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A FILHA DO POLACO - V.5 / Antonio Campos Junior
A FILHA DO POLACO - V.5 / Antonio Campos Junior

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

                 Terras de Portugal.

Não se realizara a previsão de Maurin. Chegaram a Salamanca sem que houvesse tido recontros com os guerrilheiros espanhóis, então como que um pouco esmorecidos no seu empenho de defender a Espanha contra os trezentos mil franceses que a ocupavam.

Em Salamanca os informaram de que Massena estava já na fronteira de Portugal e dirigia êle próprio o cerco de Almeida, começado ainda em Julho pela Divisão Loison, do 6.o corpo de exército.

Souberam também que naquela cidade ficara hospedada a companheira do Marechal generalíssimo, a pequena marechala, como os soldados lhe chamavam. Estava ali no propósito de ir ter com Massena logo que o exército começasse a marchar sobre Lisboa, onde viveria tranquilamente como lhe prometera o Marechal.

Junot dissera-lhe que era uma linda cidade, à beira de um rio amplíssimo, formoso. Um dos oficiais franceses da guarnição de Salamanca deu ao major Maurin umas breves notícias a respeito das operações em Portugal.

Disse-lhe que do Norte haviam chegado informações a respeito de um combate entre uma parte das tropas do general Séras, do corpo de exército de Junot, e um troço de tropa de primeira linha e milícias do general português Silveira.(1)

O oficial informador contou-lhe também que já em 24 do mês anterior se havia pelejado um combate renhidíssimo na ponte do Coa, muito nas vizinhanças de Almeida. Que fora entre a Divisão Loison e uma Divisão de ingleses e portugueses, a qual tivera de retirar com graves perdas.(2)

O coronel de dragões, ajudante de Berthier, Maurin e Castro continuaram a jornada, ainda em caleça de posta como tinham saído de Baiona.

No dia seguinte de manhã cedo estavam em Ciudad Rodrigo. Fazia dó a velha cidade!

 

*1. Fora na província de Leão. O general Francisco da Silveira Pinto da Fonseca, o glorioso defensor da Ponte de Amarante em 1809, saíra da fronteira de Trás-os-Montes com uma parte das suas forças e, de combinação com o general espanhol Taboada, cercara o castelo de Puebla de Sanabria, ocupado por um batalhão suíço da Divisão francesa de Séras. O castelo rendeu-se e Silveira aprisionou a guarnição, apossando-se de uma águia (a bandeira dos batalhões e regimentos franceses que era encimada por uma águia dourada) e de nove canhões de grosso calibre.

A Divisão Séras não ousou disputar-lhe a presa e apenas houve uns encontros entre a cavalaria avançada daquele general e um pequeno esquadrão das tropas de Silveira. Foi deste a vitória, trazendo prisioneiro meio esquadrão francês.

  1. Era a Divisão ligeira do general Crawfurd, um temerário que ousou opôr-se a forças muito superiores às suas.

Entraram naquele combate os batalhões portugueses de caçadores 1 e 3. O marechal Beresford louvou-os em Ordem do dia, dizendo que o 3 rivalizou com as tropas inglesas e se tornou digno do nome português.

 

Como que pesava sobre ela um imenso luto de morte. O bombardeamento quási a reduzira a um montão de ruínas! Tinha-se rendido ao corpo de exército de Ney em 9 de Julho, havia pouco mais de mês e meio.

Estava um calor de sufocar e as jornadas eram extenuadoras por aqueles detestáveis caminhos de Espanha. Precisavam de algum repouso. Assim o entendeu e deliberou o coronel de dragões. Ficariam ali umas horas, as de mais intenso calor, e seguiriam então a cavalo para Almeida. O governador da praça mandou-lhes fornecer cavalos escolhidos e saíram pela uma hora da tarde.

Com anuência do coronel de dragões, Maurin restituiu a espada a Luís de Castro.

O João Luís seguiria, pouco depois, numa carroça das que tinham de levar víveres para o exército.

Meteram a trote largo. Era jornada de quatro grandes léguas e queriam chegar a Almeida antes da noite.

O sol queimava e os cavalos levantam ondas asfixiantes de pó por aquela estrada horrorosa, ladeada de barrocas e cortada de sulcos profundos, feitos pelas viaturas da grossa artilharia de sítio, que na quinzena anterior tinham levado para defronte de Almeida. De Ciudad Rodrigo para a fronteira havia então três estradas: uma pela margem direita do Águeda, descrevendo uma larga curva até uma velha ponte e seguindo perpendicularmente ao forte da Conceição e de lá a Almeida, e a segunda ia directamente a Almeida, atravessando o ribeiro de Dos Cazas e tomava direita para aquele forte, e a terceira, mais longa, dava uma grande volta por Fuentes de Onoro e tomava para Castelo Bom, defronte de Almeida.

Seguiram a mais curta por Dos Cazas. Os cavalos eram excelentes e chegaram ao velho forte da Conceição muito antes do sol-pôsto. Ali fora instalado o quartel-general de Massena, nos meados de Agosto.

Os oficiais de serviço no quartel-general em chefe disseram aos recém-chegados que o Marechal tinha saído com o estado-maior para ir ver as obras de sítio.(1)

O coronel de dragões deliberou ir ao seu encontro para se lhe apresentar onde quer que o encontrasse. Maurin e Castro foram com ele, guiados por uma ordenança de dragões.

O forte da Conceição, na fronteira espanhola, está ligado à praça portuguesa, por uma estrada de nove quilómetros.

Encontraram no caminho uma senhora portuguesa acompanhada por um lacaio. A ordenança informou que era a esposa do general Pamplona, a rainha Pamplona, como os soldados franceses lhe chamavam, em razão do seu ar distinto de grande senhora. Era efectivamente D. Isabel de Roxas e Lemos. Castro conhecia-a de Lisboa e falou-lhe. Regressava a casa em que se hospedara com o marido, na Aldeia del Obispo.(2)

iam entrar em Valle de La Mula. Já se viam melhor as cumiadas das montanhas da Beira, as margens escarpadas do Coa, aldeias e casalejos distantes.

 

*1. A 15 de Agosto, quási concluídos os trabalhos preparatórios do cerco, uma quarta parte do material de artilharia já diante das muralhas de Almeida, Massena transferiu o seu quartel-general para o forte da Conceição, etc. (Mémoires de Massena, pelo general Koch, tomo VII, pág. 138).

  1. «O príncipe e o chefe do estado-maior general partem para o Forte da Conceição, onde fixaram o quartel-general. Fomos com êle, o general Alorna e eu, mas viemos acantonar-nos na Aldeia del Obispo, a meio quarto de légua do Forte». (16 de Agosto de 1810, da Aldeia del Obispo).

Este trecho vem no Diário do General Manuel Martins Pamplona, publicado pelo sr. Fernandes Tomás, em 1896.

Parte deste Diário está escrito em francês. Foi encontrado entre outros papéis que o General perdeu em Coimbra.

 

- A terra portuguesa! - disse o Castro como quem murmura uma oração comovidamente -, Como eu a conheço bem!

Ouviam-se melhor os grandes canhões de sítio e ainda se não via Almeida. Era um ribombar medonho como de muitas trovoadas próximas.

Castro estremeceu e fêz-se muito pálido. Dir-se-ia que lhe causavam medo aqueles tiros!

- É singular! - disse consigo - Confrangem-me como se nunca tivesse ouvido outros assim! Rir-se-iam de escárnio, se pudessem adivinhar o que eu sinto! Estranheza que chega a parecer pavor, como se nunca tivesse ouvido o troar da artilharia! Ele, que ouvira os mil e cem canhões de Wagram e, a pequena distância de si, os cem da bataria colossal do Grande Exército no lance decisivo da batalha.

- Compreendo - explicou a si próprio, porque vêem da terra portuguesa, da minha terra, estes ecos brutais da guerra. São gritos enormes de destruição e de morte que o meu coração está ouvindo amargurado. Estes agora fazem-me pavor. Almeida pode ter a sorte de Ciudad Rodrigo. Aquelas gargantas de ferro e bronze estão soltando o pregão de uma terceira guerra invasora, cujo desfecho não sei, não posso prever. Terras de Portugal! Como agora me parecem tristes!

Tinham atravessado o Valle de La Mula. O sol ia quási sumir-se envolto em nuvens rubras, da côr do sangue.

Muito para trás negrejavam as muralhas do Forte da Conceição.

- Ali flutuava a bandeira de Napoleão! - disse consigo amargamente.

Foram seguindo, dali a pouco via-se Almeida, quási envolvida na fumaceira da sua artilharia.

Avultavam arrogantes aquelas muralhas, revestidas de cantaria que o tempo enegrecera.

De todos os seis baluartes da praça chamejavam os tiros dos canhões. Para oeste recortavam-se na atmosfera afogueada as torres circulares do seu castelo antigo. A pequena distância o listrão de prata do Coa. a serpentear tranquilamente, as águas num murmúrio brando como se fosse o murmúrio de uma prece. Estavam já muito apertadas contra a praça as trincheiras dos sitiantes. Era curto o alcance da artilharia daquele tempo, a bala de uma peça de grosso calibre não chegava então a um sexto da distância a que vai hoje o projéctil de uma peça de campanha. Algumas baterias francesas ficavam apenas a trezentos e cinquenta passos da esplanada.

Era um estrondear medonho como de muitas trovoadas juntas. Os sitiantes estavam na ânsia de terminar depressa, derribando aquela velha porta da fronteira.

Castro volveu um olhar enternecido para uma das torres do Castelo. A bandeira não fora ainda arriada.

Alta, sobre a muralha secular, envolta no resplendor de oiro de um sol que morria, branca assim como a hóstia de um sacrário, a esvoaçarem-lhe em volta farrapos da fumaceira da pólvora, lembrando o fumo dos turíbulos em volta de um altar, aquela era o símbolo supremo de uma nacionalidade ameaçada de morte.

Mas, decorrida ao longo do mastro, por que não havia brisa que naquela tarde a agitasse, lembrava uma insígnia de fúnebre prenúncio!

Encontraram-se com um oficial do estado-maior que recolhia ao Forte. Voltava de levar ordens a uma das dez baterias que estavam bombardeando Almeida.

Era um conhecido do coronel de dragões. Falaram-se e o Coronel preguntou-lhe pelo Marechal.

- Está a um quarto de légua daqui, num alto, ao pede uma quinta abandonada. Mas fica um pouco fora da estrada e com todo o gosto lhe servirei de guia.

- Mas veja lá não prejudique o seu serviço.

- Não tenho agora nenhum.

- Então com todo o gosto, e mil agradecimentos.

O ajudante colocou-se ao lado dele e foram conversando. Iam a passo.

- Um fogo intenso! - disse-lhe o Coronel.

- Desde as cinco horas da manhã um fogo infernal! As baterias da praça é que principiaram a esmorecer um pouco depois das 4 horas. Talvez por causa dos incêndios que lhe têem causado as bombas da nossa artilharia. Que nós também já tivemos uma explosão no depósito de pólvora daquela bateria além. Os danos causados à praça pelos morteiros e obuses e pelos canhões de 24 percebem-se bem do local onde está o Marechal. Calculo que temos já disparado mais de nove mil tiros.

- As nossas perdas têm sido grandes?

- Talvez uns quinhentos mortos e feridos. Tivemos de vencer muitas dificuldades para abrir as trincheiras, a guarnição fêz duas sortidas impetuosas e matou-nos muitas dezenas de sapadores e de soldados de infantaria durante a construção das paralelas, apesar das pilhas de sacos de terra que tínhamos trazido de muito longe.

Chegaram ao cruzamento de um pequeno caminho.

- Tomemos aqui para a direita. É além que está o Marechal com o seu estado-maior.

- Bem vejo.

Meteram por um caminho de carros e subiram para uma elevação de terra donde se avistava a praça perfeitamente. Distava dali pouco mais de um quarto de légua.

O Coronel fêz a sua apresentação ao Príncipe d Lssling, e entregou-lhe os despachos que trazia. Massena passou-os para as mãos do general Fririon, chefe do estado-maior general.

- Para vermos logo no Forte - disse-lhe.

Depois voltou-se para o Coronel e fêz-lhe diversas preguntas a respeito do Imperador.

A distância, esperando a sua vez para se apresentar, Castro envolvia num olhar entristecido aquele feio e encolhido Marechal, muito seu conhecido da Ultima campanha de Áustria. Massena é que não o conhecia a êle.

Se nunca o tivesse visto, duvidaria que fosse aquele o ínclito marechal do Império, a quem Napoleão preferira para lhe conquistar Portugal.

É que esse misantropo, avarento como Slrylocly, rudemente egoísta, de baixos instintos de rapina como um cigano transmudava-se de improviso em face das responsabilidades do comando, e era então um como inspirado da ciência da guerra que não pudera estudar, e manifestava talentos militares que o próprio Napoleão considerava excepcionais.

Os perigos da guerra sacudiam-lhe o corpo enfezado, na atmosfera dos campos de batalha a sua estatura tomava proporções enormes, mudava-se em olhar de águia o seu olhar de milhafre, agitava-o numa terrível ebriedade o fumo da pólvora saía-lhe dos lábios a palavra de sugestiva eloquência que falava ao coração dos soldados, dentro daquele arcaboiço raquítico incendia-se uma alma de herói e a sua cabeça vulgar erguia-se em soberbias de intrepidez leonina.

E aqui está porque Napoleão lhe dera o encargo de cravar as suas águias sobre os muros de Lisboa e atirar ao mar o leopardo britânico.

O major Maurin apresentou Luís de Castro ao Marechal.

- Só este! - disse Massena, voltando-se para o chefe do seu estado-maior.

- Devem ser trinta - respondeu Fririon.

- Devem, sim, mas só chegaram ainda o Marquês

de Alorna e o general Pamplona com os seus ajudantes... e o major Xavier!(1)

Castro olhou em volta de si com estranheza. Não via ali aqueles seus compatriotas.

Massena tinha-os mandado naquele dia para junto do estado-maior de Ney.

- Conhece bem o seu país? - preguntou o Marechal a Luís de Castro.

- Esqueci-o. Agora, sr. Marechal, é como se não

tivesse olhos para ver, nem memória para recordar.

- Então que vem cá fazer?! - preguntou-lhe secamente.

- Mandaram-me. Vim sobre prisão. Aqui, em Portugal, esta espada, sr. Marechal, é para eu arrastar comigo como se fosse a grilheta do forçado.

- Servirá para combater, se eu mandar - replicou-lhe turvado.

- Valeria então um punhal ignóbil de fratricida. Aqui não sei combater.

- Bons auxiliares, não tem dúvida! - disse baixo para Fririon - E o Imperador e Berthier a prometerem-me estes excelentes guias, quando eu saí de Paris! Se os outros são do mesmo feitio, mando-os meter a todos nas prisões de Ciudad Rodrigo. Este oficial em que situação estava? - preguntou a Maurin.

- No depósito de Grenoble.

- Nunca entrou em campanhas? - disse asperamente, voltando-se para Luís de Castro.

- O ano passado.

 

*1. Outros só em 9 de Agosto haviam recebido ordem para sair de França, a fim de irem servir no exército de Massena. Entre outros nestas circunstâncias, os Marqueses de Loulé, de Ponte de Lima, e de Valença, os condes de São Miguel e de Sabugal e o Coronel Saldanha e Albuquerque. Vêem citados a pág. 145 do livro do sr. Boppe.

 

- Em que combates e batalhas?

- Na batalha d'Essling, no primeiro combate de Baumesdorf e na batalha de Wagram com a 13.a meia brigada portuguesa.

- Mas essa gente, esses seus compatriotas auxiliaram-nos lealmente e bateram-se bem.

- Príncipe, era contra os austríacos, a mil e trezentas léguas de Portugal.

O bombardeamento esmorecera por momentos. Davam trindades os sinos de Almeida.

Numa das torres do Castelo ainda tremulava a bandeira de Portugal, que não quiseram arriar ao sol-pôsto, como era preceito regulamentar.

Castro estremeceu, arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas. Aquela toada melancólica dos sinos acordava-lhe no coração umas suaves reminiscências de outro tempo. Com que doce recolhimento, por tantas vezes, ainda criança, ouvira badaladas assim, êle de mãos postas, no colo da mãe, a dizer com ela, num murmúrio, as três Avé-Marias das Trindades!

Agora pareciam-lhe tristes como se fossem um dobre de finados sobre a praça batida pela artilharia dos invasores.

O Marechal volveu-lhe desabrido:

- Contra os austríacos ou contra quaisquer inimigos da França, há-de combater quando eu mandar. É o seu dever jurado.

- Príncipe, fez já dois anos que eu jurei obedecer, menos se quisessem mandar-me contra o meu país. Aqui, tenho medo: prefiro ser o único poltrão do vosso exército.

Comoveram-se com estas palavras. O próprio Massena se comoveu.

- Não preciso de quem combata, preciso de quem me dê esclarecimentos a respeito do país.

- Não devo, não posso.

- Eu vo-lo direi. Fririon, que horas são?

- Alteza, são 7 horas.

- Mande alguém saber porque está esmorecendo o fogo das nossas baterias. Quero que o bombardeamento seja intenso, tôda a noite. É preciso abrir brecha. Amanhã, ou a praça se rende ou a tomaremos de assalto.

Fririon dirigiu-se para Vítor Oudinot, um rapaz de 20 anos, o mais novo dos ajudantes-de-campo de Massena. Era filho daquele bravo general que foi comandante do corpo dos granadeiros reunidos, durante a campanha de 1809. Vítor estivera em Wagram na qualidade de pagem do Imperador.

Ia transmitir-lhe a ordem que Massena indicara.

- Parta a galope e...

Não pôde concluir. A dois tiros sucessivos das baterias de sítio sucedeu um estampido medonho, enorme, como se todas as peças da praça e dos sitiantes houvessem rebentado ao mesmo tempo, e logo uma nuvem imensa de fumo e um turbilhão de fogo se ergueu nos ares, colossal, espantoso, como se dentro de Almeida se houvesse escancarado subitamente a cratera de um vulcão, desses cujas erupções têm sepultado cidades inteiras nas torrentes das suas lavas.

Massena resmungou uma praga de embarcadiço na sua língua materna.

Mas ele mesmo estremeceu e sentiu um arrepio de pavor, ele, o bravo de Génova, o velho leão das epopeias napoleónicas.

Achavam-se presentes onze ou catorze ajudantes-de-campo que tinha Massena, (Marbot ficara doente em Ciudad Rodrigo) quatro dos seus oficiais às ordens, e todos eles tiveram um repelão de terror.(1)

 

*1. ois estavam ali homens de extraordinária intrepidez, de inexcedível bravura, como o primeiro ajudante Pelct, que tinha entrado nas campanhas de Itália, da Polónia, e da Áustria, como o Conde de Lignmlie, um bravo do Marengo e de Austerlitz, de Iena e de Friedland, o corso Casablanca, um destemido, o major Barin, um mutilado de Wagram, o tenente piemontês Perron, que tinha tanto de feio como de valente, o tenente Briquevill, cujo arrojo de ânimo tocava as raias da loucura, o alferes Octávio de Ségur, um bravo da batalha de Raab.

Estremeceu e arregoou-se o próprio terreno onde estavam, como se o tivesse agitado um trovão subterrâneo.

A trezentos passos para a retaguarda, o muro da quinta abandonada esbarrondou-se, veio abaixo um alpendre, desabou uma parte do telhado da casa e todas as vidraças se esmigalharam ao mesmo tempo.

De olhos espavoridos e narinas dilatadas, os cavalos tremiam. Alguns empinaram-se, outros davam repelões para fugir e três dos que pertenciam às ordenanças tomaram o freio nos dentes e abalaram a correr doidamente.

- Como se fosse um vulcão! - disse Massena, já recobrada a sua admirável serenidade.

Ouviram os gritos enormes de muita gente, eram dos habitantes da praça, e logo um ruído soturno como de muitos desmoronamentos.

De súbito flamejaram da casaria de Almeida labaredas altas, que pareciam fogaréus colossais a iluminarem tragicamente aquele escurecer de um dia de Agosto.(1)

Tinham emudecido os canhões dos sitiantes.

 

*1. Marbot, que ficara doente em Ciudad Rodrigo, conta no tomo II das suas Memórias que o medonho estampido se sentiu naquela cidade, apesar das quatro grandes léguas que a separavam de Almeida.

Diz que o solo estremeceu e ele próprio julgou que se lhe ia desmoronar a casa.

Esta desgraçada praça foi destruída de alto a baixo, apenas seis casas ficaram de pé. A guarnição teve seiscentos homens mortos e um grande número de feridos. Enfim, uns cinquenta franceses que trabalhavam nas trincheiras foram feridos por estilhaços de pedras das muralhas.

 

Cornetas e tambores faziam na praça o toque de reunir, tocavam à generala como então se dizia.

- O meu desgraçado país! - disse confrangido Luís de Castro, de olhar espavorido para aquela catástrofe - A bandeira do Castelo voou em cinzas! Assim começa a terceira invasão!

Massena esteve cerca de um quarto de hora a olhar para aquele horror, num espanto emudecido.

Ainda se ouviam os desmoronamentos, a casaria da praça estava quási toda em chamas.

- Os ajudantes que vão saber informações - disse afinal para o general Fririon - Foi uma explosão de pólvora, não há dúvida, mas seria produzida por bombardeamento ou por malvadez ou descuido de alguém de lá?

Iam para descer uns poucos de oficiais, a quem Fririon ordenara que fossem colher informações, mas já não era preciso, chegava à desfilada um ajudante de Loison.

- Uma enorme explosão de pólvora, não é assim? preguntou-lhe o Marechal.

- No paiol do Castelo, o maior da praça - informou.

- Casual?

- Não, Alteza. Eu estava na bateria n.o 4. Fizeram-se duas excelentes pontarias e duas bombas foram cair dentro do Castelo. A seguir deu-se a enorme explosão. Estão muitas casas a arder. Sentia-se o ruído das que se desmoronavam. Abriram-se os terraplenos da praça, vieram abaixo pedaços de muralha! Com a violência da explosão, alguns canhões de grosso calibre foram atirados aos fossos. Vi-os eu. Contra as nossas trincheiras mais avançadas Guingret, oficial do exército invasor, refere que alguns canhões grandes da praça foram arremessados à distância de 200 toesas. (Relation historique et militaire de la campagne du Portugal sous le maréchal Massena, prince d'Essling, Edição de 1817.

 

vieram cair pedras enormes dos parapeitos, soquetes partidos, fragmentos das carretas. E com tal violência que feriram alguns dos nossos artilheiros.(1)

Chegaram a toda a brida outros ajudantes-de-campo, um deles era do marechal Ney. Confirmavam as primeiras informações.

- Está rendida a praça, não há que ver - disse o Marechal.

- Ainda não! - respondeu de si para si Luís de Castro com o olhar iluminado de júbilo.

É que vira chamejar outra vez os canhões nos baluartes de Almeida. Estrondearam uns poucos de tiros.

- O quê! Ainda ousam fazer fogo contra nós! Ordem às baterias para recomeçarem o bombardeamento. Fogo intenso em toda a noite. Se não se renderem, a praça será tomada de assalto.

Os ajudantes partiram. As baterias francesas já tinham principiado a responder à artilharia dos sitiados. Meia hora depois, noite fechada, todas as bocas de fogo de sítio (19 morteiros e obuses e 60 canhões, de calibre 12, 16 e 23) trovejavam horrorosamente contra a praça desmantelada, naquele horror de luto e morte.

- Amanhã veremos - disse Massena, afastando-se como para descer do outeiro -, Major Maurin, fica sob a sua guarda esse oficial português. As declarações que lhe ouvi autorizam-me a supô-lo capaz de desertar.

- Sr. Marechal - disse alto o Castro - não sou capaz de atraiçoar o meu país, não me bato contra os meus compatriotas, mas também não deserto. Afirmo-o a Vossa Alteza sob a minha palavra de honra, e nunca faltei a ela.

 

*1. MasSena, tomo VII, pág, 159.

 

- Mande-me chamar ao Forte o Marquês de Alorna ou o general Pamplona - disse Massena para Fririon - Quero ouvir um dos dois a respeito deste patriota que para cá me mandaram.

E retirou-se, acompanhado de todo o seu estado-maior.

Maurin encostou o seu cavalo ao de Luís de Castro. Descido o outeiro, já defronte do portão desmoronado da quinta abandonada, apeou-se e disse-lhe serenamente:

- Ficaremos por aqui e conversemos.

Castro apeou-se também. O major chamou uma ordenança de dragões e disse-lhe que tomasse conta dos cavalos.

O céu estava lindíssimo. O bombardeamento prosseguia com mais intensa fúria.

Sentia-se a estropeada dos cavalos do estado-maior e da escolta de Massena pelo caminho para o forte da Conceição.

- Sr. de Castro - disse-lhe Maurin afectuosamente- já tive ocasião de lhe falar de seu tio Albuquerque, referi-lhe então o caso que se deu com êle e comigo no Rossilhão. Bastaria a lembrança da generosidade de seu tio para me impor o dever gratíssimo de o tratar a si com especiais atenções, ainda que eu não tivesse tido já ensejo de lhe apreciar a nobreza do carácter. Está à sua disposição o recanto que me deram para alojamento. Mas ali, naquela quinta, ficaríamos isolados. Há-de ser preferível para si este isolamento à vida ruidosa do quartel-general no forte da Conceição.

- Diz bem, Major. Agora nenhum desejo maior em mim do que ficar sozinho com as minhas mágoas.

- Pois ficaremos ali. Eu irei logo entender-me com o chefe do estado-maior general.

- Obrigado, Major - disse-lhe Luís de Castro apertando-lhe a mão.

- Compreendo a sua tortura de alma nesta situação horrorosamente singular.

Há oficiais franceses, alguns deles generais, que têem combatido contra nós, voluntariamente alistados em exércitos inimigos da França, simplesmente porque eram realistas e detestam o Império, como antes abominavam a República. Servem alguns nos exércitos da Áustria e da Prússia. Esses, porém, são uns despatriados, uns traidores à França. Anseiam pelos nossos desastres, alistaram-se por vindicta partidária nas fileiras dos nossos inimigos, são contra nós, mais implacáveis que os soldados estrangeiros, nossos adversários. «O sr. não pode comparar-se com eles. Foi obrigado a servir a França, serviu-a heroicamente, batendo-se num país que não era o seu, contra soldados que não eram da sua raça. Nega-se agora a trair Portugal, protesta que não combaterá os soldados do seu país, procede honradamente. Leio-lhe no olhar as mágoas enormes da alma, compreendo-as, sinto a grandeza do seu coração e abraço-o, porque eu nas mesmas condições faria devotadamente o que o senhor faz.

E a conversar comovidamente foram subindo para o outeiro. A ordenança de dragões ficou em baixo com os cavalos à mão.

Minutos depois aparecia o João Luís, que tinha chegado havia pouco em um dos carros de víveres.

- Que é, João Luís?

- Estava em cuidado por v. s.a! Disseram-me que tinha vindo para aqui, e então eu vim.

- Obrigado. Daqui a pouco saberemos onde te querem dar quartel.

- Não tem dúvida, meu Capitão. O sol aqueceu as pedras e o chão, e dormiria aí em qualquer canto, se eu tivesse coração que me deixasse dormir.

- Compreendo-te, João. Também eu não posso!

- A nossa praça de Almeida, meu caro Capitão! Põem-na em cinzas! Eu nunca julguei que tanto custasse estar cá desta banda!

Subiram ao outeiro dois oficiais a cavalo. Um era português, o outro francês.

- O Marechal já não está aqui, sr. Guingret.

- Foi já provavelmente para o Forte.

- Hão-de sabê-lo aqueles dois oficiais. Encaminharam-se para eles.

- Sabeis dizer-me se o Marechal foi para a Conceição?- preguntou o francês, a quem o companheiro dera o nome de Guingret.

- Retirou-se à meia hora - respondeu Maurin.

- Luís de Castro! - exclamou o oficial português - você aqui!

- Neste suplício infernal, meu valente chefe de Wagram! - disse o Castro, abrindo os braços.

- O meu glorioso capitão de granadeiros! - exclamou o major Cândido José Xavier, apertando-o comovidamente.

- Que princípio de campanha! - segredou-lhe Luís de Castro - Para o que nós estávamos reservados!

- Que desastre horroroso! Dizem os franceses que nunca viram uma explosão tão violenta. Onde eu estava a terra esboroou-se com o abalo(1). E os nossos artilheiros lá estão a disparar as peças que não foram desmontadas ou não vieram parar aos fossos! Vê-os a gente das baterias de sítio. Ouça o que diz este oficial francês.

Fêz a apresentação de Luís de Castro ao chefe de batalhão Guingret.

Não tem Portugal mais devotado filho nem mocidade de mais arrojado esforço - concluiu Cândido Xavier - pois então felicito-vos pela coragem daqueles artilheiros que estão fazendo fogo, tão regularmente como se tivesse sido um sonho esse desastre pavoroso!

 

*1. O paiol que explodiu tinha 75.000 quilogramas de pólvora.

 

Sinto-me bem fazendo justiça aos meus próprios inimigos.(1) Castro agradeceu-lhe em comovidas palavras.

Em volta de Almeida os relâmpagos dos tiros fuzilavam em todas as direcções com espantosa celeridade. Muito para trás das trincheiras, fora do alcance da artilharia, branquejavam, sobre aquele céu crivado de estrelas, os abarracamentos do corpo de exército de Ney, a semelharem uma extensa povoação, alheia àqueles pavores da guerra.

- Lembra uma aldeia grande do Minho, de casitas muito brancas - pensou o Castro.

Maurin e Guingret tinham-se afastado muito, em acalorada conversa.

Cândido Xavier e Luís de Castro ficaram por momentos sem dizer palavra, olhos fitos na praça, a chamejar como enorme fornalha esbarrondada. Um olhar de dó num pasmo de lágrimas.

- E os ingleses e o nosso exército? - preguntou o Castro subitamente.

- Estão além do Coa, segundo ouvi.

- De braços cruzados à espera que a praça se renda?

- Provavelmente fraccionados, observando a fronteira, sem saberem se as outras províncias serão também invadidas. Segundo as informações francesas, está no vale do Tejo uma forte divisão anglo-portuguesa,

 

*1. Na sua Relation historique et militaire, que já citámos, Guingret diz textualmente: «Indicarei o sangue-frio dos artilheiros portugueses que, tendo a miraculosa felicidade de sobreviver à explosão, continuaram a manobrar as peças enquanto pelos ares voavam ainda destroços da praça, que ameaçavam esmagá-los. É agradável admirar a coragem, ainda que seja de inimigos nossos.» (Pág. 29.)

 

há tropas do exército aliado ali para o alto Coa, em Castelo-Branco, na Guarda, em Viseu.

- Supõem então possível que a invasão de Massena seja secundada por outras?

- É provável que suponham. Prova-o a dispersão de forças do exército anglo-português. É enorme o poder que Napoleão tem agora na Península. Ouvi ante-ontem ao general Fririon que estão na Espanha e na fronteira de Portugal mais de 350.000 homens do exército francês, com cerca de oitocentas bocas de fogo de campanha e de sítio e 60.000 cavalos.(1)

- Esmagador!

- E a Espanha já não tem exércitos que se aventurem sozinhos a entrar numa batalha campal! Os espanhóis não estão submetidos, mas estão derrotados. A bandeira vitoriosa de Napoleão flutua em todas as suas cidades.

- E a este exército de Massena que forças lhe calcula?

- Segundo um mapa que eu vi, com a rubrica de Fririon, tem 93.000 homens com 23.000 cavalos.(2) Mas isto incluindo as divisões independentes, as guarnições da sua linha da retaguarda e os doentes, que são numerosos. Aqui, centro das operações, está o 6.o corpo do exército, o de Ney, uma das alas é formada pelo 8.o corpo, o de Junot, a outra pelo 2.o do comando de Reynier. Tem divisões independentes: em Valhadolide a do general Kellermann, já nosso conhecido de Lisboa, a do general Séras na fronteira de Salamanca, a do general Bonet nas Astúrias.

  1. Segundo o mapa n.o 11 das Memórias de Massena, referido a Junho de 1810, era de 350.951 homens com 91.350 cavalos o efectivo dos exércitos franceses na Península.

Memórias de Massena.

- E o exército anglo-português?

- Segundo os cálculos dos franceses, que suponho exageradíssimos, haverá em Portugal 105.000 soldados portugueses e ingleses de primeira linha e 80.000 milicianos. Não acredito. O nosso exército regular, quási todo de galuchos, não excederá talvez 50.000 homens, e quanto a milicianos em estado de entrar em campanha, não creio que haja um terço daquele número.(1)

- Pois sim, mas se metade desse exército viesse atacar as tropas que estão sitiando Almeida...

- Cerca de trinta mil franceses, meu caro amigo, que se haviam de bater denodadamente contra os nossos galuchos e os vinte ou trinta mil ingleses, seus auxiliares. E então acudiriam aqui forças importantes do corpo de Reynier e do corpo de Junot. Os trinta mil subiriam a cinquenta mil no segundo dia de batalha. Mas nem Wesllesley, lorde Welington, como agora lhe chamam, arriscaria os galuchos numa batalha ofensiva, nem traria para aqui todos os seus ingleses, correndo o risco de uma derrota que lhe tornasse impossível a retirada sobre Lisboa. Segundo os franceses, Wellington alia a sua fria coragem de inglês à reflectida prudência de Fábio, o cauteloso adversário de Aníbal.

- Está então irremediavelmente perdida a praça de Almeida?

- Irremediavelmente perdida.

- Que guarnição tem, sabe?

- Sei, soube-o por um médico português que os franceses aprisionaram aqui, nas imediações de Almeida. Aos franceses não disse palavra a respeito da guarnição da praça,

 

*1. Os mapas oficiais dão ao exército português de primeira linha, naquele ano de 1810, um efectivo total de 51.841 homens.

As milícias em estado de entrar em operações regulares de campanha não excederiam 24.000 homens, embora fosse muito maior o número de milicianos dispersos por todo o país.

 

resistia intrepidamente a todas as ameaças o pobre velho! Mas depois, a sós comigo, revelou-me a pobreza de forças que tem Almeida, uma praça antiquada, de traçado defeituosíssimo, em péssimas condições de defesa. Está lá dentro apenas parte de um regimento de artilharia, um regimento de cavalaria, um regimento de infantaria e os regimentos de milícias da Guarda, Trancoso e Arganil. Segundo o velho médico, uns quatro mil homens.(1)

«Para as sortidas nunca poderam sair de lá mais do que seiscentos ou oitocentos soldados. Mas os franceses supõem que a guarnição será de sete mil homens do exército regular.

- Então não lhes contou as revelações do médico?

- Não, embora pouco importasse dizer-lhas. É uma praça abandonada aos seus próprios recursos, como Ciudad Rodrigo.

- Mas, repare, major. Além na praça, uns sinais com luzes!

- Bem vejo. Provavelmente sinais para os postos avançados das forças anglo-portuguesas mais próximas.

- Parece que os franceses andam a trabalhar nas trincheiras.

- Provavelmente a reparar os desmoronamentos produzidos pelo abalo da explosão e pela artilharia da praça.

Maurin fora avisar em posto próximo de que na quinta abandonada ficariam dois oficiais aquartelados, êle e um português.

 

*1. .Eram 4.197 homens dos regimentos de artilharia 4, de cavalaria 11, de infantaria 24 e dos três corpos de milicianos, conforme os mapas oficiais portugueses. A praça tinha um governador inglês. Era William Cox.

 

Depois seguiu para o forte da Conceição, afim de falar ao chefe do estado-maior, relativamente ao seu aquartelamento.

Cândido Xavier e Guingret ficaram ainda com Luís de Castro. Cerca das 9 horas partiram para o Forte.

Às 11 horas voltou Maurin. Estava autorizado a instalar-se na casa da quinta. Do posto próximo tinham vindo já dois soldados para preparar a instalação.

Castro não quis ir deitar-se e pediu-lhe autorização para ficar. A noite estava serena e quente. Demorar-se-ia ali até que o sono viesse, ou deitar-se-ia mesmo sobre a relva seca do outeiro.

Maurin acedeu e foi deitar-se. O João Luís ficou ao pé do seu Capitão.

O bombardeamento não cessava. As baterias de Almeida respondiam sempre. A fumaceira dos tiros esfarrapava-se nos ares por cima dos cestões das trincheiras ou sobre os parapeitos dos baluartes, às vezes lembrava a névoa de uma manhã de inverno. Depois da meia-noite a infantaria de Almeida começou um fogo vivíssimo contra os soldados que trabalhavam na reparação das trincheiras.(1) Sobre a madrugada, Castro embrulhou-se no capote e sentou-se num socalco de terreno. , A umas dezenas de passos, o João Luís deitara-se em cima da relva que o sol ressequira. Com os cotovelos fincados nos joelhos, o rosto entre as mãos, olhos rasos de lágrimas, Luís de Castro adormeceu. Sono de duas horas, sono de pesadelo num sonho de amarguras pela Pátria invadida e numa pressão de saudades pela sua linda noiva, que para sempre talvez se lhe perdera.

 

*1. Morreram e ficaram feridos 38 franceses, segundo as Memórias de Massena.

 

Rompia a manhã. Ao longe, no acampamento francês, os clarins e os tambores faziam o toque da alvorada. Que linda manhã para que a vissem olhos de gente feliz! Ao longe, pelos ares, voavam de fugida bandos de pássaros, espavoridos pela artilharia.

Castro levantou-se de repelão, como se tivesse remorso de haver adormecido.

Vinha nascendo o sol, subia do leito do Coa um vaporzinho branco, ténue como um véu de gaze. Pela estrada próxima uma estropeada enorme de ajudantes-de-campo e ordenanças de dragões que iam e voltavam do forte da Conceição. Via-se bem a praça. O castelo estava num acervo de escombros, do outeiro descobriam-se os artilheiros numa bateria de parapeitos esburacados, só umas raras casas tinham ficado ilesas, ruas inteiras em ruínas, negros esqueletos incendiados, derrocadas ainda fumegantes!

Mas ainda lá tremulava no mastro de um baluarte a bandeira ilustre de Portugal.

Castro abraçou-o num olhar enternecido.

- V. s.a está com o sentido na bandeira da nossa terra! - disse ao pé dele o João Luís-Coitada! Hão-de deitá-la abaixo, e a gente há-de vê-la cair, meu Capitão! Mas eu antes queria estar com ela e não ao pé desta gente que vai vencer.

E apontou entristecido a bandeira imperial que acabavam de içar em frente de uma grande barraca de campanha. Ouviam-se as vibrações de um hino que uma banda regimental tocava defronte do quartel-general de Ney.

No acampamento subiram aos ares outras bandeiras como aquela, veio de lá o eco dos clarins e das músicas a saudarem o pavilhão da França naquela continência triunfal.

- Como isto dói! - rouquejou Luís de Castro -, E quem sabe ainda que dor maior por esse país dentro?! Um horror!(1)

Sentiu um grande tropel de cavalos na estrada. Massena vinha da Conceição com todo o seu estado-maior.

- Madrugou - disse consigo o Castro.

- Ah! boa granada que despedaçasse toda aquela súcia de plumas - pensou o João Luís num estremeção de ódio patriótico, olhos postOs naqueles oficiais brilhantes que vinham a trote por ali fora.

Massena ia para as trincheiras examinar o adiantamento dos trabalhos e os estragos causados pela explosão da véspera.(1)

Das 7 para as 8 da manhã daquele dia de 27 de Agosto o bombardeamento cessara, por ordem do generalíssimo. Às 9 o Príncipe de Essling mandava um parlamentário ao governador de Almeida. Era o próprio general Fririon, o chefe do estado-maior general.

Levava esta carta para William Cox: «Sr. Governador.

«A praça de Almeida foi incendiada e toda a minha artilharia de sítio está em bateria. Não podeis esperar socorro dos vossos aliados, entregai-vos, portanto, à generosidade do Imperador e Rei.

«Ofereço-vos honrosas condições. Para as aceitardes, indagai o que sucedeu a Ciudad Rodrigo. Sabei o estado em que a cidade ficou, e pensai nos males que esperam Almeida, se prolongardes essa defesa inútil.»

O governador respondeu: «Propõe-me v. ex.a que lhe entregue esta praça e me renda com a guarnição à generosidade dos exércitos franceses.

 

*1. Memórias de Massena, pelo general Koch, tomo VII, pág. 153.

 

estou ainda reduzido à última extremidade e por isso desejo conhecer de antemão as condições da sua proposta.

«Só me resolverei a entrar em negociações depois de saber se as que me indica são dignas de serem aceitas. Esperando a resposta de v. ex.a mandarei suspender as hostilidades e os trabalhos da defesa, na persuação de que desse lado se procederá de modo semelhante.(1)

As hostilidades cessaram e de Almeida saíram, para tratar da capitulação, o major Fortunato José Barreiros, comandante da artilharia, e Pedro de Melo, ajudante-de-campo do governador.

Massena propunha aos sitiados uma capitulação com as honras da guerra, os oficiais sairiam com as espadas, os soldados com as mochilas e os milicianos seriam mandados livremente para as suas casas, sob compromisso de não tornarem a pegar em armas contra os franceses.

Cox recebeu este projecto de capitulação e não respondeu. Entretanto percebeu-se que êle se estava correspondendo pelo telégrafo de sinais com as forças inglesas de observação para as bandas de Celorico.

O Marechal esperava. Mandou-lhe um ultimato, que devia ser cumprido dentro de meia hora. Cox não respondeu e o bombardeamento recomeçou às 9 horas da noite.

Luís de Castro estava na casa da quinta. Apareceu-lhe Maurin, que tinha dormido perfeitamente. Montaram a cavalo e foram juntar-se ao estado-maior do generalíssimo.

 

*1. Aquela carta como a outra de resposta encontram-se a pág. 100 e 102 do tomo anteriormente citado.

 

Pouco depois ouvia dar esta ordem, seca e rude - Bombas para cima das casas, para incendiar o resto.(1)

Confrageu-se o pobre patriota, e aquilo afinal era

coisa corrente na guerra. Na planura de Wagram

tinha êle visto a arder umas poucas de aldeias das vinte que os projécteis de artilharia ou a malvadez individual haviam incendiado.

Os franceses estavam construindo outra paralela

a trinta metros apenas da crista da estrada coberta da praça. Pelas 11 horas da noite cessou o fogo da praça. Tinha havido mais incêndios naquela pequena vila de mil e quinhentos habitantes. Cox cedeu. A capitulação foi assinada àquela mesma hora.

