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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DO POLACO - V.6 / Antonio Campos Junior
A FILHA DO POLACO - V.6 / Antonio Campos Junior

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

             A rainha do Mondego

Naquele mesmo dia 30, em que o exército francês entrava em Mealhada, passavam os aliados para o sul do Mondego e metiam as suas avançadas pelos desfiladeiros de Condeixa a Pombal. Uma divisão ligeira de cavalaria, infantaria e artilharia ficara em posições vantajosas na margem direita do rio, para retardar a passagem dos franceses.

A marcha de Massena para Coimbra foi constantemente inquietada pelos milicianos comandados pelo coronel Nicolau Trant. Surgiam de todos os lados, desfechavam sobre as colunas esbandalhadas pela estrada, principalmente sobre a retaguarda, e escapavam-se ligeiros como gamos pelas veredas que iam dar às montanhas, por onde os dragões não podiam carregá-los.

Mas numa das investidas mais audazes sobre a cauda do exército foram contra eles duas brigadas francesas, uma de cavalaria e outra de infantaria. A desproporção de forças era grande, e aqueles excelentes guerreiros disciplinados tiveram de retirar, depois de um ligeiro combate. Voltariam em ocasião melhor.

No dia 1 de Outubro as avançadas francesas tiveram um vivo recontro com uns esquadrões dos aliados, que eram protegidos por alguma artilharia de pequeno calibre.

Massena correu à frente, na ânsia de uma batalha em que vingasse o desastre do Buçaco. Supunha que o exército aliado lhe faria frente ali, num terreno que lhe era vantajoso para ele.

Sem um serviço regular de exploração, sem nenhuns recursos de informação, porque os oficiais portugueses teimavam em não saber nada do país e os raros paisanos aprisionados não falavam (o campónio de Mortágua fora uma excepção, obtida pelo terror, mais do que pela cobiça do dinheiro) Massena avançava às cegas e cometia imprudências de que o seu adversário seria incapaz.

Afinal a sonhada batalha não passou de um recontro entre as avançadas francesas e um destacamento da retaguarda dos aliados.

Os franceses fizeram retirar os anglo-portugueses, que foram passar o Mondego em São Martinho do Bispo. Ficaram em poder dos invasores alguns prisioneiros ingleses e portugueses, que nenhuns esclarecimentos quiseram dar aos oficiais de Massena.

Durante um alto de descanso, pois que os soldados já mal se podiam arrastar e o próprio gado de artilharia muito dificilmente arrancava as viaturas para acompanhar a infantaria, lembrou-se o Marechal de uma tentativa para obter esclarecimentos.

Ordenou ao general Pamplona que fosse com outros oficiais, seus compatriotas, interrogar os portugueses, meia dúzia deles, aprisionados naquele recontro.

- Quero saber onde estão os ingleses e com que recursos posso contar em Coimbra. Da segurança e lealdade das informações dependerá a sorte da ci dade.

Pamplona empalideceu, mas aceitou o encargo no generoso propósito de evitar à formosa cidade dos estudantes as violências destruidoras que presenciara por aquela Beira abaixo, desde Almeida.

Apartou-se do Marechal e logo, a poucos passos, deparou com Cândido Xavier e Luís de Castro. Referiu-lhes comovidamente a ordem e a ameaça de Massena.

- Oh! meus amigos, agora não há remédio senão dizer-lhe alguma coisa, qualquer coisa que não prejudique o exército aliado, já se vê. Ajudem-me. Bem percebem que lhes proponho isto movido por um sentimento de piedade patriótica. É a mais linda cidade que tem Portugal. Sou açoreano(1), mas quero-lhe como se em Coimbra houvesse nascido. Para ali fui rapazito ainda e ali passei os melhores tempos da juventude, frequentando a Universidade. Nenhuma dor maior para mim do que vê-la saqueada,

 

*1. Era natural da Ilha Terceira e pertencia a uma casa fidalga de que êle era o morgado.

Veio de lá para o continente e estudou as primeiras letras no colégio dos cónegos regrantes de Mafra. Depois foi logo matricular-se na Universidade, onde se tornou distinto pela aplicação ao estudo. Ainda a cursar as aulas, assentou praça de cadete e foi promovido a oficial para cavalaria 10.

Quando em 1778 rebentou a guerra entre a Rússia e a Turquia pediu licença para ir servir no exército russo no intento de se adestrar na arte da guerra e poder um dia ser útil ao seu País. Entrou em quatro campanhas no Mar Negro e no Danúbio comandando uma divisão de lanchas canhoneiras, e, como dissemos em outra ocasião, cobriu-se de glória no sanguinolento assalto de Ismail. (Vide Memória justificativa de Manuel martins Pamplona, etc, 1821).

 

destruída, desfeita em cinzas como essas pobres aldeias que nós temos visto queimar.

- Pois sim, General - disse-lhe Cândido Xavier - Vamos lá saber e apurar o que fôr lícito dizer a Massena. Venha também, Luís de Castro.

- Como simples ouvinte.

- Ajudem-me a salvar Coimbra. O que menos me importa e menos vale são os celeiros e alguns cofres que lá tenham, por muito dinheiro que encerrem. Mas há na cidade riquezas de ciência e opulência de arte, verdadeiramente insubstituíveis, e a essas é que é preciso salvá-las da fúria e da rapacidade da soldadesca... e de certos generais que eu conheço.

Foram ter com os prisioneiros.

Pamplona apresentou ao comandante da escolta um papel escrito pelo general Fririon, autorizando-o a interrogar os prisioneiros portugueses.

Pamplona escolheu de entre eles um alferes de cavalaria, rapaz de vinte anos, de aspecto distinto.

- Esteve ultimamente em Coimbra, sr. alferes? Estas palavras em português deram àquela meia

dúzia de soldados de Portugal um alvoroço de surpresa e de prazer indescritível.

- Saí de lá ontem a reunir ao esquadrão que se bateu em Fornos. Sou natural da cidade - respondeu, atentando muito nele.

- Bem. Preciso fazer-lhe uma comunicação importante. Queira acompanhar-me. Respondo por este prisioneiro, sr. capitão - disse para o comandante da escolta.

Afastou-se com êle para um canto do caminho, ao pé de um pardeeiro abandonado, mas sempre à vista da escolta francesa. Cândido Xavier e Luís de Castro foram também.

Pamplona contou ao alferes a ordem e a ameaça de Massena e disse-lhe o empenho em que estava de salvar a cidade da pilhagem e do incêndio.

- Tenho a honra de falar ao sr. general Manuel Martins Pamplona Côrte-Real? - preguntou o alferes profundamente comovido.

- Conhece-me?!

- Ainda há quatro anos o vi em Coimbra e já o tinha visto antes, era eu criança, em casa de meu tio, o Dr. José Inácio Peniz, lente do colégio de São Pedro.

- Fui seu hóspede por mais de um mês, há uns quatro anos, é verdade - disse o Pamplona num grande tom de saudade - Não me lembrava de si!

- Tive a honra de andar com v. ex.a por todos os lindos passeios que tem Coimbra, na Quinta das Lágrimas, no Penedo da Saudade... V. ex.a a lembrar os seus tempos de estudante.

- Sim, estou agora a recordar-me. Era então o sr. um rapazote, que ia com o meu amigo José Inácio Peniz... Lembro-me. Não teria nesse tempo mais de catorze ou quinze anos, provavelmente.

- Tinha dezasseis, sr. General.

- Seu tio?

- Teve de fugir... Mas creio que não terá passado dos arredores da cidade.

- Diga-nos então, a mim e a estes meus camaradas, só o que bastar para evitarmos que Massena deixe saquear a cidade.

- Repugna-me dar esclarecimentos que possam ser úteis aos invasores.

- Nem eu peço que me diga, seja o que fôr, que de algum modo haja de prejudicar o exército aliado. Estes traidores, sr. alferes, têem servido a causa de Portugal, apesar das circunstâncias angustiosas em que os colocaram. Este sr. - disse indicando Luís de Castro - residiu por várias vezes numa quinta das vizinhanças de Mortágua, andou em caçadas Pelas serras, conhecia bem o caminho de Boialvo e outro do Botão, e nada revelou aos invasores. Eu vivi largos anos em Coimbra. Sou açoreano, a minha família estava longe e as férias ia eu passá-las quási sempre com os meus condiscípulos em Avelãs do Caminho, em Águeda, em Anadia, em Viseu, e mesmo em Mortágua. Conheço bem essas terras, mas deixei que Massena fosse esbarrar contra a serra, sendo-me fácil pô-lo sobre o flanco acessível ou sobre a retaguarda do exército aliado. Apesar de todo o valor dos soldados de Portugal e Inglaterra, que foi notável, glorioso, não venceriam a batalha, se nós quiséssemos, se fôssemos traidores à nossa terra, e perderam-na os franceses porque nós quisemos que eles a perdessem.

- Sr. General, confio em v. ex.a e dividirei em duas partes as minhas declarações: uma para o marechal invasor, a outra para o seu coração de português, meu General.

- Sim, isso. Para o marechal Massena bastará que me diga se o exército aliado ocupa Coimbra para a defender e, no caso contrário, se há lá recursos de víveres para os franceses. Compreende bem que isto, sem mais pormenores, é alguma coisa para dizer a Massena e em nada prejudica as operações dos aliados. Quer lá estejam ou não os ingleses e os nossos soldados, os franceses vão sobre Coimbra e o que nós lhe dissermos agora há-de sabê-lo Massena daqui a duas ou três horas. Se lhe disserem que há víveres em Coimbra, será êle o primeiro interessado em defender a cidade da pilhagem da soldadesca.

- Para os franceses, sr. General, sei apenas isto: o exército anglo-português retirava ontem de Coimbra, quando me fui reunir ao meu esquadrão, que faz parte da divisão ligeira, postada na margem direita do Mondego. E mais nada quanto ao exército do general Wellington.

- Nem nós queremos saber mais. Agora quanto aos recursos da cidade?

- Não faço ideia das provisões que lá podem encontrar os franceses.

- Um cálculo por alto. Para cinquenta mil homens quantos dias de víveres?

- Não sei avaliar. Mas haverá lá para dois dias se tanto.

- Isso nos basta.

- Agora, se querem, para acolher na piedade do seu coração de portugueses, uma informação de mágoas, em breves palavras de desafogo lha darei.

- Queremos, sim.

- Desejamo-la - acudiu Luís de Castro - São também para o nosso coração as dores e os júbilos da pátria.

- Assisti à batalha do Buçaco e no dia seguinte, quando se viu que os franceses tinham ficado esmorecidos, fui encarregado de ir a Coimbra com despachos do general em chefe, que de lá deveriam ser transmitidos para o Porto e Lisboa, comunicando a vitória. Cheguei a Coimbra quási ao anoitecer. Não imaginam como a cidade ficou! Chorava-se de alegria, abraçavam-se nas ruas, como íntimos e parentes pessoas que pareciam irreconciliáveis por antigos rancores, homens e mulheres de condições diversissimas! Os sinos repicavam doidamente e até os facínoras da cadeia e os enfermos dos hospitais apareciam às janelas a aclamar a pátria! Logo de afogadilho se organizaram bailes, estavam abertas as portas das igrejas, os altares resplandecentes de lumes, os cânticos das freiras revoavam pela rua, os rapazes em bandos organizavam descantes no largo de Sansão e na ponte. De súbito a cidade apareceu toda iluminada, como eu nunca a tinha visto! Que esplendor de noite! Os cónegos de Santa Cruz mandaram pôr os seus tocheiros ricos defronte do túmulo de Afonso Henriques e a igreja inundada de luz estava patente aos fiéis. Foi uma romaria patriótica para lá! Eu fui também. Um estudante recitou a chorar um belo soneto de um oficial, Luís de Oliveira Pinto da França.

- Sei-o eu de cor - disse o Castro.

- Mas a madrugada de ontem! Que horror de surpresa! Ainda não tinham esmorecido os descantes, ainda se não tinham apagado as luminárias, ainda não estavam acabados os bailes, quando entrou na cidade à desfilada um piquete de cavalaria portuguesa das avançadas do exército em retirada. Os franceses tinham torneado a posição do Buçaco, os franceses avançavam sobre Coimbra! Foi um pavor louco, a contrastar com os júbilos de véspera. Uma dor de alma que se não descreve! Era preciso despovoar a cidade, levar tudo, retirar também, ninguém sabia para onde. Revolveu-se tudo. Os carros não chegavam para as bagagens, nem para os doentes e entrevados, a ponte era estreita para tanta gente passar, as barcas do Mondego não davam para os fugitivos que não podiam ir pelo seu pé! Alguns meteram-se no rio, por onde é vadeável, mas em tal confusão que as mães deixavam afogar os seus pequenitos e os velhos trôpegos foram levados pela corrente! Eu estava a cavalo, esperando ordens. Vi, presenceei tudo aquilo nas horas de maior amargura que ainda a minha alma teria sonhado! Recebi ordem para ir levar um despacho de Wellington às avançadas, já do outro lado do rio. De lá devia vadear o Mondego em São Martinho do Bispo para ir ao encontro da divisão ligeira. Saía da cidade e vi ainda aquele tropel fantástico de mulheres desgrenhadas, de frades, de monjas semi-loucas de terror, de velhos que se arrastavam, de crianças perdidas das mães, por entre carros ajoujados de mil coisas a monte!

- Doloroso tudo isso! - comentou Luís de Castro.

- Já fora da cidade, o meu cavalo esbarrava com a turba multa, contida na estrada por uma carruagem que se tinha partido e atravancava o caminho. A turba vocifera contra aquele obstáculo. Os carros de bois não podiam passar. Estava ferida uma senhora idosa, ao pé dela, em súplicas lancinantes, uma menina de espantosa formosura, a defendê-las um velho, que pedia urbanidade numa língua que a turba não compreendia. Alguém lembrou que seria um espião dos franceses e logo os gritos de morte revoaram de todos os lados. Tive de parar. A pobre senhora ferida ergueu-se e, de mãos postas, gritava que era mãe de um oficial do exército e dizia o nome dele.

- Esse nome? - preguntou Luís de Castro numa ansiedade enorme.

- Henrique de Castro e Albuquerque, um major que eu conheço perfeitamente, um dos nossos valentes do Buçaco.

- É meu irmão! Era minha mãe! - disse Luís de Castro, muito pálido, numa tremura de comoção.

- Seu irmão! Sua mãe! - repetiu o alferes, fitando-o muito.

- Sim. Essa pobre senhora é minha mãe. Por quem é, diga-me o que foi feito dela.

- Assim que lhe ouvi o nome do filho, defendi-a, mandei abrir passagem à turba, dizendo-lhe que ilustre e destemido patriota era o filho daquela senhora.

- E o ferimento de minha mãe?

- Sem nenhuma gravidade. Levou-a no seu carro um lente das minhas relações.

- Sabeis quem era o velho que as acompanhava?

- Um polaco, êle próprio o dizia em francês. Mas a dama juvenil, de rara formosura, que estava com êle, a dama que êle tratava por sobrinha, essa falava português!

Mais comovido ainda, Luís de Castro estendeu-lhe a mão.

- Sr. alferes, por minha mãe e por essa família de estrangeiros, lhe agradeço afectuosamente o cavalheiroso auxílio que lhes deu. Salvou-as.

- Fiz o meu dever.

- Com uma fidalga generosidade que eu não esquecerei nunca. Mas meu irmão não ia também no exército?

- Provavelmente ia, mas talvez na guarda avançada, e essa atravessou logo para a margem esquerda do rio, sem nenhuma demora na cidade. Sua mãe não tinha notícias dele, porque logo me preguntou se eu o tinha visto na batalha. Percebi-lhe os receios e afiancei-lhe que nenhum perigo correra o sr. Henrique de Castro, apesar de ser dos que mais se arriscaram, como ouvi a todos os oficiais do seu regimento.

Chegou a galope o ajudante-de-campo, Próspero Massena.

- Sr. General - disse para o Pamplona - meu Pai espera com impaciência o resultado do encargo que lhe confiou.

- Fiz demoradas indagações e do que me foi dado apurar vou dar conta ao sr. Marechal. Capitão - disse para Luís de Castro - queira entregar este prisioneiro àquela escolta.

Afastou-se com Próspero Massena. Cândido Xavier esperou que o Castro fosse entregar o alferes. Castro ia dizendo baixo ao prisioneiro:

- Considere-me entre os seus amigos mais devotados e mais gratos. Hei-de falar-lhe em Coimbra. É possível que possa voltar ao seu regimento. O mais absoluto segredo e conte comigo.

- Desde já mil agradecimentos.

Tinham passado alguns minutos, estava ainda Pamplona a dar conta da sua incumbência a Massena, afirmando que lhe não fora possível saber a estrada que os aliados seguiam, quando vieram apresentar ao Príncipe um oficial e um sargento dos que tinham

sido aprisionados no Buçaco. Eram ambos da brigada do General Foy e tinham conseguido fugir, logo à saída de Coimbra, atravessando o rio de noite.(1)

- Para onde retiram os ingleses? - preguntou o Príncipe d'Essling ao oficial.

- Ouvi que para Lisboa. Nós fugimos duma povoação a que os portugueses chamam Condeixo.

O francês estropeara o nome de Condeixa. Efectivamente, o exército anglo-português metera-se a caminho pelos desfiladeiros entre Condeixa e Pombal.

- Admira-me que pudesse fugir!

- Até Coimbra a marcha foi regular, mas como na frente das tropas vai quási toda a população da cidade e das aldeias, velhos, mulheres, crianças levando consigo tudo o que apressadamente puderam juntar, o exército ressentiu-se logo daquela balbúrdia aflitiva e lá ia numa confusão espantosa, que nos facilitou a fuga. Os gritos das mulheres e das crianças compungiam. Até Condeixo alguns velhos paralíticos e mulheres doentes, tirados do leito para fugir, agonizaram e morreram nos carros de bois, em que os levavam. A estrada ia atravancada de veículos de todos os feitios, de animais de carga de todas as espécies.

Massena olhou para Pamplona.

- Encontraremos então Coimbra quási deserta! Tanto pior para ela. Alferes, proíbo-lhe que repita essas declarações. Pode retirar-se.

O oficial fêz a continência e afastou-se.

- General Pamplona, hei-de bater os ingleses, antes que eles se vão encurralar em Lisboa e tenham tempo de fugir na esquadra.

 

*1. Nas suas Memórias refere Marbot que durante aquela marcha lograram fugir ao exército aliado alguns franceses que tinham Sido aprisionados na batalha do Buçaco.

 

Mas se em Coimbra não encontrarmos recursos para os famintos do exército, não sei o que será da cidade. Vamos numa campanha de devastação, ódio por ódio, o exemplo vem dos ingleses e dos vossos.

Pamplona teve tentações de lhe lembrar as pobres aldeias incendiadas, ainda na fronteira, mas semelhante réplica irritaria o Marechal e Coimbra estaria irremediavelmente perdida.

- Príncipe, a vossa promessa importa essencialmente à glória que haveis conquistado em tantas campanhas. Coimbra é a cidade das ciências no meu país, tem uma Universidade famosa, antiquíssima, conhecida em toda a Europa. Seria um horror, a cobrir de sombras a vossa história e a do vosso país abandonar a cidade ao saque, ao incêndio, ao vandalismo! Havia de saber-se logo na Europa e ninguém vos perdoaria, alteza, o crime que não era vosso.

- Pois sim, veremos - atalhou impaciente - Ide ter com os vossos portugueses. Temos de marchar, havemos de entrar hoje mesmo em Coimbra.

Pamplona retirou-se confrangido e foi para junto da esposa. Uma hora depois o exército estava em marcha.

Vendo que Massena se isolara do seu estado-maior e ia conversando com a amante, Pamplona deixou D. Isabel e foi outra vez ter com o Marechal no fervoroso empenho de evitar a destruição de Coimbra.

- Que temos? - preguntou-lhe Massena secamente.

- Venho outra vez rogar a vossa alteza uma resolução, ao mesmo tempo generosa e justa, para que as tropas não entrem na cidade, sem ser debaixo das vistas do seu chefe.

Massena respondeu-lhe com umas promessas dilatórias, vagas, e Pamplona instou calorosamente por imediatas providências, que evitassem deploráveis extorsões e vandalismos.(1)

- Tem ali Portugal a sua única Universidade - alegava comovidamente.

- Bem sei. É a segunda vez que mo lembrais!

- É que o seu museu magnífico, a sua preciosa livraria, o seu observatório, riquezas cuja perda seria irremediável, nenhuma utilidade poderiam ter para o vosso exército, senhor Marechal. E se me não atenderdes, todas essas coisas insubstituíveis serão destruídas inconscientemente pelos soldados dessa França que tamanho lustre tem dado às letras e às ciências!

- Atendei-lhe o pedido, Marechal - solicitou também a companheira de Massena - Havia de atribuir-vos lá fora toda a responsabilidade pelos desacatos que os soldados fizessem. Teria eu grande desgosto se tal sucedesse!

- Pois sim. Diz bem - concordou enfim o Marechal - E tanto assim, General, que vou dar ordem para que as avançadas não entrem na cidade sem eu mandar, mas haveis de encarregar-vos do governo civil dela e dar-vos-hei uma brigada para manterdes a ordem e evitar desatinos.

- Alteza, é uma grande e generosa mercê que eu vos fico devendo! Madame - disse para a francesa - foi boa fortuna minha que o vosso coração bondoso apadrinhasse as minhas palavras.

Massena ordenou a Pamplona que o seguisse e adiantou-se para o seu estado-maior.

Chamou Fririon e Pelet. Fêz um gesto ao general português para que o esperasse e esporeou o cavalo ao encontro do general Fririon.

 

*1. A págs. 36 e 37 da sua Memória justificativa, já citada, o Próprio Pamplona regista as palavras que disse a Massena e a resposta que êle lhe deu.

 

- Parece-lhe que podemos avançar hoje mesmo para além de Coimbra?

- Marechal, seria uma violência de péssimos efeitos. O gado de artilharia vem extenuado, os soldados estão famintos, a cavalaria não poderá empreender uma longa e vigorosa marcha, sem ter algum repouso e uma larga distribuição de rações, pois que de há muito deixou de as receber regularmente. Para avançar desde já, só o corpo de exército do general Junot, que é o mais folgado.

- Nessa não caio eu - disse-lhe baixo, muito inclinado para êle - Soldados noviços, comandados por um doido, Deus me livre de os largar das minhas mãos. Isto agora não é simplesmente uma campanha de marchas, como a desse ilustre papa-léguas de Junot, em 1807. Não entraremos em Coimbra senão amanhã e eu à frente do exército. Repousaremos então e preparar-se-á tudo para o desfecho da campanha. Lisboa não foge e o embarque dos ingleses não pode ser tão rápido que eu lho não vá embaraçar, a despeito das vinte naus e quatrocentos navios de transporte que eles têem no Tejo, segundo as informações que recebemos de Ciudad Rodrigo. Venha cá, general Pamplona. Há-de partir para as avançadas. Vou mandar ordem para não entrarem em Coimbra sem eu estar presente. Ordem formal, cuja execução quero escrupulosamente cumprida.

Falou com Pelet e disse-lhe por fim:

- Queira dizer a meu filho que venha falar-me.

O primeiro ajudante-de-campo meteu a trote, avisou Próspero Massena e desfechou a galope para a frente.

O filho do Marechal voltou logo para trás e apresentou-se.

- Vais dizer de meu mando ao Duque de Abrantes que dê ao general Pamplona uma das brigadas do seu corpo de exército, para avançar já para Coimbra.

Essa brigada irá ocupar a cidade e ali fará o serviço de segurança e polícia sob o comando exclusivo do general Pamplona, a quem nomeio governador da cidade. Podes ratificar a ordem que Pelet foi comunicar-lhe. O exército só entra amanhã em Coimbra e irei eu à frente dele. Compreendeste?

- Perfeitamente.

- General Pamplona, ninguém entrará na cidade sem minha ordem expressa. Pode partir.

- Peço ainda a mercê de levar comigo alguns oficiais, meus compatriotas, para me auxiliarem.

- Tem autorização para os levar consigo.

- Senhor Marechal, é um favor insigne. Pamplona voltou para trás e esporeou o cavalo.

O capitão Próspero Massena acompanhava-o.

A um quarto de légua encontraram os oficiais portugueses, que formavam um grupo numeroso.

Além dos que tinham vindo de França, e entre estes os dois ajudantes-de-campo de Pamplona, vinham alguns dos que haviam ficado prisioneiros por efeito da capitulação de Almeida. Pamplona convidou alguns a seguirem-no imediatamente para Coimbra.

- Ajudem-me a defender a cidade contra os desvarios prováveis daqueles que fomos forçados a acompanhar. Prestaremos a Portugal um serviço, talvez maior do que se houvéssemos vencido um combate em seu proveito. Será esta operação a única talvez em que nos seja dado entrar nesta campanha, seguindo o impulso dos nossos corações de portugueses. Ajudem-me.

Ofereceram-se todos, menos os ajudantes que tinham de acompanhar o Marquêz de Alorna, então doente. O Marquez de Loulé estava com o Estado-Maior de Montbrun.

Meteram a trote para a frente, moderaram o andamento quando passaram ao lado do Marechal, fizeram-lhe a continência, e deitaram a galope, seguindo por uma das margens da estrada em direcção ao corpo avançado. Junot recebeu-os de má catadura, mas não teve remédio senão cumprir as ordens do Marechal e entregou a Pamplona a brigada do general Taupin.(1) Pamplona e os oficiais portugueses avançaram logo com a brigada.

Massena cumpria a sua promessa, não tanto por escrúpulos de consciência, como por entender que assim defendia os próprios interesses do exército.

Se abandonasse Coimbra à pilhagem devastadora de um exército faminto todos os recursos que seria possível encontrar na cidade e poderiam dar para o fornecimento regular de alguns dias, ficariam desbaratados e improfícuos ao cabo de algumas horas de saque, em desigualdades revoltantes de partilha e com exclusão iníqua dos doentes.

E depois, o general português, no seu empenho patriótico de salvar a cidade e no dever moral de pagar em dedicação a generosa aquiescência de Massena ao seu pedido, tornar-se-ia, sem dar por isso, um zeloso comissário de víveres com quem o Marechal se entenderia, impondo-lhe responsabilidades que Pamplona já não podia alienar da sua comissão de governador da cidade.

O saque seria então feito regularmente, em proveito geral do exército, sob a forma de requisições e nem o general português sonhava sequer quantas amarguras poderia custar-lhe aquele impulso sentimental, acalentado pelas doces reminiscências da sua mocidade de académico.

Não pensava em semelhante coisa. Entregou-se apaixonadamente aos encargos espinhosos daquela voluntária tarefa,

 

*1. É a brigada que o próprio Pamplona designa a pág. 37 de sua Memória Justificativa.

 

e pôs a cidade em completa defesa contra qualquer invasão de saqueadores.

Colocou grandes guardas no Museu, na Livraria, no Observatório, nas Gerais, e fortes piquetes às entradas da cidade. O resto da brigada estava de armas ensarilhadas no largo da Feira e em Sansão, para acudir ao primeiro rebate.

Distribuiu os seus oficiais portugueses em rondas e guardas aos monumentos. Dois no Observatório, dois no Museu, três na vasta e magnificente livraria do tempo de D. João V.

Na Sé Velha três, em Santa Cruz dois, e estes muito nossos conhecidos. O major Cândido Xavier e Luís de Castro, sempre seguido pelo seu devotado João Luís.

- Envelheço dez anos com isto! -dizia Pamplona a Cândido Xavier.

- Massena parou nos arrabaldes?

- Parou, cumpre a sua promessa. Mas estou a ter receio da soldadesca esfomeada e dos próprios oficiais antigos, habituados ao saque na Itália e na Espanha. Há-os aí que vieram cá em 1807 e sabe-se bem o que eles levaram.

- Pratas das igrejas, obras de arte - disse Cândido Xavier - Li-o nos jornais ingleses.

- E o precioso missal de Estevão Gonçalves foi levado pelo próprio Junot.

- Desse é que eu mais receio. Tem ódio a Coimbra, que foi uma das primeiras cidades revoltadas em 1808. Os estudantes puseram-se à frente do povo, atraíram aqui a Guarda Real de Novion, que desertou quási em massa, tiveram uma parte importante na 'evolução e bateram-se por ela destemidamente. E agora até estou a sentir maior medo por causa do próprio Massena!

- Depois da promessa que lhe fêz, meu General, seria uma verdadeira monstruosidade se deixasse desvastar Coimbra!

- Amanhã, quando entrar e souber que na cidade não há recursos que cheguem para as rações do exército durante um dia, há-de enfurecer-se e a soldadesca fará o resto! Parecer-lhe-á que o saque se justifica e êle próprio será capaz de se aproveitar dele. Há-de saber o que êle fêz na Itália.

- Li e ouvi - acudiu Luís de Castro - Massena é a quinta essência da avareza e da sovinice. Em volta da sua epopeia de soldado há verbas deprimidoras da sua audácia de concussionário. São os próprios franceses que o dizem(1). Com asas para ascenderem até onde não pode alcançá-las a vista e olhos audazes que fitam o sol em cheio, as águias nem por isso deixam de ser aves de rapina.

- Estou a ter medo da entrada dele amanhã! - disse Pamplona tristemente - Por hoje talvez isto se possa manter assim. As guardas e os piquetes têem ordem expressa de não deixar entrar ninguém seja quem fôr, de qualquer patente ou de qualquer nome, sem autorização escrita de Massena. Já foram repelidos uns magotes de soldados do 8.o corpo, que pretendiam entrar. Andam como lobos a farejar a presa! É preciso redobrar de vigilância durante a noite.

Começava a escurecer. Ia para as sete horas. Pamplona voltava de uma das suas rondas, parou de novo diante de Santa Cruz.

- Nada de novo, não é assim? - preguntou a Cândido Xavier.

Nada.

- Lá por cima também tudo em paz e sem novidade. Tenho encontrado no general Taupin um excelente auxiliar. A cidade faz dó. Tão cheia de vida,

 

*1. Di-lo assim Marbot nas suas Memórias: e por extorsões e peculato foi Massena violentamente acusado, até pelos seus próprios soldados, em Itália.

 

de bulício, de mocidade como eu a conheci, e parece uma cidade morta!

Chegou a galope um ajudante de Taupin.

- General! Está defronte da ponte de Água de Maias o sr. general Duque de Abrantes à frente do seu estado-maior. Quer entrar.

- Não pode, sem ordem escrita do Príncipe de d'Essling.

- Isso lhe disseram. Enfureceu-se. Cobriu de injúrias o comandante do piquete, atirou o cavalo contra a sentinela e espadeirou-a. Que a brigada era do seu corpo de exército e que a esse só êle dava ordens. Os soldados hesitavam, mas é o seu general em chefe e provavelmente passa.

Sentiu-se um tropel de cavalaria da banda do rio.

- Há-de ser o Duque de Abrantes com o seu estado-maior - disse o ajudante de Taupin.

- O que eu receava! - declaroupPamplona, voltando-se para Cândido Xavier - É certa a pilhagem! Velem aqui por essa relíquia - disse, apontando Santa Cruz - eu vou defender a Universidade.

E deitou a galope, seguido dos seus ajudantes Francisco Cardoso e José Soares.

- Afastemo-nos ali para aquele recanto da igreja e avisemos alguém que ficasse guardando o convento dos crúzios. Repugnar-me-ia fazer a continência a Andoche Junot.

- Diz bem. Afastaram-se.

Junot passava com o seu estado-maior e um pelotão de ordenanças meteu pela rua da Sofia. Atrás dele vinham uns poucos de batalhões.

- São estes generais indisciplinados, corsários da terra firme, são eles que estragam os soldados admiráveis que tem Napoleão! - disse Luís de Castro - Ajudaram a erguer o império e hão-de eles próprios enterrá-lo.

- Junot exautora Massena.

- Temos a pilhagem e a devastação. Deve ter ficado alguém no convento. Chamemos para estarem prevenidos. E que nos abram a igreja, defendê-la-emos enquanto for possível.

- Pois sim. Chamemos.

Puxaram a sineta do portão. Apareceu-lhes um velho leigo a quem avisaram e pediram que os introduzisse na igreja, para a defenderem de algum vandalismo da soldadesca.

Muito enfiado, muito trémulo, o leigo meteu-os no convento e levou-os para a igreja, passando por aquele admirável claustro manuelino, denominado do silêncio.

- Veja se pode esconder algumas coisas de maior valor - recomendou-lhe Luís de Castro.

- Dinheiros não há cá - respondeu-lhe o velho com hesitações de desconfiado, sem perceber com quem falava.

- Mas os paramentos, os vasos sagrados, as alfaias de oiro e de prata. Talvez ainda tenha tempo de as pôr em lugar seguro.

- O que era melhor não está cá. O resto fica para engodo dos ladrões. Matavam-se esses herejes se cá não encontrassem nada!

- Bem. Isso é consigo - volveu-lhe Luís de Castro - Nós defenderemos da brutalidade dos pilhantes as pedras e os túmulos, de valor imensamente maior que as jóias e todo o ouro dos crúzios.

O leigo não compreendeu bem e olhou para o oficial português, como se o supuzesse um doido ou um farcista. E apesar das explicações que o major Cândido Xavier lhe deu, o homem não ficou percebendo bem porque estavam ali aqueles oficiais portugueses, que não tinham ido com os outros de Wellington e apareciam agora com os franceses.

- Isto é para a nossa alma de portugueses tão preciosamente santo como Santa Maria da Batalha e Santa Maria dos Jerónimos - disse Luís de Castro.

- Aquele púlpito é um primor! - indicou Cândido Xavier.

- Pedimos-lhe o favor de nos acender aqueles dois tocheiros - foi dizer ao leigo, indicando-lhe os que estavam defronte do túmulo de D. Afonso Henriques.

- Sim, senhor oficial, acendem-se - aquiesceu o leigo - cada vez mais convencido de que tinha diante de si uns malucos.

Desceu umas das três lâmpadas que iluminavam frouxamente a igreja, chegou-lhe um pavio à chamazita e com êle foi acender as duas tochas de extraordinária grossura que estavam diante do túmulo do primeiro rei, fundador da pátria portuguesa.

- Precisam de mais alguma coisa?

- De mais nada.

- Deus seja então por esta casa - disse, e saiu a rezar, cada vez mais enfiado e mais trémulo.

E logo dali se foi encerrar em certo esconderijo do convento, muito seu conhecido.

- Temos de velar este morto gloriosíssimo de seiscentos e vinte e cinco anos - disse o Castro.

Envolveu num olhar a figura do batalhador com a sua armadura de pedra, deitado sobre o sepulcro, guarda das suas próprias cinzas, aos pés um leão, símbolo escultural da bravura desse que fora o emancipador de Portugal, o paladino de Cerneja e de Arcos de Valdevez, o conquistador de Lisboa, o campeador de Ourique, o terrível Ibn-Errik dos cronistas árabes.

Depois olhou comovidamente para os primores manuelinos do arco, recamado de flores nos frizos, os colunelos como rendas de pedra naquela soberba jazida real.(1)

 

*1. Foi el-rei D. Manuel quem mandou construir a jazida monumental de D. Afonso Henriques, para substituir o primitivo túmulo, que julgou mesquinho e indigno do famoso rei batalhador.

 

- Seria horroroso que o vandalismo da soldadesca mutilasse estes lavores admiráveis e quebrasse esta jazida do campeador que fêz Portugal, a poder de batalhas!

Cá fora reinaria o pavor se na cidade tivesse ficado alguém que se apavorasse.

Alguns velhos paralíticos, alguns enfermos, algumas pobres mulheres, as raras pessoas que não tinham querido ou não poderam fugir, estavam encerradas nos seus esconderijos ou nas suas alcovas, aonde apenas chegavam sumidamente os gritos da soldadesca. Não podiam avaliar o que se passava, a onda de ódios e cobiças que marulhava em volta dos seus asilos efémeros.

Lá havia de chegar também a impressão pavorosa do perigo, mas cá fora nas ruas é que se pressentia e avaliava bem. Cá fora é que os clamores dos soldados estrugiam a lembrar gritos de aves de rapina e uivos de lobos famintos.

Junot mandara ensarilhar armas aos batalhões que o tinham seguido e autorizou-os a dispersar.

Parece que tinha vontade de estimular o saque, pondo uma sombra enorme na história do velho Marechal.

Espalhada pelas ruas, a soldadesca deu o alarme da pilhagem e transformaram-se os batalhões em quadrilhas de gatunos. Foi uma noite de opróbrio! Até uma parte da brigada Taupin se bandeou com os saqueadores! Era contagiosa aquela febre de rapina! Espedaçam a machado as portas das igrejas e das casas de melhor aspecto, esbarrondam as paredes, esburacam os soalhos, escavacam os altares, arrombam as sacristias, despem as imagens dos santos na fúria doida do roubo! Devora-os a ambição de descobrir tesouros ocultos. Entontece-os a visão do ouro, e como não os encontram e se lhes afiguram mesquinha presa os sacrários, as patenas douradas, os resplendores dos santos, os turíbulos, as lâmpadas, os cálices de prata, os crucifixos de marfim, destróem por malvadez e assassinam por vingança algum raro inválido que surpreendem no recanto da alcova ou alguma pobre mulher que se lhes depara tolhida de pavor.

Para as mulheres então vingança de crueldade ainda maior! Afogam-nas depois de infamadas, rasgam-lhes o peito à baionetada nos derradeiros delírios da sensualidade!

O Museu foi atacado umas poucas de vezes. Julgavam encontrar lá adornos antigos que tivessem pedraria, coisas raras feitas de ouro.(1)

Mas a esse o defendeu Pamplona com admirável energia, devotadamente, auxiliado pelo tenente-coronel Nobre e pelos seus dois ajudantes-de-campo.

Depois do saque das igrejas e dos conventos, o saque das mercearias, dos celeiros, das adegas.

Alguns, menos felizes, voltaram aos templos. Ainda faltava quebrar os túmulos e revolver os covais.

Podiam encontrar mortos que tivessem levado para a cova adornos de jóias. Mulheres com brincos e anéis.

E lá foram para aquela tarefa sacrílega de gatunos exumadores!

Como tinham passado atrás de Junot para o centro da cidade, os saqueadores entretiveram-se, durante a maior parte da noite, na pilhagem dos bairros altos, da Sé Velha, da igreja de Almedina e dos conventos.

 

*1. «O Museu, principalmente, foi muitas vezes atacado, mas sempre o pudemos precaver da cobiça dos soldados, que imaginavam haver nele muito ouro e pedras preciosas». (Memória Justificativa, pág. 38).

 

Sobre a madrugada estanciavam pelas adegas e armazéns de vinhos. Então a embriaguez reacendeu-lhes a febre do roubo e outros batalhões do mesmo corpo de exército vieram reforçar, com maior ânsia e avidez de saque os que tinham passado a noite em desvairados latrocínios.

Ia tocar a vez do assalto ao grande e opulento mosteiro de Santa Cruz.

Enquanto uma turba invadia o vasto edifício dos crúzios pelo portão grande e assaltava o muro da quinta numa vozearia selvagem, outros tentavam arrombar com alavancas a porta fortíssima da igreja.

- Chegou a nossa vez! - disse Luís de Castro.

- E agora o que lhe parece que devemos fazer?

- Ir abrir-lhes a porta e opormo-nos à destruição da igreja e à violação dos túmulos.

- Tem-me a seu lado e podemos contar com a morte.

- Será então o nosso primeiro e único feito nesta campanha de amarguras. Vou eu abrir. João Luís, és tu a sentinela desse túmulo. Aí ninguém toca. Morre-se aí como num posto de combate.

- Enquanto eu me puder ter de pé e a baioneta não sair da boca da arma ninguém aqui mexe, meu Capitão.

- Eu vou consigo, Luís de Castro - disse Cândido Xavier.

- Parecia-me preferível que ficasse aqui, para se impor pela sua patente, se ao primeiro ímpeto me desobedecerem. Major, o perigo para si não será menor, nem o posto de honra menos difícil. Daí - disse, apontando a porta da sacristia - podem vir outros, esses cuja algazarra se está ouvindo aqui.

Eram mais violentos os empurrões à porta da igreja. Castro correu para lá.

- Aqui temos já um machado - disseram alto do lado de fora.

Muito cingido à porta, Luís de Castro gritou-lhes em francês:

- Estão aqui oficiais de guarda a esta Igreja. Percebeu um rumor surdo de vozes. Eram talvez

de surpresa por aquele aviso.

Castro abriu com esforço a pesada porta e recuou logo uns passos, desembainhando a espada e tirando da algibeira com a mão esquerda uma pistola curta que engatilhou. Parou num extremeção de surpresa um velho sargento que vinha na frente, empunhando um archote aceso.

- Estão aqui dois oficiais da Legião Portuguesa que pertencem ao estado-maior do marechal Massena. Guardam esta igreja. Eu sou um deles. Não defendemos tesouros, defendemos as pedras e as sepulturas deste templo, e com a autoridade das nossas patentes as havemos de guardar.

- Não valem para os exércitos do Imperador - gritou detrás do sargento um impaciente.

- Se não valem para os ladrões que desonram as águias de Napoleão, valerá então contra eles o esforço de um homem. Oponho-me eu a qualquer tentativa de destruição. Ide roubar, se não há quem vos contenha, aqui nem tocar numa pedra, ou mato enquanto me não matarem.

- Eh! - bradou um dos mais próximos do sargento - Não se dirá que tiveram receio de um homem os soldados do 8.o corpo.

- De galuchos que não assaltaram a serra do Buçaco e guardaram o ânimo para assaltar igrejas! - rouquejou Luís de Castro.

- Eu já estive cá há três anos com o general Junot - replicou um cabo de cabelos grisalhos -, Nós não queremos saber das pedras: o que nós queremos é ver os túmulos. Aqui há túmulos de reis.

- O do primeiro rei que teve Portugal. Era um batalhador, não levou jóias para a sepultura.

- Mas queremos ver, queremos abrir esse túmulo.

- Cabo, não quero eu! Atreve-te! Está ali.

- É um fanfarrão como os de Espanha! - gritou Um dos da turba.

- É pena que entre tantos assaltantes não haja alguém que me conheça de Baumersdorff e Wagram.

- Conheço-o eu, sr. Capitão - disse o sargento que parecia o mais hesitante e o mais envergonhado por aquele feito de pilhantes - Era cabo da divisão Grandjean, a que pertencia a sua meia brigada portuguesa.

- Então pode dizer a esses soldados noviços, já em audácias de velhos gatunos, pode dizer-lhes que os fanfarrões da 13.a meia brigada nem tinham medo da morte, nem infamavam o Grande Exército roubando, como eles querem infamar a França, antes de terem provado que sabem combater. Vejo-lhe ao peito a cruz da Legião de Honra, sargento!

- Deu-ma o Imperador depois de Wagram.

- E não há vergonha que lhe queime o rosto agora à frente desse bando, que não sabe ainda o que é vencer uma batalha! Se aqui estivesse, o Imperador arrancar-lhe-ia do peito essa envilecida insígnia, que êle não criou para os ladrões, violadores de túmulos.

- Eu retiro-me,sr. Capitão - volveu-lhe acabrunhado.

- Nós, não! Nós, não! - gritaram muitos, empurrando o sargento para diante.

- Desfecho sobre o primeiro que avançar mais um passo - ameaçou Luís de Castro.

- Vamos buscar as espingardas aos sarilhos - clamou um.

- Vamos - repetiram todos.

Ouviu-se uma gritaria furiosa do lado da sacristia e um ruído seco de madeira a estalar.

Cândido Xavier deu aviso a Luís de Castro:

,- Agora a defesa tem de ser aqui.

Aos berros, em brutais imprecações, golfou da

porta da sacristia uma onda de saqueadores, sobraçando frontais agaloados, casulas e capas de asperges bordadas a oiro, arrastando tocheiros grandes de prata, aconchegando a si, sofregamente, cálices e turíbulos.

E logo sobre eles outros, a disputarem-lhes a presa, enfurecidamente, em gritos convulsos de cólera.

Travou-se então a meio da igreja uma luta selvagem, hedionda, para a conquista daqueles despojos!

Estrugiam as pragas e as obscenidades das casernas. Uns seguravam debaixo dos pés os objectos de prata, para ficarem com os braços desembaraçados para a contenda a murro, outros arrancavam os galões e as franjas de oiro dos pedaços de damasco dos paramentos, filados pelas mãos enclavinhadas dos primeiros saqueadores.

Com as mãos sujas de sangue, um deles, o assassino do velho leigo, que havia surpreendido no seu esconderijo, correu para o altar-mór, arrombou às punhadas a porta do sacrário e entornou pelo chão as partículas, guardando o vaso de prata dourada que as encerrava.

E veio a correr como estonteado para os tocheiros em frente do túmulo.

Num horror por tudo aquilo, o João Luís supôs que o ladrão vinha para o investir e regougou, cravando-lhe a baioneta no ventre:

- Cão, cão danado! Morres!

O francês recuou uns passos a cambalear e caiu desamparadamente contra os degraus do altar. Estrebuchava.

Cândido Xavier e Luís de Castro, juntos ao pé da pia da capela-mor, assistiam àquela sórdida luta a meio da nave.

- Sinto tentações de cair sobre eles à cutilada.

-Seria uma imprudência funesta! - observou-lhe Cândido Xavier. Ninguém podia prever o desfecho daquele ignominioso lance, a lembrar episódios das guerras bárbaras da Idade Média.

Felizmente, no largo de Sansão passava um ajudante do general Taupin, à frente de um piquete armado com que tardiamente fora resolvido pôr cobro à obra devastadora dos saqueadores. Remédio extemporâneo e inútil, mas, ainda assim, de proveito eficaz naquele caso de Santa Cruz.

A vozearia da soldadesca chamou para aquele lado as atenções do ajudante-de-campo.

Alguns dos pilhantes já vinham fugindo da igreja com a presa disputada à rapacidade dos seus camaradas. O ajudante apeou-se e entrou na igreja com vinte soldados. Gritou aos roubadores, ameaçou-os e mandou evacuar a igreja à baioneta calada.

Cândido Xavier foi ter com êle e resumiu-lhe o espectáculo infamador que presenceara.

- Capitão - disse-lhe - uma vergonha e um horror!

- Ninguém o sente mais do que eu! - volveu-lhe o oficial francês.

Luís de Castro foi para êle e estendeu-lhe a mão.

- Evitou um desastre e uma vergonha maior para a França! Queira mandar levantar um soldado que está ali gravemente ferido.

- Ferido pelos outros?

- Ferido por mim - respondeu singelamente, cobrindo assim com esta generosa falsidade as responsabilidades do humilde soldado que, por sua ordem, defendia o túmulo real.

O ajudante-de-campo saiu e mandou buscar o ferido.

- Fêz mal em tomar para si semelhante responsabilidade - disse Cândido Xavier ao moço capitão.

- Posso com ela e sei como hei-de justificar-me. Aquele nosso pobre soldado é que eu não queria comprometido.

- Podia ter deixado de declarar quem ferira o francês.

- Podia... Deixá-lo. Terei muita honra em contar eu próprio a Massena isto que fizemos aqui. E agora de guarda permanente desta igreja, não acha, Major?

- Decerto. O Pamplona foi defender a Universidade, nós defenderemos Santa Cruz.

- Até ao último esforço contra essa ignomínia!

Dia claro, o sol a romper das cumiadas punha fulgurações de oiro sobre aquele fulguroso trecho da terra portuguesa, num carinho embevecido por aquela cidade dos amores, das tricanas e dos estudantes, antiga cidade dos reis, velha capital de outras eras, a cidade de encantos onde Inês morreu e onde Camões amou, em cada ano no enlevo das suas flores e no sonho dos seus poetas.

Mas agora em que trágica tristeza sob a luz triunfal daquele sol, à beira dos salgueirais onde chilreavam ainda bandos de pássaros, entre as derradeiras flores que o outono matava por aquelas margens ridentes do Mondego!

As ruas faziam dó. Estavam atravancadas com a farrapagem e os móveis partidos das casas desertas e das igrejas violadas, que a soldadesca atirara fora durante o saque da noite.

E a pilhagem ainda não tinha cessado! Os bandos dos saqueadores vagueavam pelas ruas, e eram agora mais para recear, porque todos andavam ébrios.

Ainda apareciam alguns a estiraçar paramentos para lhes arrancarem os bordados, os galões, as franjas, as pérolas.

Um dos bêbedos veio dos lados da Sé Velha em chocarrices de traião, de capa de asperges e mitra esfiampada, pois a tinham já despojado dos galões e das pedrarias. Era uma mitra velha, de escasso valor, que ele tinha encontrado nas arrecadações da Sé.

Vinham outros ébrios atrás dele, a rir da cena, em estrídula galhofa, mas o que eles nem sequer sonhavam era que por baixo da capa o bêbedo alapardara um resplendor de prata, cravejado de diamantes, e o manto de uma imagem, todo bordado a oiro fino.

Que o velhaco nem ia ébrio. Fingia-se. Era disfarce para justificar aquela farça e escapar-se à rapacidade dos camaradas.

Mas logo se esquece e perde interesse aquela comédia, porque outros aparecem trazendo amarfanhado um pálio de varas de prata, outro a fugir com uma custódia que parece de oiro e tem pedrarias, alguns arrastando ciriais e tocheiros de prata massiça, de grande preço.

E a contrastar com aqueles despojos ricos, os outros de alguns menos afortunados, que vão carregando com costais de bacalhau, barricas de manteiga, presuntos, mantas de toucinho, ou rebolando pelas calçadas abaixo pipas que se arrombam e alagam tudo de vinho.

Faltaria o lance trágico naquele hediondo espectáculo público?

