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A GAROTA INGLESA / Daniel Silva
A GAROTA INGLESA / Daniel Silva

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Advogado sem importância, Jonathan Lancaster não parecia nem um pouco apto a entrar na política. Mas ele sabia como trilhar seu caminho com base em contatos. Seus dois pilares foram Jeremy Fallon, o brilhante publicitário que procurava um garoto-propaganda para seu partido, e Simon Hewitt, o colunista que ditava o sucesso de qualquer aspirante a altos cargos. Assim, Lancaster se tornou o primeiro-ministro do Reino Unido, levando os amigos junto para o poder.
Passados quatro anos, o governo britânico está imerso em uma crise. Sem poder suportar mais nenhum problema em sua gestão, Lancaster recebe um bilhete de ameaça:
“Em sete dias a garota morre.’’ Acompanhando o papel, vem um vídeo de Madeline Hart, funcionária do partido, confessando ser amante do primeiro-ministro.
Para a negociação, Lancaster pede a ajuda de Gabriel Allon, um espião israelense em dívida com o governo britânico. Porém, nem com toda a sua experiência o agente conseguirá prever as consequências do surpreendente caso.

 

 

 


Parte 1
A REFÉM
1
PlANA, CÓRSEGA
Foram atrás dela no final de agosto, na Córsega. A hora exata nunca seria determinada - algum momento entre o entardecer e o meio-dia do dia seguinte foi o máximo
que os funcionários da casa conseguiram determinar. Eles a viram pela última vez durante o pôr do sol, descendo a entrada da casa de campo numa lambreta vermelha,
com a saia de algodão transparente esvoaçando ao redor das coxas bronzeadas. Só ao meio-dia perceberam que não estava no quarto. A cama tinha apenas um livro, lido
pela metade e com cheiro de óleo de coco e um vago traço de rum. Mais 24 horas se passaram antes de ligarem para os gendarmes. Era um verão agitado e Madeline era
aquele tipo de garota.
Tinham chegado à ilha duas semanas antes: quatro garotas bonitas e dois rapazes zelosos, todos funcionários fiéis do governo britânico ou do partido da situação.
Traziam um único carro - um Renault hatch compartilhado, grande o bastante para acomodar cinco pessoas, ainda que sem conforto - e a lambreta vermelha, usada apenas
por Madeline, que a conduzia com uma imprudência quase suicida. A casa ocre ficava nos limites do vilarejo, a oeste, num penhasco com vista para o mar. Era arrumada
e compacta, o tipo de lugar que corretores sempre descrevem como “charmoso”, com piscina e um jardim murado repleto de arbustos de alecrim e aroeiras. Poucas horas
depois de chegarem, eles já tinham se acomodado naquele estado feliz de seminudez bronzeada a que os turistas britânicos aspiram, independentemente do destino de
suas viagens.
Embora fosse a mais jovem do grupo, informalmente Madeline era a líder, um fardo que aceitava sem problemas. Era ela que cuidava do aluguel da casa e providenciava
os longos almoços, os jantares tardios e os passeios para o interior da ilha, sempre seguindo à frente na lambreta pelas ruas traiçoeiras. Ela nem se dava o trabalho
de consultar um mapa. Seu conhecimento enciclopédico da geografia, história, cultura e cozinha da Córsega fora adquirido durante c longo período de estudo e preparações
intensas nas semanas anteriores à viagem. Pelo visto, Madeline não queria deixar nada ao acaso. Raramente deixava.
Ela havia entrado para o Partido em Millbank fazia dois anos, depois de se formar em Economia e Políticas Públicas na Universidade de Edimburgo. Apesar de ter cursado
uma instituição de segunda categoria - a maior parte de seu;
colegas vinha de escolas públicas de elite e de Oxbridge transitou rapidamente por uma série de cargos administrativos antes de ser promovida a diretora de Envolvimento
com a Comunidade. Seu emprego, como ela frequentemente o descrevia, consistia em conseguir votos junto a classes de britânicos que não tinham nenhuma razão para
apoiar o Partido, sua plataforma ou seus candidatos. Todos concordavam que não passava de um posto temporário em sua jornada para um status melhor. O futuro de Madeline
era brilhante - “brilhante como uma erupção solar”, nas palavras de Pauline, que observava a ascensão da colega mais jovem com uma boa dose de inveja. Rumares insinuavam
que ela era beneficiada pela influência de alguém importante no Partido. Alguém próximo ao primeiro-ministro. Talvez até mesmo o próprio. Com uma aparência de estrela
de cinema, intelecto aguçado e energia inesgotável, Madeline estava sendo preparada para uma vaga no Parlamento e um ministério. Tratava-se de uma questão de tempo.
Pelo menos era o que diziam.
Por tudo isso, era muito estranho que Madeline Hart fosse solteira aos 27 anos. Quando lhe perguntavam sobre sua parca vida amorosa, ela declarava que estava ocupada
demais para se dedicar a um homem. Fiona, uma linda mulher com cabelos escuros e um lado ligeiramente perverso, achava a explicação duvidosa. Na verdade, até acreditava
que Madeline estava sendo desonesta - sendo que desonestidade era a melhor qualidade de Fiona, por isso seu interesse pelas políticas do Partido. Para sustentar
sua teoria, ressaltava que, embora se estendesse em conversas sobre qualquer assunto imaginável, a moça era excepcionalmente reservada quando se tratava da vida
pessoal. Madeline se dispunha a oferecer boatos ocasionais e inofensivos sobre a infância problemática - a sombria moradia popular em Essex, o pai de quem mal se
lembrava, o irmão alcoólatra que não trabalhou um dia sequer na vida -, mas todo o resto ela mantinha oculto atrás de paredes de pedra cercadas por um fosso.
- Nossa Madeline poderia ser uma assassina psicopata ou acompanhante de luxo - sugeriu Fiona -, e ninguém saberia.
Mas Alison, uma auxiliar do Ministério do Interior que sofrerá diversas desilusões amorosas, tinha outra teoria.
- A pobrezinha está apaixonada - declarou ela uma tarde, ao observar Madeline saindo como uma deusa do mar da pequena enseada perto da casa. - O problema é que o
seu amor não é correspondido.
- E por que não? - questionou Fiona com voz sonolenta, usando uma enorme viseira.
- Talvez ele não possa corresponder.
- Casado?
- Mas é claro.
- Maldito.
- Você nunca?
- O quê, se eu já tive caso com homem casado?
- Sim.
- Só duas vezes, mas estou considerando uma terceira.
- Você vai queimar no inferno, Fi.
- Estou contando com isso.
Foi naquele momento, na tarde do sétimo dia, que, confrontados com a menor das evidências, as três garotas e os dois rapazes hospedados com Madeline Hart na casa
alugada em Piana assumiram a tarefa de encontrar um namorado para ela. E não qualquer um, disse Pauline. Ele precisaria ter a idade adequada, boa aparência e estabilidade
financeira e mental, ser de boa família, sem podres e outras mulheres na cama. Fiona, a mais experiente nas questões do coração, disse que era uma missão impossível.
- Esse tipo de homem não existe - explicou, com o cansaço de uma mulher que passou muito tempo buscando alguém que cumprisse esses requisitos. - E, se existir, ou
está casado ou tão apaixonado por si mesmo que não vai ter tempo para a pobre Madeline.
Apesar de suas dúvidas, Fiona mergulhou de cabeça no desafio, mesmo que fosse apenas para acrescentar um pouco de fofoca ao feriado. Felizmente, não faltavam alvos
potenciais, pois parecia que metade da população do sudeste da Inglaterra tinha abandonado sua ilha úmida em busca do sol da Córsega. Havia uma colônia de financistas
do centro de Londres que alugavam casas luxuosas na ponta norte do golfo do Porto. E o grupo de artistas vivendo como ciganos num povoado nas colinas da Castagniccia.
E a trupe de atores na beira da praia em Campomoro. E a delegação de políticos da oposição que tramavam sua volta ao poder em uma mansão no topo dos penhascos de
Bonifácio. Usando o Gabinete da Grã-Bretanha como cartão de visitas, Fiona logo arranjou uma série de encontros improvisados. Em todas as ocasiões - um jantar, uma
caminhada pelas montanhas ou uma tarde regada a álcool na praia -, ela enlaçava o homem que achava mais interessante e o colocava ao lado de Madeline. Mas nenhum
deles conseguiu escalar seus muros, nem mesmo o jovem ator que tinha acabado de fazer uma turnê bem-sucedida como protagonista do musical mais popular da temporada
do West End.
- Realmente é um caso perdido - resignou-se Fiona ao voltar para casa uma noite com todo o grupo, sempre guiado por Madeline em sua lambreta vermelha.
- Quem você acha que é? - perguntou Alison.
- Não sei - respondeu Fiona com voz arrastada, deixando transparecer inveja. - Mas deve ser alguém muito especial.
Foi naquela época, faltando pouco mais de uma semana para o retorno a Londres, que Madeline começou a passar um bom tempo sozinha. Ela saía da casa de manhã cedo,
normalmente antes de os outros terem acordado, e voltava no fim da tarde. Quando lhe perguntavam sobre seu paradeiro, ela dava respostas vagas, e durante o jantar
se mostrava taciturna ou inquieta. Alison temeu pelo pior: achou que o suposto amante de Madeline tivesse informado que os seus serviços não seriam mais requisitados.
Mas, no dia seguinte, depois de voltarem para casa após um passeio ao shopping, Fiona e Pauline anunciaram com alegria que Alison estava enganada. Parecia que o
amante de Madeline viera para a Córsega. E Fiona tinha as fotos para provar.
Ele fora visto às 13h50 no Les Palmiers, no cais Adolphe Landry, em Calvi. Madeline estava numa mesa na beira do porto e tinha a cabeça um pouco voltada para o mar,
como se não estivesse ciente do homem sentado à sua frente. Usava óculos escuros grandes e um chapéu de palha para se proteger sol, com um laço preto elaborado,
que projetava uma sombra sobre sua face impecável. Pauline tentou se aproximar da mesa, mas Fiona, captando a intimidade tensa da cena, sugeriu uma retirada brusca.
Ela se deteve o suficiente para, disfarçadamente, tirar a primeira fotografia incriminadora com o celular. Madeline pareceu alheia à intrusão, mas o homem, não.
No instante em que Fiona apertou o botão, ele virou a cabeça bruscamente, como se um instinto animal o tivesse alertado de que sua imagem estava sendo capturada
eletronicamente.
Depois de fugirem para uma brasserie próxima, Fiona e Pauline examinaram com cuidado o homem na foto. Seu cabelo, louro-cinza, estava desgrenhado pelo vento e o
volume exagerado lhe dava um ar quase infantil. Caindo sobre a testa, emoldurava um rosto anguloso, dominado por uma boca pequena e cruel. O traje era vagamente
marítimo: calças brancas, uma camisa em tecido oxford com listras azuis, um relógio grande de mergulhador, mocassins de lona com solas que não deixariam marcas no
convés de um navio. Ele era um homem desse tipo: nunca deixava marcas.
Partiram do princípio de que ele fosse inglês, embora pudesse ser alemão, escandinavo ou, talvez, especulou Pauline, um descendente de nobres poloneses. Dinheiro
claramente não era problema, considerando-se a garrafa de champanhe cara que suava no balde de gelo no canto da mesa. Imaginaram que sua
fortuna fora conquistada, e não herdada, mas que não seria totalmente legal seria um apostador. Teria contas bancárias na Suíça. Viajava para lugares perigosos.
Procurava ser discreto. Seus afazeres, assim como os mocassins de. não deixavam nenhuma marca.
Mas foi Madeline que mais as intrigou. Ela já não era a garota que conheciam de Londres, nem mesmo a garota com quem estavam compartilhando uma villa nas últimas
duas semanas. Parecia ter adotado uma postura completamente diferente. Era uma atriz em outro filme. Reclinadas sobre o celular como uma dupla de adolescentes, Fiona
e Pauline escreveram o diálogo e acrescentaram carne e osso aos seus personagens. Na versão delas, o romance tinha começado de maneira inocente, com um encontro
por acaso numa loja exclusiva na Bond Street. O flerte havia sido longo, e a consumação, planejada com minúcias. Mas, por enquanto, o final da história era desconhecido,
pois a vida real ainda estava por escrevê-lo. Ambas concordaram que seria trágico.
- É assim que histórias desse tipo sempre acabam - afirmou Fiona, por experiência própria. - A garota conhece o garoto. A garota se apaixona pelo garoto.
A garota tem os seus sentimentos feridos e faz o possível para destruir o garoto.
Fiona tirou mais duas fotos de Madeline e seu amante naquela tarde. Uma mostrava os dois caminhando pelo cais sob o sol forte, com as mãos se tocando de leve, meio
furtivas. Na outra, o casal se separava sem um beijo sequer. Naquela cena, o homem subiu num bote Zodiac e partiu em direção ao por Madeline montou em sua lambreta
vermelha e voltou para casa. Ao chegar, não estava mais carregando o chapéu de sol com o laço preto elaborado.
Naquela noite, ao relatar os eventos do dia, ela não mencionou a ida a Calvi nem o almoço com o homem de aparência próspera no Les Palmiers.
Fiona achou a performance impressionante.
- Nossa Madeline tem uma habilidade extraordinária para mentiras - disse ela a Pauline. - Talvez seu futuro seja tão brilhante quanto dizem. Quem sabe Talvez ela
seja primeira-ministra algum dia.
As quatro garotas bonitas e os dois rapazes zelosos da casa alugada planeja:a- um almoço em Porto, uma cidade próxima. Madeline fez as reservas em France e até mesmo
instou o proprietário a guardar sua melhor mesa, que fica. no terraço com vista para a parte rochosa da enseada. Imaginaram que iriam para o restaurante na caravana
de sempre, mas, pouco antes das sete, Madeline declarou que estava indo a Calvi para tomar um drinque com um velho amigo de Edimburgo.
- Encontro vocês no restaurante! - gritou ela por cima do ombro, descendo a rampa. - E, pelo amor de Deus, tentem chegar na hora para variar!
Então ela se foi. Ninguém achou estranho ela não aparecer para o jantar. Nem ficaram alarmados ao acordarem e verem sua cama vazia. Era um verão agitado e Madeline
era aquele tipo de garota.
2
CÓRSEGA - LONDRES
A polícia nacional francesa declarou oficialmente que Madeline Hart estava desaparecida às 14 horas da última sexta-feira de agosto. Depois de três dias de buscas,
não descobriram nenhum vestígio dela além da lambreta vermelha, que acharam numa ravina isolada próxima ao monte Cinto, com a lanterna quebrada. No fim da semana,
a polícia já tinha praticamente perdido qualquer esperança de encontrá-la com vida. Em público, insistiram que o caso consistia numa busca por uma turista britânica
desaparecida. Em particular, no entanto, já procuravam seu assassino.
Não havia suspeitos além do homem com quem ela almoçara no Les Palmiers no dia de seu desaparecimento. Mas, assim como Madeline, ele parecia ter sumido da face da
terra. Era um amante secreto, como Fiona e os outros desconfiavam, ou os dois teriam se conhecido havia pouco tempo, na Córsega? Ele seria inglês? Francês? Ou, nas
palavras de um detetive frustrado, um alienígena de outra galáxia que tinha se desfeito em partículas e voltado para a nave espacial? A garçonete do Les Palmiers
não foi de muita ajuda. Lembrava que ele conversara em inglês com a garota de chapéu, mas que fizera seu pedido num francês perfeito. O homem havia pagado a conta
em dinheiro - notas novas e limpas que ele colocara na mesa como um jogador de pôquer - e dera uma generosa gorjeta, algo raro naqueles dias de crise econômica na
Europa. O que mais marcara a garçonete foram as mãos dele: muito pouco pelo, nenhuma marca de sol ou cicatriz, unhas limpas. O desconhecido cuidava muito bem das
unhas. Ela gostava disso num homem.
Sua fotografia foi mostrada com discrição nos bares e restaurantes mais finos da ilha, mas gerou apenas reações apáticas. Ao que tudo indicava, ninguém tinha posto
os olhos nele. E, se alguém tivesse, não conseguia se recordar de seu rosto. Era um tipo comum nas praias da Córsega no verão: bem bronzeado, óculos de sol caros
e um relógio suíço de puro ouro para aumentar seu ego. Era um nada com um cartão de crédito e uma garota bonita do outro lado da mesa. Era um homem esquecido.
Talvez para os donos de lojas e restaurantes da Córsega, mas não para a polícia francesa. A imagem foi passada por todos os bancos de dados de criminosos em seu
arsenal e por mais alguns. Como nenhuma busca deu frutos, os policiais debateram a possibilidade de revelar a foto para a imprensa. Algumas pessoas, especialmente
nos cargos mais altos, argumentaram contra. Afinal, era possível que o pobre coitado não tivesse culpa de nada, talvez apenas de infidelidade, algo longe de ser
crime na França. Mas, quando se passaram mais 72 horas sem nenhum progresso, concluíram que não havia escolha: precisariam pedir ajuda à população. Duas fotografias
editadas com cuidado foram liberadas para a imprensa - uma do homem sentado no Les Palmiers; outra dele andando ao longo do cais - e, ao anoitecer, os investigadores
já estavam sendo bombardeados por centenas de pistas. Rapidamente eliminaram os farsantes e os trotes e focaram recursos apenas nas que pareciam mais plausíveis.
Porém, nada deu resultado. Uma semana depois do desaparecimento, o único suspeito ainda era um homem sem nome nem nacionalidade.
Apesar de a polícia não ter nada promissor, não faltavam teorias. Um grupo de detetives acreditava que o homem do Les Palmiers era um psicopata que tinha atraído
Madeline para uma armadilha. Outro grupo achava que era apenas alguém no lugar errado e na hora errada. De acordo com essa hipótese, ele era casado, portanto não
poderia se revelar e cooperar com a polícia. Já Madeline provavelmente teria sido vítima de um assalto que acabara mal - uma jovem andando de moto sozinha era um
alvo tentador. Em algum momento o corpo apareceria. O mar o cuspiria, um alpinista o encontraria nas colinas ou um fazendeiro o desenterraria ao arar o campo. Assim
eram as coisas na ilha: a Córsega sempre devolvia os seus mortos.
As falhas da polícia foram uma ocasião propícia para os ingleses criticarem os franceses. Mas, de forma geral, até mesmo os jornais simpáticos à oposição trataram
o desaparecimento de Madeline como uma tragédia nacional. Sua ascensão notável, desde a moradia popular em Essex, foi narrada em detalhes, e diversos membros do
Partido emitiram declarações sobre uma carreira promissora abreviada precocemente. Sua mãe chorosa e seu irmão desajeitado deram uma única entrevista para a televisão
e, em seguida, desapareceram das vistas do público. O mesmo aconteceu com seus companheiros de férias na Córsega. Ao voltarem para a Inglaterra, apareceram juntos
numa coletiva de imprensa no aeroporto de Heathrow, observados por uma equipe de assessores do Partido. Posteriormente, recusaram todos os outros pedidos de entrevistas,
incluindo aqueles que ofereciam pagamentos lucrativos. A cobertura não incluiu nenhum traço de escândalo. Não houve histórias sobre bebedeiras festivas, jogos sexuais
ou perturbação da ordem pública, apenas a baboseira de sempre sobre os perigos enfrentados por mulheres jovens viajando em países estrangeiros. Na sede do Partido,
a assessoria de imprensa se parabenizou em particular pela hábil manipulação do caso, enquanto a equipe política percebeu uma leve melhoria na aprovação ao primeiro-ministro.
Por trás de portas fechadas, chamaram o fenômeno de “o efeito Madeline”.
Gradualmente, as matérias sobre o destino de Madeline saíram das primeiras páginas e foram para as seções internas e, ao final de setembro, ela já tinha desaparecido
dos jornais. Era outono, hora de voltar ao negócio de governar. Os desafios que a Inglaterra enfrentava eram imensos: uma economia em recessão, a zona do euro na
UTI, uma lista interminável de males sociais não resolvidos que estavam destruindo a qualidade de vida no Reino Unido. Pairando sobre tudo, a perspectiva de uma
eleição. O primeiro-ministro tinha dado inúmeras pistas de que haveria uma antes do fim do ano. Ele estava ciente dos riscos políticos de voltar atrás agora. Jonathan
Lancaster estava à frente do governo britânico porque seu antecessor havia deixado de convocar uma eleição após meses de flerte público com a ideia. Lancaster, então
líder da oposição, dissera que ele era “o Hamlet do Número 10” - em referência ao endereço da residência do primeiro-ministro - e a ferida mortal se abriu.
Isso tudo explicava por que Simon Hewitt, o diretor de comunicação do primeiro-ministro, não andava dormindo bem nos últimos tempos. O padrão de sua insônia nunca
variava. Exausto pela rotina esmagadora de trabalho, adormecia rapidamente, em geral com uma pasta de arquivos sobre o peito, mas acordava duas ou três horas depois.
Uma vez desperta, sua mente se acelerava. Após quatro anos no governo, ele parecia incapaz de focar nada além do negativo. Esse era o preço de ser assessor de imprensa
na Downing Street. No mundo de Simon Hewitt não havia triunfos, apenas desastres e quase desastres. Como os terremotos, sua intensidade variava de pequenos tremores
que mal eram sentidos a convulsões sísmicas capazes de derrubar prédios e desfazer vidas. Todos esperavam que Hewitt previsse a calamidade vindoura e, se possível,
contivesse os danos. Nos últimos tempos, ele tinha chegado à conclusão de que seu trabalho era impossível. Nos momentos mais sombrios, essa constatação lhe dava
um pouquinho de consolo.
Ele já fora um homem de reputação. Como colunista-chefe de política do
Times, Hewitt havia sido uma das pessoas mais influentes do gabinete, no Palácio de Whitehall. Com poucas palavras de sua característica prosa afiada, podia condenar
uma política governamental, assim como a carreira do ministro responsável por apresentá-la. O poder de Hewitt se tornou tão grande que nenhum governo tomava uma
decisão importante sem consultá-lo. E nenhum político que aspirasse a um futuro melhor pensaria em concorrer a um posto de liderança em algum partido sem garantir
o apoio de Hewitt. Foi o que fez Jonathan Lancaster, um ex-advogado do centro financeiro londrino, egresso de um distrito parlamentar do subúrbio. No início, Hewitt
não lhe deu muita importância: era muito polido, bem-apessoado e elitista para ser levado a sério. Mas, com o passar do tempo, ele passou a considerar Lancaster
um competente homem de ideias que queria reconstruir seu partido moribundo para, então, reconstruir o país. Hewitt se surpreendeu ao perceber que realmente gostava
de Lancaster, o que nunca era um bom sinal. À medida que o relacionamento progrediu, os dois passaram menos tempo fofocando sobre as maquinações políticas de Whitehall
e mais discutindo como consertar a sociedade britânica. Na noite da eleição, quando Lancaster conquistou a vitória com a maior margem de apoio do Parlamento daquela
geração, Hewitt foi uma das primeiras pessoas para quem ele ligou.
- Simon - disse, com sua voz sedutora. - Eu preciso de você, Simon. Não posso fazer isso sozinho.
Àquela altura, Hewitt já tinha escrito com fervor sobre as perspectivas de sucesso de Lancaster, sabendo muito bem que, em alguns dias, estaria trabalhando para
ele na Downing Street.
Agora, Hewitt abriu os olhos lentamente e fitou com desprezo o relógio ao lado da cama. Os dígitos brilhantes indicavam que eram 3h42, como se estivessem zombando
dele. Ao lado do relógio estavam três celulares, todos com a bateria carregada para o ataque da mídia do dia seguinte. Ele gostaria de poder recarregar as próprias
baterias com a mesma facilidade, mas, àquela altura, não havia sono ou sol tropical que pudesse reparar o dano que ele infligira ao seu corpo de meia-idade. Olhou
para Emma. Como sempre, ela estava dormindo profundamente. Em outros tempos, Hewitt poderia ter pensado em um jeito lascivo de acordá-la, mas isso já não era mais
possível; sua cama conjugal havia se tornado uma lareira apagada e congelada. Por um breve período, Emma fora seduzida pelo glamour do emprego dele, mas depois passou
a se ressentir da devoção servil do marido a Lancaster. Ela encarava o primeiro-ministro quase como um rival sexual, e seu ódio atingira um fervor irracional.
- Você é duas vezes melhor que ele, Simon - comentara Emma na noite anterior antes de lhe dar um beijo frio na bochecha caída. - Ainda assim, por alguma razão, você
sente a necessidade de fazer o papel de criado. Talvez algum dia possa me dizer por quê.
Hewitt sabia que o sono não voltaria, não agora; então ficou acordado na cama e escutou a sequência de sons que sinalizavam o começo de seu dia. O baque dos jornais
matinais na porta. O gorgolejo da máquina de café automática. O ronronar de um sedã do governo na rua, embaixo de sua janela. Levantando-se com cuidado para não
acordar Emma, vestiu o roupão e desceu até a cozinha. A cafeteira sibilava raivosamente. Hewitt preparou uma xícara sem açúcar, pelo bem de sua cintura em expansão,
e a levou para o hall. Uma rajada de vento úmido o saudou quando ele abriu a porta. A pilha de jornais estava envolta em plástico sobre o tapete de boas-vindas ao
lado de uma panela de barro com gerânios mortos. Ao se curvar, viu mais uma coisa: um envelope de papel pardo bem selado, sem nada escrito. Soube na mesma hora que
não tinha vindo da sede do governo, pois ninguém de sua equipe se atreveria a deixar nem o mais trivial documento ali na soleira. Portanto, deveria ser algo não
solicitado. Isso não era incomum; os velhos colegas da imprensa conheciam seu endereço em Hampstead e sempre lhe deixavam encomendas. Pequenos presentes por uma
informação vazada no momento certo. Discursos agressivos referentes a alguma desfeita percebida. Um rumor perverso sensível demais para ser transmitido por e-mail.
Hewitt fazia questão de ficar em dia com a fofoca de Whitehall. Sendo ex-repórter, sabia que o que era dito pelas costas de um homem costumava ser muito mais importante
que o que era escrito sobre ele nas primeiras páginas.
Hewitt cutucou o envelope com o dedão para ver se não continha fios ou baterias, então o colocou em cima dos jornais e voltou para a cozinha. Depois de ligar a televisão
e baixar o volume até um sussurro, tirou os jornais do plástico e passou os olhos pelas primeiras páginas. Estavam dominadas pela proposta de Lancaster para tornar
a indústria britânica mais competitiva com uma diminuição das taxas de juros. Como já era de esperar, o Guardian e o Independent estavam horrorizados, mas, graças
aos esforços de Hewitt, a maior parte das matérias era positiva. As outras notícias de Whitehall eram misericordiosamente benignas. Nenhum terremoto. Nem mesmo tremores.
Depois de passar pelos chamados jornais de maior prestígio, Hewitt deu uma lida rápida nos tabloides, que considerava um termômetro mais confiável da opinião pública
britânica do que qualquer enquete. Em seguida, servindo-se de mais café, abriu o envelope anônimo. Dentro, havia três itens: um DVD, uma única folha de papel A4
e uma fotografia.
- Merda - praguejou Hewitt, baixinho. - Merda, merda, merda.
O que aconteceu depois passaria a ser fonte de muita especulação. Para Simon Hewitt, um ex-jornalista político que deveria ter sido mais sensato, não faltaram recriminações.
Em vez de contatar a polícia metropolitana londrina, como exigia a lei inglesa, ele carregou o envelope até o escritório na Downing Street, número 12. Depois de
conduzir a reunião habitual das oito horas, durante a qual não mencionou os itens, Hewitt os mostrou para Jeremy Fallon, conselheiro político de Lancaster e o chefe
de gabinete mais poderoso da história inglesa. Suas responsabilidades oficiais incluíam planejamento estratégico e coordenação de políticas dos diversos departamentos
do governo, o que lhe permitia meter o nariz em qualquer questão de seu interesse. A imprensa frequentemente se referia a ele como o “cérebro de Lancaster”, um título
que agradava a Fallon e gerava ressentimento em Lancaster.
A reação de Fallon diferiu apenas na escolha do palavrão. Seu primeiro instinto foi levar na mesma hora o material para Lancaster, mas, como era quarta-feira, esperou
até o chefe sobreviver à batalha de gladiadores conhecida como Perguntas ao Primeiro-Ministro. Em nenhum momento da reunião, Lancaster, Hewitt ou Jeremy Fallon sugeriram
passar o material para as autoridades competentes. Os três concordaram que precisavam de uma pessoa discreta e habilidosa, à qual, acima de tudo, poderiam confiar
a proteção dos interesses do primeiro-ministro. Fallon e Hewitt pediram uma lista de candidatos a Lancaster, que deu apenas um nome. Havia uma relação familiar e,
o mais importante, uma dívida não paga. Lealdade contava muito em tempos assim, disse o primeiro-ministro, mas influência era algo muito mais eficiente.
Isso explica o convite sutil feito por Downing Street a Graham Seymour, o vice-diretor de longa data do Serviço de Segurança britânico, também conhecido como MI5.
Muito tempo depois, Seymour descreveria o encontro - realizado na sala de reuniões diante de um retrato carrancudo da baronesa Thatcher - como o mais difícil da
carreira. Concordou em ajudar o primeiro-ministro sem hesitação, pois era isso que um homem como ele fazia em circunstâncias daquele tipo. Ainda assim, deixou claro
que, caso seu envolvimento algum dia se tornasse público, destruiria o responsável.
Ficou em aberto apenas a identidade do agente que conduziria a busca. Assim como Lancaster, Graham tinha apenas um candidato. Ele não compartilhou o nome com o primeiro-ministro.
Em vez disso, usando fundos de uma das várias contas operacionais secretas do MI5, reservou um assento num voo da
Brites Airways daquela tarde com destino a Tel Aviv. Enquanto o avião decolava, Graham ponderou a melhor abordagem. Lealdade contava muito em tempos assim, mas influência
era algo bem mais eficiente.
3
JERUSALÉM
O coração de Jerusalém, não. muito longe do Ben Yehuda Mall, ficava a silenciosa e arborizada rua Narkiss. O prédio no número 16 era pequeno, com apenas três andares,
parcialmente oculto por um robusto muro de pedra calcária e um imenso eucalipto crescendo no jardim da frente. O apartamento no terceiro andar era igual aos outros,
exceto pelo fato de já ter pertencido ao serviço secreto de inteligência do Estado de Israel. Tinha uma sala de estar espaçosa, uma cozinha bem-arranjada cheia de
eletrodomésticos modernos, uma sala de jantar formal e dois quartos. O quarto menor, reservado para uma criança, fora penosamente convertido num estúdio artístico.
Mas Gabriel ainda preferia trabalhar na sala de estar, onde a brisa fresca que vinha da varanda ajudava a dissipar o cheiro forte dos solventes.
No momento, ele estava usando uma solução, preparada com cuidado, de acetona, álcool e água destilada, que aprendera a fazer em Veneza com o mestre restaurador de
arte Umberto Conti. A mistura era forte o bastante para dissolver contaminações na superfície e o verniz velho, mas não chegava a prejudicar as pinceladas originais
do artista. Gabriel umedeceu um cotonete feito à mão na solução e o girou delicadamente sobre o peito empinado de Suzana. Ela olhava em outra direção, banhando-se,
e mal parecia ciente dos dois anciãos lascivos da aldeia que a espiavam de trás do muro do jardim. Gabriel tinha uma atitude protetora em relação a mulheres e desejava
poder intervir, poupando-a do trauma por vir: as falsas acusações, o julgamento, a sentença de morte. Em vez disso, continuou o serviço e observou a pele amarelada
dela adquirir um tom branco luminoso.
Quando o cotonete já estava imundo, Gabriel o colocou num frasco hermético para reter os vapores. Enquanto preparava outro, seus olhos se moveram lentamente pela
superfície da pintura. Até aquele momento, a obra era atribuída apenas a um discípulo de Ticiano. Mas o proprietário atual da tela, o renomado negociante de arte
Julian Isherwood, acreditava que a tela tinha vindo do estúdio de Jacopo Bassano. Gabriel concordava - na verdade, agora que expusera um pouco da pincelada, viu
evidências do próprio mestre, especialmente na imagem de Suzana. Ele conhecia bem o estilo do pintor, pois havia estudado bastante suas pinturas e passara vários
meses em Zurique restaurando uma tela importante de Bassano para um colecionador particular. Na última noite de sua estadia, matara um homem chamado Ali Abdel Hamidi
num beco úmido perto do rio, um líder terrorista palestino com um bocado de sangue israelense nas mãos, que estava se passando por dramaturgo. Gabriel lhe dera uma
morte digna de suas pretensões literárias.
Ele umedeceu o novo cotonete no solvente, mas, antes de dar continuidade ao trabalho, escutou o ronco familiar do motor de um carro pesado na rua. Foi à varanda
para confirmar suas suspeitas e, então, abriu a porta da frente uns 2 centímetros. Um instante depois, Ari Shamron já estava empoleirado num banquinho de madeira
ao lado de Gabriel. Vestia calça cáqui, camisa de oxford branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Seus óculos feios refletiam a luz das lâmpadas
de halogênio que Gabriel usava para trabalhar. Seu rosto, com rugas e sulcos profundos, estava travado numa expressão de puro desgosto.
- Eu senti o cheiro desses produtos químicos assim que saí do carro. Imagino o estrago que eles provocaram ao seu corpo depois de todos esses anos.
- Tenho certeza que não é nada comparado ao dano que você provocou - retrucou Gabriel. - Estou surpreso por eu ainda ser capaz de segurar um pincel.
Gabriel tocou o cotonete umedecido na pele de Suzana e o girou devagar. Shamron consultou seu relógio de aço inoxidável e franziu a testa, como se houvesse algo
errado.
- O que foi? - perguntou Gabriel.
- Estou só imaginando quanto tempo vai levar até você me oferecer uma xícara de café.
- Você sabe onde fica tudo. Agora você praticamente mora aqui.
Shamron resmungou alguma coisa em polonês sobre a ingratidão das crianças. Em seguida, ergueu-se do banco com um impulso e, apoiando-se pesada- mente na bengala,
foi até a cozinha. Conseguiu encher a chaleira com água da torneira, mas pareceu perplexo com os diversos botões do fogão. Por duas vezes, Ari Shamron havia sido
diretor do serviço secreto de inteligência de Israel e, antes disso, fora um dos oficiais mais condecorados do mesmo serviço. Agora, contudo, já velho, parecia incapaz
de realizar as tarefas caseiras mais básicas. Cafeteiras, liquidificadores, torradeiras, todos esses utensílios eram um mistério para ele. Gilah, sua esposa resignada,
costumava brincar que, se o grande Ari Shamron fosse deixado sozinho, seria capaz de morrer de fome numa cozinha cheia de comida.
Gabriel acendeu o fogão e voltou ao trabalho. Shamron ficou parado no vão das portas da varanda, fumando. O fedor do tabaco turco logo prevaleceu sobre o odor do
solvente.
- Isso é mesmo necessário? - questionou Gabriel.
- É.
- O que está fazendo em Jerusalém?
- O primeiro-ministro queria dar uma palavra.
- Sério?
Shamron olhou para Gabriel de cara fechada através da cortina de fumaça cinza-azulada.
- Por que um pedido do primeiro-ministro para me ver surpreenderia você?
- Porque...
- Eu sou velho e irrelevante? - completou Shamron.
- Você é exagerado, impaciente e às vezes irracional. Mas você nunca foi irrelevante.
Shamron assentiu. A idade havia lhe dado a habilidade de, pelo menos, perceber suas falhas, apesar de ter roubado o tempo necessário para que ele pudesse remediá-las.
- Como ele está? - perguntou Gabriel.
- Como você pode imaginar.
- Sobre o que vocês conversaram?
- Nossa conversa foi abrangente e franca.
- Isso quer dizer que vocês gritaram um com o outro?
- Eu só gritei com um primeiro-ministro.
- Qual? - indagou Gabriel, realmente curioso.
- Golda. Foi depois de Munique. Eu lhe disse que precisávamos mudar as nossas táticas, aterrorizar os terroristas. Dei a ela uma lista de nomes de homens que deviam
morrer. Golda não queria saber daquilo.
- Então você gritou com ela?
- Não foi meu melhor momento.
- O que ela fez?
- Gritou também, claro. Mas, no fim das contas, compreendeu meu raciocínio. Então, montei outra lista de nomes, dos jovens de quem eu precisava para realizar a operação.
Todos concordaram sem hesitar. - Shamron fez uma pausa, em seguida acrescentou: - Todos menos um.
Em silêncio, Gabriel guardou o cotonete sujo no frasco hermético, que reteve os gases tóxicos do solvente, mas não a memória de seu primeiro encontro com o homem
que eles chamavam de Memuneh, a pessoa encarregada. Ocorrera a poucas centenas de metros de onde ele estava agora, no campus da Academia Bezalel de Artes e Design.
Gabriel tinha acabado de assistir a uma palestra sobre as pinturas de Viktor Frankel, o renomado expressionista alemão que também era seu avô materno. Shamron esperava
por ele na beira de um pátio ensolarado, um homem baixo e esguio, com óculos escuros tenebrosos e dentes afiados, que lembravam uma armadilha de aço. Como sempre,
estava bem preparado. Sabia que a mãe de Gabriel, uma artista talentosa, tinha sobrevivido ao campo de concentração em Birkenau, mas que não conseguira derrotar
o câncer que devastara seu corpo. Também sabia que a língua materna de Gabriel era o alemão e que esse ainda era o idioma no qual ele sonhava. Todas as informações
estavam na pasta que Shamron segurava com dedos manchados de nicotina.
- A operação será chamada Ira de Deus - explicara ele. - Não se trata de justiça. Trata-se de vingança, pura e simplesmente. Queremos vingar as onze vidas inocentes
perdidas em Munique.
Gabriel disse a Shamron para procurar outra pessoa.
- Eu não quero outra pessoa. Eu quero você.
Pelos três anos seguintes, Gabriel e os outros agentes da Ira de Deus seguiram suas presas pela Europa e pelo Oriente Médio. Carregando uma Beretta calibre 22, uma
arma discreta, adequada para matar de perto, Gabriel assassinou seis membros do Setembro Negro. Sempre que possível, atirava onze vezes, uma bala para cada israelense
massacrado em Munique. Quando finalmente voltou para casa, o cabelo ao redor de suas têmporas estava grisalho e seu rosto era o de um homem vinte anos mais velho.
Incapaz de produzir trabalhos de arte originais, ele foi a Veneza para estudar restauração. Então, depois de repousar, voltou a trabalhar para Shamron. Nos anos
que se seguiram, desempenhou algumas das operações mais fabulosas na história da inteligência israelense. Agora, após muitos anos peregrinando incansavelmente, voltara
para Jerusalém. Ninguém ficou mais satisfeito do que Shamron, que amava Gabriel como um filho e tratava o apartamento na rua Narkiss como se fosse o seu próprio.
Em outros tempos, talvez Gabriel tivesse se irritado com a presença constante de Shamron, mas agora isso não o incomodava. O Velho era eterno, mas o corpo em que
seu espírito residia não duraria para sempre.
Nada havia prejudicado mais a saúde de Shamron do que o implacável tabagismo. Fora um hábito adquirido na juventude, no leste da Polônia, e que piorara depois de
sua ida à Palestina, onde lutou na guerra que levou à independência de Israel. Agora, enquanto descrevia a reunião com o primeiro- -ministro, ele abriu seu velho
isqueiro Zippo e o usou para acender mais um cigarro fétido.
- O primeiro-ministro está inquieto, mais do que o normal. Imagino que ele tenha esse direito. O grande Despertar Árabe levou a região toda ao caos. E os iranianos
estão cada vez mais perto de realizarem seus sonhos nucleares. Em breve, vão entrar numa zona de imunidade, impossibilitando uma ação militar nossa sem a ajuda dos
americanos. - Shamron fechou o isqueiro com um estalo e olhou para Gabriel, que tinha voltado a trabalhar na pintura. - Você está me ouvindo?
- Cada palavra.
- Prove.
Gabriel repetiu a última declaração de Shamron palavra por palavra. Shamron sorriu. Ele considerava a memória impecável de Gabriel uma de suas melhores virtudes.
Girou o Zippo entre os dedos. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
- O problema é que o presidente americano não quer demarcar um limite inflexível. Ele diz que não vai permitir que os iranianos construam armas nucleares. Mas não
faz diferença nenhuma dizer isso se os iranianos têm a capacidade de construí-las num curto período de tempo.
- Como os japoneses.
- Os japoneses não são governados por xiitas apocalípticos. Se o presidente americano não tomar cuidado, suas duas conquistas mais relevantes na política externa
serão um Irã nuclear e a restauração do califado islâmico.
- Bem-vindo ao mundo pós-americano, Ari.
- E é por isso que eu acho uma estupidez deixar nossa segurança nas mãos deles. Mas esse não é o único problema do primeiro-ministro. Os generais não têm certeza
se podem destruir o suficiente do programa para fazer com que um ataque militar seja eficiente. E o King Saul Boulevard, liderado por seu amigo Uzi Navot, está dizendo
ao primeiro-ministro que uma guerra unilateral contra os persas seria uma catástrofe de proporções bíblicas.
O King Saul Boulevard era o endereço do serviço secreto de inteligência israelense no exterior. O nome longo e propositalmente enganoso tinha muito pouco a ver com
a verdadeira natureza de suas atividades. Até mesmo agentes aposentados como Gabriel e Shamron se referiam à instalação apenas como “o Escritório”.
- Uzi é que vê a realidade nua e crua todos os dias - falou Gabriel.
- Eu vejo também... Não tudo - acrescentou Shamron às pressas mas o bastante para me convencer de que os cálculos de Uzi sobre quanto tempo nós temos podem estar
errados.
- Matemática nunca foi o ponto forte de Uzi. Mas, quando estava em campo, ele nunca errava.
- Isso porque ele raramente se colocava numa posição em que fosse possível cometer um erro. - Shamron parou de falar, observando o vento mover o eucalipto além do
parapeito da varanda de Gabriel. - Eu sempre disse que uma carreira sem controvérsias não é uma carreira de verdade. Tive o meu quinhão, e você também.
- E tenho as cicatrizes para provar.
- E os louros também - completou Shamron. - O primeiro-ministro está preocupado com a possibilidade de o Escritório ser cauteloso demais quando se trata do Irã.
Sim, nós inserimos vírus em seus computadores e eliminamos um punhado de cientistas, mas faz um tempinho que nada explode. O primeiro-ministro gostaria que Uzi orquestrasse
outra Operação Obra-Prima.
Obra-Prima era o codinome de uma operação conjunta israelense, americana e britânica que resultara na destruição de quatro instalações iranianas secretas de enriquecimento
de urânio. Tinha ocorrido durante o comando de Uzi Navot, mas dentro dos corredores do King Saul Boulevard era considerada uma das maiores conquistas de Gabriel.
- Oportunidades como a Obra-Prima não aparecem todo dia, Ari.
- Isso é verdade - admitiu Shamron. - Mas sempre acreditei que a maioria das oportunidades são conquistadas, e não ganhas. O primeiro-ministro compartilha dessa
opinião.
- Ele perdeu a confiança em Uzi?
- Ainda não. Mas queria saber se eu tinha perdido.
- O que você disse?
- Que escolha eu tinha? Fui eu que o recomendei para o cargo.
- Então você o apoiou?
- Com um porém.
- Qual?
- Eu lembrei ao primeiro-ministro que a pessoa que eu realmente queria
para o trabalho não estava interessada. - Shamron balançou a cabeça devagar.
- Você é o único homem na história do Escritório que recusou uma chance de ser diretor.
- Sempre há uma primeira vez, Ari.
- Isso significa que você poderia reconsiderar?
- É por isso que você está aqui?
- Pensei que você fosse apreciar minha companhia. Eu e o primeiro-ministro estávamos nos perguntando se você estaria disposto a ajudar um dos nossos aliados mais
próximos.
- Qual?
- Graham Seymour veio para a cidade sem aviso prévio. Ele gostaria de uma conversa.
Gabriel se virou para encarar Shamron.
- Sobre o quê? - perguntou depois de um instante.
- Ele não disse, mas acho que é urgente. - Shamron foi até o cavalete e observou o pedaço límpido de tela no qual Gabriel estava trabalhando. - Parece até que a
pintura é recente.
- Esse é o objetivo.
- Alguma chance de você fazer o mesmo por mim?
- Desculpe, Ari - respondeu Gabriel, tocando a bochecha enrugada de Shamron -, mas temo que você esteja além de qualquer restauração.
4
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
Na tarde de 22 de julho de 1946, o grupo sionista extremista conhecido como Irgun detonou uma grande bomba no King David Hotel, sede de todas as forças militares
e civis da Inglaterra na Palestina. O ataque era uma retaliação pela prisão de centenas de combatentes judeus e matou 91 pessoas, incluindo 28 ingleses que ignoraram
um telefonema alertando-os para evacuar o hotel. Embora condenado universalmente, o bombardeio logo se provou um dos atos de violência política mais eficientes já
cometidos. Passados dois anos, os ingleses saíram da Palestina, e o Estado moderno de Israel, outrora um sonho sionista quase inimaginável, tornou-se realidade.
Entre os afortunados que sobreviveram ao bombardeio estava um jovem agente da inteligência britânica chamado Arthur Seymour, um veterano do programa de guerra Double
Cross que tinha sido transferido recentemente para a Palestina com a função de espionar os movimentos de resistência judeus. Era para Seymour estar em seu escritório
no momento do ataque, mas ele atrasou alguns minutos depois de uma reunião com um informante na Cidade Antiga. Ouviu a detonação enquanto passava pelo Portão de
Jaffa e, horrorizado, contemplou parte do hotel desmoronar. A imagem assombraria Seymour pelo resto da vida e moldaria os rumos de sua carreira. Anti-israelense
virulento e fluente em árabe, ele forjou laços desconfortavelmente próximos com muitos inimigos de Israel. Com frequência, era convidado do presidente do Egito,
Gamai Abdel Nasser, e admirador precoce de um jovem revolucionário palestino chamado Yasser Arafat.
Apesar de suas tendências pró-árabes, o Escritório considerou Arthur Seymour um dos oficiais mais competentes do MI6 no Oriente Médio. Por isso, houve certa surpresa
quando o único filho de Arthur, Graham, optou por uma carreira no MI5 em vez do mais glamoroso Serviço Secreto de Inteligência. Seymour, o Jovem - como era conhecido
no início da carreira -, serviu primeiro na contrainteligência, operando contra a KGB em Londres. Então, após a queda do Muro de Berlim e com a ascensão do fanatismo
islâmico, foi promovido a chefe de contraterrorismo. Agora, como vice-diretor do MI5, era forçado a aplicar sua experiência em ambas as disciplinas. Atualmente,
havia mais espiões russos operando em Londres do que no auge da Guerra Fria. E, graças aos erros de sucessivos governos britânicos, o Reino Unido abrigava milhares
de militantes muçulmanos do mundo árabe e da Ásia. Seymour chamava Londres de “Kandahar no Tâmisa”. Intimamente, temia que seu país estivesse escorregando cada vez
mais na direção de um abismo civilizacional.
Embora tivesse herdado a paixão do pai pela espionagem, Graham Seymour não compartilhava de forma alguma seu desdém por Israel. De fato, sob sua condução, o MI5
havia se aproximado do Escritório e, em especial, de Gabriel Allon. Os dois se consideravam membros de uma irmandade secreta que fazia as tarefas desagradáveis que
ninguém mais estava disposto a fazer, deixando para se preocupar com as consequências depois. Tinham lutado um pelo outro, sangrado um pelo outro e, em alguns casos,
matado um pelo outro. Eram tão próximos quanto dois espiões de serviços opostos poderiam ser, o que significava que tinham uma leve desconfiança mútua.
- Alguém no hotel não sabe quem você é? - perguntou Seymour, dando um aperto de mão em Gabriel como se o estivesse encontrando pela primeira vez.
- A garota na recepção perguntou se eu estava aqui para o bar mitzvah dos Greenbergs.
Seymour abriu um sorriso discreto. Com sua aparência vigorosa e queixo robusto, parecia o arquétipo de um barão colonial britânico, um homem que decidia questões
importantes e nunca servia o próprio chá.
- Dentro ou fora? - perguntou Gabriel.
- Fora - respondeu Seymour.
Eles ocuparam uma mesa no terraço, Gabriel voltado para o hotel e Seymour de frente para os muros da Cidade Antiga. Agora era a calmaria entre o café da manhã e
o almoço; haviam passado poucos minutos das onze horas. Gabriel só tomou café, mas Seymour pediu bastante comida. Sua esposa era uma cozinheira entusiástica, mas
pavorosa. Para Seymour, comida de avião era um mimo, e um brunch de hotel, mesmo feito na cozinha do King David, era uma ocasião a ser apreciada. O mesmo valia,
pelo visto, para a vista da Cidade Antiga.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse ele entre as mordidas na omelete -, mas esta é a minha primeira visita ao seu país.
- Eu sei. Está tudo no seu arquivo.
- É uma leitura interessante?
- Tenho certeza de que não deve ser nada em comparação com o que seu serviço tem sobre mim.
- Como poderia se comparar? Não passo de um humilde lacaio do Serviço Secreto de Sua Majestade. Você, por outro lado, é uma lenda. Afinal - acrescentou Seymour,
falando mais baixo quantos agentes de inteligência podem dizer que pouparam o mundo de um apocalipse?
Gabriel olhou por cima do ombro e fitou o Domo da Rocha, o terceiro lugar mais sagrado do Islã, resplandecente sob a luz cristalina do sol de Jerusalém. Cinco meses
antes, numa câmara secreta 50 metros abaixo da superfície do Monte do Templo, ele havia descoberto uma bomba que, caso fosse detonada, derrubaria todo o platô. Também
encontrara 22 pilares do Templo de Jerusalém do rei Salomão, provando que o antigo santuário judeu descrito no Livro de Reis e de Crônicas tinha de fato existido.
Embora o nome de Gabriel não tivesse aparecido na cobertura de imprensa da monumental revelação, seu envolvimento era bem conhecido em certos círculos da comunidade
ocidental de inteligência. Também se sabia que seu amigo mais próximo, Eli Lavon, renomado arqueólogo bíblico e agente do Escritório, quase morrera tentando salvar
os pilares da destruição.
- Foi uma sorte dos diabos aquela bomba não ter explodido - comentou Seymour. - Se tivesse, milhões de muçulmanos chegariam às suas fronteiras numa questão de horas.
E depois... - A voz de Seymour se perdeu.
- Seria o fim do jogo para o empreendimento conhecido como Estado de Israel - completou Gabriel. - Esse era exatamente o objetivo dos iranianos e de seus amigos
do Hezbollah.
- Não consigo imaginar como foi ter visto aqueles pilares pela primeira vez.
- Para ser sincero, Graham, não tive tempo para saborear o momento. Estava ocupado demais tentando manter Eli vivo.
- Como ele está?
- Passou dois meses no hospital, mas está quase cem por cento. Na verdade, até voltou a trabalhar.
- Para o Escritório?
Gabriel balançou a cabeça.
- Ele está escavando o Túnel do Muro das Lamentações de novo. Posso providenciar uma visita guiada, se você quiser. Aliás, se tiver interesse, posso mostrar a passagem
secreta que leva direto ao Monte do Templo.
- Não sei se meu governo aprovaria. - Seymour ficou em silêncio enquanto um garçom enchia suas xícaras de café. Então, quando estavam a sós novamente, continuou:
- Então o rumor é verdadeiro, afinal.
- Que rumor?
- De que o filho pródigo enfim voltou para casa. É engraçado - acrescentou ele, com um sorriso triste mas eu sempre imaginei que você passaria o resto da vida caminhando
pelos penhascos da Cornualha.
- É um lugar lindo, Graham. Mas a Inglaterra é a sua casa, não a minha.
- Às vezes sinto que não parece mais ser a minha casa. Helen e eu compramos uma casa em Portugal há pouco tempo. Em breve vou ser um exilado, assim como você foi.
- Sério?
- Não é nada iminente. Mas, no fim, todas as coisas boas devem terminar.
- Você teve uma grande carreira, Graham.
- Tive? É difícil mensurar o sucesso no campo da segurança, não é? Somos julgados com base em coisas que não acontecem: os segredos que não são roubados, os edifícios
que não explodem. Pode ser uma forma profundamente insatisfatória de se ganhar a vida.
- O que você vai fazer em Portugal?
- Helen vai tentar me envenenar com a sua culinária exótica e eu vou pintar paisagens terríveis de aquarela.
- Nunca soube que você pintava.
- Por uma boa razão. - Seymour observou a paisagem e franziu a testa, como se aquilo estivesse muito além do alcance de seu pincel e sua paleta. - Meu pai estaria
se revirando no túmulo se soubesse que estou aqui.
- Então por que você está aqui?
- Estava me perguntando se você se disporia a encontrar algo para um amigo meu.
- O amigo tem um nome?
Em vez de responder, Seymour abriu a maleta e pegou uma fotografia ampliada, passando-a para Gabriel. Mostrava uma jovem atraente que olhava direto para a câmera,
segurando uma edição do International Herald Tribune de três dias antes.
- Madeline Hart? - perguntou Gabriel.
Seymour assentiu. Então, passou uma folha A4 para Gabriel. Continha uma única frase, escrita em uma fonte sem serifa:
Em sete dias a garota morre.
- Merda - praguejou Gabriel baixinho.
- Receio que fique ainda melhor.
Por coincidência, a administração do King David colocou Graham Seymour, o único filho de Arthur Seymour, na mesma ala do hotel que fora destruída em 1946. Seymour
ficou no mesmo corredor do quarto que seu pai tinha usado como escritório no fim do mandato britânico na Palestina. Ao chegar, eles depararam com o aviso de NÃO
PERTURBE pendurado na maçaneta, além de uma embalagem plástica contendo o Jerusalém Post e o Haaretz. Seymour conduziu Gabriel para dentro. Ao verificar que ninguém
havia entrado no quarto durante sua ausência, pôs um DVD para ser reproduzido no laptop. Poucos segundos depois, Madeline Hart, cidadã britânica desaparecida e funcionária
do partido da situação na Inglaterra, apareceu na tela.
“Eu tive relações sexuais com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster pela primeira vez na conferência do Partido em Manchester, em outubro de 2012...”
5
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
O vídeo tinha sete minutos e doze segundos de duração. O tempo todo, Madeline manteve os olhos focados num ponto ligeiramente à esquerda da câmera, como se respondesse
a perguntas feitas por um entrevistador de televisão. Relutante, assustada e exausta, descreveu como tinha conhecido o primeiro-ministro durante uma de suas visitas
à sede do Partido em Millbank. Lancaster havia expressado admiração pelo trabalho de Madeline e, em duas ocasiões, convidou-a para a sede do governo, a fim de receber
informações diretamente dela. No fim da segunda visita, ele admitiu que seu interesse em Madeline não era apenas profissional. O primeiro encontro sexual foi bem
rápido, num quarto de hotel em Manchester. Depois disso, ela passou a ser levada à Downing Street por um velho amigo do primeiro-ministro, sempre que Diana Lancaster
estivesse fora de Londres.
- E agora - falou Seymour, melancólico, enquanto a tela do computador escurecia - o primeiro-ministro do Reino Unido está sendo punido por seus pecados com uma tentativa
primitiva de chantagem.
- Não há nada de primitivo nisso, Graham. Quem está por trás disso sabia que o primeiro-ministro estava envolvido num caso extraconjugal. E conseguiu fazer sua amante
desaparecer da Córsega sem deixar rastros. É óbvio que se trata de alguém extremamente sofisticado.
Seymour tirou o DVD do computador sem dizer nada.
- Quem mais sabe?
Seymour explicou que os três itens - a fotografia, o bilhete e o DVD - haviam sido deixados na manhã anterior em frente à porta de Simon Hewitt, que os levara até
a Downing Street e os mostrara para Jeremy Fallon. Também contou que Hewitt e Fallon confrontaram Lancaster em seu escritório na sede. Gabriel, que havia residido
pouco tempo antes no Reino Unido, conhecia bem os envolvidos: Hewitt, Fallon, Lancaster, a santíssima trindade da política britânica. Hewitt era especialista em
usar a mídia a favor do governo, Fallon era o mestre maquinador e estrategista, e Lancaster era o talento político em pessoa.
- Por que Lancaster escolheu você? - perguntou Gabriel.
- Nossos pais trabalharam juntos no serviço de inteligência.
- Com certeza há mais alguma razão.
- De fato - admitiu Seymour. - Seu nome é Siddiq Hussein.
- Acho que não conheço.
- Por uma boa razão. Graças a mim, Siddiq desapareceu num buraco negro vários anos atrás, para nunca mais ser visto.
- Quem era ele?
- Siddiq Hussein, nascido no Paquistão, era um residente de Tower Hamlets no leste de Londres. Ele apareceu nos nossos radares depois dos bombardeios de 2007, quando
finalmente tomamos juízo e começamos a tirar os muçulmanos radicais das ruas. Você se lembra daqueles dias - disse Seymour com amargura.
- Os dias em que a esquerda e a mídia insistiram que deveríamos fazer algo a respeito dos terroristas entre nós.
- Continue, Graham.
- Siddiq estava convivendo com extremistas conhecidos na grande mesquita do leste de Londres e o número do seu celular aparecia em todos os lugares errados. Eu dei
uma cópia dos arquivos dele para a Scotland Yard, mas o Comando de Contraterrorismo disse que não havia evidência suficiente para agir contra ele. Então Siddiq fez
algo que me deu uma oportunidade de cuidar do problema pessoalmente.
- O que ele fez?
- Agendou um voo para o Paquistão.
- Grande erro.
- Fatal, na verdade - falou Seymour, sombrio.
- O que aconteceu?
- Nós o seguimos até Heathrow e garantimos que ele subisse em seu avião para Karachi. Em seguida, fiz uma ligação discreta para um velho amigo em Langley, Virgínia.
Acho que você o conhece bem.
- Adrian Carter.
Seymour assentiu. Adrian Carter era o diretor do Serviço Clandestino Nacional. Ele supervisionava a guerra global da CIA contra o terrorismo, incluindo os programas
outrora secretos para deter e interrogar agentes de alto nível.
- A equipe de Carter observou Siddiq em Karachi por três dias - continuou Seymour. - Então cobriram sua cabeça com um saco e o colocaram no primeiro voo clandestino
para fora do país.
- Para onde eles o levaram?
- Cabul.
- Para a prisão de Salt Pit?
Seymour aquiesceu devagar.
- Quando tempo ele durou?
- Isso depende de para quem você perguntar. De acordo com o relato da Agência, Siddiq foi encontrado morto em sua cela dez dias depois de chegar a Cabul. Sua família
alegou num processo que ele morreu durante a tortura.
- O que isso tem a ver com o primeiro-ministro?
- Quando os advogados que representavam a família de Siddiq pediram todos os documentos do MI5 referentes ao caso, o governo de Lancaster se recusou a atendê-los,
alegando que isso prejudicaria a segurança nacional britânica. Ele salvou a minha carreira.
- E agora você quer quitar essa dívida tentando salvar o pescoço dele? - Como
Seymour não respondeu, Gabriel acrescentou: - Isso vai acabar mal, Graham.
E, quando acabar, seu nome vai aparecer com destaque no inevitável inquérito.
- Eu deixei claro que, se isso acontecer, vou levar todo mundo junto, incluindo Lancaster.
- Nunca tomei você por uma pessoa ingênua, Graham.
- Sou tudo menos isso.
- Então se afaste. Volte para Londres e diga ao primeiro-ministro para aparecer diante das câmeras com a esposa ao lado, fazendo um apelo público para que os sequestradores
soltem a garota.
- É tarde demais para isso. Além do mais, talvez eu seja um pouco antiquado, mas não gosto quando as pessoas tentam chantagear o líder do meu país.
- O líder do seu país sabe que você está em Jerusalém?
- Você só pode estar brincando.
- Por que eu?
- Porque, se o MI5 ou qualquer serviço de inteligência tentar encontrá-la, o caso vai vazar, assim como o de Siddiq Hussein vazou. E você é bom em encontrar coisas
- continuou Seymour, falando baixo. - Pilares antigos, Rembrandts roubados, instalações iranianas secretas de enriquecimento.
- Desculpe, Graham, mas...
- E porque você também deve uma a Lancaster.
- Eu?
- Quem você acha que autorizou sua estadia na Cornualha com um nome falso quando nenhum outro país o aceitaria? E quem você pensa que o deixou recrutar uma jornalista
britânica quando precisava penetrar na cadeia de fornecimento iraniana?
- Não sabia que estávamos contando pontos, Graham.
- Não estamos. Mas, se estivéssemos, você certamente estaria perdendo a partida.
Os dois caíram num silêncio desconfortável, como se estivessem constrangidos pelo tom do debate. Seymour olhou para o teto, e Gabriel para o bilhete.
Em sete dias a garota morre...
- Um tanto vago, não acha?
- Mas muito eficiente - afirmou Seymour. - Atraiu a atenção de Lancaster.
- Nenhuma exigência?
Seymour balançou a cabeça.
- É óbvio que eles querem revelar seu preço no último minuto. E querem que Lancaster esteja desesperado para salvar a própria pele, pronto a concordar em pagar qualquer
coisa.
- Quanto o seu primeiro-ministro vale?
- Na última vez que dei uma olhadinha em suas contas bancárias - respondeu Seymour jocosamente ele tinha mais de 100 milhões.
- De libras?
Seymour assentiu.
- Jonathan Lancaster fez milhões no centro financeiro londrino, ganhou uma herança milionária e casou-se com a igualmente milionária Diana Baldwin. Ele é um alvo
perfeito, um homem com mais dinheiro do que precisa e com muito a perder. Diana e as crianças vivem na bolha de segurança da Downing Street, logo seria quase impossível
sequestrá-las. Mas a amante de Lancaster... - A voz de Seymour se perdeu. - Uma amante é algo completamente diferente.
- Imagino que Lancaster não tenha comentado sobre isso com a esposa.
Seymour fez um gesto com as mãos indicando que não tinha acesso ao funcionamento interno do casamento de Lancaster.
- Você já trabalhou com um caso de sequestro, Graham?
- Nenhum desde a Irlanda do Norte. E aqueles foram todos relacionados ao IRA.
- Sequestros políticos são diferentes de sequestros criminais - explicou Gabriel. - O sequestrador político comum é um sujeito racional. Ele quer que companheiros
sejam soltos ou que uma política seja modificada, então agarra um político importante ou um ônibus escolar cheio de crianças e os mantém como reféns até que suas
demandas sejam cumpridas. Mas o sequestrador criminoso só quer dinheiro. E, se você paga, faz com que ele queira mais dinheiro. Então ele fica pedindo dinheiro até
achar que não sobrou mais nada.
- Então acho que nos resta apenas uma opção.
- Qual?
- Encontrar a garota.
Gabriel foi até a janela e olhou para além do vale, na direção do Monte do Templo. Por um segundo, ele se viu de volta à caverna secreta 50 metros abaixo da superfície,
segurando Eli Lavon enquanto seu sangue era bombeado para o coração da montanha sagrada. Durante as longas noites que passou ao lado de Lavon no leito de hospital,
Gabriel jurou que nunca poria os pés de novo no campo de batalha do serviço secreto. Mas agora um velho amigo havia surgido das profundezas de seu passado emaranhado
para pedir um favor. E mais uma vez Gabriel estava se esforçando para encontrar as palavras que o mandariam embora de mãos vazias. Como filho único de sobreviventes
do Holocausto, desapontar outras pessoas não estava em sua natureza. Ele fazia concessões e raramente dizia não.
- Mesmo se eu for capaz de encontrá-la - disse ele depois de um tempo os sequestradores ainda vão ter o vídeo da confissão dela.
- Mas o vídeo terá um impacto bem diferente se a rosa inglesa estiver sã e salva em solo britânico.
- A menos que a rosa inglesa decida contar a verdade.
- Ela é leal ao Partido. Não se atreveria.
- Você não tem ideia do que eles fizeram com ela - retrucou Gabriel. - A esta altura, pode ser uma pessoa completamente diferente.
- É verdade. Mas estamos nos precipitando. Esta conversa é inútil se você e seu serviço não empreenderem uma operação para encontrar Madeline Hart.
