia fúnebre marcada para o dia 14.

Seria melhor que nada. Pela praça seria muito difícil chegar ao palácio. Decidiu entrar pela Porta de Sant'Anna, ali bem perto. Passou pelo guarda, que lhe fez continência, e seguiu em direcção aos seus aposentos nos apartamentos papais.

Alguns minutos depois, Pasqualina percorria um dos longos corredores do rés-do-chão a caminho do elevador.

- Pasqualina. – Ouviu chamar.

Virou-se para trás. Era Spellman.

- Prancis - saudou a madre.

O anafado cardeal americano, cinco anos mais velho que Pasqualina, deu-lhe um abraço forte e um beijo na face que aliviou o ar austero que ela envergava. Os olhos marejaram-se-lhe. Conheciam-se há décadas, desde umas férias memoráveis que os três passaram nos Alpes suíços em 1931.

- Oh! Meu bom amigo - disse, comovida.

- Não devia andar por aqui - advertiu o americano com uma voz suave.

- O Colégio proibiu a sua entrada no palácio.

- O Colégio ou Tisserant?

- Tanto faz. Venha comigo - pediu-lhe o americano.

- Onde vamos?

- Para os meus aposentos. Lá ninguém nos vai incomodar.

Pasqualina parou e fitou o cardeal americano que também ficou a olhar para ela.

- Eu gostava de ver o Santo Padre, Francis - rogou, com as lágrimas a desprenderem-se dos olhos. - Pode levar-me até ele?

Spellman suspirou, resignado.

- O meu poder também acabou com a morte do nosso querido amigo, Pasqualina - explicou, desapontado. Quem dita as regras agora é o Tisserant e o Masella, que foi eleito camerlengo ontem. Lamento, mas só poderá vê-lo no dia 14. - Abraçou-a. - Venha. Vamos à capela rezar pela alma dele.

Pasqualina estava muito abalada. Sabia que Tisserant se havia de vingar mas nunca pensou que nem sequer respeitasse um intervalo mínimo de luto. Queria ficar com o seu Santo Padre até ao último instante. Por ela, só alguns familiares é que teriam direito a prestar-lhe a última homenagem.

Aliás, apenas a irmã, Elizabetta. Protegê-lo-ia do mundo na morte como o fizera a vida toda. Seria um momento íntimo. Mas não a deixaram.

Entraram na capela de Nicolau V, no segundo andar, pois à do Papa, nos apartamentos papais, que utilizavam sempre, já não podiam aceder. Sentia­se cansada física e psicologicamente. Os últimos meses haviam sido muito difíceis. Dormira pouco, pois queria estar sempre disponível para Pio caso ele necessitasse de alguma coisa durante a noite. Usava uma cadeira de baloiço onde aproveitava para tricotar meias e camisolas e dormitar, mas sempre disponível caso Eugenio necessitasse dela. Estava exausta. Soube-lhe bem sentar-se nos bancos da capela rodeada pelos frescos de Fra Angelico.

- Gostava de poder estar com ele - admitiu.

- Não é um cenário digno de um pontífice, Pasqualina.

- Porquê, Francis? - perguntou alvoroçada.

Spellman precipitara-se. Não queria que Pasqualina ficasse com aquela imagem. Falara de mais.

- Alguma coisa correu mal com o embalsamento. - Teve de contar, ela não o largaria enquanto não o fizesse. - O médico diz que foi do calor intenso mas, se quer saber a minha opinião, parece-me que foi um trabalho malfeito. A imagem do corpo do homem que tanto amava a corromper-se fez Pasqualina desmanchar-se em lágrimas. Spellman tentou confortá-la.

- Já resolveram a situação - mentiu-lhe.

Decidiu omitir que até alguns guardas suíços de vigília ao catafalco se sentiram mal, e que tiveram de suspender o acesso dos fiéis à basílica por duas vezes para mitigarem a situação. Ela não aguentaria.

Permaneceram em silêncio durante alguns momentos. Um coro de orações desirmanadas erguia-se da praça e entrava pelo palácio adentro.

Pasqualina sufocava num pranto descontrolado. Spellman também estava visivelmente perturbado. Não tinha mais para oferecer a não ser estender as suas mãos e juntá-las às dela. Por muito que se queira, ninguém pode sentir as dores dos outros.

- O que vai ser de nós? - lamentou-se Pasqualina.

Levantou-se de rompante e largou as mãos do cardeal.

- Preciso de ver a minha menina. Spellman levantou-se também.

- Não, Pasqualina. Isso está fora de questão.

- O que vai ser dela sem mim? - questionou, desnorteada, afundando o rosto nas mãos.

- Vai correr tão bem como até agora. Têm tratado muito bem dela, Pasqualina. Eu vou assegurar-me que assim continuará a ser, esteja onde estiver - afiançou o prelado.

Pasqualina serenou. Ele tinha razão. Ela estava desorientada. Os acontecimentos precipitaram-se de tal forma que ela capitulava sob eles.

- Aconteça o que acontecer? - perguntou já mais recomposta.

- Aconteça o que acontecer.

Os dias seguintes custaram a passar. Pasqualina tentou descansar mas os minutos passavam lentos como se cada segundo se recusasse a avançar de livre vontade e tivesse de ser empurrado à força. O calor continuava a agredir impiedoso os hábitos dos servidores de Deus e corrompia mais rapidamente o corpo do Santo Padre.

O dia 14 chegou por fim e à madre Pasqualina, governanta de Pio XII, ficou reservado um lugar atrás de todos os serviçais, ocultos por uma das colunas grandes que suportavam a cúpula. Podia ouvir mais do que ver mas ela não se importou. Conseguiu vê-lo quando entrou, magnânimo, plácido.

O seu Eugenio, alvo de todas as honras, amado pelos fiéis, como merecia.

Aguentou-se sem chorar até o corpo ter sido colocado no triplo ataúde e levado para a cripta. Acabou. Eugenio tornara-se história.

Limpou as lágrimas e dirigiu-se para o exterior da basilica seguindo a multidão.

Um braço apoiou-se no seu ombro.

- Madre, por favor. - Ouviu atrás de si.

Era um jovem guarda que lhe entregou um bilhete e, sem proferir mais nenhuma palavra, lhe virou as costas. Em breve haveria de jurar fidelidade a outro Papa.

Afastou-se, a custo, da turba de Eminências, Excelências, Reverências e outros convidados que a empurravam para a saída, e encostou-se a uma das colunas da entrada, junto à Pietà de Miguel Ângelo. Abriu o pequeno bilhete que trazia as armas do Colégio dos Cardeais na parte superior. Estava escrito à mão e em letra cursiva.

Madre Pasqualina,

Serve esta nota para informá-la que terá de recolher os seus pertences até ao final do dia.

Está disponível uma gratificação de 170 000 liras, no Tesouro da Cúria, que deve ser levantada à saída.

A assinatura era a parte mais legível do bilhete. Lia-se Eugêne Cardinal Tisserant. O cardeal francês queria que ela soubesse exactamente quem era o autor do texto.

Os nervos assomaram-lhe aos olhos mas controlou-se. Ali não. Não lhes daria esse prazer. Era hora de enfrentar os problemas e Pasqualina nunca foi mulher de procrastinar, não começaria agora.

Dirigiu-se ao Palácio Apostólico. Tantas vezes percorreu aqueles corredores como se fossem seus. Não conheceu todas as mais de oito mil divisões do Palácio, nem utilizou as mais de trezentas escadarias, embora tivesse subido e descido, vezes sem conta, por muitas delas, ao longo dos quase trinta anos que ali habitara.

Sabia muito bem onde queria ir. Entrou no gabinete do cardeal francês.

Um assistente estava à porta.

- Boa tarde. Pode anunciar-me ao cardeal Tisserant?

O assistente, que revia um texto, nem se dignou levantar o olhar.

- Pode entrar. Sua Eminência está à sua espera.

A freira fechou os olhos, respirou fundo para se acalmar e entrou no faustoso gabinete. A secretária era maior que a de Pio, havia um cheiro a charuto no ar. Tisserant estava recostado num cadeirão que fazia lembrar um trono, tinha os pés em cima da mesa.

- Madre Pasqualina. Que bom vê-la - cumprimentou, com um sorriso aberto.

Ela sabia que a hipocrisia não era um dos defeitos do francês. Estava apenas a zombar dela.

- Eminência, recebi a nota do Colégio para que eu libere os meus aposentos ainda hoje - disse, controlando-se para se manter cordial. - Será que o Colégio podia dar-me mais algum tempo para me organizar e tomar algumas providências?

O cardeal tirou os pés de cima da secretária e inclinou-se para a frente.

Entrançou as mãos em cima do tampo de mogno.

- Perfeitamente, madre Pasqualina. Tem até às oito da noite para abandonar a Santa Sé.

Não havia nada a fazer. Tisserant não cederia.

- Muito bem - aquiesceu a madre resignada. - Folgo em saber que o estalo que lhe dei em 1943 ainda lhe dói.

Relembrou a altura, quinze anos antes, em que Tisserant irrompeu pelo gabinete do Papa e disse "O cabrão do Mussolini foi preso." Pasqualina acercou-se dele e esbofeteou-o com toda a força de que foi capaz. Não eram modos nem palavras admissíveis na presença do Santo Padre, mesmo vindos de um cardeal tão intempestivo como Tisserant. Ninguém disse mais nada e o francês retirou-se quando se apercebeu que Pio estava do lado da freira.

Agora, não havia Pio para defendê-la. Restava apenas uma memória e essa não defendia ninguém. Virou as costas ao francês e avançou para a saída.

Tisserant fitou-a, frustrado. A alemã nunca se rebaixava.

- Aproveite e leve também o pássaro. Já não precisamos de si nem dele.

O conteúdo dos últimos vinte anos de uma vida dedica da a um homem cabia em duas pequenas malas. Não se censurava. Fez sempre o que quis.

Nunca ninguém a obrigou. Nem mesmo o pai, George, quando a proibiu de ingressar no convento e entregar-se a Deus, aos quinze anos, a conseguiu impedir. Arrastou as malas pela Praça de São Pedro, juntamente com a gaiola de Gretel.

Requisitou um táxi no largo fronteiro à Praça de São Pedro. Olhou para a imensa basílica onde tantas vezes estivera e contemplou o terceiro andar do palácio onde fora tão feliz a servir Eugenio.

- Fica bem, querida - disse em voz alta. - Hei-de voltar para ver como estás, minha querida filha.

Ninguém prendeu o olhar na freira que, atabalhoadamente, enfiava as malas e a gaiola dentro do veículo. Ninguém apareceu para se despedir, nem um adeus, um obrigado, um até sempre, nada foi dito à idosa freira que até há poucos dias fora a mulher mais poderosa que alguma vez residiu no Vaticano.

Faltavam sete minutos para as oito da noite.

 

Gennaro Cavalcanti não era um polícia qualquer. Se ainda tivesse algum amigo, ele diria que o inspector era um homem insuportável e talvez não andasse muito longe da verdade. Para se conhecer um pouco este homem da Polizia di Stato era preciso saber que Gennaro nunca se esquecia de nada.

Havia outros factores que faziam com que fosse apenas inspector. Cedo se viu que não havia de progredir na carreira mais do que aquilo. Outras forças se levantavam e o impediam de voar mais alto. É que Gennaro acreditava que a lei era para ser cumprida por todos, sem excepção. Tolice. No seu ramo, isso era um pensamento imperdoável.

Gennaro tornara-se uma estrela quando o célebre caso Mani Polite o catapultou para as parangonas dos periódicos. Nesse tempo, as detenções eram quase diárias e não olhavam a credo, profissão ou berço, ou assim se pensava. Gennaro não tinha receio de nada... nem de ninguém. A obstinação de quem pensava que não tinha nada a perder. Gennaro ignorava, na época, que não era só Deus quem escrevia os tortuosos destinos dos humanos... os poderosos também.

A primeira mulher deixou-o nessa altura e levou os filhos com ela. Dois miúdos que ainda não tinham 5 anos, à época, e mal o viam, se é que alguma vez souberam quem era aquele homem que chegava a casa de madrugada, quando chegava, e saía antes da aurora. Os telefonemas anónimos que os ameaçavam a todas as horas do dia e da noite contribuíram para o fim do primeiro casamento. a inspector não se deixou abater, não recuou um milímetro na sua forma de agir, nem censurou a esposa por querer o melhor para ela e para os filhos. Gennaro tinha um descomunal espírito de sacrifício.

Manteve-se alguns anos solteiro depois disso. Esse descomprometimento relacional proporcionava-lhe alguma independência as telefonemas anónimos nunca pararam, especialmente à noite, mas Gennaro tinha uma missão e não seriam minudências que o fariam recuar.

O inspector Gennaro era responsável pelo departamento de crimes violentos, o que fazia com que a patente de inspector fosse um pouco desacertada e o termo responsável errado de todo. Este romano, nascido no dia de Ano Novo de 1950, era antes um agente que detestava o trabalho de secretária, relatórios, teorias e cafés e bolinhos no conforto dos gabinetes; preferia estar no terreno e ir, de facto, aos locais do crime.

Gennaro Cavalcanti não tinha só qualidades, se é que algumas das suas características se podiam definir assim. Com a idade, e depois de ver partir mais duas senhoras Cavalcanti que, juntamente com a primeira, lhe levaram quase metade do salário, apercebeu-se de um fetiche que sempre sentira, ainda que em estado latente, mas que nunca se evidenciara tanto como depois dos 50 anos. Tinha um fetiche por mulheres casadas ou, no mínimo, com algum nível de compromisso com alguém que não ele. Era como se todos os alarmes disparassem assim que via uma aliança de casamento, um anel de compromisso, ou um simples gesto, um beijo, uma carícia no rosto, as mãos dadas. a desejo de conquistar, de possuir essas mulheres, tocadas pelo amor por outras pessoas, tornava-se irrefreável.

