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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DO POLACO - V.3 / Antonio Campos Junior
A FILHA DO POLACO - V.3 / Antonio Campos Junior

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

             Do país das guitarras.

Naquela preocupação de tudo prever e dispor quanto à política do seu vastíssimo império e à complexa direcção do seu enorme exército de cerca de um milhão de homens, franceses e auxiliares de várias nacionalidades que tinha de guarnição ou em operações desde o Vístula ao Tejo, Napoleão, como já notámos, descia a minúcias que chegavam até aos pormenores de marcha das pequenas unidades!

Merecia-lhe particulares atenções o punhado de portugueses que saíra de Lisboa: mas como estava longe e recebia com inevitável atraso as informações relativas àquelas unidades, via-se na necessidade frequente de modificar ou anular num dia as ordens que dera na véspera.

Contava muito e podia contar com a bravura e intrepidez dos seus marechais, mas confiava pouco na capacidade estratégica de alguns e pouquíssimo no espírito de cooperação que eles deviam ter em relação uns aos outros e não tinham geralmente, por ciúmes de preponderância ou por rivalidades pessoais que provinham dos favores da fortuna, e mais ainda, das predilecções dadivosas do próprio Imperador. Não se limitava por isso a indicar-lhes o objectivo político nem o plano militar a que deviam subordinar a sua iniciativa dirigente. Tutelava-os.

Muito inclinado à epistolografia, nunca ninguém no mundo ditou tantas cartas como êle, porque era em cartas aos marechais, príncipes e duques, parentes quási todos, que êle mandava as suas instruções especiais.

Assim em 6 de Maio escrevera a Bessières, Duque de ístria, dizendo-lhe que, se confiava nos soldados portugueses, talvez fosse útil demorar-lhes a marcha, pois que, a terem bons sargentos, aquelas tropas poderiam prestar admiráveis serviços (ces troapes nous serviron à miracle).

Mas logo no dia 11, já com informações mais conpletas a respeito da formidável agitação da Espanha e com receio de que os doentes do exército francês pudessem ser vítimas da fúria patriótica dos revoltados de Valhadolide, lhe recomendava que retivesse naquela cidade dois ou três regimentos portugueses dos que iam mais atrasados, para conterem ali os revoltosos e protegerem os feridos franceses. Os outros dois deviam ficar entre Burgos e Vitória.

Entrava em outros pormenores quanto à distribuição dos portugueses, e dispunha por fim que os três primeiros regimentos de infantaria ficassem em Vitória com as tropas do general Verdier.(1)

Mas esta segunda carta, que saiu de Baiona para Burgos em 12 de Maio,

 

*1. Estas cartas, transcritas na parte relativa aos portugueses, encontram-se na excelente monografia do sr. Boppe - La Légion Portugaise.

 

só chegou às mãos do marechal Bessières quando já não era possível pôr completamente em prática as determinações do Imperador.

Luís de Castro ia numa impaciência febril. Platow chegaria a Baiona com uma antecedência de semanas. Quem poderia prever a sorte de Maria Pulaski, apesar da sua admirável firmeza de ânimo? O pai, um iludido, um autoritário, seria o cúmplice inconsciente do cossaco. Supô-lo-ia inabalável no seu juramento de renegado, inimigo do Czar, um cooperador na santa obra de ressurreição da pátria do polaco, e iria com o russso para onde êle o quisesse levar.

- Levá-lo consigo ou desfazer-se dele para fazer da filha a sua amante - dizia o Castro consigo rancorosamente - Agora, perdoado pelo Czar, já não tem interesse em fingir-se auxiliar do velho patriota. Para a Rússia não levará como esposa uma mulher de outra religião, a filha de um conspirador polaco! mas há-de querer levá-la como sua amante clandestina. É para endoidecer!

Em Miranda do Ebro tiveram um dia de descanso que valeu para o moço oficial um mês de infernais impaciências.

A estrada era detestável, de trânsito aspérrimo, por uns desfiladeiros que pareciam abismos! A marcha da infantaria tinha de ser lenta e era penosíssima.

No dia seguinte partiram para Vitória. Em Miranda confirmou-se a deserção do granadeiro João Luís, o soldado da companhia de Luís de Castro, com quem êle mais contava e que maiores provas de dedicação lhe tinha dado!

Esperava que êle se apresentasse até chegarem a Miranda, embora aquela falta lhe causasse estranheza, porque era um soldado exemplar no cumprimento dos seus deveres, e nesta esperança deixara de participar a ausência dele ao chefe do batalhão. Mas o João Luís não apareceu até à hora do regimento sair de Miranda, e Luís de Castro teve de dar conhecimento da deserção.

- Meteu-se a caminho de Portugal, provavelmente, como os outros desertores de Salamanca e Valhadolide - pensava.

Numaaldeiazita, a meio caminho de Vitória, uns homens do campo contaram que tinham ali visto passar um soldado com o uniforme dos portugueses, o qual preguntara se a cidade ainda ficava muito longe.

Foram dizê-lo a Luís de Castro.

- Será o João Luís? - interrogou mentalmente - Mas para aqui, porquê?! Supunha-o a caminho de Portugal? Explicava-se, e isto agora não se explica!

Teve uma hesitação de dúvida.

- Vá indagar se esse soldado que viram trazia uniforme de granadeiro, hão-de lembrar-se comparando-o com o seu - disse ao sargento que lhe viera trazer a notícia.

Foi e voltou daí a pouco.

- Aqueles paisanos não se explicam bem e falam um espanhol muito cerrado, mas sempre percebi que o soldado que eles viram tinha as guarnições da farda como as nossas, mas não trazia barretina e levava a cara entrapada.

- Bem. Fico ciente. Dos granadeiros do regimento - disse de si para si - só um desertou em Briviesca. Foi o João Luís. Os outros regimentos ficaram acantonados à retaguarda e não é provável que fosse deles o desertor que nos tomou a frente.

Entraram em Vitória, que estava guarnecida por tropas francesas. O 1.o batalhão de infantaria 1 ficou acantonado na cidade, os outros da 1.a divisão acantonaram nas povoações à retaguarda.

Para estar à sua vontade, Luís de Castro fêz como em Burgos e Briviesca: rejeitou o boleto e foi para uma hospedaria. Trazia recursos bastantes para se permitir esta comodidade.

Era já noite adiantada. Sozinho no quarto, escrevia a Maria Pulaski, prevenindo-a da ida de Miguel Platow e do conflito que tivera com êle em Briviesca. Reproduzia-lhe as palavras ameaçadoras do russo.

De Miranda do Ebro não teria adiantado nada escrevendo-lhe, porque a mala-posta só passaria no dia seguinte de manhã, ali em Vitória.

- Um desespero! - dizia de si para si, fechando a carta - Miguel Platow, se o diabo o não levar pelo caminho, chegará primeiro que esta carta, quatro ou cinco dias primeiro. Embora. Pode a carta chegar ainda a tempo de realentar o ânimo da minha pobre Maria. João Pulaski hesitara em sair de França. Uma violência de Platow, ali, numa cidade policiada, cheia de tropa, não me parece coisa de seguro êxito. E para uma intriga de mentiras, para convencer o velho a segui-lo, quatro ou cinco dias não será demais. Maria ficará sabendo quanto baste para desiludir o pai. Aquele sobrinho do famoso cossaco não pode ser, não é pela Polónia, nem pelos polacos.

Fêz o sobrescrito para Anna Beauchamp. Na carta anterior prometera escrever-lhe mais vezes.

- Se está ainda em Baiona, Anna Beauchamp não deixará de ir ao correio procurar cartas minhas. Sei lá? Vai ao capricho da fortuna. Devora-me como um fogo maldito este ódio por aquele homem! Quebra-me o ânimo este receio pelo futuro dessa cândida mulher, luz consoladora da minha alma.

Bateram mansamente à porta do quarto.

- Entre quem é.

- Está ali um soldado que tem secado a gente a pedir que o deixemos falar ao seu capitão - disse o criado, um navarro, esguio como um pinheiro.

- Um soldado que me quere falar? A esta hora! Diga-lhe que venha cá.

O espanhol saiu e poucos instantes depois assomava à porta do quarto um soldado alto, muito pálido, com um trapo em volta da cara, a farda em farrapos.

- Meu capitão, meu benfeitor! - disse de olhos baixos, humildemente.

- João Luís, tu! - exclamou Luís de Castro erguendo-se num repelão de assombro - Desertor, antes não voltasses!

- Era preciso voltar, meu Capitão, por causa de uma notícia que tenho a dar-lhe. Aquele homem estrangeiro que o quis matar em Briviesca e lhe disse na estrada umas palavras com que v. s.a ficou velado como se quisessem dizer a sua maior desgraça, porque eu bem vi, meu Capitão... vi e ouvi tudo...

- Acaba.

- Já não torna a desfechar mais pistolas nem a dizer palavras que aflijam o meu Capitão.

- João Luís, que fizeste?!

- Quis a minha boa fortuna que a carriola se lhe tombasse para cá de Miranda, fazendo-se em cavacos e eu o pudesse alcançar. Ia atrás dele até ao inferno, se fosse preciso.

- Atrás dele para quê?

- Para lhe fazer o que fiz.

- Diz claramente o que foi!

- Atravessei-o com a baioneta.

- Desertor e assassino! Tu, João Luís! O melhor soldado da companhia, o mais dedicado que eu tinha! Mas assassino porquê, desgraçado?!

- Porque êle prometeu que havia de matar o meu Capitão, pois que lhe tinha ódio e diante de mim o injuriou. Pensava v. s.a que o matei sem mais nem menos? Não foi assim. Não. Juro-o a v. s.a pela boa sorte de minha mãe.

Fui para êle e intimei-o a voltar para trás, a a ir comigo para pedir perdão a v. s.a das injúrias que lhe disse. E vai êle então deu dois passos atrás, engatilhou uma pistola, irmã da outra que tinha desfechado contra v. s.a e eu tive a fortuna de levantar para o ar, e disse... perdoe-me v. s.a, mas eu hei-de contar tudo, disse-me na sua língua estrangeirada: Mandou-te cá o pulha, o cobarde, para me assaltares. Pulha e cobarde, o meu Capitão, o exemplo de regimento, aquele que desde alferes tinha sido o amparo de minha velhinha e de minha irmã aleijada, que já não tinham fome, porque v. s.a teve dó delas! Oh! meu Capitão, senti uma onda de sangue a subir por mim acima e fui para êle como um doido, num salto de lobo, sem lhe dar tempo a desfechar a pistola. Foi então que lhe cravei a baioneta. Tinha obrigação de desagravar o benfeitor de minha mãe.

- E por essa gratidão praticaste dois crimes, tu, o soldado exemplar do batalhão! Fazes-me horror!

- Sorte das pessoas, meu capitão! Se êle o havia de matar um dia...

- A tua pobre mãe entrevada, quando o souber...

- Não se lhe manda dizer.

- Desgraçado, mandam-te arcabuzar!

- Também eu podia morrer para aí debaixo de forma, sem saber bem por quem morria.

- E o que hei-de eu fazer agora?

- V. s.a faz o seu dever, e para isso venho aqui entregar-me à prisão. Bem percebi que v. s.a teve ganas de ir atrás dele, eu estava a espreitá-lo para o que desse e viesse, mas v. s.a é um oficial, um fidalgo, não pode desertar como qualquer soldado raso.

- Perante o dever militar o crime é o mesmo.

- Mas num soldado sempre faz diferença, não é de tanta vergonha, meu Capitão. Desertei eu pelo benfeitor da minha gente. Depois daquelas palavras, que êle disse com a carriola a correr, v. s.a matava-o se o pilhasse, que eu bem o percebi! Pois matei-o eu, creio bem que o matei. Nunca mais o topará no caminho, se o demónio o não curar, a êle e ao caleceiro, no fundo da ribanceira para onde os baldeei.

- Uma criminosa loucura, João Luís! E agora? Agora tenho eu vergonha e remorso por ti, vergonha de que se saiba que praticaste esses crimes por dedicação, como se quisesses pagar-me em sangue as migalhas que alguma vez te dei por dó da tua pobre gente!

- Mas o que disse foi só para v. s.a ouvir e saber. Eu não o digo a mais ninguém, nem ao padre que me ouvir de confissão, quando forem para me arcabuzar. Para as outras pessoas desertei porque me apeteceu e matei o outro porque êle se meteu comigo. E aí está o conto. Até podem dizer que foi para o roubar, que eu não desminto quem o disser.

- Hão-de supor que fui eu quem te encomendou o... crime. Percebeu muita gente que eu tinha ódio a esse homem, e tu, João Luís, tens contado a todo o regimento umas coisas a que chamas a tua dívida de gratidão.

- Pois se v. s.a julga que podem supor essa loucura, declaro eu então que foi para roubar que desertei.

- Não imagines doidices, João Luís! Dizer tal mentira seria enxovalhar essa farda com desonra ainda maior, infamando os créditos dos teus camaradas. A nossa companhia ainda não teve senão um desertor. Tu! Há mês e meio que marchamos na Espanha e nenhum soldado do regimento foi ainda acusado de ladrão. Nenhum! Se disseres que o eras tu, irei eu ser testemunha no teu conselho de guerra, para te desmentir. Colocaste-me nessa dolorosa situação, por mim!

Deu uns passos no quarto, a reflectir, oprimido de dó, os olhos rasos de lágrimas por aquele soldado irremediavelmente perdido.

Parou de súbito e preguntou-lhe num grande constrangimento de ânimo, como se hesitasse na resolução a tomar:

- Notaste se alguém te viu praticar esse crime?

- Ninguém, meu capitão. Briguei com o caleceiro, depois de ter dado a baionetada no outro. Aqui tenho o atestado da navalhada que êle me deu na cara. A baioneta estava no corpo do outro, apertei-lhe as mãos no pescoço, caiu... baldeei-o pela ribanceira abaixo.

- Um horror! Uma infâmia!

- O pior foi começar! O ódio que v. s.a tinha ao outro senti-o eu por mim, pelo dobro. A vista do sangue turvou-me os sentidos. O caleceiro matava-me à navalhada, se não o seguro logo. Perdoe-me v. s.a, Há dois dias que eu ando metido pelos covões dos montes a chorar. V. s.a prende-me, dá a sua participação contra mim, mas faça-me a esmola de me perdoar no seu coração e não mande dizer nada à minha velhinha como isto acabou. Um soldado raso depressa esquece.

Chorava.

- Não contes esse crime. O teu capitão nem o sabe nem te viu. Foge para Portugal.

- Perdoe-me v. s.a mas não fujo. Se tiverem de me arcabuzar, estarei até à morte onde v. s.a estiver. Lá em Lisboa a minha pobre velha ficou remediada que nem que fosse mãe de um oficial. Eu fico ao pé de quem lhe matou a fome, como um cão que morre ao pé do dono.

- É inexcedível essa gratidão! - disse-lhe comovido - vai-te embora. Apresenta-te ao comandante da guarda do acantonamento e dize-lhe que já te apresentaste a mim. Nem uma palavra do crime. Eu falarei ao sr. Comandante. Serás castigado disciplinarmente por te ausentares do regimento.

- Oh! meu benfeitor! - soluçou o granadeiro, ajoelhando-se-lhe aos pés.

- Levanta-te e fica sabendo que das afrontas que me façam só eu me desforço. Repara bem: só eu. O comandante da tua companhia não esquecerá que cometeste uma ausência do regimento. O capitão não sabe mais nada, porém, qualquer que seja a tua punição disciplinar, não tornarás a merecer-lhe a confiança e a estima de outro tempo, se por alguma acção distinta, por uma vida exemplar para os teus camaradas, não souberes resgatar a grave infracção cometida. Mas o coração de Luís de Castro perdoa-te.

- Meu capitão! Deus me traga breve a hora em que eu possa tornar a merecer a sua estima.

- Oxalá! Vai-te embora.

Com as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos o granadeiro deu meia volta como num campo de exercício e saiu.

- Raro homem este! - disse Luís de Castro consigo - Morto Miguel Platow! Aqui está uma cousa que me tranquiliza o coração e afinal me pesa na consciência como se eu próprio tivesse cometido o crime! Repugna-me, tortura-me! O direito de o matar era só meu, mas matá-lo lealmente, face a face, num desforço que fosse digno de mim.

Cruzava o quarto a largos passos, numa agitação febril.

- Tirou-me aquele doido esse direito e deixou-me numa situação inquietadora, com esta mácula que tanto me oprime que parece minha. Se eu podia sequer sonhar semelhante coisa! Naquele rústico, por dedicação doida, a ideia romanesca de fazer voltar para trás aquele hércules semi-selvagem e trazer-mo para me pedir perdão! E aqui está agora a conjuntura inesperada em que eu lhe lamento a morte, a êle, o único homem a quem odiava! Pudesse o diabo tê-lo salvo, não fosse a baionetada mortal, viesse outra vez a encontrá-lo diante de mim, e sentiria um júbilo imenso, de infernal delícia! Mas com uma baioneta, atirado para o fundo de uma ribanceira, talvez sem socorro de ninguém, só se o diabo o tivesse amparado nos braços e o curasse. E por isto, por dó daquele doido que se sacrificou por mim, pela primeira vez me desvio do caminho do dever, encobrindo-o! Um crime para lhe pagar aquela dedicação rara, e, todavia, detestável, repugnante! Provavelmente o crime não terá sido visto. Se o houvesse presenciado alguém, se tivessem dado por êle, teríamos ouvido falar do caso durante a marcha de Miranda para cá. Anoitecia talvez ou era já noite quando o duplo assassínio foi cometido, ninguém viu, ninguém sentiu, e pela noite adiante os lobos famintos das montanhas os teriam devorado. Horrível!

E passeava, cada vez mais agitado, como se tivesse dentro da sua própria consciência uma pugna mortificadora de acusações e de articulados de defesa.

- Protector de um assassino! Mas se é verdade o que êle diz, não foi um miserável homicida. Lutou com dois homens, matou o que tentava matá-lo, matou o outro que o feriu no rosto... O João Luís não mentia, não era homem que viesse mentir-me. É preciso salvá-lo, nenhum remorso maior para mim do que deixá-lo arcabuzar.

Foi para junto da mesa em que tinha fechado a carta para Maria Pulaski.

- Agora é inútil.

Ia para a rasgar, mas arrependeu-se.

- Não. É conveniente que vá. Ficam conhecendo quem era aquele homem.

O João Luís foi preso. Acompanharia o regimento metido numa escolta. Nos descansos das marchas, nos quartéis, nos bivaques ou nos acantonamentos, estaria em cada dia, durante quatro horas, carregado de armas e assim durante trinta dias.

Graças às diligências de Luís de Castro e ao empenho com que expôs as excelentes qualidades daquele soldado, o seu proceder que até Briviesca fora admirável, o Coronel desistiu de lhe mandar fustigar as costas com a espada de prancha, nos termos dos artigos de guerra do Conde de Lippe.

Todos o desculpavam e tinham pena dele. Deu-lhe a tentação de desertar, explicavam, mas em poucos dias se arrependeu e nem chegou a ser considerado desertor nas condições dos artigos de guerra.

E mesmo assim lhe valeu o não se considerar a ausência em tempo de guerra, porque então seria condenado à morte.

Era preciso um exemplo.

No dia imediato houve revista geral dos três primeiros regimentos da Legião.

Atrás de infantaria 1, entre uma escolta, apareceu o João Luís, de olhos baixos, para que ninguém visse que choravam. Tinham-lhe amarrado aos ombros, sobre a mochila, quatro espingardas cruzadas.

Outro qualquer estaria acabrunhado, mas aquele, o mais robusto granadeiro do regimento, só o estava pela opressão moral do castigo, por aquela vergonha que dava nos olhos de todos.

A revista foi passada pelo general Pamplona. Depois formaram quadrado e leu-se-lhes o decreto de Napoleão que organizava as tropas de Portugal sob a denominação de Legião Portuguesa.

Era um decreto de 18 de Maio, assinado em Baiona. Contando com uma nova leva de portugueses, que Junot lhe havia de enviar, Napoleão mandava organizar seis regimentos de infantaria a dois batalhões de seis companhias cada um, três companhias de artilharia, dois regimentos de cavalaria, um batalhão de caçadores e um esquadrão de depósito.

A Legião ficaria dividida em duas brigadas de infantaria e uma de cavalaria. Devia superintender na execução desse decreto o general francês Muller, inspector geral, logo que as tropas entrassem em França.(1)

Em carta de 21 para o ministro da guerra, general Clark, que estava em Paris, Napoleão dava já como chegada a Baiona a vanguarda da Legião, que aliás ainda não tinha entrado em França. Falava-lhe na possibilidade de a aumentar até dez ou doze mil homens e dizia-lhe já que a mandaria acantonar nos departamentos dos altos Pirenéus e do Gers.

Os primeiros regimentos da Legião foram avançando para a fronteira francesa, acantonando de povoação em povoação até à cidadezita de Ernani.

Ali esperariam ordens superiores.

«Daquela cidade - conta José Garcez nas suas memórias - foi mandado pela mala-posta de Baiona o ajudante-de-campo Francisco Cardoso, que ia dar conta da posição e estado das tropas e receber instruções.»

Com a resposta de Pamplona a um ofício do marechal Berthier, príncipe de Neufchâtel, partiu também para Baiona o ajudante-de-campo, major Castro Pereira.

Repetiu-se em Ernani o boato que já tinha corrido em Briviesca e Vitória, provavelmente espalhado no propósito de evitar deserções. Dizia-se que as tropas portuguesas se aproximavam dos Pirenéus para mais facilmente receberem de Baiona os fornecimentos de uniformes, equipamentos e calçado, de que careciam, mas que depois acompanhariam Napoleão a Madride e a Lisboa.

Havia na Legião um homem a quem este boato oprimia. Era Luís de Castro. Maria estava ainda,

 

*1. O decreto vem integralmente transcrito na obra do sr. Boppe.

 

provavelmente, em Baiona, seria para êle um sacrifício doloroso voltar, sem a ir ver. Doloroso e insuportável.

- Se a Legião não entrar em França, irei eu lá sozinho, para a ver - dissera consigo, quando viu partir o Castro Pereira - Tenho-lhe inveja! Vou pedir ao general que me encarregue a mim de ir a Baiona, se tiver de mandar lá outro ajudante-de-campo. E se mo não fizer, obriga-me a uma doidice. Para lá não terei escrúpulo de ir desde que transformem a Legião em guarda pretoriana do Imperador, na sua marcha triunfal para Madride e Lisboa.

Foi para a praça principal saber notícias do quartel-general. À porta da casa onde o Coronel ficara aboletado viu alguém que lhe deixou uma profunda impressão de mágoa. Era o João Luís, carregado de armas, de olhos baixos, a plebe da cidade em magotes a olhá-lo com estranheza, fazendo grosseiros comentários, inventando suposições deprimidoras.

- Dói-me vê-lo - disse o Castro consigo, desviando os olhos do granadeiro - É como se fosse um remorso para mim!

No dia 27, de manhã cedo, ia grande alvoroço no acantonamento, e para Luís de Castro mais do que para qualquer outro, como para ninguém mais.

O ajudante Cardoso voltava de Baiona com ordem para as tropas partirem imediatamente para Irun.

Fêz-se logo o toque de reunir, em meia hora estava o regimento debaixo de forma. Instantes depois metia-se a caminho por aquela estrada agreste dos Pirenéus.

Às quatro horas da tarde entravam em Irun.

No dia seguinte, ao entardecer, chegava Castro Pereira com ordem para as tropas seguirem, a concentrar em São João da Luz.

Ali aguardariam ordens para entrar em Baiona, cada regimento de per si.

Passaram o Bidassoa em barcos. Luís de Castro ia radiante. Um belo país aquele, entre a cordilheira penascosa dos Pirenéus, a lembrar torvas cidadelas de Titãs, e as margens do Nive, como um trecho paradisíaco, de um lado a rebramir o mar da Biscaia, do outro, inundado pelos fulgores de oiro de um sol de Maio, aquele lindo país da Gasconha.

Por momentos o oprimiu a nostalgia da pátria. Lembrou-lhe Sintra, miniatura daquelas escarpas dos Pirenéus, aquele céu e aquelas águas recordavam-lhe Portugal.

Mas a pequena distância ficava Baiona, com as suas velhas muralhas. Era a sua terra da promissão, por que era lá que estava Maria Pulaski.

O primeiro regimento de infantaria chegou já de noite a São João da Luz. O 2.o e o 3.o vinham mais atrasados. O 4.o e o 5.o, o batalhão de caçadores e um regimento de cavalaria tinham ficado para as bandas de Vitória e a eles se juntaria Gomes Freire. Com aqueles três primeiros regimentos vinha muito à retaguarda a cavalaria do Marquês de Loulé.

Noite de impaciências e de sonhos aquela noite de acantonamento em São João da Luz para o bem amado de Maria Pulaski.

- E se o pai a tivesse levado de lá para outra parte onde esperasse Platow? Podia ser por qualquer circunstância, por lhe ter chegado às mãos a minha carta para a filha e até por saber da chegada de tropas portuguesas e presumir que eu viesse também. "Seria um desespero, um inferno de amarguras! Não, não! Quero sonhar que a torno a ver e hei-de beijá-la, ainda que um beijo seu me custasse a vida!

Adormeceu de madrugada, a ouvir os cantares melancólicos da soldadesca, já desperta e já na faina de limpeza do correame e do armamento.

De manhã cedo o regimento formou em ordem de marcha. Pamplona passou-lhe revista e falou aos oficiais e soldados a lembrar-lhes as suas tradições de portugueses. Que o próprio Napoleão lhes passaria revista, disse-lhes.

As marchas aspérrimas através da Espanha, sob chuvas e sóis intensos, tinham danificado muito os uniformes, as cores vivas desbotaram, os galões estavam marcados, mas ainda assim, o primeiro regimento fora o mais bem fardado e equipado e os soldados apresentavam-se bem.

Pamplona e os oficiais do estado-maior partiram primeiro, pouco depois o regimento.

À entrada da esplanada da praça fizeram alto. Veio ao seu encontro um oficial às ordens do marechal Berthier, para conduzir o regimento ao campo em frente do palácio imperial de Marrac, em volta do qual se estabelecera o quartel provisório de uma grande força da guarda imperial.

Para dirigir melhor e de mais perto os negócios políticos da Espanha e receber ali a família real espanhola e uma parte da corte de Madride, Napoleão fora residir para Baiona, com a corte imperial. Mas como precisava do paço que havia na cidade, para nele hospedar os Bourbons da Espanha, transferiu a sua residência para o palácio de Marrac, deliciosa vivenda, admiravelmente situada.

Marrac era um palácio, un petit chateau, como os franceses lhe chamavam, de antiga origem, no mais belo trecho daquela paisagem iluminada por um sol brilhante como o da Itália, segundo a expressão de Thiers. Era de construção regular e dizia-se que fora mandado edificar pela rainha de Espanha, Maria Anna de Neubourg.

Na posse de um particular, foi comprado pelo Imperador pela modesta quantia de cem mil francos. Mobilado à lufa-lufa, o parque transformado em parada de uns barracões mandados fazer para aquartelamento de uma parte da guarda imperial, Napoleão para ali se transferiu em 17 de Abril.

Aquilo, aquela chegada de soldados de um remoto país do ocidente, aquela Legião de além dos Pirenéus, que vinha para o serviço de Napoleão, como nas grandes eras de Roma iam para o exército dos Césares as legiões dos países conquistados, sacudira vivamente a curiosidade dos excelentes cidadãos de Baiona, na avidez de um espectáculo singular, pitoresco, tal como se fosse para ver estrangeiros semi-bárbaros.

Tinham visto passar a Legião Hanoveriana, que Junot levara consigo para Portugal, já tinham admirado os lanceiros polacos, ouviram falar da heróica Legião Polaca na segunda campanha de Itália, falava-se da Legião do Vístula que o imperador tencionava mandar para Espanha, tinham passado por ali regimentos italianos, suíços, alemães, ali passara a divisão espanhola de La Romana, que Napoleão atirara para a Dinamarca, era agora ocasião de verem os estranhos soldados de um país, que muitos deles nem sequer o nome conheciam.

Estavam atulhadas de curiosos as imediações da esplanada. Nem faltavam ali espanhóis da corte de Carlos IV. Portugueses apenas dois ou três, homens de negócio.

- Quási todos pequenos, de baixa estatura! - comentou um bufarinheiro gascão, alto e forte como uma torre.

- Portuguesitos de um reinozito onde falta o ar à gente de maiores bofes - escarneceu no seu grosseiro castelhano um andaluz, lacaio de certo fidalgo, espanhol que acompanhara o rei Carlos.

- Nos granadeiros é que eles têem homens possantes - observou um burguês da cidade.

- E com as barretinas parecidas com as dos nossos granadeiros!

- E ouvi que vão ter a honra de ser aquartelados com os granadeiros da Guarda - informou um artilheiro da guarnição da cidade - Disseram-me também que Napoleão lhes passa revista amanhã.

- Têem alguns oficiais bonitos - notou para outra uma rapariga do povo.

- Pois dizem que já chegou a Marrac a linda irmã do Imperador - volveu-lhe a outra, sorrindo, maliciosamente.

- Paulina, a princesa Borghése.

- Sim, essa, a que ama todos os homens que lhe agradam... «Se o Imperador não toma sentido e os demora lá, tão perto do palácio, teremos dos tais oficiais portugueses na colecção amorosa da princesa!

- Hum! - objectou o bufarinheiro a um sujeito que lhe ficava ao lado - Se pelo dedo se conhece o gigante, não parece que esses soldados pigmeus se tenham meia hora de pé, ao lado dos nossos, nalguma grande batalha. Provavelmente os destinará Napoleão para fachinas e guardas de bagagem do Grande Exército. Legião como a dos polacos não encontra o Imperador outra em toda a Europa. E será só isto?

- Não. Ouvi dizer que vêem mais.

Parou uma carruagem fora da esplanada. Apeou-se um homem de aspecto distinto, que foi falar ao coronel Manuel de Saldanha. Era D. Lourenço de Lima, que fazia parte da deputação portuguesa que viera a Baiona e ali ficou por ordem de Napoleão.

E como o regimento continuava em descanso, falou depois a Cândido José Xavier e a Luís de Castro, cuja casa frequentara em Lisboa.

Fêz-se o toque de sentido e o regimento pôs-se em marcha.

Saía da esplanada à testa da coluna quando Luís de Castro reparou muito comovido em certa dama de meia idade que, à frente de uma turba de curiosos, o fitava insistentemente.

- Ana Beauchamp! - disse Castro a meia voz

- Maria? - preguntou-lhe êle, demorando um pouco o passo, quando ia defronte dela.

- Mortificada! O pai de cama-respondeu-lhe ela em francês, em voz baixa, rapidamente.

- Vede se podeis seguir-me - pediu-lhe.

- Sim, vou, ela mandou-me cá.

- Tenho-a aqui! - pensou Luís de Castro, doido de júbilo. "

Já a meio do caminho, pôde ainda falar-lhe outra vez quási em segredo:

- Marrac fica longe?

- É um bocado bom.

- Então não vos canseis. Dizei-me onde moram.

- Não me canso, vou.

Tudo isto foi rapidamente dito em francês, caminhando.

A família imperial estava no terraço dos pavilhões para ver passar os portugueses. O regimento formou em linha, com a frente para o palácio. Fêz a continência ao Imperador e ficou aguardando ordens.

A meio do terraço, ao pé de Josefina Beauharnais, imperatriz dos franceses, aquela crioula da Martinica, de grandes olhos sensuais, ainda sonhadores, como se naquele temperamento excepcional os quarenta e cinco anos tivessem os ardores de um dia tropical, ao pé dela resplandecia, na pujança estonteadora dos seus vinte e oito anos, essa mulher de beleza excepcional que se chamava Paulina Bonaparte, a mais peregrina formosura da França. A Vénus Imperial, como lhe chamavam os que melhor sabiam dos seus amores, fáceis, estonteantes, a lembrarem os das loucas beldades que viveram nos dias esplêndidos na nevrose helénica e nas eras alucinadoras do fastígio romano.

Os olhos dos oficiais portugueses tinham-se levantado, num movimento de pasmo, para a figura de Napoleão, o grande, com o seu olhar de águia, o seu perfil de medalhão romano, o seu arcaboiço de homem baixo dentro daquela farda verde dos caçadores da guarda que êle tornara lendário.

E enquanto a soldadesca ingénua e rude reflectia no contraste entre aquele homem pequeno, mais singelamente fardado que o mais obscuro dos seus ajudantes-de-campo, e o Napoleão que eles tinham idealizado em Portugal, através da noção miraculosa da sua grandeza e das suas vitórias, os oficiais de preclara estirpe ou de mais ardente mocidade desviavam do Imperador o olhar de admiração em que o tinham envolvido, compondo idealmente a figura do triunfador, para o pousarem com deslumbrada avidez naquela mulher estonteadora que nenhum estatuário ainda inventara mais bela.

- Espantosamente linda! - murmurou Luís de Castro.

Um general, ajudante-de-campo do Imperador, veio abaixo dizer ao Coronel que podia retirar e que no dia seguinte de tarde, à hora que lhe fosse posteriormente designada, Sua Majestade passaria revista ao regimento.

Era preciso voltar a Baiona e com isto é que Luís de Castro não contava. O regimento seria aquartelado na cidade e voltaria ali no dia seguinte para a revista.

Pelo caminho Luís de Castro pediu desculpa à dedicada Beauchamp e preguntou-lhe se naquela noite lhe não seria dado ver Maria.

A francesa disse-lhe que sim, e deu-lhe indicação da casa de campo onde vivia o polaco, uma vivenda linda a meia légua da praça, para o lado oposto ao palácio de Marrac.

Que podia ir logo ao anoitecer. Ela própria sairia, sob qualquer pretexto, e o viria esperar à esplanada, para lhe servir de guia.

Luís de Castro preguntou-lhe se tinha recebido duas cartas dele para Maria. Que só tinha recebido uma, respondeu-lhe, mas que se não admirava por que havia muito quem se queixasse do mau serviço do correio de Espanha e do descaminho da correspondência. Não raras vezes a mala-posta era assaltada por bandidos que destruíam tudo.

Despediu-se dela rapidamente, com as cautelas e disfarces com que durante a marcha lhe falara.

Prestava-se a este diálogo a meia voz, entrecortado, cheio de dissimulações, a circunstância de irem as tropas com menos regularidade de marcha por causa dos magotes de curiosos que estanceavam a um e outro lado da estrada ou seguiam o regimento, falando alto, com aquela vivacidade que é própria de franceses.

- A minha adorada Menina! - segredou-lhe a Beauchamp - Como ela vai ficar em lhe dizendo que o vi.

- Diga-lhe que me vão parecer horas enormes de tristeza os minutos que tiver de esperar para a ver.

Haviam-se feito as maiores recomendações para a revista do dia imediato.

Mas, como era tarde, tinham tempo de se limpar de manhã, desde a alvorada, e os soldados não resistiram a um passeio pela cidade e pelas lojas de bebidas, durante o anoitecer.

E os mais moços, de mais alegre juventude, por lá andavam em magotes pelas ruas. Depois metiam-se pelas vendas e organizavam danças e faziam descantes à moda de Portugal.

Ora, tiveram um êxito estupendo! Apinharam-se de raparigas as imediações das tabernas, de raparigas e de curiosos para observarem aqueles estranhos soldados, para verem as danças e ouvirem os cantares daquela gente de além dos Pirenéus.

- Mexem-se bem! - disse um velho.

Os tocadores tinham trazido debaixo dos capotes as violas e as guitarras, e era um regalo ouvi-los. As raparigas achavam um estranho encanto naquela música chorada, naqueles cantares entristecidos, que a guitarra acompanhava gemendo.

Ao sapateado da chula achavam então uma graça picante, inexcedível.

Não faltavam mesmo conspícuos cidadãos que, de largo, honestamente, se ficaram a escutar aquelas músicas dos indígenas de uma remota província das Espanhas, para as bandas do mar africano.

Tinham um santo horror à geografia e à história!

Até ao toque do recolher os soldados fizeram um bom sucesso, como se diz à francesa.

Os oficiais e soldados da guarda imperial, que tinham vindo passear à cidade, espalharam esta notícia de sensação, que muito admirou a soldadesca da praça e os bons burgueses da cidade: Napoleão mandara que a guarda imperial recebesse nos seus quartéis os tais portugueses, no dia seguinte, depois da revista, e jantasse com eles como hóspedes seus, a quem o Imperador distinguia.

Era festa em cheio para os mirones da cidade. Mas se os da guarda imperial tinham trazido esta inesperada notícia outra levaram para Marrac não menos interessante, a respeito das danças e cantares originalíssimos daqueles soldados de Portugal.

Antes do anoitecer, Luís de Castro foi prevenir os subalternos da sua companhia de que saía da praça com permissão superior.

Ficaram-lhe com inveja. Apesar dos seus ares tristes de toda a hora, o juvenil capitão lá tinha arranjado uma aventura de amores!

Foi o que eles ficaram pensando. E logo se lembraram da senhora que os tinha acompanhado e por vezes falara ao Capitão.

- Talvez amores começados em Portugal - lembrou um alferes.

- Se forem com aquela durázia que nos acompanhou - acudiu o tenente com um risinho de escárnio - mal empregado homem!

- Hum! Não creio. Talvez seja apenas intermediária. Por acaso ouvi à quarentona uma referência à sua menina.

- Pois eu vi que falavam, ouvi-os cochichar, mas, como não entendo patavina de francês, fiquei em jejum.

- Enfim, que a deusa dos amores ditosos vá com êle - disse o alferes.

- E a mim me pusessem de sentinela - gracejou o tenente - àquela princesa imperial que nós vimos hoje. De dois rufos e três assobios, meu querido Alferes! Aquilo é que era um arranjozinho para um tenente em meio uso como este seu camarada e amigo! Bolas! Nunca vi um palminho de cara assim! Eu nem ouvia as vozes do Coronel e ia ficando de espada em continência ao mano, com os olhos engalinhados nela! Deixasse aquela beleza imperial que eu lhe fizesse o meu pé de alferes, e você veria em pouco tempo aqui um marechal de França. O imperial irmão não havia de querer para cunhado um pobre tenente.

- Olhe que ela é casada.

- Então, primeira forma.

- O marido, o segundo marido, é o Príncipe Borghése.

- Raios o partam, que apanhou uma ninfa de estalo! Àquela é que eu beijava os pèzinhos, como fazia em pequeno à santa lá na minha freguesia. Por sinal que uma vez fiquei com os beiços lambuzados de tinta. Estava pintada de fresco, e distingia! Ai, menino, aquela é que não distinge!

O alferes riu perdidamente das graçolas do tenente, grosseiro plebeu, muito conhecido pelos ditos chocarreiros.

Àquele tempo já Luís de Castro estava na esplanada à espera da Beauchamp. O sol sumira-se no horizonte, envolto numas nuvens de púrpura em que os seus fulgores de oiro se reflectiam.

Anoiteceu. A francesa chegou.

- Maria?

- Julguei que me desmaiava nos braços quando lhe disse as suas palavras!

- O pai?

- Não sai da cama há vinte dias.

- Coisa grave?

- Foi muito grave. O médico disse-lhe que lhe tinha subido o sangue à cabeça. E foi por causa daquele maldito Miguel Platow, que lá ficou em Lisboa.

- Por causa dele?!

- Por causa de uma carta que êle lhe mandou de Lisboa. Assim que a leu, teve o ataque. Sangraram-no logo e, felizmente, já fala e tem tido melhoras.

- Devia então ser muito grave o que lhe escreveu Platow!

- Nós vimos a carta. Dizia-lhe que o médico italiano que o tratava, um tal Vicenzo Farinelli...

- Bem sei!

- O roubara, negando que João Pulaski lhe houvesse confiado valores para lhe entregar. Deplorava-se por se ver sem nenhuns recursos e na contingência de vir de terra em terra, como um mendigo, ou a monte como um bandido.

- Mentia-lhe.

- Sabe então que não é verdade?!

- Sei que Platow acusou Farinelli de lhe negar os valores que recebera para lhe entregar, mas sei também,que o Czar perdoou a esse criminoso de Estado. Ultimamente estava a bordo do navio almirante de uma esquadra russa.

- Talvez ainda a mesma que lá estava no Tejo antes de nós sairmos?

- A mesma. Farinelli fugiu de Lisboa, receoso de Platow, e apareceu-me no caminho. Mas nunca mais o tornei a ver, depois que em certa povoação espanhola deu com Miguel Platow, que passava a caminho de França!

- Aí o teremos então, Deus de Misericórdia!

- Ouvi que... tinha morrido desastrosamente na estrada - disse a custo.

- Então fêz-lhe Deus justiça e teve dó da minha querida Menina!

Luís de Castro confrangeu-se. Sacudiram-lhe a conciência aquelas duas palavras da Beauchamp.

- E o médico fugiu então com receio de Platow?

- Fugiu provavelmente com receio das suas próprias responsabilidades. Platow não o tinha visto e seguiu para diante. Estou agora convencido de que Farinelli não foi caluniado pelo russo. Mas vamos andando, sim?

- Sim! Eu ficarei ao pé do doente, enquanto a Menina lhe estiver falando no muro do jardim.

Luís estremeceu. Perturbava-o doidamente o antegozo daquela ventura.

- Bem vê, por causa dos criados, para não levantarem algum falso testemunho à Menina. O sr. vai por um caminho escuro, que eu lhe hei-de ensinar, e de lá lhe falará para um mirantezito que tem o jardim.

- Sem lhe poder dar um beijo sequer! - pensou amargamente.

Foram caminhando. De quando em quando umas preguntas ou um diálogo banal.

- Olhe, é já ali. Naquela casa enleada de trepadeiras. Lá tem o jardinzito esmaltado de flores. São as lindas companheiras que ela tem. Tratamos delas, as duas. Vejo um vulto naquela janela. Provavelmente a Menina. Saiu de corrida do quarto do Pai e veio ver se nos descobriria. Estou a adivinhá-lo. Olhe, faça favor de seguir por aquele caminho estreito, aquele entre canaviais. Lá adiante, pára defronte daquele mirantezito alto, que se vê daqui. Ouve aquele ruído?

- Ouço.

- É de uma represa de água que fica lá para baixo. Abafará as vozes e não os ouvirá algum criado que venha ao jardim. Queira seguir. Ela não se demora.

Apartaram-se.

Uma noite serena e tépida, impregnada de perfumes. Céu de profundo azul, cravejado de estrelas.

- Como o céu de Portugal -disse Luís de Castro num enlevo dos sentidos.

Voavam na aragem e vinham morrer nos rumores da represa os cantares ligeiros das raparigas que recolhiam do campo.

Tinha parado diante do pequeno mirante do jardim, todo coleado de trepadeiras. Descia lá de cima um aroma inebriante de flores.

Esperou. Momentos de alvoroço febril.

Assomou em cima um vulto grácil de mulher.

- Maria! - exclamou, perturbado.

- Luís! Tu! - disse a filha do polaco, debruçando-se muito - Que tamanha saudade a minha! Tanta, até isto me parece um sonho, Luís!

- E em mim, noiva da minha alma, que loucura de amor, cada vez maior!

- Já sei que estás como eras. Anna Beauchamp achou-te um pouco mais pálido, mas afirma que és o mais gentil oficial do regimento. Contou-me tudo.

- Lisonjeadora!

- As palavras são dela. Eu acreditei, mas nem tu calculas a pena que tenho de que a noite não deixe ver bem se aquela minha segunda mãe me disse toda a verdade. A doida alegria que me deu a tua carta! Vinhas para França, era então possível que me pudesses ver, que eu tornasse a ver-te! Imagina. E tinha feito voto de matar comigo este amor que podia ser a tua má fortuna! Loucos votos que a gente faz, a supor que tem ânimo de os cumprir!

Se podia lá ser, Luís! Ainda sonhei mais. Quanto mais amargurada e quanto mais distante, maiores sonhos os meus! Mas perdoa-me. Eu nem te deixo falar. Consola-me dizer-te estas coisas todas, sofregamente, na tua língua.

- Mas dize, Maria. Eu é que estou neste embevecimento egoísta de ouvir a música da tua voz. Ouve-a a minha alma como se fosse um cântico celestial de certas horas saudosas, distantes, que voltam de novo. Há dois meses na ânsia desta hora! Valia-me nos desalentos esta miniatura do teu retrato, que trago comigo como os crentes fanáticos da minha terra trazem ao peito a imagem de oiro, pequenina, da sua santa benfazeja.

-Eu então não tinha, não tenho a acompanhar-me nenhum retrato teu! Valia-me o coração a retratar-te e, quantas vezes, sozinha no meu quarto, chorava a repetir palavras que tu me dizias, versos de amor que eu aprendi no teu país! E tudo aqui mo lembrava! As minhas flores e as estrelas deste céu.

- Como o de Portugal. Lembrei-o há instantes.

- Quási tão lindo como o de Lisboa. E nos longos serões das minhas noites, para que em tudo me recordasse de ti, ia acabando aquela minha tarefa de Lisboa. Nem tu já te lembras qual!

- Não lembro, realmente!

- Falava-te muito dela numa carta que deixei para ti. Meu esquecido! Aquela bandeira que eu comecei a bordar.

- Ah! Já sei. A bandeira que eu havia de oferecer ao meu regimento. Agora, Maria, já não podemos ter bandeira!

- Não podeis! Tenho-a quási concluída!

- Pois hás-de dar-ma. Não a levará o regimento, mas levo-a eu comigo e recatadamente, nas horas de maior saudade, hei-de mostrá-la aos meus camaradas, aos meus amigos, para que a lembrem melhor. Bordada pelas tuas mãos, Maria!

- E pelas lágrimas da minha saudade, Luís.

- Bordada de lágrimas, como tu me dizias na tua carta. Vendo-a, levando-a connosco, a sua visão será mais nítida para a nossa alma, na hora em que fôr preciso combater.

- Combater! Sim, é isso... para combater! Dizem que têem passado muitos soldados para Espanha. Parece que andam por lá em guerra. Para combater... para te ausentares outra vez! Luís, que será de mim! Ninguém que me defenda!

- Mas vê bem que eu fiz apenas uma suposição - disse-lhe no intento piedoso de a reanimar -, Napoleão há-de querer-nos em França, para ir contra os revoltados da Espanha não precisa de nós, e seria imprudência mandar-nos para mais perto de Portugal.

- Eu sei lá! Mas vê tu como os instantes de boa fortuna são assim escassos para mim! Neste alvoroço de te ver nem tinha pensado nisso, e toda me entreguei a este arrebatamento da minha alma, quási esquecida de amarguras! Acordou-me deste sono de enganos aquela tua palavra! Combater! Sim, pois para que outra coisa haviam de trazer-vos cá? A paz pouco poderá durar, dizia aqui há um mês um polaco homiziado. Napoleão há-de levar-vos para as batalhas, a vós, soldados de Portugal, como tem levado os da minha pobre Polónia!

- Causa-te medo a guerra, compreendo.

- Medo por ti, Luís. Se eu fosse tua esposa, se fosse contigo, não tinha medo. A Beauchamp tem-me contado a história de umas mulheres francesas que acompanhavam os maridos nas campanhas, ao lado deles, nas batalhas.

- Eu sei, eu li. Também há exemplos na história do meu país. Ah! mas vão sujeitas a perigos horrorosos! Eu nunca entrei numa batalha, mas, pelo que tenho lido, quanto há-de ter de horrível para o coração piedoso de uma mulher todo aquele espectáculo de enfurecida carniçaria!

Havias de confranger-te de pavor, alma compassiva de santa mulher frágil como as açucenas, pobre flor no turbilhão sanguinoso das batalhas!

- Ao pé de ti, sentir-me-ia outra. Faria sobre mim um grande esforço, por muito que me custasse. Na minha família e na minha pátria houve também mulheres com esse esforço de ânimo. Bem pior, bem mais horrível há-de ser que te apartes outra vez de mim. Deus sabe se para sempre, e eu, hora a hora, a pensar em combates como nunca vi, mas em que tu podes morrer! Aqui está para mim o sacrifício maior! E em que odiosos perigos! Bem sabes. Meu pobre Pai está ainda muito doente.

- Disse-mo Anna Beauchamp.

- Melhora, por fortuna minha, mas continua naquela insistência, que me horroriza, pelo cumprimento de uma promessa, que seria a minha suprema desgraça, se não fosse a minha morte. Está esperando Miguel Platow!

- Não virá. A Beauchamp não te disse nada?

- Não! Disse-me que me estavas esperando, mas meu Pai chamou-a e teve de ir para o pé dele.

- Eu tinha-lhe contado o fim de Platow.

- Quê?! Prenderam-no? Mataram-no?!

- Morreu desastrosamente numa estrada de Espanha.

- Santa Virgem, que posso então esperar tranquila.

- Se fôr verdade...

Ouviram-se os clarins e os tambores tocando a recolher na praça.

- Maria, tenho de te deixar.

- Já?!