- Eu não tenho autoridade para colocar meu serviço à sua disposição, Graham. A decisão é do Uzi, não minha.
- Uzi já autorizou - respondeu Seymour sem emoção. - Assim como Shamron.
Gabriel encarou Seymour com desaprovação, mas não disse nada.
- Você realmente acha que Ari Shamron teria me deixado chegar a menos de um quilômetro de você sem saber que eu estava na cidade? - questionou Seymour. - Ele é muito
protetor quando se trata de você.
- Ele tem um jeito engraçado de demonstrar isso. Mas receio que ainda exista uma pessoa em Israel mais poderosa do que Shamron, pelo menos no que diz respeito a
mim.
- Sua esposa?
Gabriel assentiu.
- Em sete dias a garota morre.
- Seis dias - corrigiu Gabriel. - A garota pode estar em qualquer lugar do mundo e não temos uma única pista.
- Isso não é exatamente verdade.
Seymour enfiou a mão na maleta e pegou duas fotografias da Interpol do homem com quem Madeline Hart tinha almoçado na tarde em que desaparecera. O homem cujos sapatos
não deixavam marcas. O homem esquecido.
- Quem é ele? - perguntou Gabriel.
- Boa pergunta. Mas, se você puder encontrá-lo, suspeito que encontre Madeline Hart.
6
MUSEU DE ISRAEL, JERUSALÉM
Gabriel pegou um único item de Graham Seymour - a fotografia de Madeline Hart - e o levou para a região oeste de Jerusalém, até o Museu de Israel. Depois de deixar
o carro no estacionamento para funcionários - um privilégio que haviam lhe concedido recentemente atravessou o enorme hall de entrada feito de vidro e chegou até
a sala que alojava a coleção de arte europeia. Num canto estavam penduradas nove pinturas impressionistas que antes pertenciam a um banqueiro suíço chamado Augustus
Roube. Uma plaqueta descrevia a longa jornada que as pinturas tinham feito a partir de Paris - como foram saqueadas pelos nazistas em 1940 e transferidas para Roube
em troca de serviços prestados à inteligência alemã. Mas não chegava a mencionar o fato de que Gabriel e a filha do banqueiro, a renomada violinista Anna Roube,
tinham descoberto as pinturas num cofre em Zurique, nem que um consórcio de empresários suíços havia contratado um assassino profissional corso para matar Gabriel
e Anna.
Na galeria adjacente estavam pinturas de artistas israelenses. Três telas eram da mãe de Gabriel, incluindo um retrato assombroso da marcha da morte de Auschwitz
em janeiro de 1945, feito com base em suas memórias. Gabriel passou um bom tempo admirando o desenho e as pinceladas antes de sair para o jardim das esculturas.
Na outra extremidade, erguia-se o Santuário do Livro, uma estrutura em forma de colmeia que continha os Manuscritos do Mar Morto. Ao lado dessa ala ficava a mais
nova construção do museu, com 60 côvados de comprimento, 20 de largura e 30 de altura. Por enquanto, o espaço estava coberto por uma lona opaca para construções,
que escondia os 22 pilares do Templo de Salomão do resto do mundo.
Havia seguranças bem armados em ambos os lados da construção e na entrada que ficava voltada para o leste, assim como no templo original de Salomão. Esse era apenas
um elemento do projeto curatorial mais controverso que o mundo já conhecera. Os haredim ultraortodoxos de Israel tinham denunciado a exposição como uma afronta a
Deus que acabaria levando à destruição do Estado judeu, enquanto na parte leste de Jerusalém, que abrigava a população árabe, os mantenedores do Domo da Rocha declararam
que os pilares eram um embuste elaborado.
- Nunca houve Templo no Monte do Templo - escreveu o grande mufti de Jerusalém numa carta aberta publicada pelo New York Times - e nenhuma exposição ou museu vai
mudar esse fato.
Apesar das violentas batalhas religiosas e políticas, a organização da exposição progredia de forma consideravelmente rápida. Poucas semanas após a descoberta de
Gabriel, aprovaram-se os planos arquitetônicos, angariaram-se fundos e foi iniciada a construção. Boa parte do crédito pertencia à diretora e designer-chefe italiana.
Em público, referiam-se a ela por seu nome de solteira, Chiara Zolli. Mas todas as pessoas associadas ao projeto sabiam que ela se chamava Chiara Allon.
Os pilares foram dispostos da mesma forma em que Gabriel os encontrara, em duas fileiras retas separadas por cerca de 6 metros. O mais alto estava enegrecido pelo
fogo do incêndio provocado pelos babilônios na noite em que derrubaram o Templo - considerado pelos judeus da Antiguidade como a moradia de Deus na Terra. Fora a
esse pilar que Eli Lavon se agarrara quando estava à beira da morte, e foi lá que Gabriel encontrou Chiara agora segurando uma prancheta e gesticulando na direção
do teto de vidro. Ela vestia jeans desbotados, sandálias sem salto e um moletom branco sem mangas que marcava bem as curvas de seu corpo. Os braços descobertos estavam
bem bronzeados pelo sol de Jerusalém. Chiara parecia incrivelmente linda, pensou Gabriel, e jovem demais para ser a esposa de um sujeito tão acabado quanto ele.
No alto da obra, dois técnicos estavam fazendo ajustes nas luzes da exposição sob a supervisão de Chiara. Ela falava com eles em hebraico, com um sotaque italiano
acentuado. Filha do rabino-chefe de Veneza, havia passado a juventude no mundo provinciano de um gueto, partindo apenas por tempo suficiente para cursar o mestrado
em História Romana na Universidade de Pádua. Ela voltara a Veneza depois de se graduar e aceitara um emprego num pequeno museu judaico no Campo del Ghetto Nuovo,
e talvez tivesse permanecido lá para sempre se um observador de talentos do Escritório não tivesse reparado nela durante uma visita a Israel. O homem apresentara-se
num café de Tel Aviv e perguntara a Chiara se ela estaria interessada em fazer mais pelo povo judeu do que trabalhando no museu de um gueto moribundo.
Após passar um ano no programa de treinamento secreto do Escritório, ela retomou sua vida antiga, já como agente secreta israelense. Uma de suas primeiras tarefas
foi ficar na retaguarda de um assassino do Escritório chamado Gabriel Allon, que tinha ido a Veneza para restaurar o retábulo de San Zaccaria, de Bellini. Chiara
revelou-se a ele pouco tempo depois, em Roma, após um incidente envolvendo tiroteios e a polícia italiana. A sós com Chiara em um esconderijo, Gabriel sentiu uma
vontade desesperadora de tocá-la. Esperou até que o caso fosse resolvido e eles voltassem a Veneza. Lá, numa casa à beira de um canal em Cannaregio, fizeram amor
pela primeira vez, numa cama com frescos lençóis de linho. Era como fazer amor com uma figura pintada por Veronese.
Agora, ela virou a cabeça e, notando Gabriel pela primeira vez, sorriu. Seus olhos, largos e meio orientais, tinham cor de caramelo e manchas douradas, uma combinação
que Gabriel nunca fora capaz de reproduzir com precisão na tela. Vários meses já haviam se passado desde que Chiara concordara em posar para ele. A exposição a deixara
com pouco tempo para outros afazeres. Era uma mudança clara no padrão do casamento. Em geral era Gabriel que se via consumido por um projeto, fosse uma pintura ou
uma operação, mas agora os papéis estavam invertidos. Organizadora inata e sempre meticulosa, Chiara conseguia progredir mesmo sob a pressão da exposição. Mas, secretamente,
Gabriel antecipava o dia em que a teria de volta.
Ela caminhou até o pilar seguinte e observou como a luz incidia sobre ele.
- Eu liguei para o apartamento alguns minutos atrás, mas ninguém atendeu.
- Eu estava num brunch com Graham Seymour no King David.
- Que adorável - comentou ela, sarcástica. Em seguida, ainda analisando os pilares, perguntou: - O que tem no envelope?
- Uma oferta de emprego.
- Quem é o artista?
- Desconhecido.
- E o tema?
- Uma garota chamada Madeline Hart.
Gabriel voltou para o jardim de esculturas e sentou-se num banco com vista para as colinas de Jerusalém Ocidental. Alguns minutos depois, Chiara juntou-se a ele.
Um suave vento outonal moveu os seus cabelos. Ela afastou uma mecha do rosto e cruzou as pernas, com a sandália pendente do pé bronzeado. De repente, a última coisa
que Gabriel queria fazer era deixar Jerusalém para procurar uma garota desconhecida.
- Vamos tentar de novo... - disse ela, por fim. - O que tem no envelope?
- Uma foto.
- Que tipo de foto?
- Prova de vida.
Chiara estendeu a mão. Gabriel hesitou.
- Tem certeza?
Chiara assentiu e Gabriel lhe entregou o envelope. Ela o abriu e retirou a foto. Enquanto examinava a imagem, seu rosto ficou sombrio. Claramente vinha à sua memória
um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Gabriel tinha tirado tudo de Ivan: seus negócios, seu dinheiro, sua mulher e filhos. Em seguida, o oligarca retaliara
capturando Chiara. A operação de resgate foi a mais sangrenta em toda a longa carreira de Gabriel: ele matara onze agentes inimigos. E, numa rua tranquila em Saint-Tropez,
também assassinara Ivan. Mesmo morto, Ivan permaneceria como parte de suas vidas. As injeções de ketamina que seus homens haviam aplicado em Chiara fizeram-na perder
o bebê. Como ela não recebera tratamento, o aborto prejudicara sua capacidade de ter filhos. Chiara quase tinha perdido qualquer esperança de ficar grávida de novo.
Ela colocou a foto no envelope e o devolveu a Gabriel. Então, escutou com atenção enquanto ele explicava como o caso tinha caído no colo de Graham Seymour, para
então chegar ao seu.
- Então o primeiro-ministro britânico está forçando Graham Seymour a fazer o trabalho sujo dele - disse Chiara quando Gabriel terminou e Graham está fazendo o mesmo
com você.
- Ele tem sido um bom amigo.
O rosto de Chiara não revelava nenhuma expressão. Seus olhos, normalmente uma janela confiável para seus pensamentos, estavam ocultos atrás de óculos escuros.
- O que você acha que eles querem? - perguntou ela depois de um tempo.
- Dinheiro. Eles sempre querem dinheiro.
- Quase sempre. Mas às vezes querem coisas que não dá para ceder.
Ela tirou os óculos e os pendurou na camiseta.
- Quanto tempo você tem antes de eles a matarem? - Como Gabriel ficou em silêncio, ela balançou a cabeça devagar. - É um caso impossível. Você não poderia encontrá-la
a tempo.
- Olhe para a construção atrás de você. Depois me fale se ainda sente o mesmo.
Chiara não olhou para nada além do rosto de Gabriel.
- A polícia francesa está buscando Madeline Hart há mais de um mês. O que faz você pensar que pode encontrá-la?
- Talvez eles não tenham procurado no lugar certo... ou falado com as pessoas certas.
- Por onde você começaria? Eu sempre acreditei que o melhor lugar para iniciar uma investigação é na cena do crime.
Chiara pegou os óculos e limpou as lentes na calça jeans, distraída. Gabriel sabia que aquilo era um mau sinal: a esposa sempre limpava coisas quando estava aborrecida.
- Desse jeito você vai arranhar as lentes.
- Estão imundas - retrucou ela no mesmo instante.
- Talvez você devesse arrumar um estojo em vez de jogar os óculos na bolsa.
Ela não respondeu nada.
- Você sempre me surpreende, Chiara.
- Por quê?
- Porque você sabe melhor do que qualquer pessoa que Madeline Hart está no inferno. E ela vai ficar no inferno até que alguém a tire de lá.
- Eu só gostaria que outra pessoa fizesse o serviço.
- Não há outra pessoa.
- Ninguém como você.
Ela examinou as lentes e franziu a testa.
- O que houve?
- Estão arranhadas.
- Eu avisei.
- Você sempre tem razão, querido.
Chiara colocou os óculos e olhou na direção da cidade.
- Imagino que Shamron e Uzi já tenham dado suas bênçãos.
- Graham os procurou antes de falar comigo.
- Que esperto da parte dele. - Chiara descruzou as pernas e se levantou. - Eu preciso voltar. Não temos muito tempo antes da abertura.
- Você tem feito um trabalho magnífico, Chiara.
- Ficar me bajulando não vai ajudar.
- Achei que valia tentar.
- Quando vou vê-lo de novo?
- Só tenho sete dias para encontrá-la.
- Seis - ela o corrigiu. - Em seis dias a garota morre.
Chiara lhe deu um beijo suave. Em seguida, virou-se e atravessou o jardim ensolarado, os quadris balançando como se seguissem o ritmo de uma música que só ela conseguisse
ouvir. Gabriel a observou entrar na construção coberta pela lona. Agora, a última coisa que ele queria fazer era deixar Jerusalém em busca de uma garota desconhecida.
Ele voltou ao King David Hotel para recolher o resto do dossiê de Graham Seymour: o bilhete de exigências que não continha nenhuma exigência, o DVD da confissão
de Madeline e as duas fotos do homem de Les Palmiers em Calvi. Além disso, requisitou uma cópia do arquivo pessoal de Madeline no Partido, a ser entregue em um endereço
em Nice.
- Como foi com Chiara? - perguntou Seymour.
- A esta altura, meu casamento pode estar pior que o de Lancaster.
- Algo que eu possa fazer?
- Saia da cidade o mais rápido possível. E não mencione meu nome para o seu primeiro-ministro nem para qualquer outra pessoa na Downing Street.
- Como posso entrar em contato com você?
- Mando um sinal de fumaça quando tiver notícias. Até lá, eu não existo.
Com essas palavras, Gabriel partiu. Voltando para a rua Narkiss, encontrou um cinto de dinheiro na mesa de centro com 200 mil dólares. Ao lado, havia uma passagem
de avião, de um voo das 16 horas para Paris. A reserva fora feita no nome de Johannes Klemp, uma de suas identidades falsas favoritas. Gabriel entrou no quarto e
encheu uma pequena bolsa de viagem com as roupas modernas de Herr Klemp, separando um terno e um casaco pretos para o voo. Então, em frente ao espelho do banheiro,
fez algumas alterações sutis em sua própria aparência: um pouco de grisalho no cabelo, óculos alemães sem aro, lentes de contato castanhas para esconder os característicos
olhos verdes. Em poucos minutos, mal reconhecia o rosto no reflexo. Ele não era mais Gabriel Allon, o anjo vingador de Israel, mas Johannes Klemp, de Munique, um
homem sempre pronto a se ressentir - pequeno, insignificante e carrancudo.
Depois de vestir o terno e passar a fragrância tenebrosa de Herr Klemp, sentou à penteadeira de Chiara e abriu sua caixa de joias. Um item pareceu estranhamente
fora de lugar: um coral-vermelho em forma de mão, preso a uma tira de couro. Ele o pegou e o colocou no bolso. Então, por razões que ele mesmo não saberia explicar,
pendurou o artefato no pescoço e o escondeu sob o casaco de Herr Klemp.
Diante da casa, um sedã do Escritório estava parado com o motor ligado. Gabriel jogou a bolsa no banco de trás e entrou. Em seguida, consultou o relógio, não para
ver as horas, mas a data: 27 de setembro. Já tinha sido seu dia favorito do ano.
- Qual o seu nome? - perguntou ao motorista.
- Lior.
- De onde você é, Lior?
- Berseba.
- Era um bom lugar para uma criança?
- Existem lugares piores.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e cinco.
Vinte e cinco, pensou Gabriel. Por que tinha que ser aquela idade? Olhou de novo para o relógio. Não para a hora; para a data.
- Quais foram suas instruções?
- Disseram-me para levá-lo ao Ben Gurion - respondeu Lior.
- Mais alguma coisa?
- Falaram que talvez você quisesse fazer uma parada no caminho.
- Quem falou isso? Uzi?
- Não. Foi o Velho.
Então ele lembrava, pensou Gabriel. Olhou de novo para o relógio. A data...
- Como devo proceder? - perguntou o motorista.
- Leve-me ao aeroporto.
- Nenhuma parada?
- Só uma.
Lior engrenou a marcha e se afastou suavemente da calçada, como se estivesse se juntando a um cortejo fúnebre. Não se deu o trabalho de perguntar para onde estavam
indo. Era 27 de setembro. E Shamron se lembrava.
Eles foram até o jardim de Getsêmani e seguiram o caminho estreito e sinuoso que subia a encosta do monte das Oliveiras. Gabriel entrou no cemitério sozinho e passou
pelo mar de lápides, até chegar ao túmulo de Daniel Allon, nascido no dia 27 de setembro de 1988, morto no dia 13 de janeiro de 1991, numa noite de neve no Primeiro
Distrito de Viena, num Mercedes azul destruído por uma bomba. O artefato fora plantado por um líder terrorista palestino chamado Tariq al-Hourani, sob ordens diretas
de Yasser Arafat. Gabriel não era o alvo; aquilo seria leniente demais. Tariq e Arafat queriam puni-lo forçando-o a assistir à morte de sua mulher e filho, para
que pudesse passar o resto da vida de luto, assim como os palestinos. Apenas um elemento da trama falhara: Leah sobrevivera ao inferno. Agora ela vivia num hospital
psiquiátrico no topo do monte Herzl, prisioneira da própria memória e de um corpo destruído pelo fogo. Tomada por uma combinação de estresse pós-traumático e depressão
psicótica, revivia constantemente o atentado. De vez em quando, tinha lampejos de lucidez. Durante um desses períodos, ela concedera a Gabriel permissão para se
casar com Chiara. Olhe para mim, Gabriel. Não resta nada de mim. Nada além de uma memória.
Gabriel consultou o relógio de novo. Não olhando a data, mas a hora. Havia tempo para uma última despedida. Uma última torrente de lágrimas. Um último pedido de
desculpas por ter deixado de vasculhar o carro antes de Leah dar partida. Em seguida, ele se afastou cambaleante do jardim de pedra, no dia que já fora o seu favorito
do ano, e subiu na traseira de um sedã do Escritório que era conduzido por um garoto de 25 anos.
Lior teve o bom senso de não falar uma palavra sequer durante o caminho até o aeroporto. Gabriel entrou no terminal como um viajante qualquer, mas então foi a uma
sala reservada para a equipe do Escritório, onde esperou seu voo ser chamado. Ao se acomodar no assento de primeira classe, sentiu um impulso não profissional de
ligar para Chiara. Usando técnicas que lhe foram ensinadas na juventude por Shamron, ele a afastou de seus pensamentos. Agora não havia Chiara. Nem Daniel. Nem Leah.
Havia apenas Madeline Hart, a amante sequestrada do primeiro-ministro britânico Jonathan Lancaster. Enquanto o avião decolava em direção ao céu que começava a escurecer,
ela apareceu para Gabriel num retrato a óleo, como Suzana banhando-se num jardim. Espiando-a de trás de um muro estava um homem com um rosto anguloso e uma boca
pequena e cruel. O homem sem nome nem país. O homem esquecido.
7
CÓRSEGA
Os corsos dizem que, ao se aproximarem de barco de sua ilha, são capazes de sentir o cheiro da vegetação cerrada característica - chamada ali de Mac chia - muito
antes de vislumbrarem o contorno acidentado da costa se erguendo do mar. Gabriel não teve essa experiência, pois chegou à Córsega de avião, no primeiro voo matinal
que partiu de Orly. Só quando estava ao volante de um Peugeot alugado, saindo do aeroporto de Acácio em direção ao sul, é que sentiu pela primeira vez o aroma de
carqueja, sarça, estava e alecrim vindo das colinas. Os corsos usavam as plantas para cozinhar e aquecer suas casas e nelas se refugiavam em tempos de guerra e vendeta.
Segundo a lenda corsa, um homem perseguido poderia penetrar na macchia e, se quisesse, permaneceria lá para sempre sem ser encontrado. Gabriel conhecia um desses
homens. Era por isso que levava no pescoço um artefato de coral-vermelho.
Depois de dirigir por meia hora, ele saiu da estrada costeira e tomou a direção do interior. À medida que o odor da macchia se intensificava, também se fortificavam
os muros que cercavam as pequenas cidades de colina. A Córsega, assim como a antiga terra de Israel, fora invadida muitas vezes: após a queda do Império Romano,
os vândalos pilharam a ilha de forma tão implacável que a maior parte dos habitantes fugiu do litoral e recuou para a segurança das montanhas. Mesmo atualmente,
o medo de estrangeiros ainda era intenso. Num vilarejo isolado, uma idosa apontou para Gabriel com o dedo indicador e o mindinho a fim de afastar os efeitos do occhju,
o mau-olhado.
Passando o vilarejo, a estrada era pouco mais do que uma via de pista única ladeada por paredes densas da macchia. Depois de um quilômetro, ele chegou à entrada
de uma propriedade particular. O portão estava aberto, mas bloqueado por um veículo off-road com dois seguranças. Gabriel desligou o motor e colocou as mãos sobre
o volante, esperando os homens se aproximarem. Por fim, um deles saiu do veículo e caminhou devagar em sua direção. Tinha uma arma numa das mãos e a outra enfiada
na cintura. Com um único movimento de suas sobrancelhas espessas, o homem questionou o propósito da visita de Gabriel.
- Desejo ver Don Orsati - disse Gabriel em francês.
- Ele é um homem muito ocupado - respondeu o segurança no dialeto corso.
Gabriel tirou o talismã do pescoço e o entregou. O corso sorriu.
- Verei o que posso fazer.
Nunca foi muito difícil desencadear uma disputa sangrenta na Córsega. Um insulto. Uma acusação de roubo no mercado. A dissolução de um noivado. A gravidez de uma
mulher solteira. Após a faísca inicial, sempre vinham os distúrbios. Um touro morreria, uma oliveira premiada seria derrubada, uma casa de campo pegaria fogo. Então
os assassinatos começariam. E a coisa seguia em frente, às vezes por uma geração ou mais, até que as partes injuriadas acertassem as diferenças ou desistissem da
luta por exaustão.
A maior parte dos homens corsos estava mais do que disposta a cometer os próprios assassinatos. Mas alguns precisavam de outros para executarem seu trabalho sangrento:
pessoas de renome que eram melindrosas demais para sujarem as mãos ou que não estavam dispostas a arriscar uma prisão ou o exílio; mulheres que não conseguiam matar
e não tinham parentes masculinos para assumirem a questão. Gente desse tipo dependia de assassinos profissionais conhecidos como taddunaghiu e, em geral, recorria
ao clã Orsati.
Os Orsatis tinham uma bela propriedade e seu azeite era considerado o melhor de toda a Córsega. Mas faziam muito mais do que plantar oliveiras. Ninguém sabia quantos
corsos haviam morrido pelas mãos de assassinos dos Orsatis, muito menos os próprios Orsatis, mas de acordo com o folclore local, o número estava na casa dos milhares.
Poderia ter sido muito mais se não fosse o rigoroso processo de vetos do clã. Os Orsatis operavam com base num código rigoroso. Eles se recusavam a cometer um assassinato
se não estivessem convencidos de que o requisitante havia de fato sido injustiçado e que fosse necessária uma vingança sanguinolenta.
No entanto, isso mudou com Don Anton Orsati. Quando ele tomou o controle da família, as autoridades francesas tinham conseguido erradicar as rixas e a vendeta por
toda a ilha, com exceção dos bolsões mais isolados; logo, poucos corsos exigiam os serviços dos taddunaghiu. Com a demanda local em declínio acelerado, Orsati não
teve escolha além de buscar por oportunidades em outros lugares, isto é, do outro lado da água, na Europa continental. Agora, ele aceitava quase todas as ofertas
de trabalho que passassem por sua mesa, mesmo que fossem desagradáveis, e seus assassinos eram considerados os profissionais mais confiáveis de todo o continente.
Gabriel fora uma das duas únicas pessoas que sobreviveram a um contrato da família Orsati.
Embora Anton Orsati fosse descendente de uma família de corsos ilustres, em aparência era indistinguível dos paesanu que protegiam a entrada de sua propriedade.
Ao entrar no amplo escritório do don, Gabriel o encontrou sentado à mesa vestindo uma camisa branca, calças largas de algodão claro e um par de sandálias poeirentas
que pareciam ter sido compradas na feira local. Ele estava analisando um livro-razão antiquado com uma expressão carrancuda. Gabriel não podia imaginar a fonte de
sua insatisfação. Muito tempo antes, Orsati tinha fundido os dois negócios numa única empresa. Seus taddunaghiu modernos eram funcionários da Orsati Olive Oil Company
e os assassinatos eram registrados como encomendas de produtos.
Levantando-se, Orsati estendeu sua mão de granito para Gabriel sem qualquer traço de apreensão.
- É uma honra conhecê-lo, monsieur Allon - falou ele em francês. - Para ser sincero, achava que o veria bem antes. Você tem reputação de lidar severamente com seus
inimigos.
- Meus inimigos eram os banqueiros suíços que o contrataram para me matar, Don Orsati. Além do mais, em vez de me dar um tiro na cabeça, seu assassino me deu isto.
Gabriel meneou a cabeça na direção do talismã, que estava na mesa de Orsati ao lado do livro-razão. Anton franziu a testa. Erguendo o amuleto pela tira de couro,
deixou a mão de coral-vermelho balançar para trás e para a frente, como o pêndulo de um relógio.
- Aquilo foi imprudente - comentou, por fim, o don.
- Abandonar o talismã ou me deixar vivo?
Orsati deu um sorriso evasivo.
- Temos um velho ditado aqui na Córsega: I solda un vènini micca cantendu. Não dá para ganhar dinheiro cantando. Só trabalhando. E, por aqui, trabalho significa
cumprir contratos, mesmo quando envolvem violinistas famosos e agentes da inteligência israelense.
- Então você devolveu o dinheiro para os homens que o contrataram?
- Eles eram banqueiros suíços. Dinheiro era a última coisa de que precisavam. - Orsati fechou o livro-razão e colocou o talismã sobre a capa. - Como pode imaginar,
mantive os olhos em você no decorrer dos anos. Você tem ficado muito ocupado desde que nossos caminhos se cruzaram. Na verdade, alguns dos seus melhores trabalhos
foram feitos no meu território.
- Esta é a minha primeira visita à Córsega.
- Estava me referindo ao sul da França. Você matou aquele terrorista saudita, Zizi al-Bakari, no velho porto de Cannes. E também houve aquele desentendimento com
Ivan Kharkov em Saint-Tropez alguns anos atrás.
- Pelo que eu soube, Ivan foi morto por outros russos - disse Gabriel, evasivo.
- Você matou Ivan, Allon. E você o matou porque ele capturou sua esposa.
Gabriel ficou em silêncio. O corso voltou a sorrir, dessa vez com a confiança de um homem que sabe que tem razão.
- A macchia não tem olhos, mas vê tudo.
- É por isso que estou aqui.
- Imaginei. Afinal, um homem como você certamente não precisaria de um assassino profissional. Você faz isso muito bem por conta própria.
Gabriel tirou um maço de dinheiro do bolso do casaco e o depositou sobre o livro-razão da morte, ao lado do talismã. O don o ignorou.
- Como posso ajudá-lo, Allon?
- Preciso de uma informação.
- Sobre...?
Sem dizer nada, Gabriel colocou a foto de Madeline Hart ao lado do dinheiro.
- A garota inglesa?
- Você não parece surpreso, Don Orsati.
O corso não respondeu.
- Sabe onde ela está?
- Não. Mas tenho uma boa noção de quem a capturou.
Gabriel ergueu a foto do homem de Les Palmiers. Orsati assentiu.
- Quem é ele?
- Não sei. Só o vi uma vez.
- Onde?
- Neste escritório, uma semana antes de a garota inglesa desaparecer. Ele sentou na mesma cadeira em que você está sentado agora. Mas ele tinha mais dinheiro do
que você, Allon. Muito mais.
8
CÓRSEGA
Era hora do almoço, a parte do dia predileta de Don Orsati. Eles se acomodaram na varanda adjacente ao escritório e sentaram a uma mesa repleta de pães, queijos,
vegetais e salsichas da região. O sol estava forte e, por entre os pinheiros-larícios, Gabriel pôde ver o mar azul-esverdeado reluzindo à distância. O aroma da macchia
estava por toda parte; no ar fresco e na comida. Até mesmo Orsati parecia irradiá-lo. Ele serviu vinho vermelho-sangue na taça de Gabriel e, a seguir, passou a cortar
várias fatias da gorda salsicha corsa. Gabriel não questionou a origem da carne. Nas palavras de Shamron, às vezes é melhor não perguntar.
- Fico feliz por não termos matado você - disse Orsati, erguendo a taça uma fração de centímetro.
- Posso garantir, Don Orsati, que sinto o mesmo.
- Mais salsicha?
- Por favor.
Orsati cortou mais duas fatias grossas e as colocou no prato de Gabriel. Em seguida, pôs os óculos de leitura em formato de meia-lua e examinou a fotografia do homem
de Les Palmiers.
- Ele parece diferente nesta foto - comentou após um momento. - Mas definitivamente é a mesma pessoa.
- O que está diferente?
- O penteado. Quando ele veio me ver, estava com mouse no cabelo e o penteara bem para trás. Era uma diferença sutil, mas muito eficiente.
- Ele tinha um nome?
- Apresentou-se como Paul.
- Sobrenome?
- Até onde eu sei, esse era o sobrenome.
- Que idioma nosso amigo Paul falava?
- Francês.
- Local?
- Não, tinha sotaque.
- De que tipo?
- Não consegui identificar - respondeu o don, franzindo as sobrancelhas grossas. - Dava a impressão de ter aprendido francês ouvindo os CDs de algum curso de línguas.
Era perfeito, mas ao mesmo tempo havia algo de estranho ali.
- Imagino que ele não tenha encontrado seu nome numa lista telefônica.
- Não, Allon. Ele tinha uma referência.
- Que tipo de referência?
- Um nome.
- Alguém que contratou você no passado.
- As referências costumam ser desse tipo.
- Que tipo de trabalho era?
- O tipo em que dois homens entram numa sala e só um sai. E não se dê o trabalho de me perguntar o nome da referência - acrescentou Orsati rapidamente. - Estamos
falando dos meus negócios.
Com um leve movimento da cabeça, Gabriel indicou que não tinha desejo que levar a questão mais a fundo, ao menos por enquanto. Então, perguntou a Anton por que o
homem tinha ido vê-lo.
- Conselho - respondeu Orsati.
- Sobre o quê?
- Ele me disse que tinha alguns produtos para mover. Falou que precisava de alguém com um barco rápido. Alguém que conhecesse as águas locais e pudesse navegar à
noite. Alguém que soubesse manter a boca fechada.
- Produto?
- Você pode achar estranho, mas ele não foi específico.
- Você supôs que ele fosse um contrabandista - disse Gabriel. Era mais uma declaração de fato do que uma pergunta.
- A Córsega é uma rota intensa de tráfico de heroína do Oriente Médio para a Europa. Ah, para seu governo, os Orsatis não lidam com narcóticos, embora se saiba que,
vez ou outra, nós eliminamos membros proeminentes desse mercado.
- Por uma taxa, é claro.
- Quanto mais proeminente, maior a taxa.
- Vocês foram capazes de oferecer o serviço para ele?
- Óbvio - respondeu o don. Em seguida, baixando a voz, acrescentou: - Às vezes nós mesmos movemos coisas durante a noite, Allon.
- Coisas como cadáveres?
Orsati deu de ombros.
- São um infeliz efeito colateral de nosso negócio - falou ele num tom filosófico. - Em geral, tentamos deixá-los onde caem. Mas, ocasionalmente, os clientes pagam
um pouco a mais para que eles desapareçam. Nosso método favorito é colocá-los em caixões de concreto e enviá-los para o fundo do mar. Só Deus sabe quantos estão
lá embaixo.
- Quanto Paul pagou?
- Cem mil.
- Como foi a divisão?
- Metade para mim, metade para o homem com o barco.
- Só metade?
- Sorte dele ter recebido tanto.
- E quando você soube que a garota inglesa tinha desaparecido?
- É óbvio que suspeitei. Quando vi a foto de Paul nos jornais... Basta dizer que não fiquei satisfeito. A última coisa que eu preciso é de problemas. São ruins para
os negócios.
- Você não aceita sequestrar mulheres jovens?
- Suspeito que nem você.
Gabriel permaneceu em silêncio.
- Não quis ofender - disse o don sinceramente.
- Não ofendeu, Don Orsati.
Anton encheu seu prato com pimentões assados e berinjela e encharcou-os com azeite de oliva do clã. Gabriel tomou um pouco de vinho, elogiou a comida e perguntou
pelo nome do homem com o barco rápido que conhecia as águas locais, como se não tivesse o mínimo interesse na resposta.
- Estamos entrando em território sensível - alertou Orsati. - Eu faço negócios com essas pessoas o tempo todo. Se descobrirem que as traí, as coisas ficariam feias,
Allon.
- Posso garantir, Don Orsati, que eles nunca vão saber como eu obtive a informação.
Orsati não pareceu convencido.
- Por que essa garota é tão importante a ponto de o grande Gabriel Allon procurá-la?
- Digamos que ela tem amigos poderosos.
- Amigos? - Orsati balançou a cabeça, cético. - Se você está envolvido, é mais do que isso.
- Você é muito sábio, Don Orsati.
- A macchia não tem olhos - comentou o don, misterioso.
- Eu preciso do nome dele - insistiu Gabriel, baixinho. - Ele nunca vai saber onde eu o obtive.
Orsati pegou a taça de vinho e a ergueu contra o sol.
- Se eu fosse você - disse, depois de um instante falaria com um homem chamado Marcel Lacroix. Talvez ele saiba algo sobre o lugar para onde a garota foi depois
que saiu da Córsega.
- Onde eu posso encontrá-lo?
- Marselha. Ele deixa o barco no Velho Porto.
- Qual lado?
- O sul, em frente à galeria de arte.
- Qual é o nome do barco?
- Moondance.
- “Dança da Lua”? Simpático.
- Garanto que não há nada de simpático a respeito de Marcel Lacroix ou dos homens para quem ele trabalha. Você precisa ser cuidadoso em Marselha.
- Você pode achar estranho, Don Orsati, mas eu já fiz isso uma ou duas vezes.
- É verdade. Mas você deveria estar morto há muito tempo. - Orsati passou o talismã para Gabriel. - Coloque isso no pescoço. Afasta mais do que só o mau-olhado.
- Na verdade, eu estava me perguntando se você tem algo um pouco mais poderoso.
- Como o quê?
- Uma arma.
O don sorriu.
- Eu tenho algo melhor do que uma arma.
Gabriel seguiu pela rua até ela virar uma estrada de terra e, então, foi um pouco mais além. O bode velho estava exatamente onde Don Orsati tinha dito que estaria,
bem antes da curva fechada à esquerda, à sombra das três oliveiras centenárias. Quando Gabriel se aproximou, ele se ergueu e ficou no meio da passagem estreita,
como se desafiasse o estranho a tentar passar. Tinha o corpo meio dourado e branco e uma barba vermelha. Assim como Allon, carregava cicatrizes de antigas batalhas.
Ele avançou o carro alguns centímetros, tentando fazer o bode entregar sua posição sem briga, mas o animal manteve-se firme. Gabriel olhou para a arma que Don Orsati
tinha lhe dado. Uma Beretta 9 milímetros carregada no banco do carona. Um tiro entre os chifres desgastados do bode seria o bastante para terminar o impasse. Mas
não era possível. O bode, assim como as velhas oliveiras, pertencia a Don Casabianca. Se Gabriel tocasse num pelo de sua maldita cabeça, haveria uma batalha e sangue
derramado.
Gabriel deu duas buzinadas, mas o bode não cedeu. Com um suspiro profundo, saiu do carro e tentou discutir com o bicho - primeiro em francês, depois italiano e por
fim, exasperado, em hebraico. O bode respondeu baixando a cabeça e a mirando como um aríete na direção da barriga de Gabriel. Mas Allon, que acreditava que a melhor
defesa era um bom ataque, avançou primeiro, balançando os braços e gritando como um lunático. Surpreso, o bode recuou na mesma hora e sumiu por um vão na macchia.
Gabriel voltou depressa até a porta aberta do carro, mas parou ao ouvir um som ao longe, como o gorjeio de um tordo. Ele se virou e olhou para cima, na direção da
casa ocre ao lado da colina seguinte. Parado no terraço estava um homem louro todo vestido de branco. E, embora Gabriel não pudesse ter certeza, parecia que o homem
estava rindo descontroladamente.
9
CÓRSEGA
O homem esperando por Gabriel na casa não era corso - ao menos não tinha nascido ali. Seu nome real era Christopher Keller e ele fora criado num sólido lar de classe
média alta no elegante distrito londrino de Kensington. Na Córsega, no entanto, apenas Don Orsati e um punhado de seus subordinados sabiam de tudo isso. Para o resto
da ilha, ele era conhecido simplesmente como “o Inglês”.
A história da jornada de Keller de Kensington à Córsega fora uma das mais intrigantes que Gabriel já escutara, o que em si já não era pouca coisa. Filho único de
dois médicos da Harley Street, logo cedo deixou claro que não tinha a menor intenção de seguir os passos dos pais. Obcecado por história, especialmente história
militar, queria se tornar um soldado. Seus pais o proibiram de se alistar no Exército e, por um tempo, ele se resignou. Matriculou-se em Cambridge e começou a estudar
história e idiomas orientais. Era um aluno brilhante, mas no segundo ano de estudos perdeu a paciência e uma noite sumiu sem deixar rastros. Alguns dias depois,
apareceu na casa do pai, em Kensington, de cabelo raspado, vestindo um uniforme verde-oliva: tinha entrado para o Exército britânico.
Após completar o treinamento básico, Keller se juntou a uma unidade de infantaria, mas seu intelecto, capacidade física e iniciativa logo chamaram a atenção do Serviço
Aéreo Especial, conhecido na Inglaterra como SAS. Poucos dias depois de chegar à sede do regimento em Hereford, ficou claro que Keller tinha encontrado sua vocação.
Seus resultados no “matadouro” - uma instalação abjeta onde recrutas praticavam combate e resgate de reféns - foram os melhores já registrados e os instrutores do
curso de combate desarmado escreveram que nunca tinham visto alguém com um talento tão instintivo para tirar a vida humana. Seu treinamento culminou numa marcha
de quase 65 quilômetros pelos pântanos ventosos conhecidos como Brecon Beacons, um teste de resistência que já tinha levado homens à morte. Com uma mochila de 25
quilos nas costas e um fuzil de 4,5 quilos nas mãos, Keller quebrou o recorde do percurso por trinta minutos, uma marca que nunca foi superada até os dias atuais.
Inicialmente, ele foi designado para um esquadrão Sabre especializado em guerra no deserto, mas sua carreira logo deu uma guinada quando um homem da inteligência
militar foi procurá-lo. Ele estava atrás de uma espécie única de soldado, capaz de executar o procedimento de observação próxima e outras tarefas especiais na Irlanda
do Norte. Disse estar impressionado com suas habilidades linguísticas e sua aptidão de improvisar e pensar rápido. Keller estaria interessado? Na mesma noite, Christopher
fez as malas e se mudou de Hereford para uma base secreta nas Terras Altas da Escócia.
No decorrer do treinamento, Keller demonstrou mais um talento notável. Havia anos que as forças de segurança e inteligência britânicas enfrentavam dificuldades com
a miríade de sotaques na Irlanda do Norte. Em Ulster, as comunidades inimigas eram capazes de identificar umas às outras apenas pelo som de uma voz, e a maneira
pela qual um homem dizia algumas frases simples poderia significar a diferença entre a vida e uma morte tenebrosa. Keller desenvolveu a habilidade de imitar as entonações
com perfeição. Podia até mesmo mudar de sotaque num piscar de olhos - um católico do condado de Armagh num minuto; um protestante da Shankill Road, de Belfast, no
momento seguinte; depois, um católico dos conjuntos habitacionais de Ballymurphy. Operou em Belfast por mais de um ano, rastreando membros do IRA, coletando pedaços
de fofocas úteis da comunidade local. Devido à natureza de seu trabalho, ocasionalmente ele passava várias semanas sem entrar em contato com os controladores.
Sua missão na Irlanda do Norte chegou a um final abrupto num fim de noite quando foi sequestrado na zona oeste de Belfast e levado até uma fazenda remota em Armagh.
Lá, Keller foi acusado de ser espião britânico. Ele sabia que a situação era desesperadora, então decidiu escapar lutando. Ao deixar a fazenda, quatro terroristas
veteranos do Exército Republicano Irlandês estavam mortos; dois foram praticamente cortados em pedacinhos.
Keller retornou a Hereford, achando que teria um longo descanso trabalhando como instrutor. Mas sua estadia ali terminou em agosto de 1990, quando Saddam Hussein
invadiu o Kwait. Keller voltou depressa à sua velha unidade Sabre e, em janeiro de 1991, já estava no deserto do Iraque, à procura dos lançadores de mísseis Scud
que aterrorizavam Tel Aviv. Na noite de 28 de janeiro, ele e sua equipe localizaram um lançador a 160 quilômetros a noroeste de Bagdá e transmitiram as coordenadas
por rádio para os comandantes na Arábia Saudita. Noventa minutos depois, uma formação de caças-bombardeiros da Coalizão passou voando baixo sobre o deserto. Mas,
num caso desastroso de fogo amigo, em vez dos Scuds, as aeronaves atacaram o esquadrão do SAS. Os oficiais britânicos concluíram que a unidade inteira fora perdida,
incluindo Keller. O obituário não mencionou seu trabalho na inteligência na Irlanda do Norte nem os quatro militantes do Exército Republicano Irlandês que ele tinha
matado na fazenda de Armagh.
O que os oficiais do Exército britânico não perceberam, no entanto, foi que Keller havia sobrevivido ao incidente. Seu primeiro instinto foi entrar em contato com
a base por rádio e requisitar uma extração. Em vez disso, enfurecido pela incompetência dos superiores, começou a caminhar. Oculto pelas típicas vestimentas de um
beduíno e altamente treinado na arte de movimentação clandestina, Keller passou pelas forças da Coalizão e entrou na Síria sem ser detectado. De lá, seguiu de carona
para o oeste, passando por Turquia, Grécia e Itália, até enfim chegar à costa da Córsega, onde caiu nos braços abertos de Don Orsati. Anton lhe deu uma casa e uma
mulher para ajudá-lo a cuidar de suas muitas feridas. Então, quando ele estava descansado, o don lhe deu trabalho. Com sua aparência do norte da Europa e o treinamento
do SAS, Keller foi capaz de cumprir contratos que estavam muito além da capacidade dos taddunaghiu de Orsati nascidos na Córsega. Um desses contratos tinha os nomes
de Anna Roube e Gabriel Allon. A consciência de Keller não permitiu que os matasse, mas o orgulho profissional o levou a deixar para trás o talismã que agora jazia
na palma da mão de Gabriel.
Por uma incrível coincidência, os dois homens já haviam se encontrado numa outra ocasião, muitos anos antes, quando Keller e diversos outros agentes do SAS foram
a Israel treinar técnicas de contraterrorismo. No último dia de sua estadia, Gabriel tinha concordado, com certa relutância, em dar uma palestra confidencial sobre
uma de suas operações mais ousadas: o assassinato de Abu Jihad em 1988, o segundo em comando da OLP, em sua casa na Tunísia. Keller sentou na primeira fileira e
prestou atenção em cada palavra de Allon. Depois, durante uma sessão de fotos do grupo, posicionou-se ao lado de Gabriel, que estava usando óculos escuros e um chapéu
para ocultar sua identidade. Mas Keller olhou direto para a câmera. Foi uma das últimas fotografias tiradas dele.
Agora, enquanto Gabriel saía do carro alugado, o homem que lhe poupara a vida estava parado no vão da porta de seu refúgio na Córsega. Ele era uma cabeça mais alto
que Gabriel e tinha o peito e os ombros bem mais largos. Vinte anos sob o sol corso haviam alterado bastante sua aparência. Agora a pele tinha cor de couro e os
cabelos curtos estavam esbranquiçados pelo mar. Apenas os olhos azuis pareciam iguais. Eram os mesmos que haviam observado Gabriel com tanta atenção quando ele recontara
a morte de Abu Jihad. Os mesmos que, certa vez, em outra época, lhe concederam clemência numa noite chuvosa em Veneza.
- Eu lhe ofereceria um almoço - disse Keller, com seu sotaque britânico claro -, mas fiquei sabendo que você comeu no Chez Orsati.
Quando Keller estendeu a mão, os músculos de seu braço se contraíram sob o casaco branco. Gabriel hesitou por um instante antes de cumprimentá-lo. Cada aspecto de
Keller, desde as mãos potentes até as pernas poderosas, parecia ter sido projetado especificamente para matar.
- O que o don disse? - perguntou Gabriel.
- O suficiente para eu saber que não deveria chegar perto de um homem como Marcel Lacroix sem reforços.
- Então você o conhece?
- Uma vez ele me deu carona.
- Antes ou depois?
- Os dois. Lacroix passou um tempo no Exército francês. E também em algumas das piores prisões do país.
- E isso deveria me impressionar?
- “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas.”
- Sun Tzu - completou Gabriel.
- Você citou essa passagem durante sua palestra em Tel Aviv.
- Então você estava prestando atenção, afinal.
Gabriel passou por Keller e entrou na ampla sala da casa. A mobília era rústica e, assim como Keller, coberta de tecido branco. Todas as superfícies estavam revestidas
por pilhas de livros e as paredes tinham várias pinturas de qualidade, incluindo trabalhos menos conhecidos de Cézanne, Matisse e Monet.
- Nenhum sistema de segurança? - perguntou Gabriel, passando os olhos pela sala.
- Não é necessário.
Gabriel se aproximou do Cézanne, uma paisagem pintada nas colinas perto de Aix-en-Provence, e passou a ponta do dedo com delicadeza pela tela.
- Você está se saindo muito bem, Keller.
- Dá para pagar as contas.
Gabriel não disse nada.
- Você desaprova a minha forma de ganhar a vida?
- Você mata pessoas por dinheiro.
- Você também.
- Eu mato pelo meu país, e só como último recurso.
- Foi por isso que você estourou os miolos de Ivan Kharkov naquela rua em Saint-Tropez? Pelo seu país?
Gabriel deu as costas para o Cézanne e olhou bem nos olhos de Keller. Qualquer outro homem teria murchado perante a intensidade do olhar de Gabriel, mas não Keller.
Seu braços poderosos estavam cruzados despreocupadamente sobre o peito, e um canto da boca estava erguido num meio sorriso.
- Talvez essa não seja uma boa ideia, afinal - falou Gabriel.
- Eu conheço os jogadores e conheço o terreno. Seria tolice não me usar.
Gabriel não respondeu; Keller tinha razão. Ele era o guia perfeito para o mundo do crime na França. E suas habilidades físicas e táticas certamente se provariam
valiosas para os problemas que eles enfrentariam.
- Eu não posso pagar - avisou Gabriel.
- Não preciso de dinheiro - retrucou Keller, observando a bela casa. - Mas preciso que você responda a algumas perguntas antes de partirmos.
- Se não a encontrarmos em cinco dias, ela morre.
- Cinco dias são uma eternidade para homens como nós.
- Sou todo ouvidos.
- Para quem você está trabalhando?
- Para o primeiro-ministro da Inglaterra.
- Não sabia que vocês estavam se falando.
- Alguém da inteligência britânica entrou em contato comigo.
- Em nome do primeiro-ministro?
Gabriel assentiu.
- Qual é a ligação entre o primeiro-ministro e essa garota?
- Tente adivinhar.
- Meu Deus.
- Deus tem muito pouco a ver com isso.
- Quem é o amigo do primeiro-ministro na inteligência britânica?
Gabriel hesitou, então respondeu à pergunta honestamente. Keller sorriu.
- Você o conhece? - perguntou Gabriel.
- Trabalhei com Graham na Irlanda do Norte. Ele é um profissional de verdade. Mas, assim como todo mundo na Inglaterra, acha que estou morto. Logo, não pode saber
que estou trabalhando com você.
- Você tem a minha palavra.
- Tem mais uma coisa que eu quero.
Keller estendeu a mão e Gabriel entregou o talismã.
- Estou surpreso que você o tenha guardado.
- Tem valor sentimental.
Keller pendurou-o no pescoço.
- Vamos - disse ele, sorrindo. - Eu sei onde a gente pode arrumar outro para você.
A signadora vivia numa casa torta no centro do vilarejo, não muito longe da igreja. Keller chegou sem marcar horário, mas a idosa não pareceu surpresa ao vê-lo.
Ela vestia uma túnica preta, e um cachecol preto cobria os cabelos bem secos. Abrindo um sorriso preocupado, tocou a bochecha de Keller com delicadeza. Em seguida,
segurou a cruz pesada pendurada no pescoço e voltou o olhar para Gabriel. Sua tarefa era cuidar dos afligidos pelo mau-olhado. Ela temia que Keller tivesse trazido
a própria encarnação do mal para seu lar.
- Quem é esse homem?
- Um amigo - respondeu Keller.
- Ele é um crente?
- Não como nós.
- Diga-me o nome dele, Christopher... seu nome real.
- Gabriel.
- Como o arcanjo?
- Sim.
Ela analisou o rosto de Gabriel com atenção.
- Ele é israelita, não é?
Keller assentiu e a velha franziu um pouco a testa em desaprovação. Pela doutrina, a signadora considerava os judeus como hereges, mas pessoalmente não tinha nada
contra. Ela desabotoou a camisa de Keller e tocou no talismã dele.
- Esse não é o que você perdeu muitos anos atrás?
- Sim.
- Onde você o encontrou?
- No fundo de uma gaveta abarrotada.
A signadora balançou a cabeça.
- Você está mentindo para mim, Christopher. Você nunca vai aprender que eu sei perceber?
Keller sorriu, mas não disse nada. A velha soltou o talismã e tocou sua bochecha de novo.
- Você está deixando a ilha, Christopher?
- Esta noite.
A signadora não indagou o motivo: sabia exatamente o que Keller fazia para ganhar a vida. Na verdade, ela já tinha até mesmo contratado um jovem taddunaghiu chamado
Anton Orsati para vingar o assassinato do marido.
Com um meneio de cabeça, convidou Keller e Gabriel para se sentarem à pequena mesa de madeira em sua sala. Colocou sobre o tampo um prato cheio de água e uma vasilha
de azeite de oliva. Keller mergulhou o dedo indicador no azeite e, em seguida, o manteve acima do prato, para que três gotas caíssem na água. De acordo com as leis
da física, elas deveriam ter-se aglomerado. Em vez disso, a substância se desfez em mil gotículas e desapareceu.
- O mal retornou, Christopher.
- Receio que seja um risco ocupacional.
- Não faça piadas, meu querido. O perigo é muito real.
- O que a senhora vê?
Ela focou toda a atenção no líquido, como se estivesse em transe. Depois, perguntou baixinho:
- Vocês estão procurando a garota inglesa?
Keller assentiu.
- Ela está viva?
- Sim - respondeu a velha. - Está viva.
- Onde ela está?
- Não está em meu poder dizer isso.
- Nós vamos encontrá-la?
- Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.
- O que a senhora vê?
Ela fechou os olhos.
- Água... montanhas... um velho inimigo...
- Meu?
- Não. - Ela abriu os olhos e encarou Gabriel. - Dele.
A signadora pegou a mão do Inglês e rezou. Após um momento, começou a chorar, um sinal de que o mal tinha passado do corpo de Keller para o seu. Em seguida, fechou
os olhos e pareceu adormecer. Ao acordar, instruiu Keller a repetir o teste do azeite e da água. Dessa vez, o azeite se aglomerou numa única gota.
- O mal saiu da sua alma, Christopher. - Voltando-se para Gabriel, a velha disse: - Agora ele.
- Eu não sou um crente - retrucou Gabriel.
- Por favor - pediu ela. - Se não por você, por Christopher.
Relutante, Gabriel mergulhou o indicador no azeite e deixou três gotas caírem na água. Quando o azeite se dividiu em mil gotículas, a mulher fechou os olhos e começou
a estremecer.
- O que a senhora vê? - perguntou Keller.
- Fogo - respondeu ela, baixinho. - Eu vejo fogo.
Havia uma balsa saindo de Ajaccio às cinco horas. Às quatro e meia, Gabriel estacionou o Peugeot na embarcação e, dez minutos depois, observou Keller subir a bordo
dirigindo um Renault velho. Seus compartimentos ficavam no mesmo deque, um de frente para o outro. O de Gabriel tinha o tamanho e a falta de atrativo de uma cela
de prisão. Ele deixou a mala na cama minúscula e subiu as escadas para o bar. Ao chegar, encontrou Keller sentado a uma mesa perto da janela, tomando um gole de
cerveja com um cigarro queimando no cinzeiro.
Gabriel balançou a cabeça devagar. Quarenta e oito horas atrás, estava diante de uma tela em Jerusalém. Agora buscava por uma mulher desconhecida, acompanhado por
um homem que, no passado, aceitara um contrato para matá-lo.
Pediu um café preto ao barman e saiu para o convés de popa. A balsa já estava longe do porto e o ar da noite havia esfriado. Gabriel levantou a gola do casaco e
envolveu a xícara de café com as mãos para se aquecer. As estrelas do leste brilhavam intensamente no céu sem nuvens, e o mar, que um instante antes estava turquesa,
logo se tornou nanquim. Gabriel teve a impressão de sentir o cheiro de macchia no vento. Um pouco depois, escutou a voz da signadora: “Quando ela estiver morta.
Então vocês saberão a verdade.”
10
MARSELHA
Quando Gabriel e Keller chegaram a Marselha no começo da manhã seguinte, o Moondance estava amarrado no ponto de sempre no Velho Porto, ostentando seus 42 pés de
puro poder de contrabando. O dono, no entanto, não estava à vista. Keller montou um posto estático de observação no lado norte e Gabriel ficou a leste, na frente
de uma pizzaria que, inexplicavelmente, tinha o nome de uma região chique de Manhattan. A cada hora eles mudavam de posição, mas no fim da tarde ainda não havia
sinal de Lacroix. Por fim, ansioso com a perspectiva de um dia perdido, Gabriel percorreu o perímetro do porto, passou pelos vendedores de peixe em suas bancas de
metal e se juntou a Keller no Renault. O tempo estava piorando: chuva pesada, um vento frio vindo das colinas. Keller ligava os limpadores em intervalos de alguns
segundos para manter o para-brisa transparente. O degelador ofegava fracamente contra o vidro embaçado.
- Você tem certeza de que ele não possui apartamentos na cidade? - perguntou Gabriel.
- Ele mora no barco.
- E quanto a mulher?
- Ele tem várias, mas nenhuma consegue tolerar sua presença por muito tempo. - Keller limpou o para-brisa com o dorso da mão. - Talvez possamos ficar num hotel.
- Não acha um pouco cedo? Afinal, acabamos de nos conhecer.
- Você sempre faz piadas cretinas durante as operações?
- É um mal cultural.
- Piadas cretinas ou operações?
- Ambos.
Keller pegou um guardanapo do porta-luvas e fez o melhor que pôde para consertar a bagunça que tinha feito no para-brisa.
- Minha avó era judia - comentou ele casualmente, como se admitisse que sua avó gostava de jogar bridge.
- Parabéns.
- Outra piada?
- O que você quer que eu diga?
- Você não acha interessante que eu tenha uma ancestral judia?
- Por minha experiência, a maior parte dos europeus tem um parente judeu escondido em algum lugar.
- A minha estava em plena vista.
- Onde ela nasceu?
- Na Alemanha.
- Ela foi para a Inglaterra durante a guerra?
- Logo antes. Ela foi abrigada por um tio distante que não se considerava mais judeu. Ele lhe deu um nome cristão adequado e a mandou para a igreja. Minha mãe só
soube que tinha um passado judeu com 30 e tantos anos.
- Odeio ser portador de más notícias - disse Gabriel -, mas, na minha opinião, você é judeu.
- Para ser sincero, sempre me senti um pouco judeu.
- Você tem aversão a mariscos e a ópera alemã?
- Quis dizer num sentido espiritual.
- Você é um assassino profissional, Keller.
- Isso não significa que eu não acredite em Deus. Na verdade, suspeito que eu saiba mais sobre a sua história e as suas escrituras do que você.
- Então por que você anda com aquela mística maluca?
- Ela não é maluca.
- Não me diga que você acredita naquela bobagem.
- Como ela sabia que estávamos procurando a garota?
- Suponho que o don lhe tenha dito.
- Não - discordou Keller, balançando a cabeça. - Ela viu. Ela vê tudo.
- Como a água e as montanhas?
- Sim.
- Nós estamos no sul da França, Keller. Eu também vejo água e montanhas. Inclusive, parecem estar por toda parte.
- É óbvio que ela deixou você nervoso com aquela conversa sobre um velho inimigo.
- Eu não fico nervoso. Quanto a velhos inimigos, não consigo sair da porta de casa sem trombar com um.
- Então talvez você devesse mudar a porta da sua casa de lugar.
- Isso é um provérbio corso?
- Só um conselho amigável.
- Ainda não somos exatamente amigos.
Keller encolheu os ombros quadrados para demonstrar indiferença, mágoa ou algo entre um sentimento e outro.
- O que você fez com o talismã que ela lhe deu? - perguntou ele depois de um silêncio amuado.
Gabriel deu um tapinha no peito para indicar que o talismã, idêntico ao de Keller, estava pendurado no pescoço.
- Se você não acredita - indagou Keller por que o está usando?
- Eu gosto do modo como ele valoriza as minhas roupas.
- O que quer que você faça, não o tire: ele mantém o mal à distância.
- Eu gostaria de manter à distância algumas pessoas na minha vida.
- Como Ari Shamron?
- Como você sabe de Shamron? - perguntou Gabriel, ocultando sua surpresa.
- Eu o conheci quando fui treinar em Israel. Além do mais, todo mundo no negócio sabe de Shamron. E todo mundo sabe que ele queria que você fosse c chefe, em vez
de Uzi Navot.
- Você não devia acreditar em tudo que lê nos jornais, Keller.
- Eu tenho boas fontes. E elas me disseram que o emprego era seu, mas você o recusou.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse Gabriel, com o olhar cansado voltado para o para-brisa respingado de chuva -, mas não estou a fim de ter um papo
nostálgico com você.
- Eu só estava tentando matar tempo.
- Talvez pudéssemos aproveitar um silêncio confortável.
- Outra piada?
- Você entenderia se fosse judeu.
- Tecnicamente eu sou judeu.
- Quem você prefere: Puccini ou Wagner?
- Wagner, claro.
- Então não tem como você ser judeu.
Keller acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo para apagá-lo. Uma rajada de vento jogou a chuva no para-brisa, dificultando a visão do porto. Gabriel baixou a sua
janela alguns centímetros para dar vazão à fumaça de Keller.
- Talvez você esteja certo - disse ele por fim. - Talvez um quarto seja uma boa ideia.
- Não acho que seja necessário.
- Por que não?
Keller ligou os limpadores do para-brisa e apontou para além do vidro.
- Porque Marcel Lacroix está vindo em nossa direção.
Ele estava usando um agasalho preto e tênis verde-néon, e carregava no ombro uma mala esportiva Puma. Era óbvio que Lacroix havia passado a maior parte da tarde
na academia. Não que ele precisasse de exercício: tinha pelo menos 1,90 metro e pesava mais de 90 quilos. Seus cabelos escuros com gel estavam presos num rabo de
cavalo curto. Havia piercings nas duas orelhas e ideogramas chineses tatuados no lado do seu grosso pescoço - evidência de que era um estudante das artes marciais
asiáticas. Seus olhos não paravam de se mexer, mas ele não chegou a perceber os dois homens sentados no pequeno Renault com janelas embaçadas. Enquanto o observava,
Gabriel deu um suspiro profundo. Lacroix certamente seria um oponente digno, em especial dentro do espaço apertado do Moondance. Apesar do que dizem, tamanho é documento.
- Nenhuma piadinha? - perguntou Keller.
- Estou pensando em alguma.
- Por que você não me deixa cuidar disso?
- Por alguma razão, não acho que sei a uma boa ideia.
- Por que não?
- Porque ele sabe que você trabalha para Don Orsati. Se você aparecer e começar a fazer perguntas sobre Madeline Hart, ele vai saber que foi traído, e isso seria
prejudicial aos interesses do don.
- Deixe que eu me preocupo com os interesses do don.
- É por isso que você está aqui, Keller?
- Eu estou aqui para garantir que você não acabe num caixão de cimento no fundo do Mediterrâneo.
- Há lugares piores para ser enterrado.
- A lei judia não permite enterros no mar.
Keller ficou em silêncio quando Lacroix entrou na doca e começou a seguir em direção ao Moondance. Gabriel focou na região lombar do francês, prestando atenção em
como pendia a roupa esportiva. Em seguida, olhou para a forma como a bolsa estava pendurada.
- O que você acha? - perguntou Keller.
- Acho que ele está carregando a arma na bolsa.
- Você também notou isso?
- Eu noto tudo.
- Como você vai fazer?
- Do jeito mais silencioso possível.
- O que você quer que eu faça?
- Espere aqui - respondeu Gabriel, abrindo a porta do carro. - E tente não matar ninguém até eu voltar.
O Escritório tinha uma doutrina simples quanto ao uso operacional adequado de armas ocultas. Ela fora dada por Deus a Ari Shamron - pelo menos era o que dizia a
história -, que por sua vez passou-a para todos os que adentravam secretamente a noite para desempenharem seus serviços. Embora não estivesse escrita em lugar algum,
todo agente de campo era capaz de recitá-la com tanta facilidade quanto a bênção das velas no sabá. Um agente do Escritório saca a arma com apenas um propósito.
Ele não a brande como um gângster nem faz ameaças vazias. Apenas atira - e só interrompe os disparos quando o alvo não está mais entre os vivos. Amém.
Foi com a advertência de Shamron ecoando em seus ouvidos que Gabriel deu os passos finais na direção do Moondance. Hesitou antes de embarcar. Até mesmo um homem
tão esguio quanto ele poderia fazer com que o barco se inclinasse um pouco. Portanto, velocidade e uma confiança aparente seriam essenciais.
Gabriel deu uma última olhada por cima do ombro e viu que Keller o observava com um pouco de receio pela janela do carona do Renault. Em seguida, subiu a bordo do
Moondance e atravessou rapidamente o convés de popa até a cabine principal. Lacroix estava no vão da porta. No espaço apertado do barco, o francês parecia ainda
maior do que na rua.
- Que porra você está fazendo no meu barco? - ele exigiu saber.
- Peço desculpas - disse Gabriel, erguendo as mãos num gesto conciliatório. - Me disseram que você estaria me esperando.
- Quem disse?
- Paul, é claro. Ele não falou que eu estava vindo?
- Paul?
- Sim, Paul - respondeu Gabriel, confiante. - O homem que o contratou para entregar o pacote da Córsega ao continente. Ele disse que você era o melhor profissional
que já viu. Que, se eu precisasse de alguém para transportar bens valiosos, você era a pessoa certa.
Gabriel viu uma série de reações na expressão do francês: confusão, apreensão e, claro, cobiça. No fim, a cobiça saiu vitoriosa. Ele deu um passo para o lado e,
com um movimento dos olhos, o convidou para entrar. Gabriel deu dois passos lânguidos para a frente enquanto analisava o interior da cabine, tentando encontrar a
bolsa de ginástica de Lacroix. Estava em cima de uma mesa, ao lado de uma garrafa de Pernod.
- Você se incomoda? - perguntou Gabriel, meneando a cabeça em direção à porta. - Não é o tipo de coisa que você queira que os seus vizinhos ouçam.
Lacroix hesitou por um instante. Em seguida, andou até a porta e fechou-a. Gabriel se posicionou ao lado da mesa que continha a mala esportiva.
- Que tipo de trabalho é? - perguntou Lacroix, voltando-se para Gabriel.
- Muito simples. Na verdade, vai levar só alguns minutos.
- Quanto?
- O que você quer dizer? - perguntou Gabriel, fingindo confusão.
- Quanto dinheiro você está oferecendo? - indagou Lacroix, esfregando o indicador e o dedo médio no polegar.
- Estou oferecendo algo muito mais valioso do que dinheiro.
- O que seria?
- A sua vida. Marcel, você vai me dizer o que seu amigo Paul fez com a garota inglesa. E, se não disser, vou cortá-lo em pedacinhos e usá-lo como isca para peixe.
