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A FILHA DO POLACO - V.2 / Antonio Campos Junior
A FILHA DO POLACO - V.2 / Antonio Campos Junior

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

           A maior afronta.

Apesar da miséria dos seus mil e quinhentos granadeiros da vanguarda, Junot lá tinha ido em passeio triunfal até à Torre de Belém. Muitos ficaram pelo caminho, uns sentados nos portais a consertar a farrapagem dos pés, outros a pedir por mímica à porta das tabernas o lenitivo de uma caneca de vinho. Mas o maior número lá se foi arrastando a toque de caixa, debaixo de uma chuva torrencial.(1)

Estava servido, se não contasse com o esmorecimento da cidade e não tivesse a guardar-lhe as costas o seu amigo Novion.

Da Torre avistou Junot um navio mercante, que ia saindo de velas empavesadas. O antigo sargento

 

*1. «... malgré la pluie qui tombait a flois», diz Thiébault, a pág. 72 da Relation de l'expédition du Portugal.

 

do cerco de Tulono não resistiu à tentação de uma fanfarronada inútil e imprópria de um general em chefe. Ajudou a carregar uma peça, que o seu ajudante de campo Taxer pôs em pontaria e disparou. A bala foi bater na mastreação do navio, que colheu o pano e parou.

Depois o triunfador voltou à Praça do Comércio e ao Rossio e levou seis horas nestas passeatas espectaculosas com aqueles pobres diabos atrás de si!

Ofereceram-lhe para residir o paço da Bemposta, mas Junot achou preferível hospedar-se no palacete do Barão de Quintela, na rua do Alecrim.

Ficava mais central e a hospedagem havia de ser principesca, pois que o Quintela era riquíssimo, Junot conhecia-o bem dos seus tempos de embaixador. Assim hospedado, guardaria para os gastos de estróina os seus largos vencimentos e o mais que havia de exigir para despesas de representação.

Não havia dinheiro que lhe chegasse, conforme o testemunho de Thiébault, e êle e a esposa estavam já por uma conta calada ao Imperador.

Os oficiais foram aboletados, e os soldados que não foi preciso meter nos hospitais aquartelaram-se nos conventos.

Os pobres quartéis dos nossos soldados não lhes serviam. O chefe do estado-maior explica porquê, dizendo que era difícil preparar aquartelamentos para uma guarnição de dez mil homens, num país onde as tropas, miseráveis em todos os sentidos, dormiam no chão (sur la terre) e se não encontrava nenhum mobiliário de caserna. "

Thiébault foi para casa do negociante francês Ratton,(1) oriundo de uma família da Borgonha,

 

*1. O próprio Thiébault o diz a pág. 179 do tomo IV das suas Memórias.

 

estabelecida em Portugal desde os tempos do Marquês

de Pombal.

Era Thiébault dos que mais mal agouravam o êxito da expedição e certamente o que menos se desvanecia com aquela campanha de marchas, que tinham baixas de morte como se fossem batalhas perdidas. Sabia já que só a divisão espanhola do general Caraffa tinha tido à sua parte mil e setecentos a mil e oitocentos homens mortos de fome, afogados nas torrentes, enterrados nos barrocais do caminho. Os franceses não teriam perdas inferiores ao dobro daquele número.

Pelas três horas da tarde daquele dia entrara o grosso do 70 de linha, que foi logo para Belém e São Julião. Junot ainda não sabia então onde parava a divisão do Barão De Laborde, nem tinha notícias das outras de Loison e Travot, e menos ainda da cavalaria de Kellermann (Conde de Valmy), e da artilharia do general Barão Taviel.

Foram chegando a pouco e pouco, aos bandos, os destroços daquele exército batido pelo inverno. Duzentos soldados a representarem um regimento de dois mil, quinze ou dezasseis os restos de uma companhia de cento e quarenta, que se esbandalhara pelos caminhos.

A brigada Brenier, que saíra de Baiona com 2.600 homens, entrou em Lisboa com 300. Dois mil e trezentos tinham ficado pelos barrancos!

Em 2 de Dezembro estava já quási toda reunida a divisão Loison, que entrara em Portugal com o efectivo de nove mil homens.

Nas ruas esbarrava-se com magotes de soldados, no Rossio e às portas das igrejas, os conquistadores, ainda de botas rotas, contendiam com as mulheres, afrontando-as. Os hospitais estavam cheios como casas de malta, os conventos, desde o Grilo a Belém, pareciam casernas.

Já se sabia que os espanhóis do general Solano haviam chegado a Setúbal e que os batalhões do general espanhol Taranco se tinha apossado do Minho e do Porto.

Os fingidos amigos iam volver-se em duros dominadores, a águia protectora em milhafre implacável. Tinham já começado as inquietações do conquistador.

Principiava a ter medo das tabernas de Lisboa como de clubes revolucionários e das pistolas de coldres e espingardas caçadeiras como de formidáveis armamentos de guerra com que a populaça podia vingar as afrontas feitas à pátria.(1)

Dez dias depois do duelo, Luís de Castro começara a manifestar umas pequenas melhoras, que de dia para dia se foram acentuando. A febre, intensa e inquietadora durante a primeira semana, decrescera consideràvelmente ao nono dia.

Estivera sem poder falar, noites inteiras em delírio, ninguém fora permitido que o visitasse e no seu quarto apenas entravam a Mãe e o cirurgião assistente. Tinha ao pé de si dois enfermeiros, que velavam por ele dia e noite.

 

*1. Em decreto de 4 de Dezembro, Junot proibia o uso de armas de fogo e mandava sujeitar ao julgamento de um tribunal de guerra, como ladrão e matador de estrada, todo o paisano que fosse encontrado com pistola ou espingarda, ainda que fosse a caçar, sem licença do general De Laborde.

No dia seguinte um edital dos governadores do reino proibia o ajuntamento de soldados portugueses e franceses nas tabernas, depois das sete e meia da noite, sob pena de severa punição para o dono da taberna.

A respeito do porte de armas de fogo, especialmente de noite, o edital ameaçava que seria julgado como assassino todo aquele que se envolvesse em alguma pendência,.sendo convencido de ter usado de qualquer arma que fosse.

 

Mas, a despeito de tão animadoras melhoras, o seu estado exigia ainda especiais cuidados. Perdera muito sangue, estava numa fraqueza extrema, a convalescença havia de ser longa.

A 12 de Dezembro, catorze dias depois do ferimento, o assistente permitira que o fossem ver o irmão e os tios, cada um por sua vez e para uma visita de três ou quatro minutos, sem consentirem que êle falasse muito.

Ao irmão pediu sumidamente, apertando-lhe muito a mão:

- Manda saber... de Maria... a filha... do polaco.

- Pois sim, mando.

- Disfarça... damente... sem falar... de mim.

- Fica descansado.

- Por este... favor... Henrique... se eu me levantar daqui... quanto quiseres... de mim...

Cansava muito.

- Pois sim, sim. Agora não fales mais. Eu trarei notícias. Verás.

- Que dia é hoje?

- Sábado, 12 de Novembro.

- Tanto tempo! Os franceses?

- Estão cá... como amigos.

- A nossa... desgraçada terra!

- Tu não podes nem deves pensar nessas coisas. Já tens falado demais, Luís! Até logo.

Saiu. Encontrou a Mãe e o cirurgião que iam para lá.

- Como te pareceu? - preguntou-lhe D. Matilde.

- Melhor, mas duma debilidade...

- Há-de restaurar as forças perdidas, se não houver qualquer imprevista complicação - disse o facultativo - Conto muito com aquela robusta mocidade.

- Ai, mas daqui a quanto tempo?!

- Quarenta ou cinquenta dias, minha senhora. O principal é que a febre se lhe despegue, e espero que não leve muitos dias a desaparecer. Creio bem que daqui a uns dias, oito ou dez, se tanto, já o poderemos ver sentado ao pé da cama por uma ou duas horas, e assim lhe irão voltando as forças.

- Deus o ouça. Deus me dê esse tamanho alívio!

  1. Matilde e o cirurgião entraram para o quarto

de Luís. Henrique foi ter com a esposa.

Na saleta de jogar estão discutindo os últimos acontecimentos o Mar e Guerra, o padre António e o Madureira da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, que chegara havia pouco.

- Vão dispondo tudo para ficar - disse o Madureira- Fortificaram melhor a barra e já repartiram a divisão do general Loison por Sintra, Mafra, Peniche e Torres-Vedras. Dois batalhões suíços, que vieram com Junot, já saíram também, um para Almeida e o outro para Elvas. Para o Algarve vão partir ou já partiram algumas tropas.(1) Fala-se em que vamos ter ministros aos pares, por cada Secretaria de Estado um francês ao lado de outro português!

- E o Junot como um príncipe, em casa do Quintela, segundo me contaram.

- E já de unhas aguçadas para esfolar esta pobre cidade, cujo comércio está morto! A costa bloqueada pelos ingleses,

 

*1. Um batalhão do 26 de infantaria, os piemonteses da legião chamada do Meio-Dia, uma companhia de artilharia e um esquadrão de dragões. Comandava estas forças o general de brigada Maurin.

Convém lembrar que o Algarve era o quinhão destinado para Manuel Godoy, segundo o tratado de Fontainebleau.

Evidentemente os espanhóis iam ficar ludibriados.

 

e os navios mercantes que vêem do Ultramar, do Brasil, principalmente, quando não são assaltados pelos corsários franceses caiem em poder dos cruzeiros da Inglaterra! O ágio do papel moeda a 28 por cento! Uma desesperadora miséria! E por cima disto um empréstimo forçado de 800 contos, só em Lisboa!

- Isso é de esmagar! - observou o padre António.

- Já está decretado.(1) O Quintela, hospedeiro do Ditador, entra com trinta e dois contos.

- E você verá, Madureira, que não fica por aí - disse Jerónimo de Castro.

- Ah! isso não fica. Napoleão há-de exigir muito mais a todo o reino. Há quem suponha que não quererá menos de cem milhões de francos.

- E hão-de dar-lhos com língua de palmo! - acudiu o Mar e Guerra - Com o que já para lá foi, calculem! Uma campanha desastrosa custaria muito menos e ficava-se com mais honra.

- Já falam nas pratas das igrejas.

- Logo vi! - acudiu o Capelão.

- Então, meu velho! É de esperar que nos levem todas as pratas. O governo que se pôs ao fresco pedia as pratas das casas ricas para cunhar moedas com que acudisse às exigências da nação. Agora o Junot há-de querer as pratas que ficaram nas igrejas. Segue o exemplo dos tratantes de cá, e não haverá remédio senão dar-lhas. É o saque por meios brandos. Quando precisarmos de pólvora e bala,, porque afinal isto não fica assim, só se no-la mandarem de esmola os ingleses.

- Dão licença - disse da porta Henrique de

Castro.

- Bem sabes que podes entrar quando quiseres.

- Julguei que falassem de coisas particulares.

 

*1. Fora decretado por Junot em 3 de Dezembro.

 

- De coisas públicas é que estamos falando, das desventuras políticas desta terra.

- Estão ali duas visitas que vieram saber do Luís e desejam agora cumprimentá-lo, meu Tio.

- Se são visitas de cerimónia, faz o favor de lhes dizer que estou com os meus achaques.

- Dois velhos amigos seus. O Andrade e o Valadares.

- Ah! esses sim. São amigos doutros tempos melhores.

- Vai então recebê-los?

- Não. Que venham para aqui. Estaremos mais à nossa vontade.

- Vou buscar-lhos.

E dali a instantes voltou com eles. Jerónimo de Castro foi falar-lhes com afectuosa familiaridade.

Depois apresentou-os ao Madureira. O capelão era também muito das relações dos dois.

- O sr. Francisco Xavier de Madureira, oficial da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, um dos meus maiores amigos. O sr. Joaquim Pinto de Andrade, meu colega e camarada de marinha, veterano como eu. Foi um dos valentes da corveta Andorinha. O sr. João Maria Valadares, tenente-coronel do regimento a que pertence meu sobrinho Luís. Foi um distinto companheiro de Gomes Freire.

- Como se fosse irmão - acrescentou o apresentado.

- Ambos nas mesmas campanhas - informou ainda Jerónimo de Castro - ou por exigências casuais de serviço como nas de 1786 e 1787 a bordo da nossa esquadra nas costas de Argel, ou voluntariamente no exército russo contra os turcos e os suecos.

- E também na campanha de Reno, em 1792, ao serviço da Prússia contra os franceses - acrescentou o Valadares.

- E deram os dois boa conta da sua tradição de portugueses.

- O Gomes Freire - acudiu o Tenente-Coronel modestamente - Eu era apenas um companheiro obscuro desse que é hoje o mais ilustre dos nossos generais.

- Já ouvi falar com louvor dos oficiais voluntários que estiveram nessas campanhas - disse o Madureira - Não me é estranho o nome de v. s.a. Fixei mais o de Gomes Freire e o do brigadeiro Pamplona porque tive depois relações de família com eles.

- Uns valentes, meu caro Madureira - afirmou o Mar e Guerra - Sente a gente um grande consolo em falar deles nestes amargurados dias de vergonha. Olhe que, de entre os bravos do exército russo do príncipe Potemkin, foi Gomes Freire o primeiro a entrar nas trincheiras turcas, no assalto de não sei que praça.

- Oczacow. Deram-lhe em recompensa a cruz de São Jorge. Mas olhe que na Suécia ainda a intrepidez de Gomes Freire foi maior. Estávamos então no exército do Príncipe de NassaU-Siegen. Gomes Freire comandava uma bateria flutuante. Foi na batalha de Schwenkrund. A esquadra russa que êle apoiava foi repelida, mas Freire não abandonou a sua bateria flutuante, senão quando ela de todo se afundou. Foi o último a retirar! Ofereceram-lhe em prémio uma espada de honra. Um herói! Que o Pamplona também se bateu admiravelmente, como voluntário pela Rússia, em três campanhas na Moldávia. Ia na frente da coluna de ataque no assalto de Ismail. Condecoraram-no com a cruz de São Vladimiro.(1)

 

*1. Todos estes factos estão registados nas notas biográficas daqueles dois generais. Vêem transcritas no livro do dr. Boppe, La Légion Porluffaise, uma obra gratíssima para nós, porque é uma justiceira homenagem, admiravelmente documentada.

O assalto de Oczakow realizou-se a 6 de Dezembro de 1788, a batalha de Schwenkrund foi a mais notável da campanha de 1790, entre suecos e russos, o assalto de Ismail efectuou-se a 22 de Dezembro desse mesmo ano, contra os turcos.

 

- E com esses ânimos de tanto valor não houve quem se pusesse à frente do exército contra os franceses! - lamentou o Madureira.

- Gomes Freire vive desgostoso. Tem havido contra êle uma prepositada injustiça. Protestou no Rossilhão contra as arbitrariedades e soberbias dos generais espanhóis e mandaram-no retirar como se fosse um amotinador! Pois era a mais ilustre espada que lá tínhamos. Das vergonhas e cobardias de 1801 foi êle dos raros que honradamente se salvaram. Venceu, quando os outros eram derrotados, mas fingiram não perceber bem o que êle fêz! Em 1805 apresentou um plano da reorganização do exército e da defesa do país, e ninguém se importou com êle!

- Andavam a comprar esta paz que nos avilta! - comentou Jerónimo de Castro.

- É agora dos mais descrentes na salvação desta pobre terra.

- E era talvez o general de mais talento e mais prestígio para se pôr à frente do exército! - disse o Madureira.

- O Marquês de Alorna também. É general inteligente e prestigioso - acudiu o Valadares.

- O Gomes Freire é que podia pôr-se à frente do exército - insistiu o Madureira.

- Querem-lhe mal, têem-lhe inveja. É homem de palavra desassombrada, passa por maçon, muito dado a ideias de liberdade, e criou em volta de si poderosas inimizades.

- Uma desgraça doida tudo isto! - deplorou o Mar e Guerra.

- E tu, meu velho marinheiro, o que me dizes?

- O que hei-de eu dizer-te? Isto dá vontade de morrer - disse o Andrade - Até já temos um oficial da Marinha francesa(1) a mandar nesses navios podres que aí ficaram. A um deles lhe deitava eu fogo, se pudesse.

- Qual?

- A esse velho e glorioso calhambeque, mal remendado das balas que lhe meteu a fragata Chiffone.

- Ah! bem sei. A corveta Andorinha - disse o Mar e Guerra com os olhos rasos de lágrimas.(2)

- Olha que, um dia por outro, ainda a vou visitar como um devoto à igreja do seu padroeiro. Sinto-me bem quando lá estou dentro, como se aquela carcassa fosse um pedaço imaculado da pátria, uma santa relíquia deste Portugal que deixaram perder. Pois de bom grado a queimava para não ter o desgosto de lhe ver no penol da mezena, como brutal profanação, essa bandeira tricolor que chegou aí sem um tiro. No Arsenal de Marinha já eles a içaram ontem quando o Junot foi visitar a esquadra russa, provavelmente para ver se pode contar com ela, no caso de revolta da nossa gente.

 

*1. Era Magendie, oficial superior agregado à expedição.

  1. Divergem alguns escritores portugueses quanto ao número e categoria dos navios de maior tonelagem incorporados na esquadra que levou a corte para o Brasil. Escreveu-se já que a corveta Andorinha fora também. É engano. Essa ficou.

O Observador Portuguez dá o número de navios que foram, agrupando-os por categorias, e não numera nenhuma corveta.

Participando ao seu governo a saída da esquadra portuguesa,

o contra-almirante Sidney Smith, comandante da esquadra inglesa do bloqueio, junta ao seu ofício uma lista dos navios que a compunham e não menciona a corveta Andorinha. (Ofício de

1 de Dezembro de 1807, a bordo do navio Hibernia, a vinte e duas léguas a oeste do Tejo).

A Andorinha ficara em Lisboa com as naus, fragatas e corvetas incapazes de serviço, a que se refere Thiébault na sua Relação, por várias vezes aqui citada.

 

E há quem acredite que a esquadra de Siniavim veio aí para o Tejo com o fim de auxiliar os franceses.

- Também já ouvi isso. Foi um dos papões com que meteram medo ao povo esses que fugiram.(1)

- Arrasava Lisboa, se quisesse - disse o Andrade

- E ouvi que tem a bordo seis mil e quinhentos homens.

- Mas isto não há-de ficar assim, não pode! - rouquejou Jerónimo de Castro.

- Não lhe vejo remédio! - observou o tenente-coronel Valadares - Os ingleses não querem sair do mar e, ainda que a nação em peso se levantasse e tivesse espingardas e balas para combater, que não tem, ainda assim, seria impossível resistir ao mesmo tempo aos franceses e aos espanhóis.

- Mas apesar de tudo - retorquiu o Madureira

- Junot está com receio dessa plebe sem armas e sem chefes.

- Toma precauções. Parece-lhe incrível que se deixasse assim esmagar um povo de tão altivas tradições guerreiras! - explicou o tenente-coronel.

- Vejam o aparato de forças por essas praças e ruas em toda a noite!

- A quem v. s.a o diz! Durante toda a noite colunas volantes de infantaria e cavalaria francesa, além dos piquetes e patrulhas da Guarda-Real. As guardas lá são todas fornecidas pelos seus granadeiros. Peças de artilharia às portas dos conventos onde os franceses se aquartelavam.(2)

 

*1. Foy diz no tomo III da sua História que em Lisboa se desconfiou que a poderosa esquadra de Siniavin entrara no Tejo para auxiliar os franceses.

  1. Thiebault refere que de noite se organizavam quatro e cinco colunas móveis de cem homens de infantaria e vinte e cinco de cavalaria, que, em caso de necessidade, poderiam dispor de um dos dois canhões que tinham sido colocados diante de cada uma das casernas. (Relation etc, nota de pág. 76 e 77).

 

E alguns dos nossos regimentos já sem pólvora nos quartéis e com ordem de marcha para a província. Por mal dos meus pecados e com bem funda mágoa, tenho particular conhecimento de todas estas precauções. Nomearam-me intérprete do quartel-general francês. A mim e a outros que sabem a língua francesa. Quis esquivar-me. Fui ameaçado de prisão.

E voltando-se para Henrique de Castro, acrescentou:

- Ao menos consegui que o não nomeassem também a si, meu caro amigo, para semelhante cargo.

- Profundamente desagradável, meu Tenente-Coronel, e por isso mesmo ainda maior gratidão a minha.

- Estava na relação dos que falavam a língua francesa. Mas eu, que fui o primeiro nomeado, lembrei-lhes que tinha seu irmão em perigo de vida, e seria duro sacrifício tirá-lo daqui para uma comissão de serviço de tal modo constante, que me foi hoje difícil obter duas horas de licença para vir aqui. Entendi-me depois com o general Thiebault, o chefe do estado-maior general, e tive a boa fortuna de ser atendido.

- Devo-lhe um alto favor, Tenente-Coronel - disse Henrique de Castro, apertando-lhe a mão afectuosamente.

Entrou de repente o Manuel de Albuquerque. Amarrotava nas mãos dois papéis grandes, impressos, um pouco rasgados nos cantos.

- Este desaforo! - rouquejou sem ter cumprimentado ninguém - Na porta da capela desta casa, um a par do outro, estes nojentos papéis! Arranquei-os de lá.

- Que papéis são? - preguntou o Mar e Guerra.

- Uma proclamação de Junot e um edital do Patriarca, cheios de mentiras e hipocrisias um e outro. O do Patriarca ainda mais nojento que o outro. Não mude de côr, sr. padre António, isto é a verdade. Um apóstolo de Jesus não devia firmar estas falsidades, por muito medo que tivesse dos invasores. Ouçam o que diz o francês:

O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M. o imperador dos Franceses e Rei de Itália, general em chefe, Grão-Cruz de Ordem de Cristo, destes reinos.

«Habitantes de Lisboa.

«O meu exército vai entrar na vossa cidade. Eu vim salvar o vosso povo e o vosso Príncipe da influência maligna da Inglaterra. Mas esse Príncipe, aliás respeitável pelas suas virtudes, deixou-se arrastar pelos conselheiros pérfidos de que era cercado, para ser por eles entregue aos seus inimigos, atreveram-se a assustá-lo quanto à sua segurança pessoal, os seus vassalos não foram tidos em conta alguma, e os vossos interesses foram sacrificados à cobardia de uns poucos de cortesãos.

«Moradores de Lisboa, vivei sossegados em vossas casas, não receeis cousa alguma do meu exército, nem de mim, os nossos inimigos e os malvados somente devem temer-nos.

«O grande Napoleão, meu Amo, envia-me para vos proteger, eu vos protegerei.»

Junot.(1)

- Isto é um documento de refinadíssima hipocrisia,

 

*1. O texto em francês vem no volume 3 da História do general Foy. A detestável tradução em português, texto dos editais afixados, está publicada na Colecção de Decretos-Editais, etc, impressa em Lisboa em 1808.

 

isto é desaforadamente mentiroso, porque Portugal já está retalhado por Napoleão e pelo safardana de Godoy. É um documento velhaco a explorar embustes vulgares duma política desleal que traz a Europa alagada de sangue. Mas este do Patriarca é ainda pior e mais recente. De há dois dias apenas. Cobre a falsidade invocando Deus sacrilegamente, aconselha ao povo a cobardia e a torpeza contra a pátria, põe de rastos, aos pés do invasor, a púrpura cardinalícia do signatário! Ouçam:

Josephus II. Cardinalis Patriarcha Lisbonensi,:

- Mas eu não tenho ânimo de ler tudo isto. Leio-lhes apenas o conselho e a súplica. Diz sua eminência:

«É, pois, muito necessário, amados filhos, ser fiel aos imutáveis decretos da sua Divina Providência, e para o ser, devemos, primeiro que tudo, com coração contrito e humilhado, agradecer-lhe tantos e tão contínuos benefícios, que da sua liberal mão temos recebido, um deles a boa ordem e quietação com que neste Reino tem sido recebido um grande exército, o qual, vindo em nosso socorro, nos dá bem fundadas esperanças de felicidade, benefício este que devemos igualmente à actividade e boa direcção do General em Chefe que o comanda, cujas virtudes são por nós há muito tempo conhecidas.»

Amarfanhou o papel nas mãos e relanceou para todos os lados o seu olhar entristecido.

- Parece escárnio e é dito sob a invocação de Deus! Uma abominação e uma dor de alma! Para o Portugal antigo, honrado e intrépido, nem uma palavra sequer neste papel! Não chegava para tanto a eloquência do prelado, todo embevecido nas conhecidas virtudes do Junot, um dos maiores patifes da choldra imperial. Mas a súplica ainda é pior. E leu este trecho àqueles homens profundamente comovidos, afogueados de vergonha:

«Não temais, amados filhos, vivei seguros em vossas casas e fora delas, lembrai-vos que este exército é de Sua Majestade o Imperador dos Franceses e Rei de Itália, Napoleão, o Grande, que Deus tem destinado para amparar e proteger a Religião e fazer a felicidade dos povos, vós o sabeis, o mundo todo o sabe, confiai com segurança inalterável neste Homem prodigioso, desconhecido de todos os séculos, Ele derramará sobre nós as felicidades da Paz, se vós respeitardes as suas determinações, se vos amardes mutuamente, nacionais e estrangeiros...»

- Basta isto! É a pastoral da cobardia, do servilismo hipócrita, da traição pelo desamparo da Pátria. E aqui em baixo a instâncias do pedido pelas entranhas de Jesus Cristo!(1) Que fogueiras de pólvora e que Jordão de sangue para purificar tudo isto! Deus mande a revolta e a guerra, ou tudo isto se abandalha e apodrece aqui!

Cruzou a sala a largos passos, sacudindo a cabeça, o olhar turvado de cólera, como um leão enjaulado.

Nenhuma observação, nenhum comentário, como se ninguém ali pudesse falar!

Veio quebrar aquele silêncio opressor uma gritaria colérica na rua.

Foram às janelas. Era uma briga de soldados da artilharia portuguesa com granadeiros espanhóis da divisão Caraffa. Juntara-se muita gente. Um dos artilheiros caíra atravessado por uma baioneta,

 

*1. O edital vem incorrectamente publicado no Observador e na colecção já citada.

 

um dos granadeiros estorcia-se no chão com o ventre cozido de facadas.

A luta prosseguia enfurecida.

- Vou eu pelos artilheiros! - rugiu o doido de Manuel de Albuquerque, saindo da janela com os olhos raiados de sangue.

- Tio Manuel! -disse-lhe Henrique de Castro, cingindo-o nos braços.

- Manuel, olha que isso é uma loucura! - observou-lhe o Mar e Guerra - Isso é faltar ao teu propósito.

- Perde-se a paciência!

O tenente-coronel Valadares correu para a porta e descera a escada no intento de intervir na contenda.

Já não era preciso. Chegara a galope um piquete da Guarda Real, e prendeu os brigões.

Havia já mais feridos. Foram metidos numa carroça grande que passava. Levaram-nos ao próximo quartel do Cais dos Soldados para o primeiro curativo.

Mais sereno, mais acalmado pelos conselhos de Jerónimo de Castro e pelos pedidos do sobrinho, Manuel de Albuquerque voltara à janela.

- Nem Deus nem os homens dão ouvidos ao Patriarca - disse de olhos fitos nos rastos de sangue que ficaram sobre a lama - Pois ainda bem.

E já distante, a carroça lá ia aos solavancos a fazer repinchar a lama, com o seu carreto de feridos, em ais lastimosos.

Naquela tarde, Henrique de Castro foi colher informações, para satisfazer o pedido do irmão.

Procurou um dos oficiais que tinham sido testemunhas do duelo e deu-lhe conta das instâncias do ferido.

- Deixe estar, que até à noite lhe hei-de levar a informação que deseja.

- Mas com os cuidados que lhe indiquei.

- Bem sei. Parece-me que tenho meio seguro de saber o que me pede. Vou procurar o médico italiano que foi padrinho do polaco. Tenho uma razão para o procurar. Na última acta do duelo escapou uma inexactidão, que é importante ressalvar. Procuro-o para esse fim e, disfarçadamente, lhe hei-de apanhar alguma indicação a respeito da filha do polaco. Muito naturalmente, aludirei às origens do conflito e meto-lhe uma peta à mistura, para o levar a falar-me da namorada do Luís. Deixe o caso por minha conta. Lá irei à noite a sua casa levar-lhe as boas ou más novas que eu souber.

- Pois até logo, e mil agradecimentos.

- É coisa de pouca valia, que nem vale a pena agradecer.

Despediram-se. Henrique alugou uma sege e foi direito para casa.

Tornou a ir ver o irmão, cujas melhoras se mantinham.

Falou-lhe outra vez do pedido.

- Descansa. À noite hei-de trazer-te notícias.

Já noite fechada foram dizer a Henrique de Castro que o esperava na sala um oficial do exército, para lhe falar do que êle sabia.

- Bem. Lá vou.

E encaminhou-se para a sala.

- Boas informações?

- Boas e más. O médico não está em Lisboa. Encontrei a casa fechada. Um vizinho dele informou-me que, havia já muitos dias, não aparecia ninguém naquela casa, mas que, se tinha empenho de saber do médico, me dirigisse a casa de um joalheiro polaco, morador para as bandas de Santos. Lá talvez me pudessem dar alguns esclarecimentos, porque o italiano era muito daquela casa. Com as indicações que recebi, fui procurar a casa do joalheiro.

- E soube?...

- Uma coisa que talvez não seja prudente dizer a seu irmão. O polaco saiu de Lisboa com a família, para uma quinta da Outra-Banda, por causa da filha, que se não estava dando bem com os ares de Lisboa.

- Ares do campo nesta altura do inverno!

- Foi o que me disse um criado velho com quem falei e que ficou tomando conta da casa, segundo me declarou.

- Boas e más informações, tem razão. Boas para mim e para os meus, porque estimamos o desaparecimento dessa gente, origem de tantas amarguras para minha Mãe e de tantos receios para mim. Mas para lhas dar a êle?

- Tem de lhe encobrir a verdade.

- Tenho! Piorava se lha dissessem. Está loucamente apaixonado por aquela rapariga, que é extraordinariamente linda!

- Assim o ouvi dizer a quem a viu uma vez na loja da rua do Ouro.

- Bem haja por este favor, tão gentilmente oferecido e realizado. Não me esquecerei nunca.

- Nem vale a pena falar de semelhante coisa. Sempre à sua disposição.

Henrique foi acompanhá-lo à escada.

- Que mentira hei-de eu armar para lhe ir dizer? - pensava - A mais simples que eu posso inventar. Que a filha do polaco já está restabelecida e que alguém, incumbido de procurar informações, a viu no jardim da sua casa de Santos. É o melhor.

Foi para o quarto do irmão, que logo pôs nele um olhar de súplica. Parecia querer ler-lhe no rosto a impressão das informações prometidas. Mas a Mãe estava ao pé deles e não era ocasião de falar na filha do joalheiro.

Entretanto, Henrique teve dó da ansiedade do irmão e fêz-lhe um gesto tranquilizador.

Mas assim que a Mãe saiu, Luís preguntou-lhe com a voz enfraquecida:

- Sabes de Maria?

- Sei de pessoa que a viu e falou com alguém da casa, sei que está restabelecida.

- Que a viu?...

- Sim. Numa janela do lado do jardim.

- A quem... falou essa pessoa?

- A um criado. Foi êle que lhe disse que a filha do polaco estava restabelecida.

- Mas quem tu mandaste... não falou de mim... do meu estado?...

- Está claro que não. É um vizinho do joalheiro. Fêz a pregunta com um interesse perfeitamente natural.

- De lá... não veio... papel nenhum... para mim?

- Não admira. Deve ter receio de cá mandar.

- Sim...

E, amarguradamente, de si para si, comentou:

- Agora amor para alguma grande loucura... ou para morrer comigo. Acompanha-me aqui a sua imagem... tenho-a no coração e nos olhos, linda e santa visão... nesta minha noite de desalentos!

O irmão sentia-se oprimido por aquela sua mentira benfazeja.

- Em que estás tu cismando, Luís?

- Em mil cousas pueris... que se vão num sopro... como a vida... Não te disseram mais nada... do Polaco!

- Ah! sim, disseram. Que estava para sair de Lisboa.

- Sair de Lisboa! - repetiu, perturbando-se muito - A fuga que eu receava! - pensou.

- Para os arredores de Lisboa, por algum tempo, para ela mudar de ares... ela ou o irmão.

- O requestador!-murmurou amarguradamente - Violento requestador - pensou - à sua vontade, livremente, com a protectora cooperação do Pai! Para ser dele! Um inferno isto!

- Que tens? Estremeceste, estás agitado!

- Há-de ser ainda... de uns restos de febre. Os franceses... entraram... sem resistência?

- Como nossos irmãos a quem a guarda de Novion protegia.

- Sim, era de esperar. A nossa gente?

- inquieta, amargurada.

- E os franceses... têem procedido... como conquistadores... arrearam a nossa bandeira?

- Por ora, ainda não.

- Henrique, o nosso... glorioso Portugal... morto!

- Então, Luís? Estás a mortificar-te! Não quero mais preguntas. Nem te respondo, se tu me as fizeres. Choras, Luís?

- Os enfermos... choram como as crianças.

- Homens como tu não têem o direito de chorar.

- Senão enquanto... não podem ter o direito de morrer.

Calaram-se. A Mãe entrara.

Estava-se a 12 de Dezembro.

Corria de boca em boca pela cidade que no dia seguinte de manhã, um domingo, haveria no Rossio uma grande parada.

Estavam dadas as ordens necessárias. O velho Andrade da Marinha foi à noite a casa dos Castros levar a notícia ao Mar e Guerra.

- Isto leva água no bico! - comentou - Disseram-me que já tinham metido tropas francesas no Castelo de São Jorge e que a Guarda Real da Polícia recebeu ordem do Novion para se concentrar em certos pontos da cidade.. Um oficial da nau Vasco da Gama comunicou-me há pouco a ordem que havia para todos os nossos içarem amanhã a bandeira francesa no mastro real.

- Vão começar as exéquias! - disse Manuel de Albuquerque, voltado para o padre António - Começam assim. E depois que venha o Patriarca pedir-nos pelas entranhas de Jesus Cristo que nos ponhamos de rastos aos pés de Napoleão, o Grande!

- Se fôr só a bandeira francesa no tope dos mastros reais, não passará a coisa de uma homenagem temporária, como faz qualquer navio de guerra, associando-se às demonstrações festivas de uma nação estrangeira - disse o Andrade - A esquadra russa, quando fundeou, deu a salva com a bandeira portuguesa nos mastros reais. Mas eu desconfio de coisa mais grave! A bandeira francesa lá tem estado içada no Arsenal.

- Tu és ainda o encarregado da nossa velha corveta? - preguntou-lhe o Mar e Guerra.

- Sou. Os navios completamente incapazes ficaram a cargo dos oficiais que estão fora do serviço activo da Armada. Homens e navios, veteranos uns e outros.

- Iças lá a bandeira de Napoleão?

- É possível que não tenha a bordo a bandeira francesa para enfeitar a corveta. Não sei ainda o que farei, mas hei-de ir amanhã para bordo ao nascer o sol.

- Pois então conta lá com uma visita de pêsames.

- Visita de quem?

- De um antigo oficial de corveta.

- Talvez tu?

- Sim, talvez eu.

- Pois terás no cais um escaler à tua disposição. E lá no chaveco, para te fazerem a continência, sete ou oito veteranos marinheiros que há lá ainda dos que ouviram berrar as quarenta e quatro peças da fragata Chiffone. A que horas queres o escaler?

- Das nove para as dez da manhã.

- E eu irei assistir à parada de Junot. Quero ver como eles curaram os pés e limparam a ferrugem das armas.

Manuel de Albuquerque disse isto num tom de gracejo que vinha repassado de amargura.

Uma ordenança do quartel de Campo de Ourique veio trazer uma carta do ajudante do regimento para Henrique de Castro.

Dizia-lhe, em nome do coronel, que o regimento,, como os outros que estavam ainda em Lisboa, recebera ordem para ficar no quartel durante o dia seguinte. Que, em vista desta ordem, recolhesse de madrugada ao quartel, se lho consentissem as melhoras do irmão.

- Não deixarei o Luís aqui sozinho, no estado de alvoroço em que está a cidade. Podia entrar por aí dentro a soldadesca espanhola do regimento que aquartelaram ali para os Grilos.

- Apesar de tudo, estão receosos - comentou Manuel de Albuquerque - E quanto à Espanha, ainda espero em Deus que esses granadeiros que para aí mandou não venham a chegar para lhe defender a bandeira e a pele.

Henrique foi dar à ordenança a resposta para o ajudante.

- Houve por lá alguma novidade?

- Saberá v. s.a que não sei de nenhuma. Mas andam desconfiados! - respondeu o soldado.

- Porque dizes isso?

- Porque chegou lá um esquadrão dos dragões franceses...

- Para quê?!

- Para escoltar o cartuchame todo que o regimento tinha no paiol. Vão agora levá-lo para o Castelo! Já vinham do Rato umas poucas de carroças com êle, entre fileiras de dragões.

- Bem. Vai-te embora. Seguram-se - comentou tristemente.

Amanheceu claro aquele domingo de Dezembro.

A gente que saía das igrejas ia-se aglomerando no Rossio, pela calçada do Carmo, na rua do Ouro e na rua Augusta.

E toda aquela multidão, num movimento de entristecida curiosidade, para ver a parada de Junot.

Por volta das nove e meia os regimentos franceses começaram a sair de vários conventos, seus quartéis provisórios.

Chegavam já ao Rossio as vibrações das músicas e dos clarins e o ruído áspero dos tambores. A multidão dos curiosos sentiu um apertar de coração inexplicável. Eram de regimentos estrangeiros aquelas marchas de guerra.

Uma companhia da guarda de polícia a cavalo apertava a multidão contra os prédios, ou a impelia para as ruas adjacentes no empenho de deixar livre a grande praça.

Sentiu-se um grande tropel de cavalos e uma vibração mais intensa de clarins. Eram os dragões e os caçadores a cavalo da divisão Kellermann. Os famosos dragões de capacetes doirados e grandes penachos negros de crina de longa cauda. Sentiu-se um rodar estridente nas pedras das ruas. Entrava na praça a artilharia do Barão Taviel.

A seguir voejaram contra os recantos do Rossio os sons de uma banda marcial. Chegava a brigada do general Avrií. Na testa da coluna um soberbo pelotão de porta-machados de granadeiros com as suas barretinas enormes de pele de urso, grandes penachos ao lado, as barbas a ondearem sobre os aventais brancos, o crescente de aço dos machados em chispas deslumbradoras, arrancadas por aquele sol de Dezembro.

Depois a 2.a brigada da divisão do Barão De Laborde, a brigada Brenier. Ao centro do 86 de linha, alta, arrogante, a águia doirada do regimento.

Iam tomando o lugar que de antemão lhes fora marcado pelo general Thiébault.

Com pequeno intervalo as brigadas Fuser e Graindorge da 3.a divisão comandada pelo Barão Travot. Na 2.a brigada a legião dos hanoverianos.

Não vinham completas nenhumas das brigadas que indicámos, por causa das forças de guarnição nas fortalezas da barra, na cidade, e de prevenção no castelo de São Jorge, no arsenal e nos conventos.

Faltavam as brigadas da divisão Loison, que saira de Lisboa, dois batalhões suíços que tinham ido para Almeida e Elvas, e os dois batalhões da Legião do Meio-Dia, que haviam marchado para o Algarve com outros destacamentos.

Tinham um belo e soberbo aspecto aquelas tropas., Na farda dos oficiais, dos velhos sargentos e soldados, com que se enquadravam os galuchos, fulgiam as insígnias da Legião de Honra. Pusera-lhas ao peito, nos dias gloriosos de Austerlitz e Iena, de Eylau e Friedland, o próprio Imperador. Havia ali alguns velhos que tinham feito quinze campanhas vitoriosas, em quási todos os grandes países da Europa.

E no coração daquela gente curiosa uma opressão de espanto e de mágoa. Os regimentos portugueses estavam nos quartéis como prisioneiros, e todo aquele brilhante poder era de um estrangeiro omnipotente, a quem nenhuma nação, a não ser a Inglaterra no isolamento das suas ilhas e nas cidadelas das suas esquadras, pudera ainda vencer!

Mas como se procurassem um lenitivo, os mais comovidos levantavam os olhos para o monte do Castelo e lá viam, a flutuar ainda, a bandeira antiga do oprimido Portugal.

À porta do Nicola, entre os mais comovidos, Manuel de Albuquerque por duas vezes olhara lá para cima, para o Castelo, num olhar turvo de pranto.

- Ao menos ainda parece portuguesa esta terra calcada por esses soldados estrangeiros.

Deu meio-dia. Repicaram os sinos. Dali a instantes desciam pela rua do Carmo e entravam no Rossio a galope dois oficiais às ordens de Junot. Eram como os batedores do general em chefe.

Os clarins e as cornetas de ordem fizeram o toque de sentido. O general de divisão mais antigo tomou o comando dos cinco mil homens ali reunidos.

Sentiu-se uma estropeada enorme pela calçada abaixo. Junot apareceu com o seu brilhante uniforme de coronel-general de hussares, o das grandes solenidades, a tiracolo a larga fita encarnada da grã-cruz da Ordem de Cristo. Montava um soberbo alter negro da coudelaria real.

As tropas fizeram a continência, vibraram nos ares as músicas, os clarins e os tambores, num belicoso alarde que estonteava.

Os olhos de Manuel de Albuquerque fugiram entristecidos para a bandeira do Castelo. Lá estava ainda.

Atrás do general em chefe iam cerca de duzentos cavaleiros, ajudantes-de-campo, oficiais às ordens, comandantes e directores de diferentes serviços, oficiais portugueses que tinham sido nomeados intérpretes do quartel-general, um pelotão de dragões e um pelotão de gendarmes a cavalo.

Um oficial português disse o quer que fosse a um ajudante do general e voltou o cavalo direito à porta do Nicola.

Apeou-se, entregou o cavalo a um galego e entrou perturbado.

Manuel de Albuquerque reparou nele e conheceu-o. Foi para dentro.

- Que é isso, Valadares?

- Ah? és tu, Manuel de Albuquerque? Venho estonteado! Numa tamanha dor de alma que me cega! Obrigaram-me a seguir isso, mas já não podia mais! Disse que estava incomodado, e não menti.

Acercou-se mais de Manuel de Albuquerque e disse-lhe baixo:

- Não quero ver!

- Não queres ver o quê?! Espera-se coisa de surpresa?

- De pungidora surpresa!

Muito inclinado para êle, disse-lhe o que quer que fosse. Manuel de Albuquerque fêz-se horrorosamente pálido e os olhos raiaram-se-lhe de sangue.

- Isso é uma vilíssima surpresa! - regougou.

- E tanto eles o sabem, que receiam os desesperos do povo. Estão aí cerca de seis mil homens. Pois no Castelo e nos quartéis, prontos à primeira voz, não estão menos de quatro mil. E o Novion numa roda viva a rondar a cidade!

- Tem subido esse pérfido francês, a quem meu irmão deu mão de amigo!

- Tem. Foi outro dia nomeado comandante das armas em Lisboa e seu termo,(1) sob as ordens do Barão De Laborde, que tem o comando militar superior da cidade. O ministro Araújo e Novion foram as duas almas danadas da invasão. O Junot sabia tudo e contava com isto.

Ouvira-se uma gritaria de ensurdecer.

- Que é isto? - preguntou Manuel de Albuquerque, indo para uma das portas.

O Valadares foi atrás dele.

- É a tropa a dar vivas a Napoleão - disse um dos rapazes de boa família que estavam à porta - O

general esteve a fazer uma fala aos soldados, a lembrar-lhes as glórias do Império e levantou vivas ao Imperador.

Com as barretinas nas pontas das baionetas e,

 

*1. Por decreto de Junot, de 8 de Dezembro de 1807.

 

e os capacetes erguidos no ar, os soldados repetiam entusiasticamente:

- Vive Napoléon, le Grand! Vive L'Empereur! Junot olhava para a multidão como se estivesse

esperando um grito de adesão àqueles brados triunfais.

Novion, incorporado no seu estado-maior, gritou em português, voltando-se para as primeiras filas do povo:

- Viva o Imperador dos franceses! Napoleão, o Grande!

À porta do Nicola o Manuel de Albuquerque regougou:

- Viva a... - e disse uma obscenidade. Ninguém respondeu ao viva de Novion. E muitos olhos se volveram outra vez para a bandeira do Castelo.

Deixemos por um pouco a espaventosa parada e vamos assistir a uma cena enternecedora no Tejo.

Eram quási dez horas quando Jerónimo de Castro se apeou do coche dos Castros no Cais das Colunas.

Ia com o seu uniforme de capitão-de-mar-e-guerra, seguro ao peito da farda o canhão do braço mutilado.

Aguardava-o já o escaler da Andorinha. Embarcou.

O Andrade estava-o esperando ao portaló da corveta. Em cima cinco velhos marinheiros, a guarda de veteranos do chaveco, fizeram-lhe a continência, comovidamente.

- Os nossos marinheiros de outro tempo. Os nossos velhos - disse o Castro para o Andrade.

Falou aos marinheiros enternecidamente. Depois andou a visitar o navio com piedade amorosa de um romeiro nos logares santos da sua fé. Sentiu-se bem, era um desafogo, era como remoçar o ver-se ali.

- Oh! Andrade! aqui, a esta amurada de bombordo, puseram as balas da Chiffone que nem um pombal! Parece que tenho diante dos olhos aquele cair da tarde de 19 de Maio de 1801! A corveta a deitar só duas milhas naquele mar estanhado, o pano a bater contra o arco da gávea, e a Chiffone sobre nós. Chega-se à fala e o francês a intimar-nos que arriássemos a bandeira.

- Também eu me lembro perfeitamente. Tenho no coração e na memória a resposta do Quintela, a rouquejar no porta-voz:

- «Esta corveta é de Portugal. Não arria a bandeira! Não a arria!» E depois aquela voz formidável, com que êle mandou dar fogo!

- E deu-se fogo enquanto se puderam carregar as peças.

- Aquelas pobres 20 caronadas que não podiam com as 44 peças da Chiffone!

- Mas que só se calaram quando já ninguém as podia mexer, embrulhadas na vela grande, nas gáveas, nos cabos de joanete, nos mastaréus, nas enxárcias.

- Pano e aparelho tudo tinha vindo abaixo, estiraçado sobre as bordas arrombadas e sobre o convés, a tiros de artilharia!

- A corveta já em paus reais, oito horas da noite, recordo-me bem, e foi então que nos rendemos.

- Pudera! Cento e vinte homens contra trezentos, vinte pècitas contra quarenta e quatro de maior calibre, uma gaivota contra uma águia!

- Vá que o comandante da Chiffone foi generoso e honrou a sua farda.

- Foi. Bem sei a que te referes. Não quis receber a espada do Quintela, atenta a bravura da defesa.

- E deixou-nos ir nesta canastra rota, a Deus e à ventura, sem artilharia, sem munições, sem cartas, só em paus reais. Por favor uma agulha de marear e um oitante de pau.

- E uma bandeira, a nossa, essa que nós tínhamos defendido.(1)

- Aquela velhinha, desbotada, ainda a de 1801! - disse o Andrade, apontando comovidamente para a bandeira que esvoaçava à popa.

Atracou uma lancha da nau Maria I. Vieram pedir licença para poder subir um oficial que trazia ordens.

Era um segundo-tenente. Vinha seguido por um sargento de marinha com umas bandeiras dobradas no braço.

- O comandante Magendie - disse o recém-chegado - estranha que a corveta não tenha içada a bandeira francesa no mastro grande.

- Não tem que estranhar. A bordo deste navio não há nenhuma bandeira da França imperial.

- Isso me lembrou e isso disse ao comandante Magendie. Encarregou-me então de vir entregar a v. s.a duas bandeiras. Uma é para o mastro grande, como está nos outros navios.

- Queira dizer ao comandante Magendie que esta corveta é navio à parte.

- Vem outra bandeira para v. s.a mandar içar no penol, a um sinal da nau Maria I.

- Queira responder ao comandante Magendie que há aqui oito velhos que não arriariam aquela bandeira, para a substituir por outra, ainda que eu tivesse alma e voz para mandar semelhante humilhação.

- Se contas contigo, Andrade, são nove, mas contando contigo tenho eu também de entrar na conta, e somos então dez que não a querem arriar.

 

*1. Vide Quadres Navais, por Joaquim Pedro Celestino Soares.

 

- Faço minha a resposta - disse para o segundo-tenente.

- Cumpri o meu doloroso encargo. V. s.a procederá como entender. O sinal será o primeiro tiro de uma salva imperial, em que a nau deverá ser acompanhada pelos outros navios portugueses que têem guarnição a bordo. V. s.a tem alguma ordem a dar-me?

- Nenhuma, sr. tenente.

O moço oficial fêz-lhe a continência com os olhos rasos de água, e encaminhou-se para o portaló.

- Muito bem, Andrade! - disse o mutilado, abraçando-o.

- Preparam alguma coisa extraordinária! Pois também eu me preparo. Cabo guardião! - chamou.

- Pronto.

- Temos no paiol alguns tiros de salvar?

- Temos, sim, meu Comandante.

- Pois, meu velho, vamos a carregar essas vinte caronadas para uma salva real. Não somos artilheiros, mas qualquer sabe carregar uma peça.

O guardião olhou-o com estranheza.

- De nosso vagar, meu velho, como fôr possível. Eu ajudo.

Foram buscar os sacos das cargas e os oito veteranos, com o próprio comandante, lá as foram carregando como puderam.

O Mar e Guerra seguia-os enternecidamente.

Tinha passado uma hora.

- Pronto - disse o Andrade - Agora morrões acesos e ao sinal é seguir por essas duas baterias fora. Esta primeira peça hei-de eu carregá-la segunda vez para completar a salva real.

- Essa, meu Comandante, tem seus perigos - observou o cabo - Está muito comida por dentro. Fica-lhe o rescaldo da pólvora.

- Não tem dúvida. Eu terei cuidado. Bandeiras nacionais cá para cima. Hão-de subir aos topes quando começar a salva.

Os velhos estavam pasmados. Haviam de supor que o Andrade tinha endoidecido, se não o vissem a conversar tranquilamente com o Mar e Guerra.