- Sim. É preciso estar dentro da Praça. Amanhã voltarei.

- E ficam em Baiona?

- Não sei ainda, meu amor.

- Oxalá. Hei-de pedi-lo a Nossa Senhora.

- Sabes? Levo daqui um pesar.

- Qual?

- Sonhei dois meses com um beijo sequioso, imenso, que eu havia de dar-te e o sonho desfez-se!

- Não, Luís. O homem de bem que tu és não pode afrontar-me com um beijo. Vou eu buscá-lo.

E desceu a tremer os degraus do mirante. Subiu a um canteiro do jardim e debruçou-se muito do muro, murmurando perturbada:

- Meu adorado Luís, adeus!

Firmando-se na abertura de um cano de esgoto de águas, como num estribo para se altear, Luís de Castro pôde apoiar uma das mãos ao bordo do muro, encostou então para si, docemente, aquela radiosa cabeça de madona, e deu-lhe um beijo na boca, sedento, longo, estonteador.

- Luís! Luís! - disse-lhe ela baixo, comovidamente, numa voz que lembrava o gemido brando de uma rola.

- Adeus, minha encantadora Maria. Sabe que vi hoje uma princesa de assombrosa formosura. Dizem que a mais linda mulher da França. Pareces-te com ela... na raridade dos encantos...

- Não a conheço. Raras vezes tenho saído daqui. Mas quiseste lisonjear-me. Posso lá acreditar!

- Olha, como dois lírios se podem parecer no aspecto, embora um tivesse caído das mãos de alguém entre os esplendores dos salões e o outro, de imaculada pureza, esteja erguido sobre a alvura cândida de um altar.

- Queres deixar-me ciúmes!

- Não se confundem e não os trocaria nunca a minha alma por quanto eu pudesse e ousasse sonhar. Crê-me.

Ouviu-se o ruído de todas as bandas de tambores da guarnição da praça. Repetiam o toque de recolher.

- Adeus. Até amanhã - disse, beijando-lhe as mãos, a tremerem entre as suas.

- Amanhã à noite?

- Sim. A esta hora!

Meteu pela azinhaga apressadamente. Devia entrar na praça antes do toque de silêncio.

Formosíssimo aquele primeiro dia de Junho!

Pelas 3 horas da tarde, sob um sol ainda ardente, o primeiro regimento da Legião Portuguesa formava em linha na planície adjacente aos jardins de Marrac.

Era enorme a multidão de curiosos que tinha ido de Baiona. Por entre o povo destacavam-se vivamente os uniformes flamantes dos soldados da Guarda Imperial, que estavam ali para desfrutar aqueles galuchos exóticos, a quem Napoleão ia passar revista.

Em grupos, afastados da multidão, os oficiais da Guarda. Couraceiros de peito de aço resplandecentes, caçadores com as suas fardas verdes como a do Imperador, granadeiros de soberba estatura, a águia dourada a refulgir-lhes sobre o pêlo hirsuto das enormes barretinas.

Quási todos eles com a Legião de Honra ao peito. Alguns de cabelos grisalhos, heróis ou cooperadores nas grandes batalhas do Império, desde Austerlitz a Friedland.

De fileiras abertas o regimento esperava a chegada do Imperador. Um ajudante-de-campo de Pamplona, que se achava no campo com o seu estado-maior, fora participar ao marechal Berthier, chefe de estado-maior imperial, que as tropas aguardavam Sua Majestade.

Dali a momentos, um corneta de ordens dava a sinal de sentido.

Era Napoleão que entrava no campo. Vinha a pé.

Trazia o seu pequeno chapéu tradicional da escola de Brienne, a farda verde dos caçadores da Guarda,, ao peito a Legião de Honra. A seu lado Berthier, Príncipe de Neufchâtel, atrás outros marechais, alguns deles figuras épicas da epopeia napoleónica, generais ajudantes-de-campo e oficiais às ordens.

Aquele sol de Junho arrancava cintilações deslumbradoras das dragonas de oiro dos generais e das baionetas polidas dos soldados.

Dava nas vistas, atrás de Napoleão, um homem bronzeado, de elevada estatura, turbante de alto penacho, à cinta um sabre recurvo de punho doirado. Era um oficial do esquadrão de mamelucos.

O regimento apresentou armas. Muito aprumados, os oficiais e soldados punham olhares de pasmo naquela espectaculosa magnificência.

A Imperatriz viera com a Princesa, as marechalas da corte, as suas damas de serviço e os altos dignitários do palácio, para os pavilhões do jardim, de onde a tropa se via perfeitamente.

Pamplona apeou-se e foi apresentar-se ao Imperador. Os outros oficiais montados apearam-se também e entregaram os cavalos às ordenanças.

Napoleão costumava passar a pé as revistas em que era seu empenho apreciar escrupulosamente o estado das tropas. Adiantava-se sozinho para as fileiras, o estado-maior seguia-o a distância. Parava diante de cada soldado, observava-o atentamente, interrogava os oficiais e com o seu olhar de águia procurava penetrar na alma do homem que tinha diante de si.

Não era apenas a revista de um general a observar aspectos, equipamentos, fardas, era também a análise de um fisionomista e de um psicólogo.

Naquela revista a tropas estrangeiras não podia interrogar os soldados, que não o compreenderiam, mas ordenou que o acompanhasse, para esclarecimentos, um oficial do regimento a quem fosse familiar a língua francesa.

Pamplona ordenou a Cândido José Xavier, chefe do primeiro batalhão, que escolhesse o mais culto. Escolheu Luís de Castro.

Apresentou-se. Napoleão encarou-o muito e pareceu bem impressionado. Fêz-lhe umas preguntas, a que o moço capitão respondeu expeditamente, em correcto francês.

O João Luís era logo o chefe da fila da direita, pela sua estatura.

Napoleão parou diante dele e observou-o detidamente.

- Excelente figura! Um hércules. Raros assim nos países do Meio-Dia! - disse para o Castro - Asseio notável. Tem a fisionomia de um homem leal e de intrépida vontade.

- Sire, foi o soldado exemplar do batalhão - disse-lhe o Castro comovidamente.

- Foi? Deixou de o ser?

- Por uma alucinação, que o traz amargurado, ausentou-se do regimento na marcha de Briviesca para Vitória, mas logo se arrependeu e veio apresentar-se. Foi castigado. Tem vindo preso nas marchas. Nos acantonamentos é carregado de armas à porta do comandante. Ainda não completou o castigo.

- Já lhe tinha notado uma sombra de tristeza profunda, imprópria da mocidade. Que idade tem este homem?

- Vinte e cinco anos.

- Conheçe-o bem?

- Perfeitamente, Sire. É um homem de bem e um homem de ânimo.

- Diga-lhe que está perdoado e dê conhecimento disto ao seu Coronel.

- João Luís, o Imperador perdoou-te.

O granadeiro voltou para Napoleão um olhar de enternecida gratidão e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

- Recomende-lhe que resgate a sua falta no primeiro combate em que o regimento houver de entrar.

Castro disse-o ao granadeiro.

- Meu capitão, queira v. s.a dizer a Sua Majestade que hei-de pagar pelo dobro do que fiz.

- O que diz êle?

- Sire, promete resgatar a sua falta como se ela fosse o dobro do que foi.

O Imperador olhou-o ainda um momento e seguiu para diante.

Foi uma longa revista.(1) Quando saiu das fileiras, Napoleão vinha satisfeito. Disse a Berthier:

- Conheço e admiro a história daquela raça. Foi de gente arrojada. Conto que hão-de ser uns bravos e ardentes soldados, estes portugueses.

Voltou-se depois para o príncipe Wolkouski, ajudante-de-campo do Imperador da Rússia, em missão especial em Baiona, e disse-lhe apontando o regimento:

- Homens do Meio-dia, cheios de paixão, hei-de fazer deles uma excelente infantaria.(2)

Fêz sinal a Pamplona para se aproximar.

 

*1. Dando conta da passagem dos regimentos portugueses por Baiona e das revistas em Marrac, Castro Pereira diz assim na sua monografia: «Logo que a tropa estava formada mandavam dar parte a Napoleão, que vinha imediatamente, acompanhado do major-general, de vários marechais, dos seus ajudantes generais e oficiais de ordenança,dos generais e oficiais da Guarda e de outros, e principiava a revista, à qual vinha ordinariamente assistir Josefina, acompanhada das suas damas, camaristas e cortesãos,, que ficavam todos nos pavilhões e ruas do jardim, de onde podiam ver tudo perfeitamente.

«À chegada de Bonaparte faziam-se as continências militares» depois do que vinha êle a pé correr as fileiras a ver os homens um por um».

  1. Aquela frase é a tradução literal da que se encontra a pág. 40 do tomo III da Histoire de La Guerra de La Peninsule, do general Foy.

 

- General, deixaram-me boa impressão os seus portugueses.

- Sire, nenhuma autoridade igual teve ainda o mundo moderno para avaliar gente de guerra e nenhuma honra maior para os soldados do meu país!

- Conto com eles.

- Sire, espero que sejam dignos do conceito em que os tendes.

- Quero agora experimentá-los na táctica francesa, que o Duque de Abrantes lhe mandou ensinar em Lisboa. Indico-vos as manobras, haveis de traduzi-las vós ao Coronel.(1)

Pamplona mandou avisar o Coronel pelo seu ajudante-de-campo, Castro Pereira.

E dali a instantes, com grande pasmo dos veteranos da Guarda e dos paisanos de Baiona, aquele homem, Napoleão, o Grande, que comandara oitenta mil homens em Austerlitz e tinha às suas ordens novecentos e cinquenta mil homens, desde as margens do Vístula aos confins ocidentais da Península, aquêle conquistador que tinha vencido já mais batalhas que Alexandre e César, comandava ali, naquele pequeno campo de exercício, ao declinar de uma tarde de Junho, esse regimento português que não chegava a ter em formatura um milenar de homens.(2)

Terminado o exercício, Napoleão ordenou que o regimento ensarilhasse armas e arriasse mochilas.

Ia seguir-se o jantar com a Guarda Imperial. Uma comissão de oficiais veio convidar os seus colegas portugueses.

 

*1. Acabada esta inspecção, comandava êle mesmo algumas manobras, que o general Pamplona,-que estava para esse fim perto dele - traduzia em português ao comandante do regimento, etc.» (Da citada monografia).

  1. Um mapa oficial de 15 de Junho daquele ano, dava ao regimento o efectivo de 800 homens, segundo a indicação dada pelo sr. Boppe na sua obra, conforme um documento dos arquivos do ministério da Guerra de França.

 

Antigos sargentos e soldados da Guarda vieram fazer igual convite aos seus camaradas de Portugal. Foi um jantar ruidoso em que os convivas se não entendiam, especialmente nas mesas de sargentos e soldados.(1)

Uns alvissareiros como os houve sempre em todas as cortes, tinham ido contar a Josefina a impressão original que Baiona tivera na véspera com as danças e cantares dos portugueses.

A crioula sentiu uma grande curiosidade feminil, um intenso desejo de os ver e ouvir. Paulina teve curiosidade igual e ambas pediram a Napoleão que autorizasse as danças e cantares daquela gente, defronte dos pavilhões do jardim.

O Imperador acedeu e mandou chamar Pamplona.

- A Imperatriz ouviu falar das danças e cantares dos vossos soldados. Disseram-lhe que eram interessantes e deseja vê-las e ouvi-los. Dai ordens para que escolham as mais hábeis, e que venham depois do jantar para defronte dos pavilhões. O regimento voltará para Baiona ao anoitecer.

- Serão cumpridas as ordens de Sua Majestade.

- Vieram contar à Imperatriz que a gente rústica de Baiona já diz que o regimento vem do país das guitarras! É verdade: Quem é aquele capitão de granadeiros que me acompanhou na revista? Pareceu-me homem ilustrado e de boa educação.

- É dos mais ilustrados que têem as tropas de Portugal. Pertence a uma das mais nobres famílias do meu país.

 

*1. «Com isto acabava a revista, depois da qual iam as tropas jantar com as da guarda do imperador, oficiais com oficiais e soldados com soldados.» (Castro Pereira).

 

- Fala o francês admiravelmente! A Imperatriz deseja ter alguém que a informe a respeito das tradições e costumes de Portugal. Podia escolhê-lo a si, General, mas nós temos de tratar de assuntos importantes. Quero ouvi-lo a respeito de coisas da Legião. Diga a esse oficial que a Imperatriz deseja recebê-lo para que lhe dê esclarecimentos àcêrca dos cantares e danças de Portugal.

- Sire, será uma honra insigne para esse moço capitão.

O jantar acabou pelas cinco horas. Os soldados estavam alegrotes, o vinho de Bordéus aquecera-os e receberam com vivo alvoroço a ordem transmitida pelo general Pamplona.(1)

Os sargentos escolheram os melhores cantadores e os de mais fama nas danças. O pior era por causa das guitarras que tinham ficado em Baiona.

Mas logo se remediou essa falta. Aprontou-se uma caleche da cocheira imperial e o João Luís e mais dois insignes guitarristas e cantadores meteram-se nele para ir buscar os instrumentos.

a caleche partiu nas horas de estalar e voltou com pequena demora.

Era preciso satisfazer a curiosidade da Imperatriz, e Napoleão muitas vezes havia acedido aos caprichos feminis da lânguida crioula.

Organizaram-se danças, Luís de Castro foi apresentado pelo general Pamplona à Imperatriz, à Princesa Borghése e às pessoas da corte que estavam nos pavilhões do jardim. Pamplona retirou-se, foi ter com o marechal Berthier e com êle se dirigiu para o gabinete de trabalho de Napoleão.

 

*1. «Acabado o jantar havia danças e cantigas nacionais debaixo das janelas de Marrac, para divertir Josefina e as suas damas e cortesãos.» (Castro Pereira).

 

- Já ouvi que é lindo o vosso país, sr. Capitão - disse a Imperatriz a Luís de Castro.

- Um encanto, Majestade.

- Laura Junot, a Duquesa de Abrantes, sabeis?...

- Tive ocasião de a conhecer em Portugal.

- Falou-me uma vez de Lisboa, da sua paisagem, do seu grande rio, de um sítio dos arredores, que lembra um pedaço do paraíso...

- Sintra...

- Isso, parece-me que foi assim que lhe chamou. Lembra-se? - preguntou, voltando-se para a Princesa Borghése.

- Lembro. Contou que havia lá árvores soberbas, recantos de prodigiosa beleza, lendas de uns amores de mouras e de uns amores de reis.

Os olhos estonteadores de Paulina envolveram o moço oficial.

Josefina observava-os.

Luís de Castro disse calorosamente:

- Um ninho de amores como ainda nenhum poeta o sonhou mais lindo! Esvoaçam pelas suas árvores colossais as lendas de remotos amores, andam os sonhos a borboletear pelas flores daquele trecho de serra que mãos de fada talvez criaram, soluçam pelas fontes as mouras encantadas, princesas mouras de desditosos amores.

- Uma delícia que eu estou sonhando e gostava de ver - disse Paulina lentamente, com um leve estremecimento do seu busto escultural.

- Conta-se que um poeta da corte requestara a filha de um rei, princesa de peregrina beleza, que o destino lhe levou para longe. Não se sabe, não se soube nunca se ela o amou também.(1)

 

*1. Referia-se aos lendários amores de Bernardim Ribeiro com a infanta D. Beatriz, filha de el-rei D. Manuel. D. Beatriz casou com o Duque reinante de Sabóia.

 

- Talvez. Era mulher como as outras - acudiu Paulina.

- Era princesa, mas o que por lá sabemos é que a fizeram noiva dum duque reinante num belo país da Itália, para onde a levaram e nunca mais voltou.

- Capitão, contais essas cousas como um poeta! - interveio Josefina, volvendo um olhar melancólico para a princesa.

- Bem diz a Duquesa de Abrantes que no vosso país todos são mais ou menos poetas - comentou Paulina com um sorriso encantador - Diz ela que é do céu e daquele país do sol, delicioso como a Grécia, pátria de origem da família de madame Laura Junot.(1) Céu calmo e formoso, talvez como o da Itália.

- Céu e flores que lembram a Itália. Nunca vi a terra italiana, Princesa, mas um velho oficial de marinha, meu parente, esteve em Nápoles e em Roma e disse-me que por lá se lembrara do céu português.

A Imperatriz reparara na perturbação de Paulina e mudou em gracejo o tom sentimental da conversa.

- Também a duqueza me contou coisas curiosíssimas da vossa terra e da sua gente. Até me citou um dito dos espanhóis a respeito dos apaixonados portugueses. Dizem em Espanha que os vossos compatriotas são capazes de morrer de amores por todas as damas do mundo.

- Senhora, já a tradição mostra que os nossos vizinhos exageraram. Amoroso como um português, disse um certo poeta de Espanha. A história confirma que alguns morreram pela sua dama, mas nunca merecemos essa fama de requestadores volúveis.

- Nem mesmo na índia? - preguntou Paulina, maliciosamente.

- Nem mesmo lá.

Começavam as danças dos soldados e a Imperatriz

 

*1. Laura Permon era de uma família oriunda da Grécia.

 

chamou a atenção de Paulina para aquele bailado de requebros, acompanhado pela música chorosa das guitarras.

Luís de Castro envolveu- num olhar ardente a figura gentilíssima de Paulina.

- Assombrosa mulher.

E lembrou-se de Maria Pulaski, linda como ela, casta como as santas.

- Capitão, como se chama aquela dança?

- O lundum chorado.

- Dança e cantar português, está claro?

- Não, Majestade. Dizem que foi trazida da África, talvez por africanos que viviam no convívio dos mouros. Levaram-na para o Brasil os negros, e, provavelmente, os portugueses, e tornou-se a dança e o cantar dilecto dos naturais das terras brasileiras.(1)

- Dá-me ideia de uns bailados crioulos da Martinica.

- Tem requebros como os bailados orientais que eu vi em Roma por uma das dançarinas pársis - disse Paulina.

- Aqueles ciganos que aí estiveram a semana passada - recordou Josefina - também faziam uns requebros assim. E aquela agora, capitão?

- É denominada a chula. Antiquíssima. Metia-a nas suas peças um poeta de teatro que Portugal teve há cerca de trezentos anos.(2)

- Lembra-me um pouco as gavotas.(3)

 

*1. Em uma das suas cartas de 1780, o inglês Beckford aprecia assim as modinhas do Brasil: «Consistem nuns lânguidos e entrecortados cantares como de quem houvesse cansado em excessos de enlevo ou como se a alma de quem canta anelasse o unir-se a outra alma extremecida. Com a sua simplicidade se nos vão insinuando no coração, sem nos darem tempo a defendê-lo daquela voluptuosa influência, etc.»

  1. Gil Vicente nos Autos e farsas.
  2. José Garcez atribui esta frase à Imperatriz: J'aime bien cettes gavots Portugaises.

 

Passaram uns momentos de silêncio. Paulina pousava de quando em quando o seu olhar lúbrico nos olhos perturbados do moço capitão.

- Agora aquele soberbo soldado - indicou Josefina - Um hércules de guitarra nas mãos!

- É o melhor granadeiro do regimento. Está doido de alegria.

- Porquê?

- Sua Majestade o Imperador perdoou-lhe o resto de um castigo que lhe fora aplicado.

- Pobre rapaz!

- E como é tão bom guitarrista como granadeiro, vai acompanhar-se à guitarra nas cantigas melancólicas da terra portuguesa.

- Então já vejo que tudo lá é melancólico, menos o sol e o céu - acudiu Paulina, fitando-o com uma insistência perturbadora.

- As almas é que são melancólicas, Princesa,, como todas as almas sonhadoras.

- País de poetas e de amorosos, já percebi - disse-lhe Paulina sorrindo.

- De tais poetas e galanteadores, Princesa, que na maior batalha que lá houve, a hoste de mais bravura chamava-se a ala dos namorados, e o divino poeta que mais alto cantou naquela terra façanhas de soldados e navegadores foi também o maior poeta do amor que tiveram as Espanhas. Eram trovadores como os vossos da Provença os nossos fronteiros e batalhadores de Marrocos. Dizem que é do sangue mouro que herdámos e da convivência do Mar, onde a alma antiga de Portugal tanto viveu e sonhou que foi dar consigo aos confins do mundo.

- A descobrir terras, bem sei - disse Paulina - Meu marido tem no seu palácio de Roma um quadro antigo, precioso, de um rei português que recebe debaixo do pálio os navegadores da índia.(1)

 

*1. O palácio do príncipe Camille Borghèse, segundo marido de Paulina Bonaparte, era dos mais opulentos de Roma. A sua galeria de preciosidades artísticas representavam um tesouro de altíssimo valor.

 

- Há-de ser el-rei D. Manuel, o Afortunado, a receber Vasco da Gama no regresso do descobrimento da índia. Nesses tempos, Portugal, das mais poderosas e ilustres nações do mundo, dentro de seu palmo de terra europeia, encontrava em Roma vibrações triunfais de apoteose. Na corte faustuosa de Leão X celebraram-se os maiores feitos da gente heróica do meu país.

- Com que tristeza o dizeis, Capitão!

- Princesa, é pelo amargurado contraste entre a soberba nação que fomos e o que hoje somos!

- Ouça, ouça - recomendou Josefina à Princesa. Nesse estilo de música chorosa, que já era antiga e depois se generalizou com a designação de fado, o granadeiro cantava enternecidamente umas quadras de saudade pela sua terra distante. Composição talvez de algum poeta anónimo que, em outra conjuntura, vivera longe de Portugal, na índia ou no brasil.

- Tenho pena de não entender o que êle cantou! - disse a Imperatriz.

- Senhora, terei eu a honra de vo-lo resumir pàlidamente no pobre francês que sei falar.

- Pois sim, agradeço-lho.

- Recorda a sua terra de Portugal, a mãe, já vèlhita, e a mulher nova, prometida noiva, de quem se apartou chorando. Pede-lhe que não se esqueça e, quando vier outro Abril, se êle não tiver voltado, desfolhe por aqueles amores, tão cedo amargurados, os malmequeres que branquejavam na várzea onde disseram o último adeus de despedida, gemido nas carícias do último beijo.

- Tem não sei que ingénuo encanto, um suave perfume de singeleza, essa poesia do soldado! - disse Josefina - E será ideada por êle?

- Talvez, Senhora. Encontram-se na poesia do povo pensamentos de admirável inspiração, dizeres amoràvelmente enternecidos, imagens formosíssimas, que os poetas consagrados não seriam capazes de exceder. Às vezes em versos rústicos, incorrectos, um luar de sonho e um perfume de poesia que nos inebria!(1)

- E assim é, provavelmente, na poesia popular de todos os países - disse a Princesa na sua voz de perturbadora magia - Da Itália conheço eu umas canções populares que são deliciosas. E quási todas elas de amores venturosos sob aquele céu que tem fulgores de sonho.

E de olhos cravados no moço oficial, envolveu-o todo num olhar de voluptuosa sensualidade.

Luís de Castro ergueu o olhar estonteado para aquela figura digna de mulher, Vénus que nenhum escultor saberia igualar nos mais puros mármores de Paros ou de Carrara.

Era bem a maravilha lúbrica de que falavam os cortesãos das Tulherias, a obra-prima da natureza, como o general Thiébault lhe chamou.

Felizmente, para quebrar o enleio de Luís de Castro, que Josefina já tinha notado, o Imperador chegou, acompanhado de Berthier e Pamplona. Ficou ao fundo do pavilhão.

Castro afastou-se. A imperatriz e Paulina dirigiram-se para Napoleão.

 

*1. Dezanove anos depois, Kinsey dizia no seu Portugal illustrated: «As modinhas portuguesas são peregrinamente belas e simples, não só quanto à letra senão também pela própria música. Têem, geralmente, a expressão de algum sentimento amoroso, terno ou melancólico, de desespero ou esperança, e é tal o seu efeito que, se forem bem acompanhadas pela voz de guitarra, chegam a arrancar lágrimas àqueles mesmos que estão mais habituados a ouvi-las».

 

- São curiosas aquelas danças - disse-lhe Josefina.

- São. Vi-as há instantes da janela do meu gabinete. Se batalharem como dansam, tenho então neles uns excelentes soldados. Aqui, o general Pamplona, afiança-me que hão-de ser dignos das tradições do seu país, na hora em que eu os mandar para um campo de batalha. Amanhã chega outro regimento. O seu, Capitão, partirá amanhã mesmo para a cidade de Pau, onde lhe foi preparado o aquartelamento.

Castro perturbou-se. A saída do regimento importava para êle um novo apartamento de Maria Pulaski.

Napoleão percebeu.

Parece que o contrariou a ideia de partir?

- Sire, o meu dever é partir.

- Preferia ficar em Baiona?

- Devo dizer a verdade... preferia.

Paulina afogueou-se num alvoroço de júbilo, que nem Josefina nem Bonaparte notaram.

- Por motivos particulares, provavelmente?

- Sire, por estar nas imediações de Baiona uma família que eu conheço de Lisboa.

- Família francesa?

- Estrangeira. Da Polónia.

- Bem, isso é um caso particular com que nada tenho, General - disse, voltando-se para o Pamplona - Este Capitão fica em Baiona até que passem as últimas forças da Legião. Meu caro Príncipe - acrescentou para Berthier - considere-o provisoriamente como oficial às ordens, agregado ao meu estado-maior.

- Sire, tamanha honra!

- Mas regressará ao seu regimento, assim que a Legião estiver toda em França. Quero os regimentos escrupulosamente organizados, e os bons oficiais fazem sempre falta nas tropas em organização.

- Honra insigne de Vossa Majestade. Despediu-se. Josefina disse-lhe umas palavras obsequiadoras de agradecimento. Paulina despediu-o com singular frieza, que contrastava com os olhares sensuais com que momentos antes o perturbara.

Tê-la-iam contrariado as declarações de Luís de Castro a respeito do seu desejo de ficar em Baiona, ou seria aquilo apenas um disfarce por causa do irmão?

Castro retirou-se.

Revoavam pela planície de Marrac os sons dos tambores tocando à forma. A família imperial retirara-se para o palácio.

Ouviram-se vozes e imprecações do lado dos barracões da guarda imperial. Um oficial às ordens veio comunicar ao marechal Berthier que estavam feridos com navalhadas dois granadeiros da Guarda.

- Quem os feriu?

- Dois soldados portugueses.

- Bêbados, provavelmente, com o Bordéus que a Imperatriz lhes mandou distribuir.

Pamplona estava presente. Fêz um gesto de pesar.

- Marechal, eu vou informar-me - disse, acabrunhado.

- Não é preciso. Vai um dos meus ajudantes-de-campo. Não sabia que eram também homens de navalha, os tais soldados guitarristas! - acrescentou com azedume - Começaram mal! Terão de ir para as galés, em vez de irem para os campos de batalha.

- Marechal - alegou Pamplona - as excepções não podem fazer regra. Talvez houvesse conflito pessoal.

- Eram soldados antigos esses que ficaram feridos? - preguntou Berthier.

- Dois velhos granadeiros - informou o oficial às ordens - ambos cavaleiros da Legião de Honra - um deles foi abraçado pelo Imperador no dia de Austerlitz, o outro fêz prodígios de bravura em Eylau e era já conhecido pelas suas proezas em Arcole, em São João d'Acre, no Marengo.

- Então calcule a cólera do Imperador, quando souber que dois dos seus gloriosos soldados foram esfaqueados por uns galuchos portugueses, uns bêbados. Os infames faquistas! Se os mandassem carregar à baioneta, entre uma companhia da Guarda, fugiam doidos de medo.

- Perdão, Marechal. Talvez não fugissem. Destes conflitos há-os em todos os exércitos. Servi na Rússia, e lá os presenciei piores. Em Lisboa, pouco antes de sairmos de lá, tinha havido numa rua da cidade um verdadeiro duelo à baioneta entre dois soldados franceses.

- Aqui, General, a diferença é enorme. Trata-se da agressão cobarde de uns soldados obscuros a dois velhos soldados desta gloriosa Guarda que os honrara como seus hóspedes.

Napoleão entrava na sala.

- Berthier, o que houve? Senti uma estranha vozearia ali, nos quartéis da Guarda!

O Marechal reproduziu-lhe a informação que recebera.

Num repelão de cólera, Napoleão voltou-se para o Pamplona.

- General, quero saber porque essa canalha de faquistas agrediu dois bravos da minha Guarda. Repare bem: dessa Guarda que representa as maiores glórias militares da França, dessa Guarda que tem vencido os melhores exércitos da Europa e, por minha ordem, honrava esses, que nunca venceram ninguém!

Pamplona estava acabrunhado.

Chegou o coronel de um dos regimentos da Guarda.

Vinha êle próprio informar o Major-general. Os feridos eram do seu regimento. Napoleão interrogou-o.

- Dois soldados dos mais antigos e dos mais valentes - disse o Coronel, depois de informar que os ferimentos não eram de gravidade.

- Mas houve alguma causa ou agravo pessoal?

- Sire, disseram-me que agressores e agredidos estavam embriagados.

- Igualou-os nesse caso a mesma degradação!

Apareceu à porta Luís de Castro. Tinha ido participar ao comandante do regimento a ordem do Imperador a seu respeito e o Coronel encarregou-o de ir ao quartel da Guarda tomar informações do deplorável acontecimento e levá-las depois ao general Pamplona.

- Entre, capitão - disse o Imperador - O que houve com dois faquistas do seu regimento?

- Sire, por ordem do meu Coronel fui informar-me ao quartel da Guarda: ouvi um sargento e um cabo que presenciaram o conflito.

- E depois?

- Afirmaram-me que os dois soldados portugueses estavam ébrios, mas que também o estavam os dois velhos soldados da Guarda.

- Já sabia. Mas por que causa ou por que pretexto foi que esses faquistas feriram os meus soldados?

- Por causa da posse de uma garrafa de Bordéus, daquelas que Sua Majestade a Imperatriz mandou dar aos soldados portugueses. Os da Guarda arrancaram-lha das mãos, os do meu regimento procuravam reavê-la violentamente. De súbito, um dos velhos soldados esbofeteou um dos portugueses. Travou-se então briga. Os da Guarda puxaram das baionetas, os outros, que as tinham no sarilho, tiraram da algibeira as navalhas e, mais ágeis decerto, feriram-nos de um salto.

- É informação segura? - preguntou, olhando fito para Luís de Castro.

- Sire, reproduzo o que me disseram o sargento e o cabo da vossa Guarda, que presenciaram o conflito e intervieram, para evitar que os outros se envolvessem nele.

- Bem. Nem quero saber em que batalhas se distinguiram esses dois velhos ébrios que brutalmente intentaram fazer um roubo vil a dois camaradas estrangeiros, seus hóspedes, por minha determinação. Tenho esses soldados portugueses para servirem nos exércitos da França, e se os não quero ébrios e faquistas, também não consinto que percam a noção do brio até ao ponto de se deixarem esbofetear impunemente como canalha sem pundonor. Diga ao seu Coronel que perdoo aos dois agressores, mas que os traga vigiados e, à menor falta, os mande punir com excepcional rigor.(1)

«General Pamplona, dê ordem para o regimento marchar. Amanhã, antes de retirarem de Baiona, revista individual para todos os soldados. Igual revista para os que forem chegando de Espanha. Mande punir severamente aqueles a quem encontrarem navalha ou faca de qualquer espécie.

- Sire, vão ser cumpridas as ordens de Vossa Majestade - disse Pamplona.

Saiu acompanhado de Luís de Castro.

Minutos depois o regimento desfilava para Baiona.

 

*1. Referindo que a Imperatriz mandara dar uma garrafa de Bordéus ou dinheiro a cada um dos dançadores, Castro Pereira comenta: «Os soldados quiseram antes o vinho, e a festa acabou à portuguesa, isto é, com facadas, que os nossos deram em alguns franceses. Napoleão foi informado disto, perdoou tudo.» (História da Legião Portuguesa em França).

 

Era noite fechada.

Entre os grupos de populares um observador comentou gracejando:

- Estes macacos trigueiros comeram o jantar à Guarda e furaram a barriga a dois veteranos. Selvagens do país das guitarras e do país das navalhas!

 

           A Vénus Imperial.

Luís de Castro foi nessa mesma noite falar a Maria Pulaski, do lado da azinhaga do Açude. Era mais tarde que na véspera.

Levou-lhe a notícia de tudo o que se passara de tarde nos jardins de Marrac. Maria ouvia-o com enlevo e alvoroço infantil.

Sentia orgulho por aquele escolhido da sua alma. Chamado ao paço do glorioso Napoleão para dar esclarecimentos à Imperatriz, honrado pelas simpatias do homem excepcional que assombrava a Europa, com tão altas distinções de estado dos outros, êle, o seu bem amado Luís, o noivo dos seus mais belos sonhos!

Mas neste rútilo quadro, que a sua fantasia engrandecera, via a sombra duma figura de mulher que não conhecia e lhe causava ciúmes, uns doidos e amargos ciúmes, que teria vergonha de confessar a alguém.

Sombra de uma figura gentil que Luís de Castro já lhe gabara na noite anterior e agora tornava a lembrar-lhe com fervorosa admiração. Uma beleza escultural, como êle dizia, a mais linda mulher da França.

Muito altamente colocada, realmente, mas Luís de Castro subiria até ela pelos seus dotes distintos, e se a Princesa gostasse dele, se o amasse, que importaria a diferença de categorias? A Beauchamp contara-lhe em tempo uns casos de amores entre pessoas de desigual categoria. Rainhas e imperatrizes que tinham amado homens do povo.

Não conhecia a história de Paulina Bonaparte, se a conhecesse teria então maior e mais justificado receio dessa mulher prodigiosamente formosa, mas o que ela sabia, por lho ter dito Ana Beauchamp, era que não tinha razões para sobrancerias de estirpe aquela família corsa dos Bonapartes, toda ela a reflectir, apenas pàlidamente, os resplendores da glória do Imperador, erguido pelas baionetas vitoriosas dos seus soldados.

Estava a falar carinhosamente com Luís de Castro e o coração a confranger-se-lhe nas convulsões daquele receio.

- Princesa linda que êle pode ver todos os dias, com quem pode falar e de quem êle fala com tão extraordinária admiração! - pensava -, E eu, a filha de um condenado, a Deus e à ventura pelo mundo!

- Em que estás tu cismando, Maria? Parece que nem me ouviste!

- Ouvia, sim. Não era cismar, era estar a compor na ideia o retrato dessa linda irmã do Imperador. Gostava de a conhecer.

- Não precisas. Bastará que peças ao teu espelho que te dê um retrato de mulher admiravelmente formosa. Será o teu retrato. Mas se idealmente lhe tirares a expressão de meiga bondade que têem as santas, se do olhar, a reflectir energias e vagos sonhos de alma, apagares a casta ingenuidade de criança que tem o teu olhar e se ao viço e perfume dos teus dezanove anos, flor que ninguém ainda maculou, antepuseres vinte e oito anos agitados de paixões e de experiências do mundo, terás feito o retrato físico da Princesa sobre o teu retrato. Mas o outro, exclusivamente moral, esse nem tu o sabes idear nem eu me atreveria a fazê-lo diante de ti.

- Como tu me favoreceste, Luís! Mercê desse amor que me não deixa ter inveja das princesas, por mais lindas que elas sejam! Enquanto eu o merecer, enquanto a minha boa fortuna quiser que êle dure!

- Sempre! Amor para sonhar ou para morrer.

- Quem sabe, Luís? Mudam as coisas do mundo tão subitamente!

- A loucura em que tu agora havias de pensar, Maria!

A Beauchamp veio de corrida preveni-la de que o pai por umas poucas de vezes tinha chamado por ela.

- Vou já. Dá-lhe uma desculpa.

Ana retirou-se e Maria desceu do mirante como na noite antecedente.

O beijo de despedida é que foi mais longo, mais ardente que o outro da véspera. Talvez por estímulo daqueles seus vagos ciúmes, Maria sentiu este mais intensamente e foi maior a sua perturbação.

Nem um nem outro haviam reparado em dois vultos que se tinham metido num cotovelo da azinhaga e ali se conservavam escondidos. Um deles era alto, o outro de mediana estatura. E o mais singular é que tinham seguido Luís de Castro desde o Hotel Águia da Gironda, onde êle estava hospedado, até às proximidades da casa do polaco.

Muito chegado ao muro do jardim, todo embevecido na conversa com Maria, Luís não podia ouvir-lhes o rumor abafado dos passos.

Na altura daquele longo beijo de despedida, os dois vultos saíram do cotovelo da azinhaga, pé ante pé, e afastaram-se para o lado da cidade.

- Não percebemos palavra - disse em francês um deles para o outro vulto - uma mulher.

- Mas estivemos até ao fim - respondeu uma voz feminil - e era esta a obrigação que tínhamos. E vimos tudo com este luar de prata!

- Levamos informação completa... Há-de ficar satisfeita com este modelo de lacaio-espreitador. Não entendi, mas observei.

- Faça favor de me meter também na conta.

- Está visto que sim. A criadinha particular, confidente de duas dúzias de amores...

- Upa, upa! Aquilo é dito e feito. Vê-los e cobiçá-los!

- Hoje foi num rufo! Vê-lo e amá-lo. O que vale é que ela paga bem estes serviços extraordinários.

- Pudera, não. O outro, o Camilinho está longe e é rico a valer...

- E já não estranha - acudiu rindo aquele que a si próprio se denominara lacaio-espreitador - E fica sabendo que vou com um apetite de beijos devorador! Aquele que eu vi, que nós vimos, fêz-me fome de te beijar.

- Tem juízo. Olha que pode passar alguém.

- Não parece mal. Somos quási noivos. E viemos juntos para parecermos marido e mulher.

- Ou manos.

- Oh! mana! - disse, abraçando-a.

- Quieto!

- Olha, ali vem êle. Não será capaz de sonhar que o estivemos espreitando. Ainda que nos surpreendesse na azinhaga, desconfiaria de tudo, menos da verdade. É a vantagem que tem esta espionagem acasalada. Quem se lembrou disto conhece bem o mundo.

E assim foram conversando, mas não tomaram para a esplanada da praça.

Ao outro dia de madrugada Luís de Castro foi despedir-se dos seus camaradas do regimento. Encontrou-os já a entrar em forma e acompanhou-os a cavalo até muito além das portas da praça, pela estrada de Pau.

  1. Lourenço de Lima, muito das relações do Coronel, fora também e voltou com Luís de Castro.

Meteram os cavalos a passo.

- Tem algumas informações a respeito da cidade para onde eles vão? - preguntou-lhe Luís de Castro.

- Tenho. Disseram-me que é uma linda cidade.

- O segundo regimento deve chegar hoje. Irá também para lá?

- Não. Ouvi dizer a Berthier que ia para Tarbes.

- E das coisas de Espanha? Cada vez piores, provavelmente?

- Inquietadoras! A revolução de 2 de Maio sacudiu a velha energia espanhola. Os contrabandistas dos Pirenéus têem trazido notícias aterradoras, que o estado-maior do Imperador inutilmente procura negar. Estala a revolução em todas as províncias de Espanha. Prega-se a guerra santa da pátria contra os franceses, as províncias insurreccionam-se, organizam-se guerrilhas, as mulheres, os homens, as próprias crianças perseguem os soldados franceses que apanham isolados como se perseguissem lobos vorazes! Matam-nos sem piedade nos becos e nas tabernas, assassinam e arrastam pelas ruas, retalhados, cuspidos, amortalhados na lama, feita do seu próprio sangue, aqueles que foram acusados de traidores à Espanha, de jacobinos vendidos a Napoleão. Um horror, Luís de Castro!

- Compreende-se. A alma espanhola reviveu. Creio que Napoleão se enganou, julgando-a morta.

- Não sei, Luís de Castro, não sei! O Imperador tinha oitenta mil soldados na Espanha, terá agora perto de cem mil, e ouvi que em breve poderá lá ter duzentos e cinquenta mil homens!

- Um formidável exército para vencer batalhas, para abater os Agsburgos como em Austerlitz, para derrotar os russos como em Iena, e talvez não baste para esmagar o coração espanhol nos desfiladeiros daquelas ásperas serranias, por onde os guerrilheiros podem matar as águias a tiros de arcabuz. Sou implacável contra os farronqueiros da Espanha, sempre que lhes percebo o intuito de deprimir a nossa gente e a nossa terra, mas também ninguém como eu tem mais fervorosa admiração pela epopeia imortal da alma espanhola e por aquele fanatismo da pátria, que pode levá-los aos mais feros desesperos e também às mais heróicas abnegações. Di-lo a sua grande história, que eles decerto não desmentem agora, faço-lhes esta fácil justiça.

- Pois sim, mas decairam muito. Se você soubesse as vergonhas que tem havido aqui com a família real espanhola, e Napoleão a desfrutá-los. Tudo aqui. O velho tonto do rei, a rainha Maria Luísa, o inseparável Godoy, que Murat desencarcerou de Madride, e com um papel proeminente neste auto de infamação, como lhe chamaria Gil Vicente, aquele príncipe Fernando, que os espanhóis aclamaram de joelhos, diante do paço de Aranjuez! Ludibriados no tratado de Fontainebleau...

- Isso me consola a mim, D. Lourenço. Expiaram ridiculamente aquela sua velha ambição de subjugar Portugal.

- Mas o pior e o mais ridículo não foi a embaçadela de Fontainebleau, foi isto aqui. Estiveram de rojo aos pés de Napoleão, como em Espanha se dizia que o nosso Príncipe Regente estivera de rojo aos pés dos ingleses, e afinal Fernando VII, aclamado em Aranjuez pela forçada abdicação do pai, abdicou aqui em favor do primeiro abdicante, aquele pobre Carlos IV, que a seu turno abdicou em Napoleão a sua coroa de rei das Espanhas e das índias! E sabe você porque risível compensação?

- Não sei. Ainda não tive tempo para falar de política.

- O herdeiro de São Fernando e de Carlos V recebeu em troca da sua coroa e dos leões do seu trono, dez vezes secular, os castelos de Compienha e Chambord e uma renda de trinta milhões de reales!

- Já não podem escarnecer de nós os cooperadores de Junot!

- O ex-rei Fernando VII lá foi para o castelo de Valençay com o irmão Carlos e o tio António. É um prisioneiro de Napoleão, mas, ao menos, um prisioneiro que mr. de Talleyrand e sua ex.ma esposa foram encarregados de entreter e divertir.

- É uma nota de comédia?

- E. Contaram-me em Marrac, sem nenhum pedido de segredo, que Napoleão escrevera a Talleyrand uma carta curiosíssima, falando-lhe daquele encargo assez honorable, pour les amuser. Que Madame Talleyrand levasse consigo, insinuava-lhe, quatro ou cinco damas, e nenhum inconveniente haveria em que o Príncipe das Astúrias que se enamorasse de alguma delas, contanto que o tivessem bem seguro e entretido em Valençay.

- Essa intriga política de baixa comédia tornou-se o prólogo, a um tempo truanesco e pungente, daquela tragédia de Espanha que teve a sua primeira cena de sangue em dois de Maio e não sei onde terá a última.

- Tem garras colossais a águia napoleónica!

- Também as tinha enormes, tamanhas que abarcavam o mundo, a águia ovante da Roma cesariana, e algumas vezes se lhe quebraram contra as penedias da terra espanhola e da terra lusitana.

- Veremos. Mas, por terra lusitana, diga-me, sabe alguma cousa de Portugal?

- Não, e estranho não ter recebido cartas de Lisboa!

- Provavelmente porque as guerrilhas espanholas têem impedido a passagem dos correios.

- Naturalmente por isso. Hei-de preguntar em Marrac se têem recebido correios de Junot. Não me palpita que Portugal fique tranquilo.

- Não deve, não pode ficar.

- Mas olhe, meu caro Luís de Castro, que se eu tiver de ficar sujeito à tutela estrangeira, prefiro a soberania de Napoleão ao domínio da Espanha. Ainda que no trono espanhol esteja um irmão do Imperador.

- José Bonaparte?

- Sim, esse. Está tudo preparado para o fazer rei de Espanha. Deixa o trono de Nápoles.

- Não sei se poderá executar a mudança.

- Creio que sim. Murat consultou em Madride a Junta Provincial e o Supremo Conselho de Castela e os votos foram por José Bonaparte para rei das Espanhas e das índias. As coisas tornaram-se graves, mas enquanto a plebe se revolta, os grandes transigem. As montanhas vomitam guerrilheiros, mas a Villa Coronada submete-se! Se por aqui se demorar, vai você ver uma coisa curiosa e única. Uma espécie de cortes espanholas reunidas em França, nesta cidade de Baiona, para votar a constituição liberal da Espanha, mandada redigir por Napoleão, como se fosse o boletim de uma batalha ou um artigo público do Moniteur! Há-de ver. Fala-se de cento e cinquenta convocações das classes preponderantes da Espanha, de deputações da nobreza, do clero, do exército, do Supremo Conselho de Castela, do Conselho das índias, do Conselho da Inquisição. Tudo aqui reunido para tratar da sorte política dos espanhóis!

- Pois por todas essas humilhações ainda maior e mais implacável revolta na Espanha. Há-de ver.

- Napoleão ainda há dias parecia satisfeito com as cousas de Espanha, que pareciam vir ao encontro dos seus planos. Atribui-se-lhe esta frase íntima: «Vai tudo em Espanha como eu desejo».

- Talvez o não diga hoje. Creio que as suas previsões políticas têem sido sempre inferiores aos seus planos estratégicos. O meu coração de português e de soldado vê nele duas individualidades que não confunde e tem por êle dois sentimentos que se não conciliam. Detesto o homem político, sem escrúpulos, e admiro o homem dos campos de batalha, sem outro que o exceda na história do mundo.

Tinham chegado às portas da cidade.

- Olhe lá, Luís de Castro. Venha almoçar comigo.

- Muito obrigado, mas na minha qualidade de oficial às ordens, provisoriamente adjunto ao quartel-general imperial, tenho de ir logo apresentar-me a Berthier.

- Tem muito tempo. São sete e meia. Conversamos, almoça-se às dez e vamos os dois para Marrac.

- Não devo ir com este fardamento.

- Pois sim, iremos ambos pelo seu hotel.

- Não resisto. Estou às suas ordens. Entraram os dois em Marrac era cerca de meio-dia.

Luís de Castro fêz as suas apresentações oficiais. Berthier disse-lhe que de nenhum serviço o encarregava e bastaria que aparecesse todos os dias para que o Imperador o visse.

Esperava-se de tarde o segundo contingente português.

  1. Lourenço de Lima tinha muitas relações na corte imperial, desde os seus tempos de ministro plenipotenciário em Paris. Apresentou Luís de Castro a várias personagens do Paço.

Levou-o a um gabinete onde estava o sr. de Pradt, bispo de Poitiers, que tinha então na corte imperial a dignidade correspondente à de esmoler-mor da antiga corte de Portugal.

Lima apresentou o moço oficial ao prelado, a quem chamou um dos maiores amigos que tinha em França.

O Bispo recebeu Castro afectuosamente e ficou-se a conversar com êle a respeito das coisas de Portugal.

  1. Lourenço de Lima deixou-os na palestra e foi falar a um alto dignitário do palácio, que tinha assomado à porta do gabinete, e com êle se encaminhou para os aposentos do Imperador.

Caiu a conversa em assuntos políticos da Espanha e de Portugal, falando-se do destino provável das duas nacionalidades.

- O Imperador já sabe que os srs. preferem as maiores calamidades a verem-se incorporados na monarquia espanhola.

- Podemos ser bons vizinhos da Espanha, dominados seus, não.

- E, todavia, têem a mesma raça de origem.

- Apartou-se há seiscentos anos em duas famílias inconfundíveis na História.

- Nascem na Espanha os vossos grandes rios e vêem de lá as serranias maiores do vosso país. A natureza não pôs fronteiras entre os dois estados.

- Perdão, sr. Bispo. Os seis séculos da história do meu país valem pela mais alta cordilheira do mundo, a extremar as duas nações. O sangue das nossas campanhas de defesa, sangue de doze gerações de batalhadores, rasgou um fosso enorme entre os dois países, a nossa alma vê-se como se fosse um mar vermelho cujas ondas nem a vara bíblica de Moisés conseguiria apartar, para que passassem por entre elas, tranquilamente, as ambições da Espanha.

- Confirmais nessas palavras o soberbo Não de D. Lourenço de Lima - disse o Bispo, sorrindo afectuosamente,

- Vejo que não compreendeis a minha referência.

- Realmente não compreendi.

- D. Lourenço não vos contou ainda a sua extraordinária conversa com o Imperador, por ocasião de lhe apresentar aqui a deputação que o veio cumprimentar de Lisboa?

- Nada me contou e nada sabia a esse respeito.

- Pois eu vo-lo conto resumidamente. Foi uma coisa memorável, que impressionou Napoleão. A deputação portuguesa esperava o Imperador para o cumprimentar e saber dele o destino político do seu país. Foi-lhe apresentada horas depois de Sua Majestade ter chegado aqui. À frente da deputação vinha D. Lourenço de Lima, e era êle quem devia fazer o discurso de homenagem. Mas o Imperador não esperou pelo discurso e dirigiu-se logo a êle e aos outros deputados, falando-lhes da situação política de Portugal. Entretanto, o diálogo entre Napoleão e D. Lourenço é que foi verdadeiramente digno de registo. Eu assisti, ouviu-o perfeitamente. Vou ver se vo-lo reproduzo. «Que população tem o vosso país? - preguntou-lhe o Imperador, e sem esperar pela resposta, como tem feito outras vezes, quando êle próprio quere responder às suas ideias, acrescentou:

«- Dois milhões de almas.

«- Sire, mais de três - respondeu-lhe D. Lourenço.

«- Não sabia - volveu-lhe Napoleão - E Lisboa, cento e cinquenta mil almas?

«- Mais do dobro - respondeu logo D. Lourenço - Napoleão repetiu o primeiro não sabia, e fêz-lhe ainda outras preguntas relativas aos modestos recursos do vosso país para constituir um estado independente. De súbito interrogou-o desta forma, num daqueles sacudidos movimentos que lhe são familiares:

«- Mas afinal o que querem os srs. Portugueses? Querem ser espanhóis?» O meu caro sr. D. Lourenço de Lima aprumou-se resoluto, altivo, como se de repente houvesse crescido de estatura, pôs a mão no punho do espadim e, com uma voz que fêz estremecer a sala, respondeu: Não! O Imperador cravou nele o seu olhar de águia e sorriu, como se já contasse com aquela resposta. Eu, pela minha parte, confesso que fiquei aturdido. Nunca ninguém, que eu soubesse, tinha respondido assim a Napoleão, o Grande! Os antigos heróis portugueses não teriam replicado com mais altiva energia! Aquele Não resumia uma epopeia! Ficou-me bem nos ouvidos! A corte fala ainda do famoso Não de D. Lourenço de Lima.(1)

- Sr. Bispo, beijo-lhe as mãos pela gentileza desta narrativa - disse-lhe o Castro, comovido - É um consolo para o meu coração de patriota. Tantas desventuras teem atribulado o meu país, que já é bendito alívio saber como ainda cá fora alguns dos seus filhos o conseguem honrar.

Vieram prevenir o Bispo de que a Imperatriz preguntara por êle. Saiu. Luís de Castro saiu também em procura de D. Lourenço de Lima para o abraçar por aquele famoso monossílabo de que Pradt lhe falara tão calorosamente.

Pela uma da tarde foi a recepção familiar da Imperatriz. Além da corte, compareceram os oficiais do estado-maior do Imperador. D. Lourenço de Lima foi também.

 

*1. Este episódio vem narrado, quási pelos mesmos termos, no livro que o próprio bispo de Poitiers publicou com este título: Mémoires historiques sur La Révolution d'Espagne.

O general Foy reproduziu a narração de Pradt no tomo III da sua História da Guerra da Península.

 

Luís de Castro entrou com os ajudantes de Berthier.

- Capitão - disse-lhe a Imperatriz com o mais gentil dos seus sorrisos - não nos falte esta tarde com as suas interessantes indicações. Sei que chega aí hoje outro regimento do seu país.

- Senhora, terei a honra de receber as ordens de Vossa Majestade.

Paulina estava presente. Pareciam nublados de tristeza aqueles seus olhos perturbadores, de pálpebras pisadas. Estendeu a mão escultural ao moço Capitão, que lha beijou ao de leve. Estremeceu quando os lábios de Luís de Castro lhe tocaram. Fèz-se pálida.

O Imperador não estava presente e a corte ficou em grupos, conversando.

A Imperatriz estava falando com D. Lourenço de Lima, encarregou-o de lhe ir chamar Luís de Castro para lhe fazer umas preguntas a respeito de Lisboa e das damas da corte de Portugal, que só conhecia por uns dizeres desdenhosos de Laura Junot.

Enquanto conversavam a respeito de Portugal, Paulina, um pouco afastada, fêz várias preguntas a D. Lourenço e quási todas relativas a Luís de Castro.

- É aqui, mesmo em França, um brilhante oficial.

- Sem dúvida, Princesa.

- Percebe-se logo que é homem culto, distinto.

- Representa dignamente a sua nobre família, uma das mais ilustres de Portugal.

- É bem um meridional. Tem uma eloquência espontânea, calorosa! Ouvi-o ontem com muito agrado. Estimei que meu irmão o deixasse ficar em Baiona. Ouvi-lhe dizer que tem aí uma família das suas relações, família estrangeira que esteve em Lisboa. Não sabeis?

- Princesa, não sei.

Mas o que êle notou foi que Paulina amiudadas vezes volvia uns longos olhares para Castro.

Pouco depois a Imperatriz retirava-se e Paulina saía com ela.

  1. Lourenço tomou Luís de Castro pelo braço.

- Vamos passear. Tenho que lhe dizer. Quere ir dar umas voltas pelo jardim?

- Por onde quiser. Desceram para o jardim.

- Acautele-se - disse-lhe baixo a um recanto afastado do palácio.

- Acautelar-me de quem?

- De uma beldade perigosíssima.

- Não percebo!

- A princesa Borghèse olha-o muito, interessa-se por si. Há pouco surpreendi sorrisos maliciosos nos lábios de certas damas da Imperatriz, na ocasião em que você beijava a mão de Paulina.

- Uma simples formalidade de etiqueta.

- Da sua parte, creio. Mas a princesa perturbou-se e isto é que não é da etiqueta nem está autorizado no protocolo. Bem vê que um antigo ministro plenipotenciário em Paris deve conhecer o protocolo da corte imperial.

- Graceja...

- Não é gracejar, é dar-lhe aviso de alguma possível aventura que o comprometa.

- Como hei-de eu comprometer-me, se não levanto olhos cobiçosos para essa beleza, realmente assombrosa, mas que me é fácil ver igualada em outra mulher e nessa com um perfume de casta juventude como a princesa talvez nunca tivesse.

- Podem os olhares dela procurá-lo, como há pouco.

- Evitarei aparecer-lhe.

- Já é um remédio. Mas deve continuar acautelado contra algum lance de teatro ou de novela, em que seja apanhado de cilada.

- Não me parece provável.

- É que a não conhece bem, nem sabe pormenores da história daquela mulher extraordinária.

- Ouvi falar dela em Lisboa. Contaram-me que os doidos arrebatamentos dos seus fáceis amores quási igualavam, pela raridade, aqueles encantos de que se fala tanto na Europa como das vitórias do irmão.

- Não direi tanto, mas é, realmente, uma mulher perigosíssima.

- Há três anos, Laura Junot...

- A sr.a Duquesa, se faz favor - interrompeu, sorrindo.

- Sim, a actual Duquesa de Abrantes descreveu-a diante de mim, em casa do Conde de Novion, com aquela inteligente galantaria e aquela malícia feminil que dão testemunho do seu espírito e da sua experiência do mundo. Lembro-me de ter dito, a propósito, uma frase que Laura Junot aplaudiu, envaidecendo os meus vinte anos, ainda mal experimentados no mundo. Era frase pretensiosa de rapaz, mas que dava talvez a nota justa desse portento feminil, que eu já tinha ouvido descrever numa conversa de rapazes. Sob o mármore escultural das suas carnes, como nenhum estatuário helénico teria modelado melhor, referve o sangue italiano daquelas patrícias de Roma que se entregavam aos legionários anónimos, no tépido ambiente das termas, ou em noites cálidas, no triclínio das orgias. Creio que foi assim que eu disse, inspirado por uma vaidade pretensiosa de orador, que foi a paixão e a fraqueza dos meus vinte anos.

- Não exagere.

- Filhas e irmãs dos Césares, algumas delas.

- Bem sei, mas vão tão longe, não lhe procure o paralelo histórico nessa desaforada antiguidade clássica. Esta é também irmã de um César, apareceu numa época em que se macaqueava aqui em França tudo o que tinha o feitio ou o sabor romano, antigo, desde os nomes dos heróis até à nudez das mulheres, esta é também uma princesa romana, por parte do benévolo marido que lhe deu o título, mas não chegou ainda ao delírio dos desaforos clássicos.

- Em Lisboa dizia-se que era o pesadelo do irmão.

- De acordo. Pesadelo por uns amores que voam inconstantes, sem quererem saber para onde, ôu descem doidamente, sem que os contenha escrúpulos convencionais. Uma cabecita doida, aquela divina cabeça de deusa, um temperamento de fogo a queimar aquela escultura de carne!

- Branca e cetinosa como as pétalas de uma flor còr de neve... maculada.

- Isso. E as aventuras romanescas por ela enredadas têem sido de escândalo para a corte imperial e de amargos dissabores para os galãs preferidos. Não hesita diante de nenhuma dificuldade, desejar para ela é possuir, não há caminhos escabrosos que a sua vontade não saiba vencer, e vale nos lances de amor o que o irmão vale nos campos de batalha.

- Assim a Europa se pudesse ver livre do irmão - acudiu Castro, de brincadeira - como eu me hei-de ver livre dela, se, como supõe, lhe inspirei algum interesse.

- Percebe-se que gosta de si. Creio que tem o fraco dos oficiais novos. Ouvi contar a história de um moço alferes que ela conquistou e uma guia de marcha levou para muito longe de Paris. Compreende-se. É muito mais fácil e de muito menos escândalo deslocar um alferes... mesmo um capitão, do que uma princesa.

- Percebo, mas olhe que me parecem infundados esses seus receios, o que não quere dizer pouco apreço pelo afectuoso aviso. Agradeço-lho sinceramente.

- E previna-se. Lembre-se do canto X dos Lusíadas - disse-lhe a rir.

- Na Ilha dos Amores, bem sei.

- Olhe como os fortes navegadores ficaram pelo beiço.

- É da eterna lei humana. Homens, a julgarmo-nos vaidosamente os senhores do mundo, e somos, afinal, os perpétuos avassalados dessas criaturinhas, gentilmente frágeis, que na delícia de um sorriso ou de um beijo seu nos rojam aos pés como nenhum vassalo diante do mais poderoso autocrata da terra.

- Bravo, meu capitão! Mas não esqueça os colegas da Ilha dos Amores. Olhe que o próprio Gama, e mais era capitão-mor, esteve lamecha pela encantadora Tethis, segundo se percebe das entralinhas dos Lusíadas. O seu caso não é com Tethis, deusa dos mares, deixe-me ir assim pela mitologia dentro, nem com Thetis, uma simples ninfa, bela, apesar de mãe de Aquiles, também um esbelto capitão, não desfazendo. Não é, mas parece-me pior! Escandalosamente pior. O seu caso é com uma deusa imperial, Vénus de lúbricos amores.

- Então está bem - gracejou Luís de Castro - Nas ficções dos Lusíadas Vénus protege os capitães portugueses.

- Mas repare que a mitologia dos helenos tinha duas Vénus: a que nasceu imaculada, filha das espumas do mar, essa que foi a protectora dos capitães do Gama na ficção camoneana, e outra, a Vénus das lubricidades, que, pelos modos, foi sempre funesta aos capitães juvenis. E esta, de mais a mais, é imperial.(1)

 

*1. Vénus lhe tinha chamado uma vez em Paris o general Junot, segundo conta a Duquesa de Abrantes no tomo V das suas Memórias.

Vénus suicida a denominara Junot, em tom de madrigal, quando Paulina, horrorosamente aborrecida com os recatos do luto a que Napoleão a obrigava pela morte recente do seu primeiro marido, o general Leclerc, prometera suicidar-se, se o irmão a compelisse por muito tempo àquele seu triste isolamento de viúva, no rés-do-chão do hotel Marbeuf, rua do Faubourg-Saint-Honoré.

Estava a morrer pela vida mundana de Paris aquela inconsolável viuvinha.

Mas tanto o irmão, Primeiro Cônsul, receou algum desvario daquela pobre enclausurada do hotel Marbeuf que, pouco depois, lhe arranjou o casamento com o príncipe Camilo Borghèse, que não foi positivamente o mais feliz dos maridos romanos.

 

- Laura Junot dava-lhe apenas a categoria de ninfa.

- Rivalidades de mulher. Olhe, repare disfarçadamente. Ali a tem, naquela janela.

- A Vénus dos seus receios.

- Que não apareceu ali por minha causa, meu caro capitão. E ela a fingir que está além por acaso! Em tragédias de amor é que o engenho feminil não tem feito grandes progressos. É melhor fingir que a não vimos. Passemos para aquele lado.

- Mas onde pára esse ditoso marido que a deixa assim tanto à sua vontade?!

- Que remédio tem êle senão deixá-la. O príncipe Camilo Borghèse, herdeiro de uma grande fortuna e de uma ilustre família romana, que já deu um Papa ao Catolicismo, foi honrado pelo seu glorioso cunhado, Napoleão I, com o entretenimento político de governador do Piemonte, agora sujeito à França. Mas a gentil Princesa aborrecia-se por lá e viaja. Ora reside no seu magnífico palácio de Roma, na praça Borghèse, ora vem a França matar saudades da família. Vem para aqui descansar dos folguedos doidos que neste inverno houve em Paris. Contaram-me que foi um deslumbramento a vida da corte imperial, de Novembro a Fevereiro. Príncipes brilhantes da Alemanha e duques riquíssimos da Rússia aos cardumes nos salões esplêndidos das Tulherias e de Saint-Cloud. As mais belas marechalas, as mais lindas damas de Paris e Paulina excedendo-as a todas(1). Veio para mais tranquilos idílios. Isto aqui é belo, não tem o mar azul de Nice, mas esta costa é encantadora nestes tempos de primavera, e neste palácio de Marrac vive-se entre os esplendores de uma corte de marechais, duques, príncipes, heróis, que trazem atrás de si uns belos oficiais, cheios de mocidade, de ardor, de sonhos. Quanto a sua alteza o príncipe Camilo, esse lá se irá resignando em Turim com as longas ausências da mais formosa mulher que tem a Europa. Vêem para aqui aqueles oficiais da Guarda. Mudemos de rumo. Acautele-se. Vénus segue-o com os seus divinos olhos, e já me fêz preguntas a seu respeito ou, mais especialmente, a respeito de certa família das suas relações.

- Família das minhas relações?!

- Sim, família estrangeira, que está aqui, em Baiona.

- Ah! sim... entendo. Quando o Imperador me preguntou se preferia ficar em Baiona a seguir já com o meu regimento, justifiquei a preferência alegando que estava aqui uma família estrangeira com a qual me relacionara em Lisboa.

- Mas veja como ela tomou sentido nessa alegação, que para qualquer outra, mesmo que não fosse princesa, seria a cousa mais indiferente deste mundo se algum íntimo interesse a não movesse a repararem coisa tão singelamente natural!

 

*1. A propósito da alta vida de Paris naquele inverno de 1807-1808, conta a Duquesa de Abrantes nas suas Memórias, que por deliberação do Imperador as princesas suas irmãs e a rainha Hortênsia davam bailes magníficos e cada uma tinha um dia por semana em que reunia nas suas salas o que havia de mais distinto na corte imperial. Ficaram famosas as soirées da princesa Carolina, esposa de Murat, no palácio do Eliseu. Era às quartas-feiras que Paulina dava os seus bailes.

 

Para os simples mortais, as Vénus de sangue impetuoso foram sempre um perigo possível, mas, se têem irmão imperador, podem valer um sério comprometimento para o capitão preferido: se as morde o ciúme, então a calamidade é inevitável e cairá também sobre aquela que se julga mais amada.

- Que sombrias previsões as suas!

- Simples aviso de quem conhece a história da terra em que vive e acha naturalíssimo que uns olhos de mulher moça e arrebatada se namorem de quem tão superiormente representa os ardentes soldados do Meio-Dia, como Napoleão chamou diante de mim aos nossos soldados.

- Agora a querer envaidecer-me!

- Olhe, ela aí vem com as damas da Imperatriz. Os seus olhos lhe dirão muito mais do que eu disse.

Naquele dia Luís de Castro esteve no jardim com a Imperatriz, como na véspera. Chegara o segundo regimento da Legião, houve revista, jantar de honra e cantares como sucedera com o primeiro. Felizmente não houve facadas. O Bordéus foi distribuído com menos profusão.

Paulina parecia entristecida. Todavia, os seus olhares por algumas vezes perturbaram Luís de Castro.

- D. Lourenço de Lima tem razão - pensou êle - É preciso evitar qualquer encontro com esta mulher alucinadora. Os meus vinte e três anos atraiçoariam doidamente todo este amor puríssimo da minha alma por aquela imaculada noiva de sonho. Pode ser um perigo para mim, realmente.

Quando o regimento retirou para Baiona, um ajudante de Berthier veio convidar o Castro para jantar com os oficiais da casa militar do Imperador.

Era um convite que o contrariava. Fizera tenção de sair cedo para ir visitar os seus camaradas recém-chegados, e à hora do costume estaria defronte do jardinzito de Maria Pulaski.

Não lhe era fácil encontrar pretexto aceitável para evitar a demora em Marrac. E seria uma grosseria intolerável esquivar-se àquela prova de apreço, sem alegar motivos de justificação evidente.

Resignou-se. Ficou. A pobre Maria que lhe perdoasse mais uma ou duas horas de demora.

Mas o jantar deitou para tarde e a seguir foram para o jardim, já brilhantemente iluminado.

Teve de ir também. Teria sido de insólita rudeza despedir-se assim que o jantar acabou.

Josefina tinha a paixão da música e mandara ir da cidade uma orquestra de zíngaros, que ali chegara dois dias antes.

A noite estava um encanto e os zíngaros tocavam admiravelmente, mas o tempo ia passando com vertiginosa rapidez e Luís de Castro num desespero de impaciências.

Aborrecidíssimo, com aversão a tudo aquilo, mas o seu dever de homem delicado era fingir, responder às preguntas das damas em exageros de louvor, achar aquela música um enlevo de alma, inventar madrigais à sobreposse para comprazer à vaidade feminil, declarar-se um homem admiravelmente extasiado, mentir nas palavras, no sorriso, no próprio olhar.

- Dava metade do que tenho para me ver daqui para fora. Faz-me tédio tudo isto!-dizia consigo- A minha pobre Maria! O que ela não terá esperado, supondo talvez que a esqueci.

Mas a Imperatriz moeu-o com preguntas. Paulina falou-lhe muito das maravilhas de arte do seu palácio de Roma e queimava-lhe o sangue com os seus olhares estonteadores.

- Se não fosse Maria - pensava - inventava um pretexto e pedia amanhã para ir reunir-me ao regimento.

E, baixando os olhos diante de um olhar provocador da princesa, disse consigo:

- Começo a ter medo por esta mulher e por mim! Não me presumo um casto competidor de José do Egito, mas também esta mulher é, provavelmente, muito mais tentadora que a outra de quem êle fugiu, e eu não quero a sombra sequer de uma torpeza, posta por mim, no amor puríssimo de Maria.

Mas para coroar a obra veio o Imperador e pôs-se a interrogá-lo àcêrca dos outros regimentos da Legião.

Nem de propósito! Eram quási onze horas quando Napoleão o deixou. Castro foi logo ter com Berthier e, pretextando umas dores de cabeça violentas, pediu-lhe licença para se retirar.

Não se despediu de mais ninguém. Desceu rapidamente para o pátio, montou a cavalo e saiu a galope.

- Encontrei o meio de evitar aquela tentadora - ia pensando, enquanto o cavalo metia por ali fora numa doida carreira -, Finjo-me doente, participo que não posso ir a Marrac, mando atestado de um médico acessível a qualquer larga remuneração, e livro-me daquele perigo, ao menos por uns dias. Entretanto, esquecer-se-á de mim e voltará a Paris ou irá para a Itália. Mas só poderei adoecer seriamente depois de amanhã. Não me sinto bem, alego, atribuirei ao hotel este meu mal-estar e mudo-me para alguma casa de hóspedes, fora da cidade. Caio então de cama, e de noite irei falar com a minha encantadora Maria, muito disfarçado, para que nem a minha própria sombra me conheça.

Noite lúcida e tépida. Um esplendor de luar e um inebriamento de perfumes a evolarem-se das flores por aquela atmosfera calma de sonho.

No mirante do seu pequenino jardim, Maria Pulaski esperava por êle havia mais de duas horas, muito aconchegada a um recanto, que as roseiras altas velavam discretamente.

Passara largos minutos de olhos cravados nas estrêlas, a sonhar umas sedutoras idealidades em que a alma se lhe comprazia iludida.

- Se fosse possível? Nem eu podia querer outra fortuna maior! Agora que o outro morreu, bem podia Deus que meu pai se afeiçoasse a Luís, e um ao outro perdoassem as suas razões de agravo. Sua esposa, sua companheira, como eu não iria resoluta e ditosa para onde êle quisesse que eu fosse! Para todos os sacrifícios, para todos os perigos, sem que me causassem medo a dor e a morte. Doida, doida é que eu sou! Isto é sonhar acordada! Eu sei lá o que será o meu dia de amanhã! Até o melhor para mim é não pensar no futuro! Para que dia de supremas venturas, ou para que horrorosa noite de desesperos este amor? Posso lá sonhá-lo? Para o que Deus mandar, para o que a fortuna quiser. O que eu sei é que não pode haver amor maior do que este que eu lhe tenho. Suceda o que suceder isto é amor para sempre ou para acabar comigo.

Ficou-se de olhos fitos nas flores. Davam onze horas num sino da cidade.

- Como êle tarda hoje! E se não viesse? Era uma noite de martírio para mim! Talvez o tenham demorado no palácio do Imperador.

Lembrou-lhe então alguma coisa que a entristeceu.profundamente.

- Assombrosamente linda! Uma princesa! E eu aqui, a filha de um foragido, de um condenado à morte. A admiração com que êle, já por duas vezes, me falou daquela maravilhosa formosura! Mas uma princesa, a irmã de um imperador de tamanho poder, não olharia para um oficial estrangeiro. Que também o coração das princesas é como o das outras mulheres, e assim como eu lhe quero, que sou capaz de morrer por êle, pode a linda irmã do Imperador querer-lhe tanto... que se esqueça de si mesma? Não, não. Isto é estar a afligir-me sem nenhum fundamento, loucamente. Matava-me... e havia de morrer com êle retratado na alma. E não chega! Algum baile no palácio imperial. Se lá foi, não vem. Mas era dó que eu lhe merecia prevenir-me. Assim, estou já a pensar nas piores desgraças... nas piores! Chorava.

- Menina - veio dizer-lhe a Beauchamp - seu pai preguntou duas vezes por si. Disse-lhe que se tinha ido deitar por causa de umas dores de cabeça violentas.

- Acreditou, afligiu-se?

- Tranquilizei-o logo, dizendo-lhe que não era coisa de cuidado. Descansou, adormeceu. E êle não veio ainda?

- Não, e estou em crer que não virá.

- Então vamos para dentro e eu amanhã irei saber o que houve. Amanhã, se fôr possível. Seu pai torna outra vez a falar de Miguel Platow, o russo não lhe sai do sentido, e insiste em que há-de sair amanhã! Agora é que eu nã© sei como havemos de arranjar as coisas para a menina vir para aqui. Seu pai já toma sentido em tudo e é capaz de desconfiar...

- Ana, seja lá como fôr, mas não deixo de vir aqui vê-lo. Só se me fizerem do quarto um calabouço.

- Vamos para casa, não vá êle chamar...

- Não, deixa-me esperar mais algum tempo... pouco mais, e se não vier irei então ter contigo.

- Talvez não possa vir por causa de uma festa que há hoje no palácio de Marrac.

- Sabias?!

- Disseram-me de manhã que a Imperatriz tinha mandado chamar ao palácio, para depois do jantar, uma orquestra de zíngaros que aí está em Baiona.

- Não sabia, mas olha que já tinha pensado em que esta demora havia de ser por causa de algum entretenimento no palácio imperial. Era o coração a adivinhar-me a verdade. E olha cá, minha querida Ana, diz-me uma coisa. Tens ouvido falar das irmãs do Imperador?

- Pouco tenho ouvido. Disseram-me que são levianas, coquetes, principalmente duas.

- Duas, quais?

- A que é grã-duquesa de Berg e outra, a princesa de Borghèse, que me disseram ser a mais leviana e a mais linda. Disseram-mo nos fins do mês passado na cidade, a propósito de ter chegado a princesa. Vendem-se por aí umas estampas com os retratos dela, da Imperatriz e de Napoleão.

- Já viste o da Princesa?

- Vi-o numa loja de Baiona aonde eu vou. Foi até por causa do retrato dela que o dono da loja me contou umas histórias que não são para dizer à menina.

- É realmente bonita?

- Muito. Mas não há formosa sem senão...

- Sim? Estou a adivinhar. Não é de escrúpulos nas suas inclinações. Mulher nova...

- Ouvi que tinha vinte e oito anos.

- Mais nove do que eu. Chamam-lhe então leviana?

- Dizem pior!

- Amores com pessoas da sua posição, príncipes provavelmente?

- Sem atender a condições sociais.

- Admira que não tenha ainda casado!

- Duas vezes casada. Viúva de um general que morreu na ilha de São Domingos, e há anos esposa de um príncipe italiano.

- E tem inclinações de amor, sendo casada?!

- A pobre ingénua que não conhece o mundo! - pensou a Beauchamp - Mas porque me faz o meu amor essas preguntas?

- Por mera curiosidade. Êle falou-me com muita admiração dos encantos dessa Princesa.

- Ah!... então sim.

- Quis saber se tu a conhecias. E olha, estou com tanto interesse de fazer ideia dessa beleza, que passa pela mais notável mulher da França - foi Luís quem mo disse - que até te peço que me compres uma das tais estampas com o retrato dela.

- Não ficaria bem em sua casa.

- É só para ver. Depois não me importa com ela. Deita-se fora.

Ouviu-se um galope de cavalo, próximo da azinhaga.

- Vem um cavaleiro para este lado! - disse Maria, levantando-se sobressaltada - Mas êle não viria a cavalo - pensou - Só se viesse directamente de Marrac.

Pôs-se a espreitar por entre as flores. O cavaleiro entra na azinhaga a passo. O luar dava-lhe em cheio.

- Ana, é êle! - disse num desafogo de júbilo indefinível - Vai ver se meu pai dorme, vai vigiá-lo, minha querida Ana!

- Vou, sim, vou.

Foi para dentro rapidamente.

- Cada vez mais enlouquecida neste amor! - ia pensando a Beauchamp - Perdia-se, meu Deus, se êle fosse homem que intentasse perdê-la!

- Luís! o meu adorado Luís! - murmurou Maria, descendo os degraus do mirante numa tremura de alvoroço.

Não teve paciência para o esperar ali. Subiu acima de um canteiro e debruçou-se do muro.

Luís de Castro sofreou o cavalo e ficou defronte dela.

- Maria, perdoa-me!

- Estava numa impaciência de receios por ti!

- E eu num tormento de desespero para vir ter contigo.

- Vens do palácio imperial?

- Venho. Não podia esquivar-me a um convite para jantar com os oficiais do Imperador. Depois tive de ir para os jardins onde tocava uma orquestra de zíngaros, que todos achavam um portento e só a mim me parecia detestável, porque não pensava senão em ti e achava abominável aquela etiqueta que me forçava a estar ali, fazendo-te esperar!

- Estava também lá a Princesa?

- A Princesa?!

- Sim, a mais linda mulher de França, como tu lhe chamaste.

- Ah! a princesa Borghèse. Estava, sim. E, acrescentou, gracejando:

- Agora é preciso fazer uma rectificação, meu amor. Quem lhe chama vaidosamente a mais formosa mulher de França e talvez a mais linda da Europa, não sou eu, são os franceses. Da França, vá, concordo, da Europa, rejeito a qualificação, porque tenho a ventura de te conhecer a ti.

- E foi lá no palácio do Imperador que aprendeste a dizer essas cousas lisonjeadoras?

- Não. Foi há dois anos em Lisboa, ao pé de um jardim, delicioso como este, foi lá que eu aprendi a dizer estas cousas profundamente sentidas.

Fêz ladear o cavalo até o encostar muito ao muro. Ficava defronte do seu o rosto angélico de Maria.

- Eu já ontem lhe mostrei a diferença enorme que há entre a beleza mundana de Borghèse e a tua, de imaculado esplendor. Pode lá comparar-se! E então hoje, que linda, nesta noite de sonho! Toda na alvura das açucenas, como os arcanjos das lendas, como a Beatriz do Dante, como a Ofélia do poeta inglês!

E com o braço que tinha passado por cima do muro, cingiu-lhe o busto e, todo inclinado para ela,. beijou-a com doida sofreguidão.

No outro día, ainda muito cedo, Luís de Castro tratou da mudança de hospedagem para fora da cidade.

Que se não estava dando bem, alegou. Indicaram-lhe um hotel de segunda ordem, à beira da estrada para São João da Luz. Dispôs tudo para se transferir para lá de tarde.

Foi para Marrac e queixou-se muito de um grande mal-estar que o trazia acabrunhado.

A Imperatriz pareceu interessar-se pelas suas melhoras. Paulina disse-lhe umas cousas lisonjeadoras, mas os seus olhos disseram imensamente mais.

No gabinete dos ajudantes-de-campo de Berthier deixou indicação da sua nova morada, prevendo a caso de ser preciso que o chamassem para serviço.

Voltou cedo de Marrac e ao cair da tarde foi instalado no melhor quarto do hotel Marengo, propriedade de um velho sargento do exército, que saíra do serviço em consequência de um ferimento grave, recebido na famosa batalha por aquela forma comemorada no hotel.

De manhã, a Beauchamp voltou de Baiona com a falsa informação de que já não havia à venda retratos da Princesa Borghèse.

O que ela não queria era levar à sua querida Menina um retrato daquela sedutora heroína. Maria teve pena. Queria formar opinião sua a respeito da beldade.

De tarde, João Pulaski deu um pequeno passeio pela estrada. Ia amparado à filha. A Beauchamp acompanhava-os.

Encontraram um italiano que andava de terra em terra a vender estampas.

- Os retratos de Napoleão, o Grande, e de toda a sua imperial família - disse-lhes em mau francês, oferecendo umas gravuras e umas litografias a cores - E este da bela irmã do Imperador, casada com o príncipe romano Camílio Borghèse.

- Não quero - respondeu com enfado João Pulaski.

- Eu gostava de comprar este retrato da Princesa - disse-lhe a filha.

- O interesse que ela tem em conhecê-la! - pensou a Beauchamp, que ia um pouco atrás deles.

- Se queres, compra-o - disse o pai condescendendo.

Comprou. Custou-lhe caro. Era uma gravura em aço, cópia de um retrato pintado por Izabey, o pintor e miniaturista de Napoleão.

- Encantadora, não acha? -preguntou ao pai.

- Formosa, realmente.

- Também aqui trago uma litografia da famosa Vénus do palácio Borghèse de Roma - disse o italiano, procurando na grande pasta das estampas - E o desenho de uma estátua de mármore - ia dizendo - do grande escultor Canova. Representa Vénus deitada. Dizem que lhe serviu de modelo a própria princesa Borghèse.

E mostrou-a. Figurava uma estátua de Vénus semi-nua, velada apenas uma parte do corpo.

A semelhança com o retrato era espantosa. Maria afogueou-se numa repulsão de pudor.

- Esse não! - rouquejou João Pulaski, afastando a estampa com a mão, rudemente.

- Dizem que é ainda maior primor que a Vénus dos Médices, chamam-lhe em Roma a Vénus Imperial! - alegou o italiano, continuando a sua decorada parlenda.(1)

 

*1. «A princesa Borghèse era uma graciosa ninfa. A estátua que lhe fêz Canova foi modelada segundo o seu próprio corpo: (A été moulée sur elle).» etc. (Memoires de la Duchese d'Abrantes, tomo 6.°).

A estátua da Vénus Borghèse tem sido reproduzida pela gravura e pela litografia em diversas revistas ilustradas.

 

- Já lhe disse! - gritou o polaco, voltando-lhe as costas.

- Só tenho esta - insistia o italiano com impertinência - Ainda há pouco vendi outra a um fidalgo de Portugal.

- São insuportáveis, estes vendilhões! - resmungou João Pulaski, tomando o braço da filha.

Mas aquelas últimas palavras do vendedor de estampas tinham vibrado estranhamente no coração de Maria.

Uma daquelas estampas da Vénus imperial, na escandalosa nudez que ela vira de relance, comprada por um fidalgo de Portugal!

Podia ser Luís de Castro.

Foram para casa, e nunca mais esta suspeita lhe saiu do sentido! Meteu-se no quarto. Estava tempos esquecidos de olhos fitos no retrato de Paulina.

- Espantosamente bela! - murmurou numas crispações de amargura e de vago ciúme, que nem ela própria sabia justificar - Mas aquele impudor da estátua!...

E o cérebro dava-lhe a nítida imagem da obra-prima de Canova, apesar de a ter visto de relance, afogueada de vergonha por aquele mármore nu.

Comparava a imagem que tinha de memória com aquele retrato.

Bem iguais a fisionomia, a mesma cabeça gentilíssima.

- Nisto, ao menos, valho eu mais do que ela, a irmã do Imperador! Meu Deus! Como somos diferentes! Morria de vergonha! A venderem pelas ruas. pelos caminhos, com este seu retrato encantador aquela estampa indecorosa da sua estátua!... cópia desta linda cabeça... deste corpo sem pudor! Não Luís não teria comprado aquela vergonha. Seria outro fidalgo de Portugal o comprador. Têem ali chegado outras tropas portuguesas, outros oficiais... Luís não quereria esta mulher, ainda que ela o quisesse a êle.

E naquela noite, quando o Castro se despediu dela no muro do jardim, Maria perturbou-se mais com o beijo que êle lhe deu.

 

               Sonhos.

No outro dia, de manhã cedo, Luís de Castro foi despedir-se do general Pamplona. Soubera na véspera que êle tinha recebido ordem de Berthier para entrar em Espanha e ir ao encontro da segunda brigada da Legião.

- Do que eu escapei! - pensava o moço oficial - Mas mandá-lo voltar a Espanha, para quê?

Foi para a cidade. Pamplona tinha de partir dali a uma hora, na mala-posta, com o seu ajudante-de-campo, a caminho de Vitória.

O General estava no seu gabinete a escrever.

Foi o ajudante-de-campo quem recebeu Luís de Castro.

- Era quási noite quando soube ontem que o General partia para Espanha.

- Êle preguntou ontem por si, em Marrac. Disseram-lhe que se tinha retirado mais cedo por se sentir incomodado.

- Um mal-estar que eu atribuí às péssimas condições da hospedagem - disse, a sustentar a peta.

- Mudou, já mo tinham dito.

- Mudei.

- Procurei-o ontem à noite por ordem do General. Fui ao hotel Marengo, seriam dez horas, e disseram-me que tinha saído.

- Efectivamente... com sacrifício... por causa de um compromisso a que não podia faltar. Mas era para me levar alguma ordem do General?

- Não, para lhe levar uma proposta dêle...

- Proposta para mim?!

- Sim. A proposta para o acompanhar. O marechal Berthier tinha falado nisso ao Imperador, que autorizou a sua ida para Espanha, dado que fosse da sua vontade.

- Não ó. Agradeço sinceramente a honra que o General me queria conceder, mas não desejo sair do meu regimento. O dever é marchar para onde me mandarem, mas, como neste caso me consultam, prefiro ficar. Voluntariamente não entraria em campanha contra os espanhóis, apesar das traições abomináveis que nos fizeram em 1801, ajudados pelos franceses, e o ano passado auxiliando Junot. Para qualquer outra parte em que seja preciso combater, irei sem hesitações.

- Pois nós cá vamos, sem nenhum remédio! Que afinal não vejo porque devamos ter escrúpulos. A Espanha agrediu-nos inìquamente, de mãos dadas com a França, como o colega acabou de dizer.

- Mas Portugal fica do lado oposto ao nosso, os portugueses que estão lá, hão-de fazer, provavelmente, causa comum com os revoltados espanhóis. Nós somos uns expatriados, presos ao dever militar.

- Por isso temos de marchar para onde nos mandarem.

- Menos contra Portugal.

- Sim, decerto. Nessa não cairá o Imperador.

Mas contra a Espanha não há remédio senão partir.

- Pioraram por lá as coisas?

- Muito! Ouvi que o próprio Napoleão conta com uma campanha inevitável na Espanha. Está toda ela em revolta, numa explosão de ódios formidáveis. Esperam-se mais tropas francesas para transporem os Pirenéus.

- E de Portugal?

- Nada de novo! Não têem deixado passar os correios para cá. Nem os correios nem o nosso Gomes Freire.

- Não o deixaram passar?!

- Não. Veio um ofício de Bessières, datado de Burgos, informando que o general Gomes Freire, acompanhado de alguns estropeados, fora detido pelos revoltados em Valhadolide.

- E o general Pamplona tem já comissão determinada?

- Tem. Bessières mandou-lhe ontem um ofício com instruções. Não é coisa que eu não possa revelar a um oficial português nas condições do colega, e, demais a mais, adjunto do estado-maior imperial. O marechal, príncipe de Neufchâtel, ordena-lhe em nome do imperador que parta hoje, de modo a ir ao encontro dos regimentos da segunda brigada, para lhes suspender a marcha para aqui, onde quer que os encontre. O general Pamplona mandará distribuir cartuchos às tropas(1) e seguirá para Vitória a apresentar-se ao general Verdier, de quem receberá instruções.

 

*1 Vous leur ferez donner des cartouches, è o dizer textual do ofício do Marechal Berthier para o General Pamplona, com data de 3 de Junho. Vem transcrito a pág. 41 do livro La Légivn Portugaise, do sr. Boppe. É a prova oficial indirecta de que a Legião viera sem pólvora.

 

- Agora já não têem medo de distribuir pólvora aos soldados da Legião!

- Pudera. O Aragão está em completa revolta, diz-se que em Saragoça chamaram toda a gente válida às armas. E nós já cá não voltamos senão quando o Aragão estiver pacificado. Di-lo Berthier no seu ofício.

- Pode ser então muito tarde.

- Pode.

- De modo que, se o terceiro regimento de infantaria não tivesse já entrado em França...

- Deve estar hoje em São João da Luz.

- Teria de ir também para trás.

- Provavelmente.

Pamplona apareceu, e Luís de Castro fêz-lhe as suas despedidas.

Castro escreveu a um ajudante-de-campo de Berthier, comunicando-lhe que fora despedir-se do general Pamplona e voltara pior. Pedia-lhe que desse conhecimento disto ao marechal. Depois mandaria comunicação oficial e um atestado do seu médico assistente.

- É-me desagradável mentir, mas isto é mentira bem intencionada em defesa própria.

Mandou chamar um médico da cidade e de tal modo lhe soube falar, que o homem lhe passou um atestado daquele seu precário estado de saúde, a reclamar extraordinários resguardos. Defendia-lhe o fingimento admiravelmente. Os acessos febris eram periódicos e recrudesciam de noite com inquietadora intensidade, segundo o escrupuloso clínico atestava.

As damas falaram do caso em Marrac, e no dia seguinte, por ordem da Imperatriz, mandou Berthier um dos seus oficiais às ordens, ao hotel Marengo, para saber se o Castro estava melhor.

Não estava. De noite é que os acessos eram violentos. E mal podiam sonhar no palácio imperial que era precisamente de noite que êle saía para ir falar à filha do polaco.

E não já como dantes, mas alta hora, porque João Pulaski, quási completamente restabelecido, não se deitava senão depois das dez horas. E só depois das onze é que o apanhavam adormecido.

Assim se foram passando quási duas semanas. De dias a dias ia um oficial de Marrac saber do estado de Luís de Castro.

- Estou já a ter vergonha desta falsa situação - dizia às vezes consigo.

Na última noite reparara casualmente em dois vultos que pareciam segui-lo. Foi para eles e fugiram-lhe. Pareceu-lhe que um deles era mulher.

- Talvez amantes clandestinos - comentou - mulher de poucos escrúpulos que se compraz nestas aventuras nocturnas.

E não tornou a pensar em semelhante coisa.

Ao outro dia de tarde foi visitá-lo D. Lourenço de Lima e contou-lhe que a Princesa Borghèse tinha saído naquela manhã para a Itália, subitamente, por causa de uma carta que recebera de Roma.

- Ouvi que foi por motivo urgente, que só revelou ao Imperador. Contaram-me que dispensou todo o séquito do costume, e lá foi em carruagem de posta com uma criada e um lacaio da sua confiança.

- Uf! Ainda bem! Fico assim livre daqueles perigos de que o meu D. Lourenço misericordiosamente me avisou.

- Escapou de boa, posso dizer-lho afoitamente.

- E para me escapar foi que eu adoeci. Agora mais dois ou três dias em plena convalescença, e vou apresentar-me.

- Pois sim, mas se você mo não levasse a mal, dava-lhe um outro aviso.

- Outro?!

- Sim, sem gravidade, mas útil para si.

- Pois não. Sou todo ouvidos.

- Longe de mim a ideia de querer entrometer-me na sua vida particular, mas é de boa consciência avisar os amigos.

- Então! Não eram precisas essas explicações para mim. Fale desassombradamenTe, meu caro D. Lourenço.

- Pois então saiba que ouvi falar na cidade em certas entrevistas de noite, aí para os lados de uma casa de campo onde habita um estrangeiro... um polaco, segundo declarações feitas por êle próprio na mairie, quando veio residir para aqui. Entrevistas do meu caro Luís de Castro com uma dama de rara formosura.

- Disseram-lhe então que eu... -titubeou afogueando-se e pondo em D. Lourenço um olhar perscrutador.

- Não quero saber dos seus segredos, nem sequer desejo que afirme ou negue o boato. Aviso-o porque a coscuvilhice pode chegar a Marrac, e ser-lhe-ia penoso que o surpreendessem com uma acusação de falsidade, de que talvez não pudesse defender-se plausivelmente, por efeito da sua natural perturbação. Agora prevenido, tem tempo de sobra para planear a defesa contra os assaltos da bisbilhotice palaciana.

- É verdade o que dizem.

- Escusava de me fazer essa declaração. Mas, já agora, eu saberei corresponder a tal prova de confiança, guardando absoluto segredo. Seria eu o primeiro a negar a possibilidade dessas entrevistas. O meu amigo não podia ter saído de noite, porque Tem estado doente, E oficialmente privado de sair.

- O que me intriga é a origem desses dizeres!

- Ora! Essas coisas sabem-se sempre e conTam-se logo! Aparecem de toda a parte os espreitadores oficiosos. Não se resiste ao voluptuoso apetite de surpreender os amores do próximo. E quantas veZes por inveja! Inveja de outras mulheres, se o galã é moço de máscula beleza e ânimo destemido, sôfregamenTe cobiçado por todas. Inveja dos homens, se a requestada é criatura de raros encantos,, flor de cândido perfume, na qual ainda ninguém tocou. Toda a gente dá logo por esses amores assim e por eles se interessam, no bom e no mau sentido. E se têem então uma pontinha de mistério romanesco, adeus segredo! Ninguém fala doutra coisa. Nos palácios mais ainda do que nos soalheiros vulgares. E o seu caso, meu Castro. Daqui a uns dias não haverá casquilho desta Baiona guerreira, nem dama da corte imperial que não diga coisas misteriosas a respeito de certa menina deliciosamente linda, muito nova, que veio de longe e é requestada de noite por um belo capitão de vinte e três anos, fidalgo de certo país que os peralvilhos de cá não sabem ao certo onde fica, se encravado na Espanha, se no litoral de Marrocos. Pode contar já com um tiroteio de alusões maliciosas da parte das damas de Marrac, precisamente as mesmas que sorriam dos olhares incendiados da Borghèse e o consideravam já segura conquista da Vénus napoleónica. E a propósito, hei-de contar-lhe uma coisa curiosa - acrescentou, levantando-se.

- Sim?

- Amanhã ou depois! Agora não me posso demorar. restabeleça-se e apresente-se antes que o boato das entrevistas chegue a Marrac. A princesa saiu a tempo, e eu felicito-o cordialmente. Podia o diabo armá-las, e teríamos inutilizado um dos oficiais de mais futuro que tem a Legião. Adeus.

- Meu caro D. Lourenço, até quando quiser.

Pouco depois um criado do hotel vinha prevenir Luís de Castro de que uma senhora o procurava e queria falar-lhe.

- Que espécie de senhora?!

- De meia idade. Parece que alguma coisa a mortifica.

- Mande entrar ali para aquela saleta. Quem poderá ser?! - ficou pensando - Senhora que me conhece, evidentemente. Mas quem? Só se é a dona do hotel. Vamos ver.

Foi para a salazita contígua e teve um estremecimento de receio.

Era a Beauchamp que o procurava.

- Alguma coisa grave? - preguntou.

- De mortificação - disse-lhe a francesa tristemente, quási em segredo, relanceando olhares receosos para a porta.

- Sucedeu alguma coisa? Maria?

- Cheia de mágoas!

- Mas porquê?! Diga-mo sem rodeios.

- O pai recebeu uma carta prevenindo-o de que A Menina falava a altas horas da noite com um oficial português. Calculou logo que se tratava do sr. Luís de Castro. Não imagina o que êle disse, o que êle fêz, Virgem Santíssima! Julgámos que lhe dava outro ataque. Ficou pior! Tiveram de o levar para a cama.

- A minha desventurada Maria! E ela?

- Ai! Nunca a julguei capaz de tanto ânimo! Agora não esmoreceu como em Lisboa! Disse toda a verdade ao pai! Disse-lhe que não havia forças que a desviassem desses amores. Que o respeitava como nenhuma outra filha teria respeitado seu pai, que lhe obedeceria em tudo como escrava, menos naquilo que fosse contra o seu coração. Que nunca lhe tinha afrontado o nome, mas que não queria outro esposo que não fosse o escolhido da sua alma. Matasse-a embora, perdoar-lhe-ia a morte, mas que não contasse com a sua submissão para fugir do caminho onde o pudesse ver a si.

- A minha adorada noiva!

- E jurou-lho! Matar-se-ia, se quisessem impor-lhe outro marido. Não pode imaginar como ela lho disse! Com uma rara firmeza e ao mesmo tempo com a mais carinhosa humildade! Naquele rosto de santa havia uma energia que eu nunca lhe vi, e as lágrimas a saltarem-lhe Em fio daqueles olhos meigos de criança!

- E o pai?

- Com os olhos rasos de água. E como já não tinha alma para a mortificar a ela, voltou-se contra mim, a praguejar, a mandar-me pôr fora de casa, porque desde o princípio, desde Lisboa, era eu a culpada de tudo. E que saísse já. Saio, disse-lhE eu, mas para lhe ficar aí à porta como se fosse mãe a quem tivessem roubado uma filha, porque lhe tenho amor de mãe. Da rua é que não me podia pôr fora, e eu iria atrás da Menina, ainda que fosse de rastos pelo caminho. Então aquela filha da minha alma abraçou-se a mim e disse, foi a soluçar que o disse,, que não tinha outra mãe.

- E João Pulaski?

- Ficou sem dizer palavra, como se estivesse a cismar. A doença quebrou-lhe muito o génio. A filha foi ajoelhar-se-lhe aos pés e, com as mãos dele nas suas, pôs-se a tomar para si todas as culpas, a defender-me, a pedir perdão para mim. João Pulaski cismava de olhos cravados nela. Depois disse secamente: «Que fique e que Deus perdoe a ambas o mal que fizeram». Encheu-me de terror ouvi-lo! Disse então que se sentia pior e carecia de repouso. Veio o criado negro ajudá-lo a ir para a cama. Quis que o deixassem sozinho. E lá ficou fechado no quarto. Eu saí de corrida para chamar o médico, mas não quis ir para casa sem vir preveni-lo.

- Bem haja, minha querida Ana.

- Desconfio que João Pulaski premedita alguma coisa grave! A Menina também está com receio de algum plano, de que só temos suspeitas. Se o outro vivesse, tínhamos desgraça irremediável. Aquelas súbitas palavras de perdão causaram-me mais medo que as outras de ameaça!

- Mas o que se há-de intentar agora?

- Não sei! Não sei! Tenho medo!

- Irei à noite saber... Disfarçadamente, mas vou, minha querida Beauchamp.

- Isso não. por modo nenhum! Por amor de Deus, não vá! Pede-lho Encarecidamente a Menina.

- Mas é impossível, bem compreendeiS QuE eu esteja aqui tranquilamente, sem saber o que se passa em casa de Maria, depois dessas violências e apesar dos vagos receios que as suas palavras me revelaram? impossível, Completamente impossível!

- Está prevenido e, depois daqueles ímpetos de cólera,, abrandou de surpresa! Pensou nalguma cilada. É o meu receio. Está quebrado de forças, mas para fazer uma loucura, se o pressentisse, se desconfiasse de alguma coisa, encontraria alentos nos seus próprios desesperos.

- Depois, Ana Beauchamp?

- E depois? Eu sei lá!

- Mas sou eu quem o precisa saber. Esta situação assim é intolerável!

- Por amor de Deus, deixe passar uns dias, para ver se êle se tranquiliza e se nós podemos perceber o seu intento.

- Esperar neste inferno de incertezas, sem lhe falar, sem a poder ver sequer!

- Ela há-de escrever-Lhe. Alguém lhe virá trazer AS cartas. Virei eu de fugida, quando puder, contar-lhe tudo.

Reflectiu. Deu uns passos cheios de impaciência.

- Dois ou três dias, quando muito. Isto há-de ter solução. Há filhas que tÊem casado contra a vontade dos pais, vontade autoritária, caprichosa, odienta. TÊem-se feito muitos casamentos secretos. Também eu hei-de pensar no meu plano enquanto o sr. João Pulaski medita o seu. De Lisboa levaram-ma porque eu, perigosamente enfermo, de nada sabia. Aqui não há-de suceder assim. Não há-de! Diga-lho. Em Portugal podia hesitar diante de melindres de classe e, mais ainda, no receio de mortificar minha Mãe! Aqui, um expatriado faz diferença. Não tenho por que hesitar e cada vez lhe consagro mais amor. Diga-lho.

- Digo, isso digo e com a maior alegria que a minha alma podia ter! Era um honesto desenlace para estes amores, até aqui tão duramente amargurados.

- Diga-me uma coisa: viram a carta de denúncia?

- Não vimos. João Pulaski estava no jardim quando o carteiro lha foi levar. Abriu-a logo, leu-a e afogueou-se muito. Com uma tremura que ninguém sabia porque era, chamou pela Menina, foi para dentro e houve aquela terrível cena de cólera. A carta guardou-a e só a ela se referiu uma vez nas suas imprecações, dando a perceber que era de pessoa bem informada.

- Com que interesse? Que desalmado interesse podia ter inspirado essa torpeza?!

- Quem o pode adivinhar?! Agora dê-me licença que eu me retire. Quero ver se chego a casa primeiro que o médico.

- E mande-me notícias. Compreende bem a impaciência em que fico.

- Sempre que seja possível. Talvez esta noite receba uma carta.

Ao anoitecer vieram entregar uma carta a Luís de Castro. Era de Maria. Dava a perceber que estava mais tranquila. O médico prescrevera ao pai uns certos cuidados, o repouso de alguns dias, mas não as prevenira de algum sintoma inquietador.

Deixaria passar mais dois ou três dias, prometia-lhe, e procurava o modo seguro de o tornar a ver e Falar-lhe.

Por alta hora da noite, ainda de pé, a sonhar acordado no desenlace daqueles amores, Castro ouviu um ruído de passos e um acarretar de bagagens para o quarto contíguo ao seu.

- Temos hóspedes novos. O que mais me convinha era este quási isolamento em que tenho estado.. Voz de mulher! Tanto pior. Pode ser mais uma curiosa, terei mais quem me espreite. Mas será talvez gente que vai de passagem e que pouco se demora. Enfim, seja o que fôr. Em acabando este fingimento da doença já eu posso sair de noite sem precauções.

Não tinha sono. Foi escrever uma carta para Maria. Saiu-lhe imensa, cheia de devaneios.

Ao outro dia de manhã apareceu-lhe no quarto o velho ex-sargento do Marengo, dono do hotel.

- Vinha saber se o teria incomodado muito a chegada dos hóspedes novos.

- Não, estava a pé.

- Ainda bem. Fiquei com receio de que o tivessem acordado àquela hora. Que o barulho maior era feito pelos moços, uns estúpidos que arrastavam os baús pelas escadas. Mas lá quanto aos hóspedes creio bem que não há-de ter razão de queixa. PAreceram-me pessoas sossegadas, É um italiano e uma irmã que vão para SÃO João da Luz, mas ficam aqui uns dias à espera de uma senhora, sua parenta,. também italiana. Uma viúva que vem mudar de ares e tenciona ficar até à temporada de banhos nesta nossa linda costa.

- E vieram da Itália, tendo lá as mais belas praias da Europa?!

- Não, meu senhor. Os dois que chegaram ontem, irmão e irmã, vêem de Tarbes, onde têem casa de negócio.

 

A parenta que esperam é, segundo eles contam, a viúva de um banqueiro de Paris, que dispõe de rios de dinheiro! Que é nova ainda, viúva de pouco tempo, e que ficou muito doente com a morte do marido. Eles então esperam-na aqui e vão depois com ela para SÃO João da Luz. Devem-lhe muito, dizem eles, foi quem os ajudou para se poderem estabelecer em Tarbes.

- Está bem - disse o Castro para despedir o oficioso noticiarista, palrador emérito, disposto, provavelmente, a entreter cavaco até à hora do almoço - Estimo que se dêem bem e pode ir descansado, que me não incomodaram. Viva.

Era despedida em forma. o bravo do Marengo saiu desconsolado.

Tinham passado dois dias. Castro foi apresentar-se a Berthier. Um dos ajudantes do Marechal fêz-lhe umas preguntas maliciosas a respeito da doença. Outros, que ouviram, sorriram disfarçadamente.

- Já cá chegou a bisbilhotice das entrevistas! - pensou.

Tinha chegado realmente.

Depois da recepção do costume, a Imperatriz retirou-se. Napoleão não apareceu. Estava no seu gabinete com o irmão José, que fora proclamado rei de Espanha no dia 5 daquele mês de Junho e chegara a Baiona havia doze dias.

Ficaram na sala umas damas que travaram conversa com Luís de Castro.

Preparavam ensejo para lhe darem umas alfinetadazinhas subtis.

Falaram dos países da Europa de mais alta fama a respeito de mulheres bonitas, lembraram a Itália, a Áustria, a Espanha e citaram a propósito as informações de Laura Junot, a recente Duquesa de Abrantes, no tocante aos lindos olhos das mulheres de Lisboa.

- A Polónia é que não tem grande fama de mulheres formosas - acudiu uma Condessa de trinta anos, coquette maliciosíssima, doidivanas do tempo da Revolução - mas sei que tem aqui em Baiona um exemplar de rara beleza.

- Sim?! - preguntaram outras, enviesando para o Castro uns olhares cheios de malicioso desfrute.

E fingiram todas uma grande surpresa.

- Exactamente. Tinham-me falado dela e fui vê-la - respondeu a Condessa.

- É dama de boa sociedade?

- Isso não sei, mas creio que não. Sentia uma curiosidade imensa de conhecer essa rara beleza polaca. Tinham-me dito onde morava e fui lá ontem vê-la.

- Sem a conhecer, sem apresentação?

- Sim. Mandei pôr a carruagem e fui lá com este singelíssimo pretexto: ouvira dizer que se ia alugar aquela encantadora vivenda, a ser verdade, pedia licença para ma deixarem ver, porque a desejava para uma afilhada minha.

- Um pretextozinho um pouco abelhudo, confessemos, Condessa - comentou outra, sorrindo.

- De acordo, mas era o mais simples e deu-me excelente resultado. Apareceu-me uma francesa, espécie de dama de companhia da tal beldade e desenganou-me logo, afirmando que não tencionavam sair da casa.

- Então afinal não conseguiu ver a menina encantada?

- Vi. Apareceu-me também. Muito modesta, um ar e um perfume de castidade adoráveis. Conversámos: Gostei muito de a ouvir.

- É realmente bonita?

- Uma fascinação! E quási tão formosa como a Princesa BorghEse, mas outra espécie de formosura, menos escultural do que ela. e não terá mais de dezanove ou vinte anos.

  1. Lourenço de Lima, que naquele dia viera falar ao Imperador, havia-se aproximado do grupo momentos antes.

- Realizou-se o que eu previa! - disse consigo

- Estão com êle na berlinda.

- Eu tinha ouvido dizer - continuou a Condessa

- que a polaca viera de Espanha e estivera expatriada em Lisboa. Preguntei-lho, e ela, corando muito, confirmou a informação com deliciosa ingenuidade.

- Ah! então uma beldade assim tão extraordinária não poderia passar despercebida em Lisboa e é provável que o sr. de Castro a conheça de lá.

O moço capitão compreendeu o estratagema. Tinha percebido claramente aquela pequenina cena de comédia palaciana, de intriga maliciosamente ensaiada, ia estragar-lhe os efeitos com que as ilustres enredadoras já estavam contando.

- Conheço, minha senhora - respondeu serenamente - Não havia em Lisboa outra assim. Nunca em minha vida tinha visto formosura que a igualasse!

- Nem mesmo depois, na Espanha ou aqui em França? - preguntou a Condessa.

- De outra espécie, como há pouco tive o gosto De lhe ouvir dizer, sr.a Condessa. Dizem que tem apenas dezanove anos, e contava-se em Lisboa que a sua alma casta de criança sobredoirava suavemente aquela admirável primavera de mulher.

- Nunca mais te perdoam essas palavras! - comentou D. Lourenço de si para si.

- Ouviu, contaram-lhe... É provável que a tenha visto já aqui em Baiona?

- Por diversas vezes, sr.a Condessa.

- Então há-de saber de um boato que anda já de boca em boca pela cidade.

- De maledicência para ela?

- Não. Quem havia de atrever-se a inventar coisas de maledicência a essa alma casta de criança?

- Oh! sr.a Condessa, inventam-se COISAS abomináveis í Em Lisboa era precisamente na corte onde se urdiam as mais desalmadas intrigas. E as cortes creio que se parecem muito umas com as outras.

- O quê?... Chegaram a intrigar lá aquela deliciosa polaca?

- Não era possível.

- Compreendo, pela sua virtude inatingível - acudiu a Condessa com mal contida expressão de ironia.

- Virtude que ninguém ainda abocanhou, não sei se escaparia na corte, sr.a Condessa.

- Em que baixo apreço tem a corte do seu país!

- Os homens da minha terra, que viram outras e viveram nelas, dizem que ainda não é das piores a respeito de enredos e de galantes descomedimentos.

- Pois olhe que Junot dizia dela o pior mal possível. O Marechal Lannes voltou da embaixada de Lisboa com as mais desagradáveis impressões...

- E os melhores diamantes que tinha o tesouro real.

- Madame Laura Junot - continuou a Condessa, mais nervosa e mais agressiva - ri doidamente cada vez que fala das toilettes da corte de Lisboa.

- Eram as de Paris, já atrasadas e modificadas. Eu vi uma vez Madame Junot, num baile seu, com um vestido-túnica à moda da Grécia. Quási a nudez das estátuas helénicas, sr.a Condessa! Mas logo explicou que se tinham usado, poucos anos antes, nesta bela e gloriosa França.

- Uma simples imitação clássica.

- Tentadoramente fresca, a lembrar um pouco o paraíso de Eva.

- Pelas serpentes de lá?

- E pelas maçãs de cá, sr.a Condessa.

- Lembro-lhe que Sua Majestade a Imperatriz tem um retrato em que Prudh'on, um dos nossos melhores pintores, a representa coM a túnica helénica.

- Sua Majestade tinha de submeter-se à moda. Mas, sr.a Condessa, permita que me afaste do rumo perigoso que vai tendo esta conversa, embora deliciosa, porque reflecte os fulgores do seu espírito gentilíssimo. Limitar-me-ei a informá-la que a filha do polaco, residente em Baiona, vivia em Lisboa muito afastada do que se chama aqui a grande roda.

- Pela sua condição social, provavelmente?

- Pelos seus infortúnios de família.

- Deu-me ontem a impressão de uma burguezinha.

- O pai era conde polaco. É de heróis o seu apelido. E naquele país de bravos não é fácil que a qualquer se dê de mercê a categoria de herói.

- Não sabia. E, provavelmente, também o não sabia a pessoa que me informou de certos idílios de amor que ela aí tem tido em Baiona. Talvez já ouvisse?

- Não precisava, sr.a Condessa. Para o saber não era necessário que mo dissessem.

- Não compeeendo! - objectou-lhe, sorrindo.

- É que lhe não mereço a honra de me compreender, sr.a Condessa.

- Sabe quem a requesta, é o que eu percebo.

- Tenho eu a honra de ser o requestador, sr.a Condessa. Desde Lisboa: como noiva ideal que a minha alma escolheu.

- Oh! que admirável surpresa! Amores romanescos! Os meus parabéns. E sem nos dizer nada!

- Por egoísmo, sr.a Condessa. Se o tivesse dito logo que se falou da filha do polaco, privar-me-ia, grosseiramente, deste prazer insigne de a ouvir e do inexcedível consolo de prestar homenagem a essa recatada mulher de dezanove anos, a quem ambiciono dar o nome de esposa.

Dobrou-se gentilmente em requintes de cortesania. Aflorava-lhe nos lábios um sorriso levemente irónico.

- Sr.a Condessa, este bárbaro do Ocidente põe a seus pés as homenagens de uma rendida admiração.

A Condessa fêz um pequenino gesto de despeito e estendia-lhe a mão cetinosa, para que ninguém ali a supusesse melindrada.

Luís de Castro beijou-lha levemente, quási apenas, nas pontas dos dedos, e afastou-se.

  1. Lourenço retirou-se também e foi encontrar-se com êle na escada principal. .

- Sai já? - preguntou-lhe.

- Saio, sim.

- Bem, vamos ambos. Venha na minha carruagem.

- Tenho ali o meu cavalo.

- Que lho levem lá. Vamos conversando. É muitO mais agradável.

- Pois sim.

Castro deu ordem para lhe levarem o cavalo ao hotel e entrou na carruagem de D. Lourenço.

- Toma sentido. Vai devagar - recomendou ao cocheiro o antigo ministro plenipotenciário.

A carruagem meteu a passo pela estrada.

- Homem, eu tinha vontade de o abraçar pelO desassombro e pela lição que deu àquela presumida, mas hesito, porque estou, ao mesmo tempo, com dó de si. Aquela nunca mais lhe perdoa, e em Marrac pode você considerar-se um homem ao mar.

- é isso exactamente o que menos me importa.

- Eu faço ideia do que elas não ficaram dizendo de si! Foi excelente que Paulina se tivesse ido embora. Se cá estivesse agora, podia você contar com uma intriga perigosíssima, movimentada por aquela endiabrada Condessa, que era em Paris uma Das mais doidas cabeças de mulher no tempo em que lá estive.

- Com que fundamento havia ela de intrigar-me?

- Ora! Você, meu querido Castro, está ainda muito ingénuo! Arranjava-lhe uma teia em que havia de pernear doidamente. A Borghèse não se continha, dava escândalo, e a Condessa armando o enredo em volta do Imperador. é mesmo a sua especialidade. Olhe que era ela a que mais velhacamente sorria, quando a Borghèse o fitava com maior insistência. E, provavelmente, havia de ter arte para enlear nas malhas do enredo essa menina que você requesta. Era o diabo! Felizmente a Princesa foi-se embora. Mas você ande acautelado enquanto estiver aqui.

Luís de Castro lembrou-se da carta de denúncia para João Pulaski, mas rejeitou a suposição de que houvesse sido a Condessa quem a escreveu ou mandou escrever.

- à Imperatriz já ela vai meter nos ouvidos as suas considerações acerca da túnica helénica. Deus sabe com que adicionamentos! E o que ela disse do retrato de Josefina é verdade. Eu vi em Paris o retrato dela feito por Prudh'on. Os braços nus, o colo quási completamente nu!

- Imitação clássica, segundo a frase da Condessa. Moda de desaforo clássico é que era.

- Que ela exagerou, escandalosamente, dizia-se em Paris. Mas a respeito de nudez clássica tenho coisa de maior surpresa para mostrar. Há-de ser um dia destes.

- Quando quiser - respondeu indiferentemente, reparando muito num coche de gala que passava em sentido oposto - D. Lourenço, o que é isto?

- Ora veja se adivinha?

- Eu sei lá.

- Bem se vê que esteve metido em casa doente. Mas repare naqueles estribeiros, naqueles lacaios. Não lhe cheira a espanhóis?

- Sim, parece-me espanhóis.

- Vão naqueles coches prelados e grandes de Espanha, daqueles que têem o privilégio de estar cobertos diante do rei de Leão, das duas Castelãs, de Aragão, de Navarra e das índias. Vão, provavelmente, a Marrac para conferenciar com Napoleão, o Grande Imperador dos franceses, rei da Itália, protector da Confederação do Reno, etc, etc. Com o Imperador e com José Bonaparte, rei de Nápoles, que o irmão exonerou, e há dias nomeou soberano de Espanha e das índias. Como se nomeassem um general para o comando de uma brigada, dizia-me ontem gracejando um crítico da corte!

- Mas são muitos!

- E não vieram todos os que se esperavam e Murat prometera mandar. Contava com 150 representantes de classes preponderantes, mas ouvi que só aí estão 61. São os delegados que vieram para a Junta Constitucional, espécie de cortes reduzidas que Napoleão inventou, para simular que sua majestade José Bonaparte é o rei eleito das Espanhas.

- Eleito aqui em Baiona!?

- Pois assim é que tem originalidade. Mas eu já lhe tinha falado nestas cortes espanholas em miniatura, que vão liberar fora de Espanha. Foram convocadas para 15 deste mês por Napoleão I, depositário da coroa dos nossos saudosos Filipes, graças à dupla abdicação de Fernando VII e de Carlos IV.

- Raptados pelo Imperador, bem sei.

- Fernando ainda preso em Valençay, o rei Carlos ainda exilado em Compienha. Mas a Junta já começou a fingir que discute a constituição espanhola, mandada redigir por Napoleão, como se fosse uma ordem do dia para o Grande Exército. Dizem que é aproximadamente uma cópia da constituição francesa.(1)

- Repito-lhe, meu caro D. Lourenço: Creio que Napoleão caiu num grande erro político e não sei se a sua espada,

 

*1. Constituição compreendia 13 títulos e 144 artigos em que aproximadamente, se reproduzia a constituição do império francês. (Guillon, Les gUErREs d'Espagne soUS NapoléoN.

 

de tamanho fulgor que amedrontou a Europa, chegará para emendar as funestas imprudências do homem de estado. É perigoso humilhar assim, a empuxões de violência e de ridículo, uma nação que tem as tradições e a alma da Espanha.

- Ora, vá dizer aos grandes que ali vão e diga-o a certos prelados espanhóis! Quere saber o que os membros da Junta disseram ao Imperador na sua primeira audiência em Marrac? Que êle Napoleão poderia assegurar em bases imutáveis a felicidade da Espanha e que, felizmente para a sua pátria, a Providência entregava nas mãos poderosas de Napoleão a missão protectora de arrancar a Espanha do abismo em que ia despenhar-se. E em nome dos espanhóis de todas as procedências lhe bendiziam o nome como seu generoso benfeitor, para que êle chegasse às mais distantes gerações com o epíteto glorioso de restaurador das Espanhas!(1) Foi isto, pouco mais ou menos, o que eu li no Moniteur.

- Uma torpe mentira dos grandes dessa Espanha que se revolta em alucinações de ferocidade patriótica! Já me não admiro do que se passou em Portugal.

- Bem sei. Para Portugal há outras atenuantes. A violência de Napoleão não podia doer nos estadistas portugueses tanto como agora devem doer ao coração da Espanha a traição, a violência, o escárnio da nação sua aliada, à qual sacrificou as suas esquadras para lhe auxiliar os desígnios, depois de lhe ter dado um subsídio de setenta milhões.

- A Espanha sempre na cobiça de nos esmagar a pátria!

- Exactamente. Todavia os governos de Portugal

 

*1. Muitas daquelas frases estão reproduzidas no discurso do presidente da Junta, por ocasião da audiência de despedida em Marrac.

 

tinham auxiliado a Inglaterra, e deste modo manifestamente hostilizavam a França. Mas quere você saber o que o cardeal Bourbon, arcebispo de Toledo, primaz das Espanhas, primo dos reis destronados do seu país, escreveu a Napoleão, sem que nenhuma violência o compelisse a semelhante humilhação? Disse-lhe que a cedência da coroa de Espanha lhe impunha a êle, cardeal, segundo a vontade de Deus, a doce obrigação de pôr aos pés de Sua Majestade Imperial e Real a homenagem do seu amor, da sua fidelidade e do seu respeito.(1)

- Vassalo espontâneo do soberano estrangeiro!... Um lacaio purpurado! Ah! D. Lourenço, a que repugnantíssimas torpezas podem chegar, pela traição e pela inépcia de quem os governa, os povos de maior história e de mais arrojo de alma!

- Mas olhe que o contraste na Espanha é pior que o nosso. Nós, os da deputação de Lisboa...

- Meu caro D. Lourenço, desgraças e vergonhas de uns e de outros! - atalhou, compreendendo a falsa situação daquele homem, que viera apresentar homenagens a Napoleão e pedir-lhe um rei.

Naquele empenho de acentuar as fraquezas e humilhações dos espanhóis, a quem votava manifestO rancor, D. Lourenço esquecera-se do seu deplorável papel na qualidade de ministro plenipotenciário em Paris e depois como membro da deputação que foi a Baiona.

No desafogo da sua honesta consciência de patriota, Luís de Castro indirectamente o verberara naqueles comentários de repulsão pelos sevandijas da Junta espanhola.

- Mas bem vê - insistiu D. Lourenço no propósito de se defender - a deputação a que eu pertencia vinha pedir um rei, visto que o nosso Príncipe nos fugira. Era à Espanha que devíamos a nossa maior desgraça,

 

*1. Carta do CardeaL Luís Bourbon, arcebispo primaz.

 

se Godoy e os espanhóis não estivessem com Napoleão, Junot não teria chegado a Portugal. A ver a nossa terra miseravelmente retalhada por esse príncipe chulo que era Godoy e por uma rainha espanhola, eu preferia um rei escolhido pelo Imperador num Portugal íntegro, que não fosse espanhol. Vim neste empenho, sem descobrir outro remédio para a nossa pobre pátria, abandonada de todos os que podiam e deviam valer-lhe. Cheguei e arrependi-me! O meu não! quando o Imperador me preguntou se queríamos ser espanhóis, aquele não de que lhe falou o bispo de Poitiers, era bem um grito de remorso do meu coração de português. Disse-o de pé, bem firme, como de homem para homem, de modo que Napoleão percebesse que não era a morte política de Portugal o que nós desejávamos e íamos ali pedir-lhe.

- Eu sei, e logo no meu coração lhe perdoei o pasSo deplorável...

- Do mal o menos, Luís de Castro. Quando partimos de Lisboa, a Espanha era por Napoleão, as grandes potências tinham sido vencidas, menos a Inglaterra isolada nos mares, e dois terços de Portugal estavam em poder de soldados espanhóis. Vencida, a Prússia guerreira de Frederico II sujeitou-se a humilhações maiores do que esta de pedirmos um rei que sustentasse a unidade de Portugal.

- Andoche Junot?

- Era o candidato favorito do Conde da Ega.

- Marido quási rival do Camilo Borghèse.

- De menos infortúnio. Mas o que eu quero acentuar bem é que vim para aqui com um propósito patriótico.

- Creio.

- Como você, Luís de Castro, oficial da Legião Portuguesa ao serviço de Napoleão, veio para cá com um propósito de pundonor militar, embora a razão oficial lhe fosse inspirada por um sentimento de dedicação fraternal.

Castro afogueou-se. Sentiu este golpe defensivo de D. Lourenço.

A carruagem parou. Tinham chegado ao hotel do MArengo.

Estava muita gente defronte da porta, havia um sussurro alto de comentários.

- Temos novidade! - disse Luís de Castro apeando-se.

E meteu-se por entre os curiosos. De pé, junto de um cavalo estendido no chão, arquejante, estava um oficial português de dragões, coberto de pó, o uniforme em farrapos.

- Almeida! - exclamou Luís de Castro, indo para êle - Tu aqui!

- Luís! - disse o outro, abraçando-o.

- Mas que diacho! Por que magia de teatro venho encontrar-te aqui à porta do meu hotel?

- Que queres? Os meus pecados! Aqui me tens com cerca de trezentas léguas na pele e o coração cheio de louvores a Santo António pelas várias vezes que me salvou a vida.

- Mas vens de Portugal?

- E da nossa querida Lisboa.

- De Lisboa? Sabes alguma cousa dos meus?

- Sei. Vi teu irmão na véspera de partir. Trago umas cartas que te dou já. Estou a esperar que me tragam outro cavalo. Este está a acabar. Outro cavalo e um guia, para me conduzir ao palácio do Imperador.

- Cavalo não precisas. O meu deve estar aí a chegar. Guia é fácil arranjá-lo. Nem daqui podes errar o caminho para o palácio de Marrac, onde Napoleão reside. Mas ainda não percebi porque te encontras aqui!

- Eu to explico em meia dúzia de palavras. Fui nomeado oficial às ordens de Junot, e em má hora foi!

Afastou-se com o Castro para dentro do hotel. Um moço estava a desaparelhar o cavalo já morto. Outros tinham chegado para o removerem dali.

O oficial de dragões deu assim as explicações que prometera:

- Junot tinha despachos urgentes para mandar ao Imperador, mas já não podia contar com os correios nem com os caminhos da Espanha. Hesitava na escolha de um dos seus ajudantes. Um oficial português, lembrou Thiébault, mais facilmente poderá agora atravessar a Espanha, se fôr sem escolta e tomar qualquer disfarce. Um francês seria logo chacinado, êle e a escolta, pela revolta. Não se dirá que são apenas ornamentais esses oficiais portugueses que temos aqui. Junot aprovou o alvitre, mas formulou dúvidas quanto ao ânimo de algum dos nossos para se meter a semelhante aventura. Estava presente, revoltei-me com a suposição, ofereci-me. Aqui está, singelamente, a razão por que me vês aqui.

- Belo! Vieste então sem escolta?

- Vim, pus essa condição. Sem escolta e sem disfarce. Apenas me servi de um estratagema para escapar às guerrilhas espanholas, que por umas poucas de vezes me apanharam nas veredas das montanhas e me quiseram fusilar. Disse-lhes que vinha com despachos da junta secreta de patriotas de Lisboa para o comandante da Legião, no intento de o mover a voltar para trás com as tropas. Acreditaram-me, deixaram-me seguir. Mas, para cá de Valhadolide, encontrei outra guerrilha e essa desconfiou do meu estratagema. Então só consegui salvar-me a unhas de cavalo com um tiroteio infernal atrás de mim.

- A Espanha toda revoltada?

- Toda. Não imaginas! Em Burgos, onde Bessières se está fortificando, ouvi dizer que já se tinham dado graves acontecimentos em Saragoça. Em Vitória soube que o general Verdier marchara contra LogroNHo e Lasalle contra Torquemada.

O nosso Pamplona estava à espera de Verdier, e supõe que as nossas tropas que lá tem consigo terão de ir contra Sarago. Correm boatos de que os espanhóis revoltados tèem morto muitos franceses e assassinaram alguns generais espanhóis, suspeitos de afrancesados. Ouvi que formaram juntas revolucionárias em todas as províncias de Espanha e que vão solicitar a aliança inglesa.

- E lá em Portugal?

- Mexem-se à socapa. Junot está com receio de que de um dia para o outro lhe estale a revolução lá dentro. Falava-se de revolta para o dia da procissão do Corpo de Deus. A ser verdade, teria então rebentado ontem. O que eu sei é que se estavam aumentando as precauções militares. Parece que o juiz do povo, um tanoeiro, andava a excitar as classes populares de Lisboa.

Ouviu-se o tropear de cavalo a trote. Castro chegou à porta.

- Olha, aí tens o meu cavalo.

- Bom. Toma as tuas cartas - disse, tirando-as de uma algibeira.

- Mil agradecimentos e até logo. Não aceites boleto. Vem para aqui. Serás meu hóspede.

- Pois sim, com todo o gosto.

- Então o meu Luís de Castro esqueceu-se de mim? - disse à porta D. Lourenço de Lima - Bem podia eu ficar a esperá-lo!

O Castro desculpou-se e apresentou-lhe o arrojado oficial de dragões, que apenas se demorou instantes. Depois de resumir o que soubera de Portugal e Espanha, Luís disse a D. Lourenço:

- Vão-se realizando os meus vaticínios. Napoleão confia demais na sua estrela, sem reparar que até as do céu se obscurecem e até essas morrem. Agora, meu caro amigo, suba comigo, se quere dar-me a honra e o prazer de se demorar.

- Não, obrigado. Tenho ali a carruagem à espera.

- Pois então vou ler estas cartas de Lisboa.

- é mais feliz do que eu. Não tive nenhumas.

- Estas vieram da algibeira daquele nosso destemido oficial.

- Até amanhã, provavelmente.

- Até amanhã.

Eram três cartas de Lisboa. Uma da mãe, repassada de saudades, outra do irmão a indicar-lhe probabilidades de uma revolução, a terceira do tio Manuel, a pressagiar uma guerra em que lhe era dado meter outra vez a pele às balas.

Na carta da mãe havia uma referência à entrada de Laura de Mendonça naquele convento de Santarém, em que era abadessa uma sua tia materna.

A de Manuel de Albuquerque incluía umas quatro linhas rubricadas pelo mar e Guerra.

- Estava morto por estas cartas, e afinal entristecem-me, trazem-me saudades maiores daquele pobre país!

De tarde apareceu a Beauchamp.

- Então?

- Não vejo meio de a ir ver e falar-lhe.

- Porquê?

- Cada vez estamos mais convencidos, a menina e eu, de que João Pulaski anda a disfarçar algum plano! Nunca mais tornou a falar na maldita carta de denúncia, mas já preveniu que se sentia muito melhor e daqui a uns dias poderia ir a Bordéus encontrar-se com um polaco ali residente. Que seria demora de seis ou sete dias, indo pela mala-posta. Não acreditamos. Nem a menina, nem eu. Aquilo há-de ser fingimento para alguma cousa que êle traz no sentido!

- Talvez no intuito de nos surpreender.

- Foi logo o que eu imaginei. Deixava-nos descansados, contando com os seus seis ou sete dias de ausência e, logo no primeiro ou segundo dia, voltava para trás, a ver se apanhava os dois.

- Mas se é esse o seu plano, talvez o veja frustrado por outro que é meu. Quando lhe parece que êle estará em condições de poder sustentar essa viagem, curta é certo, mas, todavia, incómoda para êle, ainda convalescente?

- É homem de rija vontade, de tal modo firme, que lhe dará ânimo e força para tudo! Melhorou consideràvelmente nestes últimos três dias. Já tem o andar mais seguro. Disse-nos que daqui a uma semana conta estar em termos de fazer a viagem.

- Mas veja se me descobre meio de eu falar a Maria.

- É impossível, sem correrem o risco de serem surpreendidos por êle. Deita-se muito cedo, mas bem percebemos que está de ouvido à escuta. Ainda ontem o experimentámos. Abri de propósito a vidraça que deita para o jardim, e daí a pouco já o tínhamos ao pé de nós, de torvo olhar e pistolas na mão! Vendo infundadas as suas suspeitas, deu-nos uma explicação infantil. Que acordava de um sonho de pesadelo quando ouviu o ruído da vidraça. Nem parecia dele esta ridícula explicação!

- E de Miguel Platow nunca mais falou?

- Pregunta todos os dias se o correio não trouxe carta nenhuma de Espanha para êle.

- Compreendo. Espera cartas de Platow. Não as receberá nunca.

- Mas isso é que nós não podemos dizer. Havia de querer obrigar-nos a confessar como o tínhamos sabido.

- Decerto que não podem dizer-lho. Mas por quanto tempo sem ver Maria, sem lhe falar? É desesperador! E ela o que diz?

- Pede-lhe encarecidamente que se resigne. Tenciona escrever-lhe esta noite uma grande carta. Tem

estado hoje muito oprimida. Depois daquela experiência com o pai, passou qUási Toda a noite a chorar. Só adormeceu de madrugada e para maior mortificação!

- Para maior mortificação?!

- Teve um sonho de horrores! Miguel Platow não tinha morrido, apareceu-lhe todo ensanguentado, a rouquejar vinganças de ciúme. Levou-a consigo, violentamente amordaçada, e meteu-a num trenó que se arrastava doidamente por um país coberto de neve. Chegaram à porta de uma grande igreja de Moscovo, e o russo, tomando-a nos braços, levou-a para diante de um altar e ali declarou que ia torná-la sua esposa em face de Deus. Contou-mo debulhada em lágrimas. Mas há-de contar-lho melhor do que eu lhe disse, na carta que lhe escrever esta noite.

- Disparates de sonhos.

- Que mortificam, e nem todos saem falsos.

- Esse com certeza se não pode realizar.

- Ela bem o sabe, mas encheu-se de pavor. Nem admira. Oprimem sempre os sonhos com pessoas mortas e, muito mais, se já em vida nos causavam medo.

- Pois diga-lhe, minha querida Beauchamp, diga-lhe que são mal empregadas as suas lágrimas por um sonho impossível, e que eu lhe contarei outro, que é da minha alma e um dia breve teremos de ver realizado. Não há-de ser o casamento num país de gelos como esse do sonho, mas sim neste país de França, em qualquer modesta igreja, sem violências, suavemente, e serei eu o noivo que há-de levá-la ao altar.

- E esse outro será certo?

- Há-de ser. Talvez seja a surpresa que João Pulaski venha encontrar, no regresso da sua fingida viagem a Bordéus. Também eu tenho um plano.

- Olhe que êle é capaz de alguma loucura! - o esposo de Maria Pulaski terá então o direito de lhe dizer que traiçoeiro amigo seu era esse Miguel Platow, morto desastrosamente numa estrada de Espanha.

- Oh! que Deus o ouvisse, e não haveria mãe que pela boa fortuna de uma filha, muito querida, sentisse maior alegria do que a minha!

- Pois vá dizer-lho, vá, e conte que no lar desses noivos haverá sempre, onde fôr, um lugar carinhoso para si, minha dedicada Beauchamp.

Agradeceu-lhe com enternecida emoção e saiu com a alma numa radiosa aleluia de júbilos.

 

               Estátua de carne.

Ao hotel tinha chegado a tal italiana, viúva ainda nova de um banqueiro rico de Paris.

Soube-se da sua chegada, falou-se dela, mas ninguém do hotel se podia gabar de a ter visto.

Castro foi no outro dia a Marrac. Contava-se que a Princesa Borghèse já tinha escrito de Nice e seguiria de lá para o Piemonte.

- Estimo - disse consigo, sorrindo, o moço oficial - Era tempo de ir matar as saudades do príncipe Camilo.

Napoleão estava nos seus dias de boa disposição de ânimo. Não ligava talvez uma grande importância à revolta de Espanha e contava muito com os seus exércitos e com a subserviência das poderosas nações que vencera.

Foi para o jardim. Muito conversador, esteve a falar com os oficiais da sua casa em um dos pavilhões.

Depois mudou para outro pavilhão, conversando com Berthier.

Viu passar Luís de Castro e disse ao marechal que o mandasse chamar.

- Quero experimentá-lo. Sinto-me hoje com disposição de ouvir esse capitão fidalgo, que fala bem o francês e, segundo as informações da Imperatriz é um romântico sentimental que não perde ocasião de elogiar o seu país. Olhe que até a propósito das guitarras! Contou-mo a Imperatriz. Se eu lhe falar dos espanhóis, se meter à bulha as fanfarronadas dos dois povos irmãos, verá a delícia de desfrute que temos. Na Península há duas capoeiras desiguais. Em o galo grande da Espanha cantando alto, logo o pequeno galo de Portugal sobe ao poleiro de crista arrebitada e asas abertas para cantar também.

Berthier sorriu e mandou chamar Luís de Castro, que instantes depois se apresentava a Napoleão.

- Parece que o seu país - disse-lhe o Imperador abruptamente - está com tentação de imitar as doidices de certos bandidos selvagens da Espanha. Pior para êle. Manejos dos ingleses, não é assim?

- Sire, é um país independente e tem uma soberba história: é natural que sinta saudades da sua bandeira e lembre amargamente o seu passado.

- Para outra vez se dobrar aos pés da Inglaterra.

- Sire, para outra vez ter no mundo uma Bandeira!

- Lá a tem no Brasil o príncipe que fugiu, e o Brasil é quási do tamanho da Europa.

- Muitíssimo grande para o domínio, bastante para recordar o esforço e o nome de quem o descobriu e colonizou, e, todavia, insuficiente para substituir no mundo a sua velha e gloriosa metrópole europeia.

- Porquê?

- Sire, porque Portugal descobriu a África lendária, conquistou o litoral de Marrocos e abriu o caminho da índia, antes de ter descoberto o Brasil. E foi depois de o descobrir que conquistou o Oriente.

- Sim, bem sei. Os portugueses enchem muito a boca e todos se envaidecem com essas conquistas orientais. Afinal, batalhas microscópicas de alguns milhares de homens.

- De um contra vinte, ou contra cinquenta, Sire. Em certa doida batalha que hoje nos parece fabulosa, eram os portugueses um contra duzentos.(1)

- Os vencidos, uns pobres índios sustentados a arroz.

- Sire, como os outros que Alexandre venceu. Fanáticos que algumas vezes se batiam como loucos. Mas também combatemos mamelucos, tais como esses que Vossa Majestade venceu nas Pirâmides, persas, turcos, janízaros, mais enfurecidos turcos do que esses com quem os brilhantes soldados do general Bonaparte batalharam em Jafa, no Monte-Tabor, em São João d'Acre, em Nazaré. Sire, ninguém que eu conheça da história pode exercer em autoridade, na apreciação de façanhas militares, o capitão assombroso que tem conquistado as mais soberbas glórias militares da França, vencendo as maiores batalhas dos tempos modernos. E as vossas prodigiosas campanhas da Itália, Sire, foram as de menos numerosos exércitos, e não são as menos brilhantes que a França deve ao vosso génio e à vossa espada. Arcole não vale menos do que Austerlitz.

- Sois cortesão!

- Sire, é a verdade que entendo e sinto, como a disse há pouco a respeito do meu país.

- Pois sim, mas afinal, na Europa, que grandes campanhas têem tido os portugueses?

- Grandes no sentido material da palavra, talvez nenhumas, mas, no seu significado moral,

 

*1. Duarte Pacheco no passo de Cambalara contra o exército de Calecute.

 

muitas que foram enormes, porque eram de justo esforço pela causa mais santa que pode ter um povo - a da sua independência.

- Com os mouros: bem sei.

- Com os mouros dessa raça que transpôs as fronteiras da França.

- Com os pequenos reinos em que então se dividia a Espanha.

- Com o Império de Leão, que abrangia mais de metade da Espanha, e com Castela, duas vezes mais poderosa que Portugal.

- Aljubarrota é a batalha que vós citais a toda a hora, segundo dizem os espanhóis, censurando-vos.

- Não admira que nós a lembremos e eles nos censurem, Majestade. Dói-lhes recordá-la. Foi a maior e a mais desastrosa que perderam em Portugal. Eram seis contra um e o desbarato deles foi enorme. Mas ainda tivemos depois com eles as campanhas da guerra dos Vinte e oito anos.

- Batalhas pequenas.

- Em duas delas, decisivas, mais de quarenta mil homens de ambos os exércitos. As perdas das que nós vencemos excedem, proporcionalmente, as dos exércitos vencidos por Vossa Majestade nas suas batalhas colossais.(1)

- Nessas campanhas muito vos auxiliou um distinto general da França.

- O marechal Schomberg. Um excelente mestre para os nossos soldados noviços. Mas já tínhamos vencido duas batalhas importantes,(2) quando êle nos trouxe o concurso valiosíssimo da sua experiência.

- E algumas centenas de excelentes oficiais e um contingente de bons soldados.

 

*1. Referência às batalhas do Ameixial e de Montes-Claros.

  1. As do Montijo e das Linhas de Elvas.

 

- De contrato como naquele tempo se encontravam nos maiores exércitos da Europa. Sire, vós o sabeis. O condestável de Bourbon era um general francês, como Conde, e um e outro serviram no exército de Espanha. Francisco I trazia consigo generais e soldados da Itália, Vossa Majestade tem no seu Grande Exército alemães, italianos, suíços, polacos, e ninguém dirá que foi desses auxiliares o melhor sangue e maior esforço nas batalhas vencidas. Sire, a independência de Portugal foi defendida e sustentada pelos portugueses nas batalhas que eles venceram.

- Olhai, não vos esqueça a sova mestra que os espanhóis e os franceses deram aos portugueses e ingleses na batalha de Almanza.

- Sire, antes dessa batalha, os portugueses do Marquês das Minas tinham batido os espanhóis numa campanha, que fechou com a sua entrada em Madride.

- Aquela vossa campanha de 1801 contra os espanhóis foi uma vergonha.

- Sire,uma enorme vergonha! Oxalá nos dê Deus ocasião de a resgatar.

- Presumem então os do vosso país que são mais valentes do que os espanhóis? - preguntou sorrindo.

- Dentro das nossas fronteiras, na defesa dos nossos lares,certamente que sim. Há provas de seiscentos anos. O maior homem de Estado que tem tido o país...

- Bem sei, o Marquês de Pombal.

- Disse uma vez a um embaixador de Espanha que tão forte era cada um em sua casa que até depois de morto eram preciso quatro para o tirarem de lá.

- É simplesmente uma boa frase. A História tem para lhe opor numerosos desmentidos. E fora de vossa casa como vos julgais em relação aos espanhóis?

- Os espanhóis foram um povo grande e heróico. Vossa Majestade bem o sabe. Com oito ou nove milhões de almas dominaram uma boa parte da Europa e quási metade da América. Mas Portugal, com menos de dois milhões de habitantes, teve um império maior do que a Europa, depois de ter descoberto metade da terra.

Napoleão sorriu outra vez, relanceando um olhar para Berthier.

- Tenho alguns milhares de espanhóis ao meu serviço e a vossa Legião fará parte do meu exército. Talvez um dia encontre ocasião de experimentá-los juntos em algum campo de batalha como nem uns nem outros ainda viram.

- Sire, a Legião Portuguesa expatriada cumprirá os deveres do seu sangue e do seu nome.

- Mas se a vossa gente de Portugal se puser de rastos aos pés dos ingleses, terei de ir a Lisboa para atirar ao mar o leopardo britânico, e a Legião irá comigo.

Luís de Castro estremeceu, turbou-se. Napoleão observava-o.

- Que vos parece?

- Sire, se o imperador dos franceses, generalíssimo de um exército em que eu sou obrigado a servir, permitisse que, por momentos apenas, o cidadão português substituísse aqui o oficial da Legião, eu teria a honra de responder-vos com uma sinceridade que não desdiria o respeito que vos devo.

- Permito, respondei.

- O Imperador exigiria uma cousa desumana e iníqua: o generalíssimo cometeria um erro impróprio do seu assombroso génio de homem de guerra. A Legião revoltava-se, a Legião não ia contra a sua terra.

- Os Césares mandavam entre as legiões de Roma, contra os países insubmissos, os soldados trazidos desses mesmos países.

- Sire, algumas vezes se revoltaram. Nas serranias dessa província da Beira, que os soldados da Gironda transpuseram a cair de fome e de cansaço, vive ainda a tradição de um povo insubmisso de pastores bárbaros, que as legiões dos Césares nunca puderam enfileirar contra aqueles redutos de montanhas. Sire, batiam-nas, bateram-nas. Os historiadores de Roma escreveram desses intrépidos montanheses bárbaros, desses lusitanos que tiveram por caudilho famoso o arrojado Viriato, vencido afinal pelo veneno de Roma.

- Tenho ideia de ler que o Imperador Trajano levou para as margens do Danúbio, entre as suas legiões romanas, uma legião de lusitanos, na guerra contra os Dácios.

- Sire, li também esse facto. Os historiadores latinos falam com louvor da bravura desses lusitanos. Mas essa legião não ia contra o seu país. É o caso de que tenho tido a honra de falar a Vossa Majestade. Essa legião de agora irá talvez como a outra foi, talvez com a mesma intrepidez, para as margens do Danúbio, ou para onde Vossa Majestade mandar, menos contra a sua terra.

- Faltando assim ao seu juramento de fidelidade e ao seu dever militar, a Legião será fusilada ou irá para as galés.

- Sire, por mim, preferiria que, ao transpor a fronteira de Portugal, uma bala francesa me varasse o coração a que a minha voz desse a soldados portugueses a ordem de fogo contra os seus próprios compatriotas. Majestade, contra a bandeira do meu país, contra o peito de irmãos da minha raça, na língua que minha mãe me ensinou, essa voz sacrílega de comando afogar-se-me-ia no coração espe-daçado, antes que pudesse sair-me da boca num arranque de pavor. Mas Napoleão, o grande, não mandará semelhante violência, porque não é capaz de uma crueldade assim monstruosa.

Seria mais generoso mandar-nos para as galés, mais humano fuzilar a Legião em massa.

- Uns ardentes fantasiadores estes gascões de além Pirenéus! - disse o Imperador para Berthier com um sorriso de complacência - Quero ver do que serão capazes os que ficaram em Espanha.

Depois, voltando-se outra vez para Luís de Castro:

- Está então entendido que não posso contar com os senhores portugueses para além da fronteira da sua terra?

- Vossa Majestade teria o direito de mandar, nós o dever de quebrar as espadas e as espingardas contra as primeiras pedras que se nos deparassem na raia de Portugal.

- Sabeis que vos estou ouvindo audácias? - preguntou um pouco duramente.

- Sinceras palavras, que Vossa Majestade autorizou, como sendo apenas de um homem de Portugal e não de um oficial do vosso exército.

- O que vale é que só as ouve o sr. Marechal, Príncipe de Neufchâtel.

- Sire, podia ouvi-las o mundo, que não são nem de desdouro para Vossa Majestade, nem de irreverência na minha boca.

- Posso então estar certo de que tenho em cada legionário um rebelde?

- Em cada um deles um português, quando se trata de Portugal. E desses até alguns que admiram em Vossa Majestade o general espantoso, só comparável a Alexandre e a César e sem émulos na história moderna.

- Falais apenas dos outros?

- Sire, e de mim também, entre os que mais vos admiram, sem esquecer no homem de guerra o homem político e, com as responsabilidades de um e outro, os infortúnios do meu país.

- Havemos de ver se os actos valem as palavras.

Na primeira campanha que tiver hei-de levar a vossa Legião.

- Sire, se não fôr contra Portugal, ela saberá lembrar-se nas horas de combate de que sois vós o general e de que é ela a representação de uma raça e de um exército que a Europa terá julgado de cobardes simplesmente porque lhe faltou o homem dirigente de que Portugal precisava.

- Havemos de ver. Podeis retirar-vos. Mas esperai. Quero dizer-vos que tenho em grande conta a história do vosso país. Até a recomendei nas aulas de história dos liceus, porque a considero uma escola de heroísmo.(1)

- Sire, honra suprema na vossa boca! Permiti que vos beije a mão por tão insigne louvor à minha raça.

Beijou-lhe a mão e saiu comovido.

- Sabe dizer o que lhe apraz este capitão patriota! - disse o Imperador para Berthier - E o caso é que no meu coração e na minha consciência estou de acordo com êle. É um homem daqueles a quem eu gosto de perdoar as franquezas de palavras, ainda que tenham vislumbres de insubmissão. Já me não esquece. Nem pela impressão que me deixou, nem pelas palavras que lhe ouvi.

Luís de Castro foi procurar D. Lourenço de Lima e, depois de lhe contar aquele extraordinário diálogo com Napoleão,

 

*1. Vinte e cinco anos mais tarde, Mesnard dizia na sua Histoire du Portugal:

«A História de Portugal é uma das mais interessantes, das mais maravilhosas e também das mais tristes dos povos modernos. Napoleão sabia-o bem e por isso a tinha recomendado nos seus liceus, etc.

Pepper repetia em 1879 a frase atribuída a Napoleão I: A História de Portugal é uma escola de heroísmo.

 

comunicou-lhe confidencialmente um plano de interesse pessoal, em que precisava da sua cooperação.

Falaram por largo tempo. D. Lourenço acedeu ao pedido e prometeu guardar sobre o caso o mais absoluto segredo.

Castro foi para o hotel, jantou e foi meter-se no seu gabinete de trabalho, que ficava contíguo ao quarto de dormir e lhe servia também de salazita para as visitas íntimas.

Escreveria uma longa carta a Maria Pulaski. Tirou do peito da farda a miniatura do retrato dela. Esteve a contemplá-la, beijou-a.

Pousou-a diante de si em cima de uns papéis, e começou a escrever.

Anoitecia, acendeu a luz. Bateram mansamente à porta. Mandou entrar, era o velho ex-sargento, dono do hotel.

- Queira perdoar, meu senhor. Eu venho intrigado e não sei se faço mal, se lhe desagrado, incumbindo-me de uma coisa...

- Não posso adivinhar de que se trata. Faça favor de dizer.

- Parece que a minha nova hóspeda, a senhora que chegou ontem, a viúva do banqueiro de Paris, conhece muito bem o sr. Capitão. Viu-o há pouco por detrás da vidraça do seu quarto e, segundo me contou o parente dela, reconheceu-o logo.

- Mas onde me conheceu ela?

- Lá no seu país, na capital.

- Em Lisboa?

- Exactamente. Foi o que o parente dela me disse.

- Italiana, viúva de um banqueiro... Não me lembro quem seja.

- Talvez isso venha explicado nesta carta - disse, tirando uma carta da algibeira -, é para o sr. Capitão.

- Para mim, de quem?

- O parente dela entregou-ma, pedindo que a entregasse ao sr. Capitão.

- É singular! Dê cá.

Abriu-a, leu-a. Dizia isto apenas em francês:

«Pessoa que muito se interessa pelo sr. capitão Luís de Castro e o conhece muito bem, deseja fazer-lhe revelações de muita importância e pede-lhe a fineza de a receber agora no seu gabinete. Agradece a anuência e pede desculpa de ocultar o nome como terá de ocultar o rosto.»

- Esta agora é melhor! - reflectiu -, Italiana, viúva de um banqueiro, que me conhece de Lisboa, a pedir-me uma entrevista de noite, agora, nos meus próprios aposentos para umas revelações importantes que me interessam! E não diz o seu nome e promete vir de rosto velado essa criatura a quem ainda ninguém viu a cara aqui no hotel! Parece de teatro! Estão-me sucedendo coisas inacreditáveis. Olhe lá - disse para o bravo de Marengo - o sr. viu já a pessoa que me escreveu esta carta?

- Mas eu não sei quem é! Quem ma entregou não mo disse. Contou-me que a senhora viúva a conhecia de Lisboa, e pediu-me que lhe entregasse essa carta preguntando se tinha resposta. Mais nada.

- Este velhaco está a mentir-me! - pensou.

- Mas uma carta, perfumada como essa, há-de naturalmente ser da senhora que o conhece e o viu entrar.

- Pois suponhamos que é desta dama. Já a viu?

- O corpo somente, muito envolvido numa capa de seda e rendas pretas, com um véu negro, tão espesso que nem sequer se lhe podia admirar o rosto! E só a vi quando chegou.

- Mas nos aposentos dessa dama é provável que entrem as criadas do hotel.

- Nenhuma lá entrou. A tal parenta é que vem cá fora dizer o que ela manda que se lhe faça. Ainda não saiu do quarto.

- É curioso o mistério! - pensou - Pois terei eu a fortuna de o desvendar. Bem - disse-lhe - vá dizer a quem lhe entregou essa carta que estou completamente à disposição da pessoa que me escreve e a fico esperando aqui.

Iluminou-se num clarão de júbilo a cara engelhada do ex-sargento.

- São quarenta napoleões que eu ganho nesta cartada - disse consigo.

- Mas olhe cá. A pessoa que eu tenho de esperar terá de passar no corredor e podem vê-la entrar para aqui os outros hóspedes.

- Lá quanto a isso pode o sr. Capitão ficar descansado - acudiu o ex-sargento velhacamente - Neste corredor só havia outro hóspede, e saiu hoje de manhã.

- Bem. Vá lá levar o meu recado.

O ex-sargento saiu fazendo uma continência militar.

- Este mariola foi peitado, ia jurá-lo. Agora estou ansioso pela surpresa. Era boa peça que me aparecesse aí algum camafeu que tivesse estado em Lisboa e viesse pespegar-me aqui um chorrilho de tolices! E se tem a veleidade de supor que vem comprar-me para seu apaixonado, então até eu hei-de ter vontade de rir da minha ridícula situação! Mas eu sei lá? Pode tratar-se de alguma revelação ingénua e sincera. Importante para mim é que eu não creio que seja.

Bateram à porta mansamente. Castro levantou-se e foi abrir comovido.

Seria sem dúvida a misteriosa viúva italiana.

Era, muito envolvida numa ampla capa de seda e rendas, flexível, ligeira, ténue como se fosse a asa de uma borboleta e toda negra como a mantilha de tufos de rendas caras da qual pendia um véu espessíssimo.

Castro afastou-se da porta e cumprimentou-a, curvando-se.

A viúva baixou a cabeça com a altivez de uma rainha e disse a meia voz, em italiano para uma dama ainda nova, tipo nada vulgar de plebeia bonita:

- Pode retirar-se.

- Isto promete ser interessante - pensava o Castro, um pouco perturbado pela aventura.

A viúva entrou.

- Pedia-lhe a fineza de fechar a porta. Não desejava que me vissem aqui - disse-lhe em francês.

- Pois não - titubeou o Castro, indo para a porta.

E fechou-a apenas com a lingueta do puxador.

- Peço-lhe mil perdões, sr. Castro.

- Oh! minha senhora...

- Há de ter feito de mim uma ideia deplorável.

- Deplorável porquê, minha senhora? Não tenho a honra de saber a quem estou falando, mas a carta que se dignou mandar-me falava de revelações importantes que tinha a fazer-me. Sejam quais forem, bastam para justificar as condições singulares desta entrevista. De interesse para mim, como a sua carta dizia, valem então uma generosa mercê, que eu não podia amesquinhar na sombra de qualquer suspeita menos digna da sua condição, minha senhora.

- A condição?! Sabe?

- Disseram-me que a ferira enorme infortúnio...

- Um grande infortúnio! - disse, modulando as palavras num longo suspiro.

, - Que era viúva de um banqueiro de Paris, falecido há pouco mais de um ano. Mas, por quem é, minha senhora - disse, indicando um pequeno sofá que estava muito ao pé da sua mesa de trabalho.

- Muito obrigada. Dê-me licença que tire a mantilha. Está um calor que sufoca.

- Pois não, minha senhora - disse, indo para ela como para a ajudar.

- Perdoe-me a sem-cerimónia - volveu-lhe, tirando a mantilha, que Luís de Castro lhe recebeu e pôs no braço.

Mas o véu negro, impenetrável, estava preso ao cabelo e esse não o tirou ela.

Os cabelos eram opulentos, de mulher nova, percebia-se bem.

- Abafa-me esta noite! Lembra-me as noites de estio na minha Itália - disse, tirando a capa, leve como se fosse a plumagem de uma ave.

Castro tomou-lha nos braços. Tinha um perfume fino e suave que o perturbava.

Relanceou um olhar de pasmo para o corpo gentilíssimo da viúva. O vestido todo de faille e rendas pretas, muito cingido, deixava perceber uns contornos esculturais. As mangas de renda, muito estreitas, finíssimas, deixavam adivinhar a forma e a alvura dos braços.

- Mas é positivamente uma mulher em plena mocidade - pensou.

E foi pôr nas costas de uma cadeira todas aquelas ondas de seda e renda que se lhe encapelavam nas mãos. Não me engano. Se o rosto vale a elegância escultural do corpo, deve ser uma beleza estonteadora.

- Isto é tão anormal, está longe das mais singelas formalidades da etiqueta, que eu preciso de justificar-me, quanto antes, fazendo-lhe as minhas revelações. Mas está de pé! Faça-me a fineza de sentar-se aí ao pé da sua mesa de trabalho, para me ouvir, como se estivesse ouvindo uma pessoa íntima com quem não tivesse a menor cerimónia. Se me dá licença, sento-me aqui, deste lado da mesa.

- Minha senhora, como v. ex.a quiser e mandar - respondeu o Castro com uma estranheza que principiava a ser já fascinação.

A viúva sentou-se de modo que o via perfeitamente de perfil, e pousou sobre um canto da mesa o seu lindo braço.

- A voz é um encanto - pensava êle - Talvez um pouco tremente, um pouco velada. Mas aquele maldito véu, ali naquele rosto que talvez seja lindo, a velá-lo, denso como uma noite sem estrelas!

- Não pode sonhar sequer o que eu tenho sofrido e que poderoso sentimento me traz aqui! Conheço-o, sr. Luís de Castro.

- Assim a mim me fosse dada a ventura de poder afirmar o mesmo a seu respeito, minha senhora.

A viúva fingiu não perceber, e prosseguiu calorosamente:

- Tive sempre a maior admiração pelo seu espírito e pelo seu carácter. Honra o seu país: é bem pelo coração o fidalgo ilustre que já era pelo nascimento!

- Favores insignes na sua generosidade, minha senhora. Quere v. ex.a saber uma coisa?

- Diga, diga.

- Está-me torturando esta impossibilidade em que estou de saber quem é a dama que me distingue assim e tamanha prova me dá da sua confiança aos meus sentimentos de homem de bem.

- Há-de saber e verá então, verá que me conhece perfeitamente - disse-lhe num tom de mimo infantil - Ora o que eu sei da sua vida de Lisboa, daqueles seus castos amores com a filha de um polaco,, muito linda por sinal!

- Conheceu-a?!

- Conheci - respondeu lentamente, perturbada, relanceando olhares para certo objecto que estava sobre uns papéis, muito à mão, a refulgir na sua pequenina moldura. Dava-lhe em cheio a luz das velas. Era o retratozito de Maria Pulaski. - Ah! mas que intenso calor!

- Abro mais a janela.

- É o véu que me sufoca,

- Eu não ousava dizer-lho, para não parecer impaciência minha de ver quebrado este mistério. Esse véu deve oprimi-la.

- Ah! mas tem razão. Ainda assim, há-de perdoar-me que o mistério continui, embora eu tire o véu. Quero primeiro fazer-lhe as revelações... depois saberá então quem lhas fêz.

Tirou o véu, mas trazia no rosto uma daquelas máscaras de cetim que tinham sido moda feminil da Itália nos grandes tempos romanescos e ainda eram usadas lá por certas damas em aventura de comprometimento.

- De surpresa em surpresa! - pensou Luís de Castro, enquanto ela dava um toque nos cabelos - Colo de cisne I Uma divina cabeça!

- Hão-de parecer-lhe singulares estas minhas precauções. Há-de saber porquê, hei-de eu dizer-lho quando as suas palavras me derem ensejo para isso. Dou-lhe uma impressão de esquisitice, um ar antigo de italiana romanesca, não é assim?

- Deu-me uma impressão de deslumbramento, minha senhora! Estou a sonhar uma italiana gentilíssima das grandes eras da poesia e do amor. A divina cabeça da Fornarina pela graça escultural e pelo pedacito de seda dessa máscara está a lembrar-me o que eu li de certa noiva formosíssima de um Doge ciumento de Veneza. Descera os degraus de mármore do seu palácio medievo, máscara da cor da noite no seu rosto da côr da neve, saltou para a gôndola de leões doirados e foi reclinar-se nos cochins de cetim, olhos cismadores cravados no céu, enlanguescidos os mármores das suas carnes. As águas do canal marulhavam em murmúrios voluptuosos, o luar banhava-a numa doce e amorosa sensualidade de sonho. À proa da gôndola um troveiro mercenário cantava languidamente os olhos fascinadores da noiva do Doge, fulgindo através da pequena máscara como estrelas por entre nuvens.

- Não sabia que em Portugal havia também capitães poetas! -- disse-lhe com uma leve tremura de voz.

Luís de Castro lembrou-se de uma frase semelhante que outra mulher lhe dissera.

- Mas eu sou uma viúva a quem não é dado supor-se a sombra sequer dessa linda mulher do seu conto.

- Chamavam-lhe em Veneza a enfatua da carne. A viúva estremeceu.

- Diz-se que um requestador ousado um dia lhe arrancara a máscara numa alucinação de beijos.

- Sr. Luís de Castro!

- Perdão, minha senhora. Eu disse o que li no conto. Mas as suas revelações? - preguntou, envolvendo-a num olhar de cobiçoso desvario - E se lho merecesse, minha senhora, a revelação de quem é, primeiro que as outras? Peço-lhe com fervoroso empenho - disse, tomando-lhe suavemente a mão que ela tinha pousada na mesa - Agora a revelação que eu mais desejo é esta de saber que nome hei-de dar a esta perturbadora estátua de carne que tenho diante de mim.

- Há outra maior, de mais urgência, que é toda minha e me está queimando o coração - disse a viúva, erguendo-se numa impaciência febril, a voz baça, as palavras a tremerem-lhe nos lábios.

- Qual? - preguntou o Castro, erguendo-se também, sacudido por uma estonteadora surpresa.

- Luís -murmurou inclinada para êle, pousando-lhe nos ombros os seus braços esculturais, encostando a face incendida ao rosto do moço oficial - Amo-te perdidamente. Amo-te!

--Mas quem é? Quem és? - preguntou, beijando-a numa sofreguidão doida - Que te importa quem sou? Sou a muLher que te quere, sem mesmo preguntar se o teu coração é doutra. Para te seguir ou para que tu me sigas.

- Então dás-me o direito de arrancar esta máscara.

- Não! Ainda não! - disse numa carícia de súplica, inclinando a cabeça para trás, os seios de neve num arfar violento.

Bateram à porta.

- Luís de Castro! - chamaram.

- Quem é?! -preguntou baixo a dama misteriosa, correndo a buscar a capa e a mantilha.

- Pessoa de confiança... não sei quem.

- A dona do hotel tinha-me assegurado...

- Luís de Castro! - tornaram a repetir.

- E agora? - preguntou baixo, muito assustada - Tem de abrir?

- Posso fingir que não ouço, mas fico receando que venham chamar-me para alguma coisa de gravidade. Oculte-se aí por momentos - segredou-lhe apontando a porta do quarto - Eu pregunto, e se não fôr pessoa a quem tenha de falar, despeço-a.

A dama entrou no quarto. Castro foi à porta e preguntou sem abrir:

- Quem é?

- Homem, julguei que tinha morrido! É Lourenço de Lima. Trago-lhe uma novidade importante. Abra.

Luís de Castro abriu a porta.

- Você desculpe, mas entendi que devia cá vir - disse, entrando e sentando-se familiarmente - O guarda-portão disse-me que você ainda não tinha saído, mas que, se não estivesse no quarto, é porque teria ido com o dono da casa e com um casal de hóspedes que tinham ido com êle para gozar a noite. Vim entrando. Encontrei apenas uma criada velha a dormir num degrau da escada que dá para aqui. E como você não respondia, estava já disposta a ir procurá-lo ao parque.

- Mas é então novidade de importância?

- De importância para si, porque representa um alto testemunho de apreço,

- Não sei adivinhar.

- Eu lhe digo o que é. Saí de casa com tenção de vir por cá trazer-lhe uma coisa curiosa de que já lhe falei e de todo me esqueceu mostrar-lhe esta tarde, quando você foi ter comigo. No caminho encontrei o general Duroc, marechal do palácio, e começámos a falar de Napoleão. Duroc disse-me que o Imperador ficara fazendo de você uma alta ideia e estava na intenção de o nomear seu oficial às ordens. Para um estrangeiro, embora com os seus merecimentos, é realmente uma insigne distinção. Fiquei satisfeitíssimo e, apesar de se ter feito um pouco tarde, não resisti a vir trazer-lhe a boa nova, mesmo com o risco de o incomodar.

- Nenhum incómodo, meu caro amigo, e mil agradecimentos por esta gentilíssima prova de interesse por mim, a engrandecer uma dívida de gratidão que eu tenho por insolúvel.

Disse-lhe isto com um sorriso contrafeito e com uma impaciência que os frequentes olhares para a porta do quarto estavam manifestando.

- Mas não aceito a mercê - disse o Castro.

- Não aceita?! Homem, olhe que isso era uma ofensa que Napoleão lhe não perdoaria. Não julgue o Imperador pelas suas horas de tranquila disposição de espírito, nem por aqueles momentos de bonomia em que êle desce a familiaridades destoantes da sua excepcional categoria. Os seus ímpetos de cólera são terríveis! Enche-se-lhe o peito de rancores que nunca mais perdoam, e aquela boca de César triunfador troveja afrontas que ficariam mal no calão de um tambor. Na alucinação das suas iras formidáveis, as fardas dos seus marechais não valem para êle mais do que a libré dos seus lacaios. Extraordinário até nas desigualdades do carácter!

- Mas eu sei como lhe posso e devo falar. Provei-o esta manhã.

Não ousaria uma recusa ofensiva, substituí-la-ei por um pedido de mercê. Pedir-lhe-ei que me deixe continuar no regimento e não me conceda tão insigne distinção sem eu lhe ter dado provas que a mereço, entrando em combate à frente dos meus soldados. Verá que êle há-de concordar comigo. Os outros oficiais às ordens que êle traz consigo têem feito campanhas, eu nenhuma, arriscaram a vida nos campos de batalha, eu nunca passei dos campos de exercício. Não quero semelhante mercê de favor nesta desigualdade humilhadora de condições.

- Tem talvez razão, está bem no caminho das suas honradas susceptibilidades, e desse caso especial entende o meu amigo muito melhor do que eu. Mas as minhas felicitações subsistem. E não quero incomodá-lo mais.

- Por amor de Deus! Nunca me incomoda! - disse-lhe à sobreposse, enviesando olhares para a porta do quarto.

- Não. você está com vontade de se deitar. Estou a percebê-lo. Já o vi olhar umas poucas de vezes para a porta do quarto. Mas, já agora, um minuto mais. Trago-lhe aqui a coisa curiosíssima de que lhe falei.

Tirou de uma larga algibeira interior um papel consistente, enrolado.

- Aqui tem, para as suas horas de contemplação e de filosofia a respeito das fraquezas humanas, estas duas estampas que eu comprei outro dia a um vendilhão italiano.

Desenrolou-as.

- Esta é a Princesa Borghèse!

- Exactamente. Uma excelente gravura em aço. cópia produzida de um retrato de sua alteza. Agora esta representa uma estátua que existe no palácio Borguèse. Vénus deitada. Uma encantadora escultura de Canova.

- Mas a cabeça desta Vénus tem uma extraordinária semelhança com a da Princesa! - disse o Castro, comparando as duas gravuras.

- Tem com a divina cabeça de Paulina Bonaparte.

- Percebo: foi feita pelo retrato dela.

- Modelada ao pé dela, a cabeça e toda essa nudez escultural. Cópia fiel, dizem os entendidos.

- Espantoso! Incrível!

- Olhe: chegaram a dizer que o estatuário emendara uns pequeninos defeitos do modelo. Mas ouvi que é falso. Ouvi-o eu à Duquesa de Abrantes, ainda então simplesmente Madame Laura Junot. Afirmou que não era verdade, e que o sabia ela, como todas as pessoas que tinham vivido na intimidade da Princesa.(1) Foi talvez por malícia que o disse, pois que logo falou de certa mancha que a Borghèse tinha em uma das mãos, não me lembra qual, mas disse-o.

- Mancha!

- Sim, vestígio de uma doença que teve na ilha de São Domingos, quando esposa do general Leclerc. Pois aqui lhe deixo Paulina-Vénus. Assim chamam os artistas a esta obra-prima de Canova. Repare: é o título da gravura. Ouvi que o escultor maravilhado lhe chamou estátua de carne. Actualmente seria preferível a outra de mármore. Vá, vá deitar-se tranquilamente e amanhã pense no duplo perigo de que escapou.

E de brincadeira disse-lhe ao ouvido o quer que fosse.

- Isso agora é incrível! Isso há-de ser inventado!

 

*1. «Espalhou-se que o artista lhe havia corrigido defeitos no busto e nas pernas. Eu vi as pernas da Princesa Borghèse, como todas as pessoas que a conheciam um pouco mais em intimidade e sei que nunca lhe descobri semelhantes defeitos». (Mémoires de La Duchese de Abrantes, tomo Vi, pag. 67).

 

- Será, mas dizem-no. Não lhe quero tomar mais tempo. Até amanhã. Adeus.

- Até amanhã.

Castro atirou com as estampas para cima da mesa e correu ao quarto.

A viúva apareceu-lhe muito perturbada e preguntou-lhe se havia alguma cousa de receio para ele.

Castro respondeu-lhe que não. Um amigo ilustre, seu compatriota, passara e viera trazer-lhe umas notícias banais que soubera de Espanha e duas estampas curiosas relativas a uma princesa imperial.

Podia enganá-la assim, porque êle e D. Lourenço tinham falado em português, a meia voz, e a porta do quarto ficara fechada e com o reposteiro corrido. Não poderia ter ouvido, ainda que alguma coisa percebesse da língua portuguesa, visto haver residido em Lisboa, como dizia.

A viúva relanceou um olhar de curiosidade para as estampas.

- Posso vê-las?

- Pois não...

- Acha formosa esta princesa?

- Dizem que é a mais linda e a mais doida mulher de França.

-- Conhece-a? - preguntou a italiana com uma ligeira tremura na voz.

- Conheço. Tem fama na Europa.

- Por ser irmã do Imperador, provavelmente.

- Pela sua beleza excepcional e pelas suas ardentes paixões, que têem sido o pesadelo do irmão.

- Talvez pelo sangue de herança. Ouvi dizer a um médico do meu país que nem sempre temos culpa do que somos. E comparava as pessoas assim àquela formosa terra de Nápoles, risonha e fecunda com as lavas do Vesúvio a queimarem-lhe as entranhas e a mudarem-lhe em cinzas os encantos paradisíacos. Não concorda?

- Talvez tenha razão o médico, seu compatriota, mas também as pessoas prudentes têem razão, fugindo receosas desse país que as pode soterrar nas suas entranhas de fogo.

- Isso o diz agora por dizer... mas a sua mocidade não saberia resistir aos encantos da princesa, se ela quisesse pertencer-lhe.

- Saberia, afastar-me-ia dela.

- Como José do Egipto?

- Antes do lance em que eu poderia imitar esse prodígio de castidade bíblica.

- Ora, se a princesa o quisesse, se o perseguisse...

- Lembrava-me então desta estátua modelada pelas suas carnes que todos podem cobiçar, lembrava-me desse colo de mármore, primorosamente cinzelado, que os lacaios do palácio Borghèse podem beijar, em sofreguidões de sátiros, julgando beijá-la a ela, e repeli-la-ia de mim, para que a ninguém ficasse o direito de me julgar ridiculamente iludido.

- A ideia que faz dela!

- Parece que lhe causa pena!

- Faz-me dó ver assim deprimida essa a que os cortesãos das Tulherias chamavam, segundo me disseram, a mais divina das belezas humanas.

- Exagero de cortesãos. Tenho eu agora aqui, diante de mim, uma estátua de carne que se revela peregrina e eu adivinho e sonho de beleza rival daquela. Disse amar-me. Quem é? Quem é? Deixe que eu lhe arranque do rosto esta máscara que põe no meu espírito uma sombra desesperadora.

Tomou-lhe as mãos enluvadas.

- A máscara, não. Esta máscara nunca! - disse, agitada, desprendendo-se dele.

É singular! Que importa ao seu pudor esse pedaço de cetim, se há pouco ainda me fêz confidências de amante, uns arrebatamentos que me não iludiram, que me não podiam iludir?!

- Agora receio que faça de mim o mau juízo que faz da Vénus-Borghèse.

- Mas é então um capricho seu, uma audaciosa mistificação com que me quere atormentar, humilhando-me?!

- Isso não é, não é! Há-de sabê-lo.

Castro foi para ela e cingiu-lhe o busto arrebatadamente.

- Peço eu, suplico. Esta máscara fora, ou ficará comigo a suspeita de que receia dar-se a conhecer, porque é também de amores fáceis como a Vénus-Borghèse.

- Suponha-me então como quiser. Ponho o mistério desta máscara sob a guarda das suas susceptibilidades de homem de bem.

- Minha senhora - disse-lhe então friamente, afastando-se dela - Ouvi a revelação que tinha para me fazer. Essa máscara, que teima em não tirar do rosto, corresponde a uma negação formal das suas palavras de apaixonada. Não sei a quem falo, é natural que hesite na classificação desse arrojo da sua fantasia ou do seu temperamento. Agora as minhas susceptibilidades de homem de bem obrigam-me a recordar-lhe que esta entrevista pode ser de grave descrédito para uma dama, se a moveu apenas uma irreflexão de que na sua vida não havia precedentes: ou para mim, se essa máscara vela alguém que tem vergonha de se dar a conhecer,

- Não sabia que no seu país os fidalgos podiam falar às damas com semelhante rudeza!

- No meu país só se mascaram as cómicas... Mas não, não quero dizer-lhe a resposta completa. Essa máscara, que lhe não cai do rosto, autoriza as piores suspeitas e põe um comentário de escândalo no pretexto desta visita, mas prefiro supor que tenho diante de mim alguém que mereça dó.

- Esta máscara defende alguém que não deve corar de si, e que podia perdê-lo.

Deitou a capa pelos ombros febrilmente. Escorriam lágrimas sob o cetim da máscara.

- Mas não quero - disse, aproximando-se da mesa - Também me fêz dó a mulher que esta miniatura representa - disse, pegando no medalhão com o retrato de Maria Pulaski.

- Senhora, mãos de uma desconhecida não podem tocar nessa relíquia santa da minha alma!

- Mas podem fixá-la os meus olhos - disse amargamente, repondo o medalhão sobre as estampas - Fixá-la para a conhecer. É linda!

- E casta - acudiu logo o Castro, afastando a miniatura de cima das gravuras como se o contacto daqueles objectos lhe parecesse uma profanação execrável.

A italiana compreendeu-lhe o intuito e disse lentamente com dolorida expressão:

- São afronte as que não o puderam também ser. Já ouvi... sabe-se tudo... já ouvi que é filha de um polaco, chegado aí há meses.

- Há-de ser a minha noiva.

- Quem sabe? Retiro-me. Oxalá que eu lhe possa perdoar a amargura com que saio daqui. Perdoar-lhe e esquecê-lo. Seria um bem para si e para mim.

Foi para a porta lentamente com o altivo donaire de uma rainha.

- Senhora! - exclamou o Castro, correndo para a porta num impulso de arrependimento - Fui rude, provavelmente injusto, por culpa sua, minha senhora! exclusivamente sua! Mas, seja quem for, percebo, vejo que não é qualquer. Não se dirá que um fidalgo de Portugal não soube resgatar a rudeza de uns momentos, os impulsos irritados do seu orgulho de homem, que se supôs ludibriado. Peço-lhe desculpa. Seja qual fôr o mistério guardado por esta máscara, é uma senhora. Perdoe-me, esquecendo estes instantes de rudeza.

Tomou-lhe as mãos, ela abandonou-lhas enlanguecida.

- Esquece?

- Esqueço - respondeu numa perturbação que lhe fazia tremer as palavras nos lábios - Esquecerei o agravo, sem poder esquecê-lo a si.

- A sua voz tem um inexcedível encanto, é como se fosse uma doce música voluptuosa! E nem sei bem porque me está lembrando a voz de alguém que eu já ouvi!

- Decerto ouviu, mas de quem nem já se recorda, não é assim?

- Por culpa sua, por causa desse pedaço de cetim, retalho de noite em que os seus olhos fulgem perturbadores, tarja a ensombrar um rosto admiravelmente lindo como um farrapo de nuvem sobre a face de uma estrela. Corpo de escultural gentileza que eu adivinho com alvura e dos primores daquela estátua da Borghèse - disse-lhe, cingindo-a a si.

- Como a Borghése! Que ideia a sua!

- Sim, como ela, mas a Vénus imperial não velou os seios modelares que o mármore friamente reproduziu, e não cobriria para mim o rosto. E, todavia, esta cabeça graciosa não vale menos que a dela.

Beijou-a. A italiana estremeceu.

- A lembrar-se dela, não é assim?

- A supor que tenho aqui beldade igual, sem o louco passado que ela tem.

- Mas por si tão louca ou mais do que ela, pois lhe consente arrebatamentos de galã depois de tamanho agravo!

- Perdoado, sim? Quem é? Sem nenhuma sombra o esplendor desses olhos que me queimam o sangue. Consente?--preguntou, tocando-lhe ao de leve na máscara.

- Um dia - disse-lhe, deitando a cabeça para trás - um dia. Agora não. Tenho muito nos olhos aquela miniatura e receio parecer-lhe mais feia do que a filha do polaco... a sua casta noiva.

Num estremeção de remorso Castro largou-a de si.

O desvario dos sentidos outra vez se lhe dissipou de súbito, como se fosse uma embriaguez vergonhosa.

Parecia-lhe que entre êle e aquela misteriosa mulher se erguia a visão de Maria Pulaski.

- Minha senhora! -disse-lhe, abrindo a porta - Desculpe-me a impertinência e a demora.

- Despede-me!

- Despeço-me, desistindo de saber quem teve o capricho de se divertir comigo.

- Há-de sabê-lo. Prometo-lho. Saiu.

- Não desistes, não - ia dizendo consigo a italiana - Há de trazer-te para mim a tua vaidade de homem, embora depois me voltes as costas. Hei-de torturar-te torturando-me. Depois a amante terá em ti mais poder do que a noiva.

- Desfrutou-me! - ficou dizendo de si para si Luís de Castro - Veio aqui divertir-se representando uma comédia em que eu tive um papel vergonhosamente ridículo. Por capricho seu ou por mandado dalguém? Com que intuito. Para quê? Mas quem? Eu encontrarei a resposta. Neste jogo de intrigas amorosas são elas que vencem quási sempre, mas também nós ganhamos algumas vezes.

Passaram-se três dias. Castro não tornara a ter nenhuma entrevista com Maria Pulaski. Escreviam-se, Mas também não tornara a ver a italiana.

Teve umas conferências com D. Lourenço a respeito do seu plano, mas não se atreveu a falar-lhe na extraordinária aventura com a italiana. Tinha vergonha de falar naquela cena de comédia lúbrica. Disse-lhe, ainda assim, que estava no hotel uma viúva, nova, que pouca gente via, mas tivera êle ocasião de surpreender, de modo a notar-lhe uma linda cabeça e umas formas admiráveis.

- Sabe quem me lembrou? - disse-lhe.

- Quem?

- A Borghèse, Paulina-Vénus.

- Sim? Pois acautele-se, não seja o demónio por ela - gracejou D. Lourenço -, Mas, coitada, deixemo-la em paz. Ouvi ontem dizer em Marrac, num grupo de senhoras, que a Princesa se não sentira melhor da doença que a acometera em Nice e não poderia por ora seguir para Turim.

- Pior para o saudoso marido.

- Disse-me aquela espevitada Condessa, muito do seu conhecimento, que a Princesa não saía dos seus aposentos e não recebia ninguém. Lá está você a interessar-se por ela! Vaidoso! A lembrar-se do muito que ela gosta de si, adivinho. E ela é nada menos que a mais bela mulher de França, a irmã de um César.

- Brincadeira sua.

- Diga-lhe que é brincadeira. Mas agora, meu caro Luís, nem a brincar lhe é dado lembrar-se da estátua de carne.

- Fique descansado. Mas, se me lembrasse, a culpa era toda sua - disse-lhe a sorrir - Levou-me lá para casa o retrato dela.

- Levei, sim, mas levei-lhe também o calmante de certo pormenor que o meu amigo não deve esquecer.

- Nem mesmo diante da outra estampa que representa a estátua de Vénus deitada?

- Nem mesmo diante dela, se lhe lembrar a tal mancha da mão que o mármore não revela.

- A tal marca da ilha de São Domingos?

- Essa.

- E será disso que ela está doente em Nice?

- Talvez. Ficou sofrendo desde que esteve naquela ilha. Não sei se vive ainda um tal Forbín que eu vi em Paris. Se vive, talvez pudesse confirmar as minhas informações.(1)

- Porquê?

- Porque era o camareiro da Princesa. Um homem encantador, bem falante, poeta, o príncipe dos camareiros aquele sr. Forbin!

- Querido da Princesa?

- Não sei, meu sr., não sei. Oficialmente era apenas o seu camareiro. Mas voltemo-nos para as coisas sérias. Olhe que tenho bem encaminhada a tarefa de que me incumbi. O caso há-de fazer um certo ruído, há-de ter um eco de escândalo em Marrac, mas nós contaremos as coisas lealmente ao Imperador e êle costuma ser benévolo em casos de amor que lhe não contendam com a família. O pior é o pai. O caso é êle meter-se a caminho na intenção de os vir surpreender. Tenho um velho criado francês que é homem dos demónios para saber coisas e meter o nariz na vida alheia. Já o incumbi de me observar a casa do polaco e os passos que êle dá. Há-de arranjar-se um meio de o demorar fora de Baiona mais do que êle deseja e espera.

- Basta o tempo suficiente para que o acto se realize.

- Decerto... O homem irá de carruagem ou na mala-posta para o disfarce, pelo menos até aos arredores de Baiona.

- Creio que sim.

- Pois alguém irá com êle noutra carruagem ou na mesma, para o demorar. Há-de ser o ladino do meu criado francês.

 

*1. Laura Junot conta um caso delicioso a respeito da Princesa, que lhe fora apresentar mr. Forbin, estando ela na cama. Madame Junot faz calorosos elogios ao aspecto encantador, aos modos amabilíssimos e ao espírito cintilante do camareiro que Paulina lhe fora apresentar ao quarto de dormir (Mémoires de Madame La Duchese d'Abrantes. tomo 6.°, pág. 281).

 

- É verdadeiramente um precioso padrinho, meu caro D. Lourenço!

- Veremos. Não me louve antes de tempo. Despediram-se.

Estava uma noite deliciosa. Castro conversou por largo tempo com o oficial que trouxera despachos de Junot para o imperador. Tinha de partir no dia seguinte de madrugada para Vitória com um ofício urgente do marechal Berthier.

O oficial de dragões foi deitar-se e Castro desceu para o parque.

Recebera de manhã uma carta de Maria Pulaski. Um encanto de enternecimento naqueles adoráveis dizeres de Maria.

Passeava sozinho, a recordá-los num consolo de alma inexcedível. Aquela sim. Que perfume de honestidade na sua beleza estonteante! Era para se amar de joelhos como se adoram as santas, nos altares resplandecentes de oiro e luz.

A diferença enorme e fundamental entre aquela mulher, ainda nos primeiros alvores da mocidade, e outras que se lhe tinham deparado, deslumbradoras, de irresistível fascinação, mas já maculadas nas perversões do mundo!

Passeou assim até tarde. Era enervadora aquela atmosfera cálida, impregnada de perfumes das mil flores que a lua beijava mansamente, numa voluptuosidade trémula de noiva.

Sentou-se e pôs o chapéu sobre o banco. Esteve longos minutos a visionar fortunas supremas de amante e glórias envaidecedoras de soldado.

Depois inclinou-se contra as costas do banco num suave enlanguecimento de todas as energias, e adormeceu.

Volvidos minutos, alguém assomou à entrada de um pequeno pavilhão, todo enleado de flores.

- Era uma imprudência! - disse consigo - É, mas devora-me esta febre de amor que pode durar apenas um dia, e pode durar para sempre... o meu único, o meu último amor.

Deu uns passos e nova hesitação a fêz parar.

- Mas se isso se soubesse, se êle o contasse, seria então a pior das minhas loucuras, a mais funesta das minhas vergonhas. Não devo! E afinal não posso! Sentiria uma voluptuosidade embriagadora, sacrificando-me por êle.

Agitou a cabeça num movimento brusco de resolução e deu volta por detrás do banco pé ante pé.

Levantou o longo véu negro. Trazia no rosto uma pequena máscara de cetim. Arfava-lhe o seio violentamente. E com o busto debruçado sobre as costas do banco, inclinou-se para o moço oficial, passou-lhe os braços por cima dos ombros e disse-lhe baixo, tremente, com o rosto muito encostado ao rosto dele:

- Perdoado e cada vez mais querido!

Castro acordou de estremeção, como se tivesse sofrido um choque eléctrico, e instintivamente lhe apertou as mãos nas suas.

- Adivinha quem sou?

- É quem essa máscara quere que seja.

Fêz um movimento, sem lhe desprender os braços, e voltou-se para ela face a face.

- Outro capricho para me ludibriar? -- Outra prova de que o amo.

- Falta aquela prova em que mais me empenho. A máscara fora do rosto. Não me basta admirar a escultura das suas carnes palpitantes. Quero saber quem é.

Deixe que eu próprio lhe desprenda do rosto esse retalho de cetim, porque duas vezes já me revoltou contra si.

- Só com uma condição - disse-lhe numa tremura de voz.

- Qual?

- Sei que tem um dos mais ilustres nomes do seu país, que é dos oficiais mais brilhantes dessa Legião que veio para cá e um dos mais fervorosos adoradores da sua pátria.

- Quem lhe disse essas coisas?

- Eu conheço-o. Ouvi o que diziam de si, eu própria escutei a sua alma.

- Onde? Quando?

- Vai sabê-lo, mas há-de jurar-me pelo seu nome, pela honra da sua farda, por essa pátria que estremece, há-de jurar-me...

- O quê, senhora?

- Que a ninguém dirá quem sou. Jura?

- Mas para que é preciso esse juramento de feitio antigo?!

- É a minha defesa, o penhor de que eu careço em troca desta máscara. Não me trair, não dizer a ninguém quem sou, nem que a si me confiei como enlouquecida amante?

- Tudo isso juro pela minha honra. É quanto basta. Seja quem fôr, por mim o não há-de saber ninguém. Consente agora que lhe tire a máscara?

- Consinto - respondeu perturbada, apoiando-se às costas do banco, assim como se uma violenta emoção lhe tivesse quebrado as forças.

Agitado por uma curiosidade estonteadora, Castro levantou-se, fincou um joelho sobre o assento do banco e pôs-lhe no rosto, brandamente, as mãos a tremerem.

Tirou-lhe a máscara suavemente, mas logo se afastou de repelão.

- A princesa Borghèse! - murmurou estupefacto.

- Ou uma semelhança extraordinária... mas decerto inverosímil.

- Diziam os cortesãos das Tulherias, os que mais conhecem as cortes da Europa, diziam eles, uns lisonjeadores certamente, que Paulina Bonaparte não tinha com quem se parecesse.

- Senhora, a minha dúvida tinha fundamento. Diz-se em Marrac, diz-se na corte, que a Princesa está doente em Nice.

- O fingimento para eu poder vir escravizar-me aqui. E agora, Luís de Castro?

- Agora, Alteza, vejo que era desnecessário o juramento que fiz.

- Desnecessário! - repetiu, sem lhe ter compreendido o pensamento.

- Senhora, porque o meu próprio decoro me obriga a guardar para sempre o segredo desta deplorável aventura.

- Deplorável! - disse num gemido.

- Por vós, senhora, por vosso irmão, por mim!

- Também por vós! - soluçou.

- Também por mim, Alteza!

Sacudiu a divina cabeça num movimento convulsivo de altivez, que a mágoa da voz parecia desmentir.

- Têem muito orgulho os capitães fidalgos da sua terra!

- Alguns terão descido muito. Eu por mim, senhora, tenho este orgulho do coração, talvez maior que o outro das exterioridades espectaculosas. A mulher que eu amo é digna de mim, e o amor que me tem não é mercê que eu haja de receber dobrado como um cortesão.

- A outra... a do polaco.

- Alteza, mais à altura do que eu sou.

- O senhor tem crueldades brutais! E é talvez só para mim que as tem!

- Senhora, saberei fingir. Serei também cortesão.

Conheço suficientemente a história e o mundo para não ignorar quanto pode a fatalidade do temperamento e como nas alucinações dessa fatalidade tão fàcilmente se despedaçam as susceptibilidades que se acarinham num regaço de arminhos como as outras que foram para o baldão das ruas num regaço de farrapos. Desapareceu daqui o homem que não soube resistir a uns momentos de uma fácil aventura de galã. Desapareceu como fantasma de uma noite de embriagadoras visualidades. Era leal demais para vos poder amar, e sou insignificantemente pequeno para amante de alguém, entre os esplendores de uma epopeia e as magnificências de um trono, muito soberbo para me submeter a um capricho dos sentidos em que nem sequer seria o único. Dito isto, senhora, perdoai-me. Sei diante de quem estou, falar-vos-ei agora como se estivesse em Marrac ou num salão das Tulherias, entre os brilhantes marechais de Napoleão, diante das mais ilustres damas da corte imperial, num desses salões esplendorosos que nunca vi, mas onde sei que estiveram, como vossos cortesãos, príncipes estrangeiros, representantes de monarquias que vosso irmão venceu. Alteza, dignai-vos pôr a vossa máscara. Está aqui um oficial ao serviço do vosso irmão. Mandai-o no que fôr serviço vosso. Posta essa máscara, a minha espada e a minha vida por vós, se alguém ousasse tirar-vo-la, se alguém afiançasse que éreis vós a Princesa Borghèse, doente em Nice, como a corte diz e crê em Marrac.

Paulina soluçava, e assim ainda parecia mais divinamente bela.(1)

 

*1. Henry Beyle (Stendhal), um conviva da corte napoleónica, o famoso romancista do Império, um dos mais brilhantes espíritos do seu tempo, escreve:

«Paulina, princesa Borghèse, foi a mais bela mulher do seu tempo.»

 

- Senhora, permiti que vos lembre a inconveniência de continuardes aqui.

Ouviram-se vozes altas no hotel, sentiram-se passos apressados.

- Vem gente! Ponde a máscara e não vos perturbeis, que eu defenderei o vosso disfarce.

Chegaram a correr os fingidos irmãos italianos, parentes da viúva do banqueiro. Vinham enfiados de susto.

A Borghèse tinha posto a máscara. Tremia.

- Um agente da polícia imperial! - disse-lhe o homem em italiano.

- A procurar uma dama italiana... acusada não sei de quê... e fugida de Paris - disse a custo a simulada irmã do outro.

A princesa empalideceu, estava numa tremura de pavor. Um capricho do acaso punha suspeitas perigosas no seu disfarce de viúva italiana.

- Meu Deus! - murmurou.

Castro tinha compreendido o aviso. A língua italiana não lhe era desconhecida. Percebeu o comprometimento que podia resultar daquele enredo tecido - certamente por uma simples coincidência.

- Senhora, defendo-a eu e responderei pelo seu disfarce.

Chegou o dono do hotel com um alto empregado da polícia imperial.

- É esta a dama italiana que está no seu hotel? - preguntou ao ex-sargento.

- Uma senhora viúva que nasceu em França - acudiu Luís de Castro.

- Não tive a honra de o interrogar.

- Mas tenho eu o direito de lhe responder. Esta dama veio aqui por minha causa. Conhecemo-nos de Portugal, onde viveu.

- Não duvido, mas trago aqui uma indicação dos sinais característicos de certa dama italiana que a polícia tem de procurar, e esta senhora parece excessivamente interessada em que lhe não vejam o rosto.

- Interesse que não temos o direito de indagar.

- A polícia tem sempre o direito de indagar tudo. o que importa à sua missão.

- Agora me oponho eu a esse direito e substituo pelas minhas declarações as preguntas que podem interessar à sua tarefa de empregado da polícia.

- Não tenho a honra de o conhecer.

- Sou oficial da Legião Portuguesa, posso mostrar-lhe a minha carta-patente e a guia que me colocou ao serviço do estado-maior do Imperador, como seu oficial às ordens.

Mudou logo a atitude e o tom do alto empregado da polícia.

- Mas compreende que eu não posso informar para Paris que encontrei uma senhora italiana, viúva como a que procuramos, e a deixei livremente, de máscara no rosto, só porque um oficial às ordens de Sua Majestade me declarou que não era a senhora que a polícia precisa de encontrar.

- Tem razão. Devo fazer-lhe umas declarações confidenciais. Laura - disse-lhe por disfarce, indo para a Princesa - é necessário esperar aqui. Afasto-me por instantes para aquele recanto do parque.

- Por piedade! - murmurou a Borghèse, na suposição angustiosa de que Luís de Castro iria livrá-la daquele lance comprometedor, revelando o seu nome ao empregado da polícia, embora sob promessa de confidência.

- Tranquilize-se - disse-lhe alto em francês -, a polícia tem também encargos de segredo como os confessores. É preciso revelar-lhe as nossas relações.

E logo, muito baixo:

- Mentirei para a salvar.

Apartou-se a coisa de cinquenta passos com o alto empregado da polícia.

- Aquela dama nem é italiana nem veio de Paris. É francesa e chegou há dias de Lião.

- Veio então para se encontrar aqui com o sr.?

- Veio. É minha amante. Viveu em Lisboa, vêem de lá as nossas relações.

- E por esse motivo todos aqueles disfarces, aquela máscara?! - preguntou num tom de evidente incredulidade.

- Tem um marido e um nome enobrecido que precisa recatar.

- O seu nome? A polícia guardará segredo.

- Creio, mas não o diria nem ao próprio imperador.

- Então, manda-se afastar aquela gente e a senhora tira a máscara.

- Ficá-la-ia conhecendo o sr. Não insista. Não há violência de que eu não seja capaz, se alguém, seja quem fòr, ousar tocar naquele pedaço de seda.

- Mas veja bem que isto pode ser um comprometimento grave para o sr.!

- Não sei ver mais nada. Não tirará a máscara e ninguém lha tira.

- É uma deplorável teimosia. Bem compreende que daqui a uns minutos poderei ter o hotel cercado de agentes e voltar cá para o prender por suspeito.

- O sr. não pode prender por simples suspeitas um oficial às ordens do Imperador.

- Mas pode vir comigo quem o possa fazer. Era melhor reflectir. Queira ver: aqui estão os sinais da dama que procuramos. A estatura já eu notei que é a mesma.

E mostrou-lhe um boletim policial. Àquela clara luz do luar, Castro pôde ler avidamente estes sinais particulares: um pequeno sinal escuro na testa, outro no rosto, mutilação completa do dedo mínimo da mão direita.

- Pois bem, - disse-lhe alto, jubilosamente - tem um meio de verificar que não é aquela dama a pessoa que procura. De o verificar, sem violação de um segredo de honra. Este sinal particular não deve deixar-lhe dúvidas. Se aquela senhora tiver na mão direita a mutilação aqui indicada, o sr. procede conforme o seu dever e eu retiro-me, pedindo desculpa da minha insistência.

- Vejo que tem a certeza...

- Mas agora lhe peço eu que verifique, para que depois, na sua informação oficial, a lacuna de um nome fique ressalvada pelo seu próprio testemunho, quanto a uma mutilação que não é vulgar e que nenhum artifício podia encobrir eficazmente.

- Aceito a indicação.

Castro foi para a Borghèse. Lia-se-lhe no olhar uma grande expressão de júbilo.

- Salva - disse-lhe baixo. E logo, alteando a Laura, a dama que a polícia procura não pode confundir-se consigo, por causa de uma certa mutilação da mão direita. É preciso mostrar que nenhuma identidade pode haver entre as duas.

A Borghèse parecia hesitar, embora se sentisse já desoprimida, num grande alívio consolador. Castro chamou o empregado da polícia. A Princesa não teve remédio senão desenluvar a mão pequena, graciosa, alva de neve, e estendeu-lha para êle a examinar à sua vontade.

Nenhuma mutilação naqueles dedos afilados, de unhas côr de rosa.

- Não me fica a menor dúvida - disse o empregado da polícia.

Mas naquela mão da Vénus-Borghèse notara Castro uma pequena mancha violácea.

- A mancha de que D. Lourenço me falou - disse consigo - Maculada obra-príma!

O homem da polícia retirou-se, pedindo mil desculpas pela suspeita.

O ex-sargento do Marengo não havia percebido claramente senão que a viúva tinha os dedos todos e era praça rendida àquele oficial que tinha vindo lá dos confins das Espanhas.

Os fingidos parentes da viúva, tão fingidos como ela, porque o homem era um lacaio romano da Borghèse e a mulher a sua criada de quarto, natural de Civita-Vechia, estavam agora com umas caras deliciosas de gente feliz.

Pois tinham passado um horroroso quarto de hora de sustos por causa da Princesa.

O ex-sargento foi-se afastando com eles discretamente.

- Obrigada - disse Paulina, estendendo a mão a Luís de Castro - Não o esquecerei nunca. Mas perco-me em conjecturas a respeito deste deplorável engano!

- Como eles são frequentes, nascidos às vezes de qualquer estúpida coincidência. A polícia procura, não sei porquê, certa viúva italiana que fugiu de Paris. Espalhou-se que tinha vindo para aqui uma viúva italiana, saída de Paris, soube-se, que vivia neste hotel, muito a ocultas, explica-se a visita daquele empregado policial.

- Salvou-me o senhor de um lance comprometedor!

- Alteza, nem já vale a pena falar disso, mas agora é prudente partir para Nice, antes de amanhecer. O homem da polícia contará a romanesca história que eu lhe resumi e podem ter curiosidade de saber quem é a dama casada, da alta nobreza de França, que veio meter-se num hotel com o amante, usando o disfarce antigo de uma pequena máscara, à italiana. Virá a saber-se em Marrac. Hão-de querer descobrir o mistério, na sofreguidão do escândalo, a intriga virá espreitá-la, indagar com mais audácia e melhor êxito do que a polícia... e podia muito bem ser que viesse a desmascarar a irmã do Imperador. Seria escândalo para nos perder a ambos.

- Sim... partirei. Hei-de tornar a vê-lo, sem querer perturbar os seus sonhos de noivo. Despeço-me já. Adeus. Perdoe-me na sua consciência e tenha dó das minhas riquezas, dos meus esplendores, desta mulher a quem tantos têem lisonjeado e só um homem pôde afastar de si. O senhor!

- Alteza! - disse, curvando-se.

Minutos depois, Castro voltava ao seu quarto. Foi direito à mesa. Lá estavam as duas gravuras que lhe dera D. Lourenço de Lima.

- Perdida pelos arrebatamentos do sangue esta mulher divinamente bela, que podia ser o orgulho e a suprema ventura do homem que a possuísse!. Assim, obra-prima como nenhum poeta e nenhum estatuário a teriam sonhado mais gentil, pode qualquer desdenhá-la por maculada, alguém pequeno e insignificante como eu! Astro despenhado no lodo do mundo!

O olhar desviou-se-lhe subitamente do retrato peregrino para a gravura da estátua semi-nua.

- Estátua de carne, devorada de volúpias! Tive-a nos braços e repeli-a de mim!

Lembrou-lhe então alguém com enternecido orgulho.

Tirou do peito da farda a miniatura de Maria Pulaski.

- Virtude, não és afinal uma coisa banal e pueril. Nesta cabeça bela de arcanjo há uma auréola ideal de casta mocidade, que vale infinitamente mais que o diadema de brilhantes daquela!

Sobre a madrugada foi acordado por um ruído constante de passos e um arrastar de coisas pesadas. Escutou.

Daí a pouco ouviu o rodar de uma carruagem que se afastava.

- A pobre Vénus-Borghèse!

Voltou-se, tornou a adormecer.

 

             Desesperadoras surpresas.

Passaram-se uns dias. A Beauchamp foi ter com Luís de Castro ao hotel.

Levava-lhe uma carta de Maria e uma notícia de importância.

- Estamos cada vez mais receosas de algum ruim plano! João Pulaski tem saído muito há três dias e Maria está a temer que venha dar aqui consigo. Não o viu ainda?

- Não.

- Ontem observei eu que veio passear para estes sítios! Tem recebido umas poucas de cartas!

- Donde?

- Só sabemos com certeza da proveniência de uma, porque êle falou dela à Menina, antes de ontem. Essa veio dum homem riquíssimo de Viena de Áustria, é de André Pulaski, um irmão de João Pulaski, o irmão mais velho, há mais de vinte anos residente nas imediações daquela cidade.

- Bem sei.

- Das outras que recebeu antes não sabemos a proveniência. Cada vez mais cautelas e mistérios! Desde que melhorou, vai êle próprio à estação do correio buscar as suas cartas.

- Mas como sabe então que êle tem recebido outras?

- Porque eu fui ontem à estação saber se tinham cartas para mim e, a experimentar, preguntei se havia também alguma para João Pulaski e responderam-me que nos últimos dias as tinha levado êle mesmo e só havia lá uma, que tinha chegado de madrugada. Se a queria levar, preguntaram-me, dizendo que vinha de Espanha... Não quis trazê-la com receio de algum desabrimento de João Pulaski.. Êle próprio que a fosse buscar, conforme costuma.

- Carta de Espanha!

- Foi buscá-la e voltou de muito mau parecer. Percebia-se que procurava dissimular e não podia. Andou todo o dia muito agitado e disse que tinha de sair amanhã cedo para Bordéus, por causa de uns negócios que se complicavam.

- Será essa viagem uma consequência da carta recebida de Espanha?

- Isso é que eu não posso dizer-lhe. Como sabe, êle já tinha falado em ir a Bordéus por causa dos seus negócios.

- Sim, mas então supunham que seria viagem simulada para nos apanhar desprecavidos.

- Isso desconfiámos, mas agora, depois daquela carta que tanto o perturbou, estamos em acreditar, Maria e eu, que não será viagem de fingimento.

- Seja como fôr. Há-de dar-nos tempo que chegue para eu realizar o meu plano. Pode esperar?

- Posso, mas não há-de ser com muita demora.

- Apenas demora de instantes. Quero escrever a Maria.

- Pois sim, espero.

Foi demora de quinze minutos.

- Aqui está. A maior cautela com esta carta. Se fosse dar às mãos de João Pulaski, todo o meu plano estaria irremediavelmente perdido. Aqui lhe peço que esteja prevenida. Ajude-a, dê-lhe coragem, minha querida Beauchamp.

- Coragem tem ela como eu nunca imaginei que tivesse!

- Mas dê-lhe todo o seu auxílio. Trata-se da suprema ventura para ela e para mim. Ficarão honestamente consagrados estes nossos amores.

- É então aquele plano de que me falou há dias?

- É, Maria Pulaski será minha esposa, contra a vontade do pai.

- Isso é o meu maior desejo, a maior fortuna para ela! Mas estou a ter medo das iras do pai e de algum ruído de escândalo que chame as atenções da polícia para aquele perseguido das justiças do Czar!

- Por esse lado não tenha receios. Napoleão está agora em boa paz com o Czar, mas a França tem sido e é seguro asilo dos expatriados polacos.

- Vou num alvoroço doido!... Mas, sem o consentimento do pai, há-de ser difícil encontrar padre que os case.

- Tenho já um, patrocinado pelo bispo esmoler-mor do Imperador.

- E o sr., na sua qualidade de militar, pode casar sem licença?

- Não devo, mas posso. Alego um caso de força maior e eu próprio irei ter com o Imperador, para lhe contar a verdade. Há-de perdoar-me a desculpável transgressão. Mas ainda que me quisesse castigar, bem-aventurado castigo.

- O pior será então se o mandarem para alguma campanha! Seria uma tortura de receio para ela!

- Irá comigo. Já me disse uma vez que teria ânimo de me seguir numa campanha. É o que têem feito outras.

- É um perigo! Não poderá estar sempre ao pé dela, e Maria é muito linda para que não dê nas vistas.

- E eu suficientemente homem para castigar quem ousasse ofendê-la, fosse quem fosse.

- Se pudesse! Olhe, um conselho que vou eu dar-lhe: Não a leve ao palácio imperial.

- Porquê?!

- Tenho ouvido dizer que as cortes são alfobres de enredos e intrigas e que as damas têem invejas odientas da formosura umas das outras. E daquela então... Ouvi que o Imperador nem sempre respeita as esposas dos outros maridos e às vezes os afasta para ficar à sua vontade. Contam-se casos!...

- Tem graça este devanear pelo futuro fora, como se já estivesse feito o principal! Descanse, minha querida Beauchamp. Quando Maria fôr minha esposa, hei-de recatá-la ciosamente de todas as convivências perigosas da corte, como do maior perigo, aqui ou em Lisboa, seja onde fôr. Prefiro-a comigo pelas marchas de campanha e na vida rude dos acampamentos. Vá lá então, e conte todas estas coisas à nossa adorada Maria. Amanhã, repare bem, não se esqueça de vir prevenir-me assim que João Pulaski partir.

- Dou tempo a que êle se afaste, e venho logo para cá. O pior é se êle volta para trás, sem dar tempo...

- Não voltará.

- Sabe?!

- Sei.

- Alguma coisa de violência?

- Sem nenhuma violência. Pode afiançá-lo à filha. Até amanhã.

- A mãe de Jesus seja por nós! - disse a Beauchamp, despedindo-se.

Castro obtivera dispensa de ir a Marrac por quatro dias. Concedera-lha o próprio Napoleão a pedido de Berthier.

Horas depois dele sair do palácio já se rumorejava por lá a notícia de uma aventura de amor do oficial português. Era o caso da viúva do hotel, profundamente adulterado.

- Tem uma linda amante - contavam -, Dama casada, dama da nobreza que veio ter com êle misteriosamente, com disfarces de condição e máscara romanesca - Foi um apetite para as damas.

O caso chegou aos ouvidos de Napoleão. Sorriu e comentou:

- Alguma nobre doida a quem já não agradam os galãs de França. Foi talvez por causa dela que o tal Castro me pediu aquela licença. Se soubesse não lha dava. Mas quero saber de quem se trata.

Mandou então chamar o prefeito do palácio para indagações.

Ao anoitecer o prefeito voltou com todas as informações que pudera obter do alto empregado policial que vimos no Hotel Marengo. Até o falso nome que o Castro dera à misteriosa dama foi tomado por verdadeiro.

O Imperador ficou a cismar no mistério e a enredar nas suas desconfianças certa duquesa, muito sua conhecida, incorrigível coquette que estivera em Lisboa e tinha o mesmo nome que Luís de Castro inventara para a dama da máscara de cetim.

O marido, general e duque, amigo seu de largos tempos, estava ausente, muito longe, ela ficara em França, na província.

Compreendia-se bem o interesse da galante leviana em não querer que a sonhassem sequer ali, a dois passos da corte.

Contrariava-o esta suspeição. Ordenou ao prefeito que fizesse proceder a investigações secretas acerca daquela dama.

- Consta-me que saiu esta madrugada do hotel.

- Pediu licença para a ir acompanhar, evidentemente - pensou Napoleão - Pois indaga-me para onde foi, que a sigam, que me saibam onde está. Podes ceder à polícia uma das minhas caleças de jornada e os melhores cavalos. Quero saber quem é. Percebes? E o mais absoluto segredo de quanto se apurar.

No dia seguinte Luís de Castro levantou-se muito cedo, de madrugada, num alvoroço e numa impaciência que o agitavam como se uma estranha febre lhe estivesse queimando o sangue.

Vestiu-se à paisana e ficou a passear no quarto. De quando em quando ia à janela.

Passou uma hora. A Beauchamp chegou, pálida, ofegante, numa excitação nervosa que lhe torturava a respiração.

- E daí?

- Partiu!

- A que horas?

- Há pouco mais de meia hora.

- Maria?

- Ficou a preparar-se. Muito enfiada, os olhos cheios de lágrimas, muito receosa de alguma desgraça, mas resoluta para tudo. Abraçou-se a mim, coitadinha, a beijar-me como se ainda fosse uma criança, quando eu lhe fui levar o vestido de noiva, que desde o outro dia lhe andei a fazer aos serões, às escondidas, sem ela o sonhar. A grinalda de flores de laranjeira, brancas como ela, essa tinha-a eu comprado ontem em Baiona.

- Bem. Então agora vá fazer companhia àquela filha do seu coração e diga-lhe que dentro de uma hora irei falar-lhe.

Daqui a duas, quando muito, estaremos a caminho da capela.

- Nossa Senhora esteja connosco.

- Vá, que ela, coitadita, há-de precisar de uma pessoa amiga que lhe diga palavras de carinho.

- Custa-lhe muito, por causa do pai!

- Depois, nós ambos lhe pediremos perdão. Há-de ser agora muito menos severo comigo. A morte desobrigou-o da promessa jurada, que fêz ao russo, ao cossaco.

- Ai Deus meu! Ainda ontem à noite sonhei com êle! Não tinha morrido, voltava, cheio de cólera, o olhar feroz de um lobo!

- Tolices dos sonhos. Não pense nisso. E vá também preparar-se, minha querida Beauchamp. Tem de acompanhar Maria. É a mãe adoptiva, a madrinha que ela tem.

- Ah! sr. Castro! Ao pé dela, da sua linda noiva, nem as rainhas me podem fazer inveja!

Enxugou os olhos, profundamente comovida.

- Assim Nossa Senhora seja connosco sempre!

- Até logo.

A Beauchamp saiu e Luís de Castro esperou que atrelassem os cavalos à carruagem, alugada de véspera ao dono do hotel.

Demora insignificante. A carruagem deitou à desfilada para Baiona. Ia ter com D. Lourenço de Lima, o padrinho que êle convidara.

O casamento secreto havia de realizar-se com todo o possível segredo em certa capela num dos arredores mais ermos da cidade, quási à beira da estrada para Bordéus.

  1. Lourenço de Lima estava já a pé.

- Vamos a isso, não é assim? - preguntou-lhe.

- Vamos.

- Está bem. Quero ir como para um casamento solene da corte, mas descance, que não gasto nenhuma hora a vestir-me. Vou mandar aviso ao padre.

Irá na carruagem connosco. O outro melhor que tenho ao serviço é para a noiva. As carruagens téem de ir distanciadas, para não atrair curiosidades. O meu bispo esmoler-mor acudirá depois pelas responsabilidades em que o padre vai incorrer, e êle e eu falaremos ao Imperador para o absolver a si deste pecado contra as leis militares. Venha daí comigo para o meu quarto de vestir.

Foram os dois. D. Lourenço mandou sair a carruagem que havia de trazer o padre.

E pôs-se a vestir-se ajudado por um criado velho. Levava a sua farda de moço-fidalgo, recamada de oiro, ao peito a cruz da Ordem de Cristo, cravejada de diamantes.

Mandou sair o criado.

- Não deve tardar por aí o lacaio que mandei postar na estrada, para me trazer a notícia do polaco ir já a caminho. Mandei-o postar a uma légua daqui.

- Então terá demora.

- Foi a cavalo. Deve estar por aí, se não houve qualquer coisa imprevista.

- O seu criado francês foi com o disfarce que me disse ontem?

- Foi, disfarçado em cocheiro.

- E a respeito do padre?

- Isso é comigo, na minha qualidade de padrinho do noivo.

  1. Lourenço tencionava dar-lhe uma larga remuneração em dinheiro e um dos seus anéis antigos com um belo diamante das minas de Goiaz (Brasil).

- O outro padrinho? - preguntou o Castro.

- Vem com o padre. É um irmão dele, homem respeitável.

Esperavam impacientes. Ouviu-se um tropel de cavalo. D. Lourenço foi à janela.

- É o lacaio. Vamos ter informações definitivas. O lacaio apareceu dali a instantes.

- E daí?

- Lá foram.

- O André na almofada?

- Sim, meu senhor. Agora já devem ter andado as suas três léguas.

- Bem. Retira-te. Óptimo, meu caro Luís!

Esperaram ainda cerca de uma hora. Castro consultava o relógio com febril impaciência. Já passava muito da hora que tinha calculado.

Afinal chegou a carruagem com o padre e o outro padrinho. Estes iriam adiante para a capelita de Nossa Senhora do Bom Jesus.

  1. Lourenço levava um lindo presente de flores para a noiva.

As duas carruagens tinham ficado à embocadura da azinhaga. A noiva havia de sair pela portazita do jardim. A melhor carruagem que D. Lourenço tinha ao seu serviço, aquela em que êle ia ao palácio de Marrac, viera vazia. Era para a noiva.

Luís apeara-se e fora avisar Maria.

Os criados negros que João Pulaski trouxera de Lisboa olharam num pasmo idiota para aquele moço oficial que entrava por ali dentro como pessoa da casa, guiado pela Beauchamp.

Ia a casa abaixo, se o amo soubesse daquilo, pensavam: mas percebia-se bem que entrava lá por vontade da menina e ela era o anjo carinhoso que nunca lhes dissera uma palavra de desprezo e de cólera.

- Tem estado a rezar, aos soluços - informou a Beauchamp, assim que abriu a porta a Luís de Castro.

- Mas porquê?

- Cheia de receios que nem ela sabe explicar í Ralada de remorsos por causa do pai. Ela nunca foi de crendices, mas está tão perturbada que até lhe pareceu agoiro funesto uma pobre borboleta negra

que lhe entrou pela janela e foi pousar no seu véu de noiva!

- Oh? mas que loucura! Vamos ter com ela. Foram encontrá-la na salita de costura, sentada num sofá pequeno, no regaço o retrato da mãe, um pequeno retrato a óleo, uma querida miniatura que era só dela, e as lágrimas a desfiarem-se-lhe dos olhos como contas de cristal de um rosário. A Beauchamp ficou à porta.

- Porque chora a mais linda noiva que ainda poeta algum ideou? - disse-lhe Castro enternecidamente, inclinando-se para ela.

- Luís! É por esta desobediência que eu choro.

- Teu pai há-de perdoar-nos.

- Esta santa sei eu que me perdoava, se vivesse.

- Tua Mãe?

E, de si para si, num movimento de amargura:

- A minha nem sei se me perdoa, nem sei se vive!

- Tenho estado a pedir-lhe que a sua alma interceda por mim, para que meu pai nos perdoe esta grande traição que vamos fazer-lhe. É a santa que eu levo comigo, a madrinha da minha alma, que só eu vejo.

- Minha vida, hesitas, esmoreces!

- Não, Luís. Isto é dor de remorso, mas vais ver que tenho ânimo. Vamos.

À porta a Beauchamp chorava num choro que ninguém ouvia.

- Quero apresentar-te D. Lourenço de Lima, o meu devotado padrinho, a quem devo agora os mais cativantes favores.

Foi buscar D. Lourenço.

- Casamento de excepção, este vai fora de todas as pragmáticas - disse-lhe sorrindo.

Dali a pouco apresentava-o a Maria Pulaski. Maravilhado diante daquela suave formosura, D. Lourenço disse-lhe umas palavras calorosas de homenagem, dobrado como se estivesse no paço de Queluz ou no paço de Marrac diante de uma princesa.

E ofereceu-lhe gentilmente as lindas flores que trazia.

Saíra primeiro a carruagem em que ia Maria Pulaski e a Beauchamp. Ao lado do cocheiro ia o lacaio que tinha assistido à saída do polaco.

A larga distância, a outra com D. Lourenço e Luís de Castro.

A poucos passos o oficial português reparou casualmente num homem que lhe não era desconhecido. Tinha parado e olhara muito para êle.

- É o empregado da polícia, o de anteontem ou o diabo por êle! - disse consigo - Talvez ande à procura da viúva italiana - gracejou de si para consigo.

Quando chegaram, a noiva já tinha entrado na capela. Fazia um calor sufocante. A porta do pequenino templo estava semi-cerrada.

  1. Lourenço e o Castro apearam-se.

- Isto quanto mais depressa melhor. Só o indispensável. A manhã vai muito adiantada!

- Eia que nuvem de poeira além! - disse D. Lourenço, indicando uma curva longínqua da estrada já a perder de vista na linha do horizonte - Talvez cavalaria que vem de algum exercício.

- Talvez - disse o Castro por dizer. O seu pensamento não estava ali.

Entraram na capela.

Ainda houve uma demora grande por causa do sacristão, que teve de ir a casa buscar uma chave do gavetão dos paramentos, da qual se havia esquecido.

Foram quarenta e tantos minutos de impaciências, que Maria passou a confidenciar receios à Beauchamp e Luís de Castro a falar com o padre e os padrinhos na sacristia.

O sacristão chegou muito açodado. O noivo e os padrinhos foram para a navezita da capela.

Enquanto o padre se paramentava, o sacristão foi-lhe contando que na ida para casa ia sendo atropelado por uma carruagem à desfilada. Na volta encontrou o Prefeito do palácio com um empregado da polícia.

- Perto daqui? - perguntou o padre com expressão de receio.

- Não, sr. Lá ao princípio da estrada. Mas o homem da polícia, o sr. Flaminet, chamou-me.

- Para que foi que o chamou?!

- Para me preguntar o que havia hoje na capela, que já tinham passado três carruagens para cá.

- Que lhe respondeu?

- Que era por causa de uma missa de promessa que tinham feito a Nossa Senhora do Bom Jesus.

- E êle?

- Disse-me só isto: Está bem, está bem.

- Está mau, digo eu! - murmurou o padre - Mas agora não há que hesitar - pensou - Que lhe importa à polícia o que se passa na capela? Mas comprometimento para mim, isso pode ser! Enfim, o Bispo me defenderá e êle é todo do Imperador.

Foi para o altar-mor. Dali a instantes começava o acto sacramental.

Estava já o sacerdote a envolver na estola as mãos dos nubentes, quando a porta da capela foi aberta de repelão, desabridamente, e apareceram como numa cena de teatro dois homens de cabelos brancos, seguidos de um outro de elevada estatura.

- Padre! - exclamou um dos velhos com um tom de voz formidável -, Isso é um crime! -, regougou, avançando como alucinado. Era João Pulaski.

Muito enfiado, o padre desprendeu da estola as mãos trementes dos nubentes.

As testemunhas empalideceram. A Beauchamp soltou um grito imenso de pavor e caiu de joelhos a soluçar, as mãos encurvadas contra os olhos como se tivesse medo de ver.

- Maria! - exclamou Luís de Castro, cingindo-a a si.

- Noivo da minha alma, irei contigo! - disse-lhe ela numa vibração indefinível, como se todas estas palavras lhe tivessem saído dos lábios modeladas num soluço.

- Essa menor é minha filha, está sob o meu poder de pai, não pode casar sem minha licença e eu não lha dei nem lha dou! Padre, isto era uma infâmia! -- acrescentou num arranque de cólera, erguendo para o padre as mãos crispadas, ameaçadoras.

Fazia medo a fisionomia de João Pulaski.

- João! - disse-lhe o outro velho, contendo-o.

- Deixa-me!

Ia de mãos estendidas para arrancar a filha dos braços de Luís de Castro.

- Daqui para fora, filha que me afrontas!

- Sr. João Pulaski! - rouquejou o Castro - Não quero esquecer que é um velho e não quero esquecer-me que estou numa igreja.

- A minha filha hei-de levá-la comigo - volveu-lhe crescendo para êle.

- Sabe que não tenho medo, e nesta esposa da minha alma ninguém toca.

O outro velho abraçou-se a João Pulaski, para evitar que levasse as mãos ao rosto do oficial.

- Meu irmão, que te perdes - suplicou-lhe baixo.

- Meu pai, perdão! - interveio Maria energicamente - Pai, este há-de ser o meu esposo.

Então o homem de elevada estatura, no qual os noivos não tinham reparado, deu uns passos para diante deles, torvo e pálido, no olhar uns lampejos de ferocidade, e disse cruzando os braços:

- Não pode ser esposo de Maria Pulaski o homem que mandou assassinar Miguel Platow.

Era êle próprio. Maria pôs em Platow um olhar de alucinada. De súbito se lhe quebrou a sua rara coragem, e num estremecimento de pavor, como se aquele recém-chegado fosse o fantasma de um morto, soltou um grito lancinante, deu uns passos como para fugir, e cairia desamparada se os braços de um velho a não segurassem.

Era aquele o tio paterno de quem Maria falara a Luís de Castro em Lisboa, o tio que ela não conhecia.

- Mentes, cossaco! - bramira o Castro, horrorosamente pálido, de mãos erguidas para ele.

  1. Lourenço interpôs-se, procurando segurar o moço oficial.

- A baioneta do teu sicário não pôde ferir-me de morte - replicou Platow.

João Pulaski tinha-se aproximado do irmão.

- É preciso levá-la daqui - rouquejou -, Para a tua carruagem.

E um e outro a levantaram nos braços para a levarem dali.

- D. Lourenço, deixe-me que eu a defenda! Querem levar-ma! - disse o Castro, a voz a lembrar um rugido de dor.

Miguel Platow tinha ido para a porta e dissera o quer que fosse a dois homens que nos não são completamente desconhecidos. O Prefeito do palácio e o sr. Flaminet da polícia.

- Minha filha, levo-a comigo - disse João Pulaski, para Flaminet, que viera da porta ao seu encontro.

- É preciso socorrê-la.

Castro desprendeu-se de D. Lourenço e do outro padrinho e correu para a porta.

Atravessou-se-lhe de frente o Prefeito do palácio.

- Afaste-se! - gritou-lhe.

- Sou o Prefeito do palácio imperial. Tem de acompanhar-me em nome de Sua Majestade o Imperador. Aqui está a ordem do sr. marechal Alexandre Berthier, príncipe de Neufchâtel, major-general do Grande Exército.

Muito pálido, de olhos cravados na porta por onde lhe levavam Maria, nuns estremeções como de epiléptico, Luís de Castro rouquejou:

- Deixe-me: desobedeço.

- Luís de Castro, lembre-se de quem é - suplicou-lhe D. Lourenço, entrepondo-se a êle e ao Prefeito. O seu nome, o seu futuro!

- E levam-ma! - disse num dolorido esmorecimento.

Flaminet acercara-se do padre, cada vez mais enfiado.

- O acto de casamento não chegou a concluir-se?"

- Não, sr.

- Vossa reverência há-de ter a bondade de desparamentar-se para eu ter a honra de o acompanhar à Prefeitura da polícia.

- À Prefeitura da polícia?!

- Para declarações. Irá numa das carruagens que estão ali fora.

- Mas preso, porquê? - preguntava Luís de Castro ao Prefeito do palácio.

- Preso, não é bem assim. Intimado a seguir-me para preguntas. Aquele homem, um súbdito do Czar, chegado ontem à noite de Espanha foi ao palácio imperial apresentar a sua guia diplomática e queixar-se de que o capitão Castro, da Legião Portuguesa, o mandara ferir à traição por um dos seus soldados.

- Mentiu o canalha!

- A injúria hás-de pagá-la - acudia o russo num tom de ódio profundo que se lhe confirmava no olhar.

- Apresentou atestado de um ferimento grave de baioneta e a certidão de autoridade espanhola que o foi buscar ao fundo de um despenhadeiro - disse o Prefeito serenamente.

- Nada tenho com esse crime.

- Não é coisa que se possa esclarecer aqui. Queira acompanhar-me.

- Castro, isto é estonteador! - disse-lhe D. Lourenço em português, indo ao lado dele para fora da capela -, Não sei compreender o que houve! O meu criado não voltou! Aquela acusação desorienta-me. Mas eu vou também. Hei-de falar ao Imperador.

O Prefeito mandou aproximar uma carruagem, convidou Castro e entrou êle também, dizendo ao cocheiro que os levasse a Marrac.

Castro volveu um olhar de imensa mágoa para toda aquela estrada inundada de sol. Não via Maria Pulaski.

- Levaram-ma -disse consigo num quebramento de ânimo como nunca sentira - Quem sabe se para nunca mais a ver?

A carruagem rodava. Volveu um olhar de pavor para a frontaria rústica da capela e os seus olhos rasos de água viram a figura odiada de Miguel Platow, um sorriso de escárnio a torcer-se-lhe nos lábios como um esgar, um fulgor de triunfo a faiscar-lhe no rancoroso olhar.

- Hei-de eu ter um dia melhor fortuna do que a baioneta daquele pobre soldado! - pensou Castro numas contracções de cólera que o desfiguravam.

  1. Lourenço meteu-se na sua carruagem, aquela em que viera a malograda noiva, e mandou partir para o palácio de Marrac.

- Que demónio teria sucedido?! - pensava -, Houve certamente alguma violência contra o criado. E o outro homem idoso? Quem é? E esta infernal complicação por causa daquele russo! Pobre rapaz! Não posso perceber! Parece um lance de teatro!

Depois de um largo interrogatório numa sala de Marrac, interrogatório a que Luís de Castro respondeu clara e lealmente, o Prefeito mandou chamar Miguel Platow e tomou apontamento de todas as declarações que ele lhe fêz.

Em seguida foi expor ao Imperador o resultado dos interrogatórios realizados.

- Meteu-se em boa esse capitão romanesco! - comentou Napoleão - Tenho pena, porque me parece um homem de valor, pundonoroso e leal. Do tal russo é que eu não tenho a mesma impressão. O olhar é traiçoeiro, dura a expressão da fisionomia.

- E sobrinho do general de cossacos Platow, segundo a própria declaração.

- Acredito. Tem um ar semi-selvagem de cossaco.

- Causa-me estranheza aquele salvo-conduto diplomático que êle traz da legação da Rússia em Lisboa! Disse-me que andava homisiado por causa de um duelo de morte mas fora perdoado por sua Majestade o Czar.

- Bem. Manda-o esperar. O Capitão que venha falar-me. Quero ouvi-lo.

- Vão ser cumpridas as ordens de Vossa Majestade.

- Acusam-no de um crime e foi encontrado numa violação grave dos seus deveres militares! Dizem que foi o mandante de uma tentativa de homicídio e a polícia conseguiu surpreendê-lo numa capela dos arrabaldes de Baiona onde se começara o acto de um casamento, para o qual não havia as licenças legais. Detesto rodeios. Responda clara e lealmente.

- É absolutamente falso que eu mandasse atentar contra a vida de alguém.

- Mas foi um soldado do seu regimento quem praticou o atentado?

- Sire, o capitão Luís de Castro não tem conhecimento oficial de que algum soldado do seu regimento tentasse assassinar o homem que veio queixar-se de mim.

- Conhece-o?

- Sire, conheço.

- De Portugal?

- De Lisboa.

- O que fazia esse homem em Lisboa?

- Vivia sobre o disfarce de joalheiro, em companhia de um polaco, de quem se fingia filho.

- Porque era esse disfarce?

- Porque fugiu do degredo a que fora condenado.

- Na Sibéria?

- Sire, na Sibéria.

- Degredo, porquê?

- Ouvi que fora por ter insultado um grão-duque da família imperial e haver morto em duelo desleal um ajudante-de-campo do insultado.

- A quem o ouviu?

- Ao Conde de Novion, comandante da Guarda Real da Polícia de Lisboa.

- Sabe se Sua Majestade o Imperador da Rússia lhe perdoou?

- Ouvi-o dizer em Lisboa a um médico italiano, que tinha pessoa íntima na legação da Rússia.

- Parece-me extraordinário esse perdão!

- Disseram-me que fora obtido por intermédio de um general de cossacos, tio do degredado. Ouvi que o general Platow era homem de muito valimento na corte de Sua Majestade o Czar, e desta forma se explica o perdão para um crime que teve a agravante da fuga com o homicídio de uma sentinela.

- Que motivos pode ter esse russo para lhe atribuir o crime de mandante numa tentativa de assassínio contra êle?

 

174

 

- Sire, motivos de ciúme e ódio.

- Ódio dele ou seu?

- Ódio de ambos. Êle por ciúmes.

- De quem?

- Da filha de um condenado polaco de quem êle se fingia irmão.

- Condenado também, esse polaco?!

- A degredo na Sibéria por conspirar contra o Czar e por ter morto, em defesa própria, o general comandante da polícia de Varsóvia.

- Veja o que diz! Como estava esse degredado em Lisboa?

- Tinha fugido com o outro, que se tornara seu auxiliar e seu amigo.

- Estranha amizade! Qual deles tinha então traído as tradições de raça e os ódios históricos da sua nacionalidade?

- O russo.

- Porque o sabe?

- Porque mo revelou a própria filha do polaco. Diante dela jurou esse tal Miguel Platow que abraçava a causa da Polónia oprimida.

- Informaram-me que nos arrabaldes de Baiona reside, há meses, um polaco.

- É esse de quem falei a Vossa Majestade. Chama-se Pulaski.

- Já o sabia. A filha era então a sua noiva?

- Sire, era ela.

- Mas porquê esse casamento Ilegal?

- Sire. Não tinha outro recurso, só na ausência do pai se poderia efectuar.

- Opunha-se? Porquê?

- Porque tinha prometido a Miguel Platow dar-lhe a filha por esposa.

- No hotel em que está hospedado, um empregado da polícia encontrou há dias certa dama misteriosa de rosto velado, que o sr. declarou ser súa amante. Disseram-me que era uma ilustre dama francesa, casada.

Esta aventura de escândalo não deixa muito segura a sua sinceridade de noivo!

- Sire, é verdade que uma dama casada apareceu no hotel onde estou hospedado, dizendo-se italiana, viúva de um banqueiro de Paris. Não era tal, mas para evitar que o empregado da polícia a vexasse obrigando-a a tirar a máscara com que se velava, inventei eu o embuste de lhe chamar minha amante, afirmando que nada tinha com a dama italiana que a polícia procurava.

- A polícia confiou nas suas palavras!

- De mentira, senhor, para salvar o decoro de uma dama. Todavia, verificou que não havia identidade nenhuma entre ela e a viúva italiana que procurava.

- Já sei. E essa dama é realmente francesa? -É francesa, Sire.

- Ilustre?

- Das mais ilustres.

- Casada, como disse?

- Casada.

- Mas não era sua amante?

- Sire, nunca foi minha amante. Afirmo-o a Vossa Majestade pela minha honra de soldado e pelo santo nome de minha Mãe.

- Encontro casual no hotel?

- Encontro propositado. Por uma alucinação dos sentidos, que deploro, foi procurar-me. Nem nessa hora foi minha amante.

- Tem muito de inverosímil esse seu caso de castidade bíblica!

- Afirmo-o solenemente a Vossa Majestade por essas duas santas invocações que já tive a honra de fazer.

- Provavelmente, muitíssimo feia!

- Sire, prodigiosamente formosa!

- Quem?! - preguntou o Imperador com estranha energia, avincando o rosto.

- Perdoe-me Vossa Majestade. É segredo que eu não posso dizer a ninguém. Importa ao decoro dessa dama. Sire, era preciso que eu fosse um canalha para o dizer a alguém, mesmo a Vossa Majestade. Pediu-me segredo. Jurei-lho pela minha honra.

- Hei-de sabê-lo.

- Por outra pessoa, Sire. Está neste segredo a minha honesta homenagem ao nome dessa dama. Mas em tudo o mais tenho lealmente respondido a Vossa Majestade.

- Também a respeito do crime contra o russo?

- Também a esse respeito o que me era dado dizer a Vossa Majestade. Mas quanto a esse atentado há uma confidência que considero minha. O capitão Luís de Castro não a podia revelar ao generalíssimo a quem deve obediência.

- Temos outra vez essa distinção subtil de pessoas?

- Outro testemunho de respeito, Sire. Se o coração de Vossa Majestade me quiser ouvir, mas só o seu coração, sem que também me escute o Imperador, o general supremo, a lealdade de Luís de Castro dirá a confidência de que o capitão não podia ter conhecimento.

- Só a respeito daquela dama de mistério se considera inibido de me fazer confidências!

- Sire, trata-se nesse caso do nome de uma senhora, confiado à minha probidade de homem de bem.

- Fale. Ouvilo-á apenas o coração de Napoleão Bonaparte.

- Sire, é em defesa de um soldado pundonoroso e honesto, o melhor do meu regimento, comprometido num lance de rara e alucinada dedicação.

E contou-lhe o caso do granadeiro João Luís no conflito com Miguel Platow.

Disse-lho em breves palavras de comovedora singeleza.

- Dois crimes graves! - disse Napoleão secamente - Um soldado, como se fosse um salteador de estrada!

- Sire, tinha dois homens diante de si. Tentou matar para que não o matassem.

- Isso contou êle.

- Como se fosse a um irmão, numa hora de sinceridade em que não era fácil fingir. Êle próprio se queria ir denunciar.

- Foi êle o provocador.

- Sire, por minha causa, por um desvairo de gratidão, e é essa doida, essa a enorme falta, que não tem atenuantes.

- De que provinha essa doida, essa criminosa gratidão para si?

- De uns favores de piedade que eu lhe fizera à mãe, uma velhita entrevada, e a uma irmã aleijada, a quem êle sozinho não podia sustentar.

- E depois que saiu de Lisboa?

- Sire, dei-lhe eu com que elas pudessem matar a fome e recomendei em minha casa que lhe dessem amparo.

O Imperador comoveu-se.

- Capitão, o seu crime de encobridor é ainda mais grave perante os deveres militares!

- Desceria à torpeza de denunciante, se traísse a confidência daquele homem, pondo de permeio os meus deveres de seu superior militar. Por um crime degradante, o oficial antepor-se-ia ao amigo, mas aquele foi em sua própria defesa. Agora, Sire, o Imperador pode também ouvir-me e impor um castigo de excepcional severidade ao oficial que pretendeu casar sem licença, pode reservar-lhe castigo maior, excluindo-o de quantas recompensas êle vier a merecer no seu serviço, e tudo isto sem que o seu coração quebre a minha confidência e negue perdão ao melhor soldado do meu regimento.

- O Imperador ouviu tudo e perdoa aos dois - disse solenemente, num rasgo magnânimo.

- Beijo as mãos de Vossa Magestade.

- Uma condição para os dois. Na primeira campanha que eu tiver hão-de provar-me que são dignos deste perdão.

- Sire, em todas as campanhas, menos contra Portugal. Respondo por mim e por êle.

- Mas o caso do casamento frustrado é já conhecido e o prestígio da disciplina militar exige um desagravo.

Chamou Roustan, o mameluco da sua confiança.

- Diga ao senhor Marechal, príncipe de Neufchâtel, que tenho de lhe falar.

Roustan saiu.

Dali a instantes entrava Berthier.

- Este capitão - disse-lhe Napoleão - deixa de ser oficial às ordens do meu Estado-Maior. Mande-lhe aplicar vinte dias de prisão rigorosa na praça de Baiona. Depois segue para o seu regimento e em Pau sofrerá outros vinte dias de prisão por ter faltado aos seus deveres de militar, intentando casar sem licenças legais. Este castigo só lhe será trancado nas suas notas se praticar algum feito distinto em campanha. Pode retirar-se - disse voltando-se para Luís de Castro.

O marechal Berthier mandou que o fosse esperar na secretaria dos ajudantes-de-campo. Castro saiu.

- Maria! Minha pobre Maria! - ia dizendo consigo num grito de alma angustioso, que só êle podia ouvir.

Napoleão estivera falando com Berthier a respeito de Luís de Castro. Depois mandou chamar o Prefeito do palácio.

- O russo que aí está narrou-lhe como se deu o atentado?

- Narrou, Sire.

- Disse-lhe que o soldado o tinha provocado e êle então o quisera matar, disparando-lhe uma pistola?

- Falou da provocação, mas não se referiu a êsse caso da pistola.

- Como contou êle que o soldado o ferira?

- Dando-lhe uma baionetada no ventre e atirando-o por um despenhadeiro abaixo.

- Mas não disse que, antes de lhe apontar a pistola, insultara brutalmente o Capitão e pretendera dar ou dera uma bofetada no soldado?

- Não o disse.

- Sei já a história desse homem e fico fazendo ideia do que êle é. Diga-lhe que as autoridades militares vão proceder às averiguações. Mande lavrar um auto das declarações que êle fêz, e exija-lhe que o assine. Que pode seguir para Moscovo. As minhas justiças lhe farão saber depois o que se pôde apurar.

O Prefeito foi cumprir as ordens do Imperador.

Miguel Platow pormenorizou-lhe mais o lance do frustrado homicídio.

Contou que uns viajantes haviam ido dar com êle num precipício, guiados pelos gemidos do caleceiro, que o soldado também deitara pela ribanceira abaixo.

Que um dos viajantes fora chamar o alcaide da

povoação mais próxima, o qual o mandou socorrer logo e internar num hospital, onde esteve em tratamento trinta e cinco dias.

Expôs que, além do ferimento da baionetada, sofreu várias contusões na queda, da qual teria infalivelmente morrido, segundo a declaração dos que o socorreram, se não houvesse tido a fortuna de rolar contra um espinheiro, que o susteve, não o deixando resvalar até ao fundo do precipício.

Castro entregou a espada e foi levado para uma prisão especial da praça, destinada aos oficiais.

  1. Lourenço de Lima soube-o em Marrac e obteve permissão escrita do Major-General para ir visitar aquele seu compatriota, a qualquer hora do dia.

Mas foi primeiro a casa saber se haveria chegado o criado francês de confiança, mal sucedido no seu papel de cocheiro da carruagem que Pulaski alugara.

Estava morto por saber o que teria sucedido ao pobre diabo e porque imprevisto acontecimento Pulaski voltara para trás noutra carruagem com um velho, a quem dava o nome de irmão.

Entretanto, num passear febril e louco, sozinho na prisão, Luís de Castro dizia de si para si com inexcedida amargura de desesperos:

- Se eu a perdi para sempre?! A minha pobre Maria, a minha malograda noiva! É para endoidecer! Se a perdi, eu bem sei como um soldado procura a morte. Mas ficava esse odiado Platow! Não, por êle é preciso que eu viva, é preciso viver até que me seja dado encontrá-lo frente a frente.

Era meia tarde, daquelas tardes de Junho, longas e calmosas, quando D. Lourenço lhe entrou na prisão.

- Ah! meu querido amigo! - exclamou o Castro indo para êle, de braços abertos, comovidamente -, Que má fortuna a minha e que horroroso esmorecimento de alma este meu! Como alguém que visse amanhecer o seu melhor dia e de repente cegasse!

- Então, meu caro Castro! A sua situação não é para esses torvos desesperos. Será um dia o que não pôde ser hoje. Tivemos uma hora de inesperada má fortuna, de súbito, o acaso conjurou contra nós, dois ou três factos que não era possível prever. Um acidente de viagem que pôs em frente do polaco um irmão com que nós não podíamos contar, a chegada de um russo...

- Que eu supunha morto!

- E teve a infernal ideia de ir queixar-se a Marrac, atribuindo-lhe esse odioso papel de mandante de uma tentativa de homicídio. Depois uns antecedentes que traziam de sobreaviso certo empregado da polícia e o punham na espionagem dos seus passos.

- Aquele que nós vimos quando vínhamos de casa de Maria?

- Esse.

- Mas que antecedentes podiam trazer de sobreaviso a polícia contra mim?

- Sejamos francos. A conjuntura não é para disfarces. Trata-se de um antecedente de que você me não falou, que eu completamente desconhecia e anda já nas conversas da corte e de toda a cidade de Baiona. Toda a gente fala de uma dama misteriosa que esteve no Hotel Marengo, dama ilustre, de máscara de seda como as pecadoras gentis de Veneza, no tempo dos Doges, dama casada, demais a mais, que foi surpreendida no parquezito em colóquio íntimo consigo. Uma deliciosa amante e um delicioso escândalo.

- Amante, não, escândalo seria, mas creia que sem culpa minha.

- Olhe, se a Borghèse não estivesse doente em Nice, eu adivinharia logo que era ela a dama do mistério que se lhe fora meter no hotel para o prender nos seus braços de Vénus fascinadora. Mas o que menos importa agora é saber quem era. O caso foi que o escândalo aguçou a curiosidade da corte e alvoroçou muita gente de Marrac. A suspeição começou a voejar sobre várias damas casadas, de conhecida beleza e notória falta de juízo, e o Prefeito do palácio, segundo umas vagas referências que hoje ouvi, mandou indagar, procedeu a averiguações. Para dirigir as pesquisas estava naturalmente indicado o homem da polícia que o tinha surpreendido no parquezito do hotel com a dama do rosto velado.

- Já tinha partido para fora de Baiona.

- Talvez a ordem para as averiguações fosse posterior à saída dessa dama. Mas havia pesquisas indirectas a fazer: você tinha pedido uns dias de dispensa e desconfiaram que os quisesse para ir atrás da misteriosa amante. Vigiavam-no, eis o caso fundamental. E para o vigiar, seguiram-no para minha casa, para casa do polaco e de lá para a capela. Daqui uma coisa que parece de novela e é afinal a coisa mais simples deste mundo. Quando João Pulaski chegou a casa e deu por falta da filha, os servos, aterrados, contaram o que tinham visto, o polaco saiu numa explosão de cólera, bramindo vinganças, a polícia ouviu-o, guiou-o para aquela capelazita de ermo onde nos supúnhamos seguros. Ora a esse tempo já o Prefeito do palácio tinha recebido a queixa do russo, que chegara na noite anterior, e já havia tido ordem de o ir interrogar ao hotel e prendê-lo, se o entendesse necessário. Mas o Prefeito encontrou o homem da polícia que vinha guiando Pulaski e soube então onde podia procurá-lo com a certeza de o encontrar. Aqui tem todas essas coisas, deploràvelmente novelescas, reduzidas a coincidências banais da vida de todos os dias. Em Marrac fiz um pouco de agente de polícia por minha conta e risco, e indaguei tudo sem que me percebessem o intuito.

- E o seu criado?

- Lá me chegou a casa todo escalavrado.

- Escalavrado?

- Sim. Eu lhe conto. Ia a carruagem duas léguas apenas de Baiona quando, em sentido contrário, vinham a galope uns esquadrões de cavalaria da guarnição da praça. Os cavalos da carruagem espantaram-se, o pobre diabo do meu criado atrapalhou-se no seu papel de cocheiro e o veículo, sacudido pelos cavalos, foi de encontro a uma árvore marginal. Quando um cavalo caiu estonteado, o meu lacaio tombou da almofada para uma ribanceira pedregosa. Contou-me que ouviu rodar outra carruagem e parar. Levantou-se muito escalavrado, subiu a custo para o pavimento da estrada, pois com as pernas esfoladas mal podia dar um passo, e viu que no meio do caminho o polaco abraçava um homem idoso. Depois meteram-se os dois na outra carruagem que parara no meio da estrada. O meu rapaz ainda gritou pelo polaco, mas a carruagem partiu à desfilada. E lá ficou à espera de que passasse alguém que o ajudasse a levantar os cavalos e a consertar os tirantes partidos! O velho era decerto aquele a quem João Pulaski chamava irmão. Sabia que êle tinha um irmão?

- Sabia. Mais velho do que êle, riquíssimo, há vinte anos residente nas imediações de Viena de Áustria. Sei também que João Pulaski recebeu há dias uma carta daquela cidade. Provavelmente do irmão, ou de alguém por êle. A filha ficou supondo que seria carta de André Pulaski, mas certo, a não vir retardada, não haveria tempo de a escrever de Viena e estar já aqui, vindo por mar. Viria de Bordéus?

- Mas da Áustria para Bordéus, só se atravessou a Alemanha para embarcar em algum porto dos Países Baixos. E talvez viesse em qualquer embarcação mercante americana ou em algum desses pequenos navios que fazem viagens de cabotagem de noite, iludindo os cruzeiros ingleses. Pelo Adriático e pelo Mediterrâneo encontraria perigos e embaraços quási certos. É absurdo supô-lo.

- Podia vir por terra, sem prováveis dificuldades e com muito menor demora. Era o caminho naturalmente indicado de Viena para aqui.

- Quem sabe as razões que êle teve para vir por mar? Teria ido à Holanda por qualquer negócio de família?

- Não sei.

- E, provavelmente, o polaco ia esperá-lo?

- Não sei, meu caro amigo! O que eu sei é que tenho de passar aqui uns dias horrorosos! Estou a ter receio que ma levem de Baiona, e a sacrifiquem a esse odiado cossaco, tornando-a sua esposa.

- Que ideia essa!

- João Pulaski deve ao russo a liberdade e, certamente a vida, a dele e da filha.

- Sim, você já me contou de relance a história de Pulaski.

- Mas suponho ter-lhe dito também que o polaco fizera a Platow a promessa jurada de lhe dar a filha por esposa.

- Ora, promessa de há anos, que ela própria tornará irrealizável.

- Podem obrigá-la, oprimi-la! O pai seria capaz de morrer por ela, mas é um autoritário intransigente, caprichoso, de vontade indomável. Dentro em mim e no isolamento deste calabouço, um inferno pavoroso de receios, de saudades, de desesperos! Assim se enlouquece!

- Então, Luís de Castro! continue a ser o homem admirável que eu me prezo de ter por amigo. Eu disporei as coisas de modo que tenha aqui notícias da sua linda noiva. Escreva-lhe esta noite uma carta de desafogo. Alguém conseguirá levar-lha. Foi um dia de má fortuna, manhã risonha que subitamente se toldou. Outras virão de carinhosa luz para os seus amores. Nem este castigo vale a sombra sequer de uma mácula sobre o seu nome ilustre. Não fossem aquelas deploráveis coincidências, a vigilância da polícia, as queixas do russo e, realizado o casamento, nem o Imperador saberia que o polaco protestava, nem tomaria em grande conta a sua falta, que eu, paisano, considero um pequeno pecado venial contra a disciplina. Mas, com todo aquele escândalo, Napoleão não teve remédio senão dar um exemplo. E estou certo que lhe custou, porque você teve a boa fortuna de lhe cair em graça.

- Eu sei. Foi benevolente e tem-me ouvido o que alguns tiranetes obscuros me não deixariam dizer-lhes.

- Portanto, meu amigo, deixe voar a alma para as regiões do sonho e saiba esperar, que também não raras vezes é coragem saber esperar. Na sua boca essa promessa de fazer uma loucura, como há pouco lhe ouvi, percebendo-lhe o sentido, é uma fraqueza que não condiz com os nobilíssimos estímulos que o trouxeram a França. Disse-me que vinha à procura de um campo de batalha onde, com os seus soldados, desmentisse em face da Europa a suspeição de cobardia, que iniquamente pode ter caído sobre a farda do nosso exército. Ainda não houve ocasião para esse desmentido. Tem de esperá-la a sua alma de soldado, ainda que uma desgraça, em que não creio, lhe despedace para sempre as melhores esperanças do seu coração.

- Sim. Diz bem. Ainda que o leve morto comigo para esses campos de batalha que a minha alma sonhou.

- Assim fala um homem como é Luís de Castro. Até amanhã. Cá me há-de ter para o acompanhar e trazer-lhe notícias.

- Bem haja! - disse, abraçando-o comovidamente - O que eu lhe devo, D. Lourenço, é para se não esquecer nunca!

Despediram-se.

 

           Desaparecida.

Escreveu até de madrugada. Uma carta enorme para Maria. Escreveu numa opressora tristeza, que lhe afogava os olhos de lágrimas.

Deitou-se muito tarde, madrugou como nunca. Podia lá repousar!

- E quem sabe para que maiores desesperos me está guardando o funesto destino dos meus amores? - pensava.

Devorava-o uma febre doida de impaciências. Eram ainda oito horas da manhã e êle já à espera que lhe aparecesse D. Lourenço de Lima com alguma informação a respeito de Maria Pulaski. Uma coisa inverosímil com que o coração se lhe iludia.

Esperou toda a manhã. D. Lourenço não esquecera a sua promessa e incumbira um seu criado de ir vigiar a casa do polaco e colher todas as informações possíveis acerca de Maria Pulaski.

Tencionava ir ter com o Castro logo depois do almoço, mas recebeu aviso para ir a Marrac. O general Duroc, grande marechal do palácio, mandava-lhe dizer que o príncipe de Neufchâtel precisava de falar-lhe com urgência.

Partiu para lá ainda antes das onze horas, muito surpreendido com semelhante aviso.

O que lhe podia querer o Marechal Berthier, príncipe de Neufchâtel, major-general do Grande Exército?

Soube-o assim que chegou ao palácio. Berthier levou-o para o seu gabinete de trabalho e fechou-se com êle.

- Incomodeio-o por causa de um acontecimento que pode trazer graves dissabores ao capitão Castro.

- Outros ainda, príncipe?

- Os piores talvez!

- Quere-me parecer então que devo a honra de estar aqui a algum facto que se relaciona com o capitão Luís de Castro.

--Incomodei-o para lhe pedir um esclarecimento de suma gravidade.

- Príncipe, todos os esclarecimentos que eu souber e puder dar a Vossa Alteza.

- Enredaram-se umas intrigas singulares em volta daquele seu compatriota! É um homem estimável, que eu tenho no mais alto apreço, e pesa-me sinceramente vê-lo envolvido numa aventura que lhe pode ser funestíssima! Trata-se de um facto absolutamente confidencial, quási um segredo de Estado. Dá-me a sua palavra de honra de que nada revelará do que eu vou dizer-lhe?

- Afirmo a Vossa Alteza, pela minha honra, que a ninguém revelarei o que ouvir aqui.

- Bem. Então ouça. Sabe daquele caso de uma dama misteriosa que esteve no Hotel Marengo e foi surpreendida por um empregado da polícia em entrevista de amores, de noite, no pequeno parque do hotel com o seu amigo Castro?

- Ouvi contar esse caso em Baiona e aqui no palácio, provavelmente com algum exagero e adulterados pormenores, mas ouvi.

- Uma dama casada, ilustre, que tinha o rosto velado por uma pequena máscara de cetim.

- Assim o ouvi.

- Ao capitão Castro?

- A várias pessoas da cidade e da corte.

- Castro nada lhe disse?

- Contei-lhe o boato e afirmou-me que é verdadeiro.

- Quem era a dama?

- Afiançou-me que não o dissera a ninguém, que não o diria ao seu maior amigo. Prometera guardar segredo desta dama, guardá-lo-ia fosse por que preço fosse. Disse-me que ela o fora procurar numa alucinação apaixonada, mas que não era sua amante, nem por êle Castro sofrera afronta a honra do marido.

- Acredito. Castro procedeu nobremente.

- Contou-me até que o tinha dito a Sua Majestade o Imperador.

- Disse, mas como o boato dava alento a vagas suspeições de desonra, que iam cair sobre algumas damas ilustres, sobre a esposa de um general distinto, grande amigo do Imperador, sobre essa insistentemente, o Prefeito do palácio procedeu a indagações reservadas àcêrca daquela dama misteriosa.

- Partiu na madrugada do dia seguinte àquele em que um homem da polícia a foi procurar, confundindo-a com uma aventureira italiana, que a prefeitura policial de Paris mandara capturar. Disse-mo ontem Luiz de Castro e, se não me engano, percebi que o tinha contado também a Sua Majestade.

- Pois a polícia seguiu depois ou supôs que seguia o caminho dessa dama romanesca, misteriosa, a quem um acidente de viagem reteve a umas doze léguas daqui. Pode ter-se dado um engano dos agentes da polícia, por erradas informações ou por efeito de uma coincidência realmente pouco aceitável, mas a inquietadora verdade é que estamos diante de uma suspeita grave e de funestas consequências para o seu amigo Castro!

- Não comprendo bem Vossa Alteza!

- Eu não me explico melhor, mas lembro-lhe a sua promessa de absoluta confidência.

- Pode Vossa Alteza contar com ela firmemente.

- A dama que saiu daqui, segundo todas as probabilidades foi retida no caminho por um desastre. A carruagem tombou-se de noite por uma ribanceira, um criado morreu e a dama ilustre ficou de tal modo contusa e sofreu tão grande abalo que perdeu os sentidos e teve de ser levada em braços para uma hospedaria insignificante de aldeia, onde tem estado em tratamento. A máscara desprendeu-se-lhe do rosto e o médico chamado, um italiano, um tal Farinelli, segundo as declarações da polícia, supôs reconhecê-la e prestou-lhe comprometedoras homenagens.

- Uma alta personagem?!

- Das mais altas de França! Mas podem ter-se enganado o médico e a polícia. O Prefeito do palácio recebeu todas estas espantosas informações e receia comunicá-las ao Imperador. A cólera de Sua Majestade seria tremenda e cairia implacável sobre o protagonista da aventura, levantando um escândalo que podia ter ecos na Europa! O Prefeito veio contar-me as suas hesitações e eu lembrei-me de pedir a intervenção de v. ex.a em benefício do capitão Castro.

-O que Vossa Alteza mandar.

- Repito: pode ter-se dado um engano, senão quanto à identidade da senhora que a polícia encontrou, quanto aos motivos e ao ponto de partida da sua viagem. O Imperador sabe das pesquisas de que a polícia foi incumbida, está empenhado em que se desvende o mistério da suposta amante do seu amigo, e é preciso dar-lhes seguras informações. Lembrei-me dos seus bons ofícios.

- Por que modo, Alteza?!

- Obtendo do seu amigo Castro o nome daquela dama.

- Príncipe, isso não posso eu obter! Castro prometeu que não revelaria a ninguém, como já tive a honra de dizer a Vossa Alteza. Conheço-o. Não o revelará.

- Pois pode jogar assim, com perda infalível, todo o seu futuro!

- Nem assim quebrará o segredo que prometeu guardar.

- É deplorável essa consciência diante de acontecimentos que se não podiam prever! Depois, o nome que êle dissesse ficaria sendo um segredo do Imperador, afirmo-lho. Eu não o diria a mais ninguém, não o saberia o próprio Prefeito do palácio.

- Sinto repetir a Vossa Alteza que não sei de receios de perigo nem de instância de amizade que possam mover Luís de Castro a faltar à sua promessa.

- E eu estou percebendo que o sr. D. Lourenço de Lima não vê ainda claramente a gravidade excepcional deste caso! Se tivéssemos um nome para dizer ao Imperador, um nome que não fosse o daquela senhora que o médico italiano julgou reconhecer, estariam vencidos todos os embaraços, e o capitão Castro poderia, com a minha boa vontade e com a simpatia que inspirou ao Imperador...

- Alteza, conforme esse nome fosse.

- Calcula, conjectura qual seja?

- De nenhum me lembro, e Deus me livre de o inventar, em benefício de Luís de Castro!

- Não se inventa sem escrúpulos um nome de senhora casada, que não esteja em Baiona e seja uma das mais ilustres da França!

- Mas, se Vossa Alteza me dá licença, formularei uma hipótese, apenas uma hipótese, que ficará sendo uma confidência de nós ambos.

- Sim, diga.

- Admitamos que Luís de Castro é capaz de revelar o segredo prometido a uma dama. Se fôr o nome de alguém indiferente para o Imperador, o segredo mantém-se, quero crê-lo, e a situação do meu amigo fica livre de qualquer grave comprometimento. Mas se o não fòr?

- Plausivelmente, só sei três ou quatro que profundamente pudessem inquietar o Imperador.

E, como se fôsse no rumo de uma súbita desconfiança, que vários antecedentes e todas aquelas precauções estavam autorizando, D. Lourenço replicou-lhe:

- Podia ser um desses, o mais lembrado por antecedências quási idênticas, o mais aceitável, dadas as condições desse oficial estrangeiro que nunca estivera em França e ainda não passou de Baiona.

- É uma hipótese embaraçosa, mas estou a compreender-lha! A pessoa atingida pelos seus rodeios de palavras está fora de França, doente.

- Há doenças que se inventam e nenhum inventor mais astuto do que um coração enamorado. Conheço precedentes de viagens de disfarce em que se venceram inauditas dificuldades.

- Insiste!

- Perdão, Alteza: continuo dentro da minha hipótese. Se não houve engano com a dama de máscara que a polícia foi encontrar na hospedaria de uma aldeia, se é realmente a mesma que há menos de um mês vivia em certo palácio dos arrabaldes de Baiona e há duas semanas, creio eu, se supunha fora de França, enferma em certa cidade italiana, de suave clima, aí temos então uma identidade inquietadora a destruir todas as suposições de equívoco ou de coincidência a respeito de duas damas diversas, ambas viajando de máscara pela estrada por onde se pode ter saído de Baiona e, portanto, do hotel Marengo. Para onde ia, ou donde vinha mascarada essa dama inconfundível, que supunham doente e fora de França? Não é fácil responder e não me atrevo eu a dar resposta, nem mesmo dentro das fórmulas vagas de uma hipótese.

- Já disse quási tanto como o seu amigo poderia dizer! A sua hipótese nem chega a ser já um véu de pueril incógnito a valer um nome!

- Príncipe, eu não passei ainda de suposições, que se firmam somente nos cuidados excepcionais com que vossa alteza me tem falado do assunto, nas suas próprias referências e em certos antecedentes.

- Quais?

- É melindroso dizê-los!

- Chegámos a uma altura em que os disfarces se tornam inúteis. Havemos de guardar ambos este segredo, podemos e devemos falar francamente.

- Pois bem, alteza. Dadas as circunstâncias conhecidas, as que eu já sabia e as que vossa alteza me revelou, encontro um nome difícil de dizer, mas que se relaciona com arrebatamentos de temperamento, que não são ignorados em França, e com uma inclinação amorosa, revelada em palavras e olhares, que neste palácio maliciosamente foram notados.

- Percebeu-se então que o capitão Luís de Castro era visto com especial agrado por uma pessoa altamente colocada, que depois saiu de Baiona?

- Exactamente.

- Estas irmãs do Imperador! - disse consigo Berthier - É aquela, a que maiores dissabores lhe tem causado!

Parecia reflectir.

- Entendemo-nos bem um ao outro. Prescindo das declarações do capitão Castro. Já não necessitamos delas.

Agora é preciso ocultar ao Imperador o vexame e o escândalo provenientes dessa aventura, desviando de cima do seu amigo a tempestade das cóleras de Sua Majestade.

- Alteza, agora é que eu não vejo bem como tudo isso há-de evitar-se, depois de tantos passos dados ao encontro da verdade!

- Para alguma coisa há-de servir o poder. Também têem a sua estratégia estas campanhas de enredo, em que as mais altas figuras políticas subitamente se podem ver afrontadas. Como podemos contar com a discrição de Castro, os homens da polícia que viram a dama sem máscara vão receber ordem para dizer que nada viram nem puderam encontrar a senhora que procuravam.

- E o tal médico italiano que a reconheceu?

- Em quarenta e oito horas está preso e incomunicável por embusteiro de intentos gananciosos. Em oito dias tê-lo-ão levado para os confins da Itália, para bem longe da França.

- O pior são essas pessoas da aldeola e das povoações vizinhas que foram prestar homenagem a... à misteriosa dama.

- Hão-de acreditar que o aventureiro italiano as iludiu.

- Príncipe, e a resposta ao imperador?

- Será de mentira bem intencionada. A polícia não pôde encontrar o rumo daquela dama romanesca.

- Há-de ficar fazendo da polícia uma triste ideia, e talvez se não satisfaça com a resposta.

- Sua Majestade tem agora muitos cuidados políticos, para que se possa prender em coisas mínimas, que só tomariam aspecto grave se o escândalo lhes desse voz e as empurrasse contra os degraus do trono imperial. Só duas pessoas poderiam comprometer este plano, comprometendo-me.

- Quais, alteza?

- O Castro...

- Por esse fico eu.

- E o sr. D. Lourenço de Lima.

- Por esse pode ficar Vossa Alteza.

- Obrigado. Não me esquecerei. Se alguma vez precisar de mim, não hesite. Ser-me-á agradável qualquer ocasião que me dê de lhe ser útil.

- Alteza, agradeço a obsequiadora promessa, e desde já lhe peço licença para um pedido.

- Diga. Qual?

- Converter em benefício de Luís de Castro essas cativantes disposições que tem em meu favor.

- Hão-de chegar para ambos. Podem contar comigo.

- Beijo as mãos de Vossa Alteza.

- D. Lourenço - disse, despedindo-o - não posso perder um momento. Uma demora de minuto poderia inutilizar completamente o meu plano.

- Deus queira que os homens da polícia que a viram não tenham caído em alguma inconfidência!

- São dois agentes experimentados, discretos, e tiveram recomendações especiais, nada terão dito.

  1. Lourenço saiu do gabinete de Berthier e foi logo direito para Baiona.

À janela de grades da detenção dos oficiais, Luís de Castro esperava com amargurada impaciência. Não havia então ali outro preso.

- Enfim! Ele aí vem! - exclamou.

Era D. Lourenço de Lima quem êle vira e era por êle que esperava.

- Meu caro amigo, que tortura a minha! - disse-lhe abraçando-o - De Maria soube alguma coisa?

- Ainda não. Mandei o meu criado vigiar a casa do polaco, saber novidades, e êle para isso é de primeira ordem, mas não me foi possível esperar informações porque tive de ir a Marrac e de lá venho agora. E trago uma novidade espantosa!

- A meu respeito?

- Não. A respeito de um engano com a Princesa Borghèse.

- Que foi?!

- A polícia julgou tê-la reconhecido numa hospedaria de aldeia, a umas doze léguas daqui, de cama, por causa de um acidente de viagem. Foi chamado para a tratar um patife de um médico italiano, um tal Farinelli, que teve a ousadia de dizer que a sua doente era nada menos do que Paulina Bonaparte!

  1. Lourenço observava o efeito produzido pelas suas palavras, de olhar enviesado para Luís de Castro.

- Conheço um médico italiano com esse apelido, e também o tenho na conta de um respeitável patife. Foi o médico de Maria Pulaski em Lisboa.

- Talvez seja o mesmo.

- E depois, a suposta Princesa? Um engano tolo, evidente. A Borghèse estava em Nice, enferma.

- E o mais singular é que a Princesa, que o italiano julgou reconhecer e a polícia supôs encontrar, fizera a viagem, até à ocasião do desastre, trazendo no rosto uma máscara de cetim como a tal dama de mistério que se foi meter no hotel Marengo por sua causa!

Luís de Castro perturbou-se.

- Mas os verdadeiros mascarados somos nós, você e eu. Máscaras fora e falemos abertamente.

Contou-lhe então o que se passara em Marrac no gabinete de Berthier.

Castro não afirmou nem negou a identidade da Borghèse com a dama romanesca do hotel Marengo, limitou-se a dizer-lhe:

- D. Lourenço fêz já o seu juízo e dispensa decerto à minha lealdade de amigo qualquer comentário que pudesse contrariar a consciência deste homem, a quem quiseram dar o papel de amante da Princesa Paulina. Fêz-me justiça afirmando a Berthier que eu era incapaz dalguma declaração, fosse a quem fosse, a respeito do nome dessa dama cujo incógnito defendi porfiadamente. Agora, D. Lourenço, a minha ânsia, a minha preocupação absorvente é saber o que terá sido feito de Maria. A minha alma voa para ela como ave espavorida a buscar o rumo luminoso que uma lufada de temporal lhe fizera perder.

- E há-de encontrá-lo, verá. Ainda se há-de conseguir, por intermédio de alguém da corte, que algum dos polacos preponderantes, residentes em Paris, obtenha de João Pulaski autorização para o casamento da filha consigo.

- Duvido. Iludido com Miguel Platow, a ver nele uma vítima dos meus amores pela filha, João Pulaski insistirá no seu propósito de outro tempo.

- Casando a filha com êle?

- Sim.

- Mas não há-de ela querer semelhante sacrifício, e percebi que é senhora de ânimo resoluto.

- Com intermitências de desalento, com as fraquezas naturais de uma mulher. Veja como desmaiou quando Platow surgiu diante dela como um espectro.

- Isso não é prova contra a sua firmeza de vontade. Aquela trágica surpresa subitamente lhe quebrou o ânimo. Em lances assim até os homens às vezes fraquejam.

- Diz bem. Ela supunha que o russo tinha morrido, dissera-lho eu, confiado numa informação que me pareceu segura. Mas, se de todo a desampararem contra a despótica vontade do pai e nas ciladas vilãs de Platow, o que posso eu esperar da constância ou da coragem daquela mulher de dezanove anos? Não lhe consentirão talvez que se defenda morrendo, há-de êle vigiá-la como um falcão a vigiar a cobiçada presa, há-de êle levá-la de rastos para o seu leito de noivo, e Maria morrerá lentamente como flor maculada que se desfolha nas mãos brutais do cossaco! Um inferno de desesperos, isto que eu receio e sinto! Ódio e nojo neste veneno em que eu tenho o coração a afogar-se!

- Isso já não é só recear, meu caro Castro, isso é deixar correr a fantasia atrás de umas visualidades em que a sua alma atribulada se está reflectindo tristemente! Pensemos nestas coisas friamente. Ouvi que o russo tem de ir apresentar-se em Moscovo, di-lo a sua guia diplomática, segundo me contaram.

- Bem sei. Voltará de lá para onde ela estiver. Sua noiva, levá-la-á consigo.

- E o pai consentiria em afastar-se da filha? Não creio. Iria com eles para a Rússia? Menos ainda. Pulaski é um desterrado, um trânsfuga, a quem o o Czar não perdoava como ao russo. Estou respondendo a mim mesmo com as próprias informações que lhe ouvi, meu caro amigo. Está a tomar como coisas prováveis uns receios inverosímeis, que, em outra conjuntura de serena reflexão, o seu lúcido espírito havia de repelir desdenhosamente. Olhe, vou eu próprio indagar o que o meu criado terá podido observar e saber. Serei capaz de ir eu próprio falar a João Pulaski.

- Para quê?

- Para lhe dizer quem é o homem bem amado da filha, o filho pundonoroso a quem ela queria esposar.

- Generoso intento de amigo, certamente improfícuo.

- Talvez não. Pelo que lhe ouvi a si, a respeito de Platow, podê-lo-ia desiludir a êle. Homem culto e de bom nascimento, Pulaski não ousaria tratar-me como se eu fosse um lacaio ou um enredador que alguém houvesse comprado para ir caluniar o cossaco. É assim que você o designa.

Entrou o sargento, guarda da prisão.

- Está ali um homem que diz ser criado do sr. D. Lourenço de Lima.

- O meu criado, ainda bem!

- Traz consigo uma dama.

- Uma dama! - repetiu Luís de Castro, sobressaltado.

- Muito nova? - preguntou D. Lourenço, como se tivesse perfilhado o doido alvoroço de Castro.

- Não, sr. Deve ter quarenta e tantos anos.

- A Beauchamp, quere ver? - disse D. Lourenço para o Castro - Será permitido - preguntou ao sargento - que esse meu criado e essa dama entrem aqui para falarem ao sr. capitão Castro?

- Certamente. A ordem do quartel-general imperial autoriza a entrada das pessoas que v. ex.a apresente ou deseje trazer consigo.

- Então queira mandá-los entrar. O sargento saiu.

- O seu criado a procurá-lo e, provavelmente, a Beauchamp com êle! Alguma grande novidade! Estou a prevê-lo!

Era efectivamente a Beauchamp, e logo pela expressão mortificada, pelo ar de desalento, pelo dolorido olhar, repassado de pranto, se percebia que vinha ali a mensageira de alguma inquietadora notícia.

O velho criado ficara à porta. D. Lourenço mandou-o retirar.

- Minha querida Beauchamp! - disse-lhe comovidamente Luís de Castro - Outra desventura? Estou a ler-lha no rosto. Maria? Diga-me primeiro do que tudo, seja o que fôr, diga-me primeiro o que é feito dela.

- Desapareceu! Levaram-na! - soluçou - Levaram-na!

- Ana Beauchamp, veja o que diz! Esmagam-me

as suas palavras! Desapareceu? Pode lá ser! Levaram-na? Para onde?

- Não sei! Não sei! Se eu o soubesse, tinha ido atrás dela, a filha da minha alma!

- Mas como pode ser isso? Por piedade, Beauchamp! É de enlouquecer! Há-de ter sabido para onde a levaram? Desconfiar pelo menos. Primeiro despediram-na a si. O pai, o tio que veio da Áustria, levaram-na os dois e Platow foi também! Diga-me o que sabe, tudo, bem compreende que me tortura horrorosamente. Deve percebê-lo em mim, haviam de senti-lo os próprios indiferentes.

Tinha um tom magoado de súplica, a sua voz lembrava gritos de alma, oprimidos numa artificiosa modulação de palavras. Insistia, tomou-lhe as mãos nas suas, esbraseadas como se uma febre violenta lhas estivesse queimando.

E a Beauchamp, sufocada de soluços, sem lhe poder dar resposta! Tivera coragem de reprimir as lágrimas até chegar ali, mas ao vê-lo a êle, o malogrado noivo da sua pobre Maria, o ânimo desfaleceu-se-lhe no recrudescimento daquela mágoa como de mãe infortunada. Entendia melhor do que ninguém as palavras mortificadas daquele homem, sentia-lhas como se fossem o espedaçar de um coração, que lhe fazia dó, porque era pela sua desditosa Maria que êle se espedaçava.

Queria dizer-lhe tudo em gritos que fossem a vibração de toda a sua dor, e não podia!

Quanto mais êle instava, mais intenso veneno de amarguras a queimar-lhe o peito a ela, maior e mais revolta onda de soluços a afogar-lhe a voz.

Em repelões de raiva, Castro abandonou-lhe as mãos, que tivera seguras nas suas, abandonou-lhas bruscamente.

- A senhora não sabe compreender esta infernal surpresa que me trouxe!

E deu ao longo da sala uns passos largos, sacudidos, como um desesperado à procura de uma ideia. O rosto desfigurara-se-lhe, no olhar havia um estranho fulgor, de espaço a espaço amortecido no pranto, que o seu orgulho de homem não deixava desfiar em lágrimas. Sozinho teria chorado, em convulsões de ódio e em desalentos de amante, mas ali não, ali era vergonha chorar.

Movido de piedade por aquele homem digno de melhor fortuna, D. Lourenço foi para êle afectuosamente.

- Então, Castro! Não é nesses desesperos de alucinado que havemos de encontrar remédio para as mortificações do seu coração. Vamos. É preciso indagar o que houve e reflectir no que é possível fazer. Bem sabe que pode contar comigo. Se me dá licença, pedirei eu a esta senhora que me diga o que sabe. O meu amigo limita-se a ouvir. Depois combinaremos ambos o plano a adoptar. Está de acordo?

- Em tudo o que quiser, meu caro amigo. Em tudo, nem eu sei o quê? Realizou-se a previsão que me tinha amedrontado. Não acreditava nela. Aí a tem. Em mim não há agora senão uma ideia, filha da realidade do meu ódio e da minha dor. Confio à sua piedade de amigo a indignação de que me sinto incapaz. Raciocine por mim. Isto é cobardia que se não pode negar.

Foi para um ângulo da sala. Sentou-se de repelão e ficou dobrado para diante, com os cotovelos fincados nos joelhos, o rosto escondido entre as mãos.

- Queira sentar-se, minha senhora - dizia D. Lourenço à Beauchamp - Diga-me o que se passou. Bem sabe que, sou um dedicado amigo do sr. Luís de Castro. É para bem dele, é para seu bem que me vai contar tudo. Sei que tem amor de mãe àquela menina. Mas há-de compreender que nada é possível intentar a favor dela sem sabermos como desapareceu, como a levaram.

- Em favor dela? Não sei como há-de ser!

- Mas conte-me tudo como puder. Tudo o que viu e ouviu, desde que Maria Pulaski foi levada da capela de Nossa Senhora do Bom Jesus. Levaram-na em braços, desmaiada, o Pai e aquele velho...

- Irmão de João Pulaski - acudiu soluçante.

- Irmão lhe ouvi eu chamar. Conhecia-o?

- Não, nunca o tinha visto. Disseram-me que vivia há vinte anos na Áustria.

- Não sabe o motivo por que êle veio agora a França?

- Não sei. João Pulaski tinha recebido uma carta de Viena de Áustria, havia pouco tempo.

- Enfim, isso é o que menos importa. Depois que a levaram da capela...

- Corri atrás dela, assim como se fosse mãe a quem iam roubar a filha.

- E depois?

- Nem deram por mim! Meteram-na os dois dentro da carruagem. Ia como morta, coitadinha!

- Ela julgava que o russo havia morrido, já sei.

- Tinha a morte dele como coisa certa, mas havia já umas poucas de noites que o via aparecer, para a levar, para a fazer sua mulher. Platow tinha prometido converter-se à religião católica no dia em que a tivesse de receber por esposa. E por isso a minha pobre Maria sonhava também com uma igreja muito grande que lhe fazia pavor. Estava a pressentir tudo isto! - soluçou.

- Vamos. Levaram-na para dentro da carruagem...

- Que deitou à desfilada para as bandas da casa onde vivíamos.

- E a senhora?

- A correr e a gritar atrás daquela maldita carruagem, que parecia voar e ma levava! Faziam-me preguntas, fugia, supunham-me doida! Bem me importava. Ia doida, mas era com esta minha dor por ela. Eu só tinha medo que me prendessem, que me arredassem do caminho em que ia atrás dela. Para isto, ao menos, teve Nossa Senhora dó de mim!

Fui cair à porta de casa, já sem forças até para chorar. Veio uma criada negra recolher-me. Disse-me que tinham ido chamar um médico para ir ver Maria. Arrastei-me pela escada acima para o quarto dela. João Pulaski pôs-me fora, trouxe-me diante de si com uma fúria doida, deitando-me as culpas de tudo, dirigindo-me afrontas! Levou-me para uma loja térrea da casa, fechou-me. Era o meu calabouço!

Ficou-se por instantes numa crise de choro.

- Deus não dê nunca às maiores pecadoras uma noite como eu tive! Levaram-me de comer ao outro dia. Foi o próprio João Pulaski levar-mo. Pus-me de joelhos e pedi-lhe que me dissesse como estava a filha, pedi-lho como quem pede uma esmola. Respondeu-me com um insulto, e saiu fechando outra vez a porta. Segunda noite. Mãe Santíssima! Como eu não endoideci! Ai! De manhã cedo veio um homem abrir-me a porta e disse-me que João Pulaski partira com a filha para que eu nunca mais a tornasse a ver. Que procurasse a minha vida, e atirou-me à cara com uma bolsa. Que eram trinta Napoleões de esmola, por generosidade de João Pulaski, para eu não morrer de fome se o namorado da filha houvesse deixado de pagar-me os seus serviços de... As palavras ainda de maior ofensa que a bofetada vil daquele dinheiro! Cuspi na bolsa com que me ultrajavam e fui de rastos atrás daquele homem, a pedir-lhe que tivesse dó e por misericórdia me dissesse para onde tinha ido Maria. Repeliu-me, atirou-me com outro insulto maior. Era de ruim coração para se apiedar de mim! Perdi os sentidos.

Respirou torturada. O peito arquejava-lhe violentamente.

- Descanse. Tome alento - disse D. Lourenço, relanceando um olhar para Luís de Castro.

Estava na mesma posição. Notou-lhe, porém, uns violentos estremeções. As mãos tinham-se-lhe enclavinhado contra os olhos.

- Chora - pensou D. Lourenço -Como um homem da sua têmpera pode chorar. Servem-lhe as mãos de máscara.

- Quando voltei a mim, andei como doida por aquelas casas todas. A estranhá-las como se nunca lá tivesse vivido! Nem um criado! Ninguém! Só eu com a minha dor. Subi a escada como se fosse uma criança cheia de medo. Ia de quarto para quarto, apalpando as paredes como se os olhos se me tivessem cegado, como se de repente houvesse anoitecido! E o sol entrava pelas janelas dentro, cheio de alegria, como se nada houvesse acontecido ali! Só tinham deixado umas coisas, que pareciam também chorar por ela. E os ais que eu dava faziam um eco tamanho que me causa pavor! O quarto dela, meu senhor! Viram-no os meus olhos assim como se estivesse todo forrado de luto, a lembrar o quarto de uma pessoa morta que tivessem levado dali. Morta para mim! O luto levava-o eu comigo e era com êle que os meus olhos forravam aquele lindo quarto onde ela se vestira de noiva! Ao pé do seu leito vi alguma coisa que era dela, pequeninas flores que pareciam de neve, no chão, espezinhadas. Uma saudade, um alvoroço, maior vontade de chorar! Fui apanhá-las, beijei-as sem me importar que pés as tinham calcado. Guardei-as, trago-as comigo, aqui no peito. Eram da grinalda da noiva!

Disse-o num soluço que lembrava um arranco.

Castro ergueu-se como se o levantasse da cadeira uma agonia enorme do coração. Escutava, tinha ouvido tudo.

- Beauchamp! - disse numa súplica a semelhar um uivo de cólera - Para onde a levaram?

- Fugi daquela casa, preguntei se a tinham visto, pregnntei-o aos cavadores que passavam, aos pequenitos que brincavam na azinhaga. Ninguém sabia, ninguém a tinha visto! Foi então que encontrei o criado deste senhor.

- Provavelmente levaram-na para a Áustria, para casa do tio - lembrou D. Lourenço.

- O criado de v. ex.a disse-me que não tinha dado pela saída porque talvez fosse muito de madrugada, a hora em que êle ainda não andava por ali. Mas também me disse que, uma hora depois de ter chegado, vira um homem, muito alto, montar a cavalo e seguir a toda a brida pela estrada de Bordéus.

- Miguel Platow! - rouquejou o Castro.

- Havia de ser. Foi êle quem me levou aos insultos e o dinheiro - soluçou a Beauchamp.

- O cossaco foi ao encontro dela! - disse o Capitão para D. Lourenço.

- Mas pela estrada de Bordéus! - objectou-lhe - Só se vão por mar, em algum navio dos Estados-Unidos, únicos respeitados pelos cruzeiros ingleses.

- Eu sei lá! É um inferno isto!

- Mas por Bordéus para onde? - preguntava alto D. Lourenço como a seguir as suas próprias reflexões.

- Para a Rússia, com o cossaco! - respondeu torvamente o Castro, enclavinhando as mãos no peito.

- Não me parece. Podiam seguir um falso caminho para desnortear quaisquer pesquisas. De Bordéus podem seguir por terra para a Áustria.

- Fosse para onde fosse, meus senhores - acudiu a Beauchamp - não foi por sua vontade que a levaram. Ia jurá-lo. Levaram-na doente, oprimida, sem forças para resistir. Está o coração a dizer-mo, como se estivesse a adivinhar.

- Castro, vou ver se obtenho informações de Bordéus, se consigo saber o destino que levaram.

- Passos e indagações certamente inúteis, meu caro amigo! A minha resolução está tomada. Considero-me vencido nesta luta de desesperos contra a má fortuna destes amores. Agora, meu amigo, é esperar a hora em que me seja dado cumprir a promessa feita em Lisboa e repetida em Marrac. Atirar com a vida para um campo de batalha, ajudar os meus soldados a provarem à Europa que não somos um exército de cobardes... e tornar esta farda em mortalha digna dos meus apelidos de herança e da minha mocidade sem alentos.

- Castro! Essas palavras traduzem apenas o delírio da sua alma atormentada. Daqui a uns dias, ou daqui a um mês, pensará doutro modo, como quem é. Ainda que Maria Pulaski absolutamente se houvesse perdido para si, ainda que a morte lha levasse, o seu dever era viver. Pelo seu nome, pela nossa terra, tem de viver.

- Se até essa parece perdida para mim!

- Parece e eu ainda creio que não. Há-de encontrá-las - a noiva e a pátria. É o meu vaticínio.

- Pois que seja assim, mas agora sinto horror por tudo isto que me rodeia aqui! Por esse pedaço de céu, que algumas vezes me lembra o de Portugal, por essa paisagem, por esses lugares onde as saudades de Maria viriam para mim com mais atormentadora mágoa do que em outro qualquer recanto do mundo fora de Lisboa. Da esplanada vê-se a casa onde ela vivia, do caminho de Marrac a capelinha erma onde fomos noivos, malogrados noivos que o infortúnio apartou, talvez para sempre! Peço-lhe um favor, o maior para mim nesta conjuntura.

- Diga, só se eu não puder fazer-lho.

- Pode. Peça a Berthier que obtenha permissão do Imperador para eu regressar já ao meu regimento. Cumprirei lá toda a pena que me foi imposta.

- Sim, peço e conto consegui-lo, embora me penalize separar-me de si. Peço, mas com uma condição indispensável.

- Se fôr condição que eu possa cumprir, desde já lhe declaro que a aceito.

- Pode, sim. Vai dar-me a sua palavra de honra de que essa resolução não envolve nenhum pensamento reservado de menosprezo pela sua vida ou pelo seu futuro.

Castro ficou silencioso. O rosto avincara-se-lhe mais, numas rugas sombrias que eram como a expressão da sua luta íntima, dolorosíssima.

- Hesita?

- Não - volveu-lhe tristemente - Pertenço a um grande e inolvidável dever. Para o cumprir pouco importará que leve no coração as cinzas dos meus sonhos mortos. Quero sair daqui. Não ponho agora outro intento neste desejo. Afirmo-lho sob a minha palavra de honra.

- Muito bem. Vou já falar a Berthier, e em Marrac procurarei o prefeito do palácio.

- Para quê?

- Para lhe pedir que obtenha da polícia de Baiona algumas diligências que nos possam esclarecer acerca do caminho seguido por João Pulaski.

- Pois sim - volveu-lhe com sombrio desalento - Nada espero.

A Beauchamp chorava. Castro foi para ela carinhosamente.

- Minha querida senhora. Não posso esquecer, não esqueço que foi a mãe adoptiva de Maria.

- E hei-de querer-lhe sempre como a filha minha que me tivessem roubado! - soluçou.

- Pois bem. Disse-me uma vez que já não tinha parentes em França.

- Só tenho em Lião uns parentes muito afastados.

- Consinta-me que lhe faça um oferecimento em nome de Maria Pulaski.

- Em nome dela, até os sacrifícios que o senhor mandar.

- O meu dinheiro não lhe pode repugnar como o outro que lhe levou o cossaco.

- Lá o deixei no chão.

- Peço licença para lhe estabelecer uma certa mesada, que poderá receber aqui ou em outra cidade de França.

- Oh! sr. Castro!

- Não é favor, é dever. Foi despedida por minha causa. Se quere sair de Baiona, hoje ou amanhã lhe entregarei ou mandarei entregar a quantia correspondente a um ano.

- Prefiro ficar em Baiona, lá para ao pé da casa onde ela esteve. Quero ir todos os dias ao correio saber se há carta para mim.

- Vive na sua alma uma esperança que na minha completamente se apagou!

- Vai para minha casa - disse D. Lourenço - e lá estará enquanto não preferir outra.

- Tamanha generosidade, tamanho dó! - disse numa crise de lágrimas.

Despediram-se.

Ao outro dia uma caleça de posta esperava à porta da prisão. Berthier empenhara-se pelo pedido de D. Lourenço e o Imperador acedera.

Um oficial do estado-maior do Marechal o acompanharia a Pau.

  1. Lourenço foi despedir-se do moço oficial. A Beauchamp também queria e foi.

A despedida íntima foi num gabinete da prisão.

- Uma notícia militar para esse apartamento, meu caro Castro. Berthier disse-me que vai ter um oficial português entre os seus ajudantes.

- Quem?

- Um major, um tal Galvão.

- Não me lembro. Mas são horas de partir... para o desterro.

- Qual desterro! Lá hei-de ir visitá-lo a essa cidade, que todos consideram encantadora.

- E lá encontrará braços de amigo, muito devedores, para o receberem.

- Eu sei. E olhe que me não hei-de esquecer das minhas indagações.

- E eu, sr. Luís de Castro - disse-lhe enternecidamente a Beauchamp - cá irei todas as manhãs à capela de Nossa Senhora do Bom Jesus pedir por aquela noiva linda que lhe levaram. E também todos os dias a ir saber se há carta dela. Em eu sabendo onde ela está, ponho-me a caminho, ainda que seja de rastos, e vou ter com ela, ainda que me lá mandem açoitar à sua porta, como eu vi fazer às servas desobedientes na Polícia.

- Beauchamp, nem todas as mães seriam capazes desse amor, de tão rara abnegação! -disse-lhe Castro com os olhos cheios de lágrimas.

Tomou-lhe a mão e beijou-lha.

- Por ela - murmurou com arrebatada comoção.

- E por ela também, sr. Luís de Castro, aceite um pedaço desta minha relíquia - disse, tirando do peito a grinalda de noiva que tinha encontrado espezinhada no quarto abandonado de Maria Pulaski.

Partiu a grinalda. Deu-lhe um pedaço, beijando-a.

- Oh! Beauchamp, que dor de alma e que santo consolo nesta relíquia! Bem haja. Vão comigo estas flores, hão-de morrer comigo.

Beijou-lhe os cabelos, chorava. Também D. Lourenço tinha os olhos rasos de água. Vieram dizer que o oficial francês esperava.

- D. Lourenço, desculpe-me estas fraquezas! - disse-lhe a esboçar um pálido sorriso - Um homem, um soldado pode lá chorar! Contos, fábulas! Homens querem-se para lutar, para morrer.

Dizia isto com uma estranha vibração que fazia dó! Os olhos desmentiam-lhe o artifício. Abraçou-o umas poucas de vezes.

- O que eu lhe devo, o que eu lhe devo!

  1. Lourenço não pôde responder-lhe. Castro foi para a Beauchamp e apertou-lhe as mãos.

- Mãe de Maria, como as melhores mães!

A francesa rouquejou umas palavras que se não percebiam. Tinha um nó de lágrimas na garganta.

- Recomendo-lha muito do coração - disse o Castro, baixo, a D. Lourenço, indicando a Beauchamp.

- Não era preciso, meu amigo. Saiu de repelão,

- Às suas ordens, Major - disse para o oficial que o esperava.

  1. Lourenço estava à porta. Fêz-lhe as últimas despedidas.

- Lá me há-de ter um dia.

- Quando quiser. Adeus.

A caleça rodou para fora da praça.

     

               Novas de Portugal.

Era rei da Espanha José Bonaparte. Murat passara em Baiona para ir tomar conta do seu trono de Nápoles. Luciano, outro irmão do Imperador, viria a ser talvez o rei de Portugal, se as circunstâncias o permitissem.

Mas a Espanha, escarnecida, ultrajada, invadida de surpresa, vítima de uma dupla cilada militar e política, erguera-se numa convulsão formidável de revolta.

A Espanha repelia o seu rei bonapartista e arrancava do topo da sua cruz de vergonhas aquele rótulo de escárnio, que fora escrito de traição no conluio de Fontainebleau e chancelado de lama na cilada de Baiona.

Expiara a poder de afrontas o seu crime contra o povo português, e levantava-se, enfim, numa alucinação de heroicidade e num delírio de ódio contra esse poder estrangeiro, de que fora comparsa e cúmplice.

Dava numa história trágica de sangue, em vindictas de quadrilheiros e em arrojos épicos de paladinos, aquela hedionda fábula em que o leão fora embaçado pela águia. O leão rugia cóleras pelas cristas e desfiladeiros das serranias ibérias, mas a águia passava alto por cidades da Espanha, avante como as águias de Roma, o olhar a reflectir-lhe os esplendores de quarenta vitórias.

Daquela fábula foram Napoleão e Godoy os fabulistas. Ninguém podia saber ainda, e nem eles sequer o teriam sonhado, em que mar de sangue cairia do seu vôo triunfal a águia ou se afogaria o escarnecido leão.

Os acontecimentos sucediam-se com vertiginosa rapidez, dia a dia se agravava com mais pavorosa intensidade a febre de vencer nos que tinham tido sempre as carícias da vitória, a ânsia de matar naqueles que tinham sido humilhados até ao escárnio sobre um calvário de vergonhas.

A revolta de Dois de Maio, fuzilada nas ruas de Madride, soltara no derradeiro grito um pregão formidável de guerra.

Estavam em rebelião todas as províncias da Espanha.

As juntas provinciais improvisavam exércitos. A de Sevilha proclama-se junta suprema do governo da Espanha e declara guerra à França.

As baterias de Cádiz bombardeiam a esquadra francesa, surta na baía, e obrigam-na a render-se.

Os espanhóis solicitam o auxílio da Inglaterra. O general Dupond invade a Andaluzia, bate os soldados espanhóis em Alcoleia, apodera-se de Córdova. O marechal Moncey vai sobre Valência, vence em Pajazo e Cabrillas, mas a velha cidade opõe-lhe uma resistência indomável, heróica, sangrenta.

Verdier submete Logronho, que se sublevara. Lasalle esmaga Valhadolide revoltada, mas o Aragão agita-se convulsívamente numa epilepsia de heroísmo.

Saragoça resiste, repele de si os sitiantes denodadamente.

Concentra-se o primeiro exército regular da Espanha revoltada. O de Cuesta e Blake. O marechal Bessières reúne todas as suas forças disponíveis e marcha contra êle. Trava-se a batalha de Medina del Rio Seco. As tropas espanholas, trinta mil homens mal dirigidos, mal disciplinados, soldados bisonhos quási todos, são facilmente desbaratadas, com enormes perdas, pelos catorze mil franceses de Bessières.

Foi a 14 de Julho esta batalha. Cerca de um mês antes o general Duhesme batera os catalães em Mongat e atacara Gerona.

Quando chegou a Baiona a notícia da batalha de Medina, Napoleão disse num desafogo de júbilo e de orgulho: «Bessières pôs meu irmão José no trono de Espanha».

Era uma afirmação prematura. Cinco dias depois da vitória de Bessières, quarenta mil soldados espanhóis, muitos deles apenas galuchos, sob o comando superior do velho general Castanos, cercavam os oito ou nove mil franceses de Dupont, e venciam-nos, obrigando-os a capitular em campo aberto.

Mas a capitulação de Dupont em Baylen importou a entrega de nove mil homens da divisão Vedei, que não chegou a entrar em combate, nem fora alcançada pelo movimento envolvente das tropas espanholas.

Quere dizer: eram dezoito mil soldados do Império que depunham as armas e as águias.

A divisão Dupont batalhara intrepidamente durante oito horas e perdera dois mil homens.

Esta vitória dos espanhóis teve um eco triunfal nas cortes de Londres, de Viena, de Berlim e de Moscovo. Sacudiu a Europa em frémitos de entusiasmo.

Em dez anos de prodígios a epopeia napoleónica

não tivera nunca uma sombra de tamanha mácula como aquela de Baylen!

A alma espanhola sentiu-se altiva como nos seus dias de glória antiga. Mãos patrióticas de mulheres bordaram carinhosamente nas bandeiras dos regimentos de Castanos e Reding esta soberba dedicatória: «Aos vencedores dos vencedores de Marengo, de Austerlitz e de Iena».

O rei José teve de abandonar Madride e todas as forças francesas retiraram para a linha do Ebro.

E Portugal?

Estava-se em Agosto. No quartel do seu regimento Luís de Castro vivia numa tristeza de alma profunda, gélida noite da sua mocidade, noite sem fim, como êle dissera uma vez que D. Lourenço de Lima o foi visitar àquela pequena e linda cidade de Pau.

A Beauchamp também lá fora uma vez visitá-lo. Essa, ao menos, podia chorar e tinha a esperança de que a Senhora do Bom Jesus de Baiona lhe fizesse o milagre de mandar-lhe notícias da sua Menina.

Não se sabia para onde Pulaski partira com a filha. Por mais indagações que D. Lourenço mandasse fazer em Bordéus, nada pudera saber do polaco e de Miguel Platow. Apenas apurara que em certa noite, dois dias depois que Pulaski desaparecera, um pequeno navio dos Estados-Unidos se metera ao mar, apesar dos cruzeiros da esquadra de Nova-Iorque, o capitão declarara que ia regressar àquele porto.

E nada mais se pudera apurar! João Pulaski e o irmão teriam embarcado clandestinamente naquele navio? E neste caso para onde? Para a América ou para qual porto da Europa?

Miguel Platow teria ido ter com êle a Bordéus?

Mas se foi e embarcou também, então, como a sua guia diplomática o obrigava a ir apresentar-se na Rússia, o navio teria tomado rumo para algum porto do norte da Europa.

Todavia, João Pulaski não cairia em ir para qualquer porto da Rússia.

Mas o embarque não passava de uma fragilíssima hipótese. Nada mais fácil e mais plausível do que terem tomado a estrada de Bordéus para desorientar curiosidades ou indagações policiais e mudarem depois de caminho.

- Agora só a esperança de morrer, apagando desta farda a suspeita europeia de que degenerámos numa bandalheira de poltrões - pensava Luís de Castro - Ou a outra esperança, imensamente mais baixa, mas também consoladora, de o encontrar outra vez... para o matar!

E às vezes, sozinho no quarto, passava horas de olhos fitos no medalhão que tinha a miniatura de Maria Pulaski.

- Morta para mim! Visão de um sonho que se desfez em lágrimas. Homem, soldado... criança para chorar no funeral clandestino deste amor, neste funeral que ninguém vê e em que eu sou o único a chorar! Imagem peregrina! Andas tu comigo. Sobre este coração que é teu, como no recanto dos templos antigos sobre um túmulo a imagem de mármore de uma santa morta!

Outras vezes tirava de um cofrezito de jóias o pedaço de grinalda de noiva que a Beauchamp encontrara e repartira com êle.

- O despojo da malograda noiva! Da mais linda e casta noiva que ainda algum noivo pôde ter! Pobre Maria! Pobre de mim! Maculadas estas pobres flores, fingidas como tanta coisa no mundo! Espezinhadas talvez por êle... pelo cossaco!

Atirava-as então para dentro do cofre num arranque de ódio e repulsão.

- Talvez o sangue as orvalhe um dia como as minhas lágrimas as têem orvalhado.

O sangue dele para eu depois as calcar aos pés!

A família imperial tinha saído de Marrac para Paris. Dias depois Napoleão passou em Pau. Em princípios de Agosto estava em Bordéus.

  1. Lourenço falou com êle, voltou a Baiona e foi outra vez a Pau visitar Luís de Castro.

- Então, sempre nessa tristeza de monge! - disse-lhe.

- À espera da hora por que anseio.

- Uma campanha! Uma batalha!

- Sim, isso.

- Pois, meu amigo, oxalá que não seja na guerra de Espanha, para a qual Napoleão se está preparando.

- Oxalá. A Espanha está resgatando intrepidamente as torpezas do seu Godoy. Repugnar-me-ia ter de ir contra ela.

-- Como foi parte da segunda brigada da Legião, que tem estado no cerco de Saragoça com o Gomes Freire(1).

- Mal empregado sangue português o que lá se perder. Têem vindo notícias de Espanha?

- Têem. As que chegam oficialmente ficam no segredo do estado-maior, mas os contrabandistas dos Pirenéus têem trazido outras,

 

*1. Segundo a monografia de Teotónio Banha, o tenente-general Gomes Freire teve no primeiro cerco de Saragoça o comando de uma divisão de quatro mil homens, dos quais 1.800 eram portugueses da Legião e os outros franceses.

Os sitiantes já tinham penetrado na cidade, mas os sitiados foram socorridos e as tropas de Verdier tiveram de retirar. Os portugueses tinham tido 1902 mortos e feridos durante o cerco. Quere dizer a sexta parte do seu efectivo. (Apontamentos para a História da Legião Portuguesa, etc. - Narrativa do tenente Teotónio Banha, pág. 17).

 

que são inquietadoras(1). Vai por lá um mar de sangue!

- E da nossa pobre terra. D. Lourenço?

- Ouvi ontem em Baiona que também a nossa gente se tinha revoltado, mas isto é boato de origem espanhola, sem nenhuma indicação precisa de factos.

- Oh! que então ainda teremos pátria! Então ressurge esse Portugal que supunham morto! - exclamou Castro como transfigurado - Aí está agora uma razão a mais, maior para me repugnar uma campanha contra os espanhóis. Portugal revoltou-se! Aqui está um consolo que eu nem sequer sonhava nesta minha noite de amarguras!

- Por hora não é coisa averiguada. Apenas boatos.

- Já é de bom agouro que esses boatos chegassem. Metam a nação ao caminho dos perigos e dos sacrifícios, e a alma antiga de Portugal ressurgirá como nos dias épicos de outros tempos.

- Vamos a ver. É cedo por ora para sonhar tão alto. Repito-lhe. Não ouvi senão boatos, sem indicações seguras. Disseram-me que tinham chegado a Baiona uns prisioneiros espanhóis e que eram esses os que mais falavam da revolução em Portugal. Até me disseram a propósito que os iam mandar para os regimentos da Legião, como agregados. Não sei se é verdade.

- Desejava que viessem alguns para o meu regimento. Queria ouvi-los.