Nem esse.

Já tinham assassinado alguns dos raros desditosos que se julgavam esquecidos nos recantos de suas casas. Homicídios clandestinos.

Chegava agora a vez de assassinar nas ruas.

Ouviam-se gritos aflitivos pela calçada.

Era de um velho paralítico, arrastado por ali abaixo como um cão morto pela soldadesca embriagada.

Atrás dele, em clamores lancinantes, a filha desgrenhada, olhar espavorido, o vestido em farrapos. Ficara resolutamente como enfermeira do pai, foram dar com ela e infamaram-na diante do paralítico, a estorcer-se inutilmente, a espedaçar o coração em gritos de protesto, a afogar os olhos em lágrimas de vergonha, sem poder arrojar-se da cama contra eles, para morrer por ela, defendendo-a, mudando em fúria de vingança contra si a lascívia torpe daqueles selvagens que lha violavam.

Mas ao fundo das ruas as feras ouviram vivas ao marechal Massena, viram um general que passava a galope, tiveram receio e atiraram com o paralítico para dentro de um portal. Espedaçou-se-lhe o crânio contra um degrau de pedra.

Foram então enormes, indefiníveis, os gritos da pobre rapariga. Os bandidos tiveram medo daquela dor. Um mais ébrio esganou-a e os outros baldearam-na para dentro do portal. Ficou ao lado do pai. Tinha apenas dezoito anos.(1)

Massena entrou triunfalmente pela rua da Sofia. Um deslumbramento de uniformes!

A fúria do saque recrudescera, mas o Marechal nem se enfureceu nem se oprimiu diante daquele espectáculo infamante! O seu olhar de judeu avaro incendeu-se de ciúmes por aquela soldadesca ajoujada de despojos. Arranjavam-se bem os velhacos!

E tanto pôde nele o instinto que desceu a fazer preguntas aos saqueadores.

- Que levas aí, rapaz?

- Um barril de manteiga, sr. Marechal.

- Hás-de levá-lo para o meu quartel. E tu lá?

- Um cesto de velas, meu Marechal.

 

*1. Uma estatística paroquial, que já citámos, regista 14 assassínios e sete casas queimadas em nove paróquias de Coimbra e arrabaldes.

 

- Não precisas disso, leva-mas.

E não ficaria por aqui tudo que se supõe. Crê-se que do saque também alcançaria alguma partilha de jóias para a loura companheira.

Marbot comprometeu-o anos depois nas suas revelações escritas.(1)

Não falta quem afiance que o próprio Massena lembrou o saque dos instrumentos do Observatório.

Andava já esquecido do general Pamplona e da promessa que lhe fizera.

Ainda lhe não tinha aparecido Junot, mas logo se espalhou de boca em boca que o Príncipe d'Essling havia entrado na cidade, e foi Pamplona quem lhe apareceu primeiro que o indisciplinado comandante do 8.o corpo.

Vinha muito pálido e acabrunhado o general português.

- Sr. Marechal! Não respeitaram a ordem de Vossa Alteza! A noite de ontem! E este dia com os mesmos horrores e vergonhas!

Massena confrangeu-se e sentiu-se oprimido e com vergonha de si próprio. Pamplona resumiu-lhe a desobediência violenta de Junot e as cenas de selvajaria de que tinha notícia.

- Umas poucas de vezes me atacaram o Museu! Tivemos de o defender energicamente, os meus oficiais e eu! Hoje terei mais auxiliares.

- Quem?

- Os ajudantes do Marquês de Alorna.(2)

 

*1. Marbot aponta nas suas Memórias estes deploráveis episódios. Guingret alude às torpezas da rapina e à fúria destruidora numa passagem indignada da sua Relação histórica.

  1. Depois de mencionar os que mais o tinham ajudado naquela noite de 1 de Outubro, Pamplona diz na sua Memória justificativa que no dia seguinte o auxiliaram, por ordem do Marquês de Alorna, seus ajudantes-de-campo, o Coronel João Freire, Aquiles Pereira e D. Manuel de Noronha, da Casa de Tancos.

 

Chegou Junot com o seu estado-maior. Fêz a apresentação.

- Tenho de lhe falar, General - disse-lhe Massena, metendo o cavalo para o meio do largo.

Junot acompanhou-o.

- Desobedeceu violentamente a uma ordem minha! Creio que se julga protegido pelas circunstâncias especiais em que nos encontramos, e engana-se, Duque de Abrantes! Há-de ver que se engana. Quero ainda esquecer-me desta vergonha, que se deve exclusivamente ao senhor, e que nos pode pôr abaixo de todos os exércitos civilizados no conceito da Europa!

Em estremeções violentos, o olhar nuns lampejos de cólera, Junot replicou-lhe:

- Sei de outros saques piores na Itália. Massena percebeu a alusão e enfiou.

- Não o chamei para discutir. Chameio-o para o admoestar com a autoridade da minha patente, dos meus serviços, do meu comando. Se persistir nesse propósito de desobediência, exonero-o e mando-o de presente ao Imperador.

Voltou o cavalo e afastou-se para lhe não dar ensejo a qualquer réplica violenta, quási certa.

Mas logo se atravessou diante do Marechal um sargento que vinha correndo de cima com um óculo na mão.

- Príncipe! entrámos no Observatório. Aqui está este belo óculo, que é para Vossa Alteza.

Massena afogueou-se. Junot poderia ouvir. Ouviu e atirou logo com o cavalo para diante.

- Marechal! Este sargento é do meu corpo de exército. Vou castigá-lo por esse roubo. Será o primeiro exemplo.

- Foi o sr. Marechal quem nos deu autorização, - alegou o sargento.

- Mente! Não pode ser. Retire-se! Dê cá isso, eu próprio o entregarei ao sr. Marechal.

O sargento afastou-se e Junot disse num tom de audacioso sarcasmo:

- Tem o Príncipe de Essling de compartilhar comigo as responsabilidades desta vergonha. Aqui está este vistoso óculo.

- Guarde-o. Dou-lhe a si a ordem que deu ao sargento.

- Faz uma enorme diferença. Eu sou general e duque.

- Há-de obedecer como êle.

- Mas eu não quero isto para mim.

- Talvez tenha encontrado coisa de muito maior valia. Os portugueses falam muito de certa bíblia preciosa que um general lhes levou de Lisboa.

E meteu o cavalo direito ao estado-maior. Junot seguia-o.

- Capitão Renique - disse Massena para o mais dilecto dos seus ajudantes-de-campo - vá pedir ao general Junot o óculo que êle tem em seu poder. Há-de ir levá-lo ao marechal Ney e dizer-lhe que lho ofereço eu.

Marbot sorriu-se e disse baixo para Ligniville:

- Houve coisa entre êle e Junot. Um tal oferecimento daquele sovina a um homem que detesta deve ter alguma explicação que eu hei-de saber.

E foi êle quem largos anos depois tornou público este caso do óculo roubado, que o maior unhas de fome do Grande Exército ofereceu ao maior dos seus inimigos.

Mas estava Massena defronte de Santa Cruz, teria decorrido uma hora, quando Renique voltou com o óculo e uns certos ares de homem embatucado.

 

*1. Brialmont diz em uma nota do tomo I da sua História do Duque de Wellington que Massena repreendeu severamente o general Junot, principal responsável por aquelas vergonhas e chegou a ameaçá-lo de o mandar para França. (Pág. 335).

 

- Volta com o óculo! Não o encontrou?

- Encontrei. Devolve-o. Não o quis aceitar.

- Provavelmente disse alguma das suas brutalidades? - perguntou Massena a meia voz.

- Disse-me que não queria associar-se à...

- Diga.

- À ignomínia do saque!

- Vejam aquele puritano, que eu conheço como os dedos das minhas mãos!

Daqueles vencidos o mais deploràvelmente derrotado era Massena, que perdera uma grande parte da sua antiga autoridade moral na luta com os seus subordinados.

Quebrara-se lastimosamente a sua energia de outros tempos. Aquelas fascinações da vitória que tinham criado em volta da sua figura mesquinha de homem uma atmosfera de lenda, a dar-lhe proporções e esplendores de semi-deus, haviam-se apagado subitamente no Buçaco e até os seus rivais insubmissos iam agora mais arrogantes!

Apesar da reprimenda ao Duque de Abrantes e da soberba resposta de Ney, rejeitando o óculo saqueado, Massena consentiu que o vandalismo e o roubo se alastrassem pelos arrebaldes da cidade!

A soldadesca espalhou-se pelas povoações dos campos de Coimbra numa sofreguidão de pilhagem ainda maior, em fúrias de devastação cada vez mais revoltantes, em alucinações de barbaria que parecem inverosímeis!

Destruíram pomares e olivedos, queimaram casas, assassinaram criaturas indefesas, à baioneta, a machado, mutilaram outras como se fazia nas guerras antigas, como os espanhóis fizeram na América e os portugueses no Oriente, mas fora três séculos antes!

Alguns houve que, ao requinte da malvadez, matando pelo prazer de matar em torturas inquisitoriais, associavam o requinte da sensualidade bestial, violando esposas diante dos próprios maridos, filhas diante das próprias mães!

Um horror que durou três dias! Sobre o desastre militar que Marbot considerava um dos mais terríveis dos exércitos franceses, aquela página hedionda de latrocínios!

Para as operações militares dos aliados é que a demora de Massena em Coimbra foi um bem. Tiveram tempo de se afastar, evitando um choque nas condições excepcionais em que retiravam, pois levavam consigo cinquenta mil pessoas que fugiam, mulheres, velhos, crianças, num pavor tumultuário, e arrastavam pelo caminho fora umas bagagens em que as tropas hora a hora se embaraçavam.

Enfim, Massena deu ordem para avançar. Não havia pretexto plausível para maiores delongas, nem êle tinha já razões a opor às queixas e acusações dos seus imediatos.

A guarda avançada francesa, que no dia 2 chegara a Condeixa, já tinha seguido para Redinha.

- Vamos afinal quase sem víveres - disse o general Fririon a Marbot.

- Era de esperar - respondeu o ajudante-de-campo - Os saqueadores desbarataram e destruíram o que podia chegar para o fornecimento regular do exército durante uns dias.

Apareceu Pamplona.

- E daí, general? - perguntou-lhe Fririon.

- Só não pudemos evitar o saque do Observatório! O Museu salvou-se. Há três dias que não descansamos nem dormimos, eu com os meus oficiais. Dali nos não arredámos, nem para tomar alimento.

Comíamos de pé, onde estávamos(1). Nenhum posto avançado em campanha nos daria maiores cuidados. Estive em três campanhas ao serviço da Rússia, tive dias de opressora responsabilidade, principalmente no comando de uma flotilha de lanchas canhoneiras no Danúbio, e posso afiançar a v. ex.a que nunca me senti tão acabrunhado como aqui! Agora estou com um receio horroroso dessa hora da marcha, que não tarda!

- Porquê? - perguntou Fririon.

- Porque as últimas forças que partirem podem deitar fogo à cidade.

- Ficará com os seus oficiais um piquete da brigada Taupin para evitar alguma selvajaria. O amor que o senhor tem a esta cidade!

- E ao país todo, General. Mas em Lisboa fui condenado à morte por ter-me vendido à França.

Massena chegou, recebeu os cumprimentos de Pamplona e disse para Fririon:

- Por quem havemos de mandar o meu ofício a Berthier?

- Pela Espanha fora temos nós agora caminho relativamente seguro.

- Bem sei. As nossas tropas dominam as grandes estradas e as grandes cidades.

- O risco temeroso é daqui até Almeida. Qualquer emissário nosso será feito em postas pelos milicianos e pelos montanheses, a duas ou três léguas daqui. Nem que levasse uma brigada atrás de si.(2)

 

*1. São quase as mesmas palavras da sua Memória Justificativa, pág. 38.

  1. O chefe de batalhão Augusto Carel diz no seu livro - Breve História da guerra de Espanha e de Portugal: «As comunicações com a Espanha estavam cortadas. Silveira, com os seus portugueses, aparecia sobre todos os caminhos para a nossa retaguarda. Mal poderia passar um simples correio, ainda que fosse escoltado por quatro ou cinco mil homens.» (Pag. 100.)

 

- E um dos seus oficiais, general Pamplona? - preguntou-lhe o Marechal.

- Alteza, estão condenados, dão prémio a quem os matar. Aquele que fosse, Marechal, seria morto no caminho como um facínora a monte.

Apareceu o Marquês de Alorna, Massena falou-lhe das dificuldades em que estava de mandar correspondência de importância para França. Além de um ofício para Berthier, tinha uma carta para o Imperador.

- Franceses nem pensar em tal. Veja o Marquês se me descobre algum dos seus portugueses, homem que não tenha receio de se meter por esses caminhos fora, daqui até Almeida. De lá para diante a jornada é segura.

- Marechal, será como ir direito à morte, sem nenhum estímulo de glória. Não andará três ou quatro léguas, sem que o aprisionem e matem, logo que lhe encontrem papéis suspeitos.

- Mas, que diabo! Eu não hei-de guardar comigo a participação oficial da batalha! Irá então um dos meus ajudantes, sem conhecer o país e sem saber a vossa língua! Mas para esse é que a morte é certa, e os meus despachos não chegarão nunca a Paris. Sei que nenhum hesitará em ir, sei que nenhum tem medo de morrer, mas será sacrificar um homem inutilmente.

E voltando-se para Fririon:

- Estes senhores portugueses não combatem por escrúpulos de patriotismo e nem me servem para qualquer encargo de oficial às ordens, porque os podem matar, tendo aliás em seu favor as possíveis facilidades que lhes daria o conhecimento da língua e do país! Figurantes do meu quartel-general com que eu não posso contar para coisa nenhuma!

- Sr. Marechal, vou eu - disse um oficial, que viera atrás do Marquês - Disfarço-me e vou. Tenho uma probabilidade de chegar a Almeida sobre noventa e nove de ser preso e assassinado pelo caminho, mas não se dirá que os oficiais portugueses só servem para figurantes no quartel-general de Vossa Alteza.

- Bem - disse o Marechal jubilosamente - É um acto de assinalada coragem. Vou recomendá-lo à munificência do Imperador. Vá preparar-se.

O oficial retirou-se e voltou dali a vinte minutos com um disfarce de pastor.

Vestira um fato velho de guardador de gado, que encontrara entre a trapagem de uma casa da cidade. Trazia cajado e um cãozito vadio que encontrou na rua.

O marechal entregou-lhe a correspondência com muitas e instantes recomendações.

Os oficiais do estado-maior do Marechal olhavam-no com espanto, os portugueses com ar de lástima.

Partiu. Pamplona voltava para a Universidade e chamou-o de parte.

- Mal empregada coragem a sua, Mascarenhas! - disse-lhe.

- Então, meu general! Senti-me com aquele dito de Massena e quero provar-lhe que não tenho medo de morrer. O serviço que vou prestar-lhe não pode influir na sorte da campanha, que estará talvez concluída quando eu chegar a França, se Deus fizer o milagre de me guiar até lá. Não sinto grande apego à vida, que me tem andado cortada de desgostos. General, até um dia, se isto não fôr apartamento para sempre.

- Adeus, Mascarenhas, e oxalá que a boa fortuna o acompanhe nessa temeridade.(1)

 

*1. Não acompanhou. Foi aprisionado em Bobadella, onde o tomaram por ajudante de Junot e lhe apreenderam o ofício de Massena para Berthier. datado de Coimbra em 4 de Outubro.

como refere a Gazeta de Lisboa de 11 de Dezembro daquele ano de 1810.

Naquele ofício, que se tornou um documento histórico, Massena apoucava a importância da batalha do Buçaco, reduzia as perdas do seu exército a três mil homens e exagerava as forças aliadas, dando-lhes um efectivo de sessenta a setenta mil combatentes. O Marechal louvava em especial apenas Reynier e Loison. A respeito de Ney nem palavra.

Marbot, que assistiu à partida de Mascarenhas, refere nas suas Memórias que ele foi levado para Lisboa, condenado à morte e enforcado na praça pública, apesar de ter invocado as suas imunidades de fidalgo para que lhe dessem a morte menos desonrosa. Preferia que lhe decepassem a cabeça o cutelo do carrasco a que o estrangulasse a laçada da forca. (Pag. 405 do tomo II).

 

Estavam a sair de Coimbra as últimas forças francesas. Sainte-Croix ia já muito para a frente com a sua cavalaria, seguia-se-lhe o corpo de exército de Junot, depois o de Ney. Soubera-se que uma divisão dos aliados (era a do general Hill) retirara do Buçaco para a ponte de Murcela, o corpo de exército de Reynier saíra de Coimbra na madrugada do dia 4 pela estrada do Rabaçal a Ancião, para tomar o passo àquelas forças dos aliados.

Defronte de Santa Cruz, Cândido Xavier e Luís de Castro esperavam que passassem os derradeiros batalhões, para então abandonar aquele posto de honra.

À frente da sua escolta de dragões a companheira do Marechal veio procurar o Castro. Chamou-o de parte.

- Venho fazer-lhe uma restituição - disse-lhe tristemente.

- A mim?!

- Sim. Trouxeram ontem ao Marechal estes brincos de diamantes e estas pérolas que êle me deu. Causam-me remorsos estas coisas. O soldado que as levou, disse que as arrancara da imagem de uma santa.

- Senhora, mas eu não posso tomar conta dessas jóias, vou marchar também e não sei a que imagem foram tiradas.

- Ponha-as sobre o altar de qualquer igreja.

- Há ali umas imagens da Virgem. Só se queres que vá lá pôr essas jóias.

- Pois sim. Agradeço-lho, e que Nossa Senhora tenha dó de mim.

Entregou-lhas e meteu a trote à frente da sua escolta.

- Um grande e virtuoso coração o desta mulher, arrastada talvez por algum capricho para esta deprimidora situação de aventuras, que ela compreende e sente - comentou Luís de Castro.

Entrou em Santa Cruz e foi pôr as jóias aos pés de uma imagem da Senhora da Conceição.

Tinham-se reunido os oficiais portugueses que acompanhavam Pamplona.

- Ah! Que posso agora desabafar! - disse o General.

- Fogo além! - gritou um dos oficiais, apontando um prédio da cidade.

Pamplona enfiou.

- Foi algum daqueles ébrios que ali vêem atrás. Mas se deixamos que o incêndio lavre daquele modo, a cidade ficará em cinzas! Vamos lá, não há remédio.

Foi pedir o auxílio de uns soldados franceses e com eles e os seus oficiais conseguiu isolar o prédio em chamas.

- A casa de Tomé Rodrigues de Sobral! - dizia Pamplona tristemente, diante daquele montão de brasas em que ela se tornara - O mais ilustre dos nossos químicos e um dos mais notáveis lentes da Universidade! Perda irreparável! Sei que havia ali Manuscritos preciosos e uma livraria que ouvi avaliar em quinze mil cruzados.

Os oficiais portugueses já não tinham que fazer ali. Taupin avisara Pamplona de que era preciso marchar antes que a guarda da retaguarda evacuasse Coimbra.

Seguiram pela estrada da Redinha.

Apareceu Guingret. Conseguira escapar-se do convento de Santa Clara, transformado em hospital. Como os dois ferimentos que sofrera na batalha não eram de gravidade, metera-se a caminho, graças ao auxílio que lhe prestara o ajudante do seu batalhão, mandando-lhe um cavalo e dois soldados para o acompanharem.

- Então também de marcha, Guingret? - preguntou-lhe Taupin.

- Pudera. Bem basta que fiquem, para acabar desgraçadamente, os que já se não podem arrastar. Mais de três mil feridos e doentes que deixam ao abandono! Parece que andamos todos doidos!

- Ao abandono?

- Pouco menos. Sabe quem fica para os defender? É inacreditável! Meia companhia do batalhão de Infantaria de marinha com dois tenentes! Amanhã caem aí os milicianos e a gente das montanhas e pagam aqueles desditosos todas as monstruosidades que por aí fez a soldadesca e eu tive o desgosto de ouvir contar no hospital. Que generosidade podem aqueles infortunados esperar desses a quem tudo desvastaram?(1) Vamos de mal para pior!

E lá seguiu a cavalo, vagarosamente, muito abatido, amparado por dois soldados.

 

*1... «que tratamento deviam eles esperar da parte dos habitantes, que tudo veriam roubado e devastado quando reentrassem nos seus lares? (Relation historique et militaire, etc. por Guingret).

 

Anoitecera. Rumorejava uma aragem fria pelos salgueirais do rio e as estrelas punham uma claridade melancólica sobre aquela cidade quási deserta, rainha do Mondego, triste e linda.

Uivavam pelas ruas os cães sem dono e das janelas gradeadas de Santa Clara homens semi nus, feridos de uma batalha perdida, que ainda tinham forças para gritar, atiravam contra aquela mudez trágica da cidade uns clamores frementes de lástima e de protesto.

Ao outro dia o pavor foi espantoso. Ouviam-se rufar os tambores dos milicianos que desciam das montanhas, depois uns gritos como rugidos de feras. Era o dia sangrento das represálias. Das janelas altas de Santa Clara os feridos franceses descobriram, já na Portagem, as avançadas do regimento de milícias de Coimbra, a ulular brados de vingança.

Foi um dia de estupendos horrores!

 

           A famosa surpresa.

Diante dos franceses o deserto, feito pelo pavor e pelo ódio patriótico das povoações, mas para trás deles os ecos das montanhas ficavam a repetir o grito selvático dos desalmados saqueadores e as vilas, as aldeias, os casalejos em chamas, a desfazerem-se em cinzas, eram bem os marcos funerários daquela marcha de horrores que parecia antiga, mil anos antiga!

O povo correspondia com singular abnegação ao plano defensivo, terrível de sacrifícios, que Wellington propusera e os governadores do reino determinaram.(1)

Mas naquela campanha excepcionalmente cruel,

 

*1. Quarenta e tantos anos depois escrevia o general Brialmont: «É extraordinário que um general estrangeiro tenha obtido tantos e tão dolorosos sacrifícios de uma nação de tal modo arreigada aos seus lares...

«Este resultado atesta, ao mesmo tempo, a influência alcançada por Wellington e o patriotismo que, naquela época, animava os desventurados portugueses.» (Histoire du Duque de Wellington, tomo 1, pág. 334)

 

como nenhuma outra do Império, na Península, e as da Espanha como nenhumas outras eram já um assombro de ferocidade, os invasores respondiam ao sacrifício patriótico dos invadidos, pondo em ruínas as casas que eles deixavam ao abandono e em brasido as povoações que tinham ficado ermas de recursos.

Por um santo e supremo direito de defesa os que fugiam sacrificando-se, por um requinte bárbaro de represália os que avançavam destruindo.

E desta conjugação horrível de hostilidades, tão alheia já aos usos da guerra moderna, resultava aquela monstruosa e esmorecedora devastação, aquela ruína total, medonha e enorme, que não tinha precedentes em nenhuma guerra dos últimos dois séculos!

Mas a multidão dos inválidos, dos que não cabiam nos quadros do exército e das milícias e ordenanças e a massa numerosa de mulheres, de velhos, de crianças, ainda tinha perdas maiores, mais tremendas que as dos exércitos nos campos de batalha!

Morriam chacinados onde quer que o invasor ia surpreendê-los, morriam ao desabrigo, morriam de fome pelos algares das serras, pelos covões dos pinhais, pelos ínvios desfiladeiros das montanhas.

É verdade que também as suas vinganças correspondiam, pela intensidade crudelíssima, aos latrocínios, às violações, aos crimes hediondos da soldadesca faminta e ébria. Cada turba de foragidos que lograra desforçar-se punha uma percentagem enorme de horrores na estatística abominável daquela guerra!

Condeixa, Soure, a Redinha estavam ermas e ficaram a arder. As espadas dos dragões de Montbrun chegaram até à Figueira da Foz, acutilando fugitivos.

Todavia, em Condeixa, os franceses tinham encontrado ao abandono avultadas provisões, que os ingleses ali haviam deixado e com a pressa e confusão da retirada nem sequer se lembraram de destruir.

Na Redinha a divisão de cavalaria de Montbrun reuniu-se ao grosso do exército. Encontrara a Figueira desabitada, como todas as povoações por onde passara, e a sua expedição limitara-se a acutilar alguns fugitivos, surpreendidos nos pinhais ou transviados pelos caminhos.

Na madrugada de 5, Massena marchou sobre Pombal. As avançadas francesas ainda ali encontraram a guarda da retaguarda dos aliados. Houve um encarniçado recontro, e as forças aliadas retiraram para Leiria, depois de terem contido as avançadas francesas durante o tempo necessário para evitar qualquer súbita arremetida contra as bagagens e colunas de munições, já a caminho pela estrada de Leiria.

Pombal, como todas as outras povoações, estava deserta.

Instalado o quartel-general, Massena entrou, casualmente, na igreja do convento de Santo António dos Capuchos.

O túmulo do Marquês de Pombal fora violado, as ossadas do grande homem estavam dispersas pela igreja, que tinham transformado em cavalariça.

Massena afogueou-se por aquela profanação monstruosa. Um oficial português, dos que iam com o seu estado-maior, leu e traduziu alto o epitáfio daquele túmulo. O nome do Marquês era dos raros nomes portugueses conhecidos na Europa. Apesar da sua escassa cultura, o Príncipe d'Essling tinha ouvido falar daquele extraordinário homem.

O oficial que leu e traduziu comovidamente o epitáfio latino do glorioso morto era Luís de Castro.

- Foi um grande ministro do seu país, não é assim? - disse Massena.

- O maior de Portugal, um dos maiores da Europa. Era da craveira de Sully, de Richelieu, de Colbert.

- Foi êle quem expulsou os jesuítas?

- Foi, Alteza. E com a mesma rara energia com que os pôs fora do país, quando eles estavam ainda omnipotentes na Europa, falou e opôs-se às pretensões ilegais de Roma, sobrancerias da Inglaterra, às arrogâncias do rei de Espanha e do rei de França. Sabia falar aos poderosos, êle, o ministro de uma nação pequena, como se fosse o representante de uma potência também poderosa!

- Mas aposto que não quebrou a vassalagem antiga de Portugal, imposta pela aliança inglesa.

- Sr. Marechal, essa aliança consolidou-se no tempo em que Portugal era uma nação moça, altiva, empreendedora. Se algumas vezes pareceu suserania, opressão do mais forte sobre o mais fraco, a maior culpa foi de quem governava esta terra que ficou de rastos. Nessa deprimidora situação, a Espanha ou a França seriam para nós igualmente arrogantes, igualmente exigentes.

- E no tempo do Marquês?

- Tudo mudou. Pombal não queria outra aliança, entendia que nenhuma outra poderia ser mais útil aos altos interesses de Portugal, mas pôs a nação de pé diante dos ingleses, resolutamente firme como êle era, e levantou-a, robusta e prestigiosa, entre as potências europeias de primeira ordem. Príncipe, foi um grande, e extraordinário reformador, uma gloriosa individualidade da civilização, que se não pode apagar da história. Ainda que os seus ossos estivessem envoltos em tela de oiro, semeadas de pedrarias as cinzas do seu túmulo, como os velhos mausoléus dos rajás da índia, nenhum soldado da Europa culta deveria atrever-se a violar o seu derradeiro repouso. Há-de sabê-lo o mundo num estremecimento de indignação.

- Parece que fazeis uma censura! - disse Massena duramente. - A quem?

- Sr. Marechal, tive a honra de esboçar apenas uma queixa.

- Pois queixai-vos então dos ingleses. Esta profanação havia de ter sido feita pelos ladrões que vêem nas fileiras do exército de Wellington.(1)

- Não me atrevo a contrariar uma afirmação de Vossa Alteza.

- Eu sei, por informações especiais, que o próprio Wellington se tem queixado para Londres da multidão de bêbedos e rapinantes que tem no seu exército.(2)

- Mas também me não atrevo a afiançar que fossem eles, sr. Marechal. Maus soldados há-os até nos melhores exércitos. Fora das vistas de Vossa Alteza, nas avançadas, vão soldados que entraram em Coimbra, contra as ordens do general em chefe... Alteza, ouvi que o saque desceu lá às sepulturas: eu próprio ajudei a defender o túmulo do primeiro rei que teve Portugal.

Massena estava profundamente contrariado, quási a irritar-se.

 

*1. É a opinião expressa por Marbot, a pág. 406 do tomo II das suas Memórias. Compreende-se o intuito pundonoroso com que os franceses querem apagar da sua história militar aquela mácula hedionda de vandalismos tumulares, que se afervorava em cobiças de pilhagem.

Parece que na sua marcha de retirada Wellington visitara também o túmulo do Marquês e dissera: «Este foi maior que Piti.»

Valem estas palavras um altíssimo louvor na boca de um inglês da estatura histórica de lorde Wellington, o maior general que teve a Inglaterra nos tempos modernos. William Pitt foi um dos mais brilhantes estadistas que teve a Grã-Bretanha, um dos maiores que tem tido a Europa.

  1. Constituído por voluntários de todas as procedências, muitos deles contratados nas tabernas de Londres, o exército inglês de Wellington representava um espantoso contraste de altas e admiráveis qualidades militares com detestáveis falhas de carácter e profundos vícios de origem.

Wellington, impôs-lhe uma disciplina de ferro, mas o número dos incorrigíveis era avultado, e êle próprio confessava oficialmente que pilhavam tudo o que podiam apanhar a jeito.

Dizia assim em comunicação de 31 de Maio de 1809 para lorde Castlereage:

«O exército conduz-se terrivelmente mal. É uma canalha que se desmanda tanto com a boa fortuna, como o exército de sir John Moore se desmandava com os reveses. Pilha por toda a parte, etc.»

 

- O capitão Castro está disfarçando suspeições que eu lhe não admito! Mas quero eu próprio desmenti-las por tal modo que nem os caluniadores da França se atrevem a sustentá-las.

«General - disse para Fririon - mande juntar essas ossadas e encerrá-las naquele túmulo respeitosamente. Que o reponham como devia estar. - Sentinelas que guardem essa jazida e umas palavras aí que a imponham ao respeito dos soldados.

Retirou-se com o seu estado-maior. Castro ficou.

- Compreendo a sua mágoa - disse-lhe o bondoso Fririon.

Em presença do chefe do estado-maior general, três soldados juntaram a farrapagem do caixão e os ossos dispersos e encerraram tudo no túmulo.

Depois Fririon mandou pôr sobre o ataúde este letreiro em francês: Respectez ce tombeau.(1)

- Bem haja v. ex.a por essa homenagem reparadora - disse-lhe Luís de Castro.

E saiu comovidamente daquela igreja de província onde mãos estrangeiras tinham violado torpemente a paz tumular do Grande Marquês.

 

*1. Em 1856 o cónego Carvalho Mártens referia o facto na oração fúnebre em que memorava a trasladação dos restos do Marquês da igreja de Santo António dos Capuchos, em Pombal, Para a capela das Mercês, em Lisboa.

Mártens citou a frase de Wellington, que já transcrevemos, e aquele dístico mandado pôr pelo marechal Massena - Respeitai êste túmulo.

 

Massena ia sobre Leiria. As suas avançadas travaram outro combate, mais grave que o de Pombal com a retaguarda dos aliados nas imediações da cidade. Leiria sofreu uma dupla devastação, ela que tanto sofrera em 1808, quando lá entraram os soldados da divisão Margaron.

Pendiam ainda das forcas, mandadas erguer por Wellington, três soldados ingleses, que tinham sido surpreendidos em flagrante delito de vandalismo, violências corporais e roubo.

Massena percebeu a lição e sentiu o estímulo.

As barbaridades da sua gente haviam sido inauditas. Em Leiria completaram as tristes proezas dos pilhantes ingleses e excederam-nas, matando alguns foragidos e intentando lançar fogo a algumas casas.

A disciplina do exército estava já profundamente abalada e o Marechal, amortecidas as suas raras energias de outro tempo, que, todavia, nunca se tinham manifestado na repressão dos roubos, limitou-se a mandar publicar ao exército uma circular de censura. Acentuava que todos os dias os soldados se entregavam à violação e ao roubo, sem que lhes importasse o efeito moral que tal conduta devia produzir no espírito da nação portuguesa.

Era pregar no deserto.

- Para que nós estávamos reservados, Major! - dizia Luís de Castro a Cândido Xavier, comentando aquela marcha de atrocidades. Este pobre país! Morre devastado, ainda que não morra vencido!

- E quem sabe, meu caro Castro, o que ainda veremos de mais horror e de pior mágoa?!

Passeavam os dois no Rossio da cidade, um largo amplíssimo. Chegou o coronel Marquês de Loulé, o mais esbelto e arrojado oficial de cavalaria que tinha a Legião Portuguesa.

Ouvi agora dizer no quartel-general que um major de dragões da divisão de Montbrun, chegado de Alcobaça, aonde tinha ido em observação, trouxera duas lastimosas notícias! Encontrou a arder uma fábrica de tecidos de algodão. Deitaram-lhe fogo os ingleses!

- Provavelmente para diminuírem a concorrência às fábricas de Manchester. Até em campanha, sempre mercantis!- comentou Luís de Castro.

- E da soldadesca inglesa ou de mais alguém já não é essa a primeira façanha de destruíção! - acrescentou Cândido Xavier.

- Faltavam eles a agravar as barbaridades e os desvairos desta guerra excepcional, imensamente mais horrorosa nas marchas e nos acantonamentos do que nos campos de batalhas!

- Mas não é tudo! - disse o Marquês - O major de dragões trouxe notícia de estarem violados os túmulos reais do mosteiro de Alcobaça! Pelas indicações que me deram, percebi que se referia aos túmulos monumentais de el-rei D. Pedro I e de Inês de Castro.

- A triste rainha póstuma, a linda mulher que o Camões cantou.

- Provavelmente revolveram-lhe o sepulcro à procura de jóias - disse Cândido Xavier.

- Esses terríveis exumadores de cadáveres! - comentou Luís de Castro.

- E apesar das negativas que ouvi no quartel-general, percebi que tinham sido franceses os violadores. Estou a ter medo que esta gente se aproxime daquela maravilha da Batalha!

O corpo de exército de Reynier desistiu de perseguir a divisão do general Hill e veio reunir-se aos outros dois corpos em Leiria.

Na manhã do dia 7 todo o exército avançou e foi acampar nos Carvalhos e em Aljubarrota.

Os oficiais portugueses ficaram nesta decaída povoação, eternamente célebre.

- Um pedaço da terra santa da Pátria! - dísse Luís de Castro num grupo de camaradas e compatriotas seus - Que milhares de ossadas de invasores não consumiu este chão há quatrocentos e vinte anos!

- Na maior e mais gloriosa batalha que a nossa gente venceu contra os castelhanos - disse Cândido Xavier.

- E daqui, consolidada a independência de Portugal, tomou alento a nossa altiva raça para as conquistas de Marrocos, para a conquista dos mares, para chegar aos confins do mundo!

- Eram outros tempos - objectou um ajudante do Marquês de Alorna - Já se não torna a vencer uma batalha tamanha como a de Aljubarrota.

- Torna, sim - acudiu o Castro - Venceram-na os nossos soldados há dez dias.

- A do Buçaco?!

- Essa. Não foi decisiva, de completo desbarato para os vencidos, como a de Aljubarrota, mas foi, inegavelmente, uma vitória, e as forças que entraram em luta excederam muito as que tinham consigo o Mestre de Aviz e D. João I de Castela. Uns sete a oito mil homens do lado de Portugal, trinta e tantos mil do lado de Castela. E no Buçaco estavam frente a frente mais de cem mil homens.

- Mas agora, a vitória foi também dos ingleses.

- Embora. No pequeno exército do Mestre de Aviz havia algumas centenas de archeiros ingleses, auxiliares, mas também com o exército de Castela vinham dois mil cavaleiros franceses.

Veio para o grupo o general Pamplona.

- Não sei realmente a que isto há-de chegar!

- Isto, o quê, General? - preguntou o Marquês.

- Este delírio de ferocidade!

- O quê, houve mais alguma barbaridade?

- Uma coisa horrorosa, e esta agora de compatriotas nossos, numa alucinação de vingança!

- Aqui?

- Não, em Coimbra. Chegou há pouco um sargento de dragões, que ficara agregado à meia companhia de infantaria de marinha, encarregada de guardar os feridos em Santa Clara. Fugiu de lá, meteu o cavalo por essas montanhas e atalhos, numa desfilada doida, mais receoso dos milicianos do que das alcateias de lobos que andam pelos caminhos a devorar cadáveres. Fazia dó aquele pobre diabo! Mal podia falar. O cavalo caiu-lhe rebentado a uma légua daqui. Eu lhes resumo o que êle contou no quartel-general. Logo na tarde do dia em que saímos de Coimbra caíram sobre a cidade alguns milhares de soldados milicianos, comandados por um inglês. Iam com eles muitos paisanos. Passaram a ponte e foram para Santa Clara numa algazarra medonha de gritos e ameaças, que o sargento não entendia.

«Façam ideia! Tinham encontrado quási tudo destruído e roubado, pelas ruas os móveis em cavacos, cadáveres nus, porque até os mortos foram roubados, como eu tive ocasião de ver! Investiram o convento. A meia companhia de infantaria de marinha resistiu e todos os doentes que podiam mexer-se, quási dois mil, fizeram barricadas com as camas e os móveis contra as janelas baixas e as portas, tomaram as suas armas e munições, que tinham em arrecadação, e fizeram fogo desesperadamente.

«Os milicianos não bastavam para tomar o convento, mudado em reduto. O tiroteio durou tôda a noite. Das janelas os doentes faziam fogo como alucinados, os milicianos crivavam de balas as paredes, as janelas e as portas do edifício.

Tinha havido ferimentos e mortes da parte dos franceses e certamente os houve em grande número do lado dos milicianos.

«No dia 6 de manhã chegam outros regimentos de milícias. Era impossível resistir por mais tempo.

«O comandante da meia companhia propõe uma capitulação, que o inglês aceita. Os franceses entregam as armas, mas ninguém pode ter mão nos milicianos. Invadem o hospital e sobre aqueles heróicos enfermos, já indefesos, vingam, em requintes de atrocidade, as suas aldeias queimadas, os parentes assassinados, as esposas, as irmãs, as filhas violadas, o saque e a devastação da cidade e das aldeias vizinhas,

«Refere o sargento que foi uma chacina medonha. O inglês inutilmente procurou evitá-la!

«Mataram muitos! Torturavam-nos, esfarrapando-os à baionetada, mutilando-os horrorosamente! A alguns feridos desataram as ligaduras para ver se eles tinham escondidas debaixo delas as jóias que haviam roubado das imagens dos altares.

- Então, aí, foram esses feridos franceses os heróis e os mártires, os nossos alucinados compatriotas uns cobardes e monstruosos vingadores! - disse o Castro com dura repugnância.

- O sargento calcula em centos os franceses que foram mortos em Santa Clara-acrescentou Pamplona.

- E os outros? - preguntou o Marquês de Loulé.

- Contou o sargento que fugiram espavoridos. Por indicações que lhe ouvi, calculo que fosse pela estrada do Porto que eles fugiram. Ele, como dispunha de um bom cavalo, pôde escapar-se pelo caminho que o exército seguira para aqui. Tem o sargento como coisa segura que pela estrada fora os milicianos e a gente das montanhas terão assassinado os foragidos, mais de dois mil.!(1)

 

*1. O coronel inglês Nicolau Trant, comandante das milícias que entraram em Coimbra, desculpou-se das responsabilidades do morticínio, alegando a impossibilidade de evitar as fúrias do regimento de milicianos de Coimbra, que tinha um efectivo de 800 homens. Vinham com eles os parentes, moradores da cidade e dos arredores, e o espectáculo de miséria e de destruição que se lhes deparou era bastante para os desvairar em desalmadas sofreguidões de vingança.

O coronel inglês Napier, um dos melhores historiadores da Guerra Peninsular, baixou até ao número inverosímil de dez a conta dos franceses assassinados em Coimbra.

Pela sua parte, os escritores franceses exageram-no muito, provavelmente incluindo os que depois foram mortos pela estrada do Porto.

Marbot calculou em mais de um milhar os franceses assassinados em Santa Clara e diz que os outros, em fuga pelo caminho do Porto, (quási dois mil), morreram de extenuamento ou às mãos dos seus perseguidores.

 

- Pavoroso!

- Andei em campanha contra os turcos, e declaro-lhes que não vi por lá tão desalmadas crueldades como aqui, de parte a parte, em menos de um mês!

- E quem pode adivinhar o resto?!

Estava-se ao princípio da tarde. Castro lembrou e propôs uma visita à Batalha.

Todos aplaudiram a proposta e o general ofereceu-se para ir solicitar licença, pois que, de dia para dia mais vigiados, lhes fora proibido afastarem-se dos acantonamentos e bivaques, sem licença especial do general em chefe ou do seu chefe do estado-maior e, ainda assim, só acompanhados por alguns oficiais franceses.

Pamplona foi fazer o pedido e Massena acedeu, como acedera de manhã à solicitação de mandar um piquete de dragões para guardar o mosteiro de quaisquer investidas da soldadesca.

Do estado-maior iriam com os portugueses o filho do Marechal, Próspero Massena, e o capitão Renique.

Luís de Castro convidou também o seu amigo Maurin.

Era afinal um pequeno passeio.

- A romagem patriótica dos traidores - disse Luís de Castro ao major Xavier.

Um pouco àquem de Aljubarrota encontraram a companheira de Massena, que saíra a passeio, seguida por uma pequena escolta de dragões.

- Vão de passeio? - preguntou a francesa ao capitão Castro.

- De visita a um dos mais belos e venerandos monumentos religiosos que tem Portugal - o mosteiro de Santa Maria da Vitória.

- Se os não contrariasse, iria também - disse, relanceando um olhar para o filho de Massena, que apenas lhe fizera um frio cumprimento.

- Oh! minha senhora - disse-lhe Pamplona- de nenhum modo nos pode contrariar, antes nos será muito agradável acompanhá-la.

- Mil agradecimentos, General. Mas vão, vão, irei lá ter.

- Mas teríamos muito gosto em que fosse conosco - acudiu Pamplona - Nem podemos deixar que fique para trás de nós.

E nenhum deles reparou na expressão contrafeita de Próspero Massena, que apenas mantinha umas relações friamente cerimoniosas com a amante do pai.

- Pois sim, vou.

Pamplona colocou-se ao lado dela. O Marquês de Loulé ia a poucos passos falando com Cândido Xavier e mais cinco oficiais portugueses. Próspero Massena, disfarçadamente, se deixou ficar para trás a falar com Renique.

Alorna tinha ficado no quartel-general com os seus ajudantes e um grupo de oficiais portugueses.

- Luís de Castro - disse o Pamplona, chamando-o - Venha cá. Pertence-lhe a si o encargo de nosso guia, tem de ser o cicerone desta senhora.

Castro aproximou-se. Iam com os cavalos a passo.

- Eu vim aqui apenas uma vez, ainda em rapaz - disse o Pamplona - Luís de Castro é que veio cá em largas visitas, segundo me disse, não é assim?

- Duas vezes. Aos dezoito e aos vinte anos. Da segunda vez demorei-me quatro dias.

- Então é um guia excelente. Demais a mais, foi quem propôs o passeio, tem de tomar encargos de anfitrião.

- E sua esposa, General? Havia de ser-lhe agradável este passeio - disse a francesa.

- Está adoentada, minha senhora. As marchas fatigaram-na muitíssimo, os pavores desta campanha têem-lhe causado uma dolorosa impressão.

- Sinto sinceramente. É uma bondosa senhora, de primorosas qualidades. Temo-nos encontrado poucas vezes, mas essas bastaram para eu lhe avaliar os dotes, consagrando-lhe uma simpatia que tem muito de grata admiração.

- Minha senhora, por ela e por mim, os meus mais fervorosos agradecimentos.

- Agradecida sou eu, que nada valho e nada sou, e tenho recebido de sua ilustre esposa generosas delicadezas que nem sempre encontro em compatriotas meus.

Pamplona e Castro perceberam esta alusão às rudezas de Ney, de Reynier e Junot, que algumas vezes, em requintes de grosseria, se tinham vingado nela das invejas que tinham ao Príncipe d'Essling.

O general opôs àqueles dizeres modestos umas palavras de amável homenagem às qualidades da francesa. A pequena marechala compreendia claramente a sua falsa situação e encaminhou a conversa para outro rumo.

- Então, sr. Castro, já sei que vamos ver uma linda igreja.

- Um primor, minha senhora.

- Antiga?

- Foi fundada há mais de quatrocentos anos por um dos maiores reis e batalhadores que teve Portugal. Tão grande, minha senhora, que foi êle quem consolidou a independência deste país e quem primeiro levou os portugueses às conquistas de além-mar. No seu reinado começaram os famosos descobrimentos dos mares lendários.

«No templo que vamos ver está o túmulo monumental desse rei, dos filhos, que se tornaram figuras resplandecentes da história e de outro monarca, de voos de águia e indominável energia, que planeou e deixou preparada a primeira viagem para o descobrimento da índia. Hei-de ter a honra de lhe mostrar também outros túmulos venerandos e, entre eles, o de um soberano a quem cognominaram o Africano, batalhador intrépido que fèz conquistas em Marrocos.

- Bem me dizia o general que tínhamos em si, sr. Castro, um excelente guia. Eu digo mais: um caloroso e eloquente cicerone.

- Favor generoso das suas palavras, minha senhora.

- Olhe, já sei, é ali naquela baixa! - exclamou a francesa, apontando os coruchéus de Santa Maria da Vitória, suavemente envolvidos nos fulgores de oiro daquele sol brando de Outubro.

- É ali, minha senhora.

- Adivinha-se logo.

- Não há engano possível. Portugal não tem outro monumento que o exceda, e um só há neste país que possa ombrear com êle.

- Aquela igreja de Coimbra, não me lembro como lhe chamam...

- Santa-Cruz.

- Isso. É também um encanto.

- Temos três, que são primores inconfundíveis de arquitectura e têem para nós, portugueses, a mais alta significação histórica.

«Santa-Cruz, porque encerra o túmulo do rei que faz de um condado vassalo da Espanha o reino independente de Portugal, erguido pela lança triunfadora.

«Aquela, a recordar a nossa maior batalha antiga nas santas guerras da independência e a memorar a raça moça e forte que ia aventurar-se numa odisseia de duzentos anos, de extremo a extremo do mundo.

«Em Lisboa, Santa Maria de Belém, um poema de pedra, adorável poema que celebra o descobrimento da índia, como aquele, minha senhora, relembra uma batalha de um contra seis, a batalha de Aljubarrota, pelejada sobre este chão que nós temos pisado.

- E aquela povoaçãozita como se chama?

- Batalha.

- Somente?

- Só. Batalha, e todos nós entendemos qual, porque nesta terra nunca houve outra assim brilhante.

Desciam. Vibravam alto as palavras de admiração dos dois ajudantes de Massena. Apearam-se.

- Que formoso templo? - disse a francesa - Está a lembrar-me a frontaria de uma igreja gótica da minha terra. Estas colunazitas e estatuetas!

- Crestadas pelas invernias, carcomidas pelos séculos - disse-lhe Luís de Castro.

Entraram. O sol a declinar coava-se pela grande rosácea.

- Que soberbas naves! Tem a gente vontade de ajoelhar! Deve aqui rezar-se comovidamente. Recebe-se uma grande e suave impressão de Deus!

- Para nós, portugueses, há ainda outra impressão, minha senhora. Sente-se aqui a Pátria numa enternecida sensação de orgulho pelo que ela foi, de mágoa pelo que ela é!

Foram ver os túmulos.

- É este o de D. João I, o fundador.

- Desta maravilha, não é assim?

- Assim lhe têem chamado quantos estrangeiros aqui vieram.

- E esta figura de mulher?

- Da esposa do rei. Uma inglesa, D. Filipa de Lencastre, mãe e educadora sublime. Está aqui o mais santo padrão da remota aliança entre Portugal e a Inglaterra. Além, os túmulos dos filhos, os inclitos infantes, como lhes chamou o maior poeta de Portugal e a maior alma de português que ainda teve a nossa raça.

Apontou-lhos a um por um, com ligeiras indicações históricas.

Depois foram ver a famosa abóboda abatida da casa do Capítulo e contou-lhe a lenda de mestre Afonso Dominguez, o primeiro arquitecto, o primeiro mestre das obras do mosteiro. Quando chegaram às Capelas Imperfeitas, assim chamadas por incompletas, a admiração da francesa tinha enlevos de êxtase diante daquela obra peregrina do estilo manuelino.

- Parece que isto foi invento de poetas!

- O sonho de pedra de uma geração que assombrou o mundo.

- Dir-se-ia que mãos franzinas de mulher rendilharam estas pedras!

- Pois hà no mosteiro pedras que foram lavradas pelas mãos valentes que, anos antes, tinham empunhado piques e amolgado arneses sobre os peitos altivos dos cavaleiros de Castela. E aqui, minha senhora, quem sabe quantas pedras teriam sido rendilhadas por canteiros que foram soldados nas guerras de Marrocos e nas esquadras da índia?

Saíram. Escurecia.

- Sabe, sr. Castro? Levo daqui uma impressão consoladora.

- Eu, minha senhora, uma impressão de mágoa. Saio daqui mais triste.

- Porquê?!

- Não sei que destino será o desta pobre terra, cuja soberba história reli naquelas pedras!

- Sim, tem razão. Compreendo bem. Há-de confrangê-lo a ideia de que alguma tempestade das ambições políticas possa um dia destruir aquela maravilha, a lembrar os dias gloriosos do seu país.

- Seria uma profanação hedionda e, todavia, mil vezes preferível à morte política da nação, a dois passos de se realizar! Para lembrar Portugal, se êle acabasse, ficaria ainda outro monumento maior, mais raro, como só as grandes raças antigas tiveram igual.