Tinham já trazido para cima as bandeiras portuguesas para os topes dos mastros.

De súbito o Mar e Guerra gritou sufocado, numa vibração de dor, como se o tivessem apunhalado pelas costas:

- Andrade! Arriaram a bandeira do Castelo. Olha a outra que sobe!

- A da França! A de Napoleão!

Viu-se chamejar um tiro de artilharia no castelo de São Jorge, a seguir uma nuvenzita de fumo e o estampido revoou pelo Tejo fora.

- Há-de ser a salva imperial! - rouquejou o Andrade numa alucinação de cólera - Velhos, a nossa bandeira para os topes! Cabo, essas estrangeiras pela borda fora!

Três daqueles pobres marinheiros velhos lá fizeram subir as bandeiras nacionais como puderam.

O Andrade tomou o morrão das mãos de um marinheiro e disparou o primeiro tiro.

- Siga por aí fora.

Até o Mar e Guerra pegou num morrão, a tremer de comovido, e disparou a segunda peça.

O Andrade correu à popa e cortou a adriça da velha bandeira, a de 19 de Maio de 1801, e amarrou-a a si como se fosse uma banda.

A salva da esquada inútil começara já. Em todas as naus e fragatas subira o pavilhão imperial. Era tamanha a fumaceira dos tiros no Tejo que dava o aspecto de um denso nevoeiro.

A esquadra russa salvara também.

Os velhos da Andorinha faziam maravilhas. Os tiros sucediam-se regularmente e eles a correrem de peça para peça, o pranto a esbagoar-se-lhe pelas faces requeimadas.

Tinham já disparado quinze caronadas.

Num esforço violento, o Andrade fizera recuar sozinho a primeira caronada que fêz fogo.

- Pela gloriosa marinha de Portugal! - gritou - Capitão de-mar-e-guerra, a nossa corveta protesta nesta salva real com as nacionais nos topes!

De frente para a boca da caronada, o saco da pólvora nas mãos trémulas, parecia esquecido de todos os preceitos e de todas as cautelas.

Das vinte bocas de fogo da corveta era aquela somente a que tinha de dar dois tiros para completar a salva real.

- Para o último tiro! - rouquejava.

- Meu comandante - avisou o guardião - Olhe que essa não é segura!

- Melhor! - disse consigo o Andrade, tragicamente.

Meteu a carga na boca da caronada, sempre e como propositadamente de frente para ela, e empurrou-a para dentro com o soquete.

Tinham disparado o décimo nono tiro. Faltavam dois. Jerónimo de Castro vinha para êle e bradou aflitivo:

- Andrade!

Soaram dois tiros, quási ao mesmo tempo, o último com um ruído abafado, frouxo, que só se ouviu na corveta.

Dera-se um desastre, desgraçadamente vulgar nas salvas com as velhas peças de ferro em cujas falhas interiores ficavam a arder os resíduos do tiro precedente.

O comandante sabia-o. Mas como que uma súbita amargura o levara para a boca daquela caronada.

A carga fizera explosão a meio da peça e o corpo do Andrade foi atirado pela borda fora, em pedaços. E a fumegar naquele tronco sangrento, como ínclita mortalha, a velha bandeira da corveta.(1)

Tinha sido um suicídio.

 

*1... «o general em chefe mandou arvorar a bandeira francesa nos fortes, nos castelos, nas principais baterias e na esquadra, e a bandeira portuguesa desapareceu». (Thiébault, pág. 87 da Relation de l'expédition du Portugal).

 

           O sangue da populaça.

Voltemos ao Rossio. De uma janela alta alguém gritava como quando se vê praticar um crime:

- A bandeira do Castelo! Estão a arriá-la!

A multidão sentiu um arrepio de terror, estremeceu, olhou para o Castelo, ficou mais unida, como se um vento de desgraça a houvesse amontoado ali.

Viam-se melhor os olhos que choravam, sentiam-se uns aos outros os corações amargurados.

- Estão a içar a bandeira francesa!

Na praça os generais tiraram os chapéus emplumados, as tropas apresentaram armas, as bandas dos regimentos, os clarins e os tambores arremessaram às faces daquele pobre povo humilhado as suas soberbas vibrações triunfais.

De olhos pregados no mastro por onde a bandeira imperial subia lentamente, a populaça rouquejou uns brados de protesto e de mágoa. É que, lá em cima, no velho castelo mouro, coevo dos primeiros tempos da pátria portuguesa, aquele mastro esguio tomava as proporções de um símbolo aos olhos dessa gente brutalmente afrontada.

Portugal caía como aquela bandeira arriada: o invasor afirmava a sua tutela política na outra bandeira erguida.

Agitou-se a multidão como se palpitassem num só corpo todos aqueles corações alanceados.

O sussurro cresceu, como cresce o rumor das ondas quando vão contra as rochas, a escachoar num galope furioso, umas sobre as outras. !

Novion empalideceu e mandou logo dividir em patrulhas o grande piquete de cavalaria da Guarda-Real que estava de prevenção no largo de São Domingos.

Aprumado no cavalo, com o seu ar gascão, Junot olhou altivo para aquela canalha que rugia mágoas pela sua bandeira aviltada.

- Aquela bandeira desmente Junot! - bramiu Manuel de Albuquerque à porta do Nicola - Isto foi a exautoração de uma nacionalidade!

E arrojou-se para a frente a gritar umas afrontas na língua dos invasores.

Abraçaram-se a ele o Valadares e uns rapazes de boas famílias e conseguiram levá-lo para dentro.

Foi a tempo, porque vinham já para a porta do botequim duas patrulhas da Guarda-Real com os cavalos às upas contra as filas do povo.

Felizmente para o bravo oficial do Rossilhão o seu francês insultador perdeu-se por entre os brados de comando, os toques dos clarins, o ruído da cavalaria e da artilharia a desfilarem pela rua Augusta e rua do Ouro e pela calçada do Carmo, para desembaraçarem a frente às colunas cerradas dos batalhões, numa exagerada consentração, por causa da insuficiência da praça.

As mulheres gritavam das janelas, espavoridas, por não compreenderem aquele movimento das tropas.

Apertadas contra as paredes, as filas dos curiosos de mais audácia ficaram numa apatia de dolorida surpresa.

Refluíam ondas de gente para o Largo de São Domingos. O Largo do Jardim do Regedor estava apinhado de gente, pelos casebres do Cadaval irrompeu uma turba deveras amedrontada, muitas pessoas entraram pelos portões da Inquisição, mulheres em debandada, chorosas, aos gritos, correram de roldão para a porta do Passeio Público,(1) em pouco invadido.

Os gaiatos marinhavam pelas grades e pelas árvores, com admirável agilidade de macacos.

Espalhara-se, correra de boca em boca, que as tropas estavam saindo do Rossio para irem tomar as embocaduras das ruas, cortando a retirada ao povo para o aprisionar. Todos sabem com que vertiginosa rapidez e espavorida credulidade os boatos e alarmes de maior absurdo correm entre as multidões de qualquer nacionalidade e em qualquer país.

Levou muito tempo o desfilar de quási seis mil homens para fora daquela praça, então completamente desatravancada, erma de árvores, mas apenas bastante para a formatura regular de dois ou três mil.

À medida que os batalhões vão desocupando o centro da Praça, os homens de mais ânimo esbravejam para lá, bramindo protestos, que o piquete de cavalaria da Guarda-Real inutilmente procura conter.

Na boca dos padres e na alma crédula das mulheres falava o sonho e surgia a visão sobrenatural da pátria antiga.

 

*1. O Passeio Público, nos antigos terrenos das hortas da cera, fora mandado construir pelo Marquês de Pombal em 1764. Era velado por altos muros em que se abriam janelas de grades de ferro. Ficava entre duas ruas estreitas, na do lado ocidental o palácio incompleto e a quinta do Conde de Castelo-Melhor, na do lado oriental uma fila de prédios humildes, que iam até à embocadura da rua das Pretas.

No largo da Anunciada avultavam as ruínas do palácio dos Condes da Ericeira, o teatro abarracado da rua dos Condes e uns casebres marcavam o extremo daquela pobre rua marginal do Passeio.

 

- A bandeira das cinco chagas de Jesus, a bandeira vencedora do Campo de Ourique, arriada pelos pedreiros-livres da França!

Uns embusteiros ou uns visionários, que vieram a correr do Terreiro do Paço, espalhavam estes boatos doidos:

- Dizem que a esquadra voltou pra trás e está já à barra!

- Viram mexer a estátua de el-rei D. José quando a bandeira foi arriada!

- E uma sombra de homem em baixo a gritar: Adeus Portugal, que te vais à vela!

- Isso disse o Marquês de Pombal! Havia de ser dele a sombra!

- E uns catraeiros contaram-me agora que até houve um navio que não içou a bandeira francesa e deu uma salva real. Dizem que está dentro dele o nosso rei antigo, o senhor D. Sebastião, tal como foi naquela batalha real que se perdeu em Marrocos!

- Abaixo a bandeira francesa!

- Abaixo! Viva Portugal!

Ouviram-se os gritos de uns audaciosos, que a guarda de Novion acutilava.

O conde cruzou a praça a galope.

- Morra o francês que nos atraiçoou! - bramiu um saloio, atravessando-se-lhe no caminho, a ensarilhar no ar um marmeleiro ferrado.

O cavalo de Novion espantou-se e atirou um salto para o lado, fazendo destribar o conde.

Mas logo o ajudante francês e dois soldados caíram de espadas desembainhadas sobre o audacioso caceteiro.

Era bom jogador de pau o saloio e durante minutos varreu as cutiladas que relampejavam sobre êle.

- Viva quem é um valente!

- Viva!

- Aí com eles!

Acudiram outros populares a ajudá-lo, era tarde.

Cercou-os metade do piquete de cavalaria e em breve o destemido saloio estava estendido no chão com a cabeça aberta de alto a baixo.

Revoaram na praça novos gritos de cólera e de protesto. Partiram à desfilada ordenanças a chamar mais forças da Guarda-Real, mas também veio acudindo mais povo, e agora armado de paus, de navalhas, de espetos, de espadagões ferrugentos, saqueados de uma loja de ferro-velho, instalada nos casebres do depósito permanente da Feira da Ladra.

Chegaram uns galegos à desfilada com uma maca do hospital. Era para levar o saloio agonizante.

Brados de morte vibraram dos recantos da praça. Lembraram-se alvitres inexequíveis.

- Alguém para ir pedir aos nossos soldados que saiam dos quartéis para nos ajudar.

- Vamos todos.

- Estão fechados e não teem pólvora. Em Campo de Ourique há tropa francesa a vigiar o quartel.

- Vamos nós sozinhos à cata dos franceses! .

- Oh! filhos, - exclamou uma regateira - vamos primeiro ao Castelo, para levantar outra vez a bandeira da nossa terra.

- Do Castelo venho eu - acudiu um velho - Está lá um enxame de franceses. Puseram duas peças ao cimo da calçada. Vi-as eu carregar de metralha. Varrem tudo por ali abaixo!

- Não tem a gente armas de fogo, e esses almas do diabo bem sabem que não é à pedrada nem a pau que nós podemos pôr fora toda essa soldadesca da França e da Espanha.

- Matam-se os que se puderem matar, e Deus leve para o céu a quem morrer na defesa da nossa terra - objectou comovidamente a regateira, a tia Rosaria - Eu cá vou para onde vocês forem, e enquanto houver pedras nas ruas e alguma bala me não deitar a terra, façam de conta que têem consigo mais um home.

Sentiu-se um grande tropel de cavalos. Era a cavalaria toda da Guarda Real que vinha à desfilada, em fortes piquetes de quarenta e cinquenta cavalos, dos lados da Praça da Figueira, da Rua Augusta, da Rua do Ouro, da calçada do Carmo. Das bandas do Passeio Público desembocavam umas poucas de patrulhas, que tinham descido do Rato para a rua do Salitre.

- Aí vêem os cavalos do Nove Unhas!(1) - berrou um rapazote.

- Morra a guarda traidora!

- A guarda jacobina!

- A guarda do Conde Francês!

Caiu uma saraivada de pedras sobre a cavalaria de Novion.

- Carregem essa canalha! - mandou o Conde ao seu imediato.

E acrescentou baixo, inclinando-se para ele:

- Vou falar com o general em chefe. Isto está-se turvando muito! Não tardarei.

Meteu a galope para a calçada do Carmo com o ajudante Groson e quatro ordenanças de cavalaria. No Chiado meteu o cavalo a trote.

- Não vejo isto bem parado! - disse em francês ao ajudante - Desconfio que a guarda hesita em carregar o povo!

- Isso já eu percebi.

- É preciso que Junot mande sair alguma tropa. E deitou a galope para a rua do Alecrim. Estava embandeirado o palacete do Quintela.

Do largo das Duas Igrejas até ao fim da rua do Alecrim um esquadrão de dragões e um batalhão de infantaria como guarda de honra.

No pequeno largo, defronte do palacete, muitas ordenanças, de cavalos à mão.

 

*1. O povo designava Novion por aquela alcunha picaresca.

 

A um canto uma secção de artilharia com dois canhões de pequeno calibre.

Vinham chegando generais com os seus estados-maiores, oficiais superiores dos regimentos, a quem Junot convidara para um jantar de gala.

Para a récita de São Carlos estavam convidados, além daqueles, todos os oficiais condecorados com a Legião de Honra. Esperava-se um espectáculo de grande brilho e de ruidosa significação política.

Entravam coches no largo. Eram dos governadores do reino e altos funcionários portugueses, a quem a aceitação do convite para o jantar fora imposta em termos de mal disfarçada ameaça.

Tornemos ao Rossio. Dois ou três soldados da polícia tinham sido levemente feridos à pedrada.

Deram-se vozes de carregar, o povo recuou, levantando vivas a Portugal, e os piquetes desobedeceram. Apenas meia dúzia de soldados atiraram os cavalos contra o povoléu num movimento maquinal de submissão, de que logo se arrependeram.

De coração oprimido, os próprios oficiais tiveram vergonha de insistir na ordem de carregar, e meteram a passo por entre o povo, aconselhando prudência e pedindo que não os abrigassem a algum acto de violência.

Não admirava. Eram da mesma terra ultrajada.

Houve uns instantes de trégua. Entardecia.

Em meados de Dezembro ainda anoitecia muito cedo. Mas o mar do povo, por momentos calmo, ia agora avultando com os que chegavam de todas as direcções armados de paus e chuços antigos.

Corriam mentiras de violências praticadas pelos franceses em outros locais da cidade.

- Para nos escarnecer, o Jinó vai dar jantar de gala - informou um criado de certa casa fidalga.

- Estão a pôr lanternas no teatro de São Carlos. Luminárias e musicata à reveria desta ofensa que fizeram a Portugal.

- Mas nós tamém havemos de ter a nossa festa. E então hão-de pagá-la eles - disse a intrépida regateira, acaudilhando um bando de mulheres.

- Deixa-se a Guarda Real em paz - lembrou outra mulher - é da nossa gente.

- Ali, no Terreiro do Paço, há franceses à mão. - Está lá uma guarda. Vamos ver se ajudamos a acender as luminárias - disse a tia Rosaria.

- Mas não digam isso alto, que pode vir a polícia atrás de nós. Passamos palavra uns aos outros, e finge-se que vai cada qual para sua casa. Lá nos ajuntaremos e antão é que há-de ser festa rija, para contentar o Jinó.

- Tá feito.

Foram passando a combinação uns aos outros e começaram a retirar aos grupos, em diversas direcções.

A cavalaria da Guarda tinha concentrado entre o Passeio Público e o palácio da Inquisição, com um piquete no Largo de São Domingos. Muito do coração se convenceram os oficiais de que nada mais se podia e devia fazer do que vigiar prudentemente e acalmar os ânimos, levando as espadas embainhadas.

Àquela hora, o sol a morrer, uns crédulos sonhadores subiram o alto das Chagas e ao de Santa Catarina para ver se descobriam a esquadra do Regente, que voltava, ou o navio fantástico em que D. Sebastião vinha para batalhar por aquela bandeira afrontada que desaparecera.

Ainda havia sonhadores, ainda havia sebastianistas! Mas o sol sumiu-se, a esquadra não voltou e ninguém pôde ver de capacete emplumado e lança em riste o malogrado imperador de Marrocos.

Aquela afronta era de esperar.

Estava na letra e no espírito do tratado de Fontaineblau. Mas quantas cousas de mágoa a gente espera e tem como certas que afinal nos causam uma dor maior que a mais tremenda surpresa?

A morte de alguém estremecido, por exemplo, de alguém que os médicos abandonaram e toda a gente julga perdido.

Agoniza, percebe-se, vê-se que só um milagre lhe poderá segurar a vida, mas quando a morte vem gelar esse coração que estremecemos, sentimos uma revolta de dor, inexcedível, como se aquele desfecho lúgubre fosse uma coisa absolutamente inesperada.

Era assim o caso daquela bandeira caída.

No Terreiro do Paço havia uma forte guarda de granadeiros franceses, soldados magníficos, de espectaculoso uniforme.

Numerosas sentinelas, já de capotes vestidos, passeavam nas arcadas e ao centro da praça, de armas ao ombro.

Tinham dado cinco horas. Escurecia. Vinham chegando grandes grupos de gente do povo. do lado da rua do Arsenal, da rua do Ouro, da rua Augusta, da rua da Prata, da rua da Alfândega.

As sentinelas começaram a suspeitar de semelhante ajuntamento.

Pouco depois a praça estava quási cheia de povo.

Uma voz de estentor gritou:

- Viva Portugal! Morram os franceses!

Respondeu-lhe uma vozearia atroadora. A sentinela principal chamou às armas, a que estava a meio da praça deu um grito de alarme e foi a terra sob um sarilho de paus, que lhe tinham quebrado a baioneta.

Os que vinham chegando pela rua Augusta ouviram o tinir das varetas nos canos das espingardas, depois, a uma voz de comando, o ruído de levantar caçoletas para escorvar.

- Olhem que eles estão carregando as armas! - avisaram em grita dois ou três recém-chegados.

A turba multa não os ouviu.

A gritaria recrudesceu. Rouquejaram os tambores da guarda, como dando o sinal da concentração, e todas as sentinelas dispersas pelas arcadas se retiraram a marche-marche para o corpo da guarda.

A populaça tomou aquilo à conta de fuga cobarde e foi de roldão para defronte de noventa granadeiros, formados debaixo da arcada do Ministério da justiça, armas já carregadas, baioneta calada.

- Viva Portugal! Morram os franceses!

O povo bloqueou aquela parte da arcada, brandindo os seus cacetes e os seus espadagões enferrujados, sempre a bramir palavras de morte.

Ia na frente da turba um soldado da Guarda-Real que se passara para os amotinados. Os franceses prenderam-no, o povo tentou tirar-lho.(1)

Para intimidar os mais ousados, o comandante da guarda mandou dar uma descarga com pontarias altas.

As balas assobiaram pelas curvas dos arcos, o estampido revoou medonhamente pela arcaria fora e uma onda de fumo se enovelou pela praça por cima daquela multidão ululante.

A turba recuou, num movimento instintivo de terror. Uma pontaria mais baixa guiara uma bala até à cabeça do mais corpulento dos revoltosos. O homem caiu, dando um brado de cólera.

Não era um ferimento mortal. A bala passara de raspão, rasgando-lhe a face e uma orelha. Mas a turba viu-o cair ensanguentado e julgou-o morto.

- Mataram um dos nossos!

- A eles!

 

*1. Este facto vem referido por J. M. de Sousa Monteiro, a pág. 125 do tomo I da sua História de Portugal.

 

- À pedra!

Milhares de pedras bateram de súbito contra as pedras dos arcos. Dois granadeiros retiraram da forma contundidos.

O comandante da guarda quisera afastar a multidão, amedrontando-a, ateou-lhe as cóleras. Hesitava agora em mandar fazer uma descarga de pontarias baixas.

Mandou outra vez carregar armas.

- Vão fazer fogo! - avisou um popular.

- Pedras para riba deles! -gritou a regateira campeadora, mulher das fibras da padeira de Aljubarrota.

Caíram sobre a guarda sucessivas descargas de pedras, ao mesmo tempo uma onda de populares irrompeu pelos topos da arcada e levou diante dos cacetes as patrulhas que a guardavam.

Alguns galuchos amedrontados dispararam as espingardas sem voz de comando, mas as balas perderam-se no ar.

- Vamos a apertar com eles!

- Esses cães hão-de pagar a ofensa à bandeira! Mais pedras. Um grande calhau deitou ao chão o

comandante da guarda, e então, apesar dos esforços de dois oficiais subalternos, dos sargentos e de vinte ou trinta soldados velhos, a galuchada esbandalhou-se, os populares apertaram então de todos os lados, e o tenente, num ímpeto de desespero, em gritos de impropério contra aqueles acobardados galuchos, conseguiu reunir os dispersos e mandou avançar de baioneta calada para o lado da rua do Ouro, no intento de retirar daquela posição, onde lhe era impossível manter-se.(1)

 

*1. O sussurro e ajuntamentos foram crescendo para a tarde, e às cinco horas e meia estava principiada a Revolução (ou melhor lhe chamaremos Defesa Nacional) na Praça do Comércio, (Terreiro do Paço) e principiou com tanto ardor e entusiasmo, que em um momento se viu acender-se o ataque, e desamparar vergonhosamente os seus postos a guarda de granadeiros do bravo exército da Gironda, à força de golpes de pedras, paus e armas curtas.

É preciso descontar neste trecho do Observador Português (pág. 40) o exagero patriótico no apreço da revolta e a rancorosa injustiça feita ao ânimo dos invasores. O cronista viu e sofreu, explica-se aquela sua amarga ironia e aquela ofensa ao exér cito francês, a envolver soldados que tinham dado assinaladas provas de intrepidez embora naquela conjuntura alguns tivessem esmorecido pela surpresa da agressão, por parte de uma turba legitimamente irritada.

 

Os revoltosos, uns cem talvez, que estavam daquele lado, recuaram ensarilhando os cacetes contra as baionetas.

Chegava do Rossio um esquadrão da Guarda Real, que não acutilou os amotinados, mas sustentou a retirada dos granadeiros, já a passo dobrado pela rua do Ouro acima.

- Viva a Guarda Real! - clamaram alguns.

- Vivam os soldados de Portugal! - acudiram outros.

Sucedeu que passava então a cavalo com o seu ajudante-de-campo o general Marquês de Alorna, recentemente chegado do Alentejo. Alorna era um dos mais prestigiosos generais do país. Tinha feito as campanhas do Rossilhão e Catalunha.

Dois populares o conheceram.

- Viva o sr. general Marquês de Alorna!

- Já temos quem nos mande.

- Sr. general! Já combateu franceses, ponha-se à nossa frente!

- Arriaram a bandeira de Portugal e nós queremos levantá-la amanhã.

- Não sonhem loucuras - observou-lhes o Marquês - Olhem que terá de pagá-las a cidade e o reino. Estão em Lisboa onze a doze mil franceses e espanhóis, nas províncias cerca de quarenta mil, virá o dobro, se fizerem desvairas, e não é à pedrada que se podem repelir os soldados de Napoleão, quanto mais vencê-los.,Vão para suas casas. Isto tinha de ser. Tenham prudência. Perdem-se e sujeitam a cidade a alguma grande desgraça.

- Para a nossa casa! E a nação, sr. General? - preguntou a tia Rosaria.

- Assim é que mais a podem perder. Daqui a pouco estarão sobre vocês sete ou oito mil homens, e duas ou três peças carregadas de metralha podem varrer num minuto os três ou quatro mil caceteiros e apedrejadores que calculo estarem aqui.

- Está a querer esmorecer-nos!

-Pois deixem-no ir - disse a Rosaria - Talvez fosse convidado para o jantar do Jinó.

Alorna turvou-se, fêz um movimento brusco de impaciência e meteu esporas ao cavalo, direito à rua do Arsenal.

- Há-de ser dos tais que têem coração de francês! - comentou a regateira com ar de lástima.

- Olhem lá - disse um homem já muito nosso conhecido - o general não quis acompanhar-vos, mas eu acompanho-vos seja para onde fôr.

Repararam nele, espantados.

- Também andei na guerra com aquele general. Já sei como as balas francesas mordem.

Era Manuel de Albuquerque. Ainda não tinha ido a casa. Assistira a todos os episódios do Rossio e viera para o Terreiro do Paço mal ouviu dizer que o povo amotinado se juntara ali.

- Está dito - acudiu a regateira - A nação lho agradecerá.

E, voltada para as mulheres, fêz assim a apreciação daquele a quem tinham posto a alcunha de maluco.

- Já não é nenhum manjaricão sanjoaneiro, mas tem tabuleta de home resoluto - Olhe cá sô capi tão desta tropa fandanga!

Os latagões de mitra cabeluda, os tais granadeiros do Jinó, já nós pusemos a andar com a rabadilha tefe-tefe - Agora queremos assistir à sobremesa do Quintela e ficaremos p'r'ás cantigas de São Carlos. Inté os franceses vão ficar estarrecidos com a cantoria que nós havemos de fazer.

Riram, apoiaram, deram vivas à tia Rosaria. Feitios do povo. Em toda a parte a eterna criança, ainda que tenha sido um assombro de herói ou um assombro de ferocidade.

- Olhem a Guarda! - disse uma das mulheres.

- Desses não há que temer. São cá do nosso sangue, já nos não fazem mal.

O esquadrão da Guarda metera em linha ao longo da praça. Já não podiam contar com êle para acutilar o povo.

- Vá, seu capitão, vamos lá p'ró palácio do Quintela. Queremos lá chegar a tempo p'r'ás saúdes - disse a sr.a Rosaria.

- Mande esta sua gente.

Manuel de Albuquerque sentia agora a nota cómica do seu oferecimento mal interpretado. Tinha vindo para ali com pura devoção de patriota e acompanharia aquela gente num movimento instintivo do seu ânimo intrépido.

- Eu não quero nenhum mando - explicou-lhes. - Sinto que estão aqui corações portugueses, vou também para os ajudar ou para morrer com vocês, ainda que os vá guiando um varredor de ruas. É mais um, e de sangue é que isto precisa para tornar a ser o que foi. Vamos para onde quiserem ir.

- Bem dito e tá feito! - bradou a tia Rosaria. Meteram pela rua do Arsenal aos vivas à Pátria.

- Amanhã outra vez p'ra a riba a nossa bandeira! A distância e a passo, seguia-os o esquadrão da

Guarda Real.

Subiram a rua do Alecrim, dando morras aos franceses.

O batalhão da guarda de honra ao palácio do Barão de Quintela recebeu ordem de carregar as armas. Uma companhia avançou para a turba de baioneta calada. A cavalaria da polícia não teve remédio senão intervir, mas foi brandamente que o fêz.

E, na retaguarda da turba, aquela cavalaria policial podia empurrá-los à cutilada contra as fileiras francesas.

Longe disso. Oficiais e sargentos pediam alto aos amotinados que se retirassem, e os soldados abriram intervalos por onde eles pudessem fugir às baionetas francesas.

Meteram os populares de corrida para o Corpo Santo, como se todos tivessem tido a mesma ideia.

O esquadrão da Guarda fêz alto no Cais do Tojo.

- Vamos de volta, pelo Ferregial acima - gritou a sr.a Rosaria - Se já não formos a tempo das saúdes, iremos p'rá cantoria de São Carlos.

E lá meteram aos gritos pela rua do Ferregial acima, numa coluna esguia que não tinha fim.

Poucos minutos depois, aquele mar de povo andava revolto no Largo das Duas Igrejas, transbordava para o Loreto, ia escachoar contra os dragões da guarda de honra, ao topo da rua do Alecrim.

Junot estava já avisado. O seu brinde pelo êxito brilhante do exército da Gironda fora interrompido pelo brado da populaça, de tal modo intenso que se ouvia lá dentro, na sala grande do Quintela, resplandecente de lumes, de bordaduras de oiro, de pratas cinzeladas.

Os governadores do reino enfiaram. Todos os oficiais quiseram sair. Com a sua coragem, até ali nunca desmentida, com aquela coragem que tantas vezes se mudou em louca bravura, Junot apenas se afogueou um pouco.

- Não consinto que saiam. Tenho de completar o meu brinde. Margaron, basta que o meu caro general se incomode. Ponha-se à frente do esquadrão da minha guarda de honra, mande chamar os da sua brigada, se forem precisos, e limpem-me as ruas dessa canalhada. Daqui a uma hora temos de ir para São Carlos.

Os seus camaradas volveram para êle um olhar de homenagem. Lembravam-se da serena resposta do antigo sargento de Tulono.

Estava Margaron a pôr o pé no estribo, quando em cima vibraram umas saudações calorosas.

Ao mesmo tempo do Largo das Duas Igrejas revoaram gritos da populaça com uivos de cólera. A seguir uns tiros.

Em cima, na sala magnificente, o champanhe a referver cintilante em taças de cristal de Boémia, alguns dos mais ilustres colaboradores da epopeia napoleónica, de pé, numa atroadora exaltação, saudavam com frenesi o nome do maior conquistador dos tempos modernos e com êle a fácil conquista de Portugal, teoricamente retalhado pelo conluio franco-espanhol de Fontainebleau.

As taças tremiam nas mãos dos governadores do reino. Aquela exautoração completava a outra da bandeira.

Dos convivas franceses um só ficara numa fria atitude de homem apreensivo. Era o general Thiébault.

Já tinham chegado alguns piquetes franceses que estavam de prevenção nos conventos de São Bento e dos Paulistas.

- Viva Portugal! Morram os franceses!

Era ensurdecedora a gritaria. Os primeiros tiros daqueles piquetes tinham morto três homens. Dos feridos não se sabia o número. Braços amigos os tinham amparado e os levavam sem alarde para os hospitais ou para as suas casas.

O sangue da populaça espumejava pelos degraus das duas igrejas fronteiras, como poucos passos abaixo o champanhe nas taças dos generais invasores. Mas a saraivada das pedras não cessara e alguns soldados franceses tinham caído feridos. Dois agonizavam anavalhados.

Margaron pôs-se à frente do esquadrão da guarda de honra e arrojou-o contra a multidão, numa carga que seria medonha, se ao fim de duas galopadas os cavalos se pudessem mexer.

Houve um alarido doido. O povo era tanto que os cavalos dos dragões o atropelavam sem poderem abrir caminho. Deitavam a terra, espezinhavam, mas afinal empinavam-se e eles próprios, de olhos esbugalhados, arquejantes, as ventas numa tremura de espanto, impediam que os cavaleiros acutilassem a gente caída.

Pragas e gritos doloridos de todos os lados. Os caceteiros mais destemidos, levantando os varapaus, que não podiam ensarilhar, oprimidos uns contra os outros, formavam uma trincheira diante das espadas dos dragões, a embotarem-se em golpes curtos nos marmeleiros, rijos e nodosos.

Afinal a turba dos apedrejadores pôde espraiar-se para o largo da Trindade e pelo Chiado abaixo e de lá pelos declives da rua do Almada e da calçada do Carmo.

A cavalaria sentiu-se desafogada, mas ali lhe susteve o ímpeto outra legião de caceteiros, a recuar, a ladear, a sumir-se pelas portas que lhe abriam ou eles podiam forçar.

Com a espada de um dragão, deitado abaixo com uma paulada, um homem velho, alto e seco, esgrimia intrepidamente, recuando a passo. Era Manuel de Albuquerque.

De súbito encontrou diante de si um dragão apeado, a quem um fadista da Alfama, quási de gatas, rasgara à navalha a barriga do cavalo.

Foi um combate singular de alguns minutos. Manuel de Albuquerque era bom jogador de armas e derribou-o de um golpe. O dragão, um alsaciano, alto como um pinheiro, caiu para trás a golfar sangue.

Chegou mais cavalaria. Já podiam carregar à sua vontade.

- Fujam ali para a igreja do Sacramento - gritou a regateira velha, a tia Rosaria.

- Para as escadas da igreja - gritaram de um grupo que já ia pela calçada acima.

- A igreja está aberta.

Correram para lá. Sustentava a retirada a legião dos caceteiros. Manuel de Albuquerque foi levado com ela de roldão.

Fugiram pelas escadas acima, encheram a igreja. Outros foram para diante, a correr.

Os dragões não podiam ir lá dentro acutilá-los. Mas atrás deles vinha uma força de infantaria ligeira.

- Animo, criaturas de Deus! - Dizia lá dentro a tia Rosaria às outras mulheres, que estavam num choro alto de pavor - Inda nós havemos de ir às cantigas da ópera e...

Não pôde dizer mais nada. Estrondeara uma descarga na rua. Umas poucas de balas entraram pela igreja dentro. A intrépida regateira caíra de bruços, rouquejando.

Manuel de Albuquerque, afastado para um canto a combinar com os mais animosos dos caceteiros o meio de ir fazer rosto à cavalaria, para proteger a fuga daquelas pobres mulheres, correu para a intrépida regateira e levantou-a nos braços.

- Aqui... no peito - murmurou ela - Acabou-se. Os meus filhos!

E desfaleceu. Eram lancinantes os gritos das outras mulheres.

- Coitadinha! Tem dois filhos na tropa! Ouviu-se outra descarga, mas desta vez as balas foram cravar-se altas no retábulo e nas colunas da capela-mor.(1)

A seguir, toda a força de infantaria ligeira tomou a escada e a porta da igreja. Fora reforçada por uma companhia de granadeiros, que chegara a marche-marche e formara defronte do templo, de baioneta armada e dedo no gatilho.

Um oficial entrou e intimou ordem de prisão a toda aquela gente, numa trapalhada de mau espanhol mesclado de francês.

Manuel de Albuquerque foi para êle serenamente.

- Para esta capitulação da igreja não são precisas formalidades -disse-lhe em francês, numa grande amargura de sarcasmo que lhe fazia tremer a voz.

- Não é capitulação, é captura - retorquiu o oficial - Entrem, desarmem-nos - ordenou aos soldados.

- Entregam-se à descrição estes homens de uma nação ultrajada. Contra as vossas espadas, as vossas baionetas, as vossas balas, apenas puderam opor os seus corações amargurados e uns varapaus que vão ficar como troféus desta façanha. Meus compatriotas, entregai aos vencedores os varapaus e as pedras, as vossas armas.

Os da legião dos caceteiros depuseram os varapaus no pavimento da igreja. As mulheres despejaram as pedras que traziam nos grosseiros aventais.

- E vós essa espada - disse o oficial, crescendo para êle.

- É dos vossos dragões. Tomei-a. Devolvo-a. E quebrou-a no joelho.

 

*1. A confusão foi grande em várias ruas, no Chiado e Calçada do Carmo, porque fugindo várias pessoas para a igreja do Sacramento, os soldados franceses deram duas descargas para dentro do Santuário, e aí prenderam quantos se achavam...» (Observador Portuguez, pág. 41).

 

- A que escória pertenceis, insolente! - disse o oficial francês, crescendo para êle e de espada estendida.

Dava-lhe então no rosto a chama de um archote com que um cabo entrara na igreja, até ali escassamente iluminada por uma lâmpada mortiça e dois círios do altar-mor.

Manuel de Albuquerque atentou no oficial francês e respondeu-lhe lentamente:

- Podeis assassinar-me, mas não me intimidais. O que eu vos sei dizer é que aprisionei há largos anos um sargento francês ferido -foi em 1793, em Ceret do Roussillon - e salvei-o dos ódios da soldadesca espanhola.

- Sois então? - preguntou o francês, baixando a espada e reparando muito nele.

- Um tenente-coronel português que deixou o serviço, pertenço à nobreza do meu país.

- Chefe de caceteiros e de mulheres apedrejadoras!

- Paisano como eles, português como eles, acompanhei-os. Não encontrei outros para vingar a minha nação afrontada! Quanto às mulheres não vos admireis. As da vossa Revolução, as das ruas de Paris, dizem que se embebedavam semi-nuas e assassinavam uns velhos indefesos.

- Não temos que descutir.

- Podeis mandar. Sou prisioneiro vosso. Entretanto está ali uma pobre mulher agonizante. Mandai-a para o hospital. Nos campos de batalha dão-se tréguas para enterrar os mortos. Por vossa mãe, se vive, pela sua memória se morreu. Aquela tem dois filhos.

Muito comovido, o oficial mandou a uns soldados que a levassem e conduzissem à ambulância militar do Loreto, onde se estavam pensando os feridos.

Um cabo e dois soldados de cabelos grisalhos a levantaram rudemente.

- Soldados de Arcole e de Austerlitz, mais caridade - disse-lhes em francês Manuel de Albuquerque, e foj para eles - Não fujo, sr. capitão. Dou-lhe a minha palavra de honra que não fujo.

Pôs a mão no peito da tia Rosaria.

- Já se não sente este coração que merecia o peito de um soldado! - disse tristemente para o oficial francês.

E depois, em português, para as outras mulheres a chorarem alto, em soluços.

- Mulheres, falai dela aos vossos irmãos, aos vossos filhos, para que eles sejam como ela foi, no dia em que também tivermos espingardas, balas, artilharia.

Levaram-na para fora.

- Vão saindo com os presos- ordenou o oficial francês aos soldados.

E, entre filas deles, lá iam indo para fora, de olhos baixos, aqueles pobres prisioneiros de guerra.

A um e outro lado dos altares pilhas de cacetes golpeados, pedras aos montes pelo pavimento, a lembrarem a orla de um caminho que se vai calcetar.

- Como se chamava o sargento francês que salvaste em Ceret? - preguntou-lhe abruptamente o oficial francês, baixando a voz.

- Ernesto Maurin. Esteve prisioneiro uns poucos de meses. Matei-lhe a fome. Consegui que não o metessem entre os grilhetas da praça de Ceret.

- Por ter esbofeteado um sargento espanhol que o insultara.

- Sabeis?! Conhecei-lo?

- Conheço. Tem mudado muito. Era um rapaz de vinte e três anos, quási imberbe. Hoje tem trinta e sete, os trabalhos, os sofrimentos e um ferimento no rosto mudaram-no muito.

Saía a penúltima leva de presos.

- Podeis ocultar-vos ali para dentro - disse-lhe o Capitão rapidamente, inclinando-se para êle - Não quero levar-vos à morte. Seríeis fuzilado como cabeça de motim.

Manuel de Albuquerque olhou-o estupefacto.

- Não aceito favores humilhantes de um inimigo.

- Estais enganado, sr. de Albuquerque. O capitão Ernesto Maurin paga-vos agora a generosidade misericordiosa de 1793.

- Ernesto Maurin!

- Eu próprio. Tenho de sair: ficai, escondei-vos.

- Não aceito a paga.

- E eu não vos levo preso.

- Não aceito, porque esse Ernesto Maurin, a quem salvei a vida, foi talvez, há instantes, quem mandou dar duas descargas para dentro desta igreja com desalmada selvajaria.

- Engano vosso, sr. de Albuquerque. A voz de fogo não foi minha. Eu não vos levo preso e podeis comprometer-me. Ocultai-vos detrás daquele altar.

- Aceito a paga - respondeu Manuel de Albuquerque sombriamente - Mas, por este país ultrajado, capitão Maurin, seja onde fôr, somos dois inimigos irreconciliáveis.

Afastou-se para o recanto de um altar mais próximo. Maurin foi para a porta da igreja.

- Meu capitão - veio dizer-lhe um sargento - o chefe do batalhão manda saber se há mais alguém a levar.

- Mais ninguém - respondeu Maurin, indicando ao sargento que se retirasse.

E desceu a escada atrás dele.

Às oito e meia a multidão dos protestantes desaparecera das ruas. Ouvia-se apenas o alerta das sentinelas à embocadura das ruas por onde o trânsito era maior nos dias normais, e, de espaço a espaço, o tropear dos cavalos e o passo cadenciado dos grandes piquetes que se cruzavam em todas as direcções.(1)

Manuel de Albuquerque saiu da igreja serenamente. Não ia embuçado, não levava nenhuma arma, ia como um homem sem receios e sem responsabilidades. Não fizeram caso dele dois piquetes de infantaria que encontrou no Chiado.

Subiu, meteu para a rua do Picadeiro. Sentia a dolorosa curiosidade de ver o resto daquela festa.

A fachada do teatro de São Carlos tinha luminárias. No largo apenas alguns coches e seges. Das famílias portuguesas que tinham assinatura, poucas se atreveram a ir ao teatro, por causa dos tumultos. Nos camarotes estariam, principalmente, as famílias de alguns emigrados, negociantes e industriais franceses.

Tinham chegado havia pouco a Condessa de Ega e os Condes de Bourmont. A Condessa de Ega era a loura formosíssima de quem já temos notícia, a de Bourmont, senhora interessante, era esposa de um emigrado a quem devia o título.

Ouviu-se um tropel enorme de cavalaria.

 

*1. Da parte dos franceses e dos portugueses se encobriu o número de mortos naquele dia. Na sua Relation o general Thiébault diz que as excitações do povo tiveram como consequência a morte de alguns franceses, l'assassinat de quelques français, mas não fala nos feridos.

O Observador Portuguez informa que foram mortos quatro franceses, e também não dá conta dos feridos, que deviam ser numerosos, embora sem gravidade naquelas escaramuças a pau e à pedra.

Mas falta evidentemente à verdade, mencionando da parte dos amotinados apenas o ferimento mortal de uma mulher, atravessada por uma bala dos franceses, e indicando que houvera dois homens maltratados.

Se ferveram as balas da parte dos franceses, como diz, antes, e eles deram duas descargas para dentro da igreja do Sacramento, onde se tinham refugiado alguns dos amotinados, como depois refere, compreende-se que devia ter havido mais perdas, que o rancoroso orgulho dos patriotas cuidadosamente ocultou.

 

Chegava o piquete de dragões do esquadrão de honra. A pequena distância, Junot, num coche da casa real, seguido por outros em que vinham os governadores do reino e os altos funcionários portugueses que tinham assistido ao jantar. Atrás, a cavalo, os generais com os seus brilhantes estados-maiores, os oficiais superiores dos regimentos, depois o esquadrão. O batalhão de guarda de honra apresentou armas ao som da música.

- O povo é assim em toda a parte, se o deixam sem comando, reduzido às pedras das ruas! - comentava Manuel de Albuquerque - Mar bravo numa hora, mar morto daí a instantes!

Chegavam cá fora os brados dos vivas, abafados, dum ruído confuso.

Manuel de Albuquerque estremeceu.

- O final da apoteose!

Reparou nuns poucos de homens que saíam do teatro apressadamente. Não eram militares.

- Aqueles enfastiaram-se depressa ou tiveram vergonha.

Passava uma patrulha dobrada de cavalaria da polícia. O cabo mandou-o retirar dali. Foi para o Chiado.

Encontrou uns homens bem trajados que vinham dos lados do teatro, discutindo acaloradamente.

Seguiu para baixo atrás deles. Olharam-no e viram que não era pessoa para inspirar desconfianças.

- Fui lá - dizia um - porque não esperava aquele desaforo.

A poucos passos do lado de cima, outro homem de aspecto distinto passou ao lado do ex-tenente-coronel, encarou com ele e atravessou-se-lhe no caminho.

- Tu, por aqui, Manuel de Albuquerque! Tinhas-me dito ontem que ias voltar para Abrantes...

- Andei por aí a ver o pano de amostra de uma revolução. Quis tomar o pulso ao povo. Ainda há sangue que chegue para alguma coisa grande e justa. Falta a cabeça e a energia disciplinadora.

- Que não temos! Pois eu, meu caro, venho aqui de coração revolto e com a cara queimada de vergonha!

- Vamos indo, para não despertar suspeitas a esses conquistadores assustados. Vem ali uma patrulha de cavalaria. Tomemos de nosso vagar aqui para esta rua.

Indicou a rua de São Francisco, por onde não passava então ninguém.

- Andaste a ver os motins?

- Não. Pior. Venho de São Carlos.

- Ah! sim, do espectáculo de gala, pela bandeira invasora que se levantou e pela outra exautorada que eles arriaram.

- Dizes bem. Não devia ter ido. Mas que queres? Assinante de São Carlos, no hábito de ir ali desde a abertura do teatro, não resisti. Tinha passado o dia em Queluz, não conhecia bem o que sucedera por Lisboa, só à porta de São Carlos ouvi dizer que houvera tumultos e mortes, que estava muita gente ferida, mas nem podia sonhar o que eles seriam capazes de fazer no teatro.

- Eu ainda aqui percebi os vivas.

- Pior do que isso! O teatro estava cheio de franceses. Senti-me logo oprimido. Mas imagina que sobe o pano com os cantores todos em cena e a gente da orquestra de pé. Junot surge na tribuna real, naquela soberba tribuna de honra que tu conheces, com o seu uniforme brilhante de coronel-general de hússares. Atrás dele os generais. Tudo de pé. Tinham um estranho brilho nos meus olhos rasos de água aquelas fardas recamadas de oiro! Parecia-me um escárnio a banda vermelha da grã-cruz de Cristo sobre a farda de hússar do Junot. Cruzado por cima dela o seu talabarte opulento com a águia de oiro de Napoleão.

- Talvez seja um símbolo, meu caro. Por baixo da águia doirada, que é deles, essa fita côr de sangue, que é nossa. Mas, depois?

- A orquestra tocou um hino que o maestro escrevera em homenagem ao general, segundo eu lá ouvi.

- Ou êle talvez lhe mandou encomendar.

- Talvez. Pouco importava isso. A afronta foi outra. Concluído o hino, um ajudante-de-campo veio de dentro com uma grande bandeira, Junot tomou-a nas mãos, solenemente, e desdobrou-a do camarote, como se fosse uma colgadura opulenta.

- A bandeira deles?

- Sim, a deles. Rompeu então o berreiro dos vivas. Senti os olhos afogados de lágrimas, Manuel de Albuquerque. O meu lugar, felizmente, era ao pé de uma daquelas portas pequenas da plateia. Vim para fora num estonteamento de vergonha. Devia vir defigurado porque os criados me supuseram doente. E aqui tens porque eu saí com a cara queimada de vergonha.(1)

- Tudo isso há-de ter um ajuste de contas no dia em que houver quem nos empreste ou quem dê, de esmola que seja, as espingardas e as balas que os milhões dos corruptores não puderam comprar-nos.

Tinham descido para a Boa-Hora. Despediam-se.

Em casa da cunhada esperavam por êle numa opressão de receios. Não voltara desde manhã.

 

*1. Resumindo os acontecimentos no teatro, o Observador diz: «não obstante este tumulto popular e temível, foi Junot e os mais generais e oficiais superiores franceses,com grande guarda de cavalaria, ao teatro de São Carlos assistir à ópera, e fèz aparecer a bandeira francesa, à qual deram muitos vivas. Este desaforo exaltado, em semelhantes críticas circunstâncias, fêz sair para fora do teatro a maior parte dos poucos portugueses honrados, etc».

 

Os ecos e os boatos dos tumultos tinham chegado até lá e não havia mortificadora suposição que não tivessem feito.

Sabiam bem como êle era exaltado, descomedido de ânimo, e os boatos, que tinham chegado depois de anoitecer, exageravam doidamente a importância da revolta, a perda de vidas, o sangue de parte a parte derramado nas ruas.

Temiam que Manuel de Albuquerque houvesse sido vítima de alguma das suas audácias.

Era D. Matilde a mais receosa. Henrique ficara no quartel, para onde fora de madrugada, e por êle se confrangia o coração amante da esposa. O Mar e Guerra recolhera de tarde, muito oprimido, e fora meter-se no quarto, acabrunhado pela morte do Andrade, no desastre a bordo da Andorinha. Prevenira o seu criado de quarto de que não estava em casa para ninguém, e não houve quem se atrevesse a ir lá levar-lhe notícias.

O padre António foi naquele dia o enfermeiro assistente de Luís de Castro, que esteve levantado no quarto por cerca de duas horas. D. Matilde também lá estivera por muitas vezes e por largo tempo durante o dia.

Por mais que lhe disfarçassem a opressão resultante dos boatos aterradores o moço oficial percebeu que havia alguma coisa grave e opunha às informações da Mãe, sempre atenuadas, umas suposições pessimistas que a imaginação lhe ia criando de momento para momento, numas impaciências mortificadoras.

Anoiteceu, e êle cada vez mais desconfiado de que lhe encobriam acontecimentos graves.

O padre António saíra com a reservada intenção de ir ver o seu Mar e Guerra. Ficou D. Matilde sozinha a fazer companhia ao filho.

- Então o Henrique ainda não voltou do quartel?!

- Não - respondeu-lhe a Mãe.

- É singular? Porque estarão as nossas tropas... ainda retidas nos quartéis?

- Estás a cansar-te com tantas preguntas!

- Começo a perceber que me não dizem toda a verdade! Também não estou já tão enfraquecido,.. que não possa pensar em coisas de importância... e nessa verdade que me não querem dizer.

- Olha como te cansaste agora! Tu próprio me estás dando razão. São horas de repousar. Vai para as dez!

- Nem o tio Jerónimo, que vinha aqui todas as tardes ter comigo!

- Saiu de manhã e voltou incomodado. Foi para o seu quarto.

- O tio Manuel, esse então nem me aparece hoje!

- Saiu cedo e ainda não voltou. Alguns negócios teve por lá que o têem demorado.

- Incríveis coincidências! E de si para si:

- E eu aqui preso, a perceber que há alguma coisa que me ocultam e os mortifica! Violências dos franceses, talvez... o saque... a violação, como fizeram em certas cidades da Itália. E a minha pobre Maria! Quem sabe se pôde sair de Lisboa, quem sabe o que terá sido dela?!

- Luís, em que estás tu a cismar assim oprimido? - preguntou-lhe a Mãe carinhosamente.

- Nas mil surpresas de tudo isto, minha Mãe. Uma nação de rojo... aos pés de um soldado estrangeiro... um homem de vinte e dois anos... de súbito inútil para qualquer esforço... de coração cerrado para os sonhos carinhosos da gente moça!

- Sonho de loucos amores, Luís!

- De santos e castos amores, minha Mãe... O da Pátria que nos matam... e o outro de suaves encantos que me foge... assim como foge do céu a luz das estrelas... em noites negras de temporal.

- Estou a compreender-te, filho! Há outro amor que se conta, mas desse nem vale a pena falar!