Não era tanto o factor cama que o cativava. Se fosse, o que mais havia era exemplares do sexo feminino disponíveis à procura de amor. Não, isso não lhe interessava minimamente. Com 62 anos, não procurava assentar, bastavam-lhe as três senhoras Cavalcanti que tivera. Ansiava por aventuras com mulheres comprometidas que tivessem muito a perder. Essa conquista, essa sedução, é que o aliciava a devassar o sétimo mandamento. Gennaro estava a envelhecer bem. Algumas rugas conferiam-lhe um ar maduro, o cabelo grisalho ajudava, mas era sobretudo a voz de barítono que provocava nelas um segundo olhar, aquela curiosidade fugaz tantas vezes comprometedora.

Nessa noite, Gennaro indemnizara-se de dez anos de promoções prometidas que nunca se realizaram. A cama onde estava deitado, de barriga para cima, era a de um hotel, e a senhora, que o usava para umas horas de prazer sexual, chamava-se Marcella e era a dilecta esposa do seu chefe, Amadeo.

   De cada vez que ela cavalgava em cima dele, Gennaro lembrava-se do chefe, anafado, transpirado, com a respiração arquejante, a confidenciar-lhe, nessa tarde, que a sua senhora estava num congresso em Milão. Gennaro sorriu, enquanto lhe apertava os seios descaídos e a ouvia gemer.

- Está a gostar do congresso, senhora doutora? - provocou Gennaro com um olhar corrosivo.

Marcella balbuciou um sim entrecortado pelos gemidos da dor e do prazer simultâneos e um sorriso que ela julgava cúmplice do dele. Estava longe de imaginar que o Gennaro por quem ela caíra em tentação não existia. O colega do marido, em estatuto inferior, era certo, que, pela primeira vez em dez ou quinze anos, nem sabia contabilizar, reparou nela, viu mais que o bibelot em que se transformara para o esposo e para os filhos. Escutou-a sem julgamentos e ela desejou senti-lo dentro de si. Mais do que uma vontade tornou-se uma necessidade.

Enquanto Marcella sentia Gennaro, a sua mente falou, falou, falou muito.

Já não eram lamentos, nem protestos, nem constatações de quem se viu relegada para um papel secundário, mas interjeições, gemidos de luxúria bem-vindos. Disse o nome de Deus em vão por quatro ou cinco vezes, Jesus também foi mencionado, até Sua mãe, Nossa Senhora, foi evocada uma vez. Gemeu muitas outras coisas e outros tantos vitupérios que decerto não combinavam com as evocações divinas.

Gennaro não falou muito. Não por alguma razão especial ou mesmo por estar com quem estava. Não costumava falar durante o acto, fosse com quem fosse. Achava que não havia necessidade, que não era a ocasião propícia. Ou então era mesmo verdade que um homem só conseguia fazer uma coisa de cada vez. Por outro lado, para ele a caça tinha terminado no momento em que a esposa do Amadeo, o cabrão do seu chefe, se tinha despido e metido na cama com ele. Para ele o importante era a conquista, a sedução.

E enquanto Marcella o usava, ele pensava no caso que tinha entre mãos.

Afinal, sempre conseguia fazer mais que uma coisa ao mesmo tempo.

O duplo assassinato na Basílica de Sant'Andrea, Aquilo fora obra de profissionais, e era uma história muito mal contada. Tanto que, no que tocava à Igreja, a expressão que sempre utilizava era culpados até prova em contrário. Estivera na basílica ao início da noite e tinha dúvidas, muitas dúvidas.

Ouviu o telemóvel vibrar em cima da mesa-de-cabeceira e esticou o braço para pegar nele.

- Não atendas, por favor - pediu Marcella com um sorriso tímido e o corpo suado.

A esposa de Amadeo tinha genica, Gennaro era testemunha disso.

- Gostavas de ligar para a polícia e que ninguém te atendesse? - argumentou Gennaro, premindo o botão para atender a chamada e levando um dedo à boca a pedir silêncio. Depois sorriu. - Boa noite, chefe.

A senhora ficou enrubescida e parou imediatamente o que estava a fazer. Sentia-se como uma miúda atrevida apanhada numa qualquer malfeitoria. Deu uma risada em surdina quando Gennaro lhe piscou o olho.

- São três e meia da manhã - protestou o inspector. - Estou neste momento com a tua mulher em cima de mim. Marcella não acreditava no que acabara de ouvir. Ele seria louco? Deixou-se ficar quieta e muda, atenta ao resto da conversa, visivelmente preocupada.

A única coisa de jeito que esses gajos sabem fazer é ossobuco. Como a tua mulher está fora e estás sozinho na cama, achaste que era uma boa ideia chatear-me a cabeça a esta hora.

Gennaro continuava deitado, de barriga para cima, e, ao escutar as palavras de Amadeo, puxou-se para cima, arrastando a senhora consigo de forma a ficar com as costas encostadas à cabeceira da cama. A esposa ficou quase colada ao rosto de Gennaro. Tentou não respirar, precisava de encobrir a sua presença.

- A investigação é minha - disse o inspector, com irritação. - Liberto os corpos quando me apetecer. Não são os papa-hóstias que me vão dizer o que tenho de fazer. - Escutou a reacção do chefe e perdeu a cabeça.

- Não me lixes, Amadeo.

A senhora viu Gennaro perder a paciência e ficou pasmada. Nunca o ouvira falar daquele modo. O facto, de somenos importância, de ele estar a falar com o seu marido, que a imaginava a dormir o sono dos justos em Milão, excitava-a ainda mais. Não sabia explicar porquê; talvez estivesse a sentir o doce travo da vingança e, finalmente, se sentisse visível e importante. Queria voltar a movimentar-se em cima de Gennaro mas o inspector parecia cada vez mais irritado. Decidiu arriscar, com um sorriso maroto nos lábios, devagar, de início, para ver a reacção dele. Gennaro segurava o telemóvel só com uma mão e começou a massajar-lhe um seio com a outra, apesar de continuar irritado com a conversa ao telemóvel. Talvez esta fosse também a sua forma de se vingar dele. Aos poucos, retomaram o ritmo, limitando o ruído ao mínimo roçagar das peles dos corpos. A senhora queria gritar, mostrar que estava ali, mas achou melhor não fazê-lo e manter o marido na ignorância... por agora.

- Qual é a pressa? - continuou Gennaro, a berrar para o aparelho. - Um deles ainda nem sequer está identificado. O cabrão do Comte não contou a história como deve ser, Amadeo. Podemos jogar com os... Nesse momento foi interrompido pelo chefe que lhe deve ter dado alguma ordem directa, sem hipótese de discussão, um puxar de galões de quem podia para quem cumpria. A senhora tentava que a sua respiração não se descontrolasse, encadeando movimentos rápidos com outros mais lentos. A esposa do chefe era bastante vigorosa. Água em ponto de ebulição.

- O chefe quer, o chefe tem - respondeu Gennaro secamente. - Amanhã de manhã trato disso.

E desligou sem dizer mais nada. A senhora aproveitou esse momento para deixar sair o prazer que tinha contido durante aqueles últimos minutos com um vagido mais intenso que se deve ter ouvido nos quartos ao lado.

Gennaro mostrou-se mais presente, queria mais do que nunca, deixar a sua marca. Pegou em Marcella com amabas as mãos, levantou-se, sustentando o peso dela, e encostou-a à parede, enquanto a esposa do Amadeo sorria.

- Tenho de pedir ao meu marido que te ligue mais vezes - disse ela num tom provocatório.

- O teu marido é um banana - ripostou Gennaro. - Devia ser padre e não polícia.

O telemóvel voltou a dar sinal de vida, vibrando e tocando em cima da cama, enquanto a luz do mostrador acendia e apagava.

Marcella sorriu.

- Atende. Pode ser ele outra vez - atirou ela com uma expressão rebelde como se tivesse feito ou dito alguma asneira e esperasse castigo.

Gennaro pousou-a e pegou no aparelho. Fez um trejeito de estupefacção quando olhou para a identificação do chamador.

- Cavalcanti. O que é que se passa?

Gennaro escutou com atenção. A senhora acercou -se dele com nova dose provocadora mas ele fez um sinal com a mão para que parasse.

- Outro? O que é que estes gajos andam a fazer? - Escutou o interlocutor. - Entendo. Já identificaram o cadáver de Sant’Andrea? - Esperou pela resposta enquanto consultava o relógio de pulso. - Investiguem quem deu o alerta de Sant'Andrea e deste. Uma vez é lapso, duas é deliberado. Estarei lá dentro de vinte minutos.

Atirou o telemóvel para cima da cama e tornou a abraçar Marcella.

Pegou nela novamente. A sessão de prazer teria de ser abreviada sem, no entanto, colocar em causa a qualidade que era seu apanágio. Os gemidos voltaram com mais vigor, as interjeições e as evocações divinas também. Esperava-o mais um cadáver e uma noite sem dormir. Pensou no idiota do chefe e sorriu.

- Já te vou mostrar quem manda - disse em voz alta, com confiança.

Marcella sorriu e beijou-o. Não se apercebeu que ele não estava a falar para ela.

 

Duválio suava enquanto usava o azorrague para massacrar as costas nuas e rasgar a carne. Era merecido. Os piores castigos não eram suficientes.

Os lanhos dolorosos que o faziam agonizar não bastavam para atenuar o sofrimento da alma que era mais excruciante que a dor física. Nenhuma tortura que infligisse a si mesmo seria mais pesada que a culpa que sentia.

Não havia cura para os males da alma, Duválio sabia-o. Nem o perdão Dele, no alto dos céus, era suficiente para limpar a mácula que ele próprio fizera abater sobre si. Como fora imprudente.

- Meu Deus, aceita a minha penitência - suplicava ele, entre lágrimas, enquanto supliciava as costas com violência.

Estava dentro de um gabinete espaçoso, repleto de armários que ocupavam metade das paredes e uma grande mesa de trabalho, rodeada de pesadas cadeiras de madeira, no centro. Em cima, acumulavam-se livros e documentos dos mais variados teores. Uns mais antigos, outros recentes, numa aparente organização desorganizada. Duválio estava completamente nu a flagelar-se em frente a uma imagem da cruz de Cristo. Mais do que as palavras Dele, a sacra instituição explorava a Sua morte e o sofrimento.

A cruz, sempre a cruz a pesar nas costas dos comuns mortais. Não precisava de ver o Cristo gravado nela, sabia que Ele estava lá, omnipresente e omnipotente, testemunha das suas falhas, dos seus pecados e das suas tentações.

O sangue caía na alcatifa e confundia-se com o carmesim do tecido. As investidas continuavam a rasgar-lhe as costas numa cadência veemente e insistente. Por Bertram, por Domenico, por Gumpel, pelo Santo Padre, Bento XVI, pelo Venerável Santo Padre Pio XII, por Pasqualina, por Piecolo... Uma vergastada violenta por sua mãe, dona Santinha, que não o tinha criado para aquilo. Era um homem íntegro, recto, nascido em Porto Alegre e palmilhava os verdes anos da sua terceira década de existência.

Era um moleque, diria dona Santinha. Era um cafajeste, diria ele.

- lntéllige clamórem meum

lnténde voei oratiónis mea

Rex meus et Deus meu

Quóniam ad te orábio Dómine

Cessou os açoites e arrastou uma cadeira para o lado. O sangue pingava em fio para a alcatifa que escondia o fluido da vida. Pousou o azorrague e pegou no cinto que estava nas calças largadas à toa no chão. Subiu para a cadeira e, com esforço, o suor a acumular-se na testa e no rosto, passou o cinto pelo grande lustre que pendia do tecto. Prendeu-o e depois sopesou-o. Aguentaria. Desceu da cadeira e voltou a ajoelhar-se. Persignou-se e evocou Deus. Pensou novamente na família, em Porto Alegre, nas Igrejas das Dores e da Conceição, onde acordou para Deus, no calor, no churrasco de boi, o samba, a mãe, dona Santinha. As lágrimas escorriam pelo rosto e misturavam-se com o suor. Limpou os olhos com a mão. Sentiu o desespero, a culpa, as mortes, a responsabilidade. Não tinha intenção. Quando se apercebeu já era tarde. Estava apenas a fazer o seu trabalho como lhe haviam ordenado, nunca quis prejudicar ninguém. As estranhas linhas tortuosas da vida haviam originado um emaranhado incontrolável. Merecia aquele destino. Era um homem morto de qualquer maneira. Deus julgá-lo-ia como entendesse. Dona Santinha perceberia que ele tinha sido enganado. Era o mais importante para ele. Ela criara um bom homem. A culpa não fora dela. A mãe não o orientara para o seminário, com tanto sacrifício, para que ele fugisse às suas responsabilidades. Não fora destacado para Roma para fugir às suas obrigações. Era importante fazer as pazes consigo. Só o conseguiria na presença do Bom Deus.

Subiu novamente para a cadeira e passou o cinto pelo pescoço. Respirou fundo, olhou para o tecto e desequilibrou a cadeira. Levou as mãos ao pescoço em desespero. A falta de ar, a sufocação, o curso da morte inexorável.

A fivela estava bem presa. Sentiu o couro esticar com o seu peso. O lustre tilintava à medida que ele se contorcia violentamente, ameaçando ceder a qualquer momento, embora ele soubesse que tal não aconteceria. Estava bem fixado ao tecto.

Sentiu-se desfalecer à medida que asfixiava. Deus estava quase a acolhê-lo nos seus braços e a fazer com ele o que entendesse. Pedir-lhe-ia clemência. Pensou em Bertram, o bom Bertram, e também se Domenico estaria lá à espera dele. Uma imagem da mãe, dona Santinha, inundou-lhe a mente sôfrega por ar.

Desculpa, mãe, ainda conseguiu balbuciar mentalmente. A porta do gabinete abriu-se naquele momento com violência. Viu um homem, talvez fossem dois ou três, ou mais, ou só um truque da sua mente moribunda que já não conseguia discernir a realidade. Sentiu-se cair com violência no chão, desamparado; as costas castigaram-no com uma dor lancinante, o cinto desapertou-se e o oxigénio voltou a alimentar os pulmões sôfregos.

- Onde pensavas que ias, Duválio? - perguntou o homem que o arrancara da morte, em português.

- Eu... eu... - balbuciou, ao mesmo tempo que recuperava o fôlego e a consciência, tentando entender o que se passava. Morrera ou não? - Eles vão matar-me.

