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A FILHA DO POLACO - V.1 / Antonio Campos Junior
A FILHA DO POLACO - V.1 / Antonio Campos Junior

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

               Um segredo da polícia.

Foi de excepcional invernia aquele Novembro de 1807. As águas da chuva, torvas como levadas, despenhavam-se pelas ruas íngremes de Lisboa, alagavam os bairros centrais da cidade e, de hora para hora, transmudavam as praças em lagunas.

Da província chegavam notícias consternadoras, notícias de cheias enormes, de temporais violentos como por muitos anos não houvera no país, nem mesmo nos invernos formidáveis de que os velhos ainda se lembravam!

Um desfecho de horrores naquele ano de atribulações políticas! Uma angustiadora previsão de tome para o ano que se avizinhava, e quem podia adivinhar com que outros trágicos desastres?

Sabia-se em Lisboa que um exército francês caminhava para a fronteira de Portugal, ou talvez a houvesse já transposto, sob o comando do general Andoche Junot, que dois anos antes fora embaixador de Napoleão junto da Corte portuguesa. Mas no Paço e nas secretarias de Estado sabia-se muito mais, pois tinham a certeza de que as tropas francesas vinham já pelo país dentro a marchas forçadas.(1)

E com o famoso sabreur de Lonato um avultado número de tropas espanholas.(2)

Naquela situação esmorecedora, a pobreza de homens do governo ainda maior que a pobreza dos recursos materiais, desprecavido, estonteado, de rastos, a guerra a fuzilar no horizonte, as cheias a levarem-lhe o pão, vencido sem ter batalhado, sem essa heróica extrema-unção dos povos que morrem combatendo, o povo português lembrava um condenado à morte, de joelhos, ao desamparo, à espera do carrasco no seu patíbulo de ignomínias, por alva e mortalha a cingir-lhe o corpo a sua velha bandeira de remotas epopeias.

Um povo de três milhões de almas que se confrangia sem uma voz heróica de alento e sem um cérebro dirigente que lhe mostrasse, ao menos, para que lado podia buscar a morte sem cair de costas, em esgares de bobo, contra a sua própria história!

A enxurrada nas misérias políticas era ainda imensamente maior e mais funesta que a outra das águas lodosas, naquela invernia excepcional!

Mas, enfim, nessa tortura de vergonhas,

 

*1. Era o exército denominado primeiro corpo de observação de Gironda. Concentrara-se em Baiona e entrara em Espanha com um efectivo de 24.133 homens, que traziam 36 bocas de fogo e 3.274 cavalos. Com a infantaria francesa vinham dois batalhões de suíços e uma legião de hanoverianos. (Relation de lexpédition du Portugal, pelo general Barão Thiébault).

  1. A Espanha cooperava na invasão de Portugal com três divisões, cujo efectivo total deveria ser de 27.000 homens. Uma destas divisões acompanharia as tropas de Junot; as outras ocupariam as províncias de Entre-Douro-e-Minho, Alentejo e Algarve. (Thiers, Histoire de l'Empire, tomo I, livro X.).

 

de hesitações, de hipóteses, num sonho idiota de paz, com os invasores já dentro das fronteiras, com o simulacro de um exército em arremedos de concentração para uma campanha de comédia, enquanto a Corte ia arrumando os baús para os primeiros alarmes da fuga; nessa conjuntura, terrivelmente singular e grotescamente deprimidora, a vida na capital oprimira-se, mas não se imobilizara.

Caía em tudo a sombra lúgubre daqueles dias, como se fosse de eclipse pavoroso; mas em Lisboa vivia-se, tinha até maior intensidade a luta egoísta dos interesses individuais; eram como dantes, na mesma febre, o amor e o ódio.

A chuva estancara a meio da tarde daquele dia tempestuoso. Como num assomo de generosa piedade, o sol rasgara contra as montanhas e contra o mar os negrumes de um céu funerário e atirara para o lamaçal das ruas um jorro da sua luz doirada e pálida.

Defronte da Fundição de Baixo passava a trote um oficial do exército, ainda muito moço. Em frente do Arsenal sofreara um pouco o seu fogoso alter, todo axairelado de espuma e de lama, e correspondera à continência de uma sentinela, garbosamente aprumado no selim. Depois meteu a trote largo pelo caminho de Xabregas.

Parou diante do portão brasonado de um velho

palácio solarengo, de largas varandas corridas, telhados acumiados, miranetes altos a cada extremo da fachada. Era aquele o palacete de D. Matilde de Castro e Albuquerque, senhora de preclara linhagem, antiga dama de D. Maria I, a rainha louca. Viúva de um tenente-general, havia poucos anos, D. Matilde ficara administrando a casa opulenta que o marido lhe deixara, grande, principalmente, em bens vinculados nos arredores de Lisboa, nos campos de Santarém e nas terras de Anadia e Mortágua.

O cavaleiro que parou defronte do portão é o terceiro filho de D. Matilde, o mais novo. Chama-se Luís de Castro e Albuquerque e é tenente do Regimento de Infantaria n.o 1, aquartelado em Belém, o antigo regimento de Lippe.

Parecia que o moço oficial era esperado, pois que, mal sopeou o cavalo, logo a porta se abriu e um criado de cavalariça correu a segurar-lho.

Entrou. Dobrou-se diante dele um guarda-portão, velho de rija musculatura e aspecto marcial. Fora guardião da armada. Encanecera e cansara-se nos mares. Tinha sido um valente das nossas esquadras de cruzeiro no Estreito e na costa de Argel; andara com o almirante Marquês de Nisa nas campanhas do Mediterrâneo e acompanhara sempre um velho oficial de marinha que vive naquele palacete e é irmão de D. Matilde.

- Adeus, Tomás - disse-lhe afectuosamente o moço oficial - Sabes se minha Mãe preguntou por mim?

- Saberá v. s." que preguntou.

- Meu irmão já veio?

- Chegou muito cedo. Esperam por v. s.a para jantar.

- Pois quê! Ainda não jantaram? Ora, que disparate!

E encaminhou-se para a grande escadaria de balaústres de mármore.

Como se de súbito se houvesse lembrado de alguma coisa, o guarda-portão foi atrás dele, muito afogueado.

- Meu senhor, meu senhor!

- Que é? - preguntou já a meio do primeiro lanço da escada.

- Queira v. s.a perdoar. De todo me ia esquecendo dizer-lhe que está ali no pátio grande, à sua espera, uma preta que traz uma carta.

- Para mim?

- Para v. s.a, e não quis que eu a recebesse. Teimou que só a v. s.a a havia de entregar.

- Disse donde vinha?

- Não, senhor, não o quis dizer.

- Vai lá chamá-la - mandou, um pouco perturbado - Será de Maria? - preguntou de si para si, descendo - Tolice minha. Não mandaria cá, não me escreveria senão por algum motivo de excepcional gravidade.

O Tomás voltou com uma negra, já idosa.

Luís de Castro conheceu-a logo. Era uma criada de Maria Pulaski, a filha de um joalheiro polaco, havía coisa de dois anos estabelecido em Lisboa.

Castro oprimiu-se de receio. Aquela negra era mais do que uma simples criada, porque era a confidente de Maria e de Anna Beauchamp, a dama de companhia da linda filha do polaco.

- Há coisa grave! - pensou, indo para a negra.

A mulher segredou-lhe umas palavras que o guarda-portão não podia ouvir, e entregou-lhe uma carta.

Muito comovido, Luís de Castro apertou na mão, febrilmente, aquele pedaço de papel e despediu a negra, dando-lhe recatadamente uma moeda de prata.

A serva foi para o portão, embiocou-se muito no capuz redondo do seu capote encarnado, que só usava por disfarce, espreitou para fora como se receasse algum encontro indiscreto, e meteu rapidamente pelo caminho de Lisboa.

Encostado ao balaústre de mármore, Luís de Castro abriu a carta com nervosa impaciência. Leu-a num relance de olhos e fêz-se pálido.

Dobrou-a apreensivo, guardou-a no peito da farda e subiu a escada lentamente.

- Suspeitas! Ameaças! - ia dizendo consigo - Um plano de fuga... Não! A isso me hei-de eu opor. Atravesso-me eu no caminho deles. Não deixarei que ma levem, ainda que tenha de fazer uma loucura. Seja o que fôr!

Em cima encontrou uma criada.

- Minha Mãe?

- Espera por v. s.a na sala de jantar.

- Vá dizer-lhe que vou já.

Saiu do seu quarto, onde rapidamente mudara de fato, e entrou na sala de jantar, compondo no rosto a máscara de uma despreocupada jovialidade.

- À minha espera, apesar do pedido que eu tinha feito! Perdoem-me. Deitou hoje mais tarde o meu serviço no regimento.

Foi beijar a mão à Mãe, senhora de cinquenta anos, que fora uma das belezas da corte de D. Maria I. Depois falou ao tio Jerónimo, o Mar e Guerra, como lhe chamavam por abreviatura, apertou a mão ao padre António, capelão da casa, e disse umas palavras afectuosas ao irmão Henrique, capitão do regimento aquartelado em Campo de Ourique.

Sentaram-se à mesa. O jantar decorre friamente. De quando em quando, o Mar e Guerra põe-se a caturrar com o padre António àcêrca da situação do país. D. Matilde faz preguntas aos filhos e alude à solenidade da assinatura das escrituras de casamento de Henrique de Castro com D. Branca de Mendonça. É cerimónia que está há dias aprazada para aquela noite com a assistência de todos os seus

parentes da corte, conforme uma velha tradição de família.

Luís intervém a espaços na conversa com simulada vivacidade mas logo descai numas tristes preocupações de espírito, que não passam despercebidas aos olhos do irmão, a fitarem-no insistentemente.

Falemos nós do Mar e Guerra e do capelão.

Jerónimo de Castro está fora do serviço. É o mais novo dos irmãos de D. Matilde, apesar dos seus sessenta e dois anos. O mais velho, Fr. Paulo, dos carmelitas descalços, vive de há muitos anos no seu rude cenóbio do Buçaco.

Rapazote pelo tempo do Terramoto, homem feito e já oficial de marinha no último período de governo do Marquês de Pombal, aquele velho foi oficial superior na esquadra do Marquês de Nisa, auxiliar de Nelson nas campanhas do Mediterrâneo e do Mar Jónio. Jerónimo de Castro perdera o braço esquerdo no bombardeamento de Trípolis(1) e, já depois de mutilado, assinalara-se por uma rara intrepidez, como voluntário, a bordo de uma pequena corveta, em combate desigualíssimo com a fragata francesa Chiffone, nas águas do Brasil.

Quási da mesma idade daquele mutilado, o padre António de Sá, antigo capelão da nau Afonso de Albuquerque, foi largos anos companheiro de Jerónimo de Castro, e ambos deixaram, quási ao mesmo tempo, o serviço activo da Armada.

Quiseram viver juntos, são amigos de raros extremos,

*1. Apesar das suas promessas de neutralidade, o governo de Portugal tivera de aceder às instâncias de Inglaterra, dando-lhe o auxílio das esquadras portuguesas.

Em 1793 deu-lhe uma esquadra de sete navios, que coadjuvou a do almirante Howe no bloqueio das costas francesas; no ano seguinte mandou-lhe outra de dez navios e, de 1798 a 1800, ainda outra de quatro naus e três navios de menor tonelagem, comandada pelo Marquês de Nisa.

Esta esquadra subordinada ao almirante Nelson, o famoso vencedor de Aboukir, distinguiu-se no bloqueio de Malta, no bombardeamento de Trípolis e na demonstração naval de Corfu.

 

mas, como tantas vezes sucede entre os velhos, estão frequentemente em azeda divergência de opiniões um com o outro.

O jantar foi mais breve do que era costume. Quási no fim, o tio Jerónimo, abespinhado na sua caturrice com o padre António, mudou de conversa, voltando-se para os sobrinhos.

- O vosso tio Manuel de Albuquerque escreveu-me uma carta, longa como a légua da Póvoa. Recebi-a esta manhã. Está furioso contra esses pilotos de má morte que levam à matroca a pobre nau do Estado. Tem razão. Nunca se chegou a tamanha vergonha, raios os... Mana, desculpe. Ia atrás da carta do Manuel, que tem uma lauda cheia de pragas contra os bilhostres dos nossos ministros e contra a soldadesca de Junot, que êle está já a farejar lá da sua casa de Abrantes.

- Parece que tudo isto vai para uma queda maior e de mais afronta que a de 1580! - comentou Luís de Castro.

E como que um relâmpago de indignação lhe fuzilou no olhar entristecido, inquieto.

- Não é só parecer. É coisa que se vê e sente - acudiu o Mar e Guerra - Eu cada vez tenho mais raiva aos idiotas que nos governam! Uma poltranagem! Mas então a esses de coração afrancesado, como António Araújo - a esses nem os posso ver!(1) O Araújo é muito desta casa e tenho pena! Se fosse minha, mandava-lhe fechar as portas na cara.

- Não seja assim, Mano! - interveio D. Matilde em tom conciliador.

 

*1. Antigo ministro plenipotenciário de Portugal na Holanda e na França, António Araújo de Azevedo era naquela época (1807) o ministro preponderante, o primeiro ministro como lhe chamavam os diplomatas estrangeiros.

 

António Araújo é um homem de esmerada educação, um ministro muito considerado e muito da nossa família.

- De coração francês é que êle é, e aí está porque eu o não posso tragar. Se cá vier esta noite, não apareço eu e, mais dia menos dia, pespego-lhe nas bochechas meia dúzia de verdades que eu tenho cá dentro a ralarem-me o coração, que não é de falso português como o dele.

- Valha-nos Deus, Mano!

- Podia valer-nos, podia, mas era mandando outro terramoto em que ficasse sepultada essa corja que nos perde. E o diabo que lhes tomasse conta da alma, e olhem que não ia muito bem servido.

- Credo! O que o Mano diz!

Levantou-se da mesa, deu a bênção aos filhos, despediu-se do padre António e do irmão, e foi para a sala grande ver como estavam arranjando as coisas.

O Mar e Guerra c o Capelão pegaram-se outra vez, embicaram esfogueteados para o vão de uma janela e, de palito na boca, discutiram furiosamente, divergindo de opinião quanto ao modo possível de ir ao pêlo ao Junot, no caso dele já ter entrado em Portugal.

- Tens alguma coisa que te dê cuidados, Luís? - preguntou-lhe Henrique em voz baixa.

- Talvez.

- Adivinho o quê.

- Já é adivinhar!

- Não é bem isso, é compreender uma coisa de que andava desconfiado e esta manhã vi confirmada em certa carta anónima de ameaças que me mandaram.

- Carta anónima?!

- Sim, de ameaças.

- De ameaças para quem?

- Para ti. Vamos para o meu quarto. Quero mostrar-ta.

- Vamos, sim. Estava para to pedir, se me não falasses disso. Tenho uma coisa importante a dizer-te.

Saíram. Instantes depois uma criada que passava no corredor ouviu vozes acaloradas no quarto de Henrique. Escutou e percebeu que altercavam violentamente.

Tinha anoitecido. Na sala grande, de tetos apainelados e frisos de oiro, o José João, mordomo-mor da casa, estava a mandar pôr nos seus lugares umas serpentinas de prata.

No lustre grande apenas estão ainda acesas duas velas, a iluminarem escassamente o centro da sala.

  1. Matilde assistia. Caía uma melancólica penumbra sobre os grandes retratos a óleo de damas antigas, de almirantes e bispos, de generais e frades. Ao fundo, quási mergulhados na sombra, o retrato de um vice-rei da índia, de brocados e jóias rutilantes.

Henrique apareceu muito agitado.

- Que é?! Que tens?- preguntou-lhe D. Matilde.

- Acabo de ter uma desagradável discussão com o Luís! - disse-lhe baixo - Preciso falar-lhe, minha Mãe.

- Pois sim, filho.

Saíram da sala e tomaram para uma saleta que ficava ao topo da escada grande.

- Aqui poderemos falar à vontade - disse-lhe Henrique - É necessário contar-lhe tudo. Estava a custar-me, dói-me inquietá-la, mas não há outro remédio! É preciso sabê-lo.

- Filho! Que rodeios! Fecha essa porta e conta-me depressa isso que eu devo saber. Estou a lembrar-me do pior! Antes a verdade.

- É melhor não fechar a porta - objectou Henrique, saindo ao corredor para observar - Não vejo ninguém. Falemos baixo. Aqui, entre a porta, para o vermos passar e para minha mãe se opor a que êle saia.

- Mas o que foi, o que há? Estou numa inquietação! Sair para onde?

«Porque foi essa discussão com o Luís?

- Por causa de certas relações comprometedoras, perigosas para êle.

- Com algum jacobino? Com algum maçónico? - preguntou, sobressaltada.

- Não, Mãe. Por amores clandestinos.

- Com alguma mulher indigna dele?

- Com uma rapariga que eu só vi uma vez e me disseram filha de um joalheiro polaco, muito rico, segundo consta. É uma beleza fascinadora.

- Mas discussão porquê? Entendes que são amores de escândalo, de vergonha para teu irmão?

- De perigo para êle!

- Valha-me Deus! Mas o Luís não era capaz de olhar para essa filha do tal joalheiro se não por um simples capricho de rapaz.

- Ama-a perdidamente!

- Mas eu não tenho percebido nada! Ninguém me disse coisa nenhuma!

- Há meses que estranho o Luís.

- Eu não! Não lhe achava mudança.

- Disfarçava as suas inquietações. Fingia despreocupação de espírito, como ainda há pouco, ao jantar...

- Devias-me ter prevenido, para eu ver se o desviava dessa inclinação que julgas perigosa.

- Nada sabia ao certo e não queria sobressaltá-la com umas vagas desconfianças.

- E agora sabes?

- Recebi uma carta anónima que me revela esses amores... deixando perceber propósitos de vingança de um irmão dessa rapariga.

- E afronta-se talvez o mano por que lha requesta um Castro e Albuquerque! - acudiu a fidalga com azedo sarcasmo - Pois os afrontados somos nós, e sou eu que vou pôr cobro a essa loucura.

- Receio que não seja a tempo! Quis preveni-lo dos perigos que antevia, falei-lhe desassombradamente como irmão mais velho, e replicou-me desabridamente. E não só me não quis atender, mas até está no intento de sair esta noite, antes da reunião para a assinatura das escrituras!

- Talvez tenha de sair por outro motivo, na intenção de voltar a tempo. Os convites foram para as nove horas e são apenas sete.

- Fiz segunda tentativa, indo ter com êle ao seu quarto. Surpreendi-o a carregar as pistolas dos coldres!

- Jesus me valha! - exclamou, confrangida.

- Tinha tirado o uniforme, estava vestido como para uma recepção de cerimónia, mas sobre o canapé vi uma capa grande e um chapéu baixo, evidentemente para disfarce. Dado mesmo que lhe não armem alguma cilada, que lha não arme o irmão da rapariga, receoso pela honra da irmã, poderá cair nas mãos da gente da Intendência da Polícia, e faltará aqui, numa festa de família, com surpresa de escândalo para todos os nossos convidados!

- Nas mãos da polícia, disseste! Da polícia, porquê?!

- Agora, minha Mãe, é dever dizer-lhe tudo. Não venho trazer-lhe uma denúncia; venho com um aviso lealíssimo, para benefício dele e nosso. Não sei se a polícia já está vigiando a casa do polaco, mas receio que esteja, porque esta manhã me chamou o Conde de Novion(1) para me prevenir dos suspeitos amores do Luís...

 

*1. Emigrado francês que tinha a patente de coronel e exercia o comando superior da Guarda Real da Polícia.

 

- Todos o sabiam, menos eu!

- Nada importaria ao Conde os amores de Luís, se, tão íntimo desta casa, não visse um perigo de dissabor, pelo menos, nas relações clandestinas de meu irmão com aquela rapariga.

«Minha Mãe vai ouvir e guardar para si, exclusivamente para si, um segredo que Novion me confiou e eu lhe prometi recatar.

- Sim, seja o que fôr, é como se tu próprio o guardasses.

- A polícia vai investigar o que há de misterioso no passado dum joalheiro polaco, há cerca de dois anos estabelecido em Lisboa. Acede assim a uma solicitação confidencial do ministro da Rússia. Supõe-se que o mister de joalheiro é apenas um disfarce. Desconfiam que pode ser êle um certo conde polaco, degredado na Sibéria por um grande crime e de lá fugido com o auxílio de outro degredado, ex-oficial das guardas do Czar.

«Bem vê, minha Mãe: seria muito menos grave que os amores de Luís fossem com a filha de um simples joalheiro.

- Tens razão, filho! Era um desgosto, podia ser um desdouro, mas assim, quem sabe lá o crime por que esse homem foi condenado?! E percebeste então que o Luís está perdido de amores por essa rapariga?

- A ponto de me ofender, só porque eu, no intento de o dissuadir de semelhantes amores, pus uma dúvida a respeito da sinceridade dessa rapariga, sem lhe deixar perceber o segredo de Novion!

- Disseste-me que o Luís estava para sair?

- Êle próprio mo afiançou, assegurando que sairia, porque se tratava de um compromisso de honra.

- Um desafio?! - preguntou, angustiada.

- Não me parece que seja por isso, mas talvez para alguma aprazada entrevista.

Ouvi que uma negra o estivera esperando no pátio e lhe entregara uma carta.

- Hoje?

- Quando veio para casa.

- Vou eu falar-lhe. Quero ver se me desobedece.

- Peço-lhe, minha Mãe, que não faça a menor referência ao segredo que Novion me confiou.

- Fica descansado. Estará ainda no quarto?

- Deve estar para sair. Mas terá de passar por aqui, porque eu mandei fechar a porta do jardim e tenho a chave comigo. Passos no corredor - notou, escutando - Há-de ser ele.

De longa capa traçada para o ombro esquerdo e chapéu de feltro inclinado para diante, Luís seguia pelo corredor fora, rapidamente, direito à escadaria.

A Mãe tomou-lhe o passo altivamente.

- Nesta casa nunca se tomaram disfarces e até agora nunca os meus filhos saíram sem me irem beijar a mão. Magoa-me que seja o mais novo quem se atreva a esquecer este dever de respeito, se já não pode ser de amor filial.

Num estremeção de surpresa, Luís recuara um passo e logo, em testemunho de comovida veneração, levantando no braço uma banda da capa, sem se desembuçar, como se alguma cousa trouxesse oculta, tirara o chapéu.

- Minha Mãe! Receei incomodá-la.

Segurou o chapéu debaixo do braço esquerdo, ainda sem se desembuçar, e inclinou-se para a Mãe, de mão estendida para ela como para lhe pedir a bênção.

- Que singular cuidado o teu em te não desembuçares! Homens de boa educação nunca falaram assim a uma senhora; às mães, nem talvez os filhos dos arrieiros!

- Minha Mãe! - disse, afogueado, desembuçando-se.

E volveu para Henrique um olhar de torva recriminação.

Trazia casaca à moda de França, calção de anta, muito esticado, botas de canhão. À cinta, seguras por uma larga correia, um par de pistolas grandes de coldres.

Foi o que a Mãe logo lhe notou estremecendo.

- Entra para aqui. Tenho umas cousas a dizer-te. Indicou-lhe a porta da saleta. Entraram. Com um

gesto mandou sair Henrique, e ela própria fechou a porta.

- Parece que vais para uma longa jornada de perigo! Compreendo agora o empenho em te não desembuçares!

- Tenho de ir a uma reunião de homens. É ponto de honra não faltar.

- Podias ir a outra hora.

- O compromisso foi tomado por mim sem condições, e a hora não a marquei eu.

- Com antecedência, talvez maior, estava aprazada uma solenidade de família, em que eu insisti para guardar uma antiga tradição desta casa. E repara bem que me não atrevo a chamar-lhe festa de família, tantas são as amarguras deste nosso tempo! Há quatro dias marquei eu a hora. Não podias, não devias esquecê-la. Não podes, não deves faltar.

- Nem falto, minha Mãe.

- Às nove horas estarão aqui os nossos parentes, às dez hão-de estar assinadas as escrituras.

- Antes dessa hora estarei eu cá!

- Há-de parecer estranho que não estejas antes. Trata-se do casamento de teu irmão.

- Podem desculpar-me a demora com qualquer inofensiva falsidade. Oficial do exército, nada mais natural do que ter sido chamado por qualquer exigência de serviço.

- Pedes-me uma falsidade por conta desse embuste com que me tens estado a iludir!

- Voltarei a tempo - alegou, perturbado, sem se atrever a negar aquela afirmação da mãe.

- Se puderes! Se os perigos te deixarem!

- Se os houvesse, evitá-los-ia enquanto honradamente os pudesse evitar.

- Alguns há que não se podem evitar.

- Minha Mãe, perdoe-me, mas tenho de sair.

- Desobedecendo-me!

- Suplicando-lhe que me não exija uma obediência opressora e que nem sequer é precisa. Não faltarei.

«Por tudo quanto eu tenho de mais santo na minhaalma, por este amor de filho, que não pode pôr em dúvida e pela minha honra de fidalgo, que nunca afrontei, lhe juro que hei-de estar aqui...

- Se puderes...

- Ainda que viesse arrastado.

- Luís, não faças juramentos cujo cumprimento não depende só da tua vontade. Não me julgues iludida. Noutros tempos melhores os filhos não discutiam a vontade dos pais. Obedeciam.

- Eu não discuto; peço. As mães não devem querer para si o direito de arrancar aos filhos segredos que só pertencem a homens.

- Não mintas assim, que me fazes vergonha! - gritou-lhe num movimento de irritação nervosa - Sais por causa de uma mulher estrangeira, que ninguém sabe ao certo quem é!

- Os contos do meu irmão!

- O que outras pessoas sabem. Não consinto que faças essa injustiça a teu irmão. Receava por ti e veio avisar-me. Teve a ingenuidade de supor que serias incapaz de me desobedecer.

- E sou. Mas peço que me deixe sair. Pedir é que é, minha Mãe.

- Filho, podes cair numa cilada! Tu sabes lá quem é essa gente, tu podes lá saber o que essa rapariga tem sido? Talvez uma aventureira na vaidade de te prender, a ti, com um dos mais ilustres nomes da nossa terra!

- Senhora! Minha Mãe, a sua boca repete a suspeita caluniosa de Henrique! Mas eu quero afogar em mim as palavras de protesto que lhe disse a êle.

- Se te parece, não hesites...

- Não! Não! Quaisquer que sejam as suas palavras, é sempre minha Mãe. Peço-lhe encarecidamente que se não oponha a que eu saia. Se mandar, obedeço, ficarei, mas terá dó e remorso da loucura de que eu seria capaz, quando já não fosse preciso obedecer-lhe.

Disse-lho com tal comovida vibração e numa tão intensa humildade de súplica filial, que toda a altiva firmeza de D. Matilde se dobrou vencida pelo seu amorável coração de Mãe.

- Saio eu primeiro - disse-lhe secamente, num disfarce da sua enternecida piedade por aquele filho dilecto.

Foi direita à porta e entreabriu-a.

- Guardarei no segredo das minhas amarguras essa tua insistência, que ficará sendo um dos maiores desgostos da minha vida! A teu irmão, para eu não ter de corar diante dele, direi que me obedecias confrangido e por dó eu própria concordei em que devias sair. Não te esqueças do nome que tens e... poupa-me, se puderes, a outra mágoa maior que te não quero dizer.

- Minha Mãe!

- Vais sozinho?

- Sozinho.

- És um homem, senhor de ti. Esta minha mágoa emancipou-te desde hoje. Sais quando te aprover sair.

E saiu ela primeiro, com os olhos rasos de lágrimas.

Luís ficou um momento acabrunhado.

- A minha pobre Maria! Se ela soubesse isto!

Saiu de súbito. A Mãe tinha já desaparecido no corredor.

Sacudiu os ombros como quem afasta de si preocupações oprimidoras, e desceu a grande escada de mármore, quási a correr.

No pátio o fogoso «alter» relinchou impaciente.

Montou a cavalo, deitou à desfilada.

Tomou direito ao Corpo-Santo e seguiu para o Conde Barão. Parou, apeou-se e entrou com o cavalo à mão na cavalariça de um alquilador, homem da sua confiança.

Minutos depois saía a pé, muito embuçado.      

Meteu para Santos e avizinhou-se de uma casa isolada, de dois andares, com jardim de grades, que dava para as bandas do rio.

Depois deu volta pelo lado do areal e foi encostar-se à porta de ferro do jardim.

Demora de instantes. Alguém o esperava, porque logo lhe abriram a porta.

 

                         Maria PulasSci.

A porta do jardim fora aberta mansamente por uma mulher muito embiocada, que segredou a Luís de Castro umas palavras em francês.

Era uma francesa, viúva de um mercador de bordados e passamanarias de oiro que se estabelecera em Varsóvia e a quem a fortuna completamente desamparara. Na viuvez, pobríssima, sem nenhum parente na Polónia, Anna Beauchamp soubera de certa casa opulenta onde precisavam de quem fizesse companhia a uma menina de oito anos, durante a doença grave da mãe, e foi oferecer-se.

Aceitaram-na e ficou lá como pessoa de família. Com uma certa educação e admiravelmente prendada, uma bordadora distinta, a Beauchamp podia ser também uma excelente preceptora. Teria então trinta e dois anos.

A menina, a quem tomou amor como de mãe, era filha única, gentilíssima, desse homem que vivia em Lisboa no mister de joalheiro e já sob a vigilância da polícia por suspeitas de que fosse muito outra a sua categoria social, segundo indicações da legação da Rússia.

Homens da Intendência da Polícia o seguiam disfarçados, para toda a parte, e lhe vigiavam a loja que êle tinha na rua do Ouro. Desconfiava-se que se reuniam ali de noite, ocultamente, outros polacos residentes em Lisboa.

Havia duas horas que João Polovtzé(1) saíra com o filho, homem de estatura hercúlea, e logo os dois espiões de vigia o tinham seguido. Com a casa de habitação, onde raras pessoas entravam, com essa é que a gente da polícia se não importava, desde que eles não estivessem lá.

As «moscas» da Intendência não sabiam que a loja do joalheiro tinha comunicação interior para os armazéns de um prédio vizinho, que o polaco tinha alugado. Pelos modos já uma vez os dois tinham pregado uma peça aos espiões, saindo cada um por sua vez pela travessa do armazém, em trajes de moço de recado, sem que os tivessem reconhecido.

Em casa do joalheiro havia duas servas negras e dois escravos, que êle comprara na sua vinda para Lisboa.

Anna Beauchamp encaminhava Luís de Castro para uma casa térrea, ao nível do jardim, que as últimas chuvas tinham posto num charco.

A francesa ia com muitas precauções por causa dos negros, que se tinham deitado havia pouco, explicara.

Foi segredando, em francês, que a Menina estava muito mortificada, muito inquieta pela demora

 

*1. Polovtzé é o nome de uma aldeia da Polónia.

 

e, quando chegou à porta, solicitou-lhe encarecidamente que não faltasse aos seus deveres de homem de bem e não aumentasse as amarguras que ela já tinha sofrido por causa daqueles amores da sua Menina.

Repetia-lhe que, só pela muita amizade que lhe tinha a ela e pelo dó de a mortificar ainda mais, se expunha ao perigo de ser expulsa daquela casa por João Polovtzé, a quem devia a misericordiosa generosidade de a ter ali amparada, quando já não precisava dela.

Num momento de suposições, de receios dolorosos, Luís de Castro repetiu sinceramente a promessa que já de outras vezes lhe fizera, e entrou na salita do rés-do-chão.

Maria esperava-o com febril ansiedade. Veio para êle num alvoroço que não podia ser júbilo.

- Maria! A minha encantadora Maria! - disse-lhe docemente o moço oficial, tomando-lhe as mãos e beijando-lhe sofregamente os cabelos de oiro, ondeados, opulentos.

«Muito amargurada! Vê-se logo. Dava-mo a entender a tua carta! Tantas lágrimas nestes olhos da cor do céu! As que eu vejo agora, Maria, fora as outras maiores que tu choraste e o meu coração está adivinhando!

A polaca beijou-o castamente na testa e, com os seus grandes olhos de fúlgido azul, tristes, úmidos de embriagadora meiguice, muito fitos nos dele, desafogou num soluço, que lhe fêz ondear o seio escultural.

Era uma encantadora mulher na primavera, toda luz e perfume, dos seus angélicos dezoito anos.

Os raros que a tinham visto afirmavam que não havia, então em Lisboa outra mais linda, nem mesmo a Condessa da Ega, que tivera uns dezoito anos prodigiosamente belos e era ainda uma admirável mulher. Na estatura, e em certos traços fisionómicos tinha Maria Polovtzé uma certa semelhança com a formosa Condessa(1).

Cabelos louros como os dela, olhos do mesmo esplêndido azul mas com um doce e casto olhar, que os da Condessa talvez nunca houvessem tido.

- Que tristeza a tua, Maria! Também eu venho oprimido como nunca! A tua carta mortificou-me profundamente! Já o facto de me escreveres hoje me pareceu indício de cousa inquietadora. Depois, aquelas misteriosas palavras, e a instância para que não faltasse, mais ainda me encheram de receios por ti!

- Por nós ambos, Luís! Estava a ter medo que não viesses, que não pudesses vir! Tinhas-me dito ontem que havia em tua casa uma reunião de parentes esta noite.

- E há. Quási tive de desobedecer a minha mãe para sair.

- Valha-me Deus! Por minha causa! Mas olha.

 

*1. A Condessa da Ega, D. Juliana Maria Luísa Carolina Sofia de Oyenhasen e Almeida, era filha do Conde de Oyenhasen Gravemburg, que fora ministro plenipotenciário de Portugal em Viana de Áustria, e de D. Leonor de Almeida Portugal, dama da princesa D. Carlota Joaquina. Nascera em Viena, a cidade de mais formosas mulheres que tem a Europa, e tinha naquele tempo vinte e três anos.

Aos dezasseis casara com o segundo Conde da Ega, fidalgo madeirense, viúvo desde 1795.

Em 1805 as más línguas da corte falaram muito dos amores da Condessa com o general Andoche Junot, então em Lisboa na qualidade de embaixador de Napoleão. Foram uns amores de escândalo que atormentaram um pouco Laura Junot, apesar de habituada àquelas infidelidades conjugais e de não ser ela própria inacessível a galanteios de estranhos, nem sempre mal sucedidos, segundo os maldizentes de Paris e de Lisboa.

O Conde de Ega, que foi nosso ministro plenipotenciário em Madrid, ou não sabia ou não quis acreditar naqueles amores, de que toda a gente soube, e fêz-se um dos mais apaixonados partidários da França e um dos mais fervorosos amigos de Junot.

 

Hoje não tinha outra hora melhor. Meu pai e meu irmão disseram-me que voltavam para a loja às 6 horas da noite e não poderiam recolher a casa senão depois das 11. Que não esperasse.

- Tempo de sobra.

- Mas se não fosse o que eu casualmente soube, não te mandava aquela carta.

- Falas-me vagamente das desconfianças de teu pai e de teu irmão, mas o que mais me oprimiu com uma angústia de alma que eu nem sei explicar-te, foi aquela indicação de um plano de fuga! Fugir porquê? Levarem-te daqui, isso não! Não quero eu! Oponho-me!

- Luís, ouve-me serenamente - pediu-lhe com adorável meiguice - Olha, senta-te aqui defronte de mim. Assim. Tenho umas coisas graves a dizer-te, trago o coração torturado, mas quero ver se as digo com serenidade que eu desejava em ti para mas ouvires.

- A minha serenidade, se há perigos para os nossos amores?! Desejas uma coisa impossível, minha vida!

- Pois, como tu puderes,.lá ouvi que as mulheres, mais sofredoras, mais resignadas, têem também mais ânimo do que os homens nas suas horas de mágoa. Talvez não seja assim, mas ouve-me. São umas coisas inquietadoras! Escuta. Temos de nos encher de ânimo um ao outro.

Maria Polovtzé, um espírito lucidíssimo, falava a língua portuguesa correntemente e até com uma certa vivacidade e singela eloquência de dizer, quando era dos seus ideais e dos seus amores que ela falava.

São conhecidas e estão provadas as extraordinárias aptidões dos polacos na aprendizagem das línguas. Ao cabo dos primeiros oito meses de residência em Lisboa, Maria entendia e falava o português só pela convivência com uma criada portuguesa, que João Polovtzé despediu, precisamente por ter percebido que era a compradora clandestina de livros portugueses para a filha. Depois os estímulos do seu coração enamorado ajudaram-na prodigiosamente a compreender bem a nossa língua nas cartas calorosas de Luís de Castro e nos livros de novelas e de história que êle lhe mandava ocultamente e ela tinha escondidos no seu quarto. Fora um tirocínio de mais de sete meses.

Na pronúncia é que ela tinha ainda o sotaque estrangeiro a dar-lhe às vezes um certo encanto à frase quando mais calorosa ou de mais expansiva jovialidade.

O pai falava o português com muito menos facilidade e correcção. Casimiro Polovtzé, o irmão, falava-o então muito incorrecto e abastardado.

- Verás como eu hei-de ter ânimo, Luís - continuou Maria com adorável firmeza -Anda o coração a dizer-me que serei capaz de todos os sacrifícios, quando a minha má fortuna fôr maior.

- Creio, sim.  

- Ainda que fosse preciso morrer.

- Que ideia a tua! De que se havia de lembrar esta minha encantadora visionária. Ora vamos. Explica-me a tua carta.

Tira-me desta impaciência inquietadora. E mais ainda eu quero querer que terás entendido exageradamente algumas palavras de teu pai ou de teu irmão, e não será verdadeiro o perigo que receias.

- É, infelizmente! Meu pai nada me disse mas em poucas palavras de violento sentido... meu irmão... aludiu de relance a amores meus de que já tinha suspeitas e de que meu pai estava já prevenido.

- Mas então, dizendo-te que saíam para a loja e designando a hora tardia a que voltavam, quiseram talvez armar-nos uma cilada!

- Não te escrevia, se o desconfiasse. Não creio numa cilada, não creio por causa de confidências, que eu depois ouvi.

- Confidências que te fizeram?

- Não, confidências entre meu pai e meu irmão.

- Que tu surpreendeste?...

- Que eu ouvi, sem o propósito de escutar. Meu pai recomendava a... meu irmão que me não deixasse perceber o intento em que estavam, não fosse eu cair em o dizer a alguém e o viesse a conhecer a gente da polícia.

Meu irmão acudiu logo de torvo aspecto a confirmar aquele receio de meu pai, pois andava suspeitoso de que eu tinha quem me requestasse. Contou que já de manhã me falara ao de leve nesses amores, origem provável de alguma grande desgraça para todos. Meu pai respondia-lhe como se não acreditasse. E não parecia acreditar, porque me supunha incapaz, dizia, dessa audácia de entreter amores às ocultas dele. Foi assim que o disse e eu ouvi, bem podes imaginar com que desassossego!

- E teu irmão?

- Esse... sorriu com o rosto de tal modo desfigurado, que fazia medo, e prometeu provar-lhe que eram verdadeiros os amores em que êle não queria acreditar. Meu pai então, como se tivesse receio por vê-lo assim, recomendou-lhe muito que se abstivesse de alguma loucura que pudesse comprometê-los e tornar impossível a nossa saída de Lisboa.

- Mas não deixo eu, mas atravesso-me eu no caminho deles! - rouquejou Luís de Castro, erguendo-se de repelão, muito afogueado.

- Luís! Por amor de Deus, que podem sentir-nos, lá em cima! Prometeste ouvir-me e não me queres fazer a vontade!

- Faço, sim, perdoa. Eu ouço. Ficou de pé.

- Meu pai recomendou-lhe muitas vezes que fosse moderado e disse-lhe que a saída de Lisboa, quanto antes, seria remédio eficaz para o desvairo destes meus amores, se eram verdadeiras as suspeitas que êle lhe havia revelado. Que era preciso dispor tudo depressa, e naquela noite ultimariam o negócio da loja. Não percebi que negócio era, mas... meu irmão observou-lhe que havia de ser difícil fazer tudo em quatro ou cinco horas. Então entendi que não era de fingimento a demora de que me tinham falado e foi numa tamanha angústia, como nem tu a poderias sonhar, que eu te escrevi e mandei aquela carta. Muito desmaiada, levou as mãos ao rosto e enxugou os olhos disfarçadamente.

- Mas amores de tanto recato como estes nossos, de que modo suspeitaria deles teu irmão. Denúncia da negra?

- Isso não, nisso não creio eu. Se meu irmão tivesse a certeza, falar-me-ia de outro modo mais violento. Desconfianças por qualquer pequenina coisa. Muito andava eu a admirar-me de que o segredo tivesse durado sete meses, sem darem por êle!

- E é por isso que eles querem sair de Lisboa?!

- Creio... que não. Supõem que são vigiados pela gente da polícia.

- Mas que receio têem eles da gente da polícia?! O que pode ter a polícia com teu pai e teu irmão, joalheiros polacos, para que lhe queiram fugir como se fossem criminosos?!

Maria afogueou-se muito.

- Perdoa-me, Luís. É um segredo de família, que eu não posso revelar-te.

- Disse-te já uma vez, a propósito nem eu sei já de que palavras tuas, que nada tinha com o passado de teu pai e de teu irmão. Agora, Maria, agora que tenho de antepor estes meus amores a essa deliberação de teu pai, era lealdade e era confidência digna de ti e de mim, dizer-me a razão misteriosa desses receios da polícia e desse propósito de fuga.

- Perdoa! - disse-lhe baixando os olhos amarguradamente, pondo naquela palavra toda a humildade de uma súplica.

- Não to mereço?! Receias que te fuja, se o souber, ou que o vá dizer à polícia como denunciante vil?!

- Não, não! - acudiu, tomando-lhe as mãos e apertando-lhas muito nas suas, quási febris - Eu pedi-te que viesses aqui para te prevenir, para ver se ocorria um meio de evitar esse horror de me apartarem de ti, porque eu morro ou endoideço, se me levarem para longe daqui, mas o segredo não o guardo comigo porque me envergonhe dele ou porque tu não fosses capaz de o guardar contigo. Não, Luís. Se to não digo, é porque não é só meu. Guardo-o porque pertence a meu pai e a... meu irmão. A êles ambos pelo que tem de mais grave.

- Sabes que tenho notado as hesitações com que me falas de teu irmão?! Hesitações na voz e uma certa expressão de medo no olhar, agora outra vez quando te referiste a êle!

Maria baixou os olhos profundamente perturbada.

- Dir-se-ia que esse teu irmão te oprime e causa pavor! Queria parecer-me que tinha um certo direito moral de saber as causas desses receios de teu pai e de teu irmão. Ao menos uma vaga indicação desse perigo que desconheço, até para os defender, até para me empenhar por eles.

- Luís! - volveu-lhe, trémula, tomando-lhe outra vez as mãos.

- Para os defender de qualquer violência ou para interceder por eles. Sou das relações do Intendente da Polícia, e muito da minha casa o comandante da Guarda Real da Polícia... e, se fosse preciso, iria ao Paço pedir patrocínio para eles.

- Como tu és generoso e como eu to agradeço, meu querido Luís!

- Tudo menos fugirem, levando-te. Os maiores sacrifícios, quantos se puderem inventar para mim, os piores, menos esse de te deixar partir, talvez para nunca mais tornar a ver-te! Um horror, Maria!

- E para mim, Luís? Mas tu não sabes, não podes sequer sonhar... Não podes!...

- Não queres tu que o saiba! Não tive ainda a boa fortuna de te merecer confiança como se não fosse já o noivo da tua alma! Não me supões capaz de guardar um segredo que tu me revelasses, fosse o que fosse. Magoa-me percebê-lo, Maria! É um retraimento que eu não mereço!

- Valha-me Deus - soluçou baixo.

De olhos no chão, desprenderam-se-lhe duas lágrimas, que foram cair sobre as mãos de Luís, ainda enlaçadas nas suas.

- Choras! Mortifico-te? - preguntou-lhe enternecidamente.

- Não, não! Isto é chorar de pena por tanta coisa que eu queria dizer-te e não devo.

- Não deves! Fosse o que fosse, o segredo de um crime, do mais abominável crime, de irremediável desonra, de suprema vergonha...

- Isso não, Luís, isto não é! Pela memória de minha mãe, a santa que Deus me levou, por este nosso amor, que ainda é juramento maior, te afirmo eu que não é desses o meu segredo, nem me envolve a mim, tal como é.

- Mas, fosse embora dos que rasgam abismos entre dois corações, se eu o recebesse debaixo da minha palavra de homem de bem, poderias ficar segura de que o guardaria comigo, só para mim, ainda que mo quisessem arrancar em desesperadoras torturas, ainda que êle próprio fosse a tortura maior da minha alma. E morreria comigo se eu não pudesse viver com êle!

- Tenho medo, e não é por mim que o tenho!

- Medo? Assustas-me! Deixas diante da minha alma atormentada um campo imenso e lúgubre de suposições, por onde ela irá errando em desvarios de terror, como alguém perdido de noite pelas encruzilhadas, a visionar fantasmas no vulto inquieto das árvores, a ouvir uivos de pavor em qualquer afastado rumor do vento! Ainda pior inferno do que saber tudo, porque é suspeitar de tudo numa loucura em que se padece por quantas coisas inverosímeis nós próprios inventamos!

Inclinou-se muito para ela e beijou-lhe os cabelos.

- Agora, Maria, insisto pedindo. Dize a verdade. Será de mais seguro êxito o meu empenho em defender-te, moverei todo o valimento dos meus em favor de teu pai e de teu irmão, sem que eles o saibam, secretamente. Tornar-se-ia clara esta situação de mistérios, embaraçosa para ambos.

- Como tudo isto me oprime, Luís!

- Tens-me aqui, noiva da minha alma. Desafoga comigo. Eu não tenho segredos para ti. Sabes quem sou. Não há na minha vida pormenor de alguma valia que eu te não dissesse, que tu não saibas. Sinto que devo merecer-te confiança igual. Olha, está a lembrar-me que teu pai, um polaco, será também um perseguido político, e daqui o seu receio por qualquer investigação da polícia. Temos aí outros. Andam tantos dispersados pela Europa... Talvez um criminoso político? Um desses admiráveis lutadores que jogaram a vida, heroicamente, no sonho de um milagre ressurgidor dessa gloriosa pátria que lhe mataram. Pode ser um crime de honradas e santas atenuantes! Filho de uma pátria de soberba história como a tua, Maria, ameaçada de morte, da morte política pela conquista, como a tua Polónia morreu, eu, representante da mais alta nobreza do reino, não hesitaria um momento em tomar para minha esposa a linda e casta filha de João Polovtzé.

- Por piedade, Luís! Não me enlouqueças. Pode

lá ser!

- Pode e há-de ser. Mas vês como te abri caminho para uma confidência, que eu guardarei comigo, juro-o pela celeste luz do teu olhar! Trata-se de uma perseguição política, não é assim?

- Trata - confirmou à sobreposse.

- Devia tê-lo suspeitado logo. Polaco longe da sua terra é, na maioria dos casos, um foragido político, um criminoso que ousou conspirar pela ressurreição da pátria, assassinada de surpresa por três dos maiores exércitos da Europa, numa aliança formidável e iníqua. É isto. Adivinhei-o. E se assim é, eu irei pedir pelo foragido político.

- Isso não... Talvez se ofendessem os teus.

- No Paço, ao próprio Príncipe, se fosse preciso pedir-lhe!...

- Meu Luís! Esta minha mágoa que eu nem sei dizer-te!...

- Por teu pai, que me importava a mim que fosse um simples joalheiro?

- Falemos mais baixo... Não é, Luís!

- Não é?! Vê bem o que estás dizendo! Não é?

- Não. Mas, pela vida de tua mãe, não digas nada! Eu tinha vontade de te contar tudo, merece-lo, era o dever do meu coração, mas andava cheia de receios. Perdoa-me!

- É estonteador! E nunca uma palavra tua que mo deixasse perceber!

- Tinha medo por ti!

- Mas foi então por motivos políticos, decerto, que êle veio refugiar-se aqui, naquele disfarce de joalheiro?

- Foi. Acusaram-no de conspirar contra o Czar, foi surpreendido numa sociedade secreta... e, para dar tempo a que fugissem os outros de quem era chefe... fêz frente aos soldados... e matou o general, chefe da polícia de Varsóvia, que tinha ido em busca dele. Luís, dizem que foi a defender-se que o matou!

- Chefe dos conspiradores! Era então importante a sua categoria social?

- Das mais opulentas e poderosas de Varsóvia. Contavam-me que descendia de uma família de conspiradores que se tornaram heróis.

E, mais inclinada para êle, disse-lhe muito baixo:

- Chamava-se João Pulaski e era conde de Pultusk.

- Conde, um Pulaski! Conheço da história esse apelido heróico do teu país! Fugiu então para se escapar às justiças do Czar?

- Foi preso, sentenciado à morte, mas a minha santa mãe meteu-se a caminho de Moscovo para solicitar uma audiência do Czar, e numa grande sala do Kremlim, de joelhos, comigo ao pé de si, a chorar de pavor, implorou piedade para meu pai. Dos soluços, das lágrimas que ela chorou, é que eu ainda me recordo bem, naquela sala tamanha, recamada de oiro! A minha desventurada mãe! Da clemência do Imperador só pôde obter que a pena de morte do Conde de Pultusk fosse mudada em degredo de toda a vida na Sibéria. E a mais, a permissão de levar consigo a esposa, a filha e essa francesa que se tornou a minha segunda mãe. E, mesmo assim, uma caridosa mercê de excepção! Lembro-me de ter reparado nos olhos do Czar. Estavam rasos de água. Fizemos-lhe dó! Meu pai não soubera daquela súplica, opor-se-ia, encolerizou-se em loucos desesperos quando lho disseram. Não queria aceitar a mudança de pena, mas tanto minha mãe lhe rogou, por si e por mim, que também lhe pedi de joelhos com umas palavras ensinadas por ela, que afinal acedeu a ir para o degredo.

- Naquele inferno branco de escravos, naquele cemitério imenso de gelo, tu, uma criança, minha desventurada Maria!

- Aos doze anos. E lá vivi até depois dos quinze.

- Se eu podia sonhar sequer esse drama horroroso da tua infância, noiva linda como os anjos, doce resignada como as santas!

- Aprendi a sofrer naquela dura escola de infortúnios. Hei-de ter mais ânimo quando Deus mandar que eu sinta ainda outras amarguras maiores.

Sob o domínio daquela surpresa estonteadora, Luís de Castro supunha-se no enleio de um sonho romanesco.

- E foi então, há coisa de dois anos, que de lá conseguiram fugir para Portugal? Tenho ouvido falar de fugas verdadeiramente assombrosas.

- Não foi então que viemos para Portugal. Andámos errantes durante uns poucos de meses.

- Fuga provavelmente ajudada por alguém?

- Sim... por alguém.

- Certamente com recursos que teu pai não pudera levar para o degredo?