A arte marcial israelense do krav maga não é conhecida por sua elegância, mas não foi projetada mesmo para ser estética. Seu único propósito é incapacitar ou matar
o adversário o mais rápido possível. Ao contrário de muitas disciplinas ocidentais, ele não hesita em usar objetos pesados para repelir um inimigo de maior tamanho
e força. Na verdade, os instrutores encorajam os alunos a usarem quaisquer recursos que tenham à disposição para se defenderem. Davi não se atracou com Golias, eles
gostavam de dizer, mas o atingiu com uma pedra. E só depois cortou sua cabeça.
Gabriel escolheu uma garrafa de Pernod em vez de uma pedra. Pegou-a pelo gargalo e lançou-a como uma faca na direção de Marcel Lacroix, que corria para atacá-lo.
A garrafa bateu bem no centro da testa do francês, abrindo um corte horizontal profundo logo acima da densa sobrancelha. Ao contrário de Golias, que caiu no instante
em que foi atingido, Lacroix conseguiu se manter de pé, embora com bastante dificuldade. Gabriel avançou e deu uma joelhada na virilha desprotegida do francês. Depois,
deu-lhe um soco no estômago e quebrou seu maxilar com uma cotovelada bem aplicada. Com o outro cotovelo, acertou sua têmpora, levando-o ao chão. Gabriel se agachou
e tocou o pescoço do francês para verificar se ele ainda tinha pulsação. Erguendo os olhos, viu Keller parado à porta, sorrindo.
- Impressionante. O Pernod foi um toque adorável.
11
PERTO DE MARSELHA
A chuva parou quando o sol se pôs, mas o vento mistral continuou soprando sem remorso muito depois do escurecer. Uivava nos cordames dos barcos amontoados no Velho
Porto e redemoinhava nos deques do Moondance enquanto Keller o conduzia com habilidade mar adentro. Gabriel permaneceu a seu lado na ponte de comando até eles saírem
do porto. Então, desceu as escadas para o alojamento principal, onde Marcel Lacroix jazia no chão, com o rosto voltado para baixo, amarrado, amordaçado e vendado.
Gabriel rolou o francês, deixando-o de barriga para cima, e tirou a fita adesiva que lhe cobria os olhos com um único movimento ríspido. Lacroix já tinha recuperado
a consciência e não havia sinal de medo em seus olhos, apenas fúria. Keller estava certo: não era fácil assustar o francês.
Gabriel voltou a vendá-lo e deu início a uma busca minuciosa na embarcação, começando pelo alojamento principal e terminando na cabine de Lacroix. Ele encontrou
um esconderijo com drogas ilegais, cerca de 60 mil euros em dinheiro vivo, passaportes falsos, carteiras de motorista francesas em quatro nomes diferentes, cartões
de crédito roubados, nove celulares descartáveis e uma coleção elaborada de pornografia impressa e eletrônica. Além disso, havia um recibo com um número de telefone
rabiscado atrás, de um lugar chamado Bar du Haut, no Boulevard Jean Jaurès, em Rognac, uma cidade de classe operária ao norte de Marselha, não muito longe do aeroporto.
Gabriel já tinha passado por ali uma vez, em outra época da vida. Era o tipo de lugar que servia apenas de parada a caminho de algum outro lugar.
Gabriel verificou a data do recibo. Em seguida, examinou os históricos de chamada dos nove celulares em busca do número escrito no verso do papel. Encontrou-o em
três dos telefones. Naquela manhã, Lacroix ligara duas vezes para ele com dois celulares diferentes.
Gabriel guardou os aparelhos, o recibo e o dinheiro numa mochila de náilon e voltou para o alojamento principal. Mais uma vez tirou a fita adesiva dos olhos de Lacroix,
mas também removeu a mordaça. O rosto do francês estava muito distorcido, devido ao inchaço do maxilar quebrado. Gabriel o apertou com força enquanto fitava os olhos
do contrabandista.
- Vou fazer algumas perguntas, Marcel. Você tem só uma chance para me dizer a verdade. Entendeu? - perguntou Gabriel, pressionando o maxilar dele com um pouco mais
de força. - Uma chance.
A única resposta de Lacroix foi um grunhido de dor.
- Uma chance - repetiu Gabriel, erguendo o indicador para enfatizar. - Está ouvindo?
Lacroix não respondeu.
- Vou tomar isso como um sim. Agora, Marcel, quero que você me diga os nomes dos homens que estão com a garota. E depois quero saber onde posso encontrá-los.
- Não sei nada sobre essa garota.
- Você está mentindo, Marcel.
- Não, eu juro...
Antes que Lacroix pudesse continuar, Gabriel lhe colocou a mordaça de novo. Em seguida, passou bastante fita adesiva ao redor da cabeça do francês, até deixar apenas
as suas narinas visíveis. Desceu até o convés inferior, pegou uma corda de náilon num armário e voltou para cima, até a ponte de comando. Keller segurava o leme
com as duas mãos, estreitando os olhos para o mar turbulento.
- Como está indo lá embaixo? - perguntou ele.
- Estou surpreso: não consegui persuadi-lo a cooperar.
- Por que a corda?
- Mais persuasão.
- Algo que eu possa fazer para ajudar?
- Reduza a velocidade e ligue o piloto automático.
Keller obedeceu e seguiu Gabriel até o alojamento principal. Encontraram Lacroix bem perturbado, arfante, lutando para respirar através do capacete de fita adesiva.
Gabriel o rolou, deixando-o de barriga para baixo, e passou a corda de náilon pelas amarras nos pés e calcanhares. Depois de prendê-la com um nó firme, arrastou
Lacroix até o convés de popa como se ele fosse uma baleia recém-arpoada. Então, com a ajuda de Keller, aproximou o francês da beirada e o jogou para fora do barco.
Lacroix bateu na água escura com um baque pesado e começou a se debater ferozmente para tentar manter a cabeça acima da superfície. Gabriel o observou por um momento
e, em seguida, vasculhou o horizonte em todas as direções. Nenhuma luz visível. Era como se eles fossem os três últimos homens na terra.
- Como você vai saber quando parar? - perguntou Keller, vendo Lacroix lutar pela própria vida.
- Quando ele começar a afundar - respondeu Gabriel, calmo.
- Me lembre de nunca entrar na sua lista negra.
- Nunca entre na minha lista negra.
Depois de 45 segundos na água, de repente Lacroix parou de se mover. Gabriel e Keller o puxaram depressa de volta para o barco e removeram a fita adesiva que lhe
cobria a boca. Por vários minutos, o francês não conseguiu falar, alternando-se entre respirar sofregamente e tossir água do mar. Quando ele pareceu cuspir tudo,
Gabriel segurou o maxilar quebrado e o apertou.
- Você pode não estar se dando conta neste instante, mas hoje é seu dia de sorte, Marcel. Agora vamos tentar de novo: diga onde eu posso encontrar a garota.
- Eu não sei.
- Você está mentindo para mim, Marcel.
- Não - respondeu Lacroix, balançando a cabeça violentamente de um lado para o outro. - Estou dizendo a verdade. Não faço ideia de onde ela está.
- Mas você conhece um dos homens que está com ela. Você até tomou uns drinques com ele num bar em Rognac uma semana antes de a garota desaparecer. E, desde então,
você tem se mantido em contato com ele.
Lacroix ficou em silêncio. Gabriel apertou o maxilar quebrado com mais força.
- O nome, Marcel. Diga-me o nome dele.
- Brossard - Lacroix se esforçou para dizer, tomado pela dor. - O nome dele é René Brossard.
Gabriel encarou Keller, que assentiu.
- Muito bem - falou para Lacroix, relaxando o aperto. - Agora continue falando. E nem pense em mentir para mim. Caso contrário, volta para a água. Mas, da próxima
vez, vai ser para sempre.
12
PERTO DE MARSELHA
O convés de popa tinha duas cadeiras giratórias. Gabriel amarrou Lacroix na que estava a estibordo e sentou-se na outra, diante dele. Lacroix continuou vendado,
a roupa encharcada pelo tempo que passara dentro d'água. Tremendo violentamente, implorou por uma muda de roupas ou um cobertor. Como não teve resposta, falou de
uma noite quente em meados de agosto, quando um homem aparecera no Moondance sem aviso prévio, da mesma forma que Gabriel havia feito mais cedo.
- Paul? - perguntou Gabriel.
- Sim, Paul.
- Vocês se conheciam?
- Não, mas eu já o tinha visto.
- Onde?
- Em Cannes.
- Quando?
- Durante o festival de cinema.
- Este ano?
- Sim, em maio.
- Você foi ao Festival de Cannes?
- Eu não estava na lista de convidados, se é isso que você quer saber. Estava trabalhando.
- Que tipo de trabalho?
- O que você acha?
- Roubando das estrelas do cinema e dos ricaços?
- É uma das nossas semanas mais ocupadas do ano, uma verdadeira dádiva para a economia local. Só tem imbecil em Hollywood. Nós os roubamos todas as vezes que o pessoal
de lá vem para cá, e acho que nem percebem.
- O que Paul estava fazendo?
- Passando tempo com os ricaços. Acho que até o vi entrando no salão umas duas vezes para ver os filmes.
- Acha?
- Ele sempre tem uma aparência diferente.
- Ele estava dando golpes em Cannes?
- Isso você teria que perguntar para ele. Não discutimos esse assunto quando ele veio me ver. Só falamos do serviço.
- Ele queria contratar você e o seu barco para levarem a garota da Córsega até o continente.
- Não - negou Lacroix, balançando a cabeça com veemência. - Ele nunca disse nenhuma palavra sobre uma garota.
- O que foi que ele disse?
- Queria que eu entregasse um pacote.
- Você não perguntou o que era?
- Não.
- Você sempre opera assim?
- Depende.
- Do quê?
- De quanto dinheiro tem na mesa.
- E quanto tinha?
- Cinquenta mil.
- Isso é bom?
- Muito bom.
- Ele chegou a mencionar onde obteve o seu nome?
- Com o don.
- Que don7.
- Don Orsati, o Corso.
- Que tipo de trabalho o don faz?
- Ele tem um dedo em todo tipo de esquema, mas principalmente em assassinatos. De vez em quando, dou uma carona para um de seus homens. E às vezes eu ajudo a fazer
coisas desaparecerem.
O inquérito de Gabriel tinha um propósito duplo. Permitia testar a veracidade das respostas de Lacroix, ao mesmo tempo que encobria suas próprias pegadas. Agora
o francês achava que Gabriel nunca tivera o prazer de conhecer um assassino corso chamado Orsati. E, pelo menos até agora, ele estava respondendo honestamente às
perguntas de Gabriel.
- Paul disse quando o serviço ia ser executado?
- Não. Ele disse que me avisaria 24 horas antes e que eu provavelmente ouviria algo dele em uma semana, dez dias no máximo.
- Como ele entraria em contato com você?
- Por telefone.
- Você ainda tem o telefone que usou?
Lacroix assentiu e recitou o número associado ao aparelho.
- Ele ligou?
- No oitavo dia.
- O que ele falou?
- Me pediu para buscá-lo na manhã seguinte, na enseada que fica bem ao sul de Capo di Feno.
- A que horas?
- Três da madrugada.
- Como ficou combinado?
- Ele queria que eu deixasse um bote na praia e o esperasse no mar.
Gabriel ergueu os olhos para a ponte de comando, de onde Keller observava o interrogatório. O Inglês aquiesceu, como se confirmando que de fato há uma enseada em
Capo di Feno e que o cenário descrito por Lacroix era perfeitamente plausível.
- Quando você chegou à Córsega? - perguntou Gabriel.
- Alguns minutos após a meia-noite.
- Estava sozinho?
- Sim.
- Tem certeza?
- Sim, eu juro.
- A que horas você deixou o bote na praia?
- Às duas.
- Como você voltou para o Moondance?
- Fui andando - brincou Lacroix. - Como Jesus.
Gabriel arrancou o piercing da orelha direita de Lacroix.
- Foi só uma piada - alegou o francês, arquejante, com sangue fluindo do lóbulo arruinado.
- Se eu fosse você - retrucou Gabriel não estaria fazendo piadas sobre o Senhor num momento destes. Eu faria o possível para conseguir cair nas graças Dele.
Gabriel olhou de novo para a ponte de comando e viu que Keller tentava conter um sorriso. Em seguida, mandou Lacroix descrever os eventos que se seguiram. Paul,
disse o francês, chegara bem na hora, às três em ponto. Lacroix tinha visto um único veículo, um pequeno modelo com tração nas quatro rodas, descendo aos solavancos
a pista íngreme do topo da colina até a enseada, só com as luzes de freio acesas. Então, ouviu o barco se aproximar pela água. Quando o escaler encostou na popa
do Moondance, ele viu a garota.
- Paul estava com ela?
- Sim.
- Mais alguém?
- Não, só Paul.
- Ela estava inconsciente?
- Quase.
- O que estava usando?
- Vestido branco. E um capuz preto cobria sua cabeça.
- Você viu o rosto dela?
- Em nenhum momento.
- Alguma ferida?
- Os joelhos estavam sangrando e os braços tinham muitos arranhões e hematomas.
- Algemas?
- Nas mãos.
- Na frente do corpo ou atrás?
- Atrás.
- De que tipo?
- Algemas plásticas, muito profissionais.
- Continue.
- Paul deitou a garota num sofá no alojamento principal e aplicou algo nela para deixá-la quieta. Depois veio para a ponte de comando e me disse para onde queria
ir.
- Para onde?
- Para o estuário logo a oeste de Saintes-Maries-de-la-Mer. O lugar tem uma marina pequena, já usei antes. É um ponto excelente. Paul tinha feito a lição de casa.
Outra olhada para Keller. Outro assentimento.
- Você atravessou direto?
- Não - respondeu Lacroix. - Isso teria nos levado para a terra em plena luz do dia. Passamos o dia inteiro no mar. Avançamos em torno das onze horas daquela noite.
- Paul manteve a garota no alojamento o tempo inteiro?
- Ele a levou para a proa uma vez, mas fora isso...
- Fora isso o quê?
- Ele usou a seringa.
- Ketamina?
- Não sou médico.
- Não brinca.
- Você me fez uma pergunta, eu respondi.
- Ele a levou para a terra no escaler?
- Não. Eu fui direto para a marina. É o tipo de lugar onde dá para estacionar um carro bem ao lado do barco. Havia um esperando. Um Mercedes preto.
- Que tipo de Mercedes?
- Classe E.
- Placa?
- Francesa.
- Sem ninguém?
- Não. Havia dois homens. Um estava apoiado no capô quando nós entramos. O outro estava ao volante.
- Você conhecia o que estava apoiado no capô?
- Nunca o vi antes.
- Mas o que estava ao volante você conhecia, não é mesmo, Marcel?
- Sim. Era René Brossard.
René Brossard era o soldado raso de uma família criminosa com ligações internacionais que estava se dando bem em Marselha. Era especializado em trabalho pesado:
cobrança de dívidas, coerção, segurança. No tempo livre, trabalhava como leão de chácara num clube noturno perto do Velho Porto, principalmente porque gostava das
garotas que trabalhavam lá. Lacroix o conhecia da vizinhança. Também sabia seu telefone.
- Quando você ligou para ele? - perguntou Gabriel.
- Alguns dias depois de ter lido a primeira matéria sobre a garota inglesa que desapareceu durante as férias na Córsega. Somei um mais um e me dei conta de que era
a garota que eu tinha deixado no porto em Saintes-Maries-de-la-Mer.
- Você é algum tipo de gênio da matemática?
- Eu sei somar - gracejou Lacroix.
- Você se deu conta de que Paul poderia receber uma bela grana de resgate de alguém e quis uma fatia do bolo.
- Ele me passou a perna quanto falou do tipo de trabalho. Eu nunca teria concordado em fazer parte do sequestro de alguém importante por meros 50 mil dólares.
- Quanto você queria?
- Eu tento não criar o hábito de negociar comigo mesmo.
- Homem sábio.
Gabriel perguntou a Lacroix quanto tempo Brossard tinha levado para retornar seu telefonema.
- Dois dias.
- Vocês entraram em detalhes pelo telefone?
- O suficiente para deixar claro o que eu queria. Brossard me ligou de volta algumas horas depois e me disse para ir ao Bar du Haut na tarde seguinte, às quatro.
- Isso foi uma burrice, Marcel.
- Por quê?
- Porque Paul poderia estar lá em vez de Brossard. E ele poderia ter metido uma bala entre os seus olhos por ter a audácia de pedir mais dinheiro.
- Eu sei cuidar de mim mesmo.
- Se isso fosse verdade - falou Gabriel -, você não estaria amarrado numa cadeira no próprio barco. Mas continue: você estava me contando sobre a sua conversa com
René Brossard.
- Ele disse que Paul queria ser razoável. Depois disso, começamos a negociar.
- Negociar?
- O preço do meu acordo. Paul fez uma oferta. Eu fiz uma contraoferta. Fomos e voltamos várias vezes.
Tudo por telefone?
Lacroix assentiu.
- Qual é o papel de Brossard na operação?
- Ele fica na casa onde estão mantendo a garota.
- Paul está lá também?
- Não perguntei.
- Quantas pessoas estão lá?
- Não sei. Só sei que outra mulher vive lá, para que eles pareçam uma família.
- Brossard chegou a mencionar a garota inglesa?
- Disse que ela está viva.
- Só isso?
- É.
- Qual é o estado atual das suas negociações com Paul e Brossard?
- Chegamos a um acordo esta manhã.
- Quanto você conseguiu arrancar deles?
- Mais 100 mil.
- Quando você vai pegar o dinheiro?
- Amanhã à tarde.
- Onde?
- Em Aix.
- Onde, lá?
- Num café perto da praça Charles de Gaulle.
- Qual é o nome do lugar?
- Le Provence. Mais alguma coisa?
- Como ficou combinado?
- Brossard ficou de aparecer primeiro, às cinco e dez. Vou encontrá-lo dez minutos depois.
- Onde ele vai estar sentado?
- Numa mesa do lado de fora.
- E o dinheiro?
- Brossard disse que estaria numa maleta de metal.
- Que discreto.
- Foi escolha dele, não minha.
- Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?
- Le Cézanne, subindo um pouco a rua.
- Quanto tempo ele vai esperar lá?
- Dez minutos.
- E se você não der as caras?
- O acordo é cancelado.
- Existe mais alguma instrução?
- Mais nenhum telefonema - respondeu Lacroix. - Paul está ficando nervoso com os telefonemas.
- Aposto que está.
Gabriel olhou para a ponte de comando, mas dessa vez Keller estava imóvel, um vulto contra o céu preto com uma arma nas mãos estendidas. O tiro, suprimido por um
silenciador, abriu um buraco em cima do olho esquerdo de Lacroix. Gabriel segurou os ombros do francês enquanto ele morria. Em seguida, virou-se, furioso, e apontou
a sua arma para Keller.
- É melhor você guardar isso antes que alguém se machuque - disse o Inglês com calma.
- Por que diabos você fez isso?
- Ele entrou na minha lista negra. Além disso - acrescentou Keller, enquanto guardava a arma na cintura -, ele não era mais necessário.
13
CÔTE D'AZUR, FRANÇA
Eles o lançaram ao fundo do mar nas águas profundas além do golfo de Leão e seguiram para Marselha. Ainda estava escuro quando chegaram ao Velho Porto. Gabriel e
Keller saíram do Moondance com alguns minutos de diferença um do outro, entraram nos seus carros, e percorreram a costa a caminho de Toulon. Um pouco antes da cidade
de Bandol, Gabriel parou na beira da estrada e afrouxou vários cabos do motor. Ligou para a locadora de veículos e, com a voz histérica de Herr Klemp, deixou uma
mensagem dizendo onde o carro “quebrado” podia ser encontrado. Depois de limpar as digitais do volante e do painel, entrou no Renault de Keller e os dois foram para
o leste, seguindo para Nice sob o sol nascente. Havia um prédio antigo na Rue Verdi, branco como um osso, onde o Escritório mantinha um de seus vários flats secretos
na França. Gabriel entrou no edifício sozinho e pegou a correspondência, que incluía a cópia do arquivo pessoal de Madeline Hart no Partido, solicitada a Graham
Seymour. De volta ao carro, ele leu o documento enquanto Keller dirigia rumo a Aix pela Autoroute A8.
- O que diz aí? - perguntou o Inglês depois de vários minutos de silêncio.
- Que Madeline Hart é perfeita. Mas nós já sabíamos disso.
- Eu também já fui perfeito. E olha como fiquei.
- Você sempre foi um patife, Keller. Só não percebeu até aquela noite no Iraque.
- Eu perdi oito colegas tentando proteger o seu país dos Scuds de Saddam.
- Somos eternamente gratos.
Mais calmo, Keller ligou o rádio e sintonizou numa estação sediada em Mônaco que transmitia em inglês, voltada para a grande comunidade de expatriados britânicos
que viviam no sul da França.
- Com saudades de casa? - perguntou Gabriel.
- Gosto de ouvir o som do meu idioma nativo de vez em quando.
- Você nunca voltou?
- Para a Inglaterra?
Gabriel assentiu.
- Nunca - respondeu Keller. - Eu me recuso a trabalhar lá e nunca aceite, contratos envolvendo ingleses.
- Que nobre da sua parte.
- Deve-se operar de acordo com um código de conduta.
- Então os seus pais não sabem que você está vivo?
- Não.
- Você não deve mesmo ser judeu - repreendeu Gabriel. - Nenhum garoto judeu deixaria a mãe pensar que ele está morto. Não se atreveria.
Gabriel abriu o registro mais recente do arquivo pessoal de Madeline Hart e o leu em silêncio enquanto Keller dirigia. Era a cópia de uma carta enviada por Jeremy
Fallon para o presidente do Partido, recomendando que a Srta. Hart fosse promovida a um posto júnior no ministério e preparada para cargos oficiais. Fitou uma fotografia
de Madeline sentada numa cafeteria a céu aberto com o homem que eles conheciam apenas pelo nome de Paul.
Observando-o, Keller perguntou:
- Em que você está pensando?
- Estou só me perguntando por que uma jovem estrela em ascensão no partido britânico da situação dividia uma garrafa de champanhe com um sujeito tão estranho como
o nosso amigo Paul.
- Porque ele sabia que Madeline tinha um caso com o primeiro-ministro. E estava se preparando para sequestrá-la.
- Como ele teria descoberto?
- Eu tenho uma teoria.
- É baseada em fatos?
- Em alguns.
- Então é só uma hipótese.
- Mas pelo menos vai ajudar a passar o tempo.
Gabriel fechou a pasta para indicar que estava prestando atenção. Keller desligou o rádio.
- Homens como Jonathan Lancaster sempre cometem o mesmo erro quando têm um caso: confiam que os guarda-costas vão ficar de boca fechada - começou o Inglês. - Mas
eles não ficam. Eles conversam entre si, conversam com as esposas, as namoradas, os velhos amigos que conseguiram trabalho no negócio particular de segurança da
Inglaterra. E, em pouco tempo, o caso chega aos ouvidos de alguém como Paul.
- Você acha que Paul está ligado ao negócio britânico de segurança?
- Ele poderia estar. Ou então conhecer alguém que esteja. Enfim, uma informação dessas vale ouro para alguém como Paul. Ele provavelmente manteve Madeline sob observação
em Londres e invadiu o celular e as contas de e-mail dela. E descobriu que a garota ia passar as férias na Córsega. Quando ela chegou, Paul a estava esperando.
- Então por que almoçar com ela? Por que correr o risco de mostrar o rosto?
- Porque, para o sequestro correr bem, precisava que ela estivesse sozinha.
- Ele a seduziu?
- Ele é um canalha charmoso.
- Essa eu não engulo - retrucou Gabriel, depois de pensar por um momento.
- Por que não?
- Porque, quando foi raptada, Madeline estava envolvida romanticamente com o primeiro-ministro britânico. Ela não teria sido seduzida por alguém como Paul.
- Madeline era a amante do primeiro-ministro, logo havia muito pouco romantismo em seu relacionamento. Ela devia ser uma garota solitária.
Gabriel olhou de novo para a foto - não para Madeline, mas para Paul.
- E quem é esse sujeito?
- Com certeza não é um amador. Só um profissional que conhece o don. E um profissional que se atreveria a bater na porta do don para pedir ajuda.
- Se ele é tão profissional, por que estava dependente do talento local para fazer o serviço?
- Você quer saber por que ele não tem equipe própria?
- Isso.
- Economia básica - respondeu Keller. - Manter uma equipe pode ser uma empreitada complicada. E, invariavelmente, as pessoas geram problemas. Quando o serviço é
lento, os garotos ficam infelizes. E, se conseguem bastante grana, querem uma parte maior.
- Então ele usa freelances com contratos diretos de taxa por serviço para evitar compartilhar os lucros.
- No ambiente global competitivo da economia atual, é o que todo mundo está fazendo.
- Não o don.
- O don é diferente. Nós somos uma família, um clã. E você está certo quanto a uma coisa: Marcel Lacroix teve sorte de não ter sido morto por um assassino a mando
de Paul. Se ele se atrevesse a pedir mais dinheiro a Don Orsati depois de completar um trabalho, teria acabado no fundo do Mediterrâneo dentro de um caixão de concreto.
- Que é onde ele está agora.
- Exceto pela parte do concreto, claro.
Gabriel olhou para Keller com desaprovação, mas não disse nada.
- Foi você que arrancou o brinco dele.
- Um lóbulo da orelha rasgado é um mal temporário. Uma bala no olho é um mal eterno.
- E o que a gente deveria ter feito com ele?
- Poderíamos tê-lo levado para a Córsega e o deixado com o don.
- Confie em mim, Gabriel, ele não teria durado muito. Orsati não gosta de problemas.
- E, como Stálin gostava de dizer, “a morte resolve todos os problemas”.
- “Se não há homem, não há problema” - Keller completou a citação.
- E se o homem estivesse mentindo para nós?
- O homem não tinha motivos para mentir.
- Por quê?
- Porque sabia que nunca ia sair vivo do barco - disse Keller, e acrescentou baixinho: - Ele só estava torcendo para ter uma morte indolor.
- Essa é outra de suas teorias?
- Regras de Marselha. Quando as coisas por aqui começam de forma violenta, sempre terminam com violência.
- E se René Brossard não estiver sentado no Le Provence às cinco e dez com uma maleta de metal? O que faremos?
- Ele vai estar lá.
Gabriel queria ser confiante como Keller, mas sua experiência o impedia. Consultou o relógio e calculou o tempo que tinham para salvar a garota.
- Caso Brossard apareça, talvez seja melhor não o matarmos antes de ele nos conduzir até o cativeiro de Madeline.
- E depois?
A morte resolve todos os problemas, pensou Gabriel. Se não há homem, não há problema.


CONTINUA

Advogado sem importância, Jonathan Lancaster não parecia nem um pouco apto a entrar na política. Mas ele sabia como trilhar seu caminho com base em contatos. Seus dois pilares foram Jeremy Fallon, o brilhante publicitário que procurava um garoto-propaganda para seu partido, e Simon Hewitt, o colunista que ditava o sucesso de qualquer aspirante a altos cargos. Assim, Lancaster se tornou o primeiro-ministro do Reino Unido, levando os amigos junto para o poder.
Passados quatro anos, o governo britânico está imerso em uma crise. Sem poder suportar mais nenhum problema em sua gestão, Lancaster recebe um bilhete de ameaça:
“Em sete dias a garota morre.’’ Acompanhando o papel, vem um vídeo de Madeline Hart, funcionária do partido, confessando ser amante do primeiro-ministro.
Para a negociação, Lancaster pede a ajuda de Gabriel Allon, um espião israelense em dívida com o governo britânico. Porém, nem com toda a sua experiência o agente conseguirá prever as consequências do surpreendente caso.


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Parte 1
A REFÉM
1
PlANA, CÓRSEGA
Foram atrás dela no final de agosto, na Córsega. A hora exata nunca seria determinada - algum momento entre o entardecer e o meio-dia do dia seguinte foi o máximo
que os funcionários da casa conseguiram determinar. Eles a viram pela última vez durante o pôr do sol, descendo a entrada da casa de campo numa lambreta vermelha,
com a saia de algodão transparente esvoaçando ao redor das coxas bronzeadas. Só ao meio-dia perceberam que não estava no quarto. A cama tinha apenas um livro, lido
pela metade e com cheiro de óleo de coco e um vago traço de rum. Mais 24 horas se passaram antes de ligarem para os gendarmes. Era um verão agitado e Madeline era
aquele tipo de garota.
Tinham chegado à ilha duas semanas antes: quatro garotas bonitas e dois rapazes zelosos, todos funcionários fiéis do governo britânico ou do partido da situação.
Traziam um único carro - um Renault hatch compartilhado, grande o bastante para acomodar cinco pessoas, ainda que sem conforto - e a lambreta vermelha, usada apenas
por Madeline, que a conduzia com uma imprudência quase suicida. A casa ocre ficava nos limites do vilarejo, a oeste, num penhasco com vista para o mar. Era arrumada
e compacta, o tipo de lugar que corretores sempre descrevem como “charmoso”, com piscina e um jardim murado repleto de arbustos de alecrim e aroeiras. Poucas horas
depois de chegarem, eles já tinham se acomodado naquele estado feliz de seminudez bronzeada a que os turistas britânicos aspiram, independentemente do destino de
suas viagens.
Embora fosse a mais jovem do grupo, informalmente Madeline era a líder, um fardo que aceitava sem problemas. Era ela que cuidava do aluguel da casa e providenciava
os longos almoços, os jantares tardios e os passeios para o interior da ilha, sempre seguindo à frente na lambreta pelas ruas traiçoeiras. Ela nem se dava o trabalho
de consultar um mapa. Seu conhecimento enciclopédico da geografia, história, cultura e cozinha da Córsega fora adquirido durante c longo período de estudo e preparações
intensas nas semanas anteriores à viagem. Pelo visto, Madeline não queria deixar nada ao acaso. Raramente deixava.
Ela havia entrado para o Partido em Millbank fazia dois anos, depois de se formar em Economia e Políticas Públicas na Universidade de Edimburgo. Apesar de ter cursado
uma instituição de segunda categoria - a maior parte de seu;
colegas vinha de escolas públicas de elite e de Oxbridge transitou rapidamente por uma série de cargos administrativos antes de ser promovida a diretora de Envolvimento
com a Comunidade. Seu emprego, como ela frequentemente o descrevia, consistia em conseguir votos junto a classes de britânicos que não tinham nenhuma razão para
apoiar o Partido, sua plataforma ou seus candidatos. Todos concordavam que não passava de um posto temporário em sua jornada para um status melhor. O futuro de Madeline
era brilhante - “brilhante como uma erupção solar”, nas palavras de Pauline, que observava a ascensão da colega mais jovem com uma boa dose de inveja. Rumares insinuavam
que ela era beneficiada pela influência de alguém importante no Partido. Alguém próximo ao primeiro-ministro. Talvez até mesmo o próprio. Com uma aparência de estrela
de cinema, intelecto aguçado e energia inesgotável, Madeline estava sendo preparada para uma vaga no Parlamento e um ministério. Tratava-se de uma questão de tempo.
Pelo menos era o que diziam.
Por tudo isso, era muito estranho que Madeline Hart fosse solteira aos 27 anos. Quando lhe perguntavam sobre sua parca vida amorosa, ela declarava que estava ocupada
demais para se dedicar a um homem. Fiona, uma linda mulher com cabelos escuros e um lado ligeiramente perverso, achava a explicação duvidosa. Na verdade, até acreditava
que Madeline estava sendo desonesta - sendo que desonestidade era a melhor qualidade de Fiona, por isso seu interesse pelas políticas do Partido. Para sustentar
sua teoria, ressaltava que, embora se estendesse em conversas sobre qualquer assunto imaginável, a moça era excepcionalmente reservada quando se tratava da vida
pessoal. Madeline se dispunha a oferecer boatos ocasionais e inofensivos sobre a infância problemática - a sombria moradia popular em Essex, o pai de quem mal se
lembrava, o irmão alcoólatra que não trabalhou um dia sequer na vida -, mas todo o resto ela mantinha oculto atrás de paredes de pedra cercadas por um fosso.
- Nossa Madeline poderia ser uma assassina psicopata ou acompanhante de luxo - sugeriu Fiona -, e ninguém saberia.
Mas Alison, uma auxiliar do Ministério do Interior que sofrerá diversas desilusões amorosas, tinha outra teoria.
- A pobrezinha está apaixonada - declarou ela uma tarde, ao observar Madeline saindo como uma deusa do mar da pequena enseada perto da casa. - O problema é que o
seu amor não é correspondido.
- E por que não? - questionou Fiona com voz sonolenta, usando uma enorme viseira.
- Talvez ele não possa corresponder.
- Casado?
- Mas é claro.
- Maldito.
- Você nunca?
- O quê, se eu já tive caso com homem casado?
- Sim.
- Só duas vezes, mas estou considerando uma terceira.
- Você vai queimar no inferno, Fi.
- Estou contando com isso.
Foi naquele momento, na tarde do sétimo dia, que, confrontados com a menor das evidências, as três garotas e os dois rapazes hospedados com Madeline Hart na casa
alugada em Piana assumiram a tarefa de encontrar um namorado para ela. E não qualquer um, disse Pauline. Ele precisaria ter a idade adequada, boa aparência e estabilidade
financeira e mental, ser de boa família, sem podres e outras mulheres na cama. Fiona, a mais experiente nas questões do coração, disse que era uma missão impossível.
- Esse tipo de homem não existe - explicou, com o cansaço de uma mulher que passou muito tempo buscando alguém que cumprisse esses requisitos. - E, se existir, ou
está casado ou tão apaixonado por si mesmo que não vai ter tempo para a pobre Madeline.
Apesar de suas dúvidas, Fiona mergulhou de cabeça no desafio, mesmo que fosse apenas para acrescentar um pouco de fofoca ao feriado. Felizmente, não faltavam alvos
potenciais, pois parecia que metade da população do sudeste da Inglaterra tinha abandonado sua ilha úmida em busca do sol da Córsega. Havia uma colônia de financistas
do centro de Londres que alugavam casas luxuosas na ponta norte do golfo do Porto. E o grupo de artistas vivendo como ciganos num povoado nas colinas da Castagniccia.
E a trupe de atores na beira da praia em Campomoro. E a delegação de políticos da oposição que tramavam sua volta ao poder em uma mansão no topo dos penhascos de
Bonifácio. Usando o Gabinete da Grã-Bretanha como cartão de visitas, Fiona logo arranjou uma série de encontros improvisados. Em todas as ocasiões - um jantar, uma
caminhada pelas montanhas ou uma tarde regada a álcool na praia -, ela enlaçava o homem que achava mais interessante e o colocava ao lado de Madeline. Mas nenhum
deles conseguiu escalar seus muros, nem mesmo o jovem ator que tinha acabado de fazer uma turnê bem-sucedida como protagonista do musical mais popular da temporada
do West End.
- Realmente é um caso perdido - resignou-se Fiona ao voltar para casa uma noite com todo o grupo, sempre guiado por Madeline em sua lambreta vermelha.
- Quem você acha que é? - perguntou Alison.
- Não sei - respondeu Fiona com voz arrastada, deixando transparecer inveja. - Mas deve ser alguém muito especial.
Foi naquela época, faltando pouco mais de uma semana para o retorno a Londres, que Madeline começou a passar um bom tempo sozinha. Ela saía da casa de manhã cedo,
normalmente antes de os outros terem acordado, e voltava no fim da tarde. Quando lhe perguntavam sobre seu paradeiro, ela dava respostas vagas, e durante o jantar
se mostrava taciturna ou inquieta. Alison temeu pelo pior: achou que o suposto amante de Madeline tivesse informado que os seus serviços não seriam mais requisitados.
Mas, no dia seguinte, depois de voltarem para casa após um passeio ao shopping, Fiona e Pauline anunciaram com alegria que Alison estava enganada. Parecia que o
amante de Madeline viera para a Córsega. E Fiona tinha as fotos para provar.
Ele fora visto às 13h50 no Les Palmiers, no cais Adolphe Landry, em Calvi. Madeline estava numa mesa na beira do porto e tinha a cabeça um pouco voltada para o mar,
como se não estivesse ciente do homem sentado à sua frente. Usava óculos escuros grandes e um chapéu de palha para se proteger sol, com um laço preto elaborado,
que projetava uma sombra sobre sua face impecável. Pauline tentou se aproximar da mesa, mas Fiona, captando a intimidade tensa da cena, sugeriu uma retirada brusca.
Ela se deteve o suficiente para, disfarçadamente, tirar a primeira fotografia incriminadora com o celular. Madeline pareceu alheia à intrusão, mas o homem, não.
No instante em que Fiona apertou o botão, ele virou a cabeça bruscamente, como se um instinto animal o tivesse alertado de que sua imagem estava sendo capturada
eletronicamente.
Depois de fugirem para uma brasserie próxima, Fiona e Pauline examinaram com cuidado o homem na foto. Seu cabelo, louro-cinza, estava desgrenhado pelo vento e o
volume exagerado lhe dava um ar quase infantil. Caindo sobre a testa, emoldurava um rosto anguloso, dominado por uma boca pequena e cruel. O traje era vagamente
marítimo: calças brancas, uma camisa em tecido oxford com listras azuis, um relógio grande de mergulhador, mocassins de lona com solas que não deixariam marcas no
convés de um navio. Ele era um homem desse tipo: nunca deixava marcas.
Partiram do princípio de que ele fosse inglês, embora pudesse ser alemão, escandinavo ou, talvez, especulou Pauline, um descendente de nobres poloneses. Dinheiro
claramente não era problema, considerando-se a garrafa de champanhe cara que suava no balde de gelo no canto da mesa. Imaginaram que sua
fortuna fora conquistada, e não herdada, mas que não seria totalmente legal seria um apostador. Teria contas bancárias na Suíça. Viajava para lugares perigosos.
Procurava ser discreto. Seus afazeres, assim como os mocassins de. não deixavam nenhuma marca.
Mas foi Madeline que mais as intrigou. Ela já não era a garota que conheciam de Londres, nem mesmo a garota com quem estavam compartilhando uma villa nas últimas
duas semanas. Parecia ter adotado uma postura completamente diferente. Era uma atriz em outro filme. Reclinadas sobre o celular como uma dupla de adolescentes, Fiona
e Pauline escreveram o diálogo e acrescentaram carne e osso aos seus personagens. Na versão delas, o romance tinha começado de maneira inocente, com um encontro
por acaso numa loja exclusiva na Bond Street. O flerte havia sido longo, e a consumação, planejada com minúcias. Mas, por enquanto, o final da história era desconhecido,
pois a vida real ainda estava por escrevê-lo. Ambas concordaram que seria trágico.
- É assim que histórias desse tipo sempre acabam - afirmou Fiona, por experiência própria. - A garota conhece o garoto. A garota se apaixona pelo garoto.
A garota tem os seus sentimentos feridos e faz o possível para destruir o garoto.
Fiona tirou mais duas fotos de Madeline e seu amante naquela tarde. Uma mostrava os dois caminhando pelo cais sob o sol forte, com as mãos se tocando de leve, meio
furtivas. Na outra, o casal se separava sem um beijo sequer. Naquela cena, o homem subiu num bote Zodiac e partiu em direção ao por Madeline montou em sua lambreta
vermelha e voltou para casa. Ao chegar, não estava mais carregando o chapéu de sol com o laço preto elaborado.
Naquela noite, ao relatar os eventos do dia, ela não mencionou a ida a Calvi nem o almoço com o homem de aparência próspera no Les Palmiers.
Fiona achou a performance impressionante.
- Nossa Madeline tem uma habilidade extraordinária para mentiras - disse ela a Pauline. - Talvez seu futuro seja tão brilhante quanto dizem. Quem sabe Talvez ela
seja primeira-ministra algum dia.
As quatro garotas bonitas e os dois rapazes zelosos da casa alugada planeja:a- um almoço em Porto, uma cidade próxima. Madeline fez as reservas em France e até mesmo
instou o proprietário a guardar sua melhor mesa, que fica. no terraço com vista para a parte rochosa da enseada. Imaginaram que iriam para o restaurante na caravana
de sempre, mas, pouco antes das sete, Madeline declarou que estava indo a Calvi para tomar um drinque com um velho amigo de Edimburgo.
- Encontro vocês no restaurante! - gritou ela por cima do ombro, descendo a rampa. - E, pelo amor de Deus, tentem chegar na hora para variar!
Então ela se foi. Ninguém achou estranho ela não aparecer para o jantar. Nem ficaram alarmados ao acordarem e verem sua cama vazia. Era um verão agitado e Madeline
era aquele tipo de garota.
2
CÓRSEGA - LONDRES
A polícia nacional francesa declarou oficialmente que Madeline Hart estava desaparecida às 14 horas da última sexta-feira de agosto. Depois de três dias de buscas,
não descobriram nenhum vestígio dela além da lambreta vermelha, que acharam numa ravina isolada próxima ao monte Cinto, com a lanterna quebrada. No fim da semana,
a polícia já tinha praticamente perdido qualquer esperança de encontrá-la com vida. Em público, insistiram que o caso consistia numa busca por uma turista britânica
desaparecida. Em particular, no entanto, já procuravam seu assassino.
Não havia suspeitos além do homem com quem ela almoçara no Les Palmiers no dia de seu desaparecimento. Mas, assim como Madeline, ele parecia ter sumido da face da
terra. Era um amante secreto, como Fiona e os outros desconfiavam, ou os dois teriam se conhecido havia pouco tempo, na Córsega? Ele seria inglês? Francês? Ou, nas
palavras de um detetive frustrado, um alienígena de outra galáxia que tinha se desfeito em partículas e voltado para a nave espacial? A garçonete do Les Palmiers
não foi de muita ajuda. Lembrava que ele conversara em inglês com a garota de chapéu, mas que fizera seu pedido num francês perfeito. O homem havia pagado a conta
em dinheiro - notas novas e limpas que ele colocara na mesa como um jogador de pôquer - e dera uma generosa gorjeta, algo raro naqueles dias de crise econômica na
Europa. O que mais marcara a garçonete foram as mãos dele: muito pouco pelo, nenhuma marca de sol ou cicatriz, unhas limpas. O desconhecido cuidava muito bem das
unhas. Ela gostava disso num homem.
Sua fotografia foi mostrada com discrição nos bares e restaurantes mais finos da ilha, mas gerou apenas reações apáticas. Ao que tudo indicava, ninguém tinha posto
os olhos nele. E, se alguém tivesse, não conseguia se recordar de seu rosto. Era um tipo comum nas praias da Córsega no verão: bem bronzeado, óculos de sol caros
e um relógio suíço de puro ouro para aumentar seu ego. Era um nada com um cartão de crédito e uma garota bonita do outro lado da mesa. Era um homem esquecido.
Talvez para os donos de lojas e restaurantes da Córsega, mas não para a polícia francesa. A imagem foi passada por todos os bancos de dados de criminosos em seu
arsenal e por mais alguns. Como nenhuma busca deu frutos, os policiais debateram a possibilidade de revelar a foto para a imprensa. Algumas pessoas, especialmente
nos cargos mais altos, argumentaram contra. Afinal, era possível que o pobre coitado não tivesse culpa de nada, talvez apenas de infidelidade, algo longe de ser
crime na França. Mas, quando se passaram mais 72 horas sem nenhum progresso, concluíram que não havia escolha: precisariam pedir ajuda à população. Duas fotografias
editadas com cuidado foram liberadas para a imprensa - uma do homem sentado no Les Palmiers; outra dele andando ao longo do cais - e, ao anoitecer, os investigadores
já estavam sendo bombardeados por centenas de pistas. Rapidamente eliminaram os farsantes e os trotes e focaram recursos apenas nas que pareciam mais plausíveis.
Porém, nada deu resultado. Uma semana depois do desaparecimento, o único suspeito ainda era um homem sem nome nem nacionalidade.
Apesar de a polícia não ter nada promissor, não faltavam teorias. Um grupo de detetives acreditava que o homem do Les Palmiers era um psicopata que tinha atraído
Madeline para uma armadilha. Outro grupo achava que era apenas alguém no lugar errado e na hora errada. De acordo com essa hipótese, ele era casado, portanto não
poderia se revelar e cooperar com a polícia. Já Madeline provavelmente teria sido vítima de um assalto que acabara mal - uma jovem andando de moto sozinha era um
alvo tentador. Em algum momento o corpo apareceria. O mar o cuspiria, um alpinista o encontraria nas colinas ou um fazendeiro o desenterraria ao arar o campo. Assim
eram as coisas na ilha: a Córsega sempre devolvia os seus mortos.
As falhas da polícia foram uma ocasião propícia para os ingleses criticarem os franceses. Mas, de forma geral, até mesmo os jornais simpáticos à oposição trataram
o desaparecimento de Madeline como uma tragédia nacional. Sua ascensão notável, desde a moradia popular em Essex, foi narrada em detalhes, e diversos membros do
Partido emitiram declarações sobre uma carreira promissora abreviada precocemente. Sua mãe chorosa e seu irmão desajeitado deram uma única entrevista para a televisão
e, em seguida, desapareceram das vistas do público. O mesmo aconteceu com seus companheiros de férias na Córsega. Ao voltarem para a Inglaterra, apareceram juntos
numa coletiva de imprensa no aeroporto de Heathrow, observados por uma equipe de assessores do Partido. Posteriormente, recusaram todos os outros pedidos de entrevistas,
incluindo aqueles que ofereciam pagamentos lucrativos. A cobertura não incluiu nenhum traço de escândalo. Não houve histórias sobre bebedeiras festivas, jogos sexuais
ou perturbação da ordem pública, apenas a baboseira de sempre sobre os perigos enfrentados por mulheres jovens viajando em países estrangeiros. Na sede do Partido,
a assessoria de imprensa se parabenizou em particular pela hábil manipulação do caso, enquanto a equipe política percebeu uma leve melhoria na aprovação ao primeiro-ministro.
Por trás de portas fechadas, chamaram o fenômeno de “o efeito Madeline”.
Gradualmente, as matérias sobre o destino de Madeline saíram das primeiras páginas e foram para as seções internas e, ao final de setembro, ela já tinha desaparecido
dos jornais. Era outono, hora de voltar ao negócio de governar. Os desafios que a Inglaterra enfrentava eram imensos: uma economia em recessão, a zona do euro na
UTI, uma lista interminável de males sociais não resolvidos que estavam destruindo a qualidade de vida no Reino Unido. Pairando sobre tudo, a perspectiva de uma
eleição. O primeiro-ministro tinha dado inúmeras pistas de que haveria uma antes do fim do ano. Ele estava ciente dos riscos políticos de voltar atrás agora. Jonathan
Lancaster estava à frente do governo britânico porque seu antecessor havia deixado de convocar uma eleição após meses de flerte público com a ideia. Lancaster, então
líder da oposição, dissera que ele era “o Hamlet do Número 10” - em referência ao endereço da residência do primeiro-ministro - e a ferida mortal se abriu.
Isso tudo explicava por que Simon Hewitt, o diretor de comunicação do primeiro-ministro, não andava dormindo bem nos últimos tempos. O padrão de sua insônia nunca
variava. Exausto pela rotina esmagadora de trabalho, adormecia rapidamente, em geral com uma pasta de arquivos sobre o peito, mas acordava duas ou três horas depois.
Uma vez desperta, sua mente se acelerava. Após quatro anos no governo, ele parecia incapaz de focar nada além do negativo. Esse era o preço de ser assessor de imprensa
na Downing Street. No mundo de Simon Hewitt não havia triunfos, apenas desastres e quase desastres. Como os terremotos, sua intensidade variava de pequenos tremores
que mal eram sentidos a convulsões sísmicas capazes de derrubar prédios e desfazer vidas. Todos esperavam que Hewitt previsse a calamidade vindoura e, se possível,
contivesse os danos. Nos últimos tempos, ele tinha chegado à conclusão de que seu trabalho era impossível. Nos momentos mais sombrios, essa constatação lhe dava
um pouquinho de consolo.
Ele já fora um homem de reputação. Como colunista-chefe de política do
Times, Hewitt havia sido uma das pessoas mais influentes do gabinete, no Palácio de Whitehall. Com poucas palavras de sua característica prosa afiada, podia condenar
uma política governamental, assim como a carreira do ministro responsável por apresentá-la. O poder de Hewitt se tornou tão grande que nenhum governo tomava uma
decisão importante sem consultá-lo. E nenhum político que aspirasse a um futuro melhor pensaria em concorrer a um posto de liderança em algum partido sem garantir
o apoio de Hewitt. Foi o que fez Jonathan Lancaster, um ex-advogado do centro financeiro londrino, egresso de um distrito parlamentar do subúrbio. No início, Hewitt
não lhe deu muita importância: era muito polido, bem-apessoado e elitista para ser levado a sério. Mas, com o passar do tempo, ele passou a considerar Lancaster
um competente homem de ideias que queria reconstruir seu partido moribundo para, então, reconstruir o país. Hewitt se surpreendeu ao perceber que realmente gostava
de Lancaster, o que nunca era um bom sinal. À medida que o relacionamento progrediu, os dois passaram menos tempo fofocando sobre as maquinações políticas de Whitehall
e mais discutindo como consertar a sociedade britânica. Na noite da eleição, quando Lancaster conquistou a vitória com a maior margem de apoio do Parlamento daquela
geração, Hewitt foi uma das primeiras pessoas para quem ele ligou.
- Simon - disse, com sua voz sedutora. - Eu preciso de você, Simon. Não posso fazer isso sozinho.
Àquela altura, Hewitt já tinha escrito com fervor sobre as perspectivas de sucesso de Lancaster, sabendo muito bem que, em alguns dias, estaria trabalhando para
ele na Downing Street.
Agora, Hewitt abriu os olhos lentamente e fitou com desprezo o relógio ao lado da cama. Os dígitos brilhantes indicavam que eram 3h42, como se estivessem zombando
dele. Ao lado do relógio estavam três celulares, todos com a bateria carregada para o ataque da mídia do dia seguinte. Ele gostaria de poder recarregar as próprias
baterias com a mesma facilidade, mas, àquela altura, não havia sono ou sol tropical que pudesse reparar o dano que ele infligira ao seu corpo de meia-idade. Olhou
para Emma. Como sempre, ela estava dormindo profundamente. Em outros tempos, Hewitt poderia ter pensado em um jeito lascivo de acordá-la, mas isso já não era mais
possível; sua cama conjugal havia se tornado uma lareira apagada e congelada. Por um breve período, Emma fora seduzida pelo glamour do emprego dele, mas depois passou
a se ressentir da devoção servil do marido a Lancaster. Ela encarava o primeiro-ministro quase como um rival sexual, e seu ódio atingira um fervor irracional.
- Você é duas vezes melhor que ele, Simon - comentara Emma na noite anterior antes de lhe dar um beijo frio na bochecha caída. - Ainda assim, por alguma razão, você
sente a necessidade de fazer o papel de criado. Talvez algum dia possa me dizer por quê.
Hewitt sabia que o sono não voltaria, não agora; então ficou acordado na cama e escutou a sequência de sons que sinalizavam o começo de seu dia. O baque dos jornais
matinais na porta. O gorgolejo da máquina de café automática. O ronronar de um sedã do governo na rua, embaixo de sua janela. Levantando-se com cuidado para não
acordar Emma, vestiu o roupão e desceu até a cozinha. A cafeteira sibilava raivosamente. Hewitt preparou uma xícara sem açúcar, pelo bem de sua cintura em expansão,
e a levou para o hall. Uma rajada de vento úmido o saudou quando ele abriu a porta. A pilha de jornais estava envolta em plástico sobre o tapete de boas-vindas ao
lado de uma panela de barro com gerânios mortos. Ao se curvar, viu mais uma coisa: um envelope de papel pardo bem selado, sem nada escrito. Soube na mesma hora que
não tinha vindo da sede do governo, pois ninguém de sua equipe se atreveria a deixar nem o mais trivial documento ali na soleira. Portanto, deveria ser algo não
solicitado. Isso não era incomum; os velhos colegas da imprensa conheciam seu endereço em Hampstead e sempre lhe deixavam encomendas. Pequenos presentes por uma
informação vazada no momento certo. Discursos agressivos referentes a alguma desfeita percebida. Um rumor perverso sensível demais para ser transmitido por e-mail.
Hewitt fazia questão de ficar em dia com a fofoca de Whitehall. Sendo ex-repórter, sabia que o que era dito pelas costas de um homem costumava ser muito mais importante
que o que era escrito sobre ele nas primeiras páginas.
Hewitt cutucou o envelope com o dedão para ver se não continha fios ou baterias, então o colocou em cima dos jornais e voltou para a cozinha. Depois de ligar a televisão
e baixar o volume até um sussurro, tirou os jornais do plástico e passou os olhos pelas primeiras páginas. Estavam dominadas pela proposta de Lancaster para tornar
a indústria britânica mais competitiva com uma diminuição das taxas de juros. Como já era de esperar, o Guardian e o Independent estavam horrorizados, mas, graças
aos esforços de Hewitt, a maior parte das matérias era positiva. As outras notícias de Whitehall eram misericordiosamente benignas. Nenhum terremoto. Nem mesmo tremores.
Depois de passar pelos chamados jornais de maior prestígio, Hewitt deu uma lida rápida nos tabloides, que considerava um termômetro mais confiável da opinião pública
britânica do que qualquer enquete. Em seguida, servindo-se de mais café, abriu o envelope anônimo. Dentro, havia três itens: um DVD, uma única folha de papel A4
e uma fotografia.
- Merda - praguejou Hewitt, baixinho. - Merda, merda, merda.
O que aconteceu depois passaria a ser fonte de muita especulação. Para Simon Hewitt, um ex-jornalista político que deveria ter sido mais sensato, não faltaram recriminações.
Em vez de contatar a polícia metropolitana londrina, como exigia a lei inglesa, ele carregou o envelope até o escritório na Downing Street, número 12. Depois de
conduzir a reunião habitual das oito horas, durante a qual não mencionou os itens, Hewitt os mostrou para Jeremy Fallon, conselheiro político de Lancaster e o chefe
de gabinete mais poderoso da história inglesa. Suas responsabilidades oficiais incluíam planejamento estratégico e coordenação de políticas dos diversos departamentos
do governo, o que lhe permitia meter o nariz em qualquer questão de seu interesse. A imprensa frequentemente se referia a ele como o “cérebro de Lancaster”, um título
que agradava a Fallon e gerava ressentimento em Lancaster.
A reação de Fallon diferiu apenas na escolha do palavrão. Seu primeiro instinto foi levar na mesma hora o material para Lancaster, mas, como era quarta-feira, esperou
até o chefe sobreviver à batalha de gladiadores conhecida como Perguntas ao Primeiro-Ministro. Em nenhum momento da reunião, Lancaster, Hewitt ou Jeremy Fallon sugeriram
passar o material para as autoridades competentes. Os três concordaram que precisavam de uma pessoa discreta e habilidosa, à qual, acima de tudo, poderiam confiar
a proteção dos interesses do primeiro-ministro. Fallon e Hewitt pediram uma lista de candidatos a Lancaster, que deu apenas um nome. Havia uma relação familiar e,
o mais importante, uma dívida não paga. Lealdade contava muito em tempos assim, disse o primeiro-ministro, mas influência era algo muito mais eficiente.
Isso explica o convite sutil feito por Downing Street a Graham Seymour, o vice-diretor de longa data do Serviço de Segurança britânico, também conhecido como MI5.
Muito tempo depois, Seymour descreveria o encontro - realizado na sala de reuniões diante de um retrato carrancudo da baronesa Thatcher - como o mais difícil da
carreira. Concordou em ajudar o primeiro-ministro sem hesitação, pois era isso que um homem como ele fazia em circunstâncias daquele tipo. Ainda assim, deixou claro
que, caso seu envolvimento algum dia se tornasse público, destruiria o responsável.
Ficou em aberto apenas a identidade do agente que conduziria a busca. Assim como Lancaster, Graham tinha apenas um candidato. Ele não compartilhou o nome com o primeiro-ministro.
Em vez disso, usando fundos de uma das várias contas operacionais secretas do MI5, reservou um assento num voo da
Brites Airways daquela tarde com destino a Tel Aviv. Enquanto o avião decolava, Graham ponderou a melhor abordagem. Lealdade contava muito em tempos assim, mas influência
era algo bem mais eficiente.
3
JERUSALÉM
O coração de Jerusalém, não. muito longe do Ben Yehuda Mall, ficava a silenciosa e arborizada rua Narkiss. O prédio no número 16 era pequeno, com apenas três andares,
parcialmente oculto por um robusto muro de pedra calcária e um imenso eucalipto crescendo no jardim da frente. O apartamento no terceiro andar era igual aos outros,
exceto pelo fato de já ter pertencido ao serviço secreto de inteligência do Estado de Israel. Tinha uma sala de estar espaçosa, uma cozinha bem-arranjada cheia de
eletrodomésticos modernos, uma sala de jantar formal e dois quartos. O quarto menor, reservado para uma criança, fora penosamente convertido num estúdio artístico.
Mas Gabriel ainda preferia trabalhar na sala de estar, onde a brisa fresca que vinha da varanda ajudava a dissipar o cheiro forte dos solventes.
No momento, ele estava usando uma solução, preparada com cuidado, de acetona, álcool e água destilada, que aprendera a fazer em Veneza com o mestre restaurador de
arte Umberto Conti. A mistura era forte o bastante para dissolver contaminações na superfície e o verniz velho, mas não chegava a prejudicar as pinceladas originais
do artista. Gabriel umedeceu um cotonete feito à mão na solução e o girou delicadamente sobre o peito empinado de Suzana. Ela olhava em outra direção, banhando-se,
e mal parecia ciente dos dois anciãos lascivos da aldeia que a espiavam de trás do muro do jardim. Gabriel tinha uma atitude protetora em relação a mulheres e desejava
poder intervir, poupando-a do trauma por vir: as falsas acusações, o julgamento, a sentença de morte. Em vez disso, continuou o serviço e observou a pele amarelada
dela adquirir um tom branco luminoso.
Quando o cotonete já estava imundo, Gabriel o colocou num frasco hermético para reter os vapores. Enquanto preparava outro, seus olhos se moveram lentamente pela
superfície da pintura. Até aquele momento, a obra era atribuída apenas a um discípulo de Ticiano. Mas o proprietário atual da tela, o renomado negociante de arte
Julian Isherwood, acreditava que a tela tinha vindo do estúdio de Jacopo Bassano. Gabriel concordava - na verdade, agora que expusera um pouco da pincelada, viu
evidências do próprio mestre, especialmente na imagem de Suzana. Ele conhecia bem o estilo do pintor, pois havia estudado bastante suas pinturas e passara vários
meses em Zurique restaurando uma tela importante de Bassano para um colecionador particular. Na última noite de sua estadia, matara um homem chamado Ali Abdel Hamidi
num beco úmido perto do rio, um líder terrorista palestino com um bocado de sangue israelense nas mãos, que estava se passando por dramaturgo. Gabriel lhe dera uma
morte digna de suas pretensões literárias.
Ele umedeceu o novo cotonete no solvente, mas, antes de dar continuidade ao trabalho, escutou o ronco familiar do motor de um carro pesado na rua. Foi à varanda
para confirmar suas suspeitas e, então, abriu a porta da frente uns 2 centímetros. Um instante depois, Ari Shamron já estava empoleirado num banquinho de madeira
ao lado de Gabriel. Vestia calça cáqui, camisa de oxford branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Seus óculos feios refletiam a luz das lâmpadas
de halogênio que Gabriel usava para trabalhar. Seu rosto, com rugas e sulcos profundos, estava travado numa expressão de puro desgosto.
- Eu senti o cheiro desses produtos químicos assim que saí do carro. Imagino o estrago que eles provocaram ao seu corpo depois de todos esses anos.
- Tenho certeza que não é nada comparado ao dano que você provocou - retrucou Gabriel. - Estou surpreso por eu ainda ser capaz de segurar um pincel.
Gabriel tocou o cotonete umedecido na pele de Suzana e o girou devagar. Shamron consultou seu relógio de aço inoxidável e franziu a testa, como se houvesse algo
errado.
- O que foi? - perguntou Gabriel.
- Estou só imaginando quanto tempo vai levar até você me oferecer uma xícara de café.
- Você sabe onde fica tudo. Agora você praticamente mora aqui.
Shamron resmungou alguma coisa em polonês sobre a ingratidão das crianças. Em seguida, ergueu-se do banco com um impulso e, apoiando-se pesada- mente na bengala,
foi até a cozinha. Conseguiu encher a chaleira com água da torneira, mas pareceu perplexo com os diversos botões do fogão. Por duas vezes, Ari Shamron havia sido
diretor do serviço secreto de inteligência de Israel e, antes disso, fora um dos oficiais mais condecorados do mesmo serviço. Agora, contudo, já velho, parecia incapaz
de realizar as tarefas caseiras mais básicas. Cafeteiras, liquidificadores, torradeiras, todos esses utensílios eram um mistério para ele. Gilah, sua esposa resignada,
costumava brincar que, se o grande Ari Shamron fosse deixado sozinho, seria capaz de morrer de fome numa cozinha cheia de comida.
Gabriel acendeu o fogão e voltou ao trabalho. Shamron ficou parado no vão das portas da varanda, fumando. O fedor do tabaco turco logo prevaleceu sobre o odor do
solvente.
- Isso é mesmo necessário? - questionou Gabriel.
- É.
- O que está fazendo em Jerusalém?
- O primeiro-ministro queria dar uma palavra.
- Sério?
Shamron olhou para Gabriel de cara fechada através da cortina de fumaça cinza-azulada.
- Por que um pedido do primeiro-ministro para me ver surpreenderia você?
- Porque...
- Eu sou velho e irrelevante? - completou Shamron.
- Você é exagerado, impaciente e às vezes irracional. Mas você nunca foi irrelevante.
Shamron assentiu. A idade havia lhe dado a habilidade de, pelo menos, perceber suas falhas, apesar de ter roubado o tempo necessário para que ele pudesse remediá-las.
- Como ele está? - perguntou Gabriel.
- Como você pode imaginar.
- Sobre o que vocês conversaram?
- Nossa conversa foi abrangente e franca.
- Isso quer dizer que vocês gritaram um com o outro?
- Eu só gritei com um primeiro-ministro.
- Qual? - indagou Gabriel, realmente curioso.
- Golda. Foi depois de Munique. Eu lhe disse que precisávamos mudar as nossas táticas, aterrorizar os terroristas. Dei a ela uma lista de nomes de homens que deviam
morrer. Golda não queria saber daquilo.
- Então você gritou com ela?
- Não foi meu melhor momento.
- O que ela fez?
- Gritou também, claro. Mas, no fim das contas, compreendeu meu raciocínio. Então, montei outra lista de nomes, dos jovens de quem eu precisava para realizar a operação.
Todos concordaram sem hesitar. - Shamron fez uma pausa, em seguida acrescentou: - Todos menos um.
Em silêncio, Gabriel guardou o cotonete sujo no frasco hermético, que reteve os gases tóxicos do solvente, mas não a memória de seu primeiro encontro com o homem
que eles chamavam de Memuneh, a pessoa encarregada. Ocorrera a poucas centenas de metros de onde ele estava agora, no campus da Academia Bezalel de Artes e Design.
Gabriel tinha acabado de assistir a uma palestra sobre as pinturas de Viktor Frankel, o renomado expressionista alemão que também era seu avô materno. Shamron esperava
por ele na beira de um pátio ensolarado, um homem baixo e esguio, com óculos escuros tenebrosos e dentes afiados, que lembravam uma armadilha de aço. Como sempre,
estava bem preparado. Sabia que a mãe de Gabriel, uma artista talentosa, tinha sobrevivido ao campo de concentração em Birkenau, mas que não conseguira derrotar
o câncer que devastara seu corpo. Também sabia que a língua materna de Gabriel era o alemão e que esse ainda era o idioma no qual ele sonhava. Todas as informações
estavam na pasta que Shamron segurava com dedos manchados de nicotina.
- A operação será chamada Ira de Deus - explicara ele. - Não se trata de justiça. Trata-se de vingança, pura e simplesmente. Queremos vingar as onze vidas inocentes
perdidas em Munique.
Gabriel disse a Shamron para procurar outra pessoa.