- Vale. O amor sublime das mães... eu sei... Nunca se esquece... e tanto a gente conta com êle, que até lhe pede e espera a esmola do seu dó... para os outros amores de atribulada sorte... que podem morrer.

Tomou-lhe as mãos e beijou-lhas enternecidamente.

- Meu pobre enlouquecido! Para onde tu foste olhar!

- Para aquela que a minha alma sonhou e viu. Linda como nenhuma outra... das que eu via na corte... imaculada como aquelas santas juvenis... de que a sua boca me falava quando era pequenito.

Veio de fora uma gritaria enfurecida. Era na rua e de tal modo intensa, que chegava àquele quarto, a despeito das suas grossas paredes. Depois uns poucos de tiros.

- Jesus!

- Vê, minha Mãe! Vê que eu estava a adivinhar!

- Minha senhora! - veio chamar à porta um criado, muito pálido!

- Que é?!

- O povo amotinado pegou-se com um bando de soldados espanhóis, armados. O Domingos já trancou o portão. Ouvem-se aqui os gritos.

- Valha-me Nossa Senhora!

- Mãe, não se assuste. Eu levanto-me.

- Tu?! Enlouqueceste! Tu, por coisa nenhuma! Ouviram-se umas grandes argoladas no portão. D. Matilde, abraçada ao filho, suplicava que não

tentasse levantar-se.

- Vai tu... dizer ao Domingos... que vos reúna a vocês... com as clavinas que aí temos - mandou Luís ao criado.

- Entregaram-se há oito dias, por causa da ordem dos franceses.

O Domingos apareceu em cima um pouco perturbado.

- Deram argoladas no portão! Chamaram por mim e pareceu que era a voz do sr. Manuel de Albuquerque! Não sei se hei-de abrir...

- Decerto, já.

- Vou eu lá abaixo - rouquejou Jerónimo de Castro, surgindo por detrás do Domingos com uma pistola na mão.

Atrás dele o padre António, amarelado como um círio.

- É uma imprudência! - tartamudeou o Capelão.

- Homem, fique aí, e não ande atrás de mim a lamuriar.

No corredor as criadas faziam um alarido doido de choro, mas a verdade é que já se não ouvia a gritaria na rua.

- E eu aqui, Tio!

- Está de ver que sim. Não se mortifique - disse para a irmã - Nesta casa há quatro criados, e não quero crer que sirvam só para espantalhos. Vamos lá, meu velho - disse para o Domingos.

Ouviram-se novas argoladas, mais fortes. O Mar e Guerra mandou abrir o postigo alto do portão.

- Quem bate? - preguntou o Domingos.

- Sou eu. Não se assustem: abram, que a súcia bêbeda já deu às de Vila Diogo.

O Domingos consultou o Mar e Guerra num relance de olhos.

- Abre.

Destrancou o portão, deu volta à chave enorme e abriu meia porta.

Entrou Manuel de Albuquerque seguido de dois operários do arsenal do exército. Eram moradores de uns casebres, a poucos passos do palacete.

- Eu não queria que batessem, mas estes nossos vizinhos viram-me sangue e assustaram-se.

- Nós logo o reconhecemos - disse um dos operários.

- E bem vimos que um dos espanhóis lhe deu uma baionetada - acudiu o outro.

- De raspão, aqui no braço. Não foi nada.

- Mas estás todo ensanguentado - disse o Mar e Guerra.

- Lava-se com água fria, ata-se-lhe uma ligadura, e pronto. Faz-se de conta que foi uma dentada dos meus companheiros dos Pirenéus.

- Mas pagou-as. V. ex.a abriu-lhe a pinha com aquele cacete que lhe deram para as mãos.

- Domingos, vamos lá ao teu quarto para se arranjar isto. Não quero ir lá para cima assim.

Tinha descido uma criada.

- A senhora - diz a tremer - deseja saber o que sucedeu.

- Diga-lhe lá que não foi coisa de importância - respondeu-lhe Manuel de Albuquerque - Uma desordem com uns poucos de soldados bêbedos. Eu vou arranjar uma coisa e não tardo lá em cima, para contar à senhora o que foi. Diga-lhe da minha parte que esteja tranquila.

A criada subiu a tremer. O Domingos foi abrir a porta do seu quarto.

Era realmente um ferimento ligeiro o de Manuel de Albuquerque. Enquanto lhe lavavam o braço e lhe faziam um curativo de cirurgia caseira, Jerónimo de Castro resumiu-lhe o trágico desastre do Andrade. Albuquerque deu-lhe uma notícia brevíssima dos acontecimentos a que tinha assistido.

Um dos operários contou que vinham do Rossio, êle, o seu companheiro e outros que moravam ali nas vizinhanças, quando ouviram a algazarra dos espanhóis à porta da taberna que ficava ali a uns duzentos passos. Eram os soldados com armas, que tinham andado de patrulha e já borrachos. Meteram a porta dentro às coronhadas.

A mulher e a filha do taberneiro fugiram para a rua aos gritos.

Acudiram uns quarenta homens daquelas vizinhanças e caíram sobre os espanhóis, que não seriam menos de vinte ou trinta.

Fizeram-nos recuar ensarilhando os paus contra as baionetas e assim vieram sobre eles, até que, defronte do palacete, vendo-se mais apertados, os espanhóis dispararam uns poucos de tiros, que só feriram um dos do povo.

Foi nessa ocasião que chegou Manuel de Albuquerque e lhes disse palavras de alento, metendo-se na briga com o pau ferrado daquele que caíra ferido. Apertaram então mais com eles e lá deitaram a fugir para as bandas do Grilo.

- E aqui tens, meu Mar e Guerra,.. - comentou de gracejo o fidalgo de Abrantes - aqui tens como deu em caceteiro um antigo capitão, o tenente-coronel escalavrado na Montanha Negra. Tinha de levar a minha conta neste aziago dia 13.

- Horrivelmente aziago! - confirmou o Mar e Guerra.

- Bem, vamos lá para cima. Peço-lhes um favor - disse, despedindo-se dos dois operários.

- O que v. s.a mandar - acudiu um deles.

- Foi mortalmente ferida com uma bala uma pobre mulher. É natural que a tenham levado para o hospital de São José e é provável que tenha falecido. Já se lhe não sentia o coração. Ouvi que é vendedeira da praça da Figueira. Chamavam-lhe Rosaria. Devia ter mais de cinquenta anos. Desejava saber o que é feito dela. Se tiver falecido, cousa que tenho por segura, faço-lhe eu o enterro e vou acompanhá-la. Foi o coração mais valente que os franceses encontraram aqui. Os srs. fazem-me o favor de indagar isso que desejo saber, pago-lhes o dia, se amanhã abrirem as portas do arsenal.

- Não é preciso pagar.

Assim que romper a manhã, iremos saber o que v. s.a deseja e cá lhe viremos trazer a resposta.

- Fazem-me especial favor.

- Valha-nos Deus! - disse-lhe D. Matilde do alto da escada - Foi ferido, já sei!

- Uma arranhadura em que não vale a pena falar.

- O Luís está impaciente...

- Pois vamos lá vê-lo.

- Pois sim, vão. Eu vou acompanhar a nossa

Branca, está oprimida de pavor.

- É por causa do marido?

- Sim.

- Pode tranquilizá-la. Não presenciei nem ouvi falar de nenhum conflito com a nossa tropa. Está fechada nos quartéis.

E depois disse para o Mar e Guerra: - Vamos lá. Entraram no quarto de Luís de Castro.

- Ah, houve então coisas muito graves... que me não têem querido dizer!

- Umas coisas, meu rapaz. Puseram hoje uma bandeira diferente no Castelo.

- A da França?

- Sim, essa. O povo ofendeu-se, matou e feriu por essas ruas uns franceses, daqueles que Sua Alteza mandou que recebêssemos como amigos. Coisa de nada, rapaz. Para a conta do que há-de ser, do que épreciso que seja, coisa de nada.

- De braço ao peito! Disse-me aqui uma criada... que estava ferido.

- Uma dentada de certo cão felpudo dos granadeiros da Castela Velha. Pagou-a. Uma baixa para o dia de Aljubarrota feita a cacete. Mas eu te contarei tudo com mais vagar. Dorme sossegado, e até amanhã.

Ao outro dia, ainda cedo, apareceram lá os dois operários do arsenal do exército. Iam procurar Manuel de Albuquerque. Falaram-lhe.

- A pobre mulher - informou um deles - foi para o hospital real de São José. Parecia morta, mas ainda respirava. Faleceu de madrugada.

- Fomos lá vê-la. À porta do hospital estaca muito povo, desde o romper da manhã - acrescentou o outro.

- E o enterro?

- Falámos nisso, mas as mulheres da praça da Figueira é que lho querem fazer à sua custa. Dizem que vão todas, ainda que atirem contra elas toda a cavalaria do Jinó.

- Vou eu também. A que horas é, sabem?

- Às 10 horas.

- Nós tamém vamos e muitos dos nossos companheiros, mas havemos de ir prevenidos para o que der e vier.

- É no hospital?

- Não, senhor. As mulheres da praça foram pedir que lha deixassem enterrar em São Domingos, que era a igreja de maior devoção da morta. Pelos modos, foi um frade quem as aconselhou neste pedido e arranjou a licença.

- Que interesse teria o frade nesse conselho? - preguntou Manuel de Albuquerque.

- Isso não sabemos nós. O que a gente sabe é que o dito frade andava lá a dizer que todo o povo devia ir ao enterro daquela pobre, morta por uma bala dos franceses.

- Percebo agora - pensou o fidalgo - O frade quere provocar um desforço. Estou de acordo com êle e mais nunca morri de amores pelos frades. - Os meus agradecimentos pelo favor - disse aos operários - Lá nos tornaremos a ver. Vai então do hospital para a igreja de São Domingos?

- Sim, senhor.

- Está bem.

- Mas v. s.a vá tamém prevenido, e queira desculpar este conselho.

- Prevenido porquê?!

- Porque se desconfia que havemos de ter maior sarrabulho!(1) O Terreiro do Paço está cheio de soldados franceses! Cavalaria, infantaria, peças carregadas! Duas vi eu.(2) E à beira do cais lanchas canhoneiras.

- Pois muito obrigado pelo aviso, e lá iremos ao enterro, apesar de todas essas precauções.

Logo de manhã cedo as rondas e as patrulhas da Guarda Real notaram com estranheza o grande número de carroções, de seges e de carroças de bagagem que saíram das barreiras da cidade.

Indagaram e souberam que eram de gente abastada que se mudava para as quintas e povoações dos arredores da capital, com receio de novos tumultos e desgraças ainda maiores que as do dia antecedente.

Mas outra cousa de maior estranheza notou a polícia à porta do hospital real e no largo de São Domingos. Era um enorme ajuntamento de gente do povo. E só lá não estavam de luto os maltrapilhos que não tinham um farrapo preto para porem em cima de si.

A polícia preguntou a razão do ajuntamento e responderam-lhe que estavam ali por causa do enterro da regateira que tinha morrido com uma bala no peito.

 

*1. Sinónimo de sarapatel. É o termo antigo com que se designa um certo guisado de sangue, fígado e banha derretida, feito por ocasião da matança dos porcos. É ainda muito usado nas nossas províncias do norte. .

  1. Nas suas notas do dia 14, o Observador diz que eram mil e duzentos soldados franceses de todas as armas que estavam, desde o amanhecer, no Terreiro do Paço, com duas peças de campanha.

 

Era singular que os homens estivessem quási todos de varapaus ferrados e de alforges ao ombro, alforges cheios como traziam os saloios em dia da mercado.

- É a nossa metralha - tinha dito um deles para os outros, a meia voz.

Algumas mulheres traziam grandes aventais de estopa, cujas pontas inferiores tinham segurado na cintura, formando saco, ou arregaçada como se diz ainda.

Alguns soldados da polícia bem perceberam que as arregaçadas eram de pedras, mas fingiram não perceber e nada disseram.

Entretanto o ajudante francês da guarda Real passou no Rossio, suspeitou de coisa grave, e logo meteu a toda a brida para ir levar aviso ao Conde de Novion.

Pelas 11 horas o enterro chegava a São Domingos. Já ali estava muita cavalaria da Guarda Real, mas contava-se que, tal como na véspera, se negasse a acutilar o povo.

Novion andava furioso com os seus soldados, que lhe pareciam sacristães a conter e a aconselhar a multidão. Não havia oficiais que tivessem alma para lhes dar a voz de carregar, nem eles tinham espadas para a chacina daquela turba que era do mesmo sangue e da mesma terra.

Foi êle próprio avisar o general Barão De Laborde, governador militar da cidade.

Era quási meio-dia. Vinham saindo da igreja a chorar as mulheres, companheiras da Rosaria, que lá ficava enterrada.

Uma corrente de comoção, enérgica e rápida, semelhando uma corrente eléctrica, agitou aquele enorme corpo da multidão, com milhares de corações e milhares de mágoas.

No meio do Rossio estavam em grupos, num rir altivo de desdém, soldados espanhóis e franceses, dragões de longas espadas, granadeiros de barretinas espaventosas e boldriés de terçado.

O corpo enorme teve um repelão de cólera. Naquele silêncio compungido, o gargalhar de escárnio da soldadesca estrangeira ouvia-se de lés a lés da praça, numa vibração ofensiva.

- Morram os franceses!

Foi o grito convulso de um regatão e foi logo o grito colossal de três mil bocas.

Os mais destemidos foram de cacetes erguidos para os escarnecedores, os fadistas abriram as navalhas. Então os soldados agruparam-se mais, de costas uns para os outros, as espadas, os terçados, as baionetas cintilando em guarda.

Os soldados de cavalaria da polícia receberam a voz de carregar, dada pelo próprio Novion, mas meteram a passo por entre a multidão, procurando contê-la, afastando-a, limitando-se a umas pranchadas nos mais audazes.

Entretanto, cerca de trezentos caceteiros e algumas dezenas de faquistas haviam cercado os grupos de cento e tantos franceses e espanhóis, já isolados no meio da praça.

Investiram com eles furiosamente. Foi uma briga doida! Os marmeleiros ferrados, brandidos por mãos de jogadores experientes, quebravam em pedaços as espadas e as baionetas como se fossem feitas de vidro.

O alarido na praça era ensurdecedor. Luta de minutos. Os soldados recuavam. Estavam já estendidos no chão, de cabeça despedaçada ou de braços partidos, uns poucos de franceses. Dos caceteiros apenas dois tinham sido feridos, um deles mortalmente.

Mas vinha à desfilada pela rua Augusta um esquadrão de grande guarda do Terreiro do Paço e pela calçada do Carmo descia a galope um regimento de dragões.

À primeira investida do esquadrão do Terreiro do Paço os caceteiros debandaram, sem lhe poderem sofrear o ímpeto, e correram para a massa compacta do povo.

Defendiam-se ainda os mais intrépidos, voltando-se a ensarilhar os paus, mas sete ou oito tinham caído acutilados ou trespassados pelas costas.

Como a proteger-Lhes a retirada, o mulherio começou então a arremessar contra os franceses as pedras das arregaçadas.

- Vá, mulheres! A nossa metralha p'ra riba desses herejes.

- Descargas de pedras sobre esses malvados.

- Amachuca-se a caçoila amarela daqueles estafermos! - gritou um rapazote, alvejando os capacetes dos dragões.(1)

Foram a terra alguns cavalos, caíram feridos alguns dragões.

Os soldados da cavalaria da Guarda-Real protegeram a retirada do povo, gritando-lhe, levando-o diante de si com umas espadeiradas brandas, quando não eram fingidas, pela rua das Portas de Santo Antão e pela rampa do palácio dos Condes de Almada.

Fora vencida a segunda revolta. Os distúrbios e os conflitos duraram até à noite,

 

*1. Nem Thiébault nem o Observador dizem toda a verdade quanto ao número de mortos naquele dia 14. Thiébault diz a pág. 88 da sua RelaTion: a desordem começou no dia seguinte, ao meio-dia, na praça do Rossio, onde o povo maTou dois franceses, um dos quais dos dragões. Dos feridos não fala.

O Observador refere: e nesta desordem tumultuÁria morreram nove franceses, fora muitos feridos: e eles mataram três portugueses e feriram quatro, e continuou a desordem com o mesmo vigor até à noite, etc.

Não será muito errado calcular que, de uma e outra parte, nos dois dias, tenha havido mais de cem pessoas feridas ou mortas, sendo de pequena importância a maior parte dos ferimentos feitos nos franceses.

 

mas estava provado que não era a pau nem à pedrada que a populaça podia bater os soldados de Napoleão.

Ao anoitecer afixava-se um edital ameaçador de Junot, por causa da rebelião do dia anterior. Proibia qualquer ajuntamento e mandava submeter ao julgamento de uma comissão militar, criada por decreto daquele mesmo dia, todos os que fossem encontrados com armas e em ajuntamentos. Os cabeças de motim e os agressores seriam condenados à morte.

 

           Uma carta de Maria.

A cidade submetia-se ao desamparo de uma iniciativa dirigente. Sossegara, resignara-se.

No dia 16 à noite, uma estrangeira, que apenas dizia mal algumas palavras em português, foi bater ao portão do palacete dos Castros e disse na sua língua de trapos que trazia uma carta de urgência e uma coisa de valor para entregar ao sr. Luís de Castro.

Depois de repetido o recado, o guarda-portão conseguiu compreendê-la.

- o sr. Luís de Castro está melhor, já se levanta, mas não sai do quarto. Não vão lá senão as pessoas de família e o cirurgião. Cartas que venham para êle, recebe-as o irmão e desconfio que é êle quem lhas lê. Se quiser deixar ficar...

- Valha-me Nossa Senhora!

O Domingos olhava para ela desconfiado, quási hostil.

- E o irmão?

- Saiu de tarde e não sei se se demorará.

- Não é coisa que eu deixe a qualquer...

- A senhora é dalgum francês desses que p'ra aí estão? - preguntou o Domingos, de mau modo, desconfiando que só podia ser de francesa aquele falar arrevesado.

- Não, sr.. Saí de França há muitos anos. Henrique de Castro empurrara a meia porta que

o Domingos deixara apenas cerrada.

- Há alguma novidade? - preguntou, baixando a cabeça à estrangeira.

- Saberá v. s.a que não há. Está aqui esta senhora com uma carta para o irmão de v. s.a.

- Meu irmão não pode ainda ler, proibiu-lho o médico. Leio-lhe eu as cartas que não possam prejudicar-lhe as melhoras.

A estrangeira parecia não ter percebido bem.

- Se fala francês, seria favor traduzir-me isso que disse. Não compreendi bem.

Henrique fêz-lhe a tradução em francês.

- Mas não sei a quem estou falando - acudiu logo, já com o pensamento na filha do polaco.

- Sou uma francesa que está como dama de companhia da filha do joelheiro João Polovtzé.

O rosto do moço capitão contraíu-se violentamente, mas logo serenou como se houvesse tomado o propósito de encobrir a repugnância que o nome de Polovtzé lhe causara. Uns segundos de hesitação, E respondeu-lhe brandamente:

- Ah! sim. Peço-lhe então o favor de me acompanhar. Estimo até este ensejo de lhe dizer umas coisas que poderá comunicar à filha do sr. Polovtzé.

Acompanhou-a atenciosamente para uma sala do rés-do-chão, que dava para o jardim. àquela hora não era provável que D. Matilde ali fosse.

Ana Beauchamp ia muito comovida, muito trémula.

- Queira sentar-se. Peço-lhe que esteja completamente tranquila. Dou-lhe a minha palavra de homem de bem que não tenho o mínimo propósito de ofensa contra a pessoa que a encarregou de cá vir. Creio que se traTa de uma carta da filha do sr. Polovtzé.

- Duma carta... dessa menina.

- Pode confiar em mim e falar desassombradamente. Sou incapaz de denunciar seja quem fôr, o meu mais implacável inimigo, se algum tivesse, e nunca divulguei segredos que alguém me confiasse. Sei dos mal-aventurados amores de meu irmão com a menina Polovtzé.

- Mas não pode fazer ideia do muito que ela quere ao sr. Luís de Castro! Um amor profundo, que a tem feito sofrer horrorosamente!

- Acredito. Mas também por ela duas vezes meu irmão esteve a dois passos da morte. A bala do sr. Polovtzé varou-lhe o peito.

- Do sr. Polovtzé? Foi êle então... Não sabia!

- O sr. Polovtzé afrontou-lhe as susceptibilidades de homem de bem e de oficial do exército, insultou nele, brutalmente, todos os oficiais portugueses. Era inevitável o duelo.

E apesar do seu propósito de moderação, exaltou-se e disse-lhe duramente:

- O fingido joalheiro sabe melhor, certamente, como se aponta uma pistola do que como se experimenta o quilate do oiro e a pureza das jóias. Meu irmão passa por ser o melhor atirador de pistola que tem a corte, mas, decerto, por causa da menina Polovtzé, teve remorso de matar o seu adversário, e atirou para o ar a bala que, provavelmente, haveria morto o antigo conde de Pultusk, fugido do seu degredo da Sibéria e estabelecido em Portugal sob disfarces de joalheiro. Bem vê: sei tudo. E isto que eu sei não o ouvi a meu irmão.

A Beauchamp estava como aturdida.

- O sr. João Polovtzé! - murmurou.

- Aqui pode chamar-lhe abertamente o Conde de Pultusk. E assim se explica honestamente que se atrevesse a receber galanteios de amor de um fidalgo essa menina, a quem toda a gente supunha filha de um joalheiro polaco, muito rico talvez, mas absolutamente obscuro. Entretanto, para o mundo, essa filiação é muito mais comprometedora que a outra. O Conde é, como a polícia supõe, um criminoso político de alta traição, um rebelde polaco fugido do degredo, um assassino, em defesa própria, quero supô-lo, mas, para as justiças do Czar,um assassino com a cumplicidade de outro degredado foragido, de outro homicida, o russo que êle tem tido aqui com o disfarce de filho seu. São estas as suposições da legação da Rússia, confiadas à vigilância da polícia. Mas os desgraçados acontecimentos dos últimos dias afastaram da casa de João Polovtzé os espiões policiais e êle pôde fugir de Lisboa. Não me interessa saber para onde êle fugiu nem lhe peço que me confirme as suspeitas da legação russa. Compreendo que o polaco não foi para longe, diz-mo a sua presença. Limito-me a dar-lhe um aviso.

- Diz-me essas coisas tão asperamente, senhor! Como se eu fosse culpada desses infortúnios!

- Tem razão. Dir-lhe-ei serenamente o mais que importa dizer-lhe. É provável que a polícia volte a procurar o antigo Conde de Pultusk, e o melhor que êle tinha a fazer era afastar-se para longe de Portugal.

- Desconfio que são essas as suas intenções. Não sei como, não sei quando... por causa do outro...

- O russo que meu irmão feriu?

- Esse. Vai muito melhor, mas não poderá partir. Foi por causa desse intento de fugir que a minha querida menina escreveu esta carta para o sr. Luís de Castro. Assim como quem se despede para morrer!

- A separação é indispensável e não compreendo porque seja um caso de morte. Se ficarem, o Conde e o outro serão entregues aos agentes da legação russa e a sua morte no patíbulo seria coisa inevitável. Fugindo, a sua menina, como lhe chama, salva talvez o pai e afasta-se honestamente de uns amores que não podem continuar, senão com afronta suprema para a sua honra.

- Não quere fugir, protesta que se mata!

- Uma loucura lamentável, mas antes isso.

- Oh! senhor, que tamanha crueldade a sua! Bem se percebe que a não conhece. Dizem que é muito linda, eu nunca vi outra de maiores encantos, pois a sua bondade de santa creio que ainda é maior do que a sua rara beleza! Perdoe-me este desafogo. Ajudei-a a criar. Tenho-lhe amor de mãe.

- Mas eu não dei a perceber que lhe desejava esse desvario de se matar. Nem creio na firmeza de tal intento. Dizem-me que é muito nova ainda, tem lá ânimo de se matar!

- Tem.Não a conhece! Vi eu a coragem com que ela sofreu os horrores da Sibéria. Se a quiserem violentar a sair de Portugal, mata-se.

- Palavras, palavras de desespero que ficam longe da realidade.

- Nem a levavam para fora de Lisboa, se não fosse um médico italiano que é muito do sa...

- Bem sei. Vicenzo FaRInelli, conheço-o.

- Pois não a levavam, se esse médico lhe não tivesse dado um remédio que a adormeceu. Foi todo o caminho como morta.

- Pois esse italiano fazia-lhe um grande benefício se a adormecesse outra vez para a levar ainda para mais longe. Havia de esquecer então esses mal-aventurados amores, resignava-se.

- Só se alguma ideia oculta, alguma esperança a dominasse, ou fosse preciso um generoso sacrifício pela pessoa a quem mais ama.

- Pois então dou-lhe eu a indicação e o conselho desse sacrifício. Falei do perigo de morte que o pai correria se ficasse, e do perigo de desonra para ela ficando. Não disse tudo. A continuação desses amores seria a morte de minha Mãe, uma dor de vergonha para a minha família, a exautoração de Luís de Castro, como fidalgo da Corte e como oficial do exército. Exautoração moral, ainda pior que a outra de lhe quebrarem a espada. Amante ou esposo da filha de um degredado, de um criminoso condenado ao patíbulo, por homicídio e rebeldia!...

- Senhor, um rebelde por causa daquela pátria que lhe mataram e eles querem ressurgir!

- Na Corte de Lisboa, como em qualquer outra, apenas um homicida e um rebelde.

Levantou-se de repelão.

- Aqui ainda mais, imensamente mais. Para minha mãe quási um assassino do filho, para mim, para todos os meus camaradas, o torpe insultador de uma classe e de uma nação!

E assim outra vez atraiçoava arrebatadamente o seu propósito e a sua promessa de moderação.

- Eu próprio teria de expulsar desta casa a meu irmão, se êle continuasse no opróbrio de semelhantes amores. E como ninguém daria a esse criminoso foragido a honra que lhe deu meu irmão, ainda em homenagem ao pai dessa desditosa menina, ninguém se bateria com o trânsfuga que abusou da generosidade de Luís de Castro, mas não faltariam contra êle protestos rancorosos, mais insistentes ainda que as reclamações da legação russa. Corria o risco de ser esbofeteado pelos lacaios, antes que o pudessem levar para bordo os marinheiros ou os polícias da Rússia. Diga a essa menina que faz um santo e generoso sacrifício fugindo. Salva de mortais ultrages a VIda do pai, defende a sua própria honra, que eu creio imaculada, salva a própria vida e a honra desse a quem ama perdidamente. A dele, não exagero, porque Luís de Castro espedaçaria a cabeça com uma bala no dia em que todos lhe voltassem as costas como se fosse um biltre sem vergonha. Diga-lho, minha senhora afirme-lho claramente, dê-lhe um conselho de generosa abnegação.

- Não tenho ânimo! - soluçou a Beauchamp - Mata-se!

- Se ela tem a coragem que lhe supõe e ficar, matar-se-á depois, mas então ralada de remorsos, mas então já infamada, maldita, desprezada de todos. Diga-lhe tudo isto, sem rodeios. Será em benefício dela e do pai. Não suponha que estou iludido. Meu irmão ficaria infamado, se voltasse a vê-la. E pode voltar, se ela fica. Conhece-a. Mova-lhe o coração para este sacrifício, que pode ser a santificação dos seus amores.

- Mas veja bem, meu senhor! Como hei-de eu dizer-lhe tanta coisa de afronta e de mágoa, querendo-lhe tanto como as mães querem às filhas? Vou mortificá-la com a crueldade de um verdugo, e então é que ela se mata!

- Pois então modifique as minhas palavras, mas diga-lhe com amorável brandura de mãe o sentido do meu aviso e do meu conselho. Eu trouxe para aqui o propósito de lhe dizer estas cousas serenamente, mas o nome de quem ultrajou meu irmão e nos ultrajou a nós todos, oficiais do exército, turvou-me o ânimo e tenho falado com uma dureza de forma de que me arrependo. Volto ao meu propósito - acrescentou, sentando-se - Olhe: lembre-lhe também os seus deveres de piedade filial. Fale-lhe na crueldade de roubar ao pai, em tão desesperadora situação, o amparo e o consolo dos seus carinhos. Bastará este estímulo de bendita abnegação para lhe afugentar do espírito a ideia louca de se matar.

- Jesus nos valha!

- É caso para uma benfazeja mentira, sem prejuízo de ninguém.

Deixe entrever-lhe a esperança de um dia tornar a ver... meu irmão, quando os ressentimentos estiverem aplacados. Repugna-me falar-lhe nisto mas quero aplanar-lhe o caminho em que a senhora pode tomar para si uma abençoada tarefa. Lembro-lhe esta falsidade, porque Luís de Castro não pode, não deve procurar a filha do seu insultador, porque não a tornará a ver, porque ela não voltará aqui certamente e meu irmão não sairá de Portugal, mas é afinal uma falsidade misericordiosa. E se entender que eu posso indirectamente auxiliar a fuga dessa menina, venha procurar - me desassombradamente.

- Isso não! Isso nunca! Não poderei cá voltar. Para aqui vir agora, com risco de ser despedida e só para fazer a vontade À minha querida Menina, tive de aproveitar a ausência do sr. Conde, que saiu com o médico italiano. O médico disse a um seu criado velho que só voltaria de madrugada, eu ouvi, sem eles o saberem, fingi que me ia deitar, porque tinha perdido umas poucas de noites, e fugi disfarçadamente.

- Mas posso eu mandar pessoa de confiança que vá saber se precisa do meu auxílio. Amanhã, por exemplo.

- Estamos muito vigiados naquele ermo.

- E vai para lá agora, de noite?

- é preciso que vá.

- A pé?

- Espera-me ali abaixo o carRo que eu aluguei no caminho. Mas viria a pé e voltaria se fosse necessário.

- Bem, como quiser - disse, levantando-se.

- E esta carta? - preguntou a Beauchamp, levantando-se também e pondo em Henrique de Castro o seu olhar consternado.

- Há-de ter compreendido que não a posso entregar a meu irmão.

- Isso então ainda é maior dor para ela, coitadinha!

- Sinto-O, mas não serei eu quem vá provocar conscientemente uma perigosa recaída para meu irmão. Mas se quere, deixe-ma ficar. Dou-lhe a minha palavra de honra que a entregarei a meu irmão, logo que o veja em estado de a ler ou de a ouvir ler e eu tenha sabido que já saíram de Portugal. Podia a senhora mandar-mo dizer numa carta, que alguém viesse entregar-me. Eu remuneraria o portador.

- Se puder ser... se não houver alguma desgraça! Nossa Senhora Me valha!... A dor que vão causar-lhe! Mas eu trago também este cofrezito.

- Relíquias desses amores, provavelmente.

- Não, meu senhor. Ela mostrou-me a chorar o que isto continha Um pedaço de seda bordada a oiro.

- é singular essa relíquia de namorados!

- Bem sei o que é. Fui bordadora em Moscovo e ensinei-lhe o que sabia da minha arte. Uma vez a Menina viu da janela o regimento do sr. Luís de Castro, que passava. Notou-lhe a bandeira, muito velhinha, e disse-lho à noite no jardim. O irmão de v. s.a respondeu-lhe que êle e outros oficiais já tinham pensado em pedir licença para oferecerem ao regimento uma bandeira nova bordada a oiro. A minha querida Menina disse-lhe então que seria para ela um grande consolo bordar-lha, se lha quisessem confiar. O sr. Luís de Castro aceitou logo, dizendo-lhe que assim teria ainda maior amor à bandeira do seu regimento. Combinaram então em que tudo se fizesse com o maior segredo, ninguém no regimento viria a saber quem a tinha bordado. O senhor Luís de Castro mandou o modelo das bordaduras, feito num pedaço de uma velha bandeira, eu comprei a seda, muito a ocultas, e de dia, quando o sr. Conde não estava em casa, ou aLta noite,, quando êle e o outro estavam adormecidos, a minha Menina punha-se a bordá-la no seu quarto e eu ia ajudá-la, e lá estávamos ambas à porta fechada.

Soluçou oprimida. Henrique estava profundamente comovido.

- Não a chegou a acabar... vieram as mortificações tamanhas!... Só lhe faltava um pedacito. Guardou-se, muito escondida, entre um vestido branco da Menina, e para lá está. Ainda ontem esteve a chorar, de joelhos, com ela nas mãos! Agora, que já não tem senão pensamento de morte, quis aquela filha do meu coração que eu viesse restituir ao sr. Luís de Castro o pedaço da seda do modelo, que vem dobrado dentro deste cofrezito. O irmão de v. s.a havia-lhe dito que era o pedaço de uma bandeira antiga, que tinham nesta casa como santa relíquia. A minha pobre Menina contou-me tudo.

- Já sei o que é - disse Henrique de Castro, entre surpreso e enternecido:

Compreendia a nota piegas daquele episódio, mas apesar disso comovera-se. Havia precedentes de bandeiras militares bordadas e oferecidas por senhoras, mas aquela teria o cunho original de ser bordada e oferecida clandestinamente por uma estrangeira expatriada, filha de uma nação morta, ao dilecto do seu coração, para que êle a desse ao seu regimento, sem que estranhos soubessem quais mãos a haviam bordado.

- Ficará em meu poder - disse-lhe Henrique, tomando das mãos trémulas da Beauchamp o cofrezito de madrepérola com fechos de prata - Será entregue a meu irmão, quando fôr oportuno entregar-lho. Pode ir descansada.

- Para um caminho de amarguras é que eu vou! Se fôr preciso escrever-lhe...

- Basta pôr no sobrescrito as indicações deste bilhete - disse, dando-lhe um cartão brasonado, que tirara da sua carteira de marroquim.

A francesa enxugou os olhos.

- Se quere que a mande acompanhar ou se prefere uma sege desta casa, queira dizer-mo.

- Muito obrigada, mas estão esperando por mim. Despediu-se. Henrique foi acompanhá-la até ao

pátio. Eram nove horas.

A Beauchamp foi numa perturbação atormentadora. A uns trinta passos do portão do palacete um carroceiro idoso a esperava, segurando à mão a possante muar duma carroça.

A francesa, saída da quinta de Benfica a Deus e à ventura, encontrara aquele carroceiro na estrada de Lisboa. Levara para Belas a mobília de uma família fugida da cidade e voltava com a carroça vazia. Com o seu escasso e péssimo português, a francesa fizera compreender-lhe que queria ir no carro e voltar e mostrou-lhe quatro moedas grandes de prata como a indicar-lhe o preço. O velhote compreendeu e aceitou. Era uma pechincha.

E pelo caminho lhe viera repetindo a Beauchamp o apelido da família de Luís e o sítio do palacete que Maria Pulaski pacientemente lhe ensinara a dizer.

A francesa subiu para a carroça, dizendo ao cocheiro que fosse depressa. E lá foram.

Encontraram pelo caminho, dentro dos limites da cidade, grandes patrulhas e piquetes da cavalaria francesa que faziam parar o veículo.

a Beauchamp acudia logo a dizer que era de certa família francesa, que estava numa quinta dos arredores. Dizia-lhes o próprio apelido e deixavam-na passar.

Naquela mesma noite Luís de Castro instou muito com o irmão para que lhe mandasse saber se a filha do polaco tinha saído de Lisboa.

Para o não contrariar, compadecido daquela impaciência, Henrique prometeu-lhe que no dia seguinte mandaria indagar o que lhe pedia.

A carta de Maria para Luís guardara êle intacta numa gaveta de segredo do seu contador e com ela o cofrezito que abrira.

Lá tinha dentro, enrolado, um pedaço de seda branca, manchada, a esfiampar-se. Era o centro de uma velha bandeira com as armas reais bordadas a retrós e ouro, já muito marCado e enegrecido.

Conhecia bem a história daquela triste relíquia. Era o pedaço de uma bandeira que se esfrangalhara e perdera em uma das vergonhosas retiradas da campanha de 1801. Salvara aquele farrapo, espezinhado pela cavalaria em fuga, um tio seu, por parte da mãe. Era capitão de cavalaria, viu-a no chão, apeou-se, arrancou-a da haste e cingiu-a a si. Considerou-a como relíquia sua. Falecido havia dois anos no palacete dos Castros, deixou-a como lembrança ao seu sobrinho dilecto, que era Luís de Castro.(1)

A cidade mantinha-se na sua triste resignação: Junot dispunha tudo como homem resolvido a ficar por longo tempo. Mas sempre com receio de outro motim maior ou de algum desembarque dos ingleses, mandara artilhar e defender o Castelo de SÃO Jorge, ordenara que regressassem aos seus quartéis da província alguns regimentos portugueses que o Regente mandara vir para Lisboa, mais para lhe assegurarem a fuga do que pelo receio de um desembarque hostil dos ingleses, como astuciosamente se espalhou. Em uma e outra margem do Tejo se levantavam novas baterias e se melhoraram as antigas.

 

*1. Foi deplorável costume de outros tempos, não sem imitadores em nossos dias, guardarem-se como trofÉus e relíquias de posse individual os trofÉus e relíquias que deviam ser exclusiva propriedade da nação.

Numa quinta dos Marialvas, a de Marvilar, guardavam-se no século XVIII algumas bandeiras tomadas aos espanhóis na guerra dos vinte e oito anos.

 

Continuavam de prevenção nos quartéis, que a Guarda Real vigiava, os poucos regimentos portugueses que tinham ficado em Lisboa.

Henrique de Castro apenas podia vir a casa de fugida, com licença do coronel e sob sua exclusiva responsabilidade.

Ao decair da tarde do dia 18, quere dizer, três dias depois que a Beauchamp estivera no palacete dos Castros, um carroceiro idoso esperava ao portão que o moço oficial voltasse do quartel.

Só voltou já noite fechada. O carroceiro entregou-lhe uma carta e Henrique de Castro deu-lhe uma avultada espórtula.

Viu o sobrescrito. Letra de mulher e, em vez do ilustríssimo da fórmula portuguesa, um simples monsieur ao uso de França. Percebeu logo que havia de ser da Beauchamp.

Não subiu. Tomou para a salazita do rés do jardim. Chamou o Domingos e mandou que lhe trouxesse uma luz. Mal que êle voltou, recomendou-lhe:

- É escusado dizer que vim para aqui.

- Fique v. s.a descansado.

O Domingos saiu a farejar mistério, que lhe pareceu meter negócio de saias.

Henrique fechou a porta por dentro e abriu a carta. Continha outra fechada.

- Outra carta para mim! - disse surpreendido - Vejamos primeiro a meia dúzia de linhas desta, a explicar a outra, provavelmente.

Era da Beauchamp. Dizia-lhe que partiam para fora de Portugal, que a sua querida Menina se resolvera ao sacrifício, mas ia como se fosse para a morte. Falava-lhe da carta inclusa que era da sua desventurada Maria.

- Para mim! Queixumes, recriminações, certamente.

Abriu, leu. A carta dizia assim, depois de umas palavras de modesta apresentação:

«Foi generoso o seu conselho. Vou segui-lo, e nem eu sei dizer-lhe aqui a dor de saudade e de mágoa que levo comigo!

«A minha querida confidente resumiu-me o que v. s.a aí lhe disse. Os soluços dela diziam muito mais do que as palavras. Compreendi tudo, como nas minhas condições se podem compreender essas horrorosas realidades, que um coração de mulher nem sempre sabe prever e raras vezes pode evitar.

«Sim, ficar, entendo-o bem, seria dor ainda maior, de vergonha e de morte. Por meu Pai, e devo ser eu seu amparo, e por Luís... e por esse então a pior dor!

«Pesam sobre mim crimes que eu não cometi,, partilho culpas de que nem sequer suspeitava! Podia ser eu o opróbrio de seu irmão, o opróbrio e o desespero, só por isto iria de rastos, fosse para onde fosse, já que me não é dado morrer sem ferir cruelmente um velho que tem padecido muito e não tem mais ninguém de família que chore com êle.

«Lembrou-me v. s.a este piedoso dever nos seus conselhos. Eu ia talvez esquecê-lo nos desalentos da minha alma. Os mortos não têem remorsos, mas eu faria um grande mal a meu Pai, sem lar, sem pátria,, condenado, perseguido, de um dia para outro metido num cárcere, levado para a nossa desventurada terra, onde talvez o está esperando um carrasco estrangeiro, da mesma raça dos outros que mataram essa gloriosa Polónia, por quem êle se perdeu.

«Bem haja pelo seu conselho. é uma abnegação de morte, mas o pobre degredado terá quem se lhe ajoelhe aos pés, quando todos o repelirem, quem chore às grades do seu calabouço, quando as justiças da Rússia o tiverem nas suas mãos, quem vá com êle para a morte, a gritar o nome de uma pátria que a sua alma sonhou ressurgir.

«Mas, seja como fôR, em qualquer tempo a minha alma ficará para sempre viúva, daquelas viúvas que parecem viver e morreram para o mundo. Viúva que nem chegou a ser noiva, nem pode trazer outro luto que não seja o desses crepes que ninguém vê e hão-de valer pela mais pesada mortalha.

«É quási madrugada. Daqui a poucas horas teremos partido. Tenho afinal mais ânimo do que eu supunha!

«Quando esta carta lhe chegar às mãos, iremos já muito longe, se nos não faltar a misericórdia de Deus.

«Hei-de sair daqui a chorar por esta terra que já me parecia minha, a chorar por ela com lágrimas que os olhos de meu Pai não possam ver, daquelas lágrimas que ficam represadas no coração, as que mais custam, como eu sei pela minha dura experiência de uns dias!

«Porque êle fica, porque eu não volto mais.

«Hei-de apartar-me daqui a dizer comigo duas orações, que Nossa Senhora talvez haja de ouvir-me.

«Sei que Luís está melhor. Será para êle a minha primeira oração. Para que se restabeleça e o céu lhe dê a muita fortuna que êle merece.

«A outra será por esta terra, a sua, onde eu queria morrer, se pudesse. Tenho tido aqui uns grandes sustos, ouvi que os franceses estavam senhores de Lisboa.

«Pois a minha segunda oração será para que a pátria portuguesa, tão fervorosamente amada por Luís de Castro, não tenha nunca o destino de morte da minha pobre Polónia. Sinto meu Pai já levantado. é preciso ficar por aqui.

«Perdoe-me este desafogo. Quando Luís puder ouvir falar de mim, faça-me então a esmola de lhe mostrar a outra minha carta e a velha relíquia. Queira dizer-lhe que a bandeira incompleta vai comigo, hei-de bordá-la de lágrimas porque a vejo a lembrar-me dele.

«Agora o resto da esmola. Rogue a sua Mãe que me perdoe o que sofreu por minha causa, e, para que ela tenha mais dó de mim, conte-lhe que eu nem sequer já tenho mãe.

«Pelo futuro da sua noiva, linda e amada como eu sei que é, não me despreze este pedido.

«Estão a ser horas de nos irmos embora e estou a ter medo de fraquejar! É preciso.

«Maria»

17 de Dezembro de 1807.

- Pobre mulher! - comentou comovidamente - Um grande coração, uma grande desditosa! Os infernais caprichos da fortuna! Formosa, honesta, a filha de um conde, embalada na opulência, e neste encadear de desventuras mais amargurada e mais oprimida que as filhas dos mendigos! A noite de alma aos dezoito anos, a ruína pior no seu caminho de perseguida! Nenhuma notícia mais agradável para mim do que a desta carta, e causa-me dó! Pobre criança, feita mulher e mártir a poder de sofrimento!

Ficou a reflectir.

- Tenho de inventar uma mentira que tranquilize aquele desditoso. Dir-lhe-ei que ela está ainda numa quinta dos arredores de Lisboa. Para a Outra-Banda, por exemplo, qualquer nome que me lembre. Depois, lá para o fim do mês, quando êle puder com um grande abalo moral, contar-lhe-ei então a verdade a pouco e pouco. É preciso que minha Mãe intervenha, para evitar que o Luís faça alguma loucura. E vamos lá satisfazer um dos pedidos daquela amargurada.

Subiu. Foi beijar a esposa, tranquilizá-la, depois dirigiu-se para o quarto do irmão e disse-lhe com extremado carinho a peta misericordiosa que inventara.

- E não correrá perigo? - preguntou Luís tristemente - A soldadesca invasora seria capaz de tudo!

- Disseram-me que nenhum perigo corria. Os franceses ainda não foram para aquele lado.

- E o outro... que eu feri?

- Ouvi que ainda continua de cama.

- TÊ-lo-iam levado também?

- Talvez não.

- Tem receios por ela como uma noiva que seria preciso desafrontar, se alguém ousasse ultrajá-la! - pensava Henrique -Mal sonha Êle que, a estas horas, a filha do polaco irá já longe para nunca mais voltar, como ela própria me diz.

- Admira que o Pai... não tenha fugido... para mais longe! Era o seu plano.

- Desconfio que a polícia o não persegue já... talvez por causa do estado de perturbação em que ficou a cidade.

- Mas pode persegui-lo daqui... a mais tempo... e ela sofreria... sem ninguém que a defendesse! Lembra ao Novion... o pedido que eu lhe fiz.

- Falarei a outra pessoa, Luís. Ao conde de Novion já nenhum português que se preze pode honradamente fazer pedidos.

- Porquê?!

- é o braço direito dos invasores, o comandante das armas em Lisboa, por decreto de Junot.

- Ainda pior do que êle... os traidores portugueses.

- Dizes bem. Aquele, ao menos, tem a nacionalidade a atenuar-lhe o crime de nos trair. Mas isto não impede que seja vergonha e traiçoeira humilhação ir alguém desta casa pedir-lhe favores.

- Tens razão. Pobre país!

- Luís, tenho de voltar para o quartel. Até amanhã. Conto vir de manhã cedo.

Apertou-lhe a mão e saiu do quarto. Foi procurar a mãe.

Encontrou-a a dar umas ordens na sala de costura. Pediu-lhe uns momentos para lhe falar a sós.

Foram para os aposentos de D. Matilde.

- Uma boa notícia, minha Mãe!

- Boas notícias neste tempo, filho! Só se forem a respeito das melhoras de teu irmão.

- Outra, que também lhe diz respeito a êle.

- Dize lá.

- A filha do polaco saiu de Lisboa. Ela e o pai.

- Talvez não fosse para longe.

- Para fora de Portugal.

- Disseste isso ao Luís?

- Deus me livre de tal. Seria capaz de alguma loucura.

- Há-de sabê-lo mais tarde.

- Quando estiver restabelecido. Havemos nós de estudar o meio de lho dizer cautelosamente e há-de minha Mãe conseguir o que eu não seria capaz de obter, por mais diligências que fizesse.

- Quem sabe, filho? Teu irmão está muito perdido de amores por essa mulher. Não falava em mais ninguém nos seus delírios e agora já teve a fraqueza de se referir a ela diante de mim, sem compreender ou sem lhe importar saber que me mortificava! Mas como sOubeste que saiu de Portugal?

- Mandou-mo dizer ela própria.

- Ela!

- Escreveu-me uma carta.

- Sem te conhecer! Vê-se que essa estrangeira não é para etiquetas nem escrúpulos!

- Não a julgue mal, minha Mãe!

- O quê! Também tu!

- é uma generosa infortunada que faz dó. Na sua carta pede-me que seja eu o solicitador do perdão para ela.

- Só pelo pai que ela tem eu lhe não perdoaria! Já consegui saber que foi êle quem feriu o Luís. Pôs-mo às portas da morte!

- E mal pode sonhar por que brutalidade de injúria! -pensou Henrique.

Mas para acalmar os ressentimentos da Mãe, volveu-lhe:

- Alucinações de amores perigosos, exasperos de homens, de que ela não tem culpa. Também o Luís feriu e pôs à morte o suposto filho do polaco.

- Está a parecer-me singular o fervor com que lhe aceitaste a incumbência!

- Por simples piedade.

- Pois perdes o tempo. Nada conseguirás de mim. Nem ela precisa que eu lhe perdoe ou deixe de perdoar os dias de tormento que me deu. E quem sabe ainda quantos mais, quantos piores!

- Não voltará.

- Isso dirá ela. Mas pode o teu irmão ir procurá-la, esquecido de tudo e de todos.

- Não o suponho capaz de semelhante loucura.

- Tem havido por aí outras iguais. E depois, quem sabe lá do que ela será capaz para o atrair a si. Se tiver em fingimento o que dizem ter em formosura, nenhuma outra mulher poderá ser mais funesta para teu irmão!

- Minha Mãe está a lançar sobre essa infortunada de dezoito anos umas suspeições que são iníquas! Posso falar-lhe assim. Talvez eu concorresse muito para a afastar de Lisboa, evitando que a pobre apaixonada fizesse algum desvario lamentável, funesto no estado em que se encontra o Luís. Aqui está a carta que a filha do polaco me escreveu. Peço-lhe a mercê de a ler para me justificar e para que o seu coração bondoso lhe conceda a ela a piedade justiceira a que tem direito. Queira lê-la, minha Mãe. Verá que há-de mudar de opinião. Tem para si uma referência comovedora.

Deu-lhe a carta. D. Matilde desdobrou-a, começou a lê-la para si, lentamente.

- Não te pregunto o que é a tal relíquia - disse, interrompendo a leitura - Há-de ser alguma pieguice de namorado, mas não percebo bem que tolice é esta de uma bandeira que leva consigo e a faz chorar, lembrando-o a êle.

Henrique resumiu-lhe a história da bandeira inacabada, tal como a Beauchamp lha contara.

Umedeceram-se os olhos da fidalga. O seu coração de mãe compreendeu o coração de amante da polaca.

Era aquela bandeira o santo e amorável simbolismo de um pedaço de seda a representar uma pátria, a do homem estremecido, aos olhos daquela desditosa que já não tinha nenhuma e julgava perdido o seu primeiro sonho de amor.

- Mas o Luís não seria capaz dessa profanação! - objectou a simular-se implacável - Oferecer ao seu regimento uma bandeira bordada por uma estrangeira, perseguida pela gente da polícia? Seria um escandaloso ultrage, se o viessem a saber!

- Ninguém o viria a saber, era o projecto. Seria como se viesse das mãos de qualquer bordadora de ofício.

- Bom advogado acharam os dois para estas pieguices, não tem dúvida!

- Mas ainda não leu tudo. Há aí alguma coisa enternecedora, que lhe diz respeito.