Ao outro dia de manhã uns poucos de regimentos franceses formaram na esplanada da praça. A guarnição saía. Os soldados entregavam as armas e ficavam com as mochilas, os oficiais conservavam as espadas.

À frente os ingleses William Cox, o major Hewelt e o capitão Foley. O regimento 24 teve de entregar as bandeiras, cavalaria e o estandarte. Alguns soldados choravam. Os oficiais portugueses do estado-maior do Marechal tinham recebido ordem para comparecer na esplanada. Era intento de Massena que eles convencessem os soldados prisioneiros e os milicianos a constituírem dois ou três batalhões de peoneiros para os serviços auxiliares do exército.

Castro recusou-se a ir. Intercedeu por êle o major Maurin, alegando ao Marechal que o moço oficial andava oprimido por desgostos particulares. Consentiram-lhe que ficasse na quinta abandonada. Horas depois Cândido Xavier foi vê-lo.

 

*1. «O fogo das baterias destinava-se especialmente a produzir mais incêndios.» Memórias de Massena, pág. 155 do tomo VII).

 

- Concluíu-se, não é isso, Major?

- Concluiu. Quási todas as casas arrasadas ou reduzidas a cinzas! Na noite da explosão ficaram quinhentos homens enterrados nas ruínas! Os nossos estão profundamente indignados por que o general Wellington os abandonou a um exército que tinha quinze vezes o efectivo da guarnição de primeira linha que havia em Almeida. Faça ideia: Dos três regimentos do exército não vi sair mais de mil e oitocentos homens. O de cavalaria não tem 70 cavalos!(1)

- Para resistirem dentro dessa velha praça insignificante a vinte e quatro ou vinte e seis mil homens do corpo de Ney, entre eles os mais brilhantes oficiais e soldados de Iena e de Friedland!

- Contaram-me que William Cox vem furioso contra o tenente-rei da praça, um tal Costa e Almeida.(2)

- Porquê? Houve alguma traição?

- Creio que a vaidade de William Cox precisa de uma vítima expiatória, de quem se fale em Lisboa e em Londres. O que eu ouvi a um dos nossos oficiais foi que o Costa e Almeida fora ontem à noite representar ao governador que a população da vila e os milicianos protestavam contra o egoísmo que estava sacrificando inutilmente, pois não havia nenhuma esperança de que a praça fosse socorrida pelas forças que estão para as bandas de Celorico. Parece que o Costa e Almeida quis evitar um motim do povo e uma revolta provável dos milicianos, afinal, uns paisanos fardados. Se tal sucedesse e os franceses o soubessem, a praça seria obrigada a render-se à discrição, sem nenhuma honra de guerra, ouvi que foi isto o que êle alegou ao governador.

 

*1. OS mapas oficiais portugueses dão, entre prisioneiros e extraviados das tropas de primeira linha, 58 oficiais, 1743 praças de pé e 66 cavalos. Francisco Bernardo da Costa e Almeida.

 

- E por isso vem então furioso contra esse oficial?

- Creio que lhe dá o nome de traidor! E, todavia, o próprio Cox já ontem de manhã tinha autorizado as negociações para a capitulação, quer dizer, reconhecera a necessidade de se render, pondo apenas dúvidas quanto às condições da capitulação. Costa e Almeida só muitas horas depois se fez intérprete dos clamores da população e das intenções dos milicianos. Foi isso o que ouvi e é claro que não posso jurar que esta seja a verdade. Inclino-me, porém, a crer que o Costa e Almeida, na sua qualidade de tenente-rei da praça, conhecia os sinais telegráficos feitos das avançadas inglesas e sabia, provavelmente, que não havia esperança de socorros.

- E é preciso agora atribuir a um oficial português as responsabilidades da capitulação.

- É o que se desconfia. Cox é intrépido, provou-o, mas o seu orgulho de inglês compraz-se com essa desalmada alienação de responsabilidades.

- Compreendo. Almeida não se perdeu porque trinta ou quarenta mil ingleses e portugueses a desampararam, nem porque era uma praça defeituosa e mal guarnecida, com alguns parapeitos esbarrondados e quási toda a sua pólvora queimada, nem porque William Cox, aceitando negociações para capitulação, deu a entender aos sitiantes que não contava com socorros nem se julgava nas condições de prolongar a defesa. Nada disto podia comprometer a praça! Almeida perdeu-se porque o tenente-rei se fez intérprete dos clamores dos seus habitantes e dos milicianos! E é isso o que se há-de dizer e acreditar em Lisboa e em Londres.(1)

 

*1. O abandono e a capitulação de Almeida levantaram amargos protestos em Lisboa e na Inglaterra. Era preciso pôr sobre alguém a mácula daquele desastre. Costa e Almeida foi mais tarde julgado em conselho de guerra e fuzilado.

 

- Com toda a certeza. E mais ainda você não sabe que ontem à noite, quando houve os motins, estavam a arder quási todas as raras casas que ainda havia de pé e percebiam-se das muralhas os trabalhos dos franceses, a construírem outras trincheiras, a quarenta passos da estrada coberta, sem haver lá dentro da praça gente que chegasse para uma sortida eficaz contra os regimentos que defendiam esses trabalhos!

- Que perdas tiveram os franceses durante o cerco, sabe?

- Falam em quinhentos e tantos mortos e feridos desde quinze deste mês.

- Pois eu sei de uma batalha que os espanhóis perderam, tendo 3000 mortos e feridos e 2000 prisioneiros, abandonando quinze canhões e quinze mil espingardas, ao passo que os franceses de Kellermann apenas tiveram 18 mortos e 57 feridos, e disto se gabam!

- Bem sei. A batalha de Alba de Thormes em Novembro do ano passado. Mas na defesa das suas praças é que eles têem sido inexcedíveis.

Apareceu então o major Maurin.

- Chegaram hoje pela posta militar as malas de França. Disseram-me na secretaria do general Fririon que tinham vindo duas cartas para si, sr. de Castro. Ofereci-me para lhas trazer. Aqui as tem.

- Uma gentileza sua, Major! - disse, recebendo as cartas com grande alvoroço.

Relanceou um olhar para os sobrescritos. Teve um estremecimento de júbilo. A letra era de Maria Pulaski. Uma das cartas vinha muito vincada, suja, envelhecida, tinha muitas marcas do correio.

- Deixo-o, meu caro Luís de Castro - disse-lhe Cândido Xavier.

- Eu também saio - acrescentou Maurin.

- Mas se é por causa destas cartas que saiem... Tenho tempo de as ler depois.

- Não, não. Leia-as agora, e até logo.

Castro foi sentar-se. Pôs-se a examinar a carta que parecia velha. Tinha marcas do correio de algumas cidades da Hungria, de Viena, de Ratisbona, de Maiença, de Metz, e de Grenoble. A primeira marca trazia a data de Setembro de 1809. Outras datas não se podiam ler por causa da sobreposição dos carimbos.

- As voltas que ela deu! Estamos a 28 de Agosto de 1810. Há quási um ano! Parece incrível!

Numa tremura de comoção abriu-a. Era apenas de duas páginas. Falava-lhe muito das suas saudades, do desastre sucedido ao Tio, da cegueira do Pai, da esperança em que estava de voltar para Sachengang até princípios de Novembro, o mais tardar. Era datada de 29 de Setembro.

Abriu a segunda.

- Oh! esta de Paris! Já deste mês: 5 de Agosto de 1810. Em Paris! Leu:

«Luís, que suplício de tantos meses! Escrevi-te de Viena três cartas para Grenoble e perderam-se decerto como outra que te mandei da Hungria. A dor que eu tive! Não me respondias! E o padre Diogo sempre a afiançar-me que tu eras para mim como tinhas sido sempre. Ainda escrevi outra carta e ainda o mesmo silêncio!

«Como era possível que se tivessem perdido todas! A primeira, a que eu te mandei da Hungria, compreendia que se perdesse, vinha para Viena e tu já havias partido para França. No correio viemos a saber depois que a tinham mandado para Ratisbona, onde estavam os teus portugueses.

«Mas as outras? E o padre Diogo a insistir em que tinhas ido para Grenoble! Provavelmente já saiu de lá, pensava eu. E pensar isto não era para mim o maior mal. O pior foi depois! Lembrei-me que estarias doente, de tal modo doente que nem as pudesses ler. Se tivesses morrido! Que horror de receios!

«E logo, na realidade, outra mágoa, com uma tamanha dor para mim, que me parecia de morte! Houve alguém desalmado que me mandou pelo correio um periódico da Rússia, de Outubro do ano passado.

«Trazia marcada a vermelho uma notícia traduzida de um jornal inglês.

«Eu sabia entender aquilo. Durante os anos que vivi na Sibéria aprendera a compreender a língua dos verdugos de meu Pai. Que surpresa de angústia para mim naquela notícia!

«Era de uns amores de escândalo, em Viena, com a Princesa Borghèse! E tu, Luís, o amado que ela preferia! Dizia-o assim a notícia e lá vinham, com o teu nome, umas indicações da tua família, informações a respeito do teu ferimento, dos teus merecimentos, do teu valor. Nem de propósito para que não ficassem dúvidas! Dizia que na véspera da batalha de Wagram tinhas honrado as águias de Napoleão, mas que em Viena te fizeras amante da irmã do tirano.

«Eram estas as palavras do periódico. - A minha pobre Maria! - disse, interrompendo a leitura - Periódico da Rússia, mandado de lá, marcado por alguém! Deve estar nisto a mão infame de Miguel Platow. Mas o padre Diogo sabia tudo, podia tê-la esclarecido. Talvez depois o fizesse. Nem ela me escreveria, se não soubesse a verdade. Continuou a ler:

«De tantos sonhos maus que tenho tido, nenhum me havia preparado, para esta surpresa, que podia ser de morte e, por mais de um mês, foi quási de loucura! Adoeci. Meu tio, o meu amparo, sempre a adivinhar-me as vontades, sempre em extremos de amor paternal, como os pais carinhosos que tudo concedem e tudo perdoam, mortificava-se por mim, prometia-me tudo para que eu lhe dissesse a causa daqueles pesadelos, mas eu tinha vergonha de lha dizer, e não lha disse nunca.

«Creio que Deus teve dó de mim. «Trouxeram-me do correio uma carta de Grenoble, muito atrasada. Cheia de amor como as tuas cartas de outro tempo, foi uma aleluia para mim. Segurava-me a vida que eu sentia fugir. Mas ficava comigo um resto de mágoa, um espinho de ciúme que eu tinha no coração.

«Perdoa-me esta má ideia que fiz de ti. Podiam ser de fingimento ou de simples dó por mim aquelas tuas palavras de amor. E nem tu podes adivinhar quem foi que me acudiu nesta amargura de suspeitas. Foi aquele bondoso padre Diogo que tu conheceste aqui.

«O bem que eu lhe devo!

«Não tivesse ele ido a Trieste por negócios da casa que administra e não se houvesse demorado por lá cerca de dois meses e não teria eu sofrido a dor que me causou aquele periódico, enviado por mão traidora que eu sinto contra mim e tu certamente já adivinhaste de quem seja.

«Mas voltou e tudo me esclareceu piedosamente. Não houve amores, não passou tudo aquilo de uma provocação da linda Princesa, de quem eu não queria o juízo nem a fortuna. Culpa do seu ruim destino e de um capricho teu, que de todo o coração te perdoo, meu querido Luís.

«Que bem-aventurado alívio. Julguei que não podia consagrar-te amor maior e era engano meu! Agora ainda te quero mais! É amor que parece doido!

«Fiz logo um projecto. Meu tio tinha-me falado em viajar pela Itália e pela Suíça. Pois mudei-lhe eu o intento. Pedi-lhe uma viagem a França, a Paris. De lá fácil seria que fôssemos a Grenoble ou que tu me fosses ver a essa grande cidade que não conhecia. «Acedeu logo. Nem êle ouve e atende mais ninguém.

«Faz ideia: Prometeu-me que havia de empenhar-se para que fosses meu esposo e êle próprio se me ofereceu para ser o teu padrinho. O nosso casamento, Luís! Nem eu sei dizer-te que paraíso e que loucura de sonho isto me parece!

- E a mim! E a mim!

Continuou:

«Mas a felicidade para mim traz sempre um acompanhamento de contrariedades e de mágoas!

«Cheguei a Paris num alvoroço que nem te sei descrever e logo lá soube, ouviu-o dizer a um ajudante do marechal Berthier: um que te conhece.

«Que já devias ter partido, contou, que foras obrigado a partir, e era provável que nos meados de Setembro estivesses já em Lisboa.

«A facilidade com que eles calculam aqui a entrada dos seus soldados na tua linda cidade!

«Eu é que calculo bem, meu Luís, a tortura de alma em que tu vais com os invasores desse país que tanto estremeces!

«Pois se tal suceder, como eles supõem aqui, lá estarei eu para beijar as mãos de tua Mãe, para te ir esperar ao caminho, para chorar contigo os infortúnios dessa encantadora pátria que tens, meu noivo, meu esposo, minha vida!

- Ela também em Lisboa para me esperar no roldão dos vencedores! Um sonho, uma loucura!

Voltou a ler:

«Meu Tio está por tudo o que eu lhe peço. Vamos amanhã por terra para a Itália, de lá para um porto do Adriático e embarcaremos para Lisboa a bordo de algum navio inglês.

«Quem me ajudou a estudar este plano foi meu Tio. Vai connosco o meu querido cego, para te perdoar, e para que tu lhe perdoes.

«O nosso padre Diogo andava desejoso de ir ver Portugal e já lhe escrevi para ir ter connosco a Trieste.

«Será mais um amigo a esperar-te. É possível que obtenha licença por três ou quatro meses.

«Foi êle quem me contou o caso da bandeira, a tua, a minha. Luís, fêz-me chorar.

Castro olhou de relance para umas palavras finais repassadas de meiguice, como se fossem feitas dos beijos que ela lhe mandava.

Tornou a ver a data.

- É de 5 de Agosto. Em carruagem de posta umas duas semanas para chegar a Trieste, de lá por mar, nas melhores condições em algum bom veleiro inglês, coisa de quatro semanas até Lisboa, directamente, se sei calcular isto.

«Só em meados de Setembro estará lá. Suprema felicidade para mim em qualquer outra conjuntura! Agora, ainda mais profundo pesar! Imenso! -disse dolorosamente, levantando-se. Passeava com febril impaciência.

- Esta situação! Imprevista sem precedentes! Não bastava já o horror disto, destas condições desesperadoras em que eu volto a Portugal! Ao preço de um desastre para êle, então, antes eu a não possa ver! Antes a não veja nunca.

Parou ao pé da mesa e pôs-se a olhar vagamente para o sobrescrito.

- Mandou-ma para Ciudad Rodrigo. Provavelmente foi o ajudante de Berthier quem deu esta indicação a André Pulaski. Quem sabe a desgraça enorme que ela vai procurar em Lisboa? Lá é que eu não entro, se Massena ficar vencedor. A primeira batalha decidida que êle vencer, estoiro a cabeça. Está feito o voto. Há-de cumprir-se.

O exército francês concentrava-se. Havia suspeitas de que as tropas anglo-portuguesas do general Hill teriam passado o Tejo, para se irem reunir ao grosso das forças aliadas, num movimento geral de concentração correspondente ao dos invasores. Os portugueses de Beresford seguiriam esse movimento. A primeira quinzena de Setembro passou-se em preparativos de defesa de um lado, e por parte dos franceses nas disposições para assegurar o fornecimento de víveres ao exército.

Na secretaria do forte da Conceição, diante de um velho mapa de Portugal, traçado sob a direcção do general Dumouriez, havia largos anos, Massena estudava o definitivo plano de campanha.

Era preciso escolher um dos caminhos que se ofereciam ao invasor para ir até às portas de Lisboa. Os generais portugueses que estavam no estado-maior do Príncipe d'Essling - Alorna e Pamplona - eram chamados frequentes vezes ao quartel-general em chefe.

Luís de Castro recebera ordem para mudar de aquartelamento. Deram-lhe para moradia um cubículo no forte da Conceição, onde as velhas casernas estavam transformadas em camaratas do estado-maior general.

Dentro de Almeida não havia de pé senão as casas indispensáveis para os oficiais de uma pequena guarnição de dois mil e tantos homens.

Massena mandara vigiar melhor os oficiais portugueses por suspeitar que eles tentassem desertar com os de artilharia 4, cavalaria 11 e de infantaria 24 que tinham capitulado em Almeida. Podiam tentá-lo por estratagema, arrastando consigo mil e quinhentos ou mil e seiscentos soldados que tinham ficado prisioneiros e com os quais o Marechal mandara organizar dois batalhões auxiliares de peoneiros.

Num daqueles dias Luís de Castro andou a conversar muito com Cândido Xavier, no largo de umas velhas arrecadações.

- Então qual caminho prefere Massena?

- O do vale do Mondego.

- Foi indicação dos nossos generais?

- Não. A indicação foi, ao que ouvi, de um ajudante-de-campo do Marechal, aquele nosso conhecido Pelet, que passa por matemático insigne.

- Bem sei. Entretanto os nossos generais têem sido chamados por Massena.

- Para lhe darem esclarecimentos, mas afiançaram-me que apenas lhe teem dito umas coisas sem importância, unicamente para não levantar desconfianças no ânimo do Marechal. Pois o Alorna conhece bem a Beira e o Alentejo e podia dar-lhe esclarecimentos que fossem funestos ao país. Você bem sabe que há dele um trabalho acerca da defesa das duas Beiras e do Alentejo, que percorreu detidamente, para estudar as linhas e posições de defesa nas três províncias.

- E o general Pamplona também há-de conhecer um pouco estas terras da Beira. Sei que, durante os seus tempos de estudante de Coimbra, passava as férias em caçadas ou em jornadas de passeio com condiscípulos seus de Viseu e da Guarda. Ouvi-o eu uma vez, em Lisboa, a contar com saudades essas caçadas e passeios do seu tempo de académico.

- Pois é como se não soubessem nada.

- Honra lhes seja. E nem os franceses podem acusá-los de traidores. Fingem não saber, é a sua honesta defesa de patriotas contra esta situação crudelíssima em que nos colocaram.

- Se eles quisessem atraiçoar Portugal... Conhecem os dois estas regiões bem melhor do que todos os oficiais juntos do estado-maior de Wellington.Mas sei que o Alorna se limitou a dizer ao ajudante Pelet que tivesse cuidado com o vale do Tejo ou não fossem esbarrar contra a Serra da Estrela. Sei também que o estado-maior de Massena dispõe apenas de uma carta do país incorrectíssima.

- Massena está disposto a avançar pela margem direita do Mondego?

- Creio que sim. Contaram-me que fêz um gesto significativo assim que Pelet lhe apontou no mapa as duas cidades de Viseu e Coimbra, populosas, ricas em regiões fertilíssimas.(1)

- Excelentes presas para o saque, percebo. Mas vai sobre Lisboa pelo pior e mais longo caminho, louvado seja Deus. Ainda bem! Ainda bem!

- Foi uma lembrança que talvez dê proveito ao exército aliado. Pelet aconselha o marechal a ir pelo vale do Mondego, seguindo a margem direita por um caminho que o vai meter entre a serra do Caramulo e a de Alcoba.

- Melhor, melhor assim. E com que forças efectivas contará Massena para esta invasão?

- Ouvi dizer ao próprio general Fririon que podem dispor de 59.000 homens, com 14.800 cavalos e 84 canhões. Mas não sei se neste número incluem os doentes e as guarnições de Ciudad Rodrigo e Almeida.

Ouviram-se umas fortes marteladas. Para lá da esquina de uma arrecadação, dois carpinteiros de sapadores estavam pregando uns caixões.

- Que demónio de martelada será aquela? - preguntou o Castro.

 

*1. Justificando o plano de invasão, seguido por Massena e aconselhado por Pelet, (é Marbot quem o afirma) o coronel Delagrave diz nas suas Memórias:

«Mas seguindo pela margem direita (do Mondego) encontrava no seu caminho duas cidades ricas, importantes: Viseu e Coimbra, que não só dariam grandes recursos ao exército, como lhe serviriam de praças de armas para hospitais e depósitos de abastecimento.» (Pág. 70)

Eduardo Gachot, anotador destas Memórias, observa a pág. 82: Notemos aqui que o exército de Portugal (assim denominavam ° exército de Massena) marchava sem guias, que não tinha outras cartas do terreno que não fossem uns incompletos esboços (croquis) e que o Marquês de Alorna, muitas vezes consultado, não podia dar indicações precisas a respeito do território do seu país.

Não queria é que era.

 

- Vamos ver.

Atravessaram o largo e deram volta pela esquina da arrecadação.

De uma janela alta dos quartéis preguntaram para baixo:

- Estão já encaixotadas essas bandeiras? Quem fazia esta pregunta era o chefe de batalhão

Casablanca, um corso parente de Napoleão. Responderam afirmativamente, apontando os caixões onde tinham acabado de pintar uns dizeres a preto. Num impulso de curiosidade, ao qual não era estranho um pressentimento desconsolador, Castro aproximou-se.

Leu no primeiro caixão este dístico em francês: Bandeiras espanholas tomadas em Ciudad Rodrigo. No outro este rótulo: Bandeiras dos regimentos portugueses da praça de Almeida.

Confrangeu-se e afastou-se dali com o major Xavier.

- Arderam as casas e só aquelas bandeiras se não queimaram!

Souberam no dia seguinte que tinha partido para França o ajudante-de-campo Casablanca, um dos mais arrojados do estado-maior de Massena, levando o encargo de apresentar as bandeiras e informar o imperador acerca dos perigos da invasão, confiada a um exército que estava muito longe dos cem mil homens que Sua Majestade prometera ao Marechal: em Paris.

Casablanca devia também prevenir Napoleão a respeito do carácter feroz que a guerra poderia tomar, atentas as hostilidades implacáveis das milícias populares e a intransigência das populações, que já das aldeias da fronteira tinham fugido em massa, levando todos os recursos e destruindo aqueles que lhes era impossível arrastar consigo.! Em tais circunstâncias e dados os escassos depósitos de víveres que se podiam organizar, as privações seriam prováveis e os excessos dos soldados, nos desesperos da fome, uma consequência funesta das condições em que iam atravessar o país.

E enquanto os franceses estavam preparando tudo para a marcha ofensiva sobre Lisboa, os oficiais portugueses, agregados ao estado-maior de Massena, empenhavam toda a sua boa vontade em tornar menos dura a situação dos seus compatriotas, prisioneiros por efeito da capitulação de Almeida.

Repartiam com eles os seus recursos e a alguns muito cautelosamente lhes facilitaram a fuga para o interior do país.

Assim procediam aqueles traidores julgados como tais em Lisboa.

 

                   A pequena marechala.

A companheira do Marechal viera de Espanha para Almeida, logo que Massena lhe mandou notícia da sua marcha para o interior do país. Apareceu-lhe de surpresa e não houve indicações prudentes que a demovessem do empenho de acompanhar o Marechal.

Ia correr graves perigos, estava a percebê-los e a receá-los o apaixonado velho, mas não soube nem pôde opor-se às instâncias da amante. Lisonjeava-o tamanha dedicação e sentia bem que lhe faria falta o conselho doce e calmo daquela companheira, nalguma hora provável de aborrecimentos e dissabores. Era um doente e um misantropo, carecia daquela carinhosa enfermeira e jovial conversadora. Ciumento como um moiro, iria ralado de zelos, se a tivesse longe de si. Levá-la-ia consigo.(1)

 

*1. Segundo as Memórias de Massena, o movimento geral do exército francês para além da linha do Coa começou em 16 de Setembro.

 

O 8.o corpo (Junot) atravessou o Coa e foi ocupar Pinhel, levando atrás de si o grande parque de artilharia, os trens de equipagens e os comboios de víveres.

A reserva de cavalaria (Montbrun) bivacara na margem direita do Coa, a vanguarda do 6.o corpo (Ney) avançara para Fornos, na margem direita do Mondego, a brigada de cavalaria ligeira (Lamotte) fêz reconhecimentos até Vila Cova, a divisão Marchand ocupou Juncais, a divisão Mermet bivacou para além de Celorico. Entretanto o 2.o corpo (Reynier) avançava contra os anglo-portugueses, torneando a Serra da Estrela, repelia os postos de cavalaria inglesa na Lajeosa e aproximava-sa de Celorico de modo que a divisão Merle efectuava a junção com o 6.o corpo enquanto a divisão Heudelet ocupava a cidade da Guarda.

Wellington transferira o seu quartel-general de Celorico para Gouveia, ainda na incerteza de qual seria o caminho escolhido por Massena, se o da Fonte da Murcela pela esquerda do Mondego, se o de Viseu, apertado entre aquele rio e as serras das Aradas e Caramulo, para ir sobre Coimbra e tomar dali para Lisboa.

Desde que o exército francês rejeitava a invasão pelo vale do Tejo, como estava indicando o seu movimento para Celorico, ao general inglês só podiam restar dúvidas quanto aos dois caminhos que indicámos. Parece que Wellington supunha mais racional, e portanto mais provável a escolha do caminho que ia dar à Ponte de Murcela.

Wellington, conhecendo afinal onde tinha de concentrar a defesa, retirou com o seu quartel-general Para Ceia e chamou a si as grandes divisões que tinha em observação ao norte do Mondego e ao sul em Castelo-Branco e Tomar.

Em 19 o quartel-general de Massena estabelecia-se em Viseu e o de Wellington era transferido em 20 de Ceia para Lorvão.

O general Hill, um bravo de elevados méritos, nem esperou pela ordem do generalíssimo. Compreendeu nitidamente a situação, e marchou logo de Castelo-Branco com os seus dezasseis mil homens a reúnir-se ao grosso do exército aliado. A divisão do general Leith seguiu também este movimento sobre a linha do Alva.

Na margem esquerda do Mondego, para trás daquele seu afluente, estava em observação a cavalaria do general Fane. As tropas de Lecor (Leal Legião Lusitana) ocupavam a serra da Murcela. O grosso das forças aliadas iria concentrar-se na serra do Bussaco. A divisão ligeira de Crawfurd passaria para a margem direita do Mondego, abrigada portuguesa do general Pak defenderia a passagem do Criz.

Em Celorico, Massena optara pelo pior dos dois caminhos que podia seguir para ir sobre Coimbra. Nós já sabemos as razões desta preferência. Viseu era uma cidade importante e rica, atraía-o aquela conquista para o saque e para as frases campanudas da ordem do dia.

E os oficiais portugueses não tinham querido dizer ao Marechal que fecundo vale era aquele ao sul do Mondego, até à Ponte da Murcela, nem que formidável barreira êle iria encontrar nas serranias do Caramulo e de Alcoba diante de si, naquele caminho para Coimbra.

Ao contrário, Alorna falara a Pelet nos seus vagos receios pela região agreste da Serra da Estrela e pelo caminho para a Ponte da Murcela. E disto mesmo lhe falara vagamente e como de informação ouvida em tempo, à qual não podia dar a autenticidade da sua observação pessoal.

Nas marchas de Celorico para Viseu, por caminhos horrorosos, cortados de barrancos, alcandorados por montanhas, as viaturas dificilmente podiam ir a passo e de espaço tombavam ou se quebravam contra os barrocais.

Foi por este motivo que a loura companheira de Massena teve de vestir o seu travesti de oficial de dragões e montar a cavalo para aquelas aspérrimas jornadas. O marechal teve acanhamento de a levar a seu lado, à frente do seu espectaculoso estado-maior e deliberou que o gentil dragão seguisse a larga distância, entre a cauda do corpo principal e a grande guarda da retaguarda.

Dera-lhe por escolta um destacamento de cinquenta dragões, comandado por um velho oficial, feio como um tártaro.

Detestável cavaleiro como sempre fora, Massena lá ia para a frente, engoiado sobre o cavalo, sabe Deus com que pesar de não levar bem junto de si aquele dragãozinho, loiro e meigo, que dava apetite de beijos aos oficiais moços e fazia sorrir à socapa os velhos soldados. Mas, de tempos a tempos, metia o cavalo para a retaguarda, por qualquer pretexto pueril de general em chefe, e lá ia vê-la e receber-lhe a carícia de um sorriso. Assim se dava ao desfrute aquele velho leão de indomável arrogância nos campos de batalha!

Dos oficiais portugueses agregados ao estado-maior, os de mais alta patente iam na frente com o Marechal, os outros entre as tropas da retaguarda e a escolta do gentil dragão.

Durante a demora em Almeida haviam chegado quási todos os que na primeira semana de Agosto tinham partido de França.

Luís de Castro acompanhava os seus camaradas de patente igual ou inferior à sua. Iam todos a cavalo, sob a vigilância do major Maurin e de dois capitães de cavalaria.

- Isto é o caminho do inferno! Diabos levem semelhante país! - praguejavam, estiraçados pelas bordas da estrada, os soldados a quem a marcha estropeara.

- Nem água, nem pão nestas terras desertas! - clamavam outros, doidos de sede, já exaustos de forças.

Tinham saído de Celorico ainda de noite por causa do calor. Era sobre a madrugada, precisamente quando todas as energias se adormentam e as marchas militares são mais extenuadoras.

Marginavam o caminho filas de esmorecidos, de sequiosos, de escalavrados com os pés em sangue.

- Esses cães desses portugueses até a água parece que sumiram! Antes combater! Antes a pior batalha do que marchar por estes malditos caminhos!

Nas aldeias nem vivalma. As tulhas queimadas, as casas de portas e janelas cerradas como se lá tivesse morrido alguém, destroços os pomares e as hortas, entupidas as fontes, arrasados os moinhos, charcos de vinho a tornarem-se em lama vermelha às portas das adegas.

Vinha depois a soldadesca retardatária e arrombava à baioneta as portas dos casebres, esquadrinhava tudo, invadia as igrejas, derribava os altares vazios, revolvia os chiqueiros em busca de alguma coisa enterrada, vagueava numa fúria doida por todos os recantos da povoação.

Nenhuns recursos, absolutamente nada!

- Os malditos levaram tudo, até os santos!

Então refluíam para as adegas e de bruços punham-se a sorver da lama o vinho extravazado. Assim matavam a sede e enganavam a fome.

Depois, num arranque de vindicta, alguns desses embriagados na lama das adegas faziam lume com as pederneiras das espingardas nas palhas secas das camas e deitavam fogo a tudo aquilo e abalavam a cambalear, uivando pragas e obscenidades.

A aldeia morta lá ficava atrás deles a crepitar, a enovelar-se em chamas, a desfazer-se em cinzas.

E assim dezenas de lugarejos, marcos sinistros daquela marcha!

- Esta amargurada campanha de horrores, em que nós vamos, forçados comparsas do Império - disse o Castro para um dos seus companheiros - Entendem esses desvairados que os pobres aldeãos deviam ter a mesa posta e o celeiro provido para eles, os implacáveis invasores do seu país! Queriam que os montanheses ficassem para ver como lhes violavam as irmãs e as filhas e lhes roubavam o pão das crianças. E como não ficaram, arrasam-lhes então os lares e deitam-lhes fogo! E nós forçados a ver isto! Se já se inventou tortura de alma igual a esta nossa!

E lá para a frente os velhos oficiais das guerras do Império a comentarem aquilo em palavras frementes de cólera.

- Fugiram em massa, destruíram tudo, fizeram disto um deserto, no intento de nos mudar em marcha lúgubre de privações esta campanha, que principiou para nós por uma fácil vitória!

- E há-de acabar por outra às portas de Lisboa.

- Isto, esta fuga excepcional, esta destruição de tudo, há-de ser imposição dos ingleses. Foi com certeza.

- Aceita e resignadamente obedecida pelo patriotismo feroz desses selvagens, que por suas próprias mãos se arruinam para nos dificultarem a conquista!

- Nunca se viu isto nas nossas campanhas de Itália!

- Nem nas da Alemanha. Assim nem no Tirol, nem na própria Espanha! Fugiam os mais tímidos, os mais intransigentes, os que mais receavam as nossas cóleras mas as cidades e aldeias ficavam com todos os seus recursos, com todas as suas comodidades. Depois das batalhas já sabíamos que os nossos depósitos de fornecimento estavam dentro das próprias povoações dos vencidos.

- E foi assim que nós nos sustentámos em Itália. Olhem a fartura em que vivemos naquele admirável país da Lombardia.

- Em Turim, em Nápoles, em Roma, como se fossem cidades nossas.

- E em Berlim e em Viena comodamente, no consolo da sua abundância e dos seus esplendores.

- Só aqui esta ferocidade de patriotismo, espicaçado pela crueldade inglesa! Não se atrevem a dar-nos batalha, e retiram sempre, a suporem que nos pode amedrontar este país de aldeias mortas e campos desvastados!

- Uns e outros, ingleses e portugueses, hão-de pagar tudo isto no dia em que nós os apertarmos contra os muros de Lisboa.

- Que não há-de tardar esse dia.

- Havemos de afogar no Tejo os ingleses de Wellington, esse general de cipaios(1) e Portugal ficará sendo uma província avassalada do Império.

Aproximavam-se de Mangualde e nem um indício sequer de vida naquela povoação, como se lhe fosse indiferente a chegada dos invasores ou estivesse a cem léguas do teatro de guerra! A vila estava deserta como as aldeias até ali encontradas. As fontes entulhadas, os celeiros vazios, uma regueira de vinho sujo a fazer um lamaçal à porta das adegas. Ainda encontraram o rescaldo de uma grande fogueira na praça principal e um cheiro nauseabundo a carne queimada. Revolveram-no com as baionetas. Acharam pedaços de toucinho quási em carvão, grãos de trigo e milho incompletamente carbonizados.

 

*1. Assim lhe chamou Napoleão numa frase deprimidora do Moniteur. Wellington fizera as suas primeiras campanhas na índia e por sinal com alta distinção e incontestável glória para as armas inglesas. Dá-se o nome de cipaios aos soldados indígenas da índia.

 

- Os selvagens queimaram o que não puderam levar! - bramia a soldadesca.

E foram para o chão das adegas lamber a vinhança. Alguns de mais fortuna encontraram nas depressões do solo poças cheias de vinho a espumejar, e embriagaram-se.

Vieram então os desatinos. Foram à igreja matriz. Tinham lá ficado esquecidas duas velhas imagens. Os ébrios espicaçaram-nas e foram pô-las a arder na praça.

- Como eles fizeram ao trigo! - clamavam. Uns esquadrinhadores encontraram escondido

num chiqueiro, quási sepultado no estrume, um velho miserável e cego.

Ao pé dele, deitado, emudecido como se percebesse o perigo em que estava o dono e receasse denunciá-lo, um rafeiro escanzelado, com os olhos rasos de água. A soldadesca borracha fêz uma algazarra selvática.

- Cá temos um que há-de pagar pelos outros que fugiram!

- Raposo velho!

- Por amor de Deus! Tenham dó! - suplicava o cego.

Não o entendiam. Mas o rafeiro, como se quisesse chamar a atenção dos soldados para a súplica, pôs-se a lamber de rastos os pés descalços do velho.

Um granadeiro atirou-lhe um pontapé brutal. O rafeiro foi cair estatelado contra o muro do chiqueiro num ganir que fazia dó.

- Mondego! - chamou o velho enternecidamente - Não o matem, coitadinho.

Sem o entender, a soldadesca arrancou-o dali para fora, numa impiedade de escárnio, numa ferocidade de verdugos.

- Olhem que o velho é músico! - disse um soldado, mostrando uma viola que encontrara no covão do chiqueiro.

- Pois há-de tocar antes de morrer.

- Tocar e cantar - lembrou outro. Aprovaram numa galhofa ensurdecedora e lá a

levaram aos tombos para dentro da igreja matriz

- Vamos ter aqui função lírica. Risadas, aplausos. A igreja enchia-se.

- Mire, vais usted a cantar - disse-lhe num misto de espanhol e português certo cabo que estivera em Lisboa com o exército de Junot e andara em campanha contra os espanhóis, durante o ano de 1809.

Riram doidamente os outros.

- Valha-me o Senhor Jesus dos Aflitos! - murmurou o velho a tremer.

- Una cantiga ou se lhe rompem las tripas - insistiu neste bárbaro mistifório de português e espanhol, metendo-lhe a viola nas mãos.

Revoou pela arcaria da igreja uma gritaria infernal, instando pelos cantares do velho.

O que falava aquela língua de trapos luso-espanhola teimou, fazendo-lhe ameaças de morte, que reforçou chegando-lhe ao pescoço a ponta da baioneta.

Enfiado, afogados de lágrimas os seus olhos brancos, o velho segurou a viola, pôs a cabeça à banda como quando ia de arraial em arraial a mendigar cantando e começou a tocar numa tremura de pavor.

Depois, a voz como que velada de lágrimas, cantou tristemente:

 

     Nossa Senhora sofreu Pelo seu filho Jesus,

     Eu então não tenho mãe

     E vou só p'r'á minha cruz!

 

E o Mondego, coitadito, como se fosse num dia soalheiro de arraial e ali o chamasse um dever, entrou pela igreja quási de rastos, a cauda caída, humildemente, deu volta pelos degraus dos altares e foi agachar-se junto do dono, a lamber-lhe os pés, os seus grandes olhos meigos cheios de lágrimas.

- Não presta!

- É uma chiadeira!

- A voz desse diabo lembra uma gaita de foles daqueles escoceses que nós vencemos na Corunha.

E de todos os lados esfuziavam assobios de troça.

- Escavaquem-lhe a viola.

- O melhor é esganá-lo já.

- Mondego! - disse o velho, apalpando o rafeiro - Amigo meu até à morte!

- Esse tem de pagar pelos ingleses e pelos outros! - bramiu do fundo da igreja um ébrio.

Vinte vozes repetiram esta bárbara ameaça. Dois bêbedos levantaram no ar, violentamente, o pobre cego.

- Misericórdia! - suplicou.

E como se estivesse percebendo bem tudo aquilo, o Mondego uivava desesperadamente.

- Retalha-se por conta dos outros. Em memória dos nossos feridos e dos nossos estropeados que os selvagens de Portugal têem assassinado.

- Por esses!

- A morte.

- Vão assassinar um pobre velho! - gritou alguém à porta em português.

Era o João Luís, que tinha assomado ali por curiosidade e dava alarme a Luís de Castro.

Haviam chegado momentos antes. Massena fora aos postos avançados para reconhecer a posição. A escolta da pequena marechala estava apeando-se no largo.

- Soldados! - gritou-lhes o Castro em francês -, Ides infamar o nome da França.

Voltaram-se surpreendidos.

- Um oficial! - disse um velho cabo.

- É dos portugueses, não pode mandar-nos - acudiu outro.

- Mas pode retalhar as faces ao primeiro que puser mão nesse velho! - bramiu o Castro, indo para êles de espada erguida.

- Mata-se também. Espadas e baionetas contra ele! - rugiu um.

- Mata-se! - bramiram quási todos.

- Em nome do Marechal, Príncipe d'Essling, soldados franceses! - gritou do guarda-vento uma voz trémula de mulher -, Pela honra da França! - acrescentou, avançando uns passos.

Era a companheira de Massena, ainda no seu travesti de oficial de dragões.(1)

Houve um movimento de estranheza e enleio naquela turba enfurecida.

- É a menina do Marechal, a nossa pequena marechala - disse baixo para os outros um antigo soldado da batalha de Caldiero, um condecorado d'Essling.

E logo acrescentou em voz alta:

- Camaradas, é preciso obedecer. É uma dama e fala em nome do filho querido da vitória,

- Viva o Marechal! - gritaram outros.

- O nosso Marechal - acrescentou o veterano de Caldiero - esse que nunca foi vencido e nos vai levar a Lisboa, para afogarmos os ingleses.

 

*1. Nas suas Memórias, Laura Junot conta assim um episódio, sucedido meses antes em Valhadolide, quando lá chegou Massena:

«A coisa de uma légua da cidade avistámos as equipagens do Marechal Massena, vinha na frente de todas as carruagens, numa pequena caleça descoberta, pois que o tempo estava excelente.

«Trazia a seu lado (os dois sozinhos) um oficial de dragões, muitíssimo novo, que, apesar da sua extraordinária mocidade, já trazia ao peito a cruz da Legião de honra.

«Mas Junot teve vontade de rir, pois que naquela mesma ocasião lhe tinham dito que o companheiro da caleça era uma mulher nova e bonita».

 

- Viva o herói de Zurique, de Rivoli, de Essling,

de Wagram!

Cem vozes repetiram calorosamente estes dizeres e logo em fila foram saindo, baixando a cabeça respeitosamente diante daquele fingido oficial de rosto esmaecido, de olhos azuis claros, meigos, tristes, de cabelos de oiro sob o seu capacete de dragão, reluzente como os capacetes dos arcanjos nos painéis góticos das velhas catedrais.

Castro acercara-se do velho, ainda de rojo no chão, a tremer. Levantou-o.

- Teve por si um coração misericordioso de mulher - disse-lhe.

- Quem é que me fala assim?!

- Um desventurado desta terra de Portugal.

- Então os franceses já se foram?

- Já. Agora é preciso fugir.

- Não posso, não vejo!

E só então Luís de Castro notou que o velho era cego.

- Pois eu o levarei comigo.

- Se v. s.a quer, eu tomo conta dele e vou escondê-lo aí fora da vila, até que os franceses saiam - lembrou o João Luís.

- Para o caminho de Nelas o meu cãozito sabe guiar-me.

Castro reparou no rafeiro, a saltar-lhe em volta das pernas, a levantar para êle um olhar cheio de ternura e de júbilo.

- Era para lá que devia ter fugido, antes que os franceses chegassem - disse-lhe Luís de Castro.

- O cãozito ouviu tambores daquelas bandas, sentiu o barulho do povo que fugia e teve medo. Não foi capaz de sair da vila, e puxou-me para o canto onde foram dar comigo.

A companheira de Massena estivera à porta falando com o velho oficial da escolta.

- Sr. Capitão - disse indo para o Castro -, se quiser, eu peço ao sr. Marechal que mande proteger este velho. Faz dó!

- Cego, coitado! - disse-lhe o Castro, cumprimentando-a gentilmente.

- E talvez a viver de esmolas, coitadito! Só traz farrapos em cima de si!

- Mendigava? - preguntou-lhe Luís de Castro.

- Andava por essas feiras e romarias a cantar e a tocar para me darem esmola. O meu cão era o meu companheiro, o amigo que me restava, o moço que me ia guiando por esses caminhos fora. Em rapaz fui abegão, lá prás bandas de Mortágua. Daqui muito longe. Criei-me numa quinta muito lá para aqueles sítios. Chamavam-lhe a quinta das águias.

- Essa quinta a conheço eu bem - acudiu o Castro, comovido.

