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Os garotos olharam adiante, enquanto a vela redonda era içada adejante e os quatro homens nos remos davam algumas boas remadas, e em poucos instantes estavam avançando rio abaixo com o vento norte soprando atrás deles.
Olhando para o cais, Jonathan podia ver o rosto do pai a observá-los. Quis se levantar e acenar para ele, mas não o fez porque não tinha certeza se o pai ia gostar. Logo o burgo sobre sua elevação inclinada estava ficando para trás. Um raio de luz através de uma brecha nas nuvens iluminou os telhados da cidade por alguns breves e arrepiantes momentos; em seguida as nuvens se fecharam e o cinza baixou. Eles deslizavam bem depressa rio abaixo. As árvores na margem surgiram e o burgo perdeu-se de vista.
O barco menor era capaz de ganhar velocidade com mais rapidez e, portanto, ia adiante do de Southampton por enquanto. Encontravam-se agora em um longo trecho. A direita, estava o grande ermo a céu aberto de Pennington Marshes; à esquerda, a faixa de pântano lamacento; e adiante, após uma larga extensão de ribanceiras barrentas que a maré alta submergira, as águas picadas do Solent.
Para os marinheiros, as enseadas do Solent tinham notáveis benefícios. À primeira vista, a entrada para o rio Lymington podia parecer nada promissora. Através da embocadura do rio, estendendo-se para abaixo de Beaulieu a leste e além de Pennington Marshes a oeste — no todo, perto de onze quilômetros de extensão e mais de quilômetro e meio nos lugares mais largos —, encontravam-se vastas extensões de terra lamacenta que ficavam a descoberto na maré baixa, através das quais vários riachos cortavam estreitos canais. Rica em nutrientes, repleta de valisnérias e algas, essa imensa área alimentar produzia moluscos, caracóis e minhocas aos bilhões, que, por sua vez, sustentavam enormes populações, algumas o ano inteiro, outras migradoras, de pernaltas, patos, gansos, cormorões, garças, gaivinas e gaivotas. Um paraíso para aves, mas não, poder-se-ia pensar, para marujos. Sua virtude de navegação, contudo, baseava-se em dois aspectos. Um deles, o fato óbvio de que toda a extensão de água com trinta e dois quilômetros era protegida pelo conveniente volume da ilha de Wight, através de cujas extremidades oriental e ocidental entrava-se no mar. Mas o verdadeiro segredo não era a proteção. Eram as marés.
O sistema de marés do canal da Mancha agia como uma espécie de serrote, oscilando sobre um suporte ou ponto central. Em cada extremidade da costa sul inglesa, as águas subiam e baixavam consideravelmente. No ponto central, embora muita água avançasse e recuasse, o seu nível permanecia relativamente constante. Porque o Solent se encontrava bem próximo ao ponto central, suas marés altas e baixas eram bem modestas. Mas a barreira da ilha de Wight acrescentava um outro fator. Pois, quando a maré no canal da Mancha subia, enchia o Solent em ambos os lados, criando, portanto, uma complexa série de marés internas. No lado ocidental do Solent, onde ficava Lymington, a maré geralmente se elevava com uma leve corrente durante sete horas. Seguia-se então uma longa paragem — às vezes, aliás, havia duas marés altas com apenas poucas horas de diferença. Depois, uma curta e rápida maré vazante, que desobstruía um fundo canal no estreito do lado ocidental da ilha de Wight. Tudo isso era perfeito para a navegação que utilizava o porto de Southampton.
E até a modesta Lymington era altamente favorecida. Na maré alta, as enormes terras lamacentas ficavam todas submersas. O pequeno rio canal era fácil de se ver e fundo o bastante para o calado de quaisquer navios mercantes em uso na época.
Ao entrar no Solent, o barco começou a se arremessar contra as ondas escuras e picadas que o vento levantava; mas o balouçar era leve e Jonathan o desfrutava. Adiante, a apenas seis quilômetros e meio, estavam as extensas ondulações da ilha de Wight. O destino deles, o pequeno porto de Yarmouth, ficava quase diretamente do lado oposto. Olhando para leste, ele podia ver o grande funil do Solent seguindo por vinte e quatro quilômetros, um imenso corredor cinza de céu e água. Para o lado oeste, passando os pântanos e Keyhaven, uma grande língua de areia e cascalho com a ponta torta estendia-se da costa por quilômetro e meio em direção aos rochedos calcários da ilha, e, através do estreito canal existente no meio, Jonathan podia ver o mar. O borrifo salgado pinicava seu rosto. Sentia-se enlevado.
Com o vento diretamente atrás, nada havia a fazer a não ser correr adiante dele. A volta, porém, seria mais difícil. Embora o barco tivesse um enorme leme central, a primitiva vela redonda não era bem adequada para virar de bordo. Podia ser que tivessem que usar os remos. Talvez, supôs, isso revertesse a vantagem da embarcação menor. Deveria mesmo ser preciso, pois ele já podia ver que o barco de Southampton estava mais próximo. Antes que chegassem à metade da travessia, desconfiou, a embarcação mais pesada os ultrapassaria.
Jonathan podia estar muito contente, mas, ao olhar para Willie, percebeu que o amigo não estava. Os dois meninos tinham ido um pouco mais à frente, para uma posição logo abaixo do pequeno convés no qual Seagull se encontrava de pé diante do leme. Enquanto Jonathan estivera olhando ansioso a paisagem marítima, o outro menino, sentado a poucos metros, estivera com a testa franzida e sacudindo a cabeça para si mesmo.
Jonathan escorregou para perto dele.
— Qual é o problema? — perguntou.
Willie não respondeu logo; depois baixou a cabeça e murmurou:
— Não consigo entender.
— O quê?
— Por que o meu pai não içou a vela grande.
— Que vela grande?
— Que está ali — gesticulou com a cabeça para o espaço sob o convés de popa. — Ele tem uma vela grande. Escondida. Ele consegue superar praticamente qualquer um — arremessou o polegar em direção ao barco de Southampton, que progredia visivelmente em relação a eles. — Com um vento favorável como este, ele jamais nos alcançaria.
— Talvez ele ainda ice a vela.
— Agora não — disse Willie, sacudindo a cabeça. — E ele apostou na corrida. Cinco libras. Não sei o que está fazendo.
Jonathan olhou para o pequeno rosto sem queixo do amigo, uma réplica tão perfeita do de seu pai, viu o franzido preocupado e subitamente percebeu que o menininho esquisito que corria pela mata e brincava nos córregos com ele era também um adulto em miniatura, de um modo que ele próprio não era. Os filhos de agricultores e pescadores trabalhavam ajudando os pais, ao passo que os de abastados mercadores não o faziam. As crianças mais pobres tinham responsabilidades e, por conseguinte, seus pais as tratavam como semelhantes.
— Ele deve saber o que está fazendo — sugeriu.
— Então por que não me contou?
— O meu pai nunca me conta coisa alguma — disse Jonathan, mas logo percebeu que não era verdade. O mercador sempre tentava lhe dizer coisas, mas ele nunca queria ouvir.
— Ele não confia em mim — falou Willie com tristeza. — E sabe que contei para você o segredo dele. — Olhou para Jonathan. — Você não contou para ninguém, contou?
— Não — exclamou Jonathan. Era quase a verdade.
Por um pouco mais, entretanto, o barco de Seagull conseguiu se manter logo a frente do outro, enquanto o litoral da ilha se aproximava.
Estavam a meio caminho, quando o barco de Southampton passou à frente. Jonathan ouviu os vivas dos seus tripulantes, mas Seagull e seu pessoal os ignoraram. E o barco maior, ao se aproximar de Yarmouth, já tinha quase um quilômetro de dianteira.
O porto de Yarmouth era menor do que o de Lymington e protegido das águas do Solent por um monte de areia que funcionava como barreira de enseada. Ainda estavam a mais de meio quilômetro da entrada do porto, quando Jonathan notou algo estranho: a vela estava esvoaçando.
Ouviu Seagull berrar uma ordem, e dois dos homens correram para soltar uma das escotas, enquanto mais dois apertavam a outra, alterando o ângulo da vela. Seagull curvou-se sobre o leme.
— O vento está mudando — gritou Willie. — Noroeste.
— Isso vai facilitar um pouco a volta — arriscou Jonathan.
— Talvez.
O barco de Southampton deveria empregar a mesma tática, mas já estava perto da entrada do porto e, portanto, levava vantagem. Pouco depois eles o viram fazer a volta e seguir para o estreito canal perto do monte de areia, descendo a vela enquanto passava para a proteção da enseada; mas somente algum tempo após eles conseguiram fazer o mesmo. Pouco antes de fazerem a entrada, Jonathan viu Alan Seagull fitando o céu, observando as nuvens. O meio sorriso que costumava marcar seu rosto tinha desaparecido, e ao menino pareceu que ele ficara preocupado.
Ao entrarem, o barco de Southampton já estava atracado e sua tripulação ocupada com o descarregamento.
A cidade de Yarmouth também fora fundada pelo senhor feudal de Lymington. Nesse caso, ele havia disposto o seu burgo como uma pequena grade de alamedas do lado oriental das águas da enseada. Apesar de pequeno, era um local movimentado, uma vez que a maior parte do comércio da ilha de Wight escoava através dele. Durante os últimos cem anos construiu-se o cais e instalaram-se aparelhos de içamento, a fim de que os barcos pudessem descarregar diretamente nas docas em vez de nas barcaças.
Assim que o barco atracou, os tripulantes entraram em ação. Enquanto pranchas eram empurradas do cais e uma viga era acionada, os marujos correram para soltar um poleame do topo de mastro, com a ajuda do qual os artigos mais pesados, como os toneis, podiam ser levados para fora de bordo pelo lais de verga. Todos estavam ocupados. Até os dois garotos subiam e desciam as pranchas com fardos de seda, caixas com especiarias e qualquer outro tipo de carga que conseguissem carregar. Jonathan quase não tinha tempo de observar, mas sabia que, com o menor volume de carga que transportavam, esse seria o modo de poderem ganhar algum tempo contra o barco de Southampton. Estava tão ocupado que mal percebeu, acima da enseada, o céu começar a escurecer.
Alan Seagull, porém, havia percebido. Por algum tempo, ajudou o pessoal na descarga; mas depois que o último tonel de vinho tinha sido baixado em segurança, ele foi até o cais, onde o mestre da outra embarcação dirigia as operações. Parou por um instante ao lado dele e apontou para o céu.
O corpulento homem de Southampton olhou para lá e depois deu de ombros.
— Já vi piores — grunhiu.
— Talvez.
— Nós estaremos de volta antes que o tempo fique ruim.
— Não acredito.
E, como para confirmar seu ponto de vista, uma lufada de vento surgiu sibilando de repente sobre os telhados das casas de Yarmouth, molhando os rostos dos dois com salpicos de gotas de chuva.
— Baixem esse tonel. Mais depressa! — gritou o homenzarrão para os seus tripulantes. — Assim! Isso! — Virou-se para Seagull. — Nós partiremos primeiro. Se você não tiver estômago para fazer a travessia, então que se dane. — E virando as costas para o outro mestre, seguiu pela prancha para o interior do seu navio.
Ele estava enganado, porém, a respeito da afirmação que fizera sobre a partida. Pois, na verdade, foi o barco de Seagull o primeiro a desatracar e seguir para a entrada do porto. Sob sua orientação, os tripulantes remavam para sair da enseada. Antes da partida, eles já haviam rizado a vela, e a sua forma, depois de içada, era a de um estreito triângulo, e não mais de um quadrado. Para Jonathan, a partida na frente do barco maior seria um motivo de júbilo, mas podia ver, pelos rostos tensos da tripulação e do olhar preocupado de Seagull, que estavam tudo menos felizes.
— Vai ser difícil — disse Willie.
Momentos depois passaram pela língua de terra e entraram em águas abertas.
A única coisa no Solent que o marinheiro precisa realmente temer é a lestada, o forte vento que sopra do leste. Não se trata de uma ocorrência normal, mas, quando acontece, é repentina e terrível. O seu mês favorito é abril.
Quando a grande lestada segue pelo canal da Mancha, a ilha de Wight não oferece qualquer proteção. Longe disso. Investindo pelo extremo oriental, o mais largo do Solent, o vento vai a toda velocidade pela forma afunilada do canal e fustiga suas águas, agitando-as. O tranqüilo paraíso torna-se um enfurecido caldeirão acastanhado. A ilha desaparece atrás dos enormes e inquietos lençóis cinzentos de vapor. Sobre as restingas, o vento uiva como se quisesse arrancar a vegetação palpitante e arremessá-la — espinheiros, tojeiras e tudo o mais — acima de Keyhaven e para dentro do espumante canal da Mancha mais além. Marinheiros que avistam a grande lestada se aproximar correm para se abrigar o mais depressa que podem.
Alan Seagull achou que daria tempo.
O vento os atingiu bruscamente no momento em que se afastavam da barreira de areia. As ondas picadas já se transformavam em vagas, mas, por se encontrar agora na água mais alta, o barco conseguia ser conduzido muito bem por ela. Todos os dez tripulantes remavam; cinco de cada lado, todos habilidosos. O plano dele era remar para bem longe da costa, seguindo um pouco na direção em que o vento soprava, depois içar uma pequena vela, e tentar, com uma combinação de vela, leme e remos, chegar o mais perto possível da entrada do rio Lymington. Como Lymington estava praticamente do lado aposto, eles seriam, com quase toda a certeza, carregados para o distante oeste. Mas isso pelo menos os levaria para os comparativamente mais seguros bancos de areia além das terras lamacentas submersas e em sua pouca correnteza poderiam remar contornando a costa pantanosa. Se acontecesse o pior, poderiam fazer o barco dar em seco na restinga e seguir a pé em segurança para casa. Uma coisa era certa: não se tratava mais de uma corrida contra ninguém, já que o importante era apenas chegar em casa.
O vento, apesar de cada vez mais forte, ainda não passava de uma lufada. Usando o leme, o marujo conseguia manter a proa do barco apontada para nordeste, ligeiramente na direção de Beaulieu, enquanto os tripulantes se esfalfavam nos compridos remos usados no mar. Após talvez uma dezena de remadas, ele sentiu o vento soprar uniformemente em seu rosto, e o barco progrediu estável. Então uma lufada os atingiu, sacudiu a embarcação, fez girar a proa, uma cascata de água salgada despejou-se da crista da vaga, quase ofuscando-o, enquanto ele pelejava com a cana do leme para fazer o barco voltar à direção anterior. Para leste, acima do Solent, conseguia ver o véu castanho da chuva acima da água. Tentou calcular onde poderiam estar quando a chuva os atingisse. Na metade do caminho. Talvez.
Progrediam lentamente: cem metros; mais cem. Tinham avançado uns quatrocentos metros, quando viram o barco de Southampton emergir atrás deles.
A embarcação maior tomou um curso diferente. Colocando a proa diretamente no vento e mantendo-se perto da costa, os tripulantes começaram a remar vigorosamente em direção leste. O plano deles, evidentemente, era seguir o máximo possível costa acima antes que o vento se tornasse mais forte e então fazer toda a travessia a vela, arremessando-se, com o vento quase às suas costas, direto para a entrada do Lymington. A aposta do mestre de Southampton era sem dúvida que Seagull seria carregado para o distante oeste e ficaria incapacitado de voltar com o tempo que piorava a cada instante. Podia ser que ele estivesse certo.
— Vamos içar a vela agora — comandou Seagull.
A princípio pareceu funcionar. Usando um mínimo de vela, com o barco quase obliquamente ao vento, mas apontando para a beira oriental do estuário do Lymington, ele conseguiria complementar a ação dos remos. De vez em quando uma lufada atingia a vela e sacudia o barco com tanta força que os remadores falhavam nas remadas, mas continuavam avançando. Houve mais e mais rajadas de água salgada; entretanto, nas eventuais olhadas para trás em direção à ilha, Seagull percebia que estavam progredindo. Conseguia ver o barco de Southampton seguindo a sua estável rota ao longo da costa. Enquanto isso ele se encontrava mais de quilômetro e meio distante, mantendo-se, contudo, em linha reta com a entrada da enseada. Examinou as nuvens. O véu de chuva aproximava-se mais rapidamente do que esperava.
— Recolher remos! — Os homens, surpresos, começaram a puxar os remos para dentro. Willie olhou-o, interrogativo. Em resposta, ele apenas sacudiu a cabeça. — Mais vela — ordenou. — A tripulação obedeceu. O barco bordejou. — Toda a tripulação para estibordo. — Precisavam do máximo de peso possível para contrabalançar a vela. — Lá vamos nós — murmurou para si mesmo.
O efeito foi expressivo. O barco estremeceu, rangeu e investiu adiante. Não havia nada mais a fazer. A tempestade estava vindo depressa demais para fazerem outra coisa além de tentar atravessá-la o mais depressa que conseguissem, antes que ela desabasse de verdade. Enquanto a proa levantava e baixava, Seagull observava a linha da costa setentrional. Ele ia ser empurrado para oeste, é claro; a questão era: a que distância? Jogando e balouçando, pelejando para manter a direção, o marujo conduzia sua embarcação na direção do meio do Solent.
Então a tempestade desabou. Veio com um bramido, uma cascata de chuva e uma terrível escuridão devoradora, que parecia pretender negar a existência de tudo, menos de si mesma, àqueles a quem havia engolido para suas entranhas. A ilha sumiu; o continente sumiu; as nuvens acima sumiram; tudo sumiu, exceto as rajadas e a chuva martirizante, e as vagas encapeladas, que logo estavam tão altas que as ondas se elevavam acima do barco, o qual, ao mergulhar em suas profundezas, parecia que só por um milagre emergiria de novo. Freneticamente, a tripulação orientava a vela, enquanto Seagull aliviava o leme. Nada havia a fazer, a não ser correr adiante do vento com pouca vela e torcer para que isso os levasse rapidamente à beira daquele abismo de água.
Os dois garotos, firmemente agarrados à borda da amurada, estavam sentados bem diante de Seagull, no convés. Ele imaginava se deixaria que enjoassem ou se devia mandá-los para o porão da embarcação. E, pensando na decisão do que fazer com Jonathan, o menino que sabia do seu segredo, ocorreu-lhe que não haveria uma ocasião melhor do que aquela. Um empurrão com o pé, quando ninguém estivesse olhando, e ele estaria na água num instante. As chances de salvá-lo naquele mar? Mínimas.
Não conseguia ver a costa, mas segundo calculava, como o vendaval devia ter soprado o barco quase diretamente para oeste, ele os levaria para Keyhaven ou para a longa língua de terra e cascalho que atravessava a entrada para o Solent. De qualquer modo, isso os empurraria para um ponto da costa onde poderiam fazer o barco dar em seco com segurança. Graças a Deus, não havia rochedos.
Ele não sabia quanto tempo havia se passado depois daquilo. Parecia uma pequena eternidade, mas estava muito ocupado no leme, enquanto o barco flutuava e mergulhava nas vagas, para pensar em outra coisa, exceto que não demoraria, com toda a certeza, para eles se aproximarem da língua de terra. E finalmente chegou à conclusão de que deviam estar mesmo perto, quando de repente uma separação entre as nuvens que se moviam rapidamente acima fez com que houvesse uma breve pausa na chuva ofuscante. Além dos borrifos fustigantes da água do mar, foi possível enxergar adiante meio, depois quilômetro e meio, em seguida mais ainda, como se ele estivesse olhando o interior de um imenso túnel cinza. Então, quando o pequeno barco se elevou de um cavado, ele teve uma visão que o fez engolir em seco.
Era como um fantasma — uma enorme e estreita embarcação de três mastros, com cerca de cinqüenta metros de comprimento, surgindo fantasmagoricamente por entre a cortina de chuva que havia recuado. Percebeu de imediato o que era, pois só havia um navio do tipo que navegava naquelas águas. Tratava-se da grande galé de Veneza, fazendo a sua entrada no Solent a caminho de Southampton. Eram navios magníficos, essas galés ou galeaças, como costumavam ser chamados. Tendo mudado muito pouco, desde os grandes navios dos tempos clássicos, utilizavam três velas latinas, mas conseguiam manobrar em quase qualquer água com suas três potentes fileiras de remos. Levavam cento e setenta remadores, às vezes escravos de galés, como nos tempos de Roma. Apesar de seu espaço para carga não ser enorme, o valor desta o era: canela, gengibre, noz-moscada, cravo-da-índia e outras especiarias orientais; caros perfumes como o olíbano; drogas para os boticários; sedas e cetins; tapetes e tapeçarias, móveis e artigos de vidro venezianos. Era uma casa do tesouro flutuante.
Contudo, não foi apenas a visão da galeaça fantasma que fez Seagull fixar o olhar em estado de choque. Foi a posição do navio. Pois a embarcação veneziana, bem diante da sua, estava no estreito canal que levava para fora do Solent. Soltou um grito. Como pôde ser tão estúpido. Em meio à fúria da tempestade, ele esquecera um fator crucial. A maré.
A maré vazante começara. Eles não estavam seguindo para a língua de terra e a segurança. A tempestade os empurrava direto para a corrente que em momentos os carregaria inexoravelmente através da saída, do Solent e para dentro da cólera efervescente do mar aberto.
— Remos! — berrou. — Para bombordo.
Atirou-se contra o leme. O barco jogou violentamente.
E só teve tempo de ver os dois meninos, apanhados desprevenidos, rolando pelo convés em direção à água.
Quando a noite desceu sobre Lymington, muitas pessoas já haviam secretamente perdido as esperanças.
Não que se pudesse chamar aquilo de noite: as portas e as venezianas das janelas já tinham sido fechadas há horas por causa do vento bramidor e da chuva fustigante; a única diferença era que a escuridão envolvente da tempestade ficara cada vez mais intensa, até finalmente não se conseguir ver coisa alguma. Apenas Totton, com sua ampulheta, era capaz de dizer as horas com precisão e sabia, enquanto os grãos de areia caíam, que já se haviam passado oito horas desde que seu filho desaparecera.
No início, quando o barco de Southampton chegou, as pessoas festejaram. No Angel Inn, onde se havia reunido a maioria daqueles com dinheiro arriscado na corrida, algumas pessoas tinham começado a receber as suas apostas. Mas perguntas também eram feitas. O outro barco tinha tentado a travessia? Sim. Ele saíra de Yarmouth primeiro. Que rota havia feito? Direto em frente.
"Então foram carregados para oeste", concluíra Burrard. "Terão que dar a volta remando. Não deveremos vê-los por algumas horas."
Mas por trás de sua falsa confiança podia-se detectar um indício de preocupação e notou-se que ele não fez nenhum esforço para receber qualquer uma das apostas que vencera. Totton, logo depois disso, desceu para o cais, e logo em seguida Burrard foi ter com ele. Após a saída deles, a conversa no Angel ficou menos intensa, e as piadas, menos freqüentes.
Do cais era impossível enxergar qualquer coisa além dos juncos ondulantes. Totton, após visitar a família Seagull, insistira em descer o caminho que atravessava o pântano e ir em direção à embocadura do rio, e Burrard o acompanhou. Ali fitou inutilmente durante meia hora por entre a chuva e o mar bravio, até que Burrard delicadamente lhe pediu:
Depois disso Burrard tomou algumas providências por conta própria e à noite voltou para fazer companhia ao amigo.
— Eu lhe devo a nossa aposta — disse-lhe Totton, desatento.
— Deve, sim — concordou Burrard alegremente, entendendo a carência do amigo. — Podemos deixar para amanhã.
— Preciso sair para procurá-los — declarou Totton de repente, poucos instantes depois.
— Henry, eu lhe imploro. — Burrard colocou a mão em seu ombro. — O melhor a fazer é esperar aqui. É impossível enxergar qualquer coisa lá fora. Mas quando o seu filho voltar ensopado até os ossos, depois de caminhar ao longo da metade da costa, a melhor coisa para ele será encontrar você aqui. Já providenciei quatro homens para procurar nos locais mais prováveis.
O fato de que dois deles já tinham retornado de Keyhaven e informado não haver sinal do barco de Seagull era uma informação que no momento ele não havia partilhado com Totton.
— Vamos, mande aquela sua criada bonita — era uma descrição da pobre moça que surpreenderia a maioria das pessoas — trazer uma torta e um jarro de vinho para nós. Estou faminto.
E assim, enquanto cuidava para que o amigo comesse alguma coisa, Burrard permanecia sentado no salão vazio, quase sem falar, ao passo que Totton fitava adiante, como se estivesse em transe.
Entretanto, até mesmo Burrard ficaria mais do que espantado se soubesse em que o amigo pensava.
No dia anterior à corrida Henry Totton fizera uma visita a Alan Seagull.
O marujo estava sozinho, emendando suas redes, quando viu o calmo mercador se aproximar e, para sua surpresa, parar diante dele.
— Tenho um assunto a tratar com você — começou Totton e, enquanto Seagull olhava interrogativamente para cima, ele prosseguiu: — Há muito dinheiro envolvido na corrida de amanhã.
— É o que dizem.
— Mas você não aposta.
— Não.
— É uma pessoa sensata. Mais do que eu arriscaria dizer.
Se Seagull concordou, não o deixou transparecer. Era algo inesperado para Totton admitir, mas não tão inesperado quanto o que veio a seguir.
— É? — Os olhos do marujo se apertaram. — E onde foi que ouviu isso?
— Meu filho. Ele me contou ontem à noite.
— E por quê — Seagull voltou a olhar para suas redes— ele acha isso?
— Ele não me disse.
Se era verdade, pensou Seagull, então o jovem Jonathan guardara o seu segredo bem melhor do que seu próprio filho. Mas seria verdade ou o mercador tinha vindo ameaçá-lo de algum modo?
— Creio que isso vai depender do tempo — disse ele.
— Talvez. Mas sabe — continuou Totton calmamente —, de início, o motivo pelo qual apostei contra você foi porque acreditava que não se importava em vencer.
Seguiu-se uma longa pausa.
Seagull parou de emendar a rede e olhou para os pés dele.
— Não?
— Não.
Em seguida, falando suavemente, o mercador mencionou duas "corujadas", viagens ilegais que Seagull fizera, uma para um mercador de Lymington e outra para um negociante de lã de Sarum. A primeira, cinco anos atrás; a segunda, mais recentemente. Nisso, porém, havia um dado interessante: o jovem Willie não tinha como saber sobre nenhuma das duas. Fosse como fosse que Totton tivesse conseguido a informação, não teria sido através dos meninos.
— Sabe — concluiu Totton —, quando apostei cinco libras no barco de Southampton contra Burrard, foi porque achava que, mesmo se fosse capaz de superá-lo, você não iria querer que todo mundo soubesse disso. Pelo menos as probabilidades levavam nessa direção.
Seagull refletiu. O raciocínio do mercador, claro, era perfeito. Quanto à informação que ele tinha, parecia uma perda de tempo dissimular.
— Há quanto tempo sabe disso? — perguntou simplesmente.
— Anos — respondeu Totton e fez uma pausa. — Os negócios de cada homem são de sua conta. É a minha regra.
Seagull levantou a vista e olhou o mercador com mais respeito. Para o pescador, saber quando manter a boca fechada era a maior das virtudes, assim como o era para o povo da floresta.
— Tem algum negócio para mim?
— Tenho. —Totton sorriu. — Mas não desse tipo. É sobre a corrida. Se o meu filho estiver certo, e você estiver planejando ganhar, isso altera as probabilidades. E eu estou arriscando cinco libras. — Fez uma pausa. — Ouvi falar que Albion quer apostar cinco libras na sua derrota. Por isso peço que você aceite a aposta dele. Na verdade, não estará apostando... eu providenciarei o dinheiro. E lhe pagarei uma libra, seja qual for o resultado.
— Vai apostar contra si mesmo?
— Compensar um possível prejuízo.
— Se me pagar, seja qual for o resultado, ainda perderá uma libra, não é mesmo?
— Eu fiz outras apostas. De qualquer modo, se você me ajudar, não ganho nem perco.
— Mas eu posso perder.
— Sim. Mas não posso calcular as probabilidades. Quando não posso fazer isso, não aposto.
Seagull deu uma risadinha. A frieza do mercador o divertia. E pensar que ele andara imaginando onde afogar o jovem Jonathan. Isso não apenas passou a ser algo sem sentido, como o garoto, por ter confundido os cálculos de Totton, acabou por lhe garantir mais uma libra.
— Está bem — falou. — Eu farei isso.
Agora, porém, enquanto Totton se encontrava sentado em seu salão, olhando para a frente e lembrando dessa transação, só conseguia amaldiçoar a si mesmo. Ele havia dado um jeito em sua estúpida aposta. Mas e o filho? Por que deixara que fosse com o marujo? Porque o menino o tinha magoado e ele ficou com raiva. Raiva de uma simples criança que só pensava na aventura em companhia do amigo. Ele o deixara ir; agira friamente com o filho. E provavelmente o tinha enviado para a morte.
— Não se desespere ainda, Henry. — Ouviu a voz áspera de Burrard. —Talvez eles apareçam pela manhã.
O fato de os homens enviados por Burrard não terem conseguido encontrar vestígio algum de Seagull e seu barco não era de surpreender. Na ocasião em que chegaram a Keyhaven, no final da tarde, ele se encontrava a pouco mais de quilômetro e meio de distância, na extremidade da comprida língua de terra e cascalho. Mas não fizera qualquer tentativa de alcançar Keyhaven, nem queria particularmente que alguém o visse.
Teve sorte em não perder os meninos. Tinha sido por um triz. No instante em que os viu rolando para o lado, precisou largar o leme e mergulhar na direção deles, agarrando cada qual com uma das mãos, enquanto o barco dava uma guinada. Quase caíram no mar, todos os três. "Segure-o", gritava para Willie, enquanto largava Jonathan e segurava a amurada com a mão livre; e, se Willie não tivesse grudado no amigo como se fosse um marisco, o jovem Jonathan certamente estaria perdido.
O quarto de hora seguinte tinha sido como um pesadelo. Baixaram a vela e remaram; contudo, cada vez que pareciam ter feito algum progresso a correnteza, com uma terrível lógica de sonho, carregava-os ainda mais na direção da enorme galeaça espectral, que pairava misteriosamente no ar, às vezes oculta sob o manto da tempestade e às vezes apenas vislumbrada, jamais se movendo. Finalmente, fazendo valer todo o seu vigor, os homens conseguiram, ao mesmo tempo que a maré continuava a puxá-los sem dó, tocar na ponta da língua de terra e fazer o barco dar em seco quase na própria saída do canal que corria para o mar.
Mas agora Seagull ocupava a mente com outras coisas. Colocou as mãos em concha sobre os olhos e mirou atento além da água.
A tempestade não havia amainado, mas, visto da praia, o aguaceiro se tornara uma série de cortinas de nuvens cinzentas que se precipitavam intermitentes e sem piedade. Através delas nada se podia enxergar além de cem metros; mas, nos breves intervalos entre uma e outra, Seagull conseguiu ver um jeito de penetrar no espumante canal.
Finalmente ele se virou. Os tripulantes e os meninos faziam o melhor que podiam para se abrigar da chuva a sotavento do barco, que haviam puxado para a praia.
— O que faremos agora? — quis saber um deles. — Vamos para Keyhaven?
— Não.
— Por quê?
— Por causa daquilo. — Virou-se novamente, apontou, e eles viram mais uma vez a grande silhueta da galeaça surgir tênue próximo do canal. — Ela continua parada — disse ele. — Sabe o que isso significa? — O homem confirmou com a cabeça. — Não creio que ninguém a tenha visto, além de nós — prosseguiu Seagull.
— Pode ser que ela saia dali.
— Ou não. Portanto, vamos esperar para ver. E, dito isso, voltou à sua posição para observar.
As ribanceiras de cascalho na desembocadura oeste do Solent não costumavam ser um risco. Em primeiro lugar, eram bem conhecidas. Todo piloto sabia como se aproximar delas. Em segundo, a parte do canal entre elas era funda, e era necessário apenas uma leve curva para alguém se aproximar da ponta da ilha de wight. Nas tempestades de primavera, porém, não era raro embarcações encalharem e ocorrerem naufrágios.
Com certeza, a galeaça encalhara. Com a maré refluindo, ela continuaria presa, fustigada pela tempestade. Talvez até viesse a ser virada de lado e se romper. Era difícil ter certeza, mas parecia a Seagull que a tripulação da embarcação em risco tentava libertá-la com os remos. Em um dos vislumbres que teve dela, estava visivelmente adernando. Ele não podia decidir o que fazer. Longos minutos se passaram.
Mas aí, apenas por um instante, pôde enxergá-la novamente através do véu da chuva. Já se encontrava a meia distância da ribanceira de cascalho. Algo mais, porém, acontecera. De alguma forma, ela conseguira dar uma guinada; ainda guinava, quando ele a viu. Estava transversalmente à maré, expondo toda a lateral à ira da tempestade. Emborcava. Então uma grande barragem de chuva passou rugindo e ele não conseguiu ver mais nada.
Longos minutos se passaram. Nada ainda. Nada além do bramido da tempestade. Pobres-diabos, pensou. Que tipo de esforço frenético estariam fazendo agora? A galeaça teria soçobrado? Espiou, como se os olhos pudessem perfurar a chuva.
Nesse momento, como se fosse a resposta a uma prece, a chuva abrandou. Quase parou. De repente, adiante dele, pôde ver o centro do canal onde ficavam as ribanceiras de cascalho, e mais além. Conseguia distinguir o tênue perfil dos rochedos da ilha, cerca de quilômetro e meio na direção oposta. Vasculhou com a vista as ribanceiras. A galeaça não estava lá.
Sem sequer esperar para explicar, saiu correndo pela língua de terra em direção ao mar. A cortina de chuva recuava. Quando percorreu os pouco mais de cem metros até a praia que dava vista para o canal da Mancha, logo conseguiu enxergar a ponta da ilha. E viu ali a galeaça.
Na extremidade mais ocidental da ilha de Wight, onde antigos rochedos calcários haviam desmoronado no mar muito, muito tempo atrás, ainda restavam quatro espigões de calcário, como dentes, bem próximo à branca orla do alto rochedo, como se indicassem que o espinhaço de terra não terminava de fato com a ilha, mas continuava, de algum modo, sob a água. Esses resolutos afloramentos, elevando-se por mais de quinze metros acima da água, eram conhecidos como as Needles (Agulhas). Eram de calcário, mas duras e afiadas.
A galeaça adernara terrivelmente. Um de seus mastros se quebrara e pendia para o lado. Os remos estavam voltados para cima, onde descaíam ou apontavam erráticos para o céu tempestuoso. Justamente enquanto ele olhava, ela girava impotente. Então, viu-a colidir com uma das Needles. Ela recuou e logo em seguida, como se pretendesse fazê-lo, bateu mais uma vez na rocha.
Uma reincidente cascata de chuva interrompeu a sua visão. A princípio ainda podia distinguir os rochedos mais próximos, porém em pouco tempo estes também sumiram. E, embora permanecesse ali, observando, não voltou a ver a galeaça.
A noite não foi nada confortável para Jonathan. Felizmente havia alguns cobertores estocados sob o convés. Os dois garotos pelo menos conseguiram se manter razoavelmente secos e abrigados no porão durante a noite. Os homens puxaram uma parte da vela para a lateral do barco e permaneceram debaixo dela. Alan Seagull ficou na praia. Não se importava.
Só por volta das primeiras horas da manhã a tempestade começou a enfraquecer. Assim que principiou a clarear, Alan Seagull acordou-os.
Não havia sinal da galeaça quando fizeram, remando, a volta pela língua de terra e penetraram no mar durante o amanhecer cinzento. O céu continuava nublado, a água, picada. Não demorou muito para que Seagull gritasse e apontasse alguma coisa na água. Tratava-se de um remo comprido. Minutos depois rumou o barco em direção a outra coisa. Dessa vez, uma pequena barrica. Eles a içaram para bordo.
"Canela", anunciara o marujo. E pouco depois encontraram mais. "Cravo-da-índia", dissera por sua vez Alan Seagull.
Obviamente a galé afundara; mas quanto de sua preciosa carga ficou flutuando ou foi dar à costa dependia da maneira e da gravidade com que se rompera antes de afundar. A julgar pelo número de mastaréus que avistaram, a galé praticamente se desintegrara antes de afundar.
— Meu pai conhece as correntes — explicou Willie. — Ele sabe onde encontrar as coisas.
Para surpresa de Jonathan, porém, o marujo não se demorou muito por ali; em vez disso, seguiu para a costa.
— Por que estamos indo para lá? — perguntou a Willie, que lhe deu um olhar esquisito.
— Verificar se há sobreviventes — respondeu, lacônico.
Os brancos rochedos deviam ter despedaçado qualquer homem que tivesse entrado em contato com eles durante a tempestade. A praia segura mais próxima, ainda que conseguissem encontrá-la no escuro, ficava a quase cinco quilômetros de distância, e, por mais estranho que possa parecer, poucos marinheiros sabiam nadar naquela época. Se a galé houvesse afundado no mar naquela noite, as chances eram de que sua tripulação tivesse morrido afogada. Mas nunca se sabia. Alguns podiam ter flutuado em um destroço até a costa.
Conduziram o barco por cerca de quatro quilômetros pela costa a partir da língua de terra onde havia uma pequena enseada da qual descia um riacho. Arrastando o barco até a desembocadura, onde não podia ser visto, Seagull e a tripulação se prepararam para examinar a área. As praias estavam desertas. Ao longo da costa havia na maior parte vegetação mirrada e urzes. Dando ordens para que os meninos vigiassem o barco, Seagull desapareceu com seus tripulantes.
Jonathan notou que o marujo levava uma pequena verga que carregava como se fosse um porrete.
— Aonde eles vão? — perguntou, depois que partiram.
— Percorrer o litoral. Vão vasculhar tudo.
— Você acha que há sobreviventes?
Mais uma vez Willie lhe deu aquele olhar esquisito.
— Não.
Finalmente Jonathan entendeu. A lei do mar na Inglaterra era simples, mas fria. A carga de navios naufragados pertencia a quem a encontrasse, a não ser que houvesse sobreviventes para reclamá-la. Era por isso que raramente os havia.
Os dois garotos ficaram à espera; a claridade tinha aumentado.
A essa altura Henry Totton atingia a extremidade da língua de terra na entrada do Solent e passou a espreitar o mar mais além.
Ele saiu assim que amanhecera. Após uma rápida olhada no estuário, atravessou Pennington Marshes, passando pelas salinas até Keyhaven. De lá teve uma boa visão da ilha de Wight e do contorno da costa nas proximidades. Não havia sinal de coisa alguma. Depois caminhou pela língua de terra na esperança de que talvez o barco tivesse sido empurrado para ali. Mas não havia vestígios de Seagull e de sua tripulação.
Da ponta da língua olhou para o estreito canal, depois voltou para um local de onde podia avistar as Needles e perscrutou o mar e toda a extensa linha litorânea da costa ocidental da Floresta. Como nesse momento o barco de Seagull estava escondido na pequena enseada, ele não o viu. Mas na água ali perto enxergou alguns pedaços de destroços e, sem nada saber da galé veneziana, presumiu que podiam ser do barco de Seagull e que seu filho tinha se afogado; por isso seguiu para o lado oeste da língua de terra para ver se o corpo do menino estava por la-Mas não havia corpos perto da língua, pois a correnteza levara todos os que havia para outro lugar.
Foi então que viu Burrard vindo em sua direção, e o prestimoso amigo, que estivera à sua procura logo depois da alvorada, abraçou-o e o levou para casa.
Foi uma longa e tediosa espera junto ao barco. Os meninos não ousaram arredar pé, porque SeaguU podia voltar de repente, mas os dois se revezaram para cada um deles poder caminhar pela praia a fim de ver o que conseguiam achar. A corrente já começava a trazer coisas: outro remo, alguns apetrechos, uma barrica destroçada.
E corpos.
Jonathan inspecionava os restos de um baú de marinheiro, imaginando o que teria contido, quando viu o cadáver. Estava a uns dez metros de distância, e as ondas o traziam gradualmente em sua direção. O corpo derivava de bruços na água. Ele o olhou um pouco temeroso, mas curioso.
Provavelmente teria se afastado dali, se não tivesse notado uma coisa: a túnica que o homem usava era de um rico brocado, com bordados em fio de ouro. A camisa era debruada com a mais fina renda. Tratava-se de um homem rico: um mercador ou talvez até mesmo um aristocrata que seguia no navio em sua viagem para o norte. Cautelosamente, aproximou-se dele.
Jonathan jamais tinha visto um homem afogado, mas ouvira falar de sua aparência: a pele azulada, o rosto inchado. Foi chapinhando até o cadáver ficar a seu lado. A água batia na cintura dele. Tocou no corpo. Parecia pesado, encharcado. Não olhou para a cabeça, mas tateou a cintura. O cadáver usava um cinturão. Não era feito de couro, mas trançado com fios de ouro. Seus dedos agiram em volta dele. Precisou puxar o corpo para perto de si a fim de estabilizá-lo.
De repente o braço do morto girou, flutuando com um solavanco, como se em reação tentasse agarrar o menino pela cintura. Durante um momento aterrador, Jonathan imaginou que o cadáver poderia envolver o braço nele, apertá-lo e puxá-lo para baixo da superfície, onde compartilharia sua líquida morte. Em pânico jogou-se para trás, perdeu o equilíbrio e afundou. Por um segundo, debaixo da água, teve a visão do horripilante rosto do cadáver, olhando fixamente como um peixe para o fundo.
Levantou-se, tomou coragem e prosseguiu. Empurrou com firmeza o braço do morto para longe, agarrou o cinturão, inspirou fundo e inspecionou com os dedos, sob a água, até encontrar o que procurava.
A bolsa de couro estava presa ao cinturão por correias, amarradas, porém, com um nó simples. Levou algum tempo trabalhando ao lado do cadáver, enquanto as ondas o carregavam para a praia, mas a água ainda estava pelos seus joelhos quando conseguiu soltá-la. A bolsa era pesada. Não teve problema para abri-la. Mas olhou em volta para ver se estava sendo observado. Não estava. Willie continuava ao lado do barco no riacho. As correias eram compridas o bastante para serem amarradas em volta de sua cintura, sob a roupa. E foi o que ele fez, ajeitando a camisa e a túnica ensopadas por cima da bolsa, e retornou.
— Você está todo molhado — observou Willie. — Achou alguma coisa?
— Tem um corpo ali — avisou. — Fiquei com medo de tocar nele.
— Ah — exclamou Willie e saiu correndo. Pouco depois estava de volta. — Ele foi carregado para a praia. Eu peguei isto. — Mostrou o cinturão. — Deve valer alguma coisa.
Jonathan concordou com a cabeça e nada falou.
Esperaram algum tempo até Seagull voltar. Olhou de relance para os dois, viu o cinturão, mas não fez nenhum comentário.
— Tem alguém por lá, papai? — perguntou Willie.
— Não, filho. Não tem ninguém. Creio que corpos estão começando a dar na praia. — Pensou por um momento. — Vamos tirar o barco agora. Veremos o que conseguiremos achar. Acho que ficaremos fora o dia todo. — Se houvesse alguma coisa de valor nas praias ou nas águas do canal, num raio de quilômetros, Alan Seagull certamente encontraria. —Vocês dois vão para casa. Conte para a sua mãe onde estamos — instruiu o filho. — Seu pai deve estar preocupado com você — afirmou para Jonathan. — Vá direto para casa. Está bem?
E assim, obedientes, os dois garotos foram embora. Era apenas uma caminhada de oito quilômetros, se atravessassem direto sobre Pennington Marshes. E percorreram o caminho a uma boa velocidade.
Havia uma brecha nas nuvens e uma mortiça luz solar filtrava-se sobre Lymington quando os dois meninos chegaram à High Street e passaram pela igreja em direção à casa de Totton. Perceberam que as pessoas estavam à procura deles. Uma mulher correu, segurou o braço de Jonathan e passou a agradecer a Deus por ele estar vivo, mas o garoto conseguiu se desvencilhar educadamente e, sem querer se retardar ainda mais, saiu andando apressado.
Ao chegar em casa, entrou pela porta da rua que dava para o escritório do pai
pensando em lhe fazer uma surpresa se ele estivesse em casa. Mas o aposento estava vazio, e foi para o salão com a galeria, que estava igualmente silencioso.
Logo percebeu que também não havia ninguém ali. Nenhum dos criados se encontrava por lá. A luz penetrava pela janela alta e despejava-se nos espaços claros e desabitados; parecia um pátio varrido antes de seus proprietários partirem para outro lugar. Somente quando deu alguns passos no interior do salão, percebeu que a cadeira de madeira de encosto alto, sob a galeria, estava ocupada.
Estava ligeiramente virada ao contrário de onde ele se encontrava, e por isso a primeira coisa que notou foi a orelha do pai. O mercador, porém, não o ouvira entrar. Estava sentado na posição habitual, mas, como olhava diretamente para a frente, parecia estar em transe. Sem nada dizer, o menino avançou na ponta dos pés, observando o rosto do pai.
Ele jamais demonstrara pesar. Quando a esposa morreu, acreditando que protegia o garoto, Totton ocultara a dor sob uma calma aparência exterior. Entretanto, naquele instante, pensando estar só, fitava com silencioso tormento as imagens que a mente colocava diante dele: o recém-nascido que amou, mas que deixara, como era apropriado, aos cuidados da mãe; o bebê que ele observara engatinhar, para quem só fazia planos; a criança que não sabia como consolar; o menino que queria apenas velejar para longe dele; o filho que perdera.
Jonathan nunca vira antes a angústia, mas a reconheceu.
— Papai. Totton virou-se.
— Está tudo bem. Nós nos salvamos. — O menino deu um passo à frente. — Não fomos empurrados para longe da costa. — Totton continuava olhando fixamente para ele como se estivesse vendo um fantasma. — Um navio naufragou na tempestade. Alan Seagull continua por lá.
— Jonathan?
— Eu estou perfeitamente bem, papai.
— Jonathan?
— O seu barco conseguiu chegar? O pai continuava aturdido.
— Ah. Sim.
— Então ganhou sua aposta.
— Minha aposta? — O mercador agitou-se. — Minha aposta? — Pestanejou. — Meu Deus, o que isso significa, se eu tenho você?
E Jonathan correu para ele. Então de repente Henry Totton caiu em prantos.
Passaram-se alguns minutos, enquanto permaneceu nos braços do pai, antes que Jonathan se desvencilhasse e alcançasse a bolsa em volta da cintura.
— Eu lhe trouxe uma coisa, papai — disse. — Olhe. —Abriu-a e retirou o conteúdo. Eram moedas de ouro. — Ducados — alertou.
— São sim, Jonathan.
— Sabe quanto eles valem, papai?
— Sim, eu sei.
— Eu também — E, para espanto do pai, repetiu corretamente os valores que o mercador lhe ensinara três semanas antes.
— Está absolutamente certo — confirmou Totton, maravilhado.
— Sabe, papai — o menino falou contente. — Eu me lembro de algumas coisas que você me fala.
— Os ducados são seus, Jonathan — disse, sorrindo.
— Eu peguei para você — disse o filho. Fez uma pequena pausa. — Podemos dividir?
— Por que não? — respondeu Henry Totton.
A Árvore da Armada
1587
Você pode ir comigo durante um pequeno trecho da minha viagem? No momento em que ela falou ele sentiu o coração quase parar. Tratava-se de uma ordem, é claro.
— Com prazer — mentiu, sentindo-se como um colegial.
Ele tinha quarenta anos, e ela era sua mãe.
A estrada de Sarum em direção a sudeste — na verdade, uma pista larga e gramada — progredia suave através dos amplos prados nos quais se assentava a cidade e depois se elevava lentamente em etapas para as terras mais altas. A catedral estava mais cinco quilômetros para trás quando eles começaram o demorado e arrastado caminho acima sobre a alta saliência, que era a borda sudeste da extensa bacia onde os cinco rios de Sarum se encontravam. Apesar de uma leve aspereza na brisa naquela manhã de setembro, o tempo estava excelente.
Não era um empreendimento de pouca monta quando a mãe de Albion viajava. Só depois de o noivo ter repetido por três vezes a promessa de que ela teria o melhor aposento na casa do mercador mais rico de Salisbury ela havia concordado em participar das festividades do casamento sem levar sua própria mobília. Mesmo assim, além da carruagem em que viajava, com cocheiro, cavalariço e batedor, vinha uma carroça atrás, rangendo sob o peso de dois criados, duas arrumadeiras e uma tal quantidade prodigiosa de arcas contendo os seus vestidos e uma formidável coleção de artigos de toucador — o cocheiro jurava que uma das arcas também continha um padre católico romano —, que se devia agradecer a Deus pelo clima de outono continuar seco; caso contrário, com toda a certeza, ficariam atolados na lama. Mas a mãe tinha uma concepção inabalável de como as coisas deviam ser feitas e, refletia Albion um pouco tristemente enquanto cavalgava ao lado da carruagem, ela não se impunha limites. Por isso, pelo menos os cavalos ficaram contentes quando, ao chegarem ao cume, a dama anunciou abruptamente uma parada e ordenou que lhe trouxessem a liteira.
O cavalariço e os criados a encaixaram silenciosamente, enfiaram os varais e a levaram até a porta da carruagem. Quando a mãe desembarcou, Albion observou que ela já usava tamancos nos pés para protegê-los da lama. Portanto, havia planejado aquela escala. Ele devia ter adivinhado. Em seguida ela apontou para a trilha ao longo do cocuruto. Evidentemente desejava subir até lá e esperava que ele a acompanhasse. Desmontando, foi caminhando atrás dos quatro homens que carregavam a liteira e, assim, como uma curiosa procissão silhuetada contra o céu, seguiram pela borda calcária, ao mesmo tempo que nuvens brancas corriam acima.
No ponto mais alto ordenou que baixassem a liteira e desceu. Os homens foram avisados para que esperassem à distância. Em seguida dirigiu-se ao filho e acenou.
— Agora, Clement — disse ela (o nome dele fora uma escolha particular dela, não do pai) —, quero conversar com você.
— Com prazer, mamãe — respondeu.
Pelo menos ela escolhera um excelente local para aquilo. Avista do cume abaixo de Sarum era uma das melhores do sul da Inglaterra. Olhando para trás, em direção ao caminho pelo qual tinham vindo, o longo declive surgia agora como uma bela curva descendente para a exuberante bacia verde, e a seis quilômetros e meio dali a catedral de Salisbury elevava-se do solo do vale do Avon como um cisne cinzento, a graciosa agulha de sua torre elevando-se tão alto que se poderia supor que os picos que a circundavam tinham sido modelados por ela, como argila em um torno manejado por uma antiga entidade. Para o norte ficava a protuberância do outeiro do castelo de Old Sarum e o mar de espinhaços calcários mais além. A leste, a fértil e ondulada região campestre de Wessex serpeava a distância.
Mas era virando-se para o sul, na direção de sua jornada, que se via a curva mais longa de todas. Pois ali, declinando gradualmente, quilômetro após quilômetro, ficava toda a vasta extensão de New Forest — bosques selvagens de carvalho, morros de cascalho, extensas charnecas de tojos e urzes, o caminho todo para Southampton e as brumosas elevações azuis da ilha de Wight, perfeitamente visíveis no mar, a trinta e dois quilômetros de distância.
Clement Albion postou-se ao lado da mãe, sobre o cume desprovido de vegetação, e ficou imaginando o que ela desejava.
Suas primeiras palavras não foram nada animadoras.
— Não devemos temer a morte, Clement. — Sorriu para ele de forma amistosa. — Eu nunca tive medo de morrer.
Lady Albion — embora o marido não fosse um fidalgo, ela sempre fora chamada assim — era uma mulher alta e magra. O rosto estava empoado de branco; os lábios, graciosos como Deus os fizera, eram vermelhos. Os olhos, negros e trágicos desde que não estivesse aborrecida, quando então se tornavam diamantinos. Os dentes eram muito bons — pois detestava todas as coisas doces —, compridos e da cor de marfim envelhecido.
Para um observador casual, podia parecer que ela continuava a se vestir à maneira da época de sua plenitude, pois, sem freqüentar a corte ou ir a Londres, e sem dúvida orgulhosa da elegância de seus melhores anos, deixara-se ficar silenciosamente, como costumam fazer as senhoras mais idosas, uma década ou duas para trás. Em vez do enorme rufo que estava na moda, continuava a usar a simples gola alta aberta; seu comprido e pesado vestido tinha grandes tufos com ranhuras nos ombros e os braços eram envolvidos por mangas justas de tempos atrás. Usava uma anágua ricamente bordada. Na cabeça costumava levar um espesso véu preso por uma touca de linho; mas naquele dia, para a viagem, colocara um vistoso gorro masculino com uma pena. De uma corrente em volta da cintura pendia um regalo revestido de pele. Para um observador casual, podia parecer um quadro de um encanto datado. Mas seu filho não se iludia. Sabia muito bem do que se tratava.
As roupas dela eram todas pretas; gorro preto, vestido preto, anágua preta. Vestia-se desse modo desde a morte da rainha Maria Tudor, trinta anos antes; não havia, segundo ela, qualquer motivo para aliviar o luto. Contudo, o que tornava o traje realmente surpreendente era o fato de que o bordado da anágua e toda a parte interna do seu alto colarinho engomado eram de um encarnado vivo: vermelho como o sangue dos mártires. Já fazia meio ano que adornava o seu preto de viúva com encarnado. Tratava-se de um símbolo ambulante.
— Por que fala em morte, mamãe? — perguntou ele, olhando para ela com cautela. — Espero que esteja gozando de boa saúde.
— E estou, pela graça de Deus. Mas eu me referia à sua.
— À minha? Estou bem, creio.
— Pode ser que adiante de você, Clement, resida a glória terrena. Rezo para que assim seja. Mas, em caso contrário, devemos também nos regozijar por carregar a coroa do mártir.
— Nada fiz, mamãe, para me levar a ser martirizado — retrucou, intranqüilo.
— Eu sei. — Sorriu para ele quase divertida. — Por isso eu o fiz por você.
Ao terminar a Guerra das Rosas, um século antes, com um derramamento final de sangue real, a nova dinastia Tudor se apossou da coroa da Inglaterra. Descendentes apenas de um obscuro ramo dos Plantagenetas reais, e pelo lado feminino, os Tudor ficaram ansiosos por provar o seu direito de governar e com isso em mente tornaram-se os mais devotos partidários da Santa Igreja romana. Mas quando o segundo Tudor precisou da anulação de um casamento para conseguir um herdeiro masculino e garantir a dinastia, a política elevou-se acima da religião.
E depois que o rei Henrique VIII da Inglaterra rompeu com o papa, divorciou-se de sua esposa real espanhola e se declarou chefe supremo da Igreja anglicana, passou a agir com aterradora crueldade. Sir Thomas More, o santificado velho cardeal Fisher, os corajosos monges da ordem cartuxa de Londres e muitos outros sofreram o martírio. A maioria dos súditos de Henrique ficou intimidada ou indiferente. Mas nem todos. No norte da Inglaterra uma grande insurreição católica — Peregrinação da Graça — fez inclusive o rei tremer antes de ser contida. O povo inglês, principalmente o da zona rural, de forma nenhuma aceitava o rompimento com a antiga condição religiosa.
Enquanto o rei Henrique viveu, porém, os bons católicos ainda continuavam tendo esperanças de que a verdadeira Igreja católica pudesse ser restaurada. Outros governantes talvez se impressionassem com as doutrinas de Martinho Lutero e a nova geração de líderes protestantes que abalavam toda a Europa com seu clamor por mudanças. Mas Henrique da Inglaterra certamente acreditava ser um bom católico. Era verdade que negara a autoridade do papa; era verdade que havia fechado todos os mosteiros e roubado suas vastas terras. Mas diante de tudo isso ele alegava que estava simplesmente corrigindo os abusos papais; e enquanto viveu seguiu executando protestantes importunos.
Somente depois que o pobre e enfermo rei-menino Eduardo VI e seus guardiães protestantes assumiram o poder é que a nova religião protestante foi imposta à Inglaterra. A missa tornou-se proscrita e as igrejas foram desnudadas de seus ornamentos papistas. Os protestantes — na maioria mercadores e artesãos das cidades — podem ter gostado, mas a gente honesta e católica do campo ficou horrorizada.
A esperança retornou aos católicos leais quando, após seis anos de protestantismo imposto, o rei-menino morreu e a filha de Henrique, Maria, subiu ao trono: filha da resignada princesa espanhola — a quem, até mesmo os protestantes ingleses concordavam, Henrique tratara de modo vergonhoso ao se divorciar dela —, Maria desejou ardentemente devolver a verdadeira crença da mãe ao seu então novo herético reino-ilha e, se tivesse tido tempo, talvez conseguisse.
O problema era que os ingleses não gostavam dela. Era uma mulher triste-Profundamente marcada pelo tratamento que o pai dera à sua mãe, apaixonada pela crença dela, tudo que desejava era um bom marido católico e a bênção de filhos. Mas não tinha encantos; era ditatorial; não era o pai dela. Quando resolveu se casar com o mais católico rei da poderosa Espanha — que certamente iria colocar os ingleses sob o jugo espanhol — e o Parlamento protestou, ela disse que não era de sua conta. Em seguida, é claro, mandou queimar várias centenas de protestantes ingleses.
Pelos padrões da época, mandar queimar gente não era tão terrível assim. Durante a baixa Idade Média, embora não se conheçam ainda documentos que o comprovem, a comunidade cristã desenvolvera um extraordinário apetite para queimar seres humanos vivos, e essa moda perdurou durante vários séculos. Nem parecia, na Inglaterra, fazer muita diferença de que lado você estivesse da doutrina divisória. Católicos queimavam protestantes e protestantes queimavam católicos. O bispo protestante Latimer presidiu pessoalmente o que só pode ser descrito como um sádico ritual de assassinato de um idoso padre católico — uma morte na fogueira executada de modo tão revoltante que até mesmo a multidão que tinha ido assistir rompeu a estacada e interveio. Depois, sob o reinado de Maria, foi a vez de Latimer ser queimado, mas com menos sadismo e conseguindo a reputação de um mártir de sua crença.
Mas houve outros — cidadãos comuns, isentos de conivência política, humildes tementes a Deus — que foram queimados; e houve muitos deles. Logo os ingleses passaram a chamar sua rainha de "Bloody Mary" (Maria Sangüinária).
O rei da Espanha veio e se foi, e nada de filhos; as execuções nas fogueiras continuaram. Então Maria resolveu travar uma guerrinha e perdeu Calais, a última possessão inglesa na França. E quando a pobre mulher morreu, após cinco anos miseráveis no trono, os ingleses se fartaram dela e deram as boas-vindas à bondosa rainha Elizabeth.
Clement Albion fitou a mãe horrorizado.
Estaria enganando a si mesma ou era realmente destemida? Talvez ela mesma não soubesse. De uma coisa ele tinha certeza: a mãe tinha tramado tão firmemente o papel que desempenhava, e durante tanto tempo, que se tornara tão sólida quanto o brocado de seu vestido.
O velho rei Henrique ainda vivia quando ela se casou com Albion. Era uma Pitt — uma notável família da área rural de Southampton, como Hampshire era freqüentemente chamada — e, graças a um primo, merecedora de uma grande herança. Era um casamento que parecia prometer um grande progresso para Albion. Tampouco, a princípio, parecera uma dificuldade o fato de, como toda a família Pitt, ela ser uma devota.
A crise do reinado de Henrique VIII provocou uma grande comoção na área rural de Southampton. O bispo Gardiner de Winchester, em cuja diocese ficava a região, era um católico leal difícil de ser convencido a reconhecer a supremacia de Henrique sobre a Igreja católica. E quase foi executado, como Fisher e More. Depois que Henrique fechou os mosteiros, imensas áreas de terras do país trocaram de mãos. Em New Forest, particularmente, o grande mosteiro de Beaulieu, as terras do convento de Christchurch a sudoeste, a menor casa de Breamore no vale do Avon e a grande abadia de Romsey logo acima da Floresta — tudo foi roubado, seus prédios despojados e deixados a se desfazer em ruínas. Para uma família como a Pitt, era realmente algo terrível.
Mas os anos de protestantismo do rei-menino que se seguiram foram quase além do que se conseguia suportar. O bispo Gardiner foi levado para a prisão de Fleet — uma cadeia pública de Londres — e depois para a Torre, antes de ter sido deixado em prisão domiciliar. Para o seu lugar, o conselho protestante do rei mandou como bispo um homem que fora casado três vezes, mantinha duas dioceses ao mesmo tempo e que de bom grado vendera parte dos bens de Winchester para compensar a família do duque de Somerset, que o indicara. "Vejam só", comentou um Pitt com sarcasmo, "como esses protestantes purificam a Igreja." E realmente, durante os anos do rei-menino que se seguiram, a diocese de Winchester foi perfeita e totalmente purificada. As igrejas de Hampshire e a ilha de Wight tinham sido particularmente bem fornidas. Mas, com o seu irrefreável regozijo, os reformadores protestantes se abateram sobre elas. Baixelas e castiçais de prata, vestes, tapeçarias, até mesmo sinos foram tirados. Uma parte desse imenso despojo simplesmente desapareceu, foi roubada. Outra foi vendida, embora nem sempre fosse fácil se saber por quem. E desse modo a Igreja Anglicana foi libertada do papado.
Clement não se recordava da mãe durante esses anos. Ele nascera no início do reinado do rei-menino, mas ainda não tinha três anos quando ela partiu. Ele só conseguia adivinhar as tensões que esses acontecimentos provocaram no casamento dos seus pais, mas aparentemente foi a compra de uma propriedade que pertencera à abadia de Beaulieu que levou a mãe devota a concluir que não mais podia habitar a casa do marido. Voltou para a família dela, do outro lado de Winchester. O pai sempre lhe dissera que havia se recusado a deixá-la levar o filho consigo, e Clement acreditou que tivesse sido assim.
Com a subida ao trono da rainha Maria e a volta do bispo Gardiner à diocese, sua mãe também retornou ao lar conjugal, e foi então que Clement a conheceu-Era uma mulher de uma beleza impressionante. Sentira tanto orgulho dela. E de fato aqueles lhe pareciam ter sido dias felizes. Nunca esqueceria as magníficas indumentárias dos pais na ocasião em que lhe foi permitido acompanhá-los a Southampton para recepcionar o rei da Espanha, quando ele desembarcou ali para se casar com Maria Tudor. A fé inabalável da mãe era bastante conhecida, e ela e o marido foram muito bem recebidos na corte real.
Houve até mesmo o nascimento de uma criança, Catherine, a irmã de Clement. Uma menina muito bonita. Ele a empurrava para todo canto em um carrinho, e ela o adorava. Mas a rainha Maria morreu e Elizabeth subiu ao trono; não demorou muito, e a mãe se foi novamente, levando a filha consigo.
O pai nunca lhe disse por que a mãe fora embora; nem a mãe, quando voltaram a se encontrar, jamais lhe falou muita coisa a respeito. Mas ele achava que podia imaginar.
A Filha da Prostituta. Era desse modo que a mãe sempre se referia à rainha. Para os bons católicos, é claro, a esposa espanhola do rei Henrique tinha sido a sua única mulher até ela morrer. O conto do divórcio e do novo casamento sancionado pela pretensa Igreja anglicana de Henrique nada mais era do que uma farsa. Portanto, Ana Bolena nunca fora casada com ele, e Elizabeth, a filha dela, era uma bastarda. Nem, para a mãe de Clement, a Igreja da rainha Elizabeth podia ter algum interesse. A Igreja que Elizabeth e seu conselheiro Cecil tentaram criar era uma condescendência. A rainha não reivindicava ser a chefe espiritual dela, mas apenas sua regente. Sua doutrina era uma espécie de catolicismo reformista e, em relação à incômoda questão da missa — se ocorreu ou não um milagre e se o pão e o vinho da Eucaristia se tornaram realmente o corpo e o sangue de Cristo —, a Igreja Anglicana manteve uma fórmula cuja ambigüidade pouco faltou para ser genial.
O que era, porém, ambigüidade para ela? Lady Albion sabia que estava certa. E esse, Clement supôs, foi o motivo de sua partida. O pai era bondoso e, a seu modo, devoto. Mas a família Albion vinha fazendo concessões desde os tempos de Cola, o Caçador, quinhentos anos atrás, e a mãe de Clement desprezava condescendência. Também desprezava o marido e por isso o deixou. Talvez, pensou Clement, o pai tenha ficado aliviado por vê-la ir embora.
A habilidosa condescendência da rainha Elizabeth não fora suficiente para preservar a paz do reino-ilha. As extraordinárias forças religiosas desencadeadas pela Reforma já tinham dividido a Europa em dois grupos armados que iriam à guerra um contra o outro, por mais de um século, à custa de enormes quantidades de vidas humanas. Para qualquer lado que a rainha da Inglaterra se virasse, via-se cercada de perigo. Deplorou os excessos da Inquisição católica. Compartilhou o horror de seus súditos puritanos, quando, em uma terrível noite do dia de São Bartolomeu, os católicos conservadores da França massacraram milhares de pacíficos protestantes. Mesmo assim, não podia sancionar o crescente Partido Puritano na Inglaterra, que desejava, por intermédio de um Parlamento cada vez mais radical, acabar com a sua Igreja condescendente e mandar na própria rainha. Ainda que a sua inclinação natural fosse em direção ao mundo ordenado oferecido pelo catolicismo tradicional, isso também não lhe faria nenhum bem. Assim, como não podia entregar o seu país a Roma, o papa não apenas a excomungou, como ainda liberou todos os católicos de vassalagem à rainha herética. Elizabeth não podia tolerar isso: a Igreja romana foi banida de seu reino.
Os católicos ingleses não se sublevaram, mas tomaram todas as medidas possíveis para preservar sua religião. E poucos lugares do sul da Inglaterra continham mais católicos leais do que a diocese de Winchester. Mesmo no início do reinado, trinta padres preferiram renunciar a tolerar a Igreja de condescendência. Muita gente das classes mais altas, como a pequena nobreza e os mercadores, foi repreendida por manter abertamente a sua crença católica. Uma das mulheres da família Pitt foi mandada para a prisão de Clink pelo bispo, por desafiá-lo, e o secretário da rainha, o próprio Cecil, mandou um aviso para que Albion mantivesse sua mulher calada.
"Eu não posso controlá-la; ela não mora na minha casa", mandara dizer de volta Albion. "Se bem que eu não conseguiria conter mesmo a língua de sua mãe", confessara particularmente Clement, "mesmo se ela morasse comigo." O pai morreu não muito tempo depois, e aparentemente, desde então, as autoridades resolveram ignorar lady Albion.
Mas Clement sempre vivia apreensivo. Tinha uma forte desconfiança de que ela abrigava padres católicos. A ilha de Wight e as enseadas do trecho de Southampton na costa meridional eram locais naturais para desembarque de padres romanos, e a pequena nobreza católica, os "recusantes", como já eram chamados, se dispunha a lhes dar abrigo. Esses padres viviam em total ilegalidade; nada menos do que quatro tinham sido descobertos recentemente na diocese de Winchester e levados embora para serem queimados. A qualquer momento Clement esperava tomar conhecimento de que a mãe tinha sido presa por abrigar padres. Ela sequer se dava ao trabalho da cautela. O encarnado que usava, achava ele, era um caso típico nesse aspecto.
Vinte anos antes a católica Maria Stuart, a rainha da Escócia, fora destronada pelos presbiterianos escoceses, e ela logo se tornou o ponto central de cada trama católica para libertá-la e depor a sua prima inglesa herética. Mantida sob prisão domiciliar, a obstinada exilada tramou sem cessar, até que finalmente, no início de 1587, Elizabeth foi praticamente forçada pelo seu próprio conselho a executá-la.
— É uma mártir católica— declarou de imediato lady Albion e uma semana depois foi visitar o filho usando o encarnado do mártir para todos verem.
— Mas a senhora precisa desafiar abertamente o conselho da rainha e o bispo? — perguntou-lhe num tom queixoso.
— Sim — respondeu laconicamente. — Nós precisamos.
Nós. Esse é que era o problema. Toda vez que a mãe lhe falava da necessidade de atos perigosos sempre falava em "nós" — para deixar que ele percebesse que, na idéia dela, ele estava infalivelmente incluído.
Dez anos atrás a mãe se apossara da imensa herança do primo. Tornou-se então uma mulher muito rica, livre para deixar sua fortuna onde e como lhe aprouvesse. Ela nunca falou nisso. Nem ele. A idéia de que pudesse ser leal à causa sagrada da mãe, a fim de herdar o dinheiro dela, era impensável, do mesmo modo como ele não veria umpenny da herança se não o fosse. A única leve insinuação que lhe fora feita foi, certa vez, quando ele se referiu ao estado de pobreza do pai antes de sua morte, e ela observara: "Não pude ajudar seu pai, Clement. Ele era um galho quebrado." E nessas palavras ele pensou ter ouvido, como um leve estalo, a sentença de pobreza para aqueles que a decepcionavam.
Era, portanto, "nós". O fato de que ela ainda teria que lhe dar alguma coisa, que ele tinha mulher e três filhos e que, se descontentasse o conselho da rainha, podia contar com a perda de vários cargos na Floresta que lhe forneciam a sua modesta renda — todas essas considerações, é claro, nada significariam se levasse em conta a boa opinião dela e ambos permanecessem diante do Deus superior
— O que deseja de mim, mamãe? — conseguiu enfim expressar.
— Dizer umas palavrinhas. Não podia ter feito isso no casamento. — Os festejos em Salisbury tinham sido um grande acontecimento: uma das primas dela se casara com um membro proeminente de uma família de Sarum. Falar sem o risco de ser ouvida teria sido difícil. — Eu recebi uma carta, Clement. — Fez uma pausa, olhando-o com solenidade. Ele imaginou intranqüilo o que viria a seguir. — De sua irmã. Da Espanha.
Espanha. Por que a mãe insistira em casar a irmã dele com um espanhol? Realmente, uma pergunta tola. Os próprios franceses, aos olhos dela, não eram totalmente confiáveis, em matéria de religião, comparados aos espanhóis. Na época do reinado de Maria Tudor, quando o rei Filipe da Espanha e seus cortesãos estiveram na Inglaterra, ela não perdera tempo para fazer amizade entre a nobreza espanhola. Catherine atingiu a idade de quatorze anos, a mãe alugou um navio mercante em
outhampton e partiu sem mais nem menos para a Espanha. Uma vez lá, o negócio todo fora ajeitado num instante. Com a promessa, sem dúvida, de um generoso dote, Catherine ficou noiva de um espanhol empobrecido, mas de família impecável — era até aparentado, longe, do poderoso duque de Medina-Sidônia.
Ele não a vira desde então. Era feliz? Esperava que sim. Tentou visualizá-la. Ela tinha os cabelos claros como o pai, mas era morena como a mãe. Por aquela ocasião, já devia ter-se tornado uma perfeita dama espanhola. Em todo caso, pensou tristonho, não se podia ter certeza da opinião dela sobre a atual crise.
Quando o rei Filipe da Espanha se casou com a católica Maria Tudor, naturalmente supôs que estaria anexando a Inglaterra aos vastos domínios dos Habsburgo. Decepcionou-se, depois que ela morreu, quando o conselho inglês, educada mas firmemente, informou-lhe que era indesejável. Não que se culpasse a sua falta de insistência: por várias vezes ofereceu-se para se casar com Elizabeth, que durante anos o ficou cozinhando. Mas o rei da Espanha não era de perder tempo. Não foi apenas essa rainha inglesa que o rejeitou; ele se tornou amigo e tentou se unir por casamento com os rivais dela, os franceses. Os corsários da rainha — na verdade, piratas legalizados — saquearam as suas embarcações e ela ajudou os protestantes que se rebelaram contra o domínio espanhol nos Países Baixos. Elizabeth revelou-se uma herética, e o papa quis sua deposição. Quando, no início de 1587, ela mandou executar a católica Maria, rainha da Escócia, deu o pretexto derradeiro de que Filipe precisava. Com a bênção do papa, preparou uma enorme esquadra.
O ataque espanhol à Inglaterra teria ocorrido no verão daquele mesmo ano, se o mais destemido dos corsários, sir Francis Drake, não tivesse enviado brulotes para Cádiz e incendiado metade da frota espanhola. No final do verão, enquanto Clement e a mãe compareciam ao casamento de um membro da família em Salisbury, embora o perigo parecesse ter passado naquele ano, poucas pessoas imaginavam que Filipe da Espanha desistira. Certamente tentaria novamente. Fazia parte de sua natureza.
— Em breve seremos libertados, Clement. — No que dizia respeito à mãe dele, eles seriam "libertados" e não "invadidos".
— A senhora tem notícias seguras?
— Dom Diego — era esse o nome do marido de Catherine — foi promovido. Será um importante capitão do exército que virá. — Sorriu satisfeita. — Ele virá, Clement, com a bandeira da verdadeira Igreja. Então a fé ressurgirá na Inglaterra.
Ele não tinha dúvidas de que ela acreditava naquilo. Enormemente incentivado por gente como lady Albion, o embaixador espanhol havia garantido ao seu senhor real que pelo menos vinte e cinco por cento dos ingleses contidos pelas armas se congregariam para se unir ao exército católico assim que ele pisasse em solo inglês. Teria de ser assim. Não era a vontade de Deus? E a própria rainha Elizabeth, não importava o que ela dissesse, de modo algum confiava na lealdade de seus súditos católicos. O fato da possibilidade de algumas das defesas do litoral sul estarem nas mãos de simpatizantes dos católicos já havia causado algum sobressalto no seu leal secretário Cecil.
No entanto, eles se sublevariam? A estimativa do próprio Albion era diferente. Os católicos ingleses podiam não gostar muito da rainha Elizabeth, mas já viviam há trinta anos sob o seu domínio. Poucos deles queriam ser súditos da Espanha.
— Os católicos ingleses anseiam pela volta da religião deles, mamãe — falou. — Mas poucos desejam ser traidores.
— Traidores? Não podemos ser traidores, se servimos ao verdadeiro Deus. Eles têm é medo.
— É indiscutível.
— Portanto, têm que ser encorajados. Precisam ser comandados. Ele nada disse.
— Você comanda parte das milícias da Floresta, Clement. Não é mesmo? — Por toda a região litorânea do sul tropas de voluntários tinham sido formadas em cada paróquia, uma força local para resistir aos espanhóis se eles desembarcassem. — E o ponto de encontro da tropa da Floresta é perto da fortaleza do litoral?
— É. — Ele ficara bastante orgulhoso de seu trabalho junto às milícias naquela primavera, embora elas estivessem pessimamente armadas.
— Mas de jeito nenhum, é claro, você se oporá aos espanhóis quando eles desembarcarem.
— Eu? — Fitou-a. Será que ela estava pensando que ia agir como um traidor, que se juntaria à Espanha por causa da fé?
Mas então ela sorriu.
— Clement, tenho notícias que lhe darão alegria. Tenho uma carta para você. — Enfiou a mão no vestido negro e de algum recesso secreto retirou um pequeno rolo de pergaminho que lhe entregou com um silencioso triunfo. — É uma carta, Clement... uma autorização... do seu cunhado Dom Diego. Ele lhe dá instruções. Haverá mais na primavera. Eles virão, sem falta, no próximo verão. A vontade de Deus será feita.
Apanhou aturdido a carta da mão dela.
— Como a obteve? — perguntou, com a voz rouca.
— Através da sua irmã, é claro. Há um mercador que me traz as cartas dela. E outras coisas.
— Mas mamãe. Se isso for descoberto... Cecil e o conselho têm espiões... — E muito bons; isso era bem sabido. — Uma carta como esta... —A voz definhou. Uma carta como aquela, se interceptada, significava a morte.
Ela o observou em silêncio por um ou dois instantes, mas quando falou sua voz era surpreendentemente suave.
— Mesmo o mais fiel pode ter medo — disse ela baixinho. — É desse modo que Deus nos testa. Mas — continuou — é o temor a Deus que nos dá coragem. Como sabe, Clement, não podemos escapar a Ele. Ele está em toda parte. Ele tudo sabe e tudo julga. Não temos alternativa, a não ser obedecer-Lhe, se acreditamos. Por isso é apenas a falta de fé que nos detém, que nos impede de correr para Seus braços.
— Ter fé nem sempre é fácil, mamãe, mesmo para os fiéis.
— E é por isso, Clement — prosseguiu, convicta —, que Ele nos envia sinais. O Nosso Abençoado Senhor realiza milagres; as relíquias dos santos ainda hoje provocam prodígios. Ora, aqui para a Floresta Deus não envia um maravilhoso milagre todos os anos?
— Está se referindo aos carvalhos?
— Claro, a que mais?
Era notório, há várias gerações, que havia três árvores mágicas, ou milagrosas, em New Forest. Todas se encontravam na área ao norte de Lyndhurst; todas as três antigas. E, ao contrário de qualquer outro carvalho na Floresta, ou em qualquer outro lugar da cristandade, pelo que constava a Clement, das três brotavam folhas verdes durante uma misteriosa semana no meio do inverno, por ocasião das festas de Natal, quando tudo o mais se encontrava sem vegetação. Eram chamados de Os Carvalhos Verdes do Natal ou Árvores Verdes.
Ninguém sabia como e por quê isso acontecia. Abrir-se em folhagens naquela estação ia contra toda a natureza. Não admirava, portanto, para a devota lady Albion e muitos iguais a ela, que esse lembrete da crucificação de Nosso Senhor, ou das três cruzes do Calvário e da ressurreição dos mortos, fosse visto como um sinal de que a mensagem divina está em toda a parte e que a Santa Igreja enviava novos brotos em qualquer estação do ano.
— Oh, Clement. — De repente seus olhos passaram a ficar imprecisos. — Os sinais de Deus estão por toda parte. Não há nada a temer. — Olhava para ele com profunda emoção. Era o mais próximo do afeto maternal que ele conseguia se lembrar de jamais ter visto. — Quando nos livrarmos da heresia e o rei Filipe reinar, isso somente levará à sua glória. — Sorriu ternamente — Mas... algo para mim impensável... se for a vontade de Deus que ocorra o contrário, prefiro ver você, meu caro filho, subir num cadafalso, ou mesmo ter arrancado membro por membro, a renegar o seu Deus, o seu Rei Celeste.
Ele sabia que ela falava sério, cada palavra.
— A senhora sabe quais são as minhas instruções?
— Comandar a sua tropa, Clement, silenciar a fortaleza do litoral e ajudar os espanhóis a desembarcarem.
— Onde?
— Entre Southampton e Lymington. Não será fácil defender o litoral da Floresta.
— Espera que eu responda a esta carta?
— Não há necessidade — disparou. —Já está feito. Enviei uma carta para a sua irmã, e Dom Diego a entregará pessoalmente ao rei da Espanha. Disse-lhe que podemos confiar em você. Até a morte.
Ele fitou o lado sul, além da Floresta, na direção de Southampton e a distante névoa azul perto do litoral. A carta dela já estaria nas mãos dos espiões de Cecil? Ele viveria até o Natal?
— Obrigado, mamãe — murmurou laconicamente.
Mas a mãe não o escutou. Pois já acenava para os criados trazerem a liteira.
O carvalho ficava um pouco afastado da mata.
A tarde era cálida.
Na mata, faias imponentes e acetinadas elevavam-se nas alturas para partilhar o dossel com os nodosos carvalhos. O chão era musgoso. Tudo estava em silêncio, exceto pelo farfalhar das folhas e do leve ruído de pipocar, quando, de vez em quando, uma abelota verde caía no solo.
Atrás da árvore, em um leve declive pontilhado de carvalhos jovens, ficava uma clareira abaixo da qual as sombras avançavam furtivas ao pôr-do-sol.
Albion estava sozinho ao cavalgar em direção à árvore.
Carvalho: gênero Quercus, sagrado desde a Antigüidade. Existem quinhentas espécies dessa árvore sobre o planeta, mas a ilha da Bretanha, desde o final da Era Glacial, continha principalmente duas: quercus robur, o carvalho comum ou pedunculado, cujas abelotas crescem em pequenos caules, e quercus petraea, o carvalho séssil, que tem folhas com menos lóbulos e cujas abelotas crescem lado a lado com a folha. Os dois tipos crescem no solo arenoso de New Forest. O carvalho comum produz mais abelotas.
Albion fitou a árvore com prazer. Ele tinha um interesse particular em árvores.
New Forest e sua administração não haviam mudado muito nos últimos quatrocentos anos. O veado real ainda era protegido; o mês do resguardo no meio do verão continuava sendo observado; os couteiros ainda controlavam as cortes, e os florestais, os seus bailiados. De quando em vez também inspetores fidalgos — cavaleiros do condado ou não — fiscalizavam as fronteiras da Floresta, embora, através das gerações, um contínuo fluxo de pequenas concessões de terra a particulares houvesse tornado essa tarefa mais complexa do que o fora em tempos passados. Mas uma mudança vinha ocorrendo. Era sutil, às vezes vaga, porém cada vez mais presente.
Ninguém sabia dizer quando começou exatamente, mas há séculos vinha acontecendo um uso informal das árvores da Floresta. A colheita feita no mato era importante: vigas, varas, galhos para trançados de cercas, galharia quebrada, combustível para fogueiras e carvão. As árvores supriam muitas das necessidades humanas. A maioria desse suprimento vinha das árvores menores e dos arbustos, como a aveleira e o azevinho. Para se obter vigas retas de uma aveleira, por exemplo, ela era cortada logo acima do solo, dando origem a múltiplas brotações, cujos frutos podiam ser colhidos com intervalos de poucos anos. Esse processo era conhecido como coppicing (roçar). Mais raramente, com os carvalhos, ocorria um corte semelhante, cerca de dois metros acima, levando ao surgimento de uma enorme quantidade de brotos. Isso era chamado depollarding (podar), e a árvore resultante, com seu tronco atar-racado e leque de galhos, era conhecida como um carvalho podado.
O único problema com o roçado era que, depois de cortados os galhos das árvores mais baixas, os veados e outros animais da floresta vinham e comiam todos os novos brotos, aniquilando todo o processo. Por isso a prática desenvolveu-se em pequenas áreas cercadas, limitadas por muros baixos de terra ou cerca, para manter os animais afastados durante mais ou menos três anos, até os novos brotos ficarem robustos demais para serem comidos. Esses cercados eram conhecidos como coppices (roçados).
Um século mais cedo, pouco antes de os Tudor subirem ao trono inglês, um decreto do Parlamento finalmente tinha regulamentado os roçados. As áreas podiam ser delimitadas, sob licença, e cercadas durante três anos para permitir a regeneração. Desde então esse período fora estendido para generosos nove anos. Esses roçados tinham grande valor e eram alugados.
Mas, fora essa atividade, havia a questão da madeira — de árvores inteiras caídas, para a construção de grandes edificações, navios ou outras atividades do rei. Nas eras passadas houvera muito pouca necessidade da madeira de New Forest, embora de vez em quando árvores imensas pudessem ser fornecidas para catedrais ou outros grandes projetos. Mas enquanto a atividade da construção se ampliava lentamente no período Tudor, o tesouro real passou a observar com mais cuidado para ver que tipo de renda podia advir de sua madeira. Em 1540 o rei Henrique VIII designara um inspetor-geral para fiscalizar a renda, inclusive a da madeira, de todas as florestas reais, com administradores florestais para cada condado onde houvesse um bosque real. New Forest não era apenas, no presente, uma reserva de veados reais; muito gradualmente foi sendo incutida uma mentalidade pelos caminhos da floresta de que ela também podia ser um imenso depósito de árvores reais.
Poucos anos antes Albion conseguira ser nomeado tutor florestal de New Forest. Isso lhe propiciou alguma renda extra; e também fez com que aprendesse muito mais do que jamais soubera a respeito de árvores. Passou inclusive a se interessar bastante pelo assunto, para o próprio bem delas. Por isso olhou com aprovação e mesmo com admiração para o velho e imponente carvalho.
Tratava-se de um carvalho enorme e esparramado, mas sua dispersão surgira naturalmente, não através da poda. Também era famoso. O primeiro motivo para a sua fama era que, situado mais ou menos a cinco quilômetros de Lyndhurst, se tratava de uma das três curiosas árvores das quais brotavam folhas na semana do Natal. Esse fato mágico, porém, não era tudo, pois em algum momento de sua extensa vida ela adquirira um segundo motivo de fama.
"Foi essa a árvore na qual a flecha de Walter Tyrrell resvalou antes de matar o rei Guilherme, o Ruivo." Era o que o povo dizia, e pelo menos durante toda a vida de Albion a gente da selva a chamara de a árvore de Rufus.
Seria verdade?, perguntava-se Albion. Carvalhos viveriam tanto tempo assim em um solo tão pobre como o da Floresta?
"A vida de um carvalho é sete vezes a vida de um homem", dissera-lhe o pai muito tempo atrás. Sua própria estimativa era a de que alguns dos maiores brutamontes deteriorados, cobertos de trepadeiras e com os seus trinta e dois metros de circunferência, tinham mais de quatro séculos; e nessa avaliação ele estava quase certo. O carvalho de Rufus não lhe parecia ter quinhentos anos.
Contudo, havia algo realmente formidável e mesmo mágico naquela pujante árvore.
A árvore conhecia muitas coisas.
Fazia quase trezentos anos desde que Luke, o irmão leigo fugitivo, a havia plantado em um lugar seguro. Desde então a mata se deslocara um pouco, como as matas devem fazer; veados e outros animais de pasto haviam comido os novos brotos na clareira gramada, dando à árvore um espaço aberto todo seu para crescer. Ao passo que os seus irmãos na mata haviam, portanto, crescido altos e estreitos ao lado de seus vizinhos, como costumam fazer os carvalhos nos bosques, os galhos da árvore de Rufus tiveram espaço livre para se espalharem tanto para as laterais quanto para cima, à procura de luz.
Apesar do nome que os homens tolamente lhe deram, o carvalho de Rufus iniciara a sua vida duzentos anos depois para ter desempenhado qualquer papel no drama da morte do rei ruivo, a qual, seja como for, tinha ocorrido em outra parte da Floresta. Entretanto, sua vida era bem velha e complexa.
A árvore sabia que o inverno se aproximava. Os milhares de folhas que se concentravam na luz logo se tornariam um fardo nas geadas de inverno. Todavia, ela já começara a desligar essa parte de seu enorme sistema. Os vasos que levavam e traziam a seiva das folhas estavam se fechando gradualmente. A umidade restante nelas estava se evaporando sob o sol de setembro, fazendo com que ficassem secas e amarelas. Do mesmo modo que em suas diferentes estações o veado macho interrompe o fornecimento de sangue aos chifres para que sequem e caiam, a árvore, de maneira semelhante, vertia as suas folhas douradas.
Antes das folhas, entretanto, haveria duas outras quedas.
As abelotas já despejavam o seu verdor aos milhares. A safra de abelotas varia de um carvalho para outro, de ano para ano, dependendo, na maioria das vezes, do clima; mas, diferente da maioria das outras espécies, à medida que o carvalho envelhece, aumenta a sua produção de sementes, chegando ao ápice de sua fecundidade ao final da meia-idade. Os porcos já se alimentavam das abelotas, arrastando-se por baixo dos galhos espalhados, e os ratos, disparando em corridas, iriam mordiscá-las à noite; e outras ainda seriam levadas para longe pelos esquilos, ou por gaios, que voariam alguma distância antes de enterrá-las no solo, por garantia. Desse modo, o carvalho dispersava as suas sementes para futuras gerações.
A outra queda era sutil e raramente notada. Durante a primavera, as minúsculas vespinhas-das-galhas, que mais parecem formigas voadoras que vespas comuns, tinham depositado as suas nozes-de-galhas na parte inferior das folhas do carvalho. Agora essas saliências, como pequenas verrugas vermelhas, estavam se soltando e esvoaçando para o solo, onde ficariam durante o inverno, escondidas e isoladas pelas folhas que estavam para cair por cima delas.
Enquanto isso, na casca da árvore, a seiva contendo o açúcar essencial descia em direção às raízes, bem fundo, no subsolo, a fim de ser armazenada ali, protegida do gelo.
Contudo, mesmo que parecesse ser essa uma estação apenas de recolhimento, não era bem assim. É verdade que as folhas cadentes veriam partir alguns dos companheiros de primavera e verão do carvalho: os vários gorjeadores, as touti-negras e os rabos-ruivos partiriam para climas mais quentes. Mas os habituais do ano inteiro, os tordos e as garriças, os tentilhões, os melros e as mejengras, embora reduzissem ou terminassem o seu canto, permaneceriam ali. A coruja malhada não tinha intenção de abandonar o velho carvalho; semanas ainda se passariam antes que a miríade de morcegos se ajeitasse em suas fendas para o sono da hibernação. Outros, melros e petinhos, tinham acabado de chegar à Floresta, vindos de habitats mais severos. E a trepadeira que se insinuava pelos galhos mais baixos aproveitaria até mesmo essa estação para florescer e com isso atrairia os insetos que até então tinham andado ocupados demais para polinizar as suas flores.
De fato o carvalho estava prestes a suprir a Floresta de uma prodigiosa quantidade de alimento. Não eram apenas as abelotas. Na árvore em si, a casca oferecia um continente de fissuras e fendas nas quais incontáveis pequenos insetos e outros invertebrados transitavam. No outono, as mejengras desciam em bandos de seu território para se banquetear neles. Picanços desciam enquanto os rastejadores de árvores subiam e, portanto, nada escapava. O mais importante de tudo, porém, eram as folhas que caíam.
A morte na Floresta não é o fim, mas apenas uma transformação. Um tronco podre arriado no chão fornece abrigo e comida a milhares de minúsculos invertebrados; as folhas caídas, ao se decomporem, são consumidas por muitos organismos, principalmente tatuzinhos e minhocas — no entanto, por causa de seu solo ácido, a Floresta tem poucos caracóis, ou mesmo nenhum. A maior decomposição de materiais, contudo, ocorre posteriormente e num nível mais profundo. Pois então chega a vez dos fungos.
Fungo — esbranquiçado, repugnante, associado a bolor, podridão e morte. Entretanto, não é nada disso. É uma planta? De certo modo, embora raramente seja verde como as plantas que sustentam a si mesmas, pois o fungo não contém clorofila. As paredes de suas células, estranhamente, não são feitas de celulose, mas de quitina, que também reveste as paredes do corpo de um inseto. Vive em função de outros organismos, como um parasita. Os antigos, não sabendo como classificar o fungo, diziam que ele pertencia ao caos.
E na Floresta os fungos estão por toda parte. Existem principalmente como filamentos de matéria fungosa, quase parecidos com laços de bota, chamados hifas. Sob a casca da árvore, sob as folhas podres, sob o solo, eles se espalham em uma teia emaranhada conhecida como micélio. E é essa massa oculta de micélio que transforma o bolor das folhas apodrecidas, devolvendo os nutrientes — nitrogênio, potássio, fósforo — ao solo para alimentar a vida futura da floresta.
Normalmente apenas o fruto do fungo é visto e, num abrir e fechar de olhos, muitos aparecem na estação do outono, nos bosques de carvalho. Nas proximidades do carvalho de Rufus havia centenas de espécies; o beefsteak fungus, como um bife cru na base do tronco de um velho carvalho; cogumelos comestíveis e os venenosos chapéus mortais que os imitam; os chapéus-de-sapo pontilhados de vermelho e branco; o amigável penny bun, que é comestível e cujo micélio suga açúcar das raízes do carvalho e em troca lhe fornece minerais; e o fedorento falo, que cresce de uma vagem redonda subterrânea chamada de ovo da bruxa, irrompe no mundo superior em um único dia, com um chapéu viscoso que atrai as moscas antes de desabar e murchar um dia ou dois após ter surgido.
Esses e muitos outros compartilham o solo da floresta, sob o carvalho, com tufos de grama e musgo e morrião amarelo.
Albion desmontou ao chegar perto da árvore. Tinha ido sem nenhuma pressa. Depois que a mãe seguiu para leste, em direção a Romsey e Winchester, ele descera lentamente para a Floresta, parando em aldeolas aqui e ali, esperando que a grande quietude da mata pudesse lhe acalmar o espírito. Mas não tinha dado certo. Não apenas sua mãe o tinha aterrorizado, como também, depois da revelação que ela lhe fizera, o serviço que ele deveria realizar no dia seguinte o deixou ainda mais apreensivo. Ficou contente, portanto, por chegar e descansar debaixo do carvalho espraiado. Talvez isso lhe trouxesse paz.
Por que, matutou, aquele enorme carvalho tinha o poder de reanimá-lo? Seria a sua mágica? Seria apenas a imensa e nodosa força da árvore? O fato de ela permanecer ali, uma coisa viva mas imutável, como uma velha rocha? Ambas as coisas, pensou; e as abelotas que caíam, e as folhas farfalhantes. Havia contudo algo mais — algo que costumava sentir ao ficar diante de um carvalho adulto e espraiado. Era quase como se a árvore o prendesse em uma esfera invisível de força e poder. Tratava-se de uma sensação estranha, mas palpável. Tinha certeza disso, apesar de não saber dizer por quê.
De certo modo, sua sensação em relação à árvore era perfeita. Pois é um fato que as raízes de uma árvore refletem a copa espalhada de seus galhos. Ao mesmo tempo que os galhos se espalham, as raízes, proporcionalmente, fazem o mesmo. Se os galhos morrem e recuam, as raízes também o fazem. O que ocorre acima ocorre abaixo. Nesse sentido, o sistema da árvore, como um todo, se assemelha bastante, acima e abaixo, ao campo magnético de um ímã ou, na verdade, ao da própria Terra. E quem sabe que campos de força, ainda não medidos pelo homem, podem circundar as manifestações físicas de uma árvore?
Após um breve espaço de tempo, portanto, de certa forma fortalecido, Albion afastou-se do carvalho para enfrentar os perigos dos dias vindouros.
Jane Furzey era feliz porque estava com Nick Pride, que era alto e bonito e ia se casar com ela quando ela lhe desse o sim. Ela daria, mas só depois de fazê-lo esperar; era o que toda moça fazia, se pudesse.
"Faça-o esperar um ano, Jane", dissera-lhe a mãe. "Se ele a ama de verdade, vai querer você ainda mais."
E também não se entregaria a ele antes de se casarem. Ela ia se casar no maior estilo. E era nesse estado de animação que eles costumavam ficar juntos.
Fora bondade de Clement Albion permitir que ela seguisse com os homens naquela manhã. Eram apenas três homens, incluindo Nick, e ela sacolejando na pequena carroça, enquanto Albion cavalgava ao lado em seu cavalo. Ela estava orgulhosa por Albion ter escolhido Nick para tarefa tão especial. Ia balançando as pernas robustas na traseira da carroça. Tinha tirado as sandálias. O sol batia morno em suas pernas; o ar fresco e salgado nos dedos dos pés era delicioso.
A expedição era mais propriamente uma aventura, e ela olhava em volta com grande interesse. Já haviam passado de Lymington; nunca estivera por ali.
Jane tinha dezesseis anos, Nick Pride, dezoito. Ele morava no vilarejo de Minstead, a uns três quilômetros a norte de Lyndhurst, e ela, na aldeola de Brook, a pouco mais de dois quilômetros de lá. Os pais dela, como a maioria dos pais, eram prudentes nessas questões, embora os dois fossem feitos um para o outro; e o eram mesmo.
Durante os séculos, os Pride haviam se estabelecido em muitos trechos da Floresta, mas os Furzey, na maior parte, permaneceram no sul. Exceto pela família de Jane. Por algum motivo — ninguém se recorda quando — os descendentes de Adam Furzey mudaram-se para a área de Minstead. "Os Furzey de Minstead não se dão com os outros Furzey", comentava a gente da Floresta. E embora nessa região, onde todas as famílias de pequenos proprietários se casavam entre si, tais diferenças costumassem ser superadas, era mesmo verdade o fato de os Furzey de Minstead serem meio incomuns. Durante a Guerra das Rosas um deles tornara-se padre; e, no reino do antigo rei Henrique um outro tinha ido para Southampton. "Virou mercador", contara-lhe o pai de Nick. "Dizem que se deu muito bem." Os outros Furzey talvez comentassem que a família de Minstead se achava melhor do que os outros, mas isso não era problema para os Pride, que também se achavam melhores do que outros. O pai de Nick Pride e o pai de Jane sempre se deram bem, e, no dia em que dez anos atrás o pai de Jane se mudou para Brook, o pai de Nick comentou: "Creio que a sua Jane e o meu jovem Nick dariam um belo casal." O pai de Jane concordou e contou à esposa, que já sabia disso. E assim foi.
Nada havia de extraordinário em Jane. Testa larga, cabelos castanhos repartidos ao meio, olhos azul-escuros; era baixa, com quadris largos e bem torneados. Os homens se sentiam atraídos por ela. Cozinhava, assava e cerzia; cuidava dos irmãos e irmãs menores; tinha um cachorro chamado Jack que gostava de perseguir esquilos; e não havia nada na pequena propriedade da família que ela não conhecesse.
Também sabia ler, o que era incomum. Ninguém mais na família sabia, nem nas famílias como a dela, em Minstead ou Brook. Se naquela época seu pai vivesse em uma cidade como Londres, como um pequeno mercador ou um artesão, provavelmente saberia ler. Mas no campo isso ainda era de pouca necessidade. Um pequeno proprietário rural, com uma grande fazenda própria, talvez fosse um homem rico, mas assinava o nome com uma cruz, ao passo que um escriturário sem um tostão desenhava-o com todas as letras.
Ninguém a ensinara a ler. De algum modo, tinha aprendido sozinha, numa Bíblia que examinava cuidadosamente na igreja de Minstead e através de outros materiais escritos que encontrava em visitas às feiras locais. Não dava muita importância a esse conhecimento, já que ele tinha pouco uso prático; mas se divertia em aprender alguma coisa nova. Nick Pride, aliás, tinha satisfação nisso. "Minha mulher sabe ler", diria a si mesmo. Era uma façanha, o suficiente para mostrar ao mundo que ele se casara com uma mulher superior. Essas coisas eram importantes para um homem.
Quando eles se casassem, Jane não levaria consigo nenhum ouro ou jóias, nem roupas de seda: na Floresta não havia necessidade dessas coisas. Mas havia um pequeno e humilde ornamento que ela pedira e lhe fora prometido para o dia de seu casamento.
Tratava-se de uma estranha cruz de madeira que pendia de um cordão no pescoço da mãe. O pai de Jane tinha dado a ela quando se casaram.
"Não sei de onde veio isso, mas sempre esteve na família", dissera ele. "Há centenas de anos, dizem." E sacudiu a cabeça. "É uma coisa velha e esquisita, mas o meu avô me falou:
Guarde bem isso. É a sua herança."
A cruz de cedro, com seu curioso entalhe, tinha sido tão surrada na pele de tantas gerações que agora estava quase preta. Mas havia algo naquele talismã de família que sempre fascinara Jane desde que era uma menina. Adorava tocá-lo e fechá-lo na mão. Tentava decifrar o que nele havia entalhado, como se pudesse conter algum significado secreto. E achava que tinha, apesar de não fazer idéia da mensagem que lhe fora enviada, quase trezentos anos antes, por um ancestral monástico.
Ela ia usá-lo no casamento.
A carroça sacolejou pela alameda e chegou a uma praia de cascalho.
— Olhem — gritou maravilhada. — Estamos no mar.
Albion olhou exasperado para a fortaleza adiante. Afinal de contas, por que diabos o seu bom amigo Gorges insistiu para que trouxesse aqueles homens? Na opinião dele, era uma perda de seu tempo. Mas por trás da fanfarronada ocultava-se uma profunda apreensão. Depois da conversa com a mãe, no dia anterior não pôde evitá-la —, via a fortaleza com uma espécie de pânico.
— Olá — gritou para a sentinela. — A milícia de Albion.
— Passe, senhor — veio a resposta.
Eles tinham atravessado Pennington Marshes, passaram pela enseada de Keyhaven e agora seguiam a trilha que levava à extremidade da língua de cascalho com quilômetro e meio do lado oposto à ilha de Wight. A direita deles estava o mar aberto. Acima, o céu era azul e as gaivotas grasniam. E, apenas visível ao final da língua, cintilando palidamente ao sol, ficava o destino deles.
Hurst Castle. Provavelmente nunca teria sido construído se não fossem os problemas matrimoniais de Henrique VIII. Há milhares de anos, de vez em quando, as regiões costeiras da Inglaterra vinham sendo ameaçadas por ataques de invasores. Mas quando o papa, em determinado momento de sua desavença com Henrique, exortou que a Espanha e a sua rival França unissem forças e atacassem a ilha herética, o rei achou melhor se preparar e enviou comissários para inspecionar as defesas do litoral; e poucos lugares eram mais importantes do que o porto de Southampton e o Solent. Ao chegarem lá, porém, e observarem as defesas, a conclusão deles foi simples: inúteis.
A solução mais inteligente era obviamente defender as duas entradas para o sistema do Solent, a fim de que os navios inimigos não conseguissem entrar de maneira nenhuma em seu enorme abrigo. Na extremidade ocidental, isso significava uma dupla de baterias, uma na ilha de Wight, perto das Needles, e a outra no continente. Na ilha já havia uma torre em ruínas que poderia voltar a ser utilizada.
E no litoral do continente: "Deus nos deu."
A comprida e curva língua de cascalho que saía debaixo de Keyhaven era realmente um local perfeito fornecido por Deus. Terminava em uma larga plataforma; dominava a parte mais estreita do canal, conduzindo para dentro e para fora do Solent. Imediatamente ordenaram um aterro com canhões — um baluarte. Mas o rei Henrique queria algo mais, e em pouco tempo um ambicioso prédio estava em andamento.
Hurst Castle era um forte de pedra pequeno e acachapado. Tratava-se, porém, de uma estrutura incomum. Pois não era redondo nem quadrado, mas construído em forma de triângulo. Em cada um dos três cantos havia um sólido bastião semi-circular. Na muralha ocidental, uma entrada com grade e uma ponte levadiça sobre um pequeno fosso. No meio do forte triangular ficava uma torre com dois pavimentos. Bastiões, muralhas e torres, tudo espetado com canhões. Os espanhóis, que conheciam tudo a respeito, consideravam Hurst um obstáculo formidável.
E era esse o lugar que a mãe de Albion esperava que ele traísse. Para ela, é claro, não era apenas um obstáculo à religião verdadeira; suas próprias pedras eram uma ofensa.
Depois que Henrique vendeu todas as terras monásticas aos seus amigos, Beaulieu passou para as mãos de uma família nobre de Wriothesley. Mas muitos outros da região tinham um faro aguçado para se beneficiar das oportunidades da época, e o melhor de todos foi um proeminente mercador de Southampton chamado Mill. Homem competente, ele já tinha atuado como administrador da antiga propriedade de Beaulieu e estava ávido para agradar ao rei e adquirir terras monásticas para si próprio. E como era prática usual a coroa contratar terceiros, ou seja, empreendedores locais para projetos importantes, como, por exemplo, a construção de navios ou fortes, não foi surpresa, ao se tratar das novas defesas do Solent, o serviço cair nas mãos competentes de Mill. Ele fez um excelente trabalho. O rei ficou maravilhado. E, quando indagado onde havia conseguido tanta pedra — pois havia muito pouca na região —, condescendente, ele retrucou: "Da abadia de Beaulieu, é claro."
"Aquele ímpio Mill!", explodira lady Albion. Usar as pedras sagradas da abadia para defender o litoral contra o papa! O fato de muitos outros terem andado antes ocupados em desmantelar a abadia, e até mesmo sua igreja, não foi algo que o filho se importasse em lembrar-lhe.
Ao chegarem ao final do promontório, Albion viu que a ponte levadiça estava baixada, e o portão, aberto; e, assim que ordenou que os três homens descessem da carroça, uma figura familiar, um homem com mais ou menos a sua idade, rosto largo e inteligente, belos olhos cinzentos e cabelos rareando, o que não comprometia sua beleza, veio caminhando apressado na direção dele.
— Clement.
— Thomas.
— Bem-vindo.
Thomas Gorges era de antiga estirpe e, segundo Albion, isso transparecia. Tinha amigos na corte. Mas, acima de tudo, Cecil e o conselho confiavam nele. Por esse motivo fora escolhido para escoltar Maria, a rainha da Escócia, ao seu encarceramento final. Também fora feito cavaleiro. E havia algum tempo era capitão de Hurst Castle, onde, com a ameaça de uma invasão iminente, passava a maior parte do tempo.
— Esses são os seus homens? — perguntou. Albion confirmou. — Ótimo. Meu mestre artilheiro vai lhes mostrar o lugar. —Além de Gorges e seu delegado, havia uma guarnição bastante considerável em Hurst chefiada pelo mestre artilheiro. — Eu sempre achei — prosseguiu Gorges calmamente — que, quanto mais se mostrar aos homens como as coisas são feitas, mais se inflama a sua lealdade. Venha, Clement — continuou, bem-humorado —, vamos conversar.
Ao olhar em volta, Albion percebeu que era difícil não se impressionar. Duas alas de canhões projetavam-se dos vãos dos bastiões e das muralhas que davam para o mar. Havia canhões também na torre central. Nenhum navio que entrasse no Solent conseguiria escapar da bateria e, para a própria defesa, as muralhas não apenas eram grossas, como também haviam sido construídas ligeiramente convexas para desviar balas de canhão. Mesmo sob pesado bombardeio, Hurst Castle seria uma noz dura de quebrar.
— Espero que encontre tudo em boa ordem, Clement — disse Gorges com um largo sorriso.
Não havia dúvida de que Gorges era um excelente guardião. Havia acrescentado mais canhões, reconstruído e fortalecido ainda mais a torre central e treinado admiravelmente a guarnição. Na ocasião era tido em tão alta estima pelo conselho que, apesar de o lorde lugar-tenente da região ser nominalmente o encarregado das milícias locais, se Gorges quisesse qualquer coisa — armamentos, materiais ou homens — conseguia de imediato.
— Diga-me, tutor — perguntou afável —, quando vou receber os meus olmos?
Era curioso, refletia Albion, que, embora se construíssem navios com carvalho, se a sua madeira fosse usada em um lugar como Hurst, à mercê da maresia, ela não demorasse a apodrecer. Quando Gorges precisou de novos suportes para os canhões, ele o aconselhara a usar madeira de olmo, que durava mais.
— Marquei as árvores, na semana passada. Elas serão cortadas, e a madeira lhe será entregue em dez dias.
— Obrigado. Agora me fale sobre esses homens que você trouxe.
— Coloquei Pride como encarregado. Ele é jovem, mas confiável. Inteligente. Está contente com a responsabilidade e ansioso para provar o seu valor. Ele se meterá em brios. Os outros dois são bons sujeitos. Vão ficar bem.
— Como você é sensato. Falarei com eles imediatamente. A propósito — acrescentou casualmente —, eu lhe falei que Helena está aqui? — Helena: a esposa dele. Albion sentiu um ardor de prazer. Ele gostava de Helena. — Ela está esperando você. Por que não conversa com ela enquanto falo com os homens?
Albion hesitou. A sugestão foi feita de modo tão sedutor que ele não pensaria duas vezes. Em vez disso, franziu a testa. Continuava sem muita certeza da necessidade de ele levar aqueles homens até ali, já que podia perfeitamente lhes ter transmitido os seus deveres lá mesmo em Minstead.
— Claro, Thomas, mas, se vai falar com os meus homens, não quer que eu esteja presente?
Um leve rubor. Uma expressão de constrangimento rapidamente disfarçada, mas não o suficiente. O que significava aquilo?
— Olhe, aí vem Helena. Passeie um pouco com ela, Clement. Estava tão ansiosa por vê-lo. — E, antes que Albion pudesse argumentar, o amigo tinha sumido, deixando-o sozinho.
Nick Pride estava muito cheio de si. Eles estavam de pé no aposento do mestre artilheiro, que tinha uma bela vista do Solent, quando Thomas Gorges entrou. O aristocrata havia conversado com eles, muito civilizadamente, durante alguns minutos, explicando a importância de suas tarefas, e Nick o observara com interesse.
Estava impressionado. Se Albion era um fidalgo, ele sentia que aquele homem era algo mais. Vinha de um outro mundo, apesar de Nick não ter muita certeza de que mundo poderia ser. Colocando os dois homens lado a lado em sua mente, concluiu que Albion precisava de Gorges, mas Gorges não precisava de Albion. Acho que é isso, pensou.
— Bem, Nicholas Pride — disse Gorges então —, soube que você é o vigia do luzeiro.
— Sim, senhor — gritou, estufando o peito. — Sou.
A idéia de colocar uma luz sinalizadora em cumes de colinas para alertar a região rural de uma aproximação do inimigo remontava aos tempos clássicos; mas foram os Tudor que desenvolveram esses faróis como um sistema habitual. Um luzeiro aceso na ponta sudoeste da Inglaterra podia desencadear uma reação em cadeia de fogueiras no litoral que alertariam Londres em questão de duas horas. Ao mesmo tempo, contudo, enquanto a mensagem era passada através do litoral, uma rede de faróis secundários espalhados pelo continente captavam a mensagem e alertavam as tropas dos povoamentos locais para que se reunissem e se deslocassem para seus postos, a fim de defender a costa.
Havia dois grandes luzeiros litorâneos para a área do Solent, um em cada ponta da ilha de Wight. O interior de New Forest era servido principalmente por três faróis internos: um sobre Burley Beacon, um segundo em uma colina na direção do centro da Floresta, e um terceiro, para convocar os povoados do norte, sobre uma antiga edificação no topo de uma colina acima da aldeia de Minstead.
— Aproxime-se e fique na minha frente, Nicholas Pride — ordenou o comandante, enquanto ele se afastava dos demais. — Bem, agora — falou baixinho, para que apenas ele e o jovem conseguissem ouvir um ao outro —, recite os deveres de sua vigília.
Nick Pride achou que se saiu bem. Albion o preparara meticulosamente. Havia uma seqüência exata de sinais enviados pela ilha de Wight, culminando com aquele que ordenava que acendesse o seu luzeiro. Ele recitou todos corretamente. Forneceu os detalhes de como devia ser manipulado, quem devia manter vigília e quando, como devia ser preparado e aceso. Gorges o interrogou, tranqüila mas cuidadosamente, e pareceu ficar satisfeito. Para surpresa de Nick, porém, quando tudo acabou, o oficial não encerrou imediatamente a conversa. Parecia querer saber mais a respeito do rapaz; perguntou pela sua família, seus irmãos e irmãs, pela pequena propriedade. Falou, inclusive, sobre sua própria família e fez Nick gargalhar. Nick sentiu-se surpreendentemente descontraído. Gorges quis saber o que ele pensava dos espanhóis, e Nick disse-lhe que eram uns malditos estrangeiros. Gorges disse-lhe que, todavia, o rei Filipe deles era tido como muito devoto, e Nick rebateu que podia até ser, mas que mesmo assim era um estrangeiro, e qualquer bom inglês ficaria contente em cortar a cabeça dele.
— Francis Drake chamuscou a barba dele em Cádiz, senhor, não foi mesmo? Com aqueles brulotes. Acho que isso lhe deu uma lição.
Gorges disse que esperava que sim.
O aristocrata o ouviu e observou cuidadosamente, e agora o conhecia melhor do que conhecia a si mesmo, mas o jovem Nicholas Pride estava totalmente inconsciente disso.
— Eu percebo, Nicholas Pride, que posso confiar em você — declarou finalmente. — E se a própria rainha me perguntar... e ela o fará... quem toma conta do nosso luzeiro do interior, lembrarei de seu nome e direi que você é um homem leal a ela.
— De fato, senhor, pode dizer — gritou Pride, mais cheio de si do que nunca.
Jane estava sentada sobre um banco de areia, olhando o Solent, quando o estranho casal se aproximou.
Estava quente; havia um vestígio de névoa atravessando as águas, o que deixava a ilha de Wight com um leve tom azulado. Maçaricos e aves pernaltas deslizavam na lama da maré baixa diante dela e, em volta do forte, as andorinhas com suas caudas bifurcadas se arremessavam a toda velocidade, mas em breve estariam de partida para climas mais quentes.
O homem e a mulher dirigiam um grande carroção com altas laterais entabuadas. Carregava carvão.
Jane já havia notado que logo abaixo do forte, do lado do Solent, havia um pequeno forno de cal. Já se desenvolvia ali, aliás havia algum tempo, um estável negócio — não na escala das salinas perto dali, é claro, mas bastante lucrativo —, com a cal sendo transportada, na sua maioria, através do canal da Mancha, até a ilha de Guernsey, próximo à costa francesa. O carvão era necessário como combustível para a fornalha.
O carroção saiu da trilha pouco antes de chegar ao forte e desceu em direção ao forno. Momentos depois ela viu o homem, ajudado por dois outros que cuidavam do forno, começar a descarregar os sacos da carroça. Observou-o com interesse.
Ele era um pouco mais baixo do que os outros homens, mas parecia muito musculoso. Tinha o cabelo denso e negro, mas a barba era curta e bem aparada. Os olhos eram bem distanciados um do outro e vigilantes — olhos de caçador, pensou. Tinha certeza de que já tinha se apercebido dela, enquanto descarregava os sacos. Mas por que ele parecia tão estranho? Não tinha certeza. Ela vivera toda a vida com o povo da Floresta, mas aquele homem parecia diferente dos Pride e dos Furzey, como se pertencesse a uma outra raça, mais antiga, habitantes de uma mata mais profunda do que aquela que conheciam. Era imaginação dela ou aquele rosto tinha sido tostado pelas fogueiras de carvão e ficado com um matiz mais escuro? Havia nele algo arbóreo, quase como um carvalho?
Não era difícil adivinhar sua família. Ela já vira antes vários homens parecidos com ele em feiras locais ou na corte em Lyndhurst.
"Aquele é Perkin Puckle", dissera-lhe o pai uma vez. Ou: "Acho que é Dan Puckle, mas pode ser John." E sempre prosseguia a ladainha: "Os Puckle vivem no caminho de Burley." Ninguém tinha nada a dizer contra eles. "São bons amigos, desde que você fique do lado certo deles", dissera-lhe o pai. Mas mesmo se ninguém dissesse, Jane percebia que havia algo vagamente misterioso com aquela família. "São antigos", comentara a mãe certa vez, "como as árvores." Jane observava o homem com curiosidade.
A princípio não percebeu que ela mesma estava sendo observada. Não vira a mulher descer do carroção; mas lá estava ela, sentada não muito distante de um tufo de mato de restinga, fitando Jane, pensativa. Sem querer parecer inamistosa, Jane cumprimentou-a com um gesto de cabeça. Inesperadamente a mulher se aproximou e sentou-se a poucos centímetros dela. Por vários momentos as duas ficaram observando os homens em sua faina.
— Aquele é o meu marido — disse a mulher, virando-se e olhando para ela.
Era pequena e tinha cabelos negros — parecia uma gata, pensou Jane. Calculou que a mulher tivesse uns trinta e cinco anos, como o marido. Os olhos eram escuros, amendoados; o rosto tinha uma aparência mortiça.
— Ele é um dos Puckle de Burley? — arriscou Jane.
— Isso mesmo. — A ela parecia que os olhos da mulher a avaliavam de algum modo. — Você é casada?
— Ainda não.
— Está pensando nisso?
— Acho que sim.
— O seu homem está aqui?
— Lá dentro. — Jane apontou para o forte.
A mulher de cabelos negros de Puckle não falou nada por algum tempo. Ela parecia encarar além da água. Somente quando voltou a falar foi que transferiu o olhar em direção ao marido.
— Ele é um homem bom, John Puckle — afirmou.
— Estou certa disso.
— Bom trabalhador.
— Parece ser.
— Vigoroso. Deixa uma mulher feliz.
— Ah. — Jane não sabia o que dizer.
— O seu homem. Ele é bom? Ele sabe vadiar? — Uma palavra grosseira.
— Espero que sim — disse Jane, corando. — Mas ainda não nos casamos. O silêncio da mulher deu a entender que ela não ficou impressionada com a
informação.
— Ele fez uma cama para ele. — Apontou com a cabeça na direção do marido. — Toda de carvalho. Entalhada também. Nos quatro cantos. Nunca vi entalhes parecidos. — Sorriu. — Entalhou a cama para poder se deitar nela. Depois que você deita na cama de carvalho dele, com John Puckle, nunca mais quer outra cama nem outro homem.
Jane encarou-a. Já tinha ouvido as mulheres da aldeia conversarem em Minstead, mas embora às vezes fizessem piadas cruéis com os seus homens, havia naquela pessoa estranha uma tal franqueza que tanto a repelia quanto a fascinava.
— Você gosta do meu marido?
— Eu...? Eu não o conheço.
— Você quer vadiar com ele?
O que significava aquilo? Era algum tipo de armadilha? Ela não fazia idéia, mas a mulher a estava deixando nervosa. Levantou-se.
— Ele é seu marido, e não meu — falou e começou a se afastar. Mas quando, de uma distância segura, arriscou uma olhadela para trás, sua companhia continuava sentada, tranqüila, aparentemente imperturbável, olhando pensativa em direção à ilha.
Helena sugeriu que caminhassem juntos pela praia. Ao lado deles ficavam as amplas águas a céu aberto do canal da Mancha. A relva-do-olimpo e a candelária-do-mar já não floresciam, mas os seus brotos verdes se estendiam como uma neblina por toda a praia. Suas palavras, enquanto conversavam, eram acompanhadas pelo leve sibilo do intenso arrastar do mar nos seixos e o grasnido das gaivotas brancas que se elevavam da espuma.
Clement Albion gostava muito de Helena Gorges, se bem que às vezes ela o fizesse rir. Ela era sueca de nascimento, muito loura, linda. "Você é tão bondosa quanto bonita", dizia ele com toda a sinceridade. Embora devesse acrescentar: "E nada vaidosa."
Era uma lei universal que nenhuma mulher, depois que adquirisse um título, jamais se dispunha a abrir mão dele. Ou era o que parecia a Albion. Quando Helena, a beldade sueca, fora levada à corte da rainha Elizabeth, não demorou muito para que rapidamente contraísse matrimônio com ninguém menos que o marquês de Northampton. Também se tornou uma grande favorita da rainha. Tristemente, o nobre esposo morreu apenas um ano depois, deixando-a encantadora, solitária, mas marquesa.
Havia uma reduzida nobiliarquia na Inglaterra da rainha Elizabeth. A Guerra das Rosas havia liquidado muitos dos títulos mais importantes, e os Tudor não desejavam criar mais senhores feudais. Mas um dos títulos que voltaram a colocar em uso na Inglaterra foi o de marquês. Havia apenas um punhado deles. Ocupavam uma posição inferior somente à dos altivos duques. Na ordem de precedência, portanto, a jovem marquesa de Northampton atravessava uma porta antes mesmo das condessas, sem falar das ladies e fidalgas.
Portanto, quando conheceu e se apaixonou pelo aristocrata Thomas Gorges, que na ocasião sequer era um humilde cavalheiro, casou-se com ele, mas insistia em ser chamada de marquesa de Northampton.
"E continua insistindo", comentara Albion, gargalhando, com sua mulher. "Graças a Deus, Thomas acha que é engraçado."
Certamente ela e Thomas eram muito felizes. Ela era uma boa esposa. Com sua aparência admirável, os cabelos dourados, os olhos deslumbrantes, seguia a pé ao longo da língua de terra até o forte — tinha um andar maravilhoso e elegante — e encantava a guarnição. Quando se encontrava na corte, não perdia uma oportunidade para fazer avançar a carreira do marido. Naquela ocasião, Albion sabia, ela tinha um pequeno projeto em mãos, e, depois de se fazerem as usuais perguntas ternas sobre as respectivas famílias, ele perguntou educadamente:
— E a sua casa?
O fato era, ele sabia muito bem, que o amigo Gorges, pela primeira vez na vida, fora além da conta. Recentemente tinha adquirido uma excelente propriedade logo ao sul de Sarum — aliás, Albion havia avistado a terra no dia anterior durante a conversa que tivera com a mãe. Nessa propriedade, conhecida como Longford, Gorges pretendia construir uma enorme casa. Mas o tempo passou e nem uma só pedra havia sido assentada.
— Oh, Clement. — Ela tinha um jeito encantador de segurar o seu braço para repartir uma confidência. — Não conte para Thomas que lhe falei, mas estamos — fez uma careta — em dificuldades.
— Não podem construir uma casa menor?
— Só muito pequena — Sorriu, conspiradora.
— Uma cabana? — falou, de brincadeira, mas ela sacudiu a cabeça e assumiu um ar sério.
— Uma pequena cabana, Clement. Talvez nem mesmo isso.
As coisas estariam mesmo tão ruins assim? Thomas deve ter gasto muito mais do que pretendia.
— A sorte de Thomas está sempre em alta — sugeriu. Não tinha dúvidas de que a carreira do amigo continuaria a ser brilhante.
— Vamos confiar então que ela aumente mais ainda, Clement. — Voltou a sorrir, mas dessa vez lastimosa. — Nada de vestidos novos para mim este ano, receio.
— Talvez a rainha...
— Eu estive na corte. — Deu de ombros. — A própria rainha está sem um penny. Essa questão com a Espanha — acenou em direção ao horizonte — esvaziou o tesouro.
Albion meneou a cabeça, pensativo.
— Por falar nessa questão com a Espanha... — Hesitou por um instante, mas decidiu-se a prosseguir. — Eu trouxe alguns homens, como sabe. Thomas quis falar com eles. — Deu-lhe um olhar enviesado. Era como suspeitara. Pôde notar que ela sabia alguma coisa. — EThomas insistiu para falar com eles sozinho, sem mim. Por que ele fez isso, Helena?
Ambos pararam de andar.
Helena olhava para baixo, em direção aos seixos a seus pés. Uma onda quebrou na praia na direção deles e depois refluiu. Quando ela respondeu, não olhou para ele.
— Thomas está apenas cumprindo ordens, Clement — falou mansamente. — Apenas isso.
— Há muitos católicos na região, Clement. Todo mundo sabe disso. Ora até mesmos os Carew... —Thomas Carew tinha sido o comandante anterior de Hurst Castle. Sua família, bons católicos, toda ela, ainda vivia na aldeia de Hordle no limite da Floresta, a apenas alguns quilômetros dali.
— Uma pessoa pode ser católica sem ser traidora, Helena.
— Claro. E você ainda foi deixado no comando de parte das milícias, Clement, não foi? Pense nisso.
— Mas o seu marido, mesmo assim, precisa se certificar de que eu e os meus homens somos leais.
— O conselho está vigiando todo mundo, Clement. Ele não tem escolha.
— O conselho? Cecil? Eles não confiam em mim?
— Sua mãe, Clement. Lembre-se de que até mesmo Cecil já ouviu falar em sua mãe.
— Minha mãe. — Uma onda de pânico apoderou-se dele subitamente. Lembrou da conversa do dia anterior e sentiu-se enrubescer. — O que — tentou parecer indiferente — a tola da minha mãe andou falando agora?
— Quem sabe, Clement? Não estou a par dessas coisas, mas eu disse à rainha...
— A rainha? A rainha sabe a respeito de minha mãe? Santo Deus!
— Eu disse para ela... Perdoe-me, Clement... que ela era uma mulher tola. As opiniões dela não são as suas.
— Deus me perdoe!
— Portanto, meu caro Clement, não precisa ficar alarmado. Em vez disso, preocupe-se com a minha casa. Encontre um meio de eu poder construir algo mais do que um estábulo em Longford.
Ele deu uma risada, aliviado, e fizeram a volta para caminhar em direção ao forte. A maré já tinha subido mais um pouco sobre os seixos. Adiante, além da água, as quatro Needles calcárias da ilha de Wight reluziam. Para Albion, naquele momento, elas pareceram como fantasmas, irreais. Algumas gaivotas decolaram, fantasmagoricamente brancas, grasniram e depois voaram para longe, para alto-mar.
— Clement. — Ela tinha parado. Encarou-o. — Você sabe que nós o amamos. Não é um traidor, é?
Os olhos dela esquadrinhavam o rosto dele.
— Clement? Diga-me.
— Por Deus, não.
— Jure.
— Juro. Pela minha honra. Por tudo o que é mais sagrado. — Os olhos dos dois se encontraram. Os dela estavam inquietos. — Você não acredita em mim?
— Claro que acredito. — Sorriu. — Venha. — Prendeu o braço no dele. — Vamos voltar.
Mas ela estava mentindo. Ele sabia. Ela não tinha certeza. E se ela eThomas não confiavam nele, então nem o conselho ou a própria rainha confiava. Os meses à frente pareceram mais tristes do que nunca.
E não era irônico que, apesar da exigência da mãe, ele tivesse acabado de dizer a verdade para Helena?
Não era?
Quando o inverno chegou, ficou um gelo. Mas a árvore estava acostumada a isso. Pois quando ela atingiu a meia-idade, um século antes, a Inglaterra entrou em um período, que durou por todas as dinastias Tudor e Stuart, conhecido como pequena Era Glacial. As temperaturas pelo ano inteiro, em média, ficavam vários graus mais frias. No verão não se notava tanta diferença. Mas os invernos eram sempre cruéis. Rios congelavam. Nas grandes árvores cortadas ao longo desse período os intervalos dos anéis anuais de crescimento nos troncos se mostram bem próximos.
No início de dezembro o carvalho se enclausurou para o inverno. Os galhos ficaram nus e cinzentos; os pequenos e escassos botões em seus ramos foram protegidos do congelamento por cerosas escamas marrons. Bem fundo, no subsolo, o açúcar da seiva cuidava para que a umidade existente na árvore não congelasse.
No dia de Santa Luzia, comemorado em 13 de dezembro, ocasião tradicional do solstício de inverno, caiu neve com chuva ao alvorecer; ao meio-dia ficou tudo congelado, e, depois de um sol embaciado brilhar durante algumas horas antes do dia cinzento terminar, da copa do carvalho pendiam pingentes de gelo, como se algum antigo habitante grisalho das matas tivesse parado ali e ficado enraizado naquele local. E, mesmo enquanto o frouxo sol emprestava algum brilho ao cinza, o vento sibilava por entre os pingentes para deixá-los ainda mais congelados.
Um pouco mais acima, em uma forquilha da árvore, onde outrora uma pomba fizera o seu ninho, havia uma enorme e silenciosa coruja empoleirada. Uma visitante das florestas congeladas da Escandinávia, ela viera passar os meses de inverno na ilha com um clima mais temperado. Os olhos fitavam inexpressivos a neve, mas ao cair da noite seus ouvidos surpreendentemente assimétricos a guiariam, infalíveis, levada pelas asas silenciosas, sobre qualquer pequeno animal que se aventurasse na escuridão. Se alguém tivesse o cuidado de olhar o solo perto da base do carvalho, os restos de um tordo lhe mostrariam a última refeição da coruja. Lentamente a ave silenciosa girou a cabeça. Se quisesse, faria isso em um ângulo de trezentos e sessenta graus.
Acima do poleiro da coruja, em uma fenda escura, pendia uma pequena colônia de morcegos, como bolas enredadas em teias em sua hibernação. Por toda a árvore, em galhos e ramos, minúsculas larvas, como as de traças de inverno, se envolviam apertadas em seus casulos. Abaixo, no grande tronco da árvore, aranhas se escondiam em fissuras por trás de janelas de gelo. Em volta do pé, a samambaia parda, curvada e quebrada, jazia achatada no meio das folhas caídas, congelada.
Abaixo do solo, minhocas e lesmas, e todo tipo de criaturas de terra, estavam isoladas do doloroso frio pelas folhas congeladas acima. Mas nos arbustos, embora o tordo, parecendo uma bola de pêlo com suas penas felpudas de inverno, talvez sobrevivesse, os melros e petinhos canoros estavam esfarrapados e macilentos. Duas semanas de congelamento ou neve, e muitos atingiriam um ponto de perda de peso e fraqueza do qual não haveria volta.
Se, por um lado, essas criaturinhas sempre viviam perigosamente no limite entre a vida e a morte durante suas breves estações de existência, a árvore, por outro lado, tendo um sistema sólido e maior, também era solidamente mais forte. Ela ainda tinha menos de trezentos anos. Mas a natureza também impunha limitações ao imponente carvalho. De toda a sua enorme produção de abelotas naquele outono, milhares tinham sido devorados pelos porcos e outros animais de pasto; algumas, pisoteadas; outras, armazenadas por esquilos ou aves; e outras, ainda, destinadas a serem comidas pelos veados, quando se tornassem rebentos. De toda essa inundação de abelotas não resultaria um só carvalho novo; nem surgiria qualquer outro por mais cinco, dez ou mesmo vinte anos.
Ela estava se sentindo muito fraca. No final do verão passado sentira que havia algo errado e teve certeza depois que fora com Puckle, naquele dia de outono, entregar carvão em Hurst. Naquela ocasião andou pensando no futuro.
Tinha usado todos os remédios que conhecia. Tentara se proteger. A cada mês, quando a lua alterava os seus períodos, ia de donzela a mãe e minguava de volta para uma mulher velha e enrugada, ela rezava em segredo. Mas com a chegada do inverno reconheceu: nada podia mudar a direção da roda da vida; não haveria cura, e ela devia passar desta vida para a outra.
A natureza é cruel, mas também misericordiosa. O tumor que devorava a vida da mulher de Puckle provocava outras alterações em seu corpo. Tornara-se pálida, o sangue havia mudado de composição; passou a se sentir sonolenta, o que lhe dava, portanto, uma certeza de que, antes de o tumor crescer e atingir a sua forma final de vida monstruosa e torturar o seu corpo com dores, ela em vez disso deslizaria sonolenta em direção a um desfecho prematuro.
Ela e Puckle tinham três filhos. Ela amava o mateiro. Sabia muito bem que após o seu falecimento a vida devia continuar. E era assim, em segredo, que ela realizava as suas preces e fazia o que achava melhor.
E agora era a meia-noite do ano, quando mal sete horas de luz do sol se viam, e o mundo todo parecia recuar para as trevas profundas sob o solo.
Duas semanas depois, logo após o Natal, Clement Albion cavalgava.
O gelo duro se rompera pouco antes do festival sagrado. Embora o solo ainda estivesse quebradiço sob os pés, ele viu uma rodinha de pássaros brigando por uma minhoca no meio das folhas do chão. Um esquilo, um borrão vermelho, disparou no meio do caminho para um abrigo nos arbustos de pilriteiro.
Mas era o carvalho que ele fora ver.
Na mata próxima, os altos galhos cinza-prateados estavam nus, a não ser por crostas aqui e ali, de hera escura ou líquen branco como a morte. Os carvalhos que pontilhavam a clareira também estavam nus.
Mas o carvalho que ficava destacado do resto era uma visão muito mais estranha. Havia se livrado de seus pingentes de gelo. Os minúsculos botões agasalhados tinham desabrochado em raminhos de folhas. A árvore invernal estava verde. Albion fitou-a em silêncio. Nada se movia.
Por que essa árvore de New Forest, coisa que está bem registrada, se comportava dessa maneira? Possivelmente algum acidente ocorrera durante o seu crescimento — um raio a atingiu, por exemplo —, que, de algum modo, desregulara o relógio interno, cujo funcionamento não é compreendido totalmente, através do qual uma árvore regula seu florescimento. Talvez o mais provável fosse uma peculiaridade genética. Tal característica, na qual há uma falha no processo de vedação outonal, faz com que certos carvalhos retenham suas folhas por todo o inverno até a primavera. O enfolhar de Natal talvez ocorresse por causa de um tipo diverso dessas mudanças genéticas, e registros que revelam a existência de outras árvores semelhantes na mesma área sugerem ainda mais essa possibilidade. Mas ninguém sabe.
Albion suspirou. Tratava-se de um milagre, como a mãe insistia? A árvore estaria falando com ele, lembrando-o de seu dever e de sua religião? Seria essa árvore fantástica um emblema vivo, como um daqueles assombrosos sinais na trilha para o Santo Graal nos contos romanescos de cavalaria?
Ele esperava que não. Desde o outono não houvera nenhuma insinuação do conselho que sugerisse que ele ainda era um suspeito. Havia se encontrado duas vezes com Gorges, e em ambas o amigo agira de modo afetuoso e natural em relação a ele. A verdade era que ele queria apenas uma vida tranqüila. Isso era tão errado assim? Não era o que queria a maioria das pessoas? Uma árvore que floresce no inverno: promessa de vida na morte. Três árvores que floresciam, três cruzes, a crucificação no Calvário. Qualquer que fosse a maneira de encarar esse fato, as árvores verdes eram um sinal de Deus sugerindo morte e sacrifício.
Se ao menos a invasão espanhola não acontecesse. Sua mãe poderia lhe deixar a fortuna dela, acreditando que ele teria se unido aos invasores; Gorges, o conselho e a própria rainha nada teriam com que o censurar. Rezou com fervor para que não fosse colocado sob prova.
Fazia algum tempo que não tinha notícias da mãe. Devia ter ido visitá-la, durante a época do Natal, mas encontrou uma desculpa para não o fazer. Imaginava durante quanto tempo conseguiria evitá-la.
Um segundo depois, ele a viu.
Ela estava na árvore verde, lá em cima, nos galhos. Toda de preto, como sempre, mas todo o revestimento de sua capa era de um vermelho vivo. Batia as asas e voava de galho em galho, como uma enorme ave raivosa. Virou a cabeça para olhar para ele. Céus, parecia que ia levantar vôo na direção dele.
Albion balançou a cabeça e disse a si mesmo para deixar de ser tão tolo. Olhou novamente para a árvore, e ela estava normal. Mas suas mãos tremiam. Nem um pouco abalado por aquela alucinação maternal, virou a cabeça do cavalo e se afastou em direção a Lyndhurst.
O jovem Nick Pride aguardou o momento propício durante todo o inverno. O início de abril viu chuvas de alagar, mas depois uma leve calidez se espalhou pela Floresta. O mundo voltou a ser verde; as flores se abriram. Sabia que a hora tinha chegado, que Jane estava à espera de uma declaração, mas ele também tinha o seu papel para desempenhar.
Durante todo o mês de abril cortejou-a. Às vezes não se viam por um dia ou dois, mas, não havendo qualquer outro motivo, com certeza se encontravam no domingo na igreja de Minstead. Também não havia quaisquer brigas de namorados; os dois, ao que parecia, não tinham necessidade disso. Ela era a sensível Jane Furzey, e ele, o belo jovem Nick Pride, e era tudo.
Ao mesmo tempo, apesar de o momento estar se aproximando, talvez fosse melhor se ela não estivesse tão segura a respeito dele — talvez apenas durante um dia ou dois; assim, ela não o teria como algo certo. Ele planejou tudo cuidadosamente.
Perto do final de abril, Albion reuniu uma milícia em Minstead. Nick Pride foi convocado, é claro; como também o irmão de Jane e dois outros homens de Brook. Fariam um pequeno desfile, e Nick sabia que Jane e a família iriam assistir. Ele escolheu, portanto, uma noite, dias antes da reunião da tropa para dar o primeiro lance.
A aldeia de Minstead ficava no declive de uma alta elevação que seguia em direção oeste, atravessando a parte central da Floresta. As cabanas de Minstead, na maioria, dispersavam-se ao longo da metade mais baixa da alameda que subia até a crista do monte, em cujo cume a rua passava por uma curiosa edificação redonda.
Castle Malwood, assim era chamado, embora não houvesse nenhum castelo ali. Tratava-se apenas de mais outro dos pequenos muros de terra circulares, como os de Burley e Lymington, o que demonstrava que o povo da idade do ferro tinha outrora utilizado a Floresta antes da chegada dos romanos. Ocupando o ponto mais alto da elevação, portanto, era óbvio que havia sido escolhido por oferecer uma vista total da área, e, desde que Albion ordenara uma poda nas árvores que cresciam abaixo em suas modestas encostas, a antiga importância do local fora parcialmente recuperada. Agora, do topo do muro de pedra, tinha-se uma clara visão da metade meridional da Floresta até a ilha de Wight: e foi por isso que tinha sido escolhido como o lugar perfeito para a construção do luzeiro interno, do qual Nick era o guardião.
Ele se sentia bastante orgulhoso de si mesmo naquela noite ao levar Jane com o seu cachorrinho Jack até o baluarte coberto de grama de Malwood e lhe mostrar a vista.
— É ali que o grande luzeiro vai ficar. — Apontou para a ilha de Wight. — E aqui — indicou —, neste exato lugar onde você está, Jane, colocaremos o nosso luzeiro semana que vem.
Ficou contente ao perceber que ela parecia convenientemente impressionada.
— O que acha que vai acontecer, Nick, se os espanhóis vierem? — Olhou para ele com um ar preocupado.
— Acenderei o meu luzeiro, reuniremos a milícia e desceremos para combatê-los. É isso que vai acontecer. — Olhou para ela e viu o olhar de preocupação em seu rosto. — Está com medo de que aconteça algo comigo, não é? — perguntou, secretamente encantado.
— Eu? Não — mentiu e deu de ombros. — Estava pensando no meu irmão.
— Ora. — Ele sorriu consigo mesmo. — Não precisa temer — disse bem-humorado. — Quando os espanhóis virem a tropa reunida, duvido que tenham coragem de desembarcar.
Depois disso conversaram sobre assuntos triviais. O sol lentamente mergulhou no horizonte. A Floresta diante deles foi banhada por uma névoa dourada, enquanto, à distância, a ilha de Wight começava a ficar de um azul acinzentado. O silêncio era total. Jane sentiu um leve arrepio, ele colocou o braço em volta dela, e juntos ficaram fitando em silêncio na direção sul.
— Adoro olhar a Floresta — observou ela após alguns instantes.
— Eu também. — Ele deixou passar mais um tempo.
— Bem, Nick. —Virou-se e sorriu para ele. — Se os espanhóis não nos matarem, creio que haverá muito júbilo no final do verão. — Em seguida voltou a olhar para a ilha.
Era a deixa dele, e sabia disso. Mas nada falou. Longos momentos se passaram.
— É melhor eu ir para casa — disse ela finalmente.
Ele ouviu a voz decepcionada e deixou passar mais um tempo. Depois concordou.
— Eu acompanho você — retrucou calmamente. Em seguida, animado: — Há muita coisa para se pensar neste verão, não é mesmo? — E, rindo secretamente de sua sagacidade, acompanhou-a de volta a Brook.
Que ela espere. Que ela se sinta insegura, pensou, apenas por um dia.
Era um belo dia, quando surgiu.
Minstead era um lugar curioso. Tecnicamente, tinha a liberdade feudal: o que significava que, embora cercado completamente pela floresta real, o povoado tinha o seu próprio senhor e uma corte senhorial. Na prática, isso não fazia grande diferença para ninguém. O senhor alugava alguns campos e recebia modestos tributos feudais. Nem os camponeses da propriedade, nem o senhor podiam infringir as leis florestais do território em volta das poucas dezenas de hectares das terras senhoriais. Tanto o senhor quanto os seus camponeses, porém, obtinham benefícios dos direitos comuns da propriedade, como os de combustível e de pasto na Floresta, e isso era muito valioso. Desde tempos imemoriais a herdade pertencera a uma mesma família feudal, como acontecia com Bisterne no vale do Avon, mas então havia passado, por casamento, da linhagem masculina de Berkeley, a do matador de dragões, para a igualmente poderosa família Compton. O senhor da propriedade, entretanto, não tinha casa em Minstead. O seu administrador vinha, recolhia os tributos, instalava a corte e dava as orientações necessárias. A liberdade feudal de Minstead era tão tranqüila quanto uma aldeia da Floresta.
Todavia, ele tinha lá a sua importância. Ao lado da alameda, na parte de baixo, ficava o pequeno campo gramado do povoado. De um lado, em um vale diminuto, ficava a coisa mais próxima de uma casa senhorial que o lugar possuía, a residência do vigário, com o seu passai de hectare e meio. Do outro, apoiado sobre um pequeno outeiro, a apenas duzentos metros da área gramada, ficava a igreja paroquial — importante por se tratar da única naquela parte da Floresta. Não que fosse uma enorme construção; embora suas paredes fossem de pedra, o telhado de palha fazia com que mais parecesse uma grande cabana. Dentro, a nave não tinha dez metros de extensão e tinha uma galeria tosca que se podia tocar com o braço esticado. Mas se tratava de uma igreja paroquial. Até mesmo a capela usada por reis e rainhas em Lyndhurst ficava sob sua égide. E era na igreja de Minstead onde os homens de Minstead e de Brook se encontravam para a reunião da tropa.
Nick Pride olhou em volta e ficou encantado. O céu da tarde era de um fresco azul-claro; pompons brancos de nuvem velejavam acima da igreja sobre o outeiro. A milícia consistia em homens escolhidos da paróquia e das aldeolas dos arredores, conhecidas como tithings (divisões administrativas compostas de dez pequenos proprietários, para efeitos legais e de segurança). Havia uns doze homens, incluindo-se os três de Brook e um sujeito de Lyndhurst, e parecia a Nick que formavam uma força de combate bem impressionante.
Oito deles tinham arcos, e, graças às específicas ordens de Albion, cada qual agora possuía uma dúzia completa de flechas. Seis dos homens portavam compridas alabardas, afiadas e brilhantes. Que Deus ajudasse os espanhóis, pensou ele, que chegassem perto daquelas lanças terríveis. Três do grupo usavam elmos de metal de aba curta, uma espada e talas de metal para proteger o antebraço. Um dos homens reclamara disso, pois, já que Nick ia cuidar do luzeiro, não teria necessidade de usar essas armas e deveria dá-las a alguém mais. Mas ele protestara: "Depois que o luzeiro for aceso, eu também entrarei na luta." E Albion determinou que ele deveria ficar com todo o material. Ninguém tinha um arcabuz, mas não era de surpreender: poucas aldeias inglesas possuíam armas de fogo.
A ordem do dia era direta: eles treinariam durante uma hora ou duas perto da igreja; a seguir marchariam até o gramado e fariam para o povoado uma demonstração de suas habilidades de combate; depois debandariam e seriam servidos comes-e-bebes. Então, pensou ele, contente, levaria a cabo o seu plano. Olhou para as armas reluzindo ao sol e sorriu consigo mesmo.
Clement Albion também olhava para elas. Ele tinha dado o melhor de si. Aliás, era mesmo um excelente comandante. Dentro das possibilidades, seu pessoal estava muito bem armado. Dedicara-se o máximo a eles e lhes ensinara como se apoiar com firmeza e espetar suas compridas alabardas. Jamais seriam arqueiros treinados, mas pelo menos quatro deles eram caçadores clandestinos bem-sucedi-dos e talvez atirassem melhor do que a maioria.
E por quanto tempo esses bons sujeitos resistiriam a quatro espanhóis bem treinados e bem-armados? Não sabia; poucos instantes, talvez. Em seguida estariam todos mortos; cada um deles alvejado e retalhado. Graças a Deus, não sabiam disso. E assim seria, ele sabia muito bem, com cada milícia de cada paróquia da região.
Na primavera de 1588, as forças defensoras no importante setor central do litoral sul da Inglaterra estavam em um estado deplorável.
As tropas de inexperientes recrutas das aldeias, com suas antigas alabardas e arcos de caça, eram de uma inutilidade só. Em geral, os arqueiros tinham apenas três ou quatro flechas. Muitos nem mesmo possuíam armas. Quando os cavaleiros da região e os fidalgos rurais foram a Winchester, para uma grande inspeção, descobriu-se que apenas um em cada quatro estava apto a executar qualquer tipo de serviço. O pior de tudo era que o assunto estava nas mãos não de um, mas de quatro nobres, que viviam em constantes brigas uns com os outros, e nem mesmo os comissários enviados pelo conselho foram capazes de colocar ordem na questão. Nem Winchester, o importante porto de Southampton, e nem a enseada de Portsmouth, um pouco mais adiante da costa, onde o antigo rei Henrique começara a construir um arsenal de marinha, tinham uma defesa apropriada feita por tropas. Três mil homens, os melhores que havia, estavam estacionados na ilha de Wight, mas o continente, para todos os efeitos, se encontrava desguarnecido. Esse era o estado de prontidão da Inglaterra à espera da grande invasão pelo exército mais bem treinado de toda a Cristandade. De acordo com as palavras de um relatório enviado para o conselho da rainha Elizabeth: "Tudo aqui é imperfeito."
Tudo isso, embora o mantivesse oculto dos seus homens, Clement Albion sabia muito bem. Ele tinha visitado Southampton e os arsenais de marinha em Portsmouth. Participara de reuniões em Winchester. Não apenas não havia ali qualquer efetivo militar que pudesse fazer frente aos espanhóis, como também o conselho temia que alguns camponeses ansiosos pela volta da antiga religião pudessem ajudar os invasores. E, apesar de pessoalmente duvidar disso, Clement, ao observar seu pequeno grupo de homens fadado à ruína, descobriu-se pensando: sua mãe, afinal de contas, estaria com a razão? Seria mais sensato, se os espanhóis viessem, juntar-se a eles. Como um filho leal da verdadeira Igreja, ligado através da irmã aos grandes de Espanha, certamente eles lhe dariam uma boa acolhida. Mas, se fosse o caso, quando? Durante a aproximação dos navios? Depois do desembarque das tropas? Poderia ele, ou deveria, tentar mesmo alguma resistência em Hurst Castle?
— Muito bem, Nicholas Pride — gritou, quando o jovem rapaz tentou aparar um golpe e dar uma estocada com a sua espada. — Vamos mostrar a esse espanhóis do que os ingleses são capazes.
No final da tarde chegou a hora de se exibir para a aldeia. Postaram-se colunas por dois, ombro a ombro, e, porque ele tinha armadura, Albion colocou Nick na fila da frente. Em seguida deram três vivas para que todos soubessem que estariam indo, mas enviaram um menino à frente, por via das dúvidas; e secretamente Nick desejou que tivessem um tambor para baterem, mas não tinham. Então avançaram, quase marchando, pela curta trilha sombreada por árvores pendentes e desceram para o campo gramado, e lá estavam todos à espera, inclusive Jane, que usava um xale vermelho nos ombros. Eles marcharam para o centro do campo, que, aliás, tinha apenas trinta metros de ponta a ponta, e tomaram suas posições. Então deram uma demonstração.
Foi uma exibição de coragem, não resta dúvida. Os homens, com as compridas alabardas, colocaram-se em fila, levantaram, baixaram e estocaram suas armas, todos ao mesmo tempo, e não se poderia imaginar qualquer tropa espanhola passando por tal espantosa falange. A seguir montaram alvos, os arqueiros dispararam suas flechas e atingiram esses alvos sempre em alguma parte. A melhor exibição de todas, porém, foi quando Nick Pride e o próprio Albion desembainharam suas espadas e simularam um combate. Foram para frente e para trás do gramado, com uma tal demonstração de habilidade que provavelmente Minstead nunca vira antes, até que finalmente Albion, que fazia o papel do espanhol, deixou Nick vencer, rendendo-se altivamente. No campo gramado ecoaram gargalhadas e vivas, e Jane viu com um meio sorriso quando Nick levantou a espada bem alto no ar e o sol da tarde brilhou em sua armadura, exatamente como ele esperava que o fizesse. Pois o seu momento havia chegado. Atravessando a grama com passadas largas até onde Jane se encontrava, postou-se à sua frente, enfiou a espada no chão — ela pareceu um tanto surpresa —, baixou-se apoiado em um dos joelhos, e os olhos dela se arregalaram quando ele falou: "Jane Furzey, quer se casar comigo?" Todos ouviram. Ela começou a enrubescer, e uma voz, vinda de algum lugar, exclamou: É uma boa oferta, Jane." Outras vozes se juntaram a essa, e eles também as escutaram.
Ele achava que ela diria não só porque aquilo a colhera de surpresa; por isso olhou bem nos olhos dela para lhe mostrar que a amava de verdade, mas logo começou a parecer um pouquinho temeroso, o que funcionou perfeitamente, pois, Passado apenas mais um momento, que na verdade deve ter sido apenas para se exibir, ela falou:
— Bem, acho que quero. E todos deram vivas.
— Diga o dia — gritou ele.
Mas agora era a vez dela de colocá-lo em seu lugar; portanto, apertou os lábios, olhou em volta, fitou Albion e começou a gargalhar.
— Depois que você lutar contra um espanhol de verdade, Nick Pride — berrou —, e não antes disso!
Seja lá o que lhe tenha dito Albion, foi uma resposta muito boa.
Na manhã seguinte Jane Furzey dirigiu-se a Burley. Ela quase nunca ia para aquelas bandas, mas a mãe tinha ouvido falar que ali vivia uma mulher que fazia renda e pediu-lhe que fosse ver se havia algum trabalho para uma de suas irmãs mais novas. E Jane foi, levando junto o cãozinho Jack.
A manhã estava ensolarada. Passando pela árvore de Rufus, seguiu para oeste por algum tempo, o que logo a levou a atravessar a alta charneca antes de virar e descer através da mata na direção de Burley.
Jack estava no seu elemento. Se localizasse um melro atrás de uma minhoca, caçava-o. Se visse um lamaçal ou uma pilha de folhas, rolava neles. Três esquilos, pelo menos na opinião dele, tiveram sorte de escapar com vida. Ao se aproximarem de Burley, sua pelagem marrom e branca estava preta de lama, e Jane ficou envergonhada. Não queria chegar à cabana da rendeira com o cachorro naquele estado. "É melhor você tomar um banho", disse-lhe.
Havia várias maneiras de se aproximar de Burley, vindo da direção de Minstead, porém a mais agradável, e também a mais limpa, era ao longo do enorme gramado diretamente para leste. Pois por ali, sobre um leito de cascalho, seguia um córrego de águas limpas e, de cada lado dele, por várias centenas de metros de largura e mais de três quilômetros de comprimento, estendia-se a larga e maravilhosa faixa de grama aparada bem rente.
Tratava-se de um dos maiores gramados da floresta. Parte seco, parte pântano-so, servia de pasto para gado e pôneis, e continuava subindo até os limites do povoado. Burley Lawn, assim era chamado nos arredores do povoado; mas poucas centenas de metros mais para leste havia, já há algumas gerações, um moinho, e dali em diante sua comprida extensão nessa direção era conhecida como Mill Lawn.
Após manter o rebelde Jack no córrego de águas claras até ele ficar limpo, Jane deixou-o correr pela grama curta de Mill Lawn. Vez por outra, só de bravata, ele fez que ia perseguir um pônei, mas continuava limpo ao passarem pelo moinho e avançarem por Burley Lawn. O solo ali era mais encharcado; por isso ela fez com que ele se mantivesse na trilha seca ao seu lado; e, certa de que estava tudo em boa ordem, continuou alegremente. Agora já havia moitas de pequenas árvores e matagais de tojos pontilhando o gramado. A mata à direita e à esquerda, com seus pequenos carvalhos e moitas de aveleiras, parecia se estreitar. Passaram por um diminuto freixo retorcido.
Então Jack viu o gato.
Jane também o viu, porém tarde demais. "Jack!", gritou, mas não adiantou. Ele saiu disparado e nada havia que o fizesse parar. Um latido, um silvo, um borrão de corpos, ao passarem correndo à sua direita. Ela viu o gato saltar e Jack chafurdar em uma poça de lama, olhar e rosnar, e logo a sua forma imunda, respingando, irromper através dos arbustos. Ficou surpresa pelo gato não correr para cima de uma árvore, mas obviamente ele tinha outro esconderijo em mente, uma vez que ela ainda podia ouvir Jack em sua perseguição desenfreada, latindo ferozmente. Em seguida, o silêncio.
Ela esperou e depois chamou. Nada aconteceu. Não havia nenhum ruído. Chamou novamente, várias vezes. Nada ainda. O gato, finalmente, teria se refugiado em algum lugar? Esperava, pelo menos, ouvir Jack latir. Aguardou mais um pouco, e então, com um suspiro, seguiu na direção em que os animais tinham sumido.
Caminhou talvez uns cinqüenta metros no meio das árvores, quando viu a cabana. Era bem típica, paredes brancas e telhado de palha. Uma cabana da Floresta, embora fosse melhor do que muitas outras, já que uma janela abaixo de um lado do telhado indicava que havia pelo menos um aposento na parte de cima. Na clareira à sua volta, um pequeno pátio e algumas construções externas. Não havia sinal do gato, nem de Jack, e ela estava imaginando se teriam virado para uma outra direção, quando ouviu o latido do cão. Surgiu, sem sombra de dúvida, do interior da cabana.
Foi até a porta, encontrou-a entreaberta e bateu. Não houve resposta. Gritou. Certamente haveria alguém. Nada ainda. Chamou Jack e ouviu-o latir novamente, de algum lugar lá dentro; mas ele não veio. Pensou que talvez estivesse preso por lá, mas mesmo assim hesitou. Não queria entrar sem permissão. Ao mesmo tempo não gostava da idéia de seu cachorro poder causar algum estrago na casa de um estranho.
Empurrou a porta e entrou.
Era uma cabana como muitas outras. A porta dava acesso ao aposento central de teto baixo, que continha um braseiro e panelas penduradas em uma extremidade. Em um canto, uma mesa surrada, alguns bancos e um catre, onde, pela aparência, uma criancinha dormia. À direita, atrás de uma porta que ela não quis abrir, havia outro cômodo. Adiante, uma escada estreita, com poucos degraus, levava ao sótão.
— Jack? — chamou baixinho. —Jack?.
Um fraco latido, vindo lá de cima, surgiu em resposta.
— Jack — gritou —, desça!
Estaria alguém segurando o cachorro por lá? Olhou em volta para ver se alguém a observava do lado de fora. Parecia que não. Avançou e começou a subir os degraus.
Havia dois cômodos na parte de cima: à esquerda, um espaço aberto; à direita, uma porta de carvalho que o vento provavelmente devia ter fechado. Lentamente, empurrou-a para abrir.
Tratava-se de um quartinho. A luz vinha de uma janela de pouca altura, logo abaixo do beiral, na altura dos joelhos, à esquerda dela. A direita, encostado na parede, um velho baú sobre o qual, para a surpresa dela, o gato se encontrava deitado, confortavelmente enroscado, olhando-a, como se sua presença fosse aguardada. O mais estranho de tudo, porém, era a visão à sua frente.
Tomando quase toda a parede, uma cama de carvalho de quatro balaústres. Na parte de cima das quatro colunas estava um dossel simples de pano cujas bordas mal tocavam a palha inclinada do teto sem forro acima. Não era uma cama grande. Fora construída, talvez, ali mesmo naquele quarto, deduziu, para conter duas pessoas não muito altas. O carvalho era escuro, quase negro, e reluzia.
E era entalhado. Ela nunca vira entalhes como aqueles. Animais, cabeças de veados, grotescos rostos humanos, folhas e abelotas de carvalho, fungos, esquilos e até mesmo cobras — tudo ascendendo ou emergindo dos quatro balaústres escuros e reluzentes daquela estranha cama. E de repente, lembrando que já tinha ouvido a descrição de uma cama assim, murmurou: "Esta deve ser a casa de Puckle.
Ainda mais estranho do que a cama era o comportamento de Jack.
A cama estava coberta por uma colcha simples de linho. E ele estava sentado nela. As marcas negras de suas patas estavam claramente visíveis onde ele havia saltado sobre ela. E lá continuava, sentado, balançando a cauda, sem dar sinais de querer ir com ela, nem aparentemente de querer perseguir o gato. Parecia desejar que ela se aproximasse e sentasse a seu lado.
— Oh, Jack! O que você fez? Saia imediatamente dessa cama — gritou. E foi tirá-lo de lá. Ele, porém, resistiu, agachou-se, mas continuou sacudindo a cauda. — Seu cachorro malcriado — ralhou. —Venha. —E estava começando a levantá-lo, quando uma voz rouca atrás dela fez com que desse um pulo e quase gritasse
ao se virar.
— Ele parece gostar daí.
Puckle estava de pé no estreito vão da porta. Não havia como confundi-lo. Sua barba negra continuava bem aparada; ela não havia percebido o quanto os olhos dele eram brilhantes. Ele não se mexia. Apenas a observava.
— Oh — ofegou temerosa. E, como ele continuou onde estava, sem dar sinais de raiva, ela começou a enrubescer. — Peço desculpas. Ele correu atrás do seu gato.
— Sim — aquiesceu lentamente. — Parece que sim. — Ele acreditou nela? Algo em seus modos sugeria que ele achava que essa não era toda a verdade.
— Ele fez uma sujeira e tanto. — Apontou para a colcha. — Desculpe.
— Não tem importância.
Ela o encarou. Claramente, ele tinha estado fora, trabalhando em algum lugar da Floresta. Podia enxergar as pequeninas gotas de suor ainda visíveis nos cabelos negros encaracolados em seu pescoço nu. Quando ela o vira antes, no final do verão, o rosto dele pareceu-lhe escuro, quase da cor do carvalho, mas agora, como uma cobra que trocara a pele velha, ou uma árvore que se vestira com folhas novas para a primavera, a cor de John Puckle parecia bastante clara. Ele a fazia pensar em uma bela raposa alerta.
— Eu vou limpar — disse ela.
Ele não respondeu, mas dirigiu o olhar para o cachorro. Jack devolveu-lhe o olhar, contente e sacudindo a cauda. Jane começou a se descontrair um pouco. Ninguém fazia movimento algum.
— Foi você quem entalhou tudo isso? — Apontou para a cama.
— Foi. — O olhar dele voltou para o rosto dela, atento. — Você gostou? Ela tornou a olhar para os estranhos rostos escuros, as retorcidas e espiraladas formas nodosas. Elas lhe causavam repulsa ou atração? Não tinha certeza. Mas a habilidade da mão entalhadora era espantosa.
— É formidável — deixou escapar. Ele não retrucou, apenas assentiu silenciosamente, e, passado um momento, ela acrescentou: — Sua esposa tinha me falado da cama.
— Foi?
— Em Hurst Castle. Setembro passado. Vocês foram entregar carvão.
— Isso mesmo.
— Ela está? — quis saber Jane, sem ter certeza se queria ou não ver aquela estranha mulher.
— Ela morreu. Neste inverno.
— Oh. Lamento muito. — Não sabia o que dizer. Olhou para Jack e para a colcha. Ele havia feito a maior bagunça. Arrancou-o de cima dela e virou-se. — Deixe-me levar a colcha para lavar.
— Basta uma escovada — observou.
Mas de algum modo a invasão fez com que ela se sentisse tão culpada que quis fazer mais do que corrigir uma situação.
— Eu a trarei de volta.
— Como quiser.
E, assim, ela tirou a colcha da cama, deu uma boa sacudidela nos travesseiros, deu uma ajeitada em tudo e foi embora com Jack, sentindo-se um pouco menos culpada do que antes.
O carvalho produziu lentamente as suas folhas na primavera. Após verdejar miraculosamente no meio do inverno, desligou novamente o seu sistema, como qualquer outro; as folhas de Natal haviam congelado e caído; e assim permaneceu, cinza e desfolhado, durante o resto do inverno. Em março, porém, a seiva ascendeu. Os carvalhos do bosque não desabrocham suas folhas ao mesmo tempo, mas durante um período de cerca de um mês, e o dossel, no início da primavera, varia bastante, indo desde os desprovidos brotos marrons, ou das folhas mais descoradas, à farfalhante copa de um verde viçoso.
A cor, entretanto, surgia no carvalho de diversas formas. Frutos de trepadeiras, na primavera forneciam uma alimentação satisfatória aos melros; mas em sua parte inferior, no inverno, os veados haviam comido todas as folhas das trepadeiras até o limite do pasto, deixando espaço para que o líquen crescesse. Os carvalhos trazem consigo mais liquens do que outras árvores. Alguns já estavam amarelos, mas, como continham algas com a clorofila verde, outros se desenvolviam em barbas verdes acinzentadas. Os mais impressionantes eram os grandes e peludos liquens que germinavam no tronco, conhecidos como "pulmões do carvalho
Mal os brotos do carvalho começavam a se abrir em folhas, e o pica-pau-ver-de, com as vistosas cores verde, dourado e escarlate, surgia na mata com o seu voo ondulante e encontrava uma cavidade, bem no alto de um galho moribundo, onde fazia o seu ninho. Tentilhões, com cabeça cinza e peito cor-de-rosa, começavam a gorjear nos galhos. Começava abril, com folhas viçosas surgindo por todos os lados e as aves de verão iniciando sua volta dos climas meridionais, o canto do cuco ecoava na mata; as samambaias por toda a parte brotavam em caules lenhosos, e os seus fetos enrascados e apertados passavam a se desenrolar; o tojo iluminava-se com suas flores amarelas, e as moitas de pilriteiro irrompiam na florescência de um branco denso. Apenas uma característica dos bosques de carvalho estava faltando. Pois na parte aberta da Floresta, embora houvesse matos de azeda-miúda, morrião amarelo, prímulas e amor-perfeito para acrescentar seu belo colorido ao solo, não existiam alcatifas de jacintos — porque os veados e os animais de pasto devoravam todos os que conseguiam encontrar.
Já ostentando suas folhas, estava na hora do carvalho iniciar o gigantesco processo de espalhar as suas sementes. Cada imponente carvalho produz igualmente sementes machos e fêmeas quando floresce na primavera. O pólen macho, que precisa ser carregado pelo vento, tem a forma de espigas pendulares, como amentilhos dourados e flores minúsculas. Com a primavera avançando, o carvalho se torna tão densamente barbado como se tivesse desenvolvido um velocino dourado.
As flores fêmeas — estas, quando polinizadas, originam as abelotas — são ainda menos visíveis. Com a aparência de pequenos botões abertos, um exame mais de perto revela que possuem três pequeníssimos estiletes vermelhos que colhem o pólen quando ele é carregado pelo vento.
Aproximando-se o final de abril, portanto, o carvalho, com suas folhas verdes e barbado com espigas douradas, como uma antiga figura encanecida da época dos mitos clássicos, quando os deuses brincavam com os homens nos bosques de carvalhos, já estava pronto para espalhar as suas sementes. O pólen podia ser levado a grandes distâncias por entre o espesso dossel silvestre, encontrando-se e mis-turando-se com o pólen de uma centena de outras árvores pelo caminho. Por isso é impossível dizer-se que o carvalho foi o pai de uma determinada abelota, já que os brotos fêmeas de qualquer um deles pode receber o pólen de dezenas de outros e, portanto, uma abelota de um galho pode ter sido gerada por um carvalho, ao passo que a do lado pode ter sido polinizada por outro. E assim a árvore frutifíca, em comunhão com talvez uma centena de carvalhos irmãos e irmãs, e filhos também, que constituem sua antiga comunidade.
Eles instalaram em Minstead o mastro do Dia de Maio enfeitado com fitas coloridas. O vigário, que sensatamente permitia tais práticas pagãs inofensivas, organizara um modesto banquete no campo gramado da aldeia. O povo de Brook também havia descido para lá.
As crianças, graciosas, dançaram em volta do mastro; também houve algumas bebidas; e à noitinha, quando tudo acabou, Nick acompanhou Jane Furzey até em casa.
Caminharam pela elevação sobre Minstead e depois, vagueando preguiçosamente lado a lado, pegaram a trilha que passava pela árvore de Rufus.
Recentemente tinha havido vários dias de chuva. Mas, apesar de ter transcorrido quase uma semana desde o estranho encontro que Jane teve em Burley, ela ainda não achara uma ocasião conveniente para devolver a colcha de Puckle. Naquele dia, porém, o sol havia brilhado, com raras nuvens para encobri-lo, e a noite continuava deliciosamente cálida. Ela caminhava contente ao lado de Nick.
Foi perfeitamente natural, pareceu a Nick, que eles parassem perto da árvore de Rufus e se beijassem.
Nick nunca a tinha beijado tão demoradamente. Os minutos correram, com os seus lábios e a língua explorando, mas o tempo pareceu parar no espaço como um ventre debaixo da árvore espraiada. O céu turquesa na extremidade da clareira tornava-se alaranjado. Atrás, em algum lugar da mata, um leve farfalhar indicava-lhe que um veado percorria delicadamente o seu caminho por entre as árvores. Apertou Jane bem forte, as mãos procurando, tentando colhê-la inteiramente para si. Com uma excitação que aos poucos ia crescendo, ele queria possuí-la totalmente. Precisava. Era o momento.
— Agora — murmurou ele. Eles estavam noivos. Iam se casar. Não havia mais proibição alguma. Toda a natureza dizia ao seu corpo que o momento era aquele. — Agora.
Ela recuou.
— Não. Agora não.
Ele avançou e voltou a tomá-la nos braços.
— Jane. Agora.
— Não. — Empurrou-o delicadamente, mas com firmeza, e sacudiu a cabeça. — Não posso, hoje não.
— Jane — disse ele, tremendo de paixão.
Mas ela deu-lhe as costas e afastou-se, olhando fixo para o chão da clareira. Ele permaneceu onde estava, a respiração apressada. Por um instante ocorreu-lhe tomá-la ali e naquele momento à força. Mas sabia que não adiantaria. Estaria ela tão determinada assim a só se entregar a ele depois que se casassem? Ou talvez tivesse apenas sugerido que a sua maldição mensal a estivesse afligindo. Ele não sabia.
— Como quiser — falou suspirando e, delicadamente, colocando o braço a sua volta, prosseguiu o caminho em direção à casa dela.
Jane falou muito pouco no caminho de volta. Aliás, era tudo o que podia fazer para ocultar os seus sentimentos. Afinal, como podia dizer-lhe o que realmente passava pela sua cabeça? Como podia admitir que sua recusa teve um motivo completamente diferente? Ela mesma não o entendia. Só sabia que naquela noite cálida de maio alguma coisa havia se intrometido entre os dois; que, a despeito de suas intenções e do que sentia por ele, a despeito de tudo, quando sentiu o seu abraço apertado, o corpo dele pressionando o dela, uma barreira invisível se interpôs subitamente, impedindo que ele a possuísse. Seria o temor por ser virgem? Teria sido pânico por pensar que estava prestes a perder sua liberdade? Ela não sabia. Era algo misterioso, perturbador. Ele era o homem com quem ia se casar, mas de repente ela não o queria. O que significava isso?
A cinco quilômetros de distância, quando Jane e Nick deixaram o mastro de maio no campo gramado, Clement Albion encontrava-se envolvido em um exercício muito necessário a homens atarefados. Garantia a si próprio que a sua consciência estava tranqüila. Até mesmo disse consigo mesmo: "Fiz tudo o que podia. Deus é testemunha."
Os grupos que ele havia treinado estavam preparados como provavelmente jamais o teriam estado. Os luzeiros tinham ficado prontos. Mesmo com toda a temível reputação dos espiões do conselho, ninguém sabia exatamente quando ou como a grande esquadra invasora espanhola chegaria; mas aqueles como Gorges, com um suposto acesso a informações, lhe garantiam que a invasão aconteceria e não demoraria. Nesse caso haveria algum motivo para uma auto-reprimenda? Se o conselho o convocasse no dia seguinte e lhe perguntasse se era um servo leal da rainha, ele conseguiria olhar Cecil nos olhos e afirmar sem temor que o era?
"Minha consciência está tranqüila." Ninguém o estava ouvindo. Tentou outra vez. "Sua Majestade não tem motivos de queixas contra mim. Eu não a enganei em relação a nada. Nada."
Bem, quase nada.
O posto de tutor era lucrativo. Em troca por agir como guardião das árvores na floresta de Sua Majestade, ele recebia um salário e valiosos adicionais. A casca, por exemplo, dos carvalhos caídos ou derrubados era dele; e enviava várias carroças carregadas até Fordingbridge, para os curtumes de lá, onde os curtidores pagavam muito bem por esse útil ingrediente no preparo do couro. E também havia os arrendamentos para ele tratar.
O roçado diante dele era um cercado bem-feito com doze hectares, perto de uma trilha que vinha do lado oeste de Lyndhurst. Tinha um muro de terra e uma resistente cerca em bom estado. Era responsabilidade do tutor fazer o arrendamento desse roçado pelo prazo normal de trinta e um anos, e isso ele fizera. Para ser mais exato, ele o havia alugado para si mesmo. Pelos termos do arrendamento, ele tinha o direito de vender a vegetação rasteira, que, em sua maior parte, era formada de moitas de espinhos e aveleiras; mas, ao mesmo tempo, era obrigado a conservar as mais valiosas plantas fornecedoras de madeira, mantendo intocados pelo menos trinta padrões, como eram chamadas as árvores lenhosas jovens, por hectare. O roçado de Clement, portanto, devia ter nada menos do que trezentos e sessenta padrões de árvores de madeira por ocasião do início do arrendamento, e tinha. Mas de algum modo cento e cinqüenta haviam sumido, restando duzentos e dez. A venda dessa madeira fora um útil acréscimo à sua renda.
Esse era o tipo de coisa que um tutor florestal de Sua Majestade teria de verificar e notificar para que o arrendatário fosse multado. Mas, como ele também era o arrendatário, esse descaso passara miraculosamente despercebido.
Mais sério talvez tenha sido a venda de um roçado muito maior, não muito tempo atrás, em proveito da coroa. Ele providenciou a venda com toda a eficiência e enviou o dinheiro ao tesouro de Sua Majestade. Uma enorme quantidade de vegetação rasteira foi vendida e a sua prestação de contas feita através de um relatório por escrito. O que o relatório não revelou, porém, foi que a maior parte dessa vegetação rasteira era na verdade madeira de valor muito mais alto. A diferença entre o valor real da venda e o registrado foi para a bolsa de Clement.
Esse erro ainda podia ser descoberto pelos inspetores por ocasião da próxima inspeção na Floresta, o que era feito de anos em anos. Mas como ele também era um dos inspetores de Sua Majestade, Clement achava improvável que essa questão fosse levantada.
Por outro lado, era sabido que a coroa designava uma comissão de inquérito para investigar inclusive os inspetores, os tutores e os fidalgos arrendatários da Floresta. Mas o assunto era tão sério que na última vez que essa coisa foi feita os tais inspetores, tutores e fidalgos acharam por bem providenciar para que os membros de tal comissão consistissem inteiramente... neles mesmos.
Por um tempo, durante os meses após a conversa que teve com Helena Gorges em Hurst Castle, Albion viveu um pouco inquieto. Uma coisa era ser um tutor imperturbado; mas se o conselho começasse a tomar medidas contra ele; se os vizinhos percebessem que era um homem marcado; se os criados de Cecil fossem até a Floresta à procura de crimes com os quais pudessem acusá-lo, quem sabe o que poderia vir à tona? Ainda que não fosse descoberta uma traição, a incômoda perspectiva de desgraça e ruína era cada vez maior.
Mas o inverno e a primavera passaram, e maio havia chegado. O cuco cantava na mata. Como todo bom sujeito que acha improvável que ele será descoberto, a consciência de Albion estava tranqüila. Embora o sol mergulhasse no ocidente, o imenso pálio de céu sobre a Floresta continuava azul, com suas finas nervuras de nuvens lampejando rosa e prata acima, enquanto Albion cavalgava em direção ao sul. Tendo passado por Brockenhurst e seguido mais quilômetro e meio ao sul, ele virou para leste a fim de atravessar o modesto rio central da Floresta pelo tranqüilo vau abaixo do qual ficava a sua casa.
Ficou bastante surpreso, contudo, quando, ao avistar o vau, enxergou dois carroções, um deles ricamente cortinado, e o outro gemendo sob uma assombrosa carga de caixas e móveis de todos os tipos, atravessando o rio bem adiante dele. Passado o vau, podia-se continuar subindo para a Charneca de Beaulieu ou virar para o sul e seguir a trilha que levava a Boldre. A Albion House, uma casa com frontão de madeira, jazia em uma clareira arborizada cerca de oitocentos metros ao longo da trilha que levava a Boldre.
Os carroções viraram para o sul. Ele foi atrás. Mas o segundo sofreu tanto no caminho que ficou para trás, à espera; e um pouco depois viu com espanto que o primeiro estava virando para subir a trilha que levava à sua casa. Ele trovejava diante da porta, a criadagem saiu da casa e um cavalariço manteve abertas as cortinas do carroção para permitir que os seus ocupantes descessem antes que o próprio Albion conseguisse cavalgar até lá.
A pessoa que desceu estava toda vestida de preto, exceto pela parte interna e os ornamentos de suas vestes, que eram encarnados. O rosto era polvilhado de um branco espesso e fantasmagórico.
— Deus do céu! — gritou ele, sem mesmo pensar. — Mamãe, por que veio até aqui?
Ela lhe deu em resposta um sorriso luminoso, embora os olhos fossem tão aguçados quanto os de um pássaro atrás de uma minhoca.
— Trago notícias, Clement. — E um momento depois, trazendo o ouvido dele para perto de sua boca vermelha, quando foi envolvido pelo inevitável abraço dela, Albion ouviu-a cochichar como se fosse para um colega conspirador: — Uma carta de sua irmã. Os espanhóis estão vindo. Eu vim para que possamos dar a eles as boas-vindas, meu caro filho, juntos.
Maio passou, e a maior parte de junho, e a esquadra espanhola — a Invencível Armada, como eles a chamavam — ainda não tinha vindo. O tempo estava incomum. Um dia havia um céu azul e um sol de verão sobre a Floresta; mas repetidamente as nuvens negras e baixas voltavam, trazendo do sudoeste tormentas de chuva ou granizo; poucos se lembravam de ter havido um verão como aquele em anos. No final de junho chegou a notícia de que uma tempestade havia dispersado para vários portos a esquadra espanhola precedente. "Drake irá até lá, atrás deles", diziam as pessoas. Mas, embora sir Francis insistisse para que o conselho o deixasse ir, a rainha hesitava. O problema do pirata favorito da Inglaterra era que, assim que fizesse um ataque bem-sucedido ao inimigo, ele tentaria capturar presas em vez de cuidar de suas obrigações. Pois, ela sabia muito bem, o grande explorador e patriota amava muito mais o dinheiro do que qualquer outra coisa.
Enquanto percorria a grande extensão de Mill Lawn, Jane Furzey sentia-se bastante culpada. Tinha realmente deixado que se passassem dois meses antes de voltar a Burley? Mas com aquele tempo e tanta coisa acontecendo, disse a si mesma, não tivera mesmo tempo de devolver a colcha de Puckle. Com sorte, pensou, ele não vai estar em casa. Desse modo, poderia deixá-la e voltar correndo.
Nesse dia o tempo estava excelente. Através do imenso relvado da Floresta, o tojo estava todo verde, mas a relva curta cintilava com o brilho das margaridas e dos trevos brancos, ranúnculos e piloselas amarelos. Comprimindo-se perto da relva, minúsculos raminhos de búgulas acrescentavam um matiz roxo ao verde; e nas ribanceiras do pequeno arroio com leito de cascalho, que descia correndo pelo relvado, miosótis azuis cresciam em meio às ervas daninhas.
Jane chegou à cabana com teto de palha pouco antes do meio-dia. Puckle não estava em casa, mas os filhos se encontravam lá. Havia três. A mais velha, uma menina com cerca de dez anos; obviamente passando pela fase de emagrecimento, era esguia como uma haste, cabelos negros, bastante solene e claramente deixada como encarregada dos outros dois. Uma menina mais nova, também morena, brincava no pequeno pedaço de terra com capim defronte à porta da cabana.
Foi o filho mais novo, porém, quem lhe chamou realmente a atenção. Tratava-se de um menininho com três anos, rechonchudo e alegre. Evidentemente estivera brincando com um cavalo de brinquedo que o pai devia ter feito para ele; mas, no instante em que viu Jane, saiu com o andar hesitante em sua direção, o rosto redondo exibindo um enorme sorriso, os olhos reluzentes cheios de confiança e aparentemente seguro de que ela o entreteria. Vestia um macacão belamente bordado e não muito mais do que isso, e, segurando a mão dela, disse:
— Eu me chamo Tom. Quer brincar comigo?
— Quero sim — respondeu. Mas antes falou de sua incumbência para a menina mais velha.
A criança ficou naturalmente desconfiada, a princípio, mas ao examinar a colcha, aquiesceu.
— Meu pai disse que uma pessoa vinha trazê-la — observou —, mas já faz tanto tempo.
Aparentemente, não deviam esperar que Puckle voltasse tão cedo, e Jane ficou conversando com a menina. Logo ficou claro, pelos seus modos e pelas coisas que dizia, que tinha assumido o papel de mãe da família, e Jane sentiu muita pena da criança. Ela mesma precisava de uma mãe, pensou.
Quanto a Tom, o menino era encantador. Apanhou uma bola e exigiu que Jane a chutasse para ele, o que ela fez por algum tempo, para seu grande deleite. Era um lindo garotinho, refletiu, e gostaria que fosse seu. Finalmente, porém, como não queria correr o risco de se encontrar com Puckle, achou melhor ir embora.
— É melhor eu colocar isto de volta na cama do seu pai — falou para a menina, apanhando a colcha. A garota garantiu que não era preciso, mas ela insistiu e subiu sozinha para o quartinho onde ficava a cama de carvalho de Puckle.
E lá estava ela: escura, quase preta, e brilhando. Era sem dúvida curiosa, de fato estranha, como se lembrava da vez anterior em que a tinha visto. Os rostos de carvalho, como gárgulas em uma igreja, a encararam como se ela fosse uma amiga que acolhiam de volta. Mesmo sem pretender, passou a mão por algumas das figuras entalhadas — o esquilo, a cobra. De tão perfeitas, era como se estivessem vivas, prestes a se mexer, a qualquer instante, sob a sua mão. Até sentiu um leve temor e, como se fosse para se acalmar, estreitou a mão, apertando a madeira nodosa, para provar a si mesma que aquela coisa não passava do que era. Por um momento sentiu-se quase atordoada.
Estendeu a colcha com esmero, cuidando para que tudo ficasse em ordem, depois recuou para observar o seu trabalho. Fora ali que Puckle se deitara com a esposa. "Deixa uma mulher feliz." Recordou as palavras daquela estranha mulher. "Depois que você deita na cama de carvalho dele, com John Puckle, nunca mais quer outra cama." Os olhos de Jane rodearam o quarto. Havia uma camisa de linho de Puckle no baú onde o gato estava deitado na primeira vez em que ela entrara ali. Dando uma olhadela para trás, a fim de se certificar de que não estava sendo observada, foi até o baú e pegou a camisa. Ele a havia usado, mas não muito, pensou. Cheirava só um pouco a suor e mais a fumaça de lenha. Um cheiro bom. Um pouco salgado. Pousou-a novamente de volta, com todo o cuidado.
Olhou mais uma vez para a cama. Era tão estranha: a cama parecia olhar de volta para ela, como se aquilo e Puckle fossem uma coisa só. De certo modo o eram, concluiu, já que ele tinha colocado muito de si mesmo no entalhe. Puckle transformado em carvalho, pensou com um sorriso, e riu consigo mesma. Se todo aquele entalhe, aquela força e riqueza assombrosas também se encontrassem no interior da alma e do corpo do homem, não era de admirar que sua esposa tivesse coisas boas a dizer a seu respeito. No entanto, por que a ela? Talvez dissesse essas coisas a todo o mundo. Mas, pensando bem, talvez não.
Virou-se e, com um último olhar para a cama de quatro balaústres, desceu a escada e saiu pela porta da cabana para o sol luminoso. Pouco antes de sair, ela ouvira o garotinho gritar de felicidade e, piscando por um instante por causa da luminosidade repentina, olhou para a figura que agora levantava o menino com os braços.
Puckle estava negro — tão negro quanto um dos rostos carvalhosos de sua cama. Virou-se, avistou-a, olhou-a fixamente, e ela sentiu-se estremecer involuntariamente. Jane entendeu, é claro. Ele tinha estado em uma de suas fogueiras de carvão e ficara coberto com o pó negro. Mas parecia tanto com um daqueles rostos estranhos e quase diabólicos da cama que ela não conseguiu se conter.
— Traga água. — Ele falou para a menina, que reapareceu um momento depois com um balde de madeira. Curvou-se, passou água rapidamente no rosto e na cabeça e em seguida lavou os braços. Endireitou-se, o rosto agora limpo, enquanto a água pingava da cabeça, e deu uma risada.
— Você me reconhece agora? — perguntou para Jane, que confirmou com a cabeça e riu também. — Conheceu Tom? — indagou.
— Joguei bola com ele. — Sorriu.
— Vai ficar um pouco? — quis saber, com um ar satisfeito.
— Não. Não, eu preciso ir. —Virou-se para ir embora, mas ficou admirada por descobrir que queria ficar. — Preciso ir — repetiu, desconcertada consigo mesma.
— Ah. — Ele havia se aproximado. Sua mão se estendeu e tocou no cotovelo dela. Subitamente Jane percebeu os músculos do seu antebraço grosso e forte
— As crianças gostam de você — falou mansamente.
— E? Como é que sabe?
— Eu sei. — Sorriu. — Estou contente por ter vindo — disse suavemente. Ela aquiesceu. Mal sabia o que dizer. Era como se, no momento em que ele a havia tocado, os dois houvessem partilhado alguma coisa. Sentiu um fluxo de força vindo dele, ao mesmo tempo em que seus joelhos enfraqueciam.
— Preciso ir — gaguejou.
A mão dele continuava em seu braço. Ela não queria que a tirasse.
— Venha, sente-se. — Indicou um banco perto da porta.
Ela sentou-se sob o sol ao lado dele, conversou e brincou com as crianças, até, uma hora depois, ir embora.
— Você precisa vir novamente, por causa das crianças — disse ele. E ela prometeu que, quando pudesse, viria.
Em julho Albion cavalgou freqüentemente pela Floresta apenas para ficar sozinho. Os dois últimos meses não tinham sido fáceis.
Talvez sua esposa tivesse resumido melhor a situação. "Não vejo de que modo a invasão espanhola fará alguma diferença para nós, Clement", comentou ela no final de maio. "Nossa casa já foi ocupada."
A mãe dele e sua tropa de ocupação pareciam estar por toda parte. Nunca parecia haver menos do que três criados aglomerados na cozinha. Em duas semanas, o cavalariço dela tinha seduzido a jovem aia da esposa de Albion. Nas refeições, durante as preces da manhã, do meio-dia e da noite, a presença sobranceira da mãe parecia preencher a casa.
Por que ela estava ali? Albion não tinha dúvidas. Queria ter certeza de que ele cumpriria suas obrigações quando a Armada chegasse.
A esposa de Albion vinha sofrendo há três semanas. Ela entendia perfeitamente que a mãe dele deixaria uma imensa fortuna, e ela era uma excelente nora; mas, antes de tudo, era mãe e queria uma vida tranqüila para a sua família. Ele não ousara contar à esposa sobre a oferta insana que a mãe fizera pelos seus serviços ao rei da Espanha e havia implorado à mãe para que não lhe contasse, pois temia amedrontá-la. Docilmente, portanto, a esposa cumpriu o seu dever familiar. Mas finalmente nem mesmo ela agüentou mais.
— Essa ocupação já está demorando demais — falou para ele. — A minha casa não é mais minha. Não importa se a sua mãe tiver dez fortunas para deixar. Podemos viver sem isso. Eles têm que ir embora.
Não foi sem medo que ele procurou a mãe para explicar o problema. A reação dela o deixou pasmado.
— Claro, Clement. Ela tem toda a razão. Sua residência não é muito grande. O meu pobre criado tem dormido no celeiro. Deixe tudo por minha conta.
E na própria manhã seguinte, para sua surpresa, todo o cortejo — os carroções empilhados até em cima e os criados todos a bordo — estava pronto para partir. Ele e a família ficaram parados olhando, admirados, quando foi dada a ordem de partida. Só restava apenas um intrigante detalhe.
— Já não devia estar na sua carruagem, mamãe? — perguntou. — Ela já vai partir.
— Eu? — A mãe pareceu surpresa. — Eu, Clement? Eu não vou. — Levantou a mão e acenou, enquanto os dois carroções passavam ruidosos por eles. — Não se preocupe, Clement. — Deu-lhe um sorriso luminoso. —Eu ficarei quieta como um camundongo.
E daquele dia em diante, com apenas algumas arcas de roupas e o seu livro de Orações, ela se manteve em seus aposentos. "Do mesmo modo que uma freira", como dizia. Isto é, quando não ficava sentada na sala, ou orientando as preces das crianças, ou dando pequenas incumbências aos criados, ou deixando a nora saber que o rosbife devia ter sido assado um pouco menos. "Como sabem", comentava todos os dias durante o jantar, "eu vivo como um eremita na casa de vocês. Nem devem perceber que estou aqui."
Se sua presença constante era um incômodo para a esposa, para o próprio Albion tornava-se alarmante a cada dia que passava. Suas conversas particulares com ela não deixavam qualquer sombra de dúvida: os espanhóis triunfariam.
— Tempos atrás escrevi para sua irmã a respeito do poder das milícias — declarou. — As tropas espanholas vão aniquilá-las facilmente. Quanto aos nossos navios, eles estão todos podres.
A primeira afirmação era verdadeira; a segunda, falsa. Mas ela já se tinha convencido totalmente disso.
O problema era: como poderia lidar com a suspeita que recairia sobre ele por causa da presença dela em sua casa? Decidiu que a melhor defesa era o ataque.
— A minha mãe está completamente louca — falou para um ou dois fidalgos, os quais, ele sabia, passariam adiante a informação. — E não tem mais jeito.
Quando alguns "recusantes" foram internados pelo conselho, por terem se revelado pessoas perigosas, ele comentou perversamente com Gorges: "Eu internei minha própria mãe. Agora sou o carcereiro dela." Quando Gorges lhe lembrou que tinha sido pessoalmente encarregado de Maria, a rainha da Escócia, Albion retrucou: "Minha mãe é mais perigosa." E quando Helena perguntou se a mantinha trancada a chave respondeu mal-humorado: "Eu gostaria de ter uma masmorra."
Teriam eles ficado convencidos? Esperava que sim. Mas dois incidentes cedo lhe mostraram o contrário. O primeiro ocorreu imediatamente após ter chegado a notícia de que fora negada a permissão para que Drake voltasse a atacar os espanhóis em seus portos. As ordens que a rainha quisera dar haviam causado uma espécie de estranha satisfação entre os seus comandantes. Albion esteve em Hurst Castle logo depois.
— Você sabia, Clement — comentou Helena —, que a rainha queria que a frota ficasse para lá e para cá, como sentinelas? — Soltou uma gargalhada. — Parece que Sua Majestade, apesar de enviar seus corsários pelos mares, não sabe que os navios dela não podem mudar de direção à vontade, ignorando o vento. Agora a frota vai para... — mas rapidamente se conteve e acrescentou, desconcertada: -Fazer uma outra coisa. Não sei o quê.
Albion se virou e viu Gorges parado atrás dela, retirando rapidamente dos lábios um dedo de alerta.
O segundo incidente ocorreu no início de julho.
O fato era que, a despeito de sua assustadora reputação na terra natal e com a Armada espanhola sendo esperada quase que diariamente, o sistema de espionagem inglês foi incapaz de descobrir qualquer coisa sobre o seu plano de ação. Havia na realidade duas ameaças a considerar. Uma, a da imensa esquadra propriamente dita; a outra, das forças espanholas que já estavam logo do outro lado do mar, nos Países Baixos, onde haviam se ocupado em conter as revoltas protestantes contra o domínio católico espanhol. As tropas espanholas nos Países Baixos chegavam a dezenas de milhares, eram formadas por combatentes calejados, e o seu comandante, o duque de Parma, era um ótimo general. Supunha-se que elas atacariam a costa oriental da Inglaterra, provavelmente próximo ao estuário do Tâmisa, ao mesmo tempo que a Armada chegasse. Nesse caso, as defesas da Inglaterra teriam de se estender em duas direções. Mas seria este o procedimento correto? Um dos ataques seria para distrair a atenção? A Armada pretendia destruir a frota inglesa no mar, tomar o primeiro porto inglês que aparecesse, talvez Plymouth, e usá-lo como base; ou subiria o canal da Mancha para capturar Southampton, a ilha de Wight ou Portsmouth? Ninguém sabia.
— Recebi outra carta da Espanha — disse-lhe a mãe calmamente certa noite, quando ele voltou de uma visita a Southampton.
— Hoje? Como? — Quem poderia ter trazido tal coisa para a casa dele naquele canto tranqüilo da Floresta?
Ela gesticulou, pondo de lado a pergunta, como se fosse irrelevante.
— Precisa se preparar, Clement. Está se aproximando a hora.
— Quando? Quando eles virão?
— Já lhe disse. Muito em breve. Sem dúvida os luzeiros serão acesos. Você ficará sabendo. Então terá que cumprir o seu dever.
— Que outras notícias a senhora recebeu? Qual é a intenção deles? Vão para a ilha de Wight? Para Portsmouth?
— Não posso lhe dizer, Clement.
— Deixe-me ver a carta, mamãe.
— Não, Clement. Já lhe disse tudo o que precisa saber.
Ele encarou-a. Será que não confiava nele? Claro que não. Ela desconfiava, pensou, que, se ele soubesse algo mais sobre a movimentação dos espanhóis, talvez contasse a Gorges ou ao lorde lugar-tenente. Ela estava certa. Ele provavelmente o faria. Ficou imaginando onde poderia estar a carta. Deveria revistar os aposentos dela? Haveria alguma maneira — durante o sono dela, talvez — de poder revistar as roupas dela? Não havia esperança, refletiu.
Então um outro pensamento lhe ocorreu. Seria aquilo uma artimanha, um ardiloso estratagema? Seria possível que não houvesse carta nenhuma, que ela a tivesse inventado para testá-lo, para ver o que ele faria? Seria tão matreira assim? Talvez.
—
- Lamento pela senhora guardar os seus segredos de mim, mamãe — falou friamente, mas isso não causou nenhum efeito nela.
Foi a seqüência no dia seguinte, porém, que realmente o apavorou. Encontrou-se por acaso com Thomas Gorges, em Lymington, e o amigo, após conversarem durante alguns momentos, lançou-lhe um olhar penetrante e comentou:
— Nós continuamos tentando descobrir as intenções dos espanhóis, Clement. Suspeitamos que podem estar chegando cartas a "recusantes" da Inglaterra com informações valiosas.
— Acho que isso é possível. — Albion tentou se manter calmo.
— Gente como sua mãe.
Não conseguiu evitar. Sentiu-se empalidecer.
— Minha mãe?
— Ela recebeu alguma carta, algum mensageiro, alguma visita estranha? Certamente você deve saber.
— Eu... — Pensou com toda a intensidade. Será que Gorges sabia que ela tinha recebido uma carta? Se assim fosse, não seria melhor contar a ele? Deixar que as autoridades revistassem a mãe, já que ele não se atrevia, e deixar que descobrissem o segredo dela? Mas, nesse caso, o que encontrariam? Sabe Deus o que uma carta como aquela podia conter para incriminá-lo. Não ousaria arriscar. — Eu não sei de carta nenhuma — respondeu hesitante. — Mas vou perguntar a ela. — E, em seguida, num lampejo de inspiração: — Você suspeita dela, Thomas? Sabe Deus o que a loucura pode levá-la a fazer.
— Não, Clement. Apenas perguntei de um modo genérico.
Albion estudou o rosto dele. Podia estar mentindo. Gorges era discreto demais para se deixar denunciar. Então ocorreu-lhe um pensamento terrível. E se Gorges, ou aqueles que estavam acima dele, não apenas soubessem da carta, mas também já tivessem lido o seu conteúdo? Nesse caso, Gorges sabia mais do que ele. Sabe Deus que tipo de armadilha podia ser aquela.
— Se minha mãe recebesse uma carta do próprio rei da Espanha, Thomas disse —, louca como está, ela seria bem capaz de não me contar, pois sabe muito bem que sou leal à minha rainha. Essa é toda a verdade.
— Sei que posso confiar em você, Clement — disse Gorges e se afastou. Mas quando um homem diz que sabe que pode confiar em você, pensou Albion tristemente, geralmente significa que não confia.
Nick Pride até então tinha provado o seu valor.
— Quem mantém a vigilância em Malwood? — gritava Albion, ao fazer sua inspeção quase diária em meados de julho. Descobrira que o jovem adorava ser saudado dessa maneira.
— Nicholas Pride, senhor — replicava o rapaz. — E está tudo em boa ordem, para a sua satisfação.
E estava mesmo. Mas, por simples formalidade, Albion inspecionava tudo, a começar pelo luzeiro.
Costuma-se achar que eram fogueiras os faróis que alertariam a Inglaterra da aproximação da Armada espanhola. Mas não era bem assim. O de Nick Pride, em Malwood, era típico de sua espécie.
Fora instalado no ponto mais alto do antigo muro de terra, do qual, graças à poda ordenada por Albion, era visível por quilômetros. Consistia em um poste resistente com cerca de seis metros de altura, firmemente plantado alguns metros dentro solo e também fixado por quatro estacas de sustentação, chamadas de esporões, pendendo de seu ápice como cordas de retenção. No topo do poste estava presa uma barrica de metal cheia de uma mistura de piche, alcatrão e fibras de linho que produzia durante horas uma chama brilhante.
Alcançava-se o barril com uma escada — um único pau atravessado por vigas de madeira — e ele era aceso com uma tocha flamejante. Para acender a tocha, Nick e os companheiros mantinham logo abaixo, aceso dia e noite, um pequeno braseiro a carvão.
Nick sempre dividia a vigília com um outro homem, aquele que não estivesse de serviço e se encontrasse descansando na pequena cabana de madeira no interior do muro de terra. Ultimamente Nick ficava o tempo todo em Malwood, e outros dois revezavam-se em turnos. Vez por outra as pessoas do vilarejo iam até lá para lhes fazer companhia; mas, por algum motivo, o conselho ordenara que não fosse permitida a presença de cachorros em qualquer um dos faróis. Talvez por temer que eles pudessem ser uma distração.
Só havia uma eventualidade na qual os luzeiros não teriam utilidade: se houvesse neblina ou o tempo estivesse péssimo — e, dadas as repetidas tempestades, tratava-se de uma clara possibilidade. Para esse caso fora montada uma rede de postos de muda por todo o país. Velozes cavaleiros correriam de um posto a outro, levando a notícia. O cavalo no qual montavam era chamado de hobby, e cada cavaleiro, com uma única mensagem a transmitir, cavalgaria o seu hobby de posto em posto.
O sistema de luzeiros da ilha de Wight era mais complexo. Em cada extremidade da ilha havia um conjunto de três. Se um deles fosse aceso, indicava que um sinal havia sido recebido da costa abaixo ou que as próprias sentinelas da ilha tinham visto a frota invasora no horizonte. Isso servia para alertar a região mais próxima, cuja sentinela, por sua vez, acenderia o seu luzeiro. Se o inimigo estivesse se aproximando pela costa, um segundo seria aceso. Isso dava um sinal para que os faróis das defesas litorâneas fossem acesos, convocando as milícias. Se três luzeiros se acendessem, porém, queria dizer que as defesas litorâneas precisavam de reforços do interior; então os faróis internos ardiam e os grupos treinados seguiam imediatamente para os seus pontos de encontro e marchavam em direção à costa. "Entretanto", instruíra Albion a Nick Pride, "como temos carência de homens, você só deve acender o seu se vir um alerta de dois faróis na ilha, e então marcharemos para Hurst."
Quase todos os dias Jane ia lá passar uma ou duas horas com ele. Levava uma torta que assara, ou bolos ou então um pote com alguma bebida fresca feita de frutas e flores, que ela e a mãe haviam preparado. E os dois sentavam-se juntos sobre os muros ervosos de Malwood e ficavam olhando acima do verde da vegetação na direção da névoa azul do mar. Às vezes, à tardinha, ela ficava com ele até bem depois de escurecer e mantinham juntos a vigília.
E, assim, Nick Pride esperava pela Armada espanhola na companhia da moça com quem ia se casar; quando ele a via chegar, seu coração dançava; quando a olhava e colocava o braço em volta de sua cintura, enquanto observavam a Floresta ao crepúsculo, ele sentia uma grande onda de afeição e agradecia às tênues estrelas da noite por ter sido abençoado com ela.
Obsessão. Não conhecia a palavra, mas passara a entender tudo o que se relacionava a ela. Aflição, melancolia, desatenção — toda a longa ladainha. Jane tinha dezesseis anos e, em um período de três semanas, vivenciara tudo isso.
Ela já tinha voltado lá várias vezes para vê-lo. Na primeira, passou por ali, viu as crianças e brincou com o garotinho até ele chegar. Na vez seguinte, foi sabendo que Puckle estaria lá. Conversaram; ficou sentada, observando-o brincar com Tom ou entalhar silenciosamente um pedaço de pau. Ela percebeu que já conhecia cada tendão de suas mãos.
Sentira a mão dele sobre o seu braço, sobre o ombro; agora ansiava por senti-la em volta da cintura. Não conseguia evitar. E aquilo não era tudo. Por mais forte que ele fosse, quando observava a filha a lhe preparar a comida, ou o via incompetente para lavar as roupas sujas das crianças, ele lhe parecia subitamente vulnerável. Ele precisa de mim, pensava.
Por duas vezes foi até onde sabia que Puckle trabalhava na mata e observou-o à distância sem que ele notasse. Certa vez viu-o seguir com a carroça pela trilha para Lyndhurst. Sentiu o coração dar um salto, mas permaneceu imóvel, apenas olhando-o ao passar, sem que ele percebesse sua presença.
Obsessão. Ela precisava ocultá-la. Sua família nada sabia sobre os passeios a Burley, já que sempre tinha alguma desculpa para as ausências. Nick Pride, é claro, não fazia a mínima idéia. Mas o que significava aquilo? Por que ela estava sofrendo? Por que noite e dia ela ansiava só estar ali, na presença do mateiro?
Todas as vezes que ia a Burley passava pela árvore de Rufus e, sempre que voltava, parava lá, tentando arrumar os pensamentos para que fizessem sentido e se preparar antes de retornar à família e a Nick.
Uma pessoa fica totalmente ciente dos sons da floresta ao descansar sob a sombra do grande carvalho num final de tarde. A mata estava repleta de aves — felosas e mejengras, rabos-ruivos e pica-paus-cinzentos —, mas a época do acasalamento e da ninhada passara, e os filhotes em sua maioria tinham crescido e já voavam. O canto delas, portanto, tinha emudecido ou era ocasional, e apenas o arrulho dos pombos surgia com regularidade do meio da mata. Havia o ruído incessante dos grilos, o zumbido da miríade de insetos e o zunir das abelhas enquanto visitavam as madressilvas que perfumavam o ar da floresta — era essa a sonolenta música de verão que Jane ouvia por toda a sua volta.
Mas o espaço de sombra no qual ela descansava não estava imóvel. Longe disso. Pois o verão é a época em que surge a vasta e oculta população que o enorme sistema da árvore abrigara. O espaço debaixo da árvore fervilhava de vida.
Era possível calcular quantas espécies diferentes havia ali — cerca de dez mil; talvez mais. Havia carrapatos e micuins, tão pequenos que mal se conseguia enxergar, que haviam caminhado do solo e subido para as oscilantes samambaias, de onde podiam ser arrancados pelo roçar dos corpos de animais de sangue quente que passavam, como os seres humanos, sugando o seu sangue e fazendo a pele comichar. Mais irritante ainda eram as mutucas, que tinham passado o inverno como larvas nas raízes do carvalho, e agora atacavam desajeitadas mas com constância. Havia aranhas e insetos às centenas, rastejando pela casca quente, lagartas — azuis, amarelas, verdes, laranja — fazendo o seu avanço fantástico e peludo para se alimentar das folhas; havia carunchos, joaninhas e traças. Borboletas eram raras na Floresta, mas podia-se ver a bela almirante vermelha e, lá em cima, na copa, a esplêndida imperador-roxa se alimentava dos rastros ricos em açúcar deixados pelos pequenos afídeos, enquanto esses diminutos insetos seguiam seu caminho através das folhas.
Jane ficava uma hora debaixo da árvore. Olhava as reluzentes lagartas ou fitava as sombras verdes de outros carvalhos na clareira. Às vezes seus pensamentos se voltavam para a Armada que viria e para o jovem Nick, lá em cima, com o seu luzeiro; às vezes pensava em Puckle. Antes de partir, parecia estar calma. Mas não estava.
Acima dela, o enorme sistema da grande árvore estava em pleno estado de atividade. Esta nada sabia da Armada, nem de Jane. A miríade de folhas de sua copa espraiada, arrebitada para o sol, convertia diariamente o pesado dióxido de carbono do ar em carbono, que era transferido para a sua casca, ao mesmo tempo que o oxigênio era mandado de volta para o ar. Assim, por intermédio da grande árvore, o próprio planeta respirava.
E também crescia. O carbono passava para a casca do carvalho, que por sua vez acrescentava um anel anual à grossa madeira sob ela. Portanto, quando o carvalho e seus companheiros caíam ao chão, e os seus sucessores faziam o mesmo, século após século, uma fina camada de carbono acrescentava-se à terra, a qual crescia imperceptivelmente, através dos éons.
A mãe dele sumira.
Era um fim de tarde na terceira semana de julho, quando Albion voltou para casa e descobriu que ela tinha pegado um cavalo, galopado para longe, e havia horas que não era vista. Por alguns instantes — ele não pôde evitar — rezou fervorosamente para que ela tivesse caído ou se chocado com um galho pendente no bosque, quebrando o pescoço.
— Ela não disse nada para onde ia? — perguntou à esposa.
— Nada.
— Você não a impediu? — A esposa respondeu com um olhar demonstrando que a pergunta era ridícula.
— Não. — Suspirou. — Claro que não.
Viva ou morta, ele teria de sair para ir à procura dela. Ainda restavam longas horas de luz do dia. Mas ele temia o que podia descobrir. Um encontro com o próprio exército espanhol não parecia nada improvável.
— Deus nos ajude — murmurou.
Ao se aproximar da árvore de Rufus, lady Albion sentia-se muito contente consigo mesma. Na verdade, pensou, devia mesmo ter feito isso antes.
Ela percorrera um arco bastante amplo. Saindo da tranqüila propriedade de Albion pelo vau, pegou a estrada para Brockenhurst, vistoriou a igrejinha de lá e conversou com vários dos habitantes. Embora poucos a tivessem visto antes, há muito já havia corrido por toda Brockenhurst a notícia da estranha dama na casa de Albion, e quando viram a estranha figura de preto e vermelho surgir a cavalo logo adivinharam quem era. Os boatos a respeito dela, porém, eram confusos. Se por um lado a classe dominante sabia tudo sobre a família Pitt e os problemas de Albion, a gente da mata era menos esclarecida. Já fazia trinta anos que ela havia morado na Floresta. Poucos se lembravam dela, e essas lembranças eram vagas. Sabiam que era devota e "recusante", mas isso não os chocava. Sabia-se que era rica, e isso sempre impressionava. Também podia ser liberal com o dinheiro, se você estivesse do lado certo dela. Alguns diziam que tinha enlouquecido. Isso podia ser interessante. Educadamente, eles tiraram os chapéus ou colocaram o nó do dedo na testa e a ficaram rondando em esperançosa expectativa.
De fato, ela era bastante generosa com eles. Não era uma Pitt à toa. Tinha um estilo afável e altaneiro que os impressionava e falava com eles com clareza.
Disse-lhes que havia vistoriado a igreja e lamentava por ela estar bastante danificada pela negligência, não intencional, esperava. De imediato vários rostos descontentes no grupo revelaram que ela tinha simpatizantes. Nada mais disse, deu-lhes um educado bom-dia e seguiu seu caminho em direção a Lyndhurst, deixando para trás a impressão de que não era louca, mas uma bondosa dama.
Em Lyndhurst encontrou-se com o morador de uma cabana e teve uma conversa semelhante. Depois deu a volta subindo por Minstead e desceu por Brook, onde fez a mesma coisa.
E então, ao se aproximar da árvore miraculosa, viu a moça, parada ali sozinha debaixo de seus galhos, pensativa. A moça tinha um rosto inteligente. Parou o cavalo diante dela.
— Bom dia, minha filha — falou delicadamente. — Vejo que está parada debaixo de uma árvore que, segundo me disseram, é milagrosa.
De fato, Jane respondeu educadamente, era mesmo. E contou para a estranha dama a história das folhas verdes do meio do inverno e a lenda de Rufus.
— Talvez — observou lady Albion — isso seja um sinal de Deus. — E mencionou as outras duas árvores. — Nosso Senhor não foi crucificado com dois ladrões?
— E também há três pessoas, milady — lembrou a moça —, na Trindade.
— Tem toda razão, minha filha — disse a mãe de Albion, aprovativa. — E isso não é um sinal para nós de que devemos ser fiéis à verdadeira Igreja?
— Suponho, milady, que deve ser. Eu não tinha pensado nisso — respondeu Jane com honestidade.
— Então pense nisso agora — ordenou lady Albion com firmeza. Depois, mais delicadamente: — Você é fiel, minha menina, à Nossa Sagrada Igreja?
Jane Furzey nada sabia a respeito da mãe de Albion. Brook ficava a dezesseis quilômetros da residência dele; a dama tinha partido da Floresta quase quinze anos antes do nascimento de Jane. Não fazia idéia de quem podia ser aquela pessoa notável com seu ar de esplêndida autoridade; mas ao fitá-la naquele instante ocorreu-lhe um pensamento.
Jane nunca vira a rainha. A cada verão, a rainha Elizabeth fazia uma viagem cerimonial a alguma parte do seu reino. Por várias vezes estivera em outros lugares da Inglaterra, mas nunca na Floresta. Seria possível que Sua Majestade tivesse vindo até aqui para verificar as defesas do litoral? A rainha cavalgaria por ali sem um séquito? Parecia estranho; mas talvez os fidalgos dela estivessem por perto e chegariam a qualquer momento. As ricas vestes da senhora, seu porte altivo e palavras gentis certamente combinavam com cada descrição que já tinha ouvido fazerem da rainha. Se não fosse ela, pensou, era alguém muito importante.
— Ah, sim, milady — respondeu e tentou uma tosca reverência. Não tinha certeza do que a figura real queria dizer, mas, seguramente, concordava.
A mãe de Albion sorriu. Ficava bastante claro para ela que em todos os três lugares que visitara muitos camponeses, talvez todos, continuavam fiéis às antigas tradições religiosas. Nessa avaliação, estava totalmente correta. E ali se encontrava uma moça inteligente, sozinha, confirmando tudo.
Outra idéia ocorreu à dama.
— Dizem, minha filha, que os espanhóis logo estarão aqui. O que vai acontecer quando eles chegarem?
— Vão enfrentar as milícias, milady. O meu irmão — Jane acrescentou avidamente — e o meu noivo — hesitou só um instante ao pronunciar a última palavra — fazem parte das milícias.
— Eles estão inabaláveis diante da verdadeira Fé?
— Ah, sim.
— E ambos são corajosos, tenho certeza — prosseguiu a dama, afetuosa. Quem é o capitão deles?
— Um cavalheiro nobre, milady. — Jane esperava que fosse esse o modo de se falar com uma rainha. — O nome dele é Albion.
— Albion? — Era exatamente o que ela queria. — E eles o seguirão obedientemente?
— Ah, sim, milady.
— Deixe-me lhe fazer uma pergunta, minha filha. Se por acaso os espanhóis que desembarcassem em nossas praias fossem na verdade os nossos amigos e não inimigos, o que faria seu irmão?
Jane pareceu perplexa. Como deveria responder?
— Se esse bom capitão, Albion, o instruísse nesse sentido? A testa de Jane desenrugou.
— Ele obedecerá, com lealdade, eu lhe garanto, milady, qualquer coisa que Albion ordenar.
— Muito bem, minha filha — exultou lady Albion. — Vejo que você é realmente leal. — E, com um aceno que na verdade podia ter sido dado por uma rainha, ela seguiu cavalgando em direção a Brockenhurst.
Ao se encontrar com o filho infeliz ao norte desse povoado, saudou-o alegremente com palavras que o deixaram ainda mais abalado.
— Estive conversando com a boa gente da Floresta, Clement. Está tudo bem. Você é amado e confiam em você, meu filho. — Deu um sorriso radiante de aprovação. — Você só terá que dar a ordem, e eles estarão prontos para se insurgir.
Mais dois dias se passaram, e o tempo sobre a Floresta continuava excelente. Dizia-se que, com toda a certeza, a frota espanhola tinha zarpado; contudo, ninguém sabia de seu paradeiro. A frota inglesa estava a oeste, em Plymouth. Os luzeiros estavam prontos, mas nenhuma mensagem havia chegado. Lá em cima, em Malwood, o jovem Nick Pride uivava de entusiasmo. Toda tardinha Jane o visitava e naquele dia ela havia prometido ficar para lhe fazer companhia durante o turno da noite.
— Pode ser que eu adormeça — alertou-o.
— E deve. — Sorriu-lhe confiante. — Mas eu não.
E, quando a noite caiu, ela disse aos pais que iria a Malwood para ficar com ele e tomou a trilha de costume que descia de Brook e passava pela árvore de Rufus. As sombras estendiam-se, ao alcançar o velho carvalho, e ela continuou caminhando, sem intenção de parar, quando subitamente percebeu que não estava sozinha. Debaixo das árvores próximas havia uma pequena carroça. E na carroça estava sentado Puckle.
Ela teve um leve sobressalto. Ele a observava calmamente. Ficou imaginando se ele já estava há muito tempo ali e pelo que esperava. Puckle parecia esperar que ela se aproximasse e, ciente de que o seu coração batia mais rapidamente do que desejava, foi até ele.
— O que o trouxe aqui? — perguntou ela com um sorriso.
Quando ela chegou perto, os olhos dele baixaram, como se estudassem as próprias mãos. Então levantou-os lentamente. Pareciam muito claros, enormes e brilhantes, ao fitarem diretamente os dela.
— Você.
Ela arfou. Não pretendia fazê-lo. Não conseguiu evitar. Lembrou que lhe dissera que costumava fazer aquele caminho ao vir de Malwood. Por isso ele estava à sua espera. Ela fez o melhor que pôde para se manter calma.
— E o que posso fazer por você? Continuou a olhá-la friamente.
— Para começar, pode entrar na carroça.
Ela sentiu repentinamente a respiração falhar acima do coração. Um leve tremor percorreu-lhe o corpo.
— É? — Conseguiu dar outro sorriso. — E aonde vamos?
— Para casa.
Para a casa dela? Franziu a testa, fitou o rosto dele, depois olhou para o chão. Ele se referia à casa dele: a cabana em Burley, com a cama entalhada. A audácia da proposta era quase chocante. Não conseguia levantar a vista. Não esperava aquilo. Os seus modos, porém, sugeriam que ele achava ser inevitável. Ele tinha vindo atrás dela. Era chocante, mas simples. Ela devia dar meia-volta e ir embora. Mas, contra todo o bom senso, ela vivenciou a inesperada sensação de um profundo e oculto alívio.
Ela sabia que tinha de ir embora, mas não se mexeu.
— Preciso fazer a vigília com Nick no luzeiro — falou finalmente.
— Deixe-o. — Sua voz era tranqüila como o anoitecer. Ela sacudiu a cabeça, vacilou, franziu a testa.
— Preciso ir vê-lo.
— Eu espero.
Virou-se e começou a caminhar em direção a Malwood. A luz que batia nas folhas era de um rubro dourado. Ela olhou para trás uma vez, em direção ao carvalho de Rufus, parada em meio a uma poça de luz alaranjada. Puckle não se mexera. Ela continuou andando.
O que devia fazer? Ela não sabia. Sabia? Não, insistiu consigo mesma, não sabia. Tinha que ver Nick Pride. Precisava olhar para ele.
Não demorou muito para chegar ao antigo muro de terra. Ao entrar, o fogo do pôr-do-sol na Floresta formava uma meia-lua brilhante em volta das sombras verde-escuras do interior da muralha.
Nick estava parado diante da cabana e foi na direção dela, parecendo empolgado.
— Está na hora de subir. Você está atrasada.
Quão jovem ele parecia. Quão adorável — sentiu uma onda de afeto por ele —, mas quão jovem.
Deixou-o levá-la muro de terra acima ao lado do luzeiro. Ele falava avidamente sobre o dia que passara, como um dos seus quase havia perdido o turno. Parecia tão orgulhoso de si mesmo. Ela estava contente por ele.
— Preciso voltar a Brook por um instante, Nick—disse ela. — Mas tentarei voltar mais tarde.
— Oh. — Franziu a testa. — Algo errado?
— Só umas coisas que preciso fazer. Nada de mais.
— Mas não conseguirá voltar depois que escurecer.
— Claro que conseguirei. Eu conheço o caminho.
— Vai fazer um belo luar esta noite — concordou. — Vai poder enxergar o caminho, creio eu.
— Tentarei vir.
Por que aquela mentira lhe dava tanto prazer, tanta excitação? Nunca havia se comportado antes daquela maneira. O deleite do engano era algo bastante novo para ela. Com um extraordinário senso de leveza, ela lhe deu um beijo, deixou-o e fez o caminho de volta em direção à árvore de Rufus.
No entanto, tremia ao subir na carroça. Sem dar uma palavra, Puckle segurou as rédeas, tocou o pônei com o chicote e partiram. O que ela estava fazendo? Pretendia ir em segredo com Puckle e voltar para Nick? Seria aquilo um súbito rompimento com sua família, sua vida anterior e seu noivo, para se tornar a mulher de Puckle? Ela mesma não sabia.
O vermelho do pôr-do-sol brilhava mais intensamente adiante deles quando a carroça chegou à charneca a céu aberto. Os raios banhavam o rosto de Puckle fazendo com que parecesse estranhamente ocre, quase demoníaco, ao viajarem para oeste. Vendo aquilo, ela deu uma risadinha. Então a grande orbe do sol mergulhou, a charneca escureceu, ela se inclinou e, pela primeira vez, ele colocou o braço em volta dela, para confortá-la, enquanto ela seguia com ele em direção ao mistério do proibido.
Ao chegarem, a cabana estava silenciosa sob o pálido luar. As crianças não estavam em casa. Provavelmente deviam estar passando aquela noite com algum outro membro do clã Puckle. Ele acendeu uma vela nas brasas ao entrarem e, levando-a para cima, colocou-a sobre o baú, e a luz suave fez com que a estranha cama de carvalho brilhasse de um modo íntimo e amistoso. A colcha tinha sido retirada.
Quando ele tirou a camisa, ela colocou as mãos sobre os espessos cabelos negros de seu peito, sentindo-os, maravilhada. O rosto dele, com a barba curta pontuda subitamente pareceu triangular, como algum animal da floresta, sob a luz da vela. Ela não tinha certeza do que devia fazer a seguir, mas ele delicadamente levantou-a, colocou-a na cama e, quando sentiu os seus braços fortes abraçando-a, Jane quase desfaleceu. Ao deitar-se na cama ao lado dela, logo percebeu que ele era duro e firme como a própria cama de carvalho, mas por um longo tempo lhe fez afagos e carinhos e, de alguma forma miraculosa, pareceu a Jane que ela se tornara uma das criaturas que ele entalhara com perícia e que se aninhavam, espreitavam ou se contorciam nos balaústres. E se uma vez ela gritou de dor por apenas um instante, depois de tudo certamente não se lembrava direito como ou quando aconteceu, durante a noite na qual, como por mágica, ela e a Floresta tornaram-se uma só.
Não soube, adormecida, que pouco antes da alvorada os luzeiros do litoral irromperam em chamas para anunciar que a Armada fora avistada.
Dom Diego bocejou. Em seguida mordeu o nó do dedo. Não devia ter adormecido. Precisava terminar sua tarefa. Sua honra estava em jogo.
Estava cansado, aliás, muito cansado. Seis dias tinham se passado desde que a Armada espanhola fora vista entrando no canal da Mancha e os faróis foram acesos. Seis dias de ação. Seis dias de exaustão. Todavia, tivera sorte. Seu parentesco, embora distante, com o duque de Medina-Sidônia, que agora comandava toda a Armada, lhe garantira um lugar na nau capitania. E, desse ponto privilegiado, ele testemunhara tudo.
Os primeiros dias tinham sido promissores. Ao passarem pela ponta sudoeste da ilha-reino, um insolente pesqueiro inglês apareceu para observá-los, circundou a frota em toda a sua extensão e depois desapareceu. Embora um dos navios espanhóis o tivesse perseguido sem sucesso, o duque apenas sorriu. "Deixem que ele se vá e conte aos ingleses o quanto somos fortes, cavalheiros", declarou. "Quanto mais aterrorizados ficarem, melhor."
No dia seguinte, ao velejarem lentamente em direção a Plymouth, descobriram que a frota inglesa estava presa pelo vento naquele porto. Um conselho de guerra foi convocado na nau capitania e não demorou muito para que Dom Diego soubesse o que todos pensavam.
— Vamos esmagá-los agora. Tomar o porto e usá-lo como nossa base — exortaram os audazes comandantes. E a Dom Diego pareceu uma boa sugestão.
Mas o seu nobre parente achava o contrário.
— As instruções dadas a mim pelo rei Filipe foram muito claras — disse-lhes. — A não ser que seja preciso, não devemos correr riscos desnecessários. — E, assim, a poderosa Armada seguiu velejando lentamente.
Mas naquela mesma noite os navios ingleses saíram a remo de Plymouth e tiraram vantagem do vento. E, como uma matilha de cães de caça, permaneceram desde então nos calcanhares da frota espanhola.
O ataque inglês foi quase contínuo. Os galeões espanhóis, com suas altas torres de proa e popa e imenso contingente de soldados, certamente venceriam qualquer combate se os ingleses se aproximassem o bastante para uma abordagem. Mas os ingleses rondavam, avançavam e recuavam, despejando saraivada após saraivada de tiros de canhão, enquanto os espanhóis reagiam.
— Os ingleses parecem disparar com mais freqüência — observou Dom Diego para o capitão.
— Exatamente. Nossas tripulações estão acostumadas a disparar apenas uma ou duas vezes, antes de emparelhar e abordar. Mas os navios ingleses são organizados como plataformas de canhões. Por isso não param de atirar. E eles também têm canhões mais pesados — acrescentou o capitão, mal-humorado.
Mas o que Dom Diego percebeu particularmente foi a velocidade relativa dos navios ingleses e espanhóis. Os navios ingleses não eram, como ele supunha, menores — algumas das grandes embarcações inglesas eram bem maiores do que os galeões espanhóis. E os mastros delas tinham uma disposição diferente; prescindiam das incômodas torres; tinham sido construídas não para atracar e fazer a abordagem do inimigo, mas para serem velozes. A tradicional batalha naval medieval tinha sido uma extensão do ataque de infantaria; a marinha inglesa era quase toda artilharia. Quando os navios espanhóis tentavam alcançá-los e abordá-los, como faziam repetidas vezes, os barcos ingleses afastavam-se rápida e facilmente.
Os espanhóis, porém, não eram uma presa fácil. A Armada tinha entrado no canal da Mancha em formação simples — uma imensa meia-lua com onze quilômetros de um lado a outro, com a maioria dos navios mais bem armados formando uma cortina protetora em volta de sua ponta dianteira e os barcos mais vulneráveis acomodados no centro. Os ingleses, assolando-os pela retaguarda, conseguiram algum sucesso. No domingo, três dias antes, causaram danos terríveis em alguns navios que haviam ficado para trás e no dia seguinte tomaram vários deles, enquanto o comandante de um dos galeões, Dom Pedro de Vai dez, que danificara o seu cordame ao se emaranhar com outra embarcação, se rendia desprezivelmente a sir Francis Drake, sem sequer esboçar uma reação. Mas depois que o duque ordenou que as asas da grande meia-lua se fechassem, a poderosa frota avançou pelo canal como um imensa paliçada móvel.
Nessa nova formação a Armada tornou-se quase inexpugnável. Se, por um lado, os espanhóis não conseguiam alcançar os ingleses, por outro, os ingleses não conseguiam afetar os espanhóis. Por várias vezes o tentaram.
"Tomem cuidado", os capitães espanhóis foram alertados. "Os artilheiros ingleses estão mirando na linha-d'água." E na terça-feira, ao largo do promontório ao sul de Portland, os ingleses despejaram nos espanhóis tudo o que tinham. Entretanto, embora tivesse havido grandes baixas, espantosamente pouco dano foi causado. Em parte porque os ingleses não ousaram chegar perto. Como resultado, até mesmo as balas dos seus maiores canhões perdiam muito da velocidade antes de atingirem os grandes galeões, e muitas delas simplesmente resvalavam. O outro motivo, que nunca seria registrado na ilha-reino, era simples. Como Dom Diego observou a um de seus acompanhantes: "Ainda bem que esses ingleses não são muito bons de pontaria."
A Armada era quase inexpugnável, mas não inteiramente. E o pouco sucesso por parte dos artilheiros ingleses dava agora a Dom Diego a oportunidade de alcançar a glória.
Quando a mãe de Albion dissera ao filho que o cunhado dele era um importante capitão do exército espanhol, como sempre acontecia, ela tinha exagerado. O que Catherine, na verdade, havia escrito para a mãe era que o marido, Dom Diego, esperava conseguir um comando. Só que no mundo celestial da imaginação de lady Albion essa esperança foi traduzida em uma brilhante realidade.
Na verdade, Dom Diego nunca havia seguido uma carreira. Era um bom homem. Tinha modos elegantes. Amava a esposa, os filhos e suas fazendas. E se, como todo verdadeiro aristocrata, ansiasse por acrescentar um lustro ao seu nome de família, a vida doméstica sempre o impedira. Mas agora, na meia-idade, quando um homem sabe que, se quiser fazer algo de sua existência, é melhor fazê-lo o quanto antes, Dom Diego viu a perspectiva da grande expedição à Inglaterra como a chance de toda uma vida. Seu parentesco com o duque de Medina-Sidônia, embora distante, era verdadeiro e lhe garantiu um lugar na nau capitania. E assim aquele homem de meia-idade, cujo casamento salvara as suas propriedades e cujos filhos amavam, partiu para arriscar a vida a fim de poder legar a eles um pouco da glória militar da qual até então carecia a sua vida caseira.
Mas qual era exatamente a função dele naquele grande empreendimento? E também por que exatamente outros gentis-homens como ele viajavam com a Armada? Havia dezenas na frota: fidalgos ricos, nobres pobres, principelhos de toda a Europa; havia filhos bastardos de duques italianos em busca de fama e pilhagem, além de, com quase toda a certeza, um filho natural do próprio devoto rei da Espanha. Alguns sabiam lutar, alguns foram só olhar e quanto a outros, como Dom Diego, havia um motivo vago por que tinham ido. Tratava-se, afinal de contas, de uma cruzada. Mas na noite daquele dia chegara finalmente a chance de Dom Diego.
Em sua formação defensiva, a Armada tinha adotado como característica que o grande comboio só se deslocasse na velocidade de sua nave mais lenta. Se um dos navios ficasse avariado, todos os demais teriam de ir mais devagar — mas eles já estavam se movendo vagarosamente demais. Navios danificados, portanto, tiveram de ser deixados impiedosamente para trás.
O barco que havia sido avariado era um vaso comum — uma embarcação lenta e pesadona com apenas alguns canhões, mas um contingente de tropas e o porão cheio de munição e suprimentos. No dia anterior os disparos dos canhões ingleses tinham danificado um dos mastros dele e o perfurado, além de matar seu capitão. E durante todo o dia seguinte o vaso avançou capengando, mas à tardinha ficou claro que não conseguiria mais prosseguir. E foi no início da noite que o duque, que andara imaginando algo inofensivo para o seu parente fazer, o convocou repentinamente e inquiriu se ele tinha condições de lidar com aquilo.
Dom Diego, portanto, já estava trabalhando havia horas. Tinha labutado árdua e diligentemente. A primeira coisa que fizera fora transferir as tropas para uma outra embarcação. Em seguida voltara a atenção para o importantíssimo carregamento de munição. Diferente dos ingleses, os navios espanhóis não tinham meios de conseguir a renovação de suprimentos. Tudo de que precisavam tinha de ser carregado com eles. Há quatro dias vinham respondendo aos disparos dos ingleses e alguns dos navios deles estavam ficando com escassez de pólvora. Utilizando o máximo possível de barcos menores, Dom Diego e o remanescente da tropa do vaso descarregaram barril após barril de pólvora e os transportaram para outros navios. Depois fizeram o mesmo com as balas de canhão. Foi um processo lento e difícil. Meia dúzia delas caiu no mar. Uma quase atravessou o fundo do navio que estavam carregando. A escuridão desceu e eles ainda continuavam o trabalho. A tripulação começou a resmungar, mas ele não lhe deu descanso. Por volta das onze horas, o serviço terminou.
Como ele tinha acordado antes do alvorecer daquele dia e não tinha feito a siesta, Dom Diego estava começando a ficar muito cansado. Apesar de terem passado horas aliviando o peso do vaso, ele ia cada vez mais devagar e afundando cada vez mais. Uma mensagem foi enviada pelo duque: ele agradecia a Diego pelo bom trabalho, mas o vaso tinha de ser deixado para trás. A tripulação, claro, estava pronta para sair.
Mas Dom Diego hesitou. Ainda havia uma coisa que queria fazer.
Ele fizera uma descoberta ao descer para inspecionar o porão. Apesar de ainda haver todo tipo de coisas lá embaixo, a pólvora, que estava na parte mais alta, e as balas de chumbo mais abaixo, tinham sido retiradas. Na parte mais baixa do porão, batendo no fundo do barco, ouviu a água chapinhar enquanto o vaso chafurdava cada vez mais para baixo. Segurando o candeeiro acima da água, esquadrinhou a área para verificar a profundidade. Foi então que ele notou um tênue brilho prateado e percebeu.
Todo o fundo do vaso estava forrado de prata: barras de prata; milhares delas. Reluziam misteriosamente sob a luz aquosa ao fitá-las.
Tal tesouro, é claro, não era de grande importância para a Armada, pois toda a frota carregava uma prodigiosa quantidade de ouro e prata. Nas atuais circunstâncias, a pólvora e o chumbo eram muito mais valiosos. Mas se o vaso fosse deixado simplesmente à deriva, os ingleses ficariam com a prata, e essa idéia o incomodava. Esta operação é minha, pensou, e terá de ser executada à perfeição.
A solução foi facilmente providenciada. Metade da tripulação foi dispensada imediatamente. O resto, apenas o suficiente para fazer o que ele queria, recebeu ordem para permanecer. Também manteve duas pinaças, uma de cada lado.
— Vamos deixar este barco para trás — falou aos homens —, tomando cuidado para que não se choque com qualquer outro enquanto fazemos isso. Depois vamos afundá-lo.
Os marujos olharam para ele mal-humorados. Tinham que obedecer àquele fidalgo, que nada sabia de navios e lhes fora impingido; mas não estavam gostando.
— O que faremos depois disso? — perguntou um deles, com um tom de insolência na voz.
— Entraremos nas pinaças — respondeu Dom Diego. — Sem dúvida acrescentou friamente —, se vocês remarem com afinco, conseguiremos alcançar a frota de volta.
A noite estava escura. Nuvens cobriam a lua. Muito lentamente, metro a metro, o vaso foi ficando para trás da frota. À esquerda e à direita, enquanto os minutos passavam, aqui e ali formas enormes assomaram acima deles, pairaram e então desfizeram-se misteriosamente. O processo de recuo talvez demorasse uma me'a hora, calculou ele.
Desceu à enorme cabine do capitão na popa. Havia lá uma grande cadeira e sentou-se nela. Estava cansado, mas tinha uma sensação de satisfação pelo que havia feito. Bem, quase feito. Estava exausto mas sorria. Por um momento uma onda de sono quase o dominou, mas sacudiu a cabeça para expulsá-la. Dentro de pouco tempo, pensou, seria hora de ele voltar ao convés. A cabeça de Dom Diego afundou no peito.
Albion gemeu por dentro. Já corria metade da noite, e sua mãe, que Deus lhe valesse, ainda não tinha ido dormir.
A sala almofadada de carvalho estava toda iluminada: ela ordenara velas novas uma hora atrás. E agora, talvez pela quarta vez — ele tinha perdido o ânimo de contar —, ela voltara a atingir o clímax do entusiasmo.
— Está na hora, Clement. É agora. Sele o seu cavalo. O jogo começou. Convoque os seus homens.
— Estamos no meio da noite, mamãe.
— Suba até Malwood — gritou. — Acenda o luzeiro. Chame as milícias.
— Tudo o que lhe peço, mamãe — falou pacientemente —, é que esperemos até o amanhecer. Então iremos saber.
— Saber? Saber o quê? — Sua voz elevou-se a uma altura que poderia agradar a qualquer pregador. — Nós não vimos, Clement? Nós não o vimos chegar?
— Talvez — respondeu, inexpressivo.
— Oh! — Levantou os braços, exasperada. — Você é um fraco. Fraco. Todos vocês. Se ao menos eu fosse homem.
Se você fosse homem, pensou consigo Albion, já teria sido trancafiado há muito tempo.
A Armada tinha sido avistada no final da tarde. Os dois, juntamente com um grupo de cavalheiros e damas, haviam se reunido no cume da elevação próxima a Lymington, do qual havia uma excelente vista, por cima de Pennington Marshes, para o canal da Mancha. Assim que os navios distantes ficaram à vista, a mãe passou a ficar muito agitada, e ele foi forçado a segurar as rédeas do cavalo dela, puxá-la para um canto e cochichar insistentemente:
— Precisa disfarçar, mamãe. Se exortar agora os espanhóis, vai estragar tudo.
— Disfarçar. Sim. Rá-rá — gritou várias vezes. Depois, com um sussurro que certamente deve ter alcançado muito além de Hurst Castle: — Você tem razão. Precisamos ser sensatos. Seremos astutos. Deus salve a rainha!— berrou de repente, fazendo com que as damas e os cavalheiros se virassem surpresos. — A herética — ciciou com deliciada malignidade.
Por três horas de abalar os nervos, continuaram observando a Armada seguir na direção leste. O vento diminuíra, e o progresso dela parecia cada vez mais lento. A frota inglesa, formada em pequenas esquadras, agora era visível não muito atrás. Em pouco tempo várias embarcações pequenas e velozes puderam ser vistas destacando-se de suas esquadras e seguindo caminho velozmente em direção à entrada do Solent. Em menos de uma hora, duas tinham navegado pela entrada e ancorado a sotavento de Hurst Castle, enquanto duas outras se apressavam em direção ao Southampton. Logo eles puderam ver os homens de Hurst Castle saírem em barcaças carregadas com pólvora e chumbo e, assim que as duas embarcações conseguiram acumular tudo o que podiam, voltaram rapidamente na direção da frota, no meio da qual, de tempos em tempos, viam-se pequenas golfadas de fumaça e disparos, acompanhados, após uma demorada pausa, de um leve brami-do como um discreto trovão.
A Armada até então não dava sinais de seguir para o canal da Mancha. Os navios permaneciam como silhuetas, uma multidão de aguilhões, como recortes de papel, avançando aos poucos na linha do horizonte. Na ilha de Wight, a guarnição ainda não acendera o segundo e o terceiro faróis. Mas, enquanto a escuridão começava a baixar e o espetáculo distante tornava-se apenas alguns poucos e esporádicos clarões, a mãe de Albion continuava mais do que nunca confiante em sua crença anterior.
— Eles vão fazer a volta e se aproximar de nós protegidos pela escuridão, Clement — assegurou-lhe, confiante. — Estarão no Solent pela manhã. — E foi o que passou a dizer desde então.
Albion deu uma olhada na esposa. Ela estava vestida com a camisola, pronta para ir dormir. Seus cabelos louros, apenas levemente raiados de prata, pendiam soltos. Colocara um xale à sua volta e estava sentada quieta a um canto, sem nada dizer. Mesmo sem tomar parte na conversa, Albion sabia muito bem o que ela estava fazendo. Ficaria só observando. Desde que ele conseguisse controlar a mãe, de uma vez por todas. Caso contrário, ela já o tinha alertado de que dera uma ordem aos criados que nem mesmo ele ousaria cancelar.
— Vamos perder nossa herança — ele a tinha advertido.
— E conservaremos as nossas vidas. Se ela nos envolver em traição, vamos trancá-la.
Ele não a censurava. Ela certamente tinha razão; mas pensar em perder todo aquele dinheiro era difícil para ele; e era por isso que continuava, ainda naquela ocasião — para o bem dos filhos, dizia a si mesmo—, contemporizando com a mãe, tentando ganhar tempo.
— Mandei um criado a Malwood, mamãe — salientou pela terceira vez. — Se os luzeiros sinalizarem qualquer aproximação, serei informado imediatamente.
— Os luzeiros — exclamou ela com desprezo.
— Eles funcionam muito bem, mamãe — falou com firmeza. — Onde a senhora acha que eu devia estar? Já lá embaixo, no litoral, com os meus homens? A postos para silenciar os canhões de Hurst Castle? — Arrependeu-se antes mesmo de terminar de falar.
O rosto dela iluminou-se.
— Sim, Clement. Sim. Faça isso. Eu lhe imploro. Pelo menos fique a postos para atacar rapidamente. Por que hesita? Vá imediatamente.
Albion fitou pensativamente as velas lampejantes. Se ele se dedicasse a essa pequena incumbência, isso apaziguaria a mãe? Seria a coisa mais sensata a fazer? Talvez. Mas, ao mesmo tempo, outra idéia habitava sua mente. Ele tinha certeza de que a Armada não estava seguindo para o Solent ocidental. Mantivera-se longe demais no mar. Mas e se ela fosse para Portsmouth, passando pela ilha de Wight? Ou para qualquer um dos ancoradouros ao longo da costa sul? Havia também Parma para ser levado em consideração. E o enorme exército dele nos Países Baixos? Podia estar desembarcando no Tâmisa naquele mesmo instante em que conversavam. Sua mãe podia ser perigosa; podia estar louca. Mas estaria errada? Era um pensamento que nunca havia partilhado nem mesmo com a esposa. A hora estava muito próxima. Se os espanhóis desembarcassem, poderiam vencer. Se vencessem, não deveria ficar do lado deles? Provavelmente não eram poucos os ingleses com esses pensamentos naquela noite.
E certamente, refletiu, se havia uma forte possibilidade de a causa de sua mãe triunfar, seria de fato tolice tornar uma inimiga a maior advogada dessa causa.
— Está bem, mamãe. Pode estar com a razão. — Dirigiu-se à esposa. —Você e a minha mãe devem permanecer aqui e não falar para ninguém que eu saí. Há alguns bons homens em que posso confiar. — Era pura invenção. — Vou reuni-los agora e desceremos para a praia. Se os espanhóis mostrarem sinais de que vão desembarcar... — Na verdade, ele não fazia idéia do que faria, mas a mãe ficou exultante.
— Graças a Deus, Clement. Finalmente. Deus o recompensará.
Não muito depois Albion deixou sua casa, cavalgou pela mata e seguiu o caminho do sul em direção a Lymington. Se teria de ficar acordado a noite toda, deliberou, seria melhor passá-la na praia. Quem sabe? Algo poderia acontecer.
A esposa e a mãe ficaram para trás, sentadas em silêncio na sala. Algumas das Velas foram espevitadas. O aposento estava banhado por uma incandescência suave e agradável.
Após algum tempo a velha senhora bocejou.
— Acho — disse ela — que vou descansar um pouquinho. Promete me acordar assim que houver alguma notícia?
— Claro.
Lady Albion levantou-se, beijou a nora na testa e bocejou outra vez.
— Então está bem — falou e, pegando uma vela, saiu da sala.
Poucos instantes depois a esposa de Albion ouviu-a entrando em seus aposentos. Seguiu-se o silêncio. Ela esperou, soprou todas as velas menos uma, em seguida subiu para o seu quarto, dirigiu-se o mais rapidamente possível para a cama e pousou a cabeça. No que lhe dizia respeito, a sogra podia dormir até o dia do Juízo.
E ela dormia profundamente, meia hora depois, quando lady Albion. em silêncio, deixou a casa sorrateiramente.
Estava um breu quando Dom Diego acordou. Por instantes olhou ao redor, tentando se lembrar de onde estava. Então, sentindo o braço da cadeira e enxergando indistintamente a grande cabine à sua volta, lembrou-se. Levantou-se com um sobressalto. Por quanto tempo estivera adormecido? Cambaleou para fora, subiu para o convés e chamou os seus homens.
Silêncio. Correu para um lado à procura da pinaça. Havia sumido. Atravessou para o outro. Também havia desaparecido. Estava sozinho. Fitou a escuridão adiante. O céu estava nublado; apenas algumas estrelas espreitavam, mas conseguia ver as águas em volta. E não avistou nenhum navio. Franziu o cenho. Como era possível? Se tivesse passado tanto tempo, o vaso deveria ter afundado. O que tinha acontecido?
Se ele conhecesse melhor os marinheiros, talvez tivesse adivinhado facilmente. Ansiosos por perderem o mínimo de tempo possível, eles só haviam feito uma insignificante tentativa de afundar o barco e entraram imediatamente nas pinaças. Depois, com os homens de cada uma das pinaças indo para navios diferentes, alegariam ter pensado que Dom Diego estivesse na outra. Quanto ao vaso, continuou velejando lentamente para adiante, mas um dos marujos, antes de partir, virou cuidadosamente o leme do barco, que se desgarrou em direção ao porto. Quando os navios ingleses o viram à distância e no escuro, equivocaram-se pensando que se tratasse de um barco deles. E, assim, durante várias horas, o vaso seguiu desgracioso e indolente um curso cada vez mais no sentido nordeste.
Então, esquadrinhando à frente, Dom Diego notou subitamente algo mais. Adiante dele, nas trevas, talvez uns três quilômetros distante, surgiu uma forma mortiça e indistinta. A princípio pensou que se tratasse de uma nuvem, mas não era. Percebeu que era parte de uma forma maior e mais escura. O perfil de rochedos brancos. Já podia enxergá-los melhor. Olhou para bombordo. Sim. Havia o contorno de um litoral mais baixo ali, estendendo-se por muitos quilômetros. Deu-se conta de onde devia estar. A linha escura devia ser a costa sul da Inglaterra. Os rochedos brancos deviam pertencer à ilha de Wight.
Estava sendo carregado para a embocadura ocidental do Solent. Durante muito tempo fitou adiante, aterrorizado, mas pensando. Então, lentamente, aquiesceu com a cabeça.
De repente soltou uma ruidosa gargalhada.
Pois vejam, concluiu, o que fizera a Providência divina. Foi-lhe dada uma oportunidade muito maior do que qualquer uma que ousara desejar. Era bem além dos seus sonhos. O verdadeiro Deus concede milagres.
Ainda se maravilhava com sua boa fortuna quando o vaso atingiu um banco de areia, deu uma guinada e encalhou.
Nick Pride ouviu o cavalo assim que ele entrou no local, mas manteve os olhos no luzeiro distante. Ali só havia ainda um único ponto de luz no meio da escuridão.
Ele estava sozinho no muro. O homem que o renderia dormia na cabana. Tinha ficado por conta própria desde o anoitecer, quando Jane, após observar a Armada no horizonte distante por mais ou menos uma hora, fora embora. Era uma noite decisiva. Se os espanhóis começassem a seguir para a costa, os faróis da ilha de Wight certamente iriam a três. Não desgrudara os olhos do sinal um minuto sequer desde o cair da noite.
Sua mente, porém, por várias vezes havia derivado para outras questões.
O que estava acontecendo com Jane? Já fazia três noites seguidas que ela vinha vê-lo, ficava em sua companhia por alguns momentos, mas se recusava a passar a noite. Em cada uma das vezes, de certa maneira, houvera estranheza em seus modos. Numa noite parecera preocupada e dissimulada; na outra criticara-o repentinamente e parecera se enfurecer sem motivo. Numa terceira vez parecera bem-humorada, até quase maternal, e beijara-o na testa, como se ele fosse uma criança. Naquela última noite, quando dissera que precisava ir, ele a olhara de modo estranho e lhe perguntara o que havia de errado. Ela apontara na direção dos navios da Armada no horizonte e perguntara: "Não é motivo suficiente de preocupação, Nick? O que será de todos nós?" Em seguida, deixara-o abruptamente.
Ele achava que devia ser esse o motivo por estar agitada. Mas sempre que sua mente se dedicava a esse assunto, aquilo continuava a não parecer satisfatório.
Um bufido do cavalo atrás dele indicou-lhe que estava quase chegando ao muro. Não esperava Albion, mas era típico do seu capitão se dar ao trabalho de fazer uma visita mesmo àquela hora da noite. Esperou a saudação familiar.
— Você. Rapaz. Sentinela.
Uma voz de mulher. O que significava aquilo?
Seja lá o que tivesse de dizer em desafio, esqueceu. Em vez disso, como um rústico aldeão, indagou:
— Quem está aí?
Seguiu-se uma breve pausa e depois a mesma pessoa bradou com um tom autoritário:
— Acenda o seu luzeiro, rapaz, convoque a milícia. Era demais.
— O luzeiro só será aceso quando houver dois na ilha. Bem, pelo menos dois. São as minhas ordens, dadas pelo capitão Albion. — Aquilo soou definitivo.
— Mas eu venho da parte de Albion, meu caro rapaz. É ele quem manda você acender o luzeiro.
— E quem é você?
— Sou lady Albion. Ele me enviou. — Obviamente, era alguém querendo pregar uma peça.
— É o que diz. Mas só acendo este luzeiro quando avistar dois lá adiante — rebateu Nick com firmeza. — E pronto.
— Terei que forçar você?
— Pode tentar. — Desembainhou a espada.
— Os espanhóis estão vindo, seu tolo.
Por um instante Nick Pride hesitou. A seguir teve uma inspiração.
— Então me diga a senha. Houve uma pausa.
— Ele me disse a senha, meu bom rapaz, mas, ai de mim, eu a esqueci.
— Ele lhe disse?
— Sim. Dou-lhe minha palavra.
— A senha é... — vasculhou a mente — carvalho de Rufus?
— Sim. Sim. Creio que é. —A árvore milagrosa.
— Bem, então eu vou lhe dizer uma coisa.
— Sim?
— Não existe senha nenhuma. Agora dê o fora, sua devassa.
— Você pagará por isso.
O tom de voz era furioso, mas decepcionado. Mesmo na escuridão, era possível perceber.
— Dê o fora, já disse.
Ele deu uma risada. E um momento depois a estranha amazona recuou para as sombras. Ficou imaginando quem poderia ser. Pelo menos aquilo lhe tinha dado algo mais para pensar, enquanto olhava para baixo mais uma vez, para a luz solitária à distância.
Quanto a lady Albion, ela virou o cavalo em direção ao sul. Se necessário, tomaria pessoalmente os canhões de Hurst Câstle.
A curta noite já ia bem avançada quando Albion alcançou o terreno alto em Lymington. As nuvens ainda obscureciam as estrelas. Olhando o mar, além da tênue palidez dos rochedos calcários da ilha de Wight e das Needles, ele nada conseguia ver na densa escuridão. Onde quer que se encontrasse a Armada, ele não acreditava que estivesse se aproximando da praia. Era provável que naquele momento ela tivesse sumido atrás da ilha de Wight. Talvez, à primeira luz, pensou, ele devesse cavalgar para oeste, alguns quilômetros ao longo da costa, para ver se conseguia enxergar as frotas atrás da ilha. Mas, por enquanto, desmontou e sentou-se no chão.
Já estava ali havia algum tempo, quando pensou ter visto uma forma escura sobre a água. Por um momento achou que era imaginação. Mas não: estava mesmo ali. Um navio se aproximando. Levantou-se, o coração subitamente aos pulos. Era possível que a Armada tivesse se esquivado despercebida? Ou, talvez, uma esquadra tivesse sido enviada, sob a proteção da noite, para tomar o Solent? Virou-se e saltou para a sela. Precisava ir correndo a Hurst Castle e alertar o pessoal.
Mas então parou. Precisava? Ia ajudar Gorges ou deixar que os espanhóis o apanhassem de surpresa? Ninguém poderia culpá-lo. Ninguém sabia que ele estava ali. De repente percebeu com horrível intensidade que chegara o seu momento de decisão. De que lado ele estava?
Não fazia idéia.
Havia passado tanto tempo dizendo uma coisa para a mãe e outra para o mundo que sinceramente não se lembrava mais de onde se encontrava. Encarou o mar, impotente.
O navio continuava se aproximando, mas muito lentamente
Vasculhou o escuro, tentando enxergar outros, mas não conseguiu localizá-los. Esperou. Nada ainda. Então a forma escura pareceu parar. Parou. Ele sorriu. Devia ter atingido um banco de areia. Continuou observando. Seria perfeitamente possível que meia dúzia de navios espanhóis acabasse encalhando ali. Mas, embora tivesse esperado, não surgiram outras formas. Fosse o que fosse, o navio estava sozinho.
Suspirou aliviado. Afinal de contas, não precisava tomar nenhuma decisão. Ainda não.
Uma hora depois a primeira insinuação de luz surgiu no oriente. As nuvens também rareavam. Em meio ao cinza, a linha do horizonte surgiu plena. A Armada não estava mais à vista.
Já podia ver claramente o vaso. Procurou por algum sinal de vida, mas, aparentemente, não havia. O vento se reduzira à mais leve das brisas; a água em volta do navio estava calma. Talvez houvesse sobreviventes. Se fosse o caso, estariam provavelmente nas praias depois de Keyhaven.
Ficou pensando se devia ir até lá, dar uma olhada. Podia ser perigoso, se eles estivessem todos ali. Por outro lado, ele estava montado. Tinha uma espada. Refletiu e depois deu de ombros.
Sua curiosidade levou a melhor.
Dom Diego observou cautelosamente. Ainda estava bastante molhado, mas se considerava um felizardo. O vaso encalhara a apenas mais ou menos um quilômetro e meio da praia. O mar estava calmo. Tinha sido bem simples encontrar no porão do navio tudo de que precisou para construir uma balsa e fazer um remo de pá larga. A maré o ajudara a alcançar a praia arenosa antes do raiar do dia. Escondera a balsa, subira o pequeno monte de areia e começara a andar ao longo da charneca. Uma precaução ele havia tomado. Como a maioria dos fidalgos que viajavam com a Armada, usava um comprido cordão de ouro no pescoço. Seus elos valiam como moeda corrente. Por enquanto, ele ia escondido debaixo da camisa e do gibão. Também se fez apresentável o melhor que pôde. Limpou os sapatos e as meias, esfregou os calções e o gibão o máximo possível. Sabia que a moda inglesa seguia a espanhola. Não tinha muita certeza se falava tão bem o inglês. Ele se esforçara muito para fazê-lo, e sua esposa lhe garantiu que falava. Talvez ele pudesse se fazer passar por um fidalgo inglês assaltado, em vez de um espanhol naufragado. Logo iria descobrir.
Seguiu caminhando cautelosamente, pronto para mergulhar em busca de abrigo no instante em que fosse necessário. Ele sabia, pelos mapas da nau capitania do duque, o que havia na terra em volta da desembocadura do Solent. Sabia onde ficava Hurst Castle. Gostaria de saber onde ficava Brockenhurst, mas não sabia.
Sua missão agora, em todo caso, era bastante simples. Precisava evitar ser assaltado ou morto por milicianos ansiosos. Precisava, assim que fosse possível, encontrar um homem; então os seus problemas acabariam.
Viu o cavaleiro solitário a alguma distância vindo em sua direção. Pulou para trás de um arbusto de tojo e esperou, preparando-se cuidadosamente.
Ao se aproximar do arbusto de tojo, Albion diminuiu a marcha do cavalo e parou. Ele tinha enxergado a figura solitária caminhando ao largo, aparentemente sozinha, e vira quando disparou para trás do arbusto. Com a mão na espada, aguardou o lance seguinte.
Não teve que esperar muito.
O espanhol amarfanhado — pois era bastante óbvio que se tratava de um deles
saiu do esconderijo e, para sua surpresa, dirigiu-se a ele em um inglês passável,
apesar do sotaque espanhol.
— Senhor, peço a sua ajuda.
— Não me diga!
— Fui emboscado e assaltado, senhor, durante minha viagem à casa de um parente que mora não muito longe daqui, creio eu.
— Entendo. — Clement mantinha a mão na espada, mas estava decidido a prosseguir com o jogo para ver até onde ia aquilo. — E veio de onde, sèñor?
— De Plymouth. — De certo modo, era verdade.
— É uma longa viagem. Posso saber o seu nome?
— Pode, senhor. — O espanhol sorriu. — Eu me chamo David Albion.
— Albion?
— Sim, senhor. — Dom Diego observou o rosto do inglês registrar um total espanto. Eu o deixei impressionado, pensou, e, encorajado, continuou. — Meu parente é ninguém menos que o grande capitão Clement Albion em pessoa.
Dizer que essa informação impressionou o inglês seria atenuar uma verdade. Ele parecia estupefato.
— Ele é mesmo um homem tão importante assim? — indagou com a voz fraquejando.
— Ora, creio que sim, senhor. Não é ele o capitão de todos os grupos treinados e das defesas daqui até Portsmouth?
Por vários segundos terríveis Albion ficou em silêncio. Seria essa a reputação dele entre os invasores espanhóis? A Armada inteira teria ouvido falar nele? Teria algum espanhol capturado implorado e chamado o seu nome? Como, a não ser que a Inglaterra caísse em mãos espanholas dentro de poucos dias, iria explicar isso ao conselho? Embora estivesse estarrecido, reuniu sagacidade suficiente para saber que precisava descobrir mais.
— O senhor não é David Albion. Em primeiro lugar, porque percebo que é espanhol. — Desembainhou silenciosamente a espada. — E em segundo porque Albion não tem um parente com esse nome. — Olhou para ele com gravidade. — E sei disso, senhor, porque eu sou Albion.
Por um momento o espanhol abriu um largo sorriso, mas logo se conteve.
— Como posso saber que o senhor é Albion? — perguntou.
— Não sei — respondeu Clement calmamente. Mas o espanhol pareceu pensativo.
— Há um meio — falou baixinho. Em seguida disse o seu nome a Clement.
— Mas que sorte... eu deveria dizer que é um sinal da Providência divina... meu caro irmão, que, de todas as pessoas da Inglaterra que eu poderia encontrar
— Dom Diego parecia tão encantado, tão comovido — fui encontrar logo você.
— Olhou feliz para Albion, mas sério. — É maravilhoso, sabia?
Estavam sentados, por sugestão de Albion, em uma agradável depressão de um rochedo onde não seriam incomodados. Só havia demorado um momento para verificarem quem eram. Albion perguntou carinhosamente pela irmã Catherine, e Dom Diego também pareceu igualmente ansioso em saber da boa saúde da sogra, a quem descreveu como "aquele prodígio, aquela santa". Mas quando Albion o congratulou pelo seu alto comando, Dom Diego pareceu confuso.
— Meu comando? Não tenho comando nenhum. Não passo de um fidalgo viajando particularmente com a Armada. Foi você, meu caro irmão — inclinou a cabeça —, quem galgou um alto e honrado posto. Há tempos sua mãe nos escreveu contando tudo.
Albion aquiesceu lentamente. Começou a entender. Viu a fantástica mão da mãe naquilo tudo. Mas não era o momento de desiludir o bem-intencionado espanhol. Havia tantas coisas que ele precisava descobrir. O próprio rei da Espanha esperava que ele entregasse Hurst Castle aos espanhóis?
— Ah, o meu plano! — O rosto de Dom Diego iluminou-se. — O plano de sua mãe, é claro, eu diria. Que mulher! — Mas em seguida seu semblante esmoreceu. — Eu tentei, meu caro irmão. Deus sabe que tentei. Redigi um longo relatório para o meu parente, o duque de Medina-Sidônia. Mas... —A mão indicou um movimento de desapontamento. — Nada.
— Entendo. — As coisas pareciam promissoras.
Mas qual era exatamente, Albion aventurou-se a perguntar, o plano de invasão espanhol?
— Ah. Qual exatamente? — Dom Diego sacudiu a cabeça. — Todos nos presumimos, todos os comandantes dos navios presumiram que devíamos tomar um porto como base. Plymouth. Southampton. Portsmouth. Um deles. De lá os nossos navios poderiam ser abastecidos.
— Parece-me sensato.
— Mas Sua Majestade o rei Filipe insistiu que a Armada seguisse direto para se encontrar com Parma. Nos Países Baixos.
— Quer dizer que a Armada vai transportar as tropas de Parma para cá?
— Não. Parece que as águas onde se encontra o exército de Parma são rasas demais para os nossos galeões. A Armada vai ficar baseada em Calais. De qualquer modo, é apenas um dia de viagem.
— E depois?
— Depois Parma atravessará para a Inglaterra. Ele é um grande general, como sabe. Alguns dizem — baixou a voz, como se mais alguém pudesse estar ouvindo
— que será Parma quem se fará rei da Inglaterra, em vez do rei Filipe. Não que ele seja desleal, é claro. — Dom Diego ainda parecia desconfiado.
— E como Parma fará a travessia? Ele tem uma frota?
— Apenas barcos de fundo chato. Por isso vai precisar de tempo bom.
— Mas os navios ingleses irão eliminar da água qualquer embarcação de transporte desse tipo — objetou Albion.
— Não, não, irmão, você está esquecendo. Nossa Armada estará distante a apenas um dia de viagem. E os nossos galeões estão lotados de tropas. Os ingleses não ousarão se aproximar o bastante para atacá-los.
— Então por que eles estão fazendo isso agora?
Como para sublinhar a pergunta, ouviu-se um leve ribombar vindo do mar além da ilha de Wight. O ataque inglês à Armada tinha recomeçado. Dom Diego pareceu perturbado.
— Na verdade, o meu parente, o duque de Medina-Sidônia, insinuou que ele... achava o plano do rei imperfeito. — Balançou a cabeça. — Fomos informados que os seus navios estavam todos podres e que tinham escapulido.
— Foi minha mãe que também lhe disse isso?
— Ah, com quase toda a certeza. — Mas a seguir Dom Diego se animou. — Contudo, meu caro irmão, não devemos esquecer o mais importante de tudo.
— O quê?
— Que Deus está conosco. É vontade Dele que nós sejamos bem-sucedidos. Disso, temos certeza. — Sorriu. — Portanto, tudo acabará bem. E, é claro, no instante em que os ingleses souberem que estamos em terra, mesmo se apenas a metade dos homens de Parma conseguirem atravessar...
— O que acontecerá?
— Os ingleses se insurgirão — exultou. — Eles entenderão que viemos libertá-los da bruxa Elizabeth, essa assassina que os mantém na escravidão.
Albion pensou nos homens simples das milícias, que há pouco haviam sido informados de que a carga principal dos galeões eram instrumentos de tortura da Inquisição espanhola.
— Pode ser que eles não se insurjam — disse, cauteloso.
— Ah, um punhado de protestantes. Eu sei.
Albion não retrucou. Uma coisa tornava-se clara para ele. Se o seu cunhado tivesse metade da razão a respeito da estratégia espanhola, ele temia ser improvável que a invasão fosse bem-sucedida. E era nisso que estava pensando e nas implicações daquilo em relação a ele pessoalmente, quando notou que o cunhado discursava empolgado.
- essa oportunidade. Você e eu juntos. Assim que Parma desembarcar, poderemos liderar os grupos treinados daqui e arrastaremos todos em direção a Londres, onde nos juntaremos a ele.
— Você quer que a grande insurreição seja liderada por nós dois?
— Isso lhe trará mais glória ainda, irmão. E para mim também. — Dom Diego encolheu os ombros. — Apenas cavalgar a seu lado já será uma grande honra para mim.
Albion assentiu lentamente. Aquilo era uma porção de gloriosa insanidade digna até mesmo da mãe dele.
— Recrutar uma grande força — falou diplomaticamente — não é tão fácil assim na Inglaterra. Mesmo se a Fé fosse maior...
— Ah. — Dom Diego olhou-o radiante. — Essa é a maravilha do que tem acontecido. Onde é vista claramente a Providência divina. As nossas tropas espanholas — acrescentou tranqüilizador — não são melhores. A todas elas foi prometida uma imensa pilhagem na Inglaterra. Mas isso, meu irmão, é apenas um pormenor. Deus colocou em nossas mãos tudo que é necessário para fazer Sua vontade. Nós podemos pagar as tropas. — E, vendo o ar atônito de Albion, gesticulou em direção ao mar. — Quando naufraguei, sozinho, pensei que era um castigo. Mas não foi. Aquele navio ali. Abaixo da linha-d'água, todo o chão do porão está repleto de prata! — E gargalhou regozijando-se com o prodígio da coisa.
— Não tinha nenhum companheiro?
— Não. Nós dois apenas, meu irmão, temos a posse dessa prata. Ela foi colocada em nossas mãos.
Albion voltou a ficar pensativo.
Sinalizando para que o espanhol permanecesse onde estava, levantou-se e foi até a borda do penhasco. A embarcação havia se fixado. Não seria arrastada. Agora nem mesmo a maré alta faria com que flutuasse. Ao fitar o vaso encalhado, o sol prateado da manhã começou a romper no horizonte oriental da Floresta.
Virou-se para olhar Dom Diego. Que coisa estranha era o destino. Encontrar esse espanhol, naquelas circunstâncias, após tantos anos, e além disso descobrir que o cunhado gostava dele. Portanto, não havia a menor dúvida: aquele espanhol de meia-idade bem-intencionado era um homem muito bom. Albion suspirou.
Sua mente percorria cuidadosamente todos os dados. Pensou na irmã, pensou em si mesmo; pensou em Dom Diego com a sua crença e a da mãe dele na causa católica. Pensou no conselho, em Gorges, na desconfiança que este tinha dele. E pensou, muito cuidadosamente, na prata. Isso, deduziu, tornava a situação bastante interessante. Em pouco tempo começou a formular um plano. Ao considerar os seus vários aspectos, pareceu-lhe que podia funcionar. Meditativo, olhou para trás, em direção ao sol nascente.
Então ele a viu. Ela cavalgava sozinha atravessando a serra para Lymington. A capa adejava às suas costas, preta e encarnada. O chapéu ia fora de prumo. Tinha a aparência de uma visão fantástica, uma bruxa montada que poderia perfeitamente seguir a meio galope pelo cume e saltar para o espaço. Ao mesmo tempo, um pensamento lhe ocorreu, um súbito e gélido pânico: e se ela o visse e encontrasse Dom Diego?
Jogou-se no chão, aterrorizado, e, percebendo que o espanhol o olhava atônito, fez um sinal para que ficasse em silêncio e espreitou por cima da moita diante dele. Lady Albion continuava lá em cima. Não o tinha visto. Havia parado e estava olhando o mar. Ele continuou a observá-la por um ou dois instantes, depois escorregou para a depressão, juntando-se ao espanhol.
— Está tudo bem? — perguntou Dom Diego, intrigado.
— Sim. Está tudo bem. — Albion olhou afetuosamente para o recém-encontrado cunhado. Era mesmo uma pena infernal que as coisas não tivessem sido de outra maneira. — Há uma coisa que preciso lhe mostrar, irmão — falou mansamente e desembainhou a espada. — Na lâmina. Veja.
Dom Diego curvou-se para olhar.
Então, muito repentinamente, Albion o trespassou.
Ou quase. Pois a ponta da espada atingiu o cordão de ouro sob a blusa do espanhol. E, enquanto Dom Diego berrava e fitava com os olhos arregalados de espanto, Albion, recuando, teve de estocar novamente, várias vezes, até ter sucesso. Foi uma porcalhada.
Esperou até o corpo parar de estrebuchar, em seguida retirou o cordão de ouro, que pesava quase dois quilos, e cobriu Dom Diego com terra do chão da melhor maneira que pôde, antes de ir pegar o cavalo. Misericordiosamente, sua mãe havia desaparecido. Provavelmente estava tentando incitar uma rebelião em Lymington, pensou cruelmente.
Olhou de volta para o local onde estava Dom Diego. Sentiu culpa, é claro. Mas às vezes, parecia-lhe, você não sabe dizer ao certo se uma coisa foi boa ou ruim. Era uma questão de sobrevivência.
Agora, porém, precisava se apressar. Havia coisas a fazer.
— Prata? Você tem certeza?
Gorges e Helena estavam sozinhos com ele no grande aposento em Hurst Castle. Deixaram-no ali, esperando por algum tempo, a observar o Solent, mas agora já tinham se juntado a ele.
— Eu o interroguei minuciosamente. Na ponta da espada. Creio que ele falou a verdade.
— E esse espanhol... estava sozinho? — indagou Gorges.
— Ele disse que estava. Tentava afundar a embarcação e, por engano, foi deixado a bordo. Eu não vi mais ninguém — continuou Albion —, portanto, acho que estava. Ninguém — frisou bem — sabe dessa prata, além de nós. Vim procurar você imediatamente.
— Mas você matou o espanhol. — Gorges parecia preocupado.
— Ele me atacou de repente. Não tive escolha.
— Não devíamos ir buscar o corpo? — perguntou Helena.
Seguiu-se uma longa pausa. Gorges olhou com todo o cuidado para Albion e Albion retribuiu o olhar.
— Talvez não — disse Albion, prestativo.
— O navio naufragado — declarou Gorges com firmeza — pertence à rainha. Não há nenhuma dúvida. Devo mantê-lo em nome dela.
— Eu estive pensando — sugeriu Albion. — A rainha gosta muito de você, Helena. Pode ser que ela lhe conceda o naufrágio. Isto é, ela concedeu presas a Drake e Hawkins, eThomas, mesmo sem ter ido ao mar, tem mantido Hurst para ela.
— Mas, Clement. — Helena pareceu em dúvida. — Não creio que ela dividisse toda essa prata.
Gorges olhava-a em silêncio.
— Que prata? — perguntou Albion bem baixinho.
— Ah. — Finalmente ela tinha percebido. — Entendo.
— Devo notificar imediatamente o naufrágio para ela. Você também podia lhe escrever uma carta. Perguntando se podíamos ficar com a salvagem. Diga que é apenas um vaso. Qualquer munição irá para o forte, mas, havendo algo mais de valor, será nosso. Qualquer tipo de coisa. Ela sabe — confessou Gorges secamente — que estamos passando por necessidades.
— Mas o que devo dizer depois que encontrarmos a prata? — perguntou Helena.
— Sorte — rebateu Gorges com firmeza.
— Nós não sabíamos que havia qualquer prata — acrescentou Albion. —-Minhas informações podem ter sido incorretas. A consciência de vocês ficará tranqüila. Pode ser que haja alguma coisa lá, apenas isso.
— E o espanhol?
— Que espanhol?
— Vou escrever a carta imediatamente, Clement. — Helena olhou de relance para o marido. — Somos muito gratos.
Houve alguns momentos de silêncio no aposento depois que ela saiu. Então Gorges falou:
— Você sabia que pouco antes de sua chegada aqui sua mãe foi presa em Lymington?
— Não.
— Recebemos uma mensagem do prefeito. Parece que ela estava tentando persuadir as pessoas de lá a se rebelarem. A favor dos espanhóis.
Albion ficou pálido, mas manteve a compostura.
— Eu gostaria de dizer que fiquei surpreso. Ela enlouqueceu ontem à noite. Mas não sabia que tinha saído de casa.
— Foi exatamente o que pensei, Clement. Ela disse que você ia liderar a rebelião.
— É mesmo? — Albion sacudiu a cabeça. — Ontem à noite ela me disse que, já que eu não parecia querer fazer isso, ela mesma o faria. — Sorriu com ironia. — Sou grato pelo novo tipo de confiança que depositou em mim.
— Ela disse que você sempre planejou se unir aos espanhóis.
— Não me diga! O único espanhol que encontrei até agora eu o matei.
— Exatamente. — aquiesceu Gorges lentamente.
— Sabe — prosseguiu Albion com tranqüilidade —, mesmo se minha mãe não estivesse completamente louca... e há anos ela vem falando desse modo... seria totalmente impossível para mim fazer qualquer uma dessas coisas que ela andou dizendo. Ouvi isso uma centena de vezes. Todos os dias ela sonha com uma rebelião. E sempre me coloca como chefe, não importa o que eu diga a ela. — Suspirou. — O que posso fazer?
— É bem verdade — disse Gorges depois de um momento em silêncio. — Você não teria conseguido fazer isso.
— E não o faria, Thomas. Sou leal. — Olhou Gorges nos olhos. — Espero que você saiba disso. Sabe?
— Sim — falou bem devagar, sem deixar de encará-lo. — Eu sei.
Da alvorada até às dez da manhã, em meio a uma relativa tranqüilidade, no horizonte por trás da ilha de Wight os navios ingleses bombardearam a Armada. A tarde, ambas as frotas estavam novamente a caminho do canal da Mancha e foram em frente, durante dois dias, até o duque de Medina-Sidônia ancorar em Calais e enviar mensagens urgentes para o duque de Parma, pedindo que o general viesse imediatamente e fizesse a travessia para a Inglaterra.
Parma disse "não". Irritado, explicou que uma travessia com barcos de fundo chato seria quase impossível se os navios inimigos estivessem à vista. A não ser que a Armada conseguisse ir até lá apanhá-lo — o que, nas águas rasas dos Países Baixos, não conseguiria —, ele não iria. Tudo isso, soube-se depois, ele passara semanas dizendo ao rei da Espanha — um fato que o rei, preferindo contar com a Providência, não achara digno de ser revelado ao duque de Medina-Sidônia.
E assim a Armada espanhola ficou em Calais, enviando mensagens cada vez mais desconcertantes a Parma, e Parma permaneceu nos Países Baixos, a um dia de viagem de distância, despachando de volta mensagens cada vez mais contrárias. E os ingleses aguardavam no Tâmisa, esperando uma invasão a qualquer momento, pois a única coisa que não lhes ocorrera foi que o rei da Espanha enviara sua Armada sem qualquer plano de batalha coordenado que fosse.
A Armada esperou desse modo dois dias infrutíferos. Na calada da noite os ingleses enviaram oito brulotes repletos de alcatrão, mais incandescentes do que mil luzeiros, e os capitães espanhóis, em pânico, cortaram suas amarras e se dispersaram. No dia seguinte os ingleses caíram sobre eles. Os navios espanhóis foram impelidos em direção à praia, alguns naufragaram, outros foram tomados, mas a maioria ainda permanecia intacta.
Então, no dia que se seguiu, veio o vento de Deus.
O vento protestante, como o chamaram. Ninguém, em nenhum dos dois lados, jamais pôde negar que, a despeito de seu valor ou devoção, foi o clima que na verdade destruiu a Invencível Armada. Dia após dia, semana após semana, ele soprou, transformando os mares em uma grossa espuma. Navios se perdiam de vista uns dos outros; galeões foram espalhados por todas as águas setentrionais, alguns lançados nas pedras da Escócia, ao norte, e até mesmo da Irlanda. Menos da metade conseguiu voltar para casa. Fosse para recompensar os protestantes por causa de sua fé ou castigar os católicos por causa de suas faltas, tanto a rainha Elizabeth da Inglaterra quanto o rei Filipe da Espanha devem ter ficado de acordo que tal ventania só podia ter sido enviada por Deus.
Para lady Albion, as semanas de vendaval foram de fato uma época de provação. Para começar, foi mantida, sob instruções rigorosas de Gorges, na minúscula cadeia de Lymington. E, apesar de o prefeito de Lymington ter rogado várias vezes para que ela fosse transferida para outro lugar — ou decapitada, ou libertada, ou qualquer coisa, contanto que a infatigável dama deixasse de ser sua responsabilidade —, somente em outubro o conselho concordou que, embora se tratasse de uma traidora, a dama não oferecia perigo efetivo para o Estado. Após sua soltura, mesmo sem Albion deixar de lhe professar eterna lealdade pessoal, ela nunca foi realmente a mesma em relação a ele. E no ano seguinte embarcou em um navio e foi visitar a filha Catherine, cujo marido, Dom Diego, fora dado como desaparecido — ninguém sabia exatamente como — durante o grande desastre da Armada. Que o pobre Dom Diego fora enterrado em segurança pelo seu filho, nos confins da Floresta, onde não seria encontrado, durante a primeira noite em que ela passou na cadeia, era algo que lady Albion jamais teria imaginado.
Não foi surpresa ela permanecer na Espanha com a filha; e se, após negar-se a atender os seus pedidos para que ele fosse morar lá com ela, Clement Albion perdeu qualquer esperança de herdar a fortuna da mãe, não deixou de filosofar a respeito: "Eu acho mesmo", confessou certa vez, "que seria capaz de abrir mão de um dos meus roçados só para ter certeza de que ela jamais voltará."
A fortuna de Albion, entretanto, permaneceu modesta, mas a dos seus amigos Thomas e Helena Gorges desfrutou um aumento espetacular. Pois a rainha Elizabeth viu com benevolência o pedido deles e concedeu-lhes a posse da carcaça. Depois que, na surdina, esvaziaram o seu conteúdo, sir Thomas Gorges e sua esposa, a marquesa, concluíram que estavam de posse de uma das maiores fortunas do sul da Inglaterra.
— E agora — declarou Helena alegremente — você pode construir sua casa em Longford, Thomas.
Só quase dois anos depois Albion foi convidado para acompanhá-los até a grande propriedade abaixo de Sarum.
— A casa ainda não está toda pronta, Clement — disse-lhe o anfitrião —, mas queria que você desse uma olhada.
Eles tinham realmente escolhido um belo local, pensou Albion, ao chegarem ao exuberante terreno arborizado próximo ao Avon. Mas ninguém o havia preparado para algo que primeiro fez com que engolisse em seco e em seguida caísse na gargalhada: o desenho da casa.
Pois ali, na tranqüila paz da parte interna do vale de Wiltshire, construída em uma imensa escala, com belas janelas em vez de troneiras para canhões, encontrava-se uma imponente fortaleza triangular.
— Por todos os santos, Thomas — gritou ele —, é Hurst!
E era mesmo. A grande casa de campo, que Gorges chamou de Longford Castle, era uma réplica quase exata da fortaleza triangular do litoral da Floresta. Em memória do vaso espanhol e sua carga de prata, ele até mandara entalhar, bem acima da entrada, uma imagem de Netuno reclinado alegremente em um navio, com o seu tridente pousado no ombro e de cada lado uma cariátide, a primeira com o seu rosto entalhado e a outra com o da esposa. Tinha-se de admitir seu divertido senso de humor.
— Helena insistiu que os castelos suecos são todos triangulares e que os entalhes representam os seus ancestrais viquingues — disse ele com uma piscadela.
Castelo sueco ou forte de artilharia, fosse lá o que se achasse que fosse, a grande mansão triangular subsistiria por muito tempo como a mais excêntrica das casas de campo da Inglaterra.
E mesmo se, depois disso, Albion talvez sentisse uma eventual pontada de ciúmes da boa fortuna de seus amigos aristocráticos, não deixava de admitir que, graças a Gorges e Helena, sua lealdade nunca mais voltou a ser questionada. Ele inclusive foi capaz, sem peso na consciência, de expropriar uma quantia considerável de madeira de Sua Majestade durante o curso subseqüente de sua carreira.
Jane casou-se com Puckle.
Nick Pride ficou completamente pasmado, e todo mundo também.
— Se eu não tivesse ficado preso lá em Malwood, por causa do luzeiro, isso não teria acontecido — disse ele.
— Se ela se dispôs a fazer uma coisa dessas — falou a mãe —, é melhor mesmo você ter ficado sem ela.
— Não sei não — retrucou Nick. — Parecia até que ela estava enfeitiçada, creio eu. — O que não fazia muito sentido.
Os pais de Jane também não ficaram muito contentes. Aliás, depois que eles se casaram, a mãe de Jane não quis lhe dar a cruz que sempre lhe prometera. Mas, no final das contas, por não querer brigar com ela, acabou dando. E Jane a usava como um talismã.
A grande tempestade da Armada não mudou apenas a vida dos homens; aqui e ali fez também pequenas alterações na vida maior da Floresta.
Foi certa noite alta, quando os galeões espanhóis eram sacudidos indefesamente pelos mares do norte, que o vento decidiu correr com particular urgência através da clareira onde estava a miraculosa árvore de Rufus. Os galhos da grande árvore curvaram e oscilaram. A miríade de formas de vida em suas fendas se agarraram ou arquearam mais fundo em seus abrigos. Minúsculos organismos, diminutas particularidades saíram voando pela escuridão movente do vento, carregados para o meio do caos. Por toda a volta, árvores altas oscilaram, folhas e abelotas de carvalho chocalharam no furioso açoite e dilaceramento do vento, que uivava, lufava e sibilava nas trevas.
As raízes da árvore miraculosa, porém, eram tão vastas quanto os seus galhos, e mesmo assim, naquela turbulenta noite da Armada, o mundo superior pode ter sucumbido à loucura, mas o mundo inferior da árvore permanecia silente, parado, inamovível pelo frenético agitar de seus galhos.
Perto dali, entretanto, bem dentro de uma árvore vizinha, um carvalho diferente, com apenas dois séculos de idade, crescera alto e reto na companhia muito próxima de outros pés de carvalho e faia. Sua copa, portanto, era muito menor; na mesma proporção, as suas raízes.
E assim, em meio aos fortes arqueamento e torção do vento uivante, subitamente, arrancado do solo pelas forças cegas da natureza, esse alto carvalho caiu sobre os seus vizinhos e despedaçou-se, como um gigante tombado, sobre o solo da Floresta.
Trata-se de algo espantoso quando um pé de carvalho é derrubado, mas é também benéfico. Afinal, as partes rompidas da copa da árvore, sua grande rede de galhos, deitam-se como se fossem muitas gaiolas protetoras no solo. Dentro de cada uma dessas gaiolas, por um ano ou dois, um novo broto pode se desenvolver, já que os veados e outros animais que saqueiam as árvores novas não conseguem alcançá-los.
Duas gaiolas desse tipo caíram naquela noite tempestuosa. E, em um outono vindouro, após tantos anos nos quais os seus rebentos tinham sido todos eles devastados, duas abelotas dessa miraculosa árvore permaneceriam no bolor das folhas, no interior dessas gaiolas carvalhosas, e deitariam raízes e cresceriam.
Alice
1635
O que é a vida? Certamente não é um continuum. Um acúmulo de recordações, talvez; somente algumas poucas.
Ela conseguia se recordar do velho Clement Albion. Tinha somente quatro anos quando ele morreu; mesmo assim, lembrava-se do avô. Não de um rosto, exatamente, mas de uma presença tranqüila e benigna em uma casa do período Tudor, com enormes frontões e vigamento de madeira. Deve ter sido a antiga Albion House.
Sua Albion House começou em um dia de verão.
Estava muito quente. Devia ser final da manhã; talvez um sábado. Ela não sabia. Mas eles desceram, apenas os dois, da antiga igreja de Boldre — somente ela e o pai. Tinha oito anos na época. Caminharam pela alameda do lado leste do rio e viraram na trilha para o interior da mata. Havia bastantes faias jovens, na maioria rebentos, misturadas com os carvalhos e os freixos. O sol iluminava obli-quamente a treliça verde-clara das copas; os rebentos espalhavam suas folhas como rastros de vapor pela vegetação rasteira; os pássaros cantavam. Ela estava tão contente que começou a saltitar; e seu pai lhe segurava a mão.
Viram a casa depois que passaram a curva da trilha. As paredes de tijolos vermelhos estavam praticamente de pé. Um dos dois frontões já tinha sido revestido; as vigas do velho carvalho que sustentavam o telhado expunham sua armação nua ao céu azul. O poeirento canteiro de obras parecia tranqüilo sob o sol quente. Alguns homens trabalhavam no pavimento superior; o tilintar dos tijolos sendo assentados no lugar era o único som que perturbava a quietude.
Eles se detiveram e ficaram ali parados, juntos, olhando a cena por instantes; depois, o pai dissera: "Estou construindo essa casa para você, Alice. Será toda sua e ninguém vai tirá-la de você." A seguir olhou para baixo, sorriu e apertou-lhe a mão.
Alice olhou para cima e achou que o pai devia amá-la demais, já que estava construindo uma casa inteira para ela. E vivenciou um momento — em uma existência talvez haja apenas um ou dois — de perfeita felicidade.
Não era uma casa grande. Apenas um pouco maior do que a velha casa do período Tudor, que fora do avô e antes do pai dele. Construída com tijolos, no simples estilo jacobita, certamente se qualificava como uma modesta mansão se-nhorial; apesar de distante e escondida numa reservada clareira no meio do bosque, tinha quase o aspecto de uma granja isolada ou uma cabana de caça.
Claro que ele desejara ter um filho. Ela agora entendia isso; mas dez anos já se tinham passado desde aquele dia de verão.
Dos dois filhos de Clement Albion, William e Francis, seu pai William, o mais velho, se saíra melhor. Aliás, ele havia se saído brilhantemente. Quando ainda jovem, nos últimos anos do reinado da rainha Elizabeth, fora para Londres estudar Direito. William trabalhara duro. Era uma época litigiosa; um advogado inteligente poderia se dar muito bem. E quando, quinze anos depois da grande Armada, a velha rainha morreu e foi sucedida pelo primo, o rei Jaime da Escócia, as oportunidades de lucrar aumentaram ainda mais.
Afinal, se James Stuart tinha alguma idéia quando, já na meia-idade, se tornou o rei Jaime da Inglaterra, era a de se divertir. Ele nunca se divertira coisa alguma antes. Filho da desditosa Maria, rainha da Escócia — a quem mal conhecera —, os austeros presbiterianos escoceses que haviam destronado sua mãe levaram-no a governar de acordo com a linha de pensamento deles e o mantinham sob rédea curta. Portanto, quando finalmente assumiu também o trono da Inglaterra, estava ansioso para recuperar o tempo perdido.
As idéias liberais do rei escocês de se divertir revelaram-se bem curiosas. Um gosto pela erudição pedante — ele era muito instruído e até mesmo espirituoso — levou-o a desenvolver uma aprimorada teoria de que os reis tinham o direito divino de fazer o que bem entendessem. Se acreditava realmente nessa surpreendente bobagem ou se estava apenas se divertindo, ninguém jamais soube ao certo. Outra preferência desse pai de vários filhos, que passou a ser cada vez mais óbvia, era a sua embaraçosa, sentimental e mesmo lacrimosa paixão por jovenzinhos bonitos. Nos seus últimos anos, as funções na corte geralmente degeneravam para uma carnagem de beijos e afagos nesses "meninos delicados". O seu terceiro gosto, que, Deus é testemunha, ele nunca foi capaz de desfrutar no norte, era o amor pela extravagância. Não pelas grandes pompas e festividades com as quais (pois alguém mais estava pagando) a rainha Bess tanto se deleitava: a corte do rei Jaime adorava o simples e vulgar excesso. Os banquetes costumavam ser apenas uma competição para ver quanta comida era capaz de ser visivelmente desperdiçada. Mas mesmo isso era nada comparado com a licença dada aos seus amigos para se servirem da carteira do povo. A antiga nobreza, como os Howard, ou a nova, como os mocinhos bonitos da família Villiers, faziam a mesma coisa: venda de cargos e contratos, suborno e rematados desfalques. Todo mundo estava nisso.
Onde há trapaceiros roubando e tolos gastando, um homem sensato pode certamente fazer fortuna. William Albion o fizera. Quando Carlos, o pequeno e tímido filho de Jaime, chegou ao trono em 1625, Albion voltou para a Floresta como um homem rico. Além disso, casara-se muito bem — com uma modesta herdeira doze anos mais nova. Sua vivenda era uma bela propriedade no vale do Avon chamada de Moyles Court — que incluía, aliás, as terras de seu distante ancestral Cola, o Caçador. Ele recebera a Albion House, no centro da Floresta, de seu pai; havia ainda outras posses em Pennington Marshes; e também era proprietário da maior parte do povoado de Oakley.
Reconstruíra Albion House para Alice. O resto, esperava, iria para o seu filho. Embora sua jovem esposa lhe tivesse dado muitos outros filhos, todos morreram durante a infância. O tempo passou. E então era tarde demais. No ano anterior a esposa tinha morrido, mas William Albion não tinha desejo de iniciar uma nova família com a idade de sessenta anos.
Alice agora tinha dezoito. Ela herdaria tudo.
William fizera uma pausa antes de tomar aquela decisão. Afinal, havia o irmão mais novo a ser levado em consideração.
Tecnicamente, por título, William podia dispor à vontade de toda a terra que possuía. O velho Clement, tinha certeza, teria gostado que ele desse algo a Francis; e, se não tivesse prometido Albion House a Alice, talvez deixasse o irmão ficar com a casa. Havia, porém, algo mais para levar em consideração.
O que Francis fizera para merecer aquilo? Durante anos, apesar da ajuda e do incentivo do pai, ele tinha vadiado e nunca trabalhara de verdade. Ele ainda vivia em Londres. Tornara-se mercador, mas não era muito bem-sucedido. William gostava de Francis, mas não podia evitar a impaciência de um homem bem-sucedido com um irmão malsucedido. Dava, sem mesmo perceber, um leve encolher de ombros quando o nome de Francis era mencionado. Por isso raramente o era. Com a lógica típica de um homem que ganhara dinheiro, concluiu que era perda de tempo dá-lo a alguém que não o ganhara. Ou, para colocar em termos mais brandos, seu desejo de preservar o nome da família na Floresta poderia levá-lo a espoliar a filha que ele amava? Não. Francis teria de se defender sozinho. Alice era a única herdeira.
Fora um tanto surpreendente para ela, poucos meses antes, ao falarem de um modo genérico sobre o tipo de homem com quem ela deveria se casar, o fato de seu pai ter mencionado um nome com particular favorecimento: John Lisle.
Eles o haviam conhecido em uma reunião de vários membros de famílias bem-nascidas da região, na excelente casa dos Buttons, perto de Lymington. Era poucos anos mais velho do que ela e ficara viúvo recentemente. Tinha filhos. Ele lhe parecera um homem sensível e inteligente, apesar, talvez, de um pouco sincero demais. O pai conversara com ele muito mais do que ela.
— Mas papai — ela chamara a sua atenção. — A família dele...
— É uma família antiga. — Os Lisle eram realmente uma família com alguma antigüidade, que, durante muito tempo, possuíra as terras da ilha de Wight.
— Sim, mas o pai dele... —Toda a região sabia a respeito do pai de John. Herdeiro de uma excelente propriedade, ele havia dissipado tanto as terras quanto sua reputação. A esposa o deixara; ele havia passado a beber; e no final fora até mesmo preso por dívidas. — Isso não é sangue ruim...?
Sangue ruim: uma expressão tão cara às classes fundiárias. Um ou dois notórios bandoleiros davam uma certa patina à mobília ancestral. Mas era preciso ter cuidado. Sangue ruim significava perigo, incerteza, inquietação, safras com pragas, árvores doentes. As classes altas, que ainda eram em parte agricultores, tinham os pés no chão. Uma criação de pessoas, afinal de contas, não era diferente de uma criação de gado. O sangue ruim era descartado. Tinha de ser evitado.
Mas, para surpresa dela, o pai apenas sorriu:
— Ah — exclamou ele —, deixe-me aconselhá-la a respeito disso. — E, dando-lhe aquele seu olhar que dizia "Eu falo com a experiência de uma vida como advogado", prosseguiu: — Quando um homem tem um pai que perdeu a substância, há duas coisas que ele pode fazer. Aceitar uma condição inferior ou reagir e construir a sua própria fortuna.
— Não é isso o que os filhos mais novos precisam fazer?
— Sim. — Uma nuvem cruzou seu rosto ao refletir que fora exatamente isso o que o seu próprio irmão mais novo não conseguira fazer. — Mas quando o pai também desonrou a família o caso é ainda mais agudo. O filho de um homem desses enfrenta não apenas a pobreza, como também a vergonha, o ridículo. Cada passo que ele dá na rua é atormentado por sombras. Alguns se escondem. Buscam uma vida de obscuridade. As almas mais corajosas, porém, enfrentam o mundo. Mantêm a cabeça erguida: sua ambição não é como uma chama de esperança, mas uma espada de aço. Procuram duplamente a fama: uma para si mesmos, a outra para apagar a vergonha de seus pais. Essa lembrança está sempre com eles, como um espinho, impelindo-os. — Fez uma pausa e sorriu. —John Lisle, creio, é um desses. É um bom homem, um homem honesto. Estou certo de que é bondoso. Mas tem essa coisa dentro dele. — Olhou para ela com afeição. — Quando um pai tem uma filha como herdeira, ele procura, se for sensato, um marido para ela que saiba usar essa fortuna: um homem ambicioso.
— E não um outro herdeiro, papai? Um homem ambicioso certamente só vai querê-la por causa do dinheiro.
— Deve confiar no meu juízo. — Suspirou. — O problema é que a maioria dos herdeiros de excelentes propriedades são indolentes ou preguiçosos, ou ambas as coisas. — Então, súbita e inesperadamente, deu uma risada.
— Por que o senhor está rindo?
— Eu estava apenas pensando, Alicia. — Às vezes ele a chamava assim. — Com a sua personalidade forte, eu não seria capaz de lhe impor um insuspeito herdeiro de uma grande propriedade. Você destruiria o rapaz completamente.
— Eu? — Olhou para ele sinceramente atônita. — Não é de meu propósito ter uma personalidade forte, papai — rebateu, o que o levou simplesmente a sorrir para ela mais afetuosamente.
— Eu sei, minha filha, eu sei. — Bateu com o dedo delicadamente no braço dela. — Mas pense em John Lisle. É só o que lhe peço. Verá que ele é digno de consideração.
Quando dois dias depois Stephen Pride deu uma passada na cabana de Gabriel Furzey a caminho do gramado, achou que lhe estava fazendo um favor.
— Você não vai? — indagou.
— Não — respondeu Gabriel, o que, pensou Pride, era típico dele.
Se, nos trezentos anos desde que brigaram por causa de um pônei, os Pride e os Furzey permaneceram em Oakley, era por um bom motivo, pois havia muito poucos lugares mais agradáveis para se viver. Se durante as gerações haviam tido outras desavenças por causa de questões envolvendo a Floresta — e certamente devem ter tido —, elas estavam enterradas e esquecidas. Os Pride, de um modo geral, ainda achavam os Furzey um pouco obtusos, e os Furzey ainda consideravam os Pride muito cheios de si; se, entretanto, após séculos de casamentos entre as famílias, essas concepções ainda tinham alguma validade era difícil de saber. Uma coisa, porém, com a qual Stephen Pride e qualquer um concordava era o fato de Gabriel Furzey ser um homem teimoso.
— Como queira — disse Pride, e seguiu seu caminho.
O motivo da visita dele ao gramado era porque a jovem Alice Albion estava lá.
Se havia uma coisa que mudara muito pouco em toda New Forest desde a época do Conquistador, eram os direitos comuns da gente da floresta. Por causa de suas pequenas propriedades e da pobreza de grande parte do solo, essa continuidade era natural: o exercício dos direitos comuns ainda era o único modo através do qual a economia local conseguia funcionar.
Eles eram, principalmente, quatro: o direito de Pasto — o de levar os animais para pastarem na floresta do rei; de Turfeira — uma concessão de corte de turfa para combustível; de Ceva — o de levar em setembro os porcos para comerem as abelotas verdes; e de Coleta — o recolhimento de vegetação rasteira para combustível. Eram estes os quatro direitos, embora também houvesse outros, obtidos pelo costume, de adubar com marga para enriquecer a terra de cultivo e cortar as samambaias para leito do gado.
O sistema pelo qual esses antigos direitos eram aquinhoados, como qualquer antiga lei pública, era geralmente complexo e eles deviam estar vinculados individualmente a cada cabana; mas virou costume considerá-los como pertencentes a cada proprietário de terra, que podia reivindicá-los em seu benefício e no de seus arrendatários. A propriedade da qual tanto Stephen Pride quanto Gabriel Furzey faziam parte veio a pertencer aos Albion. E já que tudo aquilo um dia pertenceria a ela, fora Alice, naquela manhã, quem o pai enviara, junto com o seu administrador, para coletar algumas informações importantes.
Ao subir, Pride viu que ela estava sentada na sombra à margem do gramado. Uma mesa e um banco haviam sido providenciados para ela. O administrador estava de pé a seu lado. Na mesa estava espalhada uma grande folha de pergaminho. Ela sentava-se bem empertigada. Usava um vestido verde de montaria e um chapéu de aba larga com uma pena enfiada. A cor ela herdara da mãe. Os cabelos louros tinham uma tonalidade avermelhada, os olhos eram mais cinza do que azuis. Sorriu, achando-a um tanto cativante. Via essa menina dos Albion por ali desde que ela era uma criança. Ele era apenas sete anos mais velho. Quando ela tinha doze, lembrou, não era tão orgulhosa para não apostar corrida com ele em seu pônei. Ela tinha índole. O povo da Floresta gostava daquilo.
— Stephen Pride. — Ela não precisou ser lembrada pelo administrador e lhe deu um olhar decidido. — O que devo anotar aqui para você?
Tratava-se da primeira vez, desde que alguém se recordava, que uma lista com-pleta dos direitos comuns era anotada. Eles sempre tinham existido. Estavam na memória das pessoas. Qualquer disputa no Swainmote, como costumavam chamar a antiga Corte dos Couteiros, sempre podia ser resolvida por arbítrio do júri local, assessorado pelos representantes da vills. Portanto, por que alguém ia querer anotar toda essa quantidade de informações daquele lugar?
Enquanto Stephen Pride enumerava os direitos comuns aos quais sua pequena propriedade se habilitava, ele sabia muito bem o motivo daquilo. "Isso é", como dissera na véspera à esposa, "para o nosso senhor soberano, o maldito rei." E agora, ao olhar a jovem Alice Albion nos olhos, sabia igualmente, embora nenhum dos dois declarasse, que a opinião dela era exatamente a mesma.
Se as evidências históricas servem de base para alguma coisa, parece claro que a casa real dos Stuart só fornecia bons monarcas no caso de, primeiramente, eles terem sido adequadamente subjugados.
O rei Jaime o foi. Os seus anos miseráveis na Escócia, onde, por tradição, a faca nunca se mantinha distante da garganta de um monarca, o ensinaram a ser cauteloso. Fosse qual fosse sua crença no poder divino dos reis, nunca na prática pressionou demais o seu Parlamento inglês. Também era bastante flexível. Seu sonho era agir como corretor entre os dois bandos religiosos, casar os seus filhos em ambas as casas reais católica e protestante e buscar a tolerância para ambas as religiões na Inglaterra. Foi um sonho amplamente irrealizado; a Europa ainda não estava pronta para a tolerância. Mas, a despeito de todos seus defeitos, ele tentou. O filho Carlos, contudo, não recebera tal aprendizado e revelou a inflexibilidade dos Stuart na pior de suas formas.
As vezes é um erro muito grande dar uma grande idéia, ainda que apenas uma boa, a uma mente pequena. E a idéia do direito divino dos reis era mesmo uma péssima idéia. Se deixarmos de lado a duplicidade com a qual ele tentava conseguir os seus intentos, há algo ingênuo e quase infantil nas preleções que Carlos
costumava dar a seus súditos. Embora não sem talento — seu olho para as artes era notável —, essa crença nos seus direitos obscureceu sua inteligência até para as mais simples realidades políticas. Nenhum rei inglês, nem mesmo o poderoso Henrique quando chutou o papa para fora de sua Igreja, havia imaginado que se podiam ignorar antigas leis e costumes. Carlos queria governar de modo absoluto, como os reis franceses estavam começando a fazer; mas esse não era o jeito inglês.
Não demorou muito, portanto, para que o rei Carlos e o Parlamento inglês entrassem em desavença. Os puritanos desconfiavam que ele queria trazer de volta o catolicismo — afinal, sua esposa francesa era católica. Os mercadores desgostavam de seu hábito de arrecadar empréstimos forçados. Os membros do Parlamento ficaram furiosos ao saber que ele na verdade os considerava nada mais que seus criados. Em 1629 Carlos dissolveu o Parlamento e decidiu governar, se possível, sem ele.
O único problema era: que fazer para conseguir dinheiro? Carlos não se desesperou. Contanto que não se envolvesse em nenhuma guerra — elas eram sempre dispendiosas —, ele conseguiria ir levando. Havia os impostos e outras taxas, além dos lucros das terras da Coroa. Mesmo assim, ele sempre precisava de mais. Uma coisa que fez foi vender títulos. A nova ordem dos baronetes era uma bela fonte de renda. E, junto com os assessores, procurava outras formas de lucrar, quando alguém lembrou: "E as florestas reais?"
Elas serviam para quê? Ninguém tinha muita certeza. Havia os veados, é claro. A única ocasião em que a corte real costumava se preocupar com os veados era para uma coroação ou alguma outra festança, quando eles forneciam uma enorme quantidade de carne. Havia a madeira. Isso precisava de um melhor exame. E devia haver alguma renda proveniente das multas aplicadas pelas cortes reais da floresta.
Foi então que um funcionário esperto sugeriu: "Por que não um Juizado Itinerante na Floresta?"
Foi uma sugestão engenhosa, e assim que lhe foi explicado nenhum outro plano melhor teria atraído tanto o rei Carlos. A corte de um Juiz Itinerante remontava à época dos Plantagenetas. De vez em quando — anos poderiam se passar entre as visitas — a justiça especial do rei fazia uma inspeção de todo o sistema, corrigindo qualquer má administração, resolvendo quaisquer casos importantes e, podia-se ter certeza, aplicando algumas belas multas. Pelo que qualquer um pudesse lembrar, há gerações não havia uma corte itinerante. O velho rei Henrique instituíra uma um século atrás. Desde então todos já a haviam esquecido. Foi exatamente isso que o rei Carlos adorou: uma antiga prerrogativa real que o seu povo desobediente esquecera. Em 1635, para grande contrariedade de todo mundo, houve uma corte itinerante na Floresta.
Os resultados foram bastante animadores. A corte normal da Floresta entrou em repentina atividade. Três enormes furtos de madeira — mil árvores de cada vez — foram descobertos e estabelecidas três multas estupendas de mil, dois mil e três mil libras. Tratava-se de um imenso despojo. Mas não foram essas multas altas que enfureceram a Floresta. Foi o ataque feito à gente comum.
Naquele verão de 1635 houve nada menos que duzentos e sessenta e oito processos levados à corte da Floresta. A média costumava ser por volta de uma dúzia. A Floresta nunca vira algo parecido. Cada centímetro de terra que havia sido tomado discretamente durante a última geração, cada cabana construída na surdina, tudo foi desmascarado, tudo foi multado. Não houve um só povoado ou uma só família que não tivesse sido apanhada. Nenhuma das multas foi leve; algumas foram bem pesadas. Trabalhadores que ocupavam cabanas ilegais foram multados em três libras. Com esse valor comprava-se uma dúzia de ovelhas, ou duas preciosas vacas, na época em que as pequenas propriedades tinham apenas uma para fornecimento de leite. Um pequeno proprietário foi multado em cem libras por caça ilegal. Alguns metros de terreno tomados para se manter uma colméia, um cachorro impertinente, algumas ovelhas que pastavam ilegalmente — tudo resultou em multas repentinas. Como sempre, quando o rei Carlos resolvia fazer valer os seus direitos, ele o fazia por completo.
Estaria ele dentro dos seus direitos? Não havia dúvida. Mas com a sua típica falta de tato, o rei Stuart conseguiu encontrar uma população inteira que lhe era favorável e descontentá-la com um só golpe.
Quando as desavenças políticas do século XVII finalmente cessarem — já que, na Inglaterra, por enquanto, ainda não cessaram —, Carlos Stuart certamente vai emergir das páginas da história, de uma vez por todas, não como um vilão ou um mártir, mas como um homem muito tolo.
E agora todos os direitos comuns das cabanas tinham de ser listados. No entender de Pride aquilo parecia uma interferência para o seu próprio bem. Alice achava outra coisa.
"A notícia que corre em Londres", seu pai lhe dissera no dia anterior, "é a de que o rei deseja fazer um inventário de toda a área. E sabe por quê? Ele quer oferecer New Forest e a Floresta de Sherwood, juntas, como garantia para um empréstimo! Imagine", continuou, com uma sacudida de cabeça, "toda a Floresta poderia ser vendida para o rei pagar os seus credores. Na minha opinião, é isso que está por trás de tudo."
Depois que Pride terminou o seu breve relato, ela agradeceu educadamente e então indagou:
— Onde está Gabriel Furzey? Ele não deveria estar aqui?
— Provavelmente — respondeu Pride com sinceridade.
— Bem. —Alice podia ter apenas dezoito anos, mas não ia tolerar nenhuma bobagem de Gabriel. — Por favor, diga a ele por mim que, se quiser que os seus direitos sejam registrados, é melhor que venha imediatamente. Caso contrário, eles não o serão.
Quando se olhava Gabriel Furzey e Stephen Pride, não era difícil adivinhar qual seria a atitude de cada um diante da pesquisa. Pride — magro e olhos aguçados — era, em cada centímetro do corpo, um habitante independente da Floresta. Mas também se relacionava com a autoridade. Seus ancestrais podiam ter resmungado contra qualquer ordem externa em relação à Floresta, mas a inteligência natural e o interesse próprio vinham levando os Pride há muito tempo a um relacionamento planejado com os poderes existentes. Quando os representantes das vills compareciam às cortes da Floresta, com certeza sempre havia um ou dois Pride entre eles. Vez por outra, um até mesmo assumia uma posição menos elevada na hierarquia da Floresta — como subcouteiro, por exemplo, ou um dos coletores de impostos. Aqui e ali um Pride foi deixando de ser arrendatário, tornava-se um pequeno proprietário e passava a ter terras em seu próprio nome; e, mais ou menos freqüentemente, quando os fidalgos locais escolhiam algum pequeno proprietário para se sentar com eles nos júris, ficavam bastante contentes por darem preferência a um Pride. O motivo era muito simples: os Pride eram inteligentes e, mesmo em uma divergência, os homens que mantinham a autoridade sabiam que sempre era mais fácil lidar com o homem inteligente do que com um burro. Um couteiro fidalgo sentia-se pisar em solo firme, se afirmasse "Pride acredita que pode cuidar disso" ou "Pride disse que não vai adiantar".
E, se alguma pessoa bem-intencionada viesse a sugerir que Pride talvez andasse fazendo por fora, discretamente, pequenas caçadas ilegais, era mais provável que o informante fosse recebido com um leve sorriso e o murmúrio de "Eu ouso afirmar que sim" em vez de um agradecimento — sempre havia uma alta probabilidade de o fidalgo que recebesse a informação também andasse, ele mesmo, fazendo um pouco disso.
Mas Gabriel Furzey, baixo e adiposo — Alice costumava pensar, com bastante severidade, que ele parecia um nabo irritadiço —, não chegava a um acordo com ninguém e, pelo que constava a Pride, não tinha planos de fazer isso.
Quando Stephen lhe disse que Alice estava à sua espera, portanto, ele apenas sacudiu a cabeça.
— Qual é o sentido de anotar essas coisas? Eu conheço os meus direitos. Eu sempre os tive, não é mesmo?
— É verdade. Mas...
— Pois então. É perda de tempo, não é?
— Mesmo assim, Gabriel, acharia melhor você ir lá.
— Não, não vou. — Deu uma bufada. — Não preciso que aquela menina me diga quais são os direitos que eu tenho. Eu sei quais são. Entende?
— Ela não é má. Gabriel. Pelo menos não parece.
— Ela mandou eu ir lá, não foi?
— Bem, no modo de dizer.
— Pois bem, eu não vou.
— Mas, Gabriel...
— E você também pode ir embora. — De repente, Gabriel berrou: — Vá embora daqui... — Esta última palavra mais parecendo um zurro: — Daquiiiii.
Stephen Pride se foi e, pouco depois, Alice também. E ninguém anotou coisa alguma sobre Gabriel e os seus direitos. Isso parecia não importar.
1648
Dezembro. Uma fria brisa num amanhecer cinzento.
Um único homem sobre um cavalo cinza — na faixa dos quarenta, bem-apessoado, cabelos negros acinzentados, olhos cinza observadores — fitava, de cima de uma elevação sobre Lymington e através da restinga, o castelo cinza de Hurst a distância.
Mar cinza, céu cinza, espuma cinza na praia cinza, sem som por causa da distância. Daquele forte à beira do mar invernal muito em breve sairiam, sob forte guarda, os pequenos restos destroçados de um rei capturado.
John Lisle apertou os lábios e esperou. Tinha pensado em cavalgar até lá embaixo para se juntar ao séquito, mas decidiu o contrário. Não era, afinal de contas, algo fácil encontrar-se com um rei cuja cabeça você planejava cortar muito em breve. Dificultaria uma conversação.
Mas não era tanto o destino do rei Carlos que o preocupava. Não ligava a mínima para ele. Era a discussão que acabara de ter com a esposa que o preocupava — a primeira crise séria em doze anos de um casamento feliz. O problema era que ele não conseguia ver uma saída.
— Não vá para Londres, John. Eu lhe imploro. — Por várias vezes ela tinha suplicado. — Nada de bom vai sair disso. Posso sentir. Será a sua morte. — Como ela podia saber uma coisa dessas? De qualquer modo, não fazia sentido. Não era o jeito dela ser tão receosa. — Fique aqui, John. Ou vá para o exterior. Dê qualquer desculpa, mas não vá. Cromwell vai usar você.
— Nenhum homem me usa, Alice — respondera irritado.
Mas isso não a detivera. E, finalmente, alguns momentos antes do raiar do dia, ela se dirigiu a ele, com uma amarga reprimenda.
— Creio que deve escolher, John, entre sua família e sua ambição.
A absurda injustiça daquilo o atingiu com tal força e tão dolorosamente que ele não conseguiu falar. Levantou-se e deixou Albion House cavalgando antes da alvorada.
Os olhos permaneciam fixos no forte distante. Gostasse ou não, o pensamento continuava a perturbá-lo: e se ela estivesse certa?
Apesar de dois anos após o casamento a morte do pai ter deixado Alice como dona de grandes propriedades, nunca ocorrera a John Lisle se retirar para a Floresta e abandonar sua carreira. Nem Alice jamais havia sugerido isso. Por mais que o amasse, talvez escarnecesse de um marido que vivesse somente de sua fortuna. Além do mais, ele tinha dois filhos do primeiro casamento para cuidar, como também os que ele e Alice logo começariam a ter. Ele era um advogado batalhador e muito bom. Vencera na profissão. E quando, após onze anos de governo pessoal, o rei Carlos finalmente foi forçado a convocar um Parlamento em 1640, John Lisle foi escolhido, como homem de fortuna e posição, para representar a cidade de Winchester.
Isso o tornava tão ambicioso? Era fácil para Alice dizer tal coisa. Ela nada conhecera além da segurança. Desgraça, fracasso, ruína — nunca sentira a sua penetrante mordida. Houve momentos, quando estudante, sem mesada do pai bêbado e orgulhoso demais para mendigar com amigos, em que John ficou sem comer. Para Alice, uma carreira era uma coisa prazenteira, algo que se podia abraçar, mas que uma pessoa sempre podia optar por largar. Para ele, era vida ou morte. William Albion tinha razão. Havia aço na alma de John Lisle. E a sua ambição lhe dizia que devia ir para Londres.
Estavam agora saindo de Hurst Castle, cavaleiros montados formando um pequeno grupo. Começaram a percorrer a estreita praia com o mar cinza-chumbo atrás deles. Era fácil localizar o rei Carlos, pois era o menor de todos.
O grupo realizava uma rota estranha. Em vez de passar direto pelo centro da Floresta através de Lyndhurst, estava contornando os seus limites, cavalgando em direção oeste, para Ringwood, e depois subiria para Romsey, no caminho que fazia, em etapas, para o castelo de Windsor. Será que imaginavam que alguém iria tentar resgatar Carlos na Floresta? Parecia improvável.
Desde que o rei Carlos mergulhara o país em uma guerra civil, New Forest permanecera tranqüila. Os portos próximos de Southampton e Portsmouth, como a maioria dos portos da Inglaterra, estavam a favor do Parlamento. A atitude em Lymington era semelhante à dos grandes portos. As classes dominantes favoráveis à monarquia tinham tentado garantir a ilha de Wight e Winchester para o rei, mas não conseguiram mantê-las. A Floresta propriamente dita, porém, como não tinha fortalezas de qualquer tipo, foi deixada em paz. A única diferença da vida normal era que, já que o governo real havia sucumbido, ninguém pagava a nenhum dos funcionários da floresta. Portanto, todos se pagavam a si mesmos, desde os fidalgos florestais aos mais humildes habitantes das choças, com madeira, veados e tudo o mais que o lugar fornecia. Não era como se não soubessem de que modo.
"O rei não pode exatamente contestar isso, pode?", observara Stephen Pride cordialmente para Alice certo dia. Lisle ficou imaginando se o novo governo, fosse qual fosse a forma que assumisse, teria algum interesse na Floresta.
Então ele desviou o olhar de volta para as distantes figuras ao longo da faixa de areia. Como era possível, perguntou a si mesmo pela centésima vez, que aquela pessoa tão pequena ali embaixo tivesse causado tantos problemas?
Talvez, por causa da opinião do rei sobre os seus direitos, a guerra sempre tivesse sido inevitável, desde o dia em que Carlos subiu ao trono. Ele simplesmente não conseguia aceitar a idéia da conciliação política. Mantinha membros no conselho que o seu Parlamento detestava, criou novos impostos, concedeu direitos aos católicos, que o seu povo detestava, e finalmente tentou impor os seus bispos — da "Alta Igreja", que eram anglicanos tão conservadores que quase podiam ser confundidos com papistas — aos puritanos escoceses calvinistas. Esse último ato de loucura levou os escoceses a uma revolta armada e deu uma chance ao Parlamento de impor sua vontade. Strafford, seu odiado ministro, foi executado; o arcebispo de Canterbury, preso na Torre de Londres. Mas não adiantou. Na ocasião os dois lados, já se encontravam por demais divididos. Tinham degenerado para a guerra civil; no final, graças a Oliver Cromwell e seus "Roundheads", o rei foi derrotado.
Mesmo na derrota, o rei Carlos não lidou honestamente com os oponentes. Para Lisle, a última gota fora a derrota do rei na batalha final de Naseby. Documentos apreendidos provaram, sem sombra de dúvida, que, se pudesse, Carlos teria trazido um exército da Irlanda ou da França católica para subjugar o seu povo. Como poderíamos não acreditar que ele não permitiria também a volta do papismo à Inglaterra?", perguntara Lisle. E quando ele foi enviado, juntamente com outros delegados, para negociar com Carlos na ilha de Wight, onde o rei foi mantido antes de sua transferência para Hurst Castle, teve a noção exata do tipo de homem com quem precisaria lidar. "Ele é capaz de falar qualquer coisa; para ganhar tempo, pois acredita que governa através do poder divino e, portanto, não nos deve coisa alguma. Tem o mesmo caráter da avó, Mary Stuart: ele continuará tramando até o dia em que for decapitado!"
Mas esse, claro, era justamente o problema. Era o que preocupava Alice e muitos outros iguais a ela. Pois agora havia uma racha no Parlamento, entre os muitos que queriam uma solução conciliatória e os puritanos, liderados por Cromwell, que achavam que o rei devia ser morto. Como seria possível tentar executar um rei, o ungido pelo Senhor? Tal coisa jamais fora feita. O que isso significaria? Aonde levaria?
Por mais estranho que pareça, John Lisle, exatamente por ser advogado, via que era impossível uma solução jurídica para o problema do rei.
A constituição da Inglaterra era bastante imprecisa. Antigas leis comuns, costumes, precedentes e a riqueza e os poderes relativos das pessoas vinham orientando a política de cada geração. Quando o Parlamento declarou que vinha sendo consultado desde o reinado de Eduardo I, cerca de quatro séculos antes, o Parlamento tinha razão. Quando o rei declarou que podia convocar e dissolver o Parlamento à vontade, ele também estava com a razão. Quando o Parlamento, à procura de uma fonte escrita, apelou para a Magna Carta, não teve muita certeza, pois se tratava de um acordo feito em 1215 entre o rei João e alguns barões rebeldes que o papa declarara ilegal. Por outro lado, a implicação da Magna Carta, que ninguém jamais negara, era a de que os reis deviam governar de acordo com os costumes e as leis. Nem mesmo o mau rei João invocou o conceito do direito divino, e ele o teria achado muito divertido. Depois que o Parlamento redescobriu a forma medieval de impeachment, que todos tinham esquecido havia séculos, para atacar os ministros de Carlos, passou a ter a lei do seu lado. Quando o Parlamento declarou, pouco antes de ter início a guerra civil, que tinha o direito de vetar a escolha de ministros do rei e de controlar o exército, não havia uma base legal em que se pudesse apoiar.
Ao final do dia, entretanto, pareceu a Lisle que nada disso importava. "Você não percebe", explicara a Alice, "ele escolheu uma posição na qual legalmente não pode ser incomodado. Diz que foi indicado divinamente como a fonte da lei. Portanto, qualquer coisa que o seu Parlamento fizer, e ele não gostar, será ilegal. Cromwell deseja testá-lo. Sim, ele dirá que a corte é ilegal. E muitos hesitarão e ficarão confusos." Sua incisiva mente jurídica percebia tudo com total clareza. "A coisa é um círculo perfeito. Ele poderá continuar assim até o Segundo Advento. E interminável."
Infringir a lei e os costumes, porém, era também perigoso. Derrotar um rei impossível era uma coisa, mas, ao destruí-lo completamente, o que surgiria em seu lugar? Muitos dos membros do Parlamento eram fidalgos com propriedades. Eles queriam ordem; eram a favor do protestantismo, de preferência sem os bispos do rei Carlos; mas ordem, social e religiosa. Muitos do exército e concidadãos menos importantes, contudo, começavam a falar em algo mais. Esses Independentes queriam liberdade completa para que cada paróquia escolhesse a sua própria forma de religião — desde que fosse protestante, é claro. Ainda mais alarmante, o grupo dos Levellers (Igualitários) do exército queria uma democracia geral, voto para todos os homens e talvez até a abolição da propriedade privada. Assim, não era de admirar o fato de os fidalgos do Parlamento hesitarem e esperarem chegar a um acordo com o rei.
Até duas semanas antes. Pois, então, o exército atacou. O coronel Thomas Pride marchou contra o Parlamento e prendeu todos os membros que não quiseram cooperar. Tratou-se de um golpe puro e simples, executado enquanto Cromwell estava taticamente ausente. Foi chamado de Expurgo de Pride.
— Você acha — perguntou Alice com um sorriso — que esse coronel Pride tem algum parentesco com os Pride aqui da Floresta?
— Talvez.
— Posso até ver Stephen Pride prendendo os membros do Parlamento. — Ela deu uma risadinha. — Ele faria isso muito bem.
Mas essa foi a última vez que conseguiu achar graça naquele assunto. Ao se esgotarem os dias de dezembro e se aproximar o momento da remoção de Carlos do pequeno forte da Floresta, ela se tornava cada vez mais abatida.
— Qualquer um vai pensar que é você ou eu quem irá a julgamento — observou Lisle, impaciente. Mas isso não ajudou nada.
O que tornou ainda pior foi ele ter sabido que vários dos proeminentes advogados do lado do parlamentarismo se retiravam discretamente do processo. Quando Alice lhe disse: "Cromwell precisa de advogados, é por isso que ele quer você", de fato ele sabia que ela estava com a razão.
E se ele não fosse para Londres? E se alegasse doença e permanecesse na Floresta? Cromwell iria até lá e mandaria prendê-lo? Não. Nada aconteceria. Ele seria deixado em paz. Mas se algum dia quisesse uma nomeação ou um favor do novo regime, teria de esquecer.
A ambição, então. Ela estava certa. Era a sua ambição que o atraía ao julgamento do rei.
E a sua consciência também, maldita seja, pensou irado. Ele iria, pois sabia que aquilo tinha de ser feito, e era homem bastante para fazê-lo. E a sua consciência também.
E a ambição.
O pequeno rei estava agora virando na extremidade da faixa de areia da praia. Mais alguns instantes, e o grupo desapareceria de vista. Lenta e relutantemente, John Lisle também se virou e cavalgou de volta em direção à sua casa. Ele e Alice haviam tido muitas casas nos últimos dez anos. Tinham estado em Londres e Winchester; na ilha de Wight, onde ela se ocupara em fazer reparos nas propriedades da família; em Moyles Court, no vale do Avon, e em Albion House, a favorita de Alice. Como era quase Natal, estavam no momento em Albion House.
O que ele lhe diria ao retornar?
Achava que ela estaria dormindo quando voltasse, mas estava à sua espera, ainda com roupas de dormir, se bem que agasalhada, graças a Deus, no ar gelado diante da porta aberta. Esteve ali esperando desde que ele partira? Uma dor aguda e uma onda de ternura o atravessaram. Os olhos dela estavam vermelhos. Desmontou e aproximou-se.
— Ficarei até depois do Natal — disse ele. — Depois disso voltaremos a pensar no assunto. — Falou para si mesmo que essa última parte era verdade, como se ele já não se tivesse decidido.
— O rei já foi?
— Sim, está a caminho. Ela aquiesceu tristemente.
— John — falou de repente —, quaisquer que sejam os desígnios de Deus, nós estaremos do seu lado, eu e os seus filhos. Você deve fazer o que é preciso. Eu sou a sua esposa.
Deus do céu, pensou, e que esposa excelente. Abraçou-a e entrou na casa com a alegria renovada no coração.
1655
Thomas Penruddock jamais esqueceria a primeira vez que viu Alice Lisle. Ele tinha dez anos. Isso fora dois anos atrás.
Eles partiram para Compton Chamberlayne de manhã bem cedo. A aldeia e a herdade de Compton Chamberlayne repousavam no vale do rio Nadder, cerca de onze quilômetros a oeste de Sarum, e a jornada até a velha cidade-diocese foi tranqüila e agradável. Depois de um descanso e uma breve visita à antiga catedral, com sua agulha de torre elevando-se nos ares, prosseguiram para o sul, seguindo o curso do rio Avon, passaram pela grande propriedade de Longford Castle da família Gorges e, depois de atravessarem o rio alguns quilômetros mais abaixo, subiram para o terreno gramado de um platô, que era o ponto mais setentrional da imensa New Forest.
A aldeia de Hale ficava justamente nesse ponto. Da casa senhorial, pousada bem na beira da crista, tinha-se uma adorável vista na direção oeste do chão do vale. Duas gerações antes os Penruddock haviam comprado a propriedade para o filho mais novo, e os Penruddock de Hale e seus primos sempre conviveram amigavelmente. Nessa ocasião, os pais haviam levado Thomas para passar alguns dias em Hale.
Acontece que Thomas nunca estivera em Hale. Os primos o receberam calorosamente, os mais jovens o levaram para brincar, e sua primeira noite pareceu ser estragada apenas por um momento, quando uma tia mais idosa, depois de olhá-lo intensamente, exclamou de repente:
— Deus do céu, John, esse menino se parece exatamente com a avó dele, Anne Martell.
Foi do lado da mãe, da família dela, os Martell de Dorset, que Thomas herdara sua bela aparência morena um tanto melancólica. Os Penruddock de cabelos claros eram igualmente uma família bonita. O pai, a quem Thomas idolatrava, também era especialmente considerado assim, e sempre entristecia o menino o fato de os dois não serem exatamente parecidos. Por isso sua face saturnina se iluminou quando a velha tia continuara:
— Espero que tenha orgulho dele, John. E o pai respondera:
— Sim, eu tenho.
Coronel John Penruddock. Para Thomas, tratava-se do homem perfeito. Com a barba castanha e o olhar sorridente, não tinha sido ele o mais arrojado dos comandantes do lado monarquista? Perdera um irmão na guerra; um primo fora exilado. Sua própria garbosa lealdade ao rei lhe custara caro — tanto em dinheiro quanto em oficiais — depois que Cromwell e sua turma deplorável triunfaram; mas Thomas preferiria que os Penruddock perdessem todos os seus hectares de terras a ter o seu pai de forma diferente e menos esplêndido do que era.
Na manhã seguinte, para seu grande prazer, foi permitido a Thomas que se juntasse aos homens que saíram para cavalgar.
— Vamos começar — informou o anfitrião deles — através de Hale Puriieu. Você sabe, perguntou gentilmente, o que é um puriieu, Thomas? — E depois que Thomas sacudiu a cabeça: — Não surpreende que ainda não saiba. Puriieu é uma área na orla da floresta real que costumava estar sujeita às leis florestais mas não está mais. Há vários locais na orla da Floresta que foram incluídos e retirados, à medida que as fronteiras foram sendo alteradas através dos séculos.
Os Penruddock cavalgaram através de Hale Puriieu e estavam chegando a um trecho alto e amplo de charneca de New Forest, quando viram dois cavaleiros, vindos da direita, por uma trilha que atravessava um pouco abaixo o caminho deles. Thomas ouviu o pai praguejar baixinho e viu os primos deterem-se bruscamente. Estava para perguntar o que significava aquilo, mas o pai parecia tão soturno que não ousou fazê-lo. Então os Penruddock ficaram olhando em silêncio para as figuras, um homem e uma mulher, passarem a duzentos metros diante deles, sem um aceno ou palavra, e seguirem através da charneca.
Ele deu uma boa olhada nos dois ao passarem. O homem, vestido discretamente, usava um chapéu preto de copa alta e aba larga do tipo adotado pelos Puritanos de Cromwell. A mulher vestia-se igualmente de forma discreta, a roupa marrom-escura com um pequeno colarinho rendado. A cabeça estava descoberta e os cabelos eram ruivos. Podiam ser simples puritanos, mas a qualidade de suas vestes e os esplêndidos cavalos indicavam claramente que se tratava de pessoas de considerável fortuna. Ninguém se mexeu até eles ficarem fora de vista.
— Quem são, papai? — finalmente, ele se aventurou a perguntar.
— Lisle e a esposa — foi a resposta dada com frieza.
— Eles têm Moyles Court — observou o primo —, mas não costumam subir aqui com freqüência. — Fungou com desdém. — Não falamos com eles. — Seus olhos continuaram sobre as duas figuras até desaparecerem por completo. — Malditos regicidas.
Regicidas: as pessoas que mataram o rei. Nem todos os "Roundheads" tinham ficado a favor. Fairfax, o colega comandante de Cromwell, recusara-se a tomar parte no julgamento do rei. Vários homens proeminentes não se dispuseram a assinar a sentença de morte. Mas John Lisle não teve qualquer escrúpulo. Participou do julgamento, ajudou a redigir os documentos, argumentou em favor da execução e não revelou remorso quando a cabeça do rei foi cortada. Ele era um matador de rei, um regicida.
— E lucrou belamente com isso — acrescentou, raivoso, o primo. Depois que as propriedades dos monarquistas foram confiscadas pelo Parlamento, Cromwell deu a Lisle a chance de comprar terras por um preço barato. — Sua mulher não é melhor do que ele — prosseguiu Penruddock de Hale. — Está tão envolvida quanto ele. São ambos regicidas.
— Essas pessoas, Thomas — disse o pai baixinho —, são inimigas mortais da sua família. Lembre-se disso.
— Elas têm o poder — observou o primo John. — Esse é que é o problema. E não há muito o que se possa fazer a respeito.
— Ora — falou sério o coronel John Penruddock —, eu não estaria tão certo disso, primo. Nunca se sabe. — E Thomas viu os dois se entreolharem, porém nenhuma palavra mais foi dita.
Ele ficou imaginando o que significava aquilo.
E então ele soube. Era uma madrugada de segunda-feira. Tinham estado fora toda aquela noite úmida de março, reunindo grupos de cavaleiros em volta de Sarum; mas Tom não se sentia cansado, porque estava muito excitado. Cavalgava ao lado do pai. Ainda estava escuro, uma hora antes do amanhecer, quando a cavalgada — quase duzentos homens decididos — seguia ao lado do velho muro da Clausura, sob a comprida sombra da torre da catedral. A frente cavalgavam o seu pai, outro fidalgo do local de nome Grove e o general Wagstaff, um desconhecido que chegara com mensagens e instruções da corte real no exílio.
Passando o canto onde o recinto murado da catedral dava para a cidade, subiram a pequena rua que os levou à ampla área a céu aberto da feira de Salisbury. Enquanto cabeças curiosas pipocavam das janelas fechadas, acordadas por aquele inesperado tropel no escuro, os homens-em-armas providenciavam rapidamente o seu serviço.
— Dois homens em cada porta — ouviu o pai ordenar enérgico. Momentos depois eles montavam guarda na entrada de cada uma das várias estalagens em volta da praça da feira. A seguir seu pai enviou patrulhas pelas ruas abaixo e para os portões da Clausura da catedral.
Passaram-se poucos minutos antes que um jovem oficial chegasse a cavalo e anunciasse:
— A cidade está protegida.
— Ótimo. — Seu pai virou-se para o amigo Grove. — Quer ir de porta em porta? Vejamos quantos dos bons cidadãos de Salisbury estão prontos para servir ao seu rei. — Quando Grove se afastou, Penruddock voltou a se dirigir ao jovem oficial: —Veja quantos cavalos é capaz de encontrar. Exija-os, não importa a quem pertençam, em nome do rei. — Olhou em direção ao colega comandante. O general Wagstaff, um homem algo impetuoso, servira corajosamente na Guerra Civil. Com um laivo de irritação, Penruddock perguntou-lhe: — Onde está Hertford?
O marquês de Hertford, um poderoso magnata, assegurara que se juntaria a eles com uma grande tropa, talvez todo um regimento de cavalaria.
— Ele virá. Não tema.
— É o que espero. Bem, vamos lá na cadeia? Espera aqui, Thomas — instruiu, e, na companhia de vinte homens, os dois comandantes saíram cavalgando na escuridão para a prisão da cidade.
O "Sealed Knot" (Nó Apertado). O jovem Thomas olhou em volta para os cavaleiros nas sombras da praça da feira. Aqui e ali podia ver a tênue incandescência de um cachimbo de barro que fora aceso. Havia leves tinidos enquanto um cavalo mastigava o seu bocado ou uma espada se chocava contra o peito de uma armadura. O "Sealed Knot" — por dois anos, os fidalgos leais desse grupo secreto haviam se preparado para desferir um golpe que devolvesse a Inglaterra ao seu digno governante. Naquele momento, do outro lado do mar, o filho mais velho do rei assassinado esperava ansiosamente para atravessá-lo. Em pontos estratégicos por todo o país, cidades e fortalezas foram tomadas. E seu garboso pai era quem os liderava a oeste. Ele sentiu tanto orgulho dele, que era até capaz de morrer.
Não demorou muito para os dois fidalgos comandantes retornarem.
O pai dele vinha rindo.
— Achei difícil saber, Wagstaff, se aqueles homens ficaram mais contentes por se verem livres da cadeia ou pesarosos por serem transformados em soldados. — Voltou-se para o jovem oficial a quem dera ordens e que já estava de volta para informar sobre os cavalos. — Conseguimos uns cento e vinte prisioneiros em boa forma para o serviço. Temos montaria para todos eles?
— Sim, senhor. Os estábulos em todas as estalagens estão repletos. Há muita gente na cidade para as cortes de justiça.
Os juizes de Londres tinham acabado de chegar a Salisbury para realizar ali as sessões periódicas da corte. O lugar estava atulhado de gente que tinha assuntos a resolver no tribunal.
— Ah, sim — prosseguiu o coronel Penruddock —, isso me faz lembrar. Precisamos lidar com os magistrados e o xerife. — Acenou com a cabeça para o oficial. — Encontre-os, por favor, e traga-os aqui imediatamente.
Thomas achou difícil não dar uma gargalhada, poucos minutos depois, quando os cavalheiros em questão apareceram. Pois o oficial tinha tomado as palavras do pai dele quase que literalmente. Havia três homens, dois juizes e um xerife, todos eles arrancados da cama, ainda com camisolas de dormir e tremendo no frio da manhã. Uma luz mortiça surgiu no céu. Ficaram claramente visíveis as expressões de raivosa consternação nos pálidos rostos dos três.
Até então Wagstaff se contentara em conferenciar silenciosamente com Penruddock. Afinal, ele estava ali apenas como representante do rei, ao passo que sobre Penruddock repousava todo o peso da autoridade local. Mas por algum motivo a visão daquelas três pessoas importantes em roupas de dormir pareceu atiçar nele um súbito acesso de irritação. Ele era um soldado baixote e enérgico, com uma barba curta e um comprido bigode. Este último pareceu estremecer de nojo ao fitar aqueles três.
— O que significa isto? — quis saber um dos juizes, com o máximo de dignidade que conseguiu reunir.
— Significa, senhor — respondeu Wagstaff furioso —, que está preso em nome do rei.
— Receio que não — retrucou o juiz, com uma compostura admirável para um homem de pé em um lugar público vestido apenas com camisola de dormir.
— E significa também — todo o ser de Wagstaff eriçou-se até o seu pequeno corpo parecer explodir em um grito — que o senhor está prestes a ser enforcado.
— O plano não é bem assim, Wagstaff— interpôs-se Penruddock delicadamente.
Mas, por um momento, pareceu que Wagstaff não estava ouvindo. Virou-se para o xerife.
— E o senhor — ganiu.
— Eu, senhor?
— Sim, senhor. O senhor, sim. Maldito seja, senhor. O senhor é o xerife?
— Sou.
— Pois então vai fazer um juramento de lealdade ao rei, senhor. Agora, senhor! O xerife em questão já havia lutado antes como coronel no exército de Cromwell e, apesar de sua presente situação, não ia se deixar intimidar.
— Não o farei, senhor — rebateu decidido.
— Pelo sangue de Deus! — vociferou Wagstaff. — Enforque-os já, Penruddock. Pelo sangue de Deus — repetiu, por via das dúvidas.
— Isso é uma blasfêmia, senhor — observou um dos juizes. Tratava-se de uma queixa freqüente dos oponentes puritanos que a linguagem dos fidalgos licenciosos era blasfema.
— Dane-se o seu jargão lamuriento, seu maçante sacudidor da Bíblia, pois vou enforcá-lo. Tragam cordas — bradou Wagstaff, olhando em volta à procura de um promissor ponto de suspensão.
E passaram-se vários minutos antes que Penruddock conseguisse convencê-lo de que não se tratava da melhor decisão. No final, os juizes tiveram os seus documentos oficiais de delegação queimados diante deles, e o xerife foi colocado sobre um cavalo, ainda de camisola, para ser levado como refém.
— Sempre poderemos enforcá-lo depois — murmurou um Wagstaff bastante mal-humorado, com um pouco de esperança renovada.
Crescia a claridade da manhã, e as forças ampliadas se reuniram na praça da feira. Havia ao todo perto de quatrocentos. Para Thomas, parecia um imenso exército. Mas viu o pai comprimir os lábios e perguntar baixinho a Grove:
— Quantos cidadãos conseguiu?
— Não muitos — murmurou Grove.
— A maioria de prisioneiros, então. — Sua aparência era sombria. — Onde está Hertford?
— Ele se juntará a nós. No caminho — grunhiu Wagstaff. — Pode contar com isso.
— Eu conto. — O coronel Penruddock acenou para Thomas se aproximar. — Thomas, vá até sua mãe e lhe faça um relato completo de tudo o que aconteceu. Deverá permanecer em casa até receber meu aviso para se juntar a mim. Está entendendo?
— Mas, papai, o senhor disse que eu podia cavalgar a seu lado.
— Obedeça-me, Thomas. Dê-me sua palavra de cavalheiro de que fará exatamente o que mandei. Fique protegendo sua mãe, seus irmãos e irmãs até eu mandar buscá-lo.
Thomas sentiu os olhos esquentarem. O pai nunca havia pedido sua palavra de cavalheiro, mas mesmo essa minúscula emoção prazerosa foi inundada pela grande onda de decepção e tormento que acabara de se abater sobre ele.
— Oh, papai. — Sufocou as lágrimas. Sentiu uma enorme sensação de perda. Ele ia cavalgar ao lado do pai, um colega soldado a seu lado. Uma chance igual voltaria a surgir? Sentiu a mão do pai em seu braço. A mão apertou.
— Nós cavalgamos juntos a noite toda. Fiquei contente em ter você a meu lado, meu corajoso filho. Foi a melhor noite e a mais orgulhosa de minha vida. Nunca me esquecerei disso. — Sorriu. — Agora, prometa-me.
— Prometo, papai.
— Hora de partir — avisou Wagstaff.
— Sim — disse o coronel John Penruddock.
A segunda-feira transcorreu tranqüila em Compton Chamberlayne. Thomas dormiu durante a tarde. Pouco antes do anoitecer, um cavaleiro vindo do oeste, a caminho de Sarum, transmitiu a notícia para a Sra. Penruddock de que o marido e seus homens tinham estado em Shaftesbury, a apenas cinco quilômetros dali; mas, temendo que Thomas ficasse tentado a ir até lá, ela nada lhe disse. Na terça-feira, um grupo de cavaleiros de Cromwell chegou a Sarum. Poucas horas depois se foram em direção a oeste. Indagados sobre qual era a missão deles, responderam: "Caçar Penruddock."
A quarta-feira passou. Não houve notícias. Em algum lugar, nas enormes serras de calcário que se estendiam em direção ao oeste, Penruddock estava reunindo tropas e talvez lutando. Mas, apesar de o jovem Thomas parar cada cavaleiro vindo do oeste e de sua mãe, três vezes por dia, mandar buscar notícias em Sarum, não havia nenhuma. Apenas o silêncio. Ninguém sequer sabia onde eles estavam. A Sublevação de Penruddock tinha sumido de vista.
O que estava acontecendo? Por que os participantes do "Sealed Knot" haviam decidido que podiam atacar naquele instante e por que o equilibrado coronel John Penruddock se envolveu naquela questão perigosa?
Fossem quais fossem os defeitos do rei, o choque provocado pela execução de Carlos tinha sido geral. Panfletos descrevendo-o como mártir eram vendidos em tal número que havia em circulação um número próximo ao das Bíblias. Não demorou para que os escoceses — que não queriam ser governados por Cromwell e seu exército inglês tanto quanto ficar sujeitos a Carlos
e seus bispos — coroassem o filho deste como Carlos II, na condição de que pelo menos na Escócia, gostassem ou não (e os alegres jovens libertinos não gostaram nem um pouco!), ele apoiasse a austera crença calvinista deles. Prontamente o jovem Carlos II tentou invadir a Inglaterra, foi impedido por completo por Cromwell e, após se esconder em um pé de carvalho, fugiu para salvar a própria vida. Isso tinha ocorrido quatro anos atrás, mas desde então, de seu exílio no exterior, o jovem rei se manteve ocupado preparando-se para retomar o seu reino.
Quanto a Cromwell, que tipo de governo ele tinha a oferecer? Uma Common-wealth (República), como era chamada. Mas, fora um Parlamento formado por fidalgos e mercadores escolhidos a dedo por ele, estava claro que o poder continuava inteiramente com o exército. E nem mesmo com os que venceram a Guerra Civil, pois os democráticos Levellers tinham sido esmagados, e seus líderes, fuzilados. Cromwell agora era chamado de Protetor e se assinava como Cromwell R, exatamente como um rei. Três meses antes, depois que o Parlamento escolhido pelo próprio Cromwell se recusara a aumentar o seu exército, ele o dissolvera. "É um tirano pior do que o antigo rei", protestaram. Com os monarquistas ainda abundantes de um lado, os homens do Parlamento e até mesmo os democratas do exército do outro, não era despropositado esperar que Cromwell pudesse ser derrubado. Como sempre ocorre com as coisas relacionadas aos homens, contudo, o desenlace nada teria a ver com os méritos da causa, mas com o timing.
A notícia chegou na quinta-feira.
"Eles foram desbaratados." Acontecera durante uma escaramuça noturna em um vilarejo do West Country. "Wagstaff fugiu, mas Penruddock e Grove foram presos. Vão ser julgados. Por traição."
Foi apenas gradualmente que a história completa emergiu. A grande subleva-ção do "Sealed Knot" não tinha exatamente fracassado: na verdade, sequer começara. Apesar da fúria dos membros do Parlamento por terem sido exonerados, apesar do fato de parte do exército de Cromwell ainda permanecer no norte, pacificando as Highlands escocesas, os cabeças do Sealed Knot haviam concluído, sensatamente, que sua organização não estava pronta para uma sublevação em grande escala. Uma torrente de mensagens confusas, para lá e para cá, entre o Knot e o rei no exílio, não apenas havia levado alguns encarregados, como Wagstaff, a acreditar que a revolta ainda estava em andamento, mas também alertara Cromwell, que prontamente enviara tropas extras para Londres e outros pontos-chave. A um encontro após outro, os conspiradores ou deixaram de comparecer ou rapidamente voltaram para casa. No dia anterior aos acontecimentos em Salisbury, a coisa toda já tinha sido totalmente cancelada.
Mas ninguém avisara Penruddock. Foi uma questão de timing.
Thomas nunca vira a mãe daquele jeito. Embora tivesse transmitido ao filho a aparência saturnina dos Martell, ela tinha um rosto largo e franco com um grande volume de cabelos castanhos. Era uma mulher simples, que entendia dos assuntos da casa, mas sempre deixava todas as questões de negócios e política com o marido e aceitava suas decisões. Ela o vira gastar mais de mil libras na causa do rei e sofrer uma multa de mais mil e trezentas. Os últimos anos tinham sido difíceis, ao pelejarem para pagar tudo isso. Mas um julgamento por traição, até mesmo Thomas sabia, podia significar penalidades mais duras para a família. Podiam perder Compton Chamberlayne e tudo o que possuíam. Enquanto a mãe se dedicava às tarefas domésticas diárias, supervisionando os filhos, a cozinha, a despensa, os criados, e agora também os empregados da propriedade, ele imaginava se ela tentava se comportar normalmente ou se apenas fazia vista grossa para nem mesmo pensar naquilo.
Acima de tudo, porém, ele a observava à procura de sinais do que estava acontecendo com o pai.
A primeira carta dele lhes foi entregue na noite de quinta-feira. Pedia que ela permanecesse onde estava e esperasse por mais notícias. Em poucos dias chegou outra com instruções.
Thomas pôde ver a mãe fazer o melhor que podia. O pai pedira a ela que usasse toda a sua influência em benefício dele, que procurasse todos os tipos de pessoas. Tal coisa não seria fácil para ela. Pediu ajuda aos amigos. O problema era que quase todos estavam entre os bem-nascidos com ligações com os monarquistas. Após uma semana infrutífera em busca de amigos que não podiam ajudar e escrever para outros que provavelmente não queriam ajudar, a mãe dele anunciou certo dia:
— Amanhã iremos todos à Floresta.
— Quem vamos visitar? — quis saber Thomas.
— Alice Lisle.
— Pelo menos ela pode nos receber — declarou a mãe, enquanto a velha carruagem seguia pela Floresta. Ela soubera que Alice Lisle estava em Albion House; portanto, passara a noite em Hale antes de retomar a viagem ao amanhecer. — Ela pode ter se casado com Lisle, mas ainda é uma Albion. Nós nos dávamos com eles — observou, queixosa.
No final da manhã estavam em Lyndhurst e ao meio-dia passaram por Brockenhurst, atravessando o pequeno vau de onde a trilha levava abaixo, na direção da casa no bosque.
Ao olhar para os dois irmãos e as três irmãs mais novos, Thomas pensava na conversa que tivera com a mãe na noite anterior.
— Acho que a Sra. Lisle nos odeia, mamãe — aventou.
— Talvez, mas ela também é uma mulher que tem filhos — respondeu a mãe no seu jeito simples. Em seguida, com uma súbita aflição que ele não costumava ver: —Ah, esses homens! Eu não sei. Não sei realmente.
Então cruzaram o portão de Albion House, e os surpresos criados informaram à dona da casa quem estava ali; após uma breve demora, Alice Lisle deu ordem para que entrassem. Foram conduzidos à sala de estar.
Alice Lisle estava vestida de preto, com um avental branco simples e enorme colarinho e punhos de linho. Os cabelos ruivos estavam enfiados em um gorro de pano. Parecia uma Puritana em cada centímetro do corpo. A Sra. Penruddock se vestira do modo mais simples que havia conseguido, apesar de seu colarinho de renda deixar bastante claro que era a esposa de um fidalgo. Que adiantava fingir?, pensara.
Alice Lisle olhou para a Sra. Penruddock e seus filhos. Estava de pé e não sugeriu que eles se sentassem. Ela tinha entendido de imediato, é claro. A mulher de Penruddock viera implorar e estava usando os filhos. Não a censurava por isso. Acreditava que teria feito o mesmo. Viu a outra mulher olhar em volta à procura dos filhos dela, mas já os tinha mandado ir rapidamente para outra parte da casa. Não queria que as crianças se conhecessem, pois isso poderia criar uma intimidade que era impossível. Permanecia de pé, imóvel. Não se atrevia a revelar qualquer fraqueza.
— Meu marido está em Londres, e não creio que voltará ainda este mês — disse ela.
— Foi a senhora que eu vim ver. — A Sra. Penruddock não tinha preparado um discurso, pois não sabia como fazê-lo. — Eu me lembro muito bem do seu pai. Meu avô e o velho Clement Albion foram amigos, como sabe — falou abruptamente.
— Devem ter sido.
— Sabe o que estão fazendo com o meu marido? Estão acusando-o de traição!
— Seu tom de voz aumentou na última frase, como se aquilo fosse algo absurdo.
Deus do céu, poderia ter berrado Alice, se uma pessoa se coloca à frente de quatrocentos homens, captura o xerife e declara guerra ao governo, o que se pode esperar? Mas ela entendeu. Olhou para as crianças, viu o menino mais velho fitando-a intensamente, quis contemplá-lo com piedade, mas sabia que não devia. Em vez disso, seu olhar foi implacável.
— O que deseja de mim? — perguntou.
— Não é justo — disse a outra, indicando os seis filhos — deixá-los sem um pai, seja lá o que ele tenha feito. Foi ele quem impediu que Wagstaff fizesse algum mal àqueles homens em Salisbury. Ele nunca fez mal a ninguém. E, se o Protetor deixá-lo viver, sei que ele lhe dará a sua palavra de que não voltará a pegar em armas ou nem mesmo fará qualquer outro acordo com o rei.
— Está me dizendo para escrever ao meu marido relatando tudo isso? Acredita que ele pode convencer o Protetor?
— Sim. — Uma luz de esperança se acendeu no rosto da Sra. Penruddock.
— - A senhora faria isso?
Alice a encarou. Percebeu a esperança brotar e precisava esmagá-la. Não podia acrescentar mais desgraça àquela família, despertando um falso otimismo que simplesmente seria frustrado. Seu olhar voltou a recair em Thomas. O menino parecia mais sensível que a mãe, pensou.
— Sra. Penruddock. — Fechando a cara do modo mais implacável, ela se dirigiu também ao menino. — Devo dizer-lhe que não há nenhuma esperança. Se os juizes o declararem culpado, ele certamente morrerá. Isto é tudo o que tenho a lhe dizer.
O rosto da mulher se abateu, mas ela ainda não tinha desistido.
— A senhora nem mesmo escreverá? — implorou. Alice hesitou. O que poderia responder?
— Eu escreverei — falou de má vontade. — Mas de nada adiantará.
— Pelo menos ela disse que vai escrever — afirmou a Sra. Penruddock para os filhos, ao retornarem.
E escrever, Alice escreveu — uma longa e apaixonada carta. Falou do encontro para o marido e relatou todos os pontos a favor do coronel Penruddock, incluindo alguns que a esposa dele não citara. Fossem quais fossem as intenções de Penruddock ao iniciar o malfadado empreendimento, ela não tinha a menor dúvida de que se ele desse sua palavra a Cromwell iria mantê-la.
A resposta de John Lisle chegou dias depois. Ele concordava com Alice e tinha falado com Cromwell, mas, como não era de surpreender, não pôde ajudar muito.
Os líderes serão julgados, e os juizes que ele maltratou em Salisbury não se sentarão na banca de julgamento afim de que não se pense que eles procuram vingança.
Se Penruddock for considerado culpado — e certamente o é—
o Protetor lhe concederá uma morte piedosa. Porém, ele nada mais pode fazer. Se perdoasse Penruddock, estaria incentivando outras rebeliões.
Thomas não se lembrava dos detalhes dos dias subseqüentes. Houve cartas, apelos desesperados; por um tempo, pareceu que uma garantia de salvo-conduto e perdão dada a alguns de seus seguidores talvez também pudesse ser aplicada a Penruddock e Grove, mas isso lhes foi negado. Em seguida as autoridades pareceram hesitar sobre onde os julgamentos deveriam ser realizados, mas por volta de abril decidiu-se que os rebeldes capturados no West Country seriam julgados por lá, na cidade de Exeter, onde eram mantidos prisioneiros. Todos os dias, ele perguntava à mãe: "Quando iremos ver papai?", e ela sempre respondia: "Assim que ele mandar nos chamar."
Estava claro que seu pai ainda achava que podia ser necessária a presença da esposa em Londres, para interceder a seu favor; portanto, eles permaneciam em casa. Mas na terceira semana de abril chegou uma mensagem. O julgamento ia ter início. O coronel Penruddock mandara chamar a esposa.
— Não posso ir também? — implorou Thomas. No momento, não, lhe disseram. E assim, mais uma vez, ele teve que ficar em casa e esperar.
Sua mãe ficou fora uma semana, mas antes de seu retorno ele já sabia do veredicto. Culpados. Foi solicitada a Cromwell a autorização para a execução. Ela agora estava histérica. Penruddock e Grove fizeram um apelo aos juizes.
Ela mesma, no instante em que chegou em casa, despachou imediatamente uma carta para Alice Lisle. "Estou certa de que ela pode fazer algo", declarou. Embora isso fosse previsível, quando não tiveram mais nenhuma notícia dela, Thomas não entendeu por quê.
Um golpe, entretanto, eles não tinham previsto. Um dia após a volta da mãe, quando ela tentava consolar os filhos, um grupo de seis soldados sob o comando de um oficial surgiu na porta da casa e informou à infeliz mulher que ela devia sair.
— Sair? Como assim? Por quê?
— A casa foi confiscada.
— Quem ordenou?
— O xerife.
— Ficarei desabrigada então? Com os meus filhos?
— Sim.
Passaram aquela noite em Salisbury; a seguinte, com os primos em Hale. No dia posterior, contudo, veio a notícia de que podiam voltar. Tinha havido um engano. Nenhuma decisão com relação às propriedades fora tomada ainda.
O fato de que Alice Lisle, ao saber disso no mesmo dia, deduzindo que o xerife, um homem ganancioso, devia estar tentando tomar a propriedade para si, tivesse enviado uma mensagem urgente ao marido, pedindo que a ordem fosse revogada, foi algo que a família Penruddock nunca soube.
Um dia após retornarem à casa, a Sra. Penruddock e os filhos partiram para Exeter. Levaram três dias. Ao chegarem lá, a autorização para as execuções já tinha sido dada por Cromwell, redigida e assinada pessoalmente. Em vez do horripilante enforcamento e esquartejamento feitos com traidores, Penruddock teria uma execução limpa, com a cabeça cortada por um machado. Por nunca ter visto antes a execução de um traidor, a família não entendeu direito o que havia nisso de piedoso.
Na última semana tiveram permissão para vê-lo duas vezes. A primeira foi um choque para Thomas. Embora, graças à esposa, lhe tenha sido providenciada uma camisa limpa, o coronel Penruddock parecia macilento e abatido em sua pequenina cela. Seus carcereiros não tinham permitido que se lavasse com a freqüência desejada, e Thomas notou um certo odor emporcalhado na presença do pai. O efeito disso, porém, após o choque inicial, foi deixá-lo ainda mais comovido do que teria ficado de outro modo. O garoto apenas olhava confuso o pai desalinhado. Falou com eles com o seu habitual jeito informal e tranqüilo, abençoou-os, beijou-os e disse-lhes que precisavam ser corajosos.
— Talvez — Thomas ouviu-o murmurar para a esposa — Cromwell possa atenuar. Mas não acredito.
A segunda ocasião foi mais difícil. Com o passar do tempo, ainda que tentasse manter a calma, sua mãe tornava-se cada vez mais perturbada. Ao se aproximar o dia da execução, ela parecia imaginar que o seu apelo a Alice Lisle certamente lhe traria alívio. "Não entendo por que está demorando tanto", queixava-se de repente. "A resposta deve vir." Franzia a testa. "Tem que vir." Por algum motivo voltava sempre à sua mente, vezes seguidas, o fato de os homens do xerife terem tomado a sua casa por dias. "E pensar que eles puderam fazer uma coisa dessas!", exclamava.
Sabiam que a segunda visita seria a última, pois a execução estava marcada para o dia seguinte. Foram lá durante a tarde e entraram na prisão.
Mas por algum motivo houve uma demora. Tiveram que esperar um pouco em um aposento externo, onde se viram na companhia do chefe dos carcereiros, que ficou o tempo todo comendo cuidadosamente uma torta e depois palitando os dentes. Tinha uma suja barba encanecida, que não aparava, porque naquela época ninguém o fazia. Tentaram não olhar para ele.
Ele, porém, olhava-os. Eles o interessavam. Não gostava de monarquistas, principalmente fidalgos bem-nascidos, como era o caso daqueles Penruddock. Se o pai daquelas crianças estava para ser decapitado, tanto melhor. Observava as suas roupas aristocráticas — renda e cetim para as meninas; ora, o menino mais novo tinha pequenas rosetas nos sapatos — e imaginava ociosamente qual seria a aparência deles depois que ele e seus homens tivessem tido a chance de despojá-los. Podia ver as roupas em farrapos, os meninos com os olhos roxos, e a mãe...
A mãe agora estava tagarelando sobre alguma coisa. Ela esperava a comutação da pena. Que piada. Ninguém iria comutar a pena de Penruddock, até ele sabia disso. Mas, mesmo assim, ouviu com curiosidade. Esperava que o juiz Lisle falasse com Cromwell. Ele tinha ouvido falar em Lisle. Mas nunca o tinha visto. Era íntimo de Cromwell, tinha ouvido falar. A mulher havia escrito para a esposa dele. Uma esperança vã, obviamente, mas as esposas de condenados às vezes faziam isso.
— Disse Lisle? — Ele interrompeu subitamente, com um sorriso, pegando-a desprevenida. — Juiz Lisle?
— Sim, meu bom homem. — Dirigiu-se a ele, ansiosa. — Sabe se houve alguma notícia da parte dele?
Fez uma pausa. Pretendia saborear aquilo.
— A autorização para a morte do seu marido foi redigida por Lisle. Com sua própria caligrafia. Estava com Cromwell quando ele a assinou.
O efeito foi delicioso. Observou o rosto dela abater-se e cair em abjeta confusão. Ela pareceu desabar e murchar diante de seus olhos. Nunca vira nada semelhante. O fato de não fazer a mínima idéia de que o juiz Lisle estivesse a centenas de quilômetros de Cromwell e da autorização tornava aquilo ainda melhor.
— Isso é sabido por todos — acrescentou, para efeito dramático.
— Mas eu voltei a escrever para a esposa dele — uivou a pobre Sra. Penruddock.
— Dizem que foi ela — prosseguiu ele, tranqüilo —, particularmente, quem insistiu na morte do pobre coronel.
O indício de que ele sentia pena do desgraçado marido fez a coisa soar mais plausível. A mulher quase desmaiou. O menino mais velho parecia disposto a matar alguém. E o homem estava imaginando se haveria mais alguma coisa que pudesse inventar para escarnecer daquela gente infeliz, quando um dos guardas lhe informou que o prisioneiro estava pronto.
— Está na hora de verem o coronel — anunciou ele. E, assim, os Penruddock saíram de sua presença. Por não serem versados nas práticas da malícia, não lhes ocorrera que cada palavra que o carcereiro disse era mentira.
O coronel Penruddock fizera todo o possível a fim de se preparar para o encontro final com os filhos. Encontraram-no de banho tomado, penteado e bem animado. A cada um falou alegre e calmamente e disse-lhes que fossem corajosos para o bem do pai deles.
— Lembrem-se — falou —, não importam as dificuldades que possam enfrentar, elas ainda serão insignificantes diante do sofrimento de Nosso Senhor. E, se os homens os insultarem, isso nada significará, pois Ele vela por vocês e ama vocês com um amor muito maior do que eles jamais conhecerão.
Para a esposa, pronunciou todas as palavras de conforto que podia e, em seguida, fez com que prometesse que levaria as crianças de Exeter à primeira luz da manhã seguinte.
— A primeira luz, eu lhe imploro. Deverá estar bem longe da cidade e seguindo o seu caminho antes do transcorrer da manhã. Não pare até chegar em Chard. — Isso ficava a quarenta quilômetros de distância, um bom dia de viagem.
A Sra. Penruddock aquiesceu e murmurou algumas palavras, mas parecia estar aturdida. Quanto a Thomas, apenas conseguiu curvar a cabeça, a fim de esconder as lágrimas, quando o pai o abraçou e lhe disse que fosse corajoso. Antes que ele percebesse o que estava acontecendo, a porta da cela foi aberta, e eles foram conduzidos para fora. Ele tentou olhar para trás, na direção do pai. Mas a porta voltara a se fechar.
Somente às dez horas daquela noite a Sra. Penruddock pareceu voltar à vida. As crianças menores já dormiam no grande aposento que todos dividiam na estalagem, mas Thomas estava acordado, quando, de repente, ela se sentou na cama com um sobressalto, um olhar horrorizado no rosto pálido, e gritou:
— Eu não lhe disse adeus.
Saiu à procura de pena e papel na mesa.
— Eu sei que estão aqui — murmurou lamurienta. — Preciso escrever uma carta — acrescentou com insistência.
Thomas entregou-lhe o que ela queria e ficou observando-a escrever. Era difícil entender a mãe. Quando ela se dispunha a fazer algo, quando se concentrava naquilo, conseguia se expressar com dignidade; mas, por outro lado, quase no mesmo fôlego, alguns outros pensamentos, banais ou rudes, surgiam em sua mente e faziam com que, de repente, ela se desviasse do curso inteiramente. Foi o que aconteceu com a carta. Começou muito bem:
Até agora nossa triste separação está tão distante de me fazer esquecê-lo que raramente penso em mim desde então, mas somente em você. Os caros abraços que ainda sinto e que jamais esquecerei... enfeitiçaram a minha alma com a veneração da sua lembrança...
Mas algumas linhas depois a lembrança dos homens do xerife se intrometeu repentinamente.
É tarde demais para dizer o que tenho feito por você; de quantas portas voltei porque fui implorar piedade...
Depois, mais uma vez, voltou abruptamente para um tom amoroso e apaixonado, ao encerrar:
Adieu, portanto, dez mil vezes, meu mais querido dos queridos. Seus filhos lhe pedem a bênção e oferecem sua obediência.
Eram onze da noite quando terminou, mas um criado, regiamente pago, concordou em levar a carta até a cadeia e voltou pouco depois da meia-noite, com uma breve e amorosa resposta com a caligrafia do coronel.
Somente de madrugada, contudo, Thomas caiu no sono.
Não teria acontecido se a Sra. Penruddock tivesse sido pontual. Ela tentou ser. Às oito horas daquela pálida manhã cinzenta a carruagem já estava à espera no portão da estalagem havia quase uma hora.
Ela queria ir embora. Não apenas desejava obedecer ao marido, como também queria se retirar de cena, afastar-se — e aos filhos também — daquele assunto terrível, da perda na qual não tolerava nem mesmo pensar. Não se tratou de um atraso intencional. Mas, primeiro, faltava uma coisa, depois outra; em seguida a menina mais nova escolheu aquele momento para ter enjôo. Às nove, a Sra. Penruddock estava em tal estado de impaciente agitação que perdeu a bolsa e teve uma discussão com o estalajadeiro, pois ele achava que não ia ser pago. Sem pensar, ela o alertou de que, se ele não contivesse a língua, ela cuidaria para que o marido tomasse conhecimento daquilo. O que fez com que o homem a olhasse de modo estranho; e ao perceber, com uma espantosa frieza, que em poucos instantes, Deus do céu, ela não teria marido e talvez nem mesmo dinheiro para pagar a mais nenhum estalajadeiro, ela poderia ter-se debulhado em lágrimas; só que, então, a sua força inata retornou para salvá-la novamente, e recobrou-se o suficiente para poder imaginar onde a bolsa poderia estar e encontrá-la. Então, finalmente, com as dez horas soando em um sino próximo, reuniu as crianças, enfiou-as rapidamente na carruagem e chamou Thomas.
Mas Thomas tinha sumido.
Ele não pôde evitar. Caminhava pela rua, seguindo a multidão que, imaginava, devia estar indo na direção do local da execução. Pois como, estando ainda na cidade, poderia perder a oportunidade de ver o pai que tanto amava e idolatrava uma última vez?
Não conseguiu ficar perto, ao chegar ao local, tamanha a multidão; e, além do mais, mesmo se pudesse chegar à frente, ao próprio pé do cadafalso, não ousaria fazê-lo, porque sabia que, por ordem do pai, ele não deveria estar ali.
Mas encontrou uma carroça na qual ficou trepado, junto com uma dezena de aprendizes e outros moleques, e dali tinha uma visão perfeita.
Havia uma plataforma no centro do local. Já fora colocado um cepo em cima dela. Meia dúzia de soldados a vigiavam.
Teve de esperar um quarto de hora até chegarem os destacamentos. Vinham a cavalo, seguidos por uma carroça com uma guarda de soldados portando mosquetes e lanças. Na carroça, vestido com uma camisa branca e limpa, os longos cabelos castanhos amarrados para trás, de pé, vinha o seu pai.
O xerife foi o primeiro a subir na plataforma, depois mais dois homens e, em seguida, o carrasco, usando uma máscara negra e carregando um machado que cintilava prateado. A seguir conduziram o pai dele.
Não perderam tempo indevidamente. O xerife, em altos brados, leu a sentença de morte pelo crime de traição. O pai dele foi para a frente, em companhia do carrasco, na direção do cepo. Ele falou algo para o xerife, que confirmou com a cabeça; o carrasco deu um passo atrás, o pai pegou um pedaço de papel e deu uma olhada nele. A seguir, olhando calmamente sobre a multidão, o coronel Penruddock falou.
— Senhores — ressoou sua voz. — Sempre foi o costume, de quaisquer que sejam as pessoas, quando vão morrer, dar alguma satisfação ao mundo, se são culpadas do ato pelo qual foram condenadas. O crime pelo qual vou agora morrer foi a lealdade, nesta época denominada de alta traição. Não posso negar...
O discurso foi claro, mas longo. A multidão permaneceu razoavelmente em silêncio, mas Thomas ou não pôde ouvir ou não conseguiu acompanhar tudo. O sentido, porém, ele entendeu. Seu pai destacou alguns pontos sobre o modo como foi tratado, e também era importante que ele inocentasse outros, principalmente aqueles mais ligados ao "Sealed Knot", de qualquer cumplicidade. Tudo isso ele fez bem e com simplicidade. Somente ao encerrar, expressou as esperanças de que a Inglaterra voltasse algum dia a ser governada pelo seu legítimo rei. Então encomendou a alma a Deus.
Um dos homens do xerife se aproximou e meteu o cabelo do pai por baixo de um gorro que enfiou em sua cabeça. Olhou de relance para o carrasco, que aquiesceu.
Então foram para o cepo. O pai ajoelhou-se e beijou o toro de madeira, em seguida, ainda ajoelhado, virou-se na direção do carrasco. Falou algo com ele. O carrasco baixou a lâmina do machado, e ele a beijou. A multidão se mantinha em silêncio absoluto. O coronel Penruddock disse mais alguma coisa, que Thomas não conseguiu escutar, depois girou a cabeça de volta para o toro. Silêncio. Ele ia pousar a cabeça no cepo.
Era o momento final. Thomas quis gritar. Por que esperara tanto, até que todos estivessem tão silenciosos? Ele gostaria de ter gritado, ainda que desobedecendo ao pai, para deixar que este soubesse que esteve com ele, mesmo no último momento. Um grito de amor. Era tarde demais? Não deveria? Sentiu o terrível choque da separação, a inundação de amor. "Papai!", quis gritar. "Papai!" Não conseguiria? Inspirou fundo.
A cabeça do pai baixou para o cepo. Thomas abriu a boca. Nada. O machado desceu.
— Papai!
Viu um repentino jorro vermelho e em seguida a cabeça do pai cair, com um leve baque surdo, no chão.
1664
Para Alice Lisle, os anos que se seguiram à Sublevação de Penruddock não lhe trouxeram paz de espírito. Superficialmente, podia parecer que ela tinha tudo. A carreira do marido ia de vento em popa. Em Londres haviam adquirido uma excelente casa no agradável subúrbio de Chelsea, localizado na margem do rio. Eles e os filhos eram íntimos de Cromwell e sua família e participavam do mesmo grupo do Protetor nos cultos. A família de Cromwell até mesmo comprara uma propriedade perto de Winchester, não muito distante de um daqueles elegantes lugares que John Lisle adquirira naquela parte do país. Os Lisle eram ricos. Quando Cromwell formou uma nova casa de pares do reino, escolheu Lisle para ser um deles, e agora o advogado era chamado de lord Lisle, e Alice, a sua lady.
O Protetor era todo-poderoso. Seu exército havia subjugado a Escócia e a Irlanda. O tráfego marítimo inglês dominava cada vez mais os altos-mares. ACommonwealth da Inglaterra nunca fora tão poderosa. Entretanto, a despeito de tudo isso, Alice sentia-se intranqüila; e havia dias em que sentia a mesma apreensão daquele inverno cinzento, quando o marido fora a Londres para executar o rei.
Pois o problema era que a Commonwealth não funcionava realmente. Ela podia ver, geralmente, com muito mais clareza que o marido. Cada vez que o Parlamento e o exército, ou qualquer outra facção interna, não conseguiam firmar um acordo, e o marido chegava em casa com alguma nova forma de composição que ele e os amigos iriam tentar, dizendo "Desta vez, resolveremos os problemas", ela apenas aquiescia em silêncio e se controlava. E com toda a certeza, meses depois, surgia uma nova crise, e era escolhida uma nova forma de governo. Os meses que se seguiram à Sublevação de Penruddock tinham sido os piores. A fim de eliminar qualquer idéia de uma outra oposição, Cromwell dividiu o país em doze regiões, colocou um general-de-divisão encarregado de cada uma e governou através de lei marcial. Nada conseguiu além de fazer com que toda a Inglaterra odiasse o exército, e após algum tempo até mesmo Cromwell teve de desistir. Mas, fundamentalmente, a questão continuava a mesma. Ditadura ou república, governo militar ou civil, governo das classes fundiárias ou governo da gente comum: nada disso ficou decidido; ninguém estava contente. E enquanto Cromwell experimentava um expediente após outro, ela imaginava: tirando-se Oliver Cromwell, o que se tinha? Ninguém, nem mesmo seu marido inteligente, sabia.
Havia uma outra coisa que também a perturbava.
— Tudo o que fizemos, John — disse a Lisle —, se não foi para estabelecer um governo justo e divino, seria melhor não ter sido feito.
— É isso que pretendemos, Alice — retrucou ele, irritado. — Estamos estabelecendo um governo divino.
Estariam mesmo? Ah, o Parlamento havia feito algumas leis aterradoras. Tornara, inclusive, o adultério punível com a morte — só que os júris, muito acertadamente, se recusavam a sentenciar com tal castigo monstruoso. Blasfemar, dançar e todos os tipos de diversão que ofendiam os puritanos foram banidos. Os generais-de-divisão até mesmo tinham conseguido fechar metade das estalagens onde as pessoas iam beber. Mas o que isso significava se, no centro, ela via Oliver Cromwell claramente tentado, quando os seus seguidores lhe sugeriam, à idéia de se apoderar do título de rei, o que significava obviamente que seu filho, um jovem bondoso mas fraco, o sucederia como Protetor? Ao visitar Whitehall, ela ficara chocada ao descobrir que as outras eminentes famílias do novo regime se vestiam de sedas, cetins e brocados, exatamente como a velha aristocracia monárquica a quem haviam substituído. A ela parecia, embora fosse sensata demais para dizê-lo, que afinal muito pouco tinha mudado.
E assim, com o passar dos anos, ao mesmo tempo que Alice, externamente, apoiava, em sua movimentada carreira política, o marido a quem amava, recolhia-se também para dentro de si mesma, para um mundo mais particular. Descobriu que ligava cada vez menos e menos para o lado ao qual as pessoas pertenciam e cada vez mais e mais para que tipo de indivíduos elas eram. Quando a pobre Sra. Penruddock, poucos meses depois da execução do marido, finalmente havia sido despojada de todas as propriedades familiares e suplicara piedade a Cromwell, Alice argumentara veementemente a favor da família e se alegrou depois quando parte dos bens lhes foi devolvida, a fim de que a mulher pudesse sustentar os filhos.
— Não sei por que se importa com essa gente que com certeza não se importa nem um pouco com você — observara Lisle.
Porque o coronel Penruddock, iludido ou não, talvez valesse dez dos seus amigos, ela poderia ter-lhe respondido. Mas em vez disso beijou-o e nada disse.
De uma coisa, porém, ela gostava no regime da Commonwealth, a tolerância em questões religiosas. Essa tolerância, é claro, não se estendia à Igreja de Roma. Como boa protestante, não podia aprovar isso. O papismo significava a escravidão de pessoas honestas por padres astutos e brutais inquisidores; significava superstição, atraso, idolatria e, por que não, dominação por potências estrangeiras. Mas, diante do amplo espectro das congregações protestantes, o austero Cromwell era surpreendentemente liberal. Recusara-se a permitir que os presbiterianos impusessem os seus moldes a todos; igrejas independentes, que escolhiam os seus próprios pastores e formas de culto, eram permitidas. Excelentes pregadores independentes, que tiravam inspiração diretamente de suas próprias experiências religiosas, eram incentivados. Alice gostava dos pregadores. Na maioria, eram homens honestos. Quando pensava no modo como teriam sido tratados pelo rei Carlos e seus bispos — silenciados, caçados em casa e expulsos de seus lares, e talvez até mesmo mandados para o cepo ou sentenciados para terem os olhos arrancados —, pelo menos podia acreditar que a Commonwealth trouxera alguma melhoria para o mundo.
Então Cromwell morreu repentinamente.
Ninguém estava preparado. Pensavam que ele viveria durante anos. O filho Richard tentou assumir o seu lugar, mas não era talhado para a missão. Tudo ficaria bem, ponderou Lisle para Alice. Havia homens sensatos, como ele mesmo, para orientar o regime. Mas ela balançou a cabeça. Não ia dar certo. Ela sabia que não ia.
E não deu. A própria Alice ficou pasmada pela rapidez com que tudo se desintegrou. As circunstâncias adequadas que os fidalgos do "Sealed Knot" aguardavam na época da Sublevação de Penruddock surgiam agora, passados apenas poucos anos. O povo, após o breve governo dos generais-de-divisão, passara a odiar o exército. O próprio exército estava dividido internamente. Os membros do Parlamento queriam poder se manifestar novamente. Os monarquistas perceberam a chance. Se os termos forem justos, o povo começou a falar, talvez seja melhor ter um rei outra vez. Finalmente o general Monk, partidário da ordem, e a cidade de Londres, que continha a maior parte do exército, concordaram em restaurar o regime anterior.
O jovem Carlos II estava pronto e à espera. Passara pelo período necessário de adversidade. Se algum dia ele acreditara nas tolas doutrinas do pai, há muito já se livrara delas. Alto, moreno, afável, profundamente cínico, ansioso por deixar o exílio, determinado a não ser derrubado novamente, pronto para conciliar e sem nenhum tostão — eis finalmente um Stuart que fora treinado de maneira apropriada para ser o rei da Inglaterra. Os termos foram negociados. O rei voltaria. Os ingleses estavam prontos para se regozijar como se não tivessem cortado a cabeça do pai dele.
Era um luminoso dia do início de maio, quando John Lisle chegou de volta de Londres. Alice estava sentada com uma das filhas perto da janela e correram para saudá-lo. Ele tinha um ar contente, mas Alice achou que tinha detectado um vestígio de constrangimento em seus modos. Ao lhe pedir notícias, ele sorriu e falou:
— Eu as darei durante o jantar.
Enquanto a família jantava, ele pintou um quadro agradável. Os membros do Parlamento, o exército, os londrinos, todos se reconciliaram entre si e com o rei. Foi a negociação mais amistosa que se podia imaginar. Não haverá vinganças. Somente depois que as crianças deixaram os dois a sós, Alice perguntou:
— Você disse que não haverá vinganças? Nenhuma?
John Lisle serviu-se de uma taça de vinho antes de responder.
— Quase. — Começou lentamente. — Há, é claro, a questão dos regicidas. Acontece — tentou falar com tranqüilidade, como se estivesse comentando algum caso interessante dos tribunais — que não é o rei quem está pressionando, mas os monarquistas. Esses fidalgos querem ver algum sangue derramado por todas as perdas que sofreram.
— E?
— Bem... — Pareceu bastante constrangido. — Os regicidas serão julgados. E talvez executados. O rei é quem decidirá, mas é bastante provável.
Ela o encarou inexpressiva por um instante, antes de observar baixinho:
— Você é um regicida, John.
— Ora. —Assumiu o seu sorriso profissional. — Isso pode ser questionado. Deve lembrar, Alice, que eu de fato não assinei a sentença de morte do rei. Creio que por isso se pode dizer que não sou um regicida.
— E quem dirá, John? Sempre o chamaram assim. Você esteve ao lado de Cromwell, argumentou a favor da morte do rei. Ajudou a redigir as acusações, os documentos...
— É verdade. Mesmo assim...
Estaria ele tentando alimentar-lhe as esperanças, dar-lhe a notícia de modo suave, ou seria possível que o inteligente marido, diante dessa crise, tivesse ficado repentinamente incapaz de enfrentar a óbvia verdade?
— Vão enforcar você, John — disse ela. Ele não retrucou. — O que vai fazer?
— Creio que devo ir para o exterior. Não seria por muito tempo. Alguns meses, no máximo, suponho. — Sorriu para tranqüilizá-la. — Eu tenho amigos. Eles falarão com o rei. Assim que essa questão dos regicidas for superada, poderei voltar. Parece a coisa mais sensata. O que você acha?
O que ela podia dizer? Não, fique aqui, com sua esposa e seus filhos, até o dia em que vierem enforcá-lo? Obviamente, não. Ela concordou lentamente.
— Preferimos você com vida. Quando partirá?
— Amanhã, ao alvorecer. — Olhou-a com um ar sério. — Não será por muito tempo.
Ela nunca mais voltou a vê-lo.
Ele estava certo em relação ao rei. O jovem Carlos II, apesar de seus defeitos, não tinha apetite para vingança. Depois que vinte e seis dos regicidas sobreviventes foram enforcados em outubro daquele ano, ordenou calmamente ao seu conselho que não saísse à procura de mais nenhum. Se aparecessem, teriam de ser enforcados, mas, se permanecessem fora de vista, contentava-se em que fossem deixados em paz. Essa vingança, embora não tivesse sido suficiente para os monarquistas partidários do rei, acabou lhes parecendo uma feliz idéia. No mês de janeiro seguinte os corpos de Cromwell e de seu genro Ireton foram retirados de suas sepulturas, levados para o patíbulo deTyburn, em Londres, e ali enforcados para que todos vissem. Sem dúvida, foi demonstrada muita sensatez com a escolha de janeiro, em vez de uma estação mais quente do ano.
Entretanto, Lisle se enganara ao acreditar que não poderia ser visto como um regicida. Enquanto aguardava por notícias na Suíça, logo uma coisa ficou clara: ele tinha muitos inimigos.
"Meu caríssimo esposo", escreveu Alice com tristeza, "você não pode voltar."
A cada ano falava-se que ela se juntaria a Lisle, em Lausanne, onde ele passara a morar. Mas não era tão fácil assim. Para começar, o dinheiro era curto. A maior parte das propriedades de John Lisle tinha sido confiscada ou transferida. Uma herdade fora dada a alguns de seus próprios parentes da ilha de Wight, que se mantiveram fiéis à causa monarquista. Outra parte foi parar nas mãos do irmão mais novo do rei, Jaime, o duque de York. A casa de Londres não mais existia. Alice agora tinha de sustentar sozinha a família com a sua herança de New Forest e também tentar enviar dinheiro ao pobre marido.
"Temos que viver modestamente", dissera aos filhos. Com a propriedade para cuidar e as crianças, era difícil imaginar como ela poderia ir viver na Suíça.
A família era grande. Havia dois filhos do casamento anterior de John. Já eram jovens adultos, mas ela sempre os criara como seus, e, com a fortuna do pai deles liquidada e o seu nome em desgraça, como conseguiriam bons casamentos? Quanto às suas próprias crianças, o filho, para seu pesar, morrera aos dezesseis anos, mas havia três filhas sobreviventes, Margaret, Bridget e Tryphena, que necessitariam conseguir maridos.
E havia também a pequena Betty — a Betty dos olhos brilhantes, tão pequenina e cheia de vida. Ela fora concebida na noite anterior à partida do pai: naquela noite em que ela o abraçara, rezando para que voltasse, tão temerosa de que ele não voltasse. A pequena Betty: a filha que John Lisle nunca vira; a filha que a fazia lembrar-se dele.
Dois anos se passaram. Depois outro. E mais outro. O bebê se tornara uma criancinha; já corria, falava. Perguntava pelo pai. Alice lhe contava histórias a seu respeito, dizia do excelente homem que era.
"Um dia desses eu vou lá com o rei dizer para ele que quero o meu papai de volta", falava. E quem sabe, dada a personalidade benévola de Carlos II, isso pudesse dar certo. Mas ainda não. Era cedo demais. E, assim, ela escrevia para o marido e lhe contava cada detalhe de tudo o que faziam e como Betty estava crescendo; e em resposta ele redigia longas e apaixonadas cartas; e ambos rezavam para que, com o passar do tempo, ele pudesse retornar — algum dia.
Enquanto isso, o que havia para fazer? Pelo menos ela ficava contente por estar na Floresta. Era a região de sua infância e da família. Através de Betty, ela podia reviver os seus felizes primeiros anos de vida. Havia algum consolo naquilo. Também havia bastante com que se manter ocupada, dia após dia. Contudo como podia preencher o outro vazio em sua vida?
Para sua surpresa, era a religião que o fazia.
Nunca fora particularmente religiosa antes de se casar. Claro que ela e John tinham sido ativos participantes de sua congregação em Londres; mas o quanto disso, imaginava, tinha sido por causa do desejo do marido de manter-se próximo a Cromwell e da família dele? O seu novo interesse surgiu de uma outra fonte inteiramente diversa e de um modo bastante inesperado.
A mulher de Stephen Pride. Era incomum os Pride se casarem com alguém de fora da Floresta, mas uma bela manhã de sábado, quando a família Pride foi a Lymington para a pequena feira de lá, Stephen Pride conheceu sua futura esposa, e foi assim que aconteceu. A família dela viera de Portsmouth alguns anos antes. Ela era calma, bondosa, tinha mais ou menos a idade de Alice, cabelos castanho-claros e olhos cinzentos como os de Alice. "Ele diz que se casou comigo porque eu lembro você", Joan Pride confessou-lhe certa vez. Alice não pôde deixar de se sentir bastante contente por causa disso.
Joan Pride era religiosa. Toda a família dela o era. Como tantas outras nas pequenas cidades do litoral da Inglaterra, essa gente honesta tinha lido a Bíblia na época da rainha Elizabeth e nada encontrara ali sobre bispos, padres e cerimônias; por isso preferiam se encontrar em pequenas casas de reunião, escolher seus próprios líderes e pregadores e levar em paz uma vida simples e devota, desde que lhe fosse permitido. Quando Carlos
resolveu que essa liberdade era intolerável, muitas dessas pessoas emigraram para novos povoamentos na América; algumas combateram o rei no exército de Cromwell e, sob o domínio do Protetor, puderam ter o culto religioso que lhes aprazia.
Todos os domingos, portanto, enquanto o marido observava com um sorriso tolerante, Joan Pride partia de Oakley, às vezes levando um ou dois dos filhos, e caminhava cerca de três quilômetros até Lymington, onde se juntava à família na casa de reunião. E de vez em quando, quando ela não estava em Londres com o marido, Alice participava da congregação e de suas preces. Não havia motivo para que não o fizesse. No que se referia à religião, aqueles eram tempos democráticos. Embora ficassem surpresos por verem uma dama tão importante em seu meio, eles a acolhiam com um prazer silencioso; e, da parte de Alice, ela gostava deles. "Lá, eu tenho ouvido sermões de pregadores viajantes tão bons", contara a John Lisle, "quanto os que ouvi em Londres."
Em uma dessas ocasiões, levando o cavalo, caminhava ao lado de Joan Pride e os filhos até Oakley, em uma agradável conversa, antes de voltar para Albion House. As duas se sentiam bastante à vontade com a relação que mantinham. Como era costume, ela chamava a mulher do seu locatário de Goody (boa esposa) Pride, e Joan a chamava de dame Alice. Depois que John Lisle se tornara um dos lordes de Cromwell, o modo apropriado de se dirigir a ela seria lady Alice, ou my lady, mas notava divertida que Joan Pride continuava a chamá-la disfarçadamente de dame Alice — o que levava Alice a perceber o que a amiga puritana pensava dos títulos nobiliárquicos. E desse modo, através dos anos, ao mesmo tempo que mantinham a formalidade costumeira entre um proprietário de terras e seu locatário, Alice Lisle e Joan Pride se tornaram amigas.
Foi na semana seguinte à fuga de John Lisle da Inglaterra que Joan Pride apareceu em Albion House. Aconteceu de estar passando por ali, dissera. Levava alguns bolos que havia assado. Seria o cúmulo da falta de educação não aceitar tal presente, embora, particularmente, ela não o quisesse; portanto, Alice mostrou-se agradecida, enquanto os olhos cinza de Joan Pride gravavam tudo o que viam na enorme casa na qual ela nunca havia entrado.
— Talvez a vejamos na casa de reunião, dame Alice — disse amavelmente ao sair.
— Sim — respondeu Alice, distraída. — Sim, é claro.
No entanto, ela foi à igreja da paróquia de Boldre no domingo seguinte e em muitos outros depois disso. Com o marido regicida foragido, não queria fazer nada que pudesse provocar comentários desfavoráveis no novo regime monárquico.
Um mês depois ela cavalgava por um pequeno bosque de sua propriedade, quando viu que Stephen Pride trabalhava na cerca. Perguntou-lhe o que estava fazendo, e ele lhe mostrou uma parte que se tinha rompido. "Não vai querer que os veados entrem", observou ele. O administrador tinha pedido para ele cuidar daquilo?, ela perguntara. "Não, eu notei ao passar por aqui", respondeu; e, apesar de ela oferecer, ele recusou qualquer pagamento. Aos poucos, nas semanas subseqüentes, ela percebeu um grande número de incidentes semelhantes. Uma das vacas estava doente: foi recolhida pelo seu administrador. Quando uma árvore caiu atravessada na alameda que levava a Albion House, Pride e três aldeões de Oakley a cortaram e transportaram a lenha de carroça até a casa, de manhã bem cedo, sem que lhes tivessem pedido. Deu-se conta de que os seus amigos da Floresta velavam em silêncio por ela.
Continuou freqüentando a igreja paroquial de Boldre. Achava que Joan Pride entendia. Mas após algum tempo, quando ficou claro que nada daquilo que fazia ia ajudar o marido ou salvar sua fortuna, voltou em um domingo a freqüentar a casa de reunião de Lymington e foi recebida sem alarde, como se nunca tivesse evitado o local. Daí em diante, ia lá freqüentemente.
E talvez tivesse continuado a fazê-lo indefinidamente, se não fosse pelo Parlamento inglês.
O rei Carlos II era um homem tolerante, e, ao contrário do pai, sua tolerância parecia se estender à religião. Dizia aos membros de seu conselho que estava contente por permitir aos seus súditos a liberdade de culto. Mas o conselho e o Parlamento não estavam nada contentes com isso. Os fidalgos do Parlamento queriam ordem. Não desejavam incentivar as seitas dos puritanos que tantos problemas haviam causado anteriormente. E, além do mais, se as pessoas tivessem liberdade de culto, isso poderia permitir o reflorescimento da Igreja Católica Romana, o que era impensável. Portanto, seguiram-se os Decretos do Parlamento, e o novo rei não conseguiu detê-los. Somente o livro de orações anglicano com os seus serviços religiosos formais, podia ser usado nas igrejas. As seitas protestantes — as Dissidentes, como eram chamadas — foram banidas de qualquer igreja. Logo, dizia-se, um novo Decreto iria proscrevê-las de se reunirem em um raio de oito quilômetros de qualquer cidade. A congregação de Joan Pride em Lymington era praticamente ilegal.
— É monstruoso — exclamou Alice. — Que mal essas pessoas podem fazer?
Mas a lei era a lei. Ela ia à igreja de Boldre, usava o livro de orações anglicano e mantinha a calma. Disse a Joan Pride que lamentava o que tinha acontecido, e a outra mulher nada comentou. Aliás, durante três meses sequer viu sua amiga. Então, certo dia, encontrou-a por acaso na alameda que se dirigia ao sul a partir da igreja de Boldre, e Joan Pride lhe falou de um pregador, um certo Sr. Withaker, que estava disposto a vir para Lymington.
— Mas não ousamos recebê-lo na cidade, dame Alice. E não temos aonde levá-lo para fazer a sua pregação.
Alice ouvira falar desse pregador, um jovem erudito com uma excelente reputação.
— Eu mesma gostaria muito de ouvi-lo — confessou. Após pensar apenas alguns momentos, e para a sua própria surpresa, ouviu-se dizer: — Ele poderá ir à Albion House. Ficará como meu hóspede e fará a sua pregação no saguão. Você e as suas amigas não poderiam ir lá escutá-lo?
E assim foi feito. O Sr. Robert Withaker provou ser um esplêndido pregador. Antes da Restauração real, ele se graduara pelo Magdalen College, Oxford. E era muito bem-apessoado. A filha dela, Margaret, em especial, parecia interessada nele; ele, por sua parte, pareceu precisar de muito pouco incentivo antes de prometer voltar a visitá-las. Alice não tinha certeza do que pensar sobre essa nova questão. Um jovem pregador, embora eloqüente, não era bem o partido que ela havia imaginado para uma de suas filhas.
Não teve muito tempo, porém, para se preocupar com isso, já que uma carta do marido acabou por tirar todos os outros pensamentos de sua mente. Lisle tinha um amigo que ia fazer uma viagem à Suíça e teria prazer em transportá-la junto com a família dele, sem nenhum custo para Alice, e trazê-la de volta um mês depois. Alice poderia levar a pequena Betty, a filha que ele não conhecia. Deveriam partir dentro de três semanas. Assim, John Lisle escreveu:
Como não há tempo de trocarmos mensagens entre nós, eu sentirei o regozijo de ver você, meu caríssimo amor, e à minha filha, em Lausanne; caso contrário, saberei com pesar, mas compreensão, que não pôde fazer essa jornada.
O que ela devia fazer? Preciso ir, concluiu. ”Você vai ver seu pai”, disse à menininha. Começou a se preparar e à bagagem.
Foi, portanto, um golpe particularmente doloroso quando, cinco dias antes da partida, chegou um mensageiro com a notícia de que John Lisle fora assassinado em Lausanne. Não havia certeza de quem estava por trás daquilo. Certamente não o próprio rei. De forma alguma Carlos II se comprazia com atos de vingança desse tipo. Mas havia outros monarquistas que com certeza seriam capazes de tal feito. Dizia-se que sua mãe francesa, a viúva do rei executado, devia ser a responsável. Alice também achava isso.
De qualquer modo, ela agora não tinha um marido nem Betty, um pai. Por acaso, o jovem Withaker fez uma visita não muito tempo depois.
1670
O zéfiro soprava sua delicada brisa através das verdes clareiras, enquanto o rei Carlos II avançava pela sua New Forest, naquele dia quente de agosto, para caçar.
Ele já estivera lá. Cinco anos antes, quando a terrível peste assolou Londres, o rei e a sua corte seguiram para a segurança de Sarum; e, enquanto estavam lá, fez uma pequena viagem pelos povoados em volta. ”Quando eu fugia de Cromwell, depois de me esconder em um pé de carvalho, passei por Sarum.” Isso incluíra uma cavalgada pela Floresta. ”Dormi com desconforto duas noites em New Forest”, contou cordialmente aos seus cortesãos, ”e nem mesmo os carvoeiros souberam que estive por lá.”
E então resolvera visitar novamente a Floresta, com um grupo de cortesãos, para o seu prazer real.
Stephen Pride olhou para o amigo Purkiss, e Purkiss olhou para Puckle. Furzey também deveria estar lá, mas ele disse que não ia, não por causa de nenhum rei. Portanto, eram três, e mais o filho de Pride, Jim, que esperavam, em seus pôneis, perto do portão da Casa do Rei em Lyndhurst, o local onde lhes tinham dito para se apresentarem, quando o rei e a sua comitiva emergiram.
Então Stephen Pride olhou para o rei Carlos II da Inglaterra, e o rei Carlos II olhou para Stephen Pride.
O visitante real era certamente uma figura memorável. Alto, moreno, com aquele volume de cabelos castanhos encaracolados, que caíam tão bastos sobre o peito que se poderia pensar tratar-se de uma peruca. Carlos II exibia muito claramente ambos os lados de sua ascendência. Seus belos olhos castanhos e o longo risco da boca eram da família celta dos Stuart, mas àquelas feições foram acrescentados o grosso nariz e o poder sensual e cínico dos ancestrais Bourbon da mãe francesa. Na ocasião olhava para Pride exatamente com o mesmo cinismo jovial que revelava ao se dirigir a uma bela e jovem criadinha ou a seu primo real, o rei Luís XIV da França.
Stephen Pride olhava-o, mas não era bem o rei a quem Pride enxergava. Eram as mulheres.
Havia muitas. Vestidas com roupas de caça, exatamente como os homens, e com elegantes gorros de caça. A rainha naquele dia não estava entre elas, mas havia uma lépida jovem de cabelos negros, que cochichou algo no ouvido do rei e o fez rir. Essa, Pride deduziu, devia ser a atriz cômica Nell Gwynn, a tal que toda a Inglaterra sabia ser a mais recente amante do rei. Ele notou uma elegante jovem francesa e várias outras. Seriam também todas suas amantes? Não sabia. Mas enquanto o pequeno proprietário independente de New Forest observava o príncipe francês e celta com uma pitada de secreta inveja, perguntava-se como diabos aquele malandro simpático conseguia fazer tudo aquilo impunemente.
Havia nove pessoas na comitiva real, incluindo o rei e as quatro damas. Pride não sabia quem eram os outros homens, mas um deles — um jovem admiravelmente belo, na verdade uma versão mais delicada do rei — supunha ser Monmouth, o filho bastardo do rei. Da comitiva participava Robert Howard, um aristocrata, cujo título oficial de mestre guarda-caça significava que fora designado como encarregado dos veados no bailiado onde iam caçar; também havia vários guardacaças fidalgos da região. O grupo seguiria para a cabana de caça de Boldrewood, de onde iria caçar, e, como Jim Pride era o subguarda-caça de lá, ele recrutara o pai e Puckle para atuarem como cavaleiros extras. Nessas ocasiões costumava haver algumas gorjetas. Furzey também fora chamado, mas, como se recusara, levaram Purkiss, o amigo de Stephen Pride de Brockenhurst. Ele tinha fama de não ser nenhum tolo, por isso acharam que talvez tivesse sido mesmo melhor irem com ele do que com Furzey
Estavam todos prontos. Stephen Pride tinha sessenta anos, mas devia admitir que estava bastante animado. Era um feliz e fiel marido havia mais de trinta anos, porém, divertido, descobriu-se lançando olhares furtivos às belas damas amigas do rei. Ainda havia vida no cachorro velho, pensou contente, e estava muito feliz por poder participar com o filho daquele que, supunha, seria um dia cansativo.
— Devo supor que pegaremos muitos veados hoje — observou ele para um dos guarda-caças fidalgos, que lhe deu um olhar entediado.
— Não conte com isso, Stephen — murmurou. — Eu conheço o rei.
E, para surpresa de Pride, não tinham percorrido meio quilômetro, quando ele viu o mestre guarda-caça levantar a mão e a voz do rei soar.
— Nellie quer ver a árvore de Rufus.
— A árvore de Rufus! — gritaram os cortesãos.
Então seguiram todos para a árvore de Rufus.
— Será assim — disse o fidalgo, sorrindo, a Pride — o dia todo.
E, realmente, tinham percorrido apenas mais meio quilômetro, quando houve uma outra repentina mudança de planos. Antes de ir à árvore de Rufus, o rei queria inspecionar a sua nova plantação. Isso significava alguns quilômetros de cavalgada a mais, e a comitiva, obedientemente, desviou o caminho para lá.
Pride olhou para os companheiros. Não pareciam muito contentes.
— Parece que não vamos ganhar muito com isso — observou Puckle para Jim Pride, como uma reprimenda.
O dinheiro e a desprezada carne do lombo dos veados eram proporcionais ao número de animais mortos. Os guarda-caças fidalgos costumavam ser bondosos para fazer com que cavaleiros como Puckle fossem bem aquinhoados. Mas, se fossem passar o dia todo apenas errando pela mata, as perspectivas não eram nada promissoras.
— Não é culpa de Jim — Pride defendeu o filho.
— Ainda é cedo — ponderou Jim, esperançoso.
Pride olhou de relance para Purkiss. Sentia-se mal em relação a ele, pois tinha convidado pessoalmente o amigo de Brockenhurst.
Purkiss era um homem alto, o rosto comprido e um jeito calmo e inteligente. Os Purkiss eram uma antiga família da Floresta, respeitada pelo seu bom senso. ”Eles são quietos”, comentava Pride, ”mas estão sempre pensando. Ninguém nunca fez um Purkiss de tolo.” Ele se sentia culpado por fazer Purkiss perder tempo, mas o próprio Purkiss aparentava contentamento. Parecia estar meditando consigo mesmo.
A plantação do rei, diga-se de passagem, era um belo projeto. Tanta madeira fora perdida durante a negligente administração e a confusão das últimas sete décadas que todo o mundo concordava que algo precisava ser feito. Como costumava acontecer com Carlos II, por trás de sua sensual indulgência, a aguçada inteligência do rei estava sempre em ação. Do mesmo modo que, após a cidade de Londres sofrer o seu grande incêndio, ele estudou cada detalhe e apoiou firmemente o monumental programa de reconstrução de sir Christopher Wren, o patrono real das artes e da ciência tinha agora imaginado um projeto prático e de longo prazo para a sua floresta. Sob suas ordens pessoais, três grandes áreas de bosques — cento e vinte hectares no total — foram cercadas e semeadas com abelotas de carvalho e nozes de faia. Milhares de excelentes árvores lenhosas resultariam para uma eventual colheita. ”Pelo menos as futuras gerações me agradecerão”, observara sensatamente.
A comitiva chegou ao grande cercado. Os brotos das plantas se estendiam em fileiras como um exército. O grupo olhou obediente e expressou sua admiração. Mas o rei, Pride notou, se bem que indulgente, também examinava o local com um olhar aguçado e, levando dois acompanhantes, deu a volta a meio galope pelos limites, a fim de inspecionar a cerca.
Ao voltar, satisfeito, deu a ordem:
— Agora, para a árvore de Rufus.
E lá foram eles. Os quatro homens da Floresta, educadamente na traseira da alegre parada, falavam pouco. Jim parecia taciturno, Puckle, entediado. Mas Purkiss ainda parecia bastante contente, e, quando Stephen Pride comentou que lamentava tê-lo envolvido naquele empreendimento infrutífero, o homem de Brockenhurst apenas sacudiu a cabeça e sorriu.
— Não é todos os dias que tenho a chance de cavalgar com o rei, Stephen — disse ele calmamente. — Além do mais, um homem pode aprender e lucrar muito em ocasiões como esta.
— Eu não vejo lucro nenhum — rebateu Pride —, mas fico feliz por você ver. Se a árvore de Rufus já era velha na época da Armada, oitenta anos atrás, sua longa vida claramente aproximava-se do fim. O antigo carvalho estava decrépito. A maioria de seus galhos dessecara. Uma grande fenda ao lado mostrava onde um enorme ramo havia sido arrancado. A hera multiplicava-se no tronco. Apenas uma pequena copa de folhas crescia do seu galho mais alto. Como sinal de respeito, a árvore fora protegida por uma cerca de estacas.
As duas abelotas que vieram abaixo e fincaram raízes, depois das tempestades da época da Armada, permaneciam não muito longe, e agora eram notáveis carvalhos. Um era mais baixo e mais largo porque fora podado; o outro, intocado, elevava-se nas alturas.
Todos inspecionaram a velha veneranda carcaça com reverência. Vários membros da comitiva desmontaram.
— Foi aqui, Nellie, onde Tyrrell flechou o meu ancestral Guilherme Rufus — anunciou o rei. — Isso foi há quase seiscentos anos. É possível que essa árvore
seja tão velha?
— Indubitavelmente, senhor — disse o mestre guarda-caça, que não fazia a mínima idéia.
— Como é a história exatamente? — quis saber o jovem Monmouth.
— Sim. — O rei Carlos olhou com severidade para Howard. — Conte-nos exatamente como foi, mestre guarda-caça.
E o aristocrata, um pouco vermelho, começara a proclamar uma imprecisa e truncada versão da história que, obviamente, já havia esquecido, quando, para a surpresa de todos, houve uma movimentação na parte de trás do grupo, uma alta figura adiantou-se e fez uma mesura. Era Purkiss.
Stephen Pride observara atônito o amigo, calmamente, encaminhar-se para a frente. E, naquele instante, Purkiss, com uma voz respeitosa e o semblante sério perguntava:
— Vossa Majestade permite que eu conte a história dessa árvore?
— Certamente, amigo — respondeu afável o rei, enquanto Nellie fazia uma careta para Howard.
E então Purkiss começou. Primeiro falou sobre o mágico verdejar de Natal do carvalho, e, quando Carlos pareceu duvidar, os guarda-caças fidalgos lhe garantiram que aquilo era a pura verdade. Depois disso o rei inclinou-se para a frente da sela e prestou atenção em cada uma das palavras de Purkiss.
Purkiss era bom. Pride ouvia admirado. Com a tranqüila reverência de um sacristão conduzindo os fiéis em torno de uma catedral, ele contou a história da morte de Rufus com todos os detalhes registrados ou inventados nas crônicas. Descreveu as visões pavorosas que o rei normando teve na noite anterior; o que ele dissera a Walter Tyrrell pela manhã; o alerta do monge. Tudo. Então, solenemente, apontou para a árvore.
— Quando Tyrrell soltou a flecha fatal, sire, ela resvalou na árvore e em seguida atingiu o rei. Deixou uma marca, dizem, que outrora podia ser vista lá em cima. — Apontou para algum lugar mais no alto do tronco. — Na ocasião era uma árvore jovem, Majestade; portanto, a marca foi subindo com o passar dos anos.
Explicou de que modo Tyrrell fugiu através da Floresta para o rio Avon, pelo Tyrrells Ford (o vau de Tyrrell), e como o corpo do rei foi levado na carroça de um mateiro até Winchester. Concluiu com uma demorada reverência.
— Muito bem, meu bom amigo! — bradou o monarca. — Não foi muito bem narrado? — perguntou aos cortesãos, que concordaram que fora excelente. — Isso vale um guinéu de ouro — falou, apanhando uma moeda de ouro e entregando-a ao homem de Brockenhurst. — Como veio a saber tudo isso, meu bom amigo? — indagou depois.
— Porque, Majestade — o rosto de Purkiss era solene como o de um juiz —, o mateiro que transportou o corpo do rei em sua carroça era meu ancestral. Ele se chamava Purkiss.
Uma gargalhada ressoou onde Nellie se encontrava. O rei Carlos mordeu o lábio.
— Um diabo que foi! — exclamou.
Pride encarava estupefato o amigo. Que malandro ardiloso, pensou. A astúcia com que a coisa foi feita; o modo como Purkiss se detivera cuidadosamente e aguardara que o rei tirasse dele aquele último e assombroso pedaço de informação. E o homem ainda permanecia ali de pé, sem um mero vestígio de sorriso no rosto.
Quanto ao rei Carlos II da Inglaterra, o qual, a despeito de seus vícios ou suas virtudes, era com certeza um dos mais rematados mentirosos que jamais se sentaram em um trono, ficou fitando Purkiss com admiração profissional.
— Eis outro guinéu — disse ele. — Eu não me surpreenderia se um dia o nome do seu ancestral aparecesse nos livros de história.
E apareceu.
Não era sempre que Alice Lisle não conseguia se decidir. Algumas pessoas até mesmo se surpreenderiam ao saber que tal coisa alguma vez tivesse acontecido. Mas naquela manhã, ao olhar friamente para sua família e para o Sr. Hancock, o advogado, ela hesitou; e sua hesitação não era sem razão.
— Eu gostaria que alguém me dissesse — ponderou, com o seu habitual estilo prático — como vou pedir um favor a um homem cujo pai o meu marido matou.
Pois eles queriam que ela cavalgasse até a Floresta para ir falar com o rei.
Havia muita gente que achava Alice Lisle uma pessoa rígida. Ela não se importava nem um pouco. Se eu não fosse forte, concluíra tempos atrás, quem o seria por mim? Se fosse atacada, quem a defenderia? Olhou em volta. Não viu ninguém.
Não era porque ela não tinha mais marido. As vezes gostaria de ter um: alguém que a abraçasse, a confortasse e a amasse; principalmente durante aquele período logo após a morte de John Lisle, quando ela atravessava tristemente os seus anos de fertilidade em direção aos cinqüenta anos. Mas não havia nenhum, e, portanto, enfrentara tudo sozinha.
Sabe Deus quanto houvera de mais para ser feito. E ela conseguira sair-se relativamente bem. Seu triunfo fora o casamento do enteado. Com a ajuda de amigos da família, ela lhe conseguira uma bela moça herdeira de uma rica propriedade perto de Southampton. O finado marido teria ficado orgulhoso dela e grato por isso. No que se referia às próprias filhas, elas tinham se casado com homens devotos, mas nenhum deles com fortuna; e isso, Alice admitia abertamente, fora talvez a sua única falha.
Os encontros religiosos que ela iniciara em Albion House em pouco tempo tinham se tornado algo mais. A notícia espalhou-se rapidamente pela comunidade puritana. Desde as novas restrições feitas a eles, os homens que viviam como pastores bem providos tiveram de aderir às doutrinas da Igreja anglicana; os que se recusaram perderam a vida. Portanto, não havia carência de homens respeitáveis que se satisfaziam apenas com a hospitalidade de uma casa no campo na qual pudessem fazer a sua pregação. Logo ela descobriu que os deixava ficar também em Moyles Court, e as pessoas vinham ouvir as pregações desde Ringwood, Fordingbridge e outros vilarejos do Avon acima, chegando à distante Sarum. Alguns dos pregadores, inevitavelmente, eram homens bonitos e solteiros.
Margaret, como ela previra, casara-se com Withaker. Tryphena contraíra matrimônio com um ilustre fidalgo puritano chamado Lloyd. Mas Bridget, refletia Alice, conseguira o homem mais distinto de todos esses, um pastor erudito chamado Leonard Hoar, que estivera na América e estudara na nova universidade de Harvard antes de retornar à Inglaterra como um notável pregador. Comentava-se que ele voltaria com Bridget para a puritana Massachusetts, quando surgisse um bom cargo, talvez em Harvard. Às vezes Alice achava que havia nervosismo demais em seu temperamento, mas o seu brilhantismo era indubitável. Lamentava por vê-los raramente.
Por enquanto, portanto, Alice podia considerar as filhas ajeitadas, com exceção da pequena Betty. Mas como Betty tinha apenas nove anos, ainda havia tempo suficiente antes de precisar se preocupar com ela.
Outras questões, entretanto, não estavam ajeitadas. Dinheiro era sempre um problema. Nenhum dos genros puritanos era rico, e, com o novo regime, não havia chance de uma nomeação. ”E, por eu ser mulher”, dizia abertamente à família, ”os homens sempre pensam que podem me passar para trás.”
Havia o mercador de Christchurch que devia um dinheiro a John Lisle, embora negasse; havia os parentes de John na ilha de Wight, sonegando parte da herança do enteado dela — eles ainda tentavam se esquivar. Quando o mercador lhe disse que era uma mulher rabugenta e encrenqueira, ela friamente indagou:
E, se eu não fosse, você me pagaria o que deve? Alimentaria e vestiria os meus filhos? Acredito que não. Primeiro tenta roubar deles”, falou desdenhosa, ”depois me insulta, se reclamo.” Ela aprendera a ser dura.
”Ninguém vai me amar”, observara para Hancock, o advogado, ”mas talvez me respeitem.”
Agora estava olhando para as três pessoas à sua frente. Withaker: bonito, honesto, um homem excelente, mas não era dado a negócios. Tryphena: o marido dela não era nenhum tolo, mas vivia viajando para Londres. A própria Tryphena, de rosto fino, era uma boa mulher e filha leal, mas mesmo naquela ocasião, na casa dos trinta anos, era literalmente uma criança; a idéia de ser sutil ou mesmo diplomática simplesmente nunca havia passado pela sua cabeça. John Hancock, o advogado, contudo, tinha um bom discernimento. Com os cabelos grisalhos caprichosamente encaracolados e modos imponentes, ele poderia muito bem ter exercido a profissão em Londres, mas preferiu viver próximo a Sarum. Como todo bom advogado, entendia que a lei é uma questão de negociação e que os meios indiretos são tão bons quanto os diretos. E era a John Hancock que ela dava ouvidos.
— Você acha mesmo que devo procurar o rei?
— Sim, acho. Pelo simples motivo de que não tem nada a perder.
Alice suspirou. O problema envolvia ninguém menos que o irmão do rei, Jaime, o duque de York. Nesse caso era Alice quem defendia a si mesma da acusação de sonegação. Pois, após receber parte das propriedades de Lisle, o duque de algum modo convenceu-se de que Alice estava ocultando algum dinheiro de Lisle que cabia a ele. Abriu inclusive uma ação judicial contra ela, que já se arrastava havia alguns anos.
— Acredito que o duque, um homem honesto mas obstinado, crê realmente que está escondendo esse dinheiro, e se ele se convencer de que você está passando por dificuldades desistirá do caso — explicou Hancock. — Ele é de opinião que você o está trapaceando porque é a viúva de John Lisle. O rei é um homem muito mais razoável do que o irmão. Se você o convencer, ele vai persuadir Jaime. Pelo menos, deve tentar. Deve isso à pequena Betty.
— Ah. Você me atingiu em cheio, John Hancock.
— Eu sei. Sou cruel. — Sorriu. Betty brincava lá fora: a ameaça da ação do duque era uma nuvem sobre a futura sorte dela.
— Eu sei por que você está de má vontade para ir — observou Withaker cordialmente. — É por causa da reputação do rei em relação às mulheres. Teme que ele atente contra a sua virtude.
— Sim, Robert — retrucou Alice secamente. — Claro.
— Duvido — disse Tryphena, que estava ouvindo atentamente a conversa e tinha a testa franzida — que o rei tente alguma coisa contra a mamãe. O interesse dele é apenas em mulheres jovens e bonitas.
E então ficou combinado que Alice iria e levaria junto a pequena Betty.
— Talvez — observou Alice com ironia — a visão da criança amoleça o coração do rei, mesmo que a minha presença seja incapaz de excitá-lo.
Enquanto Tryphena preparava a menina para sair, Alice se dedicou a cuidar da própria aparência, até que, observando a si mesma no espelho, pôde murmurar pensativa:
— Pelo menos John Lisle não se casou com uma mulher feia.
Era meio-dia quando deixaram Albion House e seguiram pela alameda que levava ao norte, em direção ao pequeno vau. Por uma questão de minutos, não se encontraram com o visitante delas, que se aproximava pelo sul.
Gabriel Furzey atravessou lentamente a cavalo o portão de Albion House. Ficara contente por Stephen Pride ter saído com o filho Jim, porque assim nenhum Pride estaria por perto para vê-lo sair para a sua pequena missão.
A verdade era que Gabriel Furzey estava com um problema.
A presença de Carlos II em New Forest naquele ano não era meramente uma questão de capricho real. Naquela ocasião a Floresta ocupava bastante o pensamento real. O monarca folgazão sempre vivia atrás de uma renda extra e, como ocorrera com o pai antes dele, percebeu depois de algum tempo que as florestas reais podiam ser um trunfo valioso. O segundo rei Carlos encarava as coisas de um modo muito divertido, mas também era meticuloso. Fez mais do que instituir um Juizado Itinerante; sua Comissão de Inquérito se metia em tudo. Os inspetores estavam verificando todas as fronteiras da Floresta. Os abusos dos limites eram todos cuidadosamente anotados; a venda de madeira, de carvão, a administração dos funcionários da floresta — tudo era inspecionado. O rei deixava claro que no futuro sua Floresta seria administrada de modo adequado. Houve até mesmo um recenseamento dos veados, o qual revelou que New Forest ainda continha cerca de setecentos e cinqüenta gamos e perto de quatrocentos veados-nobres. O rei, claramente, queria saber com exatidão quanto o lugar valia na verdade. E, a maior missão de todas, os seus magistrados foram ordenados a registrar exatamente quem mantinha quais direitos na Floresta e o que deviam pagar por eles.
”Um registro completo da concessão de direitos, até o último porco que se alimenta das abelotas caídas no chão da floresta”, descrevera Hancock, o advogado, para Alice. Os magistrados do Juizado já haviam realizado duas sessões a respeito dos direitos. Uma última, que Alice deveria enfrentar, seria feita em breve. ”Ao mesmo tempo que se determina o que cada um deve”, observou Hancock, ”isso impedirá futuras concessões. Se um direito não estiver registrado, será inválido. Também me parece”, acrescentou, ”que o rei está inteligentemente preparando o terreno para o futuro. Depois que nossas concessões de direitos forem registradas, não poderemos reclamar de coisa alguma que ele possa fazer em data posterior. Desde que ele não infrinja o que está registrado, poderá procurar meios de lucrar com a Floresta de todas as maneiras que puder.”
Fossem quais fossem os motivos reais, uma coisa era bastante clara: aquelas concessões de direitos seriam derradeiras e definitivas. Se a sua não estivesse anotada, não seria reconhecida no futuro. Cada senhor de terras e camponês da Floresta já tinha entendido isso, e todos eles estavam comparecendo diante dos magistrados em Lyndhurst. A base para a maioria das concessões de direitos era o registro menos formal feito trinta anos antes. O que quer que estivesse nele seria reconhecido. Se tivesse havido concessões posteriores, elas seriam acrescentadas, mas precisavam ser comprovadas.
E esse, para Gabriel Furzey, era o problema.
O pior de tudo é que tinha sido culpa dele mesmo: um momento de teimosia e mau humor, muito tempo atrás. Pior ainda, fora Stephen Pride que insistira com ele para que fosse e declarasse os seus direitos à jovem Alice; Stephen Pride, que sabia que ele não a tinha feito. E agora todos os Pride de Oakley tinham os seus direitos, e ele não os tinha.
Não que isso tivesse feito alguma diferença. Através de todos os anos de agitação política, quando ninguém ligava muito para a Floresta, a gente de Oakley cuidou da própria vida, como sempre o fizera antes. Ele tinha pastoreado suas poucas vacas, cortado turfa, recolhido madeira, e ninguém jamais havia questionado. Até recentemente, ele esquecera por completo daquele assunto do registro das concessões de direitos em 1635. E agora tinha aparecido esse tal de Juizado de New Forest.
Foi George, seu filho, quem levantara a questão. Furzey tinha dois filhos: William, que se casara com uma moça de Ringwood e fora morar por lá, e George, que permaneceu em Oakley. Quando Furzey morresse, George assumiria a pequena propriedade e naturalmente tinha interesse naquele assunto. Furzey tomou conhecimento do próximo registro das concessões, que seria feito naquela primavera, e ficou imaginando se devia fazer alguma coisa. Visto que detestava esse tipo de coisa e lembrava constrangido da vez anterior, tentou afastar o pensamento da cabeça.
Então certa noite George chegou em casa com um ar preocupado no rosto.
— Sabe o tal registro das concessões? Stephen Pride disse que a gente nunca fez, pai. É verdade?
— Foi Stephen Pride que disse isso?
— Foi, pai. É um assunto sério.
— E o que é que Stephen Pride sabe?
— Quer dizer que ele está enganado?
— Claro que está. Eu cuidei disso. Anos atrás.
— Tem certeza, pai?
— Claro que tenho. Não se preocupe com isso.
— Ah. Então está bem. Ele me deixou preocupado.
E assim George parou de pensar no assunto, e Gabriel Furzey começou a se preocupar.
Mas estava tudo certo, não estava? Ele tinha os seus direitos como plebeu, não tinha? Sempre os tivera, muito tempo antes de todas essas coisas serem escritas. Por toda a primavera e durante o verão, Furzey pensara em fazer alguma coisa a respeito; semana após semana, deixara de lado. Ficara meio esperançoso de que Alice ou o administrador dela aparecessem para verificar o povoado, mas Oakley continuava sendo a mesma coisa que fora há trinta e cinco anos; portanto, deviam supor que nada havia a alterar. Alice Lisle tivera muitas coisas com as quais se preocupar; com o passar de tantos anos, provavelmente havia esquecido que Furzey não comparecera. O tribunal tinha se reunido, mas ele soube que somente mais tarde Alice apresentaria as suas concessões. O tribunal voltou a se reunir. E agora o tempo tinha se esgotado. Ele precisava fazer alguma coisa. Foi até a casa dela.
E aconteceu que o senso de oportunidade dele não poderia ter sido melhor.
John Hancock, o advogado, ia apresentar ao tribunal as concessões de Alice e de outros proprietários de terras. Quando Furzey surgiu à sua frente, o chapéu na mão, ele entendeu de imediato a situação.
— Com as concessões de ceva e de pasto não haverá dificuldades — garantiu ao aldeão. — Nem, creio eu, com o direito à turfa. Isso pertence claramente à sua cabana. Entretanto — continuou —, o direito de coleta não é patente. — E quando Furzey pareceu confuso e murmurou que sempre tivera esse direito, o advogado explicou: — Você pode achar que tem, mas eu preciso examinar os registros.
Os antigos direitos do povo da Floresta, embora originados da prática comum que recuava a eras obscuras, não eram tão simples quanto se poderia supor. Os direitos comuns na Floresta pertenciam não a uma família, mas individualmente à cabana ou à propriedade. Algumas cabanas tinham alguns direitos, algumas tinham outros. O direito de coleta — o recolhimento de galhos e folhas — era especialmente valioso e fora garantido desde os tempos dos normandos apenas aos locatários mais importantes dos povoados, aqueles que tinham sua habitação na posse conhecida como aforamento. A pequena propriedade dos Pride em Oakley, por exemplo, sempre tinha sido um aforamento. Através dos séculos, outros aldeões, que não eram aforados, costumavam reivindicar ou presumir que tinham o direito de coleta, e alguns conseguiram se safar por tanto tempo que ninguém jamais questionou tal coisa. De vez em quando, porém, uma nova tentativa era feita para restringir a prática de as pessoas se servirem à vontade da vegetação rasteira da Floresta; e a regra que agora se aplicava a Furzey expressava que ele podia reivindicar o direito de coleta somente se a cabana — ”messuage” (a casa, as construções adjacentes e as terras de uso residencial) era o antigo termo jurídico — que ocupava tivesse sido construída antes de uma certa data no reinado da rainha Elizabeth — uma misteriosa isenção da qual o próprio Furzey nunca ouvira falar. Os registros da propriedade senhorial eram mantidos em Albion House. Hancock sabia onde se encontravam, e, como nada tinha de especial para fazer até Alice retornar de sua missão, achou que seria melhor ver o que podia descobrir. Tratava-se do tipo de investigação que o advogado adorava fazer.
— Quando foi que sua família ocupou pela primeira vez a propriedade? — indagou.
— Nos tempos do meu avô — informou Furzey. —Antes disso, nós habitamos uma outra cabana. Mas sempre em Oakley — acrescentou com firmeza, para o caso de isso ter alguma importância.
— Certamente. Sente-se e descanse. — O advogado lhe deu um sorriso profissional. — Não se importa de esperar, não é? Verei o que consigo descobrir.
A caçada havia durado menos de um quarto de hora. Stephen Pride mal podia acreditar.
A coisa também fora esplendidamente conduzida. O rei fora colocado em um local perfeito de uma clareira. Estava armado com o arco tradicional. Suas damas ficaram agrupadas atrás dele. Pride e os homens da Floresta, auxiliados pelos fidalgos guarda-caças e dois dos cortesãos, impeliram alguns veados para lá, e o rei, do modo mais prazenteiro, disparou uma flecha que passou bem perto de um dos veados antes de se encravar numa árvore.
— Belo disparo, sire — bradou um dos cortesãos, enquanto Carlos, sem demonstrar o menor sinal de decepção, virou-se para as damas à espera de ratificação.
Stephen Pride, passando ali perto com o seu cavalo um instante depois, seria capaz de jurar ter ouvido Nellie gritar: ”Espero que você não vá machucar um desses pobres veadinhos, Carlos.” Um ou dois momentos depois, quando estavam para começar a impelir outros animais, surgiu um grito: ”Para Bolderwood! E, para o pasmo total dos homens da Floresta, toda a comitiva preparou-se para cavalgar de volta para a cabana de caça, onde comidas e bebidas estavam à espera. Será que todo rei, perguntou-se Stephen, se entedia tão facilmente assim?
Mas Carlos II não estava nada entediado. Fazia as coisas de que mais gostava, que eram aprender como as coisas funcionam, com um olhar mais sagaz do que as pessoas supunham, e flertar com mulheres bonitas. E uma hora depois estava ele bastante contente fazendo esta última, quando notou, sem nenhum prazer, duas figuras recortadas, pelo que parecia, do mesmo tecido marrom, cavalgando em direção a ele. Quem diabos, murmurou para o mestre guarda-caça, eram elas? Alice Lisle, foi informado. A menina, a filha dela.
— Devo mandá-las embora, sirel — quis saber Howard ao se virar para recebê-las.
— Não — veio a resposta, com um suspiro —, se bem que o meu desejo era que você pudesse fazê-las desaparecer.
Ela fizera o melhor possível, percebeu Carlos de imediato, para ficar com a aparência agradável. Os cabelos ruivos, raiados de gris, estavam partidos ao meio: ela o havia enrolado e penteado para lhe dar mais volume. O vestido simples há muito saíra de moda, mas o pano era bom. Fizera uma pequena concessão a ele ao usar um lenço de pescoço de renda. Ela parecia o que era: uma fidalga puritana, uma viúva reservadamente triste que se tornara um pouco rígida — não era mesmo do tipo que agradava ao rei. Mas ele sentiu-se ligeiramente com pena dela. A menina, porém, parecia mais promissora: mais clara do que a mãe; olhos mais azuis do que cinza; ali um vislumbre, talvez.
Então, quando Howard voltou e murmurou que a viúva Lisle viera lhe implorar um favor, Carlos lançou-lhe um demorado e frio olhar e em seguida declarou:
— A senhora e sua filha podem se juntar ao nosso grupo, madame. Boldrewood era um local encantador. Situado cerca de seis quilômetros de Lyndhurst, às margens da charneca a céu aberto, consistia em um cercado com pasto, um pequeno agrupamento de árvores, incluindo um velho teixo e as costumeiras edificações adjacentes. A casa principal era bastante modesta, na verdade uma simples cabana onde morava um fidalgo guarda-caça. Perto dali, ao lado de dois belos carvalhos, ficava a pequena mas agradável cabana que veio junto com o emprego de subguarda-caça de Jim Pride. Como o dia estava bom, as comidas e as bebidas foram dispostas ao ar livre, à sombra das árvores.
Pratos de confeitos, torta de carne de veado, vinho Bordeaux suave: tudo foi oferecido a Alice e à filha ao se sentarem nos bancos dobráveis que foram providenciados para elas. O rei e algumas das damas reclinavam-se sobre cobertores enrolados e guarnecidos com grosso damasquilho. Tratava-se de uma cena típica da Restauração, como costumava ser chamado o reinado de Carlos II: refinado, divertido, despreocupado, lasso. Alice logo percebeu que o rei pretendia castigála um pouco, fazendo-a participar daquilo, e ela astutamente adivinhou que ele, de propósito, conduziria a conversa para assuntos capazes de chocá-la. Por enquanto, contudo, ninguém prestava atenção às visitantes, e ela estava livre para ouvir e observar.
Eles, é claro, representavam tudo aquilo que ela e John Lisle haviam combatido. As roupas dos cavalheiros e os seus modos imorais diziam tudo. Era como, suspeitou, se ela estivesse na corte do rei católico da França. A rígida regra moral, o mínimo que os seguidores de Cromwell pretendiam, era totalmente estranha àqueles caçadores do prazer. Se bem que não aprovasse, ela se divertia com a sagacidade deles.
Em determinado momento a conversa desviou-se para a bruxaria. Uma das damas ouvira dizer que havia bruxas na Floresta e perguntou a Howard se era verdade. Ele não sabia.
— Em nossa época toda mulher desagradável é acusada de magia — observou o rei, sacudindo a cabeça. — E estou certo de que a grande maioria de criaturas inofensivas é queimada. A maior parte da magia é mesmo um disparate. — Dirigiu-se a um dos fidalgos guarda-caças, — Você sabia que nesta primavera o meu primo Luís da França me enviou o astrólogo da corte dele? Disse que ele era infalível. Achei-o um homenzinho pomposo. Então levei-o às corridas. — Alice ouvira falar da mais recente paixão do rei, os cavalos de corrida. Em Newmarket Races, ele se misturava à multidão como um homem comum. — Permaneci ali com ele, a tarde toda, e sabe de uma coisa? Não conseguiu prever um único vencedor! Portanto, mandei-o de volta para a França na manhã seguinte.
A despeito de si mesma, Alice irrompeu numa gargalhada. O rei deu-lhe um olhar de banda e pareceu que ia falar alguma coisa, mas logo pareceu mudar de idéia e voltou a ignorá-la. A conversa derivou para a sua plantação de carvalhos. Expressou-se admiração.
Em seguida Nellie Gwynn dirigiu os olhos enormes e atrevidos para o monarca:
— Quando vai me dar alguns pés de carvalho, Carlos? — Era bem sabido que poucos anos antes o rei dera a uma jovem dama da corte uma derruba inteira de madeira, supostamente como um presente por favores recebidos.
O rei, circunspecto, devolveu o olhar de sua amante.
— Você tem o carvalho real, senhorita, sempre a seu serviço — replicou. — Contente-se com isso.
Seguiram-se gargalhadas, só que desta vez sem as de Alice, que naquele instante sentiu uma cotovelada de Betty a seu lado.
— O que ele quis dizer, mamãe? — cochichou.
— Não interessa.
— O problema com o carvalho real, Carlos — rebateu Nellie, olhando acidamente na direção da elegante jovem francesa, que estava sentada serenamente em uma cadeirinha —, é que ele parece estar se espalhando. — Com isso, Alice concluiu que o rei também estava com olhares na direção da francesa, mas ele não pareceu nem um pouco desconcertado com aquilo.
Olhando inexpressivamente na direção da dama em questão, ele retrucou levemente mal-humorado:
— Nada foi plantado. Ainda.
— De qualquer modo, não me refiro somente a ela — disse Nellie.
Em meio àquela indecorosa troca de palavras, o rei Carlos subitamente dirigiu-se a Alice.
— A senhora tem uma filha muito bonita, madame.
Alice sentiu-se tensa. Percebeu instantaneamente que Carlos escolhera de propósito aquele momento e aquele comentário para vexá-la: a idéia, pairando no ar de forma insolente, de que sua filha temente a Deus pudesse ser vista como uma futura conquista real foi a coisa mais ofensiva que ele poderia ter dito. Não, é claro, que ele ao menos tivesse subentendido isso. Se tal horror ergueu-se em sua mente, diria ele, isso apenas provava o antagonismo dela em relação ao rei. Ele apenas dissera que a menina era bonita. O seu jogo era óbvio: se ela agradecesse, passaria por tola; se se sentisse insultada, lhe daria uma desculpa para mandá-la embora. Mas sempre leve em conta, lembrou a si mesma, que o meu marido matou o pai desse homem.
— Ela é uma boa menina, — respondeu do modo mais calmo que conseguiu —, e eu a amo pela sua bondade.
— Está me repreendendo, madame — disse o rei baixinho e olhou para baixo por um momento antes de voltar a se dirigir a Alice. Ela percebeu que ao fazer isso o nariz dele, de um determinado ângulo, parecia espantosamente grande e que, com os seus suaves olhos castanhos, aquilo fazia com que parecesse surpreendentemente solene. — Serei franco com a senhora, madame — falou sério. — Não posso gostar da senhora. Dizem — continuou, com um laivo de ira real — que a senhora gritou de alegria com a morte do meu pai.
— Lamento que tenha ouvido falar isso, sire — disse ela —, mas lhe asseguro que não é verdade.
— Por que não? Era certamente o que desejava.
— Pela simples razão, sire, de que eu previa que isso um dia levaria à destruição do meu marido... e levou.
Diante dessa grosseira falha em expressar compaixão pela morte do pai do rei, Howard começou se levantar, como se pretendesse expulsá-la dali; mas o rei Carlos, docilmente, levantou a mão.
— Não, Howard — disse com tristeza —, ela está apenas sendo honesta, e devemos ser gratos por isso. Eu sei, madame, que também sofreu. Dizem — continuou falando para Alice — que a senhora dá abrigo a pregadores dissidentes.
— Eu não infrinjo a lei, majestade. Como a lei agora determina que encontros religiosos de dissidentes devem ser realizados a oito quilômetros distante de qualquer burgo licenciado, e Albion House fica a apenas seis e meio de Lymington, isso não é bem verdade.
Mas, para sua surpresa, o rei dirigiu-se a ela com sinceridade.
— Quero que saiba — disse ele — que não tem motivos para temer problema de minha parte, no que se refere a isso. É o Parlamento que faz essas leis, e não eu. Aliás, madame, dentro de um ano ou dois, espero, darei à senhora e aos seus bons amigos a liberdade para que realizem o culto religioso que lhes aprouver, desde que todos os cristãos possam ter igual consentimento. — Sorriu. — Poderão ter casas de reunião em Lymington, Ringwood, Fordingbridge, e eu ficarei contente com isso.
— Os católicos também poderão ter o seu culto?
— Sim. Mas, se todas as crenças são boas, isso é tão ruim?
— Realmente, sir — hesitou —, eu não sei.
— Pense nisso, dame Alice — disse, e deu-lhe um olhar que em outra época e outro local poderia ter quase seduzido até mesmo a ela. — Pode confiar em mim.
Em seu desejo de liberdade religiosa, e que os católicos pudessem voltar a ter as suas igrejas, Carlos II era totalmente sincero. Por enquanto. E que ele havia também, naquele mesmo verão, assinado um tratado secreto com o primo Luís XIV prometendo adotar a crença católica romana e torná-la obrigatória na Inglaterra o mais cedo possível era um fato sobre o qual nem Alice ou o Parlamento, nem mesmo o conselho próximo ao rei tinham a menor das suspeitas. Em troca, Carlos receberia de Luís um belo rendimento anual. Se a pretensão do rei era séria e desejava realmente trair os seus súditos ingleses protestantes, ou se estava ludibriando o primo francês para conseguir mais dinheiro, jamais alguém saberia, exceto Deus. Visto que, como muitos Stuart, o monarca folgazão era um mentiroso contumaz, talvez nem mesmo ele soubesse.
Embora a idéia de dar crédito ao que o rei dizia pudesse causar hilaridade em qualquer cortesão, Alice não tinha motivos para supor que, para os seus amigos dissidentes, ele não pudesse estar oferecendo uma esperança genuína.
— E agora, dame Alice — observou ele —, não se esqueça de que veio aqui me pedir um favor.
Alice foi breve e direta. Falou da ação judicial impetrada pelo duque de York e garantiu ao rei:
— Estou certa de que o duque acredita que eu estou escondendo dinheiro, e nada há que eu possa dizer para convencê-lo do contrário. Vim à sua presença, sire, com esta criança — indicou Betty—, cujos interesses sou obrigada a proteger, para lhe pedir ajuda. A questão é simples e clara.
— Está me pedindo para acreditar que o meu irmão está equivocado?
— Ele está fadado a me odiar, sire.
— Como eu estou. E nisso é sincera? — Em resposta, Alice conseguiu apenas curvar a cabeça. O rei aquiesceu. — Acredito que
sincera, madame — concluiu. — E, se eu puder ajudar, a senhora verá.
Ele estava para voltar a atenção às damas, quando Alice avistou um cavaleiro solitário na charneca. Vinha trotando em direção a eles. Supôs ser um dos guarda-caças florestais, mas, quando ele chegou mais perto, observou que se tratava de um homem bem jovem, no meio da casa dos vinte anos, avaliou, e a quem nunca vira. Era alto, com uma bela aparência morena. Realmente um rapaz bem vistoso. Betty fitava-o boquiaberta. Alice observou o rei virar-se com ar interrogativo para Howard e viu o outro murmurar algo para ele. Ela percebeu que o rei pareceu, apenas por um instante, um pouco incomodado, mas rapidamente se recobrou.
Quem, ela ficou imaginando, seria aquele moço?
Thomas Penruddock não costumava ir muito à Floresta. Quando os primos de Hale, a quem visitara no dia anterior, lhe disseram que o rei estaria em Bolderwood, ele hesitou em ir até lá. Era um jovem orgulhoso e não queria se arriscar a mais humilhações. Somente após os primos implorarem que fosse, ele finalmente partiu, com alguma apreensão, em direção à comitiva do rei.
Embora os Penruddock tivessem conseguido ficar com a casa e parte da propriedade de Compton Chamberlayne, os anos transcorridos depois da morte de seu pai tinham sido muito difíceis. Acabaram-se as roupas caras para o jovem Thomas; os cavalos foram quase todos vendidos; nem houve mais tutores. Lado a lado com a mãe, o menino labutou para manter a família. Se havia advogados a serem visitados em Sarum, algo que sempre a afligia, ele a acompanhava. Freqüentemente, trabalhava no campo; tornou-se um razoável carpinteiro. Às vezes a mãe se lamuriava: ”Você não devia trabalhar como um camponês. Você é um fidalgo! Se ao menos o seu pai estivesse vivo.” Para agradá-la, mais do que qualquer coisa, sentava-se durante as noites em que não estava muito cansado e tentava estudar em seus livros. E para sempre na mente mantinha uma promessa: um dia as coisas vão melhorar e então eu serei um fidalgo, como o meu pai; serei, de todos os modos, igual a ele. Isso era o seu talismã, o máximo que poderia fazer para trazer o pai de volta, sua esperança de vida eterna, seu sonho de amor, sua honra secreta.
Sempre houvera a esperança: um dia o rei voltará. Que alegria seria, então. Os leais seriam recompensados; e quem tinha sido mais leal, sofrido mais pela causa do rei do que a família Penruddock? Quando veio a Restauração, portanto, o Thomas Penruddock de dezessete anos de idade não coube em si de tanto contentamento. Sua mãe até mesmo afirmou: ”Tenho certeza que o rei agora vai fazer algo por nós.”
Tiveram notícias das festividades em Londres, do novo Parlamento leal e do nascimento de uma nova corte real. Esperaram uma mensagem, um convite para irem partilhar do triunfo do rei. E não receberam... nada; nem uma só palavra, nem um sussurro. O rei não havia lembrado da viúva e seu filho.
Mandaram avisar aos amigos. Até mesmo escreveram uma carta: que foi respondida com... silêncio. Os amigos explicaram: ”O rei não tem dinheiro para dar, mas há outras coisas que ele pode fazer.” Foi preparada uma petição, solicitando ao novo rei que concedesse aos Penruddock o monopólio da fabricação de vidros. ”Em outras palavras”, explicou um amigo entendido, ”quem quiser fabricar vidros terá que pagar a vocês pela licença.” Tratava-se de uma maneira comum de recompensar um súdito, já que não sairia dinheiro algum dos cofres da Coroa.
”Estou certa de que não saberei lidar com tudo isso”, afligia-se a Sra. Penruddock,
mas ela não precisava ter-se preocupado. O monopólio não foi concedido. ”Não entendo por que ele não faz nada”, bradou.
Para o jovem Thomas, a despeito de tudo pelo que tinha passado, aquela foi a sua primeira e mais importante lição mundana: não podia contar com ninguém, nem mesmo um rei, para cuidar dele, se não cuidasse de si mesmo. Aqueles que estão no poder, mesmo os reis ungidos, usam as pessoas e depois as esquecem. Era a natureza de sua vocação. Não podia ser de outro modo. Ele voltara a trabalhar com todo o ímpeto.
E nos últimos dez anos saíra-se muito bem. Aos poucos a propriedade foi retornando à condição de antes. Hectares perdidos foram recuperados. Aos vinte e sete anos, Thomas Penruddock era um homem endurecido e bemsucedido.
Nesse dia ele queria algo específico. Já um capitão na cavalaria local de seu país, Thomas sabia que o seu coronel, um velho e amável fidalgo, pretendia afastar-se em breve. Deixara claro que queria o coronelato, mas havia outros homens mais velhos que legitimamente esperavam ser promovidos antes dele. Thomas, entretanto, estava determinado. Não se tratava de uma questão de lucro: no mínimo, o coronelato lhe custaria dinheiro. Tratava-se de uma questão de honra familiar: no dia em que conseguisse o posto haveria novamente um coronel Penruddock em Compton Chamberlayne. ”O lorde lugar-tenente da região faz as nomeações”, explicou aos primos. ”Mas, é claro, se o rei disser que me quer no posto, eu o conseguirei.” Ao levar em conta o sofrimento de sua família e o fato de que isso nada custaria ao rei, pareceu a Thomas Penruddock que era o mínimo que o rei poderia fazer. Mesmo assim, estava incerto de como seria recebido ao se preparar para se encontrar pela primeira vez com o monarca.
Não havia como confundi-lo: o sujeito alto e moreno cercado por mulheres. Thomas tirou o chapéu educadamente, ao parar o cavalo, e recebeu em resposta um gesto afirmativo de cabeça. Viu Howard, a quem conhecia, e portanto imaginou que o rei já havia sido informado de quem ele era; esquadrinhou o rosto do monarca à procura de um sinal de gratidão — um acolhedor sorriso para uma família leal, talvez. Mas enxergou algo mais. Não havia dúvida. O rei Carlos parecia constrangido.
E estava realmente. Fora uma das humilhações de sua Restauração real o fato de o Parlamento tornar-lhe quase impossível recompensar os amigos. Um grande número de homens ricos e poderosos que tornaram possível a sua volta, é claro, encontrava-se instalado em propriedades confiscadas dos monarquistas e mal podia pensar em pedi-las de volta. Mas pelo menos esperava que o Parlamento lhe fornecesse fundos suficientes para fazer algo pelos amigos. O Parlamento negou-se. Ele ficou impossibilitado.
Contudo, mesmo assim... A verdade era que Carlos estremecia por dentro toda vez que o nome Penruddock era mencionado. A Sublevação de Penruddock fora uma ação precipitada, e a culpa tinha sido parcialmente dele. A princípio, nada conseguira fazer pela viúva; mas depois disso passou a se sentir tão constrangido que tentou fingir que os Penruddock não existiam. Agira vergonhosamente e tinha consciência disso. E agora ali estava aquele belo homem, jovem e sombrio, como um anjo da consciência, chegando para estragar sua tarde ensolarada. Contorceu-se internamente.
Mas não foi isso que Penruddock viu. Pois, ao olhar em volta para o grupo, imaginando o que se passava pela cabeça real para provocar tanto embaraço, seus olhos pousaram sobre uma figura sentada a um canto. E sua boca se escancarou.
Reconheceu-a de imediato. Os anos haviam se passado, seus cabelos ruivos já se tornavam grisalhos, mas como poderia esquecer aquele rosto? Encontrava-se gravado em sua memória. O rosto da mulher que com o marido decidira matar o pai dele. Com uma única e súbita acometida, a agonia daqueles dias se abateu sobre ele como um vento ardente. Por um momento voltou a ser um menino. Encarou-a, incapaz de entender; e em seguida, ao pensar, compreendeu. Ela era amiga do rei. Ele, um Penruddock, era desprezado; ao passo que ela, uma regicida rica, uma assassina, estava sentada à direita do rei.
Percebeu que começara a tremer. Com imenso esforço, controlou-se. Ao fazêlo, a sua face saturnina adotou um ar de frio desprezo.
Howard, percebendo aquilo e sempre adulador, rapidamente indagou:
— Sua Majestade está caçando, Sr. Penruddock. Veio solicitar uma audiência?
— Eu, senhor? — Penruddock recuperou o controle. — Por que, senhor, um Penruddock desejaria falar com o rei? — Apontou para Alice Lisle. — O rei, pelo que vejo, tem outro tipo de amigos.
Aquilo foi demais.
— Tome cuidado, Penruddock — gritou o próprio rei. — Não seja insolente. Mas a amargura de Penruddock o havia dominado.
— Eu vim pedir um favor, é verdade. Mas foi uma tolice, como percebo claramente. Pois, após meu pai dar a vida por este rei — dirigia-se agora a todos —, não recebemos favores nem mesmo agradecimentos. — Voltando-se para Alice Lisle, direcionou os seus anos de sofrimento e ódio diretamente a ela. — Sem dúvida, teria sido melhor sermos traidores, ladrões de terras de outros homens e assassinos comuns.
E, com um acesso de angústia, virou a cabeça do cavalo e um instante depois afastou-se a meio galope.
— Por Deus, sire — gritou Howard —, eu o trarei de volta. Vou açoitá-loMas Carlos II levantou a mão.
— Não. Deixe-o ir. Não percebeu sua dor? — Por um instante fitou em silêncio a figura que se afastava; nem mesmo Nellie tentou interromper seus pensamentos. Então, sacudiu a cabeça. — A culpa é minha, Howard. Ele tem razão.
Sinto-me envergonhado. —A seguir, voltando-se para Alice, com uma amargura toda própria dele, exclamou: — Não deve me pedir favores, madame, quem ainda é meu inimigo, quando se vê como eu trato os meus amigos. — E o gesto de cabeça que se seguiu mostrou claramente a Alice que estava na hora de ela e a filha irem embora.
Portanto, foi com alguma contrariedade que ao chegar a Albion House ela encontrou Furzey sentado em um canto do vestíbulo, e John Hancock, na sala de estar, debruçado sobre uma enorme folha de papel que estudava cuidadosamente. Ansiosa para se livrar do habitante de Oakley, a fim de que pudesse comentar o seu encontro com o rei, ela exigiu que Hancock cuidasse imediatamente de Furzey. Fechando a porta da sala, o advogado explicou resumidamente o apuro de Furzey e depois mostrou-lhe o papel.
— Encontrei tudo nos registros. Está vendo? Esta cabana, que é a que Furzey ocupa, mostra o seu primeiro arrendamento aqui, no reinado de Jaime I, pouco antes de você nascer. Foi claramente construída recentemente, e o avô de Furzey se mudou para lá.
, — Quer dizer então que ele não tem direito à coleta?
II — Tecnicamente, não. Posso fazer uma petição, é claro, mas, a não ser que resolvamos ocultar isto do tribunal...
— Não. Não. Não! - A última palavra foi um grito. A paciência dela se esgotara subitamente. —A última coisa no mundo de que preciso agora é ser apanhada em uma mentira, ao ocultar provas de um tribunal. Se ele não tem direito à forragem, então não tem, e pronto. — Não conseguiu agüentar mais nada naquele dia. —John, por favor, mande-o embora.
Furzey escutou atentamente a explicação do advogado, mas não ouviu. A explicação sobre a data da edificação de sua habitação nada significava para ele: nunca tinha ouvido falar naquela coisa, não acreditava nela, achava que era um truque, recusava-se a aceitá-la. Quando o advogado disse: ”É uma pena que você não tenha registrado a concessão do direito quando devia tê-lo feito, no reinado do último rei... muitas dessas concessões eram impróprias, mas todas elas estão sendo deferidas.” Furzey olhou para o chão; mas, como isso fazia com que fosse culpa dele, conseguiu em poucos momentos eliminar essa informação de sua mente. Só havia uma coisa que Furzey sabia. Não importava o que aquele advogado estava dizendo, pois ele mesmo tinha ouvido. O tal grito ”Não!”, que veio do outro lado da porta. Tinha sido a mulher, a lady de Albion House, que o contestara.
E foi assim que num acesso de raiva e amargura ele amaldiçoou aquela família naquela noite. ”É ela. E ela quem tira os nossos direitos. E ela quem nos odeia.”
Dois meses depois Alice teve uma grande surpresa, quando o duque de York retirou a ação judicial contra ela.
1685
As pessoas se surpreendiam por Betty Lisle ter vinte e quatro anos e permanecer solteira. Com os seus cabelos louros e belos olhos azul-acinzentados, ela era agradável de se ver. Se fosse rica, sem dúvida diriam que era linda. Ela não era pobre: Albion House e grande parte das terras dos Albion seriam dela.
”A culpa é minha”, reconhecia Alice. ”Eu a mantive presa demais a mim.”
Certamente era verdade. As irmãs mais velhas de Betty tinham casado e ido embora. Margaret e Whitaker eram visitantes freqüentes, mas Bridget e Leonard Hoar foram para Massachusetts, onde durante algum tempo Hoar fora diretor da Harvard. Tryphena e Robert Lloyd estavam em Londres. Alice e Betty, portanto, quase sempre estavam sozinhas no campo.
A maior parte do tempo passavam em Albion House. As duas a adoravam. Para Alice, não importavam as privações que enfrentara, a casa que o pai construíra para ela continuava sendo um refúgio onde se sentia segura e em paz. Assim que fora afastada a ameaça de litígio por parte do duque de York, ela soube que a casa passaria intacta para Betty, e os prováveis anos solitários para ela foram preenchidos com a alegria de observar a filha mais nova reviver os anos felizes de sua própria infância. Pois, para Betty, a casa de frontão na mata parecia o lugar mais feliz da terra: o lar de sua família, escondido do mundo. No inverno, quando a geada deixava pingentes brilhantes nas árvores e seguiam pela alameda coberta de neve até a velha igreja de Boldre no pequeno outeiro, aquilo parecia algo íntimo e mágico. No verão, quando ela subia a cavalo até a vasta charneca para observar os pássaros flutuando sobre as urzes, ou descia a meio galope até Oakley para visitar o velho Stephen Pride, a Floresta parecia suntuosa e agreste, porém repleta de amigos.
Mas a casa também era um lugar sério por causa dos seus visitantes: os religiosos. A promessa feita pelo rei Carlos a Alice, em Bolderwood, de que ele daria liberdade religiosa a seus súditos, na verdade veio a ocorrer em 1672. Mas não durara. Um ano depois o Parlamento a derrubou. Dissidentes foram impelidos firmemente de volta à margem da sociedade e proibidos de realizar ofícios públicos. Silenciosamente, Alice continuou fornecendo um paraíso aos pregadores puritanos e, de um modo geral, foi deixada em paz; mas isso dava um certo ar de seriedade e propósito à casa, que afetava a moça que vivia com ela. E havia algo mais: embora Alice mal percebesse, os pregadores que buscavam a sua hospitalidade estavam muito mais velhos.
Durante alguns anos Betty fora enviada para uma escola de jovens damas em Sarum; mas, apesar de ter ficado bastante feliz por lá e ter feito algumas amigas, ela nunca realmente se sentia satisfeita com a conversa das outras moças. Acostumada com gente mais velha, ela as achava meio infantis.
Depois disso sua mãe a enviava uma ou duas vezes por ano para ficar com parentes ou amigos, na suposição de que ela conheceria alguns rapazes. E conheceu, mas, como nunca deixava de achá-los sem graça, Alice finalmente disse-lhe com firmeza:
— Não procure o homem perfeito, Betty. Nenhum homem é perfeito.
— Não procuro. Mas não me obrigue a casar com um homem a quem não respeito — retrucou, ignorando o suspiro da mãe.
Depois que ela completou vinte e quatro anos, Alice ficou à beira do desespero. Betty, por outro lado, estava feliz da vida.
— Eu adoro esta casa. Eu adoro cada centímetro da Floresta — disse-lhe. — Sou capaz de viver e morrer aqui, sozinha e bastante feliz.
Até aquele mês de junho, durante uma temporada que elas passavam em Londres.
— E quando se leva em consideração — Tryphena, sua filha mais velha, observou para Alice — que isso ocorre quando todo o mundo só pensa nos grandes acontecimentos que estão sacudindo o reino, creio que ela deve estar mesmo falando sério.
Mas isso, para tristeza de Alice, era exatamente o problema.
Figuras na paisagem. Uma noite de julho. Houvera milhares na noite anterior. Mas agora a maioria havia se misturado à cidade, fazenda e povoado, escondendo as suas armas, cuidando dos próprios assuntos, como se nunca tivessem saído dali, dias antes, avançando pelas cidades do oeste, tentando tomar um reino.
Nem todos teriam sorte, contudo. Alguns ficaram conhecidos, outros foram denunciados e enviados para junto das várias centenas de capturados.
Figuras a cavalo, mantendo-se fora de vista, avançando por entre a mata quando podem, ou pelas colinas desertas e desoladas sem nenhuma testemunha além das ovelhas, um solitário pastor, ou os fantasmas, talvez, nas áreas cercadas por muros de terra cobertos de grama, aquelas silenciosas recordações da era pré-histórica existentes por toda a região campestre. Figuras agora avançando para leste, sempre pelas serras de calcário, trinta quilômetros ou mais a sudoeste de Sarum.
A Rebelião de Monmouth havia estourado.
Ninguém esperava que o rei Carlos fosse morrer. Ele tinha apenas cinqüenta e quatro anos. Ele mesmo esperava viver muitos anos, e sir Christopher Wren estava construindo para ele um novo e belo palácio na colina acima de Winchester, onde o rei estava ansioso por residir. Mas subitamente, naquele fevereiro, Carlos foi atacado por uma apoplexia. Em questão de uma semana, estava morto. E isso tinha criado um imenso problema.
Embora Carlos II tivesse tido numerosos filhos com suas várias amantes, muitos dos quais fora forçado a transformar em duques, ele não deixara nenhum herdeiro legítimo. A coroa, portanto, teria de passar para o seu irmão Jaime, duque de York. A princípio, Jaime não parecia uma má escolha: era casado com uma protestante, tinha duas filhas protestantes, e uma delas se casara com um primo, o próprio governante dos holandeses, Guilherme de Orange. Mas depois que a mulher de Jaime morreu e ele se casou com uma princesa católica, os ingleses não ficaram nem um pouco contentes. E quando logo em seguida ele admitiu ser católico, a consternação foi geral. Não era isso justamente o que os protestantes ingleses vinham temendo há um século? A Inglaterra era então mais protestante do que o fora na época da Armada ou mesmo da Guerra Civil. Carlos, para agradá-los, garantiu a todos que, se o irmão viesse a sucedê-lo, este manteria a Igreja anglicana, a despeito de suas opiniões pessoais. Mas alguém acreditava mesmo nisso?
A maioria dos membros do Parlamento, não. Eles exigiram que o católico Jaime fosse excluído da sucessão ao trono. O rei Carlos e seus amigos se recusaram; e, assim, teve início o grande racha na política inglesa, entre aqueles que queriam manter um católico longe do trono — os whigs (liberais) — e o grupo monarquista — os tones (conservadores). O problema se arrastou durante anos. Houve discussões e protestos intermináveis. Apesar de a violência ser evitada, tratava-se do mesmo debate que levou à Guerra Civil: quem devia dar a última palavra, o rei ou o Parlamento? O rei Carlos II, contudo, cuidando de seus próprios interesses, prosseguiu se divertindo por mais de uma década, apostando nas corridas, perseguindo belas mulheres, arrancando dinheiro de Luís da França; e porque o inglês gostava de uma diversão maliciosa e achava que talvez fosse mesmo viver mais do que o irmão católico, a coisa foi sendo empurrada com a barriga. Misericordiosamente, Jaime também não produzira nenhum herdeiro com a esposa católica. O tempo parecia estar do lado da Inglaterra protestante. Até aquela morte repentina.
Jaime tornou-se rei. Um católico no trono — o primeiro desde ”Maria Sangüinária”, um século e um quarto atrás. O país ficou com a respiração presa.
Então, em junho do mesmo ano, iniciou-se a Rebelião de Monmouth.
De certo modo, estava fadada a acontecer. Carlos II sempre adorou seu filho natural mais velho. Monmouth, o belo. Monmouth, o protestante: quando os whigs do Parlamento quiseram excluir o católico Jaime, disseram ao rei Carlos que preferiam Monmouth. Carlos, intimamente um católico Stuart, protestou, alegando que o rapaz não era filho legítimo, mas o pragmático Parlamento inglês respondeu que ele se preocuparia com isso. Carlos havia recusado tal coisa, mas, no que dizia respeito a Monmouth, o dano já tinha sido feito. Era um jovem mimado, sempre metido em encrencas e protegido pelo pai caduco. Aparentemente, os ingleses o queriam como rei. Mesmo antes da morte do pai, ele se deixou envolver em uma trama abortada que poderia ter assassinado tanto Carlos quanto Jaime. Não era de admirar, portanto, que, com o católico Jaime subitamente alçado ao poder de uma nação com a maioria insatisfeita, Monmouth, agora com trinta anos mas ainda fútil e imaturo, achasse que os ingleses se rebelariam em seu favor se ele lhes desse essa oportunidade.
Ele havia começado no ”West Country. As pessoas congregaram-se em torno de sua bandeira — pequenos fazendeiros, protestantes das cidades portuárias e mercantes —, uma força de vários milhares. Os bem-nascidos locais, os homens influentes, porém, mantiveram-se cautelosamente recuados. E sensatamente. Pois no dia anterior, na Batalha de Sedgemoor, as tropas reais haviam esmagado a revolta. Todos se dispersaram para se esconder ou fugir da melhor maneira que podiam.
Figuras na paisagem na manhã enevoada. Monmouth fugia. Agora tinha apenas dois companheiros consigo. Precisava conseguir um porto do qual partir, para qualquer lugar onde não fosse traído. ”É melhor seguirmos”, decidiu, ”para Lymington.”
Havia também outros fugitivos, naquela manhã de julho, seguindo na mesma direção.
— Mas isso não é tudo o que você me ensinou a amar? — Betty olhava para a mãe, verdadeiramente confusa. —Você não pode fazer objeção à sua família — acrescentou —, já que ele é um Albion.
Alice suspirou. Ainda não houvera notícias de West Country. Monmouth teria sido bem-sucedido? Todo aquele assunto a deixava temerosa. E agora a filha insistia em perturbá-la com um pretendente. Desejava que o jovem, apenas por um ou dois meses, pudesse desaparecer.
Peter Albion era um crédito para a família. Se o avô dele, Francis, merecera o escárnio do próprio avô dela, o filho de Francis se saíra melhor. Tornara-se médico e se casara com a filha de um rico mercador de fazendas. O jovem Peter dedicara-se à prática do Direito e, com os numerosos amigos do pai para ajudá-lo, já era, com vinte oito anos de idade, um homem proeminente. Era bonito, com os tradicionais cabelos louros e olhos azuis dos Albion; era diligente, hábil, solícito, ambicioso. Foi Tryphena quem havia se encontrado com ele e o convidara para uma visita; e ela o definira resumidamente: ”Ele parece um Albion, mas é igual ao pai.”
Talvez, pensou Alice, por isso Betty gostasse tanto dele. Combinava com a descrição do pai que ela não conhecera.
Mas infelizmente era exatamente por isso que Alice queria desencorajá-la. ”Eu estou ficando velha”, falou para Tryphena. ”Já vi problemas demais.” Problemas na Inglaterra; problemas na família. Não duvidava que a causa pela qual o marido lutara era justa; ela tinha toda a certeza de ter agido corretamente quando ajudou os dissidentes. Mas teria valido a pena — a luta, o sofrimento? Provavelmente, não. A paz valia mais, parecia-lhe, do que qualquer uma das pequenas liberdades conquistadas em sua existência. E paz era o que ela queria agora, para a velhice e, acima de tudo, para a filha.
Isso não era fácil de conseguir. Uns dois anos atrás, por ocasião daquela trama idiota para assassinar o rei e o seu irmão, o marido de Tryphena fora preso e interrogado durante dias. Por quê? Não porque ele ao menos tivesse a mais leve ligação com a trama, mas por causa de sócios e amigos de sua família. Uma vez que era motivo de suspeita, permaneceria sempre assim. Era inevitável.
Mas para a jovem Betty as coisas poderiam ser diferentes. Sua filha mais nova, por ter perdido o pai, perdera as alegrias da primeira infância que ela conhecera; mas o resto foi melhor: uma vida de paz e segurança — o tipo de vida que Alice esperou viver em sua casa na amistosa Floresta.
No mesmo dia, após a notícia da chegada de Monmouth a West Country, Peter Albion fora à casa de Tryphena para prestar os seus cumprimentos à prima Alice e sua filha. Era uma companhia agradável, bastante educada, mas disfarçadamente franca.
— Os ingleses não vão tolerar um rei católico — afirmou ele. — Nem creio que devam. — Curvou-se em direção de Alice, como se claramente esperasse que ela endossasse essa opinião. — Vamos esperar que Monmouth seja bem-sucedido. —Ele sorriu. —Tenho amigos naquele acampamento, prima Alice. Aguardo a notícia do sucesso a qualquer momento. Então, posso lhe assegurar, veremos o rei Jaime preparar suas trouxas.
Enquanto ele falava, ela se sentia gelar por dentro. Era outra vez seu próprio marido, John Lisle.
— Não diga essas coisas — exclamou. — São perigosas.
— E não digo apenas, eu lhe asseguro, prima Alice — rebateu calmamente. — Exceto em companhias como esta.
Companhias como esta; a frase a aterrorizou. Betty já admitira ser uma conspiradora? Peter Albion iria arrastá-la para esse papel?
— Deixe-nos, senhor — implorou —, e não fale mais essas coisas. Entretanto, ele voltou a visitar Betty poucos dias depois. E, apesar de Alice
não gostar daquilo, era difícil se recusar a deixar que o parente entrasse em sua casa. Sensatamente, ele não fez mais qualquer outra referência a assuntos perigosos, mas, no que lhe dizia respeito, o dano já fora feito. Implorou à filha que não se envolvesse mais com ele, em nenhum sentido. Não era fácil, Betty tinha vinte e quatro anos. E Alice a teria levado naquele mesmo dia para a segurança da Floresta, se não tivesse recebido pela manhã uma carta de John Hancock.
Não volte, insisto, não volte a Albion House. Estourou uma rebelião em Lymington. Já andam à sua procura, para apoio. Pelo amor de Deus, permaneça, em Londres e não diga coisa alguma.
Ela rasgou rapidamente a carta e lançou-a ao fogo.
Não dizer coisa alguma. Peter Albion diria alguma coisa? E Betty? Olhou, desesperada, para a filha.
— Minha criança — começou sussurrante —, se você não tomar cuidado, em breve seremos caçadas. — Sacudiu a cabeça, ao pensar naquilo. — Como veados na Floresta.
Stephen Pride caminhava lentamente ao passar pelo lago de Oakley. Tinha setenta e cinco anos, mas com certeza não os sentia. Alto e magro, ainda caminhava com passos largos — mais devagar, um pouco retesado, talvez — como o fizera durante toda a longa vida. O bom senso lhe dizia que não viveria muito mais, porém, fosse qual fosse a causa que Deus preparara para abatê-lo, ele não a sentia.
Já vi homens viverem até os oitenta”, observava satisfeito. ”Acho que conseguirei.” Era uma das pequenas alegrias de sua longa vida observar o lago ao lado do gramado da aldeia. Suas variações eram sempre as mesmas, ano após ano, de acordo com as estações. Ao final do outono, depois que as chuvas caíam, o lago ficava bem cheio. No inverno costumava congelar. Dois anos antes, no inverno mais frio de que Pride conseguia se recordar, tinha virado gelo maciço de novembro a abril. E, quando vinham as chuvaradas e o calor de maio, toda a superfície ficava coberta de flores brancas, como se a própria água tivesse desabrochado em florescência.
O formidável do lago era o modo pelo qual se enchia. Não havia riacho, sequer um pequeno córrego. Mas, quando as chuvas caíam na charneca próxima, de algum modo, como por um milagre, escoavam invisíveis fios de água, que mal se percebia passarem pela aldeia como uma pequena cobra de água correndo pelo gramado e se espalhando na rasa depressão adiante.
No verão, contudo, o lago começava a evaporar. A quente charneca absorvia toda a chuva que caía sobre ela. A cobra de água desaparecia. Dia após dia, os animais que ceifavam a grama exuberante à margem do lago avançavam um pouco mais. No meio do verão, durante o mês do resguardo, ficava apenas com a metade do tamanho que tinha na primavera. Em agosto ficava quase seco. Naquele instante, ao olhar para o lago, ele viu duas vacas e um pônei pastando na verde depressão perto das duas ou três enormes poças que restavam em seu centro.
Stephen Pride sentia-se aliviado. Estivera em Albion House naquela manhã e voltava de lá. A notícia era exatamente a que esperava: dame Alice continuava em Londres e não viera informação alguma de que estaria retornando. Isso era bom. Ele conhecera e amara dame Alice durante toda a vida dela e não queria vê-la de volta naquele momento, não do jeito que as coisas se desenrolavam em Lymington.
Por causa de sua mulher e da família dela, Pride sempre sabia mais do que qualquer um em Oakley sobre o que acontecia em Lymington, mas ninguém era capaz de estar alheio ao modo pelo qual as coisas andavam se desenrolando por lá nos últimos anos. Se a pequena cidade portuária fervilhava, assim estava cada um dos povoados da Inglaterra.
Talvez houvesse na região alguém que ainda ansiava pela antiga crença católica, mas o século transcorrido depois da Armada já estreitara bastante as suas fileiras. Quanto à gente da cidade, ela nada queria com aquilo. Os mercadores e pequenos negociantes de Lymington haviam desgostado de Carlos
e desconfiavam de Carlos II. Poucos anos antes, quando a preocupação com uma sucessão católica ao trono fora especialmente grande no Parlamento, um patife chamado Titus Oates inventou a existência de uma trama católica para depor Carlos e colocar Jaime em seu lugar. Os jesuítas assumiriam o país: os honestos puritanos seriam assassinados. A coisa toda, do princípio ao fim, não passava de uma ficção com a qual Oates pretendia se tornar uma rica celebridade. Mas na ocasião os ingleses tinham tanto medo do catolicismo que acreditaram. Não se passava uma semana sem que Oates criasse uma outra história. De cima a baixo do país, as pessoas começaram a imaginar jesuítas olhando furtivamente atrás das janelas ou emboscados nos cantos. E o próspero porto de Lymington não era exceção. Metade da cidade andava à procura de jesuítas. O prefeito e seu conselho estavam prontos para armar os cidadãos.
Então, quando Monmouth levantou sua bandeira a favor da causa protestante, Lymington não hesitou. Em um dia o prefeito armou várias dezenas de homens. Os mercadores e fidalgos locais estavam em grande maioria do lado dele. O próprio Pride vira uma meia dúzia de pessoas ilustres locais sair cavalgando de Oakley e seguir para Albion House em busca do apoio de Alice. Uma mensagem já fora enviada a Monmouth, por um veloz cavaleiro, com a garantia: ”Lymington está com você.” Na tarde anterior ocorrera um desfile pelas ruas, com flautas e tambores, seguido de cerveja preta e ponche para todos, na casa de um dos mercadores. Era uma espécie de carnaval.
E Stephen Pride, o aldeão, como John Hancock, o advogado, olharam aquilo cautelosos. ”Deixe o pessoal da cidade se empolgar”, dissera ao filho Jim. ”Mas a gente aqui da Floresta precisa ser mais sensata. Não importa o que aconteça a Monmouth, eu ainda terei as minhas vacas e você continuará sendo subguardacaça. Só agradeço a Deus”, acrescentou, ”por dame Alice não estar aqui. Eles a envolveriam, quer ela quisesse ou não.”
Ele sentia-se, por esse motivo, razoavelmente feliz, quando avistou, uns cem metros além do lago, um grupo de pessoas ouvindo uma discussão. Aproximou-se delas, portanto.
Não era comum ver os dois rapazes de Furzey juntos. Na verdade, já eram agora homens de meia-idade, e, desde a morte de Gabriel, poucos anos antes, George Furzey assumira a cabana dele; mas para Stephen Pride eles continuavam sendo os rapazes de Furzey. Por Deus, como eram parecidos com o velho Gabriel. George era um pouquinho maior, mas ambos alargaram do mesmo modo na cintura. E, Stephen pensou consigo mesmo, ambos eram tão obstinados quanto o pai.
William Furzey não se saíra muito bem em Ringwood: trabalhava para um fazendeiro, como pecuarista, cuidando do gado. Um longo caminho percorrido para nada, foi o que sempre parecera a Pride, mas por outro lado ele não aprovava mesmo que alguém saísse para viver fora dos limites da Floresta. Evidentemente, ele viera visitar George Furzey por algum motivo, e agora estavam parados, lado a lado, como dois garnisés enfurecidos. O motivo da fúria, Pride percebeu então, era o próprio filho dele.
— Você não tem esse direito — protestava George Furzey —, e eu não vou mesmo fazer isso. — Olhou para o irmão, que se encontrava ocupado demais em odiar Jim Pride para arrumar um tempo para falar. — É isso mesmo.
O problema, como Jim Pride explicara ao pai havia apenas uma semana, era previsível. ”George não sabe manter a boca fechada.”
Se os Furzey nunca aceitaram o fato de não terem direito à ferragem — se, até aquele dia, eles se recusavam a cumprimentar Alice Lisle mesmo com um sinal de cabeça, quando a viam, e a chamavam de ladra —, uma coisa que se tornou intolerável para eles foi quando, um ano antes, Jim Pride fora transferido do posto que ocupava em Bolderwood para o de subguarda-caça do bailiado do Sul.
Para Stephen Pride, a transferência fora muito bem recebida. Bolderwood ficava a quase quinze quilômetros de Oakley, mas agora podia ver o filho e os netos quase todos os dias.
Para George Furzey, porém, a presença de Jim significava algo completamente diferente, pois o subguarda-caça era responsável pela supervisão dos direitos comuns, inclusive o da coleta. ”Não vou obedecer a Jim Pride”, dissera à família. Ele não ia se deixar fazer de tolo pelos Pride. E fez questão de juntar lenha para fogueira na Floresta, só para provar o seu propósito.
Entretanto, mesmo assim, a coisa não precisava chegar a uma crise. Jim Pride não havia passado quinze anos como subguarda-caça sem aprender a ser sensato. Se Furzey, quando precisasse, apanhasse lenha disfarçadamente, Jim faria vista grossa. Mas, é claro, George Furzey era incapaz de fazer tal coisa.
Dois dias antes, na pequena estalagem de Brockenhurst, ele anunciara para todos ouvirem: ”Não ligo para Jim Pride. Se eu quiser madeira, eu pego.” A seguir, olhando em volta, em triunfo, acrescentou: ”Também vou pegar madeira de tanoeiro” e deu uma piscadela para os presentes. O direito de coleta aplicava-se apenas à madeira a ser usada na cabana para fazer fogo. Madeira de tanoeiro era aquela vendida para fazer toneis ou cercas, e era ilegal.
Foi um desafio estúpido e desnecessário, e deixou Jim Pride sem opção. ”Agora vou ter que falar com ele”, avisou ao pai.
Portanto, naquela manhã, chegou à cabana de Furzey e o informou, da maneira mais educada possível:
— Lamento, George, mas você anda colhendo madeira sem ter esse direito. Conhece as regras. Vai ter que pagar.
George e William Furzey olhavam agora para Stephen Pride — quando o viram, ao que parece, ficaram ainda mais enfurecidos — e, após William se dedicar com todo cuidado e premeditação a cuspir no chão, George resumiu a sua posição com um grito:
— Eu vou lhe dizer quem vai pagar, Jim Pride. É você quem vai pagar. Você e aquela velha megera, a Lisle! Você e aquela bruxa. São vocês dois que vão pagar.
Com isso, os Furzey deram as costas e saíram pisando forte de volta para sua cabana.
O coronel Thomas Penruddock, sentado sobre o cavalo, observava friamente a multidão, a qual, fosse o que fosse o que sentia na realidade, mostrava sinais de júbilo. O primo de Hale estava a seu lado.
Atrás dos dois Penruddock estava a igreja de Ringwood, com sua larga e festiva torre retangular. Diante deles o presbitério, com guardas na porta. No interior do presbitério, sendo interrogado por lord Lumley, encontrava-se o duque de Monmouth. Não era pouca a excitação no ar. Ringwood nunca fora anteriormente o centro da história da Inglaterra.
Os dois últimos dias tinham sido agitados. Assim que se soube que Monmouth estava em fuga, uma enorme recompensa — cinco mil libras — foi oferecida pela sua captura. Até um avistamento valeria alguma coisa. Metade dos condados do sudoeste saíram à procura dele. Lord Lumley e seus soldados haviam penetrado ruidosamente em Ringwood e passado a esquadrinhar New Forest. Invadiram várias casas de Lymington, cujo prefeito já havia tomado um barco e fugira para o exterior.
Mas agora Monmouth estava preso e, a não ser que ele conseguisse de algum modo convencer o primo, o novo rei Jaime, a perdoá-lo, não restavam dúvidas de que morreria.
Pessoalmente, o coronel Thomas Penruddock não se sentia nada perturbado. Se Monmouth tivesse sido bem-sucedido, isso também não o teria preocupado demais. Não sentia qualquer emoção pela causa do rei Jaime II, como seu pai sentira pela do irmão deste, Carlos. Por que ele deveria? Não era católico. Os Stuart reinantes nada fizeram pela sua família para pagar pela lealdade. O coronelato que desejava tinha ido para outro. Finalmente ele o obtivera havia apenas quatro anos. Não, nada mais sentia pelos Stuart.
Mas acreditava na ordem, e Monmouth, ao se rebelar, era uma ameaça de desordem. Como havia fracassado, devia morrer.
O fato de que fora exatamente isso que havia acontecido ao seu pobre pai não fazia com queThomas Penruddock se sentisse, no mínimo, solidário. Muito pelo contrário. Monmouth deveria ter aprendido com os erros dos outros, disse a si mesmo, impiedoso. A rebelião tinha sido pessimamente organizada e surgira cedo demais. Muito bem, então. Eles mataram o meu pai, pensou. Que seja agora a vez de Monmouth.
A captura de Monmouth tinha sido uma trapalhada. Penruddock e seus regimentos de cavalaria haviam passado pelas colinas abaixo de Sarum e tiveram a infelicidade de deixar escapar o fugitivo, que de algum modo passou ileso por eles. Mas finalmente foi descoberto, cerca de dez quilômetros a oeste de Ringwood, disfarçado de pastor, faminto e escondido em uma vala. A honra de localizá-lo foi de um soldado chamado Henry Parkin. Penruddock partiu para Ringwood, assim que recebeu a notícia da captura, mais por curiosidade do que outra coisa, e não se surpreendeu ao encontrar, já por ali, seu primo, que era um magistrado local.
Mas naquele momento a porta do presbitério se abriu. Monmouth estava sendo conduzido para fora. A multidão observava expectante.
Ele recebera algumas roupas para vestir, mas continuava aparentando uma figura enlameada. Parecia arrasado. Naquele rosto abatido, com barba de uma semana, Penruddock achou difícil enxergar o jovem belo e mimado que avistara brevemente naquele dia na Floresta, quinze anos atrás, quando tinha ido falar com o rei.
Não perderam tempo. Empurraram-no rua abaixo, passaram por uma fileira de cabanas com teto de palha estilo Tudor e chegaram a uma casa maior perto da praça da feira, onde ele poderia ser mantido convenientemente sob guarda.
— O que farão com ele agora? — perguntou Penruddock ao primo.
— Será mantido ali por um ou dois dias — respondeu o magistrado. — Depois vai ser enviado para a Torre de Londres, creio eu.
— Meus homens ainda procuram fugitivos. Soube que cercaram centenas, mais para oeste. — Acompanhou com o olhar a figura de Monmouth, enquanto ele desaparecia no interior da outra casa. — Acha que ele tem alguma chance?
— Duvido — disse o magistrado, sacudindo a cabeça. — Estou certo de que ele vai apelar para a misericórdia do rei, mas — deu um olhar de esguelha para o primo — com esse sentimento que domina o país, duvido que o rei se dê ao luxo de deixá-lo com vida.
O coronelThomas Penruddock concordou. Mesmo com Monmouth morto, o católico rei Jaime II seria incapaz, em sua opinião, de se manter no trono por muito tempo.
O primo magistrado, como se ecoasse os pensamentos dele, olhou para o chão.
- Quanto mais cedo, melhor — murmurou. A multidão se dispersava.
— Eu vou indo — falou o coronel Penruddock, e estava para virar a cabeça do cavalo, quando notou um homem, que lhe ocorreu parecer extraordinariamente com um nabo, aliás, um nabo bastante mal-humorado. O sujeito parecia observá-lo. — Quem é aquele sujeito feioso? — perguntou ao primo. — Faz alguma idéia?
O magistrado deu uma olhada em William Furzey e levantou os ombros.
— Não — respondeu. — Ele parece um nabo.
Embora William Furzey soubesse perfeitamente bem quem era o magistrado e andasse fitando com um pouco de inveja os excelentes cavalos que ele e o coronel montavam, sua mente não estava de forma alguma concentrada em Penruddock.
Se ele não estava com a melhor das aparências naquela manhã, não era na verdade culpa sua. Tinha acabado de retornar de Oakley, quando soube da derrota de Monmouth e da recompensa. E não perdera tempo. Apanhou um porrete e um pedaço de corda, enrolou um pão e uma maçã em um guardanapo, avisou ao fazendeiro que estava doente e preparou-se para partir.
Claro que sabia que era como procurar uma agulha num palheiro. Por outro lado, seria idiotice não tentar. E, ao pensar na possibilidade, William Furzey achou que tinha uma chance.
Afinal de contas, Monmouth teria que procurar um porto. Lymington, portanto, seria o mais adequado. É verdade que as tropas do rei vigiavam o local, mas Lymington estava repleta de simpatizantes e conseguia-se esconder um exército de fugitivos na Floresta. Ele só precisaria avisar a algumas pessoas no cais. Os Seagull, pelo que constava a William Furzey, pegariam o próprio diabo, contanto que ele pagasse.
E como o fugitivo chegaria a Lymington? Certamente evitaria Fordingbridge e Ringwood, mas teria de cruzar o rio Avon.
Tyrrells Ford, portanto. Era o lugar óbvio.
E, assim, Furzey aproximou-se furtivamente de uma tropa reunida na praça da feira e, como quem não quer nada, perguntou se outras tropas tinham sido enviadas para o sul, ao longo do rio. Disseram que não. Ele já notara que não havia ninguém da região nas tropas que chegaram. É típico das autoridades, pensou, realizar uma busca com soldados que não estão familiarizados com o território.
Mas isso era bom para ele. Sem dizer mais nada, seguiu para Tyrrell’s Ford.
Esperou por lá um dia e uma noite, antes de saber que a sua busca fora em vão e que Monmouth já tinha sido capturado: a oeste de Ringwood e, portanto, seguindo para o sul. Monmouth estava mesmo seguindo para Tyrrell’s Ford.
O fato de ter sido trapaceado em sua recompensa por tão pouco não melhorou em nada o seu humor.
O coronel Penruddock e seus soldados continuaram vasculhando a área em volta de Sarum durante vários dias. Não encontraram ninguém. Enquanto isso, porém, a quantidade capturada no oeste ultrapassava o milhar.
E aos poucos as buscas foram diminuindo e cessaram. Foi mantida uma vigília em cada cidade, é claro, mas tudo parecia estar tranqüilo.
Figuras na paisagem. Ainda havia, porém, fugitivos nos arredores: homens da causa protestante; homens que haviam sumido no interior de casas onde conseguiram refúgio; homens que precisavam continuar avançando, cautelosamente, em direção à Floresta.
Duas semanas após a prisão de Monmouth, Alice Lisle não agüentou mais. Peter Albion fazia visitas quase que diariamente.
Ainda que Monmouth tivesse escrito ao rei Jaime e mesmo conseguido uma audiência com ele, isso de nada lhe adiantou. Uma semana depois de sua captura, no pequeno gramado da Torre de Londres, ele foi executado. Enquanto isso, ficaram prontos os preparativos para lidar com o imenso número de seus seguidores
que havia sido capturado em West Country. Um enorme tribunal, no qual todos seriam julgados, seria instalado em agosto, chefiado pelo lorde presidente do Supremo Tribunal de Justiça Jeffreys, um homem escolhido a dedo por Jaime.
Nada disso, entretanto, parecia alterar a opinião de Peter Albion.
— O rei apenas vai fazer com que se torne mais odiado. Não prevejo nada além de problemas — anunciou.
E eu prevejo nada além de problemas para você, pensou Alice, se não ficar de boca fechada.
O pavor dela era que ele fosse propor casamento. Alice não tinha dúvidas de que Betty ia querer Peter. E aí o que ela faria? Não daria o seu consentimento? Deserdaria Betty?
Ao confidenciar os seus temores a Tryphena e, inclusive, seu receio de que Betty fugisse para se casar, a filha, com a habilidade costumeira, anuíra sensatamente. ”Precisamos levar em consideração, mamãe, que, embora Betty a ame, se ela tiver que escolher entre você e o rapaz, com certeza irá escolhê-lo.”
A melhor idéia, seguramente, era mantê-los separados. Assim que Monmouth foi executado e foi cessando a busca pelos seus seguidores, Alice concluiu que podia retornar em segurança para a Floresta. Aliás, a cada dia, lá parecia um lugar mais seguro do que Londres, diante da ameaça tão presente de Peter Albion. Mas ela também temia que, se anunciasse sua partida, isso pudesse precipitar as coisas e levar Albion a propor o casamento.
Uma semana após a execução de Monmouth, porém, ele anunciou que precisaria ir a Kent, onde passaria alguns dias a negócios. Dizendo-lhe que ficaria ansiosa pelo seu retorno, Alice despediu-se dele afetuosamente. Logo na manhã seguinte, ela avisou a Betty que partiriam para o campo antes do meio-dia.
Na noite daquele dia, já se encontravam em uma estalagem a mais de trinta quilômetros de distância.
— Amanhã à noite, deveremos estar em Winchester — anunciou Alice, contente.
Jim Pride ficou surpreso, dois dias depois, ao ver a carruagem com Alice e Betty Lisle atravessar Lyndhurst. No mesmo instante em que as viu, Alice o avistou e fez um sinal para que se aproximasse.
Betty, ele percebeu, parecia um bocado retraída, mas Alice o saudou afetuosamente, perguntou pelos pais dele e quis saber de todas as notícias.
Acontece que há uma semana e até aquele dia a Floresta tinha estado tranqüila. Rumores surgidos não se sabe de onde levaram as autoridades a pensar que talvez houvesse fugitivos prestes a embarcar em Lymington. Houvera uma busca casa a casa naquela manhã, mas nada fora encontrado.
— Acho que depois disso tudo continuará tranqüilo — supôs Jim. Alice, porém, pareceu preocupada.
— Mesmo assim, creio que não devemos ainda ir para Albion House — disse Alice. — Fica muito perto de Lymington. — Sorriu para Pride. — Diga ao cocheiro que, em vez disso, iremos para Moyles Court — pediu. — Ainda teremos tempo de chegar lá antes de escurecer.
Moyles Court, logo depois do vale do Avon, parecia uma opção perfeitamente segura.
William Furzey havia terminado o dia de trabalho e caminhava, Avon acima, até um local onde pretendia pescar sem ser notado, quando topou com um homem montado num cavalo. O cavalo não era de chamar a atenção. O homem era um sujeito de aparência frágil, com cabelos grisalhos, olhos brandos de um azul pálido. Parecia perdido.
— Podia me informar — pediu — o caminho para Moyles Court?
William examinou-o. Um citadino, pela aparência, talvez um pequeno negociante ou artesão. Não parecia habitante do local. William Furzey não era burro; reconhecia uma oportunidade quando ela surgia. O peixe podia esperar.
— Não é fácil de encontrar — respondeu. A casa, na verdade, ficava a menos de oitocentos metros ao se seguir por uma alameda em linha reta. O estranho parecia cansado. — Posso levá-lo até lá — sugeriu William —, mas vou me desviar do meu caminho.
— Uma moeda de seis pence pagaria sua gentileza?
O salário de um dia de um trabalhador era de oito pence. Seis pence para um citadino comum como aquele, portanto, era um pagamento generoso. Ele devia estar precisando demais encontrar aquele lugar. Furzey concordou.
Fez uma rota tortuosa. Moyles Court ficava em uma clareira logo abaixo da elevação que subia do vale do Avon para a charneca da Floresta. Essa parte do vale era bastante arborizada; portanto, não foi difícil para Furzey esticar a viagem para mais de três quilômetros, seguindo por trilhas que às vezes davam no mesmo lugar. Como o estranho não fazia nenhuma observação, Furzey concluiu que o senso de direção dele não era muito bom. Isso também lhe deu a chance de conhecê-lo melhor. Tinha vindo de longe? O homem foi evasivo. Qual era a sua ocupação?
— Sou padeiro — admitiu o acompanhante.
Um padeiro, de um lugar distante, disposto a pagar seis pence para encontrar Moyles Court. Esse homem, então, com quase toda a certeza, era um dissidente à procura daquela maldita Lisle. Furzey aguardou o momento oportuno para falar.
— O senhor procura uma mulher devota — aventurou-se, com uma voz piedosa, ao pegar a curva errada seguinte.
— O senhor acha?
— Acho. Se é dame Alice que procura.
— Ah. — O padeiro pareceu satisfeito. Seus pálidos olhos azuis brilharam esperançosos.
Furzey não tinha muita certeza aonde essa conversa levaria, mas uma coisa era certa: quanto mais informações conseguisse arrancar daquele homem, maior a chance de usá-las para lucrar. E o início de uma idéia começava a se formar em sua mente.
— Ela tem ajudado muita gente boa — continuou Furzey. Lembrou dos odiados Pride e mencionou os nomes de alguns dos conhecidos que tinham em Lymington. — Mas devo tomar cuidado com o que falo — acrescentou —, pois não sei quem pode ser o senhor.
Então o pobre tolo sorriu contente.
— Talvez me conheça, amigo — bradou. — O meu nome é Dunne, e estou vindo desde Warminster. Tenho uma mensagem para entregar a dome Alice.
Warminster, cerca de trinta e dois quilômetros a oeste de Sarum. Um longo caminho para um padeiro dissidente conduzir uma mensagem. Sua suspeita inicial começou a crescer. Esse sujeito pode ser mesmo útil.
— Por que nome devo chamá-lo? — quis saber ansioso o padeiro. Furzey hesitou. Não tinha a mínima intenção de fornecer seu nome àquele amigo provavelmente perigoso da maldita Lisle.
— Thomas, senhor. Apenas Thomas — respondeu, acrescentando cautelosamente: — Estes são tempos perigosos para os homens devotos.
— São mesmo, Thomas. Eu sei disso. — Os pálidos olhos azuis do padeiro lhe deram um olhar de terna compreensão.
Furzey conduziu-o por mais uns cem metros antes de observar baixinho:
— Se um homem precisa de abrigo, nestes tempos perigosos, eu diria que esse é um bom lugar.
Sim. Não havia dúvida nenhuma, o padeiro olhou-o agradecido.
— Acha mesmo?
— Acho. Louvado seja Deus—acresceu Furzey, piedoso. Os desvios já haviam se esgotado, mas ele já sabia tudo de que precisava. — Moyles Court fica logo adiante — apontou. Eram menos de quatrocentos metros. — Os seus assuntos e os da dame Alice pertencem aos dois, senhor; portanto, vou deixá-lo aqui. Mas posso perguntar se vai permanecer lá ou retornar?
— Retornarei em seguida, meu bom Thomas.
— Então, se precisar de um guia para levá-lo de volta ao caminho, sem ser visto, eu o esperarei, se assim desejar. — Com gratidão, o padeiro agradeceu e foi em frente.
William Furzey sentou-se em um toco de árvore. Não havia dúvida em sua mente sobre o que devia significar aquilo. O padeiro estava ajudando fugitivos. Caso contrário, por que teria vindo e logo voltaria daquele modo? Ele queria leválos até dame Alice. Sorriu consigo mesmo. Podia ter perdido o próprio Monmouth — e várias pessoas que ajudaram a encontrar Monmouth foram regiamente recompensadas —, mas, se os amigos do padeiro fossem de alguma importância, então certamente haveria algo naquilo para ele. A questão era como e onde encontrá-los. Não podia, logicamente, acompanhar o tal padeiro até a casa dele. Mas se os homens fossem trazidos para Moyles Court... Um sorriso abriu-se em seu rosto. Isso seria de mau agouro para a maldita dame Alice, não é mesmo?
Uma hora se passou antes de o padeiro voltar. Um olhar para o rosto dele foi o suficiente. Estava sorrindo contente.
— Encontrou dame Alice? — indagou Furzey.
— Encontrei, meu amigo. E falei para ela de sua bondade. Ficou curiosa em saber quem era, mas eu lhe disse que se tratava de um camarada comedido que se metia com os próprios assuntos e nada queria saber sobre os nossos.
— Por mim, fez muito bem, senhor.
Não se falaram durante algum tempo, mas depois de um quilômetro e meio o padeiro perguntou:
— Se eu voltar novamente, com os meus amigos, você nos levaria discretamente até Moyles Court?
— Com todo prazer — rebateu Furzey. Separaram-se perto de Fordingbridge.
— Encontre-me aqui então daqui a três dias, ao anoitecer — pediu o confiante padeiro ao se separarem. — Posso contar com você, Thomas? i
— Ah, sim — confirmou William. — Pode contar comigo.
Alice Lisle olhou para a mesa e depois novamente para a carta.
Ela e Betty tinham chegado a Moyles Court apenas uma hora antes de Dunne aparecer; por isso ficou bastante preocupada quando ele lhe entregou a carta. Talvez, refletia agora, não tivesse dado a atenção suficiente àquele assunto.
A carta era bem curta. Vinha da parte de um pastor presbiteriano altamente respeitado chamado Hicks, a quem ela conhecia superficialmente. Achava que se lembrava dele, quando esteve em Albion House anos atrás. Hicks perguntava se ela permitiria que ele e um amigo passassem uma noite lá, a caminho do leste.
Tratava-se de um pedido simples e normalmente ela não dava muita importância a isso. Ao perguntar a Dunne o que significava aquilo, ele respondeu que era apenas um mensageiro, mas que Hicks parecia um homem altamente respeitado. Portanto, ela combinou para chegarem lá na terça-feira, ou seja, três dias depois, e mandou que Dunne voltasse. Ficou imaginando quem seria esse tal de Thomas que indicara o caminho a Dunne, mas devia haver muitas pessoas na região que tinham amigos na comunidade de Lymington. O homem, obviamente, era um simpatizante.
Ao se dissipar a tarde, entretanto, ela começou a pensar melhor. Teria sido descuidada? Dunne viera de muito longe. E se esses homens fossem fugitivos? Dunne nada dissera a respeito, mas talvez quisesse apenas cumprir sua missão, possivelmente até mesmo livrá-los de suas mãos. Quanto ao tal de Thomas seria mesmo confiável? Quanto mais pensava naquilo, menos gostava e mais persignava-se. Um momento de fraqueza, deixar de se precaver, relaxar, enfadar-se. Toda criatura da Floresta sabia que não podia fazer isso.
Sentiu um medo repentino, um irromper de premência. Precisava livrar-se daquilo. Poderia mandar um mensageiro atrás de Dunne pela manhã. Admitindo-se, é claro, que ele tivesse voltado para Warminster e não para outro lugar qualquer. Valeria a pena tentar. Suspirou. Dormiria refletindo a respeito.
Contudo, mais cedo ou mais tarde cada criatura da Floresta acaba sendo culpada de descuido, e a pena para ela pode ser grave. Pela manhã, na tranqüila sombra de Moyles Court, ela disse a si mesma que estava se preocupando desmedidamente.
William Furzey não perdeu tempo. Assim que se separou de Dunne, continuou seguindo em direção ao norte. Era uma caminhada de pouco mais de seis quilômetros até Hale, mas ele não queria arriscar. Se, por um azar, o padeiro fosse apanhado e interrogado, Furzey não podia correr nenhum risco de ser acusado de cúmplice. Penruddock de Hale, portanto, era o seu primeiro objetivo.
Anoitecia quando chegou. O magistrado, prestes a ir para a cama, depois de um dia movimentado, não ficou nada contente ao ver o homem que parecia um nabo, mas assim que Furzey começou sua história ele foi todo ouvidos. Quando Furzey terminou, sua aparência era de aprovação.
— Fugitivos. Não tenho a menor dúvida — declarou, animado. — Fez muito bem em vir até aqui.
— Eu espero obter alguma vantagem com isso, sir— revelou William Furzey com franqueza. A princípio, tinha pensado em pechinchar, mas sabiamente concluiu que isso poderia irritar o magistrado.
— Certamente — concordou o outro com um gesto da cabeça. — Vai depender de quem são eles, é claro. Mas, se os capturarmos, cuidarei para que você não seja o perdedor. Tem a minha palavra. — Lançou um rápido olhar para Furzey. — É provável que você seja útil em um julgamento, entende?
— Sim, senhor. — Furzey entendeu. — O que for necessário.
— Hum. — Pessoalmente, o magistrado não ligava para esse tipo de assunto, mas sabia muito bem onde devia pisar. — Você falou — resumiu — que os conduzirá a Moyles Court, terça-feira à noite, e que dame Alice vai abrigá-los?
— Foi isso o que ele me disse, senhor.
Penruddock, o magistrado, meditou em silêncio por alguns momentos. Alice Lisle, pensou impiedosamente. Como a roda gira.
— Não conte para ninguém. Ninguém mesmo. Encontre-se com eles exatamente como o planejado. Você tem cavalo?
— Posso conseguir um.
— Venha correndo direto para mim assim que eles estiverem em Moyles Court. É capaz de fazer isso?
Furzey assentiu.
— Ótimo. Se quiser, pode dormir esta noite aqui no estábulo — ofereceu Penruddock gentilmente.
Naquela noite, antes de se deitar, o magistrado redigiu uma mensagem para ser levada ao primo, o coronel Thomas Penruddock de Comptom Chamberlayne, ao alvorecer do dia seguinte.
George Furzey olhou para William Furzey e sacudiu a cabeça, maravilhado.
— Seu cachorro — ofegou. — Seu cachorro esperto. Conte de novo. — E William Furzey repetiu tudo.
O magistrado o havia instruído para não contar a ninguém, mas William não incluiu o irmão; portanto, assim que pôde, no domingo, deixou o trabalho na fazenda, e atravessou a Floresta em direção a Oakley para contar a notícia. A alegria que ela causou em George Furzey era tudo o que William poderia ter desejado.
George não era um homem de muita imaginação. Não se preocupava em detalhes sobre o que poderia acontecer com Alice Lisle. Tudo o que ele sabia era que a mulher que trapaceara e humilhara a sua família ia levar o troco. Esse pensamento era tão imenso e tão belo que todos os outros se extinguiam diante dele, como as estrelas ante o sol nascente.
— Ela será presa, acho eu — disse William.
A idéia de que dame Alice seria levada à presença do magistrado e humilhada diante de toda a Floresta parecia a William a perfeita justiça divina: um tributo digno da memória do pai. E, ao imaginar a delícia disso, outra idéia lhe ocorreu, como o lampejo de um raio de sol matutino.
— Sabe de uma coisa? — sugeriu. — Podemos mandar Jim Pride também para lá. Se ele for encontrado em Moyles Court, terá muito o que explicar, não é mesmo? — Soltou uma risadinha. —Acho que a gente pode fazer isso, William. A gente pode mesmo fazer isso!
— Como vai conseguir, George? — perguntou o irmão.
— Não se preocupe. — George encontrava-se em um enlevo de prazer. Os Lisle e os Pride. Todos humilhados. Todos de uma só vez. — Isso é fácil, muito fácil. Não se preocupe.
Moyles Court era maior do que Albion House. Tinha um bom número de grandes chaminés de tijolos elevando-se em várias partes e um amplo pátio a céu aberto.
Estava assentada em uma clareira, com árvores por toda a volta, embora houvesse dois pequenos outeiros na inclinação que subia em direção à Floresta do lado oposto. Os campos principais da casa senhorial ficavam no leito do vale do Avon, não muito distante dali.
Betty estava parada no pátio quando a carta de Peter Albion lhe foi trazida na manhã de segunda-feira. O mensageiro que a entregou já tinha ido a Albion House e de lá fora enviado para Moyles Court.
A carta era curta. Os negócios de Peter em Kent tinham sido abreviados, e ele voltou para Londres apenas um dia após ter partido. Ficara chocado ao saber que Betty havia partido, pois tinha um assunto importante para discutir com ela. Iria encontrá-la pessoalmente e esperava chegar a Albion House na terçafeira à tarde.
Ao ler a carta, Betty sentiu o coração disparar. Não tinha a menor dúvida do que aquilo devia significar. Em sua mente, portanto, havia apenas uma pergunta: devia ou não contar à mãe antes de seguir para Albion House? Sabia que certamente os criados de Albion House enviariam Peter para Moyles Court. Ele estaria lá no entardecer de terça-feira. E, quaisquer que fossem os seus sentimentos, dame Alice não poderia mandá-lo embora. Estaria recebendo outras visitas naquela noite, não é mesmo? Mas, ao mesmo tempo, a idéia de ir se encontrar com ele a atraía.
George Furzey esperou até terça-feira para ir à casa de Jim Pride. Encontrou o subguarda-caça deixando o seu chalé de caça.
Jim não ficou particularmente feliz em vê-lo, mas foi cortês o suficiente ao receber seu recado:
— Dame Alice quer vê-lo em Moyles Court.
— Moyles Court? — Pride franziu a testa. — Só poderei ir lá à noite. Tenho muita coisa para fazer.
— Ela só quer que vá lá no fim da tarde. Disse que vai mesmo estar fora até o anoitecer, mas quer que você apareça depois disso. Disse que lamenta ter que pedir que vá lá tão tarde assim, mas é urgente. — Sentiu-se bastante contente ao falar isso.
— O que ela quer comigo? — quis saber o perplexo subguarda-caça.
— Não sei, como vou saber?
— Por que é você que me traz esse recado? — inquiriu Pride, com um vestígio de irritação.
— Por que eu? Porque eu estava passando por Albion House, é por isso. E o cavalariço me disse que precisava dar esse recado, mas estava atrasado, aí eu disse que faria isso por ele. Foi por isso. Só estou tentando ser prestativo, não estou? Há alguma coisa errada nisso?
Não. Não, concedeu Pride, não havia nada de errado com aquilo.
— Acho melhor você ir. Não quero que botem a culpa em mim, se você não aparecer.
— Eu irei — prometeu Pride.
— Então está bem — disse Furzey. — Eu já vou.
Era um entardecer quente quando William Furzey saiu cavalgando de Ringwood, onde pegara emprestado um cavalo com um ferreiro conhecido seu. Duas horas ainda se passariam antes do anoitecer; por isso ia bem devagar.
O rio Avon entre Ringwood e Fordingbridge é particularmente adorável. Em geral, à tardinha, quando os pescadores saem, há uma névoa mágica que perambula através de seus prados encharcados, como se o próprio silêncio se fundisse em uma forma úmida mas tangível. Os primeiros vestígios dessa névoa começavam a se elevar da água, enquanto Furzey seguia em direção ao norte através das estriadas projeções de sombras, tal como linhas de pescadores, na alameda.
Será que eles viriam? Esperava que sim, com toda a certeza. Ficou imaginando o quanto eles valeriam para as autoridades. Cinco libras, talvez? Dez? Mas e se eles fossem capturados no caminho? Era possível, mas lhe parecia improvável. Achava que as autoridades iam preferir agarrar todos juntos, com dame Alice, de quem não deviam mesmo gostar, em Moyles Court.
E cavalgava adiante muito feliz, portanto.
Naquele dia Stephen Pride sentia um pouco a idade, mas se mantinha alegre. Alguns incômodos e dores deviam ser esperados. Uma caminhada costumava aliviar a rigidez da perna. Era por causa de uma dor na perna, embora não quisesse admitir, que saíra naquela tarde para ir visitar o filho.
Jim Pride já tinha saído quando o pai chegou, mas a esposa dele e os filhos estavam em casa, e Stephen passou uma hora agradável brincando com os netos. O mais novo, um menino com quatro anos de idade, insistira para que o avô tentasse pegá-lo, o que deixara o velho Stephen um pouco mais cansado do que ele desejaria que a criança percebesse. Ficou grato quando a bondosa nora, com pena dele, chamou o menino um instante para dentro de casa, a fim de que o avô pudesse sentar-se sob a sombra de uma árvore e tirar uma soneca.
Jim voltou logo depois que ele acordou e lhe contou sobre o recado de dame Alice. Stephen não fazia mais idéia que o filho do que significava aquilo, mas concordou que, se dame Alice queria vê-lo, ele deveria ir lá com toda a certeza.
Por insistência deles, Stephen permaneceu com Jim e a esposa até a tardinha.
As sombras alongadas forneciam um agradável frescor sob o céu azul de agosto, enquanto Stephen Pride seguia seu caminho ao longo da margem da Charneca de Beaulieu, em direção a Oakley; e acabara, de passar pela trilha que levava à igreja de Boldre, quando avistou uma figura um pouco mais adiante. Tratava-se de uma mulher sozinha, a cavalo, praticamente imóvel, fitando a charneca, aparentemente sem notar sua aproximação. Somente quando ele chegou perto e ela virou-se para olhá-lo, percebeu que era Betty Lisle.
— Estou esperando meu primo Peter Albion — explicou, saudando-o com afeto.
Ela estivera em Albion House desde o início da tarde. Em vez de arriscar um confronto, decidira finalmente contar à mãe que ia viajar até lá; desse modo, poderia encontrar-se com Peter sem haver interferência, e voltaria com ele à noitinha para Moyles Court.
A mãe não fizera objeção à viagem, e ela havia chegado a Albion House a tempo; mas nem sinal de Peter. Durante toda a tarde esperou na casa, mas finalmente, sem poder mais suportar, mandou que os criados mantivessem o primo por lá se ele chegasse pela estrada de Lyndhurst e foi até a beira da charneca, observar, para o caso de ele cortar caminho por ali. Ficou contente em ver Stephen; pelo menos podia conversar com ele e afastar a mente de sua vigília.
Stephen interessou-se em ouvir sobre esse primo. Conhecia muito bem os Albion para saber imediatamente quem era Peter. Contou a Betty que até mesmo se lembrava de ter visto uma vez Francis, o avô do jovem, quando este ainda era menino.
— Pretendo voltar com ele para Moyles Court hoje no início da noite — disse ela. — Se não chegar logo, não sei o que fazer. Voltar sem ele, creio eu.
A seguir, Stephen contou-lhe do recado que dame Alice mandou para Jim. Isso a deixou intrigada.
— Já que minha mãe sabia que eu estava vindo nesta direção, ela poderia ter pedido a mim para dar o recado — observou. — E não vi nenhum cavalariço sair. Todavia — acrescentou —, suponho que isso tem a ver com os homens que irão à casa ao cair da tarde. — E falou brevemente para Pride sobre o estranho que aparecera em Moyles Court três dias antes,
Logo depois Pride continuou seguindo o seu caminho.
William Furzey aguardava calmamente. As sombras projetadas pelo sol cadente haviam se incorporado ao laranja dominante e, depois, ao amarronzado. A névoa se espalhava em manchas fantasmagóricas por todo o prado. O vale do Avon penetrava em um lento lusco-fusco de verão com as primeiras estrelas que surgiam no pálido céu turquesa sobre a Floresta.
Então ele os viu: três cavaleiros, aproximando-se silenciosamente através da névoa.
George Furzey não conseguia se conter. Era muito mais do que podia suportar. Colocou ambas as mãos entre os joelhos e, jubiloso, sacudiu-os de um lado para o outro, murmurando: ”Oh, Deus. Oh, Deus.”
No oriente, as primeiras débeis estrelas começavam a aparecer. Os cavaleiros já teriam se encontrado com William? Provavelmente. Jim Pride já teria partido para a sua infrutífera missão? Aconteceria a qualquer momento. Furzey estava tão animado que não conseguiu ficar dentro de sua cabana. Tinha saído para o cálido entardecer, encontrado um pé de bétula caído na beira da charneca e sentado ali, fitando enlevado a beleza do céu. Balançou-se novamente. ”Oh, Deus.”
E foi desse modo que Stephen Pride o encontrou, ao chegar, exausto, após o cansativo dia, de volta a Oakley.
— Ora — observou —, está parecendo muito alegre, para variar, George Furzey.
George Furzey não conseguia mesmo evitar. Toda a sua vida, parecera-lhe, a família Pride o olhara de cima para baixo. Mas isso nunca mais. Não depois daquela noite.
— Talvez eu esteja alegre. Acho que posso ficar alegre, se eu desejar — rebateu.
— Você pode ficar alegre o quanto quiser — disse Pride. Teria havido uma pitada de desprezo em sua voz?
Mesmo se não tivesse havido, foi o que Furzey escutou.
— Algumas pessoas riem pelas costas, Stephen Pride — falou, com um inconfundível tom de triunfo malicioso. — E não vai demorar para algumas fazerem isso.
— É? — Pride olhou-o com cuidado. — E o que está querendo dizer?
— Esqueça. Não quis dizer nada. Ou, se quis, não é da sua conta. Ou, se forl — Furzey pôs mais lenha na fogueira —, você descobrirá quando descobrir, não é mesmo?
E, bastante feliz com o seu bocado de alta diplomacia, Furzey lançou-lhe um olhar, que, mesmo sob a luz desbotada, dizia claramente: ”Você não perde por esperar.”
Stephen Pride deu de ombros e foi embora. Aquela inesperada agressão fez subitamente com que se sentisse muito cansado.
Ao chegar à porta de casa, sua mulher deu-lhe uma olhada e mandou que se sentasse imediatamente.
— Vou lhe trazer um caldo. Descanse um pouco — ordenou.
Ele se recostou e fechou os olhos. Talvez, pensou, devesse dormir alguns minutos. Mas em vez do sono viu passar pela mente os acontecimentos das últimas horas: a brincadeira com os netos, a conversa com Jim, o encontro com Betty; o estranho fato de ela nada saber sobre o recado que Furzey havia transmitido; os visitantes que iriam a Moyles Court naquela noite; o inusitado ar de triunfo de Furzey.
De repente, num sobressalto, sentou-se ereto, abalado — como se um raio tivesse passado com um grande estrondo através de seu cérebro. Um instante depois, uma fria onda de pânico encapelou-se dentro dele. Teve a plena e horrenda consciência.
— Meu Senhor Jesus —- gritou e levantou-se, ao mesmo tempo que a mulher corria aflita para perto dele. — Aquele demônio! — exclamou.
Não sabia o que significava exatamente aquilo, mas percebeu a sua forma. O recado que Furzey transmitiu devia ser falso. Era por isso que estava feliz da vida. Fizera Jim ir a Moyles Court, onde visitantes estavam sendo esperados. Sem dúvida, deviam ser dissidentes. Dissidentes? Fugitivos, melhor dizendo. Era isso mesmo. O instinto do homem da Floresta disse-lhe imediatamente que se tratava de uma armadilha.
— Vá pegar os pôneis — berrou, ao passar pela mulher, empurrando-a para o lado. — Não se preocupe — explicou, ao se examinar e lhe dar um beijo. — Eu não estou louco. Venha comigo.
No estábulo, enquanto selava ambos os pôneis com pressa e nervosismo, contou-lhe o que sabia.
— É melhor você levar o pônei menor. Vá à casa de Jim o mais depressa que puder. Se ele ainda não tiver saído, mande-o ficar em casa, mas não lhe diga por quê. Não quero que ele vá atrás de mim, está entendendo? Diga apenas que George Furzey cometeu um engano.
— E você vai fazer o quê?
— Vou alertar o pessoal em Albion House. Dizer para saírem, se ainda estiverem lá.
— E depois?
— Atravessarei a Floresta. Para interceptar Jim, caso você não o encontre em casa. Em seguida irei a Moyles Court.
— Oh, Stephen...
— Preciso fazer isso. Se for uma armadilha, isso significa que dame Alice...
Ela concordou. Não havia o que discutir. Minutos depois marido e mulher seguiam a meio galope pela beira da charneca em direção ao norte. O anoitecer avançava, mas apenas as estrelas seriam suficientes para aqueles dois, que conheciam cada palmo da Floresta. No ponto onde a trilha levava na direção de Albion House, Stephen Pride e a esposa de cinqüenta anos de idade pararam um instante e se beijaram, antes de seguirem caminhos separados.
— Deus o proteja — murmurou ela, ao virar para trás, com amor e medo no coração, e olhar a trilha escura entre as árvores por onde ele havia sumido.
O coronel Thomas Penruddock olhava para William Furzey sob a luz da vela do vestíbulo da casa do magistrado em Hale.
Embora parecesse senhor de si quando chegou, Furzey agora estava um pouco nervoso. Com os uniformes guarnecidos por alamares e faixas amarelas amarradas na cintura, as enormes botas de montaria com os canos dobrados para baixo, os largos cinturões de couro e espadas tinindo, o coronel e sua dúzia de soldados pareciam um verdadeiro exagero.
— Tem certeza que esses homens estão em Moyles Court? — exigiu saber o coronel Penruddock com severidade.
Mas, com relação a isso, Furzey parecia confiante.
— Estavam lá, quando eu os deixei — afirmou. — Isso é certo.
— Sairemos daqui à meia-noite — ordenou Penruddock ao seu pessoal. — Cercaremos a casa e avançaremos antes do raiar do dia. Essa é a melhor ocasião para pegá-los desprevenidos. — Dirigiu-se a Furzey. — Você permanecerá aqui até de manhã. —Tendo completado suas ordens, o coronel Penruddock deu boanoite ao primo, foi para os seus aposentos no andar de cima e deitou-se.
Alice Lisle. Era a terceira vez que ela entrava em sua vida. A primeira, quando assassinou o pai dele; a segunda, quando a encontrou com o rei; e, agora, envolvida com traidores. Esta vez certamente seria a última: a conclusão.
Retribuição. Não era apenas por causa do pai. Ela representava tudo o que ele odiava: aquela azeda aparência puritana, aquela hipocrisia sem senso de humor; os puritanos, parecia-lhe, acreditavam que o reino de Deus era obsequiado tão-somente pela cruel destruição de tudo o que era belo, cavalheiresco, galante. Alice Lisle, a seguidora de Cromwell, o regicida, o ladrão de propriedades alheias, o assassino. Era assim que ele a via. Como poderia ser de outro modo?
E, enquanto permanecia deitado ali, um coronel cercado por sua tropa, com toda a autoridade do reino a apoiá-lo, Thomas Penruddock percebia que, acima de tudo, estava ciente de seu poder. Na sua imaginação, a velha mulher má de Moyles Court não parecia abominável, mas diminuta e frágil. Como alguma velha raposa feroz que por muitos anos havia aterrorizado uma região, ela agora estava em declínio e toda a natureza prescrevia que ela morresse. Ele não ia destruir a mulher, disse a si mesmo, ia apenas, como se fazia com uma vela derretida, extingui-la com um sopro.
Peter Albion havia demorado mais tempo do que pretendia, e Betty estava quase para desistir, quando enfim, ao se iniciar a escuridão, ele chegou. Parecia cansado. Diante da sugestão de que naquela noite talvez fosse melhor cavalgarem através da Floresta até Moyles Court, ele pareceu desanimado; e Betty estava pensando no que fazer, quando Stephen Pride chegou.
— Achei que ainda estaria aqui — disse ele. — Tenho uma mensagem para você.
No caminho, ele pensara bastante. Se contasse a verdade a Betty, que a mãe dela corria perigo, receava que ela pudesse correr de volta para Moyles Court, não importasse o que alguém dissesse. Portanto, preparou uma mentira — não era muito boa, mas achava que podia funcionar.
— Acabo de enviar o cavalariço de volta à sua mãe. Encontrei-o na ponte de Boldre. Disse-lhe que estavam aqui. Ela mandou vocês ficarem. Não quer que atravessem a Floresta à noite.
O alívio evidente no rosto de Peter Albion revelou-lhe que não precisava dizer mais nada.
— Obrigada, Stephen. — Ela sorriu. — Não creio que o meu primo tenha algum desejo de cavalgar ainda mais no dia de hoje.
O jovem também sorriu, e Pride fez um gesto educado com a cabeça. Um belo rapaz, pensou ele. O homem certo para Betty. Parecia-lhe que Betty também pensava o mesmo.
— Bem, vou para casa — disse ele do modo mais descontraído que conseguiu e levou a montaria de volta para a alameda.
Um minuto depois avançava o mais rapidamente possível com o pônei, subindo a alameda em direção ao pequeno e tranqüilo vau. Pouco depois ele o tinha atravessado e ia veloz pela longa trilha que levava ao lado ocidental da charneca.
Não havia tempo a perder. Jim podia estar por ali, em algum lugar à frente dele. E, em Moyles Court, dame Alice provavelmente já havia recebido os visitantes. A armadilha já teria baixado? O mais provável era que isso ocorresse mais tarde da noite, deduziu. Essas coisas costumavam acontecer tarde da noite.
Seu coração batia depressa. Sentiu-se um pouco tonto ao deixar a margem ocidental da charneca perto de Setley. Já fazia mais de um ano desde que ele passara o dia e a noite correndo para lá e para cá daquela maneira. A exaustão física, porém, parecia ter-se evaporado. Estava nervoso demais e excitado demais para ficar cansado.
As estrelas já brilhavam intensamente. Decidiu atalhar direto para o norte, contornando Brockenhurst, e depois pegar a trilha que levava adiante por cima de Burley. Esse era o caminho que Jim teria feito. Incitou o pônei adiante. Graças a Deus, era um animalzinho robusto. Aquele pônei seria capaz de carregá-lo o dia todo... e a noite toda.
Contornou Brockenhurst. Adiante ficava uma parte da Floresta conhecida como Rhinefield. Uma lua em quarto crescente se elevava. Sua luz iluminava a clara areia com cascalho ao longo do caminho. Era como um rastro prateado de poeira de estrela atravessando a charneca.
Em uma outra ocasião seu coração se encheria de alegria com aquela visão — a charneca a céu aberto da Floresta sob a luz das estrelas, a Floresta que ele amava. Seu coração martelava. Ofegava no cálido ar de agosto. Os cascos do pônei iam batendo, batendo na trilha.
Havia algo ali, adiante dele. Sentiu-se meio esquisito. Algo pálido ali na charneca: gado, talvez. Não, era a lua. A lua estava na charneca. Sacudiu a cabeça para clareá-la. Então, um enorme clarão branco, como um raio, surgiu com um espantoso estrondo dentro de sua cabeça.
E, bem perto de Rhinefield, Stephen Pride, tendo sofrido um derrame, caiu sobre a suave calidez do chão da Floresta.
Alice Lisle parou diante da janela aberta e olhou para fora.
Acima das árvores, sobre a pequena elevação do lado oposto, o céu estrelado se anuviara como se tivesse sido abafado por um cobertor. Moyles Court estava quieta no silêncio que antecedia a alvorada.
Ninguém viera desde que os visitantes haviam chegado naquela noite. Não se surpreendera por Betty não ter retornado, pelo simples motivo de saber exatamente onde a filha se encontrava. Uma mensagem de Tryphena, no domingo, a alertara de que o jovem Sr. Albion chegara de volta a Londres mais cedo e que, já tendo ido à casa dela, certamente estaria a caminho da Floresta. A sugestão de Betty, de que precisava ir a Albion House, em nenhum momento iludira a mãe.
Não tentara impedi-la. Se o jovem Peter Albion estava tão determinado assim, e se a sua filha com vinte e quatro anos a enganara a fim de se encontrar com ele, era evidente que nada mais havia que ela pudesse fazer. Albion House, com toda a probabilidade, voltaria para os Albion. Era o destino. A despeito das reservas que lhe fazia, o jovem Peter era realmente muito melhor do que qualquer um dos maridos que as outras filhas tinham arranjado: mais determinado a ser bemsucedido, mais bem-nascido. Talvez resultasse do fato de estar de volta ao ambiente familiar da Floresta, mas agora lhe parecia que, se era isso que Betty queria, era inútil continuar resistindo.
Naquele instante, porém, surgiu um grito na escuridão. Homens se movimentavam lá fora. Houve uma batida na porta. Ela ouviu uma voz.
— Abram! Em nome do rei.
Mais batidas. Alice correu para o cômodo ao lado. Dunne e Hicks estavam ali.
— Acordem! — gritou. — Depressa. Precisam se esconder. — O outro homem, Nelthorpe, estava no quarto seguinte. Ela já o encontrou de pé, enfiando as botas.
Desceram correndo a escada de carvalho, todos os quatro, em meio à escuridão, os homens pisando tão ruidosamente com suas botas que era difícil crer que não estivessem sendo ouvidos em Ringwood.
— Os fundos — ela sibilou, seguindo em direção à cozinha. Mas, ao chegarem, puderam ver sombras do outro lado das janelas de lá. — Escondam-se da melhor forma que puderem — disse-lhes, e correu de volta para a escada. Ao subir, o coração batendo agitado, encontrou duas das criadas, já de pé, no patamar, aparentando lividez e medo. — Fechem as camas — cochichou, apontando para os dois quartos onde os homens haviam estado. —Não deixem vestígios. Rápido.
O martelar nas portas da frente e dos fundos, era cada vez mais alto. Mais um minuto, e começariam a derrubá-las. Ela correu novamente para baixo, pegou uma vela na mesa, onde a deixara na noite anterior, acendeu-a na incandescência do braseiro e seguiu para a porta. Inspirando fundo, girou a pesada chave e deslizou o enorme ferrolho de ferro. A última coisa em que pensou, antes de abrir a porta, foi que não devia demonstrar medo.
Thomas Penruddock olhou para baixo, em direção à mulher que se encontrava diante dele.
Ela estava de camisola, um xale cobrindo os ombros. O cabelo, quase todo gris, pendia solto. Mesmo à luz de vela, parecia pálida. Encarou-o.
— O que significa isto, senhor?
— Em nome do rei, madame, vamos revistar sua casa.
— Revistar minha casa, senhor? No meio da noite?
— Sim, madame. E nos deixará entrar.
Havia outros dois soldados enormes atrás do coronel, Alice percebeu então. Eles pareciam prestes a empurrá-la e entrar. Ela tentou aparentar calma.
Mas foi nesse momento que ela também percebeu o seu terrível erro. Se a tropa entrasse na casa, haveria alguma chance de não encontrar os homens? Se ela estivesse dormindo inocentemente, não haveria nenhum problema, mas o fato de estar tentando escondê-los sugeria culpa. O que devia fazer? O pânico a dominou: percebeu que a mão segurando a vela começara a tremer. Pelejou para se conter. Talvez conseguisse blefar. Era a sua única chance naquele momento.
— Com que autorização ousa invadir minha casa, senhor?
— Minha autorização é o nome do rei, madame.
— Mostre sua autorização, senhor — esbravejou, furiosa, embora não tivesse a menor idéia se era ou não necessário uma autorização —, ou vá embora. — Teria ele hesitado? Ela não tinha certeza. — Então — voltou a gritar —, vejo que não tem nenhuma. Portanto, não passam de reles invasores. — E começou a fechar a porta.
A bota de Penruddock estava no caminho. Um instante ou dois depois, os dois soldados passaram rudemente por ela. Em seguida, mais dois, saídos das sombras, entraram com pisadas fortes.
— Luzes — vozes bradaram. — Tragam luzes.
Não demoraram muito para encontrá-los. Além da cozinha havia um grande aposento, uma espécie de celeiro, conhecido como maltaria. Hicks, o pastor, que era um homem enorme e corpulento, e Dunne, o padeiro, tinham tentado se enterrar sob uma pilha de refugo que lá havia e foram arrastados para fora, e pareciam ridículos. Nelthorpe, o colega de Hicks, um sujeito alto e magro, tentara se esconder na chaminé da cozinha.
Penruddock dirigiu-se a eles sucintamente.
— Richard Nelthorpe, você já foi proscrito como rebelde; John Hicks, também é sabido que você esteve ao lado de Monmouth; James Dunne, você é cúmplice voluntário de ambos. Estão todos presos. Alice Lisle — acrescentou irritado —, está abrigando traidores.
— Estou dando abrigo a um pastor respeitado — retrucou com desdém.
— A traidores em fuga, madame, da rebelião de Monmouth.
— Não sei de nada disso, senhor — replicou.
— Um juiz e um júri decidirão isso. A senhora está presa.
— Eu? — Olhou para a própria camisola de dormir. — E que tipo de soldado é o senhor — perguntou com desprezo — que vem prender uma mulher durante a noite? — Ela o desafiou; desdenhou dele diante de sua tropa.
Como era estranho, pensou ele. Esperava encontrar uma bruxa velha e má; em vez disso, encontrara aquela mesma mulher arrogante e poderosa, que, apesar de uma ocasião como aquela, se dispunha a olhá-lo com altivez. Como havia acontecido antes, os anos pareceram avançar, e ele estava olhando para a terrível figura de vingança, que, se ele ainda estivesse vivo, voltaria a atacar o seu pobre pai. Enquanto ela o encarava com aqueles frios olhos cinza, ele era quase capaz de tremer. E, tomado pela surpresa, sentiu de repente, como um soco no estômago, toda a antiga dor da perda do pai que tanto amava. Para seu profundo assombro, percebeu que tinha se virado e se afastado.
Com tanta raiva quanto dor, saindo rapidamente para a escuridão, gritou para trás:
— Prendam todos.
Demorou alguns minutos antes de serem levados para o lado de fora. Ele não se incomodou em interferir. Quando saíram, viu que Alice continuava vestida apenas com a camisola. Também observou que um dos soldados, visivelmente, tinha se apropriado de um castiçal de prata e algumas toalhas de linho. Não se importou.
— Aonde estão nos levando? — berrou Dunne.
— Para a cadeia de Salisbury— respondeu ele, insensível. E lá se foram, com dame Alice, inconvenientemente, na garupa de um dos soldados.
Ele não devia ter permitido aquilo, pensou Thomas Penruddock, mas não ligava a mínima.
Em 24 de agosto do ano de Nosso Senhor de 1685 chegou uma grande cavalgada perto da cidade de Winchester. Cinco juizes, um bando de advogados, Jack Ketch, o carrasco oficial e altamente incompetente, xerifes, criados e batedores — todo o aparato necessário, no reino de Sua Majestade o rei Jaime II da Inglaterra, para enforcar, decapitar, queimar, açoitar ou transportar para as colônias os mais de mil e duzentos homens que tiveram a infelicidade de ser capturados depois de marcharem ao lado de Monmouth. Encabeçando essa delegação legal, como prometido, estava ninguém menos que o Ilustre Magistrado George Jeffreys, lorde presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
As sessões do tribunal que seriam realizadas em West Country, após executar trezentos e trinta e enviar oitocentos e cinqüenta para as plantações da América, ficariam conhecidas como Julgamento Sangrento; o juiz presidente entraria para a história da Inglaterra como Jeffreys Sangüinário. Mas, antes de ter início esse grandioso espetáculo, haveria uma sessão introdutória no grande saguão de Winchester Castle: o julgamento de Alice Lisle.
Ao olhar em volta a grande parede de pedra dos reis normandos e plantagenetas, Betty não pôde deixar de se impressionar com a antiga majestade do cenário. Uma suave luz vespertina filtrava-se pelas janelas ogivais para o espaço semelhante ao de uma igreja. Num tablado estavam instalados os cinco juizes com suas antigas togas escarlate e compridas perucas brancas; abaixo, os advogados e oficiais de justiça como um bando de velhas aves negras; diante deles, uma multidão. E, sozinha, vestida de cinza, sentada calmamente em uma cadeira de carvalho sobre um estrado, a mãe dela.
Em um local de tanta solenidade, pensou Betty, diante de homens de tanta veneração e instrução, a justiça certamente seria feita, e sua mãe — de acordo com o que Peter lhe explicara sobre a lei — sem dúvida nenhuma sairia em liberdade. Olhou de relance para Tryphena, que estava sentada a seu lado, e lhe deu um sorriso encorajador. Do outro lado, Peter apertava sua mão.
O caso a ser defendido era simples. Sua mãe abrigara três pessoas durante a noite. Um, o pobre Dunne, praticamente não existia; Hicks, o pregador, tinha sido acusado, mas ainda não fora condenado por traição; o terceiro, Nelthorpe, tinha sido proscrito.
— O caso é perigoso — havia explicado Peter —, porque envolve traição. Se você ajuda um assassino em fuga, é considerado um cúmplice, mas não é culpado do crime que ele cometeu. Com a alta traição, porém, é diferente. Se você presta qualquer ajuda a um traidor, é também culpado de traição. É por isso que sua mãe corre perigo. Entretanto — continuou —, o promotor terá que provar que ela sabia que esses homens tinham tomado parte na rebelião de Monmouth. Nelthorpe, ela nunca tinha visto e nada sabia a respeito dele. Além do mais, ele foi levado por um homem reconhecido como um reputado pastor, ou seja, Hicks. Portanto — expôs —, ela abrigou por uma noite um dissidente respeitável e um amigo... o tipo de coisa que fez várias vezes antes. Ela sabia que eram traidores. Não. A não ser que alguém consiga provar que tinha conhecimento disso, a maioria dos jurados lhe dará o benefício da dúvida. — Sorriu. — Eu afirmo que ela não cometeu nenhum crime.
— Depois que ela for inocentada — dissera Betty —, somente então poderemos comemorar.
Na mesma noite em que ele havia chegado à Floresta, pediu-a em casamento, e, se não fosse por causa da prisão, teriam contado a dame Alice na manhã seguinte. Depois disso ela lhe pediu que não falasse mais no assunto, enquanto a família estivesse de cabeça para baixo; mas, assim que aquele assunto terrível terminasse e as coisas voltassem ao normal, ela pretendia avisar à mãe e se casar o mais depressa possível. ”Por volta do Natal”, mencionou.
Durante as poucas horas seguintes, porém, precisava tirar Peter do pensamento. Precisava ver a mãe inocentada.
Corria o meio da tarde quando o julgamento começou.
As coisas começaram mansamente. Testemunhas disseram ter visto Hicks, o pastor, com as tropas de Monmouth. Dunne, o padeiro, foi chamado para descrever de que modo fora no sábado e na terça-feira a Moyles Court. Mas então algo estranho ocorreu. Em vez de interrogar Dunne, o promotor disse subitamente que desejava que o juiz Jeffreys fizesse as perguntas ao padeiro. Betty olhou para Peter, que apenas encolheu os ombros, surpreso.
A princípio, o juiz Jeffreys pareceu bastante gentil. Com o rosto largo e semelhante a uma caveira, curvado à frente, chamou Dunne de ”amigo” e lembrou a ele que devia tomar todo cuidado em dizer a verdade. Dunne, os pálidos olhos azuis refletindo esperança, começou sua história e produziu uma frase.
Mas em seguida, de imediato, o juiz Jeffreys o interrompeu.
— Toma cuidado, amigo. Começa novamente. Quando disseste mesmo que partiste? — Mais uma frase ou duas, e outra interrupção. —Assim o dizes? Eu sei mais do que imaginas. Como encontraste Moyles Court? t
— Com a ajuda de um guia chamado Thomas.
— Onde está ele? Que se levante.
Para espanto de Betty, William Furzey levantou-se. Então era ele o misterioso Thomas. Mas o que significava aquilo?
O juiz Jeffreys estava agora a todo vapor, sem parar por coisa alguma. Fazia uma pergunta a Dunne e, imediatamente, o reinquiria. Em questão de minutos ficou claro que este estava confuso. Tentando não incriminar Furzey, pois ainda não havia entendido que fora ele quem o denunciara, disse tolamente que não tinha sido ele quem os levara a segunda vez a Moyles Court, e logo se perdeu em um atoleiro de contradições.
— Ai de mim! — exclamou Jeffreys, com cruel sarcasmo. —Vamos, refresca um pouco a memória.
Enquanto os olhos pálidos do padeiro refletiam o seu crescente desespero, parecia a Betty que o juiz era como um gato brincando com um camundongo.
Cada vez mais confuso, Dunne se contradisse em um pequeno detalhe de algo que dissera antes.
Jeffreys deitou as garras.
— Infeliz! — Sua voz retumbou de tal forma que toda a sala do tribunal pareceu estremecer. — Tu achas que o Deus do céu não é um Deus da verdade? É somente pela Sua piedade que Ele não te envia imediatamente para o inferno! Meu Deus Jesus!
E durante dois minutos inteiros o juiz mais poderoso do reino, com o poder da vida e da morte nas mãos, esbravejou e bramiu com o padeiro, que passou a tremer tanto, tornando-se óbvio que nada mais poderia ser arrancado dele.
Betty estava lívida. Olhou para Peter.
Sua boca estava aberta de assombro. Mas inclinou-se e sussurrou no ouvido dela:
— Ele ainda não tem nenhuma evidência que possa condenar.
Furzey foi chamado, mas apenas brevemente, para relatar o que viu. Uma coisa que ele disse pareceu interessar Jeffreys.
— Declarou que Dunne lhe disse que essa dome Alice perguntou a ele se você sabia que assunto ele fora tratar?
— Isso mesmo.
Foi a vez de o pobre Dunne voltar a ser interrogado — se é que se poderia chamar assim tal procedimento. Pois o padeiro se encontrava em um tal estado de terror e confusão que mal conseguia ser coerente. Jeffreys exigiu saber qual era o assunto. Que assunto? O padeiro pareceu incerto. Por várias vezes o juiz investiu, berrou, praguejou. Dunne tartamudeou e finalmente ficou em silêncio. Durante longos minutos pareceu estar em uma espécie de transe.
A luz que vinha das janelas agora era mais tênue, e o grande salão, espectral. Um oficial de justiça acendeu uma vela.
Então, finalmente, Dunne pareceu se recuperar um pouco.
— O assunto, milorde?
— Bendito seja Deus! Seu vilão! Sim. O assunto.
— Referia-se a que o Sr. Hicks era um dissidente.
— Isso é tudo?
— Sim, milorde. Não há mais nada. Betty sentiu Peter tocar em seu braço.
— Nosso amigo Dunne derrotou esse juiz — cochichou ele. Mas não, ao que pareceu, sem uma luta.
— Mentiroso! Você pensa que pode caçoar de mim com uma impostura como essa? —Virou-se para o oficial. —Traga aquela vela. Segure a vela diante da face desavergonhada dele.
E o pobre Dunne, voltando a grasnar, berrou:
— Milorde, me diga o que quer que eu fale, pois os meus sentidos estão confusos. Betty observava horrorizada. Aquilo não era uma corte de justiça. Era um interrogatório. O que fariam a seguir? Torturar o padeiro em público? Deu uma olhada na direção da mãe.
E voltou a olhar, espantada.
Pois, no meio de tudo aquilo, dame Alice caíra no sono.
Não dormia. Não de verdade. Mas Alice tinha vivido demais, visto demais. Lembrava-se da Guerra Civil, do julgamento do rei Carlos, de tantos outros julgamentos, do destino do marido. Já sabia como aquela coisa terminaria.
Não demonstraria o seu receio. Ela estava com medo. Queria tremer; poderia ter gritado diante da terrível e cruel estupidez daquilo tudo. Mas não havia por quê. Sabia de tudo e não lhes daria a satisfação de verem-na demonstrar medo. Portanto, fechou os olhos.
Trouxeram o coronel Penruddock a seguir. Ele foi breve e factual. Disse de que modo encontrara os homens escondidos. Também disse que Furzey havia lhe contado que Dunne fizera uma insinuação de que os homens provavelmente eram rebeldes. Então levaram de volta o padeiro para a tribuna e perguntaram-lhe o que quis dizer com aquilo. Mas ele já gaguejava de tal forma que não fazia nenhum sentido. Nada tiraram dele.
Chamaram um dos soldados que estiveram na casa efetuando as prisões, e ele declarou que os homens eram obviamente rebeldes; mas o testemunho foi tão inútil que até mesmo o juiz logo acenou para que fosse embora.
Naquele momento, contudo, pareceu a dame Alice que teria uma pequena oportunidade. Fingindo acordar, encarou o soldado e bradou:
— Ora, milorde, esse homem roubou as minhas melhores toalhas de linho. Mas não adiantou. Jeffreys passou rapidamente para outras questões, até que
finalmente se dirigiu a Alice: o que, demandou com desdém, ela tinha a dizer em seu benefício?
Era bastante simples. Disse-lhe que tinha permanecido em Londres durante todo o tempo que durou a rebelião de Monmouth. Ele interrompeu essa declaração duas vezes. Ela não tinha nenhuma queixa do rei. Ele questionou isso com desprezo. Ela não fazia nenhuma idéia de que os visitantes estivessem envolvidos na rebelião. Até mesmo chamou uma testemunha que jurou que Nelthorpe, o prescrito, jamais pronunciara o nome dele para ela.
Mas o juiz Jeffreys sabia como lidar com aquilo.
— Já ouvimos o suficiente — berrou. — Levem embora essa testemunha. — Voltou-se outra vez, selvagemente, para Alice. — Tem mais alguma testemunha para chamar?
— Não, milorde.
— Muito bem. — Virou-se para os jurados. — Cavalheiros do júri... — iniciou.
— Há, milorde, uma questão de justiça. — Alice o interrompeu.
— Silêncio! — gritou. — Tarde demais.
Não havia evidentemente um caso sólido contra ela. Mas isso não detinha o fluxo do juiz Jeffreys. Lembrou ao júri que os Lisle eram regicidas, que dissidentes eram criminosos inatos, que a rebelião de Monmouth tinha sido horrível e que a moral de Monmouth era impura. Que tudo isso era igualmente um disparate e irrelevante, e não era, para o juiz, importante.
Somente no final dessa invectiva um dos jurados fez uma pergunta.
— Por favor, milorde — quis saber —, é crime receber Hicks, o pregador,: ele ainda não foi condenado, mas apenas acusado de traição?
— Um ponto vital da lei — cochichou Peter para Betty.
Realmente era essa a única questão legal levantada em todo o julgamento. Pois, pela lei inglesa, não se podia ser acusado de cúmplice se a pessoa a quem se ajudou tivesse sido meramente acusada, mas não condenada por traição. Era, claramente, uma coisa justa, uma vez que, caso contrário, um cúmplice poderia ser sentenciado por ajudar um homem que posteriormente fosse julgado inocente. Como Hicks ainda aguardava julgamento, ainda não era considerado traidor. O caso contra Alice, frágil como já se apresentava, cairia completamente por terra.
O lorde presidente do Supremo Tribunal de Justiça percebeu a armadilha.
— É tudo a mesma coisa — declarou afável. E a corte ficou em silêncio.
— É mentira — cochichou Peter. — Essa não é a lei.
— Diga alguma coisa — sussurrou Betty de volta.
Mas os quatro juizes ao lado de Jeffreys, e os advogados e os oficiais de justiça permaneceram todos calados.
Os jurados retornaram em meia hora. Declararam que ela era inocente.
O juiz Jeffreys recusou-se a aceitar o veredicto deles e mandou-os decidirem novamente.
Eles retornaram uma segunda vez e declararam que ela era inocente. Ele mandou-os de volta outra vez. Na terceira vez disseram a mesma coisa.
Então o juiz Jeffreys proferiu uma ameaça.
— Vilões — bradou —, ousam zombar desta corte? Não percebem que eu posso condenar cada um de vocês também por traição?
Eles voltaram uma quarta vez, depois disso, e a declararam culpada. Então o juiz Jeffreys sentenciou-a à fogueira.
O aposento não era grande, mas era limpo e iluminado. As barras na janela não eram muito visíveis. Ainda era de manhã. Pelo menos podiam ser gratos por essas pequenas mercês.
Dame Alice não morreria na fogueira. O bispo e o clero de Winchester haviam apelado imediatamente ao rei. Não queriam que tal coisa fosse feita em sua cidade-diocese. Além do mais, quando a notícia de tal julgamento absurdo se espalhou pela cidade e através da Floresta, ficaram temerosos de haver distúrbios. Naquele dia, portanto, à tarde, dame Lisle teria a sua cabeça decapitada.
Naquele momento apenas Betty e Tryphena estavam com ela. Os demais tinham todos ido embora: filhos e netos, despedira-se de todos eles. O aposento estava silencioso.
Peter encontrava-se em Londres. Betty não havia falado dele para a mãe e estranhamente não pensava tanto nele. Talvez, se tivessem se conhecido há mais tempo, ela o quisesse ali para lhe dar apoio. Mas, ao contrário, ela estivera tão envolvida com a própria família e com o terrível assunto em questão que ele parecia derivar para longe em sua mente, como um visitante atrás do qual, após a partida, a porta se tivesse fechado.
— Peter Albion. — Foi sua mãe quem pronunciou as palavras, e Betty olhou-a, surpresa. Dame Alice sorriu. — Eu não queria falar sobre ele com os outros presentes. — Olhou para Betty, pensativa. —Você ainda quer se casar com ele?
Na verdade, ela nunca confessara que queria, mas agora não havia tempo para se esquivar da verdade.
— Não sei — respondeu com honestidade.
A mãe aquiesceu lentamente. Tryphena, a face estreita olhando para cima, de repente pareceu querer dizer alguma coisa, mas Alice interpôs-se.
— Faço uma idéia dele melhor do que antes — falou com firmeza. — Esse julgamento foi muito bom para ele.
— Mas não passou de um escárnio. Um absurdo. Não houve justiça nenhuma — aparteou Tryphena.
— E por isso que foi tão bom para ele — disse Alice, serena. — Eu o achava muito arrogante. Agora ele viu que até mesmo a lei pode ser distorcida, de acordo com a necessidade. Ele está mais humilde.
— Há — Betty hesitou, olhou para a mãe e para a irmã, levantou levemente os ombros — mais uma coisa.
— Diga-me.
Então Betty discorreu sobre o instante, durante o julgamento, quando Jeffreys, de um modo tão flagrante, induzira o júri a erro e como Peter lhe dissera que o juiz tinha mentido.
— Não era a lei. E eu sussurrei, pedindo que ele falasse alguma coisa.
— Você queria que ele se levantasse e contradissesse o juiz?
— Bem... — Era difícil de afirmar, mas ela sabia que posteriormente havia pensado naquilo e de alguma forma a conduta dele lhe parecera... insatisfatória.
— Os outros juizes nada disseram. Os advogados nada disseram. Você nada disse — lembrou-lhe a mãe, com um toque de ironia.
— Eu sei. Lamento muito.
— Não seja tola, menina. O que estava querendo era que o homem que quer se casar com você provasse que não é menos do que perfeito. Ele decidiu não ser heróico. — Sacudiu a cabeça e suspirou. — Não caia na armadilha de sair à procura de um marido perfeito. Mulheres na sua idade costumam fazer isso. Você jamais o encontrará. Além do mais, leve em consideração, minha menina, que se um marido fosse perfeito, você também teria que ser perfeita.
— Mas...
— Viu nisso um momento de covardia?
— Sim. Acho que sim.
— Pois eu o chamo de discrição.
— Eu sei. Mas... — Betty não sabia como explicar o silêncio que se abatera sobre Peter naquele momento no tribunal. Não tanto pelo que ele havia feito, mas pelo discernimento que ela subitamente tivera naquele instante, pela primeira vez, da natureza íntima de Peter. Havia, por trás de tudo que dizia, uma prudência, uma condescendência, uma predisposição à conciliação. — Trata-se de algo — disse, incerta — da natureza dele...
— Graças a Deus — suspirou Alice. — Talvez ele sobreviva.
— Mas o meu pai não condescendia. Ele fazia o que era certo.
— Contra a minha vontade. Para ir mais longe em sua própria ambição. E o seu pai estava do lado dos vencedores. Isso torna os homens mais corajosos. Até, é claro, ele perder e ter que fugir.
— Mas o que é o certo e o que é o errado, mamãe? Não são importantes.
— Ah, sim, menina. Claro que são. Isso não está em dúvida. Mas há outra coisa igualmente importante. E, enquanto envelhecia, perguntava-me se não era mais importante.
— E o que é?
— A dádiva de Deus a Salomão, Betty. Sabedoria.
— Ah, entendo.
— Não se case com Peter, a não ser que ambos tenham um pouco de sabedoria. — A mãe lhe sorriu ternamente. — Você se surpreenderá ao ver o quanto é fácil ser boa, se for sábia.
— Você deve ser muito sábia, mamãe. Alice riu baixinho.
— Que felicidade a minha, já que estou para perder a cabeça esta tarde. Depois disso, nenhuma delas disse nada por algum tempo, cada qual sentada em silêncio com os próprios pensamentos.
Finalmente, não foi Betty nem a mãe quem falou, mas Tryphena.
— Dizem que — observou ela, pensativa — depois que uma cabeça é cortada a vida não acaba imediatamente, mas a cabeça continua consciente por um ou dois momentos. Ela pode piscar ou até mesmo tentar falar.
O comentário foi recebido com silêncio.
— Obrigada, meu bem — disse Alice em voz baixa, após um intervalo. — Está sendo um grande conforto para mim.
Um outro silêncio mais curto decorreu antes de Alice se levantar.
— Já estou pronta para encerrar minha vida, minhas queridas filhas, pois nada mais tenho a dizer. Deixem-me abraçá-las e depois vão embora. Creio que estou um pouco cansada.
Prepararam o patíbulo na antiga praça da feira de Winchester. Metade da população da cidade se reunira lá e também havia muita gente da Floresta. Os Pride estavam presentes. Como também os dois irmãos Furzey, embora os Pride os ignorassem por completo.
Ela parecia pálida e menor do que a multidão imaginara, quando a levaram para fora. O cabelo, apenas alguns fios vermelhos restantes no gris, fora levantado para o alto da cabeça e amarrado, deixando o pescoço nu parecendo fino e um tanto esquelético. Não haveria um discurso na ocasião, pois ela não desejava fazê-lo.
O fato era que Alice se encontrava num estado de atordoamento. Poucos minutos antes, com um enorme soldado elevando-se de cada lado, ela sentira um medo intenso. Mas agora, como um animal que ao final de uma longa perseguição percebe que nada mais pode fazer e que a caçada desesperada se encerrou, ela cedera, enfim, à resignação. Sentia-se mole e entorpecida e só queria que aquilo acabasse.
Mal avistou os rostos ao ser conduzida. Não viu Betty, nem os Pride, nem os Furzey. Não percebeu, a alguma distância, Thomas Penruddock, a expressão triste e grave, sentado em seu cavalo.
Viu o cepo, ao ser ajudada a se ajoelhar diante dele, mas sequer reparou no machado. Viu as tábuas pregadas toscamente, logo abaixo do cepo, ao esticar o pescoço sobre ele. E imaginou que haveria uma forte ferroada, um golpe que trituraria os ossos do pescoço quando o machado descesse.
O machado desceu, e ela teve consciência do enorme baque surdo.
Deve ter sido um dia de verão, quando eles caminharam pela alameda e viraram na trilha para o interior da mata. O sol iluminava obliquamente a treliça verde-clara das copas; os rebentos espalhavam suas folhas como rastros de vapor pela vegetação rasteira; os pássaros cantavam. Ela estava tão contente que começou a saltitar; e seu pai lhe segurava a mão.
Albion Park
1794
Não poderia haver dúvida, dúvida nenhuma: grandes coisas estavam em andamento em Lymington naqueles dias — aliás, em toda a Floresta.
— E quando eu penso — disse a Sra. Grockleton ao marido —, quando eu penso no Sr. Morant, de Brockenhurst Park, com sei lá quantos milhares por ano, e no Sr. Drummond, agora em Cadland, e na senhorita... — Por um instante a memória falhou.
— Srta. Albion?
— Ah, sim, decerto, a Srta. Albion, que deve ter uma grande herança...
Era sem dúvida parte do plano divino que, tendo sido dotada de um insaciável desejo de escalar na sociedade, a Sra. Grockleton também se tornasse distraída. Apenas uma semana antes, ao apresentar os filhos a um pastor visitante, ela lhe dissera que eram cinco, e apontara-os, declinando seus nomes, até o marido delicadamente lembrá-la de que eram seis, levando-a a exclamar:
— Ora, mas é a pura verdade! Eis o querido pequeno Johnny. Quase me esquecia dele.
Sua ambição, como a desatenção, era certamente sem malícia. Tratava-se, para ela, de um pequeno degrau que a alçava a um humilde paraíso. E isso acarretava, contudo, certas pequenas peculiaridades. Fosse porque achava essa coisa uma espécie de acuidade, ou fosse por supor revelar as suas próprias raízes em algum berço de bom nascimento na Antigüidade, ela gostava de usar expressões e exclamações que soavam a tempos de amanho. De vez em quando as escolhia e as usava durante vários anos antes de trocá-las por outras. Nessa ocasião, se desejasse comunicar algo de particular significado, dizia: ”A mim me parece...” Ou, se quebrasse uma xícara, ou contasse um fato engraçado sobre um vigário que se embebedou, concluía: ”Cáspite.” Expressões tão datadas que se poderia supor que ela tivesse estado presente na corte do próprio rei folgazão.
Também era a mestra ou pelo menos partidária do olhar significativo. Ela fitava você com os olhos castanho-escuros e lhe lançava um olhar de tal significado malicioso que, mesmo se não fizesse idéia do que ele queria dizer, se sentia um privilegiado. Quando o olhar era acompanhado do ”A mim me parece...”, você podia estar certo de que teria acesso a algo, bem possivelmente um segredo de Estado.
E, quando se levava em conta que ela era filha de um dono de armarinho de Bristol, e o marido, um funcionário aduaneiro, essas maravilhas sociais somente podiam ser descritas como um triunfo do espírito humano.
A Sra. Grockleton tinha altura mediana, mas com uma excelente ostentação de cabelo empoado. O marido era alto e magro, e as mãos, curiosamente, pareciam garras. A intenção da Sra. Grockleton, a qual pretendia alcançar o mais depressa possível, era elevar Lymington à condição de um centro social, para rivalizar com Bath. E então exercer o poder sobre ele.
Samuel Grockleton gemia internamente. Não era fácil para um homem saber que a esposa galopava incessantemente na direção da própria ruína social, principalmente porque ele mesmo, embora não fosse sua culpa, devia ser a causa do desastre.
— Não deve esquecer a posição que temos na sociedade, Sra. Grockleton — observava ele. — E, dada a minha função, não devemos colocar as nossas esperanças alto demais.
— Sua posição é muito respeitável, Sr. Grockleton. Bastante nobre.
— Respeitável, sim.
— Ora, Sr. Grockleton, eu afirmo que tem granjeado grande estima e afeição. Todo mundo me diz isso.
— Vizinhos nem sempre são sinceros.
— Oh, peje-se, Sr. Grockleton — disse a esposa, na galhofa. E um instante
depois lá estava ela novamente explicando os seus planos para o futuro.
Podia-se dizer o que se quisesse sobre a Sra. Grockleton, mas jamais que ela era inativa. Ainda não tinha passado um mês em Lymington, quando percebeu que a cidade carecia de uma academia para jovens damas; e, como havia um local disponível na grande casa de tijolos, bem ao lado da sua, que ficava pouco depois da igreja, no topo da High Street, convenceu o marido a alugá-lo e ali montou o seu estabelecimento.
Era bastante habilidosa. Primeiro, garantiu a presença da filha do prefeito e da melhor amiga desta, cujo pai, um advogado, pertencia a uma família fundiária do condado vizinho. A seguir foi atrás dos Totton. Eles viviam na época em uma bela casa afastada da cidade. Embora o Sr. Totton estivesse obviamente envolvido com o comércio da cidade, sua irmã se casara com o velho Sr. Albion, de Albion House; desse modo, os jovens Totton e a Srta. Albion eram primos. Edward Totton foi educado em Oxford. Quando Louisa Totton foi laçada, portanto, a Sra. Grockleton presumiu, com razoável segurança, que isso havia arremessado a academia na esfera da elite local. No vértice das famílias mercantes havia alguém mais, chegado recentemente à cidade: o Sr. St. Barbe dedicava-se ao comércio de secos e molhados, sal e carvão; tratava-se, porém, de um homem mais cavalheiresco e filantropo, um pilar da comunidade. Uma das filhas de St. Barbe foi devidamente conquistada. Em poucos meses, permitindo que algumas jovens comparecessem a apenas poucas lições, e outras, para uma maior permanência como pensionistas, a Sra. Grockleton conseguiu arrebanhar quase vinte mocinhas para o seu curral acadêmico,
A academia tinha duas características das quais ela se orgulhava em particular. Ensinava francês, que ela mesma lecionava. Adquirira essa façanha de uma forma bastante humilde, como funcionária de uma modista francesa em Bristol, mas a influência dela certamente solidificava as pretensões da Sra. Grockleton como autoridade social em Lymington. E, como o domínio do francês seria indubitavelmente um trunfo para qualquer filha de mercador de Lymington que quisesse brilhar nas grandes casas de Londres ou nas cortes da Europa, seguramente era um incentivo para que elas também pudessem praticar com os charmosos jovens oficiais franceses que acabavam de ser estacionados na cidade.
A segunda era a aula de artes. O reverendo William Gilpin não tinha sido apenas o amado e respeitado vigário de Boldre por duas décadas; era também um desenhista notável, que de vez em quando vendia seus desenhos e telas em benefício da caridade. A Sra. Grockleton havia comprado duas telas, e pouco depois, quando o Sr. Gilpin compareceu para entregar prêmios às alunas da academia, ficou pasmado ao descobrir que era o seu próprio trabalho que as jovens damas tinham sido instruídas a imitar ou mesmo copiar. O vigário não era tolo, mas depois disso foi difícil recusar o convite para fazer uma palestra e dar aulas uma vez por mês na academia; e de fato ele gostava muito.
E assim a academia da Sra. Grockleton cresceu. Seu crescimento, tanto quanto a Sra. Grockleton conseguia administrar, tinha a forma de uma espiral — começando com as melhores famílias da cidade, varrendo em volta aquelas cuja nobreza as havia levado para os arredores e, finalmente, escancarando ainda mais o círculo, como um grande e sinuoso caramujo, esperava sorver mocinhas até mesmo das distantes casas senhoriais dos bem-nascidos para o vórtice do seu estabelecimento. Por conseguinte, a Srta. FannyAlbion já se juntara à prima Louisa Totton para as aulas de francês — um triunfo que causara à caçadora acadêmica uma profunda satisfação — e sem dúvida haveria outras. A única família sobre a qual alimentava esperanças, mas que até então se esquivara dela, era a Burrard.
Os Burrard tinham enorme importância em Lymington na ocasião. Enquanto os Totton haviam ficado, como sempre estiveram, no topo da cidade, os mais ousados e agora muito mais ricos Burrard já haviam, tempos atrás, adquirido uma propriedade rural chamada Walhampton, que ficava do outro lado do rio de Lymington. Suas gerações de casamentos com famílias nobres, como os Button, haviam firmado os Burrard nessa classe. Mas a cidade de Lymington era a sua base de operações, e eles controlavam a política do lugar. Ela ainda não conseguira passar dos portões do parque dos Burrard. Mas tinha certeza de que um dia conseguiria isso. Aliás, se todas as suas expectativas se concretizassem, seria inevitável que tal acontecesse.
Pois a escola estava apenas começando. Seus planos para Lymington eram muito mais ambiciosos. ”Posso até ver, Sr. Grockleton”, declarara. E realmente podia mesmo. No monte que se elevava acima de Pennington Marshes e o mar, haveria fileiras de elegantes casas e vilas em estilo georgiano: com vasto suprimento de argila, New Forest já ostentava um grande número de florescentes olarias; mas, em sua imaginação, ela só via pedra, como as das casas de Bath. Talvez, refletia, estuque pintado de branco resolvesse. As antigas casas medievais ao longo da High Street, embora ainda estruturalmente intactas, já tinham recebido quadradas fachadas georgianas. Quaisquer frontões medievais remanescentes, deliberava, podiam ser rapidamente cobertos. A modesta casa de banhos perto da praia seria transformada em algo mais como o balneário romano no grande spa do oeste. O atual Salão de Reuniões, ao lado da Angel Inn, seria logicamente bastante inadequada para a nova estação de veraneio. Algo novo, clássico e esplêndido seria necessário no topo da colina, supunha ela, bem próximo à sua própria casa. Bem, na ocasião talvez ela já estivesse envolvida em algo mais grandioso.
E havia o teatro. Não era tão ruim. Casas de espetáculos semelhantes haviam sido construídas em Sarum e outras cidades do lado ocidental. Ele tinha uma modesta platéia com bancos de madeira para as classes mais pobres, uma fila de camarotes para os bem-nascidos e, acima, uma galeria com lugares mais baratos. Durante a temporada, de julho a outubro, podia-se ouvir Shakespeare ou uma das comédias do Sr. Sheridan, além de um variado repertório de melodramas e tragédias. O teatro de Lymington costumava dar um jeito de oferecer uma ou duas peças com tempero náutico. Sem dúvida, assim que a cidade se tornasse requintada, o teatro poderia ser redecorado. A única tristeza da Sra. Grockleton era o fato de ele estar muito perto da capela batista, a qual, no que lhe dizia respeito, poderia se mudar para bem longe da vista do público elegante.
Não, a única queixa que ela tinha da cidade ficava na praia propriamente dita. Aquelas salinas, com suas pequenas fornalhas e bombas de vento imundas, e as docas, para onde os navios provenientes da setentrional Newcastle levavam carvão — carvão entre muitas outras coisas! — para alimentar as fornalhas: algo tinha que ser feito a respeito. Os tanques cristalizadores ainda podiam dar lucro aos Totton, mas se o mundo elegante fosse banhar-se ali, as salinas teriam de sair.
Sua visão seria apenas de uma fantasia só dela? Não inteiramente. New Forest, afinal de contas, era um lugar com afinidades reais. Durante vinte anos, o irmão do rei, o duque de Gloucester, fora o administrador da Floresta; e, como a esposa dele não era bem-vinda na corte, ele quase sempre permanecia em Lyndhurst. O príncipe de Gales também costumava permanecer na Floresta. Mas a ambição da Sra. Grockleton extrapolava esse raciocínio.
Na grande tranqüilidade que até então vinha abençoando a Inglaterra georgiana por gerações, a própria sociedade foi se transformando. Um florescente império comercial fazia a ilha-reino gozar de uma nova opulência. Embora os confinamentos de terrenos e os novos métodos de produção tivessem acabado com o meio de vida tradicional de alguns camponeses lavradores, os proprietários de terras haviam prosperado. Em Londres e em um punhado das grandes cidades que pontilhavam as vastas extensões da Inglaterra rural, os especuladores construíam elegantes quarteirões georgianos. As pessoas estavam se mudando. Até mesmo as grandes vastidões a céu aberto da Floresta já eram atravessadas por uma estrada pavimentada com cobrança de pedágio — o primeiro retorno a tal civilizado sistema de transporte desde a era romana. Como romanos modernos que eram, os membros das elegantes classes inglesas perseguiam a saúde e o lazer. Em West Country, a antiga estação de águas romana de Bath fora revivida, e uma graciosa estação de veraneio construída em volta de suas fontes de água mineral. Mais recentemente, a corte real de Jorge III, na crença de que pudesse ajudar a curar os acessos de loucura do rei, tornou-se interessada nos benefícios não apenas das águas minerais como também nos do mar. Por várias vezes, em anos recentes, o rei Jorge III tinha ido a New Forest, a caminho do pequeno resort à beira-mar de Weymouth, cerca de sessenta e cinco quilômetros a oeste ao longo do litoral. Ficara com os Drummond e os Burrard, e visitara a ilha de Wight.
— Por que ir na lonjura de Weymouth, se Lymington fica muito mais perto e com certeza é igualmente saudável? — declarou a Sra. Grockleton. Havia pessoas que vinham se banhar em Lymington, e algumas delas bastante respeitáveis. Se o rei e sua corte viessem regularmente, o mundo elegante seguramente o imitaria. — E então — explicou ao silencioso marido — nossa posição, junto com a academia e os meus outros planos, estaria assegurada. Pois, como sabe, já estaríamos estabelecidos. E eles viriam a nós. — Deu-lhe um sorriso encantador. — Eu ainda não lhe falei, Sr. Grockleton, da minha idéia mais recente.
— E qual é ela?
— Ora, vamos dar um baile!
— Um baile? Dança?
— De fato. No Salão de Reuniões. Veja, Sr. Grockleton, com as nossas moças da academia, as famílias e os amigos delas... não entende? Todos virão! — Ela não revelou, mas secretamente já incluíra os Burrard nesse total.
— Talvez — disse sabiamente o Sr. Grockleton — ninguém venha.
— Ora, peje-se, Sr. Grockleton — voltou a exclamar a Sra. Grockleton, mas desta vez com alguma aspereza.
Contudo, o Sr. Grockleton tinha um motivo para esse temor — algo que ele sabia, mas ela não. Infelizmente não podia lhe contar o que era.
Seria de supor que na Inglaterra georgiana a era dos milagres houvesse passado. Mas, naquele exato momento, quando a Sra. Grockleton ralhava com o marido por causa de sua falta de fé em Lymington — ou seja, às onze horas daquela manhã de primavera —, a poucos quilômetros de distância, na propriedade rural de Beaulieu, uma espécie de milagre estava em andamento. Acontecia no movimentado local perto do rio Beaulieu conhecido por Buckler’s Hard.
Ali, sob o luminoso sol matutino, um homem tornava-se invisível.
O Hard — o nome significava uma ladeira na margem por onde os barcos podiam ser arrastados para cima — era um belo cenário. Quando o rio fazia uma curva para oeste, largas ribanceiras criavam suaves declives, com cerca de duzentos metros de comprimento, em direção à água. Situado a pouco mais de três quilômetros rio abaixo da antiga abadia e à mesma distância rio acima das águas do Solent, tratava-se de um lugar tranqüilo, abrigado das predominantes brisas marinhas. Outrora, há muito tempo, na época dos monges, um furibundo prior com mãos como garras quase fora às vias de fato com alguns pescadores na dobra do rio mais acima. Mas os seus gritos tinham sido uma das poucas coisas a perturbar o habitual silêncio da curva abrigada e dos pântanos repletos de juncos do lado oposto. A abadia fora desfeita, os monges partiram; Armada, Guerra Civil, Cromwell, o monarca folgazão, tudo tinha aparecido e sumido; mas ninguém se importara com aquele lugar tranqüilo. Até cerca de setenta anos antes.
O motivo foi o açúcar.
De todas as oportunidades de acumular riqueza no século XVIII, nada chegou perto das fortunas propiciadas pelo açúcar. O lobby dos mercadores de açúcar junto ao Parlamento era poderoso. O homem mais rico da Inglaterra, que havia adquirido uma propriedade nobre a oeste de Sarum, era herdeiro de uma fortuna acumulada com o açúcar. Os Morant, que haviam comprado Brockenhurst e outras propriedades em New Forest, também faziam parte da dinastia açucareira.
As terras da antiga abadia de Beaulieu haviam passado, por casamento, dos Wriothesley para a família Montagu, e o duque de Montagu, como muitos dos grandes aristocratas ingleses do século XVIII, era um empreendedor. Apesar de a abadia em ruínas não ser um lugar onde passasse muito tempo, o duque sabia que a dupla maré alta do Solent, que se estendia até o rio de Beaulieu, tornava-o apropriado para a navegação, e ele ainda possuía os antigos direitos da abadia sobre o rio. ”Se a coroa me der a concessão para fundar um povoamento nas índias Ocidentais”, decidiu, ”não só iniciarei uma plantação de cana-de-açúcar, como também poderei trazer o açúcar para o meu próprio porto em Beaulieu.” Enquanto as ribanceiras do rio eram na maioria lamacentas, na curva abrigada, eram formadas por cascalho, perfeitas para se construir nelas. Logo foi preparado o plano de uma pequena mas elegante cidade portuária. ”Nós a chamaremos de MontaguTown”, declarou o duque.
Isso, infelizmente, foi até onde a coisa chegou. Uma flotilha particular foi enviada para as índias Ocidentais, com colonos, gado e até mesmo casas pré-fabricadas. O duque gastou nisso dez mil libras. O povoamento foi assentado. Mas os franceses chutaram todos de lá. Nada mais podia ser feito. Em Montagu Town, as ribanceiras foram aplanadas e niveladas, e delineado o trajeto da rua principal em direção ao rio; mas foi tudo. O lugar retornou, por mais vinte anos, ao silêncio.
Mas estava pronto para uso comercial e pouco antes de meados do século, com o ativo estímulo do duque, encontrou-se uma utilização.
O Império Britânico estava crescendo. Conflitos com as potências rivais, França e Espanha, não podiam ser evitados. O exército britânico era insignificante, mas sua marinha dominava os mares; sempre que havia uma ameaça de conflito, portanto, mais navios tinham de ser construídos, e quase sempre, na ocasião, a construção dos cascos era entregue a empreiteiros particulares. O local aplanado do rio de Beaulieu era o lugar perfeito. Para os navios reais, havia a madeira de New Forest do rei ali perto; para os navios mercantes, havia os carvalhos das propriedades privadas em toda a volta. Uma metalúrgica, localizada no antigo viveiro de peixes monástico de Sowley Pond, fornecia o ferro necessário. Bucklers Hard tornou-se um estaleiro.
Não era muito grande, mas sempre tinha movimento. Havia uma crescente necessidade de navios mercantes. A construção naval crescia em surtos, cada vez que havia um conflito em algum lugar: uma disputa de dinastias européias que afetavam as colônias; a Guerra de Independência americana; e, na ocasião, depois da perigosa questão da Revolução Francesa, uma ameaça a cada monarquia assentada na Europa, a Inglaterra viu-se envolvida em uma guerra contra a França.
De cada lado da larga e gramada rua que descia para a água havia uma fileira de chalés de tijolos vermelhos. Atrás deles, lotes de quintas, e mais além cabanas e estábulos dispersos. À beira da água, formando ângulo com a ribanceira, havia cinco rampas de lançamento, onde os navios eram construídos. Por todo o centro da rua e por lugares em volta, havia enormes pilhas de madeira em vários formatos e tamanhos. Os homens que trabalhavam nos navios ficavam, em sua maioria, instalados a um quilômetro e meio ou dois de distância, em alojamentos na própria aldeia de Beaulieu ou na margem oeste da propriedade de Montagu, no novo e disperso povoamento formado por cabanas conhecido como Beaulieu Rails. No próprio Buckler’s Hard ficava a casa do mestre-de-obras, uma oficina de ferreiro, um armazém, duas pequenas estalagens, um remendão e chalés para os carpinteiros navais mais graduados.
O trabalho começou cedo naquela luminosa manhã de primavera. Uma lépida coluna de fumaça elevava-se da forja do ferreiro. O Sr. Henry Adams, proprietário do negócio, oitenta anos, mas ainda supervisionando o trabalho, tinha acabado de sair de sua casa de mestre-de-obras; os dois filhos estavam a seu lado; os carpinteiros ocupavam-se na beira do rio; operários carregavam madeira; uma carroça estava parada diante da Ship Inn.
Então, quando Puckle chegou para trabalhar, horas atrasado, vindo de Beaulieu Rails, ninguém o viu. Os homens na serraria olharam, mas não o viram. As mulheres perto da bomba d’água não o viram. O remendão, os donos das estalagens, os carregadores de madeira, os carpinteiros — ora, até mesmo o Sr. Adams, com olhos de verruma, e os dois filhos astutos —, nenhuma dessas boas e valorosas pessoas viu Puckle passar por elas. Ele estava totalmente invisível.
O milagre parecia ainda maior pelo fato de que no momento em que ele entrou no navio em construção na margem do rio não havia uma única pessoa no canteiro de obras que não fosse capaz de jurar, se lhe perguntassem, que Abraham Puckle estivera ali a manhã toda.
— Esse é o melhor, Fanny — constatou o reverendo William Gilpin, com ar aprovador; e a herdeira dos Albion sorriu com prazer ao colocar de volta seu desenho no caderno de esboços, porque também achava a mesma coisa.
Estavam sentados perto da janela da biblioteca do vicariato — uma grande casa em estilo georgiano, com um enorme pé de faia no lado oposto da porta da frente.
O vigário de Boldre era um belo ancião. Um pouco corpulento, mas de forte compleição, ele e a herdeira de Albion House gostavam muito um do outro. Os motivos para se gostar do eminente clérigo eram óbvios demais para necessitarem de explicação. Os dele, para gostar de Fanny, a quem batizara, eram numerosos: ela era bondosa e atenciosa com os outros; também ativa, inteligente e desenhava mesmo muito bem. Ele gostava de sua companhia. Os cabelos louros dela tinham nuanças de ruivo; os olhos eram admiravelmente azuis; sua cútis, excelente. Se ele tivesse, digamos, trinta anos a menos e já não fosse casado e feliz — admitia francamente, pelo menos para si mesmo —, teria tentado se casar com Fanny Albion.
O desenho dela era de uma paisagem de New Forest, vendo-se através de Beaulieu Heath e passando-se por Oakley até uma distante indicação da ilha de Wight e o mar enevoado. No todo, era admirável: o solo mais próximo, que na verdade tinha apenas uma leve ondulação, fora habilmente elevado em um ponto e acrescentado nele um solitário e devastado carvalho. Um forno de tijolos que havia perto fora acertadamente eliminado. A charneca e a mata tinham uma qualidade silvestre natural mas controlada, e o mar, um agradável mistério. Era — o maior elogio que ele podia fazer — pitoresco.
Se havia uma coisa — na terra, é claro — em que o reverendo William Gilpin acreditava era na importância do pitoresco. Suas Observações publicadas sobre o assunto o tornaram famoso e eram muito admiradas. Viajara por toda a Europa à procura do pitoresco — montanhas da Suíça, vales da Itália, rios da França — e o encontrara. Na Inglaterra, garantia aos leitores, havia paisagens verdadeiramente pitorescas. A Região dos Lagos, no norte, tratava-se da melhor área, mas havia muitas outras. E os leitores estavam dispostos a descobri-las.
A era georgiana foi uma época de ordem. As grandes e clássicas mansões campestres da aristocracia, a líder do bom gosto, revelara o triunfo do homem racional sobre a natureza; seus amplos parques, projetados por Capability Brown, com majestosos gramados e bosques cuidadosamente dispostos, haviam demonstrado de que modo o homem — pelo menos se ele estivesse de posse de uma grande fortuna — era capaz de tutelar a natureza e levá-la a um estado de encantamento. Mas à medida que a Idade da Razão se esgotava, as pessoas descobriam que a sua ditadura era ordenada demais, severa demais; elas queriam uma maior variedade. E então o sucessor de Brown, o genial Repton, começara a acrescentar jardins floridos e agradáveis alamedas aos desprovidos parques daquele. As pessoas passaram a ver na natural zona rural não um caos perigoso, mas a bondosa mão de Deus. Em suma, saíam para caminhadas fora dos parques em busca do pitoresco, como Gilpin disse que fariam.
Ele era suficientemente claro sobre como se reconhecer o pitoresco. Tratava-se de uma questão de escolha. O vale do Avon, por ser plano e cultivado, não tinha apelo para ele. Por motivos semelhantes, os ordenados declives da ilha de Wight, apesar de admiráveis como uma massa de azul à distância, se alguém tomasse uma barca para a travessia e uma inspeção bem de perto, eram verdadeiramente intoleráveis. Uma charneca a céu aberto, embora silvestre, era monótona para ele; mas onde houvesse variedade, um contraste de mata e urzal, de terrenos altos e baixos — onde, em suma, o Todo-Poderoso houvesse mostrado bom senso em revelar Sua mão —, ali o reverendo William Gilpin podia sorrir para os seus alunos e dizer, com a voz grave e sonora:
— Isso, Fanny, é pitoresco.
Mas, por mais contente que estivesse com o desenho que ela acabara de lhe mostrar, aquilo em nada se comparou a empolgação que sentiu ao colocá-lo de lado, olhar meditativamente através da janela por um momento ou dois e então lhe perguntar:
— Alguma vez já pensou em construir uma ruína em Albion House?
Pois se havia algo em toda a criação de Deus que o Sr. Gilpin adorava acima de tudo, mais até do que a zona rural, era uma ruína.
A Inglaterra era repleta de ruínas. Havia os castelos, é claro; mas, melhor ainda, graças ao rompimento com Roma, da qual a Igreja Anglicana do Sr. Gilpin fora a herdeira, havia todas as ruínas de mosteiros e conventos. Perto de New Forest, havia Christchurch e Romsey; atravessando as águas de Southampton, uma pequena casa cisterciense chamada Netley, cujas ruínas à beira d’água certamente se qualificavam como pitorescas. E logicamente havia a própria abadia de Beaulieu, cujas ruínas, apesar dos dois séculos de saques às suas pedras, ainda eram extensas.
Ruínas faziam parte da paisagem natural: pareciam nascer do solo. Eram locais de silenciosa reflexão, misteriosas, mas seguras. Eram absolutamente pitorescas. Um homem que possuísse uma ruína possuía a sua própria antigüidade. Pois se a mão do tempo reduzira as edificações daqueles ancestrais invisíveis, a natureza se incorporara a elas e ele era o herdeiro do produto. Ancestrais esquecidos eram aplacados; tempo, morte, extinção — mesmo esses ex-inimigos tornavam-se parte de sua propriedade. Quase sempre ele construía a sua própria mansão perto delas. Dessa maneira, para as classes bem-nascidas da tardia Idade do Iluminismo, até mesmo o caos e a velha noite podiam ser ajustados, como um relógio de sol, em um jardim.
E se por acaso nenhuma ruína se encontrasse nas proximidades, então, em uma era na qual a boa fortuna podia obter qualquer coisa, construía-se uma!
Algumas pessoas privilegiavam ruínas clássicas, como se as suas clássicas casas tivessem sido realmente construídas sobre o sítio de algum palácio imperial romano. Outras privilegiavam o gótico, como era chamada a imitação do medieval, que, encantadoramente, reproduzia o gosto pelos romances de horror gótico, uma das distrações da moda de então. Só havia um problema.
— Construir uma ruína, Fanny — advertiu-a seriamente o vigário —, implica uma grande despesa. — Eram necessárias enormes quantidades de pedra, pedreiros especializados para entalhá-las, um bom antiquário para projetá-la e um artista em paisagem. Depois, o tratamento da pedra, para lhe dar uma aparência antiquada; e então tempo, para que musgos, heras e liquens crescessem nos lugares apropriados. — Não tente fazer isso, Fanny— alertou-a —, se não tiver trinta mil libras para gastar. — Saía mais barato construir uma excelente casa nova. — Porém, há algo mais que costumo pensar que você poderia fazer, à própria casa, quando ela se tornar sua — acrescentou contente, pois se podia admitir de um modo adequado que, já que o velho Sr. Albion se aproximava do nonagésimo ano de vida, o momento de Fanny tornar-se a senhora da propriedade não devia estar distante.
— E o que é?
— Bem, poderia torná-la uma casa gótica. Poderia transformá-la no Castelo Albion. A localização — ajuntou persuasivo — é perfeita.
Tratava-se realmente de uma excelente idéia. Em uma viagem a Bristol no ano anterior, Fanny vira a coisa feita de uma maneira admirável. Uma casa essencialmente georgiana fora remodelada, adicionando-se alguns adornos aqui e ali, colocando-se falsas ameias redondas no telhado, inserindo-se rendilhados góticos nas janelas e modelagens de gesso imitando abóbadas de ventilação no teto de alguns aposentos. O resultado tornou-se altamente agradável — uma pitoresca mistura do romano e do gótico, que tinha um apelo todo especial para famílias que queriam que sua casa sugerisse igualmente a linhagem medieval e o bom gosto clássico, ou reproduzir a atmosfera de algumas das mais imponentes famílias aristocráticas cujas residências foram construídas em volta dos restos das abadias que haviam adquirido na época dos Tudor. Esses arremedos de fortalezas, embora pequenos, costumavam ser chamados de castelos — o que também soava algo imponente. Albion House, com sua aconchegante localização em uma clareira entre os carvalhos, no meio da antiga Floresta, daria um encantador castelinho.
— Poderia ser feito — concordou Fanny. —Aliás, creio mesmo que deveria. — Pareceu pensativa. — Não acredito, porém — prosseguiu calmamente —, que eu deva tentar fazer tal coisa sozinha. Precisarei de uma mão orientadora — sorriu um tanto travessa — ou pelo menos da cooperação bem-disposta de um marido. Não concorda?
William Gilpin curvou a enorme cabeça grisalha, praguejando internamente contra o destino por tê-lo tornado tão velho e venturoso.
— Tem alguém em mente, Fanny?
Ela não teria, sabia Deus, carência de pretendentes. Por causa da idade e da enfermidade do pai, Fanny não fizera por escolha própria quaisquer tentativas de se exibir em sociedade. Mas não era nem um pouco retraída. Era bastante alegre. Sabia perfeitamente bem, aos dezenove anos de idade, que, apesar de não se tratar de uma grande herdeira, sua herança a recomendaria aonde quer que fosse. Essa era uma época na qual cada rapaz ou moça que pretendesse ou aspirasse à nobreza carregava o valor de seu rendimento como uma etiqueta em volta do pescoço. Cada anfitriã sabia o valor em dinheiro de seus convidados. Foi provavelmente o período mais mercenário da história da Inglaterra que já houve antes ou depois de qualquer outro. E, felizmente para ela, Fanny estava bem posicionada no sistema.
Com quem devia se casar? Não havia um só candidato a quem relações de vizinhança ou interesse de família a obrigassem a levar em consideração. A família mais importante da Floresta era a do velho duque de Montagu, mas a propriedade de Beaulieu estava então dividida entre as famílias de suas duas filhas, e ambas viviam bem distante; apenas o administrador residia de fato na ruína da velha abadia. A seguir, na avaliação de Fanny, estavam as mais antigas famílias fundiárias como os Albion. Ainda havia algumas na Floresta: a família Compton continuava dona de Minstead; logo ao norte dela, uma família chamada Eyre era considerada como presente na região desde os tempos normandos; do lado oriental da Floresta, a família Mill, que se saíra tão bem na época dos Tudor, quando a abadia de Beaulieu foi desfeita, possuía uma enorme propriedade. Depois havia as antigas famílias de Lymington — o que, na verdade, significava apenas os Burrard. E, finalmente, os relativamente recém-chegados à área da Floresta. Havia muitos deles agora, que tinham ido para lá durante as duas últimas gerações. Construíram esplêndidas mansões clássicas por toda a costa, de Southampton a Christchurch. Alguns tinham títulos de nobreza; outros vinham de famílias da classe alta, que fizeram fortuna na cidade ou no comércio, como os Morant, com o açúcar, ou os Drummond, de uma família nobre escocesa, que haviam se tornado banqueiros do rei e financiado sua guerra na América. Praticamente todos esses recém-chegados eram riquíssimos.
Grandes famílias mercantis costumavam mostrar uma predileção pelo mar — sem dúvida porque, durante a maior parte da história humana, o comércio sempre foi feito através da água. E foi assim que durante o século XVIII New Forest acrescentou essa nova camada à sua antiga identidade — um agradável litoral silvestre onde os ricos podiam construir suas mansões e desfrutar o mar. Era uma visão de mundo que a velha gente da Floresta, apesar das ocasionais atividades costeiras, nunca entendeu completamente; e Fanny, oriunda como era do interior da Floresta e apesar de sua distinta educação, estava mais próxima em espírito dos Pride do que de qualquer um dos novos proprietários de terras. Mesmo assim, era inegável que o casamento com eles era considerado um resultado desejável. E mesmo se, secretamente, desejasse algo mais, não estava disposta a dizer e nem sabia o que era.
— Ninguém no momento — disse ao clérigo.
— É verdade que visitará em breve seu primo Totton em Oxford?
— Semana que vem.
Edward Totton estava para deixar a universidade, e ela e a irmã Louisa lhe fariam uma visita durante alguns dias. Tratava-se de uma expedição que Fanny esperava ansiosamente fazer.
— Ora, então tenho certeza de que um pobre professor com um gosto pelo gótico impressionará você com os seus méritos — disse, brincalhão, o amigo dela. •— E agora — acrescentou — preciso ir para a minha pequena escola. Temos hoje uma tarefa especial para cumprir. Já que fica no caminho de sua casa, que tal caminharmos juntos?
Samuel Grockleton descia cautelosamente a High Street de Lymington.
O tamanho e a forma da cidade eram quase os mesmos que os da era medieval, apesar de agora quase todas as casas enfileiradas no largo declive terem fachadas georgianas, algumas adaptadas como lojas com janelas arqueadas.
Passou pela entrada da Angell Inn. O Sr. Isaac Seagull, o proprietário, que estava parado na porta, fez-lhe uma reverência acompanhada de um sorriso. Deu uma olhada em volta. A estalajadeira da Nag’s Head, exatamente do lado oposto, do mesmo modo do lado de fora, também sorria.
— Bom dia, Sr. Grockleton.
Ele não gostou daquilo. Não gostou nem um pouco.
Notou a placa de madeira da Nag’s Head balançando, apenas poucos centímetros, rangendo ligeiramente sob a brisa do mar. Tratava-se de um acaso ou as pessoas estavam todas paradas na rua? Somente os seus pés soavam nas pedras arredondadas do pavimento; o resto da cidade tinha parado para observá-lo: uma centena de máscaras, como figuras pintadas do carnaval ou fantasiados do Halloween. E, por trás das máscaras, tão educados e sorridentes?
Ele sabia. A longa cauda de seu casaco preto, sua gravata engomada, os calções brancos, tudo, repentinamente, lhe pareceu como se se transformasse em sólida argamassa, prendendo-o tão fortemente, como se tivesse sido enfiado no tronco. Seu chapéu alto de aba larga pareceu ser feito de chumbo, ao se esforçar para levantálo em cumprimento a uma dama diante da pequena livraria. Sabia o que significavam os rostos amigáveis. Estavam todos daquele jeito.
Houvera um desembarque na noite anterior, e ele era o fiscal aduaneiro.
Aduana e tributos. Sempre havia impostos a pagar pelo embarque e desembarque de mercadorias. E comerciantes sempre tentavam evitá-los. Há séculos, os ”corujas” de Lymington embarcavam ilegalmente lã da Inglaterra. Mas na ocasião não eram as exportações a preocupação principal. Eram as mercadorias que entravam. E nelas estava o enorme problema.
Tratava-se da proporção desse negócio. À medida que crescia o império comercial britânico, a maré de importações inchava de uma maneira cada vez mais volumosa. Seda e renda, pérolas e chita, vinhos, frutas, tabaco e rape, café e chocolate, açúcar e especiarias — a lista era imensa. Na ocasião, mil e quinhentos itens diferentes já estavam sujeitos aos tributos da Aduana. E os impostos mais pesados recaíam sobre dois dos itens sem os quais, ao que parecia, os ingleses perderiam todo o vigor e provavelmente sua ilha afundaria no meio das ondas. Chá: embora beber café e chocolate fosse elegante, todos, desde o mais pobre ao mais rico, bebiam chá. E brandy.
Brandy era o elixir da vida. Sua utilidade, variada. Protegia contra a peste, curava febre, cólicas, hidropisia. Estimulava o coração, limpava ferimentos e mantinha a pessoa jovem. Se você estivesse com frio, o brandy o aquecia. Ora, se o cirurgião tivesse que serrar sua perna, ele lhe dava um quartilho de brandy antes de golpeá-lo na cabeça. E, é claro, você também podia bebê-lo por prazer. E para cada gota de brandy que se comprava recaía o imposto aduaneiro. Mas ninguém queria pagar.
— É irracional as pessoas praguejarem contra a Aduana—observava Grockleton queixoso para a esposa —, já que é a tarifa aduaneira que paga os navios da marinha para proteger o próprio comércio que traz as mercadorias que elas desejam.
— Estou certa de que não há nada racional a respeito — concordava ela. Mas, embora irracional — e Grockleton estava absolutamente certo —, todo mundo tentava evitar seu pagamento; o contrabando era disseminado. E o trabalho dos funcionários da Aduana era detê-lo. Os fiscais aduaneiros não eram populares.
O funcionário-chefe de toda a região, o coletor, ficava baseado em Southampton. O cargo mais importante logo a seguir era o de Grockleton, em Lymington. Depois havia um outro funcionário, bem menos graduado, encarregado do litoral em Christchurch. Na teoria, os fiscais aduaneiros tinham uma força realmente impressionante a sua disposição. Havia embarcações — em geral, velozes cúteres — para interceptar os barcos dos contrabandistas. Havia funcionários a cavalo, um a cada seis quilômetros e meio, para patrulhar a costa. Havia inspetores para vistoriar os navios que chegavam, calibradores para inspecionar toneis, pesadores, investigadores — os títulos mudavam à proporção que o pessoal da Aduana imaginava novos métodos de regular o comércio. Funcionários graduados, como Grockleton, em sua maioria sempre vinham de fora, para ficarem livres dos vínculos locais; quase sempre tinham acabado de se aposentar de algum outro setor da administração do governo. Os salários eram modestos, mas o funcionário tinha direito a uma bela porção de qualquer contrabando interceptado: um ótimo incentivo para ser vigilante, poder-se-ia pensar, mas Grockleton sabia com certeza que o supervisor de Christchurch dissera a seus funcionários a cavalo para não fazerem a patrulha e não informarem quaisquer coisas que vissem por acaso.
Contudo, nem todos os homens da Aduana eram covardes. Na ilha de Wight, o funcionário William Arnold ganhara, de má vontade, o respeito de toda a região pelo modo como se conduzia em seu trabalho. Com pouco apoio do governo, pagava do próprio bolso um veloz cúter para patrulhar as águas locais; e era bastante eficaz. Se as outras cidades tivessem utilizado tais cúteres, os contrabandistas ao longo da costa talvez tivessem passado por maus bocados. Havia, entretanto, outros meios de pegá-los, e, fossem quais fossem as falhas de Grockleton, ele tinha um forte senso do dever e coragem.
Era por isso que, se o seu plano desse certo, ele se tornaria o homem mais odiado da região.
Continuou descendo a rua em direção ao cais. As pessoas já se movimentavam, mas continuavam a observá-lo. Podia imaginar os olhares que lhe davam pelas costas, mas não se virava para vê-los. No final da rua, de um dos lados, ficava a casa da Aduana, que era o seu local oficial de trabalho.
Ele mal a avistara quando bateu os olhos no francês. O francês, por seu turno, fez uma mesura e sorriu educadamente. Mas por um motivo diferente. Ele e os compatriotas estavam em Lymington como convidados de Sua Majestade Britânica. Era, portanto, seu dever ser cortês, mesmo com um fiscal aduaneiro.
O conde — pois, além de comandante de um regimento, também se tratava de um aristocrata — certamente era um homem dos mais agradáveis e o grande favorito da Sra. Grockleton, a quem ele tratava como se fosse uma duquesa. Já que vários de seus conhecidos encontraram a morte na recente Revolução Francesa, ele carregava consigo, pelo menos para a Sra. Grockleton, uma certa aura de trágico romantismo. Do mesmo modo que os amigos aristocratas e as tropas aquarteladas em Lymington e algumas outras forças exiladas refugiadas na Inglaterra, ele estava ansioso para na primeira oportunidade partir e lutar contra o novo regime revolucionário da França.
”Em breve, monsieur lê comté”, suspirava a Sra. Grockleton. ”Em breve, veremos dias melhores, tenho fé.” Aquela Inglaterra que nos últimos cem anos, durante quase todo o tempo havia se ocupado de ou quase chegado a hostilidades com a França monarquista, ao entrar em contato com a encantadora aristocracia francesa já estava agora completamente esquecida.
Nada havia de surpreendente, portanto, que, ao ver o francês, o fiscal aduaneiro tivesse enfiado a mão no bolso do casaco, tirado uma carta e entregado a ele, com as palavras ouvidas por um dos passantes:
— Uma carta da minha esposa, conde. — Em seguida continuou na direção da casa da Aduana.
Somente um pouco depois, na privacidade de seus alojamentos, o conde abriu a carta e a leu com uma expressão horrorizada.
— Mon Dieu — murmurou —, o que farei agora?
Da porta da frente do reverendo William Gilpin, a alameda seguia direto pelo meio das sebes de uma pequena campina até se encontrar com outra trilha, com a qual formava um ângulo reto. Pela alameda, sob uma agradável luz solar, seguiam Gilpin, usando um largo chapéu clerical e carregando um bastão, e Fanny, com um longo casaco e capa. Os dois amigos desfrutavam a agradável caminhada. Seu objetivo era o pequeno prédio à esquerda pouco antes do final da alamedaA escola de Gilpin era um estabelecimento um tanto diferente da academia da Sra. Grockleton, mas possivelmente tão útil quanto. Como a paróquia de Boldre nunca tivera uma escola, Gilpin fundara-a não muito tempo depois de sua chegada lá, e o pequeno espaço de aprendizado tinha um tal encanto que quase se poderia chamá-lo de pitoresco.
O prédio todo mal media doze metros de largura e tinha a forma de um ”T”. A longa parte central era um único aposento de pé-direito alto com cerca de sete metros e meio de comprimento. A parte transversal era dividida em dois pavimentos mais baixos, com acomodações para um professor e uma sala de aula para as meninas. A extremidade da parte central, que dava para a alameda, tinha o encantador formato de uma fachada clássica, com um frontão triangular. Essa pequena e divertida estrutura ficava empoleirada sobre um minúsculo lote de terra. Abaixo dela, a trilha descia em direção ao rio e à ponte de Boldre. Para o lado oriental, levava à antiga vacaria medieval, há muito tempo um povoado, de Pilley.
”Quem lhe vendeu o lote de terra para a escola?”, perguntara certa vez Fanny ao amigo. Ela conhecia a propriedade de quase cada centímetro de terra por ali, mas não sabia determinar a quem pertencera aquele terreno em particular.
”Eu o roubei”, respondera o afável vigário, ”da Floresta do rei. Posteriormente me fizeram pagar uma pequena multa.”
O propósito da usurpação do vigário foi bastante simples: pegar vinte meninos e vinte meninas de famílias dos povoados das freguesias de Boldre e ensinálos a ler e a escrever, além de cifras, como era então chamada a matemática básica. Naturalmente para ler usavam a Bíblia, a respeito da qual eram examinados duas vezes por semana. Todos os domingos envergavam os casacos de um verde vistoso, fornecidos pela escola, e seguiam em parada para a igreja de Boldre. Este último detalhe também servia como um útil incentivo proporcionado pelo vigário. Se, de vez em quando, uma criança precisasse ajudar os pais no campo, não eram feitas perguntas por causa do dia de falta; mas as resistentes roupas de lã e algodão que a escola fornecia de graça junto com os casacos verdes eram um forte estímulo para uma família da zona rural. E se algum dos pais revelasse dúvidas sobre o valor de tanto ensino para sua filha, ele lhe garantia: ”Como escrita e aritmética são menos necessárias para as meninas, dedicamos mais tempo às coisas práticas... tricotar, tecer e bordar.” A escola não se aventurava a ir além desse nível de educação. Seguir mais adiante, todos concordavam, tornaria as crianças da aldeia descontentes com o seu quinhão.
— É difícil — perguntou Fanny ao se aproximarem do portão da escola — para essas crianças aprender a ler e escrever?
Gilpin deu-lhe um olhar de esguelha.
— Porque são pessoas simples do campo, Fanny? — Sacudiu a cabeça. — Deus não criou as pessoas com tais desvantagens. Posso lhe assegurar que um jovem Pride aprenderá com tanta rapidez quanto você ou eu. Os limites do aprendizado dele serão determinados por aquilo que entender... muito corretamente, devo acrescentar... como sendo útil para ele. Opa, senhor — exclamou de repente, quando um pequeno menino de dez anos de idade, com um grande volume de cabelos negros encaracolados, saiu correndo pela porta da escola e tentou passar por eles. — Como este jovem. — Gilpin sorriu ao agarrar habilmente o garoto fujão e levantá-lo no colo. — Esta criança, Fanny, seria um excelente erudito clássico se tivesse nascido em outra classe social... Não é mesmo, seu moleque? - acrescentou afetuosamente, enquanto segurava o menino.
Nathaniel Furzey fora uma grande descoberta de Gilpin. Não viera da paróquia de Boldre, mas de Minstead; entretanto, o garoto era tão precocemente inteligente que Gilpin o quis para a escola de Boldre. Supondo que os Furzey de Oakley
pudessem ter alguma ligação de família com o ramo de Minstead, perguntara se eles podiam hospedar a criança durante o período letivo, mas os Furzey de Oakley
não se interessaram. Os Pride de Oakley, porém, que mesmo depois de um século
do caso Alice Lisle continuavam praticamente sem falar com os vizinhos Furzey,
não fizeram objeção em abrigar essa criança de uma família de Minstead; o próprio filho deles, Andrew, freqüentava a escola. E assim toda manhã Gilpin podia,! com prazer, olhar de sua janela e ver Andrew Pride e o encaracolado Nathaniell Furzey seguirem pela alameda em direção à escola dele.
— Suponho, pela sua fuga — disse o vigário alegremente ao seu prisioneiro! —, que o médico já chegou. — Virou-se para Fanny. — Este menino não confia em médicos. Não lhe disse que ele era inteligente?
O médico de quem Nathaniel Furzey estava fugindo era ninguém menos que
o Dr. Smithson, o médico da moda de Lymington, a quem Gilpin havia convocado à sua própria custa. Ele estava de pé na sala de aula principal, com as crianças esperando obedientemente em fila diante dele. O tratamento que administrava era uma vacina.
Apenas oito anos se passaram desde que houvera um pequeno mas preocupante surto de varíola na Floresta. Embora se passassem mais dois anos antes que o Dr. Jenner pudesse testar sua vacina de varíola bovina, a vacinação com quantidades diminutas do próprio vírus da varíola vinha sendo usada recentemente com sucesso. Isso, portanto, era o que Gilpin havia providenciado para os seus pupilos.
Mas, mesmo com Gilpin presente e as demais crianças avançando obedientes, o jovem Nathaniel nada queria com aquilo. De pé ao lado do vigário, que lhe segurava a mão, ele balançava a cabeça ligeiramente, mas com evidente determinação.
— Tenho certeza que ele vai reagir — murmurou Gilpin. — Não sei o que fazer.
Foi Fanny quem resolveu o problema.
— Se eu for, Nathaniel — perguntou ela subitamente —, você irá também? — Nathaniel Furzey meditou. Seus olhos negros primeiro pousaram nela, depois no médico e novamente nela. — Eu irei primeiro — sugeriu ela. — Ele concordou lentamente com a cabeça.
Retirando a capa, Fanny ofereceu o braço nu, enquanto todas as outras crianças observavam; e momentos depois, os olhos grudados solenemente nela, o jovem Nathaniel também passou pela provação.
— Muito bem, Fanny — falou Gilpin baixinho, e realmente ela sentiu muito orgulho de si mesma.
Fanny pôde perceber que era tida em alta conta quando, depois de todas as vacinas terem sido aplicadas e o médico agradecer, Gilpin anunciou que iria acompanhála até a igreja de Boldre durante o caminho que faria em direção à sua casa.
Havia duas maneiras de chegar à igreja partindo da escola: uma era descer até o rio e depois subir novamente em direção à igreja; a outra, pegando-se a trilha que atravessava o povoado de Pilley, seguia pela margem mais elevada do pequeno vale e fazia a volta pelo outeiro. Pegaram o último caminho, e, como este se estendia por cerca de um quilômetro e meio, os dois teriam tempo para conversar sobre vários assuntos durante a caminhada.
A igreja já era avistada quando o vigário observou casualmente:
— Eu percebi, Fanny, ao ser vacinada, que você usa um cordão de prata no pescoço. Eu já o tinha visto antes, mas em cada ocasião também notei que, seja lá o que esteja pendurado nele, fica escondido sob o seu vestido. E me pergunto: o que está pendurado nele?
Em resposta, com um sorriso, ela o puxou para fora.
— Não é nada demais para se ver — disse ela —, por isso o mantenho escondido. Mas às vezes gosto de usá-lo.
Gilpin olhou com curiosidade para o pingente.
Era um pequeno e estranho objeto, um crucifixo de madeira, bastante enegrecido pela idade. Olhando-o atentamente, conseguiu enxergar uma espécie de antigo entalhe nele; mas de que tipo ou de que data era impossível saber. Fosse qual fosse o tipo de entalhe, o pingente era uma cruz simples de madeira, e o vigário a aprovava.
— Você realizou um ato cristão esta manhã — disse afetuosamente —, e estou igualmente feliz por ver que optou por usar essa cruz simples... pois deve saber que para mim ela vale muito mais do que qualquer ornamento de ouro ou prata. — Ela não conseguiu deixar de corar de prazer diante de tal elogio. - Mas diga-me, Fanny — continuou ele —, de onde veio isso?
Ela tinha apenas sete anos na ocasião, mas lembrava muito bem. Sua mãe a havia levado à tal casa. Ela supunha ser em Lymington. Não tinha certeza, mas a mãe pareceu ter atravessado alguma coisa.
A velha senhora estava sentada perto do fogo. Pareceu muito velha a Fanny — uns oitenta anos, talvez —, toda envolta em xales, mas com um ar tranqüilo; um belo e amistoso rosto envelhecido e olhos azuis muito brilhantes...
Edward Rutherfurd
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