Abriu os olhos e contou três pessoas. Um homem franzino, uma mulher, e um outro homem, o que o agarrara, que reconheceu.

- Eu trato de te recambiar para junto de Deus – disse Rafael, levantando-o sem modos. – Mas antes temos de conversar.

 

Um homem é os problemas que cria e fomenta. Há uma necessidade inata de andar enredado numa teia problemática que apimenta o ambiente e tempera o protesto. Qual seria o interesse de viver num mundo sem traições apunhalamentos, enganos e roubos? Quem, no seu perfeito juízo, gostaria de viver numa casa em que pudesse dormir tranquilo, de porta aberta?

A alcatifa silenciava os passos vigorosos de Giorgio, o belo, enquanto caminhava em direcção ao Secretariado. Mais uma noite em branco, em nome de Deus, a tentar desensarilhar o novelo de problemas que teimava em enrolar-se mais e mais, enredando-se em si próprio. Consultou o relógio. Passavam poucos minutos das três da manhã. Utilizou a Scala Nobile e continuou o caminho, afoito, determinado. Abriu as duas portas que davam acesso à antecâmara do gabinete do Secretário, no segundo andar.

- Que se passa, Excelência? - perguntou um noviço, estremunhado.

- O Secretário de Estado?

- Retirou-se para os seus aposentos. Pediu para não ser incomodado.

Eu também já estava a preparar-me para ir dormir.

- Vai acordá-lo - ordenou o secretário pontifício.

O noviço nem sabia como reagir àquela ordem que, seguramente, seria mais certo tratar-se de um pedido veemente. Jamais se vira um simples secretário, mesmo este que tinha como funções auxiliar o Santo Padre, irromper no Secretariado com ordens.

- Não posso, Excelência. Ele deu-me instruções muito explícitas.

Giorgio contornou o jovem padre administrativo e em passos rápidos alcançou a porta do sagrado gabinete, centro político do Estado Pontifício, nacional e internacionalmente.

- O que está a fazer, Excelência? Não pode entrar aí!

Giorgio abriu a porta e entrou sem dar ouvidos ao jovem que já suava de arreliação e medo. Este viu o secretário do Santo Padre sentar-se no grande sofá de couro do gabinete e cruzar uma perna.

- Ou vais chamá-lo... ou vou eu - declarou Giorgio, peremptoriamente. - Escolhe.

O rapaz ponderou por alguns instantes, fitando a expressão fria do alemão e virou-lhe as costas. Era mau de mais acordar o Secretário, mas inconcebível seria o alemão fazê-lo. Um escândalo inadmissível.

- Não saio daqui sem falar com ele. Certifica-te que avisas sua Eminência disso - advertiu Giorgio, elevando a voz para se fazer ouvir pelo rapaz que já tinha deixado o aposento.

O secretário papal teve pena do rapaz. Com as devidas distâncias, o jovem ocupava um cargo similar ao seu. Era assistente do número dois do Vaticano, enquanto Giorgio assistia o número um, com mais alguns privilégios, era certo. Tarcisio nunca tivera a assessorá-lo homens maduros.

Era estranho, agora que pensava nisso. Preferia os mais jovens, porventura por ser mais fácil intimidá-los. Ao contrário dos mais velhos, os jovens ficavam com medo e não com raiva.

Levantou-se do sofá e avançou para a enorme secretária de mogno.

Pegou no auscultador do telefone e levou-o à orelha enquanto com a outra mão premiu três algarismos. Passaram alguns segundos até alguém atender do outro lado da linha.

- Tomasini, boa noite. Venha ter comigo ao gabinete do Secretariado - pediu Giorgio passando uma mão pelo rosto afadigado. - Agora.

Deixou o homem da espionagem responder e desligou o telefone. Voltou a premir alguns números e levou o aparelho ao ouvido.

- Como é que estão as coisas? - Aguardou o relato do interlocutor.

- Atingimos o ponto de não retorno. Às oito horas ver-se-á o que acontece.

- Escutou o que lhe disse a voz. - Vou para lá daqui a pouco. Mantém-me ao corrente.

Pousou o aparelho, regressou ao sofá e esperou. Não lhe restava fazer mais nada.

O jovem padre chegou instantes depois, afogueado. Não acreditava que o Secretário de Estado estivesse a dormir, as noites acicatavam toda a alta hierarquia naqueles tempos, mas era certo que não era fácil atentar contra o temperamento hostil de Tarcisio.

- O Cardeal Secretário de Estado pediu para aguardar.

Giorgio baixou a cabeça numa vénia ligeira e conivente.

O Secretário levou algum tempo a chegar e não apareceu sozinho. O intendente Comte acompanhava o arrastar das pernas cansadas do piemontês que não estava nada contente com aquela intromissão inconveniente. Contornou a secretária e sentou-se no cadeirão. Comte ficou de pé junto à porta.

- A que devo a honra? - inquiriu Tarcisio, com menosprezo.

Tarcisio não morria de amores pelo alemão. Os olhares, os sorrisos podiam enganar toda gente, excepto a ele. Era um oportunista. Conseguira cair nas boas graças do Santo Padre, muito antes de ele o ser, quando era o Deão do Colégio, o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Panzerkardinal, como os outros chamavam ao Papa Bento. O monsenhorado chegou pouco depois e não se admiraria se Bento o fizesse cardeal antes de partir para os braços do Pai. Seria uma profanidade. Se dependesse dele isso jamais aconteceria. Infelizmente, não dependia.

- Chegaram aos ouvidos do Santo Padre zumbidos de rumores deveras perturbantes zumbidos de rumores deveras perturbantes.

O piemontês, mirou-o com um olhar apreensivo. Uma estranha escolha de palavras, aquela do secretário papal.

- Zumbidos? Foi isso que disse?

- Zumbidos de rumores.

- Por favor, aclare o que quer dizer com zumbidos de rumores - solicitou com uma cortesia fora do normal, uma expressão a roçar a troça e que não podia deixar de se notar quando pronunciou as palavras zumbidos de rumores.

- Ao que parece, saiu deste gabinete uma ordem para tratar de um certo jornalista americano - atirou o alemão, de supetão. Tarcisio despiu o tom sarcástico e envergou uma postura séria.

- Não estou a ver o que isso possa interessar ao Santo Padre.

- Ao Santo Padre interessa tudo o que se faz ou manda fazer no seu palácio e em seu nome.

- Não seja petulante, Giorgio.

Giorgio levantou-se nesse momento e acercou-se da secretária. Se não estivessem na sala dois diplomatas, poder-se-ia arrolar uma certa pose intimidadora por parte do alemão.

Nesse momento ouviu-se uma leve batida na porta que revelou o chefe da Santa Aliança. Girolamo afastou-se para o deixar passar.

- Tomasini? O que é que estás aqui a fazer? - perguntou o intendente, com rispidez.

Tarcisio também estava espantado com a presença dele.

- Fui eu que tomei a liberdade de o chamar – comunicou Giorgio. – O Santo Padre gostaria que os senhores tivessem conhecimento do ser desagrado no caso de os zumbidos de rumores - disse as palavras a fitar o piemontês - serem verdadeiros, o que ele acredita que não sejam, como é óbvio.

Depois fincou as mãos no tampo da secretária numa atitude ainda mais provocatória.

- O Santo Padre gostaria também que lhe fosse entregue um relatório bastante detalhado sobre esse jornalista americano até amanhã ao meio­dia.

Tarcisio não respondeu e dissimulou o asco que estava a sentir pela insolência daquele imberbe alemão, mas permaneceu mudo.

Giorgio desviou o olhar para Guillermo.

- A moeda de troca já está connosco?

Guillermo fez um gesto negativo com a cabeça.

- Devo ter mais informações dentro de minutos.

- Já devia estar cá - advertiu Girolamo que depois se virou para o secretário do Papa. - Preciso de falar consigo, Excelência.

- Avise-me assim que a moeda de troca esteja com os nossos homens - pediu o alemão a Guillermo, e depois fitou o intendente. - Procure-me no gabinete do Santo Padre.

Girolamo anuiu. Assim faria.

- Mais alguma coisa? - quis saber o Secretário de Estado com uma nota de sobranceria na voz.

Giorgio tirou as mãos da secretária e dirigiu-se à porta do gabinete.

- Boa noite, meus senhores.

Guillermo fechou a porta assim que o alemão saiu e avançou para o centro do gabinete.

- Vais encostá-lo à parede? - perguntou Tarcisio para Girolamo com um ar cúmplice.

O intendente não respondeu.

- Esse monsenhor não é o que parece. Esconde-se muito bem por trás do Santo Padre mas não me engana. Ele anda a tramar alguma - disse para o homem da espionagem. - E o nosso assunto, Tomasini? Está resolvido?

- Não - limitou-se a dizer Guillermo. - Mataram o Bertram e querem

a mulher e o Rafael na Praça de São Pedro às oito da manhã.

- Como é que soubeste disso? - quis saber o intendente.

- O Arturo ligou-me da Via Tuscolana.

- Quem fez isso? - Tarcisio abriu bem os olhos e respirou fundo, transtornado.

- Os mesmos que mataram o Luka e o Domenico. Duas balas na cabeça - explicou Guillermo.

- Vou para lá antes que avisem o Cavalcanti - disse o intendente.

- Fazes bem - concordou Tarcisio.

- Não te canses. O Cavalcanti já foi avisado.

- O quê? Como é que isso aconteceu?

- Do mesmo modo que em Sant'Andrea. Alguém ligou para o serviço de emergência.

- Manda para lá o Davide - sugeriu o Cardeal Secretário de Estado.

- O Davide está noutro serviço - respondeu Girolamo, pensativo. - É a segunda vez que avisam a Polizia di Stato. Não pode ser coincidência.

- Seguramente não é – atalhou Guillermo. – Alguém está interessado em que nós fiquemos para trás.

Acham melhor convocar o Federico? - perguntou o Cardeal.

- Faça isso, Eminência - respondeu o intendente. - Com o Cavalcanti ao barulho vamos precisar de minorar os danos perante a opinião pública.

Eu vou falar com o secretário do Papa. - Olhou para Guillermo. - É melhor ires tu à Via Tuscolana.

- Eu? Tu é que és o intendente da Gendarmaria. Eu não existo, lembras-te?

- Precisamos lá de alguém. Se o Comte não pode e tem os homens ocupados, vais tu, Tomasini. Está atento a tudo e não contes nada ao inspector - ordenou o Cardeal.

Guillermo suspirou de impaciência e depois lembrou-se onde estava e quem tinha à sua frente e recompôs-se.

O Secretário levantou-se e aproximou-se da janela. Estava escuro no exterior. Uma penumbra enigmática que encobria o desconhecido não deixava entrever nada, e havia apenas um candeeiro que a combatia debilmente com uma luz que se apagava a espaços.

- E quanto ao jornalista?

- O Rafael manietou o Arturo, como era previsível.

- Típico - murmurou Girolamo que nunca perdia uma oportunidade para criticar o colega da espionagem.

O piemontês virou-se para Guillermo com uma expressão decidida.

- Temos de conseguir aquele dossiê. Apanha-os e resolve o assunto de uma vez. Já temos problemas que cheguem.

- Levantou um dedo. – se falhares entrego o caso ao Comte.

Girolamo deixou Guillermo sair e envergou uma expressão cúmplice para com o Cardeal Secretário de Estado.

- Eu sei para onde o Rafael e o jornalista foram, Eminência - afiançou Girolamo por entre murmúrios cúmplices. - O Davide já está a caminho da morada.

Guillermo saiu para o corredor e desceu para o edifício administrativo onde funcionava a Santa Aliança, junto ao Pátio de São Dâmaso. Era uma questão de tempo. Rafael não tinha como escapar, e os problemas daquele dia ficariam resolvidos. Nada era para sempre. Porcaria de vida. Sentiu a camisa apertar-lhe a garganta e impedir a respiração. Era dos nervos. Tirou o cabeção branco e desapertou o botão de cima da camisa. Sentiu o telemóvel vibrar no bolso. Atendeu.

- Tomasini - apresentou-se. Escutou o que lhe diziam e sentiu a crispação invadir-lhe o rosto, acompanhada pelo enrubescimento.

Acabou por desligar depois de ouvir a informação, deu um murro na porta antes de entrar no edifício e acabou por sorrir cinicamente. Não sabia se havia de ficar irritado ou aliviado.

- És um grande sacana, Rafael. O maior de todos.

 

- Senta-te aqui - ordenou Rafael, arrastando com uma mão a pesada cadeira que estava caída e servira, de certa forma, de cúmplice ao acto hediondo que Duválio desejava perpetrar contra si mesmo, enquanto segurava o inerte padre brasileiro com a outra.

Pegou na camisa negra que estava no chão e deu-lha para que se vestisse. A falta de reacção do brasileiro irritou-o tanto que o sentou de forma bruta e deu-lhe um estalo na cara.

- Reage, pá.

- Então, Rafael? - balbuciou Sarah, incomodada com aquela atitude grosseira.

Duválio transpirava por todos os poros e mantinha os olhos fechados. Não queria pensar, não queria ver nada nem ninguém. Rafael não tinha o direito de impedir a sua vontade de morrer. Não tinha.

John Scott ficou à porta e olhava para aquele cenário sem saber como o classificar. Quem era aquela gente? E por que razão pareciam tão disfuncionais?

- Devias ter-me deixado morrer - acabou por dizer Duválio.

- E perder a história tão bonita que tens para nos contar? - continuou

Rafael num tom irritado, atirando-lhe as calças para que as vestisse.

- Quem é ele? - perguntou Sarah na tentativa subliminar de distrair um pouco Rafael e contrabalançar a acidez que este manifestava para com o homem que estava, visivelmente, atormentado.

Rafael dissera que iam procurar respostas. Rapidamente os conduziu para os lados de São Pedro. Por momentos o americano pensou que os ia levar para a toca do lobo, a expressão que Sarah utilizava para se referir ao Vaticano, mas depois ele acabou por estacionar numa rua secundária e levou-os para aquele edifício, no número 10 da Piazza Papa Pio XII, o Palácio das Congregações. Mesmo a tempo, pelos vistos.