- Tinham-lhe confiscado toda a sua casa opulenta, mas, ao fim de dois anos, apareceu na aldeia miserável onde vivíamos, um degredado, que se tornou amigo de meu pai e lhe ofereceu parte das riquezas que sonegadamente lhe levaram, creio que um irmão, e que toda consistia em diamantes e rubis de raro valor, escondidos por êle no recanto de uma galeria de certa mina abandonada.

- Também degredado, por crime político, esse inesperado protector?

- Não. Por ofensas a um Grã-Duque da família imperial e por ter morto em duelo um oficial, ajudante do ofendido. Esse degredado tinha sido oficial das guardas do Czar e pertencia a uma família de Moscovo, das mais ricas da Rússia. Chamava-se Miguel Platow.

- Novo ainda?

- Sim...

- E se não fosse esse homem providencial, morreriam naquele horror de vida?

- Como a minha pobre mãe morreu ao fim de

dois anos. Se visses aquela santa no meio de inauditos horrores, no fundo de uma cabana miserável, envolvidos nós todos em grosseiras peles como selvagens, de sentinelas à vista, dias e noites de frio insuportável, e ela a cuidar de mim, a ensinar-me a entender os livros que lhe tinham deixado levar, a educar-me como se estivesse nas salas do seu palacete de Varsóvia! Depois que a morte ma levou, era a Beauchamp a minha educadora, meu desventurado pai o meu professor, de ferros aos pés!

- Assim se explica essa tua rara cultura de espírito em tais condições. Mas... não me falaste ainda do teu irmão! Não foi para o degredo contigo?

Perturbou-se muito e numa tremura inexplicável, de olhares espavoridos para a porta, respondeu-lhe com uma voz que parecia um murmúrio:

- Não tenho irmão!

- Não tens... -exclamou, levantando-se num repelão de surpresa - Então é também fingido esse irmão que te oprime, que te ameaça, de quem tu tens medo?

- Por piedade, mais baixo, Luís! Podem ouvir!

- Agora começo eu a ter medo do teu segredo, como tu!

- Medo, se o tive, se o tenho, é só por ti! Por mim, quando chegar a hora de ter coragem, hás-de ver então do que eu sou capaz. Não me dês a mágoa de uma suspeita que eu não te mereço, porque não pode haver para mim outra mágoa maior! Seria mágoa de morte. Escuta-me. Hei-de dizer-te lealmente quanto sei.

E numa convulsão nervosa, muito dobrada para êle, com uma voz segredada que lhe tremia nos lábios, explicou:

- Esse meu fingido irmão representa um disfarce mais de dois degredados, cúmplices um do outro no mesmo crime de fuga com suborno dos guardas e agressão de morte a uma sentinela. Tudo isto um pavor!

Esse meu falso irmão, Casimiro Polovtzé, foi o protector de meu pai, o homem que pôs à sua disposição o seu escondido tesouro de diamantes, o planeador da fuga, aquele que, nas suas mãos de gigante, estrangulou uma sentinela, é o russo Miguel Platow.

- Aquele moço oficial de Moscovo, que tinha um tesouro? - disse numa perturbação doida, a rasgar nos lábios um sorriso que parecia de sarcasmo e era afinal de amargurado ciúme.

- Estou a compreender-te, Luís! É esse mesmo. Agora é que já de pouco podem valer as minhas revelações, se não te mereço a justiça de acreditares que te falo honestamente, como quem sou.

- É difícil explicar a dedicação desse homem por teu pai, talvez um desconhecido para êle!

- Absolutamente um desconhecido.

- É mais difícil ainda supô-lo desinteressado, fraternalmente desinteressado nesta convivência íntima com a filha do seu protegido, mulher de peregrinos encantos! Eu por mim adivinho a origem dessa rara devoção de amigos entre dois homens que, muito naturalmente, deviam odiar-se! Amigos como pai e filho, um conspirador da Polónia e um oficial das guardas do Imperador da Rússia! Adivinha-o a minha alma, doida de desespero. Nem é adivinhar...

- Esmagar-me o coração é que é. Matas em amarguras, como eu nunca tive, esta recatada ventura que vinha do teu amor e era toda luz e todo o bendito consolo da minha vida! Não lhe poderei sobreviver, e sinto que seria capaz de resistir às maiores desgraças, se tu me não faltasses, se o teu amor me não fugisse!

Luís de Castro queria acreditar na sinceridade daquelas palavras, não podia crer em artifícios de mulher que chegassem para fingir aquela honesta lealdade, como que os seus olhos viam nos olhos dela, através do cristal puríssimo das suas lágrimas, toda a casta verdade e todo o resignado suplício daquela alma angélica, mas o veneno do ciúme aluçinava-o, dava-lhe uns impulsos de crueldade, que não podia reprimir e de que, em qualquer outra conjuntura, seria incapaz.

De olhos nela, num olhar febril, volveu-lhe baixo, em golfadas de palavras, a tremerem como se fossem uma súplica, a queimarem como se fossem uma afronta:

- Sim, percebe-se. Esse criminoso, esse degredado foi movido pela cobiça dos teus encantos. O seu esforço e os seus diamantes conquistavam-lhe de um lance a gratidão e a amizade de teu pai, uma intimidade favorecedora dos seus desejos de requestador, este ninho de amores recatado das suspeitas do mundo por aquele revoltante disfarce de irmão!

- Ninho de infortúnios, de mágoas e pavores para mim! - alegou ela sumidamente, de olhos baixos, afogada de lágrimas - Se pudesse ouvir-lhe palavras de amor, se lhas tivesse ouvido, que precisão tinha eu de procurar estas amarguras e estes perigos. Só se tu me supões capaz desse vergonhoso desvaire! Então, Luís, dize-mo sem piedade, abertamente. É dever de dignidade dizer-mo, e saberei então a resposta que hei-de mandar-te, já sem receio de ninguém, ficando ainda que êle parta, ficando sem que meu pai me queira levar. Deve ter a gente uma grande coragem quando sente em si o desapego do mundo.

Luís de Castro compreendeu-lhe a ideia e achegou-se dela carinhosamente, num confrangimento de ânimo.

- Não! Eu creio na tua alma, casta, imaculada, creio, sim, minha celestial beleza, mas tu bem compreendes também que tudo isto que eu digo vem dos desesperos deste meu pobre coração torturado de ciúmes.

- Ciúmes porque eu te disse a verdade, Luís! Quisesse eu enganar-te, e bastaria que não contasse o segredo de meu pai. Então Miguel Platow seria ainda para ti Casimiro Polovtzé.

- Pois sim, Maria. Foi um desvairamento, mas eu conheço o mundo bem melhor do que tu, e sei que tem havido e há perfídias de mulheres ainda de mais desalmado fingimento, por uma alucinação dos sentidos, por uma perversão caprichosa dos instintos. Não o sabes tu, meu amor, e por mim não o saberás nunca. Contigo, Maria, nem a possibilidade sequer de semelhante suspeita. Foi uma loucura minha, que me perdoas, eu sei. Mas repara e vê se o meu desvario não tem umas aparências que o expliquem. Esse fingido irmão suspeita dos nossos amores e ameaça-te como um requestador ciumento que te causa medo! Disseram-mo as tuas próprias palavras. Não me engano, Maria, não é assim? Segue-te como se fosse um namorado?

- Há dois anosicom impertinências de namorado.

- A quem nunca deste o vislumbre sequer de uma esperança?

- De nenhuma esperança. Antes de te conhecer oprimiam-me as suas palavras de lisonjeador, agora dão-me tédio. Tamanha repugnância que até receio se mude em aversão o reconhecimento que lhe devo, por meu pai e por mim. Se me fizesse perder o teu amor, se fosse a causa de um infortúnio para ti, odiava-o.

- Maria! - disse num estremecimento de orgulho, beijando-lhe as mãos sofregamente - Mas se eu não hei-de confranger-me com estas revelações? Aqui, na intimidade de todas as horas, pode espiar tranquilamente, como um bandido numa encruzilhada, qualquer momento desprecavido da tua santa honestidade, casta noiva da minha alma, e macular-te sem escrúpulos, porque êle é o protector generoso que vos salvou, a teu pai e a ti, pelo esforço

do seu braço e pelo alto preço dos seus diamantes.

- Matava-o - disse com uma simplicidade e uma firmeza de propósito que pareciam o sonho inverosímil de uma visionária ou uma blasonadora hipocrisia dos seus dezoito anos.

- Tu, minha pobre Maria! Na tua idade!

- Diz antes com este coração que é toda a minha força - respondeu-lhe com uma grande e convicta energia.

Luís envolvera num olhar de incredulidade e de envaidecido enlevo toda aquela figura peregrina de mulher com o seu olhar meigo de criança, as suas mãos de princesa, gentilmente pequeninas, toda ela graciosa e frágil como um lírio.

- Luís, não duvides. Conto com alguma cilada, receio-a, e já lhe disse a êle próprio essa palavra que tu ouviste incrédulo. Choro como choram as crianças, mas sinto em mim alguma coisa de extraordinário ânimo, que a mim própria me surpreende!

- E teu pai não vê, não compreende esse perigo?

- Meu pai sabe apenas que Miguel me quere para sua noiva.

- Para sua noiva!

- Prometeu-lhe a minha mão.

- Por aquele esforço de Hércules com que estrangulou uma sentinela e por aqueles punhados de diamantes que lhe abriram o caminho da fuga?

- És injusto, Luís! Meu pai tem os defeitos do seu temperamento irritável e voluntarioso, mas é um nobre de honrados escrúpulos. Fêz-lhe a promessa numa hora de comovida gratidão. Miguel salvara-lhe a vida, salvando-lhe também a filha, que mais valia para êle do que a própria vida. Jurou-lhe que eu seria sua esposa ou de mais ninguém. Mas na firmeza de vontade valho eu tanto como êle. E agora sabe que, já depois de estarmos em Lisboa, meu pai recebeu valores importantes, que secretamente lhe foram enviados por um irmão riquíssimo, que reside nas imediações de Viena de Áustria. Já vês que os meios de que dispomos não pertencem todos a Miguel Platow, não provêem somente dos seus diamantes.

- Acredito-o, Maria. Mas isso agora é o que menos vale. Dize-me: tens repelido insistentemente o compromisso tomado por teu pai? É certo, repeliste, iria jurá-lo.

- Há dois anos, declarei-lhe que não podia aceitar para esposo um homem que o meu coração rejeitava. Repeti-lho há um mês, com firmeza ainda maior.

- Maria! É para se agradecer de joelhos a ventura suprema que eu sinto nessas palavras!

- É para me quereres e acreditares como eu te quero e acredito.

- Como a ninguém mais, como eu nunca amei ninguém. Mas então agora é preciso que eu vá falar a quem ponha fim às perseguições da polícia contra teu pai.

«Impedi-las e evitar, seja como fôr, a fuga para fora daqui.

- Eu não irei. Há sempre remédio para estes lances em que todos os sonhos de alma se podem perder.

- Não, isso não! Confrange-me de medo isso que dizes e eu claramente compreendo. Hei-de conseguir que a fuga se torne impossível.

- Mas sem revelares o segredo que eu te confiei, sim, Luís?

- Fica tranquila.

- Vê bem, Luís! Meu pobre pai! Matá-lo-iam se o entregassem às justiças do Czar.

- Mas não percebo bem esses receios que têem do Czar! Napoleão fêz de uma parte da Polónia escrava um grão-ducado independente.

- Mas o crime de que meu pai é acusado não foi em Varsóvia foi noutra cidade polaca, ainda submetida ao Czar. Não lhe perdoam. Hão-de persegui-lo sem piedade.

- Não há-de ser assim, confiadamente o espero. Quando já não fôr possível evitar a acção da polícia, serás minha esposa, dispensam-se formalidades num casamento secreto e então terei eu o direito de lhes dizer a eles: Fujam, ela fica, ela é minha esposa, a minha adorada Maria!

E beijou-a doidamente.

- Esta cuja imagem eu trago comigo nesta miniatura adorável - disse, tirando do peito um medalhão com o retrato de Maria, feito por outro, que ela meses antes lhe emprestara.

Era obra de um pintor francês que estava então em Lisboa, e fora discípulo de Isabey, o miniaturista dilecto de Napoleão.

- E então, já minha esposa, o lar a lembrar um ninho e a lembrar um templo, as tuas mãos brancas de princesa acabariam de bordar aquela bandeira.

- Já muito adiantada, sabes? Trabalho nela por alta noite, quando meu pai dorme. Tenho-a muito fechada, escondida entre o meu vestido branco dos dez anos, o que eu levei à minha primeira comunhão. A bandeira que tu hás-de oferecer ao teu regimento!

- Para morrer um dia por ela com maior amor!

- Não, não, para morrer, não! - disse, encostando-lhe a cabeça ao peito.

- Menina! -Menina! - chamou da porta a francesa, rouquejando aflitivamente.

Maria empalideceu e foi para ela.

- Seu pai! Depressa. Vem a subir a escada sozinho. Depressa, vá ter com êle. O senhor venha comigo.

- Luís, eu não esmoreço - disse-lhe Maria, muito junto dele, e correu para dentro.

A noite escurecera muito, mas já não chovia. Ana Beauchamp, a tremer de susto, disse-lhe a meio do jardim:

- Corra para a porta. A chave está lá. Depressa! Puxe a grade consigo. Depois a irei fechar.

E voltou para trás receosa de que João Polovtzé estranhasse a sua falta. Aparecer-lhe-ia e depois iria de fugida fechar a porta do jardim.

Luís de Castro abrira-a cautelosamente e puxara-a consigo.

Ia a embuçar-se, quando na sua frente surgiu um homem de agigantada estatura.

- Podia matá-lo pelas costas, como a um bandido, - regougou numa acentuação áspera e estrangeirada o homem que lhe tomava o passo - bandido que assalta de noite a honra alheia, mas quero matá-lo frente a frente como quem o não teme. Sou Casimiro Polovtzé, irmão da filha do joalheiro polaco.

«- Mentes!» - ia dizer Luís de Castro, mas lembrou-lhe a promessa que fizera e limitou-se a responder-lhe:

- Eu sou Luís de Castro e Albuquerque, nobre do reino, oficial do exército, que jamais consentiu a alguém a audácia de lhe tomar o caminho. Afaste-se!

- Isso é perder palavras. Tenho o direito de vingar uma afronta das que se não vingam senão matando. Um duelo de morte, sem testemunhas, agora, ali, se é homem que valha a sua categoria de fidalgo e de oficial.

- Vai ver. Aceito.

E atirou ao chão a longa capa.

- Mais ali para a beira do rio - propôs o russo, atirando fora o seu amplo capote.

- Ali, sim - concordou Luís de Castro. Deram uns trinta passos para a borda da praia.

Pararam então a pequena distância um do outro.

- Disse-me que era fidalgo, digo-lhe que o sou também. Tem um de nós de acabar aqui, pouco importa agora o meu segredo. Chamo-me Miguel Platow e fui oficial dos exércitos do Czar. Precisamos de confiar nos brios fidalgos um do outro, para regular este duelo sem testemunhas. Queira pôr as condições.

- Trago duas pistolas carregadas. Cedo-lhe uma: à sorte, se as não traz também...

- Trago duas.

- Bem. Se os tiros errarem...

- A luta a braço.

- Parecem desiguais as suas condições - observou o russo com orgulhoso desdém.

- Para este ódio que nos põe frente a frente não há desigualdades de forças.

- Seja. Contam-se vinte passos para trás do sítio em que estamos e, depois que ambos dissermos alto o número de passos dados, avançaremos um para o outro sem nenhumas formalidades, desfechando à vontade.

- Aceito.

- Amo profundamente Maria Polovtzé. Juro pelo seu nome que procederei lealmente, conforme as leis da honra.

- Sou amado por Maria Polovtzé, e juro pela sua honra imaculada que não faltarei aos meus deveres de fidalgo e de homem de bem.

- Depressa. Vejo luzes no jardim - rouquejou o russo.

- Vamos.

Volveram à retaguarda, como num campo de exercício, e contaram os passos.

- Vinte - disse o russo.

- Vinte - disse Luís de Castro.

Avançaram então um para o outro, envoltos na escuridade como dois fantasmas.

De súbito ouviu-se o estalido seco de uma caçoleta, fulgiu na escuridão uma chamazita vermelha, ouviu-se o ruído de um tiro.

Fora o russo quem disparara. Tinha errado. Avançou mais dois passos com a outra pistola já engatilhada, mas não chegou a fazer fogo. Luís de Castro disparara e ferira-o.

O vulto hercúleo de Platow oscilou na sua moldura de sombra e baqueou, soltando um gemido rouco, lúgubre. A bala de Luís de Castro varara-lhe o peito.

O marulhar alto do rio, que as últimas cheias tornaram torvo e revolto, não deixou que a detonação do tiro chegasse longe dali. Apenas sumidamente se ouvira no jardim, cuja porta fora aberta instantes antes por alguém, que trazia uma lanterna de furta-fogo.

Castro correra para o ferido, pôs o joelho no chão, debruçou-se para êle, tateou-o.

A esse tempo um grito de voz feminil, angustiado, convulso, vibrou naquela atmosfera densa em que a lanterna rasgava um sulco de luz vermelha, estreito, sinistro.

- Luís! Luís!

E um vulto de mulher se desprendeu doidamente das mãos de alguém que a retinha, e meteu por aquela clareira de luz sanguínea como se uma dor de alma, enorme, a houvesse alucinado.

Estacou espavorida. O clarão da lanterna caminhava atrás dela e abrangia já no seu sector de luz rubra o pedaço de areal em que Miguel Platow caíra varado pela bala do rival.

O olhar de Maria envolveu os dois num relance de pavor e de alívio.

De joelho no chão, muito pálido, Luís de Castro amparava no braço esquerdo a cabeça inerte do fingido Casimiro Polovtzé, lívido, de olhos cerrados, como se estivesse morto.

O Castro desapertara-lhe o colete num repelão, para lhe tatear as pulsações. Uma larga mancha de sangue se lhe alastrava, densa e rubra, pelo peitilho da camisa.

Viram-na os olhos piedosos de Maria, mas tinham visto primeiro o rosto esmaecido de Luís de Castro, todo entregue àquele seu encargo de generoso dó.

- Luís! Ouviu-me Deus! - balbuciou numa tremura de voz.

Mas a luz vermelha acercara-se mais intensa, numas oscilações convulsivas, como se também viesse a tremer. Um homem robusto, encanecido, de endurecida fisionomia, com a lanterna a oscilar-lhe na mão, exclamou com uma vibração de amargura e de cólera, a que a pronúncia dava o quer que fosse de estranha aspereza:

- Faltava esta proeza de assassino ao desalmado violador da minha casa!

- Mentira! - exclamou Luís de Castro, pousando na areia a cabeça do ferido - Mentira! Este homem esperava-me, reptou-me, bati-me com êle nas condições que êle próprio propôs, e foi lealmente que o feri.

- A noite não responde - objectou João Polovtzé, dobrando-se para o ferido com os olhos cheios de lágrimas.

- Mas respondo eu por ela com o meu nome, com a minha vida, com a tradição de uma família que nunca teve nem assassinos, nem cobardes.

De joelho no chão, muito inclinado sobre o corpo de Miguel Platow, o fingido joalheiro encostara-lhe o ouvido ao peito a escutar-lhe o coração. Tinham-se-lhe cavado mais no rosto as rugas da amargura, sulcos de lágrimas que ninguém vira chorar nos anos do seu degredo.

- Ainda vive - pensou.

- Luís - suplicara Maria com uma rara intrepidez de ânimo que parecia inverosímil naquela idade e naquela sua frágil e suave figurinha de mulher.

Queria moderar assim as palavras de desforço do moço oficial. Receava um conflito violento com o pai.

- Perdoa as injustiças daquela dor - pediu-lhe como quem diz um segredo.

Mas como se houvesse adivinhado estas palavras João Pulaski (tratemo-lo pelo seu verdadeiro nome) ergueu-se arrebatadamente, tomou a mão da filha num repelão de cólera, disse-lhe em polaco umas palavras que a fizeram empalidecer, e arrojou-a de si, com brutal violência.

Foi bruscamente para Ana Beauchamp, a poucos passos a chorar, e deu-lhe uma ordem.

Que mandasse chamar imediatamente o médico italiano Vincenzo Farinelli. Era o seu clínico e um dos seus íntimos.

A francesa afastou-se a tremer, direita à porta do jardim.

Maria deu uns passos, mas, como uma súbita resolução, parou, voltando-se para o noivo da sua alma, como às vezes lhe chamava:

- Luís, por piedade! Retira-te - disse-lhe corajosamente - A minha alma pertence-te.

Nuns estremeções de impaciência, João Pulaski inclinara-se outra vez para o ferido.

Mas ouviu aquelas palavras da filha, sacudiu os ombros num arranque de desespero, voltou-se ainda de joelhos, e apontando a porta do jardim, disse-lhe num grito umas palavras de mando, a que ela obedeceu silenciosamente.

Vieram a correr dois servos negros. Eram os que o joalheiro tinha acordado assim que percebeu a perturbação da filha e de Ana Beauchamp.

A volta para casa fora uma surpresa preparada por Miguel Platow. Tinham combinado que o polaco entraria pela porta da rua e Miguel daria volta pelo muro do jardim, para observar se era fundada a sua suspeita àcèrca dos amores de Maria.

O polaco acedera sem querer na verosimilhança daquelas suspeitas e sem poder sonhar sequer com aquele trágico desenlace. Chegara mesmo a recomendar com instância a Miguel Platow que se limitasse a observar e se abstivesse de alguma violência, comprometedora para ambos nas suas excepcionais condições.

Ficariam prevenidos, tomariam precauções que tornassem impossível a continuação desses perigosos amores, em que o polaco ainda não acreditava.

Mas o ciúme quebrou violentamente todas as promessas de moderação que Miguel fizera, e levou-lhe o coração numa onda de ódio contra aquele rival preferido, e quem sabia lá com que inexcedida preferência?

- Meu pobre amigo! - disera consigo o polaco de olhos cravados no ferido - Aquela filha! A minha vergonha!

Os servos negros falaram-lhe. Levantou-se.

- Ajudem-me a erguê-lo... -disse - Cuidadosamente - recomendou, levantando alto a lanterna. Trémulos de pavor, os negros levantaram nos braços, com esforço, aquele corpo de gigante, João Pulaski ajudara-os.

- Vamos - mandou, apontando-lhes a porta do jardim. Seguia atrás deles, quando reparou em Luís de Castro, a poucos passos, imóvel, acabrunhado, com o olhar a seguir o ferido.

- Que espera mais desta desgraça? - preguntou-lhe rancorosamente - Saber talvez se o matou?

- Saber se me quere entregar à polícia, ou se prefere que eu próprio me vá denunciar.

- Sei o que hei-de preferir - replicou-lhe, torvo de cólera - Sigam - ordenou aos negros - O joalheiro vingará a sua honra como se fosse um homem fidalgo.

- Como quem é.

João Pulaski cravou nele um olhar de surpresa e de desespero.

- Antes deste duelo, Casimiro Polovtzé disse-me que o sr. era um fidalgo.

Num estremeção de surpresa, ainda maior, o polaco volveu-lhe rancorosamente:

- Pode denunciar-nos a ambos.

- Desconto na sua dor a baixeza dessa ofensa. O pai de Maria Polovtzé, seja quem fôr, não tem que vingar em mim a honra de sua filha, uma honestidade sem mácula, mas pode contar comigo para quantas reparações lhe aprouverem. Não o denuncio nem lhe fujo.

Baixou-lhe a cabeça como se estivesse numa sala e afastou-se lentamente.

- Agora irremediavelmente perdido! - pensou o polaco.

Os negros já tinham entrado a porta do jardim.

- Miguel, meu desventurado amigo! - murmurou oprimido, metendo a largos passos para sua casa.

Luís de Castro foi buscar o cavalo que deixara na alquilaria do Largo do Conde Barão. Não encontrara viva alma na praia. Por qualquer circunstância desconhecida para êle, os homens da polícia, que vigiavam os dois estrangeiros suspeitos, não apareciam por ali.

Talvez estivessem ainda na rua do Ouro a espiar a loja do joalheiro, sem poderem sonhar sequer que podiam sair pelo armazém do prédio contíguo, a que já nos referimos.

Não era a primeira vez.

Montou a cavalo e meteu a galope.

- Matei talvez a minha própria felicidade com aquela bala? - pensara amarguradamente.

 

                 Noite de surpresas.

Sozinha no seu quarto, D. Matilde tomara de si para si a resolução de pedir ao ministro Araújo uma comissão de serviço militar para o Luís, na índia ou no Brasil, se êle persistisse naqueles amores, já perigosamente enredados.

Havia de custar-lhe muito separar-se daquele filho, mas não via outro remédio para o afastar de relações comprometedoras.

Que talvez a gente da polícia lhe pudesse dar remédio melhor, pensou. Se havia desconfianças contra o polaco, era prendê-lo e pô-lo fora de Portugal, levaria a filha consigo e assim se acabavam aqueles amores.

Incumbiria o outro filho de falar nisto ao conde de Novion.

Ouviria o Henrique a este respeito. Era caso para se pensar. As noites eram longas e depois de assinadas as escrituras se entenderia com ele.

Chamou a criada do toucador. Eram horas de se arranjar.

Dali a pouco mais de uma hora começariam a chegar os convidados.

E, enquanto eles não chegam, vamos nós para a saleta chamada do jogo ouvir os dois caturras, já nossos conhecidos.

Tinham estado a jogar o gamão o padre António e Jerónimo de Castro, mas a certa altura abespinharam-se, e com a dextra possante o Mar e Guerra, como o capelão lhe chamava por abreviatura, levantou o taboleiro de cima dos joelhos, ergueu-se, e atirou com êle para um canto.

E pôs-se a passear, agitando muito o braço e meio que as baterias de Trípolis lhe tinham deixado, conforme a expressão pitoresca do padre António.

Minutos depois entrava um vizinho, pessoa muito íntima da casa, parceiro para o jogo, quási certo em todas as noites. Era um homem de meia idade, de esmerada cultura intelectual, alto empregado da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros. Morava a uma centena de passos do palacete e era raro faltar, ainda que chovesse a cântaros.

Mas naquela noite o Madureira dos Negócios Estrangeiros vinha apreensivo e não falou no jogo mal acabava os cumprimentos, como era seu costume.

Jerónimo de Castro estranhou-o logo e preguntou-lhe se havia mais alguma rascada para o chaveco do Estado.

Eram íntimos e o Madureira confiava aos dois, sob promessa de confidência, alguns segredos da sua Secretaria. Confiava-lhos num desafogo de mágoa patriótica. Eram aqueles os dois amigos com quem podia falar abertamente, sem receios de inconfidências.

Sabia que tinha ali dois corações de patriotas para o ouvirem comovidamente.

- Vai tudo de mal para pior! - disse o Madureira tristemente, voltando da porta, que fora fechar.

- É certo então que vamos ter aí os franceses com êsse tarimbeiro de Junot? - preguntou Jerónimo.

- Certíssimo, por desgraça nossa! Não o dizem ainda ao povo, mas no Paço e na minha Secretaria sabe-se agora toda a tristíssima verdade. Sabe-se que já passaram a fronteira...

- Já passaram a fronteira? - repetiu o padre António, com um movimento de mágoa.

- Já. E a esses que entraram a fronteira é preciso juntar os que já cá tínhamos dentro de casa, para ajudar os outros.

- Traidores! - rugiu o Mar e Guerra.

- Os jacobinos, os afrancesados, piores inimigos que os outros!

- Mas o amigo Madureira tinha-nos dito antes de ontem, porque ontem não tivemos o gosto de o ter cá, tinha-nos dito que se sabia da entrada em Espanha do tal exército, chamado...

- Da Gironda.

- Isso. Que havia já notícia da marcha desse exército, mas não havia ainda a certeza de que viesse contra nós.

- Sim, chegou a dizer-se que entraria pela Andaluzia, para ir sobre Gibraltar.(1) Foi um embuste mandado espalhar pela gente que nos governa, para ir ganhando tempo.

- Para ir perdendo tempo é que é, corja de vilanagem! - bramiu Jerónimo de Castro.

- Achei extraordinário o plano, por causa dos antecedentes de que tinha conhecimento - observou o Madureira - mas cheguei a dar-lhe crédito. Aquele maldito Corso(2) é tão atreito a estes reviramentos de plano

 

*1. O general Foy, um divisionário ilustre, parlamentar e historiador eminente, reproduz aquele boato no 2,o volume da sua «Histoire de La Péninsule sous Napoléon».

  1. Desdenhosa referência a Napoleão Bonaparte, por ser natural da Córsega.

 

e tem tal ódio aos ingleses que me não pareceu impossível a mudança de propósito. Ontem e hoje soube a verdade, a terrível e esmorecedora verdade!

- Que era de esperar com a lástima de homens que nos governam! - rouquejou amargamente o capitão de Mar e Guerra.

E a largos passos, cruzando a saleta num frenesi de desespero, o lobo mutilado em Trípolis ia regougando assim com os olhos rasos de água:

- Vem agora o ajuste de contas do Corso vitorioso. Era de esperar. Há catorze anos que estes nossos insignes estadistas não fazem senão pôr-nos de rastos! E eles a desbaratarem milhões na compra de uma paz que nos não concedem, a procurar um general que se alugue para nos organizar a defesa, de todo abandonada, a representarem esse entremez ignóbil de uma neutralidade que deu à Inglaterra três esquadras contra a França, à Espanha uma divisão para opor aos franceses no Rossilhão e na Catalunha e mandou em Outubro fechar os portos do reino à Inglaterra, e, já neste mês, sequestrou os bens dos ingleses, para aplacar as iras do Corso.

«Tem-lhe medo! Amachucou o ano passado a Prússia em Iena, e este ano desbaratou os russos em Eylau e Friedland, como há dois anos os derrotara, a eles e aos austríacos, em Austerlitz! Bandalheira de governantes! Ah! Marquês, que se ele vivesse...

- Homem - acudiu de nariz franzido o padre António, que não era positivamente um admirador do famoso ministro de el-rei D. José - os tempos são outros.

- Os homens de cima é que são outros - volveu o Mar e Guerra, parando de rosto avincado.

- No tempo dele não havia um Napoleão com mais batalhas vencidas por essa Europa do que anos tem de idade! Já não há nação que se tenha em pé diante dele!

- Mau! Lá está você todo dobrado para o arrocho! - exclamou o Mar e Guerra - Destas cousas é que vossa reverência não percebe nada. Absolutamente nada!

- E, voltando-se para o Madureira, comentou:

- Estes srs. padres, em se lhes falando no Marquês perdem logo as estribeiras!

- Valha-me Deus! Lá vai já para a caturreira do costume! - acudiu o padre António - Conheço que se tem feito muito disparate e que temos sido muito mal governados, mas o que havia de fazer o próprio Marquês, com todos os seus bofes e as suas tesuras de ânimo, se tivesse diante de si o Bonaparte com toda a França atrás de si e a Europa dobrada diante daquela espada que a venceu e deixou espavorizada? E, de mais a mais, faltando-lhe o apoio da Inglaterra!

- Ora bolas! Vê-se bem que não sabe ou finge não saber do que o Marquês era capaz e conseguiu fazer,

- Matou os Távoras e expulsou os jesuítas.

- Nisso é que você me parece mais jesuíta que os outros postos fora de Portugal! Irra! que é ser torto! Com que então mais nada fêz o homem?! Falar de cabeça direita aos ingleses, obter da Inglaterra uma satisfação solene, levantar tão alta como a dela a bandeira de Portugal, que outros bisbórrias, como os de agora, lhe tinham deixado cair aos pés, e depois disto rebater na fronteira os exércitos unidos da França e da Espanha, parece-lhe coisa de tão pouca valia que também dela seriam capazes o Sancho Pança do Luís Pinto e esse macaco pelado do António de Araújo, as prendas que governam isto, esta desgraçada terra, já com uma fama de cobardia que nunca teve?!(1)

 

*1. Luís Pinto de Sousa tinha sido ministro de Portugal em Londres nos últimos tempos do governo do Marquês de Pombal.

 

- Não esteja a torcer o sentido das minhas palavras! Não foi isso que eu disse.

- Mas foi isto o que eu percebi.

- Pois percebeu mal o meu ilustre Mar e Guerra.

- Qual mar e guerra, nem qual mar e paz! Sou seu amigo, é homem de bom fundo, mas, lá por que veste pela cabeça, entende que está na obrigação de apoucar o Marquês, sempre que eu falo nele!

- Outra vez! Apre que já é estar de má vontade! O que eu queria, o que eu pedia, era que me dissesse o que havia de fazer o seu Marquês...

- O nosso, de Portugal, que é como lhe fica bem dizer.

- Pois seja, mas sempre queria que me dissesse o que êle havia de fazer há quatorze anos para cá.

- Ah! eu lhe digo. Convinha ao Marquês a aliança inglesa, precisava dela, percebia que não podia manter-se neutral. Pois reclamava energicamente da Inglaterra o auxílio que fosse razoável, organizava a defesa como fêz em 1762, restauravam-se as praças de guerra, trabalhavam dia e noite os arsenais como em 1776, e seguia resolutamente o rumo da sua aliada, sem se amedrontar com as consequências.

«Do que êle não era capaz, meu reverendo, era de mandar duas esquadras para ajudar os ingleses no bloqueio da costa francesa, dar-lhes depois a esquadra do Marquês de Nisa, para auxiliar Nelson, e alegar afinal, todo encolhido, que não era hostil à França, que o seu desejo era ficar neutral e que o deixassem viver em paz. Do que êle não era capaz era de mandar dispender em Paris milhões de cruzados, em diamantes e em barras de prata, para comprar o favor de o deixarem em paz, coisa que afinal não consentiram aos bisbórrias de agora, depois de lhe apanharem o preço da compra. Incapaz dessa cobarde hipocrisia, dessa humilhação ultrajante, que nos queima o rosto a todos, o Marquês teria gasto em peças de artilharia o valor dos diamantes com que António de Araújo comprou os corruptos do Directório que o embaçaram, e na defesa do país, o

vergonhoso negócio tem corrido pela secretaria.

- Uma conta avultada, que ainda se não pode apurar bem! A princípio António de Araújo dizia de Paris que seriam precisos três ou quatro milhões para comprar os venais do Directório, interessando-os na concessão desta paz, que de há muito se desejava.

- Vá ouvindo e meditando, seu Padre António.

- Que Barras só se dobrava a quem mais desse, mandava dizer para cá o Araújo - informou o Madureira.

- Agora ministro e secretário de Estado de sua Alteza o Príncipe regente - acrescentou Jerónimo de Castro.

- O tratado de 1797(1), que de nada nos valeu, custou em Paris um milhão, cento e sessenta mil libras tornezas... para luvas, como se diz por lá!

- Vá somando de cor, sr. padre capelão - interrompeu o mutilado.

- Anteriormente o ministro de França em Madrid queria vinte e cinco milhões de francos de indemnização, que ninguém sabia porquê, sobre um tratado de vexames,

 

*1. O tratado de 10 de Agosto de 1797, negociado por António de Araújo, era oneroso e humilhante, apesar dos favores comprados a Barras, figura preponderante do Directório. Em Lisboa não o quiseram ratificar e o Directório vingou-se mandando meter Araújo numa das prisões do «Temple». onde esteve encerrado desde 28 de Dezembro de 1797 até 19 de Março de 1798.

Thiers e Foy referem este facto. Foy alude à corrupção de Barras, mas as cartas e as notas de Araújo dão a conta puxada daquela mercancia de corruptos e corruptores.

 

e perdas territoriais no Brasil, absolutamente inaceitável! Depois foram para Paris três milhões de cruzados em diamantes.

- Ora aí tem, seu padre António. O tal Marquês, que não é da sua devoção nem está no seu calendário de varões ilustres, gastava esses milhões em espingardas e artilharia e não era capaz de os levar de rojo à França para que ela fingisse acreditar numa neutralidade, que de cá escandalosamente violavam, para não amuar a Inglaterra.

- E não se evitou a desgraçada campanha de 1801!

- Último passo daquele calvário de vergonhas! Em as fraquezas vindo de cima, até as nações valentes fazem poltranices de nações cobardes! Um general em chefe de oitenta e tantos anos, general de sala, de botas de veludo por causa da gota.(1) académico para dizer gracejos, os outros de dragonas, a caírem de velhos e os soldados a caírem de fome! E ninguém a tomar a sério aquela comédia de guerra com o troca-tintas de Manuel Godoy(2), o querido Manuel e vice consorte de suas majestades espanholas, à frente de trinta ou quarenta mil espanhóis, a manobrar por conta de Napoleão, e com os quinze mil granadeiros de Léclerc a guardarem-lhe as costas! Ainda maior vergonha que a de 1580! Então ainda houve um punhado de maltrapilhos para se deixarem matar na Ponte de Alcântara.

- Ainda tivemos depois uma ocasião de remediar os males,

 

*1. Era o duque de Lafões. Tinha 82 anos e usava botas de veludo por causa da gota! A troça popular tomou-o à sua conta e pregou nas esquinas de Lisboa um anúncio oferecendo alvíssaras a quem achasse e restituísse um menino de 82 anos que usava botas de veludo e se perdera entre Portalegre e Abrantes.

  1. O general em chefe dos espanhóis era o valido Manuel Godoy, o querido Manuel de Carlos IV e de Maria Luísa, o «amante da rainha», como escreveu Foy e dizia toda a gente na Europa.

 

já que não se podiam resgatar as vergonhas! - disse tristemente o Madureira.

- Quando?

- Quando o ano passado lorde Rosselyn ofereceu a António de Araújo um avultado auxílio de dinheiro, de armamentos, soldados e navios, sob condição de nos declararmos em guerra com a França!

- Era tomar um partido, era meter ao mar largo da política europeia, era ir para os acontecimentos de pé, está claro que os grandes ministros que temos agora não deviam aceitar essa oferta. Muito afeiçoados aos franceses, Luís Pinto e António de Araújo preferem esta farsa de sangue, que nos faz chorar a nós e os põe de rastos a eles, ministros de Estado a emporcalharem a tradição do Castelo-Melhor e do Marquês de Pombal! E agora? Por quem somos? Contra quem vamos?

- Somos pela Inglaterra, a fingir que vamos guerreá-la, e somos contra a França, a simular que estamos com ela - respondeu o Madureira de olhos baixos.

- Pulhas! - rouquejou o mutilado-Para as maiores glórias ou para as mais reles torpezas, quanto podem às vezes alguns homens no mando supremo! É para morrer de vergonha! Padre António, compare o grande ministro de D. Afonso VI a preparar as vitórias decisivas do Ameixial e de Montes-Claros, e o espantoso ministro de D. José I, a quebrar a arrogância inglesa e a repelir a Espanha e a França unidas, compare-os com estes, que despejam mãos cheias de diamantes, valendo milhões, aos pés de quem os esbofeteia, e nos leva todos de rojo, ninguém sabe para'onde!

- Somos uma nação perdida, sem remédio perdida! - rouquejou o Madureira com os olhos rasos de lágrimas.

- Vem então o Junot para os funerais, a ver se restam no tesouro real alguns daqueles diamantes que êle viu e cobiçou há dois anos. E quantos soldados para nos abrirem a cova na feira de lama em que esses ministros mudaram a terra de Portugal?

- Segundo uma convenção secreta, de que os ingleses obtiveram informação e é já conhecida no Paço há dias, Junot deve trazer vinte e oito mil franceses e uns onze mil auxiliares espanhóis.

- Cerca de quarenta mil homens.

- Não é tudo. A Espanha dá mais dez mil homens para se apossarem de Entre-Douro-e-Minho e seis mil para tomarem o Alentejo e o Algarve.(1)

- Pior do que em 1801! Bem dizia o velho Lafões aos espanhóis: Portugal e a Espanha são duas bestas de carga. A Inglaterra espicaça-nos a nós, a França aguilhoa-vos a vós. Agitemos, pois, as guizeiras, mas, por amor de Deus, não nos façamos mal uns aos outros».(2) Mas agora somos nós a besta que nem já pode agitar as guizeiras! E agora o que se faz? As praças estão desmanteladas, desguarnecidas, como dantes, os soldados quási cobertos de farrapos, alguns regimentos com um terço do efectivo que

 

*1. A convenção secreta fora assinada em Fontainebleau em 27 de Outubro de 1807. Por essa convenção, o exército francês destinado a Portugal devia ter 28.000 homens, mas saiu de Baiona com o efectivo um pouco inferior, que já indicámos em outra nota. Estava convencionado que uma divisão espanhola de onze mil soldados acompanhasse as tropas de Junot, outra de dez mil ocupasse Entre-Douro-e Minho, e uma terceira divisão de seis mil soldados se apoderasse do Alentejo e Algarve. Parece que o efectivo da primeira destas divisões não chegava a oito mil homens.

Na convenção ficou também estabelecido que seria concentrado em Baiona um outro corpo de exército francês de 40.000 homens que entraria em Espanha para marchar contra Portugal, caso este país fosse auxiliado pelos ingleses.

As garras da águia napoleónica tinham tecido assim a armadilha em que o velho leão castelhano havia de cair como um borrego.

  1. Está registado aquele dito do académico octogenário em quási todos os livros portugueses da história daquele período vergonhoso. Foy traduziu-o na sua obra já citada.

 

deviam ver, os dois de meus sobrinhos, por exemplo! Não fizeram caso do plano de reorganização militar de Gomes Freire, puseram número aos regimentos, e acabou-se!

- Acabou-se tudo, isso é que é! - comentou o Madureira melancolicamente.

- Mas a guerra devia estar prevista. Os representantes da França e Espanha pediram os seus passaportes em Setembro, e retiraram-se. Os nossos em Paris e Madrid foram intimados a retirar-se. O que esperavam então esses poltrões desses ministros?

- Pediram à Inglaterra que fingisse guerrear-nos!

- Apresando-nos os navios de comércio, como têem feito os piratas da França!

- De rastos e roubados por todos!

- Mandaram reunir muitos regimentos em Lisboa e nos campos militares de Mafra, Alcácer do Sal, Barcelos e Soure. E Junot entrou por onde?

- Por Castelo-Branco.

- Nem chineses, nem mandarins?

- Querem então esperar os franceses aqui em Lisboa?

- Quiseram fingir que se preparavam para repelir aqui os ingleses.

- E sua Alteza? Ainda se ficou a entoar cantochão com os pançudos frades, no coro de Mafra?

- Sua Alteza... mas por amor de Deus, o mais absoluto segredo... Sua alteza mandou a França o Marquês de Marialva para acalmar Bonaparte, pedindo-lhe a mão de uma filha de Murat para o príncipe D. Pedro.

- Madureira, isso parece escárnio! Para um príncipe de Portugal, um rapazito de nove anos, a filha de um soldado de aventura, a neta de um bicho de cozinha!(1)

 

*1 O facto vem referido pelo general Foy, a página 376 do tomo da sua História da Guerra Peninsular.

 

- A filha de uma irmã de Napoleão, de Carolina, a grã-duqueza de Berg.

- E assim crê Sua Alteza que se evita a guerra «Io Corso.

- O Marialva já não foi a tempo.

- E daqui a uns dias a nossa esquadra tomada pelos ingleses, as unhas do leopardo britânico sobre o Brasil, sobre a índia, sobre a África!

- Por ora ainda não. Sua Alteza, hesitante sempre entre os doidos alvitres dos seus conselheiros, pobre homem amargurado, a quem os moços da câmara têem visto chorar, decidiu-se enfim a seguir o conselho dos ingleses e...

- E quê?

- Fugirá para o Brasil.

- Fugir? Bom exemplo para os que ficam. Madureira, isto é de endoidecer! Fingem-se dispostos a repelir os ingleses e vão com eles! O Corno manda-nos invadir o país e eles, de costas para a fronteira, a fingirem que estão em paz com a França! Tudo a fingir! Menos esta vergonha, menos a morte da pátria, a pior morte!

- Está já decretada. Mandou-a decretar Napoleão em Fontainebleau. Lorde Strangford levou há dias a Sua Alteza uma súmula do tratado em que se faz a partilha da nossa terra, entre a Espanha e a França.(1)

- Segura presa, não é assim? E não quis o diabo que uma bala dos turcos me despedaçasse o coração, em vez de me esfrangalhar um braço. Bom cantor de igreja,

 

*1. A província de Entre-Douro-e-Minho com a cidade do Porto ficava para a rainha da Etrúria, filha do rei Carlos IV de Espanha. Denominar-se-ia «Lusitânia Setentrional».

O Alentejo e o Algarve eram para Manuel Godoy, o infamador desse pobre rei das Espanhas, a quem Napoleão reconhecia o título de «Imperador das duas Américas».

A Estremadura, as duas Beiras e Trás-os-Montes ficavam em poder dos franceses «até à paz geral».

O reino da Lusitânia setentrional e o principado do Alentejo e Algarre ficavam sob o alto protectorado do rei da Espanha.

As colónias portuguesas seriam depois divididas igualmente entre a França e a Espanha.

Aquele tratado de Fontainebleau até por alguns historiadores franceses é considerado um acto humilhante de iniquidade e de má fé.

 

é pena que Sua Alteza não fique para as exéquias dessa poltranagem, nesta terra que se chamou Portugal! Meu Pobre Camões, dos teus Lusíadas só há dois versos que sirvam para isto! Dois só. Vem o Junot com os seus granadeiros de França e os soldados que a Espanha lhe emprestou, e traz-nos aviso.

De destruir-se o reino totalmente

Que um fraco rei faz fraca a forte gente.

- Bravo, tio! - disse Henrique de Castro entreabrindo a porta - A recitar Camões...

- Como se recitam certas orações num ofício de finados.

- Credo! Longe vá o agouro! Mas o tio ainda não tem vestida a sua gloriosa farda, e os nossos parentes, os nossos convidados não podem já demorar-se!

- E tu, noivo, com a melhor das tuas fardas, como para uma recepção de gala!

- Causa-lhe estranheza, tio?!

- Não. Não tenho o direito de estranhar coisa nenhuma. O teu regimento não teve ordem de marcha para a fronteira e ninguém te disse ainda oficialmente que um exército invasor está já dentro de Portugal, não acreditas, como tanta gente, e tratas do teu casamento. Está bem.

- Mas não posso compreendê-lo! O tio bem sabe que este casamento estava de há muito aprazado...

- Bem sei. Desculpa as minhas mágoas de velho umas palavras que tu hás-de fingir que não ouviste, pois que este nosso tempo é todo êle para fingimentos. Olha, uma vez certo brigue de guerra, em que eu era guarda-marinha, afundou-se no Estreito, batido, desarvorado pelos temporais e afinal esburacado pelas coronadas de três galeras argelinas. Os novos de bordo atiraram-se para os escaleres e meteram para a costa. Na coberta ficou um velho guardião, a quem uma bala esmigalhara as pernas. Quis morrer dentro daquele navio que as ondas iam amortalhar. Vós, os novos, ainda podeis olhar para longe: eu não, e, como o velho guardião, fico para morrer no chaveco a afundar-se. Mas não te oprimas- acrescentou afectuosamente, pondo-lhe a mão no ombro - vai e leva contigo os meus votos pela boa fortuna de que és digno.

- O tio não vem?! - preguntou com magoada surpresa.

- Não.

- Vai oprimir-me a estranheza dos nossos parentes pela sua falta! Um irmão de minha mãe, um tio como pai!

- Mas tu desculpa-me de qualquer modo, quando preguntarem por mim. Dize-lhes que piorei subitamente dos meus achaques e, para afastar cuidados impertinentes, conta-lhes que a minha gota me levou à cama. Tem paciência. Tu não podes remediar os erros monstruosos de quem nos governa, nem o teu peito podia quebrar sozinho a onda que vem sobre nós. Vais cumprir uma promessa, dar o teu nome a essa linda órfã que escolheste para noiva..Fazes

bem.

«Velarás por ela nesses amargurados dias, que já não tardam! Vai, meu rapaz e desculpa-me.

- Mas ainda esta tarde, ao jantar...

- Andava comigo a mágoa de receios, a que já me habituara, mas não queria mortificar tua mãe, tão intransigente em que esse acto das escrituras se fizesse solenemente. Mas depois senti uma dor de alma ainda maior, e não te posso acompanhar.

- Tio, que desgosto e que péssimo vaticínio!

- Não insistas. O dever de etiqueta era ir como quem sou, e essa farda que, louvado Deus, nenhuma cobardia manchou, havia de oprimir-me agora como se fosse um remorso, uma estranha insígnia de combate numa terra onde já se não sabe combater.

Henrique relanceou um olhar de tristeza para o Madureira. Adivinhava que teria sido êle o revelador de alguma informação política esmorecedora.

- Tio, teve então alguma ruim nova?

- Teve - acudiu o Madureira - Trouxe-lha eu e vou confiá-la à sua lealdade como a confiei a seu tio. Entrou já em Portugal o exército francês da Gironda, sob o comando de Andoche Junot, aquele que foi aqui embaixador. Vem com êle um exército de Espanha.

- Isso... um boato apenas? - preguntou Henrique, afogueando-se, num acabrunhamento de vergonha e de desespero.

- Uma informação oficial, que o tenente-coroneL Lecor trouxe ontem a Sua Alteza e que, pelo mau estado dos caminhos, vem com oito dias de atraso. Peço-lhe que não a espalhe.

Apareceu à porta o velho mordomo da casa.

- A Senhora manda prevenir v. s.a de que já chegaram os tios da sr.a D. Branca.

- Eu vou já. E com que sombra enorme de pesar, meu tio!

- Dá à tua mãe as minhas desculpas. Henrique saiu oprimido.

- Eu podia lá! - rouquejou Jerónimo de Castro como que a justificar-se.

O padre António acercou-se muito dele.

- Mas, ó meu caro Mar e Guerra, olhe que o rapaz não tem culpa destes infortúnios.

- Tome lá cinco réis pela descoberta! Ora o descôco!

Mas vendo o Madureira entretido no outro extremo da saleta, de olhos pregados num mapa de parede, o mapa de Portugal, o padre António segredou ao mutilado:

- Fique sabendo que este casamento é já uma dívida de honra, que tem de saldar-se quanto antes.

- Mas o que tenho eu com isso? - preguntou no seu vozeirão, como se estivesse comandando uma manobra a bordo de uma nau.

- Schiu! - recomendou o padre, puxando-lhe pela manga do braço mutilado - Olhe que isto é segredo só para nós!

Mas o Mar e Guerra estava com vontade de desabafar, zangando-se, e era aquele velho amigo a criatura dilecta sobre a qual mais lhe aprazia desfechar os seus desesperos.

- Homem, você às vezes parece que não percebe as coisas! Pois não compreende que eu era capaz de algum destempêro, se visse a minha farda de marinheiro entre outras da Corte, a vestirem bandalhos que tivesSem concorrido para estas vergonhas?! Bandalhos, repito, e pouco me importa que sejam meus parentes. Não sou como esta corja. Quando há seis anos o meu navio de então, a corveta Andorinha,(1) foi atacado pela fragata francesa Chiffone, bati-me sem me importar saber quantas batalhas tinha vencido o Bonaparte na Itália e no Egito. Antes disso tinha-me mandado a favor dos ingleses, e você, capelão da Albuquerque, viu bem como a gente se bateu em Trípolis contra os turcos.