- Faço uma ideia, mas, enfim, lerei.

E leu. Quando acabou tinha os olhos rasos de lágrimas. Dobrou a carta e restituiu-lha.

- E nem sequer levantou os olhos para miM! - disse-lhe Henrique, MUito inclinado para ela - Eu bem sei porquê. Chora, teve dó dela, perdoou-lhe.

- Fêz-me pena, e mais Deus sabe o medo que eu ainda tenho dessa rapariga, por causa do Luís! Será capaz de algum desatino.

- Estará longe, quando o Luís o souber.

- Não há longes para os apaixonados, como êle.

- Não saberá para onde ela foi!

- Qualquer acaso lhe poderá revelar onde ela pára e irá procurá-la.

- Seria preciso desertar, e eu sei com que repugnância o Luís se referia a esse crime abominável. Preferia morrer.

- Amargurada, mortal deserção para mim, filho!

- Mas estamos a inquietar-nos antes de tempo. Havemos de segurá-lo cá. Minha Mãe e eu. Outros amores o prenderão por cá, outros que eu sei dignos dele.

- Outros! Quais?

- De segredo.

- Que eu não posso saber?

- Que eu tenho muito prazer em confiar-lhe, como se fossem uma benfazeja esperança. Laura, a irmã de Branca, tem uma verdadeira paixão por Luís. Confessou-o à irmã. Eu já tinha reparado no modo como a Laura o olhava. Percebi bem a mágoa que ela teve com a notícia daquele ferimento, e mais andava a querer encobri-la de todos.

- Pois sim, seria um casamento muito do meu agrado, tua cunhada é uma formosa menina, muito prendada, de cativantes dotes, mas não creio muito que o Luís esqueça a outra, a enfeitiçadora que o enlouqueceu.

- Experimenta-se. Talvez seja possível salvar o Luís dessa doida paixão que o pode levar a deploráveis alucinações.

- Deus te ouvisse, e oxalá que assim fosse.

- Eu falo com a Branca e combino as coisas com ela. Nós podemos ter o Luís seguro por quinze ou vinte dias. Eu o irei prendendo com umas pequenas mentiras bem intencionadas. Entretanto, a Laura vem aqui passar uns dias. Para a semana, por exemplo. Então o Luís, a não haver recaída, poderá sair do seu quarto. Lá para o fim deste mês, se êle já estiver em estado de me ouvir, se lhe contará a saída da filha do polaco. Tenho eu de lha contar.

- Mostras-lhe essa carta?

- Não mostro. Seria perder de um lance todo o meu plano. Limitar-me-ei a falar-lhe da restituição da relíquia e depois, se o vir resignado, lhe darei a outra carta dela, outra que eu tenho em meu poder.

- Para Êle?

- Sim, para êle.

- Mas então essa relíquia...

Henrique atalhou, esclarecendo-a a respeito do pedaço da velha bandeira.

- Que desvario de amores! - comentou D. Matilde - e como ela o soube cativar! Não me pode esquecer essa pieguice da bandeira, que podia dar um escândalo de vergonha e de ridículo para nós todos! Como ela inventou o meio de lhe lisonjear O sentimento patriótico!

- Invento de namorada que eu creio sincero. Invento dos dois com toda a certeza. BeM sabe que o Luís é um sonhador com fantasias e arrebatamentos de poeta. Sonhou ver substituída a bandeira velha do seu regimento por outra que as mãos da polaca houvessem bordado, e assim, naquele pedaço de seda, a simbolização dos seus dois grandes amores.

- Dos seus maiores amores! - observou D. Matilde amargamente.

- Sem contar o amor de filho, que esse é aparte.

- Esse hora a hora se enjeita pelos outros - acudiu tristemente - Não me iludo. Sempre assim foi... Vais agora para o quartel, não é isso?

- Vou, minha Mãe.

- E só voltas amanhã?

- Só amanhã, se não tiverem acabado com estas absurdas prevenções. Absurdas, porque isto, por desgraça nossa, está completamente esmagado, o povo não tem armas, o exército não tem chefes e os que ficaram, a fingir que governam em nome dos que se foram embora, já deram em serventuários do invasor!

- A nossa desventura, filho!

Henrique beijou-lhe a mão, comovidamente, e desceu a escada, aconchegando-se no seu amplo capote.

Encontrou à porta um granadeiro do regimento n.O 1, um rapagão possante, que se perfilou muito e lhe fêz a continência.

- Procuras aqui alguém?

- Vinha saber como estava o meu Tenente.

- Vai muito melhor, obrigado.

- Eu já cá devia ter vindo há mais tempo. Era a minha obrigação e o meu desejo, mas não me tèem deixado sair do quartel e só hoje, por muito favor, me deram duas horas para cá chegar. A gente ficou com uma grande tristeza quaNdo lá se soube o que tinha acontecido. Se os deixassem, vinham cá todos os da companhia saber do sr. Tenente. Mas a maior obrigação era minha.

- Tua, porquê?

- Já percebo que v. s.a não sabe o muito que eu devo ao senhor seu irmão. Tenho Mãe, uma velhinha toda engelhada, e uma irmã que entrevou. Uma desgraça, meu Capitão! O que eu recebo nem chega para umas côdeas de pão, e já teriam morrido de Fome, coitaditas, se não fosse o meu Tenente!

- Tem-te dado algum auxílio?

- Todos os meses, meu Capitão! E foi sem eu lho pedir! Bastou que um sargento da companhia lhe contasse que eu andava esmorecido e me esfalfava a fazer a limpeza das correias e do armamento de uns poucos lá da companhia para apurar mais uns vinténs, que, no cabo de contas, não chegava para o pão de cada dia, bastou sabê-lo para me socorrer! Tem sido o amparo daquelas desgraçadas.

O sr. Tenente não o diz a ninguém, mas eu não me farto de o dizer a toda a gente. Mil anos que eu vivesse e nunca me havia de esquecer! Ainda que eu pusesse a boca onde êle põe os pés, lhe pagava o que me tem feito!

- Pois bem, rapaz - disse-lhe Henrique enternecidamente - toma lá para a tua velhita. É para suprir a mesada que meu irmão não lhe pôde mandar este mês.

Tirou uma peça e queria dar-lha.

- V. s.a perdoe, meu Capitão, mas não foi por causa do dinheiro que eu cá vim.

- Bem sei, mas eu quero seguir o exemplo de meu irmão. Vamos, toma lá. É para tua Mãe.

- Deus lho pague, meu Capitão.

- Mas diz-me o teu nome. Quero falar de ti a meu irmão.

- Sou o João Luís, da companhia de granadeiros do senhor Tenente.

- Pois eu cá lhe direi que vieste cá.

- Então queira v. s.a perdoar a minha confiança, mas desejava que lhe dissesse que só vim hoje, porque me não deixaram sair do quartel. E que vim cá em nome de todos os soldados da companhia.

- Pois sim, eu lho direi.

- Que a minha velhita e a minha irmã, eu fui lá por casa vê-las, também desejam muito as melhoras do seu benfeitor. A velhita largou-se a chorar, assim que eu lhe disse que o meu Tenente tinha estado muito mal. Tal como se fosse também um filho seu! E a dizer-me que a sua vontade era arrastar-se até aqui para vir beijar as mãos à senhora sua Mãe. V. s.a queira desculpar o atrevimento.

- Não tenho que desculpar. Dize lá à tua velhita que venha quando quiser.

- Muito obrigado, meu Capitão, e com licença de v. s.a.

- Vai com Deus e agradece.

O João Luís fêz a continência, rodou para a retaguarda como num campo de exército, e afastou-se.

- Um belo granadeiro e um grande coração! - comentou Henrique de Castro - Como o tempo corre! - disse, vendo o relógio - Vamos, depressa - avisou para dentro.

Trouxeram-lhe o cavalo, montou e meteu a trote largo para o quartel de Campo de Ourique.

 

                   Desenganos.

No meio da sua tortura de infortúnios e de vergonhas uma coisa aparentemente infantil amargurou o pobre povo da capital, ingénuo e crente.

Proibiram-lhe naquele ano a missa da noite do Natal, a velha e amorável festa das suas tradições remotas. Foi outra afronta opressora com pequeno intervalo da substituição da bandeira. O povo não se revoltou como quando arriaram a bandeira do Castelo, mas sentiu-se ofendido. Não houve sangue nas ruas, mas certamente em muitos lares, ao dar da meia-noite, diante do ingénuo presépio, muitas almas choraram, almas amoráveis de mulheres, essas principalmente, na visão daquela noite de outros anos: as igrejas cheias de gente, os altares cheios de luz, os formigueiros de devotos pelas ruas, os sinos A darem alto o alarme da festa naquela voz inconfundível que eles têem para os grandes júbilos e para as grandes mágoas, aquela voz que o nosso coração guarda e reproduz sempre em cada hora de fortuna ou em cada hora de dor.

Naquela noite emudeceram na torre da igreja erma, envolvida em sombras.

Novion, o comandante de armas, lembrara a Junot os perigos daquela romana nocturna. Os paus íerrados dos crentes podiam cruzar-se outra vez com as baionetas francesas e as mulheres podiam levantar as pedras das ruas contra o peito dos dragões.

Junot achou o aviso judicioso e a missa foi proibida. Em dez dias duas ofensas de morte para a alma crente do povo atingiNdo, ambas sacrilegamente, duas grandes religiões - a da bandeira e a do altar. No mesmo propósito opressivo a ofensa do invasor e a ofensa do jacobino.

E a segunda agravada pelos desacatos da soldadesca irreverente, a cantarolar libertinagens nos conventos, mudados em casernas, e a espinotar can-canS às portas das capelas, transformadas em casas-de-guarda, como a capela das Mercês, a dos Marqueses de Pombal, na rua Formosa(1).

Junot, com o seu doido proceder de libertino, ainda feria desatinadamente a susceptibilidade dos oprimidos. Era de escândalo a sua vida de sÁtrapa por banquetes faustuosos, em bailes magnificentes, nuns amores doidos de estúrdio pelos camarins de SÃO Carlos e pelas ante-câmaras do Paço de Queluz, nas alamedas da quinta do Ramalhão, num pagode lúbrico de bailarinas afervoradas com o champanhe e o Porto da garrafeira do Quintela.

Entretanto, com o ágio do papel moeda a 29, o comércio arrasado, a fome das classes pobres a uivar às portas da cidade, os negociantes continuavam

 

*1. Vide Observador Portuguez, aponta aquele facto com piedosa lástima.

 

no angustiado rateio do empréstimo forçado de oitocentos contos, tributo imposto à capital.

E já nos temores de outro, imensamente maior, de cem milhões de francos, espécie de contribuição de guerra imposta ao país pelos amigos que o invadiram e não pôde combater.

Entrara Janeiro, a recobrar as forças de dia para dia, Luís de Castro está quási completamente restabelecido. Deu-lhe o médico permissão para ler e conversar e já dá uns passeios até aos aposentos do tio Jerónimo. Mais uns dias, e poderá sair de sege. Tem já o seu primeiro passeio planeado, clandestinamente planeado. Irá para as bandas de Santos. Talvez Maria tenha voltado e, ainda que não tenha ser-lhe-á dado reviver o seu sonho, passando ao pé daquela casa onde tantas vezes lhe falou, nuns arrebatamentos de amor inexcedido.

Depois, dias depois, tentaria procurá-la, ao menos para o derradeiro adeus.

Mas logo a si próprio tristemente se repreendia:

- O louco sem remédio que eu sou! Compreendo, vejo a barreira de incompatibilidade que se levantou entre mim e ela, a raia de sangue que nos separa e ando neste sonho de a tornar a ver, de ouvir outra vez o meu nome na música da sua voz, de beijar como dantes o oiro perfumado dos seus cabelos!

«E, todavia, este amor já não pode ser senão de perdição para ela, de ultrage e de remorso para ambos!

«Filha desse conspirador, desse degredado, desse homicida que me ultrajou a farda, a minha e a de todos os meus camaradas, já não poderia ser para mim senão a esposa clandestina que a ninguém se apresenta ou a amante que de todos se esconde, na alcova de ilícitos amores como num calabouço.

«À desonra para ela, e a desonra para mim!

«Que horror de futuro! Assim se mudou para este inferno insuportável aquele amor de celestiais visões!

«E, afinal, em mim cada vez mais intenso, mais dominador, mais louco!

«O dever era esquecê-la, e não tenho agora um momento que não seja de impaciência por tornar a vê-la! Sonho um beijo seu como o faminto pode sonhar a esmola de umas migalhas de pão!

«A bala do pai teria sido generosamente misericordiosa varando-me o coração.

Pela amargura destes pensamentos se explicava a tristeza profunda daquele convalescente. Na conversa, aparentemente despreocupada, ninguém havia que não lhe adivinhasse o disfarce inútil de uma dor de alma, dessas dores piores que raras vezes têem remédio.

A mãe então percebia-o como ninguém. Laura, a irmã de Branca, adivinhava-lhe os pesares, numa doce e resignada tristeza.

Amava-o clandestinamente, amor comedido, sofredor, nascido de uma inclinação de criança, paixão numa conformidade de desalentos, desde os dezasseis anos, e tinha quási dezanove.

Na hospedagem daquela casa havia dez dias, hóspeda a instâncias da irmã, em maior intimidade com êle, a paixão de Laura aumentara a um tempo na intensidade e no sacrifício.

Percebia-lhe bem o doloroso fingimento do sorriso e a mentira das palavras, ainda que tivessem a forma de um galanteio para ela. Lia-lhe no coração claramente, era doutra, vivia lá outra imagem de mulher, velada talvez de amarguras, mas num fervoroso culto, numa devoção que nenhum outro amor faria esmorecer.

- E o doente? - preguntava-lhe às vezes a irmã a sorrir.

- Não tem remédio! - volvia-lhe Laura com um ar de adorável melancolia - Nem êle nem eu. Dois corações enfermos.

O dele tem lá outra imagem e o meu não quere outro amor que não seja o dele. Fazemos dó um ao outro e nem êle nem eu encontramos remédio!

- Como tu desanimas! És carinhosa, és linda, que outra noiva melhor poderia êle encontrar?

- A outra que sonhou e ama. Não sei quem é mas será essa a melhor para êle. Dou-lhe razão. Também eu não podia ter outro noivo, e não o quero, porque o não tenho a Êle. E olha que sofro mais agora! Branca, eu bem não queria vir para cáí É sacrifício demais para mim! Hás-de dar licença que eu me vá embora. Longe daqui, hei-de sofrer menos e chorarei sozinha pelo meu sonho, que é como a gente chora melhor.

- A minha linda, a minha pobre esmorecida! - volveu-lhe abraçando-a, beijando-a muito - Sem ânimo e sem paciência de esperar! Eu já te disse que o Luís tinha tido aí uns amoricos de nenhuma importância com uma rapariga estrangeira, filha de um homem de negócios, gente ordinária.

- Isso é o que menos vale, minha querida. Se o Luís me tivesse metade que fosse do amor que eu lhe tenho, olha que podia ser de gente ordinária e não seria por isso que eu lhe havia de voltar as costas.

- Pois sim, seja como tu quiseres, mas o caso é outro. Essa rapariga estrangeira tem o pai perseguido não sei por que delito, e teve de se ausentar de cá. Ora bem percebes que se não pode comparar contigo, por muito bonita que seja.

- Pior para mim, maior desconsolo, maior tristeza para êle. Apesar de tudo, de tal modo o cativou, que êle não pôde esquecê-la. Vê lá que amor lhe tem!

- Deixa, que nada há no mundo que não passe. O Luís não é homem que vá por aí fora atrás dela.

- Isso lá quem sabe?!

- Seria uma vergonha de que êle é incapaz. Longe dela, há-de esquecê-la e reparar nesse teu amor, nos teus encantos, na devotada noiva que tu serias para êle.

- Ainda que assim fosse, seria dor demais para mim, e humilhação que nem tu nem eu podemos querer, esperar aqui que êle tivesse ânimo para despedir do coração a outra que se foi embora. é mais honesto e de mais caridade para mim deixar que eu vá para um convento esperar. Foi o que fêz há dois anos a Beatriz Falcão. Dizem que na sua cela foi perdendo o horror ao apartamento do mundo. O noivo por quem esperava não voltou, morreu não sei em que desastre, e ela amortalhou-se em vida, fazendo-se freira. É o melhor que eu tenho a fazer.

- Não, não há-de ser assim, minha querida - disse-lhe Branca enternecidamente-Tu verás que me não engano.

Conversavam na saleta de jogar o Mar e Guerra, Luís de Castro, o padre António e o Madureira dos Negócios Estrangeiros.

Com uma grande palidez de convalescente anémico, Luís escutava de rosto avincado, numa expressão de amargura e de revolta, aquela triste conversa de esmorecimentos.

- E não lhe vejo remédio! - dizia o Madureira - Os ingleses têem medo de se arriscar a uma campanha terrestre. Napoleão conta com a aquiescência da Europa vencida, e em breve terá uma boa parte do exército francês no coração dessa Espanha que Manuel Godoy lhe pôs de rojo aos pés. Sabe-se que foi organizado um segundo exército da Gironda e desconfia-se que Já passou os Pirenéus.(1)

 

*1. A 13 de Novembro Napoleão anunciava a Carlos IV a resolução em que estava a reforçar o seu exército de Portugal, e nesse mesmo dia o segundo corpo de observação da Gironda, comandado pelo general Dupont, passava o Bidassoa com um efectivo de vinte e dois mil homens. (Les Guerres d'Espagne-sous Napoléon, por E. Guillon - 1902.)

 

comandado pelo general Dupont, passava o Bidassoa com um efectivo de vinte e dois mil homens. (Les Guerres d'Espagne-sous Napoléon, por E. Guillon - 1902.)O que há-de poder contra tudo isso este povo que não tem pão, nem armas, nem pólvora, nem chefes? Junot segura-se, as Secretarias do Estado estão já nas mãos dos franceses. Acabou-se! Já não levantamos cabeça. Agora lá no Brasil que façam outro Portugal e lhe continuem a História, se puderem.

- Isso não, com seiscentos diabos! - protestou o Mar e Guerra. Que demónio! A paciência do povo-há-de cansar-se, e alguém haverá que nos empreste dinheiro para comprar-mos espingardas.

- Só se forem os ingleses, mas não os vejo dispostos A isso.

- A Corte, que fugiu para o Brasil, ela que no-lo-empreste. Que empenhe ou venda os diamantes e as pratas que levou para lá.

- Tomaram eles mais. Varreram tudo o que havia de maior valor e era mais fácil de levar! - objectou o Madureira.

- Pois ainda era esse o único meio de resgatar a sua abominável fraqueza-disse o Mar e Guerra - E essa nau podre de Espanha não terá lá quem se afronte de ver Carlos IV vergonhosamente dominado pela rainha e os dois pelo valido que os desonra a ambos e transforma em libré napoleónica a sua farda bordada de primeiro ministro? Se viesse de lá um repelão favorecedor, se os espanhóis se arrependessem da sua torpe cumplicidade no extermínio de uma nação pequena e se revoltassem, acudindo pela sua própria honra, então fechar-se-ia o caminho fácil do invasor, e seria possível que nós ajustássemos contas com os que para aí estão como em terra sua!

Manuel de Albuquerque, chegado momentos antes, acudiu com aquele amargo sarcasmo que estava SENDO A FEIÇÃO característica das suas revoltas de patriota.

- Isso arrependem eles! Namora-os a conquista fácil que fizeram, encabritados no tratado de Fontainebleau. Seguram para si um bom pedaço de Portugal, sem queimar uma escorva, e por cá se deixarão ficar, se o Corso lhes não roer o tratado.

- Desconfia-se disso - informou o Madureira - Há mesmo quem suponha que o tratado não foi, principalmente, para retalhar Portugal, senão para abrir aos exércitos franceses o caminho dos Pirenéus espanhóis, a pretexto de reforçar o exército de Junot. Ouvi ontem a um ministro estrangeiro, ministro de uma grande potência, que tem por cousa segura para muito breve a invasão sub-reptícia da Espanha.

- Oxalá - acudiu Manuel de Albuquerque - Metam-lhe o gado napoleónico pelas cancelas abertas dos Pirenéus e então é que a toirada há-de ser com passes de capote e sortes de morte. A Espanha tem um excelente bandarilheiro naquele patife de Manuel Godoy, Príncipe da Paz e usufrutuário de várias regalias que Sua Magestade Carlos IV lhe não leva a mal na sua munificentíssima bondade.

- Já se conta por aí que vai grande e azeda intriga nos paços reais de Espanha entre o rei, a rainha, Manuel Godoy e o príncipe Fernando.

- Ah! mas há-de vencer o querido Manuel - chasqueou Albuquerque - Querido do rei e da rainha, querido de ambos, e mais dela que dele, hão-de ver que triunfa. Olhem, aqui está uma prova.

E tirou da algibeira uma grossa moeda de prata.

- Que é isso! - preguntou o Mar e Guerra.

- Vê. Um duro com a efígie de Manuel Godoy e as armas do Algarve. Sua Alteza está a ter receio que o principado lhe fuja e mandou já cunhar moeda. Este duro veio da casa da moeda de Madride.

«Aqui diz: Emmanuelprimus Algarviorum Dux. Este Manuel I não é para demoras!

- O desaforo!

- Entretanto hei-de eu ir desfrutando esses granadeiros de Castela que para aí vieram como figurantes de Junot e passeiam por essas ruas com embófia de triunfadores. Pois os generais que a Espanha cá tem! São deliciosos no seu papel de ditadores, à compita com o Andoche Junot! O Andoche a decretar e a proclamar em Lisboa, e logo D. Francisco Solano, Marquês del Socorro, a decretar e proclamar em Setúbal para Alentejo e Algarves, e a seguir D. Francisco Taranco e Lhano a decretar e proclamar para entre-Douro-e-Minho! Não julguem que invento. Andaram a distribuir em Lisboa as traduções impressas dos decretos e proclamações dos conquistadores espanhóis. Deram-nos esta honra insigne, dois exércitos e três generais conquistadores -Andoche e os dois Franciscos da Espanha.

Tirou uns papéis da algibeira.

- Tèem aqui, se quiserem ler, em excelente letra redonda o que dizem aos povos subjugados os dois Franciscos espanhóis. Só os títulos com que eles se pavoneiam! Não resisto a ler-lhos. Começaremos pelo do Porto. Leu.

«D. Francisco Taranco y Lhano, condecorado pelo imperador de todas as Rússias com a ordem militar de São Jorge, Patrão de Zaratamo em Biscaia, Tenente-general dos reais exércitos de S. M. Católica, Capitão-general do reino da Galiza, Presidente da sua Real Audiência, Sub-delegado da renda de correios e caminhos nele e actual General do exército de operações neste reino, etc.

Esboçou-se um pálido sorriso nos lábios daqueles ouvintes.

- É tudo isto o ditador da Lusitânia Setentrional, dote napoleónico de uma princesa espanhola, a quem Napoleão surripiou o reino seco da Etrúria. Agora o outro, o lugar-tenente de Godoy, no seu prometido principado do Alentejo e Algarve, por conta do grande enredador de comédias que nos saiu Napoleão. Eu leio:

«D. Francisco Maria Solano Ortiz de Rozas, Marquês do Socorro e de Solana, Conde e Senhor del Carpio, Senhor de Quintanilhas e Casa de Hito, Maestrante da Real de Sevilha, Cavaleiro das Ordens de Santiago e São João, Tenente-general dos reais exércitos, Governador e Capitão-general do exército e província de Andaluzia, Chefe das juntas da saúde dela, Presidente da Real Audiência de Sevilha, Governador militar e político da praça de Cadiz, Intendente e sub-delegado das rendas reais naquela província do Alentejo e reino dos Algarves, etc.».

«Uf! Só lhe faltou pôr o nome dos criados de quem tem sido amo e dos prédios de que foi inquilino!

O padre António quebrou a gravidade entristecida daqueles ouvintes torcendo-se a rir com os dizeres de Manuel de Albuquerque.

- Nisto, ao menos, o Andoche é mais modesto. Limita-se às suas honrarias de primeiro ajudante-de-campo do Imperador, governador de Paris e general em chefe do exército de Portugal. Se lhe desse para alardear tudo o que tem sido, desde sargento em Tulono, e as batalhas em que entrou, adeus minhas encomendas! Estou convencido de que a gente soletrácea do Porto e de Setúbal levou uma manhã inteira a ler os títulos dos seus Xicos dominadores, e só depois de jantar pôde ler o resto.

- Tu ainda podes mofar de tudo isto! - observou-lhe o Mar e Cuerra - mas a tremenda realidade é que Portugal é deles!

- Até um dia, meu caro Jerónimo. Quando os homens moços desta terra se resolverem a varrer de cá esses estrangeiros, o velho mofador irá com eles como soldado raso ou como simples guerrilheiro, seja como fôr. Mas a revolta há-de ser do povo. O exército desfaz-se, encolhe-se, ninguém dá por êle, parece que já não sabe combater!

- Há-de saber, Tio - objectou Luís.

- Deus te escute, meu rapaz. Mas já ouvi que vão dar baixa à maior parte dos soldados.

- Também eu ouvi dizer isso -acudiu o Madureira - Parece que Napoleão recomendou muito ao Junot que lhe mandasse para França o melhor do nosso exército.(1)

- Pois então, meu rapaz, dispõe-te para ires combater ao lado do Grande Exército, se a Europa tornar a levantar a grimpa contra Napoleão. E nesse caso, quem puder desertar que deserte.

- Haviam de supor, então, por estes nossos desgraçados antecedentes, que os desertores não passavam de uns cobardes, a quem enchia de pavor a simples hipótese de ir combater exércitos formidáveis, em batalhas de cem ou duzentos mil homens, com vinte ou trinta mil mortos, como nunca se viram em Portugal. Tio, seria então vergonha maior! Os mais benévolos hesitariam em tomar à conta de protesto patriótico o que podia ser poltranice de ânimo. O mundo não quereria saber se em Novembro de 1807 estávamos traídos por certos ministros poltrões, abandonados pelo Regente, atraiçoados em Lisboa, tendo apenas alguns milhares de soldados famintos para opor a dois exércitos que o Príncipe Regente nos mandava receber como amigos. O mundo há-de ter lido a nota mentirosa do nosso exército nominal e lembrar-se-á apenas de que se não queimou um

 

*1. Em carta para Junot, datada de Fontainebleau em 20 de Novembro, quere dizer, nove dias antes da chegada do exército francês a Sacavém, Napoleão recomendava-lhe que desarmasse o exército e lhe mandasse para França uma força de cinco a seis mil oficiais e soldados ajuramentados. (Correspondance de Napoléon I, carta 13:351. Vem citada pelo sr. Boppe).

 

Com este antecedente de cobardia aparente, o mundo concluiria, desprezador, que os desertores eram afinal uns cobardes e que já não tinha Portugal soldados com alma para verem como os homens se matam num campo de batalha. Falara calorosamente, concluíra ofegante:

- Mas olha que também combater ao lado dos inimigos da Pátria, batalhar pela glória deles, ajudá-los a erguer maior poder com que mais nos esmagassem aqui, havia de ser uma coisa bem mais repugnante, dolorosa!

- Tio, como um sacrifício de grilhetas, atrozmente imposto. Mas, desertar, sem ter mostrado à Europa que somos soldados capazes de combater, mas desertar sem ter o país em revolta, a justificar a deserção, seria para o mundo o opróbrio da nossa farda, ainda que fosse para o coração da Pátria um testemunho de amorável devoção. Abomino as deserções, qualquer que seja a razão ou o pretexto que as determine. Eu não desertarei nunca. Prefiro dar um tiro na cabeça. Antes revoltar-me, para que me fuzilassem.

- Mas olha que pode chegar a violência ao extremo de vos obrigarem a combater a nossa gente, a invadir a vossa própria terra.

- Então não se deserta, faz-se do nome da Pátria um grito de revolta, e que nos fuzilem sem piedade. Se nos obrigarem a sair de aqui, dada a impossibilidade de uma resistência que valeria um suicídio inútil, se tivermos de sair sem que a nação revoltada nos justifique a desobediência, quere o Tio saber o que eu farei, se me nomearam para ir?

- Pedes a demissão, percebo.

- Pedia-a para me ir alistar noutro exército que tivesse de combater os exércitos da França. Afastava de mim a suspeição de cobardia.

- Mas se ta não dessem, como seria provável, se a nação se dobrasse resignada como agora?

- Então ia de coração amargurado, mas ia como quem vai para um calvário angustioso. E quere saber com que empenho? Com a vontade fanática de arrebatar ao conquistador um quinhão dos louros que o nosso esforço lhe ajudasse a ganhar, com o empenho de falar tanto à alma portuguesa que, nos campos de batalha, nós, o punhado de homens de um exército que ninguém quis mandar contra Junot, puséssemos nas aclamações triunfais do Império o nosso nome de portugueses, - entre vencedores e vencidos, por muito que estivéssemos baralhados nos exércitos de Napoleão, ficasse extremado o esforço e o sacrifício do nosso sangue. Escreveríamos então nós, à ponta de baioneta, o comentário desta invasão humilhadora em que não houve combatentes. Na sua agonia de humilhações, Portugal poderia lembrar com orgulho os seus soldados, a rivalizarem outra vez com os melhores do mundo. Perceber-se-ia, evidentemente, na Europa, que não faltavam aqui homens para batalhar e morrer, o que faltara fora alguém que soubesse governar.

Parou um instante como cansado daquele esforço.

Lembrava-lhe o exemplo da Polónia subjugada, nação semi-morta, e com os mais intrépidos soldados que tinha a Europa.

- Ah! mas oxalá que tal sacrifício não seja preciso. A melhor, a mais santa glória, aquela a que nenhuma outra se iguala, seria combater aqui, vencer por esses desfileiros das nossas montanhas, por essas planuras dos nossos vales, acabar neste chão sagrado onde os nossos heróis morreram, onde as nossas mães choraram.

Levantara-se mais pálido, numa enternecida vibração que lhe sacudia os nervos.

- Eu posso não estar completamente de acordo contigo - disse-lhe o tio Manuel, abraçando-o, - mas tu és um homem com quem se pode contar e sabes dizer as coisas admiravelmente!

- Pois sim - acudiu o Mar e Guerra - mas faz-lhe mal essa exaltação, ainda o fatigam esses arrebatamentos.

- Fadiga de instantes - respondeu Luís.

- E por'ora - objectou o Mar e Guerra - é estar a discutir antes de tempo. Quem sabe lá para que rumo voltará o vento?

Luís pensava na filha do polaco.

«Encontrar a morte num campo de batalha, aqui estava o honrado fim, digno do meu nome e da minha desgraça» - disse consigo.

Henrique chegou. Tinha acabado a prevenção nos quartéis. Fora com o seu regimento ao funeral do antigo general das armas.

- Então, sem novidade? - preguntou-lhe o tio Manuel.

- O pobre general teve também a homenagem das tropas francesas. Era um disfarce para escoltar as nossas. Com os nossos regimentos 1, 13 e 16, já tão reduzidos que nem chegam para batalhões, iam dos franceses um batalhão em grande força e uma bateria de artilharia.

- Apesar de tudo, não se sentem seguros! - comentou Manuel de Albuquerque.

- Falou-se lá da chegada de um ajudante de Napoleão com papéis importantes para Junot.

- Devemos ter grossa surpresa! - acudiu Albuquerque.

- Não deixará de ser coisa relativa à contribuição dos cem milhões - lembrou o Madureira - Vae então tudo nessa rede de arrastar.

- Adivinhavam isto os maganões que se safaram para o Brasil com os baús atulhados de riquezas! - disse Jerónimo de Castro - Mas não lhes invejo a regalada poltranice.

- O sr. tenente-coronel Valadares está na sala de

espera - veio dizer à porta o velho mordomo -Vem saber as melhoras do sr. Luís de Castro.

- Mas que entre para aqui - disse o Mar e Guerra - Vá dizer-lhe que o sr. Luís de Castro está aqui e que teremos muita honra em o receber como pessoa da nossa intimidade.

- Vou eu mesmo dizer-lho - acudiu Manuel de Albuquerque - Intérprete forçado do quartel-general, o Valadares deve andar bem informado de tudo.

Foi buscá-lo. O Valadares era sempre afectuosamente recebido. Voltou a conversa ao assunto inevitável de toda a hora - a dominação napoleónica.

- Vamos lá então a saber o que projectam os nossos tiranos?- preguntou Manuel de Albuquerque.

- Querem afrancesar o povo por intermédio da religião.

- Há-de ser coisa difícil!

- Junot obteve do Patriarca uma ordem para os párocos abençoarem as tropas francesas, sempre que as encontrassem nas ruas e levassem a sagrada partícula.

- Não há-de ser feio, mas não há bênçãos que façam esquecer ao povo as proezas que eles tèem praticado. Nem que vestissem aos granadeiros todos e ao próprio Junot o balandrau de irmão do Santíssimo.

- E é verdade ter chegado um ajudante de Napoleão? - preguntou Henrique.

- É, veio de Milão.

- De Milão!

- Sim. Napoleão estava lá quando o seu ajudante partiu, não sei se há dezasseis ou dezanove dias.

- E virá por cousa que nos diga respeito?

- Por motivos que são de grave importância para nós! Sim! De singular importância. Foi o que eu percebi no quartel-general. Surpreendi mesmo uns dizeres que me produziram sobressalto.

- Coisa que se não pode saber?

- Pode, sim. Não foi segredo que me confiassem.

- Se fôr preciso, guardaremos reserva àcêrca do que nos disser, meu caro Valadares. Bem vê, trata-se de cousa grave para nós, para Portugal, não admira que nos interesse.

- Eu mesmo vinha com tenção de lhes contar tudo o que sei. Pouco me importa que venha a saber-se por minha culpa. Puniam-me, mandavam-me prender no quartel do regimento? Tomara eu. Não era castigo, era prémio. Mas não lhes importa que se saiba. Empavonado com certa promessa de uma alta mercê do Imperador, Junot contou tudo diante dos ajudantes e um deles veio logo para fora transmitir a confidência a um tal Trousset, espécie de chefe da administração do exército, marido de uma linda mulher que chegou há quatro dias e a quem Junot começou logo a requestar atrevidamente. Quem pôs tudo em pratos limpos, numa conversa que eu casualmente ouvi, foi um tal Carrion de Nizas, chefe de esquadrão, um dos ajudantes-de-campo de Junot. É um homem de espírito culto, um gracejador implacável, que não perde ocasião de beliscar as vaidades e as fraquezas do general em chefe.

- Então uma grande mercê para o Andoche? - preguntou, escarninho, Manuel de Albuquerque.

- Por'ora uma promessa. Carrion de Nizas contou que o Junot tinha ficado como doido, mas que intimamente lhe não teria parecido bastante, porque o seu sonho doirado é o bastão de marechal do Império.

- Dizem que é muito ignorante e muito tarimbeiro para tamanha categoria - comentou rancorosamente o fidalgo de Abrantes.

- Lá isso não era obstáculo para a mercê. Há os precedentes de Augereau, de Lannes, de Lefebvre, do próprio Murat. O marechal Vítor, Duque de Bellume, começou de tambor. Junot é, sem dúvida nenhuma, um valente dos mais arrojados entre tantos que tem Napoleão, mas essas campanhas de marchas...

- A butes - interrompeu o Albuquerque - auxiliada pelos sapateiros de Abrantes e pela Guarda Real de Novion, não era realmente para lhe darem o bastão de marechal.

- Mas vai dar-lhe Napoleão o título de Duque.

- Duque de quê, pode saber-se?

- De Abrantes. Duc d'Abrantes.

- Acho bem. Não assaltou a praça, mas assaltou as sapatarias, os pés e as casas dos abrantinos calçados. Nesse feito as nossas perdas foram realmente horrorosas! Cerca de dez mil pares de calçado de diversos feitios e idades! Bem pode dizer-se que a cidade ficou em chinelos. Eu, por mais audaz, ainda consegui salvar o par de botas com que vim trazer aquela nova e aquela vergonha. Acho bem o título.

- A troça que lhe fazia Carion de Nizas, sem reparar que o podiam ouvir portugueses que o entendessem! O título pode fazer-nos sorrir, mas é realmente o que menos importa. O pior é que de Milão veio um decreto imperial impondo a Portugal uma contribuição de cem milhões.(1)

- Cem milhões! - exclamou, estarrecido, o padre António.

- Era o que já se dizia - lembrou o Madureira - Mas não sei como eles hão-de levar tamanha quantia deste país reduzido à miséria!

- Levam tudo!

- Aí tínhamos bom ensejo para uma revolução de desesperados - disse o Mar e Guerra.

- Sem armas - objectou o Valadares - Os arsenais estão guardados pelos franceses.

 

*1. O decreto em que Napoleão impunha a Portugal uma contribuição de cem milhões de francos era datado do palácio real de Milão em 23 de Dezembro de 1807.

 

- E os regimentos portugueses que há em Lisboa?(1)

- Agora apenas quatro de infantaria, tão reduzidos que não dariam todos juntos a força de um regi mento francês. Reduzidos e sem cartuchame embalado, porque já lho tiraram. Só lhes deixaram cartuchos para descargas de parada e de funerais. Vai isto indo a pouco e pouco! Parece que veio também ordem do Imperador para Junot exonerar os governadores do Reino e tomar êle o governo supremo em nome de Napoleão. E a par disto, a exigência de mandar para França o melhor do nosso exército, segundo contava Carion de Nizas! É Uma desgraça, um sacrifício brutal para os que tiverem de ir! Dói-me por mim e por todos!

Luís afogueara-se, Henrique fêz-se pálido.

- Mas terá de ir tudo o que ainda resta de exército? - preguntou o marido de Branca.

- Isso é que eu não sei ainda. É uma notícia pungidora que me estava custando dar-lhes! Quantas lágrimas de esposas e de mães?! Ir arriscar a vida pelo poder e pela glória de quem nos esmaga a Pátria! É demais, é uma violência atroz! Não faltará quem peça a demissão, quem deserte, ainda que tenha de andar a monte como um facínora!

Henrique lembrava-se da esposa comovidamente. Ter de a deixar ainda nos primeiros enlevos do noivado!

- Pobre Maria! - pensava Luís nos desalentos daquele seu tamanho amor,

 

*1. Napoleão mandou a Junot duas cartas em que insistia energicamente na recomendação de desarmar o país e mandar-lhe para Baiona as melhores tropas portuguesas.

Ambas as cartas eram de Milão, a primeira de 20 de Dezembro, a segunda de 23. Nesta lhe apontava os perigos de deixar aos portugueses quaisquer recursos de defesa, porque todos estavam dispostos contra êle, car, enfin, la nation portugaise est brwe.

 

tragicamente amargurado.

Levantou-se e preguntou bruscamente ao Valadares:

- E o Tenente-Coronel, se o nomearem?

- Peço a demissão.

- E se lha negarem, deserta?

- Não, isso não.

- Nem eu.

- Salvo se até lá a nação se revoltar - restringiu o Valadares.

- E tu, Henrique? Dá também a tua opinião - disse-lhe o tio Manuel.

- Eu... Tio, eu irei, se fôr desonra não ir.

O Valadares despediu-se. As suas informações tinham deixado uma funda impressão de tristeza.

Uns dias depois Luís de Castro deu o seu primeiro passeio de sege. Foi com êle o irmão e chegaram até Belém. Em Santos viram as janelas da casa do fingido joalheiro completamente cerradas.

- Como as casas onde alguém morreu! - disse consigo o pobre namorado -Na realidade, ali morreu o meu mais belo sonho.

Acariciou num olhar turvo de lágrimas aquele jardim onde tantas vezes falara à filha do polaco. Ali uma vez a cingira contra o peito. Fora na primavera do ano anterior, as flores adormecidas nos canteiros altos de azulejo, o luar a envolvê-la a ela na sua luz branca de sonho, madona juvenil de cabelos de oiro como as pintou Rafael, o rio a espreguiçar pelas areias a sua orla de espumas num rumorejar brando de carícias.

Tão aconchegada a si que lhe sentia bater o coração num alvoroço de amor, nas suas as mãos dela, mãos brancas de rainha numa tremura de casta ingenuidade, os lábios como pétalas de uma flor vermelha que a brisa calma de Abril houvesse agitado o seu olhar de enlouquecido fito nos olhos dela, húmidos, tímidos, luz de celestial beleza que o enfeitiçava.

Dera-lhe então o primeiro beijo. Sentia-o ainda na sua boca sequiosa, crestada da febre, e sonhava-o como se aquele instante de suprema ventura fosse de um tempo remoto que já não voltava e só em sonhos podia ressurgir.

- Henrique!-disse subitamente para o irmão - Tens-te esquecido daquelas informações que eu desejava!

- Não tenho, mas ainda me não foi possível saber em qual quinta está o polaco. Há tantas na Outra Banda...

- Talvez já saíssem de lá. Mas amanhã vamos os dois para lá. Indaga-se.

- Não podes ainda. E que pudesses, Luís! Querias aparecer-lhe, estando lá com o pai... e, provavelmente, com o irmão?

Luís estremeceu. Aquela referência a Miguel Platow confrangera-lhe o coração.

- Não - respondeu sombriamente - Quero apenas saber o que foi feito dela. Bastar-me-á vê-la, de muito longe que seja.

- E sentes-te já com ânimo para qualquer grande comoção?

- Sinto!

- Se não pudesses ver, se já o pai a tivesse levado para fora de Portugal, serias homem para não fraquejar?

- Era. Mas tu desconfias ou sabes alguma coisa?

- Formulei apenas uma hipótese. Sabes bem que é possível, muitíssimo provável. Melhor do que eu conheces tu as razões que o polaco tem para abandonar Portugal.

- Conheço, conto com a ausência de Maria, sei que estes amores estão irremediavelmente condenados...

- Irremediavelmente - confirmou o irmão, interrompendo - Nossa Mãe teria uma dor de alma esmagadora, se soubesse que continuavas amores com a filha desse degredado, que te ia matando, depois de tu lhe teres poupado a vida a êle! Voltar-te-iam as costas as pessoas da Corte, os nossos próprios camaradas se te soubessem em relações de amor, amante ou clandestino esposo da filha do teu, do nosso insultador.

Dissera-lhe isto baixo, para o boleeiro não ouvir. O ensejo parecia-lhe adequado para dispor o ânimo do irmão a ouvir umas confidências de desenganos. - Embora. É uma crueldade que eu compreendo e sinto. Podias ter a fácil generosidade de ma não dizeres, Henrique! Se ainda está em Portugal, hei-de vê-la. Isto é amor para acabar comigo, podem sacrificá-lo convenções e susceptibilidades sociais, mas não se desfaz em cinzas, à vontade de qualquer, de um momento para o outro. Amor raro, profundo, como os amores antigos, para encher uma vida ou para a perder, não o podes compreender tu, esposo dilecto da fortuna, que não sentiste no teu sonho de requestador o travo de uma lágrima, a sombra sequer de um desgosto. Tu sabes lá, tu podes lá supor, em que veneno corrosivo se mudam no coração de um homem as lágrimas que seria ridículo chorar diante do mundo, e que tamanha angústia de dor é ver de súbito, numa derrocada estonteadora, tudo quanto a nossa alma fantasiou de belo, envolvida em noite funerária, a madrugada dos nossos primeiros amores?! Não o podes imaginar, não podes. Ama-se uma vez assim, morre-se pelo sonho que se apagou.

- Luís, exageras! Podes encontrar outros amores mais dignos de ti.

- Não repitas essa iniquidade! Castos, sinceros, por essa angélica mulher que é Maria, nenhuns outros amores mais dignos de um homem de bem.

Eu posso dobrar-me a umas susceptibilidades estúpidas da sociedade em que vivo, dobrar-me diante delas à custa de tudo quanto podia ter de radioso e feliz esta minha mocidade, tão duramente atribulada no espaço de uns dias, mas não admito a brutal injustiça que intenta macular com as responsabilidades do pai o nome puríssimo dessa mulher!

- Nem eu, Luís, nunca tive a ideia de afrontar essa menina. Há uns dias para cá tenho até por ela uma piedosa admiração. Mas isso não me impede de repetir que o teu dever de honra é matar para sempre esses amores.

- Pode morrer com eles quem os quere matar. Já tem sucedido. Mas explica-me porque é que há uns dias para cá tens por ela essa piedosa admiração?

- Explico, sim. É até um dever de lealdade, que eu procurava ensejo de cumprir.

- Há muitos dias?

- Não.

- Fala, peço-to!

- Falo, sim. Mas não pode ser aqui.

- Deixas-me num inferno de suposições!

- Bem vês que é demora de pouco tempo. Muito nervoso, numa impaciência que parecia infantil, Luís disse ao boleeiro que batesse para casa.

As muares meteram a trote e a sege lá foi pelas ruas fora aos solavancos, apesar das recomendações de Henrique, muito receoso de que fizessem mal ao irmão aqueles estremeções violentos.

Henrique foi procurar a Mãe disfarçadamente e contou-lhe o que se passara. Depois foi buscar umas coisas e meteu-se no quarto do irmão, a porta fechada. Levou para lá o cofre com aquele pedaço de bandeira a que a filha do polaco chamara relíquia.

- Que é isso? - preguntou Luís, levantando-se perturbado, numa tremura de anémico, vencido pela comoção - Esse cofre estava em casa de Maria! Henrique, preciso saber o que houve!

- Precisas e tens o direito de o saber.

- Estou a ter medo dessa tua fria tranquilidade!

- Senta-te e escuta-me serenamente. Maria mandou-me este cofre, incumbindo-me de to restituir, quando estivesses restabelecido.

- Mas restituir-mo assim, escolhendo-te para seu intermediário, a ti, um desconhecido para ela, por que urgência, por que inesperado acontecimento?!

- Percebia que o pai ultimava os seus preparativos para sair de Portugal. Não queria levar consigo isto que ela considerava uma relíquia da nossa família. Compreendi-lhe a intenção. Podia cair em mãos que a menosprezassem num repelão de ódio, contra ti. Era fácil perceber que só das tuas mãos a poderia ter recebido.

- Quando foi que a mandou? - preguntou num dolorido estonteamento.

- Luís, fala-te um irmão que se julga o maior dos teus amigos. Trouxe-te iludido por ter dó de ti,, por ter medo que os teus arrebatamentos volvessem em doença de morte aquela prometedora convalescença em que tinhas entrado. Perdoa-me.

- Sim, creio, e estou a entender que mais dó preciso agora do que então! Mas dize quando foi - instou.

- No dia em que partia de Portugal.

- No dia em que partia! - repetiu lentamemte - Partiu então?! - preguntou numa tamanha amargura de alma que fazia compaixão.

Era uma dessas mortificadoras preguntas, pueris, insensatas, que a gente faz diante de uma surpresa de dor em que não quere acreditar, por mais evidente que seja, e ainda que ninguém mais duvide, como quando ouvimos dizer de súbito que a morte nos levou alguém muito amado.

- Partiu-confirmou Henrique enternecidamente.

Ficara num desalento como de idiotismo, pregados no chão os olhos afogados de lágrimas, aquele moço de rara intrepidez, que duas vezes provara não ter medo da morte.

- Luís, é preciso ser homem.

- E - murmurou - provei-o já. Hão-de saber que o sou!

- Por nossa Mãe, Luís!

- Sim. Conta-me como isso foi.

Henrique resumiu-lhe uma parte do que nós já sabemos.

- Mandou-te dizer alguma coisa para mim?

- Mandou pedir que te entregasse esta carta. Tomou-a de mãos a tremer. Olhou-a vagamente,

apertou-a numa contracção febril, parecia hesitar em abri-la.

- Sabes se... o outro foi também?

- O russo... o suposto irmão?

- Sim... esse.

- Não sei.

- Talvez o diga nesta carta.

- É possível que não. É atrasada. Ainda não tinha a certeza de partir. Na carta que me escreveu fazia referências ao pai, mas nenhuma alusão ao outro.

- Escreveu-te?!

- Escreveu e mandou restituir este cofre.

Luís abriu então a carta que o irmão lhe dera. Leu-a, muito pálido, interrompendo-se a espaços. Acabou com as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos. Enxugou-as, levantou-se.

- Creio que não haverá homem que uma vez na vida não tenha chorado. Henrique, guarda como se fosse um segredo esta minha prova de fraqueza. Há-de ser a última. Apagaram-se nestas lágrimas as mais lúcidas quimeras dos meus vinte e dois anos.

Deu uns passos pelo quarto, resfolegando num soluço que parecia um arranco de alma.

- Conservas a carta que ela te escreveu?

- Tenho-a aqui.

- Deixas que a leia?

- Trouxe-a com tenção de ta mostrar, mas, francamente, estás tão oprimido que receio dar-ta para a leres.

- Enganas-te. Há-de fazer-me bem lê-la. Será como ouvir falar de alguém que deixou saudades.

- Aqui a tens. Leu-a para si.

- Tinhas razão, fico mais oprimido, com maior pena, com saudade mais intensa! Não finge quem assim escreve. As delicadezas daquele coração de mulher igualam os primores daquela formosura de arcanjo! Amor de suprema desventura o seu, mas amor de que eu podia sentir-me orgulhoso, se ainda tivesse o direito de envaidecer-me por alguma coisa. E, todavia, esta carta dá-me ainda maior mágoa que a outra, mas daquelas mágoas que se não receiam, porque são também consolo. Dás-ma, Henrique?

- Dou.

- Bem hajas. Falaste a nossa Mãe neste pedido de Maria.

- Falei. Perdoou-lhe as inquietações que indirectamente lhe causaram.

Henrique disse-lhe ainda umas palavras resignadoras, fêz-lhe novas instâncias para que se conformasse e saiu.

Foi contar à Mãe o resultado daquelas confidências e pediu-lhe que o fosse ver e lhe levasse palavras de resignação.

Era prudente não o deixar sozinho com os seus pesares. Aquela doença reclamava ainda mais cuidados que a outra.

- Bandeira bordada de lágrimas, das suas preciosas lágrimas, quanto daria eu da minha vida para tomar para mim essa bandeira que as suas mãos brancas de rainha deixaram incompleta? Cândida noiva da minha alma! Levaram-te, e foi talvez como se morresses para mim! Viúvo noivo, de um noivado de sonho, o que há-de ser de ti?