- Ele chama-se Duválio. É brasileiro. Faz parte do Colégio dos Relatores - anunciou Rafael com uma nota de cinismo na voz, aninhado, com uma mão a segurar o peito do relator para ele não cair da cadeira, sem nunca desviar o olhar férreo dele.

- E... e... o... que faz esse colé... colégio? - inquiriu John Scott.

- Queres explicar Duválio? – questionou Rafael, acrescentando rancor ao cinismo. – Não? – envergou um tom professoral. – O Colégio dos Relatores é um órgão que integra a Congregação para a Causa dos Santos. É composto por um oficial curial, o relator, que orienta inúmeros colaboradores. Podem ser historiadores, hagiógrafos, teólogos, filósofos que se dedicam a pesquisar a vida e obra dos Servus Dei. São eles que conduzem os longos processos de canonização, nos seus vários estádios. Lêem documentos, livros, consultam outros historiadores ou qualquer outra fonte fidedigna da época estudada, entrevistam familiares, amigos e qualquer outra pessoa que, por qualquer razão, tenha privado com o candidato. Não é, Duválio? - berrou para o brasileiro.

- Pára com isso, Rafael- disse Sarah numa voz firme, e aproximou-se do padre que estava sentado. - Não vês que ele está a sofrer?

Rafael levantou-se e recuou uns metros.

- Quer água? - perguntou a jornalista com uma voz terna, em português.

Duválio estava intimidado e não respondeu. Ela olhou para Rafael.

- Vai buscar um copo de água.

- Isto não é, propriamente, um bar - reagiu o padre.

- De certeza que deve haver água - insistiu Sarah num tom ríspido.

- Desenrasca - te.

Procurou lenços dentro da sua mala e encontrou-os depois de ter tirado um molho de chaves, o telemóvel e um cilindro de batom. Tirou alguns do invólucro de plástico e limpou o suor do rosto de Duválio. O homem continuava sem reagir, mas sabiam-lhe bem os gestos confortantes da mulher.

- Obrigado - agradeceu por fim, um pouco mais calmo.

Rafael regressou ao gabinete, pouco depois, com um copo de água e entregou-o a Sarah.

- Beba um pouco.

O brasileiro levou o copo à boca com as duas mãos que, mesmo assim, tremiam como se estivessem acometidas por uma doença ou pelo inclemente frio da rua. Bebeu o líquido todo do copo de uma só vez e arfou no fim. O coração latejava menos e, aos poucos, a respiração retomava os níveis normais. Sarah fitava-o com preocupação. Ele devolveu-lhe o olhar e esboçou um ténue sorriso tímido.

- O Bertram? - perguntou instantes depois, praticamente certo de qual seria a resposta.

Rafael fez um trejeito negativo com a cabeça que sentenciou o nome proferido pelo brasileiro.

- Não adianta nada ter-me arrancado da morte. Eu sou o próximo, não vê?

- Quem são eles? - perguntou Rafael.

- Não sei. Quando percebi que alguma coisa não estava bem... - não conseguiu continuar.

Sarah e John assistiam àquela conversa de surdos sem perceber nada.

A única coisa que conseguiram entender, no fundo, era que alguma coisa não estava bem. Mas o que seria que o relator sabia de tão grave que o fizesse ter tanto medo ao ponto de se tentar matar?

- Quem é que estavam a investigar? - intrometeu-se a jornalista.

Duválio baixou o olhar. Não se sentia confortável a falar daqueles assuntos na presença de desconhecido.

- Podes falar à vontade - incitou Rafael. - Quem é o candidato que os colaboradores do padre Gumpel andam a investigar?

O brasileiro respirou fundo e olhou para Sarah. Era preferível falar para ela do que para o intratável padre Rafael.

- Estávamos, já há longos anos, a elaborar a Positio do Papa Pio XII.

- Isso é o quê?

- A Positio Super Virtutibus é o documento que os relatores elaboram sobre o Servus Dei, o Servo de Deus, o candidato à canonização. É elaborado com base em testemunhos, documentos, muitas consultas; é um trabalho que pode levar muitas décadas, como é o caso do Santo Padre Pio XII.

A Positio é depois apresentada à Congregação da Causa do Santos que, por sua vez, recomendará, ou não, ao Santo Padre que o candidato seja declarado Venerável. Esse é apenas o segundo estádio da canonização. Se o Papa declarar o Servus Dei como Venerabile teremos de aguardar por um milagre para a postulação avançar para Beatus, que é o terceiro estádio do processo.

Sarah puxou uma cadeira e sentou-se. Uma náusea perpassou-lhe pela garganta. Talvez fosse cansaço. Já não estava habituada a ficar acordada até tão tarde e o corpo, ainda fraco, ressentia-se disso. As emoções e as sensações tinham-na enfraquecido nas últimas horas. Uma ligeira tontura também a incomodava.

- O processo do Papa Pacelli nunca foi pacífico - prosseguiu o brasileiro.

- Pudera – interrompeu John. – A… apo…po..posição dele…dele…na Se... Segunda Guerra Mun... Mun... Mundial foi... foi mais que... que de... de... deplo... rável.

- Tolice - refutou Rafael, com maus modos. Estava farto de ouvir aquelas baleIas proferidas por pessoas ignorantes.

- As pessoas tendem a repetir o que ouvem as outras dizer e tanto repetem que se torna verdade. Nunca ninguém se dá ao trabalho de ir investigar e verificar se é mesmo verdade - argumentou Duválio.

- Aposto que também pensa que o Einstein era tão mau a matemática que chumbou quando era criança - acrescentou Rafael, visivelmente irritado.

- Então porque é que não nos explicam a versão factual? - pediu Sarah, cada vez mais interessada no tema.

Duválio ajeitou-se na cadeira e pigarreou. Talvez fosse melhor ir buscar mais água e Sarah pegou no copo que o relator segurava nas mãos e entregou-o a Rafael para que ele tratasse disso. Fê-lo sem pronunciar uma única palavra e, provavelmente por isso, o padre lançou-lhe um olhar enfurecido. Desde quando o haviam contratado como empregado de mesa?

- O nome de baptismo do Santo Padre Pio XII era Eugenio Pacelli ­ começou Duválio num discurso pausado mas claro. - Apesar de conotada com a Nobreza Negra - os aristocratas que alinharam ao lado do Papa Pio Nono aquando da reunificação de Itália em 1870, pela casa de Saboia, e, em sinal de protesto, mantiveram as portas dos seus palácios fechadas e trajavam de negro - a família de Pacelli não pertencia a essa esfera.

Sim, os Pacelli eram uma família respeitável e fervorosos apoiantes da causa papal, mas as suas origens eram muito modestas. Os seus antepassados eram rurais e remontavam a uma aldeia perto de Viterbo. O prestígio dos Pacelli não foi conquistado pelo sangue azul mas com muita dedicação e devoção. O avô de Eugenio, Marcantonio, foi estudar lei canónica para Roma em 1819. Tornou-se no braço direito de Pio Nono e, devido às relações privilegiadas com a aristocracia romana e italiana, foi confundido com eles. Os Pacelli transformaram-se nos melhores advogados canónicos do Vaticano.

Rafael chegou nesse momento com o copo de água e entregou-o a Duválio, contrariado. Arrastou outra cadeira e sentou-se, desinteressado do relato. Provavelmente Duválio não diria nada que ele já não soubesse.

O relator bebeu um gole de água para humedecer os lábios antes de continuar.

- Os Pacelli eram brilhantes advogados canónicos. O jovem Eugenio vivia com os pais, o avô e os irmãos num apartamento na rua Degli Orsini.

Cedo se mostrou aberto ao mundo da Igreja. Com 8 anos, começou a ajudar na Chiesa Nuova, como acólito, nas celebrações eucarísticas de um primo. E, como muitos rapazes destinados à vida eclesiástica, a sua brincadeira favorita era justamente a celebração eucarística que fazia no seu quarto, imaginando as vestes do clérigo que ainda lhe estavam vedadas em tão tenra idade. Quando tinha 10 anos, chegou a celebrar uma missa completa na casa de uma tia que estava doente e não podia ir à igreja. E incluía tudo. Os quatro ritos: os iniciais, da palavra, sacramentais e finais. E, no rito da palavra, inclui a Primeira leitura, o Salmo Responsorial, a Segunda Leitura, a Aclamação ao Evangelho, a Proclamação do Evangelho, a Homilia, a Profissão de Fé e a Oração da Comunidade. Não faltou nada. A mãe apoiava e estimulava este sentido ascético do filho. Era um rapaz obstinado, solitário, muito independente. Estava sempre no seu mundo. Trazia em todos os momentos um livro consigo e era comum vê-lo a ler mesmo durante as refeições. Apesar disso, não era indiferente ao que o rodeava. Tinha um grande amigo. Chamava-se Guido Mendes e era judeu. Tornou-se, mais tarde, num médico reputado. Pacelli frequentava a casa dos Mendes. Foi o primeiro Papa, depois de Pedro, a frequentar Sabats judaicos quando era criança.

- Há necessidade de recuar tanto? - reclamou Rafael, farto daquela lengalenga.

Sarah lançou-lhe um olhar reprovador. Ela estava interessada na história. Se ele não quisesse ouvir tinha bom remédio.

- Continue, padre.

- Em 1901 foi integrado na equipa do cardeal Pietro Gasparri como apprendista, na Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários. Na altura, Pietro Gasparri ainda não era cardeal mas, juntamente com Pacelli, foi um dos arquitectos do Código de Direito Canónico que começou a ser compilado em 1904 e levou cerca de treze anos a concluir. No entanto, tudo podia ter sido diferente. Mais ou menos por essa altura, um primo de Pacelli, Ernesto, pediu-lhe ajuda com a sua filha Maria Teresa. Ela estava alojada no convento da Assunção desde os 5 anos e quando atingira os 13 entrara numa depressão profunda e num silêncio sepulcral. Pacelli começou a visitá-la todas as terças-feiras à tarde. Os encontros levavam entre duas a quatro horas. Maria Teresa voltou, aos poucos, a sorrir, a falar, os olhos resplendeciam e ansiavam pelas tardes de terça-feira. Aqueles encontros duraram cerca de cinco anos. Foi o pai de Maria Teresa, Ernesto, que terminou com as visitas que havia começado, pois suspeitava que ambos mantinham uma relação em segredo. Era certo que se amavam, ainda que Maria Teresa tenha garantido perante os postuladores da beatificação que nunca nada tinha acontecido... nem sequer um beijo. Eram duas almas unidas por Deus. Fosse como fosse, a interrupção abrupta das visitas semanais a Maria Teresa foram vexatórias para Eugenio e deixaram - no desalentado. O seu estômago, já de si muito delicado, não aguentava comida nem líquidos e vomitava tudo. Foi a mãe quem o ajudou a passar por essa fase complicada. A mãe e o trabalho.

- Não precisas de contar a Positio toda - tornou a interromper Rafael, batendo com um dedo no mostrador do relógio de pulso a pedir que se despachasse.

- Pára de interromper - interpôs-se Sarah, irritada.

- Ele ainda está em 1901. Só vai chegar a 1939 às oito da manhã - argumentou Rafael.

- Tudo bem. Eu abrevio. No mesmo ano em que se publicou o Código de Direito Canónico, em 1917, ele foi nomeado núncio da Baviera. Começou a sua jornada alemã que durou até 1929. Em 1925 mudou-se de Munique para Berlim. Diziam os diplomatas dos outros países e mesmo os alemães que a nunciatura de Berlim era a mais bem informada de toda a Alemanha. Nos finais de 1929, foi chamado a Roma e assumiu a Secretaria de Estado em 1930.

- Essa história está muito bonita mas não estás a esquecer-te de ninguém? - confrontou Rafael.

John Scott e Sarah, curiosos, desviaram o olhar para Rafael que continuava fixo em Duválio. O relator mirou-o de soslaio e ignorou-o.

- Em 1933 assinou-se a célebre Reichkonkordat, o tratado que vinculava o Estado Cidade do Vaticano e a Alemanha de Hitler - prosseguiu Duválio. - Havia quem criticasse Pio XI, o Papa da altura, e o seu Secretário de Estado, Eugenio Pacelli, pelo documento. Todo ele foi arquitectado por Pacelli. Talvez tivessem alguma razão. A concordata obrigava ao desmantelamento do partido do centro, que era uma organização católica. A concordata previa que a Igreja e os seus padres não podiam intervir nem interferir na vida política. Hitler nunca recuou naquele ponto. Só o desmantelamento daquele partido permitiria ao partido nazi obter a maioria necessária que veio a acontecer. Mas é necessário compreender que estamos a falar do pai do código de direito canónico, cujos membros da família tinham alcançado prestígio como homens de direito. Era um homem da lei, um advogado. Obviamente que cria nela, mas também estava ciente que Hitler não a ia cumprir.

- Se sabia, porque assinou? - perguntou Sarah.

- Porque ele precisava de um documento legal como base para poder protestar - esclareceu o relator. - A maioria das pessoas pode não compreender isso mas qualquer homem de direito o entende. A verdade é que até 1938 o Secretário de Estado do Vaticano, Eugenio Pacelli, emitira cinquenta e cinco protestos ao governo alemão, por violações flagrantes à concordata assinada em 1933. Chegou a mencionar a ideologia da raça.

A concordata condenava as perseguições em relação ao credo e à raça. A opinião pública não tinha conhecimento destes protestos. Nunca teve.

Pacelli sempre preferiu as vias legais à comunicação social. Soube-se, nos julgamentos de Nuremberga, que Hitler achava muita graça aos protestos e até tinha um lugar especial na sua secretária onde os empilhava à medida que chegavam, e que fazia piadas sobre eles. Mal foi eleito Papa, a sua primeira medida foi contactar Hitler.

- Finalmente, 1939 - gracejou Rafael, embora ninguém tivesse achado piada.

Duválio bebeu mais um pouco de água. Estava a ficar muito cansado mas ia continuar. Se pudesse mudar duas mentes em relação ao pensamento negativo que se generalizara sobre o Santo Padre Pio XII já se podia considerar um afortunado.

- Estava a esquecer-me de um dado importante que aconteceu ainda antes de o cardeal Pacelli ter sido eleito Papa - referiu o relator, recuando um pouco. - A Mit Brennender Sorge.

