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A FLORESTA / Edward Rutherfurd
A FLORESTA / Edward Rutherfurd

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Com livros como Londres - O Romance, Edward Rutherfurd criou um gênero próprio na literatura. Utilizando-se de árduas pesquisas e imprimindo fascinantes detalhes na narrativa, tornou-se um autor inigualável. A FLORESTA, seu novo romance, é tão arrebatador e espetacular quanto seus livros anteriores, revelando todas as histórias e lendas de mil anos nos bosques da Inglaterra.

Certamente, com A FLORESTA, Rutherfurd escreveu um romance definitivo sobre a New Forest. Antiga reserva de caça dos reis britânicos, a floresta foi palco de alguns dos mais importantes acontecimentos da História inglesa nos últimos mil anos. Um bosque misterioso, quase mítico, onde bruxaria, contrabando, caça clandestina, política e traição permeiam a linhagem das famílias neste épico de Edward Rutherfurd.

A FLORESTA de Rutherfurd desbrava a verdadeira New Forest. Revela grandes e pequenos feitos, da nobreza e da plebe. Das cruéis leis florestais dos normandos e sua paixão pela caça, da fundação da Abadia de Beaulieu pelo extravagante rei João, do grande perigo real da Armada Espanhola à elegância da Lymington georgiana, das manadas de veados e cavalos selvagens, que vagavam livres desde tempos imemoriais, aos poderosos carvalhos que deram a Nelson os seus navios, Rutherfurd captou a essência desse antigo domínio.

Sem violência, sangue ou brutalidade, A FLORESTA é um livro para ser desfrutado com calma, página após página. Um romance impressionante.

Edward Rutherfurd nasceu em Salisbury e educou-se em Wiltshire e Cambridge. Morou em Nova York, mas voltou à suas raízes para pesquisar e escrever os best sellers de sua vasta saga. Sarum é baseado na história de Salisbury; Russka, seu segundo romance, narra a impetuosa história da Rússia, desde os cossacos, os cavaleiros das estepes, aos acontecimentos épicos da revolução bolchevique. Seu terceiro romance, Londres, conta a notável história da maior cidade do mundo, dando vida a todas as riquezas do passado de Londres.

 

 

 

 

                   A Pedra de Rufus, ABRIL DE 2000

Bem acima de Sarum, voava o pequeno avião. Abaixo, a elegante catedral, com a agulha de sua torre elevando-se nos ares, descansava sobre os extensos gramados verdes como uma enorme maquete. Além da área da catedral, a cidade medieval de Salisbury repousava tranqüilamente sob o sol. Mais cedo, naquela manhã, houvera uma chuvarada de abril, mas agora o céu estava claro, um pálido azul lavado. Um dia perfeito, pensou Dottie Pride, para uma missão de reconhecimento aéreo. Não pela primeira vez, sentiu-se grata pelo fato de trabalhar em televisão.

Se havia uma coisa de que ela gostava em seu chefe — e não faltava quem dissesse que John Grockleton era um grosseiro — é que ele era bom em coisas como fretar aviões. "Ele só está querendo tirar proveito de você", observara um dos câmeras. Dottie não podia evitar isso. O importante era que estava no Cessna e fazia uma linda manhã.

De Sarum, o belo vale do Avon continuava em direção ao sul, através de exuberantes prados verdes, por mais de trinta quilômetros, até alcançar as águas abrigadas da enseada de Christchurch. No lado oeste ficavam as ondulantes serras de Dorset; para leste, o imenso condado de Hampshire com sua antiga capital Winchester e o grande porto de Southampton. Dottie consultou o mapa. Dali até o mar havia somente duas pequenas cidades comerciais no Avon. Fordingbridge, doze quilômetros ao sul, e Ringwood, outros oito mais além. Poucos quilômetros abaixo de Ringwood, percebeu ela, havia um lugar chamado Tyrrell's Ford.

Nem mesmo tinham alcançado Fordingbridge, quando o avião pendeu de lado e virou para sudeste. Passaram por um pequeno cume recoberto de carvalhos.

E lá estava, debaixo deles; imensa, magnífica, misteriosa. New Forest.

Fora idéia de Grockleton fazer uma matéria sobre a Floresta. Recentemente, houvera agitação na área: irritadas assembléias públicas; gente do lugar iniciando incêndios. As câmeras da televisão já haviam estado lá embaixo poucos meses antes. Mas foi outra coisa que inflamou o interesse de Grockleton. Uma surpresa histórica. Um fragmento de pompa passada.

— Pelo menos faremos uma matéria — decidira ele. — Mas deve haver algo maior ali: um documentário de longa-metragem, mais aprofundado. Dê uma olhada, Dottie. Passe alguns dias. É um belo lugar.

Ele estava mesmo querendo tirar proveito dela, refletiu Dottie. Talvez houvesse algo mais naquilo para o seu chefe. E isso viera à tona no dia seguinte.

— Você tem alguma ligação com a Floresta? — tinha perguntado a ela.

— Não que eu saiba, John — respondera. — Por quê, você tem?

— Por estranho que pareça, tenho sim. Minha família era bastante grande por lá, no século passado. Se não me falha a memória, tem todo um bosque batizado com o nosso nome — disse ele, sorrindo para ela. — Talvez você goste de fazer esse trabalho. Se achar conveniente, é claro.

— Sim, John — dissera secamente. — Verei o que posso fazer.

Sobrevoaram plantações e urzais arroxeados por quinze quilômetros. O terreno era mais ermo e mais inculto do que ela esperava; mas ao chegarem a Lyndhurst, no centro da Floresta, a paisagem mudou. Pequenos bosques de carvalhos, clarões verdes, extensas campinas semeadas pelos atarracados pôneis de New Forest; belas cabanas com telhados de palha e paredes de tijolos ou caiadas. Era a New Forest que ela conhecia dos cartões-postais. Seguiram o curso da velha estrada que levava ao sul atravessando o meio da Floresta. Os carvalhos eram densos abaixo deles. Em um clarão, avistou alguns veados. Passaram por um povoado em uma enorme clareira, a relva verde pontilhada de pôneis. Brockenhurst. Um pequeno rio apareceu, correndo para o sul, através de um exuberante vale com laterais escarpadas. Aqui e ali, via casas aprazíveis com cercados e pomares. Prósperas. Em um alto outeiro do lado leste arborizado do vale, localizou uma pequena e acachapada igreja paroquial, obviamente antiga. Igreja de Boldre. Ela a visitaria.

Um minuto depois estavam sobre a cidade portuária de Lymington e sua abarrotada marina. À direita, na beira de um pântano, uma placa em uma grande casa de barcos proclamava: ABRIGO PARA BARCOS DE SEAGULL.

O canal da Mancha ficava poucos quilômetros a oeste. Abaixo deles estava a agradável reta aquática do Solent com as verdes inclinações da ilha de Wight mais além. Ao voarem agora para leste, ela tirou os olhos do mapa para examinar o contorno da costa.

— Ali — disse com satisfação. — Só pode ser ali. O piloto desviou o olhar para ela.

— O quê?

— Througham.

— Nunca ouvi falar.

— Ninguém ouviu. Mas você ouvirá.

— Quer sobrevoar Beaulieu?

— Claro. — Seria o cenário da seqüência de abertura. Abaixo deles, bem distante, a adorável velha abadia estendia-se serena sob o sol. Atrás, resguardado por árvores, o famoso Museu do Motor. Sobrevoaram-no uma vez e depois seguiram novamente para o norte, em direção a Lyndhurst.

Logo passaram por Lyndhurst e estavam voando para noroeste, em direção a Sarum, quando Dottie pediu ao piloto que desse outra volta. Esquadrinhando lá embaixo, ela ainda demorou um pouco para localizar o seu alvo, mas não tinha como errar.

Uma única pedra, fixada no limite da clareira de um bosque. Dois carros estavam parados no pequeno estacionamento de cascalho ali perto, e ela podia ver seus ocupantes diante do diminuto monumento.

— A pedra de Rufus — informou.

— Ah, já ouvi falar — disse o piloto.

— Quase todos esses milhares de pessoas que vêm passear ou acampar todo ano em New Forest fazem questão de visitar esse curioso lugar. A pedra, de acordo com uma história quase milenar, marca o local onde o rei Guilherme, o rei normando, chamado Rufus por causa dos cabelos, foi morto por uma flecha, em circunstâncias misteriosas, enquanto caçava um veado. Depois de Stonehenge, talvez seja a mais famosa pedra de pé do sul da Inglaterra.

— Antigamente não havia uma árvore ali? — indagou o piloto. — A flecha não resvalou na árvore e atingiu o rei?

— É o que conta a história — disse Dottie, vendo mais um carro estacionar sobre o cascalho. — Só que, ao que parece — acrescentou —, ele não foi flechado ali.

O gamo fêmea sobressaltou-se. Tremeu por um instante, e então ficou ouvindo.

Uma noite de primavera cinza-escura ainda se estendia no céu como um cobertor. Na beira da mata, em meio ao ar úmido, o odor turfoso da charneca mais além se misturava com o leve bolor das folhas caídas do ano anterior. Havia uma quietude, como se toda a ilha da Bretanha esperasse algo acontecer no silêncio que antecedia a alvorada.

Então, de repente, uma cotovia começou a cantar no escuro. Só ela tinha visto a insinuação de lividez no horizonte.

A gama virou a cabeça, insatisfeita. Algo se aproximava.

Puckle avançava pelo mato. Não precisava andar em silêncio. Enquanto seus pés roçavam as folhas ou quebravam um graveto, ele poderia ser confundido com um texugo, um porco selvagem ou outro habitante qualquer da Floresta.

Ao longe, à sua esquerda, o pio de uma coruja malhada adernava-se através dos túneis escuros e das imponentes abóbadas dos carvalhos.

Puckle: quem passou a ser conhecido pelo nome de Puckle? Seu pai, seu avô, um antepassado mais distante? Puck: era um daqueles estranhos nomes antigos que surgiam, misteriosamente, do meio da paisagem inglesa. Puckle: havia várias dessas colinas ao longo do litoral do sul. Ou talvez fosse um diminutivo: pequeno Puck. Ninguém sabia. Mas, tendo conseguido um nome, a família nunca mais pareceu se preocupar com isso. O velho Puckle, o jovem Puckle, o outro Puckle: sempre havia uma certa imprecisão sobre quem era quem. Quando ele e a família foram expulsos de sua aldeia pelos criados do novo rei normando, erraram pela floresta e, finalmente, montaram um precário acampamento junto a um dos regatos que corriam para o rio Avon, na borda ocidental da Floresta. Recentemente, tinham-se deslocado vários quilômetros ao sul, para outro regato.

Puckle. O nome combinava com ele. Atarracado, nodoso como um carvalho, os ombros fortes inclinando-se para a frente como se estivesse puxando um grande peso, costumava trabalhar com os carvoeiros. Mesmo para as pessoas da Floresta, suas idas e vindas eram misteriosas. Às vezes, quando a luz da fogueira fixava no rubor das chamas o seu rosto carvalhoso, ele parecia um gnomo. Contudo, as crianças se agrupavam em volta dele quando chegava às aldeias para construir porteiras ou cercas trançadas de varas, o que fazia melhor do que qualquer um. Gostavam do seu jeito calmo. As mulheres viam-se estranhamente atraídas por um certo calor interno profundo que pareciam sentir no lenhador. Em seu acampamento perto da água sempre havia pombos pendurados e a pele de uma lebre, ou de outro animal pequeno, caprichosamente esticada em estacas; ou talvez os restos de uma truta que se aventurara a subir os pequenos riachos castanhos. Mas os animais da mata dificilmente se davam ao trabalho de evitá-lo, quase como se sentissem que era um deles.

Agora, ao avançar pela escuridão, uma tosca jaqueta de couro cobrindo o tronco, as pernas nuas enfiadas em sólidas botas de couro, talvez parecesse uma figura do próprio alvorecer do tempo.

A gama permanecia parada, a cabeça ereta. Tinha-se afastado um pouco do grupo que ainda se alimentava sossegadamente das recentes gramas da primavera perto do limite da mata.

Embora os veados tenham uma vista aguçada e o faro altamente desenvolvido, é com a audição — as orelhas enormes em relação à cabeça — que costumam detectar o perigo, principalmente se este estiver na direção do vento. Os veados conseguem até mesmo captar o estalido de um graveto a enormes distâncias. Ela já podia perceber que os passos de Puckle se afastavam.

Tratava-se de um gamo fêmea. Havia três tipos de cervídeos na Floresta. Os grandes veados-nobres, com a pele castanho-avermelhada, eram os antigos príncipes do lugar. E, em certos recantos, encontravam-se os curiosos corços — criaturinhas delicadas, um pouco maiores que um cão. Recentemente, porém, os conquistadores normandos haviam introduzido uma nova e adorável raça: o elegante gamo.

Ela tinha perto de dois anos. A pelagem era malhada, antes de mudar da cor de amora invernal para a camuflagem de verão — um cremoso castanho desbotado com pintas brancas. Como quase todos os gamos, tinha o traseiro branco e a cauda branca orlada de preto. Mas, por algum motivo, a natureza fizera sua pelagem um pouco mais clara do que o normal.

Para outro gamo, ela seria, quase com certeza, identificável sem essa peculiaridade: os sinais do dorso de cada gamo são sutilmente diferentes dos de qualquer outro. Cada qual possui uma espécie de sinal codificado, tão individualizado quanto uma impressão digital humana — e muito mais visível. Ela já era, portanto, única. Mas a natureza também acrescentara, talvez para o prazer do homem, essa descoloração. Tratava-se de um belo animal. No outono daquele ano, na época do cio, encontraria um macho. Desde que os caçadores não a matassem.

Seus instintos ainda a alertavam para ser cautelosa. Virou a cabeça para a esquerda e para a direita, procurando ouvir outros sons. Em seguida, olhou fixamente. As árvores escuras tornavam-se sombras na distante penumbra. Um pouco longe dali, um galho caído, despido de sua casca, tremeluzia como um par de chifres. Atrás, uma pequena aveleira podia ser um animal.

As coisas nem sempre eram o que pareciam na Floresta. Longos segundos se passaram, até que, satisfeita, ela baixou lentamente a cabeça.

E então começou o refrão da alvorada. Da charneca, uma alvéloa juntou-se a ele com um chilrear estriduloso, lá de seu poleiro em um tojo — uma tênue espiga amarela no escuro. A luz rompia no céu oriental. Agora, uma ave canora tentou se intrometer, seu trinado metálico recheando o ar; em seguida, passou um melro flauteando entre as árvores frondosas. De algum lugar atrás do melro, surgiu o estridente brocar de um pica-pau, com duas curtas marteladas no tambor de casca de árvore; momentos depois, o delicado arrulho de uma rola. E então, ainda no escuro, seguiu-se o cuco, um eco flutuando para baixo do limite da mata. Desse modo, cada qual proclamava o seu pequeno reino antes da época do acasalamento da primavera.

Sobre a charneca, elevando-se cada vez mais e mais, a cotovia cantava ainda mais alto, acima de todos os outros. Pois havia vislumbrado o sol nascente.

Cavalos bufavam. Homens batiam os pés. Os cães de caça arquejavam impacientes. O cheiro de cavalo e fumaça de lenha permeava o pátio.

Estava ná hora de ir à caça.

Adela os observava. Uma dúzia de homens já estava reunida: os caçadores de verde com penas nos gorros; vários cavaleiros e fidalgos da região. Ela implorara muito que lhe permitissem cavalgar com eles, mas seu primo Walter só concordara de má vontade quando ela lhe lembrou: "Pelo menos, serei vista. Você sabe que tem por obrigação me conseguir um marido."

Não era fácil para uma jovem mulher na posição dela. Transcorrera apenas um ano desde a ocasião fria e vazia em que seu pai morrera. A mãe, lívida, subitamente um trapo, entrara para um convento. "Isso preserva minha dignidade", falou para Adela, ao confiar a moça aos parentes, deixando-a, portanto, com nada além do seu bom nome e algumas dezenas de pobres hectares na Normandia, como dote. Os parentes haviam feito o melhor possível por ela; e não demorou para que o pensamento deles se voltasse para o reino da Inglaterra, onde, desde que Guilherme, o duque da Normandia, o conquistou, muitos filhos de famílias normandas herdaram propriedades — filhos que muito se alegrariam em ter uma esposa que falava francês da terra natal deles. "De todos os nossos parentes", disseram-lhe, "seu primo Walter Tyrrell é o mais bem colocado para ajudá-la. Ele próprio conseguiu um esplêndido casamento." Walter se casara com uma moça da poderosa família Clare: suas propriedades na Inglaterra eram imensas. "Walter conseguirá um marido para você", adiantaram. Mas ainda não havia conseguido. Ela não estava certa se confiava realmente nele.

O pátio era típico das casas nobres saxônicas da região. Grandes troncos de madeira, construções semelhantes a cocheiras com telhados de colmo em três dos seus lados. As paredes feitas com enormes tábuas de madeira escurecida. No centro, o grande vestíbulo era delimitado por um vão de porta rebuscadamente entalhado e uma escadaria externa para se atingir o andar superior. A casa nobre estava situada a apenas uma curta distância das águas claras e serenas do rio Avon, que escoava das serras calcárias próximas ao castelo de Sarum, vinte e cinco quilômetros ao norte. Poucos quilômetros rio acima ficava a aldeia de Fordingbridge; rio abaixo, a cidadezinha de Ringwood, e, doze quilômetros depois, o Avon penetrava na rasa enseada protegida pelo seu promontório e de lá para o mar aberto.

"Aí vêm eles!" Um grito elevou-se quando um movimento na porta do vestíbulo indicou que os líderes do grupo estavam para surgir. Walter veio na frente, a aparência jovial; em seguida, um fidalgo; e, atrás deles, o homem por quem esperavam: Cola.

Cola, o Caçador, o dono da herdade, o senhor da Floresta: já tinha os cabelos prateados; e o comprido e pendente bigode cinza. Mas era ainda uma figura esplêndida. Alto, peito largo, a atlética constituição física talvez não tão ágil, mas caminhava com a graça de um velho leão. Centímetro por centímetro, era um nobre saxão. E se havia nele algo que pudesse sugerir que bem lá no fundo sentia alguma perda de dignidade desde a chegada dos normandos, Adela podia ver que os seus olhos ainda resplandeciam fogo.

Mas não estava olhando especialmente para Cola, e sim para os filhos dele, que vinham logo atrás. Havia dois, ambos na casa dos vinte anos, um deles, porém, segundo avaliou, três ou quatro anos mais velho do que o outro. Altos e bonitos, com longos cabelos louros, barbas curtas e reluzentes olhos azuis, ela presumiu que cada qual devia ser uma réplica do homem que o pai fora outrora. O caminhar deles era lépido, atlético, com uma tal nobreza, que ela instintivamente se sentiu grata pelo fato de pelo menos esses saxões terem mantido sua herdade, ao contrário de muitos outros que haviam perdido as suas para o próprio povo dela. Enquanto os olhos de Adela continuavam pousados neles, descobriu-se até mesmo sorrindo internamente. Meu Deus, percebeu o que estivera pensando: em seu estado natural, esses rapazes devem ser... simplesmente belos.

Poucos instantes depois, justo quando o sol começava a despontar no horizonte acima dos carvalhos, o grupo todo, cerca de vinte pessoas, avançou.

O vale do rio Avon, que eles estavam para deixar, era uma região maravilhosa. Através da vasta planície costeira, que se estendia abaixo dos picos calcários de Sarum, eras geológicas passadas haviam deixado uma faixa com camadas de cascalho. Desde então o rio descendente entalhara uma trilha larga e rasa em direção ao sul, suas ribanceiras tornando-se baixas arestas de cascalho revestidas de árvores, em cujo interior, durante séculos incontáveis, se depositara um rico aluvião. Entre Fordingbridge e Ringwood, o vale tinha cerca de três quilômetros de largura; e, embora o rio sereno, que naquela ocasião abria caminho por entre as campinas exuberantes, não passasse de um fio d'água comparado à sua condição anterior, algumas vezes, durante as chuvas de primavera, inundava suas margens e cobria todos os prados em volta com um lençol de água cintilante, como para lembrar ao mundo que continuava sendo o antigo dono do lugar.

Adela nunca tinha saído com um grupo de caça como aquele e sentia-se entusiasmada. Também estava curiosa. Sabia que o destino era logo depois do penhasco oriental do vale do Avon; e parte do motivo pelo qual havia implorado para ir junto naquele dia era a chance de explorar a região selvagem sobre a qual costumava ouvir falar. Não muito antes de chegarem ao pé da elevação, passaram por um pequeno regato e um imenso e solitário carvalho. Levaram os cavalos por uma subida sinuosa, com carvalhos, azevinhos e arbustos dispersos em ambos os lados. Ela percebeu, enquanto subiam, que havia partes expostas de cascalho na trilha.

Entretanto foi apanhada desprevenida e soltou um pequeno arquejo de surpresa, quando, ao chegar ao alto do morro, a mata terminou abruptamente. Súbito, o horizonte e o céu irromperam em toda a sua volta, e ela penetrou totalmente em uma outra terra.

Não era o que havia esperado. Diante de si, até onde a vista alcançava, encontrava-se uma vasta extensão de charneca de cor castanha. O sol, ainda baixo no horizonte e com um fitar amarelado, começava a dispersar os rastros da neblina matinal que se estendia pela paisagem como fios de teias de aranha. O cume coberto de samambaias e urzes, no qual emergiram, despencava de cada lado em longos declives para uma parte inferior ampla e pouco profunda: um pântano à esquerda; à direita, um riacho correndo sobre cascalho com margens de relva. Ao redor, a charneca era pontilhada com arbustos e moitas de tojos floridos de amarelo. Em outro cume, a cerca de dois quilômetros de distância, a silhueta de uma gleba de azevinhos centra o horizonte. E, mais além, o morro seguinte era coberto por um bosque de carvalhos, como a orla atrás dela.

Havia algo mais em relação à paisagem. Olhando para baixo, na direção da camada superficial do solo turfoso sob os cascos dos cavalos, notou ali pedras de cascalho de um branco quase luminoso, e ao levantar novamente a vista e farejar o ar, teve a curiosa sensação de que, embora não pudesse vê-lo, estava em algum lugar perto do mar.

Haveria seres humanos morando naquela imensidão selvagem? Haveria povoados, chácaras ou cabanas? Devia haver, supôs, mas não havia ninguém à vista. Era tudo desabitado, silencioso, primitivo.

Assim era a New Forest do rei Guilherme, o Conquistador.

Forest: um termo francês. Não significava uma terra coberta por árvores, embora houvesse enormes bosques no interior de suas fronteiras, mas, de preferência, com uma área separada — uma reserva — para as caçadas do rei. Seus veados, em particular, eram protegidos por selvagens leis florestais. Quem matasse um veado do rei perdia a mão ou mesmo a vida. E, já que os conquistadores normandos apenas recentemente haviam tomado para si a região, New Forest — Nova Foresta, no latim dos documentos oficiais — passou a ser o nome do lugar.

Não que no mundo medieval algo fosse exatamente novo. Cada inovação remetia a um precedente antigo. Certamente os saxões caçavam na área desde tempos imemoriais. Portanto, de acordo com o conquistador normando, o lugar já se encontrava sob severa lei florestal duas gerações antes, nos velhos e bons tempos do rei Canuto, e ele inclusive mostrara um decreto para prová-lo.

A área que ele reservou para a sua New Forest era uma enorme faixa: de oeste para leste, estendia-se do vale do Avon por quase trinta quilômetros, atravessando uma grande enseada que vinha do mar. Do norte para o sul, descia suavemente por mais trinta quilômetros em uma série de declives cascalhosos, dos cumes calcários a leste de Sarum até um trecho selvagem pantanoso na costa do canal da Mancha. Tratava-se de um terreno sortido, uma grande colcha de retalhos feita de urzes e bosques, relvas e pântanos, sobre a qual pequenos grupos de homens tinham perambulado, se estabelecido, aberto clareiras e partido, durante tantos milhares de anos, que não era mais possível decifrar com certeza se algum retalho da paisagem fora feito de acordo com o projeto de Deus ou pela tosca mão do homem. A maior parte da terra era turfosa e ácida e, portanto, pobre; mas aqui e ali havia trechos de solo mais fértil, que podia ser cultivado. Os grandes bosques de carvalhos ficavam na bacia meridional, geralmente em solo pantanoso, e talvez não tenham sido perturbados por mais de cinco mil anos.

E havia outra característica em New Forest que Adela corretamente percebera: a presença do mar. A morna brisa sudoeste transportava um leve vestígio de maresia até mesmo para as partes mais ao norte da Floresta. Mas o mar propriamente dito ficava quase sempre escondido, até alguém sair do bosque de carvalhos para os pântanos costeiros. Havia um sinal visível, entretanto. Do lado oposto à parte da margem oriental da Floresta e separada dela por um canal de cerca de cinco quilômetros, conhecido como Solent, eleva-se a amistosa corcunda da ilha calcária de Wight. E, de numerosas posições favoráveis, mesmo de pontos menos altos abaixo de Sarum, podia-se olhar diretamente através de toda a depressão da Floresta e enxergar a ilha adiante, enevoada e roxa sobre o mar.

— Pare de sonhar acordada! Você vai ficar para trás.

Walter a estava encarando, parecendo constrangido, e ela percebeu que, ao apreciar a vista, inconscientemente tinha parado e deixado o resto do grupo seguir adiante.

— Desculpe — disse ela, e seguiram em frente, Walter trotando acintosamente a seu lado.

Olhava-o com ar crítico. Com seu pequeno bigode encaracolado e olhos azul-claros levemente idiotas, como Walter conseguia se insinuar em todo lugar? Provavelmente porque, apesar de não possuir nenhum talento em especial, era evidente que tinha uma obstinada determinação em se tornar útil aos poderes, fossem quais fossem. Mesmo os seus poderosos parentes por afinidade talvez até se sentissem gratificados pelo fato de que, se Walter estava do lado deles, era porque devia achar que estavam vencendo. Não era um mau sujeito para se ter na família naqueles tempos incertos.

Havia sempre constantes intrigas políticas no mundo normando. Após a morte do rei Guilherme, o Conquistador, uns doze anos antes, sua herança fora dividida entre os filhos: o ruivo Guilherme, conhecido como Rufus, ficou com a Inglaterra; a Normandia foi para Roberto; um terceiro filho, Henrique, recebeu apenas uma renda. Mas, como até mesmo Adela sabia, a situação era sempre intranqüila. Muitos dos grandes nobres tinham herdades tanto na Inglaterra quanto na Normandia; entretanto, ao passo que Rufus era um governante competente, Roberto não o era, e costumava-se dizer que Rufus algum dia tomaria a Normandia. Roberto, porém, tinha seus admiradores. Dizia-se que uma importante família normanda, que possuía algumas das terras ao longo da costa de New Forest, gostava dele. E o jovem Henrique? Este parecia satisfeito com o seu quinhão, mas estaria mesmo? A situação tornava-se ainda mais complicada pelo fato de que até então nem Rufus nem Roberto havia-se casado e produzido um herdeiro. Mas um dia, inocentemente, ela perguntou a Walter quando o rei da Inglaterra se casaria, e ele apenas deu de ombros. "Quem sabe?", fora a resposta. "Ele prefere os rapazes."

Adela suspirou para si mesma. Qualquer que fosse o rumo dos acontecimentos, Walter saberia com certeza que lado estaria vencendo.

O grupo avançava rapidamente pela charneca. Aqui e ali, ela percebia pequenos ajuntamentos de robustos pôneis comendo capim ou tojo.

— Eles estão por toda parte — explicou Walter. — Parecem selvagens, mas muitos pertencem aos camponeses dos povoados. — Eram lindas criaturinhas, e, a julgar pelo número que ela podia ver, haveria milhares na Floresta.

Cola e os filhos seguiam na frente. Se o rei havia reservado New Forest para os seus veados, não era só para a diversão dele. Claro, o esporte era excelente. Não apenas veados, mas também javalis e alguns lobos podiam ser caçados e mortos. Quando o rei ia caçar com os amigos, costumavam usar arco e flecha. Mas a necessidade básica da Floresta era muito mais prática. O rei e sua corte, seus soldados de cavalaria, às vezes inclusive os seus marujos, tinham de ser alimentados. Precisavam de carne. Veados se reproduziam e cresciam rapidamente. A carne que produzem é deliciosa e muito magra. Podia ser salgada — havia salinas no litoral — e enviada para todo o reino. New Forest era uma fazenda de veados.

E muito profissional. Dirigida por vários florestais — alguns deles saxões como Cola, deixados por lá por causa do profundo conhecimento que tinham da área —, a Floresta mantinha um estoque de cerca de sete mil veados. Quando um dos caçadores levava um grupo para matar veados para o rei, como Cola fazia na ocasião, eles não utilizavam arco e flecha, mas um método muito mais eficiente. Naquele dia haveria uma grande condução, ou arrebanho, com esse e outros grupos atiçando por uma grande área e conduzindo habilidosamente a caça para uma imensa armadilha. A armadilha, que estava sendo preparada na propriedade real de Lyndhurst no centro da Floresta, consistia em uma comprida cerca curva, que afunilava os veados na direção de um cercado onde poderiam ser atingidos por flechas ou apanhados em grandes números por redes. "É como a espiral de uma concha marinha", explicara-lhe Walter. "Não há escapatória."

Embora cruelmente eficaz, aquilo evocava na mente dela uma imagem que era mágica e estranhamente misteriosa.

Iniciaram a descida de uma ladeira em direção a um bosque. À sua direita, ela ouviu uma cotovia cantar, e olhou na direção do céu azul-pálido para localizá-la. Ao fazer isso, percebeu que Walter falava com ela.

— O seu problema — ouviu-o começar, antes de fechar a mente para o som da voz dele.

Sempre havia muito disso em relação a ela, de acordo com Walter. "Você devia tentar caminhar com mais elegância", dizia ele. Ou sorrir mais. Ou usar outra roupa. "Você não é feia", fora bondoso o bastante para dizer a ela na semana anterior. "Mesmo que algumas pessoas possam dizer que devia ser mais magra."

Tratava-se de um novo defeito. "Elas dizem isso?", perguntara serenamente.

"Não", fora a resposta dele, após refletir. "Mas acho que poderiam."

Implícito em toda essa crítica, porém, e no leve constrangimento que a presença dela evidentemente lhe causava, encontrava-se um grande defeito que ela era impotente para corrigir. Tenho certeza, pensou secamente, que se eu tivesse um imenso dote ele me acharia linda.

Já conseguia ver a cotovia: um pontinho acima do morro, seu canto baixando, gutural, límpido como um sino. Ela sorriu, depois se virou, quando algo mais atraiu a atenção de seus olhos.

O vulto que cavalgava pela charneca aproximava-se deles rapidamente. Cavalgava sozinho. Usava um gorro de caça e estava vestido de verde; mas, antes mesmo de conseguir distingui-lo um pouco mais, ficou claro para ela, por causa do magnífico baio que montava, que não se tratava de um fidalgo rural qualquer. Com poderosas e desembaraçadas passadas largas, o enorme cavalo galopava na direção deles. Seu coração se emocionava só de observar aquilo. E o cavaleiro, de uma maneira serena, parecia tão impressionante quanto a montaria. Ao se aproximar, ela viu um homem alto de cabelos negros. O rosto era aquilino, normando, e de certo modo severo. Calculou que devia ter uns trinta anos e, obviamente, tinha nascido para a autoridade. Ao passar por eles, tocou no gorro em um cumprimento educado, mas como não virou a cabeça era impossível saber se a tinha visto realmente. Viu-o galopar diretamente para o chefe do grupo e saudar Cola, que retribuiu a saudação com evidente respeito. Ficou imaginando quem seria o recém-chegado e um tanto de má vontade virou-se para Walter, descobrindo que ele já olhava para ela.

— E Hugh de Martell — informou. — Possui enormes propriedades a oeste da Floresta. — Então, quando ela começou a observar que ele parecia um sujeito bastante frio e desagradável, Walter deu uma gargalhada irritante. — Você não poderá tê-lo, priminha. — Arreganhou os dentes. — Ele já tem dona. Martell é casado.

O sol da manhã já estava bem alto no céu e, embora tudo estivesse calmo, para a esposa dele parecia que Godwin Pride estava se arriscando. Normalmente, ele terminava logo depois do amanhecer.

— Você conhece a lei — lembrou-lhe. Mas Pride nada disse e prosseguiu.

— Eles não virão por estes lados — falou, finalmente. — Hoje não. Havia um cheiro de capim no ar. Uma mosca ia pousar no pescoço de Pride,

mas mudou de idéia. Um ou dois minutos depois, um menino saiu e parou ao lado da mãe para observar o pai.

— Posso ouvir alguma coisa — sugeriu ela. Pride parou, escutou e lançou-lhe um olhar sereno.

— Não, não pode — disse ele.

O povoado de Oakley consistia em um pequeno arruado de choças com telhado de palha e chácaras perto de uma relva de grama rala de charneca. Além da relva, havia um lago raso cuja superfície no momento estava coberta por um tapete de pequenas flores brancas dispersas. Dois carvalhos pequenos, um freixo e vários arbustos de amoras silvestres e tojo amarelo sobrepairavam a água em vários pontos. Embora a grama fosse rala e dura, três vacas e um casal de pôneis pastavam. Bem atrás do povoado, uma trilha de cascalho levava a uma mata, onde logo descia por entre altas ribanceiras até o riacho. Na extremidade leste do povoado, um pouco distanciada, ficava a chácara de Godwin Pride.

Godwin Pride: os dois nomes não podiam ser mais saxões; contudo, uma rápida olhada no dono deles sugeria uma descendência diferente. Tinha voltado a se curvar sobre o seu trabalho, mas, ao ter-se aprumado para responder à esposa, que bela figura revelara. Constituição esguia, costas eretas, cabelos de um intenso castanho caindo em caracóis sobre os ombros, barba e bigode abundantes da mesma cor, nariz adunco e lustrosos olhos castanhos — tudo isso indicava que, como muitas pessoas que viviam na Floresta, ele era, pelo menos em parte, um celta.

Romanos tinham vindo; saxões tinham vindo. Em particular, esse ramo de saxões conhecidos como jutos tinha-se instalado na ilha de Wight e do lado oriental da Floresta, que era conhecida como Ytene — a terra dos jutos. Mas naquela região isolada, cujas matas cerradas e solos pobres de charnecas e pântanos não atraíam muita atenção, remanescentes da antiga população celta continuaram vivendo em silêncio. Aliás, a vida deles em suas chácaras, modestas mas bem adaptadas ao meio ambiente florestal, provavelmente tinha mudado muito pouco desde a antiga e aprazível paz da Idade do Bronze.

Era inusitado que no reino de Rufus um homem, principalmente um camponês, tivesse nome de família. Mas havia vários primos ostentando o nome Pride na Floresta — Pryde, em inglês arcaico não significando tanto arrogância, apesar de haver um pouco disso, quanto um senso de mérito pessoal, uma independência de espírito, uma compreensão de que a antiga Floresta era deles, para viverem como lhes aprouvesse. Como Cola, o nobre saxão, sempre aconselhava ao visitar os normandos: "É mais fácil persuadir essas pessoas do que lhes dar ordens. Não se manda nelas."

Talvez tenha sido por esse motivo que até mesmo o poderoso Conquistador, ao criar New Forest, transigiu em algumas coisas. No que se referia à terra, muitas das áreas da Floresta já eram propriedades reais; portanto, não havia necessidade de expulsar ninguém. Outras foram confiscadas por ele; mas muitas terras em torno das margens da Floresta perderam apenas suas matas e charnecas para as caçadas do rei. Quanto às pessoas, vários aristocratas saxões, como Cola, foram deixados onde estavam, desde que se tornassem úteis; e, por mais que pudesse lhe custar a alma, Cola não quis se arriscar. Outros senhores perderam suas terras, como aconteceu a nobres saxões por toda a Inglaterra, e assim também a alguns camponeses, que tiveram de se mudar para novos povoados, ou, como Puckle, viver às margens da Floresta. Contudo, havia compensações para todos os que permaneceram na área.

É verdade que as leis florestais normandas eram duras. Havia duas categorias gerais de delitos: os chamados de vert e os denominados de venison. Os de vert se referiam à vegetação — proibiam a derrubada de árvores, a feitura de cercados, qualquer coisa que pudesse danificar o habitat dos veados do rei. Eram os delitos mais leves. Os crimes de venison se referiam à caça clandestina de qualquer animal e, em especial, de veados. A pena do Conquistador para a morte de um veado era a cegueira. Rufus foi mais além: um camponês que matasse um cervo macho devia morrer. As leis florestais eram odiadas.

Mas ainda havia os antigos direitos comunais do pessoal da Floresta; a esses o Conquistador deixara intatos e, em alguns lugares, até mesmo ampliados. Na aldeola de Pride, por exemplo, apesar de um pedaço de terra ao lado de sua chácara ter sido confiscado pela lei florestal — o que Pride considerava uma imposição —, exceto durante certos períodos no ano de proibição, ele podia levar quantos pôneis e cabeças de gado quisesse para pastar por toda a Floresta do rei; no outono, seus porcos podiam fuçar nas abundantes e frescas abelotas desgalhadas dos carvalhos; também galhos caídos, o que havia bastante, e levar samambaias para casa e usá-las como palha para seus animais nela deitarem.

Tecnicamente, Godwin Pride era um vassalo. O nobre local que então possuía o povoado de Oakley era o seu senhor feudal. Isso significava que ele teria que dedicar três dias da semana para lavrar a terra do seu senhor e baixar a cabeça quando ele passasse? Nada disso. Não havia grandes extensões de terras senhoriais; ali era a Floresta. É verdade que ele adubava com marga o pequeno campo do senhor, pagava modestos tributos feudais, como alguns pence pelos porcos que mantinha, e ajudava se havia lenha para ser transportada em carroça. Isso, porém, era mais como uma espécie de aluguel pela sua pequena propriedade. Na prática, ele vivia exatamente como os seus ancestrais, cuidando de seu cultivo e ganhando um dinheiro extra útil em serviços ocasionais relacionados com as caçadas do rei e a manutenção da floresta dele. Era, praticamente, um homem livre.

Os pequenos proprietários da Floresta não viviam tão mal assim. Eram gratos por isso? Claro que não. Godwin Pride, ante aquela interferência estrangeira, fizera o que as pessoas nessas circunstâncias haviam feito através dos séculos. Primeiro, se enfurecera; depois, resmungara; finalmente, chegara a uma transigência ressentida entremeada com desprezo. E então passara a se dedicar, silenciosa e metodicamente, a combater o sistema. Observado nervosamente pela esposa, era o que ele fazia naquela manhã.

Ainda era criança quando a terra da chácara de sua família fora confiscada para a New Forest do rei. Logo atrás do pequeno estábulo, porém, uma pequena faixa de cerca de mil e seiscentos metros quadrados fora deixada para eles. Era usada como curral onde a criação da família era mantida e alimentada nos meses em que não tinham permissão de ir à Floresta. Em volta dele, havia uma cerca. Mas o curral não era grande o bastante.

Cada ano, portanto, na primavera, quando os animais voltavam à Floresta, Godwin Pride o aumentava.

Não muita coisa. Ele era muito cuidadoso. Apenas poucos metros por vez. Primeiro, durante a noite, mudava a cerca de lugar. Era a parte fácil. Depois, quando o dia raiava, percorria o solo minuciosamente, completando-o e disfarçando o lugar onde a cerca estivera anteriormente, e usava relva, cortada previamente em segredo, onde fosse necessário, recobrindo a área que havia tomado de volta. Cedo, pela manhã, era muito difícil perceber o que ele fizera. Mas, para garantir, colocava imediatamente os porcos naquela parte. Com algumas semanas de utilização pelos porcos, o solo ficava remexido demais para se notar alguma coisa. No ano

Era ilegal, é claro. Cortar árvores ou roubar um pedaço de terra do rei era crime de vert. Um pequenino abuso como esse, denominado purpresture, não constituía um delito sério, mas era igualmente um crime passível de punição. E também, para Pride, um golpe secreto em favor da liberdade.

Normalmente, terminava o serviço muito antes do que daquela vez, e já era para os porcos estarem se movimentando e fazendo a maior bagunça possível. Mas naquele dia, por causa do grande arrebanho de veados, ele não via necessidade de se apressar. Os criados do rei estariam todos lá em cima, em Lyndhurst, onde os veados seriam capturados.

Havia vários povoamentos na parte central da Floresta. Primeiro, Lyndhurst com sua armadilha para veados. Como hurstem anglo-saxão significava "bosque", o nome provavelmente queria dizer que outrora existira ali um arvoredo de limeiras. De Lyndhurst, uma trilha levava ao sul através de um antigo bosque, até que, seis quilômetros depois, atingia a aldeia em uma brecha na mata conhecida como Brockenhurst, onde havia um chalé de caça no qual o rei gostava de dar uma parada. De lá, a trilha continuava para o sul ao lado de um riacho, que descia por um vale minúsculo e escar-pado, passava pela aldeia de Boldre, onde havia uma pequena igreja, e seguia em direção à costa. O pequeno povoado que continha a chácara de Pride ficava cerca de quilômetro e meio a leste desse riacho e quase seis ao sul de Brockenhurst, no ponto onde o cinturão do antigo bosque cedia lugar a uma grande charneca. Mesmo em linha reta, o povoado ficava cerca de onze quilômetros de Lyndhurst.

Os caçadores, ele sabia, iam conduzir os veados, do norte para baixo, em direção à armadilha. Cada um dos criados da Floresta do rei estaria lá em cima; naquela manhã nenhum deles desceria até onde ele se encontrava.

Com uma lentidão quase acintosa, portanto, ele protelava, sorrindo consigo mesmo da aflição e da apreensão da esposa.

Por isso ficou mais do que surpreso, instantes depois, quando ouviu a esposa soltar um gritinho de alerta; levantou a vista e viu dois cavaleiros se aproximando.

A manhã transcorrera tranqüila para a gama clara. Durante várias horas, sua pequena manada permanecera se alimentando em área aberta, enquanto o sol se elevava. Eram todas fêmeas ou crias, já que os machos adultos haviam começado, naquela estação, a viver separadamente. Uma leve protuberância nos flancos indicava que muitas fêmeas estavam grávidas; em pouco mais de dois meses, iriam parir. As crias que as acompanhavam já tinham desmamado. Os jovens machos exibiam os calombos que, até o final do ano, cresceriam e se desenvolveriam nos seus primeiros chifres — as pequenas estacas que, ao completarem um ano, lhes dão o nome de estaqueiros. Muito em breve os estaqueiros iriam abandonar suas mães para viver em outro lugar.

O tempo passou. O coral de pássaros sucumbiu a um melodioso chilreio, ao qual se juntou, na crescente calidez, o silencioso zumbido, chiado e burburinho dos incontáveis insetos da mata. Corria a metade da manhã quando a fêmea mais velha, que era a líder, indicou, enfiando-se entre as árvores, que estava na hora de ir para o descanso diário.

Os veados são animais de hábitos. É verdade que na primavera podiam sair perambulando à procura da comida de sua preferência — visitar os campos de grãos nas margens da floresta ou saltar suas cercas, como sombras silenciosas na noite, e atacar as pequenas plantações de homens como Pride. Mas a velha fêmea era uma líder cautelosa. Somente duas vezes naquela primavera ela deixara os cerca de dois quilômetros quadrados que o bando costumava habitar; e, se algumas fêmeas mais jovens, como a gama clara, se mostraram agitadas, ela não revelara nenhum sinal de que pretendia satisfazê-las. Seguiram, portanto, a mesma trilha que sempre utilizavam para atingir o local de descanso — uma clareira agradável e abrigada no bosque de carvalhos —, onde as fêmeas obedientemente se abaixavam na mesma posição de sempre, deitando-se com as pernas metidas para dentro e a cabeça ereta, as costas viradas para a brisa leve. Somente alguns dos estaqueiros, incapazes de se conter, andavam de um lado para o outro, brincando na clareira sob o olhar atento da fêmea mais velha.

A gama clara tinha acabado de se deitar quando pensou no seu macho.

Ele era um belo jovem. Ela o notara durante a época da última berra do outono. Na ocasião, era nova demais para tomar parte, embora tivesse olhado as fêmeas já totalmente desenvolvidas se acasalarem. Ele ficara observando, junto a outros machos jovens, nas proximidades de um local de acasalamento menos importante; ela adivinhara, pelo tamanho dos chifres, que no ano seguinte ele estaria pronto para reivindicar um local de acasalamento para si.

O jovem gamo macho passa por uma série de etapas de crescimento, marcadas pelo tamanho dos chifres, que se renovam a cada primavera, a fim de que possa nascer um par novo e melhor para a temporada seguinte da berra. Depois das estacas do estaqueiro de um ano de idade, vêm os pequenos chifres dos dois anos de idade, o sorel. No ano seguinte, ele se torna um sore, em seguida um macho descornado, e depois, aos cinco anos, surgem os chifres propriamente ditos do macho. Mesmo assim, mais dois ou três anos se passam antes que os chifres cresçam totalmente e se desenvolvam para formar a magnífica galhada que coroa o grande macho.

O macho dela ainda era jovem. Não sabia de onde ele viera: os gamos costumavam ir para o acasalamento vindo dos ambientes em que vivem em outras partes da Floresta. Será que ele estaria no mesmo local no próximo outono, ou talvez já fosse grande e forte o bastante para expulsar o ocupante de um local de acasalamento mais importante? Por que ela o tinha notado em especial? Não sabia. Já tinha visto os grandes machos com suas pujantes galhadas, ombros poderosos e pescoços intumescidos. Multidões de fêmeas se juntavam ansiosas em torno de seus haréns, onde o ar ficava denso com o pungente odor que exsudavam e fazia a gama clara quase estontear. Mas, ao ver aquele jovem macho esperando despretensiosamente perto do local de acasalamento, ela sentiu algo mais. Nesse ano os chifres dele estariam maiores, o corpo, mais espesso. Seu odor, porém, seria o mesmo: o penetrante, mas para ela doce, cheiro dele. Seria para ele, quando chegasse a época da berra, que ela iria. Olhava para as copas das árvores sob o sol da manhã e pensava nele.

O terror começou subitamente.

O som de caçadores vindo do oeste. Viajavam mais depressa do que a brisa, que devia ter carregado o cheiro deles. Não faziam qualquer tentativa para serem silenciosos; seguiam ruidosos pela Floresta, direto para a clareira.

A fêmea líder levantou-se; as outras fizeram o mesmo. Ela pulou em direção às árvores. Os estaqueiros ainda brincavam do outro lado da clareira. Por um momento, não ligaram para os chamados das mães, mas no instante seguinte eles também perceberam que algo estava errado e começaram a pular.

O salto do gamo é uma visão extraordinária. É conhecido como "salto de exibição". As quatro patas deixam o solo, ao mesmo tempo em que as pernas parecem pender direto para baixo. Dão a impressão de quicar, flutuar e voar adiante através do ar, como se fosse mágica. Normalmente fazem vários desses saltos, que desafiam a imaginação, antes de correrem, apenas a intervalos, e voltam a pular. Com um movimento belo e mágico, todo o grupo fugiu em busca de abrigo. Em segundos tinham evaporado da clareira e se enfileiravam atrás da fêmea líder, que os levava para o norte, para a parte mais fechada da mata.

Tinham percorrido cerca de meio quilômetro, quando ela se deteve abruptamente. Os outros fizeram o mesmo. Ficou ouvindo, as orelhas agitando-se nervosamente. Era inequívoco. Havia cavaleiros à frente deles. A líder fez a volta, seguiu na direção sudeste, para longe de ambos os perigos.

A gama clara estava aterrorizada. Havia algo deliberado, sinistro, naquela aproximação dupla. A líder, obviamente, também pensava assim. Já estavam a todo galope, saltando sobre árvores caídas, arbustos, qualquer coisa no caminho. A luz salpicada por entre as folhas acima parecia bruxulear e cintilar ameaçadoramente. Prosseguiram mais oitocentos metros, surgiram em um local mais iluminado, saindo do esconderijo ao longo de uma comprida clareira gramada. E pararam por completo.

Havia cerca de vinte cavaleiros esperando poucos metros adiante. A gama clara só teve tempo de notá-los antes de a fêmea líder se virar e voltar na direção das árvores.

Mas deu apenas dois saltos antes de perceber que também havia mais caçadores nas árvores. Contida, virou-se novamente e começou a correr pela clareira, arremessando-se por ela, à procura de uma eventual segurança. Os outros gamos, percebendo que a líder não tinha idéia do que fazer, seguiam-na em crescente estado de pânico. Os caçadores agora corriam atrás deles, com algazarra e gritos. A fêmea guinou à direita buscando um cinturão de árvores.

A gama clara tinha penetrado uns cem metros entre as árvores quando avistou ainda mais caçadores — dessa vez, do seu lado direito, um pouquinho adiante. Emitiu um bramido de alerta, que os demais, em pânico, não perceberam. Deteve a corrida. E então viu a coisa mais estranha.

Mais adiante, um pequeno grupo de machos, meia dúzia deles, subitamente surgiu à vista, saindo de um matagal. Provavelmente havia perigo atrás deles. Vendo as fêmeas em pânico, porém, e os caçadores nos flancos, os machos não se juntaram às fêmeas, mas, depois de apenas um leve tremor de hesitação, avançaram, saltando esplendidamente, direto para os cavaleiros, disparando com habilidade através da fila que eles formavam e através das árvores, antes mesmo que os caçadores surpresos pudessem levantar os seus arcos. Foi algo rápido e mágico, inesperado.

E, para ela, o mais espantoso de tudo foi que o seu macho era um deles. Não havia como confundi-lo. Viu de imediato os chifres e as pintas deles, ao penetrar nas árvores como uma sombra saltitante. Por um momento, pouco antes da audaciosa investida do grupo, ele virou completamente a cabeça em sua direção, e ela viu seus imensos olhos azuis olhando-a diretamente.

A fêmea líder vira os machos e sua corajosa arremetida através dos caçadores, mas não tentou segui-los. Em vez disso, às cegas, sem saber mais o que fazer, dirigiu seu grupo em uma fuga para adiante; assim, a gama clara viu-se correndo na direção leste; a única direção livre, a direção que os caçadores queriam.

Adela observara o arrebanhamento em Lyndhurst com animação. Grupos de várias casas nobres haviam chegado, mas todos estavam sob o comando geral de Cola. A herdade real era um pequeno conjunto de edificações de madeira com um pasto cercado, localizado em uma pequena elevação do bosque de carvalhos. Mas, a pouca distância, do lado sudeste, as árvores eram interrompidas por uma série de clareiras, até cederem lugar a uma longa extensão de relva, além da qual se encontrava uma charneca a céu aberto. Foi para esse relvado que Cola os levara a fim de inspecionar a grande armadilha.

Adela nunca vira algo parecido. A coisa era imensa. Na entrada, cercado de grama verde, havia um pequeno morro arredondado, como um outeiro ou um posto de observação de um castelo em miniatura. A duzentos metros do morro, elevava-se uma saliência natural que se estendia por oitocentos metros em linha reta, com a relva de um lado e a urze parda de outro. Mas, quando a saliência mergulhava lentamente na sua extremidade sudeste, o homem tinha assumido e construíra um trecho mais baixo da elevação. Primeiro, no interior da área gramada, havia uma vala profunda; em seguida um talude aterrado e, coroando-o, uma cerca resistente. Por uma curta distância, essa barreira seguia em linha reta. Então começava levemente a se curvar para dentro, atravessando a relva onde uma elevação no solo formava uma linha natural, depois continuava o seu caminho para oeste, através do terreno com vegetação e clareiras, até fazer uma curva à direita e subir, correndo de volta em direção à propriedade. Este era o Park Pale, o parque cercado de Lyndhurst.

— É como uma fortaleza na Floresta — exclamou ela. Uma vez naquele cercado, os animais não tinham chance de saltar a paliçada enquanto eram desviados e conduzidos, infalivelmente, na direção das redes dos caçadores.

— Pegaremos uns cem veados hoje — comentou Edgar, o filho mais novo de Cola, ao lado dela, durante a inspeção. As coisas no interior do parque cercado sempre eram cuidadosamente administradas, explicou ele. Do grande número de caça conduzida para a enorme armadilha, as fêmeas grávidas não seriam mortas, mas os machos e as outras fêmeas seriam selecionados. Quando Cola tivesse a sua centena, o restante seria solto.

Ela estava contente por ter o bonito saxão por companhia. Walter, como sempre, a deixara sozinha, e, ao vê-lo naquele momento emparelhando o cavalo ao lado do de Hugh de Martell e lhe dirigindo a palavra, Adela perguntou-se se ele iria lhe apresentar o normando e decidiu que era provável que não o fizesse.

— Você conhece o homem com quem o meu primo está conversando? — perguntou a Edgar.

— Conheço. Não muito. Ele é de Dorset. Não é da Floresta. — Hesitou por um instante. — Meu pai o tem em alta conta.

— Ora. — O tom de voz soou constrangido. — Ele é um grande senhor normando.

Dirigiu os olhos para ele. O que significava aquilo? Que Edgar era um saxão que não gostava de normandos? Que ele achava Martell arrogante? Que, talvez, até mesmo sentisse um pouco de ciúmes do cavaleiro?

Havia uma multidão e tanto reunida na relva perto do outeiro. Além dos cavaleiros, havia homens com cavalos de reserva, alguns com carroças para remover as carcaças e outros que simplesmente tinham aparecido ali para olhar. Um deles, em particular, chamou a atenção dela. Ele se encaminhava para uma carroça repleta de partes de trançados para cerca: um homem troncudo, com bastas sobrancelhas e curvado para a frente, parecia a Adela mais com uma velha árvore atarracada porém vigorosa da mata do que com um ser humano. Ficou imaginando quem poderia ser aquele homem.

Não houve, contudo, tempo para pensar nisso, pois nesse momento Cola fez soar o seu corno de caça e teve início a grande condução dos veados.

Na verdade, tratava-se de uma série de conduções. O terreno em volta de Lyndhurst era divido em setores; os caçadores, organizados em grupos, eram cuidadosamente coordenados para percorrer uma ampla área em cada setor, conduzindo o máximo possível de veados em direção ao centro. Era um trabalho habilidoso: o animal podia se mostrar esquivo ou, saindo das margens, fugir. Quando terminava a condução em um setor, os cavaleiros eram enviados para o seguinte, e isso podia ser feito várias vezes, até Cola decidir que já havia o bastante.

Embora os veados pudessem se perder no meio do mato, ao se aproximarem da grande armadilha, suas chances logo se reduziam a nada. Olhando em volta, Adela observou que outros paredões e cercas menores convergiam para a entrada, fazendo com que os veados de cada setor, ao se aproximarem, entrassem em uma espécie de funil que se estreitava em direção à armadilha. Era difícil não se admirar com a engenhosidade da coisa.

Tendo soado a corneta, Cola subiu ao outeiro, e desse ponto favorável, como um general, podia vigiar toda a operação. Os cavaleiros, todos eles, tinham as suas instruções. Decepcionada, pois Edgar havia partido antes, deixando-a somente com Walter e quatro outros por companhia, ela suportava aquilo.

O ponto de observação deles não era de entusiasmar. O primeiro arrebanhamento ocorria no setor sudeste. Ali a charneca além do parque cercado estendia-se por uma larga faixa com cerca de três quilômetros através do sudeste, com longos dedos de vegetação apontando na direção da mata mais escura do outro lado. Enquanto os cavaleiros impeliam os veados desses vários bosques, o trabalho deles era formar uma linha diante da paliçada para evitar que algum dos animais, no último momento, arremetesse de volta por aquele caminho. Em todo caso, ela percebeu que nada havia a fazer. Quando os grupos de cavaleiros desapareceram nos bosques distantes, preparou-se para uma longa espera.

Foi mais para ter o que falar que perguntou a Walter o que ele estivera conversando com Martell.

— Nada de mais — disse ele, com uma careta, e seguiu-se um demorado silêncio, antes de completar: — Se quer mesmo saber, ele me perguntou por que eu tinha trazido uma mulher para a caçada.

— Ele não aprova isso?

— Não muito.

Seria verdade ou Walter estaria inventando aquilo para aborrecê-la? Permitiu que os seus olhos descansassem serenamente no rosto dele durante um ou dois instantes. Um lampejo de ressentimento contra o arrogante normando ardeu dentro dela. Então ele a tinha notado, o maldito!

O tempo passou, mas não falaram mais. Uma ou duas vezes, ela ouviu berros distantes nos bosques, e depois, nada. Até que finalmente viu algo aparecer na margem do distante urzal à sua direita.

Um pequeno grupo de veados saíra do esconderijo. Eram oito. Mesmo àquela distância podia-se contá-los claramente. Avançaram pelo urzal e começaram a ziguezaguear. Um segundo depois três cavaleiros surgiram atrás, em seguida mais dois, a todo galope, manobrando à direita para se colocarem ao lado; a seguir, mais uma dupla de cavaleiros, investindo para o lado oposto. Sentindo ambos os movimentos, os veados atravessaram correndo o urzal em direção aos observadores.

Era espantosa a velocidade com que vinham: os veados em disparada, apesar das paradas e movimentos para os lados, percorreram o espaço intermediário, ao que pareceu, em apenas um ou dois minutos, com os cavaleiros atrás. Através do urzal eles dispararam, deram uma guinada e passaram correndo pelo outeiro tão disciplinadamente, que foi difícil não aplaudir. Minutos depois surgiu um outro grupo, dessa vez com um rebanho de duas dúzias; depois, outro e mais outro. Somente uma vez, o grupo dela precisou gritar e agitar os braços para desviar alguns veados que se haviam desgarrado. A caça não poderia ter sido administrada com mais perfeição. Quando foram chamados de volta, havia mais de setenta veados no enorme cercado.

Logo depois Cola anunciou que em seguida vasculhariam os bosques acima de Lyndhurst, e Adela ficou maravilhada quando, instantes depois, Edgar se aproximou sorrindo e declarou:

— Desta vez, você e Walter irão com o meu grupo.

Ela não saberia dizer por quanto tempo cavalgaram pelo bosque até chegarem à clareira onde Edgar avisara que iriam esperar. Tinha ouvido outros grupos fazendo ruídos em outras partes do mato; notara Edgar tenso em sua sela, mas mesmo assim foi completamente tomada pela surpresa, quando subitamente, com o som de um impacto, nem bem a trinta metros à sua frente, o pequeno bando de fêmeas irrompeu das árvores para a clareira. Por um segundo ficou tão assustada quanto elas. Ao mudarem de direção, ela teve tempo de perceber que uma das jovens fêmeas era mais clara do que as demais. Então, com algazarra e gritos, saíram em perseguição, conduzindo os animais à frente, e momentos depois penetraram em um arvoredo.

Por ter ficado um pouco mais atrás, ela teve a visão perfeita do que aconteceu a seguir. Um bando de machos havia surgido repentinamente à direita, seguido por outro grupo de caçadores — à frente do qual, ela viu, cavalgava Hugh de Martell. Os machos eram jovens. Tinham hesitado.

Mas quem neste mundo poderia ter antecipado o movimento seguinte deles? Quão abismados pareceram os caçadores, quando os machos deram meia-volta e investiram direto para a fila onde ela se encontrava. Até mesmo Martell foi tomado completamente pela surpresa e fitou-os, boquiaberto. O orgulhoso normando fora humilhado por uns jovens veados: ela refreou o cavalo e riu bem alto.

— Vamos!

Walter, gritando irritado, fizera com que ela retornasse à tarefa e logo estava emparelhada com os demais. Os dois grupos já se haviam juntado em um só; Edgar, Walter e Hugh de Martell cavalgando juntos. Indiscutivelmente conduziam tudo com maravilhosa precisão. Embora os veados tentassem guinar para lá e para cá, não havia chance de fuga. Aliás, outros grupos de veados, impelidos por fileiras de caçadores, tinham se juntado a eles duas vezes enquanto seguiam a meio galope ou a galope em direção a Lyndhurst, tanto que, em pouco tempo, ela só conseguia identificar a sua pequena manada localizando onde a gama clara corria entre as dezenas de formas saltitantes. Tratava-se de uma pequena e linda fêmea, pensou Adela. Talvez fosse apenas a sua imaginação, mas de algum modo a gama lhe parecia diferente do resto. E, apesar de saber que não fazia sentido, não podia deixar de sentir pena de uma criatura tão adorável e já agora prestes a ser morta.

Por várias vezes viu Edgar olhando de relance em sua direção, e uma vez, tinha certeza, Hugh de Martell também olhou para ela. Fez aquilo em desaprovação?, perguntou-se. Mas, embora lhe desse uma olhada quando podia, ele não parecia mais notá-la. Enquanto isso, a caçada ganhava velocidade. Os cavaleiros aumentavam o galope.

— Você está se saindo bem — gritou Edgar, para estímulo dela.

Os poucos minutos seguintes foram dos mais emocionantes de sua vida. Tudo parecia correr velozmente por ela. Os caçadores gritavam: ela não estava certa se tinha ou não se juntado a eles. Mal teve consciência do tempo, ou mesmo de onde estavam, ao dispararem atrás dos lépidos veados. Uma ou duas vezes vislumbrou Edgar e Hugh de Martell, as faces tensas, alertas. A despeito da perda dos machos, deviam estar cheios de si. Aquele certamente seria o maior grupo de veados levado de uma só vez naquele dia. Como pareciam implacáveis, quão subitamente ferozes.

E ela também partilhava da glória deles. Podia ser desagradável aquela matança de veados, mas tinha de ser assim. Era a natureza. Os homens precisavam se alimentar. Deus lhes dera os animais para isso. Não podia ser de outro modo.

Por entre as árvores, dessa vez à direita, viu de relance o chalé de caça real. Mal podia crer que já se encontravam em Lyndhurst. Os cavaleiros não tinham conseguido evitar que a manada se dispersasse, e um bando de fêmeas, inclusive a clara, tinha se desgarrado à esquerda, para uma clareira. Martell e alguns outros saíram a galope para cercá-las.

Nisso, olhando à esquerda, notou Walter.

Ela deve tê-lo ultrapassado sem perceber. Ele galopava furiosamente para ficar à sua frente, ao emergirem para avistar a armadilha. Quando ele conseguiu emparelhar, Adela teve uma visão perfeita do seu perfil e, a despeito de toda a excitação, sentiu um súbito estremecimento interno.

Ele estava ruborizado e concentrado. De algum modo — mesmo naquele instante — sua cara achatada ainda conseguia parecer pomposa e convencida. Foi algo mais, porém, que a deixou chocada. Sua crueldade. Não se tratava da dureza que o rosto de Edgar subitamente adquirira; era mais como lascívia — lascívia pela morte. Ele parecia saciado. Por um estranho momento lhe pareceu como se o rosto dele, no aguçado desejo, com bigodinho e tudo mais, tivesse flutuado à frente e pairado, zombando maliciosamente, acima dos veados.

Oh, como era cruel — necessário ou não. Não se podia escapar da verdade que estava para vir; a condução de Cola, perfeitamente organizada, a imensa armadilha adiante, o frio mecanismo de paredes de madeira nos bosques, as redes, a seleção — não apenas um, ou mesmo dez, mas veado após veado, até conseguirem cem. Era cruel matar tantos.

Era tarde demais para pensar nisso. As árvores abriram-se. Ela viu o outeiro adiante onde Cola esperava. Um pouco antes, uma fileira de homens gritava e agitava os braços, para fazer os animais virarem à direita, para a entrada da armadilha. Os veados mais à frente já estavam se aproximando deles, com os cavaleiros galopando apenas metros atrás. À esquerda dela surgiram as fêmeas que haviam se separado, impelidas por Martell. Investiam na direção dela. Viu a fêmea mais clara. Era a última de todas. Já estavam todas mudando de direção, passando pelo outeiro de Cola. Logo após o monte ela percebeu que no relvado entre ele e o início do cume havia apenas algumas pessoas paradas. Os animais, já desviados, com os cavaleiros acompanhando-os pelo flanco esquerdo, passaram disparados por elas, sem notar. A gama clara ficara um pouquinho atrás. Tendo feito a volta, pareceu hesitar um pouco antes de ser impelida em direção à morte.

Então, Adela fez algo estranho.

Não sabia por quê; nem mesmo percebeu o que estava fazendo. Esporeando o cavalo, ultrapassou repentinamente Walter, puxou a cabeça do animal para o lado, atravessou bem na frente dele e seguiu direto para a gama clara. Ouviu Walter praguejar, mas não ligou. Meia dúzia de trancos, e ela estava quase alcançando a gama; mais um segundo, e estava entre a fêmea mais clara e a manada. Vozes berravam atrás dela. Não olhou. A fêmea, assustada, tentou guinar e se afastar dela. Adela açulou o cavalo adiante, pressionando, desviando a fêmea da grande armadilha à frente. A reserva cercada estava a apenas cem metros de distância. Ela precisava manter a gama à esquerda daquilo.

Então, com um único e desvairado salto, a gama clara fez o que ela queria. Um segundo depois, para assombro de todos os espectadores, elas corriam juntas através do relvado entre o outeiro e a saliência, e de lá para a charneca a céu aberto.

"Vai", sussurrava, "vai", enquanto a fêmea fugia pela charneca. "Vai!", gritou, enquanto corria atrás dela. "Foge!" Pelo que lhe constava, um dos caçadores já a seguia com um arco. Por demais amedrontada e constrangida para olhar para trás, ela instigou a pequena gama a avançar, até, por fim, ela disparar, cruzar a área aberta e seguir para a mata mais próxima do lado oposto. Continuou a meio galope, observando a fêmea, até finalmente vê-la alcançar as árvores.

Mas o que fazer agora? Estava sozinha no meio do urzal. Enfim, olhando para trás, viu que ninguém a seguira. Na parte da saliência e da reserva, tudo parecia deserto. Todos estavam do outro lado. Não conseguia sequer ouvir os gritos dos caçadores, apenas o leve sibilar da brisa. Virou a cabeça do cavalo. Sem saber o que queria, começou a cavalgar pela charneca, com o parque cercado à sua direita. Quando este dobrou na direção oeste, ela fez o mesmo, levando o cavalo para a mata cerca de meio quilômetro para baixo do muro. Entrou em uma comprida clareira. O solo era macio, com grama e musgo. Continuava sozinha.

Ou quase. Ele estava de pé sobre o toco desenraizado de uma árvore caída. Não havia como confundi-lo — o corpo curvado para a frente, as bastas sobrancelhas. A menos que esses homens deformados crescessem de forma idêntica na Floresta, era a mesma figura estranha que vira anteriormente. Mas como tinha ido parar ali? Era um mistério. Ele a observava silenciosamente, enquanto ela seguia pela clareira, mas ela não saberia dizer se com aprovação ou desaprovação.

Lembrando do que vira antes, levantou a mão e cumprimentou-o como Edgar o fizera. Mas dessa vez ele não respondeu com um gesto de cabeça, e ela lembrou que ouvira falar que o povo da Floresta nem sempre ligava para estranhos.

Depois disso cavalgou por quase uma hora. Ainda não queria voltar a Lyndhurst. Podia imaginar a recepção: o rosto furioso de Walter; os caçadores, desdenhosos, segundo supunha. Hugh de Martell — quem sabia o que ele pensava? Era demais; não ia voltar para lá.

Continuou no mato. Não sabia onde estava exatamente, se bem que, a julgar pelo sol, seguia em direção ao sul. Deduziu, após algum tempo, que o povoado de Brockenhurst devia ficar em algum lugar à direita, mas não queria particularmente ser vista e se manteve nas trilhas da mata. Mais tarde, pensou, seguirei de volta à herdade de Cola. Com sorte, poderia entrar sorrateiramente antes que os caçadores voltassem, sem atrair muita atenção.

Por isso não soube se devia ficar aborrecida ou aliviada, quando, ao decidir por qual de duas trilhas seguir, ouviu um grito de alegria atrás de si e virou-se para ver a bela forma e o rosto amistoso de Edgar, a meio galope em sua direção.

— Não lhe disseram — falou, rindo, ao se aproximar —, que não deve caçar veados sozinha?

E ela percebeu que tinha ficado contente com a presença dele.

O francês dele não era muito bom, apenas passável. Graças a uma babá saxônica que ela tivera na infância e a um bom ouvido para línguas, Adela já havia descoberto que conseguia se fazer entender por aqueles ingleses. Os dois podiam, portanto, se comunicar muito bem. Não levou muito tempo antes que ele a deixasse mais à vontade.

— Foi Puckle — explicou ele, quando lhe perguntou como a tinha encontrado. — Ele me disse que você seguira para o sul, e, como ninguém a viu em Brockenhurst, achei que só podia estar por aqui.

Então Puckle era o nome da figura deformada.

— Ele parece misterioso — observou ela.

— Sim — disse Edgar, sorrindo. — E é.

Em seguida, quando lhe confessou o medo que tinha de voltar, ele tranqüilizou-a:

— Nós arrebanhamos e escolhemos os veados. Bastava que você pedisse ao meu pai, e ele, com todo o prazer, teria poupado a sua linda gama. — Sorriu. — Mas teria que pedir a ele.

Ela forçou um sorriso, arrependida, enquanto tentava se imaginar pedindo pela vida de um veado diante de caçadores, mas, lendo os pensamentos dela, ele acrescentou, suavemente:

— Os veados têm que ser mortos, é claro, mas mesmo assim detesto ter que fazer isso. — Calou-se por um instante. — É por causa do modo como caem. A gente vê os espíritos deles partirem. Quem já matou um veado sabe disso. — Falou com tanta simplicidade e honestidade que ela ficou comovida. — É sagrado — concluiu, como se fosse indiscutível.

— Será que — perguntou ela após uma pausa — Hugh de Martell sente a mesma coisa?

— Quem sabe? — Deu de ombros. — Ele não pensa assim.

Não. O jeito dele, imaginou ela, era mais rude. Um orgulhoso dono de terras normando não tinha tempo para esses pensamentos.

— Ele acha que eu não devia caçar. Creio que o seu pai concorda.

— Minha mãe e meu pai costumavam sair juntos para caçar — falou suavemente —, quando ela era viva. — E no mesmo instante teve uma visão daquele belo casal, seguindo majestosamente pelas clareiras da mata. — Um dia — acrescentou Edgar delicadamente — espero fazer o mesmo. — E, em seguida, com uma risada: — Venha. Vamos cavalgar de volta pela charneca.

E foi assim que pouco tempo depois, seguindo a meio galope pela rala relva da margem do urzal, os dois se aproximaram do povoado de Oakley e deram de cara com Godwin Pride, mudando sua cerca, ilegalmente, em plena luz do sol.

— Raios — murmurou Edgar a meia voz. Mas já era tarde demais para evitar o sujeito. Ele o apanhara com a mão na massa.

Godwin Pride levantou-se em sua altura total: o peito largo, a barba esplêndida, parecia um chefe celta encarando um cobrador de impostos. E, como um bom chefe celta, sabia que quando uma jogada fracassa, a única coisa a fazer é blefar. A indagação de Edgar "O que está fazendo, Godwin?", ele simplesmente rebateu imperturbável: "Consertando a cerca, como pode ver."

Foi tão tranqüilamente afrontoso que por um momento Edgar quase desatou numa gargalhada; infelizmente não se tratava de assunto para rir.

— Você mudou a cerca de lugar. Pride refletiu seriamente.

— Ela ficava ainda mais à frente — explicou com frieza —, mas há alguns anos nós a tínhamos recuado. Não precisávamos de tanto espaço assim.

As faces do homem eram comovedoras.

 


                                         A CAÇADA

— Que disparate — falou Edgar rispidamente. —Você conhece a lei. Trata-se de um purpresture. Isso pode levá-lo ao tribunal.

Pride fitou-o como se estivesse olhando uma mosca antes de esmagá-la.

— Trata-se de uma dessas palavras normandas. Não sei o que significa. Mas creio que você deve saber — acrescentou.

O golpe atingiu o alvo. Edgar enrubesceu.

— E a lei — disse com tristeza.

Godwin Pride continuava encarando-o de baixo para cima. Não desgostava pessoalmente de Edgar, mas para ele a cooperação dos nobres saxões com os normandos servia como prova de que Edgar era um forasteiro.

Não que a família de Cola fosse estrangeira. Mas quando tinha vindo para a Floresta? Duzentos, trezentos anos atrás? O pessoal da Floresta não lembrava. Contudo, por mais tempo que estivesse ali, assim mesmo não era o bastante. E Pride lembrava-se desse fato, quando, para sua surpresa, a moça normanda falou.

— Mas não foram os normandos que instituíram isso. Esta terra está sob a lei florestal desde a época do rei Canuto.

O anglo-saxão de Adela tinha sido bom o suficiente para acompanhar a maior parte da conversa. Ela não gostara do modo insolente com o qual aquele sujeito havia tratado Edgar e, como era uma nobre normanda, decidiu colocá-lo em seu lugar. Por mais brutal que tivesse sido, Guilherme, o Conquistador, sempre fora inteligente o bastante para mostrar que seguia os antigos costumes em seu novo e conturbado reino. Portanto, não adiantava aquele camponês reclamar. Encarou-o com um olhar desafiador.

Para sua surpresa, entretanto, ele apenas aquiesceu sombriamente.

— Você acredita nisso?

— Existe um decreto, rapaz — declarou ela, com certa importância.

— Ah. Escrito, não é?

Como aquele homem ousava falar com um tom de ironia?

— Isso mesmo. — Ela tinha bastante orgulho por saber ler muito bem e ter alguma instrução. Se um escriturário lhe mostrasse um decreto, ela conseguiria entendê-lo.

— Eu não sei ler — replicou ele, com um sorriso impertinente. — Não preciso.

Ele tinha razão, é claro. Um homem era capaz de cultivar, operar um moinho, dirigir uma grande propriedade — ora, até mesmo ser um rei — sem ter necessidade de ler e escrever. Sempre havia os pobres escriturários para fazer os registros. Aquele inteligente pequeno proprietário não tinha o menor motivo para ler. Mas Pride não havia terminado.

— Mas acredito que existe uma porção de ladrões que sabe ler — acrescentou calmamente.

Por Deus, o homem a estava insultando. Olhou para Edgar, esperando que a defendesse, mas ele parecia constrangido. Pride, então, dirigiu-se a ele.