Foi guardar o cofre. Pôs-se a reler a carta de Maria para Henrique.

- Que admirável singeleza de dizer, que santo e nobilíssimo coração o seu!

- Posso entrar, Luís? - preguntaram da porta.

- Mãe, minha querida Mãe! - disse, indo para ela comovidamente.

- Venho fazer-te companhia, filho. Tens mágoas. Adivinho-as, ainda que tu as negues. O meu lugar é ao pé de ti. Sofres!

- Horrorosamente, minha Mãe! E sem remédio!

- Não fales assim. Tens vinte e dois anos, na tua idade não há pesares que se não vençam.

- Há de uns e de outros, dos que a gente vence e dos que nos vencem.

- Percebo, filho. Queres dizer que é desses últimos o que tu sentes.

- Mas talvez eu esteja enganado. Dizem que as viagens são às vezes um excelente remédio para desvanecer pesares. As campanhas ainda mais que as viagens. Já o ouvi a um dos nossos velhos oficiais. Vem o frenesi da luta, a febre de batalhar, a dominadora ambição da glória, a bandeira tem então santos enlevos de mãe, dá-nos sonhos deslumbradores como aquelas que muito amamos, e todos os infortúnios se esquecem na devoradora sede de uma vitória.

- Principalmente se a bandeira foi bordada por mãos de mulher estremecida.

- Para alguns de maior desventura, minha Mãe, nem esse duplo ideal, se a desgraça arrancou das mãos da mulher enamorada o pedaço de seda em que as bordaduras de oiro engastavam as pérolas das suas lágrimas.

A guerra agora! Mãe, que alívio, que desafogo!

- E que tortura, filho, para mim! Mas eu não entro na conta dos teus pesares!

- Não me entendeu! A guerra, o turbilhão das batalhas, para eu curar esta dor, para eu voltar esquecido do meu... desvario.

- Há também alguns que nunca mais voltam. Por esses é provável que chorem as mulheres dos seus amores, mas, se ainda têem mãe como tu, olha que são essas as que, sem dúvida nenhuma, os choram. Meu pobre louco! Afliges-me sem quereres afligir-me, quero crê-lo, e eu perdòo-te o mal que me causas, como lhe perdoei a ela.

- Oh! minha Mãe! - exclamou, ajoelhando-se-lhe aos pés. Tomou-lhe as mãos e, a beijar-lhas fervorosamente, soluçou:

- Por esse perdão... o dela, o meu!

 

             Abnegação.

O desarmamento e a desnacionalização do país não se faziam tão rapidamente como Napoleão desejava, mas, dia a dia, Junot ia exaurindo os escassos recursos do povo, calcando-lhe as susceptibilidades, apagando todos os característicos da moribunda nacionalidade.

O povo nem já tinha as suas insignificantes espingardas caçadeiras, porque essas mesmas lhe tinham tirado! Não tardaria que lhe proibissem o exercício da caça, na previsão de que algumas armas houvessem escapado e os caçadores dessem em guerrilheiros implacáveis.

A redução do exército, decretada em 22 de Dezembro, estava já muito adiantada. Tinham dado baixa e ressalva a todos os sargentos e soldados que houvessem completado oito anos de serviço ou tivessem menos de um.

Os vinte e quatro regimentos de infantaria da organização de 1806 ficariam reduzidos a seis, os doze de cavalaria a três.

Estava a cargo do tenente-general Marquês de Alorna a direcção superior dos serviços desta reorganização depressiva. Deram-lhe auxiliares.

O brigadeiro Pamplona para a redução dos corpos de cavalaria do Norte, da Estremadura e da Corte. O marechal-de-campo D. Rodrigo de Lencastre procedia à redução da infantaria da guarnição de Lisboa, o brigadeiro Carcomo Lobo e o coronel Freire Pego à da infantaria das províncias do Norte, o tenente-general Gomes Freire e o Brito Mousinho à da infantaria do Alentejo e Algarve. Alorna tomou à sua conta as tropas de cavalaria das guarnições alentejanas.

Dizia-se que os novos regimentos iriam para França, todavia, nenhum documento oficial ainda o confirmara.

Junot premeditava também o desarmamento e a extinção de todos os regimentos de milícias, mas não lhe parecia prudente fazer tudo ao mesmo tempo. Arrecadaria as espingardonas velhas dos milicianos e mandaria proibir e apreender também as foices e os chuços das ordenanças, os varapaus e os cacetes ferrados dos saloios.

Entretanto, em todas as semanas havia parada no Rossio. Três ou quatro mil homens de uniformes brilhantes, os dragões a trote pelas ruas, as carretas de artilharia num ruído estridente que fazia estremecer as vidraças, vivório febril na praça, e assim ia lembrando Junot o seu poder magnificente àquela populaça, a quem já não restavam para a revolta senão as pedras das ruas. Dentro da cidade já a polícia apreendia os varapaus.

Em 31 de Janeiro parada de três mil homens, a que não assistiu Junot. Logo no dia seguinte outra parada de quatro mil soldados com doze canhões e alas de granadeiros desde o largo do Quintela, pelo Chiado e calçada do Carmo, até ao Rossio. Foguetes, salvas, vivório.

Parecia indício de novidade grande. E foi. Estavam assinados uns poucos de decretos de enorme gravidade para o país.

O povo não os conhecia ainda, mas as pessoas bem informadas sabiam deles.

Depois da parada, o tenente-coronel Valadares foi visitar os seus amigos Castros.

Disseram-lhe que Luís tivera uma recaída e não saía do quarto havia quatro dias, sempre a arder em febre.

- Mas coisa de gravidade? - preguntou o Valadares.

- Isso talvez não - respondeu-lhe Henrique - Febre violenta, prostração geral, agora ainda mais fraco do que no princípio da convalescença! Mas o médico espera que não seja coisa de perigo.

- Oxalá. E a sr.a D. Matilde?

- Mortificada.

- É natural.

- Não lhe larga a cabeceira do leito.

- Então vem da grande parada? - preguntou-lhe o Mar e Guerra.

- Venho. Nunca me pareceu que teria de lamentar como agora esta prenda de saber falar francês e a circunstância deplorável de ma conhecerem no regimento.

- Vale bem a pena declarar que se não conhece a língua dos invasores.

- Vale, que isto de andar com eles é um sacrifício repugnante! Mas não podíamos adivinhar. Quem sabia a língua francesa falava-a quando era preciso, e Junot tem aqui quem o informe de tudo. Melhor do que ninguém, o Novion.

- Deixou de cá vir, e ainda bem - disse asperamente o Mar e Guerra - Se vier, volto-lhe as costas.

- Lá tem agora um filho junto do chefe do estado-maior-general. Mais um informador.(1)

- Sabe, Tenente-Coronel? - disse o Mar e Guerra - estou a desconfiar de tanta parada! Parecem-me alardes de força com algum mau fim.

- E não se engana, meu caro amigo. A parada de 13 de Dezembro foi para assinalar o desacato à nossa bandeira, a de hoje foi um alarde de força, como lhe chamou, para assegurar a execução de uns decretos que são outras tantas punhaladas mortais no coração moribundo deste pobre Portugal.

- Ainda mais! E o povo?

- Não os conhece ainda. Eu já os vi assinados. No primeiro decreto Junot assume o governo supremo e a administração geral do país, em nome de Napoleão, suprime o conselho da regência e organiza os altos poderes do Estado para os confiar a esses funcionários franceses que para aí chegaram.

- Os nossos amigos - comentou Jerónimo de Castro - Mas então os espanhóis?

- Têem o castigo que merecem. Passa por cima deles a bota de hussar de Andoche Junot, cumprindo instruções do seu Imperador.

- Então, com as penadas desse decreto, o ex-sargento de Tulono esfarrapa o reinozinho espanhol da Lusitânia Setentrional e o principado alentejano e algarvio de Manuel Godoy, o querido Manuel de Carlos IV e de Maria Luísa?

- Com a maior sem-cerimónia deste mundo! Está rasgado o torpe tratado de Fontainebleau. O reino de Portugal todo inteiro, en entier, diz o decreto, será doravante governado e administrado por Junot, em nome de Napoleão. E, assim ludibriada, a Espanha fica-se?

 

*1. Thiébault alude nas suas Memórias aos serviços que lhe prestou o filho mais velho do Novion.

 

- A Espanha também foi sub-repticiamente invadida pelas tropas napoleónicas, no fingimento de assegurarem a conquista de Portugal e rebater uns inventados desembarques de ingleses.(1)

- Caiu na armadilha o leão de Castela! Vê-se que valem mais as águias novas que os leões velhos. As caras com que hão-de ficar D. Francisco Taranco, Patrão de Zaratamo, e D. Francisco Solano, Senor del Carpio y de Quintanillas, generais dominadores do principado de Godoy e da enganada princesa a quem o Corso comeu dois reinos, o da Etrúria e este agora da Lusitânia. Mas vamos lá a saber dos outros decretos.

- Outros preceituando o formulário a seguir nos documentos oficiais. Agora Junot decreta em nome de Sua majestade o Imperador dos Franceses, rei de Itália e Protector da Confederação do Reno.

- Vá lá que esses italianos e alemães também se não podem rir muito de nós - observou o padre António.

- O terceiro decreto impõe a todo o reino uma contribuição de quarenta milhões de cruzados e regula o modo do pagamento.

- O país não pode! - objectou o padre.

- Há-de puder. E já não é a contribuição de cem milhões de francos, decretada pelo Imperador em Milão. Junot percebeu que era impossível exigir tanto a um país arruinado, faminto.

- Fêz-lhe então uma reduçãozinha! - comentou o Madureira com um riso de escárnio.

- Mas mesmo esses quarenta milhões como os há-de pagar esta desgraçada terra? - preguntou o padre António,

 

*1. O corpo de exército de Dupont estava já em Valhadolide, o do marechal Moncey entrara na Biscaia, o do general Duhesme invadira a Catalunha.

 

indignando-se - Não vejo como seja possível realizar essa monstruosidade!

- Mas já o viu Junot. Lá vem tudo disposto no decreto. Seis milhões, salvo erro de memória, sobre os negociantes, banqueiros e rendeiros, êles farão o rateio como entenderem. Os mercadores pagam o resgate das mercadorias inglesas que têem em seu poder, os prelados, as ordens religiosas e todas as associações que recebem os seus rendimentos em juros dão uma terça ou uma quarta parte desses rendimentos. O oiro e a prata das igrejas vão para a casa da moeda, os senhorios dão metade dos aluguéis, paga-se o dobro da contribuição, décimas dobradas, arrebanha-se tudo para chegar à conta! É uma rede varredoura.

- E fica-se arrasado por toda a vida! - lamentou o padre António.

Entrou Manuel de Albuquerque.

- Tenho a sina de apanhar editais do Andoche! Outro: andam a pregá-lo pelas esquinas. Este excede os outros em falsidade e cinismo. Assegura-nos a felicidade futura sob a tutela protectora de Napoleão, o Grande! Promete mandar abrir estradas e construir canais, tornará florescentes a agricultura e a indústria, dar-nos-á muitas escolas, empregados honestos, boa justiça e boa religião.

- Já se tem visto! - resmungou o padre António, que não podia esquecer a extorsão às riquezas das igrejas.

- E enquanto não abre as estradas, os canais, as escolas, vai-nos levando a pele e o pão!

- Ah! mas faz-nos duas promessas que valem bem o sacrifício da pele e do pão! - acudiu Manuel de Albuquerque, sempre em tom de escárnio - Diz-nos aqui, neste papel, que em breve as tropas portuguesas formarão uma só família com os soldados do Marengo, de Austerlitz, de Iena, de Friedland.

É uma honra. Os srs. militares que lha agradeçam. Eu, felizmente, já não pertenço a essa tropa tão magnanimamente favorecida... Mas a munificência prodigiosa deste edital de promessas está aqui. Ouçam e pasmem... e o Algarve e a Beira-Alta terão também um dia o seu Camões.(1) Pelos modos o farsista manda fazer canais e Camões com igual facilidade! Parece que não acreditam? Pois aqui está. Queiram ver. Parece troça, mas aqui têem a promessa.

- Só de escárnio! - rouquejou o Mar e Guerra.

- Não é. Como o Corso tem feito duques dos soldadões, o Murat é grã-duque de Berg, desconfio que Junot se estará enfeitando para grão-duque reinante de Portugal e Algarves, com cetro a tiracolo e a coroa enfiada no seu shako de hússar. Se tal se der, hei-de requerer a Andoche a mercê de mais dois Camões. Um para cantar em oitava rima os lusitanos butes de Abrantes, a trazerem para Lisboa os granadeiros da Gironda, e outro para a epopeia do general espanhol que morreu de indigestão no Porto.

- Que general, se não é gracejo? - preguntou o Valadares.

- D. Francisco Taranco.

- O diacho, não sabia! - acudiu, pesaroso, o Mar e Guerra - Ainda há pouco me referi a êle gracejando. Supunha-o vivo.

- Também eu gracejei e também êle gracejou a decretar coisas no Porto.

Manuel de Albuquerque tinha má vontade aos espanhóis que invadiram Portugal.

- Para cantar os seus mártires - continuou o bravo da Montanha Negra.

 

*1. Palavras textuais do famoso edital de 2 de Fevereiro de 1808 que, segundo o testemunho do Observador, começou a ser afixado pelas 5 horas da tarde daquele dia.

 

- Para esses é que o povo não espera pelos Camões que Andoche promete. Regalei-me de ouvir agora, na música triste do povo, no choro de uma guitarra, a cantiga comemorativa de um valente saloio que os soldados de Loison arcabuzaram em Mafra.

- Porquê? - preguntou o Mar e Guerra.

- O cantador dizia-o nos seus versos. Por ter morto com uma foice dois soldados do Maneta.

- Quem é o Maneta? - interrogou o Madureira.

- É Loison. Perdeu um braço nas campanhas do Rossilhão. Lembro-me dele. Subiu depressa. Pedi ao cantor pormenores que os versos não tinham. Contou-me com entusiasmo que o saloio confessou intrepidamente o seu crime e, até que o vararam as balas, repetiu alto que, se todos os portugueses fossem do seu ânimo, não ficaria em Portugal um francês vivo. Mais um a quem o sonho da Pátria levou à morte. Coisa de nada para resgatar deste opróbrio! Quando morrerem aos centos, aos milhares, então sim, terá chegado a hora das gloriosas reivindicações.

Havia mais sacrifícios de sangue. Parte de um regimento do Porto, destacado nas Caldas da Rainha, travara conflito armado com uma companhia francesa de infantaria. A briga foi sangrenta. Era um sintoma inquietante. Loison partiu logo de Mafra com forte coluna de todas as armas. Cercou a vila rebelde, dispersou facilmente a soldadesca amotinada, mandou arcabuzar nove portugueses, entre os quais o escrivão da Câmara, por suspeito amotinador.

Mas faltavam chefes, armas, recursos. O sangue daqueles arcabuzados não dava para redimir Portugal, mas lá ia a espumejar, mareta rubra e trágica, sobre o mar negro de amarguras em que Portugal parecia afogar-se.

Junot decretara afinal o desarmamento e a extinção dos regimentos de milícias e proibira a caça em todo o país.

O povo agitava-se. Apesar do seu viver estróina em patuscadas com as dançarinas de São Carlos e outras pecadoras de vária estofa, no Ramalhão, em Queluz, no Alfeite, Junot andava oprimido com as informações confidenciais que lhe chegavam da Espanha, escandalosamente ludibriada, e com os movimentos da esquadra inglesa de bloqueio, que tivera onze navios fundeados em Cascais e ousara apresar uma canhoneira da esquadra inválida de Magendie, em São José de Ribamar.

Nestas condições parecia-lhe indispensável trazer os soldados espanhóis bem vigiados e pôr as tropas portuguesas pela fronteira fora. Depois arranjaria homem que trouxesse acabrunhada de terror a gente de Lisboa. Para esta missão ninguém melhor do que Lagarde, que, pela sua fera energia, se tornara tristemente famoso na Itália. Seria êle o Intendente da Polícia.(2)

Um decreto de Fevereiro ordenava a organização de seis regimentos de infantaria, três de cavalaria e um batalhão de caçadores a pé, com os restos dos antigos regimentos.

O novo 1.o regimento de infantaria estava já em princípio de organização. Era constituído por contingentes apurados no 1, 10, 13 e 16 antigos da guarnição de Lisboa.

Henrique de Castro fora chamado de manhã cedo ao quartel do 16. Pelas 10 horas, uma junta, composta do tenente-coronel e dos dois cirurgiões do antigo 1, foi ao palacete dos Castros,

 

*1. Decreto de 15 de Fevereiro de 1808.

  1. Tomou posse no 1.o de Abri]. A Intendência estava já instalada no palácio da Inquisição.

 

tenente-general Marquês de Alorna, inspector geral das tropas portuguesas, para observar Luís de Castro, de há muito com licença por doente.

Depois da recaída, o moço oficial não tornara a sair do quarto. Ainda tinha violentos acessos de febre a certas horas do dia, estava num estado de debilidade inquietador.

Era preciso que o fossem inspeccionar ao quarto. Jerónimo de Castro fora recebê-los na sala grande e mandara aviso à irmã.

  1. Matilde apareceu torturada de receios.

- Mas há alguma coisa a respeito do meu filho?

- Nada que deva inquietá-la, minha senhora - respondeu-lhe o tenente-coronel - Trata-se de apurar os oficiais para um novo regimento, ao qual serve de núcleo aquele a que pertence o sr. Luís de Castro. Vimos inspeccioná-lo por ordem superior, para ver se está ou não nos casos de fazer parte das tropas recentemente organizadas.

- Já ouvi que vão mandá-las para França! - disse D. Matilde numa vibração dolorida.

- Boatos, simples boatos, minha senhora. Nenhuma indicação oficial, que se tornasse pública, veio ainda confirmá-los. Mas o sr. Capitão de Mar e Guerra teve a bondade de nos informar do estado do sr. Luís de Castro e, portanto, da impossibilidade em que está de entrar já em serviço activo.

- Reduzir-se-ia o nosso encargo a uma simples formalidade, se não fosse obrigação nossa apresentar um relatório circunstanciado do seu estado. Pelas conclusões desse relatório, baseadas no exame médico a que estes meus camaradas têem de proceder, resolverá o sr. inspector geral, Marquês de Alorna, se ao filho de v. ex.a pode ser concedida licença para sair da efectividade do serviço. Perdoe-me v. ex.a este incómodo e permita que o vamos examinar.

- Quando quiserem - respondeu D. Matilde timidamente.

Jerónimo de Castro acompanhou-os até ao quarto do sobrinho. D. Matilde seguiu-os e ficou à porta, por detrás do reposteiro, numa ansiedade aflitiva.

Luís estava sentado numa cadeira de braços, ao pé da cama. O rosto emagrecido e pálido, o olhar quebrado e lento, os lábios esmaecidos, crestados de febre, davam-lhe o aspecto de um doente extenuado de forças.

Causou-lhe estranheza aquela junta em sua casa. Depois de uns cumprimentos afectuosos, o tenente-coronel apressou-se a dizer-lhe a comissão oficial de que vinham encarregados.

O cirurgião-mor tomou-lhe o pulso.

- Febre intensa - disse para o tenente-coronel.

- A prostração é evidente - acudiu o outro facultativo.

- Nem daqui a dois meses estará em condições de fazer uma marcha violenta, nem talvez de suportar o simples serviço de guarnição.

- Mas supõe-se que o regimento haverá de marchar? - preguntou Luís.

- Saber, não o sabemos oficialmente...-respondeu o tenente-coronel com uma certa hesitação - mas há instruções superiores para se não apurarem senão os oficiais mais novos, os mais válidos, capazes de suportarem desde já todas as asperezas do serviço militar. O sr. Luís de Castro não está em circunstâncias de suportar a mínima fadiga.

- Agora não estou, mas daqui a um mês, ou pouco mais, talvez me pudesse apresentar no regimento.

- Seria tarde - disse o tenente-coronel por entre dentes.

- Estou a perceber... que se trata de uma coisa de que eu já ouvi falar. Vão talvez mandar para França... esses regimentos agora organizados?

- Corre para aí isso - respondeu o tenente-coronel - Seu irmão não sabe nada?

- Disseram-me que tinha sido chamado ao quartel.

- Sim, era de esperar. Sei que êle está já incluído na relação dos oficiais do novo regimento. Só se excluem os velhos, os doentes e os que quiserem a demissão... se a respeito deles não houver indicações superiores que os recomendem para continuar no serviço.

- Meu irmão está então nas condições dos que são escolhidos?

- Está. Pela sua mocidade, pelos seus dotes de inteligência, pelas suas aptidões, entre os primeiros escolhidos.

- Não lhe dariam a demissão?

- Com certeza não davam. Mas com o meu amigo o caso é outro, por infelicidade sua. A doença anula a escolha que tinham feito do seu nome, com especiais recomendações.

- Recomendações especiais?

- Sim, de absoluta preferência pelas suas qualidades e pelos seus méritos. E quando assim não fosse, bastaria a sua condição de fidalgo ilustre e abastado e a circunstância de falar a língua francesa, para o incluírem na lista dos preferidos.

- Também... preferido por isso, por saber falar francês... está a perceber-se que é... para nos mandarem para França.

- Não será bem por isso - acudiu o tenente-coronel - Bem vê que temos de estar aqui em relações oficiais com os chefes do exército francês.

E na falsa suposição de que Luís de Castro receava, principalmente, a saída do reino, acrescentou:

- No seu estado, é provável que lhe dêem licença ilimitada...

- Não a desejo... senão pelo tempo necessário para me restabelecer.

- Não é crível que lhe deixem a vagatura em aberto. Mas, nas suas condições de fortuna, meu caro tenente, em último caso, solicita a demissão, visto não ter ainda tempo nem idade para passar a outra situação. Apesar das informações especiais, que muito o recomendam, decerto lha não hão-de negar em vista do resultado deste nosso exame.

- Tenente-coronel, tenho vinte e dois anos!

- Bem sei.

- Quem governava... deixou-nos, a nós militares, sob a suspeição esmagadora... de que já não éramos capazes de combater, como os outros soldados da Europa. Temos de desmentir esta suspeita humilhadora. Não peço a demissão. Espero que me concedam licença... apenas por duas semanas, para me restabelecer. Será para mim como um remédio enérgico... esta ideia de que é possível desafrontar a nossa farda... se ainda fôr cedo... para restaurar a nação. Em quinze... ou vinte dias estarei restabelecido. Eu me empenharei nisso. Este abatimento... provém de causas morais... que uma vida agitada... anulará completamente. Marchar, combater - disse, erguendo-se lentamente, apoiado aos braços da cadeira.

Os médicos sorriram.

- Luís! Luís! - exclamou a mãe, entrando arrebatadamente - Estás dizendo uma loucura I Estes senhores bem vêem que não podes. A nossa casa tem de sobra com que possas viver como quem és. Pede a demissão.

- Não posso pedir semelhante coisa. Não quero esse atestado... de cobardia. Estarei melhor... daqui a uma ou duas semanas. Se não estiver, se piorar... que dêem então. Eu não a peço.

Sentou-se ofegante.

- O nosso encargo está cumprido - acudiu o tenente-coronel - Agora o senhor Inspector Geral

resolverá como entender de justiça. Faço votos pelas suas melhoras, meu caro Tenente.

Despediram-se de D. Matilde.

A pobre senhora foi atrás deles, inquieta, e pediu-lhes que entrassem na sala, porque desejava solicitar uns esclarecimentos.

- Desculpem-me, por quem são, estas inquietações de mãe.

- Oh! minha senhora, o que v. ex.a mandar - disse-lhe o tenente-coronel.

- Pedia-lhes a bondade de me dizerem se julgam aquele meu filho em circunstâncias de se aventurar em marchas e trabalhos. Andam por aí a dizer que a nossa tropa vai para França, para ajudar Napoleão.

- Todos o dizem e supõem, minha senhora. A este respeito nenhuma informação me é dado confiar-lhe. Mas fique v. ex.a tranquila. Queremos oficiais robustos, válidos, capazes de marchar dentro de alguns dias ou de algumas semanas, e aquele filho de v. ex.a não estará em tais circunstâncias, nem talvez daqui a dois meses. Não é assim? - preguntou, voltando-se para os dois facultativos.

- Melhorando sempre - respondeu o cirurgião-mor - só daqui a um mês estará em estado de fazer o serviço moderado e guarnição e, assim mesmo, com sacrifício e risco de uma recaída.

- Ora com esta informação, minha senhora, quási lhe posso afiançar que seu filho será excluído da lista dos escolhidos.

- Oxalá! Deus o queira!

- Aquele não correrá o risco de marchar para fora de Portugal, se vier a realizar-se o que por aí corre de boca em boca.

- Mas o outro, senhor Tenente-coronel?

- Esse é seguro que irá, se os outros forem. É dos escolhidos.

- Então, se pedisse a demissão?

- Não lha davam, minha senhora. Teria de marchar, a não ser que tomasse a desesperada resolução de desertar.

- Disso não será êle capaz. Valha-me Deus! A pobre esposa!

O tenente-coronel disse-lhe umas palavras banais de consolação.

Para a animar, o Mar e Guerra citou-lhe exemplos de oficiais de marinha do seu tempo que tinham deixado as mães e as esposas pelas arriscadas campanhas dos mares. Na esquadra do Marquês de Nisa fôra para as campanhas do Mediterrâneo um segundo-tenente que tivera ordem de embarque trinta e oito horas depois do noivado.

Estavam ainda na sala quando Henrique chegou do quartel. Vinha perturbado, foi direito aos seus aposentos. Branca estranhou-o, pareceu-lhe que a tinha beijado com os olhos cheios de lágrimas. Mas o marido deu-lhe umas desculpas e alegou as más notícias que soubera a respeito das misérias e desesperos do país.

Depois foi procurar a mãe para lhe falar confidencialmente.

Disse-lhe uma criada que naquele instante se despedira de uns oficiais que tinham vindo ver o sr. Luís de Castro e logo voltara ao quarto dele em companhia do senhor capitão de mar-e-guerra. Foi lá ter com ela. Fêz preguntas a respeito da visita dos oficiais de quem lhe falara a criada. Contaram-lhe o que se tinha passado.

- É para marchar para a França - disse Henrique, indo fechar a porta do quarto-Receio que alguém possa ouvir-me. Não quero que Branca saiba o que há, sem que eu lhe tenha preparado o ânimo.

- Apuraram-te, vais? - preguntou D. Matilde.

- Estou já colocado em novo regimento.

Quis requerer a demissão, recusaram-se a aceitar-me o requerimento. Era dos mais recomendados para ser encorporado. Tu também, Luís.

- Já sei. Disse-mo aqui o Tenente-Coronel do regimento.

- Procurei o Valadares. Deu-me confidencialmente a explicação da escolha. Tinha visto no quartel-general de Junot as instruções secretas que foram dadas ao Alorna para a escolha dos oficiais, segundo informação de Novion, quanto aos da guarnição de Lisboa. Demitem ou reformam os velhos, os doentes, os que têem más informações de aptidão, mas preferem, entre os novos, os que são da nobreza e têem meios de fortuna e influência no país e, dentre estes, os de mais instrução e algum conhecimento da língua francesa. Compreende-se bem o fim desta preferência. É preciso ir pondo fora do país as classes preponderantes. Levados para fora do reino os oito ou nove mil homens que restam do exército, Junot ficará mais seguro. O Valadares afiançou-me que, para satisfazer ordens insistentes de Napoleão, tudo estava preparado no quartel-general para serem postos em marcha para França os novos regimentos. Estão já nomeados os generais, mas ainda guardam segredo. Há males que vêem por bem, Luís. Essa tua doença, que não é de gravidade, permitirá que fiques para amparo e defesa desta casa. Ao menos, ficas tu. Irei mais tranquilo.

- Não fico. Se me não incluírem... irei pedir que me deixem ir por ti.

- Tu?! Enlouqueceste! Se te excluírem dos novos quadros será por essa doença que te impossibilita do serviço por agora. Como te haviam de aceitar para me substituíres?

- Hei-de empenhar todas as diligências de que fôr capaz para me restabelecer. Tomarei quantos remédios e quantos alimentos até aqui rejeitava.. Verás, hás-de ver o milagre.

- Mas não hão-de querer, por causa da nossa diferença de patentes.

- Está a pertencer-me o posto de capitão. Hei-de falar ao Alorna.

- Luís! - exclamou, inclinando-se para êle e abraçando-o comovidamente - É um sacrifício que tu não podes... que eu não devo aceitar.

- Posso... deves. És o mais velho... podes velar por nossa Mãe... e tens esposa a quem farias falta. Poupa-se-lhe a dor da tua ausência. Bem vês... eu estou noutro caso diferente.

- Luís!

- Não tens que hesitar. Vou eu. O favor é para mim. D. Matilde foi para êle a soluçar.

- És um homem à antiga, meu rapaz! - disse-lhe enternecidamente o Mar e Guerra.

- Então não digo nada a Branca?

- Não. Sou eu que vou. Agora... mandem-me chamar o médico... para ver se êle me ajuda neste empenho. Vai ter com o Valadares. Conta-lhe este caso da junta e pede-lhe que me excluam, sem me darem a demissão, e que me preencham a minha vagatura. Em estando melhor... falo eu ao Alorna. Que te dêem a demissão a ti... vou eu em teu lugar.

- Mas vê bem, Luís - disse-lhe a Mãe a chorar - Tu assim não podes!

- Isto era doença... de mágoa, que me quebrava as forças. Agora o caso é outro. Henrique, não percas tempo. Vai ter com o Valadares, mandem-me já chamar o médico.

- Sacrifica-se na esperança de sair de cá, de a tornar a ver! - pensava D. Matilde amarguradamente - Talvez ela fosse para França. Por mim, que lhe importa a êle a ausência?

Henrique e o tio Jerónimo saíram. D. Matilde acercou-se mais de Luís e disse-lhe baixo, soluçando:

- Faz milagres esse amor que lhe tens! Ainda esperas tornar a vê-la.

- Mãe, se eu não sei para onde ela foi!

No dia seguinte houve parada no Rossio. Com as tropas francesas foram cinco dos novos batalhões portugueses.(1) Depois houve exercícios diários das nossas tropas, para lhes ensinarem a táctica francesa. Dava as vozes de comando um coronel francês, o Valadares traduzia-as em português ao comandante do regimento.

Henrique de Castro foi à parada e aos primeiros exercícios, mas contava com a demissão a troco do sacrifício de Luís, cujas melhoras se acentuavam de dia para dia, como por um milagre da vontade, não raro em certas doenças que são apenas o reflexo de um grande desalento moral.

Não havia agora doente mais dócil às prescrições do médico, nem convalescente de mais invejável apetite. Oito dias antes era preciso a mãe pedir-lhe com amorável instância que não repelisse os remédios e tomasse algum alimento!

 

*1. Em relação ao dia 21 de Fevereiro o Observador nota que a tropa portuguesa apresentara-se sem bandeiras e de mochilas às costas. Formaram estes batalhões com os soldados e sargentos que não tinham tido baixa e pertenciam aos antigos regimentos, 1, 10, 13 e 16.

 

                 O médico italiano.

O Tenente-Coronel Valadares, intérprete junto do quartel-general da rua do Alecrim, falou ao Marquês de Alorna e conseguiu que Luís de Castro fosse considerado com licença ilimitada por doença, contando-se-lhe o tempo para a promoção.

Mas foi abatido ao efectivo do 1.o regimento e outro foi preencher a sua vacatura. Alorna tinha poderes especiais para resolver estas coisas devido à sua alta categoria de inspector-geral e general-em-chefe das tropas portuguesas.

Estamos num dos primeiros dias de Março. Luís de Castro, quási completamente restabelecido no decurso de duas semanas, saíra de sege para ir falar ao Marquês.

Mais inclinado para França do que para a Inglaterra, Alorna tornara-se muito da confiança de Junot e muito podia obter do general francês. Mas é justo notar-se que antes da invasão o Marquês fora um leal e caloroso conselheiro que os ministros e os cortesãos não quiseram ouvir. Propôs a defesa enérgica do país, quando ainda havia tempo de fazer alguma coisa, propunha-a sem querer que fôssemos comparsas da Inglaterra ou satélites de França. Não fizeram caso dos seus alvitres, como o não tinham feito do plano de reorganização militar e defesa do reino, elaborado por Gomes Freire.

Amargamente desenganado, o Marquês deixou-se deslumbrar pelos esplendores épicos do Império, como Gomes Freire se deslumbrou, e pôs-se abertamente ao serviço da França.

Representante de uma família da mais alta nobreza do reino, D. Pedro de Almeida Portugal, conde de Assumar e Marquês de Alorna, era um homem de fidalgas maneiras e um dos nossos generais mais novos. Tinha apenas 53 anos, pois nascera no ano do terramoto.

Luís de Castro levava para êle a excelente apresentação do seu nome fidalgo e os antecedentes de umas afectuosas relações de família do tempo em que o pai do moço oficial fora uma das primeiras individualidades da corte.

A licença ilimitada que o Marquês lhe concedera, a pedido do Valadares, fora apenas um acto de justiça, embora não previsto nas instruções secretas. A substituição de um por outro irmão é que tinha de ser favor, ainda não concedido a outros.

Se estava restabelecido para substituir Henrique, então também podia ir por si, e as informações secretas que o Marquês recebera tinham esta observação do próprio punho de Novion, o francês que melhor conhecia os oficiais da guarnição de Lisboa: «Convém que estes dois oficiais saiam do reino. Inteligentes e intrépidos, de família rica e prestigiosa, podem prestar bons serviços longe de Portugal, mas seriam aqui duas vontades insubmissas, aliciadoras de outras, que as circunstâncias tornariam perigosas.

Para irem ficar ao serviço de S. M. Imperial ainda mais os recomenda o perfeito conhecimento que tèem da língua francesa, que falam correctamente».

Tratando-se de uma informação confidencial compreende-se bem que Alorna se abstivesse de a revelar ao moço oficial. Absteve, e os Castros ficaram sem conhecer bem o alto favor que deviam àquele emigrado a quem o pai recebera e patrocinara com afecto e generosidade de amigo íntimo.

Era já tarde quando Luís de Castro voltou do quartel-general das tropas portuguesas. Esperavam por êle para jantar.

- E daí? - preguntou-lhe o irmão, indo com êle para o quarto.

- Tudo resolvido. O Marquês foi pessoalmente falar ao Junot. Esperei-o. Junot acedeu, mas pôs umas condições.

- Quais?

- A minha apresentação no regimento dentro do prazo improrrogável de dez dias.

- Têem pressa!

- Parece que sim.

- Dez dias é pouco!

- Não é. Sinto-me quási bom. Aceitei a condição. Mas impõem outra, e essa é contigo.

- Dize.

- Apesar de demitido, obrigar-te-ão a mudar de residência para a província.

- É singular! Que desconfiança lhes mereço!

- E não é tudo. Terás de te apresentar em determinado dia da semana ao corregedor da comarca ou à autoridade militar francesa, se a houver no local.

- Que receios! Bem, aceito. Ou vou para a nossa Quinta dos Ciprestes, no Vale de Santarém, ou para a do tio Jerónimo. A Quinta das Águias é excelente.

- É, sim. Não me esqueci ainda do verão de 1806 que lá passámos todos.

Sorriu tristemente.

- É verdade, esquecia-me uma coisa. Vou ser promovido a capitão na tua vacatura. O Alorna preguntou-me se queria ficar às ordens dele, outro iria por mim para o regimento. Agradeci a honra, agradeci-lha com todas as boas palavras que me ocorreram, mas solicitei-lhe a mercê de me colocar no batalhão constituído pelo meu antigo regimento. Olha lá, Henrique. Confio em ti como em mim próprio. Lembrou-me que nós, os que partimos, poderíamos fazer alguma coisa de patrioticamente grande, mudando de marcha e caindo sobre Lisboa. Ouvi ao Marquês que seremos uns nove mil homens.

- Era uma louca temeridade! Junot tem aqui uns onze ou doze mil homens e ouvi que está à espera de um reforço de quatro mil. E podiam atacar-vos de flanco oito ou nove mil espanhóis. E depois, o Valadares afiançou-me que não saem todos reunidos, nem pelos mesmos caminhos. Querem mandar os regimentos isolados. Parece que o nosso irá por Coimbra para Almeida. Ninguém sabe ainda o itinerário da cavalaria e supõe-se que será a primeira a marchar. Olha, o regimento que estava na Luz já teve ordem de marcha para Salvaterra. O Valadares pôde perceber que todas as disposições tomadas descobrem o intento de concentrar as nossas tropas só além da fronteira, já muito dentro de Espanha. Ouviu falar num grande depósito de víveres que mandaram estabelecer em Salamanca, e desconfia que seja o ponto de concentração. Bem vês que a tua arrojada ideia é completamente irrealizável. Como que a adivinharam no quartel-general, e preveniram-se. Desengana-te. É um sonho isso que pensas.

- Sim, tens razão. O remédio é partir e mostrar lá fora, se nos levarem à guerra, que sangue de homens uns governantes cobardes e ineptos deixaram inaproveitado para a vida e para a honra de Portugal.

- A senhora manda saber - disse à porta o velho mordomo - se v. s.as já podem ir para a mesa.

- Podemos, sim. Vamos já. Têem estado à nossa espera e nós aqui sem dar pelas horas!

- Vamos lá.

Estavam à mesa todas as pessoas da família. A irmã de Branca, numa tristeza de santa, D. Matilde a fingir que podia comer e os olhos a arrasarem-se-lhe de lágrimas, cada vez que olhava para Luís. Ele então a simular a volúvel despreocupação de ânimo de um aventureiro.

- Hei-de mandar para todos umas recordações de França-disse lhes sorrindo - E vou com o empenho de ver a figura que fazem os nossos soldados ao lado dos de Napoleão.

- Ninguém dará nada por eles - disse o tio Manuel - Hão-de parecer umas fracas figuras, uns gebos ao pé dos latagões dos granadeiros, de dragonas vermelhas e barretinas de pele de urso.

- Se pudessem mudar de conversa! - pediu D. Matilde, relanceando um olhar de dó para a irmã de Branca.

- Ah! mas com todo o gosto! - volveu Manuel de Albuquerque-Nem nos faltam assuntos curiosos e algo engraçados. Estou convencido, minhas queridas senhoras, que não sabem ainda do caso do ôvo milagroso.

- Um ôvo milagroso, há-de ser brincadeira! - observou D. Branca.

- Um ôvo sebastianista que tem dado que pensar ao povinho e já foi mandado apreender pelo Junot.

- Homem, disso também eu não sabia! - disse o Mar e Guerra.

- Pois eu lhes conto o caso, que tem graça. Espalhou-se pela cidade que um tal Costa da rua das Taipas era o feliz possuidor de uma galinha que pusera um ôvo com certas letras de sentido misterioso. Eram estas: V. D. S. R. P. Foi lá vê-lo a cidade em peso. Um pasmatório. Até lá foram os franceses da Intendência da Polícia. Imitaram aquelas letras, pintando-as em outros ovos, diversos incrédulos, desconfiados de alguma endrómina do Costa. Mas qual! Como aquelas no ôvo da galinha da rua das Taipas, com a mesma côr, nenhumas. Fizeram-se experiências químicas e as letras não se apagavam no ôvo do Costa! Mas o que queriam dizer aquelas cinco consoantes? Aqui estava o busilis,. Um frade logo explicou que era um aviso do céu, em iniciais latinas como nas lápides romanas. O povo não lhe percebeu o latim e não acreditou na tradução mística, inventada pelo reverendo lóio. Apareceu então um boticário sebastianista do Poço do Borratém, e decifrou o mistério. Queriam dizer: Viva D. Sebastião, Rei de Portugal. E como era uma esperança, o povo acreditou. Se vivia ainda aquele rei batalhador, não tardaria então a vir da sua ilha encantada, na cabeça o elmo reluzente de Alcácer-Quibir, em riste a lança para atravessar Junot como quem atravessa um lagarto. E aquele então, maior que o lagarto da Penha e de mais vivas cores por causa do seu uniforme de hússar! Houve um alvoroço doido! São sempre os desgraçados os que mais sonham coisas sobrenaturais. De manhã até à noite um formigueiro de gente para ir ver a galinha do ôvo sebastianista. E já não faltava quem supusesse que o José Caetano da Costa fosse o próprio rei D. Sebastião, com disfarce de nome, alapardado ali na rua das Taipas. Chegou o caso aos ouvidos de Junot. O tirano receou, creio eu, que o povo se agitasse perigosamente naquele sonho louco e mandou apreender o ôvo e a galinha. Conta-se também, mas talvez não passe de brincadeira, que os cozinheiros do Quintela impingiram o ôvo misterioso numa gemada ao general Andoche, ultimamente constipado na quinta do Ramalhão, e manducaram eles, corada no forno, a galinha anunciadora do batalhador encoberto.

Nesta forma artificiosa de gracejo, a voz do antigo oficial do Rossilhão tinha um timbre de tristeza que todos percebiam.

Os homens esboçaram um gélido sorriso. Estava ali uma pobre mãe atormentada de receios pelo filho dilecto, e, talvez tão oprimida como ela, a ingénua criadora de um ideal de amor que ia desfazer-se em lágrimas, aquela entristecida irmã de Branca, uma criança com o coração subitamente envelhecido no mesmo sonho que lho despertara, como se fosse, no pleno Abril dos seus dezanove anos, a madrugada inebriadora que durara um instante e a noite de esmorecimentos que talvez não acabasse nunca.

  1. Matilde tinha outro filho que ficava, Laura não tinha senão aquele sonho que lhe fugia.

Estavam a levantar-se da mesa quando entrou o mordomo com um bilhete para Luís de Castro. Tinha estas palavras impressas: «Vicenzo Farinelli, médico pela Universidade de Bolonha».

- Disse-me que entregasse este bilhete a V. S.a - explicou o mordomo.

- É o médico do polaco! - pensou Luís num grande sobressalto, e logo as suposições se lhe atropelaram no cérebro vertiginosamente.

- Onde está?

- Como êle me disse também que tinha muita urgência de falar a V. S.a, levei-o para a sala de espera.

- Fêz bem. Um médico italiano, meu conhecido, que me deseja falar - explicou à mãe e aos tios.

Foi ter com Farinelli. Não podia tê-lo esquecido. Cumprimentaram-se.

- Conhecemo-nos, sr. Luís de Castro - disse-lhe o médico na sua pronúncia adocicada de italiano - Mas umas relações fortuitas não podiam autorizar-me a vir procurá-lo, se não tivesse uma confidência grave a fazer-lhe.

- Estou completamente às suas ordens - respondeu Luís, perturbando-se -, Mas, tratando-se de uma confidência, permitir-me-á, decerto, que esqueça um pouco formalidades cerimoniosas e tome a liberdade de o levar para os meus aposentos, onde poderemos falar desassombradamente, sem perigo de que nos ouçam.

- Pois não. Veio V. S.a ao encontro de um desejo meu que me não atrevia a expor-lhe.

- Então, queira ter a bondade.

Levou-o consigo para um compartimento a que chamava o seu escritório. Fechou a porta.

- Terei a honra de ouvir a confidência de que V. S.a me falou - disse, fazendo-lhe num gesto a instância para se sentar.

- Não lhe tomarei o tempo com pormenores que se me afiguram inúteis. Sei dos amores da filha do Conde de Pultusk. Ela própria mo confessou. Era amigo do polaco e auxiliei-lhe a fuga. Fiquei, porém, com o encargo de lhe tratar clandestinamente do fingido filho.

- Ah! o russo Miguel Platow não partiu também?

- Não podia - respondeu o velhaco de Farinelli, sorrindo levemente daquele alvoroço de amante ciumento- Não podia partir em meados de Dezembro porque estava ainda sofrendo daquele grave ferimento que V. S.a lhe fêz em certa noite, num estranho duelo que não teve testemunhas.

Luís de Castro afogueou-se.

- Eu presenciei o que V. S.a fêz de rara intrepidez de ânimo e assombrosa generosidade no duelo com o Conde. Não tenho, portanto, sombra sequer de dúvida quanto à sua lealdade , quem dela duvidava nas suas cóleras de pai era o Conde. Mas o mundo talvez duvide também, se alguma voz odienta lhe insinuar a dúvida.

- Não vejo quem tenha interesse nessa infâmia.

- O próprio ferido.

- Porque estímulo essa torpe calúnia?!

- Pelo ódio do ciúme, que é de todos os ódios o mais desvairado. Miguel Platow é um homem rancoroso, vingativo. Tive ocasião de o conhecer, e V. S.a sabe como eu que êle é o prometido noivo de Maria Pulaski.

- Sei, mas não compreendo com que intento mo recorda, a não ser que a sua confidência se relacione com esse condenado russo.

- Relaciona. Vai já saber porquê. Eu não conhecia bem a história do Conde de Pultusk. Desconfiava que fosse um emigrado político, suspeitei que no seu passado havia algum mistério que êle ocultava naquele disfarce de joalheiro, percebi que não era bem o que aparentava , mas não sonhava sequer o que êle fora e era na realidade! Ultimamente fizera-me apenas umas incompletas confidências e essas mesmas ainda ligadas ao seu fingimento de joalheiro. Só na madrugada em que de mim se despedia, numa estalagem da fronteira, me confessou quem era.

- Foi então para Espanha?

- De caminho para França - respondeu com um leve sorriso - A colónia polaca em Paris é importante e está lá com ela o principal caudilho da Polónia rediviva.

- Kosciusko, bem sei.

- As promessas de Napoleão têem sido tentadoras, os polacos vêem nele o ressurgidor da sua grande pátria, e o Conde, um ardente patriota, julga encontrar em França uma vida tranquila e um pedaço ideal da Polónia em cada lar dos seus compatriotas.

- Apesar da Rússia opressora estar em boa paz com o Imperador!

- Efémera paz, segundo os vaticínios polacos. Mas, voltando ao meu ponto principal. O conde resumiu-me a sua história, mas não me disse palavra a respeito do russo Miguel Platow. É verdade que Maria Pulaski alguma coisa me dissera numa das suas confidências, na ante-véspera da partida. Contou-me quem era aquele russo de uma família opulenta, um atleta de arrebatamentos semi-selvagens como um cossaco. Fora oficial da guarda imperial e por causa de um duelo de morte... Sabe disto provavelmente?

- Sei, e não percebo ainda aquela amizade íntima do Conde por esse homem semi-selvagem de uma nacionalidade opressora da Polónia!

- Explica-se. Maria Pulaski referiu-me que êle lhe salvara o pai e lhe preparara a fuga.

- Não me parece bastante para que lhe prometesse a mão da filha, dado o antagonismo de raças.

- Miguel Platow renegou a sua pátria russa e jurou ao Conde que abraçava a causa da Polónia.

- Para lhe apanhar a promessa?

- Evidentemente. Maria Pulaski sabe perfeitamente o que êle vale. Sente por esse homem um nojo ainda maior do que o receio que lhe tem.

- Só o Conde se ilude!

- É um teimoso obcecado na sua teima. Vê nele o seu salvador e da filha, e naqueles braços de atleta uma força de cooperação para o ressurgimento da Polónia. Só lhe não sabe ver o coração! Não lho vê e não lho percebe! Não admira. Também eu me enganei com aquele homem! Voltei da fronteira com graves apreensões a respeito do encargo que tomara. Tinha pessoa da legação russa que me desse informações confidenciais. Pedi pormenores a respeito de Miguel Platow. Arrepiadores! Já tinha chegado, por via de Paris, um correio com novos esclarecimentos e instâncias para a legação reclamar a prisão do Conde e do seu cúmplice. Os sinais mandados de cá estabeleciam perfeitamente a identidade do joalheiro com o Conde polaco e os do fingido Casimiro Polovtzé com o ex-capitão das guardas do Czar, Miguel Platow. Dois altos empregados da polícia moscovita tinham vindo pela posta, pois que por mar seria arriscarem-se a ficar em poder dos navios ingleses de bloqueio. Tremi por causa do meu encargo! Era dar guarida a um criminoso da mais alta importância. Tinha-o escondido numa casa de certa quinta de Benfica, emprestada por um amigo e compatriota meu. Comprometia-me e comprometia esse amigo obsequiador. Mais dia menos dia, sabia-se do paradeiro do meu doente, que não estava ainda em estado de fugir. Encontrando-o, calcule V. S.a o que a polícia não seria capaz de suspeitar de mim! Tive medo, confesso que tive medo. Poderia talvez mudá-lo de esconderijo, mas então maiores responsabilidades para mim, se o viessem a descobrir. Platow tinha melhorado consideràvelmente, quinze ou vinte dias depois poderia fugir. Lembrei-me então do tenebroso destino que podia preparar à pobre menina, deixando livre aquele selvagem de odientos ciúmes. O pai continuaria iludido por esse patife da pior espécie, - e eu justificarei esta qualificação - nos seus impulsos autoritários o Conde daria a Platow a mão daquela cândida mulher, pura e linda como os anjos, e ou ela se matava ou viria a ser a mais infortunada esposa que seja possível imaginar. Tenho por Maria Pulaski a mais alta e afectuosa admiração, sou um amigo provado do pai e senti que o meu coração deixava de hesitar entre um impulso de generosidade comprometedora por aquele homem antipático, perigoso, odiento, e um dever de piedosa amizade por esse velho iludido e por essa criança deslumbradora, capaz dos mais raros sacrifícios por um amor como eu nunca vi igual. Inexcedível e inexcedido.

Calou-se como enleado, mas os seus olhos velhacos observavam surrateiramente o efeito daquelas palavras.

- Perdoe-me V. S.a a liberdade de uma pregunta - disse na sua voz adocicada - Na minha situação o que faria V. S.a?

- Aí está uma pregunta a que eu lhe não posso responder - volveu-lhe o Castro secamente-É absolutamente impossível em mim a situação que o dr. Vincenzo Farinelli tomou para si.

- Bem. Direi eu o que fiz. Declarei na legação da Rússia que tomara o encargo daquele doente, sem poder suspeitar quem êle era, que lhe salvara a vida e não teria dúvida em continuar a tratá-lo, desligado, porém, de quaisquer responsabilidades como por aquela declaração me desligava.

- Prenderam-no?!