- Eu não quero outra pessoa. Eu quero você.
Pelos três anos seguintes, Gabriel e os outros agentes da Ira de Deus seguiram suas presas pela Europa e pelo Oriente Médio. Carregando uma Beretta calibre 22, uma
arma discreta, adequada para matar de perto, Gabriel assassinou seis membros do Setembro Negro. Sempre que possível, atirava onze vezes, uma bala para cada israelense
massacrado em Munique. Quando finalmente voltou para casa, o cabelo ao redor de suas têmporas estava grisalho e seu rosto era o de um homem vinte anos mais velho.
Incapaz de produzir trabalhos de arte originais, ele foi a Veneza para estudar restauração. Então, depois de repousar, voltou a trabalhar para Shamron. Nos anos
que se seguiram, desempenhou algumas das operações mais fabulosas na história da inteligência israelense. Agora, após muitos anos peregrinando incansavelmente, voltara
para Jerusalém. Ninguém ficou mais satisfeito do que Shamron, que amava Gabriel como um filho e tratava o apartamento na rua Narkiss como se fosse o seu próprio.
Em outros tempos, talvez Gabriel tivesse se irritado com a presença constante de Shamron, mas agora isso não o incomodava. O Velho era eterno, mas o corpo em que
seu espírito residia não duraria para sempre.
Nada havia prejudicado mais a saúde de Shamron do que o implacável tabagismo. Fora um hábito adquirido na juventude, no leste da Polônia, e que piorara depois de
sua ida à Palestina, onde lutou na guerra que levou à independência de Israel. Agora, enquanto descrevia a reunião com o primeiro- -ministro, ele abriu seu velho
isqueiro Zippo e o usou para acender mais um cigarro fétido.
- O primeiro-ministro está inquieto, mais do que o normal. Imagino que ele tenha esse direito. O grande Despertar Árabe levou a região toda ao caos. E os iranianos
estão cada vez mais perto de realizarem seus sonhos nucleares. Em breve, vão entrar numa zona de imunidade, impossibilitando uma ação militar nossa sem a ajuda dos
americanos. - Shamron fechou o isqueiro com um estalo e olhou para Gabriel, que tinha voltado a trabalhar na pintura. - Você está me ouvindo?
- Cada palavra.
- Prove.
Gabriel repetiu a última declaração de Shamron palavra por palavra. Shamron sorriu. Ele considerava a memória impecável de Gabriel uma de suas melhores virtudes.
Girou o Zippo entre os dedos. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
- O problema é que o presidente americano não quer demarcar um limite inflexível. Ele diz que não vai permitir que os iranianos construam armas nucleares. Mas não
faz diferença nenhuma dizer isso se os iranianos têm a capacidade de construí-las num curto período de tempo.
- Como os japoneses.
- Os japoneses não são governados por xiitas apocalípticos. Se o presidente americano não tomar cuidado, suas duas conquistas mais relevantes na política externa
serão um Irã nuclear e a restauração do califado islâmico.
- Bem-vindo ao mundo pós-americano, Ari.
- E é por isso que eu acho uma estupidez deixar nossa segurança nas mãos deles. Mas esse não é o único problema do primeiro-ministro. Os generais não têm certeza
se podem destruir o suficiente do programa para fazer com que um ataque militar seja eficiente. E o King Saul Boulevard, liderado por seu amigo Uzi Navot, está dizendo
ao primeiro-ministro que uma guerra unilateral contra os persas seria uma catástrofe de proporções bíblicas.
O King Saul Boulevard era o endereço do serviço secreto de inteligência israelense no exterior. O nome longo e propositalmente enganoso tinha muito pouco a ver com
a verdadeira natureza de suas atividades. Até mesmo agentes aposentados como Gabriel e Shamron se referiam à instalação apenas como “o Escritório”.
- Uzi é que vê a realidade nua e crua todos os dias - falou Gabriel.
- Eu vejo também... Não tudo - acrescentou Shamron às pressas mas o bastante para me convencer de que os cálculos de Uzi sobre quanto tempo nós temos podem estar
errados.
- Matemática nunca foi o ponto forte de Uzi. Mas, quando estava em campo, ele nunca errava.
- Isso porque ele raramente se colocava numa posição em que fosse possível cometer um erro. - Shamron parou de falar, observando o vento mover o eucalipto além do
parapeito da varanda de Gabriel. - Eu sempre disse que uma carreira sem controvérsias não é uma carreira de verdade. Tive o meu quinhão, e você também.
- E tenho as cicatrizes para provar.
- E os louros também - completou Shamron. - O primeiro-ministro está preocupado com a possibilidade de o Escritório ser cauteloso demais quando se trata do Irã.
Sim, nós inserimos vírus em seus computadores e eliminamos um punhado de cientistas, mas faz um tempinho que nada explode. O primeiro-ministro gostaria que Uzi orquestrasse
outra Operação Obra-Prima.
Obra-Prima era o codinome de uma operação conjunta israelense, americana e britânica que resultara na destruição de quatro instalações iranianas secretas de enriquecimento
de urânio. Tinha ocorrido durante o comando de Uzi Navot, mas dentro dos corredores do King Saul Boulevard era considerada uma das maiores conquistas de Gabriel.
- Oportunidades como a Obra-Prima não aparecem todo dia, Ari.
- Isso é verdade - admitiu Shamron. - Mas sempre acreditei que a maioria das oportunidades são conquistadas, e não ganhas. O primeiro-ministro compartilha dessa
opinião.
- Ele perdeu a confiança em Uzi?
- Ainda não. Mas queria saber se eu tinha perdido.
- O que você disse?
- Que escolha eu tinha? Fui eu que o recomendei para o cargo.
- Então você o apoiou?
- Com um porém.
- Qual?
- Eu lembrei ao primeiro-ministro que a pessoa que eu realmente queria
para o trabalho não estava interessada. - Shamron balançou a cabeça devagar.
- Você é o único homem na história do Escritório que recusou uma chance de ser diretor.
- Sempre há uma primeira vez, Ari.
- Isso significa que você poderia reconsiderar?
- É por isso que você está aqui?
- Pensei que você fosse apreciar minha companhia. Eu e o primeiro-ministro estávamos nos perguntando se você estaria disposto a ajudar um dos nossos aliados mais
próximos.
- Qual?
- Graham Seymour veio para a cidade sem aviso prévio. Ele gostaria de uma conversa.
Gabriel se virou para encarar Shamron.
- Sobre o quê? - perguntou depois de um instante.
- Ele não disse, mas acho que é urgente. - Shamron foi até o cavalete e observou o pedaço límpido de tela no qual Gabriel estava trabalhando. - Parece até que a
pintura é recente.
- Esse é o objetivo.
- Alguma chance de você fazer o mesmo por mim?
- Desculpe, Ari - respondeu Gabriel, tocando a bochecha enrugada de Shamron -, mas temo que você esteja além de qualquer restauração.
4
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
Na tarde de 22 de julho de 1946, o grupo sionista extremista conhecido como Irgun detonou uma grande bomba no King David Hotel, sede de todas as forças militares
e civis da Inglaterra na Palestina. O ataque era uma retaliação pela prisão de centenas de combatentes judeus e matou 91 pessoas, incluindo 28 ingleses que ignoraram
um telefonema alertando-os para evacuar o hotel. Embora condenado universalmente, o bombardeio logo se provou um dos atos de violência política mais eficientes já
cometidos. Passados dois anos, os ingleses saíram da Palestina, e o Estado moderno de Israel, outrora um sonho sionista quase inimaginável, tornou-se realidade.
Entre os afortunados que sobreviveram ao bombardeio estava um jovem agente da inteligência britânica chamado Arthur Seymour, um veterano do programa de guerra Double
Cross que tinha sido transferido recentemente para a Palestina com a função de espionar os movimentos de resistência judeus. Era para Seymour estar em seu escritório
no momento do ataque, mas ele atrasou alguns minutos depois de uma reunião com um informante na Cidade Antiga. Ouviu a detonação enquanto passava pelo Portão de
Jaffa e, horrorizado, contemplou parte do hotel desmoronar. A imagem assombraria Seymour pelo resto da vida e moldaria os rumos de sua carreira. Anti-israelense
virulento e fluente em árabe, ele forjou laços desconfortavelmente próximos com muitos inimigos de Israel. Com frequência, era convidado do presidente do Egito,
Gamai Abdel Nasser, e admirador precoce de um jovem revolucionário palestino chamado Yasser Arafat.
Apesar de suas tendências pró-árabes, o Escritório considerou Arthur Seymour um dos oficiais mais competentes do MI6 no Oriente Médio. Por isso, houve certa surpresa
quando o único filho de Arthur, Graham, optou por uma carreira no MI5 em vez do mais glamoroso Serviço Secreto de Inteligência. Seymour, o Jovem - como era conhecido
no início da carreira -, serviu primeiro na contrainteligência, operando contra a KGB em Londres. Então, após a queda do Muro de Berlim e com a ascensão do fanatismo
islâmico, foi promovido a chefe de contraterrorismo. Agora, como vice-diretor do MI5, era forçado a aplicar sua experiência em ambas as disciplinas. Atualmente,
havia mais espiões russos operando em Londres do que no auge da Guerra Fria. E, graças aos erros de sucessivos governos britânicos, o Reino Unido abrigava milhares
de militantes muçulmanos do mundo árabe e da Ásia. Seymour chamava Londres de “Kandahar no Tâmisa”. Intimamente, temia que seu país estivesse escorregando cada vez
mais na direção de um abismo civilizacional.
Embora tivesse herdado a paixão do pai pela espionagem, Graham Seymour não compartilhava de forma alguma seu desdém por Israel. De fato, sob sua condução, o MI5
havia se aproximado do Escritório e, em especial, de Gabriel Allon. Os dois se consideravam membros de uma irmandade secreta que fazia as tarefas desagradáveis que
ninguém mais estava disposto a fazer, deixando para se preocupar com as consequências depois. Tinham lutado um pelo outro, sangrado um pelo outro e, em alguns casos,
matado um pelo outro. Eram tão próximos quanto dois espiões de serviços opostos poderiam ser, o que significava que tinham uma leve desconfiança mútua.
- Alguém no hotel não sabe quem você é? - perguntou Seymour, dando um aperto de mão em Gabriel como se o estivesse encontrando pela primeira vez.
- A garota na recepção perguntou se eu estava aqui para o bar mitzvah dos Greenbergs.
Seymour abriu um sorriso discreto. Com sua aparência vigorosa e queixo robusto, parecia o arquétipo de um barão colonial britânico, um homem que decidia questões
importantes e nunca servia o próprio chá.
- Dentro ou fora? - perguntou Gabriel.
- Fora - respondeu Seymour.
Eles ocuparam uma mesa no terraço, Gabriel voltado para o hotel e Seymour de frente para os muros da Cidade Antiga. Agora era a calmaria entre o café da manhã e
o almoço; haviam passado poucos minutos das onze horas. Gabriel só tomou café, mas Seymour pediu bastante comida. Sua esposa era uma cozinheira entusiástica, mas
pavorosa. Para Seymour, comida de avião era um mimo, e um brunch de hotel, mesmo feito na cozinha do King David, era uma ocasião a ser apreciada. O mesmo valia,
pelo visto, para a vista da Cidade Antiga.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse ele entre as mordidas na omelete -, mas esta é a minha primeira visita ao seu país.
- Eu sei. Está tudo no seu arquivo.
- É uma leitura interessante?
- Tenho certeza de que não deve ser nada em comparação com o que seu serviço tem sobre mim.
- Como poderia se comparar? Não passo de um humilde lacaio do Serviço Secreto de Sua Majestade. Você, por outro lado, é uma lenda. Afinal - acrescentou Seymour,
falando mais baixo quantos agentes de inteligência podem dizer que pouparam o mundo de um apocalipse?
Gabriel olhou por cima do ombro e fitou o Domo da Rocha, o terceiro lugar mais sagrado do Islã, resplandecente sob a luz cristalina do sol de Jerusalém. Cinco meses
antes, numa câmara secreta 50 metros abaixo da superfície do Monte do Templo, ele havia descoberto uma bomba que, caso fosse detonada, derrubaria todo o platô. Também
encontrara 22 pilares do Templo de Jerusalém do rei Salomão, provando que o antigo santuário judeu descrito no Livro de Reis e de Crônicas tinha de fato existido.
Embora o nome de Gabriel não tivesse aparecido na cobertura de imprensa da monumental revelação, seu envolvimento era bem conhecido em certos círculos da comunidade
ocidental de inteligência. Também se sabia que seu amigo mais próximo, Eli Lavon, renomado arqueólogo bíblico e agente do Escritório, quase morrera tentando salvar
os pilares da destruição.
- Foi uma sorte dos diabos aquela bomba não ter explodido - comentou Seymour. - Se tivesse, milhões de muçulmanos chegariam às suas fronteiras numa questão de horas.
E depois... - A voz de Seymour se perdeu.
- Seria o fim do jogo para o empreendimento conhecido como Estado de Israel - completou Gabriel. - Esse era exatamente o objetivo dos iranianos e de seus amigos
do Hezbollah.
- Não consigo imaginar como foi ter visto aqueles pilares pela primeira vez.
- Para ser sincero, Graham, não tive tempo para saborear o momento. Estava ocupado demais tentando manter Eli vivo.
- Como ele está?
- Passou dois meses no hospital, mas está quase cem por cento. Na verdade, até voltou a trabalhar.
- Para o Escritório?
Gabriel balançou a cabeça.
- Ele está escavando o Túnel do Muro das Lamentações de novo. Posso providenciar uma visita guiada, se você quiser. Aliás, se tiver interesse, posso mostrar a passagem
secreta que leva direto ao Monte do Templo.
- Não sei se meu governo aprovaria. - Seymour ficou em silêncio enquanto um garçom enchia suas xícaras de café. Então, quando estavam a sós novamente, continuou:
- Então o rumor é verdadeiro, afinal.
- Que rumor?
- De que o filho pródigo enfim voltou para casa. É engraçado - acrescentou ele, com um sorriso triste mas eu sempre imaginei que você passaria o resto da vida caminhando
pelos penhascos da Cornualha.
- É um lugar lindo, Graham. Mas a Inglaterra é a sua casa, não a minha.
- Às vezes sinto que não parece mais ser a minha casa. Helen e eu compramos uma casa em Portugal há pouco tempo. Em breve vou ser um exilado, assim como você foi.
- Sério?
- Não é nada iminente. Mas, no fim, todas as coisas boas devem terminar.
- Você teve uma grande carreira, Graham.
- Tive? É difícil mensurar o sucesso no campo da segurança, não é? Somos julgados com base em coisas que não acontecem: os segredos que não são roubados, os edifícios
que não explodem. Pode ser uma forma profundamente insatisfatória de se ganhar a vida.
- O que você vai fazer em Portugal?
- Helen vai tentar me envenenar com a sua culinária exótica e eu vou pintar paisagens terríveis de aquarela.
- Nunca soube que você pintava.
- Por uma boa razão. - Seymour observou a paisagem e franziu a testa, como se aquilo estivesse muito além do alcance de seu pincel e sua paleta. - Meu pai estaria
se revirando no túmulo se soubesse que estou aqui.
- Então por que você está aqui?
- Estava me perguntando se você se disporia a encontrar algo para um amigo meu.
- O amigo tem um nome?
Em vez de responder, Seymour abriu a maleta e pegou uma fotografia ampliada, passando-a para Gabriel. Mostrava uma jovem atraente que olhava direto para a câmera,
segurando uma edição do International Herald Tribune de três dias antes.
- Madeline Hart? - perguntou Gabriel.
Seymour assentiu. Então, passou uma folha A4 para Gabriel. Continha uma única frase, escrita em uma fonte sem serifa:
Em sete dias a garota morre.
- Merda - praguejou Gabriel baixinho.
- Receio que fique ainda melhor.
Por coincidência, a administração do King David colocou Graham Seymour, o único filho de Arthur Seymour, na mesma ala do hotel que fora destruída em 1946. Seymour
ficou no mesmo corredor do quarto que seu pai tinha usado como escritório no fim do mandato britânico na Palestina. Ao chegar, eles depararam com o aviso de NÃO
PERTURBE pendurado na maçaneta, além de uma embalagem plástica contendo o Jerusalém Post e o Haaretz. Seymour conduziu Gabriel para dentro. Ao verificar que ninguém
havia entrado no quarto durante sua ausência, pôs um DVD para ser reproduzido no laptop. Poucos segundos depois, Madeline Hart, cidadã britânica desaparecida e funcionária
do partido da situação na Inglaterra, apareceu na tela.
“Eu tive relações sexuais com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster pela primeira vez na conferência do Partido em Manchester, em outubro de 2012...”
5
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
O vídeo tinha sete minutos e doze segundos de duração. O tempo todo, Madeline manteve os olhos focados num ponto ligeiramente à esquerda da câmera, como se respondesse
a perguntas feitas por um entrevistador de televisão. Relutante, assustada e exausta, descreveu como tinha conhecido o primeiro-ministro durante uma de suas visitas
à sede do Partido em Millbank. Lancaster havia expressado admiração pelo trabalho de Madeline e, em duas ocasiões, convidou-a para a sede do governo, a fim de receber
informações diretamente dela. No fim da segunda visita, ele admitiu que seu interesse em Madeline não era apenas profissional. O primeiro encontro sexual foi bem
rápido, num quarto de hotel em Manchester. Depois disso, ela passou a ser levada à Downing Street por um velho amigo do primeiro-ministro, sempre que Diana Lancaster
estivesse fora de Londres.
- E agora - falou Seymour, melancólico, enquanto a tela do computador escurecia - o primeiro-ministro do Reino Unido está sendo punido por seus pecados com uma tentativa
primitiva de chantagem.
- Não há nada de primitivo nisso, Graham. Quem está por trás disso sabia que o primeiro-ministro estava envolvido num caso extraconjugal. E conseguiu fazer sua amante
desaparecer da Córsega sem deixar rastros. É óbvio que se trata de alguém extremamente sofisticado.
Seymour tirou o DVD do computador sem dizer nada.
- Quem mais sabe?
Seymour explicou que os três itens - a fotografia, o bilhete e o DVD - haviam sido deixados na manhã anterior em frente à porta de Simon Hewitt, que os levara até
a Downing Street e os mostrara para Jeremy Fallon. Também contou que Hewitt e Fallon confrontaram Lancaster em seu escritório na sede. Gabriel, que havia residido
pouco tempo antes no Reino Unido, conhecia bem os envolvidos: Hewitt, Fallon, Lancaster, a santíssima trindade da política britânica. Hewitt era especialista em
usar a mídia a favor do governo, Fallon era o mestre maquinador e estrategista, e Lancaster era o talento político em pessoa.
- Por que Lancaster escolheu você? - perguntou Gabriel.
- Nossos pais trabalharam juntos no serviço de inteligência.
- Com certeza há mais alguma razão.
- De fato - admitiu Seymour. - Seu nome é Siddiq Hussein.
- Acho que não conheço.
- Por uma boa razão. Graças a mim, Siddiq desapareceu num buraco negro vários anos atrás, para nunca mais ser visto.
- Quem era ele?
- Siddiq Hussein, nascido no Paquistão, era um residente de Tower Hamlets no leste de Londres. Ele apareceu nos nossos radares depois dos bombardeios de 2007, quando
finalmente tomamos juízo e começamos a tirar os muçulmanos radicais das ruas. Você se lembra daqueles dias - disse Seymour com amargura.
- Os dias em que a esquerda e a mídia insistiram que deveríamos fazer algo a respeito dos terroristas entre nós.
- Continue, Graham.
- Siddiq estava convivendo com extremistas conhecidos na grande mesquita do leste de Londres e o número do seu celular aparecia em todos os lugares errados. Eu dei
uma cópia dos arquivos dele para a Scotland Yard, mas o Comando de Contraterrorismo disse que não havia evidência suficiente para agir contra ele. Então Siddiq fez
algo que me deu uma oportunidade de cuidar do problema pessoalmente.
- O que ele fez?
- Agendou um voo para o Paquistão.
- Grande erro.
- Fatal, na verdade - falou Seymour, sombrio.
- O que aconteceu?
- Nós o seguimos até Heathrow e garantimos que ele subisse em seu avião para Karachi. Em seguida, fiz uma ligação discreta para um velho amigo em Langley, Virgínia.
Acho que você o conhece bem.
- Adrian Carter.
Seymour assentiu. Adrian Carter era o diretor do Serviço Clandestino Nacional. Ele supervisionava a guerra global da CIA contra o terrorismo, incluindo os programas
outrora secretos para deter e interrogar agentes de alto nível.
- A equipe de Carter observou Siddiq em Karachi por três dias - continuou Seymour. - Então cobriram sua cabeça com um saco e o colocaram no primeiro voo clandestino
para fora do país.
- Para onde eles o levaram?
- Cabul.
- Para a prisão de Salt Pit?
Seymour aquiesceu devagar.
- Quando tempo ele durou?
- Isso depende de para quem você perguntar. De acordo com o relato da Agência, Siddiq foi encontrado morto em sua cela dez dias depois de chegar a Cabul. Sua família
alegou num processo que ele morreu durante a tortura.
- O que isso tem a ver com o primeiro-ministro?
- Quando os advogados que representavam a família de Siddiq pediram todos os documentos do MI5 referentes ao caso, o governo de Lancaster se recusou a atendê-los,
alegando que isso prejudicaria a segurança nacional britânica. Ele salvou a minha carreira.
- E agora você quer quitar essa dívida tentando salvar o pescoço dele? - Como
Seymour não respondeu, Gabriel acrescentou: - Isso vai acabar mal, Graham.
E, quando acabar, seu nome vai aparecer com destaque no inevitável inquérito.
- Eu deixei claro que, se isso acontecer, vou levar todo mundo junto, incluindo Lancaster.
- Nunca tomei você por uma pessoa ingênua, Graham.
- Sou tudo menos isso.
- Então se afaste. Volte para Londres e diga ao primeiro-ministro para aparecer diante das câmeras com a esposa ao lado, fazendo um apelo público para que os sequestradores
soltem a garota.
- É tarde demais para isso. Além do mais, talvez eu seja um pouco antiquado, mas não gosto quando as pessoas tentam chantagear o líder do meu país.
- O líder do seu país sabe que você está em Jerusalém?
- Você só pode estar brincando.
- Por que eu?
- Porque, se o MI5 ou qualquer serviço de inteligência tentar encontrá-la, o caso vai vazar, assim como o de Siddiq Hussein vazou. E você é bom em encontrar coisas
- continuou Seymour, falando baixo. - Pilares antigos, Rembrandts roubados, instalações iranianas secretas de enriquecimento.
- Desculpe, Graham, mas...
- E porque você também deve uma a Lancaster.
- Eu?
- Quem você acha que autorizou sua estadia na Cornualha com um nome falso quando nenhum outro país o aceitaria? E quem você pensa que o deixou recrutar uma jornalista
britânica quando precisava penetrar na cadeia de fornecimento iraniana?
- Não sabia que estávamos contando pontos, Graham.
- Não estamos. Mas, se estivéssemos, você certamente estaria perdendo a partida.
Os dois caíram num silêncio desconfortável, como se estivessem constrangidos pelo tom do debate. Seymour olhou para o teto, e Gabriel para o bilhete.
Em sete dias a garota morre...
- Um tanto vago, não acha?
- Mas muito eficiente - afirmou Seymour. - Atraiu a atenção de Lancaster.
- Nenhuma exigência?
Seymour balançou a cabeça.
- É óbvio que eles querem revelar seu preço no último minuto. E querem que Lancaster esteja desesperado para salvar a própria pele, pronto a concordar em pagar qualquer
coisa.
- Quanto o seu primeiro-ministro vale?
- Na última vez que dei uma olhadinha em suas contas bancárias - respondeu Seymour jocosamente ele tinha mais de 100 milhões.
- De libras?
Seymour assentiu.
- Jonathan Lancaster fez milhões no centro financeiro londrino, ganhou uma herança milionária e casou-se com a igualmente milionária Diana Baldwin. Ele é um alvo
perfeito, um homem com mais dinheiro do que precisa e com muito a perder. Diana e as crianças vivem na bolha de segurança da Downing Street, logo seria quase impossível
sequestrá-las. Mas a amante de Lancaster... - A voz de Seymour se perdeu. - Uma amante é algo completamente diferente.
- Imagino que Lancaster não tenha comentado sobre isso com a esposa.
Seymour fez um gesto com as mãos indicando que não tinha acesso ao funcionamento interno do casamento de Lancaster.
- Você já trabalhou com um caso de sequestro, Graham?
- Nenhum desde a Irlanda do Norte. E aqueles foram todos relacionados ao IRA.
- Sequestros políticos são diferentes de sequestros criminais - explicou Gabriel. - O sequestrador político comum é um sujeito racional. Ele quer que companheiros
sejam soltos ou que uma política seja modificada, então agarra um político importante ou um ônibus escolar cheio de crianças e os mantém como reféns até que suas
demandas sejam cumpridas. Mas o sequestrador criminoso só quer dinheiro. E, se você paga, faz com que ele queira mais dinheiro. Então ele fica pedindo dinheiro até
achar que não sobrou mais nada.
- Então acho que nos resta apenas uma opção.
- Qual?
- Encontrar a garota.
Gabriel foi até a janela e olhou para além do vale, na direção do Monte do Templo. Por um segundo, ele se viu de volta à caverna secreta 50 metros abaixo da superfície,
segurando Eli Lavon enquanto seu sangue era bombeado para o coração da montanha sagrada. Durante as longas noites que passou ao lado de Lavon no leito de hospital,
Gabriel jurou que nunca poria os pés de novo no campo de batalha do serviço secreto. Mas agora um velho amigo havia surgido das profundezas de seu passado emaranhado
para pedir um favor. E mais uma vez Gabriel estava se esforçando para encontrar as palavras que o mandariam embora de mãos vazias. Como filho único de sobreviventes
do Holocausto, desapontar outras pessoas não estava em sua natureza. Ele fazia concessões e raramente dizia não.
- Mesmo se eu for capaz de encontrá-la - disse ele depois de um tempo os sequestradores ainda vão ter o vídeo da confissão dela.
- Mas o vídeo terá um impacto bem diferente se a rosa inglesa estiver sã e salva em solo britânico.
- A menos que a rosa inglesa decida contar a verdade.
- Ela é leal ao Partido. Não se atreveria.
- Você não tem ideia do que eles fizeram com ela - retrucou Gabriel. - A esta altura, pode ser uma pessoa completamente diferente.
- É verdade. Mas estamos nos precipitando. Esta conversa é inútil se você e seu serviço não empreenderem uma operação para encontrar Madeline Hart.
- Eu não tenho autoridade para colocar meu serviço à sua disposição, Graham. A decisão é do Uzi, não minha.
- Uzi já autorizou - respondeu Seymour sem emoção. - Assim como Shamron.
Gabriel encarou Seymour com desaprovação, mas não disse nada.
- Você realmente acha que Ari Shamron teria me deixado chegar a menos de um quilômetro de você sem saber que eu estava na cidade? - questionou Seymour. - Ele é muito
protetor quando se trata de você.
- Ele tem um jeito engraçado de demonstrar isso. Mas receio que ainda exista uma pessoa em Israel mais poderosa do que Shamron, pelo menos no que diz respeito a
mim.
- Sua esposa?
Gabriel assentiu.
- Em sete dias a garota morre.
- Seis dias - corrigiu Gabriel. - A garota pode estar em qualquer lugar do mundo e não temos uma única pista.
- Isso não é exatamente verdade.
Seymour enfiou a mão na maleta e pegou duas fotografias da Interpol do homem com quem Madeline Hart tinha almoçado na tarde em que desaparecera. O homem cujos sapatos
não deixavam marcas. O homem esquecido.
- Quem é ele? - perguntou Gabriel.
- Boa pergunta. Mas, se você puder encontrá-lo, suspeito que encontre Madeline Hart.
6
MUSEU DE ISRAEL, JERUSALÉM
Gabriel pegou um único item de Graham Seymour - a fotografia de Madeline Hart - e o levou para a região oeste de Jerusalém, até o Museu de Israel. Depois de deixar
o carro no estacionamento para funcionários - um privilégio que haviam lhe concedido recentemente atravessou o enorme hall de entrada feito de vidro e chegou até
a sala que alojava a coleção de arte europeia. Num canto estavam penduradas nove pinturas impressionistas que antes pertenciam a um banqueiro suíço chamado Augustus
Roube. Uma plaqueta descrevia a longa jornada que as pinturas tinham feito a partir de Paris - como foram saqueadas pelos nazistas em 1940 e transferidas para Roube
em troca de serviços prestados à inteligência alemã. Mas não chegava a mencionar o fato de que Gabriel e a filha do banqueiro, a renomada violinista Anna Roube,
tinham descoberto as pinturas num cofre em Zurique, nem que um consórcio de empresários suíços havia contratado um assassino profissional corso para matar Gabriel
e Anna.
Na galeria adjacente estavam pinturas de artistas israelenses. Três telas eram da mãe de Gabriel, incluindo um retrato assombroso da marcha da morte de Auschwitz
em janeiro de 1945, feito com base em suas memórias. Gabriel passou um bom tempo admirando o desenho e as pinceladas antes de sair para o jardim das esculturas.
Na outra extremidade, erguia-se o Santuário do Livro, uma estrutura em forma de colmeia que continha os Manuscritos do Mar Morto. Ao lado dessa ala ficava a mais
nova construção do museu, com 60 côvados de comprimento, 20 de largura e 30 de altura. Por enquanto, o espaço estava coberto por uma lona opaca para construções,
que escondia os 22 pilares do Templo de Salomão do resto do mundo.
Havia seguranças bem armados em ambos os lados da construção e na entrada que ficava voltada para o leste, assim como no templo original de Salomão. Esse era apenas
um elemento do projeto curatorial mais controverso que o mundo já conhecera. Os haredim ultraortodoxos de Israel tinham denunciado a exposição como uma afronta a
Deus que acabaria levando à destruição do Estado judeu, enquanto na parte leste de Jerusalém, que abrigava a população árabe, os mantenedores do Domo da Rocha declararam
que os pilares eram um embuste elaborado.
- Nunca houve Templo no Monte do Templo - escreveu o grande mufti de Jerusalém numa carta aberta publicada pelo New York Times - e nenhuma exposição ou museu vai
mudar esse fato.
Apesar das violentas batalhas religiosas e políticas, a organização da exposição progredia de forma consideravelmente rápida. Poucas semanas após a descoberta de
Gabriel, aprovaram-se os planos arquitetônicos, angariaram-se fundos e foi iniciada a construção. Boa parte do crédito pertencia à diretora e designer-chefe italiana.
Em público, referiam-se a ela por seu nome de solteira, Chiara Zolli. Mas todas as pessoas associadas ao projeto sabiam que ela se chamava Chiara Allon.
Os pilares foram dispostos da mesma forma em que Gabriel os encontrara, em duas fileiras retas separadas por cerca de 6 metros. O mais alto estava enegrecido pelo
fogo do incêndio provocado pelos babilônios na noite em que derrubaram o Templo - considerado pelos judeus da Antiguidade como a moradia de Deus na Terra. Fora a
esse pilar que Eli Lavon se agarrara quando estava à beira da morte, e foi lá que Gabriel encontrou Chiara agora segurando uma prancheta e gesticulando na direção
do teto de vidro. Ela vestia jeans desbotados, sandálias sem salto e um moletom branco sem mangas que marcava bem as curvas de seu corpo. Os braços descobertos estavam
bem bronzeados pelo sol de Jerusalém. Chiara parecia incrivelmente linda, pensou Gabriel, e jovem demais para ser a esposa de um sujeito tão acabado quanto ele.
No alto da obra, dois técnicos estavam fazendo ajustes nas luzes da exposição sob a supervisão de Chiara. Ela falava com eles em hebraico, com um sotaque italiano
acentuado. Filha do rabino-chefe de Veneza, havia passado a juventude no mundo provinciano de um gueto, partindo apenas por tempo suficiente para cursar o mestrado
em História Romana na Universidade de Pádua. Ela voltara a Veneza depois de se graduar e aceitara um emprego num pequeno museu judaico no Campo del Ghetto Nuovo,
e talvez tivesse permanecido lá para sempre se um observador de talentos do Escritório não tivesse reparado nela durante uma visita a Israel. O homem apresentara-se
num café de Tel Aviv e perguntara a Chiara se ela estaria interessada em fazer mais pelo povo judeu do que trabalhando no museu de um gueto moribundo.
Após passar um ano no programa de treinamento secreto do Escritório, ela retomou sua vida antiga, já como agente secreta israelense. Uma de suas primeiras tarefas
foi ficar na retaguarda de um assassino do Escritório chamado Gabriel Allon, que tinha ido a Veneza para restaurar o retábulo de San Zaccaria, de Bellini. Chiara
revelou-se a ele pouco tempo depois, em Roma, após um incidente envolvendo tiroteios e a polícia italiana. A sós com Chiara em um esconderijo, Gabriel sentiu uma
vontade desesperadora de tocá-la. Esperou até que o caso fosse resolvido e eles voltassem a Veneza. Lá, numa casa à beira de um canal em Cannaregio, fizeram amor
pela primeira vez, numa cama com frescos lençóis de linho. Era como fazer amor com uma figura pintada por Veronese.
Agora, ela virou a cabeça e, notando Gabriel pela primeira vez, sorriu. Seus olhos, largos e meio orientais, tinham cor de caramelo e manchas douradas, uma combinação
que Gabriel nunca fora capaz de reproduzir com precisão na tela. Vários meses já haviam se passado desde que Chiara concordara em posar para ele. A exposição a deixara
com pouco tempo para outros afazeres. Era uma mudança clara no padrão do casamento. Em geral era Gabriel que se via consumido por um projeto, fosse uma pintura ou
uma operação, mas agora os papéis estavam invertidos. Organizadora inata e sempre meticulosa, Chiara conseguia progredir mesmo sob a pressão da exposição. Mas, secretamente,
Gabriel antecipava o dia em que a teria de volta.
Ela caminhou até o pilar seguinte e observou como a luz incidia sobre ele.
- Eu liguei para o apartamento alguns minutos atrás, mas ninguém atendeu.
- Eu estava num brunch com Graham Seymour no King David.
- Que adorável - comentou ela, sarcástica. Em seguida, ainda analisando os pilares, perguntou: - O que tem no envelope?
- Uma oferta de emprego.
- Quem é o artista?
- Desconhecido.
- E o tema?
- Uma garota chamada Madeline Hart.
Gabriel voltou para o jardim de esculturas e sentou-se num banco com vista para as colinas de Jerusalém Ocidental. Alguns minutos depois, Chiara juntou-se a ele.
Um suave vento outonal moveu os seus cabelos. Ela afastou uma mecha do rosto e cruzou as pernas, com a sandália pendente do pé bronzeado. De repente, a última coisa
que Gabriel queria fazer era deixar Jerusalém para procurar uma garota desconhecida.
- Vamos tentar de novo... - disse ela, por fim. - O que tem no envelope?
- Uma foto.
- Que tipo de foto?
- Prova de vida.
Chiara estendeu a mão. Gabriel hesitou.
- Tem certeza?
Chiara assentiu e Gabriel lhe entregou o envelope. Ela o abriu e retirou a foto. Enquanto examinava a imagem, seu rosto ficou sombrio. Claramente vinha à sua memória
um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Gabriel tinha tirado tudo de Ivan: seus negócios, seu dinheiro, sua mulher e filhos. Em seguida, o oligarca retaliara
capturando Chiara. A operação de resgate foi a mais sangrenta em toda a longa carreira de Gabriel: ele matara onze agentes inimigos. E, numa rua tranquila em Saint-Tropez,
também assassinara Ivan. Mesmo morto, Ivan permaneceria como parte de suas vidas. As injeções de ketamina que seus homens haviam aplicado em Chiara fizeram-na perder
o bebê. Como ela não recebera tratamento, o aborto prejudicara sua capacidade de ter filhos. Chiara quase tinha perdido qualquer esperança de ficar grávida de novo.
Ela colocou a foto no envelope e o devolveu a Gabriel. Então, escutou com atenção enquanto ele explicava como o caso tinha caído no colo de Graham Seymour, para
então chegar ao seu.
- Então o primeiro-ministro britânico está forçando Graham Seymour a fazer o trabalho sujo dele - disse Chiara quando Gabriel terminou e Graham está fazendo o mesmo
com você.
- Ele tem sido um bom amigo.
O rosto de Chiara não revelava nenhuma expressão. Seus olhos, normalmente uma janela confiável para seus pensamentos, estavam ocultos atrás de óculos escuros.
- O que você acha que eles querem? - perguntou ela depois de um tempo.
- Dinheiro. Eles sempre querem dinheiro.
- Quase sempre. Mas às vezes querem coisas que não dá para ceder.
Ela tirou os óculos e os pendurou na camiseta.
- Quanto tempo você tem antes de eles a matarem? - Como Gabriel ficou em silêncio, ela balançou a cabeça devagar. - É um caso impossível. Você não poderia encontrá-la
a tempo.
- Olhe para a construção atrás de você. Depois me fale se ainda sente o mesmo.
Chiara não olhou para nada além do rosto de Gabriel.
- A polícia francesa está buscando Madeline Hart há mais de um mês. O que faz você pensar que pode encontrá-la?
- Talvez eles não tenham procurado no lugar certo... ou falado com as pessoas certas.
- Por onde você começaria? Eu sempre acreditei que o melhor lugar para iniciar uma investigação é na cena do crime.
Chiara pegou os óculos e limpou as lentes na calça jeans, distraída. Gabriel sabia que aquilo era um mau sinal: a esposa sempre limpava coisas quando estava aborrecida.
- Desse jeito você vai arranhar as lentes.
- Estão imundas - retrucou ela no mesmo instante.
- Talvez você devesse arrumar um estojo em vez de jogar os óculos na bolsa.
Ela não respondeu nada.
- Você sempre me surpreende, Chiara.
- Por quê?
- Porque você sabe melhor do que qualquer pessoa que Madeline Hart está no inferno. E ela vai ficar no inferno até que alguém a tire de lá.
- Eu só gostaria que outra pessoa fizesse o serviço.
- Não há outra pessoa.
- Ninguém como você.
Ela examinou as lentes e franziu a testa.
- O que houve?
- Estão arranhadas.
- Eu avisei.
- Você sempre tem razão, querido.
Chiara colocou os óculos e olhou na direção da cidade.
- Imagino que Shamron e Uzi já tenham dado suas bênçãos.
- Graham os procurou antes de falar comigo.
- Que esperto da parte dele. - Chiara descruzou as pernas e se levantou. - Eu preciso voltar. Não temos muito tempo antes da abertura.
- Você tem feito um trabalho magnífico, Chiara.
- Ficar me bajulando não vai ajudar.
- Achei que valia tentar.
- Quando vou vê-lo de novo?
- Só tenho sete dias para encontrá-la.
- Seis - ela o corrigiu. - Em seis dias a garota morre.
Chiara lhe deu um beijo suave. Em seguida, virou-se e atravessou o jardim ensolarado, os quadris balançando como se seguissem o ritmo de uma música que só ela conseguisse
ouvir. Gabriel a observou entrar na construção coberta pela lona. Agora, a última coisa que ele queria fazer era deixar Jerusalém em busca de uma garota desconhecida.
Ele voltou ao King David Hotel para recolher o resto do dossiê de Graham Seymour: o bilhete de exigências que não continha nenhuma exigência, o DVD da confissão
de Madeline e as duas fotos do homem de Les Palmiers em Calvi. Além disso, requisitou uma cópia do arquivo pessoal de Madeline no Partido, a ser entregue em um endereço
em Nice.
- Como foi com Chiara? - perguntou Seymour.
- A esta altura, meu casamento pode estar pior que o de Lancaster.
- Algo que eu possa fazer?
- Saia da cidade o mais rápido possível. E não mencione meu nome para o seu primeiro-ministro nem para qualquer outra pessoa na Downing Street.
- Como posso entrar em contato com você?
- Mando um sinal de fumaça quando tiver notícias. Até lá, eu não existo.
Com essas palavras, Gabriel partiu. Voltando para a rua Narkiss, encontrou um cinto de dinheiro na mesa de centro com 200 mil dólares. Ao lado, havia uma passagem
de avião, de um voo das 16 horas para Paris. A reserva fora feita no nome de Johannes Klemp, uma de suas identidades falsas favoritas. Gabriel entrou no quarto e
encheu uma pequena bolsa de viagem com as roupas modernas de Herr Klemp, separando um terno e um casaco pretos para o voo. Então, em frente ao espelho do banheiro,
fez algumas alterações sutis em sua própria aparência: um pouco de grisalho no cabelo, óculos alemães sem aro, lentes de contato castanhas para esconder os característicos
olhos verdes. Em poucos minutos, mal reconhecia o rosto no reflexo. Ele não era mais Gabriel Allon, o anjo vingador de Israel, mas Johannes Klemp, de Munique, um
homem sempre pronto a se ressentir - pequeno, insignificante e carrancudo.
Depois de vestir o terno e passar a fragrância tenebrosa de Herr Klemp, sentou à penteadeira de Chiara e abriu sua caixa de joias. Um item pareceu estranhamente
fora de lugar: um coral-vermelho em forma de mão, preso a uma tira de couro. Ele o pegou e o colocou no bolso. Então, por razões que ele mesmo não saberia explicar,
pendurou o artefato no pescoço e o escondeu sob o casaco de Herr Klemp.
Diante da casa, um sedã do Escritório estava parado com o motor ligado. Gabriel jogou a bolsa no banco de trás e entrou. Em seguida, consultou o relógio, não para
ver as horas, mas a data: 27 de setembro. Já tinha sido seu dia favorito do ano.
- Qual o seu nome? - perguntou ao motorista.
- Lior.
- De onde você é, Lior?
- Berseba.
- Era um bom lugar para uma criança?
- Existem lugares piores.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e cinco.
Vinte e cinco, pensou Gabriel. Por que tinha que ser aquela idade? Olhou de novo para o relógio. Não para a hora; para a data.
- Quais foram suas instruções?
- Disseram-me para levá-lo ao Ben Gurion - respondeu Lior.
- Mais alguma coisa?
- Falaram que talvez você quisesse fazer uma parada no caminho.
- Quem falou isso? Uzi?
- Não. Foi o Velho.
Então ele lembrava, pensou Gabriel. Olhou de novo para o relógio. A data...
- Como devo proceder? - perguntou o motorista.
- Leve-me ao aeroporto.
- Nenhuma parada?
- Só uma.
Lior engrenou a marcha e se afastou suavemente da calçada, como se estivesse se juntando a um cortejo fúnebre. Não se deu o trabalho de perguntar para onde estavam
indo. Era 27 de setembro. E Shamron se lembrava.
Eles foram até o jardim de Getsêmani e seguiram o caminho estreito e sinuoso que subia a encosta do monte das Oliveiras. Gabriel entrou no cemitério sozinho e passou
pelo mar de lápides, até chegar ao túmulo de Daniel Allon, nascido no dia 27 de setembro de 1988, morto no dia 13 de janeiro de 1991, numa noite de neve no Primeiro
Distrito de Viena, num Mercedes azul destruído por uma bomba. O artefato fora plantado por um líder terrorista palestino chamado Tariq al-Hourani, sob ordens diretas
de Yasser Arafat. Gabriel não era o alvo; aquilo seria leniente demais. Tariq e Arafat queriam puni-lo forçando-o a assistir à morte de sua mulher e filho, para
que pudesse passar o resto da vida de luto, assim como os palestinos. Apenas um elemento da trama falhara: Leah sobrevivera ao inferno. Agora ela vivia num hospital
psiquiátrico no topo do monte Herzl, prisioneira da própria memória e de um corpo destruído pelo fogo. Tomada por uma combinação de estresse pós-traumático e depressão
psicótica, revivia constantemente o atentado. De vez em quando, tinha lampejos de lucidez. Durante um desses períodos, ela concedera a Gabriel permissão para se
casar com Chiara. Olhe para mim, Gabriel. Não resta nada de mim. Nada além de uma memória.
Gabriel consultou o relógio de novo. Não olhando a data, mas a hora. Havia tempo para uma última despedida. Uma última torrente de lágrimas. Um último pedido de
desculpas por ter deixado de vasculhar o carro antes de Leah dar partida. Em seguida, ele se afastou cambaleante do jardim de pedra, no dia que já fora o seu favorito
do ano, e subiu na traseira de um sedã do Escritório que era conduzido por um garoto de 25 anos.
Lior teve o bom senso de não falar uma palavra sequer durante o caminho até o aeroporto. Gabriel entrou no terminal como um viajante qualquer, mas então foi a uma
sala reservada para a equipe do Escritório, onde esperou seu voo ser chamado. Ao se acomodar no assento de primeira classe, sentiu um impulso não profissional de
ligar para Chiara. Usando técnicas que lhe foram ensinadas na juventude por Shamron, ele a afastou de seus pensamentos. Agora não havia Chiara. Nem Daniel. Nem Leah.
Havia apenas Madeline Hart, a amante sequestrada do primeiro-ministro britânico Jonathan Lancaster. Enquanto o avião decolava em direção ao céu que começava a escurecer,
ela apareceu para Gabriel num retrato a óleo, como Suzana banhando-se num jardim. Espiando-a de trás de um muro estava um homem com um rosto anguloso e uma boca
pequena e cruel. O homem sem nome nem país. O homem esquecido.
7
CÓRSEGA
Os corsos dizem que, ao se aproximarem de barco de sua ilha, são capazes de sentir o cheiro da vegetação cerrada característica - chamada ali de Mac chia - muito
antes de vislumbrarem o contorno acidentado da costa se erguendo do mar. Gabriel não teve essa experiência, pois chegou à Córsega de avião, no primeiro voo matinal
que partiu de Orly. Só quando estava ao volante de um Peugeot alugado, saindo do aeroporto de Acácio em direção ao sul, é que sentiu pela primeira vez o aroma de
carqueja, sarça, estava e alecrim vindo das colinas. Os corsos usavam as plantas para cozinhar e aquecer suas casas e nelas se refugiavam em tempos de guerra e vendeta.
Segundo a lenda corsa, um homem perseguido poderia penetrar na macchia e, se quisesse, permaneceria lá para sempre sem ser encontrado. Gabriel conhecia um desses
homens. Era por isso que levava no pescoço um artefato de coral-vermelho.
Depois de dirigir por meia hora, ele saiu da estrada costeira e tomou a direção do interior. À medida que o odor da macchia se intensificava, também se fortificavam
os muros que cercavam as pequenas cidades de colina. A Córsega, assim como a antiga terra de Israel, fora invadida muitas vezes: após a queda do Império Romano,
os vândalos pilharam a ilha de forma tão implacável que a maior parte dos habitantes fugiu do litoral e recuou para a segurança das montanhas. Mesmo atualmente,
o medo de estrangeiros ainda era intenso. Num vilarejo isolado, uma idosa apontou para Gabriel com o dedo indicador e o mindinho a fim de afastar os efeitos do occhju,
o mau-olhado.
Passando o vilarejo, a estrada era pouco mais do que uma via de pista única ladeada por paredes densas da macchia. Depois de um quilômetro, ele chegou à entrada
de uma propriedade particular. O portão estava aberto, mas bloqueado por um veículo off-road com dois seguranças. Gabriel desligou o motor e colocou as mãos sobre
o volante, esperando os homens se aproximarem. Por fim, um deles saiu do veículo e caminhou devagar em sua direção. Tinha uma arma numa das mãos e a outra enfiada
na cintura. Com um único movimento de suas sobrancelhas espessas, o homem questionou o propósito da visita de Gabriel.
- Desejo ver Don Orsati - disse Gabriel em francês.
- Ele é um homem muito ocupado - respondeu o segurança no dialeto corso.
Gabriel tirou o talismã do pescoço e o entregou. O corso sorriu.
- Verei o que posso fazer.
Nunca foi muito difícil desencadear uma disputa sangrenta na Córsega. Um insulto. Uma acusação de roubo no mercado. A dissolução de um noivado. A gravidez de uma
mulher solteira. Após a faísca inicial, sempre vinham os distúrbios. Um touro morreria, uma oliveira premiada seria derrubada, uma casa de campo pegaria fogo. Então
os assassinatos começariam. E a coisa seguia em frente, às vezes por uma geração ou mais, até que as partes injuriadas acertassem as diferenças ou desistissem da
luta por exaustão.
A maior parte dos homens corsos estava mais do que disposta a cometer os próprios assassinatos. Mas alguns precisavam de outros para executarem seu trabalho sangrento:
pessoas de renome que eram melindrosas demais para sujarem as mãos ou que não estavam dispostas a arriscar uma prisão ou o exílio; mulheres que não conseguiam matar
e não tinham parentes masculinos para assumirem a questão. Gente desse tipo dependia de assassinos profissionais conhecidos como taddunaghiu e, em geral, recorria
ao clã Orsati.
Os Orsatis tinham uma bela propriedade e seu azeite era considerado o melhor de toda a Córsega. Mas faziam muito mais do que plantar oliveiras. Ninguém sabia quantos
corsos haviam morrido pelas mãos de assassinos dos Orsatis, muito menos os próprios Orsatis, mas de acordo com o folclore local, o número estava na casa dos milhares.
Poderia ter sido muito mais se não fosse o rigoroso processo de vetos do clã. Os Orsatis operavam com base num código rigoroso. Eles se recusavam a cometer um assassinato
se não estivessem convencidos de que o requisitante havia de fato sido injustiçado e que fosse necessária uma vingança sanguinolenta.
No entanto, isso mudou com Don Anton Orsati. Quando ele tomou o controle da família, as autoridades francesas tinham conseguido erradicar as rixas e a vendeta por
toda a ilha, com exceção dos bolsões mais isolados; logo, poucos corsos exigiam os serviços dos taddunaghiu. Com a demanda local em declínio acelerado, Orsati não
teve escolha além de buscar por oportunidades em outros lugares, isto é, do outro lado da água, na Europa continental. Agora, ele aceitava quase todas as ofertas
de trabalho que passassem por sua mesa, mesmo que fossem desagradáveis, e seus assassinos eram considerados os profissionais mais confiáveis de todo o continente.
Gabriel fora uma das duas únicas pessoas que sobreviveram a um contrato da família Orsati.
Embora Anton Orsati fosse descendente de uma família de corsos ilustres, em aparência era indistinguível dos paesanu que protegiam a entrada de sua propriedade.
Ao entrar no amplo escritório do don, Gabriel o encontrou sentado à mesa vestindo uma camisa branca, calças largas de algodão claro e um par de sandálias poeirentas
que pareciam ter sido compradas na feira local. Ele estava analisando um livro-razão antiquado com uma expressão carrancuda. Gabriel não podia imaginar a fonte de
sua insatisfação. Muito tempo antes, Orsati tinha fundido os dois negócios numa única empresa. Seus taddunaghiu modernos eram funcionários da Orsati Olive Oil Company
e os assassinatos eram registrados como encomendas de produtos.
Levantando-se, Orsati estendeu sua mão de granito para Gabriel sem qualquer traço de apreensão.
- É uma honra conhecê-lo, monsieur Allon - falou ele em francês. - Para ser sincero, achava que o veria bem antes. Você tem reputação de lidar severamente com seus
inimigos.
- Meus inimigos eram os banqueiros suíços que o contrataram para me matar, Don Orsati. Além do mais, em vez de me dar um tiro na cabeça, seu assassino me deu isto.
Gabriel meneou a cabeça na direção do talismã, que estava na mesa de Orsati ao lado do livro-razão. Anton franziu a testa. Erguendo o amuleto pela tira de couro,
deixou a mão de coral-vermelho balançar para trás e para a frente, como o pêndulo de um relógio.
- Aquilo foi imprudente - comentou, por fim, o don.
- Abandonar o talismã ou me deixar vivo?
Orsati deu um sorriso evasivo.
- Temos um velho ditado aqui na Córsega: I solda un vènini micca cantendu. Não dá para ganhar dinheiro cantando. Só trabalhando. E, por aqui, trabalho significa
cumprir contratos, mesmo quando envolvem violinistas famosos e agentes da inteligência israelense.
- Então você devolveu o dinheiro para os homens que o contrataram?
- Eles eram banqueiros suíços. Dinheiro era a última coisa de que precisavam. - Orsati fechou o livro-razão e colocou o talismã sobre a capa. - Como pode imaginar,
mantive os olhos em você no decorrer dos anos. Você tem ficado muito ocupado desde que nossos caminhos se cruzaram. Na verdade, alguns dos seus melhores trabalhos
foram feitos no meu território.
- Esta é a minha primeira visita à Córsega.
- Estava me referindo ao sul da França. Você matou aquele terrorista saudita, Zizi al-Bakari, no velho porto de Cannes. E também houve aquele desentendimento com
Ivan Kharkov em Saint-Tropez alguns anos atrás.
- Pelo que eu soube, Ivan foi morto por outros russos - disse Gabriel, evasivo.
- Você matou Ivan, Allon. E você o matou porque ele capturou sua esposa.
Gabriel ficou em silêncio. O corso voltou a sorrir, dessa vez com a confiança de um homem que sabe que tem razão.
- A macchia não tem olhos, mas vê tudo.
- É por isso que estou aqui.
- Imaginei. Afinal, um homem como você certamente não precisaria de um assassino profissional. Você faz isso muito bem por conta própria.
Gabriel tirou um maço de dinheiro do bolso do casaco e o depositou sobre o livro-razão da morte, ao lado do talismã. O don o ignorou.
- Como posso ajudá-lo, Allon?
- Preciso de uma informação.
- Sobre...?
Sem dizer nada, Gabriel colocou a foto de Madeline Hart ao lado do dinheiro.
- A garota inglesa?
- Você não parece surpreso, Don Orsati.
O corso não respondeu.
- Sabe onde ela está?
- Não. Mas tenho uma boa noção de quem a capturou.
Gabriel ergueu a foto do homem de Les Palmiers. Orsati assentiu.
- Quem é ele?
- Não sei. Só o vi uma vez.
- Onde?
- Neste escritório, uma semana antes de a garota inglesa desaparecer. Ele sentou na mesma cadeira em que você está sentado agora. Mas ele tinha mais dinheiro do
que você, Allon. Muito mais.
8
CÓRSEGA
Era hora do almoço, a parte do dia predileta de Don Orsati. Eles se acomodaram na varanda adjacente ao escritório e sentaram a uma mesa repleta de pães, queijos,
vegetais e salsichas da região. O sol estava forte e, por entre os pinheiros-larícios, Gabriel pôde ver o mar azul-esverdeado reluzindo à distância. O aroma da macchia
estava por toda parte; no ar fresco e na comida. Até mesmo Orsati parecia irradiá-lo. Ele serviu vinho vermelho-sangue na taça de Gabriel e, a seguir, passou a cortar
várias fatias da gorda salsicha corsa. Gabriel não questionou a origem da carne. Nas palavras de Shamron, às vezes é melhor não perguntar.
- Fico feliz por não termos matado você - disse Orsati, erguendo a taça uma fração de centímetro.
- Posso garantir, Don Orsati, que sinto o mesmo.
- Mais salsicha?
- Por favor.
Orsati cortou mais duas fatias grossas e as colocou no prato de Gabriel. Em seguida, pôs os óculos de leitura em formato de meia-lua e examinou a fotografia do homem
de Les Palmiers.
- Ele parece diferente nesta foto - comentou após um momento. - Mas definitivamente é a mesma pessoa.
- O que está diferente?
- O penteado. Quando ele veio me ver, estava com mouse no cabelo e o penteara bem para trás. Era uma diferença sutil, mas muito eficiente.
- Ele tinha um nome?
- Apresentou-se como Paul.
- Sobrenome?
- Até onde eu sei, esse era o sobrenome.
- Que idioma nosso amigo Paul falava?
- Francês.
- Local?
- Não, tinha sotaque.
- De que tipo?
- Não consegui identificar - respondeu o don, franzindo as sobrancelhas grossas. - Dava a impressão de ter aprendido francês ouvindo os CDs de algum curso de línguas.
Era perfeito, mas ao mesmo tempo havia algo de estranho ali.
- Imagino que ele não tenha encontrado seu nome numa lista telefônica.
- Não, Allon. Ele tinha uma referência.
- Que tipo de referência?
- Um nome.
- Alguém que contratou você no passado.
- As referências costumam ser desse tipo.
- Que tipo de trabalho era?
- O tipo em que dois homens entram numa sala e só um sai. E não se dê o trabalho de me perguntar o nome da referência - acrescentou Orsati rapidamente. - Estamos
falando dos meus negócios.
Com um leve movimento da cabeça, Gabriel indicou que não tinha desejo que levar a questão mais a fundo, ao menos por enquanto. Então, perguntou a Anton por que o
homem tinha ido vê-lo.
- Conselho - respondeu Orsati.
- Sobre o quê?
- Ele me disse que tinha alguns produtos para mover. Falou que precisava de alguém com um barco rápido. Alguém que conhecesse as águas locais e pudesse navegar à
noite. Alguém que soubesse manter a boca fechada.
- Produto?
- Você pode achar estranho, mas ele não foi específico.
- Você supôs que ele fosse um contrabandista - disse Gabriel. Era mais uma declaração de fato do que uma pergunta.
- A Córsega é uma rota intensa de tráfico de heroína do Oriente Médio para a Europa. Ah, para seu governo, os Orsatis não lidam com narcóticos, embora se saiba que,
vez ou outra, nós eliminamos membros proeminentes desse mercado.
- Por uma taxa, é claro.
- Quanto mais proeminente, maior a taxa.
- Vocês foram capazes de oferecer o serviço para ele?
- Óbvio - respondeu o don. Em seguida, baixando a voz, acrescentou: - Às vezes nós mesmos movemos coisas durante a noite, Allon.
- Coisas como cadáveres?
Orsati deu de ombros.
- São um infeliz efeito colateral de nosso negócio - falou ele num tom filosófico. - Em geral, tentamos deixá-los onde caem. Mas, ocasionalmente, os clientes pagam
um pouco a mais para que eles desapareçam. Nosso método favorito é colocá-los em caixões de concreto e enviá-los para o fundo do mar. Só Deus sabe quantos estão
lá embaixo.
- Quanto Paul pagou?
- Cem mil.
- Como foi a divisão?
- Metade para mim, metade para o homem com o barco.
- Só metade?
- Sorte dele ter recebido tanto.
- E quando você soube que a garota inglesa tinha desaparecido?
- É óbvio que suspeitei. Quando vi a foto de Paul nos jornais... Basta dizer que não fiquei satisfeito. A última coisa que eu preciso é de problemas. São ruins para
os negócios.
- Você não aceita sequestrar mulheres jovens?
- Suspeito que nem você.
Gabriel permaneceu em silêncio.
- Não quis ofender - disse o don sinceramente.
- Não ofendeu, Don Orsati.
Anton encheu seu prato com pimentões assados e berinjela e encharcou-os com azeite de oliva do clã. Gabriel tomou um pouco de vinho, elogiou a comida e perguntou
pelo nome do homem com o barco rápido que conhecia as águas locais, como se não tivesse o mínimo interesse na resposta.
- Estamos entrando em território sensível - alertou Orsati. - Eu faço negócios com essas pessoas o tempo todo. Se descobrirem que as traí, as coisas ficariam feias,
Allon.
- Posso garantir, Don Orsati, que eles nunca vão saber como eu obtive a informação.
Orsati não pareceu convencido.
- Por que essa garota é tão importante a ponto de o grande Gabriel Allon procurá-la?
- Digamos que ela tem amigos poderosos.
- Amigos? - Orsati balançou a cabeça, cético. - Se você está envolvido, é mais do que isso.
- Você é muito sábio, Don Orsati.
- A macchia não tem olhos - comentou o don, misterioso.
- Eu preciso do nome dele - insistiu Gabriel, baixinho. - Ele nunca vai saber onde eu o obtive.
Orsati pegou a taça de vinho e a ergueu contra o sol.
- Se eu fosse você - disse, depois de um instante falaria com um homem chamado Marcel Lacroix. Talvez ele saiba algo sobre o lugar para onde a garota foi depois
que saiu da Córsega.
- Onde eu posso encontrá-lo?
- Marselha. Ele deixa o barco no Velho Porto.
- Qual lado?
- O sul, em frente à galeria de arte.
- Qual é o nome do barco?
- Moondance.
- “Dança da Lua”? Simpático.
- Garanto que não há nada de simpático a respeito de Marcel Lacroix ou dos homens para quem ele trabalha. Você precisa ser cuidadoso em Marselha.
- Você pode achar estranho, Don Orsati, mas eu já fiz isso uma ou duas vezes.
- É verdade. Mas você deveria estar morto há muito tempo. - Orsati passou o talismã para Gabriel. - Coloque isso no pescoço. Afasta mais do que só o mau-olhado.
- Na verdade, eu estava me perguntando se você tem algo um pouco mais poderoso.
- Como o quê?
- Uma arma.
O don sorriu.
- Eu tenho algo melhor do que uma arma.
Gabriel seguiu pela rua até ela virar uma estrada de terra e, então, foi um pouco mais além. O bode velho estava exatamente onde Don Orsati tinha dito que estaria,
bem antes da curva fechada à esquerda, à sombra das três oliveiras centenárias. Quando Gabriel se aproximou, ele se ergueu e ficou no meio da passagem estreita,
como se desafiasse o estranho a tentar passar. Tinha o corpo meio dourado e branco e uma barba vermelha. Assim como Allon, carregava cicatrizes de antigas batalhas.
Ele avançou o carro alguns centímetros, tentando fazer o bode entregar sua posição sem briga, mas o animal manteve-se firme. Gabriel olhou para a arma que Don Orsati
tinha lhe dado. Uma Beretta 9 milímetros carregada no banco do carona. Um tiro entre os chifres desgastados do bode seria o bastante para terminar o impasse. Mas
não era possível. O bode, assim como as velhas oliveiras, pertencia a Don Casabianca. Se Gabriel tocasse num pelo de sua maldita cabeça, haveria uma batalha e sangue
derramado.
Gabriel deu duas buzinadas, mas o bode não cedeu. Com um suspiro profundo, saiu do carro e tentou discutir com o bicho - primeiro em francês, depois italiano e por
fim, exasperado, em hebraico. O bode respondeu baixando a cabeça e a mirando como um aríete na direção da barriga de Gabriel. Mas Allon, que acreditava que a melhor
defesa era um bom ataque, avançou primeiro, balançando os braços e gritando como um lunático. Surpreso, o bode recuou na mesma hora e sumiu por um vão na macchia.
Gabriel voltou depressa até a porta aberta do carro, mas parou ao ouvir um som ao longe, como o gorjeio de um tordo. Ele se virou e olhou para cima, na direção da
casa ocre ao lado da colina seguinte. Parado no terraço estava um homem louro todo vestido de branco. E, embora Gabriel não pudesse ter certeza, parecia que o homem
estava rindo descontroladamente.
9
CÓRSEGA
O homem esperando por Gabriel na casa não era corso - ao menos não tinha nascido ali. Seu nome real era Christopher Keller e ele fora criado num sólido lar de classe
média alta no elegante distrito londrino de Kensington. Na Córsega, no entanto, apenas Don Orsati e um punhado de seus subordinados sabiam de tudo isso. Para o resto
da ilha, ele era conhecido simplesmente como “o Inglês”.
A história da jornada de Keller de Kensington à Córsega fora uma das mais intrigantes que Gabriel já escutara, o que em si já não era pouca coisa. Filho único de
dois médicos da Harley Street, logo cedo deixou claro que não tinha a menor intenção de seguir os passos dos pais. Obcecado por história, especialmente história
militar, queria se tornar um soldado. Seus pais o proibiram de se alistar no Exército e, por um tempo, ele se resignou. Matriculou-se em Cambridge e começou a estudar
história e idiomas orientais. Era um aluno brilhante, mas no segundo ano de estudos perdeu a paciência e uma noite sumiu sem deixar rastros. Alguns dias depois,
apareceu na casa do pai, em Kensington, de cabelo raspado, vestindo um uniforme verde-oliva: tinha entrado para o Exército britânico.
Após completar o treinamento básico, Keller se juntou a uma unidade de infantaria, mas seu intelecto, capacidade física e iniciativa logo chamaram a atenção do Serviço
Aéreo Especial, conhecido na Inglaterra como SAS. Poucos dias depois de chegar à sede do regimento em Hereford, ficou claro que Keller tinha encontrado sua vocação.