— Não me lembro de nenhum decreto, você se lembra, Edgar? — Olhou diretamente para a cabeça dele.

— É de antes da minha época — respondeu o saxão disfarçadamente.

— Sim. É melhor perguntar ao seu pai. Acho que ele deve saber disso. Houve uma pausa.

Adela começou a entender.

— Você está dizendo — perguntou bem devagar — que o rei Guilherme mentiu a respeito da lei florestal de Canuto? Que o decreto é falso?

Pride fingiu surpresa.

— Não me diga! E eles podem fazer isso?

Então, foi ela quem ficou em silêncio. Em seguida concordou lentamente com a cabeça.

— Peço desculpas — disse simplesmente. — Eu não sabia. — Desviou os olhos, que acabaram pousando na pequena faixa de terra da qual ele acabara de se apropriar. Agora ela entendia. Não admirava que ele tivesse sido insolente quando o pegaram tentando, legalmente ou não, recuperar alguns metros da herança que, para ele, lhe tinha sido roubada.

Ela virou-se para Edgar. Em seguida, sorriu.

— Eu não contarei, se você não contar. — Falou em francês, mas desconfiava que Pride, observando-os, tivesse adivinhado o que dissera.

Edgar parecia sem jeito. Pride olhava-o. Então Edgar balançou a cabeça.

— Não posso — murmurou em francês. E, para Pride, em sua língua nativa: — Coloque a terra de volta, Godwin. Hoje. Vou ficar de olho em você. — Sinalizou para ela que precisavam ir.

Ela quis dizer algo a Pride, mas concluiu que não devia. Poucos minutos depois, quando o pequeno proprietário e sua família tinham sumido de vista, ela disse:

— Não posso voltar a Lyndhurst, Edgar. Não posso encarar todos aqueles caçadores. Não podemos retornar para a casa do seu pai?

— Eis uma trilha sossegada — indicou ele, com um gesto afirmativo de cabeça. E, após uns poucos quilômetros, ele a conduziu através de um bosque até um pequeno vau, em seguida atingiram uma charneca pela qual levaram os seus cavalos, escolhendo uma trilha a oeste, até que, no final da tarde, desceram da Floresta para a calma exuberância do vale do Avon.

Bem antes de os dois atingirem o limite da floresta, Puckle, que cuidava de algum de seus afazeres, tinha passado por acaso pelo povoado de Pride e ouviu-o contar o que acontecera.

— Quem é a moça normanda? — quis saber o pequeno proprietário. Puckle pôde informar-lhe, como também relatar o incidente com a gama clara.

— Salvou uma gama? — Pride sorriu lastimoso. — Ela podia tê-la trazido para mim — suspirou. —Você acha que voltaremos a vê-la? — perguntou a Puckle.

— Talvez.

Pride deu de ombros.

— Ela não é má, acho eu — falou sem muita emoção —, para um normando. O destino de Adela, porém, estava para ser decidido por um julgamento mais severo do que o de Pride e Puckle, como descobriu no anoitecer daquele dia.

— Uma desgraça. Não existe outra palavra para você — esbravejou Walter. A luz do céu do final da tarde, parecia haver sombras roxas sob os seus olhos levemente esbugalhados. — Você passou por tola diante de todo o pessoal da caçada. Arruinou sua reputação. E me constrangeu! Se acha que posso lhe conseguir um marido, agindo dessa maneira...

Por um momento, aparentemente, faltaram-lhe as palavras. Ela sentia-se lívida, tanto de comoção quanto de raiva.

— Talvez — disse ela, com frieza — você não se sinta capaz de me arranjar um marido.

— Digamos apenas que a sua presença não ajuda. — O bigodinho e as sobrancelhas escuras pareciam mais comprimidos, com uma ira silenciosa, ameaçadora. — Acho melhor você sumir de vista por uns tempos—prosseguiu —, até estarmos prontos para tentar novamente em outro lugar. Creio que será melhor, você não acha? Nesse meio-tempo, sugiro que pense com mais cuidado no seu procedimento.

— Sumir de vista? — alarmou-se. — Como assim?

— Você verá — prometeu. — Amanhã.

O grande silêncio banhado pelo sol de uma tarde do meio do verão: era a época conhecida como o mês de resguardo, quando, para garantir que as fêmeas dos veados parissem em paz, eram retirados da Floresta, onde pastavam, todos os animais dos camponeses; após isso, mais do que nunca, a área parecia voltar aos tempos antigos, quando apenas bandos dispersos de caçadores erravam pela sua vastidão. Tratava-se de uma época de tranqüilidade, de luz intensa nas charnecas a céu aberto e de sombra, de um verde-escuro como erva daninha aquática, debaixo dos carvalhos.

O gamo macho avançava furtivamente, mantendo-se nas sombras mosqueadas, a cabeça virada cuidadosamente para trás. A pelagem de verão, um bege cremoso com pintas brancas, era uma camuflagem perfeita. Também era formosa. Mas ele não se sentia formoso. Sentia-se constrangido e envergonhado.

A alteração psicológica dos cervos machos no verão tem sido observada através dos tempos. Na primavera, primeiro o veado-nobre e, cerca de um mês depois, os gamos perdem os seus chifres. Primeiro um se quebra, depois o outro, deixando um coto, ou pedicelo, em carne viva, que costuma sangrar. Nos dias subseqüentes, o gamo se torna um camarada doentio e inclusive pode ser maltratado por outros machos, tal é a natureza dos animais. Semelhantes a pequenos dentinhos, seus futuros chifres já estão nascendo, mas se passarão três meses antes de voltarem a ficar completos. Desse modo, apesar da nova e bela pelagem de verão, ele se sente roubado de seu adorno, como os chifres são conhecidos, nu, indefeso, envergonhado.

Não admira que ele vagueie sozinho pela mata.

Não que fique inativo. A primeira coisa que, silenciosamente, a natureza lhe ensina é encontrar o elemento químico necessário para a produção dos novos chifres. Ou seja, cálcio. E o lugar óbvio se encontra nos velhos chifres que perdeu. Usando os dentes incisivos, o macho, portanto, os rói. Em seguida, alimentando-se da rica vegetação de verão e vivendo em reclusão, ele precisa esperar pacientemente que o novo tecido ósseo, sorvendo os nutrientes dos vasos sangüíneos do pedicelo, cresça lentamente, se estenda e ramifique. Os chifres que crescem, porém, são delicados; para haver fornecimento de sangue, também se forma a cobertura de uma macia pele de veias, com uma textura aveludada, e, durante esses meses, diz-se que o macho está "em veludo". Extremamente cônscio de que não deve permitir que os preciosos chifres se danifiquem, o cervo recluso caminha pelo mato com a cabeça levantada e virada para trás, os chifres de veludo sobre os ombros, para que não se prendam em galhos — um porte mágico com o qual ele costumava ser retratado, através dos séculos, das pinturas das cavernas às tapeçarias medievais.

O macho parou. Embora ainda com vergonha de ser visto, ele sabia que o pior de sua humilhação anual tinha passado. Os chifres aveludados já tinham a metade do tamanho e ele estava ciente dos primeiros estímulos leves, o início das mudanças químicas e hormonais que, em mais dois meses, o transformariam no magnífico herói de pescoço dilatado durante o período dos acasalamentos, conhecido como a berra.

Parou por ter visto algo. A partir da fileira de árvores por onde caminhava, um trecho de charneca estendia-se por cerca de oitocentos metros através de um leve declive ponteado por bétulas, onde a urze violeta cedia lugar a um verde gramado limitado por um trecho de vegetação. No gramado, ele podia ver várias fêmeas descansando ao sol. Uma delas era mais clara do que as outras.

Havia notado a gama clara durante a última temporada da berra. Ele a encontrara novamente, naquela primavera, quando precisou escapar dos caçadores. Acreditava que talvez eles a tivessem matado; não muito tempo depois, vira-a de relance, mais uma vez, à distância, e saber que ela estava viva lhe trouxera uma estranha alegria. Agora, por isso, ele parou e observou.

Ela viria a ele, durante a berra. Tinha isso tão certo quanto podia sentir o sol no enorme céu aberto; sabia-o por causa do mesmo instinto através do qual tinha certeza de que os chifres cresceriam e o corpo mudaria para se tornar apto. Era inevitável. Por vários longos momentos, observou a pequena forma clara no gramado distante. Então, seguiu em frente.

Não sabia que outros olhos também a observavam.

Godwin Pride se arrumara para partir naquela manhã, e a mulher, vendo o seu rosto, tentara detê-lo. Ela tinha utilizado várias desculpas — o telhado do estábulo precisava de consertos, achava que tinha visto uma raposa perto do galinheiro —, mas não adiantou. No meio da manhã, ele havia sumido, sem mesmo levar junto o cachorro. Não que ele lhe tivesse dito o que pretendia fazer. Se ela o soubesse, provavelmente teria chamado os vizinhos para impedi-lo. Nem viu também que, momentos antes de partir, ele tirou um arco do esconderijo em uma árvore.

Há dois meses esperava por aquilo. Desde o encontro com Edgar, vinha cuidando para ser um modelo de bom comportamento. Recuara a cerca para o local adequado. As suas vacas foram levadas da Floresta para lá dois dias antes do início do mês do resguardo. Foi só Cola olhar de relance, desconfiado, para o seu cachorro, que ele comparecera logo no dia seguinte ao chalé de caça real em Lyndhurst. Era lá que mantinham o aro de metal conhecido como estribo — se um cachorro não fosse pequeno o bastante para rastejar através dele, as unhas de suas patas dianteiras eram "regulamentadas", cortadas, para que não se tornassem uma ameaça aos veados do rei. Pride insistira para que o seu cachorro fosse levado ao estribo, "só para ter certeza de que ele está dentro da lei", assegurara ao pessoal com um sorriso encantador, enquanto o cão se contorcia a salvo para o outro lado. Vinha sendo muito cuidadoso. Também tivera de esperar pelas condições climáticas apropriadas; e elas haviam surgido naquele dia, quando a leve brisa soprara da direção de um quadrante incomum.

Talvez não conseguisse sua terra de volta, mas tiraria algo daqueles ladrões normandos. Ele ia desferir um pequeno golpe pessoal em favor da liberdade: ou de sua própria obstinação, como diria a esposa. Com a mesma satisfação secreta de um menino se lançando em alguma aventura proibida, o homem adulto, com o modo de andar bamboleante, seguia caminho por entre a vegetação. Se fosse apanhado, as conseqüências seriam terríveis: a perda de um membro ou mesmo da vida. Mas não seria apanhado. Deu uma risadinha para si mesmo. Ele pensara em tudo.

Era meio-dia quando assumiu a posição pretendida. Ela fora cuidadosamente escolhida — um pequeno ponto favorável, perto da beira de umas árvores, com uma depressão escondida, onde podia se ocultar para ver se vinha alguém se aproximando. Ele estudara cuidadosamente os hábitos de sua presa.

Pouco depois do meio-dia, como esperava, apareceram, e, graças à mudança na direção da brisa, ele estava contra o vento em relação a eles.

Não fez nenhum movimento. Durante cerca de uma hora observou pacientemente. Então, como esperava, viu um dos homens de Cola passar silenciosamente com o seu cavalo através do solo a céu aberto distante cerca de oitocentos metros. Deixou que mais uma hora se passasse. Não veio mais ninguém.

Ele já escolhera o seu alvo. Precisava de uma fêmea pequena — uma que pudesse carregar rapidamente nos ombros largos até o local do esconderijo. À noite voltaria com uma carroça para apanhá-la. Naquela noite haveria lua o suficiente para permitir que enxergasse o caminho pelas trilhas da floresta escura. Havia várias fêmeas menores naquele pequeno rebanho. Uma era mais clara do que as demais.

Fez pontaria.

Durante os primeiros dias, Adela não conseguia acreditar no que Walter lhe fizera. Se as aldeias de Fordingbridge e Ringwood, assentadas ao longo do rio Avon, enquanto ele corria para o limite ocidental da Floresta, não passavam de pouco mais do que vilas, o povoamento no estuário meridional do rio era mais substancioso. Ali o Avon, combinado com um outro rio do oeste, penetrava em uma enseada enorme e calma — um antigo local onde os homens haviam pescado e trocado os seus peixes durante mais de mil anos. Twyneham, o nome que saxões deram inicialmente ao povoamento e à grande área de prado, pântano, mata e charneca que dali se estendia por quilômetros ao longo do limite sudoeste da Floresta, há muito já era propriedade real. Nos últimos dois séculos, graças a uma série de modestos estabelecimentos religiosos levantados pelos reis saxões, a aldeia era mais comumente chamada de Christchurch. Transformou-se numa pequena cidade e foi fortificada com um bastião. Cinco anos atrás Christchurch recebera um outro estímulo, quando o chanceler do rei decidiu reconstruir a igreja do priorado de lá, ampliando-a, e a obra na beira do rio já havia começado.

Mas isso era tudo: um pequeno burgo sereno à beira-mar, com o canteiro de obras de uma igreja.

E ele a deixara lá. Não com um cavaleiro — não havia castelo ou mesmo uma herdade real. Sequer com uma pessoa de mínima importância — apenas quatro dos mais decrépitos clérigos permaneceram na residência, enquanto a construção prosseguia. Ele a deixara com um mercador plebeu cujo filho produzia farinha no moinho do priorado.

— Eu tive que pagar a ele — explicara Walter com raiva.

— Mas por quanto tempo vou ficar aqui? — perguntara chorando.

— Até eu vir buscá-la. Um mês ou dois, acho eu. Em seguida, fora embora.

Seus aposentos podiam ser piores. A habitação do mercador consistia em várias construções de madeira em volta de um pequeno pátio, e a ela foi dado um quarto só seu acima de um depósito ao lado do estábulo. Era irrepreensivelmente limpo, e ela teve de admitir que não poderia ficar mais bem instalada em uma casa nobre.

Seu anfitrião não era uma pessoa má. Nicholas de Totton — ele viera da aldeia do mesmo nome, distante vinte e cinco quilômetros do limite oriental da Floresta — era um burguês local que possuía três casas, alguns campos de cultivo, um pomar e direitos de pesca do salmão. Embora devesse ter mais de cinqüenta anos, mantinha uma compleição esbelta, quase juvenil. Os olhos cinza-claros somente assumiam aparência de censura se achasse que era crueldade ou fanfarronice algo dito por alguém. Falava frugalmente, mas Adela notou que com os filhos mais novos ele parecia ter um descontraído e até mesmo brincalhão senso de humor. Havia sete ou oito deles. Adela presumia que devia ser tedioso estar casada com tal homem, mas a ativa esposa dele parecia sentir-se totalmente satisfeita. De qualquer modo, a família Totton dificilmente lhe seria relevante.

Não havia ninguém com quem conversar e nada para fazer. O local onde a nova igreja do priorado seria construída, lindamente instalada à beira do rio, era uma mixórdia. A antiga igreja fora demolida, e em breve dezenas de pedreiros começariam o árduo trabalho por lá, disseram-lhe. Mas na ocasião era um deserto. Certo dia cavalgou em volta do promontório que amparava a enseada. Era muito tranqüilo. Gansos deslizavam nas águas; cavalos selvagens pastavam nos pântanos mais além. Do outro lado do promontório, uma enorme baía estendia-se para oeste, enquanto para leste os baixos penhascos de cascalho que margeavam New Forest prosseguiam por quilômetros até cederem lugar ao canal do Solent, do qual lá se intrometiam os altos rochedos calcários da ilha de Wight. Era uma linda vista, mas não lhe agradava. Em outros dias passeava a pé ou se sentava à beira do rio. Não havia nada para fazer. Nada. Uma semana se passou. Então Edgar chegou. Ficou surpresa por ele saber que ela estava ali.

— Walter contou ao meu pai que você ficaria aqui — explicou. Não lhe disse que por todo o vale do Avon, até Fordingbridge, as pessoas já a chamavam de "a dama deserdada".

As coisas melhoraram depois disso. Ele ia vê-la pelo menos uma vez por semana e saíam para cavalgar juntos. Da primeira vez seguiram alguns quilômetros pelo vale do Avon, indo até onde um modesto penhasco de cascalho conhecido como St. Catherines Hill fornecia uma vista esplêndida do vale e da parte meridional da Floresta.

— Quase construíram o novo priorado aqui em cima — contou a ela. — Da próxima vez que eu vier — apontou para uma área da Floresta — vou levá-la ali. E, na vez seguinte, ele levou-a lá.

Ele cumpria o que prometia. Às vezes subiam cavalgando o vale do Avon; ou podiam perambular ao longo do litoral da Floresta, com suas numerosas pequenas enseadas, até o povoado de Hordle, onde havia salinas. Aonde quer que fossem, ele lhe contava coisas. Parando perto de um pequeno córrego escuro, pouco mais do que um fio d'água, disse uma vez:

— A truta-salmoneja vem desovar aqui. É algo difícil de imaginar, mas elas fazem isso mesmo. Bem aqui na Floresta.

No terceiro passeio, ela foi encontrá-lo perto de Ringwood, e ele a levou através do urzal até uma pequena aldeota sombria em um pequeno vale arborizado chamada Burley.

— Há algo estranho neste lugar — comentou ela.

— Dizem que há bruxaria nesta área — observou ele. — Mas as pessoas sempre falam isso a respeito de uma floresta.

— Você conhece alguma bruxa? — perguntou ela, com uma risada.

— Dizem que a mulher de Puckle é uma espécie de bruxa — retrucou. Ela olhou-o, como se estivesse brincando, mas não parecia estar. Em seguida, ele forçou um sorriso. — Uma boa regra na Floresta é: se estiver em dúvida, não pergunte — e cutucou o cavalo para trotar.

Em geral, nesses passeios, ele lhe fazia perguntas pessoais: se ela pretendia ficar na Inglaterra, que tipo de homem esperava que Walter lhe arrumasse. Ela se resguardava nas respostas. Sua posição, afinal de contas, era difícil. Mas certa vez permitiu-se, com um ar de condescendência, confessar: "Sabe, eu me sinto atraída principalmente por um cavaleiro normando, porque também sou normanda." Lamentou por ele parecer um pouco abatido, mas ela pretendia manter sua condição social.

Dois meses se passaram, e nenhum sinal de Walter.

Se não se sentisse confiante, após todas aquelas excursões pela Floresta, Adela talvez não tivesse ido tão longe, sozinha, naquele dia de verão. Tendo penetrado na parte central da Floresta, deixou a mente divagar e, durante algum tempo, o cavalo seguiu, com lentas passadas, o seu próprio caminho pelas trilhas da mata. Depois, ela desmontou e descansou um pouco em uma pequena clareira, enquanto o animal tosava a grama. O som de um bando de veados avançando subitamente por uma vegetação rasteira em algum lugar adiante despertou-a do devaneio. Curiosa, montou rapidamente e saiu trotando à frente, para ver o que os tinha perturbado. Saindo repentinamente a céu aberto, e vendo adiante uma figura que pensava conhecer, foi a meio galope em sua direção, sem mesmo pensar no que estava fazendo. Ele se virou. Ela viu. E já era tarde demais.

— Bom dia, Godwin Pride — cumprimentou-o.

Pride encarou-a. Apenas por uma única vez ele perdeu a compostura de sempre. Sua boca escancarou-se. Não podia acreditar naquilo: como tinha deixado de ouvi-la se aproximando? Só levara alguns instantes para correr pela área a céu aberto e outros mais para içar até os ombros a fêmea caída. Obviamente, tinham sido muito demorados. O azar da situação era inacreditável.

E, de tanta gente, logo aquela moça. Uma normanda. Pior ainda, toda a Floresta sabia que andara passeando com Edgar.

E o pior de tudo era que fora apanhado, como definia a lei florestal, "com a mão na massa": o veado e o sangue dele em suas mãos. Não havia escapatória. Teria de pagar. Mutilação: cortariam um dos seus membros. Talvez até mesmo o enforcassem. Não se podia ter certeza.

Ele olhou em volta. Estavam sozinhos. Só por um instante, pensou se deveria matá-la. Mas afastou o pensamento da cabeça. A fêmea escorregou-lhe das costas, quando ele se pôs de pé, bravo como um leão diante de Adela. Se ele estava com medo de enfrentar a morte, não o iria demonstrar.

Então, pensou na família. O que faria, se ele fosse pendurado? De repente surgiram diante dos olhos de sua mente: os quatro filhos, a filha com apenas três anos, a mulher, e as palavras amargas que ela diria. Ela estaria com a razão. Como ele iria explicar aquilo aos filhos? Podia ouvir a própria voz: "Fiz uma besteira." Sem mesmo perceber que o fazia, ele arfou brevemente.

Mas o que podia fazer? Implorar à moça normanda? Por que iria ajudá-lo? Certamente contaria a Edgar.

— Um belo dia, não?

Ele piscou. O que ela estava dizendo?

— Saí bem cedo para cavalgar esta manhã — prosseguiu ela, calmamente. — Não pretendia vir tão longe, mas o tempo estava tão bom. Creio que, se eu for por ali — apontou na direção de algum ponto —, devo chegar a Brockenhurst.

Ele confirmou com a cabeça, levemente confuso. Ela continuava falando, como se nada mais importasse no mundo. Que diabos pretendia?

Então ele captou a mensagem. Ela não tinha olhado para o veado.

Olhava diretamente para o rosto dele. Deus do céu, ela estava perguntando pelos seus filhos. Ele tentou murmurar alguma resposta. Ela não tinha visto o veado. Agora ele entendia: ela falava de um modo tranqüilo para que ele entendesse claramente. Não deveria haver nenhuma cumplicidade, nenhuma culpa repartida, nenhum constrangimento, nenhum favor devido — ela era esperta demais para isso. Ela estava acima disso. O veado não existia.

Continuou mais um pouco, perguntou-lhe qual seria o melhor caminho para voltar e, ainda sem uma única olhadela para o veado no chão à sua frente, anunciou:

— Bem, Godwin Pride, preciso ir. — Virou a cabeça do cavalo e, com um gesto da própria cabeça, foi-se.

Pride respirou fundo.

Isso, refletiu, é que é estilo.

Momentos depois o veado foi escondido em segurança e ele estava pronto para ir para casa. Ao se afastar, um outro pensamento lhe ocorreu, e ele sorriu um tanto desolado.

Além do mais, matutou, não foi a fêmea clara que havia flechado.

Adela ficou surpresa, ao voltar à tarde para Christchurch, por encontrar Walter Tyrrell furioso à sua espera.

— Se você não tivesse voltado tão tarde, poderíamos ter partido hoje — repreendeu-a. O fato de ela não fazer idéia de que ele viria, parecia não importar. — A primeira coisa, amanhã de manhã. Esteja pronta — ordenou.

— Mas aonde vamos? — quis saber.

— A Winchester — informou, como se fosse óbvio.

Winchester. Finalmente, um lugar de real importância. Haveria por lá funcionários reais, cavaleiros, pessoas de mérito.

— Mas — acrescentou ele, como se tivesse refletido posteriormente antes disso vamos ficar alguns dias em uma casa nobre a oeste daqui- Em Dorset.

— Casa nobre de quem?

— De Hugh de Martell.

Houve uma mudança no tempo na manhã seguinte. Ao cavalgarem para oeste em direção aos extensos picos de Dorset, uma enorme nuvem cinza se elevara no horizonte ocultando o sol, suas bordas brilhantes emprestando um insípido ful-gor luminoso aos objetos na paisagem abaixo.

Walter mantivera o costumeiro silêncio mal-humorado durante quase todo o caminho, mas, ao superarem a última e longa serra, observou para ela, abatido:

— Eu não queria trazê-la aqui, mas achei que seria melhor, antes de você ir para Winchester. A fim de lhe dar um dia ou dois para apurar os seus modos. Em particular — prosseguiu —, deve observar lady Maud, a esposa de Martell. Ela sabe como se comportar. Tente imitá-la.

A aldeia ficava em um comprido vale. Tratava-se de uma região muito diferente daquela da Floresta. De cada lado, enormes campos de trigo e cevada, ordeiramente divididos em faixas, subiam pelas encostas até ultrapassar os cumes do vale. Na extremidade mais próxima, uma pequena igreja saxônica de pedra repousava sobre um gramado próximo a um lago. As cabanas eram caprichosamente cercadas, mais ordenadas do que a maioria dos lugares como aquele. Até as ruas da aldeia pareciam asseadas, como se varridas por alguma invisível mão reguladora. E, finalmente, a longa alameda levava à guarita que dava acesso à herdade propriamente dita. A casa ficava a certa distância mais para trás. Talvez fosse um truque da luz, mas ao cavalgarem através da entrada, os gramados aparados bem rente, que ficavam de cada lado deles, pareceram a Adela ser de um verde mais escuro do que a grama pela qual haviam passado antes. Adiante, à esquerda, ficava uma ampla área quadrada de prédios de fazenda, estrutura de madeira sobre pedra, e, à direita, afastado, atrás de um enorme e bem varrido pátio a céu aberto, ficava o belo vestíbulo com as edificações que o acompanhavam, todas em pederneira britada e coroadas com altos telhados colmados sem uma só palha fora do lugar. Não se tratava da casa de um fidalgo rural qualquer. Era a base de uma enorme propriedade territorial. A sua tranqüila ordem, indubitavelmente sombria e transmitida em silêncio, mas tão clara como em qualquer castelo, era: "Esta terra é do senhor feudal. Reverencie."

Um cavalariço e seu auxiliar surgiram para cuidar dos cavalos dos dois. A porta do vestíbulo abriu-se, e Hugh de Martell saiu de lá, sozinho, aproximando-se rapidamente deles.

Ela nunca o tinha visto sorrir. Seu sorriso era mais afetuoso do que esperava. Isso o tornava mais atraente do que nunca. Ele estendeu o comprido braço e sustentou a mão para ajudá-la a descer. Ela a segurou, observando por um instante os pêlos negros no seu pulso, e desceu para junto dele.

Disfarçadamente, ele recuou e, antes que Walter pudesse dizer algo, comentou:

— Ainda bem que veio hoje, Walter. Ontem fui chamado aTarrant e passei o dia todo lá.

Em seguida indicou o caminho, com uma natural passada larga em direção ao vestíbulo, e segurou a porta enquanto ela entrava.

O vestíbulo era amplo, alto como um estábulo, com grandes caibros de carvalho sustentando o teto e junco trançado esteirando o chão. Duas enormes mesas de carvalho, ambas reluzentes, flanqueavam o grande braseiro central. As persianas de madeira tinham sido recuadas; as altas janelas deixavam passar uma agradável luminosidade airada. Ela olhou em volta à procura da anfitriã e, quase que imediatamente, pelo vão de uma porta menor, na outra extremidade, a lady passou e seguiu direto para Tyrrell.

— Você é bem-vindo, Walter — disse ela suavemente, quando ele lhe segurou a mão. — Estamos contentes por ter vindo. —Após uma curta pausa, voltou-se igualmente para Adela: —Você também, claro. — Sorriu, se bem que com um leve traço de dúvida, como se estivesse ligeiramente incerta sobre a condição social da jovem.

— Minha parenta, Adela de Ia Roche — anunciou Walter, sem entusiasmo. Mas não foi a recepção fria que chamou a atenção de Adela. O que realmente

a chocou foi a aparência da mulher.

De que modo achava que a esposa de Hugh de Martell se pareceria? Mais de acordo com ele, supunha: alta, bonita, talvez regulando com a idade dele. Contudo, aquela mulher era apenas um pouco mais velha do que ela mesma. E não era bonita. Pareceu a Adela que seu rosto não tinha exatamente uma má aparência, mas era irregular; com certeza, os lábios, pequenos, não eram corretos, como se um lado tivesse sido puxado levemente para cima. O vestido, apesar de bom, era de um verde de tonalidade muito clara e a fazia parecer ainda mais descorada do que o era. Uma péssima escolha. Ela parecia frágil, insignificante. Era o que ela achava, claro.

Adela não teve oportunidade de observar mais na ocasião. A casa senhorial tinha dois aposentos onde os convidados podiam dormir, um para homens, outro para mulheres, e, após a anfitriã ter-lhe mostrado os aposentos femininos, deixou-a por sua própria conta. Mas pouco depois, ao voltar para o vestíbulo e encontrar Walter sozinho por lá, perguntou-lhe baixinho:

— Quando Martell se casou?

— Há apenas três anos — respondeu, olhando em volta, e prosseguiu, em voz baixa: — Ele perdeu a primeira esposa, sabe? — Ela não fazia idéia. Perdeu-a e também o filho único dos dois. Ficou inconsolável. Não voltou a se casar durante um longo tempo; depois achou que era melhor tentar outra vez, suponho. Precisa de um herdeiro.

— Mas por que com lady Maud?

— Ela é uma herdeira, sabia? — Lançou-lhe um olhar rápido, inclemente.

— Ele tinha duas propriedades, esta e a de Tarrant. Ela lhe trouxe mais três, na mesma região. Uma delas avança até as terras dele em Tarrant. Consolida as posses. Martell sabe o que está fazendo.

Ela entendeu o contundente lembrete de sua carência de propriedades.

— E ele já conseguiu um herdeiro?

— Nada de filhos ainda.

Pouco depois lady Maud apareceu e conduziu-a ao solário, um agradável aposento acima de uma escada numa das extremidades do vestíbulo. Ali encontrou uma velha babá que a cumprimentou amavelmente, e Adela sentou-se e conversou educadamente, enquanto as duas mulheres trabalhavam nos seus bordados.

A conversação era suficientemente amistosa. Seguindo religiosamente o conselho que Walter lhe dera antes, ela prestava bastante atenção a tudo o que sua anfitriã dizia e fazia. Com toda a certeza, a senhora da casa nobre parecia uma companhia bastante agradável naquele ambiente. Tinha claramente o controle total de tudo que se relacionava à residência. A cozinha onde a carne já estava no espeto, a despensa onde ela fazia compotas, seu canteiro de hortaliças, seu bordado, do qual, com razão, tanto ela quanto a velha babá tinham muito orgulho — de todas essas coisas ela falava com um tranqüilo entusiasmo prazeroso. Mas, se Adela lhe perguntava qualquer coisa fora desses limites — sobre a propriedade ou a política da região —, ela apenas dava um sorriso ligeiramente distorcido e respondia: "Ah, eu deixo tudo isso por conta do meu marido. Essas coisas são para homens, não acha?"

Contudo, ao mesmo tempo, obviamente conhecia muito bem todos os proprietários rurais da área, e Adela achou difícil acreditar que ela não fizesse idéia dos assuntos relacionados a eles. Evidentemente, porém, não acreditava que fizesse parte do papel dela admitir tal conhecimento. Havia decidido o que queria ser e o que devia pensar, percebeu Adela. Age dessa maneira por acreditar que é melhor para ela. Sem dúvida, por trás do seu sorrisinho refinadamente afetado, deve me achar uma tola se não faço o mesmo jogo. Também notou que, enquanto bordava serenamente, lady Maud não lhe perguntava quase nada sobre ela mesma

— fosse porque não estivesse interessada ou porque não quisesse constranger a obviamente pobre parenta de Walter, era impossível saber.

À tarde foram todos cavalgar pela propriedade. Com os seus campos imensos, pomares caprichosamente bem cuidados e lagos bem fornidos de peixes, era o modelo perfeito do que devia ser uma casa nobre. Não havia dúvida de que Hugh de Martell conhecia bem o seu negócio. Ao se aproximarem de uma comprida ladeira que dava para o alto do morro, os dois homens foram a meio galope, e Adela quis segui-los no mesmo passo.

Mas lady Maud foi firme:

— Creio que os nossos cavalos devem trotar. Deixe que os homens galopem. — Desse modo, Adela foi forçada a lhe fazer companhia, e as duas tinham atingido apenas a metade da subida quando os homens já estavam voltando, fazendo com que elas retornassem dali.

— Linda vista — comentou Walter ao darem meia-volta.

Ao voltarem do passeio, descobriram que os criados haviam instalado mesas sobre cavaletes no vestíbulo, estendido toalhas sobre elas, e logo depois já estavam sentados para uma refeição. Como ainda não haviam comido naquele dia, um jantar completo foi então servido. Tudo era executado de uma maneira tranqüila, mas vistosa. Uma pequena procissão trouxe pão e caldo, salmão e truta, três tipos de carnes. Hugh de Martell era quem as trinchava; lady Maud servia Walter de seu próprio prato. O vinho — coisa realmente rara — era límpido e saboroso, levemente temperado. Frutas frescas, queijos e nozes completavam a refeição. Tyrrell, educadamente, elogiava lady Maud a cada prato, e Martell se dava ao trabalho de entreter Adela contando-lhe uma história engraçada sobre um mercador da Normandia que não falava inglês. E talvez ele tivesse bebido um pouco além da conta.

Portanto, como teria ela a possibilidade de saber se estava cometendo um erro quando falou da Floresta? Já que para Walter ela tinha passado por tola naquela ocasião, ele devia ter imaginado que Adela não mencionaria o assunto do agrupamento dos veados. Era difícil saber. Tudo o que ela fez, a princípio, por via das dúvidas, foi perguntar à anfitriã se já tinha se aventurado em New Forest.

— New Forest? — lady Maud pareceu ligeiramente surpresa. — Não creio que eu queira ir lá. — Deu a Walter um dos seus sorrisinhos, como se Adela tivesse dito algo socialmente impróprio. — As pessoas que vivem ali são muito estranhas. Você já esteve por lá, Walter?

— Apenas uma ou duas vezes. Com a caçada real.

— Ah. Bom, isso é bem diferente.

Adela notou que Walter a olhara com a cara fechada de censura. Obviamente, queria que ela mudasse de assunto. Mas aquilo também a irritava. Por que tinha de ser tratada o tempo todo como uma idiota? De qualquer jeito, ele ia mesmo desdenhar dela.

— Eu cavalgo sozinha na Floresta — afirmou, mansamente. — Até mesmo já cacei por lá. — Fez uma pausa para deixar que aquilo calasse fundo. — Com o seu marido — e lançou em direção a Walter um sorriso alegre e desafiador.

Fosse qual fosse a reação que esperava, não foi aquela que provocou.

— Hugh? — Lady Maud franziu a testa, em seguida ficou um pouco pálida.

— Caçar na Floresta? — Fitou-o com o olhar interrogador. —Você foi, querido?

— indagou, com uma voz estranhamente miúda.

— Fui, — respondeu ele depressa, de cara amarrada. — Com Walter aqui. E Cola. Na primavera passada.

— Não creio que eu tenha sabido disso. — Olhava-o com um ar de reprimenda silenciosa.

— Tenho certeza de que soube — disse ele com um tom de voz firme.

— Ah. Bem — rebateu, conciliadora —, agora estou sabendo. — E deu a Adela o seu sorriso torto, antes de acrescentar, com um forçado ar brincalhão: — Os homens caçam na Floresta.

Walter encarava o seu prato de comida. Quanto a Martell, teria havido um vestígio de impaciência em seus modos? Um leve dar de ombros? Por que não teria contado a ela? Teria havido algum outro motivo para sua visita à Floresta? Houvera outras ausências, talvez? Adela especulava. Se ele vez por outra dava as suas escapadas, não tinha certeza se devia censurá-lo, fosse o que fosse o que andaria fazendo.

— Por falar em coisas da realeza — observou calmamente Walter, vindo em socorro, como se nada de embaraçoso tivesse acontecido —, vocês souberam que...

— E passou então a falar de um dos mais recentes escândalos da corte. Como costumavam ser, esse dizia respeito a indecorosas palavras do rei ditas a alguns monges. Impaciente como era com a religião, Rufus raramente resistia a atormentar clérigos. Também era usual o rei normando sempre dar um jeito de ser igualmente grosseiro e engraçado. Por mais escandalizada que pudesse ter ficado, lady Maud logo estava rindo tanto quanto o marido.

— Quem lhe contou isso? — indagou Martell.

— Ora, o próprio arcebispo de Canterbury — confessou Walter, o que fez todos rirem ainda mais. Pois era um fato bastante divertido para Adela que Tyrrell, de algum modo, também tivesse conseguido cair nas boas graças do santificado arcebispo Anselmo.

Então, tendo feito a sua jogada, Walter passou a entretê-los. Uma após outra, as histórias se sucederam. Espirituosas, divertidas, a maioria sobre as grandes figuras da ocasião, freqüentemente acompanhadas pela admoestação de "não repitam isso", Walter contava muito bem as suas histórias. Ninguém deixava de se deliciar, lisonjear, fascinar por tal adulador. Para Adela, foi uma revelação. Nunca vira Walter ser encantador antes. Mas tinha-se de admitir que ele era habilidoso. A despeito de si mesma, ficou impressionada.

E também lhe ocorreu algo: se Walter era impaciente com ela, poderia colocar toda a culpa nele? Esse esperto Walter Tyrrell, que se casara com um membro da poderosa família Clare, era amigo dos importantes — poderia realmente reclamar do fato de ele ter vergonha dela, já que ela fazia besteira após besteira?

Quando, algum tempo depois, o alegre grupo se desfez e se preparava para ir mais cedo para a cama, ela se aproximou dele e cochichou:

— Desculpe. Eu vivo fazendo as coisas erradas, não é mesmo?

Para sua surpresa, em resposta, ele lhe sorriu um tanto quanto benevolente.

— A culpa também é minha, Adela. Não fui muito bom para você.

— É verdade. Mas eu não tenho sido um fardo agradável.

— Bem, vamos ver se conseguimos fazer algo por você em Winchester — falou. — Boa noite.

Na manhã seguinte ela acordou sentindo-se maravilhosamente revigorada. Abriu as persianas. O dia estava começando, o rosa da alvorada já desbotava, fazendo surgir um claro céu azul. O ar úmido e frio ardeu em seu rosto. A não ser pelo suave chilreio dos pássaros, tudo era quietude. A alguma distância, um galo cantou. Ela achava que percebia no ar um leve odor de cevada. Ninguém ainda se movimentava na casa, mas na colina distante viu um solitário camponês seguindo o seu caminho por uma trilha. Respirou fundo.

Não podia esperar em seus aposentos até a família começar a aparecer. O dia estava por demais convidativo. Sentia-se entusiasmada. Vestindo o camisão e uma blusa de linho, amarrando o cinto, jogando para trás com ambas as mãos os cabelos soltos e calçada apenas com chinelos, saiu rapidamente da casa. Se estivesse com uma aparência um pouco desleixada, pensou, não tinha importância. Ninguém a veria.

Logo depois da casa, havia um jardim murado com um portão. Entrou ali. Passou-se algum tempo antes que o sol invadisse aquele espaço silencioso. Hortaliças e madressilvas cresciam lá. Três macieiras ocupavam um pedaço de gramado, suas maçãs de vez ainda duras, embora já ostentando os primeiros rubores. Morangos silvestres também se sobressaíam entre a grama, lantejoulando o verde com pequeninos pontos vermelhos. Havia teias de aranha nos cantos das paredes. Tudo estava ensopado de orvalho. Sua boca se escancarou, deliciada. Ora, ela poderia estar no jardim de algum castelo ou mosteiro da sua nativa Normandia.

Permaneceu ali durante algum tempo, sorvendo a paz do lugar.

Ainda não parecia haver ninguém nas imediações quando saiu. Pensou em caminhar até os estábulos, que ficavam no grande quadrado de edificações anexas, ou talvez até o campo mais além, onde alguns dos cavalos tinham sido deixados para passar a noite. Ao passar, porém, ao lado da casa senhorial, sua atenção foi atraída por uma pequena porta na parte de baixo da parede lateral, com três degraus de pedra descendo dela. Presumiu que levaria a um porão e que deveria estar trancada. Mas, como era da sua natureza fazer aquilo, desceu, experimentou a porta, a qual, para sua surpresa, abriu.

O porão era amplo; o baixo subterrâneo seguia por toda a extensão da casa. O teto era sustentado por três grossas colunas de pedra, no centro, que dividiam a área em compartimentos. A luz da porta, que ela deixara aberta, era completada pela de uma pequena janela gradeada no alto da parede oposta.

Seus olhos levaram alguns instantes para se acostumar ao escuro, mas ela logo percebeu que o local continha as coisas que esperava — contudo, ao contrário da mixórdia que se costuma encontrar em tais lugares usados como depósito, tudo ali estava empilhado de um modo ordenado. Havia baús e sacos; um compartimento estava tomado por toneis de vinho e cerveja preta; de outro, pendiam alvos de arqueiros, arcos desencordoados, flechas, meia dúzia de redes de pesca, coleiras para cachorros, luvas e capuzes para falcões. Somente ao chegar ao compartimento mais distante, à esquerda, onde havia lascas de madeira sobre o chão, foi que ela viu algo estranho — brilhando levemente, uma forma alta em meio às sombras, tão parecida com um homem que a fez dar um salto.

Tratava-se de um boneco de madeira. Brilhava suavemente porque usava uma comprida cota de malha de ferro e um elmo metálico. Atrás dele, já conseguia ver, havia um segundo boneco, vestido com a blusa de couro que ia por baixo da cota. Em um suporte encontrava-se uma sela com arção alto, contra o qual estava encostado um comprido escudo guarnecido de tachões; em uma armação ao lado dele, um enorme montante, duas lanças e uma maça. Resfolegou ligeiramente. Devia ser a armadura de Hugh de Martell.

Ela sabia muito bem que não devia tocar em nada. A cota de malha e as armas haviam sido cuidadosamente lubrificadas para evitar a ferrugem; na fraca luminosidade, podia ver que tudo estava perfeitamente pronto para uso imediato. Nem um só elo da armadura estava fora do lugar. Havia um misto de odor de óleo e couro, metal e lascas de madeira resinosa que achava estranhamente excitante. Instintivamente, avançou para perto da figura couraçada, farejando-a, quase tocando-a.

— Meu avô usava um machado de batalha.

A voz surgiu tão inesperadamente, a poucos centímetros de seu ouvido, que ela quase deu um grito. Os pés com chinelos elevaram-se do chão de pedra. Fez meia-volta, roçando o corpo levemente no peito dele ao se virar.

Hugh de Martell não saiu do lugar, apenas deu uma risadinha.

— Assustei você?

— Eu... — Tentou recuperar o fôlego. Podia sentir o rosto queimando. O coração palpitava. — Oh, mon Dieu. Sim.

— Minhas desculpas. Eu sei me movimentar suavemente. A princípio, sob esta luz, pensei que você fosse um ladrão. — Ele continuava sem se afastar. O espaço entre os dois parecia suficiente apenas para uma sombra.

De repente, ela percebeu que mal estava vestida. O que poderia dizer?! Sua mente não se concentrava.

— Um machado de batalha? — foram as últimas palavras que parecia capaz de lembrar.

— Sim. Nós, os normandos, afinal de contas, somos todos viquingues. Ele era um homem enorme e ruivo — explicou, sorrindo. — Herdei os cabelos negros de minha mãe. Ela era da Bretanha.

— Ah. Sei. — Ela nada via, a não ser a jaqueta de couro dele e a manga de seu comprido braço. Percebeu apenas que houve uma pausa antes de ele voltar a falar.

— Você está sempre fazendo explorações, não é mesmo? Primeiro na Floresta, e agora aqui. Tem espírito aventureiro. Isso é muito normando.

Levantou o rosto em direção ao dele. Ele lhe sorria de cima para baixo.

— Você não é aventureiro? — perguntou. — Ou talvez não precise ser.

O sorriso dele se apagou, mas não pareceu zangado, apenas pensativo. Ele a entendera, é claro: as propriedades consolidadas, a esposa rica; o pequeno desafio dela sugeria que ele perdera o espírito dos seus ancestrais viquingues.

— Eu tenho muito o que fazer, como pode ver — respondeu calmamente. Havia um senso de serena autoridade, de poder, que emanava dele ao pronunciar as palavras.

— Eu me ponho em meu lugar — retrucou ela.

— E onde é o seu lugar? — Retomara o ar divertido. — Normandia? Inglaterra?

— Aqui, creio eu.

— Você vai para Winchester. É um bom lugar para conseguir um marido. Muita gente vai para lá. Talvez nós a vejamos novamente por estes lados da região.

— Talvez. Você costuma ir a Winchester?

— Às vezes.

Ele deu um passo para trás. Os olhos, ela percebeu, envolveram-na toda, automaticamente. Estava para se virar. Ela queria dizer alguma coisa, qualquer coisa para mantê-lo ali. Mas o que poderia dizer? Que se tinha casado com uma mulher rica indigna dele? Que teria sido melhor com ela? Aonde, aonde, em nome de Deus, possivelmente poderia levar qualquer coisa entre eles?

— Venha — ofereceu-se para acompanhá-la até a saída. Claro, ela teria de ir e se vestir de modo apropriado. Fez o que ele sugeriu, caminhando à sua frente em direção à luz que vinha da porta. Só um pouco antes de alcançá-la ela sentiu-o segurar-lhe a mão, levantá-la com firmeza e roçá-la levemente com os lábios.

Um gesto cortês no escuro. Inesperado. Virou-se para ele. Algo semelhante a dor pareceu entorpecer seu peito de lado a lado. Por um segundo, não conseguiu respirar. Ele fez uma mesura. Como uma sonâmbula, passou pela porta e saiu no resplandecente mundo exterior, quase ofuscada pela luz. Ele se virou para fechar a porta. Ela seguiu em frente, sem olhar para trás, para a habitação senhorial.

O resto do dia transcorreu tranqüilo. A maior parte, passou-a em companhia de lady Maud. Ao se encontrar com Hugh de Martell, ele pareceu educado, mas de certa forma frio e distante.

E, quando ela e Walter se despediram dele, na manhã seguinte, para continuarem a viagem até Winchester, permaneceu formal e inacessível. Mas, no alto do morro, ela olhou para trás e viu sua figura alta e morena ainda olhando para eles, até sumirem de vista.

O outono chega delicadamente à Floresta. A demorada luminosidade do verão atravessa setembro; os extensos carvalhos continuam verdes; o húmus turfoso da charneca retém o suave calor do litoral; o ar tem um cheiro doce e penetrante.

No mundo exterior, é a época do amadurecimento. A colheita foi feita, as maçãs estão prontas para cair, a névoa nos campos vazios é um úmido lembrete para que os homens se recolham o máximo possível, enquanto o sol inicia o seu recesso gradual em direção ao final do ano.

Na Floresta, porém, a natureza age de forma diferente. Essa é a estação na qual os carvalhos derramam as suas verdes abelotas e o chão da mata fica coberto com os seus frutos. Homens como Pride levam os seus porcos para comer as abelotas e amêndoas de faia — a ceva, como é chamado esse tipo de alimentação. Trata-se de um direito antigo, que nem mesmo o conquistador normando quis acabar. "Se os veados comerem muitas abelotas quando estiverem verdes", lembraram os seus florestais, "eles ficarão doentes. Mas os porcos adoram." Com o passar dos dias, as folhas das faias começam a ficar amarelas; porém, ao mesmo tempo em que se percebe esse suave sinal de decadência, ocorre outra transformação quase contraditória. A árvore do azevinho é macho ou fêmea, e é nessa ocasião, como se para dar as boas-vindas à futura chegada do inverno, que o azevinho fêmea irrompe em bagas, cujos repletos cachos carmesim cintilam contra o céu azul-cristalino de setembro.

Com a passagem do equinócio e a natureza percebendo que as noites começam a ficar um pouco mais demoradas do que os dias, outras mudanças se verificam. Com as flores das urzes tendo se tornado borrões de pontinhos brancos, a charneca passa do roxo do verão para o castanho do outono. Os caules castanhos das samambaias elevam-se em folhas secas até, em certas moitas, captarem a luz do sol do outono como se fossem de bronze polido. As abelotas sobre as folhas caídas, tendo se libertado de seus cálices, também têm a cor castanha. A névoa da noite traz uma friagem úmida. O frio alvorecer tem uma ardência revigorante. Contudo, na Floresta, esses sinais marcam não um fim, mas um começo. Se o sol já está de partida, apenas cede o lugar a uma divindade ainda mais antiga. O inverno está a caminho: é a época da lua prateada.

É a época do cio dos veados.

O macho caminhava furtivo pelo centro do local de acasalamento. Amanhecia. O chão estava coberto por uma fina geada. Em volta do limite do local de acasalamento, no solo marcado pelos seus eslotes, como são chamados os rastros das patas fendidas dos veados, oito ou nove fêmeas estavam à espera da cópula. Algumas se agitavam, soltando relinchos. Havia uma tensa excitação no ar. A gama clara também estava lá. Esperava em silêncio.

Os chifres do macho eram esplêndidos, e ele o sabia. Suas pás pesadas, brunidas, espalhavam-se cerca de oitenta centímetros acima da cabeça e eram assustadoras de se olhar. Tinham atingido a plenitude do crescimento desde agosto, quando a cobertura de veludo começara a descascar. Durante vários dias ele raspara e esfregara os novos chifres em árvores pequenas e jovens, deixando marcas alvas em suas cascas. Sentira-se bem quando as jovens e fortes árvores cederam e curvaram sob o seu peso; sentira o seu crescente poder. A raspagem tinha um duplo propósito: não apenas retirava os últimos vestígios da pele aveludada, como também os ossos dos chifres, de um branco cremoso quando emergiam, tornavam-se revestidos, polidos e endurecidos por um marrom reluzente.

Em setembro ele estava ficando indócil. O pescoço dilatou. O pomo-de-adão aumentou; a formigante sensação de poder parecia percorrer todo o seu corpo, da garupa aos ombros espessos. Passou a andar de forma arrogante e a pisotear o chão, pois tinha necessidade de se exercitar, de mostrar o seu poder. Saía sozinho à noite pelo mato, vagueando aqui e ali, como um cavaleiro à procura de aventura. Gradualmente, porém, começava a ir na direção daquela parte da Floresta onde a gama clara o vira no ano anterior — porque os machos, instintivamente, quando vão se acasalar, afastam-se do local onde habitam para haver uma constante mistura da matéria-prima genética dos cervídeos. No final de setembro já estava pronto para delimitar o seu local de acasalamento. Mas antes disso uma outra cerimônia antiga teria de acontecer.

Quem sabe quando o veado-nobre surgiu pela primeira vez na Floresta? Eles se encontram lá desde tempos imemoriais. Maiores do que os gamos intrusos, os homens os designaram por nomes diferentes. O veado-nobre é stag, a fêmea, hind; o jovem não é chamado à&fawn, como o gamo, mas de calf. Ao passo que os chifres do gamo nascem em forma de pás largas, a coroa do stag, ainda maior, eleva-se em pontudos galhos aspeados. A quantidade de veados-nobres nunca foi muito grande. Sem ter a rapidez e a sagacidade do gamo, eles eram fáceis de matar e os gamos já os superavam em número. Enquanto o gamo gosta de clareiras de florestas, o veado-nobre prefere a charneca, onde, ao permanecer nas urzes, parece, mesmo em plena luz do dia, misturar-se com o próprio terreno. Primitivos e nórdicos, em comparação com os elegantes franceses que chegaram depois, nada mais apropriado, com a proximidade da berra de outono, que até mesmo os grandes gamos machos concedessem precedência a essas antigas figuras, que vêm resistindo no silêncio vazio da charneca desde, muito provavelmente, a Idade do Gelo.

Normalmente, poucos dias após o equinócio do outono, quando já assumiu o controle sobre o grupo de fêmeas que formarão o seu harém exclusivo, é que o macho nobre levanta sua poderosa cabeça e emite o assombroso balido, algumas notas acima do mugido de um boi, que ecoa no crepúsculo por toda a charneca e leva os homens a ouvir e falar: "Os stags começaram a bramir."

E mais dias se passam antes que, nas clareiras da mata, os gamos machos acrescentem os seus próprios chamados, diferentes, aos sons do outono.

O local de acasalamento do macho não era um dos mais importantes — esses ficavam com os mais velhos e maiores —, visto que essa ainda era a sua primeira berra. Tinha cerca de sessenta metros de comprimento por quase quarenta de largura. Durante dias, ele o preparara cuidadosamente. Primeiro, agindo em volta do perímetro do local, usou os chifres para limpar a área dos rebentos de árvores e dos arbustos. Após fazer isso, um forte odor foi segregado de glândulas abaixo de seus olhos, marcando os arbustos como sendo seu território. Também ungiu as árvores em volta do perímetro. Depois, com a proximidade do momento, arranhou o chão com as patas dianteiras, que também contêm glândulas, e até mesmo o dilacerou em algumas partes com os chifres. Urinou nos arranhões e em seguida rolou sobre a terra molhada. Isso criou o penetrante cheiro do veado no cio, arrebatador para as fêmeas; pois, ao contrário do veado-nobre, são as fêmeas que procuram o gamo durante a berra.

E, assim, como se tivesse se preparado para uma mágica justa cavaleiresca na clareira, o belo macho jovem já estava pronto para desafiar todos que se aproximassem do seu local de acasalamento. Sua berra duraria muitos dias, durante os quais não se alimentaria, sobrevivendo com a energia fornecida por uma fenomenal produção de testosterona. Aos poucos, ficaria menos alerta; ao final, estaria exausto. As vigilantes fêmeas, contudo, o protegeriam, patrulhando a área externa do local de acasalamento, espiando e escutando. Aliás, toda a natureza participaria: os pássaros cantariam à aproximação de um perigo, e até mesmo os pôneis da mata, normalmente silenciosos, relinchariam em aviso, se vissem intrusos humanos se aproximarem dos animais malhados em sua cerimônia secreta.

O macho passou horas andando de um lado para o outro no local de acasalamento. Grama amassada, samambaia e nozes marrons de abelotas esmagadas jaziam sob suas patas. Além das fêmeas, dois estaqueiros e um sore, que tentava parecer capaz de avançar para o círculo, observavam. Uma tênue luz se filtrava através das árvores. De tempos em tempos, ele fazia uma pausa na caminhada para emitir o chamado do cio.

O chamado do cio do gamo é conhecido como gemido. Após baixar levemente a cabeça, ele levanta o pescoço dilatado para emitir esse chamado. Dificilmente se pode descrever tal som — um estranho trompete grunhido, arrotado. Uma vez ouvido, jamais se pode esquecer.

Três vezes ele gemeu, belo, poderoso, no centro do palco.

Mas então um novo vulto se aproximou por entre as árvores. Houve um far-falhar, enquanto as fêmeas afastavam-se do caminho. Ele emergiu e atravessou silenciosamente o limite para o interior do local de acasalamento, caminhando calmamente na direção do macho, como se nada no mundo pudesse perturbá-lo.

Era outro macho e, a julgar pelos seus chifres, os dois eram antagonistas à altura.

A fêmea clara tremeu. Seu macho ia lutar.

O intruso atravessou lentamente o local. Ele era mais escuro do que o seu macho. Ela podia sentir o seu cheiro, penetrante, acre, como lodo de água salobra. Ele parecia forte. Passou pelo macho dela, que dava passadas cadenciadas — este era o ritual da luta — logo atrás. Os dois machos continuaram caminhando, quase ao acaso; ela viu os músculos aumentarem nos ombros fortes dos dois, os chifres abanando lentamente para cima e para baixo enquanto andavam. Ela percebeu que um dos dois chifres curvos bem à frente da base das pás na cabeça do macho escuro tinha se quebrado, deixando um espeto dentado. Uma virada repentina de cabeça poderia furar o olho do seu macho. As outras fêmeas observavam em silêncio. Até mesmo os pássaros nas árvores pareciam ter-se aquietado. Ela só tinha noção do lento roçar das patas dos dois machos nas folhas e samambaias caídas.

Toda a natureza sabia que o destino do macho dela estava para ser decidido. Um gamo podia desafiar um dos machos maiores e mais fortes e perder com honra. Talvez o intruso tivesse quebrado o chifre dessa maneira. Mas, quando dois competidores à altura se enfrentavam, um deles tinha de ser derrotado. O perdedor podia se ferir ou até morrer; o mais importante, porém, era que, na derrota, o seu orgulho estaria liquidado. As fêmeas sabiam disso, toda a floresta já o tinha visto. Ele se afastava furtivamente, e o local de acasalamento e as fêmeas pertenciam ao vitorioso.

A gama clara observou os dois machos chegarem à extremidade do palco, virar e fazer o caminho de volta. Será que, após toda a sua espera, o macho mais escuro de odor acre, com o terrível espeto, destruiria o seu escolhido e depois a possuiria? Ela tinha ido ao local de acasalamento. Ela pertencia, por direito, ao vencedor. Era assim que funcionava. Então, viu o seu macho dar o sinal.

Uma cutucada. Esse era o sinal. O seu macho avançou apenas o suficiente para que o ombro dele cutucasse o traseiro do intruso.

O macho escuro girou. Por apenas um segundo houve uma pausa, quando os dois se levantaram sobre as patas traseiras; então, com um estalido que ecoou pela vegetação, as duas enormes galhadas chocaram-se.

Dois machos adultos lutando é algo assustador de ver. Enquanto os seus possantes corpos, com os pescoços dilatados, se retesavam, grunhindo, pressionando-se um contra o outro, a fêmea clara, involuntariamente, recuou. De repente, eles pareceram tão enormes, tão perigosos. Se um deles se soltasse, se eles viessem lutando na direção dela... Os dois se equiparavam. Durante longos segundos, avançaram e recuaram milímetros, as galhadas presas e abaixadas, as patas traseiras cavando o chão, os músculos inchando como se fossem quebrar. O seu macho parecia estar progredindo.

Então, ela viu as patas traseiras dele escorregarem. O intruso empurrou-o adiante, trinta centímetros, um metro. O macho dela buscava apoio no chão, mas escorregava nas folhas molhadas. Estava para ser derrubado. Viu-o unir as pernas.

Deslizava para trás, o corpo rígido, contido na posição. O intruso deu um empurrão final; parecia prestes a investir adiante e derrubar o seu macho no chão.

Mas algo mudara. O seu macho tinha chegado a um solo mais firme. As patas, subitamente, conseguiram apoio na grama. Sua garupa tremeu, ele se firmou. Ela viu os seus ombros se levantarem e o pescoço resistir. Agora era o intruso quem escorregava nas folhas molhadas. Lenta e cautelosamente, as galhadas presas, os dois machos distendidos começaram a girar. Logo já estavam ambos sobre a grama. De repente o intruso soltou-se. Deu uma torcida na cabeça. O espeto dentado apontava para o olho do macho dela. Investiu. Ela viu o seu macho jogar o corpo para trás, em seguida desabar à frente. Todo o seu peso desceu sobre a galhada do intruso. Seguiu-se um som áspero de estalido. O intruso, por causa de sua manobra perversa, não estava ereto. O pescoço havia girado para o lado. Tinha dado espaço.

Então, repentinamente, tudo estava terminado. O seu macho o empurrava para trás, metro após metro. O intruso estava desequilibrado; pelejou, virou-se e foi apanhado de lado. O seu macho estava agora a plena carga, dando marradas, agitando a cabeça, afastando o oponente à sua frente. Havia sangue na lateral do intruso. A cabeça do seu macho estocou mais uma vez os chifres dele com um formidável golpe. O intruso bramiu, virou-se, cambaleou e saiu coxeando do local. Perdera.

Após caminhar pomposa e magnificamente de volta ao palco do qual era agora o senhor indiscutível, o macho virou o rosto na direção dela.

Por que, ele subitamente, lhe pareceu estranho? Sua enorme galhada, a face triangular, os dois olhos como buracos negros, fitando inexpressivamente na direção dela: era como se o seu macho tivesse sumido, se convertido em um outro ser chamado apenas de "veado" — uma imagem, um espírito repentino e terrível. Dirigiu-se a ela.

Ela virou-se. Esperava-se isso dela; era instintivo, mas também estava com medo. O ano todo havia esperado. Agora era a sua vez. Começou a correr para longe do local de acasalamento por entre as árvores, roçando nos arbustos. O ano todo havia esperado, mas agora, sabendo-o tão grande, tão forte, tão estranho e terrível, tremia de medo. Ele a machucaria? Sim. Certamente. Mas tinha de ser assim. Ela sabia que tinha. Teve uma estranha sensação, como se todo o calor, todo o sangue em seu corpo corresse para a traseira, para a base da espinha e da garupa, que tremia enquanto ela corria. Ele estava vindo. Estava logo atrás, podia ouvi-lo, senti-lo. De repente, conseguiu farejá-lo. Mal sabendo o que fazia, parou abruptamente.

Lá estava ele. Em cima dela. Sentiu-o montar; seu corpo cambaleou sob o peso dele. Precisou pelejar para ficar de pé. O cheiro dele a cobria toda como se fosse uma nuvem. Involuntariamente, a cabeça dela virou-se para trás. A galhada surgiu, pairando acima, terrível, absoluta. Então, sentiu-o penetrar. Uma lancinante dor ardente e, em seguida, algo repleto, premente, tremendo, enchendo-a como uma inundação.

Adela gostou de Winchester. Estendendo-se pela região montanhosa de calcário ao norte da grande enseada do Solent, ela fora outrora uma cidade provincial romana. Durante séculos depois disso fora o principal centro dos reis da Saxônia Ocidental, que, finalmente, se tornaram reis de toda a Inglaterra. E durante as últimas décadas, embora Londres se tivesse tornado a verdadeira capital do reino, o velho tesouro real permaneceu em Winchester, e vez por outra o rei ainda reunia a corte no seu palácio real de lá.

Não ficava longe de New Forest. Uma estrada seguia por cerca de treze quilômetros a sudoeste até a cidadezinha de Romsey, onde havia um convento para freiras. Mais uns seis quilômetros, e se estava na Floresta. Mas, como Adela rapidamente descobriu, parecia um mundo distante.

Instalada sobre uma elevação, acima de um rio cercado por extensas colinas encimadas por bosques de carvalho e faias, Winchester era essencialmente uma cidade fortificada de cerca de cinqüenta e seis hectares com quatro portões antigos. A extremidade sul continha uma nova e bela catedral normanda, o palácio do bispo, a residência prioral de St. Swithuns, a casa do tesouro e a residência real de Guilherme, o Conquistador, juntamente com várias outras simpáticas edificações de pedra. O resto da cidade tinha um padrão mais comum, com uma feira, vários edifícios comerciais, casas com jardins e pombais e movimentadas ruas de artífices e artesãos. Próximo a um dos portões, havia um hospício para gente pobre. A vista do planalto era extensa, o ar, revigorante.

A cidade guardara muito de sua antiga personalidade. Todas as ruas mantinham os seus nomes saxões, desde a Gold Street (rua do Ouro) e aTanners Street (rua dos Curtidores) até mesmo a sonoramente germânica Flehsmongers Street (rua dos Magarefes). Mas a corte de Wessex fora um lugar instruído. Mesmo antes da conquista normanda, a cidade era uma agitação de padres, monges, funcionários reais, ricos mercadores e cavaleiros, e ouvia-se falar latim e até mesmo francês, além do saxão, nos salões de Winchester.

As providências tomadas por Walter em favor dela eram certamente um avanço, comparadas com o arranjo feito com o mercador em Christchurch. A hospedeira de Adela era uma viúva na casa dos cinqüenta, filha de um nobre saxão de nascimento, que fora casada com um dos administradores normandos do tesouro de Winchester e agora morava numa agradável hospedaria construída em pedra perto do portão oeste. Walter conversou longamente com ela em particular assim que chegaram, e, depois que partiu, a senhora deu um sorriso encorajador para Adela e lhe disse: "Tenho certeza de que podemos fazer algo por você."

Certamente era bem relacionada. No primeiro dia em que saíram para passear pelas ruas, no caminho de ida e volta a St. Swithuns, atravessando a feira, a anfitriã foi cumprimentada igualmente por padres, funcionários reais e mercadores. "O meu marido tinha muitos amigos, e todos se lembram de mim por causa dele", observou a senhora; mas, após um ou dois dias convivendo com a gentileza e o bom senso da outra mulher, Adela concluiu que eles gostavam da viúva por ela mesma.

Sua própria situação tornou-se mais cômoda.

"Esta é uma prima de Walter Tyrrell, da Normandia", explicava a anfitriã; e Adela podia ver, pela reação respeitosa, que eles de imediato a viam como uma jovem nobre com contatos no poder. No espaço de um dia, o prior da St. Swithuns indagara se as duas mulheres gostariam de jantar com ele.

Em particular, a nova amiga infundia-lhe confiança, mas era realista.

— Você é uma moça bonita. Qualquer nobre se sentiria orgulhoso em tê-la a seu lado. Quanto à sua falta de herança...

— Não sou alguém sem vintém.

— Não, claro que não — retrucou a amiga, embora talvez mais por bondade do que por convicção. — Nunca se deve afirmar algo que não seja verdadeiro — prosseguiu —, mas, do mesmo modo, não se deve enganar as pessoas. Portanto, eu acho que seria melhor se nós apenas... não disséssemos nada — sugeriu, com a voz ficando para trás. Fitou o espaço. — De qualquer modo — acrescentou —, se você fizer algo que agrade ao seu primo Walter, talvez ele possa suprir você de alguma coisa.

— Refere-se a... dinheiro? — perguntou Adela, surpresa.

— Bem, ele não é pobre. Se ele achar que você pode ser útil...

— Eu não tinha pensado nisso — confessou Adela.

— Ora, minha cara menina. — A viúva levou algum tempo para se recompor. — De agora em diante — falou com firmeza — nós duas devemos agir para garantir que o seu primo acredite que você será um grande investimento para ele.

Se a anfitriã a incentivava a ser um pouco mais sensata a respeito de sua situação, a sociedade de Winchester também a deixava mais a par do que se passava no mundo exterior. Ela sabia, por exemplo, que o rei tinha lá as suas diferenças com a Igreja, mas ficou bastante chocada quando um velho clérigo, conversando informalmente com elas no pátio da catedral, referiu-se a ele como "aquele diabo ruivo".

— Pense só no que Rufus tem feito — comentou a amiga depois. — Primeiro, ele teve uma rixa terrível com o arcebispo de Canterbury. O arcebispo foi visitar o papa, e Rufus se recusou a deixá-lo entrar de volta na Inglaterra. Depois o bispo aqui de Winchester morreu, e Rufus se recusou a nomear um novo. Você sabe o que isso significa, não sabe? Toda a receita da diocese de Winchester, que é imensamente rica, vai para o rei, não para a Igreja. E agora, para somar o insulto à injúria, ele acaba de tornar o melhor amigo dele, um velhaco completo, bispo de Durham. Os padres não apenas odeiam o rei. Muitos deles querem vê-lo morto.

Outro assunto com o qual se deparou relacionava-se com sua terra natal. Por várias vezes, quando as pessoas ficavam sabendo que Adela viera da Normandia, elas comentavam: "Ah, ouso afirmar que em breve estaremos novamente sob um único rei." Ela sabia que quando o duque Roberto da Normandia partira em uma cruzada, três anos antes, levantara o dinheiro para a expedição através de um enorme empréstimo feito ao seu irmão Rufus e oferecera a própria Normandia como garantia. O que ela não percebia, mas que todos em Winchester sabiam, era que Rufus não tinha a menor intenção de ver o seu irmão de volta ao seu ducado. "Se ele não for morto na cruzada", teria dito aos amigos, contente, "voltará sem um vintém. Jamais conseguirá pagar o empréstimo. Então tomarei a Normandia e serei um grande homem, como o foi meu pai, o Conquistador."

— Talvez ele tenha razão — disse a viúva a Adela —, mas há um perigo. Poucos anos atrás alguns amigos de Roberto tentaram matar Rufus. Mas nunca se sabe...

— E o terceiro irmão, o jovem Henrique? — especulou Adela. — Ele nada tem para governar.

— É verdade. A propósito, você deverá vê-lo. De vez em quando, ele vem por aqui — disse a amiga e, depois, pensou por um instante. — Creio que ele é esperto — falou, finalmente. — Não acredito que tome partido de nenhum dos dois irmãos, pois, se fizer isso, acabará se enredando no meio deles. Acho que se mantém de cabeça baixa e não cria problemas. Provavelmente deve ser a coisa mais sensata a fazer. Você não acha?

Sempre que havia algum tipo de entretenimento em Winchester — se um grupo de cavaleiros estivesse de passagem ou algum funcionário real e seu séquito fossem convidados para um banquete pelo administrador do tesouro —, a viúva e Adela, com certeza, lhes faziam companhia. Em poucas semanas ela conhecera uma dezena de jovens qualificados, que, mesmo se não estivessem particularmente interessados, poderiam falar a seu respeito para outros.

Foi durante um desses banquetes que conheceu sir Fulk.

Tratava-se de um homem de meia-idade, mas bastante agradável. Ela lamentou ouvir que ele acabara de perder a quarta esposa — só não pareceu dizer inteiramente de que modo. Possuía propriedades na Normandia e em Hampshire, que ficava bem perto de Winchester. Achava que conhecera o pai de Adela. Ela não pôde deixar de desejar que, com aquele bigodinho e o rosto redondo, ele não lhe lembrasse tanto Walter, mas tentou afastar o pensamento. Ele falava com afeto a respeito de todas as esposas.

— Todas as minhas esposas — disse-lhe obsequiosamente — foram muito amáveis, muito dóceis. Tenho tido muita sorte. A segunda — acrescentou, como forma de incentivo — se parecia muito com você.

— Pretende se casar novamente, sir Fulk?

— Pretendo.

— Não está atrás de uma herdeira, está?

— De forma alguma — respondeu-lhe. — Estou bem como estou. Não sou ambicioso. E, você sabe — afirmou, com uma sinceridade que obviamente pretendia impressioná-la —, o problema com essas herdeiras é que elas costumam ter em alta conta a importância de suas próprias opiniões.

— Elas deveriam ser orientadas.

— Inteiramente.

Quando deixaram o banquete, sua hospedeira retardou-se um instante, mas, assim que se aproximou de Adela, confessou-lhe:

— Você fez uma conquista.

— Sir Fulk?

— Ele disse que recebeu um incentivo.

— Ele é o homem mais enfadonho que já conheci em toda a minha vida.

— Talvez, mas é seguro. Ele não lhe dará problemas.

— Mas eu darei problemas a ele — esbravejou Adela.

— Não deve. Controle-se. Pelo menos, consiga antes um casamento seguro.

— Mas — exclamou Adela, exasperada — ele se parece tanto com Walter! Sua acompanhante ofegou levemente e lhe deu uma olhadela, que Adela deixou de perceber.

— O seu primo não é tão feio.

— Para mim, é.

— Quer dizer que vai se recusar, se sir Fulk pedir sua mão? Sua família poderá insistir. Ou seja, Walter.

— Ora, confesse a ele qual é a minha verdadeira situação, e ele irá embora imediatamente.

— Receio que esteja sendo tola.

— Você não compartilha meus sentimentos?

— Eu não disse isso.

— Acha que tenho que fazer um sacrifício por mim mesma? — Parecia acusar a outra mulher. — Você fez um sacrifício quando se casou?

Por um instante, a acompanhante ficou calada.

— Bem, vou lhe dizer uma coisa — falou serenamente. — Se o fiz, meu falecido marido nunca soube.

Adela digeriu aquilo em silêncio, depois inclinou a cabeça, pesarosa.

— Preciso ser esperta o bastante para me casar?

— Não — retrucou a mulher mais velha. — Mas poucas moças o são.

A proposta veio no dia seguinte. Adela rejeitou-a. Walter Tyrrell chegou uma semana depois e foi direto falar com a viúva.

— Ela recusou sir Fulk?

— Talvez ele não fosse o apropriado — sugeriu delicadamente a viúva.

— Sem a minha permissão? O que há de errado com ele? Ele tem duas ótimas propriedades.

— Talvez tenha sido outra coisa qualquer.

— Ele é um homem muito bem-apessoado.

— Sem dúvida.

— Tomo essa rejeição como algo pessoal. É uma afronta.

— Ela é jovem, Walter. Eu gosto dela.

— Fale com ela então. Eu não falarei. Mas diga-lhe isto — continuou o cavaleiro enfurecido —, se ela recusar mais um bom partido, eu a levarei para a Abadia de Romsey, e poderá viver o resto da vida como freira. Diga isto para ela. — E, com apenas um rápido beijo na mão de sua velha amiga, ele partiu.

— A situação é essa — a viúva informou Adela uma hora depois. — Ele ameaçou você com a Abadia de Romsey.

Adela teve de admitir que ficou abalada.

— Que espécie de lugar é esse? Você conhece alguém lá? — indagou, alarmada.

— É bastante suntuosa. A maioria é de mulheres da nobreza. Sim, conheço uma freira de lá. É uma princesa saxônica chamada Edith... uma das últimas de nossa antiga casa real. Conheci muito bem a mãe dela. Edith tem mais ou menos a sua idade.

— Ela gosta de lá?

— Quando a abadessa não está olhando, ela tira o hábito e pula em cima dele.

— Oh.

— Se eu fosse você, não iria para lá, a não ser que quisesse ser freira.

— Não quero.

— Creio que é melhor você resolver se casar, mas podemos ganhar algum tempo. Apenas tome cuidado para não encorajar outros como sir Fulk. — Em seguida, com pena dela, a viúva acrescentou: — Eu acredito, sinceramente, que não é provável que Walter cumpra a ameaça que fez.

— Por quê?

— Porque, sendo a Abadia de Romsey como é, para colocá-la lá ele talvez tenha que pagar.

De qualquer modo, depois disso a estação do outono levou poucos visitantes a Winchester. Veio novembro, todas as folhas tinham caído, o céu ficou cinzento, e o vento que soprava sobre as colinas sem vegetação era quase sempre dolorosamente frio. Não houve pretendentes na ocasião. Ela às vezes pensava na Floresta e quase chegava a desejar estar de volta a Christchurch, cavalgando com Edgar. Pensava muitas vezes em Hugh de Martell. Mas nunca mencionava isso, nem mesmo para a sua bondosa anfitriã. Dezembro chegou. Logo, diziam, haveria neve.

Dificilmente poderia ficar mais surpresa, ao deixar a catedral em um dia frio de dezembro, e encontrar o primo Walter, usando um elegante gorro de caça com uma pena enfiada, parado ao lado de um vistoso carroção coberto, da qual, segurando a mão que ele lhe esticava, descia cuidadosamente uma dama envolta em uma capa debruada com pele.

Era lady Maud.

Ela correu adiante e chamou por eles. Ambos se viraram.