- Mandou-o prender Junot, a pedido do ministro da Rússia. Têem-me dito que o general francês não perde ensejo de ser agradável aos russos, na esperança de alcançar o apoio da esquadra que aí está no Tejo. Prenderam-no e levaram-no de maca para bordo da nau do almirante Siniavin, onde me disseram que se conservaria até estar restabelecido.

- Entregou então esse homem a uma morte certa!

- Não entreguei, e por isso aqui venho. Há dias soube por alguém da legação russa que as opiniões do Czar a respeito de Miguel Platow tinham mudado subitamente, ,ao que se supõe, por intervenção de um famoso general de cossacos, tio de Miguel.

- E soube-se tal coisa de tão longe?

- Vinte dias depois da saída do correio que mandava instar pela prisão de Miguel Platow, era expedido outro com o perdão do Czar, dadas certas condições que desconheço.

Nestas circunstâncias, sr. Luís de Castro, o vingativo russo poderá sair de bordo...

- Disse-me que tinha ido para lá de maca!

- Eu explico. Miguel Platow foi preso em 9 de Janeiro, e estamos a 10 de Março. Teve tempo de sobra para se restabelecer. Poderá sair de bordo, se lho permitirem as condições em que o perdão lhe foi concedido, e a seu salvo logrará armar alguma cilada!

- Contra quem o entregou?

- Contra o preferido da filha do Conde de Pultusk.

- A referência é para mim. Aceito-a e respondo. Não receio Miguel Platow.

- Pode vingar-se traiçoeiramente , pode caluniá-lo, sr. Luís de Castro. Era prudente estar precavido. Eu receio esse homem, porque a mim já eu sei que me caluniou.

- Considerando-se traído?

- Dizendo que eu me tinha apossado de grandes valores, deixados para êle pelo fingido joalheiro! Já passei pelo vexame de ser chamado à Intendência da Polícia para declarações!

- Mas conseguiu decerto dissipar todas as suspeitas contra a sua pessoa.

- Disse a verdade singelamente. O polaco deixou-me a paga dos meus serviços de médico. As jóias que tinha levou-as. Infelizmente para mim, a polícia não se julgou suficientemente esclarecida e vigia-me desde ontem. É provável que a malvadez de Platow tenha inventado novas calúnias contra mim. Suponho-o capaz de tudo! Sou um estrangeiro, vivo do meu trabalho de clínico, tive a boa fortuna de me acreditar junto de pessoas da corte que saíram para o Brasil e receio que essas iníquas suspeitas me arruinem agora ao desamparo. Foi-me dado ensejo de conhecer o ânimo generoso de V. S.a e sei que tem um nome ilustre, uma prestigiosa reputação de homem de bem. Não tenho o direito de invocar aqui as minhas relações de amizade com o Conde Pultusk , invocarei para o seu coração, sr. Luís de Castro, o nome dessa casta e linda mulher que me concedeu a honra de seu confidente e a quem por duas vezes tive a boa fortuna de defender da morte.

- Nenhuma invocação mais agradável para mim, sr. Vicenzo Farinelli, mas não percebo realmente porque lhe seja preciso fazê-la a propósito de umas suposições deploráveis, com as quais eu nada posso ter.

- Porque pode auxiliar-me na defesa contra o homem rancoroso que também o pode assaltar traiçoeiramente como um bandido e a mim me calunia como um celerado.

- Não faço a esse meu inimigo a ofensa de o supor capaz de uma agressão traiçoeira. É homem para se me atravessar no caminho, cara a cara. Já o provou.

Luís de Castro disse isto secamente. O procedimento do médico, denunciando o russo, enojara-o. Reparava-lhe agora atentamente no gesto e no olhar: tinha uma impressão justificadora daquela traiçoeira torpeza.

Farinelli fêz um gesto de contrariedade.

- Creio bem que se enganou, sr. Luís de Castro! Eu tive ocasião de ouvir Miguel Platow a seu respeito, não apenas nos seus delírios de febre, a proferir o nome de Maria em sensualidades de sátiro , mas, depois, na convalescença, no pleno uso da razão, a repetir-lhe o nome numas imprecações de vingança, que lembravam uivos de lobo sanguinário.

- Acredito , contarei com a pior vingança , não me julgo, porém, no direito de suspeitar da intrepidez de ânino desse homem. Mas, enfim, pouco importam, êsses perigos que não receio.

Queira V. S.a explicar em que e de que forma podia ser-lhe útil o meu auxílio.

- Recomendando-me a esse francês que tudo pode na actual conjuntura e que é, sabe-o toda a gente de Lisboa, um amigo pessoal de V. S.a, ligado a esta casa por dívidas de gratidão, dessas que se não devem esquecer nunca e raras vezes se podem pagar.

- Refere-se ao Conde de Novion?

- Refiro. Dizem que é o braço direito de Junot e a polícia da Intendência irá para onde o general em chefe ordenar que vá.

Luís tinha-se levantado.

- A esse homem ninguém da minha família pede favores. Atraiçoou Portugal, e devia-lhe mais do que aos meus.

Farinelli erguera-se também. Perturbara-se.

- Não sabia! Fico assim ao desamparo, estrangeiro sem defensores, ao alvedrio de um desalmado caluniador, que será também o seu inimigo implacável, seja onde fôr, e talvez um dia o saciado amante ou o marido opressor da linda e casta Maria Pulaski.

- Sr. Vicenzo Farinelli! Podia ter-me dispensado de lhe ouvir essas repugnantes previsões! Repito-lhe: Desta família ninguém faz pedidos ao Conde de Novion. Quanto às vinganças de Miguel Platow. fique tranquilo por mim ,e por êle. Nós ajustaremos as contas quando e onde quiser. Quero crer que Platow o caluniou, mas creio também que êle se estará desforçando de um procedimento que na língua deste país tem o nome de perfídia.

- É uma ofensa!

- Será, mas não vejo outra classificação.

- O sr. Luís de Castro no meu caso...

- Não fazia o mesmo , tenho o direito de lho afirmar. Meu rival, meu inimigo, dado mesmo que fosse um facínora, se o tivessem confiado à minha guarda, não o denunciava. Pensamos e sentimos de modo diverso.

Foi para a porta e abriu-a. Farinelli afogueara-se. Percebia aquele convite para retirar-se. Perdera a partida.

- Agradeço, ainda assim, o favor cativante da confidência.

Entretanto o mordomo aproximara-se da porta como para dizer alguma coisa.

- Que é?

- O sr. Conde de Novion está esperando V. S.a. O italiano cravou um olhar de rancor no moço

oficial, como se aquele recado fosse a prova de que lhe tinha mentido a respeito de Novion.

- Vá dizer-lhe - ordenou ao mordomo - que o tenente de granadeiros Luís de Castro cumprirá as ordens que receber do sr. marechal-de-campo, comandante das armas , mas que o filho de D. Matilde de Castro o não pode receber em sua casa.(1)

O mordomo hesitou.

- Isto que lhe disse, pela forma que lhe lembrar. De caminho acompanhe à escada este senhor. Indicou-lhe Farinelli, cada vez mais enfiado.

O italiano ia furioso.

- Fazia outra ideia daquele bonifrate! - pensava Farinelli - pedante e refinadíssimo tolo! Êle as pagará. Mas o meu caso agora está pior! O patife de Platow é capaz de me enredar, e Junot, se desconfiasse quem eu sou, mandava-me fuzilar. Os meus estúpidos escrúpulos! Tardios escrúpulos no fim de contas! Tinha-o nas minhas mãos , era-me tão fácil fazê-lo morrer! E fossem lá depois saber o pedaço de terra em que se tinha sepultado aquele estafermo!

 

*1. Novion foi promovido a marechal-de-campo ao serviço de Portugal, por decreto de Junot, em nome de Napoleão.

 

Efectivamente, Farinelli tivera tentação de envenenar Miguel Platow. Uma vez, depois de seu regresso da fronteira, aonde fora acompanhar o polaco e a filha, chegou a preparar a bebida venenosa que o havia de matar, sem grande agonia e sem deixar indícios comprometedores.

Acercou-se-lhe do leito para lhe dar o veneno, mas o copo tremia-lhe de tal modo nas mãos, que o próprio doente lho notou com estranheza. Farinelli perturbou-se, sentiu a testa inundada de suor. um repelão estranho de remorso naquela sua consciência corrompida pela cobiça das riquezas.

Pretextou então um engano de remédio, que subitamente lhe lembrara, retirou-se do quarto e, num arrepio de nervos, arremessou o copo contra as pedras de uma escada.

Fôra um traficante, um ganhão de baixas aventuras, um prevaricador , nunca, porém, um homicida.

Lembrou-lhe então um expediente de muito menor remorso. Denunciá-lo.

Não sabia, porém, que o polaco, na hora da despedida, havia dito em segredo a Miguel Platow a totalidade dos valores que deixava ao médico para lhe entregar.

Atarefado com as últimas disposições da jornada, Farinelli não assistira ao final daquela partida. O russo estava ainda muito fraco, não podia levantar-se, mas tinha a razão bastante lúcida para entender a confidência e a memória suficientemente firme para a não esquecer mais.

 

Juramento singular.

- Pois, meus amigos, é como lhes digo. A gente de Junot não deixa passar quem traz notícias da Espanha, mas os boatos de lá, como se tivessem asas, voam para cá sem que o Andoche os possa deter.

- Pelos modos, vai por lá uma embrulhada medonha com o rei, o filho, a rainha e o valido - acrescentou o Madureira, completando a informação de Manuel de Albuquerque - E todos quatro a pedirem a intervenção daquele mesmo homem que os burlou e está ocupando a Espanha com os seus batalhões!

- Por essa não esperavam os espanhóis! Amargam cedo as torpezas de Fontainebleau.

- Já está na Espanha com o comando em chefe das tropas francesas o marechal Murat, grão-duque de Berg.

- Bem sei: cunhado de Napoleão.

- O marido de Carolina Bonaparte. Dizem que o Junot lhe arrastava a asa escandalosamente.

- Como em tempos, segundo se atenta, fêz o seu pé de alferes a madame Josefina Beauharnais, a crioula da Martinica, hoje imperatriz dos franceses. Mas ouvi que esses amores com Carolina Bonaparte estavam sendo de ruidoso escândalo em Paris.

- Um amigo meu ouviu dizer ao Ratton, em casa de quem está hospedado o general Thiébault, que foi por causa desses descarados amores com Carolina Bonaparte que o Imperador deu o comando do exército da Gironda a Junot, apesar de ser êle o seu primeiro ajudante-de-campo e o governador de Paris.

- O famoso Andoche! - acudiu Manuel de Albuquerque num grande tom de sarcasmo - Por aí anda a namorar a torto e a direito, segundo dizem, e parece que sem distinção de nacionalidades!

- Já fêz escândalo em casa do Conde de Bourmont, a quem requestava a mulher, persegue a esposa de um tal Trousset e passeia por aí escandalosamente com uma tal madame Foy. Isto vi eu já. Os dois a cavalo um ao lado do outro! É uma loira, franzina, mulher dum coronel artilheiro.(1)

- Falta contar as italianas que fazem piruetas, as dançarinas que êle leva para o Alfeite, para o Ramalhão e para Queluz. Deu em sultão de São Carlos aquele empavonado Andoche! E de cá, da nossa raça, é preciso contar também essa linda doudivanas da Condessa da Ega e outras de quem a canalha rosna. O Conde, o marido a estas horas já em França com os outros figurões da deputação que vai lamber as botas a Bonaparte.(2)

 

*1. A estes amores de Junot se refere o seu chefe de estado-maior, o general Barão Thiébault, no tomo IV das suas Memórias.

  1. A deputação ia cumprimentar Napoleão e pedir-lhe a redução da contribuição de guerra e uma nova constituição política para o país. Compunha-se dos Marqueses de Abrantes, de Marialva, de Valença e de Penalva, dos bispos de Coimbra e do Algarve, do Conde de Sabugal, de D. Nuno Alvares Pereira de Melo (irmão do Duque de Cadaval), do Visconde de Barbacena, de D. Lourenço de Lima, do desembargador Joaquim Alberto Jorge e de António Tomás da Silva Leitão.

 

- Foi o Junot quem os meteu nisso - informou o Madureira - A mim me disse D. Lourenço de Lima que iam pedir a Napoleão um abatimento na contribuição de guerra e a independência do reino, embora tivessem de sujeitar-se a rei francês.

- O rei Andoche I é que há-de ser - acudiu Manuel de Albuquerque no seu tom de escárnio - Dizem-no por aí e segreda-se que é o Conde da Ega o mais empenhado em pedir semelhante rei - Coitado! Talvez espere vir a ser o seu primeiro ministro. Nesse caso, a Condessa viria a ser a camareira-mor honorária da rainha Laura Junot e a vice-rainha durante a sua ausência. Uma gloriosíssima pouca vergonha!

- Laura Junot não se há-de ralar muito com essas cousas - disse o Madureira.

- Sim, também creio. O marido governa-se bem por esta terra e pode mandar-lhe quantiosas mesadas.

- Isso pode - confirmou o Madureira - Dispõe da mesa lauta do Quintela, apanha do senado da câmara um subsídio mensal de quatro contos e quinhentos mil réis e tem conseguido extorquir grossas quantias aos donos e comandantes dos navios, a troco da licença para saírem do Tejo.

- E para avolumar o bolo, os presentes de diamantes da Junta do Comércio.(1) E ainda maiores presentes, quando êle fôr alteza real. Duc d'Abrantes já êle é(2). Mas parece-me que o mar se vai pondo de vaga alta,

 

*1. A Junta do Comércio deu a Junot um presente de brilhantes que valiam 40.237$000 réis, e depois outro, no valor de 40 contos, para evitar prometidas extorsões.

  1. Só nos primeiros dias de Abril aquele título foi oficialmente conhecido na capital pela publicação do respectivo decreto imperial na Gazeta de Lisboa.

 

como vocês,os marinheiros, costumam dizer - acrescentou o Mar e Guerra - O sangue começou a ferver nas veias do povo. Uns dias por outros motins e chacina. Outro dia, na Boa Vista, dois feridos de morte e um marinheiro nosso morto à baionetada. Agora anda por aí o boato de que um homem de MonteMor deu cabo de três franceses à paulada.

- Por isso a polícia tem ordem de apreender os varapaus - disse o Madureira.

- Bem sei. Ainda há-de aparecer algum edital a mandá-los entregar como armas proibidas.

Era na saleta do jogo esta sessão de má língua.

Luís de Castro entrou. Estava completamente restabelecido. Na semana anterior fizera as suas apresentações. Fora logo promovido a capitão para o regimento n.o 1 e colocado na companhia que o irmão comandava. A Henrique fora concedida a demissão do serviço por ter oficial que o substituísse. Tinha sido um favor especial do Alorna.

- Estás um belo capitão, meu rapaz! - disse-lhe o tio Manuel - A minha mágoa é que não sejas capitão de um exército que pudesse pôr daqui para fora esses intrusos que nos espezinham!

- E onde vais assim agora? - preguntou o Mar e Guerra, mirando-lhe o uniforme.

- Ao quartel-general em chefe. É hoje a apresentação solene de todos os oficiais do regimento. Apresentação... e juramento.

- Jurar o quê? O que vão vocês jurar?

- Se fôr juramento como o dos soldados, resumir-se-á na promessa de não atraiçoar nem abandonar os exércitos imperiais em que as nossas tropas forem incorporadas, obedecendo lealmente às ordens que receberem.

- Só isso, duvido - objectou Manuel de Albuquerque - Para vocês, oficiais, hão-de querer mais alguma coisa.

Luís afogueou-se.

- Vê lá se te impõem algum juramento que te obrigue ainda a vir contra Portugal.

- Não juro senão o que fôr compatível com a minha honra.

- Que remédio terás tu senão jurar o que eles quiserem.

- Desobedeço.

- Não me posso conformar com essa humilhação de vos porem ao serviço de Bonaparte!

- Sei que há mais de um ano a Espanha tem ao serviço do Imperador uma divisão de catorze mil homens.(1)

- Convosco a diferença é enorme.

- Pois se vamos humilhados, nós nos empenharemos lá em resgatar a humilhação. Dêem-me licença, que são horas.

- Adeus, meu rapaz.

- Até logo.

- E já sabem o dia da partida?

- Ouvi que será dentro de três ou quatro dias. No quartel-general não fixaram ainda o dia. Têem pressa, porque as coisas em Espanha não estão tranquilizadoras. Já mandaram recolher a Lisboa as tropas espanholas que estavam no Alentejo e não puderam acompanhar o general Marquês do Socorro na sua fuga de Setúbal para Espanha. Até logo.

- Mal empregado rapaz com semelhante destino! - lamentou o Mar e Guerra.

- Faz um admirável sacrifício pelo irmão! - comentou o Madureira.

- Iria, talvez, ainda que o coração lhe não pedisse o sacrifício,

 

*1.1 Era a divisão do Marquês de La Romana. Saíra de Espanha na Primavera de 1807, Napoleão mandou-a para o Hannover, depois foi para a Dinamarca e lá esteve encorporada nos exércitos napoleónicos, sob o comando superior do marechal Bernadotte, príncipe de Ponte-Corvo.

 

- disse Manuel de Albuquerque! - Levam-no para longe mágoas de infortunados amores. Não vêem aquela tristeza, que nem êle sabe nem pode disfarçar! Se o metem em alguma campanha, irá procurar a morte doidamente. Já lhe percebi o intento e sei já como se fazem essas doidices. É pena! Fazem cá falta homens assim! E não sei se eles chegarão a França sem que tudo isto se mexa.

Apinhadas de oficiais as janelas do palacete da rua do Alecrim. Um deslumbramento de uniformes! Demais a mais estavam também para se apresentar a Junot os oficiais das tropas espanholas, ultimamente concentradas em Lisboa, decerto para as terem vigiadas e desarmá-las no primeiro ensejo favorável.

Chegava então ao largo do Quintela a oficialidade do regimento português organizado em Lisboa, o primeiro da infantaria que ia partir.

Subiram à sala de espera do quartel-general. Na frente o coronel Saldanha e Albuquerque e o ajudante. Luís de Castro subiu conversando com Cândido José Xavier, chefe do 1.o batalhão, um dos oficiais de mais alta ilustração que tinha o exército.

Na sala estavam uns poucos de ajudantes-de-campo de Junot: o coronel Grandsaigne, os chefes de batalhão Hersant e La Grave, os chefes de esquadrão Carrion de Nizas e o Príncipe Salm-Salm.

De pé, junto de uma janela, o general Thiébault conversava com o marechal-de-campo D. José Carcome Lobo, comandante da 1.a divisão da infantaria portuguesa. Carcome falava o francês com dificuldade.

O capitão Bandeira, ajudante-de-campo de Carcome Lobo ficara a poucos passos, ao pé do tenente Trentignan, ajudante de Thiébault.

Esperavam Junot, que tinha saído a cavalo.

Carrion de Nizas, um observador malicioso e um fino humorista, andava em volta dos grupos de oficiais portugueses, a mirá-los com uma certa audácia de desfrutador.

Parou um instante junto do grupo formado por Cândido José Xavier, Luís de Castro e dois subalternos de granadeiros.

Aproximou-se de Nizas o Príncipe de Salm-Salm,

O Príncipe preguntou-lhe em francês:

- Que tal vos parecem?

- Alguns não têem mau aspecto, mas os de fuzileiros são pequenos demais. Com penacho e tudo devem dar pelas nádegas aos granadeiros da Guarda.

Luís de Castro voltou-se. Carrion de Nizas remirou-o atrevidamente. Depois voltou-se para o colega e continuou como se não tivesse dado pelo reparo do oficial português:

- Estou a fantasiar a boca aberta destes homenzinhos, quando virem na Espanha a guarda imperial do marechal Bessières.

- Sr. ajudante-de-campo - disse-lhe em francês Luís de Castro, afastando-se do seu grupo - na guarda imperial haverá decerto velhos granadeiros da primeira República. Terão agora mais glórias, mais brilhantes uniformes, mas não é provável que tenham maior estatura, e a esses não os vi eu, mas há aqui oficiais portugueses que os viram no Rossilhão e na Catalunha. E se então muitos dos nossos abriram a boca, não foi de espanto, foi para soltar gritos de vitória em Ceret, em Villete e em Puigcerdá.

- Não contava encontrar gascões neste recanto europeu, tão perto de África...

- E tão longe da índia e do Brasil, para onde os meus antepassados ensinaram o caminho aos vossos. Nesse tempo, sr. ajudante-de-campo, os marinheiros de Mondragon e de Duclerc haviam de ser já do tamanho dos granadeiros de Bessières, mas os homens pequenos de Portugal puderam vencê-los. Não me parece que tenha direito a escarnecer assim dos homens de mediana estatura quem têem num dos mais pequenos homens da Europa o maior batalhador que ainda houve na França, um dos maiores que ainda viu o mundo.

E apontou para um retrato de Napoleão, que pendia da parede, numa grande moldura dourada.

- Perfeitamente! - aplaudiu outro ajudante-de-campo, o chefe de batalhão Hersant, que se havia aproximado.

- Ganhou, sr. Capitão! - disse Nizas, sorrindo - Os meus cumprimentos. Faço votos para que os homens pequenos de Portugal o não desmintam, se ao lado dos soldados do meu país tiverem de batalhar com exércitos formidáveis, de admirável bravura, como os da Áustria e da Rússia.

- Conto com eles, sr. ajudante-de-campo. Há-de querer Deus que nos seja dado provar à Europa que só nos faltou aqui alguém que soubesse e quisesse mandar-nos contra o vosso exército da Gironda.

- Estimarei sabê-lo, capitão. Hei-de ler com imensa curiosidade o boletim da primeira batalha em que entrarem os vossos portugueses. Para ver se os homens de pequena estatura deram nas vistas aos austríacos ou aos russos, se ainda tivermos contra eles mais algumas campanhas. E se nos boletins do Grande Exército Napoleão falar dos legionários portugueses, estará então triunfalmente confirmada a vossa opinião a respeito dos homens pequenos de Portugal.

- Não podemos aspirar a tanto. É preciso contar com o natural orgulho daqueles de quem vamos ser forçados auxiliares, nós, o punhado de soldados de uma nação pequena.

- Não é bem assim. Conheço oficiais estrangeiros ao serviço do Imperador, que trazem ao peito a cruz da Legião de Honra.

- Não sei se a poderemos ganhar e se Napoleão no-la quererá conceder. Eu, por mim, se a merecesse e ma dessem, não a punha no peito da farda, preferia substituí-la por um farrapo da bandeira do meu país, mas guardá-la-ia orgulhosamente e voltaria com ela a Portugal como se trouxesse um troféu. Para galardoar o esforço individual de um soldado nenhuma autoridade igual à do vosso Imperador e nenhuma insígnia de mais alto prestígio do que essa que êle tem posto ao peito dos vencedores das maiores batalhas pelejadas na Europa. Mas eu não renego a minha gloriosa nacionalidade, de um palmo de terra e de um punhado de homens, e na minha farda, sobre o meu coração de português, não a poria nunca.

Ouviu-se de súbito um brado estridente, chamando às armas.

- É o general em chefe - veio dizer Carcome Lobo aos grupos de oficiais portugueses.

Nizas e Hersant foram a uma das janelas.

Junot apeara-se. Dirigiu um cumprimento afectuoso a madame Foy, que descia a rua do Alecrim montada no seu cavalo de raça inglesa, negro, um saltador admirável.

Era seguida por um lacaio.

- Esta sem cerimónia! - comentou Carrion de Niza - Já não está para escrúpulos aquela franzina artilheira!

- Foram os dois passear à Tapada?(1)

- Foram. O sítio é bom para idílios.

- Mas o general disse que ia para lá atirar à pistola. ,

- Esse é o pretexto. Madame Foy também atira à pistola, segundo me informou o tolo do Geouffre.(2)

 

*1. Ainda ali há um banco de pedra denominado banco de Junot.

  1. Era cunhado do general em chefe. Familiarmente chamavam-lhe o Geouffre.

Thiébault informa nas suas Memórias que madame Foy passeava com Junot, a cavalo num grande corredor negro, de raça inglesa. Era atiradora de pistola e dava saltos formidáveis. Junot passava por um dos melhores atiradores de pistola que tinha o exército.

 

Hei-de mandar dizer estas coisas para Paris.

- O demónio, isso daria escândalo! Pode sabê-lo a futura Duquesa de Abrantes. Já lhe chamo assim, atendendo à promessa do Imperador.

- Não se incomodará muito, sabe já a prenda de marido que tem. Nestas infidelidades conjugais há quem suponha que a prioridade pertence a Laura Permon, a futura Duquesa.

- Com Napoleão... ouvi falar nisso.

- É verdade que também o nosso bravo general andou por Paris muito à sua vontade com a crioula Josefina Beauharnais, então madame Bonaparte.

- Junot tinha ido levar os troféus daquela famosa campanha de Itália, que foi a primeira grande glória do general Bonaparte.

- Mas ia-se esquecendo de voltar - replicou Nizas.

- Sois uma língua viperina! - volveu Hersant, sorrindo.

- Ando a dizer dos heróis o que a história cortesã não dirá nunca.

Junot subia a escada.

- Vamos lá - disse Hersant.

Carrion de Nizas tinha realmente a paixão do enredador humorista pela intriga a rir.

Fartou-se de mandar cartas para Paris contando os escândalos e os ridículos do seu general em chefe.

Na sumptuosa secretaria do quartel-general, Junot recebia os oficiais do primeiro regimento de infantaria. Eram-lhe apresentados pelo general Carcome Lobo, comandante da divisão a que o regimento pertencia.

Alorna, comandante em chefe, e Gomes Freire, segundo comandante da Legião, tinham licença para sair de Lisboa a ultimar negócios particulares. Alorna devia chegar naquele mesmo dia à noite.

Dirigindo-se ao general Carcome e aos oficiais, Junot fêz uma alocução, que era na essência e quási na forma o texto de um ofício que enviara ao Marquês de Alorna.

- Espero, sr. General, que as tropas portuguesas serão chamadas a partilhar a glória do exército francês e como êle saberão sustentar essa firme e severa disciplina, sem a qual nenhum exército pode existir honradamente. Conto muito para este fim com o exemplo e a lealdade dos srs. generais e oficiais, cujos méritos pessoais conheço e aprecio.

Carcome Lobo tartamudeou em mau francês umas afirmações relativas à lealdade e brios militares dos seus sobordinados.

- A Legião, eu lhe chamo assim, tem de partir dentro de dois ou três dias - continuou Junot - conforme ordens expressas de S. M. o Imperador. Para mim seria desnecessária a formalidade de um juramento de fidelidade , mas Sua Majestade o Imperador determinou que as tropas fossem ajuramentadas, e os vossos soldados já o foram, assim se procede também nos exércitos do Império. Sr. marechal-de-campo Conde de Novion, encarrego-vos de deferirdes juramento aos oficiais do primeiro regimento da Legião.

Novion, que estava atrás de Junot, adiantou-se trazendo na mão a fórmula escrita do juramento.

Compreende-se a escolha de Novion. Era-lhe familiar a língua portuguesa, podia informar com segurança a respeito da fiel reprodução da fórmula, por êle próprio escrita em português, pois que mais de dois terços dos oficiais a ajuramentar não conheciam palavra da língua francesa.

O juramento nos outros regimentos seria feito perante autoridades militares francesas, em Setúbal, Coimbra, Elvas e Estremoz.

Novion acercou-se de uma larga mesa doirada. Abriu sobre ela um missal antigo, de preciosas iluminuras, que Junot mandara vir dos Jerónimos e tinha lá como coisa sua. Era o famoso missal de Estêvam Gonçalves, uma obra de arte peregrina.

Luís de Castro tinha estado a olhar muito atento para o retrato a óleo de um oficial de hussares, ainda muito novo. Pendia da parede por cima da cadeira de espaldar, certamente a cadeira de Junot.

Pareceu-lhe o retrato de Junot, quando mais novo. E não se enganava.

Foi chamado o Coronel. Prestou juramento com a mão sobre o missal, lendo a fórmula escrita. Junot assistia.

Seguiram-se os outros oficiais, por ordem de patentes e antiguidades. Tocou a vez a Luiz de Castro. Perfilou-se diante de Novion comovidamente.

- Foi bom, sr. marechal-de-campo, que a bandeira não viesse para este juramento. Nenhum de nós se atreveria a jurar.

Novion afogueou-se.

- Opõe algumas dúvidas esse oficial? - preguntou Junot arrogantemente.

- Sr. General - disse-lhe em francês Luís de Castro - dizia eu ao sr. Conde de Novion que preferia para o juramento este missal à bandeira do meu país, sobre a qual nenhum de nós poderia jurar.

Junot fêz um gesto de soberba impaciência.

Tomou uma expressão de estranheza a fisionomia dos oficiais portugueses.

- Peço a mercê de me deixarem formular o juramento conforme a minha consciência e na língua francesa, para que a V. Ex.a não fique dúvida quanto às responsabilidades que eu tomar para mim.

Junot, admirador da firmeza de ânimo, fosse em quem fosse, e um pouco movido também pela curiosidade de saber que fórmula especial teria aquele moço capitão, o mais novo de todos, fêz-lhe um gesto de assentimento.

- Sou dos oficiais do nosso regimento - disse Luís de Castro, voltando-se um pouco para eles - o único, decerto, que vai em substituição de outro. Não me tomem à conta de vaidade, meus camaradas, a fórmula especial de juramento em que o meu coração de português pode ficar tranquilamente dentro dos meus deveres de soldado.

Voltou-se para a mesa, pôs a mão sobre o missal e disse em francês firmemente:

- Sobre este santo livro da maior era de esforço e glória que teve Portugal, eu, Luís de Castro e Albuquerque, capitão do primeiro regimento de infantaria da Legião Portuguesa, obrigada a servir a França, juro solenemente cumprir os meus deveres de soldado, conforme as tradições do exército a que pertenci, empenhando o meu sangue e o meu esforço pela honra do nome português, sem que me entibie o ânimo ou faça esquecer encargos de lealdade e obediência a circunstância de expor a vida por glórias ou interesses de estranhos. Juro não trair aqueles a cujas ordens estiver subordinado, não desertar nunca das fileiras do meu regimento, seja qual fôr a conjuntura de perigo ou de provações, salvo um caso.

- Não admito restrições! - gritou Junot.

- Este caso de excepção ninguém pode rejeitar-mo, sr. General. Na minha consciência e no meu coração o juramento ficará nulo, desligando-me de combater o meu país, seja qual fôr o pretexto, ou os meus compatriotas, onde quer que eles estejam. Fora desta excepção, sr. General, não deserto, não fujo, não trairei nunca os meus deveres de obediência, por muito que me oprima cumpri-los. Aguardo as ordens de V. Ex.a.

- Pode retirar-se - disse-lhe Junot secamente. No seu íntimo o arrojado borgonhês gostara daquela intrépida franqueza.

Fora da secretaria, na sala de espera, Cândido José Xavier abraçou Luís de Castro, apertaram-lhe a mão, comovidamente, os outros oficiais do regimento que o haviam entendido ou tinham ouvido traduzir as palavras que êle dissera em francês.

- é a fórmula que os nossos corações adoptam

- disse-lhe Cândido José Xavier.

Carrion de Nisas ouvira-lhe o juramento e veio à sala procurá-lo.

- Gostei de o ouvir - disse-lhe - Faz honra ao seu país. Aceite os meus votos pelo glorioso futuro que merece - acrescentou, estendendo-lhe a mão.

Luís de Castro agradeceu e foi falar ao tenente-coronel Valadares, que vinha já para o felicitar.

Nizas ficou a conversar com Cândido José Xavier.

- Muito novo este capitão!

- Ainda não fêz vinte e três anos.

- Em França não era caso para notar-se. Temos lá tido generais de vinte e três ou de vinte e seis anos.

- Bonaparte, por exemplo. Cá não temos disso , Gomes Freire é o mais novo dos nossos generais e tem quarenta e quatro anos(1). Mas entrou no serviço militar logo em alferes, em 1782 , era capitão aos vinte e três anos , depois, voluntário ao serviço da Rússia, estava coronel aos vinte e seis. Foi em Portugal marechal-de-campo aos trinta e dois.

 

*1. Nascera em Viena de Áustria em 1764.

 

- Já é uma bela carreira.

- É, e, demais a mais, glorificada por arrojos de ânimo no assalto de Oczakow e na batalha de Shwenkrund.

- Já mo tinha dito Novion. Deram-lhe uma espada de honra pela sua extraordinária intrepidez nessa batalha contra os suecos.

- Como por ter sido o primeiro que entrou nos entrincheiramentos de Oczakow lhe deram a condecoração militar de São Jorge.

- Sabe já o que é a guerra em ponto grande.

- Sabe. Teve antes a pequena guerra contra os argelinos, a bordo das nossas esquadras. Em 92 e 93, voluntário no exército prussiano, combateu contra os vossos exércitos do Reno. Fêz as três campanhas do Rossilhão e Catalunha. Outro exemplo. O general Pamplona foi major aos vinte e quatro anos.

- Esse também militou voluntariamente na Rússia, segundo o registo oficial que eu li.

- Também. Na Rússia e no Rossilhão. Fêz as campanhas da Moldávia, de 1788 a 1790, com o feld-marechal, príncipe de Potenquim. Distinguiu-se tanto à frente de uma coluna de ataque no assalto de Ismail, que o governo do Czar lhe deu a cruz de São Vladimiro.

- Vejo que perdi a minha partida de gracejo com o vosso capitão de granadeiros. Podia falar como falou. E êle fêz já alguma campanha?

- Não fêz. Por mercê régia assentou praça em alferes aos quinze anos. Na campanha de 1801 frequentava ainda o Colégio dos Nobres com a farda de alferes.

Veio o general Carcome Lobo. Os oficiais do 1 despediram-se dele e sairam para o quartel. O regimento teria exercício de táctica francesa naquela mesma tarde, no Rossio.

Luís de Castro foi tarde para casa. O tenente-coronel Valadares já lá tinha ido para contar aos tios o juramento patriótico do jovem oficial, uma das cousas mais comovedoras a que tinha assistido.

Muito envaidecidos, o Mar e Guerra e o Manuel de Albuquerque ouviram-no com os olhos rasos de lágrimas. E cada um pensou e disse de si para si, orgulhosamente:

- É do meu feitio.

E ambos tinham razão. O Luís a entrar e os dois no alto da escada a esperá-lo.

- Já se cá sabe tudo, meu rapaz!

- És português de bom sangue. Hás-de cá fazer falta, pois que, mais mês menos mês, começam para aí a berrar as escopetas, que é para nós, os velhos, morrermos descansados. Morrer sem vergonha de nós mesmos.

Abraçaram-no em requintes de ternura piegas aqueles dois valentes, o velho lobo de Trípolis e do combate com a Chiffone e o maduro de leonina bravura em Ceret e na Montanha Negra.

Mas atrás deles alguém soluçava baixo. Era a Mãe do moço legionário. Ao pé dela, muito pálida, olhos baixos, rasos de lágrimas, como santa de resignadas mágoas, a irmã de Branca, a pobre e incompreendida namorada.

 

               A saída do regimento.

Estava-se no fim de Março. O Valadares foi logo de manhã cedo ao palacete dos Castros. Ia para falar ao filho mais novo de D. Matilde.

Luís de Castro acabara de se fardar. Tinha de ir fazer umas visitas de despedida. Foi receber o Valadares e levou-o consigo para os seus aposentos.

- Falei ao Carcome Lobo. Torceu o nariz assim que eu aludi ao desejo dos oficiais do novo regimento n.o 1.

- Mas decerto não lhe apresentou o pedido como petição colectiva, de carácter oficial?

- Decerto. Nessa não caía eu. O Carcome disse-me logo que Junot não acederia a semelhante coisa e, ainda que acedesse, lá em França Napoleão mandaria tirar a bandeira ao regimento. Era a resposta com que eu contava , mas quis fazer-lhe a vontade, meu amigo. A instâncias minhas, o Carcome sondou Thiébault, que fêz um gesto de espanto por semelhante pedido. Eu assisti. Disse logo, terminantemente, que não falava em semelhante coisa a Junot. Os outros regimentos fariam o mesmo pedido, e a Legião vai para ser encorporada no exército imperial , não para se lhe agregar como força auxiliar de uma soberania existente. Thiébault é um espírito culto e um homem de generoso coração. Compreendeu o que tinha de oprimidora aquela formal recusa e procurou amenizá-la, dizendo que para os estímulos de valor militar lá estavam as águias dos regimentos franceses com os quais houvessem de entrar em campanha as tropas de Portugal.

- Tem razão Thiébault - disse Luís de Castro amargamente - Foi uma tentativa pueril e inútil, confesso. Uma insensatez , compreende-se agora claramente. Abateram em Portugal a bandeira portuguesa , não seria lógico permitir que fosse para França a esvoaçar por cima das cabeças de um punhado de portugueses, sinal de uma nacionalidade que foi gloriosíssima, estímulo de saudade, de esperança, de protesto para todos nós, em cada momento que atentássemos nela.

- Thiébault assim o entendeu também. Não o disse claramente, mas disse-o em rodeios que eu percebi.

- Como eu tinha-o compreendido , mas quis fazer a vontade a alguns dos meus camaradas. Seria realmente uma saudade da Pátria, uma saudade e um remorso, que haviam de levar-nos com mais coragem aos perigos, mas podia também ser para cada um de nós um estímulo de rebeldia ou, pelo menos, de perturbadora influência no cumprimento dos deveres a que vão sujeitar-nos. É caso arrumado em que nem já vale a pena falar. O nosso coração remediará esse vácuo no regimento. De nenhum grande esforço seríamos capazes, se não fosse connosco a ideia de que há um Portugal e vive ainda um resto do exército português, ao qual o mundo pode afrontar com um labéu de cobardia. Tenente-coronel, beijo-lhe as mãos pela insigne amabilidade de me atender esse pedido, que eu sou o primeiro a considerar insensato. Bem haja.

- Não engrandeça um serviço realmente insignificante. E, antes que me esqueça, uma novidade: O 1 de cavalaria já marchou de Salvaterra. O seu regimento ouvi que vai hoje receber ordem para marchar amanhã. Os corpos da Legião devem concentrar-se em Salamanca.

- Luís, posso entrar?

- Pois não, tio Manuel.

- Adeus, meu caro Valadares. Sabem, venho aqui para lhes ler uma carta de Coimbra que me enterneceu! Chegou muitíssimo atrasada, porque andou em bolandas, foi para Abrantes, de lá mandaram-ma por um próprio para aqui, mas o pobre diabo do portador foi preso pelos franceses em Santarém, por não sei que desconfianças, e só há pouco, passados quási dois meses, pôde cá vir entregá-la! É de um meu amigo, vosso camarada de cavalaria. Talvez conheça, Valadares? O capitão de cavalaria 9, Luís Paulino de Oliveira Pinto da França.

- Não o conheço pessoalmente, mas tenho ouvido falar dele como de um oficial pundonoroso e de culta inteligência.

- É também poeta. Escreveu-me uma carta de desafogo que me ia fazendo chorar. Não lha vou ler toda. O Luís Paulino conta-me aqui, amarguradamente, a saída do seu regimento de Chaves. Depois a violência da redução e o desarmamento dos que foram demitidos e tiveram baixa. A infantaria de Chaves foi desarmada no Porto, a cavalaria tinha vindo para Coimbra e lá a desarmaram. Ouçam este trecho da carta a explicar um soneto que me remete:

«Não imaginas, meu caro Manuel, o que eu senti quando me disseram que íamos ser desarmados!

«Vi soldados velhos que choravam como crianças!

«Estava aboletado no convento de Santa Cruz.

«Deram-me a notícia defronte daquele portal formosíssimo da igreja, que tu conheces.

«Estava ao pé de mim aquele meu filho que tu viste há cinco anos e era agora cadete do meu regimento. Tomei-lhe a mão a tremer e entrei com êle naquela igreja onde repousam as cinzas do rei batalhador que fundou Portugal.

«Ia como doido! Sem me compreender, o rapazito seguia-me enfiado. Não entregaria a minha espada, quebrá-la-ia contra as pedras do túmulo de Afonso Henriques!

«Senti então, como nos meus tempos de rapaz, um daqueles arrebatamentos que iam dando comigo em poeta. A causa inspiradora é que era agora de desalentos e de profundas mágoas.

«Mando-te essa cópia do soneto que improvisei.

«Acabámos a chorar, eu e o rapazito. A espada quebrei-a. Que lhe mandem lá buscar os pedaços, se quiserem.

- Agora, Luís, lê tu esta cópia do soneto. Sabes lê-lo melhor do que eu.

Luís de Castro tomou-lhe o papel das mãos e leu alto, comovidamente, este soneto, que ficou histórico:

A teus pés, fundador da Monarquia Vai ser a lusa gente desarmada! Hoje cede à traição a forte espada, Que jamais se rendeu à valentia!

Oh! Rei, se a minha dor, minha agonia, Penetrar podem sepulcral morada. Arromba a campa, e com a mão mirrada, Corre a vingar a afronta deste dia.

Eu fiel, qual te foi Moniz, teu pagem. Fiel sempre serei , grata esperança Me sopra o fogo de imortal coragem.

E as lágrimas que a dor aos olhos lança, Aceita-as, grande Rei, por vassalagem , Recebe-as em protestos de vingança!(1

 

*1. Vem reproduzido no volume III dos Excertos históricos do sr. general Cláudio de Chaby, excelente monografia àcêrca das invasões francesas.

 

- Hein, meu rapaz? O que dizes a este soldado poeta.

- Sou fraquíssimo entendedor de versos, estes, porém, senti-os. É o mais que eu sei dizer-lhe. Palpita aqui a alma de um patriota, têem lágrimas de desespero estas palavras, corre um frémito de dor e de épicas saudades nestes catorze versos que me enterneceram.

- Isso. Foi o que me sucedeu a mim. Dizes bem, meu rapaz.

- Eu, pela minha parte, - disse o Valadares - peço a fineza de me deixar que tire uma cópia.

- Quantas quiser.

- E eu levarei outra para ler lá fora aos meus camaradas, nas horas de maior saudade por tudo isto.

- Muito bem. E olha, aqui na livraria de tua casa tens uma preciosidade, que eu vos furtei em certo dia tristíssimo do mês de Novembro do ano passado.

- Bem sei, no dia 27, no dia em que a corte embarcou. Ainda não há um mês que eu o soube da boca do tio Jerónimo.

- O linguareiro!

- Sei tudo. É uma edição dos Lusíadas, de encadernação rica.

- Com um oferecimento do próprio punho do Marquês de Pombal. Leva esse livro, Luís. Para leres quando te sentires deslumbrado por estranhas glórias. Obrigado a falar a toda a hora uma língua estrangeira, há-de saber-te bem recordar a nossa naquele livro, de tanto valor que até o próprio Junot nos queria adormentar, prometendo-nos dois Camões de fancaria que parodiassem o outro, por conta de Napoleão. E aquele vosso exemplar, com as manchas da lama de Belém, onde um ministro, estrangeirado e cobarde, o deixou cair, vale ainda mais como protesto e como estímulo. É, ao mesmo tempo, um símbolo do muito que fomos e desta miséria torpe a que chegámos.

- Irá comigo. Havemos de lê-lo lá fora, em horas de repouso, nos acampamentos e nos quartéis. Ao mesmo tempo, naquele sacrário da alma portuguesa,, uma relíquia de família.

Davam dez horas num grande relógio inglês de timbre agudo como um grito de ave selvática.

- Como o tempo corre! Perdoem-me que os deixe. Tenho de fazer umas visitas de despedida, e às duas horas devo estar no quartel.

- Eu saio também - disse o Valadares.

Eram quási duas horas quando Luís de Castro entrou no quartel chamado do Conde de Lippe, em Belém.

Tomou de parte os colegas e camaradas com quem tinha mais intimidade e comunicou-lhes a resposta acerca da bandeira.

- Já contávamos com isto. Chegou esta manhã uma ordem do Ministério da Guerra para se mandar entregar imediatamente no arsenal a bandeira velha do nosso antigo regimento!

- Compreende-se. Resignemo-nos - respondeu Luís de Castro-Pensei melhor. Era profanação levá-la connosco, nós ao serviço de um país estrangeiro, ela como se fosse uma bandeira avassalada. Iremos sem bandeira. Nós a sonharemos lá, meus amigos.

- Olhe, estão ali a encaixotá-la, para irem entregá-la no arsenal - disse um dos capitães, indicando uma arrecadação onde um carpinteiro martelava numas compridas tábuas velhas de pinho.

- Pois vamos vê-la. Será para essa velhinha a nossa dolorosa despedida.

- Vamos, sim. Vamos! - disseram todos comovidamente.

Grupos de sargentos e soldados estavam comentando o caso defronte da arrecadação geral. Abriram passagem aos oficiais, perfilando-se e fazendo-lhes a continência.

- Carpinteiro, não pregues ainda! - gritou Luís de Castro, adiantando-se dos outros - É para a vermos, para nos despedirmos dela.

O carpinteiro atirou o martelo ao chão, encostou a um banco a tampa que ia pregar e levantou nos braços a bandeira rota, antiga, com o fervor religioso de um sacerdote a levantar de cima dos altares a mais sagrada relíquia do templo.

Aquele carpinteiro, vizinho do quartel, fora o quarteleiro-geral do antigo regimento. Era um velho. Tinham-lhe dado baixa em Fevereiro com trinta e dois anos de serviço. Fizera as campanhas do Rossilhão e Catalunha.

O regimento era a sua família, o quartel a sua paróquia, santa padroeira da sua maior devoção aquela velha bandeira.

- Aqui a tem, meu Capitão. Eu ainda a conheci nova! Se tivesse mãe viva, e eu não conheci a minha, não me custaria tanto metê-la no caixão! Dei-lhe um beijo como lá na minha aldeia os filhos beijam a mortalha das mães, antes que lhes fechem o caixão e lhas levem de casa.

- Deste a justa significação disto, meu velho! - disse-lhe Luís de Castro - Beijo-a como tu a beijaste.

- Todos - disse outro.

- Sim, todos!

Era comovedor. O último que a beijou foi depô-la religiosamente na esguia caixa de pinho.

- Agora, podes pregar - disse, perturbado, Luís de Castro.

Assomou à porta Cândido José Xavier.

- O que é? Estão a despedir-se?

- Antes que lhe preguem o esquife e a levem - acudiu Luís de Castro - Precisávamos de a fixar bem. Teremos de a lembrar em muitas conjunturas. Chefe, há-de ser preciso sonhar com ela.

- Já aí estão quatro dragões franceses da guarda do Arsenal, para escoltar a carroça que a há-de levar - disse o ilustre chefe do 1.o batalhão.

- E é todo o préstito que vai com ela! - comentou o Castro.

O antigo soldado batia os últimos pregos da tampa com uma profunda amargura da piedade filial, lágrimas como punhos a saltarem-lhe dos olhos.

- E por seu único repouso, como nenhum latim de encomendação funerária - disse o Castro, baixo, para Cândido José Xavier - bastam dois versos de Camões que o meu coração está recordando. Confrangem estas marteladas!

O tambor da guarda fêz o toque de chamada de oficiais. Saíram todos.

Estavam na parada com os cavalos à mão os quatro dragões franceses que haviam de escoltar a carroça com a bandeira.

Tinha entrado um ajudante-de-campo do marechal-de-campo Carcome Lobo. Era o capitão Bandeira.

Trazia ele próprio um ofício do general, mandando pôr o regimento em marcha no dia seguinte de madrugada. Tomaria o caminho de Leiria, seguindo dali por Coimbra para Almeida e Salamanca.

Era o caminho por onde Junot mandara estabelecer postos que se denominavam étapes e se compunham de gendarmes e soldados de cavalaria.

O regimento fora prevenido para uma súbita marcha , estavam prontas as grossas bagagens, mas ainda havia que fazer até à noite.

Foi por isto que o Coronel mandou tocar a oficiais e os reuniu na secretaria, à porta fechada.

- O regimento sai amanhã. Há-de estar formado às quatro da madrugada. Esperava que mandassem distribuir pólvora. Não mandam. Os soldados irão sem cartuchos. As bagagens podem sair à meia-noite para irem adiantando caminho. Recomendo aos srs. capitães e subalternos a maior vigilância. É preciso que esteja um sargento de ronda a cada companhia. Nenhum oficial pode sair sem autorização. Os sargentos e soldados não saem. Os srs. chefes de batalhão podem conceder licença aos seus oficiais pelo tempo de duas ou três horas, mas por turnos e de modo que fiquem sempre dois oficiais por companhia. Eu não saio , fico no quartel. Família, parentes, amigos, vê-los-ei aqui para me despedir deles. Ajudante, mande nomear gente para dobrar a guarda. Ninguém estranho ao regimento entra no quartel sem autorização minha, podem ir às suas companhias.

Voltou-se para o Bandeira.

- O capitão pode informar o sr. Marechal-de-campo de que foram fielmente transmitidas as instruções que me mandou, em cumprimento de ordens superiores do quartel-general em chefe. Respondo pelo regimento. Havemos de cumprir todos o nosso dever de soldados, mantendo o juramento que fizemos. Tenho plena confiança nos meus oficiais.

O Bandeira fêz a continência e saiu. Montou a cavalo, transpôs o portão, e deitou a trote largo pela calçada da Ajuda abaixo.

Instantes depois saía a carroça com a caixa da bandeira e uma porção de material velho. Ladeavam-na os quatro dragões franceses.

Os oficiais vieram até ao portão do quartel.

- O saimento da morta! - comentou o Castro. Só de noite o moço capitão pôde ir a casa. Era

esperado com ansiedade.

- Que demora inquietadora, filho!

- Estivemos com os últimos preparativos.

- Então... quando marcham? - preguntou sufocada.

- Amanhã.

- Filho, já amanhã?!

- E trago apenas duas horas de licença. Ficamos todos no quartel.

- Luís, que dor de alma!

- Mãe, minha querida Mãe! - disse, beijando-a enternecidamente -, é preciso. Bem vê , se eu não fosse teria de ir o Henrique, esposo e em breve pai. Do sacrifício a que se não podia fugir, este é o menor. Para me chorar só tenho minha Mãe, e não faço falta. Há outros obrigados a deixar esposa e filhos. Há mães a quem levam o filho único. É imensamente pior.