Seus resultados no “matadouro” - uma instalação abjeta onde recrutas praticavam combate e resgate de reféns - foram os melhores já registrados e os instrutores do
curso de combate desarmado escreveram que nunca tinham visto alguém com um talento tão instintivo para tirar a vida humana. Seu treinamento culminou numa marcha
de quase 65 quilômetros pelos pântanos ventosos conhecidos como Brecon Beacons, um teste de resistência que já tinha levado homens à morte. Com uma mochila de 25
quilos nas costas e um fuzil de 4,5 quilos nas mãos, Keller quebrou o recorde do percurso por trinta minutos, uma marca que nunca foi superada até os dias atuais.
Inicialmente, ele foi designado para um esquadrão Sabre especializado em guerra no deserto, mas sua carreira logo deu uma guinada quando um homem da inteligência
militar foi procurá-lo. Ele estava atrás de uma espécie única de soldado, capaz de executar o procedimento de observação próxima e outras tarefas especiais na Irlanda
do Norte. Disse estar impressionado com suas habilidades linguísticas e sua aptidão de improvisar e pensar rápido. Keller estaria interessado? Na mesma noite, Christopher
fez as malas e se mudou de Hereford para uma base secreta nas Terras Altas da Escócia.
No decorrer do treinamento, Keller demonstrou mais um talento notável. Havia anos que as forças de segurança e inteligência britânicas enfrentavam dificuldades com
a miríade de sotaques na Irlanda do Norte. Em Ulster, as comunidades inimigas eram capazes de identificar umas às outras apenas pelo som de uma voz, e a maneira
pela qual um homem dizia algumas frases simples poderia significar a diferença entre a vida e uma morte tenebrosa. Keller desenvolveu a habilidade de imitar as entonações
com perfeição. Podia até mesmo mudar de sotaque num piscar de olhos - um católico do condado de Armagh num minuto; um protestante da Shankill Road, de Belfast, no
momento seguinte; depois, um católico dos conjuntos habitacionais de Ballymurphy. Operou em Belfast por mais de um ano, rastreando membros do IRA, coletando pedaços
de fofocas úteis da comunidade local. Devido à natureza de seu trabalho, ocasionalmente ele passava várias semanas sem entrar em contato com os controladores.
Sua missão na Irlanda do Norte chegou a um final abrupto num fim de noite quando foi sequestrado na zona oeste de Belfast e levado até uma fazenda remota em Armagh.
Lá, Keller foi acusado de ser espião britânico. Ele sabia que a situação era desesperadora, então decidiu escapar lutando. Ao deixar a fazenda, quatro terroristas
veteranos do Exército Republicano Irlandês estavam mortos; dois foram praticamente cortados em pedacinhos.
Keller retornou a Hereford, achando que teria um longo descanso trabalhando como instrutor. Mas sua estadia ali terminou em agosto de 1990, quando Saddam Hussein
invadiu o Kwait. Keller voltou depressa à sua velha unidade Sabre e, em janeiro de 1991, já estava no deserto do Iraque, à procura dos lançadores de mísseis Scud
que aterrorizavam Tel Aviv. Na noite de 28 de janeiro, ele e sua equipe localizaram um lançador a 160 quilômetros a noroeste de Bagdá e transmitiram as coordenadas
por rádio para os comandantes na Arábia Saudita. Noventa minutos depois, uma formação de caças-bombardeiros da Coalizão passou voando baixo sobre o deserto. Mas,
num caso desastroso de fogo amigo, em vez dos Scuds, as aeronaves atacaram o esquadrão do SAS. Os oficiais britânicos concluíram que a unidade inteira fora perdida,
incluindo Keller. O obituário não mencionou seu trabalho na inteligência na Irlanda do Norte nem os quatro militantes do Exército Republicano Irlandês que ele tinha
matado na fazenda de Armagh.
O que os oficiais do Exército britânico não perceberam, no entanto, foi que Keller havia sobrevivido ao incidente. Seu primeiro instinto foi entrar em contato com
a base por rádio e requisitar uma extração. Em vez disso, enfurecido pela incompetência dos superiores, começou a caminhar. Oculto pelas típicas vestimentas de um
beduíno e altamente treinado na arte de movimentação clandestina, Keller passou pelas forças da Coalizão e entrou na Síria sem ser detectado. De lá, seguiu de carona
para o oeste, passando por Turquia, Grécia e Itália, até enfim chegar à costa da Córsega, onde caiu nos braços abertos de Don Orsati. Anton lhe deu uma casa e uma
mulher para ajudá-lo a cuidar de suas muitas feridas. Então, quando ele estava descansado, o don lhe deu trabalho. Com sua aparência do norte da Europa e o treinamento
do SAS, Keller foi capaz de cumprir contratos que estavam muito além da capacidade dos taddunaghiu de Orsati nascidos na Córsega. Um desses contratos tinha os nomes
de Anna Roube e Gabriel Allon. A consciência de Keller não permitiu que os matasse, mas o orgulho profissional o levou a deixar para trás o talismã que agora jazia
na palma da mão de Gabriel.
Por uma incrível coincidência, os dois homens já haviam se encontrado numa outra ocasião, muitos anos antes, quando Keller e diversos outros agentes do SAS foram
a Israel treinar técnicas de contraterrorismo. No último dia de sua estadia, Gabriel tinha concordado, com certa relutância, em dar uma palestra confidencial sobre
uma de suas operações mais ousadas: o assassinato de Abu Jihad em 1988, o segundo em comando da OLP, em sua casa na Tunísia. Keller sentou na primeira fileira e
prestou atenção em cada palavra de Allon. Depois, durante uma sessão de fotos do grupo, posicionou-se ao lado de Gabriel, que estava usando óculos escuros e um chapéu
para ocultar sua identidade. Mas Keller olhou direto para a câmera. Foi uma das últimas fotografias tiradas dele.
Agora, enquanto Gabriel saía do carro alugado, o homem que lhe poupara a vida estava parado no vão da porta de seu refúgio na Córsega. Ele era uma cabeça mais alto
que Gabriel e tinha o peito e os ombros bem mais largos. Vinte anos sob o sol corso haviam alterado bastante sua aparência. Agora a pele tinha cor de couro e os
cabelos curtos estavam esbranquiçados pelo mar. Apenas os olhos azuis pareciam iguais. Eram os mesmos que haviam observado Gabriel com tanta atenção quando ele recontara
a morte de Abu Jihad. Os mesmos que, certa vez, em outra época, lhe concederam clemência numa noite chuvosa em Veneza.
- Eu lhe ofereceria um almoço - disse Keller, com seu sotaque britânico claro -, mas fiquei sabendo que você comeu no Chez Orsati.
Quando Keller estendeu a mão, os músculos de seu braço se contraíram sob o casaco branco. Gabriel hesitou por um instante antes de cumprimentá-lo. Cada aspecto de
Keller, desde as mãos potentes até as pernas poderosas, parecia ter sido projetado especificamente para matar.
- O que o don disse? - perguntou Gabriel.
- O suficiente para eu saber que não deveria chegar perto de um homem como Marcel Lacroix sem reforços.
- Então você o conhece?
- Uma vez ele me deu carona.
- Antes ou depois?
- Os dois. Lacroix passou um tempo no Exército francês. E também em algumas das piores prisões do país.
- E isso deveria me impressionar?
- “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas.”
- Sun Tzu - completou Gabriel.
- Você citou essa passagem durante sua palestra em Tel Aviv.
- Então você estava prestando atenção, afinal.
Gabriel passou por Keller e entrou na ampla sala da casa. A mobília era rústica e, assim como Keller, coberta de tecido branco. Todas as superfícies estavam revestidas
por pilhas de livros e as paredes tinham várias pinturas de qualidade, incluindo trabalhos menos conhecidos de Cézanne, Matisse e Monet.
- Nenhum sistema de segurança? - perguntou Gabriel, passando os olhos pela sala.
- Não é necessário.
Gabriel se aproximou do Cézanne, uma paisagem pintada nas colinas perto de Aix-en-Provence, e passou a ponta do dedo com delicadeza pela tela.
- Você está se saindo muito bem, Keller.
- Dá para pagar as contas.
Gabriel não disse nada.
- Você desaprova a minha forma de ganhar a vida?
- Você mata pessoas por dinheiro.
- Você também.
- Eu mato pelo meu país, e só como último recurso.
- Foi por isso que você estourou os miolos de Ivan Kharkov naquela rua em Saint-Tropez? Pelo seu país?
Gabriel deu as costas para o Cézanne e olhou bem nos olhos de Keller. Qualquer outro homem teria murchado perante a intensidade do olhar de Gabriel, mas não Keller.
Seu braços poderosos estavam cruzados despreocupadamente sobre o peito, e um canto da boca estava erguido num meio sorriso.
- Talvez essa não seja uma boa ideia, afinal - falou Gabriel.
- Eu conheço os jogadores e conheço o terreno. Seria tolice não me usar.
Gabriel não respondeu; Keller tinha razão. Ele era o guia perfeito para o mundo do crime na França. E suas habilidades físicas e táticas certamente se provariam
valiosas para os problemas que eles enfrentariam.
- Eu não posso pagar - avisou Gabriel.
- Não preciso de dinheiro - retrucou Keller, observando a bela casa. - Mas preciso que você responda a algumas perguntas antes de partirmos.
- Se não a encontrarmos em cinco dias, ela morre.
- Cinco dias são uma eternidade para homens como nós.
- Sou todo ouvidos.
- Para quem você está trabalhando?
- Para o primeiro-ministro da Inglaterra.
- Não sabia que vocês estavam se falando.
- Alguém da inteligência britânica entrou em contato comigo.
- Em nome do primeiro-ministro?
Gabriel assentiu.
- Qual é a ligação entre o primeiro-ministro e essa garota?
- Tente adivinhar.
- Meu Deus.
- Deus tem muito pouco a ver com isso.
- Quem é o amigo do primeiro-ministro na inteligência britânica?
Gabriel hesitou, então respondeu à pergunta honestamente. Keller sorriu.
- Você o conhece? - perguntou Gabriel.
- Trabalhei com Graham na Irlanda do Norte. Ele é um profissional de verdade. Mas, assim como todo mundo na Inglaterra, acha que estou morto. Logo, não pode saber
que estou trabalhando com você.
- Você tem a minha palavra.
- Tem mais uma coisa que eu quero.
Keller estendeu a mão e Gabriel entregou o talismã.
- Estou surpreso que você o tenha guardado.
- Tem valor sentimental.
Keller pendurou-o no pescoço.
- Vamos - disse ele, sorrindo. - Eu sei onde a gente pode arrumar outro para você.
A signadora vivia numa casa torta no centro do vilarejo, não muito longe da igreja. Keller chegou sem marcar horário, mas a idosa não pareceu surpresa ao vê-lo.
Ela vestia uma túnica preta, e um cachecol preto cobria os cabelos bem secos. Abrindo um sorriso preocupado, tocou a bochecha de Keller com delicadeza. Em seguida,
segurou a cruz pesada pendurada no pescoço e voltou o olhar para Gabriel. Sua tarefa era cuidar dos afligidos pelo mau-olhado. Ela temia que Keller tivesse trazido
a própria encarnação do mal para seu lar.
- Quem é esse homem?
- Um amigo - respondeu Keller.
- Ele é um crente?
- Não como nós.
- Diga-me o nome dele, Christopher... seu nome real.
- Gabriel.
- Como o arcanjo?
- Sim.
Ela analisou o rosto de Gabriel com atenção.
- Ele é israelita, não é?
Keller assentiu e a velha franziu um pouco a testa em desaprovação. Pela doutrina, a signadora considerava os judeus como hereges, mas pessoalmente não tinha nada
contra. Ela desabotoou a camisa de Keller e tocou no talismã dele.
- Esse não é o que você perdeu muitos anos atrás?
- Sim.
- Onde você o encontrou?
- No fundo de uma gaveta abarrotada.
A signadora balançou a cabeça.
- Você está mentindo para mim, Christopher. Você nunca vai aprender que eu sei perceber?
Keller sorriu, mas não disse nada. A velha soltou o talismã e tocou sua bochecha de novo.
- Você está deixando a ilha, Christopher?
- Esta noite.
A signadora não indagou o motivo: sabia exatamente o que Keller fazia para ganhar a vida. Na verdade, ela já tinha até mesmo contratado um jovem taddunaghiu chamado
Anton Orsati para vingar o assassinato do marido.
Com um meneio de cabeça, convidou Keller e Gabriel para se sentarem à pequena mesa de madeira em sua sala. Colocou sobre o tampo um prato cheio de água e uma vasilha
de azeite de oliva. Keller mergulhou o dedo indicador no azeite e, em seguida, o manteve acima do prato, para que três gotas caíssem na água. De acordo com as leis
da física, elas deveriam ter-se aglomerado. Em vez disso, a substância se desfez em mil gotículas e desapareceu.
- O mal retornou, Christopher.
- Receio que seja um risco ocupacional.
- Não faça piadas, meu querido. O perigo é muito real.
- O que a senhora vê?
Ela focou toda a atenção no líquido, como se estivesse em transe. Depois, perguntou baixinho:
- Vocês estão procurando a garota inglesa?
Keller assentiu.
- Ela está viva?
- Sim - respondeu a velha. - Está viva.
- Onde ela está?
- Não está em meu poder dizer isso.
- Nós vamos encontrá-la?
- Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.
- O que a senhora vê?
Ela fechou os olhos.
- Água... montanhas... um velho inimigo...
- Meu?
- Não. - Ela abriu os olhos e encarou Gabriel. - Dele.
A signadora pegou a mão do Inglês e rezou. Após um momento, começou a chorar, um sinal de que o mal tinha passado do corpo de Keller para o seu. Em seguida, fechou
os olhos e pareceu adormecer. Ao acordar, instruiu Keller a repetir o teste do azeite e da água. Dessa vez, o azeite se aglomerou numa única gota.
- O mal saiu da sua alma, Christopher. - Voltando-se para Gabriel, a velha disse: - Agora ele.
- Eu não sou um crente - retrucou Gabriel.
- Por favor - pediu ela. - Se não por você, por Christopher.
Relutante, Gabriel mergulhou o indicador no azeite e deixou três gotas caírem na água. Quando o azeite se dividiu em mil gotículas, a mulher fechou os olhos e começou
a estremecer.
- O que a senhora vê? - perguntou Keller.
- Fogo - respondeu ela, baixinho. - Eu vejo fogo.
Havia uma balsa saindo de Ajaccio às cinco horas. Às quatro e meia, Gabriel estacionou o Peugeot na embarcação e, dez minutos depois, observou Keller subir a bordo
dirigindo um Renault velho. Seus compartimentos ficavam no mesmo deque, um de frente para o outro. O de Gabriel tinha o tamanho e a falta de atrativo de uma cela
de prisão. Ele deixou a mala na cama minúscula e subiu as escadas para o bar. Ao chegar, encontrou Keller sentado a uma mesa perto da janela, tomando um gole de
cerveja com um cigarro queimando no cinzeiro.
Gabriel balançou a cabeça devagar. Quarenta e oito horas atrás, estava diante de uma tela em Jerusalém. Agora buscava por uma mulher desconhecida, acompanhado por
um homem que, no passado, aceitara um contrato para matá-lo.
Pediu um café preto ao barman e saiu para o convés de popa. A balsa já estava longe do porto e o ar da noite havia esfriado. Gabriel levantou a gola do casaco e
envolveu a xícara de café com as mãos para se aquecer. As estrelas do leste brilhavam intensamente no céu sem nuvens, e o mar, que um instante antes estava turquesa,
logo se tornou nanquim. Gabriel teve a impressão de sentir o cheiro de macchia no vento. Um pouco depois, escutou a voz da signadora: “Quando ela estiver morta.
Então vocês saberão a verdade.”
10
MARSELHA
Quando Gabriel e Keller chegaram a Marselha no começo da manhã seguinte, o Moondance estava amarrado no ponto de sempre no Velho Porto, ostentando seus 42 pés de
puro poder de contrabando. O dono, no entanto, não estava à vista. Keller montou um posto estático de observação no lado norte e Gabriel ficou a leste, na frente
de uma pizzaria que, inexplicavelmente, tinha o nome de uma região chique de Manhattan. A cada hora eles mudavam de posição, mas no fim da tarde ainda não havia
sinal de Lacroix. Por fim, ansioso com a perspectiva de um dia perdido, Gabriel percorreu o perímetro do porto, passou pelos vendedores de peixe em suas bancas de
metal e se juntou a Keller no Renault. O tempo estava piorando: chuva pesada, um vento frio vindo das colinas. Keller ligava os limpadores em intervalos de alguns
segundos para manter o para-brisa transparente. O degelador ofegava fracamente contra o vidro embaçado.
- Você tem certeza de que ele não possui apartamentos na cidade? - perguntou Gabriel.
- Ele mora no barco.
- E quanto a mulher?
- Ele tem várias, mas nenhuma consegue tolerar sua presença por muito tempo. - Keller limpou o para-brisa com o dorso da mão. - Talvez possamos ficar num hotel.
- Não acha um pouco cedo? Afinal, acabamos de nos conhecer.
- Você sempre faz piadas cretinas durante as operações?
- É um mal cultural.
- Piadas cretinas ou operações?
- Ambos.
Keller pegou um guardanapo do porta-luvas e fez o melhor que pôde para consertar a bagunça que tinha feito no para-brisa.
- Minha avó era judia - comentou ele casualmente, como se admitisse que sua avó gostava de jogar bridge.
- Parabéns.
- Outra piada?
- O que você quer que eu diga?
- Você não acha interessante que eu tenha uma ancestral judia?
- Por minha experiência, a maior parte dos europeus tem um parente judeu escondido em algum lugar.
- A minha estava em plena vista.
- Onde ela nasceu?
- Na Alemanha.
- Ela foi para a Inglaterra durante a guerra?
- Logo antes. Ela foi abrigada por um tio distante que não se considerava mais judeu. Ele lhe deu um nome cristão adequado e a mandou para a igreja. Minha mãe só
soube que tinha um passado judeu com 30 e tantos anos.
- Odeio ser portador de más notícias - disse Gabriel -, mas, na minha opinião, você é judeu.
- Para ser sincero, sempre me senti um pouco judeu.
- Você tem aversão a mariscos e a ópera alemã?
- Quis dizer num sentido espiritual.
- Você é um assassino profissional, Keller.
- Isso não significa que eu não acredite em Deus. Na verdade, suspeito que eu saiba mais sobre a sua história e as suas escrituras do que você.
- Então por que você anda com aquela mística maluca?
- Ela não é maluca.
- Não me diga que você acredita naquela bobagem.
- Como ela sabia que estávamos procurando a garota?
- Suponho que o don lhe tenha dito.
- Não - discordou Keller, balançando a cabeça. - Ela viu. Ela vê tudo.
- Como a água e as montanhas?
- Sim.
- Nós estamos no sul da França, Keller. Eu também vejo água e montanhas. Inclusive, parecem estar por toda parte.
- É óbvio que ela deixou você nervoso com aquela conversa sobre um velho inimigo.
- Eu não fico nervoso. Quanto a velhos inimigos, não consigo sair da porta de casa sem trombar com um.
- Então talvez você devesse mudar a porta da sua casa de lugar.
- Isso é um provérbio corso?
- Só um conselho amigável.
- Ainda não somos exatamente amigos.
Keller encolheu os ombros quadrados para demonstrar indiferença, mágoa ou algo entre um sentimento e outro.
- O que você fez com o talismã que ela lhe deu? - perguntou ele depois de um silêncio amuado.
Gabriel deu um tapinha no peito para indicar que o talismã, idêntico ao de Keller, estava pendurado no pescoço.
- Se você não acredita - indagou Keller por que o está usando?
- Eu gosto do modo como ele valoriza as minhas roupas.
- O que quer que você faça, não o tire: ele mantém o mal à distância.
- Eu gostaria de manter à distância algumas pessoas na minha vida.
- Como Ari Shamron?
- Como você sabe de Shamron? - perguntou Gabriel, ocultando sua surpresa.
- Eu o conheci quando fui treinar em Israel. Além do mais, todo mundo no negócio sabe de Shamron. E todo mundo sabe que ele queria que você fosse c chefe, em vez
de Uzi Navot.
- Você não devia acreditar em tudo que lê nos jornais, Keller.
- Eu tenho boas fontes. E elas me disseram que o emprego era seu, mas você o recusou.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse Gabriel, com o olhar cansado voltado para o para-brisa respingado de chuva -, mas não estou a fim de ter um papo
nostálgico com você.
- Eu só estava tentando matar tempo.
- Talvez pudéssemos aproveitar um silêncio confortável.
- Outra piada?
- Você entenderia se fosse judeu.
- Tecnicamente eu sou judeu.
- Quem você prefere: Puccini ou Wagner?
- Wagner, claro.
- Então não tem como você ser judeu.
Keller acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo para apagá-lo. Uma rajada de vento jogou a chuva no para-brisa, dificultando a visão do porto. Gabriel baixou a sua
janela alguns centímetros para dar vazão à fumaça de Keller.
- Talvez você esteja certo - disse ele por fim. - Talvez um quarto seja uma boa ideia.
- Não acho que seja necessário.
- Por que não?
Keller ligou os limpadores do para-brisa e apontou para além do vidro.
- Porque Marcel Lacroix está vindo em nossa direção.
Ele estava usando um agasalho preto e tênis verde-néon, e carregava no ombro uma mala esportiva Puma. Era óbvio que Lacroix havia passado a maior parte da tarde
na academia. Não que ele precisasse de exercício: tinha pelo menos 1,90 metro e pesava mais de 90 quilos. Seus cabelos escuros com gel estavam presos num rabo de
cavalo curto. Havia piercings nas duas orelhas e ideogramas chineses tatuados no lado do seu grosso pescoço - evidência de que era um estudante das artes marciais
asiáticas. Seus olhos não paravam de se mexer, mas ele não chegou a perceber os dois homens sentados no pequeno Renault com janelas embaçadas. Enquanto o observava,
Gabriel deu um suspiro profundo. Lacroix certamente seria um oponente digno, em especial dentro do espaço apertado do Moondance. Apesar do que dizem, tamanho é documento.
- Nenhuma piadinha? - perguntou Keller.
- Estou pensando em alguma.
- Por que você não me deixa cuidar disso?
- Por alguma razão, não acho que sei a uma boa ideia.
- Por que não?
- Porque ele sabe que você trabalha para Don Orsati. Se você aparecer e começar a fazer perguntas sobre Madeline Hart, ele vai saber que foi traído, e isso seria
prejudicial aos interesses do don.
- Deixe que eu me preocupo com os interesses do don.
- É por isso que você está aqui, Keller?
- Eu estou aqui para garantir que você não acabe num caixão de cimento no fundo do Mediterrâneo.
- Há lugares piores para ser enterrado.
- A lei judia não permite enterros no mar.
Keller ficou em silêncio quando Lacroix entrou na doca e começou a seguir em direção ao Moondance. Gabriel focou na região lombar do francês, prestando atenção em
como pendia a roupa esportiva. Em seguida, olhou para a forma como a bolsa estava pendurada.
- O que você acha? - perguntou Keller.
- Acho que ele está carregando a arma na bolsa.
- Você também notou isso?
- Eu noto tudo.
- Como você vai fazer?
- Do jeito mais silencioso possível.
- O que você quer que eu faça?
- Espere aqui - respondeu Gabriel, abrindo a porta do carro. - E tente não matar ninguém até eu voltar.
O Escritório tinha uma doutrina simples quanto ao uso operacional adequado de armas ocultas. Ela fora dada por Deus a Ari Shamron - pelo menos era o que dizia a
história -, que por sua vez passou-a para todos os que adentravam secretamente a noite para desempenharem seus serviços. Embora não estivesse escrita em lugar algum,
todo agente de campo era capaz de recitá-la com tanta facilidade quanto a bênção das velas no sabá. Um agente do Escritório saca a arma com apenas um propósito.
Ele não a brande como um gângster nem faz ameaças vazias. Apenas atira - e só interrompe os disparos quando o alvo não está mais entre os vivos. Amém.
Foi com a advertência de Shamron ecoando em seus ouvidos que Gabriel deu os passos finais na direção do Moondance. Hesitou antes de embarcar. Até mesmo um homem
tão esguio quanto ele poderia fazer com que o barco se inclinasse um pouco. Portanto, velocidade e uma confiança aparente seriam essenciais.
Gabriel deu uma última olhada por cima do ombro e viu que Keller o observava com um pouco de receio pela janela do carona do Renault. Em seguida, subiu a bordo do
Moondance e atravessou rapidamente o convés de popa até a cabine principal. Lacroix estava no vão da porta. No espaço apertado do barco, o francês parecia ainda
maior do que na rua.
- Que porra você está fazendo no meu barco? - ele exigiu saber.
- Peço desculpas - disse Gabriel, erguendo as mãos num gesto conciliatório. - Me disseram que você estaria me esperando.
- Quem disse?
- Paul, é claro. Ele não falou que eu estava vindo?
- Paul?
- Sim, Paul - respondeu Gabriel, confiante. - O homem que o contratou para entregar o pacote da Córsega ao continente. Ele disse que você era o melhor profissional
que já viu. Que, se eu precisasse de alguém para transportar bens valiosos, você era a pessoa certa.
Gabriel viu uma série de reações na expressão do francês: confusão, apreensão e, claro, cobiça. No fim, a cobiça saiu vitoriosa. Ele deu um passo para o lado e,
com um movimento dos olhos, o convidou para entrar. Gabriel deu dois passos lânguidos para a frente enquanto analisava o interior da cabine, tentando encontrar a
bolsa de ginástica de Lacroix. Estava em cima de uma mesa, ao lado de uma garrafa de Pernod.
- Você se incomoda? - perguntou Gabriel, meneando a cabeça em direção à porta. - Não é o tipo de coisa que você queira que os seus vizinhos ouçam.
Lacroix hesitou por um instante. Em seguida, andou até a porta e fechou-a. Gabriel se posicionou ao lado da mesa que continha a mala esportiva.
- Que tipo de trabalho é? - perguntou Lacroix, voltando-se para Gabriel.
- Muito simples. Na verdade, vai levar só alguns minutos.
- Quanto?
- O que você quer dizer? - perguntou Gabriel, fingindo confusão.
- Quanto dinheiro você está oferecendo? - indagou Lacroix, esfregando o indicador e o dedo médio no polegar.
- Estou oferecendo algo muito mais valioso do que dinheiro.
- O que seria?
- A sua vida. Marcel, você vai me dizer o que seu amigo Paul fez com a garota inglesa. E, se não disser, vou cortá-lo em pedacinhos e usá-lo como isca para peixe.
A arte marcial israelense do krav maga não é conhecida por sua elegância, mas não foi projetada mesmo para ser estética. Seu único propósito é incapacitar ou matar
o adversário o mais rápido possível. Ao contrário de muitas disciplinas ocidentais, ele não hesita em usar objetos pesados para repelir um inimigo de maior tamanho
e força. Na verdade, os instrutores encorajam os alunos a usarem quaisquer recursos que tenham à disposição para se defenderem. Davi não se atracou com Golias, eles
gostavam de dizer, mas o atingiu com uma pedra. E só depois cortou sua cabeça.
Gabriel escolheu uma garrafa de Pernod em vez de uma pedra. Pegou-a pelo gargalo e lançou-a como uma faca na direção de Marcel Lacroix, que corria para atacá-lo.
A garrafa bateu bem no centro da testa do francês, abrindo um corte horizontal profundo logo acima da densa sobrancelha. Ao contrário de Golias, que caiu no instante
em que foi atingido, Lacroix conseguiu se manter de pé, embora com bastante dificuldade. Gabriel avançou e deu uma joelhada na virilha desprotegida do francês. Depois,
deu-lhe um soco no estômago e quebrou seu maxilar com uma cotovelada bem aplicada. Com o outro cotovelo, acertou sua têmpora, levando-o ao chão. Gabriel se agachou
e tocou o pescoço do francês para verificar se ele ainda tinha pulsação. Erguendo os olhos, viu Keller parado à porta, sorrindo.
- Impressionante. O Pernod foi um toque adorável.
11
PERTO DE MARSELHA
A chuva parou quando o sol se pôs, mas o vento mistral continuou soprando sem remorso muito depois do escurecer. Uivava nos cordames dos barcos amontoados no Velho
Porto e redemoinhava nos deques do Moondance enquanto Keller o conduzia com habilidade mar adentro. Gabriel permaneceu a seu lado na ponte de comando até eles saírem
do porto. Então, desceu as escadas para o alojamento principal, onde Marcel Lacroix jazia no chão, com o rosto voltado para baixo, amarrado, amordaçado e vendado.
Gabriel rolou o francês, deixando-o de barriga para cima, e tirou a fita adesiva que lhe cobria os olhos com um único movimento ríspido. Lacroix já tinha recuperado
a consciência e não havia sinal de medo em seus olhos, apenas fúria. Keller estava certo: não era fácil assustar o francês.
Gabriel voltou a vendá-lo e deu início a uma busca minuciosa na embarcação, começando pelo alojamento principal e terminando na cabine de Lacroix. Ele encontrou
um esconderijo com drogas ilegais, cerca de 60 mil euros em dinheiro vivo, passaportes falsos, carteiras de motorista francesas em quatro nomes diferentes, cartões
de crédito roubados, nove celulares descartáveis e uma coleção elaborada de pornografia impressa e eletrônica. Além disso, havia um recibo com um número de telefone
rabiscado atrás, de um lugar chamado Bar du Haut, no Boulevard Jean Jaurès, em Rognac, uma cidade de classe operária ao norte de Marselha, não muito longe do aeroporto.
Gabriel já tinha passado por ali uma vez, em outra época da vida. Era o tipo de lugar que servia apenas de parada a caminho de algum outro lugar.
Gabriel verificou a data do recibo. Em seguida, examinou os históricos de chamada dos nove celulares em busca do número escrito no verso do papel. Encontrou-o em
três dos telefones. Naquela manhã, Lacroix ligara duas vezes para ele com dois celulares diferentes.
Gabriel guardou os aparelhos, o recibo e o dinheiro numa mochila de náilon e voltou para o alojamento principal. Mais uma vez tirou a fita adesiva dos olhos de Lacroix,
mas também removeu a mordaça. O rosto do francês estava muito distorcido, devido ao inchaço do maxilar quebrado. Gabriel o apertou com força enquanto fitava os olhos
do contrabandista.
- Vou fazer algumas perguntas, Marcel. Você tem só uma chance para me dizer a verdade. Entendeu? - perguntou Gabriel, pressionando o maxilar dele com um pouco mais
de força. - Uma chance.
A única resposta de Lacroix foi um grunhido de dor.
- Uma chance - repetiu Gabriel, erguendo o indicador para enfatizar. - Está ouvindo?
Lacroix não respondeu.
- Vou tomar isso como um sim. Agora, Marcel, quero que você me diga os nomes dos homens que estão com a garota. E depois quero saber onde posso encontrá-los.
- Não sei nada sobre essa garota.
- Você está mentindo, Marcel.
- Não, eu juro...
Antes que Lacroix pudesse continuar, Gabriel lhe colocou a mordaça de novo. Em seguida, passou bastante fita adesiva ao redor da cabeça do francês, até deixar apenas
as suas narinas visíveis. Desceu até o convés inferior, pegou uma corda de náilon num armário e voltou para cima, até a ponte de comando. Keller segurava o leme
com as duas mãos, estreitando os olhos para o mar turbulento.
- Como está indo lá embaixo? - perguntou ele.
- Estou surpreso: não consegui persuadi-lo a cooperar.
- Por que a corda?
- Mais persuasão.
- Algo que eu possa fazer para ajudar?
- Reduza a velocidade e ligue o piloto automático.
Keller obedeceu e seguiu Gabriel até o alojamento principal. Encontraram Lacroix bem perturbado, arfante, lutando para respirar através do capacete de fita adesiva.
Gabriel o rolou, deixando-o de barriga para baixo, e passou a corda de náilon pelas amarras nos pés e calcanhares. Depois de prendê-la com um nó firme, arrastou
Lacroix até o convés de popa como se ele fosse uma baleia recém-arpoada. Então, com a ajuda de Keller, aproximou o francês da beirada e o jogou para fora do barco.
Lacroix bateu na água escura com um baque pesado e começou a se debater ferozmente para tentar manter a cabeça acima da superfície. Gabriel o observou por um momento
e, em seguida, vasculhou o horizonte em todas as direções. Nenhuma luz visível. Era como se eles fossem os três últimos homens na terra.
- Como você vai saber quando parar? - perguntou Keller, vendo Lacroix lutar pela própria vida.
- Quando ele começar a afundar - respondeu Gabriel, calmo.
- Me lembre de nunca entrar na sua lista negra.
- Nunca entre na minha lista negra.
Depois de 45 segundos na água, de repente Lacroix parou de se mover. Gabriel e Keller o puxaram depressa de volta para o barco e removeram a fita adesiva que lhe
cobria a boca. Por vários minutos, o francês não conseguiu falar, alternando-se entre respirar sofregamente e tossir água do mar. Quando ele pareceu cuspir tudo,
Gabriel segurou o maxilar quebrado e o apertou.
- Você pode não estar se dando conta neste instante, mas hoje é seu dia de sorte, Marcel. Agora vamos tentar de novo: diga onde eu posso encontrar a garota.
- Eu não sei.
- Você está mentindo para mim, Marcel.
- Não - respondeu Lacroix, balançando a cabeça violentamente de um lado para o outro. - Estou dizendo a verdade. Não faço ideia de onde ela está.
- Mas você conhece um dos homens que está com ela. Você até tomou uns drinques com ele num bar em Rognac uma semana antes de a garota desaparecer. E, desde então,
você tem se mantido em contato com ele.
Lacroix ficou em silêncio. Gabriel apertou o maxilar quebrado com mais força.
- O nome, Marcel. Diga-me o nome dele.
- Brossard - Lacroix se esforçou para dizer, tomado pela dor. - O nome dele é René Brossard.
Gabriel encarou Keller, que assentiu.
- Muito bem - falou para Lacroix, relaxando o aperto. - Agora continue falando. E nem pense em mentir para mim. Caso contrário, volta para a água. Mas, da próxima
vez, vai ser para sempre.
12
PERTO DE MARSELHA
O convés de popa tinha duas cadeiras giratórias. Gabriel amarrou Lacroix na que estava a estibordo e sentou-se na outra, diante dele. Lacroix continuou vendado,
a roupa encharcada pelo tempo que passara dentro d'água. Tremendo violentamente, implorou por uma muda de roupas ou um cobertor. Como não teve resposta, falou de
uma noite quente em meados de agosto, quando um homem aparecera no Moondance sem aviso prévio, da mesma forma que Gabriel havia feito mais cedo.
- Paul? - perguntou Gabriel.
- Sim, Paul.
- Vocês se conheciam?
- Não, mas eu já o tinha visto.
- Onde?
- Em Cannes.
- Quando?
- Durante o festival de cinema.
- Este ano?
- Sim, em maio.
- Você foi ao Festival de Cannes?
- Eu não estava na lista de convidados, se é isso que você quer saber. Estava trabalhando.
- Que tipo de trabalho?
- O que você acha?
- Roubando das estrelas do cinema e dos ricaços?
- É uma das nossas semanas mais ocupadas do ano, uma verdadeira dádiva para a economia local. Só tem imbecil em Hollywood. Nós os roubamos todas as vezes que o pessoal
de lá vem para cá, e acho que nem percebem.
- O que Paul estava fazendo?
- Passando tempo com os ricaços. Acho que até o vi entrando no salão umas duas vezes para ver os filmes.
- Acha?
- Ele sempre tem uma aparência diferente.
- Ele estava dando golpes em Cannes?
- Isso você teria que perguntar para ele. Não discutimos esse assunto quando ele veio me ver. Só falamos do serviço.
- Ele queria contratar você e o seu barco para levarem a garota da Córsega até o continente.
- Não - negou Lacroix, balançando a cabeça com veemência. - Ele nunca disse nenhuma palavra sobre uma garota.
- O que foi que ele disse?
- Queria que eu entregasse um pacote.
- Você não perguntou o que era?
- Não.
- Você sempre opera assim?
- Depende.
- Do quê?
- De quanto dinheiro tem na mesa.
- E quanto tinha?
- Cinquenta mil.
- Isso é bom?
- Muito bom.
- Ele chegou a mencionar onde obteve o seu nome?
- Com o don.
- Que don7.
- Don Orsati, o Corso.
- Que tipo de trabalho o don faz?
- Ele tem um dedo em todo tipo de esquema, mas principalmente em assassinatos. De vez em quando, dou uma carona para um de seus homens. E às vezes eu ajudo a fazer
coisas desaparecerem.
O inquérito de Gabriel tinha um propósito duplo. Permitia testar a veracidade das respostas de Lacroix, ao mesmo tempo que encobria suas próprias pegadas. Agora
o francês achava que Gabriel nunca tivera o prazer de conhecer um assassino corso chamado Orsati. E, pelo menos até agora, ele estava respondendo honestamente às
perguntas de Gabriel.
- Paul disse quando o serviço ia ser executado?
- Não. Ele disse que me avisaria 24 horas antes e que eu provavelmente ouviria algo dele em uma semana, dez dias no máximo.
- Como ele entraria em contato com você?
- Por telefone.
- Você ainda tem o telefone que usou?
Lacroix assentiu e recitou o número associado ao aparelho.
- Ele ligou?
- No oitavo dia.
- O que ele falou?
- Me pediu para buscá-lo na manhã seguinte, na enseada que fica bem ao sul de Capo di Feno.
- A que horas?
- Três da madrugada.
- Como ficou combinado?
- Ele queria que eu deixasse um bote na praia e o esperasse no mar.
Gabriel ergueu os olhos para a ponte de comando, de onde Keller observava o interrogatório. O Inglês aquiesceu, como se confirmando que de fato há uma enseada em
Capo di Feno e que o cenário descrito por Lacroix era perfeitamente plausível.
- Quando você chegou à Córsega? - perguntou Gabriel.
- Alguns minutos após a meia-noite.
- Estava sozinho?
- Sim.
- Tem certeza?
- Sim, eu juro.
- A que horas você deixou o bote na praia?
- Às duas.
- Como você voltou para o Moondance?
- Fui andando - brincou Lacroix. - Como Jesus.
Gabriel arrancou o piercing da orelha direita de Lacroix.
- Foi só uma piada - alegou o francês, arquejante, com sangue fluindo do lóbulo arruinado.
- Se eu fosse você - retrucou Gabriel não estaria fazendo piadas sobre o Senhor num momento destes. Eu faria o possível para conseguir cair nas graças Dele.
Gabriel olhou de novo para a ponte de comando e viu que Keller tentava conter um sorriso. Em seguida, mandou Lacroix descrever os eventos que se seguiram. Paul,
disse o francês, chegara bem na hora, às três em ponto. Lacroix tinha visto um único veículo, um pequeno modelo com tração nas quatro rodas, descendo aos solavancos
a pista íngreme do topo da colina até a enseada, só com as luzes de freio acesas. Então, ouviu o barco se aproximar pela água. Quando o escaler encostou na popa
do Moondance, ele viu a garota.
- Paul estava com ela?
- Sim.
- Mais alguém?
- Não, só Paul.
- Ela estava inconsciente?
- Quase.
- O que estava usando?
- Vestido branco. E um capuz preto cobria sua cabeça.
- Você viu o rosto dela?
- Em nenhum momento.
- Alguma ferida?
- Os joelhos estavam sangrando e os braços tinham muitos arranhões e hematomas.
- Algemas?
- Nas mãos.
- Na frente do corpo ou atrás?
- Atrás.
- De que tipo?
- Algemas plásticas, muito profissionais.
- Continue.
- Paul deitou a garota num sofá no alojamento principal e aplicou algo nela para deixá-la quieta. Depois veio para a ponte de comando e me disse para onde queria
ir.
- Para onde?
- Para o estuário logo a oeste de Saintes-Maries-de-la-Mer. O lugar tem uma marina pequena, já usei antes. É um ponto excelente. Paul tinha feito a lição de casa.
Outra olhada para Keller. Outro assentimento.
- Você atravessou direto?
- Não - respondeu Lacroix. - Isso teria nos levado para a terra em plena luz do dia. Passamos o dia inteiro no mar. Avançamos em torno das onze horas daquela noite.
- Paul manteve a garota no alojamento o tempo inteiro?
- Ele a levou para a proa uma vez, mas fora isso...
- Fora isso o quê?
- Ele usou a seringa.
- Ketamina?
- Não sou médico.
- Não brinca.
- Você me fez uma pergunta, eu respondi.
- Ele a levou para a terra no escaler?
- Não. Eu fui direto para a marina. É o tipo de lugar onde dá para estacionar um carro bem ao lado do barco. Havia um esperando. Um Mercedes preto.
- Que tipo de Mercedes?
- Classe E.
- Placa?
- Francesa.
- Sem ninguém?
- Não. Havia dois homens. Um estava apoiado no capô quando nós entramos. O outro estava ao volante.
- Você conhecia o que estava apoiado no capô?
- Nunca o vi antes.
- Mas o que estava ao volante você conhecia, não é mesmo, Marcel?
- Sim. Era René Brossard.
René Brossard era o soldado raso de uma família criminosa com ligações internacionais que estava se dando bem em Marselha. Era especializado em trabalho pesado:
cobrança de dívidas, coerção, segurança. No tempo livre, trabalhava como leão de chácara num clube noturno perto do Velho Porto, principalmente porque gostava das
garotas que trabalhavam lá. Lacroix o conhecia da vizinhança. Também sabia seu telefone.
- Quando você ligou para ele? - perguntou Gabriel.
- Alguns dias depois de ter lido a primeira matéria sobre a garota inglesa que desapareceu durante as férias na Córsega. Somei um mais um e me dei conta de que era
a garota que eu tinha deixado no porto em Saintes-Maries-de-la-Mer.
- Você é algum tipo de gênio da matemática?
- Eu sei somar - gracejou Lacroix.
- Você se deu conta de que Paul poderia receber uma bela grana de resgate de alguém e quis uma fatia do bolo.
- Ele me passou a perna quanto falou do tipo de trabalho. Eu nunca teria concordado em fazer parte do sequestro de alguém importante por meros 50 mil dólares.
- Quanto você queria?
- Eu tento não criar o hábito de negociar comigo mesmo.
- Homem sábio.
Gabriel perguntou a Lacroix quanto tempo Brossard tinha levado para retornar seu telefonema.
- Dois dias.
- Vocês entraram em detalhes pelo telefone?
- O suficiente para deixar claro o que eu queria. Brossard me ligou de volta algumas horas depois e me disse para ir ao Bar du Haut na tarde seguinte, às quatro.
- Isso foi uma burrice, Marcel.
- Por quê?
- Porque Paul poderia estar lá em vez de Brossard. E ele poderia ter metido uma bala entre os seus olhos por ter a audácia de pedir mais dinheiro.
- Eu sei cuidar de mim mesmo.
- Se isso fosse verdade - falou Gabriel -, você não estaria amarrado numa cadeira no próprio barco. Mas continue: você estava me contando sobre a sua conversa com
René Brossard.
- Ele disse que Paul queria ser razoável. Depois disso, começamos a negociar.
- Negociar?
- O preço do meu acordo. Paul fez uma oferta. Eu fiz uma contraoferta. Fomos e voltamos várias vezes.
Tudo por telefone?
Lacroix assentiu.
- Qual é o papel de Brossard na operação?
- Ele fica na casa onde estão mantendo a garota.
- Paul está lá também?
- Não perguntei.
- Quantas pessoas estão lá?
- Não sei. Só sei que outra mulher vive lá, para que eles pareçam uma família.
- Brossard chegou a mencionar a garota inglesa?
- Disse que ela está viva.
- Só isso?
- É.
- Qual é o estado atual das suas negociações com Paul e Brossard?
- Chegamos a um acordo esta manhã.
- Quanto você conseguiu arrancar deles?
- Mais 100 mil.
- Quando você vai pegar o dinheiro?
- Amanhã à tarde.
- Onde?
- Em Aix.
- Onde, lá?
- Num café perto da praça Charles de Gaulle.
- Qual é o nome do lugar?
- Le Provence. Mais alguma coisa?
- Como ficou combinado?
- Brossard ficou de aparecer primeiro, às cinco e dez. Vou encontrá-lo dez minutos depois.
- Onde ele vai estar sentado?
- Numa mesa do lado de fora.
- E o dinheiro?
- Brossard disse que estaria numa maleta de metal.
- Que discreto.
- Foi escolha dele, não minha.
- Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?
- Le Cézanne, subindo um pouco a rua.
- Quanto tempo ele vai esperar lá?
- Dez minutos.
- E se você não der as caras?
- O acordo é cancelado.
- Existe mais alguma instrução?
- Mais nenhum telefonema - respondeu Lacroix. - Paul está ficando nervoso com os telefonemas.
- Aposto que está.
Gabriel olhou para a ponte de comando, mas dessa vez Keller estava imóvel, um vulto contra o céu preto com uma arma nas mãos estendidas. O tiro, suprimido por um
silenciador, abriu um buraco em cima do olho esquerdo de Lacroix. Gabriel segurou os ombros do francês enquanto ele morria. Em seguida, virou-se, furioso, e apontou
a sua arma para Keller.
- É melhor você guardar isso antes que alguém se machuque - disse o Inglês com calma.
- Por que diabos você fez isso?
- Ele entrou na minha lista negra. Além disso - acrescentou Keller, enquanto guardava a arma na cintura -, ele não era mais necessário.
13
CÔTE D'AZUR, FRANÇA
Eles o lançaram ao fundo do mar nas águas profundas além do golfo de Leão e seguiram para Marselha. Ainda estava escuro quando chegaram ao Velho Porto. Gabriel e
Keller saíram do Moondance com alguns minutos de diferença um do outro, entraram nos seus carros, e percorreram a costa a caminho de Toulon. Um pouco antes da cidade
de Bandol, Gabriel parou na beira da estrada e afrouxou vários cabos do motor. Ligou para a locadora de veículos e, com a voz histérica de Herr Klemp, deixou uma
mensagem dizendo onde o carro “quebrado” podia ser encontrado. Depois de limpar as digitais do volante e do painel, entrou no Renault de Keller e os dois foram para
o leste, seguindo para Nice sob o sol nascente. Havia um prédio antigo na Rue Verdi, branco como um osso, onde o Escritório mantinha um de seus vários flats secretos
na França. Gabriel entrou no edifício sozinho e pegou a correspondência, que incluía a cópia do arquivo pessoal de Madeline Hart no Partido, solicitada a Graham
Seymour. De volta ao carro, ele leu o documento enquanto Keller dirigia rumo a Aix pela Autoroute A8.
- O que diz aí? - perguntou o Inglês depois de vários minutos de silêncio.
- Que Madeline Hart é perfeita. Mas nós já sabíamos disso.
- Eu também já fui perfeito. E olha como fiquei.
- Você sempre foi um patife, Keller. Só não percebeu até aquela noite no Iraque.
- Eu perdi oito colegas tentando proteger o seu país dos Scuds de Saddam.
- Somos eternamente gratos.
Mais calmo, Keller ligou o rádio e sintonizou numa estação sediada em Mônaco que transmitia em inglês, voltada para a grande comunidade de expatriados britânicos
que viviam no sul da França.
- Com saudades de casa? - perguntou Gabriel.
- Gosto de ouvir o som do meu idioma nativo de vez em quando.
- Você nunca voltou?
- Para a Inglaterra?
Gabriel assentiu.
- Nunca - respondeu Keller. - Eu me recuso a trabalhar lá e nunca aceite, contratos envolvendo ingleses.
- Que nobre da sua parte.
- Deve-se operar de acordo com um código de conduta.
- Então os seus pais não sabem que você está vivo?
- Não.
- Você não deve mesmo ser judeu - repreendeu Gabriel. - Nenhum garoto judeu deixaria a mãe pensar que ele está morto. Não se atreveria.
Gabriel abriu o registro mais recente do arquivo pessoal de Madeline Hart e o leu em silêncio enquanto Keller dirigia. Era a cópia de uma carta enviada por Jeremy
Fallon para o presidente do Partido, recomendando que a Srta. Hart fosse promovida a um posto júnior no ministério e preparada para cargos oficiais. Fitou uma fotografia
de Madeline sentada numa cafeteria a céu aberto com o homem que eles conheciam apenas pelo nome de Paul.
Observando-o, Keller perguntou:
- Em que você está pensando?
- Estou só me perguntando por que uma jovem estrela em ascensão no partido britânico da situação dividia uma garrafa de champanhe com um sujeito tão estranho como
o nosso amigo Paul.
- Porque ele sabia que Madeline tinha um caso com o primeiro-ministro. E estava se preparando para sequestrá-la.
- Como ele teria descoberto?
- Eu tenho uma teoria.
- É baseada em fatos?
- Em alguns.
- Então é só uma hipótese.
- Mas pelo menos vai ajudar a passar o tempo.
Gabriel fechou a pasta para indicar que estava prestando atenção. Keller desligou o rádio.
- Homens como Jonathan Lancaster sempre cometem o mesmo erro quando têm um caso: confiam que os guarda-costas vão ficar de boca fechada - começou o Inglês. - Mas
eles não ficam. Eles conversam entre si, conversam com as esposas, as namoradas, os velhos amigos que conseguiram trabalho no negócio particular de segurança da
Inglaterra. E, em pouco tempo, o caso chega aos ouvidos de alguém como Paul.
- Você acha que Paul está ligado ao negócio britânico de segurança?
- Ele poderia estar. Ou então conhecer alguém que esteja. Enfim, uma informação dessas vale ouro para alguém como Paul. Ele provavelmente manteve Madeline sob observação
em Londres e invadiu o celular e as contas de e-mail dela. E descobriu que a garota ia passar as férias na Córsega. Quando ela chegou, Paul a estava esperando.
- Então por que almoçar com ela? Por que correr o risco de mostrar o rosto?
- Porque, para o sequestro correr bem, precisava que ela estivesse sozinha.
- Ele a seduziu?
- Ele é um canalha charmoso.
- Essa eu não engulo - retrucou Gabriel, depois de pensar por um momento.
- Por que não?
- Porque, quando foi raptada, Madeline estava envolvida romanticamente com o primeiro-ministro britânico. Ela não teria sido seduzida por alguém como Paul.
- Madeline era a amante do primeiro-ministro, logo havia muito pouco romantismo em seu relacionamento. Ela devia ser uma garota solitária.
Gabriel olhou de novo para a foto - não para Madeline, mas para Paul.
- E quem é esse sujeito?
- Com certeza não é um amador. Só um profissional que conhece o don. E um profissional que se atreveria a bater na porta do don para pedir ajuda.
- Se ele é tão profissional, por que estava dependente do talento local para fazer o serviço?
- Você quer saber por que ele não tem equipe própria?
- Isso.
- Economia básica - respondeu Keller. - Manter uma equipe pode ser uma empreitada complicada. E, invariavelmente, as pessoas geram problemas. Quando o serviço é
lento, os garotos ficam infelizes. E, se conseguem bastante grana, querem uma parte maior.
- Então ele usa freelances com contratos diretos de taxa por serviço para evitar compartilhar os lucros.
- No ambiente global competitivo da economia atual, é o que todo mundo está fazendo.
- Não o don.
- O don é diferente. Nós somos uma família, um clã. E você está certo quanto a uma coisa: Marcel Lacroix teve sorte de não ter sido morto por um assassino a mando
de Paul. Se ele se atrevesse a pedir mais dinheiro a Don Orsati depois de completar um trabalho, teria acabado no fundo do Mediterrâneo dentro de um caixão de concreto.
- Que é onde ele está agora.
- Exceto pela parte do concreto, claro.
Gabriel olhou para Keller com desaprovação, mas não disse nada.
- Foi você que arrancou o brinco dele.
- Um lóbulo da orelha rasgado é um mal temporário. Uma bala no olho é um mal eterno.
- E o que a gente deveria ter feito com ele?
- Poderíamos tê-lo levado para a Córsega e o deixado com o don.
- Confie em mim, Gabriel, ele não teria durado muito. Orsati não gosta de problemas.
- E, como Stálin gostava de dizer, “a morte resolve todos os problemas”.
- “Se não há homem, não há problema” - Keller completou a citação.
- E se o homem estivesse mentindo para nós?
- O homem não tinha motivos para mentir.
- Por quê?
- Porque sabia que nunca ia sair vivo do barco - disse Keller, e acrescentou baixinho: - Ele só estava torcendo para ter uma morte indolor.
- Essa é outra de suas teorias?
- Regras de Marselha. Quando as coisas por aqui começam de forma violenta, sempre terminam com violência.
- E se René Brossard não estiver sentado no Le Provence às cinco e dez com uma maleta de metal? O que faremos?
- Ele vai estar lá.
Gabriel queria ser confiante como Keller, mas sua experiência o impedia. Consultou o relógio e calculou o tempo que tinham para salvar a garota.
- Caso Brossard apareça, talvez seja melhor não o matarmos antes de ele nos conduzir até o cativeiro de Madeline.
- E depois?
A morte resolve todos os problemas, pensou Gabriel. Se não há homem, não há problema.


CONTINUA

Advogado sem importância, Jonathan Lancaster não parecia nem um pouco apto a entrar na política. Mas ele sabia como trilhar seu caminho com base em contatos. Seus dois pilares foram Jeremy Fallon, o brilhante publicitário que procurava um garoto-propaganda para seu partido, e Simon Hewitt, o colunista que ditava o sucesso de qualquer aspirante a altos cargos. Assim, Lancaster se tornou o primeiro-ministro do Reino Unido, levando os amigos junto para o poder.
Passados quatro anos, o governo britânico está imerso em uma crise. Sem poder suportar mais nenhum problema em sua gestão, Lancaster recebe um bilhete de ameaça:
“Em sete dias a garota morre.’’ Acompanhando o papel, vem um vídeo de Madeline Hart, funcionária do partido, confessando ser amante do primeiro-ministro.
Para a negociação, Lancaster pede a ajuda de Gabriel Allon, um espião israelense em dívida com o governo britânico. Porém, nem com toda a sua experiência o agente conseguirá prever as consequências do surpreendente caso.


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Parte 1
A REFÉM
1
PlANA, CÓRSEGA
Foram atrás dela no final de agosto, na Córsega. A hora exata nunca seria determinada - algum momento entre o entardecer e o meio-dia do dia seguinte foi o máximo
que os funcionários da casa conseguiram determinar. Eles a viram pela última vez durante o pôr do sol, descendo a entrada da casa de campo numa lambreta vermelha,
com a saia de algodão transparente esvoaçando ao redor das coxas bronzeadas. Só ao meio-dia perceberam que não estava no quarto. A cama tinha apenas um livro, lido
pela metade e com cheiro de óleo de coco e um vago traço de rum. Mais 24 horas se passaram antes de ligarem para os gendarmes. Era um verão agitado e Madeline era
aquele tipo de garota.
Tinham chegado à ilha duas semanas antes: quatro garotas bonitas e dois rapazes zelosos, todos funcionários fiéis do governo britânico ou do partido da situação.
Traziam um único carro - um Renault hatch compartilhado, grande o bastante para acomodar cinco pessoas, ainda que sem conforto - e a lambreta vermelha, usada apenas
por Madeline, que a conduzia com uma imprudência quase suicida. A casa ocre ficava nos limites do vilarejo, a oeste, num penhasco com vista para o mar. Era arrumada
e compacta, o tipo de lugar que corretores sempre descrevem como “charmoso”, com piscina e um jardim murado repleto de arbustos de alecrim e aroeiras. Poucas horas
depois de chegarem, eles já tinham se acomodado naquele estado feliz de seminudez bronzeada a que os turistas britânicos aspiram, independentemente do destino de
suas viagens.
Embora fosse a mais jovem do grupo, informalmente Madeline era a líder, um fardo que aceitava sem problemas. Era ela que cuidava do aluguel da casa e providenciava
os longos almoços, os jantares tardios e os passeios para o interior da ilha, sempre seguindo à frente na lambreta pelas ruas traiçoeiras. Ela nem se dava o trabalho
de consultar um mapa. Seu conhecimento enciclopédico da geografia, história, cultura e cozinha da Córsega fora adquirido durante c longo período de estudo e preparações
intensas nas semanas anteriores à viagem. Pelo visto, Madeline não queria deixar nada ao acaso. Raramente deixava.
Ela havia entrado para o Partido em Millbank fazia dois anos, depois de se formar em Economia e Políticas Públicas na Universidade de Edimburgo. Apesar de ter cursado
uma instituição de segunda categoria - a maior parte de seu;
colegas vinha de escolas públicas de elite e de Oxbridge transitou rapidamente por uma série de cargos administrativos antes de ser promovida a diretora de Envolvimento
com a Comunidade. Seu emprego, como ela frequentemente o descrevia, consistia em conseguir votos junto a classes de britânicos que não tinham nenhuma razão para
apoiar o Partido, sua plataforma ou seus candidatos. Todos concordavam que não passava de um posto temporário em sua jornada para um status melhor. O futuro de Madeline
era brilhante - “brilhante como uma erupção solar”, nas palavras de Pauline, que observava a ascensão da colega mais jovem com uma boa dose de inveja. Rumares insinuavam
que ela era beneficiada pela influência de alguém importante no Partido. Alguém próximo ao primeiro-ministro. Talvez até mesmo o próprio. Com uma aparência de estrela
de cinema, intelecto aguçado e energia inesgotável, Madeline estava sendo preparada para uma vaga no Parlamento e um ministério. Tratava-se de uma questão de tempo.
Pelo menos era o que diziam.
Por tudo isso, era muito estranho que Madeline Hart fosse solteira aos 27 anos. Quando lhe perguntavam sobre sua parca vida amorosa, ela declarava que estava ocupada
demais para se dedicar a um homem. Fiona, uma linda mulher com cabelos escuros e um lado ligeiramente perverso, achava a explicação duvidosa. Na verdade, até acreditava
que Madeline estava sendo desonesta - sendo que desonestidade era a melhor qualidade de Fiona, por isso seu interesse pelas políticas do Partido. Para sustentar
sua teoria, ressaltava que, embora se estendesse em conversas sobre qualquer assunto imaginável, a moça era excepcionalmente reservada quando se tratava da vida
pessoal. Madeline se dispunha a oferecer boatos ocasionais e inofensivos sobre a infância problemática - a sombria moradia popular em Essex, o pai de quem mal se
lembrava, o irmão alcoólatra que não trabalhou um dia sequer na vida -, mas todo o resto ela mantinha oculto atrás de paredes de pedra cercadas por um fosso.
- Nossa Madeline poderia ser uma assassina psicopata ou acompanhante de luxo - sugeriu Fiona -, e ninguém saberia.
Mas Alison, uma auxiliar do Ministério do Interior que sofrerá diversas desilusões amorosas, tinha outra teoria.
- A pobrezinha está apaixonada - declarou ela uma tarde, ao observar Madeline saindo como uma deusa do mar da pequena enseada perto da casa. - O problema é que o
seu amor não é correspondido.
- E por que não? - questionou Fiona com voz sonolenta, usando uma enorme viseira.
- Talvez ele não possa corresponder.
- Casado?
- Mas é claro.
- Maldito.
- Você nunca?
- O quê, se eu já tive caso com homem casado?
- Sim.
- Só duas vezes, mas estou considerando uma terceira.
- Você vai queimar no inferno, Fi.
- Estou contando com isso.
Foi naquele momento, na tarde do sétimo dia, que, confrontados com a menor das evidências, as três garotas e os dois rapazes hospedados com Madeline Hart na casa
alugada em Piana assumiram a tarefa de encontrar um namorado para ela. E não qualquer um, disse Pauline. Ele precisaria ter a idade adequada, boa aparência e estabilidade
financeira e mental, ser de boa família, sem podres e outras mulheres na cama. Fiona, a mais experiente nas questões do coração, disse que era uma missão impossível.
- Esse tipo de homem não existe - explicou, com o cansaço de uma mulher que passou muito tempo buscando alguém que cumprisse esses requisitos. - E, se existir, ou
está casado ou tão apaixonado por si mesmo que não vai ter tempo para a pobre Madeline.
Apesar de suas dúvidas, Fiona mergulhou de cabeça no desafio, mesmo que fosse apenas para acrescentar um pouco de fofoca ao feriado. Felizmente, não faltavam alvos
potenciais, pois parecia que metade da população do sudeste da Inglaterra tinha abandonado sua ilha úmida em busca do sol da Córsega. Havia uma colônia de financistas
do centro de Londres que alugavam casas luxuosas na ponta norte do golfo do Porto. E o grupo de artistas vivendo como ciganos num povoado nas colinas da Castagniccia.
E a trupe de atores na beira da praia em Campomoro. E a delegação de políticos da oposição que tramavam sua volta ao poder em uma mansão no topo dos penhascos de
Bonifácio. Usando o Gabinete da Grã-Bretanha como cartão de visitas, Fiona logo arranjou uma série de encontros improvisados. Em todas as ocasiões - um jantar, uma
caminhada pelas montanhas ou uma tarde regada a álcool na praia -, ela enlaçava o homem que achava mais interessante e o colocava ao lado de Madeline. Mas nenhum
deles conseguiu escalar seus muros, nem mesmo o jovem ator que tinha acabado de fazer uma turnê bem-sucedida como protagonista do musical mais popular da temporada
do West End.
- Realmente é um caso perdido - resignou-se Fiona ao voltar para casa uma noite com todo o grupo, sempre guiado por Madeline em sua lambreta vermelha.
- Quem você acha que é? - perguntou Alison.
- Não sei - respondeu Fiona com voz arrastada, deixando transparecer inveja. - Mas deve ser alguém muito especial.
Foi naquela época, faltando pouco mais de uma semana para o retorno a Londres, que Madeline começou a passar um bom tempo sozinha. Ela saía da casa de manhã cedo,
normalmente antes de os outros terem acordado, e voltava no fim da tarde. Quando lhe perguntavam sobre seu paradeiro, ela dava respostas vagas, e durante o jantar
se mostrava taciturna ou inquieta. Alison temeu pelo pior: achou que o suposto amante de Madeline tivesse informado que os seus serviços não seriam mais requisitados.
Mas, no dia seguinte, depois de voltarem para casa após um passeio ao shopping, Fiona e Pauline anunciaram com alegria que Alison estava enganada. Parecia que o
amante de Madeline viera para a Córsega. E Fiona tinha as fotos para provar.
Ele fora visto às 13h50 no Les Palmiers, no cais Adolphe Landry, em Calvi. Madeline estava numa mesa na beira do porto e tinha a cabeça um pouco voltada para o mar,
como se não estivesse ciente do homem sentado à sua frente. Usava óculos escuros grandes e um chapéu de palha para se proteger sol, com um laço preto elaborado,
que projetava uma sombra sobre sua face impecável. Pauline tentou se aproximar da mesa, mas Fiona, captando a intimidade tensa da cena, sugeriu uma retirada brusca.
Ela se deteve o suficiente para, disfarçadamente, tirar a primeira fotografia incriminadora com o celular. Madeline pareceu alheia à intrusão, mas o homem, não.
No instante em que Fiona apertou o botão, ele virou a cabeça bruscamente, como se um instinto animal o tivesse alertado de que sua imagem estava sendo capturada
eletronicamente.
Depois de fugirem para uma brasserie próxima, Fiona e Pauline examinaram com cuidado o homem na foto. Seu cabelo, louro-cinza, estava desgrenhado pelo vento e o
volume exagerado lhe dava um ar quase infantil. Caindo sobre a testa, emoldurava um rosto anguloso, dominado por uma boca pequena e cruel. O traje era vagamente
marítimo: calças brancas, uma camisa em tecido oxford com listras azuis, um relógio grande de mergulhador, mocassins de lona com solas que não deixariam marcas no
convés de um navio. Ele era um homem desse tipo: nunca deixava marcas.
Partiram do princípio de que ele fosse inglês, embora pudesse ser alemão, escandinavo ou, talvez, especulou Pauline, um descendente de nobres poloneses. Dinheiro
claramente não era problema, considerando-se a garrafa de champanhe cara que suava no balde de gelo no canto da mesa. Imaginaram que sua
fortuna fora conquistada, e não herdada, mas que não seria totalmente legal seria um apostador. Teria contas bancárias na Suíça. Viajava para lugares perigosos.