- A qu... quê? - perguntou o americano.

- A encíclica Mit Brennender Sorge - repetiu Rafael. - Quer dizer Com Profunda Preocupação. Foi uma crítica aberta ao nacional-socialismo e onde Pio XI chegou a insultar Adolf Hitler. Foi escrita em 1937.

- É interessante notar que é um dos dois únicos documentos oficiais do Vaticano não escritos em latim. O primeiro também foi de Pio XI que era, de facto, um portento - acrescentou Duválio.

- Em que língua foi escrito o primeiro? - quis saber Sarah.

- Italiano - respondeu Rafael. - Chamava-se Non Abbiamo Bisogno.

Não precisamos disso. Era uma crítica muito forte ao fascismo de Mussolini. Foi o fim do interlúdio pacífico entre o ditador italiano e o Papa, que tinha começado com o Tratado de Latrão, em 1929. Mussolini ficou irado e depois disso a relação deles foi sempre de ódio.

- Em 1929 também se odiavam. Mas Pio XI precisava de terminar de vez com a Questão Romana.

- Mais um Pacelli envolvido - disse Rafael.

- Esperem um pouco - requereu Sarah. - Não estou a perceber. Tratado de Latrão? Questão Romana? O que é isso?

- Eu explico, senão nunca mais saímos daqui - atalhou Rafael. - Quando a Casa de Saboia, liderada por Vittorio Emanuele II, reunificou toda a Itália, o que aconteceu em 1870, incluiu os Estados Pontifícios que eram compostos por toda a Lácio, a Umbria, as Marcas e a Romanha, praticamente todo o centro da península. O Papa Pio Nono não aceitou e refugiou -se no Vaticano, declarando-se prisioneiro do governo italiano. Apesar de o parlamento italiano ter aprovado a lei das garantias, em 1871, conferindo ao Vaticano liberdade de culto e soberania sobre o seu território, as quatro basílicas papais e Castelo Gandolfo, Pio Nono não aceitou qualquer negociação e nunca mais saiu do Vaticano. Isso ficou conhecido por Questão Romana. Durou cinco pontificados e terminou a 11 de Fevereiro de 1929, com o Tratado de Latrão que conferia total soberania ao Estado Cidade do Vaticano e mais alguns territórios, e ainda oferecia uma avultada quantia financeira como indemnização pela perda dos Estados Pontifícios. De um lado estava Benito Mussolini e do outro o Papa Pio XI e o seu Secretário de Estado, Pietro Gasparri. Mas há uma coisa que a opinião pública não sabia. O próprio Benito Mussolini, que se vangloriou por ter posto fim à Questão Romana, foi usado e manipulado sem ter dado conta. Quem elaborou o texto do Tratado, e foi crucial nas negociações, foi um eminente advogado de direito canónico chamado Francesco Pacelli que era irmão de Eugenio. A Santa Sé precisava urgentemente de resolver a Questão porque estava completamente falida. Tinham sido cinquenta e nove anos a gastar dinheiro e a fonte estava a poucos passos de secar completamente.

- Não é necessário contar esses pormenores - contestou Duválio.

- Para o bem e para o mal, Duválio. Para o bem e para o mal - Rafael prosseguiu. - Ninguém contestava a soberania do Vaticano. Nem os Saboia o fizeram. Pio XI necessitava da indemnização para manter o Estado solvente. E Mussolini caiu como um patinho. Até pagou a construção do caminho-de-ferro do Vaticano. Com a Questão Romana ultrapassada, o Estado solvente e rodeado das pessoas certas para que a insolvência não

voltasse a acontecer, Pio XI pôs fim ao interlúdio em 1931 com a encíclica Non Abbiamo Bisogno que é um ataque brutal ao fascismo mas, especialmente, a Benito Mussolini.

Rafael fez uma pausa, ciente do que iria revelar a seguir:

- Os dois homens odiavam-se ao ponto de, dentro dos corredores do Vaticano se acreditar que Mussolini mandou matar Pio XI.

 

O tempo estava a seu favor. Era o que dizia o temporizador que recuava implacavelmente. O pior de tudo era a espera, uma vez que não era homem de procrastinar o que podia fazer no imediato. O tempo era muito relativo. Lento para aqueles que esperavam, rápido para aqueles que tinham medo, longo para aqueles que sofriam, curto para aqueles que celebravam.

Passara ao próximo da lista. O cliente fora explícito. Seguir a ordem de eliminação, aconteça o que acontecer. Aquele era o seguinte. Depois do alemão, na Via Tuscolana, dera um salto à morada que lhe conhecia, mas sem sucesso. O pior de tudo era a espera e decidiu não esperar muito. Dirigiu-se ao Palácio das Congregações. Se não estava em casa só havia outro local em toda a Roma onde ele podia estar. Era ali, no Palácio. A rotina deles era muito previsível e ele conhecia-as bem. Não o contrataram pelos seus belos olhos. A sua competência precedia-o nestes meios obscuros.

O Francês estava dentro do carro a calçar as luvas quando os viu. Eram três. Sorriu. Os caminhos entrelaçavam-se misteriosamente, como que tecidos por um tear invisível. Era uma oportunidade que não podia perder.

Audaces fortuna iuvat. Não podia levar a arma grande. Teria de se servir da pequena. Era uma Glock modificada por ele mesmo. Enroscou-lhe o duplo silenciador e verificou as munições. Eram dezasseis. Mais do que suficiente. Só precisava de seis e não era homem para gastar mais do que necessitava.

Enviou uma mensagem com a nova informação para o cliente. Ele haveria de gostar da boa nova.

Havia câmaras na entrada e um segurança da Gendarmaria Vaticana.

Três câmaras até ao elevador e depois nada mais. Para o Vaticano, o importante era quem entrava e quem saía. Isso era meticulosamente registado.

O que se fazia no silêncio dos gabinetes não devia nunca ser testemunhado.

Naquele edifício lidava-se com assuntos sensíveis. Era necessário muito cuidado.

O Francês não queria saber de nada disso. Sabia muito bem onde tinha de ir e em quanto tempo. Exactamente cento e oitenta segundos, nem mais um. O telemóvel informou-o da chegada de uma mensagem. Seguramente era o cliente a responder. Sorriu ao ler a resposta com instruções. Olhou para o temporizador e pegou num post-it cor-de-rosa. Rabiscou alguma coisa, aproveitando os dois lados do papel. Enfiou um carapuço preto para encobrir o rosto e saiu do carro.

A sorte protege os audazes.

 

Aquela revelação de Rafael deixou os jornalistas ainda mais perplexos.

Não era novidade que um Papa fosse eliminado, Sarah sabia-o muito bem, talvez melhor que ninguém, mas não conseguia evitar um sentimento de assombro.

- E... e... o Mu... Musso... Mussolini ti... nha... tinha acesso ao Papa?

- perguntou John Scott.

Rafael fez que sim com a cabeça.

- O médico de Pio XI, Francesco Petacci, era pai da amante de Mussolini. Isto, por si só, não significa que ele o tenha assassinado, mas da fama nunca se livrou.

- De que é que Pio XI morreu?

- Insuficiência cardíaca. Teve três ataques cardíacos. Morreu um dia antes do décimo aniversário da assinatura do Tratado de Latrão. Isso também contribuiu para atribuir as culpas ao doutor Petacci - acrescentou Rafael.

- São apenas conjecturas - arguiu Duválio. - Aqui lidamos apenas com factos. Estávamos a falar da encíclica Mit Brennender Sorge, de 1937, que só por si é digna de um filme de aventuras.

- Porquê?

- Como dissemos, a encíclica foi escrita directamente em alemão porque era endereçada ao povo germânico. Foi enviada por correio diplomático, em segredo, e nem sequer houve qualquer anúncio sobre a sua elaboração para não ser sujeita a inspecção pelos agentes da Gestapo. Algumas tipografias alemãs ofereceram os seus serviços em segredo. Foram impressas cerca de trezentas mil cópias e mesmo assim foi insuficiente. Distribuiu-se por todas as igrejas católicas germânicas e foi lida em todas elas no Domingo de Ramos de 1937, altura em que mais pessoas iam à missa. Os nazis responderam no dia seguinte. Invadiram todas as dioceses, apreenderam todas as cópias da encíclica mas não se ficaram por aí. Perseguiram os católicos e prenderam mais de mil pessoas. Fecharam e selaram as tipografias que colaboraram na impressão da encíclica. Encararam-na como um ataque directo ao regime nazi. Proibiram a circulação dos jornais católicos e denegriram a imagem dos clérigos, julgando mesmo alguns. Foi uma perseguição sem precedentes à Igreja Católica e a Pio XI.

- Esqueceram-se de um pormenor – adiu Rafael. – Quem redigiu a encíclica não foi Pio XI mas Eugenio Pacelli. Foi ele quem escreveu Somos todos semitas. Dizem que Pacelli nunca se insurgiu contra Hitler e, no entanto, refere-se a ele como um profeta louco com uma arrogância repulsiva.

- E depois temos a Operação Pontífice e Rabat, se dúvidas houvesse que, para Hitler, Pio XII era um inimigo e nunca um aliado - argumentou Duválio.

Sarah sentia-se atacada por duas frentes informativas. A do relator e a de Rafael. Ambos com informações pertinentes.

- E que operações foram essas?

Duválio olhou para Rafael como que a conceder-lhe a explicação.

- O Rafael é o mais indicado para falar disso. Tudo o que envolva militares é com ele.

Cansado de estar sentado, Rafael levantou-se.

- Essas duas operações foram lançadas por Hitler, a Pontífice em 1940 e a Rabat em 1943, e ambas tinham o mesmo objectivo... eliminar o Papa.

A primeira caiu por terra por ordem do próprio Hitler que vira mais contras do que prós em eliminar Pio XII naquela altura. Aliás, foi sempre um tema muito sensível para todos os seus generais e assessores. Nunca nenhum considerou que a eliminação física do Papa trouxesse algum benefício à causa nazi. A segunda foi bem diferente. O ditador deu ordens ao General Karl Wolff, comandante supremo das SS em Itália, para raptar e matar o Papa Pio XII. Mussolini caíra em desgraça, os alemães tinham invadido a península e estavam instalados na capital. O general Wolff e o embaixador alemão para a Santa Sé, Ernst von Weizsacker, não viam a operação com bons olhos. Com a desculpa da progressão dos aliados e dos ataques aéreos, o general conseguiu enganar Hitler e desculpar o atraso na conclusão da operação. Os tanques e um cordão com cerca de setecentos homens rodearam o pequeno estado, mas nunca nenhum soldado se atreveu a passar a linha de fronteira sem autorização pontifícia.

Os olhares dos três seguiam Rafael enquanto ele andava de um lado para o outro, dentro da sala do colégio.

- O general Wolff, um militar muito experimentado, explicara ao mundo que aquele cerco era para proteger o Papa e não para atacá-lo - continuou Rafael. - A verdade era que o cerco serviria para capturar o Papa, caso não pudesse enganar Hitler durante mais tempo. A operação Rabat não previa que o Papa fosse eliminado no Vaticano. Seria raptado e depois transferido para o Liechtenstein, local onde seria assassinado. Por essa razão, Pio XII emitiu uma ordem verbal. Ele não queria que, caso Hitler invadisse o Vaticano, encontrasse provas documentais do que quer que fosse sobre as suas decisões durante a guerra. Essa ordem previa que caso o Sumo Pontífice fosse raptado, renunciaria automaticamente ao cargo. Os soldados alemães ficariam então na posse do cardeal Pacelli e não do Papa Pio XII que deixaria de existir. Os cardeais deviam procurar refúgio em Portugal, um país neutro, instalar a Igreja neste território e eleger um novo Papa. Alguns cardeais partiram mesmo para Portugal por prevenção.

- Como é que ele sabia que podia ser raptado ou morto? - quis saber Sarah, totalmente embrenhada no relato.

- Primeiro, porque suspeitava que esse pudesse ser o seu destino - continuou Rafael. - Segundo, porque o embaixador Weizsacker e o próprio general Wolff o tinham informado dos objectivos de Hitler e da operação Rabat e das suas intenções em não seguir as ordens alemãs. Mas Pio XII não lhes facilitou o trabalho. Por essa altura, finais de 1943, mandara falsificar certificados de baptismo para os judeus romanos, uma das comunidades mais antigas do mundo, que estavam a ser perseguidos pelas forças nazis. No Vaticano, refugiaram-se cerca de quatro mil. Nas igrejas e mosteiros de todo o país foram vários milhares. Isto chegou aos ouvidos de Hitler. Weizsacker e Wolff estavam a ficar sem desculpas. A operação Rabat tinha de avançar.

- E porque não avançou?

- Porque os aliados tomaram Roma. Foi por pouco.

- Mas... mas... porque é... é... que... que Pio XII nun... nunca se... se insur... insurgiu abertamente con... contra o nazis... nazismo?

- Porque o pressionaram a não fazê-lo - respondeu Duválio. - Podem consultar as correspondências do Vaticano entre 1939 e 1945. Estão acessíveis a qualquer pessoa. Foram os próprios padres, em toda a Europa, que apelaram ao Papa para que não denunciasse o nazismo, pois seriam eles a pagar. Ele teve o documento de denúncia escrito e pronto para ser lido na rádio Vaticano. Por essa altura, um bispo holandês denunciou o nazismo. As tropas de Hitler mataram o bispo e mais quarenta mil católicos na Holanda. No seguimento do sucedido, queimou o papel onde escrevera a denúncia. Não queria, caso fosse raptado ou morto, que nenhum documento que comprometesse os católicos e judeus fosse encontrado, pois as represálias seriam, a exemplo da Holanda, terríveis. Montini, o futuro Papa Paulo VI, seu assessor, ouviu-o dizer enquanto queimava o papel: Se um bispo denuncia o nazismo e matam quarenta mil pessoas, quantas não matarão se for um Papa a dizê-lo?

- Vendo as coisas dessa perspectiva, talvez ele tenha agido bem - disse Sarah.

- Claro que agiu bem - afirmou Rafael. - Sem esquecer que salvou centenas de milhares de judeus e refugiados. Mais que qualquer outra organização não-governamental ou particular.