- Foi lá que perdeu o braço.

- Vim para Lisboa como chaveco arrasado, mas,

 

*1. Referência ao combate notável da corveta Andorinha com a fragata Chiffone, em 19 de Maio de 1801.

 

assim que me vi bom, para voltar à minha gloriosa corveta, pedi como quem pede uma mercê, requeri e concederam-me que embarcasse como supranumerário. Você ouviu contar como a Andorinha, um calhambeque de vinte peças e cento e vinte homens, se bateu com a Chiffone, de quarenta e quatro peças e trezentos homens.

- Ouvi-o contar ao Quintela.(1) Você ficou estendido na tolda com um ferimento na cabeça.

- Cá está a certidão - disse, apontando a larga cicatriz da testa à face - Ainda maior que a do tal Junot, apanhada na batalha de Lonato!

E com estas honradas reminiscências se mudara em enternecimento o azedo desafogo do Mar e Guerra.

- Já entende agora porque me fazem nojo esses maricas, que andam para aí a encolher-se com medo da guerra. Foi por esta paz podre que eu deixei de ser marinheiro, e agora a farda só para a cova.

Profundamente comovido, um nó na garganta, pôs-se a disfarçar e foi direito ao Madureira, ainda de olhos pregados no grande mapa de Portugal.

- Que está você a ver?

- Como isto vai ser retalhado ao cabo de sete séculos!

- Corja! E hei-de morrer com a certeza de que ainda se encontravam neste povo, nesses soldados, nesses marinheiros, vinte ou trinta mil homens para morrerem honradamente pela sua terra, se houvesse um homem de prestígio que os metesse a caminho!

- Não vejo nenhum!

- E é a chorar que você diz isso, Madureira! - exclamou com uma estranheza de disfarce, a fazer-se forte.

 

*1. Inácio da Costa Quintela era o intrépido comandante da corveta naquele combate desigual.

 

O Madureira volveu-lhe lentamente, olhos fitos nos olhos dele, também rasos de água:

- Meu valente, é a chorar que nós temos de pensar nisto. Também se chora de vergonha, sr. capitão de mar e guerra!

Estava resplandecente a sala grande, de tetos apainelados e frisos de oiro.

As chamazitas doiradas das serpentinas e do lustre arrancavam cintilações deslumbradoras dos diamantes dos colares do colo branco das damas, desnudado pelo amplo decote do vestido da cintura alta, à moda francesa. Viam-se ali senhoras da Corte de primeira linhagem, algumas delas de escultural beleza.

Refulgiam as bordaduras das fardas vermelhas dos moços fidalgos, as golas altas de folhagem de oiro e as dragonas de cachos dos almirantes e dos generais, e sobre a toga reluzente de um desembargador do Paço, parente dos Castros, faiscavam os brilhantes cravejados na cruz antiga de cavaleiro da ordem de Cristo.

Estava encantadora a noiva de Henrique de Castro, uma linda mulher de cabelos negros, ondeantes, a emoldurarem a alvura sem mácula de um rosto suavemente entristecido.

Causara estranheza, a ausência de Jerónimo de Castro. A irmã e o sobrinho explicaram que, subitamente, se lhe tinham agravado os seus padecimentos e já naquela tarde, muito tolhido da gota, se vira obrigado a ficar no quarto.

Também foi preciso explicar a falta de Luís de Castro, mas essa de pequena demora provável, por ter sido chamado para uma incumbência urgente do coronel do regimento.

Mil desculpas pedidas por D. Matilde e por seu filho, e resolveu-se esperar por Luís de Castro, que prometera estar de volta assim que fossem nove horas. Ainda faltavam uns doze minutos para essa hora aprasada.

Conversa-se. Nas cadeiras de estofo claro, à Luís XV, fazendo roda, as senhoras falam das últimas modas de França,(1) das intrigas de amor na Corte, dos pavores e sobressaltos que vão no Paço.

O Madureira estava ingenuamente enganado com o seu segredo. A nova da invasão francesa já tinha saído do Paço logo de manhã e a súmula do tratado de Fontainebleau já andava segredada entre as pessoas da Corte, apesar das recomendações confidenciais feitas na Secretaria dos Negócios Estrangeiros.

Amargurado e aos ais pelos corredores do Paço de Queluz, o Príncipe regente confiara a tremenda revelação aos seus íntimos, e eles vieram cá para fora contá-la em segredo, mas por tal forma que estava já divulgada pelas pessoas de mais alta categoria social.

Os homens tinham-se agrupado ao sabor das suas inclinações. Os mais moços alardeavam baixo aventuras de amor, façanhas de marialvas, saudosos das toiradas fidalgas, prosápias de estróinas, orgulhosos da rijeza dos pulsos e da desfaçatez crapulosa dos instintos.

Os outros, mais maduros, figurões políticos, discutiam cautelosamente a esperada fuga da corte para o Brasil,

 

*1. As últimas modas de Paris eram em Lisboa as que já tinham passado havia um ou dois anos.

E algumas nem vingaram cá. Os decotes e os braços nus, mesmo em traje de passeio, venceram, mas os vestidos túnicas, à grega, como no tempo do Directório, abertos aos lados e decote indecoroso quási até ao estômago, esses não se eventaram cá.

Conta-se que o fero intendente Pina Manique chegara a ameaçar de mandar prender no Castelo as damas que aparecessem na rua com aquele desaforo da moda jacobina e grega.

 

e concordavam na impossibilidade absoluta de ter mão nos franceses.

- Esse Junot é uma criatura ordinária, um tarimbeiro, que se fêz homem nos tempos da chacina revolucionária. Lembramo-nos bem dele.

- Se lembramos!

- Muito atrevido em coisas de guerra.

- E outras! - acudiu com um sorriso malicioso certa dama, já excessivamente madura.

- Fêz aí vergonhas com as dançarinas de São Carlos!

- Apesar de ter cá a madama.

- General, embaixador, mas sempre se revelou o que tinha sido. Um grosseirão!

- Ó menina - observou a dama gravemente amadurecida - A respeito de embaixadores malcriados, antes mil vezes Junot que o Lannes. Lembram-se?

- Ora, se lembro! - acudiu outra - Nunca ia ao Paço que não subisse a tossir grosso e a arrastar o sabre pelos degraus para fazer bulha. Um javardo! Vexou aí toda a gente!

- E arranjou-se. Veio para cá cheio de dívidas e foi de cá bem governado.

- Isso sei eu muito bem. Fêz o senhor D. João de fel e vinagre, mas lá conseguiu que Sua Alteza fosse padrinho de um filho dele, e um dia no Paço apanhou ao compadre uma chapelada dos melhores diamantes que tinha o tesouro real!(1)

- Aqueles soberbos diamantes que tèem vindo das minas do Brasil, desde os tempos do senhor D. João V. Sua Alteza deitou no chapéu armado de Lannes três mãos cheias de diamantes, para o afilhado, para a comadre e para êle compadre.

- E não foi só isso. Olhem que lhe não daria menos

 

*1. Laura Junot refere-se àquele pormenor nas suas memórias. Mémoires du general Baron de Marbot, tomo II, Biographia de Lannes.

 

o desaforo das coisas de negócio que êle para cá mandou vir e passaram na alfândega como coisas para o ilustre embaixador da França, sem pagar cinco réis!(1)

- Então eu não sei! Navios carregados de mercadorias. Um escândalo! E ninguém se atrevia a abrir bico.

- O que a gente tem sofrido!

- O Junot sempre era mais atencioso, especialmente para as senhoras.

- Eu achava-o melhor figura que o Lannes. Quanto a valentia, dizem que não cedem um ao outro.

- O Junot com aquele uniforme de coronel general de husxards era uma estampa! Só o dólman branco recamado de oiro, e a pelica de raposa azul que êle trazia ao ombro, eram uma riqueza!(2)

- Mas sempre tem um gilvaz na testa!

- Muitas vezes lhe ouvi falar presumidamente dessa cutilada que o pôs à morte.

- E a madama virá com êle?

- Hum! A Laura Junot gosta de ter corte, mas também gosta muito das suas comodidades.

- Ó menina, olha que não era cousa para espantar ninguém! O nosso Marquês das Minas andou nas suas campanhas em Espanha sempre acompanhado de certa mulher com quem tinha amores. A cavalo, ao lado dele, vestida de amazona, caiu ferida por uma bala em não sei que batalha, cujo nome me não lembra.

 

*1. Marbot, nas suas Memórias, pág. 222, conta que o general Lannes interessou nos seus privilégios de embaixador certos negociantes franceses, que lhe deram de lucros a bonita quantia de 300.000 francos.

2.. O uniforme custara-lhe quinze mil francos, não contando o héron que lhe fòra oferecido pela imperatriz Josefina e era avaliado em 100 luíses. Conta-o Laura Junot nas suas Memórias.

 

- Pois sim, mas isso foi em mil setecentos e não sei quê, há coisa de um século.

- Nestes nossos tempos ainda pior! Contou-me meu primo Carlos, e bem sabem que êle tem andado muito lá por fora, contou-me que nos exércitos da Revolução alguns generais franceses eram acompanhados pelas esposas e por coisa pior, durante as campanhas.

- Dizem que o Bonaparte deu grosso escândalo no Egito com a mulher de certo oficial! Acompanhava-o e até ia com êle às paradas a cavalo, de fardilha, chapéu de dois bicos, emplumado, como o dos generais, atravessado à moda do Corso, e uma saia de amazona!(1)

- Credo! Que perdição de mundo! - exclamou, benzendo-se, uma ex-açafata que tivera a mais escandalosa mocidade de amores de que havia notícia em Lisboa, e sempre com os oficiais novos de várias companhias de granadeiros.

- E ainda isso não é o pior! Disseram-me que atrás dos exércitos franceses vem sempre um mulherio reles, desaforado, não contando com umas desavergonhadas que eles teem nos regimentos com o nome de cantineiras!

- Ah, filha, daquela gente sem religião não há que esperar outra coisa!

 

*1. Era Margarida Paulina Bellisle. uma loira modista de Carcassone, que foi esposa do capitão Faurés. Embarcou para o Egito em disfarce de soldado.

As tropas chamavam-lhe familiarmente a liellilote. Quando ela passava com o seu uniforme de general, a soldadesca dizia sorrindo: «Lá vai a nossa generala».

No seu livro a respeito das fraquezas de Napoleão pelas mulheres, Frederico Masson cita muitas que precederam a Faurés e outras que a imitaram. Refere que em 1792 já nos exércitos da República se encontravam nos estados-maiores mulheres com uniformes de oficiais, chegando algumas a exercer funções e ajudantes-de-campo.

 

- E o exemplo vem de cima! O Corso tem feito vergonhas por causa das mulheres!

- E deixa que, segundo me contou meu primo Carlos, suas altezas as senhoras suas manas, também a respeito de homens...

- Ó menina - avisou em segredo uma das maldizentes - olha que está ali de ouvido à escuta a minha sobrinha Glória.

- Pois sim, falarei mais baixo.

- Então as manas do Bonaparte?... - preguntou outra, muito inclinada para a reveladora das fraquezas imperiais.

- Ui! Ui! Saem ao mano! Dizem que uma delas... Pelos modos até o Junot lhe fêz o seu pé de alferes.

- Também disseram que o Corso arrastava a asa à Laura Junot.

- Bem sei. E muito mais do que isso! Mas olhem que daquele feitio de Paulina Bonaparte não haverá muitas em França! Eu conheço aí uma modista francesa, que veio há um ano de Paris e me tem falado muito de Paulina. Ai Deus de misericórdia! Sempre sabe coisas aquela criatura!

Baixou mais a voz e acrescentou púdicamente:

- Disse-me que Paulina é linda como as estrelas, mas também uma cabecinha doida pelos homens!

Tossiu com um certo pigarro de casto disfarce e comentou:

- Uma loucura sem distinção de classe!

E, muito ao ouvido da ex-açafata, pormenorizou:

- Ó menina, dizem que até deu confiança a um alferesote da guarda imperial, que a namoricou! Olha que teve o descaramento de servir de modelo a um homem que faz estátuas!(1) Uma princesa imperial!

 

*1. Referindo-se a Paulina Bonaparte, princesa Borghèse, a mais formosa das irmãs do primeiro Napoleão, a mais deslumbradora e a menos casta, Laura Junot escreveu: «La princesse Borghèse étail une gracieuse nymphe. Sa statue, fait par Canova, a été moalée sur elle», etc.

O artista modelou a estátua de uma Vénus semi-nua, pelo corpo escultural da Princesa, a «ninfa», como lhe chama a esposa de Junot, talvez com o duplo sentido que se dá ao vocábulo, neste caso a representar uma síntese histórica daquela encantadora histérica, desdouro de um sólio imperial, feito de troféus.

(Vide a passagem citada a pág. 67 do tomo 6.o das «Memoires de madame La Duchesse d'Abrantes).

 

Abrenuntiu! Deus nos defenda dessa praga de mulheres! - comentou alto a ex-açafata - E são capazes de as trazerem consigo!

- Não hei-de ser eu quem veja esse desaforo! Credo!

- Nem eu.

- Eu já deixei uns poucos de baús arrumados. E em saindo daqui, vou continuar.

- E eu também.

- A esquadra já está pronta.

E, assim, neste feitio de desalmado egoísmo e de hipócrita honestidade, algumas que descendiam de Filipa de Vilhena e de Mariana de Lencastre, as mães fidalgas, sublimes, que tinham armado os próprios filhos, ainda imberbes, para a revolução de 1640 contra o dominador castelhano!

Como Portugal estava decaído naqueles beatíssimos tempos.

- E agora o remédio é deixá-lo entrar - concluiu um do grupo dos homens políticos.

- Afrontoso remédio! - protestou outro.

- Meu amigo, é gente acostumada a vencer por essa Europa. O prestígio de Napoleão vem diante deles como se fosse um exército ainda maior, imensamente maior, e, demais a mais, ajudados pelos espanhóis, e dirigidos por esse general audacíssimo, que é um fanático de Napoleão e uma das suas mais intrépidas espadas!

«De poucas letras e de escasso mérito, mas um doido de bravura. Em Nazaré, com trezentos soldados, bateu quatro mil turcos, em Lonato ia-se deixando fazer em postas, e veja como há dois anos subitamente abandonou a sua embaixada, aqui em Lisboa, percorreu mil e duzentas léguas numa desfilada de caleça, e foi assistir à batalha de Austerlitz, lá nos confins da Áustria.(1) Ia à procura do bastão de marechal, que não apanhou.

- Ele o apanhará.

- E depois - observou um dos que estava para se safar na esquadra - é ver o que Napoleão fêz à Prússia, uma poderosa nação militar. Esmagou-a aos pés! O Imperador da Áustria, vencido e acabrunhado, a ceder Estados e a pagar contribuições de guerra, a Holanda e a Itália como domínios da França, o próprio Czar, com aquele seu império, maior que o resto da Europa, tantas vezes batido, humilhado, e tudo agora pelo Corso, como se Bonaparte fosse o árbitro do mundo!

- Pois sim, mas essas nações foram vencidas porque batalharam. E nós, aqui, nem temos sequer um arremedo de resistência!

- Estávamos servidos com o que temos e com a Inglaterra a encolher-se no continente. Já ouvi que Napoleão tem nos seus domínios todos o melhor de oitocentas mil baionetas!(2) Só faltava agora que a Espanha se lhe pusesse de rastos, para lhe aumentar o poder! De modo que o perigo maior,

 

*1. É um facto histórico narrado nas Memórias de Laura Junot e do Barão de Marbot.

  1. É o número designado nas «Memórias» da Duquesa de Abrantes, provavelmente por indicação de algum dos generais do Império com quem conviveu, ou do próprio marido.

 

o que mais nos esmaga, não são ainda os franceses e espanhóis que vêem atrás de Junot. O pior é que podem vir outros tantos, o dobro, se forem necessários. Não podemos! Não podemos!

- Senão fugir, para não ver como eles se apossam disto, ou ficar para chorar de rastos a vergonha dos que fugiram! - rouquejou, afogueado, um homem já grisalho - Eu fico, podia ter um lugar a bordo, mas quero ficar. Ponho à cabeceira da cama uma clavina e uma velha edição dos Lusíadas e fico à espera de que isto se mexa um dia. Tenho um filho de quinze anos, conto empurrá-lo para onde quer que alguém da nossa gente se resolva a pôr o peito às balas.

- Queiram perdoar-nos - disse alto a dona da casa - São já quási dez horas. Alguma imprevista contrariedade, talvez alguma urgência de serviço com que não podíamos contar, impediu meu filho Luís de vir, como prometeu. Não esperamos mais. Perdoem-me por quem são.

E muito oprimida, muito nervosa, numa tristeza da alma, que na voz e no olhar se lhe estava denunciando, foi dizer ao tabelião que lavrasse as escrituras.

Henrique apartou-se de Branca e foi ter com a Mãe.

- Teu irmão! - segredou-lhe D. Matilde amarguradamente - Se lhe terá sucedido alguma desgraça!

O tabelião leu a primeira escritura. Estava corrente e em perfeita harmonia com a vontade expressa pelos tutores de Branca de Mendonça, herdeira de uma casa opulenta do Douro.

Henrique timbrara em dar aos velhos tutores da noiva as mais altas provas de desinteresse, quanto à herança de Branca.

Faltavam as assinaturas com o testemunho das pessoas presentes.

Eram já dez e meia. Tinha-se esperado muito.

Assinaram os noivos e, enquanto as testemunhas iam assinando, os que esperavam faziam comentários quási segredados a respeito dos nubentes.

- Ainda mais linda assim triste!

- Mas triste porquê?!

- Ouvi que estava doente.

- Talvez. E que frio ela tem! Toda embiocada naquelas pelicas!

- Esta pressa é que eu acho singular! - observou uma dama, a sorrir maliciosamente.

- E casamento já amanhã!

- Antes que seja preciso fugir...

- E reparem na irmã.

- Uma figurinha triste de Madalena sem pecado.

- Dizem que traz paixão solapada.

- O quê! A Laura?

- Sim, morre por Luís de Castro, mas o desalmado nem nela repara!

- Ai Jesus! Estou morta por que isto acabe! Tenho tudo lá em casa numa balbúrdia!

Concluída a assinatura, o tabelião escrevia o termo de reconhecimento.

Percebeu-se um movimento de surpresa do lado da porta da sala.

- Chegou agora o Luís - explicaram baixo.

- Credo! A cara que êle traz! - segredou uma dama.

- Parece desenterrado!

Muito pálido, Luís de Castro beijara a mão à Mãe e cumprimentava as senhoras, alegando que um encargo urgente de serviço, com que não contava, o impedira de chegar a horas.

- Aquela é que eu não engulo - disse baixo uma dama para outra - Serviço militar assim à paisana!

- Talvez mudasse de vestuário antes de vir aqui.

- Hum!

O irmão reparara-lhe muito na palidez, na perturbação da voz, no olhar magoado, a desmentir aquele artificioso sorriso da sua máscara de disfarce, afinal inútil. Alguma cousa notara D. Matilde, que a deixou num tremor de angústia.

Fêz sinal a Henrique, chamando-o.

- Vê se consegues afastar dali teu irmão - disse-lhe num fio de voz, cortado de tremuras - Vae dizer-lhe que lhe preciso falar.

E não despregava os olhos do canhão esquerdo de Luís, que estava então de costas, falando com um grupo de senhoras.

- Nossa Senhora! - suplicava intimamente - Permiti que não reparem! O que haveria, Senhora minha?!

Henrique habilmente fizera perceber ao irmão que a Mãe lhe desejava falar.

Luís desculpou-se gentilmente com as damas e veio ter com a Mãe.

- Tens nódoas de sangue neste canhão - segredou, tocando-lhe no braço esquerdo.

Luís pôs-se lívido.

Mas ninguém, senão a Mãe, lhas notara, porque eram na parte interior do canhão e tanto ao pé da costura que só vendo-o de costas se descobririam facilmente.

Sentiu-se na rua o galopar de um cavalo, depois um relincho estridente.

- Disfarça e retira-te - recomendou D. Matilde sumidamente.

- Sim, minha Mãe - rouquejou.

E foi indo para a porta, mas subitamente recuou.

Como se fosse num lance de teatro, um homem de rosto afogueado, nos ombros um amplo capote a escorrer água, as botas de montar empastadas de lama, assomara à porta num repelão de grosseira audácia.

Era um homem possante, de musculatura hercúlea, no rosto, já a enrugar-se, uma rara expressão de energia.

Pôs um olhar de torva surpresa em tudo aquilo e passou a mão pelos olhos como se os lumes do lustre o estivessem deslumbrando.

Desorientados por aquela aparição teatral, alguns homens recuaram, os próprios que logo o deviam conhecer e não o reconheceram. Ouviram-se uns gritos mal contidos de senhoras que tremiam.

- O tio Manuel! - exclamou Luís.

- É meu cunhado Manuel de Albuquerque - explicou D. Matilde, baixando a voz.

- Queiram desculpar-me - disse da porta o recém-chegado, com a voz enrouquecida - São hoje 24. Saí ontem de madrugada de Abrantes numa desfilada de doido que vem a fugir de vergonha.(1) Por esses pegos de lama em que se fizeram os caminhos e por esse mar de águas mortas em que se tornaram esses campos, não vi um regimento sequer! Nem uma vedeta no cabeço dos montes, nem uma patrulha com os cavalos metidos à cheia como eu meti o meu!

Resfolegou violentamente e tomou uma expressão de amarga ironia.

- Parece que só o céu nos guerreia, afogando essas terras, que já não teem quem as defenda! Pois deixei em Abrantes quatro mil franceses, que chegaram lá cobertos de farrapos, estropeados, doidos de fome, embrulhados em trapos, os pés rasgados nos caminhos, as espingardas comidas de ferrugem, os cartuchos repassados de água. A praça abriu-lhes as portas! As peças do castelo ficaram mudas, as peças e os homens!

- Já em Abrantes! Incrível! - exclamou um optimista da Corte, num certo tom de dúvida.

 

*1. Quási todos os historiadores dão a entrada de Junot em Abrantes no dia 24. O barão Thiébault, chefe do estado-maior do exército de Junot, designa o dia 22 como o da entrada das primeiras forças francesas naquela praça. «(Relation de l'expédition du Portugal)».

 

- Quatro mil à espera de vinte mil que vêem esbandalhados pelos caminhos, desde Castelo-Branco, a desenterrarem a artilharia dos atoleiros e a armarem pontes por cima das levadas. São eles próprios que o contam. Não há que duvidar. Eu próprio os vi e ouvi. A eles e aos nossos vizinhos! Vêem agora de mãos dadas! Uma divisão espanhola foi sobre Tomar. Tive o desgosto de encontrar nas ruas de Abrantes um capitão de dragões espanhóis que foi, há treze anos, meu camarada e meu amigo nas guerras dos Pirenéus,(1) em que nós os ajudávamos a eles. Pensei que soubessem aqui alguma coisa disto, mas, por estes sinais de festa, vou percebendo que nada sabiam! Pois fica feito o aviso.

- Tio, não se trata de uma festa! - veio explicar-lhe Henrique - Assinaram-se as escrituras do meu casamento - disse-lhe baixando a voz - e é aquela a minha noiva.

Indicou-lha num olhar.

- Está então isto em Lisboa ainda mais sereno do que em Abrantes! O teu regimento, Henrique, e o teu, Luís? Dormem a sono solto nos quartéis. Bem-aventurados guerreiros! É certo então que chegou isto ao mais a que podia chegar? Pois, meus sobrinhos, ficai sabendo que o bravo general Junot tomou a praça de Abrantes com os seus soldados da vanguarda a pedirem pão e a pedirem sapatos! Lá os deixei à espreita de um olho de sol para secar a pólvora com que haviam de batalhar, se ainda aqui houvesse gente de ânimo para se bater. Na primeira noite foram para o lume das nossas lareiras enxugar a fecharia das espingardas, como de tarde tinham enxugado ao vento a seda manchada de água das suas bandeiras de águias doiradas nos topes! Quando de lá parti, entretinham-se no saque das laranjas pelos pomares,

 

*1. A Divisão do general Caraffa.

 

e no saque dos sapatos pelas casas.(1) Dantes, para a conquista deste país, o invasor finha de batalhar, agora basta roubar-nos os sapatos, porque com os nossos sapatos é que eles hão-de vir ou vêem já para Lisboa! Isto era para rir, se não fosse coisa de tanta mágoa e de tamanha vergonha! Oh! minhas senhoras, perdoem-me por estas rudes notícias com que as vim oprimir. Neste estado, nem me atrevo a entrar para o dever de ir cumprimentá-las.

- Mas, por amor de Deus, precisa de ir mudar de fato - veio dizer-lhe D. Matilde, numa opressão de alma indefinível. - Pode fazer-lhe mal.

- Do que eu precisava era de mudar de ideias, porque estou a perceber que vim dar aqui como um doido.

  1. Matilde falou-lhe baixo, provavelmente no empenho de o afastar dali.

- Não conhecia este javardo! - segredou o desembargador Miranda para um general da Corte - Aquilo só lá de Abrantes!

- Eu conheço-o muito bem - volveu-lhe o general - Foi capitão de um regimento no Rossilhão. É rico e andou em Coimbra. Saiu do serviço há seis anos. Teve sempre pancada na bola e ficou pior desde que um caco de granada lhe abriu a cabeça na batalha da Montanha Negra.

Um criado de libré veio anunciar à porta:

- Chegou s. ex.a o sr. Ministro de Estado, António de Araújo.

Houve um grande movimento de surpresa.

 

*1. Thiébault e Foy referem nos seus livros a respeito da invasão de Portugal o estado miserável em que chegaram a Abrantes os soldados da vanguarda do exército francês.

Vinham descalços, extenuados e famintos. Só a linda paisagem de Abrantes os reanimou como se viessem de um deserto de lamas para um oásis de sonho.

 

- A esta hora! - notou baixo a ex-açafata.

- É a noite das surpresas! - acudiu uma prima da dona da casa.

- O Araújo a esta hora! - pensava D. Matilde - Provavelmente vem do Paço.

Henrique foi à saleta de espera buscar o ministro. Luís tinha saído da sala.

- Um ministro - exclamou Manuel de Albuquerque - Pois ainda bem, para eu desabafar com êle.

- Veja lá não faça alguma imprudência! - suplicou-lhe baixo D. Matilde.

- Não se inquiete, minha excelente senhora. Afasto-me para o corredor, deito fora este capote, e falo-lhe quando êle sair.

- Mas, assim molhado...

- Costumei-me de rapaz. Dias inteiros.

António de Araújo entrara na sala grande. Falou às damas com a gentileza de um cortesão amestrado nos salões de Paris. Trocou apertos de mão e cumprimentos, e explicou que não pudera vir mais cedo por causa da reunião do Conselho de Estado, no Paço.

Pediram-lhe informações políticas. Era natural o pedido naquela conjuntura de raros precedentes. Deu as que podia dar.

- Está definitivamente resolvida a transferência da Corte para o Brasil.

- E não sabe ainda quando?

- Em poucos dias. Apenas os necessários para que a esquadra complete os aprestos da viagem e se proceda ao embarque de tudo que é preciso e possível levar. Amanhã começam a levar para bordo as bagagens reais. Mas por'ora é conveniente que não dêem isso como coisa certa, por causa do povinho.

Umas poucas de vozes lhe afirmaram a mais cautelosa discrição.

- É em favor de todos nós que eu peço estas precauções. Está claro que o povo há-de perceber, não se podem fazer em segredo os preparativos de uma viagem assim...

- O povo anda já desconfiado.

- Mas não tem a certeza, e convém que não a tenha senão no dia do embarque. Crédulo, há-de convencer-se de que todos esses preparativos são apenas uma precaução para salvar a real família, e esperará até à última hora que não seja preciso o doloroso sacrifício desse apartamento. É um sacrifício indispensável. Os franceses anunciam que vêem como amigos, unicamente para hostilizar a Inglaterra. Convém ao país simular que os acredita, mas importa que Sua Alteza deixe Portugal, para não ficar como refém nas mãos dos soldados da França e da Espanha. Lorde Strangford mostrou hoje a Sua Alteza um número do Moniteur, que dizia assim: A Casa de Bragança deixou de reinar em Portugal.(1)

Ouvia-se um murmúrio de lástima e de desprezo.

- Palavras evidentemente ditadas pelo Imperador. Mas, a tantas léguas da Europa, no Brasil, quási tão grande como ela, a Casa de Bragança continuará a reinar, até que Deus se compadeça da terra portuguesa. Para lá não podem marchar os exércitos de Austerlitz e de Friedland e no caminho do mar estão as esquadras inglesas de Aboukir e de Trafalgar.

António de Araújo procurava justificar deste modo a fuga da família real como resolução de estratégia política e de abnegação patriótica.

Fingia assim por interesse da sua categoria oficial.

 

*1. O Moniteur era o jornal oficial do Império, quási sempre inspirado por Napoleão. A frase, ditada talvez pelo Imperador, era assim: «La maison de Bragança a cesse de regner».

 

Araújo preferia que Portugal se dobrasse mais diante de Napoleão a que de novo se lançasse nos braços da Grã-Bretanha, mas no Conselho de Estado tinham vencido os partidários da Inglaterra, impondo ao ânimo hesitante do Príncipe Regente uma súmula do tratado de Fontainebleau e a fulminadora ameaça do Moniteur.

Agora o ministro já não podia e não devia falar senão daquele modo, por interesse próprio.

Mas ocultava o muito que sabia e lhe não fazia conta dizer. Conhecia bem as intenções de Napoleão, sabia perfeitamente onde estava Junot, quais eram os intentos da Espanha e era o primeiro a julgar Portugal irremediavelmente perdido. Era até por disfarce das suas simpatias pela França que êle falava assim do apoio da Inglaterra.

Diplomata feito numa escola de baixezas e de corrupções, costumado ao mercado das consciências na sua larga permanência em Paris, comprador de ignomínias ao preço de milhões, tinham-se-lhe arrefecido no coração os mais puros sentimentos da pátria. Amolentado sibarita, trazia-o deslumbrado o sol triunfal da França napoleónica.

Fora talvez dele o alvitre de mandar o Marialva a Paris, naquela missão vergonhosa de suplicar a Bonaparte a mão de uma filha de Murat para o príncipe D. Pedro de Alcântara, como um penhor de paz. Tardio alvitre, felizmente, porque o Marquês já não pôde passar de Madrid. Foi uma vergonha a menos.

Por D. Lourenço de Lima e pelo Conde de Ega, nossos representantes retirados de Paris e de Madrid, soube Araújo, primeiro do que o próprio Príncipe Regente, da marcha de Junot através da Espanha e da concentração das tropas espanholas dos generais Caraffa, Taranco e Solano. No seu regresso a Lisboa encontrara D. Lourenço de Lima o exército da Gironda já no coração da Espanha.

Primeiro ministro, como os estrangeiros lhe chamavam, António de Araújo era nos Conselhos da Coroa um afrancesado, um jacobino encoberto conforme o dizer do povo.(1)

- Se os soldados do Junot derem tempo a Sua Alteza para embarcar - observara-lhe um velho, grande partidário da aliança inglesa.

- Quero crer que os franceses se abstenham de ocupar a capital.

- Estão já em Abrantes - volveu-lhe o velho.

- Quê! Boato exagerado, certamente - acudiu o ministro, perturbando-se.

Era outra mentira política. Araújo mandara ao encontro de Junot um emissário seu, o negociante José de Oliveira Barreto - homem que tinha uma parte da sua família estabelecida em França - para solicitar do general francês a mercê de retardar a marcha sobre Lisboa.

Mas ainda mais, o próprio general escrevera a António de Araújo, pessoa muito das suas relações e de Laura Junot - como ela própria confessa nas suas Memórias - participando-lhe a sua chegada a Abrantes e ameaçando que em quatro dias estaria às portas de Lisboa.

- Sabe-se com certeza - replicou o velho firmemente - Chegou a esta casa alguém que os viu em Abrantes.

- Que os viu em Abrantes! - repetiu Araújo, cada vez mais perturbado.

Pontão Manuel de Albuquerque, o singular patriota que se deixara ficar à porta e ouvira tudo em repelões de cólera,

 

*1. Falando dos partidários portugueses que tinham em Lisboa a Inglaterra e a França, o general Foy considerara António de Araújo como chefe do partido francês em Portugal.

Le commandeur de Araújo alors principal ministre, étail regardé comine le chef du parti Français.

(Histoire de La guerre de La Péninsule sous Napoléon. Tomo 2. pág 327).

 

avançou uns passos e disse com áspera firmeza: - Eu, sr. Ministro!

António de Araújo voltou-se para êle num movimento de espanto. Na sala rumorejaram vozes de estranheza, como se em todos os espíritos se houvesse formulado uma previsão de escândalo.

  1. Matilde, já tão oprimida de receios pelo filho, morta que saíssem todos para ir falar com êle, volveu para o cunhado um olhar de pavor.

- O sr. Manuel de Albuquerque, se a memória me não atraiçoa? - disse o Ministro lestamente, a refazer-se de ânimo, a mirá-lo de alto a baixo.

- Assim o coração de alguns portugueses não atraiçoasse esta pobre terra de Portugal! Conhecemo-nos pouco, mas v. ex.a não se enganou. Cheguei há momentos de Abrantes. Estão lá os franceses. Vinha trazer a notícia desta vergonha, na esperança de encontrar pelos caminhos alguns regimentos que fossem escorraçar de Portugal aquele bando de batalhões estropeados. Não encontrei nenhum, sr. Ministro! Nenhum! Lisboa está em paz com a Inglaterra que lhe bloqueia a barra, e com a Espanha e a França que lhe invadem as províncias!

- Não era possível resistir.

- Nesta terra e noutros tempos sempre foi possível tomar o passo aos invasores. Até quando havia, como agora, corações portugueses com que o estrangeiro podia contar. V. ex.a sabe. Nunca houve aqui tantos traidores como em 1580, mas, ao menos, sr. Ministro, ainda apareceu um punhado de doidos e três ou quatro mil esfarrapados das ruas de Lisboa para irem até à Ponte de Alcântara pôr umas nódoas de sangue português na bandeira de Espanha e atravessar alguns centos de cadáveres no caminho do invasor. Agora nem isso, por afronta nossa! Nem isso, sr. Ministro! Minhas senhoras, eu sei que as estou afligindo, mas, perdoem-me por quem são.

Isto é com todos nós, com v. ex.as também. Isto tem de dizer-se, e eu suponho que estou falando em nome de um velho e glorioso Portugal que parece esquecido!

Homem passivo, habituado a dobrar-se, mais para disfarces e embustes diplomáticos do que para desassombros de ânimo, Araújo sentia-se acabrunhado diante daquela figura antiga, teatral, de rudes e honestas energias.

Luís assomara à porta, atraído pela vibração calorosa daquela voz. Atrás dele, no corredor, tinham aparecido o mutilado, o Madureira e o padre António, a quem um criado dera aviso da chegada de Manuel de Albuquerque e da visita do Ministro.

- Tio Manuel! Por quem é! - suplicou Henrique.

- Deixa. Eu sei falar a s. ex.a. Ao menos este desafôgo, enquanto isto se não acaba.

- Compreendo o pesar de leal português que põe na boca do sr. Manuel de Albuquerque essas ásperas palavras de injustiça para outros, que também sentem os males da nossa terra com profundo pesar.

- É mais do que pesar, sr. Ministro, é dor para lágrimas, se não fosse vergonha chorar, quando é obrigação morrer.

- Não há recursos para opor a tamanho poder.

- Como v. ex.a se engana! Eu disse há pouco ainda que o céu nos guerreava com esta invernia excepcional. Não disse bem, sr. Ministro. A invernia quere defender-nos e podia ser a nossa melhor aliada. Quem governa é que não a quere ajudar. Em Abrantes dizia-se que estavam aqui em Lisboa e em Mafra dez ou doze mil soldados.(1)

 

*1. Na sua História o general Foy diz que havia então em Lisboa dez mil soldados de primeira linha. Thiers e outros historiadores franceses aumentam o número até catorze ou quinze mil.

 

O exército de Junot está esbandalhado desde Castelo-Branco até Abrantes. A artilharia enterrou-se-lhe nos caminhos, a pólvora encharcou-se-lhe nas marchas, a cavalaria traz os cavalos ainda mais estropeados do que os homens.

«Estavam quatro mil em Abrantes, se esperara pelos outros, não deitam cá em duas semanas, mas, se passarem o Zêzere sem esperar os tresmalhados, se meterem ao Ribatejo, coberto de água, não deitarão cá em menos de quatro dias e não chegam cá três mil.

«Sr. Ministro, ainda era tempo de remediar esta desonra. Metade dos dez mil soldados que v. ex.a aí tem, metidos já a caminho, podiam ir afogar nas vaias do Ribatejo essa vanguarda do exército da Gironda.

- E depois? Ficavam ainda quarenta e seis mil franceses e espanhóis dentro de Portugal. A Espanha mandaria outros tantos, a França mais quarenta ou cem mil.

- Concentrava-se o exército, punham-se em campanha os milicianos e as ordenanças.

- Não temos espingardas que cheguem, nem artilharia, nem dinheiro.

- Gastaram-se milhões a comprar cobardemente favores que nos não quiseram conceder! Sabe-se tudo. Até na província, sr. Ministro! Mas a Inglaterra seria por nós, quando visse que tínhamos alma para defender isto.

- Há quem tenha repugnância aos favores da Inglaterra.

- E quem os prefira da França napoleónica! - acudiu, hostil, o velho partidário da aliança inglesa.

- Também na província consta isto.

- Estamos nesta lástima! Tem aqui partidários a Inglaterra, tem partidários a França, e só os não tem esta abandonada vítima, que se chama Portugal!

Sr. Ministro, o essencial não é vencer uma batalha, do que a nossa honra precisa agora é de provar que não somos uma canalha de poltrões. Mande v. ex.a sair três ou quatro regimentos da Corte, eu serei o guia, conheço bem os caminhos, e se o combate se perder., fuzilem-me então como se fuzila um traidor.

- Seria uma loucura!

- Não era uma vergonha.

- Era, pelo menos, um desvario ir procurar certamente uma derrota certa.

- Davam-se, ao menos, as honras militares de um combate ao funeral desta nação, que nasceu e viveu quási setecentos anos nos campos de batalha.

- O sr. Manuel de Albuquerque é um utopiski que chega da província para nos falar como quem não conhece as condições políticas da Europa e não tem as tremendas responsabilidades do governo. Não se podem opor os nossos soldados bisonhos a essas tropas que têem vencido e humilhado as maiores nações da Europa.

- Soldados bisonhos, marinheiros bisonhos, um povo bisonho, sr. Ministro, e afinal quando têem quem os governe, quem os comande, quando de cima vem o exemplo, v. ex.a bem sabe o que sucede.

«Há catorze anos mandaram-nos aos Pirenéus, pois não tiveram medo dos franceses e algumas vezes foram boa lição para os espanhóis. Há seis anos os marinheiros de uma corvetazita batiam-se como leões contra a guarnição formidável de uma fragata. Vive nesta casa quem o pode afirmar. Falta quem mande e tenha o coração cá dentro da pátria. Aqui está o que falta, mais ainda do que as espingardas e o dinheiro.

- Bravo, Manuel de Albuquerque! - bradou da porta Mar e Guerra, sem se poder dominar.

Homem, tu e eu podemos falar. Já mostrámos que não sabíamos fugir.

- Sr.a D. Matilde, minha senhora - disse gravemente o Ministro, indo para a dona da casa como para se despedir - Tenho ouvido pacientemente, por atenção a v. ex.a, minha senhora, umas palavras que a princípio se me afiguraram apenas injustas, e agora vão tomando um tom agressivo que eu, por nenhumas considerações, devo suportar.

«Minha senhora, retiro-me com a profunda mágoa de ter sofrido em casa de v. Sr.a umas violências de expressão que não eram de uso nas salas, nem eu podia esperar em casa de v. ex.a.

- Peço perdão, sr. Ministro - interveio Manuel de Albuquerque - Tenho franquezas rudes de quem foi soldado, mas sou homem fidalgo e aprendi a viver nas salas da Corte, antes de me ter habituado à dos acampamentos.

«Nesta conjuntura esmagadora deve perdoar-se a dor, o desafogo que ousou passar por cima de etiquetas palacianas. E foi com dor de alma, como eu nunca tive, com o rosto queimado de vergonha que eu saí da minha terra invadida e entrei nesta sala, absolutamente esquecido dos meus tempos de homem da Corte. Lamento que as minhas mágoas de patriota pudessem ferir as suas susceptibilidades pessoais, sr. Ministro. Ainda mal por v. ex.a e por nós todos.

«Peço desculpa da indelicadeza, pedia-a já e torno a pedi-la aos ilustres convidados de uma senhora a quem consagro a mais alta e respeitosa estima, mas respondo, seja onde fôr, pela significação política das minhas palavras. No Paço, em frente do trono, diria a Sua Alteza, dir-lhe-ia o mesmo que disse a v. ex.a. Dir-lhe-ia mais, sr. Ministro, muito mais, ainda que as minhas palavras tivessem a forma de uma súplica.

«Que rejeitasse o conselho de fugir, que mandasse desembarcar os marinheiros da sua esquadra, se os soldados da Corte não chegavam para ir esperar Junot e, que, em vez de pedir aos ingleses que lhe dessem naus para o levar ao Brasil, lhes pedisse armas e canhões, mandando-lhes em penhor os diamantes da Coroa, o tesouro do Paço, as baixelas ricas da Casa Real. As suas e as nossas.

- Sr. Manuel de Albuquerque! - exclamou o Ministro severamente.

- Sr. Manuel de Albuquerque! - repetiu D. Matilde, entre admoestadora e suplicante.

- Perdão! Não era só isto que eu havia de dizer a Sua Alteza, para que se ficasse compreendendo que, no desafogo de há pouco, eu não tive o propósito de agredir a pessoa particular do sr. António de Araújo.

«Pediria também a Sua Alteza que lançasse um tributo de guerra à nação, que pusesse em armas os próprios adolescentes, os próprios velhos,... eu iria levar ao tesouro metade do valor da minha casa e para diante dos franceses todo o esforço do meu sangue... mas que Sua Alteza ficasse, senão para ir aos campos de batalha como ia o Mestre de Aviz, ao menos para saber mais cedo, em Mafra ou em Queluz, como os seus soldados morriam. Mas descanse v. ex.a, Querem que Sua Alteza fuja, está resolvido que fuja, v. ex.a o disse, fugirá com a Corte, e eu nada terei de pedir-lhe.

«A nação fica. Se tem de ressurgir para resgatar tamanhas vergonhas, oxalá que a minha vida dure tanto que eu a possa ajudar. Sr. António de Araújo, o ministro de Estado pode mandar prender este vassalo insubmisso ou considerá-lo um doido, que é talvez como outros me têem julgado.

- Fugiu-lhe a boca para a verdade - segredou um cortesão do partido francês.

Foi para a cunhada muito comovido, os olhos rasos de lágrimas.

- Sr.a D. Matilde de Castro, minha ilustre senhora, perdoo-me pela memória de meu irmão. Antes que s. ex.a o Ministro se retire, hei-de eu retirar-me. É a satisfação que lhe deve este doido de cinquenta e quatro anos, que sai daqui a chorar como as crianças choram.

- Eu saio contigo, Manuel - disse o Mar e Guerra enternecidamente.

- Jesus! Tudo a mortificar-me! - murmurou D. Matilde, muito confrangida.

Juntaram-se em volta do Ministro e de Manuel de Albuquerque os homens de mais alta categoria, no empenho de os congraçarem.

  1. Matilde, profundamente consternada, foi pedir desculpa a António de Araújo, depois dirigiu-se ao cunhado a solicitar-lhe que não saísse daquela casa.

- Que descòco! - comentou baixo uma senhora.

- Parecem apostados a incomodar-nos! - acudiu outra.

- Por causa de um maluco esta demora e esta sensaboria! - segredou a ex-açafata.

- E lá em casa as criadas à minha espera por causa dos baús grandes!

- E cada vez mais pressa!

- São capazes de querer o embarque de um dia para o outro.

- Pudera! Olhem o que disse o Araújo, e, provavelmente, não contou tudo o que sabia.

- O caso é que o Junot já está em Abrantes, e nem a gente terá tempo de levar tudo o que é preciso!

- Não vá êle aparecer aí subitamente!

- Credo, menina! Longe vá o teu agoiro.

- Olha que podia ser. E supõe tu que a esquadra não podia sair a barra, por causa da invernia ou da falta de vento. Já tem sucedido!

- Jesus, mulher! Que lembrança!

A este tempo Manuel de Albuquerque retirava-se da sala, levado por Jerónimo de Castro, esquivando-se deste modo a quaisquer explicações que lhe repugnavam.

Araújo despedia-se, dizendo a D. Matilde que tinha de voltar ao Paço.

- Mas preciso de levar uma resposta de v. ex.a minha senhora, pois que não vim aqui a esta hora somente para lhe trazer umas homenagens, que amanhã poderia vir apresentar-lhe. A sr.a Camareira-mor desejava saber se v. ex.a queria acompanhar a Corte para fora do Reino, e eu ofereci-me para lhe fazer a pregunta.

  1. Matilde relanceou um olhar mortificado para Henrique e Luís.

- Agradeço a honra de se lembrarem de mim, mas prefiro ficar com os meus filhos.

- Minha senhora, ainda esta noite darei a resposta de v. ex.a à sr.a Camareira-mor, porque eu volto ainda ao Paço.

A chuva estancara. Tinham saído todos os convidados.

Ia pelo caminho fora uma longa fila de berlindas e cadeirinhas.

Henrique saíra para acompanhar a noiva.

Sozinho no salão, Luís beijava de joelhos a mão da mãe.

- Fica! O tio Manuel tem razão. Ainda bem que fica.

- Filho, quem sabe para que outras mágoas? O que eu tenho sofrido esta noite!

E, muito inclinado para ela, Luís disse-lhe quási em segredo, doloridamente:

- E eu, minha Mãe! Eu, neste disfarce torturador

de homem ditoso! Teria dó de mim, se pudesse, ao menos, sonhar o que eu sofro! Aqui dentro o pior inferno!

- Mas preciso sabê-lo. Filho, tenho o direito de o saber. Vem daí. Tenho que te preguntar, onde ninguém possa ouvir o que tu me respondes.

 

                      O conde de Novion.

Num impulso de sinceridade, Luís de Castro falara à Mãe nas suas enormes torturas morais, mas depois, mais reflectido e com maior dó de a mortificar, mudou de resolução e deu ares de grande confidência a uns vagos queixumes por amores seus de amargurado destino.

A umas angustiadas preguntas que ela lhe fêz, respondeu-lhe inventando coisas de piedosa intenção, em que D. Matilde não acreditou completamente.

Inventou o que menos podia mortificá-la, e na verdade o pior, que ela de si para si desconfiasse, ficaria ainda abaixo da trágica realidade. A mancha de sangue, só notada por D. Matilde, explicou-lha ele assim: Tivera de ir a uma reunião de oficiais. Era o compromisso de honra de que lhe falara. O fim era grave, discutia-se um caso de dignidade pessoal, que era também uma questão de classe, a discussão irritara-se, trocaram-se ofensas de palavras entre dois oficiais, agrediram-se violentamente e um deles ficou gravemente ferido. Correu em sua defesa, amparou-o, e daqui a mancha de sangue que ela notara.

Quando Mãe e filho se separaram, ia já para a madrugada. Tiveram uma noite mortificadora. D. Matilde com a desconfiança de que o filho alguma cousa grave lhe encobrira, êle a ver se descobria um meio de evitar a fuga do polaco, a cismar esmorecidamente no futuro dos seus amores, tão lugubremente auspiciados, e nas consequências gravíssimas daquele duelo sem testemunhas, se Miguel Platow morresse.

E não era aquele cuidado pelo filho o único tormento de D. Matilde. Juntavam-se-lhe outros, para o seu coração de mãe o receio, o pavor por aquela invasão estrangeira, em poucos dias às portas de Lisboa, e depois o pesar por esse deplorável conflito entre seu cunhado e o Ministro, em sua casa, como agoiro de perigos e tristezas nos esponsais do outro filho.

Que o pior receio da sua alma provinha daquela entrada audaciosa dos soldados franceses. Quem podia lá saber as vergonhas e as desgraças que viriam cair sobre a grande cidade ao desamparo?

E aqueles dois filhos? Intrépidos e pundonorosos oficiais do exército, para que destino os reservara Deus, em tão desesperada conjuntura?

Com outros estímulos e outros deveres morais, alma apaixonada de patriota, um coração de soldado a sonhar o ressurgimento de umas glórias que outros haviam deixado apagar, Luís de Castro confrangia-se também naquela dor da Pátria, a agravar a outra dos seus amores, menor talvez do que ela.

- A Corte vai fugir, e os soldados ficam nos quartéis, há portugueses do partido da França e do partido da Inglaterra, e nem sequer um homem de esforço dominador nesta crise de aviltadoras fraquezas!

Lembrava-lhe a morte da Polónia, aquela heróica e desventurada pátria de Maria. Os seus soldados a baterem-se como leões e os seus dirigentes a digladiarem-se como chatins, e o corpo exangue da nação como fácil presa nas garras de aço das três águias bifrontes do Norte.

- Aqui talvez pior, imensamente pior! A conquista sem combates, o aniquilamento na alma.

Teve um arrepio de horror e um desespero de mágoa. Lembravam-lhe as palavras de dor e de protesto do tio Manuel ao ministro acomodatício, que tudo deixava perder, sem dó no seu coração francês.

Era uma figura antiga aquele Manuel de Albuquerque, do tempo em que havia ainda quem soubesse combater. E o outro, mais velho, o tio Jerónimo, o mutilado, cuja biografia heróica de marinheiro era tão grande que parecia escrita por uma espada do século XVI sobre o chapitéu de proa de uma nau da índia, esse ali estava como protesto de uma geração envelhecida e como remorso imposto a essa geração moça que deixava assassinar Portugal.

Luís de Castro levantou-se muito cedo, madrugou sem ter dormido.

Resolvera ir falar ao Conde de Novion, comandante da Guarda Real da Polícia. Era um íntimo de sua casa, devia altos favores a sua família desde os primeiros tempos em que se acolhera a Portugal, emigrado político, proscrito fugido aos horrores da Revolução. Iria contar-lhe lealmente a situação gravíssima em que se encontrava e pedir-lhe a benevolência possível para o suspeito polaco, sem todavia lhe revelar o segredo que Maria lhe confiara.

Novion era um íntimo de Lucas Seabra da Silva, o Intendente da Polícia que substituíra Diogo de Pina Manique. Preponderante na Corte, o Conde dispunha de altíssima influência e era êle, sem dúvida, o poder oculto que dominava Seabra da Silva, um dos mais fervorosos adeptos do partido francês.

Como se estivesse pondo em prática um plano clandestino ou obedecesse a estranhas sugestões, Novion fizera valer os seus serviços, realmente notáveis, na organização da polícia militar, insinuara-se na Corte-, conquistara simpatias, afervorara adesões, soubera educar e prender à sua autoridade moral os mil e duzentos homens de cavalaria e infantaria de polícia, tornando-os uma força preponderante, da qual, pessoalmente, podia dispor.

Tinha por si o Paço, era-lhe afeiçoado o comércio, pelas seguranças policiais que lhe dera, limpando as ruas de Lisboa de ladrões e malfeitores, era êle o apoio e a força do partido francês, a alma e o poder de concentração dos muitos emigrados que a França tinha então em Lisboa.

Para qualquer lado que êle quisesse ir levaria consigo os melhores soldados de Portugal, escrupulosamente escolhidos nas fileiras do exército, disciplinados por êle, sem os uniformes em farrapos, sem os precs atrasados, sem a miséria faminta dos outros dos regimentos de primeira linha. Obedeciam-lhe cegamente por dever e por gratidão.(1)

Não faltava mesmo quem supusesse que o comandante da Polícia se tornara um entusiasta de Napoleão,

 

*1. Em tão diversas condições de vida e preponderância era de esperar que entre os soldados privilegiados da Guarda Real da Polícia e os outros do exército, iniquamente abandonados, se ateassem hostilidades de rancorosa e violenta rivalidade.

Os conflitos da Polícia com os soldados do exército, em 1805, ficaram tristemente registados, principalmente os que houve com o regimento de Campo de Ourique, e nos quais interveio o marechal-de-campo Gomes Freire.

Os oficiais tomaram o partido dos soldados. Na procissão do Corpo de Deus, Gomes Freire prendeu o ajudante da Guarda lieal, também um francês (Grosson), a polícia foi a Campo de Ourique desafiar os soldados e Gomes Freire envolveu-se no conflito, mandando carregar sobre a guarda de Novion.

Desta rixa deplorável resultou a ordem de prisão para o famoso coronel das campanhas do Rossilhão e Catalunha. Gomes Freire, que era realmente um insubmisso, mas também o mais poderoso cérebro e a mais brilhante espada que tinha então o exército, foi metido na Torre de Belém.

Novion obtivera este desforço para a sua guarda privilegiada, tão comprometida afinal naquele conflito como a soldadesca de Campo de Ourique.

 

cuja deslumbradora espada degolara a primeira república, filha dessa Revolução que fizera de Novion um expatriado na vida amarga da proscrição.

Se quisesse ser, e talvez fosse, um agente secreto de Napoleão em Portugal, como era um amigo de Junot e o maior amigo do pai de Laura Junot - ela própria o confessa nas suas Memórias - então poderiam os invasores avançar confiadamente, porque tinham em Lisboa quem os pusesse ao facto de intimidades políticas e minúcias militares, alentadoras para eles, e quem lhes podia dar mão segura às portas da cidade, completamente desprovida de fortificações para defesa terrestre.

Era de afrancesados a quási totalidade dos mil e duzentos homens da Guarda Real. Afrancesados pelas sugestões do comandante, sem perceberem talvez o que tinha de criminosa e infamadora aquela inclinação partidária em desfavor da Pátria.

Florescia então para certos egoístas acomodatícios, ou para uns pescadores de águas turvas, uma baixa filosofia política, absolutamente alheada do sentimento nacional. Para alguns, ser afrancesado era simplesmente optar pelos franceses entre as duas correntes políticas da Inglaterra e da França, para outros era seguir proveitosamente a fortuna do batalhador prodigioso que só não dominava na Europa o chão inglês e os mares em que a Inglaterra mantinha ovante a sua orgulhosa supremacia, era ainda para alguns uma fórmula exterior das aspirações liberais, tímida e clandestinamente sonhadas numas raras lojas maçónicas de Lisboa, que o Pina Manique trouxera opressoramente vigiadas, em exageros de ódio policial e de horror católico.

Luís de Castro não sabia, não podia saber de tudo isto, mas desconfiava da lealdade do Conde no seu alto cargo de funcionário português, e tanto bastava para lhe toldar de escrúpulos aquele sacrifício de o ir procurar como pretendente.

Todavia, era sacrifício por um dever de consciência e por um encargo do coração. Foi.

Notou nas ruas um estranho movimento, um alvoroço de ânimos tristemente surpreendidos.

Formavam grupos de gente inquieta, discutiam-se com amargurada extranheza as últimas novas, numa familiaridade excepcional de todos, conhecidos ou não, como se a mesma desgraça os irmanasse, como se toda a cidade fosse um lar imenso com a agonia de alguém lá dentro.

Todos, não. Os afrancesados disfarçavam cobardemente as suas esperanças de triunfo partidário e os franceses, comerciantes e emigrados, abstinham-se de entrar naquelas discussões para não exacerbar a dor e o desespero dos ingénuos patriotas.

Cruzavam-se nas ruas ordenanças de cavalaria levando ordens, apareciam nas praças piquetes e grandes patrulhas da Guarda Real de Novion, como se houvesse receio de que a gente ordinária, que só era pelo partido dos aportuguesados, fizesse alguns motins de protestos contra o desamparo em que tinham deixado Portugal.

Três frases de alarme, como notícias lutuosas, como gritos de alma num timbre trágico de dor e desalento, esvoaçavam de porta em porta, de um para outro grupo, de uma para outra rua.

- Já estão em Abrantes os franceses!

- A Família Real e a Corte vão fugir para o Brasil!

- Estão já a levar as bagagens para a esquadra!

E era verdade. Os cais estavam atravancados de carroças ajoujadas de móveis ricos, atravessavam o Tejo, lentamente, para as naus, faluas atulhadas de arcas encouradas e baús enormes com brasões e monogramas fidalgos, desenhados a pregaria amarela nos tampos arqueados.

De vez em quando, um frade ou alguma criatura do governo, peitada pelas varreduras dos cofres exauridos, insinuava-se nos grupos e procurava açaimar os ânimos, resigná-los, invocando a vontade de Deus ou alegando a impossibilidade manifesta de se resistir aos soldados de Bonaparte.

Que os franceses não fariam mal a ninguém - prometiam os enganadores da gente ingénua - pois era contra os ingleses que eles tinham entrado e se demorariam por cá. A fuga da Corte não passava de uma esperteza política, para evitar futuras complicações, ainda por causa da Inglaterra.

E davam o nome de sacrifício patriótico de magnânima e amorável devoção do Príncipe Regente pelo seu povo, àquela deserção política, já conhecida de toda a gente.(1)

Que lá mesmo do Rio de Janeiro - acrescentavam num intuito consolador - Sua Alteza governaria livremente os seus reinos e acudiria por eles.

Luís de Castro viu e percebeu tudo aquilo com os olhos rasos de lágrimas,

 

*1. Faz nojo ler no «Observador Português» a adjectivação bajuladora com que se pretendia glorificar aquela fuga. sem precedentes em Portugal!

Encontra-se logo nas primeiras páginas daquele diário histórico, interessantíssimo, que foi publicado em 1809 e é hoje muito raro.

 

num confrangimento de alma.

- A retirada sem precedentes! - disse consigo em repelões de desespero.

Estava já à porta da Intendência da Polícia, onde contava encontrar Novion, e hesitava em entrar. Como que lhe dava remorsos ir tratar de um assunto particular, relacionado com os seus amores, naquela hora esmorecedora da terra portuguesa.

Afinal, o coração do namorado venceu aqueles escrúpulos atormentadores do patriota.

Entrou, subiu. Novion estava no seu gabinete em conferência com um negociante. Esperou.

O negociante saiu instantes depois. Luís não o conhecia, mas havia muita gente em Lisboa que lhe sabia das simpatias pela França, onde vivera por largo tempo e tinha ainda pessoas de família.

Chamava-se Barreto. Tinha chegado de Abrantes e era o emissário que o ministro Araújo encarregara de ir ao encontro de Junot para obter dele, sob vários pretextos, uma demora na marcha sobre Lisboa. Mas como também Novion secretamente o encarregara de uma carta para o general seu amigo, genro do maior dos amigos que deixara em França, o Barreto fora ao gabinete do Conde levar-lhe a resposta e dar-lhe informação do que vira e Junot lhe dissera.

Tinham já anunciado ao Conde que Luís de Castro estava esperando. Causou-lhe certa surpresa esta visita, e mandou-lhe dizer que, dentro de poucos minutos, teria o gosto de o receber. Primeiro queria ouvir informações da última hora e esperava Grosson, ajudante da Guarda Real, que chegara das ruas e ficara esperando que o Barreto saísse.

- Bravatas de gascão! - dissera o Conde em guisa de comentário relanceando um olhar para a carta de Junot, que o Barreto lhe trouxera. - Não lhe dessem a mão de cá e não seria com o seu punhado de estropeados que êle havia de entrar em Lisboa.

Da porta de comunicação interior alguém pediu licença para entrar.

- Entre, Grosson - disse o Conde -, E daí? O que há pelas ruas? O povinho mexe-se?

- Resigna-se - respondeu-lhe o ajudante da Polícia.

- Sente-se aqui, Grosson. A notícia do embarque da Família Real está já muito divulgada?

- É o assunto de todas as conversas, anda de boca em boca. Os pobres diabos dizem coisas de lástima, vão aos magotes uns para os outros com o seu desafogo de tristezas e até alguns vi eu que choravam pela má fortuna dos que vão fugir, as mulheres principalmente! Mas nem um grito de protesto, nem sequer uma palavra de revolta! Parece um povo sucumbido.

- Nunca fiando. Esses desalentos de surpresa dão às vezes em doida reacção de revolta. Estão tomadas as providências que eu determinei?

- Todas. A nossa cavalaria está quási toda nas ruas em piquetes e patrulhas,

- Bem... E a soldadesca de linha aparece pelas ruas?

- Está fechada nos quartéis.

- É a ordem da Secretaria da Guerra. É preciso trazer vigiadas as imediações dos quartéis.

- Estão vigiadas.

- Muito bem. O embarque é amanhã. De madrugada toda a guarda de infantaria há-de estar concentrada em pontos da cidade que eu hei-de designar. A cavalaria irá toda para as imediações da Ajuda, pronta à primeira ordem. Convém espalhar entre os soldados da Guarda Real que as tropas de Junot vêem como gente amiga, para defender Portugal dos premeditados ataques dos ingleses, que tèem o país como coisa sua.

- É o que eu tenho dito aos sargentos para que eles desvaneçam quaisquer atormentados escrúpulos dos patriotas.

- Tê-los-emos assim mais seguros. Confio nos nossos soldados, mas é prudente acautelar o caso possível de algum desespero do povo, a que eles podiam associar-se, na suposição de que as tropas de Junot entravam aqui para conquistar Portugal. O país tem energias que estão apenas adormecidas. Podem ir longe, se alguém as despertar. É uma raça valente a deste povo: falta-lhe quem o governe e, por má fortuna sua, parece que se congregaram para o perder a fraqueza e a inépcia dos que o dirigem.

- Ah! meu Coronel, que se isto fosse em França, se fosse em Paris, já a revolução tinha levantado barricadas nas ruas, já os regimentos do exército e os batalhões de voluntários estavam a caminho da fronteira.

- Pois sim, Grosson, mas este povo tem tido outra educação diferente da nossa, tem outro feitio, dobra-se como um vime à vontade do Príncipe e vai como um rebanho para onde os frades querem que êle vá. Mas se o sacudir alguma grande desgraça, se o desengano lhe mudar em desesperos a docilidade ignorante em que o puseram, conte com êle, e verá que soberbos soldados saem dessa gente que não tem quem a saiba aproveitar.(1)

«Conheço-lhe a história e tenho convivido muito com esta gente.

 

*1. A maior autoridade que ainda tiveram os tempos modernos para avaliar nações valentes e intrépidos soldados, foi, incontestavelmente, Napoleão I.

Pois esse homem de guerra fenomenal escrevia de Milão ao general Junot, em data de 24 de Dezembro de 1807, recomendando-lhe que «desarmasse o país completamente», que se não iludisse, porque tinha diante de si um povo inimigo e devia contar com as intrigas e a hostilidade dos ingleses.

«Então (no caso de não tomar as cautelas indicadas) voltar-se-ão contra nós todos os meios de acção deixados aos portugueses, porque, enfim, a nação portuguesa é valente («car, enfin la nation portugaise est brave»). Carta n.o 13:416 da «Correspondence de Napoléon 1.»

Referindo-se à deplorável desorganização e abandono a que chegara o exército português, o general Foy, que batalhou contra os portugueses, escreveu na sua notável História da Guerra da Península:

«Os soldados portugueses tornar-se-iam excelentes, desde que os quisessem aproveitar...» (Tomo II, pág. 83).

 

Está claro que, para o nosso caso, tudo isto vai admiravelmente. Recebi carta do general Junot. Escreve-me de Abrantes. É espantosa a sua audácia, mas está numas condições deploráveis! Ficaram-lhe dispersas pelos caminhos as suas melhores divisões. Não sabe da cavalaria de Kellermann, nem das divisões de Loison e Travot, nem quando a artilharia se lhe poderá desenterrar dos atoleiros da Beira. Virá sobre Lisboa com um punhado de estropeados, sem pólvora para quinze minutos de fogo! Estará irremediavelmente perdido, se o não ajudarmos de cá. Daria a Napoleão o maior dos seus desastres, se essa plebe que chora e essa soldadesca fechada nos quartéis pudessem adivinhar a miséria daquele famoso exército da Gironda! Grosson, é preciso que nem sequer o sonhem!

- Eu tenho espalhado que o general traz consigo trinta mil homens excelentes, dos melhores soldados com que o imperador tem vencido os maiores exércitos da Europa.

- Hão-de acreditar, nestas ocasiões acredita-se tudo. E mesmo assim, mais hão-de valer para tomar Lisboa os nossos soldados da Guarda Real cá dentro, nas nossas mãos, desconhecedores da verdade, do que os batalhões estropeados e sem pólvora que a bravura admirável de Junot há-de poder arrastar até às portas da cidade, em três ou quatro dias. Compenetre-se disto, Grosson. O êxito da conquista depende de nós, pela glória da França. Nem apesar do seu inexcedível arrojo, o herói de Millessimo e de Lonato se atreveria a tomar já o caminho de Lisboa, se as minhas informações o não tivessem posto ao facto do estado de tudo isto.

- Isso compreendo eu, sr. Conde.

- Bem. Agora faça-me o favor de acompanhar para aqui um oficial português, tenente ainda novo, que me quere falar e deve estar aí na sala de espera. É o tenente Luís de Castro, representante de uma das mais nobres famílias do país.

- Conheço-o muito bem, meu Coronel.

- Ah! Outra coisa. Mande nomear uns piquetes da guarda para se irem postar, sob qualquer pretexto de disfarce, a pequena distância dos paióis dos regimentos. O cartuchame embalado está todo nesses paióis e a soldadesca podia lembrar-se de o ir tirar de lá. Compreende?

- Perfeitamente, sr. Conde.

- Bem. Agora queira guiar-me para aqui o tenente Castro.

Grosson conduziu Luís de Castro ao gabinete de Novion

- Por aqui o meu prezado amigo-disse o Conde, apertando-lhe a mão afectuosamente - Há que tempo não tenho o gosto de o ver por aquela sua casa!

- Há largos meses, sr. Conde.

- É verdade, então queira sentar-se, e bem vindo seja. Sua mãe, seu tio Jerónimo?

- Bem, sr. Conde.

- A seu irmão Henrique o vi eu ontem de manhã na rua de São Bento. Pareceu-me admiravelmente bem disposto.

Novion abstinha-se de lhe dizer que tinha falado na véspera com Henrique de Castro, prevenindo-o dos amores comprometedores de Luís com a filha do joalheiro polaco, facto de que tivera notícia confidencial pelo Seabra, Intendente da Polícia. Sabemos já que Henrique se comprometera a guardar segredo e só à mãe deu conta desta confidência, com o pedido muito recomendado de a não tornar conhecida de qualquer outra pessoa.

- E de pé! Então...

Sentaram-se. O aspecto de Novion mudara, dava às palavras um tom de afectada jovialidade.

- Aqui me tem completamente à sua disposição.

- Peço mil perdões. Venho talvez numa hora importuna.

- O meu amigo é para mim uma excepção. Há dois dias que não tenho um momento de meu! As precauções agora têem de ser maiores. Veja esta papelada toda que tenho aqui diante de mim. Mas quaisquer que sejam os meus encargos, seja qual fòr a lufa-lufa dos meus serviços, sempre há uns momentos de repouso, que porei à sua disposição, cada vez que o meu amigo me honrar, aproveitando-os, como agora.

- Requintes de afectuosa benevolência a que eu estou acostumado e nem já sei como agradecer-lhe.

- O agradecido sou sempre eu, que não posso esquecer a fidalga e afectuosa hospitalidade com que seu pai me acolheu nos primeiros tempos da minha emigração. Favores excepcionais para se lembrarem sempre! Mas reparo agora no seu parecer mortificado, meu caro amigo! Adivinho. Sua mãe parte com a Corte?

- Fica, sr. Conde. Como todas as mães deviam ficar, para não deixarem que os filhos fujam também a essa outra mãe, gloriosa e grande, agora miseravelmente ao desamparo.

Novion fez um gesto breve de contrariedade e fitou o moço oficial num olhar investigador, insistente.

- Refere-se à nação - disse-lhe -, Deus fará as cousas pelo melhor. Hão-de voltar os bons tempos. Os soldados da França, quero crê-lo, não vêem a Portugal como conquistadores. Provavelmente Napoleão não terá outro intento que não seja o de completar o bloqueio continental, fechando bem os portos de Portugal ao comércio e ao predomínio da Inglaterra.

- Sabe muita gente em Lisboa, desde ontem,. sr. Conde, sabe-se doloridamente de um tratado feito há cerca de um mês em Fontaineblau, entre um representante de Napoleão e um agente de Manuel Godoy, o valido escandaloso da rainha Maria Luísa, o tutor de Carlos IV, por vergonha da Espanha.(1)

«Portugal, melhor do que eu o há-de saber v. ex.a, Portugal foi teoricamente retalhado pelos dois altos contratantes. A partilha antes da conquista, sr. Conde! A divisão do espólio antes da morte!

Muito afogueado, Novion disse-lhe lentamente:

- Não posso negar nem confirmar a existência desse tratado, mas também não creio na sua execução. Francês pelo sangue e pelo berço, mas funcionário de Portugal pelo cargo com que me honraram e eu aceitei, compreende bem, meu amigo, os meus embaraços e os meus escrúpulos numa conversa desta ordem. Se o não contrariasse, pedir-lhe-ia a a mercê de mudarmos de assunto.

- Era o que eu ia pedir-lhe também, sr. Conde. O que para v. ex.a é, muito naturalmente, apenas um embaraço,

 

*1. O representante de Napoleão foi o general Duroc, da casa militar do Imperador, e o da Espanha foi D. Eugênio Izquierdo, criatura de Godoy, íntimo do Paço, levado às altas categorias da Corte pelo favoritismo de Maria Luísa, ditador de antecâmara, generalíssimo do exército, Manuel Godoy, Príncipe da Paz, comparsa de Bonaparte, envolvia na sua sombra nefasta de aventureiro a rainha maculada de adultério, e a Espanha afrontada de vergonha.

 

ou um escrúpulo, é para mim, sr. Conde, uma tristeza de alma. Depois, v. ex.a precisa do seu tempo, a alma da nação anda a sacudir por essas ruas uma pobre gente rude, ainda mais magoada que surpreendida, e hão-de ser agora precisos mais cuidados da Polícia, como v. ex.a teve a benevolência de me deixar perceber. Venho fazer-lhe uma declaração e um pedido.

- Estou completamente às suas ordens.

- É mais para o amigo de meu pai do que para o comandante da Guarda Real da Polícia a declaração e o pedido que me trazem aqui oprimido.

- Da melhor vontade para o servir, sr. Luís de Castro.

- Será um resumo de poucas palavras, que o sr. Conde receberá, estou certo, como expressão lealíssíma da minha alma e da minha consciência. Provocado ontem à noite, abruptamente, por um estrangeiro e por ele desafiado para um duelo de morte, aceitei o repto, bati-me e feri-o, talvez mortalmente.

- Um duelo! Ontem à noite! - disse Novion, muito intimamente admirado de que a Polícia não houvesse tido conhecimento de tal coisa -, Provavelmente fora da cidade - explicou de si para si. E logo, por disfarce, lhe disse muito serenamente - Não é caso que não tenha muitos precedentes, desgraçadamente.

- Mas foi em condições excepcionais, sem nenhuma testemunha.

- São sempre comprometedores esses duelos assim, sobretudo se um dos duelistas morre sem fazer declarações. Prestam-se a infamadoras suspeitas. Mas pelo meu amigo respondem as altas qualidades do seu carácter, que ninguém ousaria pôr em dúvida, e os nobilíssimos antecedentes de família, que ninguém da Corte desconhece. A Polícia não tomará conta dessa pendência pessoal, que eu conheço agora pela sua honrada e espontânea declaração. O pior será que apareça alguma queixa da legação do país a que pertence o estrangeiro referido, se o ferimento fôr de morte. Há-de saber-se que foi sem testemunhas...

- Eu próprio o irei declarar perante o Intendente da Polícia, se fôr necessário.

- Não será, crei-o - acudiu Novion, formulando de si para si esta desconfiança: «Estou a ver que fêz a asneira de se bater com o suspeito filho do polaco.

- Seja como fôr, sr. Conde.

- Foi longe da cidade, o duelo?

- Dentro da cidade.

- O seu adversário ficou então em perigo de vida?

- Pareceu-me gravemente ferido. O duelo foi à pistola. A minha bala feriu-o no peito.

- Alguém acudiu, certamente?

- Pessoa de sua... própria família.

- E mais alguém?

- Os servos da casa.

- É o demónio! Há-de contar-se aí por todos os cantos da cidade! Sempre estou para ver - disse consigo - se o Seabra não tem informações nenhumas disto! Pois, meu amigo, nessas condições só uma coisa nos pode complicar o caso: alguma queixa diplomática a perfilhar suspeitas indignas do seu carácter.

- Por isso mesmo o venho prevenir, sr. Conde.

- Foi na rua o duelo?

- Na praia de Santos.

- Ah! Na praia de Santos - repetiu - Então adivinho já com quem foi - disse de si para si. Mas é preciso deixar que êle me dê a informação completa.

- Queixa, se a pode haver - continuou Luís de Castro - só se for da legação da Rússia.

- Da Rússia! - comentou, fingindo-se admirado.

- Sim, porque se trata de um polaco - esclareceu o Castro, simulando-se alheio ao segredo da família Polovtzé - Bati-me com o filho do joalheiro João Polovtzé, muito conhecido em Lisboa.

- Bem sei. Mora em Santos. Mas é singular que o filho, joalheiro também, se bata em duelo! É raro isso entre homens de negócio! Parecia mais natural que o procurasse e agredisse, sem dar à agressão o carácter de um duelo!

Luís perturbou-se.

- Conflito por alguma ofensa de palavras? Peço perdão, se o meu interesse de amigo está excedendo o propósito das suas declarações.

- Vim aqui, sr. Conde, disposto a contar-lhe tudo. Amo a filha de João Polovtzé. O... irmão viu nestes amores uma ofensa de honra, tomou-me o passo à porta do jardim, desafiou-me para um duelo imediato, sem testemunhas, e sucedeu o que já tive ocasião de dizer.

- Se não se der com esse polaco alguma circunstância especial...

- Percebi que desconfiam dele e do pai, e eles próprios sabem que andam vigiados pela Polícia.

- É verdade, meu amigo. Lealdade por lealdade.

- E é agora a ocasião de lhe fazer o meu pedido.

- O meu amigo manda, e nada para mim de mais sincero júbilo do que poder prestar-lhe algum serviço que lhe seja agradável.

mercê cerei nunca. Venho solicitar a sua polícia em favor da família Polovtzé. Pela sua autoridade e pelas suas íntimas relações com o Intendente da Polícia, pode v. ex.a conseguir que os agentes da Intendência, sem quebra da vigilância que julgarem necessária, se abstenham de qualquer acto violento contra João Polovtzé.

«A prisão desse homem colocar-me-ia agora numa situação dolorosamente humilhadora. É natural que intente vingar o filho, percebi que é homem de ânimo intrépido, e se o prendessem nesta conjuntura, poderia lançar sobre mim a esmagadora suspeita de que me escapava a uma reparação, solicitando a interferência da Polícia.

Numa plausível estranheza por semelhante pedido, Novion pôs no moço oficial um olhar de incredulidade, mas respondeu-lhe serenamente:

- Não me parece provável. Se êle desconfia que é vigiado pela Polícia, não deve atribuir a prisão a solicitações do sr. Luís de Castro.

- Não deve, mas pode, sr. Conde. Não é meu propósito pedir impossíveis. A Polícia continuava a trazê-lo vigiado, se tem suspeitas contra êle, vigiava-o para que não pudesse ausentar-se de Lisboa, se há contra êle alguma acusação grave, mas a captura desse estrangeiro, se é inevitável, ficaria adiada por algum tempo. Dar-se-ia ocasião a que exigisse de mim as reparações que entendesse, e a que eu... me não quero recusar. Confio abertamente no seu coração, sr. Conde. Estou a fazer-lhe um pedido com o mais comovido empenho de alma. Nenhum outro fiz ainda na minha vida com tanto anseio e tamanha esperança de o ver atendido. Seria excepcional mercê, para eu não esquecer nunca. E se não bastam solicitações minhas, sr. Conde, invoco em meu favor a memória de um grande amigo seu, a memória de meu pai.

- As suas me bastam, meu caro amigo.

- Dá-me v. ex.a nas suas palavras um momento de inexcedida fortuna! Concluirei os motivos justificativos do meu pedido. Disse já um deles: o tempo necessário para o desagravo que João Polovtzé quiser tomar de mim. Agora o outro, todo êle inspirado nos egoísmos do meu coração, profunda e honestamente apaixonado pela filha desse polaco.

A demora necessária para que Maria Polovtzé não ficasse ao desamparo e pudesse ter em mim o seu legítimo protector, alguém que a defendesse sem a fazer corar. Serei o marido dessa menina.

Num movimento de espanto, Novion repetiu:

- Seu marido!

- Como tive a honra de dizer a v. ex.a.

- Mas, na sua qualidade de fidalgo da Corte e oficial do exército, não poderia casar sem permissão de Sua Alteza o Príncipe Regente, que lha não concederia, provavelmente, sem estar averiguada a origem dessa menina. Perdoe-me a franqueza, mas o seu claro espírito compreende bem os fundamentos desta objecção. Sua própria mãe seria a primeira pessoa a opor-se, e em verdade com justificados escrúpulos.

- Sr. Conde, v. ex.a não conhece decerto Maria Polovtzé.

- Não falei de escrúpulos que possam pôr a sombra sequer de uma suspeita na honestidade dessa menina. Não a conheço, mas sei que é uma extraordinária beleza, à qual ninguém ainda pôs a menor mácula de desconfiança. Referia-me aos escrúpulos por desigualdades sociais.

- Que nada valem para os corações devotadamente apaixonados. Deus me livre de citar agora exemplos de desigualdades imensamente maiores. V. ex.a conhece-os. Seria desbaratar o tempo em citações inúteis para nós ambos. O duelo há-de vir a saber-se e que eu saía do jardim de João Polovtzé, compreende-se o enredo calunioso que os intrigantes podem tecer sobre estes dois factos, e eu não tenho o direito de menosprezar as castas susceptibilidades da filha do joalheiro, nem quero o remorso de a ver iniquamente vilipendiada por culpa de mal entendidas vaidades fidalgas. Casarei secretamente.

- Não lho perdoariam no Paço.

- No Paço já não têem tempo nem ânimo para pensar nestas coisas insignificantes. Ficaria quem me mandasse punir, bem sei, embora, tinha cumprido um dever de homem de bem, realizando a suprema aspiração da minha alma.

- E o desgosto enorme para sua Mãe, sr. Luís de Castro?

- Perdoar-mo-ia, como sempre as mães sabem perdoar.

- Vejo que a minha devoção de amigo tem de passar por cima dos meus escrúpulos de funcionário do Estado. Sinto o dever de lhe confiar esclarecimentos, que são ainda um segredo da Polícia. Mas eu posso confiá-los à sua honrada consciência e ficar certo de que os guardará como se fossem um segredo seu.

- Mais do que se fossem um segredo meu - afirmou Luís de Castro, calculando já a espécie de esclarecimentos a que o coronel da Guarda Real se referia - Afianço-o com a minha palavra de honra.

- Nenhuma segurança maior - volveu-lhe Novion -, Dê-me licença por um instante.

Foi à porta, entreabriu-a, fêz uma recomendação ao cabo ordenança e tornou a fechá-la. Entretanto pensara:

- O irmão cumpriu a promessa que me fêz e não lhe disse nada. Prestaria um serviço útil a este apaixonado e à mãe... mandando prender toda aquela gente suspeita. E daí talvez me convenha proteger-lhe os amores até uma certa altura. É um oficial prestigioso, destemido, convém que o tenha bem prêsoa mim pela gratidão.

- É preciso fingir-me surpreendido, se é dos crimes políticos dos dois que êle vai falar-me - dizia consigo Luís de Castro.

- Ora, vamos lá, meu caro amigo - disse-lhe o Conde, sentando-se - Perdoe-me a surpresa - acrescentou, muito inclinado para êle - se de algum modo lhe fôr amargurar o seu coração enamorado.

Há-de perdoar-mo decerto pela intenção, lealmente amiga, com que lhe vou falar. Não se trata de uma confidência que me pertença. Recebi-a do Intendente da Polícia, sob promessa de segredo. Mas em tão alto conceito de estima o tenho tido sempre que não julgo faltar à promessa revelando-lho.

- Honra insigne para mim.

- Simples homenagem de justiça da minha parte. José Polovtzé é certamente um polaco, mas aparenta uma falsa profissão e usa um nome que não é seu. Pelo menos é isto o que se supõe na legação da Rússia, e talvez com bons fundamentos.

Por muito que lhe repugnasse aquela comédia de fingimento, e realmente repugnava, Luís de Castro não teve remédio senão simular um gesto e uma exclamação de profunda surpresa.

- Mas este disfarce era o menos - prosseguiu o Conde, como a responder àquela manifestação de espanto - o pior são as coisas gravíssimas que de algum modo parecem ligar-se com o seu falso nome e fingida profissão. Os sinais característicos que foram dados à Polícia pelo secretário da legação são aproximadamente os dele. Os do outro condizem também com igual aproximação. Podia dar-se um engano, por coincidência de semelhanças, que as há bem extraordinárias, mas não é crível que logo se desse com os dois. O suposto joalheiro, salvo o caso de alguma confusão pouco verosímil, segundo me parece, deve ter e teve o nome verdadeiro de João Pulaski. Vem de uma família de revolucionários e heróicos batalhadores que a Polónia teve no século passado. Conhece decerto a história das revoluções da Polónia e das lutas formidáveis contra os russos?

- Conheço, sr. Conde. Li com apaixonado interesse a história desse grande e infortunado povo, que foi um dos maiores e mais gloriosos que teve a Europa, durante uns poucos de séculos. Houve um largo período histórico de quatrocentos anos, em que êle só, desajudado, foi a época avançada da civilização europeia contra o Turco, o Tártaro, e o Cossaco selvagem dos confins da Rússia.

- Eis aí a verdade da história entusiasticamente dita. Pois se a legação da Rússia não está enganada, esse joalheiro João Polovtzé é nada menos do que o Conde João Pulaski, descendente dos famosos patriotas polacos Joseph e Casimiro Pulaski.

- Conheço esses nomes heróicos, sr. Conde. Agitaram a alma da Polónia e glorificaram-na sobre aquela gloriosa terra escravizada, nas lutas formidáveis de 1768 a 1772.

- Exactamente. João Pulaski tinha uma casa opulenta em Varsóvia e em Pultusk. Era o donatário de grandes terras nos confins da antiga Polónia. Nessas terras urdia João Pulaski uma conspiração contra o Czar. Foi o incitador e o chefe, e uma noite, surpreendido no esconderijo dos conspiradores, agrediu e matou o general comandante da Polícia de Varsóvia. Não sei então que poderosas influências se moveram por êle, mas o que sei é que o Czar lhe comutou em desterro perpétuo na Sibéria a pena de morte a que fora condenado. Há dois anos conseguiu evadir-se, também não sei como, e no acto da fuga, êle e o outro, provavelmente, assassinaram uma sentinela. Como vê, meu amigo, nada se sabe que possa deprimir a honestidade da filha, mas sobre o pai impendem dois crimes de homicídio, com a agravante da fuga, além do outro de traição e rebeldia contra o Czar. Gravíssimos e de sérias complicações no caso de que se trata!

- Assim é, sr. Conde!

- Ninguém sabia do paradeiro do Conde. A polícia da Rússia empenhou-se e fêz esforços inauditos para o descobrir, mas sempre inutilmente. Desconfiou-se que tivesse fugido para algum dos países limítrofes da Sibéria, e fizeram-se diligências diplomáticas para colher informações a respeito do fugitivo, mas sempre sem resultado. Depois supuseram que tivesse ido acoutar-se em Paris, entre os seus compatriotas empenhados na restauração da velha Polónia. Ali encontraria uma certa benevolência da polícia francesa. Lá viviam outros que o governo do Czar considera perigosos conspiradores.

- Eu sei. Kosciusko, por exemplo, o glorioso batalhador, o mais brilhante e o mais heróico desses conspiradores pela pátria polaca.

- Perfeitamente. Napoleão prometeu ressurgir a Polónia e as vitórias de Austerlitz e de Friedland como que punham um reflexo dos seus fulgores sôbre esse generoso sonho.

- Mas a paz de Tilsitt parece ter congraçado o Czar com o seu espantoso vencedor. Estão agora em paz a Rússia e a França. O sonho polaco esmorece dentro daquele mesquinho arcaboiço político do grão-ducado de Varsóvia, mas Napoleão sente-se desembaraçado para outras conquistas. A águia branca dos Czares segurará nas garras, agora tranquilamente, a Polónia semi-morta, enquanto a águia épica de Austerlitz vem rasgar nas suas unhas de aço outra nação de gloriosíssimo passado... esta.

Novion torceu-se contrafeito, mas acudiu logo tranquilamente:

- Aí está outra grande dificuldade diante dos seus desejos, meu caro amigo. A legação russa reclamou a vigilância policial a respeito desse homem, que a um tempo supõe um criminoso de Estado e um homicida evadido da Sibéria. O meu amigo compreende perfeitamente o que significam na diplomacia estes pedidos de uma grande potência. Quando os franceses chegarem a Lisboa, pior ainda. À França convém o apoio da Rússia, ao general Andoche Junot convirá a cooperação do almirante Siniavin, e não haverá pedidos da legação russa que não sejam logo satisfeitos.

- É então impossível evitar a captura do suposto Conde?

- Impossível não direi. A legação da Rússia espera de Moscovo um chefe de polícia que ali conheceu perfeitamente a João Pulaski.

- Ah! a legação hesita ainda em afirmar a identidade de João Polovtzé com João Pulaski?

- Hesita, porque o joalheiro apresentou documentos em forma a respeito da sua naturalidade, classe

e profissão. Provavelmente obtidos a peso de oiro, ou comprados talvez a outro polaco, algum humilde

a quem pouco importassem aqueles papéis de identidade.

- Mas então não chego a perceber como se leVantaram suspeitas contra Polovtzé!

- O novo secretário da legação conhecera-o em Varsóvia e pareceu-lhe tê-lo reconhecido, apesar de avelhantado. Explica-se deste modo porque se limitaram a reclamar uma vigilância policial constante, principalmente a respeito da loja.

-+ Da loja, especialmente?

- Sim, por que desconfiam que ali se reúnem de noite outros polacos, residentes em Lisboa.

- Mas pode fugir, visto que lhe não vigiam a casa. Eu não percebi lá ninguém da Polícia.

- É isso exactamente o que eu não sei explicar. Ao pé da casa de Polovtzé deviam estar dois agentes da Intendência, que seguem sempre os dois suspeitos estrangeiros. Hei-de saber o que deu ocasião a essa falta. Entretanto, o amigo que v. s.a tem em mim estima que se tivesse dado essa falta. Se lá estivessem os homens da Polícia, o sr. Luís de Castro haveria sido preso e a notícia do duelo teria chegado à Intendência pouco depois de se haver efectuado.

- Entende então o sr. Conde...

- Que posso ter a fortuna de lhe ser agradável, empenhando-me com o Seabra para que João Polovtzé não seja preso, enquanto não houver instâncias formais da legação da Rússia.

- Que podem aparecer de um dia para o outro?

- Podem, mas talvez seja possível demorar-lhes a execução por um ou dois dias, sob qualquer pretexto.

- Se tentassem fugir de Lisboa, a Polícia opor-se-ia.

- Certamente.

- A não ser que houvesse uma falta como a de ontem.

- Não haverá, afirmo-lho. Mas não lhe falei ainda do outro, o filho do joalheiro, chamado Casimiro Polovtzé, agora gravemente ferido.

Novion acentuou muito aquelas indicações. Luís de Castro percebeu-lhe a intenção e afogueou-se.

- O duelo há-de parecer na legação da Rússia uma prova indirecta de que esse homem não é O que finge ser.

- Também há suspeitas contra êle? - preguntou, simulando estranheza.

- Também. O Conde teve quem o ajudasse afugir da Sibéria, outro desterrado com quem se dava excelentemente, segundo as informações da polícia russa. Um joalheiro talvez lhe não propusesse um duelo, espancava-o, feria-o de arremetida, desfechava-lhe um tiro sem preâmbulos, sem os vagares de contar os passos a que deviam ficar um diante do outro.

- Desconfia então o sr. Conde?...

- Que o meu amigo não feriu um negociante de jóias, mas um ex-capitãodos exércitos do Czar, um gigante semi-selvagem, herdeiro de extraordinárias riquezas, parente chegado de certo general, Hietman de cossacos, chamado Platow. O seu adversário tinha morto em duelo, suspeito de deslealdade, certo ajudante de campo de um grão-duque, a quem havia insultado. Desterraram-no para a Sibéria por toda a vida. Se estas desconfianças não forem erradas, chama-se Miguel Platow.

Outra informação que o moço oficial já sabia, embora sem tantos pormenores, mas tinha necessidade de fingir surpresa e fingia-a no gesto e numas contrafeitas exclamações de estranheza.

- Confirmadas estas suspeitas - continuou o Conde, observando atentamente a fisionomia de Castro - perceber-se-á necessariamente que outro sentimento, alheio às susceptibilidades fraternais, levou Platow a provocar um oficial do exército português, representante da mais preclara fidalguia do reino, requestador da linda filha de João Pulaski.

- Quere v. s.a insinuar, sr. Conde...

- Perdão, formulei as prováveis conclusões do mundo, sem nenhuma ofensa para a filha desse que foi Conde de Pultusk, e digo que foi, porque a verdade é que de todos os seus títulos, honras e bens de fortuna foi privado por sentença de um tribunal, que o exautorou e deu por infamado. E agora, sr. Luís de Castro? Insiste no seu pedido?

- Ainda com maior instância, sr. Conde.

- Não seria preferível, na sua alta condição e diante do futuro brilhante a que tem direito, impor ao coração um sacrifício, embora doloroso, estou a percebê-lo, e abandonar completamente à justiça os trânsfugas condenados, esquecendo essa menina em cuja fronte imaculada, sinceramente o creio, pousou para sempre a sombra daqueles crimes?

- Se lhe prenderem o pai, se lho levarem para um patíbulo, maior dever o meu de a não abandonar e maior ânsia da minha alma por me tornar o seu honesto amparo, seu legítimo defensor, seu marido!

- Terá contra si, rancorosamente, os orgulhos da Corte. Puni-lo-á pela desobediência, quási ofensiva para a corte do Czar, qualquer governo que tenha este país, de portugueses ou estrangeiros, indiferentemente.

- De franceses talvez, quere v. ex.a dizer, de franceses interessados em agradar aos ministros do Czar?

- É possível. Mas disse-me que desejava facilitar ao suposto João Polovtzé qualquer desagravo que êle entendesse necessário. Referia-se, evidentemente, a um desagravo pelas armas. Se o houver, como pode contar com a anuência do polaco ao seu casamento com a filha? Pode negar-lhe reparação, porque se trata de um criminoso, de um infamado, mas se lha conceder, o que foi Conde de Pultusk irá bater-se no intento de vingar o amigo e cúmplice, certamente um apaixonado da filha.

- Dou-lhe as reparações que êle exigir e, se for por mim a fortuna, desposarei secretamente Maria Pulaski... se é assim que ela realmente deve chamar-se.

- Sinto essa resolução e começo a ter remorsos da promessa que lhe fiz!

- Sr. Conde, o meu dever então é desligá-lo das suas palavras e entregar-me de peito descoberto aos acasos da minha boa ou má fortuna.

- Santo Deus! Não tome as coisas tanto à letra. Remorsos disse eu, por me lembrar de sua mãe, a quem esse passo há-de magoar profundamente. Mas, em boa verdade, nem remorsos posso ter, porque a sua resolução parece inabalável, quere eu cumpra ou não a minha promessa. Poderia empenhar-me em contrariar-lhe o plano, torná-lo impossível, prestava assim um alto serviço a sua mãe, poupava-lhe amarguras cujas consequências nem eu sei prever, mas atraiçoava-o, depois do seu acto de cativante lealdade, e disso é que eu sou incapaz. Contrariado, meter-se-ia em aventuras de maior perigo.

- Posso afiançar-lho, sr. Conde.

- Tinha-o percebido. A minha promessa há-de cumprir-se. Vou falar ao Seabra e, a não se dar algum caso imprevisto, acima da nossa vontade, a prisão do polaco não se efectuará por estes dias próximos, quaisquer que sejam as instâncias da legação da Rússia.

- Sr. Conde! - disse-lhe de pé - Exija v. ex.a, quando lhe aprouver e em quaisquer circunstâncias, o serviço ou o sacrifício em que me seja dado provar-lhe este sentimento de gratidão, que absoluta e comovidamente me domina.

- Não faltarão ocasiões, meu caro amigo - volveu-lhe com manifesta alegria - Mas não é caso para tamanho encarecimento. Uma observação: a serem verdadeiras as suspeitas da legação russa, não lhe parece repugnante essa intimidade entre dois homens de nacionalidades hostis e até de religiões diferentes?

- Parece-me estranha, a não ser que um deles renegasse a pátria e a religião do seu país.

- Inclino-me a que será o russo o renegado, se afinal Casimiro Polovtzé está na pele de Miguel Platow. Isto nada importa para o nosso caso. Pode ir tranquilo. Há-de abafar-se o lance do duelo, e o polaco estará em liberdade relativa pelo tempo que fôr possível, uma semana pelo menos. Não seria prudente deixar de o trazer vigiado, mas terá Lisboa por homenagem.

- E se êle e o outro tentassem fugir?

- A polícia lhes tomaria o passo, mas de novo ficariam livremente na cidade. Venha ter comigo quantas vezes quiser, desassombradamente, será sempre benvindo e conte com o mais absoluto segredo. É bom que me ponha ao facto de qualquer incidente ou ocorrência que lhe pareça de importância. E mande-me sempre, meu prezado amigo.

- Sr. Conde! - disse, apertando a mão - Se nesta terra houvesse um português que tivesse direito a um momento de alegria, nesta conjuntura, v. ex.a ter-me-ia dado uma das maiores alegrias da minha vida!

- Hão-de vir dias melhores, meu caro amigo. E talvez os próximos acontecimentos favoreçam o seu projecto e me tornem fácil o compromisso que tomei.

Despediram-se.

«Sei a quais acontecimentos se refere - dizia consigo Luís de Castro, saindo -, Conta com a fácil conquista de Junot! Senti naquelas palavras de Novion o seu coração de francês. Mas então, com os franceses cá dentro, o Conde será para mim um desconhecido, se não for um inimigo».

Foi seguindo ao acaso, como que a reflectir hesitante em alguma resolução atormentadora.

Do lado do cais das colunas vinha um rumor alto de pragas dos carroceiros a descarregarem bagagens para bordo das faluas.

Luís de Castro tornou para casa.

Era naquela tarde que se havia de realizar o casamento do irmão na capela do palacete, recatadamente, sem aparato, sem convidados, muito à capucha. Assim se resolvera, atendendo àquela angustiada conjuntura de terrores.

Com ares de festa, havia de parecer uma leviandade ofensiva das susceptibilidades nacionais. Não era capaz de semelhante ofensa aquela família de altivas tradições patrióticas.

 

                   Ofensa de morte.

Maria Pulaski sofrera tamanho abalo moral naquela trágica noite do duelo e tão rudemente a mortificaram as ameaças do pai, em alucinadas imprecações de cólera, que o seu ânimo excepcional subitamente se quebrou numa crise de choro e de angustiosos desalentos. Deu-lhe um absoluto extenuamento de forças aquela sua hora de extraordinária coragem! Ficou de cama, ardia em febre, tinha umas largas crises de delírio.

Velava por ela a criada negra, sua confidente, por que Ana Beauchamp não se afastava do quarto do suspeito Casimiro Polovtzé, vivo ainda, mas a dois passos da morte, conforme as afirmações do médico.

João Polovtzé, o antigo Conde João Pulaski, segundo as suspeitas da legação da Rússia, impusera-lhe aquela tarefa de enfermeira, já que lhe não era possível despedi-la. Ana Beauchamp era uma cúmplice evidente dos amores de Maria, não a deixaria agora sozinha com ela, mas também a não podia pôr fora de casa.

Na intimidade daquela família desde os dias tranquilos da opulência, companheira nos anos horrorosos do desterro, a Beauchamp conhecia todo o passado e todos os grandes segredos do polaco e uma parte da história do ferido. Expulsa daquela casa, ao Deus dará nas ruas de Lisboa, muito naturalmente lastimaria a sua má fortuna, havia de sabê-lo a gente da polícia e obrigá-la-ia a falar. Mas ainda que assim não fosse, ainda que tão

graves segredos a não tivessem presa àquela casa, João Pulaski não teria coração para a expulsar, deixando-a ao desamparo em terra estrangeira. Fora companheira devotadíssima nos tempos de maior provação, longos tempos de ominosa memória e, em requintes de amor maternal, tornara-se o consolo e a segunda mãe de Maria, seria crueldade monstruosa atirá-la à rua como um farrapo inútil. A sua cumplicidade proviera, evidentemente, de solicitações de Maria, a que o coração amorável da francesa não pudera opor-se.

João Pulaski era também o enfermeiro de Miguel Platow, mas repartia os cuidados do seu coração atribulado entre o seu fingido filho e aquela criatura angélica, o maior encanto e o maior amor da sua alma, por tantas mortificações amargurada.

De quando em quando ia vê-la ao quarto, ficava-se a envolvê-la no seu olhar piedoso, enevoado de lágrimas, e todo se oprimia como tímida criança, doida de medo, se lhe sentia mais a febre ou se a ouvia delirar em sonhos de morte, em saudades do requestador, um galã volúvel talvez, sem se lembrar dele, o pai, naquele seu amor tamanho, que não sabia fingir, que não podia mudar!

Ao cair da noite de 25 a febre aumentou: o delírio foi maior, mais inquieto, de mais comovedora perturbação. Foram chamar o pai. Veio vê-la a tremer. Estava muito afogueada, agitava-se no leito, enovelavam-se-lhe em volta do rosto os cabelos de oiro, ondeados.

João Pulaski sentiu uma dor de alma indefinível. Sentou-se ao pé dela numas tremuras de criança, tomou-lhe as mãos, beijou-lhas, chorou, e foi com aquelas mãos pequeninas, brancas de neve, que êle enxugou e ocultou da negra a fraqueza das suas próprias lágrimas.

Ela não o via, não o podia ouvir, gemia nas intermitências do delírio.

O médico não podia demorar-se. Ficara de voltar ao anoitecer. Viera de manhã cedo e ao meio-dia, mas havia de tornar por causa do ferido, cuja vida de hora para hora parecia mais apagada.

Maria ficara por momentos num aparente sossego.

De olhos cravados naquela cabeça de arcanjo, o polaco falava-lhe mentalmente, numas palavras que só a sua própria alma podia ouvir.

- Agora nem o remédio de fugir! - pensava - Tu assim, e quási agonizante o maior amigo que eu tinha, o que podia e devia ser teu esposo, o teu amparo quando eu morresse em qualquer pedaço de terra estrangeira, ou na santa pátria polaca, se ela ainda pudesse reviver!

«Assim... é preciso ficar! Hoje ou amanhã entram por aí dentro os homens da polícia, levam-me, criminoso político reclamado pelas justiças do Czar para ir acabar num patíbulo, e ficas tu, filha! Tens a liberdade de ficar! Um condenado como eu nem tem sequer os direitos dos outros pais! Quererás ficar por causa desse requestador audacioso que te entonteceu e meteste nesta casa, para vergonha tua e minha! Filha do Conde de Pultusk, descendente de heróis, para fácil amante dele! Que horror, filha! Uma torpeza que me dá este suplício moral antecipado, mil vezes pior que o outro das justiças de um déspota.

Agitou-se num extremeção violento.

Outra vez inquieta, sacudida pelo delírio, Maria começou a falar brandamente, nuns dizeres entrecortados de soluços:

- O segredo!... Não contes, Luís! Não contes... Por mim... Não duvides. Sou a tua noiva...

- Isso nunca! - regougou o polaco - Mas só dele se lembra! No coração desta filha sou também um degredado!

- O meu pai!... Tenho dó dele!... Bem sabes...

- Foste a minha derradeira desgraça, filha que eras a luz maior, a mais santa luz da minha alma! - disse de si para si com inexcedível amargura.

- Querem-me levar!... Não vou, Luís! Quero morrer para ficar... aqui... na tua terra... a minha cova... sentindo as lágrimas que tu chorares por mim.

- E eu que parta! Eu posso partir! Ao pai, ao velho, que Deus o leve para longe, ou que os carrascos da Rússia liquidem com êle as contas do Czar. Um horror, isto! De tamanha mágoa, que dá vontade de morrer!

Encostou-se-lhe aos pés da cama. Uma sombra enorme de amargura e de cólera lhe desfigurava o rosto.

Muito sucumbida, de olhos baixos, a Beauchamp assomou à porta e disse em voz sumida:

- O Dr. Farinelli chegou agora. Ficou a ver o sr. Casimiro.

- Vou já - respondeu o polaco asperamente. Recomendou à negra que tomasse bem sentido

na menina e chamasse logo que a visse pior.

Depois, de rosto avincado, fêz um gesto à Beauchamp, a indicar-lhe que voltasse para o quarto do ferido.

Farinelli estivera fazendo o curativo ao suposto Miguel Platow, que nem dava acordo de si. João Pulaski assistia abatido, com uma dolorida tristeza, como se todas as esperanças estivessem perdidas.

O italiano reparou com estranheza em certa marca rubra, grande, que o ferido tinha no alto da testa, semi-velada por um pedacito de tela côr de carne, que se lhe despegara.

- De que é isto?! - preguntou baixo.

- Cicatrizes... de uns golpes de espada... que nunca ficaram bem curados e de tempos a tempos se lhe inflamam - respondeu o polaco, perturbando-se.

O astuto Farinelli não acreditou.

- É singular! Tèem a forma visível de uma grande letra!(1)

Mas não disse mais nada. Fêz umas recomendações a Ana Beauchamp, e segredou ao polaco:

- Vamos agora ver a nossa encantadora doente. João Pulaski seguiu-o. No corredor tomou-lhe a

mão e preguntou-lhe comovidamente:

- Morre?

- Está em perigo de vida, em tal perigo que faço tenção de me demorar aqui até de madrugada. O ferimento pô-lo às portas da morte... mas ainda não perdi a esperança de o salvar.

- É o doutor o único amigo íntimo que eu tenho em Lisboa, fale-me desassombradamente.

 

*1. Na Rússia marcavam na testa, a ferro em brasa, certos degredados e galerianos, para deste modo os reconhecerem mais facilmente, no caso de fuga.

Na sua viagem pela Sibéria (1859-1862), Conssiel encontrou condenados que tinham a marca a fogo na testa. Explicaram-lhe que assim seria possível reconhecê-los em qualquer parte, se ousassem evadir-se, o que aliás não era coisa rara.

 

A mim pode dizer-me toda a verdade. Sou homem acostumado a suportar reveses.

- Disse-lhe lealmente o que penso. Hei-de empenhar-me em salvá-lo. Peço à sua dor de pai que torne suas as minhas esperanças.

- Bem haja, meu querido amigo! Deus lho pague com a fortuna que merece.

Entraram para o quarto de Maria.

Como vimos, o médico italiano não conhece o passado do fingido joalheiro nem do simulado filho, apesar de ser o único amigo íntimo do polaco. Desconfia de há muito que sejam os dois uns perseguidos políticos, pois que na Polónia até os homens das classes médias, mais avessas, por índole e por interesse, a perturbações políticas e aventuras de rebelião, até esses se associam com um fervor religioso de fanáticos a todos os movimentos de conspiração contra o império que lhes matou a pátria.

João Polovtzé, com quem travara relações, casualmente, na sua loja de joalheiro, contara-lhe uma vez, com a maior naturalidade deste mundo, que saíra da Polónia, havia doze anos, por causa de umas desavenças e desgostos de família e se fora estabelecer na Áustria, onde vivera largo tempo. Mas que a filha começara a definhar-se, a dar-se mal naquele país e então resolvera procurar um clima benigno do Meio-Dia. Preferiu Portugal, a instigações de um joalheiro de Viena, que fizera fortuna em Lisboa e lhe louvara muito o doce clima da cidade.

Farinelli ficou sempre com a suspeita de que os dois eram pessoas suspeitas à polícia do império e que, de consciência oprimida, se houvessem expatriado, como tantos outros, embora fossem realmente joalheiros.

Mas nem sequer podia sonhar que vinham foragidos da Sibéria. Maria chegara doente, a definhar-se e, pouco tempo depois de terem começado as relações de convivência casual entre o velho joalheiro (mais velho na aparência do que na idade, pois não passava dos cinquenta e dois anos) e o médico italiano, caía de cama com umas febres graves. Farinelli foi convidado para assistente da linda filha do polaco, tratou-a desveladamente durante mês e meio e salvou-a. Então as simples relações, começadas na loja da rua do Ouro, transmudaram-se em amizade e convivência íntima.

Aquele médico, homem de quási cinquenta anos, era um ambicioso e fora um aventureiro. Doutorado na Universidade de Bolonha, abraçara com ardor a causa da Revolução Francesa e conseguiu alistar-se como facultativo em um regimento de cavalaria do exército francês. Entrou em várias campanhas, sob o comando glorioso de Bonaparte, foi nas expedições ao Egito e à Síria, assistiu às prodigiosas batalhas das guerras de Itália - Lodi, Lonato, Castiglioni, Árcole, Marengo.

Napoleão conhecia-o, Massena, seu compatriota e seu émulo na cobiça das riquezas tinha-o na estima de amigo, Junot era um íntimo seu desde o dia de Lonato. Farinelli fizera-lhe o primeiro curativo daquela cutilada enorme que o deixara assinalado para sempre.

Mas a cobiça do ouro comprometeu-o, desonrou-o.

Aviltou-se no saque de um palácio, excedendo a rapacidade da própria soldadesca, já entontecida pela ebriedade da vitória e do vinho.

Foi expulso do exército e veio para a Espanha procurar fortuna, mas a sede das riquezas comprometeu-o lá como o comprometera na Itália, e fugiu então para Portugal. Chegou a Lisboa nos meados de 1804 e em poucos meses ganhou fama de médico distinto.

O italiano observara atentamente a filha do polaco e prescreveu o novo tratamento a seguir.

Farinelli sabia já a causa daquele profundo abalo de nervos.

O pai contara-lhe o caso do duelo, atribuindo ao fingido filho uma alucinação de pundonor, ferido pela surpresa daqueles amores da irmã.

- Que lhe parece, doutor?

- Não é coisa de perigo - respondeu Farinelli - Conto que a febre esteja amanhã menos intensa e mais quebrada aquela violenta excitação que lhe extenua as forças. Repito-lhe, meu caro amigo: Não é cousa de perigo.

- Já é consolo, doutor. Agora preciso de falar consigo muito em particular.

- Pois sim. Estou completamente às suas ordens. Como já lhe disse, fico até de madrugada, para ver se vem a mudança que espero no estado de seu filho. Vamos lá, mas antes deixe-me ir vê-lo outra vez.

- Vou eu também.

Foi demora de poucos minutos. Farinelli achou-o um pouco mais tranquilo, com a respiração menos torturada.

Saíram do quarto.

- Leio-lhe no rosto uma esperança mais firme, meu caro doutor.

- Tem alguns alívios. Por ora muito pequenos, mas de bom indício e não se enganou supondo-me com maiores esperanças de lho salvar.

- Deus o ouça, meu amigo.

E encaminhou-o para o seu quarto. Fechou-se lá com êle. Sentaram-se muito ao pé um do outro, junto de uma grande mesa antiga.

- Vou fazer-lhe uma confidência gravíssima. Entrego ao seu coração de amigo um segredo de família, desses que podem ser de vida ou de morte, nesta hora extraordinária. Só o doutor o deve saber.

- Pode ficar tranquilo, meu amigo - acudiu o italiano afilando o seu nariz curvo, agudo como o bico de uma ave de rapina, bico de milhafre, como algumas vezes lhe dissera o Massena em tom de gracejo.

«Afirmo-lhe sob a minha palavra de honra.

- Essa me basta - respondeu o polaco.

E ficou uns instantes a reflectir. Não era seu intento contar-lhe o segredo perturbador do seu passado e, menos ainda, revelar-lhe a sua antiga condição social e a de Miguel Platow, mas precisava de lhe dizer alguma coisa justificadora do pedido que ia fazer-lhe. Era-lhe indispensável a cooperação daquele homem.

- Preso a este segredo que vou revelar-lhe agora - disse o polaco lentamente - ocultei-lhe a verdade quando lhe contei que saíra da Polónia por desavenças e desgostos de família. Conhecia-o menos, meu caro amigo, e então as circunstâncias impunham-me a necessidade de lhe encobrir a verdade.

«Expatriei-me por um crime político, estava filiado numa associação de conspiradores contra o Czar. Logrei fugir quando recebi aviso de que iam procurar-me para me prender. Não lhe dou pormenores que o fatigariam sem o interessar. Tive a boa fortuna de poder sair, trazendo comigo as melhores jóias da minha loja de Varsóvia. Diamantes e rubis que valiam uma riqueza.

- Vê-os a gente com assombro na sua loja - interrompeu Farinelli, com os seus pequenos olhos a faiscarem cobiças.

- Foi com eles que me estabeleci aqui, nessa loja que dizem ser a mais opulenta entre as outras dos joalheiros de Lisboa.

- Certamente. A um entendido ouvi eu dizer que tem lá diamantes de tão pura água como se não encontram no tesouro da Casa Real, e essa os tem lá aos punhados, magníficos, das minas do Brasil!

- Também mo disseram.

- Em mais de duzentos mil cruzados ouvi eu calcular o valor dos que estavam à vista.

- Tenho outros tantos na caixa forte. O italiano torceu-se na cadeira,

- Uma fortuna! - disse, deslumbrado.

- A minha desventura ainda é maior! Sei há dias que sou vigiado pela polícia. Na legação da Rússia têem desconfianças a meu respeito e só esperam que chegue certo chefe da polícia moscovita para verem se me reconhece e reclamarem então a minha captura.

- Admira como está tão bem informado!

- Um empregado subalterno da legação, jogador crivado de dívidas, pôde saber isto e foi-me levar aviso, que eu comprei a peso de ouro. Prometi-lhe muito mais, se me pusesse ao facto de tudo, mas não voltou com outras informações!

- E só agora vigiado, porquê? Está em Lisboa há cerca de dois anos!

- É verdade. Não sei explicar-lhe a razão, mas o que eu sei dizer-lhe é que sou vigiado pela polícia. Estava preparando as coisas para mudar de exílio e contava iludir os agentes que me seguem. Talvez não fosse difícil.

«Se fico, de um dia para o outro me podem prender. Era preciso fugir hoje ou amanhã e talvez já fosse tarde! Mas agora, doutor, agora é impossível!

- Só deixando cá seu filho.

- Está implicado no meu crime político. São também contra êle as suspeitas da legação da Rússia.

- No estado em que êle está, a própria mudança de quarto lhe podia ser funesta.

- Desesperador!

- Daqui a uns dias talvez seja possível transportá-lo para outra parte, mas com especiais cuidados e a pequena distância.

- Daqui a uns dias! Quem sabe então o que me terá sucedido!

- E mesmo assim, repito, só com extraordinárias cautelas se poderia transportar para alguma pequena distância.

- A viagem que tínhamos combinado teria de ser longa, por mar.

- Seria a morte pô-lo a bordo de um navio, para uma longa viagem, mesmo daqui a um ou dois meses, dado que as melhoras fossem grandes e constantes.

- Um ou dois meses! É de esmorecer! Daqui a um ou dois dias talvez ter-me-ão prendido, estará êle com a gente da polícia a velar-lhe o leito, se a morte o não tiver levado!

- Mas então desconfia que o agente da polícia por quem esperam na legação da Rússia esteja para chegar brevemente?

- O homem que me deu aviso tinha visto casualmente o ofício em que de Moscovo comunicavam a próxima saída do agente. Chegara o ofício havia dias, mas fora expedido no último dia do mês passado. Foi por isso que reclamaram a vigilância da polícia de Lisboa para mim e para meu filho. Não tardará que chegue!

- Quem sabe? Se vem por terra, a viagem é longa e difícil, durará muitos dias. Por mar, com essa excepcional invernia que tanto tem prejudicado a navegação, quem pode lá saber quando êle chegará?

«Ouvi que a esquadra inglesa dificilmente se tem aguentado no bloqueio das costas de Portugal e aí defronte da Barra. Nem seria fácil que o cruzeiro inglês deixasse passar um navio da Rússia para dentro de Lisboa. Veja se a esquadra russa se atreve a sair do Tejo!

- Virá então por terra e, se partiu de lá pouco depois da expedição do ofício, então, daqui a dois ou três dias, o máximo, terá tempo de chegar cá.

- Daqui a três ou quatro dias estarão aí os franceses, segundo me disseram, e a perturbação há-de ser tal que nem a legação da Rússia nem a polícia de Lisboa terão tempo de pensar no meu amigo. Agora mesmo nem a polícia pensa, provavelmente noutra coisa que não seja vigiar o povo, enquanto não vão para bordo da esquadra portuguesa a Família Real e a Corte.

- Já sabia.

- Fogem aos franceses!

- Era boa ocasião para eu fugir também. Para mim não era vergonha fugir. Mas com aquele desditoso assim, com a minha pobre Maria naquele quebramento de forças!...

Torceu as mãos num repelão de desespero.

- Se amanhã estivesse passada a crise que eu receio, daqui a três ou quatro dias será possível transportá-lo em maca, sob a minha vigilância, para outra casa próxima, e ainda assim com certo risco.

- Casa próxima... alugava-se, e o doutor me tomaria conta dele. Não discuto despesas. Quisesse alguém proteger-me neste lance e velar pela vida dele, e pouco importaria que eu tivesse que repartir, fosse com quem fosse, uma parte dessas jóias que são toda a minha fortuna.

Farinelli estremeceu. Reacenderam-se-lhe no olhar uns fulgores de alucinada cobiça.

- Se não se tratasse de pessoa comprometida num crime político, de bom grado me prestaria a levá-lo para minha casa, a tão pouca distância desta...

- Nem trinta minutos de caminho, ainda que fossem grandes os vagares! - acudiu o polaco, a realentar-se de esperanças - Era uma obra misericordiosa, meu caro amigo!

- Mas assim, podia saber-se e trazer-me grandes dissabores. É coisa de grave comprometimento!

- Mas, daqui a três ou quatro dias, se entrassem os franceses, como disse, naquela provável perturbação nem a polícia daria pelo asilo desse meu pobre filho.

Eu fugiria tranquilo, deixando-o entregue ao meu caro doutor.

- A saída daqui podia dar nas vistas.

- De noite, por detrás do jardim, pelo areal? O doutor acompanhava a maca e, se o não tivessem visto sair daqui, ninguém se atreveria a preguntar-lhe quem era o doente que tomava à sua conta. O doutor é muito conhecido, muito considerado. Ninguém ousaria duvidar da sua palavra.

Farinelli tomou ares de homem receoso, hesitante. Fingia reflectir.

- Podia inventar qualquer coisa - insistia o polaco - se lhe fizessem alguma pregunta. Podia dizer que era um criado seu, um italiano, que mão desconhecida havia ferido e o meu amigo fora buscar para sua casa. O doutor encontraria melhor explicação do que eu sou capaz de imaginar, nesta minha desorientação de espírito.

- Tenho um criado que toda a gente conhece. O meu coração de amigo está a querer aceitar-lhe o encargo, enternecidamente, mas o meu espírito vê claramente os perigos e as suspeições que podem vir contra mim implacáveis!

O polaco tomou-lhe as mãos comovidamente.

- Salvava-o e salvava-me! Por dó, mais ainda do que por estas nossas relações de amizade.

«Sabe? Tenho também medo pela minha filha, o maior medo! O requestador pode aproveitar as perturbações da cidade para ma roubar, e esse roubo seria imensamente maior do que o de todo o meu tesouro de jóias! Tamanho, que até seria insensatez compará-lo a outra perda qualquer.

- Compreendo os seus temores, fazem-me dó, mas bem vê...

- Não hesite. O perigo certo para mim e para êle é ficarmos aqui, nesta casa, refúgio conhecido de dois condenados onde a polícia terá o direito de entrar quando quiser. Em sua casa, não.

Respeitam-no e a estima em que o têem ainda mais vale que o respeito, ninguém iria lá procurar o ferido.

- Não é tanto assim. Sabe-se que sou eu o seu médico, muita gente me tem visto entrar para aqui, há-de vir a saber-se que seu filho foi ferido, na botica o podiam dizer a quem o quisesse ouvir, e, se os moradores desta casa desaparecessem, muito naturalmente me procurariam a mim para dar informações. Não é coisa tão fácil e tão desanuveada de perigos como supõe.

- Infortúnio meu! - rouquejou o polaco num abatimento de ânimo.

Ficou uns instantes como acabrunhado. Os olhinhos cúpidos do italiano envolviam-no todo em estranhos fulgores de cobiça, como o olhar de um gato a remirar a presa.

- Pois bem, meu desditoso amigo - disse Farinelli, inclinando-se para êle carinhosamente -jogarei a minha tranquilidade neste arriscado lance e aventuro-me a qualquer sacrifício, mas não quero o pesar e o remorso de o deixar ao desamparo. Prendo-me ao seu destino, serei o seu cooperador. Preparar-lhe-ei eu a fuga, quando os franceses entrarem aqui e ficará em minha casa, tratado e protegido por mim, aquele seu desventurado filho.

- Meu amigo, meu misericordioso amigo! - exclamou o polaco, abraçando-o. Tinha os olhos rasos de lágrimas -, E daqui a três ou quatro dias minha filha poderá sair?

- Com certos resguardos, de liteira, espero que possa, dado que algum acontecimento imprevisto não venha causar-lhe outra grande emoção.

- Deus me dê essa trégua de três ou quatro dias! Mas, meu caro doutor, ninguém tem o direito de pedir ao coração de um amigo sacrifícios de dinheiro que agravem os outros, cujo preço nenhum argentário, por mais que fosse, poderia atingir.

O meu amigo vai ficar com o encargo dispendioso do tratamento de Casimiro e ninguém pode calcular bem por quanto tempo, para me auxiliar a saída desta terra tem de dar passos, de fazer contratos, de comprar vontades, e disso é que eu directamente não podia encarregar-me sem levantar suspeitas, que tudo perdessem. Muitas vezes lhe ouvi que, apesar dos seus ganhos, vivia pobremente, pois que tinha na Itália umas irmãs a quem amparava.

- A triste verdade é essa, meu amigo! - acudiu Farinelli.

E era afinal uma reverendíssima falsidade com que a sua avidez de riquezas se disfarçava para abrir mais, em comovidas generosidades, as mãos da sua clientela rica.

- Pois Deus me livre de querer sacrificar em meu proveito qualquer mínima parte dessas abençoadas economias que destina a suas irmãs. Nas minhas condições seria um egoísmo de que eu sou incapaz. Nunca me escravizaram as seduções da riqueza, a ponto de vacilar diante de um sacrifício de dinheiro.

- É como eu, exactamente, meu caro amigo! - respondeu o velhaco, tomando uns ares de desinteresse, admiravelmente fingidos.

- Abnegações de amizade não podem excluir negócios que as circunstâncias imponham.

- Não o compreendo, meu caro amigo! - disse-lhe a conter o alvoroço íntimo, numa artificiosa estranheza de comediante.

- Não temos tempo nem eu tenho ânimo para estar com rodeios. Daqui a instantes ser-lhe-á preciso ir ver os seus doentes. Tenho alguns valores em moedas do país. Amanhã entrego-lhe dois mil cruzados para comprar cooperadores e preparar as coisas da viagem.

- Parece-me demais-observou, fingindo sempre.

- Gasta o que fôr preciso e depois nos entenderemos.

Com a sua larga e amargurada experiência dos homens, o fingido joalheiro queria segurar pelo interesse e deixar já estimulada para toda a cooperação necessária aquela dedicação de promessas, que, por qualquer contraridade, se poderia enfraquecer e desalentar.

O polaco ouvira que Farinelli era vezeiro em altear o preço dos seus serviços médicos. Achava natural, visto que era hábil e tinha encargos de família, como êle dizia. Muito prepositadamente lhe afervorava agora ambições que julgava legítimas num homem pobre. Tinha receio de o ver arrependido ou de o deixar menos solícito no cumprimento de suas promessas. Foi, portanto, alteando o valor sugestivo dos prometimentos.

- E para o tratamento demorado de Casimiro, dois ou três meses, e pelo tempo que vá roubar à sua clientela para mo não abandonar, para se não apartar dele, deixar-lhe-ei quatro mil cruzados, que não posso dar em moeda, mas hão-de ficar em diamantes.

- Oh! meu amigo!... Mas isso é muito!

- Depois, quando Casimiro se restabelecer, fará com êle as contas, meu caro doutor. Mas como, para lhe preparar a fuga, há-de ser preciso fazer despesas, talvez avultadas, é indispensável deixar-lhe outros recursos. Posso entregar-lhe três mil cruzados na mesma espécie de valores. Francamente, diga-me se lhe parece suficiente.

- Oh! mas é uma quantia muito superior às necessidades prováveis!

- Não, isso não será. E como é possível que o persigam suspeitas inquietadoras e se veja compelido a deixar também este país, entendo em consciência que eu, homem abastado, devedor de tão altos serviços, estou obrigado a uma compensação equivalente ao dobro das quantias que indiquei. Mesquinha compensação, ainda assim.

- Mas isso é uma paga principesca! - acudiu Farinelli.

Entretanto, o velhaco somara mentalmente as quantias que o polaco designara, somara-as num êxtase de alma, e comentara de si para si, entre maravilhado e desdenhoso:

«Este demónio não tem amor nenhum ao dinheiro!

- O meu amigo, a pouco e pouco, facilmente poderá converter as jóias em moeda. Eu é que não posso agora meter-me nisso. Levantaria suspeitas: haviam de supor logo que era para me ausentar do país. Mas posso indicar-lhe um judeu alemão que aí vive e que não terá dúvida de lhas comprar em proporções pequenas. Essas e outras cujo valor ficará confiado à sua honrada consciência.

Farinelli não pôde conter-se e fêz um gesto de surpresa, que o polaco percebeu.

- Bem vê - explicou Pulaski - bem vê que eu posso morrer lá por fora, antes que meu filho se restabeleça, e seria desumano deixar que êle se aventurasse a fugir, sem levar consigo uma parte do que lhe pertence. Quero sair de consciência tranquila, e o devedor, meu caro amigo, serei sempre eu. A maior parte das jóias já as tenho em casa. Agora vamos ver o meu pobre Casimiro.

- Vamos - respondeu Farinelli, todo agitado naquele deslumbramento das suas cobiças de avarento.

E perturbava-o já, num estonteamento diabólico, este desalmado sonho: Pôr o velho polaco fora de Lisboa, o mais cedo possível, e confiar ao ferimento gravíssimo de Casimiro a liquidação tentadora de todas as contas, incluindo o depósito por adiantamento da herança. O polaco não voltaria para o reclamar e êle, Farinelli, em qualquer outro país poderia usufruir tranquilamente aquela inesperada fortuna.

Mantinham-se os tenuíssimos alívios do falso Casimiro Polovtzé.

Parecia mais sossegado. Farinelli acobertou numa falsa expressão de júbilo o inferno de perversas ideias que naquele momento lhe sacudiam o coração brutalmente.

Anoitecera cedo. O sol andara amortalhado em nuvens densas de temporal. Farinelli chegara havia duas horas e ao fundo do corredor o relógio grande do joalheiro dava ainda sete, lentamente, num timbre que fazia tristeza, como se cada vibração fosse um ai dolente de alguém.

Tinham os dois saído para o corredor e iam para o quarto de Maria, quando um criado negro veio avisar o polaco de que um sujeito embuçado batera à porta e alegara necessidade de falar com urgência ao dono da casa em assunto de interesse.

- Alguém da polícia! - segredou o joalheiro ao médico, empalidecendo.

- Talvez não - respondeu baixo o italiano, perturbando-se com a ideia de um assalto da polícia.

«Tomaria conta de tudo - pensou, oprimido - De tudo: dos polacos e dos diamantes!

- Não disse quem era? - preguntou o falso João Polovtzé.

- Isso nô disse.

- Deixaste-o fora da porta?

- Nó sió. Mandei entá.

- Estúpido! - volveu-lhe o polaco num repelão de cólera.

De si para si, Farinelli comentara:

- Foi capaz de estragar tudo, este estupor!

- Onde o deixaste!

- Nâ sálêta.

- Vinha sozinho?

- Si, siô. Fechei a porta da rua à chave, nô vinha

lá ici mais.

- Doutor, que me aconselha? - preguntou-lhe o polaco, muito baixo - Pode ser um espião da polícia, para armar-me alguma cilada!

- Vou ver quem é, vou eu falar-lhe. Vá o meu amigo ver se as portas estão bem fechadas.

- Não agoiro bem dessa visita, doutor!

- Vamos a ver. Se fosse para o prender não entraria um só, provavelmente. Vou eu falar com esse homem.

Foi para a saleta. O negro acabava de acender as velas de um alto castiçal.

O recém-chegado conservava-se ainda embuçado. Farinelli cumprimentou-o com um gesto.

- Disse ao criado que tinha urgência de falar ao sr. Polovtzé. Ele não pode vir. A hora é para extranheza, a não se tratar de coisa grave ou de pessoa muito das relações do dono desta casa.

- A gravidade do assunto, de especial interesse para o sr. João Polovtzé, justifica a audácia desta visita. Sou quási um desconhecido para o dono desta casa - declarou desembuçando-se.

Farinelli recuou num movimento de profundo espanto. Tinha diante de si um moço de aspecto fidalgo, com uma expressão de rara e desassombrada energia e todo o ar de um homem leal e intrépido.

Excluída a suspeita de que fosse um alto agente da polícia, alguém capaz de uma cilada, o italiano tranquilizou-se e envolveu-o num olhar de investigadora curiosidade.

- Não tenho o gosto de o conhecer - disse-lhe lentamente -, Seja, porém, quem fôr, terei eu de o ouvir.

- Não pode confiar-se a estranhos o que eu preciso de dizer ao sr. João Polovtzé.

- Sou Vincenzo Farinelli, médico desta casa e amigo íntimo do sr. Polovtzé. Fui encarregado por êle de vir recebê-lo e ouvi-lo.

- Sinto muito ver-me obrigado a repetir a v. s.a que só ao sr. Polovtzé posso e devo dizer o que me trouxe aqui.

O italiano fixou-o com insistência.

Não lhe parecia estranha aquela fisionomia: lembrava-se de ter visto por algumas vezes, passeando a cavalo, por aqueles sítios de Santos, um moço oficial muito parecido com aquele rapaz. Teve uma desconfiança, mas achou-a inverosímil. Para que não o fosse, seria preciso atribuir àquele homem uma excepcional audácia.

- E tenho eu de repetir-lhe que o dono desta casa não pode vir falar-lhe - respondeu-lhe Farinelli -, Trazem-no acabrunhado profundas amarguras de família.

E como para experimentar a verosimilhança da suspeita que repelira, explicou:

- O sr. Polovtzé não se atreve a abandonar o quarto de sua filha!

- Doente?!

- Bastante doente - respondeu Farinelli com o regalo íntimo de ver confirmada naquela pregunta amargurada surpresa uma suspeita que a princípio considerara absurda.

- Doença grave?

- Inquietadora.

- Perdoe-me, por quem é, a ousadia destas preguntas. As respostas de v. s.a têem para mim um interesse moral inexcedível. Doença inquietadora!. Se eu pudesse merecer-lhe a benevolência de um esclarecimento, por mínimo que fosse! Era piedosa mercê. Doença moral, talvez?

- Peço licença para lhe notar a situação embaraçosa em que me está colocando. Vim com o encargo de o receber e ouvir e estou afinal sendo interrogado a respeito de um caso particular da minha clínica, caso relativo a uma adorável menina, filha de um amigo meu, por alguém que não tenho a honra de conhecer e completamente se esqueceu de me dizer o seu nome.

- Tem razão. Queira desculpar-me o esquecimento - respondeu, afogueado - Sou oficial do exército: chamo-me Luís de Castro e Albuquerque.

Hábil comediante, Farinelli tomou uns ares de uma severidade e aparentou a dura surpresa de alguém que tivesse ouvido uma revelação incorrecta e absolutamente inesperada.

- Ouvi já o seu nome, não me são estranhos esses apelidos de uma das mais ilustres famílias da Corte! Mas o que me parece estranho é que o sr. Luís de Castro venha a esta casa, quási enlutada por alguém que uma bala sua pôs à morte, e pretenda falar a João Polovtzé, pai amargurado na imensa dor de ver o filho em perigo de lhe morrer e a filha estremecidíssima numa enfermidade de mágoas, que só v. senhoria causou!

- Podia rejeitar-lhe o direito de me falar desse modo, mas disse-me que era um amigo íntimo do sr. Polovtzé: aceito-lho e defendo-me.

- Suponha-se v. s.a no meu caso, amigo do sr. Polovtzé, e veja se não diria o mesmo que eu disse.

- Diria mais. Reclamaria explicações acerca do intento com que entrou aqui o causador desse infortúnio e dessas mágoas, ouvi-lo-ia e guardaria para o fim o meu desforço de amigo, se as explicações me parecessem uma ofensa ou o embuste de uma deslealdade.

- É uma lição?

- É uma resposta.

- Pois bem, queira então dizer o motivo da sua vinda aqui.

- Requesto há meses a filha do sr. João Polovtzé, amo-a profundamente e sei que é por mim o coração dessa menina, cuja imaculada honestidade iguala e realça os encantos da sua rara formosura.

- A maior dor do pai está no receio de que esses amores tenham posto alguma sombra de vergonha em volta do seu nome.

- Só se fosse a sombra de uma aleivosia! Nenhum amor maior nem mais honesto do que este meu por ela.

- O mundo julga por aparências, e v. s.a é suspeito depoente para convencer o mundo. Houve um duelo de que pode resultar a morte do irmão da menina.

- Duelo provocado pelo meu adversário.

- Em condições anormais, que nenhum código de honra pode admitir.

- As condições propostas por ele.

- Fosse como fosse, pode saber-se. Valerá um escândalo de descrédito.

«Hão-de plausivamente supor-se graves os motivos de honra que levaram Casimiro Polovtzé a bater-se em tais condições com o requestador de sua irmã.

- Senhor, eu sei com quem me bati. O meu adversário teve a lealdade de me confessar quem na realidade era, sob aquele seu falso nome de Casimiro Polovtzé.

- O seu falso nome! - repetiu Farinelli, a farejar um novo segredo daquela família de expatriados.

- Não levanto uma calúnia ao meu adversário. Sob minha palavra de honra lhe afirmo que disse a verdade. Mas isto é o que menos importa para o nosso caso. Venho aqui para dar explicações ao sr. João Polovtzé e oferecer-lhe reparação por essas aparências que êle pode supor afrontosas para a honestidade de sua filha.

- Directamente a êle?

- A êle próprio.

- Com o filho à morte!

- Não insistamos no caso do «filho». A maior dor do sr. João Polovtzé, disse-o já a v. s.a, vem dos seus receios pelo nome puríssimo da filha,

- Peço licença para lhe fazer uma observação...

- Disse-me que era um íntimo do sr. Polovtzé, acreditei e tenho-lhe falado com leal desassombro. Aceito as observações que entender necessárias.

- Maravilha-me a facilidade de processos com que a sua mocidade, inexperiente, creio bem, se aventura num passo desta gravidade em tão angustiada conjuntura!

- Para os deveres de honra não é preciso aprendizagem de experiências nem há conjunturas especiais. Cumprem-se, pouco importa em que circunstâncias.

- Não contou, estou a percebê-lo, com algum deplorável conflito, provavelmente inevitável, entre v. s.a e o sr. Polovtzé, um colérico, um homem pundonoroso, ferido pela ofensa que atribui, alucinado por uma dor que a mais ninguém pode atribuir.

- Contava, mas conto muito mais com a minha lealdade, e até onde fôr possível, descontarei nas mágoas do pai as palavras violentas do homem. Não pode ser para mim, não quero, não há-de ser, um homem como outro qualquer.

- Mas, seja como fôr, o sr. Polovtzé não virá. Serei eu o intermediário. Queira v. s.a confiar-me o que desejava dizer-lhe. Eu lho irei comunicar,

- Seja assim. No lance angustioso de ontem à noite, que eu fui o primeiro a deplorar e lamento sinceramente, o sr. Polovtzé arrojou-me à cara a suspeita afrontosa de que eu seria capaz de o denunciar para fugir às responsabilidades dos meus actos perante êle. Queira v. s.a levar-lhe em troca este aviso confidencial... fundado, principalmente, na minha própria observAção: Que o duelo continua a ser o segredo de algumas pessoas, e é ainda ignorado pelos agentes da Intendência da Polícia. Que, pelo estado de perturbação da cidade, é provável que afrouxe a vigilância policial exercida contra êle, e que por alguém, muito das relações da legação da Rússia, consegui saber que não havia por ora nenhuma resolução anormal a respeito de qualquer cidadão polaco, residente em Lisboa.

Como se vê, Luís de Castro não comprometia na essência o segredo que lhe foi confiado pelo Conde de Novion. Atenuava-o naquele aviso de outra simulada origem. Era uma piedosa mentira.

- O rapaz parece bem intencionado - pensou Farinelli - e a informação tem um certo valor.

- Depois deste aviso - continuou Luís de Castro - queira v. s.a dizer-lhe que venho oferecer-lhe duas reparações. Uma, a de maior gravidade, se êle não acreditar na lealdade com que eu procedi naquele duelo ou me não puder perdoar o desfecho que teve.

- Um desafio!

- Não, senhor. É uma prova de que não fujo a quaisquer responsabilidades, que sou incapaz de uma traiçoeira cobardia e o tenho a êle na conta de um homem de nobre coração e de ânimo intrépido, muitíssimo acima das suas condições sociais.

- Ou está doido - pensava o médico - ou se diverte comigo! Mas diz estas coisas com um tal feitio de sinceridade, que mais me inclino a crer nalgum segredo que êle saiba e não me quiseram confiar, do que num desvario de namorado ou no enredo de um aventureiro desfrutador.

- Mas se fôr excluída por êle a primeira reparação, imensamente dolorosa para mim, devo confessá-lo, sacrifício repugnante imposto por um dever de honra, a segunda reparação que lhe ofereço valeria a realidade de uma suprema aspiração da minha alma. Seria eu o esposo de Maria Polovtzé, correndo jubilosamente todos os perigos de um

casamento sem as licenças legais, exigidas a um homem nas minhas condições.

Cada vez mais surpreendido, mais propenso a crer que Polovtzé não era o que aparentava como por vezes êle próprio desconfiara, Farinelli ia para lhe dizer umas palavras de estranheza.

Não pôde. Alguém abriu a porta de repelão.

Era João Polovtzé, a quem uma legítima curiosidade e uns plausíveis receios haviam levado para junto da porta interior da saleta. Escutara. Ouvira apenas as propostas de reparação.

Entrou num excitamento de alucinado.

- Aceito a primeira. Agradeço o juízo que faz do meu carácter. A segunda é uma brutal ofensa. Está ali dentro um homem em perigo de vida. Não se dirá que foi ferido pelo esposo de minha filha num duelo que não é fácil de classificar. A segunda reparação, só se eu tiver morrido, ou se me quebrarem num calabouço a minha autoridade de pai. É suprema afronta vir a esta casa propor as festas de um noivado nas vésperas talvez de um enterro!

- João Polovtzé!-disse o médico, procurando moderá-lo.

- Aceito a primeira - repetiu ainda mais arrebatado - Não pode querer, nem quere outra, o homem que foi Conde de Pultusk.

- O que diz?! - acudiu o italiano, indo para êle num acabrunhamento de surpresa e de receio pela sua sonhada fortuna.

- Nesta hora de desesperos não há segredos que eu não despreze! - respondeu o polaco.

- E que eu já sabia, senhor Conde - acudiu Luís de Castro empalidecendo - Não ousaria vir aqui, nem mesmo lealmente como vim, se não soubesse que o meu adversário, o provocador, era apenas um amigo e não um filho seu, senhor Conde.

- Para a vida e para a morte, o prometido noivo de Maria Pulaski.

- Matava-me êle por ciúme, se a sua bala fôsse tão certeira como foi a minha.

- Mande-me os seus padrinhos e veja se tem idêntica fortuna comigo. Peça a uma bala que lhe obtenha a licença para desposar Maria.

- Que desalmada iniquidade a sua para mim, senhor Conde!

- Hei-de ver se num duelo regular, à luz do dia, um oficial do exército deste país pode provar comigo a coragem que mostrou de noite, naquele outro duelo que ninguém viu. Mas que seja sem demoras, para que não chegue a polícia primeiro.

- Não chegará. Defendo-lhe eu o seu segredo.

- Pois prove então que não lhe falta o ânimo para jogar a vida, quando alguém possa ver como a jogou. Comigo, ao menos. Comigo, que já nada receio.

Numa tremura de epiléptico, o rosto velado de sombria palidez, Luís de Castro avançou alguns passos, mas conteve-se num extremeção de arrependimento. O insultador era o pai de Maria.

- Hei-de provar-lhe que também não sou dos que receiam a morte.

- Nós, lá na Polónia, vamos para ela, sabemos morrer nos campos de batalha, aqui abandonam-se as fronteiras ao soldado invasor - acudiu Pulaski altivamente, com rancoroso desdém. - Nós lá sabemos procurar a morte!

- Nem sempre - replicou Luís de Castro numa vibração de raiva.

- E porque a procuravam e a não temiam foi que a Polónia de Casimiro, o Grande, e de João Sobieski, o Triunfador, chegou a ser a nação mais vasta da Europa, com as suas fronteiras até à Itália e até à baixa Alemanha, parte da Rússia como um domínio seu, a Prússia e a Baviera territórios da soberania polaca, a Suécia uma dependência da sua suserania ovante.

- Teve e tem domínios maiores esta nação onde o Conde João Pulaski veio asilar-se. Avassalou no mundo um império maior do que a Europa, tem ainda no mundo um domínio do tamanho da Europa. Conheço a história gloriosíssima da sua Polónia, Conde de Pultusk, mas conheço também a história épica desta minha terra portuguesa. Há uma diferença enorme entre as duas. A Polónia fêz os seus prodígios quando era um povo de doze milhões de eslavos, Portugal, os seus, quando apenas era um povo de dois escassos milhões de portugueses! O polaco estremeceu num arranque de orgulho patriótico e replicou convulsivo:

- Opondo o peito a noventa invasões de tártaros, duzentos anos a vencer o Turco, a Polónia defendeu a Europa e a civilização da barbaria muçulmana, fêz do seu coração heróico um dique inacessível contra o qual se quebrou vencido o mar imenso das turbas orientais.

- Nós, os de Portugal, subjugámos os mares, que estavam escondidos numa noite pavorosa de quatro mil anos de lendas, subjugámo-los para ferir de revés a águia muçulmana, cravando a nossa bandeira no seu luminoso ninho do Oriente. Defendemos a civilização da Europa, tornando-a maior e mais poderosa, dando-lhe para se expandir essa metade da terra que a Europa desconhecia e os nossos navegadores levaram duzentos anos a descobrir até os confins do mundo. Decaímos, fraquejámos? Como a Polónia decaiu e fraquejou. Com que direito, Conde de Pultusk, pretendeu cuspir uma afronta sobre este país enfraquecido?

- Com o direito que me dá isto que eu vejo e sei.

- Hesitações, desvarios, fraquezas? Pregunte à História da sua Polónia como as nações de mais altivo esforço podem cair desgraçadamente, numa hora de desvairamento político. Pregunte-lho, Conde de Pultusk. Ela lhe dirá como se pode cair ainda mais baixo do que isto caiu.

Os seus parlamentares, as suas dietas, vendiam-se ao estrangeiro, as sôfregas ambições dos grandes traíam a causa santa da pátria, reis estrangeiros, chamados pelo facciosismo partidário, firmavam tratados de alienação da terra polaca, e a nação dos mais heróicos soldados que teve a Europa cedeu, dobrou-se à Rússia, à Áustria, à Prússia, oprimida, ludibriada, feita em pedaços! A estrebuxar nas malhas das suas próprias intrigas de facção, como leoa enlouquecida entre os laços de uma armadilha, fácil cometimento foi assassiná-la. A espada épica de catorze séculos quebrou-se, a Polónia morreu.

- Mentira! Luta ainda - bramiu Pulaski numa convulsão de cólera e de mágoa.

- Como Portugal há-de lutar, assim o espero.

- Se lhe acudirem os ingleses - objectou, rancoroso.

- Como ao ducado minúsculo de Varsóvia acudiram os batalhões de Napoleão.

- Foi a paga de serviços heróicos dos soldados da Polónia.

- Eu sei. Na batalha de Magliano trezentos polacos da legião de Kuiaziewicz bateram cinco mil napolitanos.

- Um contra dezassete e venceram. Precisavam cá desse exemplo.

- Engana-se, Conde. Temos outros, nossos, maiores. Algumas vezes, em Marrocos, vencemos um contra vinte, em Diu, contra mouros e turcos, um contra quarenta.

- Então têem mudado muito! - replicou Pulaski torvamente, com um propósito brutal de afronta - Agora bastava homem para homem, mas os galãs do exército, oficiais de uma legião de paz podre, preferem desacreditar mulheres a irem expor o peito contra as baionetas francesas, defendendo a pátria ultrajada!

- Mente! Mente como um torpe caluniador! - exclamou Luís de Castro numa vibração sibilante repassada de amargura, tremente de cólera.

E foi para êle de repelão, as mãos estendidas para o esbofetear.

Farinelli, que estava a prever e a recear aquele desfecho, meteu-se de permeio, lívido de medo.

- É um velho! - exclamou o italiano. Castro reteve-se oprimido.

- Para um desagravo de morte, faça de conta que sou da sua idade - bramiu o polaco - Na minha raça o ânimo para morrer não se mede pela idade.

- Do meu sangue nunca houve quem tivesse medo de morrer. As minhas testemunhas estarão aqui amanhã.

- Espero-as - rouquejou o polaco friamente.

Apesar desta estonteadora cólera que o fizera esquecer do seu projecto de fuga e de todos os propósitos de moderação, o Conde sentia-se oprimido por aquela réplica vibrante de sinceridade e de comovido pundonor. Aquele moço oficial respondera mais pela Pátria do que por si próprio, a alma sentia-se-lhe palpitante no ardor convulsivo das palavras.

Não podia deixar de as sentir o coração de um polaco e aquele conspirara jogando a vida e a fortuna, pela sua grande pátria morta.

Havia uma expressão de tristeza e de mal contido desespero no rosto de Farinelli.

O Castro saiu, acompanhado até à porta por um criado negro.

O moço oficial ia como aturdido. Resolveu procurar naquela mesma noite dois oficiais das suas relações que fossem entender-se no dia seguinte com os padrinhos do polaco.

- Foi uma loucura! - pensava, admoestando-se. - Uma tolice de novela cujo desfecho violento eu devia ter previsto, se os meus quixotescos escrúpulos e este doido coração me deixassem reflectir serenamente. Agora sem remédio! E quem sabe lá com que trágico desenlace? Matá-lo a êle?! Um inferno de remorsos! A minha pobre Maria!

Era difícil passar nas ruas perpendiculares aos grandes cais do Tejo. Estavam atravancadas de carroças, de galeras de carga, de padiolas, de galegos ajoujados de fretes, de carroceiros que praguejavam à espera de vez, de gente humilde que parara a ver aquela trágica mudança.

Os homens ainda tinham o desafogo das cóleras inúteis, as mulheres, essas choravam alto, lamentando os que tinham de partir e os que deviam ficar.

De quando em quando, passavam frades a pedir resignação, a indicar o supremo remédio da oração no refúgio das igrejas, ainda abertas como em sexta-feira da Paixão.

E como a luz mortiça dos pobres candeeiros da iluminação pública não chegava para alumiar aquele caminho sinistro do embarque, os lacaios das casas ricas ladeavam as carroças com archotes acesos.

- Está-me a lembrar a procissão dos fogaréus!

- disse comovidamente um artífice do Arsenal.

- Na véspera da Paixão! - acudiu uma velhita.

- Má raios partam quem nos pôs nesta desgraça!

- praguejou uma regateira do Rossio.

- Dantes, são os livros que dizem - comentou um barbeirola adoutorado - a Corte fugia com receio da peste.

- A peste era cá para a gente reles! - observou a regateira.

- Agora - continuou o barbeiro - foge dos soldados estrangeiros!

- Pudera! - acudiu outra vez a colareja. - Cá fica o povinho para se aguentar com eles.

- Sangue reles - disse um velho - podem os franceses regar com êle essas ruas, que não faz falta a ninguém! E depois lá se mandará p'ró Brasil a conta dos que morreram.

- Que a das lágrimas ninguém seria capaz de a fazer!

- Tempos antigos! Homens doutro tempo! - comentou o barbeiro que lia histórias - Quando o Mestre de Aviz disse por fingimento, para experimentar o povo, que se ia abalar para Inglaterra, deitou-lhes as mãos às rédeas do cavalo o mestre tanoeiro Afonso Eanes, que era o chefe da arraia miúda e da gente dos ofícios, e disse-lhe que tal não consentiria o povo, pois tinha alma para ir contra os castelhanos e não podia ir sem pessoa que o governasse. E foi, e os castelhanos levaram para o seu tabaco, naquela grande batalha real de Aljubarrota, que foi a sova maior que eles têm apanhado em dias de sua vida. Cada um dos nossos contra cinco de Castela e até a ralé esfarrapada(1) batalhou ao par da gente fidalga!

- Isso foi tempo! - comentou a colareja.

- E à frente deles o que havia de ser rei.

- Agora está tudo mudado! Fica a gente, eles fogem!

- Ah! bom terramoto de hoje para amanhã! - disse dali,rancorosamente,um carpinteiro do Arsenal.

- Credo! Longe vá o agoiro!

- O Tejo fazia as naus em lenha e ficava tudo enterrado de uma vez! Os franceses que fossem antão ao fundo do rio pescar os diamantes e as açafatas do Paço.

 

*1. A peonagem de ventres ao sol, conforme o dizer de um nosso velho cronista, émulo do espanhol Ayala e do francês Froissart.

 

- Schiu! - avisou uma rapariga - Vêm ali dois moscas da Intendência.

Eram dois agentes de polícia que vinham abrindo caminho aos encontrões.

Assomava ao topo da rua um coche aos solavancos, ladeado de archotes. Atrás uma patrulha de cavalaria da Guarda Real da Polícia.

- Quem quer que é, tem medo que o tempo lhe fuja, e vai já para bordo!

- Ou tem vergonha de embarcar de dia.(1) Assim que a patrulha passou, estrugiu de novo o

berreiro de impropérios dos carroceiros e dos galegos impacientes.

- Esses almas do diabo, lá adiante, que deixem passar a gente! - gritou um carroceiro.

- Lobos os comam! Estou aqui há meia hora encurralado!

Todos à uma queriam seguir para diante. Chocaram-se as carroças, as galeras, as padiolas, foi uma confusão estonteante, uma barulhada ensurdecedora de pragas, de insultos, de obscenidades, de gritos da gente Curiosa no receio de ser atropelada.

Do alto de uma galera veio a terra um baú enorme, cujos fechos se despregaram, e logo em cima dele uma arca antiga que rebentou pelo tampo, entornando na lama panos de Arraz e veludos franjados de oiro, a envolverem a fronte de grandes imagens douradas de santos, peças grossas de baixela de prata, quadros de guerreiros vestidos de aço e retratos de cardiaes vestidos de púrpura.

- Levam tudo! - comentou amargamente um homem do povo.

- Parece a mudança de quem não tenciona voltar!

 

*1. «Houve de entre eles (os da Corte) quem, temendo-se das iras do povo, preferiu seguir para bordo à sombra da noite, e às escondidas». (Pereira da Silva, História da Fundação do Império Brasileiro, tomo I).

 

Luís de Castro fora obrigado a parar. Assistiu de coração oprimido e olhos rasos de lágrimas àquela doida azáfama para fugir.

- Pobre povo! pobre país! E por meia dúzia de ineptos, de cobardes ou de traidores que o governam, somos o escárnio do mundo! Já não falta quem se atreva a considerar-nos a todos uma canalha de poltrões! Acabou-se! Agora, quem fôr homem de brios, que veja como há-de morrer dignamente.

Foi para o Terreiro do Paço. Estava ali uma guarda forçada do seu regimento e com ela dois oficiais seus afeiçoados. Seriam rendidos no dia seguinte de manhã, pedir-lhes-ia que fossem os seus padrinhos.

- A minha pobre Maria! - pensou.

No cais das Colunas, como nos outros do Arsenal de Marinha e da praça de Belém, ia uma balbúrdia espantosa, a que a chama vermelha dos archotes dava tons de trágico pavor. Na escuridão do rio tremeluziam tristemente as lanternas das faluas, ajoujadas de carga, mais ao longe bruxoleava o farol alto dos navios, de escotilhas abertas para receberem os bens móveis dos que desertavam, espécie de salvados do naufrágio político de uma nação!

 

                   O grito duma louca.

Lisboa despertou mais cedo, se é que houve lar de gente portuguesa onde alguém pôde adormecer.

Tinham cessado as águas torrenciais dos últimos dias. Na véspera caíram apenas uns choveiros.

Amanheceu claro, o céu estava desanuviado e lúcido naquela manhã de 27.(1)

Havia de ser um belo dia de Novembro, como eles às vezes são lindos neste céu de Lisboa, a lembrar os tons suaves do céu italiano e os rútilos fulgores do céu oriental. Para mais doloroso contraste naquela desgraça aviltadora e para maior saudade daqueles que não podiam deixar de partir!

Saiu toda a gente para a rua, alguns ainda na dúvida consoladora de que a esquadra partisse.

 

*1. «Bela e serena raiou a manhã de 27 de Novembro de 1807»... (História da Fundação do Império Brasileiro, por Pereira da Silva, tomo I).

 

À missa das almas as igrejas encheram-se. Pobres crentes, apelavam para Deus, já não podiam apelar para os homens que iam fugir.

Apinhavam-se milhares de pessoas nos altos da cidade de onde melhor se via o mar, nas Chagas, em Santa Catarina, na Rocha do conde de Óbidos. Iam as ruas de lés a lés, uma levada de gente que jorrava para os cais e para as ruas de Belém.

A Guarda Real da Polícia concentrara-se na cidade, para acudir em força onde quer que a alma da nação tivesse a veleidade de gritar, num arranque de revolta contra tudo aquilo.

Ainda escuro e já se ouviam os tambores de uns regimentos que tiveram ordem de embarcar.

A brigada de marinha estava já toda a bordo.

Mas correu logo entre o povo que dois ou três regimentos dos que deviam partir se haviam insubordinado, recusando-se a embarcar.

- Era o que todos eles deviam fazer - disse alto um sargento de veteranos, entre o povoléu da Alto das Chagas - Revoltarem-se todos, chamarem a si os da infantaria de marinha, e ala por aí fora à espera dos franceses.

- Meu velho, falta quem os leve, falta a cabeça!

- O nosso mal é esse - objectou-lhe outro velho, um colega seu da marinha, veterano havia três anos. Fora da guarnição do brigue Minerva, um navio glorioso da Armada, que em 1800 se batera heroicamente contra uma fragata francesa.(1)

- Dizes bem, camarada! Os que podiam mandar encolhem-se. Raio de gente, que nem parece a mesma que era! Havia de eu poder falar com esses fracalhões

 

*1. Em 1800 o brigue Minerva pelejara gloriosamente contra uma fragata franceza, rivalisando com a famosa corveta Andorinha, já assinalada por dois notáveis combates com navios franceses em 1797 e 1799.

 

que têm governado isto e então lhes diria que os franceses não são nenhuns bichos de sete cabeças. Eu bem sei como eles se batem e como os de cá são capazes de se bater. Olhe você o meu brigue Minerva. Aquilo é que foi! E a fraganota francesa de volta com êle, e nós, nem por sonhos o pensamento de arriar a bandeira daquela casca de noz, toda esburacada. Você bem sabe como a nossa gente é quando tem homem de alma que a saiba mandar.

- Oh! se sei! Olhe, cá está a marca do contraste - disse, mostrando ufano uma larga cicatris na mão esquerda. - Foi num daqueles danados combates de Ceret. E demos nas ventas para trás aos tais republicanos, que não eram menos valentes do que esses que aí vêm agora por conta do tal Napoleão.(1) Homem! Que demónio! Isto foi ainda não há quinze anos e já toda a nossa gente havia de ter dado em borra-botas, como esses que se vão pôr ao fresco?!

 

*1. Foi na campanha de Novembro de 1793, no Russilhão. As tropas francesas do general Dagorbet foram repelidas nas balarias de Deret, que tinham assaltado com assombrosa bravura. O combate foi tenacíssimo, sanguinolento, os franceses batiam-se como leões, mas os espanhóis do Conde de União, com quatro regimentos da divisão auxiliar portuguesa, conseguiram repeli-los e pô-los em retirada, tomando-lhes uma parte da artilharia.

Os regimentos portugueses, chegados de uma longa e penosa marcha, sob os horrores da invernia, cobriram-se de glória naquele rude combate, segundo o próprio testamunho dos generais espanhóis.

Naquelas campanhas de Russilhão e Catalunha (1793-1795) a divisão portuguesa tomou parte nas acções victoriosas de Ceret, Ville Longue, La Roca, Porl-Vendres, Saint-Elme e Collioure. Em que duas desastrosas retiradas os soldados portugueses sustentaram admiravelmente as tropas espanholas, esbandalhadas pelo terror pânico, ficando famosa a de 17 de Novembro de 1794, na batalha da Montanha Negra, em que morreu o general francês Dugommíer.

 

- Que quere você? Ainda parece que foram outro dia as proezas do meu brigue e as da corveta Andorinha, e veja lá para que serve agora a armada! Para aquilo. Para levar medrosos e carregar bagagens!

Tinha apontado para as bandas de Belém, indicando as oito naus, as quatro fragatas, três brigues e uma escuna da esquadra do vice-almirante Manuel da Cunha Souto-Maior. Era uma soberba esquadra com 792 canhões e cerca de cinco mil homens de guarnição.

No Tejo ficavam incapazes, ou em concerto, quatro naus, cinco fragatas e uns navios pequenos.

- E para isto mandaram regressar ao Tejo a esquadra que estava no Mediterrâneo! - exclamou o velho sargento de marinha. Olhe, além, aquela grande nau. É a Príncipe Real, de 84 peças. O navio almirante. Ouvi que é naquele que vai Sua Alteza.

- Tão grande esquadra para fugir!

- E por ali fora, veja quantos navios mercantes, já de verga de alto. A frota para a gente e bagagens que não cabem na esquadra. Se me não engano, são uns quarenta navios.(1)

- Levam tudo o que havia de melhor na cidade!

- Riquezas, riquezas que nem a gente lhe sabe fazer a conta, homem de Deus! Ontem à noite ouvi eu no Arsenal que levam p'ra riba de cem milhões de cruzados em tudo o que está a bordo.(2) Só as riquezas da Casa Real! Pudera! Vai quási toda a fidalguia da Corte, comerciantes ricos, eu sei lá! Algumas quinze mil pessoas, ouvi eu dizer!(3)

 

*1. Quarenta, segundo as memórias e os historiadores daquela época.

  1. Os cronistas avaliam em oitenta milhões de cruzados as riquezas de várias espécies, jóias, moeda, artefactos, riquezas preciosas da arte e da história, embarcadas naquele dia para o Brasil.
  2. Quinze mil pessoas, conforme os cálculos dos cronistas do tempo.

 

- Sim, o resto fica para as unhas dos franceses!

- Portugal é como aquelas naus velhas e podres, que já se não podem mexer! - disse, afogueado, o antigo sargento de marinha, apontando o arcaboiço escalavrado das naus São Sebastião e D. Maria I, a virarem a proa rasa ao refluxo da maré.

Tinham-se levantado cedo no palacete de D. Matilde de Castro.

A pobre senhora só tivera sobre a madrugada um sono de pesadelo. Manuel de Albuquerque e o Mar e Guerra levaram metade da noite a passear na salita de jogar, relembrando, num desespero de mágoas, o que este país fora e era agora. O Manuel, com umas ideias doidas, que Jerónimo de Castro, mais reflectido e menos assomadiço, procurara rebater por absolutamente ineficazes e de alucinada aventura naquelas circunstâncias.

Henrique tivera uma triste noite, hora a hora a cismar nos ruins pronúncios do seu noivado.

O casamento efectuara-se dois dias antes, muito à capucha, na capela do palacete, com a exclusiva assistência dos padrinhos e das pessoas da casa.

Luís nem se deitara. A vergonha do país oprimia-o tanto como o entenebrecido sonho dos seus amores. Fazia-lhe medo o duelo com o polaco, medo por aquela encantadora mulher que uma bala ou um golpe de espada podiam deitar na orfandade. Por si, nem sombra de receio. A morte seria talvez uma solução misericordiosa para o seu coração de amante e de patriota.

A Pátria podia considerar-se morta, e a filha do polaco rejeitaria, em convulsões de remorso e de pavor, a mão de esposo ou as carícias de amante de quem lhe houvesse morto o pai.

E não podia deixar de ser um duelo funesto.

A ofensa enorme, brutal, não fora só contra a honra de um oficial do exército, mas de insulto para todo o exército, para todo o país, numa acusação de cobardia.

Foi uma loucura da sua lealdade ter ido a casa daquele homem, que no desvairo das suas mágoas o havia já insultado naquele lance em que Miguel Platow caíra varado por uma bala.

Agora não tinha remédio nem solução que não fosse um sacrifício de remorso ou de morte.

  1. Matilde tinha de ir ao bota-fora. Para beijar a mão da rainha-mãe, a pobre louca, de quem por largos anos fora dama de honor, a mais enternecida das suas damas numa familiaridade quási de irmãs, e para se despedir da Família Real, que sempre tivera para ela excepcionais afectos.

Era um dever do seu coração e da sua categoria. Depois embarcavam também parentes e amigas suas, às quais queria dizer o adeus da partida, quem sabia se para nunca mais se verem?

Não podia faltar. Num confrangimento de alma, como quem vai aos funerais de alguém muito querido, mas tinha de ir.

Na véspera prevenira o Henrique para a acompanhar. O Luís tinha mandado dizer que recolheria tarde por motivo de serviço no seu regimento. E recolheu alta noite.

Com o irmão, o Mar e Guerra, não podia ela contar.

Logo que se vestiu, mandou recado ao Luís para lhe ir falar.

Não se tinha deitado, como dissemos, e veio logo. Beijou-lhe a mão com singular enternecimento.

- Tenho de ir ao cais de Belém. Teu irmão Henrique vai, é preciso que tu vás também.

- Minha querida mãe, por quem é, poupe-me a essa dor de vergonha!

- És um fidalgo da Corte, tens recebido do Paço as mais altas provas de estima, deves ir beijar a mão soberana que tantas vezes se estendeu para ti carinhosamente, em dias de menos infortúnio. Vão parentes nossos, muito chegados, seria desapego de homem rústico faltar-lhes nessa hora de despedida.

- Manda, minha mãe. Vou. De rosto afogueado e coração oprimido!

- Também eu, filho! Na nossa família as mulheres também têm coração para sentir as desgraças da Pátria. Vai arranjar-te. Não te demores.

Luís saiu acabrunhado.

- E este suplício moral, horroroso, é que ela nem pode sonhar! - ia dizendo consigo numa profunda amargura de alma. - Tenho de ir como alguém a quem vergastaram o rosto.

Não havia decorrido um quarto de hora e já o coche antigo, opulento, estava à porta com duas soberbas parelhas de muares de Alter, presente do Príncipe Regente, feito no ano anterior.

Henrique obtivera licença para não ir ao quartel do seu regimento durante quinze dias, mas, apesar disto, o ajudante mandou-lhe um bilhete, precatando-o para qualquer acontecimento grave.

O regimento estava de prevenção no quartel, - dizia-lhe - dois regimentos insubordinaram-se, recusando-se a embarcar, havia informação de que a soldadesca daqueles corpos andava com a populaça, aos magotes pelas ruas. Receavam-se desvarios e o coronel mandava-o avisar de que seria chamado ao quartel, no caso de se complicarem as coisas, para tomar o comando da sua companhia, dada a previsão do regimento ter de sair para a rua.

Foi prevenir a mãe. Era dever não sair senão para o quartel.

- És mais feliz do que eu - disse-lhe o irmão.

- Do meu regimento ninguém se lembrou de me mandar prevenir.

  1. Matilde veio da casa do toucador pronta para sair.

Apareceu o irmão com o Manuel de Albuquerque.

- Vão, vão! - disse o Mar e Guerra amarguradamente - Vão assistir a um embarque a que se não assiste duas vezes na vida de uma nação! Mas Deus me livrasse de ir! Já sei que dos gloriosos navios do meu tempo só vai a nau Afonso de Albuquerque, a de Tripoli e de Corfú. Nau recoveira agora, com uma carga de poltrões, no porão o lixo dos palácios! Estragaria eu o bota-fora, se lhe visse no penol a sua altiva bandeira de outros tempos. Vão, vão! Sua Alteza Real tem boa memória. Se preguntar por mim, desculpem-me. Mana e senhora minha, queira dizer-lhe que se me agravaram agora os ferimentos que me fizeram os marinheiros compatriotas de Junot! Eu contei uma vez em Queluz, a Sua Alteza, a história toda do combate com a fragata Chiffone.

- Parece-me que tem vontade de mortificar-me!

- alegou a irmã tristemente.

- Não é, não. Desculpe-me. É vontade de desabafar seja com quem fôr. Eu cá fico. E, ao menos, aqui não se podem ouvir as salvas do embarque. Haviam de parecer-me salvas de exéquias. Vão!

O Manuel de Albuquerque não dizia palavra. Tinha no olhar um estranho fulgor, como se fosse o olhar de um louco. De vez em quando sacudia os ombros num estremeção de nervoso.

Luís foi beijar a mão do tio Jerónimo, comovidamente.

Sairam num acabrunhamento de tristezas. Ouviu-se em baixo o rodar pesado do coche.

- Eu vou ler o meu livro de responsórios por esses gloriosos finados de quem parece mentira que a gente descenda! - disse o Mar e Guerra.

- Bem sei. Vais ler os Lusíadas - volveu-lhe o Manuel de Albuquerque, rouquejando. - Lembraste bem.

*Vou tirar da livraria de tua irmã aquele exemplar de encadernação doirada que estive ontem a folhear.

- Para o leres não é preciso. Está ali o meu.

- Obrigado. Aquele é para oferecer.

- Para oferecer! - repetiu o mutilado, encarando-o muito, como se receasse que êle tivesse enlouquecido.

- Não endoideci, descansa. Faço um furto de boa intenção patriótica. Tua irmã não mo perdoará. Vou buscá-lo.

- Olha que ela pode escandalizar-se!

- Se os franceses de Junot mo não saquearem da minha casa de Abrantes, como saquearam as botas, tenho um exemplar de mais preciosa encadernação para oferecer a minha cunhada, em resgate desse que lhe vou levar. Até logo.

- Sais agora?!

- Preciso de ir dar umas voltas, de ver umas coisas espantosas.

- Tu pensas nalgum desvairo, Manuel!

- Por'ora, não. Fica tranquilo.

- Vais para Belém, estou a percebê-lo.

- Talvez, para ver a cara com que aquela gente embarca. Irei como um pobre diabo entre a gente humilde. Quando fôr da entrada de Junot, então sim. Hei-de ir à recepção como quem sou. Vai lá para o teu livro de horas, Jerónimo, daquelas soberbas horas que nunca mais voltaram, nem voltam! Até logo.

- Vê lá, Jerónimo!

- Dou-te a minha palavra de honra que vou no propósito de não dizer aos gritos o nome que tudo aquilo merece.

E saiu sacudidamente.

O coche de D. Matilde chegou à praça de Belém a escorrer lama. Apesar do melhor tempo, as ruas estavam como atoleiros, a praça era um charco.

Já tinham chegado outros coches. Estavam lá muitas seges, cadeirinhas e berlindas. Embarcava quem podia embarcar, à lufa-lufa, numa confusão indescritível, de fugida, como se tivessem vergonha daquilo.

Os mais apressados da Corte nem esperavam pela Família Real! Iam indo adiante. Para fugir quanto mais depressa melhor.

Assim como se tivessem medo que o Príncipe Regente se arrependesse ou o povo se revoltasse.

Descendentes dos heróis dos Lusíadas, numa tristeza encolhida de gatos pingados, a esgueirarem-se para as lanchas das naus, emporcalhados pelo lamaçal da praça! Damas, que foram os astros fulgentes do Paço, a correrem para o cais com a orla dos seus vestidos caros enlameados nos charcos, sem se atreverem a olhar para as outras mulheres, as da ralé, as que ficavam para expiação dos erros desses que partiam! E quantas dessa ralé, numa compaixão ingénua, a chorarem de dó pelas outras, opulentas, soberbas, que iam salvar-se de angústias e trabalhos, só com aquele aborrecimento das lamas na fímbria dos vestidos e aquele incómodo longo da viagem, deixando um oceano entre a pátria invadida e os seus nervos crispados de terror.

- Deus as leve na sua guarda, senhoras! - disse-lhes piedosamente uma velha de pele rugosa, tisnada, mãe de um barqueiro.

- E seja também por nós, pelos nossos filhos! - acudiu outra, ainda moça, com uma criancita galreadora ao colo.

Passavam de afogadilho generais, grandes do ino, cónegos, frades, a gente grada da cidade. E com eles os lacaios, os moços de estribeira, os negros, os serventuários.

- Vão com pressa! - comentou um calceteiro.

- Têm medo que os franceses cheguem antes que as naus se metam à barra - rouquejou um arrais octogenário.

Saltaram de um coche brasonado umas damas de radiosa mocidade. Atrás as negras, esbaforidas, com gaiolas douradas de pássaros raros.

Uma das senhoras levava ao colo um saguim, muito aconchegado no forro de peles do seu mantelete rico.

- Até os macacos! - disse com amargo escárneo a mulher que tinha o pequenito ao colo. - Nós cá ficamos com os filhos, a esperar os franceses!

- Os ministros, ali! - apontou um maltrapilho rancorosamente.

- Bandalhos! Tamem eles fogem!

- Pudera não. Dizia meu pai que no dia do terramoto os ratos fugiam como doidos quando as casas começaram a tremer.

  1. Matilde apeara-se com o filho. Despediam-se de umas parentes que tinham chegado ao cais. Eram damas da rainha-mãe as duas mais idosas, a mais nova era açafata da princesa D. Carlota Joaquina, a espanhola de lamentável fama.

Naquela confusão louca de impaciências, vinham todos de roldão para o cais, sem escrúpulos de etiqueta nem preocupação de encargos palacianos.

As galeotas reais, de frisos de oiro e toldos de damasco, à proa o dragão doirado da Casa de Bragança, esperavam de remos levantados, os galeotes com o seu uniforme de gala.

António de Araújo viu D. Matilde e foi apresentar-lhe as suas homenagens e as suas despedidas.

Depois encaminhou-se para o meio da praça como que a ver se o Príncipe Regente chegava.

- É singular este procedimento de Novion! Nem uma patrulha da Guarda Real aqui! Se o povinho se amotinasse, podia o Regente sofrer um enxovalho! E tarda Sua Alteza Real! Quem sabe lá porquê? Estou com receio disto!

Acercou-se dele um homem de cabelos brancos, bem trajado, de aspecto marcial.

- Sr. Ministro, venho também às despedidas. Araújo fêz-se muito pálido.

- O sr. Manuel de Albuquerque perdeu o direito de me falar.

- Agora está tudo baralhado, fala cada um como sente e sabe. Disseram-me que v. ex.a chorou uma vez em Paris, quando lhe impuseram lá enormes humilhações. Venho trazer-lhe de oferta um livro para chorar, para v. ex.a chorar no remorso das suas responsabilidades, quando ler isso que fomos e lembrar isto que somos. Os Lusíadas, sr. Ministro.

- Retire-se!

- Hoje quem devia mandar não manda, não admira pois que desobedeça quem podia obedecer. Para v. ex.a e para os franceses eu sou dos que ficam. Há-de aceitar este livro. É um exemplar oferecido pelo Marquês de Pombal, por seu próprio punho ao pai de D. Matilde de Castro. Está escrito aqui o nome daquele antecessor de v. ex.a que nunca teve medo dos soldados da Espanha e da França e nunca fugiu. Há-de aceitá-lo, para seu maior remorso. Estou a percebê-lo, sr. Ministro. Os olhos de v. ex.a procuram alguém que me prenda. A Guarda Real está longe e eu nunca tive medo. Tenha cautela! Um grito bastaria para que as mágoas do povo se mudassem em cóleras de revolta. Sejamos prudentes, sr. Ministro. Isto é segredo para ficar entre nós. Bem vê como eu estou falando baixo.

Há-de de supor a gentalhada ingénua que somos dois amigos a despedirem-se enternecidamente. Aqui está o meu presente de despedida. Tem de aceitá-lo. Se o deitar fora, eu grito ao povo que um ministro de coração francês, conselheiro do Regente, arremessou a um charco de lama o livro das maiores glórias de Portugal, que ajudou a perder. Deite-o ao mar, se não pode com o remorso de o levar consigo. Voltará êle como salvado de um naufrágio, único salvado talvez! Voltará antes que v. ex.a volte. Aqui tem, cabe num bolso.

Cada vez mais pálido, Araújo afastou o livro.

- Faço o que prometi. Será um escândalo a amargurar a saída de Sua Alteza.

Receoso daquele assomadiço maluco, a temer um conflito que desse um grito de alarme à plebe, Araújo tomou o livro de má sombra.

- Eu lho agradecerei em ocasião melhor! - disse-lhe torvamente, num tom de ameaça.

- Percebo. Leia-o a sua Alteza Real. Isto há-de levantar-se, e o sangue há-de fazer o seu dever, e quando lá o souberem no Brasil, diga-lhe v. ex.a aqueles dois versos a D. Sebastião.

E julgareis qual é mais excelente Se ser do mundo rei, se de tal gente.

Sentiu-se um sussurro enorme como de floresta ondeando ao vento. O povoléu redemoinhou. Ouviam-se aclamações e um choro alto de mulheres.

- Vem aí Sua Alteza Real. Boa viagem, sr. Ministro.

Chegara um coche da Casa Real, sem batedores, sem escolta de honra, só com os boleeiros e os criados da tábua.

Aqueles gritos tinham saído das primeiras filas do povo, ao pé das quais o coche real passou, rodando lentamente.

Gritos de aclamação e de lástima, denunciavam quem vinha dentro.(1)

Era o Príncipe Regente, afogueado, entristecido, a cabeça pendida para o peito. Vinha com êle o Infante de Espanha, seu sobrinho e hóspede.

Acercou-se do coche uma turba da plebe, mulheres que choravam, rudes jornaleiros, maltrapilhos que nunca tinham visto o Príncipe tão próximo de si.

As mulheres, coitadas, para lhe darem o voto das suas mágoas, a escorrerem prantos e a murmurarem preces, por êle e pelos filhos, como se aquele homem privilegiado fosse um irmão seu, de maior infortúnio que os seus próprios irmãos, que os seus próprios filhos da ralé que ficava.

Os homens para dobrar o joelho, em preito de vassalos, alguns deles estranhos cortesãos de pé descalço e de grosseira niza de saragoça, remendada, mais ordinários e muito mais pobres que os moços das estrebarias reais.

Mas os ministros e alguns dignitários do Paço, dispersos na praça, correram para o coche, mais por julgarem que era preciso defender o Regente dos atrevimentos da canalha do que para resgatar o desamparo em que o tinham deixado.

  1. João tinha já mandado parar o coche e pela portinhola aberta estendera a mão polpuda aos primeiros da plebe que, de joelhos no charco, tinham pedido a mercê de lhe beijar a mão.

Quiseram afastá-los, esses que supunham vir em socorro do Príncipe, mas êle não lho consentiu.

 

*1. «O Regente e o Infante de Espanha chegaram em um coche ao cais de Belém, sem acompanhamento de um só criado ou guarda, nem encontraram quem os recebesse oficialmente pela confusão com que tudo se efectuara. Foram apenas saudados pelos gritos sentidos e verdadeiras lágrimas do imenso povo que ali se achava aglomerado». (História da Fundação do império Brasileiro), por Pereira da Silva. Tomo I.

 

De olhos rasos de água, o lábio inferior descaído, numa tremura de enternecimento, D. João disse lentamente na sua palavra hesitante:

- Deixem... deixem. Querem despedir-se de mim, coitados!... Eu vou apear-me. Quero dizer adeus a todos.

As mulheres vieram para êle, a soluçar exclamações.

- Então, calem-se. Isto não há-de ser apartamento para sempre.

Mas tudo aquilo estava um chavascal, e um camarista do Paço, aparecido ali por não ter tido vez para embarcar, chamou uns barqueiros das primeiras filas do povo e acenou a dois cabos de polícia, recém-chegados também, para trazerem umas pranchas que servissem de estrado a Sua Alteza.

Havia-as em pilhas ao pé do cais. Eram salvados de uma barca afundada ali mesmo, poucos dias antes. Não tardaram com elas. Entretanto, o Regente recolhera dos beijos grosseiros da plebe a região dextra, para a abandonar aos lábios aristocráticos daquela meia dúzia de cortesãos, que, na ânsia da fuga, se tinham esquecido de ir ao Paço para o acompanhar.

Vieram com as pranchas e estenderam-nas ao pé do coche.(1) Estava armado o régio estrado com aquelas madeiras de uma embarcação afundada nas águas lodosas do rio! Parecia uma coisa simbólica.

Desceram o estribo do coche. D. João apeou-se. Recrudesceram os prantos das mulheres. Pediam para o Regente as bênçãos do céu, diziam-lhe adeus numa familiaridade de compaixão ingénua,

 

*1. «As chuvas dos dias anteriores formavam lamaçais difíceis de atravessar. Dois cabos de polícia, que por acaso apareceram unidos ao povo, lançaram pranchas sobre a lama», etc. (História da Fundação do Império Brasileiro, por Pereira da Silva Tomo 1).

 

solicitavam para êle o amparo da Senhora dos Navegantes, a Senhora de Belém, como séculos antes as mulheres de Lisboa quando D. João I embarcou para Ceuta, quando Afonso V partiu para Arzila, quando o Gama se meteu aos mares para ir descobrir o caminho da índia, Cabral para ir procurar o Brasil, Pacheco, Almeida e Albuquerque para irem bater o índio, o árabe, o persa, o mouro, o malaio, o turco.

Tem às vezes destas coisas esmagadoras a alma ingénua do povo!

Soluçavam-lhe adeus, como se êle fosse um dos seus, e todos à porfia lhe queriam beijar a mão. E beijavam, e então o Príncipe apertava as mãos deles nas suas, como se fossem de grandes do reino aquelas mãos calejadas, grosseiras, e despedia-se daqueles estranhos vassalos, em quem nunca reparara, como se houvessem sido alguma vez convidados seus nos serenins de Queluz ou familiares das antecâmaras da Ajuda!

Nem todos da plebe. Alguns apareciam também de mais alta procedência e a esses se comprazia o Regente de chamar pelo nome ou de lhes lembrar a ocasião em que os conhecera, com um certo envaidecimento pela sua prodigiosa memória, um dos dotes característicos da sua estirpe.

- Senhor! - disse alguém, dobrando o joelho. - Deus vos leve em paz e dê alento a Portugal para uma guerra em que estas desventuras se resgatem.

O Regente atentou nele com estranheza. António de Araújo tornara-se lívido.

- És Manuel de Albuquerque! Saíste do meu serviço em tenente-coronel. Lembro-me de ti.

- Mercê de Vossa Alteza Real.

- Disseram-me que eras animoso. Foste muito ferido no Russilhão.

- Uma vez em Ceret, vencendo, outra na batalha da Montanha Negra, vencido. Senhor, contra os franceses.

Agora, espero em Deus, que não fossem estes os últimos ferimentos que eu recebi deles.

- Não... não! Quero que o meu povo continue a viver em paz.

- Perdoe, Vossa Alteza, mas às vezes a paz é pior do que a morte.

E recuou para dar logar a outros.

- É um insensato - disse baixo o Araújo, inclinando-se para o Regente.

E durou ainda alguns minutos aquele beija-mão sem precedentes, umas pranchas, salvados de um naufrágio, como estrado sobre o lameiro de uma praça pública, a plebe arvorada em Corte, maltrapilhos como archeiros.

O Príncipe chorava. A instâncias dos ministros se foi abeirando mais do embarcadouro, por cima das pranchas.

- Pobre homem de bom coração! - dizia consigo Manuel de Albuquerque, a olhar para tudo aquilo tristemente - Para rei estragaram-no os frades no coro de Mafra a entoar cantochão enquanto os ministros lhe arrastavam o país. Agora põem-no a caminho do Brasil, quando o Junot vem a caminho de Lisboa. E era agora que se precisava da alma de herói e do pulso de ferro do Mestre de Aviz! Mas isto fica em paz podre. Em tanta paz, que até o ministro da Guerra vai também para fora!

E o olhar do bravo oficial de Ceret e da Montanha Negra foi cair sobre António de Araújo, atrás do Regente.

 

*«Confundiu-se o pranto do Regente com o do seu povo. Apertava a mão dos que se aproximavam dele. Dizia-lhes adeus com a voz comovida e entrecortada de suspiros doridos.» (Pereira da Silva, tomo I da História já citada).

«S. A. R. embarcou-se no dia 27, antes do meio-dia dando beija-mão no Cais de Belém.

 

Os galeotes tinham levantado os remos a prumo, em continência.

Os dois cabos da polícia levantaram nos braços o corpo obeso de D. João e desceram-no para a galeota doirada de oitenta remos.

Rompeu um alarido de choros e de aclamações.

- Com este povo, tão profundamente monárquico, tão impressionável, se êle fosse homem de querer, se se arrependesse e deliberasse ficar!... Dois mil homens desembarcados daquela esquadra, oito ou dez mil soldados de Lisboa... e o inverno nos ajudaria a enterrar os franceses de Junot!

Respondeu-lhe a salva da nau almirante. A galeota reluzente de oiro ia atracar ao seu amplo arcaboiço negro.

Os berros dos canhões, a lembrarem urros de algum monstro fabuloso a agonisar, estrondeavam pela amplidão do rio e repercutiam-se nas quebradas de Belém.

- O sonho de um doido este meu sonho! Não se arrepende! Não tem querer! - dizia Albuquerque.

A fumaceira dos tiros a esfarrapar-se ao vento ia cair sobre a linda Torre branca do tempo das conquistas ou esvoaçava como plumagem de neve contra a face monumental dos Jerónimos, o templo dos navegadores.

Casualmente, os olhos de Manuel de Albuquerque, rasos de água, seguiram o ondear daquela fumarada.

- Conta-se que dantes os sinos dobravam quando as armadas saíam para a índia - disse consigo - tantos eram já os naufrágios e tão grande o número dos que nunca mais voltaram! Pois agora é que eles deviam dobrar.

- A Princesa Real! - bradaram da multidão - A princesa espanhola.

- Vem aí agora. Cada um por sua vez!

Assim era. Emplumada, vaidosa, a morena espanhola desceu do coche arrogantemente, tomou pela mão o infante D. Miguel, e lá foi por cima das pranchas para o extremo do cais. As filhas mais velhas seguiram-na. As outras foram levadas pelas aias. Uma, a infanta D. Ana, muito pequenina, ia a chorar ao colo da ama.(1)

- Aquilo é que é proa de espanhola! - comentou uma mulher do povo.

A comoção arrefecera. O povo não podia ver a consorte do Príncipe Regente e segredou umas apreciações que a História não poderia reproduzir senão muito por alto.

Só as mães se enterneceram quando a infanta pequenina passou a chorar nos braços da ama.

- Olhem, e lá vai também a fazer beiço o jardineiro preto de Queluz.

- Está visto. Vai para tratar do jardim real de lá.

- Mas a Rainha-mãe, coitadita, é que ainda não veio!

- Antão essa também vai?

- Pudera.

- Há que anos a gente não a vê!

- Coitadinha da pobre doida! Contou-me um criado lá do Paço que está cada vez mais perdida de juízo e que outro dia andou uma manhã inteira a gritar que estava a arder nas fogueiras do inferno com o Pai e o Marquês de Pombal, entre os diabos!

- Credo!

- E o filho de joelhos diante dela, a chorar e a pedir-lhe que não gritasse! E ela a baralhar disparates em português e espanhol.

- Talvez antão a não levem assim doida, a pobre Rainha, que tanto tem padecido!

 

*1. Já estava embarcado o Regente, quando chegou ao mesmo cais D. Carlota Joaquina com os filhos. A princesa, suas filhas e damas e o infante D. Miguel seguiram em demanda da nau Rainha de Portugal. (História da Fundação do Império Brasileiro, por Silva Pereira, tomo I).

 

- Por culpa dos fradalhões e dos jesuítas - acudiu um sujeito de ideias avançadas, sócio de um clube secreto, figurinha de chapéu coçado e redingote no fio.

As mulheres olharam para êle com uma certa desconfiança hostil.

- É assim mesmo - insistiu o intrometido - Foram os frades e os jesuítas que lhe deram volta ao miolo, metendo-lhe em cabeça que o pai, el-reí D. José, estava a arder nas profundas do inferno, a chamar por ela, e o demónio a querê-la também para si por ter perdoado a morte violenta ao Marquês de Pombal. A cabeça da Rainha já era fraca, e aí têem porque ela endoideceu.

- Olhem, olhem! O príncipe novo, ali parado ao pé do aio, sem querer embarcar.

- E que desempenado rapazote que êle é! Bem empregados nove anos!

- E volta para trás, assim como se estivesse a esperar alguém.

- Reparem como êle levanta a cabeça! Aquele é que era capaz de mandar se o deixassem.

Era Pedro de Alcântara, o filho mais velho do Regente. Tinha o título de Príncipe da Beira.

- Não era para o Brasil que nós devíamos de ir! - disse o Príncipe em voz baixa para o aio.

- Viva o Príncipe D. Pedro! Viva o nosso Príncipe! - aclamou a multidão.(1)

 

*1. «Pedro de Alcântara demorou-se com seu aio no meio dos grupos do povo, que o saudava com estrepitosas demonstrações de afecto, como praticara com o Regente.» (Pereira da Silva, no tomo I da sua obra já citada, pág. 86 da 9.a edição).

Aquele rapazito de precoce energia havia de ser, anos depois, o primeiro imperador do Brasil e depois, em Portugal, o rei Pedro IV, implantador do sistema liberal. Acompanhando intrepidamente os seus soldados nas trincheiras do Porto (1833), correndo com eles os perigos e os trabalhos da guerra como um simples general, trabalhando êle próprio nas trincheiras, mereceu dos seus contemporâneos o cognome de rei-soldado.

 

  1. Pedro agradeceu enleado e disse baixo para o aio:

- Se eu governasse, não embarcávamos.

- A senhora Rainha! -gritaram os das primeiras filas da multidão, à entrada da praça.

- Viva a nossa Rainha!

- Deus seja por ela!

O príncipe foi para o coche em que vinha a sua desventurada Avó. O povoléu correu de roldão atrás dêle, em brados de aclamação e em clamores de choro.

Os boleeiros e os moços da tábua berravam à multidão para abrir caminho e queriam meter as muares a trote para o cais.

Mal segura por duas damas, já desgrenhada, com uma seca palidez de monja alucinada, olhos esbugalhados a debulharem-se em lágrimas, D. Maria I debruçava-se da portinhola, a dizer nuns gritos enrouquecidos:

- Mais devagar! Mais devagar! Hão-de dizer que fugimos!

Uns populares abriram a portinhola, desceram o estribo, deram-lhe os braços para ela se apear. A pobre louca desceu gritando:

- Todos para o inferno!

  1. Pedro correu para ela, beijou-lhe a mão e segredou-lhe carinhosamente:

- Avó, não há remédio! Mandam que vamos para longe. Os franceses vêem já sobre Lisboa. Não querem combatê-los!

- Pedro, sou eu a rainha! Sou eu! Não quero.(1)

 

*1. Com variantes de forma, mas na mesma essência de protesto, todos os historiadores portugueses daquela época, as memórias do tempo e os próprios escritos de estrangeiros,então residentes em Lisboa, dão testemunho daquele acesso de pundonor da rainha louca.

Pereira da Silva, o historiador do Brasil, escreveu na sua obra aqui largamente citada: «Começou a rainha a gritar, repugnando embarcar-se... Parecia às vezes ao povo que através da alucinação que ela padecia, raiava a luz do patriotismo que a incitava a não despegar-se da pátria, preferindo sujeitar-se à sorte dos seus súbditos. Houve quem sustentasse igualmente que, no meio das palavras impensadas que lhe escapavam dos lábios, ouvira-lhe dizer que não queria que se acreditasse que ela fugia diante de inimigos».

O general Foy encontrou em Portugal a impressão ainda viva daquele lance e refere-o a páginas 387 e 388 do tomo II da sua Guerre de La Péninsule.

Põe na boca da rainha louca esta frase de protesto: Eh quoi! nous quitterions le royaume sans avoir combatiu!

Ferdinand Denis atribui-lhe estas palavras: Mais de vagar: hão-de supor que fugimos!

 

Não fujo! Teu pai?... Manda tu os soldados... Que vão combater!

- Não a levem! - gritaram as mulheres.

- Ela quere ficar com a gente. Não a levem, coitadinha!

Mas uns dignitários do Paço acudiram e levaram-na em braços para o cais.

- Volta para o Paço. Depressa! - disse um deles ao boleeiro, no receio de que o povo metesse a rainha no coche para a levar.

O boleeiro chicoteou as muares, a empinarem-se já contra a mó da populaça.

Abriram-lhe caminho aos gritos, caindo uns contra os outros, mas as mulheres foram atrás da rainha num choro alto, e o coche voltou vazio para o Paço.

- A pobrezinha da louca! Não quere ir, não a levem!

Levaram. No cais ergueram-na em braços dois galeotes possantes, e ela a bracejar e aos gritos:

- Vou pr'ó inferno! Lá está a estátua de El-Rei, toda em brasa, e ao pé dela o Marquês, muito alto a gritar, não fujam, não fujam! A gritar e a rir de mim o Cabeleira, o Marquês que não tinha medo e Vergonha! Vergonha!

- Pobre Rainha louca! - disse Manuel de Albuquerque, um dos que seguira o coche - Deu-te Deus um momento lúcido para perceberes isto! A história dirá como tu disseste: Vergonha! Vergonha!

A galeota de oitenta remos vogou outra vez para a nau almirante.

Outra salva, outra fumarada, outro estremeção nos corações que ficavam. Aquela doida era a rainha, a mãe do Regente.

- Hum! Se o vento não dá volta, não é hoje que eles se metem à barra - disse alto um velho barqueiro.

Manuel de Albuquerque reparou num veterano que enxugava os olhos.

- Velho! - disse-lhe - já não é a chorar que isto se remedeia. Sangue, sangue é que há-de ser preciso. Até o teu, meu veterano.

- Mas... v. s.a é o senhor Manuel de Albuquerque!

- Eu mesmo. Conheces-me?

- Ora, não devia de conhecer! Capitão do meu regimento, valente como as armas! Os franceses iam-no matando na Montanha Negra.

Mas Manuel de Albuquerque nem ouvia metade do que êle estava dizendo. Não tirava os olhos de um livro que o veterano trazia muito seguro na mão esquerda. Era de pequeno formato e, apesar de enchafurdado de lama, percebia-se-lhe que tinha uma encadernação rica.

- Vieste para aqui de breviário?

- Isto não é meu. Eu não sei ler. Topei-o ali no cais, em riba da lama, e apanhei-o. Isto foi livrinho caído da algibeira de algum que ia com mais pressa de fugir.

- Deixa-mo ver. A encadernação pode muito bem ser igual à do outro - pensou.

Abriu-o na página do rosto. Agitou-se numa tremura de coléra. Lá tinha o oferecimento na letra grada e tremida do Marquês.

- Se te não serve, compro-to.

- Tenho muito gosto em o dar a v. s.a.

- Agradeço. Para mim vale muito.

- Parece um livro de orações.

- É, sim. De umas orações que todos os portugueses deviam saber e não sabem.

- A algum santo, se calhar?

- Sim. Ao santo padroeiro de um Portugal que morreu.

Meteu a mão na algibeira e tirou umas quatro moedas de prata, que meteu na mão do velho soldado.

- Toma para lembrança.

- Mas v. s.a dá-me tanto dinheiro!

- Cala-te, homem. Olha, estás ainda forte e para puxar o gatilho duma espingarda até os velhos servem. Se ouvires que há guerra contra os franceses, vai procurar-me à casa dos Castros, a Xabregas, e lá acharás quem te agradeça o incómodo. Ou lá, ou em Abrantes. Adeus.

Afastou-se relanceando um olhar para o Tejo. As naus nem se mexiam. O povo ficara a olhar para elas tristemente, assim como se fossem esquifes enormes num enterro em que estivessem esperando vez de seguir.

Foi-se desafrontando da multidão, meteu ao acaso para a banda dos Jerónimos, a resfolegar violentamente como alguém que tivesse um peso estupendo sobre o peito.

- Ah! Parece que tenho em cima do coração as âncoras daquelas naus!

Remirou o volume enchafurdado dos Lusíadas.

- Deixou-te na lama como deixou a Pátria! Não te podia levar consigo. Não podia. Eras um remorso para êle, falas alto demais para eles.

Havia de parecer escárnio por isto que eles fizeram, que tu, meu livro santo, lhe fosses bradando ainda na fuga, por essas águas fora, poema dos mares:

Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram, Cale-se de Alexandre e de Trajano A fama das vitórias que tiveram.

Deu uns passos para a praia. Envolveu a esquadra., lentamente, num olhar afogado de lágrimas.

- Aquela navegação! Aquela fuga! A rainha louca disse bem:

Vergonha! Vergonha!

 

               O duelo.

Anoiteceu. O Rossio estava ainda um lamaçal nojento, principalmente ao centro, que não era empedrado como foi depois.

Começava a envolver-se em sombras a frontaria ampla e torva do palácio da Inquisição, sucessor dos velhos Estaus, por largo tempo destinado à hospedagem de príncipes estrangeiros e embaixadores extraordinários. Reedificado depois do terramoto de 1755, o palácio continuou a ser uma construção ampla e pesada, sem nenhuma beleza arquitectónica. De algum valor artístico apenas sobre o frontão, estreito e banal, a estátua da Fé calcando aos pés a Heresia, notável escultura de Machado de Castro, um dos nossos estatuários mais distintos.

Tinham-se já retirado do centro da praça os alugadores de burros, emudecera o pregão dos vendilhões ambulantes, desapareciam em grupos os pretos caiadores.

Do lado do Arco de Bandeira estanciava unida uma fila de seges de aluguel, outra de cadeirinhas para as bandas de São Domingos.

Formigavam maltrapilhos para as bandas do moderno largo de Camões, onde o Duque de Cadaval tinha então uns casebres semi-arruinados, que arrendava à gente miserável.

Às esquinas, maltas de galegos, moços de fretes e de recados, alanzoavam graçolas, retoiçavam uns com outros aos coices com os sapatos ferrados ou zurziam-se por brincadeira, à bruta com os chinguiços imundos. Os acendedores desciam o braço de ferro dos lampeões públicos, firmados nas esquinas ou em frades de pedra e acendiam as grossas torcidas, embebidas em azeite. Havia poucos, e ao centro da praça nenhum. Aquela iluminação de tenuíssima claridade era um progresso recente. Vinha de 1801, dos tempos famosos de Pina Manique.

Algumas lojas estavam já fechadas. Emporcalhada e triste aquela praça então erma de árvores! Ali se fazia o estendal pitoresco, e ao mesmo tempo repugnante, dos cacaréus e da farrapagem da feira da ladra, em cada têrça-feira da semana.

Na triste desanimação de tudo eram excepções, relativamente brilhantes, os dois botequins, quási contíguos, do lado ocidental da praça, muito avizinhados da actual rua do Carmo.

Ali, sim. Ali havia luz a reflectir-se cá fora nas poças da rua, que o sol daquele dia 27 não pudera enxugar.

O Nicola, já famoso dos tempos boémios do Bocage, tinha só duas portas, mas era preferido ao outro seu vizinho, denominado das Parras, que era de três portas.

Lisboa não tinha o hábito da vida dos cafés, os homens de idade madura e de representação oficial não iam aos botequins.

Mas para os encher de vida turbulenta, aventurosa, doida, bastava a gente moça de farta bolsa e de alegria estróina.

Naquela tarde tinham os dois numerosa freguesia de faceiras e peraltas, de morgados tunantes e de oficiais do exército e da armada.

Logo depois do jantar cedo daqueles tempos se travara ali acesa discussão a respeito da próxima entrada dos franceses, da possibilidade ou ineficácia de qualquer tentativa de defesa, da fuga da corte e da proclamação do Regente, afixada naquele mesmo dia nas portas das igrejas e nas esquinas das ruas.

Naquela desorientação andavam mais soltas as línguas da mocidade que tinha por si o dinheiro e a força. A autoridade moral dos poderes dirigentes caíra de bruços no charco de Belém, mas a guarda real de Novion mais receava o povoléu das praças ou a soldadesca nos quartéis do que os frequentadores dos botequins.

Todavia, a distância, muito na sombra, alguns moscas da Intendência vigiavam o Nicola e o outro das Parras.

Houve apenas uma trégua brevíssima nas discussões enquanto se acendiam as luzes.

Naquela noite explicava-se a maior frequência pelos acontecimentos emocionantes do dia e pela falta de espectáculo em São Carlos. Com uma companhia assombrosamente inferior à dos anos anteriores, o teatro lírico tinha em volta de si, tristemente, uma densa atmosfera de saudades das épocas brilhantes da Catalani e da Gafforini, do Mombelli, do buffo Naldo e do famoso Crescentini, o tenor castrado como os tenorinos da Sé. A frequência dos diletantes tornara-se escassa e hostil.

Os empresários Bandeira e Caldas estavam fartos de perder dinheiro. Mas, ainda que assim não fosse, naquela noite de mágoas não podia haver espectáculo. Estava-se num tempo de luto nacional.

Tinham os criados acabado de acender as luzes e logo a freguesia, de momento a momento mais aumentada, recomeçou as calorosas polémicas da tarde.

Entremos nós também no Nicola. Uma inferneira de cavaco, uns de pé, gestos largos, violentos, outros abancados às mesas, mais serenos, de mansa filosofia, a beberricar, e os criados numa dobadoura para acudir às palmas e aos gritos dos impacientes.

A uma pequena mesa oficiais de marinha discutiam a situação da esquadra, sem poder fazer-se à vela por falta de vento favorável. E logo se fantasiava o que poderia suceder, se o vento continuasse a faltar e o exército de Junot chegasse a tempo de se apossar das fortalezas da barra.

- Faz pena vê-la partir!

- Pois se chegar ao Brasil - insinuou um deles - de lá mesmo poderá resgatar a humilhação a que a sujeitaram, caindo sobre a Guiana francesa e conquistando-a. É uma forte esquadra.(1)

A outras mesas, oficiais do exército discutiam o futuro tenebroso do país, peraltas fazendo a crítica das dançarinas de São Carlos de melhor rosto e de melhores carnes, marialvas contando casos de mulheres anavalhadas nos alcouces ou sovas de pau em homens zelosos da virtude das esposas e das manas.

Tinham entrado uns cantores de São Carlos, figurões de truna romântica, guiados por um espanhol de corpanzil atlético e farroncas de grã-capitão. Homem de meia idade, D. Leon Praxedes y Moriones viera para Portugal

 

*1. A mais poderosa que nos últimos dois séculos Portugal pudera reunir. Em qualquer marinha do mundo uma potente esquadra.

E foi a última, digna de semelhante qualificação.

 

como baixo secundário, no ano de 1793 em que se inaugurara São Carlos.

Era uma figura curiosa. Tinha sido alferes de los dragones de Numancia, mas, por uma falcatrua qualquer com os dinheiros da sua companhia, fora posto fora do real serviço, e abraçara a carreira lírica, para a qual tinha o tirocínio da adolescência em menino de coro na igreja matriz de Segóvia, o ninho seu paterno. Depois de cinco anos entre os últimos baixos de São Carlos, o abuso das bebidas de guerra deu-lhe à voz uma aspereza medonha de tambor selvagem. Desfizeram-se dele os empresários líricos, e D. Leon Praxedes y Moriones deu em mestre-de-armas de peraltas brigões e morgados vadios.

Dizia-se que tinha um golpe formidável, secreto, no seu jogo de espada. Dizia-o êle e chamava-lhe bombàsticamente el sablazo del Cid.(1)

Treze anos de residência em Portugal haviam-lhe dado uma certa familiaridade com a língua portuguesa, que, todavia, de quando em quando mesclava de vocábulos castelhanos, especialmente quando mentia ou quando praguejava, em arrebatamentos de génio farronqueiro. Mas encolerizado ou ébrio falava sempre na sua língua pátria.

Cumprimentou os circunstantes com ares protectores. Corresponderam-lhe sorrindo. Era um conhecido de toda a gente.

- Foi cantor - explicava o Morgado de Souto-Novo a um primo barão, recém-chegado a Lisboa.. - Fazia papéis de sacerdote antigo, de chefe de piratas, de um rei moiro e de capitão de salteadores, que era um medo vê-lo e ouvi-lo. Quando êle descia às notas baixas,

 

*1. D. Rodrigo Ruy Dias de Bívar, um herói quási lendário da monarquia espanhola, é conhecido nas novelas cavalheirescas da Espanha pela denominação de Cid Campeador.

 

até os cães vadios se punham a uivar ali no largo das Duas Igrejas. Tanto se impressionava o nosso Príncipe, que Sua Alteza Real mandou dizer aos empresários que não iria ao teatro nas noites em que o Praxedes roncasse.

- Ainda canta?

- Não, agora é mestre de jogo de espada. Eu fui discípulo dele. Mente como um cigano, o maroto! Creio que é dele a anedota da voz possante que ia dos octavas abajo del puerco.

- Gostava de o ouvir.

- Não há nada mais fácil. Em êle entrando pela aguardente de cana ou pela genebra de Holanda, canta seja onde fôr. Hás-de desfrutá-lo. Fala em batalhas, verás as que êle inventa! Já teve a pouca vergonha de me dizer que, se o governo espanhol assegurasse uma pensão à filha, uma chicuela de três assobios, iria a Paris desafiar à espada, a um por um, todos os marechais de Bonaparte.

- Arreda que te parto! - gracejou o beirão.

Entraram juntos três oficiais de infantaria. Atravessaram o botequim, trocando breves cumprimentos com os colegas presentes, e foram ao balcão falar com um criado velho.

Parecia que alguma coisa grave os preocupava.

O criado levou-os para dentro, para um dos cubículos reservados que tinha o botequim, para o lado de trás.

- Bem. Repara nisto: não estamos aqui para ninguém - disse um deles.

- Sim, meu amo. Fique v. s.a descansado.

- Fecha aquela porta - disse-lhe, indicando a porta que dava para a loja. Nós chamaremos, se precisarmos de alguma coisa.

O criado retirou-se, fechando a porta consigo.

Os oficiais entraram no cubículo. O mais moço dos três fechou a porta por dentro e correu o velho reposteiro de damasco.

- Estamos aqui livres de olhares e ouvidos indiscretos. Está então tudo combinado para amanhã?

- De madrugada. No sítio que se escolher, para as bandas de Marvila, ou para diante, no monte de Sacavém, se fôr mais seguro ir para lá. Mas eu te leio a cópia da acta que lavrámos esta tarde. Ouve:

*Aos vinte e sete dias do mês de Novembro do ano da graça de 1807, nesta cidade de Lisboa e rua do Poço dos Negros, em casa do médico Vincenso Farinelli, cidadão siciliano, se reuniram pelas três horas da tarde com o sobredito médico, o cidadão napolitano Guiseppe delia Santa Croce, capitão de cavalaria ao serviço de Portugal, e os tenentes de infantaria do exército português, Justino de Morais e Tomás António de Melo.

*Por parte destes dois últimos foi dito que estavam ali com plenos poderes e na qualidade de representantes de Luís Paulo de Castro e Albuquerque, tenente de infantaria, a fim de reclamarem para o seu constituinte uma reparação pelas armas, por ofensas gravíssimas de palavras que recebera do cidadão polaco João Polovtzé, joalheiro estabelecido nesta cidade de Lisboa.

*Responderam então os primeiros designados que eram eles os representantes de João Polovtzé nesta pendência de honra, e que por êle lhes haviam sido conferidos todos os poderes bastantes para regularem o assunto como em sua consciência entendessem.

*Apreciadas as palavras de ofensa, de uma e outra parte foram concordes em que não podia haver outra solução honrosa que não fosse a de um desagravo em combate singular.

*Reconhecido ao ofendido o direito da escolha das armas, declararam os seus representantes que estavam autorizados a aceitar qualquer arma como entendessem e por isso escolhiam a pistola.

*Foi então decidido que o duelo se efectuasse amanhã, 28, ao romper do sol, nas serras de Marvila ou no monte de Sacavém, como os signatários oportunamente resolvessem.

«Previsto o caso de falharem os dois primeiros tiros, concordou-se em que as pistolas tornassem a ser carregadas ou se levasse um segundo par, e o duelo recomeçasse até que um dos combatentes caísse gravemente ferido. E por esta forma, etc, etc...»

- Confiaste-nos um doloroso encargo! Não havia outra solução! - disse o Morais.

- Nem eu queria outra - acudiu Luís de Castro. - A ofensa, inexcedível para mim, afrontou também, iniquamente, o meu país e todos os meus camaradas.

- As testemunhas do polaco insinuavam um duelo à espada, também nós o preferíamos assim, mas não quisemos contrariar a vontade que tão expressamente nos manifestaste ontem à noite.

- É mais leal, desde que era minha a escolha. Oficial do exército, havia de parecer egoísmo cobarde que eu preferisse a arma em que, provavelmente, sou mais dextro do que o joalheiro.

- Pois eu, pelo que tenho visto, suponho-te ainda mais temível à pistola.

- Não foi por isso que eu a preferi. Qualquer pode disparar um tiro feliz, mas um inexperiente das armas não sustentará um combate à espada com quem a saiba jogar. Para vencer à pistola, mesmo sem contar com os caprichos do acaso, bastam a qualquer inexperiente a serenidade do ânimo e a firmeza do braço.

- Pois sim, não contesto, mas uma das testemunhas do polaco, o médico italiano, deu-nos a entender que êle sabia jogar as armas, apesar da sua pacífica profissão, e explicava que na mocidade o polaco por algum tempo militara nos exércitos do imperador da Rússia.

- O médico Farinelli - pensava o Castro - guardou bem o segredo do Conde de Pultusk.

- Que cirurgião havemos de levar connosco?

- Vai um das minhas relações - respondeu Castro - Já lhe pedi, vai.

- Com o polaco irá um cirurgião cujo nome me não disseram. Farinelli, na sua qualidade de padrinho, não podia aceitar os encargos do médico.

- Bem, iremos numa sege de aluguel até onde fôr possível ir.

- Vais ficar a tua casa?

- Não. Disse lá que tinha recebido ordem para entrar de serviço esta noite: serviço de prevenção. É acreditável. No regimento de meu irmão também os oficiais ficam esta noite no quartel.

- Onde te havemos de encontrar?

- Naquela hospedaria, ali à Betesga.

- Bem sei. A hospedaria do Grão-Pará.

- Essa. Às quatro estarei a pé.

- Ás quatro estaremos lá!

- Saem já?

- Saímos.

- Vamos lá.

Havia uma algazarra medonha no botequim.

Para o dispor ao desfrute do primo beirão, o Morgado de Souto-Novo metera meia garrafa de aguardente de cana da Baía, forte como pólvora, no estômago de D. Leon Praxedes y Moriones e começara a puxar-lhe pela língua.

A princípio o ex-dragão limitou-se a cantarolar umas coisas retumbantes da sua parte de baixo no papel do conquistador Tamerlão.

Mas depois a aguardente da Baía marinhou-lhe ao toutiço e o Morgado insidiosamente o foi puxando para as farroncas guerreiras.

Foi o diabo! Desatou a mentir desaforadamente, aos berros e às punhadas na mesa.

E com as mentiras, umas insolências de provocação belicosa, num misto de espanhol e português.

Naquela altura entrou um oficial de dragões muito alvoroçado. Trazia uma notícia que ouvira a um campino, chegado do Ribatejo havia instantes.

- Sabem? O Junot ia ficando afogado com as suas tropas no Zêzere, que vai a trasbordar, por aquelas suas margens que parecem escarpas de um fosso!

- E não o levou o diabo?

- Não. Tinha já chegado a Santarém com a guarda avançada. Ia meter-se a caminho para cá, mas o Ribatejo está todo debaixo de água.

- Faz então o general Inverno o que nós não soubemos fazer! Opõe-se-lhe.

- Mas quem trouxe a notícia?

- Um campino que tinha ido a Santarém e de lá saiu ontem de madrugada, a unhas de cavalo.

- Daqueles cavalos rijos e feios como os dos cossacos, segundo eu ouvi ao Gomes Freire e ao Pamplona.(1)

- Então estará aí em três ou quatro dias?!

- Só a marchas forçadas e com água pelos joelhos no Ribatejo.

Don Leon Praxedes y Moriones, de pé, olhos esgazeados, clamou em roupantes leoninos:

- Dios de los escuadrones! Que me queme Belzebú los pelos de mi pecho... si yo no soy capaz de desbaratar ai Junote y sus granaderos!

- Hombre, se marche usted - disse-lhe o Morgado.

- Pêro si tuviera a mi espaldas... nada mas que doscientos de mis dragones de Numancia, los espanpanaba sin que la Virgen les valiera.

 

*1. Um e outro haviam servido distintamente, como voluntários no exército da Rússia.

 

Tão cómico por esta fanfarronada aquele Moriones que ainda houve ali quem pudesse rir!

O espanhol abespinhou-se e desafiou-os da risada. Um deles, oficial de infantaria, andara nas campanhas dos Pirenéus como alferes da divisão auxiliar portuguesa e distinguira-se na tomada de Puigcerdá.

- Olá, seu Dom Traga-balas, - disse indo para o espanhol - você está muito bêbado para responder pelo que diz, amanhã, em lhe passando a turca, tem aqui um homem para lhe fazer frente.

Num ranger de dentes que arrepiava os nervos, D. Leon Praxedes y Moriones fêz um gesto obsceno de afronta.

- Pois sim. Amanhã falaremos. E fique já sabendo que eu vi lá os tais dragones, os de Numancia ou outros, à desfilada com as costas para os franceses. Era uma carga às avessas.(1)

Riram. O Moriones chamou um nome torpe ao oficial que o troçara e que trazia na farda as granadas bordadas, distintivo das tropas que tinham ido aos Pirenéus.

Azedaram-se os ânimos. Os italianos de São Carlos tomavam o partido do espanhol. Faziam uma berraria ensurdecedora.

- Por música, srs. de São Carlos! - gritou o morgado de Souto Novo - Cantadinhas essas prosápias, que não temos hoje teatro.

Vinha então de dentro Luís de Castro com os seus dois colegas. O criado velho disse-lhe em meia dúzia de palavras a causa daquele conflito.

- Deixem o bêbado - bradou alto o Castro.

 

*1. Aludia à desastrosa retirada do 1 de Maio de 1794, em que a divisão auxiliar portuguesa cobriu a debandada das outras tropas, perdendo apenas uma parte das mochilas e alguns homens que ficaram prisioneiros, enquanto as forças espanholas do Conde de La Union perdiam a artilharia e todas as equipagens, deixando aos franceses numerosos prisioneiros.

 

- Ninguém tem o direito de se ofender com as palavras de um ébrio.

- Foi a mim a quem êle ofendeu directamente - acudiu o oficial que lhe desfeiteara os dragones - Mas eu sei bem onde hei-de ir procurá-lo amanhã.

- Parte-se-lhe a cara para ver se lhe passa a bebedeira.

- Cobardones!- bramia o Moriones, a fingir que se queria desprender de dois italianos que o seguravam.

- Dejenme ustedes, y por mi madre que el caballo de Janote, encuanto entre en Ia ciudad, se quedará espantáo de no ver a esos reptiles... pues de seguida los mato yo!

Riram uns, vociferaram outros. Citavam-se batalhas, alardeavam-se bravuras.

- Deixem-no lá - aconselhava Luís de Castro - Espanhóis e portugueses têem tido eras de glória, de inexcedido esforço e também lamentáveis períodos de enfraquecimento. A Espanha, nas mãos de Napoleão, não faz melhor figura do que nós, enfeudados aos ingleses. Fanfarrões é que ela teve sempre mais do que Portugal. Em esse espanhol estando em seu juízo lhe poderemos apontar, se valer a pena, os desaires da sua gloriosa terra, sem lhe negar os da nossa, que nesta conjuntura são dolorosamente humilhadores. Faltou quem podia e devia mandar-nos. Talvez não falte um dia ocasião de provar que sabemos combater. Deixemos esse ébrio. Os criados do botequim que o aturem. Eu saio. Os meus camaradas e os meus amigos procederão como entenderem melhor.

- Muito bem. Saímos todos.

- Todos.

E saíram. Ficaram apenas os três italianos de São Carlos a porem nas fontes de D. Leon Praxedes y Moriones os seus lenços ensopados de água por causa da camoeca.

De bruços sobre a mesa, o ex-dragão apenas regougava umas palavras ininteligíveis. A bebedeira agravava-se-lhe de minuto para minuto.

Luís de Castro foi para o seu quarto da Hospedaria do Grão-Pará. Sentou-se a escrever.

- Tenho mais frieza de ânimo do que eu supunha! Se alguém houver de sair com remorsos deste duelo, não serei eu, não. Vamos. Tudo como se tivesse a certeza de morrer, como se isto fosse um suicídio.

Escreveu uma carta à mãe, umas linhas de amorável súplica, para que lhe perdoasse e recebesse naquelas palavras os seus últimos beijos de filho extremoso.

Dobrou o papel e fechou-o.

- Pobre mãe! A sua dor! Era o seu filho dilecto.

Escreveu ao irmão umas palavras afectuosas e rogava-lhe a benevolência de mandar entregar, por qualquer meio que julgasse eficaz, a carta que ia escrever à filha do joalheiro João Polovtzé.

Pôs-se a escrevê-la com os olhos afogados de lágrimas.

Releu este último período: «Beijo-te daqui, neste meu sonho de morte, linda noiva da minha alma. Vai comigo a tua imagem. Não te menti, Maria. Foi até à morte este amor inexcedível.»

Enxugou os olhos. Fechou a carta e meteu-a dentro da outra para o irmão.

- Agora para o Conde de Novion e para os meus amigos e camaradas do regimento.

Ao Conde pedia-lhe a mercê de evitar que a polícia perseguisse o polaco, no caso de ser êle o sobrevivente do duelo.

Atribuía a si a culpa originária da provocação. Fazia-lhe o pedido, invocando a memória do pai, a quem Novion, como já sabemos, devera extremados favores.

A carta para os amigos do regimento era longa.

Leu-a comovidamente. Dizia-lhes:

*Morrerei na crença de que Portugal há-de ter ainda soldados que o desafrontem, no mesmo esforço de alma daqueles antigos que lhe puseram o nome nas mais brilhantes páginas da história universal.

*Isto não é nação para ficar enterrada na lama destas humilhações de agora. Não é.

*Talvez lhe faltem os homens excepcionais, os caudilhos épicos de outras eras, mas o coração e o sangue hão-de cumprir o seu dever gloriosamente.

*A heroicidade da Pátria far-se-á então da federação de todas as almas, do esforço de todos os ânimos, no mesmo destemido arranque, na mesma fervorosa devoção, no mesmo intrépido sacrifício, embora nenhum nome de triunfador ascenda para a história do mundo, como nas glorificações antigas.

*Ao menos, como nos dias do Montijo e de Montes-Claros, se já não puder ser como nos tempos de Aljubarrota e dos Atoleiros.

*Se a alma dos que morrem pode ficar no mundo, a minha irá convosco, seguindo a bandeira do nosso regimento.

«Sinto que não seria capaz de faltar nunca aos meus deveres de soldado. Se algum dia o regimento partir para combater, lembrem-se então piedosamente desse que não pode ir, porque a morte se atravessou no caminho.»

Tinha uma conclusão de despedida que não leu.

Fechou-a, pô-la por baixo das outras, em maço. Atou-as com uma fita e guardou-as num bolso interior. Não se deitou.

Ainda não eram bem quatro horas quando bateram umas argoladas à porta da hospedaria. Um criado, que fora prevenido de véspera, já estava a levantar-se e foi abrir.

Eram as testemunhas de Luís de Castro.

- A sege há-de estar a chegar - disse o filho de D. Matilde - Levo na algibeira umas cartas. Se me virem ferido de morte, peço-lhes que mas tirem e as mandem ao seu destino, assim que eu falecer.

- Não há-de querer Deus que tal suceda.

- Mas pode suceder e é preciso contar com o que è possível.

- Foste sempre considerado um notável atirador de pistola.

- Pões uma bala onde pões o olhar - disse o outro padrinho.

- As circunstâncias são excepcionais. Diante de um objecto qualquer por entretenimento, o coração pulsa tranquilamente. Não se aponta a um homem com a mesma serenidade.

- Embora. Quem faz o que te vi fazer com uma pistola, há-de ter a pontaria mais certeira que outro qualquer, sem essa rara firmeza, ainda que uma natural comoção lhe ponha o braço menos seguro.

- Seja como fôr - respondeu o Castro com uma serenidade que não era isenta de tristeza.

- Meu senhor - veio dizer o criado - Chegou agora a sege.

- Descemos já. Pode retirar-se.

- Farinelli leva também um par de pistolas - disse uma das testemunhas.

- Vamos lá.

Desceram. O cirurgião, amigo de Luís de Castro, chegara de sege.

Dois minutos para cumprimentos e apresentações, e os dois veículos rodaram pela rua fora, distanciados. Era ainda escuro. Apenas uns raros madrugadores pelas ruas.

Tinham parado num recanto mais enxuto das terras de Marvila.

Poucos instantes volvidos, chegou João Pulaski, de sege com Farinelli. Pouco depois apareceu outra sege com o segundo padrinho e um cirurgião espanhol.

Apearam-se. Os padrinhos de um e outro afastaram-se. Foram escolher o terreno.

Os adversários ficaram a larga distância um do outro, silenciosamente, os cirurgiões ao pé deles.

Cerca de meia hora de espera. Os padrinhos voltaram. Estava escolhido o terreno, na chapada de um monte vizinho, no sítio mais plano e relativamente mais enxuto, abrigado por uma orla de pinhal que trepava pela encosta acima.

Subiram. Pararam numa pequena planura, rodeada de pinheiros. Rompia a manhã.

Os padrinhos examinaram as pistolas e dos dois pares examinados tiraram à sorte o que devia servir primeiro. Verificaram ainda a sua completa igualdade. Farinelli carregou a que era destinada a Luís de Castro, e um dos padrinhos deste a que era para o polaco. A seguir procederam de igual modo com o outro par que ficava de reserva.

- Pronto - disse Farinelli.

- Agora as distâncias - disse um dos padrinhos do Castro.

Era a vinte passos que estava combinado, visto o elevado adarme das pistolas.

Os padrinhos contaram e verificaram o número dos passos, ficando dois a marcar os extremos daquela distância.

- Sr. João Polovtzé - chamou Farinelli.

O polaco foi ocupar o lugar marcado pelo italiano.

- Sr. Luís Paulo de Castro e Albuquerque - chamou o mais velho dos dois oficiais.

O moço tenente foi tomar o lugar onde o seu colega se colocara.

- Depois de três palmadas a curtos intrevalos e à voz de fogo, dada por mim, desfecham - avisou o Morais, escolhido pelas outras testemunhas para dirigir o combate.

A firmeza dos duelistas contrastava com a sua palidez. Tinha uns estranhos fulgores o olhar de Farinelli.

A vinte passos da linha que se supusesse traçada entre os combatentes e para a direita deles, a distância igual de um e outro, o oficial que devia dar as vozes disse alto, comovidamente:

- Atenção.

Os dois adversários tomaram a posição de combate, engatilharam as pistolas, puseram-nas em pontaria, esperaram.

Viu-se que o polaco sabia bem empunhar uma pistola e tomar posição de combate. Notaram-no de relance, com estranheza, os dois padrinhos de Luís de Castro. Ouviram-se três palmadas, a curtos intervalos.

- Fogo!

Vibraram dois tiros quási simultâneos. A bala do polaco feriu de raspão a mão esquerda de Luís de Castro, a deste perdeu-se nos ares.

- Está ferido - disse-lhe o cirurgião militar.

- Coisa de nada - respondeu o Castro, sacudindo a mão ensanguentada.

- Rejeito generosidades que me afrontam! - rouquejou o polaco, muito afogueado - Atirou depois de mim, vi que fêz fogo para o ar.

- Também eu vi - confirmou Farinelli.

- Foi uma loucura! - segredou um dos padrinhos do Castro, muito inclinado para êle.

- Digam-lhe que ainda temos duas pistolas carregadas - pediu Luís de Castro.

- A duração do combate é até um cair gravemente ferido.

- Primeiro deixe-me ligar-lhe a mão - observou-lhe o cirurgião militar - Está a perder muito sangue.

- Não é preciso. Seria demora demais. Nem isto agora leva mais que uns segundos.

Farinelli veio entregar-lhe a segunda pistola de que tomara conta, a segunda testemunha do Castro foi dar ao polaco a outra que tinha sob a sua guarda.

Retomaram a posição de combate. Engatilharam, apontaram.

As mesmas palmas, secas, sinistras, e logo a voz de fogo. Ouviu-se um tiro somente e uma exclamação de compungida estranheza das duas testemunhas militares.

À voz de fogo, Luís de Castro arremessou a pistola ao chão, ao mesmo tempo que se ouvia a pancada do cão da outra pistola.

O bem-amado de Maria Pulaski levou a mão ao lado, fêz-se horrorosamente pálido e caiu para trás.

- Maria! - rouquejou.

Correram para êle o cirurgião militar e os dois padrinhos. Tinha o olhar amortecido e uma expressão dolorida. De joelho em terra o cirurgião tateava-lhe o ferimento.

- As cartas - disse Luís de Castro sumidamente para uma das suas testemunhas.

A trinta passos, de rosto avincado, o Conde de Pultusk dissera a Farinelli:

- Segunda vez me quis afrontar!

- Quis mostrar-lhe que não tinha medo de morrer - respondeu Farinelli - Por mera formalidade vou ver se precisam dos meus socorros.

- Não se demore.

O cirurgião dera ao ferido umas gotas de certo líquido que trazia num pequeno frasco. Ia pôr-lhe sobre a ferida um penso que trazia preparado no seu estojo cirúrgico.

- Estou à sua disposição, colega - disse-lhe o italiano.

- Agradeço. Agora, aqui, nada mais se lhe pode fazer.

Farinelli inclinou-se para o moço oficial e reparou-lhe muito na ferida.

Os olhos de Luís de Castro levantaram-se para o italiano e fixaram-no com uma grande expressão de tristeza.

- Maria! - disse com enternecida amargura.

O italiano cumprimentou silenciosamente os dois oficiais e afastou-se.

- Foi gravemente ferido - segredou ao polaco - Pela altura em que lhe entrou a bala é possível que não seja ferimento de morte.

- Retiremo-nos. Pode aparecer alguém. Combinaram que o cirurgião espanhol e o outro

padrinho seguissem na sege em que tinham vindo, distanciando-se para diante. João Pulaski e Farinelli partiriam minutos depois, para não darem nas vistas. Os primeiros desceram logo a encosta, rapidamente. Atrás, o polaco e Farinelli, mais lentamente, conversando baixo. Pulaski ia espantosamente pálido.

- Estou com cuidado em Casimiro.

- O enfermeiro que lá ficou é pessoa da minha completa confiança. Nem eu o suponho já em perigo de morrer... a não sobrevir alguma inesperada

complicação.

- Mas em condições de sair, de fazer uma longa viagem, nem daqui a um mês?

- Nem daqui a dois.

- Valha-me Deus! E Maria?

- Se não souber disto, espero que daqui a dois ou três dias se possa levantar.

- E a jornada?

- Será melhor a viagem por mar. Mas a separação pode matá-la. Eu me encarregarei de a iludir. Daquele estamos nós livres por três ou quatro semanas pelo menos.

Entraram na sege. A outra rodava já pelo caminho de Lisboa.

Desciam a encosta vagarosamente, com o ferido nos braços, os dois oficiais e o cirurgião militar.

A espaços, Luís de Castro soltava uns gemidos brandos, como suspiros.

O sol rompia a custo por entre nuvens densas, de azul ferrete, numa forma caprichosa de montanhas colossais.

Meteram o pobre moço na sege com requintadas cautelas, para lhe não causarem algum abalo funesto.

- A passo - recomendou o cirurgião ao boleeiro. Procura o melhor piso do caminho. Para o palacete dos Castros, ali a Xabregas. Mas hás-de parar antes de lá chegarmos. Nós te avisaremos.

A sege rodou lentamente como se fosse uma berlinda de funeral.

A mais de cem passos da casa de D. Matilde meteu para um largozito contíguo ao caminho e parou.

O cirurgião apeou-se e tomou direito ao palacete dos Castros. O portão estava aberto. Preguntou por Henrique de Castro.

Disse-lhe o velho marinheiro, o guarda-portão, que tinha passado a noite no quartel e chegara havia instantes, para voltar dali a pouco, pois até mandara que não lhe desaparelhassem o cavalo.

Os oficiais de infantaria das famílias fidalgas e abastadas permitiam-se esta comodidade e este luxo fora dos actos de serviço.

O cirurgião, muito conhecido na casa, subiu e

mandou pedir a Henrique de Castro a mercê de lhe falar imediatamente para assunto de maior urgência. Henrique apareceu logo, sobressaltado, mas nem êle podia sonhar sequer do que se tratava.

- O meu amigo por aqui! E com desfigurado semblante, santo Deus!

- Entremos em qualquer casa onde lhe possa falar sem que nos ouçam. Podem ser funestos alguns segundos perdidos!

- Aqui já - disse Henrique, abrindo a porta da saleta. Sentia o coração oprimido, sem poder supor por quê.

Entraram. Henrique fechou a porta.

- Seu irmão teve um duelo.

- O Luís! - exclamou desorientado, empalidecendo muito - Sucedeu alguma desgraça, estou a percebê-lo.

- Bateu-se à pistola. Está gravemente ferido. É preciso transportá-lo para o seu quarto, sem demora. Preciso de sondar-lhe a ferida, e careço do auxílio de um colega que me ajude a extrair-lhe a bala.

- Onde está? Eu vou...

- V. s.a vai preparar o ânimo de sua mãe, evitar que ela saia agora dos seus aposentos, mas, antes, mande-me dois criados para me ajudarem a trazê-lo.

- Já. Corre perigo de vida?

- Talvez. É urgente acudir-lhe.

- Sim, imediatamente. Que tempo demorará a chegada do meu pobre irmão?

- Meia hora. É preciso trazê-lo muito devagar. Importa que sua mãe não vá ao quarto do ferido enquanto eu não o prevenir de que ela pode lá entrar.

Henrique saiu num estonteamento de mágoa. Mandou dois criados para baixo, outro que fosse chamar um cirurgião. Que fosse a galope no cavalo em que êle viera do quartel.

E, a compor no rosto uma expressão de serenidade, que fosse a máscara da sua dor, entrou nos aposentos da mãe.

Havia mais de uma hora que Luís de Castro fora levado em braços para o seu quarto. O outro cirurgião viera com pequena demora. Morava para os lados das antigas Portas do Mar.

Numa ansiedade de terror, D. Matilde, ofegante, num choro sufocado, o peito em convulsões violentas, fizera umas poucas de tentativas para sair do quarto.

Henrique atenuara-lhe" muito a verdade, abstento-se de lhe dizer que o ferimento era grave. Contara-lhe até que era um ferimento no ombro, doloroso, mas que apenas exigiria tratamento muito cuidado por coisa de um mês.

Nas suas angustiadas desconfianças de mãe, D. Matilde adivinhou que Henrique lhe encobria algum pormenor para lhe poupar maior dor.

- Duelo com alguém daquela aventureira?... Teu irmão a descer assim!... Mas o pior é que êle está ferido, e tu não me dizes a verdade, Henrique!

- Está a oprimir-me nessa dúvida, minha mãe.

- Não dizes. Queres disfarçar e não podes! Não é um ferimento sem gravidade, como disseste. Estou a lê-lo no teu rosto. Filhos! Aquele filho! Mas se não é coisa de gravidade, porque te atravessas tu aí na porta, a pedires-me que não vá vê-lo?!

- Ainda não chegou. Provavelmente... não chegou.

- Nem tu sabes o que hás-de dizer! Deixa-me sair. Seja o que for, o meu coração quere estar ao pé dele e o meu dever é estar lá, para olhar por êle.

- Há-de lá ter um enfermeiro.

- Não pode suprimir a mãe. Abre essa porta.

- Vai mortificar-se, vai afligi-lo!

- Nem tu sabes de que ânimo são capazes as mães!

Animo até para não chorar diante dos filhos, só para os não mortificar. Para não chorar, ainda que os vejam a morrer, a fingirem que não percebem que a morte lhos vai levar!

Soluçava numa convulsão de choro. De súbito,, enxugou os olhos, alteou a cabeça e ordenou com admirável firmeza:

- Abre! Mando eu.

- Senhora, eu nunca deixei de obedecer! - respondeu Henrique tristemente, abrindo a porta e afastando-se.

No corredor passava uma criada nos bicos dos

pés.

- O sr. Luís de Castro? - preguntou-lhe D. Matilde.

- Levaram-no para o quarto há mais de uma

hora - respondeu, compungida.

- Enganavas-me! - disse para Henrique.

- Mas a senhora não pode agora lá entrar -

acudiu a criada.

- Posso. Quero ir ver o meu filho doente.

- Foram os cirurgiões que o disseram. Mandaram que ninguém lá fosse. e até me parece que fecharam a porta por dentro. Recomendaram muito

sossego.

- Para um ferimento sem gravidade, como tu

dizias, Henrique!

Foi para a porta do quarto de Luís.

- Esperarei aqui que eles saiam.

A reprimir soluços, sentou-se num banco de palhinha que estava a poucos passos, encostado à parede do corredor. Chorava de rosto escondido nas mãos. Henrique deixou-se ficar encostado à ombreira da porta.

Passaram-se uns minutos de terrível ansiedade.

Abriu-se a porta, apareceu o cirurgião que assistiu ao duelo e disse para Henrique, sem ter reparado em D. Matilde:

- Ah! Estava aqui. Fomos felizes na extracção da bala.

- E como ficou? - preguntou baixo Henrique de Castro, fazendo uns gestos que o cirurgião não compreendeu.

- Muito abatido, com febre intensa, num estado melindroso. Queira mandar-me trazer mais duas toalhas. E alguém que vá chamar um enfermeiro para ficar aqui.

- Ficarei eu - disse D. Matilde, já ao pé dêles. Ouvindo as primeiras palavras do facultativo,

levantara-se de repente e aproximara-se.

- Minha senhora! - exclamou o cirurgião, perturbado pela surpresa - O enfermeiro é indispensável.

- Posso eu ajudá-lo. Quero vê-lo.

- É cedo ainda, minha senhora. Por ora não há razão para grandes inquietações.

- Eu ouvi o que v. s.a disse a meu filho! Insisto em ir vê-lo.

- V. ex.a manda, minha senhora.

- Peço. Queira guiar-me para onde eu o possa ver sem que êle me veja.

- Obedeço, minha senhora - respondeu o cirurgião, dando-lhe passagem.

Entrou a tremer. Via-o donde êle a não podia ver, ainda que descerrasse os olhos.

Estava muito pálido, gemia numa voz sumida.

De mãos contra o coração, olhos afogados de lágrimas, D. Matilde esteve a olHá-lo por uns segundos. Mas sentiu que não podia conter os soluços, a afogarem-na violentamente, e saiu entontecida, palpando as paredes com receio de cair, a dizer a custo, baixo, numas palavras estranguladas, para o cirurgião:

- Volto. Em desabafando, volto.

Mas não passou do corredor e foi cair sobre o banco, a soluçar alto.

Acudiu-lhe uma criada. Apareceram logo, muito velados, Jerónimo de Castro e Manuel de Albuquerque.

Tinham acabado de saber do ferimento de Luís por informação de um criado.

Henrique fora dar ordem para levarem as toalhas e para irem chamar um enfermeiro.

Depois escreveu uma carta de meia dúzia de linhas ao Coronel, expondo-lhe a quási impossibilidade de voltar ao quartel por ter sucedido um desastre grave ao irmão. Iria logo que pudesse dispor umas coisas, se antes lhe não ordenasse que fosse.

Mandou-a pelo tratador do cavalo.

- Vai a galope e espera pela resposta. Apareceu-lhe então a esposa, ainda de cabelos

soltos, muito pálida, numa tremura de aflição.

- Branca! O Luís gravemente ferido.

 

                         Os Franceses.

Durante a noite de 28 alguns moradores de Sacavém fugiram para Lisboa espavoridos, galgando a pé, doidamente, as duas extensas léguas entre aquela povoação e as barreiras da cidade.

Um rendeiro e afilhado de D. Matilde aparecera à porta do palacete com uma filhita ao colo, a pedir abrigo ao guarda-portão.

- Os franceses! - disse-lhe ofegante, muito velado, acarinhando a pequenita, a chorar nuns estremeções de pavor - Chegaram lá depois das 10 horas!(1) Todos encharcados, cobertos de farrapos, os pés a escorrerem sangue! Causavam medo! Faziam sinais a pedir de comer. Vai depois, puseram-se às baionetadas às portas, aos gritos, com olhares de lobos!

 

*1. Às dez e meia da noite, diz o general Foy, a pág. 397 do tomo II da sua História da Guerra da Península.

 

E resfolegou violentamente.

- Um oficial da nossa terra, que eles traziam preso, começou a dizer-nos que lhes déssemos pão, para nos não fazerem mal, pois que tinham fome. A três que lá apareceram dei eu o pão todo que tinha, a cozedura da semana. Pareciam lobos! Pus-lhes à vontade o vinhozito novo, e quando os pilhei bêbados fui buscar esta à camita, coitadita, já tolhida de medo, abracei-a a mim e meti-me por esse caminho fora.

- Ainda você não tem senão essa filhita. Não lhe custou nada trazê-la. Mas se ainda vivesse a sua pobre mulher, uma entrevada, veja que aflição, porque não a havia de deixar em companhia daqueles excomungados! E agora estão aí a entrar.

- Que Deus nos acuda, mas não tardarão cá! E ouvi que vem atrás deles o poder do mundo!

- Pois olhe, a gente da Corte já se pòs no seguro, está toda a bordo dos navios de guerra, que talvez já saíssem. Vossemecè já sabia que tinham embarcado o nosso Príncipe Regente e mais a mulher e os filhos? Até a mãe, a triste rainha doida!

- Assim o ouvi lá dizer onte de manhã. De tarde passaram lá em Sacavém dois generais e outros figurões. E, quando eu agora vinha para cá, encontrei no caminho para a riba de trinta soldados a cavalo, da Guarda Real da Polícia. Iam p'ra lá, e até eu me escondi deles. Talvez fossem para dar fé. Inda me persuadi que seria a dianteira de mais tropas para irem dar sobre os franceses. Mas não topei mais nenhuma tropa!

- Isso sim! Já está aí pelas esquinas um decreto de Sua Alteza chorando a sua triste sorte. Pelo que me disseram, declara que não há dinheiro e manda que a gente espere os franceses como se fossem nossos amigos!(1)

 

*1. Era o comentário ingénuo do decreto do Príncipe Regente.

 

- Amigos! Bons amigos aqueles, não tem dúvida!

- E a esquadra de ferros no fundo, à espera de vento de feição, se é que não o teve já! Se não pode meter ao mar, então é que a rascada é de seicentos diabos! Podem esses malditos franceses apanhar os pavões grandes todos juntos e as maiores riquezas de Lisboa num bolo de arregalar o olho! Mas nós aqui a dar ao badalo e essa inocentinha a tremer de frio e talvez com fome!

- Coitadinha! Era esmola dar-lhe alguma coisita quente, mas a esta hora...

- Deixe estar que se lhe vai arranjar com que ela matar a fome e depois uma camazita de bom agasalho. Agora na cozinha estão sempre as fornalhas acesas e um criado a pé, por causa do filho mais novo da senhora.

- O menino Luís?

- Sim, esse. Está muito mal.

- Não sabia.

- Foi ferido, nem eu sei por quem, mas havia de ser por causa de uns amoricos que êle para aí tinha. Sabe-se tudo! Tem sido um dia de amarguras! Mas enfim, vamos lá ver o que se pode arranjar para a menina.

- Deus lho pague, sr. Tomás.

Lisboa madrugou acabrunhada de receios. A notícia da chegada dos franceses a Sacavém começara a circular,

 

* Não havia dinheiro. Mas a bordo da esquadra iam valores do Estado e de particulares que ascendiam a oitenta milhões de cruzados, e no erário ficava apenas a bagatela de dez mil cruzados, que não chegavam para pagar uma parte mínima dos ordenados em dívida aos funcionários públicos, dos salários a que tinham direito os operários do Estado, dos vencimentos atrasados dos oficiais e soldados.

 

desde a noite anterior, dizendo-se que duas deputações, uma de generais, por parte dos governadores do reino, e a outra de particulares, em nome do comércio, tinham ido de tarde ao encontro de Junot, no intento de evitar alguma violência contra a cidade.

Os generais que o foram saudar em nome dos governadores do reino eram Martinho de Sousa e Albuquerque e Francisco de Borja Garção Stockler.(1)

A deputação da gente de negócio era dirigida por mr. Mure, vice-cônsul de França.

Uma e outra lhe deram, provavelmente, informações seguras da fuga da corte, do estado de esmorecimento da cidade, da impossibilidade de qualquer resistência do país.

Era afinal a confirmação do que o negociante Barreto lhe tinha ido informar a Abrantes, por incumbência do primeiro ministro Araújo, já a salvo, fora da barra.

Os generais e os mercantes não levavam a Junot nenhuma surpresa, mas asseguravam-lhe que as cousas não tinham mudado em desfavor da sua campanha de jornadas aspérrimas.

Até Abrantes sabia êle que o governo de Portugal só queria a paz, fosse por que preço fosse. Em Abrantes soube que a Corte ia fugir e a nação se não oporia a que êle entrasse, porque não tinha recursos para se defender nem quem a governasse para a defesa.

Dali por diante, bastava marchar com os sapatos saqueados naquela praça, cujos velhos canhões tinham ficado emudecidos. Não era já uma extraordinária marcha de audácias, não passava de uma marcha de sacrifícios com as divisões esbandalhadas desde a fronteira, com os cavalos e os canhões enterrados nos atoleiros.

 

*1. Fox regista estes nomes.

 

Esforços desesperados diante do caudal do Zêzere, entre penedias, água até aos joelhos pelos campos do Ribatejo, verdadeira marcha de famintos, de extenuados, sob as chuvas de um dilúvio.

O general Inverno aniquilaria sozinho, à falta de homens, todo aquele exército do famoso primeiro ajudante de campo de Napoleão, se a marcha tivesse de durar mais um dia.

Não era preciso. Estavam às portas de Lisboa. As deputações tinham ido confirmar a Junot que do lado de terra não havia fortalezas, que os soldados não sairiam dos quartéis, que o povo chorava pelo Príncipe em fuga. A cidade entregava-se de braços cruzados.

Para entrar numa cidade de 350.000 almas, segundo o exagero dos historiadores franceses, bastaria que os soldados se arrastassem por mais umas léguas, encostando-se às espingardas ferrugentas como a bordões de pedintes.

Os generais da deputação deviam ter percebido que Junot não tinha consigo em Sacavém gente que pudesse resistir meia hora sequer a um esquadrão e duas ou três companhias da Guarda Real de Polícia, sem ser preciso levar para lá os regimentos do exército, mas assustava-os a ideia de Napoleão e a desconfiança de que as outras tropas do exército da Gironda não poderiam tardar.

Um movimento de arrolada insubmissão, e aqueles dois generais teriam voltado para Lisboa a galope e, sem quererem saber do decreto do Regente e das ordens dos governadores do Reino, haveriam ido buscar aos quartéis dois regimentos e com eles correriam ao desfiladeiro de Sacavém para desbaratar aqueles pobres granadeiros esfrangalhados, restos dos quatro batalhões da vanguarda que tinham ficado errantes pelos caminhos.

Mas, ainda que fossem homens para semelhante audácia, aqueles dois velhos bem sabiam que a guarda de Novion lhes tolheria o passo e muito plausivelmente supunham que as divisões do exército francês e espanhol deveriam estar a chegar.

Não havia organizado nenhum serviço de informações, o ministro da guerra embarcara e Junot não cairia em dizer-lhes que tinha o núcleo da primeira divisão à espera dos seus estropeados em Santarém, que não sabia da sua terceira divisão, nem da cavalaria, nem da artilharia, nem dos espanhóis do general Caraffa, e estava ali, a duas léguas de Lisboa, com mil e quinhentos homens apenas, que mal se podiam ter em pé, sem uma peça de artilharia, sem um soldado de cavalaria, sem um cartucho que não estivesse encharcado.(1)

As duas deputações, a dos generais e a dos negociantes, foram encarregadas de trazer ao governo e à população da capital uma proclamação de Junot, para ser traduzida e afixada, e a promessa verbal de que os franceses entrariam como amigos, se a cidade não tivesse a veleidade de se insurgir.

Manuel de Albuquerque mal passara pelo sono. Às cinco da manhã já estava a pé. Era ainda escuro. Chovia. De quando em quando grossas bátegas de água.

 

*1. Relation de l'expédition du Portugal, pelo general Thiebault, de pág. 69 a 70.

Depois, nas suas memórias, o ilustre chefe do estado-maior de Junot escreveu: *Um dia mais de marcha e o exército teria desaparecido.

«Dois mil homens diante de nós, na serra das Talhadas, e teríamos acumulado a perda de metade das nossas tropas com a vergonha de deixar frustrada aquela expedição». (Mémoires, etc. tomo IV).

 

Foi logo saber do sobrinho. Estava na mesma, com muita febre.

  1. Matilde velara por êle toda a noite. Henrique dormitara vestido.

Tinham madrugado também o Mar e Guerra e o padre António. Encontram-se com Manuel de Albuquerque numa antecâmara, a poucos passos do quarto do ferido.

- Então, Jerónimo, a esquadra lá se safou ontem! - disse-lhe Manuel de Albuquerque a meia voz - E com uma guarda de honra de naus inglesas da esquadra de bloqueio!(1)

- Era de esperar, mas não sabia.

- Disseram-mo ontem à noite em casa de um velho amigo. Vim tarde e não quis incomodar-te. E já se sabia também que o Junot tinha chegado a Sacavém. Contava-se que tinham ido ao encontro dele uns bisbórrias de cá, para lhe fazerem zumbaias. Bisbórrias generais e bisbórrias mercantes.

- A vergonha a que isto chegou! - comentou tristemente o Mar e Guerra.

- E o Novion com receio de que a lama se levante! Ontem à noite fartei-me de encontrar patrulhas dobradas da Guarda Real, a pé e a cavalo! No Rossio e no Terreiro do Paço dois grandes piquetes para o que desse e viesse. Só se as pedras se levantarem. Os homens duvido.

- Ninguém me tira da cabeça que, de há um tempo para cá, Novion está fazendo aqui o jogo de Napoleão.

- Está no seu papel. Atraiçoa-nos, mas primeiro nos atraiçoaram certos patifes de cá, de coração afrancesado. Desde que o Regente e o ministro da guerra se põem ao largo,

 

*1. As naus Malborough, Monarch, Bedford e London da esquadra de bloqueio, comandada pelo contra-almirante Sir Sidney Smith.

 

o comandante da polícia segue os impulsos do seu coração de francês, assegurando o cumprimento das ordens que lhe deixaram. Dói-nos, mas explica-se. Se o arguirem, Novion alegará que, a conter o povo, livra a cidade dos horrores do saque. E assim, o exército da Gironda, ao cabo dessa campanha em que as palmilhas das botas têem tido todo o trabalho que devia pertencer à fecharia das espingardas, chegará constipado, mas não chega receoso, com os seus heróis a precisarem mais de chá de borragem e de sinapismos, que dos ferros e drogas das ambulâncias. No nosso tempo, Jerónimo, contavam-se as baixas dos homens em campanha, desta agora basta contar as baixas dos butes aprisionados em Abrantes!

- Como tu ainda tens ânimo para esses gracejos! - disse o Mar e Guerra, a olhá-lo surpreendido.

- Estás enganado. Isto não é gracejar, é desafogar doutro modo. Há três dias, diante daquela vergonha de Belém, chorei. Agora escarneço neste escárnio que me espedaça o coração. As desgraças ridículas ainda doem mais que as outras, por mais horrorosamente trágicas que sejam. O sarcasmo também às vezes é um disfarce de amarguras, uma trégua para desesperos que precisam de reflectir. É o meu caso. Tenho de pensar na loucura que é preciso cometer. Deixaram-nos à vontade. Cada um que faça o seu dever e o seu protesto. Cuspo escárnios sobre tudo isso enquanto não é oportuno que dê o sangue por tudo isto. Até logo.

- Sais a esta hora?!

- Para saber notícias, para te vir contar o que puder ver e ouvir.

- É ainda uma explicação de escárnio?

- Não, é uma explicação sincera.

- É singular a reviravolta! Estou a estranhar-te! Ainda há três dias em explosões de cólera...

- Já te disse porquê.

Entendi que eram de provinciano ingénuo aquelas expansões de que Lisboa em peso se havia de rir, ratificando a alcunha de maluco, mercê com que, há quatorze anos, me honraram nos Pirenéus porque eu dizia alto o que sentia e atirava o corpo às balas numa cegueira de doido. Pareço-te mudado, meu velho, mudado de há três dias para cá? Não quiseste reparar no que eu te disse lealmente. Isto é a máscara da minha dor. Voltarei a confirmar a honrada alcunha de maluco, assim que me parecer oportuno fazer qualquer maluqueira em favor desta nação, que os patifes e os traidores puseram de rastos. Vou ver notícias.

- Mas agora tão cedo, assim a chover?

- Estou acostumado. O inverno de 93 foi medonho e aguentei-o nos Pirenéus. Chovia mais quando saí de Abrantes. Afiançaram-me ontem à noite que o Junot entrava hoje de manhã. Ao menos para aguentar água não se dirá que eu valho menos do que êle.

- Manuel, faz-me receio essa tua acalmação, embora aparente!

- Não tenhas receio. A minha primeira ideia era ir esperar o Junot, e, solenemente, em nome deste pobre Portugal ultrajado, desfechar-lhe um tiro frente a frente. Reconsiderei. Era bem o protesto de um maluco inútil. Ficavam os outros invasores e eu morria crivado de baionetadas, sem honra para Portugal, com a cidade inteira a confirmar que o assassino era simplesmente um doido. Guardo a alma e a pele para outra ocasião, e vou ver se reconheço nos pés dos conquistadores as minhas botas, quatro pares de botas que me aprisionaram em Abrantes. Olha que para esta façanha épica não valeram mais que os sapateiros da minha terra os famosos granadeiros da Gironda. Eu, se fosse Napoleão, mandava dependurar entre os troféus do Marengo e de Austerlitz as gloriosas palmilhas desta campanha a butes. Até logo.

Saiu sacudidamente.

- Tenho medo das alucinações deste homem! - disse o Mar e Guerra para o Capelão - É capaz de fazer disparate de maior! Se o Henrique me quisesse ouvir, iria segui-lo, para ver se evitava algum funesto destempêro.

Há sempre nas grandes cidades uma turba de curiosos inacessíveis às grandes mágoas públicas. Para verem qualquer coisa estranha, excepcional, não há terrores humanos nem inclemências do tempo que logrem contê-los. Vão, ainda que o sol tenha ardores tropicais ou desabe do céu uma chuva de dilúvio.

Foi o que sucedeu naquela manhã de 30 de Novembro de 1807.

Chovia a cântaros, mas os curiosos souberam que os franceses entravam pelas portas de Arroios e para lá foram em magotes.

Pois já lá encontraram, debaixo de forma, um esquadrão e duas companhias da Guarda Real da Polícia. À frente, a cavalo, o Conde de Novion, com a sua farda de coronel, constelada de condecorações portuguesas.(1)

A tropa já não tinha um fio enxuto.

Os curiosos que estavam desprovidos de guarda-chuva foram-se metendo pelos portais,

 

*1. O general Thiebault conta a pág. 71 e 72 da sua Relation de l'expédition du Portugal *Por ocasião da sua entrada em Lisboa o general em chefe tinha encontrado um destacamento de cavalaria e infantaria da legião de polícia que, sobas ordens do seu digno chefe, o conde de Novion, e com o seu mais belo uniforme, o esperava e o acompanhou até à sua residência.

«Assegurou-lhe aquele coronel que Lisboa estava tranquila e assim se conservaria. Aos seus esforços se devia completamente esta boa fortuna, pois que com os mil e duzentos homens da sua legião de polícia continha, havia dois dias, aquela imensa cidade. O ascendente que estas tropas tinham alcançado sob as suas ordens deu admiráveis resultados em tal conjuntura. Apesar da sua força diminuta, tinha ocupado os pontos importantes da cidade que mais se tornavam suspeitos, as guardas foram dobradas, os piquetes estacionavam nos locais de mais movimento, as patrulhas sucediam-se umas às outras, todos os oficiais rondavam e todos os soldados estavam de serviço. O próprio Conde de Novion percorria a cidade noite e dia e, depois que o príncipe embarcara, só tinha entrado em casa para comer, expedir ordens e mudar de cavalo.»

 

ou redemoinharam para dentro das tabernas.

Pelas janelas assomavam a espaços alguns rostos de mulheres. Das janelas baixas de rótulas espreitavam olhares ávidos das bisbilhoteiras velhas, muito receosas de algum desacato da soldadesca do tal Jinote que vinha das terras dos pedreiros-livres, mandado pelo Anti-Cristo Xampoleão.

Manuel de Albuquerque veio por ali acima até às Portas a olhar para tudo aquilo lentamente, como se nem desse por aquela chuva que caía a cântaros.

- Porque está ali aquela tropa da Guarda Real? - preguntou a um dos curiosos.

- Dizem que está à espera dos franceses.

- Percebo. Para lhes fazer as honras da casa. É a guarda de honra em nome de nós todos, homem de Deus!

- Sim, há-de ser isso, há-de ser.

- Pudera. Vocemecê nunca viu um funeral de príncipe ou de general?

- Vi um.

- Então há-de lembrar-se. As tropas esperam o cortejo fúnebre.

- Mas... antão aqui tamém é para algum funeral?!

- Também. O da honra de Portugal, compreende? Até que um dia o sangue de nós todos faça ressurgir o morto. São os coveiros da nação portuguesa que nós estamos a esperar.

Os médicos palacianos que lhe deram a morte fugiram, já lá vão pela barra fora.

E sem perceber bem, o pobre rústico, observou-lhe:

- Mas sua Alteza Real decretou que recebêssemos os franceses como se fossem amigos!

- Não foi bem Sua Alteza, foram os seus ministros. Faz diferença. Os ministros foram os médicos da nação doente, deram-lhe remédios para ela morrer mais depressa. Quando Sua Alteza assinou o decreto já Portugal estava na agonia. Morreu ontem à hora em que a esquadra saía, enterra-se hoje.

Ouviu-se então o som rouco dos tambores, já a curta distância.

- Aí tem os coveiros que chegam! - rouquejou Manuel de Albuquerque.

Sentiu-se um longo rumor da turba. Os da taberna vieram para a rua de roldão.

- Eles aí vêem!

- E que grande fileira de tambores - disseram ao pé de Manuel de Albuquerque.

- Mas trazem as caixas destemperadas.

- Há-de ser da chuva.

Vibraram vozes de comando em português. Os soldados da Guarda Real puseram-se em sentido e levaram as armas ao ombro.

A coxear, rotos, sujos de lama, as grandes barretinas muito caídas para trás, de pêlo empastado, os tambores de granadeiros passaram rufando.

Junot, o arrogante general de trinta e seis anos, tomara a frente das tropas, fazendo caracolar o seu fogoso cavalo. E como queria ser espectaculoso, ao menos e só para deslumbrar a cidade, trazia o seu brilhante uniforme de coronel-general de hussares, pelica ao ombro com cordões de oiro, dólman branco, recamado de bordaduras e alamares de oiro, os cordões de ajudante-de-campo, um talabarte carmesim com a águia doirada ao meio do peito. Era um espaventoso como o flamante Murat.

Novion mandou fazer a continência ao general. Os capitães deram as vozes de comando.

- Oh! divino Camões! Na tua língua esta homenagem ao aventureiro que te vem enterrar a pátria! - exclamou Manuel de Albuquerque.

Novion meteu a trote para Junot, que sofreara o cavalo, para ver como os seus pobres granadeiros se arrastavam pelo caminho fora, a três, a quatro, em grupos, encostados às espingardas como a bordões os mais encalavrados dos pés, dobrados para diante os mais exaustos de forças, a cambalear os que mais tinham iludido os desalentos nas adegas de Sacavém.

Manuel de Albuquerque seguiu num olhar o movimento de Novion, a quem Junot estendeu a mão com manifesto júbilo. Conversaram por momentos. A banda dos tambores marcava passo, as primeiras fileiras da coluna fizeram alto, esperando as que vinham tresmalhadas pelo caminho.

- Está a felicitá-lo, a dizer-lhe, provavelmente, que já não há sangue para revoltas nesta desgraçada terra - comentou o antigo oficial! - E talvez se enganem todos.

Um pouco mais atrás de Junot notava-se outro general, também ainda novo, olhando para tudo aquilo com um ar entristecido, a contrastar com a arrogância espectaculosa do seu general em chefe.

Não se prevenira como Junot. Trazia apenas o uniforme de marcha, debotado, sujo, de bordaduras marcadas. O bravo de Lonato não sabia dos artilheiros do general Laviel nem dos esquadrões de Kellermann, nem dos regimentos das divisões Loison e Fravot, mas nunca perdera de vista o seu espaventoso uniforme de coronel-general dos hussares, para a entrada triunfal. Não era o uniforme rico, de quinze mil francos,

com que ele, embaixador dois anos antes, deslumbrara a corte, nas recepções de Queluz, era outro já coçado, mas ainda brilhante. Refulgia-lhe no peito a estrela de grande oficial da Legião de Honra.

O sabre é que era o mesmo das imortais campanhas, o de Millesimo e Lonato, o das Pirâmides e Nazaré.

- Olhem aquele general com os dedos de fora! - observou um garoto.

E apontou as botas rotas de Thiébault, chefe do estado-maior general.(1)

Mas até a maior parte do estado-maior se perdera pelos caminhos! Com Thiébault apenas o coronel Vincent, comandante da engenharia, o coronel Douence, de artilharia, Trousset e Thomelier, da administração do exército. Não se sabia dos outros, que eram numerosos e de todas as armas. Faltava a própria escolta do general, o seu pelotão de gendarmes a cavalo.

Acudira-lhe Novion àquela miséria, mandando-lhe para Sacavém uma escolta de trinta soldados de cavalaria da Guarda Real. Vinham atrás do estado-maior a dar-lhe realce!(2)

 

*1. Êle próprio nas suas Memórias se refere ao seu uniforme desbotado e às suas botas rotas.

  1. Contudo a entrada em Lisboa sem um soldado de cavalaria, sem uma peça de artilharia, sem um cartucho capaz de arder, Thiebaul refere que o general em chefe vinha escoltado por trinta cavaleiros portugueses, que o acaso lhe deparara em Sacavém e que êle teme a feliz ideia de trazer consigo como sua guarda.

Muito naturalmente, Thiébault, como os outros historiadores, seus compatriotas, dão a estes pormenores da campanha um sentido que lhes não faça empalidecer a audácia da conquista,

Compreende-se. Aquele acaso, que pôs atrás de Junot trinta soldados de cavalaria da Guarda Real, foi o mesmo que lhe colocou às portas de Arroios aquela guarda de honra já indicada.

O acaso ali era o pseudónimo do Conde de Novion.

 

Ouvia-se por ali fora um ruído longo, confuso, de brados triunfantes, de vozes de mando, de pragas, de gemidos, de velhas canções guerreiras, truncadas na garganta áspera daqueles a quem o vinho novo de Sacavém excitara o sangue, após os esmorecimentos de dezoito dias de marchas forçadas.

Deu o sinal de marcha o clarim de ordens do general em chefe.

Os menos estropeados sacudiram mais para os ombros as mochilas de pele de cabra, ajeitaram as barretinas e puseram a espingarda ao ombro.

O porta-bandeira do 70 de linha levantou no ar a bandeira do regimento, de águia doirada no topo da haste, a seda tricolor enrodilhada a escorrer água.

Os tambores bateram a marcha com maior ardor, mas nem assim aqueles granadeiros enlameados, semi descalços, puderam marchar a passo cadenciado, ils ne pouvaient plus marcher au pas, même ao son de la caisse, como anos depois escrevia o barão Thiébault. Passavam soldados novos derreados, abordoando-se às armas, pálidos, amargurados, os uniformes aos pedaços, a farrapagem ensanguentada dos pés chaguentos a segurar-lhes as solas dos sapatos estiraçados.

Só de quando em quando ainda tinham ânimo para se aprumar os oficiais, tantos deles que tinham atravessado a Europa como triunfadores, os sargentos e os antigos soldados de cabelos grisalhos, vencedores dos austríacos em Arcole e Marengo, dos turcos nas Pirâmides, leões de Austerlitz, bravos de Iena, que bateram e humilharam a Prússia, épicos batalhadores que tinham calcado aos pés a águia branca dos Czares em Eylau e Friedland.

Esses sim, erguiam a cabeça altiva, num esforço de orgulho marcial. Eram ali os representantes do Grande Exército, levavam nos lábios o nome assombroso de Napoleão, e bem lhes importava a eles que fossem ali apenas mil e quinhentos estropeados, se na sua frente ia o prestígio dominador de dez anos de vitórias, que a Europa tinha visto e sentido num assombro de pavor? Arrogantes como se estivessem desfilando em parada em frente das Tulherias!

Iam afoitamente como se por cima da cidade oprimida todos os ecos da Europa estivessem a repercutir a canhonada e os gritos triunfais das batalhas napoleónicas, e na sua vanguarda caminhassem juntos os quinhentos ou seiscentos mil homens que Napoleão comandara em dez campanhas.

Diante dos galuchos, de rosto macilento e olhos rasos de água, Manuel de Albuquerque pensara:

- Tem a gente vontade de lhes dar uma esmola e mandar uma maca! Se a polícia quisesse, metia-os aos encontrões para dentro dos hospitais, que é o que eles verdadeiramente precisavam de conquistar.

Passava depois por diante dele um pelotão de soldados antigos, uns vinte homens de uma companhia de elite, que perdera pelos caminhos quási todo o seu efectivo de 140 praças.

- Estes teem a consciência do que vale a fama de quarenta batalhas vencidas sobre o ânimo de um povo inculto, inerme, abandonado, traído pelos próprios que deviam chamá-lo às armas e afinal lhe mandaram que se dobrasse de braços cruzados. De tanto o enganarem, pobre povo, nem êle sabe bem quem são os amigos e os inimigos, se os da França, se os da Inglaterra!(1)

 

*1. Ninguém tem o direito de duvidar e ninguém duvida da intrepidez e da bravura, tantas vezes inexcedida, do povo francês. Tem a França a mais soberba história militar dos tempos modernos. Mas nenhum povo está livre de uma crise de terror, de um súbito e injustificado esmorecimento de energias, não raras vezes produzido pela simples influência moral de uma grande vitória ou de uma grande audácia dos seus inimigos.

Temos um exemplo espantoso, entre muitos a escolher, na guerra de 1870-1871, entre franceses e alemães.

 

Passavam as últimas filas dos franceses.

- Ah! Mas são poucos! - observou um garoto.

- Para aumentar a conta dos pedreiros-livres são de mais - acudiu uma velha, benzendo-se.

- O pior é o resto - esclareceu um barbeirola - Já me disseram que enchem Portugal de lés a lés os franceses que vêem atrás destes!

- E mais os espanhóis - acrescentou um criado de casa fidalga.

- Já me contaram - interveio um sapateiro velho - que o tal Napoleão é descendente de um gigante dos tempos de Carlos Magno.

Aquele mestre sapateiro era muito lido nos folhetos da literatura de cordel, fontes primaciais de toda a sua erudição, realçada pelas profecias do colega Bandarra, que êle sabia de cor.

- Anti-Cristo é que eu já ouvi que êle era - retorquiu-lhe a velha.

- O diabo o jure, mas o que eu lhe sei dizer é que já o grande Bandarra,(1) meu ilustre colega, fêz há um horror de anos a profecia do tal Napoleão:

As vitórias formidáveis dos exércitos da Alemanha eram tais nas suas marchas estratégicas de tal modo estonteadoras, que dois fulanos, esclarecedores de uma força em observação, subitamente aparecidos em Nancy, bastaram para aterrorizar aquela cidade de setenta e três mil habitantes, a tal ponto que os dois prussianos fizeram as requisições de guerra que entenderam, com a maior tranquilidade deste mundo!

É que a cidade via atrás deles, pouco importaria a distância, os setecentos mil soldados vitoriosos do rei da Prússia.

Na Lisboa de 1807 ainda pior efeito esmorecedor. Os que deviam governar tinham fugido, mandando que o povo se resignasse, e atrás dos mil e quinhentos homens estropeados de Junot o povo não sabia se vinham os cinquenta mil franceses e espanhóis de que ouvira falar, mas o que via diante deles, confusamente, numas proporções sobrenaturais, através das neblinas da sua ignorância, era a lenda napoleónica, as batalhas formidáveis de que toda a gente falava, os exércitos que tinham desbaratado a Europa.

A primeira letra do nome daquele estafermo é um N, êle é imperador e a sua insígnia é uma águia.

«Pois o grande Bandarra fêz a profecia do N e da águia.

- Sim! Diga lá, tio Braz - pediu a velha.

- Ah! isso digo. Tenho-a na ponta da língua.

Entrou para dentro de uma taberna. Foi atrás dele e da velha um magote de curiosos.

- Ora escutem lá e vejam se a profecia não está mesmo a calhar para o tal Napoleão, que nem chifre de cabra em traseiro de clérigo.

E recitou solenemente esta profecia, atribuída ao famoso sapateiro-poeta de Trancoso:

Ergue-se a Águia imperial Com os seus filhos ao rabo, E com as unhas no cabo Faz o ninho em Portugal.

Põe um A pernas acima, Tira-lhe a risca do meio, E por detrás lha arrima, Saberás quem te nomeio.

O auditório ficou pasmado, mas não tinha percebido o artifício de escrita que dava o N inicial de Napoleão, ponto o A de pernas para o ar, tirando-lhe a perna do meio e antepondo-lhe para formar outra perna.

O tio Braz explicou o artifício, exemplificando-o a giz em cima do balcão.

Foi um assombro. Como diacho o Bandarra tinha adivinhado Napoleão, havia mais de duzentos anos!

O tio Braz sorria triunfante por conta do profeta, seu glorioso colega.

- Favas contadas! - disse-lhes envaidecido.

- Aqui está a verdade da profecia, clara como água.(1)

A velha até se benzeu estarrecida.

Os mil e quinhentos iam já ao Intendente. Alguns tinham caído desmaiados na rua dos Anjos, outros ficavam sentados às portas das tabernas, adentanhando pedaços de pão que os conquistados lhes tinham dado por dó.

Eram os galuchos, os outros, não. Lá iam com os seus ares de triunfadores.

Manuel de Albuquerque vinha-os seguindo lentamente, com uma grande expressão de tristeza.

- Inútil o meu propósito de escárnio! Não posso!

À entrada do Rossio os tambores bateram a marcha com mais energia.

Junot combinara com Novion um passeio triunfal pela cidade, mas primeiro queria ir à Torre de Belém, para verificar se ainda estava à barra a esquadra real.

Quando entravam na ampla praça do Rossio, os velhos soldados ergueram as barretinas nas pontas das baionetas e levantaram vivas ao Imperador como costumavam fazer antes e depois das batalhas, quando êle passava, e como tinham feito na gloriosa manhã de Austerlitz.

- Vive Napoléon! Vive l'Empereur!

- Só se vos responderem os butes de Abrantes - rouquejou Manuel de Albuquerque.

- Falta-vos o sol de Austerlitz. O de cá encobriu-se.

 

*1. O general Foy reproduz aquelas trovas do Bandarra no tomo III da sua História da Guerra da Península. Conta êle que alguns crédulos de Lisboa viram piamente naqueles versos o anúncio da invasão napoleónica.

 

Mas se um dia voltar como era, os vivas havemos nós dá-los, mas hão-de ser de outro feitio.

Meteu-se por entre a multidão, acotovelando, e tomou o caminho do palacete dos Castros.

Na saleta do jogo, Manuel de Albuquerque contava as suas impressões numa frieza de escárnio, que os olhos rasos de lágrimas lhe estavam desmentindo.

- É o que te digo, Jerónimo. Não fui capaz de reconhecer as minhas botas! Aqueles desajeitados estragaram tudo! Parecem-se todas umas com as outras, aquelas botas que foram a base de operações para a conquista de Lisboa. Os franceses podem dizer maravilhas da sua marcha heróica, mas fica certo disto: Quem tomou Lisboa não foi o Junot marchando com os seus mil e quinhentos esfarrapados, foi o Novion atraiçoando-nos com os seus mil e duzentos polícias.

E, subitamente, parando de passear ao longo da sala, acrescentou numa brusca mudança de tom:

- Aquela Polícia Real! Se um capitão daquela guarda de honra tivesse tido alma de português e a pusesse toda em duas ou três vozes de comando, levava-se às portas de Arroios toda aquela lama que os maltrapilhos vieram sacudir sobre nós! Uma companhia a marche-marche para a retaguarda daquela procissão de estropeados, outra de baioneta calada para os atacar de flanco e o esquadrão a galope para a frente, a carregá-los a fundo, e era então dizer ao Junot, num francês que êle entendesse:

- General, renda-se!

- Não se rendia, se é verdade o que tenho ouvido dizer dele.

- Morria então. Dava na mesma. Morria, porque até as pedras das calçadas e as vidraças das janelas haviam de ir sobre êle.

Mas não havia lá nenhum doido como eu, o capitão maluco de Rossilhão. Não havia, e entraram! E eu aqui, a fingir escárnio, tenho nos ouvidos e no coração o roncar daqueles tambores, assim como se fossem gargalhadas de desprezo! Lembrava-me o rufar das caixas de guerra numa exautoração. Esta enorme exautoração da nossa terra, Jerónimo!

Abraçou-o comovidamente. Chorava.

Apareceu à porta Henrique de Castro. Trazia uma expressão de mortificado.

- E daí, o Luís? - pregunta o Mar e Guerra.

- Na mesma. O cirurgião achou-lhe mais febre!

 

                   Em casa do joalheiro.

Maria Pulaski melhorara. Miguel Platow também tinha sentido importantes melhoras, mas não estava ainda isento de perigo.

Na madrugada do duelo, o fingido João Polovtzé saíra com Farinelli, pretextando ir assistir à partida de um joalheiro alemão, seu amigo, que ao amanhecer saía para o estrangeiro. Foi isto o que êle disse à Ana Beauchamp, para justificar a sua ausência a tal hora da madrugada.

E recomendou-lhe muito que não se apartasse do quarto do ferido. A Menina lá tinha quem olhasse por ela.

Foi vê-la ao quarto. Dormia. Beijou-lhe os cabelos enternecidamente.

E afastou-se com os olhos afogados de lágrimas.

- Pode ser o meu último beijo! - disse consigo - Deus tenha dó dela.

Ao Dr. Farinelli havia indicado a gaveta de segredo em que guardara alguns documentos de valor, e as suas últimas disposições para um caso de morte.

Compreende-se agora a contrariedade de Farinelli quando Luís de Castro disparou para o ar e depois aquelas palavras em que êle comentou a abnegação do duelista ferido.

Apesar das recomendações do polaco, Ana Beauchamp saiu do quarto de Miguel Platow, depois de ter verificado que êle estava num adormecimento de modorra.

Saiu e mandou trancar bem a porta da rua. A ladroâgem andava desaforada e aproveitava o estado de consternação da capital para as suas proezas-explicara ao criado negro.

- Simples pretexto tudo isto, mas afinal com um grande fundo de verdade.

Para os extremos da cidade não havia quem contivesse os gatunos e os malfeitores. Os môscas e a Guarda Real da Polícia mal chegavam para vigiar o centro da capital, as grandes praças e as grandes ruas, ou os enxames da Mouraría e da Alfama, onde a plebe amargurada podia fazer algum motim.

Assim que o negro trancou a porta, Ana Beauchamp correu para o quarto da sua querida Menina. Mal a tinha visto de fugida nos últimos dias. Estava com saudades dela como se fossem por uma filha muito amada.

Entrou no quarto pé-ante-pé e chamou por acenos a negra, a Francisca, a servir agora de enfermeira.

- Está milhó - disse a negra.

- Sim. Louvada seja Nossa Senhora! - respondeu-lhe a francesa no seu português vasconço.

Pediu-lhe que fosse para o quarto do ferido, enquanto ela matava saudades daquela filha do seu coração. Que estivesse lá bem atenta e a viesse logo avisar, se o visse inquieto.

E com muitas recomendações de segredo lhe afiançou que se demoraria pouco, por causa de João Polovtzé.

Podia confiar na Francisca. Era uma confidente de Maria aquela negra, que já vimos no palacete de Xabregas, à espera de Luís de Castro. Mas quem o não sabia era o polaco.

A Beauchamp foi devagar, nos bicos dos pés, para junto da cama de Maria e sentou-se-lhe ao pé da cabeceira.

Beijou-a mansamente, com os olhos cheios de lágrimas.

- A linda filha da minha alma! - murmurou em francês, docemente.

Maria acordou. Olhou-a muito.

- Ana! Minha querida mãe adoptiva! Tomou-lhe as faces entre as mãos, puxou-a para si, beijou-a.

- Mas tu aqui, assim descansada?! Meu pai deixou que viesses ver-me?

- Saiu há pouco. Ainda não é manhã clara.

- Saiu para onde?

A Beauchamp contou-lhe o que João Pulaski lhe dissera.

- Estou melhor da febre, o médico já me disse que podia levantar-me, sem sair aqui do quarto. Melhor, minha querida Ana! Mas da outra doença que o médico não entende, dessa pior, muito pior.

- Mas entendo eu, meu amor.

- A minha mágoa! Cada vez maior! Amores de má fortuna! Amor para morrer!

- Então, minha filha! - disse-lhe, beijando-a.

- Pois vê lá, que outra coisa há-de ser! Não voltará cá, não o tornarei a ver! Meu pai há-de querer fugir daqui, levar-me consigo. Pois matam-me, minha querida Ana! Verás que me matam!

- Não fale em morrer. Nossa Senhora lhe dará amparo. Havemos de fazer-lhe ambas uma promessa.

- Nossa Senhora! Suponho às vezes que ela nos não ouve ou não quere saber de nós!

- Não diga isso, minha filha!

- Pois será então só de mim que ela se não lembra! Tenho sonhado tanta coisa inquietadora, a respeito dele... de mim! Um horror! Ainda ontem! Meu pai dava-lhe um tiro e o meu pobre Luís caía cheio de sangue, como o outro caiu, parecendo morto como o outro parecia! Jesus! - exclamou, pondo as mãos, a tremerem muito.

- Ora, sonhos! Está a afligir-se, filha do meu coração, assim, sem dó de mim!

- Mas que mortificação de sonhos! Nem tu imaginas bem. Depois a fugirmos todos, uma guerra, gente morta, gente ferida, e nem sei bem porquê, tudo branco de neve como nos invernos da Polónia, lembras-te?

- Coisas disparatadas que a gente sonha.

- Alguns sonhos saem verdadeiros. Minha mãe acreditava neles. Olha que três dias antes daquela morte que foi a nossa desventura, sonhou ela com um homem coberto de sangue, e meu pai ao pé dela a chorar! Ela havia de contar-to. Contou-mo a mim uma vez numa daquelas imensas noites da Sibéria.

- Contou, sim. Lembro-me.

- Mas estes meus só não podem ser verdadeiros numa coisa. Porque eu não fujo, se o meu querido Luís fica, porque eu tenho ânimo para os maiores sacrifícios e até para morrer eu não fugiria oprimida de medo, abraçada a meu pai, como sonhei. E se êle matasse o Luís, eu não o abraçava. Não! Jesus que me perdoasse, mas não podia abraçá-lo e era dele que eu havia de fugir... para morrer... Eu bem sinto que havia de ter coragem para o fazer, quando fosse preciso.

- Oh! filha, mas tudo isso são mentiras de sonhos!

Seu pai matá-lo! Êle pensa lá em semelhante coisa! Pode lá ser!

- Lá poder ser, podia! Tu bem lhe conheces o génio.

- Ora, mas não é crível. Lá fugir daqui para evitar que o prendam, fugir levando-a consigo, isso é quási certo e nisso creio eu.

- Mas não vou, nem de rastos!

- Não se podem afiançar essas coisas, minha querida Menina.

- Podem, sim. Em o coração querendo... até as maiores loucuras são possíveis.

- Pois agora não se ponha a pensar nestas coisas - disse, levantando-se e tomando-lhe as mãos.

- Já te vais embora?!

- Tenho medo que seu pai por aí apareça e estou com cuidado no cossaco.

Era assim que, na intimidade, as duas se referiam ao russo, descendente de um hietman de cossacos, duro e impetuoso como eles.

- Está pior?

- Não, vai até bastante melhor. O médico espera salvá-lo. E agora a minha linda vai dormir mais um sono, para se levantar logo. É preciso descansar, ter esperança em dias melhores.

- Sem saber notícias dele! Se fosse possível, minha querida Ana, se fosse possível saber de Luís. se tivéssemos alguém de segredo que fosse saber...

- Com os negros não podemos contar... diriam tudo a seu pai. A Francisca não pode agora sair. eu ainda menos...

- Se houvesse uma pessoa de fora... Eu tenho de meu um dinheiro... dava o que me pedissem.

- É muito arriscado, minha filha! Por mim não tinha dúvida, bem sabe que sou capaz dos maiores sacrifícios por si, mas o pior seria seu pai, que se havia de encher de cólera contra ambas, contra si...

- Paciência. Ainda que assim fosse, contra mim não tinha dúvida. Não imaginas a mágoa que eu tenho de me ver aqui sem saber dele, sem êle saber de mim!

- Valha-nos Deus, minha filha! Vem aí uma velhinha a quem damos esmola, vem quási todos os dias... parece boa mulher, coitada...

- Já sei o que tu queres dizer, minha querida!- acudiu num grande alvoroço, alteando mais a cabeça- Adivinhei. Podia pedir-se-lhe... pedias-lhe tu, pagava-se-lhe o recado e o segredo.

- Tenho medo, minha filha! Quando a gente menos o pensa, o demónio arma-as!

- Não tenhas receio. Bem sabes como eu sou capaz de tomar para mim todas as culpas. Se vier hoje, logo, avisa-me. Eu tenho licença para me levantar e, se fôr preciso, vou à escada falar com a velhita. Ralham-me, meu pai encoleriza-se, mas a culpa será toda para mim.

- Não há-de ser preciso, meu amor, não há-de. E beijou-a muito.

- Escrevo-lhe duas ou três linhas num pedacito de papel, só para lhe dizer as minhas saudades, só para êle saber que não o esqueço.

- Pois sim, mas agora sossegue. Até logo. Hei-de cá voltar de fugida.

Foi para a porta. De súbito uma nuvem de tristeza amargurou o rosto de Maria, estremeceu, arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas.

- Ana, minha segunda mãe!-chamou num soluço.

- Filha da minha alma! - disse a Beauchamp, correndo para ela com uma surpresa mortificadora. Que tem?

- Lembrou-me de súbito o meu sonho mau! Senti-o no coração. O Luís morto por meu pai.

- Ora, Jesus nos valha! Como as crianças a afligir-se por causa de sonhos! E é má para mim. por que também eu me aflijo!

- Perdoa-me. Foi outra nuvem de mágoa que me encheu o coração.

- Mas se me não faz a vontade, eu então não falo à velhita.

- Falas, sim. És boa, és muito minha amiga, falas. Tens dó de mim, e eu beijo-te as mãos como se fossem as da minha santa Mãe. Não torno a pensar naquele horror! Não torno, vai descansada. Podes crer. Hei-de sonhar agora que recebi notícias dele. Dá-me outro beijo.

Beijaram-se. A Beauchamp saiu.

Eram quási dez horas quando o polaco e o médico italiano chegaram a casa.

Farinelli foi logo para o quarto do russo, João Pulaski para o quarto da filha.

Estava acordada. Beijou-a. Maria notou-lhe uma extraordinária palidez, tomou-lhe a mão para lha beijar e pareceu-lhe que tremia, gélida, estranhamente pesada.

Confrangeu-se-lhe o coração a lembrar-lhe o disparate do sonho.

João Pulaski saiu, dizendo consigo:,

- Nem sequer sonha o que houve. É preciso que não o saiba, e é urgente fugir.

Farinelli veio ao seu encontro.

- Tem repousado - informou -, Acentuam-se-lhe as melhoras admiravelmente.

- Mas é impossível levá-lo?

- Absolutamente impossível. Correndo as coisas assim bem, só daqui a trinta ou quarenta dias, sem risco de uma recaída funesta.

- Irei então eu e Maria.

- Decerto - confirmou Farinelli com um relâmpago de júbilo no olhar.

- As coisas complicam-se! Precisamos de falar.

- Completamente às suas ordens.

Falavam à porta fechada.

- Este caso do duelo há-de saber-se, tudo se sabe, a polícia o virá a saber e prender-me-á, ainda que lho não requisite a legação da Rússia. Dizem que é fidalgo, que é muito da Corte, hão-de exigir vingança contra mim os seus parentes e os seus amigos.

- A mãe foi primeira dama da rainha, êle pertence à mais alta nobreza do país. São muito das suas relações alguns ministros e o próprio comandante da Guarda Real da Polícia, que tem nas suas mãos o Intendente da Polícia e é afinal quem manda em tudo isto.

- Quere dizer: é a prisão inevitável, talvez hoje mesmo!

- Não direi já hoje. Na sua mortificada surpresa a família não terá tido tempo de pensar em vingar-se, e ouvi que o comandante da Polícia não faz outra coisa senão rondar a sua gente por essas ruas e praças da Baixa, onde receia que o povo se amotine, por causa da fuga da Corte e da aproximação dos franceses.

- Da entrada dos franceses também eu tenho receio. A perturbação será enorme, a soldadesca não hesitará diante de nenhum desacato... e eu tenho ali aquela filha e passo por homem de grandes haveres.

- Isso lhe afirmo eu que passa. As jóias da sua loja são o deslumbramento de toda a gente. Contam-me fabulosas maravilhas da sua riqueza!

- Ainda que se esqueçam de mim, por uns dias, na legação da Rússia e os esbirros me não sigam, corro o perigo de ser assaltado pela canalha ou pela soldadesca invasora. E minha filha, doutor?! A minha pobre filha!

- Excepcionalmente linda para que não reparassem nela os que viessem aqui na cobiça dos seus tesouros.

- Desesperador! Horrível!

Como se tivesse agora o propósito de lhe agravar os receios, Farinelli acudiu:

- E por espírito de camaradagem e desforço próprio, não será menos para recear alguma violência dos oficiais que souberam deste duelo, da generosidade do seu adversário e do insulto, realmente enorme, que o meu amigo arremessou contra eles todos na pessoa do Castro.

- Sim... é preciso sair daqui quanto antes. Doutor, já não é principalmente por mim, mas pela honra e pelo futuro da minha filha! Salve-me desta situação desesperada.

- Com a maior dedicação, meu caro amigo. Mas, as dificuldades são grandes. Já colhi informações. Por mar não é fácil nem talvez possível fugir. As costas estão bloqueadas pelos ingleses.

- Comprava-se aí um navio pequeno, veloz, e pagávamos a peso de ouro alguns homens. Saía-se de noite, seria possível escapar ao cruzeiro da esquadra inglesa.

- Uma despesa enorme e seguramente inútil. Disseram-me que era inexcedível a vigilância dos cruzeiros ingleses. Apresavam-lhe o navio ou metiam-lho a pique.

- Então de que modo, doutor? Aqui é que eu não posso ficar.

- Por terra as dificuldades são esmorecedoras! Dizem-me que os caminhos estão intransitáveis, os campos alagados... mas, apesar de tudo, por terra é que a viagem será menos incerta. Ainda assim, é preciso esperar dois ou três dias para que sua filha recobre mais forças.

Para ela é que a jornada há-de ser fatigante, modificadora.

- Estou a temer que a simples notícia da viagem a faça recair, especialmente se lhe chegar aos ouvidos, por qualquer casualidade, alguma informação a respeito do requestador.

- Não se lhe fala por agora da grande viagem.

- Não podemos deixar de lhe falar nela.

- Podemos. Eu já tinha pensado em sair para os arredores de Lisboa. Está-se mais seguro. Um patrício e amigo meu tem uma quinta aqui próxima de Lisboa, no sítio de Benfica. Tinha pensado nela para a convalescença do nosso doente. Fica muito escondida de olhares indiscretos. Falei-lhe em ma arrendar e logo ma ofereceu dedicadamente, para quando precisasse dela. Mudamos para lá amanhã de madrugada com o maior segredo. E lá se há-de preparar tranquilamente e sem receios a outra jornada, a de muitos dias.

- E Casimiro?

- Irá deitado numa berlinda, que eu vou alugar e preparo esta noite, para êle ir, e com especiais cuidados, sob a minha directa vigilância, o caso é absolutamente diverso. Irá sobre colchões que lhe amorteçam os solavancos da berlinda e eu ao pé dele, para lhe acudir, se o vir pior. Mas em sege, por esses horrorosos caminhos até à fronteira, dias e dias, a morte será quási certa.

- E essa mudança agora para quê? Minha filha sentirá o abalo moral pela ausência, desconfiará o pior, adoecerá de mágoa.

- Não me parece. Dir-lhe-emos que é para uma mudança de ares temporária, benéfica para ela... e para o irmão. Digo-lho eu com a minha autoridade de médico. Afianço-lhe que não se restabelecerá completamente aqui dentro da cidade, e reforço esta razão fundamental com o receio das perseguições da polícia e das violências da invasão francesa.

- Não deixará de ir oprimida.

- Mas irá na esperança de voltar.

- Temos ainda o perigo de lhe chegar aos ouvidos o desastre do requestador.

- Evita-se ou remedeia-se. Deixe o meu amigo esse caso por minha conta. Dê-me licença que eu finja de intermediário compassivo e a iluda na boa intenção de lha salvar.

- Confio em si, meu caro doutor, é agora a única pessoa em que eu posso confiar, mas, francamente, não alcancei ainda compreender o seu plano!

- Pois eu lho resumo abertamente, em poucas palavras. Como médico e como amigo justifico diante de sua filha a sua súbita saída para os arredores da cidade. Precisa de outros ares para se restabelecer e eu sei que o vão prender a si, entregá-lo às justiças do Czar, o que é o mesmo que atirá-lo para as mãos do carrasco. Mas, ainda que assim não fosse, os franceses estarão em pouco dentro de Lisboa e são prováveis as suas violências. Se não souber o que sucedeu ao requestador, tanto melhor. Faço o meu papel de medianeiro compassivo, digo-lhe que conheço bem o Castro, e conto-lhe que êle não pode vê-la por ora, porque todos os oficiais do exército estão nos seus quartéis por ordem superior e por causa da aproximação dos franceses. Eu próprio me oferecerei para lhe dar informações dele, a ocultas do meu amigo. E lá na quinta eu evitarei que outros lhas levem.

- Mas se souber dalguma coisa?

- É possível. Há coisas que os namorados sabem, por mais inverosímeis. Entretanto é isso o menos provável. Não sairá do quarto, a francesa e as criadas não sairão de casa, e assim não vejo o modo possível de lhe levarem notícias do ferido. Nem essa gente por aí quere agora saber doutra coisa que não seja a fuga da Corte e a aproximação dos invasores.

E amanhã de madrugada já nós estaremos a caminho, sem se saber para onde. Mas admitamos que, de qualquer modo imprevisto, sua filha recebe notícia daquele ferimento do Castro num duelo consigo. Acudo eu a desmentir a informação absurdamente caluniosa, e afirmo-lhe que o rapaz tem apenas um ligeiro ferimento, resultante de um conflito de botequim. Digo-lhe que eu próprio lhe fiz o primeiro curativo e não corre o menor perigo. Bem vê que seria uma simples mentira bem intencionada. E para lhe acalmar os receios, até a podemos levar daqui suavemente adormecida, sem ela dar por isso. {iá calmantes que vencem as maiores mágoas, a alma adormece com o corpo.

- Isso, doutor, só na última extremidade!

- Coisa completamente inofensiva.

- Meu querido amigo! - exclamou, abraçando-o - O que eu lhe devo!

- E agora os preparativos urgentes. Vou já alugar uma berlinda e duas seges. Depois irei procurar o dono da quinta.

- Oxalá que não haja qualquer contrariedade!

- Não me parece. A berlinda é melhor que eu a prepare à noite, ali do lado da praia. Este local é excelente nesta conjuntura. A polícia está lá para o centro da cidade e ninguém dará pelos nossos preparativos. As seges devem chegar às duas horas da madrugada. Hão-de ir a larga distância da berlinda. Numa das seges vai o meu amigo com sua filha. Na outra a francesa com a negra, criada de quarto.

- E os criados?

- Vai só a negra que tem tratado da Menina. Os outros irão depois. Aos que ficam diz-se-lhes que, por causa da doença de seus filhos, vai mudar para os melhores ares da Outra-Banda, por algumas semanas. Não será muito verosímil com este desabrido inverno, mas é uma razão para eles dizerem à vizinhança curiosa ou à gente da polícia, caso venha cá, o que eu suponho importável durante estes dias. Mas é preciso ter acautelados até os casos menos prováveis.

Ficou a reflectir uns instantes.

- E os valores da sua loja? Nem lá, nem aqui se deve deixar qualquer coisa de importância.

- O Casimiro e eu tínhamos trazido aos poucos as melhores jóias. O que ainda lá tenho não vale três mil cruzados. Era só para vista, para não provocar estranhezas que nos comprometeriam.

- Bem, bem. São coisas que possam ir na sege consigo?

- São. Um cofre de ferro com objectos de ouro, diamantes e outras jóias de bom quilate.

- Oh! diacho! Se fôr grande, não poderá ir na sege.

- Não chega a ter quatro palmos de comprimento, dois e meio de largura e três de altura, se tanto.

- Cheio de jóias! - pensou Farinelli - Uma riqueza. É de muito peso? - preguntou-lhe.

- Pesa bastante.

- Isso é que é uma coisa comprometedora para a outra viagem grande! Os caminhos estão infestados de bandidos, principalmente da fronteira para lá. Um cofre assim não se leva em qualquer parte, nem facilmente se oculta de vistas cobiçosas.

- Pode fazer-se uma cousa. Meto-o dentro de um baú.

- Fica um baú suspeito pelo demasiado peso.

- Bem vê que não levo tudo para fora do reino, tenho de deixar-lhe uma porção avultada daqueles valores para as despesas e para entregar a Casimiro, quando êle estiver em condições de partir. Mas temos ainda cousa mais segura. Quando lhe parece possível a minha viagem?

- Dentro de seis ou oito dias talvez.

- Ah! então ainda estará em Lisboa o joalheiro alemão de quem lhe falei. O meu amigo vai entender-se com êle em meu nome, segura-se o segredo do negócio dando-lhe um valioso abatimento de preço, e êle me receberá a maior parte das jóias por notas dos bancos de Hamburgo e de Paris. Anteontem me comprou êle os melhores diamantes que eu ainda tinha na loja, por notas francesas no valor de quarenta mil francos.

- Pode ser assim, pode. É imensamente mais seguro. Esses papéis em toda a parte valem oiro e levam-se no fundo de uma algibeira interior. Lembrou bem. O pior será que o alemão não tenha papel dos bancos suficiente para a compra total.

- Creio que terá. Uma parte das jóias tenho eu de deixar-lhe para as despesas que já combinámos e para depois entregar a Casimiro. Outra parte, pequena, pode ir comigo. Bastará que o alemão tenha papel no valor de uns quinhentos mil francos.

- Uma bela fortuna! - pensou Farinelli.

E logo fêz um gesto de impaciência como se alguma cousa importante lhe houvesse lembrado.

- Ah! não é prudente que apareça nas ruas nem seguro que ficasse aqui. Vai comigo agora para minha casa. Eu vou tratar das nossas coisas e o meu amigo espera-me lá. À noite voltamos ambos aqui.

- E Casimiro?

- Não corre nenhum perigo.

- E a casa entregue aos criados?! Pode vir aí alguém mal intencionado.

- Pior será que o meu amigo cá esteja. Mando para aqui o meu velho criado. É homem em quem plenamente confio. Vamos lá. Diz-se que tencionamos voltar cedo, que é para não autorizar desleixos dos criados. É verdade: O cofre está aí, de modo que facilmente dêem com êle?

- Não. Tenho-o ali por detrás do leito, num esconderijo da parede, que só eu e Casimiro conhecemos.

- Bem. Desculpe-me o meu amigo, se estou sendo impertinente e de algum modo abuso da sua benevolência.

- Por quem é! Entrego-me nas suas mãos, confiadamente, meu grande amigo.

- Todas estas precauções são precisas e nenhuma pode julgar-se pueril ou tornar-se inútil. Conheço muito a vida. Há situações em que tudo é necessário prever, até as cousas aparentemente absurdas. Vamos lá, que se não pode perder um minuto.

Foi isto o que se passou naquele pedaço de manhã do dia 28.

Por volta das dez horas o criado velho de Farinelli veio para casa do joalheiro e disse que recebera ordem do amo e do sr. João Polovtzé para os esperar ali.

Com a sua fina percepção de mulher conhecedora do mundo, a Beauchamp compreendeu logo que se tratava de um guarda à vista, enquanto os outros dois não podiam vir para casa.

Nada mais fácil do que enganá-lo quando êle menos o pensasse. E enganou.

À vista dele fechou de mansinho a porta do quarto de Maria e disse-lhe na sua horrorosa pronúncia do português:

- A menina está agora mais descansada. Levantou-se um bocadinho, mas apeteceu-lhe outra vez deitar-se. Deixá-la repousar. Vou agora para o nosso doente de mais cuidado. Se quere, venha fazer-me companhia.

O velho aceitou o convite e foi com ela para o quarto de Miguel Platow.

Cerca do meio-dia a Beauchamp ouviu tocar a campainha da escada. Era a hora a que a velhita costumava aparecer para lhe darem a esmola usual.

Podia bem ser ela. Ana Beauchamp deixou passar um instante, e de súbito fingiu recordar-se de alguma coisa importante.

- Valha-me Deus! Esquecia-me de ir arranjar o remédio que tem de tomar às onze horas! E o demónio da cozinheira também se esqueceu! Vou num instante prepará-lo. Eu volto já.

E saiu nos bicos dos pés, rapidamente.

Foi à escada. Era, efectivamente, a velhita das esmolas quem tocara a campainha. O criado negro já lhe tinha aberto a porta.

A Beauchamp mandou-a subir para lhe dar umas cousas de comida. Levou-a para a casa de jantar.

- Faz favor de esperar aqui. A esmola hoje há-de ser avultada. A Menina está melhor e tem uma coisa a pedir-lhe.

- O que eu puder, minha querida senhora - respondeu a mulherzinha.

Era uma viúva idosa, com um vestidito muito remendado e muito limpo.

O capote, que lhe tinham dado de esmola, estava no fio, a esfiampar-se, leve e delgado como teia de aranha.

A Beauchamp foi falar à Menina. Estava já vestida e tinha escrita uma cartazita de meia dúzia de linhas.

- Mas tu, minha querida Ana, talvez lhe não saibas explicar bem o que ela há-de fazer. Olha, é melhor trazê-la aí à porta. Falo-lhe eu. Vê lá não esteja alguém no corredor.

- E se chegam entretanto?!

- Diz-se que a pobre velhita instou para me ver e agradecer-me as esmolas. Vai depressa.

A Beauchamp voltou dali a pouco, acompanhando a velhita. Entrou com ela no quarto. Maria veio para a mendicante, muito encostada à sua criada negra.

- Nossa Senhora seja por si, minha linda Menina, que parece uma santinha moça, assim tão desmaiadita! - disse a pobre comovidamente.

- Obrigada, e que Nossa Senhora a ouça - respondeu-lhe a tremer - Olhe, aqui tem para se lembrar de mim nas suas orações.

Meteu-lhe na mão uma moeda grande de prata.

- Ai, Nosso Senhor lho pague, minha Santa!

- Agora quero pedir-lhe um favor de muito segredo.

- O que mandar e eu puder, minha querida Menina.

- Sabe onde é o sítio de Xabregas?

- Ora, muito bem. Para lá vou eu duas vezes por semana às esmolinhas do costume. Há lá muito boas casas.

- Então há-de saber de uma casa fidalga, a dos Castros e Albuquerques.

- Assim eu soubesse o caminho do céu! É onde me dão sempre maior esmola. Conheço a senhora, conheço os filhos, dois rapazes perfeitos. O mais novo é o ai Jesus da mãe. Queria lá ir ontem, e não me senti com forças. Mas não falto a ir lá amanhã.

- Pois eu queria que fosse hoje - disse Maria, muito comovida.

- Ah! isso é que eu vou. Basta a Menina querer.

- Chiu! Mais baixo. Isto é coisa de muito segredo. Pedia-lhe encarecidamente que fosse lá agora e preguntasse pelo senhor Luís de Castro.

- Bem sei. É o tal que é o ai Jesus da mãe.

- Esse mesmo. Se estivesse em casa... entregava-lhe... esta carta. Mas a êle mesmo, só a êle. E se alguém lhe fizesse preguntas, dizia que lha tinha dado um homem que não conhece... um oficial. E só a êle diria que ia daqui.

- Ah! entendo. Fique a minha querida Menina descansada. E se êle não estiver?

- Pregunta se sabem quando irá para casa, e volta lá a procurá-lo.

- Quantas vezes fôr preciso ir lá.

- Veja se lhe dão resposta, e traga-ma.

- Isso é que é o mais perigo - observou-lhe a Beauchamp em francês.

- Como há-de ser então?

A Beauchamp reflectia. Momentos depois disse-lhe em francês.

- Temos um meio. Logo que traga a resposta, a velhita vai encostar-se à porta do jardim, sem que a vejam, dependura na grade qualquer farrapo que sirva de sinal e espera. A Francisca irá de tempos a tempos às janelas que deitam para o jardim e, assim que veja o sinal, previne a Menina.

- E se meu pai cá estiver?

- A Menina manda-lhe pedir para vir aqui ao seu quarto, pretextando qualquer súbito receio ou um agravamento dos seus incómodos e, entretanto, a Francisca desce rapidamente ao jardim, para ir buscar qualquer coisa que lhe caiu da janela, passa pela porta de grade, disfarçadamente, e recebe a resposta.

- Sim, sim, parece-me bem assim.

E Maria repetiu à velhita em português, numa grande minúcia de explicações, o que a Beauchamp lhe lembrara.

- Mas, por quem é, o maior cuidado, o maior segredo!

- Fique a minha Menina descansada!

- A Francisca lhe levará alguma coisa mais.

- Ai, mas nem é preciso, minha rica Menina!

- Quero retribuir-lhe bem o seu trabalho. Adeus. Guarde bem a carta.

- Até depois, e Nossa Senhora lhe dê as melhoras que merece.

Entardecia. Nem João Pulaski nem Farinelli tinham ainda voltado. Maria estranhava aquela demora, parecia-lhe inexplicável. Tinham prometido voltar cedo!

Por causa do Pai é que ela se oprimia.

Suceder-lhe-ia alguma desgraça? Se o prenderam, meu Deus! E os cuidados para mim vêem todos juntos! A velhita sem voltar? Que horror de impaciência!

Mandou chamar a Beauchamp ao quarto de Miguel Platow. Comunicou-lhe os seus receios. A francesa disse-lhe umas palavras tranquilizadoras. O Pai saíra com o médico, talvez para quaisquer negócios demorados, e tanto que o doutor Farinelli mandara o seu criado velho para lhes fazer companhia e guardá-las. Quanto à velhita, não teria ainda podido vir por não ter encontrado em casa a pessoa a quem devia entregar a carta.

- Eu sei lá! Sei lá! Este meu coração é profeta de maus agoiros.

- O sinal - veio dizer a Francisca, muito alvoroçada.

- Vai depressa, vai já - disse-lhe Maria numa tremura de comoção -, Não te esqueça o dinheiro para lhe dares.

A negra saiu de fugida.

- Eu vou ver se o doente precisa de alguma cousa, mostro-me ao criado velho de Farinelli, e volto para saber as boas notícias que a minha Menina recebeu.

- Boas notícias, veremos!

E assim que a Beauchamp saiu pôs-se a pensar.

- Isto já não é amor senão para sofrer! Se a pobre o encontrar, o que me responderá êle? E como será o meu dia de amanhã? Mãe de Jesus, como será?

Ficou-se a reflectir amarguradamente.

- Nossa Senhora! Como a Francisca se demora! Era cousa de momentos e como ela tarda! Meu Pai pode chegar e surpreendê-la.

A negra entrou afinal. Vinha de olhos baixos, oprimida, a tremer. Maria foi para ela a encostar-se aos móveis.

- Tanta demora! A resposta? Mas que tens tu?! Fala! Que tens tu?

A negra meteu a mão no seio e tirou uma carta. O olhar de Maria iluminou-se de suavíssimo júbilo.

- A resposta. Dá cá.

E com o coração a bater-lhe doidamente, num arrebatamento de impaciências, tomou-lhe a carta da mão. Ia para abrir, mas casualmente, num relance de olhos, viu o sobrescrito e fêz-se muito pálida.

- Mas é a minha carta! - disse numa voz de estranheza que parecia um gemido da sua alma atribulada.

Procurou em volta de si uma cadeira. Sentou-se ofegante.

- Por amor de Deus, fala!

- Non a quiseram receber, Menina! - respondeu a negra numa dolorida lástima.

- Não quiseram! Foi a mendiga quem to disse?

- Foi.

- Jesus! Que dificuldade em me dizeres tudo de uma vez.

- Custa-me.

- Não estava em casa? É isto? Responde.

- Faz dó!

- Dó de quem? - preguntou, levantando-se num impulso nervoso.

- Diz que está muito mal.

- Mal! Êle?

- Non a quiseram receber!

- Mas porquê? Por amor de Deus, responde!

- A pobre ouviu contar que foi de um tiro que lhe deram.

- Um tiro! O meu sonho! Em perigo de vida?

- Mal!

- Mas, por amor de Deus, explica-me! Tu talvez não percebesses bem. Foi a pobre quem te disse que lhe tinham dado um tiro?

- Foi ela, foi!

- Nossa Senhora! E quando foi que lhe deram o tiro?

- Diz que esta manhã.

Foi para o leito a tremer muito, o peito numa convulsão de choro e os olhos sem poderem chorar.

E caiu de joelhos ao pé da cama nuns soluços como arrancos.

- O meu pobre Luís! O meu amor, o noivo da minha alma!

- A minha Menina! - exclama a negra, pondo-se de joelhos ao pé dela, numa grande e amorável expressão de súplica.

- Vai chamar a francesa. Preciso falar-lhe. E sai já, para me alugares uma sege. Depressa! Depressa!

A Francisca saiu num acabrunhamento de mágoa e de surpresa.

- Esta manhã... Meu Pai saiu cedo... Mas, meu Deus, não pode ser! Não deve ser! Seria um horror. Deram-lhe um tiro! Está talvez à morte!

Volveu pelo quarto um olhar desvairado. Levantou-se. Foi buscar uma capa grande de capuz redondo guarnecido de peles.

- Vou. Ajoelho-me aos pés da Mãe, para que mo deixe ir ver. Hão-de saber o ânimo que eu tenho. Para tudo. Para tudo!

Pôs a capa pelos ombros. Estava ainda muito fraca e logo as forças lhe faltaram. Teve que sentar-se.

A Beauchamp chegou numa grande ansiedade.

- Filha da minha alma! Que é isso?

- Não lhe quiseram entregar a carta! Nem êle a poderia ler! Está muito mal! Deram-lhe um tiro esta manhã! Quiseram matá-lo, entendes? De manhã, vê se comprendes! Vou sair. Vou saber dele.

Levantou-se a tremer.

- Jesus, minha filha! - exclamou a francesa, abraçando-a.

- Uma loucura! Na sua situação, na sua idade, uma vergonha de escândalo! Seu Pai faria loucura ainda maior! Por amor de Deus, reconsidere.

- Quero, Ana. Sou eu que quero. Vou, ainda que seja de rastos.

- Mas o que dirá o mundo?

- Diria que era uma desventurada a quem quiseram matar... ou mataram o noivo da sua alma.

- A Francisca já foi?

- Não foi. Disse-lhe eu que não fosse.

- Ana, queres então que eu aqui fique, sem saber se mo mataram?

- Peço-lhe que sossegue, que disfarce como puder, para que seu Pai não perceba. Há-de saber-se a verdade, prometo-lho. Ainda que eu tenha de fugir daqui para lha ir saber. Mas veja se pode disfarçar. Por piedade, meu amor! As tardes são uns bocados. Está a anoitecer. Seu Pai não tardará. Amanhã há-de saber-se tudo. Eu tenho tanto dó de si como se fosse uma filha minha, das que mais se estimam. Não dê a perceber o que soube. Ponha nisto esse ânimo que tinha para ir por aí fora, num desvario de que as más línguas do mundo haviam de escarnecer como se fosse uma coisa desonesta.

Acarinhou-a, tomou-a nos braços, beijando-a a chorar. - Faça-me isto que eu lhe peço. Pela memória da sua santa Mãe. Por ela, ao menos. Eu saberei tudo, eu a ajudarei nos seus amores, irei para onde quiser que eu vá.

- O meu desventurado amor! -soluçou, já muito quebrada de ânimo.

Ouviram tocar violentamente a campainha da escada.

- Seu Pai, talvez! Pelo amor de Deus, Menina!

- Mas eu posso lá fingir!

- Diga que se assustou com a demora...

que receou uma desgraça. Seja o que fôr de fingimento. Pela sua santa Mãe!

E saiu, precipitadamente.

Não era Pulaski. Era o médico italiano.

Preguntou a um dos servos negros do polaco se havia alguma novidade. Respondeu-lhe que não tinha havido nenhuma.

Foi logo ter com Platow e, pela francesa, mandou preguntar a Maria se lhe podia ir falar.

A Beauchamp demorou-se. Veio dizer-lhe que a Menina tinha estado muito assustada com a demora e ficara mortificada pelo Pai não ter vindo também.

- Numa aflição com receio de alguma desgraça! Disse-me que v. s.a podia ir lá quando quisesse.

O médico olhou a francesa num olhar perscrutador. A Beauchamp não se perturbou.

- Eu vou lá explicar-lhe a razão da demora e a ausência do Pai. Fique a senhora aqui.

Saiu. A Beauchamp estava numa inquietação nervosa oprimidora.

O médico demorou-se muito. Era noite fechada,

João Pulasky chegou. Vinha com um traje de disfarce, mas o negro que foi à porta facilmente o reconheceu. Subiu, preguntou pelo médico e pelo estado do ferido. Disseram-lhe que o Doutor achara o doente melhor e fora para o quarto da Menina.

Farinelli saía de lá e veio logo ao encontro do polaco.

Puxou-o para o vão de uma janela.

- Tenho estado com ela - disse-lhe muito baixo - Achei-a muito excitada. Disse-me que era por causa da sua ausência e de uns perigos que lhe tinham lembrado. Podia ser, dado o seu estado de debilidade, mas desconfio que haja mais alguma coisa a inquietá-la. A negra estava também muito oprimida, e respondeu-me umas respostas incoerentes. Sua filha ficou profundamente perturbada com a notícia da saída de Lisboa. Dei-lhe as melhores razões justificadoras e prometi-lhe informações a respeito do Castro. Pôs em mim os seus grandes olhos cheios de dúvida e de lágrimas.

- Esses malditos amores!

- Fingiu resignar-se. Fingiu, é o termo. As palavras tremiam-lhe nos lábios, a agitação tornou-se convulsiva, senti-lhe logo no pulso um violento acesso de febre.

- Isso é que já não é por causa da minha ausência - observou o polaco amarguradamente - Estou a suspeitar que sabe alguma coisa! Mas como? Precisamos de interrogar os criados.

- Agora não podemos perder tempo com averiguações, nem seria prudente excitá-la mais, no empenho de lhe arrancar alguma revelação. Para o nosso caso pouco importa agora reconhecer se ela sabe ou não sabe alguma coisa a respeito do Castro. Amanhã, em Benfica, trataremos disso tranquilamente. Levamos connosco as duas pessoas a quem podemos sondar com algum resultado: a francesa e a negra.

A Francisca veio à porta do quarto, espavorida.

- A Menina... mal!

- Valha-me Deus! - rouquejou o polaco -Venha, doutor!

Foram os dois. Maria estava de olhos cerrados com umas convulsões violentas. Dizia sumidamente umas palavras desvairadas.

Farinelli inclinou-se para ela e tomou-lhe o pulso.

João Pulasky deu uns passos para o médico.

- Está a arder em febre - segredou-lhe Farinelli - Delira.

- Deram-lhe... um tiro... a minha carta... Queriam... matá-lo! - murmurou Maria.

- Sabe - segredou o médico a João Pulaski.

- E agora, doutor?!

Farinelli afastou-se do leito de Maria e tomou o polaco pelo braço.

- É preciso dar-lhe um calmante. Irá profundamente adormecida. Lá saberemos o que houve.

- E não haverá perigo para ela?

- Nenhum.

Pela uma hora da madrugada duas seges partiam do lado da porta do jardim, deram uma longa volta pela praia e tomaram pela rampa de Santos para a calçada do Marquês de Abrantes, ao trote curto das muares.

Meia hora depois uma grande berlinda seguia o mesmo caminho, lentamente, como se fosse enfileirada num préstito.

O céu tinha um negrume sinistro, a chuva batia asperamente sobre as lajes das calçadas, sentia-se o gorgolejar da água a escachoar nas sargetas.

As forças principais da guarda policial estavam concentradas na Junqueira, no Conde Barão, nas arcadas do Terreiro do Paço e no Rossio, dentro do palácio da Inquisição. Patrulhas dobradas de cavalaria, os soldados envolvidos em longas capas, cruzavam pelas ruas da baixa e para as bandas da Mouraria e do Bairro Alto.

Para descer às ruas estreitas da Alfama, em caso de alarme, um forte piquete da infantaria da Guarda Real estava de armas ensarilhadas num casarão das Escolas Gerais.

Além destas forças - uns setecentos homens - a Guarda Real tinha ainda uns trezentos soldados de cavalaria e infantaria divididos em grandes piquetes nas proximidades dos quartéis da tropa de linha.

Cosidos com as paredes dos quartéis, ou alapardados nas imediações, os moscas da Intendência vigiavam.

De quando em quando, Novion passava a trote pelas grandes ruas da baixa, levando consigo o ajudante francês da Guarda Real.

Muito atrás das seges, a berlinda foi buscar o caminho de Benfica, afastando-se muito das ruas que Farinelli sabia mais vigiadas pela polícia.

 

                                                          Antonio Campos Junior

 

 

Continua no VOLUME II

 

 

                      

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