- Outro? - repetiu a francesa, sem ter compreendido a referência.

- Um livro, um poema de tal grandeza que está, acima dos impérios, e de tal imortalidade que não há canhões nem baionetas de triunfadores que cheguem para o destruir.

- Daquele poema português de quem uma vez me falou?

- De Camões. Desse, minha senhora. Montaram a cavalo. Voltaram para Aljubarrota.

No dia 8 os franceses chegavam a Rio Maior e as suas avançadas surpreendiam em Alcochete um esquadrão inglês. Os ingleses retiraram desordenadamente e a guarda avançada ocupou a povoação, tomando duas peças. Mas o comandante do esquadrão pôde reformar a sua gente, realentá-la daquela surpresa, e voltou ao ataque. Retomou a povoação e os dois canhões e retirou para a Ameixoeira. As avançadas francesas seguiram-no e ali se travou uma duradoura escaramuça.

Entretanto, uma parte do exército de Massena já tinha ocupado Santarém. Na altura do Moinho do Cubo, em que a estrada de Lisboa se bifurcava num ramal para Alenquer, os franceses, sempre desprovidos de qualquer serviço útil de exploração, hesitaram na escolha do caminho a seguir.

Desconheciam o terreno e não podiam contar com as informações dos oficiais portugueses da Legião, nem com seguras revelações de algum campónio que lograssem apanhar desprecavido.

O que eles sabiam e julgavam cousa segura era que, em 1807, Lisboa não tinha obras de defesa pelo lado de terra e podia considerar-se uma cidade indefensável. Afirmava-lhe Junot e diziam no todos os oficiais que tinham vindo na primeira invasão. Esperavam uma batalha nas proximidades da capital e por ela se empenhavam resolutamente, perseguindo o exército aliado, cuja derrota consideravam quási certa.

Naquela hesitação perante as duas estradas, Massena mandou chamar alguns dos oficiais portugueses. Não conheciam nada daqueles sítios, responderam uns, não se lembravam ou não sabiam qual das duas estradas era a de Lisboa, alegaram outros.

- Ignoram tudo! Não querem falar ou propositadamente nos enganam estes velhacos inúteis! - disse o Marechal para o general Fririon.

Uma escolta de dragões de uns piquetes de exploração trouxe-lhe dois camponeses que tinham encontrado escondidos a pouca distância dali.

Massena interrogou-os por intermédio de um oficial português como intérprete.

O marechal formulava as preguntas e o português ia-as traduzindo aos campónios.

- O sr. Marechal quere saber para que lado retiraram os ingleses e aonde vão dar estas duas estradas. Digam que nada sabem, se não querem perder o exército que defende Portugal.

Os outros oficiais portugueses confrangeram-se com esta audácia e esperaram a resposta numa oprimidora ansiedade.

- Saberá o senhor que não vimos para onde foram os ingleses - disse um dos campónios, resolutamente, muito pasmado, na estranheza de encontrar ali um compatriota e fazer-lhe preguntas e a recomendar-lhe que nada dissesse.

O outro deu aproximadamente a mesma resposta.

- Então o que respondem esses lapuzes? - preguntou Massena, impaciente.

- Que não viram nem sabem para onde foram os ingleses.

- Mentem, esses patifes! Ofereça-lhes dinheiro, prometa-lhes boa paga para dizerem alguma coisa. Mas não, tenho razões para me não fiar em si como intérprete. Dispam esses dois homens - ordenou ao comandante da escolta de dragões. - Ponham-lhe as costas nuas e quatro dragões que lhes estalem a pele às pranchadas, até eles declararem o que sabem. Um oficial ou um sargento que fale o espanhol para ver se eles o percebem.

Apareceu um sargento que tinha entrado em todas as campanhas com a Espanha.

- Isto dói e repugna! - disse baixo Luís de Castro para Cândido Xavier. - Aqueles desgraçados vão dizer tudo o que sabem. Estou a recear uma batalha às portas de Lisboa! Os ingleses podem salvar-se na esquadra: mas a capital não tem fortalezas terrestres que oponha a um exército vitorioso.

Entretanto, no seu espanhol mascavado, o sargento francês fizera aos dois campónios insistentes perguntas a respeito da retirada dos ingleses e das duas estradas de que Massena ignorava a direcção.

- A gente não sabe... não viu os ingleses.

Era a resposta constante, resoluta dos dois. O sargento comunicou-a ao Marechal.

- Mentem, mentem, evidentemente, esses patifes! Pranchadas, pranchadas até que se resolvam a dizer o que sabem.

Seguraram-nos bem, de bruços contra um muro do caminho, e dois possantes dragões fustigaram com as espadas, desalmadamente, os pobres campónios. Dois para cada um, alternadamente, como dois ferreiros malhadores sobre uma lâmina em brasa.

O sargento interrogava-os de quando em quando e os robustos campónios respondiam em rugidos de dor, invariavelmente:

- Não sabemos... não temos que dizer...

Mas tinham já as costas numa chaga enorme, o sangue repuxava alto a cada pranchada, salpicando a farda e o rosto dos executores, já cansados.

Vieram outros para continuar a bárbara tarefa. E os heróicos patriotas no mesmo propósito, na mesma insistência de respostas, mas já sumidamente, as palavras truncadas, torcidas em gemidos lancinantes.

- Não sabe... mos! Não sabe... mos!

- Antes nos matem... de vez! Fizeram-lhes a vontade. Sacudiram-se num arranco e deixaram de gemer.

Os dragões que os seguravam sentiram nas mãos os braços hirtos daqueles pobres supliciados. Largaram-nos de si num repelão de horror, e os dois corpos lacerados tombaram contra o muro, resvalaram, foram ao chão num baque surdo, lúgubre. Faziam horror!

- Como dois heróis num campo de batalha! - disse comovidamente Luís de Castro.

Mandaram que lhes revistassem todas as algibeiras.

Encontraram a um deles um ofício. Era datado do Sobral e daquele mesmo dia.

Assinava-o um general inglês e era dirigido ao comandante das milícias em Coimbra. Não continha, porém, nenhuma revelação importante para os franceses. Limitava-se a comunicar-lhe que tivesse prontas todas as forças disponíveis para umas próximas operações ao sul do Mondego.

Provava-se que os dois campónios conheciam a situação de uma parte do exército inglês, mas nada tinham querido revelar.

Sem saber para onde ia e somente no empenho de cair sobre a retaguarda dos aliados em retirada, Montbrun meteu por uma daquelas estradas que Massena ficou sem perceber onde ia dar. Era a estrada de Alenquer. Deitou por ali fora à frente de três regimentos de cavalaria e duas brigadas de infantaria, entrou em Alemquer e dali descobriu uma coluna inimiga em retirada. Era a primeira brigada portuguesa do general Pac e a divisão ligeira de Crawfurd, que retiravam pelo caminho do Sobral do Monte-Agraço.

Montbrun atira a sua cavalaria contra eles. As duas brigadas de infantaria avançam a marche-marche. Os aliados fazem-lhe frente, trava-se um rude combate. Os aliados têem de retirar combatendo e na noite de 11 para 12 escapam-se-lhe pelas alturas da Arruda. Montbrun persegue-os e vai dar ao Sobral, cujas alturas, com grande surpresa sua, vê formidavelmente fortificadas. Não sabia, não sonhava sequer que poderia encontrar uma obra de fortificação. Teve de estacar e mandou aviso ao generalíssimo. Surpresa igual teve Massena e ficou perplexo na deliberação a tomar.

Reúne conselho de generais. Dividem-se os pareceres e opiniões.

Junot não acredita em obras de fortificações que possam embaraçar-lhes o caminho fácil de Lisboa. Vendo Massena disposto a ordenar um movimento sobre a frente, para atacar a obra do Sobral, denunciada por Montbrun, o Duque d'El-chingen opõe-se a tal intento com o exclusivo propósito de contrariar o general-em-chefe e finge ter receio de que vão esbarrar com alguma inacessível posição como a do Buçaco,(1) de sangrenta memória. Massena insiste. Com a sua alta autoridade moral, Sainte-Croix opina pelo ataque geral, depois de um reconhecimento às posições do inimigo. O Marechal encarrega-o de um reconhecimento à frente da sua brigada. Sainte-Croix parte pela estrada que vai dar a Alhandra. Apoia-o a divisão de Montbrun.

Entretanto, Massena manda dispor as coisas para uma marcha ofensiva e ordena a Junot que faça avançar uma das suas divisões para a povoação do Sobral.

Apela-se e apoia o óculo num pequeno muro de pedra solta, já meio arruinado.

- Mas é um forte de grande desenvolvimento! A ligar-se a uma série de obras de defesa! Percebem-se daqui as tropas inimigas. Veja, Fririon. Estou quási a crer que vi mal!

- Não é engano! - confirmou o chefe do estado-maior - Descubro daqui uma série de obras importantes,

 

*1. «Mas as perdas consideráveis que os franceses sofreram no Buçaco tinham feito que arrefecesse muito o ardor dos imediatos de Massena e semeara a discórdia entre eles e o chefe, de modo que todos procuravam paralisar as operações do generalíssimo, figurando em qualquer altura do terreno umas segundas montanhas do Buçaco, só conquistáveis à custa de torrentes de sangue» (Marbot, pág. 408 do tomo II das suas Memórias).

 

bem artilhadas! Fortificações assim, tais como daqui se podem avaliar, não se levantavam de improviso. Deviam levar largos meses a construir, representam o trabalho de muitos milhares de homens!

- E nós sem sabermos absolutamente nada! Sem as sonharmos sequer! Neste diabo deste país nem se encontram patifes que queiram ganhar dinheiro!

- Uma soberba linha de defesa! - exclamou Fririon.

- E os senhores não sabiam disto? - preguntou Massena, torvamente, voltando-se para o Marquês de Alorna e Pamplona.

- De nada sabíamos, sr. Marechal - respondeu o Marquês - Até à nossa ida para França não havia notícia nenhuma de semelhante linha de fortificações.(1)

- Mandaram-na então construir os ingleses?

- Talvez, sr. Marechal.

- E tal segredo guardaram os seus aliados portugueses que andamos há dois meses em Portugal e não ouvi nunca uma palavra a respeito daquelas obras, como se tivessem sido construídas no barracão de um arsenal, à porta fechada, por um só homem! E afinal foram ali construídas à vista de todos,

 

*1. A primeira ideia daquelas linhas de defesa para cobrir Lisboa fora apresentada pelo major do real corpo de engenheiros Neves Costa, em memória que dirigiu à regência do Reino em 26 de Outubro de 1808.

No esboço topográfico do terreno que apresentou e na respectiva memória, indicava Neves Costa quási todas as posições depois aproveitadas no plano inglês, que Wellington mandou elaborar e adoptou, tais como Alhandra, Calhariz, Arruda, Sobral do Montagraço, Tôrres-Vedras e Varatojo na primeira linha.

Indicava também Neves Costa quási todas as posições da segunda linha, por Alverca a Mafra e Morugueira, e algumas da terceira linha, que foi construída pelos ingleses para o seu caso especial, na hipótese de terem de reembarcar.

 

durante muitos meses certamente, por muitos milhares de homens, sem dúvida nenhuma.(1) Chega a parecer incrível! Ninguém acreditará na Europa que eu não encontrasse um denunciante,um faminto, um maltrapilho que viesse pedir-lhe um punhado de ouro pelo segredo daquelas obras! Ninguém!

Entretanto, noutro grupo muito afastado do Marechal, Marbot dizia para Ligniville:

- Parece uma surpresa de teatro! O marechal Ney esteve um ano em Salamanca, o generalíssimo há seis meses que preparava a invasão de Portugal, e nem sequer sonhavam isto! Reynier e Junot nada sabiam e o Imperador, que tem espiões em toda a parte e por eles conhece o que se faz e pensa na Inglaterra e na Áustria, como pelos jornais ingleses sabe o que se passa na Península, não nos mandou prevenir porque nada sabia também!

- É espantoso, realmente! - apoiou Ligniville - Mas não me parece que ao Imperador fosse fácil ter aqui espiões, como na Inglaterra e na Áustria.

- Ora! Em Coimbra encontrei eu um jornal inglês do mês de Agosto que trazia a nota dos navios mercantes que tinham entrado no porto de Lisboa com carregamento de víveres, desde Janeiro. Centenas deles, não só ingleses, mas americanos, alemães e suecos. Nada mais fácil do que meter uns espiões astutos entre os milhares de tripulantes desses navios. Mas qual história! Isto tem de ser campanha de descuidados,

 

*1. Ainda então estavam por acabar alguns redutos e obras de menos importância, que depois se concluíram e artilharam.

Mas o principal estava feito, especialmente na primeira linha, do Tejo à foz do Sizandro, isto é, de Alhandra até além da vila de Tôrres-Vedras, que deu o nome às famosas linhas.

O plano começou a ser estudado em Outubro de 1809, os trabalhos duravam havia mais de dez meses e ali chegaram a trabalhar quarenta mil daqueles pobres paisanos que haviam fugido dos invasores ou não tinham outro meio de servir o país.

 

de imprevidências, de surpresas, e esta agora é uma formosa surpresa cujas consequências me não atrevo a prever.

Na frente, Massena falava a meia voz com Fririon.

- Estou morto por saber as impressões de Sainte-Croix. Talvez seja preciso atacar os ingleses de flanco naquelas posições, avançar para Lisboa ao longo do Tejo - disse o Marechal.

- E ninguém de mais alta competência do que Sainte-Croix para avaliar num lance de olhos as vantagens e os defeitos de uma posição militar, ninguém como êle para estudar um problema de guerra.

- E de mais serena coragem para o pôr em prática. Está naquele homem, com o delicado aspecto de uma dama, um dos futuros marechais do Império, e certamente dos mais brilhantes.

- Ouvi que foi esse o vaticínio do Imperador.

- Disse-mo êle próprio na ilha de Lobau, e repetiu-mo depois dos prodígios de Wagram. Pois hei-de eu dar-lhe ensejo de ganhar o bastão de marechal. Confio-lhe um comando importante no ataque às linhas inimigas e faço-o general de divisão. Às portas de Lisboa é provável outra batalha e êle ganhará metade da sua candidatura a marechal de França.

Chegava a toda a brida um ajudante-de-campo de Montbrun. Apeou-se e entregou o cavalo a uma ordenança.

- Que há?! - preguntou o Marechal, indo para êle - Parece que nos traz alguma informação esmorecedora!

- O general Montbrun encarrega-me de comunicar a Vossa Alteza uma doloríssima notícia.

- Depressa! O que houve? - instou Massena, impaciente.

- Perdeu-se um grande talento militar e uma das nossas mais brilhantes espadas!-respondeu o ajudante tristemente.

Todos os oficiais do estado-maior do Marechal se tinham aproximado, avisados pelo ar entristecido do ajudante-de-campo.

- Sainte-Croix?!

- Espedaçado por uma bala de artilharia!

- O general Sainte-Croix! - exclamou Massena, volvendo um olhar dolorido para Fririon - O meu maior amigo!

- Partido ao meio por uma bala rasa de uma chalupa-canhoneira, daquelas que defendem o rio.

Ouviu-se um murmúrio de lástima e dó. Massena deu uns passos hesitantes direito ao muro, para não verem que chorava.

Marbot empalidecera e encostou-se a Ligniville.

- Amigo meu como irmão! - disse-lhe no disfarce de um soluço - A maior perda!

E baixando a voz:

- O conselheiro bom de Massena. O único!(1) O malogrado marechal do Império!

- Ouvi eu dizer a Napoleão que só se um raio lho fulminasse, roubando-o às glórias da França, deixaria de lhe dar o bastão de marechal.

- Pois levou-lho uma bala dos nossos inimigos, na mais desgraçada das nossas campanhas!(2)

Na sua imensa comoção, Massena pousara o óculo sobre o muro e volveu para as linhas um olhar turvo de lágrimas. De repente uma bala de Montagraço veio bater contra o muro, a uns passos do Marechal, esbarrondando as pedras e levantando uma nuvem de pó.

Com o seu admirável sangue-frio dos grandes lances, Massena tirou o chapéu e disse solenemente:

 

*1. «Foi uma perda enorme para o exército, para Massena e, principalmente, para mim, que tinha amizade de irmão!." (Memoires du General Baron de Marbot. tomo II, pág. 408).

  1. Marbot refere nas suas Memórias que Napoleão avaliava a situação do exército de Massena pelo que diziam as informações dos jornais ingleses.

 

- Lá irei pagar a visita. Voltou-se para Fririon:

- Iremos atacar aquelas posições. O bravo Sainte-Croix merece bem o funeral solene de uma batalha. Mas as suas exéquias hão-de fazer-se em Lisboa com as bandeiras inglesas a atapetarem-lhe o catafalco.

Afastou-se e desceu o outeiro num acabrunhamento da mágoa inexcedível.

 

             As pobres mulheres!

Massena dera ordem escrita aos comandantes dos corpos de exército para um ataque geral às linhas. Vieram logo ao quartel-general em chefe, Ney e Reynier e travaram uma discussão tempestuosa com o generalíssimo.

- Isso é querer acabar esta campanha mal começada por um desastre sem remédio! - disse Ney.

- Se o Duque d'Elchingen atacar com os seus vagares do Buçaco e se esquecer da sua antiga energia de Iena, decerto será um desastre sem remédio.

- Mas, sr. Marechal - observou Reynier - as chuvas do Outono chegaram, os nossos soldados vão enterrar-se nos barrocais daquelas montanhas, formidavelmente fortificadas. De nada nos servirá a excelente cavalaria que temos. A artilharia não tem posições de onde eficazmente possa bater as obras inimigas.

- Os soldados andam famintos, estão absolutamente desmoralizados - disse Ney.

- Contra essa asserção protesto eu! - replicou Massena.

- Os efectivos da marinha têem diminuído muito - interveio Reynier - e sem chegarem os reforços que o Imperador prometeu...

- Há dois meses sem chegarem! - objectou Massena - O Imperador não respondeu às instâncias que lhe fiz de Almeida, ou não as recebeu. Provavelmente avalia as forças que temos disponíveis pelo que lhe dizem os jornais ingleses, mandados pelos seus espiões de Londres, e eu sei que os ingleses exageram os nossos efectivos, elevando-os a setenta mil homens.

- E não chegamos a ter quarenta e cinco mil em condições de entrarem imediatamente em batatha - acudiu Ney - mas é com tal exército que o Marechal quere investir posições, não menos ásperas que as do Buçaco, e com umas vastas obras de defesa que lá não tínhamos a vencer! Menos exército, muito maiores dificuldades, menos força moral, e quere ir atacar de frente essas montanhas artilhadas, onde eu suponho que não estarão menos de sessenta ou oitenta mil ingleses e portugueses.(1)

- Afora as milícias - acrescentou Reynier - Afora esses, que não devem ser poucos.

- Querem então que eu fique à espera de uns reforços tardios, que não posso adivinhar quando chegam e que talvez não cheguem nunca, se não mandar ao Imperador alguém que lhe exponha claramente esta situação grave?

 

*1. Brialmont diz que em fins de Outubro estavam nas linhas 130.000 combatentes, sendo 70.000 de tropas regulares. É talvez exagerado este número.

Da 1.a linha eram 34.000 ingleses, 30.000 portugueses e 6.000 espanhóis, que tinham entrado nas linhas com o Marquês de la Romana. Os regimentos de milícias e as ordenanças internadas nas linhas não iriam além de 40.000 homens. Temos, portanto, um total de 110.000 combatentes de 1.a, 2.a e 3.a linha. Só contando com as tripulações de 20 naus inglesas e 400 navios de transporte que estava no Tejo se poderá chegar aos 130.000 homens.

 

- Soult teve ordem de o apoiar.

- Soult virá tarde ou não virá. É como outros. Inveja-me este comando de sacrifícios, que não pedi e empenha-se em me comprometer.

- Na Espanha há mais de trezentos mil soldados franceses.

- Para mim como se não houvesse nenhuns! Estou a oito dias de marcha da fronteira espanhola e não tenho comunicações para lá e não recebo víveres, nem qualquer espécie de munições, nem sequer ofícios, porque daqui até Almeida fêz-se um deserto, em que só aparecem esses malditos milicianos que nos tomam os caminhos! A quarenta léguas desse país onde há trezentos e cinquenta mil franceses e é como se estivesse a quatro mil! A dois ou três dias de marcha dessa província do Alentejo onde poderia encontrar recursos e por onde vinte ou trinta mil franceses poderiam entrar para me apoiarem, e é como se estivesse tão afastado dela e desses exércitos como das stepps da Rússia!

«Esperar o quê? Que o inverno chegue primeiro do que os prometidos reforços, que apodreça a pouca pólvora que temos, que o exército se desmoralize e morra de fome?! Não quero. Preciso de ir a Lisboa buscar os recursos que me faltam aqui.

- Estão diante de nós essas montanhas cobertas de redutos e eriçadas de canhões! - objectou Ney.

- Já temos atacado outras assim. Em volta da ilha de Lobau os austríacos estavam admiravelmente fortificados.

- Não tinham montanhas assim - acudiu Reynier.

- Mas eram os austríacos com a sua soberba cavalaria e com uma infantaria admiravelmente intrépida.

- E nós com cento e trinta mil homens bem providos, como eles - observou Reynier.

- Estava lá Napoleão - disse Ney em tom de sarcasmo.

- E estou eu aqui como estive lá - replicou Massena num movimento de indignação - Repito as ordens que dei por escrito. Vamos atacar as Linhas.

- E eu não as cumpro, e eu não obedeço! - retorquiu Ney altivamente.(1)

- E eu exonero-o e mando-o para França, sr. Duque d'Elchingen! - ameaçou Massena.

- Marechal, terá então de me exonerar também a mim - acudiu Reynier - porque eu tomo a resolução do sr. Duque d'Elchingen.

Massena desfigura-se.

- E é com imediatos assim que o Imperador quere que eu conquiste Portugal! Eu informarei a respeito dos excelentes auxiliares que me deu! Malditas vaidades, cheias de ciúmes pelas minhas batalhas, sem repararem nos meus cabelos brancos! Podem retirar. Quem não obedecer irá preso para França, ainda que para o prender seja preciso quebrar-lhe a espada.

- A minha não a quebraram nunca os inimigos. Defendê-la-iam agora os soldados que eu comando há sete anos.

- Em todo o exército há muitos que eu comandei em Zurique, em Génova, em Rivoli, em Caldiero, em Essling, em Wagram. Sr. Duque d'Elchingen, já tive ocasião de lhe dizer que desejo ficar só!

Ney e Reynier saíram arrebatadamente. Massena chamou Fririon.

- Estão no propósito de me desobedecer, esses invejosos! Pois ou eu deixarei de chamar-me André Massena,

 

*1. «Massena, perdendo a paciência com esta discussão, repetiu de viva voz as ordens de marcha que já tinha dado por escrito. Então o marechal Ney declarou formalmente que não as cumpria.» (Marbot, Memórias, tomo II, pág. 411).

 

ou eles irão presos para França, se ousarem opor-se à marcha contra as posições do inimigo.

- Sr. Marechal, - disse Fririon, a conciliar - seria mais digno da sua generosidade esperar ocasião melhor para um castigo exemplar, que nesta conjuntura melindrosa poderia levantar-nos graves dificuldades.

- Entende então que devo ficar de braços cruzados, timidamente, sujeito aos caprichos desses dois insubmissos, mais funestos para o meu exército do que duas batalhas perdidas?!

- Lembro apenas que, no estado de penúria a que chegou o exército, qualquer pretexto pode servir para uma insubordinação, de que o inimigo se havia de aproveitar, impondo-nos talvez uma humilhação maior que a de Baylen.

- Eu não sou Dupont.

- Por isso mesmo a humilhação seria maior, sr. Marechal. Os oficiais e soldados do 6.o corpo estimam o marechal Ney, os do 2.o corpo seguiriam Reynier. Seria gravíssimo! E depois, sr. Marechal, eu fiz um demorado reconhecimento às posições inimigas. Estão admiravelmente fortificadas, teem poderosa artilharia, não há passagem que não esteja defendida. Não terão lá menos de sessenta ou setenta mil homens de primeira linha.

- Mas pode forçar-se uma dessas passagens, podemos atacar algum ponto dessas possições e esses sessenta ou setenta mil homens não podem estar reunidos num só lugar. Se os investirmos pela margem do Tejo, as tropas de Tôrres-Vedras não chegarão a tempo de socorrer as do Sobral ou de Alhandra.

- Talvez cheguem, sr. Marechal. Nenhuma das posições principais se poderá tomar em menos de quatro ou cinco horas. Os inimigos hão-de ter reservaS, talvez em fortes posições à rectaguarda da primeira linha. Vi eu que se comunicavam a grandes distâncias por meio de mastros de sinais.(1)

Massena considerou afinal e transigiu. Esperaria reforços ou aguardaria que o marechal Soult se resolvesse a dar-lhe a mão, invadindo o Alentejo.

Resolveu então mandar o general Foy a Paris, para expor ao Imperador a situação gravíssima do exército e instar pelos socorros prometidos.

Foy, um combatente de Vimieiro em 1808, um dos mais intrépidos na retirada do Porto em 1809, um valente e um ferido da batalha do Buçaco, aliava a uma rara intrepidez um espírito lúcido e culto, tinha a palavra eloquente e fácil, um alto critério para avaliar os homens e as cousas, uma consciência honesta e leal, e parecia alheio a todas as intrigas e invejas que medravam no exército de Massena.

Era o melhor emissário que o Príncipe d'Essling podia escolher, para evitar ou vencer os perigos prováveis até à fronteira portuguesa e para informar Napoleão e movê-lo a acudir àquele exército esbarrado diante das linhas de Torres.

Mas tanto receio tinham dos milicianos que lhes cortavam a retaguarda (os do general Bacelar e do general Silveira e os outros comandados pelos ingleses Trant, Wilson e Blunt), que Massena deu ao general Foy para o acompanhar até à praça d'Almeida, guarnecida pelos franceses, uma escolta de nada menos de três mil homens de infantaria e cavalaria, com algumas peças de artilharia!

 

*1. Mastros com vergas em que dependurava balões e bandeiras Adoptavam as convenções telegráficas da marinha, um pouco ampliadas para as suas circunstâncias especiais.

John Jones conta nas suas memórias àcêrca das linhas de Tôrres-Vedras, que em sete minutos se correspondiam por aquele meio de um para o outro estremo das linhas.

 

Enquanto esperavam, numa inactividade que lembrava os cercos e os bloqueios das linhas defensivas nos tempos galantes de Luís XIV, ingleses e franceses se entretinham do melhor modo possível para ir passando o tempo.

Os ingleses iam à pesca e os franceses à pilhagem. Os oficiais britânicos faziam excursões nos seus cavalos corredores, um pouco pelo prazer do sport e não raras vezes para observar os postos do exército inimigo.

Pela sua parte os oficiais franceses combinavam passeios, organizavam caçadas, improvisavam diversões teatrais, ou compravam para amantes, aos soldados exploradores, as pobres raparigas que eles tinham surpreendido espavoridas nos covões das montanhas.

De dias a dias abria-se mercado de mulheres no acampamento francês!

Havia, porém, outras desventuradas que não chegavam a ir ao mercado. Essas tinham sido seduzidas e estranguladas nas próprias cavernas onde a soldadesca as fora surpreender, como revelou o chefe do batalhão Guingret, no seu livro acerca da campanha.

O que as pobres mulheres sofreram naquela guerra! Encheria um livro.

Afinal chegou a haver soldados tão peritos nessas caçadas humanas que, mesmo de longe, farejavam o covil onde se encontrava a gente fugida das povoações! Chamavam-lhes farejadores, e à frente de cada bando lá ia, como perdigueiro, para aquela caça monstruosa, um dos tais farejadores.

Por isso a abundância de mulheres para negócio, tristes cativas mercadejadas como nos bazares de África e do Oriente, foi de tal modo grande, que por fim as trocavam já por animais de carga, por bebidas e comestíveis e até por qualquer peça de vestuário!

E a contrastarem com estes episódios hediondos, que pareciam dos séculos bárbaros ou dos países selvagens, uns episódios cómicos de baixa comédia.

Por exemplo: Os postos avançados franceses aprisionaram em certa ocasião um oficial inglês que viera para fora das linhas procurar um sítio, que de nenhum modo podia confundir-se com certo compartimento reservado de qualquer casa decente. As patrulhas francesas não acharam que o lugar fosse positivamente um water-closed, encavacaram com o audacioso inglês e fizeram-no prisioneiro em condições inexcedivelmente grotescas.

Outro oficial inglês foi bispado numa figueira, fora das linhas. Estava empoleirado a papar figos, mas a sua farda vermelha denunciava-o por entre as folhas largas da árvore. De um posto francês estranharam aquele enorme pássaro vermelho, foram a êle e aprisionaram-no.

A este se refere Marbot nas suas Memórias, dizendo que Massena o mandou entregar a lorde Wellington, pedindo-lhe mandasse em troca o capitão Lettermillier, que ficara prisioneiro em Coimbra.

Os ingleses têem uma graça picantemente original, fria, serena, de inesperados contrastes, muito sua, quando lhes dá para serem engraçados.

Dos gracejadores notáveis que os ingleses tinham nas linhas de Torres, o granadeiro Lawrence não seria talvez o mais insigne, mas pode-se afirmar que ficou sendo o de maior fama, porque tomou apontamentos do que viu, e publicou mais tarde umas memórias das suas campanhas em Portugal e na Espanha, com um tal feitio despretensioso, uma observação tão pitoresca da vida de campanha por dentro, na intimidade, e um sabor anedótico de tal modo delicioso, que lhe deram ao livro um alto interesse e lho puseram entre os mais curiosos da copiosa literatura militar do período napoleónico. É uma caricatura da epopeia com uns largos lampejos de observação crítica e de filosofia burguesa.(1)

Pois o tal sr. Lawrence levava a vida de campanha com uma filosofia de riso e uma fleuma verdadeiramente britânica.

Nos postos avançados franceses, em frente da Patameira, já o conheciam admiravelmente pela gracinha de um galo domesticado com que êle aparecia no seu posto de sentinela e até quando se travava tiroteio entre as patrulhas.

Demais a mais, um galo histórico, porque o apanhara no Buçaco, na véspera da batalha. Palmou-o, provavelmente, da capoeira dos frades mas isso é que êle não diz nas suas Memórias.

O galo das carmelitas era um pimpão e também um cómico.

Afeiçoou-se a Lawrence e não o largava, nem mesmo nas horas de combate. Empoleirava-se-lhe no ombro ou em cima da mochila e lá ia com êle, fosse para onde fosse.

Assim assistiu à batalha, entre as tropas de reserva de que Lawrence fazia parte. Ao fim de quinze dias, conta o inglês nas suas Memórias, já não era preciso prender-lhe os pés nem já se enganava com a mochila do apreensor, que era o seu poleiro dilecto.

Puseram-lhe o nome de Tom, e êle e o dono eram o divertimento e a galhofa da soldadesca inglesa, bem folgada, bem farta, com excelentes abrigos no acantonamento da Patameira.

Estropeados, vencidos, quási famintos,

 

*1. As Memórias do granadeiro Lawrence tiveram um excelente êxito em Inglaterra e foram traduzidas em França por Henry Gauthiers-Villars. Temos diante de nós a 2.a edição de Paris, que é de 1809.

 

ao desabrigo dos seus bivaques, os franceses deviam ter menos vontade de rir, mas não resistiam àquela gracinha do Lawrence com o seu Tom de soberba crista e brilhante plumagem.

Era eles verem-no de sentinela, lá em cima nas linhas, com o galo empoleirado na mochila, para logo desatarem a rir e a gritar-lhe gracejos.

E depois o maroto do galo, a cada rufo de tambor ou a cada toque de clarim, encrespava as penas do pescoço, arrebitava a crista, sacudia as asas e desatava a cantar, tão senhor de si como se estivesse na capoeira do Buçaco, acarinhado pelas chorudas galinhas dos frades.

O tiroteio anormal de algum recontro de patrulhas não o assustava, enfurecia-o, como se houvesse visto galo inimigo e rival.

Lawrence a gritar alerta ou a chamar às armas, e logo o aventureiro Tom a cantar triunfalmente, como nas radiosas madrugadas primaveris do Buçaco.

E quando êle, por aborrecido, nos seus momentos de spleen, apesar de português, deixava de cantar, os soldados desafiavam-no imitando-lhe o canto e, algumas vezes, até lá de baixo alguns franceses de mais alegre disposição de ânimo o desafiavam também cantando.

Chegava a hora do rancho e não havia soldado da companhia de Lawrence que não fosse levar alguma coisa ao Tom. Os ingleses tèem grande predilecção pelos galos. Também por isso o Tom estava gordo como um frade bernardo.

E disto é que os pobres dos franceses tinham inveja.

- Quem nos dera a nós a ração que tem aquele maroto daquele galo inglês! - diziam às vezes os gracejadores dos postos avançados de Massena.

E assim, a respeito do galo como a respeito dos homens, os franceses confundiam as nacionalidades, chamando ingleses a todos os soldados das linhas e inglês àquele galo sertanejo, que assistira à batalha do Buçaco.

Estes episódios cómicos dão ideia da relativa tranquilidade a que se chegara, depois de uma luta sangrenta e de uma tremenda marcha de horrores.

Extraordinária trégua aquela, imposta pelas circunstâncias! Os franceses à espera de um reforço que lhes desse alento para irem esmagar sobre os redutos das linhas aqueles odiados vencedores, os aliados esperando ensejo seguro para infligir uma derrota decisiva àqueles invasores que abominavam e tinham atravessado o país como horda implacável de vândalos.

Entretanto, nos postos avançados os ingleses passavam ou vendiam garrafas de rum aos franceses, trocavam-se gracejos, ideavam-se brincadeiras, faziam-se partidas de rapazes de escola.

A larga distância do quartel-general em chefe, Luís de Castro e Cândido Xavier passeavam, comentando todas as abomináveis atrocidades do exército que eram obrigados a acompanhar.

- Começo a ter ódio a Napoleão e a tudo isto! - rouquejou Luís de Castro - Desertava para aí - disse apontando para as linhas - se me não causasse medo a morte por traidor, a morte vil na forca, sem reabilitação possível. Mas meto uma bala na cabeça se os franceses vencem.

- Seria uma loucura, meu caro Castro.

- É ideia que eu trago desde Almeida. Punha-a em prática no Buçaco, se eles vencessem.

- Não dava remédio a estes males, privava o país dos serviços valiosos que ainda lhe pode prestar, e todos os nossos compatriotas diriam uma destas caluniadoras iniquidades: - Ou que o suicídio fora para evitar a forca por traidor ou de remorso por ter vendido a pátria aos franceses, como diz a sentença estúpida lavrada contra nós.

Espere ensejo de se reabilitar quando vier uma hora serena de justiça.

- Mas esta nossa situação é um horror insuportável!

Ouviu-se uma algazarra enorme atrás do acampamento de uma brigada de infantaria.

Aproximaram-se. Mais de trezentos soldados discutiam enfurecidamente em volta de um grupo de onze mulheres, lívidas, trementes, de olhos afogados de lágrimas. Todas ainda moças, algumas ainda adolescentes, pobres mulheres de catorze a quinze anos.

Duas, de admirável gentileza, vestiam como senhoras da alta sociedade. Pareciam irmãs. Estavam abraçadas, numa convulsão de pavor, numa crise de soluços, os cabelos desgrenhados, as rendas dos vestidos em frangalhos, salpicadas de sangue.

Ao pé delas uma noviça carmelita, linda, com o hábito em farrapos. Punha no céu um olhar espavorido de louca, batia no peito, rezava alto, febrilmente, num atropelamento doido de orações em latim e em português. As outras eram raparigas aldeãs com os coletes esgarçados e os seios semi-nus.

- Aquelas duas fidalguitas são para o meu capitão e para o meu tenente, já disse! -gritou um cabo de granadeiros -, Franzinas, loiras como figurinhas de porcelana de Sèvres, são amantes de valor para eles levarem para França.

- Vá para o diabo, seu asno! Fui eu o farejador que deu com elas na gruta daquele monte onde só eu cheguei e boas dez léguas me custou.

- Não, eu também fui.

- E eu.

- Depois de eu as ter encontrado. São para mim.

- Isso havemos de ver. Ora o focinho de bode!

- Pois eu, cá por mim, quero a freirinha para me rezar matinas ao toque de alvorada e para me dar beijos antes do rancho.

- Eu então nem que me pagassem por cima a queria para mim. Repara nela, é maluca.

- Grandíssimo patife! Foste tu mesmo que a puseste doida. Violaste-lhe a outra companheira e estrangulaste-a!

- Meto-te uma baioneta nas tripas se tornas a dizer isso!

- Pois eu - acudiu um porta-machado muito bêbedo - troco a que me pertence por duas garrafas de aguardente ou por um cavalicoque para ir atacar as Linhas.

E as desventuradas num choro alanceador que faria dó a selvagens. Travou-se então mais enfurecida contenda. Esfusiavam palavrões obscenos, trocavam-se ameaças violentas.

- Ao que pode chegar um exército! Como isto é hediondo e torpe! - exclamou Luís de Castro.

Entretanto, um sargento subira para cima do montão de pedras de um casebre arrasado e clamou:

- Escutem! Escutem! Pode fazer-se tudo à boa paz.

- Ouçam! Escutem!

- Vamos lá a saber como.

- Jogam-se.

- Isso não tem pés nem cabeça!

- Jogam-se, já disse. O farejador e os quatro que o seguiram à caverna, enquanto o destacamento acabava de limpar a aldeia, são considerados possuidores dessas mulheres, mas ficam obrigados a jogá-las com todos os homens do destacamento que puderem pôr, sobre as cartas, paradas não inferiores a dois dobrões de ouro.

- Em dinheiro poucos os têem.

- Pois serão esses os que põem dinheiro nas cartas e são os que deram caça às raparigas os banqueiros. Se a fortuna estiver com eles, apanham o dinheiro dos jogadores e ficam com as raparigas, que representam o capital da banca.

- Isso não pode ser!

- Pode. E divide-se já o capital dos banqueiros. As duas mais distintas são do farejador que descobriu o covil e as outras repartem-se a duas e duas por cada um dos quatro que o seguiram. E é contra eles que vai jogar quem tem dinheiro.

- E a freira? Olhem que é a mais bonita.

- Essa, como está maluca, não entra no jogo. Põe-se de parte como se fosse moeda falsa.(1)

- Ora, dêem-ma para cá e eu lhe curarei a maluqueira.

Risadas de uns, protestos de outros, acerbas invectivas pessoais e não havia meio de poderem chegar a um acordo.

E no cerco daquela turba selvática do mais culto país do mundo, as mulheres tremiam como vimes que um vendaval açoitasse, abraçavam-se em convulsões de pavor, clamavam aflitivamente pela protecção do céu naquele angustioso lance em que já nada esperavam da piedade dos homens.

- Nossa Senhora seja conosco!

- Mãe de Jesus, valei-nos!

E a noviça doida de olhos cravados no céu, as mãos a baterem no peito, os lábios a tremerem-lhe numas orações,

 

*1. O chefe de batalhão, Guingret, já tantas vezes aqui citado, é um terrível e insuspeito depoente. Na sua Relation historique, revelando as atrocidades e torpezas daquela campanha, escreveu: «Deu-se uma coisa singular nesta guerra, da qual nunca apareceu notícia, e foi que a relaxação dos costumes chegou ao ponto de venderem as mulheres. Também eram trocadas por cavalos de transporte. Assisti a um jogo de cartas em que se apostava uma rapariga muito nova contra um objecto de luxo.

«Eu mesmo fui muito instado por um condutor de víveres para lhe ceder por dois dobrões uma mulher que se refugiara numa aldeia da circunscrição do meu acantonamento».

E de páginas 118 a 127 do seu livro, Guingret esboça um quadro repugnante da perversidade e desmoralização a que chegara aquele exército invasor de que fazia parte.

 

que lhe saíam como gritos, em golfadas de soluços.

- Santa Maria... Mãe de Deus... rogai por nós...

Os soldados desavindos já se agrediam a murro. Alguns, mais astutos e audazes, deixaram a pugna e correram para as desditosas como aves de rapina. Era seu intento raptá-las em público enquanto se esmurravam os outros com direito maior à presa.

Mais clamores, gritos de mais intensa aflição daquelas desditosas. Mas o caso foi que um deles conseguiu alcançar a noviça, levantá-la ao colo e meter-se por entre os brigões para fugir. A pobrezinha dava uns gritos desvairados.

Teve o raptor a má fortuna de tornear para o lado onde estava Luís de Castro.

- Ah! bandido! - clamou o moço capitão, tomando-lhe o passo - Larga essa desventurada ou atravesso-te como se fosses um cão!

Surpreendido, assustado por aquela ameaça de um oficial que não conhecia, mas lhe falava em francês como os outros do seu regimento, o soldado parou e afogueou-se, apesar do espantoso afrouxamento a que tinham chegado todos os laços da disciplina militar.

- Esta é maluca e ninguém a quere - alegou.

- Selvagem, a essa a protejo eu. Larga-a dessas tuas mãos de gatuno, ou ficas aí estendido - ameaçou desembainhando a espada.

- Castro, veja o que faz! - segredou-lhe Cândido Xavier.

- Quere-a para si, mas então há-de pagá-la - disse o soldado, desprendendo a noviça, que desmaiara e cairia no chão se Castro a não tomasse nos braços.

- Meu Deus! - exclamou o capitão de granadeiros reparando no rosto da noviça - Laura! Aqui.

- Gosta dela. Tem de a pagar.

- Pago, sim, ladravaz. Tens seis dobrões(1) se me fores buscar um cavalo das cantinas para eu levar daqui esta senhora.

- E é p'ra já. Por seis dobrões ia eu buscar um cavalo ao inferno.

- Vai. Não quero o desgosto de te ouvir. Esperarei além, por detrás daquele olival, meio queimado.

O soldado deitou a correr para a cantina próxima, que tinha um sofrível cavalo de transporte.

- Muito nova e linda - disse Cândido Xavier, fitando a noviça, que Luís de Castro recostara no chão.

- De uma nobre família. E irmã da esposa de Henrique, foi a minha companheira, os meus amores da infância!

- Mas aqui?

- Tinha entrado num convento de Santarém. Fugiu com outras, provavelmente. É preciso afastá-la

daqui.

A duzentos passos dali os contendores tinham-se acalmado, graças aos esforços conciliadores de dois sargentos, e dispunham-se a organizar o jogo proposto.

- Falta aqui a freira!

- Já nos pilharam a maluca!

- Essa não se joga.

- Mas havemos de apanhar o ladrão!

Era cada vez maior o alarido pungente das cativas. Aproximaram-se dois oficiais superiores franceses. Maurin e um outro, também das relações de Luís de Castro.

- Ainda bem que chegaram. Podem evitar mais uma afronta à honra da França.

 

*1. O dobrão, moeda grande de oiro, valia em moeda portuguesa vinte e quatro mil réis.

 

Resumiu-lhes a cena revoltante que presenciara dali e informou-os em meia dúzia de palavras a respeito da noviça.

- Salvem aquelas desgraçadas, entreponham em favor delas toda a sua autoridade e todo o seu esforço. Eu acudirei por esta.

- Iremos defendê-las, mas a disciplina está de rastos e esta rapinagem ignóbil adquiriu foros de direito, contra os quais nem o próprio Massena tem já força moral para se impor! Alegam-se as atenuantes das privações, dos sofrimentos, da fome.

- Que lástima e que depravação de atenuantes! - disse Luís de Castro, de joelho em terra ao pé de Laura.

- Vamos ter com aqueles bandidos - disse-lhe Maurin - vamos, Luís de Castro, mas olhe que sem grande esperança de sermos atendidos.

- Ofereça-lhes quinhentos ou seiscentos francos de resgate, em meu nome, já que chegámos a esta ignomínia de escravatura branca! Pagá-los-ei logo.

- Depois? Onde as salva da brutalidade doutros, dos que têem dragonas de oiro e fardas bordadas? Não tem visto por aí algumas dessas raparigas roubadas, que já se resignaram com a sua sorte e são agora amantes de generais e coronéis?

- Tenho, mas procurem salvar aquelas. Irei eu pedir a Massena que as deixe acolher em Santarém. E não se demorem aqui. Tenham dó das pobres mulheres, dó da própria honra da sua farda. Bem hajam.

Maurin e o outro oficial foram para a turba dos jogadores. Castro levantou Laura nos braços e encaminhou-se para o olival que indicara ao soldado raptor.

- Eu vou consigo -disse-lhe Cândido Xavier - Pode ser preciso defendê-la.

O olival ficava cerca de meia légua dali.

Era franzino o corpo da noviça, mas ia como morta e aquele estirão por terrenos alagados custou a Luís de Castro um esforço fatigante. Para além do olival havia uma colinazita enxuta, coberta de relva. Passava-lhe ao pé um regatozito que as chuvas dos dias anteriores haviam turvado.

Depôs Laura sobre um talhão alto de relva e pediu a Cândido Xavier que lhe fosse molhar o lenço no regato.

- A minha noiva ingénua dos doze anos! - disse piedosamente, de joelhos, olhos fitos naquele rosto branco de neve, emagrecido, numa expressão de pavor e numa inércia de morte. A minha pobre Laura! Traços de amargura neste rosto de santa!

Sem lhe lembrar que eram uns traços fixos da loucura mansa! Cândido Xavier trouxe-lhe o lenço embebido em água. Castro banhou as fontes da noviça, carinhosamente.

- Uma santa - explicava ao Major - A minha namorada do tempo em que éramos crianças.

- E foi meter-se num convento!

- Por minha causa. Fêz-se mulher, mudou-se-lhe em amor de sacrifício a sua inclinação por mim desde criança! É um remorso que...

Volta a si! Laura! Laura! Olha, sou eu quem te ampara e defende... Não olhes assim... não tenhas medo. Sou eu, o Luís... o teu companheiro de pequenito... o filho de D. Matilde de Castro.

Transmudaram-se em olhares de mágoa os primeiros olhares de terror da noviça. Pôs-se de joelhos. Parecia fazer um esforço amargurado para se recordar.

- Nossa Senhora me perdoe! - disse num tom de dolorida infantilidade, sem o desfitar - O Luís foi para França... Vão os tambores a tocar na sua frente! Há que tempo foi!

Castro confrangeu-se. Era ela a doida a que o soldado se referira.

- Mas voltei. Olha, Laura, estou aqui para te defender, noiva pequenina...

- No jardim... Tantas flores! Foi-se embora.., foi... Queria-lhe muito! Não me faz Nossa Senhora o milagre!

- Qual milagre, Laura?

- De mo tirar do sentido!

Cruzou as mãos e pôs-se a rezar baixo, fervorosamente, baixando os olhos.

- Enlouqueceram-na os bandidos! - disse o Castro para Cândido Xavier.

- Faz dó. Já tinha percebido. Ouvi que tem havido mais casos assim.(1)

- Mas repara, Laura. Tu lembras-te de mim... de Luís de Castro.

Laura ficou a cismar.

- Foi-se embora... os tambores na frente! Já me não pode defender! Mataram a outra!

E logo, baixando a voz, disse como num suspiro:

- Tinha amor à outra... Foi ter com ela! Chegou o soldado com um cavalo da cantina. A

noviça estremeceu e pôs no soldado um olhar de imenso terror.

- Não tenhas medo, Laura - segredou-lhe carinhosamente - Olha para mim. Sou eu, Luís de Castro.

Desapertou um cinto de dinheiro, tirou dele os dobrões que prometera e atirou-os ao chão.

- O preço. Depressa, fora daqui, bandido!

 

*1. Descrevendo o estado horroroso das populações que podiam voltar aos seus lares, o inglês John Jones diz «voltavam às suas habitações com o corpo macerado pela abstinência e o espírito obscurecido por longos e continuados pavores: entre eles davam nas vistas raparigas de dezasseis anos, que tinham ficado idiotas e pelo aspecto físico pareciam mulheres de cinquenta.» (Histoire de la guerre d'Espagne et Portugal, tradução francesa, tomo I, pág. 201, edição de 1819).

 

O soldado, um patifório avezado àquelas traficâncias, apanhou o dinheiro rapidamente.

- Que vão a Santarém buscar o cavalo. Lá o pagarei - disse o Castro.

O soldado fêz-lhe a continência e deitou a correr.

- Tem destas ignomínias o exército de maiores glórias que ainda viu a Europa!

- Mas você quere ir a Santarém, sem licença? - preguntou-lhe Cândido Xavier.

- Vou. Sei que Massena foi para lá, irei pedir-lhe protecção para esta desditosa, a quem estremeço como irmã. Conto encontrar auxílio devotado em D. Isabel Pamplona e terei, por ventura, a interceder por mim o coração bondoso da...

- Pequena marechala, já sei.

- Essa. Vamos a ver agora se resolvo a minha pobre Laura a ir comigo.

- Mas eu vou também, se você quere.

- Obrigado, Major. Era uma caminhada fatigante, maior favor seria então ir desculpar-me ante o general Fririon, por esta pequena violação das suas ordens.

- Pois sim. Você com certeza não pode vir à apresentação da tarde.(1)

- Decerto não. Como vou para a rectaguarda do exército, para uma povoação ocupada pelos franceses, não é provável que me suponham numa tentativa de deserção.

- Receio que tenha algum mau encontro.

- Irei pelo caminho em que mais me afaste dos acampamentos.

Inclinou-se para Laura, agora ajoelhada ao pé dele a rezar.