- Mais do que o Schindler e o Aristides Sousa Mendes? - perguntou Sarah.

- Quem foi o Aristides Sousa Mendes? - devolveu Rafael.

- Um diplomata português - explicou Duválio. - Cônsul de Bordéus.

Emitiu mais de trinta mil vistos a judeus, contra as ordens recebidas do governo de Lisboa. Acabou exonerado. Morreu na miséria. Justificou os seus actos com uma expressão que ficou famosa. Se milhares de judeus sofrem por um cristão, certamente um cristão pode sofrer por muitos judeus. É um dos Justos entre as nações do Yad Vashem. - Virou-se para Sarah.

- Provavelmente, o Aristides Sousa Mendes está nos lugares cimeiros, mas estima-se que o Papa tenha salvado cerca de oitocentos mil judeus.

- Oitocentos mil? - disse John Scott, espantado.

- Estas histórias nunca eram reveladas - referiu o relator. - Parecia que alguém havia orquestrado um plano para que Pio XII fosse visto como um demónio, adorador de nazis.

- Então qual foi o problema? - prosseguiu Sarah. - Qual é a dúvida em beatificar o Papa Pacelli?

Duválio trocou um olhar comprometido com Rafael. Pelos vistos havia dúvidas.

- A nossa investigação levou-nos, inevitavelmente, a um nome que se torna incontornável sempre que se fala do Papa Pacelli - respondeu Duválio.

- Quem?

John Scott e Sarah estavam avidamente à espera da resposta. O mistério é, sem sombra de dúvidas, o melhor combustível para despertar o interesse de um jornalista.

- A tal pessoa que ele se esqueceu de inserir no relato - censurou Rafael.

- Não se pode falar do Papa Pacelli sem mencionar a madre Pasqualina - concluiu Duválio, cabisbaixo.

- Quem foi essa Pasqualina?

- Governanta, confidente, assistente do Papa durante mais de quarenta anos. A influência dela foi tão grande que até afectou o Papa Pio XI. Foi ele quem quis que ela fosse ajudar Pacelli na Secretaria de Estado. Aliás, foi uma ordem. A encíclica de denúncia a Mussolini, em 1931, a Non Abbiamo Bisogno, foi ideia dela - foi a vez de Rafael explicar. Depois puxou novamente a cadeira e colocou-se de frente para Duválio, inclinando-se na direcção dele com um ar ameaçador. - E agora chegámos à parte mais importante, não é Duválio?

Gotas de suor voltaram a formar-se na testa do relator, a respiração alterada, novamente audível.

- Pois.

- Eu vou facilitar-te a vida - prosseguiu o italiano. - Como tiveste conhecimento da existência delas?

O brasileiro levantou a cabeça espantado. Não estava à espera daquilo.

Elas?

- Elas? - perguntou em tom evasivo. Queria perceber até que ponto Rafael não estaria apenas a atirar para o ar.

- Sim. A Anna e a Mandi. Como é que soubeste? - insistiu.

Duválio ficou ainda mais nervoso. Ele sabia. Como podia saber?

- Mas...

- Mas nada, Duválio. Desembucha.

 

Para Jacopo Sebastiani a noite servia para dormir e qualquer alteração a este ritual fisiológico era, seguramente, uma imbecil anormalidade, excepto se se tratasse de um caso de força maior, o que era o caso e fazia com que, ironia das ironias, fosse ele a imbecil anormalidade desta noite.

Acordou Norma logo que Rafael desligou. Não foi tarefa fácil. O sono pesado da sua esposa seria motivo mais que suficiente para tornar Hércules num menino franzino, sem força nenhuma. Estava nervoso. O tom preocupado de Rafael deixara-o alterado e o pedido que lhe fizera no carro era um acrescento para que se despachassem, assim Norma o permitisse. As coisas tinham-se descontrolado, quase de certeza, e era necessário reequilibrar a balança, não fosse o diabo tecê-las e vencer Deus desta vez, mesmo que ele não acreditasse nem num nem noutro. Acordada a senhora, ao fim de uns intermináveis quinze minutos prepararam uma pequena mala para os dois e em seguida vestiram-se.

- O que é que se passa, Jacopo? - perguntou Norma enquanto preparava um pequeno-almoço para os dois na apertada cozinha.

- O Rafael ligou. É melhor despacharmo-nos e fazer o que ele disse ­ respondeu, evasivo. Não lhe tinha mencionado nada sobre o que se estava a passar, nem da viagem a Veneza, muito menos do rapto de Niklas.

Norma envolveu duas sandes numa película transparente, pegou numa garrafa de água de litro que estava no frigorífico e saiu da cozinha.

- Estou pronta.

Norma conhecia Rafael muito bem, ou melhor, tão bem quanto ele deixava. Ultimamente não se viam com tanta regularidade, mas gostava muito dele. De certa forma, imaginava-o como o filho que não haviam tido. Insistira várias vezes com o casmurro do marido para que o fossem visitar ou, pelo menos, que o trouxesse a casa para jantar, mas o evasivo Jacopo respondera sempre com um dúbio um dia destes, expressão que entre os povos latinos significa nunca. Se Rafael ligara a meio da noite e lhes pedira que saíssem de Roma por uns dias, a sua vontade seria cumprida.

- Espero que não seja nada de grave - proferiu Norma, para si própria, já sentada dentro do carro. - Para onde vamos?

- Torano.

- Torano? O que vamos fazer a Torano?

- Logo verás. Descansa um pouco. Não tarda estaremos lá. Sem trânsito é num instante.

- Já sabes que não consigo dormir nas viagens de carro, não sei porque insistes - disse Norma, elevando o tom de voz.

- Pronto. Vai começar. Santa paciência.

- Paciência preciso eu para te aturar - prosseguiu Norma, irritada, enquanto Jacopo percorria as ruas que os levavam para fora de Roma. - Tantos anos e viste-me a dormir no carro alguma vez? Não sabes porque só te interessas pelos teus assuntos. Que te importa se estou bem ou não? Nem sabes que quando estou nervosa começo a falar muito, pois não?

- Presumo que estejas nervosa todos os malditos segundos da tua vida - atirou Jacopo, atento à estrada.

Norma lançou-lhe um olhar furioso, com a testa franzida.

- O senhor meu pai é que tinha razão, Jacopo Sebastiani.

A menção ao defunto pai de Norma era uma carta que tinha sempre um efeito nocivo em Jacopo. Nunca se tinham dado bem e, mesmo morto há mais de vinte anos, o historiador continuava a odiá-lo... de morte, se tal era possível.

- Deixa-me conduzir sossegado, Norma. Por favor.

Ninguém disse mais nada durante uns minutos, poucos, os suficientes para apanharem a autoestrada que os afastava para longe de Roma.

- Vais ter um péssimo casamento - murmurou ela, imitando a voz do defunto pai, enquanto se dirigiam pela A24 para oriente, a 80 km por hora, já que Jacopo não era dado a grandes velocidades. - O filho do almirante Cassutto está no exército, há-de ir longe e gosta de ti. O que é que esse tal Jacopo te pode dar, aulas de história?

O historiador respirou fundo. Ouvira aquela gesta vezes sem conta. Antes de ser proferida pela boca de Norma, fora-o pelo velho sogro, esse pacóvio de Frascati, que se julgava acima dos outros.

- O filho do almirante Cassuto não ficou tetraplégico? - perguntou Jacopo, que já sabia a resposta. - Agora estavas a mudar fraldas e a dar-lhe de comer na boca. Rica vida o teu pai desejava para ti - acrescentou em tom de provocação.

Norma demorou algum tempo a responder. Não que não tivesse a resposta já preparada, era difícil apanhá-la desprevenida, talvez mesmo impossível, mas porque sabia que a espera irritava o marido. Não costumavam estar acordados àquela hora mas, pelos vistos, nem de madrugada se poupavam a discussões. Era assim há mais de trinta anos.

- Já era viúva, meu menino. E estaria a receber uma pensão choruda do estado. O que é que tu recebes por trabalhar para a Santa Madre Igreja?

Telefonemas a meio da noite. - Persignou-se no fim. Não se importava de brincar com a Igreja, mas o temor a Deus era mais forte e não queria ser castigada por Ele por não saber calar as provocações.

A viagem continuou nesse tom quase até ao seu destino, sendo interrompida por duas vezes. A primeira porque Jacopo sentiu uma súbita e improtelável vontade de ir à casa de banho, e a segunda porque entendeu que Norma o afrontara na sua honra de uma forma tão gravosa que se recusara a continuar a viagem enquanto ela não emitisse um sonoro e sincero pedido de desculpas. Norma não era mulher de pedir desculpa a vivalma, muito menos a Jacopo Sebastiani, e manteve-se muda e calada, parados na berma da auto estrada, no escuro da madrugada campesina, junto à saída de Valle del Salto, onde não se via uma única luz que indiciasse presença humana. Apenas dois casmurros dentro de um carro parado, e o ronco do motor à espera de ordem para arrancar. Ao fim de dez minutos, ou um quarto de hora, segundo a versão de cada um dos membros do casal, Jacopo arrancou novamente, sem o almejado pedido de desculpas, mas decidido a não pronunciar nem mais uma palavra o resto da viagem e, já agora, da sua vida em comunhão com aquela mulher intratável. Seria essa a sua vitória. O desprezo total. Ela haveria de ver. Norma não suportava o silêncio.

- Queres comer alguma coisa? - perguntou ela quando já tinham percorrido mais um par de quilómetros.

- Quero.

Comeram o pequeno-almoço que Norma preparara e beberam a água.

Pouco depois deixaram a autoestrada e entraram numa estrada nacional, saíram para outra secundária, cheia de buracos que Jacopo não conseguia evitar, apesar dos protestos de Norma.

- Cala-te, mulher - berrou ele fora de si. - Já não te posso ouvir.

O fim do trajecto, para mal dos pecados de Jacopo, era numa estrada de terra batida, cheia de altos e baixos que os fazia andar aos tropeções dentro do carro, apesar de levarem os cintos apertados.

Chegaram ao destino ainda Jacopo estava afogueado da fúria que o assaltara. Aquela mulher tirava-o do sério... Norma estava amuada porque o marido lhe gritara insensivelmente.

- De quem é esta casa? - perguntou Norma antes de abrir a porta do carro.

- Já vais saber.

Os tons de voz haviam retomado à normalidade. Acercaram -se da porta da entrada. Era uma casa térrea estranha. Norma nunca tinha visto uma construção daquele género. Parecia uma casa de betão, com ângulos rectos.

O sensor de movimento fez acender uma luz sobre eles. Uma câmara na ombreira da porta estava apontada na direcção do casal.

- Que raio de sítio é este? - quis saber Norma, entre a curiosidade e a apreensão.

Jacopo não respondeu. Uma voz metálica saindo de um intercomunicador que estava ao lado da porta irrompeu o ar frio.

- Que desejam?

- Chamo-me Jacopo Sebastiani. Venho por ordem do padre Rafael Santini - explicou Jacopo para a máquina.

- Um momento, por favor.

Instantes depois a porta abriu-se com um estalido eléctrico e recuou para o interior alguns centímetros. O casal entrou, Jacopo à frente, Norma a segui-lo, colada a ele o mais que conseguia. Sentia um frio na barriga que só podia ser nervos. Entraram para um átrio muito sóbrio, de mármore branco, com um cubículo preto do lado esquerdo, onde estava um homem de uniforme, na casa dos 30 anos, com cinco monitores à sua frente, cada um a projectar quatro imagens diferentes.

- Boa noite, doutor Sebastiani - cumprimentou o homem, com um sorriso, quando saiu do cubículo. - Boa noite, minha senhora.

Pegou na mala que eles traziam e conduziu-os ao interior da casa. Entraram para um corredor estreito com cerca de três metros. Ao fundo, outra porta.

- Aguardem um momento, por favor. Essa porta só abre depois de esta fechar - explicou o segurança.

Assim que a primeira porta se fechou, sentiu-se o estalido da tranca a fechar-se automaticamente e depois a outra escancarou-se. Seguiram os três, com o segurança à frente.

- Fizeram boa viagem?

O casal Sebastiani entreolhou-se com esgares comprometidos.

- Fizemos. A esta hora não há trânsito - respondeu Jacopo.

- A governanta está a dormir, mas se necessitarem dos serviços dela posso chamá-la.

- Deixe-a descansar. Não vamos necessitar de nada - asseverou Jacopo.

Seguiram por um corredor comprido que descia para um patamar inferior. Afinal não era uma casa térrea; estava sim construída sobre um declive, ou assim parecia. Jacopo reparou numa luz vermelha que piscava a intervalos por cima de algumas portas.

- O que é aquilo? - quis saber o historiador.

- É o sinal de chamada na porta de entrada. Como a casa é muito grande serve para nos avisar, se não estiver ninguém na recepção. Foi a chegada dos senhores que o accionou. Quando regressar à recepção desligo-o.

Norma deu um puxão no casaco do marido e sussurrou-lhe ao ouvido.

- Que lugar é este?

Jacopo levou um dedo aos lábios para lhe pedir silêncio. Quando estivessem sozinhos explicaria... ou não.

O jovem segurança conduziu-os até uma porta, esta maior que as que haviam visto. Abriu-a e apresentou-lhes os aposentos deles. Eram espaçosos, com casa de banho, quarto de vestir e até um pequeno escritório privado.

Pousou a mala em cima de um estrado próprio para esse efeito e desejou­lhes boa noite.

- A que horas acorda a senhora? - perguntou Jacopo.

- Às seis e meia - informou o jovem. - Tenham uma boa noite - repetiu.

O jovem segurança saiu e fechou a porta atrás de si. Norma sentiu um calafrio pela espinha abaixo que a fez arrepiar-se. Talvez fosse impressão sua, mas sentia-se observada por todos os ângulos.

- Que senhora é essa? - quis saber Norma, com a curiosidade aguçada ao máximo.

- Raios, mulher. Que coscuvilheira - resmungou Jacopo, visivelmente irritado.

- Mas, afinal, para onde raio me trouxeste? - insistiu Norma. Pelo menos queria saber isso. - Onde estamos?

Jacopo sentou-se na beira da cama e fitou-a depois de respirar fundo.