- É de uma gente muito rica de Lisboa, gente fidalga. Que o dono verdadeiro foi oficial da marinha de guerra e perdeu um braço.

- Conheço-o?

- Vi-o lá uma vez, já eu tinha deixado de ser criado da casa. No ano a seguir foi que eu ceguei. Há que tempo que isso foi!

Castro aproximou-se mais da companheira do Marechal e reproduziu-lhe em francês as declarações do velho no tocante ao seu modo de viver!

- Vai comigo - disse a francesa docemente - Peço ao Marechal que o proteja, dou-lhe alguns recursos e deixa-se livremente quando as nossas tropas sairem daqui. Queira dizer-lho, sim?

- Da melhor vontade, minha senhora. Foi para o velho e disse-lho.

- Mas o cãozito também vai comigo?

- Sim, pode ir.

- Tem sido o meu amparo e nunca tive amigo maior! Eu queria beijar a mão dessa pessoa abençoada que me acudiu.

- O pobre velho - disse o Castro à francesa -, aceita e bendiz o seu auxílio providencial, minha senhora. Deseja beijar-lhe a mão.

- Não, não. O desventurado velho!

- Então, minha senhora, beijo-lha eu por êle - disse, tomando-lhe a mão, que beijou levemente.

A francesa afogueou-se perturbada.

- Não esquecerei nunca este rasgo misericordioso da sua grande alma. Por este velho e miserável compatriota meu, que o seu coração intrepidamente salvou, serei eu o devedor, e oxalá que me seja dado amortizar de algum modo esta grande e santa dívida. Por êle e por mim, no mesmo enternecido encargo de gratidão. Não me intimidava a morte...

- Eu sei já quem sois...

- Mas, sem a sua intervenção, minha senhora, encontraria aqui, certamente, a morte inútil, inglória, a única, sem dúvida, que deve intimidar um soldado.

O velho oficial da escolta veio avisar a francesa de que o Marechal voltara dos postos avançados.

- Vamos já, Capitão.

Sairam da igreja. Atrás da companheira de Massena, o João Luís amparando o mendigo, o Mondego em volta deles nuns pulos de alegria.

Castro afastara-se. Já sabia que o Príncipe de Essling andava sempre devorado de ciúmes por aquela meiga amante, a quem os soldados, na galhofa dos acantonamentos e dos bivaques, chamavam sensualmente a pomba do Marechal.

Ainda de noite as tropas francesas tomaram o caminho de Viseu.

Iam com maiores precauções, porque os esclarecedores haviam trazido aviso de que, para as bandas de Nelas, tinham avistado destacamentos de milicianos portugueses que já estavam fazendo a pequena guerra e inquietando as tropas francesas com não menos audácia que os guerrilheiros espanhóis.

Prosseguia a marcha lentamente, havia coisa de duas horas, e começava a romper a madrugada, quando num cotovelo do caminho estrondeou uma descarga e na crista de uma ribanceira reluziram as baionetas dos milicianos. Depois outras descargas para a retaguarda.

O grosso da coluna francesa havia-se distanciado muito para a frente.

A escolta da companheira do Marechal, demorada na volta da estrada por ter caído com uma dor o cavalo que ela montava, enovelou-se um pouco, espavorida por aquela surpresa.

Ouviram-se mais tiros para a frente. Percebia-se que a investida era simultaneamente pela vanguarda,, centro e retaguarda.

Tiroteio de um ou dois milhares de milicianos teve tanto de ousado como de inconsistente. Não passaria talvez de uma bravata indisciplinada para perturbar a marcha dos invasores. Dez minutos depois, grandes massas de dragões carregavam os milicianos em fuga.

E no ímpeto do contra-ataque, até a escolta da francesa deitou à desfilada sobre os milicianos dispersos. Apenas o velho oficial e onze soldados tinham ficado ao pé dela na estrada.

De repente um troço de homens a cavalo desembocou a toda a brida da garganta de um valezito estreito, cingido de montanhas. Vieram de turbilhão sobre a estrada. Não tinham uniformes militares, traziam chapéus de aba larga, pretos, nizas, coletes, e calças pretas. Clavinas sobre o arção da sela,, chuços com bandeirolas pretas em guisa de lanças. Era talvez de guerrilhas aquele estranho esquadrão negro. À frente, num arrojo louco, um homem corpulento, já velho, brandindo alto uma longa espada.

A francesa estava ainda apeada. O velho oficial da escolta pôs-se em frente dela para a defender e pediu-lhe que se ocultasse num recanto da estrada, detrás de uma oliveira de grande tronco musgoso.

Pálida, trémula por aquele ataque de improviso, cujo alcance não podia avaliar, a pobre senhora encostou-se à árvore num movimento de desânimo. Os guerrilheiros tinham já envolvido os onze homens da escolta.

- Rendam-se! Entreguem as espadas! - clamava em francês o chefe da guerrilha.

- Aqui ninguém se entrega! - respondeu altivamente o oficial dos dragões.

Os guerrilheiros apertaram mais com os soldados. Dois dragões caíram varados pelos chuços, um dos da guerrilha fora a terra abatido por uma cutilada.

O chefe do esquadrão negro investiu então com o velho oficial e conseguiu derribá-lo com uma cutilada.

- Atacaram a escolta da amante do Marechal! - gritaram uns soldados para a retaguarda.

- Está prisioneiro - disse o caudilho de cabelos brancos, deitando as mãos às dragonas do pobre dragãozito de cabelos loiros e rosto imberbe.

Chegava a este tempo da retaguarda, a toda a brida, um oficial.

- Homens de Portugal, suspendei! Suspendei! Surpreendidos por aqueles brados de alguém que falava a sua língua, mas também oprimidos pela ideia de que estavam cortados, os guerrilheiros meteram os cavalos à desfilada para o valezito donde tinham desembocado.

E o homem que dera aquele brado fora esbarrar contra o cavalo do chefe da guerrilha, que se voltou rapidamente, de espada erguida para o acutilar. Mas o braço caiu-lhe esmorecido. O outro não tirara a espada da bainha, o outro era Luís de Castro.

- Tu, aqui!

- Tio Manuel! Está aqui uma senhora que os fidalgos de Portugal não podem agredir! - disse-lhe indicando a francesa - Aquele uniforme é um disfarce.

- Levo-a prisioneira: é o meu direito - disse Manuel de Albuquerque.

- Tio, não pode, não deve.

- A tua amante?

- Uma dama que eu prometi defender. Tio, defendo-a, pondo-me na sua frente, sem o agredir, para morrer às suas mãos, cumprindo a minha promessa.

Ouviram-se toques de clarim, brados de comando, uma grande estropeada de cavalos.

- Tio, fuja!

- És então pelos franceses e estás com eles?!

- Bem vê que não - respondeu-lhe, indicando a espada que não tirara da bainha - Peço-lhe que fuja. Vão matá-lo! Pela nossa terra, fuja! Por este Portugal que eu não posso defender.

- Sim, por êle. Saberás de mim.

E meteu esporas ao cavalo numa desfilada vertiginosa para a garganta do desfiladeiro.

Era tempo. Forças de Infantaria chegavam a marche-marche, voltavam os esquadrões que tinham dispersado os milicianos.

Ainda dispararam uns tiros contra aquele homem que retirava numa carreira fantástica.

- Meu Deus! Se o matassem! - disse consigo Luís de Castro, num confrangimento de alma.

E todo este lance não chegara a durar um quarto de hora! Estava já manhã clara.

Luís apeou-se e foi para a francesa, que estava imobilizada de pavor.

- Senhora, deu-me Deus a fortuna de lhe ser útil.

- Pagou generosamente a dívida de que ontem me falou - respondeu-lhe tremente.

Tinham-se juntado muitos oficiais e todos eles inquiriam do que sucedera. Massena chegou esbaforido. Vinha furioso.

- Correste perigo? - preguntou enternecidamente à francesa.

- Pensei que morria.

- Esses selvagens hão-de expiar a sua audácia com lágrimas de sangue! Levem daqui esses feridos - mandou.

E logo, voltando-se outra vez para ela:

- O perigo aqui e eu a correr para a frente na suposição de que se tratava apenas de um ataque de surpresa contra as avançadas do exército! O teu cavalo?

- Caiu com uma dor. Está ali morto. Massena mandou que lhe trouxessem outro.

- Alteza! Aqui está o meu - disse-lhe Luís de Castro.

O marechal avincou o rosto. Ainda não tinha reparado nele.

- O que faz aqui? - preguntou-lhe asperamente, num torvo movimento de ciúmes.

- Marechal - acudiu a francesa - foi quem me defendeu, quem me salvou, livrando-me das mãos de um guerrilheiro que me queria levar.

E resumiu-lhe com adorável singeleza o lance em que Luís de Castro interviera com admirável abnegação e coragem.

O Marechal envolveu o moço oficial num olhar comovido. Com as subtilezas do seu espírito de mulher inteligente, a francesa contara-lhe as coisas de modo a dissipar do coração do seu velho amante qualquer ciumenta desconfiança.

- Capitão, agradeço-lhe - disse o Príncipe, estendendo-lhe a mão -, Ser-me-á agradável qualquer ensejo que tenha de lhe provar o meu reconhecimento pela sua nobre e corajosa dedicação.

Entretanto, firmemente prometia a si mesmo desviar cautelosamente do convívio da amante aquele oficial, atraente, cavalheiroso, com o duplo prestígio dominador da sua bela mocidade de galã e do seu destemido ânimo de paladino. Devia ter uma influência perigosa no coração das mulheres devaneadoras.

Naquele mesmo dia o quartel general de Massena ficava estabelecido na velha cidade de Viseu.

Estava abandonada, deserta, parecia uma cidade morta num suicídio de abnegação patriótica.

Só ali encontraram uvas e limões, deplora Marbot.

Nas Memórias de Massena, pelo general Kock, encontra-se um trecho que nos deixa perceber o desespero que os invasores deviam ter sentido.

É este: «Viseu, cidade de seis a sete mil almas, edificada numa colina adjacente a uma fértil planície, entre o Mondego e o Vouga, fora abandonada pelos seus habitantes. Apenas se encontravam alguns velhos, que estavam escondidos nas adegas.»

A demora em Viseu foi excessiva e sem razões de carácter militar que a justificassem. - A intriga dos ilustres generais invasores falava alto contra o Príncipe de Essling, o velho apaixonado, e uma vez por outra atingia proporções de escandalosa insubordinação. Não perdiam ensejo de o contrariar. E os piores despeitados eram exacta mente os dois de mais audacioso ânimo - Ney e Junot. Um e outro se julgavam com direito ao comando em chefe do exército invasor, que Napoleão dera àquele velho lamecha.

É verdade que a malquerença não era só deles para o glorioso Marechal. Loison, por exemplo, odiava profundamente Miguel Ney e por algumas vezes Massena teve de intervir para evitar deploráveis conflitos entre aqueles dois irascíveis.

Reynier, homem de ciência e de elevada esfera intelectual, era também um orgulhoso, fora um insubmisso no Egito, quando sob as ordens do general Menou, mas não era ainda o mais hostil ao generalíssimo, talvez por ainda não ter tido ensejo para isso.

E não pode dizer-se que fosse uma individualidade militar apagada ao pé dos seus dois colegas, comandantes de corpos de exército. Longe disso.

Valendo intelectualmente muito mais do que qualquer deles, pelos honrados escrúpulos muito superior aos dois, Reynier assinalara-se na campanha da Bélgica, sob o comando de Pichegru e depois na conquista da Holanda, general de brigada com vinte e três anos, tornou-se notável nas campanhas do Reno, foi um bravo na batalha das Pirâmides, cobriu-se de glória em São João d'Acre, bateu-se em Wagram. A sua derrota de 1806 no combate de Maida (Calábria) contra o general inglês Stuart não era sombra que chegasse para o apagar ao lado dos grandes generais de Napoleão, entre os quais não podia ser dos primeiros, mas era, sem dúvida, o mais ilustre de todos pela inteligência e pelo saber.

Não faltava quem explicasse a demora de Massena em Viseu por enleios e pieguices de amante sediço.

Dizem-nos as memórias de alguns escritores militares franceses, di-lo o próprio Marbot, indignado contra aqueles vagares que favoreciam a concentração do exército anglo-português de Wellington e prejudicavam paralelamente as operações das tropas invasoras.

Massena dava como razão oficial a necessidade de esperar que se aproximassem mais os trens das equipagens e das munições e que à retaguarda do exército se fossem acumulando os abastecimentos indispensáveis para atravessar o país.

Receava que lhe viessem a faltar os recursos de alimentação, se dali para diante os povos fossem abandonando os lares e destruindo sistematicamente todos os víveres que não pudessem levar consigo, como tinha sucedido desde Almeida e Pinhel.

Mesmo para viverem em Viseu era preciso que os mantimentos viessem dos depósitos de abastecimento que havia em Almeida e Ciudad Rodrigo.

Aquelas terras férteis da Beira eram agora para os franceses como se fossem areais requeimados de um deserto que nem sequer tinha oásis.

Sem contestar as alegações oficiais de Massena, a verdade era que, para semelhante demora, também havia razões íntimas que êle não podia confessar. Os incómodos daquelas ásperas jornadas, os incómodos e os sustos, tinham abalado profundamente os nervos de Madame X. Chegou a Viseu oprimida pelo cansaço e pelos seus dolorosos pressentimentos.

O Marechal não tinha coragem de se apartar dela deixando-a assim numa cidade onde lhe não era permitido manter uma guarnição, sem desfalcar perigosamente o efectivo do exército, dentro em pouco certamente empenhado numa grande batalha contra os anglo-portugueses. É que havia muito a recear das numerosas forças de milicianos, que os generais portugueses e ingleses podiam arrojar sobre os flancos e a retaguarda do exército.

Um acontecimento de espantosa audácia veio dar fundamento a estes seus receios e de algum modo justificar os dois primeiros dias de demora.

Os generais, comandantes de corpos de exército, tinham vindo dos seus distantes acantonamentos para conferenciarem com o generalíssimo a respeito do plano de operações.

Foi um conselho tempestuoso, como outros que tinham tido em Espanha. Na sofreguidão de contrariar Massena, sempre roído de ciúmes pela gloriosa preponderância do colega, a quem Napoleão preferira e solicitara para aquele comando em chefe, tendo-o a êle na Península, o Bravo dos Bravos de Friedland, Ney não perdia ocasião de amargurar o velho de Rivoli e, algumas vezes até, com escandalosa incoerência das suas próprias opiniões. O caso era hostilizá-lo.

Junot, o frustrado marechal, era outro ressabiado a secundar Ney e a desejar talvez que Massena encontrasse em Portugal algum revés como o dele no Vimeiro.

Já nos referimos a Reynier.

Sem os mesmos estímulos de inveja dos seus colegas, era também um insubmisso à espera da ocasião em que pudesse ser desagradável a Massena.

Mas o Príncipe d'Essling não queria prejudicar aquele grave cometimento que o Imperador lhe confiara, impondo-lhes duramente a sua autoridade hierárquica e a sua energia de vontade, e procurou amortecer as vaidades e as irritadas invejas que se lhe queriam atravessar no caminho.

O caso foi que sairam do conselho aparentemente congraçados.

Eram horas de jantar, os quartéis-generais ficavam longe, e Massena, apesar da sua misantropia, lembrou-se de assegurar melhor a conciliação com a amabilidade de os convidar para a sua mesa.

Era ainda uma fraqueza do seu coração de amante. Queria esperar que a sua estremecida companheira se refizesse de forças e a consciência dizia-lhe que praticava um erro grave, de que os seus imediatos o podiam acusar com plena justiça.

Já durante a sessão do conselho lhe tinham censurado os vagares da marcha, e as razões militares que êle lhes dera facilmente lhas combateram por insignificantes.

Procurava agora quebrar-lhes a hostilidade com aquele acto naturalíssimo de boa hospitalidade.

Aproximá-los-ia de si em requintes de consideração e de afectuosa camaradagem. Talvez assim lhes desvanecesse um pouco as rancorosas vaidades e os pusesse menos agressivos e desdenhosos para a modesta senhora que o acompanhava.

Instou muito com eles para ficarem. Aceitaram. A tarde estava bonita e o Marechal tinha ordenado que pusessem as mesas no jardim, ao ar livre.

E tão lhano e afectuoso estava naquele dia, que mandou juntar à sua as mesas dos ajudantes-de-campo. Seria uma deliciosa refeição naquela comunicativa familiaridade.

Os criados esperavam para servir o jantar. Foram para a mesa. Mas faltava Madame e Massena mandou-a avisar. Apareceu, vinha pálida, mas assim que viu Ney, Reynier, Junot e Montbrun, com quem não contava, afogueou-se muito num enleio de timidez, que Massena percebeu. Sentia-se ali numa falsa posição a pobre senhora.

- O meu caro Marechal vem para aqui - disse Massena ao Duque d'Elchingen, indicando-lhe o lugar - Madame fica deste lado.

E apontou a cadeira à direita de Ney, fazendo-lhe num gesto o pedido de a ir buscar.

- Madame, o sr. Duque vai conduzi-la para a mesa.

Estavam todos de pé, numa situação embaraçosa.

Ney fêz-se pálido, dirigiu-se para ela com um aprumo frio de convidado de pedra e trouxe-a pelas pontas dos dedos, como diz Marbot nas suas Memórias.

Foi um jantar tristíssimo, de cóleras reprimidas para Massena e de brutais humilhações para a pequena Marechala, que, a despeito de tudo, era uma senhora modesta, inteligente, de esmeradas delicadezas.

Sentado junto dela, Ney não lhe disse uma palavra sequer de cumprimento banal e levou todo o jantar a conversar com Montbrun, sem fazer caso dela.

Junot e Reynier trocavam sorrisos equívocos.

Madame X, como a trata Marbot, não pôde resistir àquela grosseria esmagadora, perturbou-se, empalideceu mais, saltaram-lhe lágrimas dos olhos e afogou-se numa onda de soluços. Teve então um ataque violento de nervos e desmaiou.

Massena corre para ela, aflito, e Ney coroa a brutalidade, voltando-lhe as costas e saindo do jardim, a dizer alto umas rudezas de tarimbeiro. Reynier, Junot e Montbrun seguem-no, colaborando naquela brutalidade de arrieiros.

Ficavam afinal mais profundos os rancores entre os chefes do exército. Massena cometera um erro de bom senso, Ney uma violência brutal contra os mais vulgares preceitos de delicadeza.

Anos depois o puritano, o casto Duque d'Elchingen, havia de descer imensamente mais do que Massena e em mais rídicula pieguice amorosa, a reboque de uma tal Ida Saint-Elme, amante de vários, de tantos contemporâneos seus, desde Pichegru e Moreau até Talleyrand e Napoleão, que lhe puseram a alcunha deprimidora de Viúva do Grande Exército.

Mas a pobre Madame X foi levada em braços para a cama. Aquela humilhadora brutalidade oprimira-a imensamente mais do que todas as fadigas e sustos das últimas jornadas.

Em 21 ainda em Viseu se não tinha notícia do trem de equipagens, do grande parque de artilharia e das munições, que deviam vir a caminho da cidade.

Massena andava inquieto com esta falta de notícias. No dia seguinte, já tarde, chegou um oficial de gendarmes a cavalo. Trazia participação urgente para o Marechal.

Vieram avisar Massena de que um oficial da escolta do parque pedia licença para lhe falar.

- Ora ainda bem! - exclamou o Marechal. - Que entre.

O oficial apresentou-se-lhe. Vinha branco de poeira do caminho.

- Chegaram, afinal! - disse-lhe logo Massena.

- Alteza, só amanhã poderão chegar.

- Porque razão tamanha demora?!

- Os caminhos estão um horror! As viaturas tombam de momento para momento, e as récuas de muares esbarram a cada passo! Em tal estado esses detestáveis caminhos, que tínhamos de perder horas a consertá-los para que pudessem passar as pesadas viaturas do parque! E, mesmo assim, todos aqueles carros numa só fila, que se perdia de vista. Mas a maior demora foi causa de um combate que tivemos.

- Um combate?! Combate com quem?

- Com os milicianos portugueses. Uns dois ou três mil, creio eu, com um cento de cavaleiros, aproximadamente.(1)

- E depois?

- Atacaram-nos de frente e de surpresa, pelas 4 horas da tarde do dia 20. Tivemos o parque, as munições e os carros de víveres quási perdidos!

- E a cavalaria do general Montbrun?

- Tinha ficado muito para a retaguarda, creio que para não fatigar mais os cavalos, em grande parte estropeados por esses horrorosos caminhos.

 

*1. Marbot avalia em 5000 homens a força dos milicianos, mas Carlos Napier, o ilustre historiador militar inglês, afirma que eram 2000 com trinta cavaleiros.

 

- Que escolta traziam?

- Um destacamento de gendarmes a cavalo e três batalhões de infantaria.

- Três batalhões do exército francês, quer dizer, pelo menos mil e oitocentos ou dois mil dos melhores soldados da Europa, podiam e deviam esmagar em alguns minutos esses dois ou três mil milicianos.

- Alteza, batem-se arrojadamente.

- Gente bisonha, que nunca viu uma grande batalha.

- Pois são mais para temer do que os guerrilheiros de Espanha. As nossas forças da frente chegaram a formar o quadrado.(1)

- Porquê? Por causa do tal esquadrão?

- Veio impetuosamente para nós. Chegaram mesmo a intimar-nos que nos rendêssemos!

- Era o que faltava!

- Alteza, se não nos ocorre o estratagema de parlamentar, fingindo que íamos combinar as condições da entrega, esperando que se nos reunissem as outras forças da retaguarda, teríamos de capitular! Seria uma Baylen em ponto pequeno.

- Não diga semelhante coisa, oficial! O general Dupont capitulou em Baylen porque estava cercado de quarenta mil soldados, os melhores que tinha então a Espanha. Dupont trazia consigo apenas nove mil homens e não esperava socorro. Mas mil e oitocentos ou dois mil franceses, à retaguarda de um poderoso exército, com uma praça atrás de si, guarnecida de franceses, não podiam entregar-se em campo aberto a dois ou três mil milicianos.

- E tanto que se não entregaram, sr. Marechal.

 

*1. O marechal Beresford reorganizara as milícias como tinha reorganizado o exército. Dera-lhes disciplina e solidez, tornando-as capazes de rivalizarem com os regimentos de primeira linha.

 

- Já é vergonha supô-lo possível. Que perdas teve a nossa força?

- Vinte e tantos mortos e feridos.

- E os milicianos?

- Talvez perdas iguais.(1)

- Mas, ainda assim, depois de repelirem os milicianos, o que fizeram para tanta demora?

- Retirámos, supondo que os dois mil milicianos fossem as avançadas de uma Divisão. Foi este o motivo porque perdemos dois dias de marcha.

- E assim, porque a minha cavalaria de reserva se deixa ficar para trás e os senhores sonham Divisões por todos os lados, esteve o exército em perigo de retirar antes de ter dado batalha! Decerto. Se as colunas de víveres e munições fossem tomadas ou destruídas, todo o exército teria de bater outra vez para a fronteira! É espantoso! Eu mandarei averiguar como tudo isso se passou. Pode retirar-se e seja cauteloso. Não espalhe por aí a notícia desse desastre, para não cobrir de vergonha os seus gendarmes e os três batalhões.

- Um deles é de irlandeses.

 

*1. As Memórias de Massena dão indicações daquele combate, dizendo que a escolta francesa era constituída por um pelotão de gendarmes e três batalhões de infantaria e que as forças atacantes se compunham de dois mil milicianos e cem homens de cavalaria com 5 peças.

Calcula em 20 homens as perdas dos franceses e supõe que seria igual a dos portugueses, que eram comandados pelo coronel inglês Trant e pertenciam à Divisão do general Bacelar. Estas milícias tinham vindo de Moimenta da Beira.

«Este pequeno recontro teve uma grande influência nas operações, porque o brigadeiro Trant pôde assim reconhecer a direcção seguida pelo exército francês e torná-la conhecida de lorde Wellington,» (Tomo VII, pág. 183).

Nicolau Trant não era brigadeiro, era coronel. Os seus milicianos tiveram cinquenta mortos e feridos. As perdas dos franceses foram além do número designado naquelas Memórias.

 

- Mas os outros dois são franceses! Cale-se com

essa lástima!

O oficial saiu oprimido, mas a nova daquele estranho ataque soube-se dali a pouco, chegou naquele mesmo dia aos quartéis-generais de Ney, de Reynier e de Junot e não faltaram logo vivas e justificadas censuras ao generalíssimo e ao chefe do estado-maior.

Todavia, em vista daquela audácia dos milicianos, Massena aplaudia in peto a resolução que tomara de não abandonar a sua linda amante naquela deserta cidade de Viseu.

Entretanto, as avançadas do 7.o corpo chegavam à confluência dos rios Dão e Criz, cujas pontes já tinham sido cortadas pelos anglo-portugueses.

 

         A quinta das Águias.

A primeira brigada portuguesa (caçadores 4 e infantaria 1 e 16), sob o comando do brigadeiro inglês Diniz Pack, tinha cortado a ponte em Santa-Comba-Dão e fora tomar posições além do Criz, ficando assim este pequeno rio a separar a avançada de Ney das forças anglo-portuguesas, que protegiam a retirada de Wellington. Os milicianos e as ordenanças inquietavam gravemente os flancos e a retaguarda dos invasores, procurando cortar-lhes as comunicações com a praça de Almeida.

Massena cada vez estava com maiores receios de deixar longe das suas vistas aquela pobre madame que o susto e os incómodos da jornada traziam doente.

Tinha havido já uns recontros insignificantes entre as avançadas de Reynier e as tropas que cobriam a concentração do exército anglo-português.

Era preciso que Massena se desarreigasse de Viseu. A sua doente havia recobrado forças e no dia 25 o Marechal saiu, enfim, para Tondela.

E o pobre dragãozito louro lá foi com o seu lindo uniforme, muito pálida, ainda muito nervosa, a cavalo, ao lado do Marechal. Por aqueles sítios não podiam jornadear em caleche como na campanha da Áustria.

Tondela estava deserta como Viseu, sem nenhuns recursos como a velha cidade.

Havia já dois dias que os soldados franceses não recebiam pão. Sustentavam-se a carne salgada e com os escassos legumes e hortaliças que tinham encontrado semi-apodrecidas, ao abandono pelos campos.

As avançadas de Ney concertaram a ponte e passaram o Criz no dia 23. Efectuou-se a junção dos dois corpos de exército franceses, o 2.o e o 6.o, o de Reynier com o de Ney e a 25 passaram o Criz, nas visinhanças de Santa-Comba-Dão. As tropas portuguesas do brigadeiro Pack e a divisão anglo-portuguesa do general Crawfurd retiraram então para as disposições que Wellington lhes havia indicado na serra do Buçaco.(1)

Na manhã de 26 Massena chegava a Mortágua, vilazita pobre, de casas insignificantes.

Ney e Reynier já estavam defronte da Serra, que os anglo-portugueses tinham ocupado.

Travara-se um combate de postos avançados entre as tropas de Reynier e as do exército aliado, cuja concentração total se estava efectuando apressadamente.

 

*1. Alguns dias depois daquela marcha, lorde Wellington dizia assim em ofício ao secretário dos Negócios da Guerra, D. Miguel Pereira Forjaz: Enquanto o inimigo estava avançando de Celorico e Trancoso sobre Viseu, as divisões das milícias e ordenanças se empregavam sobre os flancos e retaguarda do inimigo, e o coronel Trent com a sua divisão atacou a escolta da caixa militar e reserva de artilharia perto do Tojal, a 20 do corrente. Tomou 2 oficiais e cem prisioneiros, porém o inimigo, havendo juntado uma força tirada da sua frente e retaguarda, obrigou-os a retirar-se outra vez para as bandas do rio Douro.»

(Foi publicado na Gazeta de Lisboa de 3 de Outubro de 1810).

 

Em Mortágua ouviam-se os ecos sumidos do tiroteio, para os lados de Santo António do Cântaro.(1)

Tinham procurado para a companheira do Marechal uma casa onde pudesse ficar sofrivelmente instalada. Não havia nenhuma em termos. As melhores estavam entulhadas com os destroços da mobília, as camas tinham sido queimadas, as vidraças e as portas ficaram em pedaços. Os fugitivos de Mortágua não quiseram que aos invasores ficasse o abrigo dos seus lares desertos.

Naquela guerra de enfurecidas abnegações patrióticas, a campanha de sacrifícios dos paisanos prefaciava horrivelmente a outra dos combates.

A recrescer de hora para hora, a fúria dos franceses desafogava em alucinações de desespero. Já tinham queimado umas poucas de aldeias e lugarejos daquelas circunvizinhanças.

Na saleta nua de uma das melhores casas de Mortágua se instalou, provisoriamente, a companheira do Marechal.

Eram quási 11 horas quando chegou a toda a brida um ajudante-de-campo de Miguel Ney com uma carta para Massena.

O marechal abriu-a pressuroso. Dizia-lhe que julgava inevitável uma batalha. Pelo que pudera observar, lhe parecia que a posição era acessível,

 

*1. Dos portugueses entraram naquele combate artilharia 2, caçadores 1, 3 e 4 e infantaria 1, 3, 15 e 16, na força total de 6189 homens.

Referindo-se a estas tropas, lorde Wellington diz no seu ofício anteriormente citado:... havendo nesta ocasião o regimento de caçadores n.o 4 mostrado aquela bizarra firmeza, que as outras tropas portuguesas têem depois manifestado.

 

e que o exército inimigo tinha fracas reservas e se estava ainda concentrando desordenadamente.

Remetia-lhe uma carta de Reynier, respondendo a outra que êle lhe enviara de manhã cedo e na qual lhe dissera: «Se eu tivesse o comando, atacava já, sem hesitar um momento».

Massena ficou a reflectir. Aquela impaciência pela batalha estava bem no feitio e nas tradições de Ney, mas seria agora um conselho sincero?

O Duque d'Elchingen sempre até ali o contrariara na iniciativa do comando e não perdia o ensejo de mostrar a má sombra com que lhe obedecia, como se o afrontassem a supremacia herárquica e o glorioso prestígio daquele envelhecido colega.

O espírito de Massena ensombrou-se com a suspeita de que fosse uma insídia aquela carta do seu insubmisso rival.

Se hesitasse em dar batalha, Ney apregoaria que o seu parecer tinha sido diverso e apregoá-lo-ia de modo que o exército o soubesse e a repercussão das suas palavras chegasse a Paris, onde àquela hora Napoleão estaria contando, provavelmente, com a segura conquista de Lisboa.

Mas também, se travasse batalha sem avaliar bem as forças do inimigo e a natureza das suas posições defensivas, poderia perder de um lance toda a sua alta reputação de general invencível, apagar-se-iam tristemente por cima da sua cabeça branca todos os fulgores de dezasseis anos de batalhas prodigiosas e as responsabilidades do desastre cairiam esmagadoras sobre a iniciativa do comando em chefe.

Massena não hesitara nunca um momento diante dos perigos, por mais formidáveis que fossem, mas agora causava-lhe medo, não a ideia de que podia morrer à frente do seu exército, êle que, ainda um ano antes, se arrojara para a morte em Áspern, em Essling, em Wagram, nas mais sangrentas batalhas do Império, porém,aquela outra ideia dolorosa,acabrunhadora, de desmentir Napoleão, velho derrotado a arrastar numa retirada por aqueles ásperos caminhos a sua tradição de filho dilecto da vitória.

E como que viaja o sorriso de Ney, o Bravo dos Bravos, como lhe chamara o Imperador, a transmudar-lhe em lenda de escárnio essa fama de invencibilidade que em tantas campanhas se firmara.

Dobrou a carta de rosto avincado.

- Diga ao sr. Duque d'Elchingen que dentro em pouco estarei com êle nos postos avançados, para reconhecer eu próprio as posições do inimigo. Não acredito que lorde Wellington se exponha a perder a sua fama, mas, se o fizer, estará nas minhas mãos. Amanhã acabará então a conquista de Portugal e dentro de poucos dias afogaremos no Tejo o leopardo inglês.(1) O ajudante partiu, e o Príncipe de Essling foi dizer à amante que tinha de ir para as avançadas do exército.

Fêz-se mais pálida.

- Alguma batalha, já! - preguntou-lhe.

- Não. Provavelmente amanhã. Vou reconhecer as posições e sondar aquele invejoso Ney.

- Demora-se?

- Talvez.

- Ficarei aqui noutra tristeza de morte!

- São 2 horas. Conto voltar antes da noite. Não tenhas receio. A vila não pode ser surpreendida pelos inimigos. Estão próximos o corpo de exército de Junot e os dragões de Montbrun. Tenho aqui forças importantes. Um regimento de dragões explora os terrenos a larga distância desta povoação. Fica tranquila, minha querida. O que me dói, linda, é isto, este rude abrigo que tens aqui.

 

*1. É na essência a resposta que Marbot atribui a Massena e, com pequena variante de palavras, publicou nas suas Memórias.

 

Eu resgatarei depois esta miserável rusticidade. Daqui a duas ou três semanas terás em Lisboa aposentos de rainha, no paço dos monarcas portugueses, e o tapete do teu leito será feito das bandeiras inglesas que tomarmos.

Beijou-a carinhosamente e saiu. Montou a cavalo, estava em volta dele todo o seu brilhante estado-

-maior.

Chegou a galope um capitão de dragões do regimento que explorava as cercanias da vila.

A poucos passos do Marechal fêz estacar o cavalo e abateu a espada.

- Alteza!

- Que há? - preguntou Massena, já sobre o selim.

- Fomos dar com uma casa apalaçada, cerca de uma légua daqui. Tem uma instalação rica e fica dentro de uma vasta quinta, formosíssima. Achámos lá uma relativa abundância de víveres.

- Sim? - disse o Marechal jubilosamente -, Está abandonada?

- Não, Alteza. Encontrámos lá um criado velho e, num dos quartos, um doente em perigo de vida, homem velho também, à cabeceira do seu leito estava um padre português, que fala a nossa língua e viveu muito tempo na Áustria, segundo as suas próprias declarações.

- Mais ninguém?

- Mais ninguém. Mas descobrimos em outros quartos vestidos de senhora e objectos de toilette. Obrigámos o padre a falar e declarou que dali tinham fugido, na madrugada de ontem, umas poucas de pessoas, ficando apenas o doente, o declarante e um velho criado.

- Bem, óptimo! É talvez a vivenda de alguma família opulenta destes sítios?

- Família fidalga. Vimos no portão brasonado duas enormes águias de mármore.

- Tem águias, está então naturalmente indicada para domínio nosso - disse gracejando -, O seu esquadrão?

- Está a um tiro de peça daqui.

- Vá buscá-lo, para escoltar a senhora que me acompanha. Irá instalar-se na tal quinta das águias. O seu esquadrão ficará lá. Depois irá o regimento.

- Vão ser cumpridas as ordens de Vossa Alteza. É preciso que madame vá montada em cavalo de confiança, o caminho para lá está um horror!

- Não tem dúvida, tudo será prevenido. Vá. O capitão fêz a continência e retirou a galope.

- Fririon - disse o Marechal para o seu chefe do estado-maior - mande chamar os generais portugueses para irem connosco.

- Estão ali - respondeu, apontando uns poucos de oficiais da Legião, agrupados no extremo da rua.

- Bastam os dois generais.

Fririon ordenou ao seu ajudante-de-campo que fosse chamar o Marquês de Alorna e Pamplona.

Massena tinha-se apeado e foi êle próprio prevenir a francesa a respeito da instalação que lhe destinava.(1) Voltou com pequena demora. Montou a cavalo e meteu a trote pela estrada que ia dar à serra do Buçaco.

Ia ao lado dele o general Fririon, a seguir Alorna, Pamplona e os ajudantes-de-campo, menos um que ficara para receber quaisquer comunicações que chegassem para o quartel-general.

 

*1. Referindo-se às demoras e cuidados de Massena por causa da amante, Marbot diz nas suas Memórias... «e no dia seguinte, 26 de Setembro, depois de ter estabelecido o seu quartel-general em Mortágua, na margem direita de um riozito chamado Criz, perdeu um tempo precioso a preparar o alojamento de madame X e não partiu senão às 2 horas da tarde para os postos avançados, que ficavam a cinco grandes léguas, ao pé do Alcoba.» (Tomo II, pág. 384).

 

Com este ficaram também três oficiais às ordens para qualquer comunicação urgente. Era uma caminhada de quatro enormes léguas, que só a trote e a galope se poderiam percorrer em hora e meia.

Luís de Castro estava no grupo dos portugueses que ficaram, entre os quais o Marquês de Loulé, o Conde de São Miguel e Cândido José Xavier. Os outros oficiais portugueses, dos que Napoleão mandara para a Península, tinham conseguido que os deixassem nos quartéis-generais franceses em Valhadolide e Salamanca. O Marquês de Valença e o conde de Sabugal, por exemplo, o major Castro Pereira estava no estado-maior do Conde d'Erlon.

Chegou a trote um esquadrão de dragões que fêz alto à entrada da vila, num campo que tinha um poço público para abastecimento da povoação.

O capitão foi apresentar-se à companheira do Marechal, que saiu logo com o seu travesti de alferes de dragões. Passou defronte do grupo dos portugueses, cumprimentou-os com a sua habitual afabilidade, atraente e meiga, e disse alto para Luís de Castro:

- Capitão, apareceu enfim uma casa em termos!

- Parabéns, minha senhora - respondeu-lhe, cumprimentando-a e aproximando-se dela.

- Obrigada. É pena que não seja aqui.

- É então fora da vila?

- É. Ao menos, segundo me disseram, tem comodidades e até quarto de toilette para senhoras, provavelmente de umas senhoras que de lá fugiram ontem de manhã.

- Casa apalaçada de uma quinta que tem no portão umas águias de mármore - explicou o comandante do esquadrão. - Até me espanta que não tivessem dado com ela as avançadas do marechal Ney!

Fica a uma légua daqui. Provavelmente, sabeis de quem é?

Castro perturbara-se.

- Não sei. Perdi a memória de tudo o que eu sabia deste país.

- Compreendo - disse o francês e afastou-se para a frente, na direcção de um velho criado de Massena, que estava esperando com um cavalo à mão.

- E eu dou-lhe razão - acudiu a meia voz a amante do Marechal -, Mas venha também para nos fazer companhia, àquele seu colega e a mim - Estimava ter lá a meu lado um português que me não odiasse por eu ser francesa. - Bem vê que eu sou um dragão neutral - acrescentou, sorrindo, melancòlicamente.

- Posso tornar-me desagradável ao Marechal.

- Não me parece. Êle sabe que o sr. Castro me trata com delicadezas de que nem sempre são capazes os generais ilustres do seu exército. E depois, o capitão de dragões é também nosso companheiro. A maledicência não terá pretexto para me caluniar. Venha, peço-lho. Acostumei-me a considerá-lo o meu generoso paladino.

- Senhora, seria um sacrifício para mim!

- Sacrifício! Então não quero.

- Eu lhe explico. Dir-lhe-ei como confidência o que nenhumas ameaças dos generais franceses me obrigaram a revelar-lhes. A quinta para onde vão levá-la é dum parente meu. Tem para mim uma recordação profunda de saudades por outros tempos melhores.

- Ah! então conhece-a!

- Perfeitamente, mas isto é um segredo só para si, minha senhora. Se o soubessem, haviam de querer obrigar-me a dar conhecimentos que fossem prejudiciais ao meu país e eu prefiro que me fuzilem.

- Não, não, é segredo que eu guardo como se fosse de um irmão meu. Mas olhe, sem comprometer esse segredo, podia vir, até era útil que viesse para me ajudar a conter os soldados, se fôr intento deles praticar algum vandalismo, ou maltratar as pessoas que lá ficaram.

- Está lá alguém?

- Disseram-me que uns velhos, um padre e um doente.

- Então vou.

O capitão de dragões estivera a experimentar a mansidão do cavalo em que devia ir a francesa. Pareceu satisfeito e voltou ao encontro dela.

- Manso e seguro - disse-lhe indicando o cavalo.

- Bem. Vamos lá. Convidei este seu colega a fazer-nos companhia.

- Mas não sei se o sr. Marechal... - observou o capitão de dragões.

- Respondo eu pela aprovação do sr. Marechal - volveu a francesa, com doce amabilidade - Sr. Castro, o seu cavalo?

- Tenho-o ali, aparelhado e pronto à primeira voz. Volto já.

Foi direito a um recanto do largo onde o João Luís estava com o cavalo à rédea.

A francesa montou, auxiliada pelo velho criado do Marechal.

- Eu lá irei ter, minha senhora - disse-lhe o velho -, Sua Alteza o sr. Príncipe d'Essling deu-me ordem para eu levar comigo a cantineira da escolta de gendarmes, aquela a quem chamam a mãe Lamotte.

- Ah! sim. Bem sei. Aquela que me serviu de enfermeira em Viseu.

- Essa mesma, senhora.

Castro chegou. Custava-lhe a conter o seu fogoso cavalo. Vinha atrás dele o João Luís. Partiram.

No grupo dos portugueses formulavam-se maliciosas suspeitas.

- Um felizardo com as mulheres francesas, o tal sr. Luís de Castro!

- E o frecheiro atira alto!

- E com risco da pele e da farda. Ele com a irmã de Napoleão, a mais bonita...

- Anteriormente com a filha de um conde polaco! tão linda como a Paulina Borghèse, segundo ouvi Agora aquela.

- Se lhe vai fazer pé de alferes, o Marechal estafa-o.

- Êle, então, que ainda padece mais de dor de cotovelo que de reumatismo!

- Não estejam a dar vulto àquela simples gentileza de rapaz. Trata-se de uma dama, é de boa cavalaria acompanhá-la e servi-la - disse o Marquês de Loulé, sorrindo levemente.

- Mas aquela dama é de contrabando, sr. Marquês..

- Uma excelente rapariga é que ela é. Inteligente, espirituosa, delicada.

- Eu disse de contrabando por causa da sua ilegítima situação junto do Marechal.

- Pois sim. Está claro que não podemos tratá-la com todas as atenções a que teria direito pelas suas qualidades, se não fosse a mácula da mancebia. E é pena! Tenho conhecido marechalas que valem imensamente menos do que ela.

- Mas as atenções de Luís de Castro por aquela dama, sr. Marquês - interveio Cândido Xavier, dirigindo-se ao bravo e esbelto coronel de cavalaria - têem uma justificação nobilíssima, como todos os actos do moço oficial. Em Mangualde, na igreja matriz, aquela senhora interveio resolutamente em favor de um mendigo, nosso compatriota, velho e cego, que a soldadesca torturava e ia assassinar. Interveio falando em nome do Marechal, seu amante, precisamente quando cem espadas e baionetas ameaçavam Luís de Castro. O velho foi salvo por ela. Castro tomou para si esta grande dívida de gratidão.