- Castro, estou a admirá-lo!

- A admirar-me! Não compreendo porquê!

 

*1. «Apesar das precauções que a polícia de Bonaparte tomava para impedir que se soubesse o que se passava em Espanha, a grande frequência de contrabandistas, que atravessavam continuamente de um a outro reino pelos mais intrincados atalhos dos Pirenéus, fazia espalhar logo as novidades, etc.» (História daLegião Portuguesa, por Castro Pereira).

 

- Por essa mudança que parece transfigurá-lo! Ainda há instantes num esmorecimento que fazia pena, como se já não houvesse para essa robusta mocidade senão uma tristeza de saudades por um amor mal-aventurado, e a esperança lúgubre de morrer batalhando pela honra de um exército, já que não era dado batalhar pela glória de uma nação, e agora já outro!

- E que a supunha morta, como a supunham todos. Não morreu, dizem-no esses boatos, e na minha alma reacendeu-se outro grande e santo amor que eu tinha - este por aquele pedaço de terra gloriosa onde nossas mães nos embalaram e onde os seus lábios ensinavam aos nossos como se dizia aquele nome de tamanho culto antigo na história e tão rudemente escarnecido agora, mais pela poltranagem que o perdeu, que o ia perdendo -já se pode dizer assim - do que pelas próprias violências dos soldados estrangeiros! Aqui tem a emoção radiosa que me transfigura.

- Olhe que ainda é cedo para falar assim! - objectou-lhe D. Lourenço de Lima, sorrindo -, e repare que é oficial de uma Legião que jurou obediência ao Imperador.

- Não me esqueço desse dever, meu caro amigo. Mas agora, tanto melhor para o empenho que me trazia de Lisboa. Em Portugal o povo mostrará que o seu sangue não é uma escorrência vil do lodo em que a Europa o julgava sepultado. Nós aqui, soldados de um exército que se não pôde bater, a quem não consentiram que se batesse pela defesa do seu país, provaremos à Europa que não era libré de poltrões essa farda que os mandantes deixaram afrontar. Mas apenas os soldados a quem expatriaram, sob o comando supremo de Napoleão, apenas como generalíssimo. Desses revoltosos e desses expatriados o esforço conjugado para um resgate maior! Eles pela ressurreição política de Portugal, nós pela tradição gloriosa do nosso esforço, uns e outros pelo mesmo nome heróico, por deploráveis fraquezas políticas a eclipsar-se no mundo.

- Comove-me esse entusiasmo, tão eloquentemente patriótico, e ao mesmo tempo me causa pesar no receio de uma cruel desilusão! Parece que o meu amigo não conta com o poder imenso de Napoleão, nem com o seu génio militar assombroso. Dir-se-ia que supõe a repetição de Baylen em Portugal, ou em Bonaparte a craveira de Dupont!

- Não percebo a referência: não sei o que quere dizer!

E não sabia realmente. A notícia de capitulação de Baylen ainda não tinha chegado a Pau. O próprio Napoleão só a soubera em Bordéus nos primeiros dias daquele mês.

  1. Lourenço contou-lhe o que ouvira em Bordéus a respeito da famosa capitulação.

- E Napoleão? - preguntou Luís de Castro.

- Contaram-me que teve uma das suas cóleras formidáveis, bramindo que tinha sido uma infâmia aquela capitulação, uma nódoa enorme que é preciso lavar a poder de sangue. Insinuou que Dupont e Vedei mais se tinham preocupado das riquezas do saque, provavelmente sonegadas nas bagagens, do que da honra das suas águias. Que tomaria êle o caso por sua conta. Iria erguer a bandeira do Império sobre as colunas de Hércules. Que havia de êle próprio coroar em Madride a José Bonaparte e marcharia depois contra Portugal, para cravar as suas águias sobre as torres de Lisboa e atirar ao mar o leopardo inglês.

- Aí tem, nessa referência à nossa terra, a prova indirecta de que os boatos da revolta de Portugal têem confirmação oficial. Napoleão sabe que Portugal se revoltou e, pelos seus agentes secretos no estrangeiro, tem informação de que os ingleses vão ou foram já em auxílio da nossa gente.

-     Diz bem. Não tinha pensado nisso.

- É mais um motivo para me repugnar qualquer campanha em terra espanhola. Nem Napoleão cairá na leviandade de nos mandar para a Espanha. A Legião passava-se em massa para o lado dos espanhóis. E com muito mais nobre justificação do que esses dois regimentos suíços da divisão Dupont, que fugiram para as tropas espanholas, como o meu amigo me disse.

Conversaram ainda por uns minutos. D. Lourenço despediu-se.

- Quando regressa a Baiona?

- Depois de amanhã. Quero ir visitar o seu Coronel Cândido José Xavier. Amanhã ainda me tem por cá.

- E ainda bem. Vou acompanhá-lo. Desejo que veja o excelente aspecto dos nossos soldados. O general Muller, inspector das nossas tropas, ficou muito bem impressionado e disse-nos umas coisas agradáveis. Manobram admiravelmente, segundo a ordenança francesa, que apenas conheciam de uns exercícios em Lisboa e tèem tido exemplar comportamento. A gente da cidade dá-se com êles excelentemente e faz-lhes os mais calorosos elogios. São estimados pelos seus camaradas franceses.(1)

- É honroso isso. Veremos do que eles serão capazes em combate.

- Não tenho dúvidas a esse respeito. Disciplinados, intrepidamente dirigidos, ao lado do melhor exército do nosso tempo, numa honrosa emulação, hão-de ser o que foram os antigos. E o precedente histórico. Nunca perdemos senão as batalhas para onde fomos indisciplinados e inconscientes, ou com um comando inepto e hesitante.

Saíram.

 

*1. em toda a parte mereceram a estima dos seus companheiros de armas, fFoy, História da Guerra da Península).

 

Em 10 de Agosto o Marquês de Alorna, já então nomeado inspector e comandante em chefe da Legião Portuguesa, recebera ordem para que todos os regimentos portugueses de infantaria seguissem para Grenoble e a cavalaria para Avignon.

Depois recebeu nova ordem, e só o 1.o e o 3.o de infantaria foram para Grenoble. O 1.o ficou em Valence, o 4.o em Romans. A cavalaria partiu para Gray.

Luís de Castro sentiu a saída de Pau e logo participou a D. Lourenço de Lima a sua transferência para Valence.

Em meados de Setembro chegou à cidade uma leva de prisioneiros espanhóis para ficarem agregados ao 1.o regimento português.

Era de manhã cedo quando chegaram. Tinham sido aprisionados em Valhadolide. Vinham esquálidos, com os uniformes em farrapos, apesar de terem sido conduzidos em carros do exército francês desde Aranda del Duero.

Por ser o capitão de serviço no quartel, de estado-maior como se dizia noutro tempo, de inspecção como se diz hoje, Luís de Castro recebeu aquela gente e deu execução às instruções superiores que recebera.

O regimento saíra de madrugada para exercício.

Fêz-se a chamada pelos nomes que os próprios prisioneiros tinham dado em Valhadolide aos oficiais franceses.

Vinham quatro oficiais espanhóis. Castro notou que um deles se parecia com alguém que já tinha visto, não se lembrava onde. Era o mais triste, o que menos falava. Tinha um tipo acentuado de meridional, trazia em cima de si uns farrapos de uniformes. Vinha relacionado com o nome de D. Juan de Carvajal. Castro mandou-lhe dar aposento à parte. O Carvajal pediu-lhe então, num castelhano hesitante e sumido, que lhe concedesse uns momentos em particular. Castro acedeu, um quási nada surpreendido, e levou-o para o seu quarto.

- Não me dou bem com aqueles meus camaradas - alegou Carvajal no seu péssimo castelhano - peço-lhe o favor de me dar outro aposento.

Castro olhou para êle com estranheza.

- Razões pessoais antigas, provavelmente. A não ser assim, não percebo que se dêem mal homens do mesmo país, oficiais na mesma triste confraternidade de infortúnios.

- Não somos da mesma terra. Eu fui aprisionado depois deles, vim com outra leva, e só em Vitória nos juntaram. Tivemos um conflito em São João da Luz. Puxaram de navalhas para mim, tive de me defender com um bordão de tojeiro a que vinha encostado por causa do meu ferimento.

- E talvez por qualquer desregramento de palavras.

- Eu disse-lhes que era de um regimento da Galiza, aquartelado na raia, em Tui. Tinham escarnecido do meu castelhano. Maior escárnio ainda pela minha confissão. E com a Galiza misturaram Portugal, dizendo ofensas de fanfarronada que nós não

merecemos.

- Nós?! - preguntou Castro, acercando-se dele num alvoroço de surpresa - Porque disse nós?

- Porque não sou espanhol. Sou de Portugal como os senhores da Legião - respondeu comovidamente.

- Nosso compatriota! - disse-lhe, estendendo-lhe a mão - Mas não compreendo então para que lhe servia a falsidade do nome e para que lhe serve o fingimento dessa farrapagem de um uniforme espanhol!

- Foi uma tolice que de nada me serviu. Eu tinha desertado do regimento da Legião que se organizou em Elvas - disse-lhe em português.

- Ah! é um desertor. - acudiu o Castro, avincando o rosto.

- Desertei à saída de Salamanca. Mas foi em Portugal que eu me revoltei.

- Revoltou-se em Portugal?!... Houve então lá alguma revolta?

- O povo cansou-se de sofrer. Fêz-se uma revolução de lés a lés do país.

- Contra os franceses de Junot?

- Contra eles. Quando eu saí de lá já tinha corrido muito sangue.

- Sangue de redenção, sangue para apagar vergonhas, abençoado sangue! Mas não vejo ainda a razão que o levou a sair de Portugal, a tomar um nome espanhol e a vestir esse uniforme de um exército estrangeiro!

- Julguei que assim alcançaria melhor protecção dos espanhóis e um lugar nas tropas de Espanha. Eu nem podia sonhar que haviam de trazer-me para um regimento da Legião que abandonara! O meu nome é António Montalvão. Era tenente. Agora bem sei que me podem arcabuzar por desertor e por me ter revoltado.

- Não será arcabuzado, porque nenhuma autoridade francesa o há-de saber. Confiarei o seu segredo a dois oficiais em quem tenho mais confiança.

- Virá a saber-se!

- Engana-se. Confiar-lho a eles não é divulgá-lo, é defendê-lo. De resto, creio bem que o poderiam saber todos os oficiais do regimento, desde o coronel ao último alferes. Nenhum seria capaz de o trair. Mas há dois a quem preciso de o confiar, porque não posso eu sozinho com a responsabilidade de o ocultar. Hão-de ouvi-lo o chefe e o ajudante do meu batalhão. São amigos meus. Careço absolutamente da interferência deles, para se conseguir que o Coronel reclame, sob qualquer pretexto, a saída desses oficiais espanhóis faquistas para algum depósito especial de prisioneiros. Aqui não convém ao regimento e podiam comprometê-lo ao senhor, visto o precedente desse conflito, que eles decerto lhe não perdoam nem esquecem.

- Mas eu desejo que o Capitão conheça bem o que eu fiz como desertor.

- E eu desejo ouvi-lo. Estou ansioso porque me dê notícias de Portugal e me conte coisas dessa pobre terra, de que eu tenho tantas saudades como se os meses desta ausência valessem longos anos.

- Vou contar-lhe tudo.

Ouviram-se os tambores do regimento. Voltavam do exercício.

- Então há-de ser logo. Espere-me aqui. Vou falar ao Coronel, mas não conto demorar-me. Fique tranquilo.

Dali a instantes ouvia-se a algazarra alegre da soldadesca em debandada, a correr para as casernas, e a poucos espaços descantes, violas, guitarras.

Arrasaram-se de lágrimas os olhos entristecidos do prisioneiro. Davam-lhe saudades de Portugal aquelas músicas singelamente melancólicas, aqueles amorosos cantares do povo. Alguns que êle ouvira ainda pequenito, quando tinha ainda mãe.

Foi delonga de três quartos de hora. Castro entrou com o chefe do batalhão Cândido José Xavier e com o ajudante, um dos seus íntimos.

Fechou a porta por dentro. Fêz a apresentação do prisioneiro.

- Estão ao facto do seu segredo - disse ao Montalvão - e tenho a promessa com que já contava. Continuará a ser D. Juan de Carvajal. Os três oficiais espanhóis vão ser transferidos. O Coronel vai já falar nisso ao general Muller, que é o nosso inspector. E agora vamos a saber o que houve em Portugal. Estamos num alvoroço de impaciência.

- Se os não aborrecer, contarei tudo o que vi e tudo o que ouvi dizer.

- Tudo. Temos ânsia de o saber - acudiu o Castro.

- Tudo - disse Cândido Xavier.

Sentaram-se, envolvendo o prisioneiro em olhares de piedosa simpatia. Antegozavam o consolo de o ouvir, por muito desnaturada e rude que fosse a linguagem daquele inesperado mensageiro. Mas no coração de cada um deles lá estava pungido o vago receio de alguma nova de trágica amargura, em que figurassem pessoas queridas, de quem, havia muito, não tinham notícias.

- Custa-me contar-lhes porque foi que eu desertei! É um segredo do meu coração que lhes não pode interessar. Tinha dentro de mim uma força indomável a puxar-me para Portugal. Foi um crime desertar! Mas para a nossa terra, para a nossa gente o caso é diferente. Sem perdão, de vergonha e desonra sem remédio, seria se eu desertasse de lá para fugir à nossa bandeira ou por ter medo de morrer a defendê-la. Mas, enfim, fosse como fosse, meti-me a caminho de Portugal. Outros, oficiais e soldados que desertaram também da Legião, lá andam por Espanha a combater os franceses ao lado dos espanhóis. Mudei de caminho e entrei pelo Alentejo como um criminoso que andasse a monte! Mas quem eu esperava encontrar tinha ido para Lisboa. Parti para lá em disfarces de almocreve.

Interrompeu-se num extremeção nervoso. O rosto anuveou-se-lhe, tinha os olhos rasos de água.

- Já era tarde para encontrar quem eu ia procurar! Havia entrado num convento e lá tinha falecido exactamente na véspera do dia em que eu lá cheguei - 16 de Junho. Era o dia da procissão do Corpo de Deus. Andei como doido por aquelas ruas! No Rossio fui envolvido num tumulto medonho do povo!

- Desse tumulto ainda eu cheguei a receber notícia em carta de um meu irmão.

- Um terror doido como se fosse de crianças, terror de todos, até dos próprios franceses! Ninguém sabia o que era, nem porque era! Gritavam, tugiam, atropelavam-se furiosamente! Disseram-me depois que o Santíssimo estava a sair da Sé, quando isto foi. O que eu via é que todos fugiam espavoridos. Andavam as basílicas aos pontapés, os anjos aos gritos, as mulheres clamavam pelos filhos, que se lhes tinham perdido, iam as ondas do povo umas contra as outras, fechavam-se as janelas e as portas com impaciências de pavor, vagueavam padres com as suas vestes em frangalhos, pisava a gente capotes e chapéus que tinham ficado no chão.

«Os artilheiros franceses desamparavam as peças e parte da tropa dispersou! Um roldão de povo foi de encontro à igreja de São Domingos, a guarda dos granadeiros franceses que lá estava carregou as espingardas para fazer fogo, julgando que era uma revolução. Já tinham esmagado três homens, um ficou morto debaixo do cavalo de um ajudante-de-campo. Espavoridos, alguns rapazitos de pé descalço tinham-se empoleirado nas carretas das peças, deixadas ao abandono pelos artilheiros. Junot estava com certas damas na varanda do palácio da Inquisição. Dizem que se velou, receando uma revolta. Eu não vi e não creio. O que eu sei é que êle mandou logo aos seus ajudantes-de-campo que fossem arrebanhar os soldados tresmalhados, e a procissão lá se tornou a organizar como foi possível. Êle próprio a acompanhou a pé, de cabeça descoberta. Só o general Delaborde ia de chapéu na cabeça.

- E de que proviria esse terror pânico?

- Não se sabe ao certo. Contava-se que tinham prendido um ladrão e êle, para se escapulir, desatara a gritar que os ingleses vinham entrando a barra e ia haver combate. Repetiu-se o grito de alarme e aquele mar de gente começou a revolver-se, a rugir pavores, doidamente! Sempre receosos de uma revolução, os soldados franceses calaram baioneta, a cavalaria moveu-se, maior susto, mais doida ânsia de fugir! Enovelou-se tudo e até as sentinelas francesas da guarda da Inquisição desapareceram do seu posto!

- Afinal um motim de medrosos, mais nada! - disse o Castro tristemente.

- Era a revolução que se andava a ensaiar - prosseguiu o Montalvão - Dali a dois dias correu na cidade o boato de que o general Loison, o maneta, como a nossa gente lhe chama, na sua mar cha para o Porto havia sido atacado pelos milicianos e populares do Pêso-da-Régua, e tivera de retirar daquelas montanhas do Douro com os seus dois mil e tantos homens, tendo perdido as bagagens, parte da artilharia e quatrocentos homens, mortos e feridos pela nossa gente.

- Agora, sim - disse o Castro com uma grande expressão de consolo - Isso agora fala já de uma revolução que impõe desastres aos mais brilhantes soldados da Europa.

- Nos dias seguintes foram chegando mais notícias que punham Lisboa num sobressalto de impaciência. Regalava-se a gente de ouvi-las, ainda que trouxesse consigo as maiores mágoas, as maiores tristezas. Que o Porto estava revoltado, que em Trás-os-Montes o velho general Sepúlveda e o tenente-coronel Francisco da Silveira tinham proclamado a revolução contra os franceses.

- A onda dos desesperos subia - comentou Cândido Xavier.

- Era um rastilho pelo reino fora! Chegava a notícia de que o Algarve se havia sublevado. Tinham morto ou aprisionado quatrocentos homens dos de Maurin, franceses e piemonteses da chamada Legião do Meio-Dia. Eu vou contando as coisas como as fui sabendo em Lisboa e agora me vão recordando.

- Sim, decerto, como puder, o que nós queremos é sabê-las - disse-lhe Luís de Castro.

- O Junot, o Duque enfatuado, que sonhou ser rei de Portugal - o pateta do cunhado tratava-o por alteza, - já não andava tranquilo por causa da sublevação do reino. Mandou guardar no Castelo as armas velhas que tinham apanhado ao povo e haviam sido depositadas no Arsenal. Depois mandou-as quebrar. E no Castelo uma grande guarnição, maiores obras de defesa, mais baterias, as peças a meterem medo à cidade. Guardas reforçadas, pelas ruas cada vez mais patrulhas e maiores piquetes! Veio notícia da sublevação de Coimbra. Saiu um regimento francês a toda a pressa, com tal pressa que os soldados nem tiveram tempo de comer o rancho e vi-os eu sair com os pães espetados nas baionetas. Nova rusga de cajados e aos chuços dos saloios, novas buscas e devassas, para verem se ainda havia armas velhas em poder do povo. E Junot a mandar grudar proclamações pelas esquinas e às portas, para intimidar o povoléu! Mas as coisas para o norte estavam cada vez mais graves.(1) O valente general Sepúlveda, de quem já lhes falei, um velhinho de mais de oitenta anos, conhecem?

- Conheço-o eu - respondeu Luís de Castro.

- De fibra antiga aquele octogenário! Proclamou a revolução, chamando o povo às armas e pôs-se à frente dele.(2) O tenente-coronel Silveira fazia o mesmo em Vila-Real e em Chaves. Soube-se que a sublevação de Bragança tinha sido no dia 11 de Junho.

 

*1. «O sentimento da nacionalidade reacendeu-se em todas as almas.» (General Foy, História da Guerra da Península, tomo IV, pág. 213, sob a epígrafe: O general Loison é forçado a retirar.)

  1. A 11 de Junho, um velho mais que octogenário, Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda, tenente-general, antigo governador da província de Trás-os-Montes, é o primeiro a proclamar a restauração do príncipe regente de Portugal e chama às armas os habitantes da sua província, Miranda-do-Douro, Ruivães, Vila-Real, Tôrre-de-Moncorvo, Chaves. Vila-Pouca e cem outras vilas e aldeias repetem quási ao mesmo tempo estes gritos: Viva o nosso príncipe! Viva Portugal! Morra Junot! Morra Napoleão! (General Foy, tomo IX pág. 214 da sua História, já citada.)

 

A seguir a do Porto, depois Guimarães, Viana, Braga, Melgaço, Monção, Valença, todo o norte. Os estudantes de Coimbra tinham proclamado a revolução e foram sobre Condeixa e a Figueira, onde aprisionaram destacamentos franceses. Chegavam mais notícias do Algarve. Estava todo sublevado. A revolta começara em Olhão, também no dia do Corpo de Deus. Depois Faro, Tavira, Vila-Real. Para poderem bater os franceses, os paisanos algarvios tinham ido pedir armas emprestadas aos espanhóis de Aiamonte. O Alentejo e as duas Beiras não tinham ficado indiferentes. Correu sangue em Vila-Viçosa e Estremoz, mataram muitos franceses, morreram muitos franceses, morreram muitos dos nossos! Um punhado de revoltosos apoderou-se de Juromenha e repeliu um destacamento francês de duzentas baionetas da divisão do general Kellermann. Em fins de Junho Beja foi assaltada pelos franceses. Saquearam-na, deitaram-lhe fogo, violaram mulheres, mataram muita gente. Um horror!(1)

- E há quem acuse de bárbaros - comentou o Castro, voltando-se para Cândido Xavier - aqueles nossos conquistadores da índia no século XVI!

- Mas não foi só em Beja! - continuou o Montalvão - Em Abrantes e Marvão, em Faro e Tavira, em Sabrosa e Trancoso e Viseu travou-se encarniçada luta entre o povo e os franceses. Na Guarda também houve chacina e saque. O povo quis resistir,

 

*1. Resumindo as atrocidades praticadas em Beja e atéexagerando-as, para conter pelo pavor as outras cidades do Alentejo, Kellerman dizia isto numa proclamação, datada do seu quartel-general de Estremoz:

«Habitantes do Alentejo: Beja tinha-se revoltado, Beja já não existe. Os seus criminosos habitantes foram passados a fio de espada, e as suas casas entregues à pilhagem e ao incêndio.

«A Legião do Meio-Dia e o 26 de linha nela fizeram justiça».

Não é preciso transcrever mais. Esta proclamação tem a data de 1 de Julho de 1808.

 

e resistiu à divisão Loison. Afinal um punhado de milicianos e de ordenanças com chuços, foices, paus ferrados, caçadeiras, clavinas, espadas velhas e duas peçazitas antigas. Podiam lá vencer!

- Uma cidade aberta, indefesa como Beja.

- Aquela chacina da Guarda foi a 4 de Julho. Ouvi que tinha morrido lá muita gente. Afinal a população de Lisboa começava a saber de tudo isto pelos próprios boletins do exército, que Junot mandava traduzir e publicar. Apareciam assinados pelo general Thiébault. O segundo boletim, morto em Beja mil e duzentas pessoas, perdendo eles apenas alguns homens valorosos. O outro, o terceiro, contava as proezas da chacina dos quatro mil soldados do general Margaron em Leiria contra uma turba de milicianos e gente do povo, armada de caçadeiras e chuços. Seiscentos mortos na cidade, diz o boletim. Margaron atirou contra os pobres paisanos quatro batalhões e dois esquadrões com seis peças de artilharia. Em Peniche, na Pederneira, na Nazaré a brigada do general Thomiers da divisão Margaron fêz chacina igual nos míseros pescadores e campónios. Estava-se em princípios de Julho. O ataque de Leiria tinha sido no dia 5. Desculpem-me, eu vou contando estas coisas sem ordem, como elas me vão lembrando. Estaria aqui um dia inteiro, se quisesse dizer todos os nomes de homens resolutos que fizeram a revolução e todos os nomes das povoações que sacrificaram por ela.

- Isso já nós compreendemos - disse-lhe Luís de Castro - Queira dizer-nos o que lhe lembra.

- Olhe, Capitão, Vila-Viçosa, a que eu já me referi, teve grandes perdas. Segundo um dos tais boletins de Thiébault, as tropas do general Avril tinham morto nas ruas da vila mais duzentos rebeldes, fora os que foram mortos pelos arrabaldes e os que depois fuzilaram.

- Mas tem sido uma carniçaria horrenda!

- Pelo que eu sei, calculo que a nossa gente não tenha tido em todo o reino menos de doze ou catorze mil mortos e feridos.

- As perdas de uma grande batalha!

- E os franceses?

- Desses é que não sei calcular bem as perdas, mas hão-de ter tido uns três mil homens mortos, em combate e assassinados pelo povo enfurecido.

- O pobre povo muito maiores perdas!

- Pudera. Além de valentes, os franceses têem disciplina, bons generais, magnífica artilharia, uma cavalaria formidável, e do nosso lado cem soldados bisonhos por cada mil populares, cem espingardas velhas de munição por cada mil foices, chuços, caçadeiras e espadagões ferrugentos. E já é fortuna para eles que apareçam duas dúzias de artilheiros antigos com duas ou três peças de campanha. Mas ficará para o outro dia o muito mais que tenho a contar. Agora umas palavras a respeito do maior combate da revolução, o último que houve antes de eu me refugiar em Espanha, no dia 30 de Junho.

Foi o da cidade de Évora, que também se tinha revoltado. Reúniu-se lá um punhado de tropa de linha portuguesa. Uns restos do antigo regimento de infantaria 3 e uma força de artilharia 4. Coisa de 900 homens. Eu tinha saído de Lisboa para o Alentejo, e fui apresentar-me em Évora. Quem lá estava à frente da revolta era o general Paula Leite. Com as 900 praças de linha e os milicianos haveria uns 1800 homens de espingardas. Com o povoléu de chuços e foices não se podia fazer conta. Depois veio um reforço de espanhóis, uns batalhões de galuchos, umas companhias de artilharia e coisa de duzentos cavalos do regimento de hússares, denominado de Maria Luísa. Todas estas forças espanholas eram comandadas por um coronel chamado Moretti. Ah! esquecia-me contar uns voluntários de Estremoz e os milicianos e miqueletes de Vila-Viçosa.

- Ainda assim alguns milhares de homens.

- Com espingardas não passariam muito de quatro mil. Mas Évora é uma praça desmantelada e não tínhamos lá senão dois obuses e meia dúzia de peças de campanha. No dia 29 de manhã - é dia que nunca mais me esquece! - fomos para fora da cidade esperar a divisão francesa que sairia de Lisboa para nos bater. Foi uma temeridade. Era uma forte divisão com numerosa cavalaria e artilharia. E nós a fazer-lhe frente com quatro mil e tantos homens que nunca tinham visto um combate!

- Que força teria essa divisão?

- Nem eu sei bem! Mas não teria menos de nove mil homens. Era comandada pelo maneta, por Loison. Esse logo eu conheci. Seriam oito horas quando nós avistámos os franceses. Às onze começava a festa. Nós ocupámos uns terrenos, desde um moinho chamado de São Bento ao outeiro de São Caetano e à quinta denominada dos Cucos. Começam as nossas peças a berrar e vão para os franceses os nossos atiradores. Agente de Loison respondeu-nos. Os espanhóis formavam a reserva, à sua cavalaria reúnira-se um punhado da nossa. Estava-se debaixo de fogo havia pouco tempo, quando eu percebi umas poucas de colunas francesas que avançavam sobre o nosso flanco direito. Chega então a toda a brida, com sessenta ou oitenta homens a cavalo, todos vestidos de preto e de grandes chapéus desabados, um guerrilheiro, homem possante, já velho. Vai para o general Leite e diz-lhe: «Os franceses vão envolvê-lo pelos flancos. Vi duas grandes colunas de cavalaria e infantaria que avançavam sobre a direita e a esquerda ao mesmo tempo.» Uma tinha eu visto. Nós lá contávamos mais de cem homens fora de combate. A artilharia francesa não perdia as balas. De repente os atiradores franceses retiram, e vem de arrancada sobre o nosso centro uma grande coluna a passo de carga. Ora!

Os milicianos enovelam-se logo e esbandalham-se ao choque de dois ou três mil homens de baioneta calada. Os dos flancos são repelidos para o centro por outras colunas francesas. Os hússares de Maria Luísa dão às de Vila Diogo, sem esperar os dragões franceses, e o punhado dos nossos cavaleiros vai de roldão com eles. E a cavalaria de Maria Foge e não de Maria Luísa, clamam alguns milicianos, que viam os famosos hússares a estender os cavalos por aquelas terras fora. Estamos cortados! - gritam de todos os lados.

A tropa de linha embrulha-se com os milicianos e voluntários numa desgraçada confusão! O chefe dos guerrilheiros vestidos de preto bate-se como um leão, grita, quere ter mão em tudo aquilo, mas inutilmente! Retiramos para dentro da cidade, pela única porta que não estava tapada - a porta do Rossio - com as baionetas francesas em cima de nós, de todos os lados! Entra tudo de escantilhão por ali dentro. Então é que foi um horror! Um oficial dos nossos, António Lobo Infante, reforma a nossa gente nas ruas, assesta contra os franceses quatro peças que nos restavam. A artilharia dos franceses arromba as outras portas da cidade para abrir entrada a mais colunas e à sua cavalaria. Uma luta medonha, peito a peito, à baioneta, a foice, a chuço naquelas ruas estreitas, entalados uns contra os outros! Das torres das igrejas, das janelas, dos terraços, pedras, móveis, tiros sobre aquela massa confusa de franceses, de portugueses, de espanhóis! Até os frades combatem! E as igrejas, cheias de mulheres e crianças num clamor doido de pavor! Os espanhóis, quási todos eles, conseguiram fugir pela estrada de Estremoz. Ia para as quatro horas da tarde.

- Estavam completamente derrotados, a cidade vencida! - disse o Castro tristemente - Era de esperar. De primeira linha um punhado de soldados bisonhos e sem disciplina, os milicianos apenas uns paisanos arregimentados, as ordenanças povoléu desordenado de chuços e foices.

- O pior foi depois! Os nossos auxiliares espanhóis foram muito mais felizes, escapulindo-se da cidade. Pelas quatro horas tocou à degola e a chacina então foi tremenda! A chacina, o saque, a violação das mulheres, a tortura dos velhos! Quando já não tinham homens que lhes fizessem frente, os soldados do maneta invadiram as igrejas e violaram e assassinaram as mulheres infamadas em face das crianças espavoridas ou ao pé dos velhos agonizantes!

- Torpemente horrorosa essa barbaridade! - exclamou o Castro, levantando-se num repelão de cólera.

- E assim até ao outro dia! Eu tinha sido ferido e só no dia seguinte consegui evadir-me para Espanha. Ia doido de horror! Vagueei por aquelas charnecas fora e fui dar a Badajoz. No caminho encontrei o chefe da guerrilha negra, ia muito ferido. Um valente aquele velho! Disse-me que tinha sido oficial no Rossilhão e que chegara a tenente-coronel.

- O nome desse guerrilheiro? - preguntou Luís de Castro comovidamente.

- Chamavam-lhe os outros Manuel de Albuquerque.

- Estava a adivinhá-lo! Meu Tio Manuel de Albuquerque! - disse para o Cândido Xavier - Do ferimento desse velho sabe se era de gravidade?

- Disse-me um dos da guerrilha que tinha uma bala numa perna e uma baionetada no braço esquerdo. Mas é de fibra antiga e lá ia a cavalo, amparado por outro, e a falar como se não levasse uma beliscadura sequer na pele!

- A mortandade devia ter sido enorme? - preguntou Cândido Xavier.

- Suponho que não seria inferior a três mil pessoas no campo da acção e nas ruas. Nas casas e nas igrejas não sei calcular qual fosse.

- Não posso avaliá-las bem. Foram com certeza muito menores. Talvez não passassem de quatrocentos homens.

- Não admira. Mas se a perda foi de quatrocentos, excedeu, ainda assim, as que os franceses confessam ter tido na batalha de Medina, em que o marechal Bessières, com catorze mil homens, derrotou vinte e oito a trinta mil espanhóis. Gabam-se os franceses de haverem morto quatro a cinco mil espanhóis naquela batalha, tendo eles tido apenas setenta mortos e trezentos feridos. E mais fizeram-lhes muitos milhares de prisioneiros, tomaram-lhes dezoito canhões, milhares de espingardas e muitas bandeiras.

- E essas - disse o Montalvão, escarninho - não eram decerto como as que o Margaron tomou na marcha para Leiria e o boletim de Thiébault menciona como troféus da famosa vitória como os insurgentes.

- Bandeiras tomadas! Bandeiras nossas de regimentos?- preguntou Luís de Castro com interesse.

- Bandeiras com bentinhos de santos, pendões do círio da Ameixoeira, que Margaron surpreendeu no caminho e supôs que era uma coluna de revoltosos. Enganou-se com as caixas de rufo e o bombo que os pobres devotos levavam na sua frente, cadenciando a marcha, e atirou os dragões contra eles.

Sorriram todos.

- Bem certo é - comentou Luís de Castro - que não há tragédia, por mais horrorosa que seja. sem um lance grotesco de comédia! Mas conte-nos agora como foi aprisionado em Espanha.

- Entrei em Badajoz e alistei-me num bando de guerrilheiros espanhóis que iam auxiliar os revoltados de Valhadolide. O chefe da guerrilha fêz-me seu imediato e mandou-me adiante com informações para Medina del Campo.

Fui para lá numa caleça de posta. Mas Valhadolide já estava há muito em poder dos franceses. Fui aprisionado por uma patrulha de dragões. Mandaram-me para Vitória, de caleça, entre uma escolta de hússares. Era a escolta de um general. Aproveitaram aquele ensejo para me internar. Foram uma jornadas à desfilada por aqueles danados caminhos, de dia e de noite!

- Já não estavam então em Vitória as nossas tropas da segunda brigada - disse Cândido Xavier.

- Tinham ido para o cerco de Saragoça. Se lá estivessem, ter-me-ia ocultado dos oficiais do meu regimento, sustentando este disfarce de espanhol.

- E nada mais soube de Portugal? - preguntou-lhe Luís de Castro.

- Mais nada. Mas deixei de falar em muitos nomes que ouvi de arrojados patriotas e nas muitas povoações pequenas que se sublevaram. Levaria um dia a dizê-las.

- Isso se há-de saber depois. Referia-me a novos acontecimentos de importância.

- Não sei de mais nenhum.

- E os ingleses? Não contam com o auxílio da Inglaterra? - preguntou Cândido Xavier.

- Contam. Esperava-se que dentro de um mês, ou pouco mais, desembarcassem algumas tropas britânicas.

- Receio que a revolução não consiga manter-se contra as tropas de Junot! - disse Luís de Castro - Nem armas, nem munições, nem dinheiro. Do exército alguns restos de regimentos, os milicianos incapazes de sustentar um combate regular, e não há-de ser com as foices e os chuços das ordenanças ou com as suas caçadeiras de matar coelhos que se hão-de vencer lá os admiráveis soldados de Napoleão.

- Só se Espanha os puder ajudar - lembrou o ajudante do 1.o batalhão.

- Ouvi que o Imperador vai mandar para lá todas as forças disponíveis do seu exército - disse Cândido Xavier - Duzentos ou trezentos mil homens. Tomara a Espanha que os seus improvisados exércitos lhe cheguem para a sua própria defesa.

- E essa mesma já pediu o auxílio dos ingleses, segundo me disse D. Lourenço de Lima - informou Luís de Castro-Mas, seja como for, já teve Portugal quem morresse a peito descoberto contra os batalhões de Junot. Vê-se que tem custado ondas de sangue essa campanha de paisanos! Na Guarda quási tanto sangue de portugueses como em Madride sangue dos espanhóis na revolta de 2 de Maio! Em Beja ainda mais! A diferença está em que Madride tinha tropas suas, arsenais e artilharia.

- E em Beja e na Guarda o povoléu de foices, de chuços, de clavinas e caçadeiras velhas - observou o Montalvão.

- E Madride com quarenta ou cinquenta vezes a população de qualquer dessas duas pobres cidades. Évora excedendo-as a todas nesses horrorosos sacrifícios de sangue!

Bateram rijo à porta do quarto. Castro foi abrir. A ordenança do Coronel vinha chamar Cândido Xavier e o ajudante.

Saíram logo.

- Eu vou também - disse Luís de Castro para o Montalvão - Queira esperar-me aqui.

Dali a instantes o tambor da guarda fazia o toque de oficiais.

Estava-se nos primeiros dias de Novembro.

Luís de Castro vivia tristemente no seu aquartelamento de Valence.

De Maria Pulaski nem sequer a esperança de uma notícia! Da Beauchamp nunca mais recebera carta desde os meados de Outubro.

- Talvez doente - pensava - Quem sabe se já morta a desventurada mãe adoptiva de Maria?

Napoleão mandara afastar da fronteira dos Pirenéus a D. Lourenço de Lima, como de lá tinha afastado a Legião, no receio de que lhe desertasse, metendo-se pela Espanha dentro.

  1. Lourenço foi para Bordéus, onde vivia como prisioneiro, tendo a cidade por homenagem.

Pois nem desse recebia cartas havia mais de um mês!

Vinha chegando o Inverno. Maior tristeza para aquele enamorado, a quem todos os sonhos de amor se tinham desfeito rudemente. Às vezes ficava-se pelas alamedas solitárias dos arredores da cidade a olhar para as folhas mortas, semi-sepultadas na lama, ao pé das árvores de que a invernia as desprendera.

- Como os sonhos se me desprenderam da alma, como eles morreram! E esses nem eu sei já para onde voam, feitos em cinzas! Como essas folhas mortas! Mas os meus sonhos morreram em plena Primavera. Maria! Esquecida de todo? Noiva do outro,(1) noiva ou amante do cossaco? Não, não podia ser! É uma injúria minha torpíssima, que ela não merece!

Com grande alvoroço de júbilo recebeu pelo correio duas cartas de Bordéus. Eram de D. Lourenço de Lima.

- Talvez me dê notícias da Beauchamp, talvez soubesse alguma cousa a respeito de Maria - pensou.

Abriu a menos volumosa, leu-a com inexcedível avidez.

Nem uma palavra a respeito de Ana Beauchamp, nenhuma referência a Maria Pulaski! Era uma carta atrasada.

- É sorte minha! O que hei-de eu fazer-lhe? Só se fôr nesta de tão extraordinário volume.

Abriu-a, passou pela vista a primeira lauda numa tremura de alvoroço, numa surpresa perturbadora que o sufocava e lhe produzia afogueamentos de comoção.

- Ah! que isto é para se ler devagar, para se ter de cor - disse com os olhos cheios de lágrimas.

E tornou a lê-la demoradamente com uma grande expressão de consolo. Dizia assim:

Meu caro Castro

«Sei que lhe vou dar uma bendita surpresa. Para o seu coração de patriota nenhuma outra de maior, nem de mais consoladora proveniência. Antes dos pormenores, deixe-me resumir-lhe em algumas palavras toda a grandeza dos factos de que vou falar-lhe.

«Junot foi vencido, capitulou, veio com todo o seu exército a bordo de navios ingleses. Desembarcou o pimpão no porto da Rochela, com uma parte dos vinte e dois mil homens que lhe restavam de vinte e nove mil que chegou a ter sob suas ordens. Não ficou em Portugal um único soldado francês. Dezanove mil desembarcaram em Quiberon.

«Eu só o soube aqui há cinco dias. Com os franceses de Junot vieram alguns portugueses que lhe eram afeiçoados. Dos sete mil homens que perdeu, ouvi que uns três mil foram mortos pelo povo.

«Apesar dos desalentos que tive como patriota,

 

*1. Histoire de La Guerre de La Peninsule, pelo General Foy, tomo IV, pág. 363.

 

vendo o país abandonado daqueles que melhor podiam defendê-lo, apesar da descrença em que estive quanto ao ressurgimento da nossa nacionalidade, e a despeito da admiração que sempre tive por Bonaparte, escrevo-lhe estas notícias com um grande consolo íntimo, como raras vezes tenho tido na minha vida. Que a nação me perdoe o muito que duvidei dela e me tome como remorso e resgate as lágrimas de enternecido orgulho que sinto no coração.

«Agora os pormenores. Soube antes-de-ontem que tinham chegado aqui alguns homens do exército de Junot. Procurei logo informações. Encontrei um oficial suíço, a quem em Agosto uma bala de artilharia esmagara a mão direita. Inutilizado para a guerra, vai regressar ao seu país. É homem inteligente e culto. Viu bem a nossa terra e fala imparcialmente das coisas que lá presenciou. Assistiu às chacinas do Alentejo com um destacamento de suíços que andou incorporado na divisão de Loison. Fala daquilo com horror e tem palavras de comovida indignação contra as barbaridades do fero Maneta, como a nossa gente chama a Loison.

«Os ingleses resolveram-se, enfim, a auxiliar Portugal, servindo ao mesmo tempo os seus propósitos e interesses políticos. Viram o país em plena insurreição, Junot quási reduzido a Lisboa, e decidiram-se a dar a mão ao seu aliado de quatro séculos.

«O suíço disse-me que nas províncias já se tinha formado um pequeno exército de gente mal armada. A melhor divisão era a do general Bernardino (sic). Esmiucei quem fosse este Bernardino e vim a perceber que era Bernardim Freire de Andrade.(1)

 

*1. Na sua história, Foy calcula em sete mil homens de infantaria e seiscentos de cavalaria a divisão de Bernardim Freire.

E acrescenta pouco depois: «Mas ainda faltavam espingardas à maior parte dos soldados», Histoire de La Guerre de La Peninsule, tomo IV, pág. 395.

 

«O general Paula Leite já tinha também no Alentejo uma miniatura de divisão, e em Trás-os-Montes o velhinho Sepúlveda e o destemido Silveira organizavam regimentos sem armas e sem pólvora.

«Afinal, nos primeiros dias de Agosto desembarcaram em Lavos, perto da Figueira, como você sabe, uns treze mil ingleses, comandados por um general que entrou em notáveis campanhas na índia e ultimamente estivera em operações contra os franceses na Holanda, chama-se Arthur Wellesley. Assim o diz o suíço e assim o confirma o Moniteur, referin do-se a êle com um desdém que está a trair a colaboração clandestina do Imperador. Trata-o por general de cipaios.

«A divisão de Wellesley foi metendo pela beira-mar para ir sobre Lisboa. E para cortar a retirada aos franceses, uma coluna de portugueses do nosso marechal-de-campo Bacelar marchava de Viseu e Castelo-Branco para Abrantes. Bernardim Freire apoiava os ingleses.

«Na Roliça as forças de Wellesley repeliram a pequena divisão de Delaborde. A 21 de Agosto travou-se batalha no Vimeiro.

«Diz o meu informador suíço que Junot só pôde reunir no campo de batalha uns onze mil homens com dezoito canhões. Mais de dez mil estavam dispersos por diferentes guarnições, só em Lisboa mais de três mil.

«Tinham desembarcado mais ingleses contra êle. Wellesley poderia dispor já de muito maiores forças e de mais artilharia que os franceses. Só em cavalaria é que estava muito mais fraco. A batalha foi dura e sangrenta. A posição do Vimeiro é formidável.

«Os regimentos ingleses tinham uma firmeza inabalável de rochas, contra eles, se quebravam, desfeitas como ondas, as colunas francesas, em ímpetos de formidável bravura.

São dizeres do próprio suíço, meu informador.

«Junot retirou para Torres Vedras com a batalha perdida. Segundo o suíço, os franceses teriam tido mil e seiscentos mortos e feridos, e haviam perdido umas poucas de bocas de fogo.

«Contou-me que, depois, em Lisboa, ouvira dizer que os ingleses não tinham tido mais de setecentos a oitocentos mortos e feridos.(1) Preguntei ao suíço pelos nossos portugueses. Respondeu-me que os tinha visto no flanco direito dos ingleses no combate da Roliça.(2)

«Na batalha do Vimeiro combateu contra eles, que seriam uns dois mil de tropa de linha.(3) Agora, meu caro Castro, uma notícia curiosa.

«O Conde de Novion veio também com as tropas de Junot! Matavam-no lá se não fugisse. A Guarda Real desertara-lhe quási toda para Coimbra, logo que em Lisboa constou a revolução dos estudantes.

«Acabaram as informações do meu suíço. Mando-lhe essa tira de um jornal francês, que publica na íntegra a convenção assinada em Sintra, em 30 de Agosto, pelos general Kellerman, por parte de Junot,

 

*1. São as perdas indicadas por Foy, que entrou na batalha, sendo então coronel de artilharia.

O coronel de engenheiros John Jones diz que os ingleses tiveram setecentos homens fora de combate, mas que os franceses perderam vinte e uma peças e tiveram mortandade muito maior. (Vide Histoire de la Guerre de Espagne e du Portugal, traduzida do inglês e anotada por Beauchamp.

  1. Mil e duzentos de infantaria e cinquenta de cavalaria formaram no flanco direito dos ingleses. Outras pequenas forças portuguesas operaram com as tropas inglesas da esquerda e no centro da linha de batalha de Wellesly. Segundo os mapas portugueses eram ao todo 2592 homens.
  2. Restos de regimento do exército e da Guarda Real de Polícia com o efectivo total de 2585 homens.

 

e por George Murrax, por parte dos ingleses. Ratificou-a o general em chefe dos ingleses Dalrymple. Como verá dos comentários do jornal, a esquadra russa de Sivium, nove naus e duas fragatas, 5.600 homens, entrou numa convenção especial com os ingleses.

«Agora, para estas informações, que o seu coração há-de ter recebido com jubiloso alvoroço, um comentário inquietador. Este, que talvez não conheça ainda senão por alguma vaga notícia dos jornais franceses: Em Setembro Napoleão teve em Erfurt uma conferência com o Imperador Alexandre. Voltou de lá com a segurança de ter por si a Rússia. Nos fins do mês passado disse na sessão de abertura do corpo legislativo que ia pôr-se à frente do seu exército e, com a ajuda de Deus, coroaria em Madride o rei de Espanha e levantaria as suas águias sobre as torres de Lisboa.

«O exército que êle vai comandar em Espanha compõe-se, em grande parte, de antigos soldados que vieram dos vales do Reno, do Elba e do Vístula, da guarda imperial, contingentes da Polónia, da Holanda, da Alemanha e da Itália. A comandá-los as mais brilhantes espadas do Império, os seus gloriosos marechais Ney, Soult, Victor, Moncey, Bessières, Lefebvre.

«Deu-me estas informações o próprio general comandante da guarnição de Bordéus. O meu amigo compreende bem melhor do que eu o que isto significa. Os melhores generais, os melhores soldados, duzentas mil baionetas na Península, sob o mando supremo de Napoleão! Aqui está a sombra enorme sobre essas consoladoras notícias da nossa terra!

«Napoleão chegou já a Baiona, àquele mesmo palácio de Marrac, tão nosso conhecido. A maior parte do Grande Exército já lá vai pela Espanha dentro. Pobre Espanha, desventurado Portugal!

- Castro, dá licença - preguntaram do lado de fora da porta.

- Pois não - respondeu indo abrir.

Era Cândido Xavier e uns poucos de oficiais do regimento.

- Homem, uma notícia, ou melhor, a confirmação de um boato que por aí andava mal seguro. O Junot apanhou uma sova mestra dos ingleses. Eram verdadeiros os boatos!

- Acabava agora de ler esta carta de Bordéus, que me trás informações completas. Junot já está de volta, já desembarcou em França com o seu exército.

- Também vimos isso agora num jornal de Paris, dos raros que nos chegam aqui às mãos.

- Pois têem aqui pormenores horrorosos e pormenores consoladores. Vejam. Está à sua disposição esta carta. A campanha dos nossos paisanos preparou as outras dos ingleses e foi mais sanguinolenta do que ela.

«Os ingleses têem para si a glória de um combate na Roliça e de uma batalha no Vimeiro, mas só os revoltados de Évora, só eles à sua parte, tiveram decerto o dobro das perdas das tropas britânicas naquelas duas acções. Mas leiam.

O ajudante do regimento leu alto, muito comovidamente.

- Esse final faz medo - comentou Cândido Xavier, a Espanha e Portugal serão fatalmente vencidos.

- É provável, mas também pode suceder que as circunstâncias favoreçam as duas nações peninsulares- disse Luís de Castro.

- Conto com o pior - objectou Cândido Xavier - Com um exército muito mais pequeno do que esse que me dizem vai concentrar-se na Espanha, bateu Napoleão a Áustria e a Rússia em Austerlitz. Duzentos mil homens! Com menos de metade esmagou êle a Prússia!

Os ingleses não têem forças que se lhes oponham. Esses louros do Vimeiro não fazem esquecer a má ventura que eles têem tido nas suas campanhas continentais. Pobre Portugal! Pobre Espanha! - Houve uns instantes de emudecido desalento - Pobre Portugal! - repetiu cada um deles, amarguradamente, numa voz que só o coração podia ouvir-lhe.

 

 

Continua no VOLUME 4

 

 

                                                                  Antonio Campos Junior

 

 

                      

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