Walter pareceu ligeiramente irritado. Adela supôs que o primo achava aquilo um estorvo para lady Maud. Ele não mandara avisar que ia a Winchester, mas isso não era tão surpreendente. Com certeza, não pretendia passar por ali sem ir visitá-la. O sinal que Walter fez com a cabeça lhe pareceu indicar que podia acompanhá-los, e foi o que ela fez ao entrarem na residência real, onde o porteiro e os criados evidentemente conheciam o seu primo.

Lady Maud, achou Adela, poderia ter sido mais amistosa ou ter se mostrado mais atenciosa, mas supôs que ela estivesse cansada da viagem. Quando lady Maud os deixou por alguns instantes, Walter explicou que se tratava apenas de um intervalo na viagem. Lady Maud estava indo visitar um primo que morava depois de Winchester, e Hugh de Martell, com quem Walter estivera recentemente, pediu-lhe que a acompanhasse até lá. "Depois, volto para a Normandia", adiantou Walter. Ele andava de um lado para o outro, aborrecido, o que não facilitava a conversa.

Pouco depois lady Maud juntou-se aos dois, mais amistosa. Como sempre, parecia ligeiramente pálida, mas seus modos eram corteses, embora contivessem o sinal de cautela que Adela sentira antes. Quando Adela lhe perguntou se estava bem, ela respondeu que sim.

— Seu marido também está bem, espero — falou de modo forçado. Esperava parecer educada mas indiferente.

— Está.

— Walter me contou que está viajando para visitar parentes.

— Estou. — Pareceu meditar um instante. — Richard Fitzwilliam. Talvez você o tenha conhecido.

— Não. Mas já ouvi falar, é claro. — Ela ouvira falar muito nele. Trinta anos, com uma das melhores propriedades da região, morava a menos de oito quilômetros dali. Solteiro. — Soube que ele é muito bonito — acrescentou educadamente.

— Sim, é.

— Não sabia que era seu parente.

— Meu primo. Somos muito chegados.

Nenhuma palavra sobre essa ligação, Adela sabia muito bem, foi mencionada durante sua estada com ela no verão. Ficou imaginando se lady Maud talvez sugerisse que deviam se conhecer agora.

Ela não sugeriu. Walter nada disse.

Seguiu-se uma pausa.

— Talvez você queira descansar um pouco, antes de prosseguirmos — sugeriu Walter.

— Sim.

Dirigiu-se a Adela com leve gesto de cabeça. Um sinal adulador de que estava na hora de ela se retirar.

Ela percebeu a insinuação, mas teria sido mais amável se Walter a acompanhasse até a porta.

— Vamos nos ver em breve, Walter? — quis saber, ao fazer meia-volta.

Ele confirmou com a cabeça, mas de modo a indicar que sua saída era o mais importante; e, antes mesmo que pudesse conciliar os pensamentos, viu-se do lado de fora, nas frias ruas de Winchester.

Não queria voltar aos seus aposentos. Saiu perambulando. Pouco depois atravessou o portão e se deparou com o campo aberto. O céu estava cinzento. A mata marrom desfolhada no morro do lado oposto parecia zombar dela. Sou desprezada, pensou; talvez fosse pobre, mas por que o próprio primo a tratou daquele jeito, dispensando-a como se fosse um lacaio? Sentiu um abrasador ímpeto de raiva. Maldito seja ele. Malditos sejam os dois.

Ficou andando de um lado para o outro diante do portão. Será que passariam por ali? Poderia dizer-lhes algo? Não. Que tola pareceria, de pé ali, impotente, na estrada. Sentiu-se esmagada.

Entretanto, algo dentro dela ainda se rebelava. Sou melhor do que isso, decidiu. Não vou deixar que me humilhem. Precisava vê-los novamente, colocá-los em uma posição na qual seriam forçados a ser educados. Mas como? Que desculpa poderia haver para voltar lá?

Então ocorreu-lhe subitamente. Claro: sua hospedeira e Walter eram amigos. O que poderia ser mais natural do que ela voltar lá com a outra mulher, que talvez desejasse saudá-lo durante aquela passagem? A viúva era uma fidalga. Lady Maud teria de recebê-la. E se, por acaso, ela lhes dissesse que Adela era imensamente privilegiada por todos e um crédito para o seu primo... A beleza da idéia não demorou a germinar em sua mente, ao se virar e correr de volta para a hospedaria o mais depressa que podia.

Sua amiga estava lá. Sem se alongar nos aspectos mais humilhantes do colóquio, não demorou para explicar a situação, e a viúva prontamente concordou em ir lá, contanto que Adela lhe desse um breve espaço de tempo para se arrumar, o que fez a toda velocidade.

Mas ela ainda estava ajeitando o cabelo, quando lhe ocorreu outro pensamento. E se Walter e a lady partissem antes de conseguirem chegar lá? Precisava se assegurar de que isso não aconteceria. Dificilmente Walter partiria, se ela lhe dissesse que a viúva estava a caminho.

— Nós nos encontramos na entrada do palácio real — gritou e apressou-se de volta pelas ruas, rezando para que já não fosse tarde demais.

Deu tudo certo, porém. O porteiro garantiu-lhe que ainda estavam lá dentro. Ela esperou no vão da porta, mas depois, por estar frio e ela se sentir um pouco tola, perguntou ao porteiro se podia entrar. Tendo-a visto antes, ele não fez objeção e concordou em fazer a viúva entrar assim que ela chegasse.

— É uma velha amiga do meu primo Tyrrell — explicou Adela, já se sentindo mais contente.

Entre a porta externa e o grande salão havia um pequeno aposento ou vestí-bulo. Ali, Adela esperou. Tinha se preparado cuidadosamente. Se, de repente, eles deixassem o grande salão e se aproximassem, ela sorriria docilmente e diria que só voltara porque a viúva estava a caminho. Tinha certeza de conseguir fazer isso. Havia ensaiado repetidas vezes. Mas eles não vieram. Começou a se inquietar. Era possível que tivessem saído por outro caminho? Ficou escutando diante da pesada porta do salão, mas nada ouviu. Andou de um lado para o outro, voltou a escutar, hesitou. E, cautelosamente, começou a abrir a porta.

Estavam juntos, de pé. Ambos já vestidos com as capas, e Walter de gorro com penacho — evidentemente estavam prestes a partir. Mas haviam parado diante de uma tapeçaria na parede que exibia uma cena de caça.

Walter encontrava-se bem atrás do ombro dela, curvado, apontando algo na cena. A bochecha dele estava perto da dela, mas isso não era tão estranho assim. Ele se afastou, apenas um pouco, e ela se inclinou na direção dele. Havia algo provocante e familiar no gesto. A mão dele baixou, ela virou de lado. E, sem qualquer dúvida possível, a mão dele parou, apenas por um ou dois instantes, segurando o seio dela. Lady Maud sorriu. Então, viu Adela.

Os dois se separaram num salto. A lady, virando-se para colocar a capa mais fechada em volta de si mesma, deu um ou dois passos na direção da tapeçaria. Walter, olhando diretamente para Adela, a carranca fechada, como se esperasse que ela fosse engolida pela terra.

O que significava aquilo? Eles eram amantes ou se tratava apenas de uma espécie de flerte que, segundo ela sabia, acontecia o tempo todo nos círculos palacianos? O que isso indicava em relação aos sentimentos da lady pelo marido? Foi esse pensamento, subitamente surgindo em sua cabeça, que a fez permanecer ali, imóvel, encarando-os estupidamente.

— O que diabos você está fazendo no salão do rei? — Walter era esperto o bastante para não demonstrar outra coisa a não ser raiva. Mesmo em um estado de confusão mental, ela percebeu a rapidez com que ele manobrou para torná-la uma criminosa — uma invasora dos domínios reais.

Falou abruptamente que a viúva queria vê-lo e que tinha vindo com ela. De algum modo, aquilo soou como uma tolice, principalmente quando Walter perguntou: "Bem, e onde está ela?" — e ela não estava ali.

— Lady Maud está de saída — disse laconicamente. Se ele ao menos acreditava que a viúva estava vindo, Adela não o saberia dizer.

Lady Maud, a dignidade recuperada, caminhou diretamente para a porta, como se Adela não existisse. Mas de repente ocorreu-lhe um pensamento, parou e olhou para Adela.

— A região inteira sabe que você está à procura de marido — falou delicadamente. — Mas não creio que terá muita sorte. E imagino por quê.

Era demais. Primeiro o tratamento desdenhoso por parte dos dois; depois a pequena cena de infidelidade, e agora esse insulto descarado. Bem, que eles soubessem que ela sabia revidar.

— Se eu me casar — retrucou, com um sereno tom de voz do qual se orgulhava —, com certeza honrarei meu marido. E lhe darei um filho. — Foi um contragolpe devastador. Ela sabia disso e não se importava. Observou o rosto da outra, à espera de uma reação.

Mas, para sua surpresa, lady Maud apenas apertou os dois lábios rubros, arqueando-os, e olhou de relance para Walter com um leve ar de triunfo.

— Receio que em pouco tempo você se torne famosa pela sua língua perversa — comentou. — E mentirosa — acrescentou, cuidadosamente.

Em seguida continuou o caminho em direção à porta, que Walter lhe abriu. Adela esperava que ele lhe desse as costas e partisse, mas em vez disso permaneceu lá, segurando a porta aberta também para ela, indicando que devia sair em sua companhia. Ligeiramente aturdida, momentos depois se viu caminhando em seguida a lady Maud, com Walter seguindo-as, em meio ao ar frio lá fora. A lady foi ajudada a subir no carroção e Walter preparou-se para montar em seu cavalo.

Mas antes de fazer isso gesticulou para que Adela se aproximasse.

— Quero lhe informar — falou, com a voz baixa — que quando cheguei, um dia desses, à casa de Hugh de Martell, ele me deu uma boa notícia. Lady Maud havia descoberto recentemente que está esperando um filho. — Olhou friamente dentro dos olhos dela. —Você acaba de fazer mais dois inimigos... ela e o marido. Pode ter certeza de que ela vai falar mal de você para ele. Eu tomaria cuidado, se fosse você. — Pendurou-se na sela, e eles se afastaram.

Tinham atravessado o portão, quando a viúva apareceu, correndo em direção a Adela, tarde demais.

Geou naquela noite. Adela não dormiu bem. Novamente se fizera passar por tola. Garantira o ódio imorredouro de lady Maud e também, provavelmente, a inimizade de Hugh de Martell. Walter devia estar completamente farto dela. Estava sozinha no mundo, sem qualquer amigo. Mas todos esses problemas poderiam, no mínimo, se esvanecer enquanto ela penetrava no mundo do inconsciente, se não fosse por um fato implacável, que ressurgia sem parar e expulsava as brumas do sono. A esposa de Martell ia dar um filho ao marido.

Pela manhã, um vento setentrional desceu das serras e polvilhou a cidade com neve; e a Adela pareceu que o mundo ficara mais frio.

Edgar gostava dos meses do inverno. Eram rigorosos, claro. A relva encolhia, tornando-se minúsculas touças pálidas. Havia geada e neve. Os veados alimentavam-se praticamente de azevinho, hera e urze. Na pior das hipóteses, até mesmo roíam cascas de árvores para se nutrir. Os robustos pôneis selvagens, que mascam quase qualquer coisa, alimentavam-se do tojo espinhento. Pelo fim de janeiro, muitos dos animais começavam a ficar macilentos; os pôneis quase não se mexiam, para poupar energia. Era a época em que a natureza fazia o seu teste, e alguns animais não conseguiam sobreviver.

Contudo, muitos o conseguiam. Mesmo quando os pássaros sobrevoavam baixo e em vão acima da árida charneca nevosa, e a coruja solitária batia as asas por entre as árvores nuas sem encontrar nenhuma presa, ainda assim parecia a Edgar que a terra turfosa abaixo retinha o seu calor. A geada que cobria sua superfície era rompida pelos dedos ungulados dos delicados veados. As cotovias e os pássaros canoros de algum modo encontravam comida, e as raposas a furtavam das chácaras. Esquilos, gaios, pegas, todos tinham os seus estoques; os pequenos proprietários alimentavam o seu gado. E, em vários lugares da Floresta, os florestais, quando necessário, colocavam comida para os veados para garantir sua sobrevivência.

Certa vez, cavalgando pela Floresta, ele viu a gama clara se alimentando, e isso o fez lembrar-se mais uma vez de Adela.

Quisera ir visitá-la em Winchester. Era o seu pai quem sempre o impedia. "Deixe-a em paz. Ela quer um normando", aconselhara. Depois Cola contou-lhe que ela já tinha uma oferta de casamento. Em novembro informou ao filho que Adela quase não tinha dote e em dezembro falou-lhe um tanto brutalmente: "Não faz sentido se casar com uma mulher que sempre vai olhar você de cima para baixo, porque não passa de um caçador saxão." Mas nem mesmo esses argumentos teriam mantido Edgar longe dela, se não tivesse havido um outro motivo.

Edgar nunca entendera exatamente de que modo seu pai conseguia essas informações. Seriam os amigos que fizera nas caçadas reais que o mantinham informado? De tempos em tempos surgiam pessoas estranhas trazendo mensagens? Ou eram as visitas mensais que ele fazia a um velho amigo no castelo de Sarum? Ou outras fontes com quem se encontrava em suas ocasionais e inexplicáveis ausências? "Talvez as corujas da floresta falem com ele", sugeriu certa vez o irmão de Edgar. Fosse o que fosse, o velho homem ouvia coisas, e durante aquele inverno Edgar pôde perceber que o pai estava ficando preocupado. Em novembro, ele enviara o filho mais velho a Londres para cuidar de uns negócios, o que o manteria alguns meses por lá. Para Edgar, ele grunhiu: "Você fica aqui. Preciso de você comigo."

Quando Edgar arriscava, vez por outra, indagar ao pai o que ele pretendia, Cola era sempre evasivo, mas, quando lhe perguntou francamente: "O senhor receia outra conspiração contra o rei?", ele não negou. "São tempos perigosos, Edgar", murmurou, e se recusou a ir além disso.

As possibilidades de tramas eram tantas que Edgar dificilmente poderia imaginar de qual quadrante o perigo poderia surgir dessa vez. Havia os seguidores de Roberto, é claro; e um deles dominava as terras da costa meridional da floresta. Mas atrás disso, porém, talvez estivesse o rei da França, temeroso de um ataque ao seu território se o agressivo Rufus se tornasse seu vizinho na Normandia. Ou poderia ser algo menos óbvio. Apenas quatro anos antes houvera uma conspiração para assassinar Rufus e colocar no trono o conde de Blois, o marido francês da irmã dele. Os parentes de Tyrrell, a poderosa família Clare, estiveram envolvidos, até que repentinamente mudaram de lado e alertaram Rufus do perigo. E, como estiveram envolvidos em outras conspirações no passado, parecia claro a Edgar que os Clare, incluindo os seus ajudantes de confiança, como Tyrrell, não eram confiáveis. A Igreja, que não morria de amores por Rufus, também dificilmente lamentaria vê-lo cair.

Mas por que esses assuntos importantes inquietavam tanto o seu pai? Fosse quem fosse o rei seguinte, certamente ficaria contente em contar com os serviços de um especialista na Floresta, e Cola sempre fora muito hábil em se manter longe de encrencas. Por que então estava tão preocupado? Estaria envolvido? Continuava sendo um enigma.

Edgar era um filho obediente. Não foi a Winchester. Permaneceu ao lado do pai, patrulhando a Floresta e cuidando para que a maioria dos veados atravessasse o inverno em segurança.

Perto do final da estação, um outro boato chegou à Inglaterra. Roberto da Normandia, no caminho de volta da cruzada — onde combatera bastante bem —, havia parado no sul da Itália. Não apenas teve uma recepção de herói cruzado por lá, como também, ao que tudo indicava, encontrara uma noiva que lhe garantiria um fabuloso dote.

— O suficiente para pagar o empréstimo e voltar à Normandia — comentou Cola. Por algum motivo, os italianos também o estavam chamando de Roberto, o rei da Inglaterra. — Sabe Deus o que significa isso — prosseguiu. — Mas, mesmo que ele pague o empréstimo, Rufus não o deixará voltar à Normandia. Usará a força. Então os amigos de Roberto vão querer o sangue de Rufus.

— Eu continuo sem entender por que isso teria de nos afetar aqui na Floresta — comentou Edgar. Mas seu pai limitou-se a balançar a cabeça e recusou-se a falar mais alguma coisa.

Outro mês se passou, e não houve mais notícias de qualquer quadrante. Exceto, é claro, a preocupante notícia a respeito de Hugh de Martell.

Quando Adela viu Hugh de Martell parado na porta de sua hospedaria, por um instante mal pôde acreditar.

Caíra uma chuvarada, que havia passado e deixado as ruas cintilando sob o sol ralo. Uma brusca brisa precoce de primavera provocara um rubor em suas faces e as deixara levemente dormentes, depois do rápido passeio que fizera pela área da catedral e do mercado.

Sufocou um grito involuntário. Sua bela e alta figura era exatamente como ela sempre a via em suas lembranças. Achava que o reconheceria mesmo se ele estivesse a meio caminho no interior da Floresta. Contudo, Hugh também parecia diferente, e, ao se virar em sua direção, ficou ainda mais chocada com a mudança.

— Disseram-me que você não tardaria a voltar. — Ele parecia quase aliviado por vê-la.

O que significava aquilo? Por que viera? Walter lhe garantira que lady Maud colocaria Martell contra ela; mas não era o que parecia.

Ele sorriu, mas ficou claro que havia tensão em seu rosto.

— Podemos dar uma caminhada?

— Claro. — Ela indicou o caminho em direção a St. Swithuns, e ele deu um passo para se colocar ao seu lado. — Chegou a Winchester há muito tempo?

— Há uma ou duas horas, por aí. — Olhou para ela. — Você não deve ter sabido. Mas, evidentemente, por que deveria? Minha esposa está doente. — Sacudiu a cabeça. — Muito doente.

— Oh. Lamento muito.

— Deve ser porque está com uma criança, não sei. Ninguém sabe. — Fez um gesto de impotência.

— E você está aqui...?

— Há um médico. Um judeu habilidoso. Ele tem cuidado do rei. Disseram-me que poderia ser encontrado aqui em Winchester.

Ela ouvira falar nesse personagem e até mesmo o vira uma vez — um magnífico homem de barbas negras, que estava, desde a semana anterior, hospedado na casa do administrador do tesouro real.

— Ele saiu para cavalgar com o pessoal do rei — prosseguiu Martell. — Mas está sendo esperado de volta dentro de uma ou duas horas. Espero que você não tenha se importado por eu ter ido à sua hospedaria. Não conheço ninguém em Winchester.

— Não — respondeu, sem ter certeza do que dizer. Ele caminhava ao seu lado, as longas passadas, repletas de uma nervosa energia, cuidadosamente contidas na velocidade para que ela não precisasse correr. — Estou contente em ver você.

Por que teria ido procurá-la? Vislumbrando o seu rosto, tão cheio de preocupação, ela percebeu de imediato. Claro, aquele homem forte também era um homem normal, com sentimentos como qualquer outro. Estava aflito. Solitário. Ele a havia procurado para ser confortado. Uma onda de ternura agitou o corpo dela.

— Dizem que os médicos judeus são muito habilidosos — aventou. Os normandos tinham em alta conta o saber dos judeus, coisa que remontava à época clássica. Fora o Conquistador que estabelecera a comunidade judaica na Inglaterra, e eram particularmente favorecidos pelo filho Rufus em sua corte. —Tenho certeza de que ele vai curá-la.

— Sim. — Olhava adiante, distraído. — Vamos esperar que sim. — Continuaram caminhando juntos, em silêncio, por uma curta distância. A catedral avultava à frente. — Winchester é uma bela cidade — observou ele, fazendo um grande esforço para manter a conversa. — Você gosta daqui?

Ela disse que sim. Comentou alguns pequenos acontecimentos recentes, falou sobre pessoas que passavam por eles — qualquer coisa que pudesse desviar um pouco os pensamentos dele das preocupações. E pôde perceber que ele era grato. Mas também percebeu, após algum tempo, que ele queria retornar aos próprios pensamentos, e, portanto, ela nada mais disse, e continuaram andando lado a lado, em silêncio, em volta da St. Swithuns.

— A criança está prevista para o início do verão — anunciou ele, de repente. — Já esperamos tanto tempo.

— Sim.

— Minha esposa é uma mulher formidável — acrescentou. — Corajosa, gentil, generosa. — Adela também confirmou silenciosamente com a cabeça. O que poderia dizer? Que sabia que a esposa dele era retraída, mesquinha e perversa? — Ela é dedicada. Leal.

A lembrança da lady perto de Tyrrell, com a visão da mão dele seguindo para o seio dela e permanecendo lá, surgiu na mente de Adela com uma terrível nitidez.

— Claro. — Como ele era bom. Mil vezes bom demais para lady Maud, pensou. Mesmo assim, lá estava ela, porque era preciso, aquiescendo silenciosamente diante de sua auto-ilusão.

Falaram um pouco mais, ao fazerem o caminho de volta para a hospedaria, e se aproximavam do portão da cidade quando avistaram um grupo de cavaleiros entrando, e, entre eles, inequivocamente, a impressionante figura do judeu.

Martell apressou-se à frente, controlou-se e voltou.

— Minha cara lady Adela. —Tomou as duas mãos dela nas suas. — Obrigado por me fazer companhia em uma ocasião como esta. — Olhava nos olhos dela com verdadeira ternura. — Sua gentileza significa muito para mim.

— Não foi nada.

— Bem... — hesitou. — Eu pouco a conheço, mas sinto que posso falar com você.

Falar com ela — ao olhar para cima, em direção ao seu rosto másculo, perturbado, como desejou lhe dizer a verdade. Como desejou poder dizer: "Você está angustiado por uma mulher totalmente indigna de você." Deus do céu, pensou, se eu estivesse no lugar de lady Maud, eu o amaria, eu o honraria. Seria capaz de gritar isso.

— Sempre terei prazer em ajudá-lo em qualquer ocasião — disse apenas.

— Obrigado. — Ele sorriu, curvou respeitosamente a cabeça em cumprimento, virou-se e andou rápida e intencionalmente na direção dos cavaleiros.

Ela não o viu nos dias que se seguiram. O médico judeu partiu com ele e voltou uma semana depois, resolvido a ficar em Winchester, segundo soube, até a Páscoa, quando o rei estava sendo esperado na cidade. Ela fez indagações e descobriu que, embora lady Maud continuasse viva e, miraculosamente, não tivesse perdido o filho, o judeu não saberia dizer se ela sobreviveria ou não.

Mais dias se passaram. Ficou um pouco mais quente. Adela refletia. Avaliava.

Então, certa manhã bem cedo, deixando apenas um recado para sua hospedeira, saiu de Winchester a cavalo, sozinha. No recado, propositadamente vago, implorava à amiga que nada dissesse e prometia voltar ao cair da noite do dia seguinte. Não disse aonde ia.

Era visível que Godwin Pride se sentia muito cheio de si. Estava parado do lado de fora de sua cabana, segurando uma corda. Na outra extremidade da corda, uma vaca marrom. A mulher e três dos seus filhos observavam. Um tordo pousado na cerca também olhava com interesse.

Godwin Pride passara muito bem o inverno. No final do outono tinha matado a maior parte dos porcos, que havia cevado com abelotas, e os salgara. Tinha ovos de suas galinhas, leite de suas poucas vacas; havia compotas de suas macieiras e legumes secos. Como um plebeu da Floresta, ele também tinha direito à turfaria, a extração de turfa, que lhe fornecia combustível. Havia permanecido confortavelmente em sua cabana, mantido com vida o pequeno rebanho e surgido de bom humor na primavera da Floresta.

Também havia comprado uma vaca.

— Foi uma pechincha — afirmou. Viera andando com ela desde Brockenhurst.

— Foi? E quanto pagou? — quis saber a esposa.

— Não lhe interessa. Foi uma pechincha.

— Nós não precisamos de mais uma vaca.

— Ela é uma boa leiteira.

— E sou eu quem terá que cuidar dela. E onde conseguiu o dinheiro, afinal de contas?

— Isso não lhe interessa.

Ela parecia desconfiada. As crianças observavam caladas. O tordo na cerca também parecia meio intrigado.

— E onde vamos colocá-la? — A pergunta se referia ao inverno. Ele iria construir outro estábulo? Não havia mesmo lugar para mais um animal no pequeno curral. Com certeza não estava pretendendo aumentá-lo novamente, após ter sido flagrado no ano anterior. — Não vai poder aumentar o curral — lembrou ela.

— Não se preocupe. Tenho algo mais em mente. Está tudo planejado, é isso. Tudo planejado. — E, embora se recusasse a adiantar qualquer coisa, aparentava estar mais cheio de si do que nunca. Até o tordo parecia impressionado.

E o fato de ele ter comprado a vaca por impulso, de não haver plano nenhum, e de não fazer a mínima idéia de onde iria acomodá-la no próximo inverno, não o perturbava de modo algum. Havia toda a longa primavera e o longo verão da Floresta para pensar nisso. Às vezes, como a esposa sabia muito bem, ele podia ser como um menino. Mas, se ela estava pensando em continuar a discussão, não teve mais chance.

Pois foi neste momento que Adela apareceu, conduzindo o cavalo na direção deles.

— O que diabos deve estar querendo agora? — exclamou Godwin Pride.

Era final da tarde quando as duas figuras desceram do planalto de Wilverley Plain — uma imensa superfície de urzes, com mais de três quilômetros de extensão, onde os pôneis pastavam tendo nada mais além do que o céu aberto. Adela vinha montada em seu cavalo; logo à frente, num robusto pônei, Godwin Pride indicava o caminho. Fazia-o de muito má vontade.

As nuvens se dissipavam no céu para revelar contra o azul o prateado crescente de uma lua passando de nova para cheia. Havia um vestígio de calor primaveril no ar. Adela sentia-se feliz por estar de volta à Floresta, apesar de um pouco temerosa pelo que estava fazendo.

Eles tinham tomado a trilha em direção a oeste, a partir do setor central da Floresta, atravessado a charneca de Wilverley, e se encontravam cerca de seis quilômetros a oeste de Brockenhurst. À frente deles localizava-se um trecho de bosque de carvalhos. Em linha reta, levaria ao amplo vale cercado onde ficava a sombria aldeota de Burley. Em vez disso, viraram à direita, cruzando uma mata e descendo uma elevação conhecida por Burley Rocks. Atravessando uma enorme área vazia de relva pantanosa, pegaram uma pequena trilha que contornava a beira de uma charneca.

— Esta é a charneca de Burley, à nossa direita — informou Pride. — White Moor fica adiante. E aquela — indicou um outeiro no alto do qual uma única árvore parecia acenar os braços distraidamente — é a Black Hill. — Subitamente, a trilha virava à esquerda, levando para baixo em direção a um riacho, que corria velozmente ao fazer uma curva fechada, como um gancho no braço de um homem. — Narrow Water — ele avisou.

À direita, ao longo do riacho, havia uma área pantanosa infestada de mirra-dos carvalhos, azevinhos, bétulas e um emaranhado de rebentos e arbustos. E logo depois, bastante isolado, havia um conjunto desordenado de choças e uma cabana de pau-a-pique com telhado feito de galhos, gravetos e musgo por onde se filtravam pequenas raias de fumaça.

Tinham chegado à morada de Puckle. Pride não queria levá-la, mas ela insistiu.

— Eu não sei onde ele mora e não quero perguntar. Ninguém deve saber que eu fui lá. Acho — acrescentou, encarando-o firmemente — que você me deve um favor. — O gamo. Ele não podia negar. — Além do mais — continuou com um sorriso —, se você perguntar a ela, tenho certeza de que vai concordar em falar comigo.

Era essa a dificuldade, o verdadeiro motivo pelo qual ele não quisera levá-la. Pois não era Puckle com quem ela queria se encontrar, mas com a esposa dele. A bruxa.

Adela esperou perto do riacho, enquanto Pride cavalgou até a cabana e entrou. Após algum tempo viu Puckle e vários filhos e netos saírem e se ocuparem com alguma coisa do lado de fora.

Então Pride apareceu e foi em sua direção.

— Ela está à sua espera — falou sucintamente. — É melhor entrar. Pouco depois Adela viu-se baixando a cabeça, ao passar pelo pequeno vão da porta, e entrando na casinha da bruxa.

Estava bastante escuro lá dentro. A cabana consistia em um único cômodo, e a luz que havia no interior vinha de uma janela cuja persiana estava apenas parcialmente aberta. No centro do chão, um círculo de pedras servia de braseiro, no qual brilhava uma pequena fogueira de turfa. Do outro lado do fogo, estava sentada uma figura em uma cadeira baixa de madeira. A seus pés, aquecendo-se, um gato cinzento deitado. Havia um banquinho com três pernas, também perto do fogo na direção do qual a outra mulher gesticulou.

— Sente-se, minha cara.

Embora Adela não houvesse formado na mente uma imagem precisa dela, a mulher de Puckle não era o que esperava. Diante de si, depois que se acostumou à luz, viu uma tranqüila mulher de meia-idade, rosto largo, nariz bastante arrebi-tado e olhos cinzentos bem separados um do outro. Observava Adela com moderada curiosidade.

— Uma bela jovem senhora — continuou falando calmamente. — E veio desde lá de Winchester?

— Vim.

— Gostei disso. E o que posso fazer por você?

— Eu soube — disse Adela rudemente — que você é uma bruxa.

— É?

— Dizem que sim.

— Dizem, não é? —A mulher mais velha pareceu receber a informação com uma tranqüilidade divertida. Não que a acusação fosse tão chocante: apesar de a bruxaria ser desaprovada pela Igreja, a perseguição sistemática era rara na Inglaterra normanda, principalmente nos confins da região onde sempre persistiram os antigos rituais de tradição popular. — E se eu fosse? — prosseguiu ela. — O que uma bela jovem dama como você ia querer? Cura para uma doença? Uma porção de amor, talvez?

— Não.

— Quer que o seu futuro seja revelado. Muitas jovens querem saber o futuro.

— Não exatamente.

— O que é, então, minha cara?

— Eu preciso matar alguém — disparou Adela.

Depois disso, transcorreram um ou dois momentos antes de a outra mulher falar.

— Receio não poder ajudá-la — retrucou.

— Já fez isso alguma vez?

— Não.

— Seria capaz?

— Nem mesmo tentaria. — Sacudiu a cabeça. — Essas coisas só acontecem se têm que acontecer. — Encarou Adela com severidade. —Você deve tomar cuidado. Desejar o bem ou o mal para alguém volta em triplo para você.

— É isso o que as bruxas dizem?

— Sim. — Após esperar que aquilo calasse fundo, a mulher mais velha continuou, mais afável: — Mas percebo que você está aflita. Gostaria de me falar a respeito:

E foi o que Adela fez. Falou sobre Martell e lady Maud. Contou à mulher tudo o que vira, a terrível falha de caráter da lady, sua infidelidade, o modo pelo qual Hugh de Martell estava sendo enganado.

— E você acha que seria uma esposa melhor para ele?

— Ah, sim. Sabe, se a mulher dele, que a propósito está muito doente, vier a morrer, isso só serviria para melhorar as coisas.

— É o que você diz, minha cara. Vejo que tem pensado nisso.

— Sabe, estou segura de que estou com a razão — disse ela.

A mulher de Puckle suspirou, mas não fez qualquer comentário. Em vez disso, balançou-se para frente e para trás em sua cadeira, enquanto o gato levantava a cabeça o bastante para dar uma olhada demorada em Adela antes de, aparentemente, voltar a dormir.

— Eu creio — afirmou ela, finalmente — que posso ajudá-la.

— Poderia fazer algo acontecer? Poderia prever?

— Talvez. — Fez uma pausa. — Mas talvez não seja o que você queira.

— Nada tenho a perder — respondeu Adela, simplesmente.

Após cabecear pensativamente, a mulher de Puckle levantou-se e foi lá fora. Sumiu por alguns momentos, voltou, mas não se sentou.

— Bruxaria, como você chama — falou calmamente —, não se trata de fazer feitiços. Não é apenas isso. Portanto — gesticulou com a cabeça na direção da cadeira onde estivera sentada —, sente-se ali e relaxe.

Em seguida, foi até um baú em um canto do pequeno cômodo e ocupou-se em retirar certos artigos de dentro dele, cantarolando para si mesma ao fazê-lo. O gato, enquanto isso, saiu de seu posto anterior e instalou-se perto do baú, onde, após mais um olhar significativo para Adela, voltou a dormir.

Depois de algum tempo a mulher de Puckle passou a colocar alguns objetos no chão, perto da cadeira. Adela notou um pequeno cálice, uma minúscula tigela com sal, outra com água, um prato contendo, ao que parecia, alguns bolinhos de aveia, uma varinha, uma pequena adaga e um ou dois itens que não reconheceu. Enquanto ela fazia isso, Puckle apareceu na porta por um instante e entregou-lhe um raminho de carvalho, que ela segurou, aquiescendo, e colocou junto com os outros objetos. Quando tudo estava pronto, ela se aproximou, sentou-se no banquinho e ficou calada por algum tempo, aparentemente pensando consigo mesma. O aposento ficou bastante silencioso.

Esticando-se à frente, apanhou o prato com os bolinhos e ofereceu-os a Adela.

— Pegue um.

— São especiais? Há algum ingrediente mágico neles? — quis saber Adela, com um sorriso.

— Esporão-de-centeio — explicou a bruxa simplesmente. — Vem do grão. Algumas usam um extrato de cogumelos ou de sapos. Todas fazem o mesmo tipo de poção. Mas o esporão-de-centeio é o melhor.

Adela comeu o bolinho, que não tinha nenhum sabor especial. Sentia-se a um só tempo nervosa e bastante entusiasmada.

— Agora, minha cara — disse finalmente a mulher de Puckle —, quero que fique sentada quietinha e apoie bem os pés no chão. Ponha as mãos no colo, pressione as costas contra o encosto da cadeira. — Adela obedeceu. — Agora — continuou a bruxa delicadamente — quero que inspire três vezes, bem lentamente, e, quando soltar a respiração, não se apresse. Quero que fique relaxada o mais completamente possível. Pode fazer isso para mim?

Adela o fez. A sensação de relaxamento, acompanhada de nervosismo, fez com que desse uma risadinha.

— Você vai me mandar para um reino mágico... um outro mundo? — indagou.

A bruxa apenas ficou olhando em silêncio para o chão.

— Tanto acima, quanto abaixo — falou calmamente. — O reino mágico é o mundo entre os mundos. — Voltando a olhar para cima, prosseguiu: — Agora quero que você imagine que é como uma árvore. Há raízes crescendo dos seus pés e penetrando na terra. Consegue imaginar isso?

— Sim, creio que sim.

— Ótimo. — Parou por um instante. — Agora, há uma raiz crescendo da sua espinha, atravessando a cadeira e baixando para o chão. Penetrando bem fundo no chão.

— Sim. Estou sentindo.

A bruxa anuiu lentamente. Para Adela, parecia que estava mesmo enraizada como uma árvore naquele espaço. A princípio pareceu-lhe estranho, mas logo imensamente relaxante. Só então a bruxa levantou-se e, lentamente, começou a se movimentar.

Primeiro pegou a pequena adaga e, apontando-a, fez um círculo no ar que parecia conter as duas e todos os objetos que estavam no chão. O gato permaneceu fora do círculo.

Então tocou a água na tigela com a ponta da adaga, murmurando alguma coisa; em seguida fez o mesmo com o sal. Depois disso, com a ponta da adaga, transferiu três pitadas de sal para a tigela com água e mexeu, ainda murmurando suavemente.

A seguir pegou a tigela de água e deu salpicos, três vezes em quatro locais do círculo imaginário, que Adela deduziu serem os quatro pontos cardeais. Tirou um pequeno fragmento reluzente do fogo, cochichou algo e o apagou com um sopro, observando as estrias de fumaça vagueando para o alto. Então, mais uma vez, percorreu os quatro pontos, fazendo curiosos sinais em cada um deles.

— Você sempre segue no mesmo sentido, do norte para o leste e o sul? — arriscou Adela.

— Sim — foi a resposta. — Quando se vai no outro sentido, chamamos de inversão. Não fale.

Novamente, pela terceira vez, percorreu os pontos cardeais em volta do círculo, segurando a adaga, e em cada um fez um curioso traço no ar. No primeiro, Adela pensou que fosse um sinal ao acaso, mas o segundo foi idêntico. No terceiro, ela entendeu: a bruxa estava traçando no ar um pentagrama, a estrela de cinco pontas cujas linhas estruturais não se quebram ou terminam. E, apesar de o quarto traço ter sido feito atrás de sua cabeça, não teve dúvidas de que era igual. Finalmente a bruxa terminou o pentagrama no centro do círculo.

— Ar, Fogo, Água, Terra — falou baixinho. — O círculo está feito. Apanhando a varinha, percorreu novamente o círculo, repetindo o pentagrama.

Então, satisfeita, ficou de pé no centro do círculo, sem olhar para Adela, mas, aparentemente, para as pontas na borda do círculo, falando baixinho com cada um deles, antes de se sentar no banquinho e permanecer tranqüila à espera, como uma dona de casa aguardando visitas.

Adela também permaneceu sentada, quieta, esperando — não sabia por quanto tempo. Não muito, pensou.

Inicialmente, quando a mulher de Puckle lhe falou para se imaginar como uma árvore, ela vivenciou uma leve pressão descendente pelo corpo. Após uns instantes, para sua surpresa, descobriu que não apenas podia se imaginar nesse estado alterado, como também sentir realmente as raízes propagando-se das solas dos pés e depois da espinha, seguindo caminho abaixo para a terra preta. Podia sentir a terra, como se tivesse adquirido vários novos conjuntos de mãos e dedos: era fria e úmida, bolorenta mas nutritiva. A sensação descendente continuava. Se quisesse se mexer, percebeu, as raízes a impediriam, mantendo-a naquele único lugar. No começo, isso pareceu um pouco tedioso. Não sou mais um animal livre, pensou, sou uma árvore, estou encarcerada, uma prisioneira da terra.

Mas aos poucos foi se acostumando com aquilo. Embora o corpo estivesse enraizado na terra, a mente parecia ter obtido uma nova liberdade. Tratava-se de uma sensação tranqüila, agradável. Sentia-se como se estivesse flutuando.

Passou-se algum tempo. Tinha consciência do aposento na penumbra, da leve incandescência do fogo, do silêncio da bruxa. Mas então uma ou duas coisas estranhas aconteceram. O gato cinzento começou a crescer. Praticamente dobrou de tamanho e foi se transformando em um porco. Adela achou aquilo muito engraçado e riu. Depois o porco saiu voando pela janela, o que lhe pareceu bastante sensato, já que um porco, obviamente, devia ficar do lado de fora.

Pouco depois percebeu outra coisa. Tinha ficado escuro lá fora, mas ela conseguia ver o céu e as estrelas através do teto da cabana. Era extraordinário. Os galhos, os gravetos e o musgo continuavam ali, mas descobriu que podia enxergar por entre eles. Melhor ainda; por ser uma árvore, parecia-lhe agora estar crescendo através do teto, abrindo a sua copa de folhas no meio da noite.

E então voava. Era tão simples. Estava voando no céu da noite sob a lua crescente. As roupas não estavam mais sobre seu corpo e nem as queria. Podia sentir o ar fresco com delicadas gotas de orvalho na pele. Estava bem acima da Floresta e as estrelas do céu se agrupavam a sua volta, batendo de leve em sua pele, como diamantes. Por um curto e maravilhoso período, sobrevoou os bosques, que se encrespavam delicadamente como ondas. Finalmente, ao ver um carvalho maior do que os outros, voou na direção dele e alcançou os seus galhos. Ao fazê-lo, percebia vagamente que aquela árvore era ela mesma.

Flutuou para baixo, comodamente, para o solo musgoso. Uma vez lá, pôde ver numerosas trilhas seguindo por baixo das abóbadas dos carvalhos; mas uma, em particular, chamou-lhe a atenção, pois era como um túnel comprido e quase sem fim que irradiava uma luz esverdeada. A distância, dentro desse túnel, ela também teve a percepção de que algo, algum animal veloz, vinha em sua direção. Ele parecia muito distante, mas em pouco essa distância se tornou bem próxima. Aliás, já estava saltitando em direção a ela.

Era um stag, um magnífico veado-nobre com enormes galhadas. Aproximava-se cada vez mais. Investia contra ela. Estava aterrorizada. Ela estava contente.

Silêncio. Vazio. Talvez ela tivesse cochilado um pouco. Estava de volta ao pequeno aposento. O gato cinza estava no canto. A mulher de Puckle fazia o sinal do pentagrama, mas sua mão se movia na direção oposta à que seguira anteriormente. Ao terminar, a mulher mais velha olhou para ela e anunciou, calmamente:

— Está completo.

Adela permaneceu imóvel por mais uns instantes, depois mexeu as mãos e os pés. Sentia-se muito leve.

— Aconteceu alguma coisa?

— Ah, sim.

— O quê?

A mulher de Puckle não respondeu. O débil brilho da fogueira de turfa lançava uma luz suave pelo aposento.

Olhando pela janela, Adela viu que havia apenas leve vestígio de luz lá fora. Ficou imaginando vagamente quanto tempo estivera ali. Uma hora ou mais, se já anoitecia. Ela havia planejado passar a noite com os Pride, na cabana deles; supunha que Pride ainda poderia levá-la de volta para lá, depois do anoitecer.

— Preciso ir — disse. — Logo será noite.

— Noite? — A mulher de Puckle sorriu. — Você passou a noite toda aqui. O que está vendo lá fora é o amanhecer.

— Oh! — Era extraordinário. Adela tentou ordenar os pensamentos. — Você disse que algo aconteceu. Pode me dizer. Lady Maud vai...?

— Eu vi um pouco do seu futuro.

— E?

— Vi uma morte que lhe trará paz. E felicidade também.

— Quer dizer... que vai acontecer, então?

— Não esteja tão certa. Talvez não seja o que você pensa.

— Mas uma morte... —Adela olhou para ela, mas a mulher nada mais disse. Em vez disso, foi até a porta e chamou Pride.

Adela levantou-se. Obviamente a mulher de Puckle esperava que ela fosse logo embora. Foi até a porta. Não sabia se devia lhe dar dinheiro ou apenas agradecer pela visita. Tateou a bolsinha que levava no cinto e tirou dois pence. A mulher de Puckle pegou-os com um silencioso inclinar da cabeça. Evidentemente, achou que era quanto ela lhe devia. A figura de Pride, trazendo o cavalo, assomou na pálida escuridão.

— Obrigada — disse ela. — Talvez a gente volte a se encontrar.

— Talvez — retrucou a mulher de Puckle, olhando-a pensativa, mas não indelicadamente. — Lembre-se — advertiu. — Na Floresta, as coisas nem sempre são o que parecem ser. — Em seguida voltou para dentro da casa.

Rompia a alvorada quando cavalgavam pelo imenso relvado abaixo de Burley Rocks. A lua havia partido. As estrelas se apagavam lentamente no céu claro e uma luz dourada tremeluzia ao longo do horizonte oriental.

Uma cotovia começou a cantar, bem acima — uma explosão de som contra a noite declinante. Será que ela também sabia que Adela ia se casar com Hugh de Martell?

Adela sentia-se contente consigo mesma ao entrar em Winchester naquela tarde. Ela e Pride haviam feito sossegadamente a viagem através da Floresta, passando ao norte de Lyndhurst, e ele se recusou a deixá-la seguir sozinha, até que, pouco antes de Romsey, encontraram um respeitável mercador que ia no mesmo caminho dela.

Estivera pensando se, após o seu retorno, deveria contar à amiga viúva onde havia estado realmente e concluiu que não devia. Em vez disso, inventou a história sobre um amigo da Floresta estar enrascado e precisando de ajuda, e até mesmo convenceu o relutante Pride a confirmá-la, se necessário. No todo, concluiu, lidara bastante bem com a situação.

Por isso, após a sua volta, ficou surpresa quando a viúva levantou a mão para detê-la assim que começou a contar a história.

— Desculpe-me, Adela, mas não quero saber. — Seu rosto estava sereno, mas frio. — Estou aliviada por você não estar machucada. Eu teria mandado algumas pessoas procurarem você, mas não me deu nenhuma idéia de aonde ia.

— Não havia necessidade. Eu disse que voltaria.

— Eu sou responsável por você, Adela. Foi imperdoável você sumir dessa maneira. De qualquer modo — continuou —, receio que terá que ir embora. Não posso mais deixá-la ficar aqui. É lamentável, já que a Páscoa está próxima. — Na Páscoa, o rei e sua corte estariam lá. Seria a oportunidade perfeita para arrumar um marido. — Mas não vou mais me responsabilizar por você. Terá que voltar para o seu primo Walter.

— Mas ele está na Normandia.

— Dentro de alguns dias o administrador do tesouro enviará um mensageiro à Normandia. Ele acompanhará você. Já está tudo providenciado.

— Mas não posso ir para a Normandia — gritou Adela. — Não agora.

— É? — A viúva encarou-a duramente e depois deu de ombros. — E quem vai acolher você? Está pensando em tomar alguma outra providência?

Adela ficou calada, pensando furiosamente.

— Talvez — falou hesitante. — Pode ser que eu esteja.

Edgar costumava passar por Burley, onde o florestal de lá era seu amigo. Naquela manhã de primavera atravessara o pequeno vale sombrio onde ficava a aldeia e, ao ver que ele não se encontrava, continuou na direção leste, através do grande relvado, e penetrou na mata, onde localizou o amigo de pé em uma clareira, conversando com Puckle. Ao ver Edgar, acenou e fez um sinal para que desmontasse. Edgar desmontou e foi andando até eles.

— O que houve?

O florestal parecia animado. Era evidente que Puckle lhe tinha trazido alguma boa notícia, e os dois homens estavam obviamente prestes a sair juntos dali. Em resposta, o amigo apenas colou o dedo sobre os lábios e fez um sinal para Edgar acompanhá-los.

— Você verá.

Juntos, os três foram silenciosamente por entre as árvores, sem nada dizer e cuidando para não pisar em algum graveto que pudesse estalar. Em dado momento, o florestal lambeu o dedo e o levantou para o alto, para verificar a direção do vento. Continuaram desse modo por quase oitocentos metros. Então Puckle e o florestal passaram a se movimentar lentamente, agachando-se e usando os arbustos para se esconder. Edgar fazia o mesmo. Seguiram adiante mais ou menos uns duzentos metros. Depois Puckle confirmou com a cabeça e apontou para um local no meio das árvores, não muito distante.

Tratava-se de uma pequena clareira, a apenas vinte passos dali, com um velho toco de árvore e um minúsculo arbusto de azevinho no meio. Se não fosse por um círculo negro de pegadas nas folhas caídas, nem mesmo Puckle teria olhado uma segunda vez para ali. Mas naquele dia o local estava ocupado.

Havia cinco deles, todos machos, preparando-se para a berra da estação seguinte, já que não haviam cruzado na anterior. Todos ainda tinham os chifres. A aparência deles era bela. E dançaram em círculo.

Não havia mesmo outro modo de os descrever. Seguiam girando, dando coices no ar. De vez em quando, um deles e depois outro apoiavam-se nas patas traseiras, viravam-se e se socavam como boxeadores. Não era a sério, mas de brincadeira. Tratava-se de uma das mais raras e adoráveis das muitas cerimônias da Floresta. Edgar sorriu de prazer. Fazia dez anos desde que vira veados dançando em uma brincadeira de roda.

E por que os veados machos dançam em círculo? Por que os seres humanos fazem a mesma coisa? Os três homens ficaram observando por um longo tempo, vivenciando o prazer e a reverência, coisa que é especial para o pessoal da Floresta, antes de se afastarem sorrateiramente.

O coração de Edgar ia animado enquanto descia cavalgando para o vale do Avon. Estava ansioso para contar ao pai a respeito daquilo.

Ao chegar em casa, porém, encontrou o pai, e outras coisas ocuparam sua mente. O velho parecia soturno.

— Recebemos um mensageiro — disse Cola ao filho, ao acompanhá-lo até o vestíbulo. Edgar percebeu um jovem rapaz à espera perto do estábulo com seu cavalo. — De Winchester.

— Ah? — Aquilo nada significava para Edgar, pois sabia que o pai andava vigiando-o com todo cuidado.

— A tal moça. A parente de Tyrrell. Ela quer vir para cá. Algum problema em Winchester. Ela não disse qual era.

— Entendo.

— Você nada sabe a respeito disso?

— Não, papai — e não sabia mesmo. Mas sua mente trabalhava depressa.

— Não gosto disso. — Cola fez uma pausa e voltou a olhar para o filho.

— Ela tem parentes poderosos.

— Humm... não tenho certeza se eles ligam para ela. Mas você tem razão. Não quero ofender Tyrrell. E a família Clare... — Calou-se, pensativo. Como sempre acontecia, Edgar teve a sensação de que o pai sabia mais do que estava dizendo. — Creio que essa moça é um problema — falou, finalmente. — Tenho certeza de que é por isso que está deixando Winchester. Deve ter feito algum tipo de travessura. E não preciso disso aqui. Ademais... — Olhou taciturno para Edgar.

— Ademais?

— Se me lembro bem, você andou interessado nela.

— Eu me lembro.

— Isso pode voltar a acontecer?

— Talvez.

— É isso que me preocupa. — O velho sacudiu a cabeça. — Ela não será útil para você, sabe muito bem disso — resmungou. — Nem para mim — acrescentou num murmúrio.

— O senhor acha que ela é má?

— Não. Não é isso. Mas... — Cola deu de ombros. — Ela não é do que precisamos.

Edgar concordou com a cabeça. Ele entendia. Eles precisavam de alguém rico. Alguém que não lhes desse nenhum prejuízo. Mas talvez por causa da visão dos veados dançando, do ar de primavera ou da lembrança dos passeios que fizera com ela, ele se sentiu impelido a afirmar:

— Temos que lhe dar abrigo, papai.

— Receava que você dissesse isso — retrucou Cola, assentindo com um suspiro. — Bem, ela poderá ficar aqui até eu conseguir falar com Tyrrell. Perguntarei o que ele quer que eu faça com ela. Só peço a Deus que, assim que ele souber que ela está aqui, leve-a embora.

Ela se encontrava mais perto de Martell. Estava fadado a acontecer. Sua situação, claro, era embaraçosa, mas felizmente a viúva de Winchester pelo menos conseguira ser abrandada o suficiente para inventar uma história a seu favor. Adela, segundo Cola fora informado, estava sendo importunada por um pretendente indesejável e precisava sair uns tempos de Winchester. Ela não estava certa se o velho tinha acreditado, mas foi o melhor que pôde fazer. Agradeceu a gentileza dele, murmurou o quanto Tyrrell e seus conhecidos normandos ficariam gratos, manteve a altivez e fez o melhor possível para ser agradável.

Ficou claro para Adela, após um ou dois dias, que Edgar, apesar de tratá-la com uma educada cautela, ainda se sentia atraído por ela; e, como gostava do jovem e belo saxão, isso facilitava a sua vida.

Ao ser convidada para cavalgar com ele, aceitava com todo o prazer. Ela não lhe dava esperanças. Tinha certeza disso. Mas era muito bom ser admirada.

E era fácil conseguir notícias de lady Maud. Ela contou a Cola que se encontrara com Martell em Winchester. Parecia natural estar preocupada com a saúde de uma dama na casa de quem se hospedara. De vez em quando o caçador tinha notícias de Martell, era assim que Adela sabia que lady Maud continuava muito doente, e havia mesmo quem dissesse que ela não sobreviveria ao parto. Adela, portanto, esperava pacientemente.

A resposta de Tyrrell só chegou quase um mês depois. E era uma pequena obra-prima.

Chegou na forma de uma carta escrita em francês. Cola levou-a a um dos velhos monges de Christchurch, para ter certeza de que entendera corretamente. Dizia:

Walter Tyrrell, lord de Pois, envia saudações a Cola, o Caçador.

Agradeço a você, meu amigo, e também o faço pela família dela, pela gentileza com lady Adela. Os seus cuidados, mesmo por uma minha parenta distante, não serão esquecidos.

Irei novamente à Inglaterra, no final do verão, quando eu a apanharei e saldarei quaisquer despesas que você tenha tido.

— Que demônio ardiloso — vociferou. — Ele cuidou para que eu a mantenha por três meses. E, se ela causar problemas, é apenas uma "parenta distante". A responsabilidade não será dele.

Enquanto isso, observava Adela e o filho com uma crescente preocupação. Como se ele não tivesse outras coisas na cabeça com que se preocupar.

Quando o rei Guilherme II, chamado de Rufus, passou a Páscoa em Winchester,

o seu humor esteve notavelmente bom. Com o passar das semanas, só fez melhorar.

A conduta do irmão Roberto era tudo que podia esperar. Tendo se casado com uma herdeira na Itália, o lance óbvio do duque da Normandia seria voltar precipitadamente com a esposa e o dinheiro dela e pagar a hipoteca da Normandia. Nada disso. Após uma temporada relativamente heróica em uma cruzada, ele havia retornado ao costumeiro estado indiferente. O duque e a esposa avançavam compassada e despreocupadamente, parando em todos os lugares, gastando a rodo enquanto isso. Era provável que só chegassem à Normandia no fim do verão.

— Que demore bastante — gargalhava Rufus para sua corte. — Ele vai gastar todo o dote. Vocês vão ver.

Enquanto isso, ele não apenas mantinha a Normandia, como também não interrompia os seus planos de roubar qualquer pedacinho que pudesse da vizinha França.

No início do verão, entretanto, surgiu uma situação ainda mais agradável. Inspirado pelo fato de tantos outros governantes cristãos se cobrirem de glórias em cruzadas, o duque da Aquitânia, a imensa e ensolarada região vinícola a sudoeste da Normandia, decidiu que também devia ser um santo cruzado. E o que ele poderia fazer senão pedir um enorme empréstimo a Rufus, do mesmo modo como o fizera Roberto da Normandia, para financiar sua campanha?

— Ele oferece como hipoteca toda a Aquitânia — anunciaram seus emissários. Rufus, que provavelmente não tinha nenhuma crença religiosa, apenas gargalhou:

— É o suficiente para uma pessoa voltar a ter fé em Deus — comentou.

E logo por toda a Europa corria o boato: "Rufus não só pretende ficar com a Normandia, mas também com a Aquitânia." Para aqueles que não gostavam dele ou o temiam, essa não era uma notícia agradável.

Edgar adorava mostrar a Floresta para ela. Era, afinal de contas, a coisa que ele melhor conhecia. E, com o irmão ainda em Londres, ele a tinha toda para si. Mostrou-lhe como ler as pegadas dos gamos.

— Sabe, os gamos têm as patas separadas no meio. Quando caminham, as duas metades das patas ficam unidas, e as pegadas parecem marcas de pequenos cascos no chão. Quando trotam, o pé se abre, e você percebe a divisão. Durante um galope, as patas se abrem muito, e percebe-se um V no chão. — Ele sorriu contente. — Aqui está outra coisa. Está vendo estas pegadas, com as patas viradas para fora? Trata-se de um macho. As pegadas de uma fêmea apontam direto para a frente.

Em outra ocasião, após terem ido de Burley para Lyndhurst, atravessando algumas matas fechadas, ele lhe perguntou:

— Você sabe como se orientar no meio da Floresta?

— Pelo sol?

— E se estiver nublado?

— Não sei.

— Procure uma árvore exposta, na vertical — explicou. — O líquen, sabe, sempre cresce do lado úmido da árvore. E onde o vento predominante leva para elas a umidade do mar. Nesta parte da Inglaterra, ele vem do sudoeste. Procure o líquen, e essa é a direção sudoeste. — Sorriu. — Portanto, se você se perder, as árvores lhe dirão onde é que eu moro.

Ela sabia que ele estava se apaixonando, e por volta de junho sua consciência começou a perturbá-la. Estava ciente de que devia manter-se um pouco distante, mas era difícil, já que achava muito agradável a companhia dele. Cavalgavam, riam, passeavam a pé juntos.

As vezes ela se recusava a sair. Havia iniciado uma enorme e bela peça de bordado como presente para o pai dele. Parecia ser o mínimo que poderia fazer. Era parecida com a cena de caça que ela vira no salão do rei, em Winchester, mas esperava que ficasse muito melhor. Mostrava as árvores da floresta, os veados, cães, pássaros e caçadores. Um dos caçadores era claramente o próprio Cola. Quis também colocar a bela figura de cabelos dourados de Edgar em um canto, mas achou melhor não fazê-lo. A grande obra era uma boa desculpa para evitar a companhia de Edgar em alguns dias, sem ofendê-lo. E nessas ocasiões, com bastante freqüência, o próprio Cola aparecia e a observava trabalhar com aparente ar de aprovação. Com o passar das semanas, embora o jeito calado dele não mudasse, parecia a Adela que, a despeito de si mesmo, o velho também começava a gostar dela.

Foi em um dia desses, na segunda semana de junho, enquanto se ocupava com o bordado sob a luz oblíqua projetada pela janela aberta do vestíbulo, que Cola se aproximou dela, sorrindo:

— Tenho uma notícia que vai lhe agradar.

— Ah?

— Hugh de Martell ganhou um filho. Um menino saudável. Nasceu ontem. Sentiu o coração bater violentamente.

— E lady Maud? — Largou a agulha, vendo-a brilhar à luz do sol que se punha.

— Sobreviveu. Por incrível que pareça, está muito bem.

Naquele dia houve outro nascimento na Floresta.

Por algum tempo, a gama clara, pesada com o seu filhote, andara vasculhando sozinha pela Floresta. É hábito das gamas dar à luz na solidão, quase sempre a uma única cria. Procurara com cuidado e, finalmente, decidiu-se por um pequeno espaço em um cerrado, protegido da vista por arbustos de azevinho. Ali preparou um leito no capim alto.

Era necessário tomar cuidado. Nos primeiros dias de vida, sua cria estaria completamente indefesa. Se um cão ou uma raposa o encontrasse sozinho, o filhote certamente morreria. Era essa a desvantagem que a natureza, com a sua fria visão, tinha dado aos veados. As raposas, porém, costumavam viver nos limites da Floresta, perto das chácaras. Ela farejou cuidadosamente, mas não conseguiu detectar nenhum cheiro que lhe dissesse que uma raposa passara por aquelas bandas.

E ali, na sombra verde-escura, em meio ao grande e cálido silêncio de junho, ela deu à luz a sua cria. Era um macho; teria as cores do pai. Permaneceram deitados juntos, e a gama clara tinha a esperança de que a imensa Floresta fosse bondosa com eles.

Perto do fim de junho houve duas ocorrências. Nenhuma delas inesperada. Cola anunciou a primeira:

— Rufus vai invadir a Normandia.

Aguardava-se que o irmão, Roberto, chegasse ao seu ducado em setembro. Rufus pretendia estar à espera dele.

— Será uma grande invasão? — perguntou Edgar.

— Sim. Enorme. — O irmão de Edgar enviara notícia de Londres sobre os preparativos que se faziam lá. Grandes somas de dinheiro estavam sendo levantadas para pagar os mercenários. Carradas de ouro estavam sendo retiradas do tesouro em Winchester. Cavaleiros de todas as partes do país estavam sendo convocados. — E ele está exigindo naves de transporte da maioria de todos os portos ao longo da costa sul — explicou Cola. — Roberto vai chegar para pagar a hipoteca e se verá trancado na própria casa. Rufus tem todos os recursos. Se Roberto quiser batalha, vai perder. É um péssimo negócio.

— Mas todo mundo não esperava isso? — indagou Adela.

— Sim. Creio que sim. Mas uma coisa é prever algo, digamos, provável, e outra é quando isso começa a acontecer de verdade — suspirou. — Por um lado, Rufus tem razão. Roberto não está apto para governar. Mas agir dessa maneira...

— Não creio que os normandos dêem uma boa acolhida a isso — afirmou Adela.

— Não, minha cara dama, não darão. Os amigos de Roberto, em particular, estão... — Fez uma pausa antes de escolher a palavra "perturbados". O velho balançou a cabeça. — E, se ele fizer isso com o próprio irmão na Normandia, imaginem o que fará na Aquitânia. Será a mesma coisa. O duque da Aquitânia sai em uma cruzada. Rufus lhe empresta dinheiro e diz que ele vá com Deus. Depois rouba a terra dele, enquanto está fora. O que acreditam que o povo vai achar disso? O que supõem que a Igreja vai achar? Estou lhes dizendo — resmungou —, a tensão na cristandade está aumentando.

— Ainda bem que essas coisas não nos afetam aqui na Floresta—observou Edgar. O pai apenas o encarou, sombrio.

— Esta é uma floresta real — murmurou. — Tudo nos afeta. — Em seguida, deixou-os.

Uma semana depois, um homem vestido de negro, a quem Adela nunca vira, chegou a cavalo e passou algum tempo a sós com Cola. Após a partida dele, o velho parecia furioso. Nunca o tinha visto assim antes. E nem nos dias que se seguiram ele pareceu menos irado. Ela podia perceber que Edgar também estava preocupado com ele, mas, ao lhe perguntar se sabia o motivo, o rapaz apenas sacudiu a cabeça.

— Ele não vai dizer.

A segunda ocorrência surgiu poucos dias depois, enquanto estavam fora, cavalgando. Edgar pediu-a em casamento.

Na beira ocidental do pequeno vale sombrio de Burley, o solo eleva-se em uma imponente colina arborizada, que atinge o ponto máximo cerca de um quilômetro e meio na direção norte da aldeia, em um promontório conhecido como Castle Hill. Não que houvesse algum castelo normando por lá, mas apenas os contornos, sob os dispersos freixos e azevinhos e feixes de samambaias, de modestas paredes escavadas na terra — se essas baixas paredes de terra e fossos eram restos de um curral, um posto de sentinela ou um pequeno forte, e se as pessoas que o usaram eram ancestrais distantes do povo da Floresta ou de outros habitantes de tempos não registrados, ninguém sabia dizer. Mas, fossem quais fossem os espíritos que ali habitavam, tratava-se de um lugar agradável e sossegado, do qual, olhan-do-se para oeste, se tinha um privilegiado panorama que começava com a parda extensão de urzes descendo do limite da Floresta para o vale do Avon e, mais além, à distância, das colinas azul-esverdeadas de Dorset.

Era um local encantador para se escolher naquela fulgurante manhã de verão. O sol banhava os seus cabelos dourados. Ele fez o pedido de um modo sereno, quase alegre, e parecia tão nobre. Que mulher poderia recusar? Ela desejou que ele fosse transformado em outra pessoa.

E, na verdade, por que deveria recusar? Aquilo fazia sentido? Não que os conquistadores normandos nunca se casassem com membros da nobreza saxônica derrotada. Ainda o faziam. Ela perderia algum prestígio, mas não muito. Ele ficou maravilhado. Ela, encantada.

Mas à frente dela, no oeste mais distante, ficava a casa nobre de Hugh de Martell. Instalada em um vale entre as colinas de cima das quais ela olhava. E atrás, a apenas menos de um quilômetro de distância, pelos seus cálculos, estava o estreito riacho onde a mulher de Puckle vira o que viria.

Ela se casaria com Martell. Continuava acreditando. Após o choque de saber que lady Maud dera à luz em segurança, ela ficou imaginando durante algum tempo o que aquilo significava. Mas lembrou-se das palavras de alerta da bruxa: "As coisas nunca são o que parecem." Ela recebera a promessa de felicidade e tinha fé. Algo ia acontecer. Ela sabia que aconteceria. Estava claro para ela que, de algum modo imprevisto, lady Maud seria afastada.

Assim sendo, ela seria a mãe do filho dele. E uma excelente mãe. Essa seria a sua boa ação, sua justificativa para o que teria de acontecer.

Portanto, o que dizer a Edgar? Certamente não queria ser indelicada.

— Sou muito grata — falou bem devagar. — Acredito que seria feliz como sua esposa. Mas não me sinto segura. No momento não posso dizer sim.

— Eu pedirei novamente ao final do verão — prometeu ele, com um sorriso. — Vamos cavalgar?

Hugh de Martell fitava a esposa e o filho. Estavam no ensolarado solário. O filho dormia sossegado em um cesto de vime colocado sobre o chão. Por causa de seus vestígios de cabelos negros, todos diziam que ele já parecia com o pai. Martell olhou para o bebê, satisfeito. Depois desviou o olhar para lady Maud.

Encontrava-se deitada, apoiada nas costas, quase sentada em uma pequena cama que haviam arrumado lá para ela. Gostava de ficar sentada ali com o bebê, o que fazia durante várias horas, todos os dias. Estava bastante pálida, mas conseguiu dar um leve e abatido sorriso para o marido.

— Como está hoje o pai orgulhoso?

— Bem, creio eu — respondeu.

A pausa tornou-se um breve silêncio no aposento banhado de sol.

— Creio que vou melhorar muito em breve.

— Eu tenho certeza de que vai.

— Perdoe-me. Deve ser difícil para você eu estar doente há tanto tempo. Não sou uma esposa tanto quanto gostaria de ser.

— Bobagem. Precisamos fazer com que volte a ficar boa. Isso é o principal.

— Eu quero ser uma boa esposa para você.

Ele sorriu um tanto automaticamente, depois desviou os olhos para a janela aberta, olhando pensativo para o lado de fora.

Ele não a amava mais. E também não se culpava totalmente por isso. Ninguém poderia censurá-lo pelo seu comportamento durante os meses de doença dela. Tinha sido solícito, amoroso, cuidando pessoalmente dela. Havia ficado com ela, segurado sua mão e dado todo o consolo de que um marido é capaz nas duas ocasiões em que ela achou que estava morrendo. Por tudo isso, sua consciência estava tranqüila.

Mas não a amava mais. Não desejava a sua intimidade. Nem era mesmo culpa dela, pensou. Ele a conhecia muito bem. A boca que ele beijou, que até mesmo suspirou palavras de paixão, estava imóvel, em repouso, minúscula e medíocre. Não conseguia mais partilhar os insignificantes confins do seu afeto, o compartimento metodicamente arrumado da imaginação dela. Era muito tímida. Contudo, não era fraca. Se o fosse, a necessidade de protegê-la, apesar de maçante, o teria refreado. Mas ela era espantosamente forte. Podia estar doente, mas se sobrevivesse, sua determinação permaneceria imutável, constante como sempre. Às vezes a determinação dela lhe parecia como um pequeno fio que percorria os mais íntimos recessos de sua alma — fino o bastante para passar pelo buraco de uma agulha, mas resistente como o aço e, do mesmo modo, inquebrável.

Em que consistia o amor dela por ele? Necessidade, pura e simples. Compreensível, é claro. Ela determinara como seria a própria vida e tivera os meios para isso. A modesta fortaleza das propriedades dela estava completa. E para isso ela precisou dele. Podia o casamento ser diferente?

Não era tão surpreendente, portanto, que nessas ocasiões os pensamentos dele se voltassem para Adela.

No último ano eles vinham fazendo isso com bastante constância. A moça solitária, o espírito livre: desde o início ela o deixara intrigado. Mais do que isso. Por que outro motivo ele a teria procurado em Winchester? E desde então, com muita freqüência, quase como se algum tipo de influência agisse em sua mente, ela surgia ou parecia permanecer invisível ao lado dele, em seus pensamentos. Há pouco tempo ele havia encontrado Cola, e o caçador lhe dissera onde ela estava e que havia perguntado por ele e sua família. Durante a última lua cheia, sentira um súbito desejo ardente por ela. Três noites atrás, ela tinha vindo a ele, em seus sonhos.

Já estava há algum tempo olhando para fora da janela, e então anunciou repentinamente:

— Vou dar uma cavalgada.

Era começo da tarde quando chegou à propriedade de Cola. O velho tinha saído, mas o filho Edgar estava lá. E Adela também.

Deixou o cavalo com Edgar, e ele e Adela desceram caminhando a alameda em direção ao Avon, onde uns gansos deslizavam e as longas e verdes algas ondulavam suavemente na correnteza. Conversaram — mal souberam sobre o quê — e, após algum tempo, ele sugeriu que, se mandasse avisar, voltariam a se encontrar.

Ela concordou.

Ao voltarem para onde estava Edgar, ele teve o cuidado de agradecer a ela, um tanto formalmente, pelo interesse em sua família durante o período de dificuldade e em seguida com um cortês gesto de cabeça para o jovem, foi embora.

Ao se afastar, sentiu um estimulante formigamento que há tempos não experimentava. Não tinha dúvidas de que seria bem-sucedido naquela aventura romântica. Não que ele nunca tivesse feito tal coisa.

A carta de Walter chegou uma semana depois. Era breve e ia direto ao assunto. Ele estava a caminho da Inglaterra. Ia se encontrar com alguns familiares da esposa e depois com o rei. Esperava estar livre no início de agosto para ir apanhá-la. A carta encerrava com mais uma informação:

A propósito, consegui um marido para você.

Três semanas se passaram. Nenhuma mensagem fora enviada por Martell. Embora tentasse ocultar o nervosismo, Adela estava pálida e tensa. O que significava aquilo?

Por que ele não tinha vindo? Teria lady Maud voltado a ficar doente? Tentou descobrir. A única informação que conseguiu obter dizia que a lady estava se fortalecendo a cada dia.

Não tinha certeza do que aconteceria quando ela e Martell se encontrassem. Ela se entregaria a ele? Não sabia e tampouco ligava. Queria apenas vê-lo. Ansiava por ir cavalgando até a herdade dele, mas sabia que não podia. Queria escrever, mas não ousava.

A notícia enviada por Walter tornava a situação ainda mais urgente. Ele a levaria e a faria se casar. Podia recusar-se a ir com ele? Podia descartar outro pretendente? Nada parecia fazer sentido.

Enquanto isso, o rei chegou a Winchester. O exército e a frota logo estariam prontos. Mais dinheiro, dizia-se, estava entrando no tesouro de Winchester. Rufus andava tão ocupado, que nem mesmo tinha tempo de caçar.

Se Walter já tinha chegado a Winchester, ela ainda não sabia. Nem tinha qualquer desejo de se comunicar com ele, se tivesse chegado.

Na última semana de julho, ela foi procurar a mulher de Puckle. Encontrou-a em sua pequena cabana, como da vez anterior, mas, ao pedir ajuda e orientação, a bruxa recusou-se a dá-las.

— Não podemos lançar de novo o encanto? — quis saber ela. A mulher apenas sacudiu lentamente a cabeça.

—- Espere. Seja paciente. O que será, será — retrucou.

E Adela voltou, desanimada.

O ambiente na casa de Cola não se tornou mais agradável pelo fato de Edgar estar melancólico. Nenhuma outra palavra havia sido dita a respeito de seu pedido — e ela não conseguia imaginar que tivesse alguma ligação com o que sentia secretamente por Martell —, mas a notícia de que Walter estava vindo para buscá-la não agradou a ele nem um pouco. Superficialmente, a relação dos dois permanecia a mesma, mas havia aflição em seus olhos.

Cola também continuava sombriamente silencioso. Ela não sabia se Edgar tinha ou não contado ao pai sobre o seu pedido. Se ele sabia, aprovava ou desaprovava? Ela não tinha intenção de perguntar, nem mesmo de mencionar o assunto. Mas conjeturava se o estado de ânimo dele estava relacionado com aquilo ou com os perigosos acontecimentos do mundo exterior.

Nos dias que encerraram julho a tensão no ambiente familiar pareceu crescer. A visita de Walter não devia estar distante. Cola tinha aparência funesta e Edgar tornava-se visivelmente agitado. Uma ou duas vezes ele pareceu estar a ponto de tocar novamente no assunto do casamento dos dois, mas se conteve. A tensão, Adela sentiu, não podia continuar por muito mais tempo.

As coisas finalmente se precipitaram no último dia de julho, quando Cola convocou os dois.

— Fui avisado de que o rei e uma comitiva de amigos chegam amanhã a Brockenhurst — anunciou. — Ele deseja caçar na Floresta no dia seguinte. Devo acompanhá-lo. — Olhou para Adela. — Seu primo Walter está na comitiva. Portanto, sem dúvida, em breve ele estará aqui. — Em seguida saiu para cuidar de outros assuntos, deixando-a sozinha com Edgar.

O silêncio não demorou muito.

— Você irá embora com Tyrrell — disse Edgar baixinho.

— Eu não sei.

— Não? Isso significa que posso ter esperanças?

— Eu não sei — foi uma resposta tola, mas ela estava aturdida demais naquele momento para fazer algum sentido.

— Então o que significa? — explodiu de repente. — Walter conseguiu um pretendente? Você o aceitou?

— Não. Não, não aceitei.

— Então o que é? Existe mais alguém?

— Mais alguém? A quem você se refere?

— Não sei. — Ele pareceu hesitar. Em seguida falou num tom de voz exasperado: — Um bobalhão, pelo que me consta. — Girou nos calcanhares e saiu furioso. E Adela, sabendo que o tratava mal, apenas pôde consolar a si mesma, pois a exasperação e o sofrimento dela provavelmente eram maiores do que os dele. Evitou-o durante o resto do dia.

Na manhã seguinte deixaram-na sozinha. Cola estava ocupado, cuidando dos preparativos. Foi atrás de Puckle por algum motivo; precisava haver cavalos de reserva disponíveis em Brockenhurst, onde o florestal local se preparava para receber o rei. Deu várias incumbências a Edgar, e ela ficou contente por ele não estar ali.

A tarde, sem nada melhor para fazer, foi caminhar pela alameda perto do rio. Acabara de se virar, para voltar à herdade, quando um sujeito vestido como criado surgiu à sua frente, a mão fechada, segurando algo. "A senhora é lady Adela? Devo lhe entregar isto." Sentiu algo deslizar para a sua mão, mas antes que pudesse dizer alguma coisa ele já tinha sumido.

Tratava-se de um pequeno pedaço de pergaminho, dobrado ao meio e lacrado. Rompendo o lacre, leu a curta mensagem, elegantemente escrita em francês.

Estarei em Burley Castle pela manhã. Hugh.

Seu coração deu um pulo. Por um momento, o mundo e até mesmo o rio que corria pareceram ter parado. Então, apertando bem firme o pergaminho na mão, caminhou de volta para a casa de Cola.