- Mas ouvi que depois, na marcha para Viseu, a livrou de cair em poder de uma guerrilha a cavalo.

- É certo. Uma guerrilha comandada pelo tio, Manuel de Albuquerque, um bravo das campanhas do Rossilhão e Catalunha. Muito conhecido. Pediu a demissão sendo tenente-coronel.

- Não sabia que tinha dado em guerrilheiro!

- Ora já vêem - concluiu Cândido Xavier - por que estímulo de gratidão patriótica Luís de Castro cerca de excepcionais atenções aquela dama, a quem os rivais e colegas de Massena algumas vezes têem tratado com brutal indelicadeza, segundo tenho ouvido aos próprios ajudantes-de-campo do Marechal.

O caminho estava num estado lastimoso, atravancado de pedregulhos, de espaço a espaço arregoado pelos sulcos dos pesados carros de bois e pelos barrocais que as chuvas dos princípios de Setembro tinham escavado no solo.

Foi preciso ir a passo e gastarem mais de meia hora.

- Ali está a quinta, adivinho, é aquela! - disse a francesa jubilosamente, apontando, a trezentos passos para a frente, um portão brasonado com duas águias de mármore no topo das altas ombreiras de cantaria.

Castro não respondeu. Volveu para lá um olhar melancólico.

«Os dias de rapaz que eu ali passei! - disse consigo -, Senhoras que fugiram dali! - pensava - Talvez minha Mãe e a esposa de Henrique.»

- E que lindas árvores lá dentro! - disse a pequena Marechala - Ainda há flores naqueles canteiros do muro!

Alongava-se até ao portão um lanço de calçada antiga. Os cavalos do esquadrão fizeram uma estropeada ensurdecedora sobre as grandes lajes.

- Aqui é que nós vamos tirar o ventre de misérias - disse alto um soldado antigo do esquadrão.

- Será pena que não tenha raparigas - acudiu outro, ainda muito moço.

- Mas vai ser quartel de luxo, que nem para um esquadrão da Guarda Imperial.

A francesa ouviu e percebeu o alvoroço brutal da soldadesca.

- Sr. Capitão - disse para o comandante dos dragões - peço-lhe, em nome do Marechal, que recomende aos soldados o maior comedimento ali dentro. Se fizerem desatinos, sairei de lá para Mortágua, ainda que tenha de sair sozinha.

- Vou fazer-lhes as mais severas recomendações.

- E olhe, Capitão, o melhor seria que fizessem alto aqui. Entraria eu primeiro com este seu colega português. Acalmaríamos os receios de quem lá reside. Depois entraria o esquadrão. É um pedido que lhe faço com todo o empenho. Mas perdoe-me, se neste empenho me torno impertinente.

Disse-lhe isto com singela modéstia, num tom adorável de súplica. O Capitão acedeu com requintada gentileza, mandou fazer alto ao esquadrão e falou-lhe. A soldadesca escutou-o respeitosamente, mas de rosto franzido como se aquelas recomendações lhe causassem pesar e estranheza.

A companheira de Massena e Luís de Castro encaminharam-se para o portão da quinta.

- Apeêmo-nos aqui - disse a francesa.

- Como quiser, minha senhora. Apeou-se êle, entregou o cavalo ao João Luís e foi ajudar a francesa a apear-se.

- Toma também conta neste cavalo - disse para

o granadeiro.

Experimentou a grande aldrava de bronze do portão. Estava fechado por dentro. Luís de Castro bateu umas argoladas. Dali a uns minutos apareceu um criado velho e abriu apenas o postigo do portão. Castro conheceu-o.

- Manuel José, é preciso abrir.

- O menino Luís... o sr. Luís de Castro! Valha-nos Deus! - exclamou o velho doloridamente.

Abriu o portão, mas logo recuou amedrontado, vendo o esquadrão em linha na calçada.

- Não tenhas medo, Manuel - disse-lhe Luís entrando - Quem está cá?

- O sr. Mar e Guerra, já sem esperanças de vida, e um padre que veio cá ter com as senhoras e tem estado a ajudá-lo a bem morrer.

- As senhoras! Minha Mãe?

- Estava cá havia uns poucos de meses. Veio outra senhora estrangeira, nova e linda, com dois estrangeiros, velhos, um deles cego. Fugiram todos ontem de madrugada. Um dia de juízo nesta casa!

- Uma senhora nova, dois velhos estrangeiros?!

- Sim, meu sr. A senhora nova falava a nossa língua e uma vez lhe ouvi o nome de v. s.a.

- O nome dela? Havias de tê-lo ouvido.

- A senhora sua Mãe chamava-lhe Maria.

- Maria! - repetiu enternecidamente -, Meu irmão Henrique?

- Ouvi que estava da banda de lá de Mortágua, para a serra, com o nosso exército e os ingleses. A senhora dele e os meninos ficaram em Lisboa. As nossas desgraças! As nossas desgraças! - disse baixando a voz enviesando um olhar de pavor para os dragões, de espadas desembainhadas, a duzentos passos dali.

- Vai dar o melhor quarto a esta senhora.

O Manuel José pôs um olhar idiota no franzino dragão de cabelo de ouro.

- É uma senhora com este disfarce de oficiaL. Depois põe à disposição daqueles soldados tudo o que aí houver para eles se aquartelarem aqui.

- Aqui! O sr. Mar e Guerra a acabar!

- Assim é preciso.

- V. S.a perdoe, mas eu posso ser preciso lá em cima. Estou aqui sozinho.

- Vou eu para junto de meu tio.

Voltou uns passos atrás e chamou o João Luís.

- Entra com os cavalos. Olha, auxilia este homem no aquartelamento daquela gente.

- Não cabem cá tantos - observou o Manuel José.

- Como puder ser, para evitar alguma violência. Inclinou-se para êle e perguntou-lhe baixo:

- Sabes para onde as senhoras fugiram?

- Para Coimbra - respondeu-lhe quási em segrêdo -, Foram daqui por um caminho seguro, aquele que vai aí encostado às ribanceiras da outra serra. Por ali foram elas sem correr perigo de cair nas mãos dos ingleses e nem os franceses podiam dar pelas senhoras por aquele caminho. Mas a quem eu estou a dizer isto! O menino... v. s.a conhece-o como os dedos das suas mãos.

Castro puxou-o de parte, a indicar-lhe o celeiro da casa como disfarce, e segredou-lhe:

- Não fales desse caminho diante de algum francês que te possa entender. Toma bem sentido.

- Fique v. s.a descansado. Nem que eles me pesassem a oiro ou me cortassem às postas.

Castro foi ter com a francesa.

- Tenho de a deixar por uns momentos. Está naquela casa um doente quási agonizante. Um tio meu extremecido, um segundo pai, o irmão de minha mãe.

- Valha-me Deus! Isso não sabia eu! Fico mortificada!

- É infortúnio de que não tem a mínima culpa, minha senhora. João Luís, faze o que te mandar esta senhora.

Cumprimentou-a e correu para a grande escadaria da casa.

Procurando abafar os passos, Luís de Castro foi direito ao quarto grande onde noutro tempo o tio Jerónimo costumava dormir, durante as temporadas de verão. A porta estava entreaberta. De janelas cerradas, o quarto apenas tinha a tenuíssima claridade que vinha de dois círios postos diante de um crucifixo de marfim, em cima de uma pequena mesa com altar.

Ouviu-se um ciciar de orações e um respirar tremente, estertoroso. Parou à porta num confrangimento de alma. Vinha de lá de dentro baforada a trescalar a febre. Estava um homem sentado à cabeceira do grande leito negro, torneado. Havia de ser o padre, seriam dele as rezas.

O olhar do moço oficial tentou ver naquela escuridade. Esteve uns momentos assim numa angustiosa irresolução, como se tivesse pavor de entrar. Afinal o olhar já lhe penetrava melhor naquelas sombras. Via na alvura do travesseiro o rosto desfigurado, de lúgubre palidez, do glorioso Mar e Guerra. Reparou melhor no padre.

- Mas é Diogo Martins, o meu amigo de Viena! Entrou pé ante pé.

- Padre Diogo - disse baixo, muito inclinado para êle - Em que hora de tristeza nos tornamos

a encontrar!

O padre ergueu-se surpreendido, olhou-o fito e disse-lhe sumidamente, apertando-lhe as mãos:

- Sr. Luís de Castro!

Depois volveu um olhar de piedade para o venerando Mar e Guerra.

Tinha a respiração entrecortada, estava de olhos cerrados, gemia. O padre Diogo tomou o braço a Luís de Castro e afastou-se com êle para o lado da porta.

- Há algumas esperanças?

- Pouquíssimas, e essas só minhas.

- Ouve, tem lucidez de espírito?

- Não, de quando em quando delira.

- E tem médico?

- Espera-se esta noite um de Coimbra, que virá

por um caminho que me dizem ser o mais seguro, mas tem-se-lhe feito o tratamento que nos prescreveu o outro médico, morto ontem por uma bala perdida das avançadas francesas. Eu assisti na Áustria a um enfermo que tinha doença igual. É uma febre de mau carácter, complicada com os seus achaques de velho. A esperança de o salvar parece-me fraquíssima, todavia, sempre é uma esperança.

- Rezava quando eu cheguei.

- É na misericórdia de Deus que eu ponho a maior esperança.

- Minha mãe esteve aqui, já sei.

- Esteve. Maria Pulaski também, com o pai, de todo cego, e o tio André. Fugiram ontem de madrugada pelo tal caminho seguro... De Boialvo me parece que lhe chamaram...

- Maria prevenira-me de que, tanto ela como o pai, tencionavam ir a Lisboa.

- Para o verem... Em Paris tinham-lhe afiançado que nos meados de Setembro os franceses estariam em Lisboa e ela sabia que o meu amigo acompanhava o estado-maior de Massena.

- Compelido, como prisioneiro.

- Isso presumia eu.

- Mas nem podia sonhar que Maria viria dar aqui.

- Coisas largas para contar. Depois, depois, se Deus permitir que possamos falar mais tranquulamente.

Disseram-me aqui que estão já em frente um do outro, os dois exércitos.

- Estão. Conta-se com uma batalha.

- Deus seja pela nossa gente.

- Deus o ouça, padre Diogo! Receio! Sei o que valem os ingleses, conto muito com o esforço dos nossos, mas estão aí cerca de 55.000 franceses, dois terços dos quais venceram nas grandes batalhas dos últimos cinco anos, batendo os melhores exércitos da Europa.

- Sim, os da Rússia, da Áustria, da Prússia!

O enfermo agitou-se e rouquejou umas palavras doloridamente.

- Voltou-lhe o delírio - avisou o padre Diogo, correndo para o Mar e Guerra.

- O meu grande amigo! - disse compungido Luís de Castro, acercando-se também do leito do tio.

- Ao sul... quarta do sudoeste - regougava Jeronimo de Castro delirando -, Ala seco... e gata a estibordo... grande e gávea a bombordo... ala traquete e velacho.

- Manobras de bordo! - disse enternecidamente Luís de Castro - Dá-lhe a febre um glorioso sonho!

O Mar e Guerra ficou por momentos calado, a arquejar violentamente.

- Comandante, o vento amainou... O pano bate contra o arco da gávea. O navio deita só duas milhas! Esta corveta... é de Portugal... não arria a bandeira... não arria... Fogo! Fogo! Está desmantelada! Os mastaréus e as vergas empacham o convés... Já se não podem mover as peças! A corveta, um crivo de balas! O pano e o aparelho todo... em cima da borda arrombada! Vence a fragata!... Honrámos a bandeira da... Andorinha!(1)

 

*1. Eram as vozes de comando da manobra da corveta Andorinha antes do combate com a fragata francesa Chiffone.

 

E ficou a soluçar.

Ouviu-se uma algazarra ensurdecedora. Era no terreiro do palacete. Percebiam-se gritos enfurecidos de ameaça.

- Jesus! - exclamou o padre Diogo - São os franceses!

- Meu Capitão! - chamou à porta o João Luís. Castro foi para êle.

- O que é?

- Os dragões, arrombaram a porta da adega, alguns já se embebedaram, e são esses os que querem vir cá acima saquear a casa! Lá estão com eles de volta os oficiais, os sargentos e os outros que não estão bêbedos. Já têem dois feridos!

- E abandonaste a dama francesa?

- Estava ao pé dela, meu Capitão. Deu-me ordem para vir avisar v. s.a

- Corre para lá. Eu desço também.

O granadeiro saiu. Castro foi explicar o tumulto ao padre Diogo, num resumo de meia dúzia de palavras.

O criado apareceu à porta muito enfiado.

- Voltarei - disse o Castro para o padre Diogo.

Ia ainda uma balbúrdia espantosa entre os dragões no terreiro defronte. Vinte ou trinta ébrios faziam frente aos outros que procuravam contê-los.

Estava ferido um sargento e dois dos borrachos tinham caído acutilados.

Do alto da escadaria a francesa inutilmente invocava o nome do Marechal.

- Ao saque! - bramiram os beberrões.

- Fogo à casa! - gritou um deles.

- Meu Deus! - exclamou a francesa num extremeção de pavor.

O capitão francês avançou para os amotinados intrepidamente.

- Desarmem-nos! - clamou para os que o seguiam.

João Luís tinha chegado ao pé da amante de Massena e dissera- lhe a resposta de Luís de Castro no seu detestável francês de ouvido.

O moço oficial aparecia instantes depois.

- Senhora, que deplorável conflito!

- Uma vergonha! E veja: outro acutilado! E este ruído! O seu pobre doente!

- Quási agonizante, minha senhora! João Luís, fica tu aqui. Vou eu ajudar a conter aqueles bêbados.

Desembainhou a espada e ia descer a escada, quando a francesa se lhe antepôs suplicante.

- Não, não! É um estrangeiro, voltar-se-iam todos contra si.

Os ébrios começavam a ceder. Os outros já tinham desarmado uns poucos.

- Estou arrependida de ter vindo para aqui, sr. Luís de Castro! E não fico. Não quero ficar. Direi ao Marechal porquê.

Por entre as vibrações das espadas cruzando-se ainda se ouvia o regougar de uma dúzia de ébrios que resistiam.

- Vá para junto do seu doente, sr. Luís de Castro.

- Nada lhe posso fazer a êle, o meu dever agora é estar aqui.

- Olhem! -gritou um dos borrachos, apontando o Castro - O estrangeiro com a amante do filho querido da vitória! Aquele é galo novo. Está de poleiro a ver isto! - concluiu dando uma risada de escárneo.

Os que cercavam os amotinados voltaram-se e disseram palavras de ameaça.

- Saia daí, Capitão! - bradou o comandante dos

dragões.

- Para ir em seu auxílio, saio I Só por isso - respondeu alto Luís de Castro.

- Pelo amor de Deus! - suplicou-lhe a francesa! muito pálida.

Castro recuou uns passos, de modo a ficar encoberto por uma pilastra do grande arco da entrada.

O comandante dos dragões apertou mais com os insubordinados, que afinal entregaram as espadas.

A francesa desceu a escada a tremer.

- Capitão! - chamou a poucos passos do comandante dos dragões - Não quero ficar aqui. Saio já. Prefiro dormir sobre as pedras de Mortágua.

- Mas eu, Madame, respondo pela disciplina da minha gente.

- Embora - objectou, aproximando-se mais dele.

- O Marechal será implacável para mim!

- Não lhe contarei isto - disse-lhe baixo - Tomarei para mim todas as responsabilidades desta resolução. Pretextarei sustos de mulher. Está naquela casa um doente quási agonizante. Fazem-me pavoros moribundos. Não quero ficar. Não quero!

- É uma resolução que se não explica bem!

- Eu a explicarei ao Marechal.

- Há-de enfurecer-se contra mim!

- Afirmo-lhe que tomarei todas as culpas. Quero sair já e irei sozinha, se não quiser acompanhar-me.

- Tive ordem para vos acompanhar. Vou. Afastou-se e foi dar ordens. Mandou que fossem

buscar os cavalos que tinham metido nos palheiros, na abegoaria e no lagar. A seguir entraram em forma. Ordenou que fosse nomeada uma escolta de vinte homens para levar os amotinados.

Entretanto, a francesa subira a escada e chamara Luís de Castro.

- Volto para Mortágua. Perdoe-me este dissabor por minha causa. Fique ao pé do doente. Volte só à noite. Eu explicarei tudo ao Marechal, sem lhe divulgar o segredo que me confiou. Percebo que já põem suspeitas caluniosas na sua vinda.

Agora é preciso dizer ao Marechal que veio porque tem aqui um parente, um irmão de sua Mãe, não é assim?

- Tio muito querido, um segundo pai, e quási moribundo. Mas, minha senhora, queira dizer-lhe também que nada conheço destes sítios. É uma falsidade para bom fim.

- Digo, fique descansado.

- Poupa-me ao dissabor de exasperar o Marechal, afirmando-lhe outra vez que, por nenhuma violência, alcançará de mim qualquer informação.

- Estou convencida disso. Ainda sei orar, pedirei a Deus que lhe salve o seu querido doente.

- Bem haja, minha senhora.

- Não lhe faço a ofensa de recear que nos fuja.

- Prometi que não desertava. Sei que os meus compatriotas me consideram traidor, que eu e os meus camaradas, obrigados a acompanhar o Marechal, podemos ser fuzilados por qualquer português que nos reconheça, mas ainda que não o soubesse, não desertava.

- Veja se corre perigo de vida, ficando aqui!

- Não corro. Antes de chegar a noite estarei em Mortágua, suceda o que suceder.

- Vêl-o-ei então. Perdoe-me.

O esquadrão formava. A francesa desceu e montou a cavalo, auxiliada por um subalterno dos dragões.

Chegavam ao portão da quinta o criado velho de Massena e a cantineira que vinha para servir de criada a Madame X. Já não eram precisos. O esquadrão voltava para Mortágua.

Luís de Castro subira outra vez. Foi ver o tio. O padre Diogo dera-lhe o remédio, que devia tomar de hora a hora. Ficara mais calmo, parecia adormecido.

- Minha Mãe muito amargurada por tudo isto não é assim, padre Diogo?

- Muito. O irmão assim, e dois filhos entregues aos perigos dos campos de batalha! Não queria fugir. Instei eu com ela e mais o tio de Maria. Ficavam aqui sujeitas a medonhas afrontas, se a soldadesca viesse por aí dentro. E eram elas, afinal, as duas senhoras, quem tinham mais vontade e mais ânimo de ficar!

- Seria uma deplorável imprudência!

- Era. Maria Pulaski sabia que o noivo da sua alma vinha com os franceses e a sr.a D. Matilde estava aqui a pequena distância dos seus dois filhos, o meu amigo atrás dos invasores, seu irmão Henrique entre os soldados de Portugal e da Inglaterra.

- Uma situação desesperadora a minha, padre Diogo! Mas como soube minha Mãe que eu vinha?

- Disse-lho Maria Pulaski. O alvoroço da pobre senhora! Alvoroço a um tempo de consolo e de mágoas. As mágoas ainda maiores!

- Porquê?

- O consolo na esperança de que o meu amigo podia ausentar-se para a vir ver e abraçar, a mágoa, imensamente maior, porque podiam surpreendê-lo na fuga os franceses e fuzilá-lo, e porque de cá o podiam apanhar os soldados portugueses ou qualquer miserável campónio e matá-lo.

- Como quem mata um lobo. Eu sei.

- O Marquês de Alorna tem a cabeça posta a preço.

- Já sabia. Qualquer nos pode matar, sem praticar um crime e até recebendo um prémio!

- Sua Mãe saiu daqui debulhada em lágrimas. E foi por causa dela, por dó daquela angústia, para a resolver a sair daqui, foi por ela e pelo pai, que Maria Pulaski fugiu.

- Também ela queria ficar!

- Na esperança de o ver. Disse-mo resolutamente.

E o tio, doido por ela, acedia, ficava para qualquer temeridade, se não fosse o dó por sua Mãe e pelo desventurado cego, que era preciso proteger.

- A minha adorada Maria! - disse o Castro de si para si, enternecidamente.

- Que fazia um dos maiores sacrifícios fugindo, confessou-mo a chorar. Por si, afirmou com admirável firmeza de ânimo, seria capaz de ir para os maiores perigos. E pediu encarecidamente que lhe mandasse notícias do que soubesse a seu respeito.

- Quem sabe lá que trágicas notícias, padre Diogo?! Esta minha situação vale pelo mais doloroso suplício moral que ainda alguém inventou!

O doente agitou-se. O padre Diogo foi para ele, escutou-lhe a respiração e aconchegou-lhe a roupa.

- Está outra vez mais inquieto! - veio dizer tristemente.

- Pobre velho! Vale-lhe o meu amigo aqui, em risco de vida!

- Era o meu dever de padre. Matávamo-lo, se o quiséssemos levar daqui, naquele estado. Mas ficou também esse criado velho.

- Era da casa, como pessoa de família.

- O meu dever de caridade era maior em mim, sacerdote de uma religião de amor e de misericórdia.

- Tinha chegado há muitos dias?

- Havia duas semanas. Vim com Maria Pulaski. Em Lisboa, o tio e eu indagámos onde era a sua casa e fomos lá ter. Não encontrámos senão os criados e um padre, capelão da casa.

- Bem sei, o padre António.

- Disseram-nos que sua Mãe estava para aqui, havia meses. Maria quis por força que viéssemos visitá-la e André Pulaski acedeu logo. Sabíamos da invasão dos franceses, mas ninguém contava então que viessem dar a estes sítios!

Apareceu o criado velho. Vinha alvoroçado.

- Que é? - perguntou-lhe Luís de Castro.

- Vi da janela uns poucos de homens armados que vinham a descer da banda de riba do pinhal grande da quinta!

- Franceses?

- Não, senhor. Pareceu-me gente nossa.

- Militares?

- Homens de chapéus desabados.

- Meu Capitão! - chamou à porta o João Luís - Estão no terreiro uns homens armados! Parecem guerrilhas!

Mão possante afastou da porta, violentamente, o granadeiro, sem reparar nele.

- Valha-nos Deus! - murmurou o padre Diogo. Castro viu recortar-se nas sombras do quarto um

vulto de homem,, de elevada estatura. Foi para êle.

- Tio Manuel! - exclamou surpreendido.

- És tu! - disse, afirmando-se nele - Tu aqui?

- Eu, tio Manuel. Acompanho o tio Jerónimo.

- Mas tudo fechado, aqueles círios acesos! Onde está êle?

- Ali - respondeu baixo, indicando o leito - Está ali, quási moribundo.

- O Jerónimo!

E passava as mãos pelos olhos como se tivesse neles uma névoa que não o deixasse ver bem tudo aquilo.

Outra vez em delírio, o Mar e Guerra dizia umas palavras roufenhas, truncadas.

Manuel de Albuquerque foi encostar-se ao leito e beijou-lhe os cabelos brancos. Chorava.

- Fogo! - rouquejava Jerónimo de Castro - Aquela bandeira arriada!

- Levanta-se outra vez, meu velho! - murmurou comovidamente Manuel de Albuquerque - Agora só cairá, se a esfarraparem vencida sobre o mar de sangue dos que vão morrer por ela. Glorioso mutilado! Meu velho amigo! - rouquejou afogado num soluço.

Afastou-se oprimido. Luís de Castro foi atrás dele.

- Sem esperanças? - perguntou sumidamente.

- Quási sem esperanças!

- Vem aqui fora. Preciso fazer-te umas perguntas.

Saíram os dois para o longo corredor.

- Estás aqui por que abandonaste os franceses?

- Fiquei aqui por um dever de piedade. Volto ao quartel-general de Massena.

- Luís de Castro! O que fizeste do teu nome de fidalgo e do teu coração de patriota?!

- O meu nome, tio Manuel, honrei-o na maior batalha que ainda se pelejou na Europa. O coração, esse enche-se de júbilo quando sei que os nossos vencem e afoga-se de lágrimas quando ouço ou vejo que os vencidos são soldados da minha terra.

- E porque ficas entre os que invadiram Portugal?

- Porque jurei obedecer, porque afirmei sob a minha palavra de honra que não desertava enquanto não me quisessem obrigar a combater contra o meu país.

- Podes auxiliar o invasor dando-lhe pormenores do país que êle vem conquistar!

- Tio! Isso é uma iniquidade! Não disse, não direi cousa que possa prejudicar a nossa terra. Não os guio, não os aconselho, ceguei, emudeci para eles. Disse-o alto ao próprio general Massena. Se eu tivesse falado, se dos nossos alguém houvesse traído o seu país, os franceses não teriam vindo esbarrar contra esses ásperos cerros do Buçaco, talvez inacessíveis para eles.

- Mas vens então para assistir à entrada triunfal do Príncipe d'Essling em Lisboa?

- Atravessei a Espanha desarmado e preso. Se os franceses puderem chegar a Lisboa, de entre os portugueses que foram obrigados a segui-los, tio, há-de faltar um, necessariamente. Hei-de ser eu. Juro-lho pela honra do meu nome e pela vida de minha Mãe.

- Mas sabes que nesta terra és considerado traidor à Pátria, que a tua vida é posta a preço, que não há direitos de guerra para ti? Ferido, prisioneiro, compreendido numa capitulação, ainda assim podes ser morto, e qualquer te pode matar sem crime?

- Tudo isso me disseram.

- Mas se é por isso que não desertas, vem comigo, eu te protegerei.

- Tio, nunca tive medo de morrer. Irá consigo a minha alma. Eu fico de cá, preso ao meu pensamento e à minha palavra de homem de bem. Fico, e nem o tio pode sonhar a tortura moral, horrorosa, em que eu fico!

- Mas posso eu desligar-te agora desse juramento e desse compromisso que exageras.

- Tio, de que modo?

- Tenho lá em baixo quarenta homens resolutos, faço-te meu prisioneiro.

- No quartel-general francês alguém sabe que eu tenho aqui parentes. Havia de parecer comédia esse aprisionamento. Dê-me um tiro, antes de me dar voz de prisão.

- Entendo: tens uma amante que te chama para lá. Aquela em disfarces de oficial, aquela a quem salvaste no caminho de Mangualde.

- Salvei-a porque seria uma desonra aprisionar ou assassinar uma mulher, e porque tinha para ela uma grande e santa dívida de gratidão. Um dia antes, essa dama salvara das fúrias da soldadesca um velho mendigo, um cego, compatriota nosso, tio Manuel. Aquela francesa é amante do marechal Massena.

- E se amanhã ou depois se travar uma grande

batalha, o que fazes?

- Uma coisa bem simples. Se forem os nossos os vencedores, chorarei de júbilo enquanto os franceses, meus companheiros, bramirem de raiva.

- Mas podem ser os nossos os vencidos.

- Então, tio Manuel, desembainho a espada para a partir e meto uma bala na cabeça.

- És um doido de honrados escrúpulos. Deixo-te no caminho do teu destino e que Deus tenha dó de tua Mãe - disse-lhe secamente, voltando-lhe as costas.

- Vem então de si a maior injustiça! Mais pungidora que a outra dos que me chamam traidor! Um dia chegará em que eu me resgate desta ignomínia que me atribuem.

- Teu irmão está daquele lado com a bandeira de Portugal - disse Manuel de Albuquerque, sem se voltar para êle.

- Eu ajuramentei-me por Henrique de Castro nas fileiras da Legião. Tio, eu trago comigo aqui, sempre, escondida sobre o peito, outra bandeira de Portugal. Tio, na véspera de Wagram ergui-a eu gloriosamente, quando as águias fugiam, no fim da batalha dei-lhe o preito do meu sangue. E sou afinal um traidor, e qualquer bandalho ganhão pode matar-me em nome dessa Pátria que eu nunca desonrei, que eu não esqueci nunca!

Chorava. Manuel de Albuquerque parara ao fundo do corredor. Comoveu-se, mas disfarçava naquele desabrimento de artifício.

- Eu não te considero traidor. Podes sair livremente.

- Saio. Massena foi menos duro para mim, e eu respondi-lhe numa insubmissão de quem prefere tudo a trair a sua terra. Mas o tio fica, nesta temeridade, aqui, a dois passos do exército francês?!

- Fico. A minha gente conhece os covões dos pinhais e as veredas das serras. Quero ver de perto a primeira batalha.

- Tio, até um dia, e que o sol glorioso de outras eras ilumine a santa bandeira da nossa terra. Tio, adeus! Bem podia o irmão de meu Pae dar-me a sua bênção de consolo e de perdão, se preciso de ser perdoado.

- Fica para o dia em que Portugal vencer.

- Seja, resigno-me.

Deu uns passos para a escada.

- Espera: esse uniforme denunciar-te-ia à minha gente. Podem matar-te.

- E ganhavam o prémio pela morte do traidor!

- Vou eu adiante. Quero chamá-los para onde te não vejam.

Desceu. Chamou os guerrilheiros para o lado oposto da casa, como para lhes dar instruções.

Luís de Castro saía instantes depois com o João Luís. A cavalariça onde tinha o cavalo ficava para o lado do terreiro, Manuel de Albuquerque seguira com a guerrilha para a orla do pinhal. De lá não se podia ver o terreiro. O cavalo tinha ficado aparelhado e Castro pôde logo montar.

- Vamos lá, João Luís. Têem de fugir os traidores, e nós somos aqui uns traidores!

Disse-o com os olhos afogados de pranto e meteu o cavalo à desfilada pelo caminho fora.

Ouviu-se o estampido enorme de um tiro. Um guerrilheiro, que rondava as imediações da quinta, viu aquele cavaleiro de uniforme suspeito e desfechou sobre êle a sua clavina de boca de sino, atrochada de zagalotes. Cavalo e cavaleiro caíram na estrada. O João Luís engatilhou a espingarda e voltou-se para o lado donde viera o tiro. O guerrilheiro sumira-se, saltando para dentro do muro.

 

       O filho querido da vitória.

Massena passara toda a tarde no dia 26 nos postos avançados, empregando o tempo num reconhecimento deficientíssimo das posições ocupadas pelo exército aliado.

A despeito das suas desconfianças, quanto à sinceridade de Ney e à cooperação dedicada de Reynier, o Príncipe d'Essling aceitou afinal as opiniões dos dois generais, que também só muito superficialmente haviam reconhecido as soberbas posições das tropas anglo-portuguesas.

A serra do Buçaco, a três léguas ao norte de Coimbra, tem uma altitude de dois mil e quatrocentos metros(*) e é formada por uma cadeia de montes de ásperas vertentes, penhascosas, abruptas, eriçadas de matagais, deprimidas em quebradas profundas como abismos. Em certos pontos a serra apruma-se como se fosse a massa cobridora de uma trincheira colossal sobre ravinas a lembrarem fossos enormes.

O maciço do Buçaco está entre duas serranias,

 

(*) Trata-se de um erro. A Serra da Estrela, a maior de Portugal, não ultrapassa os 2000 metros. (N. da D.)

 

longas e escalvadas, à qual se liga por tratos de terra montanhosa e bravia. De um lado o Caramulo, que se alonga para nordeste até além de Viseu, separando os vales do Douro e do Mondego. Do outro lado, e quási a alinhar-se com ela, a serra da Murcela, ramificação da serra da Estrela, tendo a enroscar-se-lhe aos pés o valezito do rio Alva. O mato denso, espinhoso, selvagem, das vertentes do Buçaco, sobre o fosso gigantesco das ravinas, valia as estrepes das defensas acessórias nas praças de guerra, os fojos e barrocais não eram menos formidáveis do que as covas de lobo das antigas fortificações. Em cima, na chapada da serra, onde no século XVII se fundara um convento humilde de carmelitas descalços, adensava-se uma soberba mata de árvores colossais, com exemplares preciosos, que tinham cerca de dois séculos de existência.(1)

Por detrás daquela espessa floresta e de uns trechos de pinhal que subiam das ravinas para as encostas, as tropas aliadas concentravam-se a coberto das vistas do inimigo.

Mas de lá os anglo-portugueses abrangiam perfeitamente de um lance de olhos quási todo o espaço ocupado pelos franceses, por mais que eles se ocultassem nas dobras do terreno, entre os pinhais circunvizinhos ou detrás dos pequenos montes, que do alto da serra tinham o aspecto de mesquinhas ondulações do solo.

A defesa da serra impunha um grande desenvolvimento à linha de batalha,

 

*1. O convento de Santa Cruz no Buçaco foi fundado em 1628 pelo bispo de Coimbra, D. João Manuel. Ali era o deserto dos carmelitas descalços.

Uma bula do pontífice Gregório XV proibia, sob pena de excomunhão, a entrada de mulheres naquela soledade, outra, de Urbano VIII ameaçava de excomunhão a quem quer que entrasse naquele recinto privilegiado para cortar árvores ou fazer qualquer espécie de dano.

 

embora alguns pontos não precisassem de ser ocupados por absolutamente inacessíveis.(1)

Reynier era de opinião que se podia atacar com provável bom êxito pela portela de Santo António do Cântaro. Ney lamentava, em mal disfarçadas cen suras ao generalíssimo, que se não houvesse atacado os anglo-portugueses logo na véspera ou naquela manhã, pois que a vitória seria segura, dada a quási certeza de que o inimigo não tinha ainda completa a concentração das suas forças, dispersas por exigências da defesa em diversos pontos e a largas distâncias, enquanto Wellington não pôde conhecer qual o caminho definitivo dos invasores.

Sabemos já que Massena tinha uma inexcedida tradição de bravura e de glórias. E por essa tradição mais ainda se turbava em face da rivalidade arrogante e da insubmissão quási desdenhosa de Ney.

Se o heróico marechal Duque de Elchingen entendia possível e necessária a batalha, êle, o herói de Rivoli e de Essling, não podia considerá-la temerária e não queria rejeitá-la, criando em volta do seu nome uma deprimidora suspeita.

Que diria Napoleão, e em que repelões de cólera, se soubesse que êle tinha hesitado diante do general de cipaio com os seus turbulentos ingleses e os seus galuchos de Portugal, em grande parte uns inexperientes, que ainda não tinham queimado uma escorva?

- Pois bem - disse Massena - Daremos batalha amanhã. Iremos passar o outono a Lisboa, depois de ter afogado no Tejo o leopardo inglês.

Ney sorriu com um ar de escárnio, que o generalíssimo não pôde ver.

 

*1. Lorde Wellington avaliava a frente da serra do Buçaco em oito milhas inglesas.

 

- Logo - continuou o Marechal - reúnir-nos-emos em Mortágua para se combinar o plano da batalha.

Cumprimentou friamente a Ney e Reynier, e com o seu estado-Maior percorreu outra vez a linha dos postos avançados, lentamente, observando a serra, fazendo indicações a Fririon e Pelet, como se fosse esboçando o plano para a batalha do dia seguinte.

De quando em quando um tiro de peça chamejava lá de cima, do muro da mata, mudado em parapeito de bateria. Por entre o mato os caçadores portugueses e os fusileiros ingleses desfechavam contra os atiradores dos pontos avançados franceses. Já dera algumas dezenas de mortos e feridos aquele tiroteio começado no princípio da tarde.

- Dei-lhes na vista - disse o Marechal a rir - Em que soberba altura está aquela cruz da serra, que até daqui se vê! - observou apontando a Cruz Alta - Aqueles diabos de fardas escuras saltam como cabritos monteses!

- É a infantaria ligeira dos portugueses - disse Fririon - A infantaria negra, como já lhe chamam os nossos soldados.

O marechal tinha chegado à extrema direita dos

postos avançados.

- Bem. Tenho visto Posições formidáveis! Voltou para trás e meteu para a estrada de Mortágua.

O sol sumia-se no horizonte, uma neblina muito

branca ia velando lentamente, como um pano de cenografia no final de um acto, aquele soberbo fundo de teatro. Chegavam cá abaixo as vibrações agudas dos clarins, tinham-se apagado as cintilações das baionetas por entre os matagais, calara-se o tiroteio das avançadas, voejava numa toada plangente o toque de trindades do sinozito dos carmelitas descalços.

Anoitecera rapidamente. Em poucos instantes o céu se tornara escuro. Avolumara-se a neblina e mal se podia descobrir o caminho, semeado de pedregulhos, disnivelado em fundas depressões. Massena isolou-se para a frente, dobrado para diante, silencioso como um cismador acabrunhado. Era preciso ir a passo por causa dele.

Já sabemos que o Marechal via pouco. Cegara de um olho num acidente de caça e a vista do outro enfraquecera-lhe na vida aspérrima dos campos de batalha em que a velhice prematura o surpreendera.

- Querem o meu desprestígio, evidentemente! - ia pensando - Pela retirada ou pela derrota? De qualquer modo. Percebo. Prefiro a derrota. Mas se a fortuna dos meus bons tempos de todo me não abandonou, eu lhes mostrarei amanhã como o velho gasto ainda sabe vencer.

Os seus ajudantes-de-campo vinham atrás dele em grupos. Marbote e Ligniviíle acompanhavam o general Fririon.

- Estou com receio dessa batalha de amanhã(1) - disse Marbot em voz baixa.

- Também eu - acudiu Ligniviíle.

- Aquelas posições são quási inacessíveis e parece que todos estão dispostos a iludir-se e a iludir-nos.

- Aquilo não se toma num ataque de frente, apesar do que disse Reynier e o esturrado de Loison.

- Demais a mais, só podemos contar com a infantaria.

 

*1. Marbot conta nas suas Memórias, referindo-se àquela jornada para Mortágua: «Pelo caminho fiz bem tristes reflexões acerca das consequências que podia ter a batalha que no dia seguinte se ia travar em tão desvantajosas condições para o exército! Comuniquei-as em voz baixa ao meu amigo Ligniviíle e ao general Fririon.» (Tomo II).

 

A artilharia não tem onde tomar posições seguras para proteger eficazmente a investida das nossas colunas!

- E a soberba cavalaria de Montbrun, que nos podia dar uma grande superioridade sobre os anglo-portugueses, terá de assistir à escalada da serra como simples espectadora!

- Numa forçada inactividade, a bocejarem sobre os cavalos, esses regimentos de dragões, que tantas batalhas decidiram em cargas para sempre memoráveis!

- Agora, o que era sensato e seguro era procurar caminho por onde se pudesse tornear a serra e cair sobre Coimbra e Lisboa, cortando a retirada aos anglo-portugueses. Eu não posso crer que essa gente de Mortágua esteja há séculos sem ter outro caminho para a estrada real do Porto senão aquele pelo alto da serra de Alcoba.(1)

- Nem eu - acudiu o general Fririon.

- Mas ninguém o procurou ainda e ninguém se atreve a dizer ao Marechal o que era preciso dizer-lhe.

- Ney e Reynier, que chegaram primeiro, ou não procuraram esse caminho ou não o souberam descobrir e afirmam que não há nenhum!

- E Pelet, o mais íntimo do Marechal, limitou-se a procurá-lo numas cartas, que eu considero insuficientes e incorrectas. E, como lá não viu nenhum que lhe saltasse aos olhos, insiste em que não há meio de avançar para Coimbra e Lisboa, senão às marradas contra aquela muralha enorme de montanhas!

- Esses oficiais portugueses é que podiam dar-nos valiosos esclarecimentos.

 

*1. Os escritores franceses frequentemente dão o nome de serra de Alcoba às montanhas do Buçaco.

 

- Esses nada querem dizer. Eu, nas suas condições, faria o mesmo.

- Mas procuremos nós o caminho desejado. Ainda é tempo. Diz-se ao Marechal.

- Mal disposto pelas contrariedades que Ney lhe tem causado e cegamente agarrado às opiniões de Pelet, é capaz de nos repelir desabridamente.

- Embora. Experimentemos, façamos a tentativa por um modo indirecto. Adoptemos um expediente de comédia - propôs Marbot - Aproximemo-nos mais do Marechal, no fingimento de o não ter reconhecido e conversemos acaloradamente, repetindo alto isto que temos dito em confidência. A escuridade da noite protege-nos o estratagema. O Marechal ouve admiravelmente, ganhou em ouvido o que perdeu em vista.

- Pois sim - concordou Fririon - vamos lá.

- E o General faz de opositor, contraria, representa o papel de cardial diabo para nos dar ensejo de expor calorosamente as opiniões que o Marechal precisa de ouvir sem que as suas susceptibilidades de general em chefe tenham o direito de se melindrar conosco.

- Está dito - aquiesceu Fririon, louvando o alvitre de Marbot.

Avançaram, conversando alto. Ficaram a poucos passos de Massena.(1)

Marbot repetia as considerações que já lhe ouvimos e Ligniville apoiava-lhe a opinião com admirável firmeza.

 

*1. Contando aquele interessante episódio, Marbot diz assim nas suas Memórias: «... depois de nos termos combinado, aproximámo-nos do Marechal, fingindo não o reconhecer por causa da escuridão da noite, falámos da batalha resolvida para o dia seguinte, e eu manifestei o pesar de ver que o generalíssimo ia atacar de frente as montanhas de Alcoba, sem ter a certeza de que elas não podiam ser torneadas.

 

Fririon ajustou se ao seu papel combinado e objectou que Ney e Reynier, tendo tido tempo de sobra para os necessários reconhecimentos do terreno, afirmavam que não havia outro caminho senão pelo alto da serra.

- Mas eu falei com os ajudantes de um e outro - replicou Marbot - perguntei-lhes se estava já reconhecido o terreno para a esquerda do inimigo e nenhum me soube responder. Não fizeram reconhecimento nenhum, iria apostá-lo, e as nossas Divisões vão amanhã marrar contra a serra com os toiros cegos.

- Eram formidáveis as posições de Wagram e defendiam-nas soldados austríacos - contrariou Fririon.

- Em colinas que haviam de parecer ondulações suaves ao pé daquelas escarpas gigantescas - objectou Marbot.

- Defendidas por seiscentas bocas de fogo.

- Batidas por outras seiscentas que nós tínhamos. Agora trazemos oitenta que não podem tomar posição vantajosa contra cinquenta ou sessenta que os anglo-portugueses lá tenham na serra.

- As tropas do Imperador venceram há dois anos os aspérrimos desfiladeiros de Guadarrama e bastaram umas brigadas e os lanceiros polacos para desbaratar os espanhóis e tornar-lhes a artilharia toda em Somo-Sierra.

- Eram paisanos fardados, deploràvelmente dirigidos.

- E ali temos ingleses.

- Firmes como rochas nos campos de batalha.

- Pois sim, mas auxiliados por uns galuchos portugueses, que se lhes podem sumir às primeiras descargas.