Estava a raciocinar. Norma conhecia-o muito bem. Reflectia na quantidade de informação que lhe daria.

- Numa casa segura.

Norma lançou-lhe um olhar inquisitivo. Era suposto que ela soubesse o que significava a expressão "uma casa segura”? Não o eram todas?

- É uma casa oculta, que ninguém conhece, para onde só vem quem necessita de estar protegido, em segurança.

Norma ficou realmente preocupada pela primeira vez e sentou-se ao lado do marido.

- Estamos em perigo por alguma razão? Diz-me a verdade, Jacopo.

O historiador colocou-lhe uma mão tímida no ombro e depois abraçou-a.

- Está tudo bem, Norma. Está tudo bem. Mas há outras pessoas que não têm tanta sorte.

- Quem? O Rafael está bem? - Foi a primeira preocupação dela.

- Está bem, não te preocupes - respondeu ele, sem ter a certeza do que dizia.

- E que senhora é essa por quem perguntaste ao rapaz?

- Não sei, Norma. Só sei que o Rafael quer que a ajudemos.

- Tu não me mintas, Jacopo Sebastiani.

O historiador soltou o abraço e levantou-se.

- Vais começar? Nem numa casa desconhecida me respeitas.

Norma lançou-lhe outro olhar colérico. Era hábito fazê-lo ao longo do dia. Muitas vezes, mais do que se conseguia lembrar. Este dia tinha começado mais cedo.

- Viúva, Jacopo Sebastiani. E com uma pensão choruda. Era como eu podia estar agora.

Jacopo saiu do quarto e fechou a porta. Queria batê-la com a maior força que pudesse mas achou por bem não o fazer para não acordar as outras pessoas que dormiam naquela casa, quem quer que elas fossem. Encostou-se à parede e fechou os olhos. Às vezes provocava a esposa propositadamente para que pudesse ter estas explosões, aparentemente irracionais, que mais não eram do que uma farsa. Não lhe queria contar, não podia. A senhora contaria se assim o entendesse. Não tinha o direito de fazê-lo.

Quanto menos pessoas soubessem melhor. Um favor. Um raio de um favor às seis e meia da manhã quando a senhora acordasse. Deixou -se deslizar pela parede abaixo até ficar sentado no chão de mármore frio e suspirou.

Ia fazer um favor a um amigo. Mais nada.

- Espero que corra tudo como planeaste, Rafael.

 

Sarah e John Scott estavam completamente a leste do que se estava a passar no gabinete do terceiro piso do Palácio das Congregações. Desconheciam os nomes que Rafael mencionara. Anna e Mandi. Mais dúvidas, mais questões.

- Como é que tiveste conhecimento? - repetiu Rafael, inclinando-se ainda mais para a frente na cadeira, com uma postura intimidatória.

- Ao contrário do que se possa pensar, o trabalho que este colégio faz é muito sério.

- Ninguém pensa o contrário - asseverou Rafael.

Duválio levantou-se de repente e dirigiu-se a um dos armários. Sentiu uma ligeira dor de cabeça e cambaleou. Sarah fez menção de ajudá-lo mas o brasileiro acabou por reequilibrar-se. Pegou numa chave que estava em cima da mesa grande e abriu uma das gavetas de madeira escura. Procurou no interior, passando alguns dossiês castanhos, e retirou um deles. Regressou trôpego à cadeira e entregou-o a Rafael.

- O que é isto?

- Um teste de ADN.

Rafael analisou as folhas que estavam no interior do dossiê. Três sujeitos que, segundo os dados recolhidos, eram parentes. Os nomes dos sujeitos eram G.P., Anna P. e M. A análise tinha a data de 2002.

- Quem é que vos enviou isto? - perguntou Rafael.

- Estava nos arquivos - respondeu Duválio, comprometido.

- Isto estava nos arquivos? - repetiu Rafael, surpreso.

Duválio anuiu.

- Troca-me isto por miúdos - pediu Rafael, embora soubesse perfeitamente do que se tratava.

- O que aí indica é que o G.P. é pai de Anna P., que por sua vez é mãe de M. - explicou Duválio.

- Com certeza estás mais dentro deste assunto que eu.

- Validaram esta informação?

- Está tudo explicado no catálogo do arquivo.

- Estás a brincar, certo? - duvidou Rafael. - O que é que está explicado?

- Quem mandou fazer a análise e por que razão. Foi um tal Ivan. Nunca o encontrámos.

- E então foram investigar.

Duválio anuiu.

- Relemos tudo novamente para ver se nos tinha escapado alguma coisa.

Mais de cem anos de informação recolhida para a Positio de Pio XII. É uma quantidade monumental de informação. Caixas e caixas. Revimos as entrevistas às centenas de testemunhas, as notícias de jornais, os diários, os livros, os documentos, tudo, tudo, tudo. Procurámos elementos novos que nos permitissem chegar a alguma conclusão. Passámos a pente fino todo o trabalho do padre Gumpel e dos que o precederam. Sempre no maior secretismo, obviamente.

- E não encontraram nada - interrompeu Rafael, certo do que estava a dizer.

- Não. Pareces muito seguro disso - atirou Duválio.

São muitos anos, rapaz, pensou Rafael.

- E depois?

- Acabámos por descartar o teste de ADN. Tudo apontava para charlatanice ou um mau trabalho arquivístico. O padre Gumpel ordenou que parássemos com o trabalho e obrigou-nos ao dever de Totalis Secretum, um procedimento normal nestes casos... - Duválio entregou a Rafael uma encadernação pequena, bastante velha e usada.

- Até que encontrei isto.

Rafael pegou nela. Parecia um caderno de apontamentos de capa dura, bastante robusto e de boa qualidade.

- O que é isto?

- Um diário.

Rafael folheou-o. Estava escrito em alemão e tinha entradas desde 1960.

A letra era bonita, segura, ligeiramente inclinada para a direita. Reconheceu-a imediatamente. Só não percebia como é que aquele caderno tinha ido ali parar.

- Isto era da Pasqualina.

- Correcto - confirmou Duválio com um aceno de cabeça. - Não havia nada sobre isso nos diários do Santo Padre. Até encontrar esse livro, nem sequer fazíamos ideia que a madre Pasqualina escrevera um. É claro que era perfeitamente natural que ela o tivesse feito e que nós não tínhamos, obrigatoriamente, que saber da sua existência. Já o tinhas visto?

Rafael fez um gesto negativo. Continuava a folheá-lo ao acaso. Alguém fizera marcações no livro. Pedaços de cartão pequenos marcavam várias páginas. Sempre que apanhava um passava os olhos rápidos pelo texto, na busca de algo que chamasse a atenção. Nunca sentira a necessidade de escrever um diário. Pensava que era uma perda de tempo. De que servia deixar as perspectivas, uns dos outros, impressas no papel à mercê da posteridade? Era um perigo. E este exemplo era a prova disso mesmo. Deixar a vida por escrito não fazia bem a ninguém. No quarto ou quinto cartão encontrou o que não desejava ler. Alguém sublinhara o texto para que não se perdesse a informação.

Fui ver a minha menina. Sei que não devia, mas não aguentei.

Nada mais me resta do tempo que passei cem Eugenio. Até as memórias estou a perder. Preciso de recorrer a retratos para me lembrar do rosto dele, outrora tão bem gravado na minha mente. O toque, o sorriso, o olhar divino e ascético, tudo isso se vai perdendo diariamente, uma parte, um pouco, até não restar nada. Esqueci o cheiro dele. Precisava de vê-la. A minha Anna... a nossa. Tem as feições dele. O nariz e os olhos são cópias perfeitas. Que loucura cometemos naquela noite em Berlim. Que loucura. Nunca ninguém poderá saber. A minha querida Anna. A nossa menina. Sorriu-me e isso bastou-me. Está uma mulher, mas para mim será sempre uma menina. Só Deus Pai saberá, e a Ele responderei pelos meus actos quando for chamada à Sua presença. O Papa Roncalli aceitou receber-me...

O texto continuava mas Rafael preferiu ir ver a data de entrada daquele relato. 25 de Setembro de 1960. Trigésimo aniversário de Anna.

Pasqualina era uma mulher muito pragmática. Nunca a conheceu, apesar da sua longevidade. Viveu oitenta e nove anos. Por ela passaram nove Papas e serviu três. Todos, sem excepção, a respeitavam. O seu sacrifício, em nome da Santa Madre Igreja, foi descomunal.

- Onde o encontraste?

- No arquivo - tornou a responder Duválio.

- Não queres dar outra resposta?

- Foi no arquivo - repetiu Duválio, engolindo em seco.

- Confirmaram a autenticidade do diário?

- perguntou Rafael, que sabia que era verdadeiro.

- Claro. Foi mais difícil do que, inicialmente, prevíamos, para alguém que viveu tanto tempo no Palácio Apostólico. Em quase trinta anos pouca gente privou com ela. Muitos nunca a viram sequer. Por fim, encontrámos um conjunto de notas escritas por ela, a mando do cardeal Spellman, quando estava no departamento de comunicação. A análise paleográfica não deixou margem para dúvidas. Era a letra de Pasqualina.

- Piccolo diz-te alguma coisa? - perguntou Rafael, de rompante.

Duválio franziu o sobrolho, incomodado, e ajeitou-se na cadeira.

- Não.

- E Pondazione Donato per la lotta dei bambini con leucemia?

- Por... Por... por que... que ra... razão está a... a... per... perguntar i... isso? - perguntou John Scott, agarrando-se ao dossiê castanho.

Rafael ignorou a pergunta e continuou a fitar Duválio com uma expressão séria. Ele sabia que havia muitas maneiras de responder para além das palavras.

- E o Pondo Giulietta per i bambini non protetti diz-te alguma coisa?

Duválio engoliu em seco. Estava novamente com sede.

- Não. Nunca ouvi falar.

- O... o... que... que tem i... isso a... a... a ver? - insistiu John Scott, que não estava a perceber a ligação.

- Então autenticaram o diário e verificaram que pertencia mesmo a Pasqualina. E depois? - inquiriu Rafael sem dar ouvidos ao jornalista.

- Mas quem é essa Pasqualina? Porque tinha tanta influência em Pio XII? - perguntou Sarah, intrigada.

Os dois homens do Vaticano entreolharam-se com ar suspeito. Rafael não queria contar a história. Preferia ouvir a versão de Duválio. Seguramente, tinham um dossiê bastante completo sobre ela.

- Conta-lhes tu - sugeriu. - Gostas mais de contar histórias.

Duválio bebeu o que restava da água.

- Pasqualina nasceu em Agosto de 1894, na pequena vila de Ebersberg, na Baviera, a pouco mais de quarenta quilómetros de Munique. O seu nome de baptismo era Josefina.

As suas origens eram muito pobres e cedo teve de trabalhar na pequena quinta dos pais, juntamente com os seus seis irmãos e cinco irmãs. Com 7 anos, era tão madura e autoritária para os irmãos que eles começaram a chamar-lhe madre superiora. É interessante como a vida se encarrega de brincar com as pequenas ironias. Foi com essa idade que sugeriu aos pais ajudar no campo, uma ideia irreverente para o seu tempo. O campo era para os homens, a casa para as mulheres. O certo é que com embirrações, altercações e interlocuções acabou por levar a sua vontade adiante e foi trabalhar com o pai e os irmãos para o campo. Levantava-se às cinco da manhã, sem que ninguém a acordasse, e não se recusava a fazer nenhum dos trabalhos dos rapazes. A sua única distracção era a Oktoberfest, em Munique. Aí dançava, dançava e esquecia-se da vida.

Aos 15 anos, Josefina tomou a decisão que mudou para sempre a sua vida e, por consequência, a de Eugenio Pacelli. Queria servir a Jesus Cristo e entrar para um convento. Os pais recusaram liminarmente esta aspiração da miúda e ela não encontrou maneira de transformar a oposição veemente em apoio. Como eles não cederam ela deixou a casa a coberto da noite, sem um adeus nem uma satisfação. Foi o padre da aldeia quem a ajudou e, com o seu patrocínio, entrou para a Ordem das Irmãs da Santa Cruz, em Altõtting, nos arredores de Munique.

A vida no convento era extremamente rígida. Muito mais que aquela que Josefina levava no campo. Levantava-se diariamente às quatro e meia da manhã. Rezava, depois tinha as tarefas de limpeza, rezava, ajudava na cozinha, rezava. A sinalética usada pelas freiras também era severa. Um estalar de dedos era para levantar, dois para dar meia volta. Mão erguida com os dedos indicador e médio levantados significava que a freira necessitava de um garfo. Naquele mundo silencioso todos os gestos tinham um significado e ela tinha que os decorar todos. Ela gostava das regras. O mundo não podia viver sem elas. Contudo, havia uma que a perturbava. O apito da madre superiora. Quando o silvo estridente se fazia ouvir, todas tinham de parar imediatamente o que estavam a fazer naquele momento. Isto implicava deixar uma palavra a meio se estivessem a escrever ou uma sílaba por dizer se estivessem a falar, ou mesmo engolir a comida sem a mastigar se estivessem a comer. No convento, a palavra de ordem era obediência. E Josefina tornou-se mestre a obedecer. "Observar tudo, não dizer nada”. Quando fez os votos perpétuos adoptou o nome de Pasqualina por se referir a Páscoa, a ressurreição de Cristo, a quem ela desejava dedicar a vida.

Foi colocada na casa retiro Stella Maris, em Rorschach, nos Alpes Suíços. Foi aí que num dia de neve de 1917, quando ainda não tinha completado 23 anos, a colocaram ao serviço de um prelado recém-chegado, com enorme poder em Roma. Estava com problemas de saúde Era frio e taciturno. Tinha 41 anos e já era arcebispo. Chamava-se Eugenio Pacelli. O diplomata andava havia três anos em negociações de paz, como enviado de Bento XV, para buscar uma solução alternativa para a guerra que tinha eclodido na Europa. O insucesso, as más refeições, o excesso de trabalho, a frustração haviam-no atirado para a enfermidade. Foi uma ordem explícita de Bento XV que o levou ao retiro de Stella Maris. Durante dois meses Pasqualina dedicou-se de corpo e alma à recuperação de Eugenio, apesar do seu mau feitio e frieza. Ela fê-lo pensar que ele era o seu único paciente. Mas não era verdade. Continuava a tratar de todos os outros que chegavam. Vivia para trabalhar. Dormia muito pouco. A todas as horas ia ver como estava Pacelli e dar-lhe os medicamentos. Também o censurava assim que o apanhava a tentar voltar ao trabalho. Nunca ninguém o afrontara, pois era difícil esquecer o poder que ele detinha. Só Pasqualina o fizera. E se no início ficou pasmado, depois achou graça.