Ao voltar, apesar de absorta nos próprios assuntos, ficou intrigada ao notar que o caçador estava recebendo um visitante naquele dia. Como não se tratava de algo incomum, ela mal teria pensado em se preocupar com aquilo, exceto por tê-lo reconhecido como sendo o estranho de capa preta que vira anteriormente, cuja visita deixara o velho tão aflito. O homem estava envolvido em uma conversa com Cola quando ela chegou, mas, não muito tempo depois, viu-o partir. Daquele momento até se reunirem para a refeição da noite, não viu Cola.

Ao vê-lo, porém, a transformação era extraordinária. Uma coisa terrível. Se ele antes parecera furioso, agora parecia trovejar. Apesar disso, segundo percebeu rapidamente, era uma máscara para algo mais. Pela primeira vez, desde que o conhecera, achou que o velho podia estar amedrontado.

Ao lhe servir o ensopado de carne de veado que ela preparara, ele apenas cabeceou distraído em sua direção. Quando ele lhe serviu um cálice de vinho, ela notou que sua mão tremia. O que diabos o mensageiro lhe teria dito para produzir um efeito tão extraordinário? Edgar também, fosse lá o que passasse pela sua cabeça, olhava alarmado para o pai.

Ao final da breve refeição, Cola falou:

— Amanhã vocês dois devem permanecer em casa. Ninguém deve sair.

— Mas, papai... — Edgar parecia sobressaltado. — Eu não devo acompanhar o senhor durante a caçada do rei?

— Não. Ficará aqui. E você não deve sair, Adela.

Os dois arregalaram os olhos, horrorizados. Se Edgar queria a companhia dela naquele momento, ela não sabia. Sabia certamente o que significava para um jovem na posição dele caçar com o rei. Quanto a si mesma, a última coisa de que precisava era ficar confinada ali com ele no dia seguinte.

— Edgar não pode acompanhá-lo? — arriscou. — Ele veria o rei. Mas, se ela achava que ia ajudar, apenas provocou uma tempestade.

— Ele não fará tal coisa, madame — esbravejou o velho. — Vai obedecer ao pai dele. E você também fará o que lhe foi ordenado! — Bateu a mão na mesa e levantou-se. — Minhas ordens são essas, e você, senhor — fitou Edgar com os olhos azuis inflamados —, vai obedecer a elas.

Ficou ali, de pé, encolerizado, um velho homem formidável que ainda conseguia ser amedrontador, e os dois jovens prudentemente permaneceram em silêncio.

Ao se recolher, mais tarde naquela noite, Adela só pensava de que modo conseguiria escapar pela manhã. Pois era imperativo desobedecer-lhe.

O ruído que a despertou um pouco antes da alvorada foi o de vozes humanas. O tom não era alto, embora tivesse parecido, em seus sonhos, que ouvira o som de uma altercação.

Levantou-se bem devagar e foi furtivamente na direção delas. Chegou ao vão da porta do vestíbulo. Olhou para o interior.

Cola e Edgar estavam sentados à mesa sobre a qual uma fina vela fornecia apenas o suficiente para ver os seus rostos. O velho já estava todo vestido para ir caçar. Edgar usava apenas um camisolão. Era evidente que tinham andado conversando durante algum tempo, e naquele momento o rapaz olhava interrogativamente para o pai, que por sua vez encarava a mesa abaixo. Ele parecia exausto.

Finalmente, sem levantar a vista, o velho falou:

— Você não acha que, se eu estou lhe dizendo para não ir à Floresta, tenho um motivo para isso?

— Acho, mas creio que deveria me dizer qual é.

— Entenda, é mais seguro se você não souber.

— Acho que o senhor deveria confiar em mim. O velho meditou por um momento.

— Se acontecer alguma coisa comigo — disse lentamente —, suponho que talvez seja melhor se você entender um pouco mais. O mundo é um lugar perigoso, e talvez eu não devesse proteger tanto você. Já é um homem crescido.

— Creio que sim.

— Diga-me, já imaginou quantas pessoas gostariam de ver Rufus desaparecer?

— Muitas.

— Sim. E de quase toda a parte. E nunca tanto quanto atualmente. — Fez uma pausa. — Portanto, se Rufus viesse a sofrer um acidente na Floresta, essas pessoas, sejam quem forem, achariam conveniente.

— Um acidente com o rei?

— Você está esquecendo. A família real é bastante propensa a acidentes na Floresta.

Era verdade. Anos atrás Ricardo, o quarto filho do Conquistador, fora morto, ainda jovem, ao se chocar com uma árvore durante uma cavalgada em New Forest. E, mais recentemente, um dos sobrinhos de Rufus, um filho bastardo do seu irmão Roberto, fora morto na Floresta por uma flecha perdida.

Mesmo assim. Um rei! Edgar ficou estupefato.

— Está querendo dizer que Rufus vai sofrer um acidente?

— Talvez.

— Quando?

— Talvez esta tarde.

— E o senhor sabe?

— Talvez.

— Se sabe, deve ter alguma participação.

— Eu não disse isso.

— O senhor não pôde se recusar? A tomar conhecimento, quero dizer.

— São pessoas poderosas, Edgar. Muito poderosas. A nossa posição... a minha, e algum dia a sua... é difícil.

— Mas o senhor sabe quem está por trás disso?

— Não. Não tenho certeza se sei. Pessoas poderosas falaram comigo. Mas as coisas nem sempre são o que parecem.

— É para acontecer hoje?

— Talvez sim. Mas talvez não. Lembre-se, era para Rufus ter sido morto antes, em um bosque, mas um dos Clare mudou de idéia no último momento. Nada nunca é certo. Pode acontecer. E pode não acontecer.

— Mas papai... — O olhar de Edgar já era de preocupação. — Não vou perguntar qual deve ser a sua participação nisso, mas tem certeza de que, aconteça o que acontecer, não vão colocar a culpa no senhor? É apenas um caçador saxão.

— Verdade. Mas não creio nisso. Eu sei de muita coisa e — sorriu —, por intermédio do seu irmão em Londres, tomei certas precauções. Creio que estarei a salvo.

— Nesse caso, não vão precisar de alguém para colocar a culpa?

— Ótimo. Vejo que tem uma cabeça sobre os ombros. Vão, sim. Aliás, ele já foi escolhido. Isso eu sei. E escolheram muito bem. Um tolo esperto, que pensa fazer parte do círculo elegante, mas que na verdade não sabe de nada.

— De quem se trata?

— Walter Tyrrell.

— Tyrrell? — exclamou Edgar com um assobio. — Quer dizer os próprios familiares dele, os Clare, vão sacrificá-lo?

— Eu disse que os Clare estão envolvidos?

— Não, papai. — Sorriu. — O senhor não disse nada.

Tyrrell. Adela sentiu-se gelar. O primo Walter estava sendo preparado, exatamente como um alvo. Sabe Deus o perigo que corria. Sua garganta ficou seca ao perceber que ela também era uma testemunha daquele terrível segredo. Tremendo, receando que o ruído surdo das batidas de seu coração a denunciasse, recuou sorrateira.

O que ela tinha feito? Sua mente rodopiava. Mas, na fria escuridão cinzenta, sua obrigação começou a tomar corpo diante dela. Estavam planejando matar o rei. Era um crime diante de Deus. Nada havia de mais terrível. Entretanto, seria ele o seu rei? Não achava que o fosse. Sua lealdade, na verdade, era devida a Roberto até quando se casasse com um vassalo do rei inglês. Mas Walter era seu parente. Podia não gostar dele; ele podia não ser muito leal com ela. Mas era seu parente e tinha de salvá-lo.

Começou a se vestir em silêncio. Pouco depois, através de sua janela aberta, viu Cola sair cavalgando sozinho na semi-escuridão. Levava um arco e uma aljava na traseira.

Esperou até ele sumir de vista. A casa estava silenciosa. Cautelosamente, trepou na janela e pulou para o solo abaixo.

Não percebeu que, no nervosismo, ao subir na janela, o bilhete de Martell caiu no chão.

Acabara de amanhecer quando Puckle saiu com sua carroça. Cola lhe dissera que fosse ao chalé de caça em Brockenhurst, onde receberia mais instruções, e que se mantivesse preparado para transportar qualquer veado morto aonde lhe fosse ordenado. Sua mulher o viu partir. Ao se separarem, ela observou:

— Você não vai voltar esta noite.

— Não vou?

— Não.

Ele lhe lançou um olhar inquisidor e depois seguiu seu caminho.

Adela tomou todo o cuidado. Após selar o cavalo no escuro, não o montou, mas levou-o cautelosamente para fora, mantendo-o na beira gramada da trilha, para abafar o ruído, até estar bem longe da casa de Cola. Então cavalgou lentamente através do vale e subiu em direção à Floresta.

Era terrível para ela saber que sentiria saudades de Martell, mas o que podia fazer? Não podia mandar avisá-lo. Nem poderia abandonar Walter à própria sorte. Ao chegar ao castelo em Burley, esperou o máximo a que se atrevia, até o sol estar bem acima do horizonte, na esperança de que talvez ele viesse cedo. Mas não veio. Então ocorreu-lhe pedir a Puckle, ou a alguém da família dele, que ficasse esperando ali, com um recado, e desceu até o pequeno riacho na esperança de encontrá-los. Mas inexplicavelmente nenhum deles estava lá, e ela não ousava ir a Burley e iniciar um mexerico, pedindo a algum estranho da aldeia sombria que transmitisse o seu recado.

Por isso desistiu. Talvez, pensou, se conseguisse encontrar Walter rapidamente, até pudesse voltar a Castle Hill, onde Martell ainda estaria à sua espera. Portanto, saiu galopando, ansiosa para não se atrasar.

Acontece que ela não precisava se apressar.

Os atos do rei Guilherme II, conhecido como Rufus, no início de agosto do Ano de Nosso Senhor de 1100, são medianamente bem conhecidos. No primeiro dia do mês promulgou um decreto do chalé de caça em Brockenhurst. Comeu com os amigos e depois foi para a cama.

Mas dormiu mal. Como resultado, em vez de sair ao amanhecer, o sol já estava bem acima do horizonte e cintilando sobre as copas das árvores em Brockenhurst, quando, finalmente, ele resolveu se juntar aos seus cortesãos.

Tratava-se de uma pequena e seleta comitiva. Havia Robert FitzHamon, um velho amigo; William, o administrador do tesouro de Winchester; dois outros barões normandos. Havia três membros da poderosa família Clare, que no passado quase o traíra. Também seu irmão mais novo, Henrique — cabelos negros, vigoroso, mas reservado. Cruel, diziam, como o pai. E finalmente Walter Tyrrell.

Quando o rei ruivo se sentou em um banco e começou a calçar as botas, surgiu um armeiro com meia dúzia de flechas, recentemente forjadas, para presenteá-las ao monarca.

Rufus pegou-as, examinou-as e sorriu.

— Muito bem-feitas. Peso perfeito. Haste flexível. Belo trabalho — parabenizou o armeiro. Em seguida, olhando na direção de Tyrrell, sugeriu: — Fique com duas, Walter. Você é o melhor arqueiro. — Tyrrell aceitou-as, radiante, e o rei acrescentou, com a sua risada estridente: — Espero que não erre!

Seguiram-se as costumeiras caçoadas palacianas para divertir o rei. Em seguida apareceu um monge. Isso não agradou em nada a Rufus, que, na melhor das hipóteses, mal tolerava clérigos. Mas como o lúgubre sujeito insistiu em entregar uma carta urgente de seu abade, o rei deu de ombros e recebeu-a.

Depois que a leu, deu uma gargalhada.

— Veja lá, Walter, não esqueça o que lhe falei. E melhor não errar com as minhas flechas. — Então, dirigindo-se a todos: — Dá para acreditar no que esse abade de Gloucestershire escreveu? Um dos monges dele teve um sonho. Ele me viu em uma aparição. Logo eu, faça-me o favor. Sofrendo o fogo do inferno, sem dúvida. — Arreganhou os dentes. — Acredito que a metade dos monges da Inglaterra sonha com o meu tormento. — Sacudiu a carta. — E esse se senta, escreve uma carta para que eu tome conhecimento e a envia através de metade da Inglaterra, prevenindo-me para que eu tome cuidado. E esse homem, valha-me Deus, é um abade! Era de esperar que ele tivesse bom senso.

— Vamos caçar, sire — disse alguém.

A manhã já avançava quando Hugh de Martell deixou sua herdade. Por algum motivo, sua esposa escolhera aquela manhã, entre todas as manhãs, para retardá-lo com um assunto sem importância atrás de outro, até que finalmente ele foi forçado a deixá-la um tanto abruptamente. Isso o fez se sentir culpado e deixou-o de mau humor. Seguiu com o cavalo a meio galope pela longa alameda que levava acima da colina de calcário.

Não estava, porém, indevidamente preocupado. Tinha certeza de que Adela o esperaria.

Edgar ficou bastante assustado quando um dos criados lhe disse que o cavalo de Adela não se encontrava na estrebaria. Era metade da manhã, e ele se mantivera ocupado; não tinha visto Adela, mas deduzira que devia estar em algum outro lugar da propriedade. Pareceu-lhe estranho não tê-la visto sair para passear. Quando mais alguém lhe garantiu que o cavalo dela tinha sumido antes do amanhecer, ele seguiu direto para os aposentos dela. Lá encontrou o bilhete de Martell.

Não precisava saber francês para entender o que dizia. Compreendeu as palavras "Burley Castle" e "Hugh". Minutos depois estava de saída.

Adela desobedecera ao pai de Edgar, e supostamente ele deveria cuidar dela. Isso era o principal. Mas também havia a questão de Martell. Pois era isso que deviam significar o bilhete e a ausência dela. Adela havia sumido para se encontrar com ele.

Ele ficara desconfiado quando Martell fora visitá-la, mas teria sido um insulto fazer algum comentário. Que Martell apreciava as mulheres, que vez por outra se envolvia em casos amorosos nos arredores da Floresta tinha sido algo que Cola lhe dissera tempos atrás. Aquilo não o chocara. Os senhores do mundo feudal estavam acostumados a conseguir o que queriam, como o fazem os poderosos em qualquer geração. Edgar achava que, por causa do delicado estado da esposa, Martell desistiria daquilo por uns tempos. Entretanto, ao ver Adela disponível, ele supôs que o rico senhorio fora incapaz de deixar essa chance escapar. O fato de saber que ele, Edgar, queria se casar com ela certamente não o deteria. Provavelmente o estimularia, imaginava Edgar, para provar a sua superioridade.

Mas o que pretendia fazer? Ele mal sabia. Primeiro, observá-los, pensou. Tentar descobrir o que estava acontecendo. Confrontá-los? Lutar? Não tinha certeza.

Não demorou muito, e já tinha deixado o vale. Só precisou fazer um pequeno desvio de cerca de oitocentos metros para atingir, sem ser visto, o lado norte do local de encontro dos dois, e depois se aproximar silenciosamente por trás, pelo meio das árvores. Sentindo-se como um espião, amarrou o cavalo a uma árvore ao chegar perto e avançou a pé.

Não havia sinal deles. Seus cavalos não estavam lá. Olhou adiante, esquadrinhando a charneca abaixo, e não viu nenhum sinal de movimento. Estariam em algum lugar por perto, ocultos da vista nas samambaias ou no capim alto? Vasculhou em volta, mas nada achou.

Já deviam ter ido embora. Partiram juntos em seus cavalos. E depois? Ele sabia que não devia imaginar demais, mas era impossível. Com uma sensação doentia no estômago, teve a impressão de que sabia de tudo. Eles estavam juntos.

Com os nervos retesados, o pulso latejando forte, ele saiu cavalgando, perguntando em Burley se alguém os tinha visto e procurando em vários outros locais mais altos das proximidades. Nada. Voltou lentamente para o vale, pensando em verificar novamente em sua casa. Talvez, disse para si mesmo, estivesse enganado. Caso contrário, voltaria à Floresta e tentaria de novo.

Adela fora cautelosa ao se aproximar de Brockenhurst. Por um lado, precisava encontrar Walter, mas por outro precisava evitar Cola. Certamente não podia dizer ao velho por que desobedecera às suas ordens, e ele talvez a mandasse de volta para casa antes que ela conseguisse realizar sua missão.

Ao se aproximar da cabana real, porém, ela teve o que pareceu um golpe de sorte. Viu Puckle, sozinho, parado na sua carroça. Ao lhe perguntar onde se encontrava a comitiva do rei, ele pareceu solícito e lhe disse que tinha ido em direção norte, para algum lugar acima de Lyndhurst.

Era realmente uma boa notícia. Tratava-se de uma área de mata. Talvez ela conseguisse interceptar Walter sem ser vista. Pedindo a Puckle para não dizer que a tinha visto, ela partiu, com o coração aliviado, em direção ao norte.

Só após algum tempo de o marido tê-la deixado, lady Maud abandonou o costumeiro local de descanso no solário. Mas, ao fazê-lo, assombrou toda a criadagem, ao exigir não apenas suas roupas de sair como também que o seu cavalo fosse selado.

— Não pretende cavalgar, não é, milady? — indagou aflita a criada.

— Sim, pretendo.

— Mas, milady, está muito fraca.

Era verdade que, após tanta inatividade, lady Maud mal conseguia se manter de pé. Mas, apesar de todas as admoestações da mulher, ela insistiu:

— Eu vou cavalgar. — Não havia nada que pudessem fazer para impedi-la. Um criado mais corajoso aventurou-se a dizer que o amo não ia gostar daquilo, mas foi interceptado com um olhar tão furioso que se encolheu contra a parede. — Isso é entre mim e ele, e não com você — disse friamente e mandou que trouxessem o cavalo até a porta.

Momentos depois, enquanto o cavalariço segurava a brida, eles já a estavam ajudando a montar.

— Por favor, milady, a senhora pode cair — implorou o cavalariço. — Pelo menos, deixe que eu a acompanhe.

— Não. —Virou abruptamente a cabeça do cavalo e saiu em velocidade de marcha. E assim prosseguiu, oscilando vez por outra, o rosto lívido, olhando direto para a frente, descendo toda a longa rua da aldeia, enquanto os cabaneiros saíam para vê-la passar. Seguia o caminho que o marido havia tomado. Oscilou, parecendo que ia cair, mas foi em frente.

Ela o estava seguindo. Sua jornada era instintiva. Saberia ela que perdera o amor dele? Ela intuía. Saberia ela que ele tinha ido ver outra mulher? Ela supunha. E algo em sua mente, uma consciência animal, dizia-lhe que precisava ficar boa, seguir e trazê-lo de volta. Assim, naquele dia de agosto, ela cavalgou diante de todos eles, mantendo-se sobre a sela somente com a força da vontade. No alto da colina, instigou o cavalo a ir a meio galope, e quem a observava lá de baixo arfou e murmurou: "Meu Deus, ela vai morrer."

A comitiva de caça do rei partira alegremente de Brockenhurst, acompanhada por Cola.

— Meu fiel caçador. Sempre posso confiar para que você faça tudo com perfeição. — Rufus estava de bom humor. Seu olhar aguçado penetrou no velho caçador e, em seguida, ele deu uma gargalhada. — Hoje, meu amigo, não quero conduzir veados para a sua grande armadilha. Quero caçar na mata.

Cães de caça haviam sido providenciados. Havia dois tipos: os rasteiros, ágeis farejadores, cujo trabalho era localizar veados e fazê-los sair do interior da densa vegetação, e os cotredores, que naquele dia seriam usados apenas para capturar qualquer veado que viesse a ser ferido e escapasse para campo aberto.

Primeiro penetraram no bosque abaixo de Brockenhurst; mas, depois de caçar algum tempo por lá, o rei insistiu em ir para leste, atravessando uma grande extensão de charneca a céu aberto, a despeito do fato de Cola ter alertado:

— Vai encontrar alguns veados-nobres, sire, mas poucos gamos.

Ao meio-dia, o rei resolveu parar e descansar e exigiu algo para comer e beber. Depois, no meio da tarde, concordou em deixar que Cola o conduzisse a um local melhor de caçada, embora, mesmo àquela hora, não parecesse estar com pressa.

— Vamos lá, Tyrrell — gritou. — Estaremos todos observando você.

A gama clara sobressaltou-se. Estremeceu por um instante, depois ficou ouvindo.

O imenso silêncio da tarde de agosto parecia se estender como um infindável cobertor sob o cálido céu azul. A seu lado, o pequeno filhote já conseguia dar alguns passos. Desengonçado, delicado, alimentando-se dela, precioso para ela, ele havia sobrevivido aos perigosos primeiros dias de vida. Mas teria idade suficiente para correr, se viessem os cães de caça?

Girou a cabeça. Tinha certeza de que já conseguia ouvi-los. Olhou para a cria, o coração repleto de medo. Estariam vindo os caçadores nesta direção?

Hugh de Martell havia aguardado o bastante. Não estava acostumado a ficar esperando. Sabia, pelo mensageiro, que Adela recebera o bilhete. Algo a teria impedido de vir? Talvez. Mas duvidava. Teria chegado, esperado por ele e depois ido embora? Possivelmente. Mas sua mensagem dizia apenas para se encontrarem pela manhã, e ainda não era meio-dia quando ele chegou. Ela teria ficado, tinha certeza disso. E agora fora ele quem ficara à espera. Duas horas, calculou.

Não. Ela havia mudado de idéia e pensado melhor. Ele lamentou. Tinha gostado dela.

Imaginou o que fazer. Devia ir à casa de Cola? Achou melhor não fazer isso. Arriscado demais. Devia voltar e ir para casa? Aborrecia-o fazer aquilo, pois pareceria uma admissão de fracasso. De qualquer modo, fazia um belo dia. Era melhor aproveitá-lo. Deixando Castle Hill, contornou Burley e, preguiçosamente, marchou com o cavalo até o alto da charneca. Após cerca de três quilômetros, havia uma vista magnífica em direção a leste, dando para o mar abaixo. Certa ocasião, ele tivera uma garota, a filha de um pescador, ali no litoral. Em pouco tempo se cansara dela, mas naquele dia a lembrança lhe pareceu agradável.

Seu humor melhorou assim que chegou a esse lugar alto. Era bem provável que Adela tivesse sido impedida de vir, afinal de contas. Ele investigaria. Ela ainda poderia ser sua.

Godwin Pride terminara sua nova cerca pouco antes do alvorecer daquela manhã e estava orgulhoso dela. Não que a área cercada tivesse ficado tão grande assim. Na verdade, ele só a havia ampliado menos de um metro. Mas — era ali que estava a esperteza — ele a tinha feito dos dois lados, em vez de um só. Como resultado, as proporções do curral ficaram exatamente como antes. A não ser que uma pessoa inspecionasse o solo, jamais notaria que houvera qualquer alteração.

— Mas do que adianta? — perguntara a esposa. — Continua sem ter espaço bastante para a vaca nova.

— Não se preocupe com isso — retrucara. Tratava-se do princípio da coisa. E naquela tarde ele estava examinando a sua obra, talvez pela quinta vez, quando olhou para cima e viu algo curioso.

Era Adela. Mas ele nunca a vira daquele modo. Parecia exausta, quase subjugada. O cavalo estava nas últimas, a boca espumando, os flancos ensopados. Ela lançou um olhar desesperado para Pride.

— Você os viu? A comitiva do rei? — Ele não tinha visto. — Preciso encontrá-la. — Não disse por quê. Foi sorte ele estar perto o suficiente para segurá-la, quando ela oscilou e caiu do cavalo.

Ela passara horas procurando em volta de Lyndhurst, até finalmente concluir que a comitiva real tinha ido em uma outra direção. Refazendo o caminho até Brockenhurst, um criado informara-lhe o caminho que os caçadores tomaram, e ela também procurara nas matas do lado sul. Procurando aqui e ali, cavalgando por trilhas, atravessando clareiras, tentando ouvir algum leve eco por entre os intermináveis recuos de árvores, ela nada encontrara, exceto um imenso silêncio rompido ocasionalmente pelo bater de asas de um pássaro nas folhas.

Havia procurado em um estado próximo ao pânico, desesperançado, quase desesperado. Contudo, não podia desistir. Perguntara nos poucos povoados, mas ninguém sabia aonde tinham ido. Então percebeu que o cavalo estava esgotado, e aquilo também lhe provocou uma espécie de exaltada impotência. Finalmente, lembrou-se de Pride.

Levou algum tempo para fazê-la voltar a si. Quando conseguiram, ela resolveu prosseguir.

— Não vai não, não nesse cavalo — disse-lhe Pride.

— Irei caminhando, se for preciso — rebateu.

Com um sorriso, ele levou-a para o lado de fora da casa.

— Você acha — perguntou — que consegue montar um desses?

Adela conseguia sentir nas costas a calidez do sol do fim de tarde, enquanto os seus raios dourados caíam, com grandes feixes oblíquos, sobre a imensidão da Floresta.

O robusto pequeno pônei de New Forest em que ia montada era surpreendentemente veloz. Nunca havia notado o quanto esses animais eram estáveis, comparados com o seu puro-sangue castrado. Nascido na charneca, ele parecia dançar através dela.

Pride seguia a seu lado.

Primeiro iam tentar novamente a mata próxima a Brockenhurst; mas encontraram um camponês que lhes disse ter visto cavaleiros no urzal que havia a leste. E foi assim que ao final da tarde Adela se viu passando por uma grande extensão da Floresta onde nunca tinha estado anteriormente.

Era uma campina a céu aberto — uma planície costeira ampla, baixa, delicadamente ondulada. Para o sul, menos dez quilômetros distantes, as altas e avultantes colinas azul-esverdeadas da ilha de Wight lhe diziam que estava perto das águas do Solent, com a sua promessa de mar aberto. Diante dela, as urzes, violáceas e roxas em agosto, com poucos intervalos de tojos no lado ocidental da Floresta, estendiam-se da aldeola de Pride, descendo o tempo todo até o cinturão de pântano arborizado e a área de prado que mascarava o contorno da costa. Itene, como era chamada antigamente: a terra onde os jutos da ilha de Wight tinham vindo cultivar.
Ela estava contente por ter Pride a seu lado. Não podia revelar-lhe o que estavam fazendo, é claro, mas a tranqüila presença dele lhe devolvia a esperança. Afinal, lembrou a si mesma, se a comitiva do rei ainda estava caçando, então nada acontecera até o momento. Provavelmente Walter ainda estava a salvo. Talvez a coisa toda tivesse sido cancelada. Enquanto houvesse luz, porém, ela precisava tentar encontrá-lo e transmitir sua mensagem; e ainda restavam horas antes que o sol mergulhasse na Floresta.

Talvez porque estivesse cansada, talvez fosse o calor, mas, enquanto seguiam pela charneca, o grande silêncio da tarde de agosto parecia assumir ares de irrealidade. Os pássaros ocasionais pairando no alto pareciam perder a substância, como se a qualquer momento pudessem recuar mais para cima e penetrar no infindável céu azul ou se dissolver lá embaixo, no roxo mar de urzes, tornando-se nada.

Mas onde estavam os caçadores? Ela e Pride viajaram um quilômetro, depois mais outros dois, atravessaram um solo pantanoso, voltaram a subir para o terreno seco de urzes, viram touças de azevinhos e carvalhos à distância, mas nada de cavaleiros. Somente o mesmo céu azul e a urze roxa.

— Há dois lugares onde podem estar — disse Pride finalmente. —Ali adiante — apontou na direção leste, onde ela podia ver a orla de uma mata. — Ou podem estar lá, nos pântanos. — O braço dele deslizou com um gesto para o sul. — Você escolhe.

Adela refletiu. Já não ligava muito se pudesse encontrar Cola ou o rei em pessoa; mas, se quisesse transmitir a sua mensagem naquele dia, isso teria de ser feito logo.

— É melhor nos separarmos — sugeriu ela.

Como as trilhas dos bosques costeiros de carvalhos eram traiçoeiras, eles rapidamente concordaram que Pride deveria seguir para lá, e ela iria para leste.

— E o que devo dizer se encontrar seu primo? — perguntou ele.

— Diga-lhe... — Deteve-se. O que deveria ele dizer? Se ela localizasse Walter, apesar do pouco respeito que ele lhe tinha, achava que podia arrastá-lo para um lado e, pelo menos, contar-lhe o suficiente do que sabia, para fazê-lo perceber o perigo que corria. Mas que mensagem possível ela poderia enviar através de Pride para fazer com que Walter acreditasse? Vasculhou a mente. Então teve uma inspiração. — Diga-lhe que veio a mando de lady Maud. Fale que ela explicará tudo, e que, seja qual for a desculpa que ele possa imaginar, precisa fugir imediatamente para salvar a própria vida. — Isso, pensou ela, resolveria. Momentos depois seguiram caminhos separados. Ao se apartarem, ela gritou para ele: — Qual é o nome do lugar aonde você está indo?
— Tem uma fazenda naquelas bandas — gritou ele de volta — conhecida como Througham. — Em seguida afastou-se trotando.

Por quase mais uma hora, ela perambulou por todo o contorno leste da mata, mas não encontrou sinal deles. Várias vezes olhou para trás, através da charneca, e nada viu. Finalmente concluiu que, se ainda se encontravam mesmo naquele setor da Floresta, deviam estar em alguma parte da mata para onde Pride seguia, e ela tomou o caminho de volta pela charneca, naquela direção, quando de repente, ao longe, sua vista captou a mais estranha das visões.

Um animal corria, com extraordinária velocidade, atravessando a charneca e indo em direção à mata de Througham. O sol no ocidente brilhava, ouro incandescente em seus olhos, e ela levantou a mão para protegê-los. Mas, mesmo naquele vermelho ofuscante, pareceu capaz de identificar muito bem o tipo de bicho; e percebeu, com um sobressalto, que o conhecia.

A fêmea clara. A fêmea clara corria como um pontinho dardejante de luz através do roxo reluzente da charneca. Havia dois cavaleiros, caçadores, atrás dela. Como também dois cães, tinha quase certeza. A gama estava sozinha. Haveria outros veados por perto, um filhote talvez, tremendo numa moita, observando a mãe ser perseguida pelos caçadores? A gama clara ia mais rápido do que eles, quase voando para salvar a vida, em direção ao abrigo de matas e pântanos.

Sem mesmo pensar no que fazia, quase se esquecendo de Walter, ela se descobriu investindo o pônei adiante, seguindo a gama. Acenou para os caçadores, mas pareceram não vê-la. A gama clara já estava perto das árvores. Os dois caçadores já estavam a todo galope. Mesmo que tentasse, não conseguiria interceptá-los, e ela ainda estava cerca de oitocentos metros atrás deles quando penetraram na mata atrás da gama clara.

Não voltou a vê-los. Quando ela alcançou as árvores, nada encontrou além do silêncio. Era como se a gama, os caçadores e os cães fossem fantasmas. Tudo o que encontrou, ao seguir por uma trilha após outra, foi uma sucessão de carvalhos, clareiras e prados pantanosos.

Ela acabara de tentar uma trilha através da mata que levava ao sul quando à sua esquerda ouviu ruídos de cascos aproximando-se rapidamente. Parou. Seria Pride? Alguém do grupo de caçadores? Um instante depois o cavaleiro surgiu à vista. Ela soltou um gritinho de alívio. Mas o grito morreu dentro dela.

Pois era Walter, como nunca o vira antes. Ele ofegava, os olhos esbugalhados, e estava pálido, quase verde, como se estivesse para vomitar. Ao vê-la, mal deixou a emoção ausentar-se, ao que pareceu, para registrar a surpresa. Mas, ao se aproximar, veio gritando roucamente:
— Fuja. Fuja para salvar sua vida.

— Então recebeu minha mensagem? — gritou ela em resposta. — A respeito do rei?

— Mensagem? Não recebi nenhuma mensagem. O rei está morto.

Hugh de Martell acordou. Tolamente, talvez, após desfrutar a vista acima da Floresta, ele havia retornado a Castle Hill e permanecido por lá. Devia ter adormecido sob o sol. Piscou. Era fim de tarde. Talvez tivesse se demorado um pouco mais, se não tivesse notado nesse momento, subindo o morro, vindo do norte, da direção de Ringwood, um cavaleiro solitário a quem reconheceu como sendo Edgar.

Praguejou num murmúrio. Por um lado, o rapaz talvez pudesse lhe dizer o que acontecera com Adela, mas não tinha certeza se devia perguntar-lhe. Havia também a possibilidade, supôs, de que Cola e sua família tivessem descoberto a respeito do encontro e talvez até mesmo impedido Adela de ir encontrá-lo. Edgar poderia ter ido a Castle Hill para procurá-lo. De qualquer modo, ele não desejava se encontrar com o rapaz.

Havia uma trilha, na parte de baixo da colina, que levava para oeste através de uma charneca a céu aberto, antes de penetrar na mata de um pequeno promontório conhecido como Crow Hill, de onde descia íngreme para o vale do Avon. Havia menos de um quilômetro e meio até a proteção de Crow Hill. Com o seu possante cavalo, poderia percorrer em pouco tempo a distância. Momentos depois estava sobre a sela.

Pôs o cavalo a meio galope. A firme trilha gramada era bem sossegada. Adiante dele, no ocidente, o sol estava começando a se pôr sobre o vale do Avon, banhando a área com uma rosada luz dourada. De cada lado, a charneca era como um lago roxo bruxuleante. O instante era tão mágico que, a despeito de si mesmo, ele quase deu uma risada alta diante da pura beleza daquilo.

Estava a um terço de completar o caminho quando percebeu, irritado, que Edgar havia tomado uma direção que seguia na diagonal através da pequena charneca. O jovem maçante pretendia interceptá-lo. Ele sorriu consigo mesmo. Ia ser mais difícil para o saxão do que ele imaginava. Seu esplêndido garanhão seguia em frente. Mediu a distância com o olhar, avaliando o tempo que o outro fazia.

Quando estavam eqüidistantes, ele saiu galopando. Ao olhar para trás, viu que Edgar fazia o mesmo. Deu uma risadinha para si mesmo. O jovem saxão não teria a menor chance. Seu garanhão disparava, comendo o chão, soltando faíscas quando suas ferraduras batiam nas pedras de cascalho branco do terreno turfoso.

Mas, para sua surpresa, percebeu que Edgar o acompanhava na mesma velocidade. O sujeito ia alcançá-lo antes que conseguisse entrar na mata. Na frente, à sua esquerda, entretanto, surgiu um pequeno atalho para o mato, diante do qual, como um marco, havia um freixo solitário.

Subitamente, portanto, ele guinou para a esquerda. O garanhão arremeteu pela charneca. Logo adiante notou que algum idiota da Floresta fizera uma pilha de troncos. Estava quase no mesmo plano do freixo, que o ocultaria da vista do maldito saxão. Apressou o cavalo para a frente, esquecendo-se de que a superfície da Floresta não é firme e constante, como as vastas ondulações de calcário em volta da sua herdade, mas macia, mutável e traiçoeira para aqueles que tentam se impor a ela. Portanto, ele não foi advertido de modo algum quando a pata do poderoso animal mergulhou em uma cavidade oculta de solo pantanoso, lançando-o, de cabeça, na direção da pilha de troncos

— Mas o que aconteceu? — Ela nunca vira Walter tão perplexo. Fitou-a quase como se ela não estivesse ali.

— Foi um acidente.

— Mas quem? Como?

— Um acidente. — Olhava fixo para diante.

Ela o observava atentamente. Estava ele apenas em estado de choque? Estava descrevendo o que vira, o que alguém lhe contara? Já iam trotando rapidamente pela charneca.

— Aonde você vai? — indagou ela.

— Para oeste. Preciso ir para oeste. Longe de Winchester. Tenho que conseguir um barco. O mais longe possível, na costa.

— Um barco?

— Você não entende? Eu preciso fugir. Fugir do reino. Por Deus, como gostaria de saber o caminho para sair desta maldita floresta.

— Eu sei — disse ela. — E guiarei você.

Era impressionante quanto o tempo parecia passar depressa. Mas ela não estava mais procurando e perambulando; ia direto para um ponto da região cuja posição conhecia: o pequeno vau deserto ao norte do vilarejo de Pride. A charneca era um ermo. Não viam ninguém. Não falavam. Evitando o pequeno vilarejo, encontraram o longo caminho que descia até o vau, atravessava Brockenhurst pela parte de baixo e saía no onduloso urzal do lado ocidental da Floresta.

— Você quer tentar conseguir um barco em Christchurch? — perguntou ela.

— Não. Fica perto demais. Talvez eu precise esperar um dia ou dois, e até lá

— suspirou — poderão me prender. Tenho que ir para mais longe, na direção oeste.
— Você vai ter que atravessar o rio Avon. Eu conheço o vale do Avon. — Agradeceu a Deus pelos passeios que dera com Edgar. — Há um vau para gado cerca de meio caminho entre Christchurch e Ringwood. Depois dele você atravessa o prado, e há quilômetros e quilômetros de charneca a céu aberto.

— Ótimo. Irei por esse caminho então — concordou Tyrrell.

O sol mergulhava no ocidente, uma imensidão vermelho-escura; aqui e ali uma árvore solitária elevava-se como uma estranha flor de índigo contra o céu, projetando uma comprida sombra sobre eles como um dedo acusador. Tiveram de seguir com os cavalos em velocidade de marcha, mas, fora os pôneis da Floresta e o gado eventual, tinham o local só para si.

Tyrrell já parecia estar um pouco mais recuperado.

— Você disse que estava à minha procura, que tinha enviado uma mensagem — lembrou calmamente. — Do que se trata?

Ela contou-lhe toda a história, relatou o comportamento de Cola, o que ouviu e como o tinha procurado com a ajuda de Pride.

Ele escutou atentamente, depois ficou em silêncio por alguns instantes.

— Você percebe que arriscou a vida por minha causa, cara prima? — disse finalmente. Nunca a chamara antes de cara prima.

— Não cheguei a pensar nisso — respondeu com sinceridade.

— Esse tal de Pride... Ele não sabe de nada, além da mensagem que você mandou me transmitir, por parte de lady Maud?

— Nada.

— Vamos torcer para que ele seja discreto — observou e mergulhou em seus pensamentos. Depois, fitando à frente, falou com tranqüilidade: — Você precisa esquecer tudo o que ouviu, tudo o que viu. Se alguém perguntar, se Cola perguntar, você apenas saiu para passear na Floresta. Haveria algum outro motivo para ter feito isso?

— Na verdade — ela confessou — eu tinha um encontro com Hugh de Martell. Mas não pude ir.

— Arrá! — Soltou uma gargalhada sonora, apesar dos pesares. — Ele é mesmo incorrigível. Tome cuidado. Mas isso não poderia ser melhor. Agarre-se a essa versão, se for preciso. Se houver uma pressão maior, diga que entrou em pânico, fugiu e me encontrou. Mas — tornou-se bem sério —, se dá valor à vida, Adela, esqueça todo o resto.

— O que aconteceu realmente? — indagou ela.

Ele fez uma pausa antes de começar a falar e, quando falou, escolheu cuidadosamente as palavras.
— Eu não sei. Nós nos separamos. Um dos meus parentes dos Clare veio correndo em minha direção e contou que tinha havido um acidente. ”E, como você estava sozinho com o rei”, disse ele, ”vai levar a culpa.” Respondi que não tinha estado com o rei, mas percebi a mensagem, se é que você me entende. Ele me prometeu que por um ou dois dias conteriam o clamor público pela minha captura, se eu desaparecesse e atravessasse o mar. Não adiantava discutir.

— E foi um acidente?

— Quem sabe? Acidentes acontecem.

Ela ficou imaginando se ele dizia a verdade e concluiu que não podia saber. Também concluiu que era irrelevante. O que importava mais — a verdade oculta ou uma série de circunstâncias efêmeras? Ou o que os homens preferiam dizer, ou no que preferiam acreditar?

— Receio, minha pobre priminha, que no momento não haja muita coisa que eu possa fazer por você. Eu tinha um possível pretendente, mas por enquanto ninguém vai querer uma aliança com uma prima pobre minha. E certamente você não poderá ir comigo agora para a Normandia. O que vai fazer?

— Primeiro voltarei para a casa de Cola — respondeu. — Depois veremos. Isso me diz — sorriu — que serei muito feliz.

— Você é meio maluca — retrucou —, mas começo a gostar de você. Nesse momento chegaram ao alto de uma pequena elevação. Adiante deles, o pôr-do-sol já se encontrava em toda a sua glória, uma extensa incandescência rubra no horizonte sobre o vale do Avon. Adela virou-se para olhar atrás de si, viu toda a urze púrpura da charneca subitamente transformada em uma vasta, magnífica fogueira carmim, e todo o chão da Floresta aparentando estar derretido, como se fosse a cratera de um vulcão secreto.

Então ela e Tyrrell continuaram avançando pelo caminho, e quando conseguiram avistar o rio escurecido e o largo prado perto do vau para gado, ela virou para o norte e deixou que ele continuasse sua fuga em direção a oeste.

Uma única flecha matara Rufus. O monarca ruivo tinha morrido instantaneamente. Seus companheiros reuniram-se e deliberaram rapidamente. Foi Henrique, seu calado e sério irmão mais novo, quem, após alguns momentos de convencimento, anunciara: ”Precisamos ir imediatamente para Winchester.” O tesouro estava lá.

Na verdade, foi uma sorte, sem dúvida graças à eficiência de Cola, o fato de Puckle e sua carroça estarem nas proximidades e à disposição. Envolveram o corpo do rei, colocaram-no na carroça, e todos partiram para a antiga capital. Todos, isto é, menos Cola, que, tendo realizado o seu trabalho, voltou lentamente para casa.

Chegou à sua herdade algum tempo depois de ter escurecido, e, quase na mesma hora, em outra herdade maior, mais para oeste, acordaram lady Maud, que dormia após sua cavalgada, para lhe contar que o marido, galopando na Floresta, tinha caído do cavalo, quebrado o pescoço em uma pilha de troncos e estava morto. Naquela noite ela não voltou a dormir.

Outra mãe e seu filho, nos confins da Floresta, dormiram sossegados naquela noite morna de verão: a gama clara e sua cria estavam em paz com o mundo, como haviam estado a maior parte do dia. Pois, tendo ouvido cavaleiros por um breve instante e achado que eram caçadores, ela nada mais ouviu depois e voltou a se acalmar, junto ao filho. Vivia em uma parte da mata muito distante de onde, naquele dia, o rei Rufus fizera a sua caçada fatal. Portanto, ou Adela tinha visto outra fêmea clara, ao atravessar a charneca, ou a coloração da gama fora apenas um truque provocado pela luz; ou então, se houve outro motivo para o seu equívoco, era impossível saber.

Tampouco os homens foram capazes de afirmar com certeza o que realmente acontecera na Floresta durante aquele estranho e mágico dia. Os colegas de caçada do rei o sabiam. Tyrrell, segundo consta, mirou em um stag, errou e acertou o rei. Ninguém, ou muito poucos, assegurou que ele fizera aquilo de propósito, nem se houve qualquer motivo claro para tal.

Quem se beneficiou com a morte dele? Não foi o irmão Roberto, como veio a acontecer, nem a família Clare, pelo que se soube. Mas o irmão mais novo — o leal e calado Henrique, com sua franja de cabelos negros —, que assumiu o controle do tesouro de Winchester ao amanhecer e foi coroado em Londres dois dias depois. Em pouco tempo tomou a Normandia de Roberto, exatamente como Rufus planejara fazer. Se, porém, ele teve alguma participação na morte de Rufus — como muitos cochicharam, afirmando que teve —, não restou qualquer vestígio de evidências.

Assim, a Floresta guardou por completo o seu segredo, e o próprio local onde tudo aconteceu ficou esquecido, até que séculos depois uma pedra foi colocada para marcar o lugar — na parte totalmente errada da Floresta.

Houve, contudo, um outro beneficiário do segredo. Poucos dias depois do ocorrido, aconteceu de Cola se encontrar com Godwin Pride, que educadamente se aproximou para uma conversa particular com ele. Com toda a certeza, assegurou ao surpreso caçador, ele tinha, honestamente, direito a um curral maior, bem mais extenso do que aquele que fizera, ilegalmente, ao lado de sua pequena propriedade.

— Que provas possíveis você tem disso, homem? — indagou Cola.

— Creio que isso vai satisfazê-lo — respondeu Pride com todo o cuidado.

— E, se você ficar satisfeito, eu ficarei satisfeito.

— Como assim?

— Acontece que dia desses eu estava em Througham.

— Ah?

— Sim. É estranho o que a gente vê às vezes.

— Estranho? — Cola ficou mais atento. — Você se importaria em me contar o que viu?

— Não devo contar para ninguém.

— É perigoso.

— Não é de admirar.

— Bem, não faço idéia do que você pensa que viu. — Olhou-o preocupado.

— E também não creio que eu queira saber.

— Não. Acredito que não queira mesmo.

— Falar pode ser perigoso.

— Vê o que quero dizer a respeito do curral?

— Se eu vejo? Não creio que eu veja melhor do que você, Godwin Pride.

— Então está certo — disse Pride contente, e foi embora.

E quando, no verão seguinte, um novo e esplêndido curral, com quase meio hectare a mais, contendo uma pequena ribanceira, um fosso e uma cerca, surgiu na propriedade de Pride, na beira da charneca, nem Cola nem Edgar, seu filho mais novo, nem Adela, a esposa de Edgar — que recebera da Normandia, de Tyrrell, um belo pequeno dote após o seu casamento —, nem qualquer outro dos florestais reais pareceu, de forma alguma, ver ou notar aquilo.

Pois esse é o jeito de se levar a vida na Floresta.

 

 

                         Beaulieu, 1294

Ele corria ao longo da campina, curvado, rente à sebe. O rosto estava vermelho e ofegava. Ainda conseguia ouvir os gritos raivosos, vindos da granja atrás de si.

Seu hábito salpicado de lama indicava que pertencia ao mosteiro; mas o cabelo espesso não estava cortado no cocuruto, como na tonsura de um monge. Um irmão leigo, então.

Chegou à curva da campina e olhou para trás. Não havia ninguém atrás dele. Ainda não. Laudate Dominum. Que o Senhor seja louvado.

A campina onde se encontrava estava cheia de ovelhas. Mas havia um touro no terreno seguinte. Ele não se importava. Levantando o hábito, agitou as pernas compridas por cima da cancela.

O touro não estava distante. Era pardo e peludo, parecendo um pequeno monte de feno. Seus dois olhos vermelhos o encararam por baixo do tufo entre os chifres compridos e recurvados. Ele quase levantou a mão para benzê-lo com o sinal-dacruz, mas achou melhor não fazê-lo!

TauriBasan cinguntme... Os touros de Basã me rodeiam: as palavras em latim do Salmo 22. Ele as havia cantado ainda na semana passada. Um bondoso monge lhe dissera o que significavam. Domine, adjuvandum mefestina. Ó Senhor, apressa-te em me socorrer.

Disparou o mais depressa possível pela beira da campina, de olho no touro.

Havia apenas três perguntas em sua mente. Estava sendo seguido? O touro atacaria? E o homem que deixara sangrando no chão da granja, ele o matara?

A abadia de Beaulieu estava em paz na cálida tarde de outono. Os gritos na granja estavam longe do alcance da audição. Apenas os ocasionais batimentos das asas dos cisnes, nas águas próximas, rompiam o agradável silêncio no cinzento recinto cercado à beira do rio.

Em seu escritório particular, protegido atrás de uma porta aferrolhada, o abade fitava pensativo o livro que andara examinando.

Cada abadia tinha os seus segredos. Normalmente eram anotados, mantidos em lugar seguro, passados de abade para abade, e somente eles os liam. Por vezes tinham importância histórica, referiam-se a assuntos de governança real ou, inclusive, ao local de enterro secreto de um santo. Mais freqüentemente eram escândalos, acobertados ou esquecidos, nos quais o mosteiro esteve envolvido. Alguns, em retrospecto, pareciam triviais; outros saltavam das páginas como gritos sobre os quais a história colocara uma mão abafadora. E por último vinham as anotações recentes, que se referiam àqueles que ainda se encontravam no mosteiro — coisas que, na opinião do abade anterior, o seu sucessor precisava saber.

Não que o registro completo de Beaulieu fosse tão extenso. Pois a abadia ainda era uma recém-chegada a New Forest.

Desde o assassinato de Rufus, a Floresta presenciara poucos dramas. Após um longo reinado, Henrique morreu, e a filha e o sobrinho passaram anos disputando o trono. Mas não lutaram na Floresta. Quando o filho da filha, o impiedoso Henrique Plantageneta, chegou ao trono, teve uma desavença com Thomas Becket, o seu arcebispo, e alguns afirmaram que ele o mandara matar. Toda a cristandade ficara chocada. Houve outra onda de agitação quando o heróico filho de Henrique, Ricardo Coração de Leão, reuniu os seus cavaleiros em Sarum e partiu para uma cruzada.

Mas a verdade era que na Floresta as pessoas ligavam muito pouco para esses grandes acontecimentos. A caçada de veados prosseguia. Apesar das numerosas tentativas dos barões e da Igreja para reduzir a vasta área da floresta real, os gananciosos reis Plantagenetas na realidade a tinham aumentado tanto que as fronteiras de New Forest eram então mais extensas do que na época do Conquistador; por outro lado, as leis florestais, piedosamente, haviam se tornado menos severas. O rei não fazia mais de Brockenhurst a sua principal base de caçada, costumava antes ficar na propriedade real de Lyndhurst, onde o antigo parque cercado dos veados fora enormemente aumentado.

Um acontecimento de repercussão nacional, contudo, atraiu a atenção das pessoas. Depois que o irmão de Coração de Leão, o mau rei João, foi forçado pelos seus barões a conceder a humilhante Magna Carta, o grande decreto das liberdades inglesas estabelecera os limites de sua opressão quanto à Floresta. E a questão ficou ainda mais claramente expressada, em separado, dois anos depois, na Carta Régia da Floresta. Não se tratava tampouco de um assunto de interesse restrito, visto que até aquela data quase um terço da Inglaterra tinha se tornado uma floresta real.

Então houvera Beaulieu.

Se o rei João era chamado de mau, não era apenas por ter perdido todas as guerras que travara e tivesse desavenças com os seus barões. Pior ainda, ele havia insultado o papa e feito com que a Inglaterra fosse colocada sob Interdição Papal. Durante anos não houve serviços religiosos no país. Não admira que os clérigos e monges o odiassem — e os monges escreviam toda a história. Na opinião deles, João só havia feito uma boa ação em toda a sua vida: fundara Beaulieu.

Foi a sua única obra religiosa. Por que a teria feito? Um ato de bondade da parte de um homem mau? Em crônicas monacais, tal complexidade não costumava ter aprovação. Você era bom ou mau. O consenso geral era o de que ele devia ter feito aquilo para pagar por algum ato particularmente medonho. Havia inclusive uma lenda que dizia que ele dera ordem para que alguns monges fossem pisoteados pelo seu cavalo e que depois passou a ser assombrado por um sonho.

Qualquer que tenha sido o motivo, no ano de Nosso Senhor de 1204 o rei João fundou Beaulieu, um mosteiro da Ordem Cisterciense, ou dos monges brancos, como eram conhecidos, dotando-o primeiramente com uma rica propriedade em Oxfordshire e depois com uma grande extensão de terra na parte oriental de New Forest — que por acaso incluía o local onde o seu tio-bisavô Rufus fora assassinado um século antes. Nos noventa anos desde a sua fundação, a abadia recebera mais doações, tanto do devoto filho de João, Henrique III, quanto do soberano atual, o poderoso rei Eduardo I, que também era um amigo leal. Graças a toda essa beneficência, a abadia não era apenas rica: pequenos grupos de seu crescente corpo de monges haviam inclusive saído de lá para estabelecer abadias irmãs em outros lugares; uma delas, a de Newenham, ficava a mais de 110 quilômetros de distância, no litoral sudoeste, em Devon. A abadia era igualmente abençoada e bem-sucedida.

O abade suspirou, fechou o livro, levou-o até uma imensa caixa-forte, na qual o colocou, e cuidadosamente trancou-a.

Ele cometera um erro. A opinião do abade anterior, que ele tolamente ignorara, estava correta. A personalidade do homem era clara: ele era imperfeito e, possivelmente, perigoso.

”Por que então eu o nomeei?”, murmurou. Fizera isso como uma espécie de penitência? Talvez. Dissera a si mesmo que o homem merecia uma chance, que havia merecido a posição, que cabia a ele como abade — com orações e a graça de Deus, é claro — fazer tudo dar certo. E quanto ao crime dele? Estava no livro. Tinha sido muito tempo atrás. Deus é misericordioso.

Olhou para fora pela janela aberta. Fazia um lindo dia. Em seguida seus olhos se fixaram em duas figuras que caminhavam juntas, conversando em sossego. Ao vê-las, seu rosto se descontraiu.

Irmão Adam. Eis um tipo diferente. Um dos melhores. Sorriu. Estava na hora de ir lá fora. Destrancou a porta.

O irmão Adam estava de bom humor. Como às vezes fazia quando caminhava, havia tirado o pequeno crucifixo de madeira, que pendia de uma corda em volta de seu pescoço e sob a camisa de cilício, e o manuseava pensativo. Ele o havia ganhado da mãe, quando entrara para a ordem. Ela disse que o conseguira com um homem que tinha estado na Terra Santa. Era entalhado em madeira de cedro do Líbano. Ele deleitava-se com o fato de o sol da tarde aquecer levemente sua cabeça calva. Aos trinta anos ficara grisalho e careca. Mas isso não o fazia parecer velho. Nessa ocasião, com trinta e cinco, os seus traços finos e serenos davam-lhe um ar de perspicácia quase juvenil, ao mesmo tempo que se podia perceber, sob o hábito de monge, o corpo robusto e musculoso transpirar uma sensação de poder físico.

Também se deleitava em silêncio com a missão que executava no momento, que era, enquanto andavam para lá e para cá entre dois canteiros de verduras, inculcar, da maneira mais benevolente, um pouco de bom senso necessário no jovem noviço que caminhava respeitosamente a seu lado.

As pessoas costumavam procurar o irmão Adam por causa dos seus conselhos, porque ele era calmo, habilidoso e sempre acessível. Nunca dava conselhos se não lhe pedissem — era astuto demais para fazê-lo —, mas podia-se perceber que, fosse qual fosse o problema, depois que a pessoa em dificuldade o discutisse durante alguns momentos com o irmão Adam, ela quase sempre começava a rir e geralmente ia embora sorrindo.

— Você nunca repreende ninguém? — perguntara-lhe o abade certa vez.

— Ah, não — fora a sua resposta, com um piscar de olhos. — É para isso que servem os abades.

Esta conversa atual, entretanto, não estava sendo inteiramente tranqüilizadora. Nem pretendia ser. O irmão Adam já havia feito isso antes. O que ele chamava de seu catecismo ”Verdade sobre Monges”.

— Por quê — perguntara ele ao noviço — os homens vivem em um mosteiro?

— Para servir a Deus, irmão Adam.

— Mas por que em um mosteiro?

— Para fugir do mundo de pecados.
— Ah! — O irmão Adam olhou em volta da área do mosteiro. — Um paraíso seguro. Como o Jardim do Éden?

De certo modo, era mesmo. O local escolhido pelos monges era encantador. Paralelamente à grande enseada das águas do Solent, que ficava a leste da Floresta, corria um riacho formando sua própria pequena enseada litorânea, com cerca de cinco quilômetros de extensão. Na cabeceira dessa enseada, onde o rei João mantivera uma modesta cabana de caça, os monges haviam assentado o seu grande recinto murado. Fora copiado do prédio original da ordem na Borgonha. Dominando tudo estava a igreja da abadia — uma enorme estrutura em estilo gótico primitivo, com uma atarracada torre quadrada no centro da galeria transversal. Apesar de simples, o prédio era simpático e feito de pedra. Não havia pedra na Floresta; uma parte fora trazida da ilha de Wight, através do Solent; uma outra, como a melhor pedra da Torre de Londres, viera da Normandia; e os pilares foram feitos do mesmo mármore escuro de Purbeck, de toda a costa sul, usado na imensa catedral nova de Sarum. Os monges eram particularmente orgulhosos do chão de sua igreja, revestido com azulejos decorativos feitos com todo o esmero por eles mesmos. Junto à igreja ficava o claustro; do lado sul, os vários aposentos dos monges do coro; ao longo de todo o lado oeste, a imensa domus conversorum em forma de celeiro — a casa onde os irmãos leigos comiam e dormiam.

A área murada continha ainda a casa do abade, numerosas oficinas, dois pequenos lagos com peixes e um abrigo externo onde os pobres eram alimentados. Um novo e maior abrigo interno também já estava em início de construção.

Do lado de fora do muro ficavam a enseada e um pequeno moinho. Acima da calha do moinho havia um grande lago cercado por ribanceiras de juncos prateados. Mais além, no lado oeste, algumas campinas criavam um pequeno aclive, de cima do qual se abria um magnífico panorama: para o norte, na maioria mata e charneca; para o sul, a fértil terra pantanosa, a qual os monges já haviam drenado parcialmente para produzir várias excelentes culturas e que se estendia abaixo para as águas do Solent, com a imensa corcunda da ilha de Wight, logo adiante, como um simpático guardião. Toda a propriedade, incluindo matas, charnecas a céu aberto e terra de cultivo, correspondia a mais de três mil e duzentos hectares: e, já que seus limites eram demarcados por fossos e cercas escavados, os monges referiam-se à propriedade não apenas em relação à área murada, mas também a todos os três mil e duzentos hectares como o ”Grande Cercado”.

Bellus Locus era como chamavam a abadia, em latim — o Belo Lugar; em francês, Beau Lieu. Mas, como as pessoas da floresta não falavam francês, pronunciavam buli ou biulei. E logo os monges também faziam o mesmo. Um paraíso fértil e tranqüilo como era, o Grande Cercado de Beaulieu bem que poderia ser confundido com o Jardim do Éden.

— Uma pessoa se sente segura aqui, é claro — observou prazenteiro o irmão Adam. — Somos vestidos e alimentados. Temos poucas preocupações. Portanto, me diga — virou-se de súbito, ficando de frente para o noviço. — Agora que já teve a chance de nos observar durante vários meses, para você qual que é a qualidade mais importante que um monge deve possuir?

— O desejo de servir a Deus, creio eu — respondeu o rapaz. — Uma grande paixão religiosa.

— É mesmo? Minha nossa. Não concordo de jeito nenhum.

— Não? — O rapaz parecia confuso.

— Deixe-me dizer uma coisa — explicou animado o irmão Adam. — No primeiro dia em que deixar o noviciado e se tornar um monge, assumirá o seu lugar, como o mais novo entre nós, em seguida ao último que chegou antes de você. Algum tempo depois haverá outro monge, que ficará abaixo de você. Durante cada refeição e cada serviço, você sempre se sentará na mesma posição, entre esses dois monges... cada dia, cada noite, entra ano, sai ano; e, a não ser que um de vocês vá para um outro mosteiro ou se torne abade ou prior, permanecerão juntos, dessa maneira, pelo resto da vida. Pense nisso — prosseguiu. — Um dos seus colegas tem o irritante hábito de se coçar ou cantar fora do tom, sempre; o outro baba quando come; e também tem mau hálito. E lá estão eles, um de cada lado. Para sempre. — Fez uma pausa e sorriu exultante para o noviço, concluindo de forma amável: — É essa a vida monástica.

— Mas os monges vivem para Deus — protestou o noviço.

— E também são seres humanos normais... nem mais, nem menos. É por isso — acrescentou o irmão Adam delicadamente — que precisamos da graça de Deus.

— Eu achava — afirmou o noviço com franqueza — que você ia ser mais animador.

— Eu sei.

O noviço ficou calado. Ele tinha vinte anos.

— As qualidades mais importantes necessárias a um monge — continuou o irmão Adam — são a tolerância e o senso de humor. — Ele observava o jovem. E acrescentou, para consolá-lo: — Mas ambos são dádivas de Deus.

A última parte da conversa dos dois fora observada em silêncio. O abade pretendia se juntar a eles, visto que sempre gostava da companhia do irmão Adam; e ficara secretamente irritado, quando, assim que saiu, o prior surgiu ao lado de seu cotovelo. A cortesia, contudo, precisava ser respeitada. Enquanto o prior murmurava a seu lado, o abade olhava-o, de vez em quando, inexpressivo.

John de Grockleton era prior já fazia um ano. Como muitos de sua espécie, era sem importância.

O posto de prior em um mosteiro não era desprovido de dignidade. Afinal de contas, tratava-se do monge que o abade havia escolhido para ser o seu substituto. Mas isso era tudo. Se o abade precisasse se afastar, ele passava a ser o encarregado -— mas apenas de questões do dia-a-dia. Todas as decisões importantes, até mesmo as tarefas a serem designadas aos monges, precisavam esperar o retorno do abade. O prior é o burro de carga, o abade é o líder. Abades têm carisma; seus substitutos, não. Abades solucionam problemas; priores os relatam. Priores raramente se tornam abades.

John de Grockleton: falando francamente, ele era apenas o irmão John; de algum modo, entretanto, o seu nome original, Grockleton, era o que sempre ficara gravado. Onde diabos estava Grockleton? O abade não conseguia se lembrar. No norte, talvez. Ele não se importava. Não havia muito o que se ver no prior John de Grockleton. Outrora devia ter sido alto, antes que o arqueamento da espinha o fizesse andar curvado. Seu ralo cabelo negro já fora espesso. Mas, apesar dessas debilidades, ainda restava muita vida no prior. Ele viverá mais do que eu com certeza, pensava o abade.

Se ao menos não houvesse aquelas mãos. Elas sempre pareciam ao abade como se fossem garras. Ele tentava se emendar. Eram apenas mãos. Um pouco ossudas, talvez um pouco recurvadas. Mas não eram piores do que qualquer par de mãos pertencente a uma das criaturas de Deus. Exceto que eram mesmo como garras.

— Alegro-me em ver que o nosso jovem noviço está buscando a orientação do irmão Adam — comentou ele com o prior. — ”Beatus vir, qui non sequitur

.. — Salmo 1: Bem-aventurado o homem que não anda segundo os conselhos dos ímpios... Versículo 1.

— ”Sedin lege Domine...” — murmurou baixinho o prior. Antes tem o seu prazer na lei do Senhor. Versículo 2.

Era bastante natural, em uma conversa normal, a referência aos Salmos. Mesmo os irmãos leigos, que participavam de menos serviços, o faziam. Pois, nas constantes cerimônias monásticas na Igreja que pontilhavam a vida diária de cada monge, das matinas às vésperas e às completas, e mesmo no serviço noturno para o qual se acordava bem depois da meia-noite, eram os Salmos, em latim, é claro, que os irmãos cantavam. Em uma semana, eram capazes de percorrer todos os cento e cinqüenta.

E toda a vida humana estava nos Salmos. Havia uma frase para cada ocasião. Do mesmo modo que a gente simples dos vilarejos às vezes conversava citando ditados e provérbios locais, também era natural para os monges dialogarem utilizando os Salmos. Eram as palavras que ouviam o tempo todo.

— Sim, a lei do Senhor — confirmou o abade com a cabeça. — Mas é claro que ele estudou, não é mesmo? Em Oxford.

A ordem deles não era de intelectuais, mas uma dezena de anos antes houvera um movimento para que alguns dos monges mais brilhantes fossem enviados a Oxford. De Beaulieu, foi o irmão Adam.

— Oxford. — John de Grockleton pronunciou a palavra com repugnância. O abade podia aprovar Oxford, mas ele não. Conhecia maquinalmente os Salmos, e isso era o bastante. Gente como o irmão Adam talvez se achasse superior. Mas, embora os monges de Oxford tivessem sido alojados bem distante da cidade universitária, ainda assim partilharam da corrupção terrena do local. Não eram melhores do que ele, eram piores.

— Um dia desses, quando eu me for — observou o abade —, o irmão Adam dará um bom abade... você não acha? — e olhou para o prior, como se esperasse sua concordância.

— Isso acontecerá muito depois da minha época — respondeu Grockleton com amargura.

— Bobagem, meu caro irmão John — rebateu de pronto o abade —, você sobreviverá a todos nós.

Por que ele escarnecia do prior daquele jeito? Com um suspiro interior, o abade impôs-se uma penitência. É a obstinada recusa desse homem de reconhecer as próprias limitações que faz aflorar o que há de pior em mim, pensou, e agora me tornou culpado de crueldade.

Essas considerações, entretanto, foram bruscamente interrompidas por uma série de gritos vindos do portão externo. Um momento depois uma figura surgiu correndo na direção deles, seguida por vários monges aflitos.

— Padre abade, venha depressa — gritou o homem, quase sem fôlego.

— Aonde, meu filho?

— À granja de Sowley. Houve um assassinato.

Ninguém o seguira. Luke descansava perto de um matagal de tojos, imaginando o que fazer a seguir. A oitocentos metros, um dos monges pastores vigiava o seu rebanho de ovelhas na charneca a céu aberto, mas o pastor não o tinha visto.

Por que fizera aquilo? Deus sabe que não fora de propósito. Jamais teria acontecido se o irmão Matthew não tivesse aparecido. Mas isso não era desculpa.
Principalmente por ter sido o irmão Matthew — sobressaltou-se ao pensar no coitado do irmão Matthew caído sobre uma poça de sangue — quem o havia colocado, um humilde irmão leigo, como encarregado da granja durante a ausência dele.

Os cistercienses eram diferentes dos outros monges. Praticamente todas as ordens monásticas baseavam-se na antiga Regra de São Bento. E o exemplo de São Bento era claro: os monges devem levar uma vida comunitária de orações constantes, equilibrada com o trabalho físico; e deviam fazer votos de pobreza, castidade e obediência. A obediência e mesmo a castidade costumavam ser mais ou menos conseguidas. A pobreza, porém, era sempre um problema. Não importava o quanto começassem simples, os mosteiros sempre terminavam ricos. Suas igrejas tornavam-se grandiosas, a vida dos monges, sem dificuldades. Constantemente surgiam as ordens reformistas. A mais notável foi a enorme ordem francesa localizada em Cluny; mas até os monges clunistas acabaram indo pelo mesmo caminho, e o seu lugar foi tomado por uma outra, que se espalhou de sua matriz em Citeaux, na Borgonha: a dos cistercienses.

Não havia como confundi-los. Conhecidos como monges brancos, porque usavam hábitos simples de lã sem tintura, os cistercienses evitavam o mundo pecador escolhendo locais agrestes e isolados para os seus mosteiros. Cuidando de fazendas, chamadas de granjas, geralmente localizadas a quilômetros do mosteiro, eles eram mais conhecidos por criar ovelhas. Os monges de Beaulieu criavam milhares, que levavam para pastar não apenas no Grande Cercado, como também na Floresta a céu aberto, onde lhes foram dados direitos de pasto. E, para garantir que dedicassem a maior parte de seu tempo às orações, havia uma categoria secundária de monges inferiores — os irmãos leigos — que faziam os votos monásticos e participavam de alguns serviços, mas cuja ocupação principal era cuidar das ovelhas e do trabalho nas áreas de cultivo. Normalmente eles eram bastante rudes, sujeitos da região, que, por um motivo ou outro, eram atraídos pela atmosfera religiosa do mosteiro ou sua segurança. Homens como Luke.

Eles tinham vindo na noite anterior. Eram oito. Com arcos e flechas e cães. Roger Martell, um jovem aristocrata turbulento, e quatro de seus amigos; mas os outros três eram pessoas do local, homens comuns como ele próprio. Um desses seria seu parente. Will atte Wood. Suspirou. O problema era que na Floresta todos eram primos.

Se ao menos ele não estivesse como encarregado. O irmão Matthew lhe fizera um favor, é claro. A granja de Sowley era um local importante. Além dos rebanhos costumeiros e da lavoura, os monges de lá cuidavam de um imenso lago abastecido com peixes. Havia também um parque de veados que pertencia à abadia, na vizinha Througham.

O irmão Matthew sabia que o prior não gostava de Luke. Ao colocá-lo como encarregado da granja, dera a Luke uma chance de provar ao prior que ele era confiável. Entretanto, quando o jovem Martell e os amigos chegaram, exigindo abrigo para a noite, não era tão fácil assim para um homem simples como Luke recusar.

Ele sabia que eles tinham andado caçando clandestinamente, é claro. Até mesmo traziam consigo um veado. Tratava-se de um delito grave. O rei não mais exigia a vida ou um membro de uma pessoa que caçasse os seus preciosos veados, mas as multas podiam ser pesadas. Ao lhes dar abrigo, também seria culpado de um crime. Então por que fizera aquilo? Eles o tinham ameaçado? Martell, certamente, tinha blasfemado e lançado um olhar que o aterrorizou. Mas o verdadeiro motivo, ele sabia, no fundo do coração, foi porque Will lhe dera uma cutucada e cochichara: ”Vamos lá, Luke. Eu disse para eles que você era meu primo. Vai me deixar constrangido?”

Eles comeram todo o pão e um queijo inteiro. Não gostaram muito da cerveja. A melhor cerveja e o vinho para convidados ficavam todos na abadia, e não ali em uma humilde granja. Pela manhã, eles se foram.

Havia apenas meia dúzia de irmãos leigos na granja, além dele próprio, e o mesmo número de trabalhadores contratados. Mas não houve necessidade de dizer coisa alguma. A visita ilegal jamais seria mencionada a qualquer um.

— O que vamos fazer em relação ao queijo e à cerveja que faltam? — aventurou-se a perguntar um dos irmãos leigos.

— Vamos abrir um pouquinho o tampão, espalhar um pouco de cerveja no chão abaixo dele e não diremos nada. Quando alguém perceber, vai achar que vazou. Quanto ao queijo, direi que deve ter sido roubado.

Talvez tivesse dado certo, se o irmão Matthew não tivesse um olhar tão aguçado e se não tivesse resolvido ir à granja apenas dois dias após sua visita anterior. Irrompendo por lá logo depois do meio-dia, ele rapidamente inspecionou o local, notou de imediato o tonel de cerveja vazando e chamou Luke.

— Deve estar vazando desde ontem — começou Luke, mas não foi além.

— Disparate. Estava cheio. O tampão estava apenas pingando. De qualquer modo, estava lacrado quando eu saí. Alguém bebeu a cerveja. — Olhou em volta. — E também sumiu um queijo.

— Deve ter sido roubado. — Não adiantou. Luke precisaria ter se preparado para a mentira, e o irmão Matthew o pegara no contrapé. O monge encarou-o com severidade. E quem sabe que história idiota ele teria começado a contar a seguir, se é que já não tivesse iniciado, quando, nesse instante, houve uma furiosa batida na porta.

Era Martell. Ele fez um gesto com a cabeça para o irmão leigo.

— Estamos de volta, Luke. Precisamos novamente de sua ajuda. — Em seguida, olhando de relance para o irmão Matthew, a quem ainda não havia se dignado a notar, perguntou fortuitamente: — E quem diabos é você?

Luke enterrou o rosto nas mãos ao recordar o resto: a fúria do irmão Matthew; sua própria humilhação; a breve e clara ordem dada aos caçadores clandestinos para que fossem embora, e a arrogante recusa por parte deles. Então...

Se ao menos o irmão Matthew não tivesse perdido a calma. Primeiro praguejou contra ele por estar em conluio com criminosos. Sabe Deus, era natural que ele pensasse aquilo. Ameaçou contar ao prior e fazer com que ele o expulsasse do mosteiro. Diante de outros irmãos leigos. Testemunhas. Nesse momento dois deles estavam do lado de fora, enfrentando os caçadores. Então o irmão Matthew ordenou aos outros que bloqueassem a entrada. De forma insolente, Martell colocou o pé na porta e o monge perdeu a paciência. Vendo um cajado encostado na parede, correu até lá, pegou-o e virou-se.

Ele não pretendia machucar o irmão Matthew. Muito pelo contrário. Havia apenas um pensamento em sua cabeça. Se o monge atingisse Martell com o cajado, o jovem criminoso talvez o matasse. Não houve tempo para pensar em outra coisa além disso. Ao lado do cajado havia uma pá — um pesado apetrecho de madeira com uma ponta metálica. Agarrou a pá e girou-a para deter o golpe no instante em que o cajado do irmão Matthew descia.

Mas girou-a com muita força. Com um estalido, o cajado quicou para trás, e a lâmina da pá colidiu com a cabeça do monge, enfiando-se um pouco nela, com um terrível baque surdo. Em seguida todo o inferno pareceu se desatar. Os outros irmãos leigos investiram para se atracar com ele, Martell e Will foram atrás dos irmãos leigos, e na confusão ele largou a pá e saiu em uma desabalada carreira.

Uma coisa era certa. Qualquer que fosse a explicação dada, a culpa seria dele. Deixara os caçadores entrar; atingira o irmão Matthew; o prior o detestava. Se quisesse se manter vivo, teria de correr ou pelo menos se esconder. Não demoraria para irem atrás dele.

Ficou pensando aonde ir.

Mary parou de esfregar a panela o tempo suficiente para sacudir a cabeça.

O problema, em essência, era bastante simples. Ou assim o dizia a si mesma. O problema era o pônei.
John Pride achava que era dele. E Tom Furzey dizia que não. Na verdade, era apenas isso. Você até podia dizer outras coisas a respeito. Com o passar de uma semana, uma porção de gente tinha dito uma porção de coisas. Mas nada disso alterava este fato: Pride achava que era dele e Furzey dizia que não.

Para um observador imparcial, havia a possibilidade de uma dúvida sincera. Uma égua podia dar cria na Floresta. Desde que a cria permanecesse com a mãe, sabia-se como agir; mas, se a égua morresse ou a cria se extraviasse — e essas coisas aconteciam —, podia-se encontrar o filhote vagando e não saber a quem pertencia. Foi o que aconteceu nesse caso. Pride encontrou a cria. Pelo menos foi o que ele disse. Havia a possibilidade de uma dúvida.

Além disso, era uma coisinha linda. Essa era a metade da encrenca. Embora se tratasse de um típico pônei de New Forest — pequeno e robusto, com o pescoço grosso —, havia algo esplendidamente desenhado, quase delicado, em seu rosto, e ele se movimentava tão graciosamente sobre as patas. A pelagem do pônei era toda de um castanho homogêneo, com a crina e a cauda mais escuras.

”É o pônei mais bonito que eu já vi”, dissera-lhe uma vez o irmão, e ela não discordara.

Mary e John Pride nasceram com um ano de diferença. Brincaram juntos durante toda a infância. Morenos, bem constituídos, magros, de espírito livre e independente, ninguém conseguia se emparelhar com eles quando saíam correndo pela Floresta. Só diminuíam a velocidade para seu sonhador irmão mais novo. John desdenhara quando ela se casara com Tom Furzey. O rechonchudo Tom, com a cara redonda e os cabelos encaracolados, sempre parecera um tanto obtuso. Mas eles o tinham conhecido a vida inteira; todos viviam em Oakley. Não se importavam muito com ele. Na verdade, o casamento dela era apenas uma extensão da família.

E ela era suficientemente feliz. Cinco gravidezes depois, com três crianças saudáveis sobreviventes, ela mesma se tornara mais roliça; mas os olhos azul-escuros eram esplendorosos como sempre. Se, às vezes, o seu volumoso marido era carrancudo e maçante, que importância tinha, se você vivia com toda a família na Floresta?

Até a questão do pônei. Já se haviam passado três semanas desde que John Pride e Tom Furzey tinham deixado de se falar. E não era apenas isso. Uma coisa como aquela não podia ser deixada de lado. Coisas tinham sido ditas e repetidas. Nenhum dos Pride — e havia muitos — falava com os Furzey — e não havia menos do que aqueles — em qualquer local da Floresta. Sabe Deus quanto tempo isso ainda podia durar. O pônei era mantido no estábulo de John Pride. Este não podia deixá-lo na Floresta, é claro, porque um dos Furzey poderia capturá-lo.
Portanto, o pequeno animal era mantido ali, como um cavaleiro à espera de um resgate, e toda a Floresta observava para ver o que aconteceria a seguir.

Mas para Mary o verdadeiro problema estava em casa.

Ela não tinha permissão para ver o irmão. John morava a apenas quatrocentos metros de distância, no mesmo vilarejo, mas na ocasião aquele era um território proibido. Poucos dias após a disputa ter início, ela o ultrapassara sem se dar conta. Quando o carrancudo marido chegou em casa, porém, já fora informado. E não gostou. Ah, ele já tinha sido muito claro. Daquele dia em diante ela não deveria falar com John; não enquanto ele mantivesse o pônei.

Que poderia ela fazer? Tom Furzey era seu marido. Ainda que ignorasse seus desejos e fosse às escondidas falar com John, a casa da irmã de Tom ficava no meio do caminho, ela certamente a veria e contaria. Então haveria outra discussão violenta, e os filhos veriam. Não valia a pena o contratempo. Ela se manteve afastada, e John, é claro, não podia ir à casa deles.

Ela foi lá fora. A tarde de outono ainda estava quente. Olhou para cima, tristemente, para o céu azul. Ele parecia metálico, ameaçador. Nunca antes tinha vivido sozinha com o marido.

Ainda vislumbrava acima a mata das proximidades, quando ouviu um assobio vindo das árvores. Franziu a testa. O som se repetiu. Foi na direção dele e teve uma grande surpresa, momentos depois, ao ver uma figura familiar sair de trás de uma árvore.

Era o seu irmão mais novo, Luke, da abadia de Beaulieu. E parecia apavorado.

Em meio à quase neblina do início da manhã, o irmão Adam a princípio não notou a mulher. Além do mais, sua cabeça estava em outro lugar.

Os acontecimentos do dia anterior haviam abalado toda a comunidade. Ao entardecer, por ocasião do ofício das vésperas, todos sabiam o que acontecera. Não era comum os monges quererem falar. A cisterciense, embora não fosse uma ordem silenciosa, restringia as horas nas quais a conversa era permitida, mas o tempo se estende nos longos silêncios de um mosteiro e raramente há qualquer senso de urgência: um dia é bom como qualquer outro para se trocarem fragmentos de notícias. Ao entardecer, entretanto, todos estavam doidos para conversar.

O irmão Adam sabia que isso devia ser desencorajado. Comoções desse tipo não eram apenas uma distração: eram como uma tela entre si mesmo e Deus, filtrando o Espírito Santo. Deus, era melhor ouvi-lo em silêncio, vê-lo na escuridão. Por isso ele ficou contente quando, após o ofício da noite, as completas, o summum silencium, a regra do silêncio total, se interpunha até o desjejum.
A noite era uma ocasião especial para o irmão Adam. Sempre lhe trazia alívio. Ocasionalmente arrependia-se do que havia perdido, ao entrar para a vida religiosa, ou ansiava por mais intelectos revigorantes como os que conhecera em Oxford. E, é claro, havia vezes em que amaldiçoava o sino que dobrava no meio da noite, quando todos enfiavam os chinelos e desciam os frios degraus de pedra em direção à sombria igreja da abadia. Mesmo nessas ocasiões, contudo, cantar os Salmos à luz de velas, sabendo que lá fora o imenso universo estrelado pairava vigilante sobre o mosteiro, parecia a Adam que conseguia sentir a palpável presença de Deus. E a vida de contínuas orações, refletia, edificava uma muralha protetora tão sólida quanto a de qualquer claustro, criando um tranqüilo espaço vazio dentro de si mesmo, para se receber a silenciosa voz do universo. Desse modo, durante muitos anos, o irmão Adam tinha vivido dentro de suas muralhas de preces e sentido a presença de Deus na noite.

Recentemente, as manhãs vinham sendo especialmente agradáveis para ele. Poucos meses atrás, sentindo a necessidade de um período de contemplação, pedira ao abade que lhe desse, por algum tempo, tarefas diurnas, e o pedido fora concedido. Após a prima, o serviço da madrugada, e o desjejum, quando os monges do coro comiam em seufrater e os irmãos leigos, na domus, separado deles, Adam costumava sair para uma caminhada solitária.

Aquela manhã fora encantadora. Uma neblina de outono ocultava o rio. Na ribanceira oposta, as folhas de carvalho nas árvores tinham a aparência de ouro. Os cisnes pareciam se condensar em meio à névoa, como se miraculosamente gerados pela superfície da água. E durante a volta ainda se encontrava tão extasiado por essa imagem da criação de Deus que não percebeu a mulher até quase alcançar o grupo de pessoas pobres que esperavam, no portão da abadia, o recebimento da esmola diária.

Era uma mulher de aparência bastante agradável: rosto largo, olhos azuis, celta; inteligente, deduziu — obviamente um dos habitantes da Floresta. Ele a teria visto antes? Parecia desejar falar com alguém, embora os olhos dela o observassem com cautela. Belos olhos.

— Pois não, minha filha?

— Oh, irmão. Dizem que o irmão Matthew foi morto. O meu marido trabalha para a abadia durante a colheita. O irmão Matthew era tão bondoso. Estivemos pensando... — Desviou a vista, parecendo aflita.

O irmão Adam franziu a testa. Talvez toda a Floresta já soubesse algo a respeito do dia anterior. Além dos irmãos leigos, a abadia empregava eventualmente muita gente da Floresta. Não restava dúvida de que o bondoso irmão Matthew era querido. O franzir de testa foi causado apenas porque a lembrança do incidente invadiu a paz que sentia. Como ele era egoísta. Reagindo, sorriu.

— O irmão Matthew está vivo — disse ele.

As primeiras notícias do incidente, como sempre, tinham sido truncadas. O irmão Matthew levara uma pancada bastante forte e perdera muito sangue, mas graças a Deus estava vivo, na enfermaria da abadia, e já tinha tomado um pouco de caldo.

O alívio dela foi tão palpável que Adam ficou comovido. Como devia ser abençoada aquela camponesa por se preocupar tanto com o monge.

— E os que fizeram isso?

Ah. Ele entendeu. As comunidades religiosas tinham fama de proteger sua própria gente da justiça, o que provocava indignação. Bem, ele podia tranqüilizála em relação a isso.

O abade ficara furioso. Já havia ocorrido um incidente parecido antes, havia cerca de quinze anos: um enorme grupo de caçadores clandestinos; uma forte suspeita da participação de irmãos leigos de uma das granjas. Esse fato, juntamente com a péssima reputação de Luke perante o prior, levaram à decisão.

— O irmão leigo que o atingiu não terá a proteção da abadia — assegurou. — As cortes da Floresta cuidarão dele.

Ela aquiesceu silenciosamente e depois pareceu apreensiva.

— Mesmo se tiver sido um acidente? — perguntou. — Se o irmão leigo se arrepender, eles não terão misericórdia?

— Você tem razão em ser cautelosa em seu julgamento. E a misericórdia é uma graça de Deus — respondeu. Que boa mulher ela era. Receava pelo monge, mas tinha compaixão pelo seu agressor. — Mas todos nós devemos aceitar o castigo devido pelas nossas transgressões. — Soou implacável. — Você conhece a pessoa que fugiu? — Ela pareceu sacudir a cabeça. — Ele será capturado. — Naquela manhã o abade já havia informado ao administrador da Floresta. — Creio que usarão cães farejadores.

Ela o deixou com um leve cumprimento da cabeça. E a pobre Mary, o coração disparado, correu todo o caminho de volta, através da charneca, até o local onde na noite anterior escondera o seu irmão Luke.

Tom Furzey cerrou os punhos. Eles agora iam ter o que mereciam. Já conseguia ouvir os cães à distância. Não era um homem ruim. Mas recentemente coisas ruins lhe andaram acontecendo. Às vezes mal sabia o que pensar.
Os Pride sempre acharam que ele era meio bronco. Sabia disso. Mas antes tudo era tão agradável e fácil. Todos faziam parte da Floresta: uma família só, por assim dizer. Mas o pônei — aquilo fora um choque. Se John Pride fora capaz de, sem mais nem menos, pegar um pônei procriado por uma égua sua, de Tom Furzey, sem qualquer permissão, que tipo de cunhado era esse? Ele me despreza, pensou Tom, e agora eu sei disso.

Era estranho. No primeiro dia não conseguiu acreditar inteiramente que aquilo acontecera, mesmo com a cria no curral de Pride, diante de seus próprios olhos. Em seguida, ao ser contestado, Pride apenas riu na sua cara.

Então Tom o chamou de ladrão. Diante de outras pessoas. Bem, ele era, não era? Depois disso as coisas se avolumaram como uma bola de neve.

Mas Mary: essa era outra questão. Naquele primeiro dia, após ela saber o que se passara entre ele e o seu irmão, fora à casa de Pride, muito à vontade, amigavelmente. ”Você não falou para ele devolver o pônei?”, bramira para ela. Mas os olhos dela pareciam vazios. Nem mesmo pensara em fazer isso. ”De que lado você está, afinal?”, ele berrou. O fato era que após anos de casamento ela não ligava a mínima para ele. Era essa a dolorosa verdade. Pobre velho Tom, um marido útil para Mary: isso é tudo o que eu sou para os Pride, concluiu.

Mas, fosse lá o que pensasse dele, ela lhe devia respeito como chefe de sua família. Que espécie de exemplo isso daria aos filhos, se ela deixasse que toda a Floresta percebesse a pouca consideração que tinha por ele? Ele não se deixaria passar por idiota. Bateu o pé no chão; proibiu-a de ir à casa de John Pride. Não era o certo? A irmã dele disse que era. Assim como muitos outros também. Nem todos na Floresta pensavam tão bem assim sobre os Pride e seu jeito arrogante.

Não era fácil, portanto, ver a própria esposa, dia após dia, ficar cada vez mais fria em relação a ele.

Pois bem, os Pride iam ser colocados em seu lugar naquele dia. E depois disso... Ele não sabia o quê. Mas, de qualquer modo, alguma coisa.

Sua mente estava repleta com esses pensamentos, quando avistou, a cerca de oitocentos metros de distância, Puckle cavalgando um pônei da Floresta. E parecia arrastar algo atrás de si.

Eram dez cavaleiros. Os cães faziam perseguição cerrada. O prior lhes dera o cheiro da roupa de cama do irmão Luke, e eles o seguiam a partir da granja. O administrador da Floresta comandava pessoalmente o grupo. Dois dos demais cavaleiros eram fidalgos florestais, dois outros, subflorestais, e o resto, criados.

Desde sua origem, New Forest sempre estivera dividida em áreas administrativas, conhecidas como bailiados, cada qual a cargo de um florestal, geralmente de uma família da pequena nobreza. Do lado ocidental havia os bailiados de Godshill, Linwood e Burley. Uma grande extensão de terreno logo a oeste do centro era conhecida como bailiado de Battramsley. Recentemente, porém, o maior de todos, o bailiado real central de Lyndhurst, que atravessava a charneca até Beaulieu, fora subdividido, e o vilarejo de Oakley, onde Pride e Furzey viviam, ficava dentro da parte meridional. Tudo era presidido pelo supervisor real, um amigo do rei, cujo administrador supervisionava por ele o dia-a-dia da Floresta. Chegando ao vilarejo, ficaram surpresos ao ver Tom Furzey diante deles, agitando os braços e gritando:

— Eu sei onde ele está.

O grupo parou. O administrador tinha um ar severo.

— Você o viu?

— Não é preciso. Eu sei onde ele está.

O administrador franziu a testa, em seguida deu uma olhada para o jovem louro e belo que cavalgava ao seu lado.

— Alban?

Philip lê Alban era um jovem fidalgo de sorte. Dois séculos antes, o seu ancestral Alban, nascido da normanda Adela e do marido saxão Edgar, não conseguira manter sua posição na crescente sociedade francesa da Inglaterra dos Plantageneta; mas os descendentes, que assumiram o seu nome por várias gerações, continuaram como subflorestais de vários bailiados e, como recompensa por esse longo serviço e porque ele tinha se casado bem, o jovem Philip lê Alban fora promovido a florestal do novo bailiado meridional. Ninguém conhecia melhor a Floresta ou os seus habitantes.

— Então diga onde ele está, Tom — pediu de um modo bastante solícito.

— Na casa de John Pride, é claro — berrou, e sem mais nada dizer virou-se e guiou-os naquela direção.

— O fugitivo e John Pride são irmãos — explicou Alban. E como os cães, era verdade, seguiam naquela direção abrangente, o administrador concordou bruscamente com a cabeça enquanto seguiam Tom.

Pride tinha saído, mas sua família estava em casa. Todos observaram em silêncio enquanto dois dos homens revistaram sem sucesso a cabana. O restante da pequena propriedade nada revelou.

Mas era para o estábulo que Furzey gesticulava intensamente.

— Ali — gritou. — Procurem ali.

Ele estava tão agitado que dessa vez todo o grupo, inclusive o administrador, aglomerou-se no interior do pequeno abrigo. Mas bastaram alguns momentos para se perceber que ninguém estava escondido ali.

Tom pareceu abatido. Contudo, não estava preparado para que a coisa ficasse assim.

— Ele estava aqui — insistiu; então, vendo os rostos descrentes, irrompeu para o lado de fora. — Onde é que vocês acham que John Pride está agora? Fazendo vocês de idiotas! Escondendo o irmão dele em algum lugar. — O pessoal já estava saindo. Aquilo não ia adiantar. — E olhem este pônei — gritou. — O que vão fazer a respeito? — A cria estava amarrada a um canto, piscando os olhos amedrontados em sua direção. — O pônei foi roubado. De mim!

Já estavam novamente do lado de fora. O plano dele se desintegrava. Tinha quase convencido a si mesmo que iam encontrar Luke, levar John Pride embora, acorrentado, e lhe devolver o seu pônei. Correu atrás deles.

— Vocês não entendem — berrou. — Eles são todos iguais, os Pride. São todos criminosos.

Dois dos homens começaram a rir.

— Então isso inclui a sua esposa, Tom? — perguntou um deles. Até mesmo Alban precisou conter o riso. Ao administrador, que olhava direto à frente, ele explicou que a mulher de Tom também era irmã do fugitivo.

— Que Deus nos ajude — exclamou irritado o administrador. — Não é sempre assim na Floresta? —E, virando-se para Tom, esbravejou: — Como diabos eu vou saber se você não o está escondendo? Vai ver que você deve ser o maior criminoso do grupo. Onde é que este homem mora? — Disseram-lhe. — Revistem a choça dele imediatamente.

— Mas... —Tom mal conseguia acreditar naquela reviravolta. Ainda gemeu: — E o meu pônei?

— Que se dane o seu pônei — praguejou o administrador, cavalgando na direção da cabana de Tom.

Também nada encontraram por lá. Mary tomara cuidado. Pouco depois, porém, os cães captaram o cheiro de Luke nas árvores das proximidades e o seguiram por mais de dois quilômetros.

Na verdade, enquanto o tempo passava, a rota que seguiam tornava-se bastante curiosa, serpeando, até finalmente completar um enorme círculo em volta de Lyndhurst, de onde, por assim dizer, prosseguia eternamente.

Não houvera ninguém para ver, umas duas horas antes, a solitária figura de Puckle em seu pônei, arrastando o feixe de roupas de Luke que Mary lhe dera.

— Maldita perda de tempo — observou o administrador para Alban. — Creio que aquele idiota esta manhã tinha razão. Os Pride o estão escondendo.

— Talvez — sorriu Alban. — Mas ninguém consegue se esconder para sempre na Floresta.

Quando veio a convocação do abade, em uma manhã de novembro, o irmão Adam estava bem preparado. Fizera o que o abade havia pedido um mês antes e chegara às suas conclusões. Por mais estranho que parecesse, dada a natureza mundana e política do assunto, ele descobrira que o seu ininterrupto período de meditação e estudos particulares lhe tinham dado força e certeza. Sua mente estava em paz.

E, alegrava-se em dizer, a abadia também. Outubro transcorrera mansamente. As aves migratórias tinham mudado de direção e seguido para o sul, através do mar. Então as nuvens cinzentas de novembro, como velas de uma embarcação secular, haviam sido içadas pelo céu na direção leste; as folhas amarelas dos carvalhos tinham caído sobre a ribanceira e nada perturbava o silêncio da abadia. Por ocasião da festa de São Martinho de Tours, em novembro, durante a corte primária da Floresta, a corte acessória, os couteiros reais haviam transferido o incidente na granja para julgamento da corte principal, que seria instalada a fim de satisfazer os fazedores de justiça do rei, quando estes visitassem a Floresta na primavera seguinte. O jovem Martell e seus amigos, prudentemente, entregaram-se aos xerifes de suas regiões, que os apresentariam na corte da primavera. Luke, o irmão leigo, ainda não fora encontrado. Bondosamente, o irmão Matthew quis perdoá-lo, mas o abade fora firmemente contra.

— A justiça precisa ser feita, em prol do nosso bom nome.

Ao se dirigir aos aposentos do abade, o irmão Adam observava prazeroso o cenário a sua volta. Acentuado pelo retinir do sino que, mais ou menos a cada três horas, convocava os monges para a oração, o mosteiro era sempre uma colméia de silenciosa atividade. Havia as oficinas de tecelagem e confecção de vestimentas e a usina de fiação na beira do rio, onde o produto das imensas tosquias de lã feitas na propriedade eram lavadas. O couro das ovelhas e do gado requeriam numerosos departamentos: um curtume — fedorento até fora do portão; uma pelaria para fabricar capuzes e cobertores de couro; uma sapataria — muito ativa, já que cada monge e irmão leigo precisavam de dois pares de botas ou de sapatos a cada ano. Perto dos claustros ficava o setor de pergaminho e encadernação. Havia um moinho de trigo, uma padaria, uma cervejaria, duas áreas de estábulos, um chiqueiro e um abatedouro. Com suas forjas, de carpinteiro e de cirieiro, duas enfermarias e um albergue com acomodações para viajantes — a abadia era como uma pequena cidade murada. Ou talvez, com os seus livros em latim e cerimônias religiosas, e os hábitos dos monges lembrando vestes romanas de mil anos antes, era mais como uma imensa vila romana.

Nada, refletiu Adam, era desperdiçado; tudo era aproveitado. Entre as várias edificações, por exemplo, o solo era cuidadosamente disposto em canteiros para ervas e vegetais. Frutas cresciam em caramanchões perto de paredes abrigadas, uvas para o vinho. Havia madressilvas para as abelhas cujas colméias, espalhadas pela área interna, forneciam mel e cera.

"Nós mesmos somos abelhas operárias", dissera uma vez brincando a um cavaleiro visitante. "Mas a rainha a quem servimos é a Rainha do Céu." Ele ficara bastante contente com esse conceito, embora tenha repreendido a si mesmo, posteriormente, por sucumbir tão facilmente ao pecado da vaidade.

Acima de tudo, a abadia era auto-suficiente. "Toda a natureza", gostava de destacar, "circula através da abadia. Tudo está em equilíbrio, tudo se completa. O mosteiro pode resistir, como a própria natureza, ao fim dos tempos." Tratava-se de uma máquina perfeita para se refletir sobre a extraordinária criação de Deus.

E era exatamente essa verdade que estava em sua mente quando entrou na sala do abade, sentou-se ao lado do prior, olhou fixamente à frente, e o monge superior dirigiu-se a ele, perguntando abruptamente:

— Bem, Adam, o que vamos fazer em relação a essas malditas igrejas?

Tratava-se de um fato curioso, nascido da experiência de séculos, que, se havia uma coisa que levava problemas e contendas a qualquer mosteiro, era, acima de qualquer coisa, a posse de uma igreja paroquial.

Por que seria? Uma igreja não era, por sua própria natureza, um lugar de paz? Na teoria, sim. Mas na prática igrejas tinham vigários, paroquianos e dignitários locais; e todos só discutiam sobre uma coisa: dinheiro.

Os dízimos da igreja — em geral cerca de um décimo da produção da paróquia — eram pagos pela paróquia para sustentar a igreja e o seu padre. Mas, se a igreja fosse uma posse do mosteiro, era o mosteiro que recolhia esse imposto e pagava ao vigário. Freqüentemente isso significava uma disputa com o vigário. Pior ainda, se uma comunidade cisterciense tivesse terras em uma paróquia, ela normalmente se recusava a pagar qualquer dízimo — uma antiga isenção garantia isso à ordem quando se tratava claramente de terra infértil usada para suas ovelhas, mas não era nada justo em relação às terras produtivas existentes. Isso enfurecia o vigário, os dignitários e paroquianos e geralmente levava a demandas judiciais.

E foi justamente a ameaça de uma disputa desse tipo que levara o abade a pedir ao irmão Adam que pesquisasse em todo o registro cartulário da abadia e fizesse uma recomendação. A igreja em questão ficava a cento e sessenta quilômetros de distância, além até mesmo da pequena abadia irmã de Newenham, no extremo ocidental da Cornualha, e fora doada à abadia várias décadas antes por um príncipe real.

O abade estava particularmente ansioso para resolver a questão, pois logo teria de partir, como os abades sempre o faziam, para participar do conselho e do Parlamento do rei — uma obrigação que talvez o mantivesse afastado por algum tempo.

— Tenho duas recomendações a fazer, abade — respondeu o irmão Adam.

A primeira é bastante simples. Esse vigário da Cornualha não tem o que demandar. O rendimento anual que ele recebe foi acordado com o seu predecessor e não há motivo para alterá-lo. Diga a ele que nós o veremos no tribunal.

— Isso mesmo. —John de Grockleton podia ter ciúmes de Adam, mas aprovava esse tipo de discurso.

— Você está certo de sua base legal? — quis saber o abade.

— Estou.

— Muito bem. Que assim seja — suspirou. — Envie um par de sapatos para ele. — O abade tinha uma comovente convicção de que qualquer um que precisasse ser aplacado capitularia alegremente diante do presente de um par dos bem-feitos sapatos da abadia. Durante um ano, ele presenteava mais de cem pares. — Você disse que tinha uma segunda recomendação?

O irmão Adam fez uma pausa. Ele não tinha ilusões a respeito da receptividade que ia ter.

— O senhor me pediu que revisasse todo o registro de nossas transações com as igrejas — iniciou cautelosamente —, e eu o fiz. Fora de Beaulieu, temos propriedades em Oxfordshire, Berkshire, Wiltshire e na Cornualha, de onde recebemos um grande rendimento das minas de estanho. Todas elas têm igrejas paroquiais. Também possuímos uma capela em outro lugar.

"E em cada um desses casos estivemos envolvidos em contendas. Em nove décadas, desde a fundação de Beaulieu, não encontrei nenhuma que estivesse livre de disputas judiciais com as igrejas. Algumas se arrastaram por vinte anos. Ainda brigarão com a gente na Cornualha, tenho certeza, muito tempo depois que todos nós estivermos debaixo da terra.

— Mas a abadia sempre conseguiu lidar com esses problemas, não? —- indagou o abade.

— Sim. Nossa ordem tornou-se muita habilidosa nesse tipo de coisa. Sempre consegue uma solução conciliatória. Nossos interesses sempre são protegidos.

— Então está tudo bem — interveio Grockleton. — Nós sempre vencemos.

— Mas — continuou delicadamente o irmão Adam — a que preço? Na Cornualha, por exemplo, fizemos algum bom trabalho? Não. Somos respeitados? Duvido muito. Odiados? Com certeza. Temos legalmente o direito sobre tais questões? É provável. Mas e moralmente? — Abriu os braços. — Somos muito bem-dotados apenas com Beaulieu. Não precisamos realmente dessas igrejas e dos seus rendimentos. — Fez uma pausa. — Ouso afirmar, abade, a esse respeito, que somos muito pouco diferentes dos clunistas.

— Os clunistas? — Grockleton quase saltou da cadeira. — Não somos em nada parecidos com eles.

— Nossa ordem foi criada exatamente para evitar os erros deles — concordou Adam. — E, após executar a tarefa da qual me incumbiu, abade, li novamente a carta régia de fundação da nossa ordem. A Carta Caritatis.

A Carta Caritatis — a Carta do Amor — dos cistercienses era um documento notável. Redigida pelo primeiro chefe de fato da nova ordem, por acaso um inglês, era um código de regras planejadas com a finalidade de garantir que os monges brancos mantivessem, sem desvios, a finalidade original da antiga Regra de São Bento. Sua intenção era exatamente que as comunidades cistercienses fossem modestas, simples e auto-suficientes, como forma de evitar as distrações dos enredamentos terrenos. E uma das imposições mais severas era a de que, em hipótese alguma, as comunidades cistercienses possuíssem igrejas paroquiais.

— Sem igrejas paroquiais — concordou o abade tristemente com a cabeça.

— Não seria possível — perguntou Adam com delicadeza — que Beaulieu trocasse essas igrejas por outras propriedades?

— Elas foram presentes reais — salientou o abade.

— Dados há muito tempo. Talvez o rei não se importasse.

O rei Eduardo I, poderoso legislador e guerreiro, passara grande parte de seu reinado subjugando os galeses e planejava fazer o mesmo com os escoceses. Talvez não estivesse interessado no que a abadia fizesse com as suas dotações. Mas nunca se sabia ao certo.

— Detestaria ter que perguntar a ele — confessou o abade.

— Bem — disse o irmão Adam com um sorriso. —Já satisfiz minha consciência em trazer o assunto perante o senhor. Nada mais posso fazer.

— Certamente. Obrigado, Adam. — Sinalizou, indicando que ele podia se retirar.

Por algum tempo, depois da saída dele, o abade permaneceu fitando o espaço em silêncio, enquanto John de Grockleton, as mãos de garra pousadas na beira da mesa, continuava sentado, olhando-o. Finalmente, o abade suspirou.

— Ele tem razão, é claro.

A garra de Grockleton fechou-se um pouquinho, mas ele não o interrompeu.

— O problema — prosseguiu — é que muitas outras comunidades cistercienses também possuem igrejas. Se criamos alguma comoção, talvez os outros abades não vejam isso com bons olhos.

Grockleton continuava olhando. Particularmente não dava a mínima para o fato de a abadia possuir uma dúzia de igrejas e esfolar a metade dos vigários da cristandade.

— Como abade — refletiu o abade —, é preciso ser cuidadoso.

— Muito — concordou Grockleton.

— A primeira recomendação dele é perfeitamente correta. Esse vigário da Cornualha precisa ser arruinado. — Ajeitou-se animado na cadeira. — O que mais temos para cuidar?

— A designação de tarefas, abade, enquanto estiver fora. Há duas nomeações que citou: o mestre de noviços e o novo supervisor das granjas.

Após o episódio violento envolvendo Luke na granja, o abade decidira que, durante pelo menos um ano, um monge confiável deveria atuar como supervisor permanente, visitando continuamente as granjas. "Quero que eles sintam", dissera, "uma mão de ferro." Não era uma tarefa agradável para um monge; ele perderia muitas das obrigações diárias na igreja. "Mas precisa ser feito", decretara o abade.

— O mestre de noviços — iniciou o abade. — O irmão Stephen precisa descansar, todos nós concordamos. Eu estava pensando no irmão Adam. Ele é extremamente bom com os noviços — assentiu contente.

A garra de Grockleton continuava pousada sobre a mesa. Quando falou, foi baixinho:

— Eu tenho um pedido a fazer, abade. Enquanto o senhor estiver fora, e eu ficar como encarregado, gostaria que não deixasse o irmão Adam incumbido dos noviços.

— Ah? — O abade enrugou a testa. — Por quê?

— Porque esse assunto das igrejas está na cabeça dele. Não duvido de sua lealdade à ordem...

— Claro que não.

— Mas se, por exemplo, um jovem noviço, ao ler a Carta Caritatis, perguntar... — Fez uma pausa teatral. — O irmão Adam talvez ache difícil não nos criticar... — Parou, e depois acrescentou, significativamente: — Isso me deixaria numa situação muito difícil. Não creio que eu seja adequado...

O abade fitou-o. Não se iludia. Já podia imaginar o desvelo de Grockleton para lhe assegurar que o irmão Adam se sentia constrangido. Por outro lado, não podia negar que havia um elemento de verdade no que dizia o prior.

— O que propõe? — indagou friamente.

— O irmão Matthew ainda está abalado. Mas ele daria um mestre de noviços perfeitamente adequado. Por que não deixar que o irmão Adam supervisione as granjas? Seu período de meditação, creio, deve tê-lo fortalecido para essa tarefa.

Que cachorro astucioso, pensou o abade. O último comentário foi uma cutucada nele por favorecer Adam com tarefas mais leves. A mensagem era clara: eu sou o seu substituto e fiz um pedido razoável. Se não der uma missão desagradável ao seu favorito, criarei problemas para ele.

Então um pensamento indigno ocorreu-lhe: se eu consigo tolerar o prior, Adam conseguirá tolerar as granjas por algum tempo. Sorriu amavelmente para o prior.

— Tem razão, John. E se, como desconfio, algum dia Adam vier a ser o abade, um abade reformista, talvez — e adorou ver Grockleton estremecer quando disse isso —, essa experiência poderá ser bastante útil para ele.

E, assim, antes de o abade deixar o mosteiro, ao final do ano, o irmão Adam foi designado para as granjas.

Em uma tarde invernal de dezembro, Mary caminhava apressada em direção a Beaulieu.

Um vento frio soprava às suas costas, empurrando-a pela pequenina trilha, enquanto as urzes lhe arranhavam as pernas. Para o norte, a distante fileira de árvores mergulhara abaixo da leve ondulação do terreno, fazendo com que a paisagem se parecesse com a tundra desértica que deveria ter sido havia milhares de anos. Atrás dela, acima da extensão de urzes pardas e tojos verde-escuros, colunas de nuvens com um leve brilho laranja seguiam inabaláveis ao longo da costa, ameaçando envolvê-la e sufocá-la enquanto ela seguia na direção leste, através da grande área deserta, entre o centro da Floresta e a abadia, que passara a se chamar Charneca de Beaulieu.

Não tinha a intenção de estar ali; fazia aquilo para agradar ao marido.

Durante o inverno Tom não trabalhava para a abadia, mas naquele ano os monges o haviam convocado para uma tarefa especial. Queriam uma carroça.

Tom não costumava trabalhar como carpinteiro. Era difícil convencê-lo a fazer qualquer coisa dentro de casa. Por algum motivo, porém, durante toda a vida sua imaginação fora alimentada pela idéia de construir carroças. Uma carroça feita por Tom Furzey era algo formidável, com um suporte como base e estruturas nos quatro lados, cada qual podendo ser removida. Cada viga se encaixava caprichosamente com seu par. As carroças de Tom eram sempre iguais e para durar até o dia do juízo final. Mas ele nunca fazia as rodas. "Isso é trabalho para fazedor de rodas", dizia. "Eu faço a carroça e ele a faz andar. É assim que encaro essa coisa. Ele parecia gostar de se alongar nessa questão.

Certa vez, quando ainda se falavam, John Pride o fez confessar que não gostava da idéia de fazer rodas porque elas eram redondas. "Se elas pudessem ser quadradas, você as faria, não é mesmo, Tom?”, perguntou complacente.

E Tom, para deleite de Pride, respondeu pensativo: "Creio que sim."

E assim Tom foi trabalhar na carroça da abadia. Isso tinha sido há dez dias. Ele levaria pelo menos seis semanas para terminá-la e, enquanto isso, ficava na Granja St. Leonards. De vez em quando, Mary ia visitá-lo lá. Nesse dia ela prometera levar-lhe alguns bolos. Estava especialmente ansiosa para fazê-lo, porque se sentia culpada pelo fato de se sentir feliz por ele estar longe — primeiro, por causa do mau humor de Tom; e, em segundo lugar, por causa de Luke.

Em seu estranho modo sonhador, Luke parecia quase feliz por viver pela Floresta. Mesmo com o tempo cada vez mais frio, sempre conseguia, de algum modo, um covil aconchegante. "Eu sou apenas um animal da floresta", dissera para ela, satisfeito. E sempre lhe afirmava que conseguia se alimentar. Mas, como ela frisava, "os próprios veados precisam ser alimentados por outros". Portanto, assim que Tom partiu para a St. Leonards, Mary levou Luke para o seu pequeno estábulo. Ninguém, nem mesmo o irmão dela ou os filhos, sabia que ele estava lá, sendo alimentado e dormindo. Ela não sabia quanto tempo aquilo poderia durar; e sentia medo. Mas o que mais poderia fazer?

Ao atingir o limite das terras cultivadas que ficavam em volta da granja, o vento ficou mais forte. Havia uma fria umidade em sua nuca. Olhando para trás, viu que as nuvens amareladas se concentravam na Charneca de Beaulieu, provocando neviscadas no lado oeste. Por um instante pensou se deveria voltar, mas decidiu continuar, pois já tinha ido tão longe.

O irmão Adam olhou contente para a porta da granja. A neviscada, embora parecesse tão macia, começara a pinicar o seu rosto.

Havia cinco granjas a sudoeste da abadia: Beufre, o principal centro de bois de arado; Bergerie, onde todas as ovelhas eram tosquiadas; Sowley, próximo ao litoral, onde os monges haviam construído o imenso lago para peixes; Beck; e, mais perto da boca do estuário do rio, a St. Leonards. Naquele dia ele já tinha estado em Bergerie e à noite pretendia voltar caminhando da St. Leonards até a abadia.

As duas últimas semanas tinham sido exaustivas. Dentro do Grande Cercado, além das cinco no sudoeste, havia mais dez granjas ao norte da abadia e outras três do lado oriental do estuário de Beaulieu. Além disso, existia a cadeia de pequenas propriedades pelo vale do Avon, a oeste da Floresta, que supria a abadia com o feno dos seus ricos prados. E havia outras mais distantes que ele ainda não levara em conta. Não tivera descanso. O prior cuidava para que não tivesse. O período de contemplação do qual desfrutava fora totalmente arruinado.

Empurrou a porta da granja para abri-la. A meia dúzia de irmãos leigos pareceu assustada ao vê-lo. Ótimo. Ele já aprendera a aparecer de repente, como um mestre-escola. Mal parou para sacudir a neve.

— Primeiro — avisou severamente — vou inspecionar os estoques de alimentos.

A Granja de St. Leonards era uma instalação tipicamente cisterciense. O prédio de habitação era uma estrutura comprida, de um único andar, com uma porta de carvalho no meio. Ali os irmãos leigos viviam em condições espartanas, retornando à domus da abadia nos festivais e principais dias santos, e de tempos em tempos sendo substituídos pela central. Cerca de trinta dos aproximadamente setenta irmãos leigos se encontravam normalmente nas granjas.

— Até agora, tudo bem — disse-lhes Adam, depois de procurar sinais de furtos ou consumo ilícito de bebidas. — Agora, vejamos o estábulo.

Era estranho, refletia, que, apesar de ver os irmãos leigos diariamente, durante anos, ele nunca os tivesse conhecido na realidade. A imensa domus conversorum deles podia ocupar todo o lado oeste do claustro, mas ao mesmo tempo era totalmente separada até mesmo da parede do claustro por uma estreita alameda. Era necessário dar a volta pelo lado de fora para se ter acesso à domus. Na igreja os monges cantavam no coro, e os irmãos leigos, na nave. Comiam separados.

Até então ele nunca havia percebido que os tratava com superioridade. Era verdade que achava necessário tratá-los como crianças pequenas, a fim de garantir a disciplina nas granjas. Contudo, eles também eram homens. Sua obrigação perante a abadia não era menor do que a dele. Pensavam com menor intensidade do que eu, refletia: cada dia eu avaliava minha vida pelo que havia pensado a respeito de Deus, dos meus semelhantes ou do mundo em volta da abadia. Entretanto, o jeito deles era sentir essas coisas, e se lembravam dos dias pelo modo como se sentiram em relação a eles. Talvez por isso mesmo, por pensarem menos e sentirem mais, se lembrassem mais do que eu.

Se o prédio da habitação era modesto, o resto das edificações da granja não o era. Havia curral para gado e cocheiras — mesmo a St. Leonards costumava ter uma centena de bois e setenta vacas para serem cuidados. Havia apriscos e chiqueiros. Mas, acima de tudo, estava o imenso celeiro. Era do tamanho de uma igreja, construído em pedra, com maciços caibros de carvalho. O trigo e a aveia eram empilhados lá em enormes sacos; como também todo o equipamento agrícola. Num lado, uma montanha de samambaias, usadas como palha para deitar. Havia até mesmo uma eira para a debulha. E naquela ocasião, no meio do seu cavernoso espaço, iluminado fracamente por alguns lampiões, encontrava-se a carroça recém-iniciada de Tom Furzey.

Ao esquadrinhar as sombras, porém, havia algo mais que atraiu o olhar de Adam: uma figura ao lado do camponês em meio à penumbra. A não ser que estivesse equivocado, tratava-se de uma mulher.

Não era permitido mulheres na abadia. Uma dama importante podia visitá-la, é claro, mas não podia passar a noite, nem mesmo nos aposentos reservados aos convidados reais. As companheiras dos trabalhadores contratados podiam visitá-los nas granjas, mas, como o abade havia deixado bem claro para ele, "não podiam se demorar. E nunca, em hipótese alguma, passar a noite".

Portanto, foi até os dois.

Ela estava sentada no chão, ao lado de Furzey. Ao se aproximar, ambos se levantaram, respeitosamente. A mulher usava uma espécie de xale na cabeça e olhava para baixo, humildemente, e ele não conseguia ver direito o seu rosto.

— É a minha esposa — explicou o camponês. — Ela me trouxe uns bolos.

— Entendo — retrucou. Ele não queria ofender Furzey, mas achou melhor agir com firmeza. — Receio que ela deva partir antes do anoitecer, você sabe, e já está ficando escuro. — O sujeito pareceu aborrecido, mas, embora ela não tivesse levantado a vista, pareceu a Adam que a mulher não se importava. — A carroça do seu marido vai ficar magnífica — falou num tom amistoso antes de virar na direção dos outros.

Gastou algum tempo conversando enquanto vistoriava o celeiro e, quando terminou, não ficou surpreso ao ver que a mulher tinha ido embora. Pretendendo ele mesmo percorrer a pé o caminho de volta até a abadia, foi até a pequena porta de entrada do imenso celeiro e a abriu.

A tempestade de neve atingiu-o como um soco. Mal podia acreditar. As grossas paredes do celeiro haviam abafado por completo o ruído do vento, enquanto ele aumentava: no pouco tempo em que estivera lá dentro, a neviscada havia se transformado em rajadas, e as rajadas em uma vociferante tempestade. Mesmo ao abrigo do celeiro, os flocos de neve açoitavam o seu rosto. Virando-se na direção do vento, precisou piscar para enxergar. Percorrer mesmo os cinco quilômetros até a abadia parecia uma loucura. Era melhor permanecer na granja.

Então lembrou-se da mulher. Deus do céu, ele a mandara embora com aquele tempo. E que distância ela teria que percorrer? Oito quilômetros? Quase dez. Através da charneca a céu aberto direto para a boca da tempestade. Enfiando-se rapidamente de volta ao celeiro, chamou Tom e dois dos irmãos leigos.

— Agasalhem-se rapidamente. Tragam um cobertor de couro. — Parando apenas o suficiente para localizar a trilha pela qual ela devia ter seguido, avançou pela neve, deixando-os para trás, tentando alcançá-la.

De acordo com a hora, ainda era de tarde. Em algum lugar acima a escuridão não teria baixado. Mas ali embaixo a luz fora eliminada. Diante dele, ao mergulhar à frente, nada havia além da ofuscante fúria esbranquiçada atacando o seu rosto, como se Deus houvesse convocado das terras do norte uma nova praga de gafanhotos. A neve caía quase que horizontalmente, envolvendo tudo, de modo que apenas a metros de distância o mundo parecia sumir em meio a uma cinza opacidade.

Meu Deus, como iria encontrá-la? Ela ia morrer? Ia se juntar aos veados e pôneis que, em várias dúzias certamente, seriam encontrados rígidos no solo depois de uma noite como aquela?

Ficou bastante surpreso, portanto, após deixar para trás a última sebe, ao ver bem diante de si um vulto escuro, como uma trouxa de roupas, pelejando à frente em meio à nevasca. Ele gritou, engolindo dezenas de flocos de neve, mas ela não o ouviu. Somente quando se aproximou e lhe envolveu os ombros com um braço protetor é que a mulher percebeu a presença dele. Sentindo-a sobressaltar-se de medo, afastou-a da fúria avassaladora da tempestade.

— Venha.

— Não posso. Preciso ir para casa. —Tentou mesmo empurrá-lo delicadamente e retomar sua jornada impossível.

Quase surpreso consigo mesmo, porém, ele a agarrou firmemente.

— O seu marido está aqui — avisou, embora não conseguisse vê-la. E, mostrando o caminho, conduziu-a de volta.

A nevasca daquela noite foi pior do que qualquer outra que a Floresta conseguia lembrar. No litoral, a tempestade de neve parecia ter se tornado uma coisa só com o mar agitado. Em volta da Granja St. Leonards, imensas quantidades de neve carregadas pelo vento se empilhavam ao longo das sebes, cobrindo-as totalmente. O vento sobre a Charneca de Beaulieu era um assobio ensurdecedor ou um intenso lamento branco. E, mesmo quando um leve acinzentar na escuridão indicou que a manhã já devia ter chegado, a nevasca prosseguia, bloqueando a luz.

Para o irmão Adam, seu dever era evidente. Não podia voltar à abadia; teria de ficar na granja e fornecer toda a liderança espiritual possível. No caminho de volta ao celeiro reconheceu a mulher como aquela que lhe perguntara sobre o irmão Matthew. Ficou contente por ter salvo da tempestade uma alma tão boa.

Os preparativos foram bastante simples. Mandou que armassem no celeiro um braseiro repleto de carvão. Furzey e a esposa poderiam passar a noite ali, enquanto ele e os outros permaneceriam na habitação. E, a fim de que não houvesse qualquer mal-entendido em relação à situação, convocou todos ao celeiro, depois da refeição da noite, e após algumas orações fez um pequeno sermão para o grupo.

Naquela noite fria próxima do Natal, disse-lhes, por terem encontrado abrigo, como a Sagrada Família, em um humilde celeiro, gostaria de lembrar-lhes que todos tinham um lugar honrado e apropriado aos desígnios de Deus. As duas categorias de monges da abadia, explicou, eram como Maria e Marta. Maria, a devota, talvez tivesse a melhor parte, como os monges do coro. Mas Marta, a trabalhadora leal, também era necessária. Pois de que modo a abadia conseguiria manter a sua vida de orações sem o trabalho árduo dos irmãos leigos? E eles também não precisavam da ajuda dos bondosos camponeses que viviam do lado de fora da ordem religiosa? Claro que sim. E, por último, o bondoso camponês Tom não precisava do apoio de sua esposa, igualmente humilde, mas ainda assim amada por Deus?

— Devem estar se perguntando — disse ele — por que essa mulher teve permissão para permanecer aqui esta noite. A regra do abade não foi ignorada. Nenhuma mulher no Grande Cercado. — Olhou-os com severidade. — Mas — prosseguiu — Nosso Senhor também nos ordena ter piedade. Ele mesmo não salvou uma mulher, acusada de adultério, do apedrejamento? É por isso, com a autoridade que me foi dada pelo abade, que permitimos que essa boa mulher permaneça aqui nesta noite terrível e fique abrigada da tempestade.

Em seguida, abençoou-os e se retirou.

Quando, no dia seguinte, a nevasca continuava com a mesma intensidade — às vezes quase derrubando-o nas ocasiões em que ele abria a porta —, a pobre mulher passou a ficar cada vez mais aflita por causa dos seus filhos. Mas Furzey lhe garantiu que a irmã dele e os outros aldeões cuidariam deles e proibiu a mulher de ir embora. E, assim, com o braseiro fornecendo calor e Tom trabalhando na carroça, ela deixou-se ficar, e três vezes, durante aquele dia, o irmão Adam proferiu simples orações junto com todos eles.

Como ansiava por voltar! Não queria mesmo era ficar com Tom. Sua filha mais velha cuidaria dos filhos mais novos, mas deviam estar apavorados com a possibilidade de ter acontecido algo com ela. Além do mais, havia Luke.

O que ele faria? Devia ter ficado imaginando onde ela podia estar, por não ter aparecido na noite anterior. Tentaria investigar na cabana? E se as crianças o vissem? O dia todo ela esperou que a nevasca abrandasse.

Não havia muito o que fazer. Vez por outra o irmão Adam aparecia, e ela se descobria observando-o com interesse. Os irmãos leigos, podia perceber, o achavam distante. Tom observara com um dar de ombros: "Ele é arredio." Mas, por outro lado, Tom não ligava muito para uma pessoa que não pertencesse à Floresta.

O monge viera de um outro mundo, com certeza. Mas, ao lembrar do modo como Adam a tirara do meio da tempestade, não achava que ele fosse frio. Não dizia nada, porém. Quando rezava com eles, na semi-obscuridade do grande celeiro, sua voz suave transmitia tanta convicção emudecida que ela se impressionava. Supunha que ele devia ser muito mais inteligente do que a gente simples como ela; no entanto, bem dentro dela, uma vozinha talvez sugerisse: você também conseguiria ler, escrever e saber o que ele sabe. Se fosse isso mesmo, contudo, ela só poderia responder, suspirando: só em uma outra vida. Até lá o monge tinha algo que ela não tinha. Não disse isso a Tom, mas achava o irmão Adam, do jeito dele, é claro, uma pessoa bem interessante.

Foi apanhada totalmente de surpresa, no final da tarde, quando a pequena porta do celeiro se abriu, revelando um curto gemido do vento, e se fechou rapidamente atrás do monge, que avançou até as proximidades do braseiro e acenou para ela. Ela se aproximou, obediente. Nada mais havia que pudesse fazer.

Por um instante ficou parado, observando-a com curiosidade. Ela notou que ele era corpulento como Tom, mas um pouquinho mais alto. Na incandescência do braseiro atrás dos dois, que aquecia as costas dela, os olhos dele pareciam estranhamente escuros. Tom, trabalhando a poucos metros dali, sob a luz do lampião, parecia apartado deles, em um outro mundo.

— Eu não sabia quando você falou comigo no portão da abadia... — Ele se lembrava dela, afinal. — Acabei de saber que Luke, o fugitivo, é seu irmão.

Notou que ele falava baixinho, para Tom não ouvir.

Sentiu um frio na espinha. Não conseguia olhar nos olhos dele. Seu parentesco era do conhecimento geral, é claro, mas nas mãos daquele homem aquilo parecia mais perigoso. Baixou a cabeça.

— Sim, é meu irmão. Pobre Luke.

— Pobre Luke? Talvez. — Uma pausa. Em seguida, bem suavemente: — Sabe onde ele está?

Olhou-o, então, bem nos olhos.

— Se nós soubéssemos, irmão, vocês já teriam sabido. Entenda, acho que ele não devia ter fugido, já que é inocente. E, de qualquer modo, meu marido o teria entregue.

Conseguia olhá-lo nos olhos, porque, tecnicamente, falara a verdade. Tinha dito "nós".

— Talvez você pudesse saber, não?

Ela tinha noção do cheiro do seu hábito. Um cheiro de vela na lã molhada. Sentia o cheiro dele também. Um cheiro bom.

— Ele poderia estar agora do outro lado da Inglaterra — disse ela, suspirando. Isso também era verdade. Poderia estar.

Adam parecia pensativo. Quando fazia uma pergunta, as linhas da testa enrugavam. Mas quando pensava, pendia a cabeça levemente para trás, e as linhas suavizavam de um modo agradável.

— Você me disse naquela manhã na abadia — falou com cautela — que talvez tivesse sido um acidente... que ele talvez não tivesse tido a intenção de atingir o irmão Matthew. — Ela permanecia em silêncio. — Se foi o caso, creio que ele deveria aparecer e dizer isso.

— Acho que ele jamais voltará aqui — respondeu ela com tristeza. — Terá que caminhar até os confins da terra. — Não tinha certeza se aquilo satisfez o monge.

Então ela fez algo que nunca havia feito anteriormente.

Como uma mulher faz com que um homem saiba que ela o deseja? Isso pode ser conseguido com um sorriso, um olhar, um gesto. Mas esses sinais externos não abalariam um monge como o irmão Adam. Assim, ela simplesmente ficou parada diante dele e transmitiu o sinal simples e primitivo: o calor de seu corpo. E o irmão Adam sentiu — como não sentiria? — aquela invisível, inconfundível e radiante calidez que ia do estômago dela para o dele. Em seguida, ela sorriu, e ele se virou, confuso.

Por que fizera aquilo? Era uma mulher honesta. Não era de flertar. Agiu por um instinto primitivo. Quis sugerir uma intimidade e uma atração que, ainda que o chocassem, desviariam a atenção do monge. Ela precisava abrir uma trilha falsa para proteger seu irmão.

Momentos depois o irmão Adam deixou o celeiro.

A tempestade não cedeu. Colocaram carvão no braseiro para uma segunda noite. Novamente, após a refeição, o irmão Adam proferiu com eles uma oração. Mas horas depois, sozinha com o marido e com apenas a incandescência do carvão se revelando na escuridão cavernosa do grande celeiro, ela se permitiu um sorriso levemente irônico quando, depois que Tom levantou de cima dela os seus roliços quadris, fechou os olhos e pensou secretamente no irmão Adam.

Era tarde da noite, quase no horário do serviço noturno, quando o irmão Adam acordou de um sono espasmódico e ficou ciente de que o lamento do vento lá fora tinha parado e que tudo em volta da granja estava em silêncio.

Levantando-se do banco em que dormia, repassou um dos Salmos e orações para si mesmo, num sussurro. Em seguida, não satisfeito, sussurrou um pai-nosso. Pater Noster, qui es in coelis: Pai Nosso, que estais no céu...

Amém. A noite. O momento em que a voz silente do universo de Deus baixa sobre ele. Por que então se sentia tão desassossegado? Levantou-se, quis andar de um lado para o outro, mas não poderia fazê-lo sem acordar os irmãos leigos. Voltou a se deitar.

A mulher. Sem dúvida estava dormindo com o marido no celeiro. Uma boa mulher, talvez, do jeito dela. Como todas as camponesas, tinha bochechas levemente vermelhas e cheirava a terra. Ele fechou os olhos. O calor dela. Jamais sentira antes uma coisa assim. Tentou dormir. O tal de Furzey. Teria feito amor com ela no celeiro esta noite? Estariam fazendo aquilo, naquele momento, enquanto ele se encontrava deitado ali em silêncio? O fabricante de carroças estaria envolvido por aquela calidez?

Abriu os olhos. Deus do céu, em que pensava ele? E por quê? Por que seu pensamento se demorava nela? Em seguida, suspirou. Devia logo ter percebido. Era apenas o demônio, com os seus truques habituais: um pequeno teste de fé, um novo teste.

O demônio estaria então naquela mulher? Claro. Desde o princípio, o demônio estivera em todas as mulheres. Quando naquela tarde ela ficara na frente dele, daquela maneira, talvez ele devesse ter lhe falado severamente. Mas na verdade era apenas o demônio que a estava usando; do mesmo modo como usava a imagem dela, naquele momento, para distraí-lo. Voltou a fechar os olhos.

Mas não dormiu.

A manhã estava fulgurante. O vento tinha parado. A imobilidade era total. O céu estava azul. Beaulieu, sua abadia, suas plantações, suas granjas, tudo estava alcatifado e coberto por um macio manto branco.

Ao sair da granja, o irmão Adam viu, pelas pegadas que vinham da porta do celeiro, que a mulher já havia partido. E durante um longo tempo, antes de conseguir se recobrar, ele pensou nela, caminhando sozinha pela deslumbrante charneca branca.

No final de fevereiro, Luke desapareceu e Mary não sabia se estava aliviada ou triste.

Logo que a neve derreteu no final de janeiro, ele passou a sair antes do amanhecer e só retornava quando anoitecia. O pavor dela era que ele poderia deixar pegadas denunciadoras no chão geado, mas, de algum modo, não deixava, e todos os dias ela ocultava um pouco de comida no palheiro onde ele se escondia.

Por todo o mês de janeiro, enquanto Tom trabalhava em St. Leonards, ela saía sorrateira, depois que os filhos tinham adormecido, e então, sentando-se lado a lado, como faziam quando eram crianças, os dois conversavam. Por várias vezes discutiram o que ele deveria fazer. A Corte da Floresta só se reuniria em abril. A corte dos couteiros só enviara o caso para ela; portanto, até lá não se sabia com certeza a seriedade com que ela iria encarar a questão de Beaulieu. Eles discutiam a sugestão do irmão Adam, de que Luke deveria se entregar, mas este sempre sacudia a cabeça.

— Para ele, é fácil falar. Mas com o abade e o prior me renegando, não se sabe o que vai acontecer. Deste modo, pelo menos estou livre.

Para ela, era uma alegria ter alguém de sua família com quem conversar. E que conversas tiveram. Ele descrevia a abadia, o prior com o seu andar encurvado e as mãos de garra, cada irmão leigo e monge, até ela rir tanto que ele temia fosse acordar as crianças. Entretanto, havia algo de tão meigo e simplório em Luke, que ele nunca parecia odiar ninguém, nem mesmo Grockleton. Indagou-lhe sobre o irmão Adam.

— Os irmãos leigos não sabem ao certo o que pensar dele. Mas os monges todos o adoram.

De certa maneira, por causa de seu jeito meigo e sonhador, Mary não se surpreendeu quando Luke entrou para o grupo dos irmãos leigos; mas uma vez não resistiu e perguntou:

— Você nunca desejou uma mulher, Luke?

— Não sei realmente — respondeu com naturalidade. — Nunca tive uma.

— Isso não o incomoda?

— Não — respondeu, rindo. — Sempre há tanta coisa além disso para se fazer na Floresta, não é mesmo?

Ela sorriu, mas não voltou a tocar no assunto. Com ele escondido, não fazia muito sentido.

Também debateram a discórdia entre Furzey e Pride por causa do pônei. Ele era solidário com a irmã, é claro, mas neste caso, achava ela, Luke mostrava o lado irresponsável, quase infantil, de sua natureza.

— O pobre velho Tom jamais terá o pônei dele de volta. Isso é certo.

— Há quanto tempo já dura essa disputa?

— Uns dois anos.

Quando Tom voltou para casa, no final de janeiro, os encontros entre os dois tiveram de ser restringidos — apenas uma troca de palavras, vez por outra. E, como não havia sinais de que a disputa fosse terminar, ela se sentia quase como uma prisioneira. Luke sumia antes do amanhecer e voltava depois que escurecia, e apenas a vasilha de madeira vazia revelava que ele estivera por lá. Então ele lhe disse que ia embora.

— Para onde?

— Não posso dizer. É melhor você não saber.

— Vai deixar a Floresta?

— Talvez. Talvez seja melhor.

E, assim, ela o beijou e deixou que se fosse. O que mais poderia fazer? Contanto que ele estivesse a salvo, era tudo o que importava. Mas ela se sentia muito solitária.

Na quinta-feira, depois da festa de São Marcos Evangelista, no vigésimo terceiro ano do reinado do rei Eduardo — ou seja, em um úmido dia de abril do Ano de Nosso Senhor de 1295 —, no grande salão da casa real de Lyndhurst, a corte de New Forest se reuniu em sessão solene.

Tratava-se de uma cena impressionante. Das paredes do salão, alternando-se com esplêndidas tapeçarias, pendiam galhadas de grandes veados-nobres. Presidindo tudo, em uma cadeira de carvalho escurecido colocada sobre um estrado na parte da frente, o magistrado da Floresta resplandecia com uma túnica verde e um manto carmesim. Assessorando-o, igualmente sentados em cadeiras de carvalho, havia quatro couteiros, que atuavam como magistrados e legistas e dirigiam a Corte Acessória de primeira instância. Os florestais e os posteiros, que eram responsáveis por todo o rebanho que pastava na Floresta, também se encontravam presentes. De cada um dos vilarejos, ou vills, como eram chamados, vieram representantes para relatar quaisquer crimes que tivessem sido cometidos por lá. A corte, enfim, era assistida por um júri de doze cavalheiros de reputação na região. Qualquer homem acusado de um delito grave podia, se quisesse, pedir que esse júri decidisse sua inocência ou culpabilidade. O rei gostava dos júris e incentivava sua utilização. Apesar de não ser obrigatório, muitos optavam por um julgamento pelo júri.

Naquele dia o prior também havia comparecido, já que o abade continuava envolvido com os assuntos do rei. Dois xerifes dos condados vizinhos vieram com o jovem Martell e seus amigos. Fazia muito tempo que não se juntava tal multidão, e o salão estava comprimido com espectadores.

— Ouçam! Ouçam! Ouçam! — gritou o meirinho. — Para todas as espécies de pessoas que tenham quaisquer representações a fazer, esta corte está em sessão.

Havia um grande número de casos a serem julgados, dizendo respeito a assuntos corriqueiros. Alguns, delitos florestais. Todos os casos de veação eram automaticamente enviados para a corte da Floresta. Assim como os crimes contra a paz do rei. Casos cíveis entre as partes também costumavam ser levados à corte superior.

Os trabalhos prosseguiram por toda a manhã. Um sujeito havia roubado lenha da Floresta. Outro fizera um assart ilegal de terra. Um dos vills deixara de comunicar sobre um veado morto dentro de seus limites. A vida na Floresta não havia mudado muito. Mas, se um florestal da época de Rufus estivesse ali presente, notaria uma diferença. Conquanto a lei florestal normanda tivesse sido imaginada, com suas mutilações e mortes, para castigar e amedrontar as pessoas, há muito se conseguira um acordo entre o monarca e o seu povo da Floresta, mesmo na corte mais formal. Não havia mais mutilações. Apenas os criminosos mais freqüentes eram enforcados. A pena para quase todos os delitos era uma multa. A parte culpada era "penitenciada" ou "multada" com uma quantia. E, ainda assim, isso variava de acordo com as posses do infrator. Um pobre, que fora multado em seis pence na corte anterior, não pôde pagar e foi desobrigado. Muitas das multas por avanços em terras da coroa se repetiam tanto que automaticamente se viam julgadas em uma corte após outra e eram na realidade aluguéis pagos por arrendamento ilegal. Vizinhos mais prósperos eram fiadores de outros para garantir o pagamento das multas destes ou do seu comportamento no futuro. A lei na Floresta, como em qualquer outro lugar da Inglaterra plantageneta, baseava-se no bom senso e nas questões comunitárias.

Finalmente, pouco depois do meio-dia, chegaram ao caso Beaulieu.

Foi exposto que na sexta-feira anterior à última Festa de São Mateus, Roger Martell, Henry de Damerham e outros entraram na Floresta com arcos e flechas, cães de caça e galgos, para causar dano aos veados...

A acusação, que seria anotada nos registros da corte em latim, foi lida pelo meirinho. Forneceu os detalhes exatos do que os caçadores clandestinos haviam feito e não houve contestação. Todos eles se colocaram à mercê da corte. O juiz olhou-os com severidade, enquanto o pessoal da floresta presente no salão ouvia atentamente.

— Trata-se de um delito de veação, realizado, com um claro desprezo pela lei, por aqueles que em virtude de sua posição não deveriam fazê-lo. E isso não será tolerado. Serão multados da forma que se segue: Will atte Wood, meio marco. - Pobre Will. Uma multa pesada. Dois de seus primos serviram de fiadores, e ele teria um ano para fazer o pagamento. Todos os demais habitantes locais, que faziam parte do grupo, receberam a mesma multa.

Em seguida, foi a vez dos jovens fidalgos: cinco libras cada um — quinze vezes a quantia dos homens da Floresta. Era justo. Finalmente, o juiz se dirigiu a Martell.

— Roger Martell. O senhor foi, sem dúvida, o líder desses malfeitores. Levou-os à granja. Abateu o veado. E também é um jovem de posses. — Fez uma pausa. — O rei pessoalmente não achou nada divertida essa questão. O senhor será multado pela quantia de cem libras.

Um arfar coletivo. Os dois xerifes pareceram abalados. Tratava-se de uma multa extraordinária, mesmo para um rico proprietário de terras; e também ficara bem claro que o próprio rei Eduardo a aprovara previamente. Um desfavor real. Martell ficou branco como um lençol. Teria de vender terras ou perder seus rendimentos por quase um ano. Apesar de sua aparência viril, ele ficou visivelmente chocado.

Mas o burburinho apenas tinha começado na corte, quando o magistrado perguntou bruscamente ao meirinho:

— Bem, e quanto a esse irmão leigo?

Novamente a sala do tribunal ficou silenciosa. Luke era um dos Pride. Havia muito interesse. Quase no fundo do salão, Mary se esforçava para ouvir cada palavra.

O caso contra Luke era menos claro.

— Em primeiro lugar — anunciou o meirinho —, ele deu abrigo aos malfeitores na granja. Em segundo, estava em conluio com eles. Em terceiro, atacou um monge da abadia, o irmão Matthew, que tentava evitar a entrada dos caçadores na granja.

— A abadia está representada? — indagou o juiz.

John de Grockleton levantou sua garra, e um instante depois o irmão Matthew e três dos irmãos leigos estavam com ele diante do magistrado.

O juiz naturalmente fora colocado bem a par dos fatos pelo administrador, mas havia alguns aspectos na questão de que ele não gostava.

— Os senhores se recusam a assumir a responsabilidade por esse irmão leigo?

— Nós o repudiamos completamente — afirmou o prior.

— A acusação diz que ele estava em conluio com esses caçadores. Presumivelmente porque ele os deixou entrar na granja?

— Que outra explicação seria possível? — alegou Grockleton.

— Eu poderia dizer que ele talvez tivesse ficado com medo deles.

— Eles não usaram violência — observou o meirinho.

— Isso é verdade. Bem, e quanto à agressão? — dirigiu-se ao irmão Matthew.

— Bem... — O rosto bondoso do irmão Matthew revelava algum constrangimento. — Quando Martell se recusou a sair com os seus comparsas ofendidos,

receio que o tenha atacado com um cajado. O irmão Matthew pegou uma pá, brandiu-a e quebrou o cajado. Em seguida a pá atingiu minha cabeça.

— Entendo. Esse irmão leigo era seu inimigo?

— Ah, não. Muito pelo contrário.

A garra de Grockleton foi arremessada para cima.

— O que prova que ele devia estar em conluio com Martell.

— Ou tentando evitar que esse monge iniciasse uma briga.

— Devo confessar — disse o irmão Matthew, conciliatório — que eu mesmo pensei nisso depois.

— O irmão Matthew é muito bondoso, juiz — atalhou o prior. — É clemente demais em seu julgamento.

Foi nesse momento que o magistrado decidiu que não gostava mesmo de Grockleton.

— E então ele fugiu? — continuou.

— Ele fugiu — concordou Grockleton, decisivo.

— Por que diabos o abade não o penalizou pela agressão a esse monge?

— Ele foi expulso da ordem. Nós estamos aqui para processá-lo — respondeu Grockleton.

— Ele não está presente, suponho. — Cabeças se sacudiram. — Muito bem, então. — Olhou para o prior, com repugnância. —Já que ele pertencia à abadia por ocasião do crime e se encontrava dentro do Grande Cercado, o senhor se dá conta de que é responsável pelo comparecimento dele, não é mesmo?

— Eu?

— O senhor. A abadia. Claro. Por causa do não-comparecimento dele, a abadia será multada. Duas libras.

O prior ficou vermelho. Todo mundo sorria na sala.

— Lamento por ele não estar aqui para se defender — continuou o juiz —, mas aí está. A lei segue o seu curso. Já que se trata de um delito grave e ele não se encontra presente, não há outra opção. Que seja constrangido e, se não aparecer na próxima corte, proscrito.

De seu lugar, lá atrás, Mary ouviu com tristeza.

Constrangido: significava que ele teria de se apresentar. E proscrito? Tecnicamente, significava ser um fora-da-lei. Não podia ser abrigado por ninguém; podia até mesmo ser morto impunemente. Não tinha direitos. Uma sanção violenta.

Se ao menos Luke tivesse se apresentado. O irmão Adam, o monge inteligente, estava certo. Luke subestimara o bom senso da corte. Era óbvio que o juiz estava inclinado a lhe dar o benefício da dúvida. Mas o que ela podia fazer? Luke tinha sumido e ninguém sabia onde estava. Só lhe restava chorar.

— Isso é tudo, creio. — O magistrado estava olhando para o meirinho. As pessoas se preparavam para sair. — Há mais algum assunto?

— Há, sim.

Mary sobressaltou-se. Tom havia deixado sua companhia, no início dos julgamentos, para ficar com outros homens, e ela não conseguia enxergá-lo no meio da multidão de cabeças. Contudo, aquela tinha sido a voz dele, e agora já o via abrindo caminho para a frente, a cotoveladas. O que ele estava fazendo? Ao mesmo tempo, à esquerda, percebeu uma leve movimentação perto da porta.

Tom já se encontrava de pé, em posição de defesa, defronte do juiz, com os seus cabelos desgrenhados e o blusão de couro, como se estivesse pronto para brigar com ele.

— Não fomos notificados. Essa questão não foi enviada pela Corte Acessória — interveio o meirinho.

— Bem, já que estamos aqui, podemos ouvi-la — replicou o magistrado. Cravou os olhos seriamente em Tom. — Qual é o seu assunto?

— Furto, milorde — berrou Tom num tom de voz que sacudiu os caibros do telhado. — Um furto abominável.

A sala ficou em silêncio. O meirinho, que quase caiu do banco diante do grito, pegou a sua pena.

O juiz, um pouco confuso, fitou Tom com curiosidade.

— Furto? De quê?

— Do meu pônei! — voltou a gritar, como se convocasse o próprio céu para testemunhar.

Demorou um ou dois segundos para começarem os risinhos abafados por todo o salão.

— O seu pônei. Furtado de onde?

— Da Floresta — bradou Tom.

Os risinhos não mais conseguiam ser contidos. Os próprios florestais estavam começando a arreganhar os dentes. O juiz olhou de relance para o administrador, que sacudia a cabeça e sorria.

O juiz gostava da Floresta. Deleitava-se com seus camponeses e secretamente divertia-se com os seus modestos crimes. Após o caso Martell, que o tinha aborrecido de verdade, não fazia objeção em encerrar o dia com algo leve, para aliviar.

— O senhor está dizendo que o seu pônei foi despastado da Floresta? Ele estava marcado?

— Não. Ele só nasceu lá.

— Uma cria, então? Como soube que era sua?

— Sabendo.

— E onde o pônei está agora?

— No estábulo de John Pride — apregoou Tom, com raiva e desespero. — É onde ele está.

Foi demais. Todo o tribunal caiu na gargalhada. Nem mesmo os parentes da família Furzey puderam evitar achar graça. Mary precisou olhar para o chão. O magistrado virou-se para os posteiros, à procura de esclarecimento, e Alban, a cujo bailiado a questão estava submetida, aproximou-se e cochichou no ouvido dele, enquanto Tom fechava a cara.

— E onde está John Pride? — indagou o juiz.

— Ele está aqui — gritou Tom, dando meia-volta e apontando triunfante para o fundo da sala.

Todos se voltaram. O juiz olhou. Seguiu-se um breve silêncio. Então, de perto da porta lateral, surgiu uma voz grave:

— Ele sumiu.

Não adiantou. O salão se descompôs. O povo da Floresta uivava. Chorava de tanto rir. Os florestais, os solenes couteiros e inclusive os fidalgos do júri não conseguiram se conter. O magistrado, observando, sacudiu a cabeça e mordeu o lábio.

— Vocês podem rir — vociferou Tom. E todos riam. Mas ele não estava acabado. Olhando à direita e à esquerda, o rosto vermelho, virou-se de volta para o juiz e, apontando para Alban, gritou: — É ele, e gente como ele, que deixa Pride ficar impune. E sabe por quê? Porque paga para eles!

A expressão do juiz mudou. Vários florestais pararam de rir. No fundo, Mary gemeu.

— Silêncio! — bramiu o juiz, e as gargalhadas foram cessando. — O senhor não deve — olhou feroz para Furzey — ser impertinente.

A questão era que havia alguma verdade naquilo. O jovem Alban talvez fosse inocente, por enquanto. Mas havia um certo tráfico inevitável entre a gente da Floresta e os que tinham autoridade nos bailiados. Uma bela torta, um queijo, uma cerca consertada de graça — era difícil, depois de uma gentileza como essa, o administrador não fazer vista grossa a algumas infrações leves da lei. Todos sabiam disso. O próprio rei, certa ocasião, observara ao juiz, não inteiramente como uma pilhéria, que ainda iria formar uma comissão para investigar a fundo a administração da Floresta. Se Furzey queria causar desordem, aquele não era o local e nem a ocasião para tal.

— O senhor terá que seguir os canais competentes — disse-lhe o juiz laconicamente. — O seu caso somente será apreciado aqui depois que passar pela Corte Acessória. Meirinho — ordenou —, que isso conste da ata. A sessão — anunciou — está encerrada.

E, assim, enquanto Tom permanecia parado ali, com sua ira impotente, e a multidão, já voltando a dar risadinhas, começava a se arrastar em direção à porta o meirinho mergulhou a pena na tinta e fez no pergaminho a seguinte anotação, que seria preservada, através dos longos séculos, como a verdadeira voz da Floresta:

Thomas Furzey queixou-se de John Pride pelo furto de um pônei. John Pride não compareceu. Portanto, para a corte seguinte etc.

Luke adorava caminhar pela Floresta. Percorria quilômetros a passos largos. Quando criança, aprendera a andar depressa para poder acompanhar John e Mary; por isso, agora, quem tentasse caminhar a seu lado ficaria admirado com sua velocidade.

As pessoas o achavam um sonhador, mas seus olhos sempre foram mais aguçados do que os delas. Não havia um córrego em toda a Floresta que ele não conhecesse. Os carvalhos mais antigos, cada massa volumosa coberta de hera eram como seus amigos íntimos.

Sua aparência mudara desde que deixara a abadia. Vestido com bata e jaqueta de lenhador, perneiras de lã e um grosso cinturão de couro, o cabelo e a barba agora compridos e desgrenhados, parecia exatamente como uma porção de outros sujeitos da região e ninguém que o visse seguir por uma trilha da mata desconfiaria dele.

Mas era um fugitivo — prestes a se tornar proscrito. Que significava isso? Em teoria, que o dedo de cada homem apontava contra você. E na prática? Dependia de você ter amigos ou de as autoridades quererem realmente encontrá-lo.

Do jeito como as coisas estavam na ocasião, se um dos florestais o encontrasse agora, cara a cara, seria levado preso. Não restava dúvida. Mas se o jovem Alban, digamos, avistasse uma figura desgrenhada à distância que pudesse ser Luke, ele cavalgaria até lá para enfrentá-lo? Possivelmente. Seria mais provável, entretanto, que virasse a cabeça do cavalo e seguisse na direção contrária.

Mas o que deveria fazer? Não podia continuar para sempre daquele jeito. A corte em Lyndhurst deixara bastante claras as suas considerações. O melhor a fazer seria se entregar e esperar clemência.

O problema — talvez estivesse em seu sangue — era que Luke nutria uma instintiva desconfiança da autoridade.

Podia parecer estranho a um homem que escolhera viver sob a regra monástica de Beaulieu. Mas, na realidade, não era. Para Luke, a abadia era um refúgio no meio de uma imensa propriedade, onde gostava de trabalhar e que lhe dava a liberdade da Floresta. Apreciava os serviços religiosos na igreja da abadia. Ouvia, enlevado, os cânticos. Sua curiosidade natural o levara a aprender muitos dos Salmos em latim e o seu significado, mesmo sem saber ler. Mas não se dispunha a comparecer o tempo todo aos serviços, como os monges do coro. Quis voltar para o campo ou ajudar os pastores, enquanto iam de uma granja a outra. A abadia o alimentava e vestia, deixando-o livre de responsabilidades, sem qualquer preocupação no mundo. Que mais podia querer?

Acima de tudo, em sua mente, a abadia funcionava para ele porque estava ligada à ordem natural. A natureza era o que ele entendia. As árvores, as plantas, os animais da mata: eles tinham um ritmo próprio. Nunca se podia saber ao certo, mas funcionava; e a propriedade rural da abadia fazia sentido só porque se tornara uma parte do próprio processo.

Por isso forasteiros, homens como Grockleton ou os magistrados do rei que não compreendiam direito a Floresta chegavam lá e tentavam impor uma porção de regras idiotas, e, como alegavam ser autoridades, a única coisa a fazer era evitá-los. Em seu coração, as únicas leis a serem respeitadas eram as da natureza.

"O resto, na verdade, não importa coisa alguma", costumava dizer. E as autoridades que davam tanta importância a tais leis certamente não deviam ser confiáveis. "Num dia podem ser honestos com você, mas no seguinte lhe passam a perna. A única coisa com que se importam de verdade é com o poder que têm."

Tratava-se do puro e simples ponto de vista do camponês em relação à autoridade e inteiramente correto.

Ele, portanto, não pretendia confiar no magistrado e sua corte, principalmente com Grockleton ainda por perto. A melhor coisa a fazer, acreditava, era ficar fora de vista e esperar que algo acontecesse. Nunca se sabia o que podia acontecer.

Ele tinha amigos. Ficaria bem até o inverno seguinte. Nesse meio-tempo encontraria muita coisa para se manter ocupado. De vez em quando, embora ela não fizesse idéia, ele ia dar uma olhada em sua irmã Mary. Gostava de observá-la executar as tarefas domésticas na cabana ou correr atrás das crianças quando elas brincavam do lado de fora, apesar de não falar com ela. Era como se ele fosse um anjo da guarda vigiando-a em segredo. "Estou mais perto do que você imagina, menina", murmurava satisfeito. Achou tão agradável esse exercício de invisibilidade que passou também a observar o irmão John. O pônei já tinha permissão para correr no campo, mas sempre havia um dos filhos de John vigiando-o.

E, é claro, andava pela Floresta.

Sua rota naquele dia o levara das proximidades de Burley para além do norte de Lyndhurst. Os bosques estavam tranqüilos. Imensos carvalhos espalhavam-se por todo o canto. Aqui e ali surgia uma pequena clareira, onde alguma árvore antiga, derrubada por uma tempestade, jazia atravessada no chão da mata, deixando uma nesga de céu no pálio acima. Durante a caminhada parava de vez em quando a fim de inspecionar algum tronco coberto de líquen ou virar um galho caído para ver que criaturas habitavam debaixo dele. E acabara de passar acima do vilarejo de Minstead, chegando a uma parte da Floresta que margeava uma elevação com urzes a céu aberto, quando parou e olhou com interesse para algo abaixo.

Tratava-se de um objeto bastante diminuto: apenas uma abelota do outono do ano anterior que escapara dos porcos famintos e, aninhada no monte úmido de folhas marrons, havia rachado e enfiado suas raízes no solo.

Luke sorriu. Gostava de ver as coisas crescerem. As minúsculas raízes brancas pareciam tão vulneráveis. Um pequenino broto vermelho emergia. Como era assombroso pensar que aquilo era o início de um pujante carvalho. Então balançou levemente a cabeça. "Aí, você nunca vai conseguir", falou.

Quantas abelotas daquele outono conseguiriam se tornar árvores? Quem sabe? Uma entre cem mil? Certamente que não. Menos de uma entre cem vezes esse número, talvez. Essa era a força considerável, a maciça, a incontável provisão excessiva da natureza no silêncio da floresta. A chance de sobrevivência de uma abelota era quase infinitesimalmente pequena. Os porcos voltariam para a ceva do outono, ou qualquer outro animal da floresta poderia comê-las. Os pôneis ou o gado poderiam esmagá-las com as patas. Se uma abelota sobrevivesse à primeira estação e, por acaso, continuasse no solo onde poderia deitar raízes, só conseguiria se desenvolver e se tornar árvore se houvesse uma abertura nas copas acima para lhe fornecer luz. Mas, mesmo para as que chegavam a se tornar pequenas árvores, ainda havia um perigo sempre presente.

Não é apenas o homem que destrói. Outros animais também, deixados por conta própria, podem destruir pastos, bosques, habitats inteiros, com uma estupidez tão grande, talvez até maior do que a revelada pelos seres humanos. Os veados adoram comer brotos de carvalho. A única maneira de algo sobreviver é contar com um protetor. A natureza fornece vários. O azevinho, embora os veados o comam, pode ocultar um carvalho. A gilbarbeira, o pequeno arbusto perene com espinhos afiados como navalha, é evitada pelos veados. Por algum motivo, eles também não costumam comer samambaias.

Cuidadosamente, depois de cavar com as mãos o solo em volta da plantinha, Luke carregou-a aninhada na terra sem afetar a sua minúscula vida. Alguns metros adiante havia um pequeno círculo de azevinhos cercado por gilbarbeiras. Penetrando ali, ignorando os arranhões em seus braços, plantou o broto no pequeno pedaço de terra no centro. Olhou para cima. Havia um claro céu azul. "Cresça " disse, contente, e seguiu o seu caminho.

O irmão Adam conhecia tão bem a abadia Beaulieu que às vezes achava que podia percorrê-la de olhos vendados.

De todos os seus locais agradáveis, nenhum, acreditava, era mais aprazível do que a série de arcadas abertas, conhecidas como carrels, que se estendiam ao longo do lado norte do grande claustro, do lado oposto aofrater, onde os monges do coro faziam as suas refeições. Eram totalmente protegidos da brisa; virados para o sul, captavam e capturavam o sol. Sentava-se, livro nas mãos, num banco em um dos cubículos, olhava adiante o tranqüilo quadrilátero verde do claustro e cheirava o doce aroma de grama cortada misturado com a fragrância marcante das margaridas — isso, parecia-lhe, era mais próximo do paraíso do que qualquer coisa conhecida pelo homem aqui na Terra.

O seu cubículo favorito ficava perto do meio. Descendo os degraus do vão da porta para a igreja: eram cinco degraus para baixo. Virando à direita. Doze passos. Se estivesse uma tarde ensolarada, no sétimo passo sentia-se a calidez por entre as arcadas abertas. Virando à direita, após o décimo segundo passo, chegava-se lá.

Nas última semanas houvera poucas oportunidades para desfrutar esse prazer. Seu trabalho nas granjas havia modificado tudo aquilo. Mas dava um jeito de conseguir, e, numa quente tarde de maio, ele estava sentado serenamente, com o capuz levantado — o sinal do monge que não desejava ser importunado —, lendo preguiçosamente sobre a vida de São Vilfredo, quando o seu devaneio foi interrompido por um noviço, que seguiu apressado pelo claustro e o chamou baixinho:

— Irmão Adam! Venha depressa. A Salvação está aqui. E todos estão indo vê-la.

Naturalmente, Adam levantou-se de imediato. A "Salvação", como o noviço ignorante a chamara um tanto quanto docemente, era a Salvata, a embarcação do abade, uma nave repleta de velas quadradas de uso freqüente. Após deixar o estuário de Beaulieu, sua primeira escala ficava perto, na ponta da grande enseada das águas do Solent, que seguiam pelo lado oriental da Floresta, em um próspero pequeno porto que se desenvolvera nos últimos séculos, conhecido por Southampton. No seu cais, os monges de Beaulieu tinham um armazém próprio para estocar a lã tosquiada que seria exportada. Depois, na volta, a Salvata apanharia todos os tipos de mercadorias em Southampton, incluindo o vinho francês de que gostavam os convidados do abade. De Southampton, talvez margeasse a costa até o condado de Kent e, de lá, atravessasse o canal da Mancha. Também podia continuar contornando e pegar o estuário do Tâmisa até Londres ou, o que era mais provável, subiria a costa oriental da Inglaterra até o distante porto de Yarmouth, onde recolheria uma enorme carga de arenques salgados para a abadia. A volta da Salvata ao cais abaixo da abadia era sempre um motivo de animação.

Realmente, quando o irmão Adam chegou, grande parte da comunidade da abadia — mais de cinqüenta monges e cerca de quarenta irmãos leigos — se juntara para assistir, e o prior, que adorava esse tipo de coisa, berrava ordens desnecessárias:

— Devagar. Cuidado aí com a corda de atracação.

Adam observava a cena carinhosamente. Havia ocasiões, precisava admitir, em que até mesmo o mais devoto dos monges se tornava quase uma criança.

A carga era de arenque salgado. Assim que a prancha foi colocada em seu lugar, todos pareciam querer rolar uma das barricas.

— Dois para cada pipa — gritou o prior. — Vão rolando até o depósito. Vinte barricas já estavam a caminho de lá. Os monges troçavam uns com os outros; havia um clima festivo envolvendo o lugar, e o irmão Adam estava prestes a voltar para a paz do seu claustro, quando percebeu que o mestre da embarcação foi até o prior e lhe disse alguma coisa. Viu o homem apontar rio abaixo e John de Grockleton partir com violência.

Então começou a gritaria.

Se havia uma coisa no mundo que deixava Grockleton irado era um ataque aos direitos terrenos da abadia. Ele dedicara a vida a protegê-los. Entre esses muitos direitos estavam os que se referiam à pesca no rio de Beaulieu.

— Vilania! — gritou. — Sacrilégio! — Os monges que rolavam as barricas pararam e se viraram. — Irmão Mark—chamou o prior —, irmão Benedict... — Passou a apontar para um irmão depois do outro. — Peguem o esquife. Venham comigo.

Não era preciso imaginação para adivinhar o que acontecera. Um grupo de homens fora visto pescando — lançando abertamente redes de um bote — mais abaixo no rio. Pior, um deles era um mercador de Southampton, onde os burgueses haviam afirmado resolutos que eles também tinham um direito de pesca no rio, muito mais antigo do que o da abadia. Tratava-se apenas de uma espécie de batalha, Grockleton acreditava, que Deus tencionava que ele travasse.

Não era todos os dias que Deus convocava, para a animação de uma perseguição, aqueles que renunciaram a todas as delícias terrenas. No que pareceu um pestanejar, um esquife com três monges deslizava rio abaixo, enquanto dois grupos, cada qual com uma dezena de monges e irmãos leigos, seguiam correndo pelas margens do rio. Liderando o que descia a margem oeste, ia Grockleton, cajado na mão, as costas curvadas, fazendo-o inclinar-se para a frente como se fosse um ganso no ataque. Sem ser convidado. o irmão Adam juntou-se ao grupo dele.

Mantinham uma velocidade espantosa. Usando o cajado como se fosse uma perna extra, o prior impelia-se tão depressa para a frente que alguns dos monges precisavam levantar os hábitos e quase chegar a correr enquanto se apressavam atrás dos seus calcanhares. Dois dos irmãos leigos tiveram permissão para correr adiante, como observadores. Por mais de um quilômetro e meio, o caminho levava através de um bosque de carvalhos antes de emergir em uma curva pantanosa do rio; e, assim que surgiram, ouviram um grito vindo do esquife à esquerda deles e no mesmo momento viram a presa logo adiante, logo depois da curva.

Os homens de Southampton usavam um enorme barco feito com pranchas superpostas, com um único mastro e oito remos. Como não havia sinal de vela, era de supor que pretendessem remar contornando a costa para voltar a Southampton. Suas redes ainda estavam no rio, mas, num atrevimento infernal, três deles haviam acendido uma pequena fogueira na margem e se ocupavam em preparar uma refeição. Pela qualidade das roupas, Adam percebeu que um deles era um mercador de certa posição. O que se confirmou quando o prior sibilou:

— Henry Totton. — O sujeito era, inclusive, proprietário de armazéns perto do depósito de lã da abadia no embarcadouro.

— Invasores — grasnou a voz de Grockleton através do pântano. — Vilões. Desistam imediatamente.

Totton levantou a vista, surpreso. Pareceu a Adam que ele murmurou algo e depois deu de ombros. Seus dois companheiros pareceram incertos do que fazer. Mas certamente não pôde haver dúvida em relação à atitude dos que estavam a bordo.

Havia cinco lá. Um, na proa, era um sujeito com a aparência curiosa. Embora se encontrasse a pelo menos duzentos metros de distância, não havia como confundi-lo, porque, além do cabelo preto puxado para trás e amarrado atrás do pescoço, a barba desgrenhada não conseguia ocultar o fato de que, logo que ela descia da boca, o rosto recuava direto para o pescoço, dispensando quase que completamente a maçante necessidade de um queixo. Havia uma certa satisfação em sua face, o que sugeria que ele estava feliz com aquela situação. E havia o sujeito que, virando-se lentamente, sem qualquer intenção maldosa em particular, antes mais como uma saudação de um modo geral, olhou direto para o prior e, levantando o braço, mostrou-lhe um dedo solitário.

Para Grockleton, foi como uma flecha disparada por um arco.

— Cão ímpio! — esbravejou. —Agarrem-nos — berrou, apontando para os homens na margem. — Surrem-nos — bradou, brandindo o cajado.

Seus seguidores hesitaram um instante. Alguns olharam em volta, à procura de galhos para usar como arma. Outros fecharam os punhos, em preparação, antes de arremeterem contra os homens perto da fogueira.

Foi apenas um instante, mas o irmão Adam utilizou-o.

— Parem! — gritou num tom de voz autoritário. Ele sabia que estava passando por cima do prior, mas era preciso. Indo depressa para o lado de Grockleton, murmurou rapidamente: — Prior, se usarmos violência, acredito que os homens que estão no barco poderão nos atacar. — Apontou, como se estivesse chamando a atenção para algo que Grockleton não vira antes. — Mesmo com a razão do nosso lado — acrescentou com deferência —, depois do problema na granja...

O sentido foi claro. A reputação da abadia não melhoraria em nada, se o prior iniciasse uma refrega.

— Se tivermos os nomes deles — ajuntou Adam —, podemos levá-los à justiça. — Fez uma pausa e prendeu a respiração.

A reação de Grockleton foi curiosa. Deu um leve sobressalto, como se tivesse acordado de um sonho. Fitou Adam por um momento, aparentemente sem entender. Os irmãos todos olhavam para ele.

— Irmão Adam — falou subitamente, em voz alta —, pegue os nomes deles e os identifique. Se houver qualquer resistência, nós deveremos subjugá-los.

— Sim, prior. — Adam curvou a cabeça e avançou imediatamente. Após dar alguns passos, virou-se e pediu respeitosamente: — Posso levar dois irmãos comigo, prior?

Grockleton concordou. Adam escolheu dois monges e foi cuidar de sua missão.

Ele fizera o possível para resguardar a autoridade do prior. Torcia para que tivesse dado certo. Mas logo ficou desalentado, porque, assim que se encontraram longe do campo de audição de Grockleton, um dos seus companheiros murmurou:

— Você mostrou mesmo ao prior como é que se age, irmão Adam. Pois ele sabia que agora Grockleton jamais o perdoaria.

Uma semana depois, em uma parte isolada do lado ocidental da floresta, dois homens descansavam sossegadamente junto de uma pequena fogueira e esperavam-

A poucos metros dali, aumentando o mistério da cena sombria, havia um grande monte de torrões de terra cobertos de relva, e, de buracos aqui e ali em seus lados, emergiam nesgas de fumaça. Puckle e Luke estavam fazendo carvão.

A queima para a feitura de carvão é um ofício bastante antigo e requer muita habilidade. Durante o verão, Puckle cortava enormes quantidades de galhos e troncos — as toras de lenha, como eram chamadas. Todos as madeiras principais da floresta — carvalho e freixo, faia, bétula e azevinho — eram boas para carvão. Depois, no final da primavera, ele construía sua primeira fogueira.

A fogueira para a queima do carvão é diferente de qualquer outra. É imensa. Lenta e cuidadosamente, Puckle começava dispondo os troncos em um grande círculo, com cerca de cinco metros de diâmetro. Ao terminar, a montanha de lenha elevava-se a mais de dois metros e meio de altura. Em seguida, subindo em uma escada encurvada sobre sua enorme construção, Puckle cobria toda a pilha com uma camada de terra e relva que depois de pronta ficava parecida com um misterioso forno gramado para cozer tijolos. Ele a acendia na parte de cima.

— O fogo do carvão queima de cima para baixo — explicou. — Agora é só esperar.

— Quanto tempo? — quis saber Luke.

— Três, quatro dias.

O cone de carvão é uma máquina maravilhosa. Seu objetivo é converter a lenha úmida e resinosa em um material o mais próximo possível do carbono puro. Para tanto, é necessário carbonizar a madeira sem deixar que se queime e oxide na forma de cinza inútil, e consegue-se isso reduzindo ao mínimo o oxigênio no interior do cone, daí os torrões de terra em volta. O processo também é retardado e controlado ao se queimar o material de cima para baixo, o que é mais gradual. O carvão resultante é leve, fácil de transportar e, quando aquecido em um braseiro até o ponto da ignição, queima lentamente, sem chama, e fornece um calor mais intenso do que a madeira da qual se origina.

Ao fim de um dia, na primeira vez que fizeram isso, Luke notou que a fumaça que saía dos buracos era vaporosa e que os lados superiores do cone ficavam úmidos.

— Isso se chama suar — informou Puckle. — A água está saindo da lenha. No terceiro dia, aproximando-se do final do processo, Luke percebeu que um refugo alcatroado saía pelos exaustores da base. Ao final desse dia, Puckle anunciou:

— Está pronto. Tudo o que temos a fazer agora é esperar que esfrie.

— Quanto tempo demora isso?

— Uns dois dias.

Encheriam várias vezes sua pequena carroça com o carvão daquele cone.

Luke sentia-se feliz como carvoeiro. Grande parte desses homens vivia na Floresta; quase nunca vistos, raramente notados. Tratava-se de um papel perfeito para ele, principalmente porque a área em volta de Burley, onde Puckle atuava, ficava distante da abadia, e os guardas florestais daquele bailiado não o conheciam. O trabalho não exigia tanto. Enquanto a fogueira queimava, ele podia perambular pelo mato ou observar Mary sempre que desejasse.

Puckle ficava contente por abrigá-lo. O habitante das matas sempre seguira as próprias leis. Sua família era enorme, como também as dos filhos, do irmão falecido e de vários outros descendentes, cujas origens ninguém se preocupava em perguntar. Por isso, quando certa vez um florestal lhe perguntou quem era o seu ajudante, e ele respondeu casualmente "um dos meus sobrinhos", o homem apenas aquiesceu e não se preocupou mais com aquilo.

Ele podia ficar na Floresta com Puckle, achava Luke, pelo menos durante alguns meses. Somente a família de Puckle sabia a seu respeito. E ninguém falava nada.

"Quanto menos gente souber, melhor", dissera Puckle. "Desse jeito, ficará seguro."

Mesmo assim, Luke não pôde evitar um leve estremecer de susto naquela tarde de maio, quando Puckle, elevando subitamente a vista, falou:

— Ora, veja só quem vem aí. — Em seguida acrescentou baixinho: — Agora, faça como eu mandei.

O irmão Adam cavalgava o seu pônei lentamente. Sentia-se um tanto apático. E achava que sabia por quê. Chegou até a murmurar a palavra para si mesmo: "Acedia." Todo monge conhecia esse estado. Acedia — a palavra latina não tinha equivalente na língua inglesa. Abater-se pelo tédio, depressão, apatia; como se os sentimentos da pessoa tivessem morrido; uma sensação de nada; um entorpecimento, como quando o dobrar de um sino é ouvido, mas nunca atendido. Aquilo lhe surgia em algumas tardes, como uma sonolência, ou em determinadas épocas do ano — na metade do inverno, quando nada acontecia, ou no final do verão, depois de terminada a colheita. Era preciso reagir, claro. Tratava-se apenas do demônio tentando minar a alma de alguém e enfraquecer a fé. A melhor saída era o trabalho árduo.

Ele certamente fazia isso. Nos últimos dias estivera pelo vale do Avon. Grandes carregamentos de feno atravessariam a Floresta por ali, depois que os prados fossem ceifados. Alojado em Ringwood, ele subira e descera o rio inspecionando cada prado. Tinha praticamente inspecionado as gadanhas dos camponeses. Três irmãos leigos seriam enviados para supervisionar as operações, e ele próprio os supervisionaria. Nem mesmo Grockleton poderia sugerir que ele negligenciava suas obrigações.

Daquela vez, confessava, ficara feliz em se afastar da abadia. Os dias que seguiram o incidente no rio foram tensos. Era dever de cada monge afastar de si todos os maus pensamentos e intenções e ser caridoso com todos os seus irmãos, e, gostasse dele ou não, Grockleton tinha sinceramente tentado fazer isso. Mas a simples presença de Adam não deixava de ser irritante para ele, e por isso mesmo Adam ficou contente em partir.

Mas agora precisava voltar e não queria. Ao chegar a Burley, já estava deprimido; mal percebendo o que fazia, deixara que o pônei o levasse pelo caminho errado, e estava pegando um atalho pela mata em direção à trilha certa, sentindo-se um pouco culpado, quando viu os carvoeiros no seu trabalho.

Um ano atrás talvez passasse direto, sem nada além do que um rápido cumprimento, mas naquela ocasião pareceu-lhe natural parar e falar com eles. Ainda que se tratasse de outra desculpa para retardar o seu retorno, ele o fez assim mesmo.

O mateiro estava de pé ao lado da pequena fogueira; o segundo sujeito se afastara um pouco, para o outro lado do fumegante cone de carvão. O irmão Adam lembrava de ter visto Puckle no ano anterior entregando estacas para os vinhedos da abadia. O homem mais jovem também lhe parecia vagamente familiar, mas, como toda aquela gente da Floresta era aparentada, não se tratava de nada surpreendente. Olhando para baixo, em direção a Puckle, perguntou, com um tom de voz amistoso, se o fogo do carvão já havia apagado.

— Mais um dia — respondeu Puckle.

Adam fez mais algumas perguntas óbvias — de onde Puckle viera, a quem o carvão seria vendido. Um assunto fácil para uma conversa com qualquer habitante da Floresta, melhor até mesmo do que o tempo, era a movimentação dos veados.

— Creio que vi veados-nobres perto de Stag Brake — observou.

— Não, é mais provável que no momento estejam próximos de Hinchelsea. Adam concordou com a cabeça. Então seus olhos seguiram por cima do cone de carvão, atrás do qual o outro sujeito se ocultava.

— Você só tem um ajudante? — quis saber.

— Hoje, só um — disse Puckle. Em seguida, bem naturalmente, chamou: — Peter. Venha cá, rapaz.

E o irmão Adam ficou olhando, curioso, enquanto o jovem se aproximava.

Ele parecia tímido ao se arrastar para a frente. A cabeça vinha curvada para baixo, os olhos cravados no chão. O queixo parecia pender relaxado. Na verdade, um espécime um tanto patético, pensou o monge. Mas, sem querer parecer indelicado, indagou:

— E então, Peter, você já esteve em Beaulieu?

O jovem pareceu começar a falar, mas apenas emitiu algo incoerente.

— É meu sobrinho — explicou Puckle. — Ele não é muito de falar. O irmão Adam olhou para a cabeça desgrenhada à sua frente.

— Nós usamos o seu carvão para aquecer a igreja — observou animado, mas não conseguiu pensar em mais nada para dizer.

— Está bem, rapaz. — falou Puckle baixinho, gesticulando para que o rapaz se afastasse. — Na verdade — confessou ao monge, enquanto o sobrinho se retirava —, ele é um pouco fraco da cabeça.

E, como se fosse para dar uma prova cabal desse fato, quando chegou perto do grande cone fumegante, o sujeito parou, virou de lado, apontou para a pilha de carvão e, com um tom de voz imbecilizado, proferiu uma única palavra: "fogo". Em seguida sentou-se.

Adam deveria seguir em frente, mas por algum motivo não o fez. Em vez disso, permaneceu um pouco mais com o carvoeiro e seu sobrinho, partilhando a quietude da cena. Que estranha visão era aquela do imenso cone gramado. Quem adivinharia que calor intenso, que fogo ardente continha, bem escondido, aquele monte verde? E também havia a sua fumaça, emergindo silenciosa das fendas em suas laterais, como se fosse do Tártaro ou das profundezas da própria região infernal. Uma idéia divertida ocorreu-lhe de repente. E se Puckle, aqui nos confins de New Forest, estivesse na verdade guardando a entrada do inferno? O pensamento levou-o a observar novamente a fogueira de carvão.

Não notara antes como era realmente curiosa a figura de Puckle. Talvez fosse o ambiente sombrio ou o brilho avermelhado das brasas da pequena fogueira, mas subitamente sua forma nodosa fazia com que se assemelhasse a um gnomo, o rosto curtido, carvalhoso, parecendo emitir um misterioso fulgor. Seria algo diabólico? Repreendeu-se por essa tolice. Puckle não passava de um camponês inofensivo. Entretanto, existia nele algo insondável. Havia um calor, oculto, forte — um calor que ele mesmo não parecia possuir. Finalmente, acompanhado de um gesto com a cabeça, ele deu um leve coice no pônei e seguiu adiante.

— Meu Deus — exclamou Luke com um sorriso assim que Adam sumiu de vista. — Pensei que ele não ia mais embora.

Ele não devia ter tomado aquele caminho. Depois de passar pela igrejinha em Brockenhurst, o irmão Adam seguira uma trilha que levava em direção ao sul, através da mata, e o levara ao manso vau do rio. O local era deserto quando Adela e Tyrrell o haviam usado. Do outro lado do vau, porém, no alto do longo caminho que atravessava a mata, uma larga área de terra tinha sido limpa e transformada em vários campos de cultivo que os monges supervisionavam.

Adiante, na borda dessa terra ampla e a céu aberto, ficava a Charneca de Beaulieu e a trilha que levava para leste, em direção à abadia. Era o caminho que deveria ter tomado. Em vez disso, virou para o sul. Disse a si mesmo que não fazia diferença, mas não era verdade.

Manteve-se margeando a mata. Após algum tempo chegou a uma trilha para a direita. Lá embaixo, sabia, solitária sobre um outeiro escuro que dava para o vale do rio, ficava a antiga igreja paroquial de Boldre. Mas não foi até lá. Continuou na direção sul. Logo chegou a uma pequena estância de gado, uma vacaria, como a chamavam, com pasto para trinta vacas e um touro, e algumas cabanas: Pilley. Ele mal a notou.

Por que a mulher vinha à sua mente — a camponesa que ficara diante dele no celeiro? Não havia nenhum motivo para pensar nisso. Ele estava entediado. Não era nada. Prosseguiu, quase mais dois quilômetros. Então chegou a um vilarejo. Oakley era como se chamava.

Podia atravessar a charneca dali mesmo.

Os vilarejos de New Forest eram sempre iguais. Raramente tinham um centro. Dispersavam-se, às vezes próximo a um riacho ou ao longo de uma charneca a céu aberto. Nenhuma residência senhorial conseguia fazer com que assumissem uma forma ordeira. As mesmas cabanas com telhado de palha, chácaras com pequenos estábulos de madeira, sempre pequenas propriedades em vez de fazendas, anunciavam que se tratava de comunidades de pessoas semelhantes que se tinham aninhado na Floresta desde tempos imemoriais.

A trilha que atravessava Oakley seguia na direção leste-oeste e tinha a costumeira superfície de lama turfosa e cascalho. Havia várias cabanas, mas, após menos de quatrocentos metros, elas acabavam, e a trilha começava a descer no meio de profundas ribanceiras para o vale do rio. Ele notou que a última propriedade, que ficava do lado norte da trilha, era uma residência com várias edificações externas, incluindo um pequeno estábulo. Atrás dele ficavam um cercado, um terreno aberto pontilhado com tojos e depois disso um bosque.

Ficou imaginando se era ali que a mulher morava. Se ela aparecesse, achava que poderia parar e perguntar educadamente pelo seu marido. Não haveria mal nenhum nisso. Ganhou tempo, virando o pônei na direção contrária, para ver se vinha alguém, mas não viu ninguém. Parou para observar as outras cabanas, depois fez lentamente o caminho de volta. No ponto de onde tinha vindo viu um camponês e lhe perguntou quem morava na propriedade pela qual acabara de passar.

— Tom Furzey, irmão — respondeu o sujeito.

Ele teve noção da pequena sensação de sobressalto em seu estômago. Assentiu calmamente para o camponês e olhou para trás. Então era ali que ela morava. Subitamente, quis voltar. Com que desculpa? Trocou mais algumas palavras com o camponês, observou casualmente que nunca vira aquele vilarejo, mas, temendo parecer tolo, foi embora.

Na sua extremidade leste, o vilarejo cedia lugar a um gramado com um lago ao lado. A última propriedade ali, um tanto maior do que as outras e com um campo de cultivo ao lado, ele sabia que pertencia a Pride. Havia alguns carvalhos mirrados, pequenos freixos e salgueiros pondlhando a beira do lago, que estava coberto com brancos ranúnculos aquáticos.

A trilha passava pela casa de Pride e saía na charneca.

Atravessou-a lentamente. Era pantanosa em algumas partes. Se a tivesse cruzado mais ao norte, seria mais seca.

Lamentava não ter visto a mulher.

No meio da travessia viu a luz fosca iluminar o pálido cercado de barro de um aprisco na charneca. Adiante ficavam os campos de cultivo da granja de Beufre.

Logo estaria de volta à abadia.

Acedia.

Tom Furzey estava tão cheio de si que quando se encontrava sozinho ficava sentado em silêncio contrito de alegria. Estava sinceramente admirado por não ter pensando naquilo antes. O plano era tão sutil, tão repleto de ironia, tinha uma simetria tão perfeita; Tom talvez não conhecesse palavras como essas, mas as teria entendido, cada uma delas.

A coisa surgira inesperadamente. A mulher de John Pride tinha um irmão que se mudara para Ringwood e ia se casar por lá; um bom casamento, com a filha endinheirada de um açougueiro. Toda a família Pride iria. Melhor ainda, a irmã de Tom o informara:

— Eles vão ficar até tarde da noite em Ringwood. Só estarão de volta ao amanhecer do dia seguinte.

— Todos eles? — perguntara Tom.

— Menos o jovem John. —Tratava-se do filho mais velho de Pride, um menino com doze anos. — Ele vai ficar cuidando dos animais. E do pônei. — Olhou ligeiramente para ele quando disse isso.

— Isso me deu uma idéia — falou orgulhoso para ela mais tarde, quando lhe contou o plano que imaginara.

A irmã era a única que sabia, pois ele precisava de sua ajuda. Ela também ficara impressionada com o plano.

— Creio que você pensou em tudo, Tom — disse-lhe.

Realmente, no dia marcado, os Pride partiram cedo em sua carroça para Ringwood. A manhã estava quente e ensolarada. Tom foi cuidar dos seus afazeres, como sempre. Na metade do dia consertou a porta do galinheiro. Somente no fim da tarde informou a Mary:

— Hoje pegaremos o meu pônei de volta.

Aguardou ansioso a reação dela e foi exatamente a que esperava.

— Não pode, Tom. Não vai dar certo.

— Vai dar.

—— Mas John vai...

— Não vai poder fazer nada.

— Mas ele vai ficar furioso, Tom...

— É mesmo? Pois lembre que eu também fiquei. — Fez uma pausa enquanto digeria aquilo. O melhor ainda estava por vir. —Tem mais uma coisa — acrescentou placidamente. — É você quem vai pegá-lo.

— Não! — Ficou horrorizada. — Ele é meu irmão, Tom.

— Faz parte do plano. Pode-se dizer que é a parte vital. — Esperou um pouco antes de desferir o golpe final. — Tem mais uma coisa que você precisa fazer — e lhe contou o resto do plano.

Ela não o olhou, quando Tom terminou, como ele adivinhara que faria. Ela apenas encarou o chão. Ela podia recusar, é claro. Mas se o fizesse, sua vida mal valeria a pena ser vivida. Não adiantou implorar, frisar o quanto seria humilhante para ela. Ele não ligou. Queria que fosse daquele jeito. Era a sua vingança contra todos eles. Ficou imaginando o que seria dela quando aquilo acabasse. Tom ia cantar de galo, pensou. Mas não me ama de verdade. E, diante dessa prova dos sentimentos dele, baixou a cabeça. Faria aquilo para manter a paz na família. Mas o desprezaria. Essa seria a sua defesa.

— Vai dar certo — ouviu-o dizer calmamente.

Quando o sol começou a se pôr, o jovem John Pride sentiu-se bastante cheio de si. Claro que tinha alimentado as galinhas e os porcos, limpado o curral e feito todos os serviços necessários milhares de vezes anteriormente. Mas nunca fora deixado como encarregado um dia inteiro da propriedade e ficara compreensivelmente nervoso. Agora tudo o que lhe restava fazer era trazer o pônei do campo.

Havia tomado todo o cuidado com o pônei, exatamente como o pai lhe ordenara. Nunca deixá-lo fora de vista o dia todo. E, só por garantia, ele dormiria no cercado aquela noite.

O grito que cortou o ar da tardinha veio de perto. A irmã de Tom Furzey morava apenas do outro lado do gramado. Ela e John Pride não se falavam muito depois da questão do pônei, mas os filhos de ambos se encontravam quase todos os dias. Não se podia fazer muita coisa a respeito. O grito foi dado por Harry, um menino da idade dele.

— Socorro!

Ele atravessou correndo o quintal e o gramado, contornando a beira do lago. A visão que os seus olhos tiveram foi chocante. A mãe de Harry estava caída de cara no chão. Aparentemente, tinha escorregado perto do portão e possivelmente batido a cabeça no pilar. Estava deitada completamente imóvel. Harry tentava levantá-la, sem sucesso.

Assim que ele chegou lá, o marido dela e Tom Furzey emergiram da cabana vizinha. Tom devia estar visitando a família. O resto dos filhos também apareceu.

Tom entrou em ação. Ajoelhou-se ao lado da irmã, apalpou o pescoço à procura de pulsação, virou-a e olhou para cima.

— Não está morta. Bateu a cabeça, acho eu. Meninos — fez um gesto rápido com a cabeça na direção do jovem John —, segurem as pernas dela. — Ele e o cunhado levantaram a mulher por baixo dos braços e a carregaram para a cabana. —Agora é melhor vocês irem embora — falou Tom para as crianças. Ele acariciava delicadamente a bochecha da irmã quando elas saíram.

John ficou por ali mais alguns minutos. Outro vizinho apareceu. Mas não percebeu ninguém na propriedade dos Pride.

Após alguns momentos Tom saiu e deu um sorriso para todos.

— Ela está voltando a si. Não há nada com o que se preocupar. — E voltou para dentro.

Pouco depois John achou melhor voltar para casa. Deu a volta no lago e entrou no quintal. Olhou para o cercado com pasto e não viu imediatamente o pônei. Franziu a testa, olhou novamente. Então, fazendo a volta correndo, com uma terrível e penetrante sensação de pânico, o jovem John Pride viu que o pasto estava vazio. O pônei sumira.

Mas como? O portão estava fechado. O pasto era cercado por um muro de terra e cerca: com certeza não conseguiria pular por cima daquilo. Foi depressa checar o cercado. Estava vazio. Arremessou-se de volta ao gramado e passou a contorná-lo correndo. No meio do caminho, viu Harry, que o chamou para perguntar o que estava havendo.

— O pônei sumiu — berrou.

— Não passou por aqui — rebateu o menino. — Eu vou com você — e correu com John de volta para a propriedade dos Pride. — Vamos tentar na charneca — gritou, e saíram correndo juntos para a Charneca de Beaulieu.

O sol já estava se pondo. Uma camada avermelhada cobria a charneca e os tojos projetavam sombras escuras. Aqui e ali, certamente, nas samambaias, havia rastros escuros de pôneis. O jovem Pride procurava desesperadamente.

Então o seu colega cutucou-o e apontou.

— Olhe ali. — Era o pônei. Tinha certeza. A criaturinha estava parada próximo a um matagal de tojos, a cerca de oitocentos metros. Os dois meninos começaram a correr em sua direção. Mas, assim que os viu, o pônei pareceu disparar subitamente e sumir atrás de um declive no solo.

— Desse jeito, a gente nunca vai conseguir pegar ele — disse Harry, ofegante

— É melhor a gente cavalgar atrás dele. Você pode montar no meu pônei. Eu pego o do meu pai. Vamos.

Correram de volta. O jovem Pride estava tão ansioso que nem mesmo quis esperar que o dele fosse selado. E assim pouco depois os dois meninos partiram, com a vermelha incandescência do pôr-do-sol atrás deles.

— Acho que eles vão passar a noite toda nisso. —Tom soltou uma risadinha.

Ele havia planejado tudo com exatidão e tinha dado certo.

Algum tempo depois de escurecer Mary levou o pônei através da mata atrás da propriedade do casal, eTom ajudou-a a levá-lo para o pequeno estábulo. Lá, com a porta fechada, os dois o examinaram à luz de um lampião. Era ainda mais lindo do que ele se recordava. Podia ver, embora ela nada falasse, que Mary achava a mesma coisa. A noite já ia alta quando finalmente se foram, trancando a porta ao sair.

Quando Tom acordou, já tinha amanhecido e o sol podia ser visto no horizonte. Levantou com um salto.

— Alimente o pônei — cochichou. — Eu aviso quando for para você ir. — E, sem nenhuma pausa, correu para fora da cabana e seguiu pelo caminho em direção à casa de John Pride. Não queria deixar de ver o rosto dele quando voltasse.

Estava tudo bem. Pride ainda não retornara.

Mas o filho já. O pobre jovem John estava sentado na beira do gramado, com Harry ao lado. Tinha a aparência pálida e infeliz. Estiveram fora a noite toda, disse-lhe Harry, que havia seguido a instruções do tio e ficado o tempo todo ao lado do rapaz. Agora ele teria de contar ao pai que deixara o pônei fugir.

Tom chegou inclusive a sentir pena do rapaz. Mas aquele era o seu dia, e todos os Pride deveriam sofrer.

Ensaiara tudo. Começou a juntar gente: a irmã, que habilmente usava uma atadura na cabeça, algumas outras pessoas do vilarejo e um bando de crianças, todos à espera para assistir à chegada de Pride. Tom sabia exatamente o que diria.

"Quer dizer que o pônei fugiu, hein, John? Não sei como ele fez isso." Ele não estivera com o jovem John quando aquilo aconteceu? O filho da irmã dele não o tinha apontado lá na charneca? "Será que foi para a Floresta?" Era isso o que diria a seguir. "É melhor você procurar por ele, John. Acho que você é muito bom em encontrar pôneis, John."

Mas a melhor parte viria depois. Assim que Pride aparecesse o jovem Harry correria para chamar Mary. Ela então surgiria na trilha e avisaria: "Oh, Tom, adivinhe uma coisa. Acabei de encontrar o nosso pônei vagando pela charneca."

"É melhor colocar no estábulo, Mary", diria ele.

"Já coloquei, Tom", responderia ela.

E o que John Pride faria quando sua irmã dissesse aquilo? O que ele, Tom,

"Oh, lamento muito, John", gritaria. "Acho que o pônei quis voltar para casa." Seria o melhor momento de toda a sua vida.

Minutos se passaram. As pessoas tagarelavam baixinho. O sol era de um amarelo aguado, logo acima das árvores. O orvalho ainda estava pegajoso no solo.

— Aí vêm eles — berrou uma criança. E Tom fez um imperceptível sinal com a cabeça para o jovem Harry, que saiu se esgueirando.

Mary permaneceu por uns momentos no pequeno estábulo, após ter ido alimentar o pônei. A princípio ficou tão surpresa que apenas encarou o espaço. Em seguida franziu a testa. Finalmente, após dar uma olhadela acima, para o palheiro onde passara tantas horas felizes naquele verão, ela anuiu.

Só podia ser isso. Não via outra explicação. Até mesmo sussurrou:

— Você está aí? — Mas a resposta foi apenas o silêncio. A seguir, suspirou. — Suponho — murmurou — que esta é a idéia que você faz de uma piada — e não sabia se devia rir ou chorar.

Em seguida saiu, foi até a cerca e olhou para as árvores além do espaço aberto. Ficou à espera de um sinal, mas não surgiu nenhum. Esquecendo inclusive o pônei por alguns instantes, ficou ali de pé, olhando atentamente, como num sonho.

Aquele era o jeito de ele fazê-la saber que estivera ali, vigiando-a. Sentiu um cálido fluxo de felicidade. Em seguida sacudiu a cabeça.

— O que você andou fazendo desta vez, Luke? — murmurou. Então o jovem Harry apareceu.

Tudo saía como o planejado. Tom quase não se continha de prazer e emoção. Após todas as palavras terem sido ditas, John Pride encarava o filho com ferocidade; o menino estava nas raias do pranto. Todo o povoado gozava com a piada, enquanto os Pride saltavam da carroça com um ar constrangido.

— É melhor checar para ver se nenhum dos seus outros animais sumiu — gritou ele. — Talvez todos tenham fugido, hein!

— Acabara de pensar nessa. Ficou tão contente com a observação e as gargalhadas que provocou que foi mais além. — De alguma coisa em sua casa eles não gostam, não é, John? De alguma coisa eles não gostam.

Ah, como eles gargalhavam. Olhou para a trilha. Mary chegaria a qualquer momento. A surpresa final. O triunfo. Era melhor que ela se apressasse. Enquanto todos estavam ali.

Uma das filhas menores de Pride tinha dado a volta e ido ao curral, só para ver por si mesma. Já tinha voltado e parecia intrigada. Puxou a jaqueta de Pride e lhe disse alguma coisa. Ele viu Pride franzir a testa e depois fazer a volta para ir até o curral. Oh, mas que beleza! Pride já vinha de volta e olhava diretamente para ele.

— Não sei do que você está falando, Tom Furzey — bradou. — O pônei está no curral.

Silêncio. Tom ficou paralisado. Pride deu de ombros, com desprezo, após o choque que provocou. Tom continuava encarando o vazio. Era impossível.

Não conseguiu se conter. Correu adiante. Passou disparado, direto por Pride, através do quintal, até o curral. Olhou o seu interior. O pônei estava lá, amarrado. Uma olhadela era o suficiente. Não podia haver engano. Por apenas um instante o pensamento de pegá-lo pela corda e levá-lo percorreu sua mente. Mas não daria certo. De qualquer modo, o pônei em si não era o que importava agora. Virou-se e voltou.

— Oooa, Tom! Há algo errado por lá, Tom? — A gozação agora era com ele. A pequena multidão se divertia.

"Ele correu de volta para casa e se trancou, não foi mesmo, Tom?" "Onde você pensava que ele estava, Tom?" "Nós sabemos que estava preocupado com ele." "Não se preocupe, Tom. O pônei está seguro."

John Pride também olhava para ele, mas não ria exatamente. Continuava intrigado. Dava para perceber.

Tom passou por ele. Passou pela multidão. Nem mesmo olhou para a própria irmã. Seguiu pela margem do lago e desceu a alameda.

Como? Era impossível. Alguém teria informado a Pride? Não. Não teria dado tempo. Pride não sabia. Deu para perceber. O filho dele teria adivinhado o que acontecera e roubado o pônei de volta? Não poderia. O jovem Harry tinha ficado com ele a noite toda. Quem mais sabia? A irmã e a família dela. Será que um deles dera com a língua nos dentes? Duvidava muito. De qualquer modo, não achava que alguém no povoado faria o serviço de John Pride por ele.

Mary. Era a única ligação que restava. Teria saído no meio da noite, enquanto ele dormia? Ou mandado alguém mais fazer aquilo? Não podia acreditar nisso. Mas, por outro lado, pensou, também não podia acreditar na maneira como ela se comportara, no início, em relação ao pônei.

Não tinha certeza. Achava que nunca teria. Uma coisa era certa: se o fizeram parecer um tolo antes, dessa vez fizeram com que parecesse duplamente um grande tolo. Não importa aonde eu vá, pensou, o chão sempre vai ceder abaixo dos meus pés.

Ela estava sentada sozinha no quintal quando Tom voltou. Apenas olhou para Tom. Não falou nada. Mas era possível perceber que ela sabia que haveria encrenca. Bem, se era isso que ela queria, era o que teria.

Ao se aproximar dela, contudo, ele nada disse. E também não ia dizer. Mas, girando subitamente, com a mão aberta, atingiu-a no rosto com toda a força que tinha, e ela caiu pesadamente no chão.

Ele nem ligou.

Época da colheita. Longos dias de verão. Filas de homens com batas, com gadanhas, abrindo caminho lenta, vagarosamente, através dos campos dourados. Irmãos leigos, com hábitos brancos e aventais pretos, seguindo atrás com gadanhas e foicinhas. O ar carregado de poeira; ratos-do-mato e outros pequenos animais se atropelavam em fuga precipitada para as sebes farfalhantes; moscas de verão enxameavam por toda parte.

O céu estava sem nuvens, de um azul intenso; o forte calor do verão era opressivo. Mas, já se anunciando em um quadrante do céu, uma imensa lua cheia subia suavemente.

O irmão Adam estava sentado mansamente em seu cavalo. Ele estivera em Beufre; agora, em St. Leonards. Depois atravessaria a charneca para os campos acima do pequeno vau. Estava sendo vigilante.

O abade tinha voltado na semana anterior e viajado novamente, para Londres. Antes de partir dera a Adam instruções expressas. "Seja especialmente cuidadoso na época da colheita, Adam. É quando temos grande parte de mão-de-obra contratada. Cuide para que eles não bebam nem se metam em encrencas."

Uma carroça vinha subindo a trilha, puxada por um enorme ajfer, que era como os homens de Beaulieu chamavam um cavalo de tirante. Nela havia fôrmas de pães da padaria da abadia, feitos com trigo não refinado, para os trabalhadores, e toneis de cerveja.

"Eles só podem tomar a Wilkin le Naket", fora a instrução decidida de Adam. Tratava-se da mais fraca das cervejas da abadia. Mataria a sede, mas ninguém ficaria bêbado ou sonolento. Ele observou o sol. Quando a carroça chegasse, determinaria um período de descanso. Olhou para o outro lado, na direção da charneca. O trigo no campo seguinte fora ceifado no dia anterior.

E ali ele viu a mulher, Mary, vestida com uma túnica simples amarrada na cintura, vindo em sua direção, atravessando o restolho.

Mary não tinha pressa. Tom não estava à sua espera. E esse era o motivo. Carregava um pequeno cesto com morangos silvestres que colhera para ele.

O que faz uma mulher quando é forçada a viver com um homem? Quando o há como fugir; quando há filhos para cuidar? Que faz ela quando mora em um lar onde o casamento acabou, mas ainda continua?

Tinham estado frios um com o outro por muito tempo, e, ainda que ela não o amasse, não conseguia mais agüentar aquela situação. O que era preciso então para salvar um casamento? Um pequeno presente, uma manifestação de amor. Se ela tivesse determinação, se o amor voltasse, talvez até conseguisse, de algum modo, ela mesma amar novamente. Ou chegar perto disso para poder seguir em frente. Era a sua esperança.

O pônei já nem mesmo era mencionado. Tom não queria pensar nele, talvez nem o quisesse mais de volta, acreditava ela. Uma ou duas vezes, sob um pretexto do tipo "preciso entregar isto para John", ela estivera na casa do irmão, eTom não fizera qualquer comentário. Tivera sempre o cuidado de voltar imediatamente. Talvez, com o passar do tempo, ela pudesse ficar mais um pouco. Luke, ela não mais o vira nem dele tivera notícias. Algumas vezes Tom mencionara seu nome. Devia desconfiar que andava por algum lugar da Floresta. Era difícil saber.

Para manter as aparências, eles pareciam bastante tranqüilos. Mas nem uma vez sequer, desde o incidente em maio, houvera qualquer intimidade entre os dois. Tom andava quieto mas frio, ou evasivo, o que dava no mesmo. Com a chegada da colheita, época em que os homens contratados costumavam dormir nas granjas ou nos campos, ele pareceu contente com a oportunidade de sair de casa e não se esforçava para voltar durante a noite.

Ela chegou ao campo no momento em que o irmão Adam deu a ordem para os homens descansarem.

Tom ficou surpreso ao vê-la. Até mesmo pareceu constrangido quando Mary lhe entregou o cesto e explicou:

— Colhi para você.

— Ah. — Ele não queria, aparentemente, demonstrar afeto diante dos outros; portanto, virou para cima a lâmina de sua gadanha e passou a afiá-la com uma pequena pedra de amolar.

Os homens seguiam em direção à carroça, onde um irmão leigo servia cerveja. Tom trazia sua caneca de madeira amarrada ao cinto com uma correia. Soltou-a, foi pegar um pouco de cerveja e depois ficou ali calado, enquanto a bebia.

— Você fez uma longa caminhada — falou finalmente.

— Que nada — retrucou ela e sorriu. — As crianças estão bem — ajuntou. — Vão ficar contentes quando você voltar.

— Ah, sim. Sei que vão.

— Eu também.

Ele tomou mais um gole da rala cerveja e murmurou:

— Ah, sim. — E, evasivo, voltou a amolar a lâmina da enorme foice. Alguns dos outros homens já vinham voltando. Houve cumprimentos com a cabeça para Mary, uma inspeção no cesto e alguns murmúrios de apreço: "Que bom", "Que lindos morangos a sua senhora trouxe, Tom", "Vai dividir com a gente, não vai?". A animação e o bom humor do pequeno grupo eram bastante grandes. Tom, ainda um pouco cauteloso, só conseguiu responder: "Talvez eu divida, talvez não." Mary, aliviada por causa do clima alegre, teve ânsias de gargalhar.

E a roda de conversa continuou, como costuma acontecer entre pessoas que não têm muito o que dizer, cada qual se sentindo obrigado a manter uma corrente de riso no centro, ao passo que, na periferia, aqueles com um humor diferente dos redemoinhos cochichavam piadas e comentários depreciativos que às vezes escoavam para o lado de fora e às vezes reentravam na corrente.

— Os Pride cuidam de você, Tom — uma voz surgiu do centro. — Aí está Tom com morangos, e o resto de nós sem nada.

Mary soltou uma gargalhada prazenteira diante do comentário amistoso e sorriu para Tom.

— Acho que Tom consegue tudo o que quer, não é mesmo, Tom? — veio da periferia.

Apesar do leve atrevimento e de ser tristemente impreciso, Mary também riu desse comentário, e Tom, um pouco abestalhado, olhou para o chão.

Algum espírito diabólico, porém, fez um dos homens mais jovens da periferia do grupo berrar com a voz rouca:

— Se tivesse se casado com o irmão dela, Tom, hoje você teria um pônei!

Mais uma vez Mary gargalhou. Gargalhou porque os outros estavam gargalhando. Gargalhou porque estava ansiosa para agradar. Gargalhou porque foi colhida de repente pela surpresa. Gargalhou apenas por um instante antes de perceber o que fora dito e, ao ver a expressão atordoada de Tom, conteve-se. Tarde demais.

Tom viu algo diferente. Tom viu-a rindo dele. Tom viu o presente dela como aquilo que desconfiava que era, uma artimanha, da mesma maneira como se da uma maçã a um pônei para deixá-lo contente. Os Pride eram todos iguais. Eles pensavam que podiam simplesmente ludibriar você, já que você era burro demais para não perceber. Faziam isso até mesmo diante das outras pessoas para fazer você passar por um tolo ainda maior. Tom viu-a gargalhar abertamente na cara dele e depois se conter, como se de repente tivesse pensado: Oh, meu Deus, ele percebeu. Viu nisso uma zombaria e um desprezo ainda maiores. E todo o ressentimento e a raiva que haviam ficado confinados durante a primavera e o verão brotaram novamente de dentro dele.

O rosto redondo enrubesceu. Com a bota chutou o pequeno cesto, espalhando os minúsculos morangos e pulverizando o-estolho de vermelho.

.— Dê o fora daqui — ordenou a Mary. Em seguida girou o braço para que as costas da mão atingissem o rosto dela, gritando: — Isso mesmo. Vá embora.

E assim, sufocando, Mary fez meia-volta e se afastou. Ouviu os murmúrios deles, algumas vozes elevando-se em repreensão a Tom, mas não olhou para trás e não desejava. Não foi o tapa que a deixara atordoada. Até compreendia. Mas o tom de sua voz, que, pareceu-lhe, dizia claramente diante de todos que ele não ligava mais para ela.

O irmão Adam estava a alguma distância quando aquilo aconteceu, mas tinha visto tudo e não poderia admiti-lo. Enfiando-se no meio do grupo, falou asperamente para Furzey:

— Você está em terras da abadia. Esse tipo de comportamento não é tolerado aqui. E não devia tratar sua esposa desse modo.

— É? — Tom lançou-lhe um olhar desafiador. — O senhor nunca teve uma esposa. O que é que sabe disso, monge?

Houve olhares em volta ao se ouvir isso. O que o monge iria fazer?

— Controle-se — afirmou Adam e virou-se. Mas Tom foi ainda mais longe.

— Eu falo o que quiser! E não meta o seu nariz onde não foi chamado — berrou.

Adam parou. Sabia que não podia deixar passar aquilo: e estava para se virar e mandar que Furzey se retirasse do campo, quando pensou na mulher. Felizmente o irmão leigo encarregado estava por perto. Em vez disso, dirigiu-se a ele:

— Não ligue, deixe estar — ordenou calmamente. — Não faz sentido ele ir atrás da esposa no estado em que se encontra — falou alto o bastante para que alguns dos outros contratados ouvissem. A punição viria depois, é claro, mas não naquele momento.

Em seguida montou no cavalo e se foi. Estava na hora de inspecionar os campos além da charneca.

Parou para conversar com os pastores próximo a Bergerie; somente quando alcançou a charneca a céu aberto, ele a avistou. Não sabia se deveria ou não se encontrar com ela.

Hesitou, observando-a por alguns instantes, enquanto ela caminhava pela charneca. Viu-a quase tropeçar. Então impeliu o cavalo em sua direção.

Ao se aproximar, ela deve tê-lo ouvido, pois se virou. Havia uma marca vermelha em seu rosto e era evidente que estivera chorando. Ela ainda tinha de percorrer quase cinco quilômetros através de terreno acidentado.

— Venha — inclinou-se, esticando o braço em sua direção. — O seu vilarejo fica no meu caminho.

Ela não discutiu e um instante depois, surpresa com a força do monge, viu-se levantada e montada facilmente sobre a cernelha do enorme cavalo, à frente dele.

Seguiram lentamente pela charneca, tomando cuidado para contornar o solo pantanoso. Bem distante, à direita, viram um rebanho de ovelhas da abadia cruzando a paisagem.

O sol batia inclemente; a charneca estava púrpura, vaporosa, seu doce odor estonteante como o da madressilva. A lua cheia anunciava sua estranha presença no azul arroxeado do céu.

Cavalgaram em silêncio, os braços do irmão Adam segurando as rédeas em volta do corpo dela, e nada falaram até começarem a descer o pequeno declive para um pequeno curso d'água no meio das urzes, quando ela perguntou:

— O senhor vai subir até os campos acima do vau?

— Vou, mas posso levá-la até o vilarejo. — Era apenas um desvio de mais ou menos quilômetro e meio.

— Eu vou andando para casa, de lá aonde o senhor vai. Tem um caminho pelos fundos, através da mata. Não quero que ninguém me veja com o rosto deste jeito.

— E o seus filhos?

— Estão na casa do meu irmão. Só vou buscá-los à noite.

O irmão Adam nada disse. Havia um trecho plano de charneca a céu aberto adiante e depois dele, a cerca de quatrocentos metros de distância, um renque de árvores que encobria a vacaria de Pilley mais além. Não se via vivalma, apenas algumas vacas e pôneis.

Ele sentia calor e observou que pequenas gotas de suor se haviam formado na nuca de Mary e atrás de seus ombros, que ficavam expostos sob a túnica. Podia sentir o cheiro de sua pele salgada — parecia-lhe trigo com um leve travo de couro quente de seus sapatos macios. Notou o modo como os cabelos negros nasciam da pele mais clara de seu pescoço. Os seios, cheios mas não grandes, estavam logo acima dos pulsos dele, quase tocando-os. As pernas, fortes como as de uma camponesa, mas agradavelmente torneadas, ficavam expostas do joelho para baixo enquanto cavalgavam.

E subitamente atingiu-o, com um ímpeto, uma necessidade intensa que nunca vivenciara antes: aquele tolo camponês Furzey podia abraçar aquela mulher e tornar-se íntimo do seu corpo sempre que desejasse. Em sua cabeça sempre soubera disso, é claro. Era óbvio. Mas agora, de repente, pela primeira vez em sua vida, a simples realidade física atingiu-o como uma onda. Deus do céu, ele quase gritou, essa é a vida diária, o mundo das pessoas simples. E eu jamais o conheci. Tinha deixado de viver a vida — de vivê-la plenamente? Haveria outra voz no universo, quente, ofuscante como o sol, ecoando, correndo pelas suas veias, mas que ele nunca tinha ouvido naqueles silêncios estrelados em seu claustro? E, tomando-o totalmente de surpresa, ele teve subitamente um sentimento de ciúme de Furzey e do mundo todo. O mundo todo conhecia, pensou, mas eu não.

Continuavam sem nada dizer, ao penetrar no renque de árvores que se estendia como um braço curvo pela charneca. As árvores eram despojadas, a luz mosqueada incidindo suavemente nas folhas de verão. Estava silencioso como uma igreja.

Vez por outra, ele via de relance, do outro lado dos campos, um dos tetos de palha das cabanas do povoado, dourados sob o sol. Então, quando a mata se curvava na direção sul, a trilha penetrava mais fundo nas árvores, seguindo adiante pela parte alta do pequeno sulco que se dirigia abaixo para o rio. Já haviam percorrido um bom trecho do caminho, fazendo um arco em torno do vilarejo, quando ela apontou para a esquerda e ele desviou o grande cavalo da trilha e seguiu pelo meio do mato.

Pouco depois ela indicou com a cabeça:

— Ali.

Ele viu então que estavam a apenas vinte passos do local onde as árvores cediam lugar a alguns arbustos de tojos e um pequeno cercado com pasto. Desmontando, ele a alcançou e baixou-a delicadamente para o chão.

— O senhor deve estar com calor — falou com simplicidade, virando-se para ele. — Vou lhe dar água.

Ele hesitou e levou um instante para responder.

— Obrigado.

Amarrou o cavalo a uma árvore e foi atrás dela. Estava curioso, supôs, para ver mais de perto a propriedade na qual ela passava os dias.

Não podiam ser vistos da cabana vizinha ao atravessarem o cercado. O portão da cerca do pasto dava para um pequeno quintal. A cabana ficava à esquerda, o estábulo, a direita. Perto do estábulo, havia um monte de fardos de samambaias cortadas, como um palheiro em miniatura. Ela desapareceu no interior da cabana por um instante e logo voltou com uma caneca de madeira e uma bilha. Despejou a água na caneca, pousou a bilha no chão e em seguida, sem falar nada, voltou para dentro da cabana.

Ele bebeu. Depois encheu novamente a caneca. A água era deliciosamente refrescante. A água do vilarejo, como a dos muitos córregos da Floresta, tinha um pronunciado sabor fresco de samambaia. Ela não reapareceu de imediato, mas ele achou que seria indelicado partir sem agradecer; portanto, esperou.

Ao retornar, ele percebeu que ela lavara o rosto. A água fresca já aliviara o rubor da marca em sua face. O cabelo tinha sido penteado; a túnica fora de algum modo puxada para baixo, fazendo com que a parte de cima dos seios ficasse ligeiramente exposta — por causa do ato de lavar o rosto, imaginou ele.

— Espero que esteja se sentindo melhor.

— Estou. — Seus olhos azul-escuros o examinavam atentamente, pareceu a Adam. Então ela deu um leve sorriso. — Precisa ver os meus animais — disse. — Tenho muito orgulho deles.

Assim, ele a acompanhou, atencioso como um cavaleiro andante diante de sua donzela, enquanto ela o conduzia pelos seus domínios.

Ela não tinha a menor pressa. Alimentou as galinhas e lhe disse os seus nomes. Deram uma olhada nos porcos. A gata acabara de ter filhotes; demoraram-se em admirá-los.

Mas, acima de tudo, ele admirava a mulher que o conduzia. Achava espantoso como ela recuperara a serenidade. O rosto estava sereno; parecia revigorada. Quando lhe disse os nomes das galinhas, exibiu um sorriso levemente irônico. Eles pareciam tão apropriados — um ou outro era bastante espirituoso — que ele lhe perguntou se fora ela quem tinha dado todos aqueles nomes.

— Sim — disse, lançando-lhe um olhar esquisito. — Meu marido vai trabalhar no campo, e eu dou nome às galinhas. — Encolheu ligeiramente os ombros e lembrou da cena que ele testemunhara no campo. — Esta é a minha vida — disse.

Ele sentia tanto ternura quanto admiração. Sentia-se protetor; pairava a seu lado, observando tudo o que ela fazia. Como se movimentava graciosamente. Não havia percebido antes. Embora de compleição bastante robusta, ela pisava com leveza e caminhava com um encantador movimento bamboleante. Por uma ou duas vezes, ao se abaixar para cuidar de um animal, ele observara o firme contorno de suas coxas e as adoráveis curvas do seu corpo. Quando se esticou, quase na ponta dos pés, para pegar uma maçã da árvore e o sol a iluminou, ele viu os seus seios em uma perfeita silhueta.

O sol da tarde batia quente em cima dele. Junto com os odores do quintal, ele detectou o da madressilva. Era estranho: na presença dela, tudo agora — os animais, a macieira, até mesmo o céu azul acima — de repente parecia mais verdadeiro, mais efetivo do que de costume.

— Venha — disse ela. — Tenho mais um bicho para ver. Está no estábulo. — E passaram pelos fardos que enchiam o ar com o cheiro de samambaias.

Seguia-a, mas diante da porta do celeiro, em vez de entrar, ela parou e olhou para ele.

— Receio que isto esteja sendo entediante para você.

— Não. — Foi apanhado de surpresa. — Não estou nada entediado.

— Bem. — Ela sorriu. — Uma fazenda não deve ser muito interessante para o senhor.

— Quando eu era criança — falou com simplicidade —, morei numa fazenda. Durante muito tempo. — E era verdade. O pai dele era mercador, mas o tio possuía uma fazenda, e ele passara lá parte da infância.

— Ora, ora. — Ela pareceu divertir-se. — Um fazendeiro. Era uma vez. — Deu uma leve risada. — Há muito, muito tempo... — Em seguida aproximou-se e delicadamente tocou no rosto dele.

— Venha — falou.

Quando aquela idéia se tinha formado em sua mente? Mary não estava bem certa. Teria sido na charneca, quando o belo monge a salvara, como um cavaleiro andante resgatando uma donzela em apuros? Teria sido durante o manso movimento do cavalo, com a sensação de seus fortes braços em volta dela?

Sim, talvez nessa ocasião. Se não foi aí, exatamente... deve ter sido então quando pegaram a trilha através da mata e ela imaginara: ninguém nos vê. O vilarejo, a sua cunhada, até mesmo o irmão — todos sem perceber que ela estava passando bem próximo com aquele estranho. Ah, sim, seu coração havia disparado naquela ocasião.

E, ainda que não estivesse certa do que queria, antes de ter chegado de volta, ela passou a ter certeza no instante em que lavou o rosto. O frio formigante da água em sua testa e nas bochechas; havia puxado a túnica para baixo e algumas gotas caíram em seus seios; arquejou e sentiu um leve estremecer. E dali, pela porta entreaberta, ela o viu à sua espera.

Entraram juntos no estábulo. O bicho ao qual Mary havia se referido não fazia parte da criação do sítio. Em vez disso, ela foi até um canto e, ajoelhando-se, mostrou-lhe uma pequena caixa cheia de palha.

— Eu o encontrei dois dias atrás — informou.

Tratava-se apenas de um melro que tivera a asa quebrada. Mary o havia salvo e fizera uma minúscula tala para a asa, e o mantinha em segurança no estábulo até ficar curado.

— A gata não pode entrar aqui — explicou.

Ele ajoelhou-se ao seu lado, enquanto ela afagava carinhosamente o passarinho, e, ao fazer o mesmo, as suas mãos se tocaram ligeiramente. Em seguida inclinou-se para trás, para observá-la, enquanto ela continuava curvada sobre o Passarinho em seu leito de palha.

Não olhava para o monge. Apenas estava ciente da presença dele.

Era estranho: até aquele dia ele fora apenas isso para ela — uma presença quase um espírito. Algo inatingível, acima dela, proibido, protegido pelos votos que fizera e resguardado do toque de todas as mulheres. Entretanto, agora que o conhecia, ele era também igual aos outros homens.

E atingível. Ela sabia que era. O seu instinto lhe dizia. Embora o marido houvesse optado por humilhá-la, ela tinha o poder de atrair, de possuir aquele homem, infinitamente superior ao pobre Tom Furzey.

Subitamente, ela foi dominada pelo desejo. Ela, a modesta Mary, em seu sítio, tinha o poder — aqui, agora — de transformar aquele inocente em um homem. Era uma sensação emocionante, estonteante.

— Olhe. — Levantou a asa do passarinho para que ele se curvasse a fim de tocá-lo. Quando ele se inclinou, ela virou o corpo de lado, de tal modo que os seus seios roçaram levemente o peito dele. Ela levantou-se bem devagar e passou por ele. A perna tocou em seu braço. Em seguida foi até a porta do estábulo, que estava entreaberta, e ficou parada olhando lá fora a reluzente luz do sol. Seu coração batia mais depressa.

Por um momento pensou no marido. Mas apenas por um momento. Tom Furzey não lhe dava valor. Devia a ele nada mais do que isso. Eliminou-o de sua mente.

Tinha consciência da luz do sol sobre ela, do formigamento nos seios e de uma esvoaçante sensação que parecia se espalhar como um rubor por todo o seu corpo. Fechou a porta do estábulo e virou-se, sorrindo.

— Não quero que a gata entre.

Avançou lentamente na direção dele. O estábulo estava na penumbra, mas aqui e ali fragmentos de luz infiltravam-se pelas fissuras nas paredes de madeira. Enquanto ela se aproximava, ele foi se levantando lentamente, e, num instante, estavam face a face, ela levantando a vista, quase tocando-o.

E o irmão Adam, que adorava a expressão de Deus na grande panóplia de estrelas da noite, percebeu apenas que o seu universo fora invadido por um brilho mais cálido e mais intenso que fizera com que as estrelas se esvanecessem.

Ela levantou os braços e enlaçou-os atrás do pescoço dele.

A tarde de verão estava tranqüila. Ao longe, na granja de Beaulieu, os ceifadores tinham retomado o seu trabalho e ao leve farfalhar das sebes se juntou o sibilar ritmado das foices nos talos do trigo dourado. Na pequena chácara tudo parecia quieto. Vez por outra um pássaro esvoaçava nas árvores. Nos limites gramados da Floresta, pôneis passavam ocasionalmente, enquanto pastavam nas sombras das árvores ou bebiam nos pequenos córregos e riachos que ainda escoavam na seca do verão. Através da imensa charneca a céu aberto, o sol, vigiado pela pálida lua, despejava-se na roxa incandescência das urzes e no amarelo berrante das flores do espinhento tojo. E, para o sul, no canal do Solent, a maré subia, e suas águas benéficas banhavam o litoral de New Forest.

O serviço da manhã. As formas imutáveis. As palavras eternas.

Laudate Dominum... Et in terrapax...

Prece. Pater Noster, qui es in coelis...

Sessenta monges, trinta de cada lado da nave, cada qual em seu lugar, o que somente a morte consegue mudar. Hábitos brancos, cabeças tonsuradas, as vozes todas elevadas em conjunto no canto anasalado dos imutáveis Salmos. Os cistercienses tinham uma forma precisa, clara, de canto gregoriano, que ele sempre achara particularmente adequada. Laudate Dominum: Louvado seja o Senhor. Vozes elevando-se com potência, em regozijo, pelo simples fato de os Salmos e as orações serem os mesmos cinco séculos atrás, hoje e sempre. O regozijo e o conforto de uma união invariável, a certeza de que sua irmandade é uma ordem que não terá fim.

E lá estavam eles: o sacristão, que era responsável pela igreja, o alto precentor conduzindo os cânticos, o adegueiro, responsável pelas bebidas, e o subadegueiro, que controlava todo o peixe. O querido irmão Matthew, agora mestre dos noviços, o irmão James, o esmoleiro, Grockleton, a mão de garra enganchada na extremidade de seu assento no cadeirado — grisalhos, louros, altos ou baixos, magros ou gordos, ocupados com o seu cântico, mas vigilantes, acompanhados por mais ou menos trinta irmãos leigos mais atrás da nave, cumpriam juntos o serviço matinal, e o irmão Adam também estava em seu local apropriado entre eles.

Naquela manhã não havia velas nos compartimentos do coro. O sacristão não viu necessidade. O sol de verão já atravessava suavemente as janelas e banhava o reluzente cadeirado de carvalho e formava pequenas poças de luz no chão azulejado.

O irmão Adam olhou em volta. O que ele estava cantando? Tinha esquecido. Tentou se concentrar.

Então lhe ocorreu um terrível pensamento. Foi dominado por uma sensação de pânico. E se tivesse deixado escapar alguma coisa? E se tivesse pronunciado o nome dela? Ou pior. Sua mente não estivera percorrendo o corpo dela? Os mais íntimos recantos? O sabor, o odor, o toque. Meu Deus, teria ele dito algo em voz alta? Estaria fazendo isso naquele momento, sem o perceber?

Todos foram diminuindo a voz gradativamente para rezar. Mas o irmão Adam não murmurou as palavras, prendeu a língua entre os dentes, por via das dúvidas. Enrubesceu por causa da sensação de culpa e olhou furtivamente os rostos do lado oposto. Teria dito alguma coisa? Eles teriam ouvido? Saberiam todos o seu segredo?

Não parecia. As cabeças tonsuradas estavam baixadas, orando. Estaria alguém lançando um olhar furtivo em sua direção? O olho de Grockleton estaria prestes a encará-lo com uma terrível sentença?

Não era tanto a culpa que o afligia; era o terror de que pudesse ter dito algo, sem perceber, naquele espaço confinado. Naquele dia o serviço matinal, em vez de revigorá-lo, só lhe havia provocado uma nervosa tortura. Ficou aliviado, ao terminar, por poder sair dali.

Depois do desjejum, um pouco mais calmo, foi falar com o prior.

O período da manhã no gabinete do prior era normalmente dedicado a assuntos administrativos rotineiros. Mas havia outros assuntos que podiam ser tratados. Se, em prol do bem-estar da comunidade, fosse necessário, como era o seu dever fazê-lo, apresentar qualquer denúncia pessoalmente — "Eu vi o irmão Benedict se servir duas vezes de arenque" ou "Ontem o irmão Mark ficou dormindo em vez de realizar suas tarefas" —, a ocasião era aquela.

Preocupado com o fato de alguém denunciá-lo, esperou até o fim antes de ir até lá. Se tivesse sido flagrado, achava melhor saber o quanto antes. Quando finalmente foi ter com Grockleton, o prior não deu nenhum sinal de ter tal informação.

— Trata-se — explicou — de Tom Furzey. — E fez para Grockleton um relato completo do que havia ocorrido no campo, e o prior ficou meneando a cabeça pensativo.

— Você fez muito bem em não mandar o homem para casa imediatamente — disse Grockleton. — Provavelmente teria espancado novamente a pobre esposa.

— Mas ele tem que ser mandado embora — frisou Adam. — Não podemos admitir indisciplina. — Sabia que o prior concordaria com todo o entusiasmo.

Contudo Grockleton fez uma pausa. Olhou sério para Adam.

— Será — perguntou, empurrando ligeiramente a cadeira para trás com a sua garra — que isso é justo?

— Claro, se um contratado insulta o monge encarregado...

— Isso é repreensível, lógico. — Grockleton contraiu os lábios. — Mas por outro lado, irmão Adam, precisamos ter uma visão mais ampla.

— Uma visão mais ampla? — Tratava-se de uma novidade, vinda do prior.

— Talvez seja melhor esse homem e a esposa ficarem separados. Ele vai sentir falta dela. Vamos esperar que ele se arrependa. No devido tempo, um de nós deve falar com ele, calmamente.

— Isso não me deixa numa situação embaraçosa, prior? Ele vai achar... todos os outros vão achar que podem falar impunemente de um modo rude comigo

— É mesmo? Você acha? — Grockleton baixou o olhar para a mesa, onde agora a garra descansava confortavelmente. — Entretanto, às vezes, irmão Adam devemos nos esforçar para não levar em conta os nossos próprios sentimentos, mas o bem maior dos outros. Não tenho dúvidas de que, se deixarmos Tom Furzey onde está, o trabalho continuará sendo feito, e bem feito. Você verá. Talvez você possa pensar que foi feito de tolo... até mesmo se sentir humilhado. Mas todos nós precisamos aprender a conviver com isso. Faz parte de nossa vocação. Não concorda? — Sorriu de um modo bastante amável.

— Quer dizer que Furzey deve continuar? Mesmo se voltar a ser rude comigo?

— Sim.

O irmão Adam concordou com a cabeça. Ele está se vingando muito bem por eu o ter humilhado no rio, pensou, apesar da culpa ter sido dele, não minha. Mas não era tanto em sua humilhação pública que pensava ao curvar a cabeça diante do contente prior.

Se mandasse Furzey embora, garantiria a volta dele para casa, para a esposa. Isso tornaria quase impossível, de sua parte, qualquer relacionamento posterior com ela. Mas agora ela continuaria sozinha. Ficou imaginando o que poderia acontecer.

Você nem sabe, John de Grockleton, pensou ele, o que acaba de fazer.

Luke esgueirava-se adiante no meio da escuridão. Havia apenas um fragmento de lua prateada, mas conseguia enxergar muito bem com a luz das estrelas. O cavalo estava amarrado a uma árvore cerca de cem metros distante. Era a terceira vez que ele o via ali.

Deitou-se na beira do limite da fileira de árvores. Dali podia ver o pequeno estábulo, o estábulo onde passara tantas noites de inverno. Atrás dele, na mata que se elevava do pequeno vale ribeirinho perto de Boldre, uma coruja piou. Esperou pacientemente.

Ainda faltava muito para a alvorada, quando ele viu o vulto escapulir para fora do estábulo e seguir silenciosamente ao longo do cercado com pasto e chegar as árvores. Passou a cinqüenta metros de distância, mas ele não teve dúvidas a respeito da identidade do estranho. Demorou apenas alguns momentos até ouvir o cavalo atravessar as árvores atrás de si.

Luke esperou um pouco e depois iniciou o caminho em direção ao estábulo.

O abade ainda não tinha retornado quando chegou a notícia de que a corte da Moresta voltaria a se reunir pouco antes da festa de São Miguel Arcanjo, e John de wockleton pensou durante dois dias até se decidir a tomar a iniciativa. Antes de anunciá-la, porém, mandou chamar o irmão Adam.

Não havia dúvida, pensou quando o monge se encontrava diante dele, que Adam parecia excepcionalmente bem. As semanas passadas no campo o tinham deixado bastante bronzeado. Parecia mais saudável, até mais alto. Como sabia que Adam preferia ter ficado no claustro, e já que o seu porte quase muscular não era bem apropriado para um monge do coro, Grockleton não invejava a boa disposição que demonstrava. Em todo caso, só queria mesmo era saber uma coisa:

— Alguns dos homens contratados ouviu falar algo sobre o irmão Luke, o fugitivo?

— Se ouviram — respondeu Adam, falando a verdade —, nada me disseram.

— Acredita que alguém saiba onde ele está?

O irmão Adam fez uma pausa. Mary lhe falara duas vezes sobre Luke. Havia lhe contado a versão dele sobre o incidente e, embora ele não lhe tivesse perguntado diretamente, supunha que ela sabia que o irmão se encontrava em algum lugar da Floresta.

— Creio que a maioria dos contratados acha que ele já deixou a Floresta.

— A corte vai voltar a se reunir. Se ele estiver na Floresta, quero que seja encontrado — afirmou Grockleton. — O que você sugere?

— Como sabe — respondeu com cautela, dando de ombros —, há uma suspeita de que ele talvez queira evitar uma controvérsia. A própria justiça deu indícios de que pode tomar esse tipo de decisão. Eu acho melhor não mexer em casa de marimbondos.

— A corte pode tomar a decisão que quiser — atalhou Grockleton. — Eu tenho a obrigação de apresentá-lo, e é o que pretendo fazer. Portanto, vou oferecer uma recompensa. Um preço pela cabeça dele.

— Entendo.

— Duas libras para quem conseguir trazê-lo. Acredito que isso vai mexer com a cabeça do povo da Floresta, não acha?

— Duas libras? — Era uma pequena fortuna para homens como Pride e Furzey. Seu rosto mostrou-se abatido ao pensar em Mary e no quanto ela ficaria preocupada.

— Há algo errado? — Grockleton fitou-o intensamente.

— Não. Não há nada, prior. — Recobrou-se rapidamente. — É uma grande quantia.

— Eu sei — disse Grockleton, com um sorriso.

Às vezes, quando Adam deitava com Mary, era tomado por uma sensação de espanto por tal coisa ter acontecido.

Eles não acendiam nenhuma luz. Não ousavam. Ela ia para o estábulo tarde da noite, quando as crianças já estavam dormindo — graças a Deus, elas se movimentavam tanto que sempre dormiam pesadamente —, e ele, observando do meio das árvores, esgueirava-se para ir ao seu encontro. Estava se tornando muito bom nisso.

Certa vez, na terceira em que se encontraram, ela ficara sob um raio de luar que atravessava uma brecha da porta e silenciosamente despiu-se diante dele. Ele ficou a observá-la, extasiado, enquanto tirava o seu vestido de tecido grosseiro e ficava de pé, descalça, só com a túnica de linho. Com um leve movimento de cabeça, deixou seus cabelos negros caírem sobre os ombros. Depois puxou a túnica para baixo, revelando lentamente os abundantes seios pálidos, e, deixando-a escorregar para o chão, livrou-se dela com os pés, levando o corpo nu em sua direção, enquanto ele arfava.

Tudo era uma revelação: o contato, o cheiro de sua pele enquanto ele explorava sem pudor o seu corpo. Nos primeiros dias, depois que se separavam, a presença dela surgia em sua mente como um espírito, e logo descobria a imaginação habitando aquele corpo. Ficava tenso de desejo e luxúria ao pensar em novas maneiras de abordá-la e possuí-la.

Era mais do que isso, porém: a totalidade da presença física dela, sua vida, o seu modo de pensar; agora que penetrara naquele novo mundo, queria conhecê-lo todo. Céus, pensou, eu conhecia o universo de Deus, mas deixava escapar a totalidade de Sua criação. Sequer se sentia realmente culpado; isso era o mais estranho. Era um homem por demais honesto para se deixar enganar a respeito. Tinha orgulho de si mesmo. O próprio perigo da empreitada apenas aumentava seu orgulho e sua excitação. Deus sabe, refletia, que eu jamais fiz nada perigoso antes.

E a ameaça à sua alma imortal? Às vezes, quando estava com ela, no auge da paixão, a sensação para ele era a de entrar em uma nova paisagem, tão simples, tão plena da ressoante presença de Deus e tão antiga quanto o deserto, anterior ao surgimento da idéia do celibato. E nessas ocasiões, fossem quais fossem os votos que fizera, o irmão Adam sentia como se o mais íntimo de sua alma não se tivesse perdido, mas achado.

Por quanto tempo aquilo poderia prosseguir? Não sabia. Furzey fazia apenas breves visitas à sua casa. Não parecia querer passar muito tempo por lá, por isso era muito fácil garantir que fosse mantido ocupado nas granjas. Adam já imaginara tarefas para manter o camponês trabalhando até o fim de setembro. Quanto as suas próprias ausências, elas eram fáceis de explicar. Passava muitas noites na abadia; mas, se resmungava uma noite que iria sair de uma granja para visitar outra, ninguém parava para pensar no assunto. E o prior ficava apenas contente em pensar que Adam estava sendo forçado a passar uma noite fora. Portanto, aquilo poderia durar até o outono. Depois disso ele não sabia.

Adam e Mary estavam deitados sonolentos, tarde da noite, quando ele lhe revelou o plano do prior de botar a prêmio a cabeça do seu irmão. Já que imaginava possível que ela soubesse o paradeiro de Luke, achou que seria uma delicadeza alertá-la. Mas, apesar disso, não esperava aquele tipo de reação quando lhe transmitiu a notícia.

Com um sobressalto, Mary sentou-se na palha.

— Oh, meu Deus. Duas libras. — Parecia olhar direto adiante. — Puckle não o entregará. Nem mesmo por essa quantia. — Fez uma pausa e virou-se na direção dele. — Pois é — disse, suspirando. — Agora você sabe.

— Ele está com Puckle, o carvoeiro?

— É. Perto de Burley.

— Bem, eu não contarei para ninguém.

— É melhor mesmo.

— Aliás — deu uma risadinha para si mesmo —, isso é muito engraçado.

— Por quê?

— Acho que eu o vi.

— Ah. — Ela ficou calada por um instante. —Tem mais uma coisa que você precisa saber. Ele veio aqui, um dia desses, de manhã. Bem cedo.

— E?

— Ele sabe a nosso respeito. Ele viu você.

— Ah. — Isso abriu uma nova perspectiva para o monge. O irmão leigo fugitivo tinha informações sobre ele... tratava-se de um novo perigo. — E o que ele disse?

— Nada demais.

— Devo crer — refletiu Adam — que ele está mais seguro com Puckle do que em qualquer outro lugar. Mas, se eu souber de alguma coisa, avisarei.

Passaram outras três horas juntos, e a primeira luz da manhã já se espalhava quando Adam escapuliu para fora, depois de concordar em voltar dali a duas noites. Como sempre, fez cautelosamente o caminho de volta até as árvores e depois cavalgou tranqüilamente através do bosque em direção ao vau.

Dessa vez, porém, sua saída do estábulo foi vista por um par de olhos vigilantes. E não pertenciam a Luke.

A notícia da recompensa de duas libras oferecida por John de Grockleton foi conhecida no dia seguinte. À noite tinha chegado a Burley. Puckle estava em casa, depois de ter deixado Luke vigiando uma nova fogueira de carvão no meio do mato. Sua enorme família se encontrava reunida diante da cabana.

— São duas libras — disse o filho dele.

— Duas libras de nada — rebateu Puckle.

— Mesmo assim, duas libras... — repetiu um dos sobrinhos.

Puckle olhou em volta para todos eles. Também para a mulher, que sensatamente permanecia calada.

Ela assava uma lebre em um espeto sobre uma pequena fogueira que ele fizera do lado de fora da casa. A pele jazia no chão, perto de seus pés. Ele não falou durante um momento; depois apontou para ela.

— Vocês já me viram esfolar uma lebre? — perguntou mansamente. Todos confirmaram com a cabeça. Em seguida gesticulou em direção à lebre que assava no espeto. — Se alguém abrir o bico a respeito de Luke... — Olhou calmamente do mesmo modo para o filho e o sobrinho, depois deixou que os olhos varressem o restante do círculo em volta. — É isso o que eu farei com ele.

Seguiu-se o silêncio. Se um habitante da Floresta como Puckle dissesse uma coisa dessas, era aconselhável dar ouvidos.

Na manhã seguinte, bem cedo, Puckle falou com Luke.

— Duas libras é muita coisa — comentou com tristeza.

— O seu pessoal não vai falar, vai?

— É melhor que não. Mas agora as pessoas vão começar a procurar. Quando virem você, vão pensar: "Qual dos sobrinhos é esse?". Acho que alguém vai somar dois mais dois.

— Eu contei para Mary.

— Foi burrice. — Puckle deu de ombros. — Mesmo assim, acho que ela não vai falar.

— E o que devo fazer?

— Não sei. — Pareceu pensativo. Então, de repente, seu rosto nodoso abriu um sorriso. — Acho que já sei. — Balançou a cabeça desgrenhada. — Que tal você me ajudar a fazer outra fogueira de carvão?

A irmã de Furzey ficara muito intrigada com o pônei, mas agora, pensou, enquanto caminhava pela Charneca de Beaulieu em direção à St. Leonards, achava que podia ter a resposta.

E, melhor ainda, valia uma fortuna.

Foi por acaso que ela acordara tão cedo no dia anterior. O marido havia instalado na mata do vale duas armadilhas para coelhos, e ela resolvera dar um pulo até lá para ver se tinham apanhado alguma coisa. Estava para descer o declive, quando avistou uma figura sorrateira sair apressada, curvada, da propriedade de Tom e ir em direção às árvores.

Ficou parada ali por algum tempo, imaginando quem poderia ser. Mesmo depois de ter encontrado um coelho e o levado para casa, continuava pensando com os seus botões. Então naquele mesmo dia surgiu a notícia da recompensa do prior, e a suspeita transformou-se em certeza. Era Luke. Só podia ser.

Isso talvez também explicasse o pônei. Luke Pride andava rondando a casa de Tom, entrando e saindo sorrateiramente à noite. Então deve ter sido ele quem levou o pônei de volta. Que demônio insolente.

Mas sorriu. Os Pride iam ter o castigo merecido. Ela e Tom poderiam desfrutá-lo igualmente. "Uma libra para ele e uma libra para mim", murmurou.

O final do dia de trabalho se aproximava, quando ela chegou a St. Leonards. Localizou Tom facilmente e chamou-o a um canto.

Depois que terminou de contar sua história, o rosto redondo dele revelou um sorriso de alegria.

— Vamos pegá-los — exclamou.

— É Luke, não é?

— Claro que é. Só pode ser.

— Duas libras, Tom. Em partes iguais. Podemos começar a vigiar esta noite. Ele franziu a testa.

— O problema é que preciso ficar aqui esta noite. A gente começa de madrugada, ouviu?

O irmão Adam havia passado um pouco antes para se certificar de que todos estavam presentes.

— Você podia dar uma escapulida, não? Depois que escurecesse.

— Acho que sim.

— Vou ficar esperando. Duas libras, Tom. Se você não aparecer, eu vou ficar com tudo.

Já escurecera havia muito quando o irmão Adam silenciosamente amarrou o cavalo e começou a se mover furtivamente em direção ao cercado do pasto. Estava muito escuro, e por uma ou duas vezes precisou tatear o caminho. Na beira do cercado parou. Lentamente começou a se dirigir à imprecisa forma do estábulo.

Quando alguém o derrubou no chão.

Foi como uma forte pancada dupla nas costas. Não fazia idéia do que era, mas bateu no chão com tanta força que perdeu o fôlego. Um instante depois os dois agressores tinham-lhe agarrado os braços e tentavam virá-lo de frente. Ainda não conseguia falar, mas escoiceou violentamente. Ouviu a voz de um homem praguejar. Em seguida um deles envolveu os seus braços em volta das pernas, enquanto o outro o socou com bastante força no plexo solar. Para Adam, nenhum dos dois agressores lhe parecia muito grande, mas ambos eram fortes.

Seriam assaltantes? Aqui? Sua mente já havia voltado a funcionar, quando, com uma pontada no coração, ouviu a voz de Tom Furzey.

— Peguei.

O que diabos ele poderia dizer? Não conseguia pensar em coisa alguma. Aquele camponês ia carregá-lo de volta à abadia por ter ele fornicado com a sua esposa? O que seria dele?

Um dos dois estava manuseando desajeitado alguma coisa. De repente, um lampião brilhou no seu rosto.

— Irmão Adam!

Graças ao Senhor, ainda estava de posse de seu discernimento. A voz de Tom Furzey havia expressado um tal espanto, uma tal confusão: o que quer que significasse, não era a ele que esperavam encontrar. Suas pernas foram soltas. Outro sinal de que se sentiam em desvantagem. Debateu-se e sentou-se. Ele precisava blefar.

— Furzey? Eu conheço a sua voz. O que significa isso? Por que não está em St. Leonards?

— Mas... o que o senhor faz aqui, irmão Adam?

— Isso não importa. Por que você está aqui e por que me atacou? Houve uma pausa.

— Pensei que o senhor fosse outra pessoa — a voz de Furzey respondeu soturna.

— Seja como for, ele não vale duas libras. — Uma voz de mulher, mas não era a de Mary.

Então, é claro, ele percebeu.

— Entendo. Vocês pensaram que Luke pudesse vir por aqui.

— Minha irmã acha que o viu.

— Ah. — Graças a Deus. Ele já sabia o que dizer. — Bem, Furzey— falou lentamente —, você não devia ter deixado a granja sem permissão, mas é por isso que eu também estou aqui. Tive um palpite de que ele poderia vir por aqui, e, se viesse, seria apanhado.

— Então a gente não ganharia as duas libras; o senhor ganharia o prêmio, suponho — deduziu Tom.

— Você está esquecendo que duas libras não têm utilidade para mim. Monges não possuem bens terrenos.

— Quer dizer que a gente pode pegar ele?

— Acredito que sim — respondeu Adam secamente.

— Ah. — Furzey alegrou-se audivelmente. — Então todos nós poderemos procurar.

O que ele podia fazer? Adam olhou na direção do estábulo. E se Mary, preocupada com a demora dele, saísse para procurá-lo? Pior ainda, se chamasse pelo seu nome? Poderia dizer aos dois que ia inspecionar o estábulo e alertá-la? Decidiu que era arriscado demais. Achariam que a presença dele poderia alertar Mary para o fato de estarem à procura do irmão dela.

Pior ainda, e se Tom entrasse lá, e Mary, ao vê-lo, o tomasse pelo seu amante e chamasse o nome errado?

Felizmente, ele logo percebeu, Tom estava mais ansioso para capturar Luke do que para se encontrar com a esposa. Entretanto, ainda havia a possibilidade de o pobre Luke aparecer, ao amanhecer, para visitar a irmã. Ficou imaginando se haveria algum modo de interceptá-lo, mas naquela escuridão não haveria como.

Portanto, esperou. Não surgiu nenhum som do estábulo, nem Luke apareceu. Quando rompeu a luz, concordaram em desistir. Ele poderia voltar novamente, para vigiar?, perguntou-lhe Furzey.

— Suponho que sim — respondeu o irmão Adam. Em seguida foi embora. Ele tinha muito o que fazer.

O sol já ia bem alto quando chegou ao local perto de Burley onde havia encontrado o carvoeiro. Não demorou muito para encontrar Puckle, que evidentemente o vira se aproximar.

Havia agora dois enormes cones de carvão de que ele cuidava. Aparentemente, o processo de queima de um já estava quase completo; o do outro acabara de ter início. Puckle estava sozinho. Não havia sinal de Luke.

O irmão Adam não perdeu tempo.

— Eu tenho um recado para Luke.

— Para quem?

— Eu sei. Você não o viu. Mas mesmo assim dê o recado para ele. — E contou resumidamente a Puckle sobre a vigília de Tom. — É melhor ele não aparecer por lá. Outra coisa. — Respirou fundo. Pensara em dar o recado pessoalmente, mas o risco era grande demais. — Preciso de um favor seu. Por favor, conte para Mary que a casa está sendo vigiada. Pode dizer que fui eu que lhe falei. Ela entenderá.

E o quanto, imaginou, Puckle entenderia? Talvez imaginasse por que ele estava fazendo um favor para Mary e Luke ou talvez adivinhasse toda a verdade? Era impossível saber, esquadrinhando aquele rosto de carvalho. Olhou Puckle nos olhos.

— Silêncio compra silêncio, espero.

Puckle apenas olhou para ele, em seguida fitou a fogueira. Somente quando o monge se afastou, ele murmurou:

Na Floresta, sempre comprou.

Deus do céu, pensou Adam, ao voltar na direção das terras da abadia, agora estou até mesmo em conluio, criminalmente, com Puckle. Contudo, ao ouvir o canto matinal dos pássaros, teve apenas uma estranha sensação de júbilo por cair em desgraça.

Ele ficaria ainda mais surpreso, assim que se afastou, se visse o que aconteceu na segunda fogueira de carvão. Uma pequena porta se abriu na lateral coberta de terra e grama e de seu interior, nada queimado, nem mesmo aquecido, emergiu Luke.

O esconderijo concebido por Puckle era a coisa mais engenhosa que se podia imaginar. A metade de cima do enorme cone fora construída internamente mais ou menos como uma fogueira de carvão normal, só que, usando materiais úmidos, Puckle podia produzir uma grande quantidade de fumaça com muito pouco calor. Mas abaixo dela, com um grosso telhado interno feito com torrões de terra, havia um espaço vazio com buracos para ventilação, no qual Luke podia ficar bem confortavelmente o tempo que quisesse. Todos os dias, ao amanhecer, Puckle pretendia refazer a fogueira da parte de cima, e ninguém que passasse por ali, até mesmo quem tivesse a vista aguçada, jamais adivinharia o seu segredo.

A semana seguinte foi muito movimentada na Floresta.

Em dois dias sucessivos, por causa da insistência do prior, os florestais saíram com os cães de caça. O administrador ficou tão amolado com a incumbência que passou toda a responsabilidade para o jovem Alban. No primeiro dia percorreram a mata perto da casa de Pride e foram até quase Burley. Mas lá o faro tornou-se tão confuso que os cães nada faziam além de andar em círculos. No dia seguinte tentaram na direção de Minstead. Mas, misteriosamente, o faro parecia levar diretamente para a casa do florestal, que não pareceu nem um pouco contente.

Metade da Floresta, aberta ou secretamente, estava de guarda. Os florestais e seus administradores cavalgavam por lá em grupos. Cabanas eram visitadas, cada habitante das matas, parado. Tudo resultou em nada, mas como Puckle certa noite observou tristemente para Luke: "Vai ser difícil para você poder sair."

Mary esperou dez dias antes de sair para o seu encontro. Durante esse tempo não vira uma só vez o irmão Adam. Mas raramente ele ficava distante de seu pensamento.

O que sente uma mulher quando seduz um monge? Sorriu então, só um pouco, ao pensar que mesmo naquela primeira tarde, apesar de estar angustiada, e o monge, protetor, ele continuava sem perceber que na verdade fora ela quem o havia seduzido. Foi a sua inocência que ela instintivamente desejou, aquele homem forte másculo, que nunca conhecera uma mulher. E ela, a esposa camponesa de um humilde trabalhador, o teve em seu poder para o ensinar a conhecer a vida. Ele dera um passo, ainda que fosse um meio passo, na direção dela. Pediu sem mesmo saber que pedia ou, certamente, por que pedia.

Eu possuí um homem de Deus, um homem proibido, e o fiz resplandecer como o sol: em alguns momentos ela se sentiu quase enlevada pela sensação de seu triunfo feminino. Não que tivesse deixado que ele percebesse. Pelo menos, não a princípio. Ela o conduzira, pensou com um sorriso, maravilhosamente bem.

Isso tinha sido tudo então? Apenas uma sedução? Ah, não. Houve um motivo, antes de mais nada, para que ela se sentisse atraída por ele: sua delicadeza, sua inteligência; a percepção de que ele tinha o que ela não tinha; a certeza de que, mesmo sem estar certa do que eram essas coisas, ela queria tê-las.

No início, quando conversavam à noite, ela lhe perguntava: "No que você está pensando?" E ele respondia algo que achava que ela entenderia. Mas logo, quando ela deixava claro que queria mais, ele fazia um esforço e tentava lhe explicar suas meditações noturnas. "Houve um grande filósofo, sabe, chamado Abelardo, que acreditava...", e lhe explicava. Ou discorria sobre terras longínquas, ou grandes acontecimentos, um mundo bem distante de qualquer coisa que ela jamais conhecera, mas que, embora palidamente, como se visse a luz se infiltrando pela janela de uma igreja, conseguia discernir. E ele se encontrava nesse outro mundo. Ela sabia. "A sua cabeça está nas estrelas", ela lhe sussurrou certa vez, mas não por troça. E quando, uma outra vez, após ele lhe contar uma idéia maravilhosa que tivera, ela soltou uma gargalhada — "E estar dentro de mim fez você pensar nisso?" —, ficou, na verdade, mais contente do que jamais se sentira em toda a vida.

Mas recentemente tinham ocorrido mais coisas preocupantes.

Seu encontro com Luke, combinado quando Puckle lhe trouxe o recado, foi em um tranqüilo local da mata ao norte de Brockenhurst. Tomou cuidado para não ser seguida.

Ele já estava lá, à espera dela, perto de um imenso carvalho, carregado de musgo de hera. Ela ficou feliz por ver que ele estava com bom aspecto e a sua aparência era bastante alegre. Mas as notícias que ele tinha não o eram.

— Puckle acha que devo deixar a Floresta. O prior não vai desistir.

— Depois da corte da festa de São Miguel Arcanjo, ele vai.

— Não — suspirou Luke. — Você não o conhece.

— Ainda acho que você devia se entregar. Não vão enforcar você.

— Talvez não. Mas não se pode confiar neles.

— Aonde você vai?

— Em romaria, talvez. Compostela. Milhares de pessoas vão para lá. Compostela. Espanha. Podia-se esmolar pelo caminho, diziam. Ela duvidava. Sacudiu a cabeça.

— Você nunca saiu da Floresta.

— Mas eu gosto de andar.

Por um momento ficaram em silêncio.

— O que está acontecendo, afinal, com o irmão Adam? — quis saber ele. Agora era a vez dela de dar uma notícia preocupante.

— Acho que estou grávida.

— Ah. Tem certeza?

— Quase. Creio que sim. E o que parece.

— Não poderia ser de Tom? — Ela sacudiu a cabeça. — O que você vai fazer? — Ela apenas deu de ombros. Luke ficou pensativo. —Acho que você eTom... É melhor você dar uma chance para Tom pensar que é dele, você não acha?

— Eu sei — disse ela, respirando fundo. O tom de voz era inexpressivo. Ele nunca o ouvira antes.

— Você esteve com ele uma porção de anos. Não pode ser tão ruim assim.

— Você não entende. — E não entendia mesmo. Para ele, todos eram apenas criaturas da Floresta.

— Vai contar ao irmão Adam?

— Talvez.

— Sabe, Mary, isso não pode continuar. O inverno vai chegar. Tom irá para casa. Você é mãe de família, e o irmão Adam é um monge.

— E haverá a primavera e o verão seguintes, Luke.

— Mas Mary...

Como poderia ele entender? Era um rapaz simplório. Talvez ela tivesse se deitado com Tom. Teve de fazê-lo. Não havia mesmo como escapar. Mas Adam também esteve lá. Ela ouvia mulheres falarem de amantes. Coisas assim aconteciam em alguns vilarejos, principalmente na época da colheita. Talvez, quando começou com o irmão Adam, ela pensasse que por ser um monge ele estaria seguro: voltaria à abadia de Beaulieu, lugar a que pertencia, quando tudo acabasse. O problema era que ela havia conhecido um tipo superior de homem. E o fato de nunca poderem lhe tirar o irmão Adam. Ela não podia dar um passo atrás na mesma direção. A paisagem tinha mudado sutilmente.

— Beaulieu não é longe, Luke. Não vou voltar apenas para Tom.

— É preciso.

— Não.

Naquela noite Luke e Puckle conversaram por um longo tempo. Ao final, Puckle afirmou:

— Acho que precisa fazer isso.

— Você me ajuda?

— Claro.

Se alguém seguisse pelo lado leste do claustro de Beaulieu, vindo da igreja, chegaria primeiro ao grande armário trancado — pois se tratava disso mesmo — conhecido como estante, onde era mantida a maioria dos livros da abadia. Em seguida, a sacristia; depois dela, a casa do capítulo, onde todas as manhãs de domingo, enquanto o abade se encontrava fora, Grockleton lia o regulamento da abadia para os monges em assembléia. A seguir vinham o scriptorium, onde o irmão Adam gostava de passar o tempo estudando, o dormitório dos monges, e logo depois da esquina, perto do grande frater, ficava a casa do aquecimento, um espaçoso aposento com um braseiro.

John de Grockleton acabara de emergir da casa do aquecimento, quando chegou a mensagem, e ele foi apressado até o portão.

O mensageiro era um criado de Alban, que desejava falar com ele em particular. A mensagem fez o rosto do prior se abrir num sorriso:

— Acreditamos ter apanhado o irmão Luke, prior.

O problema era que ele não estava falando. Alban, ao que parecia, estava relutante em ir à abadia com ele sem ter toda a certeza de quem ele era. Caso contrário, todos passariam por tolos novamente. Por isso mantinha o sujeito secretamente em sua casa. O prior poderia ir lá discretamente e identificar o irmão leigo?

— Eu o conduzirei, se desejar — explicou o criado.

— Eu irei imediatamente — disse Grockleton, e mandou selar o seu cavalo. Tudo o que o prior conseguia fazer, enquanto atravessavam a charneca, era conter o entusiasmo. Seguiam a trote ou a meio galope. Com todo o prazer, ele seria capaz de galopar. Na extremidade da charneca, penetraram na mata a leste de Brockenhurst e foram a meio galope pela trilha. O prior era só sorrisos. Dificilmente estivera tão contente em sua vida.

— Por aqui — voltou a informar o criado, pegando a trilha para a esquerda-— É um atalho. — O caminho era mais estreito. Uma ou duas vezes foi atingido no rosto por galhos pendentes, mas não se importou. — Por aqui, senhor — gritou o criado, guinando para a direita. Ele seguiu-o ansioso e depois franziu a testa. Onde diabos o sujeito tinha se enfiado? Puxou as rédeas. Gritou.

E foi com grande espanto que sentiu duas mãos o agarrarem por trás, puxan-do-o de cima do cavalo, e, antes mesmo que tivesse tempo de reagir, colocaram uma corda em volta dele, a qual, um segundo depois, foi presa a uma árvore.

Ele estava para berrar "Assassinos! Ladrões!" quando outra figura apareceu miraculosamente à sua frente. Uma figura desgrenhada da mata, que ele reconheceu somente após um instante como sendo o irmão Luke.

— Você! — A posição normal do seu corpo era curvada para a frente. Mas o prior se esticava tanto na direção de Luke que parecia até querer mordê-lo.

— Está tudo bem — retrucou o sujeito, insolente. — Só quero conversar. Eu teria ido à abadia, mas... — Sorriu e deu de ombros.

— O que você quer?

— Voltar para a abadia.

— Está maluco?

— Não, prior. Espero que não. — Sentou-se no chão, diante de Grockleton. — Posso falar?

Não era, Grockleton teve que admitir, o que ele estava esperando. Primeiramente, Luke falou da abadia, das granjas e dos anos que passou por lá. Expressou-se com tanta simplicidade e sentimento que, gostasse ou não, Grockleton pôde perceber que ele amava de verdade o lugar. Em seguida explicou o que acontecera na granja naquele dia. Não se desculpou por ter deixado os caçadores clandestinos entrarem, mas justificou o modo como tentou evitar que o irmão Matthew atingisse Martell e por que entrou em pânico e fugiu. Por menos que gostasse também daquilo, o prior avaliou secretamente que se tratava da verdade.

— Você devia então ter voltado.

— Fiquei com medo. Medo do senhor.

Não desagradava totalmente a Grockleton o fato de aquele camponês temê-lo.

— E por que eu deveria agora fazer alguma coisa por você? — protestou.

— E se eu lhe contar uma coisa importante para o bem da abadia, algo que ninguém sabe, poderia ter um motivo...?

— É possível — refletiu Grockleton.

— Entretanto, será ruim para um monge. Grockleton franziu a testa.

— Que monge?

— O irmão Adam. É muito ruim para ele.

— Do que se trata? — O prior não conseguiu disfarçar o cintilar de seus olhos.

Luke viu-o. Era do que precisava.

— O senhor tem que mandá-lo embora. Sem escândalo. Isso seria muito ruim para a abadia. Ele tem que ir. E eu tenho que voltar, sem a corte da Floresta, sem mais nada. O senhor pode conseguir isso. Preciso de sua palavra.

Grockleton hesitou. Sabia o que era um acordo, e sua palavra se cumpria. Mas havia uma dificuldade óbvia.

— Priores não fazem acordos com irmãos leigos — afirmou com franqueza.

— Não me verá emitir mais nenhum som depois disso. Dou a minha palavra. Grockleton ponderou. Colocou tudo na balança. Pensou também na reação da corte e dos florestais, que, sabia muito bem, andavam fartos dele, se ouvissem aquele sujeito honesto falar, em um julgamento, com a mesma eloqüência que revelara há pouco. Era melhor ter Luke do lado dele. Pois bem... Luke dissera algo sobre o irmão Adam.

— Se for uma coisa boa, tem a minha palavra — ouviu a si mesmo dizer. E assim Luke traiu o irmão Adam e sua irmã Mary.

Só que ao ouvir o sujeito, Grockleton achava que não se tratava realmente de uma traição. Encarado do ponto de vista de Luke, havia algo profundamente natural naquilo. Ele via a família da irmã prestes a ser assolada por uma tempestade; por isso estava protegendo-a. Um golpe repentino, uma golfada de sangue; era apenas a natureza.

Nem o perfeito equilíbrio da coisa escapou ao prior. Assim que Adam se fosse, Mary não teria outra escolha a não ser viver em paz com o marido. A criança seria tratada como se fosse de Tom. Não era do interesse de ninguém dizer coisa alguma. Exceto dele próprio, é claro, se quisesse destruir completamente o irmão Adam. Mas mesmo isso não fazia sentido. Pois, se expusesse Adam, prejudicaria a reputação da abadia. E o que o abade diria daquilo? Não, a avaliação do camponês era boa. E tinha mais. Lembrou-se de outra coisa, algo que constava do livro secreto, do conhecimento apenas do abade. Ele próprio teria de ser um pouco cuidadoso.

E quanto a Luke? Podia confiar em que ele se comportaria? Provavelmente. Não ia querer magoar a irmã, causando problemas, mas sabendo a respeito do monge isso continuaria sendo uma ameaça e uma espécie de proteção. De qualquer modo, ficarei melhor com ele em segurança no interior da abadia do que fora dela, ponderou o prior.

E, pela primeira vez em sua vida, Grockleton começou a pensar como um abade.

Com que júbilo, poucos dias depois, os monges de Beaulieu ficaram sabendo da volta de seu abade, e que, pelo que constava, não havia em futuro próximo nenhum plano de deixá-los novamente.

O irmão Adam também ficou contente. Sua única preocupação era que o abade, dessa vez com um errôneo senso de bondade, resolvesse substituí-lo nas tarefas das granjas. Mas ele havia se preparado cuidadosamente para isso. Sua ficha era excelente. Uma outra pessoa levaria um ano para aprender o que ele já sabia. E quem mais ia querer aquele trabalho? Pelo bem da abadia, certamente deveria ser mantido por mais um ou dois anos. Em todo caso, esperava estar bem preparado.

Quanto ao seu segredo criminoso, ele já aprendera a participar dos serviços religiosos sem o terror de se denunciar. Já tinha, confessou a si mesmo, se tornado impermeável ao seu pecado. Estava contente apenas pelo fato de o abade não saber de nada, e isso era tudo.

Certa manhã, quando recebeu uma convocação para se apresentar perante o abade e o prior, foi preparado para tudo, exceto para o que o aguardava.

O abade pareceu amistoso, se bem que um tanto sério, quando ele entrou. Grockleton estava sentado lá, curvado para a frente, a garra sobre a mesa como de costume. Mas Adam estava tão contente por rever o abade que mal ligou para o prior. E foi o abade, e não Grockleton, quem falou.

— Bem, Adam, nós sabemos tudo sobre o seu caso amoroso com Mary Furzey. Felizmente nem o marido dela nem os irmãos da abadia sabem. Portanto, gostaria que nos contasse a respeito com suas próprias palavras.

Grockleton quis perguntar a Adam se ele tinha algo a confessar, para lhe dar a chance de perjurar, mas o abade não concedeu o pedido.

Não levou muito tempo. Já que sua humilhação havia terminado, o abade nada fez para prolongá-la.

— Isso ficará em segredo — disse a Adam —, em benefício da abadia, e, devo acrescentar, da mulher e da família dela. Você deve sair daqui imediatamente. Hoje. Mas não quero que ninguém saiba o motivo.

— Para onde devo ir?

— Vou mandá-lo para a nossa abadia irmã em Devon. Para Newenham. Ninguém achará estranho. Eles têm pelejado um pouco por lá, e você é... ou era... um dos nossos melhores monges.

— Posso me despedir de Mary Furzey? — perguntou Adam, de cabeça baixa.

— Certamente que não. Não deve ter nenhum tipo de contato com ela.

— Fico surpreso — dessa vez foi Grockleton quem falou, pois não pôde resistir — pelo fato de você ao menos pensar nisso.

— Bem — disse Adam, suspirando. Em seguida olhou tristemente para Grockleton, mas sem rancor. — Você nunca fez tal coisa.

Houve um silêncio no aposento. A garra não se mexeu. Talvez o prior tenha se curvado um pouquinho mais sobre a antiga mesa escura. A expressão do rosto do abade era dissimulada, enquanto ele fitava cautelosamente a meia distância. O irmão Adam não podia adivinhar que no livro secreto do abade havia uma anotação referente a John de Grockleton, uma mulher e um filho. Mas isso tinha sido em outro mosteiro, distante, no norte, muito tempo atrás. Depois que ele saiu, o abade perguntou:

— Ele não sabe que ela está grávida?

— Não.

— É melhor assim.

— Certo — concordou Grockleton.

— Minha nossa — desabafou o abade, rematando de modo significativo: — Nenhum de nós está a salvo de sucumbir, como você sabe.

— Eu sei.

— Quero que dêem a ele dois pares de sapatos novos — ajuntou o abade com firmeza — antes que se vá.

Ainda não era meio-dia quando o irmão Adam e John de Grockleton, acompanhados por um dos irmãos leigos, saíram cavalgando lentamente da abadia e subiram a trilha que levava à Charneca de Beaulieu.

Enquanto avançavam, Adam observava as pequenas árvores que coroavam o morro do lado oposto à abadia. A brisa salgada do mar que vinha do sudeste não as havia curvado, mas moldado as copas, de modo que todas elas pareciam como se tivessem sido aparadas de um lado; e desabrochavam para o lado nordeste. Tratava-se de uma vista comum na parte litorânea da Floresta.

Atrás deles, nuvens brancas escorriam acima da tranqüila abadia banhada pelo sol, enquanto subiam a pequena elevação. Adam sentiu a cortante brisa salgada atingir todo o seu rosto.

O irmão Luke voltou normalmente para a Granja St. Leonards uma semana depois. O caso dele não foi levado à justiça durante a corte da festa de São Miguel Arcanjo. Por ocasião da corte, Mary contou ao marido que talvez ele viesse a ser pai outra vez.

— Ah. — Ele franziu a testa, depois arreganhou os dentes, meio intrigado. — Foi um golpe de sorte.

— Eu sei. — Ela deu de ombros. — Essas coisas acontecem.

Ele teria pensado um pouco mais naquilo, só que logo depois John Pride que sofrera duas horas de insistência por parte do seu irmão Luke — apareceu e sugeriu que a briga entre os dois terminasse. Trouxe junto o pônei.

 

                                 1300

Em uma tarde de dezembro, quando um sol amarelo de inverno, baixo no horizonte, enviava seus fracos raios através da congelada paisagem da Charneca de Beaulieu, que estava coberta de neve, dois cavaleiros agasalhados contra o frio seguiam lentamente para leste em direção à abadia.

A neve caíra dias antes; e logo depois da charneca havia agora uma fina crosta de gelo que se rompia sob os cascos dos cavalos. Uma brisa leve e gelada vinha do leste, espalhando pequenas partículas de neve e gelo pela superfície. Os galhos dos arbustos cobertos pela neve projetavam compridas sombras que apontavam para leste em direção a Beaulieu.

Cinco anos haviam se passado desde que o irmão Adam deixara a abadia e fora para a triste irmã de Newenham, muito distante, ao longo da costa ocidental — cinco anos com apenas uma dúzia de outros irmãos no pequeno ermo. O cenário com que se deparava naquele momento podia ser desalentador, aquela paisagem glacial iluminada pelo brilho sulfuroso de um sol poente de inverno, mas ele não o percebia. Só percebia, como se por um instinto pátrio, que as edificações cinzentas à beira do rio ficavam a menos de uma hora distantes.

Tratava-se de um fato curioso, nunca explicado totalmente, que por essa ocasião da história um certo número de monges da pequena abadia irmã de Newenham em Devon tivesse passado a sofrer de uma doença peculiar. O registro da abadia de Beaulieu deixa isso muito claro, mas, se foi por causa da água, da comida, algo no solo ou nas próprias edificações, ninguém jamais foi capaz de descobrir. Vários deles, entretanto, adoeceram com tal gravidade que não havia nada a fazer, a não ser levá-los de volta a Beaulieu, onde poderiam receber mais cuidados.

Foi o que acontecera ao irmão Adam. Não percebia a luz amarelada à sua volta, porque estava cego.

A partir daquela época passou a ser comentado, sempre com espanto por parte dos monges de Beaulieu, o modo pelo qual o irmão Adam conseguia encontrar o seu caminho pela abadia sem nenhum auxílio. Mesmo no meio da noite, quando os monges seguiam pelos corredores e desciam as escadas para o ofício da noite na igreja, ele seguia com os demais, sem ajuda, e ia exatamente para o seu lugar no cadeirado do coro. Do lado de fora também caminhava pelo terreno da abadia aparentemente sem se perder.

Ele parecia encontrar todos os tipos de tarefas que conseguia executar sem o Uso dos olhos, desde plantar legumes a fabricar velas.

Continuava um homem forte e bonito. Conversava pouco e gostava de ficar sozinho, mas transmitia sempre um ar de mansa serenidade.

Somente uma vez, uma questão de poucos dias após os dezoito meses de seu retorno, ocorreu algo em seu interior que pareceu perturbar sua mente. Por várias vezes se perdia ou dava encontrões nas coisas. Depois de uma semana, durante a qual o abade ficou muito preocupado com ele, Adam pareceu recuperar a serenidade e o equilíbrio e nunca mais voltou a dar encontrões nas coisas. Ninguém soube por que aconteceu esse breve entremeio. Exceto o irmão Luke.

Corria uma quente tarde de verão, quando o irmão leigo se ofereceu para conduzi-lo pelo seu caminho favorito ao longo do rio.

— Não verei o rio, mas sentirei o seu cheiro — disse-lhe Adam. —Vamos lá então.

Foi necessário dessa vez que Luke o segurasse pelo braço, mas, com eventuais avisos sobre qualquer pequeno obstáculo no caminho, foram capazes de percorrê-lo através da mata com bastante facilidade e largas passadas, emergindo finalmente no pântano a céu aberto próximo à curva do rio, onde, para o seu deleite, o monge ouviu o som de um bando de cisnes elevando-se em um vôo acima da água.

Quando estavam parados uns momentos, em meio ao silêncio da tarde, sentindo prazerosos o sol no rosto, o irmão Adam ouviu leves passadas na trilha.

— Quem é? — perguntou a Luke.

— Alguém que quer vê-lo — respondeu o irmão leigo. — Vou me afastar um pouco — acrescentou. E foi com um leve choque de surpresa, um ou dois instantes depois, que Adam percebeu quem devia ser.

Ela estava de pé diante dele. Podia sentir o seu cheiro. E conseguia, como apenas um cego consegue, perceber a totalidade de sua presença. Quis se esticar para tocá-la, mas hesitou. Pressentiu que ela não estava sozinha.

— Irmão Adam. — Era a voz dela. Falou lenta e suavemente. — Trouxe alguém para você ver.

— Ah. E quem é?

— O meu filho mais novo. Um menininho.

— Sei.

— Pode lhe dar a sua bênção?

— A minha bênção? — Ficou ainda mais surpreso. Tratava-se de algo natural de se pedir a um monge, mas, sabendo o que ela fez com ele... — Por que a minha bênção? — quis saber. — Quantos anos tem o seu filho?

— Cinco.

— Ah. Uma bela idade. — Sorriu. — E o nome dele?

— Eu o chamei de Adam.

— Ah. O meu nome.

Sentiu-a chegar mais perto, o corpo dela quase tocando-o, mas foi para poder cochichar no ouvido dele.

— Ele é seu filho.

— Meu filho? — A revelação o atingiu de tal modo que ele quase cambaleou para trás. Era como se em seu mundo de trevas tivesse havido um grande clarão de luz dourada.

— Ele não sabe.

— Você... — A voz era rouca. — Você tem certeza?

— Tenho. — Ela já havia voltado para a posição anterior.

Por um momento ele ficou parado ali, imóvel, sob o sol, embora sentisse estar balançando.

— Venha cá, pequeno Adam — falou mansamente. E, quando o menino se aproximou, esticou as mãos para baixo e sentiu a cabeça dele e depois o seu rosto. Gostaria de levantá-lo, senti-lo, apertá-lo. Mas não podia fazer isso. —Adam — falou afetuosamente —, seja um bom menino, faça o que a sua mãe mandar e aceite a bênção de um outro Adam. — E, com a mão pousada sobre a cabeça do garoto, recitou uma breve oração.

Queria muito dar algo à criança. Ficou imaginando o quê. Então, lembrando de repente, agarrou o crucifixo de cedro que muito tempo atrás sua mãe lhe dera; com um único puxão, rompeu a tira de couro que o mantinha em volta do pescoço e o entregou ao menino.

— Foi minha mãe que me deu isto, Adam — falou. — Dizem que foi um cruzado que o trouxe da Terra Santa. Conserve-o sempre com você. — Dirigiu-se a Mary e encolheu os ombros. — É tudo o que eu tenho.

Os dois foram embora, e pouco depois ele e Luke fizeram o caminho de volta em direção à abadia.

Só se falaram apenas uma vez, na metade do caminho da trilha que atravessava a mata.

— O menino se parece comigo?

— Sim.

De todo o tempo, durante os longos anos de sua cega existência, era naquelas ensolaradas tardes de verão, quando ele se sentava sossegado nos carrels do claustro ao abrigo da parede norte, que o irmão Adam aparentava mais serenidade. Parecia aos monges mais jovens que, estando obviamente mais perto de Deus, o irmão Adam se encontrava em silenciosa comunhão, e seria heresia interrompê-lo. E às vezes ele estava. Mas às vezes também, ao captar o cheiro da grama e das margaridas no claustro e sentir o sol quente vindo de cima àofrater, era um outro pensamento que inundava a sua mente com júbilo e deleite, o qual, ainda que o levasse à perdição, ele não podia evitar.

Eu tenho um filho. Meu Deus, eu tenho um filho.

Certa tarde, quando estava sozinho, sem ninguém por perto para ver, até mesmo pegou uma pequena faca que estivera usando no dia anterior e, discretamente, entalhou uma pequena letra "A" na pedra a seu lado.

"A" de Adam. E às vezes, pensava, se o seu castigo fora ser expulso do jardim de Deus para um lugar mais escuro, então, talvez, pelo bem de seu filho, ele faria tudo novamente.

E assim, durante muitos anos, o irmão Adam viveu com o seu segredo na abadia de Beaulieu.

Lymington

 

                                1480

Sexta-feira. Dia de mercado de peixe em Lymington. Nas quartas e sextas, às oito da manhã, durante uma hora, os peixeiros montavam suas barracas.

Uma morna manhã de abril. O cheiro de peixe fresco era delicioso. Muitos deles tinham chegado ao pequeno cais naquele alvorecer. Havia enguias e ostras do estuário; abrótea, bacalhau e outros peixes de carne branca do mar; também havia o peixe-vermelho, como chamavam a cabrinha amarela na época. A maioria das mulheres do burgo ia ao mercado de peixe: as esposas dos mercadores, com suas vestes de mangas compridas e toucas de freira cobrindo a cabeça, as classes mais pobres e as criadas, algumas com corpetes amarrados atrás, todas com aventais e pequenos capuzes para fazê-las parecer respeitáveis.

O intendente acabara de tocar o sino para encerrar as vendas, quando, da direção do cais, surgiram duas pessoas.

Apenas com um vislumbre, enquanto a figura esbelta subia a rua naquela morna manhã de abril, sentia-se que era conhecida. Justamente por causa da maneira como caminhava. Tratava-se de algo tão óbvio, que ele estava se lixando para o que os outros pensassem. As frouxas perneiras de linho que o protegiam adejavam alegremente em suas panturrilhas, deixando expostos os tornozelos nus. Nos pés usava apenas sandálias presas com correias de couro. Sua jaqueta era feita de manta — pano listrado — nas cores azul e amarela, nenhuma delas muito limpa. Na cabeça, um boné de couro que ele mesmo havia cozido.

O jovem Jonathan Totton não se lembrava de alguma vez ter visto Alan Seagull sem aquela peça para cobrir a cabeça.

Se o rosto de Alan Seagull pegava um atalho da boca para o peito, se sua rala barba negra descia direto da boca até o pomo-de-adão, sem fazer uma parada em um adorno como o queixo, podia-se ter certeza de que era porque ele e seus antepassados tinham achado que podiam muito bem passar sem aquilo. E havia algo em seu sorriso alegre e matreiro que indicava que eles tinham razão. "Nós fizemos um desvio de uma curva aqui", parecia dizer o sorriso de Seagull a respeito de seu próprio queixo, "e talvez tenhamos nos desviado de algumas outras, mas vocês não precisam saber quais foram."

Cheirava a alcatrão, peixe e mar salgado. Como sempre fazia, vinha cantarolando uma melodia. O jovem Jonathan Totton era encantado com ele e, caminhando orgulhoso ao lado do marujo, tinha acabado de chegar ao ponto da rua em ladeira onde ficava a pequena e acanhada prefeitura, quando uma voz, tranqüila mas autoritária, chamou-o:

— Jonathan, venha cá.

Pesaroso, deixou a companhia de Seagull e se dirigiu à casa de pranchas de madeira com frontão alto, diante da qual seu pai estava parado.

Um momento depois, com a mão do homem mais velho pousada em seu ombro, ele se descobriu lá dentro e ouvindo a voz calma do pai.

— Eu preferiria, Jonathan, que você não passasse tanto tempo com esse homem.

— Por quê, papai?

— Porque há companhias melhores em Lymington. Isso, pensou Jonathan, ia ser um problema.

Lymington, assentada como estava na embocadura do rio que corria de Brockenhurst e Boldre para o mar, ficava geograficamente no centro do contorno da costa da Floresta — embora, em termos de exatidão, sua pequena faixa costeira de terras de lavoura e pântanos não tivesse sido incluída na jurisdição legal da floresta de caça do Conquistador.

Naquele tempo era uma florescente cidadezinha portuária. Do agrupamento de casas de barcos, lojas e cabanas de pescadores em torno do pequeno cais, a larga High Street (Rua Alta) subia como uma ladeira bastante íngreme ladeada por casas de madeira e argamassa de dois pavimentos, os andares superiores com telhados de frontões projetando-se à frente. A prefeitura, no lado esquerdo do topo da aresta, típica de sua espécie naquela data, era feita de pedra e consistia em um pequeno compartimento escuro cercado por arcadas onde vários vendedores ofreciam suas mercadorias; acima, alcançado por uma escadaria externa, um espaçoso alpendre saliente servia de sala de tribunal para discussão dos assuntos municipais. Em frente à prefeitura ficava o marco da cidade; do outro lado da rua, o Angel Inn. Cerca de duzentos metros mais adiante, ao longo do cume da ladeira, uma igreja marcava o final do burgo. Havia duas outras ruas, em ângulos retos, uma igreja, uma cruz indicando o lugar da feira — pois Lymington tinha o direito de promover, em setembro, uma feira anual com duração de três dias. Havia um tronco de suplício e uma pequena prisão para malfeitores, uma cadeira para tortura com imersão na água e um pelourinho para açoite. Havia um poço municipal: tudo isso para servir a uma comunidade de talvez quatrocentas almas.

Da High Street podia-se avistar o cais, o pequeno estuário abaixo e os altos barrancos do rio mais adiante. Da parte de trás da prefeitura, o longo perfil da ilha de Wight do outro lado do Solent.

Essa era a Lymington onde havia melhores companhias do que Alan Seagull.

Era difícil dizer quando Lymington começara. Quatro séculos antes, quando os escrivães do Conquistador compilaram o seu Domesday Book, o cadastro das terras inglesas, registraram o pequeno povoamento próximo à costa conhecido como Old Lymington, com terras para apenas um arado, um hectare e meio de prado e habitantes que somavam seis famílias e alguns escravos.

Tecnicamente, por ser pequena, Lymington era uma herdade nobre mantida, juntamente com muitas outras, por uma sucessão de senhores feudais, os primeiros a desenvolver o lugar. Sua utilização original, pelo que consta, foi como um porto a partir do qual as embarcações podiam atravessar os apertados estreitos para as terras que eles também mantinham na ilha de Wight. Mesmo essa escolha não foi inevitável. Os senhores feudais também mantinham a terra senhorial de Christchurch, onde, pouco depois da morte de Rufus, construíram um agradável castelo perto do novo convento e das águas rasas de um porto. A primeira vista, este parecia um porto natural. O problema, porém, era que entre Christchurch e a ilha de Wight havia alguns inconvenientes bancos de areia e correntes para se navegar, ao passo que se descobriu, no acesso ao vilarejo de Lymington, um canal mais profundo e acessível.

A travessia também é mais curta", observaram. E assim Lymington passou a existir.

Ainda era apenas um vilarejo; mas por volta de 1200 a herdade nobre deu mais um passo. Entre o vilarejo e o rio, em uma área de terreno inclinado, construíram uma única rua de terra, com trinta e quatro modestos lotes de terra junto a ela. Pescadores, marujos e até mesmo negociantes como osTotton, de outros portos locais, foram incentivados a ir para lá e se estabelecer. E, para induzi-los ainda mais a isso, a expansão, conhecida como New Lymington, ganhou uma nova categoria.

Tornou-se burgo.

O que isso significava na Inglaterra feudal? Que tinha uma carta de concessão do monarca para funcionar como uma cidade? Nem tanto. A concessão era dada pelo senhor feudal. Às vezes podia ser pelo próprio rei; nessa época, nas cidades que se desenvolviam em torno da nova catedral — lugares como Salisbury —-esse privilégio era concedido pelo bispo. No caso de Lymington, contudo, a concessão foi dada pelo grande senhor feudal que mantinha Christchurch e muitas outras terras próximas.

O acordo era simples. Os humildes homens livres de Lymington — chamados a partir de então de burgueses — deviam se juntar em uma corporação, que pagaria ao senhor feudal uma remuneração anual no valor de trinta shillings. Em troca, seriam reconhecidos como livres de qualquer atividade de labuta para o senhor, e este também daria a permissão para que eles pudessem atuar em qualquer parte de seus vastos domínios, livres de todos os tributos de concessões e de direitos. Confirmados meio século depois por uma segunda carta de concessão, os burgueses de Lymington podiam gerir os assuntos rotineiros do burgo e eleger o seu próprio comissário — uma espécie de cruzamento de um subprefeito com um capataz de um proprietário de terras — para representá-los.

Saibam todos os homens presentes e que venham a aparecer que eu, Baldwin de Redvers, conde de Devon, concedi, e pela presente carta confirmo, aos meus burgueses de Lymington todas as liberdades e isenção de tributos... por terra e por mar, em pontes, barcas e portões, em feiras e mercados, na venda e na compra... em todos os lugares e em todas as coisas...

Assim principiava o comovente texto da carta, típico de seu gênero, através da qual o pequeno porto do senhor feudal se diplomou em cidade.

Mas o senhor feudal era o dono do burgo, de seus burgueses e do prefeito, como era então chamado o comissário, pois, embora tivessem liberdade, continuavam sendo seus locatários. Ainda lhe deviam os aluguéis dos lotes de terra as posses — e os cômodos que ocupavam. Se eles faziam leis, o senhor tinha o direito de aprová-las. Nas questões rotineiras de lei e ordem, os burgueses e o seu burgo estavam sujeitos à corte do senhor feudal. E, mesmo com o passar do tempo, enquanto as cortes do rei cada vez mais assumiam a justiça local, no território feudal de Old Lymington, com base na lei de propriedade de áreas rurais nos arredores do burgo, os senhores feudais continuavam como os guardiães do lugar.

Durante cerca de um século, os grandes acontecimentos da história da Inglaterra mal afetaram o local. Por volta de 1300, quando o rei Eduardo quis saber por que esse burgo não havia fornecido um barco para a sua campanha contra os escoceses, seus delegados informaram: "Trata-se de um porto pequeno e pobre verdade, apenas um vilarejo", e foram perdoados. Mas o século seguinte assistiu a uma dramática transformação.

Quando a terrível Peste Negra assolou a Europa, nos anos que se seguiram a 1346, ela alterou para sempre a face da Inglaterra. Um terço da população morreu. Fazendas, aldeias inteiras ficaram vazias; a mão-de-obra era tão escassa que servos e camponeses pobres podiam vender seu trabalho e adquirir sua própria terra livre. Nas grandes áreas de florestas, com veados e suas pequenas populações de mateiros e caçadores, houve pouca mudança; contudo, na metade oriental de New Forest, na extensa propriedade de Beaulieu, ocorreu uma forma silenciosa da grande revolução na agricultura. Não havia mais irmãos leigos para cuidar das granjas. A abadia, entretanto, continuava a sua vida de orações; os seus monges, aliás, viviam muito bem. Mas, em vez de cuidar das granjas existentes em suas enormes propriedades, cederam a maioria delas, por vezes subdividindo-as, a inquilinos lavradores. Vez por outra o jovem Jonathan era levado a uma dessas granjas para visitar a família da mãe, que lá vivia muito confortavelmente havia três gerações. Quando, ao longo da costa, seu pai apontava na direção oeste, não dizia a Jonathan "estas são terras cistercienses", mas sim "é ali que fica a fazenda de sua mãe". Os monges de Beaulieu não eram mais um caso especial. Tinham-se tornado apenas mais um senhor feudal.

E, se a abadia recuava, o pequeno porto avançava. Logo após a grande Peste, quando o terceiro rei Eduardo e o seu glamouroso filho, o Príncipe Negro, conduziam suas brilhantes campanhas — na suposta Guerra dos Cem Anos — contra os franceses, os homens de Lymington já tinham capacidade de fornecer vários barcos e marujos. Melhor ainda, essa guerra se revelou uma das poucas que foram realmente lucrativas para a Inglaterra. O dinheiro de saques e pagamentos de resgates jorrava. Os ingleses tomaram terras e portos valiosos de seus primos franceses. Por mais modesto que fosse, o porto de Lymington viu-se transformado em entreposto de vinhos, especiarias e todos os tipos de pequenos luxos dos ricos e ensolarados territórios franceses. Seus negociantes ganharam confiança. E em 1415, na ocasião em que o heróico rei Henrique V obteve o triunfo final sobre a França em Agincourt, ficaram muito cheios de si.

E se, em ocasiões posteriores, as coisas não iam muito bem, a atitude deles era: Ainda há dinheiro para se ganhar."

Havia ocasiões em que Henry Totton se preocupava com o filho.

— Não tenho certeza se ele absorve as coisas que falo para ele — queixou-se certa vez a um amigo.

— Todos os meninos de dez anos são iguais — garantiu-lhe o outro.

Mas isso não era bom o bastante para Totton e, ao olhar para o filho naquele instante, sentiu uma incerteza e uma decepção que tentava não aparentar.

Henry Totton tinha menos do que uma altura mediana e seus modos eram despretensiosos; mas suas vestes informavam de imediato que ele queria ser levado a sério. Quando jovem, o pai lhe fornecia roupas adequadas à sua posição; e isso era importante. As antigas Leis Suntuárias havia muito tinham estabelecido o que cada classe, no demasiadamente variado mundo medieval, poderia usar. Tais leis sequer eram uma imposição. Se os nobres de Londres usavam mantos carmesim, e o lorde prefeito, a sua corrente, toda a comunidade se sentia honrada. O mestre da Universidade de Oxford merecera a sua beca solene; os seus pupilos, ainda não. Havia honra na ordem. O mercador de Lymington não se vestia como um nobre e seria objeto de caçoada se o fizesse; mas tampouco se vestia como o camponês ou como o humilde marujo. Henry Totton usava um longo houppelande— um casaco com mangas abotoado do pescoço até o tornozelo. Usava-o frouxo, sem cinturão, e, embora simples, o material era do melhor pano marrom brunido. Ele tinha outro, de veludo, com um cinturão de seda, para ocasiões especiais. Trazia o rosto bem escanhoado, e seus tranqüilos olhos cinza não ocultavam completamente o fato de que, dentro dos exatos limites de sua posição na vida, era ambicioso por causa da família. Durante séculos houvera mercadores Totton em Southampton e Christchurch; não queria que o ramo de Lymington ficasse para trás de seus muitos primos.

Tentava não se preocupar com Jonathan. Não seria justo com o rapaz. E Deus sabia que ele o amava. Desde a morte da esposa, no ano anterior, o jovem Jonathan era tudo o que ele tinha.

Quanto a Jonathan, olhando para o pai, sabia que o decepcionava, ainda que não soubesse direito por quê. Em alguns dias tentava agradá-lo, mas em outros esquecia. Se ao menos seu pai entendesse os Seagull.

Foi no ano em que sua mãe morreu que ele perambulava sozinho pelo cais. Na extremidade inferior da High Street, onde terminavam os antigos terrenos de posse, havia uma ladeira íngreme que levava à água. Era uma descida abrupta em todos os sentidos. O antigo burgo terminava bem no alto dela; portanto, no que dizia respeito a gente como os Totton, era onde tinha importância. Abaixo daquela ladeira social se juntavam as desleixadas cabanas dos pescadores. "E de outros destroços e refugos", como dizia o pai, que vinham à deriva do mar ou da Floresta.

Mas para Jonathan era um pequeno paraíso: barcos de costado trincado com suas extensas velas, as canoas no cais viradas de cabeça para baixo, os pios das gaivotas, o cheiro de alcatrão, de sal e de algas secas, as pilhas de redes e armadilhas para peixes — ele adorava perambular por entre essas coisas. A cabana de aeagull — se assim podia ser chamada—ficava no fim de tudo, à beira-mar. Mais do que uma cabana, era uma reunião de objetos, cada qual mais fascinante do que o outro, acumulados em uma generosa pilha. Ela deve ter sido formada por mágica — talvez o mar, em uma noite tempestuosa, a tenha depositado ali —, pois era impossível imaginar Alan Seagull se dando ao trabalho de construir alguma coisa cuja finalidade não fosse flutuar.

Talvez, pensando bem, a cabana de Seagull tivesse flutuado. Ao longo de uma parede ficavam os restos de uma enorme canoa, pendendo no sentido do comprimento e emborcada, formando uma espécie de caramanchão onde a esposa de Seagull costumava se sentar para amamentar um dos filhos mais novos. O telhado, que seguia para lá e para cá, era feito de todos os tipos de pranchas, vergas, pedaços de pano de vela, exibindo aqui e ali arestas e calombos que bem podiam ser um remo, a quilha de um barco ou um velho baú. Fumaça era expelida de um lugar que parecia uma panela de cozinhar lagostas. Tanto o telhado quanto as paredes laterais feitas de pranchas eram em grande parte negras de alcatrão. Aqui e ali uma surrada persiana sugeria a existência de janelas. Perto do vão da porta ficavam duas enormes conchas raiadas de vieiras. No lado da cabana voltado para o mar encontravam-se um barco e redes penduradas para secar, com numerosas bóias. Mais adiante, uma grande área com canteiros de juncos, que às vezes cheiravam mal. Em suma, para um menino, tratava-se de um lugar de assombrosa magia.

Não que o proprietário dessa choça marítima fosse pobre. Longe disso; Alan Seagull possuía o seu próprio navio — uma embarcação de costado trincado com um mastro, maior do que um barco de pesca e com um porão grande o suficiente para transportar pequenas cargas não apenas ao longo das águas litorâneas, como também até a França. E, apesar de nada jamais ter sido limpo ou lustrado, cada parte da embarcação se encontrava em perfeita ordem de funcionamento. Para a tripulação do navio, ele era o senhor. Aliás, tratava-se de fato amplamente conhecido que Alan Seagull tinha um dinheirinho escondido em algum lugar. Não tanto quanto Totton, é claro. Mas toda vez que ele queria alguma coisa, notava-se que sempre podia pagar em dinheiro vivo. Sua família se alimentava bem.

O jovem Jonathan costumava vadiar nas proximidades da casa de Seagull, observando os sete ou oito filhos, que, como peixes em uma gruta submersa, entravam e saíam correndo de lá sem parar. Espiava-os com a mãe, sentindo o ardor familiar e a felicidade que faltavam em sua vida. Certo dia caminhava sozinho perto da cabana, quando um menino, com mais ou menos sua idade, saiu correndo atrás dele e perguntou: — Você quer brincar?

Willie Seagull era um menininho muito esquisito. De tão magricela, até se pensaria que fosse fraco; mas era vigoroso e estava disposto a tudo. Jonathan, como os outros filhos dos mercadores mais abastados, freqüentava uma pequena escola dirigida por um mestre-escola a quem Burrard e Totton haviam contratado. Mas nos dias de folga, ele e Willie brincavam juntos, e era sempre uma aventura. Às vezes brincavam nos bosques ou subiam os córregos da Floresta para pescar. Willie o ensinara a apanhar trutas com a mão. Ou desciam para os baixios enlameados perto do mar ou ao longo da costa onde havia uma praia.

— Você sabe nadar? — perguntou Willie.

— Não tenho certeza — respondeu Jonathan, e logo descobriu que o novo amigo nadava como um peixe.

— Não se preocupe. Eu vou lhe ensinar — prometeu Willie.

Em terreno plano Jonathan corria mais depressa do que Willie; mas, se tentasse pegar o menino menor, este conseguia se desvencilhar todas as vezes. "Willie também o introduziu nas brincadeiras que os filhos dos outros pescadores faziam no cais, o que o deixou cheio de orgulho.

E certa tarde, quando se encontraram com Alan Seagull no porto, e Willie falou para aquele personagem mágico: "Este é Jonathan; ele é meu amigo", o jovem Jonathan Totton conheceu a verdadeira felicidade. "Willie Seagull disse que sou amigo dele", contou orgulhoso ao pai naquela mesma tarde. Mas HenryTotton nada disse.

As vezes Willie era levado pelo pai em seu navio e ficava fora um ou dois dias. Como Jonathan o invejava nessas ocasiões. Nem mesmo ousava perguntar se também podia ir, mas tinha certeza de que a resposta seria não.

— Venha cá, Jonathan — chamou o mercador —, quero lhe mostrar uma coisa.

A sala na qual se encontravam não era grande. Na parte da frente, ela dava para a rua. No meio, ficava uma mesa maciça e, em volta das paredes, vários guarda-louças e arcas de carvalho, estas com notáveis fechaduras. Havia também uma grande ampulheta, da qual o mercador se orgulhava muito e, por intermédio dela, podia determinar a hora exata. Tratava-se do escritório de contabilidade de onde Henry Totton dirigia os seus negócios. Sobre a mesa Jonathan podia ver que seu pai tinha arrumado algumas coisas e, adivinhando de imediato que a finalidade delas seria sua instrução, suspirou internamente. Ele detestava aqueles encontros com o pai-Sabia que eram para o seu próprio bem, mas esse é que era o problema.

Para Henry Totton, o mundo era simples: todas as coisas que interessavam tinham forma e número. Se visse a forma, entendia. Ele criava formas para Jonathan em pergaminho ou papel. "Olhe", dizia, "se você virar isto assim, parece diferente. Ou, se girar, terá esta figura." Transformava triângulos em cones, criava cubos de retângulos. "Dobre isto", dizia sobre um quadrado, "e terá um triângulo, um retângulo ou uma pequena tenda." Inventava também jogos com números para o filho, acreditando que isso o deixaria encantado. Tudo o que o pobre Jonathan, para quem essas coisas pareciam maçantes, podia fazer era ansiar pelas extensas relvas dos campos, o som dos pássaros na mata ou o cheiro salgado do embarcadouro.

Ele tentava com afinco ser bom naquelas coisas para agradar ao pai. E só porque ficava ansioso, sua mente se trancava, nada fazia sentido, e, o rosto enrubescido, dizia tolices e via o pai tentar ocultar o desespero.

A lição daquele dia, logo percebeu, pretendia ser direta e prática. Espalhada pela mesa havia uma série de moedas.

— Você sabe me dizer — perguntou Totton calmamente — o que são elas? A primeira era xxmpenny. Isso era fácil. Em seguida, meio groat. dois pence; e umgroatr. quatro pence. Padrão monetário inglês. Havia um shilling. doze pence, um ryal, que valia mais de dez shillings. Mas a seguinte — uma esplêndida moeda de ouro com a figura de São Miguel Arcanjo matando um dragão — Jonathan nunca a vira antes.

— É um anjo — disse Totton.—Valioso e raro. Mas, agora — mostrou outra moeda —, o que é isto?

Jonathan não fazia idéia. Tratava-se de uma coroa francesa. Em seguida vieram um ducado e um duplo ducado.

— Esta é a melhor moeda de todas para o comércio marítimo — explicou Totton. — Espanhóis, italianos, flamengos... todos aceitam o ducado. — Sorriu. — Agora vou lhe explicar o valor relativo de cada uma. Pois terá que aprender a usar todas elas.

O dinheiro europeu não era usado apenas pelos mercadores que faziam o comércio de além-mar. Moedas estrangeiras também eram encontradas internamente nas cidades mercantis. O motivo, muito simples, era que costumavam ser mais valiosas.

O século XV não foi um bom período para a Inglaterra. Seu triunfo sobre a frança, em Agincourt, só durou até a extraordinária figura de Joana d'Arc, com suas visões místicas, servir de inspiração para os franceses voltarem a derrotar os ingleses. Em meados do século, quando finalmente terminou o longo e desgastante conflito da Guerra dos Cem Anos, ele tinha deixado um alto custo e o comércio "avia sofrido bastante. Seguiu-se então a geração de disputa entre os dois ramos da casa real, York e Lancaster. Se, por um lado, as assim chamadas Guerras das Rosas foram uma série de batalhas feudais e não uma guerra civil, por outro nada fizeram para promover a lei e a ordem na zona rural. Com a desordem civil e o arrendamento de terras em baixa, não era de surpreender que a casa da moeda real, como sempre fazia quando o tesouro se esvaziava, cunhasse dinheiro. E embora alguns esforços tivessem sido feitos em anos mais recentes para melhorar o valor da moeda, Henry Totton estava bastante certo ao afirmar que era difícil se encontrar um bom padrão monetário inglês. O comércio, portanto, sempre que possível, era feito com base em moedas mais fortes, geralmente estrangeiras. Henry Totton, com toda a calma, explicou isso ao filho.

— São os ducados, Jonathan — concluiu —, do que nós realmente precisamos. Entendeu? — E Jonathan confirmou com a cabeça, mesmo sem ter certeza se tinha entendido ou não. — Ótimo — disse o mercador e deu um sorriso de incentivo ao filho. Visto que Jonathan estava tão receptivo, pensou ele, talvez devesse tocar na questão dos portos.

Poucos assuntos eram tão caros ao seu coração. Para começar, havia a questão do Staple, o grande entreposto mercantil no porto de Calais e suas imensas transações financeiras. E também, é claro, o problema vexatório de Southampton. Talvez naquele dia, refletiu, fosse melhor falar primeiro sobre Calais.

— Pai?

— Sim, Jonathan?

— Eu estive pensando. Se eu ficar longe de Alan Seagull, ainda posso brincar com Willie, não posso?

Henry Totton o encarou. Por um instante, mal soube o que dizer. Então deu de ombros, desgostoso. Não conseguiu evitar.

— Desculpe, pai. — O menino parecia desanimado. — Vamos continuar?

— Não. Creio que não. —Totton olhou para baixo, em direção às moedas que espalhara sobre a mesa, e em seguida para a rua, através da janela. — Brinque com quem você quiser, Jonathan — falou baixinho, e gesticulou para que ele fosse embora.

— Precisava ter visto, papai! — O rosto de Willie Seagull reluzia, enquanto ajudava o pai, que consertava uma rede de pesca.

Na manhã seguinte à da conversa que Totton tivera com ele, Jonathan levou Willie Seagull pela primeira vez à sua casa.

— Henry Totton estava lá? — o marujo interrompeu o seu cantarolar para perguntar.

— Não, apenas Jonathan e eu. E os criados, papai. Eles têm cozinheira, um lavador de pratos, um cavalariço e mais duas mulheres...

— Totton tem dinheiro, filho...

.— E eu não sabia, papai... Pela frente, aquelas casas não parecem tão amplas, mas elas são tão compridas. Atrás do escritório de contabilidade tem um enorme salão, com dois andares de altura, e uma galeria de um dos lados. Depois, tem mais quartos nos fundos.

— Eu sei, filho. —A casa de Totton era típica de um mercador, mas o jovem Willie nunca tinha visto uma antes.

— Existe um porão enorme. Pega toda a extensão da casa. Tem todo tipo de coisa lá embaixo. Toneis de vinho, fardos de tecidos. Também tem sacos com lã. Tem montes deles. E também — prosseguiu Willie, ansioso — tem um sótão debaixo do telhado, tão grande quanto o porão. Lá tem sacos de farinha de trigo e malte, e sabe Deus o que tem mais lá em cima.

— Ele só pode ter, Willie.

— E do lado de fora, papai. Nunca pensei que esses jardins fossem tão grandes. Eles vão da rua e seguem o tempo todo até a alameda nos fundos da cidade.

A disposição dos terrenos de posse de Lymington seguia um padrão bastante típico nas cidades medievais inglesas. A parte frontal que dava para a rua tinha dezesseis pés e meio (cinco metros) de largura — uma medida conhecida como um rod,pole onperch. Foi escolhida por se tratar da largura padrão da faixa de aragem usada comumente nos campos ingleses. Uma faixa com duzentas e vinte jardas (201 metros) de comprimento era chamada de umfurlong, e quatro furlongs formavam um acre (0,405 hectare). Os terrenos de posse eram compridos e estreitos; portanto, como um campo arado. Henry Totton tinha dois terrenos contíguos, o segundo formava um pátio com uma oficina alugada e seus próprios estábulos. Atrás o seu jardim duplo, com dez metros de largura, estendia-se por quase meio furlong.

Alan Seagull aquiesceu. Ficou imaginando se Willie ansiava por esse tipo de coisa, mas, pelo que lhe dizia respeito, seu filho ficou muito feliz só em observar o estilo de vida do mercador. Ao mesmo tempo, havia dois avisos que ele decidiu estar na hora de dar ao filho.

— Sabe, Willie — falou tranqüilo —, você não deve pensar que Jonathan será sempre seu amigo.

— Por quê, papai? Ele é muito bom.

— Eu sei. Mas um dia as coisas vão mudar. Vai acontecer, sem mais nem menos.

— Tenho que ter cuidado.

— Talvez sim, talvez não. E tem mais uma coisa. — Alan Seagull olhou o filho com toda a atenção.

— Sim, papai?

— Existem coisas que não deve contar a ele, mesmo sendo seu amigo.

— Como assim...?

— Sobre o nosso negócio, filho. Você sabe ao que estou me referindo.

— Ah, aquilo.

— Vai manter o bico calado, não vai?

— Claro que eu vou.

— Jamais deve falar a respeito disso. Para nenhum Totton. Entendeu?

— Eu sei — concordou Willie. — Não vou falar.

A aposta foi feita naquela noite. Foi Geoffrey Burrard quem a fez, no Angel Inn.

E Henry Totton a aceitou. Fez os cálculos, e então a aceitou. Metade de Lymington foi testemunha.

O Angel Inn era um estabelecimento democrático no topo da High Street; gente de todas as classes de Lymington freqüentava o lugar; por isso não foi surpresa o fato de Burrard e Totton terem tido a chance de se encontrar lá naquela noite. As famílias de ambos pertenciam à classe conhecida como os yeomen: pequenos proprietários rurais ou prósperos mercadores locais. Ambos eram figuras importantes na cidadezinha — homens reverenciados, como se dizia. Ambos moravam em casas com telhados de duas águas com andares superiores projetando-se à frente; cada qual possuía interesses em dois ou três navios e exportava lã através do grande entreposto de Calais. Se, por um lado, os Burrard estavam em Lymington há mais tempo que os Totton, por outro os Totton não eram menos dedicados aos interesses do burgo. Em particular, os dois homens eram unidos por uma causa comum.

O grande porto de Southampton já era uma cidade importante quando Lymington ainda não passava de um vilarejo. Séculos antes, a Southampton fora concedida a jurisdição sobre todos os portos menores ao longo da costa e o direito de cobrar quaisquer direitos alfandegários e taxas sobre cargas que entrassem ou saíssem. O prefeito de Southampton era, inclusive, chamado, nos documentos reais, de "almirante". Por ocasião da Guerra dos Cem Anos, quando Lymington supria o rei com embarcações de sua propriedade, esse domínio do porto maior parecia uma afronta ao orgulho de Lymington. "Nós mesmos cobraremos as taxas", declararam os burgueses de Lymington. "Nós temos o nosso próprio burgo para sustentar." Aliás, passados mais de cento e sessenta anos, ainda havia disputas e casos correndo nos tribunais.

O fato de vários burgueses de Southampton serem seus parentes de modo algum arrefecia o envolvimento de Totton com essa causa. Afinal de contas, seus interesses estavam em Lymington. Com precisão mental, ele repassou toda a questão e aconselhou aos companheiros burgueses: "A questão dos direitos alfandegários reais continua pendendo a favor de Southampton, mas, se limitarmos nossas reivindicações às taxas de quilhagem e direitos de cais, estou certo de que poderemos vencer", e ele tinha razão.

"O que seria de nós sem você, Henry?", dissera Burrard, concordando.

Ele era um homem grandalhão, bem-apessoado e corado, alguns anos mais velho do queTotton. Exuberante, ao passo queTotton era discreto, e impetuoso, ao passo que Totton era cauteloso, os dois amigos tinham uma paixão bastante surpreendente em comum.

Burrard e Totton adoravam apostar. Com freqüência, apostavam um contra o outro. Burrard apostava baseado em palpite e costumava se sair bem. Henry Totton apostava baseado nas probabilidades.

De certo modo, para Totton, tudo se resumia a uma aposta. Você calculava os riscos. Era o que fazia em todas as transações comerciais; até mesmo os grandes acontecimentos da história, pareciam-lhe, eram apenas uma série de apostas que resultaram de um modo ou de outro. Vejam a história de Lymington. Na época de Rufus, os grandes senhores proprietários de terras eram de poderosas famílias normandas; mas depois que Rufus foi morto em New Forest e Henrique, seu irmão mais novo, assumiu o trono, eles tolamente apoiaram Roberto da Normandia, o outro irmão de Henrique. O resultado? Henrique tomou Lymington, e a maioria de suas outras propriedades, e as entregou a famílias diferentes. Desde então, por três séculos e meio, o domínio foi passando para os descendentes dessas famílias, até a Guerra das Rosas, quando elas apoiaram o lado dos Lancaster. Foi o que bastou; depois de 1461, quando o lado dos Lancaster perdeu a grande batalha, o novo rei dos York decapitou o senhor da herdade. Por isso outra família passou a ser dona de Lymington.

Sua própria modesta família tinha participado desse perigoso jogo de azar. Totton ficara bastante orgulhoso, secretamente, quando o seu tio favorito se tornou um seguidor do mais aristocrático dos aventureiros, o conde de Warwick, o qual, por causa de seu poder de mudar a sorte de qualquer que fosse o lado ao qual se juntasse, era conhecido como o Fazedor de Reis. "Atualmente, sou um pequeno proprietário", dissera a Henry, antes de partir, "mas voltarei como um fidalgo." Ao servir a alguém como o Fazedor de Reis, um homem podia realmente melhorar de sorte. Nove anos atrás, contudo, pouco antes da Páscoa, a notícia havia ecoado na Floresta: "Houve outra batalha. O Fazedor de Reis foi morto. Sua viúva está vindo para Beaulieu à procura de asilo." O tio favorito de Henry também fora morto, e ele ficara penalizado. Mas não viu nisso uma tragédia, nem mesmo um destino cruel. Seu tio fizera uma aposta e perdera. Apenas isso.

Era uma disposição mental que o mantinha calmo e equilibrado diante da adversidade; uma força tamanha que às vezes levava sua esposa a pensar que isso o tornava uma pessoa fria.

Assim, quando Burrard propôs a aposta, ele calculou cuidadosamente.

— Aposto com você, Henry — exclamou o amigo —, que da próxima vez que fizer atravessar uma embarcação completamente carregada para a ilha de Wight eu consigo competir com você com um barco carregado e voltar primeiro.

— Pelo menos um dos seus barcos é mais veloz do que qualquer um meu — observou Totton.

— Não usarei um dos meus.

— De quem então?

Burrard meditou um pouco e depois sorriu.

— Vou colocar SeaguU contra você. — E observou Totton, os olhos reluzindo.

— SeaguU? —Totton franziu a testa. Pensou no filho e no marujo. Preferiria manter alguma distância entre os dois. — Não quero apostar contra SeaguU, Geoffrey.

— E não vai. Você sabe que SeaguU nunca aposta mesmo. — Por mais estranho que parecesse, era verdade. O marinheiro podia ter quase sempre uma postura de desprezo em relação às coisas do mundo, mas, por algum motivo que só ele conhecia, nunca apostava. — A aposta é comigo, Henry. Apenas eu e você — exultou Burrard. — Vamos lá, Henry — bradou afetuosamente.

Totton refletiu. Por que Burrard estaria apostando em SeaguU? Conheceria ele as velocidades relativas dos barcos? Improvável. Com quase toda a certeza, tinha apenas um palpite de que SeaguU era um malandro astuto que de algum modo levaria a cabo a tarefa. Ele, por seu lado, observara muitas vezes o barco de SeaguU e também tivera o cuidado de notar a velocidade de uma pequena e excelente embarcação de Southampton da qual, recentemente, havia adquirido uma quarta parte. O barco de Southampton era realmente um pouco mais veloz.

— A aposta é contra o barco de SeaguU — afirmou. — Você terá que convencer SeaguU a fazer a travessia por você ou não haverá aposta.

— De acordo — confirmou o amigo.

Totton cabeceou levemente. Avaliava os fatores, quando o jovem Jonathan surgiu no vão da porta. Talvez não fosse nada mau, pensou, que seu filho visse o herói dele, o marujo, perder uma corrida.

— Está bem. Cinco libras — declarou.

— Oh-oh! Henry! — bradou Burrard, fazendo com que os rostos dos demais presentes se voltassem na direção deles. — É muito. — Cinco libras era realmente uma aposta bastante alta.

— Significa dinheiro demais para você? — quis saber Totton.

— Não. Não. Eu não disse isso. — Mas até a face jovial de Burrard parecia confusa.

—- Se você não quiser...

— Fechado. Cinco libras — gritou Burrard. — Mas, por Deus, Henry, me pague uma bebida por causa disso.

Enquanto o jovem Jonathan se aproximava, ficou óbvio para ele, por causa dos rostos em volta, que, fosse lá o que fosse, seu pai fizera algo que havia impressionado os homens de Lymington.

Foi talvez para ocultar um vestígio de nervosismo que Geoffrey Burrard, vendo o jovem Jonathan, saudou-o com uma algazarra incomum.

— Ho! Seu malandro! — berrou. — Em que aventuras andou se metendo?

— Em nenhuma, senhor. — Jonathan não estava certo de como responder, mas sabia que Burrard era um homem a ser tratado com respeito.

— Ora, eu achava que andava por aí matando dragões. — Burrard sorriu para Jonathan e, vendo que o menino parecia desconfiado, acrescentou: — Quando eu tinha a sua idade, havia um dragão na Floresta.

— É verdade — disse Totton, assentindo, com a cabeça. — Nada menos que o dragão de Bisterne.

Jonathan olhou para ambos. Ele conhecia a história do dragão de Bisterne. Todas as crianças da Floresta conheciam. Mas, como se referia a um cavaleiro e a uma espécie de besta da Antigüidade, achava que se tratava de uma velha lenda, como a do rei Arthur.

— Eu achava que ele existiu nos velhos tempos — falou.

— De fato, não. —Totton balançou a cabeça. — Era bastante verdadeiro — explicou com seriedade. — Houve mesmo um dragão... ou assim era chamado... quando eu era jovem. E o cavaleiro de Bisterne o matou.

Olhando para o seu rosto, Jonathan percebeu que o pai falava a verdade. De qualquer modo, ele nunca caçoava do menino.

— Oh — exclamou Jonathan. — Eu não sabia.

— E tem mais — continuou Burrard, com um tom sério e uma piscadela para o amigo, que Jonathan não percebeu. — Um dia desses foi visto um outro dragão em Bisterne. Creio que talvez seja descendente do primeiro. Vão caçá-lo, eu soube, e acho melhor você se apressar se quiser vê-lo.

— É mesmo? — Jonathan o encarou. — E não é perigoso?

— E. Mas mataram o outro, não foi? Que bela visão, eu diria, quando está voando.

Henry Totton sorriu e balançou a cabeça.

— É melhor você ir para casa — falou com delicadeza e o beijou. E, obediente, Jonathan foi embora.

Quando chegou em casa, o próprio Henry Totton já tinha esquecido o dragão.

Eles partiram logo depois da alvorada. Willie se dispôs a ir no dia anterior, logo que soube da história, mas, como Jonathan observou, precisariam de um dia inteiro, começando de manhã cedo. Pois era uma caminhada de cerca de vinte quilômetros só de ida até Bisterne, onde estava o dragão.

— Eu vou estar com Willie até o anoitecer — avisou à cozinheira, ao sair rapidamente, antes que alguém perguntasse aonde ia.

A jornada, apesar de longa, era fácil. A herdade de Bisterne ficava na parte sul do vale do Avon, abaixo de Ringwood, próximo do local chamadoTyrrells Ford. Portanto, precisavam atravessar apenas a metade ocidental da Floresta, seguir para o seu limite ao sul e em seguida descer para o vale adiante. Partindo cedo, mesmo a pé, conseguiriam chegar lá na metade da manhã e só teriam que voltar no final da tarde.

Willie o esperava no alto da rua. Ansiosos para estar bem longe antes que alguém os detivesse, seguiram rapidamente pela alameda que levava através dos campos e prados da Old Lymington, cruzaram um riacho perto de um pequeno moinho e meia hora depois passaram pela herdade de Arnewood, que ficava entre os vilarejos de Hordle e Sway.

A manhã estava clara, brilhante, promessa de um dia quente. A região rural a oeste de Lymington era formada de pequenos campos particulares com sebes e pequenos carvalhos em ondulantes depressões e vales diminutos. As folhas verde-claras começavam a se soltar, desnudando os galhos; a leve brisa espalhava as flores brancas das sebes pela alameda. Passaram por um campo arado, cujos sulcos recebiam a visita de uma multidão esvoaçante de gaivotas.

Para quem estivesse familiarizado com os habitantes de Lymington, seria fácil identificar os dois garotos que passavam por Arnewood, já que cada um deles era uma miniatura perfeita do pai: o rosto sério de mercador, em um, e a alegria desprovida de queixo do marinheiro, em outro, eram quase cômicos. Uma hora depois, porém, tinham deixado bem para trás o mundo de Lymington. Chegaram a um bosque através do qual havia uma estreita trilha. Em seguida, depois de passarem por uma faixa de freixos e bétulas mirrados, saíram no vasto mundo a céu aberto da charneca da Floresta.

.— Você acha — perguntou Willie, nervoso — que o dragão está por aqui?

.— Não — disse Jonathan. — Ele não vem para estas bandas. — Ele nunca vira o amigo tão hesitante antes. Sentia bastante orgulho de si mesmo.

Tratava-se de uma caminhada de oito quilômetros ao longo do limite sul da charneca, mas era fácil de se avançar pela relva rente do solo turfoso. O sol da manhã estava por trás deles, fazendo faiscar orvalho sobre a grama. A grande extensão de charneca estava salpicada com o pronunciado amarelo reluzente das touças das tojeiras. Aqui e ali podiam-se ver nos baixos outeiros mais distantes, à direita deles, pequenas moitas redondas de azevinhos. Os ingleses antigos as chamavam de ilhotas de azevinhos. Mais recentemente, porém, haviam adquirido outro nome. Como os veados e os pôneis comiam os seus galhos pendentes até a altura que conseguiam alcançar — a linha da pastagem, como era denominada —, as árvores ficavam cada qual com a forma de um cogumelo, e, vistos em conjunto, os azevinhos de uma moita tinham a aparência de uma espécie de aba pendente. A gente da Floresta, portanto, naqueles dias referia-se a elas como chapéus de azevinho.

Caminharam durante uma hora e meia pela relva flexível. Já haviam percorrido quase oito quilômetros ao longo do limite da charneca, quando chegaram à grande elevação conhecida como Shirley Common. E, ao atingirem o cume, pararam.

O vale do Avon estendia-se abaixo.

Era um mundo mais rico. Primeiro, um pequeno campo, que fora ceifado e empilhado, e onde agora algumas cabras pastavam; em seguida, pequenos bosques de carvalhos e faias, e campos mais adiante precipitavam-se graciosamente pelos declives, até atingir os gramados e os exuberantes prados ao longo das amplas ribanceiras do Avon, de cujas águas prateadas, aqui e ali, através das árvores, eles tinham um vislumbre tantalizante. Então, além do vale, as pequenas elevações do Dorset se estendiam por entre uma névoa azulada. Podia-se ver de imediato que se tratava de uma paisagem digna de cavaleiros e damas, de amor cortesão. E de dragões.

Para o norte, contudo, a uns três quilômetros de distância através de uma larga faixa de charneca parda a céu aberto, o cume de um monte arborizado se elevava, e atrás dele ficava o vilarejo de sombrias matas de Burley.

— Eu acho — disse Jonathan — que agora devemos ver o dragão. — Olhou para Willie. — Você está com medo?

— Você está?

— Não. — Você está?

— Ali — apontou Jonathan para a comprida aresta de Burley com o seu promontório de Castle Hill ao norte. O cume, naquela época, era conhecido como Burley Beacon.

— Oh! — Willie olhou para o local. — Está muito perto.

Talvez fosse um solitário javali selvagem. Não haviam restado muitos na Inglaterra na ocasião. Todos tinham sido caçados. Havia porcos que habitavam a Floresta, é claro em todos os outonos, durante a época da ceva; e ocasionalmente um deles podia se tornar selvagem e ser confundido com um javali. Mas o verdadeiro javali selvagem, com o seu pêlo raiado, ombros possantes e presas vistosas, era um animal terrível. Mesmo os mais corajosos nobres normandos ou plantagenetas, com seus cães e caçadores, podiam conhecer o medo quando uma dessas bolas de fúria saía de seu esconderijo e investia em sua direção. Tratava-se, porém, da caça mais emocionante. Por toda a Europa, a caça ao javali era o mais nobre dos esportes aristocratas, depois da justa. A cabeça de um javali era o centro de mesa de qualquer grande banquete.

Mas a ilha-reino da Inglaterra, apesar de agraciada com muitas florestas, carecia das vastas extensões de áreas desertas das terras da França ou da Alemanha. Se houvesse um javali selvagem vivo, sua presença teria sido notada e os nobres o teriam caçado. Quatro séculos depois da chegada do Conquistador normando, restavam poucos javalis ingleses no sul. De vez em quando, entretanto, aparecia um. Por algum motivo, talvez não fosse apanhado. E, através dos anos, vivendo isolado, podia crescer e atingir um tamanho descomunal.

É provável que tenha acontecido isso, no vale do Avon, em alguma ocasião por volta de 1460.

A propriedade senhorial de Bisterne ficava instalada em um belo cenário do amplo solo do vale, do lado da floresta do Avon, um pouco ao norte de Tyrrell s Ford. Bedes Thorn era como se chamava no tempo dos saxões, termo que foi evoluindo aos poucos até se tornar Bisterne. Mantida pelo seu proprietário saxão, após a Conquista, ela passou por herança para a família nobre de Berkeley do condado ocidental de Gloucestershire; e era sir Maurice Berkeley, casado com a sobrinha de ninguém menos que o poderoso personagem Fazedor de Reis de Warwick, quem, pouco antes do início das Guerras das Rosas, costumava se deleitar com sua estada na herdade de Bisterne e caçar no vale do Avon com os seus cães.

O javali, ao que parece, tinha uma toca em alguma parte do Burley Beacon, que se elevava acima do vale, e sabia-se que vinha atacando as fazendas por lá. Em uma ocasião, perto da festa de São Martinho de Tours, quando todo o gado era abatido, ele desceu até Bisterne, seguindo os córregos que levavam para baixo de Rastle Hill, até, perto da herdade, chegar a Bunny Brook. Na fazenda da propriedade encontrou baldes de leite esfriando no riacho, bebeu-o e depois matou uma das vacas que restavam na fazenda.

Sua aparência por essa ocasião devia ser realmente aterrorizante. E não eram apenas os olhos negros brilhantes, a boca espumante e as presas da besta. Se frustrado, o javali selvagem soltava um grito medonho; o bafo de sua respiração no ar frio de novembro fumegava; javalis sempre se movimentam no solo com o mais estranho dos silêncios. Ao correr pelos campos de Bisterne, sob a pálida luz da alvorada, devia parecer uma criatura sobrenatural.

E não foi de admirar que em uma fria noite de novembro o corajoso Maurice Berkeley tivesse partido para combater o monstro. O embate ocorreu no vale e foi sangrento. Os dois cães favoritos do fidalgo morreram na refrega, e sir Maurice, embora tivesse matado sozinho o animal, sofreu ferimentos que infeccionaram. Por ocasião do Natal, estava morto.

Algumas lendas foram inventadas posteriormente, a partir de acontecimentos quase esquecidos; outras surgiram imediatamente. Um ano depois toda a região sabia da batalha de sir Maurice Berkeley contra o dragão de Bisterne. Que o dragão tinha voado para os campos vindo de Burley Beacon. Que o cavaleiro o tinha matado sem qualquer ajuda e morrera por causa do veneno do dragão. Mas se a atenção do mundo exterior foi logo distraída pelos dramas cavalheirescos das Guerras das Rosas, em New Forest e no vale do Avon, com o passar dos anos, os homens lembravam: "Não faz muito tempo que tivemos por aqui um dragão."

Eram mais três quilômetros do cume de Shirley Common até a herdade de Bisterne, e os meninos desceram bem devagar. Algumas vezes conseguiam ver o aguilhão de Burley Beacon e em outras ele ficava escondido; mas mantinham o olho naquela direção, para o caso de o dragão sair voando de sua colina na direção deles.

— O que vamos fazer se ele vier? — quis saber Willie.

— Nos esconder — disse Jonathan.

Na parte mais baixa do declive, a trilha levava através da mata.

A enviesada luz solar da manhã tornava verde-clara a vegetação rasteira. O musgo preso na base das árvores, a hera nos troncos. Ouviram um pombo arruilhar. A trilha dava uma guinada para longe das árvores e descia pelo lado da mata. Uma galinha cinza, vinda do capim alto, surgiu correndo apressada diante deles. E tinham descido apenas mais uns cem metros quando de repente, à direita, ouviram o som de batida de asas e, num lampejo azul-escuro metálico, um tetraz com sua cauda de lira, perturbado por alguma coisa, emergiu das árvores e irrompeu sobre a cabeça deles.

— Você pulou de susto, Willie — comentou Jonathan.

— Você também.

Logo depois chegaram ao chão do vale a céu aberto e perceberam de imediato que haviam penetrado em um mundo no qual um dragão poderia aparecer a qualquer momento.

O mundo de Bisterne era muito plano. Seus vastos campos estendiam-se por cerca de três quilômetros na direção oeste das águas prateadas do Avon, que, como ele costumava fazer na primavera, se havia espalhado sobre os exuberantes prados alagados, qual mágico brilho líquido. A casa nobre de Bisterne — na verdade, era mais uma cabana de caça para os nobres Berkeley— era apenas um salão com paredes de madeira e argamassa incorporado a um pátio com um estábulo e elevava-se sozinha no meio do gramado a céu aberto onde o gado pastava, e coelhos, presos em um viveiro, agitavam-se sobre o capim cortado rente. Surgiu longe, à distância, por trás das elevações onde ficava Burley Beacon; e, pontilhando a paisagem de sebes e campos, solitários carvalhos ou olmos estendiam os braços nus, como se esperassem que o monstro alado descesse voando do Beacon e fosse se empoleirar neles.

Estava silencioso. Ocasionalmente ouviam o mugido do gado; outras vezes, o som cortante das asas dos gansos batendo na água distante. De vez em quando, um rouco grasnido e um súbito adejar vinham dos corvos nas árvores. Mas na maior parte do tempo Bisterne se envolvia em silêncio, como se toda a natureza estivesse à espera de uma visita.

Não vivia muita gente nas imediações dos campos. A poucos metros, ao sul da casa nobre, ficava uma pequena casa de fazenda com telhado de palha, junto a uma fileira de freixos na beira de um córrego próximo. Passando pelo pasto, perto dele encontraram um vaqueiro, e, ao lhe perguntarem educadamente onde o dragão havia sido morto, ele sorriu e apontou para um campo atrás da fazenda.

— O Campo do Dragão fica ali — falou. — Ao lado de Bunny Brook. Vagaram por cerca de uma hora ou mais, seguindo por trilhas rio abaixo.

Podiam ver pelo sol que devia ser meio-dia, quando Willie anunciou que estava com fome.

Mais para baixo do rio, na antiga travessia de gado de Tyrrells Ford, havia algumas cabanas e uma velha forja. Dizendo que tinham vindo da vizinha Pvingwood, para não levantar suspeitas, Jonathan pediu um pouco de pão e queijo, o que uma mulher de uma das cabanas lhes deu prontamente. Também perguntou a ela sobre o dragão.

— Já faz vinte anos ou mais que ele foi morto — lembrou ela.

— Sim. Mas e esse novo?

— Eu mesma não vi — observou com um sorriso.

— Talvez ele não exista — disse Willie a Jonathan, quando foram comer o pão e o queijo na beira do rio.

— Ela disse apenas que não o viu — retrucou Jonathan. Depois que comeram, dormiram um pouco sob o sol quente.

Já corria o meio da tarde quando subiram de volta e passaram pelo pasto próximo à casa de fazenda. Se eles se sentiam desanimados pela longa viagem de volta para casa, tentavam não demonstrar. Sabiam que agora teriam de se apressar para estar de volta em segurança ao anoitecer.

A meio caminho do pasto encontraram as vacas, cerca de meia dúzia, sendo tocadas para a casa de fazenda por um menino. Era mais velho do que eles, talvez tivesse uns doze anos, e os olhou com curiosidade.

— De onde vocês são?

— Não interessa.

— Querem brigar?

— Não.

— Bem, eu tenho mesmo que tocar estas vacas. O que vocês estão fazendo aqui?

— Viemos ver o dragão.

— O Campo do Dragão fica ali.

— Nós sabemos. Disseram que havia um novo dragão, mas ele não existe. O menino olhou para eles, pensativo. Seus olhos se apertaram.

— Existe, sim. É por isso que tenho que tocar estas vacas lá para dentro. — Fez uma pausa e confirmou com a cabeça. — Ele aparece todas as tardes, como fazia o outro. Vem de Burley Beacon.

— É mesmo? — Jonathan esquadrinhou o rosto dele. — Você está inventando. Ninguém ficaria por aqui.

— Não, é verdade. Palavra. Às vezes ele não faz muita coisa. Mas mata cachorros e bezerros. A gente pode vê-lo voando ao pôr-do-sol. Também despeja fogo pela boca. É mesmo uma coisa horrível de ver.

— Aonde é que ele vai?

— Sempre para o mesmo lugar. O Campo do Dragão. E a gente fica longe dele, e pronto.

Virou-se, e então bateu de leve com o seu bastão na vaca mais próxima, enquanto os dois garotos se afastavam. Ficaram um instante ou dois sem falar.

— Acho que ele está mentindo — disse Willie.

— Talvez.

Agora que estavam voltando, não pareceu demorar muito para chegar ao topo de Shirley Common. Embora o sol ainda não estivesse se pondo no céu da tarde havia uma leve insinuação de friagem na brisa de abril e um vestígio de laranja no impreciso dourado a oeste. Mais uma vez todo o vale do rio Avon até o limite de Burley Beacon se estendia diante deles como em um panorama.

— Vamos ter uma boa visão daqui — sugeriu Jonathan.

— Vamos voltar tarde — alertou Willie.

— Depende de quando ele aparecer. Pode até ser agora. Willie não retrucou.

Jonathan sabia que o colega não tinha ficado tão ansioso quanto ele para ir até lá. Willie fizera aquilo por amizade. Não que tivesse medo — ou, pelo menos, mais medo do que ele. Na maioria das brincadeiras dos dois, principalmente nas que faziam perto do rio, ou em qualquer coisa relacionada com a água, era Willie, com a sua engraçada cara sem queixo, o atrevido, e Jonathan, o cauteloso. E ele sabia que não teria ousado ir ali sozinho. Mas enquanto o longo dia se esvaía, Jonathan também havia descoberto algo mais em si mesmo que desconhecia: uma tranqüila e instigante determinação bem diferente daquela de índole livre do amigo.

— Se voltarmos depois do toque de recolher — lembrou Willie —, seremos açoitados.

Mesmo nos vilarejos costumava ser observado o toque de recolher, o curfew — couvre-feu, quando o fogo dos braseiros era apagado para a noite e todos os homens deviam ficar em suas casas. Afinal, não havia muito mesmo que fazer na profunda escuridão da região rural, exceto a caça clandestina ou um caso amoroso ilícito. Em Lymington, homens comoTotton podiam seguir do Angel Inn para as suas casas depois que escurecesse, mas em geral as ruas ficavam vazias. O sino do curfew soava da igreja e sinalizava um longo silêncio.

Jonathan nunca fora açoitado. A maioria dos meninos o era, vez por outra, por pais ou mestres-escolas, mas, talvez por causa de sua índole e do silencioso ambiente que a doença da mãe criara na casa, ele havia escapado desse castigo normal.

— Eu não me importo — disse ele. — Mas, se você quiser, pode voltar, Willie-

— E deixar você sozinho?

— Não tem problema. Pode ir. Chegará a tempo. Willie suspirou.

— Não. Eu vou ficar.

Jonathan lançou um sorriso ao amigo e percebeu pela primeira vez que era capaz de ser implacável.

— E se não houver mais dragão, Jonathan?

— A gente não vai ver.

Mas e se houvesse? Esperaram uma hora. O sol já mergulhava através do vale. Uma leve névoa elevava-se dos distantes prados alagados. A charneca que se estendia em direção ao norte deles ganhou um lustroso matiz laranja. Mas o contorno de Burley Beacon, captando em cheio os raios solares, reluzia de dourado, como se tivesse sido inflamado.

— Fique de olho no Beacon, Willie — pediu Jonathan e correu morro abaixo.

Eram apenas uns duzentos metros até a beira do campo. Ali, por algum motivo, as samambaias tinham sido cortadas e dispostas em montes perto da sebe, mas não foram carreadas. Seria bastante fácil construir um pequeno abrigo compacto, com uma grossa e excelente cama de samambaias para se deitar. Se a samambaia servia de leito para animais, raciocinou, serviria também para seres humanos. Depois que terminou, voltou para onde estava Willie.

— Não voltaremos esta noite para casa. Está muito tarde.

— Foi o que eu pensei.

— Fiz um abrigo para nós.

— Está bem.

— Você avistou alguma coisa?

— Não.

Veio o pôr-do-sol, e Burley Beacon tornou-se vermelho cor de fogo, e era fácil imaginar um dragão, como uma fênix, erguendo-se de suas brasas para o céu noturno. Então o sol mergulhou e o céu no ocidente ficou rubro, e o fogo em Burley Beacon apagou-se. Acima surgiram as primeiras estrelas.

— Acho que agora ele vem — arriscou Jonathan.

Ele formava uma imagem bastante clara de como seria: mais ou menos do tamanho de uma vaca, supunha, com enormes asas. Devia ser verde e escamoso. Ao bater, as asas soariam como as de um imenso ganso e haveria o ruído sibilante do fogo sendo despejado pela boca. Essa seria a principal coisa que se veria no escuro. Calculava que ele voaria um trecho de quilômetro e meio diante dos dois, a caminho de Bisterne.

O sol tinha sumido. As estrelas brilhavam no céu de safira. O contorno de Burley Beacon parecia sombrio e perigoso, enquanto os meninos esperavam, os olhos fixos nele.

Quando ao anoitecer continuava sem haver sinal de Jonathan, HenryTotton desceu relutante até o cais e aproximou-se da indecorosa habitação de Alan Seagull. Teria visto o seu filho? Não, respondeu o marujo, um pouco perplexo: os dois garotos tinham desaparecido desde o amanhecer e ele não fazia idéia de onde estavam.

A princípio, Totton temera que eles pudessem ter saído em uma canoa, mas Seagull logo foi capaz de constatar que nenhuma havia sumido. Teriam caído em alguma parte do rio?

— O meu filho é um excelente nadador — afirmou Seagull. — E o seu? E, para a sua vergonha, Totton deu-se conta de que não sabia.

Então surgiu a informação de que alguém os vira sair pelo alto da extremidade da cidade, no início da manhã. Teriam se defrontado com algum perigo na Floresta? Parecia improvável. Há anos não havia notícia da presença de lobos. Era cedo demais para cobras.

— Suponho — disse um tristonho Alan Seagull — que eles podem ter caído em uma calha de moinho.

Na hora do toque de recolher, o prefeito e o intendente foram consultados, e formaram-se dois grupos de buscas munidos de tochas. Um seguiu em direção aos moinhos de Old Lymington; o outro, através da mata acima da cidade. Iam dispostos a procurar, se necessário, durante toda a noite.

O abrigo era bastante eficaz. Comprimindo bem a samambaia, eles conseguiram tirar quase toda a umidade. A noite não estava tão fria, felizmente, e, deitados bem juntos, mantinham-se aquecidos. Tinham dado no escuro com uma sarça e algumas urtigas formigantes, mas a parte isso e o fato de estarem extremamente famintos seu sofrimento não foi tanto.

Não havia lua naquela noite. As estrelas, espreitando por trás dos mantos de nuvens, eram muito brilhantes. Ficaram um longo tempo à espera do dragão, mas quando seus olhos começaram a se fechar, decidiram que, se ele residia em Burley, não sairia naquela noite.

— Você me acorde se o vir. — Jonathan fez Willie prometer.

— E você me acorde.

Mas assim que se ajeitaram, talvez por causa do orvalho que se formava em seus rostos, ou pelo medo de que animais pudessem perturbá-los, nenhum dos dois meninos conseguiu dormir durante algum tempo. E, enquanto encaravam o céu noturno, Willie voltou a tocar no assunto sobre o qual haviam conversado um dia antes.

— Você acha que o barco de Southampton do seu pai vai derrotar o do meu pai?

— Não sei — respondeu Jonathan com sinceridade. A valiosa aposta fora o assunto de Lymington no dia anterior. Após uma pequena pausa, porém, acreditando que devia fornecer ao amigo e à sua família a melhor informação de que podia dispor, acrescentou: — Acho que, se o meu pai apostou uma quantia tão alta na corrida, ele deve estar certo de que vai vencer. Ele é muito cauteloso. É melhor o seu pai não apostar na vitória dele.

— Ele nunca aposta.

— Por quê?

— Diz que já corre riscos demais sem ter que apostar.

— Que tipo de riscos?

— Não importa. Não posso lhe contar. "Oh", pensou Jonathan.

— O que é que não pode me contar? — Parecia ser algo interessante. Willie ficou calado por um instante.

— Vou lhe dizer uma coisa — falou finalmente.

— O quê?

— O barco do meu pai corre muito mais do que o seu pai imagina. Mas não deve contar isso para ele.

— Por quê?

Willie ficou em silêncio. Jonathan voltou a perguntar por quê, mas não obteve resposta. Deu-lhe um chute de leve. Willie nada disse.

— Vou lhe dar um beliscão — ameaçou Jonathan.

— Não.

— Está bem. Mas me conte. Willie inspirou fundo.

— Você promete não contar?

Toda a Lymington estava alvoroçada quando Jonathan Totton e Willie Seagull retornaram a salvo na manhã seguinte, o que conseguiram fazer bem cedo, já que passaram a correr ao longo do limite assim que os primeiros vestígios da alvorada lhes permitiram enxergar o caminho.

Toda a Lymington se regozijou, toda a Lymington estava curiosa. E, quando toda a Lymington descobriu que tinham passado a noite inteira lá em cima e a cidade quase enlouquecera de preocupação porque os dois garotos tinham ido procurar um dragão, toda a Lymington se sentiu insultada.

Pelo menos, foi o que declarou. As mulheres todas disseram que os meninos deviam ser açoitados com vontade. Os homens, lembrando-se-de sua própria infância, concordaram, porém foram mais ou menos lenientes. O prefeito falou com firmeza para os pais que, se não dessem um jeito nos filhos, ele os levaria pessoalmente ao pelourinho de açoite. Em particular, todos culpavam Burrard por ter provocado aquilo, ao contar histórias idiotas sobre dragões. Por isso Burrard escondeu-se em sua própria casa.

Henry Totton, antes de declarar a sentença do filho, explicou-lhe com todo o cuidado que aquilo era uma prova dos perigos de se misturar com gente como Willie Seagull, que obviamente o tinha desencaminhado; e ficou pasmo quando o filho, corajosamente, lhe garantiu que toda a idéia da expedição fora sua e que também havia forçado Willie a passar a noite por lá. A princípio não foi capaz de acreditar, mas finalmente, quando acreditou, seu pesar e sua decepção foram enormes. Pela primeira vez, entretanto, Jonathan não ligou a mínima.

Alan Seagull agarrou o filho pela orelha e o arrastou até o cais e para a estranha casa em que moravam, no interior da qual os dois desapareceram. Lá dentro, ele tirou uma correia da parede e o golpeou duas vezes, depois do que passou a gargalhar tanto que sua mulher precisou terminar o serviço por ele.

O castigo de Jonathan, porém, foi algo mais triste. Ninguém riu. Henry Totton fez o que sabia que era preciso fazer. E o fez não apenas com um senso de perplexidade diante de todo o episódio, como também com a crença de que aquilo só faria aquele menino estranho o odiar. E desse modo, embora o açoite doesse, Jonathan sentiu-se bastante orgulhoso com toda aquela questão; ao passo que o pobre pai chegou ao final da incumbência com uma dor muito mais intensa do que a sentida pelo filho.

Era tudo o que ele possuía, pensou o mercador, e agora o tinha perdido. Por causa de um dragão. Nem — quão pouco o pobre homem sabia a respeito da infância — tinha qualquer idéia do que faria com Jonathan a seguir.

Foi um motivo de total espanto para ele, portanto, quando no dia seguinte o filho perguntou-lhe todo contente:

— Papai, pode me levar com você às salinas da próxima vez que for lá?

E, ansioso por não perder a chance de uma reconciliação, respondeu rapidamente:

— Estou indo lá esta tarde mesmo.

O calor incomum dos últimos dias mudara para o clima mais típico de abril. Pequenas nuvens brancas e cinzentas atravessavam o céu de um azul lavado. A brisa era úmida; lufadas ocasionais carregavam leves sinais de chuva, quando Henry Totton e Jonathan, tendo caminhado até a igreja no topo da High Street, viraram à esquerda e desceram a comprida alameda que levava abaixo em direção ao mar.

A faixa costeira abaixo do burgo era um lugar sem vegetação e assolado pelo vento. Do cais de Lymington, o pequeno estuário do rio continuava em direção ao sul por cerca de quilômetro e meio, até mergulhar totalmente no Solent. Do lado direito, abaixo da pequena elevação onde ficava o burgo e estendendo-se para sudoeste por quatro quilômetros para a pequena enseada e o povoado de Keyhaven, ficava a larga restinga de Pennington Marshes.

Era um lugar aparentemente deserto: verdejantes ermos turfosos de relva panta-nosa, pequenos tojos molhados pela garoa salgada e arbustos espinhentos tolhidos e deformados pela brisa do mar pontilhavam a paisagem. Mais além, o longo perfil da ilha de Wight pairava além do Solent, seus morros azul-esverdeados tornando-se rochedos de calcário mais à direita. Poder-se-ia pensar que o local era habitado apenas por gaivotas, maçaricos e os patos selvagens do pântano. Mas seria um engano.

Pois, bem próximo à praia, uma fileira de pequenas construções e uma vintena ou mais do que pareciam pequenos moinhos de vento, com as pás imóveis naquele momento, lembrariam que era aquela região pantanosa que fornecia o produto mais importante embarcado pelos mercadores de Lymington: sal.

Havia salinas desde a época dos saxões. A necessidade de sal era enorme. Não havia outro modo de se preservar carne ou peixe. Quando os fazendeiros matavam os seus porcos e o gado, em novembro, a carne precisava ser salgada para poder ser consumida durante o inverno. Se o rei quisesse carne de veado da Floresta para sua corte ou para alimentar as suas tropas, ela teria de ser salgada. A Inglaterra produzia imensas quantidades, e tudo vinha do mar.

Henry Totton era proprietário de uma salina em Pennington Marshes. Eles puderam ver a casa de ebulição e a bomba de vento assim que iniciaram a caminhada pela trilha de cascalho que levava para baixo. Era um dos conjuntos próximo à praia. Não levaram muito tempo para chegar ao local.

Jonathan gostava das salinas; talvez por causa de sua localização, tão próximo ao mar. A primeira coisa de que se precisava para fazer sal era um grande reservatório de alimentação, instalado bem na beira da praia, para o qual a água do mar podia escoar durante a maré alta. Jonathan adorava ver o mar descer ondulante pelos canais encurvados. Ele e Willie, certa vez, haviam feito sozinhos uma construção semelhante, quando andaram brincando em uma praia arenosa ao longo do litoral.

Os tanques cristalizadores que vinham a seguir eram cuidadosamente construídos. Tratava-se, na verdade, de uma única e enorme cratera — rasa e plana — dividida em pequenos compartimentos com cerca de seis metros quadrados, cercados por barreiras de argila com quinze centímetros de altura e largas o bastante para uma pessoa andar sobre elas. A água do reservatório era empurrada para o interior deles com pás de madeira; mas só os enchia até a altura de oito centímetros. Daí em diante começava a produção do sal.

Era bastante simples. A água tinha de evaporar. Isso só funcionava no verão e, quanto mais fizesse calor e mais quente estivesse o sol, mais sal se conseguia. A estação começava logo no final de abril. Em um ano bom podia durar seis semanas. Certa ocasião, em um ano ruim, havia durado apenas duas.

A idéia era não deixar a água evaporar em um único tanque.

"A evaporação leva tempo, Jonathan", dissera-lhe o pai tempos atrás, "e precisamos de um fornecimento contínuo."

Por isso o método era transferir a água para uma fila de tanques, para que ela fosse evaporando gradualmente e se conseguisse uma concentração mais alta de sal. Para continuar levando a água pelos cristalizadores, usavam bombas de vento.

Elas eram bem simples; talvez viessem sendo usadas nos pântanos abaixo de New Forest desde os tempos dos saxões e eram muito pouco diferentes das que se conheciam dois mil anos antes no Oriente Médio. Tinham cerca de três metros de altura e usavam uma cruz com quatro pequenas velas, como um moinho de vento. Quando as velas giravam, movimentavam um came, que operava abaixo de uma bomba d'água rudimentar. De um tanque raso para outro a água era bombeada até chegar à parte final do processo na casa de ebulição.

O objetivo deTotton, ao ir lá naquele dia, era fazer uma inspeção cuidadosa para que qualquer conserto necessário a ser feito depois do inverno fosse executado em tempo hábil. Ele e Jonathan a faziam juntos.

— O canal do reservatório precisa ser raspado — observou o menino.

— Sim — confirmou Henry com a cabeça. Várias paredes dos tanques também precisavam de remendos.

Ali Jonathan se fazia particularmente útil, caminhando delicadamente sobre cada uma das estreitas barreiras, marcando cada rachadura que encontrava com uma borrifada de cal.

— Não teremos também de limpar todos os fundos? — perguntou.

— Teremos sim — confirmou o pai.

O processo final era a produção do sal propriamente dito. Quando a água do mar evaporada chegava ao último tanque, tornava-se uma salmoura altamente concentrada. Nessa fase o salineiro colocava uma pesada bola de chumbo no tanque. Quando esta flutuava, ele sabia que a salmoura estava espessa o bastante. Abrindo uma eclusa, deixava a salmoura escoar para a casa de ebulição.

Tratava-se de um simples barracão, com paredes reforçadas. Ali se encontrava o tanque de ebulição, um imenso tonel com cerca de dois metros e meio de diâmetro, debaixo do qual havia uma fornalha, geralmente alimentada por carvão ou lenha. O tonel fazia a água ferver aos poucos, evaporando toda a água, deixando uma crosta alta de sal.

A ebulição era quase contínua durante a temporada de produção de sal. Cada fervura, ou turno, levava oito horas. Começando no domingo à noite e terminando na manhã de sábado, permitia a realização de dezesseis turnos por semana. Nesse ritmo, o tonel de ebulição de Totton era capaz de produzir quase três toneladas de sal por semana. Era escamoso e não muito puro, mas puro o suficiente.

— Queimamos dezenove alqueires para cada tonelada de sal produzido — observou Totton. — Portanto — começou a calcular para o menino —, se o custo de combustível por alqueire é...

Apenas um momento antes a concentração de Jonathan começou a vagar. Ele não gostava da casa de ebulição tanto quanto do resto. Enquanto se processava a fervura, as nuvens de vapor, impregnadas de sal, eram ofuscantes. Em poucos instantes sua garganta pareceu queimar. Toda a área em volta da casa de ebulição ficou quente e enevoada. Assim que pudesse correria para longe, para a brisa fresca do mar, para os maçaricos e as gaivotas ao longo da praia, perto do reservatório de fornecimento de água.

O pai acabara de explicar como calcular o lucro total que seria obtido, se o tempo se mantivesse bom por todo o período de seis semanas, quando notou que Jonathan o olhava pensativo.

— Pai, posso lhe perguntar uma coisa?

— Claro, Jonathan.

— Só que — hesitou — é sobre segredos.

Totton olhou-o fixamente. Segredos? Então nada tinha a ver com sal. Nada a ver com coisa alguma que ele andara tentando ensinar ao menino na última meia hora. Jonathan teria absorvido alguma coisa do que ele lhe dissera? A onda por demais familiar de decepção e irritação começou a percorrer seu corpo. Lutou para se controlar, não deixar que aparecesse em seu rosto. Desejou poder forçar um sorriso, mas não conseguiu.

— Que tipo de segredos, Jonathan?

— Bem... eu quero saber uma coisa. Se alguém lhe conta um segredo importante, mas faz você prometer não revelar para ninguém, porque é um segredo, e se você quiser contar para alguém porque pode ser importante, você deve guardar o segredo?

— Você prometeu guardar um segredo?

— Prometi.

— E o segredo é uma coisa ruim? Algo criminoso?

— Bem. —Jonathan precisou avaliar. O segredo que o amigo Willie Seagull lhe revelara era tão ruim assim?

Dizia respeito a Alan Seagull e seu barco. O segredo era que ele podia correr mais depressa do que Totton imaginava. E o motivo para conseguir isso era que Seagull tinha o hábito de fazer algumas viagens bastante velozes e, de fato, ilícitas.

Sua carga, nessas ocasiões, era lã. Apesar do aumento do comércio de tecidos a lã ainda era a espinha dorsal das exportações e da riqueza da Inglaterra. A fim de garantir o grande lucro que dava, o rei insistia, do mesmo modo que seus predecessores, que todo o comércio fosse canalizado através do grande entreposto conhecido como Staple, de Calais. Em todo o Staple, os impostos sobre a lã eram pagos. Quando os monges de Beaulieu enviavam seus grandes fardos para o exterior — na maioria das vezes através de Southampton, e poucas através de Lymington — ou quando Totton comprava lã dos mercadores de Sarum, tudo ia para o Staple e era devidamente taxado.

Quando Alan Seagull fazia os seus carretos ilícitos para outros exportadores menos dignos, ele os realizava à noite, furtivamente, de costa a costa, sem pagar nenhuma taxa ou direito, pelo que era bem pago. Outros faziam o mesmo ao longo da costa. Isso era conhecido como "corujar". Era ilegal, mas cada criança de cada cidade portuária sabia que essas coisas aconteciam.

— Pode deixar alguém enrascado — disse Jonathan com todo o cuidado. — Mas não creio que seja muito ruim.

— Como a caça clandestina — arriscou o pai.

— Mais ou menos isso.

— Se você deu a sua palavra, deve mantê-la — afirmou Totton. — Se não a mantiver, ninguém nunca mais vai confiar em você.

— Só que... —Jonathan continuava em dúvida. — E se eu quisesse contar para uma pessoa, para ajudá-la?

— Ajudá-la de que modo?

— Se você tivesse um amigo e isso fizesse com que ele poupasse dinheiro.

— Romper a palavra e trair a confiança depositada? Claro que não, Jonathan.

— Ah.

— Isso responde a sua pergunta?

— Sim. Acho que sim. — Mesmo assim, Jonathan ainda enrugou um pouco a testa. Ele queria que houvesse algum meio de avisar ao pai que ia perder a aposta.

Houve ocasiões, durante as duas semanas seguintes, nas quais Alan Seagull achou difícil não rir.

Lymington inteira fazia apostas. Na maioria, pequenas, normalmente poucos pence; mas vários mercadores arriscaram um marco ou até mais na corrida que estariam apostando? Em geral, deduziu o achavam que a pequena embarcação de Seagull superaria o navio maior por causa da pouca extensão da travessia; outros faziam cálculos complicados baseados em coisas como o clima; outros ainda colocavam sua total confiança no critério de Totton e o acompanhavam.

— Quanto mais eles falam, menos sabem — salientou Seagull para o filho.

— E nenhum deles sabe realmente coisa alguma.

E havia as ofertas de suborno. Mal passava um dia sem que alguém procurasse o marujo com uma oferta.

— Apostei meio marco no seu barco, Alan. Haverá um shilling para você, se ganhar.

O mais interessante eram as pessoas que lhe ofereciam dinheiro para perder.

— Não conheço o pessoal de Southampton — disse-lhe um mercador com toda a franqueza. — E, além do mais, o único jeito de se ter certeza de um resultado é se você prometer perder.

— É engraçado — observou Seagull para Willie. — Todas essas pessoas vêm para cima de você como ondas, e só se consegue navegar através delas. Do jeito que as coisas estão, se eu ganhar me pagam e se eu perder me pagam.

— Abriu um sorriso. — Não faz diferença, percebe? Lembre-se disso, meu filho — acrescentou seriamente. — Deixe que eles apostem. Você não diz nada e pega o dinheiro.

O mais impressionante foi Burrard. No fim da primeira semana, tinha dito a Alan: "Um marco, se você vencer." No fim da segunda: "Já estou muito comprometido. Dois marcos."

— Ele é burro? — perguntou Willie.

— Não, filho. Ele não é burro. Apenas rico.

Totton, enquanto isso, mantinha-se tão calmo e calado como de costume. Isso Seagull respeitava.

— Eu não gosto dele, filho — confessou. — Mas ele sabe quando deve manter a boca fechada.

— E você vai vencer, papai? — indagou Willie. Mas a isso, de um modo irritante, o seu pai respondeu cantarolando para si mesmo uma pequena cançoneta de marinheiros.

Willie, porém, fez melhor ao perguntar ao pai se podia acompanhá-lo na corrida, porque, após uma pausa e depois de lançar-lhe um olhar divertido, seu pai, para sua grande surpresa, concordou.

Era um grande presente. E ele o partilhou com os amigos, devidamente invejosos. Os olhos de Jonathan se arregalaram e todos os dias voltava a perguntar a Willie: "É mesmo verdade que você vai velejar? Eu sei", acrescentava confidencialmente, "que você vai ganhar." Era o paraíso.

Mas seu pai iria ganhar? Willie havia se vangloriado para Jonathan afirmando que sim naquela noite em Bisterne e certamente não ia retirar o que dissera. Mas gostaria de saber o que seu pai estava realmente pretendendo.

A verdade mesmo era que Alan Seagull, ele próprio, não sabia. Certamente não tinha a mínima intenção de divulgar publicamente a velocidade de seu barco. Se para vencer fosse necessária essa revelação, ele perderia com todo o prazer. Mas no mar nunca havia certeza de coisa alguma. Algo podia acontecer com o outro barco. O próprio mar decidiria, e a sorte, e a força de vontade. Ele continuava sendo o sujeito mais despreocupado do mundo. Até certa noite, três dias antes da corrida.

Percebeu que havia alguma coisa no instante em que viu o jovem Willie e o modo envergonhado como se aproximava; entretanto, apesar disso, ficou totalmente surpreso com a pergunta do menino.

— Papai, na corrida Jonathan também pode ir no barco?

Jonathan? Jonathan Totton? Cujo pai apostava no outro barco? O marujo encarou-o atônito.

— Isto é, se o pai dele concordar — acrescentou Willie. O que certamente ele não faria, pensou Alan.

— Eu disse que talvez você deixasse. Ele não pesa muito — explicou.

— Que ele vá então no outro barco.

— Ele não quer. Ele quer vir comigo. E afinal de contas...

— Afinal de contas o quê?

Willie hesitou e depois falou baixinho:

— Papai, o barco de Southampton vai perder, não vai?

— É você quem está dizendo, filho. — Alan ia sorrir, mas um pensamento lhe ocorreu. — Willie? — Olhou com todo o cuidado para o filho. — Você acha que eu vou vencer?

— Claro que acho, papai.

— É por isso então que ele quer vir com a gente? Porque você disse a ele que vamos vencer?

— Não sei, papai. — Willie parecia constrangido. — Talvez.

— Você falou para ele sobre o nosso negócio?

— Não, papai. Isto é, não realmente. — Seguiu-se uma pausa. — Posso ter dito alguma coisa. — Olhou para baixo e depois voltou a levantar o olhar esperançoso para o pai. — Ele não vai contar, papai. Juro.

Alan Seagull nada disse. Pensava.

Havia muito pouca gente em Lymington que conhecia o negócio de Alan Seagull- Para início de conversa, sua tripulação. Um ou outro mercador também

pelo motivo óbvio de lhe darem a lã ilícita para transportar. Mas Totton não

era um deles e jamais o seria. E a regra nesse negócio era muito simples: não se falava nada para gente como Totton. Pois, mais cedo ou mais tarde, se pessoas como ele soubessem, as coisas desandariam: barcos seriam detidos, homens multados, negócios desfeitos e, estranhamente intangível, mas talvez o mais importante de tudo, a liberdade seria restringida.

Totton já o saberia? Talvez ainda não. O que ele realmente precisava, pensou Seagull, era de algum tempo a sós com Jonathan. Seria capaz de saber, supôs, se o menino havia contado ao pai. Se tivesse contado, nada havia a ser feito. Se não... matutou. Quando o menino estivesse em alto-mar, um homem na situação dele poderia disfarçadamente jogá-lo dentro d'água. Deu de ombros para si mesmo. Não havia qualquer chance de Totton permitir que ele fosse.

— Não fale mais nada sobre o nosso negócio. E mantenha o bico fechado — ordenou ao filho e gesticulou para que fosse embora. Precisava pensar mais um pouco.

Jonathan encontrou o pai sentado em uma cadeira de encosto alto no salão sob a galeria. Totton dormia.

A galeria de passagem que ia da frente até os fundos das casas maiores de Lymington era uma peça bastante impressionante, mas nada elegante. Apesar dos dois andares de altura, o aposento central era muito estreito, de modo que a galeria parecia elevar-se sobre uma área coberta bastante confinada. Desde a morte da esposa, em vez de ir, ao final de um dia de trabalho, para a agradável sala de estar nos fundos da casa, que dava para o jardim e onde ela gostava de ficar, Totton resolvera se sentar em uma cadeira da área meio canhestra do salão. Ali ele permanecia até a hora do jantar, que, meticulosamente, ele fazia com o filho. Às vezes ficava sentado olhando em silêncio para a frente; às vezes cochilava um pouco. E estava cochilando quando Jonathan se aproximou.

Após um longo momento de pé diante dele, Jonathan tocou-lhe o punho e chamou delicadamente:

— Pai?

Totton despertou com um perceptível sobressalto e encarou o menino. Não estava dormindo profundamente, mas levou alguns instantes para ajustar a mente. Jonathan trazia no rosto aquele ar ligeiramente desconfiado que sugeria por parte de uma criança a esperança de uma permissão que acreditava seria negada.

— Sim, Jonathan.

— Posso pedir uma coisa?

Totton preparou-se. Já estava totalmente desperto. Empertigou-se e tentou sorrir. Talvez, se o pedido não fosse tão tolo, ele surpreendesse o menino e permitisse. Estava desejoso de agradá-lo.

— Pode.

— Bem. É o seguinte... — Inspirou fundo. — Sabe a corrida entre o seu navio de Southampton e o barco de SeaguU?

— Claro que sei.

— Bem. Eu não creio que ele concorde, mas, de qualquer modo, estive pensando: se Alan SeaguU concordar, você acha que haveria problema de eu ir com ele?

— No barco de SeaguU? — Totton fitou-o. Passaram-se alguns momentos antes que conseguisse realmente absorver aquilo — Durante a corrida?

— Sim. E apenas até a ilha de Wight — acrescentou, esperançoso. — Quero dizer, a gente não vai para alto-mar, vai?

Totton não respondeu. Não conseguia. Desviou a vista de Jonathan, em direção à porta da sala de estar onde a esposa costumava ficar.

— Você não percebe — indagou finalmente — que a minha aposta é contra o barco de SeaguU? Você quer velejar com o meu adversário? Com um homem que lhe pedi que evitasse?

Jonathan ficou calado. Na verdade, só estava pensando em querer velejar com Willie; mas não tinha certeza se devia dizer isso

— O que você acha que isso vai parecer para as outras pessoas? — perguntou-lhe Totton calmamente.

— Não sei. —Jonathan pareceu desanimado. Não tinha imaginado o que as outras pessoas poderiam pensar. E não sabia.

Henry Totton continuou olhando para longe. Tinha uma sensação de mortificação e raiva. Mal conseguia olhar para o seu único filho, mas finalmente o fez.

— Lamento, Jonathan — disse delicadamente —, por você não ter qualquer senso de lealdade para comigo ou para com sua família... — Que, sabe Deus, pensou, em todo caso agora sou apenas eu.

De repente, Jonathan entendeu que havia magoado o pai. E ficou com pena dele. Mas não sabia o que fazer.

Então Henry Totton, vencido pela inutilidade, pela total impossibilidade de obter amor entre ele e o filho, jogou os ombros para o alto em desespero e exclamou.

— Faça o que quiser, Jonathan. Veleje com quem desejar.

E então se desenrolou um embate no interior do menino, entre o seu amor e o seu desejo. Ele sabia que deveria responder que não iria ou pelo menos se oferecer para viajar no outro barco. Essa era a única maneira de dizer ao pai que o amava; embora não tivesse certeza, ainda assim, de que o frio mercador acreditasse. Mas o seu desejo era de ir com Willie e o marujo despreocupado e velejar no mar na pequena embarcação deles, com a sua velocidade secreta. E, como ele tinha apenas dez anos, o desejo venceu.

— Oh, obrigado, pai — exclamou, beijou-o e saiu correndo para contar a Willie.

Willie apareceu na manhã seguinte.

— O meu pai disse que você pode ir — anunciou contente. Henry Totton havia saído e por isso não ouviu as boas novas.

Caíra uma breve chuvarada de abril, mas o sol já tinha voltado a brilhar. A notícia era por demais emocionante para ser desfrutada dentro de casa, e não demorou muito para que os dois meninos saíssem juntos para procurar uma diversão. O plano deles era, primeiro, caminhar alguns quilômetros ao norte e brincar na mata de Boldre; mas não tinham avançado quilômetro e meio quando, à medida que a alameda mergulhava em uma inclinação suave, sua atenção foi atraída por algo na beira do terreno mais alto, logo adiante.

— Vamos para o círculo — sugeriu Jonathan.

O local que os atraíra era uma curiosa particularidade da paisagem de Lymington; tratava-se de um pequeno cercado de terra encravado em um outeiro que se elevava acima do rio. Era conhecido como Buckland Rings — embora suas paredes baixas e ervosas formassem um retângulo e não um círculo. Datando da época dos celtas, antes da chegada dos romanos, deve ter servido de forte para vigiar o rio ou um curral para gado, ou ambas as coisas; mas, apesar de Lymington contar com descendentes do povo que o construíra, qualquer lembrança desse antigo local já devia ter sido apagada mais de mil anos antes. Animais pastavam na grama macia no interior do cercado e crianças brincavam nos seus muros.

Era um bom lugar para brincar. A chuva que caíra antes tornara escorregadios os muros gramados, e Jonathan tinha defendido pela terceira vez a fortaleza de um ataque por parte de Willie, quando viram uma elegante figura cavalgando alameda abaixo, a qual, ao vê-los, acenou alegremente, desmontou e seguiu em direção a eles.

— Quer dizer — falou cordialmente— que hoje vocês batalham em terra e em breve os pais de vocês vão batalhar no mar.

Richard Albion era um fidalgo bastante afável. Seus ancestrais eram chamados de Alban, mas de algum modo, durante os dois últimos séculos, como um riacho da floresta que gradualmente muda o seu curso, a pronúncia do nome mudou de Alban para o mais cômodo Albion, dentro de cujas ribanceiras, por assim dizer, seguiu fluindo mais facilmente por várias gerações. Como florestais, eles mantiveram sua posição entre a pequena nobreza da região e se casaram de acordo com o seu meio. A esposa de Albion era da família Button, dona de propriedades próximas a Lymington. Já na meia-idade, cabelos grisalhos e olhos de um azul intenso, Richard Albion tinha uma impressionante semelhança com o seu ancestral Cola, o Caçador, que vivera quatro séculos antes. Homem de natureza generosa, costumava parar para ofertar um quarto de penny a uma criança; conhecia de vista a maioria dos habitantes de Lymington; por isso soube de imediato quem eram os dois garotos que brincavam em Buckland Rings. Conversou amavelmente com eles e comentou sobre a disputa prestes a ocorrer. —- Vai assistir a ela, senhor? — indagou Jonathan.

— Certamente que sim. Não a perderia por nada no mundo. Ora, todos da região vão estar lá, creio eu. Aliás — acrescentou —, acabei de vir de Lymington, onde fui tentar fazer uma aposta. Mas não encontrei ninguém que aceitasse. — Deu uma risada. — A cidade toda já está tão comprometida que ninguém mais ousa fazer nenhuma aposta. Viu o que o seu pai andou fazendo com a cidade, Jonathan Totton?

— Em que lado ia apostar, senhor? — quis saber Willie.

— Bem — respondeu o fidalgo com toda a honestidade —, receio que apostaria no navio de Southampton não porque faça alguma idéia de quem vai vencer, mas porque gosto de estar do mesmo lado de Henry Totton.

— E — Jonathan não estava certo se seria apropriado indagar, mas Albion não era homem de se sentir ofendido — quanto apostaria, senhor?

— Ofereci cinco libras — retrucou Albion com uma risadinha. — Mas ninguém quis aceitar o meu dinheiro! — Sorriu para eles. — Algum de vocês está interessado?

Jonathan sacudiu a cabeça e Willie respondeu com toda a seriedade:

— Meu pai me disse para nunca apostar. Ele diz que só os tolos apostam.

— Tem toda a razão — bradou Albion, bem-humorado. — E faça sempre o que ele diz. — Montou no cavalo e se afastou.

— Cinco libras! — exclamou Jonathan para Willie. — É muito para se perder. E voltaram à brincadeira.

Apesar de Alan Seagull ainda não ter perdoado o filho pela besteira de ter contado o seu segredo ao filho de Totton, naquela tarde, quando avistou Willie, ele se encontrava com uma disposição de ânimo tolerante. Acabara de calcular todo o dinheiro que lhe fora prometido e, mesmo se perdesse a corrida, ganharia só naquela viagem muito mais do que tinha faturado nos últimos seis meses. Se vencesse, seria melhor ainda, pois teria o dinheiro de Burrard. Embora fosse um observador atento da natureza humana, o marujo se confessava atônito com toda aquela questão. Entretanto, não esperava mais nenhuma surpresa quando Willie foi até ele e lhe perguntou:

— Papai, o senhor conhece Richard Albion?

— Sim, filho. Conheço.

— Nós o encontramos hoje em Buckland Rings. Ele quer apostar na corrida. Contra você. Mas não encontrou quem aceitasse a aposta.

— Ah. — Alan deu de ombros.

— Adivinhe quanto ele ia apostar, papai.

— Não sei, filho. Me diga.

— Cinco libras.

Cinco libras. Outra aposta de cinco libras! Seagull sacudiu a cabeça, espantado. Mais uma pessoa querendo apostar tal quantia de dinheiro na derrota dele. Nada para Albion, talvez. Uma pequena fortuna para ele. Por um longo tempo, depois que o filho correu para dentro, o marujo ficou sentado, fitando a água, pensando.

Acabara de escurecer quando Jonathan ouviu o pai seguir pela galeria.

Até perto dos últimos dias de vida da mãe, quando não mais conseguia andar, ela sempre vinha dar um beijo de boa-noite em Jonathan. Às vezes demorava-se um pouco e lhe contava uma história. E sempre, antes de sair, fazia uma pequena prece. Poucos dias haviam se passado desde a sua morte, quando Jonathan perguntou ao pai:

— Você vem me dar um beijo de boa-noite?

— Por quê, Jonathan? — retrucou Totton. — Você não tem medo do escuro, tem?

— Não, pai. — Fez uma pausa, indeciso. — Mamãe costumava fazer isso. Desde então, na maioria das noites, Totton ia dar boa-noite ao filho. Ao subir

a escada, o mercador tentava imaginar algo para dizer. Talvez perguntasse ao menino o que tinha aprendido naquele dia ou comentasse algo interessante que acontecera na cidade. Entrava no quarto e ficava calado perto da porta, olhando para baixo, onde o filho estava deitado em sua caminha.

E se Totton nada conseguisse imaginar para dizer, Jonathan ficava imóvel por Um momento e depois murmurava:

— Obrigado por ter vindo me ver, pai. Boa noite.

Naquela noite, contudo, era Jonathan quem tinha preparado algo para dizer. Passara toda a tarde pensando naquilo. E quando o pai surgiu silenciosamente no vão da porta e olhou na direção dele sem nada falar, foi o menino quem rompeu o silêncio.

— Pai.

— Sim, Jonathan.

— Não preciso ir na corrida com Seagull. Posso ir no seu barco, se preferir. O pai demorou um pouco para responder.

— Não se trata do que eu prefiro, Jonathan — disse Totton finalmente. —-Você já fez a sua escolha.

— Mas eu posso mudar, pai.

— É mesmo? Não creio. — Havia um leve vestígio de frieza em sua voz. — Além do mais, já prometeu ao seu amigo ir com ele.

O menino entendeu. Percebeu que havia magoado o pai, e agora ele devolvia na mesma moeda com aquela rejeição dissimulada. Lamentava por tê-lo magoado e também estava temeroso de perder o seu afeto; pois o pai era tudo o que tinha. Se ao menos ele não tornasse tudo tão difícil.

— Ele vai entender, pai. Eu prefiro ir no seu barco.

Não era verdade, pensou o mercador, mas ele disse bem alto:

— Você deu a sua palavra, Jonathan. Tem que mantê-la.

Então veio à tona um outro assunto que estivera na mente do menino.

— Pai, lembra, lá nas salinas, quando me disse que, se eu soubesse de um segredo e tivesse prometido não contar, que eu devia manter minha promessa?

— Lembro.

— Bem... Se eu lhe contar uma coisa e pedir para manter segredo, mas não lhe contar exatamente o que é, porque se eu fizesse isso estaria revelando o outro segredo... isso seria correto?

— Está querendo me contar alguma coisa?

— Estou.

— Um segredo?

— Entre nós dois, pai. Porque você é meu pai — acrescentou, na expectativa.

— Entendo. Está bem.

— Bem... —Jonathan fez uma pausa. — Pai, eu acho que você vai perder a corrida.

— Por quê?

— Não posso lhe dizer.

— Mas você tem certeza disso?

— Toda certeza.

— Não há mais nada que possa me contar, Jonathan?

— Não, pai.

Totton ficou em silêncio por uns instantes. Em seguida sua sombra começou a recuar e a porta foi fechada lentamente.

— Boa noite, pai — disse Jonathan. Mas não houve resposta.

A manhã da corrida estava nublada. Durante a noite o vento mudara de direção e agora vinha do norte; mas parecia a Alan Seagull que talvez voltasse a mudar. Seus olhos astutos fitavam as águas do estuário. Não estava seguro se gostava do tempo. Uma coisa era certa: seria uma rápida travessia até a ilha.

E depois disso? Seus olhos vasculharam a multidão no cais. Estava à procura de alguém.

O dia anterior fora realmente muito estranho. Ele havia feito barganhas anteriores, mas nenhuma tão inesperada. Por mais surpreendente que tivesse sido o tal negócio, muitas coisas se resolveram.

Uma delas, o destino do jovem Jonathan.

O clima no cais era de animação. Toda a Lymington estava reunida ali. As duas embarcações, fundeadas na margem, contrastavam claramente. O barco de Southampton não era um navio mercante de tamanho costumeiro, porém um tipo de cargueiro menor e mais modesto, conhecido como chata. Seu tamanho era de quarenta toneis — o que significava, em teoria, que podia transportar quarenta das enormes pipas de vinho com capacidade para duzentos e cinqüenta galões, que na época eram usadas nos grandes carregamentos para o continente. Largo, costado trincado de carvalho, com apenas um mastro e uma enorme vela redonda, a chata parecia primitiva em comparação com os navios de três mastros, seis vezes o seu tamanho, que os mercadores ingleses costumavam importar dos construtores navais do continente. Mas em águas costeiras ele servia muito bem ao seu propósito e podia facilmente fazer a travessia do canal para a Normandia. Levava vinte tripulantes.

O barco de Seagull, apesar de construção semelhante, tinha apenas metade do tamanho do outro. Além dos dois meninos, carregava uma tripulação de dez homens escolhidos a dedo, fora o próprio Seagull.

A carga contida em cada embarcação era típica de uma viagem de travessia até a ilha de Wight: sacos com lã, fardos de tecido pronto, pipas de vinho e alguns amarrados de seda. Como lastro extra, o barco de Southampton também levava dez quintais de ferro. Ambas as embarcações tinham sido inspecionadas pelo prefeito e declaradas com carga total.

As condições da corrida foram discutidas cuidadosamente entre as partes, e o prefeito chamou os dois mestres conjuntamente no cais e lhes deu as orientações.

— Devem atravessar para Yarmouth com carga plena. Descarregar no cais de lá. Voltar sem nenhuma carga, mas com a mesma tripulação. O primeiro a chegar de volta é o vencedor. — Olhou com gravidade para ambos. Seagull, ele conhecia; o grande e barbudo mestre de Southampton, não. — A minha ordem, soltarão as amarras e remarão até o meio do rio. Quando eu agitar a bandeira, podem içar a vela ou remar para adiante, como preferirem. Mas quem obstruir o outro barco, nessa ocasião ou em qualquer momento durante a corrida, será declarado perdedor. Eu decidirei quem foi o primeiro a voltar e a minha decisão sobre isso será definitiva.

A travessia de ida e volta, com carga e sem carga, a descarga, a oportunidade de usar remo e vela e a mutabilidade do tempo — tudo isso adicionara bastante incerteza, acreditava o prefeito, para valer a pena assistir à corrida; embora, particularmente, ele não visse como o barco maior pudesse perder e tivesse apostado nele.

O homem de Southampton concordou com a cabeça, olhou de cara feia para Seagull, mas mesmo assim estendeu-lhe a mão. Seagull apertou-a ligeiramente. Seu olhar, porém, mal pousou no outro marujo. Ele continuava vasculhando a multidão.

Então achou quem procurava. Ao se dirigir de volta ao seu barco, chamou Willie num canto.

— Está vendo Richard Albion, filho? — Apontou para o fidalgo. — Corra lá e pergunte se ele ainda quer apostar cinco libras contra a minha vitória na corrida.

Willie fez o que lhe foi mandado e um minuto depois estava de volta.

— Ele disse que sim, papai.

— Ótimo. — Seagull assentiu para si mesmo. — Agora volte lá e diga a ele que eu aceito a aposta, se ele não se importar em apostar com um trabalhador.

— Você, papai? Você vai apostar?

— Isso mesmo, filho.

— Cinco libras? Você tem cinco libras, papai? — O menino olhou para ele espantado.

— Talvez tenha, talvez não.

— Mas, papai, você nunca aposta!

— Está discutindo comigo, menino?

— Não, papai. Mas...

— Então, vá logo.

E Willie correu de volta até Richard Albion, que encarou a proposta com tanta surpresa quanto o menino. Sem hesitar, contudo, seguiu com passadas largas até o barco de Seagull.

— É verdade que quer apostar nesta corrida? — indagou.

— É verdade.

— Bem. — Deu um largo sorriso. — Nunca pensei viver para ver o dia em que Alan Seagull fizesse uma aposta. De quanto será então? — Os brilhantes olhos azuis revelaram apenas um vestígio de preocupação em favor do marujo. — Ninguém se dispôs a aceitar a minha aposta de cinco libras; portanto, diga a quantia que deseja apostar, e eu me sentirei honrado.

— Cinco libras está bem para mim.

— Tem certeza? — O rico não desejava arruinar o marujo. — Eu mesmo fico um pouco nervoso em apostar cinco libras. Não quer apostar um marco? Dois, se preferir.

— Não. Ofereceu cinco libras, cinco libras eu aceito.

Albion hesitou por apenas mais um segundo e concluiu que continuar questionando o marujo seria insultá-lo.

— Então está apostado — bradou e estendeu a mão para Alan, antes de caminhar de volta para a multidão de espectadores. "Vocês nem adivinham", anunciou-lhes, "o que acaba de acontecer."

Demorou uns dois minutos para o burburinho dessa notícia inesperada envolver toda a Lymington — e mais outros, se tanto, para surgirem teorias sobre o que isso significava. Por que Seagull de repente abandonara o hábito de toda uma existência? Teria enlouquecido? Afinal, possuía cinco libras ou encontrara alguém para arriscá-las em seu nome? Uma coisa parecia evidente: se estava apostando, devia saber algo que eles não sabiam.

— Ele sabe que vamos ganhar — berrou Burrard, exultante.

Será? Aqueles que apostaram contra o marujo começaram a parecer inquietos. Alguns, de pé perto de Totton, dirigiram-se a ele, nervosos. Exigiram saber o que estava acontecendo.

— Estamos acompanhando você — lembraram.

Henry Totton já havia enfrentado alguma caçoada, quando notaram que o filho dele estava no barco de Seagull.

— Seu filho vai velejar com o adversário? — perguntaram os amigos, gritando.

— Ele tem amizade pelo menino Seagull — respondeu tranqüilamente, revelando perfeita equanimidade. — E quis ir com o amigo.

— Eu o teria impedido — observou mal-humorado um mercador.

— Por quê? —Totton dera um leve sorriso. — O peso a mais do meu filho e a sua vontade sem dúvida vão atrapalhar. Creio que isso custará a Seagull pelo menos um furlong. — O comentário sagaz arrancara algumas gargalhadas de apreço.

Mas agora, quando o olharam de modo acusador, ele apenas deu de ombro.

— Seagull só fez uma aposta, como todos nós.

— É, mas ele nunca aposta.

— É provavelmente por prudência. — Olhou em volta os rostos dos demais. — Não ocorre a nenhum de vocês que ele pode ter cometido um erro? Que pode perder? — E, diante de mais essa porção de bom senso, houve pouca coisa a mais que alguém pudesse falar. Ao mesmo tempo surgiu a sensação de que havia algo suspeito em relação àquele assunto.

Não que a suspeita se limitasse aos espectadores. No barco, Willie Seagull olhava com curiosidade para o pai, enquanto o marujo, o chapéu de couro descaído de modo confiante em sua cabeça, apoiava-se confortavelmente em uma pipa de vinho.

— O que você está planejando, papai? — cochichou.

Mas tudo o que Seagull fez foi murmurar uma curta canção de bordo.

Em terra ou no mar, no inverno ou verão, As coisas que parecem nem sempre o são.

E isso foi tudo o que Willie conseguiu tirar dele, até o prefeito gritar:

— Soltar as amarras!

Jonathan Totton era só contentamento. Estar com o amigo Willie e o marujo no barco deles — e durante tal evento —, não lhe parecia que o próprio paraíso pudesse ser algo muito melhor.

O cenário era revigorante. O pequeno rio entre altas ribanceiras verdes inclinadas tinha uma tonalidade prateada. O céu estava cinzento mas luminoso, os contornos das nuvens espalhando-se para o sul. Mortiças gaivotas rodopiavam no mastro e mergulhavam em direção aos juncos, o espelho d'água escoando com o seu alarido. Os dois barcos já se encontravam no meio do rio, o de Southampton mais próximo da margem oriental. No cais, ela parecera maior, mas agora, para Jonathan, na água a chata, com suas plataformas de desembarque de proa e popa levantadas, parecia elevar-se a grande altura acima do pesqueiro.

A tripulação estava toda pronta. Havia quatro homens nos remos, mas somente para manter o barco firme na correnteza. O resto estava a postos para levantar a vela. Seagull estava no leme, os dois meninos por enquanto apenas agachados diante dele. Quando Jonathan levou a vista em direção ao rosto do marujo, com seus tufos de barba contra o brilhante céu cinza, pareceu-lhe por um momento estranhamente sinistro. Mas afastou esse pensamento como sendo uma bobagem. Nesse momento, na praia, o prefeito deve ter agitado a bandeira, pois Seagull gesticulou com a cabeça e gritou:

- Já.

 

 

                                                               CONTINUA

 

 

Os garotos olharam adiante, enquanto a vela redonda era içada adejante e os quatro homens nos remos davam algumas boas remadas, e em poucos instantes estavam avançando rio abaixo com o vento norte soprando atrás deles.

Olhando para o cais, Jonathan podia ver o rosto do pai a observá-los. Quis se levantar e acenar para ele, mas não o fez porque não tinha certeza se o pai ia gostar. Logo o burgo sobre sua elevação inclinada estava ficando para trás. Um raio de luz através de uma brecha nas nuvens iluminou os telhados da cidade por alguns breves e arrepiantes momentos; em seguida as nuvens se fecharam e o cinza baixou. Eles deslizavam bem depressa rio abaixo. As árvores na margem surgiram e o burgo perdeu-se de vista.

 

 

 

 

O barco menor era capaz de ganhar velocidade com mais rapidez e, portanto, ia adiante do de Southampton por enquanto. Encontravam-se agora em um longo trecho. A direita, estava o grande ermo a céu aberto de Pennington Marshes; à esquerda, a faixa de pântano lamacento; e adiante, após uma larga extensão de ribanceiras barrentas que a maré alta submergira, as águas picadas do Solent.

Para os marinheiros, as enseadas do Solent tinham notáveis benefícios. À primeira vista, a entrada para o rio Lymington podia...

 

 

                                                                  Edward Rutherfurd

 

 

                      

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