- Se forem de têmpera daqueles que estiveram ao nosso lado em Wagram, digo-lhe, meu General, que temos homens para se aguentarem lá em cima, ainda que se repitam os nossos de Saor, de Zurique, de Caldiero, de Rivoli, de Essling.

Marbot citara propositadamente as mais gloriosas batalhas de Massena, que ia de ouvido à escuta para não perder palavra.

- Tinham o nosso estímulo - acudiu Fririon.

- No dia da batalha um admirável estímulo, perfeitamente de acordo. Mas na véspera... um lastimoso estímulo, e fizeram prodígios!

- Lendas, como as tèem todas as batalhas, lendas que eles próprios inventariam!

- Peço perdão. Aqui entre nós, em família, não temos o direito de chamar lenda ao que eles fizeram. Eu ouvi a um ajudante do marechal Berthier que no combate de Baumesdorf tinham sido os tais galuchos portugueses os únicos a aguentarem-se diante das baterias e dos regimentos austríacos, enquanto duas divisões dos granadeiros de Oudinot se esbandalhavam na frente e na retaguarda deles, numa fuga doida de terror. Mas faça-se a vontade a Reynier e sigam-se os caprichos inexplicáveis do Bravo dos Bravos, naquela sua estranha incoerência, que ora aconselha retiradas inexplicáveis, ora propõe temeridades, provavelmente funestas para a glória da França e para o prestígio do generalíssimo!

Massena sofreou o cavalo de repelão.

- Quem vem aí?

- Alteza, sou eu, Fririon e os vossos ajudantes, Marbot e Ligniville.

- Ouvi a conversa e compreendo que tèem razão. Confiei demasiado em afirmações pouco seguras. O ataque de frente pode ser uma coisa grave!

- Que nos vai custar muito sangue, sr. Marechal - disse Marbot jubilosamente.

- Mas o caminho para tornearmos as montanhas da Alcoba?

- Procurá-lo-emos, Ligniville e eu, se Vossa Alteza no-lo permitir. Em Mortágua deve encontrar-se alguém que saiba esclarecer-nos, visto que os oficiais portugueses nada nos querem dizer. Talvez consigamos saber alguma de certo velho frade que ficou entrevado no convento dos franciscanos. Estive com êle quando tomámos posse do convento. Entende e fala alguma coisa o francês. É natural que o medo o leve a dar-nos esclarecimentos.

- Pois sim. Fale-lhe ainda esta noite.

- Assim que chegarmos, sr. Marechal.

- Bem, bem. Darei contra-ordem, e não teremos batalha amanhã. Vale bem a pena. O exército descansará durante o dia, e se tivermos caminho para tornear a serra, tomaremos para outras posições de noite, preparando um ataque sobre o flanco esquerdo do inimigo. Esmagá-lo-emos contra aquela mata e seguiremos o caminho de Lisboa. Temos uma demora de vinte e quatro horas, mas a batalha será incomparavelmente mais segura para nós, concordo.

- Haverá muito menor perda de vidas, sr. Marechal - disse Marbot.

- É isso. Teremos uma vitória decisiva e nos primeiros dias de Outubro o meu quartel-general estará instalado no paço real de Lisboa e então mandarei de lá ao Imperador as bandeiras tomadas aos ingleses e a esses galuchos portugueses. O leopardo britânico ficará para sempre esmagado no seu último refúgio do Continente.

Fririon, Marbot e Ligniville não podiam ver-se por causa da escuridão da noite, mas cada um deles adivinhava a expressão de júbilo dos seus companheiros pelo êxito feliz daquela pequena comédia bem intencionada, em que tinham sido, ao mesmo tempo, colaboradores e actores.

Enfim, estavam em Mortágua. Tinham gasto duas horas no caminho, que percorreram sempre a passo.

Nas condições deploráveis em que estava a estrada e com a escuridade da noite não seria seguro meter os cavalos a trote e a galope, mas, acompanhando o Marechal, que, além de ver pouco, era mau cavaleiro, como já tivemos ocasião de dizer, seria desatenção perigosa tentar qualquer andamento mais rápido.

- Bem - disse o Marechal para Marbot e Ligni-ville, assim que chegaram defronte do quartel-general - Vão já ver se me descobrem o caminho para tornear a serra. Recomendo-lhes a menor demora possível.

- O mais rapidamente que pudermos, sr. Marechal. A população da vila fugiu, a noite está escuríssima, não vejo outro recurso senão obrigar o franciscano entrevado a dar-nos esclarecimentos e irmos nós próprios verificar a veracidade das informações que nos der, o que, na melhor hipótese, terá de levar-nos algumas horas.(1)

- Vão. Empenhem-se nisso deveras, dentro do tempo absolutamente indispensável.

Marbot e Ligniville foram para o dormitório dos franciscanos de Mortágua.

Massena apeou-se e entrou para o quartel-general na disposição de ir ter com a amante, logo que houvesse terminado o conselho que aprazara com os generais, seus imediatos. Um ajudante-de-campo tinha já partido para ir chamar Junot, cujo corpo de exército formava a reserva geral do 2.o e 6.o.

Já sabemos a surpresa que Massena ia encontrar. A francesa, fugida da Quinta das Águias, no fingimento de que a oprimia lugubremente ficar numa casa onde um homem estava agonizante. Parece que a amante lhe exagerou muito os seus preconceitos, os seus agoiros e terrores e que o Marechal a acreditou com enternecida boa-fé.

 

*1. Era isto muito difícil - refere Marbot nas suas Memórias - pois que toda a população tinha subido à aproximação das nossas tropas e a noite escuríssima opunha-se ao bom êxito das nossas investigações...

 

Devia ser isto, porque o velho leão de Rivoli beijou-a carinhosamente.

De mais feliz estratégia que o Marechal, ela própria, depois de o ver tranquilo e convencido, lhe disse que autorizara o oficial Luís de Castro a acompanhar a escolta para ir ver um velho tio, o dono da quinta, sem que nem ela nem êle soubessem que o pobre velho estava moribundo.

O ciumento Massena torceu-se um pouco assim que ouviu falar do moço oficial português, mas Madame X contou-lhe o lance com tal encantadora singeleza, tão adoràvelmente compungida, com uns pavores de tal artificiosa ingenuidade, que o leão amodorrou outra vez enlanguescido. A eterna história dos fortes, que em qualquer artifício feminil se enredam e nuns braços de mulher se deixam prender suavemente.

Ao menos aquele artifício era de boa intenção. A francesa precavia-se e, sem dizer palavra a respeito da insubordinação dos dragões, revelara-lhe habilmente uma coisa que o Marechal podia saber por alguns daqueles que a tinham visto sair com Luís de Castro. Se ocultasse o facto, se o não explicasse habilmente, antes que outros lho fossem indicar, quem podia lá saber sob que forma insidiosa, então sim, seriam plausíveis quaisquer desconfianças de Massena, o caso inocente revestiria um aspecto gravemente comprometedor e as cóleras ciumentas do Marechal rebentariam formidáveis contra ela e contra o oficial português.

Todo o seu estratagema deu excelente resultado, mas havia uma coisa que intimamente a preocupava. Luís de Castro prometera voltar da quinta antes de anoitecer e não o vira ainda, nem pela cantineira velha, a mãe Lamotte, incumbida de umas indagações, já largamente gratificadas, pudera saber se o oficial português já tinha voltado.

- Se o tio lhe morreu e êle se deixou lá ficar!

- pensava - Oxalá que, apesar das suas promessas o não tentasse a ideia de desertar para as tropas do seu país. O Marechal lançaria sobre mim todas as culpas e, na verdade, com toda a razão! Homem inteligente, terá sabido ver e observar tudo o que aos ingleses mais importaria saber. Mas não, não. Luís de Castro é incapaz de semelhante quebra de palavra.

Tinha começado o conselho dos generais. Em cima de uma ampla mesa antiga, pertencente ao convento, estavam desdobrados dois mapas de Portu gal, um antigo, feito sob a direcção do general Dumouriez, outro moderno, traçado havia um ano, segundo indicações do general Thiébault.

Três altos castiçais dos altares do convento, quási tão altos como tocheiros, iluminavam tristemente a sala nua de mobília. Contrastavam com aquela mesquinhez as bordaduras de oiro dos uniformes.

Tinham posto em volta da mesa umas velhas cadeiras de espaldar de couro e pregaria amarela, que eram também dos frades.

Só Massena estava sentado. Ficaram de pé Ney, Reynier e Junot, comandantes dos corpos de exército, Fririon, Eblé e Lasowski, que representavam o estado-maior general e os comandos especiais da artilharia e da engenharia.

Massena expusera a sua deliberação de adiar a batalha na esperança de se encontrar um caminho pelo qual se pudesse tornear a serra, evitando os perigos e as perdas inevitáveis de um ataque de frente.

Ney impugnava a deliberação, opondo uma negativa formal à possibilidade de haver caminho praticável que dispensasse o assalto à linha inimiga sobre as posições do Buçaco.

- Essa ideia, sr. Marechal, há-de vir de algum sonho de Marbot, ou doutro como êle.

Marbot falou dessa divertida utopia a um dos meus ajudantes. Cheguei aqui a Mortágua quarenta e oito horas mais cedo do que o quartel-general em chefe, mandei reconhecer o terreno e ninguém foi capaz de ver o tal caminho sonhado por Marbot! Ninguém será capaz de o descobrir nesses dois mapas de Portugal, que aí estão sobre a mesa.

Ney disse isto num tom irritante de desdém.

- Esperaremos as informações que Marbot e Ligniville foram procurar.

- É esperar os desenganos de um devaneio do seu ajudante-de-campo. Mais tempo perdido a agravar a inacção de dois dias! Com o exército inimigo em princípio de concentração, a batalha teria sido ontem, para nós, uma vitória segura, decisiva, esta manhã seria ainda um feito de êxito provável para nós. Amanhã há-de ser uma coisa difícil, talvez terrível, inevitável, se não queremos esperar por um desastre sem remédio. Ou retirar já para longe daqui, ou dar batalha amanhã, sejam quais forem os perigos a vencer. Eis o dilema. Suspeitaram do meu conselho em Viseu, como tinham suspeitado do meu parecer em Almeida. Pois sabiam bem que eu nunca tivera medo de travar batalhas, nem fora nunca dos últimos nas crises da guerra em que é preciso que os generais ponham o peito às balas e a espada erguida na frente de todos.

- Também eu não - acudiu Massena, afogueando-se - e envelheci a mostrar como as batalhas se dão e se vencem.

- Por isso mesmo eu estranho que tivesse hesitado em mudar de plano quando seria proveitoso mudar, como em Almeida e Viseu, e agora hesite em dar batalha, quando já não é ocasião de lastimar os erros cometidos e só é possível resgatá-los, evitando maior perda de tempo.

- Não o convoquei para lhe ouvir censuras! - disse Massena, levantando-se -, Nem os meus precedentes o autorizam a fazê-las, nem, pela autoridade de que o Imperador me investiu, eu posso conceder-lhe o direito de falar assim. Sou o comandante em chefe.

- Marechal como eu, Duque do Império como eu sou.

- Alguma coisa mais.

- Príncipe, bem sei. É categoria que vale muito nos salões das Tulherias, mas nada importa num conselho de generais, em frente do inimigo.(1) Mas compreendo bem. É o mais antigo, o mais idoso.

- Sou. Há dezasseis anos comandava em chefe na batalha de Saorgio e venci-a, há quinze comandava a ala direita do exército e dei e venci a batalha de Loano, há onze comandava o exército de ocupação na Suíça e desbaratei os austríacos e os russos em Zurique. Não conto com as outras batalhas em que entrei sem ter eu as responsabilidades do comando.

- Conheço sofrivelmente a história das campanhas do meu tempo. Esqueceu-lhe a batalha de Caldiero, em que também venceu. Como vê, Príncipe, não me causam ciúmes as suas vitórias.

- Quis lembrar-lhe que não era esta a primeira vez que tinha as responsabilidades do comando em chefe, e na Suíça tendo-o sob as minhas ordens, marechal Ney.

Junot continha-se a custo. A sua vontade era falar também, pondo-se abertamente ao lado de Ney contra o Marechal, mas reprimia-se à espera que Massena o consultasse.

- Peço licença para observar - disse Reynier serenamente,

 

*1. Era aproximadamente a resposta que, meses antes, lhe tinha dado por escrito em Valhadolide, por causa do comandante da artilharia no cerco de Ciudad Rodrigo.

Marbot e a Duquesa de Abrantes dão conta minuciosa do conflito nas suas Memórias.

 

- que precisamos conhecer a resolução definitiva do sr. comandante em chefe. A noite adianta-se e quer parecer-me que tudo se resume em saber se damos amanhã batalha ou se é preciso retirar. Não se atacou ontem o inimigo, o generalíssimo decidirá agora se devemos atacá-lo amanhã. Se lhe é necessário o nosso parecer, aqui estamos para lho dar desassombradamente.

Mais calmo com estas palavras conciliadoras, Massena sentara-se, Ney e os outros seguiram-lhe o exemplo.

- Tenho por cousa difícil e de perdas consideráveis e inevitáveis o ataque de frente contra as posições inimigas - disse Massena - Quanto a este ponto desejo que me exponham a sua opinião.

- Com um dia mais de inacção, as forças inimigas terão provavelmente aumentado, as suas posições estarão mais solidamente defendidas, a batalha será uma temeridade funesta.

- É a minha opinião - acudiu Junot.

Fririon e Éblé manifestaram concordância de parecer relativamente às dificuldades e perigos de uma batalha ofensiva contra a linha de frente dos anglo-portugueses.

- Estou de acordo - apoiou Reynier serenamente - mas não me parece que seja batalha que os nossos esforços não possam vencer. Considero a serra acessível pelo lado de Santo António do Cântaro, tenho até esse terreno já reconhecido por um dos meus ajudantes-de-campo. Por aquele lado a não julgo inexpugnável.

Lazowki apoiou esta opinião.

- Era preferível torneá-la - objectou Massena.

- Uma utopia! - replicou Ney.

- Também me parece - concordou Reyner.

- General Fririon - disse Massena - queira mandar saber se Marbot e Ligniville já voltaram.

Fririon foi abrir a porta e fêz umas perguntas aos ajudantes-de-campo que esperavam na casa contígua.

- Ainda não chegaram - veio dizer a Massena.

- E com a descoberta da tal estrada que sonharam, não chegarão nunca - observou Ney num tom de irritante ironia -, Se o sr. Marechal, Príncipe d'Essling, receia intentar um ataque de frente, entendo que só tem duas resoluções à escolha, mas qualquer delas urgente.

- Eu não receio nada, e tanto que tenho já planeado o ataque de frente, mas desejo evitar a carnificina de uma batalha em desfavoráveis condições para nós. Quero poupar grandes perdas prováveis a um exército que representa apenas pouco mais de metade do efectivo com que o Imperador contava.

- Pois então - acudiu Ney, sorrindo para Junot - mande-nos voltar para Viseu e de lá iremos sobre o Porto, ou ordene a retirada para além do Águeda e, sob a protecção de Almeida e Ciudad Rodrigo, esperar-se-á que o Imperador mande os reforços que o sr. Marechal, Príncipe d'Essling, julga necessários para realizar a conquista de Portugal.(1)

Massena percebeu este sarcasmo brutal que não merecia (sanglante ironie lhe chama o general Kock) e levantou-se num repelão de cólera.

- O Imperador mandou que marchássemos sobre Lisboa e não sobre o Porto, e tinha razão. A conquista de Lisboa põe termo à campanha, a do Porto prolonga-a, sem nos dar a posse do país. Retirar para Almeida e Ciudad Rodrigo só depois de um desastre. Precisamos de uma vitória que force os ingleses a saírem do território entre o Tejo e o Mondego, e os obrigue a reembarcar. O seu alvitre,

 

*1. Aquele estranho alvitre de Ney vem indicado a pag. 192 do tomo VII das Memórias de Massena, pelo general Koch.

 

  1. Duque d'Elchingen, tem o feitio de uma proposta ofensiva, que eu rejeito com a minha autoridade de chefe e repilo com o legítimo orgulho da minha tradição de soldado. Não pode ser sincera uma proposta que está em absoluta contradição com o seu feitio, não raras vezes temerário.

- Julgue-a como lhe aprouver. Quando chegar a hora de combater, o marechal Ney não desmentirá o seu passado.

- A batalha amanhã - ordenou Massena numa vibração fremente, de costas para Ney - De frente contra o inimigo. Tomadas de assalto as brenhas da serra.

- Tèem lá artilharia, os anglo-portugueses - observou Eblé.

- Toma-se-lhes à baioneta. Em Saorgio, os meus soldados tomaram noventa canhões aos austríacos e piemonteses.

- A nossa infantaria não poderá ser eficazmente protegida pelos oitenta e quatro canhões que temos - lembrou respeitosamente Fririon.

- Aquele desertor irlandês que esta manhã se apresentou para ficar com os outros irlandeses que aí temos, calculou em cinquenta a sessenta canhões a artilharia que os aliados tèem na serra.(1)

- Excelentemente dispostos em bateria - acudiu Eblé - dominando todas as posições em que nós pretendermos colocar os nossos. De modo que não podemos aproveitar nem a cavalaria nem a artilharia, em que a nossa superioridade é manifesta.

- Será uma batalha só para a infantaria - objectou Ney.

- A do seu corpo de exército esteve em Iena,

 

*1 No exército de Massena havia uma brigada de voluntários irlandeses como no exército de Wellington havia uma brigada de voluntários alemães.

 

e venceu os prussianos, esteve em Eylau e Friedland, e venceu os russos.

- Esteve lá comigo.

Massena, agora intransigente, debruçou-se para um ligeiro esboço dos reconhecimentos feitos no terreno pelos seus oficiais do estado-maior.

- O 2.o corpo de exército - disse, voltando-se para Reynier - avançará da estrada de Mortágua para Santo António do Cântaro e assaltará o inimigo de modo a fazê-lo recuar contra o convento. Queira indicar-me as disposições que julga necessário tomar para realizar esta parte do plano.

Reynier respondeu logo:

- Já tinha previsto a missão confiada ao meu corpo de exército contra a direita do inimigo. O terreno foi esta manhã reconhecido pelo capitão Charlet.

Inclinou-se para o esboço do terreno e foi expondo as disposições a tomar.

- A divisão Merle, em massa de batalhões na base da serra, do lado direito da Venda de Santo António, avançará guiada pelo capitão Charlet. A brigada Foy, da divisão Heudelet, ocupará Santo António com um dos seus regimentos, provavelmente o 31 ligeiro e manterá o outro em coluna cerrada, à retaguarda da povoação. A artilharia do general Tirlet procurará estabelecer-se nas posições favoráveis da nossa esquerda, para dar o possível apoio ao ataque. A segunda brigada da divisão Heudelet e a minha cavalaria ligeira constituirão a reserva geral do corpo de exército, à retaguarda de Santo António do Cântaro, em massa de batalhões e esquadrões.

- Está bem - disse Massena -, O 6.o corpo do exército - acrescentou, sem se voltar para o marechal Ney - avançará directamente para a estrada da serra. Apoiar-se-á no lugarejo denominado da Moura e dali investirá o centro e a esquerda do inimigo, procurando desalojá-lo de todas as suas posições, até o levar de vencida contra o convento. Este ataque pode e deve coincidir com o das forças do general Reynier sobre a direita. É o 6.o corpo o que tem maior efectivo e todo êle entrará em acção. A sua reserva geral será formada pelo 8.o, que às 7 horas da manhã levantará os seus bivaques e virá formar-se a coberto, em massa de brigadas, à retaguarda do 6.o. O sr. marechal Ney indicará as disposições que entender necessário tomar.

O Duque d'Elchingen puxou para si a folha com o esboço do terreno e examinou-a rapidamente.

- Tenho já os meus postos avançados no lugarejo da Moura. A divisão Marchant avançará por colunas de brigada pela direita do lugarejo, a de Loison pela esquerda, a de Mermet em reserva, a um tiro de peça à retaguarda da Moura. A brigada de cavalaria ligeira de Lamotte ficará para a direita de Mermet. O resto será comigo e com eles.

- Bastará que todos cumpram lealmente o seu dever, honrando as suas próprias tradições. A cavalaria de Montbrun - disse para o general Fririon - deve desenvolver-se a coberto para a esquerda da estrada de Mortágua(1). Até amanhã. Antes das 7 horas estarei à retaguarda do 6.o corpo, em lugar onde os artilheiros ingleses me possam ver. Não se dirá que o velho marechal Massena teve alguma vez na sua vida receio de uma batalha difícil.(2)

Baixou-lhes a cabeça.

 

*1. Os traços fundamentais daquele plano estão autenticados no tomo VII das Memórias de Massena, pág. 193 e 195.

  1. Koch explica nesta frase aquela súbita resolução de Massena: Tinha necessidade duma vitória, menos, talvez para se impor ao inimigo do que para submeter os generais seus imediatos.

 

Instantes depois Marbot e Ligniville chegavam açodados.

Encontraram Fririon, que fora o último a sair da casa do conselho.

- General - disse-lhe Marbot com uma indizível expressão de alegria - temos a vitória segura e fácil! Descobrimos o caminho que nos livra daquelas bravezas formidáveis do Buçaco.

- É tarde!

- Tarde, porquê?

- Estivemos há instantes em conselho. Ney fêz exasperar Massena, estão dadas as ordens para a batalha amanhã.

- Mas não deve ser assim! -objectou, olhando para Ligniville, num olhar de lástima - O Marechal dá contra-ordem, manda formar de madrugada e mete-se com o exército pelo caminho que nós encontrámos, o miraculoso caminho de Boialvo, o caminho certo para Coimbra e Lisboa.

- Viu esse caminho?

- Ligniville e eu.

- Como deram com êle?

- Fomos ter com o franciscano de que lhe tinha falado, o que ficou gravemente enfermo. O frade respondeu com um grande tom de sinceridade a tôdas as preguntas que lhe fizemos. Tinha ido muitas vezes de Mortágua a Boialvo por um caminho cujo cruzamento fica a menos de uma légua daqui, e admirou-se muito de nós não conhecermos aquele cruzamento, diante do qual havíamos passado na marcha de Viseu para Mortágua. Guiados pelo velho jardineiro do convento, fomos verificar as informações do frade e reconhecemos que havia efectivamente uma estrada de desfiladeiro, afastada do Buçaco. Há-de ser possível tornear o flanco esquerdo do inimigo.

Bem me parecia a mim. Estava a adivinhá-lo, e o marechal Ney, aqui em Mortágua quarenta e oito horas antes de nós chegarmos, e não deu com êle! Parece inverosímil!(1)

- Parece - confirmou Fririon - e bastará parecê-lo para que Massena desconfie de alguma leviandade de observação.

- Mas se o vimos nós, General! Queira pedir ao Marechal que nos ouça. Eu bem sei que não sou persone grata para o senhor Príncipe d'Essling, mas, que demónio! Trata-se de substituir por uma vitória segura, por um avanço triunfal no caminho de Lisboa, essa agourada batalha que pode dar um desastre e com certeza dará uma carnificina horrorosa, se do lado de lá não houver traidores nem cobardes.

- Pois bem, eu vou pedir ao Marechal que o ouça.

- E a Ligniville também, para êle confirmar o que eu vou dizer. É pela fortuna do exército e pela glória da França.

Fririon foi e voltou com pequena demora.

- Está de muito mau humor. Ney deixou-o numa

irritação espantosa.

- Embora. Arrostarei com todas as suas cóleras.

- Preguntou-me logo se era para lhe falarem do tal caminho que tinham ido descobrir. Limitei-me a responder-lhe que os senhores vinham num grande alvoroço de júbilo e pediam com instância a honra de lhe falar.

- Pois, saia o que sair, vamos lá. Entraram no alojamento de Massena.

- Que temos? Fizeram a descoberta? - preguntou-lhes secamente.

 

*1. São quási na íntegra as palavras com que Marbot refere nas suas Memórias aquela feliz descoberta.

 

Marbot repetiu o que tinha dito a Fririon, Ligniviile confirmou tudo calorosamente.

- Os senhores endoideceram ou julgam-me doido? Então, só porque verificaram a existência de uma estrada aonde os guiou um rústico do país inimigo, que pode muito bem ser um espião dos ingleses, só porque deram com ela, sem a terem reconhecido completamente, sem terem examinado se vai dar onde o tal frade lhes indicou, entendem que eu devo meter o exército por esse desfiladeiro dentro, sem saber onde vou parar?! O estado-maior de Ney não a viu, não a sonhou sequer e esteve aqui dois dias. Pelet acaba de sair e afiançou-me diante do mapa do país que não acredita em semelhante caminho. Esteve de dia a observar com o seu óculo de campanha as montanhas circunvizinhas, e não descobriu nenhuma passagem para a nossa direita. Querem então os senhores que eu acredite plenamente na estrada que o frade lhes revelou e meta para lá o exército, sem saber se vou cair numa cilada do inimigo, que talvez daqui a algumas horas esteja ciente da descoberta que os senhores fizeram?!

- O jardineiro é um velho que não quere abandonar o pobre frade, gravemente enfermo.

- Mas conhece decerto as veredas dessas montanhas e pode levar aviso a outros que estejam fora das nossas vistas e comunique a descoberta aos ingleses, seguindo pelo mesmo caminho onde os senhores me queriam meter a mim!

- Mas Vossa Alteza mandava de madrugada reconhecer a estrada de Boialvo, íamos nós, Ligniville e eu, como guias das tropas em exploração, e só daria a batalha na linha do Buçaco se viesse a saber que era inaproveitável ou de maior perigo esse caminho, que, a meu ver, nos levaria para uma vitória segura e fácil.

Fririon interveio, apoiando o pedido de Marbot e de Ligniville.

- Escusam de insistir. Já dei ordem para a batalha. Vão deitar-se. Estou fatigado e preciso de me levantar de madrugada. As 4 horas devemos estar a cavalo, ao romper do dia estaremos defronte da serra.

Despediram-se, saíram tristemente.

- Uma trágica temeridade! - comentou Marbot, já fora da porta.

- Ficámos batidos - disse Fririon.

- Oxalá que sejamos só nós - acudiu Marbot,. amargamente.

 

             A primeira batalha.

Ainda não luzia a madrugada e ia já um movimento espantoso em Mortágua. Estavam debaixo de forma os três batalhões que formavam a guarda de segurança do quartel-general em chefe.

Pela rua mais ampla da vilazita, a entestar com a estrada para o Buçaco, passavam a galope ajudantes-de-campo e ordenanças, que levavam e traziam ordens. Para a direita e esquerda da povoação tinham saído fortes piquetes de dragões em serviço de exploração.

Massena já estava a pé. Fardou-se e foi despedir-se da amante. Encontrou-a muito pálida, muito nervosa, toldados de lágrimas os seus olhos azuis.

- Não tenhas medo, minha bela. Ficas aqui perfeitamente defendida.

- Oxalá que lhe não falte a sua boa estrela.

- Não há-de faltar. Não sei ainda o que é perder uma batalha. Esta de hoje é difícil, há-de custar muito sangue, mas espero vencê-la. Fica tranquila.

Dá-me um beijo e valerá para mim a mais doce aurora deste dia.

A francesa beijou-o brandamente.

- Hei-de logo trazer-te a paga na hora jubilosa do triunfo.

- Filho querido da vitória, como o imperador lhe chamou, Deus permita que essa glória o não abandone agora.

- Conto com ela em meu favor, como sempre - disse-lhe, esboçando um sorriso contrafeito.

Beijou-a e saiu. Ia apreensivo. Fririon esperava-o com todo o estado-maior, na casa que tinham transformado em secretaria.

Uns breves cumprimentos.

- Fririon, são horas. Há alguma novidade?

- Os oficiais portugueses pedem a Vossa Alteza a mercê de os poupar ao espectáculo doloroso de uma batalha contra os seus compatriotas, permitindo-lhes que fiquem à retaguarda da escolta do quartel-general.

- Estou pouco satisfeito com eles. Vá que não combatam, mas nem sequer nos dão esclarecimentos! São uns homens inúteis que eu trago comigo. Mas, enfim, compreendo-lhes a situação e consinto que fiquem à retaguarda da minha escolta, durante a batalha. Previna-os, porém, de uma coisa. Ao menor sinal suspeito que façam, a qualquer tentativa de deserção, mando-os fuzilar sem piedade.

- Não me parece que tenham tentações de desertar. Sabem que o governo de Lisboa os mandou declarar traidores e os condenou à morte.

- Vamos lá.

Desceram. À porta estavam já a cavalo os oficiais portugueses.

Massena montou. Todos os oficiais do seu estado-maior saltaram logo para cima dos cavalos. Era ainda escuro.

Fririon disse ao Marquês de Alorna a resposta que lhe dera Massena.

Alorna comunicou-a aos seus oficiais e foi agradecer ao Marechal aquela concessão. Fririon reparou em Luís de Castro, que trazia o braço esquerdo ao peito.

- Que é isso? Está ferido?

- Coisa de nada, sr. General. Dei ontem uma queda e fiquei com o braço muito contundido.

Não era verdade. Castro fora ferido levemente por um zagalote daquele tiro de clavina que desfecharam contra êle, à saída da Quinta das Águias.

Tivera a boa fortuna de receber apenas aquele ferimento ligeiro, mas fora a terra com o cavalo, que outros zagalotes do mesmo tiro tinham ferido de morte.

Chegou à desfilada um ajudante-de-campo de Junot.

- Alteza - disse - o 6.o corpo começou a levantar os bivaques sem novidade.

- Bem. Vamos lá!

Meteram a trote pela estrada para a serra.

- Temos nevoeiro - disse Massena para o chefe do estado-maior - Tanto melhor. É um aliado com que não contávamos. Nós bem sabemos onde os ingleses estão, não há que errar, mas, do alto do seu ninho de águia, nem eles nem os portugueses poderão descobrir os nossos movimentos.

- Nevoeiro denso e baixo, que melhor oculta as nossas colunas - disse Fririon.

Estava a raiar a manhã quando o general Fririon descobriu, a algumas centenas de passos para a frente, as últimas colunas das brigadas do 6.o corpo.

À direita da estrada ficava um outeiro, a um tiro de artilharia das primeiras escarpas da serra.

Fririon indicou-o ao Marechal como excelente ponto de observação. Subiram para lá por um carreiro entre pinheiros enfezados.

A neblina adensava-se nos vales e nas ravinas, mas não velava completamente o cimo da serra.

Rasgava-se pelas penedias das saliências, enrodilhava-se nas depressões das escarpas, adelgaçava-se por entre as árvores enormes da mata, esvoaçava em farrapos no topo da cumiada. Por cima da copa colossal dos grandes cedros, filhos expatriados do Líbano e do Himalaia, a neblina dava o aspecto de uma fumaradazita que pousara. Como um fundo de teatro para um quadro de mágica, esse vulto soberbo da serrania, semi-velado pela névoa!

Massena pôs um olhar receoso naquela cadeia de montes, a lembrarem bastiões de uma cidadela de titãs. Isolado, apreensivo, a sua escassa vista ampliada por um excelente óculo de campanha, com que o Imperador o brindara em Paris, Massena esteve por largo tempo a examinar as ásperas cumiadas da serra por onde o nevoeiro se esfarrapava.

De quando em quando, por um rasgão, descobria uma bateria aninhada entre maciços de urzes e de estevas, depois uma grande massa de fardas vermelhas que se moviam como se fosse um lago de sangue que o vento houvesse agitado, pelos ásperos declives manchas escuras de soldados, os caçadores portugueses.

- As papoilas da serra - disse para Fririon, aludindo às fardas vermelhas dos ingleses - As nossas baionetas irão ceifá-las. Estão-se as coisas dispondo bem para nós. Repare como a névoa é espessa aqui em baixo nas ravinas e até mais de meia altura da serra.

- Mal se divisam as nossas colunas.

- Mas lá para cima, na crista, muito menos densa, aos farrapos, para vermos bem quando eles saem dos matagais. Todavia há-de ser uma batalha sangrenta! Aquelas posições são formidáveis!

Muito afastado de todo o estado-maior, quási oculto de todos, numa ondulação mais alta, Castro contemplava a serrania a olhos nus, marejados de lágrimas.

Como êle conhecia bem tudo aquilo! Quantas manhãs de primavera, rútilas e calmas, não passara êle do lado de lá daqueles penhascos, no interior da serra, quando ia visitar o tio carmelita, com a permissão especial que só raramente era concedida aos forasteiros?

Tinha agora a visão de tudo aquilo, envolta numa amargura de saudades por aqueles seus tempos de paz, tranquilos, devaneadores, iluminados de ilusões que já tinham morrido.

Via através da memória dos dezoito anos o pequeno convento de paredes forradas de cortiça, as capelas rústicas, as grutas inóspitas dos cenobitas, a contrastarem com as opulências orientais da floresta, por onde esvoaçava um perfume intenso de flores e rumorejava a melopeia das fontes.

As giesteiras coroadas de oiro, tapetes de boninas ao redor dos borbotões da água, clara e fria como cristal, bandos de pássaros num cântico de amores por entre os cedros, pela copa dos laranjais, pela alta ramaria dos carvalhos brancos, dos loureiros reais, dos plátanos de tom prateado, dos ulmeiros negros, das acácias bastardas.

E, por cima das moitas de alecrim e rosmaninhos, borboletas noivas, de asas de neve.

E, daqui a pouco, toda essa paisagem de éden toldada pela fumaceira das descargas, alagada de sangue, sacudida pelos trovões da artilharia, na tempestade pavorosa das ambições humanas! Ali talvez a brilhante vitória de uma nacionalidade, talvez o desastre final de um glorioso país! E meu irmão? Além, certamente. Eu deste lado? Soldados noviços. Deus seja com eles e que a alma antiga da nossa raça os não abandone agora.

Cândido Xavier veio ter com êle.

- Já descobri regimentos da nossa gente, para além, onde a neblina se rasgou. Veja. Aqui tem o meu óculo. É de grande alcance. Mas de braço ao peito nem o pode graduar para a sua vista.

- Posso, os movimentos deste braço têem de ser mais lentos, são dolorosos, mas posso pô-lo em auxílio do outro, cautelosamente. O essencial é não o desapoiar do suspensório.

Graduou o óculo vagarosamente e levantou-o na mão direita, abarcando-o pelo meio.

- Vejo perfeitamente o que é possível ver-se pelos rasgões do nevoeiro.

Um ajudante do Marquês de Nisa veio chamar Cândido Xavier.

- Restituo-lhe o seu óculo - disse-lhe Luís de Castro.

- Fique com êle. Eu lho pedirei quando me for preciso.

Massena aproximou-se mais de Fririon, que estava conversando com Marbot. Ia acabrunhado.

- Tinham alguma razão na sua proposta de ontem - disse-lhe tristemente.(1)

- Mas a batalha ainda não começou - acudiu Fririon com uma grande expressão de júbilo - ainda se está a tempo de aproveitar a estrada de Boialvo, evitando uma temeridade, que nos pode ser funestíssima.

- Em três ou quatro horas se pode reconhecer a estrada e então a vitória será perfeitamente segura - disse Marbot calorosamente.

- Estou a compreender que é melhor...

 

*1. São as palavras que Marbot atribui a Massena. Encontram-se nas Memórias do ilustre ajudante-de-campo do Marechal e é o próprio Marbot quem nos revela que Massena as disse tristemente.

 

Mas nisto chegou a galope o seu primeiro ajudante-de-campo, Pelet.

- Está tudo a postos, Alteza. É admirável a disposição de ânimo das nossas tropas. Esperam com impaciência a ordem de atacar. Os velhos soldados recordam as glórias do Imperador e do seu heróico Marechal. Pedem que vossa alteza se lhes mostre e lhes fale, antes de investirem a serra.

- As posições do inimigo são quási inacessíveis!

- disse Massena perturbado.

- O nevoeiro protege-nos - objectou Pelet - Está a fazer-se cada vez mais denso para ali, dos lados de Santo António do Cântaro.

Chegaram à desfilada Ney e Reynier com os seus ajudantes.

- A batalha pode começar quando quiser - disse o marechal Ney.

- Os meus soldados - informou Reynier - prometem galgar a serra de arremetida.

- Com tais disposições de ânimo é talvez uma vitória certa - disse Ney.

- É uma acção imprudente! - objectou Massena, outra vez hesitante - Temos talvez um meio mais seguro de bater o inimigo.

- Outra vez a lenda da tal estrada que ninguém viu! - objectou Ney num tom irritante de desdém.

- Nestas hesitações se pode quebrar a força moral do exército - observou Reynier.

- Dando alento ao inimigo - concluiu Ney.

- É preciso tomar aquelas escarpas à baioneta

- alegou Massena, entre perplexo e irado.

- Nunca vi que alguma vez exércitos inimigos lograssem resistir ao ímpeto dos soldados da França, numa carga de baioneta, dado que não fosse grande a desproporção numérica dos nossos - replicou o Duque de Elchingen.

- Aqueles estão protegidos pelo terreno e os soldados ingleses passam por bons atiradores - objectou Massena.

Eram extraordinárias e sem precedentes estas hesitações naquele homem! Como se um pressentimento, que se não atrevia a confessar, lhe estivesse dominando o ânimo.

- Há-de supor-se - volveu Ney asperamente - que receia esta batalha quem se envaidece de não ter perdido nenhuma! Temos então de ir dizer aos soldados que mais uma vez fica adiada a batalha necessária para chegarem a Lisboa?!

- Não, sr. Marechal - retorquiu Massena desabridamente - A batalha vai começar. Pode irdizê-lo aos seus soldados.(1)

- Estimo. Cada um fará o seu dever como quem é. Deitou a galope com o seu estado-maior na direcção de Santo António do Cântaro.

- Tinha de ser! - disse Marbot tristemente para o seu colega Ligniville.

Massena meteu a trote para a linha de batalha. Iria ver os soldados e falar-lhes. Teve logo uma aclamação entusiástica. Oficiais e soldados gritavam arrebatadamente, evocando-lhe as gloriosas batalhas.

- O nosso grande Marechal de Rivoli e de Wagram!

- O vencedor das batalhas de Saorgio, de Caldiéro e de Loano!

- E de Zurique d'Essling!

- O que nunca foi vencido!

- O filho querido da vitória!

Na sua profunda comoção, Massena parecia transfigurado e, como nos seus grandes dias de outrora,

 

*1. Marbot resume nas suas Memórias o que se passou depois que Massena lhes fora dizer, a êle e a Fririon, que achava razoável a proposta que lhe tinham feito na véspera, como que outra vez arrependido de dar ordem para a batalha.

 

falava à alma dos soldados numa linguagem singela incisiva, vibrante de paixão. Diante das colunas de Merle (2.o corpo) bradou aos soldados que o vitoriavam:

- Veteranos brilhantes de Austerlitz! As vossas águias devem hoje repousar vencedoras na crista daquela serra!

Fizeram-lhe uma aclamação doida os soldados antigos do 2.o corpo.

Ao pé do centro das forças de Ney disse comovidamente:

- Soldados de Iéna e de Friedland! Meus amigos: naquelas montanhas está a chave de Lisboa, é preciso tomá-las à baioneta, finda esta vitória, e então repousaremos.(1)

- À baioneta! À baioneta! - clamaram como um só os regimentos, as brigadas, as divisões, agitando no ar as barretinas, num frenesi de impaciência.

Dir-se-ia que o velho marechal tinha remoçado. Aprumou-se vigoroso aquele corpo, ali mirrado dentro do uniforme recamado de oiro, a cabeça ergueu-se-lhe para a serra em soberbias leoninas e como que a sua alma heróica de Zurique lhe fulgia agora no olhar arrogante.

Enquanto se não trava essa pugna de vida ou de morte para a nação portuguesa, indiquemos rapidamente as disposições tomadas pelas tropas anglo-portuguesas.

Na extrema direita, do lado da portela da Oliveira estava a divisão do general Hill, observando o caminho para Santo António dos Olivais e Coimbra.

 

*1. As palavras em itálico são a tradução literal das que Guingret ouviu ao marechal Massena e reproduz a pág. 67 da sua Relation historique et militaire de la campagne du Portugal, etc. (Edição de 1817).

 

Entre a portela e as alturas sobranceiras a Santo António do Cântaro, a divisão do general Leith, e em primeira linha a divisão Picton com os regimentos portugueses 8, 9 e 21.

No grande maciço central a divisão do general Spencer, com a brigada portuguesa de Packyl, 16 e caçadores 4), avançada sobre o flanco esquerdo, mais ao norte a divisão ligeira de Crawfurd com os caçadores portugueses 1 e 3 e em reserva a brigada portuguesa de Colleman (7, 19 e caçadores 2).

Formavam três linhas fortemente protegidas por artilharia estas forças postadas no maciço central, desde a meia encosta até ao muro da mata.

Na extrema esquerda a divisão do tenente-general Cole com duas brigadas portuguesas. Apoiava-se nas alturas denominadas Ninho das Águias.

Para a retaguarda de todas estas divisões ainda havia reservas gerais numerosas e ao pé do convento, onde o quartel-general em chefe se instalara, fora postada uma brigada alemã.

Muito para trás do flanco esquerdo, na baixa, entre a Vacariça e Avelãs do Caminho, concentrára-se o grosso da cavalaria anglo-portuguesa, vigiando o caminho da serra para a Mealhada, sobre a estrada real do Porto a Coimbra e Lisboa.

Assim estavam dispostos os vinte e nove mil portugueses e os vinte e seis mil ingleses que iam opor-se aos cinquenta e quatro mil homens do marechal Massena.

O Príncipe d'Essling metera a galope e fora colocar-se no outeiro onde já estivera observando as posições dos aliados. Não podia ver dali toda a linha de batalha, mas descobria bem aquela parte central, por onde subia a estrada. Era ali onde êle previa a luta decisiva, e, portanto, a mais encarniçada.

Chegou Montbrun com o seu estado-maior. Vinha combinar com o Marechal o movimento que deveria efectuar com a sua divisão de dragões, logo que a fortuna da batalha se inclinasse para os franceses.

Estava flamante como para uma revista defronte das Tulherias. Espectaculoso como Murat, bravo como êle, Montbrun não sabia entrar em batalha senão assim com o seu uniforme caprichoso e berrante.

Penachos ondeantes de cores vivas, solta ao vento a polonesa de pelicas caras com alamares de oiro e botões de diamante, botas de hússar, encarnadas como as de Murat.

Alto como um pinheiro, de longa cabeleira como um tenor (cabeleira de Holofernes lhe chamou Laura Junot), Montbrun era na realidade uma figura de exquisita imponência teatral.