Aos poucos, Pacelli recuperou completamente e acabou por se ir embora, sem um adeus nem um obrigado. Pasqualina soube que ele tinha partido quando foi ao quarto dele e não o encontrou. Não restava nenhum sinal dos dois meses que o prelado lá passara. Ficou sentida. Pasqualina estava longe de imaginar o efeito que tinha tido nele. Três meses mais tarde, ele regressou ao retiro e disse à madre superiora que fora colocado na nunciatura de Munique e necessitava de uma governanta para tratar da casa. Gostara muito do trabalho daquela irmã que cuidara dele.

Em Dezembro de 1917, Pasqualina partiu para se juntar ao séquito de Pacelli em Munique. Nunca mais se separaram.

- Sabes que isso não é bem verdade - interrompeu Rafael.

- Sei?

- Quando o Pacelli regressou a Roma, em Dezembro de 1929, ela não foi com ele.

- Pois. Isso é verdade - concordou Duválio. - Há quem diga que ela foi contra a vontade dele, três semanas depois, e que ficou na casa da irmã de Pacelli, já que não tinha outro sítio onde ficar, mas isso é completamente falso.

- Então quando é que ela foi? - quis saber Sarah, curiosa.

- Um ano depois - redarguiu Rafael. - Primeiro foi trabalhar às ordens do monsenhor Francis Spellman, de quem Pacelli era grande amigo e que depois se tornou num dos melhores amigos de Pasqualina no Vaticano. Há cartas entre Pasqualina e Pacelli, no início do ano de 1930, em que ela lhe pede para ir servi-lo em Roma.

- Há? - perguntou Duválio, admirado.

Rafael fez que sim com a cabeça.

- Não as encontraste no arquivo? - questionou o espião com uma expressão cínica.

- Não tivemos acesso a esses documentos.

- Nem tinham que ter - limitou-se a dizer Rafael, secamente. - As respostas de Pacelli foram sempre secas. As de Pasqualina começaram a tornar-se amargas até que deixou de o pedir. Houve um longo silêncio de Pasqualina, que continuava na nunciatura em Berlim. Depois, em Fevereiro de 1930, ausentou-se para parte incerta.

Era a vez de Duválio escutar Rafael, boquiaberto. Desconhecia tudo o que ele confidenciava.

- Pacelli e Spellman foram para os Alpes em Julho de 1930, exactamente para o retiro onde Eugenio conhecera Pasqualina, treze anos antes - continuou Rafael. - As férias no retiro de Rorschach eram um hábito que ele e Pasqualina mantiveram desde que se conheceram. Mas, desta vez, ela não estava lá. Não foi por falta de convite. Pacelli escreveu-lhe imensas vezes a convidá-la. Nunca obteve resposta. Ele ficou tão preocupado que pediu ao amigo norte-americano, Spellman, que a procurasse. Não teve qualquer sucesso. Pasqualina só lhe respondeu em Novembro, e em Dezembro Pacelli nem olhou para trás. Pediu ao amigo que a fosse buscar. Marcaram encontro no retiro Stella Maris, em Rorschach, na Suíça. O jovem monsenhor americano conduziu toda a noite e chegaram ao Vaticano pela manhã. Spellman levou-a imediatamente para os aposentos dos serviçais, nas traseiras do rés-do-chão do Palácio Apostólico. Iria cozinhar, limpar, fazer todos os trabalhos que fossem necessários. Ela não se importava. Queria era estar perto de Eugenio. Mesmo assim, Pacelli e Pasqualina não se viram logo. A primeira vez que se cruzaram nos corredores sagrados aconteceu já em 1931, quatro meses depois de ela lá estar. Entretanto, Spellman reparou na mente brilhante de Pasqualina e sugeriu a Pacelli que ela desse uma ajuda no departamento de comunicação. Não deixaria de ajudar na cozinha, nem nos afazeres de limpeza. Seria uma acumulação de deveres. Depois foi o próprio Pio XI que tratou do assunto.

- Pio XI? - interrompeu Sarah. - Não estás a confundir com Pio XII?

- Não. Pio XII foi o nome que Eugenio Pacelli adoptou quando foi eleito Papa em 1939. Estamos em 1931, na viragem para 1932. Pasqualina fez uma revisão a um dos discursos do Papa que continha alguns erros de conteúdo graves. Sugeriu a Pacelli que lhe transmitisse esses erros. Mas o Secretário de Estado não estava no Vaticano e Spellman também não.

Pasqualina foi chamada à presença do anafado e autoritário Pio XI, agastado com os erros que ela encontrara no seu discurso. Agradeceu-lhe as correcções e perguntou-lhe que outros trabalhos é que a freira executava no palácio. Pasqualina disse a verdade. Pio XI anunciou que ia repreender o cardeal Pacelli por ter uma mente tão brilhante a descascar batatas na cozinha. No dia seguinte partilhava uma secretária no andar inferior do Secretariado. Seria uma das assessoras do cardeal Pacelli, por ordem do Santo Padre. O seu colega de secretária não achou graça nenhuma. Era um insonso monocórdico que se chamava Giovanni Montini.

- Depois de 1932, nunca mais se separaram - concluiu Rafael.

- Eram tão unidos que Pasqualina foi a única mulher em dois mil anos a ter presenciado um conclave - acrescentou o relator.

- Co... como? - perguntou John Scott, admirado.

- Os cardeais podiam levar aios ou ajudantes para os conclaves. Foi Paulo VI quem acabou com esse costume. O cardeal Pacelli decidiu levar a irmã Pasqualina. Foi um escândalo, escusado será dizer, mas ela portou-se muito bem. - explicou Duválio. Pacelli foi eleito na primeira votação. Acabou por fazer como o cardeal Camilo Laurentis fez em 1922, no conclave que elegeu Achile Ratti, que escolheu o nome de PiO XI. Recusou a eleição e pediu que fizessem outra votação e não o incluíssem. Saiu da capela a correr. Pasqualina foi atrás dele e alguns guardas suíços também. Ele tremia com grande intensidade. Lamentava-se. Não parava de pronunciar a expressão Miserere Mei. Dizia que não era digno de assumir o lugar. Mas Pasqualina deu-lhe a mão e disse-lhe que Deus lhe daria a força para suportar o fardo. Não podia dizer que não a um pedido do Altíssimo. Cristo escolhera-o e não lhe cabia a ele decidir o contrário. Entraram de mãos dadas na Capela Sistina. A segunda votação já tinha começado conforme o seu pedido. O resultado foi diferente de 1922. O Colégio voltou a eleger Pacelli por unanimidade, no dia do seu sexagésimo terceiro aniversário.

- OK. Validaram o diário. O que aconteceu a seguir? - perguntou Rafael, continuando um interrogatório que parecia não ter fim.

- O colégio reuniu-se para deliberar o que faria em relação à Positio.

- Como assim? - perguntou Sarah.

- A Positio é que dá ao Santo Padre todos os elementos para uma recomendação positiva ou negativa à beatificação.

- Essa reunião foi quando? - quis saber Rafael.

- Há duas semanas - respondeu Duválio, com a respiração a alterar-se novamente. - Estávamos todos visivelmente transtornados. O Domenico esfregava as mãos, o Bertram pouco falava, o padre Gumpel... O peso da decisão era evidente. A recomendação foi negativa. A existência delas colocava tudo a perder.

- Mas quem são elas? Podem explicar? - interrompeu Sarah, de repente. Pelo desenrolar da conversa percebera, ou julgara ter percebido, que se tratava da tal Anna e da M. Mas quem eram elas?

Os dois homens olharam para ela. Rafael cogitou durante alguns segundos.

- Já percebi quem é a Anna. Mas quem é a M.?

- A M. é...

- Não é ninguém que os senhores jornalistas devam conhecer - ouviu-se uma voz masculina dizer. - Vocês tendem a querer informar o mundo - acrescentou cinicamente.

- Davide - pronunciou Rafael num tom frio.

O colega da Gendarmaria Vaticana estava acompanhado de outros dois homens, mais novos do que eles, todos com armas empunhadas. Um era Arturo.

- Eu sabia que te íamos encontrar aqui - disse o jovem agente da Santa Aliança.

- Agora dás-te com gendarmes? - provocou Rafael.

- Foram os únicos dispostos a dar-me boleia depois do que fizeste na Tuscolana - respondeu, ressabiado.

- Não vais fazer nada parvo, pois não, Rafael? - advertiu Davide, avançando na sua direcção lentamente, com a Beretta bem apontada à cabeça.

Os outros dois também concentravam as suas atenções no padre espião, como se ele fosse a única fonte de ameaça no gabinete. A sua fama precedia-o. Arturo sabia-o por experiência empírica.

John Scott estava encostado à parede. Se pudesse, ter-se-ia fundido com ela para desaparecer. Sarah assistia à cena com o coração aos pulos. Nunca vira aqueles homens, à excepção de Arturo.

- Convém que tu não faças nada parvo - declarou Rafael, secamente.

- E o que seria parvo, neste caso? As ordens são claras e para cumprir.

- Eu sei quais são as ordens, mas partem de pressupostos errados.

- Dá-me a tua arma - ordenou Davide.

A tensão entre os três homens e Rafael era evidente. Todos se mediam, calculando as probabilidades da vida e da morte. A vantagem de Davide era evidente, mas um gesto mal-entendido podia causar um acidente desnecessário. Rafael levantou a parte de trás do casaco lentamente, para revelar a Beretta enterrada entre o cós das calças e as costas. Davide aproximou­se, pé ante pé. Não queria aproximar-se demasiado. Rafael podia ser muito perigoso num confronto físico. Quando sentiu que bastava esticar o braço, fê-lo e removeu a arma com um gesto brusco. Entregou-a a Arturo que a guardou. Davide recuou imediatamente dois passos para uma distância mais segura. Rafael sorriu.

- Tenho muita pena, Rafael - confessou o colega.

- É de facto uma pena. Desejo-vos boa sorte a tentar encontrá-la.

Davide sorriu cinicamente.

- Já deste a morada da mulher ao tonto do Tomasini.

Rafael abriu ainda mais o sorriso sardónico.

- Dei? - ripostou o padre. - Será que dei mesmo?

- Tu sabes onde está a Anna? - perguntou Duválio, incrédulo.

Davide ficou a pensar nas palavras de Rafael. Pegou no telemóvel e reparou que tinha três chamadas não atendidas. Colocara-o em silêncio para não interferir com a operação. Fora Girolamo Comte quem ligara. Ligar­lhe-ia mais tarde. E tinha também uma chamada do chefe da Santa Aliança.

Devolveu a chamada. Rafael continuava a sorrir como se o estivesse a gozar e isso estava a irritá-lo. Ninguém atendeu do outro lado.

- Não acredito no que estás a dizer - acabou por dizer.

- Claro que acreditas. Porque achas que ainda não disparaste?

Nesse preciso momento, a luz do mostrador do telemóvel de Davide ligou-se. Era Guillermo. O agente atendeu.

- Davide - apresentou-se. - Sim. Está aqui à minha frente. - Uma curta pausa. - Sim. Estão os três. - Escutou as instruções e depois desligou o aparelho. - És mesmo um imbecil, Tomasini. Espera até o Comte saber disto.

Davide fitou Rafael com desdém e acercou-se dele ameaçadoramente.

- Um descampado? Deste a morada de um descampado? Só mesmo um palerma como o Tomasini é que podia cair nessa. O Comte vai tratar-te da saúde.

Deu mais um passo em frente e bateu-lhe com a coronha da arma na nuca com tanta violência que o fez cair pesadamente no chão, inanimado.

- Sempre foste um sacana, Rafael - praguejou Davide.

 

 

                                                                                     CONTINUA

 

 

- Só podes estar a brincar com a minha cara - vociferou Gennaro Cavalcanti.

- Porque dizes isso? - escusou-se Guillermo, envergando uma expressão ingénua.

- Larga isso, pá - dissdee apontando para o telemóvel. - Estás preocupado se o marido já chegou a casa? Olha para esta merda!

Gennaro apontou para o corpo de Bertram que já estava em cima de uma maca, dentro de um saco para cadáveres, fechado até ao peito, deixando ver apenas o rosto branco acinzentado e as marcas da morte na testa.

- Quando é que me dás os outros dois? - atirou Guillermo, prevendo o efeito esta pergunta.

Gennaro rosnou de impaciência.

- Mais um padre morto, e depois de pousares a merda do telemóvel é essa a primeira pergunta que fazes?

 

 

 

 

 

O apartamento de Bertram na Via Tuscolana estava cheio de pessoas, certamente muitas mais do que o padre recebera em casa desde que ali morava. Paramédicos, o delegado do Instituto de Medicina Legal, agentes do departamento forense da Polizia di Stato que, com luvas e máquinas fotográficas, inspeccionavam o apartamento. Pelas janelas, entravam os reflexos azuis e vermelhos dos sinais luminosos dos carros da polícia e da ambulância que estavam estacionados em baixo, na rua. Alguns moradores haviam saído para o exterior para ver o que se passava, outros tentavam descortiná-lo a uma distância segura, das janelas ou varandas dos seus apartamentos. Pelo sim, pelo não, Gennaro mandara instalar um perímetro de segurança, para afastar os olhares curiosos. Perguntaram ao jovem agente fardado, que assegurava que ninguém não autorizado invadia o perímetro, qual o motivo do aparato. A resposta espalhou-se rapidamente pelas redondezas, elevando-se às varandas e janelas dos andares cimeiros. Omicidio. A pergunta seguinte versava sobre a identidade da vítima, mas essa não fora respondida...

 

 

                                                                  Luís Miguel Rocha

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades