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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FRAGATA SURPRISE / Patrick O'brian
A FRAGATA SURPRISE / Patrick O'brian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

— Creio sinceramente, milord, que o dinheiro dos butins é de vital importância para a Armada. A possibilidade de conseguir uma fortuna nalguma ação brillante é um grande estímulo para seus homens, faz com que trabalhem com maior diligência e atenção. Tenho certeza de que os membros da Junta estão de acordo comigo nisto — disse, passeando o olhar ao redor da mesa.
Várias figuras de uniforme levantaram a vista. Houve um sussurro de aprovação, mas não foi geral. Alguns civis mantiveram uma expressão grave e impenetrável e um ou dois marinheiros permaneceram com os olhos fixos nas folhas de mata-borrão que tinham diante de si. Era difícil saber a opinião do grupo, um caso em que ninguém tinha desejado expor-se, pois aquela não era uma reunião de carácter restrito, como a que os lordes ao mando do Almirantado costumavam celebrar, senão a primeira em que participavam diversos representantes da nova administração, a primeira desde que lord Melville se havia ido embora, nela estavam presentes alguns membros novos e de outras juntas e chefes de numerosos departamentos, por isso todos se mostravam muito reservados e cautelosos. Era difícil conhecer a sua opinião, e embora sabesse que nem todos estavam do seu lado, notava que não se oporiam completamente já que estavam indecisos e confiaba na força de sua propia convicção lhe permitiria lograr seu objetivo, apesar da falta de entusiasmo do First Lord.


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— Em uma guerra longa, alguns casos notáveis como este são suficientes para que todos na Armada, durante anos, realizem com maior zelo suas duras tarefas. Contudo, se isso lhes é negado, forçosamente... se produzirá o efeito contrário.
Sir Joseph tinha um alto cargo no serviço secreto naval, um homem competente e de muita experiência, mas não era um bom orador, sobretudo quando estava diante de um grande público. Não havia encontrado a frase perfeita nem as palavras adequadas e observava no ambiente certa predisposição à rejeição.
— Creio que sir Joseph não tem muita razão ao dizer que os oficiais de nossa Armada atuam por interesse — assinalou o almirante Harte, inclinando a cabeça para o First Lord em sinal de deferência.
Os outros membros das forças navais dirigiram seus olhares para ele e logo se olharam entre si, já que Harte era o mais ávido caçador de butins de toda a Armada e sempre estava disposto a apoderar-se de qualquer embarcação, desde um grande arenqueiro holandês a um pequeno pesqueiro bretão.
— Tomei como referência outros casos precedentes — disse o First Lord voltando seu rostro imberbe e inexpresivo para primero Harte e depois para sir Joseph —, por exemplo, o caso da Santa Brígida...
— A Thetis, milord — lhe sussurrou seu secretário particular.
— A Thetis, é isso. E meus conselheiros legais dizem que minha decisão é acertada. Devemos respeitar as normas do Almirantado: se a presa foi capturada antes da declaração de guerra, o butim deve ser entregue à Coroa, pois lhe pertenece por direito.
— Uma coisa é o que dizem as normas, milord, e outra o que é justo. Os marinheiros não sabem nada de normas, mas estão mais apegados aos costumes que os membros de qualquer outra instituição e têm um particular sentido da justiça. A meu modo de ver, e também ao seu, o que ocorreu foi que Suas Senhorias, ao conhecer as intenciones de Espanha de entrar na guerra como aliada de Bonaparte, aproveitaram a ocação que se lhes apresentou. Os navios espanhóis traziam um grande tesouro desde Río da Prata, que Espanha necessitava para lutar na guerra como uma forte potencia, e Suas Senhorias ordenaram que éstas fossem interceptadas. Era de vital importância atuar sem perder um minuto, mas a frota do Canal estava disposta de tal forma que... em resumo, apenas pudemos enviar foi uma esquadra composta pelas fragatas Indefatigable, Medusa, Amphion e Lively com as ordens de apresar os navios espanhóis, que eram mais potentes, e levar-los a Plymouth. Devido a numerosos esforços e, devo dizê-lo, com a ajuda de um plano bem elaborado pelo qual não pretendo atribuir-me nenhum mérito, a esquadra llegou ao cabo de Santa María a tempo, estabeleceu combate com os navios espanhóis, afundou um e apresou os outros depois de um arduo combate, não sem sufrir algumas baixas, lamentavelmente. Seus membros cumpriram as ordens: deixaram ao inimigo sem recursos para fazer a guerra e trajeron a nosso país cinco milhões de reales. Se agora se lhes diz que esse dinheiro, esses reales, indo em contra do que é costume na Armada, não se consideram um butim senão que pertencem por direito à Coroa, isto terá um efeito nefasto em toda a frota.
— Mas a batalha ocorreu antes da declaração de guerra... — começou a argumentar um civil.
— E que me dizem da Belle Poule em 1778? — perguntou o almirante Parr.
— Os oficiais e marinheiros da nossa esquadra não tinham nada que ver com nenhuma declaração — replicou sir Joseph —. Não deviam se meter nos assuntos de estado mas sim cumprir estritamente as ordens da Junta. Dispararam-lhes primero, e então seguiram as instruções, cumpriram com seu dever, sofrendo não poucos prejuízos e aportando enormes benefícios ao país. E se lhes for negada a acostumada recompensa, se a Junta, sob cujas ordens atuaram, ficar com esse dinheiro, a influência deste fato sobre os oficiais que participaram da batalha, que creram ter já cobertas todas as suas necessidades e, sem dúvida, confiavam que se respeitaria esse acordo, será... — Se interrompeu e tratou de buscar a palavra adequada.
— Nefasta — disse um contra-lmirante.
— Nefasta. E essa influência se extenderá muito mais e llegará a toda a frota, que já não contará com o excelente exemplo do que se pode obter com decisão e empenho. A solução deste assunto é arbitrário, milord, já que os casos precedentes foram resolvidos de manera muito distinta e nenhum foi julgado nos tribunais. Creio sinceramente que o melhor seria que a Junta favorecesse aos oficiais e marinheiros que participaram nessa batalha. Não suporia uma grande perda para o país e, ao se tomar como exemplo, reportaría um beneficio cem vezes maior.
— Cinco milhões de reales — disse o almirante Erskine, muito impressionado, em meio a um clima geral de dúvida —. Era tanto, de fato?
— Quem eram os oficiais responsáveis? — perguntou o First Lord.
— Os capitães Sutton, Graham, Collins e Aubrey, milord — respondeu o secretário —. Aqui estão seus documentos.
Enquanto o First Lord examinava os documentos se fez um profundo silêncio, quebrado apenas pelo rangido da pluma do almirante Erskine, que convertía os cinco milhões de reales para libras esterlinas e dividía o resultado entre o número de oficiais que, segundo as normas, deviam compartilhar o butim, obtendo uma cifra que lhe fez dar um assobio. Ao ver os documentos, sir Joseph compreendeu que tudo estava perdido, pois embora o novo First Lord não soubesse nada da Armada, era um parlamentar com experiência e um político astuto e encontraría neles os nomes detestados pela atual administração: Sutton e Aubrey. Ambos poriam na instável balança o grande peso da política, e os outros capitães não tinham nenhuma influência, nem no Parlamento nem na sociedade nem na Armada, que pudesse contrabalançá-lo.
— Sutton, tenho-o visto no Parlamento — disse o First Lord e, franzindo os lábios, escreveu uma nota —. Já quanto ao capitão Aubrey..., seu nome parece-me familiar.
— É o filho do General Aubrey, milord — lhe sussurrou o secretário.
— Sim, sim, esse membro do Parlamento por Great Clanger que lançou um furioso ataque contra o senhor Addington. Mencionou o seu filho em seu discurso contra a corrupção, o recordo. Repetidamente menciona o seu filho.
Fechou os documentos individuais e, após lançar um olhar ao informe geral, continuou:
— quem é o doutor Maturin?
— O cavalheiro de quem falava na nota que enviei a Sua Senhoria a semana pasada — respondeu sir Joseph.
E em seguida, com uma ligeira ênfase, que em tempos de Melville haveria tido o mesmo valor que lhe lançar um tinteiro à cabeça do First Lord, acrescentou:
— Era uma nota em um envelope amarelo.
— É normal que a um médico se lhe outorgue temporariamente o cargo de capitão de navio? — observou o First Lord fazendo caso omiso da ênfase e do significado de um envelope amarelo.
Todos os membros da Armada levantaram a vista de inmediato e se olharam uns a outros.
— Se lhe outorgou a sir Joseph Banks e ao senhor Halley, milord, e creio que também a outros homens de ciência. Não é uma medida nova, longe disso, embora seja excepcional.
O First Lord notou algo no olhar frio e cansado de sir Joseph que o fez se dar conta de que havia cometido um deslize.
— Ah! — exclamou —. Então esta medida não foi tomada apenas neste caso.
— Não, milord. E voltando ao capitão Aubrey, se me o permite, posso afirmar, sem temor a equivocarme, que as ideias de seu pai não coincidem em absoluto com as suas.
Afirmou isto não com a esperança de que poderia melhorar a situação mas para que a atenção se desviasse para outra coisa e o deslize passasse despercebido. E não desagradou-lhe ouvir que o almirante Harte, desejoso de conquistar o favor dos demais e ao mesmo tempo de satisfazer seu malévolo instinto, perguntava:
— Não seria conveniente pedir a sir Joseph que nos dissesse se tem algum interesse pessoal neste assunto?
— Não, senhor. É uma insinuação completamente fora de lugar, por Deus — disse o almirante Parr, enquanto seu rostro bronzeado tomava um coloração púrpura. Tossiu e seguiu resmungando, cada vez em voz mais baixa, embora pôde se ouvir parte do que dizia: “horrível presunção..., um novo membro..., um simples contra-almirante..., uma merda”.
— Se o almirante Harte insinua que tenho algum interesse pela riqueza pessoal do capitão Aubrey — disse sir Joseph, com umo olhar glacial —, se equivoca. Nem sequer conheço esse cavalheiro. O meu único interesse é o bem da Armada.
Harte se surpreendeu desagradavelmente com a acolhida dispensada à sua observação, que lhe parecia tão sutil, e em seguida tentou a retirada, tão oprimido sob o peso dos olhares que lhe haviam posto tantos homens, entre eles o próprio capitão Aubrey. Deu inumeráveis desculpas e repetiu que não havia querido dizer..., não havia querido insinuar..., sua verdadera intenção não era..., não pretendia em absoluto caluniar a tão honrado cavalheiro...
O First Lord, um pouco aborrecido, deu uma palmada na mesa e disse:
— Em qualquer caso, não creio que cinco milhões de reales sejam uma perda insignificante para o país. Além disso, como já disse, nossos conselheiros legais asseguran que pertencem à Coroa por direito. Pessoalmente, eu gostaria muito de aceitar a magnífica e convincente proposta de sir Joseph, mas temo que devamos tomar como referência os casos precedentes. É uma questão de princípio. Lamento enormemente dizer isto, sir Joseph, porque sei que essa missão de tão grande êxito levou se a cabo sob sua direção e, além disso, porque desejo mais do que ninguém que os membros da Armada tenham riqueza e prosperidade. Mas, infelizmente, temos as mãos atadas. Não obstante, deve nos servir de consolo pensar que restará uma considerável soma para repartir; não llegará a milhões, certamente, mas não resta dúvida de que será considerável. E depois de pensar em algo tão agradável, cavalheiros, creio que devemos nos ocupar de...
Começaram a se ocupar de questões técnicas relacionadas com a recrutamento, a compra de navios e sua dotação. E posto que estas questões não eram de sua competência, sir Joseph se acomodou na cadeira e se pôs a observar aos que tomavam a palavra para apreciar suas qualidades. Em geral, eram mediocres. Além disso, o novo First Lord era um tonto, um simples político, e para sir Joseph, que havia servido sob as ordens de Llatham, Spencer, Saint Vincent e Melville, ele parecia muito inferior aos outros. Todos haviam cometido erros, especialmente Llatham, mas todos haveriam comprendido a situação: a perda foi sofrida pelos espanhóis, à custa deles a Armada real contaria com o excelente exemplo de quatro jovens capitães de navio nadando em um mar de ouro, e o dinheiro, depois de tudo, se permaneceria no país. Na Armada havia muito poucas fortunas, e quase todas estavam nas mãos dos almirantes, que graças às missões com êxito haviam recebido parte do butim de inumeráveis presas, sem haver participado sequer de sua captura. Aos capitães que capturavam as presas era quem deviam ser estimulados. Talvez não houvesse exposto seu argumento com claridade o com a necessária contundência, pois não estava em forma depois de passar a noite em serão lendo sete informes de Boulogne. Em qualquer caso, nenhum outro First Lord, talvez exceto Saint Vincent, teria convertido o assunto em uma questão política. E, sem dúvida, a nenhum outro escaparia o nome de um agente secreto.
Tanto lord Melville (um homem que realmente entendía os serviços secretos) como sir Joseph apreciavam muito o doutor Maturin, seu conselheiro sobre os assuntos espanhóis e, sobretudo, catalães. Era um agente extraordinario, totalmente desinteresado, valente, prudente, Fiable e muito bem preparado, que nunca havia aceitado nem a mais mínima recompensa por seus serviços... seus excelentes serviços! Precisamente, foi ele que lhes deu a informação que tornou possível aquele impressionante combate. Sir Joseph e lord Melville haviam decidido lhe dar aquele cargo temporário, pois desse modo o obrigavam a aceitar parte da fortuna que tomariam do inimigo. E agora seu nome, por torpeza, havia sido mencionado em público, não em uma reunião privada da Junta mas em outra muito mais heterogênea, e preguntou-se por ele logo ao llefe dos serviços secretos da Armada. Era inqualificável haver confiado na sensatez dos marinheiros, os quais pensavam que a única forma de vencer a um inimigo tão astuto como Bonaparte era explodindo seus navios, e sobretudo era inqualificável haver confiado na dos civis, políticos loquazes cuja noção do perigo equivalia a estar no penhasco de Dover observando com um telescopio o exército invasor de Bonaparte, de duzentos mil homens, acampado ao outro lado do Canal. Observou seus rostos um a um enquanto discutiam, cada vez mais acaloradamente, sobre quais deviam ser suas respectivas jurisdições quando se fizesse o recrutamento. As vozes dos almirantes, gritando uns com os outros, podiam ser ouvidas em Whitehall, e o First Lord parecia incapaz de pôr ordem na reunião. Sir Joseph sentiu um grande alívio ao o ver assim, pois seguramente se esqueceriam do deslize. Mas enquanto desenhava em sua pasta a metamorfose de uma vanesa vermelha (ovo, lagarta, crisálida e estado perfeito) pensava: “Que vou a dizer-lhe quando nos vermos? Que posso dizer-lhe?”
Sobre Whitehall e o Almirantado caía uma cinza garôa, mas em Sussex o clima era seco e estava calmo. Em Mapes Court, a fumaça da llaminé da pequena sala de estar se elevava uns duzentos pés, formando uma demorada pluma, e logo se afastava por detrás da casa, se dispersando como a bruma pelas depressões e as colinas. As árvores estavam cobertas de folhas, mas não seria por muito tempo. E da árvore que havia junto à janela se desprendiam de vez em quando folhas amareladas, que caiam muito lentamente, se balançandono ar, e formavam ao seu redor um tapete dourado. Em meio ao silêncio, um silêncio sepulcral, se escutava o sussurro de cada Folha ao cair.
— Enquanto sopre o vento, todas as árvores ficarão sem folhas — disse o doutor Maturin —. De certo modo, o outono é uma espécie de primavera, não há nenhum que termine sem que apareçam novos brotos. Mais ao sul isto aprecia-se melhor. Em Catalunha, por exemplo, aonde tu e Jack irão enquanto termine a guerra, as lluvas de outono fazem crecer o pasto como puntiagudas lanças. Ali... Por favor, querida, um pouco menos de manteiga, pois já comi muita gordura.
Stephen Maturin havia comido com as damas que viviam em Mapes, a senhora Williams, Sophie, Cecilia e Francês (tinha restos de sopa de Windsor, bacalhau, pastel de pombo e pudim na gravata, na jaqueta cor de tabaco e nas calças cinzas, porque era muito descuidado ao comer e o seu guardanapo havia caído antes que terminasse o primeiro prato, apesar dos esforços de Sophie para que o conservasse), e agora estava sentado junto à llaminé tomando o llá, enquanto Sophie, a seu lado, inclinada para as llamas de cor rosa e prata, assava bolos, procurando não aproximá-los ou afastá-los excessivamente para que não queimassem nem se resecassem. Na penumbra, as llamas iluminaram seu antebraço arredondado e seu belo rosto, acentuando a largura da testa, a forma perfeita dos lábios e a suave tonalidade rosa da pele. A preocupação com os bolos havia mudado sua habitual expressão reservada; tinha o mesmo costume da sua irmã mais nova de expor a ponta da língua quando estava concentrada, e isto, combinado com sua grande beleza, aumentava inexplicablemente seu encanto. Stephen a olhou satisfeito, mas de repente lhe invadiu um estranho sentimento, um sentimento que não podia definir. Ela era a prometida de seu amigo íntimo, o capitão Aubrey, da Armada real, e também uma paciente. Tinham-se grande afeto, o mais profundo que um homem e uma mulher podiam sentir sem que mantivessem uma relação amorosa, talvez mais profundo que se houvessem sido amantes.
— Este bolo está muito bom, Sophie — disse —, mas tem que ser o último, e recomendo-te que também não coma outro. Estás engordando muito. Faz apenas seis meses estavas emagrecida e tinhas um aspecto lamentável, mas me parece que a ideia de contrair matrimônio tem tido um efeito benéfico sobre ti. Deves ter engordado 2,7 kg, e a pele... Sophie, por que estás espetando outro bolo para assar? Para quem é? Te perguntei para quem é esse bolo.
— Para mim, meu amigo. Jack disse que devia ter firmeza. Jack admira a firmeza de carácter. Disse que lord Nelson...
Através do ar quase gelado e em calma llegou o som de um corno de caça desde o longínquo Polcary Down.
— Será que já mataram a rapoza? — Perguntou Stephen —. Se Jack estivesse aqui, saberia dizer-nos que acontecera com o animal.
— Estou muito contente de que não esteja nesse horrível bosque — disse Sophie —. Sempre que ia ali sofria uma queda. Temia que quebrasse uma perna, como o joven Savile. Por favor, Stephen, ajuda-me a correr a cortina?
“Amadureceu muito”, pensou Stephen, e logo disse em voz alta:
— Como se llama essa árvore exótica, de tronco delgado, que está no jardim?
— A llamamos de árvore das pagodas. Não é realmente, mas a llamamos assim. Meu primo Palmer, o viajante, a plantou; segundo ele, ela é muito parecida.
Quando terminou de falar, Sophie se arrependeu de te-lo feito, possivelmente tinha-se arrependido já antes de acabar a frase, porque sabia que aquela palavra poderia trazer recordações a Stephen.
Os maus pressentimentos confirmam-se. Qualquer que tivesse um mínimo conhecimento da Índia associaria ela com a sófora, a árvore das pagodas, já que na Índia llamavam pagodas a umas monedas de ouro pequenas que se assemelhavam a suas folhas e era corrente a expressão “sacudiu a árvore das pagodas” para indicar que um europeu havia se convertido em um nabab, ou seja, em um homem extraordinariamente rico. Tanto Sophie como Stephen se interessavam pela Índia porque corría o rumor de que Diana Villiers vivía ali com seu amante Rillard Canning. Diana, uma joven esbelta, de grande formosura e muito decidida, era prima de Sophie e em outro tempo havia rivalizado com ela pelo carinho de Jack Aubrey, mas além disso era o objeto da desenfreiada paixão de Stephen. Havia tomado parte de suas vidas até a sua fuga com Canning, mas agora era a ovelha negra da família e seu nome já não se mencionava em Mapes; contudo, era espantoso que eles conheciam tão bem seus movimientos e pensavam tanto nela.
Pelos periódicos haviam se enteirado de muitas coisas, já que o senhor Canning era quase um personagem público, um homem que tinha uma grande fortuna, barcos de transporte e ações da Companhia Britânica das Índias Orientais, influência política (mediante a corrupção, ele e sua família controlavam três municipios, onde eram elegidos membros do Parlamento que os representavam, já que eles, por ser judeus, não podiam ser eleitos) e uma relevante posição social, pois pertenciam ao círculo de amigos do príncipe de Gales. E pelos rumores que llegavam do condado vizinho, onde viviam seus primos, os Goldsmith, se haviam enteirado de mais coisas. Mas estes dados não eram comparáveis à informação que Stephen Maturin possuia, pois apesar de sua aparente ingenuidade e sua grande devoção pela história natural, tinha importantes contatos e grande habilidade para os utilizar. Sabia como se llamava o barco da Companhia em que a senhora Villiers havia viajado, qual era a posição de seu camarote, os nomes de suas duas donzelas e alguns dados sobre sua família e sua educação (uma era francesa e tinha um irmão militar que havia sido capturado no começo da guerra e agora estava encarcelado em Norman Cross), e quantas faturas havia deixado de pagar e seu montante. Além disso, estava enteirado do furioso vendaval que havia açoitado às familias Canning, Goldsmith e Mocatta e que também causava estragos, porque a senhora Canning (membro da família Goldsmith) não admitia a pluralidade de esposas e pedira a todos os seus familiares que a defendessem enérgicamente. Ante aquele vendaval, Canning decidira ir à Índia com uma missão oficial relacionada com as possessões francesas na costa de Malabar, um lugar estupendo para conseguir pagodas.
Sophie tinha razão. À mente de Stephen acudiram todas essas recordações quando ouviu o nome da desafortunada árvore, e enquanto permanecia silencioso junto ao fogo, acudiram muito mais. Mas não haviam feito um grande esforço, pois na maior parte do tempo encontravam-se muito próximo, dispostos a aparecer a cada manhã, quando se despertava se perguntando o motivo de sua angústia. E quando não apareciam, sua ausência estava marcada por uma dor física em uma zona do diafragma que podia cobrir com a palma da mão.
Em uma gaveta secreta de seu escritório, tão lleia que era difícil abri-la ou fella-la, havia dois informes com os nomes de Villiers, Diana, viúva de Llarles Villiers, morto em Bombaim e Canning, Rillard, de Park Street e Coluber House, Bristol, que tinham tão ampla documentação como se pertencessem a dois supostos informantes dos serviços secretos de Bonaparte. Parte dos documentos conseguira obrigado a uma desinteressada colaboração, mas muitos obtivera pelo meio mais habitual e haviam lhe custado um dinheirão. Stephen não havia pellinllado nos gastos para tornar-se mais infeliz, para deixar também mais clara a sua posição de amante rejeitado.
“Por que me provoco estas feridas?”, perguntou-se. “Com que motivo? Indubitavelmente, em toda guerra obter informação supõe-se uma vantagem, e este assunto considero-o uma guerra particular. Será que também posso convencer-me de que ainda posso lutar, embora me hajam derrotado no campo de batalha? Tem bastante lógica, mas é falso... é excessivamente simples.”
Pensou tudo isto em catalão, pois ao ser poliglota podia estruturar seu pensamento na língua que mais se adequasse a seu conteúdo. Sua mãe era catalã e seu pai um oficial irlandês, pelo que pensar em catalão, inglês, francês e castelhano era tão natural para ele como respirar, e não tinha preferência por nenhuma língua, aliás as elegia segundo a natureza de suas ideias.
“Quanto eu gostaria de ter ficado calada!”, pensou Sophie, olhando ansiosamente para Stephen, que seguia sentado junto à llaminé, com os olhos fixos na cavidade iluminada de vermelho que havia sob o tronco. “Pobresinho! Está tão necessitado de carinho, tão necessitado de alguém que cuide dele! Realmente não está pronto para vagar pelo mundo sozinho, isso é algo excessivamente duro para as pessoas sensíveis. Como ela pôde ser tão cruel? O que fez foi como bater em um menino... em um menino. Os conhecimentos servem muito pouco aos homens... Ele sabe muito pouco disto; o que tinha que fazer era ter-lhe dito no verão passado "Por favor, casa-te comigo" e ela haveria exclamado "Oh, sim, encantada!". Se o dissesse... Embora não te-lo-ia feito muito feliz...” A palavra “raposa” lutou em vão por sair de seus lábios. “Já não me agrada a árvore das pagodas. Nos sentíamos tão bem juntos! Mas agora parece que o fogo tinha-se acabado... acabará se não ponho outro tronco. E há muita escuridão.” Estendeu a mão para tocar a campainha e pedir velas, mas, após vacilar uns instantes, voltou a colocá-lo sobre sua cômoda. “É horrível que as pessoas sofram tanto. Sou muito afortunada, e isso as vezes me aterroriza. Queridíssimo Jack...” Em sua mente apareceu uma clara imagen de Jack Aubrey, alto e erguido, alegre, lleio de vida, carinhoso. Podia ver seu cabelo alourado caindo sobre a dragona de capitão de navio e seu rostro bronzeado com um amplo sorriso e uma horrível cicatriz desde a mandíbula até o começo do couro cabeludo. Via todos os detalhes de seu uniforme, a medalha que havia recebido pela batalha do Nilo e o sabre que a associação Patriótica lhe presenteara por haver afundado o Bellone, e também seus olhos azuis, que quando ele ria ficavam quase ocultos por completo, como dois pontos brilhantes, e pareciam mais azuis sobre sua cara avermelhada pela risada. Nenhuma outra pessoa havia feito Sophie passar momentos mais divertidos, nenhuma outra pessoa se ria assim.
Aquela imagen se desvaneceu quando a porta que dava ao corredor se abriu e a luz entrou abundante. No umbral apareceu a rellonlluda figura da senhora Williams e se escutou sua potente voz:
— Que significa isto? Por que estão sozinhos na escuridão?
Seu olhar passou rapidamente de um rostro ao outro, tratando de confirmar o que suspeitava desde que eles haviam ficado em silêncio, um silêncio que a advertira porque lhes estava escutando da biblioteca, a través de um compartimento que, quando estava aberto, permitia ouvir o que se dizia na salinha. Mas pela expressão tão surpreendida de seus rostos, a senhora Williams compreendeu que se equivocara.
— Uma dama e um cavalheiro sozinhos na escuridão — disse, sorrindo —. Isso nunca não acontecia em meus tempos. Os cavalheiros da família teriam pedido uma explicação ao doutor Maturin. Onde está Cecilia? Deveria ter permanecido aqui com vocês. Esta escuridão... Certamente que te preocupavas em gastar velas, Sophie. Boa menina.
Então se voltou para Stephen com uma expressão cortés, pois embora este não podia compararse com seu amigo, o capitão Aubrey, possuia um castelo em Espanha (um castelo em Espanha!) com o banheiro de mármore e poderia ser um bom partido para Cecilia. (Se fosse Cecilia que estivesse sentada na escuridão com o doutor Maturin, ela não teria irrompido na salinha.)
— O senhor não imagina como hão subido as velas. Seguramente Cecilia haveria pensado o mesmo. Venho ensinado todas as minhas filhas a economizar, doutor Maturin; nesta casa não há desperdício. Não obstante, se fosse Cecilia quem estivesse aqui com um pretendente, isso seria outra coisa e, por suposto, haveria sido melhor gastar a vela. Não, o senhor não pode imaginar como tem subido o preço da cera desde que começou a guerra. Às vezes fico tentada a voltar a utilizar sebo, mas apesar de sermos pobres não me resigno a usá-lo, sobretudo nas salas da casa que não são privadas. Mas tenho duas velas acesas na biblioteca e posso dar-lhes uma, assim não será necessário que John acenda os candelabros da parede. Estava usando duas velas, doutor Maturin, porque estava reunida com meu agente de negócios todo este tempo... quase todo este tempo. As escrituras, os contratos e as negociações das condições econômicas do matrimônio levam muito tempo e são complicadas, e afinal, sou uma ignorante nessas questões. (Apesar de ser uma ignorante, suas propiedades se estendiam além dos limites do municipio, até Starveacre. E os meninos de todos seus arrendatários, quando ouviam dizer: “Que a senhora Williams vem pegá-los”, emudeciam horrorizados.) O senhor Wilbraham tem feito uma série de importantes observações sobre nossa situação e o que ele llama dilatoria, embora creio que não temos culpa disso, o que ocorre é que o capitão Aubrey se encontra muito longe.
Saiu apressadamente da habitação para buscar a vela, enquanto mantinha os lábios franzidos. Essas negociações estavam se alargando, mas não devido à suscetibilidade do senhor Wilbraham mas à férrea determinação da senhora Williams de não entregar a virgindade de sua filha nem suas dez mil libras de dote até que as “adequadas especificações”, as llamadas capitulações matrimoniais, estivessem firmadas e seladas, e principalmente até que o dinheiro devido fosse recebido. Era essa, precisamente, a causa de tanto atraso, pois apesar de Jack haver aceitado todas as condições, por leoninas que fossem, e com generosidade, como se fora um desapegado da fortuna, renunciara a seu salário, seus butins e suas propiedades futuras, em beneficio de sua viúva e os filhos que nascessem daquela união, apesar de tudo, ainda não recebeu o dinheiro devido. A senhora Williams não daría um passo até que não o tivesse em suas mãos, não em forma de promessas mas de monedas de ouro ou de cobre cunhadas pelo Banco de Inglaterra.
— Aqui está — disse ao voltar, e observou que Sophie havia jogado outro tronco no fogo —. Uma será suficiente, né verdade?, a menos que queram ler. Mas certamente que ainda terão muito o que falar.
— Quisiera preguntarte algo — disse Sophie quando voltaram a ficar sozinhos —. Desde que llegaste, hei tratado de levarte à parte... É horrível ser tão ignorante, e por nada do mundo permitiria que o capitão Aubrey o saiba. Também não posso perguntá-lo a minha mãe. Mas contigo as coisas são muito diferentes.
— Agente pode dizer tudo a seu médico — disse Stephen, e seu olhar terno e afetuoso passou a outro mais grave, o de um profissional.
— A seu médico? — Perguntou Sophie —. Ah, sim! Certamente, claro que sim. Mas o que desejava preguntar-te, querido Stephen, tem relação com a guerra. Esta guerra tem durado uma eternidade, apenas cessara durante um curto intervalo. Tem durado uma eternidade, anos e anos... Quanto eu gostaria que terminasse!... Existe desde que posso me recordar e, contudo, creio que não lhe prestei a atenção devida. Naturalmente, sei que os franceses são maus, mas há muitos mais que alternativamente entram e saem dela: os austríacos, os espanhóis, os russos... Diga-me, os russos agora são bons? Seria horrível, uma traição, sem dúvida, que rezara pelos inimigos. Além disso, há todos esses italianos... e o pobre Papa. E Jack mencionou também a Pappenburg; justo no día antes de ir embora, disse que havia içado a bandeira de Pappenburg como estratagema de guerra, assim que Pappenburg deve de ser um país. Fui uma desprezível farsante, pois com um olhar expressivo e concordando com a cabeça exclamei: “Ah, Pappenburg!” Tenho muito medo de que creia que sou uma ignorante; o sou, certamente, mas não soportaria que ele o saiba. Estou segura de que há muitos jovens que sabem onde está Pappenburg, e Batavia, e a República de Liguria, mas nós nunca estudamos esses lugares com a senhorita Blake. Nem tampouco o Reino das Duas Sicílias..., por certo que apenas encontrei uma no mapa. Por favor, Stephen, fala-me da situação atual do mundo.
— Ah, queres conhecer a situação atual do mundo, minha amiga! — Exclamou Stephen, sorrindo, já sem aquele olhar de profissional —. Bom, pelo momento é bastante clara. De nosso lado estão Áustria, Russia, Suécia e Nápoles, que forma parte das Duas Sicílias, e do outro estão uma série de pequenos estados, Bavária, Holanda e Espanha. Mas estas alianças não têm demasiadas consequências para nenhum dos dois lados: os russos estiveram primero conosco, depois em oposição a nós, até que o czar foi estrangulado, e agora novamente conosco, e creio que mudarão outra vez quando se lhes convier. Os austriacos se retiraram da guerra em 1797 e outra vez em 1801, depois do ocorrido em Hohenlinden, e pode voltar a acontecer o mesmo a qualquer momento. Holanda e Espanha são os países que realmente nos importam, porque têm armadas, e quem quer que ganhe esta guerra há de ganhá-la no mar. Bonaparte tem aproximadamente quarenta e cinco navios de linha e nós mais de oitenta, o qual é bastante alentador; mas os nossos estão dispersos por todo o mundo e os dele não. Por sua parte, os espanhóis têm vinte e sete, e os holandeses outros tantos. É fundamental evitar que se unam, porque se Bonaparte logra reunir uma força superior à nossa no Canal, embora seja por breve tempo, o exército invasor poderia cruzá-lo, que Deus não o quiera. Por isso Jack e lord Nelson percorrem a zona próxima a Tolón, tratando de evitar que monsieur de Villeneuve, com onze navios de linha e sete fragatas, se una aos espanhóis em Cartagena, Cádiz ou El Ferrol. Me reunirei com Jack ali depois que solucione um par de assuntos de negócios em Londres e compre grande quantidade de rubia, assim que se queres enviar-lhe alguma mensagem, este é o momento de darme-a, Sophie, porque já estou indo.
Se levantou e as migalhas se espalharam pelo llão. O relógio de pé deu a hora.
— Oh, Stephen! Tens que ir? — Perguntou Sophie —. Te passarei um pouco a escova. Por que não ficas para o jantar? Por favor, fique, prepararei torradas com queijo para ti.
Desde que havia sofrido aquela desilusão era muito descuidado com sua roupa interior, havia perdido a costume de escovar os trajes e as botas e não tinha muito limpas nem a cara nem as mãos.
— Não, querida, mas és muito amável — respondeu Stephen, e enquanto(durante) ela o escovava permaneceu imóvel, como um cavalo manso, com o pescoço dobrado e a cabeça pegada à gravata —. Se me apresso, posso llegar a tempo à reunião da Sociedade Entomológica. Já, já, querida, já está bem. Jesús, María e José! Que não vou à Corte...! Os entomólogos não presumem elegantes. E agora dá-me um beijo, como uma menina boa, e diga-me o que queres que diga a Jack..., que mensagem queres enviar-lhe.
— Quanto eu gostaria de ir contigo! Oh, quanto eu gostaria...! Suponho que não vale de nada pedir-lhe que seja prudente, que não corra riscos.
— Direi, se o queres. Mas creia-me, carinho, no mar Jack não é um homem imprudente. Nunca corre nenhum risco sem tê-lo considerado cuidadosamente, quer muito a seu barco e a seus homens, muito, para expor-los a um perigo sem haver refletido antes. Não é um desses saqueadores temerários e agressivos.
— Não cometeria nunca uma imprudência?
— Nunca na vida. Essa é a verdade, a pura verdade, creia-me — insistiu, ao ver que Sophie não estava completamente convencida de que no mar Jack fosse uma pessoa distinta que em terra.
— Está bem — disse, e fez uma pausa —. Este tempo me parece tão largo! Tudo parece tardar tanto!
— Tolice! — disse Stephen em tom animado —. As sessões do Parlamento terminarão dentro de poucas semanas, assim o capitão Hammond voltará a seu barco e Jack será atirado de novo à praia. Poderás ver-lhe tão repetidamente como desejas. Agora, diga-me, que queres que lhe diga?
— Diga-lhe que sinto um grande amor por ele, te peço. E, por favor, por favor, cuida-lhe muito tu também.
O doutor Maturin llegou à reunião da Sociedade Entomológica quando o reverendo Lamb começava a ler seu trabalho intitulado Alguns insetos não descritos encontrados na costa de Pringle-juxta-Mare em 1799. Se sentou ao fundo da sala e esteve escutando atentamente durante uns minutos. Mas o reverendo saiu do tema (como todos esperavam) e agora tratava de despertar o interesse da audiência pela emigração das andorinhas, pois havia encontrado um novo dado que apoiava sua teoria. Segundo ele, não apenas voavam em círculos cada vez menores, formavam grupos compactos e se submergiam nas profundidades de tranquilas lagunas mas que se refugiavam nos poços das minas de estanho... “Sim, cavalheiros, das minas de estanho de Corwall!” Stephen deixou de prestar-le atenção e passou seu olhar pelos inquietos entomólogos. Conhecia a alguns: o extraordinario Musgrave, que lhe presenteara uma excelente Carena quindecimpunctata; o senhor Toisón, famoso por seu estudo do cervo voador; Eusebius Piscator, um grande cientista sueco. E aquele outro de costas largas e trança empoada lhe parecia familiar. Pensou que era curioso como os olhos podem apreciar e reter inumeráveis medidas e proporções, permitindo-nos reconhecer um dorso quase da mesma forma que a uma cara. E também uma forma de andar, uma postura, um modo de erguer a cabeça... Quantas referências em cada movimento! Aquele homem tinha a costa curvada em uma estranha posição e a mão esquerda apoiada de tal forma na mandíbula que parecia que intentava ocultar seu rostro, e precisamente essa estranha posição havia llamado sua atenção. Contudo, Stephen não recordava haver visto sir Joseph adotar semelhante postura em nenhuma de suas reuniões anteriores.
—... portanto, cavalheiros, creio que posso afirmar que a emigração das andorinhas para invernar, da mesma forma que todos os demais hirundos, é um feito provado — disse o senhor Lamb com um olhar desafiante.
— Sem dúvida, todos estamos muito agradecidos ao senhor Lamb — disse o presidente, em um clima de grande descontentamento, enquanto os presentes se moviam nervosos em seus assentos e murmuravam —. E embora eu tema que dispomos de pouco tempo e talvez não podrán ler-se todos os trabalhos, permitam-me pedir a sir Joseph Blain que nos fale do autêntico ginandromorfo que há adicionado recentemente à sua coleção.
Sir Joseph levantou-se de seu assento e rogou que lhe desculpassem, pois esquecera de trazer suas notas. Disse que não queria abusar da paciência do público falando sem elas e que, além disso, não se sentia muito bem e desejava retirar-se. Logo acrescentou que apenas tinha uma ligera indisposição, tratando de tranquilizar a seus companheiros. Mas seus companheiros reagiramcomo se tivesse lepra, e três deles já haviam se posto de pé, ansiosos por ficar imortalizados nas atas da Sociedade.
“Que significa isto?”, se perguntou Stephen quando sir Joseph passou por seu lado e lhe saudou secamente com uma inclinação de cabeça. Depois, enquanto escutava um estudo sobre coleópteros brilhantes llegados recentemente do Suriname (um estudo interessantíssimo que mais tarde leria com mais atenção), lhe assaltou um mal pressentimento e sentiu-se angustiado.
Saiu da reunião sentindo-se ainda angustiado, e apenas havia caminado cem jardas quando um mensajeiro se aproximou discretamente e lhe deu um cartão com um monograma e um convite de sir Joseph para que se reunisse com ele, mas não em sua residência oficial mas em uma casinha detrás de Shepherd Market.
— O senhor foi muito amável ao vir — disse sir Joseph, indicando a Stephen um assento junto à llaminé da sala de estar que, sem dúvida, era também biblioteca e estudio.
A casa era confortável e até mesmo luxuosa e o estilo da decoração era de cinquenta anos atrás. Em suas paredes se alternavam quadros com exemplares de mariposas e quadros pornográficos, prova inequívoca de que era uma casa privada.
— O senhor foi muito amável... — repetiu, visivelmente nervoso e preocupado —. Muito amável...
Stephen permaneceu em silêncio e sir Joseph continuou:
— Roguei-lhe que viesse aqui porque este é, digamos, meu refúgio, e creio que devo-lhe dar em privado a explicação que merece. Não esperava encontrar-me com o senhor esta tarde, e me senti muito perturbado ao ver-lhe porque tenho muito más notícias que lhe dar, tão más que tinha preferido que outro as desse, mas devo faze-lo. Eu havia me preparado para comunicá-las em nosso encontro de amanhã, e seguramente o faria sem muita dificuldade, mas ao ver-lhe ali de improviso, naquele ambiente...
Parou de atiçar o fogo, deixou a um lado o atiçador e prosseguiu:
— Cometeu-se uma terrível indiscrição no Almirantado: seu nome foi mencionado e repetido com insistência em uma reunião geral e relacionado com o combate naval em Cádiz.
Stephen assentiu com a cabeça, mas seguiu guardando silêncio. Então sir Joseph, olhando-lhe de soslaio, disse:
— Naturalmente, tratei de que a indiscrição fosse esquecida em seguida e depois dei a entender que o senhor estava a bordo por casualidade, porque ia a algum lugar do Oriente com uma missão científica ou semidiplomática. Expliquei-lhes que era necessário outorgar-lhe um cargo pela posição que ocupava e porque devia tomar parte em negociações, e citei casos precedentes como os de Banks e Halley. Assegurei-lhes que isto teve relação com aquele incidente por pura coincidência, porque tratava-se de economizar tempo. Disse que esta história era absolutamente certa, que apenas a conheciam alguns iniciados, porque era um segredo mais importante que a própria interceptação dos navios, e não devia divulgar-se sob nenhum motivo. Creio que convenció a todos os marinheiros e civis que estavam presentes. Mas apesar de meus esforços, o senhor já está marcado de alguma maneira, portanto é preciso reconsiderar nosso plano.
— Quem eram os cavalheiros que estavam presentes? — Perguntou Stephen, e sir Joseph lhe passou uma lista —. Um grupo numeroso... É uma leviandade, uma grave irresponsabilidade — falava pausadamente — brincar desse modo com as vidas dos homens e com toda a estrutura dos serviços secretos.
— Estou completamente de acordo com senhor — disse sir Joseph —. É monstruoso. E o que mais me dóe é que, em parte, eu mesmo tive culpa, pois havia escrito ao First Lord sobre o assunto, confiando em sua absoluta discreção. Mas é que estava acostumado a ter llefes nos quais tinha uma confiança total, e entre eles nenhum foi mais discreto que lord Melville. Um governo parlamentar não pode ter bons serviços secretos: sempre há homens novos, mais políticos que profissionais, com quem compartilhar a informação. São as ditaduras que têm os melhores serviços secretos; Bonaparte está muito melhor informado que Sua Majestade. Mas não devo omitir a outra notícia desagradável. Embora será do domínio público dentro de uns dias, considero meu dever dizer-lhe que, a juizo da Junta, o tesouro espanhol pertenece por direito à Coroa, ou seja, não será distribuido como butim. Fiz todo o possível para que mudassem de parecer, mas temo que sua decisão é irrevogável. Digo-lhe isto com a esperança de evitar que senhor, pensando que as coisas iriam a ser diferentes, adquirisse compromisos; além disso, adverti-lo com alguns dias de antecipação é melhor que com nenhum. Lamento muito ter que lhe dar esta notícia, pois sei que este..., este assunto afeta também a outros interesses seus. Embora sem muita convicção, espero que minha advertência tenha algum..., o senhor me entende. Asseguro-lhe que sinto tanta pena e tanta decepção que não encontro palavras para expressar, mesmo que minimamente, sua intensidade.
— O senhor é muito amável — disse Stephen —, e lhe agradeço muito esta prova de confiança. Não posso dizer que a perda de uma fortuna seja algo que deje indiferente a nenhum homem, e embora esteja seguro de que com o tempo experimentarei outros sentimentos, de momento apenas tive um disgosto. Mas esses outros interesses a que o senhor cortésmente se referiu são um assunto diferente, e se me permite os explicarei. Tinha grandes desejos de favorecer a meu amigo Aubrey. Seu agente de negócios fugiu com todo o dinheiro de seus butins e o tribunal de apelação não permitiu a confiscação dos barcos neutros, pelo que contraiu uma dívida de 11.000 libras. Isto ocorreu quando ia dar promesa de matrimônio a uma encantadora jovem. Se querem muito, mas devido à mãe dela, uma viúva com numerosas propiedades que estão sob seu controle pessoal, que é uma mulher sumamente estúpida, tacanha, intolerante, gananciosa e obstinada, uma repugnante e desprezível avara, uma harpia, não há esperança de matrimônio até que ele tenha uma boa posição econômica e possa entregar-lhe o dinheiro estipulado nas capitulações. Essa situação era a que me vanagloriava de haver mudado, embora realmente, fora o senhor, as circunstâncias e o destino que os haviam logrado. E também a creram mudada todos os afetados por ela. Que vou a dizer a Aubrey quando me reunir com ele em Menorca? Ele receberá algo por haver tomado parte nessa ação de guerra?
— Oh, sim, claro! Repartir-se-á certa quantidade em gratificação que o permitirá saldar a dívida que o senhor mencionou, ou quase, mas não será uma fortuna, nem muitíssimo menos. A propósito, meu amigo, senhor mencionou Menorca. Significa que pensas continuar com o nosso plano original apesar deste desagradável contratempo?
— Sim — disse Stephen e seus olhos recorreram de novo a lista —. Podemos extrair muito proveito de nossos recentes contatos e muito a perder se não... Creio que neste caso o tempo é fundamental; estou quase seguro de que tomarei a dianteira a falatórios e rumores, porque zarparei amanhã à noite, e além disso, uma notícia vazada não se propaga com a mesma rapidez que um viajante se movimenta. Por outra lado, creio que o senhor soube controlar os mais indiscretos. Este é o único — assinalava um nome na lista — que me preocupa. É um homossexual, como o senhor sabe. Não tenho nada contra aos homossexuais, cada homem pode ter seu próprio conceito da beleza e quanto mais amor haja no mundo, melhor, mas todos sabemos que os homosexuais têm que suportar pressões que outros homens não sofrem. Se vigiasse discretamente esse cavalheiro quando se reune com monsieur da Tapetterie e, sobretudo, se isolasse a monsieur da Tapetterie durante uma semana, não duvidaria em levar a cabo o nosso plano original. Inclusive sem essas precauções, duvido que o adiaria, porque, apesar de tudo, estaria apenas baseando-me em simples conjeturas. Além disso, não serviria de nada enviar a Osborne o Sllikaneder, pois Gómez apenas confiaria em mim, e sem esse contato o novo sistema viria abaixo.
— Isso é certo. E, naturalmente, o senhor comprende a situação do lugar muito melhor que nós. Mas não desejaria que o senhor corresse este enorme risco.
— É um pequeno risco, supondo que exista de fato, e llegaria a ser insignificante se sopram ventos favoráveis e o senhor evitar a propagação da notícia que presumivelmente se há filtrado. De todos os modos, não tem nenhuma importância nesta viaje, no que são mais numerosos os riscos normais da profissão. Por outro lado, se os rumores têm seu efeito habitual, não serei útil durante certo tempo, até que o senhor me reabilite atribuindo-me essa missão científica ou semidiplomática em Tartaria... Já, já! E ao regressar dela publicarei uns estudos sobre os criptogramas de Kamllatka de tal profundidade que ninguém voltará a suspeitar que sou um agente secreto.
CAPÍTULO 2
De um lado a outro, de um lado a outro, as fragatas da esquadra encarregada de vigiar Tolón, os olhos da frota do Mediterráneo, iriam desde o cabo Sicié até a península de Giens, viravam em redondo e regressavam, todos os dias, uma semana após outra, um mês após outro, fosse qual fosse o tempo; saíam a alto mar navegando em linha, depois do canhonaço da tarde, e voltavam ao amanhecer, com suas gavias ondeando sobre o horizonte, pelo sul, enquanto Nelson seguia esperando a saida do almirante francês.
Há três dias soprava o mistral. O mar estava mais branco que azul e o vento do alto mar formava pequenas ondas que cobriam de espuma o convés das fragatas. As três haviam reduzido o velame ao meio-dia, mas mesmo assim navegavam a sete nós e tão escoradas a estibordo que a espuma chegava ao turco.
A silueta já familiar do cabo Sicié estava cada vez mais próxima. O ar era tão límpido e o céu estava tão luminoso que podiam ver-se as casinhas brancas e o camino que llegava até o posto de sinais e às baterias, por onde os carros subiam com dificuldade. Agora estavam até mais próximo, quase ao alcance de seus altos canhões de quarenta e duas libras, e llegavam rajadas de terral desde a zona alta.
— Coberta! — Gritou o serviola do topo —. A Naiad está fazendo sinais, senhor!
— Todos virar em redondo! — disse o Tenente no comando da guarda, por pura formalidade, pois não apenas a tripulação da Lively havia trabalhado junta durante anos como havia feito essa manobra centenas de vezes, nesse mesmo lugar, e a ordem era desnecessária. Embora, devido à rotina, os tripulantes trabalhassem com menos afinco, seguiam sendo muito eficientes, e o contramestre tinha que dizer-lhes: “Devagar, devagar com essa condenada escota”, pois corria-se o risco de que a espilla da bujarrona atravesasse o corrimão da Melpomene, que ia justo à frente e não tinha grandes qualidades para a navegação.
A Naiad, a Melpomene e a Lively viraram em redondo uma depois da outra, girando cada uma onde o havia feito a anterior, depois bolinaram, voltaram a colocar-se em linha e puseram-se rumo à península Giens mais uma vez.
— Detesto este ir e vir — disse um cadete magro para outro magro cadete —. Isso não dá à gente nenhuma oportunidade; não temos nada que ver, não há nem uma salsilla, nem uma sola... não podemos nem sequer lleirar uma. — Olhava entre a exárcia e as velas para o espaço que separava a península da ilha de Porquerolles.
— Salsichas! Oh, Butler, não deverias dizer essa palavra! — gritou entre o rumor do vento, inclinando-se sobre a balayóla e olhando também para aquela passagem por onde era provável que aparecesse a Niobe, que a seu regresso de um cruzeiro se aprovisionaria d’água em Agincourt Sound e voltaria a percorrer a costa italiana, acossando o inimigo e recolhendo todas as provisões que pudesse encontrar, e depois dela lhe trocaria o turno a Lively —. Salsichas quentes, crocantes, suculentas! Baicon! Cogumelos!
— Cala-te, gordo! — Sussurrou seu amigo, dando-lhe um terrível beliscão —. Que Deus te perdoe!
O oficial de guarda foi a bombordo quando ouviu apresentar armas aos infantes da marinha que estavam de centinela. Uns momentos depois, Jack Aubrey saiu de sua cabine envolto em uma callecol e com um telescópio sob o braço e começou a passear pelo lado de barlavento do castelo de popa, o lugar sagrado do capitão. De vez em quando levantava a vista para as velas, mecânicamente, mas não encontrava nada criticável, já que a fragata era uma máquina eficiente que navegava sem nenhuma dificuldade. Neste tipo de serviço, a Lively podia funcionar à perfeição embora ele fosse ao convés todo dia. Não era possível fazer censuras, embora estivesse tão colérico como Lucifer depois de sua queda, o qual distava muito da realidade. Tanto ele como os homens sob seu comando, apesar da tediosa tarefa de manter um bloqueio, a mais dura e fatigosa na Armada, estiveram muito animados durante todas aquelas semanas e meses. Pois pensavam na riqueza que lhes aguardava por haver capturado em setembro um navio com um enorme tesouro, e se bem a riqueza não dá a felicidade, a ideia de obtê-la em breve produz um sentimento muito similar. Em seu olhar havia uma grande benevolencia, embora não aquela ternura quando contemplava a Sophie, uma embarcação pequena e estanca que não navegava bem de bolina, a primeira que estivera sob seu comando. A Lively, de fato, não lhe pertencia; ele estava ao comando temporariamente, como capitão suplente, até que seu titular, o capitão Hammond, voltasse de Westminster, onde ocupava um cadeira pela circunscrição de Coldbath Fields, representando os interesses dos Whigs. E embora Jack apreciasse e admirasse a eficiência da fragata e sua silenciosa disciplina (desdobrava todo um conjunto de velas com a simples ordem: “Zarpar!” e apenas em três minutos quarenta e dois segundos) não se acostumava a elas. A Lively era um exemplo excelente, claramente representativo da estrutura mental dos Whigs, e Jack era um Tory. Sentia espanto por ela, mas à tempo parecia-lhe distante, como se fosse a esposa de um oficial companheiro seu, uma mulher casta, elegante e sem imaginação que organizara sua vida segundo principios científicos.
O cabo Cépet estava a bombordo. Jack pegou o telescópio, trepou-se aos flellastes, que se dobraram sob seu peso, e subiu ofegando até a cesto da gávea do mastro maior. Os gavieiros o esperavam e haviam enrrolado um lado para que se sentasse.
— Obrigado, Rowland. Faz frio, verdade? — disse, deixando-se cair nela, ainda ofegante.
Apoiou o telescópio na vigota mais alta dos amantilhos do mastaréu e enfocou o cabo Cépet. Em seguida apareceu ante seus olhos, com grande nitidez, o posto de sinais, e à direita a zona este da baía grande, onde se encontravam cinco navios de guerra de setenta e quatro canhões, três deles ingleses: o Hannibal, o Swiftsure e o Berwick. A bordo do Hannibal, a tripulação praticava como rizar as velas, e no Swiftsure uma grande quantidade de homens subia pela exárcia, provavelmente camponeses no processo de adestramento. Quase sempre os franceses tinham os barcos capturados na baía exterior; o faziam para incomodar, o que Indubitavelmente conseguiam. Jack se molestava, e muito, duas vezes ao dia, pois subia à cesto da gávea para observar a baía todos os dias pela manhã e pela tarde. Subia, em parte, por zelo profissional, se bem que não existia nenhuma possibilidade de que os franceses saissem, a menos que uma forte tempestade e um furioso vendaval afastassem a frota inglesa de seu posto; mas também subia porque desse modo fazia um pouco de exercício. Estava engordando outra vez, mas não tinha nenhuma intenção de deixar de subir e descer pela exárcia, como faziam alguns capitães gordos, pois o fazia imensamente feliz sentir os amantilhos entre as mãos e o constante movimento dos aparelhos e balançar-se com o vaivém do barco enquanto ascendia ao cesto da gávea.
Os outros navios ancorados ali apareciam agora ante sua vista, e Jack, franzindo o cenho, dirigiu o telescópio para as fragatas inimigas para observá-las atentamente. Ainda havia sete, e apenas uma mudado a sua posição do dia anterior. Eram embarcações muito formosas, embora, em sua opinião, tinham os mastros excessivamente inclinados.
Aproximava-se o momento. A torre da igreja estava quase em linha com a cúpula azul, e Jack enfocou de novo o telescópio concentrando toda sua atenção. Dava a impreção de que a terra não se movia, mas pouco a pouco abriram-se os braços da pequena baía e pôde ver o porto interior, um denso bosque de mastros; as vergas já estavam colocadas neles, e tudo parecia preparado para sair e lutar. Havia uma bandeira de vice-almirante, uma de contra-almirante e o grande estandarte de um comodoro; nada mudara. Os braços iam fellar-se; deslizaram-se imperceptivelmente até juntar-se, e a pequena baía fellou-se.
Jack dirigiu então o telescópio para a colina do farol, logo para o que estava detrás, e procurou o camino que llegava àquela pequena taberna onde ele, Stephen e o capitão Llristy-Palliére haviam comido e bebido tão maravilhosamente não muito tempo atrás, junto com outro oficial francês cujo nome esquecera. Fazia muito calor então; fazia muito frio agora. A comida havia sido extraordinária então (Deus santo, haviam comido a arrebentar!) e agora era muito escassa. Ao pensar naquela comida, sentiu uma pontada no estômago, pois a Lively, apesar de ser considerada a embarcação melhor aprovisionada do porto e manter uma atitude desdenhosa frente às piores dotadas da esquadra, tinha escassez de alimentos frescos, tabaco, lenha e água, igual ao resto da frota. Além disso, devido à epidemia que se extendera entre as ovelhas e a cisticercose que havia atacado aos cerdos, até mesmo as provisões dos oficiais haviam sido substituidas pela horrível carne de cavalo salgada que comia em seus dias de cadete, e os marinheiros já levavam muito tempo comendo apenas bolallas. Não obstante, ficava uma minúscula costelinha para o jantar de Jack. “Devo convidar o oficial da guarda? Faz tempo que não convido ninguém à minha cabine, exceto para o desjejum”, pensou. Também fazia tempo que não falava de igual a igual com ninguém nem trocava ideias. Seus oficiais, melhor dito, os do capitão Hammond, porque Jack não escolhera-os nem formara-os, o convidavam para jantar na sala dos oficiais uma vez por semana e ele os convidava bastante repetidamente a sua cabine, e quase sempre desjejuava com o oficial e o cadete de guarda, mas esses encontros não eram divertidos. Todos os oficiais eram cavalheirescos, estavam um pouco influenciados por Bentham e seguiam estritamente o protocolo naval, que prohibía a todo subordinado falar com seu capitão se este não lhe dirigia antes a palavra, e por outra parte estavam acostumados a tratar com o capitão Hammond, a quem, por seu modo de pensar, esse rigor resultava-lhe agradável. Afinal, eram orgulhosos (muitos podiam permitir-se sê-lo) e detestavam a adulação e a pugna por conseguir favores que costumava haver em outros navios. Em certa ocasião, llegou como terceiro a bordo um Tenente tão adulador que o obrigaram a mudar-se para o Allilles em dois meses. Mantenían em todo momento essa atitude distante, e embora não lhes desagradasse em absoluto o capitão suplente (de fato, o consideravam um grande marinheiro e um capitão atirado) inconscientemente o viam como a um Deus do Olimpo. Por tudo isso, Jack vivia rodeado de um grande silêncio que às vezes lhe fazia sentir-se muito triste. Mas apenas às vezes, porque não permanecía inativo muito tempo; havia tarefas que não podia deixar em mãos do primeiro oficial, embora fosse perfeito, e além disso, pelas tardes instruia os cadetes em sua cabine. Eram jovens simpáticos, e na presença de seu capitão, um ser divino para eles, na severidade de seu mestre, nem o digno exemplo dos maiores conseguiam reprimir a sua alegria. Nem sequer podia consegui-lo a fome, e tinham tanta que comiam ratas a mais de um mês. O encarregado do porão caçava as ratas, e já sem couro, abertas e limpas, como cordeirinhos, as punha à venda; seu preço subia de semana a semana e havia llegado a alcançar a assombrosa cifra de cinco peniques o quarto.
Jack sentia simpatia pelos jovens, e como muitos outros capitães se ocupava de sua educação, sua designação econômica, sua formação profissional e até mesmo moral. Mas sua assídua presença nas lições não era totalmente desinteressada; quando criança não se dava bem com a matemática, a bordo não havia tido uma boa instrução, e embora fosse um marinheiro nato, havia se aprovado no examen para Tenente porque havia aprendido tudo de memória e o haviam ajudado a Providencia e dois capitães do tribunal que estavam de seu lado. Apesar de sua amiga Queenie o haver explicado pacientemente o que era uma tangente, uma secante e um seno, nunca havia entendido muito bem os principios da trigonometria. De fato, havia aprendido a navegar de modo empírico, partindo desde um nivel muito elementar, mas por sorte, como muitos outros capitães, a Armada sempre lhe proporcionava a ajuda de um oficial perito em navegação. Contudo, agora, influenciado possivelmente pelo interesse que existia na Lively pela ciência em geral e pela hidrografia, estudava matemática, e como outros estudantes tardios, avançava a um ritmo muito rápido. O mestre ensinava muito bem quando estava sobrio, e embora os cadetes nem sempre prestavam atenção a suas aulas, era Jack que tirava proveito delas. Pelas noites, depois do troca da guarda, observava a lua ou lia com autêntico deleite Secciones cónicas, de Grimble, quando não escrevia a Sophie ou tocava o violino. “Stephen ficaria muito assombrado!”, pensou, “Agora poderia falar-lhe como um filósofo. Gostaria muito que ele estivesse aqui!”
Mas a pergunta de se devia convidar o senhor Randall para jantar estava ainda sem resposta, e quando estava a ponto de se decidir, ouviu uma tosse forte do cesto da gávea.
— Perdoe, Sua Senhoria — disse —, mas parece-me que a Naiad avistou algo.
Tinha um sotaque da classe baixa de Londres, em claro contraste com seu rosto amarelado e seus olhos rasgados. Isto devia-se a que a Lively, por haver passado muitos anos nos mares Orientais, tinha tripulantes de raça amarela, acobreada e negra, além de brancos, e todos, por haver trabalhado tanto tempo juntos, falavam com o sotaque de Limehouse Reall, Wapping e Deptford Yard.
O Alto não era o único que vira muito movimento na coberta da fragata que lhes precedia. O filho do senhor Randall, completamente ensopado, também o observou desde o extremo da verga da cebadera e abandonou seu posto, atravessou correndo a coberta e reuniu-se com seus companheiros.
— Está dobrando o cabo! Está dobrando o cabo! — gritou, e sua voz aguda, própria de seus sete anos, pôde ser ouvida desde o cesto da gávea.
A Niobe apareceu como por arte de magia entre a névoa que cobria as ilhas Hyéres, navegando com as maiores e as gávias e formando na proa enormes ondas brancas. Possivelmente trazia comestíveis, talvez alguma presa (todas as fragatas haviam combinado compartilhar os butins), mas em qualquer caso lhes faria sair da terrível monotonia e por isso era bem-vinda.
— E aí está o Weasel! — acrescentou o menino.
O Weasel era um cúter grande que ocasionalmente servia de mensajeiro entre a frota e as fragatas que estavam nos portos. Seguramente também ele trazia provisões e notícias do mundo exterior. Que feliz coincidência!
O cúter navegava sob uma nuvem de velas, inclinado quarenta e cinco graus, e a esquadra, que estava em frente a Giens, o animou com seus gritos ao ver que alcançava a esteira da Niobe e virava a barlavento com a intenção de ultrapassá-la. Na fragata apareceram as joanetes e o bujarrona, mas a joanete de proa se rasgou quando lhe atavam as empunhaduras, e antes de que os nervosos tripulantes da Niobe pudessem acalmar-se, o Weasel se encontrava próximo da amura de estibordo, a ponto de ultrapassar a fragata e de causar-lhe uma grande humilhação. As ondas que se formavam na proa da Niobe disminuiram, e o cúter passou a seu lado como uma bala, dando entusiastas vivas, para deleite de todos. Este levava a bordo um sinal com o número da Lively, o que indicava que tinha ordens para ela, e foi se aproximando da esquadra até ficar situado a sotavento da fragata, com sua enorme vela maior dando estalidos e rangidos como os de uma galeria de tiro. Mas não houve preparativos para descer um bote, contudo o capitão gritou para que lhe lançassem um cabo.
“Não traz provisões?”, perguntou Jack, franzindo o cenho, sentado no cesto da gávea. “Maldita seja!”, pensou enquanto sacava um pé dali e o apoiava nas arraigadas. Mas alguém viu assomar pela escotilha principal do cúter a conhecida saca cor púrpura e gritou: “O correio!”, e ao ouvi-lo, Jack se agarrou ao brandal e se deslizou rapidamente por ele até a coberta como se fosse um cadete, esquecendo sua dignidade, enquanto em suas delicadas meias brancas se formavam trilhas desfiadas. Permaneceu de pé, a uma jarda (0,914 m) dos oficiais de folga e do centinela de guarda, esperando que as duas sacas, balançando-se, cruzassem por cima do mar.
— Ponhas uma mão! Ponhas uma mão! — gritou.
E quando por fim as sacas estavam a bordo, teve que fazer um grande esforço por reprimir sua impaciência e esperar que o cadete entregasse solenemente ao senhor Randall e este as levasse até o castelo de popa.
— O Weasel trouxe isto do navio do almirante, senhor, com sua permissão — disse o senhor Randall, tirando o chapéu.
— Obrigado, senhor Randall — disse Jack, levando-as à sua cabine com grande cuidado.
Uma vez ali, tirou de um puxão o selo da saca do correio, desatou a corda e deu um olhar nas cartas, passando com rapidez uma após a outra. Em três estava escrito: “Capitão Aubrey, Lively, navio de Sua Majestade” com a letra de traços arredondados mas firmes de Sophie, e eram muito volumosas, pelo menos o triplo de uma carta normal. Guardou-as no bolso, sorrindo, e pegou a pequena saca oficial ou, melhor dizendo, a bolsinha, abriu o envoltório de tela alcatroada, depois a de seda lubrificada e por último o pequeno envelope que continha suas ordens. Leu-as, franziu os lábios e depois voltou a lê-las.
— Hallows! — gritou —. Avise ao senhor Randall e ao segundo oficial. Entregue estas cartas ao contador para que as reparta. Ah, senhor Randall! Por favor, faça sinais à Naiad comunicando-lhe que temos permissão para abandonar a esquadra. Senhor Norrey, tenha a amabilidade de pôr-nos rumo a Calvette.
Pela primeira vez não havia pressa, pela primeira vez não havia aquela “sensação de angústia, de não ter nem um minuto a perder” de que tão repetidamente Stephen havia se queixado. Nessa época do ano, no Mediterráneo ocidental sopravam quase initerrumpitamente ventos do norte: o mistral, o gregal e a tramontana, todos favoráveis para navegar rumo a Menorca, aonde se dirigia a Lively. Contudo, era importante não chegar à ilha excessivamente pronto nem manter-se próximo da costa, levantando suspeitas. E posto que as ordens, que incluíam as instruções de “causar danos à frota, as comunicações e as instalações do inimigo”, davam a Jack uma grande liberdade de ação, agora a fragata atravessava o golfo de León rumo à costa de Languedoc, com todo o velame que podia suportar aberto, enquanto a branca espuma cobria de quando em quando o corrimão por sotavento. A prática com os canhões como a cada manhã, uma descarga atrás da outra nas solitárias aguas, e a agradável sensação que produzia deslocar-se velozmente sob um sol brilhante fizeram desaparecer as expressões aborrecidas e os murmúrios de descontentamento do dia anterior porque haviam ficado sem provisões e sem cruzeiro. Essas ordens condenadas lhes haviam arrebatado das mãos um cruzeiro justo quando lhes correspondia fazê-lo e todos maldiziam ao odioso Weasel por suas inoportunas cabriolas e seu exagerado desdobramento de velame que refletiam a presunção de seus tripulantes, uns estúpidos de pouca categoria. Dick o Javanês havia comentado: “Se tivesse chegado navegando como um barco cristão e não como um turco, já estaríamos a metade do camino da ilha de Elba.” Mas isso havia sido no dia anterior; o exercício, a possibilidade de encontrar algo de bom em cada nova milha (1.852 m) do amplo horizonte e sobretudo a prazeirosa ideia de que muito pronto seriam ricos, haviam conseguido que os tripulantes da Lively esquecessem rapidamente o ocorrido e haviam lhes devolvido a alegria. O capitão notou isso ao dar a última percorrida pela coberta antes de ir à sua cabine para receber seus convidados e sentiu uma sensação estranha, difícil de definir. Não era inveja, posto que ele era mais rico que muitos deles juntos. “Mais rico in posse”, pensou e cruzou os dedos, um gesto habitual nele. Mas, em parte, talvez era inveja, porque eles tinham um barco e formavam um grupo muito unido; eles tinham um barco e ele não. Não, não era inveja exatamente, não seria essa a definição da inveja... Uma sucessão de excelentes definições ficou interrompida quando o infante de marinha, no momento em que a ampola do relógio ficou vazia, foi até a proa e tocou as quatro badaladas, a tempo que o cadete de guarda puxava a barquilha. Jack correu a sua cabine de dia e observou a larga mesa colocada de través; as bandejas de prata brilhavam tanto com a luz do sol que os lampejos chegavam até o teto, juntando-se ao reflexo das ondas (quanto tempo tanto brilho resistiria no metal?). As vasilhas, os copos e os pratos já estavam colocados e bem seguros com barras de madeira para que não caissem; o despenseiro e seus ajudantes estavam de pé junto às jarras, como petrificados.
— Tudo preparado, Killick? — perguntou.
— Até o último detalhe, senhor — respondeu o despenseiro, e em seguida lhe indicou com o queixo que olhasse para trás.
— Bem-vindos, cavalheiros — disse Jack, voltando-se para onde assinalava o queixo —. Senhor Simmons, por favor, sente-se à cabecera da mesa; senhor Carew, sente-se... Cuidado, cuidado! — o pastor havia perdido o equilíbrio por causa de um solavanco a sotavento e havia caído em seu assento com força, como se fosse movê-lo por toda a coberta —. Aqui, lord Garrón; senhor Fielding e senhor Dashwood, por favor — indicava-lhes com a mão seus assentos —. Antes de começar, quero pedir-lhes desculpas por este jantar. — Enquanto falava, a sopa fazia uma perigosa viagem de um lado a outro da cabine —. Apesar de ter a melhor vontade do mundo... Permita-me, senhor. — Sacou da sopeira a peruca do clérigo e passou-lhe a concha —. Killick, traga um gorro de dormir para o senhor Carew, limpe isto e chame o cadete de guarda. Ah, senhor Butler, minhas felicitações ao senhor Norrey! Creio que poderemos carregar a vela da mesana durante o jantar. Apesar de ter a melhor vontade do mundo, repito, isto se parece com o banquete de Barmecida.
Esta frase pareceu-lhe muito boa e baixou a vista com modestia. Mas pensou que Barmecida não era famoso por oferecer carne fresca a seus convidados, quando viu ali, na tijela do pastor, a inconfundível forma de um barqueiro, o maior dos vermes que se criavam nas bolachas velhas, de cabeça negra e corpo liso e frio e de sabor peculiar. É que a sopa, naturalmente, havia sido engrossada com pedacinhos de bolacha para resistir ao balanço do barco. Como o pastor não estava muito tempo na mar, possivelmente ignorava que aquele verme não era danhinho, que era amargo como o gorgulho, e assim poderia rejeitar a comida.
— Killick, outro prato para o senhor Carew! — gritou —. Há um pelo em sua sopa... Sim, o banquete de Barmecida... Mas tinha especial interesse em convidar-lhes porque possivelmente esta seja a última vez que tenho a honra de fazê-lo. Iremos a Gibraltar, passando primeiro por Menorca, e em Gibraltar o capitão Hammond voltará ao barco. — Houve exclamações de surpresa e alegria devidamente mescladas com outras de pena —. E já que recebi instruções de causar danos às instalações do inimigo na costa, assim como à sua frota, certamente, não creio que nos reste muito tempo livre para jantar depois que dobremos o cabo Gooseberry. Quanto desejo que encontremos algo digno da Lively! Lamentaria entregá-la sem levar ao menos um raminho de loureiro na proa, ou onde seja mais adequado levar os louros.
— O loureiro cresce nesta costa, senhor? — perguntou o pastor —. É loureiro silvestre? Sempre crí que se dava em Grécia. Em verdade, não conheço o Mediterrâneo mais que pelos livros, mas pelo que recordo, os clásicos não mencionam a costa de Languedoc.
— Bom, senhor, ali o hão encontrado, segundo creio — disse Jack —. Dizem que é muito útil para o pescado. E também dizem que uma ou duas folhas realçam o sabor, mas mais de duas são como um veneno mortal.
Seguiram diversas considerações sobre os peixes: o pescado era um alimento completo, embora não agardasse aos pescadores... o linguado de Dover era o melhor..., os cisnes, as baleias e esturjões pertenciam por lei ao Rei..., os papistas haviam clasificado as botos, as rãs e as gaivotas como peixes por motivos religiosos... E o senhor Simmons contou que havia comido uma ostra estragada no banquete de lord Mayor.
— Este pescado, senhores — disse Jack, quando retiraram a sopeira e trouxeram um atum —, é o único que realmente posso recomendar-lhes; foi pescado por esse chinês que está em sua divisão, senhor Fielding, esse chinês baixinho. Não é o Alto nem o Baixo nem...
— John Satisfacción, senhor?
— Esse mesmo. Um tipo alegre, muito esperto e hábil. Rodeou um comprido pedaço de filástica com cabelo das tranças de seus companheiros e colocou no anzol um pedaço de torresmo de porco com a forma de um peixe, e assim o pescou. Além disso, temos uma garrafa de bom vinho para acompanha-lo. A escolha deste vinho não é mérito meu, foi o doutor Maturin quem o escolheu; ele entende destas coisas, inclusive tem vinhedos própios. A propósito, faremos escala em Menorca para pegá-lo.
Disseram que lhes encantaria voltar a vê-lo..., tinham muitos desejos de o encontrar denovo..., esperavam que ficasse bem...
— Menorca, senhor? — perguntou o pastor, com ar pensativo —. Mas não devolvemos Menorca aos espanhóis? Não é espanhola agora?
— Sim, é — respondeu Jack —. Creio que viaja com uma autorização especial, já que tem propiedades nessas terras.
— Nesta guerra, os espanhóis se comportam muito mais civilizadamente que os franceses, pelo que se refere às viagens — afirmou lord Garrón —. Um amigo meu que é católico obteve uma permissão para ir de Santander a Santiago de Compostela para cumprir uma promessa e viajou sem escolta, como um cidadão normal, sem nenhum problema. Embora os franceses não sejam tão maus quando se trata de homens de ciência. No exemplar de The Times que trajo o Weasel hei leído que um cientista de Birmingham foi a París a receber um premio da Academia francesa. Os cientistas viajam sempre, haja ou não haja guerra; e segundo creio, senhor, ou doutor Maturin é uma autêntica maravilha em todas as ciências.
— Oh, certamente! — exclamou Jack —. É como o admirável Crillton: pode cortar uma perna em poucos minutos, dizer o nome em latim de todo ser vivente — olhava um gorgulho amarelado que caminhava rapidamente pela toalha — e fala tantas línguas que é como uma torre de Babel andante. Bom, fala todas menos a nossa. Deus santo! A estas alturas não sabe distinguir ainda bombordo de estibordo. — Riu com vontade —. Gostaria que brindássemos por ele.
— Com muito prazer, senhor — disse o primeiro oficial, trocando com seus companheiros um olhar perspicaz que Jack havia notado desde sua chegada à cabine —. Mas se me permite dizê-lo, senhor, o exemplar do The Times ao que Garrón falou tinha outra notícia muito mais interessante, uma notícia que encheu a todos nós oficiais de entusiasmo, pois guardamos uma grande lembrança da senhorita Williams. Em nome de todos, senhor, queremos lhe dar nossos mais sinceros parabéns e desejar-lhe felicidade. E permita-me sugerir-lhe que antes do brinde pelo doutor Maturin façamos outro mais importante.
Lively, em alto mar Sexta-feira 18
Meu amor:
Brindamos por ti, repetindo três vezes três hurras, segunda-feira passada, porque o mensajeiro da frota nos trouxe novas ordens enquanto vigiávamos o cabo Sicié, e também o correio, com três formosas cartas tuas que compensaram minha frustração porque não fomos autorizados a fazer um cruzeiro, como nos correspondia, e deixou um exemplar do The Times com o anúncio de nosso compromiso, embora eu não o sabia nem havia visto o exemplar.
Havia convidado para jantar a maioria dos oficiais, e o bom Simmons deu a notícia e propôs que brindássemos por tua felicidade. Disse coisas muito belas de ti — que todos tinham um grande lembrança da senhorita Williams quando fizera a viagem pelo Canal que, lamentavelmente, havia sido muito curta, e que todos eram seus fiéis... — e muito bem expressadas. Fiquei colorado como um tapa-bocas recém pintado e baixei a cabeça pudorosamente como uma donzela. E pouco faltou para que começasse a choramingar e parecesse uma de verdade, pois desejava com veemência voltar a tê-la a meu lado nesta cabine. Depois, Simmons, em nome dos oficiais, perguntou se preferias uma chaleira ou uma cafeteira, que queriam regalar-te, com uma inscrição apropiada. Sem dúvida, brindar por ti me fez recobrar o ânimo e disse para ele que achava melhor uma cafeteira, e que a inscrição podia ser: “A Lively guarda uma grande lembrança.” Todos a acolheram com entusiasmo, inclusive o pastor, que é um tipo muito insosso.
E essa noite nos acercamos à costa com um vento apropiado para abrir as joanetes, e quando avistamos o cabo Gooseberry pusemos rumo ao posto de sinais; desembarcamos a umas duas milhas deste e atravessamos as dunas para atacá-lo por detrás, pois, justo como suspeitava, seus canhões de doze libras estavam colocados de tal maneira que apenas podiam disparar para o mar ou para a zona da costa que abarcavam com um giro máximo de 75°. Era um caminho difícil, e a areia, arrastada pelo forte vento que costuma soprar naquelas terras, entrava em nossos olhos, nariz e no canhão das pistolas. Diz o pastor que os clássicos não mencionam essa costa, e me parece que os clássicos eram muito inteligentes e sabiam muito bem o que faziam... ali as horríveis tormentas de areia se sucedem uma atrás da outra. Mas apesar de tudo, guiando-nos pela bússula, logramos chegar até o posto sem adverti-los, e entre exaltados gritos o tomamos em seguida. Os franceses fugiram quando entramos, todos menos um alferes, que se defendeu como um herói. Mas Bonden o surpreendeu por detrás e o agarrou pelo pescoço, e então ele explodiu em lágrimas e baixou seu sabre. Depois cravamos os canhões, destruimos o semáforo, explodimos o paiol, pegamos seu código de sinais e votamos apressadamente aos botes em que havíamos chegado. Foi um trabalho excelente, mas lento, e se tivessemos que contar com as marés, o que então não era necessário, estariamos perdidos. E embora os tripulantes da Lively não estejam acostumados a estas piruetas, têm muita vontade, e alguns até gostam.
O alferes ainda estava furioso quando o levamos a nosso barco. Disse que não nos atreveríamos nem a aparecer por ali se a Dioméde, a fragata em que ia seu irmão, ainda estivesse próxima da costa, pois ela nos destroçaria; cria que alguém nos avisara, já que havia traidores em todas partes, e afirmava que ele mesmo havia sido traido. Fez referência à partida da fragata para Port-Vendres, mas não entendemos bem se havia zarpado fazia três dias ou três horas, porque falava muito rápido... e não em inglês, certamente. Nesse momento saiamos a alto mar, onde havia bastante marejada, e já não disse mais nada, o pobre, teve que calar-se porque se havia mareado.
A Dioméde é uma de suas mais potentes embarcações, uma fragata de quarenta canhões de dezoito libras. Sempre ansiei me encontrar com ela, mas agora o almejo mais ainda, porque — não penses mal de mim, meu amor — devo deixar o comando deste barco dentro de poucos dias e esta é minha última oportunidade de me destacar para poder conseguir outro; e como já se sabe, em tempo de guerra, um barco é tão necessário para um marinheiro como uma esposa. Não é preciso que o consiga imediatamente, certamente, mas sim muito antes de que tudo termine. Assim que pusemos rumo a Port-Vendres (poderás encontrá-lo no mapa, está no extremo inferior direito de França, onde as montanhas se unem com o mar, justo antes de começar a Espanha), capturamos dois botes de pescadores que encontramos no caminho e avistamos o cabo Béar pouco depois do crepúsculo, quando ainda havia luz nas montanhas que rodeavam a cidade. Compramos todo o pescado que os pescadores levavam e prometemos que lhes devolveríamos seus botes, mas eram tipos esquivos e não lhes extraimos nada — Está a Dioméde em Port-Vendres?... Sim, talvez... Foi a Barcelona?... Bom, talvez... São senhores uma corja de tontos que não entendem nem o francês nem o espanhol?... Sim, monsieur —, apenas abriam os braços dando a entender que o sentiam mas que eram simplesmente uns humildes pescadores. E quando pedimos ajuda ao alferes, adotou uma atitude altiva e se mostrou surpreso de que um oficial britânico pudesse crer que ele colaboraria no interrogatorio dos prisioneiros; depois fez uma série de considerações sobre honradez e pátria que deviam de ser muito edificantes mas que não entendemos nada.
Assim, mandei Randall entrar no porto em um dos barcos pesqueiros. É um porto longo, com o canal de acesso em forma de linha quebrada e uma entrada muito estreita protegida por um amplo dique, uma bateria a cada lado e outra com canhões de vinte e quatro libras no alto de Bear. É difícil para os barcos entrarem e sairem dele, pois o infernal tramontana açoita a entrada estreita; está muito resguardado e suas águas são profundas e chegam à altura do cais. Ao regressar, Randall disse que havia grande quantidade de barcos dentro do porto e que vira um muito grande de exárcia de cruz ao final, e embora não estivesse certo de que fosse a fragata Dioméde, pois dois botes de guarda haviam passado por diante e estava muito escuro, era muito provável.
Para não te chatear com detalhes, minha queridíssima Sophie, direi que atamos cinco espias unidas por um extremo a nossa melhor âncora, que deixamos firmemente assentada no fundo arenoso para poder rebocar a fragata em caso de que a bateria mais alta nos arrancasse algum mastro, e antes do amanhecesse nos acercamos da costa com vento moderado do NNE. Então começamos a disparar contra as baterias que protegiam a entrada. Quando houve muito mais luz, e aquele era um dia realmente luminoso, ordenamos aos marinheiros que se pusessem as jaquetas vermelhas dos infantes da marinha e fossem nos botes até um povoado situado no outro lado do cabo mais próximo; e como eu esperava, todos os soldados da cavalaria, dos esquadrões, começaram a descer trabalhosamente pelo único e sinuoso caminho que chegava à costa para evitar que desembarcassem. Mas antes de que se fizesse dia, ordenamos que os botes, repletos de marinheiros sob as escotilhas, fossem até o outro lado do cabo Béar e logo se acercaram à costa. Ao receber um sinal dirigiram-se à terra rapidamente, navegando de bolina (com velas latinas navega-se com assombrosa rapidez) e desembarcaram em uma enseada daquele lado do cabo. Depois rodearam a bateria situada ao sul, conseguiram dominá-la, giraram os canhões e abriram fogo contra a outra bateria, o que restava dela Depois de receber os canhonaços da fragata. Enquanto isso, nossos botes regressavam, saltamos neles; e enquanto a fragata disparava para o caminho que levava à costa para impedir os soldados voltarem para trás, nós nos lançamos para o porto na maior velocidade possível. Tinha grandes esperanças de poder alcançar a Dioméde, mas desgraçadamente não era ela que estava ali senão um enorme barco abastecedor, o Dromadaire, que não nos deu problemas. Mas quando uma brigada ia tirando-o do porto com as gávias desfraldadas, chegaram das montanhas rajadas de vento que o açoitaram por proa, e como era difícil de governar por seu imenso tamanho e navegava mal de bolina, ficou preso na entrada do porto, junto ao dique, e começou a fazer água em seguida. Assim lhe ateamos fogo até a linha de flutuação, queimamos todos os demais barcos, menos os de pescadores, explodimos os postos militares de ambos os lados com sua própria pólvora e recolhemos nossos homens. Killick passara parte do tempo em compras, e trazia leite fresco, pão, manteiga, café e o chapéu cheio de ovos. Os tripulantes da Lively tiveram um bom comportamento, não assaltaram as tabernas, e era estupendo ver aos infantes da marinha formando no cais, tão bem alinhados como se fosse acontecer uma revista, embora tivessem um aspecto deplorável e muito estranho, com as camisas a quadros e os suéteres de marinheiro. Regressamos aos botes muito tranquilos e sóbrios e nos dirigimos para a fragata.
Mas a fragata havia se afastado, porque lhe disparavam da fortaleza no alto do cabo Béar, e duas canhoneiras haviam se aproximado desde a costa para interpor-se entre ela e nós e nos lançavam metralha com seus canhões de dezoito libras. Não podiamos fazer outra coisa senão nos aproximar delas, e fizemos isso. Então, quando estávamos a ponto de abordar uma, fiquei muito surpreso ao ver o que os tripulantes da lancha faziam (e já sabes que a maioria são de chineses e malaios, pessoas caladas, corteses e de bom comportamento), pois a metade deles atiraram-se na água e os outros foram a agachar-se junto à borda. Apenas Bonden, Killick, o jovem Butler e eu demos uma espécie de grito de ataque quando chegamos junto à canhoneira, e pensei: “Jack, estás perdido, has contado com um grupo de homens que não te vão seguir.” Mas não havia alternativa, assim que, entre débeis gritos, a abordamos.
Fez uma pausa..., a tinta da pluma começou a secar. Recordava com nitidez como os chineses haviam subido pelo costado segundos antes que começassem os disparos de mosquete e, desafiando as balas, silenciosamente, atacavam aos tripulantes em duplas: um derrubava um homen ao chão e o outro lhe cortava a cabeça, e em seguida pegavam outro e repetiam a operação. Levaram a cabo o ataque de proa a popa, de forma sistemática e eficiente, apenas gritando as vezes para comunicar-se, não para expressar sua raiva. E justo depois de começar o ataque, subiram pelo outro costado os marinheiros javaneses, que haviam passado nadando por debaixo da quilha, e quando os franceses viram aparecer suas mãos ao comprido do corrimão da canhoneira, começaram a correr pela coberta escorregadia dando gritos, enquanto a grande vela latina dava estalidos. E enquanto, lenta mas tenaz, continuava aquela silenciosa luta corpo a corpo, apenas com facas e cordas. Recordava como aquele marinheiro que lutava com ele na proa, um tipo achaparrado com um gorro de lã, havia caído finalmente pela borda, tingindo de vermelho a água. Então ele havia gritado: “Amarrar essas escotas! Pegar o timão! Levar os prisioneiros escotilhas abaixo!”, e Bonden lhe havia respondido assombrado: “Não há prisioneiros, senhor.” Recordava o intenso vermelho da coberta, que brilhava ao sol, aos chineses agachados em parelhas junto aos mortos, despojando-os meticulosamente de seus pertences, aos malaios recolhendo as cabeças e formando montes redondos como balas, e um outro marinheiro fuçando no ventre de um cadáver. Ao timão havia dois homens, e a seu lado, em um volume, tinham o seu butim; as escotas já estavam bem amarradas. Havia visto cenas horríveis... — a matança a bordo de um navio de setenta e quatro canhões em uma encarniçada batalha da Armada, numerosas abordagens, a bahia de Abukir Depois de explodir o Orion — e, não obstante, sentia náuseas; a captura de um barco era um assunto profissional igual a outros, mas lhe fazia sentir-se enjoado de sua profissão. Recordava tudo isto com viveza, mas, como podia descrevê-lo com palavras se não lhe fazia bem escrever? À luz da lâmparina observou a ferida que tinha no antebraço, por cujo bandagem ainda saia sangue, e reflexionou. Em seguida compreendeu que, de fato, não desejava em absoluto descreve-lo, longe disso. Para Sophie, a vida no mar devia ser agradável, não como ir a um pequenique por dia, mas algo bastante parecido, com algumas dificuldades, por suposto (escassez de café, leite fresco e vegetais), e de vez em quando alguns canhonaços e cruzar de sabres que não feriam a ninguém; pensaria que os mortos tinham uma morte instantânea, por causa de feridas que não podiam ser vistas, e que eram simples números na lista de baixas. Molhou a pluma e continuou escrevendo.
Mas me havia equivocado. Abordaram o barco por ambos os costados, tiveram um comportamento excelente e tudo terminou em poucos minutos. A outra canhoneira se retirou enquanto recebeu dois canhonaços desde a proa da Lively. Então, com os botes a reboque, fomos reunir-nos com a fragata, desfraldamos as velas com grande rapidez, recuperamos as amarras e saimos a alto mar. Uma vez ali, viramos ao ESSE 1/2 E, pois não achei conveniente ir até Barcelona perseguindo a Dioméde, já que nos afastaríamos muito de Menorca, pelo oeste, e poderia chegar tarde a meu encontro, o que não seria correto. De fato, temos tempo de sobra, porque esperamos avistar Fornells ao amanhecer.
Queridísima Sophie, confio que me perdoarás por estes borrões; a fragata está avariada e tem um forte cabeceio devido à marejada, e além disso, passei a maior parte do dia tentando estar em três ou mais lugares ao mesmo tempo. Seguramente dirás que não deveria haver desembarcado em Port-Vendres, que fui um egoísta e um desconsiderado com Simmons; sei muito bem que um capitão deveria deixar as ações desse tipo a seu primeiro oficial, pois são as que oferecem a melhor oportunidade de destacar-se. Mas não sabia como iriam comportar-se, comprendes? Não é que duvidasse de sua boa conduta, mas cria que estavam mais preparados para lutar à defensiva ou em um combate entabuado pela esquadra, que lhes faltava estímulo e agilidade porque não têm prática, não estão habituados a incursões rápidas. Por isso levei a cabo o ataque em pleno dia, porque era mais fácil observar os erros; e me alegrei muito de o haver feito, pois houve momentos em que a luta esteve muito concorrida. Em geral, todos tiveram um bom comportamento (os infantes da marinha fizeram maravilhas, como sempre) mas em uma ou duas ocasiões as coisas poderiam ter-se complicado. A fragata tem o casco perfurado em alguns pontos, as cruzetas do mastro traquete destroçadas, a exárcia cortada em várias partes e perdemos a verga da mesana redonda, mas poderia entabuar um combate amanhã mesmo). Por outra parte, tivemos muito poucas baixas, como poderás comprovar pela carta que se fará pública, e quanto ao capitão, apenas foi afetado por uma grande preocupação por sua segurança pessoal e a perda de sua xícara de café, que se fez em cacos quando a levavam ao porão durante a confusão do combate.
Mas prometo que não o farei mais. E creio que o destino me ajudará a cumprir esta promesa, porque se este vento se mantêm, dentro de poucos dias estarei em Gibraltar sem nenhum barco com que voltar a faze-lo.
“Voltar a faze-lo”, escreveu outra vez. Então apoiou a cabeça sobre os braços e em seguida adormeceu.
— Fornells a um grau pela amura de estibordo, senhor — anunciou o primeiro oficial.
— Muito bem — disse Jack em voz baixa, com a sensação de que sua cabeça ia estourar e sentindo a tristeza que costumava invadi-lo depois de uma batalha —. Mantenha-a em apresentável. A canhoneira já está limpa?
— Não, senhor, temo que não — respondeu Simmons.
Jack não disse nada. O dia anterior fora muito duro para Simmons, pois havia rasgado a pele das canelas em Port-Vendres quando subia correndo a escada de pedra do cais, e seguramente por isso estava menos ativo, mas mesmo assim Jack se surpreendeu com isso. Aproximou-se do costado e olhou para a presa; tudo indicava que não a limparam. Observou que aquela mão cortada que antes tinha uma coloração vermelha brilhante agora estava anegrada e encolhida e por seu aspecto poderia confundir-se com uma enorme aranha morta. Voltou e olhou para o contramestre e sua brigada, que trabalhavam no alto da exárcia, depois para o carpinteiro e seus ajudantes, que tapavam um buraco de bala no outro costado, e então, com um sorriso forçado, disse:
— O primeiro é o primeiro. Provavelmente a mandaremos a Gibraltar esta noite e gostaria de dar-lhe uma olhada antes.
Essa era a primeira vez que fazia uma censura a Simmons, embora fosse de maneira indireta. O pobre homem, que mancava e apenas podia ir ao passo de seu capitão, ficou muito mal, e sua expressão era tão angustiada que Jack pensou dizer-lhe algo que o animasse, mas nesse momento apareceu Killick.
— O café está servido, senhor — disse em tom mal-humorado.
E enquanto Jack corria para sua cabine, o ouviu dizer: “...estará gelado..., na mesa desde as seis badaladas..., sim o hei dito uma e outra vez..., custou tanto consegui-lo e o deixa enfriar”. Estas palavras pareciam dirigidas ao infante de marinha que estava de centinela, mas o horror de seu olhar, proporcional a seu respeito, quase sua devoção por Jack, igual ao que sentiam todos os demais no barco, indicava que se negava a prestar-lhes atenção e a apoiá-las.
De fato, o café ainda estava tão quente que Jack quase quemou a língua.
— Excelente café, Killick — disse, depois de beber toda a cafeteira.
Killick deu um grunhido e depois, sem dar a volta, disse:
— Suponho que quererá outra cafeteira, senhor.
Tão forte e quente, que bem sentou! Notava com prazer que sua mente embotada estava cada vez mais ativa. Começou a cantarolar um fragmento de Fígaro e se interrompeu para por manteiga em uma torrada. Killick era um maldito bastardo. Supunha que se intercalasse muitas vezes a palavra “senhor” nas frases, as outras palavras não tinham importância. Mas a verdade era que havia conseguido café, pão, manteiga e ovos na costa e que se os servira na manhã seguinte a uma dura batalha, apesar de tudo permanecer encerrado nas bodegas e de um costado da cozinha ter ficado destroçado pelos canhonaços do cabo Béar. Jack conhecia Killick desde que lhe haviam dado seu primeiro comando, e à medida que ele havia subido de categoria Killick havia se tornado mais mal-humorado. Agora estava mais enfadado que de costume, porque Jack havia rasgado o uniforme — o terceiro já — e havia perdido uma luva.
— A jaqueta rasgada em cinco lugares... Este corte que o sabre lhe fez na manga não sei como vou costurá-lo. Este buraco de bala tem a borda chamuscada, nunca poderei tirar essas manchas de pólvora. As calças em pedacinhos e tudo cheio de sangue e asqueroso como se tivesse deitado em um estábulo, senhor. Não sei o que diria a senhorita...! Quisesse Deus me deixasse cego! A dragona completamente destroçada. Jesus, que vida!
Lá de fora chegava o ruído das bombas e os gritos de: “Pegar e passar! Pegar e passar!” enquanto se estendia a mangueira; tudo indicava que os faxineiros iriam subir a bordo da canhoneira. E pouco depois, quando Killick havia acabado de repetir o sermão do uniforme do dia anterior, recordando quanto custava, o senhor Simmons mandou preguntar se podia ser atendido. “Deus meu! Havia sido excessivamente rude e severo?”, pensou, e depois em voz alta disse:
— Díga-lhe que entre. Entre, entre, senhor Simmons. Sente-se. Gostaria de uma xícara de café?
— Obrigado, senhor — disse Simmons, olhando inquisitivamente —. Que aroma tão delicioso! Tomei a liberdade de incomodá-lo porque Garrón encontrou isto em uma gaveta quando registrava a cabine do capitão da canhoneira. Não tenho tantos conhecimentos de francês como senhor, senhor, mas quando dei uma olhada pensei que o senhor devia vê-lo imediatamente.
Então passou para Jack um livro comprido e fino, com as capas feitas de lâminas de chumbo.
— Oh! — exclamou Jack, com um intenso brilho no olhar —. Bendito seja Deus! Encontramos um tesouro! Sinais secretos..., um código numérico..., sinais luminosos..., de reconhecimento na névoa..., dos espanhóis e outros aliados... Sabe senhor o que quer dizer banniére de partance? O pavillon de beaupré é a bandeira de proa. O misaine é o mastro traquete, embora senhor não o creia. Que significará hunes de perroquet? Bom, ao diabo as hunes de perroquet, os desenhos estão muito claros. São estupendos, verdade? — Voltou observar a página —. É válido até o dia vinte e cinco. Provavelmente o mudarão com a lua. Espero tirar proveito dele; é um tesouro, mas apenas enquanto tenha validade. Como vai o trabalho na canhoneira?
— Muito adiantado, senhor. Estará pronta para receber sua visita quando as cobertas tiverem secado.
Existia na Armada a superstição de que o solo molhado era mortal para os oficiais superiores e que sua perigosidade aumentava à medida que a graduação era mais alta. Poucos primeiros oficiais iam à coberta se a limpeza de cada manhã não estivesse quase terminada e nenhum capitão de fragata nem de navio subia até que as houvessem secado completamente com lampazos{1} e rolos de borracha. Justo nesse momento secavam com lampazos as cobertas da canhoneira.
— Penso enviá-la a Gibraltar sob o comando do jovem Butler, acompanhado de um ou dois cabos responsáveis e a tripulação da lancha. Butler teve um comportamento destacado— disparou-se sobre o capitão da canhoneira —, e os outros também, embora seguindo seus costumes selvagens. Ter um comando lhe fará bem. Tem alguma observação a fazer, senhor Simmons? — perguntou, olhando nos olhos do Tenente.
— Bom, senhor, já que teve a delicadeza de me preguntar, lhe sugeriria que enviasse outra tripulação. Não tenho nada que dizer em oposição desses homens, são calados, atentos, estão sóbrios, não criam problemas e jamais fazem corpo mole, mas capturamos os chineses em um junco{2} que ia armado e sem nenhuma carga, seguramente um barco pirata, e aos malaios em um prao com as mesmas características, e penso que se os mandamos longe poderiam ter a tentação de voltar a seus antigos hábitos. Se houvéssemos encontrado alguma prova, lhes haveríamos enforcado; chegamos a colocar a corda no extremo de uma verga, mas o capitão Hammond, que também é advogado, sentiu escrúpulos porque faltavam provas. Pouco depois correu o rumor de que eles as haviam comido.
— Piratas? Agora entendo. Isso explica muitas coisas. Sim, muitas, certamente. O senhor tem certeza?
— Não tenho nenhuma dúvida, tanto pelas circunstâncias em que os encontramos como pelos comentários que deixaram escapar. Nesses mares, desde o golfo Pérsico até Borneo, um em cada dois barcos é pirata, ou se comporta como tal quando surge a ocasião. Então têm outro modo de ver as coisas. Mas, se digo a verdade, não gostaria agora de ver o Alto nem o John Satisfacción pendurado em uma corda com nó corrediço, porque têm mudado muito desde que estão entre nós. Hão deixado de rezar aos ícones e de cuspir na coberta e escutam com grande respeito as passagens que lhes lê o senhor Carew.
— Oh, não! Agora não é possível! — exclamou Jack —. Se o Juiz Supremo da Armada me dissesse que enforcasse a um capitão da cesto da gávea ou mesmo a um marinheiro de primeira lhe diria... me negaria. Mas, como o senhor diz, não devemos propiciar que sintam essa tentação. Havia pensado nisso como uma mera possibilidade, mas talvez seja melhor que a canhoneira siga conosco. Sim, creio que é melhor. De toda forma, Butler irá ao comando. Por favor, tenha a amabilidade de dizer para ele que escolha uma tripulação adequada.
A canhoneira seguiu com eles. E quando já anoitecia, o bote da Lively, dando um rodeio por detrás da popa, se dirigiu para a costa, para a borrada silhueta da ilha. Do seu próprio castelo de popa, o senhor Butler deu a ordem de saudar, e sua voz, a princípio muito grave, subiu de tom até tornar-se estridente, porque pela primeira vez sentia a angústia que um comando trazia consigo.
Jack estava sentado na popa do bote, envolto em uma capa alcatroada e com um farol de sinais entre os joelhos. Sentia-se contente por antecipação, pois ia ver Stephen Maturin depois de muito tempo, um tempo que havia parecido ainda mais comprido devido à horrível monotonia do bloqueio. Que somente havia sentido por não escutar aquela voz áspera e desagradável! Havia duzentos e cinquenta e nove homens vivendo mesclados na coberta inferior e o que fazia o número duzentos e sessenta era um ermitão; mas esse era o destino de todos os capitães, a culminação da profissão de marinheiro, e como tantos outros, quando era Tenente havia posto todo o seu empenho em conseguir esse absoluto isolamento, embora admiti-lo não mudava em nada as suas consequências. Filosofar não servia de consolo. Seguramente Stephen haveria visto Sophie a poucas semanas e teria alguma mensagem dela, talvez até mesmo uma carta. Jack levou a mão ao anel de cabelo que tinha oculto em seu peito e ficou concentrado. As ondas moderadas chegavam por popa, empurrando o bote para terra, e Jack adormeceu com seu vaivém e com o rangido e o movimento acompasado dos remos. E até mesmo dormido sorria.
Conhecia bem aquela enseada, e a maior parte da ilha, porque estivera de serviço nela quando era possessão Britânica. Chamava-se enseada Blau, e ele e Stephen foram ali repetidamente desde o Porto Mahón para ver uma casal de falcões de patas vermelhas que tinham seu ninho no alto do penhasco.
A reconheceu em seguida, no mesmo momento que Bonden, seu timoneiro, levantava a vista da bússola e dava uma ordem em voz baixa para desviar um pouco o rumo. Ali estava o curioso pico rochoso, a capela em ruinas, destacando-se sobre o horizonte, e um buraco muito escuro na parte baixa do penhasco que era uma caverna onde as focas frade tinham a suas crias.
— Parem de remar! — sussurrou, e moveu o farol de sinais em direção à costa, observando na escuridão.
Não houve nenhum sinal luminoso em resposta, mas isso não o preocupou. Então ordenou:
— Retroceder!
E quando os remos afundaram na água, aproximou seu relógio da luz. Haviam calculado bem o tempo: dez minutos para chegar. Mas Stephen não tinha, nem poderia devido à sua natureza, o sentido do tempo de um marinheiro. De toda forma, esse era apenas o primeiro dos quatro dias em que poderiam reunir-se.
Voltou o olhar para o leste. Viu as primeras estrelas das Pléyades brilhando no horizonte e recordou que uma vez que recolhera Stephen em uma praia deserta as estrelas brilhavam assim. O bote tinha um suave cabeceio e mantinha a popa para terra com um simples toque de remos. Agora as Pléyades haviam subido e podia ver-se toda a constelação. Fez outro sinal. “É muito provável que não possa encender uma luz”, pensou, ainda sem se inquietar. “Em qualquer caso, queria caminhar por ali. Além disso, lhe deixarei uma mensagem secreta.” Então, em voz alta, disse:
— Aproxime o bote da costa, Bonden. Devagar, devagar, sem fazer ruido.
O bote deslizou pelas águas escuras, onde se refletia a luz das estrelas. Pararam duas vezes para escutar; em uma das vezes se ouviu o resfolêgo de uma foca que saia à superfície, e depois nada mais, até que se escutou a areia aranhando a proa.
Percorria a praia em forma de meia lua de um extremo a outro, com as mãos para trás das costas, deixando alguns sinais secretos que fariam Stephen sorrir se faltasse ao primeiro encontro. Sentia certa tensão, sem dúvida, mas esta não se parecia em nada à terrível ansiedade que o invadira naquela noite muito tempo atrás, ao sul de Palamós, quando não sabia do que seu amigo era capaz.
Saturno apareceu por detrás das Pléyades. Subiu e subiu até situar-se quase a dez graus do horizonte. Acima de sua cabeça, Jack ouviu um ruído de seixo na vereda que atravessava o penhasco. Cheio de esperança, levantou o olhar e, ao distinguir uma silhueta que se movia, começou a assobiar muito baixo Deh vieni, non tardar.
Não houve uma resposta imediata, mas pouco depois, do alto chegou uma voz:
— Capitão Melbury?
Jack permaneceu detrás de uma rocha, sacou sua pistola e a armou.
— Desça! — disse amavelmente, e depois voltou-se para a caverna —. Bonden, venha!
— Onde está senhor? — sussurrou a voz ao pé do penhasco.
Quando Jack estava seguro de que nada se movia na vereda, deu vários passos pela areia e iluminou com o farol a um homem vestido com uma capa marrom, de rosto seco e expressão cansada, acentuada por aquela luz em meio à escuridão. O homem se adiantou com os braços estendidos e repetiu:
— Capitão Melbury?
— Quem é o senhor, senhor? — perguntou Jack.
— Joan Maragall, senhor — sussurrou em inglês com sotaque menorquino, muito parecido ao inglês que falavam em Gibraltar —.Esteban Domanova me mandou. Encarregou-me que lhe dissesse: Sophie, Mapes, Guarneri.
Melbury Lodge era a casa que ambos haviam compartilhado; Domanova era o segundo apelido de Stephen; e enquanto a Guarneri, ninguém mais que Stephen sabia que estivera a ponto de comprar-se um. Desarmou a pistola e a jogou para trás.
— Onde ele está?
— Foi capturado.
— Capturado?
— Sim, capturado. Deu-me isto para o senhor.
À luz do farol, Jack viu no papel uma série de palavras dispersas e inconexas. Começava: “Querido J...”, depois algumas palavras, filas de números e por último a assinatura, um “S” de sinuosas curvas com um dos extremos saindo pela ponta do papel.
— Esta não é sua letra — sussurrou, imóvel na escuridão, com a certeza de que havia ocorrido o pior e sentindo desconfiança outra vez —. Esta não é sua letra.
— Ele foi torturado.
Planta de talo grosso com flores vermelhas com cálice escamoso e espinhoso. Espécie de embarcação asiática pequena com velas reforçadas com canas de bambu.
CAPÍTULO 3
Na cabine, à luz da oscilante lamparina, Jack observou atentamente a Maragall. Tinha o rosto curtido, de aspecto juvenil, com linhas muito pronunciadas e marcas de varíola, e seus dentes estavam em muito más condições. Um de seus olhos tinha uma horrível aparência, mas o outro era grande e expressivo. O que devia pensar dele? Seu inglês era fluido e perfeitamente comprensível, mas com sotaque menorquino, um sotaque estrangeiro que impedia apreciar se falava com sinceridade. O pedaço de papel que agora se encontrava sob a lamparina estava escrito com carvão e quase toda a mensagem estava borrada ou apagada: “Não...”, depois provavelmente a palavra “esperar” e outras sublinhadas das que apenas ficava a listras. Depois “envia isto a” seguido de um nome, talvez Saint Joseph?, e “não confies”. Seguiam então cinco filas de números das que apenas se viam alguns traços, e por último o sinuoso “S”.
Era possível que tudo fosse uma armadilha muito bem ideada ou uma tentativa de incriminar a Stephen. Tratou de encontrar o fio das frases, examinou o papel e considerou rapidamente todas as possibilidades. Às vezes Jack era tão insensato como um lliquillo, e essa faceta de seu caráter encantava a Sophie, embora ninguém que o visse agora ou que o tenha visto em uma batalha poderia crer que existia.
Pediu a Maragall que continuasse seu relato. Contou que Stephen ficara em apuros pela primeira vez quando o denunciaram às autoridades espanholas, mas tudo havia se resolvido graças à apresentação do passaporte estadunidense (o senhor Domanova passava por um norte-americano de origem espanhola) e à mediação do vigário geral; mas então os franceses intervieram e levaram o suspeito ao seu quartel General apesar dos irados protestos. Segundo ele, entre franceses e espanhóis, embora fossem aliados, havia rivalidade em todos os âmbitos, entre suas administrações, seus exércitos, suas armadas e inclusive sua população civil; os franceses se comportavam como se estivessem em território conquistado, e isto provocava que até mesmo catalães e castelhanos se unissem. Sobretudo existia um enorme ódio contra uma suposta comissão francesa para assuntos comerciais que, de fato, era um grupo dos serviços secretos, pequeno mas muito ativo, ao que haviam se incorporado recentemente um tal coronel Auger (um estúpido) e o capitão Dutourd (um homem brilhante), chegados diretamente de París; o grupo se dedicava laboriosamente a recrutar informantes e era pior que a Inquisição. O ódio aos franceses, cada vez maior, era compartilhado por quase todos, exceto por alguns oportunistas e os líderes de Fraternitat, uma organização que queria utilizá-los em vez dos ingleses para enfrentar aos castelhanos, quer dizer, conseguir a independência catalã com a ajuda de Napoleão em vez de Jorge III.
— O senhor pertenece a uma organização diferente, senhor? — perguntou Jack.
— Sim, senhor. Sou o chefe da Confederació da ilha, por isso conheço tão bem a Esteban. E por isso pude vê-lo em sua cela, dar-lhe mensagens e trazer as suas. Nossa organização é a única que tem um forte apoio, a única que realmente faz algo diferente de pronunciar discursos e denunciar. Dois de nossos homens estão no quartel General francês durante o dia, e meu irmão, que é sacerdote, há entrado várias vezes. Inclusive eu mesmo pude levar para ele o láudano que pedira e falar com ele através dos barrotes; Foi então quando me disse as palavras que devia pronunciar.
— Como ele está?
— Fraco. Tratam-o sem compaixão.
— Onde fica? Onde fica o quartel General?
— O senhor conhece Porto Mahón?
— Sim, muito bem.
— Sabe onde vivia o comandante inglês?
— Está na casa do senhor Martínez?
— Exatamente. Apropiaram-se dela e utilizam a casinha que está detrás do jardim para fazer os interrogatórios, porque fica mais longe da rua, embora possa-se ouvir os gritos desde a igreja de Santa Ana. Às vezes, às três o às quatro da madrugada, tiram cadáveres e os jogam no porto, detrás dos curtumes.
— Quantos homens há?
— Cinco oficiais e um guarda que se aloja nas barracas do rei Alfonso. Há seis homens de serviço em cada turno e a troca de guarda é às sete. Não há sentinelas fora para não chamar a atenção; parece um lugar muito tranquilo. Também há alguns civis: intérpretes, serventes, pessoas que se ocupam da limpeza. Entre eles, como já lhe disse, há dois dos nossos.
Soaram oito badaladas; a guarda cambiou na coberta. Jack olhou o barômetro, que cada vez baixava mais.
— Senhor Maragall, escute-me atentamente — disse —. Contarei qual é meu plano e peço que faça as observações que creia oportunas. Tenho em meu poder uma canhoneira francesa que capturamos ontem; a levarei a Porto Mahón e uma brigada desembarcará no Rincão de Johnson ou Boca Pequena. Então os homens, separados em vários grupos, irão por detrás da igreja de Santa Ana até o muro do jardim, tomarão a casa o mais silenciosamente possível e voltarão à canhoneira ou rodearão a cidade para ir à Enseada Garau. Os pontos fracos são: a entrada no porto, os guias e os caminhos alternativos para a retirada. O senhor sabe se há algum barco francês no porto? Como se recebem os barcos franceses, que requisitos devem cumprir para entrar, quem os visitam, onde atracam?
— Sou advogado e não sei muito dessas coisas — respondeu e depois fez uma demorada pausa —. Não, agora não há nenhum barco francês. Quando chegam frente ao cabo da Mola se comunicam com a costa mediante sinais, mas não sei quais são. Em seguida o prático do porto vai a seu encontro e comprova se há neles enfermidades ou pragas; se têm uma boa evidência de sanidade, lhes guia até o atracadouro; e se não a têm, até onde devem passar a quarentena. Me parece que os franceses atracam em frente à aduana. O capitão apresenta seus respeitos ao almirante do porto, mas não sei quando. Poderia averiguar isso e tudo o mais se me desse tempo. Meu primo é o médico.
— Não há tempo.
— Sim, senhor, tem que haver tempo — disse Maragall devagar —. Mas, crê que conseguirá entrar no porto? Crê que não lhe dispararão, embora vejam sinais estranhos, pelo fato de levar a bandeira francesa?
— Entrarei.
— Muito bem. Então, se me levar à terra antes que amanheça, poderei ir no barco do prático a reunir-me com o senhor ou direi a meu primo o que deve fazer. Em qualquer caso, me reunirei com o senhor, averiguarei quais requisitos deve cumprir e lhe informarei dos preparativos que haja feito. O senhor necessita de guias, e certamente os encontraremos. E também caminhos alternativos para a retirada. Tenho que pedir conselho.
— Então, o senhor crê que este plano é factível?
— Sim. Com relação à entrada, sim. Quanto à saida..., bom, o senhor conhece o porto tão bem quanto eu: há canhões isolados e baterias ao longo de quatro milhas. Apesar de tudo, é o único plano, e há muito pouco tempo. Seria terrível que uma vez dentro, por qualquer bobeira que meus amigos lhe dissessem, o senhor desconfiasse de nós. Tem poucos desejos de me levar a terra, certo?
— Não, senhor. Não Sou um grande político nem sei julgar às pessoas, mas meu amigo sim. É uma satisfação arriscar a minha cabeça por uma decisão sua.
Mandou buscar o oficial de guarda e lhe ordenou:
— Senhor Fielding, ponha rumo a terra, à Enseada Blau — disse, olhando Maragall, que assentiu com a cabeça —. A Enseada Blau. Abra o máximo de velame possível. Tenha preparado o cúter azul para utilizá-lo em qualquer momento.
Fielding repetiu a ordem, saiu apressadamente, e quando ainda não havia chegado onde estava o sentinela começou a gritar:
— Todos à coberta!
Jack ficou escutando as rápidas pisadas uns momentos e depois disse:
— Enquanto nos aproximamos da costa, analizaremos os detalhes. Gostaria de um pouco de vinho..., um sandwill?
— Quatro badaladas, senhor — disse Killick, o despertando —. O senhor Simmons está na cabine.
— Senhor Simmons — disse Jack em tom grave —. Levarei a canhoneira ao Porto Mahón ao entardecer. Pelas características da expedição, não pedirei a nenhum dos oficiais que venha comigo. Afinal, creio que nenhum deles conheça bem a cidade. Gostaria que os tripulantes da lancha me acompanhassem como voluntários, mas adivirta-os que esta é uma expedição... é uma expedição um pouco perigosa. A pinaça permanecerá na caverna da Enseada Blau de meia-noite até o entardecer seguinte, e então, a menos que receba outras ordens, deverá encontrar-se de novo com a fragata no lugar que marquei aqui. A lancha esperará em Rowley's Creek e seguirá as mesmas ordens. Devem levar provisões para uma semana. Depois de enviar as embarcações, a fragata virará a barlavento e se dirigirá ao cabo da Mola. Esperará em frente a ele até o amanhecer e, com a bandeira francesa içada, se aproximará da costa, sem ficar ao alcance dos canhões. Espero reunir-me com ela então ou durante o dia, mas se às seis não tiver chegado, deverá comparecer ao primeiro encontro sem perder tempo e depois, após percorrer a zona durante vinte e quatro horas, rumará para Gibraltar. Aqui estão suas ordens, e nelas verá escrito claramente o que vou lhe dizer: não haverá nenhuma tentativa de resgate.
A ideia de ver desembarcar esses homens nobres e valentes em uma terra desconhecida, mas sem estímulo nem imaginação, e de que a fragata fosse presa das canhoneiras espanholas ou das grandes baterias do castelo de Santo Felipe ou do cabo da Mola, o fez repetir de novo estas últimas palavras. E depois de uma curta pausa, continuou em tom confidencial:
— Meu Querido Simmons, estes são alguns documentos pessoais e algumas cartas que, se não for incômodo, lhe pediria que enviasse de Gibraltar se as coisas saem mal.
O primeiro oficial olhou para o chão e depois outra vez para Jack. Estava muito preocupado e, obviamente, buscava palavras para se expressar. Mas Jack não queria ouvi-las, porque aquele era um assunto exclusivamente seu. Simmons, à parte de seus homens mais próximos, era o único a bordo que conhecia até o último Rincão de Porto Mahón e sobretudo o único que estivera no jardim da casa de Molly Harte e em sua sala de música, mas Jack, naquele momento de grande tensão, não queria que ninguém lhe mostrasse seus sentimentos, tampouco queria compartilhar os seus com ninguém.
— Tenha a amabilidade de falar com os tripulantes da lancha, senhor Simmons — continuou, com certa impaciência —. Os que desejarem ir devem ser substituidos em suas tarefas, pois necessitam descansar. Além disso, queira falar com meu timoneiro. Quero que a canhoneira se aborde com a fragata e quando estiver feito subirei nela. Isso é tudo, senhor Simmons.
— Sim, senhor — disse Simmons.
Ao chegar à porta deteve-se e voltou-se, mas Jack já estava ocupado com os preparativos.
— Killick! — gritou —. Meu sabre perdeu o fio ontem. Peça ao armeiro que o deixe afiado como uma navalha de barbear. Peça também que para ele dar um olhar em minhas pistolas. Ah, Bonden, estás aí! Recuerdas Mahón?
— Com todo detalhe, senhor.
— Bem. Esta tarde levaremos a canhoneira lá. O doutor se encontra prisioneiro na cidade e o estão torturando. Esse livro que vês aí contém os sinais dos franceses; veja quais são as bandeiras e os faróis da canhoneira e comprove se tudo está a bordo. Se não, consiga-o. Pega seu dinheiro e sua roupa de abrigo, já que podemos ir parar em Verdún.
— Sim, sim, senhor. Aqui está o senhor Simmons, senhor.
O primeiro oficial lhe informou que todos os tripulantes da lancha haviam se oferecido voluntários, pelo que lhes havia relevado de suas tarefas. E acrescentou:
— Por outra parte, senhor os oficiais e marinheiros se desgostariam não acompanhar-lhe..., não ser escolhidos pelo senhor. Espero que não me decepcione nem ao grupo de oficiais, senhor.
— Entendo o que sentem, Simmons, e isso lhes honra; até mesmo eu sentiria o mesmo. Mas esta é uma... expedição muito especial. Minhas ordens não mudam. Já está abordada conosco a canhoneira?
— Encontra-se junto à alheta, senhor.
— Diga ao senhor West e a seus ajudantes que comprovem como está a exárcia antes que suba a bordo, dentro de meia hora. E os tripulantes da lancha devem levar gorros de lã como se usam no Mediterrâneo — disse, olhando o relógio.
— Sim, senhor — disse Simmons com a voz triste e apagada.
Meia hora depois Jack subiu à coberta com um uniforme descolorido, umas botas de Hesse, uma capa e um chapéu de três picos.
— Já não voltarei à fragata enquanto não terminar tudo em Porto Mahón, senhor Simmons. Quando suenen as oito badaladas da guarda de tarde, mande a lancha. Adeus.
— Adeus, senhor.
Apertaram as mãos. Jack fez uma inclinação de cabeça aos outros oficiais e levou a mão ao chapéu; então o baixaram pelo costado.
E quando subiu a bordo da canhoneira pegou o timão e virou a sotavento. A canhoneira começou a deslocar-se rapidamente, com o vento pela alheta de estibordo, e quando a ilha apareceu pelo sul, que se estendia formando numerosos cabos, orçou descrevendo uma suave curva. Não era como as canhoneiras regulamentares de Tolón nem como as pesadas canhoneiras espanholas que saiam de Algeciras quando havia calma, navegando com dificuldade pelas águas tranquilas; tampouco era como essa espécie de carro flutuante com somente um canhão pesado que se encontrava nos portos (se assim fosse, Jack não a haveria levado até ali). De fato, era uma barca longa de coberta cortada, onde havia uma grande porta corrediça que permitia guardar o canhão junto ao mastro, um mastro curto e gordo e um pouco inclinado para a frente. Era uma embarcação perfeita para navegar pelo Mediterrâneo e capaz de entrar e sair de qualquer porto.
Contudo, não era nenhuma maravilha. Enquanto Jack orçava, notava a resistência oferecida pelo timão e o peso do canhão na proa. Mas depois de colocar-se contra o vento, a menos de cinco graus de sua direção, a canhoneira manteve seu rumo, sem desviar-se nem perder velocidade, soportando valentemente o embate das ondas enquanto sua espuma, com um estrondo sibilante, chegava até a popa.
Esse era o tipo de coisa que ele entendia. A imensa vela latina com a verga curva não lhe resultava tão familiar como a exárcia de cruz ou a de um cúter, mas, em essência, todas eram iguais. Sentia-se como um jóquei cavalgando em um brioso cavalo que pertenciam a outra cavalariça. Fez a canhoneira navegar de todas as formas possíveis: normal, relaxada, firme e segura, descrevendo grandes curvas ao redor da fragata até que o sol se ocultou no oeste.
Então se aproximou da Lively por sotavento, fez um sinal para avisar à lancha e se foi abaixo. E sentado na reduzida cabine triangular do defunto capitão, consultava as cartas marítimas e os livros de sinais, enquanto os tripulantes com chapéu vermelho subiam a bordo. Contudo, não tinha muita necessidade de consultá-los, pois, por um lado, conhecia as águas menorquinas como a palma de sua mão e, por outro, recordava muito bem a disposição das bandeiras e as luzes; realmente o fazia porque, nesses momentos, qualquer contato com o barco suporia perder parte da força que necessitaria dentro de poucas horas. Dentro de poucas horas..., se a descida da pressão e o mau aspecto do céu não eram sinais de que ia desatar-se um vendaval.
Bonden o informou que todos os marinheiros haviam se apresentado e estavam sóbrios. Então Jack subiu à coberta, completamente absorto; moveu a cabeça com impaciência ao ouvir alguns gritos espontâneos de saudação, virou o timão a estibordo e pôs rumo ao cabo mais oriental da ilha. Viu Killick rondando por ali, ao contrário de suas ordens; tinha uma expressão mal-humorada e levava uma cesta com comida e algumas garrafas. Atrás dele Jack viu o oficial de navegação, chamou-o, entregou-lhe o timão e disse o rumo que ele devia seguir; então começou seu habitual passeio de um lado a outro do barco, observando as mudanças do vento, a velocidade da canhoneira e a silhueta mutável da ilha.
A costa se encontrava mais ou menos a uma milha (1.852 m) por estibordo, e lentamente, como num sonho, iam sucedendo-se cabos, praias e calas que conhecia muito bem. Os homens estavam tranquilos. Jack teve a sensação de que seu constante ir e vir naquele silêncio lhe afastava da realidade, impedia sua concentração, então desceu e, agachando-se, entrou na cabine.
— Já estás outra vez com suas malditas tolices, pelo que vejo — disse secamente.
Killick, sem se atrever a dizer nada, serviu cordeiro frio, pão e manteiga e rosé.
“Tenho que comer”, disse, e forçou-se a começar a comer. Mas sentia como se o estômago estivesse fechado, e até o vinho parecia passar com dificuldade por sua garganta. Nunca lhe havia ocorrido algo assim, em nenhuma batalha nem em nenhuma situação de emergência ou crítica.
— É inútil — disse, deixando a comida de lado.
Quando subiu de novo à coberta, o sol estava apenas a um palmo das montanhas, a oeste, e o cabo da Mola aparecia pela amura de estibordo. O vento soprava agora em fortes rajadas e os homens achicavam; seria difícil dobrar o cabo e possivelmente teriam que remar para aproximar-se à costa. Mas haviam chegado no tempo previsto. Jack queria passar em frente das baterias exteriores ainda à luz do dia, com a bandeira francesa bem visível, e entrar no comprido porto quando começasse a escurecer. Olhou a bandeira tricolor na ponta do mastro e os ganchos que Bonden já havia colocado nas adriças, para os sinais, e então segurou o timão.
Agora não havia tempo para refletir; agora dedicava toda sua atenção a questões materiais e imediatas. O cabo estava cada vez mais próximo e as grandes ondas lhe chegavam de frente; tinha que dobrá-lo nessas condições, e mesmo fazendo os cálculos mais precisos, alguma contra-corrente que chegasse do penhasco podia fazer-lhes virar ou desviar-se a sotavento.
— Agora, Bonden! — ordenou quando o posto de sinais ficou visível.
As bandeiras de sinais foram içadas em seguida, abriram e ficaram claramente visíveis. Jack observou o mar e as velas forçadas, depois olhou para o alto, onde estava a bandeira espanhola, apenas movida pela brisa. Se o sinal fosse o correto, a bandeira seria arriada. Estava imóvel ali acima, imóvel, tão rígida que de longe parecia de madeira. Estava imóvel..., e por fim foi arriada e em seguida foi içada de novo.
— Admitidos — disse Jack —. Cubrir os cabos. Permanecer junto a essas adriças.
Os marinheiros estavam silenciosos em seus postos, olhando às vezes o céu, outras a tensa exárcia. Jack franziu os lábios e virou com força o timão; a canhoneira orçou imediatamente e o corrimão de sotavento foi se afundando cada vez mais na espuma; depois, com o vento de través seguiu virando e virando, e pela amura de bombordo apareceu o castelo de Santo Felipe. À proa, a um quarto de milha de distância, havia uma ampla franja de espuma que marcava a zona das lufadas de vento; a canhoneira a atravessou e, de repente, encontrou-se deslizando suavemente por águas tranquilas, ao abrigo do cabo.
— Satisfacción, ponha-se ao timão! — ordenou —. Bonden, assuma o governo do barco!
As duas margens do canal que levava ao porto se estendiam paralelamente e quase chegavam a juntar-se na entrada estreita, em cujos lados as baterias ficavam. Embora algumas casamatas já estivessem acesas, no mar ainda havia bastante claridade e um observador poderia distinguir que era um oficial quem levava o timão, o que resultaria extremamente raro. Mais próximo, cada vez mais próximo; e por fim a canhoneira atravessou a entrada, tão próxima aos canhões de quarenta e duas libras das margens que quase podiam tocar-se as bocas com a mão. Na penumbra ouviu alguém dizer: “Parlez vous françáis?” e depois rir à gagalhadas, e depois outra voz gritou: “ Filhos de puta!”
Mais adiante, aproximadamente a uma milha de distância pela amura de estibordo, encontrava-se a extensa ilha onde estava o hospital, o lazareto. Os últimos lampejos da luz do dia haviam desaparecido dos picos das montanhas e o lango porto ficou envolto em uma luz púrpura com matizes negras; algumas rajadas da tramontana que soprava fora chegavam mesmo ali, ondeando a superfície do mar. E para lá das luzes — cada vez mais numerosas —, estava o imenso espaço entre as montanhas onde o Agamemnon, a causa de uma rajada como essa, havia virado a finais de 1798.
— Carregar as velas! Pegar os remos! — ordenou.
Ficou olhando a ilha do lazareto e seus olhos umedeceram. Por fim um bote começou a acercar-se.
— Silêncio de proa a popa! — gritou —. Não quero ouvir ninguém falar nem gritar, me ouviram?
— Um bote pela amura de estibordo, senhor — murmurou Bonden ao seu ouvido e ele assentiu com a cabeça.
— Quando eu mover a mão assim — disse —, é para começar a remar. E quando a mover outra vez, retroceder.
Iam se aproximando pouco a pouco. Embora Jack estivesse tranquilo e tivesse a mente lúcida, notou que lhe faltava a respiração; então aspirou profundamente, e nesse momento ouviu-se gritar do bote:
— Ei, da barca!
— Ei! — repetiu ele e agitou a mão.
O bote abordou com a canhoneira, se enganchou com o bichero, e um homem saltou acanhadamente ao corrimão. Jack o segurou pelos braços, ajudou-o a subir e olhou a cara dele: era Maragall. O bote se afastou; Jack fez a Bonden um gesto significativo com a cabeça, agitou a mão e baixou com Maragall à cabine.
— Como ele está? — sussurrou.
— Vivo..., ainda..., mas planejam transferi-lo. Não lhe enviei nenhuma mensagem, mas recebi uma.
Tinha uma expressão de cansaço e uma palidez cadavérica, mas fez um esforço pora sorrir e disse:
— Vejo que entrou sem problemas, senhor. Deverá atracar em frente ao cais de avitualhamento; lhes hão deram esse lugar asqueroso por serem franceses. Escute-me, tenho quatro guias e a igreja estará aberta. Às duas e meia acenderemos fogo ao armazém de Martínez, que fica próximo do arsenal: foi Martínez quem o denunciou. Isto permitirá a um amigo meu, um oficial, mover as tropas. Às três já não haverá soldados nem policiais em um quarto de milha ao redor da casa. E os dois homens de nossa organização que trabalham lá estarão esperando na igreja e lhe ensinarão como entrar. De acordo?
— Sim. Quantos homens haverá ali esta noite?
— Chamam do bote, senhor — disse Bonden, assomando a cabeça.
Ambos saltaram de seus assentos e Maragall saiu e se pôs a esquadrinhar o mar. As luzes brilhantes de Mahón iluminavam todo o cabo, e sobre esse fundo se recortava a silhueta negra de um falullo (embarcação que possui uma vela latina triangular), a umas cem jardas de distância. Voltaram a gritar do falullo.
— Quer saber como está o tempo fora do porto — sussurrou Maragall.
— Há vento forte, como para suportar as gávias com todos os rizos — lhe responderam.
Maragall lhes gritou algo em catalão e o falullo começou a afastar-se das luzes. De volta à cabine, secou o rosto sem pronunciar uma palavra.
— Oh, quanto desejaria que tivéssemos mais tempo! Quantos homens? Oito soldados e um cabo, um intérprete provavelmente e todos os oficiais, embora talvez não haja regressado o coronel, que foi à cidadela jogar cartas. Qual é seu plano?
— Desembarcar em pequenas brigadas entre as duas e as três, chegar a Santa Ana pelas ruas traseiras, saltar ao jardim pelo muro posterior e entrar na casinha. Se ele estiver lá, sairemos em seguida por onde chegamos, se não, atravessaremos o pátio, e revistaremos a casa, fechando antes todas as portas. Faremos tudo silenciosamente, se é possível, e depois voltaremos à canhoneira. Em caso de luta, iremos pelo campo; tenho botes em Cala Blau e Rowley's Creek. Pode conseguir cavalos? Necessita de dinheiro?
— Não é apenas Esteban — disse Maragall, sacudindo a cabeça com impaciência —. Se os demais prisioneiros não forem liberados, as suspeitas recairão sobre ele. Será descoberto, e apenas Deus sabe quantos mais o serão. Além disso, entre eles haverão alguns dos nossos.
— Compreendo.
— Ele lhe diria o mesmo — sussurrou Maragall ansioso —. Isto deve parecer uma insurreição de todos os prisioneiros.
Jack assentiu com a cabeça, olhando pela janela de popa, e observou:
— Quase chegamos. Venha à coberta enquanto atracamos.
O velho cais de víveres estava cada vez mais próximo, e também seu fedor. Passaram junto à aduana, toda iluminada, e voltaram depois à escuridão. O bote do prático de porto lhes saudou e virou para voltar ao porto. Maragall lhe respondeu. Pouco depois, Bonden murmurou: “Guardar os remos!” e muito devagar encostou a canhoneira do cais preto e gordurento. Amarraram-na em um par de postes do cais e permaneceram em silêncio, enquanto as ondas acariciavam o costado de estibordo e os ruidos difusos da cidade chegavam pelo outro costado. Passado o cais de pedra havia um indefinido montão de lixo, bem mais distante, uma fábrica abandonada, depois uma cordoaria e um estaleiro com mastros quebrados. E se ouvia o miar de dois gatos que estavam ocultos pela porcaria.
— O senhor me compreendeu? — insistiu Maragall —. Ele diria exatamente o mesmo.
— Tem lógica — disse Jack secamente.
— Ele diria o mesmo — repetiu Maragall —. Sabe onde se encontra agora, senhor?
— Essa é a igreja dos Capuchinhos. E essa a de Santa Ana — respondeu, assinalando uma torre com a cabeça.
A torre estava muito mais alta que eles. A razão era que desse extremo do porto até a metade da cidade se estendia um penhasco escarpado, de modo que essa parte de Mahón ficava muito acima da água.
— Tenho que ir — disse Maragall —. Voltarei à uma com os guias. Por favor, pense detidamente no que lhe disse. Todos deven ser liberados.
Eram oito horas. Jogaram uma âncora e, com os remos já preparados, amarraram a canhoneira pela popa e permaneceram naquela sórdida solidão. E quando Jack mandou servir a comida, os homens já estavam apinhados na cabine, sentados em grupos de seis, ou sob a reduzida coberta, pois devia haver apenas uma luz, o menor movimento e o menor ruido possíveis, ou seja, não devia ser notada nenhuma atividade.
Como suportavam bem a espera! Apenas se ouvia o sussurro de suas vozes, ou click dos dados e a um chinês gordo roncando como um porco. Eles confiavam em um líder onisciente, que tinha tudo — preparativos meticulosos, bom juizo, conhecimento do terreno, aliados seguros —, mas Jack não. A cada quarto de hora ouviam-se os sinos das igrejas por todo o Porto Mahón, e um com um som muito agudo, quase a ponto de quebrar-se, era o de Santa Ana, que tão repetidamente havia ouvido desde a casinha, em companhia de Molly Harte. Passou um quarto de hora..., meia-hora..., deu nove horas. Deu dez horas.
De repente abriu os olhos e viu Killick, que lhe dizia:
— Três badaladas, senhor. O cavalheiro estará logo de regresso. Aqui tem o café, senhor, e uma fatia de baicon. Tome um pouco, senhor, pelo amor de Deus.
Como qualquer outro marinheiro, Jack havia dormido e havia despertado em todas as latitudes e a qualquer hora do dia e da noite. Além disso, tinha a capacidade de sair de um sono profundo e estar em seguida esperto para subir à coberta, uma capacidade que havia desenvolvido durante muitos anos de guerra. Mas desta vez era diferente, pois além de estar completamente acordado e esperto para subir à coberta, era outro homem; sua desesperação e sua tenção haviam desaparecido, era outro homem. Agora o cheiro daquele lugar sujo em que estavam ancorados, um penetrante cheiro de poeira, era para ele o odor da batalha iminente. Comeu com voracidade e depois, sob a débil luz da lua, foi à proa para dirigir-se aos tripulantes, que estavam agachados sob a coberta. Eles estavam assombrados com o entusiasmo contido de Jack, tão diferente da agressividade que costumava mostrar tempos atrás nas incursões na costa; e também estavam assustados porque soaram as badaladas de uma hora e uma e meia sem que Maragall aparecesse.
Eram quase duas quando ouviram fortes passos no cais.
— Desculpe-me — disse, ofegando —. Fazer com que a gente se mova neste país... Aqui estão os guias. Tudo marcha bem. Na igreja de Santa Ana às três, certo? Estarei lá.
— Até às três. Adeus — disse Jack, sorrindo, em seguida voltou-se para os guias, que estavam entre as sombras —. Serão quatro grupos, e a cada cinco minutos sairá um, de acordo? Primeiro o Satisfação e logo Dick o Javanês; Bonden irá na retaguarda.
Então, por fim, desembarcou e notou o chão sumamente rígido, pois havia passado muitos meses na mar. Embora pensava que conhecia Porto Mahón, se encontrou perdido depois de cinco minutos de subir por aqueles becos escuros e adormecidos, onde apenas ouvira o miado de alguns gatos nos portais e a alguém tratando de calar uma criança; e depois que ele e seus homens passaram agachados por um túnel muito baixo e asqueroso, lhe surpreendeu encontrar-se na conhecida praça de Santa Ana. A porta da igreja estava entreaberta e entraram silenciosamente. Em uma capela de um dos lados havia uma vela acesa, e junto a ela, dois homens com seus lenços brancos na mão. Falaram em voz muito baixa com o guia, um sacerdote ou alguém vestido de sacerdote, e logo se adiantaram para falar com ele. Não pôde entender o que diziam, mas notou que repetiam várias vezes a palavra foc, e quando a porta se abriu de novo, viu um resplendor vermelho no céu. A sacristia foi se enchendo à medida que chegavam os guias com os grupos restantes; os homens se apinharam ali em silêncio, impregnados do cheiro de alcatrão. Outra vez o resplendor; então saiu e viu que de um incêndio no porto se elevava uma luz vermelha e a fumaça se afastava rapidamente para o sul, e nesse momento ouviu um grito de agonia que, de repente, se interrompeu. Havia saido de uma casa próxima.
Bonden e o último grupo terminavam de atravessar a plaça.
— Viu isso, senhor? Esses condenados entraram em ação.
— Silêncio, tonto maldito! — ordenou em voz muito baixa.
O relógio rangeu ao dar as três. Maragall surgiu das sombras.
— Vamos! — disse Jack, e correu até um beco que dava a uma das esquinas da praça.
Subiram pelo beco e bordearam o muro alto e liso até o lugar por onde sobressaia uma figueira.
— Bonden, me ajuda a subir. — Em seguida chegou em cima —. Dá-me os rezones! — Os enganchou ao redor do tronco —. Temos que descer suavemente! Descer suavemente! — murmurou e desceu para o pátio.
Lá estava a casinha, com suas janelas cheias de luz. E dentro da alargada habitação havia três homens inclinados sobre um potro de tortura, um civil sentado em uma escrivaninha, escrevendo, e um soldado recostado à porta. Um dos oficiais inclinados sobre o potro, que estava gritando, se moveu para um lado para desferir outro golpe e Jack viu que não era Stephen que estava ali com os membros estendidos.
Detrás dele ouviu que os homens se deixavam cair do muro com um ligeiro impacto, e sussurrou:
— Satisfação, vá com seus homens pelo outro lado até a porta. Dick Javanês, a esse arco iluminado. Bonden, comigo.
Ouviu-se de novo o grito pungente, quase inumano, intolerável. Dentro da casinha, aquele oficial jovem e muito atraente havia se voltado e olhava os outros com um sorriso triunfante. Tinha a jaqueta e o colarinho desabotoados e levava algo na mão. Jack desembainhou o sabre e abriu a grande janela. Os homens voltaram seus rostos, e sua expressão indignada deu passagem a outra de total assombro. Em três passos largos, empunhando fortemente o sabre e o agitando com fúria, feriu o jovem com um golpe reto e ao homem que estava a seu lado com um revés. Em seguida a habitação se encheu de horríveis ruidos, movimentos rápidos e golpes. Escutou-se o ruído surdo de corpos que caiam, um grito do último oficial, o impacto da cadeira e do escrivaninha ao serem derrubados; o civil vestido de preto lançou um fraco grito quando dois marinheiros se lançaram-se sobre ele. Um soldado corria para fora..., chegou dali um grito que não parecia humano e depois se fez silêncio. O homem que estava no potro de tortura tinha o olhar extraviado e o rosto descomposto e coberto de suor.
— Desamarem ele! — ordenou Jack, e o homem, ao sentir que desaparecia a tensão, deu um suspiro e fechou os olhos.
Esperaram uns instantes, aguçando o ouvido, mas não houve nenhuma reação, apenas se ouvia a três ou quatro soldados discutindo no piso de baixo da casa e a alguém assobiando melodiosamente no piso de cima. Continuavam escutando sem interrupção vozes altas com o tom didático ou exortativo.
— Agora à casa — disse Jack —. Maragall, qual é a sala dos guardas?
— A primeira à esquerda, sob o arco.
— Conhece seus nomes?
Maragall perguntou aos homens dos lenços e depois respondeu:
— Apenas dois: Potier, que é o cabo, e Normand.
Jack assentiu com a cabeça e perguntou:
— Bonden, te recordas da porta que dá ao pátio de entrada? Fique vigiando-a com seis homens. Satisfação, sua brigada ficará neste pátio. Javanês, a sua se colocará em ambos os lados da porta. Lee e seus homens venham comigo. Silêncio, muito Silêncio.
Jack atravessou o pátio; ouvia o choque de suas botas contra as pedras e a seu lado passos muito ligeiros. Fez uma pausa momentânea, para uma última comprovação, e gritou:
— Potier!
Nesse mesmo instante, como um eco, ouviu-se do alto da escada o grito: “Potier!”, e o assobio, que havia cessado, se escutou de novo. Logo o assobio voltou a interromper-se e se ouviu outra vez, mais alto: “Potier!” Os guardas deixaram de discutir para poder escutar. Outra vez: “Potier!”
— J'arrive, mon capitaine — disse o cabo e saiu da habitação, ainda falando enquanto fechava a porta.
Houve um ofego, um grito afogado de assombro, e silêncio. Jack gritou então:
— Normand!
A porta voltou a se abrir, mas desta vez apareceu um guarda de rosto esquivo e olhar interrogativo, quase receoso, que fechou a porta ao vê-lo.
— Muito bem — disse Jack, e a empurrou com toda a força de suas duzentas e vinte e cinco libras (102 kg).
A porta abriu com o golpe, estremecendo. Na habitação apenas ficava um homem, que pulou a janela, mas foi alcançado rapidamente. No pátio começaram a ouvir gritos.
— Potier! — chamaram de cima, e o assobio começou a ser ouvido na escada, cada vez mais abaixo —. Qu'est-ce que c'est ce remue-ménage?
À a luz do grande farol que pendia do arco, Jack viu a um oficial de rosto rosado e expressão alegre e bonachão, vestindo um impecável uniforme, e ao comprovar que era um oficial superior ficou pensativo uns instantes. Seguramente era Dutourd.
Dutourd, que ia começar outra vez a assobiar, o olhou com expressão incrédula e levou a mão à bainha do sabre, que estava vazia.
— Prendam ele! — gritou Jack ao grupo de marinheiros que se aproximavam na escuridão —. Maragall, pergunte onde está Stephen.
— Vous etes un officier anglais, monsieur? — perguntou Dutourd, fazendo caso omisso de Maragall.
— Que o diabo o leve! Responda de uma vez! — exclamou Jack, tremendo de ira.
— Llez le colonel — disse o oficial.
— Maragall, quantos homens restam?
— Este homem é o único que resta na casa. Diz que Esteban está na habitação do coronel. O coronel não regressou ainda.
— Vamos.
Stephen os viu entrar em seu comprido sonho; estiveram antes nele mas não juntos nem vestidos de colores apagadas. Sorriu para Jack, que havia empalidecido e tinha uma expressão angustiada; mas quando este tratava de soltar-lhe as ataduras, sentiu uma grande dor que transformou o sorriso em uma careta e lhe fez voltar à realidade.
— Devagar, Jack, meu amigo — sussurrou enquanto lhe passavam com cuidado a uma cadeira acolchoada —. Dá-me algo de beber, por caridade. Ah, Maragall — olhava por cima do ombro de Jack e sorria —, valga'm Deu.
— Evacue a habitação, Satisfação — ordenou Jack ao parar.
Vários prisioneiros haviam chegado até ali, alguns se arrastando, e dois deles lançaram-se contra Dutourd, que estava em um rincão com o rosto extremamente pálido.
— Esse homem necessita falar com um sacerdote — disse Stephen.
— Devemos matá-lo?
Stephen assentiu com a cabeça e disse:
— Mas antes ele deve escrever ao coronel..., fazer que venha..., dizer-lhe que tem uma informação muito valiosa, que o americano falou... Sim, uma informação muito valiosa que deve conhecer de imediato.
— Faça-o escrever essa nota — disse Jack voltando a cabeça para Maragall, ainda com uma expressão afetuosa na cara —. Se o coronel não estiver aqui dentro de dez minutos, o matarei nesse artefato.
Maragall conduziu Dutourd até a escrivaninha e lhe pôs a pluma na mão.
— Diz que não pode, que sua honra..., que é um oficial.
— Sua honra? — gritou Jack, olhando aquela coisa de onde havia desatado a Stephen.
Então se ouviram gritos, pés que se arrastavam e o impacto de uma queda na escada.
— Senhor, este tipo entrou pela porta principal — disse Bonden, enquanto dois marinheiros de sua brigada entravam na casa sustentando um homem —. Creio que os prisioneiros lhe fizeram muitos danos enquanto subiamos.
Todos olharam ao coronel moribundo..., morto. E nesse momento, Dutourd deu a volta, derrubou a lamparina e saltou pela janela.
— Enquanto tratava de escapar — repetiu Stephen quando Dick o Javanês subiu pa ra informar-lhes do ocorrido —. Oh, isto é demais..., demais...! Jack, que vamos fazer agora? Nem sequer posso andar desgraçadamente arrastado.
— Nós te levaremos à canhoneira — disse Jack.
— Aí, detrás da porta, está a prancha em que levam os suspeitos mortos — observou Maragall.
— Joan — disse Stephen —, todos os papéis importantes estão nesse arquivo à direita da mesa.
Devagar, devagar, percorreram as ruas desertas, enquanto Stephen olhava as estrelas e o ar puro penetrava em seus pulmõnes. Apenas uma figura viu aquele cortejo passar, algo já familiar, e desviou rapidamente o olhar. Desceram até o cais e o atravessaram até onde a canhoneira estava. A brigada de Satisfação subiu primeiro e tomou os remos; Bonden informou: “Todos os homens presentes e sóbrios.” Disseram adeus a Maragall, desejando-lhe que Deus o acompanhasse e que não tivesse problemas. As águas negras começaram a deslizar cada vez mais rápido pelos costados; ouviram o som abafado de um relógio sob a coberta, entre os volumes com o butim. Detrás deles tudo era silêncio; Mahón ainda dormia profundamente.
A ilha de Lazareto ficou para trás, a sua esquerda, e então fizeram os sinais com os faróis. Responderam da bateria com os sinais regulamentares e o último grito de zombaria: Collons! E com grande satisfação observaram que o tramontana estava amainando, como costumava ocorrer ao amanhecer, e que a embarcação que tinham a sotavento era a Lively.
“Bem sabe Deus que eu faria tudo outra vez”, disse Jack, virando o timão para aproximar-se e sentindo o impacto dos salpicos em seus olhos cansados e avermelhados. “Contudo, creio que necessitaria de todo o mar para lavar as minhas mãos.”
CAPÍTULO 4
— Tomará o cavalheiro enfermo um pouco de posset antes de sair? — perguntou a patrona do Crown —. Está muito pálido e, além disso, faz um dia terrivelmente frio e úmido... Portsmouth não é Gibraltar.
Ia dizer que a roupagem que a camareira havia preparado era mais apropiada para um carro fúnebre que para uma cadeira, mas pensou que talvez isso fizesse parecer inadequada à melhor cabriolé do Crown, agora de frente à porta.
— Certamente, senhora Moss. É uma excelente ideia. Eu mesmo subirei. Pôs um aquecedor de cama dentro da cadeira, não foi?
— Dois, senhor; estão esquentando a menos de meia hora. Mas mesmo que pusesse duzentos, ele não deveria viajar com o estômago vazio. Não poderia convencê-lo a comer, senhor? Há torta de ganso, e não há nada que fortaleça mais que torta de ganso, como todo mundo sabe.
— Tentarei, senhora Moss, mas ele é teimoso como uma mula.
— Todos os enfermos o são, senhor — disse a senhora Moss, movendo de um lado a outro a cabeça —. Todos são iguais. O senhor Moss, quando eu lhe cuidava em seu leito de morte, também era irritável e rebelde. Não queria torta de ganso, nem mandrágora, nem posset, nada de isso.
— Stephen — disse, com fingida alegria —, beba isto, por favor, e em seguida partiremos. Estão esquentando o seu casaco?
— Não o tomarei — disse Stephen —. É outro copo desse condenado posset. Pelo amor de Deus, não sou um menino pequeno para ser atormentado, martirizado, aniquilado com caudle!
— Apenas um pouquinho — insistiu Jack —. Te dará forças para a viagem. A senhora Moss não acredita que seja muito conveniente que viajes, e creio que tem razão. De todas as formas, comprei para ti uma garrafa do vigorizante instantâneo do doutor Mead, que contém ferro. Adicionarei uma gota dele ao posset.
— A senhora Moss... A senhora Moss... o doutor Mead... ferro... Valha-me Deus! — Exclamou Stephen —. Atualmente existe uma forte tendência a...
— O casaco, senhor — disse Killick —. Quentinho como uma torrada. Ponha-o antes que ele esfrie.
Abotoaram o seu casaco e o colocaram nele; ele foi baixado pela escada sustentando pelos cotovelos, de maneira que os pés apenas roçavam os degraus, e o levaram até a cadeira, junto à qual Bonden esperava. Ao sentá-lo nela, em cujo interior fazia um calor asfixiante, ele começou a protestar aos gritos — que o estavam afogando com aquelas malditas almofadas e peles de cordeiro, parecia que queriam enterrá-lo vivo, haviam posto sob seus pés palha suficiente para alimentar aos cavalos de um regimento —, enquanto eles, por cima de sua cabeça, trocavam olhares expressivos.
Equanto que Killick e Bonden metiam os últimos feixes de palha, Jack se dispôs a entrar pela outra porta, e então sentiu que lhe tocavam no ombro. Ao voltar-se, viu um homem mal-encarado com um distintivo em forma de coroa na mão; depois deu um olhar ao seu redor e viu outros dois junto aos cavalos e um grupo de reforço composto por oficiais de justiça armados de paus.
— O senhor é o capitão Aubrey? — perguntou o homem —. Em nome da lei peço que me acompanhe. Deve responder ante a justiça por um assunto pendente com Parkin e Clapp. Não cause problemas, senhor. Nós iremos tranquilamente, sem escándalo. Se prefere, irei atrás do senhor e Joe lhe precederá.
— Muito bem — disse Jack, e se inclinou para a janela—. Stephen, estou sendo preso. Estão me detendo por aquele assunto com Parkin e Clapp. Por favor, fale com Fanshaw. Escreverei-lhe a Grapes e talvez me reúna ali contigo. Killick, pegue a minha bagagem. Bonden, vá com o doutor e cuide dele.
— Aonde o levam?
— À casa de Bolter, em Vulture Lane — disse o policial —, onde terá todos os luxos e comodidades e um tratamento respeitoso.
— Em marcha — disse Jack.
— Maturin, Maturin, meu Querido Maturin! — exclamou sir Joseph —. Estou tão surpreso, tão apenado, tão comovido!
— Bom — disse Stephen em tom mal-humorado —, minha aparência impressiona bastante, sem dúvida, mas estas marcas são superficiais, não tenho nenhuma lesão séria. Ficarei bem. Mas me vi obrigado a lhe pedir que me visitasse aqui porque não posso subir as escadas. O senhor foi muito amável ao concordar e desejaria poder recebe-lo melhor.
— Oh, não! — exclamou sir Joseph —. Agrada-me muito sua posada..., parece de outra época..., é muito pitoresca..., digna de um quadro de Rembrandt. E o senhor tem um fogo esplêndido. Acredito que aqui conseguem fazê-lo sentir-se bem.
— Oh, sim! Aqui conhecem meus gostos. Tudo seria perfeito se a patrona da casa não fizesse o papel de médico apenas porque passo várias horas do dia na cama. Digo-lhe: “Não, senhora, não tomarei as gotas de Godfrey Cordial nem as de Ward. Eu não digo à senhora como tem que preparar este salpicón, porque a senhora é uma cocinera, assim que, por favor, não me diga que tratamento devo seguir, pois, como sabe, sou médico.” E ela me contesta: “Não, senhor, porque a Sara, que ficou nas mesmas condições que o senhor quando caiu há seis meses, enquanto atiçava ursos, as gotas de Godfrey lhe sentaram muito bem. Assim que, por favor, senhor, tome esta culherada.” E Jack Aubrey era exatamente igual. Eu disse a ele: “Eu não pretendo ensinar-te como governar sua corbeta ou seu bergantim, ou como chames essa condenada embarcação, por tanto, tu não deves pretender...” Mas é o mesmo. Dão para mim panacéias que os curandeiros vendem nas feiras e remédios de velhas... Bah! se a raiva pudesse unir meus tendões, já estaria forte como um salsifí.
Sir Joseph ia recomendar-lhe as águas de Bath, mas não o fez.
— Espero que seu amigo esteja bem — disse —. Estou infinitamente agradecido a ele. Sua ação foi heróica, e quanto mais penso nela, mais admirável ele me parece.
— Sim. O foi. Creio que estas ações se levam a cabo com êxito apenas de duas maneiras: com previsão, enormes esforços e muitos preparativos ou com extrema rapidez. E para este último é necessário ter uma qualidade muito especial, uma virtude que não sei como denominar; os mouros a chamam baraka. Ele posue essa virtude; e a conduta que em outro se qualificaria de delitiva e temerária, nele é normal. E contudo, permanece sob a custódia de um alguazil em Portsmouth. Assombro. Disgosto.
— Sim — continuou —. Parece que sua virtude nada mais é apreciable na mar ou afeta apenas a seu comportamento como marinheiro. O prenderam por dívidas a pedido de um grupo advogados. Segundo Fanshaw, sua agente, a quantia da dívida é de setecentas libras. Embora o capitão Aubrey sabia que o tesouro espanhol capturado não ia ser considerado um butim, ignorava que a notícia tinha se expalhado pela Inglaterra; para dizer a verdade, eu também ignorava, porque não houve nenhum anúncio oficial. Mas não quero lhe importunar com problemas privados.
— Meu querido Maturin, peço que me fale sempre como a um amigo íntimo, um amigo que o aprecia muito, à margem das questões oficiais.
— É muito amável, sir Joseph, muito amável. Então lhe confessarei uma coisa: temo que seus outros credores se enterem de que está de novo em uma situação difícil e que abram processos contra ele, processos dos quais não poderá se sair bem. Meus recursos não me permitem tirá-lo dessa situação, e embora com a paga ex gratia que o senhor mencionou poderia saldar a maior parte de sua dívida, ainda lhe ficará por pagar uma soma considerável. E um homem pode apodrecer na cadeia tanto por dever umas centenas de libras como por dever dez mil. — Não lhe pagaram ainda? — Não, senhor. E além disso, Fanshaw se mostra resistente a lhe dar um adiantamento por conta, pois diz que estas coisas não são habituais nem são seguras nem se sabe quanto podem atrasar-se e que o capitão Aubrey já está excessivamente endividado.
— Isto não faz parte de minhas competências, certamente. Os pagamentos extraordinários têm que ser aprovados pela Junta de transporte, que é muito lenta, e pela Seção de pagamentos, que é mais lenta ainda. Mas lhe prometo que tentarei que tudo seja rápido. Enquanto isso, o senhor Carling falará com Fanshaw e estou confiante de que este poderá lhe adiantar a soma que lhe é devida.
— Gostaria que abrisse uma janela, sir Joseph?
— Se o senhor não se importa... Não está com calor?
— Não. O que eu necessito é o calor do trópico e consigo algo parecido com vários celemines (4,6 litros) de carvão mineral. Mas reconheço que é quase insuportável para um corpo normal. Por favor, tire a jaqueta..., afrouxe a gravata. Eu não estou de etiqueta, como pode ver, pois tenho o gorro de dormir e esta pele de gato como cachecol.
Começou a tirar de um conjunto de cordas e alavancas que estavam conectados à janela, mas em seguida voltou a reclinar-se.
— Jesus, Maria e José! — murmurou —. Não tenho força, não tenho nenhuma força. Bonden!
— Senhor? — disse Bonden, aparecendo imediatamente na porta.
— Pega esse cabo, puxe ele para trás e o amarre, por favor — disse Stephen, e olhou para sir Joseph com orgulho mal dissimulado.
Bonden ficou boquiabierto, mas logo compreendeu o que queria o doutor e avançou uns passos. Contudo, quando tinha a corda na mão, parou e disse:
— Não creio que a corrente lhe faça bem, senhor. Não temos um tempo muito bom esta manhã.
— Já vê qual é a situação, sir Joseph. Não há disciplina; nenhuma ordem é cumprida sem que antes haja uma discussão quase interminável. Maldito Bonden!
Bonden, mal-humorado, abriu a janela uma ou duas polegadas, atiçou o fogo e saiu da habitação.
— Parece-me que tenho que tirar a jaqueta — disse sir Joseph —. Crê senhor de verdade que um clima quente poderia lhe convir?
— Quanto mais quente, melhor. Quando puder irei ao sul, a Bath, para mergulhar em suas águas quentes e sulfurosas...
— Justamente o que ia lhe sugerir! — exclamou sir Joseph —. Alegra-me ouvi-lo. Isso é o que eu lhe recomendaria... — “se o senhor não estivesse tão mal-humorado e irritável nem fosse tão caprichoso e obstinado”, pensou —, mas quem sou eu para lhe aconselhar. Isso fortalece as fibras; minha irmã Clarges conhece um caso..., embora talvez não seja exatamente igual... — Teve a impressão de que estava pisando um terreno perigoso e então tossiu e, sem transição, falou de outra coisa —. Mas voltando a seu amigo, não crê que o matrimônio melhorará sua situação? Hei(cá está) visto o anúncio em The Times, e entendo que a jovem é uma rica herdeira. Lady Keith me disse que tem muitas propiedades, entre elas algumas das melhores terras de lavoura do condado.
— É verdade, mas todas estão em mãos de sua mãe; e sua mãe, gorda e estúpida como uma besta, é o ser mais insensível que existe sobre a face da terra. Jack, em troca, não o é; tem uma peculiar ideia do que significa ser um joão ninguém e sente um grande desprezo pelos caça-dotes. É um idealista, e também o pior mentiroso que a gente é capaz de imaginar; quando lhe disse que o tesouro espanhol não seria considerado um butim e que, portanto, era pobre outra vez, fingiu que fazia muito tempo que o sabia e se riu, depois me consolou com a mesma ternura que uma mulher e disse que já havia se resignado com isso já fazia meses e que não precisava me preocupar, pois a ele não se importava. Mas sei que naquela noite ele escreveu a Sophie e estou convencido de que a eximiu de seu compromiso, embora isso não fará mudar de ideia a essa adoravel criatura.
Bonden entrou na habitação, ofegando sob o peso dos sacos de carvão, e avivou o fogo.
— Sir Joseph, lhe apetece uma xícara de café? Talvez um copo de madeira? Aqui têm um excelente vinho, o recomendo.
— Obrigado, obrigado. Preferiria um copo d’água. Sim, me virá bem um copo d’água fria.
— Um copo d’água e uma garrafa de madeira, Bonden, por favor. E lhe advirto que se volto a encontrar na bandeja outro copo de rum com um ovo crú dissolvido nele, o lançarei na sua cabeça. O mais doloroso de toda a viagem — dizia entre gole e gole de vinho — foi lhe dar essa notícia. Mais doloroso que o interrogatório, chamemos assim, que me fizeram os franceses, filhos da nação que mais admiro.
— E que homem civilizado não a admira? Deixando à parte seus governantes, seus políticos, suas revoluções e esse horrível engouement(entusiasmo) por Bonaparte.
— Isso mesmo. Mas esses homens não são novos no poder. Dutourd já pertencia ao exército no Antigo Regime e Auger formava parte do corpo de dragões: os dois são antigos oficiais. Foi um terrível golpe. Cria conhecer muito bem essa nação, porque havia vivido lá, havia estudado em París... Contudo, Jack soube como derrotar-lhes. Sim. Como lhe disse, é um idealista; depois do ataque jogou seu sabre ao mar, apesar do apreço que, pelo que sei, lhe tinha. Ele gosta de fazer a guerra, nenhum outro homem luta com maior veemência, e contudo, depois da batalha parece rejeitar a ideia de que a guerra consiste em matar ao inimigo. Seus sentimentos são contraditórios.
— Alegro-me muito de que o senhor vá a Bath — disse sir Joseph, a quem o conflito interior de um capitão de fragata que não conhecia interessava menos que o restabelecimento da saúde de seu amigo. (Apesar de que o chefe dos serviços secretos, em suas relações profissionais, parecia um iceberg em vez de um ser humano, sentia um profundo e verdadero afeto por Maturin.) —. Estou encantado. Ali conhecerá o meu sucessor e lhe visitarei de vez em quando, pois é um grande prazer para mim estar em sua companhia. — Notou com satisfação como Stephen endureceu o olhar quando ouviu a palavra sucessor —. Além disso, ajudarei os senhores a se conhecerem melhor. Vou me aposentar dentro de pouco e me dedicarei a estudar os escaravelhos, como Sabine; tenho uma casinha na zona dos Fens, que é um paraíso para os coleópteros. Estou realmente ansioso para me aposentar, embora também sinta um pouco de pena, certamente; mas me serve de consolo pensar que deixo meus interesses, nossos interesses, em boas mãos. O senhor conhece ao cavalheiro a quem me refiro.
— Ah, sim?
— Sim. Quando o senhor me pediu que mandasse alguém de confiança para que escrevesse seu informe, devido ao estado de suas mãos (foi uma barbaridade, uma enorme barbaridade terem lhe maltratado dessa maneira), roguei ao senhor Waring que fosse. Durante duas horas esteve sentado com ele — disse com ar triunfante.
— Surpreende-me senhor — disse Stephen com o cenho franzido.
Mas imediatamente se desenhou um sorriso em seu rosto. O senhor Waring, aquele homem cinza, insignificante, seria perfeito. Havia feito seu trabalho com ordem e eficiência e suas únicas preguntas foram muito diretas; não havia deixado transparecer nada, nem uma informação especial nem um determinado interesse. Poderia haver sido um simples e respeitável funcionário que ocupava um lugar intermediário na hierarquia.
— Admira muito seu trabalho e seu profundo conhecimento da situação. O almirante Sievewright lhe representará (este sistema é muito melhor), mas o senhor falará diretamente com ele quando eu tiver ido. Se darão muito bem, estou certo. Ele é um grande profissional; se ocupou do assunto do defunto monsieur da Tapetterie. Por certo, creio que o senhor lhe disse que tinha outros documentos ou observações à margen de seu informe.
— Sim. Tenha a bondade de me passar esse objeto forrado de couro. Obrigado. A Confederação queimou a casa (esses tipos se encantam com as chamas), mas antes de que saíssemos dali pedi a seu chefe que pegasse os documentos importantes, e dentre eles lhe ofereço este como regalo por sua aposentadoria. Por direito lhe pertenece, pois nele aparece seu nome ao se referir às agis-sements néfastes de sir Blaine, na página três, e o perfide sir Blaine, na página sete. É um informe firmado pelo coronel Auger mas redigido realmente pelo brilhante Dutourd. Está dirigido a seu homólogo em París e descreve a atual situação da rede de serviços secretos do exército na parte oriental da península, incluindo Gibraltar, faz uma valorização dos agentes, dá detalhes sobre os pagamentos e sobre muito mais coisas. Não está terminado, porque o cavalheiro foi interrompido na metade da redação, mas é bastante completo e tão autêntico como suas própias manchas de sangue. Encontrará algumas surpresas, sobretudo com relação ao senhor Judas Griffiths, mas creio que, em conjunto, lhe será muito útil. Oxalá tivéssemos um documento assim para a Inglaterra! Em minha opinião, um documento como este devia passar diretamente de minhas mãos às suas — disse, lhe entregando.
Sir Joseph, cheio de curiosidade, se apressou a pegar o documento, depois se aproximou da luz e, sentando-se inclinado para ela, devorou as páginas, nas que apareciam listas e uma informação detalhada.
“Esse porco...!”, disse para si. “Esse porco desprezível...! Ah, Edward Griffiths, Edward Griffiths, põe-te a rezar! Na própria embaixada...! Assim que Osborne tinha razão. Esse porco...! Que Deus me ajude!”
Em seguida, em voz alta, disse:
— Bem, terei que comunicar isto a meus colegas da Guarda montada e ao Ministério de assuntos Exteriores, certamente, mas ficarei com o documento para me recrear com a sua leitura em meu tempo livre. De modo que sou o perfide sir Blaine... É um documento importantíssimo. Estou muito agradecido, Maturin. E já verá como a surpresa vou dar-la.
Fez um movimento de apertar-lhe a mão, mas recordou qual era a situação de Stephen e apenas a tocou suavemente.
O carteiro não era um visitante habitual em Mapes. A senhora Williams vivia perto de seu administrador e recebia a visita de seu agente financeiro uma vez por semana, de forma que se relacionava por carta com poucas pessoas, e essas poucas raras vezes lhe escreviam. Contudo, sua filha mais velha reconhecia perfeitamente os passos do carteiro e sua forma de abrir a grade de ferro. Por isso ao ouvir-lhe saiu correndo da salinha, percorreu três corredores e desceu as escadas até a entrada. Mas chegou excessivamente tarde, porque o mordomo já havia colocado The Ladies Fashionable Intelligencer (o informador da moda feminina) e uma carta na bandeija e se dirigia à sala de café da manhã.
— Há algo para mim, John? — perguntou ela.
— Apenas chegaram uma revista e uma carta com um selo de três peniques*, senhorita Sophie — respondeu o/ou mordomo —. Vou dá-las à senhora. (* 1 penique = 1/100 da libra)
Sophie notou que tratava de ocultar algo e lhe disse:
— Dá-me essa carta imediatamente, John.
— A senhora me disse para entregar tudo a ela para evitar confusões.
— Deves dá-la a mim. Poderias ser preso e enforcado por te apropiar das cartas de outras pessoas. Isso é contra a lei.
— Oh, senhorita Sophie, em minha posição não posso fazer outra coisa!
Nesse momento, a senhora Williams saiu da sala de café da manhã, pegou a carta e se afastou, arqueando suas negras sobrancelhas. Sophie a seguiu, ouviu como rasgava o envelope e disse:
— Mamãe, dá-me minha carta.
A senhora Williams, com o rosto ruborizado, se voltou para a filha e gritou:
— Por acaso mandas nesta casa? Deverias envergonhar-se. Te proibi que mantenhas correspondência com esse criminoso.
— Não é um criminoso.
— Então, por que está na prisão?
— O sabes perfeitamente bem, Mamãe. Por não pagar as dívidas.
— Em minha opinião, isso é até pior. Despojar os outros de seu dinheiro é pior que os matar, é um delito grave. E em qualquer caso, te proibi que lhe escrevas.
— Estamos prometidos, portanto temos o direito de nos corresponder. Não sou uma menina.
— Absurdo! Havia dado meu consentimento, mas era condicional. Já não o tens, estou cansada de repetir isso. Tantas pretensões e tantas palavras bonitas... Menos mal que pudemos escapar, pois muitas mulheres excessivamente confiadas são deixadas levar por palavras bonitas e grandes promessas, e quando chega o momento não têm nem sequer o respaldo de uma sólida aplicação em bonos do Estado. Dizes que não és uma menina, mas o és para estes assuntos e necessitas de proteção. Por essa razão, quero ler suas cartas. Se não tens nada de que te envergonhar, por que te opões? Em minha opinião, a inocência é um escudo contra tudo. Quanta raiva há em seu olhar! Deverias se envergonhar, Sophie. Mas não vou deixar que sejas a vítima do primeiro homem que se interressa por tua fortuna. Nem fale, senhorita! Não permitirei correspondência secreta em minha casa. Já temos bastante desde que sua prima seja uma amante, ou uma amigada, ou como se diga hoje em dia; quando eu era jovem, não havia nada de isso. Tampouco em meus tempos nenhuma jovem se atreveria a falar com a sua mãe em um tom tão imprópio, e estou segura de que até a menina mais descarada haveria preferido morrer a passar por essa vergonha. — A senhora Williams pronunciou esta frase mais lentamente, pois estava lendo ao tempo que falava —. De toda forma, sua obstinação e sua fúria foram desnecessárias e me provocou enxaqueca outra vez inutilmente, porque a carta é do doutor Maturin. Não creio que tenhas nenhum motivo para ruborizar-se se a leio:
Querida senhorita Williams:
Peço desculpas por ter ditado esta carta, mas devido ao mal estado de minha mão, é difícil para mim escrever. Já cumpri o encargo que tive a honra de receber da senhorita, e fui muito afortunado porque consegui todos os livros da lista por mediação de meu livreiro, o respeitável senhor Bentley, que me fez um desconto de trinta por cento.
A senhora Williams fez um gesto de aprovação com a Boca.
Além disso, encontrei um mensageiro, o reverendo Hiksey, o novo pároco de Swiving Monallorum, O que está acontecendorá por Llampflower quando for tomar posse, ou talvez devesse dizer a investidura...
— Muito bem; nós chamamos a “investidura” de um clérigo. Ah, Sophie, seremos as primeiras a vê-lo! — exclamou a senhora Williams, cujo humor mudava bruscamente.
... Possui uma grande carruagem e, posto que não tem família, se comprometeu a levar o pároco de Eldin, Duhamel, Falconer e aos demais da sede. Isso permitirá à senhorita poupar-se da espera e, além disso, meia coroa, não é uma soma desprezível...
— Claro que não: oito fazem uma libra. Mas parece que nem todos os cavalheiros pensam assim.
... Tive uma grande alegria ao saber que as senhoras irão a Bath. Estarei lá apartir do dia vinte e poderei ter o prazer de apresentar meus respeitos a sua mamãe. Espero que essa visita não signifique que a saúde dela esteja mal ou que esteja acometida outra vez de sua antiga dolência...
— Sempre se preocupa muito com minhas dolências. Seria realmente conveniente para Cissy. Se ela pudesse pegá-lo, teríamos um médico na família, sempre à mão. Depois de tudo, que importância tem o papismo? Afinal, todos somos cristãos.
... Por favor, diga-lhe que se puder ser útil estou à sua disposição. Ficarei hospedado na casa de lady Keith, em Landsdowne Crescent. Estarei só, pois o capitão Aubrey foi detido em Portsmouth...
— Pensa como eu, pelo que vejo. Cortou todos os laços de união porque é um homem ajuizado.
... E sem mais, querida senhorita Williams, pesso que transmita meus cumprimentos à sua mamãe, e às senhoritas Cecilia e Francês...
—... e etcétera. Uma carta muito bonita e respeitosa, muito bem escrita. Creio, contudo, que poderia haver conseguido uma isenção de selagem através de seus conhecidos. A letra é de homem, não de mulher. Ditou a carta a um cavalheiro, não há dúvida. Podes ficar com ela, Sophie. Não me oponho que vejas ao doutor Maturin em Bath, porque é um homem sensato, não um esbanjador. Seria muito conveniente para Cecilia. Nunca um cavalheiro necessitou mais de uma mulher, e é óbvio que sua irmã necessita um marido. Com tantos oficiais da reserva rondando por aí e com o seu exemplo, não haverá quem a detenha, assim que o quanto antes se case, melhor. Quero que em Bath lhes deixem sozinhos o máximo tempo possível.
Bath. As ordenadas lajotas sob o sol, a abadia. As águas termais, cujos vapores refletiam a luz do sol. Sir Joseph Blaine e o senhor Waring passeavam pela galeria de banhos do Rei. Ali se encontrava Stephen, metido dentro da água fervendo e completamente relaxado; parecia uma figura gótica, pois vestia uma espécie de hábito de tela e estava sentado em um nicho de pedra. Em ambos os lados dele estavam sentados outros homens, afetados de escrófula, reumatismo, gota, tísica ou, simplesmente, excessivamente gordos, que olhavam sem muito interesse para o outro lado, onde se encontravam as mulheres, em sua maioria afetadas dos mesmos padecimentos. Por outra parte, uma dúzia de peregrinos caminhavam com dificuldades dentro da água, seguros por serventes. Apareceu então a corpulenta figura de Bonden que, em ceroulas de tela, atravessou a corrente e chegou junto ao nicho de Stephen. Então o pegou nos braços e começou a abrir passagem dizendo: “Com sua permissão, senhora... Licença, companheiros...” com grande segurança, pois esse era seu elemento, independentemente da temperatura que tivesse.
— Está melhor hoje — disse sir Joseph.
— Muito melhor — disse o senhor Waring —. Caminhou quase uma milha na quinta-feira e até a casa de Carlow ontem. Nunca acreditei que isso fosse possível. Há visto como tem o corpo?
— Não, apenas as mãos — respondeu sir Joseph, fechando os olhos.
— Deve de ter uma extraordinária força de vontade e uma constitução igualmente extraordinária.
— Sem dúvida, as tem — disse sir Joseph, e ambos continuaram passeando um pouco mais —. Já regressa à cadeira. Veja com que agilidade sobe, nota-se que as águas termais estão lhe fazendo muito bem; eu lhe as recomendei. Dentro de poucos minutos partirá para Landsdowne Crescent. Talvez poderíamos ir até lá cruzando devagar a cidade; estou muito ansioso para falar com ele.
Depois, enquanto passavam entre a multidão, continuou:
— É forte, sim, certamente que é forte. Atravessemos para o lado do sol. Que dia tão esplêndido! Este casaco quase é desnecessário. — Saudou com uma inclinação de cabeça e beijou a mão de alguém que estava do outro lado —. A seus pés, senhora. Essa é uma conhecida de lady Keith; tem muitas terras em Kent e Sussex.
— Verdade? A teria tomado por uma cozinheira.
— Contudo, tem uma considerável fortuna. Como dizia, é forte, mas também tem debilidades. Outro dia tachava de idealista a um amigo íntimo (o que vai a casar-se com a filha dessa senhora que acabamos de ver) e se não tivesse tão penalizado por seu estado, teria rido, porque precisamente ele é um quixote: apoiou a Revolução até 1793, pertenceu a Irlandeses Unidos até o levantamento, foi conselheiro de lord Edward..., por certo que eram primos...
— É um Fitzgerald?
— Da rama menos afortunada. E agora defende a causa da independência catalã. Ou talvez a defenda desde antes, ao mesmo tempo que as demais. Em qualquer caso, vive sempre entregue de corpo e alma a alguma causa da qual não pode obter nenhum benefício pessoal.
— É um idealista em todos os sentidos?
— Não, mas era tão casto que chegamos a nos sentir inquietos; sobretudo nosso amigo Subtlety estava muito preocupado. Não obstante, começou a manter uma relação amorosa e isso nos tranquilizou. Era uma jovem de muito boa família, mas a relação teve um final desgraçado, certamente.
Na rua Pulteney lhes detiveram dois grupos de amigos e logo um cavalheiro tão importante que não era possível cortar a conversação, pelo que tardaram bastante em chegar a Landsdowne Crescent, e quando preguntaram pelo doutor Maturin lhes disseram que tinha visita. Contudo, passados uns momentos, lhes convidaram a subir. Ao chegar em cima encontraram a Stephen em seu leito e uma jovem sentada junto dele. Ela se pôs de pé e fez uma reverência; era uma jovem solteira. Os dois homens apertaram os lábios e apoiaram a queixo contra o colarinho branco e engomado, pensando que uma jovem tão formosa não devia estar sozinha na habitação de um cavalheiro.
— Querida, permita-me que te apresente a sir Joseph Blaine e ao senhor Waring. A senhorita Williams — disse Stephen.
Ambos inclinaram outra vez a cabeça, sentindo pelo doutor Maturin outro tipo de respeito, pois quando a jovem se voltou para a luz viram que tinha uma beleza sem par, era realmente encantadora, doce, cândida. Sophie não voltou a sentar-se. Disse que, infelizmente, tinha de sair, pois precisava se reunir com sua mãe na sala do balneário aonde bebia suas águas e o relógio já havia dado a hora. Pediu que a desculpassem porque antes tinha que... Se pôs a mexer dentro da cesta e sacou um frasco, uma colher de prata envolta em papel de seda e uma caixa de pastilhas de cor amarelo brilhante. Então encheu a colher, a aproximou cuidadosamente da boca de Stephen e verteu nesta o líquido verdoso e pôs duas pastilhas; depois, com ar benevolente, esperou que as engolisse.
— Bom, senhor — disse sir Joseph quando a porta se fechou —, o felicito pelo médico que tem. Não me recordo de já ter visto uma jovem tão bela, e isso que em minha longa vida vi à duquesa de Hamilton e lady Coventry quando ainda eram solteiras. Aceitaria voltar a ter câimbras se alguém como ela me desse remédios, e também eu me as tomaria como se fosse um cordeiro. — Ele e o senhor Waring sorriram com afetação.
— O senhor é muito amável ao expressar seu espanto — disse Stephen secamente.
— Falo em sério, o asseguro — disse sir Joseph —, e com o máximo respeito com a senhorita. Nunca antes havia experimentado tanto prazer ao contemplar a uma jovem... Essa graça, essa louçania, essa cor...
— Ah! — exclamou Stephen —. Deveria senhor vê-la quando tem sua melhor aparência..., deveria vê-la quando Jack Aubrey está próximo.
— Ah! Então essa é a jovem em questão! Essa é a prometida do capitão! Que tonto eu fui! Devia ter-me fixado no nome. Isso explica tudo — disse e fez uma pausa —. E diga-me, querido doutor, é verdade que o senhor está bastante recuperado?
— Muito, obrigado. Ontem caminhei uma milha sem me fatigar, hoje comi com um antigo companheiro de tripulação e esta tarde penso fazer a dissecação do cadáver de um velho vagabundo junto com o doutor Trotter. Dentro de uma semana estarei de regresso na cidade.
— E crê senhor que um clima cálido o ajudaria a recuperar-se de tudo? Pode suportar muito calor?
— Sou uma salamandra.
Ambos olharam à salamandra. Seu aspecto era lamentável, seu corpo parecia deforme e muito diminuto naquela enorme cama, e dava a impressão de que estava mais apto para viajar em um carro fúnebre que em uma cabriolé ou um barco. Apesar de tudo, assentiram com a cabeça, reconhecendo sua superioridade nessa matéria, e sir Joseph disse:
— Nesse caso, não terei escrúpulos em tirar a revanche. E creio que lhe surpreenderei tanto como o senhor a mim em Londres. A bom entendedor poucas palavras basta.
À irritada mente de Stephen acudiram outros provérbios: “Palavras e plumas, o vento as leva”, “De tais casamentos, tais crostas”, “Não mencionar a corda na casa do enforcado”, “Vão-se os amores e ficam as dores”, “Dinheiro, amor e cuidado, difícil dissimulá-los”, mas apenas deu um suspiro.
— No departamento — continuou sir Joseph com sua voz monótona —, quando o chefe se aposenta, é costume lhe conceder uma série de privilégios; o mesmo que ocorre com um almirante, que ao arriar sua insígnia pode conceder promoções. Pois bem, em Plymouth estão armando uma fragata para levar o nosso enviado, o senhor Stanhope, a Kampong. O comando foi meio que prometido a três cavalheiros e já existe a habitual... Em resumo, seguramente poderei dispor dele. E me parece que se o senhor fizer essa viagem com o capitão Aubrey, ficará demostrado que tem apenas interesses científicos. Não está de acordo, Waring?
— Sim — respondeu Waring.
— Também, e peço que assim seja, a sua saúde se restabelecerá e, por outra parte, seu amigo ficará afastado dos perigos que o senhor mencionou. Apesar dos numerosos aspectos positivos, existe um grave problema. Como o senhor sabe, todas, todas as decisões de nossos colegas em outros departamentos do Almirantado ou do Ministério da Marinha são tomadas depois de intermináveis deliberações, se é que se chega a um acordo, ou excessivamente apressadamente. O senhor Stanhope subiu a bordo com sua comitiva em Deptford, faz muito tempo, e ali passou quinze dias oferecendo comidas de despedida; depois continuaram viagem até Nore, onde ofereceu outras duas. Suas Senhorias adivertiram que a Surprise tinha os fundos desgastados ou que lhe faltavam mastros ou velas e então desembarcaram o senhor Stanhope, em meio a uma tempestade, e enviaram a fragata a Plymouth para que a armassem de novo. Entretanto, ele perdeu o seu secretário oriental, seu cozinheiro e um ajudante de câmara, e o touro que ia levar de presente para o sultão de Kampong emagreceu. A fragata perdeu a maioria de seus oficiais nativos, que foram transladados, e um grande número de marinheiros, porque foram recrutados pelo almirante do porto. Mas agora tudo mudou. As provisões sobem a bordo com rapidez dia e noite. O senhor Stanhope está a ponto de chegar da Escócia em cabriolé e a fragata deve zarpar esta semana. Crê que está em condições de subir a bordo, senhor? O capitão Aubrey está em libertade?
— Estou em magníficas condições, meu amigo — contestou Stephen, com novos brios —. O capitão Aubrey saiu da prisão quando o ajudante de Fanshaw pôde o liberar, justo antes que chegasse uma avalanche de mandatos judiciais. Em seguida subiu a bordo de um barco recrutador que o levou pelo Támesis até Grapes.
— Voltemos aos detalhes.
— Bonden! — Gritou Stephen —. Pega a pluma e a tinta e escreve.
— Que escreva, senhor?
— Sim. Sente-se, ponha direito o papel e escreve: “Landsdowne Crescent...”. Barret Bonden, estás a sotavento?
— Sim, senhor, ou melhor dito, à deriva. Mas posso ler muito rápido as letras grandes de imprensa e a lista da guarda.
— Não importa. Quando estivermos navegando te ensinarei. É fácil, muitos tontos passam o dia todo escrevendo, e resulta muito útil em terra. Sabes montar a cavalo, não é verdade?
— Bom, já montei a cavalo, senhor. Montei três ou quatro vezes quando estava em terra.
— Bem. Quero que tenhas a amabilidade de ir, ou melhor ainda, dar um salto até a rua Paragon e dizer à senhorita Williams que se, ao dar o seu passeio da tarde, puder passar por Landsdowne Crescent lhe ficarei infinitamente agradecido. Depois quero que vá até o cabo Saracen, transmitas meus cumprimentos ao senhor Pullings e digas a ele que eu gostaria de vê-lo, assim que tiver um momento disponível.
— Sim, senhor, a Paragon e depois ao cabo Saracen. Devo retornar em seguida a Landsdowne Crescent.
— Vem correndo, Bonden, por favor. Não há nem um momento a perder.
A porta de entrada fechou de um golpe e se ouviram passos apressados na rua, afastando-se pela esquerda, e depois uma longa, longa pausa. Nos jardins do outro lado da rua um melro cantava débilmente, anunciando que a primavera se aproximava. A triste voz de um cortador de calos, cantando com monotonia: “Faço um bom trabalho... Faço um bom trabalho”, se aproximou e voltou a afastar-se. Stephen pensou na etiología dos calos e no conduto biliar da senhora Williams. Ouviu de novo a porta da entrada, cujo eco se propagou pela casa vazia (os Keith e todos os serventes, exceto uma velha bruxa, haviam ido), depois passos na escada e uma alegre conversação. Franziu o cenho. A porta se abriu e entraram Sophie e Cecilia, enquanto Bonden, detrás delas, dava uma piscada e fazia um gesto com o polegar.
— Deus Santo! Mas o senhor está na cama, doutor Maturin! Bom, por fim estou no dormitório de um homem... Desculpe, não era “por fim” o que queria dizer. Como está? Suponho que acaba de chegar dos banhos e está sudoroso. Como se sente? Nos encontramos com Bonden quando íamos sair, e em seguida lhe disse que tinha que perguntar como o senhor estava. Não o vemos desde terça-feira! Mamãe estava muito...
Chamaram estrondosamente à porta duas vezes. Bonden desceu com rapidez. Ouviram-se na escada vozes potentes de marinheiros e uma comparação com “uma peça com estopa acima” que apenas podia referir-se a Cecilia e seu cabelo loiro muito penteado. Então apareceu o senhor Pullings, um jovem de boa aparência, alto e ágil, seguidor do capitão Aubrey, se é que podia dizer que um capitão tão desafortunado tinha seguidores.
— Creio que as senhoritas conhecem ao senhor Pullings, da Armada real — disse Stephen.
Certamente o conheciam... Estivera duas vezes em Melbury Lodge... Cecilia havia dançado com ele...
— Que divertido foi! — exclamou Cecilia, olhando-lhe comprazida —. Os bailes me encantam!
— Sua mãe me falou que a senhorita tem grande sensibilidade para a arte — disse Stephen —. Senhor Pullings, por favor, mostre à senhorita Cecilia o novo quadro de Tiziano que lord Keith tem; está na galeria, junto com muitos outros quadros. Além disso, explique-lhe a sena da batalha do Glorioso Primeiro de Junho. Explique com todos os detalhes — repetiu enquanto se afastavam —, por favor. Sophie, querida, pega rapidamente papel e pluma e escreve:
Querido Jack:
Temos uma fragata, a Surprise, com destino às Índias Orientais. Devemos embarcar em Plymouth em seguida...
— Ha, ha, ha! Que dirá quando ler isto?
“Surprise!” foi o que disse, com tal vozeirão que as duas janelas frontais de Grapes tremeram e a senhora Broad deixou cair um copo no bar.
— O capitão há recebido uma surpresa — disse ela tranquilamente, olhando os pedaços.
— Espero que seja agradável — disse Nancy, recolhendo-os —. É um cavalheiro tão charmoso!
Pullings, muito cansado da viagem, virou-se discretamente para a janela quando Jack começou a ler a carta e deu a volta outra vez ao ouvi-lo gritar:
— Surprise! Bendito seja Deus! Sabes o que fez o doutor, Pullings? Conseguiu uma fragata, a Surprise, com destino às Índias Orientais. Temos que embarcar logo. Killick! Killick! Meu baú, minha capa, minha maleta pequena! E corre à mesa-secretária dos correios; nós iremos a Plymouth no carro do correio.
— O senhor não irá no carro do correio, senhor — disse Killick —, nem em uma cabriolé, com tantos sem-vergonhas que há ao longo da costa. Chamarei um carro fúnebre, um belo carro de quatro cavalos.
— Surprise! — Exclamou Jack outra vez —. Não tenho subido nela desde que era um cadete.
Em sua mente podia vê-la com nitidez, sob a brilhante luz de English Harbour, atracada a um cabo de distância de onde ele se encontrava. Era uma belíssima embarcação de vinte e oito canhões construida em França, de proa puntiaguda e linhas suaves, que navegava bem de bolina e podia ser muito rápida se fosse bem governada. Era estável, espaçosa, estanque... Havia navegado nela sob as ordens de um capitão muito duro e de um primeiro oficial mais duro ainda. Havia passado horas e horas de castigo no tope, onde havia lido muito e até havia gravado suas iniciais... Estariam visíveis ainda? Era velha, não cabia dúvida, e necessitava de muitos cuidados, mas valia a pena estar no comando dela... Por sua mente cruzou a infeliz ideia de que não poderia encontrar nenhum butim no oceano índico (haviam acabado já fazia tempo), mas a repeliu. Então disse:
— Navegando de bolina poderíamos ser mais rápidos que o Agamemnon com a vela maior e as joanetes... Seguramente poderei escolher a um ou dois oficiais. Virás comigo, Pullings?
— É claro, senhor — respondeu assombrado.
— A senhora Pullings não porá nenhuma objeção?
— Acredito que ela chorará, mas em seguida voltará a sorrir. E creio que ficará muito contente quando eu regressar dessa missão, talvez mais contente do que está agora. Sempre estou atrapalhando entre vassouras e panelas. A vida a bordo de um barco não é igual à de casado, senhor.
— Deveras, Pullings? — perguntou Jack, olhando-lhe com ar pensativo.
Stephen seguiu ditando:
A Surprise levará o enviado de Sua Majestade a Kampong. O senhor Taylor, do Almirantado, está ciente e já tem preparados os papéis necessários. Creio que se tomas o caminho de Bath e te desvias na bifurcação de Dayrolle pasarás pelo cruzamento de Wolmer aproximadamente às quatro da madrugada e poderás subir a bordo no domingo, o dia em que os devedores não podem ser aprisionados, segundo uma medida de graça. Esperarei no cruzamento, em uma cabriolé, e se não tenho a sorte de ver-te, seguirei a viagem com Bonden e te esperarei em Blue Posts. Parece que a fragata é pequena; lhe faltam oficiais e marinheiros e, se sir Joseph não falou hiperbolicamente, tem os fundos desgastados.
— Rápido. Apresse-se, Sophie. Nunca ganharás a vida como escrevente. Não sabes escrever “hiperbolicamente”? Em fim está terminada! Deixe-me vela.
— Jamais! — exclamou Sophie, dobrando-a.
— Parece que escreveu mais do que te ditei — disse Stephen, semicerrando os olhos —. Estás muito corada. Espero que pelo menos hajas posto exatamente tudo referente ao encontro.
— No cruzamento de Wolmer às quatro da madrugada do dia três. Estarei lá, Stephen. Sairei pela janela e saltarei o muro do jardim; poderás me pegar na esquina.
— Muito bem. Mas por que não vais a sair pela porta principal como Deus manda? E como vais regressar? Se te veem andando por Bath ao amanhecer, te encontrarás em uma situação comprometida.
— Tanto melhor — disse Sophie —. Então minha reputação será tão má que terei que me casar o quanto antes possível. Como não me havia ocorrido isto antes? Oh, Stephen, que ideias tão estupendas tens!
— Está bem. Na esquina, às três e meia. Põe-te uma capa que abrigue muito, dois pares de meias e roupa interior de lã grossa. Fará frio, e talvez tenhamos que esperar muito tempo. Além disso, é possível não o vermos, e nesse caso sentirás mais frio ainda, porque deves ter em conta que a decepção junto com a sensação de umidade... Silêncio... Dá-me a carta.
As três e meia da madrugada. Um forte vento do noroeste uivava entre as chaminés de Bath, o céu estava limpo e a lua parecia inclinar-se sobre a rua Paragon. A porta da casa número sete se abriu o suficiente para que Sophie passasse; em seguida se fechou de golpe com um horrível estrondo, chamando a atenção de um grupo de soldados bêbados que começaram a imitar os ladridos dos cães. Sophie se encaminhou com ar decidido para a esquina, mas sentindo uma grande desesperação, pois não via nem rastro do carro, apenas duas fileiras de portas estendendo-se até o infinito sob a lua, com aspecto irreal, estranho, desolado e hostil. Detrás dela uns passos aproximavam-se cada vez mais rápido. De repente, ouviu um sussurro:
— Sou eu, senhorita, Bonden.
Em seguida dobraram a esquina. Então, a uma prudencial distância da casa havia duas cabriolés, e eles subiram à primeira, que tinha um forte cheiro de couro. As jaquetas vermelhas dos cocheiros pareciam negras à luz da lua. O coração de Sophie batia tão fortemente que durante cinco minutos apenas pôde falar.
— Que estranhas são as coisas de noite! — Exclamou enquanto saiam da cidade —. Dá a impressão de que todos estão mortos. Veja o rio, está completamente preto. Nunca saí a esta hora.
— Não, querida, sem dúvida que não saiu — disse Stephen.
— Todas as noites são iguais?
— À vezes são mais suaves, pois este condenado vento é mais cálido em outras latitudes. Mas sempre durante a noite o mundo parece mudar. Escuta. Não a ouves? Deve de estar no bosque próximo da igreja.
Havia ouvido o horrível grito de uma raposa, capaz de gelar o sangue do mais valente, mas Sophie estava muito ocupada tratando de ver Stephen à fraca luz da lua e arrumando a sua roupa.
— Mas sem mais nada veio com esse horrível casaco velho e rasgado! — exclamou —. Stephen, como podes ser tão desleixado? Deixa-me que te envolva com minha capa; está forrada com pele.
Stephen resistiu a ser envolto na capa, argumentando que quando a pele conseguia certa proteção, quando a epiderme tinha uma grossura suficiente para evitar que se dissipasse o calor natural da pele, qualquer outro envoltório não apenas era supérfluo como daninho.
— A um jóquei, contudo, não lhe ocorre o mesmo — disse —. Recomendei a Tilomas Pullings que antes de sair pusesse um pedaço de seda untado com azeite entre a camisa e o colete, já que o próprio movimento do cavalo, independentemente da velocidade do vento, faz desaparecer a proteção da pele e esta perde calor. Por outro lado, em uma carruagem bem construida não há o que temer. A proteção contra o vento é fundamental; os esquimós, por exemplo, vivem felizes e despreocupados das tormentas ao amparo de sua casa de neve e passam ali confortavelmente a demorada noite invernal. Mas me referi a carros bem construidos; não te recomendaria que fosse com o peito descoberto ou apenas com uma camisa de algodão em uma típica carruagem russa através das estepes da Tartaria. Tampouco te recomendaria que o fizesse em um típico carro irlandês.
Sophie lhe prometeu que não o faria nunca. Logo ambos, envoltos na ampla capa, voltaram a calcular quanto tardaria Pullings para ir de Bath a Londres e Jack para chegar a Bath.
— Trate de não te sentir decepcionada, querida — disse Stephen —. Há muito poucas probabilidades de que ele leve em conta minha sugestão e menos ainda que compareça ao encontro. Pensa nos acidentes que poderia ter em tantas milhas de caminho (poderia cair, o cavalo poderia derrubá-lo ou quebrar uma pata) e nos perigos que o espreitarão durante a viagem, como, por exemplo, os salteadores de caminhos..., mas é melhor que me cale, não devo alarmar-te.
As cabriolés diminuiram a marcha. Stephen olhou pela janela e disse:
— Seguramente estamos próximos do cruzamento.
A partir dali o caminho subia, passando entre as árvores; parecia uma fita branca com grandes manchas escuras. O vento do noroeste assobiava. Seguiram avançando e, de repente, em uma das clareiras, apareceu um jóquei. O cocheiro freiou quando o viu e, voltando-se para a carro que ia detrás, gritou:
— É Jeffrey o Carnicero!
— Detrás de nós há outros dois malvados! São crueis assassinos! Fique quieto e espere docilmente a que se aproximem, Amos. Controle os cavalos e não oponhas resistência.
Ouviu-se um forte ruído de cascos e Sophie sussurrou:
— Não dispares, Stephen.
Stephen, olhando pela janela aberta, disse:
— Não tenho intenção de disparar, carinho...
Nesse momento, um cavalo chegou tão perto da janela que seu cálido sopro penetrou no carro, e uma obscura e corpulenta figura se inclinou sobre seu lombo, impedindo a passagem da luz da lua pela janela e susurrando em tom cortês:
— Senhora, peço desculpas pelo incômodo.
— Tenha piedade de mim! — Exclamou Stephen —. Leve tudo o que tenho..., leve esta senhorita..., mas tenha piedade de mim, tenha piedade de mim!
— Sabia que eras tu, Jack — disse Sophie, dando uma palmada —. O soube imediatamente. Oh, estou tão contente de ver-te, carinho!
— Concedo-lhe meia hora — disse Stephen —, nem um minuto mais; esta jovem deverá estar de novo quentinha em sua cama antes do amanhecer.
Foi para a outra cabriolé, onde Killick, com infinita satisfação, contava a Bonden como haviam saido de Londres. Haviam ido até Putney em um carro fúnebre, seguidos pelo senhor Pullings na carruagem onde deviam ir os familiares de luto. A ambos lados do caminho haviam visto a montes de aguazis, e todos tiravam o chapéu e saudavam respeitosamente com a cabeça.
— Não o haveria perdido por nada do mundo!
Stephen andou de um lado a outro e depois se sentou na cabriolé. Voltou a passear, falando com Pullings das viagens do jovem em um barco que fazia o comércio com as Índias, o calor esmagador nos portos do rio Hugli, a sufocante temperatura em terra, o impiedoso sol e o calor que até mesmo a lua desprendia de noite.
— Se não chego logo a um lugar onde o clima seja quente — disse —, me enterrarei e direi: “Aqui está quem morreu por uma desgraça.”
Apertou o botão de seu relógio de repetição e quando o vento se acalmou se ouviu soar a pequena campainha de prata marcando as quatro e logo os três quartos. Não chegava nenhum ruído do carro da frente. Deteve-se, indeciso, e nesse momento a porta se abriu e Jack ajudou Sophie a descer.
— Bonden! — gritou —. Regressa em seguida com a senhorita Williams a Paragon e vem depois no carro do correio. Sophie, carinho, sobe. Deus te bendiga.
— Deus te bendiga e te proteja, Jack. Cuida para que Stephen se envolva na capa. E lembre que é para sempre, digam o que digam, para sempre, para sempre.
CAPÍTULO 5
O sol achatava Bombaim ao meio-dia, impondo Silêncio na cidade apesar dela estar formigando de pessoas, e até nos mais ocultos bazares era possível ouvir o barulho das ondas do oceano índico, com um ruído cadenciado, quase um ofego, em cujas águas, de uma apagada coloração ocre, refletia-se um céu excessivamente ardente para ser azul, um céu que esperava a chegada da monção do sudoeste. E nesse mesmo momento, muito mais ao oeste, mais lá da África, o mesmo sol aparecia no horizonte, lançando seus raios abrasadores sobre os flácidos joanetes e sobrejoanetes da Surprise, que estava ao pairo em uma zona de tranquilas águas alguns graus ao norte do Equador e uns trinta graus ao oeste do meridiano de Greenwill.
A brilhante luz desceu até as gávias, depois até as maiores, e finalmente iluminou a coberta; então se fez dia. De repente amanheceu em todo o leste, e quando a luz do sol chegava ao mais alto do céu, pela amura de estibordo a noite podia ser vista afastando-se velozmente para América. Marte, que estava a um quarto do horizonte, pelo oeste, desapareceu de imediato; a abóbada celeste ficou mais brilhante e as escuras águas do mar recobraram sua cor azul habitual, um azul intenso.
— Por favor, senhor — suplicou o chefe da guarda de popa, inclinado para o doutor Maturin, que tinha a cabeça coberta com o saco de dormir —. Por favor, eu o peço..
— Que foi? — perguntou Stephen por fim, em um horrível tom rabugento.
— Já vai dar quatro horas, senhor.
— Bom, e daí? Já sei; esta é uma manhã de domingo e tens que limpar com pedra de arenito.
O saco, que usava para se proteger dos raios da lua, amorteceu o som de suas palavras mas não alterou seu tom mal-humorado, o mesmo que haveria empregado qualquer outro homen ao ser tirado bruscamente do total relaxamento e de um sonho erótico. Na fragata, devido à presença do senhor Stanhope e seu séquito, havia muito mais pessoas do que o habitual, e sob a coberta fazia um calor sufocante, assim Stephen havia dormido sobre esta, pisoteado pelos marinheiros ao trocar de guarda.
— Há manchas de breu — disse o chefe da guarda de popa em tom doce, tratando de ser convincente —. Que aspecto terá o castelo de popa com estas manchas durante o serviço religioso?
Mas então notou que o doutor Maturin tinha a intenção de seguir dormindo e voltou a suplicar-lhe:
— Por favor, senhor. Por favor, eu o peço.
Com o calor, o alcatrão da exárcia derretia e caia sobre a coberta, e o breu com que as juntas estavam calafatadas derretia também. Stephen assomou a cabeça pela abertura do saco e viu que a seu ao redor toda a coberta já estava limpa e polida com areia e pedra de arenito. Encontrava-se em uma espécie de ilha salpicada de manchas, rodeado de marinheiros impacientes por terminar seu trabalho para ir a barbear-se e pôr sua roupa de domingo. Perdera o sono irremediavelmente, assim que sacou a cabeça do saco e se pôs de pé, murmurando:
— Não há paz nesta condenada carraca... Que perseguição!... Loucos supersticiosos!... Sempre cumprindo com rituais de limpeza judaicos e primitivos!
Então se aproximou a um dos costados, caminhando com dificuldade. Permaneceu ali enquanto o calor do sol penetrava até seus ossos, produzindo-lhe uma agradável sensação e reanimando-lhe. Um galo, empinando-se sobre as patas, cantou próximo ao galinheiro; e uma galinha cacarejou para anunciar que havia posto um ovo... um ovo! Estirou seus membros, olhou ao seu redor e percebeu que os homens da guarda de popa tinham uma expressão austera e lhe olhavam com censura. Também notou que tinha as solas dos sapatos pegajosas de alcatrão, breu e resina, e que havia sujado a coberta, deixando um rastro de pisadas de onde dormira até o corrimão junto ao qual se encontrava agora.
— Oh, peço que me desculpe, Franklin! — exclamou —. Sujei o chão. Dê-me uma escova..., areia..., uma vassoura.
— Não, não! — exclamaram.
A expressão austera havia desaparecido de seus rostos. Disseram que não era sujeira e sim um pouco de breu e que limpariam em um momento. Mas Stephen pegara uma pequena pedra de arenito e começara a esfregar uma mancha com muito afã. Os marinheiros que o rodeavam, muito nervosos e angustiados porque já haviam soado as quatro badaladas, sentiram ainda mais angústia ao ver projectar-se uma enorme sombra sobre a coberta: era o capitão, completamente nu e com toalha na mão.
— Bons dias, doutor — disse —. Que estás fazendo?
— Bons dias, meu amigo. Estou tratando de tirar esta condenada mancha — respondeu Stephen —. Tenho que eliminá-la.
— Vens nadar comigo?
— Quero muito. Dentro de um momento. Tenho uma teoria... Um pouco mais de areia aí, por favor... Uma faca pequena... Não, minha hipótese não era válida. Talvez com água regia ou espírito de sal...
— Franklin, ensine ao doutor como eliminamos as manchas na Armada. Meu amigo, seria melhor que tirasses os sapatos, pois assim não haveria que esfregar a coberta até o ponto de deixar a Sua Excelência sem teto.
— É uma excelente sugestão — disse Stephen e, uma vez descalço, se aproximou nas pontas dos pés a um pequeno canhão, se sentou nele e se pôs a observar as solas de seus sapatos —. Marcial conta que, em seus tempos, as mulheres de Roma levavam gravada na sola a frase sequi me, do qual se deduz que na cidade havia muito barro, pois a frase não ficaria impressa na areia. Hoje nadarei de uma ponta do barco à outra.
Jack subiu no corrimão de bombordo e olhou para baixo. A água era tão transparente que podia ver a luz passar sob a quilha da fragata. Também podia ver a sombra púrpura que o casco projetava para o oeste, bem definida na parte da proa e a popa e difuminada na parte de baixo, devido à grande acumulação de algas no fundo, pois embora a fragata tivesse o revestimento de cobre novo, havia navegado muito tempo ao sul do trópico. Contudo, não se via nenhum animal perigoso, apenas um cardume de peixes brilhantes e alguns carangueijos.
— Vamos! — exclamou, lançando-se de cabeça à água.
Embora o mar estivesse mais quente que o vento, uma refrescante sensação percorreu o corpo de Jack quando as bolhas roçaram sua pele, a água separou seus cabelos e o sal impregnou seus lábios. Olhou para a superfície, prateada e brilhante como um espelho; por baixo dela viu o casco da Surprise e por cima as placas de cobre próximas à linha de flutuação, cujo reflexo dava ao mar uma tonalidade violeta. O espelho se fez em pedaços quando Stephen se jogou de pé do portaló, a uns vinte pés de altura, com um forte impacto que lançou ao ar a branca espuma. Afundou muito, devido à força da queda, e enquanto descia mantinha o nariz apertado com os dedos; depois, ainda com o nariz apertado, subiu à superfície, e ao chegar ali o soltou e sacou a cabeça da água de uma forma característica, com movimentos convulsivos, os olhos cerrados fortemente e a boca contraida. Alguma particularidade da estrutura de seu corpo o fazia afundar bastante na água, de maneira que o seu nariz ficava próximo da superfície, mas havia progredido muito desde o dia em que Jack o baixara pelo costado em um nó corrediço, em um lugar a três dias de distância de Madeira, a duas mil milhas ao norte e muitas semanas de viagem; ou talvez mais que semanas de viagem, haviam sido de larga espera, orientando as velas até que pudessem tomar o vento nas sobrejoanetes. Desde aquele lugar, com a ajuda dos ventos alísios do noroeste que haviam encontrado à altura das Canárias, haviam descido vinte e cinco graus de latitude, navegando dia após dia tão aprazivelmente que quase não tinham que tocar as escotas nem os braços e avançando duzentas milhas de um meio-dia a outro; e à medida que iam mudando de latitude o sol era mais brilhante. Agora estavam em uma zona de ventos variáveis, ao norte da linha do Equador, mas ainda não haviam encontrado os ventos alísios do sudeste, apesar de que nessa época do ano sopravam muito nessa região. Nas últimas trezentas milhas às vezes o vento havia serenado e outras havia soprado de forma caprichosa, imprevisível. Durante muitas semanas haviam tratado de tomá-lo virando a proa a reboque, trocando a orientação das vergas e lançando jorros d’água dos cestos das gáveas, para cima e para baixo, com o fim de molhar todas as velas, inclusive as sobrejoanetes, e conseguir que se enchessem com facilidade; mas apesar de tudo o vento voltava a encalmar-se ou se afastava e ondeava o mar apenas a dez milhas de distância. Não obstante, a maioria dos dias havia calmaria e a Surprise se desviava imperceptivelmente para o oeste com a corrente equatorial, girando devagar sobre si mesma. O mar parecia imóvel, mas da fragata era possível notar o seu ligeiro movimento, pois ela se deslocava sem nenhuma vela que lhe desse estabilidade, via-se subir e descer constantemente a linha do horizonte. Ali quase não havia pássaros nem peixes (o alcatraz que haviam visto no dia anterior e a tartaruga que haviam encontrado eram casos raros) e nunca se avistava nenhum barco; o céu sempre estava limpo e o sol caia totalmente às doze horas. Estavam ficando sem água... Jack se perguntava quanto tempo duraria o racionamento, mas não quiz fazer cálculos nesse momento. Aproximou-se nadando até o bote que estava a reboque na popa, e Stephen, agarrado à borda deste, gritou algo sobre o Helesponto que, a causa de seu ofegar, e Jack não entendeu nada.
— Viu-me? — Perguntou quando Jack esteva mais próximo —. Nadei de uma ponta do barco à outra. Quatrocentas e vinte braçadas sem parar!
— Muito bem, muito bem — disse Jack, subindo ao bote de um salto e pensando que em cada braçada Stephen devia de ter deslocado menos de três polegadas, já que a Surprise era simplesmente uma fragata de sexta categoria, de 579 toneladas e vinte e oito canhões, a classe de fragata que chamavam “carraca” os que não pertenciam a ela —. Queres subir a bordo? Eu ajudo.
— Não, não — respondeu Stephen, afastando-se —. Poderei arranjar-me sozinho. Agora estou descansando. De todo modo, obrigado.
Detestava que o ajudassem. Incomodara-se com o que lhe fizeram desde o início da viagem, quando seus membros feridos podiam apenas sustentá-lo. Por isso todos os dias havia caminhado da popa até a proa repetidas vezes, todos os dias, desde que haviam chegado à altura de Lisboa, subira até o cesto da gávea do mastro da mesana, permitindo apenas que Bonden o ajudasse, enquanto Jack lhe olhava angustiado de baixo e dois marinheiros se moviam ao redor do mastro com uma rede espessa para interceptar a sua queda. E a cada tarde, com grande esforço, passava a mão cheia de feridas pelas mudas cordas do violoncelo, enquanto sua cara se ficava ainda mais pálida. Verdadeiramente havia feito progressos. Não lhe teria sido possível nadar tanto um mês antes, e muito menos quando estava em Portsmouth.
— Que dizias do Helesponto? — perguntou Jack.
— Que largura tem?
— Bem, uma milha mais ou menos. Desde um lado se alcança o outro com um disparo.
— Da próxima vez que naveguemos pelo Mediterrâneo — disse Stephen —, nadarei em suas águas.
— Claro que sim. Se outros puderam fazê-lo, certamente que tu também pode.
— Olhe, olhe! Uma andorinha de mar justo sobre o horizonte!
— Onde?
— Ali, ali! — exclamou Stephen, soltando-se para apontá-la.
Afundou imediatamente, entre bolhas, mas a mão com que assinalava ficou sobressaindo da superfície. Jack o agarrou pela mão, puxou-o para o bote, e disse:
— Vamos. Subamos depressa pela escada de popa. O nosso café Já cheira e temos muitas coisas que fazer esta manhã.
Desatou a boça e foi remando até a popa da fragata. Então aproximou a escada de Stephen.
O sino soou. O contramestre começou a tocar o apito, e ao ouvir sua chamada os marinheiros subiram apressadamente as macas, cerca de duzentas, para guardá-las com a rapidez do relâmpago na barreira, com os números para o mesmo lado. E de pé, em meio daquela corrente de marinheiros, estava Jack envolto em uma magnífica bata de seda floreada, olhando ao seu redor. O cheiro do café e do baicon eram quase irresistíveis, mas ele queria presenciar toda a operação. Observou que não era tão rápida como desejava e que algumas macas não estavam bem tensas, e pensou que Hervey teria que começar a usar o chicote de novo. Na proa viu Pullings, que tinha a seu cargo a guarda da manhã, mandando atar outra vez uma maca em tom áspero; seguramente tinha a mesma opinião. Jack costumava convidar para o desjejum o oficial de guarda e um cadete, mas pensou em todas as atividades sociais em que participaria nesse dia e em Carrow, o cadete que seria convidado, havia aparecido com força um acne juvenil, o qual era suficiente para que um homem perdesse o apetite. Seguramente o bom Pullings ia desculpá-lo por não fazer o convite.
Um civil se aproximou do castelo de popa cambaleando, devido a uma mudança brusca da maré. Era o senhor Atkins, o secretário do enviado do Rei, um homenzinho raro que já lhes havia causado muitos problemas, pois tinha uma estranha ideia de sua própria importância, das possibilidades de alojamento em uma pequena fragata, e dos costumes marítimos. Além disso, algumas vezes se mostrava distante ou ofendido e em outras se comportava com excessiva familiaridade.
— Bons dias, senhor — disse Jack.
— Bons dias, capitão — disse Atkins.
Jack iniciou seu passeio habitual e Atkins o seguiu, ignorando que um capitão devia ser tratado como um ser sagrado. Mas Jack não podia dizê-lo, apesar de ter suficiente mal-humor para isso, como sempre antes de o desjejum.
— Tenho boas notícias para o senhor — continuou Atkins —. Hoje Sua Excelência se sente muito melhor, melhor que nenhum outro dia desde o começo da viagem; seguramente virá tomar ar dentro de pouco. E me permito sugerir que — segurou Jack pelo braço apesar de sua resistência e falou jogando-lhe o bafo à cara — um convite para comer seria bem acolhido.
— Estou encantado em saber que está melhor — disse Jack, soltando-se —. E confio que logo poderemos desfrutar de sua companhia.
— Oh! Não deve preocupar-se. Não é necessário que faça muitos preparativos, pois Sua Excelência não é um homem orgulhoso senão muito simples. Qualquer comida simples será apropiada. Que tal se o convida hoje mesmo?
— Não é possível — respondeu Jack, olhando com curiosidade ao homenzinho —. Aos domingos como com os oficiais; esse é o costume.
— Contudo, capitão, não creio que um compromiso prévio seja um obstáculo. Ele representa a Sua Majestade!
— No mar os costumes da Armada são sagrados, senhor Atkins — disse Jack, e voltou a cabeça para outro lado —. Ei, do cesto da gávea do traquete, cuidado com essa telera! Senhor Callow, por favor, quando o senhor Pullings vier à popa transmita-lhe meus cumprimentos e diga-lhe que eu gostaria que dejejuasse comigo. E queria que o senhor viesse também, senhor Callow.
Por fim chegou o café da manhã e Jack recuperou seu natural bom humor. Haviam-se reunido os quatro na cabine minúscula (o senhor Stanhope ocupava a grande) e estavam apertados, mas o confinamento fazia parte da vida marinheira. Jack se recostou na cadeira, estirou as pernas e acendeu um charuto:
— Siga comendo, jovenzinho. Não tenha vergonha de mim. Debaixo dessa tampa há ainda um montão de fatias de baicon e seria uma pena desperdiçá-las.
Durante a pausa que seguiu, apenas interrompida pelo ruído que fazia o cadete ao mastigar uma após outra as vinte e sete fatias, ouviram repetir-se por todo o barco os gritos: “ Ouçam todos, de proa a popa! Preparem-se para passar revista quando soarem as cinco badaladas! Todos com suéter marinheiro e calças brancas! Estão ouvindo? Todos com roupa limpa e barbeados quando soarem as cinco badaladas!” Também ouviram claramente, através da delgada antepara, a voz metálica do senhor Atkins tratando de animar ao senhor Stanhope e a voz deste quando lhe respondia em tom repousado. O enviado do Rei era um homem grisalho, de cara abatida, amável e muito bem educado, e era assombroso que tivesse tomado a seu serviço um tipo tão barulhento como Atkins. Desde o momento em que subira a bordo havia se sentido mal e havia ido enjoado até Gibraltar. Havia voltado a enjoar-se quando se dirigiam às Canárias e de novo na zona das calmas do Equador, onde uma forte marejada havia arrastado a Surprise como um tronco e repetidamente parecia que todos os seus mastros iriam cair. Isto último havia coincidido com um ataque de gota, acompanhado de problemas estomacais, que o obrigara a ficar na cabine. Verdadeiramente, todos viram muito pouco o pobre cavalheiro.
— Diga-me, senhor Callow — disse Jack, em parte para evitar ouvir e em parte para ser amável com seu convidado —, como vão de provisões os cadetes? Faz mais de uma semana que não vejo o carneiro que tinham. (O velho animal, que um esperto provedor havia feito passar por um cordeiro, costumava ir coxeando pela coberta.)
— Muito mal, senhor — respondeu Callow, afastando a mão da cesta do pão —. Nós o comemos quando estávamos aos setenta graus de latitude norte. Agora nos resta a galinha. Damos a ela o que podemos, senhor, e é possível que ponha um ovo.
— Ainda não comeram molineras? — perguntou Pullings.
— Oh, se as comemos! — Exclamou o cadete —. Já hão subido a três peniques, o que é uma maldita..., uma verdadeira vergonha.
— Que são as molineras?
— Ratas — respondeu Jack —. As chamamos molineras porque assim fica mais fácil comê-las e talvez também porque adquieren um aspecto polvoriento ao se meterem dentro da farinha e das ervilhas secas.
— Minhas ratas apenas comem as melhores bolachas, untadas ligeiramente com manteiga derretida, e estão tão gordas que arrastam a barriga pelo chão.
— Ratas, doutor? — Perguntou Pullings —. Por que o senhor cria ratas?
— Porque quero ver como caminham, que movimentos fazem... — respondeu Stephen.
De fato, levava a cabo um experimento que consistia em alimentá-las com louro para comprovar quanto tardavam os componentes da planta em lhes penetrar nos ossos, mas não disse nada ao respeito. Era muito reservado e cada vez mantinha mais assuntos em segredo, incluindo tudo referente àqueles animais gorduchos, quase do tamanho de gatos, que dormitavam em sua cabine durante as quentes noites e os ardorosos dias.
— Molineras — disse Jack, recordando sua faminta juventude —. Em um extremo da camareta de bombordo havia um buraco onde costumávamos pôr um pedaço de queijo para caçá-las. Mostravam a cabeça por ali quando iam a caminho de onde se guardava o pão, e então as pegávamos com um laço. Caçávamos três ou quatro cada noite durante a guarda de meia, no posto das ilhas de Sotavento. Heneage Dundas — se dirigia a Stephen — se comia o queijo depois.
— O senhor servia como cadete na Surprise, senhor? — perguntou o senhor Callow atônito, atônito, como se acreditasse que os capitães de navio vinham diretamente do Almirantado.
— Sim, sim — respondeu Jack.
— Santo Deus! Então a fragata deve de ter muitos anos, senhor. Talvez seja a mais velha de toda a frota.
— Efetivamente — respondeu Jack —, é muito velha. A capturamos ao princípio da guerra passada (era francesa e seu nome era Unité), e já então tinha alguns anos. Gostaria de outro ovo?
Callow deu um salto no assento e esteve a ponto de cair porque Pullings lhe deu um chute por debaixo da mesa. Trocou a resposta: “Sim, senhor, com sua permissão”, que tinha pensado, por: “Não, senhor, muitas obrigado” e se pôs de pé.
— Nesse caso, tenha a amabilidade de dizer a seus companheiros que vengam à cabine com suas anotações.
Durante o resto da manhã, até que deram as cinco badaladas na guarda da manhã, esteve ocupado, primeiro com os cadetes e depois escutando os informes do contramestre, do condestável, do carpinteiro e, por último, do contador. Segundo este, o senhor Bowes, ainda havia provisões suficientes, muita carne de vaca e de porco e ervilhas e bolachas para seis meses, mas os queijos e a manteiga não deviam ser comidos (apesar de estar habituado a tudo, Jack recuou ao cheirar as amostras que lhe havia levado) e, o que era ainda pior, a água era muito escassa. Por uma operação fraudulenta haviam introduzido na Surprise uma série de tonéis de cobre que perdiam tanta água quanto toda a tripulação consumia, e o novo tonel de ferro se lhe havia saido toda a água. Jack ainda estava revisando os papéis quando Killick entrou com a jaqueta de seu melhor uniforme na mão e lhe fez um sinal com o queixo.
— Senhor Bowes, terminaremos isto mais tarde — disse Jack.
Enquanto se vestia (com aquele calor esmagador parecia que a tela da jaqueta tinha três polegadas de grossura) pensou na escassez da água e na posição em que estavam. Haviam se afastado tanto para o oeste durante as semanas em que navegavam sem rumo fixo que quando encontrassem os ventos alísios do sudeste seguramente lhes seria difícil dobrar o cabo de São Roque, no Brasil. Na carta marinha observou a posição exata da Surprise e a costa brasileira, a umas quinhentas milhas desta. Seus repetidos cálculos segundo a observação da lua eram muito similares aos feitos com o cronômetro, os do segundo oficial e os do senhor Hervey. Além disso, perto do Equador os ventos alísios costumavam soprar do sul. Enquanto se ocupava destes problemas e de abotoar os botões e o talabarte e amarrar a gravata, notou que a fragata se inclinou na direção do vento e depois, inclinando um pouco mais, começou a se mover devagar. A tempo que não se ouvia a água deslizando por seus costados. Levantou a vista para o compasso delator: OSO 1/2 O. Talvez o vento deixasse de soprar logo.
Quando subiu à abarrotada coberta, onde o calor era até mais sufocante, o vento ainda soprava. A fragata havia alcançado velocidade suficiente para que pudessem fazer manobras e navegava de bolina, com todas as vergas estremecendo e as velas como tábuas. O senhor Hervey, o pesado e míope primeiro oficial, que estava muito nervoso e suava dentro de seu uniforme, olhou Jack com mais segurança que o habitual e sorriu. Seguramente tudo ia bem.
— Muito bem, senhor Hervey — disse —. Isto é o que esperávamos, verdade? Oxalá que dure muito. Talvez deveríamos mantê-la um pouco orientada para o alto mar, ajustando as escotas da traquete e a maior, para fazê-la ganhar uma braça.
Afortunadamente, Hervey não era um desses oficiais suscetíveis que queriam mandar sempre. Não tinha uma grande opinião de si mesmo como marinheiro (nem tampouco os demais) nem se ofendia por nada, enquanto o tratassem com amabilidade. Hervey passou as ordens e a Surprise começou a avançar como se tivesse a intenção de cruzar o Equador obliquamente antes de cair a noite. Então Jack disse:
— Creio que devemos chamar todos a formar.
O primeiro oficial voltou-se para Nicolls, o oficial de guarda, e disse:
— Chamar todos a formar!
Nicolls disse a seu ajudante:
— Senhor Babbington, chame todos a formar.
Babbington abriu a boca para dirigir-se ao infante de marinha que tocava o tambor, mas antes que dissesse algo o tambor trovejou o ar com seu tão-tararan-tão e todos os oficiais correram a seus postos.
O toque do tambor era inútil como aviso, pois realmente não anunciava nada novo nem inesperado. Os tripulantes já levavam algum tempo alinhados junto ao corrimão do castelo de popa, colocados nas usuais marcas da coberta, enquanto os cadetes intentavam que se mantivessem retos e com a ponta dos pés junto à listra e lhes arrumavam os lenços e as fitas do chapéu. Para eles, passar em revista era uma cerimônia formal, tão formal como um baile, um baile que o capitão abria com toda solenidade.
E assim fez o capitão quando os oficiais informaram a Hervey que tudo estava pronto e Hervey lhe comunicou. Voltou-se primeiro para os infantes da marinha. Embora estes, por estarem situados ao final do castelo de popa, não ficarem protegidos pelo toldo, mantinham-se erguidos formando um perfeito conjunto branco e vermelho, com seus rostos e seus mosquetes brilhando ao sol. Jack devolveu o cumprimento ao oficial que estava ao comando e começou a caminhar lentamente entre as filas. Não cria que importasse sua opinião sobre como haviam colocado o peitilho de couro, que quantidade de pó-de-arroz tinham no cabelo e o número e o brilho de seus botões; em qualquer caso, Etherege, o tenente, era um oficial muito competente e seguro que não encontraria motivo para criticá-lo. Não obstante, a obrigação de Jack era ver tudo, como Deus, e realizou sua inspeção objetivamente e com seriedade. Como homem, sentia pena ao ver que os infantes da marinha estavam cozinhando, como capitão devia permitir que siguissem ali sofrendo (o sol era cada vez mais forte e o alcatrão já estava derretendo e caia sobre os toldos).
— Muito bem, senhor Etherege — disse.
Virou-se para o primeiro grupo de marinheiros, os do castelo, na frente dos quais estava o senhor Nicolls, ajudante do primeiro oficial. Eram os melhores marinheiros da fragata, todos de primeira, a maioria de meia idade, embora houvese alguns bem mais velhos. Contudo, em todos os anos que haviam passado na mar, nenhum havia aprendido a manter-se em posição de atenção. Tiraram seus chapéus quando o viram aproximar-se e mantiveram os pés o mais próximo possível da listra, mas nisso consistiu toda sua formalidade, pois alisaram o cabelo com a mão, subiram as amplas calças brancas feitas em casa, olharam a todas as partes, sorriram, tossiram e prestaram atenção a outras coisas; se comportaram de forma muito diferente dos soldados. Jack, enquanto(quando;durante) avançava lentamente com o senhor Hervey em meio ao silêncio, pensava que era um grupo bastante bom, eram marinheiros com o sal impregnado nos ossos, e à luz atenuada pelo toldo viu que alguns estavam quase calvos (suas cabeças pareciam muito brancas em contraste com seus rostos bronzeados) mas arrumavam o escasso cabelo que lhes restava em uma trança na nuca, às vezes aumentada com estopa. Formavam um grupo com um vastíssimo conhecimento da vida marinha; contudo, quando Jack devolveu o cumprimento de despedida ao senhor Nicolls, notou com assombro que estava mal barbeado e sujo, e que tinha também sujos o uniforme e a camisa. Quase nunca havia visto a um oficial nessas condições nem com uma expressão como aquela, mescla de indiferença e cansaço.
Aproximou-se do grupo de gavieiros encabeçado por Pullings, que o saudou como se nunca se houvessem visto, com a frase: “Presentes, limpos e corretamente vestidos, senhor” e depois se colocou detrás dele e do primeiro oficial. Tinham elegância e um censurável ar vaidoso. Todos vestiam suas melhores roupas: calças brancas como a neve e suéteres marinheiros com colarinho azul. Os mais jovens levavam fitas cosidas aos suéteres, belos lenços ao redor do pescoço, como se fossem xales, longos cachos que lhes caiam pelos ombros e brincos dourados.
— O que há com o Kelynall, senhor Pullings? — perguntou Jack, detendo-se.
— Caiu da ponta extrema da joanete na sexta-feira, senhor.
Sim, Jack recordava da queda. Havia sido espectacular, mas afortunadamente sem más consequências, pois devido ao balanço o marinheiro não havia se chocado com os paus nem com os cabos ao cair, pois caiu diretamente no mar, de onde o resgataram sem nenhuma dificuldade. Contudo, isso não era motivo suficiente para que tivesse aquele ar taciturno e o olhar inexpressivo. Com suas preguntas não averiguou nada, apenas obteve a resposta: “Estou muito bem, senhor, estupendamente.” Mas já havia visto antes rostos como aquele, inchados e com os olhos fundos, os havia visto com demasiada frequência. Ao chegar junto ao grupo de marinheiros do convés, com Babbington à frente, observou os mesmos sinais na cara de Garland, um pobre homem que em todos os anos que levava navegando não havia aprendido mais do que manejar o lampazo, e nem sequer bem, um tipo robusto e simplório que sempre sorria tontamente ou ria quando chamavam todos a seus postos.
— Que pensa desse homem? — perguntou a Hervey.
O primeiro oficial inclinou a cabeça para a frente para olhar Garland e depois respondeu:
— Esse é Garland, senhor. É um bom homem, e embora não seja muito brilhante cumpre com seu dever.
Ao ouvir este comentário, o marinheiro não se ruborizou nem mostrou satisfação mas sim ficou muito quieto, manso como um boi.
Jack aproximou-se então do grupo dos artilheiros, em sua maioria homens rigorosos mas lentos. Havia observado neles a habitual falta de treinamento, mas não lhes deixaria em paz até que aprendessem a manejar as peças de artilharia tão bem como serviam a seu próprio Deus. O último do grupo era Conroy, um jovem de olhos azuis e da mesma altura de Jack, mas muito mais magro, de belas feições, quase femininas, e pele lisa e suave. Sua formosura não chamou a atenção de Jack (não podia dizer-se o mesmo do resto de seus companheiros de tripulação), mas a aliança de osso com que que segurava seu lenço sim. Era uma vértebra de tubarão, e nela Conroy havia gravado uma imagem tão exata da Sophie, a primeira embarcação comandada por Jack, que este a reconheceu em seguida. Provavelmente Conroy tinha parentesco com alguém que havia pertencido a sua tripulação. Sim, um de seus oficiais de rota tinha o mesmo apelido, um homem casado que sempre mandava à sua casa a paga e o dinheiro dos butins. Estaria navegando com o filho de um antigo companheiro de tripulação? Como passavam os anos! Aquele não era um momento apropiado para falar, e se fosse, Conroy estava tão nervoso que seguramente começaria a gaguejar ou ficaria mudo. Quando tivesse um pouco de tempo, daria um olhada no rol.
Em continuação passou pelo castelo, onde foi recebido pelo contramestre, o carpinteiro e o condestável, os oficiais permanentes da fragata, que permaneciam imóveis e se sentiam incomodados dentro daqueles uniformes que raras vezes usavam. E de repente desapareceu a sensação de que tinham muitos anos, pois viu entre eles a Rattray, um dos primeiros oficiais que havia chegado à fragata. Jack era ajudante do segundo oficial na Surprise quando Rattray era o contramestre, e agora, sob seu olhar triste, afetuoso e cheio de respeito, mas também penetrante, sentia-se muitíssimo mais jovem. Teve a impressão de que Rattray trespassava com o olhar a sua dragona de capitão de navio e que o que via atrás dela não lhe parecia grande coisa, que não se deixava enganar pela pompa. Interiormente, Jack estava de acordo com ele mas, assumindo o seu papel, adotou um ar cerimonioso quando trocaram os cumprimentos formais. Em seguida, com alívio, dirigiu-se aonde estavam o mestre de armas e o grupo dos marinheiros, tomandose uma mesquinha revanche ao pensar que Rattray não havia sido um bom contramestre, no que se referia à manutenção da disciplina, nem conhecia tão bem como antes os aparelhos. Os marinheiros pareciam bastante inteligentes, mas tinham mais manchas do que o habitual e do tolerável. Um deles tinha uma enorme mancha escura no ombro: alcatrão.
— Mestre de armas, que significa isto? — perguntou Jack.
— Caiu-lhe da exárcia faz um momento, senhor. Eu vi quando caiu.
O marinheiro, um garoto franzino e com adenoides que sempre ficava com a boca aberta, olhava aterrorizado.
— Bom, creio que podemos considerar isto um caso de força maior. Que não se repita outra vez, Peters — disse Jack, com um olhar grave, enquanto pelo canto do olho via como três marinheiros da última fila faziam enormes e desesperados esforços para conter a risada, retorcendo a boca.
Passou rapidamente aonde estavam os marinheiros do convés de bombordo e a guarda de popa. Eram marinheiros de categoria muito inferior, em sua maioria ignorantes, estúpidos e torpes, embora talvez os camponeses chegados recentemente pudessem melhorar. Em geral, pareciam alegres e de bom caráter, exceto três ou quatro tipos mal encarados que procediam da prisão. E entre eles Jack voltou a ver caras abatidas e de coloração mortiça.
Já havia terminado de passar revista na tripulação. Julgava que não estava nada mal, e, por outro lado, era a primeira vez que não faltavam marinheiros. Mas a disciplina havia se relaxado durante os últimos dias de vida de seu predecessor, o pobre Simmons, e havia piorado durante os meses que a fragata havia passado em Portsmouth. Afinal, Hervey não era capaz de conseguir que a tripulação fosse eficiente. Era amável, consciencioso, uma agradável companhia quando podia vencer a sua timidez e um perito matemático, contudo, não via a fragata de uma ponta a outra, e memo que houvesse tido olhos de lince, não era um autêntico marinheiro. Pior ainda, carecia de autoridade, e sua benevolência e sua ignorância haviam perjudicado à Surprise. De todas formas, haveria feito falta um oficial excepcional para resolver a situação em que se encontrava a fragata. A Surprise havia perdido a metade de seus homens porque foram recrutados pelo almirante do porto, e estes haviam sido substituidos por tripulantes da Racoon, que foram levados em massa à fragata quando voltavam de uma missão de quatro anos no posto da américa do Norte, sem que antes lhes fosse permitido descer a terra. Os tripulantes da Racoon, os da Surprise e o pequeno grupo de camponeses recrutados a força não se haviam mesclado; havia rivalidade entre eles e muitas classificações eram errôneas. Por exemplo, o capitão do cesto da gávea do traquete não conhecia seu trabalho, e quando aos artilheiros... Mas não era isso que o preocupava quando se dirigia à cozinha. Tinha uma fragata encantadora e bem equipada, apesar de ser frágil e antiga, e também alguns oficiais competentes. De fato, o que lhe atormentava era a ideia de que o escorbuto havia aparecido. Era possível que estivesse equivocado, talvez a languidez daqueles rostos tivesse outras causas. Além disso, era estranho que o escorbuto aparecesse agora, pois tinham muito pouco tempo de viagem.
O calor da cozinha o fez parar de repente. Embora na coberta o calor fosse sufocante, até mesmo com a oportuna brisa, ao chegar ali lhe pareceu que entrava diretamente no forno de um padeiro. O cozinheiro tinha três pernas; um canhonaço havia arrancado as suas no Glorioso Primeiro de Junho, e, além das duas que lhe haviam posto no hospital, levava outra, presa engenhosamente ao seu traseiro, para impedir que caisse nos caldeirões ou sobre o fogão quando havia marejada. O fogão tinha agora uma cor vermelho cereja que ressaltava na penumbra e a cara do cozinheiro brilhava de suor.
— Muito bem, Johnson. Estupendo — disse Jack, retrocedendo um passo.
— O senhor não vai inspecionar as panelas, senhor? — perguntou o cozinheiro, seu luminoso sorriso desapareceu e sua cara também ia desaparecendo na escuridão.
— É claro que sim — respondeu Jack, pondo a luva branca necessária para a cerimônia.
Passou a mão enluvada ao redor das panelas, olhou os dedos como se realmente esperasse vê-los manchados pelos restos de sujeira e gordura. Uma gota de suor tremia na ponta de seu nariz e muitas outras corriam por dentro de sua jaqueta, mas deu uma olhada na sopa de ervilhas, nos fornos e nos dois quintais de pudim de passas, o pudim dos domingos, antes de ir à enfermaria, onde o doutor Maturin e seu esquelético ajudante escocês o esperavam. Deteve-se junto a todas as macas (havia um homem com um braço rasgado, quatro com sífilis e um com hérnia e sífilis) pronunciando frases que lhe pareciam alentadoras, como: “Tem melhor aspecto”, “Pronto se porá bem” e “Estará de novo com seus companheiros quando cruzemos o Equador”, e depois se pôs sob o buraco da mangueira de ventilação para desfrutar do vento relativamente fresco, de 26°C, e disse a Stephen em tom confidencial:
— Por favor, ande pela coberta com o senhor McAlister e observe a todos os grupos de tripulantes enquanto estou aqui embaixo. Observei em alguns homens sintomas parecidos aos do horrível escorbuto. Espero que esteja equivocado, é excessivamente cedo, mas são absurdamente parecidos.
Foi então ao rancho. Um horrível gato estava ali jogado com as patas dianteiras dobradas e um olhar desafiante. A seu lado estava seu amigo íntimo, um louro verde igualmente horrível, prostado pelo calor, que gritou uma ou duas vezes: Erin go bragh! quando Jack e Hervey, inclinando as cabeças, passavam ao redor das mesas, das bandejas, dos gaveteiros e dos bancos resplandecentes, enquanto a luz, ao atravessar os gradeados de madeira e as escotilhas, formava quadrículas sobre o chão limpíssimo. Não encontrou muitas faltas ali, nem na camareta dos cadetes nem, por suposto, no sala de oficiais. Mas no paiol de velas, onde o contramestre voltou a reunir-se com eles, algo o horrorizou: ao inspecionar uma traquetina, observou que estava coberta de mofo, e logo comprovou que as demais velas também estavam.
Isto havia acontecido por preguiça e descuido e podia trazer graves consequências. O pobre Hervey retorcia as mãos e o contramestre, embora fosse um homem mais curtido, logo se encontrou quase nas mesmas condições. Era ostensiva a raiva de Jack, e seu absoluto desdém para as desculpas de Rattray: “Ocorre com muita frequência perto do Equador... Não há água doce para tirar o sal... O sal mantém a umidade... É difícil dobrá-las bem entre todos estes toldos...” Tiveram sobre este um efeito devastador.
Jack fez uma série de observações sobre a eficiência necessária em um navio de guerra usando um tom coloquial, em voz bastante baixa mas não inaudível, por isso quando subiu a coberta, depois de haver revisado o paiol de cabos e os porões, incluindo o de proa, a expressão dos tripulantes era em parte alegre e em parte apreensiva. Todos estavam muito contentes de que o contramestre os tivesse exibido todos juntos (quer dizer, todos os que não teriam que empregar a sagrada tarde de domingo em “tirar todas, senhor, até as alas, até as bonetas, até a última vela de capa, entendido?”) mas à tempo temerosos de que fossem descobertas suas própias faltas e que da próxima vez as pagassem eles, pois o capitão era um tipo muito duro, uma autêntica fera.
Contudo, Jack regresou ao castelo de popa sem haver mordido nem pegado a ninguém(nenhum) no caminho e, após olhar por entre os toldos para a pirâmide de velas ainda tensas, disse ao senhor Hervey:
— Prepare a igreja, por favor.
No castelo de popa apareceram cadeiras e bancos, e o móvel onde se guardavam os sabres, adequadamente coberto por bandeiras de sinais, converteu-se em um atril. O sino da fragata começou a tocar e os marinheiros foram confusamente para a popa. Os oficiais e os membros do séquito do senhor Stanhope esperavam por ele de pé, junto a seus postos. O enviado do Rei caminhava lentamente para sua cadeira, à direita do capitão, apoiado de um lado pelo pastor e do outro por seu secretário, e entre todas aquelas caras vermelhas como a caoba, a sua estava tão pálida que parecia a de um fantasma. Nunca havia desejado ir a Kampong, nem sequer sabia onde ficava Kampong antes que lhe atribuissem essa missão. E além disso, odiava o mar. Contudo, agora que a Surprise movia-se com a suave brisa, o balanço lhe resultava muito menos incômodo (quase não se percebia se mantivesse a vista fastada do corrimão e do horizonte) e, por outro lado, a cerimônia religiosa da Igreja da Inglaterra, que lhe era muito familiar, lhe servia de consolo naquele estranho complexo de cabos, madeira e tela onde o ar estava tão quente que era quase irrespirável. Seguiu a cerimônia com tanta atenção como os marinheiros, e quando começou o canto dos salmos tão bem conhecidos, uniu-se ao grupo com sua suave voz de tenor, que foi sufocada pelo vozeirão do capitão, sentado à sua esquerda, e seguida docemente em tons mais altos pela distante voz angelical do serviola galês, do alto das cruzetas do mastaréu de proa. Mas quando o pastor anunciou o tema de seu sermão, o senhor Stanhope fechou os olhos e seu pensamento foi para muito longe, até a sua paróquia, em cujo interior o ar era fresco, os zafiros da janela do lado leste davam uma luz tênue e sentia-se tranquilidade entre as tumbas familiares.
O seu pensamento ainda vagava quando o reverendo White disse:
— Sexto versículo, salmo 75: o ascenso não nos chega do leste, nem do oeste nem do sul.
Então os cadetes, que estavam a sotavento, e os tenentes, que se encontravam a barlavento, sentiram reavivar a sua devoção e se inclinaram para adiante, com grande expectação. Por sua parte, Jack, que tinha que dar os sermões quando não havia nenhum pastor em seu barco, pensou: “É um tema verdadeiramente apaixonante.”
Não obstante, quando esteve claro para a maioria que o ascenso tampouco chegava do norte, como haviam suposto os mais perspicazes cadetes, mas que se conseguia por meio de uma linha de conduta que, segundo o senhor White, precisava estar regida por dez pontos principais, todos foram perdendo pouco a pouco o interesse. E quando descubriram que aquele ascenso não se conseguia neste mundo, deixaram de prestar atenção e começaram a pensar na comida, a comida do domingo, no pudim de passas que, com muito poucas brasas, se cozia a fogo lento sob o sol equatorial. Olharam para as velas, que agitavam-se porque o vento havia amainado, pensaram na conveniência de pôr um asa em um dos costados para poder avançar. Callow, que também havia sido convidado a comer com os oficiais às duas, pensou: “Se puder subornar Babbington, comerei duas vezes. Posso descer correndo, quando tivermos medido a altura do sol e...”
— Coberta! — gritou uma voz do alto —. Coberta! Barco à vista!
O pastor interrompeu seu discurso e Jack perguntou:
— Onde?
— A dois pontos pela amura de estibordo, senhor.
— Mantenhasse afastado, Davidge — disse Jack ao timoneiro, que embora estivesse no meio daquela congregação não pertencia a ela nem de sua boca havia saido nunca nenhum hino, salmo, oração ou responso —. Continue, senhor White, por favor. Peço-lhe que me desculpe.
No castelo de popa houve uma grande agitação; os homens olhavam ao seu redor e faziam conjeturas. Jack sentia como aumentava a tensão em torno dele, mas seguiu escutando atentamente ao pastor, com a cabeça inclinada e um olhar grave, e somente se moveu para olhar seu relógio.
— Décimo e último... — disse o senhor White, falando com mais rapidez.
Abaixo, no espaçoso refeitório agora vazio e com pouca luz, Stephen caminhava de um lado a outro lendo o capítulo sobre o escorbuto do livro Diseases of Seamen (As enfermidades dos marinheiros) de Blane. Ao ouvir aquele grito deteve-se, voltou a deter-se depois e então disse ao gato:
— Como é possível isto? Avisaram que há um barco à vista e não se armou nenhum alvoroço nem se começou uma atividade frenética. O estará acontecendo?
O gato franziu a boca. Stephen voltou a abrir o livro e seguiu lendo até que ouviu duzentas vozes corear: “ Amém!”
Na coberta a improvisada igreja ia desaparecendo entre um sussurro geral, e os homens, muito nervosos, olhavam algumas vezes ao capitão e outras, por cima da barreira, ao horizonte, onde podia ver-se uma mancha branca quando a fragata subia com as ondas. Baixaram rapidamente as cadeiras e os bancos, e os sabres recuperaram o valor simbólico que tinham no Velho Testamento. Mas antes de que levarem os livros de oração, já haviam subido à coberta os quadrantes e sextantes, pois os primeiros nove pontos do sermão do senhor White haviam durado muitíssimo tempo, quase até o meio-dia. O sol estava próximo de seu zênite e se aproximava o momento de medir sua altitude. Sua desapiedada luz deu de cheio no castelo de popa quando o toldo que o cobria foi recolhido, e o segundo oficial, seus ajudantes, os cadetes, o primeiro oficial e ou capitão, que ocupavam suas posições em espera desse grande momento, o começo de um dia de navegação em sentido estrito, apenas tinham uma pequena sombra a seus pés. Aqueles cinco minutos eram solenes, sobretudo para os cadetes (o capitão insistia na importância de uma profunda observação), embora não parecia que o sol importasse muito a ninguém. Não parecia até que Stephen Maturin aproximou-se de Jack e lhe perguntou:
— Que história é essa que contam sobre um barco estranho?
— Um momento — respondeu Jack e aproximou-se à barreira.
Elevou o sextante para calcular a altura do sol sobre o horizonte, anotou a medição na pequena quadro de mármore e disse:
— Um barco? Ah, sim! De fato, são os picos de Saint Paul Rocks, sabes? Não escaparão. Se o vento não amainar, as veremos de perto depois da comida. São muito curiosas; têm gaivotas, alcatrazes e outras aves.
A notícia se propagou imediatamente por toda a fragata (eram rochas, não barcos, qualquer maldito marinheiro inexperto que tinha passado de Márgate conhecia Saint Paul Rocks) e os homens voltaram a pensar na comida, que seria servida quando terminasse a medição da altitude. Os marinheiros que serviam as mesas esperavam perto do fogão com as bandejas de madeira e um ajudante do encarregado dos porões mesclava o grogue sob o atento olhar dos oficiais de rota e do despenseiro do contador. O cheiro da comida, mesclado com o do rum, espalhou-se pela coberta provocando que cento e noventa e sete bocas enchessem de saliva. O contramestre, de pé no salto do castelo, estava preparado para dar a voz de rancho. Junto ao corrimão, o segundo oficial baixou o sextante, aproximou-se do senhor Hervey e disse:
— Doze em ponto, senhor, e cinquenta e oito minutos norte.
O primeiro oficial voltou-se para Jack, tirou o chapéu e repetiu:
— Doze em ponto, senhor, com sua permissão, e cinquenta e oito minutos norte.
Jack virou-se então para o oficial de guarda e lhe comunicou:
— Senhor Nicolls, são doze horas.
O oficial de guarda chamou o seu ajudante e lhe disse:
— São doze horas.
O ajudante disse ao oficial de navegação:
— Toque oito badaladas.
O oficial de navegação ordenou ao infante de marinha que estava de sentinela:
— Dê a volta ao relógio e toque o sino.
Em quando soou a primeira badalada, o senhor Nicolls gritou com todas as suas forças ao contramestre:
— Dê a voz de rancho!
O contramestre deu a voz de rancho, por suposto, mas apenas pôde ouvir-se no castelo de popa o ruído das bandejas ao bater, os gritos dos cozinheiros, o estrondo das pisadas e os repetidos golpes que os marinheiros davam em seus pratos. Quando fazia aquele tempo os marinheiros comiam na coberta, em meio aos canhões, e procuravam sentar-se na mesma posição que ocupavam nas mesas de baixo.
Jack conduziu a Stephen a sua cabine e perguntou:
— Que pensas desses homens?
— Tinhas muita razão — disse Stephen —. É escorbuto. Todos os especialistas concordam na descrição: debilidade, dor muscular generalizada, petéquias, gengivas sangrentas, mal hálito... E além disso, McAlister, que é um tipo esperto, já viu muitos casos e não tem nenhuma dúvida. Baseando-me em uma série de observações, cheguei à conclusão de que quase todos os afetados procedem do Racoon. Levavam meses navegando quando os trouxeram.
— Certamente é essa a causa do problema! — exclamou Jack —. Mas não tenho dúvida de que poderás curar-lhes. Oh, sim, tu lhes curarás em seguida!
— Desejaria estar tão seguro como tu. E gostaria de crer que nosso suco de lima não está adulterado. Diga-me uma coisa, há vegetação nessas montanhas rochosas?
— Nem uma folha de erva, nem uma única folha — disse Jack —. Nem tampouco há água.
— Bom — disse Stephen, encolhendo os ombros —. Farei tudo o que for possível empregando o que tenho.
— Estou certo que farás, meu querido Stephen — disse Jack, lançando longe sua jaqueta e com ela uma parte de sua preocupação.
Tinha tanta fé nos poderes de Stephen que, apesar de haver estado em um barco onde a maioria da tripulação havia sido afetada pela enfermidade e quase não ficavam marinheiros para levantar âncora ou içar velas, e muito menos para estabelecer combate, apesar disso, sentia-se tranquilo e pensou então nos quarenta graus de latitude e os fortes ventos do oeste que sopravam ali, muito mais ao sul do Equador.
— É um grande alívio ter-te a bordo — continuou —. É como navegar com um pedaço da Santa Cruz.
— Tolice! Tolice! — exclamou Stephen —, gostaria que tirasses essa ideia da cabeça. A medicina pode fazer muito pouco e a cirurgia muito menos. Tudo o que posso fazer é uma purga, uma sangria, socorrer em um caso de necessidade, recompor uma perna ou cortá-la. Que poderiam fazer Hipócrates, Galeno, Rhazes, que poderiam fazer Blane ou Trotter frente a um carcinoma, um sarcoma ou lupus?
A miúde havia tratado de que Jack perdesse sua fé nele, mas Jack o havia visto trepanar o crânio do condestável da Sophie e sacar-lhe os miolos. Stephen o olhou e, por seu expressivo sorriso, compreendeu que desta vez também não o havia conseguido.
Na Sophie, todos os tripulantes sabiam que se o doutor Maturin se propusesse, podia salvar qualquer um, se as mudanças da maré não o impedissem, e Jack também, pois, como bom marinheiro, tinha as mesmas ideias, embora fossem um pouco mais elaboradas.
— Aceita um copo de madeira? — perguntou —. Creio que os oficiais mataram seu porquinho para a comida de hoje e o madeira é uma excelente base para a carne de porco.
O madeira serviu muito bem de base, o borgonha de acompanhamento e o porto de remate, mas haveriam estado melhor se a sua temperatura estivesse inferior à do sangue. “Não sei quanto tempo o organismo humano pode suportar este excesso”, pensou Stephen, olhando ao seu redor. Estava comendo uma bolacha untada com alho e apenas havia tomado café frio e muito diluido, por razões teóricas e ao mesmo tempo por escolha pessoal, mas ao observar aos demais teve que admitir que, até esse momento, seus organismos suportavam o excesso bastante bem. Jack, com uma grossa capa de pudim sobre duas libras de carne de porco e tubérculos parecia mais propenso a sofrer uma apoplexia que outras vezes, mas seus olhos azuis, que ressaltavam em sua cara avermelhada, não estavam opacos, portanto não havia perigo imediato. Nas mesmas condições estava o gordo senhor Hervey, que havia comido e bebido mais do que o habitual, e seu cara redonda se parecia com o sol do amanhecer, exceto nas rugas de riso. Todos os rostos, menos o de Nicolls, estavam muito vermelhos, mas o de Hervey tinha uma coloração mais intensa que o dos demais. O primeiro oficial era muito simples, sem pretensões, não iniciava discussões nem era agressivo. Como se comportaria alguém assim em uma batalha corpo a corpo? Talvez sua cortesia (Hervey era um perfeito cavalheiro) teria consequências fatais para ele. Em qualquer caso, encontrava-se fora de lugar ali e era uma pessoa muito mais adequada para pertencer a um grêmio ou ao clero. Era uma vítima das circunstâncias. Sua influente família tinha muitas relações no âmbito naval e estava cheia de almirantes, e posto que seu summum bonum era conseguir um posto de almirante, tratou que ele obtivesse um comando o mais jovem possível, mediante qualquer forma passável de corrupção. O júri que o havia aprovado no exame de tenente estava composto por protegidos de seu avô que, muito sérios, informaram por escrito que haviam examinado “ao senhor Hervey..., parece que tem vinte anos... Mostrou os certificados..., sua disposição e seriedade. Sabe ajustar, fazer nós e eriçar as velas, e pode governar um barco. Conhece as marés; sabe calcular o rumo do barco segundo dados da navegação loxodrómica ou de Mercator, fazer medições com referência ao sol e às estrelas e ler as variações do compasso. Fica classificado como marinheiro de primeira e cadete”, mas era tudo mentira, salvo o referente aos cálculos matemáticos, pois quase não tinha experiência como marinheiro. Seria nomeado capitão quando se reunisse com seu tio, o almirante do posto das Índias Orientais, e poucos meses depois seria um capitão de navio angustiado, inseguro e incompetente. Ele e o contador sieriam felizes se houvessem trocado seus postos. Bowes, o contador, não havia podido fazer-se ao mar desde menino, mas como lhe apaixonava a vida a bordo de um barco (seu irmão era capitão), comprou um posto de contador. Apesar de ter um pé zopo havia se destacado em alguns ataques rápidos e muito perigosos. Sempre estava na coberta, pelo que conhecia as manobras perfeitamente, e se orgulhava de saber governar um bote. Sabia muito sobre o mar, e apesar de não ser muito bom contador, era honrado, o que lhe convertia em um exemplar raro. Pullings continuava sendo o mesmo jovem magro e ágil de sempre e seguia tendo a a mesma amabilidade. Estava muito contente de ser um tenente, sua maior ambição, e muito contente de estar no o mesmo barco que o capitão Aubrey. Parecia incrível que pudesse manter-se tão delgado comendo com a avidez de um lobo. Harrowy era o segundo oficial. Tinha a cara larga e sempre sorria; sorria agora, com os lábios unidos no centro da boca e as comissuras abertas, como se fingisse o sorriso. Mas nada mais longe disso, pois embora o segundo oficial fosse um ignorante e um presunçoso, não era falso. Faltavam-lhe os dentes; tinha grandes entradas e o cabelo não muito comprido. Sua grande testa, generalmente pálida, agora estava vermelha e perlada de suor. Havia ascendido a esse posto graças a Gambier, um almirante evangelista, apesar de que não era um navegante destacado. Pertenciam a uma seita do oeste do país e se dedicava a pregar quando estava em terra. Repetidamente ia à enfermaria a visitar os enfermos (em uma ocasião havia dito a Stephen: “Há algo bom dentro de todos eles. Devemos ajudar-lhes a ser melhores”, e quando Stephen perguntara como pensava consegui-lo ele havia respondido: “Confio no fervor religioso e no magnetismo pessoal”), levava-lhes frango e vinho, escrevia suas cartas e lhes emprestava ou dava pequenas quantidades de dinheiro. Estava disposto e ansioso por dar e talvez mais disposto que outros a receber. Era ativo, embora talvez um pouco nervoso, cumpridor de seu dever, saludável e muito limpo. Ao cruzar seus olhos com os de Stephen, seu sorriso se fez mais amplo e inclinou a cabeça com cortesia.
Etherege, o tenente de marinha, estava vermelho como sua jaqueta e nesse momento estava desabotoando o cinturão com dissimulação, olhando ao seu redor com uma expressão amável. Era um homem baixinho que apenas falava. Contudo, não era uma pessoa tosca, mas sua viva expressão e sua risada frequente substituiam as suas palavras. Mas embora tinha pouco que dizer, era bem-vindo em todas as partes.
Nicolls era muito diferente. Sua cara, em comparação com as daquele alegre conjunto, estava quase pálida. Era um homem de cabelo preto, auto-suficiente e de forte caráter, e haveria estragado aquela festa tranquila e relativamente formal se não fizesse evidentes esforços por ser amistoso. Mas apesar disso, seguia tendo o semblante triste, e recorrer insistentemente ao porto não lhe fazia muito bem. Stephen lhe vira repetidamente em Gibraltar anos atrás e recordava daquela vez que ambos haviam comido com a 42a divisão de infantaria em Llatham, quando haviam levado Nicolls de regresso ao barco cantando como um canário; mas isso havia ocorrido justo antes que se casasse e seguramente se encontrava em um estado de grande tensão. Parecia um típico oficial da marinha, um pouco reservado mas uma agradável companhia, alguém que combinava de um modo natural a boa educação com a rudeza própria da profissão, mas mantendo-as separadas por um antepara. Um típico oficial da marinha... Como se podia definir um típico oficial da marinha? Em todos os grupos de marinheiros se encontravam uns poucos com determinados traços comuns que, com variantes, pareciam repetir-se em todos os demais, mas talvez fossem excessivamente poucos para caracterizar toda uma profissão, para representar todos seus aspectos distintivos. Nesse momento, apesar de conhecer centenas deles, vinham à sua mente menos de uma dúzia: Dundas, Riou, Seymour, Jack, Collrane...
Mas não, Collrane era excessivamente presunçoso em terra para ser um oficial típico, estava excessivamente orgulhoso de si mesmo, excessivamente convencido de seu próprio valor, excessivamente afetado por essa paixão escocesa pelas afrontas e, por outro lado, aquele desafortunado título era um peso para ele, uma cruz. Jack tinha um pouco de Collrane, sua grande impaciência por conseguir maior autoridade e o convencimento de que tinha razão, mas isso não era suficiente para desqualificar-lhe, longe disso, e afinal, o ia perdendo nos últimos anos.
Quais eram os traços comuns? Muito ânimo e resistência, boa disposição, grande capacidade de comunicação e certa ingenuidade. Até que ponto se deviam à influência do mar e até que ponto ao fato de que escolhiam essa profissão os que tinham uma determinada maneira de pensar?
— O capitão se retira — sussurrou-lhe ao ouvido seu vizinho de assento, tocando-lhe no ombro.
— Oh, sim! — disse Stephen, pondo-se de pé —. Já levantou a âncora.
Subiram devagar a escada de toldilla. Na coberta fazia muito mais calor agora porque o vento já não soprava. Pelo costado de bombordo haviam baixado até a água uma vela presa pelas pontas e haviam posto um peso no seu centro, formando uma grande banheira onde a metade da tripulação chapinhar. Por estibordo, a umas duas milhas, estavam as montanhas rochosas, elevando-se sobre o mar azul intenso até uns cinquenta pés acima da superfície, e embora já não parecessem barcos seguiam tendo uma deslumbrante brancura, tanta que a seu lado a espuma do mar parecia de cor creme. Os alcatrazes e as escuras andorinhas, formando uma nuvem, volteavam sobre elas e de vez em quando um alcatraz se mergulhava no mar, provocando os mesmos salpicos que uma bala de quatro libras.
— Senhor Babbington, empreste-me sua luneta, por favor — disse Stephen.
E depois de estar olhando um pouco exclamou:
— Oh, quanto gostaria de estar ali! Posso dispor de um bote, Jack, melhor dito, capitão Aubrey?
— Meu querido doutor, estou seguro de que não perguntaria isso se te houvesse lembrado de que é domingo pela tarde.
A tarde do domingo era sagrada. Era o único tempo livre de que dispunham os marinheiros se o vento, as condições climáticas e a maldade do inimigo o permitiam, e se preparavam para ela laboriosamente no sábado e no domingo pela manhã.
— Vou descer e inspecionar esse condenado depósito de velas — continuou falando enquanto se afastava de seu decepcionado amigo —. E não te esqueças de que temos que visitar o senhor Stanhope antes de chamar a todos a seus postos.
— Posso levá-lo para lá, se quiser — disse Nicolls, um momento depois —. Estou seguro de que Hervey nos deixará usar o chinchorro.
— É muito amável de sua parte — disse Stephen, observando que estava ébrio mas que tinha controle de si mesmo —. Agradeço muitíssimo. Pegarei um martelo, algumas caixas pequenas e um chapéu e em seguida voltarei a reunir-me com senhor.
Passaram de gatinhas pela barcaça, pela lancha e por um dos cúters e por fim subiram ao chinchorro (todos iam a reboque pois deviam estar na água para que não rachassem com o calor) e começaram a afastar-se remando. as alegres vozes ficaram para trás, a esteira do chinchorro ficava cada vez mais larga sobre a água cristalina. Stephen tirou a roupa e se sentou sobre seu chapéu de palha. Tomar sol era um deleite para ele e se havia convertido em uma prática diária desde que estavam à altura de Madeira. Agora tinha dos pés à cabeça uma cor parda frisado de marrom e cinza. Não tinha o hábito de lavar-se com frequência (em qualquer caso, não se podia gastar água doce), e além disso, parecia estar coberto de pó porque o sal ficava impregnado quando nadava.
— Há um momento estava fazendo reflexões sobre os oficiais da marinha — disse — e tratava de determinar quais eram os traços que fazem a gente dizer: “Esse homem é um marinheiro em toda a extenção da palavra.” Cheguei à conclusão de que é tão raro encontrar um oficial da marinha típico como um cadáver típico do ponto de vista anatômico, quer dizer, que está rodeado dos que poderíamos chamar exemplares irregulares ou subespécies. Por outro lado, percebi que se há muitos cadetes afáveis, há menos tenentes, ainda menos capitães e poquíssimos almirantes que o sejam. Uma possível explicação seria esta: além de sua valia profissional, sua capacidade de resignação, seu excelente fígado, seu natural dom de comando e outras virtudes, devem ter uma qualidade ainda mais rara, a de resistir aos efeitos do exercício da autoridade, que são efeitos desumanizadores. A autoridade destroi a humanidade da pessoa; em cada esposo, em cada pai de família, pode notar-se como a pessoa fica absorvida pelo personagem, o indivíduo anulado pelo papel que desempenha. Se aumentamos essa família a centenas de pessoas e, consequentemente, a autoridade, poderemos imaginar esses efeitos em um capitão e até em um monarca absoluto. Não cabe dúvida de que o homem nasce para ser um solitário ou para ser oprimido; em uma destas formas se manifesta seu caráter humano, a menos que seja imune ao veneno. Na Armada essa imunidade não se detecta até muito tarde, mas é evidente que existe. Se não fosse assim, como poderiam explicar-se alguns casos raros de almirantes muito humanos e ao mesmo tempo eficientes como Duncan, Nelson...?
Notou que a atenção de Nicolls havia se desviado e baixou a voz até emitir apenas um sussurro aparentemente inacabado. E posto que nesse momento não havia pássaros no céu, sacou um livro do bolso da jaqueta e começou a ler. Os remos chiavam ao girar sobre as forquetas, os remos se afundavam com um movimento rítmico e o sol caia completamente; o bote parecia arrastar-se pelo mar.
De vez em quando Stephen levantava a vista, e enquanto repetia frases em urdu observava a cara de Nicolls. O oficial tinha mal aspecto, e estava assim a algum tempo. Já a tinha em Gibraltar e em Madeira, e havia piorado em Saint Jago. Em seu caso, o escorbuto estava descartado. Teria sífilis? talvez lombrigas?
— Desculpe-me — disse Nicolls com um sorriso forçado —.Temo que perdi o fio da meada. Que estava dizendo?
— Estava repetindo frases deste livro. É o único que consegui, à parte da gramática de Fort William que tenho em minha cabine. É um livro de frases e parece que foram reunidas por um homem decepcionado. Escute: “Um tigre, um leopardo e um leão comeram meu cavalo. Quis alugar um palanquim. Não há palanquins nesta cidade, senhor. Roubaram todo o meu dinheiro. Quis falar com o arrecadador. O arrecadador está morto, senhor. Alguns homens malvados me bateram”. Mas também parece um homem salaz, porque inclue esta frase: Mulher, queres dormir comigo?
Nicolls, esforçando-se pora mostrar interesse, perguntou:
— É essa a língua com que o senhor fala com Allmet?
— Sim, efetivamente. Todos nossos marinheiros das Índias Orientais a falam, embora procedam de distintas regiões; é sua língua comum. Escolhi Allmet porque é um homem serviçal e paciente e porque essa é sua língua materna. Mas como não sabe ler nem escrever, uso minha gramática para poder diferenciar as expressões coloquiais. Não lhe parece que falar uma língua sem a reforçar com a letra impressa ela passaria por nossa mente quase sem deixar rastro?
— Não sei o que dizer, não me dou bem com os idiomas, nunca me dei. Assombra-me ouvir-lhe falar com esses negros. Mesmo em minha própria língua, quando tenho que falar de um tema diferente à navegação, parece-me...
Fez uma pausa, olhou por cima do ombro e disse que não deveriam desembarcar por aquele lado porque era excessivamente escarpado, que seria melhor fazê-lo pelo outro. O número de pássaros aumentava à medida que se aproximavam das rochas, e agora que as rodeavam pelo sul, uma enorme quantidade de andorinhas e alcatrazes os sobrevoavam em absoluto silêncio e submergiam e saiam dos bancos de peixes fazendo percursos muito diversos e entrecruzando-se de um modo desconcertante. Stephen, também em silêncio, alçou a vista para eles e, com grande espanto, ficou contemplando-os até que o fundo do bote tocou as rochas cobertas de algas. Então Nicolls conduziu o bote para uma entrada muito bem protegida, o sacou da água e ajudou Stephen a descer.
— Obrigado, obrigado — disse Stephen, e começou a subir com dificuldade pela obscura faixa banhada pelo mar.
Ao chegar ao branco cume iluminado pelo sol parou de repente. Justo adiante dele havia pousado um alcatraz, tão perto que quase podia tocá-lo. Logo foram dois, quatro, seis, tão brancos como as rochas aonde pousavam..., um tapete de alcatrazes, jovens e velhos, e entre eles havia muitíssimas andorinhas. Observou que o alcatraz mais próximo virava para ele a sua cara alongada com traços de reptil e o olhava sem muito interesse, e notou certa irritação em seus olhos redondos e brilhantes. Estirou os dedos para tocá-lo e o pássaro fez um movimento de repúdio que foi seguido por um grande alvoroço a todo o redor. Então, em outra rocha a poucos pés de distância, pousou outro alcatraz que trazia sua abundante captura para alimentar o seu enorme filhote que o esperava com o bico aberto.
— Jesus, Maria e José! — murmurou ao pôr-se de pé e passar a vista pela ilha.
Era um conjunto montanhoso de formas suaves que parecia um vasto molar gasto, e todas as suas depressões estavam cheias de pássaros. O ar quente se enchia com o ruído do ir e vir dos pássaros, o cheiro do amoníaco de seus excrementos e o cheiro de pescado podre. Formava sobre a superfície uma massa luminosa tão deslumbrante que era difícil distinguir os pássaros no cume, cinquenta jardas mais acima, e a crista das montanhas parecia um gordo cabo que se retesava e oscilava. Não havia água. O terreno era árido. Não havia nem uma folha de erva nem algas nem líquen, apenas aquele fedor, a rocha ardente e o ar imóvel.
— Isto é o paraíso! — exclamou Stephen.
— Fico alegre de que goste — disse Nicolls, com o semblante cansado, sentando-se no único lugar limpo que encontrou —. Não lhe parece um pouco desagradável para ser o paraíso? Afinal, é quente como o fogo do inferno. Posso sentir o calor da rocha a través dos sapatos.
— Tem mal cheiro, certamente — disse Stephen —, mas ao chamar-lhe paraíso me refiro à mansidão das aves. Por certo que não creio que sejam elas que cheirem assim. — Inclinou a cabeça, pois uma andorinha passou roçando enquanto diminuia sua velocidade para posar na rocha —. É como a mansidão das aves antes do pecado original. Vou cheirar este pássaro, creio que ele deixará. Acrdito que o fedor é provocado em grande medida pelos excrementos, os peixes mortos e as algas... — E dizendo isto se aproximou de um dos poucos alcatrazes que ainda estavam chocando seus ovos, inclinou-se para ele, pegou o seu bico com suavidade e encostou o nariz no seu lombo —. Mas também em grande medida pelas aves.
O alcatraz o olhou entre indignado e incrédulo, eriçou as plumas e lançou um assobio, mas não se afastou. Então moveu-se um pouco sobre o ovo que chocava e passou a observar um carangueijo que, a uns dois pés dali, roubava com grande esforço um peixe voador que uma andorinha havia abandonado próximo do seu ninho.
Do alto da ilha pôde ver a fragata que, com as velas flácidas, permanecia imóvel a duas milhas de distância. Havia deixado Nicolls atrás de si, à sombra de um alpendre construido com a roupa e os remos, a única sombra naquelas esplêndidas montanhas rochosas. Havia caçado dois alcatrazes e duas andorinhas, embora por princípio fosse resistente a golpeá-los, e um dos alcatrazes, o das patas vermelhas, parecia pertencer a uma espécie não descrita. Ao menos escolhera pássaros que não estavam criando os seus filhos, e por outro lado, segundo seus cálculos, ficavam uns trinta e cinco mil mais apenas naquela montanha. Nas caixas havia recolhido vários exemplares de traças, um escaravelho de um gênero desconhecido, dois tatuzinhos aparentemente idênticos aos que havia encontrado em um monte de turba na Irlanda, o carangueijo ladrão e um grande número de carrapatos e insetos sem asas que classificaria a seu tempo. Que butim! Agora golpeava a rocha com o martelo, não para obter amostras geológicas, pois estas já estavam empilhadas no bote, mas para aumentar uma fenda em que um estranho aracnídeo havia se refugiado. A rocha era dura, a fenda profunda, o aracnídeo teimoso. De vez em quando parava para respirar o ar puro daquelas alturas ou olhar pelo lado leste da ilha para a fragata. Naquele lado havia muito menos pássaros, embora de vez em quando se via algum alcatraz voltear ou mergulhar no mar com as asas fechadas. Pensou que ao fazer a dissecação desses exemplares observaria com especial atenção suas fossas nasais e trataria de conhecer o processo que evitava a entrada da água.
Nicolls abrira-se com ele. O fizera de improviso e seguramente motivado por alguma palavra pronunciada ao acaso. Algo já remoto que não podia recordar dera base àquelas inesperadas palavras: “Estive em terra desde que fui despedido da Euryalus até que me contrataram na Surprise e, além disso, minha mulher e eu brigamos.”
Os protestantes repetidamente se confessavam aos médicos e Stephen já havia ouvido antes essa história seguida de uma petição ritual de conselho — a esposa profundamente ferida, o malvado marido tratando de reconciliar-se, a farsa da vida matrimonial, as palavras veladas, a cortesia, o domínio, o ressentimento, a tremenda tristeza das noites e os despertares, a progressiva perda das amizades e da comunicação com outros — mas nunca ouvira exposta com aquela pungente pena, com aquela desolação. Nicolls havia continuado: “Acreditei que me sentiria melhor quando estivesse navegando, mas não foi assim. Não recebi nenhuma carta em Gibraltar, embora a Leopard tivesse chegado antes de nós, e também a Swiftsure. Muitas vezes, durante a guarda do meio, passeava de um lado a outro da coberta pensando na resposta que daria às cartas que me esperavam em Madeira. Mas não havia cartas. O barco correio já havia chegado e havia ido embora fazia quinze dias, quando estávamos ainda em Gibraltar, e contudo não havia cartas. Confiava em que ainda existia uma possibilidade, mas não recebi nem sequer uma nota. Negava-me a crer que era verdade enquanto atravessávamos a zona dos ventos alísios, mas agora sei que o é e, lhe asseguro, Maturin, não posso soportá-la, não por muito tempo, estou morrendo lentamente.” Stephen havia afirmado: “Certamente haverá um montão de cartas no Rio de Janeiro. Ttambém não recebi nenhuma em Madeira, bom, quase nenhuma. Creio que as mandarão ao Rio de Janeiro, acredite nisso, ou talvez a Bombaim.” Nicolls havia dito em tom fraco mas seguro: “Já não haverá mais cartas. Estou lhe chateando excessivamente com meus assuntos, perdoe-me. Construí um alpendre com a minha camisa e os remos, gostaria sentar-se debaixo? Creio que este calor vai te provocar dor de cabeça.” Stephen havia respondido: “Não, obrigado. Há pouco tempo e tenho que explorar esta arca o quanto antes, pois apenas Deus sabe quando voltarei a vê-la.”
Stephen esperava que Nicolls não se arrependesse daquilo mais tarde. A confissão sacramental era muito mais formal, muito menos detalhada e extensa e muito menos satisfatória em seus aspectos não sacramentais, mas pelo menos o confessor era um sacerdote e atuava como tal em todos os momentos de sua vida; em troca, um médico era como qualquer ser humano comum a maior parte do tempo, alguém a quem resultaria difícil encontrar-se cara a cara na mesa depois de contar-lhe essas intimidades.
Voltou a sua tarefa. Tac, tac, tac. Uma pausa. Tac, tac, tac. A fenda ia se alargando. Stephen notou que umas grossas gotas caiam sobre a rocha e secavam imediatamente. “Não creio que seja meu suor”, pensou, sem deixar de martelar. Então notou que caiam gotas também nas suas costas, enormes gotas quentes de chuva, muito diferentes dos excrementos com que os inumeráveis pássaros o haviam presenteado.
Ficou de pé e olhou ao seu redor. Pelo oeste se via uma massa escura no céu e justo debaixo dela, sobre o mar, uma faixa branca que aproximava-se com incrível rapidez. Não havia pássaros voando, nem sequer na parte oeste da ilha, onde eram tão numerosos. A curta distância tudo já estava borrado pela chuva que caia. Da massa escura brotaram lampejos vermelhos que puderam ser vistos com nitidez. Pouco depois o sol ficou oculto e Stephen sentiu a quente chuva cair com força sobre ele. A chuva era torrencial e tão quente como o ar, mas não caia em gotas mas em jorros quase horizontais que se chocavam, dividindo-se infinitamente e salpicando-lhe com força, quase sem deixá-lo aspirar o ar. Protegeu a boca e o nariz com as mãos para poder respirar melhor, mas de maneira que a água pudesse passar entre os dedos, e pouco a pouco a ia bebendo, uma pinta após outra. Embora se encontrasse no cume das montanhas rochosas, a água do dilúvio chegou aos seus tornozelos, e as caixas, flutuando, começaram a afastar-se. Meio agachado e cambaleando pelo vento pôde recuperar duas e se sentou sobre elas, enquanto a chuva continuava caindo, com tanto ruído que quase abafava o estrondo dos trovões. Agora estava justo no centro da tempestade; o vento o derrubou, e o que pensava que era o maior dos cataclismos piorou dez vezes. Pôs as caixas entre os joelhos e se inclinou sobre elas.
O tempo parecia transcorrer de outra forma. Apenas estava marcado pelos sucessivos relâmpagos que saiam das nuvens carregadas e que, atravessando o ar, chocavam-se com as rochas e depois voltavam à escuridão. Alguns pensamentos inquietantes cruzaram por sua mente: Que havia sido da fragata? Os pássaros podiam sobreviver a isto? Nicolls estava a salvo?
Terminou. A chuva parou de repente e o vento afastou as nuvens carregadas. Poucos minutos depois, o sol voltava a brilhar no agradável céu, cujo azul parecia ainda mais intenso. Ao oeste tudo seguia igual, como sempre estivera, exceto por algumas manchas brancas no mar; ao leste, no mesmo lugar onde vira a fragata pela última vez, agora estava a tempestade. E no espaço entre as rochas e aquela massa escura, um espaço amplo e iluminado pelo sol, a corrente arrastava centenas de pássaros voadores mortos, e ao seu redor nadavam os tubarões, grandes e pequenos, saindo de vez em quando à superfície para pegá-los.
Ainda ouvia correr a água pela montanha. Stephen desceu a ladeira chapinhando e gritando: “Nicolls, Nicolls!” Evitava os pássaros ao passar; alguns ainda estavam sobre seus ninhos com o corpo encolhido, outros arrumavam as plumas. Em três lugares diferentes encontrou filas desordenadas de andorinhas e alcatrazes mortos, com os corpos carbonizados e com cheiro de queimado apesar de estarem úmidos. Chegou ao lugar onde ficava o alpendre, mas ele não estava, tampouco os remos. E o bote já não estava no lugar onde o haviam deixado.
Foi dando a volta na ilha e, aproveitando o vento, lançava seu chamado ao vazio. E quando chegou de novo no lado leste e olhou para o mar, a tempestade já havia cessado. A fragata não estava. Subiu ao cume e dali pôde distingui-la, embora não visse o casco. Navegava de vento em popa com o velacho aberto e havia perdido o mastaréu maior e o da mesana. Ficou observando-a até que a última pincelada branca desapareceu. O sol se afundava no horizonte quando deu a volta e começou a descer. Os alcatrazes já estavam a pescando outra vez; os de mais alto, ainda iluminados pelo sol, pareciam de cor rosa quando atravessavam a brilhante luz para lançar-se ao mar.
CAPÍTULO 6
A barcaça, ao comando de Babbington, foi resgatar-lhe por fim. Havia tido que navegar contra o vento e com dois tripulantes colocados em cada remo, para fazer mais força.
— O senhor está bem, senhor? — gritou Babbington quando o viu ali sentado. Stephen não respondeu, limitou-se a fazer um sinal para que a barcaça fosse pelo outro lado.
— O senhor está bem, senhor? — perguntou de novo, saltando à terra —. Onde está o senhor Nicolls?
Stephen assentiu com a cabeça e com voz lastimosa disse:
— Estou perfeitamente bem, mas o pobre senhor Nicolls... Têm água na barcaça?
— Traed o barril. Vamos, ponhas uma mão.
A água começou a umedecer sua boca enegrecida e correu pela sua garganta até que enchesse seu corpo murcho e o suor brotou de sua pele. Enquanto os homens, muito preocupados, permaneceram junto dele, respeitosos, solícitos, fazendo-lhe sombra com um pedaço de lona. Não esperavam encontá-lo vivo; a desaparição de Nicolls era, em uma situação como aquela, algo normal.
— Há suficiente para todos? — perguntou em um tom mais animado.
— Muita, senhor, muita. Outros dois barris — respondeu Bonden —. Mas, senhor, crê que faz bem? Não rebentará o senhor?
Seguiu bebendo e fechou os olhos para desfrutar mais daquele prazer. “Um prazer mais intenso e mais reconfortante que o amor”, pensou. Depois, ao abri-los de novo, gritou:
— Deixem isso agora mesmo. Senhor, senhor, deixe esse alcatraz aí. Já lhes disse que deixem isso, maldita corja de torpes. Que vergonha! E não toquem nessas pedras.
— O'Connor, Bogulavsky, Brown, e vós também, regressem todos à barcaça! — ordenou Babbington —. Quer, senhor, comer algo, senhor? Sopa? Um sanduíche de presunto? Um pedaço de biscoito?
— Não, obrigado. Por favor, faça que subam esses pássaros a bordo, e também as pedras e os ovos, e tenha, senhor, a amabilidade de levar também as duas caixas pequenas. Depois poderemos desatracar. Como está a fragata? Onde ela está?
— A quatro ou cinco léguas ao sul e um quarto ao leste, senhor. Talvez tenha podido ver nossos joanetes ontem pela tarde.
— Não, não as vi. Há sofrido danos? Há feridos?
— Está maltratada, senhor. Estão todos a bordo, Bonden? Agora com cuidado, com cuidado. Plumb, enrole essa camisa e forme uma almofada. Que fazes, Bonden?
Estou protegendo-o do sol, senhor. Supus que o senhor não se importaria de cudar do timão.
— Desatracar! — gritou Babbington —. Retroceder!
A barcaça se afastou com rapidez da ilha rochosa, virou em redondo e começou a afastar-se para o sudeste com a vela maior e a bujarrona içadas.
— A fragata, senhor — disse, colocando-se em frente ao compasso e agarrando a vara do timão —, sofreu muitos danos e perdemos alguns homens: Tiddiman caiu da proa e três ou quatro marinheiros foram levados pela corrente antes que pudessemos subi-los a bordo. Estávamos observando o céu, mas pelo oeste, e não vimos os brancas nuvens carregadas.
— Brancas? Eram mais negras que uma tumba aberta!
— Essas eram as da tempestade que veio depois. As primeras eram brancas e iam na direção sul, chegaram poucos minutos antes das outras; segundo dizem, estas tempestades se formam com frequência perto do Equador, mas não costumam ser tão condenadamente fortes. A realidade é que nos pegaram desprevenidos (o capitão estava em baixo nesse momento, no paiol de velas) e o vento passou na altura das gávias, sem nem tocar a superfície, fazendo-nos inclinar tanto que a coberta ficou quase na posição vertical. Todas as velas se desprenderam das relingas antes que pudessemos tocar as escotas ou as adriças e não ficou nem um pedaço de lona.
— Também perderam o estandarte?
— Sim, até o estandarte. Foi assombroso. O mastaréu de joanete de proa e o mastaréu maior e o de sobre-mesana cairam sobre a coberta, por sotavento, e em consequência disso inclinamos até quase ficar com a coberta na vertical, abriram-se todas as portas e três canhões se soltaram. Então apareceu o capitão dando gritos, com um machado na mão, e derrubou os paus pela borda e votamos a ficar retos. Mas apenas havíamos acabado de endireitar a proa quando chegaram as nuvens carregadas negras. Oh, meu Deus!
— Pusemos um pedaço de lona no mastaréu de velacho — disse Bonden —. Tivemos que correr por causa dos canhões que rodavam pela coberta; o capitão tinha a esperança de que não atravessariam os costados.
— Eu tinha a empunhadura de barlavento — comentou Plumb, que ia remando na popa —, e levei muitíssimo tempo para passá-la. O vento soprava tão forte que minha trança chegou até o início do botalós e deu duas voltas ao redor dele; Dick Turnbull teve que cortá-la — voltou a cabeça para mostrar que a havia perdido — para que pudesse soltar-me. Esse foi um momento terrível para mim, senhor. Depois de quinze anos de trançar e pentear cuidadosamente meu cabelo e fortalecê-lo com o melhor azeite de Makasar, apenas me restou uma trança de três polegadas que parece um pedaço de cabo.
— Mas ao menos — disse Babbington — pudemos encher os tonéis d’água. Depois aparelhamos um mastaréu maior e um mastaréu de sobre-mesana provisórios, e desde então navegamos sem problemas.
Uma infinidade de detalhes..., as preguntas que, em voz baixa e angustiada, Babbington fazia sobre Nicolls..., a assombrosa conformidade ante sua morte..., mais detalhes sobre as vergas desprendidas e como o bauprés havia sido atingido por um raio, sobre os grandes esforços que haviam realizado dia e noite... Então Stephen dormiu, segurando na mão o pedaço de biscoito.
— Aí está — disse Bonden, e Stephen ouviu sua voz entre sonhos —. Içaram uma nova joanete de proa. O capitão ficará encantado de vê-lo, senhor; dizia que o senhor não poderia sobreviver nessas rochas. Estava na coberta dia e noite, e por todo o barco havia homens observando com suas lunetas. Bem sabe Deus que estava muito preocupado. —Riu entre os dentes recordando as ferozes ordens, como os homens eram obrigados a trabalhar duro embora estivessem quase mortos de fadiga.
Com efeito, estava muito preocupado, mas a notícia, que lhe chegou do cesto da gávea, de que a barcaça aproximava-se e que a bordo vinha o doutor muito animado, o tranquilizou, apesar de sentir uma profunda angústia pelo desaparecimento de Nicolls. E quando se inclinou sobre o corrimão ambos os sentimentos se refletiram em seu rosto; tinha um ar grave, mas pouco a pouco ruborizou de satisfação e esboçou um sorriso. Então Stephen subiu pelo costado agilmente, quase como um marinheiro.
— Estou perfeitamente bem! — exclamou —. Contudo, lamento dizer que o senhor Nicolls e o bote desapareceram. Procurei por todas as partes naquela tarde, no dia seguinte e no outro, e não encontrei nenhum rastro deles.
— Sinto muito — disse Jack, movendo de um lado a outro a cabeça e descendo a vista —. Era um bom oficial. Mas vamos, dessa e deitesse na cama. O senhor McAlister te atenderá. Senhor McAlister, por favor, Leve ao doutor Maturin abaixo.
— Permita-me levá-lo, senhor — disse Pullings.
— Eu te ajudarei — disse Hervey.
Todos os que se encontravam no castelo de popa e a maior parte da tripulação observavam ao doutor ressuscitado; seus companheiros mais antigos o olhavam satisfeitos, os outros muito assombrados. Pullings se atreveu até mesmo a se meter entre o capitão e o doutor para pegar o braço deste.
— Não tenho nem a mais mínima intenção descer — protestou Stephen, soltando-se —. Tudo o que necessito é uma xícara de café. Sua Excelência — havia visto o senhor Stanhope ao virar-se para trás —, peço que me desculpe por não haver comparecido ao encontro do domingo.
— Quanto me alegro de que haja sobrevivido! — disse, avançando e apertando-lhe a mão.
Falava com mais comedimento que o habitual, pois Stephen estava completamente nu. E embora ele já tivesse visto muitos homens nus, nunca havia visto nenhum com os olhos avermelhados como cerejas, por causa do sal e do sol abrasador, nem com a pele tão enrugada, enegrecida e cheia de crostas, nem com aspecto cadavérico.
— Alegro-me que lhe hajam resgatado — disse o senhor Atkins, o único homen a bordo que não se alegrava pela barcaça ter regressado.
Stephen estava vagamente relacionado com a missão do enviado do Rei, porque nas instruções deste diziam para “pedir conselho ao doutor Maturin”. Contudo, nelas não se falava do conselho do senhor Atkins, nem sequer se mencionava seu nome, e ele se consumia de ciúmes.
— Quer que vá buscar uma toalha ou alguma outra vestimenta? — continuou, olhando o abdomen encolhido e escrofuloso de Stephen.
— O senhor é muito amável, senhor, mas esta é a roupa com que me apresentarei ante Deus e me parece muito adequada. Poderia chamar-se “traje de nascimento”.
— Deixou esse estúpido sem jeito — sussurrou Pullings para Babbington sem mover nem um músculo da cara —. Ele tinha merecido.
Pela manhã, quando soou a primeira badalada, foi ao desjejum muito animado e arrumado.
— Está certo que não quer ficar na cama? — perguntou Jack.
— Por nada desse mundo, meu amigo — respondeu Stephen, pegando a cafeteira —. Não já repeti um montão de vezes que estou perfeitamente bem? Queria uma fatia desse presunto, por favor. Falo sério, se o pobre Nicolls não estivesse comigo, não me importaria em ficar abandonado em uma ilha deserta. É inóspita, estava me assando, mas nela meus tendões melhoraram mais do que se tivesse passado cem anos nas águas de Bath. Não tive dores nem incômodos! Poderia dançar uma giga, e muito bem, certamente. Mas à parte disso, de que outra forma poderia ter a oportunidade de observar com detalhe as coisas dia após dia? Se consider apenas os artrópodes... Ontem à noite, antes de dormir, antes de meter-me na cama, escrevi um monte de notas que tinha pensado, e aquelas relacionadas com os artrópodes apenas, ocuparam vinte e sete páginas. Deverias lê-las. Terás a primícia de minhas observações.
— Será uma grande satisfação para mim. Obrigado, Stephen.
— Depois me esfreguei várias vezes dos pés à cabeça com uma esponja e água doce, a água doce que afortunadamente recolheras. E depois dormi... Dormi! Pareceu-me que caia lentamente em um espaço vazio e sem fundo, tão profundo que quando acordei esta manhã foi difícil recordar do passado. Afloraram em minha mente recordações fragmentadas, e unindo-as consegui lembrar-me vagamente da enfermaria. Temo que não te darei um bom informe quando terminar minha ronda matutina.
— Sem dúvida, hoje tens menos aspecto de vítima de um holocausto que ontem — disse Jack em tom afetuoso, escrutando seu rosto com o olhar —. Teus olhos já parecem quase com os de um ser humano. E poderão ver algo maravilhoso na coberta, porque hemos tomado por fim um dos ventos alísios do sudeste. — Teve a impressão de que isso não havia sido muito cortês —. Está mais ao sul do que eu gostaria, mas poderemos dobrar o cabo São Roque. Em qualquer caso, cruzaremos o Equador antes de meio-dia; levamos uma velocidade de sete ou oito nós desde que começou a guarda do meio. Queres outra xícara? Diga-me uma coisa, Stephen, que bebias nessas infernais rochas?
— Merda fervida.
Stephen era comedido em sua forma de falar, raras vezes jurava e não dizia insultos nem palavras obscenas. Sua resposta surpreendeu Jack, que baixou imediatamente o olhar para a toalha e pensou que talvez aquele era um termo cientista que havia entendido mal.
— Merda fervida — repetiu Stephen, e Jack sorriu com aparente naturalidade mas não pôde evitar de erubescer-se —. O que ouves. Apenas ficou um charco d’água de chuva em uma profundeza e os pássaros defecaram nele abundantemente. Não é que o fizeram ali a propósito, toda a ilha está sempre cheia de seus excrementos, mas puseram a água tão suja que dava náuseas. O dia seguinte foi mais quente, se isso era possível, e a água passou uma temperatura altíssima. Não obstante, a bebi até que acabou. Então comecei a beber sangue. Mesclava o sangue dos pobres alcatrazes que pegava desprevenidos, com a água do mar e o suco das algas marítimas. Sangue..., Jack, esse cabo São Roque de que falavas com tanta ansiedade não está no Brasil, a terra onde habitam os vampiros?
— Perdoe-me por interrompê-lo, senhor — disse Hervey, aparecendo na porta —, mas me disse para avisá-lo quando a joanete maior estivesse pronta para ser guindada.
Ao ficar sozinho, Stephen olhou a mão sem unhas, a dobrou satisfeito (tinha força para agarrar e podia fazer movimentos precisos), fez uma delicada operação no presunto com sua lanceta e depois se dirigiu à enfermaria pensando: “Posso fazer isso, mas me queimei vivo, me desidratei e fiquei como uma múmia. Bendito seja o poder do sol.”
Cruzaram o Equador nesse dia, mas com cerimônias silenciosas, pois além de estarem sentidos com a perda de seus companheiros e do senhor Nicolls (uma perda mais notória até porque se haviam vendido suas roupas junto ao cabrestante), faltava animação no barco. Netuno apareceu na coberta com seu tridente, roçou levemente os marinheiros iniciantes e os marinheiros mais jovens, pediu a Stephen, o senhor Stanhope e os homens de seu séquito oitenta e seis peniques de multa, salpicou o castelo e o convés com muita água e foi embora.
— Essa foi nossa saturnal — disse Jack —. Espero que não lhe haja desgostado.
— Em absoluto. Estou completamente a favor da diversão sadia. Contudo, duvido que tu a hajas desfrutado, com tantos paus, velas e cabos espalhados por aí, meio destruidos, e com o tempo, pelo que me disse, muito escasso.
— Não se deve alterar os costumes. Os homens terão que trabalhar dobrado na jornada de amanhã e assim terão muito melhor disposição. Os costumes...
— Na Armada estais carregados de costumes — disse Stephen —. Badaladas, um linguagem esotérica (em minha opinião não deve chamar-se gíria) e cerimônias sem sentido. A venda das roupas do pobre Nicolls, por exemplo, me pareceu uma verdadeira falta de piedade. E ao senhor Stanhope também. É uma pessoa muito mais interessante do que se pode imaginar. Lê e toca muito bem a flauta. Mas não vim aqui para falar-te do enviado do Rei, mas de algo muito mais sério. Os incessantes esforços da semana passada hão extenuado aos homens e muitos dos que não apresentavam sinais de escorbuto no último reconhecimento agora estão afetados pela enfermidade. Aqui está a lista. Inclue quase todos os tripulantes do Racoon, muitos da Surprise e quatro camponeses. Mas ainda há algo pior: a tormenta afetou o paiol onde estavam os remédios e formaram com eles e com os restos do duvidoso suco de lima um estranho magma. Meu amigo, oficialmente te comunico que não sou responsável do que ocorra (se queres o ponho por escrito), a menos que se dê a esses homens vegetais verdes, carne fresca e, sobretudo, cítricos nos próximos dias. Se te hei entendido bem, tens a intenção de bordejar a costa leste do Brasil, e precisamente — olhava com avidez para o oeste pela porta aberta — a parte oriental do Brasil está cheia de tudo isso.
— Sim — afirmou Jack —. E de vampiros.
— Não penses que não me fiz um exame de consciência — disse Stephen, pondo a mão no peito de Jack —. Não creias que não sou consciente de meus grandes desejos de pisar o Novo Continente o quanto antes. Mas venha ver como começou a supurar a ferida de uma amputação realizada há cinco anos, como feridas já curadas estão abertas, como muitas gengivas têm ficado purulentas, as febres pouco altas, as pústulas, os casos de extravasão acompanhada de lividez.
— Não falava sério — disse Jack —. Mas a verdade é que devo levar em consideração muitas coisas.
Eram muitas, de fato. Esta viagem era muito comprida e já havia perdido muito tempo. Posto que o cabo de Boa Esperança estava de novo em mãos dos holandeses, teria que descer até os quarenta graus de latitude para encontrar os fortes ventos do oeste. Com esses ventos poderia chegar ao oceano índico percorrendo duzentas milhas por dia, de modo que poderia ainda alcançar a monção do sudoeste à altura de Madagascar. Tinha ordem de fazer escala no Rio de Janeiro, a umas mil milhas de distância, que não tardariam muito em percorrer se os ventos alísios que haviam conseguido tomar com tanta dificuldade se mantivessem; mas se aproximassem da costa poderiam perdê-los. Se fizessem escala em Recife seguramente teriam problemas com as autoridades portuguesas: na melhor das hipóteses sofreriam um enorme atraso e, na pior, se produziria algum incidente, haveria detenções e inclusive atos violentos, porque em qualquer outro porto que não fosse o Rio de Janeiro eram muito estritos com os barcos de guerra extrangeros. E além do atraso e do possível conflito, não era seguro que pudessem conseguir provisões. Stephen tinha boa fé, mas ao fim e ao cabo era um naturalista afeiçoado aos insetos, os vampiros...
— Deixa-me pensar, Stephen — disse um momento depois —. Quero visitar a enfermaria.
— Muito bem. E enquanto nos dirigimos para lá, pense também em que meus ratos desapareceram, mas não foram levados pela tempestade. A jaula está intacta e tem a porta aberta. Volto a costas cinco minutos para tomar o ar em Saint Paul Rocks e meus valiosos ratos desaparecem! Se esse é um de vossos costumes navais, gostaria de vê-los crucificados nas vergas de sobrejoanete, e queria que os esfolassem vivos antes de que os pusessem os cravos. Não é a primeira vez que isto me acontece. Também desapareceram uma víbora à altura de Fuengirola e três ratazanas no golfo de Leão. Hei criado esses ratos, os mimei desde que sairam do cabo Berry, os alimentei com a melhor e mais refinada raiz de louro apesar de seu retrocesso, e agora tudo foi perdido, o experimento ficou sem valor, totalmente estragado.
— Por que as alimentavas com raiz de louro?
— Porque, segundo Duhamel, a cor vermelha se concentra e se fixa em seus ossos. Interesava-me saber em que proporção penetrava e se chegava à medula. Mas o/ou sabré com o tempo, pois McAlister e eu faremos a dissecação de todos os sujeitos que possamos e se verá o mesmo efeito naqueles que as tenham comido. E te advirto, Jack, seriamente, que se te obstinas em seguir esta contraproducente corrida, em abrir mais velas para não perder nem um momento, a maioria dos tripulantes passarão por nossas mãos, incluindo, por suposto, a esse maldito ladrão cujos ossos, para sua vergonha, estarão tingidos de vermelho.
Disse as últimas palavras quando chegavam à entrada da enfermaria, e levantou a voz para que o ouvissem na forja, onde o armeiro e seus homens estavam fazendo um guindaste de ferro para substituir o que a tormenta havia levado. Jack entrou na abarrotada enfermaria e aspirou o ar fétido que a mangueira de ventilação era incapaz de eliminar. Manteve-se impassível enquanto Stephen e McAlister desfaziam bandagens e lhe mostravam os efeitos do escorbuto nas velhas feridas; não fez nenhum gesto quando o levaram a ver o caso que melhor servia de testemunho, o coto de um membro amputado há cinco anos. Mas quando lhe mostraram uma caixa cheia de dentes e mandaram buscar os enfermos que ainda se mantinham de pé para que visse a facilidade com que lhes caiam os dentes e as suas gengivas sangrentas, disse que isso era suficiente e se foi apressadamente à popa.
— Killick! — gritou —. Hoje não vou comer. Avise ao senhor Babbington. — Ocupar-se-ia de algo agradável que o fizesse esquecer aquele cheiro de a ossuário —. Ah, senhor Babbington, o senhor está aí! Suponho que saiba por que o mandei chamar.
— Não, senhor — disse Babbington em seguida, pensando que era melhor negar tudo se era possível.
— Como vai a sua carreira? Deve ter bastante tempo de serviço.
— Cinco anos, nove meses e três dias, senhor.
Depois de suportar seis anos inscrito na função, um cadete podia ascender a tenente, ou seja, deixava de ser um cadete, uma pessoa insignificante a quem podiam dispensar ou rebaixar à vontade, para converter-se em um sagrado oficial. E Babbington tinha contado o tempo até/mesmo a última hora.
— Pois bem, vou a nomear-te tenente em funções para que substituas o pobre Nicolls. Quando nos reunirmos com o almirante já haverá transcorrido o tempo necessário para que possas fazer o exame, e estou seguro de que o Almirantado confirmará a nomeação. Não te reprovarão em nada relacionado com as tarefas de um marinheiro, mas seria conveniente pedir ao senhor Hervey que te ajudasse com a distância angular.
— Oh, obrigado, senhor! — exclamou Babbington, cheio de alegria.
Embora esperasse a nomeação (havia comprado uma jaqueta de Nicolls quando venderam suas roupas) não tinha segurança de obtê-la, já que Braithwaite, o outro cadete que tinha bastante antiguidade (que havia comprado duas jaquetas, dois coletes e dois pares de calças), tinha o mesmo direito ao posto que ele. Além disso, o capitão lhe tratara com dureza em Madeira, dizendo-lhe: “Este barco não é um bordel flutuante”, e o havia reprendido com mais dureza ainda por não chegar pontual à troca da guarda. Esse era um momento emocionante, e ao ouvir as palavras com que Jack concluiu: “Bom comportamento..., responsável..., atitudes para ser oficial..., quando está a cargo da guarda me sinto tão tranquilo como se o estivesse um oficial”, saltaram lágrimas dos seus olhos. Mas em meio à sua alegria, a sua consciência começou a atormentá-lo e, quando chegou à porta, depois de ter-lhe agradecido, voltou-se e balbuciou:
— O senhor é tão amável comigo, senhor, sempre o foi, que me parece uma canalhada... Nunca me promoveria se... Mas não dizia do todo mentira...
— Que? — perguntou Jack assombrado.
Então soube que Babbington comera os ratos do doutor e que o sentia muito.
— Não pode ser, Babbington! — exclamou —. Como pôde fazer uma coisa tão horrível? Comportara-se de um modo vergonhoso, desprezível. O doutor foi sempre bom contigo, ninguém poderia ser melhor. Foi ele quem te salvou o braço quando todos juravam que o perderias. Foi ele que levou a sua maca para a enfermaria e permaneceu sentado a seu lado por toda a noite, curando-te a ferida.
Babbington não aguentou mais e começou a chorar. Apesar de ser tenente em funções, limpava as lágrimas com a manga, e entre soluços contou tudo a Jack: alguém havia levado essas estupendas molineras ao camareta dos cadetes de bombordo e, embora ele não as tenha matado (de fato, haveria evitado que o fizessem, pois tinha um grande afeto pelo doutor, tanto que havia brigado com Braithwaite, sobre de um baú, porque este havia dito que o doutor era um tipo extravagante) como já estavam mortas e temperadas com molho de cebola e ele tinha tanta fome, pensou que era uma lástima deixar que os outros as comessem sozinhos, e desde então havia ficado com a consciência pesada e esperava que o chamassem a prestar contas na cabine..
— E terias sentido náuseas se soubesse o que tinham dentro. O doutor...
— Ocorre-me uma ideia, Jack... — disse Stephen, entrando de repente —. Oh, peço-te que me desculpes!
— Não importa. Fique, Stephen. Fique, por favor — respondeu Jack.
Babbington olhou para um e para o outro, umedeceu os lábios com a língua e disse:
— Comi um de seus ratos, senhor. Sinto muito e lhe peço que me perdoe.
— Ah, sim? — perguntou Stephen tranquilamente —. Bom, espero que tenha gostado. Podes olhar a minha lista agora, Jack?
— Ele o comeu quando já estava morto — frizou, Jack.
— Se tivesse feito antes, a comida haveria sido muito apressada e agitada — disse Stephen, olhando atentamente a lista —. E diga-me, senhor, por casualidade conserva algum de seus ossos?
— Não, senhor, sinto muito. Generalmente nós os comemos, porque são como os da calandra. Alguns companheiros disseram que eles pareciam muito escuros.
— Pobrezinhos! Pobrezinhos! — exclamou Stephen em voz baixa.
— Quer que esse roubo seja registrado, doutor Maturin? — perguntou Jack.
— Não, meu amigo, longe disso. Eu temo que a Natureza se encarregará disso.
Voltou à enfermaria e, depois de fazer algumas bandagens, perguntou a McAlister quantos cadetes viviam na camareta de bombordo. Ao saber que eram seis escreveu uma receita e pediu a McAlister que a preparasse e formasse seis pastilhas.
Na coberta Stephen teve a sensação de que o observavam de algum lugar oculto. Por isso não se surpreendeu que, depois da comida, quando aparentemente tinha melhor humor, recebesse a visita de vários jovens em representação dos cadetes, todos bem lavados e com jaquetas apesar do calor. Também eles sentiam muito por terem comido seus ratos, também eles lhe pediam perdão e prometiam não voltar a fazê-lo.
— Jovenzinhos — disse —, estava esperando-lhes. Senhor Callow, tenha a amabilidade de apresentar os meus respeitos ao capitão e entregar-lhe esta nota.
Então escreveu: “Poderias dispensar de suas tarefas durante um dia aos cadetes e ao escrevente?” Dobrou a nota e a entregou. Entretanto, observou aos cadetes: Meadows e Scott, voluntários de primeira classe, de doze e quatorze anos respectivamente; o escrevente do capitão, de dezesseis anos, um jovem peludo, com as mangas de sua jaqueta do ano anterior muito acima das munhecas; Joliffe e Llurll, cadetes de quinze anos. Todos estavam mais altos e mais famintos do que suas mães houvessem desejado. Todos o olhavam de soslaio, tinham o rosto muito pálido e sua habitual expressão alegre havia dado passagem a outra solene.
— O capitão lhe envia cumprimentos, senhor — disse Callow —, e diz que não há inconveniente, que lhes concede até mesmo uma semana, se o senhor quiser.
— Obrigado, senhor Callow. Faça-me o favor de tomar esta pastilha. Senhor Joliffe, senhor Llurll...
A Surprise permanecia imóvel enquanto os desejados ventos alísios passavam por sua exárcia sussurrando e se afastavam sem ser aproveitados. Por estibordo tinha o cabo São Roque, que adentrava no mar com seu contorno extremamente irregular. A vegetação tropical que o cobria era tão espessa que não ficava livre nem um pequeno espaço de terra nem podia ver-se nenhuma rocha, à exceção das que estavam na margem do mar, onde rompiam as ondas para extender-se depois pela brilhante orla, salpicada aqui e alí por pequenas enseadas que chegavam até as árvores.
Em uma dessas pequenas enseadas havia um riacho (viam-se suas águas turvas mesclando-se com as águas azuis do mar e deslocando-se para os lados da estreita corrente), e seguindo o seu curso podia distinguir-se os telhados de um povoado bastante afastado da costa. Além daqueles telhados não havia nada mais, nem uma espiral de fumaça nem uma cabana nem uma vereda; o resto do Novo Continente era uma exuberante selva milenar, um conglomerado de diferentes tons de verde. Jack, com a luneta apoiada sobre a barreira, podia ver a selva muito próxima. Viu troncos meio caidos, sustentados por um emaranhado de gigantescas trepadeiras, árvores novas, um pássaro de plumagem escarlate e, um pouco mais à direita, flores cor de fogo. Mas a maior parte do tempo, hora após hora, observava os telhados e o riacho, esperando ver algum movimento.
Naquela manhã, quando a silhueta do Brasil havia aparecido ao oeste, ele teve uma ideia que pareceu estupenda: não iriam a Recife nem a nenhum outro porto, mas que bordeariam a costa e mandariam uma lancha desembarcar em uma vila de pescadores próximo, assim não teriam problemas com as autoridades nem perderiam muito tempo. Stephen estava convencido de que qualquer pedaço cultivado dessa costa lhe proporcionaria o que necessitava e, olhando para o cabo São Roque, havia dito: “O que necessitamos são vegetais. E em que outro lugar, a exceção do vale de Limerick, poderíamos encontrar mais?” Então haviam visto as canoas deslizando rapidamente pelo riacho e os telhados mais atrás. Posto que Stephen era o único de alto cargo que conhecia o português e quais eram as necessidades da enfermaria, era lógico que descesse à terra. Contudo, houve que convencer-lhe de que o fizesse, e quando ia jurou por sua honra que os vampiros não haviam influido em sua decisão e que não traria nenhum à fragata.
Jack permaneceu de costas no barco, onde o trabalho continuava. Aprovellavam esta pausa para ajustar os novos aparelhos do mastro maior e voltar a colocar as botavaras, mas o trabalho era lento, pois apesar do contramestre e seus ajudantes gritarem mais do que o habitual, não conseguiam que a escassa e desanimada tripulação fosse muito eficiente. Da banheira chegavam os gritos irados dos carpinteros e o senhor Hervey também estava muito furioso.
— Onde havia se metido, senhor Callow? — gritou o senhor Hervey —. Faz dez minutos que te mandei trazer o compasso para medir o azimut.
— Estava na proa, senhor — respondeu Callow muito nervoso, olhando para o capitão, que seguia de costas.
— Na proa! Na proa! Todos os cadetes me dão hoje a mesma desculpa pouco convincente. Joliffe estava na proa, Meadows estava na proa, Llurll estava na proa. Que se passa com todos os senhores? Algo que comeram lhes caiu mal ou estão fazendo uma farsa? Não tolerarei esta tentativa de safar-se do trabalho. Não jogue com o dever ou brevemente estará no tope, lhe asseguro.
Soaram seis badaladas. Jack voltou-se e se encaminhou ao seu encontro para tomar o/ou chá com o senhor Stanhope. Quanto melhor conhecia o senhor Stanhope mais agradável lhe parecia, apesar de que ele era o homem mais inútil que havia visto. Sua preocupação em não causar problemas, seu agradecimento por tudo o que faziam para que se sentisse cômodo, sua consideração desmedida pelos marinheiros e sua fortaleza (não havia se queixado pela tormenta e suas desastrosas consequências) eram comovedoras. Quando descobriou que Jack e Hervey estavam relacionados com famílias que conhecia, começou a tratar-lhes como a seres humanos. Tratava a todos os demais como se fossem cães, mas cães bons e inteligentes que formavam parte de uma comunidade que sentia carinho por eles. Era cerimonioso, amável por natureza e tinha um profundo sentido do dever. Quando Jack chegou, ele o recebeu com reiteradas desculpas por ocupar sua cabine.
— Seguramente estará muito apertado. É uma dura prova para o senhor estar confinado a um espaço tão reduzido — disse, enquanto lhe servia uma xícara de chá de uma forma que fez Jack se recordar da sua tia avó Lettice, com os mesmos gestos clericais, o mesmo movimento de munheca, a mesma concentração e solenidade.
Falaram da flauta de Sua Excelência, que dava um quarto de tom a mais devido ao calor extraordinário, do Rio de Janeiro e das provisões que esperavam encontrar ali, do costume naval de considerar um ano um período de treze meses.
— Sempre desejei preguntar-lhe, senhor — continuou o senhor Stanhope —, por que alguns amigos meus e conhecidos que são marinheiros, ao referirse à Surprise, chamam-na de Nemesis. Ela trocou o seu nome? Foi arrebatada dos franceses?
— Bom, senhor, é que na Armada usamos apelidos. Por exemplo, chamamos a Britannia de Old Ironsides. O senhor se recorda da Hermione e o que lhe ocorreu em 1797?
— Não, não me lembro de nenhum barco com esse nome.
— Era uma fragata de trinta e dois canhões que estava no posto das Índias Ocidentais. Desgraçadamente, seus tripulantes se amotinaram, mataram os oficiais e levaram a fragata à Guayra, um lugar no território espanhol.
— Oh, que horrível! Sinto muitíssimo.
— Foi algo horrível, e além disso, os espanhóis não a devolveram. Então, em poucas palavras, Edward Hamilton, que estava ao comando da Surprise, a sacou dali. Estava amarrada pela proa e popa em Porto Cabello, um dos portos mais fechados do mundo, protegida pelas baterias espanholas, quase com duzentos canhões, e os espanhóis, que observavam todos os movimentos da Surprise desde que havia se aproximado da costa, mantinham-se alertas. Não obstante, naquela noite ele e seus homens entraram no porto em botes, a Abordaram e a levaram. Mataram cento e dezenove tripulantes e feriram noventa e sete, e tiveram muito poucas baixas, embora ele estivesse muito machucado. Oh, foi uma ação extraordinária! Haveria dado minha mão direita para estar ali. Assim que o Almirantado mudou o nome de Hermione para Retribution, todos na Armada passaram a chamar a Surprise de Nemesis porque...
Pela claraboia aberta ouviu o grito do serviola do tope, que avisava que a lancha se afastava da costa seguida de duas canoas. O senhor Stanhope continuou falando sobre a justiça, a recompensa, as deserções, o inevitável castigo que recebiam todas as transgressões, pois os delitos levavam em si as sementes da perdição do delinquente, e a lamentável depravação dos amotinados.
— Para atacar assim aos que têm legalmente a autoridade, seguro que foram incitados por algum maldito jacobino ou algum radical que não deixava de acossar-lhes — disse —. Espero que hajam sido severamente castigados.
— Com os amotinados acabamos rápido, senhor. Todos aqueles que pudemos pôr as mãos em cima, os subimos em seguida ás vergas e os enforcamos, com uma marcha de fundo. Asseguro que foi algo horrível. (Jack havia conhecido ao infame capitão Pigot, a causa do motim, e alguns dos honestos marinheiros que haviam sido empurrados a ele. Aquela era uma horrível lembrança.) E agora, senhor, se me permite, tenho que subir à coberta para ver o que nos traz o doutor Maturin.
— O doutor Maturin já está de volta? Alegro-me em saber. Irei com senhor, se me permite. Tenho o doutor Maturin em grande estima; é um cavalheiro de talento, de grande valia. Não faço objeções a um pouco de originalidade..., eu mesmo sou criticado pelos amigos por tê-la. Se importaria de dar-me seu braço?
Seria de talento e de grande valia, pensava Jack, observando-lhe com o telescópio, mas também era um mentiroso, até mesmo perjuro. Por sua própria vontade havia jurado que não tinha nenhum interesse nos vampiros e, contudo, trazia sobre o peito algo peludo de cor verdoso que o rodeava com um braço, algo que parecia um tapete mas que seguramente era um horrível e enorme vampiro da espécie mais venenosa. “Nunca teria acreditado nisso”, pensou. “Jurou solenemente nesta manhã e, em troca, agora enchia a fragata de vampiros. E apenas Deus sabe o que há nessa bolsa. Sem dúvida, teve uma forte tentação, mas deveria se enrubescer de vergonha por haver caído nela.”
Mas não ruborizou. Parecia muito satisfeito e quase embasbacado quando subia lentamente pelo costado, inclinando-se sobre a carga que levava e dizendo-lhe palavras tranquilizadoras em português.
— Alegra-me ver o êxito que teve, doutor Maturin — disse, olhando para a lancha e as canoas, carregadas de reluzentes montes de laranjas e toranja, carne, iguanas, bananas e vegetais —. Contudo, não se permitem vampiros a bordo.
— Este é uma preguiça — disse Stephen sorridente —. Uma preguiça com três dedos nas patas, a mais agradável e afetuosa criatura que possas imaginar.
A preguiça voltou a cabeça para Jack e o olhou fixamente, depois lançou um desesperado gemido e voltou a esconder a cara no peito de Stephen, apertando-lhe mais forte, quase estrangulando-lhe.
— Vem, Jack, separa a sua pata direita, não tenhas medo. E o senhor, Excelência, tenha a amabilidade de separar a esquerda. Soltem as unhas com cuidado. Assim, assim, amiguinho. Agora o levaremos para baixo. Devagar, devagar. Não o assustem, por favor.
A preguiça, contudo, não se assustava com facilidade. E quando colocaram na cabine um pedaço de cabo tenso, pendurou-se nele com as garras e ficou dormido, balançando-se ao ritmo das ondas, semelhante ao que fazia, ao ritmo do vento, quando estava pendurado nas ramas em seu bosque natal. De fato, deixando à parte a angústia que sentia ao ver a cara de Jack, era perfeitamente apto para a vida na mar. Não se queixava, não necessitava de ar fresco nem de luz, podia desenvolver-se em um lugar úmido e fechado e dormir em quaisquer circunstâncias, tinha vontade de viver e podia suportar qualquer situação por pior que fosse. Além disso, aceitava de boa vontade bolachas e mingau. Pelas tardes caminhava pela coberta, embora com dificuldade devido a suas garras, e subia na exárcia. Depois, pendurado de cabeça para baixo, deslocava-se por ela, avançando duas ou três jardas de uma vez e fazendo pausas para dormir. Os marinheiros lhe haviam tomado afeto desde o princípio e o subiam aos cestos ou mesmo mais cima. Afirmavam que ele dava sorte à fragata, embora fosse difícil comprender suas razões, pois fazia dias que quase não soprava o vento do sudeste ou era muito fraco.
Os alimentos frescos tiveram um efeito extraordinariamente rápido. Em uma semana a enfermaria ficou quase vazia, e a Surprise, com abundância de tripulantes e muito ânimo, poliu de novo seus altos mastros, recuperando seu aspecto impecável. Reiniciou-se os exercícios com os canhões, que haviam sido suprimidos para fazer as urgentes reparações, e todos os dias os ventos alísios arrastavam a fumaça da pólvora. No princípio, os exercícios inquietavam a preguiça, que quase correndo ia-se abaixo, e em meio do silêncio que se produzia entre uma descarga e outra ouvia-se o clac-clac-clac de suas garras. Não obstante, quando já haviam passado justo debaixo do sol, e o vento, por fim, havia começado a soprar com força, a preguiça dormia durante toda a prática em seu lugar habitual, acima das caronadas do castelo de popa, pendurado das bainhas do mastro de mesana, e também dormia enquanto os infantes da marinha faziam exercícios com seus mosquetes e Stephen com sua pistola.
Durante todo aquele tedioso percurso, até mesmo com os ventos alísios do noroeste, a fragata não havia dado o melhor de si, mas agora, com aquele vento forte e constante, aquela grande massa de ar, a Surprise voltava a ser o que Jack Aubrey havia conhecido em sua juventude. Jack não estava contente com a exárcia, nem com a inclinação de seus mastros, nem com os própios mastros, e muito menos com as condições dos fundos, e contudo, posto que a fragata tinha o vento pela alheta e podia suportar as asas desfraldadas, se movia com a extraordinária vivacidade e energia de antigamente, com uma agilidade e um domínio do mar que ele reconheceria mesmo que tivesse os olhos vendados.
O sol se pôs, desprendendo um vermelho resplendor durante alguns instantes; do leste, a noite ia cobrindo o céu sem lua, cujo azul era mais intenso a cada minuto O que está acontecendova, e as cristas das ondas começaram a brilhar como se um fogo interior as iluminasse. O tenente em funções, o terceiro a bordo, que pavoneava pelo costado de barlavento do castelo de popa, deteve-se e, voltando-se para o costado de sotavento, gritou:
— Senhor Braithwaite, está pronto com a barquilha?
Babbington ainda não se atrevia a tratar com demasiada superioridade os seus antigos companheiros, embora, para tranquilizar a sua consciência, havia impedido os cadetes da camareta de estibordo de fazer muitas travessuras. Sua desnecessária pergunta tinha como único propósito obrigar a Braithwaite a responder:
— Preparado, senhor.
O sino soou. Braithwaite fez descer a barquilha pelo costado da fragata até as fosforescentes águas e o barbante se desenrolou do carretel. Ao ouvir o grito do oficial de navegação, mediu o pedaço desenrolado, tirou a chaveta, subiu a barquilha a bordo e exclamou:
— Conseguimos! Conseguimos! Onze nós!
— Não pode ser verdade! — exclamou Babbington, com uma grande alegria que terminou com sua dignidade. Vamos voltar a medir.
Voltaram a extrair a barquilha, observaram como desaparecia na luminosa e turbulenta esteira, que brilhava mais agora porque o céu estava mais escuro. E o próprio Babbington, que sustentava entre os dedos o barbante enquanto se desenrolava, pegou o nó número onze, e então gritou:
— Onze!
— Que estão fazendo? — perguntou Jack, justo detrás do excitado grupo de cadetes.
— Estava comprovando a precisão do senhor Braithwaite, senhor — disse o terceiro a bordo —. Oh, senhor, navegamos a onze nós! Onze nós, senhor! Não é estupendo?
Jack sorriu. Observou a burda, tão tensa que parecia de ferro, e se dirigiu à proa. Stephen e o senhor White, o pastor que acompanhava o enviado do Rei, estavam tombados sobre o castelo, muito bem atados à borda, e se agarravam em qualquer coisa, nas cornamusas, nos vinhateiros e até no guindaste de ferro, apesar de quente.
— Não se decidiu ainda? — perguntou.
— Estamos esperando o momento certo, senhor — respondeu o pastor —. Tenha a bondade de ficar-se um pouco de tempo, se for possível, para comprovar que tudo se faz como é devido; está em jogo uma garrafa de cerveja. Enquando Vênus se põe, o doutor Maturin lerá uma página elegida ao acaso iluminado apenas pela fosforescência.
— Mas não as notas no pé da página — disse Stephen.
Jack alçou os olhos, e ali, no estai do traquete, junto à joanete agitada pelo vento e com o Cruzeiro do Sul de fundo, estava a preguiça se balançando ao ritmo do barco.
— Não creio que as estrelas vão brilhar muito — disse.
As ondas que se formavam na proa eram muito altas, devido à velocidade da fragata, e banhavam o corrimão de sotavento, iluminando-o com uma luz azul esverdeada que parecia sobrenatural e lançando sobre eles gotas fosforescentes, mais brilhantes até que a esteira que deixavam detrás, uma faixa de três milhas de longitude que brilhava como uma barra de metal. Durante uns momentos, Jack esteve observando como a espuma passava sobre a borda e, empurrada pelas correntes que se formavam entre as bujarronas e a traquetina, chegava até o traquete; depois olhou para o oeste e viu a estrela já muito próxima do horizonte. O brilhante círculo estava justo sobre o mar, subiu de novo ao elevar-se as ondas e finalmente desapareceu; a luz das estrelas perdeu muitíssima intensidade.
— Já se pôs — disse.
Stephen abriu o livro e, voltando a página para as ondas de proa, leu:
Aienta a comunicação entre as almas
e leva pelo ar um suspiro desde o Indo até o polo.
E em continuação exclamou:
— Senhor White, lhe hei ganhado! Reclamo a minha garrafa. Deus meu, que bem me fará! Tenho tanta sede! Capitão Aubrey, o convido a compartilhar a garrafa. — Olhou para o céu aveludado —. Vem, Letargia!
— Oh, Oh! — gritou o pastor, cambaleando entre as espichas —. Um peixe..., um peixe me há golpeado! Um peixe voador me há golpeado a cara!
— Aí há outro — disse Stephen, recolhendo-o —. Hei notado que esses peixes, paradoxicamente, voam com o vento. Creio que deve de existir uma corrente de ar que sobe. Como brilham! E como voam! Olhem, olhem, aí vem o terceiro! Vou dá-lo à preguiça depois de fritá-lo ligeiramente.
— Não posso comprender — disse Jack, ajudando o pastor a erguer-se e guiando-o pelo corrimão —, que tem essa preguiça contra mim. Sempre hei sido amável com ela, muito amável, mas não há servido de nada. Não entendo por que dizem que é afetuoso.
Jack era alegre e otimista, e como simpatizava com a maioria das pessoas, ficava surpreso quando não agradava a alguém. Apesar de haver perdido simpatia nos últimos anos, a que sentia pelos cavalos, os cães e as preguiças se conservava intacta, por isso lhe doia ver que o pobre animal chorava quando ele entrava na cabine, e para evitar molestá-lo ficava fora. Enquanto se dirigiam ao Rio de Janeiro se sentava junto dele em seus momentos de ócio e lhe falava em português, ou algo parecido, e lhe dava alimentos que às vezes ele engolia e outras deixava que escorresse da boca com a baba. Contudo, não obteve nenhuma resposta até que estiveram próximo do trópico de Capricórnio, com Rio de Janeiro pela amura de estibordo.
Havia esfriado tanto que quase fazia frio, porque o vento rolava cada vez mais ao leste, para a zona de correntes geladas entre Tristán da Cunha e o cabo. A preguiça, desconcertada pela mudança, preferiu deixar a coberta e passar seu tempo abaixo. Jack estava na cabine, marcando a carta marinha menos satisfeito do que tinha desejado (algum progresso, mas lento..., sérios problemas com o mastro maior..., o fortíssimo vento em oposição durante a noite) e bebendo grogue, enquanto Stephen, no cesto da gávea do mastro da mesana, ensinava Bonden a escrever e observava o mar esperando ver algum albatroz. A preguiça espirrou, e Jack, ao levantar os olhos para ele, observou que lhe estava olhando e que em seu rosto invertido havia uma expressão angustiada.
— Prova isto, amigo — disse, e fez uma sopa com um pedaço de biscoito e grogue e a deu —. Creio que te animará.
A preguiça fechou os olhos e suspirou, mas sorveu toda a sopa, e voltou a suspirar.
Minutos depois Jack sentiu que o tocavam o joelho: era a preguiça. Havia baixado sem fazer ruído e agora estava ali, a seu lado, com atitude expectante, olhando-lhe fixamente com seus olhos pequenos, redondos e brilhantes. Mais biscoito, mais grogue; a confiança e o afeto aumentaram. Desde então, quando o tambor tocava a retirada, a preguiça ia buscar-lhe, correndo sobre seus patas irregulares. Tinha sua própria vazilha e, enquanto a segurava entre as garras, metia o focinho nela e bebia com os lábios franzidos (sua língua era excessivamente curta para lamber). Às vezes ficava dormido nessa posição, com a cabeça sobre a vazilha vazia.
— Neste balde — disse Stephen, entrando na cabine —, neste pequeno balde meio cheio, tenho a população de Dublín, Londres e París reunidas: estes animálculos... Que se passa com a preguiça?
A preguiça estava feito um novelo sobre as pernas de Jack, respirando pesadamente; sua vazilha e o copo de Jack estavam vazios sobre a mesa. Stephen o pegou nos braços, observou sua cara, que tinha uma expressão tranquila e um tanto esgotada, o sacudiu e o pendurou na sua corda. O animalzinho se agarrou com uma pata dianteira e uma traseira, enquanto as outras duas ficaram penduradas, e dormiu.
Stephen viu a jarra. Depois olhou a preguiça e gritou:
— Jack, has pervertido a minha preguiça!
Ao outro lado do antepara da cabine, o senhor Atkins disse ao senhor Stanhope:
— O doutor está discutindo com o capitão, senhor. Hui, hui! Parece-me que foi excessivamente longe e duvido que um homem de temperamento possa suportar isso. Se fosse eu lhe daria uma surra.
O senhor Stanhope não achava bom escutar detrás das anteparas e não respondeu. Contudo, não pôde evitar ouvir algumas frases soltas como: “tes moeurs crapuleuses... tu cherches a corrompre monparesseux..., va done, eh, salope..., espéce de fripouille”, pois a discussão seguiu em francês, depois que Killick entrou com uma cara muito má.
— Espero que não cheguem tarde à partida de whist — murmurou.
Agora que o ar era mais respirável, o senhor Stanhope havia recuperado suas forças e esperava ansioso que chegassem as tardes em que se jogava cartas, a única forma de romper a indescritível monotonia de uma viagem transoceânica.
Não chegaram tarde. Fizeram sua aparição ao soar a hora. Contudo, tinham a cara avermelhada, e Stephen tratou de fazer armadilha para conseguir que o enviado do Rei fosse seu companheiro. Jack jogou de uma maneira abominável, e Stephen, com maliciosa concentração, arrancou suas vitórias como se fosse uma serpente que cravava os dentes e se exibiu com os comentários ao final da partida, demostrando a seus oponentes que quem estava com cartas podia haver tirado o rei e que podiam haver ganhado a vaza decisiva jogando o ás; a tarde terminou sem que a tensão tenha diminuido. Todos lhe olhavam nervosos enquanto calculavam a enorme quantidade de pontos que havia ganhado, e então Jack, com fingida alegria, disse:
— Cavalheiros, se os cálculos do segundo oficial são tão exatos como os do doutor Maturin no jogo de cartas e se este vento se mantém, parece-me que amanhã os senhores despertarão no Rio de Janeiro. Já sinto a proximidade da terra..., a sinto nos ossos.
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Na quietude da guarda do meio subiu à coberta em camisa de dormir, observou o tabuleiro com as medições à luz da bitácula e ordenou a Pullings que diminuisse vela ao soar as oito badaladas. Voltou a rondar por ali, como um alma penada, quando soaram as cinco badaladas, e mudou a orientação das gávias durante um tempo. Seus cálculos resultaram rigorosamente exatos, pois fez chegar a fragata ao Rio de Janeiro justo quando o sol assomava por detrás da cidade, banhando com sua luz dourada aquele maravilhoso panorama. Mas isto não serviu de nada, não conseguiu fechar a ferida. Stephen, a quem haviam tirado da cama para contemplar o panorama, disse que era curioso como às vezes a Natureza podia ser tão vulgar e enganosa e intentar produzir efeitos ad captan-dum vulgus, o mesmo tipo de efeitos que tratavam de conseguir Astley e Ranelagh, mas que, afortunadamente, não o lograva. Talvez tinha a intenção de fazer outros comentários, já que a preguiça havia passado toda a noite mareado, mas, nesse momento, a Surprise se encheu de labaredas e fumaça ao saudar ao almirante português, que se encontrava a bordo de um navio de setenta e quatro canhões cor carmim, junto a Rat Island.
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Jack desembarcou com o senhor Stanhope depois do café da manhã. Seus remeiros estavam barbeados e muito arrumados, com chapéus de palha e calças de brim brancas como a neve, e ele estava com seu melhor uniforme. Quando voltou não havia em sua expressão nem o menor rastro de receio, rancor ou arrogância. Bonden trazia uma bolsa, e por todo o barco se repetiu o grito: “Correio!”
— O capitão lhe envia seus cumprimentos e diz que gostaria que lhe dedicasse uns momentos — disse Church o Ratívoro —. E..., senhor — apertou o braço de Stephen e baixou a voz —, por favor, interceda em favor de Scott e de mim para que nos deixem descer a terra. Creio que merecemos.
Perguntando-se como era possível que Church cresse merecer outra coisa que ser empalado, Stephen entrou na cabine. Ali encontrou uma doce sorriso, uma grande alegria e cheiro de porto. Jack estava sentado à mesa, sobre a qual havia várias cartas de Sophie abertas, dois copos e uma jarra.
— Ah, já estás aqui, meu querido Stephen! — exclamou —. Vem, tómate um copo do porto que os franciscanos irlandeses nos presentearam. Recebi cinco cartas de Sophie, e aí há algumas para ti..., creio que também são de Sussex. — Estavam sobre outro montão de cartas dirigidas ao doutor Maturin e a letra era, certamente, a de Sophie —. Tem uma letra preciosa, verdade? Podes entender todas as palavras. E que estilo! Que estilo! Pergunto-me como haverá conseguido ter esse estilo, seguramente essas cartas estão entre as melhores já escritas. Há um fragmento que fala do jardim de Melbury e os perais que é tão bom como o de uma obra literária, vou ler para ti... Mas se queres ler suas cartas agora, não te preocupes comigo, não tenhas cerimônias.
— Não, agora não — disse Stephen, com ar ausente, metendo-as no bolso e passando uma a uma as demais, que eram de sir Joseph, Ramis, Waring e quatro desconhecidos —. Diga-me uma coisa...— Creio sinceramente, milord, que o dinheiro dos butins é de vital importância para a Armada. A possibilidade de conseguir uma fortuna nalguma ação brillante é um grande estímulo para seus homens, faz com que trabalhem com maior diligência e atenção. Tenho certeza de que os membros da Junta estão de acordo comigo nisto — disse, passeando o olhar ao redor da mesa.
Várias figuras de uniforme levantaram a vista. Houve um sussurro de aprovação, mas não foi geral. Alguns civis mantiveram uma expressão grave e impenetrável e um ou dois marinheiros permaneceram com os olhos fixos nas folhas de mata-borrão que tinham diante de si. Era difícil saber a opinião do grupo, um caso em que ninguém tinha desejado expor-se, pois aquela não era uma reunião de carácter restrito, como a que os lordes ao mando do Almirantado costumavam celebrar, senão a primeira em que participavam diversos representantes da nova administração, a primeira desde que lord Melville se havia ido embora, nela estavam presentes alguns membros novos e de outras juntas e chefes de numerosos departamentos, por isso todos se mostravam muito reservados e cautelosos. Era difícil conhecer a sua opinião, e embora sabesse que nem todos estavam do seu lado, notava que não se oporiam completamente já que estavam indecisos e confiaba na força de sua propia convicção lhe permitiria lograr seu objetivo, apesar da falta de entusiasmo do First Lord.
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— Em uma guerra longa, alguns casos notáveis como este são suficientes para que todos na Armada, durante anos, realizem com maior zelo suas duras tarefas. Contudo, se isso lhes é negado, forçosamente... se produzirá o efeito contrário.
Sir Joseph tinha um alto cargo no serviço secreto naval, um homem competente e de muita experiência, mas não era um bom orador, sobretudo quando estava diante de um grande público. Não havia encontrado a frase perfeita nem as palavras adequadas e observava no ambiente certa predisposição à rejeição.
— Creio que sir Joseph não tem muita razão ao dizer que os oficiais de nossa Armada atuam por interesse — assinalou o almirante Harte, inclinando a cabeça para o First Lord em sinal de deferência.
Os outros membros das forças navais dirigiram seus olhares para ele e logo se olharam entre si, já que Harte era o mais ávido caçador de butins de toda a Armada e sempre estava disposto a apoderar-se de qualquer embarcação, desde um grande arenqueiro holandês a um pequeno pesqueiro bretão.
— Tomei como referência outros casos precedentes — disse o First Lord voltando seu rostro imberbe e inexpresivo para primero Harte e depois para sir Joseph —, por exemplo, o caso da Santa Brígida...
— A Thetis, milord — lhe sussurrou seu secretário particular.
— A Thetis, é isso. E meus conselheiros legais dizem que minha decisão é acertada. Devemos respeitar as normas do Almirantado: se a presa foi capturada antes da declaração de guerra, o butim deve ser entregue à Coroa, pois lhe pertenece por direito.
— Uma coisa é o que dizem as normas, milord, e outra o que é justo. Os marinheiros não sabem nada de normas, mas estão mais apegados aos costumes que os membros de qualquer outra instituição e têm um particular sentido da justiça. A meu modo de ver, e também ao seu, o que ocorreu foi que Suas Senhorias, ao conhecer as intenciones de Espanha de entrar na guerra como aliada de Bonaparte, aproveitaram a ocação que se lhes apresentou. Os navios espanhóis traziam um grande tesouro desde Río da Prata, que Espanha necessitava para lutar na guerra como uma forte potencia, e Suas Senhorias ordenaram que éstas fossem interceptadas. Era de vital importância atuar sem perder um minuto, mas a frota do Canal estava disposta de tal forma que... em resumo, apenas pudemos enviar foi uma esquadra composta pelas fragatas Indefatigable, Medusa, Amphion e Lively com as ordens de apresar os navios espanhóis, que eram mais potentes, e levar-los a Plymouth. Devido a numerosos esforços e, devo dizê-lo, com a ajuda de um plano bem elaborado pelo qual não pretendo atribuir-me nenhum mérito, a esquadra llegou ao cabo de Santa María a tempo, estabeleceu combate com os navios espanhóis, afundou um e apresou os outros depois de um arduo combate, não sem sufrir algumas baixas, lamentavelmente. Seus membros cumpriram as ordens: deixaram ao inimigo sem recursos para fazer a guerra e trajeron a nosso país cinco milhões de reales. Se agora se lhes diz que esse dinheiro, esses reales, indo em contra do que é costume na Armada, não se consideram um butim senão que pertencem por direito à Coroa, isto terá um efeito nefasto em toda a frota.
— Mas a batalha ocorreu antes da declaração de guerra... — começou a argumentar um civil.
— E que me dizem da Belle Poule em 1778? — perguntou o almirante Parr.
— Os oficiais e marinheiros da nossa esquadra não tinham nada que ver com nenhuma declaração — replicou sir Joseph —. Não deviam se meter nos assuntos de estado mas sim cumprir estritamente as ordens da Junta. Dispararam-lhes primero, e então seguiram as instruções, cumpriram com seu dever, sofrendo não poucos prejuízos e aportando enormes benefícios ao país. E se lhes for negada a acostumada recompensa, se a Junta, sob cujas ordens atuaram, ficar com esse dinheiro, a influência deste fato sobre os oficiais que participaram da batalha, que creram ter já cobertas todas as suas necessidades e, sem dúvida, confiavam que se respeitaria esse acordo, será... — Se interrompeu e tratou de buscar a palavra adequada.
— Nefasta — disse um contra-lmirante.
— Nefasta. E essa influência se extenderá muito mais e llegará a toda a frota, que já não contará com o excelente exemplo do que se pode obter com decisão e empenho. A solução deste assunto é arbitrário, milord, já que os casos precedentes foram resolvidos de manera muito distinta e nenhum foi julgado nos tribunais. Creio sinceramente que o melhor seria que a Junta favorecesse aos oficiais e marinheiros que participaram nessa batalha. Não suporia uma grande perda para o país e, ao se tomar como exemplo, reportaría um beneficio cem vezes maior.
— Cinco milhões de reales — disse o almirante Erskine, muito impressionado, em meio a um clima geral de dúvida —. Era tanto, de fato?
— Quem eram os oficiais responsáveis? — perguntou o First Lord.
— Os capitães Sutton, Graham, Collins e Aubrey, milord — respondeu o secretário —. Aqui estão seus documentos.
Enquanto o First Lord examinava os documentos se fez um profundo silêncio, quebrado apenas pelo rangido da pluma do almirante Erskine, que convertía os cinco milhões de reales para libras esterlinas e dividía o resultado entre o número de oficiais que, segundo as normas, deviam compartilhar o butim, obtendo uma cifra que lhe fez dar um assobio. Ao ver os documentos, sir Joseph compreendeu que tudo estava perdido, pois embora o novo First Lord não soubesse nada da Armada, era um parlamentar com experiência e um político astuto e encontraría neles os nomes detestados pela atual administração: Sutton e Aubrey. Ambos poriam na instável balança o grande peso da política, e os outros capitães não tinham nenhuma influência, nem no Parlamento nem na sociedade nem na Armada, que pudesse contrabalançá-lo.
— Sutton, tenho-o visto no Parlamento — disse o First Lord e, franzindo os lábios, escreveu uma nota —. Já quanto ao capitão Aubrey..., seu nome parece-me familiar.
— É o filho do General Aubrey, milord — lhe sussurrou o secretário.
— Sim, sim, esse membro do Parlamento por Great Clanger que lançou um furioso ataque contra o senhor Addington. Mencionou o seu filho em seu discurso contra a corrupção, o recordo. Repetidamente menciona o seu filho.
Fechou os documentos individuais e, após lançar um olhar ao informe geral, continuou:
— quem é o doutor Maturin?
— O cavalheiro de quem falava na nota que enviei a Sua Senhoria a semana pasada — respondeu sir Joseph.
E em seguida, com uma ligeira ênfase, que em tempos de Melville haveria tido o mesmo valor que lhe lançar um tinteiro à cabeça do First Lord, acrescentou:
— Era uma nota em um envelope amarelo.
— É normal que a um médico se lhe outorgue temporariamente o cargo de capitão de navio? — observou o First Lord fazendo caso omiso da ênfase e do significado de um envelope amarelo.
Todos os membros da Armada levantaram a vista de inmediato e se olharam uns a outros.
— Se lhe outorgou a sir Joseph Banks e ao senhor Halley, milord, e creio que também a outros homens de ciência. Não é uma medida nova, longe disso, embora seja excepcional.
O First Lord notou algo no olhar frio e cansado de sir Joseph que o fez se dar conta de que havia cometido um deslize.
— Ah! — exclamou —. Então esta medida não foi tomada apenas neste caso.
— Não, milord. E voltando ao capitão Aubrey, se me o permite, posso afirmar, sem temor a equivocarme, que as ideias de seu pai não coincidem em absoluto com as suas.
Afirmou isto não com a esperança de que poderia melhorar a situação mas para que a atenção se desviasse para outra coisa e o deslize passasse despercebido. E não desagradou-lhe ouvir que o almirante Harte, desejoso de conquistar o favor dos demais e ao mesmo tempo de satisfazer seu malévolo instinto, perguntava:
— Não seria conveniente pedir a sir Joseph que nos dissesse se tem algum interesse pessoal neste assunto?
— Não, senhor. É uma insinuação completamente fora de lugar, por Deus — disse o almirante Parr, enquanto seu rostro bronzeado tomava um coloração púrpura. Tossiu e seguiu resmungando, cada vez em voz mais baixa, embora pôde se ouvir parte do que dizia: “horrível presunção..., um novo membro..., um simples contra-almirante..., uma merda”.
— Se o almirante Harte insinua que tenho algum interesse pela riqueza pessoal do capitão Aubrey — disse sir Joseph, com umo olhar glacial —, se equivoca. Nem sequer conheço esse cavalheiro. O meu único interesse é o bem da Armada.
Harte se surpreendeu desagradavelmente com a acolhida dispensada à sua observação, que lhe parecia tão sutil, e em seguida tentou a retirada, tão oprimido sob o peso dos olhares que lhe haviam posto tantos homens, entre eles o próprio capitão Aubrey. Deu inumeráveis desculpas e repetiu que não havia querido dizer..., não havia querido insinuar..., sua verdadera intenção não era..., não pretendia em absoluto caluniar a tão honrado cavalheiro...
O First Lord, um pouco aborrecido, deu uma palmada na mesa e disse:
— Em qualquer caso, não creio que cinco milhões de reales sejam uma perda insignificante para o país. Além disso, como já disse, nossos conselheiros legais asseguran que pertencem à Coroa por direito. Pessoalmente, eu gostaria muito de aceitar a magnífica e convincente proposta de sir Joseph, mas temo que devamos tomar como referência os casos precedentes. É uma questão de princípio. Lamento enormemente dizer isto, sir Joseph, porque sei que essa missão de tão grande êxito levou se a cabo sob sua direção e, além disso, porque desejo mais do que ninguém que os membros da Armada tenham riqueza e prosperidade. Mas, infelizmente, temos as mãos atadas. Não obstante, deve nos servir de consolo pensar que restará uma considerável soma para repartir; não llegará a milhões, certamente, mas não resta dúvida de que será considerável. E depois de pensar em algo tão agradável, cavalheiros, creio que devemos nos ocupar de...
Começaram a se ocupar de questões técnicas relacionadas com a recrutamento, a compra de navios e sua dotação. E posto que estas questões não eram de sua competência, sir Joseph se acomodou na cadeira e se pôs a observar aos que tomavam a palavra para apreciar suas qualidades. Em geral, eram mediocres. Além disso, o novo First Lord era um tonto, um simples político, e para sir Joseph, que havia servido sob as ordens de Llatham, Spencer, Saint Vincent e Melville, ele parecia muito inferior aos outros. Todos haviam cometido erros, especialmente Llatham, mas todos haveriam comprendido a situação: a perda foi sofrida pelos espanhóis, à custa deles a Armada real contaria com o excelente exemplo de quatro jovens capitães de navio nadando em um mar de ouro, e o dinheiro, depois de tudo, se permaneceria no país. Na Armada havia muito poucas fortunas, e quase todas estavam nas mãos dos almirantes, que graças às missões com êxito haviam recebido parte do butim de inumeráveis presas, sem haver participado sequer de sua captura. Aos capitães que capturavam as presas era quem deviam ser estimulados. Talvez não houvesse exposto seu argumento com claridade o com a necessária contundência, pois não estava em forma depois de passar a noite em serão lendo sete informes de Boulogne. Em qualquer caso, nenhum outro First Lord, talvez exceto Saint Vincent, teria convertido o assunto em uma questão política. E, sem dúvida, a nenhum outro escaparia o nome de um agente secreto.
Tanto lord Melville (um homem que realmente entendía os serviços secretos) como sir Joseph apreciavam muito o doutor Maturin, seu conselheiro sobre os assuntos espanhóis e, sobretudo, catalães. Era um agente extraordinario, totalmente desinteresado, valente, prudente, Fiable e muito bem preparado, que nunca havia aceitado nem a mais mínima recompensa por seus serviços... seus excelentes serviços! Precisamente, foi ele que lhes deu a informação que tornou possível aquele impressionante combate. Sir Joseph e lord Melville haviam decidido lhe dar aquele cargo temporário, pois desse modo o obrigavam a aceitar parte da fortuna que tomariam do inimigo. E agora seu nome, por torpeza, havia sido mencionado em público, não em uma reunião privada da Junta mas em outra muito mais heterogênea, e preguntou-se por ele logo ao llefe dos serviços secretos da Armada. Era inqualificável haver confiado na sensatez dos marinheiros, os quais pensavam que a única forma de vencer a um inimigo tão astuto como Bonaparte era explodindo seus navios, e sobretudo era inqualificável haver confiado na dos civis, políticos loquazes cuja noção do perigo equivalia a estar no penhasco de Dover observando com um telescopio o exército invasor de Bonaparte, de duzentos mil homens, acampado ao outro lado do Canal. Observou seus rostos um a um enquanto discutiam, cada vez mais acaloradamente, sobre quais deviam ser suas respectivas jurisdições quando se fizesse o recrutamento. As vozes dos almirantes, gritando uns com os outros, podiam ser ouvidas em Whitehall, e o First Lord parecia incapaz de pôr ordem na reunião. Sir Joseph sentiu um grande alívio ao o ver assim, pois seguramente se esqueceriam do deslize. Mas enquanto desenhava em sua pasta a metamorfose de uma vanesa vermelha (ovo, lagarta, crisálida e estado perfeito) pensava: “Que vou a dizer-lhe quando nos vermos? Que posso dizer-lhe?”
Sobre Whitehall e o Almirantado caía uma cinza garôa, mas em Sussex o clima era seco e estava calmo. Em Mapes Court, a fumaça da llaminé da pequena sala de estar se elevava uns duzentos pés, formando uma demorada pluma, e logo se afastava por detrás da casa, se dispersando como a bruma pelas depressões e as colinas. As árvores estavam cobertas de folhas, mas não seria por muito tempo. E da árvore que havia junto à janela se desprendiam de vez em quando folhas amareladas, que caiam muito lentamente, se balançandono ar, e formavam ao seu redor um tapete dourado. Em meio ao silêncio, um silêncio sepulcral, se escutava o sussurro de cada Folha ao cair.
— Enquanto sopre o vento, todas as árvores ficarão sem folhas — disse o doutor Maturin —. De certo modo, o outono é uma espécie de primavera, não há nenhum que termine sem que apareçam novos brotos. Mais ao sul isto aprecia-se melhor. Em Catalunha, por exemplo, aonde tu e Jack irão enquanto termine a guerra, as lluvas de outono fazem crecer o pasto como puntiagudas lanças. Ali... Por favor, querida, um pouco menos de manteiga, pois já comi muita gordura.
Stephen Maturin havia comido com as damas que viviam em Mapes, a senhora Williams, Sophie, Cecilia e Francês (tinha restos de sopa de Windsor, bacalhau, pastel de pombo e pudim na gravata, na jaqueta cor de tabaco e nas calças cinzas, porque era muito descuidado ao comer e o seu guardanapo havia caído antes que terminasse o primeiro prato, apesar dos esforços de Sophie para que o conservasse), e agora estava sentado junto à llaminé tomando o llá, enquanto Sophie, a seu lado, inclinada para as llamas de cor rosa e prata, assava bolos, procurando não aproximá-los ou afastá-los excessivamente para que não queimassem nem se resecassem. Na penumbra, as llamas iluminaram seu antebraço arredondado e seu belo rosto, acentuando a largura da testa, a forma perfeita dos lábios e a suave tonalidade rosa da pele. A preocupação com os bolos havia mudado sua habitual expressão reservada; tinha o mesmo costume da sua irmã mais nova de expor a ponta da língua quando estava concentrada, e isto, combinado com sua grande beleza, aumentava inexplicablemente seu encanto. Stephen a olhou satisfeito, mas de repente lhe invadiu um estranho sentimento, um sentimento que não podia definir. Ela era a prometida de seu amigo íntimo, o capitão Aubrey, da Armada real, e também uma paciente. Tinham-se grande afeto, o mais profundo que um homem e uma mulher podiam sentir sem que mantivessem uma relação amorosa, talvez mais profundo que se houvessem sido amantes.
— Este bolo está muito bom, Sophie — disse —, mas tem que ser o último, e recomendo-te que também não coma outro. Estás engordando muito. Faz apenas seis meses estavas emagrecida e tinhas um aspecto lamentável, mas me parece que a ideia de contrair matrimônio tem tido um efeito benéfico sobre ti. Deves ter engordado 2,7 kg, e a pele... Sophie, por que estás espetando outro bolo para assar? Para quem é? Te perguntei para quem é esse bolo.
— Para mim, meu amigo. Jack disse que devia ter firmeza. Jack admira a firmeza de carácter. Disse que lord Nelson...
Através do ar quase gelado e em calma llegou o som de um corno de caça desde o longínquo Polcary Down.
— Será que já mataram a rapoza? — Perguntou Stephen —. Se Jack estivesse aqui, saberia dizer-nos que acontecera com o animal.
— Estou muito contente de que não esteja nesse horrível bosque — disse Sophie —. Sempre que ia ali sofria uma queda. Temia que quebrasse uma perna, como o joven Savile. Por favor, Stephen, ajuda-me a correr a cortina?
“Amadureceu muito”, pensou Stephen, e logo disse em voz alta:
— Como se llama essa árvore exótica, de tronco delgado, que está no jardim?
— A llamamos de árvore das pagodas. Não é realmente, mas a llamamos assim. Meu primo Palmer, o viajante, a plantou; segundo ele, ela é muito parecida.
Quando terminou de falar, Sophie se arrependeu de te-lo feito, possivelmente tinha-se arrependido já antes de acabar a frase, porque sabia que aquela palavra poderia trazer recordações a Stephen.
Os maus pressentimentos confirmam-se. Qualquer que tivesse um mínimo conhecimento da Índia associaria ela com a sófora, a árvore das pagodas, já que na Índia llamavam pagodas a umas monedas de ouro pequenas que se assemelhavam a suas folhas e era corrente a expressão “sacudiu a árvore das pagodas” para indicar que um europeu havia se convertido em um nabab, ou seja, em um homem extraordinariamente rico. Tanto Sophie como Stephen se interessavam pela Índia porque corría o rumor de que Diana Villiers vivía ali com seu amante Rillard Canning. Diana, uma joven esbelta, de grande formosura e muito decidida, era prima de Sophie e em outro tempo havia rivalizado com ela pelo carinho de Jack Aubrey, mas além disso era o objeto da desenfreiada paixão de Stephen. Havia tomado parte de suas vidas até a sua fuga com Canning, mas agora era a ovelha negra da família e seu nome já não se mencionava em Mapes; contudo, era espantoso que eles conheciam tão bem seus movimientos e pensavam tanto nela.
Pelos periódicos haviam se enteirado de muitas coisas, já que o senhor Canning era quase um personagem público, um homem que tinha uma grande fortuna, barcos de transporte e ações da Companhia Britânica das Índias Orientais, influência política (mediante a corrupção, ele e sua família controlavam três municipios, onde eram elegidos membros do Parlamento que os representavam, já que eles, por ser judeus, não podiam ser eleitos) e uma relevante posição social, pois pertenciam ao círculo de amigos do príncipe de Gales. E pelos rumores que llegavam do condado vizinho, onde viviam seus primos, os Goldsmith, se haviam enteirado de mais coisas. Mas estes dados não eram comparáveis à informação que Stephen Maturin possuia, pois apesar de sua aparente ingenuidade e sua grande devoção pela história natural, tinha importantes contatos e grande habilidade para os utilizar. Sabia como se llamava o barco da Companhia em que a senhora Villiers havia viajado, qual era a posição de seu camarote, os nomes de suas duas donzelas e alguns dados sobre sua família e sua educação (uma era francesa e tinha um irmão militar que havia sido capturado no começo da guerra e agora estava encarcelado em Norman Cross), e quantas faturas havia deixado de pagar e seu montante. Além disso, estava enteirado do furioso vendaval que havia açoitado às familias Canning, Goldsmith e Mocatta e que também causava estragos, porque a senhora Canning (membro da família Goldsmith) não admitia a pluralidade de esposas e pedira a todos os seus familiares que a defendessem enérgicamente. Ante aquele vendaval, Canning decidira ir à Índia com uma missão oficial relacionada com as possessões francesas na costa de Malabar, um lugar estupendo para conseguir pagodas.
Sophie tinha razão. À mente de Stephen acudiram todas essas recordações quando ouviu o nome da desafortunada árvore, e enquanto permanecia silencioso junto ao fogo, acudiram muito mais. Mas não haviam feito um grande esforço, pois na maior parte do tempo encontravam-se muito próximo, dispostos a aparecer a cada manhã, quando se despertava se perguntando o motivo de sua angústia. E quando não apareciam, sua ausência estava marcada por uma dor física em uma zona do diafragma que podia cobrir com a palma da mão.
Em uma gaveta secreta de seu escritório, tão lleia que era difícil abri-la ou fella-la, havia dois informes com os nomes de Villiers, Diana, viúva de Llarles Villiers, morto em Bombaim e Canning, Rillard, de Park Street e Coluber House, Bristol, que tinham tão ampla documentação como se pertencessem a dois supostos informantes dos serviços secretos de Bonaparte. Parte dos documentos conseguira obrigado a uma desinteressada colaboração, mas muitos obtivera pelo meio mais habitual e haviam lhe custado um dinheirão. Stephen não havia pellinllado nos gastos para tornar-se mais infeliz, para deixar também mais clara a sua posição de amante rejeitado.
“Por que me provoco estas feridas?”, perguntou-se. “Com que motivo? Indubitavelmente, em toda guerra obter informação supõe-se uma vantagem, e este assunto considero-o uma guerra particular. Será que também posso convencer-me de que ainda posso lutar, embora me hajam derrotado no campo de batalha? Tem bastante lógica, mas é falso... é excessivamente simples.”
Pensou tudo isto em catalão, pois ao ser poliglota podia estruturar seu pensamento na língua que mais se adequasse a seu conteúdo. Sua mãe era catalã e seu pai um oficial irlandês, pelo que pensar em catalão, inglês, francês e castelhano era tão natural para ele como respirar, e não tinha preferência por nenhuma língua, aliás as elegia segundo a natureza de suas ideias.
“Quanto eu gostaria de ter ficado calada!”, pensou Sophie, olhando ansiosamente para Stephen, que seguia sentado junto à llaminé, com os olhos fixos na cavidade iluminada de vermelho que havia sob o tronco. “Pobresinho! Está tão necessitado de carinho, tão necessitado de alguém que cuide dele! Realmente não está pronto para vagar pelo mundo sozinho, isso é algo excessivamente duro para as pessoas sensíveis. Como ela pôde ser tão cruel? O que fez foi como bater em um menino... em um menino. Os conhecimentos servem muito pouco aos homens... Ele sabe muito pouco disto; o que tinha que fazer era ter-lhe dito no verão passado "Por favor, casa-te comigo" e ela haveria exclamado "Oh, sim, encantada!". Se o dissesse... Embora não te-lo-ia feito muito feliz...” A palavra “raposa” lutou em vão por sair de seus lábios. “Já não me agrada a árvore das pagodas. Nos sentíamos tão bem juntos! Mas agora parece que o fogo tinha-se acabado... acabará se não ponho outro tronco. E há muita escuridão.” Estendeu a mão para tocar a campainha e pedir velas, mas, após vacilar uns instantes, voltou a colocá-lo sobre sua cômoda. “É horrível que as pessoas sofram tanto. Sou muito afortunada, e isso as vezes me aterroriza. Queridíssimo Jack...” Em sua mente apareceu uma clara imagen de Jack Aubrey, alto e erguido, alegre, lleio de vida, carinhoso. Podia ver seu cabelo alourado caindo sobre a dragona de capitão de navio e seu rostro bronzeado com um amplo sorriso e uma horrível cicatriz desde a mandíbula até o começo do couro cabeludo. Via todos os detalhes de seu uniforme, a medalha que havia recebido pela batalha do Nilo e o sabre que a associação Patriótica lhe presenteara por haver afundado o Bellone, e também seus olhos azuis, que quando ele ria ficavam quase ocultos por completo, como dois pontos brilhantes, e pareciam mais azuis sobre sua cara avermelhada pela risada. Nenhuma outra pessoa havia feito Sophie passar momentos mais divertidos, nenhuma outra pessoa se ria assim.
Aquela imagen se desvaneceu quando a porta que dava ao corredor se abriu e a luz entrou abundante. No umbral apareceu a rellonlluda figura da senhora Williams e se escutou sua potente voz:
— Que significa isto? Por que estão sozinhos na escuridão?
Seu olhar passou rapidamente de um rostro ao outro, tratando de confirmar o que suspeitava desde que eles haviam ficado em silêncio, um silêncio que a advertira porque lhes estava escutando da biblioteca, a través de um compartimento que, quando estava aberto, permitia ouvir o que se dizia na salinha. Mas pela expressão tão surpreendida de seus rostos, a senhora Williams compreendeu que se equivocara.
— Uma dama e um cavalheiro sozinhos na escuridão — disse, sorrindo —. Isso nunca não acontecia em meus tempos. Os cavalheiros da família teriam pedido uma explicação ao doutor Maturin. Onde está Cecilia? Deveria ter permanecido aqui com vocês. Esta escuridão... Certamente que te preocupavas em gastar velas, Sophie. Boa menina.
Então se voltou para Stephen com uma expressão cortés, pois embora este não podia compararse com seu amigo, o capitão Aubrey, possuia um castelo em Espanha (um castelo em Espanha!) com o banheiro de mármore e poderia ser um bom partido para Cecilia. (Se fosse Cecilia que estivesse sentada na escuridão com o doutor Maturin, ela não teria irrompido na salinha.)
— O senhor não imagina como hão subido as velas. Seguramente Cecilia haveria pensado o mesmo. Venho ensinado todas as minhas filhas a economizar, doutor Maturin; nesta casa não há desperdício. Não obstante, se fosse Cecilia quem estivesse aqui com um pretendente, isso seria outra coisa e, por suposto, haveria sido melhor gastar a vela. Não, o senhor não pode imaginar como tem subido o preço da cera desde que começou a guerra. Às vezes fico tentada a voltar a utilizar sebo, mas apesar de sermos pobres não me resigno a usá-lo, sobretudo nas salas da casa que não são privadas. Mas tenho duas velas acesas na biblioteca e posso dar-lhes uma, assim não será necessário que John acenda os candelabros da parede. Estava usando duas velas, doutor Maturin, porque estava reunida com meu agente de negócios todo este tempo... quase todo este tempo. As escrituras, os contratos e as negociações das condições econômicas do matrimônio levam muito tempo e são complicadas, e afinal, sou uma ignorante nessas questões. (Apesar de ser uma ignorante, suas propiedades se estendiam além dos limites do municipio, até Starveacre. E os meninos de todos seus arrendatários, quando ouviam dizer: “Que a senhora Williams vem pegá-los”, emudeciam horrorizados.) O senhor Wilbraham tem feito uma série de importantes observações sobre nossa situação e o que ele llama dilatoria, embora creio que não temos culpa disso, o que ocorre é que o capitão Aubrey se encontra muito longe.
Saiu apressadamente da habitação para buscar a vela, enquanto mantinha os lábios franzidos. Essas negociações estavam se alargando, mas não devido à suscetibilidade do senhor Wilbraham mas à férrea determinação da senhora Williams de não entregar a virgindade de sua filha nem suas dez mil libras de dote até que as “adequadas especificações”, as llamadas capitulações matrimoniais, estivessem firmadas e seladas, e principalmente até que o dinheiro devido fosse recebido. Era essa, precisamente, a causa de tanto atraso, pois apesar de Jack haver aceitado todas as condições, por leoninas que fossem, e com generosidade, como se fora um desapegado da fortuna, renunciara a seu salário, seus butins e suas propiedades futuras, em beneficio de sua viúva e os filhos que nascessem daquela união, apesar de tudo, ainda não recebeu o dinheiro devido. A senhora Williams não daría um passo até que não o tivesse em suas mãos, não em forma de promessas mas de monedas de ouro ou de cobre cunhadas pelo Banco de Inglaterra.
— Aqui está — disse ao voltar, e observou que Sophie havia jogado outro tronco no fogo —. Uma será suficiente, né verdade?, a menos que queram ler. Mas certamente que ainda terão muito o que falar.
— Quisiera preguntarte algo — disse Sophie quando voltaram a ficar sozinhos —. Desde que llegaste, hei tratado de levarte à parte... É horrível ser tão ignorante, e por nada do mundo permitiria que o capitão Aubrey o saiba. Também não posso perguntá-lo a minha mãe. Mas contigo as coisas são muito diferentes.
— Agente pode dizer tudo a seu médico — disse Stephen, e seu olhar terno e afetuoso passou a outro mais grave, o de um profissional.
— A seu médico? — Perguntou Sophie —. Ah, sim! Certamente, claro que sim. Mas o que desejava preguntar-te, querido Stephen, tem relação com a guerra. Esta guerra tem durado uma eternidade, apenas cessara durante um curto intervalo. Tem durado uma eternidade, anos e anos... Quanto eu gostaria que terminasse!... Existe desde que posso me recordar e, contudo, creio que não lhe prestei a atenção devida. Naturalmente, sei que os franceses são maus, mas há muitos mais que alternativamente entram e saem dela: os austríacos, os espanhóis, os russos... Diga-me, os russos agora são bons? Seria horrível, uma traição, sem dúvida, que rezara pelos inimigos. Além disso, há todos esses italianos... e o pobre Papa. E Jack mencionou também a Pappenburg; justo no día antes de ir embora, disse que havia içado a bandeira de Pappenburg como estratagema de guerra, assim que Pappenburg deve de ser um país. Fui uma desprezível farsante, pois com um olhar expressivo e concordando com a cabeça exclamei: “Ah, Pappenburg!” Tenho muito medo de que creia que sou uma ignorante; o sou, certamente, mas não soportaria que ele o saiba. Estou segura de que há muitos jovens que sabem onde está Pappenburg, e Batavia, e a República de Liguria, mas nós nunca estudamos esses lugares com a senhorita Blake. Nem tampouco o Reino das Duas Sicílias..., por certo que apenas encontrei uma no mapa. Por favor, Stephen, fala-me da situação atual do mundo.
— Ah, queres conhecer a situação atual do mundo, minha amiga! — Exclamou Stephen, sorrindo, já sem aquele olhar de profissional —. Bom, pelo momento é bastante clara. De nosso lado estão Áustria, Russia, Suécia e Nápoles, que forma parte das Duas Sicílias, e do outro estão uma série de pequenos estados, Bavária, Holanda e Espanha. Mas estas alianças não têm demasiadas consequências para nenhum dos dois lados: os russos estiveram primero conosco, depois em oposição a nós, até que o czar foi estrangulado, e agora novamente conosco, e creio que mudarão outra vez quando se lhes convier. Os austriacos se retiraram da guerra em 1797 e outra vez em 1801, depois do ocorrido em Hohenlinden, e pode voltar a acontecer o mesmo a qualquer momento. Holanda e Espanha são os países que realmente nos importam, porque têm armadas, e quem quer que ganhe esta guerra há de ganhá-la no mar. Bonaparte tem aproximadamente quarenta e cinco navios de linha e nós mais de oitenta, o qual é bastante alentador; mas os nossos estão dispersos por todo o mundo e os dele não. Por sua parte, os espanhóis têm vinte e sete, e os holandeses outros tantos. É fundamental evitar que se unam, porque se Bonaparte logra reunir uma força superior à nossa no Canal, embora seja por breve tempo, o exército invasor poderia cruzá-lo, que Deus não o quiera. Por isso Jack e lord Nelson percorrem a zona próxima a Tolón, tratando de evitar que monsieur de Villeneuve, com onze navios de linha e sete fragatas, se una aos espanhóis em Cartagena, Cádiz ou El Ferrol. Me reunirei com Jack ali depois que solucione um par de assuntos de negócios em Londres e compre grande quantidade de rubia, assim que se queres enviar-lhe alguma mensagem, este é o momento de darme-a, Sophie, porque já estou indo.
Se levantou e as migalhas se espalharam pelo llão. O relógio de pé deu a hora.
— Oh, Stephen! Tens que ir? — Perguntou Sophie —. Te passarei um pouco a escova. Por que não ficas para o jantar? Por favor, fique, prepararei torradas com queijo para ti.
Desde que havia sofrido aquela desilusão era muito descuidado com sua roupa interior, havia perdido a costume de escovar os trajes e as botas e não tinha muito limpas nem a cara nem as mãos.
— Não, querida, mas és muito amável — respondeu Stephen, e enquanto(durante) ela o escovava permaneceu imóvel, como um cavalo manso, com o pescoço dobrado e a cabeça pegada à gravata —. Se me apresso, posso llegar a tempo à reunião da Sociedade Entomológica. Já, já, querida, já está bem. Jesús, María e José! Que não vou à Corte...! Os entomólogos não presumem elegantes. E agora dá-me um beijo, como uma menina boa, e diga-me o que queres que diga a Jack..., que mensagem queres enviar-lhe.
— Quanto eu gostaria de ir contigo! Oh, quanto eu gostaria...! Suponho que não vale de nada pedir-lhe que seja prudente, que não corra riscos.
— Direi, se o queres. Mas creia-me, carinho, no mar Jack não é um homem imprudente. Nunca corre nenhum risco sem tê-lo considerado cuidadosamente, quer muito a seu barco e a seus homens, muito, para expor-los a um perigo sem haver refletido antes. Não é um desses saqueadores temerários e agressivos.
— Não cometeria nunca uma imprudência?
— Nunca na vida. Essa é a verdade, a pura verdade, creia-me — insistiu, ao ver que Sophie não estava completamente convencida de que no mar Jack fosse uma pessoa distinta que em terra.
— Está bem — disse, e fez uma pausa —. Este tempo me parece tão largo! Tudo parece tardar tanto!
— Tolice! — disse Stephen em tom animado —. As sessões do Parlamento terminarão dentro de poucas semanas, assim o capitão Hammond voltará a seu barco e Jack será atirado de novo à praia. Poderás ver-lhe tão repetidamente como desejas. Agora, diga-me, que queres que lhe diga?
— Diga-lhe que sinto um grande amor por ele, te peço. E, por favor, por favor, cuida-lhe muito tu também.
O doutor Maturin llegou à reunião da Sociedade Entomológica quando o reverendo Lamb começava a ler seu trabalho intitulado Alguns insetos não descritos encontrados na costa de Pringle-juxta-Mare em 1799. Se sentou ao fundo da sala e esteve escutando atentamente durante uns minutos. Mas o reverendo saiu do tema (como todos esperavam) e agora tratava de despertar o interesse da audiência pela emigração das andorinhas, pois havia encontrado um novo dado que apoiava sua teoria. Segundo ele, não apenas voavam em círculos cada vez menores, formavam grupos compactos e se submergiam nas profundidades de tranquilas lagunas mas que se refugiavam nos poços das minas de estanho... “Sim, cavalheiros, das minas de estanho de Corwall!” Stephen deixou de prestar-le atenção e passou seu olhar pelos inquietos entomólogos. Conhecia a alguns: o extraordinario Musgrave, que lhe presenteara uma excelente Carena quindecimpunctata; o senhor Toisón, famoso por seu estudo do cervo voador; Eusebius Piscator, um grande cientista sueco. E aquele outro de costas largas e trança empoada lhe parecia familiar. Pensou que era curioso como os olhos podem apreciar e reter inumeráveis medidas e proporções, permitindo-nos reconhecer um dorso quase da mesma forma que a uma cara. E também uma forma de andar, uma postura, um modo de erguer a cabeça... Quantas referências em cada movimento! Aquele homem tinha a costa curvada em uma estranha posição e a mão esquerda apoiada de tal forma na mandíbula que parecia que intentava ocultar seu rostro, e precisamente essa estranha posição havia llamado sua atenção. Contudo, Stephen não recordava haver visto sir Joseph adotar semelhante postura em nenhuma de suas reuniões anteriores.
—... portanto, cavalheiros, creio que posso afirmar que a emigração das andorinhas para invernar, da mesma forma que todos os demais hirundos, é um feito provado — disse o senhor Lamb com um olhar desafiante.
— Sem dúvida, todos estamos muito agradecidos ao senhor Lamb — disse o presidente, em um clima de grande descontentamento, enquanto os presentes se moviam nervosos em seus assentos e murmuravam —. E embora eu tema que dispomos de pouco tempo e talvez não podrán ler-se todos os trabalhos, permitam-me pedir a sir Joseph Blain que nos fale do autêntico ginandromorfo que há adicionado recentemente à sua coleção.
Sir Joseph levantou-se de seu assento e rogou que lhe desculpassem, pois esquecera de trazer suas notas. Disse que não queria abusar da paciência do público falando sem elas e que, além disso, não se sentia muito bem e desejava retirar-se. Logo acrescentou que apenas tinha uma ligera indisposição, tratando de tranquilizar a seus companheiros. Mas seus companheiros reagiramcomo se tivesse lepra, e três deles já haviam se posto de pé, ansiosos por ficar imortalizados nas atas da Sociedade.
“Que significa isto?”, se perguntou Stephen quando sir Joseph passou por seu lado e lhe saudou secamente com uma inclinação de cabeça. Depois, enquanto escutava um estudo sobre coleópteros brilhantes llegados recentemente do Suriname (um estudo interessantíssimo que mais tarde leria com mais atenção), lhe assaltou um mal pressentimento e sentiu-se angustiado.
Saiu da reunião sentindo-se ainda angustiado, e apenas havia caminado cem jardas quando um mensajeiro se aproximou discretamente e lhe deu um cartão com um monograma e um convite de sir Joseph para que se reunisse com ele, mas não em sua residência oficial mas em uma casinha detrás de Shepherd Market.
— O senhor foi muito amável ao vir — disse sir Joseph, indicando a Stephen um assento junto à llaminé da sala de estar que, sem dúvida, era também biblioteca e estudio.
A casa era confortável e até mesmo luxuosa e o estilo da decoração era de cinquenta anos atrás. Em suas paredes se alternavam quadros com exemplares de mariposas e quadros pornográficos, prova inequívoca de que era uma casa privada.
— O senhor foi muito amável... — repetiu, visivelmente nervoso e preocupado —. Muito amável...
Stephen permaneceu em silêncio e sir Joseph continuou:
— Roguei-lhe que viesse aqui porque este é, digamos, meu refúgio, e creio que devo-lhe dar em privado a explicação que merece. Não esperava encontrar-me com o senhor esta tarde, e me senti muito perturbado ao ver-lhe porque tenho muito más notícias que lhe dar, tão más que tinha preferido que outro as desse, mas devo faze-lo. Eu havia me preparado para comunicá-las em nosso encontro de amanhã, e seguramente o faria sem muita dificuldade, mas ao ver-lhe ali de improviso, naquele ambiente...
Parou de atiçar o fogo, deixou a um lado o atiçador e prosseguiu:
— Cometeu-se uma terrível indiscrição no Almirantado: seu nome foi mencionado e repetido com insistência em uma reunião geral e relacionado com o combate naval em Cádiz.
Stephen assentiu com a cabeça, mas seguiu guardando silêncio. Então sir Joseph, olhando-lhe de soslaio, disse:
— Naturalmente, tratei de que a indiscrição fosse esquecida em seguida e depois dei a entender que o senhor estava a bordo por casualidade, porque ia a algum lugar do Oriente com uma missão científica ou semidiplomática. Expliquei-lhes que era necessário outorgar-lhe um cargo pela posição que ocupava e porque devia tomar parte em negociações, e citei casos precedentes como os de Banks e Halley. Assegurei-lhes que isto teve relação com aquele incidente por pura coincidência, porque tratava-se de economizar tempo. Disse que esta história era absolutamente certa, que apenas a conheciam alguns iniciados, porque era um segredo mais importante que a própria interceptação dos navios, e não devia divulgar-se sob nenhum motivo. Creio que convenció a todos os marinheiros e civis que estavam presentes. Mas apesar de meus esforços, o senhor já está marcado de alguma maneira, portanto é preciso reconsiderar nosso plano.
— Quem eram os cavalheiros que estavam presentes? — Perguntou Stephen, e sir Joseph lhe passou uma lista —. Um grupo numeroso... É uma leviandade, uma grave irresponsabilidade — falava pausadamente — brincar desse modo com as vidas dos homens e com toda a estrutura dos serviços secretos.
— Estou completamente de acordo com senhor — disse sir Joseph —. É monstruoso. E o que mais me dóe é que, em parte, eu mesmo tive culpa, pois havia escrito ao First Lord sobre o assunto, confiando em sua absoluta discreção. Mas é que estava acostumado a ter llefes nos quais tinha uma confiança total, e entre eles nenhum foi mais discreto que lord Melville. Um governo parlamentar não pode ter bons serviços secretos: sempre há homens novos, mais políticos que profissionais, com quem compartilhar a informação. São as ditaduras que têm os melhores serviços secretos; Bonaparte está muito melhor informado que Sua Majestade. Mas não devo omitir a outra notícia desagradável. Embora será do domínio público dentro de uns dias, considero meu dever dizer-lhe que, a juizo da Junta, o tesouro espanhol pertenece por direito à Coroa, ou seja, não será distribuido como butim. Fiz todo o possível para que mudassem de parecer, mas temo que sua decisão é irrevogável. Digo-lhe isto com a esperança de evitar que senhor, pensando que as coisas iriam a ser diferentes, adquirisse compromisos; além disso, adverti-lo com alguns dias de antecipação é melhor que com nenhum. Lamento muito ter que lhe dar esta notícia, pois sei que este..., este assunto afeta também a outros interesses seus. Embora sem muita convicção, espero que minha advertência tenha algum..., o senhor me entende. Asseguro-lhe que sinto tanta pena e tanta decepção que não encontro palavras para expressar, mesmo que minimamente, sua intensidade.
— O senhor é muito amável — disse Stephen —, e lhe agradeço muito esta prova de confiança. Não posso dizer que a perda de uma fortuna seja algo que deje indiferente a nenhum homem, e embora esteja seguro de que com o tempo experimentarei outros sentimentos, de momento apenas tive um disgosto. Mas esses outros interesses a que o senhor cortésmente se referiu são um assunto diferente, e se me permite os explicarei. Tinha grandes desejos de favorecer a meu amigo Aubrey. Seu agente de negócios fugiu com todo o dinheiro de seus butins e o tribunal de apelação não permitiu a confiscação dos barcos neutros, pelo que contraiu uma dívida de 11.000 libras. Isto ocorreu quando ia dar promesa de matrimônio a uma encantadora jovem. Se querem muito, mas devido à mãe dela, uma viúva com numerosas propiedades que estão sob seu controle pessoal, que é uma mulher sumamente estúpida, tacanha, intolerante, gananciosa e obstinada, uma repugnante e desprezível avara, uma harpia, não há esperança de matrimônio até que ele tenha uma boa posição econômica e possa entregar-lhe o dinheiro estipulado nas capitulações. Essa situação era a que me vanagloriava de haver mudado, embora realmente, fora o senhor, as circunstâncias e o destino que os haviam logrado. E também a creram mudada todos os afetados por ela. Que vou a dizer a Aubrey quando me reunir com ele em Menorca? Ele receberá algo por haver tomado parte nessa ação de guerra?
— Oh, sim, claro! Repartir-se-á certa quantidade em gratificação que o permitirá saldar a dívida que o senhor mencionou, ou quase, mas não será uma fortuna, nem muitíssimo menos. A propósito, meu amigo, senhor mencionou Menorca. Significa que pensas continuar com o nosso plano original apesar deste desagradável contratempo?
— Sim — disse Stephen e seus olhos recorreram de novo a lista —. Podemos extrair muito proveito de nossos recentes contatos e muito a perder se não... Creio que neste caso o tempo é fundamental; estou quase seguro de que tomarei a dianteira a falatórios e rumores, porque zarparei amanhã à noite, e além disso, uma notícia vazada não se propaga com a mesma rapidez que um viajante se movimenta. Por outra lado, creio que o senhor soube controlar os mais indiscretos. Este é o único — assinalava um nome na lista — que me preocupa. É um homossexual, como o senhor sabe. Não tenho nada contra aos homossexuais, cada homem pode ter seu próprio conceito da beleza e quanto mais amor haja no mundo, melhor, mas todos sabemos que os homosexuais têm que suportar pressões que outros homens não sofrem. Se vigiasse discretamente esse cavalheiro quando se reune com monsieur da Tapetterie e, sobretudo, se isolasse a monsieur da Tapetterie durante uma semana, não duvidaria em levar a cabo o nosso plano original. Inclusive sem essas precauções, duvido que o adiaria, porque, apesar de tudo, estaria apenas baseando-me em simples conjeturas. Além disso, não serviria de nada enviar a Osborne o Sllikaneder, pois Gómez apenas confiaria em mim, e sem esse contato o novo sistema viria abaixo.
— Isso é certo. E, naturalmente, o senhor comprende a situação do lugar muito melhor que nós. Mas não desejaria que o senhor corresse este enorme risco.
— É um pequeno risco, supondo que exista de fato, e llegaria a ser insignificante se sopram ventos favoráveis e o senhor evitar a propagação da notícia que presumivelmente se há filtrado. De todos os modos, não tem nenhuma importância nesta viaje, no que são mais numerosos os riscos normais da profissão. Por outro lado, se os rumores têm seu efeito habitual, não serei útil durante certo tempo, até que o senhor me reabilite atribuindo-me essa missão científica ou semidiplomática em Tartaria... Já, já! E ao regressar dela publicarei uns estudos sobre os criptogramas de Kamllatka de tal profundidade que ninguém voltará a suspeitar que sou um agente secreto.
CAPÍTULO 2
De um lado a outro, de um lado a outro, as fragatas da esquadra encarregada de vigiar Tolón, os olhos da frota do Mediterráneo, iriam desde o cabo Sicié até a península de Giens, viravam em redondo e regressavam, todos os dias, uma semana após outra, um mês após outro, fosse qual fosse o tempo; saíam a alto mar navegando em linha, depois do canhonaço da tarde, e voltavam ao amanhecer, com suas gavias ondeando sobre o horizonte, pelo sul, enquanto Nelson seguia esperando a saida do almirante francês.
Há três dias soprava o mistral. O mar estava mais branco que azul e o vento do alto mar formava pequenas ondas que cobriam de espuma o convés das fragatas. As três haviam reduzido o velame ao meio-dia, mas mesmo assim navegavam a sete nós e tão escoradas a estibordo que a espuma chegava ao turco.
A silueta já familiar do cabo Sicié estava cada vez mais próxima. O ar era tão límpido e o céu estava tão luminoso que podiam ver-se as casinhas brancas e o camino que llegava até o posto de sinais e às baterias, por onde os carros subiam com dificuldade. Agora estavam até mais próximo, quase ao alcance de seus altos canhões de quarenta e duas libras, e llegavam rajadas de terral desde a zona alta.
— Coberta! — Gritou o serviola do topo —. A Naiad está fazendo sinais, senhor!
— Todos virar em redondo! — disse o Tenente no comando da guarda, por pura formalidade, pois não apenas a tripulação da Lively havia trabalhado junta durante anos como havia feito essa manobra centenas de vezes, nesse mesmo lugar, e a ordem era desnecessária. Embora, devido à rotina, os tripulantes trabalhassem com menos afinco, seguiam sendo muito eficientes, e o contramestre tinha que dizer-lhes: “Devagar, devagar com essa condenada escota”, pois corria-se o risco de que a espilla da bujarrona atravesasse o corrimão da Melpomene, que ia justo à frente e não tinha grandes qualidades para a navegação.
A Naiad, a Melpomene e a Lively viraram em redondo uma depois da outra, girando cada uma onde o havia feito a anterior, depois bolinaram, voltaram a colocar-se em linha e puseram-se rumo à península Giens mais uma vez.
— Detesto este ir e vir — disse um cadete magro para outro magro cadete —. Isso não dá à gente nenhuma oportunidade; não temos nada que ver, não há nem uma salsilla, nem uma sola... não podemos nem sequer lleirar uma. — Olhava entre a exárcia e as velas para o espaço que separava a península da ilha de Porquerolles.
— Salsichas! Oh, Butler, não deverias dizer essa palavra! — gritou entre o rumor do vento, inclinando-se sobre a balayóla e olhando também para aquela passagem por onde era provável que aparecesse a Niobe, que a seu regresso de um cruzeiro se aprovisionaria d’água em Agincourt Sound e voltaria a percorrer a costa italiana, acossando o inimigo e recolhendo todas as provisões que pudesse encontrar, e depois dela lhe trocaria o turno a Lively —. Salsichas quentes, crocantes, suculentas! Baicon! Cogumelos!
— Cala-te, gordo! — Sussurrou seu amigo, dando-lhe um terrível beliscão —. Que Deus te perdoe!
O oficial de guarda foi a bombordo quando ouviu apresentar armas aos infantes da marinha que estavam de centinela. Uns momentos depois, Jack Aubrey saiu de sua cabine envolto em uma callecol e com um telescópio sob o braço e começou a passear pelo lado de barlavento do castelo de popa, o lugar sagrado do capitão. De vez em quando levantava a vista para as velas, mecânicamente, mas não encontrava nada criticável, já que a fragata era uma máquina eficiente que navegava sem nenhuma dificuldade. Neste tipo de serviço, a Lively podia funcionar à perfeição embora ele fosse ao convés todo dia. Não era possível fazer censuras, embora estivesse tão colérico como Lucifer depois de sua queda, o qual distava muito da realidade. Tanto ele como os homens sob seu comando, apesar da tediosa tarefa de manter um bloqueio, a mais dura e fatigosa na Armada, estiveram muito animados durante todas aquelas semanas e meses. Pois pensavam na riqueza que lhes aguardava por haver capturado em setembro um navio com um enorme tesouro, e se bem a riqueza não dá a felicidade, a ideia de obtê-la em breve produz um sentimento muito similar. Em seu olhar havia uma grande benevolencia, embora não aquela ternura quando contemplava a Sophie, uma embarcação pequena e estanca que não navegava bem de bolina, a primeira que estivera sob seu comando. A Lively, de fato, não lhe pertencia; ele estava ao comando temporariamente, como capitão suplente, até que seu titular, o capitão Hammond, voltasse de Westminster, onde ocupava um cadeira pela circunscrição de Coldbath Fields, representando os interesses dos Whigs. E embora Jack apreciasse e admirasse a eficiência da fragata e sua silenciosa disciplina (desdobrava todo um conjunto de velas com a simples ordem: “Zarpar!” e apenas em três minutos quarenta e dois segundos) não se acostumava a elas. A Lively era um exemplo excelente, claramente representativo da estrutura mental dos Whigs, e Jack era um Tory. Sentia espanto por ela, mas à tempo parecia-lhe distante, como se fosse a esposa de um oficial companheiro seu, uma mulher casta, elegante e sem imaginação que organizara sua vida segundo principios científicos.
O cabo Cépet estava a bombordo. Jack pegou o telescópio, trepou-se aos flellastes, que se dobraram sob seu peso, e subiu ofegando até a cesto da gávea do mastro maior. Os gavieiros o esperavam e haviam enrrolado um lado para que se sentasse.
— Obrigado, Rowland. Faz frio, verdade? — disse, deixando-se cair nela, ainda ofegante.
Apoiou o telescópio na vigota mais alta dos amantilhos do mastaréu e enfocou o cabo Cépet. Em seguida apareceu ante seus olhos, com grande nitidez, o posto de sinais, e à direita a zona este da baía grande, onde se encontravam cinco navios de guerra de setenta e quatro canhões, três deles ingleses: o Hannibal, o Swiftsure e o Berwick. A bordo do Hannibal, a tripulação praticava como rizar as velas, e no Swiftsure uma grande quantidade de homens subia pela exárcia, provavelmente camponeses no processo de adestramento. Quase sempre os franceses tinham os barcos capturados na baía exterior; o faziam para incomodar, o que Indubitavelmente conseguiam. Jack se molestava, e muito, duas vezes ao dia, pois subia à cesto da gávea para observar a baía todos os dias pela manhã e pela tarde. Subia, em parte, por zelo profissional, se bem que não existia nenhuma possibilidade de que os franceses saissem, a menos que uma forte tempestade e um furioso vendaval afastassem a frota inglesa de seu posto; mas também subia porque desse modo fazia um pouco de exercício. Estava engordando outra vez, mas não tinha nenhuma intenção de deixar de subir e descer pela exárcia, como faziam alguns capitães gordos, pois o fazia imensamente feliz sentir os amantilhos entre as mãos e o constante movimento dos aparelhos e balançar-se com o vaivém do barco enquanto ascendia ao cesto da gávea.
Os outros navios ancorados ali apareciam agora ante sua vista, e Jack, franzindo o cenho, dirigiu o telescópio para as fragatas inimigas para observá-las atentamente. Ainda havia sete, e apenas uma mudado a sua posição do dia anterior. Eram embarcações muito formosas, embora, em sua opinião, tinham os mastros excessivamente inclinados.
Aproximava-se o momento. A torre da igreja estava quase em linha com a cúpula azul, e Jack enfocou de novo o telescópio concentrando toda sua atenção. Dava a impreção de que a terra não se movia, mas pouco a pouco abriram-se os braços da pequena baía e pôde ver o porto interior, um denso bosque de mastros; as vergas já estavam colocadas neles, e tudo parecia preparado para sair e lutar. Havia uma bandeira de vice-almirante, uma de contra-almirante e o grande estandarte de um comodoro; nada mudara. Os braços iam fellar-se; deslizaram-se imperceptivelmente até juntar-se, e a pequena baía fellou-se.
Jack dirigiu então o telescópio para a colina do farol, logo para o que estava detrás, e procurou o camino que llegava àquela pequena taberna onde ele, Stephen e o capitão Llristy-Palliére haviam comido e bebido tão maravilhosamente não muito tempo atrás, junto com outro oficial francês cujo nome esquecera. Fazia muito calor então; fazia muito frio agora. A comida havia sido extraordinária então (Deus santo, haviam comido a arrebentar!) e agora era muito escassa. Ao pensar naquela comida, sentiu uma pontada no estômago, pois a Lively, apesar de ser considerada a embarcação melhor aprovisionada do porto e manter uma atitude desdenhosa frente às piores dotadas da esquadra, tinha escassez de alimentos frescos, tabaco, lenha e água, igual ao resto da frota. Além disso, devido à epidemia que se extendera entre as ovelhas e a cisticercose que havia atacado aos cerdos, até mesmo as provisões dos oficiais haviam sido substituidas pela horrível carne de cavalo salgada que comia em seus dias de cadete, e os marinheiros já levavam muito tempo comendo apenas bolallas. Não obstante, ficava uma minúscula costelinha para o jantar de Jack. “Devo convidar o oficial da guarda? Faz tempo que não convido ninguém à minha cabine, exceto para o desjejum”, pensou. Também fazia tempo que não falava de igual a igual com ninguém nem trocava ideias. Seus oficiais, melhor dito, os do capitão Hammond, porque Jack não escolhera-os nem formara-os, o convidavam para jantar na sala dos oficiais uma vez por semana e ele os convidava bastante repetidamente a sua cabine, e quase sempre desjejuava com o oficial e o cadete de guarda, mas esses encontros não eram divertidos. Todos os oficiais eram cavalheirescos, estavam um pouco influenciados por Bentham e seguiam estritamente o protocolo naval, que prohibía a todo subordinado falar com seu capitão se este não lhe dirigia antes a palavra, e por outra parte estavam acostumados a tratar com o capitão Hammond, a quem, por seu modo de pensar, esse rigor resultava-lhe agradável. Afinal, eram orgulhosos (muitos podiam permitir-se sê-lo) e detestavam a adulação e a pugna por conseguir favores que costumava haver em outros navios. Em certa ocasião, llegou como terceiro a bordo um Tenente tão adulador que o obrigaram a mudar-se para o Allilles em dois meses. Mantenían em todo momento essa atitude distante, e embora não lhes desagradasse em absoluto o capitão suplente (de fato, o consideravam um grande marinheiro e um capitão atirado) inconscientemente o viam como a um Deus do Olimpo. Por tudo isso, Jack vivia rodeado de um grande silêncio que às vezes lhe fazia sentir-se muito triste. Mas apenas às vezes, porque não permanecía inativo muito tempo; havia tarefas que não podia deixar em mãos do primeiro oficial, embora fosse perfeito, e além disso, pelas tardes instruia os cadetes em sua cabine. Eram jovens simpáticos, e na presença de seu capitão, um ser divino para eles, na severidade de seu mestre, nem o digno exemplo dos maiores conseguiam reprimir a sua alegria. Nem sequer podia consegui-lo a fome, e tinham tanta que comiam ratas a mais de um mês. O encarregado do porão caçava as ratas, e já sem couro, abertas e limpas, como cordeirinhos, as punha à venda; seu preço subia de semana a semana e havia llegado a alcançar a assombrosa cifra de cinco peniques o quarto.
Jack sentia simpatia pelos jovens, e como muitos outros capitães se ocupava de sua educação, sua designação econômica, sua formação profissional e até mesmo moral. Mas sua assídua presença nas lições não era totalmente desinteressada; quando criança não se dava bem com a matemática, a bordo não havia tido uma boa instrução, e embora fosse um marinheiro nato, havia se aprovado no examen para Tenente porque havia aprendido tudo de memória e o haviam ajudado a Providencia e dois capitães do tribunal que estavam de seu lado. Apesar de sua amiga Queenie o haver explicado pacientemente o que era uma tangente, uma secante e um seno, nunca havia entendido muito bem os principios da trigonometria. De fato, havia aprendido a navegar de modo empírico, partindo desde um nivel muito elementar, mas por sorte, como muitos outros capitães, a Armada sempre lhe proporcionava a ajuda de um oficial perito em navegação. Contudo, agora, influenciado possivelmente pelo interesse que existia na Lively pela ciência em geral e pela hidrografia, estudava matemática, e como outros estudantes tardios, avançava a um ritmo muito rápido. O mestre ensinava muito bem quando estava sobrio, e embora os cadetes nem sempre prestavam atenção a suas aulas, era Jack que tirava proveito delas. Pelas noites, depois do troca da guarda, observava a lua ou lia com autêntico deleite Secciones cónicas, de Grimble, quando não escrevia a Sophie ou tocava o violino. “Stephen ficaria muito assombrado!”, pensou, “Agora poderia falar-lhe como um filósofo. Gostaria muito que ele estivesse aqui!”
Mas a pergunta de se devia convidar o senhor Randall para jantar estava ainda sem resposta, e quando estava a ponto de se decidir, ouviu uma tosse forte do cesto da gávea.
— Perdoe, Sua Senhoria — disse —, mas parece-me que a Naiad avistou algo.
Tinha um sotaque da classe baixa de Londres, em claro contraste com seu rosto amarelado e seus olhos rasgados. Isto devia-se a que a Lively, por haver passado muitos anos nos mares Orientais, tinha tripulantes de raça amarela, acobreada e negra, além de brancos, e todos, por haver trabalhado tanto tempo juntos, falavam com o sotaque de Limehouse Reall, Wapping e Deptford Yard.
O Alto não era o único que vira muito movimento na coberta da fragata que lhes precedia. O filho do senhor Randall, completamente ensopado, também o observou desde o extremo da verga da cebadera e abandonou seu posto, atravessou correndo a coberta e reuniu-se com seus companheiros.
— Está dobrando o cabo! Está dobrando o cabo! — gritou, e sua voz aguda, própria de seus sete anos, pôde ser ouvida desde o cesto da gávea.
A Niobe apareceu como por arte de magia entre a névoa que cobria as ilhas Hyéres, navegando com as maiores e as gávias e formando na proa enormes ondas brancas. Possivelmente trazia comestíveis, talvez alguma presa (todas as fragatas haviam combinado compartilhar os butins), mas em qualquer caso lhes faria sair da terrível monotonia e por isso era bem-vinda.
— E aí está o Weasel! — acrescentou o menino.
O Weasel era um cúter grande que ocasionalmente servia de mensajeiro entre a frota e as fragatas que estavam nos portos. Seguramente também ele trazia provisões e notícias do mundo exterior. Que feliz coincidência!
O cúter navegava sob uma nuvem de velas, inclinado quarenta e cinco graus, e a esquadra, que estava em frente a Giens, o animou com seus gritos ao ver que alcançava a esteira da Niobe e virava a barlavento com a intenção de ultrapassá-la. Na fragata apareceram as joanetes e o bujarrona, mas a joanete de proa se rasgou quando lhe atavam as empunhaduras, e antes de que os nervosos tripulantes da Niobe pudessem acalmar-se, o Weasel se encontrava próximo da amura de estibordo, a ponto de ultrapassar a fragata e de causar-lhe uma grande humilhação. As ondas que se formavam na proa da Niobe disminuiram, e o cúter passou a seu lado como uma bala, dando entusiastas vivas, para deleite de todos. Este levava a bordo um sinal com o número da Lively, o que indicava que tinha ordens para ela, e foi se aproximando da esquadra até ficar situado a sotavento da fragata, com sua enorme vela maior dando estalidos e rangidos como os de uma galeria de tiro. Mas não houve preparativos para descer um bote, contudo o capitão gritou para que lhe lançassem um cabo.
“Não traz provisões?”, perguntou Jack, franzindo o cenho, sentado no cesto da gávea. “Maldita seja!”, pensou enquanto sacava um pé dali e o apoiava nas arraigadas. Mas alguém viu assomar pela escotilha principal do cúter a conhecida saca cor púrpura e gritou: “O correio!”, e ao ouvi-lo, Jack se agarrou ao brandal e se deslizou rapidamente por ele até a coberta como se fosse um cadete, esquecendo sua dignidade, enquanto em suas delicadas meias brancas se formavam trilhas desfiadas. Permaneceu de pé, a uma jarda (0,914 m) dos oficiais de folga e do centinela de guarda, esperando que as duas sacas, balançando-se, cruzassem por cima do mar.
— Ponhas uma mão! Ponhas uma mão! — gritou.
E quando por fim as sacas estavam a bordo, teve que fazer um grande esforço por reprimir sua impaciência e esperar que o cadete entregasse solenemente ao senhor Randall e este as levasse até o castelo de popa.
— O Weasel trouxe isto do navio do almirante, senhor, com sua permissão — disse o senhor Randall, tirando o chapéu.
— Obrigado, senhor Randall — disse Jack, levando-as à sua cabine com grande cuidado.
Uma vez ali, tirou de um puxão o selo da saca do correio, desatou a corda e deu um olhar nas cartas, passando com rapidez uma após a outra. Em três estava escrito: “Capitão Aubrey, Lively, navio de Sua Majestade” com a letra de traços arredondados mas firmes de Sophie, e eram muito volumosas, pelo menos o triplo de uma carta normal. Guardou-as no bolso, sorrindo, e pegou a pequena saca oficial ou, melhor dizendo, a bolsinha, abriu o envoltório de tela alcatroada, depois a de seda lubrificada e por último o pequeno envelope que continha suas ordens. Leu-as, franziu os lábios e depois voltou a lê-las.
— Hallows! — gritou —. Avise ao senhor Randall e ao segundo oficial. Entregue estas cartas ao contador para que as reparta. Ah, senhor Randall! Por favor, faça sinais à Naiad comunicando-lhe que temos permissão para abandonar a esquadra. Senhor Norrey, tenha a amabilidade de pôr-nos rumo a Calvette.
Pela primeira vez não havia pressa, pela primeira vez não havia aquela “sensação de angústia, de não ter nem um minuto a perder” de que tão repetidamente Stephen havia se queixado. Nessa época do ano, no Mediterráneo ocidental sopravam quase initerrumpitamente ventos do norte: o mistral, o gregal e a tramontana, todos favoráveis para navegar rumo a Menorca, aonde se dirigia a Lively. Contudo, era importante não chegar à ilha excessivamente pronto nem manter-se próximo da costa, levantando suspeitas. E posto que as ordens, que incluíam as instruções de “causar danos à frota, as comunicações e as instalações do inimigo”, davam a Jack uma grande liberdade de ação, agora a fragata atravessava o golfo de León rumo à costa de Languedoc, com todo o velame que podia suportar aberto, enquanto a branca espuma cobria de quando em quando o corrimão por sotavento. A prática com os canhões como a cada manhã, uma descarga atrás da outra nas solitárias aguas, e a agradável sensação que produzia deslocar-se velozmente sob um sol brilhante fizeram desaparecer as expressões aborrecidas e os murmúrios de descontentamento do dia anterior porque haviam ficado sem provisões e sem cruzeiro. Essas ordens condenadas lhes haviam arrebatado das mãos um cruzeiro justo quando lhes correspondia fazê-lo e todos maldiziam ao odioso Weasel por suas inoportunas cabriolas e seu exagerado desdobramento de velame que refletiam a presunção de seus tripulantes, uns estúpidos de pouca categoria. Dick o Javanês havia comentado: “Se tivesse chegado navegando como um barco cristão e não como um turco, já estaríamos a metade do camino da ilha de Elba.” Mas isso havia sido no dia anterior; o exercício, a possibilidade de encontrar algo de bom em cada nova milha (1.852 m) do amplo horizonte e sobretudo a prazeirosa ideia de que muito pronto seriam ricos, haviam conseguido que os tripulantes da Lively esquecessem rapidamente o ocorrido e haviam lhes devolvido a alegria. O capitão notou isso ao dar a última percorrida pela coberta antes de ir à sua cabine para receber seus convidados e sentiu uma sensação estranha, difícil de definir. Não era inveja, posto que ele era mais rico que muitos deles juntos. “Mais rico in posse”, pensou e cruzou os dedos, um gesto habitual nele. Mas, em parte, talvez era inveja, porque eles tinham um barco e formavam um grupo muito unido; eles tinham um barco e ele não. Não, não era inveja exatamente, não seria essa a definição da inveja... Uma sucessão de excelentes definições ficou interrompida quando o infante de marinha, no momento em que a ampola do relógio ficou vazia, foi até a proa e tocou as quatro badaladas, a tempo que o cadete de guarda puxava a barquilha. Jack correu a sua cabine de dia e observou a larga mesa colocada de través; as bandejas de prata brilhavam tanto com a luz do sol que os lampejos chegavam até o teto, juntando-se ao reflexo das ondas (quanto tempo tanto brilho resistiria no metal?). As vasilhas, os copos e os pratos já estavam colocados e bem seguros com barras de madeira para que não caissem; o despenseiro e seus ajudantes estavam de pé junto às jarras, como petrificados.
— Tudo preparado, Killick? — perguntou.
— Até o último detalhe, senhor — respondeu o despenseiro, e em seguida lhe indicou com o queixo que olhasse para trás.
— Bem-vindos, cavalheiros — disse Jack, voltando-se para onde assinalava o queixo —. Senhor Simmons, por favor, sente-se à cabecera da mesa; senhor Carew, sente-se... Cuidado, cuidado! — o pastor havia perdido o equilíbrio por causa de um solavanco a sotavento e havia caído em seu assento com força, como se fosse movê-lo por toda a coberta —. Aqui, lord Garrón; senhor Fielding e senhor Dashwood, por favor — indicava-lhes com a mão seus assentos —. Antes de começar, quero pedir-lhes desculpas por este jantar. — Enquanto falava, a sopa fazia uma perigosa viagem de um lado a outro da cabine —. Apesar de ter a melhor vontade do mundo... Permita-me, senhor. — Sacou da sopeira a peruca do clérigo e passou-lhe a concha —. Killick, traga um gorro de dormir para o senhor Carew, limpe isto e chame o cadete de guarda. Ah, senhor Butler, minhas felicitações ao senhor Norrey! Creio que poderemos carregar a vela da mesana durante o jantar. Apesar de ter a melhor vontade do mundo, repito, isto se parece com o banquete de Barmecida.
Esta frase pareceu-lhe muito boa e baixou a vista com modestia. Mas pensou que Barmecida não era famoso por oferecer carne fresca a seus convidados, quando viu ali, na tijela do pastor, a inconfundível forma de um barqueiro, o maior dos vermes que se criavam nas bolachas velhas, de cabeça negra e corpo liso e frio e de sabor peculiar. É que a sopa, naturalmente, havia sido engrossada com pedacinhos de bolacha para resistir ao balanço do barco. Como o pastor não estava muito tempo na mar, possivelmente ignorava que aquele verme não era danhinho, que era amargo como o gorgulho, e assim poderia rejeitar a comida.
— Killick, outro prato para o senhor Carew! — gritou —. Há um pelo em sua sopa... Sim, o banquete de Barmecida... Mas tinha especial interesse em convidar-lhes porque possivelmente esta seja a última vez que tenho a honra de fazê-lo. Iremos a Gibraltar, passando primeiro por Menorca, e em Gibraltar o capitão Hammond voltará ao barco. — Houve exclamações de surpresa e alegria devidamente mescladas com outras de pena —. E já que recebi instruções de causar danos às instalações do inimigo na costa, assim como à sua frota, certamente, não creio que nos reste muito tempo livre para jantar depois que dobremos o cabo Gooseberry. Quanto desejo que encontremos algo digno da Lively! Lamentaria entregá-la sem levar ao menos um raminho de loureiro na proa, ou onde seja mais adequado levar os louros.
— O loureiro cresce nesta costa, senhor? — perguntou o pastor —. É loureiro silvestre? Sempre crí que se dava em Grécia. Em verdade, não conheço o Mediterrâneo mais que pelos livros, mas pelo que recordo, os clásicos não mencionam a costa de Languedoc.
— Bom, senhor, ali o hão encontrado, segundo creio — disse Jack —. Dizem que é muito útil para o pescado. E também dizem que uma ou duas folhas realçam o sabor, mas mais de duas são como um veneno mortal.
Seguiram diversas considerações sobre os peixes: o pescado era um alimento completo, embora não agardasse aos pescadores... o linguado de Dover era o melhor..., os cisnes, as baleias e esturjões pertenciam por lei ao Rei..., os papistas haviam clasificado as botos, as rãs e as gaivotas como peixes por motivos religiosos... E o senhor Simmons contou que havia comido uma ostra estragada no banquete de lord Mayor.
— Este pescado, senhores — disse Jack, quando retiraram a sopeira e trouxeram um atum —, é o único que realmente posso recomendar-lhes; foi pescado por esse chinês que está em sua divisão, senhor Fielding, esse chinês baixinho. Não é o Alto nem o Baixo nem...
— John Satisfacción, senhor?
— Esse mesmo. Um tipo alegre, muito esperto e hábil. Rodeou um comprido pedaço de filástica com cabelo das tranças de seus companheiros e colocou no anzol um pedaço de torresmo de porco com a forma de um peixe, e assim o pescou. Além disso, temos uma garrafa de bom vinho para acompanha-lo. A escolha deste vinho não é mérito meu, foi o doutor Maturin quem o escolheu; ele entende destas coisas, inclusive tem vinhedos própios. A propósito, faremos escala em Menorca para pegá-lo.
Disseram que lhes encantaria voltar a vê-lo..., tinham muitos desejos de o encontrar denovo..., esperavam que ficasse bem...
— Menorca, senhor? — perguntou o pastor, com ar pensativo —. Mas não devolvemos Menorca aos espanhóis? Não é espanhola agora?
— Sim, é — respondeu Jack —. Creio que viaja com uma autorização especial, já que tem propiedades nessas terras.
— Nesta guerra, os espanhóis se comportam muito mais civilizadamente que os franceses, pelo que se refere às viagens — afirmou lord Garrón —. Um amigo meu que é católico obteve uma permissão para ir de Santander a Santiago de Compostela para cumprir uma promessa e viajou sem escolta, como um cidadão normal, sem nenhum problema. Embora os franceses não sejam tão maus quando se trata de homens de ciência. No exemplar de The Times que trajo o Weasel hei leído que um cientista de Birmingham foi a París a receber um premio da Academia francesa. Os cientistas viajam sempre, haja ou não haja guerra; e segundo creio, senhor, ou doutor Maturin é uma autêntica maravilha em todas as ciências.
— Oh, certamente! — exclamou Jack —. É como o admirável Crillton: pode cortar uma perna em poucos minutos, dizer o nome em latim de todo ser vivente — olhava um gorgulho amarelado que caminhava rapidamente pela toalha — e fala tantas línguas que é como uma torre de Babel andante. Bom, fala todas menos a nossa. Deus santo! A estas alturas não sabe distinguir ainda bombordo de estibordo. — Riu com vontade —. Gostaria que brindássemos por ele.
— Com muito prazer, senhor — disse o primeiro oficial, trocando com seus companheiros um olhar perspicaz que Jack havia notado desde sua chegada à cabine —. Mas se me permite dizê-lo, senhor, o exemplar do The Times ao que Garrón falou tinha outra notícia muito mais interessante, uma notícia que encheu a todos nós oficiais de entusiasmo, pois guardamos uma grande lembrança da senhorita Williams. Em nome de todos, senhor, queremos lhe dar nossos mais sinceros parabéns e desejar-lhe felicidade. E permita-me sugerir-lhe que antes do brinde pelo doutor Maturin façamos outro mais importante.
Lively, em alto mar Sexta-feira 18
Meu amor:
Brindamos por ti, repetindo três vezes três hurras, segunda-feira passada, porque o mensajeiro da frota nos trouxe novas ordens enquanto vigiávamos o cabo Sicié, e também o correio, com três formosas cartas tuas que compensaram minha frustração porque não fomos autorizados a fazer um cruzeiro, como nos correspondia, e deixou um exemplar do The Times com o anúncio de nosso compromiso, embora eu não o sabia nem havia visto o exemplar.
Havia convidado para jantar a maioria dos oficiais, e o bom Simmons deu a notícia e propôs que brindássemos por tua felicidade. Disse coisas muito belas de ti — que todos tinham um grande lembrança da senhorita Williams quando fizera a viagem pelo Canal que, lamentavelmente, havia sido muito curta, e que todos eram seus fiéis... — e muito bem expressadas. Fiquei colorado como um tapa-bocas recém pintado e baixei a cabeça pudorosamente como uma donzela. E pouco faltou para que começasse a choramingar e parecesse uma de verdade, pois desejava com veemência voltar a tê-la a meu lado nesta cabine. Depois, Simmons, em nome dos oficiais, perguntou se preferias uma chaleira ou uma cafeteira, que queriam regalar-te, com uma inscrição apropiada. Sem dúvida, brindar por ti me fez recobrar o ânimo e disse para ele que achava melhor uma cafeteira, e que a inscrição podia ser: “A Lively guarda uma grande lembrança.” Todos a acolheram com entusiasmo, inclusive o pastor, que é um tipo muito insosso.
E essa noite nos acercamos à costa com um vento apropiado para abrir as joanetes, e quando avistamos o cabo Gooseberry pusemos rumo ao posto de sinais; desembarcamos a umas duas milhas deste e atravessamos as dunas para atacá-lo por detrás, pois, justo como suspeitava, seus canhões de doze libras estavam colocados de tal maneira que apenas podiam disparar para o mar ou para a zona da costa que abarcavam com um giro máximo de 75°. Era um caminho difícil, e a areia, arrastada pelo forte vento que costuma soprar naquelas terras, entrava em nossos olhos, nariz e no canhão das pistolas. Diz o pastor que os clássicos não mencionam essa costa, e me parece que os clássicos eram muito inteligentes e sabiam muito bem o que faziam... ali as horríveis tormentas de areia se sucedem uma atrás da outra. Mas apesar de tudo, guiando-nos pela bússula, logramos chegar até o posto sem adverti-los, e entre exaltados gritos o tomamos em seguida. Os franceses fugiram quando entramos, todos menos um alferes, que se defendeu como um herói. Mas Bonden o surpreendeu por detrás e o agarrou pelo pescoço, e então ele explodiu em lágrimas e baixou seu sabre. Depois cravamos os canhões, destruimos o semáforo, explodimos o paiol, pegamos seu código de sinais e votamos apressadamente aos botes em que havíamos chegado. Foi um trabalho excelente, mas lento, e se tivessemos que contar com as marés, o que então não era necessário, estariamos perdidos. E embora os tripulantes da Lively não estejam acostumados a estas piruetas, têm muita vontade, e alguns até gostam.
O alferes ainda estava furioso quando o levamos a nosso barco. Disse que não nos atreveríamos nem a aparecer por ali se a Dioméde, a fragata em que ia seu irmão, ainda estivesse próxima da costa, pois ela nos destroçaria; cria que alguém nos avisara, já que havia traidores em todas partes, e afirmava que ele mesmo havia sido traido. Fez referência à partida da fragata para Port-Vendres, mas não entendemos bem se havia zarpado fazia três dias ou três horas, porque falava muito rápido... e não em inglês, certamente. Nesse momento saiamos a alto mar, onde havia bastante marejada, e já não disse mais nada, o pobre, teve que calar-se porque se havia mareado.
A Dioméde é uma de suas mais potentes embarcações, uma fragata de quarenta canhões de dezoito libras. Sempre ansiei me encontrar com ela, mas agora o almejo mais ainda, porque — não penses mal de mim, meu amor — devo deixar o comando deste barco dentro de poucos dias e esta é minha última oportunidade de me destacar para poder conseguir outro; e como já se sabe, em tempo de guerra, um barco é tão necessário para um marinheiro como uma esposa. Não é preciso que o consiga imediatamente, certamente, mas sim muito antes de que tudo termine. Assim que pusemos rumo a Port-Vendres (poderás encontrá-lo no mapa, está no extremo inferior direito de França, onde as montanhas se unem com o mar, justo antes de começar a Espanha), capturamos dois botes de pescadores que encontramos no caminho e avistamos o cabo Béar pouco depois do crepúsculo, quando ainda havia luz nas montanhas que rodeavam a cidade. Compramos todo o pescado que os pescadores levavam e prometemos que lhes devolveríamos seus botes, mas eram tipos esquivos e não lhes extraimos nada — Está a Dioméde em Port-Vendres?... Sim, talvez... Foi a Barcelona?... Bom, talvez... São senhores uma corja de tontos que não entendem nem o francês nem o espanhol?... Sim, monsieur —, apenas abriam os braços dando a entender que o sentiam mas que eram simplesmente uns humildes pescadores. E quando pedimos ajuda ao alferes, adotou uma atitude altiva e se mostrou surpreso de que um oficial britânico pudesse crer que ele colaboraria no interrogatorio dos prisioneiros; depois fez uma série de considerações sobre honradez e pátria que deviam de ser muito edificantes mas que não entendemos nada.
Assim, mandei Randall entrar no porto em um dos barcos pesqueiros. É um porto longo, com o canal de acesso em forma de linha quebrada e uma entrada muito estreita protegida por um amplo dique, uma bateria a cada lado e outra com canhões de vinte e quatro libras no alto de Bear. É difícil para os barcos entrarem e sairem dele, pois o infernal tramontana açoita a entrada estreita; está muito resguardado e suas águas são profundas e chegam à altura do cais. Ao regressar, Randall disse que havia grande quantidade de barcos dentro do porto e que vira um muito grande de exárcia de cruz ao final, e embora não estivesse certo de que fosse a fragata Dioméde, pois dois botes de guarda haviam passado por diante e estava muito escuro, era muito provável.
Para não te chatear com detalhes, minha queridíssima Sophie, direi que atamos cinco espias unidas por um extremo a nossa melhor âncora, que deixamos firmemente assentada no fundo arenoso para poder rebocar a fragata em caso de que a bateria mais alta nos arrancasse algum mastro, e antes do amanhecesse nos acercamos da costa com vento moderado do NNE. Então começamos a disparar contra as baterias que protegiam a entrada. Quando houve muito mais luz, e aquele era um dia realmente luminoso, ordenamos aos marinheiros que se pusessem as jaquetas vermelhas dos infantes da marinha e fossem nos botes até um povoado situado no outro lado do cabo mais próximo; e como eu esperava, todos os soldados da cavalaria, dos esquadrões, começaram a descer trabalhosamente pelo único e sinuoso caminho que chegava à costa para evitar que desembarcassem. Mas antes de que se fizesse dia, ordenamos que os botes, repletos de marinheiros sob as escotilhas, fossem até o outro lado do cabo Béar e logo se acercaram à costa. Ao receber um sinal dirigiram-se à terra rapidamente, navegando de bolina (com velas latinas navega-se com assombrosa rapidez) e desembarcaram em uma enseada daquele lado do cabo. Depois rodearam a bateria situada ao sul, conseguiram dominá-la, giraram os canhões e abriram fogo contra a outra bateria, o que restava dela Depois de receber os canhonaços da fragata. Enquanto isso, nossos botes regressavam, saltamos neles; e enquanto a fragata disparava para o caminho que levava à costa para impedir os soldados voltarem para trás, nós nos lançamos para o porto na maior velocidade possível. Tinha grandes esperanças de poder alcançar a Dioméde, mas desgraçadamente não era ela que estava ali senão um enorme barco abastecedor, o Dromadaire, que não nos deu problemas. Mas quando uma brigada ia tirando-o do porto com as gávias desfraldadas, chegaram das montanhas rajadas de vento que o açoitaram por proa, e como era difícil de governar por seu imenso tamanho e navegava mal de bolina, ficou preso na entrada do porto, junto ao dique, e começou a fazer água em seguida. Assim lhe ateamos fogo até a linha de flutuação, queimamos todos os demais barcos, menos os de pescadores, explodimos os postos militares de ambos os lados com sua própria pólvora e recolhemos nossos homens. Killick passara parte do tempo em compras, e trazia leite fresco, pão, manteiga, café e o chapéu cheio de ovos. Os tripulantes da Lively tiveram um bom comportamento, não assaltaram as tabernas, e era estupendo ver aos infantes da marinha formando no cais, tão bem alinhados como se fosse acontecer uma revista, embora tivessem um aspecto deplorável e muito estranho, com as camisas a quadros e os suéteres de marinheiro. Regressamos aos botes muito tranquilos e sóbrios e nos dirigimos para a fragata.
Mas a fragata havia se afastado, porque lhe disparavam da fortaleza no alto do cabo Béar, e duas canhoneiras haviam se aproximado desde a costa para interpor-se entre ela e nós e nos lançavam metralha com seus canhões de dezoito libras. Não podiamos fazer outra coisa senão nos aproximar delas, e fizemos isso. Então, quando estávamos a ponto de abordar uma, fiquei muito surpreso ao ver o que os tripulantes da lancha faziam (e já sabes que a maioria são de chineses e malaios, pessoas caladas, corteses e de bom comportamento), pois a metade deles atiraram-se na água e os outros foram a agachar-se junto à borda. Apenas Bonden, Killick, o jovem Butler e eu demos uma espécie de grito de ataque quando chegamos junto à canhoneira, e pensei: “Jack, estás perdido, has contado com um grupo de homens que não te vão seguir.” Mas não havia alternativa, assim que, entre débeis gritos, a abordamos.
Fez uma pausa..., a tinta da pluma começou a secar. Recordava com nitidez como os chineses haviam subido pelo costado segundos antes que começassem os disparos de mosquete e, desafiando as balas, silenciosamente, atacavam aos tripulantes em duplas: um derrubava um homen ao chão e o outro lhe cortava a cabeça, e em seguida pegavam outro e repetiam a operação. Levaram a cabo o ataque de proa a popa, de forma sistemática e eficiente, apenas gritando as vezes para comunicar-se, não para expressar sua raiva. E justo depois de começar o ataque, subiram pelo outro costado os marinheiros javaneses, que haviam passado nadando por debaixo da quilha, e quando os franceses viram aparecer suas mãos ao comprido do corrimão da canhoneira, começaram a correr pela coberta escorregadia dando gritos, enquanto a grande vela latina dava estalidos. E enquanto, lenta mas tenaz, continuava aquela silenciosa luta corpo a corpo, apenas com facas e cordas. Recordava como aquele marinheiro que lutava com ele na proa, um tipo achaparrado com um gorro de lã, havia caído finalmente pela borda, tingindo de vermelho a água. Então ele havia gritado: “Amarrar essas escotas! Pegar o timão! Levar os prisioneiros escotilhas abaixo!”, e Bonden lhe havia respondido assombrado: “Não há prisioneiros, senhor.” Recordava o intenso vermelho da coberta, que brilhava ao sol, aos chineses agachados em parelhas junto aos mortos, despojando-os meticulosamente de seus pertences, aos malaios recolhendo as cabeças e formando montes redondos como balas, e um outro marinheiro fuçando no ventre de um cadáver. Ao timão havia dois homens, e a seu lado, em um volume, tinham o seu butim; as escotas já estavam bem amarradas. Havia visto cenas horríveis... — a matança a bordo de um navio de setenta e quatro canhões em uma encarniçada batalha da Armada, numerosas abordagens, a bahia de Abukir Depois de explodir o Orion — e, não obstante, sentia náuseas; a captura de um barco era um assunto profissional igual a outros, mas lhe fazia sentir-se enjoado de sua profissão. Recordava tudo isto com viveza, mas, como podia descrevê-lo com palavras se não lhe fazia bem escrever? À luz da lâmparina observou a ferida que tinha no antebraço, por cujo bandagem ainda saia sangue, e reflexionou. Em seguida compreendeu que, de fato, não desejava em absoluto descreve-lo, longe disso. Para Sophie, a vida no mar devia ser agradável, não como ir a um pequenique por dia, mas algo bastante parecido, com algumas dificuldades, por suposto (escassez de café, leite fresco e vegetais), e de vez em quando alguns canhonaços e cruzar de sabres que não feriam a ninguém; pensaria que os mortos tinham uma morte instantânea, por causa de feridas que não podiam ser vistas, e que eram simples números na lista de baixas. Molhou a pluma e continuou escrevendo.
Mas me havia equivocado. Abordaram o barco por ambos os costados, tiveram um comportamento excelente e tudo terminou em poucos minutos. A outra canhoneira se retirou enquanto recebeu dois canhonaços desde a proa da Lively. Então, com os botes a reboque, fomos reunir-nos com a fragata, desfraldamos as velas com grande rapidez, recuperamos as amarras e saimos a alto mar. Uma vez ali, viramos ao ESSE 1/2 E, pois não achei conveniente ir até Barcelona perseguindo a Dioméde, já que nos afastaríamos muito de Menorca, pelo oeste, e poderia chegar tarde a meu encontro, o que não seria correto. De fato, temos tempo de sobra, porque esperamos avistar Fornells ao amanhecer.
Queridísima Sophie, confio que me perdoarás por estes borrões; a fragata está avariada e tem um forte cabeceio devido à marejada, e além disso, passei a maior parte do dia tentando estar em três ou mais lugares ao mesmo tempo. Seguramente dirás que não deveria haver desembarcado em Port-Vendres, que fui um egoísta e um desconsiderado com Simmons; sei muito bem que um capitão deveria deixar as ações desse tipo a seu primeiro oficial, pois são as que oferecem a melhor oportunidade de destacar-se. Mas não sabia como iriam comportar-se, comprendes? Não é que duvidasse de sua boa conduta, mas cria que estavam mais preparados para lutar à defensiva ou em um combate entabuado pela esquadra, que lhes faltava estímulo e agilidade porque não têm prática, não estão habituados a incursões rápidas. Por isso levei a cabo o ataque em pleno dia, porque era mais fácil observar os erros; e me alegrei muito de o haver feito, pois houve momentos em que a luta esteve muito concorrida. Em geral, todos tiveram um bom comportamento (os infantes da marinha fizeram maravilhas, como sempre) mas em uma ou duas ocasiões as coisas poderiam ter-se complicado. A fragata tem o casco perfurado em alguns pontos, as cruzetas do mastro traquete destroçadas, a exárcia cortada em várias partes e perdemos a verga da mesana redonda, mas poderia entabuar um combate amanhã mesmo). Por outra parte, tivemos muito poucas baixas, como poderás comprovar pela carta que se fará pública, e quanto ao capitão, apenas foi afetado por uma grande preocupação por sua segurança pessoal e a perda de sua xícara de café, que se fez em cacos quando a levavam ao porão durante a confusão do combate.
Mas prometo que não o farei mais. E creio que o destino me ajudará a cumprir esta promesa, porque se este vento se mantêm, dentro de poucos dias estarei em Gibraltar sem nenhum barco com que voltar a faze-lo.
“Voltar a faze-lo”, escreveu outra vez. Então apoiou a cabeça sobre os braços e em seguida adormeceu.
— Fornells a um grau pela amura de estibordo, senhor — anunciou o primeiro oficial.
— Muito bem — disse Jack em voz baixa, com a sensação de que sua cabeça ia estourar e sentindo a tristeza que costumava invadi-lo depois de uma batalha —. Mantenha-a em apresentável. A canhoneira já está limpa?
— Não, senhor, temo que não — respondeu Simmons.
Jack não disse nada. O dia anterior fora muito duro para Simmons, pois havia rasgado a pele das canelas em Port-Vendres quando subia correndo a escada de pedra do cais, e seguramente por isso estava menos ativo, mas mesmo assim Jack se surpreendeu com isso. Aproximou-se do costado e olhou para a presa; tudo indicava que não a limparam. Observou que aquela mão cortada que antes tinha uma coloração vermelha brilhante agora estava anegrada e encolhida e por seu aspecto poderia confundir-se com uma enorme aranha morta. Voltou e olhou para o contramestre e sua brigada, que trabalhavam no alto da exárcia, depois para o carpinteiro e seus ajudantes, que tapavam um buraco de bala no outro costado, e então, com um sorriso forçado, disse:
— O primeiro é o primeiro. Provavelmente a mandaremos a Gibraltar esta noite e gostaria de dar-lhe uma olhada antes.
Essa era a primeira vez que fazia uma censura a Simmons, embora fosse de maneira indireta. O pobre homem, que mancava e apenas podia ir ao passo de seu capitão, ficou muito mal, e sua expressão era tão angustiada que Jack pensou dizer-lhe algo que o animasse, mas nesse momento apareceu Killick.
— O café está servido, senhor — disse em tom mal-humorado.
E enquanto Jack corria para sua cabine, o ouviu dizer: “...estará gelado..., na mesa desde as seis badaladas..., sim o hei dito uma e outra vez..., custou tanto consegui-lo e o deixa enfriar”. Estas palavras pareciam dirigidas ao infante de marinha que estava de centinela, mas o horror de seu olhar, proporcional a seu respeito, quase sua devoção por Jack, igual ao que sentiam todos os demais no barco, indicava que se negava a prestar-lhes atenção e a apoiá-las.
De fato, o café ainda estava tão quente que Jack quase quemou a língua.
— Excelente café, Killick — disse, depois de beber toda a cafeteira.
Killick deu um grunhido e depois, sem dar a volta, disse:
— Suponho que quererá outra cafeteira, senhor.
Tão forte e quente, que bem sentou! Notava com prazer que sua mente embotada estava cada vez mais ativa. Começou a cantarolar um fragmento de Fígaro e se interrompeu para por manteiga em uma torrada. Killick era um maldito bastardo. Supunha que se intercalasse muitas vezes a palavra “senhor” nas frases, as outras palavras não tinham importância. Mas a verdade era que havia conseguido café, pão, manteiga e ovos na costa e que se os servira na manhã seguinte a uma dura batalha, apesar de tudo permanecer encerrado nas bodegas e de um costado da cozinha ter ficado destroçado pelos canhonaços do cabo Béar. Jack conhecia Killick desde que lhe haviam dado seu primeiro comando, e à medida que ele havia subido de categoria Killick havia se tornado mais mal-humorado. Agora estava mais enfadado que de costume, porque Jack havia rasgado o uniforme — o terceiro já — e havia perdido uma luva.
— A jaqueta rasgada em cinco lugares... Este corte que o sabre lhe fez na manga não sei como vou costurá-lo. Este buraco de bala tem a borda chamuscada, nunca poderei tirar essas manchas de pólvora. As calças em pedacinhos e tudo cheio de sangue e asqueroso como se tivesse deitado em um estábulo, senhor. Não sei o que diria a senhorita...! Quisesse Deus me deixasse cego! A dragona completamente destroçada. Jesus, que vida!
Lá de fora chegava o ruído das bombas e os gritos de: “Pegar e passar! Pegar e passar!” enquanto se estendia a mangueira; tudo indicava que os faxineiros iriam subir a bordo da canhoneira. E pouco depois, quando Killick havia acabado de repetir o sermão do uniforme do dia anterior, recordando quanto custava, o senhor Simmons mandou preguntar se podia ser atendido. “Deus meu! Havia sido excessivamente rude e severo?”, pensou, e depois em voz alta disse:
— Díga-lhe que entre. Entre, entre, senhor Simmons. Sente-se. Gostaria de uma xícara de café?
— Obrigado, senhor — disse Simmons, olhando inquisitivamente —. Que aroma tão delicioso! Tomei a liberdade de incomodá-lo porque Garrón encontrou isto em uma gaveta quando registrava a cabine do capitão da canhoneira. Não tenho tantos conhecimentos de francês como senhor, senhor, mas quando dei uma olhada pensei que o senhor devia vê-lo imediatamente.
Então passou para Jack um livro comprido e fino, com as capas feitas de lâminas de chumbo.
— Oh! — exclamou Jack, com um intenso brilho no olhar —. Bendito seja Deus! Encontramos um tesouro! Sinais secretos..., um código numérico..., sinais luminosos..., de reconhecimento na névoa..., dos espanhóis e outros aliados... Sabe senhor o que quer dizer banniére de partance? O pavillon de beaupré é a bandeira de proa. O misaine é o mastro traquete, embora senhor não o creia. Que significará hunes de perroquet? Bom, ao diabo as hunes de perroquet, os desenhos estão muito claros. São estupendos, verdade? — Voltou observar a página —. É válido até o dia vinte e cinco. Provavelmente o mudarão com a lua. Espero tirar proveito dele; é um tesouro, mas apenas enquanto tenha validade. Como vai o trabalho na canhoneira?
— Muito adiantado, senhor. Estará pronta para receber sua visita quando as cobertas tiverem secado.
Existia na Armada a superstição de que o solo molhado era mortal para os oficiais superiores e que sua perigosidade aumentava à medida que a graduação era mais alta. Poucos primeiros oficiais iam à coberta se a limpeza de cada manhã não estivesse quase terminada e nenhum capitão de fragata nem de navio subia até que as houvessem secado completamente com lampazos{1} e rolos de borracha. Justo nesse momento secavam com lampazos as cobertas da canhoneira.
— Penso enviá-la a Gibraltar sob o comando do jovem Butler, acompanhado de um ou dois cabos responsáveis e a tripulação da lancha. Butler teve um comportamento destacado— disparou-se sobre o capitão da canhoneira —, e os outros também, embora seguindo seus costumes selvagens. Ter um comando lhe fará bem. Tem alguma observação a fazer, senhor Simmons? — perguntou, olhando nos olhos do Tenente.
— Bom, senhor, já que teve a delicadeza de me preguntar, lhe sugeriria que enviasse outra tripulação. Não tenho nada que dizer em oposição desses homens, são calados, atentos, estão sóbrios, não criam problemas e jamais fazem corpo mole, mas capturamos os chineses em um junco{2} que ia armado e sem nenhuma carga, seguramente um barco pirata, e aos malaios em um prao com as mesmas características, e penso que se os mandamos longe poderiam ter a tentação de voltar a seus antigos hábitos. Se houvéssemos encontrado alguma prova, lhes haveríamos enforcado; chegamos a colocar a corda no extremo de uma verga, mas o capitão Hammond, que também é advogado, sentiu escrúpulos porque faltavam provas. Pouco depois correu o rumor de que eles as haviam comido.
— Piratas? Agora entendo. Isso explica muitas coisas. Sim, muitas, certamente. O senhor tem certeza?
— Não tenho nenhuma dúvida, tanto pelas circunstâncias em que os encontramos como pelos comentários que deixaram escapar. Nesses mares, desde o golfo Pérsico até Borneo, um em cada dois barcos é pirata, ou se comporta como tal quando surge a ocasião. Então têm outro modo de ver as coisas. Mas, se digo a verdade, não gostaria agora de ver o Alto nem o John Satisfacción pendurado em uma corda com nó corrediço, porque têm mudado muito desde que estão entre nós. Hão deixado de rezar aos ícones e de cuspir na coberta e escutam com grande respeito as passagens que lhes lê o senhor Carew.
— Oh, não! Agora não é possível! — exclamou Jack —. Se o Juiz Supremo da Armada me dissesse que enforcasse a um capitão da cesto da gávea ou mesmo a um marinheiro de primeira lhe diria... me negaria. Mas, como o senhor diz, não devemos propiciar que sintam essa tentação. Havia pensado nisso como uma mera possibilidade, mas talvez seja melhor que a canhoneira siga conosco. Sim, creio que é melhor. De toda forma, Butler irá ao comando. Por favor, tenha a amabilidade de dizer para ele que escolha uma tripulação adequada.
A canhoneira seguiu com eles. E quando já anoitecia, o bote da Lively, dando um rodeio por detrás da popa, se dirigiu para a costa, para a borrada silhueta da ilha. Do seu próprio castelo de popa, o senhor Butler deu a ordem de saudar, e sua voz, a princípio muito grave, subiu de tom até tornar-se estridente, porque pela primeira vez sentia a angústia que um comando trazia consigo.
Jack estava sentado na popa do bote, envolto em uma capa alcatroada e com um farol de sinais entre os joelhos. Sentia-se contente por antecipação, pois ia ver Stephen Maturin depois de muito tempo, um tempo que havia parecido ainda mais comprido devido à horrível monotonia do bloqueio. Que somente havia sentido por não escutar aquela voz áspera e desagradável! Havia duzentos e cinquenta e nove homens vivendo mesclados na coberta inferior e o que fazia o número duzentos e sessenta era um ermitão; mas esse era o destino de todos os capitães, a culminação da profissão de marinheiro, e como tantos outros, quando era Tenente havia posto todo o seu empenho em conseguir esse absoluto isolamento, embora admiti-lo não mudava em nada as suas consequências. Filosofar não servia de consolo. Seguramente Stephen haveria visto Sophie a poucas semanas e teria alguma mensagem dela, talvez até mesmo uma carta. Jack levou a mão ao anel de cabelo que tinha oculto em seu peito e ficou concentrado. As ondas moderadas chegavam por popa, empurrando o bote para terra, e Jack adormeceu com seu vaivém e com o rangido e o movimento acompasado dos remos. E até mesmo dormido sorria.
Conhecia bem aquela enseada, e a maior parte da ilha, porque estivera de serviço nela quando era possessão Britânica. Chamava-se enseada Blau, e ele e Stephen foram ali repetidamente desde o Porto Mahón para ver uma casal de falcões de patas vermelhas que tinham seu ninho no alto do penhasco.
A reconheceu em seguida, no mesmo momento que Bonden, seu timoneiro, levantava a vista da bússola e dava uma ordem em voz baixa para desviar um pouco o rumo. Ali estava o curioso pico rochoso, a capela em ruinas, destacando-se sobre o horizonte, e um buraco muito escuro na parte baixa do penhasco que era uma caverna onde as focas frade tinham a suas crias.
— Parem de remar! — sussurrou, e moveu o farol de sinais em direção à costa, observando na escuridão.
Não houve nenhum sinal luminoso em resposta, mas isso não o preocupou. Então ordenou:
— Retroceder!
E quando os remos afundaram na água, aproximou seu relógio da luz. Haviam calculado bem o tempo: dez minutos para chegar. Mas Stephen não tinha, nem poderia devido à sua natureza, o sentido do tempo de um marinheiro. De toda forma, esse era apenas o primeiro dos quatro dias em que poderiam reunir-se.
Voltou o olhar para o leste. Viu as primeras estrelas das Pléyades brilhando no horizonte e recordou que uma vez que recolhera Stephen em uma praia deserta as estrelas brilhavam assim. O bote tinha um suave cabeceio e mantinha a popa para terra com um simples toque de remos. Agora as Pléyades haviam subido e podia ver-se toda a constelação. Fez outro sinal. “É muito provável que não possa encender uma luz”, pensou, ainda sem se inquietar. “Em qualquer caso, queria caminhar por ali. Além disso, lhe deixarei uma mensagem secreta.” Então, em voz alta, disse:
— Aproxime o bote da costa, Bonden. Devagar, devagar, sem fazer ruido.
O bote deslizou pelas águas escuras, onde se refletia a luz das estrelas. Pararam duas vezes para escutar; em uma das vezes se ouviu o resfolêgo de uma foca que saia à superfície, e depois nada mais, até que se escutou a areia aranhando a proa.
Percorria a praia em forma de meia lua de um extremo a outro, com as mãos para trás das costas, deixando alguns sinais secretos que fariam Stephen sorrir se faltasse ao primeiro encontro. Sentia certa tensão, sem dúvida, mas esta não se parecia em nada à terrível ansiedade que o invadira naquela noite muito tempo atrás, ao sul de Palamós, quando não sabia do que seu amigo era capaz.
Saturno apareceu por detrás das Pléyades. Subiu e subiu até situar-se quase a dez graus do horizonte. Acima de sua cabeça, Jack ouviu um ruído de seixo na vereda que atravessava o penhasco. Cheio de esperança, levantou o olhar e, ao distinguir uma silhueta que se movia, começou a assobiar muito baixo Deh vieni, non tardar.
Não houve uma resposta imediata, mas pouco depois, do alto chegou uma voz:
— Capitão Melbury?
Jack permaneceu detrás de uma rocha, sacou sua pistola e a armou.
— Desça! — disse amavelmente, e depois voltou-se para a caverna —. Bonden, venha!
— Onde está senhor? — sussurrou a voz ao pé do penhasco.
Quando Jack estava seguro de que nada se movia na vereda, deu vários passos pela areia e iluminou com o farol a um homem vestido com uma capa marrom, de rosto seco e expressão cansada, acentuada por aquela luz em meio à escuridão. O homem se adiantou com os braços estendidos e repetiu:
— Capitão Melbury?
— Quem é o senhor, senhor? — perguntou Jack.
— Joan Maragall, senhor — sussurrou em inglês com sotaque menorquino, muito parecido ao inglês que falavam em Gibraltar —.Esteban Domanova me mandou. Encarregou-me que lhe dissesse: Sophie, Mapes, Guarneri.
Melbury Lodge era a casa que ambos haviam compartilhado; Domanova era o segundo apelido de Stephen; e enquanto a Guarneri, ninguém mais que Stephen sabia que estivera a ponto de comprar-se um. Desarmou a pistola e a jogou para trás.
— Onde ele está?
— Foi capturado.
— Capturado?
— Sim, capturado. Deu-me isto para o senhor.
À luz do farol, Jack viu no papel uma série de palavras dispersas e inconexas. Começava: “Querido J...”, depois algumas palavras, filas de números e por último a assinatura, um “S” de sinuosas curvas com um dos extremos saindo pela ponta do papel.
— Esta não é sua letra — sussurrou, imóvel na escuridão, com a certeza de que havia ocorrido o pior e sentindo desconfiança outra vez —. Esta não é sua letra.
— Ele foi torturado.
Planta de talo grosso com flores vermelhas com cálice escamoso e espinhoso. Espécie de embarcação asiática pequena com velas reforçadas com canas de bambu.
CAPÍTULO 3
Na cabine, à luz da oscilante lamparina, Jack observou atentamente a Maragall. Tinha o rosto curtido, de aspecto juvenil, com linhas muito pronunciadas e marcas de varíola, e seus dentes estavam em muito más condições. Um de seus olhos tinha uma horrível aparência, mas o outro era grande e expressivo. O que devia pensar dele? Seu inglês era fluido e perfeitamente comprensível, mas com sotaque menorquino, um sotaque estrangeiro que impedia apreciar se falava com sinceridade. O pedaço de papel que agora se encontrava sob a lamparina estava escrito com carvão e quase toda a mensagem estava borrada ou apagada: “Não...”, depois provavelmente a palavra “esperar” e outras sublinhadas das que apenas ficava a listras. Depois “envia isto a” seguido de um nome, talvez Saint Joseph?, e “não confies”. Seguiam então cinco filas de números das que apenas se viam alguns traços, e por último o sinuoso “S”.
Era possível que tudo fosse uma armadilha muito bem ideada ou uma tentativa de incriminar a Stephen. Tratou de encontrar o fio das frases, examinou o papel e considerou rapidamente todas as possibilidades. Às vezes Jack era tão insensato como um lliquillo, e essa faceta de seu caráter encantava a Sophie, embora ninguém que o visse agora ou que o tenha visto em uma batalha poderia crer que existia.
Pediu a Maragall que continuasse seu relato. Contou que Stephen ficara em apuros pela primeira vez quando o denunciaram às autoridades espanholas, mas tudo havia se resolvido graças à apresentação do passaporte estadunidense (o senhor Domanova passava por um norte-americano de origem espanhola) e à mediação do vigário geral; mas então os franceses intervieram e levaram o suspeito ao seu quartel General apesar dos irados protestos. Segundo ele, entre franceses e espanhóis, embora fossem aliados, havia rivalidade em todos os âmbitos, entre suas administrações, seus exércitos, suas armadas e inclusive sua população civil; os franceses se comportavam como se estivessem em território conquistado, e isto provocava que até mesmo catalães e castelhanos se unissem. Sobretudo existia um enorme ódio contra uma suposta comissão francesa para assuntos comerciais que, de fato, era um grupo dos serviços secretos, pequeno mas muito ativo, ao que haviam se incorporado recentemente um tal coronel Auger (um estúpido) e o capitão Dutourd (um homem brilhante), chegados diretamente de París; o grupo se dedicava laboriosamente a recrutar informantes e era pior que a Inquisição. O ódio aos franceses, cada vez maior, era compartilhado por quase todos, exceto por alguns oportunistas e os líderes de Fraternitat, uma organização que queria utilizá-los em vez dos ingleses para enfrentar aos castelhanos, quer dizer, conseguir a independência catalã com a ajuda de Napoleão em vez de Jorge III.
— O senhor pertenece a uma organização diferente, senhor? — perguntou Jack.
— Sim, senhor. Sou o chefe da Confederació da ilha, por isso conheço tão bem a Esteban. E por isso pude vê-lo em sua cela, dar-lhe mensagens e trazer as suas. Nossa organização é a única que tem um forte apoio, a única que realmente faz algo diferente de pronunciar discursos e denunciar. Dois de nossos homens estão no quartel General francês durante o dia, e meu irmão, que é sacerdote, há entrado várias vezes. Inclusive eu mesmo pude levar para ele o láudano que pedira e falar com ele através dos barrotes; Foi então quando me disse as palavras que devia pronunciar.
— Como ele está?
— Fraco. Tratam-o sem compaixão.
— Onde fica? Onde fica o quartel General?
— O senhor conhece Porto Mahón?
— Sim, muito bem.
— Sabe onde vivia o comandante inglês?
— Está na casa do senhor Martínez?
— Exatamente. Apropiaram-se dela e utilizam a casinha que está detrás do jardim para fazer os interrogatórios, porque fica mais longe da rua, embora possa-se ouvir os gritos desde a igreja de Santa Ana. Às vezes, às três o às quatro da madrugada, tiram cadáveres e os jogam no porto, detrás dos curtumes.
— Quantos homens há?
— Cinco oficiais e um guarda que se aloja nas barracas do rei Alfonso. Há seis homens de serviço em cada turno e a troca de guarda é às sete. Não há sentinelas fora para não chamar a atenção; parece um lugar muito tranquilo. Também há alguns civis: intérpretes, serventes, pessoas que se ocupam da limpeza. Entre eles, como já lhe disse, há dois dos nossos.
Soaram oito badaladas; a guarda cambiou na coberta. Jack olhou o barômetro, que cada vez baixava mais.
— Senhor Maragall, escute-me atentamente — disse —. Contarei qual é meu plano e peço que faça as observações que creia oportunas. Tenho em meu poder uma canhoneira francesa que capturamos ontem; a levarei a Porto Mahón e uma brigada desembarcará no Rincão de Johnson ou Boca Pequena. Então os homens, separados em vários grupos, irão por detrás da igreja de Santa Ana até o muro do jardim, tomarão a casa o mais silenciosamente possível e voltarão à canhoneira ou rodearão a cidade para ir à Enseada Garau. Os pontos fracos são: a entrada no porto, os guias e os caminhos alternativos para a retirada. O senhor sabe se há algum barco francês no porto? Como se recebem os barcos franceses, que requisitos devem cumprir para entrar, quem os visitam, onde atracam?
— Sou advogado e não sei muito dessas coisas — respondeu e depois fez uma demorada pausa —. Não, agora não há nenhum barco francês. Quando chegam frente ao cabo da Mola se comunicam com a costa mediante sinais, mas não sei quais são. Em seguida o prático do porto vai a seu encontro e comprova se há neles enfermidades ou pragas; se têm uma boa evidência de sanidade, lhes guia até o atracadouro; e se não a têm, até onde devem passar a quarentena. Me parece que os franceses atracam em frente à aduana. O capitão apresenta seus respeitos ao almirante do porto, mas não sei quando. Poderia averiguar isso e tudo o mais se me desse tempo. Meu primo é o médico.
— Não há tempo.
— Sim, senhor, tem que haver tempo — disse Maragall devagar —. Mas, crê que conseguirá entrar no porto? Crê que não lhe dispararão, embora vejam sinais estranhos, pelo fato de levar a bandeira francesa?
— Entrarei.
— Muito bem. Então, se me levar à terra antes que amanheça, poderei ir no barco do prático a reunir-me com o senhor ou direi a meu primo o que deve fazer. Em qualquer caso, me reunirei com o senhor, averiguarei quais requisitos deve cumprir e lhe informarei dos preparativos que haja feito. O senhor necessita de guias, e certamente os encontraremos. E também caminhos alternativos para a retirada. Tenho que pedir conselho.
— Então, o senhor crê que este plano é factível?
— Sim. Com relação à entrada, sim. Quanto à saida..., bom, o senhor conhece o porto tão bem quanto eu: há canhões isolados e baterias ao longo de quatro milhas. Apesar de tudo, é o único plano, e há muito pouco tempo. Seria terrível que uma vez dentro, por qualquer bobeira que meus amigos lhe dissessem, o senhor desconfiasse de nós. Tem poucos desejos de me levar a terra, certo?
— Não, senhor. Não Sou um grande político nem sei julgar às pessoas, mas meu amigo sim. É uma satisfação arriscar a minha cabeça por uma decisão sua.
Mandou buscar o oficial de guarda e lhe ordenou:
— Senhor Fielding, ponha rumo a terra, à Enseada Blau — disse, olhando Maragall, que assentiu com a cabeça —. A Enseada Blau. Abra o máximo de velame possível. Tenha preparado o cúter azul para utilizá-lo em qualquer momento.
Fielding repetiu a ordem, saiu apressadamente, e quando ainda não havia chegado onde estava o sentinela começou a gritar:
— Todos à coberta!
Jack ficou escutando as rápidas pisadas uns momentos e depois disse:
— Enquanto nos aproximamos da costa, analizaremos os detalhes. Gostaria de um pouco de vinho..., um sandwill?
— Quatro badaladas, senhor — disse Killick, o despertando —. O senhor Simmons está na cabine.
— Senhor Simmons — disse Jack em tom grave —. Levarei a canhoneira ao Porto Mahón ao entardecer. Pelas características da expedição, não pedirei a nenhum dos oficiais que venha comigo. Afinal, creio que nenhum deles conheça bem a cidade. Gostaria que os tripulantes da lancha me acompanhassem como voluntários, mas adivirta-os que esta é uma expedição... é uma expedição um pouco perigosa. A pinaça permanecerá na caverna da Enseada Blau de meia-noite até o entardecer seguinte, e então, a menos que receba outras ordens, deverá encontrar-se de novo com a fragata no lugar que marquei aqui. A lancha esperará em Rowley's Creek e seguirá as mesmas ordens. Devem levar provisões para uma semana. Depois de enviar as embarcações, a fragata virará a barlavento e se dirigirá ao cabo da Mola. Esperará em frente a ele até o amanhecer e, com a bandeira francesa içada, se aproximará da costa, sem ficar ao alcance dos canhões. Espero reunir-me com ela então ou durante o dia, mas se às seis não tiver chegado, deverá comparecer ao primeiro encontro sem perder tempo e depois, após percorrer a zona durante vinte e quatro horas, rumará para Gibraltar. Aqui estão suas ordens, e nelas verá escrito claramente o que vou lhe dizer: não haverá nenhuma tentativa de resgate.
A ideia de ver desembarcar esses homens nobres e valentes em uma terra desconhecida, mas sem estímulo nem imaginação, e de que a fragata fosse presa das canhoneiras espanholas ou das grandes baterias do castelo de Santo Felipe ou do cabo da Mola, o fez repetir de novo estas últimas palavras. E depois de uma curta pausa, continuou em tom confidencial:
— Meu Querido Simmons, estes são alguns documentos pessoais e algumas cartas que, se não for incômodo, lhe pediria que enviasse de Gibraltar se as coisas saem mal.
O primeiro oficial olhou para o chão e depois outra vez para Jack. Estava muito preocupado e, obviamente, buscava palavras para se expressar. Mas Jack não queria ouvi-las, porque aquele era um assunto exclusivamente seu. Simmons, à parte de seus homens mais próximos, era o único a bordo que conhecia até o último Rincão de Porto Mahón e sobretudo o único que estivera no jardim da casa de Molly Harte e em sua sala de música, mas Jack, naquele momento de grande tensão, não queria que ninguém lhe mostrasse seus sentimentos, tampouco queria compartilhar os seus com ninguém.
— Tenha a amabilidade de falar com os tripulantes da lancha, senhor Simmons — continuou, com certa impaciência —. Os que desejarem ir devem ser substituidos em suas tarefas, pois necessitam descansar. Além disso, queira falar com meu timoneiro. Quero que a canhoneira se aborde com a fragata e quando estiver feito subirei nela. Isso é tudo, senhor Simmons.
— Sim, senhor — disse Simmons.
Ao chegar à porta deteve-se e voltou-se, mas Jack já estava ocupado com os preparativos.
— Killick! — gritou —. Meu sabre perdeu o fio ontem. Peça ao armeiro que o deixe afiado como uma navalha de barbear. Peça também que para ele dar um olhar em minhas pistolas. Ah, Bonden, estás aí! Recuerdas Mahón?
— Com todo detalhe, senhor.
— Bem. Esta tarde levaremos a canhoneira lá. O doutor se encontra prisioneiro na cidade e o estão torturando. Esse livro que vês aí contém os sinais dos franceses; veja quais são as bandeiras e os faróis da canhoneira e comprove se tudo está a bordo. Se não, consiga-o. Pega seu dinheiro e sua roupa de abrigo, já que podemos ir parar em Verdún.
— Sim, sim, senhor. Aqui está o senhor Simmons, senhor.
O primeiro oficial lhe informou que todos os tripulantes da lancha haviam se oferecido voluntários, pelo que lhes havia relevado de suas tarefas. E acrescentou:
— Por outra parte, senhor os oficiais e marinheiros se desgostariam não acompanhar-lhe..., não ser escolhidos pelo senhor. Espero que não me decepcione nem ao grupo de oficiais, senhor.
— Entendo o que sentem, Simmons, e isso lhes honra; até mesmo eu sentiria o mesmo. Mas esta é uma... expedição muito especial. Minhas ordens não mudam. Já está abordada conosco a canhoneira?
— Encontra-se junto à alheta, senhor.
— Diga ao senhor West e a seus ajudantes que comprovem como está a exárcia antes que suba a bordo, dentro de meia hora. E os tripulantes da lancha devem levar gorros de lã como se usam no Mediterrâneo — disse, olhando o relógio.
— Sim, senhor — disse Simmons com a voz triste e apagada.
Meia hora depois Jack subiu à coberta com um uniforme descolorido, umas botas de Hesse, uma capa e um chapéu de três picos.
— Já não voltarei à fragata enquanto não terminar tudo em Porto Mahón, senhor Simmons. Quando suenen as oito badaladas da guarda de tarde, mande a lancha. Adeus.
— Adeus, senhor.
Apertaram as mãos. Jack fez uma inclinação de cabeça aos outros oficiais e levou a mão ao chapéu; então o baixaram pelo costado.
E quando subiu a bordo da canhoneira pegou o timão e virou a sotavento. A canhoneira começou a deslocar-se rapidamente, com o vento pela alheta de estibordo, e quando a ilha apareceu pelo sul, que se estendia formando numerosos cabos, orçou descrevendo uma suave curva. Não era como as canhoneiras regulamentares de Tolón nem como as pesadas canhoneiras espanholas que saiam de Algeciras quando havia calma, navegando com dificuldade pelas águas tranquilas; tampouco era como essa espécie de carro flutuante com somente um canhão pesado que se encontrava nos portos (se assim fosse, Jack não a haveria levado até ali). De fato, era uma barca longa de coberta cortada, onde havia uma grande porta corrediça que permitia guardar o canhão junto ao mastro, um mastro curto e gordo e um pouco inclinado para a frente. Era uma embarcação perfeita para navegar pelo Mediterrâneo e capaz de entrar e sair de qualquer porto.
Contudo, não era nenhuma maravilha. Enquanto Jack orçava, notava a resistência oferecida pelo timão e o peso do canhão na proa. Mas depois de colocar-se contra o vento, a menos de cinco graus de sua direção, a canhoneira manteve seu rumo, sem desviar-se nem perder velocidade, soportando valentemente o embate das ondas enquanto sua espuma, com um estrondo sibilante, chegava até a popa.
Esse era o tipo de coisa que ele entendia. A imensa vela latina com a verga curva não lhe resultava tão familiar como a exárcia de cruz ou a de um cúter, mas, em essência, todas eram iguais. Sentia-se como um jóquei cavalgando em um brioso cavalo que pertenciam a outra cavalariça. Fez a canhoneira navegar de todas as formas possíveis: normal, relaxada, firme e segura, descrevendo grandes curvas ao redor da fragata até que o sol se ocultou no oeste.
Então se aproximou da Lively por sotavento, fez um sinal para avisar à lancha e se foi abaixo. E sentado na reduzida cabine triangular do defunto capitão, consultava as cartas marítimas e os livros de sinais, enquanto os tripulantes com chapéu vermelho subiam a bordo. Contudo, não tinha muita necessidade de consultá-los, pois, por um lado, conhecia as águas menorquinas como a palma de sua mão e, por outro, recordava muito bem a disposição das bandeiras e as luzes; realmente o fazia porque, nesses momentos, qualquer contato com o barco suporia perder parte da força que necessitaria dentro de poucas horas. Dentro de poucas horas..., se a descida da pressão e o mau aspecto do céu não eram sinais de que ia desatar-se um vendaval.
Bonden o informou que todos os marinheiros haviam se apresentado e estavam sóbrios. Então Jack subiu à coberta, completamente absorto; moveu a cabeça com impaciência ao ouvir alguns gritos espontâneos de saudação, virou o timão a estibordo e pôs rumo ao cabo mais oriental da ilha. Viu Killick rondando por ali, ao contrário de suas ordens; tinha uma expressão mal-humorada e levava uma cesta com comida e algumas garrafas. Atrás dele Jack viu o oficial de navegação, chamou-o, entregou-lhe o timão e disse o rumo que ele devia seguir; então começou seu habitual passeio de um lado a outro do barco, observando as mudanças do vento, a velocidade da canhoneira e a silhueta mutável da ilha.
A costa se encontrava mais ou menos a uma milha (1.852 m) por estibordo, e lentamente, como num sonho, iam sucedendo-se cabos, praias e calas que conhecia muito bem. Os homens estavam tranquilos. Jack teve a sensação de que seu constante ir e vir naquele silêncio lhe afastava da realidade, impedia sua concentração, então desceu e, agachando-se, entrou na cabine.
— Já estás outra vez com suas malditas tolices, pelo que vejo — disse secamente.
Killick, sem se atrever a dizer nada, serviu cordeiro frio, pão e manteiga e rosé.
“Tenho que comer”, disse, e forçou-se a começar a comer. Mas sentia como se o estômago estivesse fechado, e até o vinho parecia passar com dificuldade por sua garganta. Nunca lhe havia ocorrido algo assim, em nenhuma batalha nem em nenhuma situação de emergência ou crítica.
— É inútil — disse, deixando a comida de lado.
Quando subiu de novo à coberta, o sol estava apenas a um palmo das montanhas, a oeste, e o cabo da Mola aparecia pela amura de estibordo. O vento soprava agora em fortes rajadas e os homens achicavam; seria difícil dobrar o cabo e possivelmente teriam que remar para aproximar-se à costa. Mas haviam chegado no tempo previsto. Jack queria passar em frente das baterias exteriores ainda à luz do dia, com a bandeira francesa bem visível, e entrar no comprido porto quando começasse a escurecer. Olhou a bandeira tricolor na ponta do mastro e os ganchos que Bonden já havia colocado nas adriças, para os sinais, e então segurou o timão.
Agora não havia tempo para refletir; agora dedicava toda sua atenção a questões materiais e imediatas. O cabo estava cada vez mais próximo e as grandes ondas lhe chegavam de frente; tinha que dobrá-lo nessas condições, e mesmo fazendo os cálculos mais precisos, alguma contra-corrente que chegasse do penhasco podia fazer-lhes virar ou desviar-se a sotavento.
— Agora, Bonden! — ordenou quando o posto de sinais ficou visível.
As bandeiras de sinais foram içadas em seguida, abriram e ficaram claramente visíveis. Jack observou o mar e as velas forçadas, depois olhou para o alto, onde estava a bandeira espanhola, apenas movida pela brisa. Se o sinal fosse o correto, a bandeira seria arriada. Estava imóvel ali acima, imóvel, tão rígida que de longe parecia de madeira. Estava imóvel..., e por fim foi arriada e em seguida foi içada de novo.
— Admitidos — disse Jack —. Cubrir os cabos. Permanecer junto a essas adriças.
Os marinheiros estavam silenciosos em seus postos, olhando às vezes o céu, outras a tensa exárcia. Jack franziu os lábios e virou com força o timão; a canhoneira orçou imediatamente e o corrimão de sotavento foi se afundando cada vez mais na espuma; depois, com o vento de través seguiu virando e virando, e pela amura de bombordo apareceu o castelo de Santo Felipe. À proa, a um quarto de milha de distância, havia uma ampla franja de espuma que marcava a zona das lufadas de vento; a canhoneira a atravessou e, de repente, encontrou-se deslizando suavemente por águas tranquilas, ao abrigo do cabo.
— Satisfacción, ponha-se ao timão! — ordenou —. Bonden, assuma o governo do barco!
As duas margens do canal que levava ao porto se estendiam paralelamente e quase chegavam a juntar-se na entrada estreita, em cujos lados as baterias ficavam. Embora algumas casamatas já estivessem acesas, no mar ainda havia bastante claridade e um observador poderia distinguir que era um oficial quem levava o timão, o que resultaria extremamente raro. Mais próximo, cada vez mais próximo; e por fim a canhoneira atravessou a entrada, tão próxima aos canhões de quarenta e duas libras das margens que quase podiam tocar-se as bocas com a mão. Na penumbra ouviu alguém dizer: “Parlez vous françáis?” e depois rir à gagalhadas, e depois outra voz gritou: “ Filhos de puta!”
Mais adiante, aproximadamente a uma milha de distância pela amura de estibordo, encontrava-se a extensa ilha onde estava o hospital, o lazareto. Os últimos lampejos da luz do dia haviam desaparecido dos picos das montanhas e o lango porto ficou envolto em uma luz púrpura com matizes negras; algumas rajadas da tramontana que soprava fora chegavam mesmo ali, ondeando a superfície do mar. E para lá das luzes — cada vez mais numerosas —, estava o imenso espaço entre as montanhas onde o Agamemnon, a causa de uma rajada como essa, havia virado a finais de 1798.
— Carregar as velas! Pegar os remos! — ordenou.
Ficou olhando a ilha do lazareto e seus olhos umedeceram. Por fim um bote começou a acercar-se.
— Silêncio de proa a popa! — gritou —. Não quero ouvir ninguém falar nem gritar, me ouviram?
— Um bote pela amura de estibordo, senhor — murmurou Bonden ao seu ouvido e ele assentiu com a cabeça.
— Quando eu mover a mão assim — disse —, é para começar a remar. E quando a mover outra vez, retroceder.
Iam se aproximando pouco a pouco. Embora Jack estivesse tranquilo e tivesse a mente lúcida, notou que lhe faltava a respiração; então aspirou profundamente, e nesse momento ouviu-se gritar do bote:
— Ei, da barca!
— Ei! — repetiu ele e agitou a mão.
O bote abordou com a canhoneira, se enganchou com o bichero, e um homem saltou acanhadamente ao corrimão. Jack o segurou pelos braços, ajudou-o a subir e olhou a cara dele: era Maragall. O bote se afastou; Jack fez a Bonden um gesto significativo com a cabeça, agitou a mão e baixou com Maragall à cabine.
— Como ele está? — sussurrou.
— Vivo..., ainda..., mas planejam transferi-lo. Não lhe enviei nenhuma mensagem, mas recebi uma.
Tinha uma expressão de cansaço e uma palidez cadavérica, mas fez um esforço pora sorrir e disse:
— Vejo que entrou sem problemas, senhor. Deverá atracar em frente ao cais de avitualhamento; lhes hão deram esse lugar asqueroso por serem franceses. Escute-me, tenho quatro guias e a igreja estará aberta. Às duas e meia acenderemos fogo ao armazém de Martínez, que fica próximo do arsenal: foi Martínez quem o denunciou. Isto permitirá a um amigo meu, um oficial, mover as tropas. Às três já não haverá soldados nem policiais em um quarto de milha ao redor da casa. E os dois homens de nossa organização que trabalham lá estarão esperando na igreja e lhe ensinarão como entrar. De acordo?
— Sim. Quantos homens haverá ali esta noite?
— Chamam do bote, senhor — disse Bonden, assomando a cabeça.
Ambos saltaram de seus assentos e Maragall saiu e se pôs a esquadrinhar o mar. As luzes brilhantes de Mahón iluminavam todo o cabo, e sobre esse fundo se recortava a silhueta negra de um falullo (embarcação que possui uma vela latina triangular), a umas cem jardas de distância. Voltaram a gritar do falullo.
— Quer saber como está o tempo fora do porto — sussurrou Maragall.
— Há vento forte, como para suportar as gávias com todos os rizos — lhe responderam.
Maragall lhes gritou algo em catalão e o falullo começou a afastar-se das luzes. De volta à cabine, secou o rosto sem pronunciar uma palavra.
— Oh, quanto desejaria que tivéssemos mais tempo! Quantos homens? Oito soldados e um cabo, um intérprete provavelmente e todos os oficiais, embora talvez não haja regressado o coronel, que foi à cidadela jogar cartas. Qual é seu plano?
— Desembarcar em pequenas brigadas entre as duas e as três, chegar a Santa Ana pelas ruas traseiras, saltar ao jardim pelo muro posterior e entrar na casinha. Se ele estiver lá, sairemos em seguida por onde chegamos, se não, atravessaremos o pátio, e revistaremos a casa, fechando antes todas as portas. Faremos tudo silenciosamente, se é possível, e depois voltaremos à canhoneira. Em caso de luta, iremos pelo campo; tenho botes em Cala Blau e Rowley's Creek. Pode conseguir cavalos? Necessita de dinheiro?
— Não é apenas Esteban — disse Maragall, sacudindo a cabeça com impaciência —. Se os demais prisioneiros não forem liberados, as suspeitas recairão sobre ele. Será descoberto, e apenas Deus sabe quantos mais o serão. Além disso, entre eles haverão alguns dos nossos.
— Compreendo.
— Ele lhe diria o mesmo — sussurrou Maragall ansioso —. Isto deve parecer uma insurreição de todos os prisioneiros.
Jack assentiu com a cabeça, olhando pela janela de popa, e observou:
— Quase chegamos. Venha à coberta enquanto atracamos.
O velho cais de víveres estava cada vez mais próximo, e também seu fedor. Passaram junto à aduana, toda iluminada, e voltaram depois à escuridão. O bote do prático de porto lhes saudou e virou para voltar ao porto. Maragall lhe respondeu. Pouco depois, Bonden murmurou: “Guardar os remos!” e muito devagar encostou a canhoneira do cais preto e gordurento. Amarraram-na em um par de postes do cais e permaneceram em silêncio, enquanto as ondas acariciavam o costado de estibordo e os ruidos difusos da cidade chegavam pelo outro costado. Passado o cais de pedra havia um indefinido montão de lixo, bem mais distante, uma fábrica abandonada, depois uma cordoaria e um estaleiro com mastros quebrados. E se ouvia o miar de dois gatos que estavam ocultos pela porcaria.
— O senhor me compreendeu? — insistiu Maragall —. Ele diria exatamente o mesmo.
— Tem lógica — disse Jack secamente.
— Ele diria o mesmo — repetiu Maragall —. Sabe onde se encontra agora, senhor?
— Essa é a igreja dos Capuchinhos. E essa a de Santa Ana — respondeu, assinalando uma torre com a cabeça.
A torre estava muito mais alta que eles. A razão era que desse extremo do porto até a metade da cidade se estendia um penhasco escarpado, de modo que essa parte de Mahón ficava muito acima da água.
— Tenho que ir — disse Maragall —. Voltarei à uma com os guias. Por favor, pense detidamente no que lhe disse. Todos deven ser liberados.
Eram oito horas. Jogaram uma âncora e, com os remos já preparados, amarraram a canhoneira pela popa e permaneceram naquela sórdida solidão. E quando Jack mandou servir a comida, os homens já estavam apinhados na cabine, sentados em grupos de seis, ou sob a reduzida coberta, pois devia haver apenas uma luz, o menor movimento e o menor ruido possíveis, ou seja, não devia ser notada nenhuma atividade.
Como suportavam bem a espera! Apenas se ouvia o sussurro de suas vozes, ou click dos dados e a um chinês gordo roncando como um porco. Eles confiavam em um líder onisciente, que tinha tudo — preparativos meticulosos, bom juizo, conhecimento do terreno, aliados seguros —, mas Jack não. A cada quarto de hora ouviam-se os sinos das igrejas por todo o Porto Mahón, e um com um som muito agudo, quase a ponto de quebrar-se, era o de Santa Ana, que tão repetidamente havia ouvido desde a casinha, em companhia de Molly Harte. Passou um quarto de hora..., meia-hora..., deu nove horas. Deu dez horas.
De repente abriu os olhos e viu Killick, que lhe dizia:
— Três badaladas, senhor. O cavalheiro estará logo de regresso. Aqui tem o café, senhor, e uma fatia de baicon. Tome um pouco, senhor, pelo amor de Deus.
Como qualquer outro marinheiro, Jack havia dormido e havia despertado em todas as latitudes e a qualquer hora do dia e da noite. Além disso, tinha a capacidade de sair de um sono profundo e estar em seguida esperto para subir à coberta, uma capacidade que havia desenvolvido durante muitos anos de guerra. Mas desta vez era diferente, pois além de estar completamente acordado e esperto para subir à coberta, era outro homem; sua desesperação e sua tenção haviam desaparecido, era outro homem. Agora o cheiro daquele lugar sujo em que estavam ancorados, um penetrante cheiro de poeira, era para ele o odor da batalha iminente. Comeu com voracidade e depois, sob a débil luz da lua, foi à proa para dirigir-se aos tripulantes, que estavam agachados sob a coberta. Eles estavam assombrados com o entusiasmo contido de Jack, tão diferente da agressividade que costumava mostrar tempos atrás nas incursões na costa; e também estavam assustados porque soaram as badaladas de uma hora e uma e meia sem que Maragall aparecesse.
Eram quase duas quando ouviram fortes passos no cais.
— Desculpe-me — disse, ofegando —. Fazer com que a gente se mova neste país... Aqui estão os guias. Tudo marcha bem. Na igreja de Santa Ana às três, certo? Estarei lá.
— Até às três. Adeus — disse Jack, sorrindo, em seguida voltou-se para os guias, que estavam entre as sombras —. Serão quatro grupos, e a cada cinco minutos sairá um, de acordo? Primeiro o Satisfação e logo Dick o Javanês; Bonden irá na retaguarda.
Então, por fim, desembarcou e notou o chão sumamente rígido, pois havia passado muitos meses na mar. Embora pensava que conhecia Porto Mahón, se encontrou perdido depois de cinco minutos de subir por aqueles becos escuros e adormecidos, onde apenas ouvira o miado de alguns gatos nos portais e a alguém tratando de calar uma criança; e depois que ele e seus homens passaram agachados por um túnel muito baixo e asqueroso, lhe surpreendeu encontrar-se na conhecida praça de Santa Ana. A porta da igreja estava entreaberta e entraram silenciosamente. Em uma capela de um dos lados havia uma vela acesa, e junto a ela, dois homens com seus lenços brancos na mão. Falaram em voz muito baixa com o guia, um sacerdote ou alguém vestido de sacerdote, e logo se adiantaram para falar com ele. Não pôde entender o que diziam, mas notou que repetiam várias vezes a palavra foc, e quando a porta se abriu de novo, viu um resplendor vermelho no céu. A sacristia foi se enchendo à medida que chegavam os guias com os grupos restantes; os homens se apinharam ali em silêncio, impregnados do cheiro de alcatrão. Outra vez o resplendor; então saiu e viu que de um incêndio no porto se elevava uma luz vermelha e a fumaça se afastava rapidamente para o sul, e nesse momento ouviu um grito de agonia que, de repente, se interrompeu. Havia saido de uma casa próxima.
Bonden e o último grupo terminavam de atravessar a plaça.
— Viu isso, senhor? Esses condenados entraram em ação.
— Silêncio, tonto maldito! — ordenou em voz muito baixa.
O relógio rangeu ao dar as três. Maragall surgiu das sombras.
— Vamos! — disse Jack, e correu até um beco que dava a uma das esquinas da praça.
Subiram pelo beco e bordearam o muro alto e liso até o lugar por onde sobressaia uma figueira.
— Bonden, me ajuda a subir. — Em seguida chegou em cima —. Dá-me os rezones! — Os enganchou ao redor do tronco —. Temos que descer suavemente! Descer suavemente! — murmurou e desceu para o pátio.
Lá estava a casinha, com suas janelas cheias de luz. E dentro da alargada habitação havia três homens inclinados sobre um potro de tortura, um civil sentado em uma escrivaninha, escrevendo, e um soldado recostado à porta. Um dos oficiais inclinados sobre o potro, que estava gritando, se moveu para um lado para desferir outro golpe e Jack viu que não era Stephen que estava ali com os membros estendidos.
Detrás dele ouviu que os homens se deixavam cair do muro com um ligeiro impacto, e sussurrou:
— Satisfação, vá com seus homens pelo outro lado até a porta. Dick Javanês, a esse arco iluminado. Bonden, comigo.
Ouviu-se de novo o grito pungente, quase inumano, intolerável. Dentro da casinha, aquele oficial jovem e muito atraente havia se voltado e olhava os outros com um sorriso triunfante. Tinha a jaqueta e o colarinho desabotoados e levava algo na mão. Jack desembainhou o sabre e abriu a grande janela. Os homens voltaram seus rostos, e sua expressão indignada deu passagem a outra de total assombro. Em três passos largos, empunhando fortemente o sabre e o agitando com fúria, feriu o jovem com um golpe reto e ao homem que estava a seu lado com um revés. Em seguida a habitação se encheu de horríveis ruidos, movimentos rápidos e golpes. Escutou-se o ruído surdo de corpos que caiam, um grito do último oficial, o impacto da cadeira e do escrivaninha ao serem derrubados; o civil vestido de preto lançou um fraco grito quando dois marinheiros se lançaram-se sobre ele. Um soldado corria para fora..., chegou dali um grito que não parecia humano e depois se fez silêncio. O homem que estava no potro de tortura tinha o olhar extraviado e o rosto descomposto e coberto de suor.
— Desamarem ele! — ordenou Jack, e o homem, ao sentir que desaparecia a tensão, deu um suspiro e fechou os olhos.
Esperaram uns instantes, aguçando o ouvido, mas não houve nenhuma reação, apenas se ouvia a três ou quatro soldados discutindo no piso de baixo da casa e a alguém assobiando melodiosamente no piso de cima. Continuavam escutando sem interrupção vozes altas com o tom didático ou exortativo.
— Agora à casa — disse Jack —. Maragall, qual é a sala dos guardas?
— A primeira à esquerda, sob o arco.
— Conhece seus nomes?
Maragall perguntou aos homens dos lenços e depois respondeu:
— Apenas dois: Potier, que é o cabo, e Normand.
Jack assentiu com a cabeça e perguntou:
— Bonden, te recordas da porta que dá ao pátio de entrada? Fique vigiando-a com seis homens. Satisfação, sua brigada ficará neste pátio. Javanês, a sua se colocará em ambos os lados da porta. Lee e seus homens venham comigo. Silêncio, muito Silêncio.
Jack atravessou o pátio; ouvia o choque de suas botas contra as pedras e a seu lado passos muito ligeiros. Fez uma pausa momentânea, para uma última comprovação, e gritou:
— Potier!
Nesse mesmo instante, como um eco, ouviu-se do alto da escada o grito: “Potier!”, e o assobio, que havia cessado, se escutou de novo. Logo o assobio voltou a interromper-se e se ouviu outra vez, mais alto: “Potier!” Os guardas deixaram de discutir para poder escutar. Outra vez: “Potier!”
— J'arrive, mon capitaine — disse o cabo e saiu da habitação, ainda falando enquanto fechava a porta.
Houve um ofego, um grito afogado de assombro, e silêncio. Jack gritou então:
— Normand!
A porta voltou a se abrir, mas desta vez apareceu um guarda de rosto esquivo e olhar interrogativo, quase receoso, que fechou a porta ao vê-lo.
— Muito bem — disse Jack, e a empurrou com toda a força de suas duzentas e vinte e cinco libras (102 kg).
A porta abriu com o golpe, estremecendo. Na habitação apenas ficava um homem, que pulou a janela, mas foi alcançado rapidamente. No pátio começaram a ouvir gritos.
— Potier! — chamaram de cima, e o assobio começou a ser ouvido na escada, cada vez mais abaixo —. Qu'est-ce que c'est ce remue-ménage?
À a luz do grande farol que pendia do arco, Jack viu a um oficial de rosto rosado e expressão alegre e bonachão, vestindo um impecável uniforme, e ao comprovar que era um oficial superior ficou pensativo uns instantes. Seguramente era Dutourd.
Dutourd, que ia começar outra vez a assobiar, o olhou com expressão incrédula e levou a mão à bainha do sabre, que estava vazia.
— Prendam ele! — gritou Jack ao grupo de marinheiros que se aproximavam na escuridão —. Maragall, pergunte onde está Stephen.
— Vous etes un officier anglais, monsieur? — perguntou Dutourd, fazendo caso omisso de Maragall.
— Que o diabo o leve! Responda de uma vez! — exclamou Jack, tremendo de ira.
— Llez le colonel — disse o oficial.
— Maragall, quantos homens restam?
— Este homem é o único que resta na casa. Diz que Esteban está na habitação do coronel. O coronel não regressou ainda.
— Vamos.
Stephen os viu entrar em seu comprido sonho; estiveram antes nele mas não juntos nem vestidos de colores apagadas. Sorriu para Jack, que havia empalidecido e tinha uma expressão angustiada; mas quando este tratava de soltar-lhe as ataduras, sentiu uma grande dor que transformou o sorriso em uma careta e lhe fez voltar à realidade.
— Devagar, Jack, meu amigo — sussurrou enquanto lhe passavam com cuidado a uma cadeira acolchoada —. Dá-me algo de beber, por caridade. Ah, Maragall — olhava por cima do ombro de Jack e sorria —, valga'm Deu.
— Evacue a habitação, Satisfação — ordenou Jack ao parar.
Vários prisioneiros haviam chegado até ali, alguns se arrastando, e dois deles lançaram-se contra Dutourd, que estava em um rincão com o rosto extremamente pálido.
— Esse homem necessita falar com um sacerdote — disse Stephen.
— Devemos matá-lo?
Stephen assentiu com a cabeça e disse:
— Mas antes ele deve escrever ao coronel..., fazer que venha..., dizer-lhe que tem uma informação muito valiosa, que o americano falou... Sim, uma informação muito valiosa que deve conhecer de imediato.
— Faça-o escrever essa nota — disse Jack voltando a cabeça para Maragall, ainda com uma expressão afetuosa na cara —. Se o coronel não estiver aqui dentro de dez minutos, o matarei nesse artefato.
Maragall conduziu Dutourd até a escrivaninha e lhe pôs a pluma na mão.
— Diz que não pode, que sua honra..., que é um oficial.
— Sua honra? — gritou Jack, olhando aquela coisa de onde havia desatado a Stephen.
Então se ouviram gritos, pés que se arrastavam e o impacto de uma queda na escada.
— Senhor, este tipo entrou pela porta principal — disse Bonden, enquanto dois marinheiros de sua brigada entravam na casa sustentando um homem —. Creio que os prisioneiros lhe fizeram muitos danos enquanto subiamos.
Todos olharam ao coronel moribundo..., morto. E nesse momento, Dutourd deu a volta, derrubou a lamparina e saltou pela janela.
— Enquanto tratava de escapar — repetiu Stephen quando Dick o Javanês subiu pa ra informar-lhes do ocorrido —. Oh, isto é demais..., demais...! Jack, que vamos fazer agora? Nem sequer posso andar desgraçadamente arrastado.
— Nós te levaremos à canhoneira — disse Jack.
— Aí, detrás da porta, está a prancha em que levam os suspeitos mortos — observou Maragall.
— Joan — disse Stephen —, todos os papéis importantes estão nesse arquivo à direita da mesa.
Devagar, devagar, percorreram as ruas desertas, enquanto Stephen olhava as estrelas e o ar puro penetrava em seus pulmõnes. Apenas uma figura viu aquele cortejo passar, algo já familiar, e desviou rapidamente o olhar. Desceram até o cais e o atravessaram até onde a canhoneira estava. A brigada de Satisfação subiu primeiro e tomou os remos; Bonden informou: “Todos os homens presentes e sóbrios.” Disseram adeus a Maragall, desejando-lhe que Deus o acompanhasse e que não tivesse problemas. As águas negras começaram a deslizar cada vez mais rápido pelos costados; ouviram o som abafado de um relógio sob a coberta, entre os volumes com o butim. Detrás deles tudo era silêncio; Mahón ainda dormia profundamente.
A ilha de Lazareto ficou para trás, a sua esquerda, e então fizeram os sinais com os faróis. Responderam da bateria com os sinais regulamentares e o último grito de zombaria: Collons! E com grande satisfação observaram que o tramontana estava amainando, como costumava ocorrer ao amanhecer, e que a embarcação que tinham a sotavento era a Lively.
“Bem sabe Deus que eu faria tudo outra vez”, disse Jack, virando o timão para aproximar-se e sentindo o impacto dos salpicos em seus olhos cansados e avermelhados. “Contudo, creio que necessitaria de todo o mar para lavar as minhas mãos.”
CAPÍTULO 4
— Tomará o cavalheiro enfermo um pouco de posset antes de sair? — perguntou a patrona do Crown —. Está muito pálido e, além disso, faz um dia terrivelmente frio e úmido... Portsmouth não é Gibraltar.
Ia dizer que a roupagem que a camareira havia preparado era mais apropiada para um carro fúnebre que para uma cadeira, mas pensou que talvez isso fizesse parecer inadequada à melhor cabriolé do Crown, agora de frente à porta.
— Certamente, senhora Moss. É uma excelente ideia. Eu mesmo subirei. Pôs um aquecedor de cama dentro da cadeira, não foi?
— Dois, senhor; estão esquentando a menos de meia hora. Mas mesmo que pusesse duzentos, ele não deveria viajar com o estômago vazio. Não poderia convencê-lo a comer, senhor? Há torta de ganso, e não há nada que fortaleça mais que torta de ganso, como todo mundo sabe.
— Tentarei, senhora Moss, mas ele é teimoso como uma mula.
— Todos os enfermos o são, senhor — disse a senhora Moss, movendo de um lado a outro a cabeça —. Todos são iguais. O senhor Moss, quando eu lhe cuidava em seu leito de morte, também era irritável e rebelde. Não queria torta de ganso, nem mandrágora, nem posset, nada de isso.
— Stephen — disse, com fingida alegria —, beba isto, por favor, e em seguida partiremos. Estão esquentando o seu casaco?
— Não o tomarei — disse Stephen —. É outro copo desse condenado posset. Pelo amor de Deus, não sou um menino pequeno para ser atormentado, martirizado, aniquilado com caudle!
— Apenas um pouquinho — insistiu Jack —. Te dará forças para a viagem. A senhora Moss não acredita que seja muito conveniente que viajes, e creio que tem razão. De todas as formas, comprei para ti uma garrafa do vigorizante instantâneo do doutor Mead, que contém ferro. Adicionarei uma gota dele ao posset.
— A senhora Moss... A senhora Moss... o doutor Mead... ferro... Valha-me Deus! — Exclamou Stephen —. Atualmente existe uma forte tendência a...
— O casaco, senhor — disse Killick —. Quentinho como uma torrada. Ponha-o antes que ele esfrie.
Abotoaram o seu casaco e o colocaram nele; ele foi baixado pela escada sustentando pelos cotovelos, de maneira que os pés apenas roçavam os degraus, e o levaram até a cadeira, junto à qual Bonden esperava. Ao sentá-lo nela, em cujo interior fazia um calor asfixiante, ele começou a protestar aos gritos — que o estavam afogando com aquelas malditas almofadas e peles de cordeiro, parecia que queriam enterrá-lo vivo, haviam posto sob seus pés palha suficiente para alimentar aos cavalos de um regimento —, enquanto eles, por cima de sua cabeça, trocavam olhares expressivos.
Equanto que Killick e Bonden metiam os últimos feixes de palha, Jack se dispôs a entrar pela outra porta, e então sentiu que lhe tocavam no ombro. Ao voltar-se, viu um homem mal-encarado com um distintivo em forma de coroa na mão; depois deu um olhar ao seu redor e viu outros dois junto aos cavalos e um grupo de reforço composto por oficiais de justiça armados de paus.
— O senhor é o capitão Aubrey? — perguntou o homem —. Em nome da lei peço que me acompanhe. Deve responder ante a justiça por um assunto pendente com Parkin e Clapp. Não cause problemas, senhor. Nós iremos tranquilamente, sem escándalo. Se prefere, irei atrás do senhor e Joe lhe precederá.
— Muito bem — disse Jack, e se inclinou para a janela—. Stephen, estou sendo preso. Estão me detendo por aquele assunto com Parkin e Clapp. Por favor, fale com Fanshaw. Escreverei-lhe a Grapes e talvez me reúna ali contigo. Killick, pegue a minha bagagem. Bonden, vá com o doutor e cuide dele.
— Aonde o levam?
— À casa de Bolter, em Vulture Lane — disse o policial —, onde terá todos os luxos e comodidades e um tratamento respeitoso.
— Em marcha — disse Jack.
— Maturin, Maturin, meu Querido Maturin! — exclamou sir Joseph —. Estou tão surpreso, tão apenado, tão comovido!
— Bom — disse Stephen em tom mal-humorado —, minha aparência impressiona bastante, sem dúvida, mas estas marcas são superficiais, não tenho nenhuma lesão séria. Ficarei bem. Mas me vi obrigado a lhe pedir que me visitasse aqui porque não posso subir as escadas. O senhor foi muito amável ao concordar e desejaria poder recebe-lo melhor.
— Oh, não! — exclamou sir Joseph —. Agrada-me muito sua posada..., parece de outra época..., é muito pitoresca..., digna de um quadro de Rembrandt. E o senhor tem um fogo esplêndido. Acredito que aqui conseguem fazê-lo sentir-se bem.
— Oh, sim! Aqui conhecem meus gostos. Tudo seria perfeito se a patrona da casa não fizesse o papel de médico apenas porque passo várias horas do dia na cama. Digo-lhe: “Não, senhora, não tomarei as gotas de Godfrey Cordial nem as de Ward. Eu não digo à senhora como tem que preparar este salpicón, porque a senhora é uma cocinera, assim que, por favor, não me diga que tratamento devo seguir, pois, como sabe, sou médico.” E ela me contesta: “Não, senhor, porque a Sara, que ficou nas mesmas condições que o senhor quando caiu há seis meses, enquanto atiçava ursos, as gotas de Godfrey lhe sentaram muito bem. Assim que, por favor, senhor, tome esta culherada.” E Jack Aubrey era exatamente igual. Eu disse a ele: “Eu não pretendo ensinar-te como governar sua corbeta ou seu bergantim, ou como chames essa condenada embarcação, por tanto, tu não deves pretender...” Mas é o mesmo. Dão para mim panacéias que os curandeiros vendem nas feiras e remédios de velhas... Bah! se a raiva pudesse unir meus tendões, já estaria forte como um salsifí.
Sir Joseph ia recomendar-lhe as águas de Bath, mas não o fez.
— Espero que seu amigo esteja bem — disse —. Estou infinitamente agradecido a ele. Sua ação foi heróica, e quanto mais penso nela, mais admirável ele me parece.
— Sim. O foi. Creio que estas ações se levam a cabo com êxito apenas de duas maneiras: com previsão, enormes esforços e muitos preparativos ou com extrema rapidez. E para este último é necessário ter uma qualidade muito especial, uma virtude que não sei como denominar; os mouros a chamam baraka. Ele posue essa virtude; e a conduta que em outro se qualificaria de delitiva e temerária, nele é normal. E contudo, permanece sob a custódia de um alguazil em Portsmouth. Assombro. Disgosto.
— Sim — continuou —. Parece que sua virtude nada mais é apreciable na mar ou afeta apenas a seu comportamento como marinheiro. O prenderam por dívidas a pedido de um grupo advogados. Segundo Fanshaw, sua agente, a quantia da dívida é de setecentas libras. Embora o capitão Aubrey sabia que o tesouro espanhol capturado não ia ser considerado um butim, ignorava que a notícia tinha se expalhado pela Inglaterra; para dizer a verdade, eu também ignorava, porque não houve nenhum anúncio oficial. Mas não quero lhe importunar com problemas privados.
— Meu querido Maturin, peço que me fale sempre como a um amigo íntimo, um amigo que o aprecia muito, à margem das questões oficiais.
— É muito amável, sir Joseph, muito amável. Então lhe confessarei uma coisa: temo que seus outros credores se enterem de que está de novo em uma situação difícil e que abram processos contra ele, processos dos quais não poderá se sair bem. Meus recursos não me permitem tirá-lo dessa situação, e embora com a paga ex gratia que o senhor mencionou poderia saldar a maior parte de sua dívida, ainda lhe ficará por pagar uma soma considerável. E um homem pode apodrecer na cadeia tanto por dever umas centenas de libras como por dever dez mil. — Não lhe pagaram ainda? — Não, senhor. E além disso, Fanshaw se mostra resistente a lhe dar um adiantamento por conta, pois diz que estas coisas não são habituais nem são seguras nem se sabe quanto podem atrasar-se e que o capitão Aubrey já está excessivamente endividado.
— Isto não faz parte de minhas competências, certamente. Os pagamentos extraordinários têm que ser aprovados pela Junta de transporte, que é muito lenta, e pela Seção de pagamentos, que é mais lenta ainda. Mas lhe prometo que tentarei que tudo seja rápido. Enquanto isso, o senhor Carling falará com Fanshaw e estou confiante de que este poderá lhe adiantar a soma que lhe é devida.
— Gostaria que abrisse uma janela, sir Joseph?
— Se o senhor não se importa... Não está com calor?
— Não. O que eu necessito é o calor do trópico e consigo algo parecido com vários celemines (4,6 litros) de carvão mineral. Mas reconheço que é quase insuportável para um corpo normal. Por favor, tire a jaqueta..., afrouxe a gravata. Eu não estou de etiqueta, como pode ver, pois tenho o gorro de dormir e esta pele de gato como cachecol.
Começou a tirar de um conjunto de cordas e alavancas que estavam conectados à janela, mas em seguida voltou a reclinar-se.
— Jesus, Maria e José! — murmurou —. Não tenho força, não tenho nenhuma força. Bonden!
— Senhor? — disse Bonden, aparecendo imediatamente na porta.
— Pega esse cabo, puxe ele para trás e o amarre, por favor — disse Stephen, e olhou para sir Joseph com orgulho mal dissimulado.
Bonden ficou boquiabierto, mas logo compreendeu o que queria o doutor e avançou uns passos. Contudo, quando tinha a corda na mão, parou e disse:
— Não creio que a corrente lhe faça bem, senhor. Não temos um tempo muito bom esta manhã.
— Já vê qual é a situação, sir Joseph. Não há disciplina; nenhuma ordem é cumprida sem que antes haja uma discussão quase interminável. Maldito Bonden!
Bonden, mal-humorado, abriu a janela uma ou duas polegadas, atiçou o fogo e saiu da habitação.
— Parece-me que tenho que tirar a jaqueta — disse sir Joseph —. Crê senhor de verdade que um clima quente poderia lhe convir?
— Quanto mais quente, melhor. Quando puder irei ao sul, a Bath, para mergulhar em suas águas quentes e sulfurosas...
— Justamente o que ia lhe sugerir! — exclamou sir Joseph —. Alegra-me ouvi-lo. Isso é o que eu lhe recomendaria... — “se o senhor não estivesse tão mal-humorado e irritável nem fosse tão caprichoso e obstinado”, pensou —, mas quem sou eu para lhe aconselhar. Isso fortalece as fibras; minha irmã Clarges conhece um caso..., embora talvez não seja exatamente igual... — Teve a impressão de que estava pisando um terreno perigoso e então tossiu e, sem transição, falou de outra coisa —. Mas voltando a seu amigo, não crê que o matrimônio melhorará sua situação? Hei(cá está) visto o anúncio em The Times, e entendo que a jovem é uma rica herdeira. Lady Keith me disse que tem muitas propiedades, entre elas algumas das melhores terras de lavoura do condado.
— É verdade, mas todas estão em mãos de sua mãe; e sua mãe, gorda e estúpida como uma besta, é o ser mais insensível que existe sobre a face da terra. Jack, em troca, não o é; tem uma peculiar ideia do que significa ser um joão ninguém e sente um grande desprezo pelos caça-dotes. É um idealista, e também o pior mentiroso que a gente é capaz de imaginar; quando lhe disse que o tesouro espanhol não seria considerado um butim e que, portanto, era pobre outra vez, fingiu que fazia muito tempo que o sabia e se riu, depois me consolou com a mesma ternura que uma mulher e disse que já havia se resignado com isso já fazia meses e que não precisava me preocupar, pois a ele não se importava. Mas sei que naquela noite ele escreveu a Sophie e estou convencido de que a eximiu de seu compromiso, embora isso não fará mudar de ideia a essa adoravel criatura.
Bonden entrou na habitação, ofegando sob o peso dos sacos de carvão, e avivou o fogo.
— Sir Joseph, lhe apetece uma xícara de café? Talvez um copo de madeira? Aqui têm um excelente vinho, o recomendo.
— Obrigado, obrigado. Preferiria um copo d’água. Sim, me virá bem um copo d’água fria.
— Um copo d’água e uma garrafa de madeira, Bonden, por favor. E lhe advirto que se volto a encontrar na bandeja outro copo de rum com um ovo crú dissolvido nele, o lançarei na sua cabeça. O mais doloroso de toda a viagem — dizia entre gole e gole de vinho — foi lhe dar essa notícia. Mais doloroso que o interrogatório, chamemos assim, que me fizeram os franceses, filhos da nação que mais admiro.
— E que homem civilizado não a admira? Deixando à parte seus governantes, seus políticos, suas revoluções e esse horrível engouement(entusiasmo) por Bonaparte.
— Isso mesmo. Mas esses homens não são novos no poder. Dutourd já pertencia ao exército no Antigo Regime e Auger formava parte do corpo de dragões: os dois são antigos oficiais. Foi um terrível golpe. Cria conhecer muito bem essa nação, porque havia vivido lá, havia estudado em París... Contudo, Jack soube como derrotar-lhes. Sim. Como lhe disse, é um idealista; depois do ataque jogou seu sabre ao mar, apesar do apreço que, pelo que sei, lhe tinha. Ele gosta de fazer a guerra, nenhum outro homem luta com maior veemência, e contudo, depois da batalha parece rejeitar a ideia de que a guerra consiste em matar ao inimigo. Seus sentimentos são contraditórios.
— Alegro-me muito de que o senhor vá a Bath — disse sir Joseph, a quem o conflito interior de um capitão de fragata que não conhecia interessava menos que o restabelecimento da saúde de seu amigo. (Apesar de que o chefe dos serviços secretos, em suas relações profissionais, parecia um iceberg em vez de um ser humano, sentia um profundo e verdadero afeto por Maturin.) —. Estou encantado. Ali conhecerá o meu sucessor e lhe visitarei de vez em quando, pois é um grande prazer para mim estar em sua companhia. — Notou com satisfação como Stephen endureceu o olhar quando ouviu a palavra sucessor —. Além disso, ajudarei os senhores a se conhecerem melhor. Vou me aposentar dentro de pouco e me dedicarei a estudar os escaravelhos, como Sabine; tenho uma casinha na zona dos Fens, que é um paraíso para os coleópteros. Estou realmente ansioso para me aposentar, embora também sinta um pouco de pena, certamente; mas me serve de consolo pensar que deixo meus interesses, nossos interesses, em boas mãos. O senhor conhece ao cavalheiro a quem me refiro.
— Ah, sim?
— Sim. Quando o senhor me pediu que mandasse alguém de confiança para que escrevesse seu informe, devido ao estado de suas mãos (foi uma barbaridade, uma enorme barbaridade terem lhe maltratado dessa maneira), roguei ao senhor Waring que fosse. Durante duas horas esteve sentado com ele — disse com ar triunfante.
— Surpreende-me senhor — disse Stephen com o cenho franzido.
Mas imediatamente se desenhou um sorriso em seu rosto. O senhor Waring, aquele homem cinza, insignificante, seria perfeito. Havia feito seu trabalho com ordem e eficiência e suas únicas preguntas foram muito diretas; não havia deixado transparecer nada, nem uma informação especial nem um determinado interesse. Poderia haver sido um simples e respeitável funcionário que ocupava um lugar intermediário na hierarquia.
— Admira muito seu trabalho e seu profundo conhecimento da situação. O almirante Sievewright lhe representará (este sistema é muito melhor), mas o senhor falará diretamente com ele quando eu tiver ido. Se darão muito bem, estou certo. Ele é um grande profissional; se ocupou do assunto do defunto monsieur da Tapetterie. Por certo, creio que o senhor lhe disse que tinha outros documentos ou observações à margen de seu informe.
— Sim. Tenha a bondade de me passar esse objeto forrado de couro. Obrigado. A Confederação queimou a casa (esses tipos se encantam com as chamas), mas antes de que saíssemos dali pedi a seu chefe que pegasse os documentos importantes, e dentre eles lhe ofereço este como regalo por sua aposentadoria. Por direito lhe pertenece, pois nele aparece seu nome ao se referir às agis-sements néfastes de sir Blaine, na página três, e o perfide sir Blaine, na página sete. É um informe firmado pelo coronel Auger mas redigido realmente pelo brilhante Dutourd. Está dirigido a seu homólogo em París e descreve a atual situação da rede de serviços secretos do exército na parte oriental da península, incluindo Gibraltar, faz uma valorização dos agentes, dá detalhes sobre os pagamentos e sobre muito mais coisas. Não está terminado, porque o cavalheiro foi interrompido na metade da redação, mas é bastante completo e tão autêntico como suas própias manchas de sangue. Encontrará algumas surpresas, sobretudo com relação ao senhor Judas Griffiths, mas creio que, em conjunto, lhe será muito útil. Oxalá tivéssemos um documento assim para a Inglaterra! Em minha opinião, um documento como este devia passar diretamente de minhas mãos às suas — disse, lhe entregando.
Sir Joseph, cheio de curiosidade, se apressou a pegar o documento, depois se aproximou da luz e, sentando-se inclinado para ela, devorou as páginas, nas que apareciam listas e uma informação detalhada.
“Esse porco...!”, disse para si. “Esse porco desprezível...! Ah, Edward Griffiths, Edward Griffiths, põe-te a rezar! Na própria embaixada...! Assim que Osborne tinha razão. Esse porco...! Que Deus me ajude!”
Em seguida, em voz alta, disse:
— Bem, terei que comunicar isto a meus colegas da Guarda montada e ao Ministério de assuntos Exteriores, certamente, mas ficarei com o documento para me recrear com a sua leitura em meu tempo livre. De modo que sou o perfide sir Blaine... É um documento importantíssimo. Estou muito agradecido, Maturin. E já verá como a surpresa vou dar-la.
Fez um movimento de apertar-lhe a mão, mas recordou qual era a situação de Stephen e apenas a tocou suavemente.
O carteiro não era um visitante habitual em Mapes. A senhora Williams vivia perto de seu administrador e recebia a visita de seu agente financeiro uma vez por semana, de forma que se relacionava por carta com poucas pessoas, e essas poucas raras vezes lhe escreviam. Contudo, sua filha mais velha reconhecia perfeitamente os passos do carteiro e sua forma de abrir a grade de ferro. Por isso ao ouvir-lhe saiu correndo da salinha, percorreu três corredores e desceu as escadas até a entrada. Mas chegou excessivamente tarde, porque o mordomo já havia colocado The Ladies Fashionable Intelligencer (o informador da moda feminina) e uma carta na bandeija e se dirigia à sala de café da manhã.
— Há algo para mim, John? — perguntou ela.
— Apenas chegaram uma revista e uma carta com um selo de três peniques*, senhorita Sophie — respondeu o/ou mordomo —. Vou dá-las à senhora. (* 1 penique = 1/100 da libra)
Sophie notou que tratava de ocultar algo e lhe disse:
— Dá-me essa carta imediatamente, John.
— A senhora me disse para entregar tudo a ela para evitar confusões.
— Deves dá-la a mim. Poderias ser preso e enforcado por te apropiar das cartas de outras pessoas. Isso é contra a lei.
— Oh, senhorita Sophie, em minha posição não posso fazer outra coisa!
Nesse momento, a senhora Williams saiu da sala de café da manhã, pegou a carta e se afastou, arqueando suas negras sobrancelhas. Sophie a seguiu, ouviu como rasgava o envelope e disse:
— Mamãe, dá-me minha carta.
A senhora Williams, com o rosto ruborizado, se voltou para a filha e gritou:
— Por acaso mandas nesta casa? Deverias envergonhar-se. Te proibi que mantenhas correspondência com esse criminoso.
— Não é um criminoso.
— Então, por que está na prisão?
— O sabes perfeitamente bem, Mamãe. Por não pagar as dívidas.
— Em minha opinião, isso é até pior. Despojar os outros de seu dinheiro é pior que os matar, é um delito grave. E em qualquer caso, te proibi que lhe escrevas.
— Estamos prometidos, portanto temos o direito de nos corresponder. Não sou uma menina.
— Absurdo! Havia dado meu consentimento, mas era condicional. Já não o tens, estou cansada de repetir isso. Tantas pretensões e tantas palavras bonitas... Menos mal que pudemos escapar, pois muitas mulheres excessivamente confiadas são deixadas levar por palavras bonitas e grandes promessas, e quando chega o momento não têm nem sequer o respaldo de uma sólida aplicação em bonos do Estado. Dizes que não és uma menina, mas o és para estes assuntos e necessitas de proteção. Por essa razão, quero ler suas cartas. Se não tens nada de que te envergonhar, por que te opões? Em minha opinião, a inocência é um escudo contra tudo. Quanta raiva há em seu olhar! Deverias se envergonhar, Sophie. Mas não vou deixar que sejas a vítima do primeiro homem que se interressa por tua fortuna. Nem fale, senhorita! Não permitirei correspondência secreta em minha casa. Já temos bastante desde que sua prima seja uma amante, ou uma amigada, ou como se diga hoje em dia; quando eu era jovem, não havia nada de isso. Tampouco em meus tempos nenhuma jovem se atreveria a falar com a sua mãe em um tom tão imprópio, e estou segura de que até a menina mais descarada haveria preferido morrer a passar por essa vergonha. — A senhora Williams pronunciou esta frase mais lentamente, pois estava lendo ao tempo que falava —. De toda forma, sua obstinação e sua fúria foram desnecessárias e me provocou enxaqueca outra vez inutilmente, porque a carta é do doutor Maturin. Não creio que tenhas nenhum motivo para ruborizar-se se a leio:
Querida senhorita Williams:
Peço desculpas por ter ditado esta carta, mas devido ao mal estado de minha mão, é difícil para mim escrever. Já cumpri o encargo que tive a honra de receber da senhorita, e fui muito afortunado porque consegui todos os livros da lista por mediação de meu livreiro, o respeitável senhor Bentley, que me fez um desconto de trinta por cento.
A senhora Williams fez um gesto de aprovação com a Boca.
Além disso, encontrei um mensageiro, o reverendo Hiksey, o novo pároco de Swiving Monallorum, O que está acontecendorá por Llampflower quando for tomar posse, ou talvez devesse dizer a investidura...
— Muito bem; nós chamamos a “investidura” de um clérigo. Ah, Sophie, seremos as primeiras a vê-lo! — exclamou a senhora Williams, cujo humor mudava bruscamente.
... Possui uma grande carruagem e, posto que não tem família, se comprometeu a levar o pároco de Eldin, Duhamel, Falconer e aos demais da sede. Isso permitirá à senhorita poupar-se da espera e, além disso, meia coroa, não é uma soma desprezível...
— Claro que não: oito fazem uma libra. Mas parece que nem todos os cavalheiros pensam assim.
... Tive uma grande alegria ao saber que as senhoras irão a Bath. Estarei lá apartir do dia vinte e poderei ter o prazer de apresentar meus respeitos a sua mamãe. Espero que essa visita não signifique que a saúde dela esteja mal ou que esteja acometida outra vez de sua antiga dolência...
— Sempre se preocupa muito com minhas dolências. Seria realmente conveniente para Cissy. Se ela pudesse pegá-lo, teríamos um médico na família, sempre à mão. Depois de tudo, que importância tem o papismo? Afinal, todos somos cristãos.
... Por favor, diga-lhe que se puder ser útil estou à sua disposição. Ficarei hospedado na casa de lady Keith, em Landsdowne Crescent. Estarei só, pois o capitão Aubrey foi detido em Portsmouth...
— Pensa como eu, pelo que vejo. Cortou todos os laços de união porque é um homem ajuizado.
... E sem mais, querida senhorita Williams, pesso que transmita meus cumprimentos à sua mamãe, e às senhoritas Cecilia e Francês...
—... e etcétera. Uma carta muito bonita e respeitosa, muito bem escrita. Creio, contudo, que poderia haver conseguido uma isenção de selagem através de seus conhecidos. A letra é de homem, não de mulher. Ditou a carta a um cavalheiro, não há dúvida. Podes ficar com ela, Sophie. Não me oponho que vejas ao doutor Maturin em Bath, porque é um homem sensato, não um esbanjador. Seria muito conveniente para Cecilia. Nunca um cavalheiro necessitou mais de uma mulher, e é óbvio que sua irmã necessita um marido. Com tantos oficiais da reserva rondando por aí e com o seu exemplo, não haverá quem a detenha, assim que o quanto antes se case, melhor. Quero que em Bath lhes deixem sozinhos o máximo tempo possível.
Bath. As ordenadas lajotas sob o sol, a abadia. As águas termais, cujos vapores refletiam a luz do sol. Sir Joseph Blaine e o senhor Waring passeavam pela galeria de banhos do Rei. Ali se encontrava Stephen, metido dentro da água fervendo e completamente relaxado; parecia uma figura gótica, pois vestia uma espécie de hábito de tela e estava sentado em um nicho de pedra. Em ambos os lados dele estavam sentados outros homens, afetados de escrófula, reumatismo, gota, tísica ou, simplesmente, excessivamente gordos, que olhavam sem muito interesse para o outro lado, onde se encontravam as mulheres, em sua maioria afetadas dos mesmos padecimentos. Por outra parte, uma dúzia de peregrinos caminhavam com dificuldades dentro da água, seguros por serventes. Apareceu então a corpulenta figura de Bonden que, em ceroulas de tela, atravessou a corrente e chegou junto ao nicho de Stephen. Então o pegou nos braços e começou a abrir passagem dizendo: “Com sua permissão, senhora... Licença, companheiros...” com grande segurança, pois esse era seu elemento, independentemente da temperatura que tivesse.
— Está melhor hoje — disse sir Joseph.
— Muito melhor — disse o senhor Waring —. Caminhou quase uma milha na quinta-feira e até a casa de Carlow ontem. Nunca acreditei que isso fosse possível. Há visto como tem o corpo?
— Não, apenas as mãos — respondeu sir Joseph, fechando os olhos.
— Deve de ter uma extraordinária força de vontade e uma constitução igualmente extraordinária.
— Sem dúvida, as tem — disse sir Joseph, e ambos continuaram passeando um pouco mais —. Já regressa à cadeira. Veja com que agilidade sobe, nota-se que as águas termais estão lhe fazendo muito bem; eu lhe as recomendei. Dentro de poucos minutos partirá para Landsdowne Crescent. Talvez poderíamos ir até lá cruzando devagar a cidade; estou muito ansioso para falar com ele.
Depois, enquanto passavam entre a multidão, continuou:
— É forte, sim, certamente que é forte. Atravessemos para o lado do sol. Que dia tão esplêndido! Este casaco quase é desnecessário. — Saudou com uma inclinação de cabeça e beijou a mão de alguém que estava do outro lado —. A seus pés, senhora. Essa é uma conhecida de lady Keith; tem muitas terras em Kent e Sussex.
— Verdade? A teria tomado por uma cozinheira.
— Contudo, tem uma considerável fortuna. Como dizia, é forte, mas também tem debilidades. Outro dia tachava de idealista a um amigo íntimo (o que vai a casar-se com a filha dessa senhora que acabamos de ver) e se não tivesse tão penalizado por seu estado, teria rido, porque precisamente ele é um quixote: apoiou a Revolução até 1793, pertenceu a Irlandeses Unidos até o levantamento, foi conselheiro de lord Edward..., por certo que eram primos...
— É um Fitzgerald?
— Da rama menos afortunada. E agora defende a causa da independência catalã. Ou talvez a defenda desde antes, ao mesmo tempo que as demais. Em qualquer caso, vive sempre entregue de corpo e alma a alguma causa da qual não pode obter nenhum benefício pessoal.
— É um idealista em todos os sentidos?
— Não, mas era tão casto que chegamos a nos sentir inquietos; sobretudo nosso amigo Subtlety estava muito preocupado. Não obstante, começou a manter uma relação amorosa e isso nos tranquilizou. Era uma jovem de muito boa família, mas a relação teve um final desgraçado, certamente.
Na rua Pulteney lhes detiveram dois grupos de amigos e logo um cavalheiro tão importante que não era possível cortar a conversação, pelo que tardaram bastante em chegar a Landsdowne Crescent, e quando preguntaram pelo doutor Maturin lhes disseram que tinha visita. Contudo, passados uns momentos, lhes convidaram a subir. Ao chegar em cima encontraram a Stephen em seu leito e uma jovem sentada junto dele. Ela se pôs de pé e fez uma reverência; era uma jovem solteira. Os dois homens apertaram os lábios e apoiaram a queixo contra o colarinho branco e engomado, pensando que uma jovem tão formosa não devia estar sozinha na habitação de um cavalheiro.
— Querida, permita-me que te apresente a sir Joseph Blaine e ao senhor Waring. A senhorita Williams — disse Stephen.
Ambos inclinaram outra vez a cabeça, sentindo pelo doutor Maturin outro tipo de respeito, pois quando a jovem se voltou para a luz viram que tinha uma beleza sem par, era realmente encantadora, doce, cândida. Sophie não voltou a sentar-se. Disse que, infelizmente, tinha de sair, pois precisava se reunir com sua mãe na sala do balneário aonde bebia suas águas e o relógio já havia dado a hora. Pediu que a desculpassem porque antes tinha que... Se pôs a mexer dentro da cesta e sacou um frasco, uma colher de prata envolta em papel de seda e uma caixa de pastilhas de cor amarelo brilhante. Então encheu a colher, a aproximou cuidadosamente da boca de Stephen e verteu nesta o líquido verdoso e pôs duas pastilhas; depois, com ar benevolente, esperou que as engolisse.
— Bom, senhor — disse sir Joseph quando a porta se fechou —, o felicito pelo médico que tem. Não me recordo de já ter visto uma jovem tão bela, e isso que em minha longa vida vi à duquesa de Hamilton e lady Coventry quando ainda eram solteiras. Aceitaria voltar a ter câimbras se alguém como ela me desse remédios, e também eu me as tomaria como se fosse um cordeiro. — Ele e o senhor Waring sorriram com afetação.
— O senhor é muito amável ao expressar seu espanto — disse Stephen secamente.
— Falo em sério, o asseguro — disse sir Joseph —, e com o máximo respeito com a senhorita. Nunca antes havia experimentado tanto prazer ao contemplar a uma jovem... Essa graça, essa louçania, essa cor...
— Ah! — exclamou Stephen —. Deveria senhor vê-la quando tem sua melhor aparência..., deveria vê-la quando Jack Aubrey está próximo.
— Ah! Então essa é a jovem em questão! Essa é a prometida do capitão! Que tonto eu fui! Devia ter-me fixado no nome. Isso explica tudo — disse e fez uma pausa —. E diga-me, querido doutor, é verdade que o senhor está bastante recuperado?
— Muito, obrigado. Ontem caminhei uma milha sem me fatigar, hoje comi com um antigo companheiro de tripulação e esta tarde penso fazer a dissecação do cadáver de um velho vagabundo junto com o doutor Trotter. Dentro de uma semana estarei de regresso na cidade.
— E crê senhor que um clima cálido o ajudaria a recuperar-se de tudo? Pode suportar muito calor?
— Sou uma salamandra.
Ambos olharam à salamandra. Seu aspecto era lamentável, seu corpo parecia deforme e muito diminuto naquela enorme cama, e dava a impressão de que estava mais apto para viajar em um carro fúnebre que em uma cabriolé ou um barco. Apesar de tudo, assentiram com a cabeça, reconhecendo sua superioridade nessa matéria, e sir Joseph disse:
— Nesse caso, não terei escrúpulos em tirar a revanche. E creio que lhe surpreenderei tanto como o senhor a mim em Londres. A bom entendedor poucas palavras basta.
À irritada mente de Stephen acudiram outros provérbios: “Palavras e plumas, o vento as leva”, “De tais casamentos, tais crostas”, “Não mencionar a corda na casa do enforcado”, “Vão-se os amores e ficam as dores”, “Dinheiro, amor e cuidado, difícil dissimulá-los”, mas apenas deu um suspiro.
— No departamento — continuou sir Joseph com sua voz monótona —, quando o chefe se aposenta, é costume lhe conceder uma série de privilégios; o mesmo que ocorre com um almirante, que ao arriar sua insígnia pode conceder promoções. Pois bem, em Plymouth estão armando uma fragata para levar o nosso enviado, o senhor Stanhope, a Kampong. O comando foi meio que prometido a três cavalheiros e já existe a habitual... Em resumo, seguramente poderei dispor dele. E me parece que se o senhor fizer essa viagem com o capitão Aubrey, ficará demostrado que tem apenas interesses científicos. Não está de acordo, Waring?
— Sim — respondeu Waring.
— Também, e peço que assim seja, a sua saúde se restabelecerá e, por outra parte, seu amigo ficará afastado dos perigos que o senhor mencionou. Apesar dos numerosos aspectos positivos, existe um grave problema. Como o senhor sabe, todas, todas as decisões de nossos colegas em outros departamentos do Almirantado ou do Ministério da Marinha são tomadas depois de intermináveis deliberações, se é que se chega a um acordo, ou excessivamente apressadamente. O senhor Stanhope subiu a bordo com sua comitiva em Deptford, faz muito tempo, e ali passou quinze dias oferecendo comidas de despedida; depois continuaram viagem até Nore, onde ofereceu outras duas. Suas Senhorias adivertiram que a Surprise tinha os fundos desgastados ou que lhe faltavam mastros ou velas e então desembarcaram o senhor Stanhope, em meio a uma tempestade, e enviaram a fragata a Plymouth para que a armassem de novo. Entretanto, ele perdeu o seu secretário oriental, seu cozinheiro e um ajudante de câmara, e o touro que ia levar de presente para o sultão de Kampong emagreceu. A fragata perdeu a maioria de seus oficiais nativos, que foram transladados, e um grande número de marinheiros, porque foram recrutados pelo almirante do porto. Mas agora tudo mudou. As provisões sobem a bordo com rapidez dia e noite. O senhor Stanhope está a ponto de chegar da Escócia em cabriolé e a fragata deve zarpar esta semana. Crê que está em condições de subir a bordo, senhor? O capitão Aubrey está em libertade?
— Estou em magníficas condições, meu amigo — contestou Stephen, com novos brios —. O capitão Aubrey saiu da prisão quando o ajudante de Fanshaw pôde o liberar, justo antes que chegasse uma avalanche de mandatos judiciais. Em seguida subiu a bordo de um barco recrutador que o levou pelo Támesis até Grapes.
— Voltemos aos detalhes.
— Bonden! — Gritou Stephen —. Pega a pluma e a tinta e escreve.
— Que escreva, senhor?
— Sim. Sente-se, ponha direito o papel e escreve: “Landsdowne Crescent...”. Barret Bonden, estás a sotavento?
— Sim, senhor, ou melhor dito, à deriva. Mas posso ler muito rápido as letras grandes de imprensa e a lista da guarda.
— Não importa. Quando estivermos navegando te ensinarei. É fácil, muitos tontos passam o dia todo escrevendo, e resulta muito útil em terra. Sabes montar a cavalo, não é verdade?
— Bom, já montei a cavalo, senhor. Montei três ou quatro vezes quando estava em terra.
— Bem. Quero que tenhas a amabilidade de ir, ou melhor ainda, dar um salto até a rua Paragon e dizer à senhorita Williams que se, ao dar o seu passeio da tarde, puder passar por Landsdowne Crescent lhe ficarei infinitamente agradecido. Depois quero que vá até o cabo Saracen, transmitas meus cumprimentos ao senhor Pullings e digas a ele que eu gostaria de vê-lo, assim que tiver um momento disponível.
— Sim, senhor, a Paragon e depois ao cabo Saracen. Devo retornar em seguida a Landsdowne Crescent.
— Vem correndo, Bonden, por favor. Não há nem um momento a perder.
A porta de entrada fechou de um golpe e se ouviram passos apressados na rua, afastando-se pela esquerda, e depois uma longa, longa pausa. Nos jardins do outro lado da rua um melro cantava débilmente, anunciando que a primavera se aproximava. A triste voz de um cortador de calos, cantando com monotonia: “Faço um bom trabalho... Faço um bom trabalho”, se aproximou e voltou a afastar-se. Stephen pensou na etiología dos calos e no conduto biliar da senhora Williams. Ouviu de novo a porta da entrada, cujo eco se propagou pela casa vazia (os Keith e todos os serventes, exceto uma velha bruxa, haviam ido), depois passos na escada e uma alegre conversação. Franziu o cenho. A porta se abriu e entraram Sophie e Cecilia, enquanto Bonden, detrás delas, dava uma piscada e fazia um gesto com o polegar.
— Deus Santo! Mas o senhor está na cama, doutor Maturin! Bom, por fim estou no dormitório de um homem... Desculpe, não era “por fim” o que queria dizer. Como está? Suponho que acaba de chegar dos banhos e está sudoroso. Como se sente? Nos encontramos com Bonden quando íamos sair, e em seguida lhe disse que tinha que perguntar como o senhor estava. Não o vemos desde terça-feira! Mamãe estava muito...
Chamaram estrondosamente à porta duas vezes. Bonden desceu com rapidez. Ouviram-se na escada vozes potentes de marinheiros e uma comparação com “uma peça com estopa acima” que apenas podia referir-se a Cecilia e seu cabelo loiro muito penteado. Então apareceu o senhor Pullings, um jovem de boa aparência, alto e ágil, seguidor do capitão Aubrey, se é que podia dizer que um capitão tão desafortunado tinha seguidores.
— Creio que as senhoritas conhecem ao senhor Pullings, da Armada real — disse Stephen.
Certamente o conheciam... Estivera duas vezes em Melbury Lodge... Cecilia havia dançado com ele...
— Que divertido foi! — exclamou Cecilia, olhando-lhe comprazida —. Os bailes me encantam!
— Sua mãe me falou que a senhorita tem grande sensibilidade para a arte — disse Stephen —. Senhor Pullings, por favor, mostre à senhorita Cecilia o novo quadro de Tiziano que lord Keith tem; está na galeria, junto com muitos outros quadros. Além disso, explique-lhe a sena da batalha do Glorioso Primeiro de Junho. Explique com todos os detalhes — repetiu enquanto se afastavam —, por favor. Sophie, querida, pega rapidamente papel e pluma e escreve:
Querido Jack:
Temos uma fragata, a Surprise, com destino às Índias Orientais. Devemos embarcar em Plymouth em seguida...
— Ha, ha, ha! Que dirá quando ler isto?
“Surprise!” foi o que disse, com tal vozeirão que as duas janelas frontais de Grapes tremeram e a senhora Broad deixou cair um copo no bar.
— O capitão há recebido uma surpresa — disse ela tranquilamente, olhando os pedaços.
— Espero que seja agradável — disse Nancy, recolhendo-os —. É um cavalheiro tão charmoso!
Pullings, muito cansado da viagem, virou-se discretamente para a janela quando Jack começou a ler a carta e deu a volta outra vez ao ouvi-lo gritar:
— Surprise! Bendito seja Deus! Sabes o que fez o doutor, Pullings? Conseguiu uma fragata, a Surprise, com destino às Índias Orientais. Temos que embarcar logo. Killick! Killick! Meu baú, minha capa, minha maleta pequena! E corre à mesa-secretária dos correios; nós iremos a Plymouth no carro do correio.
— O senhor não irá no carro do correio, senhor — disse Killick —, nem em uma cabriolé, com tantos sem-vergonhas que há ao longo da costa. Chamarei um carro fúnebre, um belo carro de quatro cavalos.
— Surprise! — Exclamou Jack outra vez —. Não tenho subido nela desde que era um cadete.
Em sua mente podia vê-la com nitidez, sob a brilhante luz de English Harbour, atracada a um cabo de distância de onde ele se encontrava. Era uma belíssima embarcação de vinte e oito canhões construida em França, de proa puntiaguda e linhas suaves, que navegava bem de bolina e podia ser muito rápida se fosse bem governada. Era estável, espaçosa, estanque... Havia navegado nela sob as ordens de um capitão muito duro e de um primeiro oficial mais duro ainda. Havia passado horas e horas de castigo no tope, onde havia lido muito e até havia gravado suas iniciais... Estariam visíveis ainda? Era velha, não cabia dúvida, e necessitava de muitos cuidados, mas valia a pena estar no comando dela... Por sua mente cruzou a infeliz ideia de que não poderia encontrar nenhum butim no oceano índico (haviam acabado já fazia tempo), mas a repeliu. Então disse:
— Navegando de bolina poderíamos ser mais rápidos que o Agamemnon com a vela maior e as joanetes... Seguramente poderei escolher a um ou dois oficiais. Virás comigo, Pullings?
— É claro, senhor — respondeu assombrado.
— A senhora Pullings não porá nenhuma objeção?
— Acredito que ela chorará, mas em seguida voltará a sorrir. E creio que ficará muito contente quando eu regressar dessa missão, talvez mais contente do que está agora. Sempre estou atrapalhando entre vassouras e panelas. A vida a bordo de um barco não é igual à de casado, senhor.
— Deveras, Pullings? — perguntou Jack, olhando-lhe com ar pensativo.
Stephen seguiu ditando:
A Surprise levará o enviado de Sua Majestade a Kampong. O senhor Taylor, do Almirantado, está ciente e já tem preparados os papéis necessários. Creio que se tomas o caminho de Bath e te desvias na bifurcação de Dayrolle pasarás pelo cruzamento de Wolmer aproximadamente às quatro da madrugada e poderás subir a bordo no domingo, o dia em que os devedores não podem ser aprisionados, segundo uma medida de graça. Esperarei no cruzamento, em uma cabriolé, e se não tenho a sorte de ver-te, seguirei a viagem com Bonden e te esperarei em Blue Posts. Parece que a fragata é pequena; lhe faltam oficiais e marinheiros e, se sir Joseph não falou hiperbolicamente, tem os fundos desgastados.
— Rápido. Apresse-se, Sophie. Nunca ganharás a vida como escrevente. Não sabes escrever “hiperbolicamente”? Em fim está terminada! Deixe-me vela.
— Jamais! — exclamou Sophie, dobrando-a.
— Parece que escreveu mais do que te ditei — disse Stephen, semicerrando os olhos —. Estás muito corada. Espero que pelo menos hajas posto exatamente tudo referente ao encontro.
— No cruzamento de Wolmer às quatro da madrugada do dia três. Estarei lá, Stephen. Sairei pela janela e saltarei o muro do jardim; poderás me pegar na esquina.
— Muito bem. Mas por que não vais a sair pela porta principal como Deus manda? E como vais regressar? Se te veem andando por Bath ao amanhecer, te encontrarás em uma situação comprometida.
— Tanto melhor — disse Sophie —. Então minha reputação será tão má que terei que me casar o quanto antes possível. Como não me havia ocorrido isto antes? Oh, Stephen, que ideias tão estupendas tens!
— Está bem. Na esquina, às três e meia. Põe-te uma capa que abrigue muito, dois pares de meias e roupa interior de lã grossa. Fará frio, e talvez tenhamos que esperar muito tempo. Além disso, é possível não o vermos, e nesse caso sentirás mais frio ainda, porque deves ter em conta que a decepção junto com a sensação de umidade... Silêncio... Dá-me a carta.
As três e meia da madrugada. Um forte vento do noroeste uivava entre as chaminés de Bath, o céu estava limpo e a lua parecia inclinar-se sobre a rua Paragon. A porta da casa número sete se abriu o suficiente para que Sophie passasse; em seguida se fechou de golpe com um horrível estrondo, chamando a atenção de um grupo de soldados bêbados que começaram a imitar os ladridos dos cães. Sophie se encaminhou com ar decidido para a esquina, mas sentindo uma grande desesperação, pois não via nem rastro do carro, apenas duas fileiras de portas estendendo-se até o infinito sob a lua, com aspecto irreal, estranho, desolado e hostil. Detrás dela uns passos aproximavam-se cada vez mais rápido. De repente, ouviu um sussurro:
— Sou eu, senhorita, Bonden.
Em seguida dobraram a esquina. Então, a uma prudencial distância da casa havia duas cabriolés, e eles subiram à primeira, que tinha um forte cheiro de couro. As jaquetas vermelhas dos cocheiros pareciam negras à luz da lua. O coração de Sophie batia tão fortemente que durante cinco minutos apenas pôde falar.
— Que estranhas são as coisas de noite! — Exclamou enquanto saiam da cidade —. Dá a impressão de que todos estão mortos. Veja o rio, está completamente preto. Nunca saí a esta hora.
— Não, querida, sem dúvida que não saiu — disse Stephen.
— Todas as noites são iguais?
— À vezes são mais suaves, pois este condenado vento é mais cálido em outras latitudes. Mas sempre durante a noite o mundo parece mudar. Escuta. Não a ouves? Deve de estar no bosque próximo da igreja.
Havia ouvido o horrível grito de uma raposa, capaz de gelar o sangue do mais valente, mas Sophie estava muito ocupada tratando de ver Stephen à fraca luz da lua e arrumando a sua roupa.
— Mas sem mais nada veio com esse horrível casaco velho e rasgado! — exclamou —. Stephen, como podes ser tão desleixado? Deixa-me que te envolva com minha capa; está forrada com pele.
Stephen resistiu a ser envolto na capa, argumentando que quando a pele conseguia certa proteção, quando a epiderme tinha uma grossura suficiente para evitar que se dissipasse o calor natural da pele, qualquer outro envoltório não apenas era supérfluo como daninho.
— A um jóquei, contudo, não lhe ocorre o mesmo — disse —. Recomendei a Tilomas Pullings que antes de sair pusesse um pedaço de seda untado com azeite entre a camisa e o colete, já que o próprio movimento do cavalo, independentemente da velocidade do vento, faz desaparecer a proteção da pele e esta perde calor. Por outro lado, em uma carruagem bem construida não há o que temer. A proteção contra o vento é fundamental; os esquimós, por exemplo, vivem felizes e despreocupados das tormentas ao amparo de sua casa de neve e passam ali confortavelmente a demorada noite invernal. Mas me referi a carros bem construidos; não te recomendaria que fosse com o peito descoberto ou apenas com uma camisa de algodão em uma típica carruagem russa através das estepes da Tartaria. Tampouco te recomendaria que o fizesse em um típico carro irlandês.
Sophie lhe prometeu que não o faria nunca. Logo ambos, envoltos na ampla capa, voltaram a calcular quanto tardaria Pullings para ir de Bath a Londres e Jack para chegar a Bath.
— Trate de não te sentir decepcionada, querida — disse Stephen —. Há muito poucas probabilidades de que ele leve em conta minha sugestão e menos ainda que compareça ao encontro. Pensa nos acidentes que poderia ter em tantas milhas de caminho (poderia cair, o cavalo poderia derrubá-lo ou quebrar uma pata) e nos perigos que o espreitarão durante a viagem, como, por exemplo, os salteadores de caminhos..., mas é melhor que me cale, não devo alarmar-te.
As cabriolés diminuiram a marcha. Stephen olhou pela janela e disse:
— Seguramente estamos próximos do cruzamento.
A partir dali o caminho subia, passando entre as árvores; parecia uma fita branca com grandes manchas escuras. O vento do noroeste assobiava. Seguiram avançando e, de repente, em uma das clareiras, apareceu um jóquei. O cocheiro freiou quando o viu e, voltando-se para a carro que ia detrás, gritou:
— É Jeffrey o Carnicero!
— Detrás de nós há outros dois malvados! São crueis assassinos! Fique quieto e espere docilmente a que se aproximem, Amos. Controle os cavalos e não oponhas resistência.
Ouviu-se um forte ruído de cascos e Sophie sussurrou:
— Não dispares, Stephen.
Stephen, olhando pela janela aberta, disse:
— Não tenho intenção de disparar, carinho...
Nesse momento, um cavalo chegou tão perto da janela que seu cálido sopro penetrou no carro, e uma obscura e corpulenta figura se inclinou sobre seu lombo, impedindo a passagem da luz da lua pela janela e susurrando em tom cortês:
— Senhora, peço desculpas pelo incômodo.
— Tenha piedade de mim! — Exclamou Stephen —. Leve tudo o que tenho..., leve esta senhorita..., mas tenha piedade de mim, tenha piedade de mim!
— Sabia que eras tu, Jack — disse Sophie, dando uma palmada —. O soube imediatamente. Oh, estou tão contente de ver-te, carinho!
— Concedo-lhe meia hora — disse Stephen —, nem um minuto mais; esta jovem deverá estar de novo quentinha em sua cama antes do amanhecer.
Foi para a outra cabriolé, onde Killick, com infinita satisfação, contava a Bonden como haviam saido de Londres. Haviam ido até Putney em um carro fúnebre, seguidos pelo senhor Pullings na carruagem onde deviam ir os familiares de luto. A ambos lados do caminho haviam visto a montes de aguazis, e todos tiravam o chapéu e saudavam respeitosamente com a cabeça.
— Não o haveria perdido por nada do mundo!
Stephen andou de um lado a outro e depois se sentou na cabriolé. Voltou a passear, falando com Pullings das viagens do jovem em um barco que fazia o comércio com as Índias, o calor esmagador nos portos do rio Hugli, a sufocante temperatura em terra, o impiedoso sol e o calor que até mesmo a lua desprendia de noite.
— Se não chego logo a um lugar onde o clima seja quente — disse —, me enterrarei e direi: “Aqui está quem morreu por uma desgraça.”
Apertou o botão de seu relógio de repetição e quando o vento se acalmou se ouviu soar a pequena campainha de prata marcando as quatro e logo os três quartos. Não chegava nenhum ruído do carro da frente. Deteve-se, indeciso, e nesse momento a porta se abriu e Jack ajudou Sophie a descer.
— Bonden! — gritou —. Regressa em seguida com a senhorita Williams a Paragon e vem depois no carro do correio. Sophie, carinho, sobe. Deus te bendiga.
— Deus te bendiga e te proteja, Jack. Cuida para que Stephen se envolva na capa. E lembre que é para sempre, digam o que digam, para sempre, para sempre.
CAPÍTULO 5
O sol achatava Bombaim ao meio-dia, impondo Silêncio na cidade apesar dela estar formigando de pessoas, e até nos mais ocultos bazares era possível ouvir o barulho das ondas do oceano índico, com um ruído cadenciado, quase um ofego, em cujas águas, de uma apagada coloração ocre, refletia-se um céu excessivamente ardente para ser azul, um céu que esperava a chegada da monção do sudoeste. E nesse mesmo momento, muito mais ao oeste, mais lá da África, o mesmo sol aparecia no horizonte, lançando seus raios abrasadores sobre os flácidos joanetes e sobrejoanetes da Surprise, que estava ao pairo em uma zona de tranquilas águas alguns graus ao norte do Equador e uns trinta graus ao oeste do meridiano de Greenwill.
A brilhante luz desceu até as gávias, depois até as maiores, e finalmente iluminou a coberta; então se fez dia. De repente amanheceu em todo o leste, e quando a luz do sol chegava ao mais alto do céu, pela amura de estibordo a noite podia ser vista afastando-se velozmente para América. Marte, que estava a um quarto do horizonte, pelo oeste, desapareceu de imediato; a abóbada celeste ficou mais brilhante e as escuras águas do mar recobraram sua cor azul habitual, um azul intenso.
— Por favor, senhor — suplicou o chefe da guarda de popa, inclinado para o doutor Maturin, que tinha a cabeça coberta com o saco de dormir —. Por favor, eu o peço..
— Que foi? — perguntou Stephen por fim, em um horrível tom rabugento.
— Já vai dar quatro horas, senhor.
— Bom, e daí? Já sei; esta é uma manhã de domingo e tens que limpar com pedra de arenito.
O saco, que usava para se proteger dos raios da lua, amorteceu o som de suas palavras mas não alterou seu tom mal-humorado, o mesmo que haveria empregado qualquer outro homen ao ser tirado bruscamente do total relaxamento e de um sonho erótico. Na fragata, devido à presença do senhor Stanhope e seu séquito, havia muito mais pessoas do que o habitual, e sob a coberta fazia um calor sufocante, assim Stephen havia dormido sobre esta, pisoteado pelos marinheiros ao trocar de guarda.
— Há manchas de breu — disse o chefe da guarda de popa em tom doce, tratando de ser convincente —. Que aspecto terá o castelo de popa com estas manchas durante o serviço religioso?
Mas então notou que o doutor Maturin tinha a intenção de seguir dormindo e voltou a suplicar-lhe:
— Por favor, senhor. Por favor, eu o peço.
Com o calor, o alcatrão da exárcia derretia e caia sobre a coberta, e o breu com que as juntas estavam calafatadas derretia também. Stephen assomou a cabeça pela abertura do saco e viu que a seu ao redor toda a coberta já estava limpa e polida com areia e pedra de arenito. Encontrava-se em uma espécie de ilha salpicada de manchas, rodeado de marinheiros impacientes por terminar seu trabalho para ir a barbear-se e pôr sua roupa de domingo. Perdera o sono irremediavelmente, assim que sacou a cabeça do saco e se pôs de pé, murmurando:
— Não há paz nesta condenada carraca... Que perseguição!... Loucos supersticiosos!... Sempre cumprindo com rituais de limpeza judaicos e primitivos!
Então se aproximou a um dos costados, caminhando com dificuldade. Permaneceu ali enquanto o calor do sol penetrava até seus ossos, produzindo-lhe uma agradável sensação e reanimando-lhe. Um galo, empinando-se sobre as patas, cantou próximo ao galinheiro; e uma galinha cacarejou para anunciar que havia posto um ovo... um ovo! Estirou seus membros, olhou ao seu redor e percebeu que os homens da guarda de popa tinham uma expressão austera e lhe olhavam com censura. Também notou que tinha as solas dos sapatos pegajosas de alcatrão, breu e resina, e que havia sujado a coberta, deixando um rastro de pisadas de onde dormira até o corrimão junto ao qual se encontrava agora.
— Oh, peço que me desculpe, Franklin! — exclamou —. Sujei o chão. Dê-me uma escova..., areia..., uma vassoura.
— Não, não! — exclamaram.
A expressão austera havia desaparecido de seus rostos. Disseram que não era sujeira e sim um pouco de breu e que limpariam em um momento. Mas Stephen pegara uma pequena pedra de arenito e começara a esfregar uma mancha com muito afã. Os marinheiros que o rodeavam, muito nervosos e angustiados porque já haviam soado as quatro badaladas, sentiram ainda mais angústia ao ver projectar-se uma enorme sombra sobre a coberta: era o capitão, completamente nu e com toalha na mão.
— Bons dias, doutor — disse —. Que estás fazendo?
— Bons dias, meu amigo. Estou tratando de tirar esta condenada mancha — respondeu Stephen —. Tenho que eliminá-la.
— Vens nadar comigo?
— Quero muito. Dentro de um momento. Tenho uma teoria... Um pouco mais de areia aí, por favor... Uma faca pequena... Não, minha hipótese não era válida. Talvez com água regia ou espírito de sal...
— Franklin, ensine ao doutor como eliminamos as manchas na Armada. Meu amigo, seria melhor que tirasses os sapatos, pois assim não haveria que esfregar a coberta até o ponto de deixar a Sua Excelência sem teto.
— É uma excelente sugestão — disse Stephen e, uma vez descalço, se aproximou nas pontas dos pés a um pequeno canhão, se sentou nele e se pôs a observar as solas de seus sapatos —. Marcial conta que, em seus tempos, as mulheres de Roma levavam gravada na sola a frase sequi me, do qual se deduz que na cidade havia muito barro, pois a frase não ficaria impressa na areia. Hoje nadarei de uma ponta do barco à outra.
Jack subiu no corrimão de bombordo e olhou para baixo. A água era tão transparente que podia ver a luz passar sob a quilha da fragata. Também podia ver a sombra púrpura que o casco projetava para o oeste, bem definida na parte da proa e a popa e difuminada na parte de baixo, devido à grande acumulação de algas no fundo, pois embora a fragata tivesse o revestimento de cobre novo, havia navegado muito tempo ao sul do trópico. Contudo, não se via nenhum animal perigoso, apenas um cardume de peixes brilhantes e alguns carangueijos.
— Vamos! — exclamou, lançando-se de cabeça à água.
Embora o mar estivesse mais quente que o vento, uma refrescante sensação percorreu o corpo de Jack quando as bolhas roçaram sua pele, a água separou seus cabelos e o sal impregnou seus lábios. Olhou para a superfície, prateada e brilhante como um espelho; por baixo dela viu o casco da Surprise e por cima as placas de cobre próximas à linha de flutuação, cujo reflexo dava ao mar uma tonalidade violeta. O espelho se fez em pedaços quando Stephen se jogou de pé do portaló, a uns vinte pés de altura, com um forte impacto que lançou ao ar a branca espuma. Afundou muito, devido à força da queda, e enquanto descia mantinha o nariz apertado com os dedos; depois, ainda com o nariz apertado, subiu à superfície, e ao chegar ali o soltou e sacou a cabeça da água de uma forma característica, com movimentos convulsivos, os olhos cerrados fortemente e a boca contraida. Alguma particularidade da estrutura de seu corpo o fazia afundar bastante na água, de maneira que o seu nariz ficava próximo da superfície, mas havia progredido muito desde o dia em que Jack o baixara pelo costado em um nó corrediço, em um lugar a três dias de distância de Madeira, a duas mil milhas ao norte e muitas semanas de viagem; ou talvez mais que semanas de viagem, haviam sido de larga espera, orientando as velas até que pudessem tomar o vento nas sobrejoanetes. Desde aquele lugar, com a ajuda dos ventos alísios do noroeste que haviam encontrado à altura das Canárias, haviam descido vinte e cinco graus de latitude, navegando dia após dia tão aprazivelmente que quase não tinham que tocar as escotas nem os braços e avançando duzentas milhas de um meio-dia a outro; e à medida que iam mudando de latitude o sol era mais brilhante. Agora estavam em uma zona de ventos variáveis, ao norte da linha do Equador, mas ainda não haviam encontrado os ventos alísios do sudeste, apesar de que nessa época do ano sopravam muito nessa região. Nas últimas trezentas milhas às vezes o vento havia serenado e outras havia soprado de forma caprichosa, imprevisível. Durante muitas semanas haviam tratado de tomá-lo virando a proa a reboque, trocando a orientação das vergas e lançando jorros d’água dos cestos das gáveas, para cima e para baixo, com o fim de molhar todas as velas, inclusive as sobrejoanetes, e conseguir que se enchessem com facilidade; mas apesar de tudo o vento voltava a encalmar-se ou se afastava e ondeava o mar apenas a dez milhas de distância. Não obstante, a maioria dos dias havia calmaria e a Surprise se desviava imperceptivelmente para o oeste com a corrente equatorial, girando devagar sobre si mesma. O mar parecia imóvel, mas da fragata era possível notar o seu ligeiro movimento, pois ela se deslocava sem nenhuma vela que lhe desse estabilidade, via-se subir e descer constantemente a linha do horizonte. Ali quase não havia pássaros nem peixes (o alcatraz que haviam visto no dia anterior e a tartaruga que haviam encontrado eram casos raros) e nunca se avistava nenhum barco; o céu sempre estava limpo e o sol caia totalmente às doze horas. Estavam ficando sem água... Jack se perguntava quanto tempo duraria o racionamento, mas não quiz fazer cálculos nesse momento. Aproximou-se nadando até o bote que estava a reboque na popa, e Stephen, agarrado à borda deste, gritou algo sobre o Helesponto que, a causa de seu ofegar, e Jack não entendeu nada.
— Viu-me? — Perguntou quando Jack esteva mais próximo —. Nadei de uma ponta do barco à outra. Quatrocentas e vinte braçadas sem parar!
— Muito bem, muito bem — disse Jack, subindo ao bote de um salto e pensando que em cada braçada Stephen devia de ter deslocado menos de três polegadas, já que a Surprise era simplesmente uma fragata de sexta categoria, de 579 toneladas e vinte e oito canhões, a classe de fragata que chamavam “carraca” os que não pertenciam a ela —. Queres subir a bordo? Eu ajudo.
— Não, não — respondeu Stephen, afastando-se —. Poderei arranjar-me sozinho. Agora estou descansando. De todo modo, obrigado.
Detestava que o ajudassem. Incomodara-se com o que lhe fizeram desde o início da viagem, quando seus membros feridos podiam apenas sustentá-lo. Por isso todos os dias havia caminhado da popa até a proa repetidas vezes, todos os dias, desde que haviam chegado à altura de Lisboa, subira até o cesto da gávea do mastro da mesana, permitindo apenas que Bonden o ajudasse, enquanto Jack lhe olhava angustiado de baixo e dois marinheiros se moviam ao redor do mastro com uma rede espessa para interceptar a sua queda. E a cada tarde, com grande esforço, passava a mão cheia de feridas pelas mudas cordas do violoncelo, enquanto sua cara se ficava ainda mais pálida. Verdadeiramente havia feito progressos. Não lhe teria sido possível nadar tanto um mês antes, e muito menos quando estava em Portsmouth.
— Que dizias do Helesponto? — perguntou Jack.
— Que largura tem?
— Bem, uma milha mais ou menos. Desde um lado se alcança o outro com um disparo.
— Da próxima vez que naveguemos pelo Mediterrâneo — disse Stephen —, nadarei em suas águas.
— Claro que sim. Se outros puderam fazê-lo, certamente que tu também pode.
— Olhe, olhe! Uma andorinha de mar justo sobre o horizonte!
— Onde?
— Ali, ali! — exclamou Stephen, soltando-se para apontá-la.
Afundou imediatamente, entre bolhas, mas a mão com que assinalava ficou sobressaindo da superfície. Jack o agarrou pela mão, puxou-o para o bote, e disse:
— Vamos. Subamos depressa pela escada de popa. O nosso café Já cheira e temos muitas coisas que fazer esta manhã.
Desatou a boça e foi remando até a popa da fragata. Então aproximou a escada de Stephen.
O sino soou. O contramestre começou a tocar o apito, e ao ouvir sua chamada os marinheiros subiram apressadamente as macas, cerca de duzentas, para guardá-las com a rapidez do relâmpago na barreira, com os números para o mesmo lado. E de pé, em meio daquela corrente de marinheiros, estava Jack envolto em uma magnífica bata de seda floreada, olhando ao seu redor. O cheiro do café e do baicon eram quase irresistíveis, mas ele queria presenciar toda a operação. Observou que não era tão rápida como desejava e que algumas macas não estavam bem tensas, e pensou que Hervey teria que começar a usar o chicote de novo. Na proa viu Pullings, que tinha a seu cargo a guarda da manhã, mandando atar outra vez uma maca em tom áspero; seguramente tinha a mesma opinião. Jack costumava convidar para o desjejum o oficial de guarda e um cadete, mas pensou em todas as atividades sociais em que participaria nesse dia e em Carrow, o cadete que seria convidado, havia aparecido com força um acne juvenil, o qual era suficiente para que um homem perdesse o apetite. Seguramente o bom Pullings ia desculpá-lo por não fazer o convite.
Um civil se aproximou do castelo de popa cambaleando, devido a uma mudança brusca da maré. Era o senhor Atkins, o secretário do enviado do Rei, um homenzinho raro que já lhes havia causado muitos problemas, pois tinha uma estranha ideia de sua própria importância, das possibilidades de alojamento em uma pequena fragata, e dos costumes marítimos. Além disso, algumas vezes se mostrava distante ou ofendido e em outras se comportava com excessiva familiaridade.
— Bons dias, senhor — disse Jack.
— Bons dias, capitão — disse Atkins.
Jack iniciou seu passeio habitual e Atkins o seguiu, ignorando que um capitão devia ser tratado como um ser sagrado. Mas Jack não podia dizê-lo, apesar de ter suficiente mal-humor para isso, como sempre antes de o desjejum.
— Tenho boas notícias para o senhor — continuou Atkins —. Hoje Sua Excelência se sente muito melhor, melhor que nenhum outro dia desde o começo da viagem; seguramente virá tomar ar dentro de pouco. E me permito sugerir que — segurou Jack pelo braço apesar de sua resistência e falou jogando-lhe o bafo à cara — um convite para comer seria bem acolhido.
— Estou encantado em saber que está melhor — disse Jack, soltando-se —. E confio que logo poderemos desfrutar de sua companhia.
— Oh! Não deve preocupar-se. Não é necessário que faça muitos preparativos, pois Sua Excelência não é um homem orgulhoso senão muito simples. Qualquer comida simples será apropiada. Que tal se o convida hoje mesmo?
— Não é possível — respondeu Jack, olhando com curiosidade ao homenzinho —. Aos domingos como com os oficiais; esse é o costume.
— Contudo, capitão, não creio que um compromiso prévio seja um obstáculo. Ele representa a Sua Majestade!
— No mar os costumes da Armada são sagrados, senhor Atkins — disse Jack, e voltou a cabeça para outro lado —. Ei, do cesto da gávea do traquete, cuidado com essa telera! Senhor Callow, por favor, quando o senhor Pullings vier à popa transmita-lhe meus cumprimentos e diga-lhe que eu gostaria que dejejuasse comigo. E queria que o senhor viesse também, senhor Callow.
Por fim chegou o café da manhã e Jack recuperou seu natural bom humor. Haviam-se reunido os quatro na cabine minúscula (o senhor Stanhope ocupava a grande) e estavam apertados, mas o confinamento fazia parte da vida marinheira. Jack se recostou na cadeira, estirou as pernas e acendeu um charuto:
— Siga comendo, jovenzinho. Não tenha vergonha de mim. Debaixo dessa tampa há ainda um montão de fatias de baicon e seria uma pena desperdiçá-las.
Durante a pausa que seguiu, apenas interrompida pelo ruído que fazia o cadete ao mastigar uma após outra as vinte e sete fatias, ouviram repetir-se por todo o barco os gritos: “ Ouçam todos, de proa a popa! Preparem-se para passar revista quando soarem as cinco badaladas! Todos com suéter marinheiro e calças brancas! Estão ouvindo? Todos com roupa limpa e barbeados quando soarem as cinco badaladas!” Também ouviram claramente, através da delgada antepara, a voz metálica do senhor Atkins tratando de animar ao senhor Stanhope e a voz deste quando lhe respondia em tom repousado. O enviado do Rei era um homem grisalho, de cara abatida, amável e muito bem educado, e era assombroso que tivesse tomado a seu serviço um tipo tão barulhento como Atkins. Desde o momento em que subira a bordo havia se sentido mal e havia ido enjoado até Gibraltar. Havia voltado a enjoar-se quando se dirigiam às Canárias e de novo na zona das calmas do Equador, onde uma forte marejada havia arrastado a Surprise como um tronco e repetidamente parecia que todos os seus mastros iriam cair. Isto último havia coincidido com um ataque de gota, acompanhado de problemas estomacais, que o obrigara a ficar na cabine. Verdadeiramente, todos viram muito pouco o pobre cavalheiro.
— Diga-me, senhor Callow — disse Jack, em parte para evitar ouvir e em parte para ser amável com seu convidado —, como vão de provisões os cadetes? Faz mais de uma semana que não vejo o carneiro que tinham. (O velho animal, que um esperto provedor havia feito passar por um cordeiro, costumava ir coxeando pela coberta.)
— Muito mal, senhor — respondeu Callow, afastando a mão da cesta do pão —. Nós o comemos quando estávamos aos setenta graus de latitude norte. Agora nos resta a galinha. Damos a ela o que podemos, senhor, e é possível que ponha um ovo.
— Ainda não comeram molineras? — perguntou Pullings.
— Oh, se as comemos! — Exclamou o cadete —. Já hão subido a três peniques, o que é uma maldita..., uma verdadeira vergonha.
— Que são as molineras?
— Ratas — respondeu Jack —. As chamamos molineras porque assim fica mais fácil comê-las e talvez também porque adquieren um aspecto polvoriento ao se meterem dentro da farinha e das ervilhas secas.
— Minhas ratas apenas comem as melhores bolachas, untadas ligeiramente com manteiga derretida, e estão tão gordas que arrastam a barriga pelo chão.
— Ratas, doutor? — Perguntou Pullings —. Por que o senhor cria ratas?
— Porque quero ver como caminham, que movimentos fazem... — respondeu Stephen.
De fato, levava a cabo um experimento que consistia em alimentá-las com louro para comprovar quanto tardavam os componentes da planta em lhes penetrar nos ossos, mas não disse nada ao respeito. Era muito reservado e cada vez mantinha mais assuntos em segredo, incluindo tudo referente àqueles animais gorduchos, quase do tamanho de gatos, que dormitavam em sua cabine durante as quentes noites e os ardorosos dias.
— Molineras — disse Jack, recordando sua faminta juventude —. Em um extremo da camareta de bombordo havia um buraco onde costumávamos pôr um pedaço de queijo para caçá-las. Mostravam a cabeça por ali quando iam a caminho de onde se guardava o pão, e então as pegávamos com um laço. Caçávamos três ou quatro cada noite durante a guarda de meia, no posto das ilhas de Sotavento. Heneage Dundas — se dirigia a Stephen — se comia o queijo depois.
— O senhor servia como cadete na Surprise, senhor? — perguntou o senhor Callow atônito, atônito, como se acreditasse que os capitães de navio vinham diretamente do Almirantado.
— Sim, sim — respondeu Jack.
— Santo Deus! Então a fragata deve de ter muitos anos, senhor. Talvez seja a mais velha de toda a frota.
— Efetivamente — respondeu Jack —, é muito velha. A capturamos ao princípio da guerra passada (era francesa e seu nome era Unité), e já então tinha alguns anos. Gostaria de outro ovo?
Callow deu um salto no assento e esteve a ponto de cair porque Pullings lhe deu um chute por debaixo da mesa. Trocou a resposta: “Sim, senhor, com sua permissão”, que tinha pensado, por: “Não, senhor, muitas obrigado” e se pôs de pé.
— Nesse caso, tenha a amabilidade de dizer a seus companheiros que vengam à cabine com suas anotações.
Durante o resto da manhã, até que deram as cinco badaladas na guarda da manhã, esteve ocupado, primeiro com os cadetes e depois escutando os informes do contramestre, do condestável, do carpinteiro e, por último, do contador. Segundo este, o senhor Bowes, ainda havia provisões suficientes, muita carne de vaca e de porco e ervilhas e bolachas para seis meses, mas os queijos e a manteiga não deviam ser comidos (apesar de estar habituado a tudo, Jack recuou ao cheirar as amostras que lhe havia levado) e, o que era ainda pior, a água era muito escassa. Por uma operação fraudulenta haviam introduzido na Surprise uma série de tonéis de cobre que perdiam tanta água quanto toda a tripulação consumia, e o novo tonel de ferro se lhe havia saido toda a água. Jack ainda estava revisando os papéis quando Killick entrou com a jaqueta de seu melhor uniforme na mão e lhe fez um sinal com o queixo.
— Senhor Bowes, terminaremos isto mais tarde — disse Jack.
Enquanto se vestia (com aquele calor esmagador parecia que a tela da jaqueta tinha três polegadas de grossura) pensou na escassez da água e na posição em que estavam. Haviam se afastado tanto para o oeste durante as semanas em que navegavam sem rumo fixo que quando encontrassem os ventos alísios do sudeste seguramente lhes seria difícil dobrar o cabo de São Roque, no Brasil. Na carta marinha observou a posição exata da Surprise e a costa brasileira, a umas quinhentas milhas desta. Seus repetidos cálculos segundo a observação da lua eram muito similares aos feitos com o cronômetro, os do segundo oficial e os do senhor Hervey. Além disso, perto do Equador os ventos alísios costumavam soprar do sul. Enquanto se ocupava destes problemas e de abotoar os botões e o talabarte e amarrar a gravata, notou que a fragata se inclinou na direção do vento e depois, inclinando um pouco mais, começou a se mover devagar. A tempo que não se ouvia a água deslizando por seus costados. Levantou a vista para o compasso delator: OSO 1/2 O. Talvez o vento deixasse de soprar logo.
Quando subiu à abarrotada coberta, onde o calor era até mais sufocante, o vento ainda soprava. A fragata havia alcançado velocidade suficiente para que pudessem fazer manobras e navegava de bolina, com todas as vergas estremecendo e as velas como tábuas. O senhor Hervey, o pesado e míope primeiro oficial, que estava muito nervoso e suava dentro de seu uniforme, olhou Jack com mais segurança que o habitual e sorriu. Seguramente tudo ia bem.
— Muito bem, senhor Hervey — disse —. Isto é o que esperávamos, verdade? Oxalá que dure muito. Talvez deveríamos mantê-la um pouco orientada para o alto mar, ajustando as escotas da traquete e a maior, para fazê-la ganhar uma braça.
Afortunadamente, Hervey não era um desses oficiais suscetíveis que queriam mandar sempre. Não tinha uma grande opinião de si mesmo como marinheiro (nem tampouco os demais) nem se ofendia por nada, enquanto o tratassem com amabilidade. Hervey passou as ordens e a Surprise começou a avançar como se tivesse a intenção de cruzar o Equador obliquamente antes de cair a noite. Então Jack disse:
— Creio que devemos chamar todos a formar.
O primeiro oficial voltou-se para Nicolls, o oficial de guarda, e disse:
— Chamar todos a formar!
Nicolls disse a seu ajudante:
— Senhor Babbington, chame todos a formar.
Babbington abriu a boca para dirigir-se ao infante de marinha que tocava o tambor, mas antes que dissesse algo o tambor trovejou o ar com seu tão-tararan-tão e todos os oficiais correram a seus postos.
O toque do tambor era inútil como aviso, pois realmente não anunciava nada novo nem inesperado. Os tripulantes já levavam algum tempo alinhados junto ao corrimão do castelo de popa, colocados nas usuais marcas da coberta, enquanto os cadetes intentavam que se mantivessem retos e com a ponta dos pés junto à listra e lhes arrumavam os lenços e as fitas do chapéu. Para eles, passar em revista era uma cerimônia formal, tão formal como um baile, um baile que o capitão abria com toda solenidade.
E assim fez o capitão quando os oficiais informaram a Hervey que tudo estava pronto e Hervey lhe comunicou. Voltou-se primeiro para os infantes da marinha. Embora estes, por estarem situados ao final do castelo de popa, não ficarem protegidos pelo toldo, mantinham-se erguidos formando um perfeito conjunto branco e vermelho, com seus rostos e seus mosquetes brilhando ao sol. Jack devolveu o cumprimento ao oficial que estava ao comando e começou a caminhar lentamente entre as filas. Não cria que importasse sua opinião sobre como haviam colocado o peitilho de couro, que quantidade de pó-de-arroz tinham no cabelo e o número e o brilho de seus botões; em qualquer caso, Etherege, o tenente, era um oficial muito competente e seguro que não encontraria motivo para criticá-lo. Não obstante, a obrigação de Jack era ver tudo, como Deus, e realizou sua inspeção objetivamente e com seriedade. Como homem, sentia pena ao ver que os infantes da marinha estavam cozinhando, como capitão devia permitir que siguissem ali sofrendo (o sol era cada vez mais forte e o alcatrão já estava derretendo e caia sobre os toldos).
— Muito bem, senhor Etherege — disse.
Virou-se para o primeiro grupo de marinheiros, os do castelo, na frente dos quais estava o senhor Nicolls, ajudante do primeiro oficial. Eram os melhores marinheiros da fragata, todos de primeira, a maioria de meia idade, embora houvese alguns bem mais velhos. Contudo, em todos os anos que haviam passado na mar, nenhum havia aprendido a manter-se em posição de atenção. Tiraram seus chapéus quando o viram aproximar-se e mantiveram os pés o mais próximo possível da listra, mas nisso consistiu toda sua formalidade, pois alisaram o cabelo com a mão, subiram as amplas calças brancas feitas em casa, olharam a todas as partes, sorriram, tossiram e prestaram atenção a outras coisas; se comportaram de forma muito diferente dos soldados. Jack, enquanto(quando;durante) avançava lentamente com o senhor Hervey em meio ao silêncio, pensava que era um grupo bastante bom, eram marinheiros com o sal impregnado nos ossos, e à luz atenuada pelo toldo viu que alguns estavam quase calvos (suas cabeças pareciam muito brancas em contraste com seus rostos bronzeados) mas arrumavam o escasso cabelo que lhes restava em uma trança na nuca, às vezes aumentada com estopa. Formavam um grupo com um vastíssimo conhecimento da vida marinha; contudo, quando Jack devolveu o cumprimento de despedida ao senhor Nicolls, notou com assombro que estava mal barbeado e sujo, e que tinha também sujos o uniforme e a camisa. Quase nunca havia visto a um oficial nessas condições nem com uma expressão como aquela, mescla de indiferença e cansaço.
Aproximou-se do grupo de gavieiros encabeçado por Pullings, que o saudou como se nunca se houvessem visto, com a frase: “Presentes, limpos e corretamente vestidos, senhor” e depois se colocou detrás dele e do primeiro oficial. Tinham elegância e um censurável ar vaidoso. Todos vestiam suas melhores roupas: calças brancas como a neve e suéteres marinheiros com colarinho azul. Os mais jovens levavam fitas cosidas aos suéteres, belos lenços ao redor do pescoço, como se fossem xales, longos cachos que lhes caiam pelos ombros e brincos dourados.
— O que há com o Kelynall, senhor Pullings? — perguntou Jack, detendo-se.
— Caiu da ponta extrema da joanete na sexta-feira, senhor.
Sim, Jack recordava da queda. Havia sido espectacular, mas afortunadamente sem más consequências, pois devido ao balanço o marinheiro não havia se chocado com os paus nem com os cabos ao cair, pois caiu diretamente no mar, de onde o resgataram sem nenhuma dificuldade. Contudo, isso não era motivo suficiente para que tivesse aquele ar taciturno e o olhar inexpressivo. Com suas preguntas não averiguou nada, apenas obteve a resposta: “Estou muito bem, senhor, estupendamente.” Mas já havia visto antes rostos como aquele, inchados e com os olhos fundos, os havia visto com demasiada frequência. Ao chegar junto ao grupo de marinheiros do convés, com Babbington à frente, observou os mesmos sinais na cara de Garland, um pobre homem que em todos os anos que levava navegando não havia aprendido mais do que manejar o lampazo, e nem sequer bem, um tipo robusto e simplório que sempre sorria tontamente ou ria quando chamavam todos a seus postos.
— Que pensa desse homem? — perguntou a Hervey.
O primeiro oficial inclinou a cabeça para a frente para olhar Garland e depois respondeu:
— Esse é Garland, senhor. É um bom homem, e embora não seja muito brilhante cumpre com seu dever.
Ao ouvir este comentário, o marinheiro não se ruborizou nem mostrou satisfação mas sim ficou muito quieto, manso como um boi.
Jack aproximou-se então do grupo dos artilheiros, em sua maioria homens rigorosos mas lentos. Havia observado neles a habitual falta de treinamento, mas não lhes deixaria em paz até que aprendessem a manejar as peças de artilharia tão bem como serviam a seu próprio Deus. O último do grupo era Conroy, um jovem de olhos azuis e da mesma altura de Jack, mas muito mais magro, de belas feições, quase femininas, e pele lisa e suave. Sua formosura não chamou a atenção de Jack (não podia dizer-se o mesmo do resto de seus companheiros de tripulação), mas a aliança de osso com que que segurava seu lenço sim. Era uma vértebra de tubarão, e nela Conroy havia gravado uma imagem tão exata da Sophie, a primeira embarcação comandada por Jack, que este a reconheceu em seguida. Provavelmente Conroy tinha parentesco com alguém que havia pertencido a sua tripulação. Sim, um de seus oficiais de rota tinha o mesmo apelido, um homem casado que sempre mandava à sua casa a paga e o dinheiro dos butins. Estaria navegando com o filho de um antigo companheiro de tripulação? Como passavam os anos! Aquele não era um momento apropiado para falar, e se fosse, Conroy estava tão nervoso que seguramente começaria a gaguejar ou ficaria mudo. Quando tivesse um pouco de tempo, daria um olhada no rol.
Em continuação passou pelo castelo, onde foi recebido pelo contramestre, o carpinteiro e o condestável, os oficiais permanentes da fragata, que permaneciam imóveis e se sentiam incomodados dentro daqueles uniformes que raras vezes usavam. E de repente desapareceu a sensação de que tinham muitos anos, pois viu entre eles a Rattray, um dos primeiros oficiais que havia chegado à fragata. Jack era ajudante do segundo oficial na Surprise quando Rattray era o contramestre, e agora, sob seu olhar triste, afetuoso e cheio de respeito, mas também penetrante, sentia-se muitíssimo mais jovem. Teve a impressão de que Rattray trespassava com o olhar a sua dragona de capitão de navio e que o que via atrás dela não lhe parecia grande coisa, que não se deixava enganar pela pompa. Interiormente, Jack estava de acordo com ele mas, assumindo o seu papel, adotou um ar cerimonioso quando trocaram os cumprimentos formais. Em seguida, com alívio, dirigiu-se aonde estavam o mestre de armas e o grupo dos marinheiros, tomandose uma mesquinha revanche ao pensar que Rattray não havia sido um bom contramestre, no que se referia à manutenção da disciplina, nem conhecia tão bem como antes os aparelhos. Os marinheiros pareciam bastante inteligentes, mas tinham mais manchas do que o habitual e do tolerável. Um deles tinha uma enorme mancha escura no ombro: alcatrão.
— Mestre de armas, que significa isto? — perguntou Jack.
— Caiu-lhe da exárcia faz um momento, senhor. Eu vi quando caiu.
O marinheiro, um garoto franzino e com adenoides que sempre ficava com a boca aberta, olhava aterrorizado.
— Bom, creio que podemos considerar isto um caso de força maior. Que não se repita outra vez, Peters — disse Jack, com um olhar grave, enquanto pelo canto do olho via como três marinheiros da última fila faziam enormes e desesperados esforços para conter a risada, retorcendo a boca.
Passou rapidamente aonde estavam os marinheiros do convés de bombordo e a guarda de popa. Eram marinheiros de categoria muito inferior, em sua maioria ignorantes, estúpidos e torpes, embora talvez os camponeses chegados recentemente pudessem melhorar. Em geral, pareciam alegres e de bom caráter, exceto três ou quatro tipos mal encarados que procediam da prisão. E entre eles Jack voltou a ver caras abatidas e de coloração mortiça.
Já havia terminado de passar revista na tripulação. Julgava que não estava nada mal, e, por outro lado, era a primeira vez que não faltavam marinheiros. Mas a disciplina havia se relaxado durante os últimos dias de vida de seu predecessor, o pobre Simmons, e havia piorado durante os meses que a fragata havia passado em Portsmouth. Afinal, Hervey não era capaz de conseguir que a tripulação fosse eficiente. Era amável, consciencioso, uma agradável companhia quando podia vencer a sua timidez e um perito matemático, contudo, não via a fragata de uma ponta a outra, e memo que houvesse tido olhos de lince, não era um autêntico marinheiro. Pior ainda, carecia de autoridade, e sua benevolência e sua ignorância haviam perjudicado à Surprise. De todas formas, haveria feito falta um oficial excepcional para resolver a situação em que se encontrava a fragata. A Surprise havia perdido a metade de seus homens porque foram recrutados pelo almirante do porto, e estes haviam sido substituidos por tripulantes da Racoon, que foram levados em massa à fragata quando voltavam de uma missão de quatro anos no posto da américa do Norte, sem que antes lhes fosse permitido descer a terra. Os tripulantes da Racoon, os da Surprise e o pequeno grupo de camponeses recrutados a força não se haviam mesclado; havia rivalidade entre eles e muitas classificações eram errôneas. Por exemplo, o capitão do cesto da gávea do traquete não conhecia seu trabalho, e quando aos artilheiros... Mas não era isso que o preocupava quando se dirigia à cozinha. Tinha uma fragata encantadora e bem equipada, apesar de ser frágil e antiga, e também alguns oficiais competentes. De fato, o que lhe atormentava era a ideia de que o escorbuto havia aparecido. Era possível que estivesse equivocado, talvez a languidez daqueles rostos tivesse outras causas. Além disso, era estranho que o escorbuto aparecesse agora, pois tinham muito pouco tempo de viagem.
O calor da cozinha o fez parar de repente. Embora na coberta o calor fosse sufocante, até mesmo com a oportuna brisa, ao chegar ali lhe pareceu que entrava diretamente no forno de um padeiro. O cozinheiro tinha três pernas; um canhonaço havia arrancado as suas no Glorioso Primeiro de Junho, e, além das duas que lhe haviam posto no hospital, levava outra, presa engenhosamente ao seu traseiro, para impedir que caisse nos caldeirões ou sobre o fogão quando havia marejada. O fogão tinha agora uma cor vermelho cereja que ressaltava na penumbra e a cara do cozinheiro brilhava de suor.
— Muito bem, Johnson. Estupendo — disse Jack, retrocedendo um passo.
— O senhor não vai inspecionar as panelas, senhor? — perguntou o cozinheiro, seu luminoso sorriso desapareceu e sua cara também ia desaparecendo na escuridão.
— É claro que sim — respondeu Jack, pondo a luva branca necessária para a cerimônia.
Passou a mão enluvada ao redor das panelas, olhou os dedos como se realmente esperasse vê-los manchados pelos restos de sujeira e gordura. Uma gota de suor tremia na ponta de seu nariz e muitas outras corriam por dentro de sua jaqueta, mas deu uma olhada na sopa de ervilhas, nos fornos e nos dois quintais de pudim de passas, o pudim dos domingos, antes de ir à enfermaria, onde o doutor Maturin e seu esquelético ajudante escocês o esperavam. Deteve-se junto a todas as macas (havia um homem com um braço rasgado, quatro com sífilis e um com hérnia e sífilis) pronunciando frases que lhe pareciam alentadoras, como: “Tem melhor aspecto”, “Pronto se porá bem” e “Estará de novo com seus companheiros quando cruzemos o Equador”, e depois se pôs sob o buraco da mangueira de ventilação para desfrutar do vento relativamente fresco, de 26°C, e disse a Stephen em tom confidencial:
— Por favor, ande pela coberta com o senhor McAlister e observe a todos os grupos de tripulantes enquanto estou aqui embaixo. Observei em alguns homens sintomas parecidos aos do horrível escorbuto. Espero que esteja equivocado, é excessivamente cedo, mas são absurdamente parecidos.
Foi então ao rancho. Um horrível gato estava ali jogado com as patas dianteiras dobradas e um olhar desafiante. A seu lado estava seu amigo íntimo, um louro verde igualmente horrível, prostado pelo calor, que gritou uma ou duas vezes: Erin go bragh! quando Jack e Hervey, inclinando as cabeças, passavam ao redor das mesas, das bandejas, dos gaveteiros e dos bancos resplandecentes, enquanto a luz, ao atravessar os gradeados de madeira e as escotilhas, formava quadrículas sobre o chão limpíssimo. Não encontrou muitas faltas ali, nem na camareta dos cadetes nem, por suposto, no sala de oficiais. Mas no paiol de velas, onde o contramestre voltou a reunir-se com eles, algo o horrorizou: ao inspecionar uma traquetina, observou que estava coberta de mofo, e logo comprovou que as demais velas também estavam.
Isto havia acontecido por preguiça e descuido e podia trazer graves consequências. O pobre Hervey retorcia as mãos e o contramestre, embora fosse um homem mais curtido, logo se encontrou quase nas mesmas condições. Era ostensiva a raiva de Jack, e seu absoluto desdém para as desculpas de Rattray: “Ocorre com muita frequência perto do Equador... Não há água doce para tirar o sal... O sal mantém a umidade... É difícil dobrá-las bem entre todos estes toldos...” Tiveram sobre este um efeito devastador.
Jack fez uma série de observações sobre a eficiência necessária em um navio de guerra usando um tom coloquial, em voz bastante baixa mas não inaudível, por isso quando subiu a coberta, depois de haver revisado o paiol de cabos e os porões, incluindo o de proa, a expressão dos tripulantes era em parte alegre e em parte apreensiva. Todos estavam muito contentes de que o contramestre os tivesse exibido todos juntos (quer dizer, todos os que não teriam que empregar a sagrada tarde de domingo em “tirar todas, senhor, até as alas, até as bonetas, até a última vela de capa, entendido?”) mas à tempo temerosos de que fossem descobertas suas própias faltas e que da próxima vez as pagassem eles, pois o capitão era um tipo muito duro, uma autêntica fera.
Contudo, Jack regresou ao castelo de popa sem haver mordido nem pegado a ninguém(nenhum) no caminho e, após olhar por entre os toldos para a pirâmide de velas ainda tensas, disse ao senhor Hervey:
— Prepare a igreja, por favor.
No castelo de popa apareceram cadeiras e bancos, e o móvel onde se guardavam os sabres, adequadamente coberto por bandeiras de sinais, converteu-se em um atril. O sino da fragata começou a tocar e os marinheiros foram confusamente para a popa. Os oficiais e os membros do séquito do senhor Stanhope esperavam por ele de pé, junto a seus postos. O enviado do Rei caminhava lentamente para sua cadeira, à direita do capitão, apoiado de um lado pelo pastor e do outro por seu secretário, e entre todas aquelas caras vermelhas como a caoba, a sua estava tão pálida que parecia a de um fantasma. Nunca havia desejado ir a Kampong, nem sequer sabia onde ficava Kampong antes que lhe atribuissem essa missão. E além disso, odiava o mar. Contudo, agora que a Surprise movia-se com a suave brisa, o balanço lhe resultava muito menos incômodo (quase não se percebia se mantivesse a vista fastada do corrimão e do horizonte) e, por outro lado, a cerimônia religiosa da Igreja da Inglaterra, que lhe era muito familiar, lhe servia de consolo naquele estranho complexo de cabos, madeira e tela onde o ar estava tão quente que era quase irrespirável. Seguiu a cerimônia com tanta atenção como os marinheiros, e quando começou o canto dos salmos tão bem conhecidos, uniu-se ao grupo com sua suave voz de tenor, que foi sufocada pelo vozeirão do capitão, sentado à sua esquerda, e seguida docemente em tons mais altos pela distante voz angelical do serviola galês, do alto das cruzetas do mastaréu de proa. Mas quando o pastor anunciou o tema de seu sermão, o senhor Stanhope fechou os olhos e seu pensamento foi para muito longe, até a sua paróquia, em cujo interior o ar era fresco, os zafiros da janela do lado leste davam uma luz tênue e sentia-se tranquilidade entre as tumbas familiares.
O seu pensamento ainda vagava quando o reverendo White disse:
— Sexto versículo, salmo 75: o ascenso não nos chega do leste, nem do oeste nem do sul.
Então os cadetes, que estavam a sotavento, e os tenentes, que se encontravam a barlavento, sentiram reavivar a sua devoção e se inclinaram para adiante, com grande expectação. Por sua parte, Jack, que tinha que dar os sermões quando não havia nenhum pastor em seu barco, pensou: “É um tema verdadeiramente apaixonante.”
Não obstante, quando esteve claro para a maioria que o ascenso tampouco chegava do norte, como haviam suposto os mais perspicazes cadetes, mas que se conseguia por meio de uma linha de conduta que, segundo o senhor White, precisava estar regida por dez pontos principais, todos foram perdendo pouco a pouco o interesse. E quando descubriram que aquele ascenso não se conseguia neste mundo, deixaram de prestar atenção e começaram a pensar na comida, a comida do domingo, no pudim de passas que, com muito poucas brasas, se cozia a fogo lento sob o sol equatorial. Olharam para as velas, que agitavam-se porque o vento havia amainado, pensaram na conveniência de pôr um asa em um dos costados para poder avançar. Callow, que também havia sido convidado a comer com os oficiais às duas, pensou: “Se puder subornar Babbington, comerei duas vezes. Posso descer correndo, quando tivermos medido a altura do sol e...”
— Coberta! — gritou uma voz do alto —. Coberta! Barco à vista!
O pastor interrompeu seu discurso e Jack perguntou:
— Onde?
— A dois pontos pela amura de estibordo, senhor.
— Mantenhasse afastado, Davidge — disse Jack ao timoneiro, que embora estivesse no meio daquela congregação não pertencia a ela nem de sua boca havia saido nunca nenhum hino, salmo, oração ou responso —. Continue, senhor White, por favor. Peço-lhe que me desculpe.
No castelo de popa houve uma grande agitação; os homens olhavam ao seu redor e faziam conjeturas. Jack sentia como aumentava a tensão em torno dele, mas seguiu escutando atentamente ao pastor, com a cabeça inclinada e um olhar grave, e somente se moveu para olhar seu relógio.
— Décimo e último... — disse o senhor White, falando com mais rapidez.
Abaixo, no espaçoso refeitório agora vazio e com pouca luz, Stephen caminhava de um lado a outro lendo o capítulo sobre o escorbuto do livro Diseases of Seamen (As enfermidades dos marinheiros) de Blane. Ao ouvir aquele grito deteve-se, voltou a deter-se depois e então disse ao gato:
— Como é possível isto? Avisaram que há um barco à vista e não se armou nenhum alvoroço nem se começou uma atividade frenética. O estará acontecendo?
O gato franziu a boca. Stephen voltou a abrir o livro e seguiu lendo até que ouviu duzentas vozes corear: “ Amém!”
Na coberta a improvisada igreja ia desaparecendo entre um sussurro geral, e os homens, muito nervosos, olhavam algumas vezes ao capitão e outras, por cima da barreira, ao horizonte, onde podia ver-se uma mancha branca quando a fragata subia com as ondas. Baixaram rapidamente as cadeiras e os bancos, e os sabres recuperaram o valor simbólico que tinham no Velho Testamento. Mas antes de que levarem os livros de oração, já haviam subido à coberta os quadrantes e sextantes, pois os primeiros nove pontos do sermão do senhor White haviam durado muitíssimo tempo, quase até o meio-dia. O sol estava próximo de seu zênite e se aproximava o momento de medir sua altitude. Sua desapiedada luz deu de cheio no castelo de popa quando o toldo que o cobria foi recolhido, e o segundo oficial, seus ajudantes, os cadetes, o primeiro oficial e ou capitão, que ocupavam suas posições em espera desse grande momento, o começo de um dia de navegação em sentido estrito, apenas tinham uma pequena sombra a seus pés. Aqueles cinco minutos eram solenes, sobretudo para os cadetes (o capitão insistia na importância de uma profunda observação), embora não parecia que o sol importasse muito a ninguém. Não parecia até que Stephen Maturin aproximou-se de Jack e lhe perguntou:
— Que história é essa que contam sobre um barco estranho?
— Um momento — respondeu Jack e aproximou-se à barreira.
Elevou o sextante para calcular a altura do sol sobre o horizonte, anotou a medição na pequena quadro de mármore e disse:
— Um barco? Ah, sim! De fato, são os picos de Saint Paul Rocks, sabes? Não escaparão. Se o vento não amainar, as veremos de perto depois da comida. São muito curiosas; têm gaivotas, alcatrazes e outras aves.
A notícia se propagou imediatamente por toda a fragata (eram rochas, não barcos, qualquer maldito marinheiro inexperto que tinha passado de Márgate conhecia Saint Paul Rocks) e os homens voltaram a pensar na comida, que seria servida quando terminasse a medição da altitude. Os marinheiros que serviam as mesas esperavam perto do fogão com as bandejas de madeira e um ajudante do encarregado dos porões mesclava o grogue sob o atento olhar dos oficiais de rota e do despenseiro do contador. O cheiro da comida, mesclado com o do rum, espalhou-se pela coberta provocando que cento e noventa e sete bocas enchessem de saliva. O contramestre, de pé no salto do castelo, estava preparado para dar a voz de rancho. Junto ao corrimão, o segundo oficial baixou o sextante, aproximou-se do senhor Hervey e disse:
— Doze em ponto, senhor, e cinquenta e oito minutos norte.
O primeiro oficial voltou-se para Jack, tirou o chapéu e repetiu:
— Doze em ponto, senhor, com sua permissão, e cinquenta e oito minutos norte.
Jack virou-se então para o oficial de guarda e lhe comunicou:
— Senhor Nicolls, são doze horas.
O oficial de guarda chamou o seu ajudante e lhe disse:
— São doze horas.
O ajudante disse ao oficial de navegação:
— Toque oito badaladas.
O oficial de navegação ordenou ao infante de marinha que estava de sentinela:
— Dê a volta ao relógio e toque o sino.
Em quando soou a primeira badalada, o senhor Nicolls gritou com todas as suas forças ao contramestre:
— Dê a voz de rancho!
O contramestre deu a voz de rancho, por suposto, mas apenas pôde ouvir-se no castelo de popa o ruído das bandejas ao bater, os gritos dos cozinheiros, o estrondo das pisadas e os repetidos golpes que os marinheiros davam em seus pratos. Quando fazia aquele tempo os marinheiros comiam na coberta, em meio aos canhões, e procuravam sentar-se na mesma posição que ocupavam nas mesas de baixo.
Jack conduziu a Stephen a sua cabine e perguntou:
— Que pensas desses homens?
— Tinhas muita razão — disse Stephen —. É escorbuto. Todos os especialistas concordam na descrição: debilidade, dor muscular generalizada, petéquias, gengivas sangrentas, mal hálito... E além disso, McAlister, que é um tipo esperto, já viu muitos casos e não tem nenhuma dúvida. Baseando-me em uma série de observações, cheguei à conclusão de que quase todos os afetados procedem do Racoon. Levavam meses navegando quando os trouxeram.
— Certamente é essa a causa do problema! — exclamou Jack —. Mas não tenho dúvida de que poderás curar-lhes. Oh, sim, tu lhes curarás em seguida!
— Desejaria estar tão seguro como tu. E gostaria de crer que nosso suco de lima não está adulterado. Diga-me uma coisa, há vegetação nessas montanhas rochosas?
— Nem uma folha de erva, nem uma única folha — disse Jack —. Nem tampouco há água.
— Bom — disse Stephen, encolhendo os ombros —. Farei tudo o que for possível empregando o que tenho.
— Estou certo que farás, meu querido Stephen — disse Jack, lançando longe sua jaqueta e com ela uma parte de sua preocupação.
Tinha tanta fé nos poderes de Stephen que, apesar de haver estado em um barco onde a maioria da tripulação havia sido afetada pela enfermidade e quase não ficavam marinheiros para levantar âncora ou içar velas, e muito menos para estabelecer combate, apesar disso, sentia-se tranquilo e pensou então nos quarenta graus de latitude e os fortes ventos do oeste que sopravam ali, muito mais ao sul do Equador.
— É um grande alívio ter-te a bordo — continuou —. É como navegar com um pedaço da Santa Cruz.
— Tolice! Tolice! — exclamou Stephen —, gostaria que tirasses essa ideia da cabeça. A medicina pode fazer muito pouco e a cirurgia muito menos. Tudo o que posso fazer é uma purga, uma sangria, socorrer em um caso de necessidade, recompor uma perna ou cortá-la. Que poderiam fazer Hipócrates, Galeno, Rhazes, que poderiam fazer Blane ou Trotter frente a um carcinoma, um sarcoma ou lupus?
A miúde havia tratado de que Jack perdesse sua fé nele, mas Jack o havia visto trepanar o crânio do condestável da Sophie e sacar-lhe os miolos. Stephen o olhou e, por seu expressivo sorriso, compreendeu que desta vez também não o havia conseguido.
Na Sophie, todos os tripulantes sabiam que se o doutor Maturin se propusesse, podia salvar qualquer um, se as mudanças da maré não o impedissem, e Jack também, pois, como bom marinheiro, tinha as mesmas ideias, embora fossem um pouco mais elaboradas.
— Aceita um copo de madeira? — perguntou —. Creio que os oficiais mataram seu porquinho para a comida de hoje e o madeira é uma excelente base para a carne de porco.
O madeira serviu muito bem de base, o borgonha de acompanhamento e o porto de remate, mas haveriam estado melhor se a sua temperatura estivesse inferior à do sangue. “Não sei quanto tempo o organismo humano pode suportar este excesso”, pensou Stephen, olhando ao seu redor. Estava comendo uma bolacha untada com alho e apenas havia tomado café frio e muito diluido, por razões teóricas e ao mesmo tempo por escolha pessoal, mas ao observar aos demais teve que admitir que, até esse momento, seus organismos suportavam o excesso bastante bem. Jack, com uma grossa capa de pudim sobre duas libras de carne de porco e tubérculos parecia mais propenso a sofrer uma apoplexia que outras vezes, mas seus olhos azuis, que ressaltavam em sua cara avermelhada, não estavam opacos, portanto não havia perigo imediato. Nas mesmas condições estava o gordo senhor Hervey, que havia comido e bebido mais do que o habitual, e seu cara redonda se parecia com o sol do amanhecer, exceto nas rugas de riso. Todos os rostos, menos o de Nicolls, estavam muito vermelhos, mas o de Hervey tinha uma coloração mais intensa que o dos demais. O primeiro oficial era muito simples, sem pretensões, não iniciava discussões nem era agressivo. Como se comportaria alguém assim em uma batalha corpo a corpo? Talvez sua cortesia (Hervey era um perfeito cavalheiro) teria consequências fatais para ele. Em qualquer caso, encontrava-se fora de lugar ali e era uma pessoa muito mais adequada para pertencer a um grêmio ou ao clero. Era uma vítima das circunstâncias. Sua influente família tinha muitas relações no âmbito naval e estava cheia de almirantes, e posto que seu summum bonum era conseguir um posto de almirante, tratou que ele obtivesse um comando o mais jovem possível, mediante qualquer forma passável de corrupção. O júri que o havia aprovado no exame de tenente estava composto por protegidos de seu avô que, muito sérios, informaram por escrito que haviam examinado “ao senhor Hervey..., parece que tem vinte anos... Mostrou os certificados..., sua disposição e seriedade. Sabe ajustar, fazer nós e eriçar as velas, e pode governar um barco. Conhece as marés; sabe calcular o rumo do barco segundo dados da navegação loxodrómica ou de Mercator, fazer medições com referência ao sol e às estrelas e ler as variações do compasso. Fica classificado como marinheiro de primeira e cadete”, mas era tudo mentira, salvo o referente aos cálculos matemáticos, pois quase não tinha experiência como marinheiro. Seria nomeado capitão quando se reunisse com seu tio, o almirante do posto das Índias Orientais, e poucos meses depois seria um capitão de navio angustiado, inseguro e incompetente. Ele e o contador sieriam felizes se houvessem trocado seus postos. Bowes, o contador, não havia podido fazer-se ao mar desde menino, mas como lhe apaixonava a vida a bordo de um barco (seu irmão era capitão), comprou um posto de contador. Apesar de ter um pé zopo havia se destacado em alguns ataques rápidos e muito perigosos. Sempre estava na coberta, pelo que conhecia as manobras perfeitamente, e se orgulhava de saber governar um bote. Sabia muito sobre o mar, e apesar de não ser muito bom contador, era honrado, o que lhe convertia em um exemplar raro. Pullings continuava sendo o mesmo jovem magro e ágil de sempre e seguia tendo a a mesma amabilidade. Estava muito contente de ser um tenente, sua maior ambição, e muito contente de estar no o mesmo barco que o capitão Aubrey. Parecia incrível que pudesse manter-se tão delgado comendo com a avidez de um lobo. Harrowy era o segundo oficial. Tinha a cara larga e sempre sorria; sorria agora, com os lábios unidos no centro da boca e as comissuras abertas, como se fingisse o sorriso. Mas nada mais longe disso, pois embora o segundo oficial fosse um ignorante e um presunçoso, não era falso. Faltavam-lhe os dentes; tinha grandes entradas e o cabelo não muito comprido. Sua grande testa, generalmente pálida, agora estava vermelha e perlada de suor. Havia ascendido a esse posto graças a Gambier, um almirante evangelista, apesar de que não era um navegante destacado. Pertenciam a uma seita do oeste do país e se dedicava a pregar quando estava em terra. Repetidamente ia à enfermaria a visitar os enfermos (em uma ocasião havia dito a Stephen: “Há algo bom dentro de todos eles. Devemos ajudar-lhes a ser melhores”, e quando Stephen perguntara como pensava consegui-lo ele havia respondido: “Confio no fervor religioso e no magnetismo pessoal”), levava-lhes frango e vinho, escrevia suas cartas e lhes emprestava ou dava pequenas quantidades de dinheiro. Estava disposto e ansioso por dar e talvez mais disposto que outros a receber. Era ativo, embora talvez um pouco nervoso, cumpridor de seu dever, saludável e muito limpo. Ao cruzar seus olhos com os de Stephen, seu sorriso se fez mais amplo e inclinou a cabeça com cortesia.
Etherege, o tenente de marinha, estava vermelho como sua jaqueta e nesse momento estava desabotoando o cinturão com dissimulação, olhando ao seu redor com uma expressão amável. Era um homem baixinho que apenas falava. Contudo, não era uma pessoa tosca, mas sua viva expressão e sua risada frequente substituiam as suas palavras. Mas embora tinha pouco que dizer, era bem-vindo em todas as partes.
Nicolls era muito diferente. Sua cara, em comparação com as daquele alegre conjunto, estava quase pálida. Era um homem de cabelo preto, auto-suficiente e de forte caráter, e haveria estragado aquela festa tranquila e relativamente formal se não fizesse evidentes esforços por ser amistoso. Mas apesar disso, seguia tendo o semblante triste, e recorrer insistentemente ao porto não lhe fazia muito bem. Stephen lhe vira repetidamente em Gibraltar anos atrás e recordava daquela vez que ambos haviam comido com a 42a divisão de infantaria em Llatham, quando haviam levado Nicolls de regresso ao barco cantando como um canário; mas isso havia ocorrido justo antes que se casasse e seguramente se encontrava em um estado de grande tensão. Parecia um típico oficial da marinha, um pouco reservado mas uma agradável companhia, alguém que combinava de um modo natural a boa educação com a rudeza própria da profissão, mas mantendo-as separadas por um antepara. Um típico oficial da marinha... Como se podia definir um típico oficial da marinha? Em todos os grupos de marinheiros se encontravam uns poucos com determinados traços comuns que, com variantes, pareciam repetir-se em todos os demais, mas talvez fossem excessivamente poucos para caracterizar toda uma profissão, para representar todos seus aspectos distintivos. Nesse momento, apesar de conhecer centenas deles, vinham à sua mente menos de uma dúzia: Dundas, Riou, Seymour, Jack, Collrane...
Mas não, Collrane era excessivamente presunçoso em terra para ser um oficial típico, estava excessivamente orgulhoso de si mesmo, excessivamente convencido de seu próprio valor, excessivamente afetado por essa paixão escocesa pelas afrontas e, por outro lado, aquele desafortunado título era um peso para ele, uma cruz. Jack tinha um pouco de Collrane, sua grande impaciência por conseguir maior autoridade e o convencimento de que tinha razão, mas isso não era suficiente para desqualificar-lhe, longe disso, e afinal, o ia perdendo nos últimos anos.
Quais eram os traços comuns? Muito ânimo e resistência, boa disposição, grande capacidade de comunicação e certa ingenuidade. Até que ponto se deviam à influência do mar e até que ponto ao fato de que escolhiam essa profissão os que tinham uma determinada maneira de pensar?
— O capitão se retira — sussurrou-lhe ao ouvido seu vizinho de assento, tocando-lhe no ombro.
— Oh, sim! — disse Stephen, pondo-se de pé —. Já levantou a âncora.
Subiram devagar a escada de toldilla. Na coberta fazia muito mais calor agora porque o vento já não soprava. Pelo costado de bombordo haviam baixado até a água uma vela presa pelas pontas e haviam posto um peso no seu centro, formando uma grande banheira onde a metade da tripulação chapinhar. Por estibordo, a umas duas milhas, estavam as montanhas rochosas, elevando-se sobre o mar azul intenso até uns cinquenta pés acima da superfície, e embora já não parecessem barcos seguiam tendo uma deslumbrante brancura, tanta que a seu lado a espuma do mar parecia de cor creme. Os alcatrazes e as escuras andorinhas, formando uma nuvem, volteavam sobre elas e de vez em quando um alcatraz se mergulhava no mar, provocando os mesmos salpicos que uma bala de quatro libras.
— Senhor Babbington, empreste-me sua luneta, por favor — disse Stephen.
E depois de estar olhando um pouco exclamou:
— Oh, quanto gostaria de estar ali! Posso dispor de um bote, Jack, melhor dito, capitão Aubrey?
— Meu querido doutor, estou seguro de que não perguntaria isso se te houvesse lembrado de que é domingo pela tarde.
A tarde do domingo era sagrada. Era o único tempo livre de que dispunham os marinheiros se o vento, as condições climáticas e a maldade do inimigo o permitiam, e se preparavam para ela laboriosamente no sábado e no domingo pela manhã.
— Vou descer e inspecionar esse condenado depósito de velas — continuou falando enquanto se afastava de seu decepcionado amigo —. E não te esqueças de que temos que visitar o senhor Stanhope antes de chamar a todos a seus postos.
— Posso levá-lo para lá, se quiser — disse Nicolls, um momento depois —. Estou seguro de que Hervey nos deixará usar o chinchorro.
— É muito amável de sua parte — disse Stephen, observando que estava ébrio mas que tinha controle de si mesmo —. Agradeço muitíssimo. Pegarei um martelo, algumas caixas pequenas e um chapéu e em seguida voltarei a reunir-me com senhor.
Passaram de gatinhas pela barcaça, pela lancha e por um dos cúters e por fim subiram ao chinchorro (todos iam a reboque pois deviam estar na água para que não rachassem com o calor) e começaram a afastar-se remando. as alegres vozes ficaram para trás, a esteira do chinchorro ficava cada vez mais larga sobre a água cristalina. Stephen tirou a roupa e se sentou sobre seu chapéu de palha. Tomar sol era um deleite para ele e se havia convertido em uma prática diária desde que estavam à altura de Madeira. Agora tinha dos pés à cabeça uma cor parda frisado de marrom e cinza. Não tinha o hábito de lavar-se com frequência (em qualquer caso, não se podia gastar água doce), e além disso, parecia estar coberto de pó porque o sal ficava impregnado quando nadava.
— Há um momento estava fazendo reflexões sobre os oficiais da marinha — disse — e tratava de determinar quais eram os traços que fazem a gente dizer: “Esse homem é um marinheiro em toda a extenção da palavra.” Cheguei à conclusão de que é tão raro encontrar um oficial da marinha típico como um cadáver típico do ponto de vista anatômico, quer dizer, que está rodeado dos que poderíamos chamar exemplares irregulares ou subespécies. Por outro lado, percebi que se há muitos cadetes afáveis, há menos tenentes, ainda menos capitães e poquíssimos almirantes que o sejam. Uma possível explicação seria esta: além de sua valia profissional, sua capacidade de resignação, seu excelente fígado, seu natural dom de comando e outras virtudes, devem ter uma qualidade ainda mais rara, a de resistir aos efeitos do exercício da autoridade, que são efeitos desumanizadores. A autoridade destroi a humanidade da pessoa; em cada esposo, em cada pai de família, pode notar-se como a pessoa fica absorvida pelo personagem, o indivíduo anulado pelo papel que desempenha. Se aumentamos essa família a centenas de pessoas e, consequentemente, a autoridade, poderemos imaginar esses efeitos em um capitão e até em um monarca absoluto. Não cabe dúvida de que o homem nasce para ser um solitário ou para ser oprimido; em uma destas formas se manifesta seu caráter humano, a menos que seja imune ao veneno. Na Armada essa imunidade não se detecta até muito tarde, mas é evidente que existe. Se não fosse assim, como poderiam explicar-se alguns casos raros de almirantes muito humanos e ao mesmo tempo eficientes como Duncan, Nelson...?
Notou que a atenção de Nicolls havia se desviado e baixou a voz até emitir apenas um sussurro aparentemente inacabado. E posto que nesse momento não havia pássaros no céu, sacou um livro do bolso da jaqueta e começou a ler. Os remos chiavam ao girar sobre as forquetas, os remos se afundavam com um movimento rítmico e o sol caia completamente; o bote parecia arrastar-se pelo mar.
De vez em quando Stephen levantava a vista, e enquanto repetia frases em urdu observava a cara de Nicolls. O oficial tinha mal aspecto, e estava assim a algum tempo. Já a tinha em Gibraltar e em Madeira, e havia piorado em Saint Jago. Em seu caso, o escorbuto estava descartado. Teria sífilis? talvez lombrigas?
— Desculpe-me — disse Nicolls com um sorriso forçado —.Temo que perdi o fio da meada. Que estava dizendo?
— Estava repetindo frases deste livro. É o único que consegui, à parte da gramática de Fort William que tenho em minha cabine. É um livro de frases e parece que foram reunidas por um homem decepcionado. Escute: “Um tigre, um leopardo e um leão comeram meu cavalo. Quis alugar um palanquim. Não há palanquins nesta cidade, senhor. Roubaram todo o meu dinheiro. Quis falar com o arrecadador. O arrecadador está morto, senhor. Alguns homens malvados me bateram”. Mas também parece um homem salaz, porque inclue esta frase: Mulher, queres dormir comigo?
Nicolls, esforçando-se pora mostrar interesse, perguntou:
— É essa a língua com que o senhor fala com Allmet?
— Sim, efetivamente. Todos nossos marinheiros das Índias Orientais a falam, embora procedam de distintas regiões; é sua língua comum. Escolhi Allmet porque é um homem serviçal e paciente e porque essa é sua língua materna. Mas como não sabe ler nem escrever, uso minha gramática para poder diferenciar as expressões coloquiais. Não lhe parece que falar uma língua sem a reforçar com a letra impressa ela passaria por nossa mente quase sem deixar rastro?
— Não sei o que dizer, não me dou bem com os idiomas, nunca me dei. Assombra-me ouvir-lhe falar com esses negros. Mesmo em minha própria língua, quando tenho que falar de um tema diferente à navegação, parece-me...
Fez uma pausa, olhou por cima do ombro e disse que não deveriam desembarcar por aquele lado porque era excessivamente escarpado, que seria melhor fazê-lo pelo outro. O número de pássaros aumentava à medida que se aproximavam das rochas, e agora que as rodeavam pelo sul, uma enorme quantidade de andorinhas e alcatrazes os sobrevoavam em absoluto silêncio e submergiam e saiam dos bancos de peixes fazendo percursos muito diversos e entrecruzando-se de um modo desconcertante. Stephen, também em silêncio, alçou a vista para eles e, com grande espanto, ficou contemplando-os até que o fundo do bote tocou as rochas cobertas de algas. Então Nicolls conduziu o bote para uma entrada muito bem protegida, o sacou da água e ajudou Stephen a descer.
— Obrigado, obrigado — disse Stephen, e começou a subir com dificuldade pela obscura faixa banhada pelo mar.
Ao chegar ao branco cume iluminado pelo sol parou de repente. Justo adiante dele havia pousado um alcatraz, tão perto que quase podia tocá-lo. Logo foram dois, quatro, seis, tão brancos como as rochas aonde pousavam..., um tapete de alcatrazes, jovens e velhos, e entre eles havia muitíssimas andorinhas. Observou que o alcatraz mais próximo virava para ele a sua cara alongada com traços de reptil e o olhava sem muito interesse, e notou certa irritação em seus olhos redondos e brilhantes. Estirou os dedos para tocá-lo e o pássaro fez um movimento de repúdio que foi seguido por um grande alvoroço a todo o redor. Então, em outra rocha a poucos pés de distância, pousou outro alcatraz que trazia sua abundante captura para alimentar o seu enorme filhote que o esperava com o bico aberto.
— Jesus, Maria e José! — murmurou ao pôr-se de pé e passar a vista pela ilha.
Era um conjunto montanhoso de formas suaves que parecia um vasto molar gasto, e todas as suas depressões estavam cheias de pássaros. O ar quente se enchia com o ruído do ir e vir dos pássaros, o cheiro do amoníaco de seus excrementos e o cheiro de pescado podre. Formava sobre a superfície uma massa luminosa tão deslumbrante que era difícil distinguir os pássaros no cume, cinquenta jardas mais acima, e a crista das montanhas parecia um gordo cabo que se retesava e oscilava. Não havia água. O terreno era árido. Não havia nem uma folha de erva nem algas nem líquen, apenas aquele fedor, a rocha ardente e o ar imóvel.
— Isto é o paraíso! — exclamou Stephen.
— Fico alegre de que goste — disse Nicolls, com o semblante cansado, sentando-se no único lugar limpo que encontrou —. Não lhe parece um pouco desagradável para ser o paraíso? Afinal, é quente como o fogo do inferno. Posso sentir o calor da rocha a través dos sapatos.
— Tem mal cheiro, certamente — disse Stephen —, mas ao chamar-lhe paraíso me refiro à mansidão das aves. Por certo que não creio que sejam elas que cheirem assim. — Inclinou a cabeça, pois uma andorinha passou roçando enquanto diminuia sua velocidade para posar na rocha —. É como a mansidão das aves antes do pecado original. Vou cheirar este pássaro, creio que ele deixará. Acrdito que o fedor é provocado em grande medida pelos excrementos, os peixes mortos e as algas... — E dizendo isto se aproximou de um dos poucos alcatrazes que ainda estavam chocando seus ovos, inclinou-se para ele, pegou o seu bico com suavidade e encostou o nariz no seu lombo —. Mas também em grande medida pelas aves.
O alcatraz o olhou entre indignado e incrédulo, eriçou as plumas e lançou um assobio, mas não se afastou. Então moveu-se um pouco sobre o ovo que chocava e passou a observar um carangueijo que, a uns dois pés dali, roubava com grande esforço um peixe voador que uma andorinha havia abandonado próximo do seu ninho.
Do alto da ilha pôde ver a fragata que, com as velas flácidas, permanecia imóvel a duas milhas de distância. Havia deixado Nicolls atrás de si, à sombra de um alpendre construido com a roupa e os remos, a única sombra naquelas esplêndidas montanhas rochosas. Havia caçado dois alcatrazes e duas andorinhas, embora por princípio fosse resistente a golpeá-los, e um dos alcatrazes, o das patas vermelhas, parecia pertencer a uma espécie não descrita. Ao menos escolhera pássaros que não estavam criando os seus filhos, e por outro lado, segundo seus cálculos, ficavam uns trinta e cinco mil mais apenas naquela montanha. Nas caixas havia recolhido vários exemplares de traças, um escaravelho de um gênero desconhecido, dois tatuzinhos aparentemente idênticos aos que havia encontrado em um monte de turba na Irlanda, o carangueijo ladrão e um grande número de carrapatos e insetos sem asas que classificaria a seu tempo. Que butim! Agora golpeava a rocha com o martelo, não para obter amostras geológicas, pois estas já estavam empilhadas no bote, mas para aumentar uma fenda em que um estranho aracnídeo havia se refugiado. A rocha era dura, a fenda profunda, o aracnídeo teimoso. De vez em quando parava para respirar o ar puro daquelas alturas ou olhar pelo lado leste da ilha para a fragata. Naquele lado havia muito menos pássaros, embora de vez em quando se via algum alcatraz voltear ou mergulhar no mar com as asas fechadas. Pensou que ao fazer a dissecação desses exemplares observaria com especial atenção suas fossas nasais e trataria de conhecer o processo que evitava a entrada da água.
Nicolls abrira-se com ele. O fizera de improviso e seguramente motivado por alguma palavra pronunciada ao acaso. Algo já remoto que não podia recordar dera base àquelas inesperadas palavras: “Estive em terra desde que fui despedido da Euryalus até que me contrataram na Surprise e, além disso, minha mulher e eu brigamos.”
Os protestantes repetidamente se confessavam aos médicos e Stephen já havia ouvido antes essa história seguida de uma petição ritual de conselho — a esposa profundamente ferida, o malvado marido tratando de reconciliar-se, a farsa da vida matrimonial, as palavras veladas, a cortesia, o domínio, o ressentimento, a tremenda tristeza das noites e os despertares, a progressiva perda das amizades e da comunicação com outros — mas nunca ouvira exposta com aquela pungente pena, com aquela desolação. Nicolls havia continuado: “Acreditei que me sentiria melhor quando estivesse navegando, mas não foi assim. Não recebi nenhuma carta em Gibraltar, embora a Leopard tivesse chegado antes de nós, e também a Swiftsure. Muitas vezes, durante a guarda do meio, passeava de um lado a outro da coberta pensando na resposta que daria às cartas que me esperavam em Madeira. Mas não havia cartas. O barco correio já havia chegado e havia ido embora fazia quinze dias, quando estávamos ainda em Gibraltar, e contudo não havia cartas. Confiava em que ainda existia uma possibilidade, mas não recebi nem sequer uma nota. Negava-me a crer que era verdade enquanto atravessávamos a zona dos ventos alísios, mas agora sei que o é e, lhe asseguro, Maturin, não posso soportá-la, não por muito tempo, estou morrendo lentamente.” Stephen havia afirmado: “Certamente haverá um montão de cartas no Rio de Janeiro. Ttambém não recebi nenhuma em Madeira, bom, quase nenhuma. Creio que as mandarão ao Rio de Janeiro, acredite nisso, ou talvez a Bombaim.” Nicolls havia dito em tom fraco mas seguro: “Já não haverá mais cartas. Estou lhe chateando excessivamente com meus assuntos, perdoe-me. Construí um alpendre com a minha camisa e os remos, gostaria sentar-se debaixo? Creio que este calor vai te provocar dor de cabeça.” Stephen havia respondido: “Não, obrigado. Há pouco tempo e tenho que explorar esta arca o quanto antes, pois apenas Deus sabe quando voltarei a vê-la.”
Stephen esperava que Nicolls não se arrependesse daquilo mais tarde. A confissão sacramental era muito mais formal, muito menos detalhada e extensa e muito menos satisfatória em seus aspectos não sacramentais, mas pelo menos o confessor era um sacerdote e atuava como tal em todos os momentos de sua vida; em troca, um médico era como qualquer ser humano comum a maior parte do tempo, alguém a quem resultaria difícil encontrar-se cara a cara na mesa depois de contar-lhe essas intimidades.
Voltou a sua tarefa. Tac, tac, tac. Uma pausa. Tac, tac, tac. A fenda ia se alargando. Stephen notou que umas grossas gotas caiam sobre a rocha e secavam imediatamente. “Não creio que seja meu suor”, pensou, sem deixar de martelar. Então notou que caiam gotas também nas suas costas, enormes gotas quentes de chuva, muito diferentes dos excrementos com que os inumeráveis pássaros o haviam presenteado.
Ficou de pé e olhou ao seu redor. Pelo oeste se via uma massa escura no céu e justo debaixo dela, sobre o mar, uma faixa branca que aproximava-se com incrível rapidez. Não havia pássaros voando, nem sequer na parte oeste da ilha, onde eram tão numerosos. A curta distância tudo já estava borrado pela chuva que caia. Da massa escura brotaram lampejos vermelhos que puderam ser vistos com nitidez. Pouco depois o sol ficou oculto e Stephen sentiu a quente chuva cair com força sobre ele. A chuva era torrencial e tão quente como o ar, mas não caia em gotas mas em jorros quase horizontais que se chocavam, dividindo-se infinitamente e salpicando-lhe com força, quase sem deixá-lo aspirar o ar. Protegeu a boca e o nariz com as mãos para poder respirar melhor, mas de maneira que a água pudesse passar entre os dedos, e pouco a pouco a ia bebendo, uma pinta após outra. Embora se encontrasse no cume das montanhas rochosas, a água do dilúvio chegou aos seus tornozelos, e as caixas, flutuando, começaram a afastar-se. Meio agachado e cambaleando pelo vento pôde recuperar duas e se sentou sobre elas, enquanto a chuva continuava caindo, com tanto ruído que quase abafava o estrondo dos trovões. Agora estava justo no centro da tempestade; o vento o derrubou, e o que pensava que era o maior dos cataclismos piorou dez vezes. Pôs as caixas entre os joelhos e se inclinou sobre elas.
O tempo parecia transcorrer de outra forma. Apenas estava marcado pelos sucessivos relâmpagos que saiam das nuvens carregadas e que, atravessando o ar, chocavam-se com as rochas e depois voltavam à escuridão. Alguns pensamentos inquietantes cruzaram por sua mente: Que havia sido da fragata? Os pássaros podiam sobreviver a isto? Nicolls estava a salvo?
Terminou. A chuva parou de repente e o vento afastou as nuvens carregadas. Poucos minutos depois, o sol voltava a brilhar no agradável céu, cujo azul parecia ainda mais intenso. Ao oeste tudo seguia igual, como sempre estivera, exceto por algumas manchas brancas no mar; ao leste, no mesmo lugar onde vira a fragata pela última vez, agora estava a tempestade. E no espaço entre as rochas e aquela massa escura, um espaço amplo e iluminado pelo sol, a corrente arrastava centenas de pássaros voadores mortos, e ao seu redor nadavam os tubarões, grandes e pequenos, saindo de vez em quando à superfície para pegá-los.
Ainda ouvia correr a água pela montanha. Stephen desceu a ladeira chapinhando e gritando: “Nicolls, Nicolls!” Evitava os pássaros ao passar; alguns ainda estavam sobre seus ninhos com o corpo encolhido, outros arrumavam as plumas. Em três lugares diferentes encontrou filas desordenadas de andorinhas e alcatrazes mortos, com os corpos carbonizados e com cheiro de queimado apesar de estarem úmidos. Chegou ao lugar onde ficava o alpendre, mas ele não estava, tampouco os remos. E o bote já não estava no lugar onde o haviam deixado.
Foi dando a volta na ilha e, aproveitando o vento, lançava seu chamado ao vazio. E quando chegou de novo no lado leste e olhou para o mar, a tempestade já havia cessado. A fragata não estava. Subiu ao cume e dali pôde distingui-la, embora não visse o casco. Navegava de vento em popa com o velacho aberto e havia perdido o mastaréu maior e o da mesana. Ficou observando-a até que a última pincelada branca desapareceu. O sol se afundava no horizonte quando deu a volta e começou a descer. Os alcatrazes já estavam a pescando outra vez; os de mais alto, ainda iluminados pelo sol, pareciam de cor rosa quando atravessavam a brilhante luz para lançar-se ao mar.
CAPÍTULO 6
A barcaça, ao comando de Babbington, foi resgatar-lhe por fim. Havia tido que navegar contra o vento e com dois tripulantes colocados em cada remo, para fazer mais força.
— O senhor está bem, senhor? — gritou Babbington quando o viu ali sentado. Stephen não respondeu, limitou-se a fazer um sinal para que a barcaça fosse pelo outro lado.
— O senhor está bem, senhor? — perguntou de novo, saltando à terra —. Onde está o senhor Nicolls?
Stephen assentiu com a cabeça e com voz lastimosa disse:
— Estou perfeitamente bem, mas o pobre senhor Nicolls... Têm água na barcaça?
— Traed o barril. Vamos, ponhas uma mão.
A água começou a umedecer sua boca enegrecida e correu pela sua garganta até que enchesse seu corpo murcho e o suor brotou de sua pele. Enquanto os homens, muito preocupados, permaneceram junto dele, respeitosos, solícitos, fazendo-lhe sombra com um pedaço de lona. Não esperavam encontá-lo vivo; a desaparição de Nicolls era, em uma situação como aquela, algo normal.
— Há suficiente para todos? — perguntou em um tom mais animado.
— Muita, senhor, muita. Outros dois barris — respondeu Bonden —. Mas, senhor, crê que faz bem? Não rebentará o senhor?
Seguiu bebendo e fechou os olhos para desfrutar mais daquele prazer. “Um prazer mais intenso e mais reconfortante que o amor”, pensou. Depois, ao abri-los de novo, gritou:
— Deixem isso agora mesmo. Senhor, senhor, deixe esse alcatraz aí. Já lhes disse que deixem isso, maldita corja de torpes. Que vergonha! E não toquem nessas pedras.
— O'Connor, Bogulavsky, Brown, e vós também, regressem todos à barcaça! — ordenou Babbington —. Quer, senhor, comer algo, senhor? Sopa? Um sanduíche de presunto? Um pedaço de biscoito?
— Não, obrigado. Por favor, faça que subam esses pássaros a bordo, e também as pedras e os ovos, e tenha, senhor, a amabilidade de levar também as duas caixas pequenas. Depois poderemos desatracar. Como está a fragata? Onde ela está?
— A quatro ou cinco léguas ao sul e um quarto ao leste, senhor. Talvez tenha podido ver nossos joanetes ontem pela tarde.
— Não, não as vi. Há sofrido danos? Há feridos?
— Está maltratada, senhor. Estão todos a bordo, Bonden? Agora com cuidado, com cuidado. Plumb, enrole essa camisa e forme uma almofada. Que fazes, Bonden?
Estou protegendo-o do sol, senhor. Supus que o senhor não se importaria de cudar do timão.
— Desatracar! — gritou Babbington —. Retroceder!
A barcaça se afastou com rapidez da ilha rochosa, virou em redondo e começou a afastar-se para o sudeste com a vela maior e a bujarrona içadas.
— A fragata, senhor — disse, colocando-se em frente ao compasso e agarrando a vara do timão —, sofreu muitos danos e perdemos alguns homens: Tiddiman caiu da proa e três ou quatro marinheiros foram levados pela corrente antes que pudessemos subi-los a bordo. Estávamos observando o céu, mas pelo oeste, e não vimos os brancas nuvens carregadas.
— Brancas? Eram mais negras que uma tumba aberta!
— Essas eram as da tempestade que veio depois. As primeras eram brancas e iam na direção sul, chegaram poucos minutos antes das outras; segundo dizem, estas tempestades se formam com frequência perto do Equador, mas não costumam ser tão condenadamente fortes. A realidade é que nos pegaram desprevenidos (o capitão estava em baixo nesse momento, no paiol de velas) e o vento passou na altura das gávias, sem nem tocar a superfície, fazendo-nos inclinar tanto que a coberta ficou quase na posição vertical. Todas as velas se desprenderam das relingas antes que pudessemos tocar as escotas ou as adriças e não ficou nem um pedaço de lona.
— Também perderam o estandarte?
— Sim, até o estandarte. Foi assombroso. O mastaréu de joanete de proa e o mastaréu maior e o de sobre-mesana cairam sobre a coberta, por sotavento, e em consequência disso inclinamos até quase ficar com a coberta na vertical, abriram-se todas as portas e três canhões se soltaram. Então apareceu o capitão dando gritos, com um machado na mão, e derrubou os paus pela borda e votamos a ficar retos. Mas apenas havíamos acabado de endireitar a proa quando chegaram as nuvens carregadas negras. Oh, meu Deus!
— Pusemos um pedaço de lona no mastaréu de velacho — disse Bonden —. Tivemos que correr por causa dos canhões que rodavam pela coberta; o capitão tinha a esperança de que não atravessariam os costados.
— Eu tinha a empunhadura de barlavento — comentou Plumb, que ia remando na popa —, e levei muitíssimo tempo para passá-la. O vento soprava tão forte que minha trança chegou até o início do botalós e deu duas voltas ao redor dele; Dick Turnbull teve que cortá-la — voltou a cabeça para mostrar que a havia perdido — para que pudesse soltar-me. Esse foi um momento terrível para mim, senhor. Depois de quinze anos de trançar e pentear cuidadosamente meu cabelo e fortalecê-lo com o melhor azeite de Makasar, apenas me restou uma trança de três polegadas que parece um pedaço de cabo.
— Mas ao menos — disse Babbington — pudemos encher os tonéis d’água. Depois aparelhamos um mastaréu maior e um mastaréu de sobre-mesana provisórios, e desde então navegamos sem problemas.
Uma infinidade de detalhes..., as preguntas que, em voz baixa e angustiada, Babbington fazia sobre Nicolls..., a assombrosa conformidade ante sua morte..., mais detalhes sobre as vergas desprendidas e como o bauprés havia sido atingido por um raio, sobre os grandes esforços que haviam realizado dia e noite... Então Stephen dormiu, segurando na mão o pedaço de biscoito.
— Aí está — disse Bonden, e Stephen ouviu sua voz entre sonhos —. Içaram uma nova joanete de proa. O capitão ficará encantado de vê-lo, senhor; dizia que o senhor não poderia sobreviver nessas rochas. Estava na coberta dia e noite, e por todo o barco havia homens observando com suas lunetas. Bem sabe Deus que estava muito preocupado. —Riu entre os dentes recordando as ferozes ordens, como os homens eram obrigados a trabalhar duro embora estivessem quase mortos de fadiga.
Com efeito, estava muito preocupado, mas a notícia, que lhe chegou do cesto da gávea, de que a barcaça aproximava-se e que a bordo vinha o doutor muito animado, o tranquilizou, apesar de sentir uma profunda angústia pelo desaparecimento de Nicolls. E quando se inclinou sobre o corrimão ambos os sentimentos se refletiram em seu rosto; tinha um ar grave, mas pouco a pouco ruborizou de satisfação e esboçou um sorriso. Então Stephen subiu pelo costado agilmente, quase como um marinheiro.
— Estou perfeitamente bem! — exclamou —. Contudo, lamento dizer que o senhor Nicolls e o bote desapareceram. Procurei por todas as partes naquela tarde, no dia seguinte e no outro, e não encontrei nenhum rastro deles.
— Sinto muito — disse Jack, movendo de um lado a outro a cabeça e descendo a vista —. Era um bom oficial. Mas vamos, dessa e deitesse na cama. O senhor McAlister te atenderá. Senhor McAlister, por favor, Leve ao doutor Maturin abaixo.
— Permita-me levá-lo, senhor — disse Pullings.
— Eu te ajudarei — disse Hervey.
Todos os que se encontravam no castelo de popa e a maior parte da tripulação observavam ao doutor ressuscitado; seus companheiros mais antigos o olhavam satisfeitos, os outros muito assombrados. Pullings se atreveu até mesmo a se meter entre o capitão e o doutor para pegar o braço deste.
— Não tenho nem a mais mínima intenção descer — protestou Stephen, soltando-se —. Tudo o que necessito é uma xícara de café. Sua Excelência — havia visto o senhor Stanhope ao virar-se para trás —, peço que me desculpe por não haver comparecido ao encontro do domingo.
— Quanto me alegro de que haja sobrevivido! — disse, avançando e apertando-lhe a mão.
Falava com mais comedimento que o habitual, pois Stephen estava completamente nu. E embora ele já tivesse visto muitos homens nus, nunca havia visto nenhum com os olhos avermelhados como cerejas, por causa do sal e do sol abrasador, nem com a pele tão enrugada, enegrecida e cheia de crostas, nem com aspecto cadavérico.
— Alegro-me que lhe hajam resgatado — disse o senhor Atkins, o único homen a bordo que não se alegrava pela barcaça ter regressado.
Stephen estava vagamente relacionado com a missão do enviado do Rei, porque nas instruções deste diziam para “pedir conselho ao doutor Maturin”. Contudo, nelas não se falava do conselho do senhor Atkins, nem sequer se mencionava seu nome, e ele se consumia de ciúmes.
— Quer que vá buscar uma toalha ou alguma outra vestimenta? — continuou, olhando o abdomen encolhido e escrofuloso de Stephen.
— O senhor é muito amável, senhor, mas esta é a roupa com que me apresentarei ante Deus e me parece muito adequada. Poderia chamar-se “traje de nascimento”.
— Deixou esse estúpido sem jeito — sussurrou Pullings para Babbington sem mover nem um músculo da cara —. Ele tinha merecido.
Pela manhã, quando soou a primeira badalada, foi ao desjejum muito animado e arrumado.
— Está certo que não quer ficar na cama? — perguntou Jack.
— Por nada desse mundo, meu amigo — respondeu Stephen, pegando a cafeteira —. Não já repeti um montão de vezes que estou perfeitamente bem? Queria uma fatia desse presunto, por favor. Falo sério, se o pobre Nicolls não estivesse comigo, não me importaria em ficar abandonado em uma ilha deserta. É inóspita, estava me assando, mas nela meus tendões melhoraram mais do que se tivesse passado cem anos nas águas de Bath. Não tive dores nem incômodos! Poderia dançar uma giga, e muito bem, certamente. Mas à parte disso, de que outra forma poderia ter a oportunidade de observar com detalhe as coisas dia após dia? Se consider apenas os artrópodes... Ontem à noite, antes de dormir, antes de meter-me na cama, escrevi um monte de notas que tinha pensado, e aquelas relacionadas com os artrópodes apenas, ocuparam vinte e sete páginas. Deverias lê-las. Terás a primícia de minhas observações.
— Será uma grande satisfação para mim. Obrigado, Stephen.
— Depois me esfreguei várias vezes dos pés à cabeça com uma esponja e água doce, a água doce que afortunadamente recolheras. E depois dormi... Dormi! Pareceu-me que caia lentamente em um espaço vazio e sem fundo, tão profundo que quando acordei esta manhã foi difícil recordar do passado. Afloraram em minha mente recordações fragmentadas, e unindo-as consegui lembrar-me vagamente da enfermaria. Temo que não te darei um bom informe quando terminar minha ronda matutina.
— Sem dúvida, hoje tens menos aspecto de vítima de um holocausto que ontem — disse Jack em tom afetuoso, escrutando seu rosto com o olhar —. Teus olhos já parecem quase com os de um ser humano. E poderão ver algo maravilhoso na coberta, porque hemos tomado por fim um dos ventos alísios do sudeste. — Teve a impressão de que isso não havia sido muito cortês —. Está mais ao sul do que eu gostaria, mas poderemos dobrar o cabo São Roque. Em qualquer caso, cruzaremos o Equador antes de meio-dia; levamos uma velocidade de sete ou oito nós desde que começou a guarda do meio. Queres outra xícara? Diga-me uma coisa, Stephen, que bebias nessas infernais rochas?
— Merda fervida.
Stephen era comedido em sua forma de falar, raras vezes jurava e não dizia insultos nem palavras obscenas. Sua resposta surpreendeu Jack, que baixou imediatamente o olhar para a toalha e pensou que talvez aquele era um termo cientista que havia entendido mal.
— Merda fervida — repetiu Stephen, e Jack sorriu com aparente naturalidade mas não pôde evitar de erubescer-se —. O que ouves. Apenas ficou um charco d’água de chuva em uma profundeza e os pássaros defecaram nele abundantemente. Não é que o fizeram ali a propósito, toda a ilha está sempre cheia de seus excrementos, mas puseram a água tão suja que dava náuseas. O dia seguinte foi mais quente, se isso era possível, e a água passou uma temperatura altíssima. Não obstante, a bebi até que acabou. Então comecei a beber sangue. Mesclava o sangue dos pobres alcatrazes que pegava desprevenidos, com a água do mar e o suco das algas marítimas. Sangue..., Jack, esse cabo São Roque de que falavas com tanta ansiedade não está no Brasil, a terra onde habitam os vampiros?
— Perdoe-me por interrompê-lo, senhor — disse Hervey, aparecendo na porta —, mas me disse para avisá-lo quando a joanete maior estivesse pronta para ser guindada.
Ao ficar sozinho, Stephen olhou a mão sem unhas, a dobrou satisfeito (tinha força para agarrar e podia fazer movimentos precisos), fez uma delicada operação no presunto com sua lanceta e depois se dirigiu à enfermaria pensando: “Posso fazer isso, mas me queimei vivo, me desidratei e fiquei como uma múmia. Bendito seja o poder do sol.”
Cruzaram o Equador nesse dia, mas com cerimônias silenciosas, pois além de estarem sentidos com a perda de seus companheiros e do senhor Nicolls (uma perda mais notória até porque se haviam vendido suas roupas junto ao cabrestante), faltava animação no barco. Netuno apareceu na coberta com seu tridente, roçou levemente os marinheiros iniciantes e os marinheiros mais jovens, pediu a Stephen, o senhor Stanhope e os homens de seu séquito oitenta e seis peniques de multa, salpicou o castelo e o convés com muita água e foi embora.
— Essa foi nossa saturnal — disse Jack —. Espero que não lhe haja desgostado.
— Em absoluto. Estou completamente a favor da diversão sadia. Contudo, duvido que tu a hajas desfrutado, com tantos paus, velas e cabos espalhados por aí, meio destruidos, e com o tempo, pelo que me disse, muito escasso.
— Não se deve alterar os costumes. Os homens terão que trabalhar dobrado na jornada de amanhã e assim terão muito melhor disposição. Os costumes...
— Na Armada estais carregados de costumes — disse Stephen —. Badaladas, um linguagem esotérica (em minha opinião não deve chamar-se gíria) e cerimônias sem sentido. A venda das roupas do pobre Nicolls, por exemplo, me pareceu uma verdadeira falta de piedade. E ao senhor Stanhope também. É uma pessoa muito mais interessante do que se pode imaginar. Lê e toca muito bem a flauta. Mas não vim aqui para falar-te do enviado do Rei, mas de algo muito mais sério. Os incessantes esforços da semana passada hão extenuado aos homens e muitos dos que não apresentavam sinais de escorbuto no último reconhecimento agora estão afetados pela enfermidade. Aqui está a lista. Inclue quase todos os tripulantes do Racoon, muitos da Surprise e quatro camponeses. Mas ainda há algo pior: a tormenta afetou o paiol onde estavam os remédios e formaram com eles e com os restos do duvidoso suco de lima um estranho magma. Meu amigo, oficialmente te comunico que não sou responsável do que ocorra (se queres o ponho por escrito), a menos que se dê a esses homens vegetais verdes, carne fresca e, sobretudo, cítricos nos próximos dias. Se te hei entendido bem, tens a intenção de bordejar a costa leste do Brasil, e precisamente — olhava com avidez para o oeste pela porta aberta — a parte oriental do Brasil está cheia de tudo isso.
— Sim — afirmou Jack —. E de vampiros.
— Não penses que não me fiz um exame de consciência — disse Stephen, pondo a mão no peito de Jack —. Não creias que não sou consciente de meus grandes desejos de pisar o Novo Continente o quanto antes. Mas venha ver como começou a supurar a ferida de uma amputação realizada há cinco anos, como feridas já curadas estão abertas, como muitas gengivas têm ficado purulentas, as febres pouco altas, as pústulas, os casos de extravasão acompanhada de lividez.
— Não falava sério — disse Jack —. Mas a verdade é que devo levar em consideração muitas coisas.
Eram muitas, de fato. Esta viagem era muito comprida e já havia perdido muito tempo. Posto que o cabo de Boa Esperança estava de novo em mãos dos holandeses, teria que descer até os quarenta graus de latitude para encontrar os fortes ventos do oeste. Com esses ventos poderia chegar ao oceano índico percorrendo duzentas milhas por dia, de modo que poderia ainda alcançar a monção do sudoeste à altura de Madagascar. Tinha ordem de fazer escala no Rio de Janeiro, a umas mil milhas de distância, que não tardariam muito em percorrer se os ventos alísios que haviam conseguido tomar com tanta dificuldade se mantivessem; mas se aproximassem da costa poderiam perdê-los. Se fizessem escala em Recife seguramente teriam problemas com as autoridades portuguesas: na melhor das hipóteses sofreriam um enorme atraso e, na pior, se produziria algum incidente, haveria detenções e inclusive atos violentos, porque em qualquer outro porto que não fosse o Rio de Janeiro eram muito estritos com os barcos de guerra extrangeros. E além do atraso e do possível conflito, não era seguro que pudessem conseguir provisões. Stephen tinha boa fé, mas ao fim e ao cabo era um naturalista afeiçoado aos insetos, os vampiros...
— Deixa-me pensar, Stephen — disse um momento depois —. Quero visitar a enfermaria.
— Muito bem. E enquanto nos dirigimos para lá, pense também em que meus ratos desapareceram, mas não foram levados pela tempestade. A jaula está intacta e tem a porta aberta. Volto a costas cinco minutos para tomar o ar em Saint Paul Rocks e meus valiosos ratos desaparecem! Se esse é um de vossos costumes navais, gostaria de vê-los crucificados nas vergas de sobrejoanete, e queria que os esfolassem vivos antes de que os pusessem os cravos. Não é a primeira vez que isto me acontece. Também desapareceram uma víbora à altura de Fuengirola e três ratazanas no golfo de Leão. Hei criado esses ratos, os mimei desde que sairam do cabo Berry, os alimentei com a melhor e mais refinada raiz de louro apesar de seu retrocesso, e agora tudo foi perdido, o experimento ficou sem valor, totalmente estragado.
— Por que as alimentavas com raiz de louro?
— Porque, segundo Duhamel, a cor vermelha se concentra e se fixa em seus ossos. Interesava-me saber em que proporção penetrava e se chegava à medula. Mas o/ou sabré com o tempo, pois McAlister e eu faremos a dissecação de todos os sujeitos que possamos e se verá o mesmo efeito naqueles que as tenham comido. E te advirto, Jack, seriamente, que se te obstinas em seguir esta contraproducente corrida, em abrir mais velas para não perder nem um momento, a maioria dos tripulantes passarão por nossas mãos, incluindo, por suposto, a esse maldito ladrão cujos ossos, para sua vergonha, estarão tingidos de vermelho.
Disse as últimas palavras quando chegavam à entrada da enfermaria, e levantou a voz para que o ouvissem na forja, onde o armeiro e seus homens estavam fazendo um guindaste de ferro para substituir o que a tormenta havia levado. Jack entrou na abarrotada enfermaria e aspirou o ar fétido que a mangueira de ventilação era incapaz de eliminar. Manteve-se impassível enquanto Stephen e McAlister desfaziam bandagens e lhe mostravam os efeitos do escorbuto nas velhas feridas; não fez nenhum gesto quando o levaram a ver o caso que melhor servia de testemunho, o coto de um membro amputado há cinco anos. Mas quando lhe mostraram uma caixa cheia de dentes e mandaram buscar os enfermos que ainda se mantinham de pé para que visse a facilidade com que lhes caiam os dentes e as suas gengivas sangrentas, disse que isso era suficiente e se foi apressadamente à popa.
— Killick! — gritou —. Hoje não vou comer. Avise ao senhor Babbington. — Ocupar-se-ia de algo agradável que o fizesse esquecer aquele cheiro de a ossuário —. Ah, senhor Babbington, o senhor está aí! Suponho que saiba por que o mandei chamar.
— Não, senhor — disse Babbington em seguida, pensando que era melhor negar tudo se era possível.
— Como vai a sua carreira? Deve ter bastante tempo de serviço.
— Cinco anos, nove meses e três dias, senhor.
Depois de suportar seis anos inscrito na função, um cadete podia ascender a tenente, ou seja, deixava de ser um cadete, uma pessoa insignificante a quem podiam dispensar ou rebaixar à vontade, para converter-se em um sagrado oficial. E Babbington tinha contado o tempo até/mesmo a última hora.
— Pois bem, vou a nomear-te tenente em funções para que substituas o pobre Nicolls. Quando nos reunirmos com o almirante já haverá transcorrido o tempo necessário para que possas fazer o exame, e estou seguro de que o Almirantado confirmará a nomeação. Não te reprovarão em nada relacionado com as tarefas de um marinheiro, mas seria conveniente pedir ao senhor Hervey que te ajudasse com a distância angular.
— Oh, obrigado, senhor! — exclamou Babbington, cheio de alegria.
Embora esperasse a nomeação (havia comprado uma jaqueta de Nicolls quando venderam suas roupas) não tinha segurança de obtê-la, já que Braithwaite, o outro cadete que tinha bastante antiguidade (que havia comprado duas jaquetas, dois coletes e dois pares de calças), tinha o mesmo direito ao posto que ele. Além disso, o capitão lhe tratara com dureza em Madeira, dizendo-lhe: “Este barco não é um bordel flutuante”, e o havia reprendido com mais dureza ainda por não chegar pontual à troca da guarda. Esse era um momento emocionante, e ao ouvir as palavras com que Jack concluiu: “Bom comportamento..., responsável..., atitudes para ser oficial..., quando está a cargo da guarda me sinto tão tranquilo como se o estivesse um oficial”, saltaram lágrimas dos seus olhos. Mas em meio à sua alegria, a sua consciência começou a atormentá-lo e, quando chegou à porta, depois de ter-lhe agradecido, voltou-se e balbuciou:
— O senhor é tão amável comigo, senhor, sempre o foi, que me parece uma canalhada... Nunca me promoveria se... Mas não dizia do todo mentira...
— Que? — perguntou Jack assombrado.
Então soube que Babbington comera os ratos do doutor e que o sentia muito.
— Não pode ser, Babbington! — exclamou —. Como pôde fazer uma coisa tão horrível? Comportara-se de um modo vergonhoso, desprezível. O doutor foi sempre bom contigo, ninguém poderia ser melhor. Foi ele quem te salvou o braço quando todos juravam que o perderias. Foi ele que levou a sua maca para a enfermaria e permaneceu sentado a seu lado por toda a noite, curando-te a ferida.
Babbington não aguentou mais e começou a chorar. Apesar de ser tenente em funções, limpava as lágrimas com a manga, e entre soluços contou tudo a Jack: alguém havia levado essas estupendas molineras ao camareta dos cadetes de bombordo e, embora ele não as tenha matado (de fato, haveria evitado que o fizessem, pois tinha um grande afeto pelo doutor, tanto que havia brigado com Braithwaite, sobre de um baú, porque este havia dito que o doutor era um tipo extravagante) como já estavam mortas e temperadas com molho de cebola e ele tinha tanta fome, pensou que era uma lástima deixar que os outros as comessem sozinhos, e desde então havia ficado com a consciência pesada e esperava que o chamassem a prestar contas na cabine..
— E terias sentido náuseas se soubesse o que tinham dentro. O doutor...
— Ocorre-me uma ideia, Jack... — disse Stephen, entrando de repente —. Oh, peço-te que me desculpes!
— Não importa. Fique, Stephen. Fique, por favor — respondeu Jack.
Babbington olhou para um e para o outro, umedeceu os lábios com a língua e disse:
— Comi um de seus ratos, senhor. Sinto muito e lhe peço que me perdoe.
— Ah, sim? — perguntou Stephen tranquilamente —. Bom, espero que tenha gostado. Podes olhar a minha lista agora, Jack?
— Ele o comeu quando já estava morto — frizou, Jack.
— Se tivesse feito antes, a comida haveria sido muito apressada e agitada — disse Stephen, olhando atentamente a lista —. E diga-me, senhor, por casualidade conserva algum de seus ossos?
— Não, senhor, sinto muito. Generalmente nós os comemos, porque são como os da calandra. Alguns companheiros disseram que eles pareciam muito escuros.
— Pobrezinhos! Pobrezinhos! — exclamou Stephen em voz baixa.
— Quer que esse roubo seja registrado, doutor Maturin? — perguntou Jack.
— Não, meu amigo, longe disso. Eu temo que a Natureza se encarregará disso.
Voltou à enfermaria e, depois de fazer algumas bandagens, perguntou a McAlister quantos cadetes viviam na camareta de bombordo. Ao saber que eram seis escreveu uma receita e pediu a McAlister que a preparasse e formasse seis pastilhas.
Na coberta Stephen teve a sensação de que o observavam de algum lugar oculto. Por isso não se surpreendeu que, depois da comida, quando aparentemente tinha melhor humor, recebesse a visita de vários jovens em representação dos cadetes, todos bem lavados e com jaquetas apesar do calor. Também eles sentiam muito por terem comido seus ratos, também eles lhe pediam perdão e prometiam não voltar a fazê-lo.
— Jovenzinhos — disse —, estava esperando-lhes. Senhor Callow, tenha a amabilidade de apresentar os meus respeitos ao capitão e entregar-lhe esta nota.
Então escreveu: “Poderias dispensar de suas tarefas durante um dia aos cadetes e ao escrevente?” Dobrou a nota e a entregou. Entretanto, observou aos cadetes: Meadows e Scott, voluntários de primeira classe, de doze e quatorze anos respectivamente; o escrevente do capitão, de dezesseis anos, um jovem peludo, com as mangas de sua jaqueta do ano anterior muito acima das munhecas; Joliffe e Llurll, cadetes de quinze anos. Todos estavam mais altos e mais famintos do que suas mães houvessem desejado. Todos o olhavam de soslaio, tinham o rosto muito pálido e sua habitual expressão alegre havia dado passagem a outra solene.
— O capitão lhe envia cumprimentos, senhor — disse Callow —, e diz que não há inconveniente, que lhes concede até mesmo uma semana, se o senhor quiser.
— Obrigado, senhor Callow. Faça-me o favor de tomar esta pastilha. Senhor Joliffe, senhor Llurll...
A Surprise permanecia imóvel enquanto os desejados ventos alísios passavam por sua exárcia sussurrando e se afastavam sem ser aproveitados. Por estibordo tinha o cabo São Roque, que adentrava no mar com seu contorno extremamente irregular. A vegetação tropical que o cobria era tão espessa que não ficava livre nem um pequeno espaço de terra nem podia ver-se nenhuma rocha, à exceção das que estavam na margem do mar, onde rompiam as ondas para extender-se depois pela brilhante orla, salpicada aqui e alí por pequenas enseadas que chegavam até as árvores.
Em uma dessas pequenas enseadas havia um riacho (viam-se suas águas turvas mesclando-se com as águas azuis do mar e deslocando-se para os lados da estreita corrente), e seguindo o seu curso podia distinguir-se os telhados de um povoado bastante afastado da costa. Além daqueles telhados não havia nada mais, nem uma espiral de fumaça nem uma cabana nem uma vereda; o resto do Novo Continente era uma exuberante selva milenar, um conglomerado de diferentes tons de verde. Jack, com a luneta apoiada sobre a barreira, podia ver a selva muito próxima. Viu troncos meio caidos, sustentados por um emaranhado de gigantescas trepadeiras, árvores novas, um pássaro de plumagem escarlate e, um pouco mais à direita, flores cor de fogo. Mas a maior parte do tempo, hora após hora, observava os telhados e o riacho, esperando ver algum movimento.
Naquela manhã, quando a silhueta do Brasil havia aparecido ao oeste, ele teve uma ideia que pareceu estupenda: não iriam a Recife nem a nenhum outro porto, mas que bordeariam a costa e mandariam uma lancha desembarcar em uma vila de pescadores próximo, assim não teriam problemas com as autoridades nem perderiam muito tempo. Stephen estava convencido de que qualquer pedaço cultivado dessa costa lhe proporcionaria o que necessitava e, olhando para o cabo São Roque, havia dito: “O que necessitamos são vegetais. E em que outro lugar, a exceção do vale de Limerick, poderíamos encontrar mais?” Então haviam visto as canoas deslizando rapidamente pelo riacho e os telhados mais atrás. Posto que Stephen era o único de alto cargo que conhecia o português e quais eram as necessidades da enfermaria, era lógico que descesse à terra. Contudo, houve que convencer-lhe de que o fizesse, e quando ia jurou por sua honra que os vampiros não haviam influido em sua decisão e que não traria nenhum à fragata.
Jack permaneceu de costas no barco, onde o trabalho continuava. Aprovellavam esta pausa para ajustar os novos aparelhos do mastro maior e voltar a colocar as botavaras, mas o trabalho era lento, pois apesar do contramestre e seus ajudantes gritarem mais do que o habitual, não conseguiam que a escassa e desanimada tripulação fosse muito eficiente. Da banheira chegavam os gritos irados dos carpinteros e o senhor Hervey também estava muito furioso.
— Onde havia se metido, senhor Callow? — gritou o senhor Hervey —. Faz dez minutos que te mandei trazer o compasso para medir o azimut.
— Estava na proa, senhor — respondeu Callow muito nervoso, olhando para o capitão, que seguia de costas.
— Na proa! Na proa! Todos os cadetes me dão hoje a mesma desculpa pouco convincente. Joliffe estava na proa, Meadows estava na proa, Llurll estava na proa. Que se passa com todos os senhores? Algo que comeram lhes caiu mal ou estão fazendo uma farsa? Não tolerarei esta tentativa de safar-se do trabalho. Não jogue com o dever ou brevemente estará no tope, lhe asseguro.
Soaram seis badaladas. Jack voltou-se e se encaminhou ao seu encontro para tomar o/ou chá com o senhor Stanhope. Quanto melhor conhecia o senhor Stanhope mais agradável lhe parecia, apesar de que ele era o homem mais inútil que havia visto. Sua preocupação em não causar problemas, seu agradecimento por tudo o que faziam para que se sentisse cômodo, sua consideração desmedida pelos marinheiros e sua fortaleza (não havia se queixado pela tormenta e suas desastrosas consequências) eram comovedoras. Quando descobriou que Jack e Hervey estavam relacionados com famílias que conhecia, começou a tratar-lhes como a seres humanos. Tratava a todos os demais como se fossem cães, mas cães bons e inteligentes que formavam parte de uma comunidade que sentia carinho por eles. Era cerimonioso, amável por natureza e tinha um profundo sentido do dever. Quando Jack chegou, ele o recebeu com reiteradas desculpas por ocupar sua cabine.
— Seguramente estará muito apertado. É uma dura prova para o senhor estar confinado a um espaço tão reduzido — disse, enquanto lhe servia uma xícara de chá de uma forma que fez Jack se recordar da sua tia avó Lettice, com os mesmos gestos clericais, o mesmo movimento de munheca, a mesma concentração e solenidade.
Falaram da flauta de Sua Excelência, que dava um quarto de tom a mais devido ao calor extraordinário, do Rio de Janeiro e das provisões que esperavam encontrar ali, do costume naval de considerar um ano um período de treze meses.
— Sempre desejei preguntar-lhe, senhor — continuou o senhor Stanhope —, por que alguns amigos meus e conhecidos que são marinheiros, ao referirse à Surprise, chamam-na de Nemesis. Ela trocou o seu nome? Foi arrebatada dos franceses?
— Bom, senhor, é que na Armada usamos apelidos. Por exemplo, chamamos a Britannia de Old Ironsides. O senhor se recorda da Hermione e o que lhe ocorreu em 1797?
— Não, não me lembro de nenhum barco com esse nome.
— Era uma fragata de trinta e dois canhões que estava no posto das Índias Ocidentais. Desgraçadamente, seus tripulantes se amotinaram, mataram os oficiais e levaram a fragata à Guayra, um lugar no território espanhol.
— Oh, que horrível! Sinto muitíssimo.
— Foi algo horrível, e além disso, os espanhóis não a devolveram. Então, em poucas palavras, Edward Hamilton, que estava ao comando da Surprise, a sacou dali. Estava amarrada pela proa e popa em Porto Cabello, um dos portos mais fechados do mundo, protegida pelas baterias espanholas, quase com duzentos canhões, e os espanhóis, que observavam todos os movimentos da Surprise desde que havia se aproximado da costa, mantinham-se alertas. Não obstante, naquela noite ele e seus homens entraram no porto em botes, a Abordaram e a levaram. Mataram cento e dezenove tripulantes e feriram noventa e sete, e tiveram muito poucas baixas, embora ele estivesse muito machucado. Oh, foi uma ação extraordinária! Haveria dado minha mão direita para estar ali. Assim que o Almirantado mudou o nome de Hermione para Retribution, todos na Armada passaram a chamar a Surprise de Nemesis porque...
Pela claraboia aberta ouviu o grito do serviola do tope, que avisava que a lancha se afastava da costa seguida de duas canoas. O senhor Stanhope continuou falando sobre a justiça, a recompensa, as deserções, o inevitável castigo que recebiam todas as transgressões, pois os delitos levavam em si as sementes da perdição do delinquente, e a lamentável depravação dos amotinados.
— Para atacar assim aos que têm legalmente a autoridade, seguro que foram incitados por algum maldito jacobino ou algum radical que não deixava de acossar-lhes — disse —. Espero que hajam sido severamente castigados.
— Com os amotinados acabamos rápido, senhor. Todos aqueles que pudemos pôr as mãos em cima, os subimos em seguida ás vergas e os enforcamos, com uma marcha de fundo. Asseguro que foi algo horrível. (Jack havia conhecido ao infame capitão Pigot, a causa do motim, e alguns dos honestos marinheiros que haviam sido empurrados a ele. Aquela era uma horrível lembrança.) E agora, senhor, se me permite, tenho que subir à coberta para ver o que nos traz o doutor Maturin.
— O doutor Maturin já está de volta? Alegro-me em saber. Irei com senhor, se me permite. Tenho o doutor Maturin em grande estima; é um cavalheiro de talento, de grande valia. Não faço objeções a um pouco de originalidade..., eu mesmo sou criticado pelos amigos por tê-la. Se importaria de dar-me seu braço?
Seria de talento e de grande valia, pensava Jack, observando-lhe com o telescópio, mas também era um mentiroso, até mesmo perjuro. Por sua própria vontade havia jurado que não tinha nenhum interesse nos vampiros e, contudo, trazia sobre o peito algo peludo de cor verdoso que o rodeava com um braço, algo que parecia um tapete mas que seguramente era um horrível e enorme vampiro da espécie mais venenosa. “Nunca teria acreditado nisso”, pensou. “Jurou solenemente nesta manhã e, em troca, agora enchia a fragata de vampiros. E apenas Deus sabe o que há nessa bolsa. Sem dúvida, teve uma forte tentação, mas deveria se enrubescer de vergonha por haver caído nela.”
Mas não ruborizou. Parecia muito satisfeito e quase embasbacado quando subia lentamente pelo costado, inclinando-se sobre a carga que levava e dizendo-lhe palavras tranquilizadoras em português.
— Alegra-me ver o êxito que teve, doutor Maturin — disse, olhando para a lancha e as canoas, carregadas de reluzentes montes de laranjas e toranja, carne, iguanas, bananas e vegetais —. Contudo, não se permitem vampiros a bordo.
— Este é uma preguiça — disse Stephen sorridente —. Uma preguiça com três dedos nas patas, a mais agradável e afetuosa criatura que possas imaginar.
A preguiça voltou a cabeça para Jack e o olhou fixamente, depois lançou um desesperado gemido e voltou a esconder a cara no peito de Stephen, apertando-lhe mais forte, quase estrangulando-lhe.
— Vem, Jack, separa a sua pata direita, não tenhas medo. E o senhor, Excelência, tenha a amabilidade de separar a esquerda. Soltem as unhas com cuidado. Assim, assim, amiguinho. Agora o levaremos para baixo. Devagar, devagar. Não o assustem, por favor.
A preguiça, contudo, não se assustava com facilidade. E quando colocaram na cabine um pedaço de cabo tenso, pendurou-se nele com as garras e ficou dormido, balançando-se ao ritmo das ondas, semelhante ao que fazia, ao ritmo do vento, quando estava pendurado nas ramas em seu bosque natal. De fato, deixando à parte a angústia que sentia ao ver a cara de Jack, era perfeitamente apto para a vida na mar. Não se queixava, não necessitava de ar fresco nem de luz, podia desenvolver-se em um lugar úmido e fechado e dormir em quaisquer circunstâncias, tinha vontade de viver e podia suportar qualquer situação por pior que fosse. Além disso, aceitava de boa vontade bolachas e mingau. Pelas tardes caminhava pela coberta, embora com dificuldade devido a suas garras, e subia na exárcia. Depois, pendurado de cabeça para baixo, deslocava-se por ela, avançando duas ou três jardas de uma vez e fazendo pausas para dormir. Os marinheiros lhe haviam tomado afeto desde o princípio e o subiam aos cestos ou mesmo mais cima. Afirmavam que ele dava sorte à fragata, embora fosse difícil comprender suas razões, pois fazia dias que quase não soprava o vento do sudeste ou era muito fraco.
Os alimentos frescos tiveram um efeito extraordinariamente rápido. Em uma semana a enfermaria ficou quase vazia, e a Surprise, com abundância de tripulantes e muito ânimo, poliu de novo seus altos mastros, recuperando seu aspecto impecável. Reiniciou-se os exercícios com os canhões, que haviam sido suprimidos para fazer as urgentes reparações, e todos os dias os ventos alísios arrastavam a fumaça da pólvora. No princípio, os exercícios inquietavam a preguiça, que quase correndo ia-se abaixo, e em meio do silêncio que se produzia entre uma descarga e outra ouvia-se o clac-clac-clac de suas garras. Não obstante, quando já haviam passado justo debaixo do sol, e o vento, por fim, havia começado a soprar com força, a preguiça dormia durante toda a prática em seu lugar habitual, acima das caronadas do castelo de popa, pendurado das bainhas do mastro de mesana, e também dormia enquanto os infantes da marinha faziam exercícios com seus mosquetes e Stephen com sua pistola.
Durante todo aquele tedioso percurso, até mesmo com os ventos alísios do noroeste, a fragata não havia dado o melhor de si, mas agora, com aquele vento forte e constante, aquela grande massa de ar, a Surprise voltava a ser o que Jack Aubrey havia conhecido em sua juventude. Jack não estava contente com a exárcia, nem com a inclinação de seus mastros, nem com os própios mastros, e muito menos com as condições dos fundos, e contudo, posto que a fragata tinha o vento pela alheta e podia suportar as asas desfraldadas, se movia com a extraordinária vivacidade e energia de antigamente, com uma agilidade e um domínio do mar que ele reconheceria mesmo que tivesse os olhos vendados.
O sol se pôs, desprendendo um vermelho resplendor durante alguns instantes; do leste, a noite ia cobrindo o céu sem lua, cujo azul era mais intenso a cada minuto O que está acontecendova, e as cristas das ondas começaram a brilhar como se um fogo interior as iluminasse. O tenente em funções, o terceiro a bordo, que pavoneava pelo costado de barlavento do castelo de popa, deteve-se e, voltando-se para o costado de sotavento, gritou:
— Senhor Braithwaite, está pronto com a barquilha?
Babbington ainda não se atrevia a tratar com demasiada superioridade os seus antigos companheiros, embora, para tranquilizar a sua consciência, havia impedido os cadetes da camareta de estibordo de fazer muitas travessuras. Sua desnecessária pergunta tinha como único propósito obrigar a Braithwaite a responder:
— Preparado, senhor.
O sino soou. Braithwaite fez descer a barquilha pelo costado da fragata até as fosforescentes águas e o barbante se desenrolou do carretel. Ao ouvir o grito do oficial de navegação, mediu o pedaço desenrolado, tirou a chaveta, subiu a barquilha a bordo e exclamou:
— Conseguimos! Conseguimos! Onze nós!
— Não pode ser verdade! — exclamou Babbington, com uma grande alegria que terminou com sua dignidade. Vamos voltar a medir.
Voltaram a extrair a barquilha, observaram como desaparecia na luminosa e turbulenta esteira, que brilhava mais agora porque o céu estava mais escuro. E o próprio Babbington, que sustentava entre os dedos o barbante enquanto se desenrolava, pegou o nó número onze, e então gritou:
— Onze!
— Que estão fazendo? — perguntou Jack, justo detrás do excitado grupo de cadetes.
— Estava comprovando a precisão do senhor Braithwaite, senhor — disse o terceiro a bordo —. Oh, senhor, navegamos a onze nós! Onze nós, senhor! Não é estupendo?
Jack sorriu. Observou a burda, tão tensa que parecia de ferro, e se dirigiu à proa. Stephen e o senhor White, o pastor que acompanhava o enviado do Rei, estavam tombados sobre o castelo, muito bem atados à borda, e se agarravam em qualquer coisa, nas cornamusas, nos vinhateiros e até no guindaste de ferro, apesar de quente.
— Não se decidiu ainda? — perguntou.
— Estamos esperando o momento certo, senhor — respondeu o pastor —. Tenha a bondade de ficar-se um pouco de tempo, se for possível, para comprovar que tudo se faz como é devido; está em jogo uma garrafa de cerveja. Enquando Vênus se põe, o doutor Maturin lerá uma página elegida ao acaso iluminado apenas pela fosforescência.
— Mas não as notas no pé da página — disse Stephen.
Jack alçou os olhos, e ali, no estai do traquete, junto à joanete agitada pelo vento e com o Cruzeiro do Sul de fundo, estava a preguiça se balançando ao ritmo do barco.
— Não creio que as estrelas vão brilhar muito — disse.
As ondas que se formavam na proa eram muito altas, devido à velocidade da fragata, e banhavam o corrimão de sotavento, iluminando-o com uma luz azul esverdeada que parecia sobrenatural e lançando sobre eles gotas fosforescentes, mais brilhantes até que a esteira que deixavam detrás, uma faixa de três milhas de longitude que brilhava como uma barra de metal. Durante uns momentos, Jack esteve observando como a espuma passava sobre a borda e, empurrada pelas correntes que se formavam entre as bujarronas e a traquetina, chegava até o traquete; depois olhou para o oeste e viu a estrela já muito próxima do horizonte. O brilhante círculo estava justo sobre o mar, subiu de novo ao elevar-se as ondas e finalmente desapareceu; a luz das estrelas perdeu muitíssima intensidade.
— Já se pôs — disse.
Stephen abriu o livro e, voltando a página para as ondas de proa, leu:
Aienta a comunicação entre as almas
e leva pelo ar um suspiro desde o Indo até o polo.
E em continuação exclamou:
— Senhor White, lhe hei ganhado! Reclamo a minha garrafa. Deus meu, que bem me fará! Tenho tanta sede! Capitão Aubrey, o convido a compartilhar a garrafa. — Olhou para o céu aveludado —. Vem, Letargia!
— Oh, Oh! — gritou o pastor, cambaleando entre as espichas —. Um peixe..., um peixe me há golpeado! Um peixe voador me há golpeado a cara!
— Aí há outro — disse Stephen, recolhendo-o —. Hei notado que esses peixes, paradoxicamente, voam com o vento. Creio que deve de existir uma corrente de ar que sobe. Como brilham! E como voam! Olhem, olhem, aí vem o terceiro! Vou dá-lo à preguiça depois de fritá-lo ligeiramente.
— Não posso comprender — disse Jack, ajudando o pastor a erguer-se e guiando-o pelo corrimão —, que tem essa preguiça contra mim. Sempre hei sido amável com ela, muito amável, mas não há servido de nada. Não entendo por que dizem que é afetuoso.
Jack era alegre e otimista, e como simpatizava com a maioria das pessoas, ficava surpreso quando não agradava a alguém. Apesar de haver perdido simpatia nos últimos anos, a que sentia pelos cavalos, os cães e as preguiças se conservava intacta, por isso lhe doia ver que o pobre animal chorava quando ele entrava na cabine, e para evitar molestá-lo ficava fora. Enquanto se dirigiam ao Rio de Janeiro se sentava junto dele em seus momentos de ócio e lhe falava em português, ou algo parecido, e lhe dava alimentos que às vezes ele engolia e outras deixava que escorresse da boca com a baba. Contudo, não obteve nenhuma resposta até que estiveram próximo do trópico de Capricórnio, com Rio de Janeiro pela amura de estibordo.
Havia esfriado tanto que quase fazia frio, porque o vento rolava cada vez mais ao leste, para a zona de correntes geladas entre Tristán da Cunha e o cabo. A preguiça, desconcertada pela mudança, preferiu deixar a coberta e passar seu tempo abaixo. Jack estava na cabine, marcando a carta marinha menos satisfeito do que tinha desejado (algum progresso, mas lento..., sérios problemas com o mastro maior..., o fortíssimo vento em oposição durante a noite) e bebendo grogue, enquanto Stephen, no cesto da gávea do mastro da mesana, ensinava Bonden a escrever e observava o mar esperando ver algum albatroz. A preguiça espirrou, e Jack, ao levantar os olhos para ele, observou que lhe estava olhando e que em seu rosto invertido havia uma expressão angustiada.
— Prova isto, amigo — disse, e fez uma sopa com um pedaço de biscoito e grogue e a deu —. Creio que te animará.
A preguiça fechou os olhos e suspirou, mas sorveu toda a sopa, e voltou a suspirar.
Minutos depois Jack sentiu que o tocavam o joelho: era a preguiça. Havia baixado sem fazer ruído e agora estava ali, a seu lado, com atitude expectante, olhando-lhe fixamente com seus olhos pequenos, redondos e brilhantes. Mais biscoito, mais grogue; a confiança e o afeto aumentaram. Desde então, quando o tambor tocava a retirada, a preguiça ia buscar-lhe, correndo sobre seus patas irregulares. Tinha sua própria vazilha e, enquanto a segurava entre as garras, metia o focinho nela e bebia com os lábios franzidos (sua língua era excessivamente curta para lamber). Às vezes ficava dormido nessa posição, com a cabeça sobre a vazilha vazia.
— Neste balde — disse Stephen, entrando na cabine —, neste pequeno balde meio cheio, tenho a população de Dublín, Londres e París reunidas: estes animálculos... Que se passa com a preguiça?
A preguiça estava feito um novelo sobre as pernas de Jack, respirando pesadamente; sua vazilha e o copo de Jack estavam vazios sobre a mesa. Stephen o pegou nos braços, observou sua cara, que tinha uma expressão tranquila e um tanto esgotada, o sacudiu e o pendurou na sua corda. O animalzinho se agarrou com uma pata dianteira e uma traseira, enquanto as outras duas ficaram penduradas, e dormiu.
Stephen viu a jarra. Depois olhou a preguiça e gritou:
— Jack, has pervertido a minha preguiça!
Ao outro lado do antepara da cabine, o senhor Atkins disse ao senhor Stanhope:
— O doutor está discutindo com o capitão, senhor. Hui, hui! Parece-me que foi excessivamente longe e duvido que um homem de temperamento possa suportar isso. Se fosse eu lhe daria uma surra.
O senhor Stanhope não achava bom escutar detrás das anteparas e não respondeu. Contudo, não pôde evitar ouvir algumas frases soltas como: “tes moeurs crapuleuses... tu cherches a corrompre monparesseux..., va done, eh, salope..., espéce de fripouille”, pois a discussão seguiu em francês, depois que Killick entrou com uma cara muito má.
— Espero que não cheguem tarde à partida de whist — murmurou.
Agora que o ar era mais respirável, o senhor Stanhope havia recuperado suas forças e esperava ansioso que chegassem as tardes em que se jogava cartas, a única forma de romper a indescritível monotonia de uma viagem transoceânica.
Não chegaram tarde. Fizeram sua aparição ao soar a hora. Contudo, tinham a cara avermelhada, e Stephen tratou de fazer armadilha para conseguir que o enviado do Rei fosse seu companheiro. Jack jogou de uma maneira abominável, e Stephen, com maliciosa concentração, arrancou suas vitórias como se fosse uma serpente que cravava os dentes e se exibiu com os comentários ao final da partida, demostrando a seus oponentes que quem estava com cartas podia haver tirado o rei e que podiam haver ganhado a vaza decisiva jogando o ás; a tarde terminou sem que a tensão tenha diminuido. Todos lhe olhavam nervosos enquanto calculavam a enorme quantidade de pontos que havia ganhado, e então Jack, com fingida alegria, disse:
— Cavalheiros, se os cálculos do segundo oficial são tão exatos como os do doutor Maturin no jogo de cartas e se este vento se mantém, parece-me que amanhã os senhores despertarão no Rio de Janeiro. Já sinto a proximidade da terra..., a sinto nos ossos.


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Na quietude da guarda do meio subiu à coberta em camisa de dormir, observou o tabuleiro com as medições à luz da bitácula e ordenou a Pullings que diminuisse vela ao soar as oito badaladas. Voltou a rondar por ali, como um alma penada, quando soaram as cinco badaladas, e mudou a orientação das gávias durante um tempo. Seus cálculos resultaram rigorosamente exatos, pois fez chegar a fragata ao Rio de Janeiro justo quando o sol assomava por detrás da cidade, banhando com sua luz dourada aquele maravilhoso panorama. Mas isto não serviu de nada, não conseguiu fechar a ferida. Stephen, a quem haviam tirado da cama para contemplar o panorama, disse que era curioso como às vezes a Natureza podia ser tão vulgar e enganosa e intentar produzir efeitos ad captan-dum vulgus, o mesmo tipo de efeitos que tratavam de conseguir Astley e Ranelagh, mas que, afortunadamente, não o lograva. Talvez tinha a intenção de fazer outros comentários, já que a preguiça havia passado toda a noite mareado, mas, nesse momento, a Surprise se encheu de labaredas e fumaça ao saudar ao almirante português, que se encontrava a bordo de um navio de setenta e quatro canhões cor carmim, junto a Rat Island.


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Jack desembarcou com o senhor Stanhope depois do café da manhã. Seus remeiros estavam barbeados e muito arrumados, com chapéus de palha e calças de brim brancas como a neve, e ele estava com seu melhor uniforme. Quando voltou não havia em sua expressão nem o menor rastro de receio, rancor ou arrogância. Bonden trazia uma bolsa, e por todo o barco se repetiu o grito: “Correio!”
— O capitão lhe envia seus cumprimentos e diz que gostaria que lhe dedicasse uns momentos — disse Church o Ratívoro —. E..., senhor — apertou o braço de Stephen e baixou a voz —, por favor, interceda em favor de Scott e de mim para que nos deixem descer a terra. Creio que merecemos.
Perguntando-se como era possível que Church cresse merecer outra coisa que ser empalado, Stephen entrou na cabine. Ali encontrou uma doce sorriso, uma grande alegria e cheiro de porto. Jack estava sentado à mesa, sobre a qual havia várias cartas de Sophie abertas, dois copos e uma jarra.
— Ah, já estás aqui, meu querido Stephen! — exclamou —. Vem, tómate um copo do porto que os franciscanos irlandeses nos presentearam. Recebi cinco cartas de Sophie, e aí há algumas para ti..., creio que também são de Sussex. — Estavam sobre outro montão de cartas dirigidas ao doutor Maturin e a letra era, certamente, a de Sophie —. Tem uma letra preciosa, verdade? Podes entender todas as palavras. E que estilo! Que estilo! Pergunto-me como haverá conseguido ter esse estilo, seguramente essas cartas estão entre as melhores já escritas. Há um fragmento que fala do jardim de Melbury e os perais que é tão bom como o de uma obra literária, vou ler para ti... Mas se queres ler suas cartas agora, não te preocupes comigo, não tenhas cerimônias.
— Não, agora não — disse Stephen, com ar ausente, metendo-as no bolso e passando uma a uma as demais, que eram de sir Joseph, Ramis, Waring e quatro desconhecidos —. Diga-me uma coisa...

 

 

                                                                                                   

 

                                       

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