Foi brevíssima a conferência entre Massena e Montbrun. Dali a pouco o espaventoso general da cavalaria partia a pôr-se à frente da sua divisão.

O corpo de exército de Junot já estava próximo, sobre a estrada de Mortágua. Como já sabemos, constituía a reserva geral do exército.

Eram 7 horas. O nevoeiro ainda mais se fechara em volta da serra. Massena mandou que se começasse a batalha.

Dois ajudantes-de-campo partiram à desfilada para transmitir a ordem a Reynier e Ney.

Como nas batalhas do imperador, o sinal de principiar podia ser dado pela artilharia. Ali, porém, não convinha. Seria aviso para os aliados, a quem o nevoeiro não deixava perceber as massas de colunas que formavam no fundo das ravinas, aguardando a ordem de assaltar a serrania.

Numa opressão de alma indefinível, atormentado pela curiosidade e pelo receio, Luís de Castro afastou-se muito para a retaguarda da escolta do Marechal, e tomou sozinho para um cabeço donde pudesse ver sem que alguém lhe lesse no rosto as ansiedades do seu coração de patriota.

Todas as atenções estavam então voltadas para os movimentos da divisão de Merle do 2.o corpo de exército, cujas massas de batalhões se aproximavam da raiz da serra.

Era um cabeço de áspero declive, mas de maior altitude que o outro onde estava Massena, cingiam-no renques de pinheiros bravos, que iam até meia encosta. No topo abaulado, estreito, apenas caberiam três homens a cavalo. Dali se avistava a serra desde as escarpas sobranceiras a Santo António do Cântaro até ás proximidades do lugarejo da Moura.

Se o nevoeiro se dissipasse, dali descobriria bem o movimento das tropas, graças ao excelente óculo que lhe emprestara Cândido Xavier.

- Esta cerração protege o ataque dos franceses! Num daqueles seus arranques leoninos podem chegar lá cima de surpresa! Nem batem o passo de carga para se não denunciarem! Pode ser a mortalha de Portugal aquele imenso lençol de neblinas!

Os batalhões de Merle, já perdida a regularidade de formatura por causa das desigualdades do terreno, lá iam subindo, firmando-se nas rochas, segurando-se ao mato, abordando-se às espingardas.

Mas iam devagar, ofegantes, esfarrapados pelo matagal bravio.

- E não dão por eles! Sobem sempre! Ouvem uns tiros, chamejaram amortecidos pelo

nevoeiro os relâmpagos das espingardas.

- Enfim! Deram por eles.

Vira arrancar pela serra acima, a embeberem-se nos flocos brancos de nevoeiro, a esfarrapá-lo em volta de si, as duas colunas da divisão Merle - a brigada Graindorge e a de Sarrut.

- Agora! - rouquejou Luís de Castro - Os tambores ainda não batem o passo de carga! Entendo.

Vão disfarçando o ataque - monologava o Castro numa ânsia oprimidora.

Estrondeiam descargas cerradas e tiros esparsos, ouvem-se confusamente os gritos de estímulo para a carga.

- Mau começo! - regougou Luís de Castro, fazendo-se pálido - Estão-se batendo com os piquetes avançados dos nossos... Dos nossos digo eu como se daquele lado eles me quisessem considerar dos seus!

O 8 de infantaria portuguesa fazia frente aos dois regimentos franceses de Graindorge, o 4 ligeiro e o 15 de linha.

- Ah! mas as avançadas dos aliados, cedem, recuam, debandam para o topo da serra! Fardas vermelhas... mas também outras fardas, que hão-de ser de portugueses. Logo aos primeiros ímpetos os nossos batidos!

Assomou então um soldado por entre os pinheiros e foi-se aproximando da crista do cabeço. Trazia o uniforme dos granadeiros da 13.a meia brigada de Wagram.

- Meu capitão!

- Ah! és tu, João Luís.

- V. s.a queira perdoar e dê-me licença que eu veja ao pé do meu Capitão como os nossos rapazes combatem. Não tinha mais ninguém para quem me chegasse.

- Pois sim, estimo que viesses.

- Eu tenho vindo ao largo, a seguir v. s.a. Sempre é outra coisa estar ao pé de quem nos sabe falar ao coração.

- Ruins princípios, rapaz! Retiram os nossos e os tranceses arrancam para cima da serra. Estão a levá-los diante de si à baioneta, numa arremetida furiosa.

- Às vezes principia-se mal e acaba-se bem. Olhe v. s.a na véspera daquela grande batalha em que nós entrámos na Áustria.

- Ouvem-se aqui os brados triunfais daqueles regimentos franceses! Ah! que se os de lá deixam perder a batalha...

- Tiros de artilharia, meu Capitão! Lá de cima! - disse o granadeiro numa excitação violenta - Muitas fardas vermelhas e das outras! Agora é que os de lá lhes vão tocar a pavana!

As fardas que o João Luís vira eram as da divisão do major-general Picton, que batia com os seus fogos de revés a brigada Graindorge, já no cimo da serra, a investir o flanco esquerdo da divisão Spencer.

Uma bateria de seis canhões dos aliados abre largas brechas nas colunas francesas.

Então, como num quadro de mágica, o sol rompe através do nevoeiro e esfarrapa-o. Cintilam as espadas, têem fulgores de relâmpago as baionetas, distinguem-se os uniformes, brilha o oiro das dragonas nos ombros dos generais.

- O sol! - exclamou Luís de Castro - Assim êle fosse agora o anúncio da vitória como o outro de Aljubarrota e de Montes-Claros!

- O sol vai aquecer o sangue da nossa gente, é nosso conhecido e amigo velho. Agora até os tambores franceses vão por ali a riba a bater a carga! Outra coluna por acolá, a trepar!

Era outra coluna francesa que avançava também pela serra acima contra as forças dos generais Leith e Spencer.

- Isso! - dizia comovidamente o João Luís - rufai por aí a riba que êles vo-lo dirão. As peças berram mais alto que os vossos tambores, as peças e as espingardas.

E numa excitação de ingenuidade quási infantil, o granadeiro ora se afastava do Castro como se quisesse abalar para a serra, ora voltava a dizer comovidamente ao seu capitão umas coisas que o moço oficial estava descobrindo muito melhor do que ele graças ao seu excelente óculo de campanha.

- Agora já se não vê bem, meu Capitão. Agora o nevoeiro é fumo da pólvora. Sobem como gatos os tais franceses!

E assim ficaram por largo tempo a ouvir as descargas, os tiros de artilharia, o som rouco dos tambores, os gritos estridentes do comando.

Os franceses agúentavam-se intrepidamente no topo da serra. Não despegavam de lá. Mas a divisão Picton já tinha sido também reforçada por uma parte dos anglo-portugueses do general Hill.

- Como a aragem da serra desprega as águias altivas daqueles regimentos! - disse Luís de Castro.

E muito baixo, só para si, como se fosse uma prece:

- Meu Deus, por esta pobre e gloriosa terra! De súbito emudeceu a artilharia e cessaram as

descargas.

- O formigueiro deles com os feridos pela serra abaixo! Tantos! Repare v. s.a agora os de lá, os das fardas vermelhas e os nossos à baioneta sobre os franceses!

- Na frente um regimento português. Bravo! Galuchos, que seja convosco a alma da pátria!

Era o 8 português que eles estavam vendo, um regimento de tão recente organização que alguns dos seus soldados ainda não tinham fardamento e traziam as correias sobre as suas grosseiras nisas de briche.

Avançara de baioneta calada ao lado do 45 e do 88 ingleses, e a quinze passos das colunas de Grain-dorge deu uma descarga e carregou num ímpeto heróico.(1)

- P'ra baixo com eles! P'ra baixo! - exclamou o João Luís - caem como tordos, mas refilam! Querem aguentar-se! Estão a ter pena de se despegarem dali.

 

*1. É um lance indicado nas Memórias de Massena.

 

E os oficiais a puxarem por eles para cima, de espadas no ar, e a cairem também uns atrás dos outros!

- Soberba carga, João Luís, a daquele nosso regimento português! Olha como aquela coluna se esbandalha diante dele e vem de escantilhão pela serra abaixo! Os franceses trazem em braços alguns oficiais. Um deles de farda bordada... um general.

Era o general Graindorge, mortalmente ferido. Traziam também os dois coronéis da 4.a ligeira e do 15 de linha e muitos oficiais.

- Admirável intrepidez a daquele nosso regimento!

- Aqueles soldados fazem honra à nossa terra, meu Capitão! Se os outros são assim, quem ganha a batalha são eles.

- Ainda é cedo para contar com a vitória.

- Aqueles ali já despersaram em atiradores e lá estão a segurar-se atrás do mato e dos penedos das quebradas.

Indicava os dois regimentos da brigada Graindorge, dizimados, arquejantes, quási esmorecidos.

- Agora um general que vem por ali acima como um desesperado. Quere levá-los outra vez para riba. Lá foi a terra também.

Era o general Merle, comandante daquela divisão. Caíra gravemente ferido.

- Meu Capitão, ali p'rá nossa direita há tiros de peça e de fusilaria.

- Há-de ser o ataque do corpo de exército do marechal Ney.

E de si para si:

- O corpo maior, levado pelo mais bravo dos marechais do Império! Mas começou tarde...

Entretanto, a outra coluna do 2.o corpo que saíra da estrada de Santo António do Cântaro e subira a serra ainda a coberto do nevoeiro, procurava aproveitar o movimento das divisões de Leith e Spencer, que tinham ido em auxílio da divisão Picton.

Apoiara o 2° ligeiro num saliente do terreno, no intento de cair sobre o flanco de uma das divisões inglesas. Era tarde. A divisão Merle fora já repelida, e quási todos os seus oficiais superiores estavam feridos ou mortos. Aqueles então nem puderam chegar ao alto da serra.

Da divisão do major-general Leith avançam para eles a brigada portuguesa do coronel Champalimaud (infantaria 9 e 21) e o 74 inglês, cujos fogos fazem estacar o batalhão francês.

Para a esquerda, a dar apoio à divisão Picton, marchara o primeiro batalhão do 9 português e o segundo do 38 inglês. A coluna não pôde avançar, as descargas dizimam-lhe os batalhões. O 27 ligeiro e o 36 de linha cedem terreno desordenadamente e vão concentrar-se numa quebrada.

Reynier, numa alucinação de desespero, ordena que o general Sarrut volte ao assalto com os quatro regimentos da divisão Merle, já profundamente enfraquecidos, e que os apoie o general Foy, com o 31 ligeiro e o 71 de linha, ainda em reserva em Santo António.

Mas lá estão em cima para lhes fazer frente o 9 e o 21 da brigada portuguesa do coronel José Joaquim Champalimaud e o 74 inglês.

Nesta temerária investida os franceses nem chegam a dois terços da altura da serra. Retiram derrotados. O general Foy cai gravemente ferido.

O bravo comandante da brigada portuguesa também caíra ferido e fora levado em braços, quási moribundo. Havia batalhões franceses que tinham perdido metade do seu efectivo.(1)

 

*1. O fogo dos anglo-portugueses era de tal modo intenso e certeiro, que o general Kock diz nas Memórias de Massena: qu'il leur fit subir en un clin d'oeil une pert enorme.

- Di-lo o próprio Kock nas Memórias de Massena.

 

Revnier já não tem reservas com que possa intentar outra arremetida. Manda aviso a Massena e propõe-lhe a suspensão do ataque até se conhecer o resultado da investida do corpo de exército de Ney.

Massena acede e o 2.o corpo fica inactivo.

Tivera mais de dois mil mortos e feridos.

- Percebem-se daqui os que ficaram estendidos - dizia o João Luís - O sol bate-lhes de chapa nos metais! E outra vez um formigueiro de soldados com os feridos às costas. Benditas mães as que criaram aqueles nossos rapazes, aqueles valentes soldados! Mas quantas haverá que nunca mais tornam a ver os filhos?

- Daqui estão vencidos os gloriosos soldados de Austerlitz.

- Estes então, que os nossos trouxeram diante de si à baioneta por ali abaixo, já tinham vencido grandes batalhas, meu Capitão?

- Eram do corpo do exército do marechal Soult, ajudaram a vencer a mais famosa batalha de Napoleão, tinham batido os russos, os austríacos, os espanhóis, os ingleses.

- Pois que tenham paciência. Esta terra é nossa e agora os bateram de cá. E os outros que estão com o sr. marechal Ney?

- Esses bateram os prussianos e os russos em quatro tremendas batalhas.

- Pois Deus lhe dê a sorte destes. Cada qual está no direito de defender a sua casa e merece que Deus o ajude. Se v. s.a desse licença, ia até além observar se estes franceses daqui já perderam o gosto de ir à serra.

- Pois sim, vai onde quiseres.

O João Luís meteu por entre os pinhais, por ali fora aos pulos como um cabrito.

- Daqui a batalha está vencida pelos nossos! - pensou Luís de Castro, num arrebatamento de júbilo.

Levantou os olhos para o lado da Cruz Alta, a sobranceira cruz de pedra, em cujos degraus tantas vezes se sentara, a contemplar o dorso longínquo dos Hermínios, e os desfiladeiros em cujas gargantas os lusitanos semi-selvagens de Viriato algumas vezes estrangularam as águias de Roma.

- É para além, a esfumar-se no extremo horizonte, a orla do amor, desse Atlântico lendário que foi a nossa estrada triunfal para os confins do mundo.

Levantou outra vez o óculo para a cumiada da serra. O sol tinha rutilações deslumbradoras de apoteose. Cintilavam enfileiradas as baionetas dos regimentos vencedores, reluzia o bronze dos canhões, ainda fumegantes.

Ao centro de uma coluna de infantaria, talvez o 8, o das cargas brilhantes, uma bandeira esvoaçou agitada pela aragem da serrania.

Estremeceu, arrasaram-se-lhe os olhos de água.

- Santa bandeira! Alguém te saúda entre os teus inimigos! Voa para ti a minha alma enternecidamente. Este soldado, que te não traiu nunca, desembainha agora a espada para te fazer a continência, bandeira gloriosa de Portugal!

Arrancou a espada da bainha, e abateu-a em continência como num campo de parada.

Só com esta diferença: nunca talvez numa parada alguém fizera a continência a uma bandeira a chorar como êle chorava.

Em tal perturbadora comoção que nem deu por alguém que subia o cabeço e parou a poucos passos ao lado dele. Era um juvenil oficial de dragões, de rosto feminil e cabelos de oiro.

- Abateu a espada à bandeira do seu país, sr. Luís de Castro - disse-lhe uma voz acariciadora.

- Senhora! Aqui! - exclamou surpreendido.

- Enchia-me de ânimo para ver como os homens se matam! Procurei-o. Um soldado da escolta disse que o vira passar para este alto. O meu coração de mulher adivinhou o seu de patriota. Quis surpreendê-lo e, para segurar a surpresa, apeei-me na estrada.

- E conseguiu surpreender-me nesta fraqueza.

- Neste amor da sua terra, que eu compreendo e admiro. Nesse amor de tamanha grandeza que o fêz chorar!

- Como choram as crianças e as mulheres! Estava com os olhos cravados naquela bandeira. Minha senhora, lembravam-me os setecentos anos de história deste palmo de terra, cujo nome minha mãe me ensinou a dizer.

- Dali venceram os seus.

- Minha senhora, perdoe-me, mas era justo que dali vencesse o sagrado direito de uma nação.

Ouviu-se um estrondear mais intenso de descargas e de tiros de artilharia.

- O outro combate! - pensou Luís de Castro estremecendo.

- Ali, para a direita - disse a francesa como se lhe houvesse adivinhado o pensamento.

- O corpo de exército de Ney que dá assalto ao centro e à esquerda dos aliados.

- Diz com tristeza!

- É o bravo dos bravos, o herói de Elchigen que se bate contra os soldados meus compatriotas. Os seus batalhões venceram os prussianos em Iena e os russos em Friedland. Atrás deles o leão de Rivoli e, ainda intacto, o corpo de exército de Junot! Mas está a comprometer-se, aqui sozinha comigo! Lembro-lhe a conveniência de ficar e permitir-me que eu vá para mais longe, próximo do estado-maior em chefe.

- Estou a compreendê-lo. Quere ir ver se os seus também vencem além.

- É para mim um caso de vida ou de morte. Se Portugal ficar vencido, eu quero um lugar entre os mortos desta batalha. Perdoe-me. Posso falar assim ao seu generoso coração de mulher.

- Que não pode ser e não é senão pela França.

- De sentir oposto ao meu. É natural. Mas sem ódios um pelo outro. É justo.

- Recomendo-lhe o disfarce dessa paixão patriótica. Não lha perdoariam os meus compatriotas.

- Eu sei, minha senhora. Por isso o meu coração veio para aqui desafogar sozinho. Se mo adivinhassem, fuzilavam-me.

- Vá, sr. Castro - disse-lhe tristemente, estendendo-lhe a mão - Não o quero demorar. Adeus. Vê-lo-ei quando a batalha estiver acabada.

- Se os de Portugal não forem vencidos.

- Se o forem?...

- Morre quem quer morrer, e eu nunca tive medo da morte.

Esporeou o cavalo e meteu pelo cabeço abaixo.

A investida ao centro e à esquerda dos aliados devia coincidir com o ataque à sua direita, era o plano. Mas não coincidiu e ainda se não explicou bem porquê!

Má vontade de Ney para comprometer o general em chefe? Culpa de algum dos seus divisionários? Hesitações ante as dificuldades daquela parte da serra, mais áspera, mais escarpada, de maiores perigos para os assaltantes do que dos lados de Santo António do Cântaro?

Fosse pelo que fosse, ou por todas estas causas conjugadas, o facto foi que o ataque do 6.o corpo, de melhores e mais aguerridos soldados que tinha Massena, só começou energicamente depois das oito horas e meia, quere dizer, quando as tropas de Reynier já estavam sendo repelidas com enormes perdas.

Antes disso, apenas houvera daquele lado um frouxo tiroteio entre os batalhões franceses e uma forte linha de atiradores da divisão ligeira do brigadeiro-general Crawfurd, acima de uma ravina, que os atacantes não podiam transpor facilmente.

O ataque dos franceses de Ney tomou maior energia por volta das nove horas.

Já de posse da aldeiazita de Moura, donde o batalhão português de caçadores 3 tivera de retirar, a divisão do general Loison arrancou pela escarpa acima, aferrando-se aos rochedos, segurando-se às urzes, ao mato espinhoso, em que as mãos e os pés dos soldados se rasgavam de instante a instante. Por ali a serra era ainda mais alcandorada e mais bravia do que das bandas de Santo António do Cântaro.

A brigada Ferrey de Loison foi direita à ravina que as tropas ligeiras dos aliados tinham coroado de atiradores, a brigada do general Simon tomou para o lugarejo de Sula.

A divisão Marchand fracciona-se e avança para o caminho do convento, no propósito de tornear a direita de Crawfurd.

Luís de Castro atravessara a estrada de Mortágua, metera-se a um pinhal, por detrás do outeiro onde estava o grande estado-maior, e tomou para um cabeço que ficava em frente das portas de Sula, no muro da mata. Dali, mesmo sem auxílio do óculo, podia ver perfeitamente as fases da luta entre os lugarejos da Moura e de Sula.

Cândido Xavier vira-o atravessar a estrada, seguira-o e fora ter com êle ao cabeço.

- Então, Luís de Castro? Os ingleses firmes como rochas e os nossos soldaditos bravos como leões!

- Vi uma carga de baioneta de um regimento nosso? verdadeiramente admirável! Não as houve mais intrépidas em Wagram!

- Massena está acabrunhado. Foram participar-lhe as perdas enormes do corpo de Reynier. Eu ouvi. Calculavam-nas já em mais de dois mil mortos e feridos.

- Vamos agora ver o que fazem as divisões de Ney.

- Os melhores soldados, os mais experimentados!

- Ah! é verdade, Major, restituo-lhe o seu óculo. Desculpe-me. Fui-me ocultar. Queria ver e tinha receio que me vissem.

- Isso calculei eu. Mas repare. Olhe para aquela brigada francesa.

- Hesita, rareiam-se-lhe as fileiras, a metralha lá de cima rasga enormes boqueirões naquela selva de baionetas! - dizia Luís de Castro de óculo assestado.

Estava indicando a brigada do general Simon, formada pelo 26 de linha e pelas legiões do Meio-Dia e do Hanover.

- Major, veja - disse, passando o óculo para as mãos de Cândido Xavier.

- Avançam outra vez. Os ingleses esperam-nos. São excelentes atiradores. Representam bem os famosos archeiros de Crécy e de Poitiers. Mas os franceses já estão a poucos passos deles e os das fardas vermelhas não lhes fazem fogo!

Estrondearam subitamente umas poucas de descargas e todo aquele trecho da serra ficou velado por ondas espessas de fumo.

Ouviu-se um rumor indistinto de gritos e de imprecações.

- A fumaceira da pólvora está a dissipar-se. Um horror aquilo! As descargas foram quási à queima-roupa. Veja, Luís de Castro.

Passou-lhe o óculo.

- Os franceses retiram tresmalhados! - disse Luís de Castro - Rolam os feridos pela serra abaixo.

Tiveram, decerto, enormes perdas. Veio um batalhão reduzido a uma dezena de homens.(1) Levam um oficial em braços. É um general. O sol está-lhe rebrilhando nas bordaduras e nas dragonas.(2) Um corpo dos nossos, uniformes escuros, caçadores. Que assombrosa carga de baioneta! Valentes da terra portuguesa, assim!

Era caçadores 3 que se vingava brilhantemente da sua retirada do lugarejo da Moura.

- Aí vêem os franceses de escantilhão diante deles. A gente que eles já têem perdido ali!(3)

- Mas veja além - disse-lhe Cândido Xavier, indicando a brigada francesa Ferrey, composta dos 32 ligeiro, do 66 e 82 de linha - Retira também.

- Batida - acrescentou Luís de Castro, observando.

 

*1. Kock diz nas Memórias de Massena que os ingleses deram três descargas contra a brigada do general Simon, a quinze passos de distância, e comenta: estas descargas acabaram de levar a confusão e a morte às suas tropas, que tiveram de voltar em desordem para o seu ponto de partida.

  1. O general Simon caíra gravemente ferido e ficara prisioneiro.

Referindo-se a este lance, o coronel Delagrave diz nas suas Memórias:

«Subitamente, alguns regimentos portugueses descem da crista da montanha para reforçar e constituir a segunda linha, tomam os nossos de flanco e esmagam-nos sob um fogo vivíssimo. Os mais avançados dos nossos tiveram de retroceder e abandonar os feridos, no número dos quais se encontrava o general Simon».

«O inimigo foi então prontamente repelido pelas brigadas dos generais Ferrey e Maucune, com as quais travou um violentíssimo combate, mas, acabrunhadas pelo número, varejadas pela metralha, num terreno desvantajoso, as nossas tropas tiveram de voltar à sua primeira posição. Estava também ferido o general Maucune.» (Pág. 79).

  1. Perdas irreparáveis dizem as Memórias de Massena. O general Simon ferido e prisioneiro... quási todos os oficiais superiores fora do combate.

 

- Outra carga de baioneta. Aquele batalhão também é português.(1)

- Soberbo! E a dizerem-nos que a baioneta era a arma invencível dos soldados de Napoleão! Lá vão aqueles desbaratados para trás do lugarejo da Moura.

- Por aquele lado estão também vencidos - disse Cândido Xavier.

- Está ainda aquela divisão a subir pelo caminho para o convento.

Era o general Marchand.

- Os nossos fazem-lhe um fogo vivíssimo. Lá de cima a artilharia arraza-os.

- E das suas péssimas posições a artilharia francesa apenas responde frouxamente.

- A retirada daquela divisão, que eu suponho ser a de Loison(2) comprometeu a situação dessa que se está esbandalhando pela serra abaixo.(3)

- Está vencida a batalha, Luís de Castro!

- Ainda têem intacto o corpo de exército de Junot, e ainda é preciso contar com algum desesperado arranque de Ney ou de Massena.

- Não sei. Os daquele lado não valem menos. E a esta hora já o próprio Ney acreditará na estrada de Boialvo, por onde o exército pode escapar-se, evitando maiores perdas. Todos eles estão pensando agora nesse caminho salvador, e assim explico a mim mesmo porque o Príncipe d'Essling não reforçou Reynier com uma parte do 8.o corpo,

 

*1. Eram cinco companhias do 19 português. As Memórias de Massena, citam este regimento, assim como o 8, o 9. o 21 e caçadores 3 e 4 do nosso exército.

  1. «Às duas horas da tarde Loison reúne a sua divisão, já dizimada, por detrás da aldeia da Moura». (Eduardo Gachot, nota a pág. 80 das Memórias do Coronel Delagrave).
  2. O general Koch diz que o 6.o ligeiro e três regimentos da divisão Marchand foram abismados pelo fogo da artilharia.

 

e Ney não empenha agora em combate a sua divisão de reserva, que podia ser apoiada pelo resto do corpo de Junot.

- Talvez. Mas podem encontrar os aliados em Boialvo.

- Desconfio que os ingleses também desconhecem esse caminho.

- Olhe que filas de homens levando feridos para cima! - disse Luís de Castro, passando-lhe o óculo.

- Feridos de fardas encarnadas e de fardas escuras. Parece que têem lá em cima um hospital de sangue.

E tinham. Era na capela das Almas do Encarnadouro.

- Içaram lá em cima uma bandeira. A nossa! - exclamou comovidamente Luís de Castro.

Via-se bem a olho nu.

- É a nossa - confirmou Cândido Xavier - A outra, dos ingleses, lá está flutuando também, ali na direcção da Moura.

- Consideram-se vencedores. Escute aquele ruído de gritos. Aclamações, bravos de vitória, que só aqui chegam confusamente.(1)

- E olhe que os franceses não voltam à carga. Veja que apenas os seus atiradores estão sustentando um tiroteio inútil contra os nossos caçadores e os fusileiros ingleses.

- Pois é pena que Junot não venha também.

- Êle, para quê?

 

*1. Um oficial espanhol que na serra assistiu à batalha, escreveu dali mesmo um ofício ao Marquês de La Romana, narrando-lhe o que vira. Foi escrito no próprio dia 27 à las cinco y media de la tarde. Faz os mais altos elogios aos aliados e diz a respeito do nosso exército:

Las tropas ligeiras y de linia portuguesas se porian maravilhosamente bien.

O sr. general Cláudio de Chaby encontrou este ofício no depósito de guerra de Madrid, quando andou por Espanha a consultar documentos para os seus Excerptos Históricos.

 

- Para ver como subiu ali a bandeira que êle há dois anos mandou arriar no Castelo de São Jorge. Temos Pátria outra vez glorificada!

- Somos considerados traidores!

- Se o fôssemos, Massena não estaria aqui vencido, com as águias de Napoleão despenhadas por aquela serra abaixo, estaria a caminho de Lisboa. Nós bem sabíamos por onde êle podia ir, batendo, fraccionadas, as tropas anglo-portuguesas. Sabíamos e não o quisemos dizer. Cumprimos simplesmente um dever, mas, cumprindo-o, não atraiçoamos Portugal, servimo-lo. Ninguém aqui melhor do que eu conhece a estrada de Boialvo. Se quisesse ser traidor, se fosse capaz de o ser, há quarenta e oito horas teria eu sozinho evitado esta batalha em que Napoleão acaba de sofrer um dos seus maiores reveses. Mas não é tudo ainda, Major. Se eu pudesse trair Portugal, teria há três horas evitado este desastre aos franceses, dado que não quisessem aproveitar o caminho de Boialvo.

- Conhecia outro meio de evitar o ataque de frente?

- Conhecia, conheço. Ia ter com Massena e dizia-lhe: Não desbarate o exército numa investida de provável mau êxito. Deixe aqui duas divisões para entreterem o inimigo com o tiroteio vivo de dissimulação e ponha o grosso do seu exército a caminho de uma portela que eu conheço para além das escarpas onde se apoia o flanco direito dos aliados. Torneia-os, vai batê-los de flanco, segurando o caminho directo para Santo António dos Olivais e Coimbra.

«O nevoeiro protege-o. Ocupa o desfiladeiro do Botão, à retaguarda dos aliados, e corta-lhes a retirada por ali, e quando lá em cima a surpresa tiver enovelado e esmorecido as tropas, as suas reservas investem então a serra de frente e a sua soberba cavalaria terá tido tempo de passar pela direita dos anglo-portugueses para as terras planas da Mealhada. Era talvez a vitória com todas as probabilidades de segurança.

- Mas a portela a que se refere?

- A uma que se chama Portela da Oliveira. Nas primeiras duas horas de nevoeiro mais denso passavam por ali sem que lá de cima o percebessem. Mas para isto, Major, para esta monstruosa infâmia, sem perdão, seria preciso que eu fosse o que me julgam em Lisboa, merecendo a morte afrontosa a que lá nos condenaram. E eu chorei de alegria quando vi o corpo de exército de Reynier a esbandalhar-se pela serra abaixo. Mas eu fui ver a batalha para aquele lado, porque era dali que mais receava um desastre para os nossos, se o estado-maior de Reynier tivesse reconhecido o terreno e houvesse dado com aquela passagem. Felizmente, foram marrar contra a serra como toiros cegos. O nosso silêncio, Major, serviu dedicadamente a causa de Portugal.

- Perfeitamente de acordo. Agora, Luís de Castro, é prudente que nos aproximemos do estado-maior de Massena.

- Vamos lá. É um sacrifício! Há-de transparecer-me no rosto a santa e imensa alegria que tenho no coração.

- Pois é preciso fingir, até para não amargurar duramente esses de quem nos nomearam companheiros.

- É difícil e a culpa é toda de quem nos obrigou a esta dolorosa missão.

- Vamos lá.

Meteram para o outeiro onde estava Massena.

Viram-no de relance. Estava dobrado sobre o selim, parecia reflectir, como quem hesita na resoluÇão a tomar.

Os outros oficiais portugueses formavam atrás do estado-maior, silenciosos como êle.

Cândido Xavier e Luís de Castro meteram os cavalos a passo para junto deles. Entreolharam-se e nesse olhar comunicaram uns aos outros o júbilo imenso que as bocas não deviam revelar.

- Parece que estão aqui à espera de um funeral! - segredou o Castro para o Cândido Xavier.

- Ney, o invejoso, não quis ser hoje o que sempre foi! - dizia consigo Massena tristemente.

Apareceu Reynier com os seus ajudantes.

- Marechal, pela esquerda é impossível renovar o ataque. Perdi mais de dois mil homens, tenho extenuada essa pobre gente que há quatro dias não come pão e partilha o milho cru e a cevada dos cavalos.

- Bem sei.

Chegou o chefe do estado-maior de Junot.

- Alteza, o sr. Duque pregunta se deve avançar.

- Não. Que espere as minhas ordens. O ajudante partiu a galope.

Massena aproximou-se de Fririon e disse-lhe baixo:

- Metade desse desastre deve-se ao Duque d'Elchingem.(1) Mande chamar Sainte-Croix. Quero reconhecido esse caminho de Boialvo. Por aquela serra já não é possível passar. Aquele maldito fez-me perder a cabeça!

Um ajudante-de-campo do 6.o corpo de exército subiu o outeiro a galope.

- O sr. marechal, Duque d'Elchingem, encarregou-me de participar a Vossa Alteza que não pode intentar novo ataque, pois foram consideráveis as perdas do 6.o corpo. Cerca de dois mil e trezentos homens, pelos primeiros cálculos. O general Maucune está ferido,

 

*1. Tratando da perda da batalha, o general Brialmont diz: «Deve atribuir-se a Ney uma parte deste desastre... História do Duque de Wellington, tomo I, pág. 329).

 

o coronel Bechau, do 66, foi partido ao meio por uma bomba, uma bala de artilharia decepou a cabeça ao coronel Ami, do 6.o ligeiro, o coronel Bertier foi morto, Desgreviers está ferido, quási todos os chefes de batalhão foram feridos!

- O marechal Ney também foi ferido? - preguntou o Príncipe d'Essling num tom duro de sarcasmo.

- O sr. Marechal - respondeu o ajudante-de-campo - dirigia o ataque no seu lugar de chefe.

- Há lances em que um acto de arrojo dos chefes dá ímpetos irresistíveis aos soldados, decuplicando-lhes a força moral. Sucedeu assim com o sr. Duque d'Elchingen em Friedland.

Fririon compreendeu o inconveniente disciplinar destas palavras de Massena e o perigo que delas podia resultar, acirrando novos e mais deploráveis conflitos entre duas das mais altas individualidades da epopeia napoleónica, e interveio conciliador.

Massena moderou-se. O ajudante-de-campo de Ney preguntou se podia retirar-se.

- Diga ao sr. Marechal que as tropas ficam nas suas posições actuais. A batalha não continua hoje.

Massena ficara outra vez numa irresolução de acabrunhado. De quando em quando dizia consigo amarguradamente:

- A fortuna cansou-se comigo e voltou-me as costas! Se não venço uma batalha, se não entro em Lisboa, fechei então neste desastre dezasseis anos de campanhas vitoriosas e morro para a História do Império!

E ficava-se a reflectir nesta previsão dolorosa do

seu destino.


- Quando Napoleão é mais poderoso - pensava quando o Império já não tem inimigos que ousem tomar-lhe o passo, a um ano de distância da maior batalha em que as nossas águias ficaram vencedoras, este revés, esta sombra posta por mim sobre tantos esplendores!(1) Estava a adivinhá-lo! Tinha-lhe medo!

Vinham da estrada gemidos lancinantes.

Massena voltou o cavalo e aproximou-se mais da vertente do outeiro que dava para a estrada.

Viu uma lúgubre procissão de soldados que levavam nos braços sobre grossos ramos de pinheiro, ou sobre as próprias espingardas, centenas de feridos.

Iam com eles para as casas de Mortágua, que era preciso transmudar em mesquinhos hospitais de sangue.

E atrás daquelas intermináveis filas de maqueiros, um rasto largo de sangue de homens de todas as categorias, generais e coronéis semi-mortos, soldados rasos e tambores agonizantes.

Adiante, numa ondulação do terreno, à beira da estrada, na frente de uma escolta de cavalaria, um dragão franzino, de cabelos louros, a tremer sobre o selim, a chorar de dó por aqueles desditosos que tinham mães, irmãs, amantes, esposas, filhos, e talvez nunca mais voltassem à França.

Mas a escassa vista do Marechal não podia descobrir aquele triste dragãozito de teatro, e ninguém se atreveu a preveni-lo de que o tinha ali, a quinhentos passos de distância.

O cirurgião em chefe subiu o outeiro à frente de duas ordenanças de gendarmes a cavalo.

 

*1. Anos depois, estimulado pelo próprio Napoleão para escrever as memórias dos grandes feitos gloriosos que presenciara, Marbot escrevia assim a respeito daquele dia 27 de Setembro de 1810: dia nefasto que devia iluminar um dos revezes mais terríveis que exércitos da França ainda tinham sofrido...(A pág. 589, tomo II, das suas Memórias.)

 

- Alteza, temos duzentos feridos nos casebres de Mortágua, quási quinhentos em Santo António do Cântaro, vão ali quatrocentos para Mortágua, mas há cerca de dois mil estatelados nas quebradas e nos matagais da serra, absolutamente ao desamparo.(1) Cá em baixo já expiraram alguns à míngua de socorros!

- O que é preciso fazer para acudir a essa gente?

- Pedir uma trégua de duas ou três horas, enquanto não chega a noite, e ir levantar os feridos. É o mais urgente para se poderem organizar os socorros.

- Sim, pede-se.

A fuzilaria das avançadas continuava. Massena mandou ordem para cessar o fogo e enviou um parlamentário aos postos anglo-portugueses, para negociar uma trégua de duas horas.

Wellington aceitou-a. Era-lhe também conveniente. Tinha ainda pelas brechas da serra algumas centenas de feridos, que não era fácil conduzir para o hospital de sangue sob o fogo incessante dos atiradores franceses. Eram 4 horas da tarde quando se regulou a misericordiosa trégua.(2)

 

*1. Nas Memórias de Massena, tomo VII, o general Koch publicou a nota oficial das perdas dos franceses no Buçaco. Perdas consideráveis: 4486 mortos e feridos, dos quais 225 eram oficiais e, entre eles, 5 coronéis e 13 chefes de batalhão.

Marbot dá esta informação ainda mais lúgubre: «Eram imensas as perdas do 2.o e 6.o corpo, pois se elevavam a perto de 5000 homens, dos quais 250 oficiais mortos, feridos e prisioneiros. O general Graindorge, os coronéis Monnier e Bertier mortos, dois outros feridos, o general Simon ferido e prisioneiro, os generais Merle, Maucune e Foy gravemente feridos, assim como 2 coronéis e 13 chefes de batalhão.» Memórias (tomo 11, pág. 394).

  1. Koch diz nas Memórias de Massena que o tiroteio dos atiradores durou até às 4 horas da tarde e que ouve uma trégua de duas horas para levantar os feridos. A descrição da batalha encontra-se no tomo VII, de pág. 194 a 199.

 

De todos os batalhões franceses que estavam na primeira linha caíram numerosos contingentes desarmados, dirigidos pelos cirurgiões e por oficiais, também desarmados. Os soldados levavam fortes ramos de pinheiro e capotes para as macas que haviam de improvisar.

Na ideia de saber alguma nova do irmão, que plausivelmente supunha entre os defensores da serra, Luís de Castro foi pedir ao general Fririon lhe obtivesse permissão de Massena para ir ajudar os soldados naquela tarefa piedosa, aproveitando a ocasião de preguntar a algum português o que seria feito de um irmão que tinha no exército.

- Dá-me a sua palavra de honra de que não deserta?

- Dou a minha palavra de honra!

- Sabe aí de algum oficial francês que entenda a sua língua?

- Sei de um. O major Maurin. Conhece um pouco a língua portuguesa.

- Pois bem, procure-o e peça-lhe que o acompanhe. Se êle se prestar a isso, venham os dois ter comigo e não é preciso falar ao Marechal.

- Compreendo, sr. General. Receia-se que eu faça alguma revelação traiçoeira!

- Eu, Fririon, confio nos seus sentimentos de honra, mas o chefe do estado-maior general tem responsabilidades especiais que lhe impõe certas precauções, mesmo contra os seus sentimentos pessoais.

- Honra-me e deixam-me tranquilo as suas palavras, sr. General. Vou procurar o major Maurin.

Era um horror aquilo, aquela serra acima! Agonia e dor, por mais alanceadoras que a nossa alma as suponha, nenhuma haverá que não tivesse ali a sua expressão e a sua imagem!

De espaço a espaço despojos, restos informes daqueles a quem a artilharia despedaçara, ainda nuns estremeções de extertor final. Corações que ainda tinham vida para sofrer, olhos que ainda viam a névoa das suas próprias lágrimas!

Figuras lívidas, sangrentas, a arrastarem-se pelo mato no terror de ficarem ali esquecidas, corpos que as baionetas rasgaram a estrebucharem no fundo das quebradas, aquele, aferrado à penedia, a chamar nuns gritos de angústia que tinham a tremura dolorida de um gemido e a estridência arripiadora de um uivo, grupos de esmorecidos, de olhares tristes, rasos de pranto, filas de sequiosos. estendidos no chão onde as balas os tinham varado, a boca entreaberta a esmolar umas gotas de água, a voz enrouquecida a suplicar um instante de dó.

Chegavam os que vinham levantá-los e então, se os pobres feridos reconheciam um camarada mais íntimo, um amigo, um vizinho da sua cidade ou da sua aldeia, logo, numa previsão de morte pungidora, lhe soluçavam saudades, lhe segredavam confidências e solicitavam piedosos encargos.

Saudades para alguma noiva distante, o adeus final para uma velhinha que ficou longe, triste mãe angustiada a quem levaram o filho, a bênção para umas crianças que vão ficar no desamparo da orfandade, num lar que eles já não tornam mais a vêr, na pátria aonde nunca mais podem voltar.

Uma cousa trágica, opressiva, que fazia pavor! A erguê-los do chão, a recostá-los nas grosseiras macas improvisadas, até os próprios soldados velhos, havia quinze ou vinte anos endurecidos nos trabalhos rudes das campanhas, na carniçaria atroz dos campos da batalha, até esses choravam de dó. Assim de um e outro lado. Gemidos, súplicas em palavras de línguas diversas como as outras de misericordioso consolo dos que iam socorrê-los, e todas elas com um significado de mágoa e de piedade que não carecia da tradução.

Mas as palavras dos vencidos num timbre de maior amargura.

E, por entre os grupos dos feridos, aqueles a quem a morte para sempre emudecera, esses que já não era preciso levantar, mutilados horríveis, mocidade em cujo rosto a última agonia pusera uma visagem aterradora que se imobilizara.

Mas por aquela paisagem de sangue, por aquêle enorme quadro de morte, passavam também umas doces e compassivas figuras de mulher. Eram as vivandeiras dos regimentos franceses, mães encanecidas pelos acampamentos algumas delas, outras na plena primavera da vida, umas delas ainda num ri dente alvorecer de puberdade.

Luís de Castro foi para a encosta sobranceira a Santo António do Cântaro. Ia com êle o major Maurin.

Daquele lado já de uma parte e outra haviam levantado quási todos os feridos.

Mas subiram os dois até meia encosta.

- Aqui só mortos! - disse o Castro - Vamos para o outro lado, Major.

- Vamos.

Iam para descer quando ouviram uns gemidos brandos que vinham detrás de um montão de urze.

- Está ali um ferido - disse o Castro sobressaltado.

Correu para lá. Num covão de mato agonizava um soldado. Era de Portugal, conhecia-se logo pelo uniforme.

Castro ajoelhou ao pé dele. Era muito moço, vinte anos, se tanto. Levantou-lhe a cabeça. Golfava-lhe sangue do peito. Ao lado, caída, uma barretina da infantaria. A dois passos, a espingarda com a baioneta partida.

O ferido entreabriu os olhos, já enevoados.

- Sofres muito? - disse-lhe Luís de CaStro carinhosamente.

- A minha Mãe! - murmurou.

- Somos da mesma terra. Venho trazer-te socorro.

- Sede! Tenho sede!

Castro recostou-lhe a cabeça e pôs-lhe à boca o frasco encourado que trazia a tiracolo.

- Morro! O 8...

- O 8 é o teu regimento?

Fêz um movimento de cabeça afirmativo.

- Aquele que carregou à baioneta logo no princípio?

Respondeu-lhe com outro gesto, mais lento, mais esmorecido.

- Maria! - soluçou sumidamente.

- A tua namorada, a tua noiva? - preguntou-lhe, inclinando-se mais.

Os olhos do soldado procuraram os dele, como se lhe quisessem responder, e arrasaram-se de lágrimas.

Castro, ainda mais debruçado para êle, segredou-lhe:

- Foste um valente. Tua mãe te abençoará. Portugal venceu.

O corpo do pobre rapaz agitou-se num estremeção de agonia. Expirou. Castro ergueu-se. Tinha os olhos rasos de água.

Levantou a barretina do morto, arrancou-lhe a chapa, beijou o número de regimento, e guardou-a consigo.

- Uma gloriosa relíquia - murmurou. Maurin comoveu-se.

- Peço-lhe a mercê de me acompanhar para onde eu possa saber notícias de meu irmão.

- Para onde quiser, meu caro camarada.

Desceram. Em baixo, na ravina, estavam a esperá-los duas ordenanças com os cavalos à mão. Montaram, meteram a galope, seguindo pela frente dos postos avançados.

Entre as aldeolas de Moura e Sula é que a piedosa tarefa estava ainda muito atrasada.

Nos casebres da Moura havia ainda para cima de noventa feridos à espera de quem os levasse, pela serra abaixo não menos de mil e trezentos do exército de Massena.

Maurin e Luís de Castro apearam-se num posto francês, deixaram as ordenanças, e subiram a pé.

Um pouco acima da aldeia da Moura viram uma gentil rapariga de dezassete anos. Socorria os feridos com uma coragem e uma caridade admiráveis.

Era uma vivandeira do 26 de linha.

Um homem, um paisano, soluçava esmorecido a poucos passos dela. A rapariga deu por êle e preguntou-lhe com estranheza o que fazia ali, sem ajudar a socorrer aqueles desditosos.

O homem, um francês, respondeu lhe que era o criado particular do general Simon, que fora gravemente ferido e tinham levado prisioneiro.

Contou que, antes da trégua, quisera subir para ir ter com o amo, mas que os postos ingleses o tinham recebido a tiro. Pediu, gesticulou, mas ninguém o entendeu e as balas choviam sobre êle. Voltou então para trás desanimado, e só por milagre logrou escapar dos tiros que lhe dispararam.

- Queria levar-lhe estas coisas de que êle há-de precisar - lamentou, apontando uma pequena mala, a dois passos de si.

- O general Simon! Mas a esse o conheço muito bem! É o comandante da brigada a que o meu regimento pertence - disse a vivandeira - Sabia que tinha ficado ferido, mas não sabia que estava prisioneiro! Pois deixai-me acudir aqui a estes desgraçadinhos, e lá irei eu acima a levar a malazita ao nosso general. Sempre quero ver se os ingleses são capazes de fazer fogo contra uma mulher.

- Ali, mais acima, daquele lado, soldados portugueses a levantarem os seus feridos - indicou Luís de Castro ao major Maurin.

- Pois sim, vamos lá, se quere.

Foram, subindo para a direita pela estrada para o convento.

- Camarada! - chamou o Castro voltando-se para um sargento português que dirigia uns soldados, sob a indicação dos cirurgiões militares.

O sargento voltou-se para êle num movimento de espanto. Com aquele uniforme que não conhecia, um oficial que lhe falava em português!

- Tenho um irmão que há três anos era capitão do exército português.

- Mas eu estou a conhecer v. s.a! - disse o sargento - E logo acrescentou baixo, apartando-se do grupo de soldados:

- Era eu cabo do 16 quando v. s.a era tenente do 1. Foi para França.

- É isso.

- Eu não queria que os soldados o ouvissem. Nem se demore por aqui, será melhor afastar-se antes da trégua acabar. Podem conhecê-lo. Prendiam-no para o matar! Tem prémio quem o prender ou levar morto.

- Por traidor, eu sei. Prémio a quem me matasse, como se dá aos que matam os lobos das charnecas! Sr. Major Maurin, queira ouvir. Sargento, responda-me de modo que este nosso superior o ouça, clara e pausadamente, para que êle nos entenda.

O sargento volveu para o oficial francês um olhar de surpresa.

- Não preciso de ouvir, confio na sua lealdade - disse Maurin para o Castro e afastou-se mais.

- Meu irmão Henrique de Castro, que era capitão do 16?

- É agora major, adido ao 19, o regimento de Cascais, aquele que deu uma valente carga de baioneta, aqui desta banda.

- Eu vi.

- Perdeu muita gente!

- Meu irmão foi ferido?

- Não foi. O batalhão que deu a carga é comandado por um major inglês, mas o irmão de v. s.a veio também voluntariamente. É valente como as armas!

- Sargento! - gritaram de cima - Já para o seu lugar. Prendam-no.

O pobre homem empalidecera.

- O irmão de v. s.a - disse ainda, indicando um oficial que descia rapidamente.

E afastou-se, mas logo outro sargento se aproximou dele e prendeu-o.

- Major Henrique de Castro! - disse alto o moço oficial da Legião, avançando uns passos - Aquele sargento respondia a uma pregunta minha por ti. Eu nada quero saber do que aí se passar. Esteja onde estiver, sou português.

- Luís! Luís! Tu aqui! - exclamou o irmão, correndo para êle.

Ia de braços abertos, mas logo os baixou oprimido.

- Major Henrique de Castro! Não comprometas a tua gloriosa farda. Daí consideram-me traidor. As nossas almas abraçam-se de longe, Henrique!

Estavam a vinte passos um do outro.

- Aí, a distância. O que eu preciso saber podem ouvi-lo os teus soldados. Nossa Mãe?

- Recebi ontem carta de Coimbra. Lá estava bem.

- Com todos os que saíram com ela?

- Com a filha do polaco...

- Bem. Tu compreendes-me. Ali, daquele lado, há poucas horas chorei de orgulho por vós. O traidor veio aqui para saber de ti e vem vigiado, tanto confiam ali na sua traição! Sei que honraste o nosso nome. Dize aos teus valentes soldados que

daquele lado estava um coração que os seguia. E lá em cima, quando te falarem dos traidores, afirma-lhes que, na maior batalha que ainda houve, eles não podiam salvar a Pátria, mas honraram-na.

- Luís! Não te demores aqui! Peço-to.

- Deus seja pela tua bandeira, Henrique! Quando vires nossa Mãe, dá-lhe um beijo por mim. Major, até um dia!

Foi ter com Maurin.

- Perdoe-me quanto neste desafogo pôde haver de estranho para o seu coração. Sei que tem alma para me fazer justiça. Se fosse desta terra, se estivesse nesta minha dolorosa situação, o Major faria o mesmo, creio-o. A sua pátria está poderosa, engrandecida, cumulada de glórias como nunca, a minha, major Maurin, tinha decaído aviltada. Pode bem perdoar-me esta comoção, que não tem disfarces

para si.

Maurin apertou-lhe a mão. Desceram para os lados da Moura.

- Aquele é dos tais que andam com os franceses - dizia rancorosamente um soldado novo do 19 - Assim o diabo o conserve por aqui. Mete-se-lhe uma bala na pele ou catrafila-se e apanha-se uma boa maquia de cruzados.

- Cala-te aí, cão tinhoso! - repreendeu um soldado antigo - Aquele é irmão do nosso Major.

- Mas anda com os inimigos, esses raios que matam os velhos e desonram as mulheres e queimam as igrejas e as povoações! Você não viu antes-de-ontem as aldeias do termo de Mortágua a arderem como pinhas da lareira?

- Pois sim, mas aquele foi obrigado a ir para fora - objectou o outro - E nenhuma culpa terá desses incêndios e dessas mortes.

Haviam terminado as duas horas de trégua. De uma parte e outra os clarins e as cornetas deram o sinal convencionado.

A duzentos passos da Moura ainda estavam a levantar feridos.

- Valha-me Nossa Senhora! - exclamou a vivandeira do 26 -, Ainda ficam tantos!

- E o meu pobre amo lá para cima ao abandono! - deplorou o criado do general Simon.

Os soldados franceses tinham retirado para os postos avançados.

- Pois vou eu lá acima levar-lhe a mala.

- Agora, sim! Olhe, principiou outra vez o tiroteio.

- Deixá-lo. Vai ver como eu trepo aí acima com o meu burrico da cantina. Dê cá a mala.

- Veja que a podem matar!

- Dê cá. Já me habituei a ouvir as balas a zenirem em volta de mim.

Atou a mala às cangalhas do burro.

- Fazem fogo sobre nós, propositadamente! - disse Maurin, indicando para as bandas de Sula uns soldaditos que não tinham fardas encarnadas.

- São compatriotas meus! Há-de ser para mim os tiros. Eu sou o traidor.

Desceram. A vivandeira do 26 meteu para o caminho do convento, com o burrito da cantina pela arriata. Acena para cima com um lenço branco.

- Admirável aquela corajosa rapariga! - observou Luís de Castro.

- Temos tido no exército cantineiras que, pelo arrojo de ânimo, igualaram os mais brilhantes dos nossos soldados - respondeu Maurin.

De súbito o tiroteio foi interrompido daquele lado. Em cima os soldados ingleses saudavam-na em hurrahs calorosos.

- E lá vai serenamente!

- Recebem-na, abrem-lhe passagem!

- Se o contarmos na tranquilidade de um lar, em plena paz, as outras mulheres não hão-de acreditar nisto!

- E até os próprios homens, desconhecedores deste viver excepcional de um exército em campanha.(1)

Rompeu outra vez o tiroteio e agora com maior

intensidade.

- Acabou-se a trégua, cavalheirosa gentileza concedida àquela linda rapariga de 17 anos - disse o Castro sorrindo - Está nela talvez a miniatura de uma Joana d'Arc.

Tinha anoitecido. O fogo cessara. Luís de Castro foi para o quartel-general de Massena.

Ali o silêncio lutuoso e opressivo de uma casa onde alguém tivesse morrido I

A uma pequena mesa, isolado, a cabeça entre as mãos, para que ninguém lhe visse aquele rosto que o infortúnio desfigurara, cotovelos fincados sobre um mapa de Portugal, o filho querido da vitória reflectia naquele primeiro eclipse da sua estrela, feito pela bandeira odiada de Abukir e Trafalgar e pela outra que Junot, dois anos antes, mandara arriar das velhas muralhas do Castelo de São Jorge. Baylen tinha sido até então o maior desastre das tropas de Napoleão na Península, mas lá justificava-se. Eram oito ou nove mil franceses cercados por quarenta mil espanhóis.

 

*1. O episódio da vivandeira do 26 de linha na batalha do Buçaco vem referido nas Memórias de Marbot.

Um frade português, dos carmelitas do Buçaco, escreveu por aquele tempo um interessante diário de apontamentos, que vem publicado no Guia histórico do viajante do Buçaco, excelente livro do Dr. Augusto Mendes Simões de Castro,

Referindo-se ao ferimento do general Simon, que tinha recebido três balas na face direita, o frade diz:

«Lorde Wellington mandou tratá-lo com toda a honra e humanidade, e um oficial inglês lhe deu o seu quarto. Mandou-se-lhe buscar as bagagens, Massena remeteu-lhas prontamente.

Veio também a sua mulher, tudo isto no dia seguinte pela manhã.»

No ingénuo dizer do carmelita a sua mulher seria, provavelmente, a vivandeira do 26. A monografia é de Fr. José de São Silvestre e tem o título de Diário Memorial.

A divergência de pormenores e de tempo destes apontamentos, em relação ao episódio contado por Marbot, resultaria talvez de erradas ou insuficientes informações ouvidas pelo carmelita, que tentou ver os lances da batalha, mas desistiu do intento, porque as balas chegavam à crista da serra, como êle próprio confessa.

 

Ali, no Buçaco, as forças quási se igualavam. Depois de Baylen, trezentos mil soldados espanhóis se tinham esbandalhado durante ano e meio em dez batalhas que os franceses venceram.

Mas dali, daquela batalha, o que resultaria para os destinos do seu exército?

Era a formidável interrogação que naquela hora oprimia o batalhador espantoso de Zurique

A outra mesa, ampla, coberta de papéis, Fririon e Pelet faziam o cálculo das perdas, pelas comunicações que tinham chegado dos corpos de exército de Reynier e Ney, bivacados sob um lençol de neblinas nas ravinas da serra inexpugnável.

Na casa contígua os ajudantes-de-campo falavam baixo como numa casa enlutada.

Quando Luís de Castro entrou, viu à porta de um quarto a companheira do Marechal, ainda com o seu travesti de oficial de dragões.

Tinha chorado, chorava:

- Um grande dia para o seu coração este nosso tristíssimo dia, sr. Luís de Castro! - disse-lhe baixo, aproximando-se dele.

- Senhora, a França tem tido às dezenas outros dias de glória e de esplendor, imensamente maiores, e ainda domina a Europa. E isto aqui é de um povo que só tem agora esta ambição: ficar honradamente livre.

- Sim... Sim! Vai falar ao Marechal?

- Não, minha senhora. Desejo pedir ao general Fririon que me conceda umas horas para eu ir saber daquele meu tio agonizante.

- Sozinho?

- Irá comigo o major Maurin, que é o meu generoso fiador. É êle quem responde por mim. E connosco o soldado que eu trouxe da França.

- Pois oxalá que vá encontrar melhor o seu doente e que Deus lho salve.

- Mil vezes obrigado, senhora - disse, beijando-lhe a mão.

Entrou para a casa onde estavam os ajudantes-de-campo. Teve de esperar ocasião de falar a Fririon. Foi espera de mais de duas horas.(1) Sempre bondoso e complacente para os oficiais portugueses, Fririon concedeu-lhe a permissão pedida.

Castro foi ter com o major Maurin. Era alta noite quando partiram para a quinta das Águias. O João Luís acompanhava-os. Ia de coração regalado.

Enquanto eles vão a caminho, aproveitemos nós o ensejo de registar aqui uns dados estatísticos daquela batalha, que teve uma alta influência nos destinos da Península, como depois teremos ocasião de ver, e foi, pela grandeza dos efectivos,

 

*1. Marbot dá nas suas Memórias este quadro melancólico do quartel-general em chefe, depois da batalha:

«A noite foi um horror. No quartel-general ninguém dormiu, fazia-se a conta dos mortos, calculavam-se as perdas, oprimia-se o espírito na pungidora lembrança de imprevidências já irremediáveis, viu-se um presente desastroso, o futuro envolvido de sombras. Mas não havia ainda recriminações. Ninguém então ousava fazê-las e cada um tomava para si, humilde e silencioso, o seu quinhão de enormes responsabilidades.» (Tomo II).

 

a maior que se pelejou em terras de Portugal, depois das guerras contra as multidões armadas dos mouros, nos tempos de Afonso Henriques e Sancho I.

Como tem sucedido a respeito de todas as batalhas, os historiadores divergem muito quanto aos efectivos das tropas na batalha do Buçaco.

Comecemos pelo exército de Massena. O Príncipe d'Essling empreendeu a invasão com 58.956 homens, cerca de 8000 cavalos de fileira e 84 peças de artilharia.

Outros escritores lhe dão sessenta, setenta, oitenta mil homens, incluindo guarnições, destacamentos afastados do teatro das operações e até os reforços que Napoleão lhe prometera e nunca chegaram a reunir-se ao exército invasor.

Em frente do Buçaco nem teria somente os 48.000 homens que lhe calculam alguns escritores franceses, nem os sessenta mil das avaliações inglesas, mas, pelo menos, cinquenta e três mil.

Quanto às perdas dos franceses, Wellington calculou em 2000 mortos, numerosos feridos e alguns centos de prisioneiros.(1)

O historiador espanhol Conde de Tereno avaliou-as em 4000 mortos e feridos, dos ingleses, John Jones em 2000 mortos, 5 a 6000 feridos e 300 prisioneiros, Carlos Napier em 800 mortos e 3700 feridos e prisioneiros. Já conhecemos as avaliações de Koch e Marbot, entre 4486 e cerca de 5000 mortos e feridos.

Vejamos agora os efectivos e perdas dos anglo-portugueses.

 

*1. Ofício de Lorde Wellington a D. Miguel Pereira Forjaz, secretário da guerra - Coimbra, 30 de Setembro de 1810. Publicado na Gazeta de Lisboa, de 3 de Outubro.

 

Quando Ney chegou com o 6.o corpo a Mortágua os ingleses não tinham na serra mais de vinte e cinco mil homens. Só depois se lhe reuniram as divisões do general Leith, vinda de Tomar, e a do general Hill, vinda da linha do Alva. Então o exército aliado atingiu o efectivo, não de sessenta mil homens como diz Thiers, mas de 58.000, números redondos, com 50 peças de campanha.

Neste número entravam 29.065 portugueses, segundo os nossos mapas oficiais.

Quere dizer: mais de metade do exército aliado, constituindo três regimentos incompletos de artilharia, quatro de cavalaria, dezoito de infantaria, seis batalhões de caçadores e a Leal Legião Lusitânia.

Segundo Napier, os aliados tiveram 1300 homens mortos e feridos, segundo Sherer 1200, dos quais 578 portugueses. Marbot avalia-lhes as perdas em 2300.

Mas com o seu ofício a D. Miguel Pereira Forjaz, três dias depois da batalha, Wellington envia-lhe o mapa dos mortos, feridos, prisioneiros e extraviados. Eram 631 do exército inglês e 622 do exército português, um total de 1253 homens. Quanto a prisioneiros e extraviados, os ingleses tiveram 31 e os portugueses 20.

Wellington e Beresford louvam calorosamente a bravura e o arrojo dos regimentos portugueses,-mais empenhados na batalha.

O generalíssimo inglês menciona o primeiro batalhão de infantaria 9, o 21, a brigada portuguesa do general Pack (1, 16 e caçadores 4) a brigada de Colleman (7, 19 e caçadores 2) e caçadores 3.

Qualifica de denodado o ataque à baioneta de um batalhão do 19, especializa a carga da baioneta de caçadores 3, assinala a firmeza e bravura de caçadores 4, infantaria 1 e 16, mas a respeito da famosa carga do 8 diz assim textualmente:

peço permissão para v. ex.a que nunca presenciei um tão denodado ataque do que aquele, regimentos 88, 45, e pelo regimento 8 sobre a divisão que havia subido a serra.

Este louvor tem um alto e especial significado, dado o frio orgulho de um general inglês que tinha comandado e vencido batalhas e daquele modo irmanava com os seus experimentados regimentos ingleses aquele outro de galuchos portugueses.

Wellington dera e vencera batalhas na índia contra os famosos maaratas de Tipoo Saib, fizera uma gloriosa campanha no Mysore, vencera a sangrenta batalha de Assay, a outra decisiva de Argaun, vencera os franceses na Roliça, no Vimeiro, no Porto, na porfiada batalha de Talavera.

Devia ter visto e viu cargas de baioneta brilhantes, formidáveis, e para êle dizer que não tinha presenciado outra de mais bravura e denodo é porque realmente foi espantosa.(1)

O marechal William Carr Beresford, habitualmente pouco expansivo, seco, de rígidas palavras, corrobora os louvores do generalíssimo e amplia-os, abrangendo caçadores 1 e 6 e especializando melhor a artilharia e caçadores 4, pela bravura e constância no fogo durante o dia todo.

Exalta a carga de caçadores 3, nestes termos: ajuntando à sua reputação de disciplina a do seu valor, é impossível que haja melhor do que este batalhão.

Referindo-se ao ataque à baioneta do 19,

 

*1. Wellington assinala com satisfação a coragem e a firmeza do exército português nesta acção, a primeira em que êle se encontrou seriamente empenhado com o inimigo. (Histoire du Duque de Wellington, pelo general Brialmont, tomo I, pág. 330).

O general belga Brialmont é escritor militar de subida autoridade e de reputação europeia que é particularmente mencionado por todos os oficiais dos dois exércitos, que o viram, como pelo valor que mostravam.

 

regista que é particularmente mencionado por todos os oficiais dos dois exércitos, que o viram,como pelo valor que mostravam.

Dos oficiais superiores portugueses, distintos na batalha, designa os coronéis Palmeirim e Cardoso Souto Maior, os tenentes-coronéis Araújo Bacelar, Luís do Rego, Jorge de Avillez e Sebastião Pinto.

E nestas palavras resume e envolve todo o exército: podendo ser este chamado um dia glorioso para o nome português, havendo as suas tropas adquirido pela sua conduta tanto a admiração como a plena confiança do exército inglês.(1)

Vê-se que os portugueses do Buçaco mereciam também as palavras que Napoleão dissera em Fontaineblau a respeito dos portugueses em Wagram.

Maurin dormira na quinta das Águias. Fora do exército francês o único talvez que tivera naquela noite um cómodo repouso.

Luís de Castro velara umas poucas de horas à cabeceira do tio. Maurin bem sabia que podia confiar na palavra daquele seu camarada, e deixou-o completamente à vontade.

Jerónimo de Castro tivera umas pequenas melhoras no dia 27, de noite dormiu mais tranquilo durante quatro horas. Tomara alimento, ia-se-lhe esclarecendo a razão. Sobre a madrugada reparou no sobrinho, sem o conhecer, e fêz-lhe umas preguntas. Respondeu-lhe Luís de Castro carinhosamente, dizendo-lhe quem era. O velho reconheceu-o então, muito sobressaltado, profundamente comovido.

 

*1. Ofício do general Beresford ao secretário da guerra D. Miguel Pereira Forjaz - 30 de Setembro de 1810.

 

Fêz-lhe ainda outras preguntas na sua voz hesitante e sumida.

Lembrou-se de ter ouvido falar da chegada dos franceses. Lembrava-se confusamente como de um facto remoto, como de uma cousa de sonho. Não dava para mais aquela esvaecida memória.

- Tio, foram batidos pelos nossos.

O Mar e Guerra agitou-se e como que um pouco se reacendeu o olhar amortecido.

- Quere Deus... então... que eu morra tranquilo - murmurou.

- Há-de viver. Está muito melhor. Agora, adeus! É madrugada. Tenho de partir. Adeus, meu glorioso tio. Abençoe-me.

- Sim... Luís... Deus queira... Que se resgatem... as vergonhas.

- Até eu um dia hei-de resgatar a expatriação de que não fui culpado. Adeus - repetiu, beijando-lhe os cabelos brancos, enternecidamente.

O padre Diogo Martins chorava.

- Meu padre, até um dia. Sei já que minha mãe esteve em Coimbra.

Contou lhe rapidamente o encontro com o irmão.

- De Maria é que eu pouco sei!

- Há-de ela escrever-lhe. Seu tio melhora e é possível que daqui a algumas semanas dispense a minha assistência. Irei eu ter com Maria, e sou capaz de lhe levar notícias dela aonde quer que o meu amigo se encontre, se continuarem em Portugal.

- Que tamanha bondade a sua, padre Diogo!

- Não é coisa em que se fale. Parece-lhe que Massena retirará?

- Não sei. Duvido.

Ia para lhe falar na provável marcha pela estrada de Boialvo, mas conteve-se. Pareceu-lhe deslealdade dar-lhe esta indicação.

Abraçaram-se. Foi chamar Maurin. Tinha-se deitado vestido e pôs-se logo a pé. O João Luís já estava no terreiro com os cavalos à mão. Eram 4 horas. Meteram por ali fora a trote.

- Que diacho! - disse Maurin, sofreando o cavalo - Descubro ali para a frente uma grande massa de cavalaria!

- Haveria qualquer cousa extraordinária?

- Só se vão fazer algum reconhecimento, ou voltam dele. Ah! espere. Ouvi que havia ordem para um reconhecimento de madrugada.

Castro orientou-se. A cavalaria vinha dos lados do caminho para Boialvo. Maurin devia sabê-lo, mas não o quis dizer e Castro absteve-se de lhe falar em semelhante coisa.

- Seria aborrecido sujeitarmo-nos a perguntas e desconfianças - disse Luís de Castro - Preferia que tomássemos por aquele caminho.

- Aquele afasta-se de Mortágua, se não estou desorientado - observou Maurin.

- Afasta. É um caminho de carros que vai dar à ravina defronte do lugarejo da Moura.

- Tem a certeza?

- Tenho. Eu vim aqui algumas vezes em rapaz. Agora posso dizê-lo.

- Pois vamos, se lhe desagrada que nos sujeitemos a perguntas e suspeitas...

- Desagrada, francamente lho confesso.

- Então vamos por ali.

Meteram a galope por um estreito caminho, entre cabeços e pinhais.

Luís de Castro receava o encontro com a cavalaria de exploração, porque seria provável que o apertassem com perguntas e o levassem à quinta das Águias para examinarem a propriedade, observando se ali se acoutavam espiões, se dali podia haver comunicação com o inimigo ou se tinham ali alguns

víveres.

A soldadesca faminta, reduzida a partilhar as rações de grão dos cavalos e a devorar as maçarocas de milho, semi-apodrecidas pelas terras devastadas, cometeria depradações violentas e, no seu desespero de vencida, seria capaz de alguma atrocidade contra aqueles pobres moradores, até então providencialmente esquecidos ali.

- É dobrado caminho, meu caro amigo! Perdoe-me os tantos incómodos que lhe tenho dado e a sua extremada benevolência se compraz em tolerar-me. É sem dúvida dos meus camaradas de França aquele a quem eu mais devo.

- Ainda que as suas qualidades o não impusessem à minha simpatia, como impuseram, bastaria a circunstância de ser sobrinho do sr. Manuel de Albuquerque, a quem devo a vida, para me parecerem insignificantes quantos incómodos meus lhe pudessem ser agradáveis.

- Cativantes favores, Major!

- Mas, meu caro Castro, nós escusamos de chegar à ravina. Ali adiante poderemos talvez atravessar para a estrada de Mortágua.

- Por um caminho de cabras.

- Pois sigamos até onde fôr possível tomar para a estrada.

Caminharam por espaço de quási uma hora. O João Luís ia atrás deles cantando.

- Neblina como ontem - observou Maurin.

- Menos espessa que a de ontem e está a esfarrapar-se.

- Além daquele pedaço de serra, da banda de Sula, está completamente descoberta.

Viam já as tropas francesas. Estavam a levantar os bivaques. Maurin encontrou uns oficiais da sua intimidade e deteve-se a falar com eles.

Castro foi seguindo para diante, devagar, ora de olhos pregados na serra, ora a falar com o João Luís.

- João, bom sangue dos nossos, lá em cima!

- Ah! meu Capitão, abençoadas baionetas naquelas mãos! Ontem até parecia que o coração me queria saltar pr'a fora do peito! Nós, lá na Áustria, atirámo-nos com alma pr'a riba das baionetas e esbandalhámos um quadrado, mas aqueles não nos ficaram a dever nada!

Nisto o João Luís olhou para o cimo da serra.

- Meu Capitão! Lá em cima... As bandeiras! E o sino do convento a badalar.

A aragem da manhã trazia os sons nitidamente para a banda de cá.

Vibraram gritos de aclamação. Gritos de ingleses e portugueses.

- Hurrah pela Inglaterra! Hurrah por Wellington! Vitória! Vitória!(1)

- Aqueles não os entendo eu-disse o João Luís.

- Viva Portugal! Viva a nossa bandeira! Vitória!

Vitória!

- Ai, aqueles sim! São os nossos! Quem pudesse gritar também daqui: Viva Portugal!

Ouviam-se músicas marciais. Castro conhecia o hino inglês, aquele hino de prece, melancólico, a lembrar um cântico religioso. Ouvira-o muitas vezes em Lisboa.

Mas em cima tocavam um outro hino, cheio de belicosa energia, entusiástico, sugestivo, como se o houvesse inspirado a visão das batalhas e o sonho da vitória, e a esse o não tinha êle ouvido nunca. Mas o coração entendia-lho, sentia-o, adivinhava-lhe que seria o hino de Portugal. E era. Escrevera-o no ano anterior e dedicara-o à nação,

 

*1. Guingret refere que se ouviam os regimentos a gritar sucessivamente: Viva Wellington! Vitória! Vitória! (Relaction historique et militaire de la campagne du Portugal sous le Marechal Massena, vol. VII, pág. 12.

 

e ao Príncipe Regente o mais glorioso dos nossos maestros: Marco António Portugal.(1)

- Escuta, João Luís, Aquêle deve ser o hino da nossa gente. A alvorada triunfal daquela bandeira que nós vimos arriar em Almeida! E olha para ali - disse, apontando-lhe as bandeiras de uma brigada francesa, em coluna, de batalhões -, As águias de Napoleão, o Grande, que os nossos repeliram ali de cima. Como se fossem agora para o funeral do filho querido da vitória!

O João Luís levou os punhos aos olhos, rasos de lágrimas.

- E aquela, meu Capitão, aquela branca, mais alta agora do que as águias! Deus seja por ela!

 

*1. Segundo um biógrafo estrangeiro, Marcos Portugal escreveu mais de quarenta óperas, além de várias peças de música sacra.

Vinte e quatro das suas óperas foram cantadas em Itália e quatro em Paris. De entre as que tiveram mais assinalado êxito sobressai a que se intitula: Fernando in Méssico.

 

         Noite de horrores.

Massena saíra muito cedo de Mortágua e mandara armar a sua tenda de campanha a coberto de um pinhal, algumas centenas de passos atrás do outeiro donde na véspera assistira à batalha.

Ainda ouviu a alvorada triunfal na serra.

Compreende-se a tortura de mágoa na alma daquele velho, que tinha o direito de ufanar-se com o seu grande nome, cuja vibração triunfal, quarenta e oito horas antes, era apenas inferior à desse outro que assombrava a Europa e ao qual nenhum se podia igualar - Napoleão.

Foi para a barraca seguido de Fririon e Pelet, condoídos daquele acabrunhamento que procurava disfarçar-se, mas que eles perfeitamente adivinhavam.

Estava ainda hesitante quanto à resolução a tomar.

A estrada de Boialvo ainda não fora reconhecida. As massas de cavalaria que Luís de Castro e Maurin tinham visto, quando voltavam da quinta das Águias, eram da brigada do general Saint-Croix, do corpo de exército de Junot, que se acampara nas imediações de Mortágua.

A uma centena de passos da tenda do comando em chefe, para os lados da estrada, os ajudantes-de-campo e os oficiais às ordens conversavam em grupos. Numa clareira à retaguarda as ordenanças e os gendarmes esperavam a cavalo.

- Parece que todos estamos mudados! - disse Marbot para Ligniville, com quem se afastara passeando - Ney não teve ontem as suas impetuosidades leoninas de Elcingen. Assistiu. Como eu me tenho lembrado da frase com que Napoleão o definia em Friedland: Este homem é um leão! E foi isso apenas há três anos! E Massena? Como eu também o desconheço! Ouve esses clamores de vitória lá em cima e fica-se naquelas estranhas hesitações! Se fosse como dantes, teria montado a cavalo aos primeiros hurrahs dos ingleses lá em cima, e falaria aos soldados como êle noutro tempo sabia falar-lhes. Saía-se, ao menos, desta apatia esmorecedora, que nos torna diferentes do que éramos! Mas, afinal, para ali está oprimido, abatendo a própria força moral dos soldados! O que êle era ainda há um ano! Parece que todos estamos acabrunhados por não sei que pressentimento de maiores desastres! Creio que começamos a ter medo, Ligniville!

- Não é medo, é desconfiança. Da nossa boa fortuna e de nós mesmos. E vem isto, principalmente, das funestas rivalidades dos generais. A imprudente batalha de ontem deu-se porque Ney contrariou Massena, e Ney não foi o que devia ser só pelo receio de contribuir para uma vitória mais daquele velho colega, preferido pelo Imperador.

- Da vitória sempre eu duvidei, mas esperava que todos fossem dignos das suas próprias tradições!

- Creio que só dois houve que o não foram.

- Ney e Massena. Os outros bateram-se admiravelmente. Meu amigo, devíamos ter contado com alguma cousa além das asperezas formidáveis da serra. Os ingleses são firmes como redutos, excelentes atiradores, quebram de longe todo o ímpeto leonino das nossas cargas. E os outros, os portugueses, de quem não fazíamos caso, defendem a sua terra, têem alma e sangue para aqueles arranques destemidos que nós ontem presenciámos.

- E muito mais disciplina que os espanhóis, desbaratados em quantas batalhas os temos encontrado sozinhos, de Baylen para cá.

- Aí vem Ney - avisou Marbot - E traz consigo Reynier.

- Que antes-de-ontem considerava o ataque à serra como coisa relativamente fácil e já hoje atribui a Massena a responsabilidade daquela funesta imprudência!

- Uma lástima! Mas espera! Reynier fica. Ney vem sozinho para cá. Deixou os ajudantes.

O Duque de Elcingen apeou-se na estrada e entregou o cavalo a uma ordenança. Veio para o grupo dos ajudantes-de-campo de Massena.

- O Marechal - preguntou a Marbot.

- Está ali na sua barraca.

- Sozinho?

- Com o general Fririon e Pelet.

- Bem.

Dirigiu-se para lá sacudidamente.

- Estou a ver que vai ter cena violenta com Massena.

- Como em Valhadolide, em Ciudad Rodrigo, em Viseu...

- E antes-de-ontem em Mortágua. É provável.

Ouvia-se um frouxo tiroteio nos postos avançados. De espaço a espaço uns tiros de artilharia das baterias da serra.

Ney entrou desabridamente.

- Marechal! Tenho um caso pessoal a tratar consigo. É necessário que estejamos sós.

Massena levantou-se afogueado e mandou retirar Fririon e Pelet.

- Queira dizer.

- Marechal como eu, a sua antiguidade e os seus cabelos brancos não lhe podem dar o direito de se permitir duvidar da minha coragem, que em parte nenhuma desmenti.

- Mais serenamente, marechal Ney! Fale como eu tenho o direito de querer que me fale e diga quando foi que eu pus em dúvida a sua coragem.

- Ontem de tarde, diante do seu estado-maior, falando com um dos meus ajudantes.

- Com um dos seus ajudantes! E pus eu em dúvida a sua coragem?! Começo a recear que o tenha trazido aqui alguma deplorável alucinação!

- Marechal Massena, a sua memória abandonou-o, de parceria com a sua fortuna! Ontem, com uma ironia que me abstenho de classificar, preguntou a um dos meus ajudantes, diante dos seus, se eu também tinha sido ferido, deixando perceber que Miguel Ney se não tinha exposto às balas.

- Ah! compreendo agora a que se refere. O seu ajudante contou-lhe...

- Não contou. Teria vindo aqui ontem mesmo se êle me tivesse referido as suas palavras, como era seu dever. Só há pouco soube o que se passou. Sabem-no já todos os oficiais e eu não tolero a ninguém, quem quer que seja, a ninguém, ao próprio Imperador, insinuações deprimidoras da minha honra e das minhas tradições de soldado.

- Mais baixo para eu poder ouvir. Eu nunca temi ninguém, nem medi nunca o ânimo dos outros pelo volume da voz. Nesse tom nem lhe dou explicações nem consinto que mas peça.

Sentou-se.

- Direi desassombradamente ao marechal Ney o sentido exacto das palavras com que êle se dá por ofendido, e seja onde fôr, responderei por elas. Mas para eu falar é preciso que o Duque d'Elchingen se não esqueça de quem é aqui o seu legítimo chefe.

- Agora aqui não há senão dois homens, dois marechais, ouvi-lo-ei para lhe responder conforme os direitos de honra, que se não subordinam aos outros da antiguidade de patente.

Sentou-se também.

- Falou-me em direitos de honra. Pois bem, não se dirá que, para os discutir, André Massena se esconde por detrás da sua categoria de comando. Queira ouvir. Eu não podia pôr em dúvida a coragem de Miguel Ney, tantas vezes provada. Quem o percebeu ou o insinuou, de boa ou de má fé, caluniou-me. Nunca vi fraquejar o marechal Ney, e nunca ouvi que fraquejasse. Sei das batalhas em que êle foi inexcedido, o bravo dos bravos, como lhe chamou o Imperador. Sê-lo-á sempre que o queira ser, e senti que não o quisesse ser ontem, não porque lhe falecesse o ânimo, sei-o bem, mas por má vontade para mim.

- O que queria que fizesse?

- O que fêz de heróico em Iena dentro de um quadrado que se mantinha inabalável contra toda a cavalaria prussiana, o que fèz de arrojado em Friedland, contribuindo para uma das maiores vitórias do Imperador. Não o vi. Disseram-mo. Sabe-o todo o exército. E foi isso o que não quis fazer ontem!

- As outras eram batalhas comandadas por Napoleão, quer dizer, pelo maior general dos tempos modernos.

- Aqui o dever era o mesmo. As vitórias ou os desastres são, principalmente, para a França.

- Queria talvez que eu arrastasse os soldados por ali acima, loucamente, já com duas divisões batidas e quando o corpo de Reynier já estava destroçado?!

- Queria e esperava e tinha o direito de querer que não perdesse mais de uma hora, atacando tardiamente, quando o corpo de Reynier já estava sendo repelido, diante das maiores forças do inimigo, que de quási todas podia dispor, atenta a imobilidade do 6.o corpo, o seu.

- Era do meu lado a parte de mais difícil acesso.

- Estava consigo o corpo de maior efectivo, tinha às suas ordens os regimentos de maiores glórias. Se hesitassem, podia repetir o que fêz nessas batalhas em que eles foram os vencedores.

- Sacrificando-me sem glória nenhuma numa acção desastradamente planeada e irremediavelmente perdida!

- Nunca há batalhas perdidas enquanto se não empenham os derradeiros esforços. Napoleão venceu no Marengo a batalha que todos supunham perdida, e do revés de Aspern tive eu a fortuna de fazer a vitória d'Essling.

- Não citou bem, marechal Massena, porque citou contra as suas próprias arguições. No Marengo, Napoleão recebeu o esforço de Desaix e deu uma batalha vitoriosa depois de uma batalha perdida. Ontem, com as minhas divisões repelidas, extenuadas, com tantos mortos e feridos como nas sanguinolentas batalhas,, debalde esperei que o marechal d'Essling arrojasse para as escarpas da serra o corpo de exército que tinha atrás de si inactivo.

- Todo de soldados inexperientes.

- Com soldados novos também se vencem batalhas. Mas eu compreendo. O Príncipe d'Essling queria que eu fosse o Ney de Iena, posto ao serviço da sua glória, na mesma batalha em que êle se julgou dispensado de imitar o Massena de Rivoli.

- Da glória do Imperador, da glória da França é que devia dizer.

- Em conclusão - disse, levantando-se - quer para mim as responsabilidades deste sanguinoso desastre, que o sr. planeou há dois dias e eu previa há um mês?

- Queria que tivesse executado o que se planeou, queria que fosse para mim um auxiliar dedicado e leal - replicou erguendo-se - E não o tem sido e não o foi! Eis o sentido das minhas palavras de ontem. Não tinha razões para duvidar da sua coragem, nunca ninguém duvidou dela, mas pus em dúvida a sua lealdade para mim. Era o meu direito e a minha justiça, pelo que se deu ontem, pelo que se tem dado desde que eu tomei este comando, que não solicitei e que parece magoá-lo como se fosse um desfavor afrontoso para si!

- Provas dessa deslealdade de que me acusa?! - rugiu Ney.

- Aconselhava-me a retirada quando a retirada seria um labéu de cobardia para mim, para o exército, para a própria França! Aconselhava-ma o sr., a quem algumas vezes têem acusado de temeridade!

- Como que adivinhava as suas inexplicáveis demoras em Viseu e as suas tristes hesitações de dois dias em Mortágua.

- Ontem insistiu pela batalha, que horas antes julgara perigosa, e insistiu sabendo que tínhamos caminho por onde era possível tornear o inimigo! Assim, somos incompatíveis. É preciso que o Imperador mande retirar um dos dois, ou eu o exonero a si do comando do 6.o corpo, se não mudar de proceder.

- Comandei-o em Elchingen, uma batalha que eu venci, em Iena, em Eylau, em Friedland, as soberbas batalhas que ajudei a vencer.

- E ontem, naquele ataque tardio, que me fêz perder a primeira batalha.

- Pois discutiremos isso. Mas não é preciso. Peço eu a exoneração do comando, e o sr. bate-se comigo, para liquidarmos as nossas contas.(1)

- Perdão, Marechal - disse à porta um general novo, franzino, muito branco, muito louro, com o perfil delicado de mulher.

Era o general Carlos de Sainte-Croix, já nosso conhecido da ilha de Lobau.

Dir-se-ia uma dama em travesti de general e, todavia, sabemos já que está ali uma das mais altas capacidades militares do Império, um dos maiores bravos entre os muitíssimos que tinha o Grande Exército, um íntimo de Napoleão.

Compreende-se pois aquela audácia de entrar na barraca de Massena quando os dois marechais estavam em conferência reservada.

- Oh! meu caro Sainte-Croix - exclamou Massena, indo para êle afectuosamente - Fêz-me ontem falta a lealdade do seu conselho.

- Marechal, por quem é - disse-lhe o moço general modestamente.

E foi para o Duque d'Elchingen, a quem cumprimentou com requintada homenagem.

Aquele general de trinta e três anos não era somente um talento militar e um ânimo espantoso, era também um diplomata atraente, prestigioso, que honrava a sua aprendizagem na diplomacia, e, assim,

 

*1. Não era o primeiro desafio entre os generais do Império, nem seria o primeiro duelo em campanha. Marbot conta um caso de desafio, ainda mais grave, que se deu na Áustria durante a campanha de 1809, entre os marechais Bessières e Lannes. E não deu em duelo imediato porque Massena interveio, impondo-se aos dois.

A duquesa de Abrantes refere nas suas Memórias as súplicas e esforços que fêz para evitar que Junot fosse desafiar Massena por causa de uma ordem de serviço que o duque supunha ofensiva da sua dignidade e dos seus direitos de comando. Num arrebatamento de cólera, Junot pôs a espada, exclamando:

- Isto não pode continuar assim! A espada igualará tudo!

Depois de instantes súplicas, a que o general não queria aceder, a duquesa correu a atravessar-se-lhe na porta para o não deixar sair e assim conseguiu evitar o desafio.

Foi isto em Salamanca, na primeira quinzena de Junho daquele ano, pelo tempo em que ia começar o cerco de Ciudad Rodrigo, quere dizer, havia apenas três meses.

Anos antes, Reynier matara em duelo o general Destain.

Junot tivera em França um duelo com o general Lanusse, por causa de umas palavras que julgou ofensivas para Napoleão. Junot ficou ferido.

Iria longe a indicação dos desafios e duelos entre os generais dos tempos napoleónicos.

 

o início da sua carreira pública. Tinha o condão e a arte de conciliar vontades e congraçar dissentimentos.