Procurava ser discreto. Seus afazeres, assim como os mocassins de. não deixavam nenhuma marca.
Mas foi Madeline que mais as intrigou. Ela já não era a garota que conheciam de Londres, nem mesmo a garota com quem estavam compartilhando uma villa nas últimas
duas semanas. Parecia ter adotado uma postura completamente diferente. Era uma atriz em outro filme. Reclinadas sobre o celular como uma dupla de adolescentes, Fiona
e Pauline escreveram o diálogo e acrescentaram carne e osso aos seus personagens. Na versão delas, o romance tinha começado de maneira inocente, com um encontro
por acaso numa loja exclusiva na Bond Street. O flerte havia sido longo, e a consumação, planejada com minúcias. Mas, por enquanto, o final da história era desconhecido,
pois a vida real ainda estava por escrevê-lo. Ambas concordaram que seria trágico.
- É assim que histórias desse tipo sempre acabam - afirmou Fiona, por experiência própria. - A garota conhece o garoto. A garota se apaixona pelo garoto.
A garota tem os seus sentimentos feridos e faz o possível para destruir o garoto.
Fiona tirou mais duas fotos de Madeline e seu amante naquela tarde. Uma mostrava os dois caminhando pelo cais sob o sol forte, com as mãos se tocando de leve, meio
furtivas. Na outra, o casal se separava sem um beijo sequer. Naquela cena, o homem subiu num bote Zodiac e partiu em direção ao por Madeline montou em sua lambreta
vermelha e voltou para casa. Ao chegar, não estava mais carregando o chapéu de sol com o laço preto elaborado.
Naquela noite, ao relatar os eventos do dia, ela não mencionou a ida a Calvi nem o almoço com o homem de aparência próspera no Les Palmiers.
Fiona achou a performance impressionante.
- Nossa Madeline tem uma habilidade extraordinária para mentiras - disse ela a Pauline. - Talvez seu futuro seja tão brilhante quanto dizem. Quem sabe Talvez ela
seja primeira-ministra algum dia.
As quatro garotas bonitas e os dois rapazes zelosos da casa alugada planeja:a- um almoço em Porto, uma cidade próxima. Madeline fez as reservas em France e até mesmo
instou o proprietário a guardar sua melhor mesa, que fica. no terraço com vista para a parte rochosa da enseada. Imaginaram que iriam para o restaurante na caravana
de sempre, mas, pouco antes das sete, Madeline declarou que estava indo a Calvi para tomar um drinque com um velho amigo de Edimburgo.
- Encontro vocês no restaurante! - gritou ela por cima do ombro, descendo a rampa. - E, pelo amor de Deus, tentem chegar na hora para variar!
Então ela se foi. Ninguém achou estranho ela não aparecer para o jantar. Nem ficaram alarmados ao acordarem e verem sua cama vazia. Era um verão agitado e Madeline
era aquele tipo de garota.
2
CÓRSEGA - LONDRES
A polícia nacional francesa declarou oficialmente que Madeline Hart estava desaparecida às 14 horas da última sexta-feira de agosto. Depois de três dias de buscas,
não descobriram nenhum vestígio dela além da lambreta vermelha, que acharam numa ravina isolada próxima ao monte Cinto, com a lanterna quebrada. No fim da semana,
a polícia já tinha praticamente perdido qualquer esperança de encontrá-la com vida. Em público, insistiram que o caso consistia numa busca por uma turista britânica
desaparecida. Em particular, no entanto, já procuravam seu assassino.
Não havia suspeitos além do homem com quem ela almoçara no Les Palmiers no dia de seu desaparecimento. Mas, assim como Madeline, ele parecia ter sumido da face da
terra. Era um amante secreto, como Fiona e os outros desconfiavam, ou os dois teriam se conhecido havia pouco tempo, na Córsega? Ele seria inglês? Francês? Ou, nas
palavras de um detetive frustrado, um alienígena de outra galáxia que tinha se desfeito em partículas e voltado para a nave espacial? A garçonete do Les Palmiers
não foi de muita ajuda. Lembrava que ele conversara em inglês com a garota de chapéu, mas que fizera seu pedido num francês perfeito. O homem havia pagado a conta
em dinheiro - notas novas e limpas que ele colocara na mesa como um jogador de pôquer - e dera uma generosa gorjeta, algo raro naqueles dias de crise econômica na
Europa. O que mais marcara a garçonete foram as mãos dele: muito pouco pelo, nenhuma marca de sol ou cicatriz, unhas limpas. O desconhecido cuidava muito bem das
unhas. Ela gostava disso num homem.
Sua fotografia foi mostrada com discrição nos bares e restaurantes mais finos da ilha, mas gerou apenas reações apáticas. Ao que tudo indicava, ninguém tinha posto
os olhos nele. E, se alguém tivesse, não conseguia se recordar de seu rosto. Era um tipo comum nas praias da Córsega no verão: bem bronzeado, óculos de sol caros
e um relógio suíço de puro ouro para aumentar seu ego. Era um nada com um cartão de crédito e uma garota bonita do outro lado da mesa. Era um homem esquecido.
Talvez para os donos de lojas e restaurantes da Córsega, mas não para a polícia francesa. A imagem foi passada por todos os bancos de dados de criminosos em seu
arsenal e por mais alguns. Como nenhuma busca deu frutos, os policiais debateram a possibilidade de revelar a foto para a imprensa. Algumas pessoas, especialmente
nos cargos mais altos, argumentaram contra. Afinal, era possível que o pobre coitado não tivesse culpa de nada, talvez apenas de infidelidade, algo longe de ser
crime na França. Mas, quando se passaram mais 72 horas sem nenhum progresso, concluíram que não havia escolha: precisariam pedir ajuda à população. Duas fotografias
editadas com cuidado foram liberadas para a imprensa - uma do homem sentado no Les Palmiers; outra dele andando ao longo do cais - e, ao anoitecer, os investigadores
já estavam sendo bombardeados por centenas de pistas. Rapidamente eliminaram os farsantes e os trotes e focaram recursos apenas nas que pareciam mais plausíveis.
Porém, nada deu resultado. Uma semana depois do desaparecimento, o único suspeito ainda era um homem sem nome nem nacionalidade.
Apesar de a polícia não ter nada promissor, não faltavam teorias. Um grupo de detetives acreditava que o homem do Les Palmiers era um psicopata que tinha atraído
Madeline para uma armadilha. Outro grupo achava que era apenas alguém no lugar errado e na hora errada. De acordo com essa hipótese, ele era casado, portanto não
poderia se revelar e cooperar com a polícia. Já Madeline provavelmente teria sido vítima de um assalto que acabara mal - uma jovem andando de moto sozinha era um
alvo tentador. Em algum momento o corpo apareceria. O mar o cuspiria, um alpinista o encontraria nas colinas ou um fazendeiro o desenterraria ao arar o campo. Assim
eram as coisas na ilha: a Córsega sempre devolvia os seus mortos.
As falhas da polícia foram uma ocasião propícia para os ingleses criticarem os franceses. Mas, de forma geral, até mesmo os jornais simpáticos à oposição trataram
o desaparecimento de Madeline como uma tragédia nacional. Sua ascensão notável, desde a moradia popular em Essex, foi narrada em detalhes, e diversos membros do
Partido emitiram declarações sobre uma carreira promissora abreviada precocemente. Sua mãe chorosa e seu irmão desajeitado deram uma única entrevista para a televisão
e, em seguida, desapareceram das vistas do público. O mesmo aconteceu com seus companheiros de férias na Córsega. Ao voltarem para a Inglaterra, apareceram juntos
numa coletiva de imprensa no aeroporto de Heathrow, observados por uma equipe de assessores do Partido. Posteriormente, recusaram todos os outros pedidos de entrevistas,
incluindo aqueles que ofereciam pagamentos lucrativos. A cobertura não incluiu nenhum traço de escândalo. Não houve histórias sobre bebedeiras festivas, jogos sexuais
ou perturbação da ordem pública, apenas a baboseira de sempre sobre os perigos enfrentados por mulheres jovens viajando em países estrangeiros. Na sede do Partido,
a assessoria de imprensa se parabenizou em particular pela hábil manipulação do caso, enquanto a equipe política percebeu uma leve melhoria na aprovação ao primeiro-ministro.
Por trás de portas fechadas, chamaram o fenômeno de “o efeito Madeline”.
Gradualmente, as matérias sobre o destino de Madeline saíram das primeiras páginas e foram para as seções internas e, ao final de setembro, ela já tinha desaparecido
dos jornais. Era outono, hora de voltar ao negócio de governar. Os desafios que a Inglaterra enfrentava eram imensos: uma economia em recessão, a zona do euro na
UTI, uma lista interminável de males sociais não resolvidos que estavam destruindo a qualidade de vida no Reino Unido. Pairando sobre tudo, a perspectiva de uma
eleição. O primeiro-ministro tinha dado inúmeras pistas de que haveria uma antes do fim do ano. Ele estava ciente dos riscos políticos de voltar atrás agora. Jonathan
Lancaster estava à frente do governo britânico porque seu antecessor havia deixado de convocar uma eleição após meses de flerte público com a ideia. Lancaster, então
líder da oposição, dissera que ele era “o Hamlet do Número 10” - em referência ao endereço da residência do primeiro-ministro - e a ferida mortal se abriu.
Isso tudo explicava por que Simon Hewitt, o diretor de comunicação do primeiro-ministro, não andava dormindo bem nos últimos tempos. O padrão de sua insônia nunca
variava. Exausto pela rotina esmagadora de trabalho, adormecia rapidamente, em geral com uma pasta de arquivos sobre o peito, mas acordava duas ou três horas depois.
Uma vez desperta, sua mente se acelerava. Após quatro anos no governo, ele parecia incapaz de focar nada além do negativo. Esse era o preço de ser assessor de imprensa
na Downing Street. No mundo de Simon Hewitt não havia triunfos, apenas desastres e quase desastres. Como os terremotos, sua intensidade variava de pequenos tremores
que mal eram sentidos a convulsões sísmicas capazes de derrubar prédios e desfazer vidas. Todos esperavam que Hewitt previsse a calamidade vindoura e, se possível,
contivesse os danos. Nos últimos tempos, ele tinha chegado à conclusão de que seu trabalho era impossível. Nos momentos mais sombrios, essa constatação lhe dava
um pouquinho de consolo.
Ele já fora um homem de reputação. Como colunista-chefe de política do
Times, Hewitt havia sido uma das pessoas mais influentes do gabinete, no Palácio de Whitehall. Com poucas palavras de sua característica prosa afiada, podia condenar
uma política governamental, assim como a carreira do ministro responsável por apresentá-la. O poder de Hewitt se tornou tão grande que nenhum governo tomava uma
decisão importante sem consultá-lo. E nenhum político que aspirasse a um futuro melhor pensaria em concorrer a um posto de liderança em algum partido sem garantir
o apoio de Hewitt. Foi o que fez Jonathan Lancaster, um ex-advogado do centro financeiro londrino, egresso de um distrito parlamentar do subúrbio. No início, Hewitt
não lhe deu muita importância: era muito polido, bem-apessoado e elitista para ser levado a sério. Mas, com o passar do tempo, ele passou a considerar Lancaster
um competente homem de ideias que queria reconstruir seu partido moribundo para, então, reconstruir o país. Hewitt se surpreendeu ao perceber que realmente gostava
de Lancaster, o que nunca era um bom sinal. À medida que o relacionamento progrediu, os dois passaram menos tempo fofocando sobre as maquinações políticas de Whitehall
e mais discutindo como consertar a sociedade britânica. Na noite da eleição, quando Lancaster conquistou a vitória com a maior margem de apoio do Parlamento daquela
geração, Hewitt foi uma das primeiras pessoas para quem ele ligou.
- Simon - disse, com sua voz sedutora. - Eu preciso de você, Simon. Não posso fazer isso sozinho.
Àquela altura, Hewitt já tinha escrito com fervor sobre as perspectivas de sucesso de Lancaster, sabendo muito bem que, em alguns dias, estaria trabalhando para
ele na Downing Street.
Agora, Hewitt abriu os olhos lentamente e fitou com desprezo o relógio ao lado da cama. Os dígitos brilhantes indicavam que eram 3h42, como se estivessem zombando
dele. Ao lado do relógio estavam três celulares, todos com a bateria carregada para o ataque da mídia do dia seguinte. Ele gostaria de poder recarregar as próprias
baterias com a mesma facilidade, mas, àquela altura, não havia sono ou sol tropical que pudesse reparar o dano que ele infligira ao seu corpo de meia-idade. Olhou
para Emma. Como sempre, ela estava dormindo profundamente. Em outros tempos, Hewitt poderia ter pensado em um jeito lascivo de acordá-la, mas isso já não era mais
possível; sua cama conjugal havia se tornado uma lareira apagada e congelada. Por um breve período, Emma fora seduzida pelo glamour do emprego dele, mas depois passou
a se ressentir da devoção servil do marido a Lancaster. Ela encarava o primeiro-ministro quase como um rival sexual, e seu ódio atingira um fervor irracional.
- Você é duas vezes melhor que ele, Simon - comentara Emma na noite anterior antes de lhe dar um beijo frio na bochecha caída. - Ainda assim, por alguma razão, você
sente a necessidade de fazer o papel de criado. Talvez algum dia possa me dizer por quê.
Hewitt sabia que o sono não voltaria, não agora; então ficou acordado na cama e escutou a sequência de sons que sinalizavam o começo de seu dia. O baque dos jornais
matinais na porta. O gorgolejo da máquina de café automática. O ronronar de um sedã do governo na rua, embaixo de sua janela. Levantando-se com cuidado para não
acordar Emma, vestiu o roupão e desceu até a cozinha. A cafeteira sibilava raivosamente. Hewitt preparou uma xícara sem açúcar, pelo bem de sua cintura em expansão,
e a levou para o hall. Uma rajada de vento úmido o saudou quando ele abriu a porta. A pilha de jornais estava envolta em plástico sobre o tapete de boas-vindas ao
lado de uma panela de barro com gerânios mortos. Ao se curvar, viu mais uma coisa: um envelope de papel pardo bem selado, sem nada escrito. Soube na mesma hora que
não tinha vindo da sede do governo, pois ninguém de sua equipe se atreveria a deixar nem o mais trivial documento ali na soleira. Portanto, deveria ser algo não
solicitado. Isso não era incomum; os velhos colegas da imprensa conheciam seu endereço em Hampstead e sempre lhe deixavam encomendas. Pequenos presentes por uma
informação vazada no momento certo. Discursos agressivos referentes a alguma desfeita percebida. Um rumor perverso sensível demais para ser transmitido por e-mail.
Hewitt fazia questão de ficar em dia com a fofoca de Whitehall. Sendo ex-repórter, sabia que o que era dito pelas costas de um homem costumava ser muito mais importante
que o que era escrito sobre ele nas primeiras páginas.
Hewitt cutucou o envelope com o dedão para ver se não continha fios ou baterias, então o colocou em cima dos jornais e voltou para a cozinha. Depois de ligar a televisão
e baixar o volume até um sussurro, tirou os jornais do plástico e passou os olhos pelas primeiras páginas. Estavam dominadas pela proposta de Lancaster para tornar
a indústria britânica mais competitiva com uma diminuição das taxas de juros. Como já era de esperar, o Guardian e o Independent estavam horrorizados, mas, graças
aos esforços de Hewitt, a maior parte das matérias era positiva. As outras notícias de Whitehall eram misericordiosamente benignas. Nenhum terremoto. Nem mesmo tremores.
Depois de passar pelos chamados jornais de maior prestígio, Hewitt deu uma lida rápida nos tabloides, que considerava um termômetro mais confiável da opinião pública
britânica do que qualquer enquete. Em seguida, servindo-se de mais café, abriu o envelope anônimo. Dentro, havia três itens: um DVD, uma única folha de papel A4
e uma fotografia.
- Merda - praguejou Hewitt, baixinho. - Merda, merda, merda.
O que aconteceu depois passaria a ser fonte de muita especulação. Para Simon Hewitt, um ex-jornalista político que deveria ter sido mais sensato, não faltaram recriminações.
Em vez de contatar a polícia metropolitana londrina, como exigia a lei inglesa, ele carregou o envelope até o escritório na Downing Street, número 12. Depois de
conduzir a reunião habitual das oito horas, durante a qual não mencionou os itens, Hewitt os mostrou para Jeremy Fallon, conselheiro político de Lancaster e o chefe
de gabinete mais poderoso da história inglesa. Suas responsabilidades oficiais incluíam planejamento estratégico e coordenação de políticas dos diversos departamentos
do governo, o que lhe permitia meter o nariz em qualquer questão de seu interesse. A imprensa frequentemente se referia a ele como o “cérebro de Lancaster”, um título
que agradava a Fallon e gerava ressentimento em Lancaster.
A reação de Fallon diferiu apenas na escolha do palavrão. Seu primeiro instinto foi levar na mesma hora o material para Lancaster, mas, como era quarta-feira, esperou
até o chefe sobreviver à batalha de gladiadores conhecida como Perguntas ao Primeiro-Ministro. Em nenhum momento da reunião, Lancaster, Hewitt ou Jeremy Fallon sugeriram
passar o material para as autoridades competentes. Os três concordaram que precisavam de uma pessoa discreta e habilidosa, à qual, acima de tudo, poderiam confiar
a proteção dos interesses do primeiro-ministro. Fallon e Hewitt pediram uma lista de candidatos a Lancaster, que deu apenas um nome. Havia uma relação familiar e,
o mais importante, uma dívida não paga. Lealdade contava muito em tempos assim, disse o primeiro-ministro, mas influência era algo muito mais eficiente.
Isso explica o convite sutil feito por Downing Street a Graham Seymour, o vice-diretor de longa data do Serviço de Segurança britânico, também conhecido como MI5.
Muito tempo depois, Seymour descreveria o encontro - realizado na sala de reuniões diante de um retrato carrancudo da baronesa Thatcher - como o mais difícil da
carreira. Concordou em ajudar o primeiro-ministro sem hesitação, pois era isso que um homem como ele fazia em circunstâncias daquele tipo. Ainda assim, deixou claro
que, caso seu envolvimento algum dia se tornasse público, destruiria o responsável.
Ficou em aberto apenas a identidade do agente que conduziria a busca. Assim como Lancaster, Graham tinha apenas um candidato. Ele não compartilhou o nome com o primeiro-ministro.
Em vez disso, usando fundos de uma das várias contas operacionais secretas do MI5, reservou um assento num voo da
Brites Airways daquela tarde com destino a Tel Aviv. Enquanto o avião decolava, Graham ponderou a melhor abordagem. Lealdade contava muito em tempos assim, mas influência
era algo bem mais eficiente.
3
JERUSALÉM
O coração de Jerusalém, não. muito longe do Ben Yehuda Mall, ficava a silenciosa e arborizada rua Narkiss. O prédio no número 16 era pequeno, com apenas três andares,
parcialmente oculto por um robusto muro de pedra calcária e um imenso eucalipto crescendo no jardim da frente. O apartamento no terceiro andar era igual aos outros,
exceto pelo fato de já ter pertencido ao serviço secreto de inteligência do Estado de Israel. Tinha uma sala de estar espaçosa, uma cozinha bem-arranjada cheia de
eletrodomésticos modernos, uma sala de jantar formal e dois quartos. O quarto menor, reservado para uma criança, fora penosamente convertido num estúdio artístico.
Mas Gabriel ainda preferia trabalhar na sala de estar, onde a brisa fresca que vinha da varanda ajudava a dissipar o cheiro forte dos solventes.
No momento, ele estava usando uma solução, preparada com cuidado, de acetona, álcool e água destilada, que aprendera a fazer em Veneza com o mestre restaurador de
arte Umberto Conti. A mistura era forte o bastante para dissolver contaminações na superfície e o verniz velho, mas não chegava a prejudicar as pinceladas originais
do artista. Gabriel umedeceu um cotonete feito à mão na solução e o girou delicadamente sobre o peito empinado de Suzana. Ela olhava em outra direção, banhando-se,
e mal parecia ciente dos dois anciãos lascivos da aldeia que a espiavam de trás do muro do jardim. Gabriel tinha uma atitude protetora em relação a mulheres e desejava
poder intervir, poupando-a do trauma por vir: as falsas acusações, o julgamento, a sentença de morte. Em vez disso, continuou o serviço e observou a pele amarelada
dela adquirir um tom branco luminoso.
Quando o cotonete já estava imundo, Gabriel o colocou num frasco hermético para reter os vapores. Enquanto preparava outro, seus olhos se moveram lentamente pela
superfície da pintura. Até aquele momento, a obra era atribuída apenas a um discípulo de Ticiano. Mas o proprietário atual da tela, o renomado negociante de arte
Julian Isherwood, acreditava que a tela tinha vindo do estúdio de Jacopo Bassano. Gabriel concordava - na verdade, agora que expusera um pouco da pincelada, viu
evidências do próprio mestre, especialmente na imagem de Suzana. Ele conhecia bem o estilo do pintor, pois havia estudado bastante suas pinturas e passara vários
meses em Zurique restaurando uma tela importante de Bassano para um colecionador particular. Na última noite de sua estadia, matara um homem chamado Ali Abdel Hamidi
num beco úmido perto do rio, um líder terrorista palestino com um bocado de sangue israelense nas mãos, que estava se passando por dramaturgo. Gabriel lhe dera uma
morte digna de suas pretensões literárias.
Ele umedeceu o novo cotonete no solvente, mas, antes de dar continuidade ao trabalho, escutou o ronco familiar do motor de um carro pesado na rua. Foi à varanda
para confirmar suas suspeitas e, então, abriu a porta da frente uns 2 centímetros. Um instante depois, Ari Shamron já estava empoleirado num banquinho de madeira
ao lado de Gabriel. Vestia calça cáqui, camisa de oxford branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Seus óculos feios refletiam a luz das lâmpadas
de halogênio que Gabriel usava para trabalhar. Seu rosto, com rugas e sulcos profundos, estava travado numa expressão de puro desgosto.
- Eu senti o cheiro desses produtos químicos assim que saí do carro. Imagino o estrago que eles provocaram ao seu corpo depois de todos esses anos.
- Tenho certeza que não é nada comparado ao dano que você provocou - retrucou Gabriel. - Estou surpreso por eu ainda ser capaz de segurar um pincel.
Gabriel tocou o cotonete umedecido na pele de Suzana e o girou devagar. Shamron consultou seu relógio de aço inoxidável e franziu a testa, como se houvesse algo
errado.
- O que foi? - perguntou Gabriel.
- Estou só imaginando quanto tempo vai levar até você me oferecer uma xícara de café.
- Você sabe onde fica tudo. Agora você praticamente mora aqui.
Shamron resmungou alguma coisa em polonês sobre a ingratidão das crianças. Em seguida, ergueu-se do banco com um impulso e, apoiando-se pesada- mente na bengala,
foi até a cozinha. Conseguiu encher a chaleira com água da torneira, mas pareceu perplexo com os diversos botões do fogão. Por duas vezes, Ari Shamron havia sido
diretor do serviço secreto de inteligência de Israel e, antes disso, fora um dos oficiais mais condecorados do mesmo serviço. Agora, contudo, já velho, parecia incapaz
de realizar as tarefas caseiras mais básicas. Cafeteiras, liquidificadores, torradeiras, todos esses utensílios eram um mistério para ele. Gilah, sua esposa resignada,
costumava brincar que, se o grande Ari Shamron fosse deixado sozinho, seria capaz de morrer de fome numa cozinha cheia de comida.
Gabriel acendeu o fogão e voltou ao trabalho. Shamron ficou parado no vão das portas da varanda, fumando. O fedor do tabaco turco logo prevaleceu sobre o odor do
solvente.
- Isso é mesmo necessário? - questionou Gabriel.
- É.
- O que está fazendo em Jerusalém?
- O primeiro-ministro queria dar uma palavra.
- Sério?
Shamron olhou para Gabriel de cara fechada através da cortina de fumaça cinza-azulada.
- Por que um pedido do primeiro-ministro para me ver surpreenderia você?
- Porque...
- Eu sou velho e irrelevante? - completou Shamron.
- Você é exagerado, impaciente e às vezes irracional. Mas você nunca foi irrelevante.
Shamron assentiu. A idade havia lhe dado a habilidade de, pelo menos, perceber suas falhas, apesar de ter roubado o tempo necessário para que ele pudesse remediá-las.
- Como ele está? - perguntou Gabriel.
- Como você pode imaginar.
- Sobre o que vocês conversaram?
- Nossa conversa foi abrangente e franca.
- Isso quer dizer que vocês gritaram um com o outro?
- Eu só gritei com um primeiro-ministro.
- Qual? - indagou Gabriel, realmente curioso.
- Golda. Foi depois de Munique. Eu lhe disse que precisávamos mudar as nossas táticas, aterrorizar os terroristas. Dei a ela uma lista de nomes de homens que deviam
morrer. Golda não queria saber daquilo.
- Então você gritou com ela?
- Não foi meu melhor momento.
- O que ela fez?
- Gritou também, claro. Mas, no fim das contas, compreendeu meu raciocínio. Então, montei outra lista de nomes, dos jovens de quem eu precisava para realizar a operação.
Todos concordaram sem hesitar. - Shamron fez uma pausa, em seguida acrescentou: - Todos menos um.
Em silêncio, Gabriel guardou o cotonete sujo no frasco hermético, que reteve os gases tóxicos do solvente, mas não a memória de seu primeiro encontro com o homem
que eles chamavam de Memuneh, a pessoa encarregada. Ocorrera a poucas centenas de metros de onde ele estava agora, no campus da Academia Bezalel de Artes e Design.
Gabriel tinha acabado de assistir a uma palestra sobre as pinturas de Viktor Frankel, o renomado expressionista alemão que também era seu avô materno. Shamron esperava
por ele na beira de um pátio ensolarado, um homem baixo e esguio, com óculos escuros tenebrosos e dentes afiados, que lembravam uma armadilha de aço. Como sempre,
estava bem preparado. Sabia que a mãe de Gabriel, uma artista talentosa, tinha sobrevivido ao campo de concentração em Birkenau, mas que não conseguira derrotar
o câncer que devastara seu corpo. Também sabia que a língua materna de Gabriel era o alemão e que esse ainda era o idioma no qual ele sonhava. Todas as informações
estavam na pasta que Shamron segurava com dedos manchados de nicotina.
- A operação será chamada Ira de Deus - explicara ele. - Não se trata de justiça. Trata-se de vingança, pura e simplesmente. Queremos vingar as onze vidas inocentes
perdidas em Munique.
Gabriel disse a Shamron para procurar outra pessoa.
- Eu não quero outra pessoa. Eu quero você.
Pelos três anos seguintes, Gabriel e os outros agentes da Ira de Deus seguiram suas presas pela Europa e pelo Oriente Médio. Carregando uma Beretta calibre 22, uma
arma discreta, adequada para matar de perto, Gabriel assassinou seis membros do Setembro Negro. Sempre que possível, atirava onze vezes, uma bala para cada israelense
massacrado em Munique. Quando finalmente voltou para casa, o cabelo ao redor de suas têmporas estava grisalho e seu rosto era o de um homem vinte anos mais velho.
Incapaz de produzir trabalhos de arte originais, ele foi a Veneza para estudar restauração. Então, depois de repousar, voltou a trabalhar para Shamron. Nos anos
que se seguiram, desempenhou algumas das operações mais fabulosas na história da inteligência israelense. Agora, após muitos anos peregrinando incansavelmente, voltara
para Jerusalém. Ninguém ficou mais satisfeito do que Shamron, que amava Gabriel como um filho e tratava o apartamento na rua Narkiss como se fosse o seu próprio.
Em outros tempos, talvez Gabriel tivesse se irritado com a presença constante de Shamron, mas agora isso não o incomodava. O Velho era eterno, mas o corpo em que
seu espírito residia não duraria para sempre.
Nada havia prejudicado mais a saúde de Shamron do que o implacável tabagismo. Fora um hábito adquirido na juventude, no leste da Polônia, e que piorara depois de
sua ida à Palestina, onde lutou na guerra que levou à independência de Israel. Agora, enquanto descrevia a reunião com o primeiro- -ministro, ele abriu seu velho
isqueiro Zippo e o usou para acender mais um cigarro fétido.
- O primeiro-ministro está inquieto, mais do que o normal. Imagino que ele tenha esse direito. O grande Despertar Árabe levou a região toda ao caos. E os iranianos
estão cada vez mais perto de realizarem seus sonhos nucleares. Em breve, vão entrar numa zona de imunidade, impossibilitando uma ação militar nossa sem a ajuda dos
americanos. - Shamron fechou o isqueiro com um estalo e olhou para Gabriel, que tinha voltado a trabalhar na pintura. - Você está me ouvindo?
- Cada palavra.
- Prove.
Gabriel repetiu a última declaração de Shamron palavra por palavra. Shamron sorriu. Ele considerava a memória impecável de Gabriel uma de suas melhores virtudes.
Girou o Zippo entre os dedos. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
- O problema é que o presidente americano não quer demarcar um limite inflexível. Ele diz que não vai permitir que os iranianos construam armas nucleares. Mas não
faz diferença nenhuma dizer isso se os iranianos têm a capacidade de construí-las num curto período de tempo.
- Como os japoneses.
- Os japoneses não são governados por xiitas apocalípticos. Se o presidente americano não tomar cuidado, suas duas conquistas mais relevantes na política externa
serão um Irã nuclear e a restauração do califado islâmico.
- Bem-vindo ao mundo pós-americano, Ari.
- E é por isso que eu acho uma estupidez deixar nossa segurança nas mãos deles. Mas esse não é o único problema do primeiro-ministro. Os generais não têm certeza
se podem destruir o suficiente do programa para fazer com que um ataque militar seja eficiente. E o King Saul Boulevard, liderado por seu amigo Uzi Navot, está dizendo
ao primeiro-ministro que uma guerra unilateral contra os persas seria uma catástrofe de proporções bíblicas.
O King Saul Boulevard era o endereço do serviço secreto de inteligência israelense no exterior. O nome longo e propositalmente enganoso tinha muito pouco a ver com
a verdadeira natureza de suas atividades. Até mesmo agentes aposentados como Gabriel e Shamron se referiam à instalação apenas como “o Escritório”.
- Uzi é que vê a realidade nua e crua todos os dias - falou Gabriel.
- Eu vejo também... Não tudo - acrescentou Shamron às pressas mas o bastante para me convencer de que os cálculos de Uzi sobre quanto tempo nós temos podem estar
errados.
- Matemática nunca foi o ponto forte de Uzi. Mas, quando estava em campo, ele nunca errava.
- Isso porque ele raramente se colocava numa posição em que fosse possível cometer um erro. - Shamron parou de falar, observando o vento mover o eucalipto além do
parapeito da varanda de Gabriel. - Eu sempre disse que uma carreira sem controvérsias não é uma carreira de verdade. Tive o meu quinhão, e você também.
- E tenho as cicatrizes para provar.
- E os louros também - completou Shamron. - O primeiro-ministro está preocupado com a possibilidade de o Escritório ser cauteloso demais quando se trata do Irã.
Sim, nós inserimos vírus em seus computadores e eliminamos um punhado de cientistas, mas faz um tempinho que nada explode. O primeiro-ministro gostaria que Uzi orquestrasse
outra Operação Obra-Prima.
Obra-Prima era o codinome de uma operação conjunta israelense, americana e britânica que resultara na destruição de quatro instalações iranianas secretas de enriquecimento
de urânio. Tinha ocorrido durante o comando de Uzi Navot, mas dentro dos corredores do King Saul Boulevard era considerada uma das maiores conquistas de Gabriel.
- Oportunidades como a Obra-Prima não aparecem todo dia, Ari.
- Isso é verdade - admitiu Shamron. - Mas sempre acreditei que a maioria das oportunidades são conquistadas, e não ganhas. O primeiro-ministro compartilha dessa
opinião.
- Ele perdeu a confiança em Uzi?
- Ainda não. Mas queria saber se eu tinha perdido.
- O que você disse?
- Que escolha eu tinha? Fui eu que o recomendei para o cargo.
- Então você o apoiou?
- Com um porém.
- Qual?
- Eu lembrei ao primeiro-ministro que a pessoa que eu realmente queria
para o trabalho não estava interessada. - Shamron balançou a cabeça devagar.
- Você é o único homem na história do Escritório que recusou uma chance de ser diretor.
- Sempre há uma primeira vez, Ari.
- Isso significa que você poderia reconsiderar?
- É por isso que você está aqui?
- Pensei que você fosse apreciar minha companhia. Eu e o primeiro-ministro estávamos nos perguntando se você estaria disposto a ajudar um dos nossos aliados mais
próximos.
- Qual?
- Graham Seymour veio para a cidade sem aviso prévio. Ele gostaria de uma conversa.
Gabriel se virou para encarar Shamron.
- Sobre o quê? - perguntou depois de um instante.
- Ele não disse, mas acho que é urgente. - Shamron foi até o cavalete e observou o pedaço límpido de tela no qual Gabriel estava trabalhando. - Parece até que a
pintura é recente.
- Esse é o objetivo.
- Alguma chance de você fazer o mesmo por mim?
- Desculpe, Ari - respondeu Gabriel, tocando a bochecha enrugada de Shamron -, mas temo que você esteja além de qualquer restauração.
4
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
Na tarde de 22 de julho de 1946, o grupo sionista extremista conhecido como Irgun detonou uma grande bomba no King David Hotel, sede de todas as forças militares
e civis da Inglaterra na Palestina. O ataque era uma retaliação pela prisão de centenas de combatentes judeus e matou 91 pessoas, incluindo 28 ingleses que ignoraram
um telefonema alertando-os para evacuar o hotel. Embora condenado universalmente, o bombardeio logo se provou um dos atos de violência política mais eficientes já
cometidos. Passados dois anos, os ingleses saíram da Palestina, e o Estado moderno de Israel, outrora um sonho sionista quase inimaginável, tornou-se realidade.
Entre os afortunados que sobreviveram ao bombardeio estava um jovem agente da inteligência britânica chamado Arthur Seymour, um veterano do programa de guerra Double
Cross que tinha sido transferido recentemente para a Palestina com a função de espionar os movimentos de resistência judeus. Era para Seymour estar em seu escritório
no momento do ataque, mas ele atrasou alguns minutos depois de uma reunião com um informante na Cidade Antiga. Ouviu a detonação enquanto passava pelo Portão de
Jaffa e, horrorizado, contemplou parte do hotel desmoronar. A imagem assombraria Seymour pelo resto da vida e moldaria os rumos de sua carreira. Anti-israelense
virulento e fluente em árabe, ele forjou laços desconfortavelmente próximos com muitos inimigos de Israel. Com frequência, era convidado do presidente do Egito,
Gamai Abdel Nasser, e admirador precoce de um jovem revolucionário palestino chamado Yasser Arafat.
Apesar de suas tendências pró-árabes, o Escritório considerou Arthur Seymour um dos oficiais mais competentes do MI6 no Oriente Médio. Por isso, houve certa surpresa
quando o único filho de Arthur, Graham, optou por uma carreira no MI5 em vez do mais glamoroso Serviço Secreto de Inteligência. Seymour, o Jovem - como era conhecido
no início da carreira -, serviu primeiro na contrainteligência, operando contra a KGB em Londres. Então, após a queda do Muro de Berlim e com a ascensão do fanatismo
islâmico, foi promovido a chefe de contraterrorismo. Agora, como vice-diretor do MI5, era forçado a aplicar sua experiência em ambas as disciplinas. Atualmente,
havia mais espiões russos operando em Londres do que no auge da Guerra Fria. E, graças aos erros de sucessivos governos britânicos, o Reino Unido abrigava milhares
de militantes muçulmanos do mundo árabe e da Ásia. Seymour chamava Londres de “Kandahar no Tâmisa”. Intimamente, temia que seu país estivesse escorregando cada vez
mais na direção de um abismo civilizacional.
Embora tivesse herdado a paixão do pai pela espionagem, Graham Seymour não compartilhava de forma alguma seu desdém por Israel. De fato, sob sua condução, o MI5
havia se aproximado do Escritório e, em especial, de Gabriel Allon. Os dois se consideravam membros de uma irmandade secreta que fazia as tarefas desagradáveis que
ninguém mais estava disposto a fazer, deixando para se preocupar com as consequências depois. Tinham lutado um pelo outro, sangrado um pelo outro e, em alguns casos,
matado um pelo outro. Eram tão próximos quanto dois espiões de serviços opostos poderiam ser, o que significava que tinham uma leve desconfiança mútua.
- Alguém no hotel não sabe quem você é? - perguntou Seymour, dando um aperto de mão em Gabriel como se o estivesse encontrando pela primeira vez.
- A garota na recepção perguntou se eu estava aqui para o bar mitzvah dos Greenbergs.
Seymour abriu um sorriso discreto. Com sua aparência vigorosa e queixo robusto, parecia o arquétipo de um barão colonial britânico, um homem que decidia questões
importantes e nunca servia o próprio chá.
- Dentro ou fora? - perguntou Gabriel.
- Fora - respondeu Seymour.
Eles ocuparam uma mesa no terraço, Gabriel voltado para o hotel e Seymour de frente para os muros da Cidade Antiga. Agora era a calmaria entre o café da manhã e
o almoço; haviam passado poucos minutos das onze horas. Gabriel só tomou café, mas Seymour pediu bastante comida. Sua esposa era uma cozinheira entusiástica, mas
pavorosa. Para Seymour, comida de avião era um mimo, e um brunch de hotel, mesmo feito na cozinha do King David, era uma ocasião a ser apreciada. O mesmo valia,
pelo visto, para a vista da Cidade Antiga.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse ele entre as mordidas na omelete -, mas esta é a minha primeira visita ao seu país.
- Eu sei. Está tudo no seu arquivo.
- É uma leitura interessante?
- Tenho certeza de que não deve ser nada em comparação com o que seu serviço tem sobre mim.
- Como poderia se comparar? Não passo de um humilde lacaio do Serviço Secreto de Sua Majestade. Você, por outro lado, é uma lenda. Afinal - acrescentou Seymour,
falando mais baixo quantos agentes de inteligência podem dizer que pouparam o mundo de um apocalipse?
Gabriel olhou por cima do ombro e fitou o Domo da Rocha, o terceiro lugar mais sagrado do Islã, resplandecente sob a luz cristalina do sol de Jerusalém. Cinco meses
antes, numa câmara secreta 50 metros abaixo da superfície do Monte do Templo, ele havia descoberto uma bomba que, caso fosse detonada, derrubaria todo o platô. Também
encontrara 22 pilares do Templo de Jerusalém do rei Salomão, provando que o antigo santuário judeu descrito no Livro de Reis e de Crônicas tinha de fato existido.
Embora o nome de Gabriel não tivesse aparecido na cobertura de imprensa da monumental revelação, seu envolvimento era bem conhecido em certos círculos da comunidade
ocidental de inteligência. Também se sabia que seu amigo mais próximo, Eli Lavon, renomado arqueólogo bíblico e agente do Escritório, quase morrera tentando salvar
os pilares da destruição.
- Foi uma sorte dos diabos aquela bomba não ter explodido - comentou Seymour. - Se tivesse, milhões de muçulmanos chegariam às suas fronteiras numa questão de horas.
E depois... - A voz de Seymour se perdeu.
- Seria o fim do jogo para o empreendimento conhecido como Estado de Israel - completou Gabriel. - Esse era exatamente o objetivo dos iranianos e de seus amigos
do Hezbollah.
- Não consigo imaginar como foi ter visto aqueles pilares pela primeira vez.
- Para ser sincero, Graham, não tive tempo para saborear o momento. Estava ocupado demais tentando manter Eli vivo.
- Como ele está?
- Passou dois meses no hospital, mas está quase cem por cento. Na verdade, até voltou a trabalhar.
- Para o Escritório?
Gabriel balançou a cabeça.
- Ele está escavando o Túnel do Muro das Lamentações de novo. Posso providenciar uma visita guiada, se você quiser. Aliás, se tiver interesse, posso mostrar a passagem
secreta que leva direto ao Monte do Templo.
- Não sei se meu governo aprovaria. - Seymour ficou em silêncio enquanto um garçom enchia suas xícaras de café. Então, quando estavam a sós novamente, continuou:
- Então o rumor é verdadeiro, afinal.
- Que rumor?
- De que o filho pródigo enfim voltou para casa. É engraçado - acrescentou ele, com um sorriso triste mas eu sempre imaginei que você passaria o resto da vida caminhando
pelos penhascos da Cornualha.
- É um lugar lindo, Graham. Mas a Inglaterra é a sua casa, não a minha.
- Às vezes sinto que não parece mais ser a minha casa. Helen e eu compramos uma casa em Portugal há pouco tempo. Em breve vou ser um exilado, assim como você foi.
- Sério?
- Não é nada iminente. Mas, no fim, todas as coisas boas devem terminar.
- Você teve uma grande carreira, Graham.
- Tive? É difícil mensurar o sucesso no campo da segurança, não é? Somos julgados com base em coisas que não acontecem: os segredos que não são roubados, os edifícios
que não explodem. Pode ser uma forma profundamente insatisfatória de se ganhar a vida.
- O que você vai fazer em Portugal?
- Helen vai tentar me envenenar com a sua culinária exótica e eu vou pintar paisagens terríveis de aquarela.
- Nunca soube que você pintava.
- Por uma boa razão. - Seymour observou a paisagem e franziu a testa, como se aquilo estivesse muito além do alcance de seu pincel e sua paleta. - Meu pai estaria
se revirando no túmulo se soubesse que estou aqui.
- Então por que você está aqui?
- Estava me perguntando se você se disporia a encontrar algo para um amigo meu.
- O amigo tem um nome?
Em vez de responder, Seymour abriu a maleta e pegou uma fotografia ampliada, passando-a para Gabriel. Mostrava uma jovem atraente que olhava direto para a câmera,
segurando uma edição do International Herald Tribune de três dias antes.
- Madeline Hart? - perguntou Gabriel.
Seymour assentiu. Então, passou uma folha A4 para Gabriel. Continha uma única frase, escrita em uma fonte sem serifa:
Em sete dias a garota morre.
- Merda - praguejou Gabriel baixinho.
- Receio que fique ainda melhor.
Por coincidência, a administração do King David colocou Graham Seymour, o único filho de Arthur Seymour, na mesma ala do hotel que fora destruída em 1946. Seymour
ficou no mesmo corredor do quarto que seu pai tinha usado como escritório no fim do mandato britânico na Palestina. Ao chegar, eles depararam com o aviso de NÃO
PERTURBE pendurado na maçaneta, além de uma embalagem plástica contendo o Jerusalém Post e o Haaretz. Seymour conduziu Gabriel para dentro. Ao verificar que ninguém
havia entrado no quarto durante sua ausência, pôs um DVD para ser reproduzido no laptop. Poucos segundos depois, Madeline Hart, cidadã britânica desaparecida e funcionária
do partido da situação na Inglaterra, apareceu na tela.
“Eu tive relações sexuais com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster pela primeira vez na conferência do Partido em Manchester, em outubro de 2012...”
5
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
O vídeo tinha sete minutos e doze segundos de duração. O tempo todo, Madeline manteve os olhos focados num ponto ligeiramente à esquerda da câmera, como se respondesse
a perguntas feitas por um entrevistador de televisão. Relutante, assustada e exausta, descreveu como tinha conhecido o primeiro-ministro durante uma de suas visitas
à sede do Partido em Millbank. Lancaster havia expressado admiração pelo trabalho de Madeline e, em duas ocasiões, convidou-a para a sede do governo, a fim de receber
informações diretamente dela. No fim da segunda visita, ele admitiu que seu interesse em Madeline não era apenas profissional. O primeiro encontro sexual foi bem
rápido, num quarto de hotel em Manchester. Depois disso, ela passou a ser levada à Downing Street por um velho amigo do primeiro-ministro, sempre que Diana Lancaster
estivesse fora de Londres.
- E agora - falou Seymour, melancólico, enquanto a tela do computador escurecia - o primeiro-ministro do Reino Unido está sendo punido por seus pecados com uma tentativa
primitiva de chantagem.
- Não há nada de primitivo nisso, Graham. Quem está por trás disso sabia que o primeiro-ministro estava envolvido num caso extraconjugal. E conseguiu fazer sua amante
desaparecer da Córsega sem deixar rastros. É óbvio que se trata de alguém extremamente sofisticado.
Seymour tirou o DVD do computador sem dizer nada.
- Quem mais sabe?
Seymour explicou que os três itens - a fotografia, o bilhete e o DVD - haviam sido deixados na manhã anterior em frente à porta de Simon Hewitt, que os levara até
a Downing Street e os mostrara para Jeremy Fallon. Também contou que Hewitt e Fallon confrontaram Lancaster em seu escritório na sede. Gabriel, que havia residido
pouco tempo antes no Reino Unido, conhecia bem os envolvidos: Hewitt, Fallon, Lancaster, a santíssima trindade da política britânica. Hewitt era especialista em
usar a mídia a favor do governo, Fallon era o mestre maquinador e estrategista, e Lancaster era o talento político em pessoa.
- Por que Lancaster escolheu você? - perguntou Gabriel.
- Nossos pais trabalharam juntos no serviço de inteligência.
- Com certeza há mais alguma razão.
- De fato - admitiu Seymour. - Seu nome é Siddiq Hussein.
- Acho que não conheço.
- Por uma boa razão. Graças a mim, Siddiq desapareceu num buraco negro vários anos atrás, para nunca mais ser visto.
- Quem era ele?
- Siddiq Hussein, nascido no Paquistão, era um residente de Tower Hamlets no leste de Londres. Ele apareceu nos nossos radares depois dos bombardeios de 2007, quando
finalmente tomamos juízo e começamos a tirar os muçulmanos radicais das ruas. Você se lembra daqueles dias - disse Seymour com amargura.
- Os dias em que a esquerda e a mídia insistiram que deveríamos fazer algo a respeito dos terroristas entre nós.
- Continue, Graham.
- Siddiq estava convivendo com extremistas conhecidos na grande mesquita do leste de Londres e o número do seu celular aparecia em todos os lugares errados. Eu dei
uma cópia dos arquivos dele para a Scotland Yard, mas o Comando de Contraterrorismo disse que não havia evidência suficiente para agir contra ele. Então Siddiq fez
algo que me deu uma oportunidade de cuidar do problema pessoalmente.
- O que ele fez?
- Agendou um voo para o Paquistão.
- Grande erro.
- Fatal, na verdade - falou Seymour, sombrio.
- O que aconteceu?
- Nós o seguimos até Heathrow e garantimos que ele subisse em seu avião para Karachi. Em seguida, fiz uma ligação discreta para um velho amigo em Langley, Virgínia.
Acho que você o conhece bem.
- Adrian Carter.
Seymour assentiu. Adrian Carter era o diretor do Serviço Clandestino Nacional. Ele supervisionava a guerra global da CIA contra o terrorismo, incluindo os programas
outrora secretos para deter e interrogar agentes de alto nível.
- A equipe de Carter observou Siddiq em Karachi por três dias - continuou Seymour. - Então cobriram sua cabeça com um saco e o colocaram no primeiro voo clandestino
para fora do país.
- Para onde eles o levaram?
- Cabul.
- Para a prisão de Salt Pit?
Seymour aquiesceu devagar.
- Quando tempo ele durou?
- Isso depende de para quem você perguntar. De acordo com o relato da Agência, Siddiq foi encontrado morto em sua cela dez dias depois de chegar a Cabul. Sua família
alegou num processo que ele morreu durante a tortura.
- O que isso tem a ver com o primeiro-ministro?
- Quando os advogados que representavam a família de Siddiq pediram todos os documentos do MI5 referentes ao caso, o governo de Lancaster se recusou a atendê-los,
alegando que isso prejudicaria a segurança nacional britânica. Ele salvou a minha carreira.
- E agora você quer quitar essa dívida tentando salvar o pescoço dele? - Como
Seymour não respondeu, Gabriel acrescentou: - Isso vai acabar mal, Graham.
E, quando acabar, seu nome vai aparecer com destaque no inevitável inquérito.
- Eu deixei claro que, se isso acontecer, vou levar todo mundo junto, incluindo Lancaster.
- Nunca tomei você por uma pessoa ingênua, Graham.
- Sou tudo menos isso.
- Então se afaste. Volte para Londres e diga ao primeiro-ministro para aparecer diante das câmeras com a esposa ao lado, fazendo um apelo público para que os sequestradores
soltem a garota.
- É tarde demais para isso. Além do mais, talvez eu seja um pouco antiquado, mas não gosto quando as pessoas tentam chantagear o líder do meu país.
- O líder do seu país sabe que você está em Jerusalém?
- Você só pode estar brincando.
- Por que eu?
- Porque, se o MI5 ou qualquer serviço de inteligência tentar encontrá-la, o caso vai vazar, assim como o de Siddiq Hussein vazou. E você é bom em encontrar coisas
- continuou Seymour, falando baixo. - Pilares antigos, Rembrandts roubados, instalações iranianas secretas de enriquecimento.
- Desculpe, Graham, mas...
- E porque você também deve uma a Lancaster.
- Eu?
- Quem você acha que autorizou sua estadia na Cornualha com um nome falso quando nenhum outro país o aceitaria? E quem você pensa que o deixou recrutar uma jornalista
britânica quando precisava penetrar na cadeia de fornecimento iraniana?
- Não sabia que estávamos contando pontos, Graham.
- Não estamos. Mas, se estivéssemos, você certamente estaria perdendo a partida.
Os dois caíram num silêncio desconfortável, como se estivessem constrangidos pelo tom do debate. Seymour olhou para o teto, e Gabriel para o bilhete.
Em sete dias a garota morre...
- Um tanto vago, não acha?
- Mas muito eficiente - afirmou Seymour. - Atraiu a atenção de Lancaster.
- Nenhuma exigência?
Seymour balançou a cabeça.
- É óbvio que eles querem revelar seu preço no último minuto. E querem que Lancaster esteja desesperado para salvar a própria pele, pronto a concordar em pagar qualquer
coisa.
- Quanto o seu primeiro-ministro vale?
- Na última vez que dei uma olhadinha em suas contas bancárias - respondeu Seymour jocosamente ele tinha mais de 100 milhões.
- De libras?
Seymour assentiu.
- Jonathan Lancaster fez milhões no centro financeiro londrino, ganhou uma herança milionária e casou-se com a igualmente milionária Diana Baldwin. Ele é um alvo
perfeito, um homem com mais dinheiro do que precisa e com muito a perder. Diana e as crianças vivem na bolha de segurança da Downing Street, logo seria quase impossível
sequestrá-las. Mas a amante de Lancaster... - A voz de Seymour se perdeu. - Uma amante é algo completamente diferente.
- Imagino que Lancaster não tenha comentado sobre isso com a esposa.
Seymour fez um gesto com as mãos indicando que não tinha acesso ao funcionamento interno do casamento de Lancaster.
- Você já trabalhou com um caso de sequestro, Graham?
- Nenhum desde a Irlanda do Norte. E aqueles foram todos relacionados ao IRA.
- Sequestros políticos são diferentes de sequestros criminais - explicou Gabriel. - O sequestrador político comum é um sujeito racional. Ele quer que companheiros
sejam soltos ou que uma política seja modificada, então agarra um político importante ou um ônibus escolar cheio de crianças e os mantém como reféns até que suas
demandas sejam cumpridas. Mas o sequestrador criminoso só quer dinheiro. E, se você paga, faz com que ele queira mais dinheiro. Então ele fica pedindo dinheiro até
achar que não sobrou mais nada.
- Então acho que nos resta apenas uma opção.
- Qual?
- Encontrar a garota.
Gabriel foi até a janela e olhou para além do vale, na direção do Monte do Templo. Por um segundo, ele se viu de volta à caverna secreta 50 metros abaixo da superfície,
segurando Eli Lavon enquanto seu sangue era bombeado para o coração da montanha sagrada. Durante as longas noites que passou ao lado de Lavon no leito de hospital,
Gabriel jurou que nunca poria os pés de novo no campo de batalha do serviço secreto. Mas agora um velho amigo havia surgido das profundezas de seu passado emaranhado
para pedir um favor. E mais uma vez Gabriel estava se esforçando para encontrar as palavras que o mandariam embora de mãos vazias. Como filho único de sobreviventes
do Holocausto, desapontar outras pessoas não estava em sua natureza. Ele fazia concessões e raramente dizia não.
- Mesmo se eu for capaz de encontrá-la - disse ele depois de um tempo os sequestradores ainda vão ter o vídeo da confissão dela.
- Mas o vídeo terá um impacto bem diferente se a rosa inglesa estiver sã e salva em solo britânico.
- A menos que a rosa inglesa decida contar a verdade.
- Ela é leal ao Partido. Não se atreveria.
- Você não tem ideia do que eles fizeram com ela - retrucou Gabriel. - A esta altura, pode ser uma pessoa completamente diferente.
- É verdade. Mas estamos nos precipitando. Esta conversa é inútil se você e seu serviço não empreenderem uma operação para encontrar Madeline Hart.
- Eu não tenho autoridade para colocar meu serviço à sua disposição, Graham. A decisão é do Uzi, não minha.
- Uzi já autorizou - respondeu Seymour sem emoção. - Assim como Shamron.
Gabriel encarou Seymour com desaprovação, mas não disse nada.
- Você realmente acha que Ari Shamron teria me deixado chegar a menos de um quilômetro de você sem saber que eu estava na cidade? - questionou Seymour. - Ele é muito
protetor quando se trata de você.
- Ele tem um jeito engraçado de demonstrar isso. Mas receio que ainda exista uma pessoa em Israel mais poderosa do que Shamron, pelo menos no que diz respeito a
mim.
- Sua esposa?
Gabriel assentiu.
- Em sete dias a garota morre.
- Seis dias - corrigiu Gabriel. - A garota pode estar em qualquer lugar do mundo e não temos uma única pista.
- Isso não é exatamente verdade.
Seymour enfiou a mão na maleta e pegou duas fotografias da Interpol do homem com quem Madeline Hart tinha almoçado na tarde em que desaparecera. O homem cujos sapatos
não deixavam marcas. O homem esquecido.
- Quem é ele? - perguntou Gabriel.
- Boa pergunta. Mas, se você puder encontrá-lo, suspeito que encontre Madeline Hart.
6
MUSEU DE ISRAEL, JERUSALÉM
Gabriel pegou um único item de Graham Seymour - a fotografia de Madeline Hart - e o levou para a região oeste de Jerusalém, até o Museu de Israel. Depois de deixar
o carro no estacionamento para funcionários - um privilégio que haviam lhe concedido recentemente atravessou o enorme hall de entrada feito de vidro e chegou até
a sala que alojava a coleção de arte europeia. Num canto estavam penduradas nove pinturas impressionistas que antes pertenciam a um banqueiro suíço chamado Augustus
Roube. Uma plaqueta descrevia a longa jornada que as pinturas tinham feito a partir de Paris - como foram saqueadas pelos nazistas em 1940 e transferidas para Roube
em troca de serviços prestados à inteligência alemã. Mas não chegava a mencionar o fato de que Gabriel e a filha do banqueiro, a renomada violinista Anna Roube,
tinham descoberto as pinturas num cofre em Zurique, nem que um consórcio de empresários suíços havia contratado um assassino profissional corso para matar Gabriel
e Anna.
Na galeria adjacente estavam pinturas de artistas israelenses. Três telas eram da mãe de Gabriel, incluindo um retrato assombroso da marcha da morte de Auschwitz
em janeiro de 1945, feito com base em suas memórias. Gabriel passou um bom tempo admirando o desenho e as pinceladas antes de sair para o jardim das esculturas.
Na outra extremidade, erguia-se o Santuário do Livro, uma estrutura em forma de colmeia que continha os Manuscritos do Mar Morto. Ao lado dessa ala ficava a mais
nova construção do museu, com 60 côvados de comprimento, 20 de largura e 30 de altura. Por enquanto, o espaço estava coberto por uma lona opaca para construções,
que escondia os 22 pilares do Templo de Salomão do resto do mundo.
Havia seguranças bem armados em ambos os lados da construção e na entrada que ficava voltada para o leste, assim como no templo original de Salomão. Esse era apenas
um elemento do projeto curatorial mais controverso que o mundo já conhecera. Os haredim ultraortodoxos de Israel tinham denunciado a exposição como uma afronta a
Deus que acabaria levando à destruição do Estado judeu, enquanto na parte leste de Jerusalém, que abrigava a população árabe, os mantenedores do Domo da Rocha declararam
que os pilares eram um embuste elaborado.
- Nunca houve Templo no Monte do Templo - escreveu o grande mufti de Jerusalém numa carta aberta publicada pelo New York Times - e nenhuma exposição ou museu vai
mudar esse fato.
Apesar das violentas batalhas religiosas e políticas, a organização da exposição progredia de forma consideravelmente rápida. Poucas semanas após a descoberta de
Gabriel, aprovaram-se os planos arquitetônicos, angariaram-se fundos e foi iniciada a construção. Boa parte do crédito pertencia à diretora e designer-chefe italiana.
Em público, referiam-se a ela por seu nome de solteira, Chiara Zolli. Mas todas as pessoas associadas ao projeto sabiam que ela se chamava Chiara Allon.
Os pilares foram dispostos da mesma forma em que Gabriel os encontrara, em duas fileiras retas separadas por cerca de 6 metros. O mais alto estava enegrecido pelo
fogo do incêndio provocado pelos babilônios na noite em que derrubaram o Templo - considerado pelos judeus da Antiguidade como a moradia de Deus na Terra. Fora a
esse pilar que Eli Lavon se agarrara quando estava à beira da morte, e foi lá que Gabriel encontrou Chiara agora segurando uma prancheta e gesticulando na direção
do teto de vidro. Ela vestia jeans desbotados, sandálias sem salto e um moletom branco sem mangas que marcava bem as curvas de seu corpo. Os braços descobertos estavam
bem bronzeados pelo sol de Jerusalém. Chiara parecia incrivelmente linda, pensou Gabriel, e jovem demais para ser a esposa de um sujeito tão acabado quanto ele.
No alto da obra, dois técnicos estavam fazendo ajustes nas luzes da exposição sob a supervisão de Chiara. Ela falava com eles em hebraico, com um sotaque italiano
acentuado. Filha do rabino-chefe de Veneza, havia passado a juventude no mundo provinciano de um gueto, partindo apenas por tempo suficiente para cursar o mestrado
em História Romana na Universidade de Pádua. Ela voltara a Veneza depois de se graduar e aceitara um emprego num pequeno museu judaico no Campo del Ghetto Nuovo,
e talvez tivesse permanecido lá para sempre se um observador de talentos do Escritório não tivesse reparado nela durante uma visita a Israel. O homem apresentara-se
num café de Tel Aviv e perguntara a Chiara se ela estaria interessada em fazer mais pelo povo judeu do que trabalhando no museu de um gueto moribundo.
Após passar um ano no programa de treinamento secreto do Escritório, ela retomou sua vida antiga, já como agente secreta israelense. Uma de suas primeiras tarefas
foi ficar na retaguarda de um assassino do Escritório chamado Gabriel Allon, que tinha ido a Veneza para restaurar o retábulo de San Zaccaria, de Bellini. Chiara
revelou-se a ele pouco tempo depois, em Roma, após um incidente envolvendo tiroteios e a polícia italiana. A sós com Chiara em um esconderijo, Gabriel sentiu uma
vontade desesperadora de tocá-la. Esperou até que o caso fosse resolvido e eles voltassem a Veneza. Lá, numa casa à beira de um canal em Cannaregio, fizeram amor
pela primeira vez, numa cama com frescos lençóis de linho. Era como fazer amor com uma figura pintada por Veronese.
Agora, ela virou a cabeça e, notando Gabriel pela primeira vez, sorriu. Seus olhos, largos e meio orientais, tinham cor de caramelo e manchas douradas, uma combinação
que Gabriel nunca fora capaz de reproduzir com precisão na tela. Vários meses já haviam se passado desde que Chiara concordara em posar para ele. A exposição a deixara
com pouco tempo para outros afazeres. Era uma mudança clara no padrão do casamento. Em geral era Gabriel que se via consumido por um projeto, fosse uma pintura ou
uma operação, mas agora os papéis estavam invertidos. Organizadora inata e sempre meticulosa, Chiara conseguia progredir mesmo sob a pressão da exposição. Mas, secretamente,
Gabriel antecipava o dia em que a teria de volta.
Ela caminhou até o pilar seguinte e observou como a luz incidia sobre ele.
- Eu liguei para o apartamento alguns minutos atrás, mas ninguém atendeu.
- Eu estava num brunch com Graham Seymour no King David.
- Que adorável - comentou ela, sarcástica. Em seguida, ainda analisando os pilares, perguntou: - O que tem no envelope?
- Uma oferta de emprego.
- Quem é o artista?
- Desconhecido.
- E o tema?
- Uma garota chamada Madeline Hart.
Gabriel voltou para o jardim de esculturas e sentou-se num banco com vista para as colinas de Jerusalém Ocidental. Alguns minutos depois, Chiara juntou-se a ele.
Um suave vento outonal moveu os seus cabelos. Ela afastou uma mecha do rosto e cruzou as pernas, com a sandália pendente do pé bronzeado. De repente, a última coisa
que Gabriel queria fazer era deixar Jerusalém para procurar uma garota desconhecida.
- Vamos tentar de novo... - disse ela, por fim. - O que tem no envelope?
- Uma foto.
- Que tipo de foto?
- Prova de vida.
Chiara estendeu a mão. Gabriel hesitou.
- Tem certeza?
Chiara assentiu e Gabriel lhe entregou o envelope. Ela o abriu e retirou a foto. Enquanto examinava a imagem, seu rosto ficou sombrio. Claramente vinha à sua memória
um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Gabriel tinha tirado tudo de Ivan: seus negócios, seu dinheiro, sua mulher e filhos. Em seguida, o oligarca retaliara
capturando Chiara. A operação de resgate foi a mais sangrenta em toda a longa carreira de Gabriel: ele matara onze agentes inimigos. E, numa rua tranquila em Saint-Tropez,
também assassinara Ivan. Mesmo morto, Ivan permaneceria como parte de suas vidas. As injeções de ketamina que seus homens haviam aplicado em Chiara fizeram-na perder
o bebê. Como ela não recebera tratamento, o aborto prejudicara sua capacidade de ter filhos. Chiara quase tinha perdido qualquer esperança de ficar grávida de novo.
Ela colocou a foto no envelope e o devolveu a Gabriel. Então, escutou com atenção enquanto ele explicava como o caso tinha caído no colo de Graham Seymour, para
então chegar ao seu.
- Então o primeiro-ministro britânico está forçando Graham Seymour a fazer o trabalho sujo dele - disse Chiara quando Gabriel terminou e Graham está fazendo o mesmo
com você.
- Ele tem sido um bom amigo.
O rosto de Chiara não revelava nenhuma expressão. Seus olhos, normalmente uma janela confiável para seus pensamentos, estavam ocultos atrás de óculos escuros.
- O que você acha que eles querem? - perguntou ela depois de um tempo.
- Dinheiro. Eles sempre querem dinheiro.
- Quase sempre. Mas às vezes querem coisas que não dá para ceder.
Ela tirou os óculos e os pendurou na camiseta.
- Quanto tempo você tem antes de eles a matarem? - Como Gabriel ficou em silêncio, ela balançou a cabeça devagar. - É um caso impossível. Você não poderia encontrá-la
a tempo.
- Olhe para a construção atrás de você. Depois me fale se ainda sente o mesmo.
Chiara não olhou para nada além do rosto de Gabriel.
- A polícia francesa está buscando Madeline Hart há mais de um mês. O que faz você pensar que pode encontrá-la?
- Talvez eles não tenham procurado no lugar certo... ou falado com as pessoas certas.
- Por onde você começaria? Eu sempre acreditei que o melhor lugar para iniciar uma investigação é na cena do crime.
Chiara pegou os óculos e limpou as lentes na calça jeans, distraída. Gabriel sabia que aquilo era um mau sinal: a esposa sempre limpava coisas quando estava aborrecida.
- Desse jeito você vai arranhar as lentes.
- Estão imundas - retrucou ela no mesmo instante.
- Talvez você devesse arrumar um estojo em vez de jogar os óculos na bolsa.
Ela não respondeu nada.
- Você sempre me surpreende, Chiara.
- Por quê?
- Porque você sabe melhor do que qualquer pessoa que Madeline Hart está no inferno. E ela vai ficar no inferno até que alguém a tire de lá.
- Eu só gostaria que outra pessoa fizesse o serviço.
- Não há outra pessoa.
- Ninguém como você.
Ela examinou as lentes e franziu a testa.
- O que houve?
- Estão arranhadas.
- Eu avisei.
- Você sempre tem razão, querido.
Chiara colocou os óculos e olhou na direção da cidade.
- Imagino que Shamron e Uzi já tenham dado suas bênçãos.
- Graham os procurou antes de falar comigo.
- Que esperto da parte dele. - Chiara descruzou as pernas e se levantou. - Eu preciso voltar. Não temos muito tempo antes da abertura.
- Você tem feito um trabalho magnífico, Chiara.
- Ficar me bajulando não vai ajudar.
- Achei que valia tentar.
- Quando vou vê-lo de novo?
- Só tenho sete dias para encontrá-la.
- Seis - ela o corrigiu. - Em seis dias a garota morre.
Chiara lhe deu um beijo suave. Em seguida, virou-se e atravessou o jardim ensolarado, os quadris balançando como se seguissem o ritmo de uma música que só ela conseguisse
ouvir. Gabriel a observou entrar na construção coberta pela lona. Agora, a última coisa que ele queria fazer era deixar Jerusalém em busca de uma garota desconhecida.
Ele voltou ao King David Hotel para recolher o resto do dossiê de Graham Seymour: o bilhete de exigências que não continha nenhuma exigência, o DVD da confissão
de Madeline e as duas fotos do homem de Les Palmiers em Calvi. Além disso, requisitou uma cópia do arquivo pessoal de Madeline no Partido, a ser entregue em um endereço
em Nice.
- Como foi com Chiara? - perguntou Seymour.
- A esta altura, meu casamento pode estar pior que o de Lancaster.
- Algo que eu possa fazer?
- Saia da cidade o mais rápido possível. E não mencione meu nome para o seu primeiro-ministro nem para qualquer outra pessoa na Downing Street.
- Como posso entrar em contato com você?
- Mando um sinal de fumaça quando tiver notícias. Até lá, eu não existo.
Com essas palavras, Gabriel partiu. Voltando para a rua Narkiss, encontrou um cinto de dinheiro na mesa de centro com 200 mil dólares. Ao lado, havia uma passagem
de avião, de um voo das 16 horas para Paris. A reserva fora feita no nome de Johannes Klemp, uma de suas identidades falsas favoritas. Gabriel entrou no quarto e
encheu uma pequena bolsa de viagem com as roupas modernas de Herr Klemp, separando um terno e um casaco pretos para o voo. Então, em frente ao espelho do banheiro,
fez algumas alterações sutis em sua própria aparência: um pouco de grisalho no cabelo, óculos alemães sem aro, lentes de contato castanhas para esconder os característicos
olhos verdes. Em poucos minutos, mal reconhecia o rosto no reflexo. Ele não era mais Gabriel Allon, o anjo vingador de Israel, mas Johannes Klemp, de Munique, um
homem sempre pronto a se ressentir - pequeno, insignificante e carrancudo.
Depois de vestir o terno e passar a fragrância tenebrosa de Herr Klemp, sentou à penteadeira de Chiara e abriu sua caixa de joias. Um item pareceu estranhamente
fora de lugar: um coral-vermelho em forma de mão, preso a uma tira de couro. Ele o pegou e o colocou no bolso. Então, por razões que ele mesmo não saberia explicar,
pendurou o artefato no pescoço e o escondeu sob o casaco de Herr Klemp.
Diante da casa, um sedã do Escritório estava parado com o motor ligado. Gabriel jogou a bolsa no banco de trás e entrou. Em seguida, consultou o relógio, não para
ver as horas, mas a data: 27 de setembro. Já tinha sido seu dia favorito do ano.
- Qual o seu nome? - perguntou ao motorista.
- Lior.
- De onde você é, Lior?
- Berseba.
- Era um bom lugar para uma criança?
- Existem lugares piores.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e cinco.
Vinte e cinco, pensou Gabriel. Por que tinha que ser aquela idade? Olhou de novo para o relógio. Não para a hora; para a data.
- Quais foram suas instruções?
- Disseram-me para levá-lo ao Ben Gurion - respondeu Lior.
- Mais alguma coisa?
- Falaram que talvez você quisesse fazer uma parada no caminho.
- Quem falou isso? Uzi?
- Não. Foi o Velho.
Então ele lembrava, pensou Gabriel. Olhou de novo para o relógio. A data...
- Como devo proceder? - perguntou o motorista.
- Leve-me ao aeroporto.
- Nenhuma parada?
- Só uma.
Lior engrenou a marcha e se afastou suavemente da calçada, como se estivesse se juntando a um cortejo fúnebre. Não se deu o trabalho de perguntar para onde estavam
indo. Era 27 de setembro. E Shamron se lembrava.
Eles foram até o jardim de Getsêmani e seguiram o caminho estreito e sinuoso que subia a encosta do monte das Oliveiras. Gabriel entrou no cemitério sozinho e passou
pelo mar de lápides, até chegar ao túmulo de Daniel Allon, nascido no dia 27 de setembro de 1988, morto no dia 13 de janeiro de 1991, numa noite de neve no Primeiro
Distrito de Viena, num Mercedes azul destruído por uma bomba. O artefato fora plantado por um líder terrorista palestino chamado Tariq al-Hourani, sob ordens diretas
de Yasser Arafat. Gabriel não era o alvo; aquilo seria leniente demais. Tariq e Arafat queriam puni-lo forçando-o a assistir à morte de sua mulher e filho, para
que pudesse passar o resto da vida de luto, assim como os palestinos. Apenas um elemento da trama falhara: Leah sobrevivera ao inferno. Agora ela vivia num hospital
psiquiátrico no topo do monte Herzl, prisioneira da própria memória e de um corpo destruído pelo fogo. Tomada por uma combinação de estresse pós-traumático e depressão
psicótica, revivia constantemente o atentado. De vez em quando, tinha lampejos de lucidez. Durante um desses períodos, ela concedera a Gabriel permissão para se
casar com Chiara. Olhe para mim, Gabriel. Não resta nada de mim. Nada além de uma memória.
Gabriel consultou o relógio de novo. Não olhando a data, mas a hora. Havia tempo para uma última despedida. Uma última torrente de lágrimas. Um último pedido de
desculpas por ter deixado de vasculhar o carro antes de Leah dar partida. Em seguida, ele se afastou cambaleante do jardim de pedra, no dia que já fora o seu favorito
do ano, e subiu na traseira de um sedã do Escritório que era conduzido por um garoto de 25 anos.
Lior teve o bom senso de não falar uma palavra sequer durante o caminho até o aeroporto. Gabriel entrou no terminal como um viajante qualquer, mas então foi a uma
sala reservada para a equipe do Escritório, onde esperou seu voo ser chamado. Ao se acomodar no assento de primeira classe, sentiu um impulso não profissional de
ligar para Chiara. Usando técnicas que lhe foram ensinadas na juventude por Shamron, ele a afastou de seus pensamentos. Agora não havia Chiara. Nem Daniel. Nem Leah.
Havia apenas Madeline Hart, a amante sequestrada do primeiro-ministro britânico Jonathan Lancaster. Enquanto o avião decolava em direção ao céu que começava a escurecer,
ela apareceu para Gabriel num retrato a óleo, como Suzana banhando-se num jardim. Espiando-a de trás de um muro estava um homem com um rosto anguloso e uma boca
pequena e cruel. O homem sem nome nem país. O homem esquecido.
7
CÓRSEGA
Os corsos dizem que, ao se aproximarem de barco de sua ilha, são capazes de sentir o cheiro da vegetação cerrada característica - chamada ali de Mac chia - muito
antes de vislumbrarem o contorno acidentado da costa se erguendo do mar. Gabriel não teve essa experiência, pois chegou à Córsega de avião, no primeiro voo matinal
que partiu de Orly. Só quando estava ao volante de um Peugeot alugado, saindo do aeroporto de Acácio em direção ao sul, é que sentiu pela primeira vez o aroma de
carqueja, sarça, estava e alecrim vindo das colinas. Os corsos usavam as plantas para cozinhar e aquecer suas casas e nelas se refugiavam em tempos de guerra e vendeta.
Segundo a lenda corsa, um homem perseguido poderia penetrar na macchia e, se quisesse, permaneceria lá para sempre sem ser encontrado. Gabriel conhecia um desses
homens. Era por isso que levava no pescoço um artefato de coral-vermelho.
Depois de dirigir por meia hora, ele saiu da estrada costeira e tomou a direção do interior. À medida que o odor da macchia se intensificava, também se fortificavam
os muros que cercavam as pequenas cidades de colina. A Córsega, assim como a antiga terra de Israel, fora invadida muitas vezes: após a queda do Império Romano,
os vândalos pilharam a ilha de forma tão implacável que a maior parte dos habitantes fugiu do litoral e recuou para a segurança das montanhas. Mesmo atualmente,
o medo de estrangeiros ainda era intenso. Num vilarejo isolado, uma idosa apontou para Gabriel com o dedo indicador e o mindinho a fim de afastar os efeitos do occhju,
o mau-olhado.
Passando o vilarejo, a estrada era pouco mais do que uma via de pista única ladeada por paredes densas da macchia. Depois de um quilômetro, ele chegou à entrada
de uma propriedade particular. O portão estava aberto, mas bloqueado por um veículo off-road com dois seguranças. Gabriel desligou o motor e colocou as mãos sobre
o volante, esperando os homens se aproximarem. Por fim, um deles saiu do veículo e caminhou devagar em sua direção. Tinha uma arma numa das mãos e a outra enfiada
na cintura. Com um único movimento de suas sobrancelhas espessas, o homem questionou o propósito da visita de Gabriel.
- Desejo ver Don Orsati - disse Gabriel em francês.
- Ele é um homem muito ocupado - respondeu o segurança no dialeto corso.
Gabriel tirou o talismã do pescoço e o entregou. O corso sorriu.
- Verei o que posso fazer.
Nunca foi muito difícil desencadear uma disputa sangrenta na Córsega. Um insulto. Uma acusação de roubo no mercado. A dissolução de um noivado. A gravidez de uma
mulher solteira. Após a faísca inicial, sempre vinham os distúrbios. Um touro morreria, uma oliveira premiada seria derrubada, uma casa de campo pegaria fogo. Então
os assassinatos começariam. E a coisa seguia em frente, às vezes por uma geração ou mais, até que as partes injuriadas acertassem as diferenças ou desistissem da
luta por exaustão.
A maior parte dos homens corsos estava mais do que disposta a cometer os próprios assassinatos. Mas alguns precisavam de outros para executarem seu trabalho sangrento:
pessoas de renome que eram melindrosas demais para sujarem as mãos ou que não estavam dispostas a arriscar uma prisão ou o exílio; mulheres que não conseguiam matar
e não tinham parentes masculinos para assumirem a questão. Gente desse tipo dependia de assassinos profissionais conhecidos como taddunaghiu e, em geral, recorria
ao clã Orsati.
Os Orsatis tinham uma bela propriedade e seu azeite era considerado o melhor de toda a Córsega. Mas faziam muito mais do que plantar oliveiras. Ninguém sabia quantos
corsos haviam morrido pelas mãos de assassinos dos Orsatis, muito menos os próprios Orsatis, mas de acordo com o folclore local, o número estava na casa dos milhares.
Poderia ter sido muito mais se não fosse o rigoroso processo de vetos do clã. Os Orsatis operavam com base num código rigoroso. Eles se recusavam a cometer um assassinato
se não estivessem convencidos de que o requisitante havia de fato sido injustiçado e que fosse necessária uma vingança sanguinolenta.
No entanto, isso mudou com Don Anton Orsati. Quando ele tomou o controle da família, as autoridades francesas tinham conseguido erradicar as rixas e a vendeta por
toda a ilha, com exceção dos bolsões mais isolados; logo, poucos corsos exigiam os serviços dos taddunaghiu. Com a demanda local em declínio acelerado, Orsati não
teve escolha além de buscar por oportunidades em outros lugares, isto é, do outro lado da água, na Europa continental. Agora, ele aceitava quase todas as ofertas
de trabalho que passassem por sua mesa, mesmo que fossem desagradáveis, e seus assassinos eram considerados os profissionais mais confiáveis de todo o continente.
Gabriel fora uma das duas únicas pessoas que sobreviveram a um contrato da família Orsati.
Embora Anton Orsati fosse descendente de uma família de corsos ilustres, em aparência era indistinguível dos paesanu que protegiam a entrada de sua propriedade.
Ao entrar no amplo escritório do don, Gabriel o encontrou sentado à mesa vestindo uma camisa branca, calças largas de algodão claro e um par de sandálias poeirentas
que pareciam ter sido compradas na feira local. Ele estava analisando um livro-razão antiquado com uma expressão carrancuda. Gabriel não podia imaginar a fonte de
sua insatisfação. Muito tempo antes, Orsati tinha fundido os dois negócios numa única empresa. Seus taddunaghiu modernos eram funcionários da Orsati Olive Oil Company
e os assassinatos eram registrados como encomendas de produtos.
Levantando-se, Orsati estendeu sua mão de granito para Gabriel sem qualquer traço de apreensão.
- É uma honra conhecê-lo, monsieur Allon - falou ele em francês. - Para ser sincero, achava que o veria bem antes. Você tem reputação de lidar severamente com seus
inimigos.
- Meus inimigos eram os banqueiros suíços que o contrataram para me matar, Don Orsati. Além do mais, em vez de me dar um tiro na cabeça, seu assassino me deu isto.
Gabriel meneou a cabeça na direção do talismã, que estava na mesa de Orsati ao lado do livro-razão. Anton franziu a testa. Erguendo o amuleto pela tira de couro,
deixou a mão de coral-vermelho balançar para trás e para a frente, como o pêndulo de um relógio.
- Aquilo foi imprudente - comentou, por fim, o don.
- Abandonar o talismã ou me deixar vivo?
Orsati deu um sorriso evasivo.
- Temos um velho ditado aqui na Córsega: I solda un vènini micca cantendu. Não dá para ganhar dinheiro cantando. Só trabalhando. E, por aqui, trabalho significa
cumprir contratos, mesmo quando envolvem violinistas famosos e agentes da inteligência israelense.
- Então você devolveu o dinheiro para os homens que o contrataram?
- Eles eram banqueiros suíços. Dinheiro era a última coisa de que precisavam. - Orsati fechou o livro-razão e colocou o talismã sobre a capa. - Como pode imaginar,
mantive os olhos em você no decorrer dos anos. Você tem ficado muito ocupado desde que nossos caminhos se cruzaram. Na verdade, alguns dos seus melhores trabalhos
foram feitos no meu território.
- Esta é a minha primeira visita à Córsega.
- Estava me referindo ao sul da França. Você matou aquele terrorista saudita, Zizi al-Bakari, no velho porto de Cannes. E também houve aquele desentendimento com
Ivan Kharkov em Saint-Tropez alguns anos atrás.
- Pelo que eu soube, Ivan foi morto por outros russos - disse Gabriel, evasivo.
- Você matou Ivan, Allon. E você o matou porque ele capturou sua esposa.
Gabriel ficou em silêncio. O corso voltou a sorrir, dessa vez com a confiança de um homem que sabe que tem razão.
- A macchia não tem olhos, mas vê tudo.
- É por isso que estou aqui.
- Imaginei. Afinal, um homem como você certamente não precisaria de um assassino profissional. Você faz isso muito bem por conta própria.
Gabriel tirou um maço de dinheiro do bolso do casaco e o depositou sobre o livro-razão da morte, ao lado do talismã. O don o ignorou.
- Como posso ajudá-lo, Allon?
- Preciso de uma informação.
- Sobre...?
Sem dizer nada, Gabriel colocou a foto de Madeline Hart ao lado do dinheiro.
- A garota inglesa?
- Você não parece surpreso, Don Orsati.
O corso não respondeu.
- Sabe onde ela está?
- Não. Mas tenho uma boa noção de quem a capturou.
Gabriel ergueu a foto do homem de Les Palmiers. Orsati assentiu.
- Quem é ele?
- Não sei. Só o vi uma vez.
- Onde?
- Neste escritório, uma semana antes de a garota inglesa desaparecer. Ele sentou na mesma cadeira em que você está sentado agora. Mas ele tinha mais dinheiro do
que você, Allon. Muito mais.
8
CÓRSEGA
Era hora do almoço, a parte do dia predileta de Don Orsati. Eles se acomodaram na varanda adjacente ao escritório e sentaram a uma mesa repleta de pães, queijos,
vegetais e salsichas da região. O sol estava forte e, por entre os pinheiros-larícios, Gabriel pôde ver o mar azul-esverdeado reluzindo à distância. O aroma da macchia
estava por toda parte; no ar fresco e na comida. Até mesmo Orsati parecia irradiá-lo. Ele serviu vinho vermelho-sangue na taça de Gabriel e, a seguir, passou a cortar
várias fatias da gorda salsicha corsa. Gabriel não questionou a origem da carne. Nas palavras de Shamron, às vezes é melhor não perguntar.
- Fico feliz por não termos matado você - disse Orsati, erguendo a taça uma fração de centímetro.
- Posso garantir, Don Orsati, que sinto o mesmo.
- Mais salsicha?
- Por favor.
Orsati cortou mais duas fatias grossas e as colocou no prato de Gabriel. Em seguida, pôs os óculos de leitura em formato de meia-lua e examinou a fotografia do homem
de Les Palmiers.
- Ele parece diferente nesta foto - comentou após um momento. - Mas definitivamente é a mesma pessoa.
- O que está diferente?
- O penteado. Quando ele veio me ver, estava com mouse no cabelo e o penteara bem para trás. Era uma diferença sutil, mas muito eficiente.
- Ele tinha um nome?
- Apresentou-se como Paul.
- Sobrenome?
- Até onde eu sei, esse era o sobrenome.
- Que idioma nosso amigo Paul falava?
- Francês.
- Local?
- Não, tinha sotaque.
- De que tipo?
- Não consegui identificar - respondeu o don, franzindo as sobrancelhas grossas. - Dava a impressão de ter aprendido francês ouvindo os CDs de algum curso de línguas.
Era perfeito, mas ao mesmo tempo havia algo de estranho ali.
- Imagino que ele não tenha encontrado seu nome numa lista telefônica.
- Não, Allon. Ele tinha uma referência.
- Que tipo de referência?
- Um nome.
- Alguém que contratou você no passado.
- As referências costumam ser desse tipo.
- Que tipo de trabalho era?
- O tipo em que dois homens entram numa sala e só um sai. E não se dê o trabalho de me perguntar o nome da referência - acrescentou Orsati rapidamente. - Estamos
falando dos meus negócios.
Com um leve movimento da cabeça, Gabriel indicou que não tinha desejo que levar a questão mais a fundo, ao menos por enquanto. Então, perguntou a Anton por que o
homem tinha ido vê-lo.
- Conselho - respondeu Orsati.
- Sobre o quê?
- Ele me disse que tinha alguns produtos para mover. Falou que precisava de alguém com um barco rápido. Alguém que conhecesse as águas locais e pudesse navegar à
noite. Alguém que soubesse manter a boca fechada.
- Produto?
- Você pode achar estranho, mas ele não foi específico.
- Você supôs que ele fosse um contrabandista - disse Gabriel. Era mais uma declaração de fato do que uma pergunta.
- A Córsega é uma rota intensa de tráfico de heroína do Oriente Médio para a Europa. Ah, para seu governo, os Orsatis não lidam com narcóticos, embora se saiba que,
vez ou outra, nós eliminamos membros proeminentes desse mercado.
- Por uma taxa, é claro.
- Quanto mais proeminente, maior a taxa.
- Vocês foram capazes de oferecer o serviço para ele?
- Óbvio - respondeu o don. Em seguida, baixando a voz, acrescentou: - Às vezes nós mesmos movemos coisas durante a noite, Allon.
- Coisas como cadáveres?
Orsati deu de ombros.
- São um infeliz efeito colateral de nosso negócio - falou ele num tom filosófico. - Em geral, tentamos deixá-los onde caem. Mas, ocasionalmente, os clientes pagam
um pouco a mais para que eles desapareçam. Nosso método favorito é colocá-los em caixões de concreto e enviá-los para o fundo do mar. Só Deus sabe quantos estão
lá embaixo.
- Quanto Paul pagou?
- Cem mil.
- Como foi a divisão?
- Metade para mim, metade para o homem com o barco.
- Só metade?
- Sorte dele ter recebido tanto.
- E quando você soube que a garota inglesa tinha desaparecido?
- É óbvio que suspeitei. Quando vi a foto de Paul nos jornais... Basta dizer que não fiquei satisfeito. A última coisa que eu preciso é de problemas. São ruins para
os negócios.
- Você não aceita sequestrar mulheres jovens?
- Suspeito que nem você.
Gabriel permaneceu em silêncio.
- Não quis ofender - disse o don sinceramente.
- Não ofendeu, Don Orsati.
Anton encheu seu prato com pimentões assados e berinjela e encharcou-os com azeite de oliva do clã. Gabriel tomou um pouco de vinho, elogiou a comida e perguntou
pelo nome do homem com o barco rápido que conhecia as águas locais, como se não tivesse o mínimo interesse na resposta.
- Estamos entrando em território sensível - alertou Orsati. - Eu faço negócios com essas pessoas o tempo todo. Se descobrirem que as traí, as coisas ficariam feias,
Allon.
- Posso garantir, Don Orsati, que eles nunca vão saber como eu obtive a informação.
Orsati não pareceu convencido.
- Por que essa garota é tão importante a ponto de o grande Gabriel Allon procurá-la?
- Digamos que ela tem amigos poderosos.
- Amigos? - Orsati balançou a cabeça, cético. - Se você está envolvido, é mais do que isso.
- Você é muito sábio, Don Orsati.
- A macchia não tem olhos - comentou o don, misterioso.
- Eu preciso do nome dele - insistiu Gabriel, baixinho. - Ele nunca vai saber onde eu o obtive.
Orsati pegou a taça de vinho e a ergueu contra o sol.
- Se eu fosse você - disse, depois de um instante falaria com um homem chamado Marcel Lacroix. Talvez ele saiba algo sobre o lugar para onde a garota foi depois
que saiu da Córsega.
- Onde eu posso encontrá-lo?
- Marselha. Ele deixa o barco no Velho Porto.
- Qual lado?
- O sul, em frente à galeria de arte.
- Qual é o nome do barco?
- Moondance.
- “Dança da Lua”? Simpático.
- Garanto que não há nada de simpático a respeito de Marcel Lacroix ou dos homens para quem ele trabalha. Você precisa ser cuidadoso em Marselha.
- Você pode achar estranho, Don Orsati, mas eu já fiz isso uma ou duas vezes.
- É verdade. Mas você deveria estar morto há muito tempo. - Orsati passou o talismã para Gabriel. - Coloque isso no pescoço. Afasta mais do que só o mau-olhado.
- Na verdade, eu estava me perguntando se você tem algo um pouco mais poderoso.
- Como o quê?
- Uma arma.
O don sorriu.
- Eu tenho algo melhor do que uma arma.
Gabriel seguiu pela rua até ela virar uma estrada de terra e, então, foi um pouco mais além. O bode velho estava exatamente onde Don Orsati tinha dito que estaria,
bem antes da curva fechada à esquerda, à sombra das três oliveiras centenárias. Quando Gabriel se aproximou, ele se ergueu e ficou no meio da passagem estreita,
como se desafiasse o estranho a tentar passar. Tinha o corpo meio dourado e branco e uma barba vermelha. Assim como Allon, carregava cicatrizes de antigas batalhas.
Ele avançou o carro alguns centímetros, tentando fazer o bode entregar sua posição sem briga, mas o animal manteve-se firme. Gabriel olhou para a arma que Don Orsati
tinha lhe dado. Uma Beretta 9 milímetros carregada no banco do carona. Um tiro entre os chifres desgastados do bode seria o bastante para terminar o impasse. Mas
não era possível. O bode, assim como as velhas oliveiras, pertencia a Don Casabianca. Se Gabriel tocasse num pelo de sua maldita cabeça, haveria uma batalha e sangue
derramado.
Gabriel deu duas buzinadas, mas o bode não cedeu. Com um suspiro profundo, saiu do carro e tentou discutir com o bicho - primeiro em francês, depois italiano e por
fim, exasperado, em hebraico. O bode respondeu baixando a cabeça e a mirando como um aríete na direção da barriga de Gabriel. Mas Allon, que acreditava que a melhor
defesa era um bom ataque, avançou primeiro, balançando os braços e gritando como um lunático. Surpreso, o bode recuou na mesma hora e sumiu por um vão na macchia.
Gabriel voltou depressa até a porta aberta do carro, mas parou ao ouvir um som ao longe, como o gorjeio de um tordo. Ele se virou e olhou para cima, na direção da
casa ocre ao lado da colina seguinte. Parado no terraço estava um homem louro todo vestido de branco. E, embora Gabriel não pudesse ter certeza, parecia que o homem
estava rindo descontroladamente.
9
CÓRSEGA
O homem esperando por Gabriel na casa não era corso - ao menos não tinha nascido ali. Seu nome real era Christopher Keller e ele fora criado num sólido lar de classe
média alta no elegante distrito londrino de Kensington. Na Córsega, no entanto, apenas Don Orsati e um punhado de seus subordinados sabiam de tudo isso. Para o resto
da ilha, ele era conhecido simplesmente como “o Inglês”.
A história da jornada de Keller de Kensington à Córsega fora uma das mais intrigantes que Gabriel já escutara, o que em si já não era pouca coisa. Filho único de
dois médicos da Harley Street, logo cedo deixou claro que não tinha a menor intenção de seguir os passos dos pais. Obcecado por história, especialmente história
militar, queria se tornar um soldado. Seus pais o proibiram de se alistar no Exército e, por um tempo, ele se resignou. Matriculou-se em Cambridge e começou a estudar
história e idiomas orientais. Era um aluno brilhante, mas no segundo ano de estudos perdeu a paciência e uma noite sumiu sem deixar rastros. Alguns dias depois,
apareceu na casa do pai, em Kensington, de cabelo raspado, vestindo um uniforme verde-oliva: tinha entrado para o Exército britânico.
Após completar o treinamento básico, Keller se juntou a uma unidade de infantaria, mas seu intelecto, capacidade física e iniciativa logo chamaram a atenção do Serviço
Aéreo Especial, conhecido na Inglaterra como SAS. Poucos dias depois de chegar à sede do regimento em Hereford, ficou claro que Keller tinha encontrado sua vocação.
Seus resultados no “matadouro” - uma instalação abjeta onde recrutas praticavam combate e resgate de reféns - foram os melhores já registrados e os instrutores do
curso de combate desarmado escreveram que nunca tinham visto alguém com um talento tão instintivo para tirar a vida humana. Seu treinamento culminou numa marcha
de quase 65 quilômetros pelos pântanos ventosos conhecidos como Brecon Beacons, um teste de resistência que já tinha levado homens à morte. Com uma mochila de 25
quilos nas costas e um fuzil de 4,5 quilos nas mãos, Keller quebrou o recorde do percurso por trinta minutos, uma marca que nunca foi superada até os dias atuais.
Inicialmente, ele foi designado para um esquadrão Sabre especializado em guerra no deserto, mas sua carreira logo deu uma guinada quando um homem da inteligência
militar foi procurá-lo. Ele estava atrás de uma espécie única de soldado, capaz de executar o procedimento de observação próxima e outras tarefas especiais na Irlanda
do Norte. Disse estar impressionado com suas habilidades linguísticas e sua aptidão de improvisar e pensar rápido. Keller estaria interessado? Na mesma noite, Christopher
fez as malas e se mudou de Hereford para uma base secreta nas Terras Altas da Escócia.
No decorrer do treinamento, Keller demonstrou mais um talento notável. Havia anos que as forças de segurança e inteligência britânicas enfrentavam dificuldades com
a miríade de sotaques na Irlanda do Norte. Em Ulster, as comunidades inimigas eram capazes de identificar umas às outras apenas pelo som de uma voz, e a maneira
pela qual um homem dizia algumas frases simples poderia significar a diferença entre a vida e uma morte tenebrosa. Keller desenvolveu a habilidade de imitar as entonações
com perfeição. Podia até mesmo mudar de sotaque num piscar de olhos - um católico do condado de Armagh num minuto; um protestante da Shankill Road, de Belfast, no
momento seguinte; depois, um católico dos conjuntos habitacionais de Ballymurphy. Operou em Belfast por mais de um ano, rastreando membros do IRA, coletando pedaços
de fofocas úteis da comunidade local. Devido à natureza de seu trabalho, ocasionalmente ele passava várias semanas sem entrar em contato com os controladores.
Sua missão na Irlanda do Norte chegou a um final abrupto num fim de noite quando foi sequestrado na zona oeste de Belfast e levado até uma fazenda remota em Armagh.
Lá, Keller foi acusado de ser espião britânico. Ele sabia que a situação era desesperadora, então decidiu escapar lutando. Ao deixar a fazenda, quatro terroristas
veteranos do Exército Republicano Irlandês estavam mortos; dois foram praticamente cortados em pedacinhos.
Keller retornou a Hereford, achando que teria um longo descanso trabalhando como instrutor. Mas sua estadia ali terminou em agosto de 1990, quando Saddam Hussein
invadiu o Kwait. Keller voltou depressa à sua velha unidade Sabre e, em janeiro de 1991, já estava no deserto do Iraque, à procura dos lançadores de mísseis Scud
que aterrorizavam Tel Aviv. Na noite de 28 de janeiro, ele e sua equipe localizaram um lançador a 160 quilômetros a noroeste de Bagdá e transmitiram as coordenadas
por rádio para os comandantes na Arábia Saudita. Noventa minutos depois, uma formação de caças-bombardeiros da Coalizão passou voando baixo sobre o deserto. Mas,
num caso desastroso de fogo amigo, em vez dos Scuds, as aeronaves atacaram o esquadrão do SAS. Os oficiais britânicos concluíram que a unidade inteira fora perdida,
incluindo Keller. O obituário não mencionou seu trabalho na inteligência na Irlanda do Norte nem os quatro militantes do Exército Republicano Irlandês que ele tinha
matado na fazenda de Armagh.
O que os oficiais do Exército britânico não perceberam, no entanto, foi que Keller havia sobrevivido ao incidente. Seu primeiro instinto foi entrar em contato com
a base por rádio e requisitar uma extração. Em vez disso, enfurecido pela incompetência dos superiores, começou a caminhar. Oculto pelas típicas vestimentas de um
beduíno e altamente treinado na arte de movimentação clandestina, Keller passou pelas forças da Coalizão e entrou na Síria sem ser detectado. De lá, seguiu de carona
para o oeste, passando por Turquia, Grécia e Itália, até enfim chegar à costa da Córsega, onde caiu nos braços abertos de Don Orsati. Anton lhe deu uma casa e uma
mulher para ajudá-lo a cuidar de suas muitas feridas. Então, quando ele estava descansado, o don lhe deu trabalho. Com sua aparência do norte da Europa e o treinamento
do SAS, Keller foi capaz de cumprir contratos que estavam muito além da capacidade dos taddunaghiu de Orsati nascidos na Córsega. Um desses contratos tinha os nomes
de Anna Roube e Gabriel Allon. A consciência de Keller não permitiu que os matasse, mas o orgulho profissional o levou a deixar para trás o talismã que agora jazia
na palma da mão de Gabriel.
Por uma incrível coincidência, os dois homens já haviam se encontrado numa outra ocasião, muitos anos antes, quando Keller e diversos outros agentes do SAS foram
a Israel treinar técnicas de contraterrorismo. No último dia de sua estadia, Gabriel tinha concordado, com certa relutância, em dar uma palestra confidencial sobre
uma de suas operações mais ousadas: o assassinato de Abu Jihad em 1988, o segundo em comando da OLP, em sua casa na Tunísia. Keller sentou na primeira fileira e
prestou atenção em cada palavra de Allon. Depois, durante uma sessão de fotos do grupo, posicionou-se ao lado de Gabriel, que estava usando óculos escuros e um chapéu
para ocultar sua identidade. Mas Keller olhou direto para a câmera. Foi uma das últimas fotografias tiradas dele.
Agora, enquanto Gabriel saía do carro alugado, o homem que lhe poupara a vida estava parado no vão da porta de seu refúgio na Córsega. Ele era uma cabeça mais alto
que Gabriel e tinha o peito e os ombros bem mais largos. Vinte anos sob o sol corso haviam alterado bastante sua aparência. Agora a pele tinha cor de couro e os
cabelos curtos estavam esbranquiçados pelo mar. Apenas os olhos azuis pareciam iguais. Eram os mesmos que haviam observado Gabriel com tanta atenção quando ele recontara
a morte de Abu Jihad. Os mesmos que, certa vez, em outra época, lhe concederam clemência numa noite chuvosa em Veneza.
- Eu lhe ofereceria um almoço - disse Keller, com seu sotaque britânico claro -, mas fiquei sabendo que você comeu no Chez Orsati.
Quando Keller estendeu a mão, os músculos de seu braço se contraíram sob o casaco branco. Gabriel hesitou por um instante antes de cumprimentá-lo. Cada aspecto de
Keller, desde as mãos potentes até as pernas poderosas, parecia ter sido projetado especificamente para matar.
- O que o don disse? - perguntou Gabriel.
- O suficiente para eu saber que não deveria chegar perto de um homem como Marcel Lacroix sem reforços.
- Então você o conhece?
- Uma vez ele me deu carona.
- Antes ou depois?
- Os dois. Lacroix passou um tempo no Exército francês. E também em algumas das piores prisões do país.
- E isso deveria me impressionar?
- “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas.”
- Sun Tzu - completou Gabriel.
- Você citou essa passagem durante sua palestra em Tel Aviv.
- Então você estava prestando atenção, afinal.
Gabriel passou por Keller e entrou na ampla sala da casa. A mobília era rústica e, assim como Keller, coberta de tecido branco. Todas as superfícies estavam revestidas
por pilhas de livros e as paredes tinham várias pinturas de qualidade, incluindo trabalhos menos conhecidos de Cézanne, Matisse e Monet.
- Nenhum sistema de segurança? - perguntou Gabriel, passando os olhos pela sala.
- Não é necessário.
Gabriel se aproximou do Cézanne, uma paisagem pintada nas colinas perto de Aix-en-Provence, e passou a ponta do dedo com delicadeza pela tela.
- Você está se saindo muito bem, Keller.
- Dá para pagar as contas.
Gabriel não disse nada.
- Você desaprova a minha forma de ganhar a vida?
- Você mata pessoas por dinheiro.
- Você também.
- Eu mato pelo meu país, e só como último recurso.
- Foi por isso que você estourou os miolos de Ivan Kharkov naquela rua em Saint-Tropez? Pelo seu país?
Gabriel deu as costas para o Cézanne e olhou bem nos olhos de Keller. Qualquer outro homem teria murchado perante a intensidade do olhar de Gabriel, mas não Keller.
Seu braços poderosos estavam cruzados despreocupadamente sobre o peito, e um canto da boca estava erguido num meio sorriso.
- Talvez essa não seja uma boa ideia, afinal - falou Gabriel.
- Eu conheço os jogadores e conheço o terreno. Seria tolice não me usar.
Gabriel não respondeu; Keller tinha razão. Ele era o guia perfeito para o mundo do crime na França. E suas habilidades físicas e táticas certamente se provariam
valiosas para os problemas que eles enfrentariam.
- Eu não posso pagar - avisou Gabriel.
- Não preciso de dinheiro - retrucou Keller, observando a bela casa. - Mas preciso que você responda a algumas perguntas antes de partirmos.
- Se não a encontrarmos em cinco dias, ela morre.
- Cinco dias são uma eternidade para homens como nós.
- Sou todo ouvidos.
- Para quem você está trabalhando?
- Para o primeiro-ministro da Inglaterra.
- Não sabia que vocês estavam se falando.
- Alguém da inteligência britânica entrou em contato comigo.
- Em nome do primeiro-ministro?
Gabriel assentiu.
- Qual é a ligação entre o primeiro-ministro e essa garota?
- Tente adivinhar.
- Meu Deus.
- Deus tem muito pouco a ver com isso.
- Quem é o amigo do primeiro-ministro na inteligência britânica?
Gabriel hesitou, então respondeu à pergunta honestamente. Keller sorriu.
- Você o conhece? - perguntou Gabriel.
- Trabalhei com Graham na Irlanda do Norte. Ele é um profissional de verdade. Mas, assim como todo mundo na Inglaterra, acha que estou morto. Logo, não pode saber
que estou trabalhando com você.
- Você tem a minha palavra.
- Tem mais uma coisa que eu quero.
Keller estendeu a mão e Gabriel entregou o talismã.
- Estou surpreso que você o tenha guardado.
- Tem valor sentimental.
Keller pendurou-o no pescoço.
- Vamos - disse ele, sorrindo. - Eu sei onde a gente pode arrumar outro para você.
A signadora vivia numa casa torta no centro do vilarejo, não muito longe da igreja. Keller chegou sem marcar horário, mas a idosa não pareceu surpresa ao vê-lo.
Ela vestia uma túnica preta, e um cachecol preto cobria os cabelos bem secos. Abrindo um sorriso preocupado, tocou a bochecha de Keller com delicadeza. Em seguida,
segurou a cruz pesada pendurada no pescoço e voltou o olhar para Gabriel. Sua tarefa era cuidar dos afligidos pelo mau-olhado. Ela temia que Keller tivesse trazido
a própria encarnação do mal para seu lar.
- Quem é esse homem?
- Um amigo - respondeu Keller.
- Ele é um crente?
- Não como nós.
- Diga-me o nome dele, Christopher... seu nome real.
- Gabriel.
- Como o arcanjo?
- Sim.
Ela analisou o rosto de Gabriel com atenção.
- Ele é israelita, não é?
Keller assentiu e a velha franziu um pouco a testa em desaprovação. Pela doutrina, a signadora considerava os judeus como hereges, mas pessoalmente não tinha nada
contra. Ela desabotoou a camisa de Keller e tocou no talismã dele.
- Esse não é o que você perdeu muitos anos atrás?
- Sim.
- Onde você o encontrou?
- No fundo de uma gaveta abarrotada.
A signadora balançou a cabeça.
- Você está mentindo para mim, Christopher. Você nunca vai aprender que eu sei perceber?
Keller sorriu, mas não disse nada. A velha soltou o talismã e tocou sua bochecha de novo.
- Você está deixando a ilha, Christopher?
- Esta noite.
A signadora não indagou o motivo: sabia exatamente o que Keller fazia para ganhar a vida. Na verdade, ela já tinha até mesmo contratado um jovem taddunaghiu chamado
Anton Orsati para vingar o assassinato do marido.
Com um meneio de cabeça, convidou Keller e Gabriel para se sentarem à pequena mesa de madeira em sua sala. Colocou sobre o tampo um prato cheio de água e uma vasilha
de azeite de oliva. Keller mergulhou o dedo indicador no azeite e, em seguida, o manteve acima do prato, para que três gotas caíssem na água. De acordo com as leis
da física, elas deveriam ter-se aglomerado. Em vez disso, a substância se desfez em mil gotículas e desapareceu.
- O mal retornou, Christopher.
- Receio que seja um risco ocupacional.
- Não faça piadas, meu querido. O perigo é muito real.
- O que a senhora vê?
Ela focou toda a atenção no líquido, como se estivesse em transe. Depois, perguntou baixinho:
- Vocês estão procurando a garota inglesa?
Keller assentiu.
- Ela está viva?
- Sim - respondeu a velha. - Está viva.
- Onde ela está?
- Não está em meu poder dizer isso.
- Nós vamos encontrá-la?
- Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.
- O que a senhora vê?
Ela fechou os olhos.
- Água... montanhas... um velho inimigo...
- Meu?
- Não. - Ela abriu os olhos e encarou Gabriel. - Dele.
A signadora pegou a mão do Inglês e rezou. Após um momento, começou a chorar, um sinal de que o mal tinha passado do corpo de Keller para o seu. Em seguida, fechou
os olhos e pareceu adormecer. Ao acordar, instruiu Keller a repetir o teste do azeite e da água. Dessa vez, o azeite se aglomerou numa única gota.
- O mal saiu da sua alma, Christopher. - Voltando-se para Gabriel, a velha disse: - Agora ele.
- Eu não sou um crente - retrucou Gabriel.
- Por favor - pediu ela. - Se não por você, por Christopher.
Relutante, Gabriel mergulhou o indicador no azeite e deixou três gotas caírem na água. Quando o azeite se dividiu em mil gotículas, a mulher fechou os olhos e começou
a estremecer.
- O que a senhora vê? - perguntou Keller.
- Fogo - respondeu ela, baixinho. - Eu vejo fogo.
Havia uma balsa saindo de Ajaccio às cinco horas. Às quatro e meia, Gabriel estacionou o Peugeot na embarcação e, dez minutos depois, observou Keller subir a bordo
dirigindo um Renault velho. Seus compartimentos ficavam no mesmo deque, um de frente para o outro. O de Gabriel tinha o tamanho e a falta de atrativo de uma cela
de prisão. Ele deixou a mala na cama minúscula e subiu as escadas para o bar. Ao chegar, encontrou Keller sentado a uma mesa perto da janela, tomando um gole de
cerveja com um cigarro queimando no cinzeiro.
Gabriel balançou a cabeça devagar. Quarenta e oito horas atrás, estava diante de uma tela em Jerusalém. Agora buscava por uma mulher desconhecida, acompanhado por
um homem que, no passado, aceitara um contrato para matá-lo.
Pediu um café preto ao barman e saiu para o convés de popa. A balsa já estava longe do porto e o ar da noite havia esfriado. Gabriel levantou a gola do casaco e
envolveu a xícara de café com as mãos para se aquecer. As estrelas do leste brilhavam intensamente no céu sem nuvens, e o mar, que um instante antes estava turquesa,
logo se tornou nanquim. Gabriel teve a impressão de sentir o cheiro de macchia no vento. Um pouco depois, escutou a voz da signadora: “Quando ela estiver morta.
Então vocês saberão a verdade.”
10
MARSELHA
Quando Gabriel e Keller chegaram a Marselha no começo da manhã seguinte, o Moondance estava amarrado no ponto de sempre no Velho Porto, ostentando seus 42 pés de
puro poder de contrabando. O dono, no entanto, não estava à vista. Keller montou um posto estático de observação no lado norte e Gabriel ficou a leste, na frente
de uma pizzaria que, inexplicavelmente, tinha o nome de uma região chique de Manhattan. A cada hora eles mudavam de posição, mas no fim da tarde ainda não havia
sinal de Lacroix. Por fim, ansioso com a perspectiva de um dia perdido, Gabriel percorreu o perímetro do porto, passou pelos vendedores de peixe em suas bancas de
metal e se juntou a Keller no Renault. O tempo estava piorando: chuva pesada, um vento frio vindo das colinas. Keller ligava os limpadores em intervalos de alguns
segundos para manter o para-brisa transparente. O degelador ofegava fracamente contra o vidro embaçado.
- Você tem certeza de que ele não possui apartamentos na cidade? - perguntou Gabriel.
- Ele mora no barco.
- E quanto a mulher?
- Ele tem várias, mas nenhuma consegue tolerar sua presença por muito tempo. - Keller limpou o para-brisa com o dorso da mão. - Talvez possamos ficar num hotel.
- Não acha um pouco cedo? Afinal, acabamos de nos conhecer.
- Você sempre faz piadas cretinas durante as operações?
- É um mal cultural.
- Piadas cretinas ou operações?
- Ambos.
Keller pegou um guardanapo do porta-luvas e fez o melhor que pôde para consertar a bagunça que tinha feito no para-brisa.
- Minha avó era judia - comentou ele casualmente, como se admitisse que sua avó gostava de jogar bridge.
- Parabéns.
- Outra piada?
- O que você quer que eu diga?
- Você não acha interessante que eu tenha uma ancestral judia?
- Por minha experiência, a maior parte dos europeus tem um parente judeu escondido em algum lugar.
- A minha estava em plena vista.
- Onde ela nasceu?
- Na Alemanha.
- Ela foi para a Inglaterra durante a guerra?
- Logo antes. Ela foi abrigada por um tio distante que não se considerava mais judeu. Ele lhe deu um nome cristão adequado e a mandou para a igreja. Minha mãe só
soube que tinha um passado judeu com 30 e tantos anos.
- Odeio ser portador de más notícias - disse Gabriel -, mas, na minha opinião, você é judeu.
- Para ser sincero, sempre me senti um pouco judeu.
- Você tem aversão a mariscos e a ópera alemã?
- Quis dizer num sentido espiritual.
- Você é um assassino profissional, Keller.
- Isso não significa que eu não acredite em Deus. Na verdade, suspeito que eu saiba mais sobre a sua história e as suas escrituras do que você.
- Então por que você anda com aquela mística maluca?
- Ela não é maluca.
- Não me diga que você acredita naquela bobagem.
- Como ela sabia que estávamos procurando a garota?
- Suponho que o don lhe tenha dito.
- Não - discordou Keller, balançando a cabeça. - Ela viu. Ela vê tudo.
- Como a água e as montanhas?
- Sim.
- Nós estamos no sul da França, Keller. Eu também vejo água e montanhas. Inclusive, parecem estar por toda parte.
- É óbvio que ela deixou você nervoso com aquela conversa sobre um velho inimigo.
- Eu não fico nervoso. Quanto a velhos inimigos, não consigo sair da porta de casa sem trombar com um.
- Então talvez você devesse mudar a porta da sua casa de lugar.
- Isso é um provérbio corso?
- Só um conselho amigável.
- Ainda não somos exatamente amigos.
Keller encolheu os ombros quadrados para demonstrar indiferença, mágoa ou algo entre um sentimento e outro.
- O que você fez com o talismã que ela lhe deu? - perguntou ele depois de um silêncio amuado.
Gabriel deu um tapinha no peito para indicar que o talismã, idêntico ao de Keller, estava pendurado no pescoço.
- Se você não acredita - indagou Keller por que o está usando?
- Eu gosto do modo como ele valoriza as minhas roupas.
- O que quer que você faça, não o tire: ele mantém o mal à distância.
- Eu gostaria de manter à distância algumas pessoas na minha vida.
- Como Ari Shamron?
- Como você sabe de Shamron? - perguntou Gabriel, ocultando sua surpresa.
- Eu o conheci quando fui treinar em Israel. Além do mais, todo mundo no negócio sabe de Shamron. E todo mundo sabe que ele queria que você fosse c chefe, em vez
de Uzi Navot.
- Você não devia acreditar em tudo que lê nos jornais, Keller.
- Eu tenho boas fontes. E elas me disseram que o emprego era seu, mas você o recusou.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse Gabriel, com o olhar cansado voltado para o para-brisa respingado de chuva -, mas não estou a fim de ter um papo
nostálgico com você.
- Eu só estava tentando matar tempo.
- Talvez pudéssemos aproveitar um silêncio confortável.
- Outra piada?
- Você entenderia se fosse judeu.
- Tecnicamente eu sou judeu.
- Quem você prefere: Puccini ou Wagner?
- Wagner, claro.
- Então não tem como você ser judeu.
Keller acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo para apagá-lo. Uma rajada de vento jogou a chuva no para-brisa, dificultando a visão do porto. Gabriel baixou a sua
janela alguns centímetros para dar vazão à fumaça de Keller.
- Talvez você esteja certo - disse ele por fim. - Talvez um quarto seja uma boa ideia.
- Não acho que seja necessário.
- Por que não?
Keller ligou os limpadores do para-brisa e apontou para além do vidro.
- Porque Marcel Lacroix está vindo em nossa direção.
Ele estava usando um agasalho preto e tênis verde-néon, e carregava no ombro uma mala esportiva Puma. Era óbvio que Lacroix havia passado a maior parte da tarde
na academia. Não que ele precisasse de exercício: tinha pelo menos 1,90 metro e pesava mais de 90 quilos. Seus cabelos escuros com gel estavam presos num rabo de
cavalo curto. Havia piercings nas duas orelhas e ideogramas chineses tatuados no lado do seu grosso pescoço - evidência de que era um estudante das artes marciais
asiáticas. Seus olhos não paravam de se mexer, mas ele não chegou a perceber os dois homens sentados no pequeno Renault com janelas embaçadas. Enquanto o observava,
Gabriel deu um suspiro profundo. Lacroix certamente seria um oponente digno, em especial dentro do espaço apertado do Moondance. Apesar do que dizem, tamanho é documento.
- Nenhuma piadinha? - perguntou Keller.
- Estou pensando em alguma.
- Por que você não me deixa cuidar disso?
- Por alguma razão, não acho que sei a uma boa ideia.
- Por que não?
- Porque ele sabe que você trabalha para Don Orsati. Se você aparecer e começar a fazer perguntas sobre Madeline Hart, ele vai saber que foi traído, e isso seria
prejudicial aos interesses do don.
- Deixe que eu me preocupo com os interesses do don.
- É por isso que você está aqui, Keller?
- Eu estou aqui para garantir que você não acabe num caixão de cimento no fundo do Mediterrâneo.
- Há lugares piores para ser enterrado.
- A lei judia não permite enterros no mar.
Keller ficou em silêncio quando Lacroix entrou na doca e começou a seguir em direção ao Moondance. Gabriel focou na região lombar do francês, prestando atenção em
como pendia a roupa esportiva. Em seguida, olhou para a forma como a bolsa estava pendurada.
- O que você acha? - perguntou Keller.
- Acho que ele está carregando a arma na bolsa.
- Você também notou isso?
- Eu noto tudo.
- Como você vai fazer?
- Do jeito mais silencioso possível.
- O que você quer que eu faça?
- Espere aqui - respondeu Gabriel, abrindo a porta do carro. - E tente não matar ninguém até eu voltar.
O Escritório tinha uma doutrina simples quanto ao uso operacional adequado de armas ocultas. Ela fora dada por Deus a Ari Shamron - pelo menos era o que dizia a
história -, que por sua vez passou-a para todos os que adentravam secretamente a noite para desempenharem seus serviços. Embora não estivesse escrita em lugar algum,
todo agente de campo era capaz de recitá-la com tanta facilidade quanto a bênção das velas no sabá. Um agente do Escritório saca a arma com apenas um propósito.
Ele não a brande como um gângster nem faz ameaças vazias. Apenas atira - e só interrompe os disparos quando o alvo não está mais entre os vivos. Amém.
Foi com a advertência de Shamron ecoando em seus ouvidos que Gabriel deu os passos finais na direção do Moondance. Hesitou antes de embarcar. Até mesmo um homem
tão esguio quanto ele poderia fazer com que o barco se inclinasse um pouco. Portanto, velocidade e uma confiança aparente seriam essenciais.
Gabriel deu uma última olhada por cima do ombro e viu que Keller o observava com um pouco de receio pela janela do carona do Renault. Em seguida, subiu a bordo do
Moondance e atravessou rapidamente o convés de popa até a cabine principal. Lacroix estava no vão da porta. No espaço apertado do barco, o francês parecia ainda
maior do que na rua.
- Que porra você está fazendo no meu barco? - ele exigiu saber.
- Peço desculpas - disse Gabriel, erguendo as mãos num gesto conciliatório. - Me disseram que você estaria me esperando.
- Quem disse?
- Paul, é claro. Ele não falou que eu estava vindo?
- Paul?
- Sim, Paul - respondeu Gabriel, confiante. - O homem que o contratou para entregar o pacote da Córsega ao continente. Ele disse que você era o melhor profissional
que já viu. Que, se eu precisasse de alguém para transportar bens valiosos, você era a pessoa certa.
Gabriel viu uma série de reações na expressão do francês: confusão, apreensão e, claro, cobiça. No fim, a cobiça saiu vitoriosa. Ele deu um passo para o lado e,
com um movimento dos olhos, o convidou para entrar. Gabriel deu dois passos lânguidos para a frente enquanto analisava o interior da cabine, tentando encontrar a
bolsa de ginástica de Lacroix. Estava em cima de uma mesa, ao lado de uma garrafa de Pernod.
- Você se incomoda? - perguntou Gabriel, meneando a cabeça em direção à porta. - Não é o tipo de coisa que você queira que os seus vizinhos ouçam.
Lacroix hesitou por um instante. Em seguida, andou até a porta e fechou-a. Gabriel se posicionou ao lado da mesa que continha a mala esportiva.
- Que tipo de trabalho é? - perguntou Lacroix, voltando-se para Gabriel.
- Muito simples. Na verdade, vai levar só alguns minutos.
- Quanto?
- O que você quer dizer? - perguntou Gabriel, fingindo confusão.
- Quanto dinheiro você está oferecendo? - indagou Lacroix, esfregando o indicador e o dedo médio no polegar.
- Estou oferecendo algo muito mais valioso do que dinheiro.
- O que seria?
- A sua vida. Marcel, você vai me dizer o que seu amigo Paul fez com a garota inglesa. E, se não disser, vou cortá-lo em pedacinhos e usá-lo como isca para peixe.
A arte marcial israelense do krav maga não é conhecida por sua elegância, mas não foi projetada mesmo para ser estética. Seu único propósito é incapacitar ou matar
o adversário o mais rápido possível. Ao contrário de muitas disciplinas ocidentais, ele não hesita em usar objetos pesados para repelir um inimigo de maior tamanho
e força. Na verdade, os instrutores encorajam os alunos a usarem quaisquer recursos que tenham à disposição para se defenderem. Davi não se atracou com Golias, eles
gostavam de dizer, mas o atingiu com uma pedra. E só depois cortou sua cabeça.
Gabriel escolheu uma garrafa de Pernod em vez de uma pedra. Pegou-a pelo gargalo e lançou-a como uma faca na direção de Marcel Lacroix, que corria para atacá-lo.
A garrafa bateu bem no centro da testa do francês, abrindo um corte horizontal profundo logo acima da densa sobrancelha. Ao contrário de Golias, que caiu no instante
em que foi atingido, Lacroix conseguiu se manter de pé, embora com bastante dificuldade. Gabriel avançou e deu uma joelhada na virilha desprotegida do francês. Depois,
deu-lhe um soco no estômago e quebrou seu maxilar com uma cotovelada bem aplicada. Com o outro cotovelo, acertou sua têmpora, levando-o ao chão. Gabriel se agachou
e tocou o pescoço do francês para verificar se ele ainda tinha pulsação. Erguendo os olhos, viu Keller parado à porta, sorrindo.
- Impressionante. O Pernod foi um toque adorável.
11
PERTO DE MARSELHA
A chuva parou quando o sol se pôs, mas o vento mistral continuou soprando sem remorso muito depois do escurecer. Uivava nos cordames dos barcos amontoados no Velho
Porto e redemoinhava nos deques do Moondance enquanto Keller o conduzia com habilidade mar adentro. Gabriel permaneceu a seu lado na ponte de comando até eles saírem
do porto. Então, desceu as escadas para o alojamento principal, onde Marcel Lacroix jazia no chão, com o rosto voltado para baixo, amarrado, amordaçado e vendado.
Gabriel rolou o francês, deixando-o de barriga para cima, e tirou a fita adesiva que lhe cobria os olhos com um único movimento ríspido. Lacroix já tinha recuperado
a consciência e não havia sinal de medo em seus olhos, apenas fúria. Keller estava certo: não era fácil assustar o francês.
Gabriel voltou a vendá-lo e deu início a uma busca minuciosa na embarcação, começando pelo alojamento principal e terminando na cabine de Lacroix. Ele encontrou
um esconderijo com drogas ilegais, cerca de 60 mil euros em dinheiro vivo, passaportes falsos, carteiras de motorista francesas em quatro nomes diferentes, cartões
de crédito roubados, nove celulares descartáveis e uma coleção elaborada de pornografia impressa e eletrônica. Além disso, havia um recibo com um número de telefone
rabiscado atrás, de um lugar chamado Bar du Haut, no Boulevard Jean Jaurès, em Rognac, uma cidade de classe operária ao norte de Marselha, não muito longe do aeroporto.
Gabriel já tinha passado por ali uma vez, em outra época da vida. Era o tipo de lugar que servia apenas de parada a caminho de algum outro lugar.
Gabriel verificou a data do recibo. Em seguida, examinou os históricos de chamada dos nove celulares em busca do número escrito no verso do papel. Encontrou-o em
três dos telefones. Naquela manhã, Lacroix ligara duas vezes para ele com dois celulares diferentes.
Gabriel guardou os aparelhos, o recibo e o dinheiro numa mochila de náilon e voltou para o alojamento principal. Mais uma vez tirou a fita adesiva dos olhos de Lacroix,
mas também removeu a mordaça. O rosto do francês estava muito distorcido, devido ao inchaço do maxilar quebrado. Gabriel o apertou com força enquanto fitava os olhos
do contrabandista.
- Vou fazer algumas perguntas, Marcel. Você tem só uma chance para me dizer a verdade. Entendeu? - perguntou Gabriel, pressionando o maxilar dele com um pouco mais
de força. - Uma chance.
A única resposta de Lacroix foi um grunhido de dor.
- Uma chance - repetiu Gabriel, erguendo o indicador para enfatizar. - Está ouvindo?
Lacroix não respondeu.
- Vou tomar isso como um sim. Agora, Marcel, quero que você me diga os nomes dos homens que estão com a garota. E depois quero saber onde posso encontrá-los.
- Não sei nada sobre essa garota.
- Você está mentindo, Marcel.
- Não, eu juro...
Antes que Lacroix pudesse continuar, Gabriel lhe colocou a mordaça de novo. Em seguida, passou bastante fita adesiva ao redor da cabeça do francês, até deixar apenas
as suas narinas visíveis. Desceu até o convés inferior, pegou uma corda de náilon num armário e voltou para cima, até a ponte de comando. Keller segurava o leme
com as duas mãos, estreitando os olhos para o mar turbulento.
- Como está indo lá embaixo? - perguntou ele.
- Estou surpreso: não consegui persuadi-lo a cooperar.
- Por que a corda?
- Mais persuasão.
- Algo que eu possa fazer para ajudar?
- Reduza a velocidade e ligue o piloto automático.
Keller obedeceu e seguiu Gabriel até o alojamento principal. Encontraram Lacroix bem perturbado, arfante, lutando para respirar através do capacete de fita adesiva.
Gabriel o rolou, deixando-o de barriga para baixo, e passou a corda de náilon pelas amarras nos pés e calcanhares. Depois de prendê-la com um nó firme, arrastou
Lacroix até o convés de popa como se ele fosse uma baleia recém-arpoada. Então, com a ajuda de Keller, aproximou o francês da beirada e o jogou para fora do barco.
Lacroix bateu na água escura com um baque pesado e começou a se debater ferozmente para tentar manter a cabeça acima da superfície. Gabriel o observou por um momento
e, em seguida, vasculhou o horizonte em todas as direções. Nenhuma luz visível. Era como se eles fossem os três últimos homens na terra.
- Como você vai saber quando parar? - perguntou Keller, vendo Lacroix lutar pela própria vida.
- Quando ele começar a afundar - respondeu Gabriel, calmo.
- Me lembre de nunca entrar na sua lista negra.
- Nunca entre na minha lista negra.
Depois de 45 segundos na água, de repente Lacroix parou de se mover. Gabriel e Keller o puxaram depressa de volta para o barco e removeram a fita adesiva que lhe
cobria a boca. Por vários minutos, o francês não conseguiu falar, alternando-se entre respirar sofregamente e tossir água do mar. Quando ele pareceu cuspir tudo,
Gabriel segurou o maxilar quebrado e o apertou.
- Você pode não estar se dando conta neste instante, mas hoje é seu dia de sorte, Marcel. Agora vamos tentar de novo: diga onde eu posso encontrar a garota.
- Eu não sei.
- Você está mentindo para mim, Marcel.
- Não - respondeu Lacroix, balançando a cabeça violentamente de um lado para o outro. - Estou dizendo a verdade. Não faço ideia de onde ela está.
- Mas você conhece um dos homens que está com ela. Você até tomou uns drinques com ele num bar em Rognac uma semana antes de a garota desaparecer. E, desde então,
você tem se mantido em contato com ele.
Lacroix ficou em silêncio. Gabriel apertou o maxilar quebrado com mais força.
- O nome, Marcel. Diga-me o nome dele.
- Brossard - Lacroix se esforçou para dizer, tomado pela dor. - O nome dele é René Brossard.
Gabriel encarou Keller, que assentiu.
- Muito bem - falou para Lacroix, relaxando o aperto. - Agora continue falando. E nem pense em mentir para mim. Caso contrário, volta para a água. Mas, da próxima
vez, vai ser para sempre.
12
PERTO DE MARSELHA
O convés de popa tinha duas cadeiras giratórias. Gabriel amarrou Lacroix na que estava a estibordo e sentou-se na outra, diante dele. Lacroix continuou vendado,
a roupa encharcada pelo tempo que passara dentro d'água. Tremendo violentamente, implorou por uma muda de roupas ou um cobertor. Como não teve resposta, falou de
uma noite quente em meados de agosto, quando um homem aparecera no Moondance sem aviso prévio, da mesma forma que Gabriel havia feito mais cedo.
- Paul? - perguntou Gabriel.
- Sim, Paul.
- Vocês se conheciam?
- Não, mas eu já o tinha visto.
- Onde?
- Em Cannes.
- Quando?
- Durante o festival de cinema.
- Este ano?
- Sim, em maio.
- Você foi ao Festival de Cannes?
- Eu não estava na lista de convidados, se é isso que você quer saber. Estava trabalhando.
- Que tipo de trabalho?
- O que você acha?
- Roubando das estrelas do cinema e dos ricaços?
- É uma das nossas semanas mais ocupadas do ano, uma verdadeira dádiva para a economia local. Só tem imbecil em Hollywood. Nós os roubamos todas as vezes que o pessoal
de lá vem para cá, e acho que nem percebem.
- O que Paul estava fazendo?
- Passando tempo com os ricaços. Acho que até o vi entrando no salão umas duas vezes para ver os filmes.
- Acha?
- Ele sempre tem uma aparência diferente.
- Ele estava dando golpes em Cannes?
- Isso você teria que perguntar para ele. Não discutimos esse assunto quando ele veio me ver. Só falamos do serviço.
- Ele queria contratar você e o seu barco para levarem a garota da Córsega até o continente.
- Não - negou Lacroix, balançando a cabeça com veemência. - Ele nunca disse nenhuma palavra sobre uma garota.
- O que foi que ele disse?
- Queria que eu entregasse um pacote.
- Você não perguntou o que era?
- Não.
- Você sempre opera assim?
- Depende.
- Do quê?
- De quanto dinheiro tem na mesa.
- E quanto tinha?
- Cinquenta mil.
- Isso é bom?
- Muito bom.
- Ele chegou a mencionar onde obteve o seu nome?
- Com o don.
- Que don7.
- Don Orsati, o Corso.
- Que tipo de trabalho o don faz?
- Ele tem um dedo em todo tipo de esquema, mas principalmente em assassinatos. De vez em quando, dou uma carona para um de seus homens. E às vezes eu ajudo a fazer
coisas desaparecerem.
O inquérito de Gabriel tinha um propósito duplo. Permitia testar a veracidade das respostas de Lacroix, ao mesmo tempo que encobria suas próprias pegadas. Agora
o francês achava que Gabriel nunca tivera o prazer de conhecer um assassino corso chamado Orsati. E, pelo menos até agora, ele estava respondendo honestamente às
perguntas de Gabriel.
- Paul disse quando o serviço ia ser executado?
- Não. Ele disse que me avisaria 24 horas antes e que eu provavelmente ouviria algo dele em uma semana, dez dias no máximo.
- Como ele entraria em contato com você?
- Por telefone.
- Você ainda tem o telefone que usou?
Lacroix assentiu e recitou o número associado ao aparelho.
- Ele ligou?
- No oitavo dia.
- O que ele falou?
- Me pediu para buscá-lo na manhã seguinte, na enseada que fica bem ao sul de Capo di Feno.
- A que horas?
- Três da madrugada.
- Como ficou combinado?
- Ele queria que eu deixasse um bote na praia e o esperasse no mar.