 

*1. Conta o general Pamplona, em uma das alegações da sua Memória Justificativa, que os oficiais portugueses andavam muito vigiados e que êle e o Marquês de Alorna tinham de se apresentar no quartel-general, pelo menos, duas vezes por dia.

 

- Laura, vou levar-te a Santarém, para o teu convento. Queres ir, sim? Não tenhas medo. Sou eu quem te defende, o Luís. Não respondes! Choras! Vê se me reconheces. Pela memória de tua Mãe, por tua irmã Branca, ouve-me, atende-me, vem comigo.

A pobre enlouquecida olhava muito fito para êle. Castro levantou-a ao colo para a colocar sobre a sela do cavalo. Cândido Xavier auxiliava-o.

- Uma dor de alma! - disse baixo para o Major.

- Mas olhe que isto assim é um risco para a pobre menina - segredou-lhe Cândido Xavier.

Laura deixara-se colocar na sela, numa completa inconsciência da situação, sempre a rezar.

Todavia percebia-se bem que lhe davam consolo as palavras acariciadoras de Luís de Castro. Já não tinha no olhar a expressão de pavor com que a princípio fitava os dois oficiais.

- Vou eu a pé, amparando-a como fôr possível.

- É uma fadiga enorme.

- O que hei-de eu fazer-lhe? Ouviu-se um tropel de cavalos.

- Mau! - disse Cândido Xavier.

Vieram para eles dois oficiais franceses. Um era Maurin. Laura espavoriu-se, Castro amparou-a carinhosamente, dizendo-lhe palavras reanimadoras.

- Estão resgatadas as outras desditosas - disse Maurin.

- Devo a importância do resgate, pago-o já - disse o Castro, dispondo-se a desafivelar o cinto.

- Pagámo-la nós - acudiu Maurin, indicando o outro oficial - Assim atenuaremos aquela infâmia.

- Bem hajam por esse misericordioso resgate.

- Deixámos as pobres raparigas sob a guarda de uns oficiais de dragões, a quem pedi auxílio. Disseram-me que tinha vindo para aqui. Desejo saber o destino que projecta dar-lhes.

- Levá-las para Santarém, parece-me o mais seguro.

- Será preciso obter o assentimento de Massena.

- Vou eu pedir-lho e conto com êle. Podia o meu amigo realçar a sua bendita obra de generosidade, mandando-as conduzir já para Santarém, guardadas por gente de confiança. O Marechal decidiria depois, como entendesse.

- Pois sim - aquiesceu Maurin.

- Desse modo a sua amizade obsequiadora atenua cavalheirosamente uma das maiores amarguras e das mais violentas indignações que eu tenho tido nesta campanha! Dêem-me licença. Tenho de acompanhar esta minha desventurada companheira de infância, quási irmã adoptiva.

- A pé?!

- Sim, a pé.

- Mas cedo-lhe eu o meu cavalo. A meia légua daqui encontrarei outro.

Castro agradeceu-lhe afectuosamente e aceitou. Disse a Laura umas palavras reanimadoras e montou a cavalo. Colocou-se muito ao lado dela para a levar amparada.

- Não vai assim com segurança - observou-lhe Maurin - Tenha paciência de esperar. Eu mando-lhe cá a cantineira do regimento, uma honesta e resoluta mulher, que levará essa menina diante de si. É muito melhor e mais seguro.

- Mil agradecimentos, mas receio alguma grande demora.

- De meia hora, se tanto. Encontrei a cantineira a meio quarto de légua daqui, a apanhar lenha num olival.

- Então vou lá eu chamá-la - disse o outro oficial francês. - O meu cavalo leva-me lá em sete ou oito minutos.

- Pois sim - respondeu-lhe Maurin.

O oficial, ajudante do batalhão de Maurin, meteu à desfilada para o olival. Vinte minutos depois voltava com a cantineira, mulher robusta, já de cabelos brancos.

Ajudaram-na a subir para a sela e Castro pôs-lhe no colo a noviça enlouquecida.

- Queria o meu noivo... de quando era pequenita! - soluçou Laura, a querer repelir de si os braços da cantineira.

- Laura, vou aqui contigo. Vê bem, sou eu. Olhou-o muito, deu um longo suspiro e pôs-se

outra vez a rezar, de olhos fechados.

- Boa jornada - disse Maurin para o Castro.

- Até amanhã talvez.

- As outras lá irão ter. O ajudante pode ir adiante. O sr. Major Xavier e eu iremos de nosso vagar, cavaqueando...

O ajudante deitou a trote largo para a frente e os dois lá foram a pé, conversando.

Assim que chegou a Santarém, Castro levou Laura para o convento donde todas as freiras e noviças tinham fugido, menos a abadessa, uma velhinha de setenta anos, que mal se podia mexer e ficara com duas criadas, também idosas.

A pobre velhinha ficou cheia de surpresa e de mágoa. Aquela era a sua sobrinha dilecta, que ali fora acolher-se muito de sua vontade, havia dois anos, como já sabemos.

Castro remunerou generosamente a cantineira e foi logo procurar Massena, que ali tinha chegado em 20, para examinar as posições militares daqueles sítios.

Já na previsão de uma retirada, ali mandara proceder à instalação de um grande hospital, para aonde foram transferidos os doentes deixados em Alenquer e uma parte dos muitos que havia pelos hospitais provisórios dos corpos de exército.

Também lá estava a pequena marechala. Castro contou ao Marechal todas aquelas torpíssimas cenas a que assistira, e pediu-lhe com sugestiva instância permitisse que as pobres mulheres fossem asiladas ali, em Santarém, concedendo-lhes assim o seu alto patrocínio. Percebia-se que o Marechal tinha ficado profundamente impressionado com estas informações.

Estavam presentes, como em reunião íntima, a companheira do Marechal, o Marquês de Alorna e o general Pamplona. Pelet, que viera com Massena, ainda não tinha voltado de um reconhecimento especial para os lados de Rio Maior.

A francesa comoveu-se muito. Estavam cheios de lágrimas os seus belos olhos entristecidos. Os dois generais portugueses associaram o seu pedido ao de Luís de Castro e a pequena marechala intercedeu pelas pobres mulheres enternecidamente.

- Pois sim. Metam essas mulheres onde quiserem e eu mandarei que as respeitem e protejam.

- Sr. Marechal, é uma grande obra de justiça e de generosidade - disse-lhe Luís de Castro.

- Eu hei-de pôr cobro a esses desaforos do exército! Assim que me chegarem reforços de provisões, acabará a pilhagem. Entretanto... eu não posso condenar o exército a morrer de fome. Mas tudo isto há-de mudar.(1) Quanto a violências e barbaridades,

 

*1. Na sua História do Duque de Wellington o general belga Brialmont transcreve estas palavras de uma circular de Massena aos seus generais, expedida de Santarém: «A honra das armas do Imperador e a generosidade do carácter francês se revoltam igualmente contra semelhantes atrocidades. Se nos não apressarmos a reprimi-las, em breve estaremos abaixo de todas as nações civilizadas.»

Infelizmente foi letra morta.

 

a culpa também é dos milicianos ferozes e dos selvagens montanheses do seu país. Todos os dias recebo informações das atrocidades dessa gente.(1) Saem das cavernas das montanhas como bestas-feras e caem de surpresa sobre os meus soldados, assassinando-os como cafres! Mutilam-nos, arrancam-lhes os olhos, espedaçam-nos! Chegam a açular os cães de guarda contra os feridos franceses!(2)

- Sr. Marechal, é a loucura trágica das represálias. Velhos paralíticos foram obrigados a caminhar, espicaçados à baioneta - por soldados que não eram dignos de que vossa alteza os comandasse, mulheres e crianças têem sido envilecidas e estranguladas por eles.

- Pois sim, mas para esses selvagens assassinos não caia nunca em vir pedir-me clemência. Mandá-lo-ia sair desabridamente.

- Sr. Marechal, não pedirei por esses. Uns liquidarão as contas dos outros.

Entrou Pelet, muito afogueado.

- Sr. Marechal, isto não pode continuar assim!

- Que houve?

- Um dos nossos destacamentos, surpreendido nas proximidades da Serra de Tôrres-Novas, foi batido pela tal guerrilha negra, de dia para dia mais audaciosa! Eram oitenta granadeiros, voltaram quinze. Dizem-me que é comandada por um velho agigantado, que foi oficial do exército português.

 

*1. Di-lo o coronel inglês Carlos Napier, na sua história da guerra Peninsular.

  1. «Em Vila Cova - conta um folheto daquele tempo - o bacharel José Freire de Faria, presbítero de quarenta e nove anos de idade, como fugisse estendido em um carro, por gotoso, os franceses o apearam, e a poder de golpes o fizeram trepar a pé uma ladeira e no alto dela lhe esquartejaram a coroa e rasgaram o ventre, despedaçando ali mesmo o pai deste infeliz, a quem tinham obrigado a ser espectador de semelhantes barbaridades!»

 

Luís de Castro estremeceu. Percebia aquela referência a Manuel de Albuquerque. A francesa relanciou um olhar para esse que uma vez a salvara das mãos do audacioso guerrilheiro.

- Duzentos ou trezentos dragões que lhe vão dar caça. Que mo tragam. Será estrangulado em pleno acampamento, depois de lhe terem rebentado a pele às pranchadas.

- Dou-te um tiro, se tal suceder - disse o Castro consigo, torvamente.

- Mas há ainda coisa mais revoltante, a exigir punição maior! Os paisanos foragidos fazem sortidas dos covis sobre a nossa gente e matam em requintes de inaudita barbaridade.(1) Estão ali cinco soldados com uma mulher prisioneira. Aquela fúria caiu com um bando dos assaltantes sobre um destacamento de vinte homens do 16 ligeiro. Os outros foram despedaçados. O alferes comandante entrou no hospital horrivelmente desfigurado. Tinham-lhe arrancado os olhos.

- Mãe de Jesus! - exclamou a francesa.

- Um horror! - comentou Pelet.

- E porque trazem essa mulher em vez de me trazerem os selvagens que a acompanhavam?

- Porque foi ela mais enfurecida na chacina. Foi ela quem arrancou os olhos do alferes.

- Mande-me cá vir esse monstro. Quero ver essa fera,

 

*1. Conta Rocca nas suas Memórias que os camponeses, apertados pela fome e em desesperos de vingança, saíam dos seus esconderijos, desciam aos vales, emboscavam-se à beira das estradas e esperavam os franceses nas passagens difíceis, para lhes tirarem as subsistências que eles próprios tinham ido buscar por meios violentos.

«Um camponês das imediações de Tomar tinha escolhido para asilo uma caverna pouco distante da vila, e matou às suas próprias mãos mais de trinta franceses, que conseguira surpreender dispersos e aos quais tirara cerca de cinquenta cavalos e mulas».

 

quero ter o prazer de lhe anunciar que vai ser retalhada à chibatada e enforcada pelos tambores!

Pelet saiu.

- Veja se quer que eu também me compadeça daquela fúria! - disse, colérico, voltado para Luís de Castro.

- Outras, sem conta, mansas como pombas têem-morrido martirizadas, sr. Marechal!

- É melhor retirar-se - disse Massena para a francesa - Pode incomodá-la a presença dessa mulher hedionda.

- Já vi coisas piores. Vivia em Paris nos dias do Terror. Debaixo da minha janela despedaçaram um velho, a quem a filha amparava nos braços.

Avincou-se o rosto de Massena. Tinha percebido o intento clemente da francesa, procurando naquele exemplo uma atenuante para o crime da outra.

Apareceu Pelet. Dois granadeiros puxaram para dentro uma mulher seca e pálida, de cabelos brancos,, o vestido em farrapos, salpicado de sangue.

- Capitão Castro, diga a esse monstro que a vou mandar chibatar e que será depois enforcada.

- Marechal, talvez fosse de boa justiça ouvi-la, Quem sabe se foi ela? - disse-lhe baixo a amante.

- Não tente levar-me para complacências que não quero ter.

- Ouvi-la apenas - instou a pequena marechala.

-, Pois bem, seja. Pregunte-lhe lá, capitão Castro por que estímulo praticou aquela atrocidade. Que nenhum estímulo a pode justificar, mas, enfim, pregunte-lho.

Contrafeito, oprimido, Castro obedeceu.

- Acusam-na de ter arrancado os olhos a um oficial francês. É verdade?

A mulher olhou um instante para Luís de Castro, estranhando ali aquele oficial que lhe falava em português.

- Responda o que tiver em sua defesa.

- Não tenho nada que me defenda. é verdade. Fiz-lhe o que êle me devia ter feito a mim, por misericórdia, para eu não ver o seu desalmado

crime. Castro repetiu em francês esta resposta da mulher.

- Mas que lhe fêz o oficial, pregunte-lho.

- Qual foi então o crime do alferes francês?

- Deu-me a dor maior que se pode dar a qualquer mãe, a qualquer, ainda que seja um bandalho das ruas!

- Diga claramente o crime a que se referiu.

- No covão da serra onde eu estava escondida com a minha filha - ai Deus da minha alma! com aquela filha de dezassete anos que era tudo o que eu tinha no mundo! - entraram uns soldados franceses para roubar. Nós tínhamos lá umas coisitas de ouro, mas isso era o que menos me importava. Abracei-me à minha pobre Luísa, estarrecida, doidinha de pavor, e fiz sinal aos soldados para eles saberem o sítio onde tínhamos o ourozito. Que o levassem, mas não fizessem mal à minha filha.

«Foram buscá-lo, e eu então de joelhos, de mãos postas, pus-me diante da pobrezinha para a defender, para que ma não tirassem, para que lhe não fizessem mal. Um dos soldados, o que parecia de mais idade, começou a puxar pelos outros p'ra fora, assim como se estivesse compadecido de mim.

Estremeceu-lhe o peito num soluço, torturador, enorme, como se fosse um arranco.

«Deus desamparou-nos, e foi então que o oficial entrou! Ordenou que me prendessem ali. Amarraram-me. Depois mandou sair os soldados. Deus me perdoe, mas seria misericórdia sua cegar-me, já que o desalmado não tinha tido a caridade de me arrancar os olhos como eu ontem lhos arranquei a êle!

«Ao pé de mim!... a minha querida filha!

«E como ela suplicava piedade, nuns gritos que faziam pavor, o monstro deitou-lhe as mãos ao pescoço e arroxeou-lho. Os olhos dela esbogalharam-se-lhe a procurarem os meus e eu amarrada, sem lhe poder acudir! Ai Nossa Senhora, como a gente não pode morrer em certas horas de horror! Matou-ma, fugiu. O que eu chorei! Foi chorar para todo o resto da minha vida! Há três dias que a enterraram e nunca mais tive lágrimas! Veja os meus olhos secos, nunca mais torno a chorar!

«De tanto que gritei foram dar comigo ao covão dois homens de uma guerrilha que anda toda vestida de preto. Desamarraram-me, enterraram a minha filha e depois levaram-me à presença do chefe, um velho alto como um castelo.

«Vou eu com a minha guerrilha para te vingar - disse-me -, Vem para nos mostrares esse desalmado, se o ficaste conhecendo.

«Ora, se o conhecia! Trazia o retrato nestes olhos que já não podiam chorar! Fomos para a povoação que eles andavam a saquear, eu e uns trinta da guerrilha, o chefe tinha ido combater contra os franceses. Entre a farrapagem espalhada pelas ruas vi um sovelão de chacinar porcos. Apanhei-o. Fomos dar com o oficial, os guerrilhas estenderam-lhe os soldados quási todos. Eu não queria senão o matador de minha filha. Caí sobre êle como uma loba, e foi a terra!... Deus de misericórdia, o sovelão fêz o resto! Agora até era caridade matarem-me, e Deus livre as outras mães, as piores mães, de verem as suas filhas como eu vi a minha!

Parou arquejante, como se um mar represo de lágrimas lhe ondeasse no peito.

Massena e Pelet tinham observado com interesse o estranho gesticular daquela mulher de cabelos brancos.

A francesa notou-lhe a expressão dolorida do rosto, cruzado de rugas que pareciam caracteres de uma linguagem de amarguras e, a contrastarem com a sua fisionomia devastada pela dor, uns olhos desvairados que não choravam.

Um pouco afastado, Alorna e Pamplona comentavam baixo, tristemente, a situação horrivelmente trágica da pobre mulher.

Castro repetiu em francês, numa comovida e sugestiva fidelidade, todos os dizeres da desventurada mãe. Turvou-se a fisionomia de Massena. A francesa, muito pálida, tinha os olhos cheios de lágrimas.

- Se não é história inventada por ela...

- Sr. Marechal, tenho ouvido que há dezenas de precedentes, desde os princípios de Agosto. Mas dado mesmo que esta mulher pudesse inventar tal história, só se fosse uma extraordinária actriz, nesta sua simplicidade de mulher do campo, saberia pôr tanta dor, tamanho desespero, tal corajosa sinceridade na linguagem chã e opressiva do seu conto. Mas então choraria para fingir melhor, e ela própria diz que não pode chorar. Há dores assim, são as maiores, as que mais se avizinham da loucura, as que mais se acercam da morte.

- Diz bem, sr. Castro - apoiou a francesa piedosamente. Levantou-se e foi para junto do Marechal.

- Perdoe-lhe - suplicou docemente - Não a mande matar.

- É preciso um exemplo.

- Tem de começar então pelos violadores e assassinos de mulheres - disse-lhe baixo, mansamente.

- Matam-na os soldados lá fora.

- Dê-lhe protecção. A dor se encarregará de a matar a ela: a daquela mãe não tem igual, há-de ser o seu pior verdugo.

Abalado, compadecido, o Marechal disse a Pelet que mandasse retirar os soldados, postados ainda do lado de fora da porta. Assim que eles se retiraram, voltou-se para Luís de Castro, disse-lhe secamente:

- Não posso, não devo mandar pôr essa mulher em liberdade. Mas o crime do alferes foi de espantosa atrocidade, mais grave ainda por ser de um oficial, perdoo a pena de morte a essa desvairada.

- Bem haja - disse-lhe a francesa num requinte de enternecida gratidão.

- Mas é preciso conservá-la presa. Veja se lhe lembra o meio de a termos reclusa, sem a abandonar às vinditas dos soldados.

- Vossa alteza manda que os seus criados a vão fechar em qualquer quarto seguro desta casa. Eu à noite venho buscá-la e a ocultas a levarei para uma cela daquele convento em que vão asilar-se as outras por quem lhe pedi.

- Pois sim.

Chamou dois criados e ordenou-lhes que levassem aquela mulher para algum quarto onde a pudessem ter fechada.

Um deles lembrou um quarto do pátio da cisterna.

- Seja esse. Fechem-na, levem-lhe alimento e nem palavra a respeito dessa mulher.

A desgraçada saiu entre os criados com uma indiferença que produzia estranheza. Mas o seu olhar ofuscara-se muito, como se uma nuvem mais densa de tristeza lho estivesse velando.

- Teve boa intermediária - disse o Marechal amoràvelmente, para a amante.

E logo, voltando-se para Luís de Castro:

- Mas será bom que nem o senhor nem as mulheres do seu país, vingadoras em tais requintes de barbaridade, confiem demais na minha complacência e no coração piedoso que intercedeu por esta.

- Nas recordações que hão-de ficar-me desta campanha, de tantas amarguras para mim que nunca mais se apagam, encontrarei sempre, senhor Marechal, a santa e grata lembrança de um coração feminil, tantas vezes misericordioso para os desditosos do meu país. Assim como do torvelinho de uma tempestade nos pode lembrar alguma flor sobre o pó dos caminhos, alguma suave luz sobre os negrumes do céu.

A francesa baixou os olhos afogueada. O velho amoroso sentiu-se lisonjeado com esta homenagem àquela boa e carinhosa companheira, a quem os generais, seus imediatos, algumas vezes tinham humilhado rudemente.

Apareceu um dos criados. Vinha lívido.

- Quem é?

- Quando íamos no pátio, a mulher empurrou-nos de surpresa...

- Bestiagas! Deixaram-na fugir? Fugiu?

- Sr. Marechal, foi para se matar que nos fugiu!

- Para se matar!

- Correu para a cisterna, que estava aberta, e atirou consigo lá para baixo, a dizer aos gritos umas palavras que a gente não entendeu!

- Mas deviam fazer alguma tentativa para a salvar! - disse a francesa numa grande excitação nervosa.

- Minha senhora - alegou o criado - a cisterna faz medo de tão funda que é! Ainda estivemos a olhar. A água, que parecia negra, avermelhou-se de sangue. A mulher esmigalhou a cabeça nas pedras.

- Retire-se! - rouquejou o Marechal num movimento de opressão moral.

- Infelizmente adivinhei eu o sentir daquela mulher! - disse a francesa numa tremura de voz - Levava consigo quem a devia matar sem nenhum dó. Era o seu próprio coração de mãe.

 

               Enfim.

Alguns oficiais portugueses assistiram à despedida do general Foy, de quem sempre tinham recebido palavras de justiça e de simpatia.

O general ia a Paris por ordem de Massena, para expor ao Imperador a situação gravíssima do exército muito reduzido de forças, com os hospitais atulhados de doentes, numa escassez inquietadora de munições e de subsistências, quási faminto, a viver da pilhagem, diante de umas linhas formidáveis, com todas as comunicações para a fronteira espanhola cortadas pelos guerrilheiros e milicianos.

Um emissário bem escolhido, aquele.

Coronel de artilharia no exército de Junot, durante a primeira invasão, general de brigada no exército de Soult, durante a segunda, excelente observador dos homens e das cousas, Foy saberia falar ao Imperador umas informações especiais a respeito de Portugal, que Napoleão conhecia apenas pelos mapas, e da nossa gente, que êle supunha talvez muito abastardada da outra dos tempos épicos, modificada naquela história a que chamara uma escola de heroísmo.

Nem o marechal Ney, nem Reynick e Junot viam com bons olhos aquela missão. Foy era homem para dizer tudo e para o dizer bem.

Ney tinha vindo ao quartel-general em chefe e disse escarninho para o Marquês de Alorna, quando viu partir o general Foy à frente de três batalhões:

- Vejam a honra que prestam aos milicianos do seu país! Para escoltar um general daqui até Almeida, quási uma brigada!

- É de boa prudência - respondeu-lhe Alorna a sério - Os três batalhões vão só até Almeida.

- Só até lá. Pela Espanha dentro bastam a Foy as ordenanças de dragões. Estão em poder das nossas tropas as grandes cidades e as grandes estradas do país vizinho. Mas que diabo! Acho gente demais para uma escolta. Com metade, talvez, chegou Junot a Lisboa e sei que havia então no país trinta mil soldados.

- No papel - replicou Alorna - Os dirigentes fugiram da cidade e a traição abriu o caminho para lá aos galuchos de Junot.

- Pois seja como quiser, mas com cerca de três mil soldados de Napoleão devem poder bater-se vinte mil milicianos.

- Conforme os milicianos forem, sr. Marechal. Ney afastou-se sacudidamente, sem lhe dar resposta.

Chegou do Sobral um ajudante-de-campo de Junot e foi falar a Massena. Meia hora depois o general Fririon mandava chamar Luís de Castro.

- Nos postos avançados está um parlamentário português, portador de uma carta singularíssima de Wellington para o Marechal. O general inglês propõe a entrega de dois oficiais franceses prisioneiros pela permissão de passagem e temporária permanência à retaguarda do nosso exército, a um velho polaco e duas senhoras que desejavam vir ao encontro de uma pessoa muito estremecida. Wellington diz o nome do polaco: André Pulaski, salvo erro, porém não diz o nome das senhoras, nem o da pessoa que desejam visitar aqui. Mas o parlamentário português declarou confidencialmente, ao comandante do posto que o recebeu, quem era a pessoa que desejavam ver. Trata-se da sua pessoa, sr. Luís de Castro.

- E o senhor Marechal aceita a proposta? - preguntou o Castro, muito afogueado.

- Aceitará, conforme as respostas que o senhor me der. O Marechal está-lhe muito grato pelas atenções com que tem tratado a senhora que o acompanha e à qual o sr. Castro já por duas vezes salvou a vida, ou, pelo menos, a liberdade. Parece-me que o generalíssimo ficou muito satisfeito com este ensejo de lhe ser agradável, e tanto que foi logo contar o caso à senhora que sabemos. Mas o Marechal porá as seguintes condições: Que todas as bagagens e papéis do polaco e das senhoras que o acompanham sejam examinados por um dos nossos oficiais, que nem êle nem elas possam voltar para o lado do inimigo, durante a guerra, nem deixem de acompanhar o exército francês durante as operações. O senhor e as suas visitas ficariam sob especial vigilância e por nenhum pretexto se poderiam aproximar dos postos avançados. O Marechal, cuja primeira impressão foi de justificada estranheza pela singularidade da proposta, acederá pelas razões que lhe disse: mas acautela-se contra qualquer possível tentativa de espionagem e deseja conhecer a origem das suas relações com o polaco e as razões prováveis de tão extraordinária resolução.

- Mal conheço pessoalmente André Pulaski. Só uma vez o vi de relance e numas atormentadoras circunstâncias.

- É extraordinário isso!

- Mas André Pulaski é tio estremosíssimo de uma senhora que viveu em Lisboa e que eu amo profundamente.

- E será ela uma das damas que o acompanham?

- É possível, é talvez provável.

- Admira que esse tio, um velho como diz a carta de Wellington, queira vir correr os riscos da vida dos acampamentos com uma senhora, certamente nova.

- De vinte anos.

- É extraordinário! Tem o quer que seja de novelesco!

- Peço perdão, General. V. ex.a sabe de senhoras muito novas que têem acompanhado os maridos nas campanhas.

- Sei, mas o caso agora é diferente. Uma menina de vinte anos vem correr os maiores perigos, para ver o dilecto do seu coração nas mais impróprias circunstâncias para uma entrevista de amor! Não é o mesmo que uma esposa ou uma amante, acompanhando o marido ou o homem preferido na vida rude e arriscada dos acampamentos.

- Maria Pulaski, se é ela quem acompanha o tio, que eu sei completamente disposto a fazer-lhe todas as vontades, tem ânimo resoluto e considera-se minha noiva. O pai opunha-se a princípio ao nosso casamento, opunha-se ferozmente, mas perdeu a antipatia que tinha por mim e deixou que o irmão, André Pulaski, compartilhasse os seus encargos e direitos de pai. Há cerca de ano e meio, em certa capela de Baiona, era interrompido pelos protestos violentos de João Pulaski o acto do meu casamento clandestino com a filha. Se v. ex.a quiser ver o meu registo disciplinar, encontrará lá a única punição que tenho tido. Foi em Baiona que ma aplicaram por ter tentado casar-me sem as licenças legais.

- Não é preciso, sr. Castro. Sei o suficiente para desvanecer as suspeitas do Marechal, que aceitará a proposta de Wellington. Provavelmente, o polaco e a sobrinha vêem na intenção de seguir depois para Espanha, em direcção a França?

- É possível, mas então só se trazem salvo-conduto de Wellington para poderem atravessar o país até à fronteira. Não sei.

- Mas nisso é que o Marechal não consente. E a outra senhora será alguma parenta sua?

- Não me parece. Presumo que seja uma francesa, dama de companhia, ou melhor, mãe adoptiva de Maria Pulaski.

- Supunha eu que, se tivesse viva sua Mãe...

- Tinha... nas vésperas da batalha soube que vivia... mas muito doente e oprimida de ralações... Era eu o seu filho dilecto. Essa quereria vir, mas não podia.

- Bem. Espere-me aqui. O Marechal responderá ao generalíssimo inglês.

- Um favor.

- Diga.

- Que na resposta sua alteza se abstivesse de qualquer referência a mim. Não posso adivinhar como as coisas se passaram, mas certamente poderosas influências se empenharam em obter de lorde Wellington essa proposta excepcional, e talvez não tivessem falado de mim, talvez lhe ocultassem que era um oficial português a pessoa a quem o polaco e a sobrinha desejavam visitar. É provável, sr. General. Disse-me v. ex.a que na carta do generalíssimo inglês não vinha o meu nome. É possível que, por disfarce, lhe houvessem falado de algum oficial polaco. Há tantos ao serviço do Imperador.

- Mas, porque haviam de ocultar-lhe o seu nome?!

- V. ex.a sabe. Nós, os portugueses que estamos aqui, fomos condenados por traidores, acusaram-nos de ter vendido a pátria à França. Wellington repeliria o pedido, desde que soubesse que era a mim, o traidor, a quem vinham visitar.

- Ah! sim, não me lembrava. Queira esperar-me aqui.

Luís de Castro esperava num alvoroço doido.

- Maria, deve ser Maria! - pensava - Que santa consolação eu vou dever-lhe! Mereço-lha pelos tantos dias atormentados que tenho passado neste pobre país. Mas correr tamanhos riscos para me ver! Haveria alguma coisa grave que a impelisse para aqui? Eu sei! Eu posso lá adivinhá-lo? Mas posso vê-la, falar-lhe, eis tudo.

Passeava num frenesi de impaciência. Foram uns cinquenta minutos de espera. Apareceu enfim Fririon.

- Plena concessão. O Marechal escreveu a carta para Wellington. Vai levá-la o ajudante que veio de Sobral. Satisfizeram-no admiravelmente as suas explicações. Estava a escrever quando chegou a pessoa que sabemos e logo lhe resumiu todas as explicações que eu lhe tinha levado. O Marechal está mesmo disposto a moderar as precauções a seu respeito e das suas visitas. E tanto que o ajudante tinha-lhe apresentado o pedido vocal do parlamentário para que lhe fosse permitido avistar o capitão Castro e falar-lhe com as cautelas que são de uso, mas o Marechal não lhe dera resposta. Pois agora concede-lhe licença para se ir avistar com o parlamentário a uma légua dos postos avançados, assistindo um oficial francês que entenda um pouco a língua portuguesa. O major Maurin, por exemplo. Agora diga o sr. se quere aceder ao pedido do parlamentário.

- Com todo o prazer. Provavelmente é algum amigo meu. Que eu tenho um irmão no exército, como v. ex.a sabe... Podia ser êle.

- Bem, seja quem fôr. Vou mandar chamar

Maurin e saem daqui os dois com a ordem escrita do Marechal e uma escolta de dragões.

- Os meus mais fervorosos agradecimentos, sr. General.

Segundo as instruções recebidas do chefe do estado-maior general, Maurin escolheu para lugar da entrevista um caminho enterrado entre dois outeiros, a cerca de uma légua do Sobral. Dali nem se viam as linhas dos aliados nem se podia avistar as posições e os acampamentos dos franceses.

Maurin mandou ao chefe do posto avançado do Sobral, por um sargento da escolta de dragões, a ordem de Massena para o parlamentário ser internado conforme os usos da guerra.

E ficou esperando com Luís de Castro. Conversavam. Duas horas depois aparecia à embocadura do caminho, entre dois dragões, um oficial português a cavalo. Atrás dele um oficial de dragões e o sargento que levara a ordem.

- Meu irmão! - exclamou Luís de Castro num estremecimento de júbilo.

Conhecera-o logo, apesar de o trazerem vendado.

- Não me engano. É meu irmão Henrique! - disse para o major Maurin.

O francês adiantou-se e mandou que desvendassem o parlamentário. O próprio subalterno de dragões o ajudou a apear e o desvendou.

- Luís! - exclamou Henrique de Castro - E logo cumprimentou Maurin.

- Concede-me que o abrace? - perguntou Luís de Castro ao major Maurin.

- Pois não...

Correu para o irmão. Abraçaram-se comovidamente. Luís afastou-se logo. Ficaram a seis ou a oito passos um do outro. Nada podiam dizer que Maurin não ouvisse.

- A Mãe, um pouco melhor, manda-te saudades e a sua bênção, Luís. Branca está mortificada pela irmã, noviça em um convento de Santarém.

- Bem sei. Vi-a.

- Já a viste?!

- Vi, defendi-a. Tinha fugido, foi apanhada,, obtive que a protegessem. Está no seu convento de Santarém.

- Bem hajas, Luís!

- O pavor que teve perturbou-lhe a razão.

- Enlouqueceu?!

- Pareceu-me loucura curável.

- Desditosa!

- Agradeço-te, Henrique, a incumbência que tomaste.

- Maria Pulaski é uma carinhosa amiga da nossa Mãe. Empenhámos as maiores influências para mover Wellington a fazer a proposta. É um amigo pessoal e acedeu, porque já havia um precedente de Massena, que lhe escrevera pedindo a troca de uns prisioneiros.

- Eu sei.

- Mas não lhe disse o teu nome. Falámos-lhe de um oficial polaco às ordens de Massena.

- Tinha-o já adivinhado.

- É falsidade sem consequências. Bem calculas porque foi necessário ocultar a verdade.

- Sei perfeitamente. Estou condenado à morte por traidor.

- As lágrimas que a Mãe tem chorado! O medo com que ela está de que te apanhem!

- Pois hás-de beijá-la por mim e afiançar-lhe que não tem Portugal outro traidor que o estremeça mais do que eu. Se fosse preciso testemunho de alguém, estava aqui o sr. major Maurin, que sabe o que eu tenho sido.

- Conheço-te, Luís. Defendo-te.

- O tio Jerónimo?

- Vive: escapou. O tio Manuel... está bem... apesar de já ter tido dois ferimentos.

- Abraça-os por mim. Maria Pulaski?

- Está numa aldeia, para lá das Linhas. Aldeia

que tu conheces - Pêro Negro. Espera que eu volte. Ela, André Pulaski e Ana Beauchamp.

- O pai de Maria?

- Completamente cego. Está em nossa casa, é nosso hóspede em Lisboa. Dá-se perfeitamente com o tio Jerónimo.

- Henrique, do fundo da minha alma, obrigado. Adeus! Até um dia, até ao dia em que eu possa voltar a Portugal, em condições diversas.

Correu para êle, abraçou-o comovidíssimo.

- Adeus!

- Luís. Deus seja contigo. Adeus! Tornaram a vendá-lo e o oficial de dragões ajudou-o a montar a cavalo. Voltou-se para o irmão:

- Provavelmente, amanhã ao romper do dia terão passado para cá das Linhas.

O irmão partiu entre a escolta.

Uma noite de alvoroço, de sonhadoras impaciências!

Massena concedera-lhe que fosse esperar o polaco à retaguarda dos postos avançados do Sobral, acompanhado de Maurin, que receara o encargo desagradável de mandar examinar as bagagens, vendo êle próprio todos os papéis que os internados trouxessem.

Ao romper da madrugada Maurin estava já com Luís de Castro, que mal se tinha encostado e apenas dormitara duas horas escassas. Montaram a cavalo, partiram. Estava um dia torvo, mas deixara de chover.

Apearam-se e ficaram esperando no alpendre de uma casa abandonada e em parte derruída, a um quarto de légua dos postos avançados. Decorrera meia hora.

- Lá estão já - disse Maurin,indicando um grupo que vinha já na faixa do terreno neutro.

- Duas senhoras e quatro homens - disse o Castro numa tremura de voz.

- Dois trazem o uniforme da nossa infantaria ligeira - observou Maurin - Hão-de ser os dois oficiais prisioneiros que Wellington generosamente nos restitui. Boas influências se haviam de ter movido em volta do inglês para êle fazer aquela proposta excepcional. Os oficiais do posto recebem-nos. Entrega-lhos um oficial dos aliados, que não traz o uniforme inglês. Será talvez seu irmão.

- Provavelmente.

- Mal imagina quanto me repugna o encargo que me deu o Marechal!

- O exame das bagagens e dos papéis?

- Isso.

- Pois não se incomode com semelhante encargo, meu caro amigo. Não se trata de uma cousa de excepção, que deva considerar-se vexame.

- Realmente é assim, mas custa-me!

- Estão tomando conta das bagagens - disse o Castro, indicando três muares carregadas de baús - Aí vêem já.

- Temos de tomar precauções por causa dos pilhantes - disse Maurin tristemente.

- E por causa dela! - pensou Luís de Castro.

- Para onde tenciona levar os seus hóspedes?

- Para Santarém. Fririon obteve licença do Marechal para eu residir na vila.

- Isso é melhor.

- Olhe, Major, estão já perto.

- Podemos ir ao seu encontro - propôs Maurin.

- Vamos, sim - disse Castro num transporte de júbilo - Foram a pé. Umas centenas de passos apenas e encontraram-se.

Maurin parou a meio caminho.

Maria, radiante, a tremer de comovida, olhos cheios de lágrimas, desprendeu-se do braço do tio. Afogueou-se-lhe o rosto emagrecido e pálido e fêz-se mais linda.

Luís foi para ela num arrebatamento de alma, mas conteve-se a dois passos de André Pulaski e cumprimentou-o cerimoniosamente.

Maria estendeu-lhe a mão a sorrir.

- Luís, é meu tio, o sr. André Pulaski, o meu segundo pai. Tu já o sabes.

- Sei.

- Fala-lhe em francês porque ainda poucas palavras entende da tua língua. O sr. Luís de Castro - disse para o tio.

- O teu noivo - interrompeu o velho, sorrindo - É melhor dizer assim.

- Sr. André Pulaski - disse-lhe o Castro comovidamente - só uma vez me foi dado vê-lo, mas, pelo que eu vim a saber depois, tenho agora pelo seu belo carácter o mais profundo respeito e pelo seu coração generoso uma estima e admiração como de amigo a quem há muito prezasse.

- Encontrei-o, sr. Luís de Castro, numa das mais desagradáveis conjunturas da minha vida. Fui então injusto, porque só o avaliava através de umas antipatias que, felizmente, se apagaram. Sei o que vale, ensinou-me a apreciá-lo uma pessoa que eu também não sabia avaliar justamente e a quem agora amo como pai e obedeço como dependente e devoto seu.

Sorriu para a sobrinha carinhosamente.

- Como pai por uma filha muito querida é que é - acudiu Maria com adorável meiguice.

- Seja como fôr, com uns extremos que ela merece e que eu não sei, nem que soubesse, quereria reprimir. Se é neles que eu encontro o maior encanto da minha velhice.

Honro-me apertando-lhe a mão, sr. Luís de Castro.

E apertou-lha afectuosamente.

- Dêem-me licença que eu fale a uma pessoa muito da minha estima - disse o Castro.

- Minha querida Ana Beauchamp - chamou Maria - venha aqui para o pé de nós.

Foi para ela.

- Aqui a tens, Luís. Repara: com os olhos cheios de lágrimas a nossa carinhosa amiga! Provavelmente a supor já que a tinhas esquecido.

- Podia lá ser, minha querida Beauchamp! - disse o Castro, beijando-lhe a mão.

- Ah! sr. Luís de Castro! - soluçou a francesa - Também a gente chora de alegria, e bem mereciam os dois esta bendita hora.

Castro acercou-se mais de André Pulaski.

- Dá-me licença que lhe apresente o maior amigo que tenho no exército francês? - pediu-lhe, indicando Maurin, que se conservara a larga distância.

- Pois não, com todo o gosto.

- É o benévolo vigia que me deram. Um grande coração e um honrado carácter. O seu encargo militar impunha-lhe a obrigação de estar aqui ao pé de mim, mas ficou ali por um sentimento de generosa delicadeza.

- Muito para se agradecer. Também vêem aí atrás uns polícias a cavalo, e o oficial que os comanda teve a amabilidade de nos pedir que viéssemos seguindo o caminho, porque nenhuma desconfiança tinha contra nós.

- Pois aquele meu amigo tem uma incumbência que o oprime.

- Que nos diz respeito?

- Teve ordem para mandar examinar as bagagens e tomar conhecimento dos papéis que trazem.

- Ah! Mas não é coisa que de qualquer modo nos contrarie.

Todos os papéis, tudo para êle examinar como quiser e entender.

- Vou então buscá-lo?

- Se mo permite, vamos nós ter com êle.

- Tanto maior satisfação para mim.

André Pulaski deu o braço à sobrinha e Luís de Castro à Beauchamp.

Castro fêz as apresentações com entusiásticas referências ao major Maurin. André Pulaski e as senhoras apresentaram-lhe os papéis que traziam e que êle passou pela vista, rapidamente, por mera formalidade, contrafeito, a pedir desculpas daquele seu penoso dever.

Depois chegaram as bagagens e os polícias. André Pulaski entregou as chaves dos baús ao oficial e afastou-se com a sobrinha, a Beauchamp e Luís de Castro.

Maurin ficou para assistir à busca incumbida aos polícias.

A sorrir, gracejando, André Pulaski disse para a sobrinha:

- A menina tem licença minha, na qualidade de representante de seu Pai, para falar com o seu noivo, perfeitamente à vontade. A nossa querida Beauchamp e eu falaremos desta linda paisagem, que nem a guerra conseguiu desfear.

E a rir deu o braço à Beauchamp.

- Nem o dia inteiro lhe chegava a eles para dizerem as mil coisas que têem sofrido e sonhado.

- Estão no seu tempo -volveu-lhe a Beauchamp, envolvendo os dois num olhar acariciador.

- Maria! Que bendita surpresa! Um inexcedido consolo, santa dos meus amores!

- E para mim, Luís! Até me parece que esta hora excede muito em felicidade os tantos meses da minha tortura de saudades e de receios! Agora sou imensamente ditosa!

Tanto, que chego a recear não venha a durar muito tempo, por ser assim tão conforme com o melhor que eu podia sonhar!

- Há-de durar, sim, meu amor.

- Tua Mãe, a tua santa Mãe, a querer-me como filha sua, meu Pai em tua casa, como pessoa que muito se estima, meu Tio a adivinhar-me o coração para me fazer a vontade, e eu aqui, ao pé de ti, noivo da minha alma! Vê lá se eu podia sonhar fortuna maior?!

- Podes esperá-la, que é mais do que sonhá-la. Quero-te para minha esposa.

- E eu venho buscar-te. Foi o que eu disse a tua Mãe, a meu Pai, ao tio André, a todos os nossos.

- Buscar-me, se eu não posso sair daqui, se eu me prendi a um compromisso de honra, que me não deixa desertar, se vivo aqui como prisioneiro, se em Lisboa me condenaram à morte por traidor que vendeu a sua pátria aos franceses!

- Bem sei, Luís! Quantas vezes a tua pobre Mãe me falava nessa iniquidade em soluços, a chorar abraçada a mim! Mas não me entendeste bem. Venho buscar-te para meu esposo, para ter o direito de te acompanhar, para correr perigos a teu lado e seguir-te para onde tu fores.

-Minha vida, que me enlouqueces! Não havia coisa que eu mais pudesse querer, mas tenho medo por ti! Nenhuma ambição maior na minha alma do que ter-te a meu lado, esposa minha, numa adoração doida de fanático, mas também nenhum receio igual, por tua causa! Não podes sonhar sequer os horrores desta campanha, que se não parece nada com a outra em que entrei na Áustria! Lá uma enorme batalha, mortandade pavorosa, mas só ali, nas horas de luta entre dois exércitos imensos. Mas aqui, Maria, combate e morre também o povo! Assassina-se hora a hora, de parte a parte, em assombros de crueldade! Mulheres, velhos, crianças. Milhares! Milhares!

- Embora, Luís. Correrei perigo? Bem sei, bem o sabia já. Deixá-lo. Também tu estás sujeito a eles.

- Minha adorada Maria!

- E não serei eu a única. Em Lisboa, em tua casa, ouvi eu contar que um general português, que está aqui com os franceses, traz consigo a esposa.

- O general Pamplona.

- Sim, é esse. E até ouvi que essa pobre senhora já tinha sido ou ia ser também condenada à morte por acompanhar o marido, traidor à pátria! Custa a crer!

- Acredita. Fala o ódio de um país que tem sofrido muito. E, todavia, D. Isabel Pamplona é uma excelente senhora, de ânimo varonil, de coração admiravelmente benfazejo, que em coisa nenhuma podia contribuir para os males do país! O seu crime é acompanhar o marido corajosamente.

- Também lá se diz que o marechal francês, o Massena, traz consigo a mulher, linda e nova. Conhece-la decerto?

- Conheço. Essa, porém, não pode servir-nos de

exemplo.

- Pois deixá-lo. Serve o exemplo da Pamplona. E, se nenhum houvesse, mesmo assim iria eu com o meu marido onde quer que êle fosse.

- Os meus queridos noivos hão-de perdoar-me a interrupção - veio dizer-lhes André Pulaski, no seu tom de gracejo - mas foram já revistados os baús. Está reconhecido que não somos espiões dos ingleses e eu venho saber o que o sr. Luís de Castro quere que façamos agora. O seu amigo Maurin espera-o - acrescentou indicando o oficial francês, que estava a conversar com a Beauchamp.

- Temos de ir para uma linda povoação que fica a umas poucas de léguas daqui, mas será preciso esperar uma carruagem que me foi possível obter neste país devastado. E tarda! Entretanto, vamos conversar com o major Maurin.

Foram, mas poucos instantes depois chegava uma grande berlinda de Santarém, puxada por duas parelhas de muares. E lá vinha ao pé do boleeiro o nosso conhecido João Luís.

Maurin despediu-se.

- Mil agradecimentos, Major - disse o Castro abraçando-o.

Entraram para a berlinda as senhoras e André Pulaski. Castro disse ao granadeiro:

- João Luís, no meu cavalo como souberes, e segue-me.

- Castro - chamou Maurin - As bagagens vão mais devagar, guardadas pela escolta dos gendarmes. Vai o oficial com quinze soldados. Tirei da escolta um sargento e dois soldados para acompanharem a carruagem. É prudente que vão por causa de algum mau encontro.

- Tem razão, e mande-me em tudo o que eu puder ser-lhe útil.

- Agradecido e boa jornada.

Castro entrou também para a berlinda. Partiram.

O velho Pulaski ia numa alegria infantil. Castro sentara-se ao lado de Beauchamp, em frente de Maria.

- Então já sabe que a minha querida sobrinha fêz uma espantosa mudança? Transfigurou-se esta criaturinha, que parecia ter a resignada mansidão das santas!

- Tio, olhe que Luís vai supor que me tornei voluntariosa, insubmissa, e é capaz de me não querer para noiva - interrompeu sorrindo.

- Não é isso, não. Estás com vergonha de que êle o saiba. Apareceu-me com inclinações guerreiras, sonha campanhas, batalhas! Está aqui uma bela miniatura de Joana d'Arc e da imperatriz Maria Teresa.

- A quem os soldados húngaros chamavam o seu rei e aclamavam como generalíssimo, quando ela, com um raro ânimo varonil, lhes aparecia nos acampamentos - disse o Castro, ajudando ao gracejo.

- Isso, exactamente.

- E o Tio a supor que lhe dá uma grande novidade! Eu já lhe tinha dito que me sentia com ânimo para acompanhar meu marido, fosse para onde fosse.

- Ah! já. Mas aposto que lhe não disseste o resto? Pois digo-lho eu. Quere fazer de mim o seu chefe de estado-maior e meter-me por acampamentos, em altas cavalarias, a mim, um velho dado à paz!

- Luís, olha que meu Tio não te diz tudo por modéstia. Há trinta anos também foi soldado, também entrou em batalhas e foi gravemente ferido a combater os russos, em defesa da sua desventurada Polónia. Andou fugido e só anos depois casou na Áustria e foi graças à influência da família de sua esposa que pôde encontrar protecção e abrigo em Viena.

- Ora, contos velhos. O escândalo é agora, que tenho sessenta e dois anos bem contados! E fique o sr. Castro sabendo que esta inclinação guerreira se lhe revelou depois que o padre Diogo Martins lhe contou as façanhas de um moço capitão português em Baumersdorf e Wagram.

- Peço licença para rectificar - acudiu Luís de Castro por brincadeira - Já em Baiona ela me tinha dito que sentia ânimo para me acompanhar, mesmo em campanha, assim que fosse minha esposa.

- Pois sim, mas foram as façanhas do noivo que lhe desenvolveram os instintos guerreiros. Em Baiona tinha apenas um vago desejo de ser uma esposa heróica, mas foi depois de Wagram que tomou a resolução inabalável de o ser, e eu não tive remédio senão transigir. Depois, em Lisboa, ouviu falar de uma destemida senhora portuguesa que acompanhava o marido, e adeus, não houve remé dio senão obedecer-lhe! E até a nossa querida Beauchamp, que nunca viu um acampamento, até ela teve de sujeitar-se a este generalíssimo autoritário.

- De todo o meu coração - disse a francesa - e ainda que fosse campanha naquele horrendo país da Rússia, que por mal dos meus pecados já tive ocasião de ver!

- E tornará a ver, se a generalíssimo quiser e Napoleão mandar.

- Longe vá o seu agoiro!

- Eu sei lá? O que eu sei é que a vejo transfigurada!

- Há outra pessoa que ainda mais se transfigurou - disse a Beauchamp.

- Quem?

- O sr. André Pulaski. Todos me diziam que andava sempre triste, sombrio, dias inteiros sem dizer palavra, e afinal, há uns meses para cá, encheu-se-lhe a alma de alegria como um rapaz!

- Não nego, minha querida Beauchamp. Foi ela quem me transfigurou. Deu-me a luz da sua mocidade, fêz-se a miraculosa santa da minha velhice, criou em mim este amor que me rejuvenesce e de que eu próprio me assombro!

- Ah! agora já não graceja - disse a francesa - e os seus olhos arrasaram-se de lágrimas.

Maria desviou os olhos, que trazia enlevados no olhar de Luís de Castro, e fitou-os no velho em requintes de carinho.

- O meu querido protector! -disse a beijar-lhe a mão fervorosamente - Nem tu sabes, Luís, o que o desalmado Platow lhe fêz traiçoeiramente! Tive-o à morte!

- Então, menina! Se continuas, retomo a minha autoridade de tio e não consinto que nos contes his' tórias velhas. Não me queiras pôr sombras nestas horas felicíssimas!

- Pois não, não. Eu contarei depois ao Luís. Tenho tanta cousa que lhe contar...

- Isso também eu, para êle saber o muito que tu tens sofrido e como eu o encontrei naquele deplorável incidente de Baiona, sem compreender a injustiça e o mal de que me fazia cúmplice. Entrei naquilo como Pilatos no Credo. Mas fica para ocasião de mais sossego.

- Aquela viagem misteriosa é que eu nunca logrei compreender! - disse o Castro.

- Misteriosa para o meu amigo. Eu tinha prometido a meu irmão que havia de ir visitá-lo a Baiona, depois de uma viagem a Paris, de há muito projectada. Dispunha as minhas coisas vagarosamente, quando fui chamado da Holanda por um amigo meu, muito íntimo, que estava em perigo de vida. Parti logo para lá e escrevi a meu irmão dizendo-lhe que, se me fosse possível, iria da Holanda para a França. Soube depois que a minha carta andou em bolandas e foi dar a Baiona com uns doze ou treze dias de atraso. O meu amigo faleceu dois dias depois de eu ter chegado a Haia e eu embarquei dali a três dias em Amsterdão, a bordo de um navio americano, que ia para Bordéus, fiado na benevolência dos cruzeiros ingleses.

- Mas o sr. João Pulaski parecia contar com a sua chegada certa a Bordéus!

- Não contava. João ia a Bordéus, disse-mo êle próprio, chamado por um meu compatriota ali residente, por causa de uma venda de jóias que trouxera de Lisboa. João tinha urgência de dinheiro e não havia joelheiro de Baiona que lhe comprasse os diamantes ou êle próprio receava despertar suspeitas, vendendo-as ali. O resto foi simples coincidência, capricho do acaso que parece novelesco, e é afinal a coisa mais trivial deste mundo. Aqui tem o mistério da tal viagem.

- Mas depois embarcaram em Bordéus?

- Não. Por conselho do patife de Platow, tomámos o caminho de Bordéus, para desorientar quaisquer indicações da polícia.

Antes de lá chegarmos, mudámos de estrada e partimos por terra para a Alemanha.

Conversaram ainda a respeito de diversas cousas insignificantes. A jornada para Santarém era demorada e o caminho estava num estado lastimoso.

Castro havia falado na véspera com o general Pamplona, que logo lhe ofereceu uma parte da casa amplíssima que ocupava em Santarém e o que fosse preciso para uma nova instalação.

Veículo pesado e velho, a berlinda só muito dificilmente poderia subir a íngreme ladeira para a alcandorada Santarém, ninho de águia onde, havia largos séculos, os mouros tinham levantado uma das suas arrogantes fortalezas. Apearam-se ao fundo da calçada e foram por ali acima, vagarosamente conversando e pondo olhares enlevados na paisagem admirável de campos e olivedos, de quintas e aldeiazitas por onde enxameavam soldados.

O céu desanuviara-se um pouco e o sol aparecia timidamente, pondo em tudo aquilo uns pálidos fulgores. Torvo, de águas barrentas, revoltas, o Tejo alastrara-se pelas baixas, bloqueando e invadindo os acantonamentos franceses, como se também êle fosse um aliado daqueles soldados que guarneciam as ásperas montanhas de Alhandra a Tôrres-Vedras. Do cimo da calçada descobria-se o dorso escalvado de Montejunto, para as bandas de Rio-Maior, a simular o parapeito colossal de alguma cidadela fabulosa de ciclopes.

Lá em cima o general Pamplona passeava com os seus ajudantes. Esperava alguém, provavelmente. Era Luís de Castro quem êle esperava. Assim que o avistou com os seus hóspedes, desceu logo ao encontro dele num requinte de amabilidade.

Fizeram-se as apresentações e o Pamplona convidou-os para sua casa, enquanto se não completava a instalação nos aposentos que havia cedido a Castro.

À entrada da vila viram um oficialzito de dragões. de cabelos louros, de formas esculturais, no rosto de esmaecida alvura nem um sinal sequer de barba. Estava acompanhado por um capitão de dragões, já grisalho, e era seguido por um lacaio de libré.

Maria Pulaski reparou muito naquele dragãozito de beleza e curvas feminis, capacete pequeno posto graciosamente como um chapéu de senhora, uma espada que parecia um brinquedo de criança, comparada com o espadagão formidável do outro de cabelos grisalhos.

Castro cumprimentou os dois oficiais e foi falar-lhes. Maria notou as atenções com que Luís de Castro se dirigiu àquele alferezito. Entretido com o Pamplona, o velho polaco nem deu por aquela figurinha de teatro.

- Ana, olha aquele oficialzito a quem o Luís está falando! Tem o feitio de uma mulher!

- E quem sabe? No tempo da República havia raparigas que andavam nos exércitos vestidas de homem. Citam-se em França os nomes de algumas que se tornaram notáveis.

- Até o sorrir entristecido parece de mulher! E deve ser pessoa distinta, porque o Luís está-se despedindo com umas atenções que não teria para qualquer. Se não conhecesse bem pelos retratos a Princesa Borghese, havia de suspeitar que fosse ela... por qualquer capricho...

- Isso não - volveu-lhe a francesa, sorrindo - Do que se havia de lembrar! Capaz disso seria ela, mas teria receio do irmão.

Iam seguindo devagar e o Castro teve uma demora apenas de instantes.

- Que franzino oficial aquele! Parece uma dama! - disse-lhe Maria.

- E é - respondeu-lhe o Castro, sorrindo - Uma dama de piedoso coração, que tem sido generosa intermediária junto do Marechal, em defesa de alguns dos meus compatriotas e até em meu próprio favor. Hei-de contar-te como as virtudes do coração resgatam-lhe um pouco as deploráveis condições em que vive.

- Veio então com o exército por espírito de aventura, por inclinação guerreira, como diz o tio nas suas brincadeiras comigo?

- Não. Segue a aventura de uns amores ilícitos... E é pena. Tem dotes de espírito e grandezas de alma que a tornam digna de melhor destino.

- Mas foi intermediária em teu favor, eu hei-de tomar para mim uma parte da tua dívida de gratidão, e hei-de ir agradecer-lhe se tu mo permitires.

- Não pode ser, Maria. Eu, homem, posso abrir uma excepção às convenções sociais, envolvendo-a na homenagem do meu reconhecimento e da minha admiração pela sua alma benfazeja, mas tu não estás no mesmo caso. Não to perdoaria o mundo e deixarias cair uma sombra de suspeita sobre os teus escrúpulos e hombridade. É a mulher ilegítima do marechal Massena.

Tinham chegado defronte do vasto prédio em que o Pamplona se alojara. Entraram. No alto da escada, como uma recepção palaciana, esperava-os D. Isabel de Roxas e Lemos Pamplona, Rainha Pamplona, como às vezes lhe chamavam os soldados franceses, troçando um pouco dos seus ares distintos de fidalga.

Depois do almoço, Luís de Castro foi agradecer a Massena o bom acolhimento que dera aos seus pedidos e apresentar-lhe André Pulaski. O Marechal recebeu-os afectuosamente. Como que o consolava saber que Luís de Castro estava seriamente preso a compromisso de amor. Conversou por alguns minutos com Pulaski a respeito da Áustria, onde já tinha entrado em duas campanhas, e acerca da Polónia, onde estivera durante a campanha de 1806.

Depois de jantar em casa de Pamplona, Luís de Castro foi instalar os seus hóspedes nos aposentos especiais que o general lhe cedera. Ele iria para outra casa da vila onde se tinham aquartelado os ajudantes de Pamplona.

- Mas antes de sair, sr. Luís de Castro - disse-lhe André Pulaski - conceda-me a fineza de uns momentos de conversa íntima.

- Completamente à sua disposição.

- Vamos discutir o seu plano de campanha, minha querida Generalíssimo - disse o velho para a sobrinha - Estou perfeitamente no meu papel de seu chefe do estado-maior. Até já. Eu virei dar-lhe conta do que se resolver em conselho de guerra.

Beijou-lhe os cabelos enternecidamente e foi com Luís de Castro para a saleta de visitas, dos sete compartimentos do andar que lhe fora cedido.

- Meu caro Luís de Castro, permita-me que o trate assim...

- Mas dá-me um grande prazer tratando-me desse modo.

- São de tal modo excepcionais as nossas condições, que podemos e devemos dispensar formalidades e etiquetas. Sabe já que não tenho no mundo pessoa a quem mais queira do que à minha extremecida Maria. É um querer de amor em cegueiras e subserviências de pai extremosíssimo. Gracejo com ela, como tem visto, mas compreendo bem os perigos desta aventura em que me meti para lhe fazer a vontade. Para satisfazer a mais dominadora das aspirações de Maria e, um pouco também, para resgatar culpas minhas indirectas, que o mortificaram a si, meu caro Luís de Castro, e a puseram a ela entre a loucura e a morte. Uns meses horrorosos que eu teria evitado, se então os conhecesse a ambos, que eu hoje evitaria sem hesitações, ao preço da minha própria vida. Refiro-me às consequências daquele desgraçado acontecimento de Baiona, que venho agora resgatar. Mas não são os perigos o que eu temo. Sei como eles se encaram, deu-me Deus coragem para os não recear. Medo só o poderia ter desta situação em que vim colocar-me com minha sobrinha, se não confiasse plenamente na firmeza do seu coração e na fidalga ombridade do seu carácter, Luís de Castro.

- Empenhar-me-ei em provar-lhe que não sou indigno de tão honrosa confiança.

- Eu sei. Chegaram até mim largas informações, a seu respeito, de proveniências diversas, e todas concordes no conceito honrosíssimo do seu carácter. Para mim bastaria o que eu li no coração de Maria. Vale mais do que outros conceitos e excede-os a todos. Seria pueril falar-lhe agora do amor espantoso que lhe tem Maria. E desses amores de excepção que matam ou enlouquecem, na hora em que todas as esperanças se apagam. Não é uma frase, meu amigo. É a recordação de um infortúnio que eu vi, quási irremediável, nuns dias amargurados, que são o meu remorso cada vez que os lembro. Não se fingem dores assim, como se não podiam fingir as lágrimas que eu lhe surpreendi, quando mão traiçoeira lhe mandou certo jornal denunciador de uma aventura da Princesa Borghèse...

- Comigo, numa hora de desvario, de vanglorioso desforço, em que eu fui afinal o requestado.

- Bem sei. Nem vale a pena falar mais nisso. Vim aqui para ver realizado o acto que inconscientemente ajudei a interromper em certa capela de Baiona.

- Nem eu tenho outro desejo maior. Está nisso a suprema aspiração da minha alma.

- Sabia-o e por isso aqui vim. Minha sobrinha trazia o coração oprimido de pressentimentos de morte, definhava de dia para dia. Queria correr os perigos que o senhor corresse, tornar-se a esposa consoladora das suas mágoas, ampará-lo nos seus desalentos, pedir a Deus a morte onde quer que a morte lho levasse. E depois que percebeu as agruras desta situação em que o colocaram, depois que soube que era no seu país um condenado, a quem cerravam o lar, talvez para sempre e punham a vida a preço, sentiu na alma uma ânsia maior de abnegação e um desejo de heróico sacrifício, que seria crueldade perigosa contrariar. Tenho ouvido que não são raras estas abnegações nem estes exemplos de intrepidez nas mulheres que muito amam, e tanto mais fervorosas e tanto mais inabaláveis quanto maiores são os infortúnios e as injustiças oprimidoras daquele que o seu coração preferiu.

- Maria é de tal modo excepcional - disse Luís de Castro, profundamente comovido - que até eu chego a ter medo de não merecer esse amor tamanho, que, sendo a mais intensa luz da minha alma, é também o orgulho maior da minha vida, o único, decerto, que posso ter!

- Merece-o, mas creio também que nenhum homem ainda foi mais profundamente amado. Não sei se o coração de minha sobrinha será capaz de vencer as suas fraquezas de mulher, numa situação de rudezas e horrores que ela desconhece e decerto supõe abaixo da realidade. Não sei, mas seja como fôr, aqui venho para lhe dar amparo, se nalguma hora a vir esmorecida. Aconselhei-a, disse-lhe o que sabia das inclemências e dos riscos na vida dos acampamentos. Insistiu em súplicas de lágrimas, que excediam a eloquente simplicidade das suas palavras. Devia opor-me, e não me atrevi, tive dó e medo de a contrariar. Movi meu pobre irmão, falseando-lhe o aspecto da aventura, prometendo-lhe um próximo regresso, e o desventurado cego, no receio de matar a filha opondo-se e no remorso do muito que a fizera sofrer iludido, transigiu, acedeu.

Lá nos ficou esperando, sabe Deus com que impaciências e com que amargurados temores!

- Foi essa talvez a maior dificuldade vencida. Eu tinha tido a má fortuna de... desagradar ao sr. João Pulaski.

- Agora não. Mudou completamente. Há-de recebê-lo de braços abertos no dia em que lhe for dado tê-lo ao pé de si. Eu sei que se não pode realizar aqui um casamento com todas as formalidades preceituadas, mas pode fazer-se sob uma forma válida e solene. Trago procuração legal de meu irmão, feita em Lisboa para o representar e um documento em forma, de sua Mãe, que me confere a representação da sua pessoa. O seu chefe de facto é agora o marechal Massena, não é assim?

- É.

- Pela conversa que tive com êle, percebi-o bem disposto a patrocinar este intento. Irei falar-lhe como representante de meu irmão e o meu amigo pedir-lhe-á a autorização legal. Quando entende que devemos ir lá?

- Amanhã, e amanhã mesmo se poderá realizar o casamento em uma das igrejas desta vila.

- Muito bem! Faz-nos falta o padre Diogo Martins, mas era indispensável que ficasse ao pé do meu pobre cego.

- Há dias tive ocasião de encontrar aqui um velho capelão de freiras, que não pôde fugir. É muito das relações de minha família e conhece-me também dos meus tempos de rapaz. Conto com êle.

- Óptimo! Depois obteremos licença para entregar nas avançadas do exército aliado umas cartas em que eu dê notícia do casamento a sua Mãe e ao padre Martins, que a comunicará a meu irmão.

- Hão-de impor-lhe a condição de as deixar ler.

- Com isso conto. E para que não fique uma sombra sequer de suspeita dos meus intentos, irão ambas com as poucas linhas em que se possa resumir a notícia, e essas mesmas no francês que eu sei escrever, detestável decerto, mas suficientemente compreensível para Massena ou para qualquer dos seus oficiais. E o meu amigo será designado por um nome polaco. E por causa dos que hão-de lê-las no quartel-general inglês.

- Estou a imaginar as impaciências angustiadoras em que vai ficar seu irmão.

- Uma tortura enorme, eu sei. Mas isto há-de decidir-se em alguns meses.

- Eu sei lá! Se Napoleão mandar os reforços que Massena lhe pediu, mais trinta ou quarenta mil homens com abundância de munições e subsistências, a guerra demorar-se-há mais terrível e só irá acabar em Lisboa com a perda de Portugal! E eu sei, sr. André Pulaski, se o meu esforço e a minha vida poderão chegar para defender a peregrina beleza de Maria!

- Conte comigo também, Luís de Castro. Eu o ajudarei a defendê-la, ainda que seja preciso morrer por ela. É tarde agora para reflectir. Temo-nos demorado muito. Vamos tranquilizar aquela receosa noiva.

- Tio, tanto tempo! Cheguei a assustar-me.

- Trazem sempre longas discussões estes grandes planos - disse a sorrir - Mas não estejas a supor coisas graves, minha linda sonhadora. O teu noivo esteve-me a contar umas coisas da guerra por que sempre se interessam os homens, os ex-soldados como eu, principalmente, e aqui tens porque me esqueci das tuas legítimas impaciências. Mas tu perdoas, eu sei que me perdoas, apresso-me a declarar-te que está tudo combinado e resolvido. Se alguma cousa imprevista se não opuser, o casamento será amanhã, com a solenidade possível.

- Meu tio, meu generoso protector! - disse a beijar-lhe as mãos enternecidamente - O que eu lhe devo! A vida e esta ventura tamanha, que sem êle não queria, nem já podia viver!

- O que aí vai, bendito Deus!-interrompeu, beijando-lhe os cabelos.

Tinha os olhos rasos de lágrimas.

- E agora despeça-se do seu noivo, que eu estou entontecido de sono.

Mas foi êle o primeiro a despedir-se de Luís de Castro, abraçando-o. Apertou a mão à Beauchamp e disse para a sobrinha a sorrir:

- Deus te abençoe e te dê uns lindos sonhos, enfeitiçadora do tio mais piegas que ainda veio ao mundo. Agora despeça-se - acrescentou quási em segredo - A Beauchamp fica, eu vou indo. Há despedidas a que um tio severo não deve assistir.

E pôs-lhe os dedos no rosto, brincando.

- Um instante apenas para me despedir de Luís e ainda vou apanhá-lo antes de entrar no seu quarto - segredou-lhe, também de gracejo -Ainda hei-de dizer-lhe outro adeus, verá.

- Pois sim - volveu-lhe já ao pé da porta.

- Luís! - disse Maria correndo para êle - A minha imensa fortuna!

- A nossa, meu amor!

- Adeus! - disse-lhe com adorável meiguice, inclinando-se para êle - Por tua Mãe - acrescentou beijando-o.

- Por este amor - respondeu-lhe perturbado, beijando-a também.

Beijos quási legais, honestos, o tio dera-lhes ensejo para eles e a Beauchamp nem sequer os viu, talvez por causa das lágrimas de júbilo em que os olhos se lhe estavam afogando.

Ao outro dia de manhã André Pulaski e Luís de Castro foram ter com Massena.

O Marechal tinha tudo preparado para voltar ao Cartaxo. Ainda não perdera a esperança de atacar as linhas por algum dos pontos que supunha mais fracos.

Talvez pela extrema esquerda, torneando as posições e simulando ao mesmo tempo um ataque de frente, para iludir os aliados.

O Príncipe d'Essling parecia ter um secreto empenho em ver o moço capitão bem seguro nos enleios do noivado. Acedeu facilmente a todos os pedidos e levou a generosidade das concessões até além do que lhe solicitavam. Voltaram de lá, radiantes, o polaco e o noivo. E todavia, nenhum deles deixava de trazer consigo um pesadelo de receios pelo futuro.

Castro foi falar ao Pamplona. Desejava que fosse êle um dos padrinhos. Aceitou. D. Isabel ofereceu-se para acompanhar a noiva. Era distinção gentilíssima, que Luís de Castro agradeceu enternecidamente. A Beauchamp iria também. Seria uma das madrinhas. Não podia ser posta de parte. Fora ela a madrinha no malogrado casamento de Baiona.

O velho capelão, conhecido de Castro, aceitou o encargo que o moço oficial lhe pediu, e no tocante à falta de pregões e de licença eclesiástica se compôs com a sua consciência, atentas as circunstâncias de excepção. Ficou resolvido que o acto se efectuaria na única igreja que ainda não fora profanada. Castro preferiria outra qualquer porque essa que não tinha sido profanada era a do convento onde estava Laura.

Uns minutos antes das três horas já estavam na igreja os dois ajudantes-de-campo de Pamplona e vários oficiais portugueses de diversas graduações, dos que acompanhavam o estado-maior do Marechal.

Maurin chegou pouco depois acompanhando o capitão Próspero Massena, a quem o pai dera o encargo de o representar.

Havia mais de duas horas que o velho capelão estava metido na sacristia a escrever. Redigira um largo termo justificativo do acto que ia celebrar. Depois lhe acrescentaria a parte final, segundo as fórmulas consagradas. Êle próprio fazia a cópia do duplicado na sua tremida caligrafia de velho.

À hora aprasada chegaram os noivos. Com eles D. Isabel de Roxas e Lemos Pamplona, Ana Beauchamp, o general Martin Pamplona Corte Real e André Pulaski. Tinham entrado por curiosidade uns oficiais franceses.

O João Luís estava ao fundo da igreja, muito comovido. Em cima, no coro, assistiam as pobres mulheres que Luís de Castro salvara das brutalidades da soldadesca. Veio da sacristia o velho capelão e logo começou o acto sacramental.

Entrou então cautelosamente um franzino alferes de dragões, de esmaecida alvura, de fartos cabelos louros enovelados no alto da cabeça. Foi ajoelhar-se no desvão de um altar, muito na sombra.

Com as mãos dos nubentes envoltas na estola, o capelão disse alto, para que todos o ouvissem bem, a fórmula final, designando lentamente os nomes dos contraentes.

- Deus te dê fortuna, Luís! - exclamou de cima, do coro, numa voz de vibração infantil, carinhosamente dolorida, alguém que Luís de Castro adivinhou.

Sentiu-se um murmúrio de vozes, percebia-se um certo movimento de surpresa no coro.

- Desmaiou, coitadinha!- disse lá em cima uma das mulheres.

O Capelão fêz um gesto de estranheza, mas abençoara os esposos.

Muito pálida, trémula de comoção, Maria interrogou Luís de Castro num olhar húmido de lágrimas. O bravo de Beaumersdorf e Wagram explicou baixo, numa tremura de voz:

- Uma pobre noviça, minha companheira de infância! Os terrores da guerra ofuscaram-lhe a razão. Tinham levado do coro a pobre Laura. A cerimónia estava concluída. Todos os convidados acompanharam os noivos à sacristia para a assinatura dos termos especiais daquele acto. Na qualidade de representante do Príncipe d'Essling, Próspero Massena foi também.

Era preciso esperar que o capelão completasse os termos. Seria demora de alguma dezena de minutos. Conversavam baixo. Luís de Castro dificilmente disfarçava o pesar que lhe causara aquele desvario da infortunada Laura de Mendonça.

«Ainda ontem me diziam que não saía da cela, apesar de melhor e mais tranquila!» - pensava.

Quando todas as testemunhas se acercaram do capelão, para irem assinando, segundo a sua ordem, afastada de todos, no fingimento de observar um quadro que ficava por cima da porta da sacristia, Maria disse baixo ao marido, rapidamente:

- Impressionou-te aquele voto dolorido, não é assim?

- Impressionou. Não contava com ela, ali!

- Amaste-la?

- Amava-me. Afeição de criança, que se tornou amor. Fazia-me dó!

- Dó!

- Sim. Eu tinha outro amor imenso. Tu.

- E fêz-se então noviça! Por minha causa!

- Por minha culpa, por esta bendita culpa de te amar!

- Sempre uma sombra, uma tristeza nas horas de maior ventura para nós!

- Sombra que os nossos beijos hão-de dissipar.

Tinham assinado todos. Um dos termos foi entregue a Luís de Castro, o outro a André Pulaski. Saíram. Na igreja já se não via senão o João Luís à espera.

- Um belo capitão e uma linda noiva! - disse de si para si o granadeiro, a olhar consoladamente aquele par. Saiu também.

Uma pessoa ficara oculta por detrás de um confessionário alto, de madeira escura do Brasil. Era o alferes de dragões, de cabelos de oiro e formas gentis de mulher. Enxugava os olhos quando os noivos passaram. E antes que fossem fechar a grande porta da igreja, também êle saiu.

Se os enredadores do exército o houvessem surpreendido ali, relacionariam as lágrimas que êle enxugava com os antecedentes que nós conhecemos, e teriam explicado maliciosamente a singular benevolência com que o velho marechal d'Essling patrocinara aquele casamento.

 

               Naquele inferno.

De dia para dia maior escassez de substâncias no exército invasor. Estavam já postos de parte todos os projectos de ataque às Linhas formidáveis. A rapina devastara as colinas e os campos, e da Espanha nem chegavam mais tropas nem podiam passar comboios de víveres, porque os milicianos dos generais Silveira e Bacelar e dois coronéis, Trant e Wilson, lhos tomariam a dois passos da fronteira.

Era preciso procurar outra região menos empobrecida, para que o exército se pudesse ir aguentando sob os rigores da invernia excepcional daquele ano de 1810.

Massena decidiu afastar-se das soberbas Linhas, que já considerava inexpugnáveis e tinham sido o maior pesadelo de surpresa de toda a sua larga carreira militar. E assim como não encontrara quem lhe revelasse o segredo dessas obras contra as quais foi esbarrar de surpresa, também não achara depois quem lhe pudesse dar informações seguras a respeito das forças e do plano de defesa de quem as ocupava!(1)

Massena já não podia contar com a cooperação leal dos seus imediatos e absolutamente nada com a disciplina dos soldados. Agora, quanto mais afastados das Linhas, melhor. Esperaria pacientemente que lhe chegassem os reforços prometidos e tentaria então uma batalha decisiva contra os anglo-portugueses, fora das posições fortíssimas de Alhandra a Tôrres-Vedras, nos vales de Santarém e Golegã.

Sem nenhumas comunicações para a sua retaguarda, Massena não sabia, e não podia saber que os milicianos do general Silveira bloqueavam Almada, ocupada pelos dois mil soldados do general Breniere, menos ainda, que já tinha saído de Valhadolide, em meados de Outubro, o 9.o corpo do exército, comandado pelo general Drouet, conde de Erlon, para vir reforçá-lo. É verdade que Drouet parecia ter pouca pressa de cumprir as ordens de Napoleão entrando em Portugal.

Foi-se ficando pelas fronteiras e limitou-se a ordenar que a brigada do general Gardanne se metesse a caminho de Portugal com um importante comboio de provisões de boca e de guerra e alguns centos de cavalos. Gardanne tinha sido pagem de Luís XVI e fora chefe dos pagens de Napoleão, que teve o capricho de o fazer general.

 

*1. O inglês C. V. Robinson, professor de história, escreveu na sua obra de estudo das campanhas da Península, traduzida por um ilustre oficial de artilharia, o sr. José Matias Nunes:

«O segredo com que a construção das Linhas de Tôrres-Vedras foi efectuada impressiona como se fosse um facto inexplicável,, e abona muitíssimo não só a actividade de Wellington como também o patriotismo dos portugueses, sem o qual nem mesmo o temor da pena de morte, imposta aos que comunicassem com o inimigo, seria capaz de evitar que qualquer notícia chegasse ao conhecimento deste.

 

Parece que havia dado provas de arrojo e intrepidez numa das campanhas de Itália, a de 1799.

Marbot diz que este general trouxe por escolta do comboio a brigada do seu comando, os historiadores ingleses afirmam, porém, que de Almeida trouxe também os três batalhões que tinha escoltado Foy até ali e deviam regressar ao exército. Não seriam ao todo nove mil homens, como dizem os ingleses, mas também não ficariam abaixo de seis ou sete mil. Mas Gardanne não podia avançar, deixando atrás de si os milicianos do general Silveira no bloqueio de Almeida. Investe-os denodadamente, os milicianos resistem com admirável intrepidez, mas a sua inferioridade militar é manifesta e Silveira tem de retirar, depois de ter demorado os franceses até 13 de Novembro.

Gardanne avança então, mas logo em 14 é atacado Silveira entre Valverde e Pinhel. Trava-se um combate sanguinolento. Os milicianos batem-se bem e os franceses tèem trezentos mortos e feridos, deixam um número de prisioneiros ainda maior e Silveira retira tranquilamente para Trancoso, porque não tem cavalaria, nem a sua infantaria de milicianos está suficientemente experimentada para uma perseguição constante e eficaz.

Foi uma odisseia doida e seria profundamente cómica se não tivesse custado tanto sangue, aquela do pobre Gardanne, que não conhecia o país nem talvez soubesse ler um mapa, a fazer marcha para um lado e para o outro, verdadeiramente estonteado, até ir dar consigo a três léguas do rio Zêzere. O terror da desorientação era tal que até uma companhia de oitenta homens das ordenanças de Alpedrinha logrou atacar-lhe uma parte do comboio e tomar-lho matando grande número de soldados da escolta!

Extenuados, oprimidos de pavor por se julgarem perdidos num país donde os inimigos lhe surgiam de todos os lados, debaixo de uma invernia excepcionalmente rigorosa, as linhas do comboio esbandalhadas por detestáveis caminhos, está-se a perceber como os oitenta homens das ordenanças de Alpedrinha os puderam atacar de surpresa, numa loucura de audácia e numa alucinação de ódio, e assim se explicam as perdas enormes sofridas pela coluna francesa.

Em quaisquer outras circunstâncias, trezentos soldados dos seis ou sete mil com que Gardanne entrou em Portugal seriam de sobra para esmagar os oitenta destemidos de Alpedrinha. Apesar de tudo, foi uma audaciosa façanha de raríssimos precedentes, aquela dos paisanos da terceira linha!

Afinal, Gardanne teve de voltar para Espanha a marchas forçadas, com uns restos do comboio e da escolta. Tinha perdido mais de dois mil homens.(1) Ia como enlouquecido. Estivera a pequena distância da divisão de Loison, e chegou a supor-se envolvido por todo o exército aliado! Parece que até as ordenanças de Alpedrinha se lhe afiguraram avançadas do exército anglo-português!

O triste desorientado chegou à insensatez de alegar que tinha ido dar a uma ilha, e o mais ainda foi que o intentou provar em presença de um mapa apontando as linhas de água do Zêzere e de um dos afluentes do Tejo!

Os franceses tinham estabelecido uma ponte sobre o Zêzere, haviam tentado a tomada da praça de Abrantes, no intento de passar ao Alentejo. Ali encontrariam mais recursos,

 

*1. Marbot diz apenas que o general Gardanne teve perdas importantes: perdu même beaucoup d'hommes. (Memórias, etc pâg. 412 do tomo II).

 

mais facilidade de comunicações com a Espanha e um campo de operações mais próprio para a sua cavalaria, ainda temível.

Nos primeiros dias de Novembro, Montbrun foi sobre Abrantes com a sua divisão, mas saiu-lhe ao encontro a guarnição portuguesa com o governador D. Joaquim da Câmara, bateram-se intrepidamente, e o brilhante general teve de retirar. Entretanto, os milicianos de Trant e Wilson defendiam tenazmente a região desde Ourem ao Zêzere. A cavalaria inglesa do general Fane fora incumbida da destruição da ponte, a gente de D. Carlos, da Espanha, veio de Castelo-Branco para Abrantes, e Massena encarregou a divisão Loison de lhe defender a ponte, que uma cheia afinal destruiu. Tiveram os franceses de construir outra.

Mas a retirada para o Alentejo torna-se impossível naquele momento e Massena dispôs-se a recuar para as posições de Santarém e Rio-Maior. Depois de umas operações preparatórias, o movimento geral para a retaguarda começou ao anoitecer de 15 de Novembro, a coberto de um nevoeiro densíssimo. O corpo do exército de Junot retirou pelo desfiladeiro de Alenquer para Rio-Maior e ocupou Alcanena, Pernes e Tôrres-Novas. O de Reynier retirou para Santarém e o do marechal Ney foi ocupar as posições de Tomar como reserva do exército. Nos campos da Golegã ficou quási toda a cavalaria de Montbrun.

Massena foi estabelecer o seu quartel-general em Tôrres-Novas. Quando na manhã de 16 o sol esfarrapou as neblinas, os aliados viram então dos terraplenos das Linhas que todo o exército francês tinha retirado. Uma enorme surpresa! Mas retirara para algum movimento ofensivo sobre a esquerda, para se recolher à fronteira espanhola, ou simplesmente para ir ocupar o vale do Zêzere, tomar Abrantes e passar às planuras do Alentejo?

Dias antes, na pleníssima ventura do seu noivado, Luís de Castro andara com a esposa a visitar os velhos monumentos de Santarém, as suas igrejas notáveis, os pontos admiráveis de onde se avistavam melhor as escarpas das serranias de Montejunto, os campos de Valada e da Golegã, as largas planuras do Alentejo. Nas igrejas uma dor de alma! Sepulturas revolvidas, túmulos monumentais sacrilegamente mutilados!

- Luís, que horrível coisa esta guerra! Porque partem eles estas pedras de tanto valor?!

- Pelo esforço odioso de destruir quanto lhes parece querido e santo a esse povo que os guerreia sem piedade.

- E as suas sepulturas rasas, porque as revolvem?

- A suporem que encontram adornos de ouro e jóias, avidez de roubar os mortos, pois que aos vivos já nada há que roubar. Deram os leões em hienas!

- Meu querido Luís, o doloroso espectáculo que te obrigaram a presenciar! Imagino bem o que tens sofrido!

- Como eu nunca pensei que alguém pudesse sofrer! Tudo o que eu tenho visto excede monstruosamente as minhas piores previsões! Nesta campanha de infernais torturas para mim, tenho encontrado, ao menos, um lenitivo imenso nas vitórias dos meus compatriotas e agora esta suprema ventura de ter-te aqui, minha adorada Maria.

- E eu, Luís?! Às vezes, como se tivesse enlouquecido, até chego a duvidar de tamanha fortuna!

Entraram em uma igreja de onde minutos antes tinham saído os cavalos de um esquadrão. Aproximaram-se de um túmulo magnificente.

- Repara neste vandalismo! Partidos estes soberbos mármores!

- Túmulo de algum príncipe?

- Não. Olha, aqui diz. Encerra as cinzas de um dos mais ilustres guerreiros que tivemos em Marrocos nas grandes eras de Portugal.

Saíram. Passavam defronte da igreja da Graça, dos frades de Santo Agostinho, fundada em 1380. As portas estavam em cavacos. Afastaram-se para que passasse uma turba de soldados ébrios que vinham lá de dentro a escoucear.

- Imaginar as profanações que eles não terão feito ali! - segredou-lhe Maria.

- Naquela igreja sei que está a sepultura rasa de um grande navegador, um que descobriu o Brasil.

- Talvez a não revolvessem.

- Talvez. Entremos. É uma bela igreja.

- Vê lá não estejam aí mais alguns ébrios. Luís de Castro espreitou para dentro.

- Uma espantosa profanação, mas a igreja deserta!

Entraram. Logo à entrada, por baixo do coro, estava aberto o túmulo monumental de D. Pedro de Meneses, Conde de Viena e da Condessa sua esposa.

Os ossos tinham sido atirados para um canto.(1)

Alguns altares haviam sido derribados, as imagens dos santos estavam de rojo no chão, serviram de bancos. Em todo o templo um cheiro nauseabundo a comidas e vinho.

Foram para a capela de São João, que ficava entre a capela-mor e a sacristia. Em cima da lápide, marmitas com restos de comida, cangirões partidos, dois cálices altos da missa a transbordarem vinho, garrafas quebradas,

 

*1. O Livro do Novo Tombo do Convénio, feito em 1817, porque todos os documentos tinham sido aniquilados na terceira invasão, diz que os ossos daquele túmulo ainda estavam espalhados pela igreja quando os frades voltaram ao convento.

 

ossos pequenos e grandes amontuados sobre a terra negra da sepultura.

- Odioso isto! Aqui, a jazida do descobridor do Brasil! Fizeram-lhe da lápide mesa da sua orgia reles e perversa e atiraram para cima daquela terra restos da comezaina.

Indicara-lhe uns ossos esburgados: parte de uma omoplata de boi, um crânio de cabra, ossos vários de coelho, de porco e de galinha.

Castro inclinou-se para a lápide. Tinha um dístico: Leu. Não havia dúvida. Era da jazida de Pedro Alvares Cabral. '

O epitáfio, em letras góticas, dizia assim: Aquy jaz pedralvarez cabrale dona Izabel de castro sua mulher cuja he esta capela he de todos os seus erdeyros aquall depois da morte de seu marydo foy camareyra mor da infanta dona maria filha del rey dõ João senhor ho terceiro d'este nome.

- Isto revolta.(2) Vamos daqui para fora, para longe disto, em busca de ar puro.

 

*1. No seu livro Monumentos e lendas de Santarém diz o distinto escritor sr. Zeferino Brandão que os ossos de Cabral foram tirados da sepultura pelos franceses.

Esta sacrílega violação tem sido contestada, certamente no empenho de provar a inviolabilidade da jazida de Cabral e a autenticidade dos seus restos.

Na exumação feita em princípios de 1903 foram encontrados naquela sepultura vários esqueletos, alguns incompletos, e juntamente ossos de coelho, de boi, de cabra, de porco e de galinha. Não parece provável que os piedosos cristãos do século XVI metessem ali, com o esqueleto do glorioso navegador ou com os outros lá encontrados, aqueles ossos de tal variedade de animais ou os seus cadáveres como se fazia nas remotas sepulturas gentílicas. E o relatório dos peritos revela que na omoplata de boi havia um corte como se fosse feito pela machada de um carniceiro. Era como se pertencesse {sem podermos assegurá-lo) a uma peça de carne que tivesse vindo do açougue.

  1. Na sua Relation historique refere Guingret que os soldados tiveram necessidade de construir pequenos moinhos, e foi das pedras tumulares das igrejas que eles fizeram as mós!

 

Tomaram para o lado das Portas do Sol. Encontraram a Beauchamp, que tinha ido ao convento saber de Laura de Mendonça. O João Luís acompanhava-a.

- E daí o que lhe disseram, minha querida Ana?

- Que ainda se lhe não despegou a febre.

- O dó que eu tenho dela! E logo baixo para o marido:

- Como ela te amava, Luís! Tinha vontade de a conhecer, mas receio afligi-la.

- Não penses em tal.

- V. S.a manda alguma coisa, meu capitão? - preguntou o João Luís.

- Vai a casa e espera que o sr. André Pulaski se levante. Assim que o perceberes a pé, dize-lhe que a chuva passou e a manhã está bonita. Que o espero ali às Portas do Sol. Vem ensinar-lhe o caminho.

- Sim, meu capitão.

- São mais de onze horas - disse Castro vendo o relógio. - Há duas horas cá por fora!

- O tio é que hoje deu parte de fraco.

- Era de esperar. Levou a conversar com o Pamplona até que horas da noite. Tinha eu acordado, já de madrugada, duas horas, quando lhe ouvi os passos no corredor.

Foram andando.

- Sabes o que me está a lembrar, Luís? Se tua Mãe já terá recebido o termo de casamento que meu tio lhe mandou e as nossas cartas?

- Decerto recebeu. Nos postos avançados quem

entregou as cartas foi o próprio filho de Massena e lá as recebeu o ajudante do regimento de meu irmão, que ia para o quartel-general de Wellington.

- Agora a resposta é que eu não sei se virá.

Meu irmão há-de empenhar-se em no-la mandar, mas percebo que é coisa difícil. Depois daquelas concessões excepcionais, êle próprio terá acanhamento de fazer mais pedidos.

- Faz-me pena! Mortifica-me a ideia que havemos de estar, Deus sabe por quanto tempo, sem notícias de tua Mãe e eu sem saber do meu querido cego!

Tinham chegado ao largo. De um grupo de oficiais franceses sairam Maurin e Guingret, que vieram cumprimentá-los.

- Sabe que estive há pouco a admirar aquelas vastas planuras dalém do Tejo. Ali havíamos de viver melhor, mas os milicianos não dão licença que a gente vá para lá!

«Que numerosos rebanhos descobri ao longe, e aqui metade do exército nos desesperos da fome! Eu nunca fiz mais áspera campanha nem padeci tão grandes trabalhos!

E baixando a voz, disse ao Castro:

- Desconfio que vamos ter retirada para outras posições.

- Para onde? - preguntou-lhe sobressaltado.

- Não sei ainda com certeza... Ouvi que Reynier virá para aqui e Junot para Rio-Maior. Ney é que se não diz ainda para onde irá parar. Boatos apenas, segredados por alguém do quartel-general de Massena. A cavalaria de Montbrun já lá anda para a Golegã e Torres-Novas.

- Tenho pena de sair de Santarém! E provavelmente não me deixam ficar, ainda que estejam aqui tropas francesas.

- Se aqui se apoiar a primeira linha, decerto o não deixarão ficar. E assim se irá passando o inverno sem isto se decidir!

- Talvez a retirada obedeça a algumas instruções do Imperador ou resulte de notícias chegadas de Espanha.

- Isso sim! Afiançaram-me que da Espanha se não sabe nada, como se ela estivesse nos confins da Rússia!

Os milicianos, as ordenanças, as guerrilhas cortaram-nos o caminho para Almeida.

- E do general Foy sabem alguma coisa?

- Nada, absolutamente nada! Agora terá êle chegado a Paris, se chegou. Os três batalhões que o foram escoltar até Almeida também ainda não tinham tido tempo de regressar, dado mesmo que lhes seja possível voltar. O meu amigo entrou noutra campanha combatendo ao lado das nossas tropas na Áustria. Veja se a guerra de lá se parecia com esta.

- Já notei essa espantosa diferença... por parte

de uns e outros.

- Diz bem, pela nossa parte, guerra também implacável, bárbara, horrorosa, como nenhuma outra de que eu tenha notícia! Não nego. Mas em outros países os exércitos batem-se e os paisanos submetem-se às consequências das batalhas.

- Assim sucedeu na Áustria o ano passado.

- Eu sei. Depois das batalhas a tranquilidade e a abundância. O povo ficava nas suas cidades e retomava os seus hábitos e as suas ocupações resignadamente.(1) Assim sucedeu quási sempre na Itália, segundo tenho ouvido e eu próprio presenciei - observou Maurin. - Aqui e na Espanha, o povo arma-se, luta, aqui arrasa os seus próprios lares, sujeita-se a morrer de fome, na esperança de que os invasores morram também à míngua nesse deserto em que eles tornaram as mais férteis regiões do seu país! É admirável e horrível! A campanha com os paisanos é muito pior do que a outra com os soldados. Não dá batalhas, mas dá mais sangue.

 

*1. Nas suas Memoires sur la guerre des Français en Espagne, Rocca, oficial de hússares, expõe largamente a enorme diferença entre as guerras na Península e as que o Império teve em outros países da Europa.

 

A conversa ia tomando um rumo desagradável, embaraçoso para os três. Felizmente chegou André Pulaski e mudaram de assunto.

O próprio Maurin lhe deu outro rumo, falando da Polónia, onde já tinha estado.

A retirada de Massena fora tão habilmente planeada e posta em acção que os ingleses lhe prestaram homenagem. Naquela difícil conjunctura como que por momentos o homem extraordinário de Zurique e Essling ressurgiu dentro do velho e acabrunhado Marechal, a quem a vitória abandonara, como certas mães caprichosas afastam de si, numa hora de tédio, o filho por largo tempo amimado e dilecto.

Indiquemos muito de fugida as disposições tomadas por lorde Wellington.

Sem ideia segura àcêrca do intento do inimigo, o generalíssimo inglês mandou que duas divisões lhe seguissem os movimentos. O grosso do exército continuava nas Linhas, na suspeita de que a retirada de Massena representasse apenas um movimento de concentração para tornear a serrania de Montejunto e desenvolver-se nos terrenos planos entre Rio-Maior e o Cercal, com o intuito de atacar a esquerda das Linhas.

Mas aquelas duas divisões de exploração viram o exército francês avançando em duas colunas, uma para Santarém e outra para Rio-Maior. Assim parecia posta de parte a hipótese de um ataque geral sobre Tôrres-Vedras.

Pelas informações do general Fane àcêrca da ponte lançada sobre o Zêzere e por outras que lhe denunciavam a ocupação dos campos da Golegã por grandes massas de tropas, supôs o generalíssimo inglês que os franceses iam passar para a margem esquerda do Tejo e que Santarém e Rio-Maior não seriam para eles mais do que posições protectoras daquele movimento. Nesta suposição deliberou persegui-los. Três divisões marcharam sobre Alenquer, uma outra, a 1.a divisão com a brigada portuguesa do general Pack, sobre o Cartaxo, e a divisão ligeira de Crawford avançou para Rio-Maior.

A divisão Hill atravessou o Tejo em barcos para a Chamusca. Devia proteger Abrantes, opor-se à invasão do Alentejo ou cortar a retirada às tropas de Massena, se tentassem alcançar a fronteira pela Beira-Baixa. Logo que as avançadas anglo-portuguesa chegaram ao Cartaxo, ordenou Wellington um ataque de reconhecimento contra Santarém. Percebeu-se então que não estava ali simplesmente uma grande guarda da retaguarda, mas uma forte coluna, disposta a sustentar a posição.(1)

Para os lados de Rio-Maior também os aliados fizeram outro reconhecimento e também ali se convenceram de que o exército de Massena não recuara para atravessar o Tejo ou abandonar Portugal, mas para ocupar uma nova linha de posições, atraindo os aliados para fora dos seus redutos formidáveis nas montanhas de Alhandra a Tôrres-Vedras.

Wellington tinha ainda uma guarnição considerável nas Linhas, para onde retiraria depois de qualquer revés. Eram fortes as novas posições dos franceses e seria temeridade atacá-los de frente numa batalha em que eles, no desespero dos seus infortúnios, empenhariam certamente os maiores esforços da sua incontestada bravura. Wellington limitou-se, portanto, a esperar numa atitude defensiva expectante.

Massena ganhara muito.

 

*1. Na sua história da Guerra Peninsular, Carlos Napier presta homenagem de louvor à sagacidade e energia de que Massena deu testemunho naquela operação e na escolha das suas novas operações.

 

Tinha à retaguarda das suas formidáveis posições de Santarém e Rio-Maior os campos fertilíssimos da Golegã, de Tôrres-Novas e Tomar, aonde não tinha chegado ainda a levada assoladora da terceira invasão. A sua cavalaria de retaguarda chegara até Leiria, assegurando a retirada para Coimbra, o corpo de Ney segurava-lhe a estrada de Tomar para Coimbra por Ourem e defendia as pontes que mandara lançar sobre o Zêzere.

Podia avançar para investir as linhas por Tôrres-Vedras, podia voltar para Coimbra ou mudar o seu teatro de operações para a Beira-Baixa ou para o Alentejo. Só não podia contar ainda com os reforços indispensáveis para substituir os milhares de homens que perdera ou tinha nos hospitais, e só não podia confiar na cooperação dos generais seus imediatos, a quererem impor-lhe a retirada para Espanha.

Com os favores excepcionais da sua fortuna doutros tempos gloriosos é que êle já não contava nem com a disciplina do exército, cada vez mais abalada,, nem com aquele orgulho impetuoso, firmado numa tradição de triunfos espantosos, que fora a suprema força moral dos soldados de Napoleão.

Invencíveis nem êle nem eles.

Castro não obtivera licença para ficar em Santarém. Foi para Tôrres-Novas com os outros oficiais portugueses, sem comissões especiais, como alguns que tinham sido encorporados nos estados-maiores divisionários.

Conseguira arranjar uma bonita casa isolada, nos arredores da vila, a pequena distância do prédio em que se instalara o general Pamplona. Ali vivia recatadamente com a esposa, o tio André e a Beauchamp - Era o seu tranquilo ninho de amor. Faziam-lhe convites, desculpava-se e não ia a parte nenhuma, senão ao quartel-general, duas vezes por dia, fazer a sua apresentação obrigatória.

Guingret, muito das suas relações, tinha ido de Santarém reunir-se ao corpo de exército de Ney e estava para as bandas de Ourem. Maurin é que ia visitá-lo uns dias por outros.

Chegou o dia de Natal. Pamplona convidou-o para jantar em sua casa. Foi agradecer-lhe e escusou-se pretextando um incómodo de Maria, a quem não desejava deixar sozinha. O que êle queria era ficar em casa para o jantar íntimo.

- Isto não pode ser jantar de festa, meu amor - disse à esposa - Apesar da minha imensa ventura de marido, os receios e as mágoas andam comigo por este país tão horrorosamente mortificado e ainda a dois passos de se perder em qualquer revés de uma batalha.

Entardecia. Estava quási no fim o seu modesto jantar naquele dia de suavíssima festa nos lares onde não entraram as mágoas e o luto.

Fizeram-se umas saúdes comovedoras.

- Meu caro Luís - disse de pé André Pulaski - pelas vitórias do seu glorioso país, pela causa da sua honra e do seu direito, que êle tão intrepidamente defende!

Este velho de uma nação que foi grande e mataram, saúda aqui, num moço brilhante e valoroso, o futuro deste Portugal de prodigioso passado que aprendeu a amar consigo, no culto da sua fervorosa alma de patriota, meu caro Luís de Castro.

- Ah! mas nenhum brinde para mim de mais honrosa e enternecida generosidade! Para o coração deste repelido da Pátria, condenado à morte por traidor, com a vida a preço por se vender a Napoleão, apontado às multidões para ser morto como um facínora, nenhum voto de mais encanto, de maior afecto, de mais fundo consolo do que esse das suas palavras, meu amigo de algumas dezenas de dias como se fosse de muitas dezenas de anos!

«Representante de uma família heróica de patriotas, de um grande e glorioso povo de valentes, que as ambições políticas assassinaram, o seu brinde, sr. André Pulaski, vale por uma distinção insigne, é uma comovedora generosidade, para um reconhecimento tamanho, que nem as minhas palavras sabem dizer-lho.

«Enlaço ao seu voto pelas vitórias do meu Portugal este outro do fundo da minha alma: pelas reivindicações e pela restauração da sua grande e gloriosa Polónia.

O cálice tremia nas mãos do velho Pulaski, os olhos do patriota estavam rasos de lágrimas. Tocaram os cálices comovidamente.

Maria e Beauchamp enxugaram os olhos marejados de pranto.

- E com este voto uma promessa - disse o Castro, depois de uns instantes de silêncio - Se a minha Pátria não quiser os meus serviços, se mos rejeitar, irei com o coração profundamente ferido para esse país, que, pela grandeza do seu passado, pelo esforço do seu povo e até pelos infortúnios do seu destino, mais pode lembrar-me este que eu amei mal tinha aprendido a amar minha mãe, muito antes de ter amado a mulher de sonho que é minha esposa.

«E se um dia, preso ainda a este encargo de soldado, nas mais angustiosas condições que podiam impor-me, Napoleão tiver alguma campanha em que seja possível enfraquecer o império dos czares, abrindo novos destinos ao país heróico de Koscios, serei eu dos mais fervorosos soldados nessa campanha.

- Obrigado, Luís de Castro. É uma carinhosa e nobilíssima promessa, que a má fortuna da Polónia não deixará realizar. Napoleão é um aliado do Czar.

- As alianças políticas de um dia para o outro se desfazem.

- Repito-lhe estas palavras de Napoleão ao Czar, em Tilsit: «Unamo-nos e realizaremos nós os maiores feitos dos tempos modernos.»(1) Nesta frase se quebraram as promessas que êle fizera à Polónia, depois da fictícia ressurreição do Grão-Ducado de Varsóvia.

- Pois a minha obscura promessa é que eu não quebro.

- Creio-o firmemente. Mas voltemos os olhos para os dias de agora.

- Mas agora também eu quero fazer uma saúde - disse enternecidamente Maria Pulaski - Duas é que hão-de ser, muito singelas, de muito poucas palavras. Pela vida e pela felicidade da tua santa Mãe, meu Luís.

Foi calorosamente aplaudida: Castro agradeceu-Lhe o brinde beijando-lhe os cabelos.

- Pela vida e pela felicidade de teu Pai - disse-lhe êle comovido.

- Bem hajas, Luís!

- Por seu irmão, meu caro amigo - disse o polaco.

- Pelos seus dois pequeninos, lindos como querubins - disse Maria com singular ternura - E já era uma terceira saúde, a exceder a minha conta prometida. Luís, por este meu estremecido tio, a quem devo a vida e esta inexcedível felicidade.

Foi uma encantadora homenagem, que o velho agradeceu enleado, numa emoção quási piegas.

- A minha pena - acudiu, sorrindo - é que ainda me não seja dado imitar uma das tuas saúdes, minha querida sobrinha.

 

*1. Unissons nous, et nous accomptirons lesplus grandes choses des temps modernes. Palavras de Napoleão ao Imperador da Rússia na conferência de Tilsit (1807).

 

- Qual?

- Ora, aquela que tu fizeste com uma adorável pontinha de inveja.

- De inveja, tio!

- Sim, aquela enternecedora inveja que não faz mal a ninguém.

- Mas não compreendi... realmente! Não sou capaz de adivinhar que saúde eu fiz tocada de inveja!

O Castro e a Beauchamp sorriam. Maria talvez também tivesse percebido, porque se afogueara um pouco.

- Pois bem, não lhe chamaremos inveja, foi desastrado o termo. Seja então ciúme, santo e adorável ciúme das esposas, ainda noivas, pelas outras... que estão nas condições da esposa do sr. Henrique de Castro... por causa daqueles pequenitos, tão amoràvelmente brindados por ti.

- Ora o tio! - disse corando mais -, o que vale é não termos aqui pessoas de fora! - disse, baixando a voz.

A sorrir da lembrança, Luís de Castro disse à criada que fosse dentro e mandasse dar o jantar ao João Luís.

O velho percebeu que tinha ensejo para maior desafogo e acudiu a justificar-se mais claramente:

- Ora, ora! Pois que mais honesto e bendito ciúme de mulher? Das outras que são mães como foram as nossas, a tua, a minha, como é a mãe do nosso Luís de Castro. Mas, enfim, perdoa-me a precipitação e eu pedirei a Deus que me deixe até ao outro Natal, para uma saúde, que ninguém mais do que tu me há-de agradecer.

- Viver para muitos Natais é que Deus há-de querer que seja.

- Pois sim, mas então havia de ser interessante a enfiada de saúdes que eu teria de fazer.

A Beauchamp ria num regalo de alma delicioso.

Maria inclinou-se para êle e beijou-o.

- Este meu tio, este meu adorado tio! Ai, e a minha querida Ana, a minha segunda mãe que tanto me quere, que tanto sofreu por minha causa! Perdoa-me! Não foi por te esquecer!

- Oh! minha filha! Eu lembrava-me lá disso!

- Mas é um dever, um consolo. Pela vida e pela felicidade da nossa querida Ana Beauchamp.

- De todo o coração - disse o velho, erguendo-se.

- Com todo o entusiasmo da minha alma - acudiu Luís de Castro, levantando-se também.

A francesa nem podia agradecer e largou a chorar.

- Luís, aqui tem as doces e consoladoras lágrimas de que nós falávamos esta manhã.

Levantaram-se da mesa e foram para as janelas conversar. Instantes depois voltava a criada.

- O João Luís já está a jantar. Disse-me agora que desejava dizer uma palavra a v. s.a.

- Pois sim, que entre para aqui. A rapariga foi chamá-lo.

- Entra, João Luís.

- V. s.a há-de perdoar, mas eu tinha muito gosto em lhe dar as boas-festas e mais à senhora... e aos presentes.

- Pois, sim, meu rapaz, e muito obrigado por essa lembrança. Este é um soldado aparte para mim - disse voltando-se para André Pulaski - Um amigo, um valente. Toma. Bebe pela velhita.

- Deus lho pague, meu Capitão!... ainda que a tenha levado a ela para a terra da verdade.

- E agora, rapaz, por aquela 13.a meia brigada em que tu foste um dos mais valentes.

- E v. s.a o mais destemido com aquela santa padroeira de Portugal.

- Refere-se à bandeira que tu bordaste, Maria - explicou Luís de Castro enternecidamente.

Entrara o mês de Janeiro de 1811. Os franceses estavam desanimados com os socorros do general Drouet e almejavam por notícias dos marechais Soult e Mortier, que, segundo informações recentes, deviam invadir o Alentejo.

Drouet não trouxera afinal mais de dezanove mil homens, segundo uns, ou apenas doze mil como diz Marbot.

Entrou por Pinhel com o seu 8.o corpo de exército e logo empenhou todas as suas forças de cavalaria na perseguição dos milicianos. Em 22 de Dezembro entrava no vale do Tejo. Em Pinhel e Trancoso deixara a divisão do general Clarapède, uns seis mil homens.

Com aquele espírito de aventuras e aquelas sofreguidões de riqueza pelo saque, deploráveis características de alguns generais do Império, Clarapède obteve da ingenuidade inepta do Conde d'Erlon umas instruções, por êle próprio solicitadas e redigidas, que eram bem uma carta branca para toda a sua iniciativa de comando e uma carta de corso em terra para poder saciar a sua ânsia de riqueza. Em 26, Drouet comunicava com o quartel-general de Ney e por ali se ficava, em vez de se ir apresentar a Massena.

O Conde d'Erlon era considerado um dos generais de mais inferiores aptidões entre quantos exerciam altos comandos. Era, todavia, um valente. Distinguira-se em Zurique, em Ulum, em Hohenlinden. Fora brilhante em Iena, em Dantzig e em Friedland. Mas a insubmissão epidémica era tal que até os generais inhábeis eram atingidos por ela! Massena teve de mandar saber dele e foi Marbot o incumbido de ir a Tomar com este encargo.

Afinal, Drouet tinha instruções escritas do marechal Berthier para entrar em Portugal, entregar a Massena o comboio de munições que trazia, umas centenas de cavalos de tracção e voltar a Espanha com o seu corpo de exército! Marbot foi dar com êle a Tomar, já em disposições de se meter a caminho para Espanha, sem pensar sequer em ir ver o generalíssimo! Havia de parecer inventado, se o próprio Marbot o não contasse nas suas Memórias. Afinal, o ilustre ajudante-de-campo de Massena tão energicamente lhe falou em nome do generalíssimo, que o Conde d'Erlon se resolveu a ir a Tôrres-Novas fazer a sua apresentação.

Entretanto, Clarapède, com a sua carta de corso, ia fazendo uma activíssima campanha devastadora por sua conta e risco. A respeito de combates, os que êle inventava eram em muito maior número que os outros verdadeiros, segundo as revelações de Thiébault nas suas Memórias, e assombrosamente maior despojo dos saques do que os troféus das vitórias.

É, porém, de justiça dizer-se que logrou bater os milicianos do general Silveira nas proximidades de Trancoso e depois na Vila da Ponte, próximo de Lamego.

Ameaçava o Porto e lá chegaria para o mais apetitoso saque, se não visse os flancos e a retaguarda da sua divisão ameaçados, não só pelos milicianos de Bacelar, um transmontano da têmpera de Silveira, mas pelos outros dos coronéis Trant e Wilson. Teve então de retirar para Moimenta-da-Beira e Trancoso.

Clarapède apossou-se afinal da Covilhã e foi estabelecer-se na Guarda. Estava rico. Chegara a simular combates contra povoações indefesas, só para justificar a imposição de contribuições, das quais nunca deu contas! E tal quinhão no saque foi o seu, que durante toda a sua vida de loucas dissipações nunca mais deixou de ser rico!

Drouet d'Erlon concentrou as suas forças em Leiria e daí estendeu os seus postos de ocupações até ao mar.

Chegavam já notícias da Espanha por via de Almeida. O ajudante Casablanca voltara de Paris.

Trazia a Massena a velha promessa que o corpo de exército do general Soult o viria auxiliar. E mais nada. Parece que Napoleão tinha na mente qualquer grande projecto que lhe não consentia a deliberação de tirar da França trinta ou quarenta mil soldados com que respondesse às instâncias do Príncipe d'Essling.

Ora Soult tinha-se fartado de desobedecer às ordens insistentes que Berthier lhe mandara em nome do Imperador para entrar em Portugal, a socorrer Massena. Aquele malogrado rei Nicolau da Lusitânia, aquele generalíssimo infeliz da segunda invasão, como que trazia a peito deixar perder esse velho filho da vitória, que Napoleão preferira para erguer as suas águias nas torres de Lisboa e atirar com os ingleses ao mar.

Demais a mais, para maior ciúme, parece que também Massena tivera ao princípio ou tinha ainda a ambição e a esperança de que o Imperador o fizesse rei de Portugal.

Nos últimos dias de Janeiro chegava a Tôrres-Novas a notícia desesperadora de que o marechal Soult e o marechal Mortier tinham tomado Olivença e se entretinham a sitiar Badajoz!

Pamplona soube-o no quartel-general e foi logo a casa de Luís de Castro contar-lhe aquela informação, que deixara Massena justamente enfurecido.

- Agora é que era ensejo favorável para Wellington cair sobre este exército apodrecido, e batê-lo antes que Soult e Mortier tomassem Badajoz e viessem em socorro do Príncipe d'Essling.

- Hum! Parece-me que não estão com muita vontade de o auxiliar. Massena percebe-o e anda fulo contra êle. De tal modo exasperado, que nem se acautelou de mim e disse as piores cousas do Duque da Dalmácia. Chegou a chasquear dele, chamando-lhe o frustrado rei Nicolau I da Lusitânia. Mas o que teve graça, no meio de tanta coisa grave, foi que Junot, também presente, se fêz como um pimentão, como se o escárnio recocheteasse para êle.

- Compreende-se. Bem sabe v. s.a que Junot também se enfeitou para rei de Portugal. Andoche I lhe chamava com graça meu tio Manuel de Albuquerque.

- Pois então ainda temos cousa mais divertida. Parece que, antes da batalha do Buçaco, fêz Massena alguma confidência de qualquer recatada ambição, que afinal se divulgou entre os generais.

- Quê! Também êle aspirava ao ceptro?

- Creio que sim, porque Junot, quando montou a cavalo para regressar a Rio-Maior, disse alto, com o seu ar fanfarrão, a um dos ajudantes:

«- Não fui eu que dominei Lisboa, não será ninguém. E não me parece que o vencido André I se possa rir do malogrado rei Nicolau da Lusitânia.»

E riu muito, num rir doido de escárnio.

- E aí tem v. ex.a o traço cómico dos heróis. Coube agora a Portugal a honra insigne de contar três frustrados monarcas nessas três pessoas heróicas, águias ambiciosas que os soldados da nossa terra ajudaram a depenar.

- Tem graça, mas, meu caro amigo, ainda receio que lhes ficassem penas bastantes para voar, e se voarem, as garras já nós sabemos como são.

- Junot é um maluco fora da conta dos pretendentes. Agora a pendência está apenas entre a águia escorraçada do Porto e a outra ferida no Buçaco. E de Clarapède? Há notícia de mais saques em disfarces de vitórias?

- Não. Afinal os milicianos conseguiram empurrá-lo para as bandas da Guarda.

- Veja v. ex.a como o Império de Napoleão e os seus paladinos estão reproduzindo, a quási três séculos de distância, as cobiças, as insubmissões, a indisciplina com que os nossos se perderam no Oriente!

«Esses generais que recebem instruções especiais para uma acção independente lembram-me aqueles capitães das armadas que saíam de Lisboa com as cartas reais de provisão para empreenderem a guerra como entendessem. Não auxiliavam os viso-reis e governadores e desobedeciam-lhes sempre, insubmissos, por sobrançaria de ânimo, por ciúme de glória, por avidez de triunfos e despojos, alguns como piratas, alguns como rebeldes. Enriquecer foi o objectivo de muitos e os soldados como eles, na mesma febre, na mesma indisciplina e na mesma heróica rapacidade!

«Foi por isto que Albuquerque teve de conquistar duas vezes Goa e duas vezes Ormuz. Esse Clarapède é um modelo moderno dos piores aventureiros que Portugal teve na índia. E ao lado das epopeias as chatinagens, a bravura e corrupção igualmente assombrosas, heróis como semi-deuses e heróis como salteadores.

- Por isso o império de Albuquerque se perdeu.

- Como este de Napoleão se há-de perder. Este com maiores responsabilidades morais, porque o ilumina uma alta civilização, imensamente superior à do século XVI. Os nossos guerreavam no Oriente como afinal outras nações guerreavam na Europa. E aqui os soldados do mais culto povo europeu está dando à guerra ainda maior ferocidade do que teve a dos nossos na índia há três séculos!

Chegou Cândido Xavier. Apenas terminados os cumprimentos, disse para Luís de Castro:

- Venho cá para lhe mostrar uma carta curiosa

que recebi de Paris. É do Teotónio Banha. Atrasadíssima! Imagine que foi escrita em fins de Setembro. Esteve retida em Almeida por mais de três meses. Foi entregar-ma ontem de tarde uma das ordenanças de Casablanca.

- Que chegou há dias, segundo ouvi.

- A semana passada. O soldado trouxe a carta na algibeira uns poucos de dias, sem se lembrar dela.

- Deve então essa carta a Clarapède?

- A Clarapède porquê?

- Porque se êle não tem andado a bater os milicianos e a devastar mais as regiões da Beira, Casablanca não se atreveria a sair de Almeida com os despachos de Napoleão, sem trazer uma brigada atrás de si.

- Ah! sim, percebo. Mas ouvi que o caminho está outra vez cerrado. Chamo a sua atenção para estas duas coisas curiosas:

«A direcção da carta para Lisboa por lá suporem em Paris que Massena já teria conquistado tudo isto quando a carta cá chegasse, e a data de 27 de Setembro! Se o Teotónio Banha podia lá sonhar que à hora em que fechava esta carta, 5 da tarde, diz êle, acabava o filho querido da vitória de perder a mais sangrenta batalha que os exércitos de Napoleão ainda tiveram na Península!

- E dá-lhe notícias interessantes?-perguntou Pamplona.

- Pelo menos, curiosas. Se v. ex.a mo permite, leio-lhe a parte que se refere à nossa Legião.

- Pois não, com o maior prazer.

- Há aqui uns pormenores de marcha de nenhuma importância. Passo adiante e leio a parte relativa à chegada da Legião a Paris.

Leu:

«Chegados a esta grande capital, fomos tratados com as maiores atenções e ficámos alojados nos quartéis melhores e mais centrais da cidade.

A nossa cavalaria está no quartel de artilharia da Guarda Imperial, denominado da Avé Maria, junto ao Sena. Estamos muito penhorados com a recepção que nos têem feito.

«Quatro dias depois de aqui chegarmos, a Legião formou na praça Vendôme e seguimos para o largo das Tulherias, onde Napoleão nos passou revista. Ficámos encantados de tanta magnificência! Entrando pelo pórtico que olha para o nascente, deparámos com o Imperador, rodeado de muitos marechais e de um sem número de generais de todas as armas. A Imperatriz com a corte e as suas damas de honra ornavam as vastíssimas janelas desta parte do palácio, a cavalaria dos mamelucos e parte da infantaria da Guarda Imperial, em colunas cerradas, formavam aos lados daquela vasta praça. O toque marcial de muitas bandas de música dava a este quadro um relevo majestoso.»(1)

- Contrastes singulares do nosso tempo! - observou Cândido Xavier, interrompendo a leitura -, Lá, em plena paz, os franceses cumulando de distinções um punhado de expatriados portugueses, inconfundíveis pela intrepidez. Aqui, em guerra ferocíssima, outros franceses levando até à vindicta selvagem as suas fúrias contra os compatriotas daqueles legionários, inconfundíveis pelo ódio e pelo esforço com que se defendem!

- Diz bem, Xavier - apoiou Pamplona -, é realmente uma situação excepcional esta nossa!

- O Banha ainda me dá aqui uns pormenores curiosos que eu vou resumir. A revista durou três quartos de hora. Napoleão falou a alguns oficiais em francês e aos soldados em italiano no intuito de se tornar compreendido. Depois mandou formar

 

*1. É quási textualmente a forma porque nos seus Apontamentos Teotónio Banha descreveu aquela revista.

 

na praça vazia por grandes divisões. Foi para o centro e perguntou se estavam dispostos a prestar-lhe juramento de fidelidade para irem combater os ingleses, e se queriam voltar a Portugal. O general Carcome traduziu isto como pôde e os soldados responderam que desejavam voltar a Portugal, mas houve oficiais e soldados que logo declararam não querer ir contra os da sua terra.

Napoleão disse-lhes por fim:

Quero dar-vos mais uma prova da estima que consagro ao vosso valor, vós fareis a guarnição da minha capital pelo espaço de um mês.

- Assim procura resgatar o silêncio iníquo do Boletim de Wagram - comentou Luís de Castro.

- E não é tudo ainda. Promoveu D. José Carcome Lobo a general de divisão e deu-lhe a insígnia e a pensão de oficial da Legião de Honra e até concedeu a cruz da ordem a oficiais superiores a capitães dos dois batalhões de marcha que não chegaram a tempo de entrar na batalha de Wagram!

- Algum grande sacrifício está êle disposto a exigir às tropas da Legião - observou Pamplona.

- Igual a este que nos impôs, nenhum - acudiu o Castro amargamente -, Maior é impossível.

- Veja bem que pode ser - objectou-lhe Pamplona - se os mandar combater para aqui.(1) Nós, ao menos, não desembainhamos as espadas e ninguém nos tentou obrigar a ir para a linha de batalha contra os nossos.

 

*1. «Nos princípios de Outubro - refere Teotónio Banha nos seus Apontamentos - saímos de Paris na direcção de Baiona, pela estrada de Tury, Orleães e Montrichard, porém, não correspondendo os negócios de Espanha aos planos de Napoleão, recebemos ordem nesta última cidade de tomarmos quartéis de inverno, a infantaria em Burges e a cavalaria na pequena cidade de Chateauroux.»

 

- Tem v. ex.a razão.

- Mas Banha ainda me dá notícias de outras hon ras e distinções. Houve jantares de gala magnificentes e iluminações nos quartéis da Guarda, em homenagem à nossa Legião. Nas Tulherias apareceram granadeiros nossos de sentinela, rendendo os da velha Guarda Imperial, e na sala chamada dos marechais, uma das mais brilhantes do Paço, diz o Banha...

- É, sim. Conheço-a bem - confirmou Pamplona.

- Pois lá foram entregues solenemente aos oficiais portugueses as insígnias da Legião de Honra com que recentemente foram agraciados.(1)

- O Banha não diz os nomes? - perguntou Pamplona.

- Diz, sim, meu General. Leu uma dezena de nomes.

- Todos eles estiveram na batalha de Wagram.

- E alguns deles no primeiro combate de Baumersdorf - acudiu o Castro, mas desses não se fala!

- Mas há outros que tiveram a cruz da Legião de Honra em Agosto do ano passado.

- Há uns poucos - respondeu Cândido Xavier - O coronel Pego.

- O meu caro major, por exemplo - disse-lhe Pamplona.

- O Marquês de Loulé(2) e outros que me não ocorrem agora - talvez por me estar recordando com pesar de um excluído,

 

*1. Foi a um domingo, 23 de Setembro, depois de uma revista no Carroucel. Os oficiais da Legião, que o conde de Lobau propusera para serem agraciados, reuniram-se na sala dos Marechais, nas Tulherias e ali receberam as insígnias. Eram dez. O sr. Boppe dá notícia deste facto a pág. 133 do seu livro aqui largamente citado.

  1. Cândido Xavier em 7 de Agosto de 1809 e o Marquês em 8.

 

que foi o mais valente dos nossos naquela batalha de dois dias - disse Cândido Xavier, voltando-se para Luís de Castro.

- O excluído fui eu, meu General. Agora já posso dizer que tive a honra de ser riscado da proposta pelo próprio punho de Napoleão, o grande!

- Não sabia!

- A causa é que é gloriosíssima para êle - explicou Cândido Xavier - A causa remota seria por ter tido amores com a mais linda irmã do Imperador...

- Major, por favor, mais baixo esse terrível segredo - interrompeu Castro a rir - Pode ouvir minha mulher. Mas, antes de mais nada, uma rectificação. Quem teve amores comigo foi a Princesa. Em Baiona cheguei a exceder a castidade bíblica de José do Egipto! Em Viena é que foi o demónio! Mas, afinal, uns brevíssimos amores em que fui eu o seduzido.

- Pois sim, meu caro - volveu-lhe Cândido Xavier - mas a causa próxima de exclusão foi aquela bandeira de Portugal...

- Bordada pela minha noiva.

- E por você erguida na espada para um milagre de esforço.

- Ora isso é que os meus amigos podem dizer bem alto.

- Ah! mas antes que me esqueça, não quero deixar de lhes ler este final da carta:

«Aqui todos os generais supõem, e nas Tulherias se afirma, que o marechal Massena já deve estar em Lisboa e por dias receberá Paris a notícia da formidável derrota dos ingleses. Já ouvi dizer que se pensa em grandes festejos.

«E contam tanto com o triunfo completo do filho querido da Vitória que vou sobrescritar esta carta, pondo-lhe a direcção de Lisboa.»

«É curioso, isto! E mais ainda pela data.

- Leu:

«Paris, quartel da Àvé-Maria, 27 de Setembro de 1810.»

- O dia em que no Buçaco as águias vinham de escantilhão pela serra abaixo por entre os soldados batidos de Austerlitz, de Iena, de Friedland, de Gamonal, de La Coruna - disse Luís de Castro.

«Major, não se esqueça de dizer, na sua resposta ao Banha, que vimos o leão de Rivoli a ocultar de nós lágrimas de desespero pela sua primeira batalha perdida.

Conversaram ainda durante minutos e saíram juntos para o quartel, onde, como já sabemos, deviam apresentar-se duas vezes por dia.

Encontraram lá uma novidade. Tinham entrado em Portugal com o estado-maior do Conde d'Erlon alguns dos oficiais portugueses nomeados para acompanhar Massena, mas que não haviam podido passar a fronteira, por terem chegado em princípios de Setembro, quando os milicianos já tinham cortado as comunicações entre Almeida e a retaguarda do exército invasor.

No dia 6 de Fevereiro, Pamplona, Xavier e Luís de Castro assistiram à chegada do general Foy, à frente de uns dois mil homens com uniformes em farrapos e de tal modo estropeados e oprimidos que faziam dó.

O general vinha acabrunhado. Passara trabalhos durante a marcha, para cá de Almeida, combatera, perdera centenas de soldados e até uma grande parte do comboio de munições e alguns despachos do Imperador. E no fim de contas não trazia ao marechal Massena senão a repetida promessa de que Soult o viria auxiliar. Produziu dolorosa impressão a chegada daquela gente.

- Aqueles estão a pedir hospital!-comentavam uns.

- Bonito reforço.

- Parece que os bateu alguma tempestade de areia como as que eu vi no Egipto e na Síria - disse um velho sargento.

Vinha com os ajudantes de Foy um dos oficiais da Legião Portuguesa, um subalterno. Era dos que não tinham podido entrar em fins de Agosto. Saíra de Ciudad-Rodrigo com eles.

Cândido Xavier conhecia-o e procurou logo ensejo de o chamar para saber o que tinha havido e com que socorros podia contar o Marechal. Convidou-o para um almoço de camaradas. O tenente aceitou com grandes agradecimentos.

Mas o Pamplona mostrou desejo de o hospedar em sua casa, onde havia aposentos de sobra, e Xavier acedeu. Foi para casa do General que o levaram.

E enquanto o criado preparava o almoço o foram instigando a contar-lhes o que se passara.

- Nunca me vi em tão difícil situação como naquela marcha atribulada de Almeida para cá! O general Foy tinha atravessado a Espanha toda com uma pequena escolta de dragões, mas em Ciudad-Rodrigo tomou conta de um comboio de munições e trouxe consigo uns três mil homens. Os franceses dizem dois mil convalescentes de infantaria e cavalaria, mas eu sei que eram três mil homens, que estavam em serviço. Aqui chegaram só uns dois mil e tantos, que parecem saídos dos hospitais.

- Foram atacados?

- Foram, meu general, ou antes, fomos, porque também eu me vi perdido!

- Por tropa de linha ou por milicianos?

- Por gente das ordenanças. Até custa a acreditar! Mas eu tenho ordem para não dizer tudo... e receio...

- Pode falar abertamente - afirmou-lhe Pamplona - Nósguardaremos segredo.

- O general Foy meteu de Belmonte para o Fundão e, na pressa de chegar cá, não quis saber de perigos e entalou-nos pelas gargantas das montanhas, a Deus e à ventura. No 1 deste mês, vínhamos nós ao pé da aldeia da Enxabarda - nunca mais me esquece! - quando de surpresa estrondeou da crista das montanhas uma fuzilaria medonha da gente das ordenanças.

«O comboio ia por ali fora como uma cobra e as ordenanças caíram sobre êle e partiram-no ao meio. Os franceses não contavam com aquele ataque e ficaram estonteados, numa confusão doida! Debaixo não era fácil atacá-los por aquela aspereza de montes a pino e ninguém queria abandonar o comboio. As balas dos franceses feriam ou matavam um ou outro dos atacantes emboscados, das balas deles é que não se extraviavam nenhumas.

«Toca a marche-marche para sair daquela garganta, mas, em menos de meia hora, já estavam uns oitenta ou noventa franceses estendidos e das mulas espanholas de carga mais de cinquenta tinham ido ao chão, varadas pelas balas. Deixava-se o que já se não podia trazer e a marcha era à desfilada. E assim por quási duas horas, e a gente das ordenanças a correr também pelas altas escarpas dos montes e a despejar sobre aquele carreiro de formigas as clavinas, as caçadeiras, as espingardas, os bacamartes. E os que não tinham armas rebolavam os penedos por ali abaixo! Mas, numa volta mais apertada do caminho, já muito para cá de Alpedrinha, o comboio parte-se outra vez, e a metade da frente mete por uma ravina, separando-se do resto.

«Eu vinha na cauda da coluna com o general, e só depois de passarmos a grande volta do caminho é que reparámos na falta de parte do comboio, que devia ir na nossa frente. Ouvimos tiros e gritos muito ao longe, para lá de uns matagais, talvez a coisa de meia légua. Ficámos muito surpreendidos,

pois supúnhamos que as ordenanças nos tinham deixado. Havia um quarto de hora que não faziam fogo contra a cauda do comboio. Qual! Estavam sobre a metade que metera erradamente pelo caminho da ravina. Fêz-se alto. O general mandou para os lados do matagal meio batalhão e um esquadrão de dragões a toda a brida pelo caminho para a frente, no intuito de descobrir a parte do comboio que se não avistava.

«Eu tive ordem para ir com o meio batalhão. «Foi horroroso o que vi! Mais de duzentos franceses estavam mortos ou feridos ao pé das mulas de carga. Os outros iam fugidos pelo matagal fora. Cortava o coração os gritos dos feridos! Estava muita gente do povo com eles a contas. Contra o meio batalhão vieram as ordenanças, não seriam menos de cem, que um oficial inglês comandava, e desfecharam uma descarga. Foram a terra muitos franceses. Quando atacavam, gritavam enfurecidos e um dos seus oficiais bradava: «A eles, ordenanças de Alpedrinha!» Encheu-se de pavor o meio batalhão e bateu em retirada, levando ao general a notícia do desastre e a suspeita de que se estavam reunindo grandes forças daqueles lados.

«O general, apesar da sua intrepidez, perturbou-se, trazia despachos importantes do Imperador, queria salvar, ao menos, uma parte do comboio e receava perdê-lo todo, se esperasse novo ataque, pois que os soldados vinham já muito estropeados da marcha, profundamente abatidos, num temor doido daquela gente embravecida, que os fuzilava por detrás do mato e de cima dos barrocais inacessíveis.

«O general instou por um maior esforço e mandou meter para a frente a marche-marche. Foi uma coisa vertiginosa! Fizeram das fraquezas forças, parecia que marchavam para um assalto! Espicaçavam o gado de carga com as pontas das baionetas, fustigavam-no com as espadas. Caíam cargas e muares, abandonavam-se. Caíam homens extenuados, ninguém para lhes acudir. E os desgraçados lá ficavam a clamar piedade, num pavor de medo dos paisanos. Era preciso fugir. E aqui está porque chegámos naquele estado.

- Então a tal tempestade que falaram...

- É uma invenção para não desanimar o exército. É a mentira que nos deram ordem de propalar. A tempestade foi o ataque das tais ordenanças de Alpedrinha, auxiliadas pelo povo da Enxabarda.

- Foi há muitos dias essa tempestade? - perguntou Luís de Castro.

- No dia 1 deste mês.

- E a Espanha?

- Tem guerrilhas que se batem sem tréguas, com inexcedível bravura, mas o resto dos seus exércitos mal podem arriscar-se a uma batalha campal, que não seja um novo desastre. Para cá de Salamanca as guerrilhas inquietaram muito o general Foy, mataram-lhe alguns homens da escolta e chegaram a tirar-lhe uma parte da correspondência que trazia de Paris, segundo me contou um dos seus ajudantes.

- E reforços?

- Reforço directo e certo só aquele que viram.

- Os que escaparam às ordenanças de Alpedrinha - comentou o Castro a sorrir.

- Foy é um general de admiráveis aptidões - disse Pamplona - um erudito, um homem de espírito, um valente, sem nenhuma dúvida, mas tem sido infelicíssimo em Portugal!

- Em todas as três invasões! Coronel de artilharia, assiste à derrota do Vimeiro com Junot, general, é batido com Soult no Porto, com Massena no Buçaco e agora, por sua conta e risco, na tal aldeia de Enxabarda.

- E ferido no Porto como êle próprio me disse - acrescentou Pamplona.

- E no Buçaco o vimos nós gravemente ferido.

- Pois esteve em risco de acabar às mãos das ordenanças de Alpedrinha.

Estava na mesa o almoço para aquele hóspede faminto.

Ney e Reynier souberam das escassas esperanças de socorro que trouxera o general Foy e foram ao quartel-general de Tôrres-Novas insistir pela retirada.

Massena ainda intentou resistir, mas já não tinha argumentos com que se opusesse à instância dos seus insubmissos generais. Contemporizou a coberto desta promessa: esperaria mais uns dias para ver se o marechal Soult invadia o Alentejo e lhe vinha dar a mão.

Mas não lhes quis dizer que estava de há muito a recear uma investida dos ingleses pelos lados de Rio-Maior, nem mesmo confiar-lhes as informações que recebera de um desertor irlandês, sargento de um corpo que tivera ordem de marchar para o Alentejo.

Contara-lhe o irlandês que Wellington tinha mandado aumentar consideràvelmente as obras de defesa das Linhas e recebera de Inglaterra um reforço de alguns milhares de homens. Que se tinham começado grandes trabalhos de fortificação entre Setúbal e Almada para defender Lisboa e que uma grande parte do exército português, do comando do marechal Beresford, havia marchado para o Alentejo, na previsão de que o marechal Soult avançasse de Badajoz, que cercara depois de ter tomado Olivença aos espanhóis.(1)

 

*1. Olivença capitulara em 23 de Janeiro. Em 24 já uma parte das tropas de Soult estava defronte de Badajoz.

 

Passaram uns dias do mês de Fevereiro. Em certa noite foram dizer ao Marechal que se tornaram suspeitos uns movimentos das tropas aliadas na direcção de Alcanede. Voltaram-lhe os receios de uma investida por Rio-Maior e logo de madrugada mandou ordem a Junot para fazer um reconhecimento.

O ajudante-de-campo que levou esta ordem deveria acompanhar as forças destinadas ao reconhecimento, para trazer logo notícia do resultado.

Entardeceu sem se saber nada. Uma desesperadora impaciência. Falava-se muito das consequências daquele reconhecimento. Defronte do quartel-general estavam numerosos grupos de oficiais. A poucos passos ordenanças com cavalos à mão.

Fora prevenido Reynier para estar pronto à primeira voz. Tinham saído à desfilada dois ajudantes para Tomar com aviso ao marechal Ney. Massena passeava com os generais Fririon e Eblé. Os oficiais portugueses estavam num grupo à parte, prontos também a montar a cavalo à primeira ordem.

Começava a escurecer quando chegou a toda a brida o ajudante que fora levar a ordem a Junot.

Apeou-se e foi direito ao Marechal.

- E daí? Traz alguma informação confidencial?

- Nenhuma. É infundada a suspeita de uma concentração do inimigo para os lados de Alcanede.

- Fêz-se o reconhecimento?

- Fê-lo o próprio general Duque de Abrantes com cinco mil homens da divisão Clausel e da brigada Gratien e quinhentos cavalos.

- E então?

- As avançadas do inimigo retiraram às primeiras investidas. O Duque de Abrantes atacou a ponte e os entrincheiramentos de Rio-Maior, onde alguns milhares de ingleses se tinham concentrado para nos fazer frente. As nossas tropas atacaram-nos denodadamente, bateram-nos, apossaram-se da vila, obrigando-os a bater em retirada.

Massena reparou nos grupos de oficiais que disfarçadamente se iam aproximando.

- Podem ouvir, meus senhores. Acercaram-se todos, os portugueses também.

- Estimo até que ouçam - disse jubilosamente - Houve hoje um combate em Rio-Maior e batemos os ingleses, que nos abandonaram a vila.

Houve um rumor de vaidoso alvoroço. Ensombrou-se de tristeza o semblante dos portugueses.

- Rio-Maior foi. portanto, completamente abandonada pelos ingleses? - disse o Marechal a insistir no facto com o intuito de lhe dar vulto.

- Completamente abandonada.

- Fririon, mande chamar o Duque de Abrantes. Quero felicitá-lo e entender-me com êle àcêrca de ulteriores operações.

- Sr. Marechal, o Duque de Abrantes não pode vir - disse o ajudante-de-campo.

- Não pode! Porquê?

- Porque está gravemente ferido.

- Ferido!

- Depois de tomadas as posições inimigas, quis êle próprio observar a direcção que tomavam as tropas em retirada. Subiu a um pequeno outeiro, eu ia também. Então uns hússares ingleses, que estavam emboscados, dispararam as clavinas contra nós e deitaram à desfilada. Quatro vi eu.

- E o general Junot ficou gravemente ferido, como disse?

- Uma das balas rasgou-lhe a face sobre um dos malares e foi fracturar-lhe o osso do nariz. Fizeram-lhe o primeiro curativo no próprio campo da acção. Foi depois levado para o seu quartel-general de Pernes. Era admirável a sua coragem. O médico disse-me que deviam ser horrorosas as dores que êle sofria. Mas ninguém o viu esmorecer!

- E será ferimento de morte?

- Pode ser. A operação que vão fazer-lhe é melindrosa. São as informações do médico.

Ficou em todos os franceses uma profunda impressão de pesar, até naqueles que eram desafeiçoados a Junot.

- Vou visitá-lo hoje mesmo - disse Massena para o general Fririon.

E foi.

Estava-se a 2 de Março. Massena recebeu um correio do marechal Soult, que viera por via de Espanha.

Comunicava-lhe o Duque de Dalmácia que em 19 de Fevereiro tinha derrotado completamente nas margens do Xévora as tropas espanholas de Mendizabal,(1) que haviam ido em socorro de Badajoz. Dizia-lhe que ia continuar o cerco daquela praça e só depois de a tomar poderia intentar a invasão do Alentejo.

- Inferno! - exclamou Massena, voltando-se para o general Fririon - Soult é tão invejoso como Ney! Evidentemente, não me quere auxiliar. Leia isto. Pois eu o deixarei também isolado naquela grande empresa. O malogrado rei Nicolau quere deixar-me perder.

 

*1. As forças do general Mendizabal, completamente destroçadas na batalha de Gébora, como escrevem os franceses, do Xévora, como escrevem os espanhóis, compunham se de guerrilhas arregimentadas e de parte das divisões de Carrera e O'Donnel, que tinham retirado das linhas de Tòrres-Vedras, onde estiveram sob o comando do Marquês de La Romana, falecido no Cartaxo em 23 de Janeiro, por efeito da ruptura de um aneurisma.

Naquela desastrada batalha, que em Portugal teve a designação de combate dos campos de Santa Engrácia, entraram como auxiliares dos espanhóis três regimentos de cavalaria portuguesa, 4, 5 e 8.

 

Pois não quere. Se fôr preciso, iremos esperar reforços para além da fronteira e não nos faltará ensejo de travar uma nova e decisiva batalha com os anglo-portugueses. Mas tenho afinal de ceder aos generais insubmissos. É preciso retirar. É preciso!

Disse-o num grito rouco de desespero.

 

               A retirada.

Era a 3 de Março. Reuniu-se um conselho de generais em Tôrres-Novas. Estavam presentes Ney, que tinha vindo de Tomar, Reynier, que viera da Golegã, Clausel, que chegara de Pernes como representante de Junot, já livre de perigo, mas ainda em curativo. E com estes Fririon, Drouet, Montbrun, o insigne e glorioso Eblé, Lazowski e Foy.

Era o terceiro conselho de generais para se discutir o plano a seguir. O primeiro realizara-se na Golegã em 18 de Fevereiro, no quartel-general de Loison, depois de um almoço. Presidiu Massena, estiveram os comandantes dos corpos de exército e os generais Fririon, Eblé, Lazowski, Foy e Salignac.

Foy expôs os resultados da sua conferência com o Imperador, falou da promessa de socorro de quinze mil homens da nova Guarda e da cooperação dos vinte e tantos mil soldados de Soult, que deviam entrar pelo Alentejo até às alturas de Santarém.

Concordou-se então na utilidade de mudar o teatro das operações para a margem esquerda do Tejo.

O segundo conselho foi em fins de Fevereiro, no quartel-general de Reynier, e ali se instou com Massena por uma retirada imediata.(1)

Vejamos o que se decide agora neste conselho de 3 de Março.

O generalíssimo expõe rapidamente as circunstâncias dificílimas em que está o exército.

- Não podemos contar por agora com o auxílio do marechal Soult, porque não é possível prever quando acabará o cerco de Badajoz, e não tenho conhecimento de que outras forças se hajam aproximado da fronteira para nos dar apoio.

«O corpo de exército do marechal Vítor está no cerco de Cádis. Disse-me o general Foy que o marechal Béssières concentrava um exército numeroso, mas não tenho a menor indicação oficial a este respeito e nada sei da situação dos outros corpos de exército que estão em Espanha.

«Mas o que eu sei, por seguras informações, é que temos do outro lado do Tejo até ao Zêzere numerosas tropas inimigas, abundantemente providas.(2)

«Sei também, pelas informações de um oficial irlandês, que Wellington está esperando de Inglaterra um reforço de alguns milhares de homens(3) e que as suas linhas de defesa estão cada vez mais fortes.

«Entretanto, nós não temos sequer quarenta mil homens válidos e muitos destes estão enfraquecidos pelas privações. O país à nossa retaguarda está completamente devastado. Falta-nos o sal e o pão, o vinho e a aguardente.

 

*1. Guillon refere-se aos dois conselhos de Fevereiro a pág. 205 e 207 da sua História das guerras de Espanha.

  1. Referia-se às tropas portuguesas de Beresford, que tinha o seu quartel-general na Chamusca e escalonara catorze mil homens desde Almeirim até à foz do Zêzere. Era de 22.000 homens o total das suas forças.
  2. Desembarcaram em Lisboa em 2 de Março.

 

Nos desesperos da fome, os soldados aproveitam as rezes doentes e daqui as febres e as disenterias mortais. Vi ontem os mapas dos hospitais. Mais de mil doentes há três dias só aqui em Tôrres-Novas! Na semana passada mais de dez mil em todo o exército!

«A cavalaria está reduzida a um terço dos cavalos, os outros morreram de fadiga, de inanição, de fome. Os da artilharia e do trem mal podem arrastar as viaturas. Mas tudo isto o nosso esforço de ânimo conseguiria remediar e vencer se não houvesse ainda coisa pior. O general Eblé participou-me ontem que não há munições de artilharia e de infantaria para duas ou três porfiadas batalhas. A invernia apodreceu-nos mais de metade da pólvora com que saímos de Alcoba. Ouvirei agora a opinião dos meus generais a respeito desta exposição das nossas actuais condições.

- Entendo - disse Ney - que é preciso fazer imediatamente, já tarde, em precárias circunstâncias e com esmorecedoras dificuldades, o que eu aconselhava antes de irmos dar ao desastre do Buçaco, e depois dele e diante dessas Linhas que não pudemos investir. Retirar rapidamente para a fronteira da Espanha, eis o remédio, cada dia de demora é um novo perigo. O general inglês, Fábio, de cautelosas manhas, leopardo atravessado de raposa, já percebeu que não precisa de nos dar batalhas. Isto é exército para morrer de fome, se o não matar antes a gangrena da desmoralização e da indisciplina.

- Antes que a fome o desvairasse, teve altas e funestas lições de indisciplina a quebrar-lhe a força moral, que foi sempre a causa primária das vitórias do Império-replicou Massena num tom áspero de rancor.

Ney ia replicar, mas o generalíssimo voltou-se logo para Reynier.

- A sua opinião?

- Que vossa alteza ainda não deu ao quadro das nossas desgraças todas as cores da sua esmorecedora realidade. A retirada é inadiável, para que se não acabe de perder este exército de tão miserando destino. Tive de mandar punir uns soldados que já ameaçavam abater os cavalos como rezes de açougue para matarem a fome!(1)

Drouet e Clausel apoiaram concordes.

- Senhor Marechal - disse Montbrun - a pior lástima é que há fome depois de uma pilhagem espantosa, que não tem precedentes nas guerras do nosso tempo! Desperdiçaram-se os próprios roubos, colhidos à custa de infâmias!

«Nunca tive medo e chego a tê-lo agora da história! Os soldados tornaram-se ferozes como tigres. Em Leiria e em Ourem tive de impor castigos inquisitoriais e mandei fuzilar alguns matadores de velhos e crianças, que chegaram a exceder a crueldade desses paisanos e dessas milícias que nos odeiam como selvagens! Receio coisa imensamente pior de que uma batalha perdida, porque estou a prever as abominações espantosas a que isto vai chegar, se ficarmos nesta situação por mais algumas semanas. Seremos o horror da Europa.

Fizeram profunda impressão estas palavras de Montbrun.

- É preciso retirar - acudiu Massena -, é a maior mágoa da minha vida, mas reconheço que é uma coisa inevitável. Mas retirar de modo que se não afrontem as águias dos nossos regimentos. Retirar para novas operações.

 

*1. Em nota a pág. 129 das Memórias do coronel Delagrave escreveu Gachot: «Naquelas circunstâncias Reynier mostrava a timidez de um oficial que entrasse em campanha pela Primeira vez. Ficara meditativo e inquieto depois da acção do Buçaco. Logo à aparição das colunas inglesas o chefe do 2.o corpo mandava prevenir Massena de que a sua situação era desesperada».

 

- A não ser rapidamente, para a fronteira da Espanha - objectou Ney secamente - será então mudar de local para o supremo desastre, como um doente muda de cama, a supor que vai achar alívio para a sua enfermidade de morte.

- Sei o que disse e lamento que a sua má vontade me não queira compreender. Dada a impossibilidade de avançar - acrescentou, voltando-se para os outros generais - posta de parte a passagem para a margem esquerda do Tejo, que seria quási um desastre nas nossas actuais condições, vejo o problema da retirada sob estes vários aspectos:

«Retirar sobre Castelo-Branco por Sobreira Formosa, para buscar comunicações com a Estremadura espanhola, procurando o apoio das forças francesas, ou para o Sabugal, para me aproximar de Ciudad-Rodrigo.

«Rejeito esta solução. Tem graves riscos.

- As forças inimigas que estão além do Tejo passavam o rio em Abrantes e batiam-nos de flanco, enquanto o grosso do exército inglês nos perseguia - disse Reynier.

- Bem sei, e por isso a rejeito. Mas tenho outro plano a seguir. Alcançar o vale do Mondego e, pela margem esquerda, tomar para a Guarda e Almeida.

- É um país já devastado - observou Ney.

- Mas tínhamos a divisão de Clarapède a reforçar-nos.

- Essa acabou de o devastar.

- Mas podemos atravessar o Mondego, ir sobre o Porto e esperar lá que o marechal Soult invada o Alentejo e que entrem pela Beira as tropas de reforço que o Imperador me prometeu. Dominaríamos uma cidade opulenta, teríamos atrás de nós uma região fecunda.

- É preciso fazer uma arriscada marcha de flanco, inquietados pelas hordas dos milicianos e por metade, pelo menos, do exército anglo-português, quarenta ou cinquenta mil homens, abundantemente providos - expôs-lhe Reynier.

- Pois é este o plano que resolvo seguir - objectou Massena energicamente -Em os soldados não tendo fome não haverá perigo que não sejam capazes de vencer.

- Esquece a escassez de munições – lembrou Ney.

- Evitaremos uma grande batalha até encontrar terreno que nos seja favorável, então jogaremos a última cartada. Para esse lance decisivo ainda nos há de chegar a pólvora.

- São suas as responsabilidades - retorquiu Ney.

- Nem as delego em ninguém.

- Pois seja para onde fôr, o essencial é retirar - volveu-lhe o Duque d'Elchingen.

- Por estes dois dias há-de ser.

- Andam atrás de mim suspeições de má vontade e de propositada quebra de energias - disse Miguel Ney - Peço o encargo de sustentar a retirada com o 6.o corpo.

- Tinha já pensado no sr. Duque. Não costumo ser injusto, nem mesmo para aqueles que me são hostis. Sustentará a retirada do corpo de exército que v. ex.a comandava em Iena e Friedland.

Discutidos ainda uns pormenores de execução, os generais comandantes de corpos de exército retiraram-se.

Naquela mesma tarde Eblé foi assistir, com grande mágoa sua, ao desmanchar e à inutilização das pontes que fizera construir para a passagem do Tejo.

Durante a noite e a manhã do dia seguinte foram levados para Tomar os doentes que havia em Santarém, Pernes e Tôrres-Novas, e em todo o dia 5 as bagagens.

À noite saiu o generalíssimo com o seu estado-maior e uma grande parte do 2.o e do 8.o corpo de exército na direcção de Tomar.

Muito distanciada do estado-maior de Massena, a Pequena Marechala lá ia com a sua escolta de dragões.

Mais à retaguarda, entre duas colunas do 2.o corpo, o general Pamplona com a esposa, Luís de Castro, com Maria Pulaski, o tio e Ana Beauchamp. Acompanhavam-nos Cândido Xavier, os dois ajudantes de Pamplona e as duas ordenanças de dragões, que o Marechal mandara pôr ao serviço do general português. As senhoras iam a cavalo. A poucos passos atrás delas, o João Luís cantarolando com a espingarda atravessada em cima da mochila.

- E cá vou eu outra vez por esse mundo fora, sem saber da minha velhinha e da minha pobre entrevada! - ia êle pensando.

A noite estava bonita. Havia luar.

- Meu general, nem v. ex.a pode imaginar o consolo que me dá esta retirada de amarguras para tantos outros! - disse Luís de Castro.

- Imagino, sim, porque também eu vou satisfeito.

- Vamos a fugir da batalha decisiva que eu receava por causa da nossa terra. Podem tentar outra invasão, mas esta decididamente se perdeu.

- Assim o creio - disse o General.

- Mas quem sabe para que novos trabalhos nos levará a nossa má fortuna? - perguntou tristemente D. Isabel Pamplona.

- E que remédio senão contarmos com o pior, minha querida senhora? - observou Maria Pulaski - Havia coisa muito pior do que tudo isto: era ficarmos nós, sem saber o destino daqueles a quem prezamos.

- Diz bem, minha querida filha. E foi por assim o entender e sentir que eu saí de Lisboa vai para três anos e voltei a Portugal em tão tristes circunstâncias.

«Mas olhe que atrocidades semelhantes a essas que eu aí vi não quero tornar a vê-las. A minha querida amiga só viu o resto.

- Pois, assim mesmo, tamanhas como eu vi nem poderia sonhar que as houvesse!

- Nada de pensar em coisas tristes, senhora minha sobrinha - gaguejou André Pulaski, revendo-se nela, que ia encantadora com o seu vestuário de amazona.

«Quem se mete em campanha tem de contar com todos os terríveis aspectos da guerra e, ainda que não possa ter arrojos de Joana d'Arc, importa que não chegue às tímidas pieguices de menina de convento.

- Mas o Tio bem percebe que não querem dizer medo a repugnância e o dó que me causam os horrores desta guerra.

- Respondeu bem e deu-me um quinau a minha

gentil amazona!

  1. Isabel e o marido riam com os gracejos do velho polaco.

- Veja como vai donairosa, gentil, a nossa guerreira - disse o velho em voz baixa a Luís de Castro.

Aproveitando a ocasião em que as duas senhoras iam conversando com o general Pamplona a respeito do estado do caminho e do intuito provável daquela retirada, Castro fêz sinal ao polaco e deixou-se ficar um pouco atrás. O velho percebeu e sofreou o cavalo para ir ao lado dele.

- Maria fêz-me ontem uma confidência, que me encheu de júbilo, mas que também me trouxe maiores cuidados e receios por estas marchas de aventura, que podem ser trabalhos e sustos funestos para ela... e para mais alguém.

- Ah! sim! Percebo. Diz bem. Agora é preciso cercá-la de todas as cautelas possíveis. Mas, apesar de tudo, eu felicito-o e felicito-me também, meu caro Castro. Fizeram de mim profeta. Lembre-se do meu gracejo do dia de Natal do ano passado. Sai certo o vaticínio, o que nem sempre sucedeu aos melhores profetas. E para o Natal deste ano teremos já mais alguém que nos sorria.

- Quem sabe? É uma felicidade que me oprime, tantos são os perigos que vão connosco!

- Mas o que não tem jeito é ir já a mortificar-se com uns receios vagos e porventura infundados. Velaremos por ela com maior solicitude e....

- Então deixam-nos! - disse alto Maria Pulaski, fazendo parar o cavalo - Olhem que eu vou acusá-los ao Marechal - gracejou - acusá-los de tentativa de deserção para o inimigo.

- Menos isso - acudiu André Pulaski - e aqui me têem a seu lado, como um paladino medievo, princesa dos cabelos de oiro.

- Olhe que se os soldados franceses o ouvem, sr. Pulaski - disse-lhe D. Isabel, associando-se ao gracejo - são capazes de a tratar por princesa. Com muito menos razão me puseram eles a mim a alcunha de rainha Pamplona. E tão insistentemente o disseram diante dos prisioneiros portugueses de Almeida, que por alguns deles, os que lograram fugir, sabem já em Lisboa e por esta brincadeira dos soldados me acusam e condenam os patriotas!

- Parece incrível! - comentou Maria.

- É a verdade, sem nenhum exagero, minha senhora - afirmou Pamplona - Não há ainda um mês que os homens da regência tiveram o cuidado de fazer chegar aos postos avançados de Massena, para que eu o soubesse, uma cópia da sentença que me condena a mim por traidor e vendido aos franceses. Confiscação de bens e pena de morte ignominiosa. E para a minha mulher igual pena por ter acompanhado seu marido para França e depois haver voltado de lá para o exército inimigo, onde andava tão satisfeita que os soldados franceses a apelidaram a Rainha Pamplona.(1) Tenho de cor estes termos da acusação.

- Mas que brutal iniquidade! - comentou Maria.

- Eu satisfeita aqui! - disse D. Isabel - Eles podem lá saber em Lisboa o que eu tenho sofrido, as lágrimas que tenho chorado!

- Condenada por acompanhar seu marido!

- Pois seja como fôr o hei-de acompanhar, só se êle não quiser. Até na prisão de maiores horrores.

- Também eu, minha senhora, me julgo e sinto com ânimo de fazer o mesmo.

- Bravo, minha sobrinha! - gracejou o polaco - Mas para cometimentos de maior arrojo terá de consultar o conselho de guerra, composto de seu marido e deste seu velho tio.

- Está claro. Mas também eu terei o direito de solicitar para defesa do meu plano uma autoridade especial no caso, como é esta minha amorável madrinha e amiga.

- E, modéstia à parte - respondeu D. Isabel sorrindo - e mesmo sem invocar a minha qualidade de rainha satisfeita, terei eu mais competência no caso do que os outros ilustres membros do conselho.

Riram daquele brinquedo de palavras, mas o demónio era o caminho, cada vez pior e a clamar mais cautelas e mais vagares.

Era madrugada quando chegaram a Tomar. Havia um movimento espantoso na cidade e nos arredores.

 

*1. O próprio Pamplona o escreveu assim, dez anos depois, na sua Memória Justificativa, por diversas vezes aqui citada.

 

Entraram numa casa grande da Corredoura para ali descansar uns momentos. Os cavalos foram metidos numa loja e lá ficaram tomando conta deles o João Luís e os dragões.

Foram atraídos às janelas pelas músicas e tambores de um regimento. Nas últimas filas vinha um velho granadeiro com um pequenito ao colo, muito envolvido numa pele de carneiro. E atrás do soldado uma cabra, a olhar de quando em quando para a criança, num olhar cheio de meiguice.

- Ali está uma cousa enternecedora!-disse Maria Pulaski - Aquele pequenito é talvez filho do soldado.

- E dalguma vivandeira - lembrou D. Isabel.

- Tão pequenito ainda! - observou Maria enternecidamente - Pouco mais de um ano.

- Provavelmente nascido em Espanha - disse o General - Mas sabe-se já e dá-se alguma cousa àquele soldado de bigode branco que tem ao peito a cruz de Honra.

Pamplona chamou-o da janela.

- É seu filho esse pequenino? - perguntou-lhe.

- Não, General. Eu em França já tenho netos. Este é o filho adoptivo do meu regimento, a ama de leite é esta cabra e a ama seca sou eu.

- Criança nascida em Espanha?

- Não, senhor. Criança nascida em Portugal. Encontrámo-la abandonada quando ocupámos a povoação do Sobral. Teria então uns oito meses. Lembrou-me um netito que tenho, tive dó deste abandonado e tomei conta dele. É fino como um coral e já tem uma campanha na pele. A cabra também a apanhei no sobral e já me não larga. Tem amizade ao meu Fanfan, como se fosse um cabrito, filho dela.

- Então o pequenino chama-se Fanfan?(1)

- Fanfan é o nome de guerra que nós lhe demos no regimento, mas foi baptizado por um frade, obrigámo-lo nós a baptizá-lo, e pôs-se-lhe o nome de Napoléon Lagloire. Já lhe ensinei a dizer Fanfan, bonjour Napoléon e daqui a uns meses dará vivas ao Imperador. É capaz de vir a ser marechal de França - disse a sorrir, acarinhando o pequenito, que lhe estendia as mãozitas para o bigode.

- Entre - disse-lhe o General - estas duas senhoras desejam beijar o pequenino e eu quero abraçá-lo por essa piedosa generosidade.

O velho granadeiro entrou, subiu. E a cabra logo atrás dele pela escada acima, aos pulos, nuns berros doloridos como se receasse que lhe levassem o pequeno.

Maria e D. Isabel beijaram o Napoleãozinho Lagloire, o risonho Fanfan. Maria então acarinhou-o como se também já fosse mãe e deu-lhe uns bolitos que trouxera de Tôrres-Novas. A ele e à cabra, já muito contente em volta do pequeno. Por duas vezes se pusera de pé, encostada a Maria Pulaski, para lamber os pés da criança.

- Tem os olhos rasos de água! - disse Maria afagando-a.

- Como se fosse mãe! - notou a Beauchamp - Aí está uma cabra que podia servir de lição a algumas desalmadas mulheres!

Pamplona abraçou o granadeiro e meteu-lhe na mão um napoleão de quarenta mil réis. Castro abraçou-o também e deu-lhe uma moeda de ouro.

- Para o ajudar nas despesas que tiver de fazer com o pequenino - disse Luís de Castro.

- Onde ganhou essa cruz da Legião de honra?

- Em Austerlitz, meu General. Foi o Imperador quem ma pôs ao peito. Já entrei em quinze campanhas e dezoito batalhas.

- Pois o seu mais belo feito é esse de ter salvo o pequenito.

 

*1. O coronel Delagrave refere o caso do pequenito do Sobral de MontAgraço a pág. 103 das suas Memórias.

Anotando o facto, Eduardo Gachot conta que encontrou nos arquivos do Ministério da Guerra duas notas relativas àquele órfão. Em uma dessas notas um capitão do 19 francês declarava que ao pequeno fora posto o nome de Fanfan. Na outra se diz que os granadeiros o fizeram baptizar por um monge, que servia de intérprete ao general Junot e lhe deram o nome de Napoléon Lagloire. Que o pequeno correu vários perigos na retirada de Março de 1811, jornadeando montado na cabra que o amamentava e só veio a entrar em França em 1813.

 

- Morria ao desamparo ou matavam-no, se não fosse eu.

- Bem haja - disse-lhe Castro, abraçando-o outra vez.

O granadeiro saiu muito ufano com o seu Fanfan, aquele pequeno Napoleão da Glória.

- Aqui está uma coisa suavemente enternecedora no meio de tantas e tamanhas barbaridades! - comentou Luís de Castro.

Voltaram para a sala e foram outra vez para as janelas.

Entravam as primeiras colunas do 2.o corpo, oficiais e soldados pálidos, emagrecidos, acabrunhados, uniformes desbotados e em farrapos, uns restos de botas estiraçadas nos pés ensanguentados.

- Veja que miséria, Luís de Castro! - disse-lhe baixo o Pamplona, indicando os soldados derreados, de quando em quando a realentarem-se apenas em imprecações de cólera e em ferocíssimas ameaças de vingança.

- O 2.o corpo, com que Soult ajudou a bater os austríacos e os russos em Austerlitz, com que êle desbaratou os espanhóis em Gamonal e derrotou os ingleses na Corunha! A douradura das águias enegreceu-se e o sol de Portugal desbotou-lhe a côr dos uniformes! Que lástima para eles e que benfazejo consolo para nós!

- Admira que os aliados não tenham vindo sobre eles - observou Pamplona.

- Talvez não percebessem ainda o movimento de retirada ou não queiram aventurar-se a qualquer marcha ofensiva, muito distante das Linhas, sem conhecerem a direcção em que eles retiram.

- Talvez, mas não tardarão a sabê-lo. Wellington tem muito quem o informe. Mesmo em Santarém. Eu descobri lá, casualmente, um homem que, por meio de sinais, se comunicava com os portugueses que estavam do outro lado do Tejo.(1)

Entrou o ajudante Francisco Cardoso, que se havia separado deles para falar a uns oficiais franceses.

- Apesar de tudo, fazem dó! - disse Maria Pulaski.

- Minha senhora - acudiu Francisco Cardoso - vêem mais cruéis e enfurecidos! Dizem-no os próprios oficiais com quem falei. Praticaram inauditas selvajarias os últimos que saíram de Tôrres-Novas! Queimaram pelo caminho umas poucas de aldeias.

E, voltando-se para o General, acrescentou:

- Em Pernes tinham deitado fogo a umas poucas de casas.

 

*1. O general Marquês de Sá da Bandeira (Bernardo de Sá Nogueira) naquele ano apenas alferes de cavalaria n.o 10, faz larga referência àquele ardil na sua Memória sobre as fortificações

de Lisboa.

O informador patriótico de Santarém chamava-se Francisco Jacques Salinas. Assim que havia qualquer coisa importante a comunicar a respeito dos franceses, Salinas mandava à Ribeira um homem da sua confiança, que, muito surrateiramente envolvido num grande capote, se ia agachar num sítio fronteiro à quinta do Reguengo, do outro lado do rio. A quinta era da família Sá Nogueira e ali estava acantonada a companhia do moço alferes.

Muito oculto pelo capote, o confidente do Salinas feria lume com um fuzil, de modo que não o pudessem ver os franceses. Era o sinal combinado.

Então da adega da quinta, pela calada da noite, puxavam para o rio uma bateira e de lá vinha com ela, cautelosamente, um homem seguro e intrépido para receber na Ribeira, num recanto escuro do Tejo, as informações escritas do Salinas. Levada ao Reguengo a carta recebida, dali a enviavam para a Chamusca, ao quartel-general de Beresford.

E com tal felicidade que, por aquele modo, soube Bernardo de Sá Nogueira a notícia da saída dos franceses de Santarém, logo confirmada por girândolas de foguetes, e ele com outro camarada foram os primeiros do exército aliado que entraram na vila.

 

Faço ideia do que terão feito em Santarém, em Alcanede e na Golegã.(1)

- Olhem que é preciso ir fazer a nossa apresentação ao Marechal, não vá êle supor que desertámos - lembrou Pamplona - Já ontem me admoestou severamente por eu ter ido com o Alorna a Chão de Maçãs, sem licença dele. E, valha a verdade, teve razão.

- Completamente às suas ordens, meu General - disse o Castro.

- Não te demores - solicitou-lhe Maria - Ficamos aqui sozinhas.

- Muito obrigado, minha excelente sobrinha! Bonita promessa de futuras proezas. Esses receios, tendo-me aqui a mim - disse, gracejando.

- O Tio não pode impor-se a esses soldados, que tantas barbaridades cometem.

- Ainda desta vez é ela quem tem razão. Sou um reles tio paisano.

- Eu mando o João Luís ali para a porta - lembrou Luís de Castro.

 

*1. A respeito de Santarém temos o testemunho de Bernardo de Sá Nogueira. Na sua Memória sobre as fortificações de Lisboa, o general Marquês de Sá resume assim as recordações do alferes de cavalaria 10: «Ali vi as casas completamente saqueadas, os móveis destruídos, as igrejas convertidas, umas em cavalariças, outra (a de São Martinho) em teatro, e outras em matadouros de gado, donde saíam emanações insuportáveis, as oliveiras, as laranjeiras e outras árvores dos numerosos pomares suburbanos haviam sido cortadas. E os olivais e os pomares constituíam uma das principais riquezas daquela povoação. Numa palavra, esta apresentava o mais completo quadro de devastação».

 

- Mas olhe, fique o senhor - disse o General - Eu lá direi ao Massena que o deixei aqui acompanhando sua esposa e a minha. Se êle duvidar, volto eu e vai então o senhor.

- Mil agradecimentos, meu General.

Pamplona saiu com Cândido Xavier e os dois ajudantes. Dali a poucos minutos batiam à porta. Era o chefe do batalhão Guingret.

- Por aqui? - disse o Castro.

- Encontrei ali fora o sr. general Pamplona e soube que o meu amigo estava aqui. Tenho de regressar ao meu posto em Ourem e não quis partir sem o visitar.

- Amabilidade que eu agradeço sinceramente.

Apresentou-o à esposa de Pamplona e à sua.

Depois, enquanto as senhoras à janela se entretinham a ver passar as colunas de tropas, Guingret disse a meia voz para o Castro:

- Creio que ainda não retiramos para Espanha e tenho pena!

- Pena porquê?

- Porque esta guerra ferocíssima envergonha-me, compunge-me, e não sei a que mais hediondos desvarios poderá chegar! Ainda se os generais todos fossem como Montbrun... restaurar-se-ia a disciplina e diminuiriam as atrocidades e as infâmias.

- Então Montbrun é disciplinador, opõe-se aos desregramentos da soldadesca?

- Com uma severidade que vai até além das penalidades legais. Eu lhe dou dois exemplos recentes, que produziram uma impressão enorme de terror. Em certa povoaçãozita das proximidades de Leiria, um soldado, um selvagem que ia com um outro às ordens de um sargento, vê um velho a fugir com duas criancitas debaixo dos braços. Como tomado de uma loucura de atrocidade, corre para o velho e bate-lhe com a coronha da espingarda nos olhos. Num estonteamento de dor, o desgraçado cambaleia, leva as mãos aos olhos e caem-lhe dos braços os dois pequeninos. Então aquele tigre feito soldado agarra em uma das crianças e esquarteja-a, levanta a outra, torce-lhe o pescoço.

- É monstruoso!

- Vai saber o castigo. O sargento e outro soldado correram horrorizados para o assassino das crianças, increparam-no, quiseram prendê-lo, o selvagem resistiu e travou combate com eles. Apareceram mais soldados e então o submeteram e levaram preso à presença de Montbrun, apresentando-lhe também os cadáveres das crianças e o velho com os olhos velados de sangue. Num impulso de horror, Montbrun mandou logo julgar o monstro sumariamente e duas horas depois estava fuzilado.

- Foi uma lição, insignificante afinal no estado de desmoralização em que está o exército.

Ouviu-se uma grande algazarra. Vinha da rua.

As duas senhoras retiraram-se da janela. Guingret e Luís de Castro correram a outra janela para ver o que era.

- Viva a rainha Pamplona! - gritavam uns soldados borrachos.

- E a outra, nova e bonita.

- A bela Capitoa!

- Mulher de um capitão deste país de selvagens.

- Vamos beijá-la.

- Mil beijos, que ainda é mais formosa do que a Princesa Borghèse.

Guingret tirou uma pistola que trazia no cinto, engatilhou-a e debruçou-se da janela.

- Estendo o primeiro canalha que ousar aproximar-se dessa porta.

- Vou eu lá abaixo recebê-los - rouquejou Luís de Castro.

- Não seja imprudente. Eu basto - disse-lhe Guingret - Sargento - gritou - Prenda-me esses bêbedos.

Os ébrios reconheceram Guingret e deitaram a fugir pela rua fora.

- Hei-de castigar aqueles pulhas - disse para Luís de Castro - São do meu batalhão, pertencem à escolta que trouxe comigo. Encontraram por aí alguns restos de aguardente e embebedaram-se.

Foi pedir desculpa às senhoras e despediu-se. O general Pamplona tinha voltado.

- E então, meu General?

- O Massena dispensa-lhe hoje a apresentação. Nunca o vi tão risonho e em tão excelente disposição de ânimo.

- Talvez disfarce.

- Não me pareceu. Julga segura a retirada para o vale do Mondego e conta que poderá esperar os reforços prometidos e a cooperação de Soult naquelas regiões férteis, entre Coimbra e Porto. Parece-lhe segura a pilhagem nas terras do Douro e Minho.

- Mas, quando saímos de Tôrres-Novas, ouvi que Massena tinha por certa a má vontade do marechal Soult contra ele e nenhuma probabilidade de que o Duque de Dalmácia largasse o cerco de Badajoz para o apoiar no Alentejo.

- Era isso exactamente, e talvez assim suceda, mas o Marechal recebeu há pouco um correio da Espanha com uma carta de Soult.

- Admira que pudesse cá chegar!

- Veio de Badajoz, ao longo da fronteira, e entrou por Vila-Velha. O correio é um contrabandista espanhol, vendido aos franceses.

- Trouxe uma carta de Soult?

- Com a notícia de mais uma batalha perdida pelos espanhóis. - xinda gutra!

- Uma nas margens do Xévora, ou Géborá, como os franceses dizem, nas cercanias de Badajoz.

- Mas a respeito dessa batalha já havia notícia em Tôrres-Novas por declarações de um desertor irlandês.

- Notícia vaga, incompleta, de origem suspeita. A batalha foi a 19 de Fevereiro. Soult mandou a notícia com pormenores. O Massena mostrou a carta ao seu estado-maior, mostrou-a também ao Alorna e a mim e parecia muito satisfeito com aquela vitória de um marechal que ele, certamente, detesta por vários motivos. Percebi que o seu intento era tornar a vitória bem pública para reanimar o espírito das tropas, deixando-lhes prever a provável cooperação do vencedor.

- Pobre filho querido da vitória, reduzido agora a reanimar-se com as vitórias dos outros! Mas foi realmente uma batalha de importância?

- Um desastre completo para os espanhóis. Dos dez ou doze mil homens do general Mendizabal, não me ficou o número exacto, novecentos foram mortos ou feridos, cinco mil e tantos ficaram prisioneiros. Soult diz na sua carta que tomou seis bandeiras, dezassete peças, se a memória me não falha, uma equipagem de pontes, todas as bagagens e muitas espingardas. Para dentro de Badajoz calcula Soult que teriam fugido uns três mil e para Elvas uns quatrocentos ou quinhentos,

- Desbarato completo! E agora o Duque de Dalmácia invadirá o Alentejo, di-lo essa alegria que v. ex.a notou em Massena.

- Soult continua o cerco de Badajoz, dirigindo-o êle próprio. Assim o diz na sua carta ao príncipe d'Essling!

- Não sei então compreender a causa dessa jovialidade de ânimo que v. ex.a notou em Massena.

- Compreendo-a eu por umas palavras que ouvi ao general Fririon. Massena conta com os recursos da região entre o Mondego e o Douro e ali espera manter-se até que o marechal Soult, rendida a praça de Badajoz, coisa segura depois daquela vitória, avance pelo Alentejo, atraindo para lá uma parte do exército aliado.

-Mas nesse caso ficará para o brilhante marechal de Austerlitz, para o táctico insigne, vencedor dos espanhóis e ingleses em Gamonal na Ponte del Arzobispo, na Corunha, no Xévora, ficará para êle a glória maior, se os nossos forem vencidos.

- Não ficará, porque Massena, ainda que não tenha recebido auxílio de tropas, espera refazer-se de munições no Porto, restaurar a disciplina do exército, matando-lhe a fome, e avançar sobre Lisboa com quarenta mil homens, quando Soult se tiver internado pelo Alentejo com vinte ou trinta mil.

«Então os oitenta mil portugueses e ingleses do exército de primeira linha, de que talvez dispõe Wellington(1), terão de dividir-se para se opor aos dois exércitos, e Massena encontrará diante de si, para uma batalha campal, forças aproximadamente iguais às suas e poderá chegar a Lisboa antes que o frustrado rei Nicolau da Lusitânia intente a passagem do Tejo. Aqui tem a razão porque Massena está prazenteiro(2). É esta a sua ideia, é este o seu plano

- Oxalá que seja apenas o seu mentiroso sonho.

- Oxalá - respondeu Pamplona, indo para junto das senhoras - Temos de começar a marcha dentro de meia hora. Obtive promessa de uma escassa refeição, que não pode tardar. Entre um exército faminto, num país devastado, foi tudo o que me foi possível obter.

 

*1. Segundo os mapas oficiais portugueses, o exército da 1.a linha de que Portugal dispunha em 1810 tinha um efectivo de 51.841 homens com 4.469 cavalos. Havia sido de 45.669 homens em fins de 1808 e de 47.958 em fins de 1809.

  1. Marbot diz nas suas Memórias que Massena ia alegre e jovial com espanto de todos.

 

Uns pedaços de pão e meia dúzia de peixes do rio.

- Já é boa fortuna - disse Maria, sorrindo.

- E já se não morre de fome - acrescentou D. Isabel Pamplona..

O 8.o corpo, centro da coluna em retirada, pernoitou no dia 7 entre os montes pedregosos de CHão-de-Maçãs e entrou em Pombal no dia seguinte. Já lá estava o 9.o corpo (Drouet D'Erlon) que saíra em 5 de Leiria, escoltando mais de dez mil feridos e doentes. O 2.o corpo (Reynier) também para ali marchara. O 6.o corpo (Ney) ficava à retaguarda para sustentar a retirada. Loison, com um comando quási independente, abandonara a margem do Tejo em Constança, e retirava pela estrada do Espinhal, cobrindo o flanco direito do exército.

Para iludir os aliados, deixando-lhes supor um grande movimento ofensivo sobre Tôrres-Vedras, o marechal Ney concentrara as suas tropas nas proximidades de Leiria e com elas a divisão de cavalaria vinda de Ourem e mandara fazer grandes reconhecimentos para os lados de Rio-Maior, de Alcobaça e Pôrto-de-Mós, até à costa da Nazaré.

Wellington pela sua parte hesitara em desguarnecer as Linhas, sem saber o fim daquela súbita retirada, da qual tivera conhecimento logo no dia 6. Seria para um ataque pela esquerda das Linhas torneando Montejunto e o Monte Barregudo pelo desfiladeiro de Runa ou afinal para se acolher à fronteira espanhola?

Nestas justificadas hesitações, o generalíssimo inglês deu aso a que Massena, confirmando agora todas aquelas altas qualidades que o tornaram o maior general do Império depois de Napoleão, se lhe distanciasse muito a seu salvo, sem perseguição eficaz durante três dias.

Beresford, que foi talvez quem primeiro teve conhecimento da retirada, aproximou-se logo das forças de Wellington com as suas tropas portuguesas. Em 6 o general Stewart atravessou para a margem direita do Tejo com a maior parte das forças do comando em chefe de Beresford e dirigiu-se para Tomar, ponto de concentração onde se reuniram as divisões que avançaram da Golegã.

Enquanto a maior parte do exército aliado se concentrava, Wellington ordenava que a sua divisão ligeira, os hússares alemães e os dragões reais perseguissem a retaguarda do 8.o corpo entre Chão-de-Maçãs e Pombal.

Agora já o generalíssimo inglês podia supor que os franceses retiravam no intuito de ganhar o vale do Mondego.

Na preocupação de acudir a Badajoz, Wellington mandara sair de Tomar para o Alentejo duas divisões e a cavalaria pesada e ordenara ao marechal Beresford que pusesse uma brigada de cavalaria a caminho de Portalegre. Uma outra divisão dos aliados ia em perseguição dos franceses pela estrada do Espinhal.

Em 9 os corpos de Junot e Ney e a cavalaria de Montbrun tomavam posições nas proximidades de Pombal. Travam-se então porfiadas escaramuças entre as tropas ligeiras de um e outro exército, e os hússares alemães de Wellington batem um troço da cavalaria francesa. O generalíssimo inglês supõe no inimigo a intenção de lhe dar batalha.

Em 10 estão já com a divisão ligeira dos aliados mais quatro divisões de infantaria e cavalaria pesada. Wellington mandara expedir ordem urgentíssima para voltarem para trás as tropas que iam em socorro dos espanhóis de Badajoz.(1)

 

*1. Nem lá chegavam a tempo, porque a praça capitulara em 11 de Março.

 

Mas Ney apenas pretendia sustentar a retirada do exército, dando tempo a que as grandes colunas, as bagagens e os doentes se fossem escapando pelo desfiladeiro entre as montanhas e a ribeira de Soure.

Em 11 de manhã Massena retirava apressadamente pela margem direita daquela ribeira. Ney firmava-se nas alturas circunvizinhas de Pombal e mandava ocupar fortemente as ruínas do velho castelo mourisco.

Dá-se então renhido combate em que entravam quatro mil e tantos portugueses.(1) Caçadores 3 distingue-se, afirmando as suas gloriosas tradições do combate da ponte do Coa e da batalha do Buçaco.

Tomam-se e retomam-se as ruínas do castelo.

No empenho de ganhar tempo, Ney obstina-se na posse daquelas muralhas derruídas.

Ele próprio, num daqueles seus ímpetos leoninos que ficaram célebres, se arroja para o alto do castelo à frente do 16 ligeiro.

Guingret atribui-lhe estas palavras: «Caçadores! Perdeis a vossa alta reputação e ficais para sempre desonrados se não bateis dali o inimigo imediatamente. Vamos! Bravos, segui-me!»(2)

E fêz ali, contra aquelas ruínas do castelo mourisco, o que não quis fazer contra os cerros do Buçaco, à frente dos seus bravos de Iena e de Friedland!

Mas os soldados que lá estavam em cima já sabiam como se combatiam franceses. Caçadores 3 e o 93 inglês não só os repeliram do castelo,

 

*1. Eram 4.243 homens de caçadores 1, 3 e 4, da leal Legião Lusitana e de infantaria 1 e 16. Tiveram 31 mortos e feridos.

Segundo Gachot, os franceses tiveram 63 mortos e feridos.

Só entrou no combate uma pequena parte do corpo de Ney que se compunha de 10 regimentos de infantaria e 4 de cavalaria com 28 canhões.

  1. Relation historique, etc, pág. 140 e 141.

 

mas até da própria vila, a que o marechal Ney já tinha mandado deitar fogo, para evitar a imediata perseguição dos aliados e alguma investida à coluna de equipagens, cuja marcha era muito lenta.(1)

Pombal ardia, como tinham ardido centenares de aldeias, como tinha ardido uma parte de Alcobaça, de Pôrto-de-Mós, de Leiria e da Nazaré.

No dia seguinte (12) outro combate, muito mais sangrento, na Redinha, e este começado com disposições de batalha formal. Segundo a opinião de Marbot, uma carnificina inútil para um e outro exército.

Ney sentia-se à vontade naqueles lances gravíssimos, em que a sua iniciativa era quási independente e os perigos e as responsabilidades maiores lhe pertenciam exclusivamente. Parecia completamente esquecido das intrigas dos acantonamentos, volvera a ser o general de admirável intrepidez, a quem Napoleão chamara o bravo dos bravos.

Como era de esperar das suas notáveis aptidões militares, Ney ocupou excelentes posições em frente da vila. Apoiara os flancos da sua linha de combate num fosso natural, formado pela ravina de Soure e no ribeiro da Redinha. A um e outro lado umas alturas de denso arvoredo onde a infantaria se acobertava, e diante do centro da linha o caminho enterrado por onde os aliados haviam de avançar, batidos de enfiada pela artilharia francesa. Para lá da baixa da Redinha, como posições de apoio, ásperos declives de montanhas, ocupados por uma das suas divisões de infantaria,

 

*1. É a razão dada por Marbot a pág. 432 do tomo II das suas Memórias.

 

com um regimento de cavalaria: e uma bateria pesada.

Wellington estava preparado para uma batalha e iniciou a ofensiva, mandando atacar as alturas arborizadas do flanco direito dos franceses.

Foram para esta primeira investida os regimentos ingleses 52 e 95, uma companhia do 43 e os batalhões de caçadores portugueses 1, 3, 4 e 6.

Esta divisão, comandada pelo general Erskine, sobe intrepidamente às alturas, repulsa os franceses das clareiras dos pinhais e transborda para a baixa da Redinha, reforçada por uma bateria e dois regimentos de dragões.

Torneava já o flanco direito dos franceses, mas os batalhões de Ney reconcentraram-se por entre o arvoredo, apoiados por quatro canhões, que metralham as linhas e as colunas aliadas.

Contra o flanco esquerdo avançara a divisão do bravo general Picton. Toma as alturas em que os franceses se firmavam e inicia um movimento envolvente.

Troveja a artilharia dos aliados e o grosso do exército de Wellington avança em três linhas com admirável serenidade.

O Duque d'Elchingen observa e diverte-se com espantoso sangue-frio a ver aquela espectaculosa batalha que o inimigo lhe está preparando.

Rompe do centro e da esquerda toda a cavalaria dos aliados para uma carga formidável, decisiva, mas estrondeiam do lado dos franceses descargas sucessivas de cinco ou seis mil espingardas, envolvem-se em nuvens de fumo as posições dos franceses e a cavalaria inglesa prepara-se para carregar a fundo.

Momentos depois, como numa cena de mágica, a neblina de fumo esfarrapa-se nos ares e nas posições francesas já se não descobre sequer uma companhia!

Ney retirara teatralmente, depois daquele divertimento que tinha custado algumas centenas de vidas.(1)

Procuremos agora o nosso grupo de portugueses. Devem ter retirado com o estado-maior de Massena e com eles Maria Pulaski e Luís de Castro.

Sigamos nós de Soure para Condeixa, mas, antes de lá chegar, tomemos pelo caminho para Miranda-do-Corvo e indaguemos para que lado fica a povoação de Fonte Coberta.

Está ali o estado-maior de Massena. Encontra-o a gente logo à entrada da aldeia, à sombra de uns carvalhos antigos. Fririon conversa com os nossos conhecidos Marbot, Ligneville e Casabianca. Massena está falando com o general Eblé e o ajudante Pelet. Mais ao largo, uns grupos de oficiais conversam animadamente.

O dia está uma delícia como se fosse um prenúncio de Primavera. O sol queima como se estivéssemos em Junho. A cem passos, no alpendre de uma casa térrea, humilde, sentado numa cadeira de tesoura, antiga, vê-se um dragãozinho de cabelos dourados e ao pé dele uma mulher de cabelos grisalhos com o traje de vivandeira. Conhecemos perfeitamente aquele franzino oficial de dragões. É a companheira do Marechal no seu travesti de campanha. Se nos aproximássemos, notar-lhe-íamos uma profunda expressão de desalento,

 

*1. Marbot calcula que os franceses tiveram duzentos a trezentos homens fora de combate, mas supõe, com patriótico exagero, que os aliados tivessem perdido mais de mil homens.

Em uma das suas notas, Gachot diz a pág. 198 das Memórias do Coronel Delagrave que os aliados tiveram 201 mortos e feridos e os franceses 227. ,

No combate estiveram 14.572 portugueses, mas só alguns batalhões entraram em fogo e esses perderam 47 homens, mortos e feridos.

 

uma palidez ensombrada de tristeza, lágrimas represadas nos seus grandes olhos mortificados.

Mas assim porquê? Opressão de fadiga? Receios pelo desenlace daquela campanha? Amarguras por algum desgosto íntimo? Talvez tudo isto a quebrar-lhe as energias do corpo e a mudar-lhe em noite de pavores algum recatado sonho de alma.

A umas dezenas de passos para a frente, num telheiro, uma guarda de trinta granadeiros e no declive de um outeiro, à beira do caminho, uns trinta dragões de cavalos à mão.

Por detrás dos carvalhos fumegava uma cozinha de campanha. Os criados do Marechal preparavam o jantar. Mas não estão ali Maria Pulaski e Luís de Castro e temos de ir procurá-los.

Atravessemos a aldeia. Logo a meio da ruazita principal se nos depara uma casa de melhor aparência. Aquartelaram-se ali os Marqueses de Alorna e de Loulé, Cândido Xavier e outros oficiais. Sigamos para diante. Ao cabo da povoação, à porta de uma casita alegre, com um nicho de Santo António e um grande quintal, lá está como de sentinela o nosso granadeiro João Luís. Hão-de estar ali também as pessoas que procuramos. Estão.

Viam-se por cima do murozito do quintal. O Pamplona a passear com André Pulaski e Luís de Castro, sentadas num banco de pedra, debaixo de um caniçado que o Inverno apodrecera, D. Isabel Pamplona, Maria Pulaski e Ana Beauchamp. Maria muito pálida, com umas olheiras de dolorosa fadiga.

- Exausta de forças, cheia de susto, minha querida filha! - dizia-lhe afectuosamente a esposa do General.

- Assustada, não, minha senhora. Já passei trabalhos de maior pavor.

- Na Sibéria, minha senhora - acudiu a Beauchamp - Foi ali que nós passámos horrores!

- Muito fatigada, muito! - lamentou Maria Pulaski.

- Sim, isso não admira - disse D. Isabel, envolvendo-a num longo olhar carinhoso.

- Diz muito bem, minha senhora - apoiou a Beauchamp - No estado em que está a minha querida Menina - perdoe-me que já não sou capaz de a tratar de outro modo - ainda que tivesse de passear no jardim de um palácio se havia de fatigar. Mas com estas jornadas, por esses malditos caminhos, a fugir dos perigos, bem se pode avaliar o que ela está sofrendo!

- E mais me custa ainda por causa de meu marido, sempre cheio de cuidados por mim, sempre receoso!

Mas enquanto elas vão falando dos seus sacrifícios e dos sustos de cada hora, vamos nós ouvir o que se diz no grupo de homens.

- Então v. ex.a achou o Marechal menos prazenteiro?- perguntava Luís de Castro.

- Achei e percebi porquê. Como sabe, o acariciado plano de Massena era tomar Coimbra, apossar-se do vale do Mondego, marchar sobre o Porto e realentar o exército, matando-lhe a fome.

- Isso me tinha dito v. s.a.

- Pois ontem de manhã Massena recebeu uma nova contristadora, que o fêz mudar de plano. Tinha mandado Montbrun com os dragões e um batalhão de infantaria para um reconhecimento nos campos de Coimbra. Pois ontem recebeu um relatório do general, comunicando-lhe que era impossível tomar Coimbra, fortemente guarnecida por artilharia e por uma divisão de milicianos, que êle supunha ser a do inglês Trant, apoiada em tropas de primeira linha, provavelmente inglesa. Que a ponte da cidade estava cortada e tinha minas explosivas e que o Mondego levava ainda tantas águas das últimas cheias que não havia vaus por onde se pudesse passar, ainda mesmo que não os estivessem guardando as forças inimigas.

- Ainda bem, para ver se saímos de Portugal.

- Parece que um oficial da vanguarda de Mont-brun encontrou na ponte de Coimbra quem lhe respondesse altivamente à intimação para entregar a cidade e a ameaçasse de fazer ir a ponte pelos ares, mal se aproximassem as avançadas francesas.

- Provavelmente a cidade está ocupada por numerosas tropas de milícias e tem próximas ou espera importantes forças de primeira linha.

- Também assim suponho e só deste modo se explica a altiva repulsão do ultimato de um general, que levava consigo não menos de dois mil homens e alguma artilharia ligeira. E aqui tem porque Massena perdeu o ar prazenteiro com que o vi em Tomar e mudou de direcção, para retirar pela Ponte de Murcela para a Guarda e talvez depois para Almeida.(1)

- Para lá da fronteira é o que eu desejo.

- Assim será, se não lhe chegarem reforços e Soult continuar entretido com o cerco de Badajoz, ou se não despegar da fronteira, para deixar bater o colega num desastre final.

- Mas creia v. ex.a que me admiram estes vagares de Massena e a tranquilidade com que êle se fica por aqui a descansar, com umas dezenas de soldados por escolta.

 

*1. Marbot explica deste modo aquela mudança de plano: «Tinha chegado o momento crítico da nossa retirada. Sem querer deixar Portugal, Massena resolvera passar o Mondego em Coimbra e acantonar as tropas na fértil região entre esta cidade e o Porto, a fim de esperar as ordens e os reforços prometidos pelo Imperador, mas Trant tinha cortado a ponte de Coimbra, e o Mondego, avolumado pelas chuvas, não oferecia nenhum vau que fosse possível atravessar. O generalíssimo francês teve, portanto, de abandonar o seu plano e tomar para a Ponte-de-Murcela, para ali passar o Alva, etc.» (Memórias, tomo II, pág. 433).

 

- Por causa da companheira, provavelmente como em Viseu. Assim o dizem à boca pequena os maliciosos do estado-maior. Parece que, efectivamente, a pobre rapariga vem muito fatigada e oprimida. Segundo ouvi, Massena conta que as divisões do marechal Ney se mantenham nas posições de Condeixa, como lhe ordenou e por isso se considera aqui perfeitamente seguro. E tanto se julga a coberto de qualquer surpresa que mandou seguir para Miranda-do-Corvo e pelas encostas da serra as divisões de Loison e Clausel. O corpo de exército de Reynier ouvi eu dizer que chegara ao Espinhal.

- Estão caindo em grandes erros estes soberbos generais de Napoleão! Massena devia ter a larga distância uma rede protectora de esclarecedores de cavalaria, que lhe vigiassem os aliados e o tivessem em comunicação constante com o corpo de Ney. Assim, sem saber onde estão os seus perseguidores e sem a certeza de que as forças de Ney ocupam as posições que lhe determinou, corre sério risco de ser aqui apanhado de surpresa.

- Longe vá o seu agouro, meu caro Castro!

- Agora seríamos nós também envolvidos no desastre! - disse, relanceando um olhar inquieto para Maria Pulaski.

Ela não o podia ouvir. Estava a quarenta ou cinquenta passos, ao fim do quintal.

- Nem êle poderá contar muito com o marechal Ney desde que lhe reacenda as vaidades, cerceando-lhe a iniciativa. E essa ordem para ocupar e manter-se numa certa posição talvez tenha ferido o orgulho do Duque d'Elchingen.(1)

 

*1. Em 13 o quartel general tomou, pois, esta direcção (a da Ponte de-Murcela) e devia seguir neste mesmo dia para Miranda-do-Corvo, todavia, sem saber porque motivo, o generalíssimo foi instalar-se em Fonte Coberta e, crendo-se bem coberto pelas divisões que, segundo ordenara ao Marechal Ney, deviam ocupar as posições de Condeixa, não deixou consigo senão um posto de 30 granadeiros e 25 dragões. Mas, com o pretexto de que ia ser atacado por forças muito superiores às suas, o marechal Ney abandonara aquelas posições, prevenindo Massena tão tarde que só muitas horas depois da execução deste movimento o Príncipe d'Essling recebeu a carta em que era prevenido, ficando assim sujeito a ser aprisionado pelo inimigo, com todo o seu estado-maior». (Memórias de Marbot tomo II, pág. 433).

 

- Talvez. Até agora creio que tem tido ampla liberdade de iniciativa, circunscrita apenas ao plano geral de retirada.

André Pulaski ficara apreensivo. Por causa dele, Pamplona e Castro tinham falado em francês e o velho compreendeu bem os receios de Luís de Castro. O criado de Pamplona veio dizer que estava pronto o jantar.

- O nosso banquete - disse o general, sorrindo para Luís de Castro - A broa dura e os feijões com toucinho que o seu granadeiro encontrou, em não sei que dispensa desta aldeola.

- Saiba v. ex.a, meu General, que foi em casa do padre - disse o João Luís, perfilando-se ao lado do criado - Mas para as senhoras sempre apanhei lá uns punhaditos de arroz para um caldo.

Depois daquele jantar de cavadores, decidiram sair a passeio até a umas centenas de passos dali, vagarosamente, por causa de Maria Pulaski.

- Uma delícia de tarde! - disse D. Isabel.

, - Parece Abril - respondeu-lhe Maria Pulaski.

- O pior é que este belo sol, como eu ainda não vi senão na Itália, está a querer-nos fugir por detrás daqueles montes -notou o velho polaco.

Tinham saído da aldeia, deram uma volta e vieram descer, torneando a pequena alameda onde estava o estado-maior de Massena. Ficaram a curta distância, um pouco escondidos pelos troncos de dois grandes pinheiros mansos.

- Aqueles ainda estão a jantar - disse André Pulaski, indicando as mesas improvisadas, às quais estavam sentados os oficiais da comitiva de Massena.

- Jantar de campanha, jantar ao ar livre - observou Pamplona, sorrindo - mas, a julgar pelo cheiro, imensamente melhor que o nosso.(1)

- Jantar de marechal e príncipe - comentou Luís de Castro gracejando - E a guarda dos granadeiros além, ao pé do sarilho de armas.

- A companheira do Marechal, ao pé dele, com o seu uniforme de alferes de dragões - notou Maria Pulaski -, é bonita. Fica-lhe bem.

- Mas parece triste - observou D. Isabel Pamplona.

- Os oficiais é que estão muito à sua vontade - acudiu o general - E com excelente apetite, os demónios!

As senhoras sentaram-se num banco de pedra, antigo, entre dois pinheiros.

- Está arrefecendo - disse D. Isabel - Vai anoitecer e temos nevoeiro. Era melhor irmo-nos recolhendo.

- Pois sim, vamos.

- E aquele jantar promete demorar-se - observou André Pulaski a sorrir.

- Querem ver lá que já nos descobriram! O Marechal apontou para cá. Levantou-se um oficial. Vem para aqui! Agora é preciso esperar - disse Pamplona.

 

*1. «E assim, na suposição de que estava defendido por umas poucas de divisões francesas e achando agradável aquele sítio da Fonte Coberta e aquele tempo delicioso, Massena ordenara que servissem o jantar ali mesmo ao ar livre». (Memórias de Marbot, tomo II, pág. 433.

 

- Ora isto! - respondeu, contrariada-Que aborrecimento! Temos convite.

- O oficial é Próspero Massena - indicou Luís de Castro.

- Os ingleses! Os ingleses! - gritou na frente o comandante do piquete de dragões.

E a seguir, rapidamente, deu as vozes de montar e desembainhar espadas.

A sentinela dos granadeiros chamou às armas. Próspero Massena deitou a correr para junto do pai.

As senhoras estavam lívidas, numa tremura de

pavor.

- Tenham ânimo - disse-lhes Luís de Castro - Estamos nós aqui para as defender. Deixem-se estar aí sentadas.

E colocaram-se em frente delas os três homens.

O polaco engatilhara as duas pistolas que trazia no cinto. Pamplona e Luís de Castro tinham desembainhado as espadas e cada um deles tirara do cinto uma pistola.

Ia um reboliço espantoso no estado-maior do Marechal. Os oficiais correram em busca dos cavalos e oito ou nove meteram logo para a frente a reforçar o piquete. Os outros corriam também, pouco depois, para a vanguarda e a guarda dos granadeiros formou em volta do Marechal, de baioneta calada e dedo no gatilho.(1) Tinham trazido um cavalo para o Marechal e outro para o alferezito de dragões.

- Foi uma imprudência trazer-te! - dizia Massena, procurando reanimar a amante.

 

*1. Estávamos nós muito tranquilamente à mesa debaixo das árvores, à entrada da aldeia, quando subitamente se descobriu um piquete de 50 hússares ingleses, a menos de cem passos de distância.

«Os granadeiros da guarda tomaram logo as armas e rodearam Massena, enquanto todos os ajudantes-de-campo e os dragões montavam rapidamente a cavalo e avançaram para o inimigo.» (Memórias de Marbot, tomo II, pág. 434).

 

- Mas eu não tenho medo - volveu-lhe ela tristemente - Morrerei aqui com os seus soldados, se fòr preciso ficar.

- Não, não quero. Quem deve e tem de ficar sou eu. Tu sais já. Peço aos oficiais portugueses que te acompanhem.

- Prefiro ficar.

- Tem de ser assim. Quero eu.

E enquanto os trinta dragões e dezassete oficiais do estado-maior metiam a galope contra os ingleses (uns cinquenta hússares da vanguarda, que vinham em exploração), todos os oficiais portugueses se reuniram junto do Marechal, já a cavalo.

Marbot veio a toda a brida trazer uma comunicação ao Marechal.

- Os hússares ingleses retiraram sem queimar uma escorva. É uma pequena força. Provavelmente algum destacamento perdido que anda em procura da sua divisão.

- Ou talvez esclarecedores da vanguarda. Mas puderam chegar até aqui! Ney! onde estará Ney!

Voltou-se para um dos ajudantes de Pamplona:

- O seu general?

- Sei que saiu a passeio com o capitão Luís de

Castro.

- Ah! Sim. Vimo-los daqui com as senhoras.

Além. Vá avisá-los. É preciso retirar já.

O ajudante (era Francisco Cardoso) deitou a galope, direito à ondulação de terreno que o Marechal lhe apontara.

- Marbot, vá dizer ao piquete que se conserve observando. É preciso dispor tudo, imediatamente, para retirar.

O João Luís apareceu muito enfiado a perguntar aos oficiais portugueses menos graduados se não tinham visto o seu capitão.

Marbot partiu a toda a brida e voltou à rédea solta.

- Marechal, a nossa situação é muito mais grave do que supúnhamos!

- Porquê?!

- Porque estamos cercados! Avança uma coluna, talvez um regimento, pelo caminho por onde os hússares retiraram à desfilada. Apesar de ter escurecido, percebemos tropas nos montes que nos circundam.

Massena rouquejou uma praga em italiano, mas não perdeu a sua admirável serenidade de ânimo.

Todavia empalidecera. Tinha medo por aquela pobre rapariga, amargurava-o aquele provável desfecho de uma campanha de revezes, a única assim na sua longa carreira militar.

- Prisioneiro dos ingleses! - pensava - Ney comandante em chefe, se o não derrotaram! Mas se não foi derrotado, desobedeceu-me, traíu-me o...

Chegou Pamplona com Luís de Castro, as senhoras e o polaco.

- General, estamos cercados, é preciso retirar. Os oficiais portugueses retiram primeiro. Invoco os seus brios de homens de bem e peço-lhes que me não desamparem esta senhora.

- Pode Vossa Alteza contar connosco.

- Obrigado. Agora sem nenhumas delongas. Pamplona mandou logo buscar os cavalos. As

bagagens iriam com as do Marechal. Tinha anoitecido completamente.

- Marechal - lembrou-lhe Marbot - seria prudente ir observar se o inimigo já estará de posse do caminho único por onde nos é possível retirar. Receio que os oficiais portugueses vão cair nas mãos dos ingleses.

- Diz bem. Vá observar e leve consigo qualquer outro oficial que o auxilie.

- Levarei meu irmão, que tem sobre mima vantagem de entender e falar o inglês como um filho da Inglaterra. Podemos surpreender algum soldado desgarrado, a quem nos seja útil interrogar.

- Óptimo. Isso. Não me lembrava de seu irmão. Pode até inspirar-lhe algum estratagema que nos limpe de ingleses o caminho por onde havemos de sair daqui. Por exemplo: simular-se ajudante de algum general inglês e comunicar-lhes uma ordem, protegido pela noite, que se está fazendo escura. O nevoeiro cerrou e pode auxiliá-lo. É de muito risco, eu sei, mas é serviço para nos salvar a todos e talvez ao exército.

- Tudo o que nos fôr possível, sr. Marechal, sem

nenhum receio pela vida.

- Eu sei. Para já.

Marbot chamou o irmão e partiu. Já a cavalo, o grupo dos portugueses ficou esperando o resultado daquela comissão. No centro deles as senhoras e o velho polaco.

Cerca de duas horas de atormentadores impaciências. Afinal chegou Marbot a toda a brida.

- E daí?

- Com um estratagema, tão ingénuo que há-de parecer inverosímil, conseguimos fazer retirar um regimento inglês que se nos ia atravessar no caminho único por onde podemos retirar.

«Fingindo-se ajudante-de-campo de qualquer dos generais inimigos e simular levar ordens urgentíssimas por efeito de um lance grave, meu irmão torneou um monte e a meia encosta gritou em inglês para o comandante do regimento! «O generalíssimo manda que retireis imediatamente, reunindo à divisão, contra a qual se desenvolvem numerosas forças do inimigo. Sem nenhuma demora. Parto a levar outras ordens.

«E meteu a galope, afastando-se deles, protegido pela escuridão da noite e por este denso nevoeiro. O caso foi que o regimento retirou rapidamente.

- Obrigado, Marbot. Seu irmão?

- Ficou observando. Quando parti, o regimento inglês ia em marcha pelo declive de um monte.

Pelo caminho ainda percebi aquela massa escura a marchar rapidamente por uma encosta, esfarrapando o nevoeiro diante de si. Agora seria conveniente metermo-nos já a caminho.

- Sem nenhuma delonga. Marquês de Alorna, general Pamplona, vão os senhores com os seus portugueses na frente. Vinte dragões para esclarecedores da vanguarda. Nós, com os granadeiros, formaremos a guarda da retaguarda.

Os vinte dragões meteram a passo para a frente, depois, a larga distância, o grupo dos portugueses com as senhoras.

A meio quarto de légua de intervalo, as bagagens, o pelotão de granadeiros, o Marechal com o seu estado-maior e como extrema retaguarda dez dragões e as ordenanças. Eram dez horas.

O caminho, ora escavado entre rochedos, ora cortado de charcos feitos pelo enxurro das montanhas durante os primeiros dias de Março, estava quási intransitável.

Calcule-se o que seria por ali fora aquela marcha de afogadilho, por uma noite escura e cada vez mais toldada de nevoeiros.

Para as pobres senhoras então um sacrifício extenuador. A triste companheira do Marechal, o franzino alferes de dragões, umas poucas de vezes fora a terra. O cavalo escorregava-lhe nas pedras polidas das rochas ou chapava-se-lhe nos atoleiros. Nem cavalos, nem cavaleiros podiam ver os perigos e as armadilhas do caminho.

Mas, com a sua admirável resignação, a francesa tornava a montar, confundida, mortificada, a farda e o cabelo empastados de lama e reprimia queixumes para não embaraçar aquela marcha de fuga.

  1. Isabel Pamplona ia num cavalo mais seguro e mais cauteloso, que só uma vez se lhe esbarrara, e a Beauchamp aguentava-se com intrépida firmeza. Muito quebrada de forças, Maria Pulaski era decerto a mais oprimida de todas.

Não se queixava, mas a um e outro lado dela, muito chegados para a poderem amparar quando o cavalo tropeçava, o marido e o tio adivinharam-lhe num confrangimento de alma as lágrimas de mortificação que a escuridade da noite lhes não deixava surpreender.

E durante as primeiras duas léguas a marcha foi a passo largo com receio de que os ingleses lhe fossem tomar o caminho. Depois se começou a moderar um pouco o andamento por se julgar que teria passado o maior perigo.

- Luís - disse-lhe Maria timidamente - eu quero ter ânimo, mas vou a recear que me faltem as forças! Se fosse possível descansar, uns instantes ao menos!

- Pois sim, ficamos nós contigo. Ficamos para

trás e descansarás uns momentos.

- Bem sei que é perigoso, mas eu sinto que não posso ser superior a este quebramento de forças! Já tive umas poucas de vertigens. Ainda será longe

o lugar para onde vamos?

- Ainda. Ficaremos para trás.

Afastou o cavalo e foi para o lado do general Pamplona.

- Tenho de ficar para trás por causa de minha mulher. Vai mortificada, carece de uns instantes de repouso.

- Coitadinha! Isso imagino eu - disse D. Isabel Pamplona.

- O diacho é que o Marechal não há-de querer deixar-nos para trás - observou-lhe Pamplona - mas se deixar, eu fico também com os meus ajudantes.

- É um caso excepcional.

- Mas olhe, como agora vamos menos de fugida, porque não experimenta improvisar-lhe uma espécie de cadeirinha em que a levassem amparada nos braços?

- Não me ocorria isso. Vou experimentar. Levo-a eu e o meu granadeiro, ao menos durante os piores lanços do caminho.

- Pois bem. Paremos uns instantes.

Pararam eles, e logo uns poucos de oficiais portugueses, dos que iam mais próximos, pararam também num requinte de solicitude pela pobre senhora. Os da frente foram seguindo muito devagar com a companheira do Marechal.

André Pulaski aplaudiu o alvitre da cadeirinha improvisada, e ofereceu-se para a levar em substituição do João Luís.

- Valha-me Deus! Que tamanho sacrifício por minha causa!

- Para mim nenhum. Sinto ainda os braços rijos dos quarenta anos. Vamos lá. E onde o caminho fôr melhor, irás então a cavalo, se puderes.

Esgaçaram uns ramos grossos de uma carvalheira abeirada do caminho e sobre eles unidos amarraram dois capotes em guisa de almofada.

Nisto chegou da retaguarda o Marechal com alguns dos seus oficiais. Explicaram-lhe a demora. Preguntou pela companheira. Que ia na frente com outros oficiais, disseram-lhe. Meteu para diante para a ir ver.

O caminho cada vez pior. A pequena marechala caíra outra vez e em piores condições. Ficou muito magoada. Oprimido de pesar, confrangido por ver que a pobre senhora já não podia montar a cavalo, Massena pediu a um dos seus ajudantes que lhe fossem buscar quatro granadeiros, para lha levarem em braços, revezando-se.

- A asneira que eu fiz trazendo-a comigo! - disse baixo para o general Fririon.

Chegaram os soldados e o dragãozito de cabelos de ouro lá foi nos braços dos granadeiros.

Antes da madrugada encontraram a divisão de Loison.

Pelo dia adiante se foram reunindo outras forças da vanguarda do 6.o corpo, que retiravam das posições de Condeixa.

Naquele dia 14, se travara um breve combate entre uma parte das tropas de Ney e o exército aliado. Como sucedera na Redinha, o exército anglo-português desenvolvera-se e tomara disposições indicadoras de uma batalha em forma, supondo ter diante de si o grosso do exército de Massena no empenho de marchar sobre Coimbra. Mas Ney não quis sustentar as suas posições e o combate não teve importância.

Para cá dos desfiladeiros de Miranda-do-Corvo, Massena fêz alto e mandou que se concentrassem, ocupando umas fortes posições de onde podiam proteger a passagem da artilharia pesada e das equipagens, opondo-se a qualquer ataque imprevisto dos aliados. Ali esperaria que se lhes reunissem as outras unidades do exército.

Podiam, enfim, repousar as pobres senhoras. E enquanto elas repousam e Massena espera que se reuna a maior parte das suas forças para continuar a retirada, contemos nós um caso histórico de que o Marechal não tinha conhecimento.

Referimo-nos ao facto da súbita mudança da linha de retirada e da desistência de Massena em prosseguir no plano de tomar Coimbra, para se manter na região entre aquela cidade e o Porto.

Segundo o relatório do general Montbrun, Coimbra não pôde ser investida pelas suas tropas, porque a guarneciam numerosas forças inimigas.

Pois era completo engano. Da cidade tinham retirado as forças importantes que lá havia, em consequência de se suspeitar que todo o exército francês ia ocupar o vale do Mondego. Para fazer saltar a ponte, demorando a entrada dos invasores, apenas ficara um destacamento de milicianos portugueses com uns artilheiros e um sargento!

Parece inacreditável, mas explica-se.

A epidemia da insubmissão tocara também o general Montbrun, e este bravo imitador do espectaculoso Murat só muito de má vontade e à sobreposse tomara aquele encargo do reconhecimento de Coimbra, mas na firme disposição de não travar qualquer combate de importância.

Era já do partido numeroso dos generais e soldados que não viam a salvação do exército senão na retirada imediata para Espanha e estavam ansiosos por se encontrar para além da fronteira portuguesa.

A seu tempo provaremos com o testemunho indirecto do chefe do batalhão Guingret, reproduzindo palavras que êle escreveu e nas quais, expondo o seu modo de sentir, muito plausivelmente consubstanciava o pensamento e o desejo da grande maioria dos seus camaradas. Montbrun não fêz ou não quis fazer um reconhecimento em forma. Parou na Cruz dos Moroiços em 12 e dali mandou sair uns grandes destacamentos de exploração, um até ao monte da Esperança, fronteiro a Coimbra, outros ao longo do Mondego para lhe reconhecerem os vaus.

O que seguiu para defronte de Coimbra foi recebido com vivíssimo tiroteio, os outros observaram o curso do rio muito de relance, viram que as águas iam altas e não deram ou não quiseram dar com os vaus aproveitáveis para a cavalaria. Da outra margem havia uns postos de milicianos que os receberam a tiro.

Foram informar o general de que não tinham encontrado vaus e toda a linha do Mondego estava defendida por infantaria portuguesa.

No dia seguinte de manhã, o comandante da avançada que chegara até ao Monte da Esperança mandou descer à ponte um parlamentário com o encargo de entregar uma carta de Montbrun para o general governador da cidade. Era uma espécie de ultimato, com promessas de generosidade, se a cidade fosse entregue pacificamente às avançadas do exército francês.

A Ponte estava cortada do lado da Portagem. Tinha um arco desmoronado e fora minada de modo a ir pelos ares à menor tentativa de ataque. Causou estranheza ao parlamentário francês que viesse falar-lhe um simples sargento. Devia haver ali uma forte guarnição militar, a avaliá-la pelo nutrido tiroteio da véspera.

E nem talvez percebesse que não passava de um sargento de milícias aquele homem que saltara por cima dos escombros do arco derruído para ir ao seu encontro e lhe dirigira umas palavras em francês, facilmente compreensível.

O parlamentário deu-lhe a carta de Montbrun para o general governador, e logo, no intento de aplanar dificuldades e evitar delongas, lhe referiu o assunto de que se tratava e lhe acentuou que a pequena distância dali estava uma poderosa divisão da vanguarda do exército de Massena, que em poucas horas poderia investir a cidade. Era inteligente e resoluto aquele sargento de milícias e não se desconcertou com a ameaça.

- O sr. general governador não está agora na cidade - respondeu-lhe com serena altivez - Foi inspeccionar os postos militares da linha do Mondego e só regressará amanhã com uma nova divisão inglesa, que desembarcou em Lisboa e há dias está em marcha para aqui. Pode deixar a carta e queira vir amanhã buscar a resposta.

- Há-de estar outro general na cidade - retorquiu-lhe o francês - e esse poderá responder.

- Tal resposta só o governador vo-la pode dar.

- Pois então a divisão da vanguarda investirá hoje mesmo a cidade e daqui a instantes a coluna a que pertenço forçará esta ponte.

- E ficareis sepultado nela. Há aqui por baixo de nós uma mina atulhada de pólvora, e antes que as tropas da cidade e arredores venham repelir a vossa divisão, mandarei eu lançar fogo à mina.

Falava como um general do Império aquele sargento das milícias de Coimbra, e o parlamentário, sem se atrever a novas ameaças, foi levar a Montbrun aquela esmorecedora informação. Era, provavelmente, o que o general desejava. Demais a mais, sabia que os anglo-portugueses estavam nas proximidades de Condeixa.

Mandou logo ao Marechal um relatório carregado. Coimbra e a linha do Mondego não se podiam tomar de uma investida. Estavam ali forças numerosas com artilharia, chegaram ou iam chegar tropas inglesas, que nos princípios do mês tinham desembarcado em Lisboa, e era impossível passar o Mondego a vau.

Com o exército de Wellington pela retaguarda seria um desastre intentar quaisquer operações, necessariamente demoradas, contra a cidade.

Os franceses estavam já naquele estado de desalento em que tudo se acredita e exagera. E assim empurrou Massena para a fronteira de Espanha.

Aqui está como, pela serenidade de ânimo admirável e pelo estratagema felicíssimo de um sargento de milícias, moço perspicaz e ilustrado, se mudou a linha de retirada de um exército, que para lá do Mondego, numa região fértil, poderia ainda sustentar-se por largo tempo, até que lhe chegasse reforços e Soult invadisse o Alentejo.

Então seria possível que o Príncipe d'Essling tomasse um desforço formidável do revés do Buçaco e da esmorecedora surpresa de Tôrres-Vedras.

E nas consequências deste desforço que série de transformações políticas e militares na Península e talvez na Europa? Batidos os ingleses, esmagada a resistência da nação portuguesa, a Espanha vencida e acabrunhada, a Europa dobrar-se-ia ainda mais sem nenhuns estímulos para se opor a Napoleão.

Mas agora com o nome do glorioso sargento das milícias de Coimbra - Correia Leal - importa realçar-lhe o feito admirável, indicando aqui com que apoio de forças militares êle falou ao parlamentário de Montbrun na velha ponte do Mondego.

A população foragida já tinha evacuado a cidade na frente de uma parte dos milicianos, e o tiroteio, durante a tarde e a noite de 12, fora apenas um estratagema para conter o inimigo e ganhar tempo, assegurando o bom êxito da retirada. Na madrugada do dia 13 a cidade estava quási deserta. Só lá ficara o heróico sargento Correia Leal com um destacamento de artilheiros e outro de milicianos, para aquele encargo de provável sacrifício.

Comandante militar da cidade abandonada, Correia Leal falou ao parlamentário francês, tendo atrás de si apenas um punhado de soldados! Nisto se resumiam as divisões de Silveira e Trant, sonhadas por Massena na sua carta para Berthier e os vinte a trinta mil homens ideados por alguns historiadores daquela campanha!(1)

 

*1. O sargento Correia Leal, o homem de abnegação antiga que se ofereceu para aquela missão de sacrifício quási certo, foi infelizmente esquecido e só, muitos anos depois, a palavra arrebatadora de José Estêvão o lembrou na tribuna parlamentar, pondo em volta daquela figura apagada de uma heroicidade que parece lendária, a luz justiceira do seu soberbo talento e da sua alma de soldado, porque o fora também entre os mais intrépidos, nas campanhas da liberdade.

O tribuno sem émulo tinha excepcional autoridade para avaliar homens de ânimo. Fora no cerco do Porto um dos bravos sobreviventes da Flecha dos Mortos.

 

                       O último plano.

Condeixa tornara-se um braseiro. Para deter os aliados, Ney mandara-lhe deitar fogo.

O grosso do exército de Massena ocupava agora uma posição fortíssima entre o rio Eça e os desfiladeiros de Miranda-do-Corvo. O corpo de exército de Reynier estava ainda no Espinhal e para o perseguir marchava a divisão Nigthingale, que deveria ser reforçada pela do general Cole, saída de Condeixa.

Aquelas ásperas posições de Miranda-do-Corvo eram quási inacessíveis e mal podiam atacar-se de frente. Wellington planeou torneá-las. A divisão Picton, avançando por entre as colunas afastadas do general Cole e o Casal Novo, iria tornear o flanco esquerdo do invasor, a divisão ligeira do general Erskine avançaria contra a direita, as divisões do centro apoiariam o movimento envolvente, fazendo prever aos franceses um ataque geral sobre a sua frente.

Estaca um nevoeiro densíssimo, que não deixava perceber bem os movimentos das tropas. Mais uma vez os nevoeiros tinham um papel importante naquela campanha! Numa impetuosidade imprudente, desconhecendo as posições formidáveis dos franceses, que as névoas quási totalmente velavam Erskine fora atirar com a sua divisão ligeira e a brigada Pack contra o bivaque de Ney. Ia-lhe caindo nas mãos o próprio marechal como o generalíssimo estivera para cair nas mãos dos cinquenta hússares na Fonte Coberta. E naquele ataque prematuro e às cegas, através dum nevoeiro densíssimo, foram dar consigo a uma encosta da posição inimiga, comprometendo o decisivo êxito da operação envolvente. Um dos regimentos ingleses chegou a ficar quási isolado sob o fogo vivíssimo do inimigo.

Esfarrapava-se um pouco o nevoeiro e Wellington pôde avaliar aquela situação comprometedora: Mandou então a Erskine que atacasse de frente com toda a sua divisão e que o batalhão português de caçadores 6 da divisão Picton fosse prolongar a linha atacante. Foi uma renhida peleja. Apesar da superioridade de número de forças francesas naquelas posições, os aliados iam-se aguentando, entrincheirados nos cais ao abandono, abrigando-se nos pomares, transmudando em parapeitos os muros rústicos dos cerrados e quintalejos, donde o seu fogo era seguro, mortífero.

Graças às pontarias certeiras dos atiradores britânicos, os franceses não puderam assegurar o bom êxito do contra-ataque, e uma parte da divisão ligeira anglo-portuguesa conseguiu contornar-lhes um pouco o flanco direito.

A esse tempo já as divisões Picton e Cole tinham efectuado o seu movimento envolvente sobre a esquerda francesa. Contra o centro do inimigo avançavam três divisões dos aliados com artilharia de reserva e a cavalaria pesada, e então mudou completamente o aspecto da luta em desfavor dos franceses.

Todo o corpo de exército de Junot batia já em retirada pelos desfiladeiros para Miranda-do-Corvo. De posição em posição, cedendo lentamente, o 6.o corpo foi retirando também, com as outras tropas que se lhe tinham agregado, até às formidáveis posições de apoio que o próprio Massena ocupava em Miranda.

Era meio-dia. As últimas colunas francesas que metiam ao desfiladeiro já eram enfiadas e postas em desordem pela artilharia dos aliados.

Da sua retirada da Cruz dos Moroiços, por causa dos vinte a trinta mil homens que o sargento Correia Leal tinha em Coimbra, a cavalaria de Montbrun acolhera-se também a Miranda, ao cabo de uma fatigante marcha por aqueles ásperos caminhos: Havia perdas importantes de parte a parte. A divisão ligeira anglo-portuguesa tivera 161 mortos e feridos, as tropas francesas muito mais, e deixaram cerca de um cento de prisioneiros. Já na última fase de combate, em Miranda, Marbot foi gravemente ferido, quando ia comunicar uma ordem de Massena.

As equipagens, os feridos e doentes do exército francês iam a caminho da Foz de Arouce.

Entre essas colunas, que se arrastavam penosamente pelos detestáveis caminhos, lá iam os nossos portugueses e em grupo à parte as famílias do general Pamplona e de Luís de Castro. Um pouco à frente deles, entre dois oficiais do estado-maior de Massena e alguns dos nossos, ia a pequena marechala, oprimida por angustiosas previsões.

- Castro, que me diz à nossa guerreira - gracejava o polaco - Recobrou alento e viu o combate de longe com admirável intrepidez.

- A pintura e a peleja de longe se veja, da sabedoria do povo esta máxima rimada - disse Luís de Castro sorrindo.

- E é este o caso em que de longe se vê melhor - acudiu o velho a rir para a sobrinha.

- O escárnio que eles fazem de mim, minha senhora! - disse Maria a sorrir, voltando-se para D. Isabel Pamplona.

- E são injustos. Eu nunca julguei que a minha querida afilhada tivesse ânimo de ver aquilo, mesmo de longe!-volveu-lhe a esposa do General.

- Provavelmente esperavam que eu me pusesse à frente de algum esquadrão para carregar o inimigo - gracejou também Maria Pulaski.

Anoitecia. Iam numa volta alta do caminho quando descobriram uma fumaceira enorme, a larga distância, dos lados de Miranda-do-Corvo.

- Repare - disse Pamplona para Luís de Castro.

- A fogueira anunciadora da retirada!

- Imensa! E dali só de Miranda-do-Corvo.

- Deve ser. Outra povoação em chamas, outra que morre a bater os perseguidores!

Foram seguindo silenciosamente. A noite cerrara-se com o céu coberto de negrumes, vinha das bandas da serra um vento agreste que os fustigava duramente. De quando em quando umas bátegas de água.

- Faltava isto! Vamos ter uma noite de temporal - disse Pamplona a Luís de Castro, de modo que as senhoras o não pudessem ouvir.

Chegou da retaguarda a trote largo um dos ajudantes de Pamplona, que tinha ficado em Miranda para aguardar ordens do Marechal.

- E daí, Cardoso? - perguntou-lhe Pamplona - Traz alguma ordem?

- Apenas recomendação de se apressar a marcha para chegarmos o mais cedo possível a Foz de Arouce.

- Por este caminho e com tal noite, há-de ser

difícil. Retiraram já de Miranda?

- Começaram a retirar logo ao anoitecer. Vem já também o corpo de exército de Reynier, que se não pôde aguentar em Penela e bateu em retirada, perseguido por duas divisões.(1) Os franceses encravaram muitas bocas de fogo e queimaram as respectivas viaturas. Está também Miranda a arder.

- Nós vimos a fumaceira.

- Ouvi eu dar a ordem para lhe deitarem fogo. A ordem e um escandaloso conflito de palavras entre Ney e Massena, por causa dos empecilhos que atravancam os caminhos e embaraçam a marcha das tropas. Pareceu-me que Ney aludiu também à companheira de Massena. Nunca vi o generalíssimo tão enfurecido!

- Pois ainda bem que eles se não entendem um com o outro -disse Pamplona a meia voz.

- Oxalá que atirem com tudo isto para a fronteira de Almeida, quanto antes - volveu-lhe Luís de Castro.

- Creio que não é essa a intenção de Massena - objectou Francisco Cardoso -, Perguntaram-me se conhecia o caminho da Guarda para Alfaiates.

- O quê! Então êle quere ir para a Guarda?! - perguntou Pamplona.

- Percebi por aquela e outras perguntas que me fêz o general Fririon que estão no intento de voltar ao vale do Tejo pela fronteira espanhola, para se reunirem ao corpo de exército de Soult, avançando então sobre Lisboa.

- Decididamente, só com um grande desastre este demónio de Massena desistirá de cumprir as primeiras instruções de Napoleão - comentou Luís de Castro - Cordialmente lho desejo!

- Tenho a certeza de que lhe não deu esclarecimentos,

 

*1. As divisões dos generais Nightingale e Cole.

 

se alguns podia dar - disse Pamplona para o ajudante Cardoso.

- Absolutamente nenhuns e podia dar-lhos. Conheço tôdas aquelas terras desde a Serra da Estrela até ao Tejo.

Começava a trovejar, os relâmpagos cruzavam-se em todas as direcções, o céu enegrecera mais e a chuva caía já em bátegas formidáveis. Vinha da serra um vento que gelava.(1)

- Faltava isto! Este horror de noite! - disse Pamplona para Luís de Castro.

E dali a pouco a marcha tornava-se lenta, tumultuária, esmorecida. Acendiam archotes, que o vento logo apagava, a estrada mudara-se em leito de enxurrada, as pragas de desespero chocavam-se nos ares com os gritos dos transviados. De instante a instante era preciso fazer alto por causa das bestas de carga que se iam abaixo ou das viaturas de artilharia, atascadas até aos eixos. Parte da cavalaria apeara-se e só a espaços se viam os lanços do caminho quando os relâmpagos fuzilavam com mais intenso fulgor.

Tinham procurado guias, mas só encontraram dois montanheses que nada quiseram dizer.(2)

E lá mais para a frente, na coluna dos doentes e dos feridos, ainda pavor maior e mais angustiosa situação! Alguns, num definhamento de forças que lhes tornava impossível qualquer energia da vontade, caíam e ficavam enterrados na lama, outros agonizavam ao pé dos animais de carga que tinham ido abaixo extenuados e aos quais os condutores haviam cortado os corvilhões para que os perseguidores os não pudessem aproveitar.

 

*1. «Enfim, para cúmulos de infortúnios, fomos assaltados por uma tempestade medonha. A chuva ensopava-me o uniforme, ia transido de frio, etc. (Memórias de Marbot, tomo II, pag. 440).

  1. Nem as ameaças de morte faziam falar os paisanos. (Eduarde Gachot, nota a pág. 222 das Memórias do Coronel Delagrave.

 

E assim até que amanheceu e se aproximaram da ponte do rio Ceira, em Foz de Arouce!

Felizmente para os franceses aquela noite tempestuosa, que lhes causara mais perdas do que um combate desastroso, também retivera os anglo-portugueses, impossibilitando-os de prosseguir rapidamente na sua marcha de perseguição. Apesar das hesitações de Massena, conseguiu Ney que o generalíssimo o autorizasse a desembaraçar o exército dos maiores impecilhos da marcha.

Um batalhão do 6.o corpo tomara para a extrema vanguarda e fora postar-se à entrada da ponte, para não deixar que passassem quaisquer veículos e animais de carga que não fossem necessários ao transporte da artilharia, das munições, das ambulâncias e víveres para os doentes.

A ordem foi rigorosamente cumprida. Encravou-se mais artilharia pesada, queimaram-se mais viaturas, cofres de munições que iam vazios e um número espantoso de carroças e caleças ajoujadas de bagagens. Estas mesmas foram em grande parte destruídas e queimadas.(1)

E os animais de carga, para que não pudessem servir os aliados, os mataram, cortando-lhes os jarretes!

Até dos próprios carros de Massena alguns foram queimados e só por sua ordem expressa lhe deixaram passar três.

- General - disse Luís de Castro para o Pamplona - arde ali o espólio da terceira invasão. E naquela fumarada que se esfarrapa nos ares está a minha alma a sonhar que vai também a lenda das águias triunfais.

 

1 Na sua Relation historique, Guingret refere-se à inutilização dos solípedes e à queima das viaturas em Foz de Arouce.

 

André Pulaski veio apressadamente para êle, muito oprimido.

- Maria desmaiou! Não lhe deu para mais a sua admirável coragem desta noite! Veja se pede a um médico para a ir ver. É preciso levá-la dali.

- Imediatamente - disse Luís de Castro num confrangimento do coração, correndo para o grupo que se formara em volta de Maria.

Estava sem sentidos nos braços de D. Isabel Pamplona. Acercara-se dela, compadecidamente, a companheira do Marechal e dali, a seu pedido, foram chamar um médico.

Os corpos de exército de Reynier e Junot já tinham estabelecido bivaques do outro lado do Ceira. Ney escolhia posições na margem esquerda para ali se opor à marcha dos anglo portugueses com o seu 6.o corpo. Mas o marechal Massena fora avisado da aproximação das tropas aliadas, percebeu o perigo de travar combate com uma ribeira caudalosa à retaguarda e mandou ordem ao Duque d'Elchingen para retirar com todas as forças para a margem direita e cortar a ponte.

O duque não lhe obedeceu. Mandou atravessar para a outra margem apenas uma parte das tropas, deixou a ponte intacta e manteve nas posições da margem direita alguns regimentos de infantaria, a brigada de cavalaria do general Lamotte e umas baterias ligeiras. E como os aliados não chegavam, Ney deixou afrouxar as precauções essenciais nas proximidades do inimigo e permitiu que a brigada Lamotte dispersasse pelas planuras da margem direita em busca de forragens.

A meio da tarde estavam à vista as avançadas dos portugueses, e, como era de presumir, os franceses tiveram uma perturbadora surpresa.

A marcha dos aliados fora também penosíssima e por isso chegavam tão tarde. E de tal modo estava devastado o país I e era descuidada e morosa a direcção do abastecimento de víveres, abundantes nos depósitos de Lis boa, que uma grande parte das tropas portuguesas não recebia pão havia dois dias!

Era já tarde, parecia imprudência iniciar um coMbate quási ao anoitecer mas Wellington percebera de um relance de olhos a perturbação dos franceses, e apesar das suas normas de prudência não resistiu à tentação de os atacar em tão deplorável conjuntura para eles. Mandou então à divisão ligeira e à brigada portuguesa do general Pack que investissem imediatamente.

A 3.a divisão recebe ordem para cair sobre o flanco esquerdo dos franceses, a artilharia a cavalo toma posições e o combate principia quando já começava a escurecer. Foi impetuosa a investida das tropas ligeiras e da brilhante brigada Pack, (1 e 16 de infantaria) cujos soldados vinham famintos.(1)

Ney compreende o erro e os perigos provenientes da sua vangloriosa desobediência, e procura resgatá-los em prodígios de bravura pessoal. Põe-se à frente do 39 da linha, bate-se como um leão, repele à baioneta os dragões ingleses.

Anoitecia. Uma bala derriba morto, ao pé do Marechal, o bravo coronel Lamour, que era o ídolo do regimento.

 

*1. Traduzindo informações inglesas, palavra por palavra, o autor da Guerra de la Peninsula que já citámos, diz a pág. 109 da sua obra: «As tropas portuguesas, sempre na ânsia de entrar em combate, manifestam invariavelmente uma bravura que toca as raias do entusiasmo.»

«Os portugueses, apesar de não terem tido pão durante dois dias, marchavam mais lestos que os nossos e batiam-se admiravelmente.

A respeito das deficiências de víveres, Wellington e outros generais ingleses queixavam-se amargamente de desleixo dos homens da regência de Lisboa.

 

Os soldados vêem-no cair e debandam esmorecidos, a despeito dos esforços desesperados de Ney. Mas os que debandam vão cair sobre outro regimento, o 59 de linha, levam-lhe a sugestão do terror, e dispersaram-se os dois por mais que a voz e a espada do «bravo dos bravos» tente reúni-los firmes.

- Soldados de Iena e de Friedland! Canalhas! Tresmalhados como carneiros! - gritava Ney.

Mas os soldados fugiam num pavor doido, sem o ouvir, sem que os pudesse conter aquela espada, por tantas batalhas gloriosíssimas.

Já se não vê. A artilharia inglesa emudeceu, para não ferir os seus, mas a dos franceses troveja ainda das alturas da outra margem, atirando às cegas. Cae um projéctil de lá sobre os dois regimentos em fuga.

- É do inimigo!

- Venceram todo o exército!

- Estamos cortados!

- Salve-se quem puder!

E vão enovelados contra a ponte, para fugir, nem eles sabem para onde. Mas Lamotte vem a galope com a brigada que estivera forrageando na outra margem e mete à ponte. Esbarraram os dragões com os fugitivos e só se não tomam por inimigos porque as vozes de comando e a grita dos espavoridos vibram alto na mesma língua. Mas a ponte está atulhada. No ímpeto do galope os últimos esquadrões embatem contra os da vanguarda e estes contra a massa oprimida dos fugitivos. Ficaram esmagados muitos homens.

- P'rá frente a infantaria! - grita o general Lamotte.

- Estamos aqui engasgados!

- Para o vau! Para o vau!

Valia um grito de morte este brado que supunham de salvação. Corre a turba dos espavoridos para o vau, mas enganam-se os mais desorientados, os mais ansiosos de fugir, e metem-se aos pegos, a água tem a altura de dois homens.

- Acudam! Socorro! Morremos afogados! - suplicavam os que iam empurrados por outros para a voragem onde muitos se tinham já sumido, pondo numa lúgubre interjeição todo o seu imenso terror.

Quem podia lá ouvi-los? Ninguém lhes acudia.

Naquelas águas torvas, barrentas com as enxurradas da noite anterior, já se tinham afogado cerca de duzentos. A confusão doida do movimento é tamanha, tal a grita das imprecações, das súplicas, das agonias, que os dois corpos de exército de Junot e Reynier, imobilizados na margem direita, sem nenhuma noção do que se passava, receiam esmagar os seus nobulados camaradas avançando. No meio daquele mar revolto de homens, Ney encontra um regimento ainda formado, o 27, e põe-se à frente dele.

- Esta vergonha, soldados d'Elchingen! Com o vosso marechal para a frente, à baioneta, como no dia de Friedland!

Os tambores batem a marcha de carga, Ney arrasta consigo o regimento, encontra as divisões Mermet é Ferrey e leva-as também atrás de si até ao centro dos aliados, num ímpeto leonino. Lamotte retirara da ponte com os seus dragões, procura o vau, passa, dá a um posto francês uma ordem que é mal compreendida e a gente desse posto, um batalhão, erra o caminho e vai bater-se com outro batalhão do mesmo exército! Fuzilam-se quási à queima roupa, supondo-se inimigos, por fim um deles ataca à baioneta e o outro opõe-se-lhe formando quadrado!

O contágio daquele terror alastra-se pavorosamente. Os próprios aliados retiram em desordem, sem saber porque, precisamente quando as tropas que Ney levara para o seu formidável contra-ataque se esbandalhavam abandonando as peças, largando as armas, refluindo para a ponte num turbilhão de enlouquecidos. E, sob os pavores da noite escuríssima, aquele espectáculo, que seria cómico se ali não houvesse já umas centenas de cadáveres! Dois exércitos de soldados intrépidos a fugirem um do outro!(1) O combate acabou como que por tácito acordo dos beligerantes.

Logo que rompeu a madrugada, aliados e franceses foram buscar as suas armas e os seus canhões abandonados. Nem um tiro, apesar de tão próximos uns dos outros que bem podiam ver como coravam daquela mútua fraqueza da véspera. Wellington deixou que o marechal Ney efectuasse tranquilamente a retirada para a margem direita. Era como que uma trégua imposta pela vergonha de uns e outros!

Sempre no propósito de apoucar as perdas dos seus compatriotas, Marbot calcula que as tropas de Ney tivessem ali 150 mortos e feridos, dos quais cem afogados. Mas diz que os aliados tiveram 200 homens fora de combate. Uma diferença inverosímil que outros historiadores corrigem, elevando a 500 o número dos franceses feridos ou mortos, calculando em mais de 300 homens as perdas dos aliados.

Estava a romper a madrugada quando um dos ajudantes de campo de Massena, que tinha ficado em Foz de Arouce acompanhando Marbot, lhe apareceu e lhe contou os pormenores daquele afrontoso combate,

 

*1. «As tropas dos generais Reynier e Junot foram então, como eu, testemunhas de um espectáculo bem raro na guerra, aquele de umas poucas de divisões de exércitos contrários fugindo umas das outras na maior desordem.» (Memórias de Marbot, tomo II, pág. 443.)

Guingret também conta na sua Relation Historique aquele extraordinário combate de Foz de Arouce.

 

devido à imprudência e à desobediência de Ney.

Massena fulminou contra o insubmisso umas formidáveis pragas italianas dos seus tempos de embarcadiço.

E logo mandou activar os trabalhos defensivos, começados na véspera, ordenando ao pequeno corpo de exército de Drouet d'Erlon que tomasse precauções contra uma possível surpresa.

Dos pormenores que o ajudante lhe referira, um houve que o comoveu profundamente.

Os soldados velhos do 39 de linha andavam desde o romper de alva a procurar nas águas e nas margens do Ceira a águia do regimento, que se tinha perdido. A procurá-la com os olhos rasos de lágrimas, numa dor de vergonha.

Estas informações vieram de boca em boca para fora do quartel-general, Pamplona ouviu-as e logo as foi contar a Luís de Castro, ainda muito oprimido de cuidados por Maria Pulaski.

- General, agora ainda maior desvanecimento o meu por aquela 13.a meia brigada da nossa Legião, na noite de Baumersdorf!

«Contrasta espantosamente o que ela fêz com esse pavor dos soldados de Friedland e do Buçaco, na trágica balbúrdia de Foz de Arouce!

Massena mandou ordem terminante ao Marechal Ney para retirar. Cada vez mais insubmisso, o bravo dos bravos teimava em não obedecer e justificava agora a desobediência com a bravata de não querer dar alento ao inimigo, voltando lhe as costas.

Supunha o Duque d'Elchingen que as tropas do Wellington estavam receosas de avançar e que já tinham dado prova deste receio na estranha lentidão com que haviam marchado nos dois dias anteriores. Era também este o parecer de Marbot, que o expõe desassombradamente nas suas Memórias.

O que eles não sabiam era que as dificuldades da marcha tinham sido enormes e que as fadigas de uma parte das tropas portuguesas vinham cruelmente agravadas por um extenuamento de forças resultantes da fome.

Da fome é o termo. Desde Pombal que o serviço de abastecimento de víveres era irregular no exército inglês e de esmorecedora penúria no exército de Portugal, a despeito das reclamações e queixas de lorde Wellington e do marechal Beresford.

Se os comissários ingleses nem sempre podiam mandar de Lisboa, regularmente, as substâncias para o seu exército, os homens do governo, detestáveis administradores do reino, tanto se esqueciam das tropas do seu país, que muitos dos nossos soldados tinham morrido pelos caminhos nos desesperos da fome!

Algumas vezes foi preciso que das suas rações os soldados ingleses dessem aos nossos um quinhão de esmola!

Naquele mesmo dia 16 o dizia lorde Wellington do seu quartel general da Lousã em despachos oficiais para o Conde de Liverpool e para Carlos Stuart, ministro da Inglaterra em Lisboa.(1)

Mas apesar de todas as fadigas e privações, logo em 17 Wellington ordenou que a divisão ligeira, com a brigada portuguesa da Pack, uma das que tivera mais soldados mortos de fome, atravessasse a vau o Ceira para continuar a perseguir os franceses.

E todo o exército aliado passou por uma ponte de cavaletes, construída durante a noite.

 

*1. Encontram-se na Colecção de despachos e ordens do dia, feita pelo coronel Gurwood.

 

Já a esse tempo o marechal Ney havia retirado, cedendo enfim às ordens reiteradas do generalíssimo.

Em 18 apareceram na serra de Santa Quitéria três divisões inglesas, a ameaçar a esquerda dos franceses, e sobre a sua direita avançava já a divisão ligeira, apoiada por outra.

Massena percebeu o perigo e concentrou as suas forças na serra da Moita. A este movimento correspondeu outro de concentração de todo o exército aliado.

O generalíssimo francês desistiu então de manter as posições da serra, onde em breve tempo lhe escasseariam todos os recursos de subsistências, e resolveu retirar rapidamente por Celorico para a cidade da Guarda.

Foi uma retirada de afogadilho, que principiou no dia 18.

Em 21 estava Massena em Celorico. O corpo de exército de Reynier, que retirara por Gouveia, fôra ocupar a cidade da Guarda.

Massena convocou para conselho os generais seus imediatos e expôs-lhes o seu plano de marchar por Sabugal e Penamacor para Cória e Placência. Ali concentraria reforços e esperaria um abastecimento de víveres e de munições de guerra. Estabelecendo comunicações com o exército do rei José e restaurada a ponte de Alcântara, avançaria com o apoio do exército do marechal Soult e tomaria o caminho de Lisboa.

Não se lhe desvanecia este sonho! O de Napoleão e o dele. Cravar as águias sobre as torres de Lisboa e atirar os ingleses ao mar.

Reynier opôs-se ao plano rancorosamente; Junot, muito combalido ainda por efeitos do ferimento que recebeu em Rio Maior, apenas formulou umas frouxas observações. Tinha-se-lhe quebrado muito a sua tradicional energia, parecia outro, e como que a bala do hússar inglês um pouco lhe havia ofuscado a razão.

Mas da parte de Ney é que a oposição de parecer foi até à violência e ao escândalo de uma insubordinação formal.

- Oponho-me, sr. Marechal! - rouquejou.

- Mando eu, há-de obedecer - bradou-lhe Massena num repelão de cólera.

- O 6.o corpo só obedece ao seu comandante e eu meto-me com êle ao caminho direito de Espanha, por Almeida. Os soldados não têm pão. O seu plano, sr. Marechal, levar-nos-ia a um louco desastre.

- Duque d'Elchingen, ou obedece ou eu o exonero do comando do 6.o corpo.

- Esse comando foi-me dado pelo Imperador. Só êle mo pode tirar.

- E eu na ausência dele. General Fririon, na ordem do dia a exoneração imediata do comando do 6.o corpo, dada por mim ao sr. marechal Duque d'Elchingen.

E daquela vez cumpriu a ameaça. A ordem do dia de 23 publicava a exoneração de Ney e entregava o comando do 6.o corpo ao general Loison.(1) O Duque d'Elchingen partiu logo para a fronteira e de lá tomou o caminho de França.

Massena tinha já mandado para Espanha os feridos e doentes, e enviou para Alcântara uns oficiais do estado-maior, para reconhecerem aquela região, especialmente no tocante aos recursos de subsistências.

Começando a pôr em execução o seu plano, o Marechal marchou para Belmonte e Guarda, onde os frios lhe mataram muitos soldados.

 

*1. Vide no tomo II das Memórias de Marbot a pág. 444 a 445. Nas Memórias do coronel Delagrave a nota de Eduardo Gachot, a pág, 227, e 228.

 

Recebeu ali numerosos despachos do Imperador e de Berthier, que lhe tinham chegado por via de Ciudad-Rodrigo. Alguns traziam dois meses de atrazo.

Segundo Marbot, levou uns poucos de dias a responder, perdendo tempo.

A 29, os franceses eram atacados nas suas formidáveis posições da Guarda. Mas por tal modo estavam desprecavidos e tamanha foi a surpresa que lhes causou a aparição dos aliados, que logo bateram em retirada, numa espantosa confusão, destruindo uma parte da artilharia e das munições. O corpo de exército de Reynier retirou também de Belmonte, a marchas forçadas, de noite.

Já tinham voltado de Alcântara os oficiais a quem Massena incumbira de estudar os recursos daquela região.

Trouxeram-lhe a informação desconsoladora de que era impossível encontrar ali abastecimentos para o exército.

E, com esta informação, a notícia de Badajoz ter capitulado, cousa que Massena ainda não sabia. Também tinha capitulado a pequena praça de Campo Maior, cuja defesa, por um punhado de milicianos e ordenanças, foi louvada como um feito altamente glorioso.(1)

Era no 1 de Abril. Ao cabo de oito meses o exército francês volvia batido às margens do Alto Coa donde em Agosto de 1810 tinha partido soberbo, contando com a fácil conquista de Lisboa.

Mas, ainda ali, um combate desastroso para êle, como sangrento epílogo daquela campanha de horrores.

O 6.o corpo (Loison) tomara posições entre a Guarda e o Sabugal, uma brigada do 9.o defendia um desfiladeiro do Junco. O 2.o corpo (Reynier) ocupava as colinas da povoação do Sabugal e defendia a ponte e o vau da Rampoulha. Em Alfaiates, já na fronteira, estava o 8.o corpo (Junot). Era por este lado que Massena mantinha a sua linha de retirada para Cória, se mais uma vez o abandonasse a deusa da vitória, de quem fora o filho dilecto em quinze anos de campanhas.

Sendo-lhe impossível atacar de frente as posições francesas, por causa das águas altas e impetuosas do Coa, lorde Wellington mandou que Trant e Wilson marchassem de Pinhel para os lados de Almeida com os seus milicianos e, entre aquela praça e Ciudad Rodrigo, ameaçasse o flanco direito e a retaguarda dos adversários,

 

*1. Velha, mal artilhada, de traçado defeituoso e com um forte arrazado, a pequena e insignificante praça de Campo Maior tinha apenas uma guarnição de 45 soldados de artilharia 3, cerca de 100 milicianos de Portalegre e as ordenanças da vila. Era seu governador o sargento-mor (major) de engenheiros José Joaquim Talaia.

A 12 de Março começou o investimento da praça pela divisão do general Girard do corpo de exército do marechal Mortier.

Depois de cinco dias de intenso bombardeamento, a artilharia francesa abriu brecha. Chegara o lance angustioso para os sitiados e então na defesa da brecha até as mulheres heroicamente auxiliavam os soldados, levando-lhes munições e água, e acudindo aos feridos!

Mas era insustentável aquela situação. Ninguém vinha em socorro da praça, o bombardeamento era horroroso e o assalto geral estava iminente. Então, nem por milagre, duzentos milicianos e ordenanças que tinham armas de fogo poderiam resistir a uma divisão francesa.

Girard intimou ao governador a entrega da praça.

Talaia respondeu-lhe que só capitularia com todas as honras da guerra, se até às 2 horas da tarde de 22 não recebesse

socorro. E não recebeu. A praça capitulou. Os oficiais saíram pela brecha com as suas espadas, e os soldados com as suas mochilas. Os milicianos e ordenanças podiam retirar-se para suas casas. Mas tanto se maravilhou o general Girard com a heróica defesa daquele punhado de paisanos, que chegou a formular a suspeita de que na praça tivesse ficado tropa de primeira linha para alguma cilada. Nem um soldado sequer.

Talaia foi promovido ao posto imediato por distinção, o juiz do povo, dr. Carneiro de Carvalho, auxiliar intrépido do governador, também teve honroso prémio e à povoação foi dado o título de Leal e valorosa Vila de Campo Maior.

Foram recompensados com gratificações todos os soldados e paisanos que mais contribuíram para aquela gloriosa defesa.

 

que a sexta divisão dos aliados observasse o 6.o corpo e as outras forças do exército atacassem o flanco esquerdo do inimigo.

Estamos a 3 de Abril. A cavalaria inglesa de Slade vai atravessar o alto Coa, onde as águas estão mais baixas, a divisão ligeira e a de Picton passam nos vaus um pouco abaixo, a divisão Durlop com artilharia força a ponte do Sabugal. Ficam duas divisões de reserva.

O objectivo era tornear o corpo de Reynier, separá-lo do 8.°, envolvê-lo e desbaratá-lo antes que lhe pudesse acudir o 6.o corpo.

Havia nevoeiro, denso nevoeiro como no Buçaco, no Casal Novo "e em Foz de Arouce. O general Erskine acomete precipitadamente e quási às cegas, os caçadores portugueses e uma brigada inglesa avançam muito desamparados. A infantaria do bravo coronel Beckwith vai dar num ímpeto a umas ladeiras cobertas de árvores, cortadas de barrancos.

Mal se descobrem uns aos outros. Batem-se denodadamente de parte a parte. Entretanto, Reynier, muito despreocupado e sem noção exacta da importância do ataque, mantém imobilizado o grosso das suas forças nos terrenos baixos em que bivacara.

Era perigosíssima a situação dos anglo-portugueses, empenhados naquele ataque prematuro.

Dissipa-se o nevoeiro e Beckwith, compreendendo bem o lance a que se arrojara, leva contra os franceses, à baioneta, a sua infantaria, o 43 e o 95, dois regimentos que fazem prodígios, apesar de dizimados pelos projécteis de dois obuses franceses.

Vêem novos reforços para as linhas francesas e trava-se mais aceso combate em cargas formidáveis, numa fuzilaria medonha! O capitão Hopkins, do 43 inglês, toma um dos obuses e os franceses debandam.

Mas chegam outros regimentos franceses, vem artilharia dos ingleses e a defesa do obus tomado, que os franceses querem reaver, custa dezenas de vidas.

Maiores e mais enfurecidas cargas de cavalaria, mais intensa fuzilaria e Reynier resolve-se, enfim, a entrar em acção com os cinco ou seis mil homens que tinha em reserva.

Tardia resolução. Os aliados já tinham forçado a ponte do Sabugal e a cavalaria inglesa já avançava sobre a retaguarda do seu flanco esquerdo. Uma brigada, a do general Colville, surge de um pinhal em que se apoiava o flanco direito dos franceses e vareja-lhes com repetidas descargas as colunas já abaladas.

Estava perdido o combate. Reynier retira sobre Rendo e encontra ali o corpo de Loison, que vinha auxiliá-lo. Era já tarde para arrancar aos aliados os louros daquela vitória, e os dois corpos vão juntar-se ao de Junot para as derradeiras marchas de retirada.

No dia 4 de Abril Massena deixa a terra portuguesa transpondo a fronteira na Aldeia del Obispo, a meio quarto de légua daquele velho forte da Conceição, onde em Agosto de 1810 tivera o seu quartel-general.

Em Almeida havia ainda uma guarnição francesa

sob o comando do general Brenier.

Pamplona com os seus ajudantes, Luís de Castro, André Pulaski, D. Isabel, Maria e a Beauchamp tinham ido para a Aldeia del Obispo com autorização de Massena, no próprio dia em que se travou o combate do Sabugal. Sob a vigilância de um subalterno e doze soldados de dragões, escolta da pequena marechala, que também para ali fora, deviam aguardar as últimas determinações do Marechal.

Na madrugada de 5 chegava ali o Príncipe de Essling à frente das divisões do 9.o corpo. Os outros vinham à retaguarda.

A pequena marechala foi ao seu encontro. Massena abraçou-a com dolorida comoção. Vinha acabrunhado, parecia muito mais velho.

Conversou com ela por muito tempo.

Afastados do grande estado-maior, Pamplona e Luís de Castro esperavam a ocasião de se lhe apresentar.

O Marechal montara a cavalo. Era preciso continuar a retirada.

Pamplona e Castro foram-se apresentar. Massena fêz-lhes um cumprimento desabrido.

Momentos antes tinha dito à companheira:

- Se não puder voltar, se não vencer uma batalha a esses cães ingleses, então acabei de vez a minha carreira de soldado.

A pequena marechala ficara com os olhos rasos de lágrimas.

Retiravam silenciosamente, e todavia, em quási todos um ar de júbilo por se verem livres daquele país nefasto, onde se lhes afigurava enterrado todo o prestígio deslumbrador da lenda napoleónica,

 

O sol nascente envolvia em resplendores de oiro as águias dos regimentos, que um inverno de infortúnios havia enegrecido,

Numa volta alta da estrada, onde o vale do Coa se avistava perfeitamente. Castro sofreou o cavalo e deixou-se ficar atrás do seu grupo.

 

As colunas que vinham à retaguarda estavam ainda a um quarto de légua. Parou. Dali viam-se bem as montanhas e as serranias da Beira, o vale extenso do Águeda. Maria Pulaski deixou-se também ficar para trás.

- Tens alguma cousa, Luís?

- Uma grande e profunda saudade, um imenso e inexplicável júbilo! - respondeu-lhe comovidamente -, Além, a perder-se de vista, o meu glorioso país, a minha desventurada terra. Enfim, Maria, para longe dela! Qualquer que seja o nosso destino, ao menos saiamos daquela terra de amarguras, porque saem também os seus opressores. Quis dizer-lhe adeus.

- Também eu lho digo tristemente! - soluçou - É a terra onde tu nasceste, onde está tua Mãe, onde meu Pai ficou.

- Mas donde nós saímos acompanhando os invasores batidos. Não sei se um dia poderemos voltar ao meu belo país, mas, seja onde fôr que eu viva, o meu coração não o esquecerá nunca.

- Ensinaremos o seu nome, as suas glórias, a sua língua, aos nossos filhos, ainda que nos não seja dado voltar-disse-lhe ela com adorável enternecimento.

- Terra de Portugal, terra santa da Pátria, até um dia ou para nunca mais. Adeus!

Tomou a mão de Maria e beijou-lha. Chorava.

- Vamos - rouquejou, voltando o cavalo.

 

 

Continua no VOLUME 7

 

 

                                                                  Antonio Campos Junior

 

 

                      

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