Entrou na ocasião oportuna. Conhecia a torva rivalidade dos dois marechais e percebeu logo a que ponto grave tinha chegado a discussão entre eles. Reynier avisara-o do provável conflito, quando Sainte-Croix voltava de um reconhecimento rápido, de seu motu-próprio, feito na linha de batalha do Buçaco.

- Houve ontem erros e faltas deploráveis - disse-lhe Massena - Não rejeito nem fujo às responsabilidades que me pertencem.

- Têem-se cometido erros iguais em batalhas maiores e mais funestas - acudiu, conciliador - Disseram-me já o que houve. Conheço a batalha pelas informações que ouvi, e eu próprio observei já o terreno de relance.

- O ataque ao centro e esquerda do inimigo foi tardio...

- Príncipe - acudiu logo Sainte-Croix habilmente - eu nunca vi terreno mais escabroso, mais difícil do que esse por onde o 6.o corpo teve de investir o inimigo. Aquilo era assaltar um ninho de águias. Batalhas perdidas até o Imperador as tem tido, e mais ninguém as sabe planear e vencer como êle.

Faz-se de conta que perdemos um simples recontro de avançadas. Não se ganha agora em analisar o combate em que a fortuna se esqueceu de nós. O verdadeiro é resgatá-lo por uma grande vitória no caminho de Lisboa. Será coisa segura. Temos aqui generais e soldados dos mais brilhantes do Império, e na epopeia assombrosa de Napoleão ainda não houve espadas de maior esplendor que as do marechal de Rivoli e Essling e do marechal d'Elchingen e Friedland. Repito uma verdade histórica de tão incontestável grandeza que nem suponho melindrar a susceptibilidade de ninguém, nem receio ser tomado na conta de lisonjeador. Não há vitória que legitimamente deva atribuir-se a um só na batalha em que ambos entrarem. Agora o meu maior desejo, a minha súplica de patriota e de soldado, seria que me dessem um encargo de confiança, vindo da sua autoridade prestigiosa de chefe, sr. Príncipe de Essling, num acordo com a sua valiosa opinião, sr. Duque d'Elchingen.

- Qual? - perguntou Massena.

- Desejava formular o pedido diante do general Reynier. Sei que está ali fora. Chamava-o, se vossa alteza mo permitisse... e v. ex.a se dignasse ouvir-me diante dele - acrescentou, voltando-se para Miguel Ney.

- Pois sim - disse logo Massena, cujos rancores se tinham amortecido.

Ney fez um gesto de assentimento. Sainte-Croix saiu fora da barraca e pediu a Reynier que entrasse.

- Sei que há uma estrada por onde é possível tornear o inimigo - disse Sainte-Croix.

- Duvido que haja, é a lenda de há dois dias - objectou Ney.

- Eu hesito, porque também duvido -disse Reynier.

- Pois o encargo que eu peço é simplesmente

este: autorizem-me a ir reconhecer essa estrada à frente da minha brigada, apoiado pelo 8.o corpo.

- Está concedido.

Sainte-Croix pediu num olhar a opinião de Ney e Reynier.

- Não me parece que tenha inconveniente essa tentativa, provavelmente mal sucedida - disse o Duque d'Elchingen.

- Estou de acordo - apoiou Reynier.

- Uma ordem de vossa alteza para o general Junot - pediu o diplomata, conciliador.

- Basta uma ordem vocal. Leve consigo um dos meus ajudantes-de-campo para que a comunique da minha parte ao Duque de Abrantes.

- Levarei então dois: Marbot e Ligniville.

- Pois sim.

Minutos depois Sainte-Croix, Marbot e Ligniville partiam a galope.

Levaram a Junot a ordem vocal de Massena.

A brigada de dragões de Sainte-Croix deita selas e monta a cavalo. Marbot vai buscar o jardineiro dos franciscanos para lhes servir de guia.

Tomam o caminho para Boialvo à frente dos dragões e de um regimento de infantaria.

A larga distância devia segui-los todo o 8.o corpo.

Na serra do Buçaco o tiroteio tornara-se mais intenso.

Em cima contavam com uma segunda batalha.

Horas depois, Sainte-Croix, Marbot e Ligniville voltavam a galope desfechado para junto de Massena.

- Temos estrada segura por uma garganta daquela serra do Caramulo - disse ofegante aquele a quem Napoleão augurara um bastão de marechal.

- Bem - disse o Príncipe d'Essling, volvendo um olhar triunfante para Miguel Ney - Iremos então sobre Lisboa, sem tornar a investir a serra.

- Ou cair sobre o flanco esquerdo e a retaguarda do inimigo - acrescentou Sainte-Croix.

- Se não cairmos em alguma cilada que êle nos tenha armado - objectou Ney.

- Não encontrámos nenhumas forças de observação, nem sequer indícios de tropas nas proximidades da estrada - esclareceu Carlos de Sainte-Croix.

- Se o general inglês tiver quem o avise desta nossa marcha de flanco, mais perigosa talvez do que a batalha de ontem, esmagar-nos-á por esse caminho de Lisboa, que vamos procurar - observou Reynier.

- Que já encontrámos, sr. General - acudiu o amigo de Massena.

- Bastará que o tal jardineiro dos franciscanos, esse campónio que arvoraram em estrategista para remediar os erros graves de há vinte e quatro dias, consiga escapar-se pelas montanhas para ir avisar os ingleses ou procurar alguém que os avise.

- Não pode, sr. Marechal - observou-lhe Sainte-Croix serenamente - Está preso entre os nossos dragões no caminho de Boialvo.

- Perdemos tempo em inúteis discussões - interveio Massena com a sua firmeza de outros tempos - Marechal Ney, general Reynier, têem de recolher aos seus corpos de exército. É preciso que se torne mais intenso o fogo dos postos avançados, para deixar perceber ao inimigo que intentamos um novo ataque. O 6.o corpo simulará que toma disposições para uma segunda investida. Marcharemos de noite. Na vanguarda o corpo de Junot, o 6.o corpo segue-o, o 2.o vai na retaguarda. O mais absoluto segredo a respeito desta marcha. Mandarei ordem com os pormenores necessários.

- E os feridos, mais de três mil, deixam-se? - preguntou Ney.

- Hão-de levar-se como fôr possível - respondeu Massena secamente.

E despediu-os com um gesto.

Ney e Reynier cumprimentaram-no friamente.

- Vamos então ter a glória - disse Ney para Sainte-Croix - de empreender uma perigosa marcha, que a posteridade há-de conhecer pela famosa vitória do campónio, afinal o homem providencial nesta conjuntura.(1)

Sainte-Croix afogueou-se, mas não lhe respondeu. Todo o seu empenho era aplacar rancores e evitar discussões irritantes. Os dois saíram.

- Obrigado, Sainte-Croix - disse Massena abraçando-o.

- Marechal, eu conheço os perigos desta marcha, mas não convinha que lhe falasse deles diante dos seus insubmissos auxiliares.

- A minha situação, Sainte-Croix! Generais que me obedecem de má vontade, que anseiam por ver-me desprestigiado e, no maldito ciúme por este comando que eu não queria aceitar, dão estímulos à insubordinação de um exército, que não excede metade do que Napoleão me prometeu em Paris! E verá que o Imperador há-de julgar-me responsável por tudo isto e nunca me perdoará o desastre de ontem!

- Há-de resgatar-se, Marechal. E enquanto se não vence uma batalha que faça esquecer o mau passo de ontem, vossa alteza no seu relatório, e eu em carta ao Imperador, atenuaremos, quanto possível, a importância do revés. E como vamos marchar para tomar o caminho de Lisboa e bater o inimigo pela retaguarda ou cortar-lhe a linha de comunicação com a sua base de operações,

 

*1. Marbot conta nas suas Memórias que o Marechal Ney dava àquéla marcha a denominação escarninha de manobra do campónio.

 

a batalha perdida terá na Europa o aspecto de um combate de avançadas, de reconhecimento, sem nenhuns resultados decisivos contra nós.

- Pois sim. Diminuirei as nossas perdas na minha participação oficial. Agora tratemos de sair daqui.

- É preciso dispor a marcha de modo que nos não surpreenda o inimigo com algum ataque pela retaguarda ou pelo flanco. Se por qualquer circunstância Wellington desconfiasse deste movimento, muito facilmente nos poderia bater, descendo da serra sobre o corpo de Reynier ou tomando-nos o passo de surpresa nas gargantas de Boialvo.

Massena ficou apreensivo.

- Ajude-me, Sainte-Croix, auxilie-me nesta conjuntura.

- Com a maior dedicação, meu caro Marechal. Fora da barraca, no grupo de ajudantes-de-campo, Marbot dizia alto:

- Sainte-Croix era ontem o homem necessário que, infelizmente, estava afastado daqui e será agora o homem providencial para nos salvar de outro desastre maior, em marradas inúteis contra a serra.(1)

No tiroteio daquele dia 28 ainda os franceses tiveram mais algumas dezenas de feridos e mortos.

Começava a anoitecer e logo se activaram os preparativos da marcha, já muito adiantados para as bandas de Mortágua.

Centenas de soldados tinham andado pelos pinhais a esgaçar ramos de hastes grandes, resistentes, com que improvisaram macas.

 

*1. É a opinião por ele largamente exposta nas suas Memórias.

 

Os serviços de saúde e de socorros aos feridos eram então um horror pela insuficiência do pessoal técnico e pela escassez desumana do material de instalação e condução. Nem as ambulâncias nem os hospitais de sangue eram sequer o rude e imperfeitíssimo esboço do que são hoje nos exércitos do nosso tempo.

Mas então naquele exército de Massena todos esses serviços de socorro vinham numa deplorável desorganização e numa penúria esmorecedora.

Tinha entrado a noite e ainda estavam conduzindo feridos dos casebres da Moura e de Santo António do Cântaro para as margens da estrada de Mortágoa.

E na própria vila já não havia casarão que não estivesse atulhado deles.

Era uma coisa lúgubre, no escuro da noite, aquela procissão de soldados que desciam das veredas do Buçaco ou atravessavam os carreiros dos contrafortes da Atalaia e de Santo António, trazendo em braços, às costas ou atravessados sobre os jumentos das cantinas, aqueles pobres feridos, grosseiramente pensados na noite anterior e quási em absoluto abandono durante uma parte do dia.

Alguns quási moribundos, alguns já agonizantes, envoltos em farrapos sangrentos e todos eles devorados de sede, porque só lá para o interior da mata é que havia água em abundância.

E assim ia passando em longas filas, num coro de gemidos e ais lancinantes, aquele préstito esmorecedor de infortunados, e assim coleava por entre as fogueiras do bivaque, acesas para iludir os postos avançados da serra, dando ares de estacionamento àquele exército em disposição de marcha.

Os soldados condutores pediam encarecidamente aos feridos que não gritassem, que não gemessem alto, para não alvoroçar os postos avançados do inimigo, mas os tristes, devorados de sede, mortificados de dores, aos solavancos como animais mortos sobre o albardão dos jumentos, aos tombos sobre os ramos duros das árvores, ou aos ombros dos camaradas, a cada instante a caírem desamparados no trilho do caminho, áspero e pedregoso, envoltos em sombras, não podiam conter-se e cada vez gritavam com mais pungidora aflição.

Na sua fraqueza, no seu esmorecimento moral, desconhecedores de quanto se passara durante o dia, em que o tiroteio fora constante, os feridos supunham as piores desgraças, uma nova derrota, uma retirada de desbaratados.

No propósito de os reanimar, alguns sargentos lhes tinham dito que era para acompanhar a marcha do exército sobre Lisboa que os levavam dali, a uma e outra margem da estrada, pelos valados, em cima do mato ou da caruma seca dos pinheiros, os iam deitando, embrulhados nos capotes.

Ficavam ali à espera, gemendo despedidas, queixas, súplicas, dizendo os nomes queridos do seu lar e da sua terra, implorando misericórdia. E a tremer de frio, porque naquelas vizinhanças da serra as noites dos fins de Setembro são húmidas e frias.

Entretanto, os regimentos do corpo de exército de Reynier iam formando silenciosamente, numa tristeza opressora, sem um toque de clarim, sem o rouquejar dos tambores, as ordens dadas a meia voz.

Era aquele o corpo que devia constituir a retaguarda do exército. Estabelecia novos postos, cobria a estrada de Mortágoa, para se acautelar de algum ataque brusco do inimigo, se, por qualquer circunstância, êle desconfiasse daquela marcha em tão arriscadas condições. O 6.o corpo já estava em formatura de marcha a um e outro lado do caminho de Mortágoa. A sua artilharia rodava lentamente pela estrada fora. Desde a tarde, já para além dos desfiladeiros do Caramulo as avançadas do 8.o corpo guardavam as posições da Serra de Boialvo e a povoação do mesmo nome.

Como nas noites anteriores, um pano imenso de neblinas descia sobre aquele fundo do Buçaco. Protegia a marcha dos franceses, mas punha um tom fúnebre naquelas massas silenciosas de cavalaria e infantaria, que os olhos dos feridos descobriam como se fossem de alguma visão trágica, num sonho de pesadelos.

Massena resolveu que a sua companheira fosse com uma escolta de dragões, entre a cauda do 8.o corpo e a vanguarda do 6.o. Os oficiais portugueses aguardavam ordens defronte do quartel-general em chefe. À saída, a francesa falou de relance a Luís de Castro.

- Tenho pena que não venham connosco - disse-lhe suavemente - Iria mais tranquila. Acostumei-me a ver em si o meu mais atencioso amigo, entre as raras pessoas que me estimam aqui, o mais devotado e intrépido dos meus defensores.

- Deveres meus de homem e de soldado, que não podem chamar-se favores, minha senhora. Sinto que me não seja dado acompanhá-la.

- Ouvi que vão com as tropas de Reynier.

- Na retaguarda, com o 2.o corpo, os meus compatriotas e eu. Foi a ordem do Marechal.

- Sinto, creia que o sinto. Adeus.

E baixando a voz, disse-lhe rapidamente, numas palavras que tremiam:

- Vai o coração a pressentir-me novos infortúnios!

Dali a instantes Fririon ordenava que os oficiais portugueses fossem apresentar-se ao general Reynier.

Partiram. Acompanhava-os um ajudante-de-campo do chefe do estado-maior, para dar àquele general instruções verbais reservadas, a respeito dos portugueses.

Pelo caminho Luís de Castro aproximou-se de Cândido Xavier e foi conversando com êle. A pouco e pouco se deixaram ficar para trás. Falam baixo.

- Dão-nos agora esse honroso lugar de maior perigo. Compreende-se. Wellington, se perceber isto, cairá sobre a rectaguarda deste exército que vai enterrar-se nas gargantas de um desfiladeiro, de noite, desconhecendo o terreno, numa marcha de flanco.

- Supõe talvez Massena que a necessidade da própria defesa nos levará a guiar o corpo de Reynier, auxiliando-o a defender a marcha do exército.

- E assim julga punir a deslealdade, o termo é dele, de o não havermos esclarecido acerca daquelas posições formidáveis do Buçaco, nem a respeito da estrada de Boialvo. Pois engana-se com o suposto castigo. Nem dou conselhos, nem me bato. Deixo-me aprisionar, se não preferirem matar-me.

- Mas olhe que vou ainda com muito receio pela sorte de Portugal. Se Wellington não percebe esta marcha, se a não percebe até amanhã ao romper do dia, o exército aliado corre perigo de ser batido de revés ou de lhe cortarem, pelo menos, o caminho de Lisboa.

- Também eu estou com esse receio. O caminho de Boialvo vai dar à estrada real do Porto para Coimbra e Lisboa e entre Avelãs do Caminho e a Mealhada têem os franceses um terreno excelente para a sua soberba cavalaria. Ouvi que um desertor alemão do exército aliado declarara a Fririon que toda a cavalaria inglesa e portuguesa não vai além de três mil homens.

- Os franceses têem mais de sete mil de cavalaria.

- Só os dragões de Montbrun são mais de quatro mil. Uma batalha entre Avelãs do Caminho e a Mealhada valeria um desastre provável para os aliados.

Tiveram de parar na bifurcação da estrada para Santo António do Cântaro. Reynier esperava ali com o seu estado-maior. A sua cavalaria ligeira estava em massa para as bandas da Lourinhã.

A névoa envolvera a serra. Ia em marcha a vanguarda de Ney. Redobraram então os gritos de súplica dos feridos.

E ao pé deles, compungidos, no empenho inútil de os conter, milhares de soldados a um e outro lado da estrada. Esperavam a vez de partir com as macas de ramos de árvores e de espingardas sem dono, apanhadas nas ravinas da serra.

Reynier partiu a galope para os postos avançados. Era preciso observar se havia algum movimento suspeito da parte do inimigo.

O 6.o corpo levou longo tempo a desfilar.

- Como eles vão acabrunhados! - segredou Luís de Castro a Cândido Xavier.

Tinham já passado as colunas de Ney. Ia para as 11 horas.

Reconhecia-se agora que eram insuficientes as macas improvisadas.

Mandaram apear alguns esquadrões para que sobre os cavalos pudessem levar uma parte dos inválidos.

Os dragões conduziram os cavalos à rédea, lentamente.

Deu-se ordem para levantar os feridos. Foi uma tarefa oprimidora. Assim, na escuridão, o levantamento fazia-se com tal ausência de cuidados que redobrava os tormentos daqueles desditosos. Estrugiam nos ares gritos doloridos, ouviam-se a poucos passos os comentários e os ditos duros dos soldados, já na impaciência de acabar aquilo depressa, não quisesse o demónio que os ingleses e portugueses descessem e viessem surpreendê-los ali.

Mas por entre os rudes dizeres de gente apressada e afeita à carniçaria das batalhas, rumorejava como doce carícia a voz piedosa das vivandeiras:

- Mais devagar, coitadinhos!

- Não os levem assim!

- Não há remédio senão ter dó deles, os pobres de Cristo!

Estoiraram uns tiros de espingarda no alto da serra.

- Escute! - disse Cândido Xavier - Três tiros. Lá de cima.

- Se os aliados tivessem percebido isto - respondeu-lhe Luís de Castro - a invasão acabaria esta noite com a mais espantosa derrota que ainda sofreram os exércitos napoleónicos.

- Talvez fosse alarme de alguma sentinela assustadiça.

- Outros tiros, dois, mais próximos daqui.

- Provavelmente, resposta dos postos de Reynier, para iludirem os da serra.

Chegou um ajudante-de-campo a todo o galope.

- Depressa! - veio dizendo alto pela estrada fora.

E explicou ao cirurgião que dirigia o levantamento dos feridos:

- O general determina que mande pôr já essa gente em marcha.

- Ainda há muitos a levantar.

- Também em Santo António e na Moura há alguns que não é possível levar. Têem feito uma gritaria espantosa e deram alarme ao inimigo! É tarde, levam-se os que se puderem levar.

Instantes depois o lúgubre comboio desfilava pela estrada fora.

- Repare, major. Veja aquelas manchas negras, altas, que vêem do lado da serra. Ouça. Um grasnar de corvos, gritos de milhafres. Vêem para aqui espantados pelos tiros. Estavam talvez pelas encostas a esfarrapar cadáveres. Gritam num desespero de fome insaciada.

Olhe, ali para cima, aquele vulto escuro, a mover-se para aqui como um farrapo de nuvem. Há-de ser alguma águia que foi também perturbada no seu banquete de mortos. Aqui aparecem águias?

- Aparecem. Algumas fazem ninho nas penedias do Buçaco. Lembra-se daquelas escarpas da esquerda, que eu lhe mostrei, aquelas para onde foi esbarrar uma das divisões de Ney? Chama-lhes a gente destes sítios o Ninho da águia.

Chegava a testa de coluna do 2.o corpo. O comboio lúgubre já ia muito para diante.

Foi desfilando, mas nas orlas da estrada ficavam ao abandono algumas dezenas de feridos, que romperam num clamor doido de súplicas, de protestos, de espavoridos receios.

- Levem-nos! Levem-nos! Pobres filhos da França ao desamparo!

- Eu tive a Legião de Honra... em Austerlitz... e deixam-me aqui, como se fosse uma besta inútil!

- E eu fui ferido em Iena...

- O Imperador abraçou-me em Friedland...

- Desumanidade hedionda!

- Minha bela terra de França!... Já te não torno a ver!

E os batalhões de Reynier desfilando silenciosamente, as massas escuras a rasgarem as neblinas, o ruído cavo dos passos a cadenciar aquele miserere.

Em cima, no céu,,de quando em quando um rasgão enorme no toldo de névoas, e descobria-se um retalho de azul cravejado de estrelas, a pôr uma claridadezita suave naquele imenso quadro de horrores.

Alguns feridos levantam-se e arrastam-se até à estrada para marcharem também. Os que tinham ainda um resto de alento, e destes alguns caíram a poucos passos, ao abandono, de bruços no pó, nuns clamores que ninguém queria ouvir.

- Depressa, depressa! - iam recomendando os oficiais e sargentos.

De súbito, uma vivandeira moça, que estava à beira do caminho a soluçar com um ferido no colo, um granadeiro de vinte anos, o seu amante, crivado de baionetadas, soltou um grito desvairado, enorme, de suprema dor.

- Luciano! Luciano! Já me não podes ouvir! Não podes! E ninguém que me acuda! Morto!

Beijava-o sofregamente, amparou-lhe a cabeça nas suas mãos a tremerem, a arder em febre.

- Nunca mais! Nunca mais!

Largou-o dos braços num repelão de horror e levou as mãos à cabeça, enclavinhadas como garras.

Ia passando defronte a testa de coluna de um regimento.

- O nosso! Êle já não pode ir! Cinco baionetadas, a defender as águias da França... e as águias de cá a quererem devorá-lo! O nosso regimento!

E correu para diante a gritar:

- Coronel! Eu fico. Dizei lá no Bearne que o meu amante morreu. Fico eu de guarda a êle. Para que não venham espicaçá-lo os corvos... para que mo não levem os lobos! Coronel! Dizei-o lá na minha terra do Bearne.

E logo com um movimento brusco, apontando um retalho azul do céu, clamou numa vibração aguda, arrepiadora como um grito de ave selvagem:

- Coronel! Aquela estrela a encobrir-se! A estrela de Napoleão, o grande... que nos cá mandou... Maldito! Maldito!

Voltou a correr para trás e caiu de joelhos ao pé do cadáver, cantando uma velha trova de amor do seu país do Bearne.

- A pobre Teresa endoideceu! - disseram entristecidos os soldados das últimas filas no regimento.

Luís de Castro estava a poucos passos num confrangimento de piedade. Não distinguia o rosto da pobre enlouquecida, mas tinha ouvido tudo.

- Este horror! - disse para Cândido Xavier. Sentiu-se um ruído intenso que vinha das duas

estradas paralelas da Moura e de Santo António do Cântaro, que se encontravam à entrada de Mortágua.

Era a brilhante cavalaria de Montbrun que retirava também, cobrindo a extrema retaguarda.

Reynier passou a galope com o seu estado-maior. Assistira à retirada dos últimos postos, ia agora a tomar a frente do seu corpo de exército.

Parou diante da bifurcação do caminho onde o chefe do estado-maior tinha assistido ao desfilar das tropas. Atrás dele estavam os oficiais portugueses.

- Os postos ingleses já deram sinal de alarme - disse o chefe do estado-maior - Os feridos que ficam na Moura fazem uma gritaria pavorosa.(1) É preciso ir depressa. Os oficiais portugueses acompanham o estado-maior do general de Montbrun. Espere-o aqui e entregue-lhos.

E meteu a galope para a frente. Instantes depois chegava Montbrun à frente dos dragões.

O chefe do estado-maior de Reynier entregou-lhe os portugueses, disse-lhe baixo, rapidamente, o quer que fosse, e deitou para a frente a trote. O ruído dos passos de quatro mil cavalos abafou completamente a voz dolorida da louca.

Das onze para a meia-noite um oficial inglês dos postos avançados percebeu que os franceses tinham retirado das vizinhanças da serra e foi avisar Wellington.

 

*1. O carmelita Fr. José-de São Silvestre refere no seu diário Histórico (Diário Memorial) que um piquete de cavalaria inglesa, lançado em observação pela estrada de Mortágoa na madrugada de 29, encontrou para lá da Moura 70 feridos franceses desamparados inteiramente em um cabeço. Compadeceram-se tanto deles, que se apearam, e montando-os em seus cavalos trouxeram-nos para a capela das Almas, que fica da parte de fora do muro. Gastaram todo o dia nesta obra de piedade.

 

Partiram logo ajudantes a levar ordens para todas as divisões e houve um leva-arriba de afogadilho.

Wellington compreendeu imediatamente em que direcção se estava efectuando a marcha dos franceses. Ao anoitecer viera um oficial de cavalaria hanoveriana participar-lhe que tinha visto destacamentos da cavalaria francesa para as bandas da serra de Boialvo.

Na previsão de uma retirada, o generalíssimo inglês já tinha mandado sair do Buçaco uma parte das bagagens e grande número dos feridos em estado menos grave.

Só para o lugar do Botão tinham saído oitenta carros de bois, carregados de feridos.

Dissemos já que os aliados tinham forças de observação na baixa, entre Avelãs do Caminho e a Mealhada. Estas forças podiam agora proteger-lhes a retirada, se o exército francês estivesse em condições de se lhe opor.

Não estava. Àquela hora da noite marchava êle lentamente, entalado nos desfiladeiros, embaraçado com o seu comboio de feridos, a gastar duas horas para avançar uma légua.

Qualquer divisão ligeira dos aliados o poderia bater naquele caminho enterrado, se os de lá conhecessem bem aquela região e soubessem as condições em que eles marchavam.

Mas não sabiam nem conheciam. De uma parte e doutra uma deplorável deficiência de serviços de informação e um imperdoável desconhecimento dessa região montanhosa por onde Massena um dia antes teria encontrado talvez a vitória e Wellington o poderia desbaratar naquela noite de 28 para 29.

O coronel Trant veio trazer a Wellington a confirmação da marcha do inimigo e pela meia-noite os aliados começavam a retirar pela esquerda, seguindo o caminho directo da serra para o Luso, Vacariça e Mealhada, muitíssimo mais curto do que o outro por onde iam os franceses.

Tem-se escrito muito a respeito do erro de Massena e do erro de Wellington por não terem mandado reconhecer aquele caminho importantíssimo, antes de haverem travado batalha.

Os defensores de Wellington alegam que o general inglês conhecia o caminho e o mandara vigiar no Sardão pelos milicianos do coronel Trant, mas que estes não chegaram a tempo de o defender.

É uma alegação insustentável. General experimentado, de assinalada prudência, Wellington, a ter conhecimento seguro do caminho de Boialvo, avaliar-lhe-ia desde logo a alta importância militar naquela campanha, e não o deixaria ao abandono, tendo para o vigiar forças importantes de cavalaria e artilharia, que lhe não fariam falta no Buçaco.

Conhecendo-o, não lhe seria lícito contar com o erro de Massena, erro grosseiro e inexplicável, que se não admitiria.num general noviço e medíocre, e devia temer por esse caminho um ataque de flanco, que o lograria perder e por onde êle próprio poderia aniquilar os franceses no dia seguinte ao da batalha.

Não o conhecia ou, pelo menos, não o conhecia bem, de modo a avaliar-lhe a importância. Para os seus créditos de general é preferível este erro gravíssimo por negligência, a imputar-lhe o outro, ainda pior, por inaptidão, que resultaria do facto de o conhecer sem lhe perceber o valor.

Mandou ordem ao coronel Trant para vir com os seus dois ou três mil milicianos para a serra e gargantas do Caramulo observar e inquietar os franceses e mandar-lha-ia logo que a vanguarda de Ney chegou a Mortágoa. Mas se soubesse e avaliasse o que era tal posição, seria outro erro deplorável confiar a guarda desse caminho a uns milicianos bisonhos, aos quais, na baixa do Sardão, qualquer brigada de dragões franceses conseguiria desbaratar irremediavelmente.(1)

E percebendo o perigo enorme, se aquela estrada lhe não era desconhecida, está uns poucos de dias sem notícias de Trant e não manda verificar se êle tinha chegado, se estava onde era preciso que estivesse, e não tem esclarecedores de cavalaria que lhe dêem notícia exacta do reconhecimento de Sainte-Croix no dia seguinte ao da batalha!

Inacreditável.

O céu escurecera muito depois da meia-noite. Começou a chover.

A marcha dos franceses era penosíssima.

- Do cimo dessas ribanceiras - disse baixo Luís de Castro para Cândido Xavier - sete ou oito mil homens de infantaria desbaratavam esta procissão de derrotados e os dragões de Montbrun cairiam aqui fuzilados em massa. De um e outro lado erros que valem ondas de sangue,

 

*1. Em ofício de 30 de Setembro, para D. Miguel Pereira Forjaz, o general Wellington conta o facto por este modo: «Havendo pensado que, provavelmente, havia o inimigo de procurar envolver o nosso flanco esquerdo por aquela estrada, tinha determinado ao coronel Trant que com a sua divisão de milícias marchasse para o Sardão, com a intenção de que êle houvesse de ocupar estas montanhas, porém, infelizmente êle foi mandado à roda pelo Porto, e isto pelo general que comanda nas partes do norte, em consequência de um pequeno destacamento do inimigo se achar em possessão de São Pedro do Sul, e apesar das diligências que fêz para chegar a tempo, só conseguiu chegar ao Sardão a 28 pela noite, a tempo que o inimigo se achava de posse do terreno».

Tem todo o feitio de um conto inverosímil, escrito quarenta e oito horas depois de conhecido o erro injustificável.

 

este de Wellington pode custar a vida de uma nação!

- Custa a crer, realmente, que tenham deixado estas posições desguarnecidas! E o caminho é sempre assim por desfiladeiros!

- Assim até ao Sardão.

- Muito longe?

- Mais de três léguas, salvo erro.

- Então, com estes vagares, nem lá para a madrugada.

- O corpo de Junot pode lá estar ao alvorecer. Não se vê o caminho, e a chuva mais quebra ainda as forças dessa gente.(1) Devemos ir na altura de um lugarejo chamado Espinho. É isso. Não me engano. Vamos agora numa volta do caminho, onde êle se inclina para a serra do Boialvo. Se os aliados não sabem desta marcha e nos deixam desembocar destes desfiladeiros na baixa do Sardão e de Avelãs, então não sei o que será deles... e deste pobre país!

- Talvez Wellington fosse prevenido e descesse a defender a estrada real de Coimbra.

- Hum! Dizem que é muito prudente e duvido que tenha cavalaria para se opor às cargas formidáveis dos quatro a cinco mil dragões de Montbrun.

De vez em quando a retaguarda pára uns instantes, por causa de algum cotovelo do desfiladeiro ou porque o comboio dos feridos tinha parado também para atirar fora, contra as ribanceiras e barrocais do caminho, aqueles que tinham expirado.

- Outra paragem!

- Mais alguns dos que nunca mais voltam a França - disse Castro.

Um sargento do lúgubre comboio tinha ficado para trás. Trazia acesa uma lanterna de bivaque.

 

*1. O carmelita que temos citado registou no seu diário que a noite de 28 se tornou escura e chuvosa.

 

Tinham conseguido acender umas doze e levavam-nas erguidas ao longo do comboio para ver se evitavam o tropeçar constante dos condutores das macas. Mas afinal serviam mais para ver onde deitavam fora os que morriam do que para evitar as quedas dos improvisados maqueiros.

- Sargento! - chamou um dos ajudantes de Montbrun, que vinha mais próximo dos oficiais portugueses - Têem morrido muitos?

- Para cima de cem! Ficam aí pelas bordas do caminho, assim como se fossem marcos desta marcha fúnebre. E a gente a largá-los e os corvos e os milhafres logo em cima deles. Andam esternoitados. Quer a gente espantá-los e eles a grasnarem e aos gritos em volta dos cadáveres! Ali atrás vi eu uma águia enorme a esfarrapar nas presas a farda de um oficial do 36, um rapaz muito novo! E daqueles lados senti já uivar os lobos! Um horror!

E deitou a correr para a frente a reocupar o seu lugar.

Rompia a madrugada. As avançadas de Junot já tinham chegado ao Sardão. Sainte-Croix, com a sua brigada de dragões, alguma artilharia ligeira e um regimento de infantaria, avançara da povoação de Boialvo, onde de tarde se fortificara, para a outra povoação de Avelãs de Cima, a pequena distância da estrada de Mealhada a Coimbra.

Mas não percebera que, a duas léguas por outra estrada paralela, no silêncio da noite, o exército anglo-português marchara rapidamente para a Mealhada e dali metera as suas avançadas pela estrada de Coimbra! Era já dia claro quando o corpo de exército de Ney saía dos desfiladeiros e entrava nos terrenos baixos.

Foi como se tivesssem avistado uma consoladora terra de promissão. Vibraram nos ares as exclamações frementes de alívio e de júbilo.

Era preciso repousar daquela marcha de quatro

léguas apenas e de tamanha fadiga moral. Estabeleceram bivaques provisórios, deixando espaço para o desenvolvimento do 2.o corpo, ainda nos desfiladeiros. A frente estava bem defendida pelo corpo de exército de Junot. Aguilhoados pela sede e pela fome, os soldados debandaram por aquelas terras fora em busca de regatos e de alguma coisa de alimento.

Mas os lugarejos estavam desertos, os seus moradores tinham fugido de véspera à aproximação dos dragões de Sainte-Croix, metendo-se pelas veredas das montanhas e pelos covões dos pinhais. Colhidos de surpresa, nem lhes tinha chegado o tempo para inutilizar tudo, como haviam feito nas outras povoações desde Almeida até Mortágoa.

Apenas tinham ficado na aldeola de Boialvo e em Avelãs de Cima uns velhos trôpegos e umas mulheres entrevadas, que os dragões de Sainte-Croix e a galuchada de Junot mortificaram barbaramente.

Os esquadrinhadores das avançadas ainda encontraram alguns pedaços de broa, alguns nacos de toucinho, alguns cântaros de vinho. Mas coisa de nada para tanta gente. Deitaram-se à pesquisa das terras de lavoura E era de ver como os bravos granadeiros devoravam as espigas de milho semi-apodrecidas sobre a terra e as folhas cruas das hortaliças, espezinhadas pelos quintalejos!

Desembocava o comboio dos feridos, e os gritos então não foram de júbilo. Tinham frio e ardiam em febre! Pediam água, e os menos atormentados de dores ou os que ainda podiam falar clamavam que tinham fome.

Mandaram-se pedir socorros à vanguarda. Não havia lá senão um boi e umas cabeças de gado miúdo, apanhados nos cortelhos de Avelãs.

Davam, ao menos, uma ração escassíssima e uns caldos para cerca de três mil feridos e mais de quinhentos homens que tinham adoecido em marcha.

Chegou o corpo de Reynier. Trazia um outro comboio de doentes. Com as perdas na batalha havia regimentos cujos soldados válidos não chegavam para amparar e conduzir os seus feridos e estropiados.(1)

A larga distância para a frente dos bivaques, entre o seu estado-maior, Massena parecia radiante.

Acercaram-se-lhe Ney e Reynier, depois Montbrun, com os oficiais portugueses.

- Se os ingleses estão ainda na serra, iremos batê-los lá acima hoje mesmo - disse Massena - Mas, se caírem em nos querer tomar o caminho, bastarão os nossos dragões para os desbaratar por esses terrenos planos, e iremos para Lisboa com a bandeira inglesa de rastos. Eles e os portugueses vão pagar pelo dobro as perdas que nós tivemos.

Os portugueses confrangeram-se. Luís de Castro volveu um olhar de amargura para Cândido Xavier.

- A manobra do campónio - acrescentou Massena, sem se voltar para o marechal Ney - valeu afinal muito mais do que presumiam algumas pessoas.

- Porque o general inglês, que nos podia mandar fuzilar naqueles desfiladeiros, é muito mais campónio que o outro - acudiu o Duque d'Elchingen num tom áspero de hostilidade.

- Será, mas está remediado o desastre em que a negligência e a má vontade tiveram um papel, desgraçadamente preponderante.

- Veremos. Ainda é cedo para o dizer. Chegou Sainte-Croix.

- Sr. Marechal, felicito-o. Estamos no caminho de Lisboa.

- Assim que as tropas descansarem - volveu-lhe Massena - iremos esmagar o leopardo inglês no seu covil do Buçaco.

 

*1. Di-lo Guingret no seu livro que temos citado.

 

O Imperador queria que o atirássemos ao mar, prefiro mandar-lhe a pele, empalhada em Lisboa.

- Agora, Marechal, só batendo-nos no caminho de Coimbra.

- Já não estão na serra?!

- Retiraram de noite.

- E não os pressentiram aqui?!

- O terreno era desconhecido para nós. Sei agora que a estrada por onde eles retiraram fica a duas léguas dos postos que mandei ontem estabelecer. Levei a tarde de ontem a organizar a defesa da aldeia de Boialvo e fiz um reconhecimento a Avelãs de Cima. Os habitantes fugiram espavoridos em sentido oposto ao Buçaco. Aprisionámos três. Dois nada quiseram dizer, por mais ameaças que lhes fizeram, um falou, entendia-o um dos meus oficiais que estivera em Lisboa com o general Junot. Mas esse fêz-me declarações falsas, dizendo que não havia senão carreiros de cabras do alto do convento para a estrada real, e do Buçaco só podiam retirar por uma estrada que passava por certo lugar chamado Botão, directamente para Coimbra e muito para a direita da serra. Tive há coisa de duas horas a certeza de que nos enganou. Um piquete dos nossos dragões, que ia à descoberta, foi esbarrar com a retaguarda dos ingleses por uma estrada que fica a duas léguas daqui. O piquete teve de retirar à desfilada.

- Foi erro não trazer o campónio de Mortágoa, para evitar o desastre de vermos os ingleses pelas costas - disse Ney num tom irritante de sarcasmo.

Sainte-Croix afogueou-se.

- Marechal Ney! - repreendeu o Príncipe d'Essling - Estou ouvindo as informações deste general. Sainte-Croix, a que distância calcula que vão daqui as forças inimigas?

- A umas quatro léguas, talvez. Massena reflectiu.

- A infantaria está tão acabrunhada-disse ao fim de alguns minutos - que não pode pôr-se imediatamente em marcha. Podíamos arrojar sobre eles a sua cavalaria, Montbrun.

- Os cavalos não estão menos famintos, nem menos extenuados que os homens - informou o arrojado comandante da divisão de cavalaria.

- Pois então descansar-se-á aqui, para que se restaurem as forças dos homens e dos cavalos, e iremos apanhar o inimigo em Coimbra ou batê-lo defronte de Lisboa.

No dia seguinte, 30, avançaram para a Mealhada, ignorando ainda que os anglo-portugueses já haviam chegado a Coimbra.

Os moradores tinham ido com eles, levando tudo o que à lufa lufa lhes foi possível transportar.

A Mealhada ficara deserta. Pelas ruas corriam regueiros de vinho e azeite. Em cinzas nas eiras o trigo das tulhas, apodrecido nos poços o milho da recente colheita, enterrado no estrume dos currais e dos chiqueiros o gado que não fora possível levar e haviam morto a tiro, as árvores de fruto esgalhadas a machado, tudo aquilo devastado, para que nem os homens nem os cavalos ali se pudessem sustentar.

Os franceses bramiam cóleras formidáveis e, num desespero louco, a soldadesca esburacou as casas, arrasou os altares, escavou as sepulturas, revolveu tudo em busca de tesouros escondidos.

Massena entrou numa das melhores casas da povoação e para ali convocou o conselho dos seus generais, enquanto a soldadesca se entregava enfurecida àquela sua obra de destruição.

Era preciso seguir para Coimbra. Na Mealhada não podiam contar senão com os escassos recursos da coluna de víveres do exército.

Na praça o estado-maior esperava a cavalo. A pequena distância, num lugarzito, a companheira do Marechal com o seu fardamento de dragão esperava também já a cavalo. Olhos pisados, rasos de água, mais pálida, profundamente triste.

Luís de Castro passava para ir reunir-se ao estado-maior, e foi falar-lhe.

Atrás daquele pobre alferes de longos cabelos louros, uma dezena de passos atrás dele estavam quatro ordenanças de dragões.

- Este deserto, sr. Luís de Castro!

- Sacrificam tudo pelo que eles supõem a salvação da Pátria. Não sei de precedentes para esta abnegação e para este ódio!

- Sacrifício imposto pelos ingleses, segundo ouvi.

- Aconselhado talvez por eles e fervorosamente seguido por quem podia iludir o conselho e assim o segue com um desespero que faz dó. Podiam fugir para voltar e não voltam, podiam fazer um simulacro de destruição, para enganar quem os aconselhou, e destruíram tudo como quem já não conta voltar! Era uma povoação risonha, próspera, parece que passou por cima dela um vendaval de morte!

- Ah! conhecia-a já?

- Vim aqui muitas vezes noutros tempos.

- Implacável para nós este espantoso ódio dos seus compatriotas!

- Feito de muito amor pela sua terra, como das luzes serenas de um altar podem fazer-se as labaredas enormes de um incêndio. Dá nisto o sentimento da pátria. Quem não é ou não pode ser soldado pode arruinar-se e desertar os lares neste êxodo de horrores, para dificultar o passo ao invasor, foi isso o que eu não vi na Áustria, e creio que é isto o que pela primeira vez sucede nas guerras naPoleónicas.

- E tudo isto, assim terrível, para que os soldados da França tenham fome!

- Para que os soldados da França retirem esmorecidos. Nas obras de fortificação de uma cidadela ou de um campo de batalha abrem-se fossos e derribam-se árvores para formar abatizes, são as defesas acessórias. Cortam e estorvam o passo aos assaltantes. Aqui as tem, imensamente trágicas, nesta cidadela feita de uma nacionalidade, neste campo de batalha que se chama Portugal. Atravessam no caminho do invasor um deserto feito de planuras que eram fecundas e opõem-lhe povoações que foram ridentes e que parecem mortas.

- Faz dó!

- Que o seu coração piedoso de mulher avalie, minha senhora, quantas lágrimas de angústia e quantas alucinações de desespero não foram precisas para compor este espectáculo de horrores que lhe faz dó. Imagine, minha senhora. Partiram ao Deus dará, mulheres com os filhos nos braços por esses caminhos. Quantos poderão voltar ao lar deserto, se lho não tiverem queimado, quantos que venham chorar um dia sobre a sepultura dos seus mortos, se ainda cá lhes encontrarem as campas?

Chegou um oficial de dragões. Vinha comunicar à francesa que fora deliberado marchar imediatamente para Coimbra.

 

 

Continua no VOLUME 6

 

 

                                                                  Antonio Campos Junior

 

 

                      

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