- E finge não perceber que é êle o filho a quem eu mais queria e quero! - disse consigo D. Matilde amarguradamente.

- Não podia ser de outro modo, minha Mãe. Quere saber a ameaça que nos fizeram no quartel-general de Junot, repetição de outra de há um mês? Que seriam arcabuzados como desertores em tempo de guerra os que fugissem, e dos escolhidos, os que se fingissem doentes para não ir agora, seriam escoltados para França como soldados rasos.(1)

- Pois sim, filho. Sim. A nossa desgraça é que Isto é!

 

*1. José Garcez Pinto Madureira, oficial de cavalaria que saiu com a Legião, deixou nos seus apontamentos a indicação daquele receio. Espalhara-se que Napoleão tiraria de Portugal avultados contingentes de conscritos que iriam, portanto, servir em França como soldados e os próprios oficiais, que de algum modo se escapassem de ir com a Legião.

Os apontamentos e memórias de José Garcez foram coordenados e publicados em livro por um seu parente, o sr. Bento França, distinto oficial de cavalaria.

 

Vê lá então o que precisas levar. Vê lá o que é necessário que eu mande arranjar.

- Estava já prevenido. Resta meter umas cousas nos baús e fechá-los. Se me der licença, levarei meia dúzia dos nossos livros, para as horas de maior saudade.

- Sim, filho, o que tu quiseres.

- Então dá-me licença, sim?

- Vai, vai.

E ficou-se a olhá-lo compungida.

- A supor que não o percebo! - disse consigo. Já êle ia ao fundo do corredor -, Vai de vontade, porque sabe onde ela está, porque espera ir ter com ela, aquele pobre enfeitiçado! E não voltará mais, se ela o quiser prender por lá. Anda o coração a dizer-me que não volta! A mãe cá fica, e facilmente se esquece. Pois, paciência, e que Nossa Senhora lhe dê por lá a tamanha ventura que êle merece e que eu lhe desejo.

Foi para o quarto a soluçar.

Luís de Castro fechou os baús. Estava a oprimi-lo horrorosamente aquela hora de apartamento. Saiu do quarto de dormir para o outro contíguo, a que êle chamava seu escritório.

Deu de surpresa com a irmã de Branca, de pé entre a porta que dava para o corredor. Lembrava uma aparição de sonho, de algum sonho de resignadas amarguras.

- Tudo pronto? - disse-lhe numa amargura de voz, postos nele, castamente, os olhos rasos de água, numa doce e humilde tristeza que fazia dó - Disseram-me que partia amanhã.

- Parto, sim, minha encantadora Laura - disse indo para ela enternecidamente - Quem foi que lho disse?

- Sua Mãe, debulhada em lágrimas. Coitadas das mães!

- E a quem eu deixo mágoas.

- E a quem a gente vê que deixa maiores mágoas. Eu tenho pena. Não admira. Criámo-nos um com o outro.

- É verdade. A minha linda companheira de brinquedos. Sete anos, eu já meio homem, doze anos feitos, e maior criança ainda para brincar! Sua irmã Branca, a fingida madrinha do nosso noivado infantil. Um delicioso tempo de ingénuos sonhos. Os melhores dias!

- Para mim os únicos!

- Não diga semelhante heresia! Aos dezanove anos! Mas não quere sentar-se? Perdoe-me. Não reparava.

- Não , eu saio já. Receei que se fosse embora sem me dizer nada. Sua Mãe contou-me que tinha muito pouco tempo de licença, e não voltaria. Custava-me que se fosse embora sem eu lhe dizer adeus.

E a voz daquela enamorada de dezanove anos parecia uma ingénua e dolorosa música, docemente resignada. Alguma cousa singelamente comovedora, como se fosse noite luarenta de Abril, o gorjeio de lágrimas de um rouxinol viúvo sobre o ramo esgaçado onde o ninho se lhe desfez e a corrente lho levou.

- Podia lá ser! Eu não era capaz de partir sem dizer adeus à minha noiva pequenina de há doze anos.

- Desse noivado que deu em viuvez!

- Qual viuvez! Laura, eu compreendo-a e peço-lhe perdão. Tem cada um o seu destino, bem vê.

- Isso tem!

- O meu vai toldado de sombras, como se uma longa noite de inverno houvesse caído sobre os meus vinte e três anos.

- E vai procurar lá fora as madrugadas da sua primavera. Faltaram-lhe cá! Não lho levo a mal, nem sentirei inveja de quem tiver a fortuna de lhas restituir.

- Assim gentil, peregrina juventude cheia de luz, veja que remorso e que engano o meu, se quisesse dar realidade ao sonho pueril do nosso noivado de crianças! Podia lá dar-lhe a ventura que merece trazendo-lhe um coração que os infortúnios espedaçavam?

- Infortúnio de ambos. O meu também.

- O seu, minha encantadora criança! Chega a ser pecado falar assim! Há-de ter a imensa ventura que merece e lhe desejo com fervor de irmão. O seu noivo será o poeta dos seus encantos, alma banhada na sua luz, coração mudado em altar da sua imagem, um ditoso do mundo, sem nenhuma saudade e sem remorso pelos dias alheios ao enlevo de lhe chamar sua.

- Já escolhi... Já tenho noivo. Quando o meu companheiro de infância fôr com o seu regimento por esses caminhos fora, para longe da nossa terra, ei-de eu entrar para casa do meu noivo. Não quero outro.

- Laura, estou a ter medo de a compreender!

- Já ouvi que as noviças dos mosteiros têem um noivo, as freiras um esposo, que é Jesus.

- Oh! mas isso é uma loucura!

- Não é, não. Dizem que é noivo sem ciúmes, e por isso perdoa as mágoas e as saudades que a gente leva de outros, que nos esqueceram ou nos deixaram. Já ouvi que até se lhe pede por eles e não nos repele de si.

- Laura! - suplicou, tomando-lhe as mãos enternecidamente - isso não. Eu peço-lhe por todas as suavíssimas saudades do nosso tempo de crianças, que não vá, que se não aparte assim do mundo. Flor de casto perfume, não deve morrer na fria soledade de uma cela.

- Já o disse, Luís. Tem cada um o seu destino. O meu tem de ser este. Não posso nem quero esperar outro.

- Quere então que eu vá daqui com esse remorso torturador? Porque eu leio na tua alma, Laura - falo-te assim como há dez anos - e sinto bem que é por mim essa louca resolução. Não negues.

- É assim. E para me resignar e poder pedir a Deus por aqueles a quem mais amei, não tenho outra escolha melhor.

- Laura! - disse, beijando-lhe as mãos que tremiam, a arder em febre-Mal empregado amor, mal empregado! Ao menos uma promessa. Não faças voto , espera como simples recolhida. Hás-de esquecer-me, o teu coração sentirá saudades do mundo.

- Não, creio firmemente que não.

- Não me queres fazer esta promessa?

- Faço, Luís, porque é talvez a última coisa que me pedes. Mas, com voto ou sem êle, eu sei bem que o meu coração ficará sendo o mesmo.

Sentiram passos.

- Adeus! - soluçou baixo aquela pobre enamorada.

Apareceu a irmã.

- A despedida? Pois olhe, devia ralhar com ela, que nos quere também deixar! Ninguém lhe tira da cabeça a doidice de ir para um convento. E sem me dizer nada, escreveu a uma tia velhinha que temos num convento de Santarém, a pedir-lhe que a recebesse lá!

- Já me tinha contado essa resolução. Pedi-lhe que não fosse, insiste , mas, ao menos, consegui dela a promessa de não professar.

- Sim, prometi... Dêem licença que me retire - disse muito pálida, profundamente perturbada.

- Jesus! que tens tu?! - exclamou a irmã, indo atrás dela.

- Mal empregado amor! - repetiu Luís - Sacrificado ao outro, nem eu sei bem para que horroroso desengano! Vamos agora ao que mais custa.

Referia-se à tortura de se despedir da mãe. Mas logo, como quem reserva para esse fim o sacrifício de maior dor, foi ter com os tios.

- Então já sei que é amanhã - disse-lhe Manuel de Albuquerque.

- De madrugada.

- Horas certas - acudiu o Mar e Guerra - Queremos saber horas certas.

- Às quatro horas. Venho despedir-me, receber as suas ordens, pedir-lhes que me dêem a bênção vossa e me perdoem...

- Mau, mau! Não antecipemos. Essas coisas reservam-se para a última hora. O tio Jerónimo e eu vamos ao bota-fora.

- Um incómodo, o tio Jerónimo doente...

- Vamos na sege. Quero dizer: êle é que vai. Eu tenciono ir a cavalo. O Henrique também vai.

- De todo o coração, Luís - disse o irmão, entrando.

- Mas dá cá um abraço, por avença, meu rapaz, não vá o diabo tecê-las, que os franceses nos tomem por conspiradores e nos não consintam a despedida.

Abraçou-o. Depois o tio Jerónimo deu-lhe um abraço muito comovido.

Faziam-se fortes e todos eles tinham os olhos cheios de lágrimas.

- E até amanhã. Saiu com o irmão.

- Luís - disse-lhe Henrique no corredor - Entremos aqui na saleta. A nossa despedida é coisa à parte.

Entraram.

- Amanhã, lá fora, não nos podemos abraçar como aqui nesta casa onde nascemos e fomos felizes. Meu querido Luís! Pelo muito que te quero, pelo muitíssimo que te devo!

Abraçou-o a chorar, beijou-o. Foram para o quarto da Mãe.

- Esta despedida, Henrique, é a pior! Entraram. De joelhos diante de um oratoriozito

de marfim e prata doirada, D. Matilde soluçava umas rezas a uma pequenina imagem da Senhora das Dores,, que fora sempre a sua dilecta padroeira.

Laura estava também de joelhos, a rezar ao pé de D. Matilde.

- Minha mãe! - rouquejou Luís, indo para ela de braços estendidos.

- Filho - disse, levantando-se mal segura de si,. cravando nele o seu olhar turvado - Vais-te embora! São horas, não é assim?

- São... Venho abraçá-la e pedir-lhe que me perdoe.

- Abraçar, sim, de toda a minha alma, mas o mais não. Não tenho que te perdoar, Luís! Deus vá contigo e te abençoe. Olha, estava pedindo por ti àquela Mãe que tanto sofreu, que até lhe mataram o filho! Para que ela intercedesse por ti junto do seu Jesus. Tu bem te lembras. Foi aqui, pequenito, sentado no meu colo... de mãos postas, que eu te ensinei as primeiras orações. Rezo-lhe e lembro-me de ti. Olha - disse, tirando debaixo do oratório uma pequenina tela a óleo, de moldura de prata - o teu retrato aos oito anos... Do tempo em que o teu coração era só para mim... Este fica... a sorrir-me... como dantes.

Não podia dizer mais nada. Abraçou-o arquejante, beijou-o num fervor doido como se estivesse já sentindo as saudades que havia de ter dele, como se fosse despedida para sempre.

- Minha adorada Mãe!

- Vai... filho! - soluçou num confrangimento de alma.

Luís beijou-lhe as mãos de joelhos. Depois beijou os cabelos de Laura, e saiu a soluçar, amparado pelo irmão.

Foi ainda despedir-se de Branca.

Na escada os velhos criados choravam por aquele juvenil capitão que partia para longe de Portugal.

- Até amanhã, Henrique - disse sumidamente.

Montou a cavalo e meteu de galope a caminho do quartel.

Pelas 11 horas da noite fèz-se o toque de carregar bagagens.

Pôs-se tudo a pé. No quartel havia muitos que não tinham dormido.

Bruxoleavam umas luzitas de azeite nas casernas, onde os soldados tinham ficado como sardinhas em canastra.

Dava um aspecto entristecedor aquela azáfama de carregar bagagens à luz vermelha dos archotes.

à meia-noite os grandes carros que tinham vindo de Santarém saíam o portão, ajoujados de arcas e baús, puxados por muares possantes.

Estavam já em volta do quartel as famílias de alguns soldados da capital e das povoações vizinhas. Mulheres, velhos, crianças, em grande número.

Foi um choro mortificador o das mulheres, assim que os carros começaram a sair lentamente do portão do quartel.

Logo ali umas cruciantes despedidas com os da guarda das bagagens.

Mães e irmãs, noivas e esposas aquelas mulheres. E eles iam para a terra dos pedreiros livres, dos jacobinos, que tinham degolado o rei e a rainha, e agora, com o tal Imperador de quem o Príncipe Real fugira e mais os do governo, esbandalhavam as outras nações, venciam todos os exércitos, punham o mundo doido de pavor! Até se dizia que os outros imperadores e reis não passavam de caudatários e archeiros daquele vencedor, cujo nome a gente rústica nem sabia dizer bem.

Soldados de tamanha soberba aqueles do temido Corso, que nem tiravam as barretinas e os capacetes diante de Deus nas igrejas, e até se contava que era das bandeiras tomadas nas batalhas que eles tinham feito o tapete do trono imperial!

Era esta a lenda napoleónica, assim vagamente formulada pela alma do povo analfabeto e ingénuo.

Afinal, os resplendores de uma grande verdade histórica por entre as neblinas da rusticidade plebeia.

E aqui estava porque essas mulheres, mães, esposas, irmãs e noivas daqueles soldados, choram com mais cruciadora mágoa, naquela hora de apartamento.

Como se eles fossem para o fim do mundo, para um país de onde nunca mais se voltasse, escravos de um poder sobrenatural que lhes causava pavor.

Mas, como nas antigas expedições para o descobrimento dos mares ou para as batalhas mal agouradas, também ali esfuziam, por entre notas do terror crendeiro, outras, deliciosas, do espírito aventuroso da nossa raça.

Uma velhinha trouxera ao filho, cabo da guarda das bagagens, a viola que êle não podia ir buscar. Deu-lha para a mão em lágrimas.

- Era a tua companheira nas horas em que tinhas alegria! Deus Nosso Senhor te dê muitas horas para a poderes tocar lá por essas terras que nem a gente sabe onde são!

- Há-de dar - volveu-lhe o rapazola a fazer-se forte -, Esta canta e chora consoante a alma com que a gente lhe pega. E eu apanhar-me aí por esses caminhos fora, e ela a cantar-me nas mãos. Mãe, hei-de botar uma cantiga à sua reveria. Aquela da velhinha que tinha os olhos da côr dos círios.

E a velhota ao lado dele, a abraçá-lo, sem poder falar, a querer sorrir do gracejo e a boca a torcer-se-lhe numa tremura de choro.

- O meu sargento, isto pró lundum chorado é de fazer tremelicar as pedras - disse o cabo a rufar com os dedos no tampo da viola - Macacos me mordam se o tal Nampoleão me ouvir e não se puser logo a saracotear as ancas, que nem um mulato da Baía, inda que com o seu manto imperial.

Risota dos soldados que ladeavam os dois carros mais próximos.

- Eh! lá! - repreendeu o sargento - Isto de ir na guarda das bagagens não é o mesmo que ir à romaria do senhor da Serra. Não quero aqui chacotas.

O sargento abespinhara-se com aquela irreverência de figurar Napoleão a saracotear um lundum como qualquer mulato da Baía, e, de mais a mais, de manto aos ombros.

Mas o doidivanas do cabo foi replicando por entre dentes:

- A chacota havemos de nós de ensinar a dançar às raparigas de França.

Um pouco atrás daquele grupo de carros, uma rapariga donairosa dava ao namorado, soldado de vinte anos, a guitarra que êle lhe deixara ficar em casa.

- Aninhas, havemos de chorar os dois, eu e a guitarra.

E foi escondê-la cuidadosamente entre umas esteiras que iam em cima da bagagem do seu carro, de modo que se lhe não quebrasse.

Seguia a velha tradição portuguesa. Os marinheiros do Gama tangiam músicas e a guitarra foi sempre instrumento dilecto de portugueses, que lhes ficou talvez na herança dos mouros.

Cronistas de Castela e blagueurs de França inventaram que na batalha do Toro a ala dos nossos que foi vencida deixara quatorze mil guitarras no campo.

Escreveram também que em Alcácer-Quibir se encontraram milhares de guitarras, entre o despojo do nosso trágico desastre.

- Aquela, Aninhas, tantas vezes gemeu a acompanhar a tua linda voz, que por isso eu a quero levar ao pé de mim. Há-de parecer-me lá que ela ainda geme contigo.

E não era só aquela que ia nas bagagens. Outras lá iam sonegadas.

Os carros iam descendo aos solavancos pela calçada abaixo.

Às duas horas todos os tambores do regimento tocavam a alvorada. Toque melancólico e inútil naquela conjuntura. Estavam todos a pé.

Tinha afluído mais gente nas imediações do Quartel.

Chegaram algumas seges. Traziam pessoas da família dos oficiais ou amigos seus de mais intimidade.

Uma grande berlinda brasonada subia a calçada lentamente e parou a pequena distância do quartel. Era seguida por três homens a cavalo, um deles atrás dos outros, afastado, evidentemente era um criado.

Apearam-se os dois da frente, o criado apeou-se também e ficou com os cavalos à mão.

São nossos conhecidos. È Manuel de Albuquerque e Henrique de Castro.

Falaram para dentro da berlinda e ajudaram a apear um velho que vestia a farda de oficial de marinha. Era o capitão de mar-e-guerra Jerónimo de Castro.

Os três foram para o portão do quartel e pediram a um sargento que os fosse anunciar ao capitão de granadeiros Luís de Castro.

Via-se do portão um formigueiro de soldados na parada.

Estavam a distribuir-lhes o rancho da manhã.

Luís não se demorou.

- Podem entrar. O coronel autorizou que entrassem. Que cedo chegaram! Podemos entrar ali para um quarto e estaremos à nossa vontade. O regimento não começa a formar-se senão daqui a uma hora.

Os dois velhos e Henrique entreolharam-se como a consultar-se.

- Pois sim. Vamos lá.

- O incómodo que tiveram por minha causa.

- Nem se fala em tal - disse o Mar e Guerra.

- Luís, houve um esquecimento que eu tenho de explicar - disse-lhe Henrique.

- Um esquecimento?

- Sim. Ontem de tarde o tonto do Sebastião trouxe uma carta do correio para ti.

- Uma carta para mim! - exclamou, alvoroçado.

- De França. E como era para ti e tu não estavas, guardou-a para ta entregar quando fosses a casa , mas aquela cabeça de velho já não regula bem, e esqueceu-se. Aqui a tens.

- De França! Não sei de quem seja. Dão-me licença?

- Pois não - disse o Mar e Guerra -, à tua vontade.

Luís abriu-a comovidamente. Procurou a assinatura. Tinha este singelo nome que valia para êle um poema de saudades e de sonhos - Maria. Era datada de Baiona.

Leu-a para si com uma comoção que os tios e o irmão lhe estavam percebendo claramente.

Dizia assim a carta de Maria Pulaski:

 

         «Luís,

«Deves ter sabido que fugimos e, por uma carta minha que teu irmão se incumbiu de te entregar, terás avaliado com que dor de alma deixei esse país, o teu, a terra natal dos meus amores, a pátria do meu coração, se alguma pátria pode ter esta pobre filha da Polónia morta.

«Prometi que me afastaria de ti. Disseram-me que podia ser a tua desgraça, o teu remorso, a vergonha dos teus, talvez um desgosto de morte para tua Mãe.

«Foi uma loucura minha! O corpo apartou-se, a alma voa para ti!

«Que tua Mãe me perdoe, que todos os teus tenham dó de mim! Não podem prejudicar-te, creio eu, estes amores assim de longe sonhados, até que a morte se lembre de mim. Ao menos a piedade de me não levarem a mal que eu te escreva. E nem tu imaginas o sobressalto com que o faço agora.

«É madrugada, meu Pai dorme, levantei-me para te escrever. A minha querida Ana vigia que êle não acorde. Meu pai agora tem menos receio dela e deixa-a sair livremente. Logo que seja de manhã, a minha segunda mãe irá levar esta carta ao correio. Não te falo agora do que sofri e chorei por esses ásperos caminhos de Espanha. Será noutra carta, se puder. E só assim! Porque eu nunca mais tornarei a ver-te!

«Julguei que o meu coração poderia com o sacrifício completo que prometi, e não pode, Luís! Não pode!

«Está rompendo a manhã, entra o clarão do dia pelas vidraças deste meu quarto, numa linda casa dos arrabaldes de Baiona. Estou a ouvir um ruído enorme de tambores. Tem passado por aqui muita tropa para a Espanha. Só a ti te não verei passar nunca! Nunca!.Ana contou-me que estão a preparar aposentos para Napoleão e que êle irá a Madride e Lisboa, segundo uns boatos que por aqui se espalharam. A Lisboa! Que saudade me faz pensar que alguém vai, sem eu ir também! Perdoa-me estas loucuras! Se é por elas que eu vivo! Não sei se meu Pai quererá continuar aqui. Receio bem que não, para maior amargura minha!

«Mas, seja como fôr, manda-me a esmola de uma carta, de duas palavras que seja, duas palavras de saudade, de dó, ou não terei coragem para viver. Escreve-me com o sobrescrito para Ana Beauchamp. Ela a irá procurar ao correio. A Beauchamp veio dizer-me agora que meu Pai se está a levantar.

«Adeus! Umas palavras de piedade para mim, que tu escrevas,. Luís, e dar-me-ás a ventura maior a que eu posso agora aspirar.»

       Maria,

 

  1. E.

«Esqueceu-me dizer-te que o odioso russo ficou ainda em Lisboa doente. Talvez o saibas já. Receio que venha aqui ter conosco! Ana desconfia que meu Pai parou aqui para o esperar. Acautela-te desse homem vingativo.»

 

Luís dobrou a carta lentamente.

- Uma surpresa! - disse alto, voltando-se para o irmão -, é da filha do polaco. Estão em França. A mesma alma que eu sempre admirei, a mesma adorável mulher que eu não posso esquecer! Não digas isto a nossa Mãe. Faço-lhes pedido idêntico, meus caros tios.

- Fica descansado, mas não te deixes enfeitiçar por lá -- disse-lhe o Mar e Guerra, sorrindo -, Tua Mãe, se soubesse dessa carta, considerava-te logo um homem irremediavelmente perdido.

- Reserva-te para o amor ligeiro de certas francesas que lá tem a corte imperial - disse-lhe o tio Manuel no seu tom de artificioso sarcasmo - És um belo oficial: vinga-nos por lá das fraquezas da Condessa da Ega e outras de cá. Conquista-me fêmeas imperiais, e não te prendas. Pé de alferes à Laura Junot, que as más línguas dizem não ser nenhuma esquiva Lucrécia, asas de rastos para as manas do Corso, que, segun se cuenta, não prendem o coração a escrúpulos reais. Mas com a Paulina. acautela-te, dizem que tem tanto de linda como de volúvel. Defende-te dela. Eu ouvi já que o famoso Corso desterra sonegadamente os que se lhe fazem tolos com as manas. Mostra que és da terra de Nuno Alvares para combater e da força do Magriço para amar. Tens procuração do Exército e da Marinha. Da Marinha também. Pregunta aqui ao teu tio Jerónimo pelo idiliozinho do almirante Marquês de Nisa com certa pessoa real da corte de Nápoles.

Vieram chamar o Luís. O chefe do 1.o batalhão, Cândido José Xavier, precisava falar-lhe, antes da formatura do regimento.

- Vou já - disse ao sargento.

- Agora é que é de vez o abraço da despedida - rouquejou o intrépido mutilado de Trípolis, indo para êle comovidamente.

- Hei-de lembrar-me sempre das suas gloriosas tradições de bravura. E das suas, tio Manuel - acrescentou, levantando os braços para êle.

- Vá lá - acudiu o valente da Montanha Negra - mas olha que eu ainda reservo para o caminho o meu último abraço. Eu e o Henrique havemos de acompanhar o regimento até fora da cidade.

Henrique aproximou-se do irmão com os olhos cheios de lágrimas.

- Quando desceres a calçada, diz adeus a umas pessoas que ficaram esperando.

- Quem?!

- A Mãe, minha mulher e a minha cunhada.

- Vieram cá a esta hora incómoda? Mas vou eu vê-las, antes que o regimento forme.

- Não. Esperam que tu passes. Vieram na berlinda grande.

- A pobre Laura também! - murmurou, compassivo.

- Também. Olha, aqui tens isto que a Mãe mandou entregar-te - disse baixo, entregando-lhe um pacotezito - A Mãe soube que os nossos oficiais andavam mal pagos e entendeu que levavas pouco dinheiro para viveres lá fora conforme a tua condição. São notas do Banco de França.

- Beija-lhe as mãos por mim - respondeu-lhe, guardando-as.

Eram quatrocentos napoleões de quarenta francos(1) que o irmão tinha obtido na véspera por troca de uma porção de papel moeda com o ágio exorbitante de trinta por cento e pela venda de um diamante grande do Brasil, ainda em bruto, que D. Maria I dera de presente a D. Matilde.

Os tambores tocavam a deitar correias. Era preciso sair.

À luz, ainda indecisa, daquela triste e opressiva madrugada, o regimento formou silenciosamente, em coluna cerrada de companhias, na parada do quartel. Nem lá podia caber de outro modo com os seus dois batalhões de grande efectivo.

Tinha chegado um batalhão de infantaria francesa

 

*1. Havia também napoleões de vinte e de cinco francos. Por decreto de 17 de Março de 1808 estabelecera Junot a relação de valor da moeda francesa e espanhola com a de Portugal, para assim ser computada na contribuição extraordinária dos quarenta milhões de cruzados. Neste decreto se dava ao napoleão de quarenta francos o valor de 6$400 réis.

 

para tomar conta do quartel. A guarda portuguesa fôra rendida pelos franceses e encorporara-se no regimento.

Defronte do portão e pela calçada abaixo uns grupos de famílias entristecidas dos que partiam, ou de madrugadores curiosos que esperavam a saída do regimento.

Ao pé da berlinda e já a cavalo, Manuel de Albuquerque e Henrique de Castro esperavam.

De súbito, ouviu-se um intenso tropel de cavalos do lado de cima da calçada. Era um esquadrão de dragões que chegava a galope do lado de Sete Rios e parava no largo da Ajuda.

Em baixo outro esquadrão passou a galope, direito à praça de Belém.

- Andoche tem medo que a nossa gente se revolte e tomou precauções - observou Manuel de Albuquerque para o sobrinho.

- Há-de revoltar-se tanto como os mil e duzentos espanhóis que Junot mandou retirar para Lisboa e vão desarmar e prender.(1)

A sentinela francesa bradou às armas. Uma guarda numerosa formou de fileiras abertas ao longo da fachada do quartel. Num propósito de excepção, porque só ao nascer do sol era praxe içar as bandeiras, a do império foi içada no mastro do portão.

A guarda apresentou-lhe armas, rufaram os tambores, e quando aquele pavilhão estrangeiro subiu ao tope do mastro, ao cimo e ao cabo da calçada os clarins dos esquadrões

 

*1. Referência aos mil e duzentos que foram retirados de várias guarnições próximas da capital e haviam chegado em 25 de Março. Dias antes tinham entrado em Lisboa outras tropas espanholas que estavam em Elvas. Kellermann mandou-as internar. Pois estas é que facilmente se podiam revoltar e marchar para Espanha. A guarnição francesa da praça era pequena e a fronteira ficava a três léguas. Todos estes espanhóis foram depois desarmados e aprisionados por ordem de Junot.

 

quebraram a modorra daquele amanhecer com as suas vibrações triunfais.

Sons roucos, ásperos, de muitas caixas de guerra começaram a bater a marcha.

Um oficial francês subiu pela calçada a todo o galope. Era o chefe de esquadrão Artaise, a quem o ministro da guerra intruso, mr. Lhuit, encarregara de acompanhar aquele regimento e os outros organizados na Beira.

Defronte do paço de Belém tinham ficado a esperar o regimento o marechal-de-campo Carcome Lobo e o seu ajudante-de-campo.

O estado-maior da Legião, do qual Pamplona era o chefe, iria depois reunir-se às tropas nas proximidades da fronteira. Alorna estava com licença no Alentejo e Gomes Freire obtivera concessão idêntica, para tratar de negócios de sua casa.

O regimento saía do quartel. Houve logo um alarido de choro das mulheres.

Vendo passar a banda dos tambores, rapazes imberbes muitos deles, uma velhinha soluçou :

- Para que as mães criam os filhos! Deus sabe quantos poderão voltar!

- Quantos que nunca mais voltam! - resmungou um antigo archeiro do paço - E se fosse para defender a nossa terra, vá, com seiscentos demónios!

A berlinda estava muito encostada a um muro, para baixo do quartel, as muares, seguras à mão, arrebitavam as orelhas e tinham extremeções de susto com o ruído dos tambores.

Dentro, D. Matilde soluçava, Laura chorava silenciosamente, abraçada à irmã. Aquele rouquejar seco dos tambores entrava-lhes no coração mais lugubremente que um dobre de finados.

O Mar e Guerra ainda não tinha entrado para a berlinda.

- Agora - disse Manuel de Albuquerque, debruçando-se do cavalo -, Aí vem o Luís com os seus granadeiros.

  1. Matilde inclinou-se para fora. A companhia de granadeiros passava.

- Filho, Deus seja contigo!

De dentro da berlinda veio um ai como gemido em que uma alma de mulher se houvesse despedaçado. Era da pobre Laura.

  1. Matilde abraçou-se nela, a beijá-la.

Os granadeiros tinham passado. Quando chegaram as últimas filas do primeiro batalhão, Manuel de Albuquerque notou ao sobrinho tristemente :

- Não levam a bandeira. Era de esperar.

Iam já fora da cidade. O coronel mandara fazer o toque de à vontade.

O sol rompia brilhante, flamejavam já as lombadas dos montes, os trigais verdes atapetavam as várzeas, bandos de andorinhas saltitavam pelos muros e esgalhos de árvores, agitando no ar a sua asa esguia e cetinosa.

Estavam cobertos de flores os pessegueiros. Chiavam os carros pelos caminhos das encostas. Numa volta da estrada, saloias de saias multicores cantavam para a banda da fonte, num lugarejo que se via do caminho. Pelos cabeços as velas brancas dos moinhos pareciam asas de grandes pombas presas a agitarem-se na aragem fresca da manhã. O sol doirava já o viso das montanhas e a terra fumegava aos primeiros fulgores daquela luz. Em toda a paisagem um prenúncio emocionante da primavera, a alegria doce e tranquila dos campos. Lisboa ficava já muito para trás, oculta pelo dorso das montanhas.

Foi um momento de amargurada saudade no coração daqueles soldados, saudade feita do conjunto de todas as santas e adoráveis reminiscências. Quantos a recordar a aldeia distante, manhãs como aquela, sonhadas na infância? Quantos a lembrar, de olhos rasos de água, amores que talvez iam morrer para sempre?

Deixar este lindo país do sol, e quem sabia lá para voltar quando ou se para nunca mais voltar!

Os oficiais, de espadas embainhadas, conversavam ao lado das suas companhias, os soldados, sem perderem a formatura, iam falando baixo, as espingardas dependuradas no ombro em bandoleira ou atravessadas sobre as mochilas.

À altura da companhia de granadeiros, Luís, o irmão e o tio Manuel iam conversando. O criado ficara para trás com os cavalos à mão. Na volta do caminho o bando das raparigas da fonte correu para os ver passar.

- Coitadinhos! Dizem que vão pró cabo do mundo!

- Olha-me para aquelas pombas sem asas - disse um cabo, apontando as raparigas.

- Bons palminhos de cara!

- Pois olhai, camaradas, já sei onde hei-de vir escolher noivas, se o tal Nanpoleão não mandar que eu deixe por lá os ossos - disse um granadeiro, o folião da companhia - Estou já a bispar daqui a minha granadeira.

De olhos rasos de água, as raparigas sorriam do gracejo e voltaram para a fonte cantando na toada da nossa música popular :

 

Não quero noivo soldado Nem com soldados amores, Abalam, deixam as noivas, Marchando atrás dos tambores.

 

À porta de um casebre, cingido à estrada, um rachador de lenha, cabeça branca de velho, endireitou-se, encostou o machado ao tronco de uma velha oliveira derrubada e saudou os soldados.

- Boa fortuna, rapaziada. Eu já sei como elas mordem. Também andei por terras de Espanha a comer o pão que o diabo amassou.

- Agora, Luís, vamos ao abraço final - disse Manuel de Albuquerque.

Apertou-o nos braços enternecidamente.

- Hei de mandar-te notícias de cá.

- Tio, será para mim um consolo imenso.

- Luís, até à volta - disse-lhe o irmão, num soluço estrangulado.

- Capitão, - voltou o tio Manuel - faze lá que esta boa gente dê boa conta de si, para que esses soberbões estrangeiros nos não tenham na conta de poltranagem miserável. Por cá, assim que isto se possa mexer, eu te juro que não hei-de ficar à braseira a contar histórias. Eu ainda creio que o sangue da nossa gente há-de cumprir o seu dever.

- Tio, também eu.

- Vou daqui com mágoa de não ver no teu regimento alguma coisa que lá fora vos lembrasse Portugal, e vos desse maior alento.

- A bandeira?

- Sim.

- Tio, há-de sonhá-la a nossa alma, se houvermos de entrar em combate. Sonhá-la como se fosse ondeando por cima das nossas cabeças, a repetir o murmúrio das orações de nossas mães. E nós, de olhos cerrados para as águias doiradas de Napoleão, a vê-la só a ela, bandeira ideal do regimento, a gritar por ela, dentro do coração, quando os outros atroarem o campo de batalha com o nome do seu Imperador e com as glórias da sua França.

- Bravo, meu rapaz! Assim é que é. Adeus! Adeus!

- Até um dia, meu querido Luís! - disse-lhe o irmão com os olhos afogados de lágrimas.

Luís ficara atrasado. Correu para a frente da sua companhia.

Uma légua adiante, certo soldado novo, que fora moço de cego e improvisador de cantigas por feiras e arraiais, foi tirar de um carro pequeno, dos que iam atrás do regimento, a sua guitarra de outros tempos, ali sonegadamente arrumada.

- Rapazes, vamos lá a deitar uma cantiga a essa grande cidade que já se perdeu de vista.

E foi por ali fora a cantar em versos de improviso as saudades daquela terra linda que deixavam, numa triste música dolente como um ai, como um soluço, como a amargura de um noivo que se ausenta.

 

         Ódio que revive.

Ao 1.o regimento da Legião, que vimos partir, seguira-se logo o 2.o De Coimbra, onde se organizara, o 3.o regimento havia já partido para Almeida. Ia, portanto, em marcha toda a infantaria do comando de Carcome Lobo.

Com o 4.o de Setúbal, o 6.o de Elvas e o batalhão de caçadores de Estremoz (constituído por soldados da antiga Legião chamada de Alorna) se formava a divisão do marechal-de-campo João de Brito Mousinho. Esta divisão do Alentejo partiu incompletamente organizada, oficiais e soldados numa deplorável mescla de velhos e novos uniformes, uns com os chapéus tricórnios e as casacas do velho padrão, outros com as barretinas e as fardas curtas do plano de uniforme de 1806. Não tinha havido tempo para mais. Napoleão exigia a marcha imediata, de Espanha chegavam notícias inquietadoras, e Junot não descansava enquanto não visse para além da fronteira aqueles restos do exército de Portugal, oito a nove mil homens armados, que podiam amargurar-lhe a fácil conquista, se os deixasse concentrar em território português e um chefe prestigioso os fizesse contramarchar sobre Lisboa.

Aqui está porque se evitou a reunião de todas aquelas tropas em Portugal e tão facilmente, e porventura com grande aprazimento de Junot, se concedeu licença para se demorarem no país ao primeiro e segundo comandante da Legião, Alorna e Gomes Freire, os generais de mais valia e de maior prestígio que tinha então Portugal.

O 1.o regimento de cavalaria, o do velho coronel Aguiar, já tinha marchado de Salvaterra, como sabemos. O do comando do Marquês de Loulé, constituído pela cavalaria do Alentejo, estava em preparativos de marcha. Um outro, que principiara a organizar-se na Luz sob o comando do coronel Póvoas, não chegou a completar-se.

É de notar que iam em todos os regimentos representantes das mais ilustres famílias da nobreza.

E assim, descontando os fidalgos que tinham saído para França em deputação ao Imperador e os foragidos no Brasil, poucos ficavam em Portugal da primeira nobreza da corte.

Além dos que já designámos nos quadros da Legião, havia o Marquês de Alvito, ajudante-de-campo do general em chefe, o visconde de Asseca, ajudante de Gomes Freire, o Conde de Sabugal, major do 1.o de cavalaria, um irmão do Conde de Resende, chefe do 1.o esquadrão: comandava um esquadrão ligeiro um representante da casa Sabugosa, o coronel Saldanha e Albuquerque, de infantaria 1, representava a casa do Conde da Ega.

O Marquês de Tancos fora nomeado ajudante-de-campo do Marquês de Alorna, porém evadiu-se para Inglaterra e foi substituído, mas ia um irmão dele no quartel-general.

E sem título e sem dom, desde subalternos, muitos outros que seria fastidioso enumerar aqui.

As tropas da 1.a divisão entraram em Espanha, por Almeida, nos primeiros dias de Abril.

O Pamplona, chefe do estado-maior-general, saiu de Almeida com o pessoal do quartel-general em

12 de Abril. Nem o Marquês de Alorna, nem Gomes Freire se tinham ainda juntado à Legião.

Logo na fronteira souberam notícias graves das coisas de Espanha.

Alorna foi juntar-se ao seu quartel-general no dia

13 de Abril, em Ciudad-Rodrigo. Os regimentos já tinham passado ali para Salamanca. Gomes Freire obtivera prorrogação de licença e continuava em Aldeia Galega. Dizia-se que entraria em Espanha com o regimento do Marquês de Loulé, cuja organização se ultimava em Évora, apressadamente.

A violência da marcha estropeara centenas de soldados, que ficaram para trás, mas foi a deserção o que mais desfalcou as forças da Legião. O 3.o de infantaria perdera metade do seu efectivo, segundo a afirmação do major Castro Pereira.

Dos estropeados, para cima de duzentos se apresentaram mais tarde a Gomes Freire, conforme o testemunho de Teotónio Banha.(1)

As tropas portuguesas estavam acantonadas nos arrabaldes de Salamanca. A 16 chegara o quartel-general. Parece que se propunham completar ali as deficiências orgânicas da Legião.

 

*1. Segundo Teotónio Banha, um voluntário em serviço no quartel-general do glorioso herói de Oczakow, Gomes Freire, só saiu nos fins de Abril, mas o regimento do Marquês de Loulé partira antes, por ter recebido ordem de Junot para se meter a marchas forçadas na direcção de Burgos. (Vide Apontamentos para a História da Legião Portuguesa, etc, pág. 14).

 

Luís de Castro fora aquartelado com os oficiais do seu batalhão numa excelente casa de campo de um fidalgo salamanquino, a quem os seus concidadãos tinham na conta de afrancesado, por ser caloroso partidário de Napoleão.

Logo na primeira noite do aboletamento o moço capitão escreveu umas poucas de cartas para Lisboa e uma para França. Esta, por sinal, a primeira e a mais longa. Cheia de promessas, irradiando sonhos, em palavras febris de alucinado amor. Era para Maria Pulaski.

- Agora oxalá que Napolão me não mate esta esperança, obrigando-nos a ficar por estas terras de Espanha, ou que alguma bala espanhola me não leve antes que eu a torne a ver.

Estas palavras traduziam a impressão que lhe deixara uma certa efervescência de ânimos na cidade. Os boatos chegados de Madride tinham agitado a cidade, bem que viessem confusos, ainda sem pormenores e uns aos outros parecessem anular-se por inverosímeis como quási sempre sucede com as informações colhidas nos dizeres anónimos das multidões.

Para Lisboa contava êle com um correio relativamente seguro, porém, para França, não sabia ainda até que ponto podia contar com os serviços da mala-posta e das comunicações organizadas pelos franceses.

Mas D. José Martinez del Castilo, o fidalgo salamanquino, seu hospedeiro, prometera vir à quinta conversar com os oficiais portugueses e então lhe pediria informações àcêrca do melhor modo de expedir a carta para Baiona.

Como a filha do polaco recomendara, a carta estava sobrescritada para Ana Beauchamp.

Efectivamente, no dia seguinte, 17, D. José foi à quinta visitar os seus hóspedes e com eles se demorou, conversando a respeito das glórias de Napoleão e das condições políticas das duas nações da Península.

- É homem a quem já ninguém pode fazer sombras - dizia o espanhol calorosamente - Tem vencido mais batalhas do que de pêlos tem ainda este velho leão de Castela, que Manuel Godoy, Carlos IV e Maria Luísa fizeram mulo de cadeirinha para todos três.

Os oficiais portugueses sabiam já que D. José era mal visto dos seus patrícios por aqueles entusiasmos napoleónicos, mas sentiram uma grande impressão de estranheza ouvindo falar assim, desdenhosamente, das cousas de Espanha. Na Legião também havia admiradores entusiásticos do homem fenomenal que assombrava a Europa, eram, porém, poucos e esses mesmos não seriam capazes daquele escárnio pelas humilhações do seu país.

- Com tal gente sem pudor e sem vergonha, uns que fogem e outros que se cobrem de ridículo e seguram a coroa com o que o diabo levanta o capuz, o melhor que as duas nações tèem de fazer é deixar que lhes sirva de tutor aquele espantoso homem.

- Tinham cousa mais digna a fazer, mas não vale a pena dizê-lo - objectou-lhe Luís de Castro - Admiro muito Napoleão, mas quero muito mais ao meu país.

- Mas no vosso Portugal tenho ouvido que também há partidários do glorioso Imperador.

- Alguns, por vergonha e desgraça nossa! E digo assim, porque uma cousa é admirar os prodígios dum general, a quem nenhum outro se iguala desde César, e outra cousa, muito diversa, é ser partidário do seu predomínio político.

- Apoiado - disseram os oficiais.

- Pois em Espanha - retorquiu D. José - eram quási todos seus partidários.

- Bem sei, mas em Espanha o caso era outro. Eram partidários de um aliado que supunham sincero, e esperavam que as baionetas de Austerlitz e de Friedland lhes dessem o que em duas grandes crises da história peninsular não tinham podido conseguir. O tratado de Fontainebleau estonteava-os. Sobre o Portugal que reputavam morto a águia napoleónica segurava para si um quinhão do espólio, mas punha outro, avultado, sob as garras do velho leão de Castela, transmudado em mulo dos três, conforme o vosso dizer pitoresco, sr. D. José. A Espanha supunha-se engrandecida.

- Eu sei. Um reinozinho para a filha do nosso pobre Carlos IV, a espoliada rainhazita da Etrúria, e um principado para o querido Manuel, esse Godoy, o chulo da Rainha durázia. Esse tratado foi broma que nunca me entusiasmou. Napoleão desfrutava os tolos que nos governavam, e fêz muito bem.

-Queria aberto o caminho dos Pirenéus. Abriu-lho Godoy, válido e tutor do rei. Em Fontainebleau a águia levantou consigo o valido ambicioso, para o esborrachar de alto.

- Não precisa de esborrachá-lo - acudiu D. José - Os paisanecos de Aranjuez já deram com êle em terra.

- Quê? Godoy perdeu a confiança do rei?

- Essa, não, essa não a perderá nunca. Será sempre o querido dos dois, do velho a quem atraiçoa e da rainha a quem finge amar. Não sabem o que sucedeu em Aranjuez?

- Temos ouvido uns boatos confusos, contraditórios, a respeito de acontecimentos graves na corte.

- Pois eu tenho informações seguras de Madride, e ainda esta manhã recebi carta de alguém que está muito nos segredos da corte e conhece ou compreende o projecto de Napoleão. Se os interessa, resumo-lhes o que sei.

- Não pode deixar de interessar-nos - disse Cândido José Xavier.

- A nossa situação, o nosso destino, podem depender muito desses acontecimentos - justificou Luís de Castro.

- É provável que já tenham notícia das escandalosas bulhas e intrigas entre o Príncipe das Astúrias e D. Manuel Godoy, apoiado por Carlos IV e pela rainha Maria Luísa.

- Ouvimos falar disso em Lisboa, vagamente. A polícia de Junot sonegava todas as informações inquietadoras que iam de Espanha. Mas sempre algumas passavam. Dizia-se até que, a pretexto de forçar Junot a rebater algum desembarque de ingleses, Napoleão mandara entrar em Espanha uma parte das suas tropas.

- É verdade. Informaram-me que estavam já para cá dos Pirenéus mais de oitenta mil soldados franceses. Eu acreditei e acredito numa tentativa de desembarque dos ingleses, que têem alguns milhares de soldados em Gibraltar, prontos à primeira voz, segundo me mandaram dizer.

  1. José sabia mais, mas não o quis revelar, por uns restos de pudor patriótico e para não pôr uma sombra deprimidora na figura resplandecente do seu ídolo político.

O receio de um desembarque dos ingleses era apenas um embuste para coonestar a invasão militar da Espanha. As divisões e os corpos do exército passavam os Pirenéus, sem nenhum aviso prévio ao governo espanhol! As praças espanholas eram ocupadas de surpresa. Da primeira avançada, Dupont chegara a Valhadolide, Moncey entrara na Biscaia, Duhesme invadira a Catalunha. Depois, ocupadas de surpresa Figueras, Barcelona, Vitória, entraram novas tropas em Espanha e, com os franceses, auxiliares da Itália, da Alemanha, da Polónia, e parte da própria guarda imperial sob o comando do marechal Bessières.

Mais de oitenta mil homens, a quem foi dado por comandante em chefe o mais espaventoso, o mais teatralmente brilhante dos marechais do Império, esse impetuoso sabreur que se chamava Joaquim Murat Pareceu a Bonaparte que este marechal, bravo e espectaculoso, era o mais próprio para se impor como um deslumbramento à sonhadora vaidade da gente espanhola. Marido de uma irmã do Imperador, Grão-Duque de Berg, devia ter uma autoridade especial para a corte de Espanha.

Nomeado Lugar-Tenente de Napoleão, Murat marchou sobre Madride, e assim que os acontecimentos de Aranjuez lhe deram pretexto de levar até ao coração da Espanha aquela conquista pacífica, de espaventosos fingimentos, lá entrou com a sua escolta de mamelucos da guarda, feros cavaleiros tisnados pelo sol africano, com os seus turbantes de penacho branco e os seus longos sabres, recurvados como um crescente. Madride viu pasmada aquela grandeza que lhe entrava pelas portas dentro, como o tratado de 27 de Novembro de 1807 feito em farrapos. A Espanha ajudara a perder Portugal e perdia-se agora, a estrebuchar nas malhas daquela traiçoeira rede armada em Fontainebleau.

  1. José Martinez sabia tudo isto, mas teve pejo de o dizer àqueles estrangeiros.

- O marechal Murat - informou - está em Madride desde 23 de Março com as suas tropas auxiliares, certamente para dar outro rumo ao nosso destino e pôr cobro àquelas vergonhas da corte.

- Compreendo, sr. D. José. Pagam-se desse modo os crimes históricos - disse-lhe brandamente Luís de Castro - Portugal foi conquistado numa campanha de marchas, por um exército de amigos. Agora temos a conquista da Espanha numa campanha de teatro, por exércitos de aliados seus! E numa e noutra sem se disparar um tiro! Velhas e gloriosas nações da Península, ao que elas chegaram!

- Mas eu sei que o plano de Napoleão é dar à Espanha reformas que a tornem mais moderna, e pô-la a par da França com um rei mais digno das tradições espanholas.

- Rei da família Bonaparte, provavelmente, como o de Nápoles e o da Vestefália. Se o próprio Murat não aspirar a pôr nos seus ombros de soldado o manto de São Fernando. Pode ter essa veleidade.

- Como já ouvi que Junot tem a veleidade de supor que Napoleão lhe substituirá a barretina de hússar pela coroa dos reis portugueses.

- Talvez, sr. D. José. Veremos depois o que dizem os povos. O de cá parece que já começa a falar.

- Ora! Uns bandos de ignorantes que vão atrás dos frades e dos pescadores de águas turvas como cães de trela.

- Veremos.

- Os motins que houve em Aranjuez, na noite de 17 para 18 do mês passado, não foram contra os franceses, foram contra aquelas vergonhas do paço. E esses mesmos, provavelmente, instigados pelo príncipe Fernando, inimigo irreconciliável de Godoy. Aquilo era já escândalo de marca maior! Carlos IV a queixar-se do povo numa proclamação em que atribuía as amarguras da sua vida, cercada de perigos, a um propósito de conjuração para o destronar. O filho a atribuir aos agentes de Godoy a morte da princesa das Astúrias, e ao próprio valido, directamente, os desvarios do pai, sem dó pela sua própria honra, e as loucuras sensuais da Rainha, sem piedade dos cabelos brancos do marido! Fêz-se um processo de escândalo no Escurial, o príncipe Fernando foi preso a instigações de Godoy, mas o rei hesitava como um mentecapto, Maria Luísa arrebicava-se para fingir-se mais nova aos olhos do valido, e afinal todos três recorreram para Napoleão: O príncipe Fernando, para que lhe desse a coroa que o pai deixou infamar, Carlos IV e Maria Luísa para que os livrasse daquele desalmado filho e conspirador e amparasse com o seu poder o querido Manuel dos dois.

- Mas o valido está já em terra, como disse.

- Está. O povo soube que se preparava a fuga do rei para Cádis. Dali embarcaria para a nossa América, tal como o vosso Príncipe Regente embarcou para o Brasil. O povo soube-o, algum traidor do paço o iria prevenir, amotinou-se, revoltou-se contra a saída do rei, deu morras ao valido e assaltou-lhe o palácio, que saqueou. Godoy tinha fugido para um celeiro, escondeu-se, mas a turba, a rugir vinganças, lá foi dar com êle. Bateram-lhe, rasgaram-lhe as carnes à navalha, e tê-lo-iam morto se não fosse a intervenção das guardas reais, que o levaram para o próprio quartel. Atemorizado, vendo que o motim se não aplacava, Carlos IV exonerou Godoy de todas as honrarias e empregos e decretou-lhe o exílio. Era a fingir, era por medo. Intimamente continuava a ser o querido Manuel dos dois reais consortes. Mas não podiam tirar Godoy do quartel da guarda real porque a populaça esperava por êle. A sege que estava preparada para o levar foi feita em cavacos nas mãos da gentalha. Acabrunhado de pavor, Carlos IV resolveu abdicar na pessoa do filho, que logo em 20 foi aclamado pelo povo. Era o seu novo rei D. Fernando VII. Murat entrou em Madride em 23 e logo recebeu uma carta da Rainha a pedir-lhe protecção para o marido e para Godoy. Dois dias depois, Carlos IV mandava-lhe um protesto contra a sua própria abdicação, alegando que só a ela acedera por coacção e para evitar sanguinosos conflitos. Fernando VII foi para Madride, mas Murat não o reconheceu como rei de Espanha e apenas o tratou pelo título de Príncipe das Astúrias. Eu não presenciei isto, mas tive pessoa íntima que assistiu a estes acontecimentos e mos comunicou em duas longas cartas:

- E agora quem é o rei de Espanha e das Américas?

- Das índias, como nós dizemos desde Colombo, - rectificou D. José - O rei é quem era, o velho tutelado de Godoy, até que Napoleão decida a contenda. E tem de a decidir. Tudo menos aquilo, venha um novo rei, venha donde vier, mas que seja homem digno de governar a Espanha. Nós andamos com o rosto queimado de vergonha!

Era cada vez maior a estranheza dos oficiais portugueses por aquelas palavras de D. José, tão avessas ao sentir do povo espanhol, que tinham tido ocasião de perceber, desde Alba de Tormes até ali. Era positivamente um afrancesado, aquele salamanquino.

- E creio bem que Napoleão se vai ocupar deste conflito real, pois mandaram dizer que Fernando VII ia sair de Madride para se encontrar com o Imperador, deixando o governo do estado a uma junta presidida por seu tio D. António, um pobre velho.(1)

- Pois então, sr. D. José, parece-me que pode contar com um rei da família Bonaparte - disse Cândido José Xavier.

- Ou algum marechal aparentado com o Imperador - lembrou o outro.

- Murat, por exemplo, um Grão-Duque, um bravo, um cunhado do Imperador - disse Luís de Castro, sondando o espanhol.

- Seria indigno de governar os espanhóis - volveu logo D. José com a característica arrogância da sua raça.

- Essa entrevista leva água no bico - observou Cândido Xavier.

- Nas suas garras a águia estorcegará o morganho - comentou baixo Luís de Castro.

A conversa esmoreceu. Vieram chamar Cândido Xavier para ir falar ao Coronel.

 

*1. Vide Histoire de l'Empire, por Thiers, livros XI e XII, e Les guerres d'Espagne sous Napoleon, por Guillon.

Em 10 de Abril Fernando VII metera-se a caminho, para a sua entrevista com Napoleão.

 

Preparava-se uma revista geral da Legião.

À porta da quinta parou um oficial do quartel-general com quatro ordenanças de caçadores a cavalo. Vinha despedir-se de Cândido Xavier, seu íntimo, porque partia para Madride a receber instruções do marechal Murat.

Estava Luís de Castro a pedir informações a D. José Martinez acerca do correio para França e do meio seguro de mandar uma carta para Baiona, quando lhe vieram dizer que o procurava um sujeito vindo de Portugal. Que falava um português atrapalhado como os estrangeiros - informou o sargento que lhe trouxera o aviso.

- Estrangeiro que vem de Portugal e que me quere falar?! Bem. Vou já recebê-lo.

Quem o esperava era o médico italiano Vincenzo Farinelli.

Luís de Castro cumprimentou-o friamente, cheio de surpresa. Farinelli percebeu-o e acudiu logo:

- É natural a estranheza que lhe causo, sr. Luís de Castro. Vou fugido.

- Fugido?!

- Exactamente. Fugido para evitar alguma brutalidade ou alguma traiçoeira vingança de Miguel Platow.

- Está ainda em Lisboa?

- Estava, quatro dias antes de eu ter partido.

- Fugir porquê?...

- Porque, apesar da minha justificação na Intendência, Platow perseguia-me e movia contra mim a influência do almirante Siniavin, insistindo na calúnia com que me afrontara.

- É singular! Não percebi e não percebo ainda que interesse tenha esse homem em lhe atribuir o crime de infiel depositário!

- Como em Lisboa tive ocasião de dizer a v. s.a tem o interesse da sua alma odienta e vingativa.

- Seja. Vai para França?

- Vou, é o único recurso para a fuga. Por mar cairia em poder do cruzeiro inglês.

- Pareceu-lhe então que o russo o poderia comprometer?

- Pareceu. A Intendência da polícia está agora a cargo de um francês, um tal Lagarde, homem de cruéis instintos, que eu tive a desgraça de conhecer em Itália. Há no estado maior de Junot alguém que me odeia e Lagarde partilha desse ódio. Continuando a perseguição de Miguel Platow, as suas calúnias e as suas queixas, Lagarde tomaria conta do caso e facilmente reconheceria em mim o seu inimigo de outros tempos. Autoritário, cruel, sem nenhuns escrúpulos, Lagarde sepultar-me-ia numa prisão, sujeitando-me a todas as torturas que o seu espírito pudesse inventar. Aqui está porque eu fugi, porque eu fujo.

- E a que devo eu a sua visita?

- Depois do desagrado, quási repulsão, com que me despediu de sua casa, é perfeitamente lógica essa pregunta e essa estranheza. Peço-lhe uns instantes para me justificar. Aqui, como em Portugal, sou um estrangeiro. Em Alba de Tormes a gentalha tomou-me por francês, e assassinar-me-ia na estalagem se não fosse a piedosa intervenção de um frade. Disseram-me que já andam guerrilhas pelas montanhas, não faltarão salteadores no disfarce de guerrilheiros que se batem pela Espanha, e eu levo comigo todas as economias de largos anos de trabalho. Acolho-me por isso à protecção das tropas do seu país, e segui-las-ei para França, mas podiam suspeitar de mim, repelir-me, e aqui está porque me lembrei do sr. Luís de Castro.

- Para quê?!

- Para me conceder o simples patrocínio de dizer quem eu sou e com que intento os sigo, se alguém suspeitasse de mim.

- Médico meu conhecido de Lisboa, direi que o suponho italiano e as circunstâncias em que o conheci, eis o que eu posso e devo dizer. Quanto ao mais, limitar-me-ei a resumir o que lhe ouvi. Entretanto, como pessoas estranhas, Dr. Farinelli.

- Vejo que ainda não tive a fortuna de lhe aplacar a má vontade contra mim! Sinto que na sua consciência subsistem suspeitas.

- Assim é.

- Magoa-me essa desabrida confirmação! - disse Farinelli, enviesando para êle um olhar rancoroso -, Seja, porém, como fôr, ousei vir aqui, invocando na minha alma o nome de alguém que me deveu a vida e numa hora angustiosa me honrou com umas confidências do seu coração, admiravelmente bondoso. Esse nome é o de Maria Pulaski, e pela segunda vez o invoco em meu favor.

Apesar da sua instintiva repugnância pelo italiano, Luís de Castro enternecia-se com aquela invocação. Aquele médico, fosse embora um velhaco de quem desconfiava, salvara a vida de Maria.

Farinelli previra admiravelmente este efeito.

- Pois bem - acudiu - seremos como pessoas estranhas, mas diante de qualquer dificuldade, de qualquer perigo, podeis contar comigo, em nome de Maria Pulaski.

- Esperava-o, agradeço-lho-disse o italiano com um estranho fulgor no olhar - Um pedido ainda. Não divulgue que fujo de Lagarde e de um dos apaniguados de Junot. Os franceses dominam aqui, prender-me-iam. Os seus próprios comandantes, se o soubessem, me entregariam aos franceses, para ser conduzido a Lisboa.

- Pode ficar tranquilo, sr. Farinelli.

- E agora, queira aceitar as minhas homenagens e o voto sincero que faço pela boa fortuna dos seus amores, sr. Luís de Castro. Creia que não perco a esperança de ainda me poder justificar perante a sua consciência, quanto à calúnia de Miguel Platow, provando que não fiquei com as jóias deixadas pelo Conde de Pultuski.

- Pois se é esse o seu desejo, nenhum testemunho de maior valia que o de João Pulaski, e a esse o poderá encontrar em Baiona.

- João Pulaski em Baiona?! - repetiu Farinelli num estremeção, fazendo-se pálido.

- Perturba-se?!

- Perturbou-me essa agradável surpresa. Confesso que nem me atrevia a sonhá-la, e não sei de lance da minha vida em que me abalasse tanto uma notícia como esta de jubilosa surpresa. Ah! que então agora é que eu vou desmascarar triunfantemente esse desalmado caluniador que é Platow! Há-de ter as provas autênticas da minha honesta lealdade, sr. Luís de Castro, e eu reencontrarei o maior dos meus amigos. Em santa hora aqui vim! Eu abrirei os olhos a João Pulaski no tocante ao traidor que lhe jurou seguir a causa da Polónia e afinal aceitou o perdão do Czar sob condições que eu consegui saber por via daquele amigo meu da legação, de quem lhe falei em Lisboa.

- Quais condições?

- Sujeitar-se, por obrigação jurada perante o almirante Siniavin, a ir pedir perdão ao Czar e alistar-se como soldado raso num regimento de cossacos, a duzentas léguas da cidade onde a corte estiver residindo.

- E isso mesmo por influência do tio, como em Lisboa me deu a entender?

- Do tio, um general dos cossacos, em grande apreço na corte. Só ao fim de um ano do rude serviço de soldado poderá ser reintegrado no seu antigo posto de capitão, se a Rússia estiver em guerra e êle tiver praticado algum feito notável em defesa do império.

- Umas condições originais, essas do Czar!

- Para coonestarem aos olhos da corte o perdão daquele antigo oficial dos guardas, que matara em duelo um grão-duque, aparentado com a família imperial. Mas voltemos ao caso que mais nos interessa:

«Desiludindo João Pulaski, eu procurarei encaminhar as coisas de modo a ver realizadas as aspirações de Maria. O Conde de Pultusk honrar-se-ia, dando à filha a felicidade e talvez a vida, se lhe escolhesse para esposo aquele a quem ela ama fervorosamente.

Luís de Castro perturbou-se.

- Dever meu de reconhecimento, dever gratíssimo, hei-de empenhar-me nele com devotada insistência.

Sem poder adivinhar o refalsado propósito com que o italiano lhe falava, agora quási de todo desvanecidas as suas desconfianças a respeito daquele homem, tão alvoroçado com a ideia de se poder justificar, Luís de Castro acreditou na sinceridade do hábil comediante e respondeu quási ingenuamente, na ingenuidade em que tantas vezes caem os enamorados, a quem algum estranho lisonjeia os sonhos e os amores.

-- Sei o que quere dizer, sr. Farinelli. Nenhuma outra ventura tamanha para mim, mas, bem vê que me não seria dado aceitá-la sem regular as minhas condições de vida. Oficial preso a um juramento de obediência, soldado posto ao serviço de um estrangeiro, não posso contar comigo, não sirvo para amparo de ninguém, não sei mesmo o que será do meu país, e hesitaria em ligar a este meu incerto destino essa a quem eu quero sobre todas as coisas.

- A situação se irá aclarando. O principal está em vencer a má vontade de João Pulaski e anular-lhe a promessa que fêz a Platow.

Enfim, o essencial é chegar a França, a Baiona. E eu cá os irei seguindo até lá.

- Não sei se entraremos já em França e, a entrarmos, se iremos para Baiona.

- Oxalá que sim, para eu não ter de me afastar das tropas de Portugal.

- E olhe, se quiser escrever a João Pulaski, tem boa ocasião. Parte de tarde a mala-postal.

- Com imenso gosto. Mil agradecimentos pela indicação. Vou já escrever ao maior amigo que tinha em Lisboa. Quero preveni-lo da reviravolta de Platow e, daqui a pouco, lá estarei para lhe dar pormenores.

Despediu-se.

- Talvez seja um grande patife este amigo de João Pulaski - ficou dizendo consigo Luís de Castro - mas talvez eu fosse injusto suspeitando da sua sinceridade e dos seus escrúpulos. Não lhe perdoo a traição a Miguel Platow, mas não me sinto agora inclinado a crer que êle vá procurar o polaco, tendo sumido as jóias que devia entregar ao outro. Só se é um desaforadíssimo comediante.

Assim, perante os escrúpulos da sua consciência se ia justificando da promessa feita ao italiano.

Chegara um ajudante de Murat com ordem para os portugueses marcharem imediatamente para Valhadolide.

Parece que receavam o contacto da nossa gente com o povo espanhol, já numa grande exaltação de ânimo, embora Madrid se houvesse sujeitado pacificamente à ocupação militar de Murat, o ditador espectaculoso, todo emplumado e flamante com os seus uniformes, em grande parte inventados por êle próprio, caprichosamente.(1)

Procuravam interná-la em França com a maior rapidez possível.

A Legião saiu de Salamanca sob o comando directo de D. José Carcome Lobo. Os caçadores a cavalo de guarda avançada, a 1.a e 2.a divisão de infantaria com as bagagens ao centro, na retaguarda o regimento do velho Aguiar tinha entrado em Espanha muito antes, como já sabemos.

O quartel-general em chefe seguiu depois.

Em Valhadolide encontraram de volta o oficial que tinha ido a Madride receber instruções. Murat ordenava que marchassem para Burgos a apresentar-se ao marechal Bessières, Duque de Istria.

No dia de descanso que tiveram em Valhadolide, o número dos desertores aumentou consideràvelmente.

 

*1. Na sua história da Legião, Castro Pereira cai neste equívoco : «Gastámos cinco dias de marcha até Valhadolide, no segundo ficou o quartel-general em Torrecilla de la Ordem, onde tivemos, por uma carta, que então mesmo recebeu o general em chefe, as primeiras notícias das atrocidades cometidas pelos franceses em Madride, no dia 2 de Maio».

Não podia ser. José Garcez, oficial do quartel-general em chefe como Castro Pereira, dá a saída de Salamanca em 16 de Abril e diz que em 22 todas as nossas tropas entraram em Valhadolide.

Mas, segundo Castro Pereira, esta marcha foi de cinco dias e então a chegada a Valhadolide seria em 24.

Como quer que fosse, ainda dentro do mês de Abril, e não podiam, portanto, ter notícia dos acontecimentos de 2 de Maio.

Manifesto equívoco. Em minúcias de informação não é esta a única divergência que se encontra nos dois escritores e ainda nos apontamentos de Teotónio Banha, que especialmente se ocupou da cavalaria da Legião.

Fazendo serviço no quartel-general de Gomes Freire, o sargento Banha ainda não tinha saído de Portugal na data daqueles acontecimentos. Moço de 22 anos, o setubalense Teotónio Banha assentara praça contra vontade da família, só no intuito de seguir para França. Era um entusiasta, um deslumbrado das glórias napoleónicas.

 

Quando entraram em Burgos, os nove mil homens que tinham saído de Portugal estavam reduzidos a seis mil, segundo a revelação de Castro Pereira. Uns tinham voltado pelo caminho de Portugal, muitos se incorporaram depois nas forças espanholas. O maior número era do 3, 4 e 5 de infantaria. As deserções do 3 atribuíam-se a excessivos rigores disciplinares do coronel Pego.

A uns os moveu talvez a nostalgia da pátria, outros foram sugestionados pelas instâncias e promessas dos patriotas espanhóis, a muitos os teria resolvido a abandonar aqueles regimentos sem bandeiras o boato espalhado pelos espanhóis de que a Legião seria desarmada, mal que entrassem em França. Era natural que a fantasia dos crédulos visse no desarmamento o princípio de um duro cativeiro, como se fossem prisioneiros de guerra.(1)

Do regimento de Luís de Castro poucos tinham desertado. Nos dias de descanso que tiveram em Burgos o moço oficial viu confirmadas nos periódicos espanhóis as informações que lhe dera em Salamanca D. José Martinez. Depois outras, ainda mais graves.(2)

Dias de paradas, de jantares e festas aqueles de Burgos. Bessières passou revista aos portugueses e fêz-lhes calorosos elogios. Depois convidou os oficiais da Legião para assistirem a uma revista e manobras de oito mil homens da guarda imperial,

 

*1. Nas suas memórias e apontamentos, que o sr. Bento da França coordenou, José Garcez dizia a respeito dos soldados «tanto mais que em Espanha os tinham convencido de que seriam desarmados ao entrarem em França».

  1. Foi dois dias depois da nossa chegada a Burgos que lemos em uma gazeta espanhola as sempre memoráveis transações feitas entre Fernando VII e seu pai, e entre este último e Bonaparte, assim como a nomeação de Murat para lugar-tenente deste no governo da Espanha e índias. {História da Legião Portuguesa em França, por Castro Pereira, edição feita em Londres em 1841).

 

as mais brilhantes e soberbas tropas de Napoleão.

Mostravam aos nossos soldados as magníficas equipagens de viagem do Imperador e diziam-lhes que, de dia para dia, se esperava Napoleão para ir a Madride e Lisboa e que, provavelmente, a Legião o acompanharia a Portugal.

Num jantar em honra dos generais e do estado-maior das nossas tropas, Bessières disse umas coisas muito lisonjeiras a respeito da História de Portugal e do valor tradicional dos nossos soldados.

Por esta forma se procurava exaltar o ânimo dos oficiais e desvanecer as desconfianças dos soldados, causa primacial das deserções.

Bessières aludiu habilmente à próxima vinda do Imperador a Espanha e à sua ida a Portugal, e referiu-se muito de leve à agitação dos espanhóis. Indicou as forças de que o Imperador dispunha. Sem recear uma próxima guerra, vencidos os seus mais poderosos inimigos, a Inglaterra limitada à sua hostilidade nos mares, Napoleão podia trazer à Espanha um formidável exército, tirado dos oitocentos mil soldados franceses e cento e cinquenta mil aliados que ocupavam a Europa, desde o Vístula ao Tejo.(1)

- E nesses grandes exércitos de cerca de um milhão de homens - disse o Marechal, muito lisonjeador - irão enfileirar-se os vossos valentes portugueses. Lá temos também polacos e espanhóis, italianos e suíços, saxões e vurtemburgueses e bávaros, hanoverianos, dinamarqueses, suecos e holandeses.

- Um milhão de soldados! - notou baixo um oficial português para um colega que lhe ficava ao lado.

 

*1. Na sua Histoire de l'Empire, Thiers calcula em 800.000 franceses e 189.000 auxiliares as tropas que Napoleão tinha à sua disposição naquela época.

 

- Tirando os velhos e as crianças não tem Portugal todo igual número de homens! - observou-lhe o outro.

Passavam muitas tropas francesas para o interior da Espanha.

Um oficial de cavalaria da Guarda, que na ponte de Burgos travara conversa com Luís de Castro, por ocasião da passagem de um regimento em marcha para Madride, observou-lhe a sorrir:

- Eles mandam-nos príncipes e grandes, nós mandamos-lhes soldados. Primeiro Godoy, príncipe da Paz, depois Fernando, príncipe das Astúrias, e em fins do mês passado, o rei Carlos IV e Maria Luísa, com alguns prelados e grandes da corte. Parece que o Imperador quere mudar a corte de Espanha para Baiona.

- Junta-os lá?

- Junta. E esperam-se mais. Os príncipes pequenos, os infantes.

- Estou a prever que Napoleão quere engaiolar em Baiona a família real da Espanha. Fizeram-no juiz árbitro dos seus escândalos e vai talvez raptá-los, para sentar no trono espanhol algum dos seus parentes ou algum dos seus marechais!

- Fala-se do irmão José.

- Mas a esse o pôs êle no trono de Nápoles.

- Como em serviço de campanha - volveu-lhe casquinando - manda-o agora render por outro naquele trono. Segreda-se que irá Murat substituí-lo no trono napolitano.

- Parece-me perigoso. Os espanhóis são capazes de algum desespero patriótico, digno do seu valor e das suas altivas tradições.

- Hum! Murat tem a sua cavalaria no Bueno-Retiro, a infantaria e a artilharia acampadas em volta de Madride. Devem já estar cerca de noventa mil franceses cá dentro da Espanha. Napoleão pode cá meter facilmente mais duzentos mil.

- Não me atrevo a prever as consequências dessa luta esmagadora.

Se virem o Imperador envolvido numa guerra na Península e para cá dos Pirenéus uma boa parte dos exércitos da França, é natural que levantem cabeça hostil as nações até agora vencidas.

- Uma profecia? - preguntou, escarninho.

- Uma simples previsão de factos, dentro da lógica das paixões humanas e dos interesses políticos dos impérios vencidos. Mais nada.

Cumprimentou-o e afastou-se.

Veio ordem para os portugueses avançarem para Vitória e de lá para Tolosa e Baiona. Castro Pereira e José Garcez foram para Briviesca preparar os acantonamentos.

Chegavam a cada momento correios especiais e ajudantes-de-campo com ordens e contra-ordens de Napoleão, que já estava em Baiona desde 14 de Abril. Com a sua prodigiosa memória e umas aptidões de trabalho admiráveis, o Imperador tratava de todas as coisas do exército, descendo a espantosas minúcias! Em 22 de Abril escrevera para Bessières, dizendo-lhe que mandasse seguir as tropas portuguesas para São João de Luz e o prevenisse da sua marcha para ficar sabendo a direcção que levavam e mandar-lhes preparar aquartelamento nas melhores terras do Languedoc.(1)

O Marquês de Alorna ficou gravemente enfermo em Burgos com umas febres de mau carácter.

O primeiro regimento de infantaria acantonou-se em Briviesca. Os outros ainda não tinham saído de Burgos. Em Briviesca falava-se muito de uma caleça do serviço postal que ali passara havia dias,

 

*1. Correspondance de Napoléon I, carta n.o 13.173. Vem citada na obra de Boppe.

 

numa carreira doida. Dizia-se que vinha de Madride e levava notícias graves para Baiona.(1)

Contava-se que a caleça apenas parara ali para mudar de cavalos. Já tinham feito três mudas no caminho, mas aqueles com que chegara a Briviesca estavam extenuados e um deles caíra morto entre os varais.

Naquele dia de descanso, um belo dia de Maio, os soldados, foliões como todos os soldados, quaisquer que sejam as penas e saudades que os amargurem, foram em bandos para a praça principal e puseram-se em danças e descantes.

Os espanhóis da classe do povo também se pelam por bailados e cantares, e, apesar das notícias inquietadoras que chegavam de toda a parte, associaram-se ao folguedo. Nas mãos dos nossos legionários apareceram, como por encanto, nada menos de cinco guitarras.

Afastados daquele baile ao ar livre passeavam alguns oficiais do primeiro regimento. Entre eles, Luís de Castro.

Com o alcaide estava um antigo oficial das guardas valonas, que não largava o uniforme, apesar de ter deixado o serviço havia anos. Era um soberbo tipo de velho, com os seus ares de grão-capitão e as suas fanfarronadas de D. Quixote, como todo o bom e leal espanhol. Troçava dos soldados guitarristas. Quando o grupo de Luís de Castro passou diante dele, disse alto, no seu mais sonoro espanhol, que tomamos a liberdade de traduzir:

 

*1. As primeiras e incompletas notícias da sangrenta revolução de Madride, em 2 de Maio. Thiers diz que Napoleão teve conhecimento do facto em Baiona na tarde do dia 4.

 

- Estes soldados portuguezitos vêem do país das guitarras.

- E das caravelas de Sagres e das naus da índia

- volveu-lhe o Castro no seu mal seguro espanhol. Percebera-lhe a intenção deprimidora e parara

diante dele.

- Para batalhar não sei o que serão - continuou o espanhol, fingindo não ter percebido a réplica - mas se o Bonaparte quiser guitarras, tem homens.

- E se quiser batalhas também creio que terá homens nesses tocadores de guitarras.

- Não se pique usted - volveu-lhe o fanfarrão

- Essa tineta pela guitarra é já antiga. Sei de uma velha crónica de Castela que conta que na batalha do Toro os guerreiros do vosso rei D. Afonso V deixaram no campo quatorze mil guitarras.

- Pior sucedeu aos vossos de D. João de Castela, sr. espanhol, que deixaram os ossos em Aljubarrota.

Esta soberba réplica foi vitoriada por uma formidável explosão de riso dos oficiais portugueses.

O velho das guardas valonas empavesou-se e rugiu ferozmente, indo para Luís de Castro. Mas o alcaide conteve-lhe as fúrias, pondo-se diante dele a pedir-lhe moderação. Não era provável que o farfante acedesse e o conflito seria provável, se a chegada de um oficial francês, a todo o galope, coberto de pó, o cavalo branco cheio de espuma, não houvesse atraído todas as atenções e facilitado ao alcaide o expediente de levar consigo, a reboque, aquele irritado compatriota.

Como o oficial francês pedia esclarecimentos e ninguém lhos dava, nem o alcaide francês, Luís de Castro adiantou-se para êle e falou-lhe.

Vinha extenuado e pediu ao oficial português que lhe dissesse onde poderia repousar duas ou três horas. Castro respondeu-lhe que só havia uma estalagem decente que era onde êle estava. Tinha todos os quartos tomados, mas que punha o seu à sua disposição.

O francês aceitou, e Castro apontou-lhe a estalagem que ficava a um recanto da praça e tinha por cima da larga porta dois leões de paus doirados, símbolo heráldico da Nueva vieja Castilla.

No quarto de Luís de Castro, o melhor da estalagem, o oficial francês, um moço capitão de couraceiros, atirara-se para cima de um canapé antigo. Esperava que lhe aprontassem uma ligeira refeição.

- Ah! que não julgava chegar cá! Estão revoltados esses malditos espanhóis! Em Madride os amachucámos nós, mal sabe Napoleão que toda a Espanha se insurge contra os franceses! Valhadolide revoltou-se, os desfiladeiros das montanhas vomitam guerrilheiros enfurecidos contra nós, os frades pregam a guerra santa!

- Vindes então de Madride?

- Sou ajudante-de-campo de Murat. Levo ofícios urgentes para o Imperador.

- E meteste-vos ao caminho sem escolta!

- Trazia oito soldados de dragões. Mataram-mos de emboscada à saída de Valhadolide. Um horror de ferocidade, a que essa gente chama patriotismo!

- Admira que de Burgos não houvésseis trazido escolta!

- Não era precisa. Afiançaram-me que para aqui estava em sossego. Encontrei tropas portuguesas acantonadas e soldados vossos que tinham ficado à retaguarda. Em Vitória sei que estão tropas francesas, e de lá até à fronteira tenho caminho seguro.

- Houve então uma revolução em Madride?

- Formidável!

- A causa próxima?

- A execução que o marechal Murat ia dar a uma ordem do Imperador, mandando para França o resto que faltava da família real espanhola, quere dizer,, a ex-rainha da Etrúria...

- A malograda rainha da Lusitânia setentrional.

- O velho infante D. António e o juvenil infante D. Francisco. Isto soube-se, e já no dia 1.o a multidão se agitava na cidade e sobretudo nos locais de maior movimento. Conheceis Madride?

- Não conheço.

- Manifestaram na Puerta del Sol os primeiros sintomas da agitação popular. Nesse dia e de noite entrou na cidade muita gente dos arredores com armas escondidas. As nossas tropas estavam acantonadas ou acampadas nos arredores. Tínhamos, porém, fortes guardas dentro de Madride e a cavalaria aquartelada no sítio que eles denominam Bueno-Retiro. No dia 2 de manhã estavam defronte do palácio real enormes massas de povo. Chegavam carruagens e coches para levar o resto da família real. D. António e a ex-rainha de Etrúria desceram, iam tristemente resignados, mas o infante D. Francisco desatou a chorar e em clamores de recusa. Estava, provavelmente, ensaiado para aquela cena. Então a populaça soltou rugidos leoninos de protesto, derribou e fêz em estilhas os veículos. Estava dado o sinal da revolução. O resto foi horroroso! Francês que a populaça surpreendia nas ruas, era logo ferozmente assassinado! As mulheres da plebe como fúrias, incitando os homens à carnificina!

- Como as vossas de 93 em Paris.

- Talvez como essas. Murat mandou logo dois batalhões com artilharia para a praça Real. A metralha fêz uma lúgubre colheita! O próprio Murat dirigiu a cavalaria, como nas suas famosas cargas dos campos de batalha. Com os seus grandes sabres recurvos, os mamelucos, os cavaleiros de bronze como lhe chamavam os chulos de Madride, decepavam de um galope as cabeças dos revoltosos com horrorosa segurança!(1)

 

*1. Os mamelucos constituíam no Egito um formidável corpo de tropas, de arrojo e ferocidade inexcedíveis. A sua terrível fama secular igualou a dos janízaros do sultão da Constantinopla e sobreviveu-lhes.

Bonaparte venceu os mamelucos na batalha das Pirâmides (1798), e do Egito mandou vir depois um troço daquela formidável cavalaria, que agregou à sua guarda e lhe servia da escolta ornamental.

Para fazer efeito no ânimo dos espanhóis, Napoleão deu a Murat uma parte da famosa cavalaria, e êle levou-a para Madride. Diz um escritor francês do nosso tempo que o povo de Madride supunha ver nos mamelucos uma ressurreição dos antigos sarracenos. Esta fica por conta de mr. Guillon, o autor do livro já citado - Les Guerres d'Espagne sous Napoléon.

 

Na rua chamada de Alcalá, por exemplo, as janelas lembravam seteiras de fortaleza, a relampejarem de lá os tiros dos bacamartes e das velhas escopetas!

- E tropas espanholas? Não as havia em Madride.

- Havia. Estavam fechadas nos quartéis, que logo foram bloqueados pelos nossos batalhões. Só os soldados de um parque de artilharia puderam auxiliar a revolta do povo. Mas o parque foi tomado à baioneta e dois oficiais, os chefes daqueles revoltados, caíram mortos(1) sobre os canhões que tinham voltado contra nós. Foi preciso fuzilar os mais notáveis dos revoltosos, para exemplo e lição dos outros. Nós tivemos setecentos mortos e feridos! e eles, apesar de tudo, não chegaram a ter trezentos mortos nas ruas. Mas depois os fuzilamentos aumentaram muito este número. Mas a revolução foi esmagada.

- Em Madride, por agora. A infiltrar-se pela terra espanhola, essa onda de sangue fará germinar outras revoluções maiores, de mais sangue, e daí virá o mar rubro em que eu não sei adivinhar quem ficará afogado. Creio que vai começar a guerra dos povos contra os exércitos. A mais terrível!

 

  1. Os dois oficiais mortos eram Daniz e Vellarde. A alma espanhola consagrou-os entre os heróis e os mártires da pátria.

 

Não sei se de grandes batalhas, mas, provavelmente, de horrorosas carnificinas.

- Madride submeteu-se e o resto da família real vem já a caminho de Baiona.

- Madride é um palmo da Espanha.

- Napoleão pode meter aqui trezentos mil homens.

- Ou mais, e podem cá ficar para sempre, por mais batalhas que vençam. Faço justiça à alma e ao esforço dos espanhóis. Desculpai-me a fraqueza. Sou insuspeito. A Espanha foi traída, a Espanha tem razão, mas a Espanha de Godoy atraiçoou o meu país em Fontainebleau e os seus soldados entraram com os vossos de Junot em Portugal, para o retalharem. Eram uns e outros nossos inimigos.

- Mas ides servir Napoleão?

- Obrigados, como se fôssemos prisioneiros de guerra. Eu podia deixar de vir aqui. Venho por um irmão que fazia mais falta do que eu.

- São então soldados com que o Imperador não poderá contar?

- Têem desertado alguns. Os que chegarem a França hão-de cumprir os seus deveres de soldados. Oxalá tenhamos ensejo de mostrar à Europa que não era de cobardes o exército que não teve quem o mandasse para a fronteira combater Junot, nem chefes que o levassem para um campo de batalha. Por fim afianço que vou neste empenho. Na hora de o provar, os meus camaradas hão-de pensar e sentir como eu, e qualquer deles me será exemplo e estímulo, se nalguma conjuntura me fraquejar o ânimo.

Apareceu o criado da estalagem a prevenir que estava na mesa o jantar para o oficial francês.

- Desculpai-me que vos não acompanhe. Tenho deveres de serviço impreteríveis. Tendes este quarto à vossa disposição.

- Parto depois de jantar. Parece que nas minhas palavras alguma coisa houve que vos desgostou!

- Não foram as palavras que me desgostaram, foram os factos. Agora a causa de Portugal irmana-se com a da Espanha, e estou ainda muito perto do meu país, para que só me lembrem os deveres de soldado, preso a um juramento de obediência.

- Em França teremos de ser camaradas, companheiros talvez nalguma batalha.

- Talvez. Um vosso camarada leal, sempre que não seja para hostilizar ou deprimir a terra que não quero nem posso esquecer. Não vos deve causar estranheza que assim pense e sinta. Há assuntos que fatalmente hão-de sempre oprimir-me. Não sou nem quero ser um partidário do vosso Imperador, embora pelos encargos da minha farda e do meu sangue haja de ser um colaborador, certamente obs-curíssimo, dos feitos militares de Napoleão, o Grande. Nenhum ressentimento por vós, sr. Capitão - disse, estendendo-lhe a mão.

- Alberto Girard, um vosso admirador gratíssimo. Crede que me não esquecerá nunca a gentileza da vossa hospitalidade.

- Sr. Alberto Girard, para o capitão de granadeiros Luís de Castro e Albuquerque será sempre benvindo qualquer ensejo que lhe propocioneis de vos ser agradável.

Despediram-se.

Na saleta da estalagem, um sujeito nosso conhecido esperava ocasião de poder falar a Luís de Castro.

Estava muito enfiado, muito impaciente. Sentiu passos no corredor e veio logo à porta ver quem era. Daquela vez acertou. Era a pessoa por quem êle esperava.

- Sr. Luís de Castro! Estava aqui a esperá-lo. Tenho uma coisa de importância a dizer-lhe.

- Pois não, às suas ordens, sr. Farinelli. Entrou com êle. O italiano levou-o para o vão de

uma janela.

- Está ali na praça o russo Miguel Platow!

- Ali! Engano seu, provavelmente.

- Queira reparar. Veja além, para cá daquela esquina, aquele homem alto e espadaúdo, ao pé de uma caleça de posta, à qual estão consertando os tirantes. Deve recordar-se dele.

- Recordo. Vi-o apenas três ou quatro vezes em Lisboa, mas nunca mais me esqueceu. Parece efectivamente Miguel Platow.

- É, com toda a certeza. Não é fácil confundi-lo com outro, e eu vi-o bem perto de mim horas e horas consecutivas durante quási dois anos. Ainda que lhe pusessem uma máscara no rosto, conhecê-lo-ia pela voz. Vi-o, ouvi-o há instantes e só êle, felizmente, me não viu a mim. Estava eu naquela lojazita de uma porta quando êle chegou.

- Mas aqui, porquê?! Se vem para se encontrar comigo, vou eu ao encontro dele.

- Não é por isso. O cocheiro entrou na loja onde eu estava e pediu que lhe trocassem uns dinheiros, falou ao lojista como a pessoa muito das suas relações e contou-lhe que ia a Baiona levar um viajante que chegara a Valhadolide, vindo de Portugal. Disse que era um estrangeiro e que para o não matarem, supondo-o francês, pois que a cidade está em completa revolta, teve de mostrar um papel em que provou ser russo. O caleceiro não soube dizer que espécie de papel o russo tinha mostrado, mas suponho eu que será algum salvo-conduto ou guia da legação da Rússia em Lisboa.

Pálido, o rosto contra a vidraça, olhos cravados no homem que Farinelli lhe indicara, Luís de Castro preguntou rouquejando:

- E êle sabe que João Pulaski e a filha estão em Baiona?

- Provavelmente sabe. João Pulaski falou com êle antes de partir, na ocasião em que eu estava presente. Esteve a dizer-lhe coisas em segredo, que o meu velho criado não pôde perceber.

- Bem - disse, afastando-se da janela - Pois se assim é, vou eu ver se êle quere partir antes de ajustar as suas contas comigo.

- Por quem é! - disse-lhe o italiano, pondo-se-lhe na frente, como disposto a impedir-lhe que saísse - Vim avisá-lo, mas não deixarei que vá praticar alguma loucura.

- Deixe-me passar. O sr. fique, é provável que lhe tenha medo.

- Sr. Luís de Castro!

- Repito: deixe-me passar. Bem vê que Maria Pulaski ficaria indefesa nas mãos selvagens daquele cossaco.

Afastou-o violentamente e foi para a escada como alucinado.

Iluminou-se de júbilos o olhar de Farinelli. Correu para a janela num alvoroço de curiosidade.

- Joguei uma excelente cartada!... -pensava

- Se êle o matar, livra-me do mais perigoso dos meus inimigos, e se forem bater-se, hão-de prendê-los a ambos, porque eu darei o alarme, se o russo der cabo daquele sonhador, fica o mundo com um tolo de menos e Platow será preso, dado que a soldadesca o não faça em frangalhos.

Observava da janela. O Castro estava a poucos passos da caleça, mas o tirante já fora consertado e o russo tinha entrado para dentro do veículo.

- Miguel Platow, sangue selvagem de cossaco I

- bradou Luís de Castro.

O russo reparou nêle, voltou-se para dentro como a procurar o quer que fosse e deitou a cabeça de fora da portinhola da caleça.

- Oh! o bonifrate! - exclamou com detestável pronúncia portuguesa.

- Cossaco, não partes! Degredado da Sibéria, não deixo eu que partas!

- Hei-de partir, ainda que tenha de te rebentar os miolos - Caleceiro! Para diante à desfilada - gritou em mau espanhol.

- Acutilo-te, se chicoteias os cavalos! - bramiu Luís de Castro para o caleceiro.

O pobre diabo enfiou e não se atreveu a fustigar os cavalos.

Tinham acudido alguns oficiais portugueses e muitos soldados atraídos pela altercação violenta com um dos mais prestigiosos dos seus oficiais.

O russo afogueara-se.

- Falo assim - rugiu Luís de Castro, dando um salto para êle, doido de cólera - por querer que te desafrontes.

E vibrou-lhe uma bofetada. Platow apontou-lhe uma pistola de coldres que tinha escondida, mas um soldado que estava mais próximo erguera-lhe o braço de repelão e a bala perdeu-se no ar.

O tiro atraiu muita gente, mais soldados.

- Castro, o que é isto? - preguntou-lhe o chefe do batalhão, Cândido José Xavier.

- Um assassino russo, um foragido da Sibéria que eu provoquei a desforçar-se de mim.

- Mentira! - bramiu Platow, a bracejar entre dois granadeiros da companhia de Luís de Castro.

O alcaide acudira.

- Este alma do diabo deu um tiro de pistola - disse o granadeiro João Luís - Matava o meu Capitão, se lhe não levanto o braço!

- Afrontou-me! - rugiu Miguel Platow.

O alcaide deu voz de prisão ao russo e fêz-lhe umas preguntas.

Entretanto, Luís de Castro explicava o conflito a Cândido José Xavier, que lhe impusera a sua categoria militar para o conter.

- Movem-no contra mim antigos ciúmes. Num duelo, em Lisboa, meti-lhe uma bala no peito.

- Embora. Nada disso justifica a violenta afronta que lhe fèz. Foi um deplorável exemplo! Demais a mais, sendo um oficial de tanto prestígio!

Entretanto, Platow discutia com o alcaide,

- Aqui está um salvo-conduto e a minha guia diplomática, passada em Lisboa na legação de Sua Majestade Imperial o Czar de todas as Rússias.

E apresentou-lhe dois documentos com o selo da legação.

- Por ordem do Czar devo estar em Moscovo dentro do prazo de cinquenta dias.

O alcaide pusera os óculos e fazia tentativas infrutuosas para entender o texto em francês daqueles dois documentos. O que êle via bem é que o selo tinha as armas imperiais da Rússia.

Escondido por entre os soldados, a longa distância, Farinelli insinuara-lhes no seu arrevesado espanhol que o russo era um espião dos ingleses e um criminoso fugido do degredo.

- Prende-se! Fuzila-se! - gritaram alguns granadeiros da companhia de Luís de Castro.

- Vê o efeito? - disse baixo Cândido José Xavier para o moço oficial.

E logo, afastando-se um pouco dele, disse-lhe alto num tom seco de comando :

- Sr. Capitão de granadeiros! Queira fazer sair daqui esses soldados! Mande tomar nota dos que levantaram gritos violentos para aquele estrangeiro. Sargentos! afastem essa gente!

- Imediatamente para os seus quartéis! - bradou Luís de Castro.

- Manda o nosso Capitão - disseram baixo alguns, empurrando os outros para fora da praça.

Os sargentos tinham levado diante de si os grupos de populares e os soldados que se haviam aglomerado em volta da caleça.

Os granadeiros evacuaram a praça com extraordinária rapidez, submissamente.

Mas um deles passou junto do Capitão e disse-lhe baixo, muito perfilado :

- V. s.a terá quem pague aquele tiro!

- Para o quartel! Não preciso quem pague as minhas dívidas.

- Queira v. s.a perdoar - pediu o João Luís, fazendo a continência e dando meia volta.

E afastou-se dizendo consigo :

- Mas aquela dívida tenho eu a devoção de a pagar.

- Estão cumpridas as ordens de v. s.a - disse Luís de Castro ao chefe do batalhão - A culpa foi minha. Castigo só eu o mereço.

- Isso é comigo. Facilmente se perdoam arrebatamentos e imprudências alheias aos deveres de subordinação militar, quando na pessoa que os comete há qualidades superiores e distintos serviços a considerar.

Cheio de hesitações, o alcaide veio consultar Cândido José Xavier. Trazia os documentos de Miguel Platow, já preso entre dois alguazis, ao pé da caleça.

- Venho pedir o seu parecer, sr. oficial - disse-lhe em espanhol, dando-lhe para a mão os dois documentos de Platow - Por estes papéis entendo que se não pode prender um súbdito do Czar como se fosse um forasteiro suspeito, mas, por outro lado, o conflito foi com êste sr. oficial, e não desejo dar liberdade àquele homem, sem conhecer a sua opinião. É verdade que, segundo averiguei, não foi êle quem deu azo ao conflito, e só disparou o tiro para o ar depois de ser agredido com uma bofetada.

- A minha opinião, sr. alcaide - disse Cândido José Xavier, dobrando os papéis do russo - visto que ma pedis, é que o deixeis em liberdade. O conflito foi exclusivamente pessoal, o tiro foi um desforço de carácter gravíssimo, é certo, mas sem nenhumas consequências, felizmente, e perante as susceptibilidades dos homens pundonorosos, tem menos significação que a afronta de uma bofetada. Esse russo, antigo oficial das guardas do Czar, deve saber como se liquidam conflitos de honra entre homens de brio. Êle procurará liquidar este de agora, como e quando entender. É esta a minha opinião, sr. alcaide.

- Também me parece a melhor para evitar complicações, em que este senhor teria de ser envolvido.

- Mas trata-se apenas da minha opinião particular, entenda-se bem. Como chefe militar não vo-la daria assim, ainda que pretendesse formular parecer a tal respeito. O sr. capitão Luís de Castro é homem de brios que não levava as suas pendências pessoais ao julgamento das justiças civis nem a entrega ao patrocínio dos poderes oficiais.

- Exactamente. Faz-me v. s.a plena justiça. Liquido eu sozinho as minhas pendências. Aquele homem sabe-o por experiência própria. Lamento o desvario de cólera que me levou a semelhante provocação e peço a liberdade daquele homem, sr. alcaide.

- Muito bem. Abafa-se o caso. Vou já mandá-lo com Deus ou com o diabo, à escolha dele, e fico livre de trapalhadas.

E o bom do alcaide lá foi muito desoprimido de responsabilidades para junto da caleça.

- Agora um pedido - disse Luís de Castro a Cândido José Xavier.

- O que quiser.

- Não é um pedido ao chefe militar, mas ao homem pundonoroso. Se aquele estrangeiro quiser bater-se, peço ao meu amigo Cândido José Xavier que afaste de si o chefe do primeiro batalhão do meu regimento, para que êle me não tome o caminho.

- Compreendo. O chefe não terá conhecimento do seu pedido. O amigo pede-lhe, porém, com instância, que não provoque alarmes perturbadores da disciplina militar, nem se aventure a temeridades que poderiam inutilizá-lo para o futuro brilhante que tem diante de si.

- Serei prudente, até mo permitirem a honra da minha farda e os brios do meu nome.

- Nem o meu pedido podia ser outro.

- Com licença.

- Onde vai?

- Sozinho para aquela estrada. Hei-de pregun-tar-lhe quando êle passar se quere de mim alguma reparação.

- É talvez imprudente.

- É uma imprudência que está dentro dos meus deveres de homem de bem.

- Tem razão, vá.

Castro atravessou a praça rapidamente. O alcaide fazia uma prédica ridiculamente pretensiosa no intuito de justificar a resolução que Xavier lhe aconselhara.

- Foi um tiro para o ar, a meter medo. São ambos oficiais, as justiças militares que façam o que entenderem. Lavo daqui as minhas mãos como Pilatos.

Minutos depois a caleça largava da praça, metia aos solavancos por uma estreita rua e entrava na estrada de Vitória.

Vinham do lado oposto uns carros com gente do campo, e o caleceiro teve de moderar os cavalos e metê-los a passo.

- Miguel Platow! - gritou o Castro, muito pálido, de braços cruzados, quando a caleça ia quási na sua frente - Devo-te um desforço. Para onde quiseres, à tua disposição.

- Para um dia, para sempre, neste ódio de morte! - gritou Platow, debruçado da portinhola -, agora levo pressa de ver a minha noiva, a linda Maria Pulaski. À desfilada, caleceiro!

- Bandido! - regougou Luís de Castro.

A caleça passara uma volta da estrada e metera por ali fora numa carreira doida.

Em estremeções de cólera, olhar turvo de lágrimas como se daquele seu ódio só restasse o desespero que chora, Luís de Castro ficou um momento de olhos pregados no veículo que se lhe sumia ao longe.

- A minha pobre Maria! É capaz de tudo, aquele selvagem! Deserto. Para a frente como ainda nenhum desertou. Quebro o juramento.

Mal podia adivinhar que a poucos passos dele, por detrás das ruínas de um casebre, à borda da estrada, um granadeiro da sua companhia o estivera espreitando, excitado, convulso, de mão crispada no cabaço da baioneta, na ocasião em que passara a caleça. Era o João Luís.

- Vou buscar o dinheiro... um cavalo... Hei-de atravessar-me no seu caminho.

Voltou apressadamente para Briviesca.

- Luís de Castro! - chamou Cândido José Xavier - Como vem desfigurado!

- Doido é que eu venho! Tenho-o por meu amigo, deixe-me que eu vá dispor umas coisas...

- Luís de Castro! Vai no seu espírito uma ideia que o tortura. Receio adivinhar-lha! Não há ódios nem infortúnios de amor que possam justificar num homem, como o senhor é, esses desesperos ou essa fraqueza de ânimo que estou a perceber-lhe.

- Agora era mercê deixar-me sozinho com estes desesperos, como lhe chamou.

- Tenha paciência. Agora fala o chefe do seu batalhão. Chegou um ajudante de Bessières com ordem para marcharmos em direcção a Miranda do Ebro e de lá para Vitória. Napoleão tem pressa de nos ver em Baiona. O nosso regimento parte hoje mesmo.

Ouça. Está tocando a reunir. Vamos, Capitão. Pode fazer falta na sua companhia.

A vibração aguda das cornetas e o rouquejar intenso dos tambores deram-lhe um abalo de consciência, fizeram que a noção do dever se antepusesse aos loucos impulsos do seu coração, atormentado de ciúmes e de receios.

Pensamentos antagónicos de consolo e de mágoa se lhe atropelavam doidamente no cérebro.

O regimento marchava, iria para Baiona, vê-la-ia então mais cedo do que supunha, mas o odiado Platow, naquela vertiginosa velocidade, chegaria lá muito antes, longas semanas, tempo de sobra para quantas audácias êle quisesse planear.

Não chegaria a tempo de lhas reprimir, de a defender.

Mas desertar seria uma infâmia, uma vergonha sem remédio, uma exautoração daquela farda que tinha a peito glorificar.

O que se pode fazer num instante de infernal alucinação!

Desertar, êle que jurara não abandonar nunca o regimento e que o jurara numa fórmula de excepção, que muitos dos seus camaradas tinham ouvido!

Que miserável conceito fariam dele!

- Chefe, vou cumprir o meu dever - disse-lhe firmemente, afastando-se.

Corriam soldados em todas as direcções.

Castro encarregou o tenente da sua companhia de lhe ir metendo os soldados em forma, à medida que fossem reunindo, e correu ao seu quarto da estalagem para guardar nos baús umas cousas que deixara de fora e mandá-los para as bagagens.

Foi coisa de uns minutos apenas. Quando levaram os baús, tirou de uma algibeira interior da farda o medalhão com a bela miniatura de Maria Pulaski, e afastou-se para um recanto do quarto.

- Que destino será o teu? Dá-me tu alento, santa linda como os arcanjos.

Beijou a miniatura num beijo sôfrego, febril, e guardou-a com a avidez receosa de um avarento.

- Sobre o coração como altar que é teu. Sobre êle, para sonhar, para morrer, luz da minha alma!

Os tambores faziam o toque de oficiais, provavelmente para alguma nova comunicação de ordens.

Deitou a correr pela escada abaixo. Encontrou à porta um sargento que o ia procurar.

- Meu Capitão, a companhia está já debaixo de forma,

- Faltou alguém?

- Falta um. Deixou em casa do patrão a espingarda e as correias. Desertou, levando a baioneta.

- Quem foi?

- O 87, aquele rapaz de Lisboa que tinha a mãe entrevada.

- O João Luís?!

- Saberá v. s.a que foi esse mesmo.

- Êle aparecerá. Não creio que desertasse. Mande-lhe o armamento para as bagagens.

E de si para si foi dizendo :

- Ele porquê?! Eu, se o fizesse, era nos desvarios deste receio infernal que me tortura.

Meia hora depois os tambores do regimento batiam a marcha pela estrada que ia de Briviesca a Miranda do Ebro e Vitória.

 

 

Continua no VOLUME 3

 

 

                                                                  Antonio Campos Junior

 

 

                      

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