Gabriel ergueu os olhos para a ponte de comando, de onde Keller observava o interrogatório. O Inglês aquiesceu, como se confirmando que de fato há uma enseada em
Capo di Feno e que o cenário descrito por Lacroix era perfeitamente plausível.
- Quando você chegou à Córsega? - perguntou Gabriel.
- Alguns minutos após a meia-noite.
- Estava sozinho?
- Sim.
- Tem certeza?
- Sim, eu juro.
- A que horas você deixou o bote na praia?
- Às duas.
- Como você voltou para o Moondance?
- Fui andando - brincou Lacroix. - Como Jesus.
Gabriel arrancou o piercing da orelha direita de Lacroix.
- Foi só uma piada - alegou o francês, arquejante, com sangue fluindo do lóbulo arruinado.
- Se eu fosse você - retrucou Gabriel não estaria fazendo piadas sobre o Senhor num momento destes. Eu faria o possível para conseguir cair nas graças Dele.
Gabriel olhou de novo para a ponte de comando e viu que Keller tentava conter um sorriso. Em seguida, mandou Lacroix descrever os eventos que se seguiram. Paul,
disse o francês, chegara bem na hora, às três em ponto. Lacroix tinha visto um único veículo, um pequeno modelo com tração nas quatro rodas, descendo aos solavancos
a pista íngreme do topo da colina até a enseada, só com as luzes de freio acesas. Então, ouviu o barco se aproximar pela água. Quando o escaler encostou na popa
do Moondance, ele viu a garota.
- Paul estava com ela?
- Sim.
- Mais alguém?
- Não, só Paul.
- Ela estava inconsciente?
- Quase.
- O que estava usando?
- Vestido branco. E um capuz preto cobria sua cabeça.
- Você viu o rosto dela?
- Em nenhum momento.
- Alguma ferida?
- Os joelhos estavam sangrando e os braços tinham muitos arranhões e hematomas.
- Algemas?
- Nas mãos.
- Na frente do corpo ou atrás?
- Atrás.
- De que tipo?
- Algemas plásticas, muito profissionais.
- Continue.
- Paul deitou a garota num sofá no alojamento principal e aplicou algo nela para deixá-la quieta. Depois veio para a ponte de comando e me disse para onde queria
ir.
- Para onde?
- Para o estuário logo a oeste de Saintes-Maries-de-la-Mer. O lugar tem uma marina pequena, já usei antes. É um ponto excelente. Paul tinha feito a lição de casa.
Outra olhada para Keller. Outro assentimento.
- Você atravessou direto?
- Não - respondeu Lacroix. - Isso teria nos levado para a terra em plena luz do dia. Passamos o dia inteiro no mar. Avançamos em torno das onze horas daquela noite.
- Paul manteve a garota no alojamento o tempo inteiro?
- Ele a levou para a proa uma vez, mas fora isso...
- Fora isso o quê?
- Ele usou a seringa.
- Ketamina?
- Não sou médico.
- Não brinca.
- Você me fez uma pergunta, eu respondi.
- Ele a levou para a terra no escaler?
- Não. Eu fui direto para a marina. É o tipo de lugar onde dá para estacionar um carro bem ao lado do barco. Havia um esperando. Um Mercedes preto.
- Que tipo de Mercedes?
- Classe E.
- Placa?
- Francesa.
- Sem ninguém?
- Não. Havia dois homens. Um estava apoiado no capô quando nós entramos. O outro estava ao volante.
- Você conhecia o que estava apoiado no capô?
- Nunca o vi antes.
- Mas o que estava ao volante você conhecia, não é mesmo, Marcel?
- Sim. Era René Brossard.
René Brossard era o soldado raso de uma família criminosa com ligações internacionais que estava se dando bem em Marselha. Era especializado em trabalho pesado:
cobrança de dívidas, coerção, segurança. No tempo livre, trabalhava como leão de chácara num clube noturno perto do Velho Porto, principalmente porque gostava das
garotas que trabalhavam lá. Lacroix o conhecia da vizinhança. Também sabia seu telefone.
- Quando você ligou para ele? - perguntou Gabriel.
- Alguns dias depois de ter lido a primeira matéria sobre a garota inglesa que desapareceu durante as férias na Córsega. Somei um mais um e me dei conta de que era
a garota que eu tinha deixado no porto em Saintes-Maries-de-la-Mer.
- Você é algum tipo de gênio da matemática?
- Eu sei somar - gracejou Lacroix.
- Você se deu conta de que Paul poderia receber uma bela grana de resgate de alguém e quis uma fatia do bolo.
- Ele me passou a perna quanto falou do tipo de trabalho. Eu nunca teria concordado em fazer parte do sequestro de alguém importante por meros 50 mil dólares.
- Quanto você queria?
- Eu tento não criar o hábito de negociar comigo mesmo.
- Homem sábio.
Gabriel perguntou a Lacroix quanto tempo Brossard tinha levado para retornar seu telefonema.
- Dois dias.
- Vocês entraram em detalhes pelo telefone?
- O suficiente para deixar claro o que eu queria. Brossard me ligou de volta algumas horas depois e me disse para ir ao Bar du Haut na tarde seguinte, às quatro.
- Isso foi uma burrice, Marcel.
- Por quê?
- Porque Paul poderia estar lá em vez de Brossard. E ele poderia ter metido uma bala entre os seus olhos por ter a audácia de pedir mais dinheiro.
- Eu sei cuidar de mim mesmo.
- Se isso fosse verdade - falou Gabriel -, você não estaria amarrado numa cadeira no próprio barco. Mas continue: você estava me contando sobre a sua conversa com
René Brossard.
- Ele disse que Paul queria ser razoável. Depois disso, começamos a negociar.
- Negociar?
- O preço do meu acordo. Paul fez uma oferta. Eu fiz uma contraoferta. Fomos e voltamos várias vezes.
Tudo por telefone?
Lacroix assentiu.
- Qual é o papel de Brossard na operação?
- Ele fica na casa onde estão mantendo a garota.
- Paul está lá também?
- Não perguntei.
- Quantas pessoas estão lá?
- Não sei. Só sei que outra mulher vive lá, para que eles pareçam uma família.
- Brossard chegou a mencionar a garota inglesa?
- Disse que ela está viva.
- Só isso?
- É.
- Qual é o estado atual das suas negociações com Paul e Brossard?
- Chegamos a um acordo esta manhã.
- Quanto você conseguiu arrancar deles?
- Mais 100 mil.
- Quando você vai pegar o dinheiro?
- Amanhã à tarde.
- Onde?
- Em Aix.
- Onde, lá?
- Num café perto da praça Charles de Gaulle.
- Qual é o nome do lugar?
- Le Provence. Mais alguma coisa?
- Como ficou combinado?
- Brossard ficou de aparecer primeiro, às cinco e dez. Vou encontrá-lo dez minutos depois.
- Onde ele vai estar sentado?
- Numa mesa do lado de fora.
- E o dinheiro?
- Brossard disse que estaria numa maleta de metal.
- Que discreto.
- Foi escolha dele, não minha.
- Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?
- Le Cézanne, subindo um pouco a rua.
- Quanto tempo ele vai esperar lá?
- Dez minutos.
- E se você não der as caras?
- O acordo é cancelado.
- Existe mais alguma instrução?
- Mais nenhum telefonema - respondeu Lacroix. - Paul está ficando nervoso com os telefonemas.
- Aposto que está.
Gabriel olhou para a ponte de comando, mas dessa vez Keller estava imóvel, um vulto contra o céu preto com uma arma nas mãos estendidas. O tiro, suprimido por um
silenciador, abriu um buraco em cima do olho esquerdo de Lacroix. Gabriel segurou os ombros do francês enquanto ele morria. Em seguida, virou-se, furioso, e apontou
a sua arma para Keller.
- É melhor você guardar isso antes que alguém se machuque - disse o Inglês com calma.
- Por que diabos você fez isso?
- Ele entrou na minha lista negra. Além disso - acrescentou Keller, enquanto guardava a arma na cintura -, ele não era mais necessário.
13
CÔTE D'AZUR, FRANÇA
Eles o lançaram ao fundo do mar nas águas profundas além do golfo de Leão e seguiram para Marselha. Ainda estava escuro quando chegaram ao Velho Porto. Gabriel e
Keller saíram do Moondance com alguns minutos de diferença um do outro, entraram nos seus carros, e percorreram a costa a caminho de Toulon. Um pouco antes da cidade
de Bandol, Gabriel parou na beira da estrada e afrouxou vários cabos do motor. Ligou para a locadora de veículos e, com a voz histérica de Herr Klemp, deixou uma
mensagem dizendo onde o carro “quebrado” podia ser encontrado. Depois de limpar as digitais do volante e do painel, entrou no Renault de Keller e os dois foram para
o leste, seguindo para Nice sob o sol nascente. Havia um prédio antigo na Rue Verdi, branco como um osso, onde o Escritório mantinha um de seus vários flats secretos
na França. Gabriel entrou no edifício sozinho e pegou a correspondência, que incluía a cópia do arquivo pessoal de Madeline Hart no Partido, solicitada a Graham
Seymour. De volta ao carro, ele leu o documento enquanto Keller dirigia rumo a Aix pela Autoroute A8.
- O que diz aí? - perguntou o Inglês depois de vários minutos de silêncio.
- Que Madeline Hart é perfeita. Mas nós já sabíamos disso.
- Eu também já fui perfeito. E olha como fiquei.
- Você sempre foi um patife, Keller. Só não percebeu até aquela noite no Iraque.
- Eu perdi oito colegas tentando proteger o seu país dos Scuds de Saddam.
- Somos eternamente gratos.
Mais calmo, Keller ligou o rádio e sintonizou numa estação sediada em Mônaco que transmitia em inglês, voltada para a grande comunidade de expatriados britânicos
que viviam no sul da França.
- Com saudades de casa? - perguntou Gabriel.
- Gosto de ouvir o som do meu idioma nativo de vez em quando.
- Você nunca voltou?
- Para a Inglaterra?
Gabriel assentiu.
- Nunca - respondeu Keller. - Eu me recuso a trabalhar lá e nunca aceite, contratos envolvendo ingleses.
- Que nobre da sua parte.
- Deve-se operar de acordo com um código de conduta.
- Então os seus pais não sabem que você está vivo?
- Não.
- Você não deve mesmo ser judeu - repreendeu Gabriel. - Nenhum garoto judeu deixaria a mãe pensar que ele está morto. Não se atreveria.
Gabriel abriu o registro mais recente do arquivo pessoal de Madeline Hart e o leu em silêncio enquanto Keller dirigia. Era a cópia de uma carta enviada por Jeremy
Fallon para o presidente do Partido, recomendando que a Srta. Hart fosse promovida a um posto júnior no ministério e preparada para cargos oficiais. Fitou uma fotografia
de Madeline sentada numa cafeteria a céu aberto com o homem que eles conheciam apenas pelo nome de Paul.
Observando-o, Keller perguntou:
- Em que você está pensando?
- Estou só me perguntando por que uma jovem estrela em ascensão no partido britânico da situação dividia uma garrafa de champanhe com um sujeito tão estranho como
o nosso amigo Paul.
- Porque ele sabia que Madeline tinha um caso com o primeiro-ministro. E estava se preparando para sequestrá-la.
- Como ele teria descoberto?
- Eu tenho uma teoria.
- É baseada em fatos?
- Em alguns.
- Então é só uma hipótese.
- Mas pelo menos vai ajudar a passar o tempo.
Gabriel fechou a pasta para indicar que estava prestando atenção. Keller desligou o rádio.
- Homens como Jonathan Lancaster sempre cometem o mesmo erro quando têm um caso: confiam que os guarda-costas vão ficar de boca fechada - começou o Inglês. - Mas
eles não ficam. Eles conversam entre si, conversam com as esposas, as namoradas, os velhos amigos que conseguiram trabalho no negócio particular de segurança da
Inglaterra. E, em pouco tempo, o caso chega aos ouvidos de alguém como Paul.
- Você acha que Paul está ligado ao negócio britânico de segurança?
- Ele poderia estar. Ou então conhecer alguém que esteja. Enfim, uma informação dessas vale ouro para alguém como Paul. Ele provavelmente manteve Madeline sob observação
em Londres e invadiu o celular e as contas de e-mail dela. E descobriu que a garota ia passar as férias na Córsega. Quando ela chegou, Paul a estava esperando.
- Então por que almoçar com ela? Por que correr o risco de mostrar o rosto?
- Porque, para o sequestro correr bem, precisava que ela estivesse sozinha.
- Ele a seduziu?
- Ele é um canalha charmoso.
- Essa eu não engulo - retrucou Gabriel, depois de pensar por um momento.
- Por que não?
- Porque, quando foi raptada, Madeline estava envolvida romanticamente com o primeiro-ministro britânico. Ela não teria sido seduzida por alguém como Paul.
- Madeline era a amante do primeiro-ministro, logo havia muito pouco romantismo em seu relacionamento. Ela devia ser uma garota solitária.
Gabriel olhou de novo para a foto - não para Madeline, mas para Paul.
- E quem é esse sujeito?
- Com certeza não é um amador. Só um profissional que conhece o don. E um profissional que se atreveria a bater na porta do don para pedir ajuda.
- Se ele é tão profissional, por que estava dependente do talento local para fazer o serviço?
- Você quer saber por que ele não tem equipe própria?
- Isso.
- Economia básica - respondeu Keller. - Manter uma equipe pode ser uma empreitada complicada. E, invariavelmente, as pessoas geram problemas. Quando o serviço é
lento, os garotos ficam infelizes. E, se conseguem bastante grana, querem uma parte maior.
- Então ele usa freelances com contratos diretos de taxa por serviço para evitar compartilhar os lucros.
- No ambiente global competitivo da economia atual, é o que todo mundo está fazendo.
- Não o don.
- O don é diferente. Nós somos uma família, um clã. E você está certo quanto a uma coisa: Marcel Lacroix teve sorte de não ter sido morto por um assassino a mando
de Paul. Se ele se atrevesse a pedir mais dinheiro a Don Orsati depois de completar um trabalho, teria acabado no fundo do Mediterrâneo dentro de um caixão de concreto.
- Que é onde ele está agora.
- Exceto pela parte do concreto, claro.
Gabriel olhou para Keller com desaprovação, mas não disse nada.
- Foi você que arrancou o brinco dele.
- Um lóbulo da orelha rasgado é um mal temporário. Uma bala no olho é um mal eterno.
- E o que a gente deveria ter feito com ele?
- Poderíamos tê-lo levado para a Córsega e o deixado com o don.
- Confie em mim, Gabriel, ele não teria durado muito. Orsati não gosta de problemas.
- E, como Stálin gostava de dizer, “a morte resolve todos os problemas”.
- “Se não há homem, não há problema” - Keller completou a citação.
- E se o homem estivesse mentindo para nós?
- O homem não tinha motivos para mentir.
- Por quê?
- Porque sabia que nunca ia sair vivo do barco - disse Keller, e acrescentou baixinho: - Ele só estava torcendo para ter uma morte indolor.
- Essa é outra de suas teorias?
- Regras de Marselha. Quando as coisas por aqui começam de forma violenta, sempre terminam com violência.
- E se René Brossard não estiver sentado no Le Provence às cinco e dez com uma maleta de metal? O que faremos?
- Ele vai estar lá.
Gabriel queria ser confiante como Keller, mas sua experiência o impedia. Consultou o relógio e calculou o tempo que tinham para salvar a garota.
- Caso Brossard apareça, talvez seja melhor não o matarmos antes de ele nos conduzir até o cativeiro de Madeline.
- E depois?
A morte resolve todos os problemas, pensou Gabriel. Se não há homem, não há problema.


CONTINUA

Advogado sem importância, Jonathan Lancaster não parecia nem um pouco apto a entrar na política. Mas ele sabia como trilhar seu caminho com base em contatos. Seus dois pilares foram Jeremy Fallon, o brilhante publicitário que procurava um garoto-propaganda para seu partido, e Simon Hewitt, o colunista que ditava o sucesso de qualquer aspirante a altos cargos. Assim, Lancaster se tornou o primeiro-ministro do Reino Unido, levando os amigos junto para o poder.
Passados quatro anos, o governo britânico está imerso em uma crise. Sem poder suportar mais nenhum problema em sua gestão, Lancaster recebe um bilhete de ameaça:
“Em sete dias a garota morre.’’ Acompanhando o papel, vem um vídeo de Madeline Hart, funcionária do partido, confessando ser amante do primeiro-ministro.
Para a negociação, Lancaster pede a ajuda de Gabriel Allon, um espião israelense em dívida com o governo britânico. Porém, nem com toda a sua experiência o agente conseguirá prever as consequências do surpreendente caso.


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Parte 1
A REFÉM
1
PlANA, CÓRSEGA
Foram atrás dela no final de agosto, na Córsega. A hora exata nunca seria determinada - algum momento entre o entardecer e o meio-dia do dia seguinte foi o máximo
que os funcionários da casa conseguiram determinar. Eles a viram pela última vez durante o pôr do sol, descendo a entrada da casa de campo numa lambreta vermelha,
com a saia de algodão transparente esvoaçando ao redor das coxas bronzeadas. Só ao meio-dia perceberam que não estava no quarto. A cama tinha apenas um livro, lido
pela metade e com cheiro de óleo de coco e um vago traço de rum. Mais 24 horas se passaram antes de ligarem para os gendarmes. Era um verão agitado e Madeline era
aquele tipo de garota.
Tinham chegado à ilha duas semanas antes: quatro garotas bonitas e dois rapazes zelosos, todos funcionários fiéis do governo britânico ou do partido da situação.
Traziam um único carro - um Renault hatch compartilhado, grande o bastante para acomodar cinco pessoas, ainda que sem conforto - e a lambreta vermelha, usada apenas
por Madeline, que a conduzia com uma imprudência quase suicida. A casa ocre ficava nos limites do vilarejo, a oeste, num penhasco com vista para o mar. Era arrumada
e compacta, o tipo de lugar que corretores sempre descrevem como “charmoso”, com piscina e um jardim murado repleto de arbustos de alecrim e aroeiras. Poucas horas
depois de chegarem, eles já tinham se acomodado naquele estado feliz de seminudez bronzeada a que os turistas britânicos aspiram, independentemente do destino de
suas viagens.
Embora fosse a mais jovem do grupo, informalmente Madeline era a líder, um fardo que aceitava sem problemas. Era ela que cuidava do aluguel da casa e providenciava
os longos almoços, os jantares tardios e os passeios para o interior da ilha, sempre seguindo à frente na lambreta pelas ruas traiçoeiras. Ela nem se dava o trabalho
de consultar um mapa. Seu conhecimento enciclopédico da geografia, história, cultura e cozinha da Córsega fora adquirido durante c longo período de estudo e preparações
intensas nas semanas anteriores à viagem. Pelo visto, Madeline não queria deixar nada ao acaso. Raramente deixava.
Ela havia entrado para o Partido em Millbank fazia dois anos, depois de se formar em Economia e Políticas Públicas na Universidade de Edimburgo. Apesar de ter cursado
uma instituição de segunda categoria - a maior parte de seu;
colegas vinha de escolas públicas de elite e de Oxbridge transitou rapidamente por uma série de cargos administrativos antes de ser promovida a diretora de Envolvimento
com a Comunidade. Seu emprego, como ela frequentemente o descrevia, consistia em conseguir votos junto a classes de britânicos que não tinham nenhuma razão para
apoiar o Partido, sua plataforma ou seus candidatos. Todos concordavam que não passava de um posto temporário em sua jornada para um status melhor. O futuro de Madeline
era brilhante - “brilhante como uma erupção solar”, nas palavras de Pauline, que observava a ascensão da colega mais jovem com uma boa dose de inveja. Rumares insinuavam
que ela era beneficiada pela influência de alguém importante no Partido. Alguém próximo ao primeiro-ministro. Talvez até mesmo o próprio. Com uma aparência de estrela
de cinema, intelecto aguçado e energia inesgotável, Madeline estava sendo preparada para uma vaga no Parlamento e um ministério. Tratava-se de uma questão de tempo.
Pelo menos era o que diziam.
Por tudo isso, era muito estranho que Madeline Hart fosse solteira aos 27 anos. Quando lhe perguntavam sobre sua parca vida amorosa, ela declarava que estava ocupada
demais para se dedicar a um homem. Fiona, uma linda mulher com cabelos escuros e um lado ligeiramente perverso, achava a explicação duvidosa. Na verdade, até acreditava
que Madeline estava sendo desonesta - sendo que desonestidade era a melhor qualidade de Fiona, por isso seu interesse pelas políticas do Partido. Para sustentar
sua teoria, ressaltava que, embora se estendesse em conversas sobre qualquer assunto imaginável, a moça era excepcionalmente reservada quando se tratava da vida
pessoal. Madeline se dispunha a oferecer boatos ocasionais e inofensivos sobre a infância problemática - a sombria moradia popular em Essex, o pai de quem mal se
lembrava, o irmão alcoólatra que não trabalhou um dia sequer na vida -, mas todo o resto ela mantinha oculto atrás de paredes de pedra cercadas por um fosso.
- Nossa Madeline poderia ser uma assassina psicopata ou acompanhante de luxo - sugeriu Fiona -, e ninguém saberia.
Mas Alison, uma auxiliar do Ministério do Interior que sofrerá diversas desilusões amorosas, tinha outra teoria.
- A pobrezinha está apaixonada - declarou ela uma tarde, ao observar Madeline saindo como uma deusa do mar da pequena enseada perto da casa. - O problema é que o
seu amor não é correspondido.
- E por que não? - questionou Fiona com voz sonolenta, usando uma enorme viseira.
- Talvez ele não possa corresponder.
- Casado?
- Mas é claro.
- Maldito.
- Você nunca?
- O quê, se eu já tive caso com homem casado?
- Sim.
- Só duas vezes, mas estou considerando uma terceira.
- Você vai queimar no inferno, Fi.
- Estou contando com isso.
Foi naquele momento, na tarde do sétimo dia, que, confrontados com a menor das evidências, as três garotas e os dois rapazes hospedados com Madeline Hart na casa
alugada em Piana assumiram a tarefa de encontrar um namorado para ela. E não qualquer um, disse Pauline. Ele precisaria ter a idade adequada, boa aparência e estabilidade
financeira e mental, ser de boa família, sem podres e outras mulheres na cama. Fiona, a mais experiente nas questões do coração, disse que era uma missão impossível.
- Esse tipo de homem não existe - explicou, com o cansaço de uma mulher que passou muito tempo buscando alguém que cumprisse esses requisitos. - E, se existir, ou
está casado ou tão apaixonado por si mesmo que não vai ter tempo para a pobre Madeline.
Apesar de suas dúvidas, Fiona mergulhou de cabeça no desafio, mesmo que fosse apenas para acrescentar um pouco de fofoca ao feriado. Felizmente, não faltavam alvos
potenciais, pois parecia que metade da população do sudeste da Inglaterra tinha abandonado sua ilha úmida em busca do sol da Córsega. Havia uma colônia de financistas
do centro de Londres que alugavam casas luxuosas na ponta norte do golfo do Porto. E o grupo de artistas vivendo como ciganos num povoado nas colinas da Castagniccia.
E a trupe de atores na beira da praia em Campomoro. E a delegação de políticos da oposição que tramavam sua volta ao poder em uma mansão no topo dos penhascos de
Bonifácio. Usando o Gabinete da Grã-Bretanha como cartão de visitas, Fiona logo arranjou uma série de encontros improvisados. Em todas as ocasiões - um jantar, uma
caminhada pelas montanhas ou uma tarde regada a álcool na praia -, ela enlaçava o homem que achava mais interessante e o colocava ao lado de Madeline. Mas nenhum
deles conseguiu escalar seus muros, nem mesmo o jovem ator que tinha acabado de fazer uma turnê bem-sucedida como protagonista do musical mais popular da temporada
do West End.
- Realmente é um caso perdido - resignou-se Fiona ao voltar para casa uma noite com todo o grupo, sempre guiado por Madeline em sua lambreta vermelha.
- Quem você acha que é? - perguntou Alison.
- Não sei - respondeu Fiona com voz arrastada, deixando transparecer inveja. - Mas deve ser alguém muito especial.
Foi naquela época, faltando pouco mais de uma semana para o retorno a Londres, que Madeline começou a passar um bom tempo sozinha. Ela saía da casa de manhã cedo,
normalmente antes de os outros terem acordado, e voltava no fim da tarde. Quando lhe perguntavam sobre seu paradeiro, ela dava respostas vagas, e durante o jantar
se mostrava taciturna ou inquieta. Alison temeu pelo pior: achou que o suposto amante de Madeline tivesse informado que os seus serviços não seriam mais requisitados.
Mas, no dia seguinte, depois de voltarem para casa após um passeio ao shopping, Fiona e Pauline anunciaram com alegria que Alison estava enganada. Parecia que o
amante de Madeline viera para a Córsega. E Fiona tinha as fotos para provar.
Ele fora visto às 13h50 no Les Palmiers, no cais Adolphe Landry, em Calvi. Madeline estava numa mesa na beira do porto e tinha a cabeça um pouco voltada para o mar,
como se não estivesse ciente do homem sentado à sua frente. Usava óculos escuros grandes e um chapéu de palha para se proteger sol, com um laço preto elaborado,
que projetava uma sombra sobre sua face impecável. Pauline tentou se aproximar da mesa, mas Fiona, captando a intimidade tensa da cena, sugeriu uma retirada brusca.
Ela se deteve o suficiente para, disfarçadamente, tirar a primeira fotografia incriminadora com o celular. Madeline pareceu alheia à intrusão, mas o homem, não.
No instante em que Fiona apertou o botão, ele virou a cabeça bruscamente, como se um instinto animal o tivesse alertado de que sua imagem estava sendo capturada
eletronicamente.
Depois de fugirem para uma brasserie próxima, Fiona e Pauline examinaram com cuidado o homem na foto. Seu cabelo, louro-cinza, estava desgrenhado pelo vento e o
volume exagerado lhe dava um ar quase infantil. Caindo sobre a testa, emoldurava um rosto anguloso, dominado por uma boca pequena e cruel. O traje era vagamente
marítimo: calças brancas, uma camisa em tecido oxford com listras azuis, um relógio grande de mergulhador, mocassins de lona com solas que não deixariam marcas no
convés de um navio. Ele era um homem desse tipo: nunca deixava marcas.
Partiram do princípio de que ele fosse inglês, embora pudesse ser alemão, escandinavo ou, talvez, especulou Pauline, um descendente de nobres poloneses. Dinheiro
claramente não era problema, considerando-se a garrafa de champanhe cara que suava no balde de gelo no canto da mesa. Imaginaram que sua
fortuna fora conquistada, e não herdada, mas que não seria totalmente legal seria um apostador. Teria contas bancárias na Suíça. Viajava para lugares perigosos.
Procurava ser discreto. Seus afazeres, assim como os mocassins de. não deixavam nenhuma marca.
Mas foi Madeline que mais as intrigou. Ela já não era a garota que conheciam de Londres, nem mesmo a garota com quem estavam compartilhando uma villa nas últimas
duas semanas. Parecia ter adotado uma postura completamente diferente. Era uma atriz em outro filme. Reclinadas sobre o celular como uma dupla de adolescentes, Fiona
e Pauline escreveram o diálogo e acrescentaram carne e osso aos seus personagens. Na versão delas, o romance tinha começado de maneira inocente, com um encontro
por acaso numa loja exclusiva na Bond Street. O flerte havia sido longo, e a consumação, planejada com minúcias. Mas, por enquanto, o final da história era desconhecido,
pois a vida real ainda estava por escrevê-lo. Ambas concordaram que seria trágico.
- É assim que histórias desse tipo sempre acabam - afirmou Fiona, por experiência própria. - A garota conhece o garoto. A garota se apaixona pelo garoto.
A garota tem os seus sentimentos feridos e faz o possível para destruir o garoto.
Fiona tirou mais duas fotos de Madeline e seu amante naquela tarde. Uma mostrava os dois caminhando pelo cais sob o sol forte, com as mãos se tocando de leve, meio
furtivas. Na outra, o casal se separava sem um beijo sequer. Naquela cena, o homem subiu num bote Zodiac e partiu em direção ao por Madeline montou em sua lambreta
vermelha e voltou para casa. Ao chegar, não estava mais carregando o chapéu de sol com o laço preto elaborado.
Naquela noite, ao relatar os eventos do dia, ela não mencionou a ida a Calvi nem o almoço com o homem de aparência próspera no Les Palmiers.
Fiona achou a performance impressionante.
- Nossa Madeline tem uma habilidade extraordinária para mentiras - disse ela a Pauline. - Talvez seu futuro seja tão brilhante quanto dizem. Quem sabe Talvez ela
seja primeira-ministra algum dia.
As quatro garotas bonitas e os dois rapazes zelosos da casa alugada planeja:a- um almoço em Porto, uma cidade próxima. Madeline fez as reservas em France e até mesmo
instou o proprietário a guardar sua melhor mesa, que fica. no terraço com vista para a parte rochosa da enseada. Imaginaram que iriam para o restaurante na caravana
de sempre, mas, pouco antes das sete, Madeline declarou que estava indo a Calvi para tomar um drinque com um velho amigo de Edimburgo.
- Encontro vocês no restaurante! - gritou ela por cima do ombro, descendo a rampa. - E, pelo amor de Deus, tentem chegar na hora para variar!
Então ela se foi. Ninguém achou estranho ela não aparecer para o jantar. Nem ficaram alarmados ao acordarem e verem sua cama vazia. Era um verão agitado e Madeline
era aquele tipo de garota.
2
CÓRSEGA - LONDRES
A polícia nacional francesa declarou oficialmente que Madeline Hart estava desaparecida às 14 horas da última sexta-feira de agosto. Depois de três dias de buscas,
não descobriram nenhum vestígio dela além da lambreta vermelha, que acharam numa ravina isolada próxima ao monte Cinto, com a lanterna quebrada. No fim da semana,
a polícia já tinha praticamente perdido qualquer esperança de encontrá-la com vida. Em público, insistiram que o caso consistia numa busca por uma turista britânica
desaparecida. Em particular, no entanto, já procuravam seu assassino.
Não havia suspeitos além do homem com quem ela almoçara no Les Palmiers no dia de seu desaparecimento. Mas, assim como Madeline, ele parecia ter sumido da face da
terra. Era um amante secreto, como Fiona e os outros desconfiavam, ou os dois teriam se conhecido havia pouco tempo, na Córsega? Ele seria inglês? Francês? Ou, nas
palavras de um detetive frustrado, um alienígena de outra galáxia que tinha se desfeito em partículas e voltado para a nave espacial? A garçonete do Les Palmiers
não foi de muita ajuda. Lembrava que ele conversara em inglês com a garota de chapéu, mas que fizera seu pedido num francês perfeito. O homem havia pagado a conta
em dinheiro - notas novas e limpas que ele colocara na mesa como um jogador de pôquer - e dera uma generosa gorjeta, algo raro naqueles dias de crise econômica na
Europa. O que mais marcara a garçonete foram as mãos dele: muito pouco pelo, nenhuma marca de sol ou cicatriz, unhas limpas. O desconhecido cuidava muito bem das
unhas. Ela gostava disso num homem.
Sua fotografia foi mostrada com discrição nos bares e restaurantes mais finos da ilha, mas gerou apenas reações apáticas. Ao que tudo indicava, ninguém tinha posto
os olhos nele. E, se alguém tivesse, não conseguia se recordar de seu rosto. Era um tipo comum nas praias da Córsega no verão: bem bronzeado, óculos de sol caros
e um relógio suíço de puro ouro para aumentar seu ego. Era um nada com um cartão de crédito e uma garota bonita do outro lado da mesa. Era um homem esquecido.
Talvez para os donos de lojas e restaurantes da Córsega, mas não para a polícia francesa. A imagem foi passada por todos os bancos de dados de criminosos em seu
arsenal e por mais alguns. Como nenhuma busca deu frutos, os policiais debateram a possibilidade de revelar a foto para a imprensa. Algumas pessoas, especialmente
nos cargos mais altos, argumentaram contra. Afinal, era possível que o pobre coitado não tivesse culpa de nada, talvez apenas de infidelidade, algo longe de ser
crime na França. Mas, quando se passaram mais 72 horas sem nenhum progresso, concluíram que não havia escolha: precisariam pedir ajuda à população. Duas fotografias
editadas com cuidado foram liberadas para a imprensa - uma do homem sentado no Les Palmiers; outra dele andando ao longo do cais - e, ao anoitecer, os investigadores
já estavam sendo bombardeados por centenas de pistas. Rapidamente eliminaram os farsantes e os trotes e focaram recursos apenas nas que pareciam mais plausíveis.
Porém, nada deu resultado. Uma semana depois do desaparecimento, o único suspeito ainda era um homem sem nome nem nacionalidade.
Apesar de a polícia não ter nada promissor, não faltavam teorias. Um grupo de detetives acreditava que o homem do Les Palmiers era um psicopata que tinha atraído
Madeline para uma armadilha. Outro grupo achava que era apenas alguém no lugar errado e na hora errada. De acordo com essa hipótese, ele era casado, portanto não
poderia se revelar e cooperar com a polícia. Já Madeline provavelmente teria sido vítima de um assalto que acabara mal - uma jovem andando de moto sozinha era um
alvo tentador. Em algum momento o corpo apareceria. O mar o cuspiria, um alpinista o encontraria nas colinas ou um fazendeiro o desenterraria ao arar o campo. Assim
eram as coisas na ilha: a Córsega sempre devolvia os seus mortos.
As falhas da polícia foram uma ocasião propícia para os ingleses criticarem os franceses. Mas, de forma geral, até mesmo os jornais simpáticos à oposição trataram
o desaparecimento de Madeline como uma tragédia nacional. Sua ascensão notável, desde a moradia popular em Essex, foi narrada em detalhes, e diversos membros do
Partido emitiram declarações sobre uma carreira promissora abreviada precocemente. Sua mãe chorosa e seu irmão desajeitado deram uma única entrevista para a televisão
e, em seguida, desapareceram das vistas do público. O mesmo aconteceu com seus companheiros de férias na Córsega. Ao voltarem para a Inglaterra, apareceram juntos
numa coletiva de imprensa no aeroporto de Heathrow, observados por uma equipe de assessores do Partido. Posteriormente, recusaram todos os outros pedidos de entrevistas,
incluindo aqueles que ofereciam pagamentos lucrativos. A cobertura não incluiu nenhum traço de escândalo. Não houve histórias sobre bebedeiras festivas, jogos sexuais
ou perturbação da ordem pública, apenas a baboseira de sempre sobre os perigos enfrentados por mulheres jovens viajando em países estrangeiros. Na sede do Partido,
a assessoria de imprensa se parabenizou em particular pela hábil manipulação do caso, enquanto a equipe política percebeu uma leve melhoria na aprovação ao primeiro-ministro.
Por trás de portas fechadas, chamaram o fenômeno de “o efeito Madeline”.
Gradualmente, as matérias sobre o destino de Madeline saíram das primeiras páginas e foram para as seções internas e, ao final de setembro, ela já tinha desaparecido
dos jornais. Era outono, hora de voltar ao negócio de governar. Os desafios que a Inglaterra enfrentava eram imensos: uma economia em recessão, a zona do euro na
UTI, uma lista interminável de males sociais não resolvidos que estavam destruindo a qualidade de vida no Reino Unido. Pairando sobre tudo, a perspectiva de uma
eleição. O primeiro-ministro tinha dado inúmeras pistas de que haveria uma antes do fim do ano. Ele estava ciente dos riscos políticos de voltar atrás agora. Jonathan
Lancaster estava à frente do governo britânico porque seu antecessor havia deixado de convocar uma eleição após meses de flerte público com a ideia. Lancaster, então
líder da oposição, dissera que ele era “o Hamlet do Número 10” - em referência ao endereço da residência do primeiro-ministro - e a ferida mortal se abriu.
Isso tudo explicava por que Simon Hewitt, o diretor de comunicação do primeiro-ministro, não andava dormindo bem nos últimos tempos. O padrão de sua insônia nunca
variava. Exausto pela rotina esmagadora de trabalho, adormecia rapidamente, em geral com uma pasta de arquivos sobre o peito, mas acordava duas ou três horas depois.
Uma vez desperta, sua mente se acelerava. Após quatro anos no governo, ele parecia incapaz de focar nada além do negativo. Esse era o preço de ser assessor de imprensa
na Downing Street. No mundo de Simon Hewitt não havia triunfos, apenas desastres e quase desastres. Como os terremotos, sua intensidade variava de pequenos tremores
que mal eram sentidos a convulsões sísmicas capazes de derrubar prédios e desfazer vidas. Todos esperavam que Hewitt previsse a calamidade vindoura e, se possível,
contivesse os danos. Nos últimos tempos, ele tinha chegado à conclusão de que seu trabalho era impossível. Nos momentos mais sombrios, essa constatação lhe dava
um pouquinho de consolo.
Ele já fora um homem de reputação. Como colunista-chefe de política do
Times, Hewitt havia sido uma das pessoas mais influentes do gabinete, no Palácio de Whitehall. Com poucas palavras de sua característica prosa afiada, podia condenar
uma política governamental, assim como a carreira do ministro responsável por apresentá-la. O poder de Hewitt se tornou tão grande que nenhum governo tomava uma
decisão importante sem consultá-lo. E nenhum político que aspirasse a um futuro melhor pensaria em concorrer a um posto de liderança em algum partido sem garantir
o apoio de Hewitt. Foi o que fez Jonathan Lancaster, um ex-advogado do centro financeiro londrino, egresso de um distrito parlamentar do subúrbio. No início, Hewitt
não lhe deu muita importância: era muito polido, bem-apessoado e elitista para ser levado a sério. Mas, com o passar do tempo, ele passou a considerar Lancaster
um competente homem de ideias que queria reconstruir seu partido moribundo para, então, reconstruir o país. Hewitt se surpreendeu ao perceber que realmente gostava
de Lancaster, o que nunca era um bom sinal. À medida que o relacionamento progrediu, os dois passaram menos tempo fofocando sobre as maquinações políticas de Whitehall
e mais discutindo como consertar a sociedade britânica. Na noite da eleição, quando Lancaster conquistou a vitória com a maior margem de apoio do Parlamento daquela
geração, Hewitt foi uma das primeiras pessoas para quem ele ligou.
- Simon - disse, com sua voz sedutora. - Eu preciso de você, Simon. Não posso fazer isso sozinho.
Àquela altura, Hewitt já tinha escrito com fervor sobre as perspectivas de sucesso de Lancaster, sabendo muito bem que, em alguns dias, estaria trabalhando para
ele na Downing Street.
Agora, Hewitt abriu os olhos lentamente e fitou com desprezo o relógio ao lado da cama. Os dígitos brilhantes indicavam que eram 3h42, como se estivessem zombando
dele. Ao lado do relógio estavam três celulares, todos com a bateria carregada para o ataque da mídia do dia seguinte. Ele gostaria de poder recarregar as próprias
baterias com a mesma facilidade, mas, àquela altura, não havia sono ou sol tropical que pudesse reparar o dano que ele infligira ao seu corpo de meia-idade. Olhou
para Emma. Como sempre, ela estava dormindo profundamente. Em outros tempos, Hewitt poderia ter pensado em um jeito lascivo de acordá-la, mas isso já não era mais
possível; sua cama conjugal havia se tornado uma lareira apagada e congelada. Por um breve período, Emma fora seduzida pelo glamour do emprego dele, mas depois passou
a se ressentir da devoção servil do marido a Lancaster. Ela encarava o primeiro-ministro quase como um rival sexual, e seu ódio atingira um fervor irracional.
- Você é duas vezes melhor que ele, Simon - comentara Emma na noite anterior antes de lhe dar um beijo frio na bochecha caída. - Ainda assim, por alguma razão, você
sente a necessidade de fazer o papel de criado. Talvez algum dia possa me dizer por quê.
Hewitt sabia que o sono não voltaria, não agora; então ficou acordado na cama e escutou a sequência de sons que sinalizavam o começo de seu dia. O baque dos jornais
matinais na porta. O gorgolejo da máquina de café automática. O ronronar de um sedã do governo na rua, embaixo de sua janela. Levantando-se com cuidado para não
acordar Emma, vestiu o roupão e desceu até a cozinha. A cafeteira sibilava raivosamente. Hewitt preparou uma xícara sem açúcar, pelo bem de sua cintura em expansão,
e a levou para o hall. Uma rajada de vento úmido o saudou quando ele abriu a porta. A pilha de jornais estava envolta em plástico sobre o tapete de boas-vindas ao
lado de uma panela de barro com gerânios mortos. Ao se curvar, viu mais uma coisa: um envelope de papel pardo bem selado, sem nada escrito. Soube na mesma hora que
não tinha vindo da sede do governo, pois ninguém de sua equipe se atreveria a deixar nem o mais trivial documento ali na soleira. Portanto, deveria ser algo não
solicitado. Isso não era incomum; os velhos colegas da imprensa conheciam seu endereço em Hampstead e sempre lhe deixavam encomendas. Pequenos presentes por uma
informação vazada no momento certo. Discursos agressivos referentes a alguma desfeita percebida. Um rumor perverso sensível demais para ser transmitido por e-mail.
Hewitt fazia questão de ficar em dia com a fofoca de Whitehall. Sendo ex-repórter, sabia que o que era dito pelas costas de um homem costumava ser muito mais importante
que o que era escrito sobre ele nas primeiras páginas.
Hewitt cutucou o envelope com o dedão para ver se não continha fios ou baterias, então o colocou em cima dos jornais e voltou para a cozinha. Depois de ligar a televisão
e baixar o volume até um sussurro, tirou os jornais do plástico e passou os olhos pelas primeiras páginas. Estavam dominadas pela proposta de Lancaster para tornar
a indústria britânica mais competitiva com uma diminuição das taxas de juros. Como já era de esperar, o Guardian e o Independent estavam horrorizados, mas, graças
aos esforços de Hewitt, a maior parte das matérias era positiva. As outras notícias de Whitehall eram misericordiosamente benignas. Nenhum terremoto. Nem mesmo tremores.
Depois de passar pelos chamados jornais de maior prestígio, Hewitt deu uma lida rápida nos tabloides, que considerava um termômetro mais confiável da opinião pública
britânica do que qualquer enquete. Em seguida, servindo-se de mais café, abriu o envelope anônimo. Dentro, havia três itens: um DVD, uma única folha de papel A4
e uma fotografia.
- Merda - praguejou Hewitt, baixinho. - Merda, merda, merda.
O que aconteceu depois passaria a ser fonte de muita especulação. Para Simon Hewitt, um ex-jornalista político que deveria ter sido mais sensato, não faltaram recriminações.
Em vez de contatar a polícia metropolitana londrina, como exigia a lei inglesa, ele carregou o envelope até o escritório na Downing Street, número 12. Depois de
conduzir a reunião habitual das oito horas, durante a qual não mencionou os itens, Hewitt os mostrou para Jeremy Fallon, conselheiro político de Lancaster e o chefe
de gabinete mais poderoso da história inglesa. Suas responsabilidades oficiais incluíam planejamento estratégico e coordenação de políticas dos diversos departamentos
do governo, o que lhe permitia meter o nariz em qualquer questão de seu interesse. A imprensa frequentemente se referia a ele como o “cérebro de Lancaster”, um título
que agradava a Fallon e gerava ressentimento em Lancaster.
A reação de Fallon diferiu apenas na escolha do palavrão. Seu primeiro instinto foi levar na mesma hora o material para Lancaster, mas, como era quarta-feira, esperou
até o chefe sobreviver à batalha de gladiadores conhecida como Perguntas ao Primeiro-Ministro. Em nenhum momento da reunião, Lancaster, Hewitt ou Jeremy Fallon sugeriram
passar o material para as autoridades competentes. Os três concordaram que precisavam de uma pessoa discreta e habilidosa, à qual, acima de tudo, poderiam confiar
a proteção dos interesses do primeiro-ministro. Fallon e Hewitt pediram uma lista de candidatos a Lancaster, que deu apenas um nome. Havia uma relação familiar e,
o mais importante, uma dívida não paga. Lealdade contava muito em tempos assim, disse o primeiro-ministro, mas influência era algo muito mais eficiente.
Isso explica o convite sutil feito por Downing Street a Graham Seymour, o vice-diretor de longa data do Serviço de Segurança britânico, também conhecido como MI5.
Muito tempo depois, Seymour descreveria o encontro - realizado na sala de reuniões diante de um retrato carrancudo da baronesa Thatcher - como o mais difícil da
carreira. Concordou em ajudar o primeiro-ministro sem hesitação, pois era isso que um homem como ele fazia em circunstâncias daquele tipo. Ainda assim, deixou claro
que, caso seu envolvimento algum dia se tornasse público, destruiria o responsável.
Ficou em aberto apenas a identidade do agente que conduziria a busca. Assim como Lancaster, Graham tinha apenas um candidato. Ele não compartilhou o nome com o primeiro-ministro.
Em vez disso, usando fundos de uma das várias contas operacionais secretas do MI5, reservou um assento num voo da
Brites Airways daquela tarde com destino a Tel Aviv. Enquanto o avião decolava, Graham ponderou a melhor abordagem. Lealdade contava muito em tempos assim, mas influência
era algo bem mais eficiente.
3
JERUSALÉM
O coração de Jerusalém, não. muito longe do Ben Yehuda Mall, ficava a silenciosa e arborizada rua Narkiss. O prédio no número 16 era pequeno, com apenas três andares,
parcialmente oculto por um robusto muro de pedra calcária e um imenso eucalipto crescendo no jardim da frente. O apartamento no terceiro andar era igual aos outros,
exceto pelo fato de já ter pertencido ao serviço secreto de inteligência do Estado de Israel. Tinha uma sala de estar espaçosa, uma cozinha bem-arranjada cheia de
eletrodomésticos modernos, uma sala de jantar formal e dois quartos. O quarto menor, reservado para uma criança, fora penosamente convertido num estúdio artístico.
Mas Gabriel ainda preferia trabalhar na sala de estar, onde a brisa fresca que vinha da varanda ajudava a dissipar o cheiro forte dos solventes.
No momento, ele estava usando uma solução, preparada com cuidado, de acetona, álcool e água destilada, que aprendera a fazer em Veneza com o mestre restaurador de
arte Umberto Conti. A mistura era forte o bastante para dissolver contaminações na superfície e o verniz velho, mas não chegava a prejudicar as pinceladas originais
do artista. Gabriel umedeceu um cotonete feito à mão na solução e o girou delicadamente sobre o peito empinado de Suzana. Ela olhava em outra direção, banhando-se,
e mal parecia ciente dos dois anciãos lascivos da aldeia que a espiavam de trás do muro do jardim. Gabriel tinha uma atitude protetora em relação a mulheres e desejava
poder intervir, poupando-a do trauma por vir: as falsas acusações, o julgamento, a sentença de morte. Em vez disso, continuou o serviço e observou a pele amarelada
dela adquirir um tom branco luminoso.
Quando o cotonete já estava imundo, Gabriel o colocou num frasco hermético para reter os vapores. Enquanto preparava outro, seus olhos se moveram lentamente pela
superfície da pintura. Até aquele momento, a obra era atribuída apenas a um discípulo de Ticiano. Mas o proprietário atual da tela, o renomado negociante de arte
Julian Isherwood, acreditava que a tela tinha vindo do estúdio de Jacopo Bassano. Gabriel concordava - na verdade, agora que expusera um pouco da pincelada, viu
evidências do próprio mestre, especialmente na imagem de Suzana. Ele conhecia bem o estilo do pintor, pois havia estudado bastante suas pinturas e passara vários
meses em Zurique restaurando uma tela importante de Bassano para um colecionador particular. Na última noite de sua estadia, matara um homem chamado Ali Abdel Hamidi
num beco úmido perto do rio, um líder terrorista palestino com um bocado de sangue israelense nas mãos, que estava se passando por dramaturgo. Gabriel lhe dera uma
morte digna de suas pretensões literárias.
Ele umedeceu o novo cotonete no solvente, mas, antes de dar continuidade ao trabalho, escutou o ronco familiar do motor de um carro pesado na rua. Foi à varanda
para confirmar suas suspeitas e, então, abriu a porta da frente uns 2 centímetros. Um instante depois, Ari Shamron já estava empoleirado num banquinho de madeira
ao lado de Gabriel. Vestia calça cáqui, camisa de oxford branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Seus óculos feios refletiam a luz das lâmpadas
de halogênio que Gabriel usava para trabalhar. Seu rosto, com rugas e sulcos profundos, estava travado numa expressão de puro desgosto.
- Eu senti o cheiro desses produtos químicos assim que saí do carro. Imagino o estrago que eles provocaram ao seu corpo depois de todos esses anos.
- Tenho certeza que não é nada comparado ao dano que você provocou - retrucou Gabriel. - Estou surpreso por eu ainda ser capaz de segurar um pincel.
Gabriel tocou o cotonete umedecido na pele de Suzana e o girou devagar. Shamron consultou seu relógio de aço inoxidável e franziu a testa, como se houvesse algo
errado.
- O que foi? - perguntou Gabriel.
- Estou só imaginando quanto tempo vai levar até você me oferecer uma xícara de café.
- Você sabe onde fica tudo. Agora você praticamente mora aqui.
Shamron resmungou alguma coisa em polonês sobre a ingratidão das crianças. Em seguida, ergueu-se do banco com um impulso e, apoiando-se pesada- mente na bengala,
foi até a cozinha. Conseguiu encher a chaleira com água da torneira, mas pareceu perplexo com os diversos botões do fogão. Por duas vezes, Ari Shamron havia sido
diretor do serviço secreto de inteligência de Israel e, antes disso, fora um dos oficiais mais condecorados do mesmo serviço. Agora, contudo, já velho, parecia incapaz
de realizar as tarefas caseiras mais básicas. Cafeteiras, liquidificadores, torradeiras, todos esses utensílios eram um mistério para ele. Gilah, sua esposa resignada,
costumava brincar que, se o grande Ari Shamron fosse deixado sozinho, seria capaz de morrer de fome numa cozinha cheia de comida.
Gabriel acendeu o fogão e voltou ao trabalho. Shamron ficou parado no vão das portas da varanda, fumando. O fedor do tabaco turco logo prevaleceu sobre o odor do
solvente.
- Isso é mesmo necessário? - questionou Gabriel.
- É.
- O que está fazendo em Jerusalém?
- O primeiro-ministro queria dar uma palavra.
- Sério?
Shamron olhou para Gabriel de cara fechada através da cortina de fumaça cinza-azulada.
- Por que um pedido do primeiro-ministro para me ver surpreenderia você?
- Porque...
- Eu sou velho e irrelevante? - completou Shamron.
- Você é exagerado, impaciente e às vezes irracional. Mas você nunca foi irrelevante.
Shamron assentiu. A idade havia lhe dado a habilidade de, pelo menos, perceber suas falhas, apesar de ter roubado o tempo necessário para que ele pudesse remediá-las.
- Como ele está? - perguntou Gabriel.
- Como você pode imaginar.
- Sobre o que vocês conversaram?
- Nossa conversa foi abrangente e franca.
- Isso quer dizer que vocês gritaram um com o outro?
- Eu só gritei com um primeiro-ministro.
- Qual? - indagou Gabriel, realmente curioso.
- Golda. Foi depois de Munique. Eu lhe disse que precisávamos mudar as nossas táticas, aterrorizar os terroristas. Dei a ela uma lista de nomes de homens que deviam
morrer. Golda não queria saber daquilo.
- Então você gritou com ela?
- Não foi meu melhor momento.
- O que ela fez?
- Gritou também, claro. Mas, no fim das contas, compreendeu meu raciocínio. Então, montei outra lista de nomes, dos jovens de quem eu precisava para realizar a operação.
Todos concordaram sem hesitar. - Shamron fez uma pausa, em seguida acrescentou: - Todos menos um.
Em silêncio, Gabriel guardou o cotonete sujo no frasco hermético, que reteve os gases tóxicos do solvente, mas não a memória de seu primeiro encontro com o homem
que eles chamavam de Memuneh, a pessoa encarregada. Ocorrera a poucas centenas de metros de onde ele estava agora, no campus da Academia Bezalel de Artes e Design.
Gabriel tinha acabado de assistir a uma palestra sobre as pinturas de Viktor Frankel, o renomado expressionista alemão que também era seu avô materno. Shamron esperava
por ele na beira de um pátio ensolarado, um homem baixo e esguio, com óculos escuros tenebrosos e dentes afiados, que lembravam uma armadilha de aço. Como sempre,
estava bem preparado. Sabia que a mãe de Gabriel, uma artista talentosa, tinha sobrevivido ao campo de concentração em Birkenau, mas que não conseguira derrotar
o câncer que devastara seu corpo. Também sabia que a língua materna de Gabriel era o alemão e que esse ainda era o idioma no qual ele sonhava. Todas as informações
estavam na pasta que Shamron segurava com dedos manchados de nicotina.
- A operação será chamada Ira de Deus - explicara ele. - Não se trata de justiça. Trata-se de vingança, pura e simplesmente. Queremos vingar as onze vidas inocentes
perdidas em Munique.
Gabriel disse a Shamron para procurar outra pessoa.
- Eu não quero outra pessoa. Eu quero você.
Pelos três anos seguintes, Gabriel e os outros agentes da Ira de Deus seguiram suas presas pela Europa e pelo Oriente Médio. Carregando uma Beretta calibre 22, uma
arma discreta, adequada para matar de perto, Gabriel assassinou seis membros do Setembro Negro. Sempre que possível, atirava onze vezes, uma bala para cada israelense
massacrado em Munique. Quando finalmente voltou para casa, o cabelo ao redor de suas têmporas estava grisalho e seu rosto era o de um homem vinte anos mais velho.
Incapaz de produzir trabalhos de arte originais, ele foi a Veneza para estudar restauração. Então, depois de repousar, voltou a trabalhar para Shamron. Nos anos
que se seguiram, desempenhou algumas das operações mais fabulosas na história da inteligência israelense. Agora, após muitos anos peregrinando incansavelmente, voltara
para Jerusalém. Ninguém ficou mais satisfeito do que Shamron, que amava Gabriel como um filho e tratava o apartamento na rua Narkiss como se fosse o seu próprio.
Em outros tempos, talvez Gabriel tivesse se irritado com a presença constante de Shamron, mas agora isso não o incomodava. O Velho era eterno, mas o corpo em que
seu espírito residia não duraria para sempre.
Nada havia prejudicado mais a saúde de Shamron do que o implacável tabagismo. Fora um hábito adquirido na juventude, no leste da Polônia, e que piorara depois de
sua ida à Palestina, onde lutou na guerra que levou à independência de Israel. Agora, enquanto descrevia a reunião com o primeiro- -ministro, ele abriu seu velho
isqueiro Zippo e o usou para acender mais um cigarro fétido.
- O primeiro-ministro está inquieto, mais do que o normal. Imagino que ele tenha esse direito. O grande Despertar Árabe levou a região toda ao caos. E os iranianos
estão cada vez mais perto de realizarem seus sonhos nucleares. Em breve, vão entrar numa zona de imunidade, impossibilitando uma ação militar nossa sem a ajuda dos
americanos. - Shamron fechou o isqueiro com um estalo e olhou para Gabriel, que tinha voltado a trabalhar na pintura. - Você está me ouvindo?
- Cada palavra.
- Prove.
Gabriel repetiu a última declaração de Shamron palavra por palavra. Shamron sorriu. Ele considerava a memória impecável de Gabriel uma de suas melhores virtudes.
Girou o Zippo entre os dedos. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
- O problema é que o presidente americano não quer demarcar um limite inflexível. Ele diz que não vai permitir que os iranianos construam armas nucleares. Mas não
faz diferença nenhuma dizer isso se os iranianos têm a capacidade de construí-las num curto período de tempo.
- Como os japoneses.
- Os japoneses não são governados por xiitas apocalípticos. Se o presidente americano não tomar cuidado, suas duas conquistas mais relevantes na política externa
serão um Irã nuclear e a restauração do califado islâmico.
- Bem-vindo ao mundo pós-americano, Ari.
- E é por isso que eu acho uma estupidez deixar nossa segurança nas mãos deles. Mas esse não é o único problema do primeiro-ministro. Os generais não têm certeza
se podem destruir o suficiente do programa para fazer com que um ataque militar seja eficiente. E o King Saul Boulevard, liderado por seu amigo Uzi Navot, está dizendo
ao primeiro-ministro que uma guerra unilateral contra os persas seria uma catástrofe de proporções bíblicas.
O King Saul Boulevard era o endereço do serviço secreto de inteligência israelense no exterior. O nome longo e propositalmente enganoso tinha muito pouco a ver com
a verdadeira natureza de suas atividades. Até mesmo agentes aposentados como Gabriel e Shamron se referiam à instalação apenas como “o Escritório”.
- Uzi é que vê a realidade nua e crua todos os dias - falou Gabriel.
- Eu vejo também... Não tudo - acrescentou Shamron às pressas mas o bastante para me convencer de que os cálculos de Uzi sobre quanto tempo nós temos podem estar
errados.
- Matemática nunca foi o ponto forte de Uzi. Mas, quando estava em campo, ele nunca errava.
- Isso porque ele raramente se colocava numa posição em que fosse possível cometer um erro. - Shamron parou de falar, observando o vento mover o eucalipto além do
parapeito da varanda de Gabriel. - Eu sempre disse que uma carreira sem controvérsias não é uma carreira de verdade. Tive o meu quinhão, e você também.
- E tenho as cicatrizes para provar.
- E os louros também - completou Shamron. - O primeiro-ministro está preocupado com a possibilidade de o Escritório ser cauteloso demais quando se trata do Irã.
Sim, nós inserimos vírus em seus computadores e eliminamos um punhado de cientistas, mas faz um tempinho que nada explode. O primeiro-ministro gostaria que Uzi orquestrasse
outra Operação Obra-Prima.
Obra-Prima era o codinome de uma operação conjunta israelense, americana e britânica que resultara na destruição de quatro instalações iranianas secretas de enriquecimento
de urânio. Tinha ocorrido durante o comando de Uzi Navot, mas dentro dos corredores do King Saul Boulevard era considerada uma das maiores conquistas de Gabriel.
- Oportunidades como a Obra-Prima não aparecem todo dia, Ari.
- Isso é verdade - admitiu Shamron. - Mas sempre acreditei que a maioria das oportunidades são conquistadas, e não ganhas. O primeiro-ministro compartilha dessa
opinião.
- Ele perdeu a confiança em Uzi?
- Ainda não. Mas queria saber se eu tinha perdido.
- O que você disse?
- Que escolha eu tinha? Fui eu que o recomendei para o cargo.
- Então você o apoiou?
- Com um porém.
- Qual?
- Eu lembrei ao primeiro-ministro que a pessoa que eu realmente queria
para o trabalho não estava interessada. - Shamron balançou a cabeça devagar.
- Você é o único homem na história do Escritório que recusou uma chance de ser diretor.
- Sempre há uma primeira vez, Ari.
- Isso significa que você poderia reconsiderar?
- É por isso que você está aqui?
- Pensei que você fosse apreciar minha companhia. Eu e o primeiro-ministro estávamos nos perguntando se você estaria disposto a ajudar um dos nossos aliados mais
próximos.
- Qual?
- Graham Seymour veio para a cidade sem aviso prévio. Ele gostaria de uma conversa.
Gabriel se virou para encarar Shamron.
- Sobre o quê? - perguntou depois de um instante.
- Ele não disse, mas acho que é urgente. - Shamron foi até o cavalete e observou o pedaço límpido de tela no qual Gabriel estava trabalhando. - Parece até que a
pintura é recente.
- Esse é o objetivo.
- Alguma chance de você fazer o mesmo por mim?
- Desculpe, Ari - respondeu Gabriel, tocando a bochecha enrugada de Shamron -, mas temo que você esteja além de qualquer restauração.
4
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
Na tarde de 22 de julho de 1946, o grupo sionista extremista conhecido como Irgun detonou uma grande bomba no King David Hotel, sede de todas as forças militares
e civis da Inglaterra na Palestina. O ataque era uma retaliação pela prisão de centenas de combatentes judeus e matou 91 pessoas, incluindo 28 ingleses que ignoraram
um telefonema alertando-os para evacuar o hotel. Embora condenado universalmente, o bombardeio logo se provou um dos atos de violência política mais eficientes já
cometidos. Passados dois anos, os ingleses saíram da Palestina, e o Estado moderno de Israel, outrora um sonho sionista quase inimaginável, tornou-se realidade.
Entre os afortunados que sobreviveram ao bombardeio estava um jovem agente da inteligência britânica chamado Arthur Seymour, um veterano do programa de guerra Double
Cross que tinha sido transferido recentemente para a Palestina com a função de espionar os movimentos de resistência judeus. Era para Seymour estar em seu escritório
no momento do ataque, mas ele atrasou alguns minutos depois de uma reunião com um informante na Cidade Antiga. Ouviu a detonação enquanto passava pelo Portão de
Jaffa e, horrorizado, contemplou parte do hotel desmoronar. A imagem assombraria Seymour pelo resto da vida e moldaria os rumos de sua carreira. Anti-israelense
virulento e fluente em árabe, ele forjou laços desconfortavelmente próximos com muitos inimigos de Israel. Com frequência, era convidado do presidente do Egito,
Gamai Abdel Nasser, e admirador precoce de um jovem revolucionário palestino chamado Yasser Arafat.
Apesar de suas tendências pró-árabes, o Escritório considerou Arthur Seymour um dos oficiais mais competentes do MI6 no Oriente Médio. Por isso, houve certa surpresa
quando o único filho de Arthur, Graham, optou por uma carreira no MI5 em vez do mais glamoroso Serviço Secreto de Inteligência. Seymour, o Jovem - como era conhecido
no início da carreira -, serviu primeiro na contrainteligência, operando contra a KGB em Londres. Então, após a queda do Muro de Berlim e com a ascensão do fanatismo
islâmico, foi promovido a chefe de contraterrorismo. Agora, como vice-diretor do MI5, era forçado a aplicar sua experiência em ambas as disciplinas. Atualmente,
havia mais espiões russos operando em Londres do que no auge da Guerra Fria. E, graças aos erros de sucessivos governos britânicos, o Reino Unido abrigava milhares
de militantes muçulmanos do mundo árabe e da Ásia. Seymour chamava Londres de “Kandahar no Tâmisa”. Intimamente, temia que seu país estivesse escorregando cada vez
mais na direção de um abismo civilizacional.
Embora tivesse herdado a paixão do pai pela espionagem, Graham Seymour não compartilhava de forma alguma seu desdém por Israel. De fato, sob sua condução, o MI5
havia se aproximado do Escritório e, em especial, de Gabriel Allon. Os dois se consideravam membros de uma irmandade secreta que fazia as tarefas desagradáveis que
ninguém mais estava disposto a fazer, deixando para se preocupar com as consequências depois. Tinham lutado um pelo outro, sangrado um pelo outro e, em alguns casos,
matado um pelo outro. Eram tão próximos quanto dois espiões de serviços opostos poderiam ser, o que significava que tinham uma leve desconfiança mútua.
- Alguém no hotel não sabe quem você é? - perguntou Seymour, dando um aperto de mão em Gabriel como se o estivesse encontrando pela primeira vez.
- A garota na recepção perguntou se eu estava aqui para o bar mitzvah dos Greenbergs.
Seymour abriu um sorriso discreto. Com sua aparência vigorosa e queixo robusto, parecia o arquétipo de um barão colonial britânico, um homem que decidia questões
importantes e nunca servia o próprio chá.
- Dentro ou fora? - perguntou Gabriel.
- Fora - respondeu Seymour.
Eles ocuparam uma mesa no terraço, Gabriel voltado para o hotel e Seymour de frente para os muros da Cidade Antiga. Agora era a calmaria entre o café da manhã e
o almoço; haviam passado poucos minutos das onze horas. Gabriel só tomou café, mas Seymour pediu bastante comida. Sua esposa era uma cozinheira entusiástica, mas
pavorosa. Para Seymour, comida de avião era um mimo, e um brunch de hotel, mesmo feito na cozinha do King David, era uma ocasião a ser apreciada. O mesmo valia,
pelo visto, para a vista da Cidade Antiga.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse ele entre as mordidas na omelete -, mas esta é a minha primeira visita ao seu país.
- Eu sei. Está tudo no seu arquivo.
- É uma leitura interessante?
- Tenho certeza de que não deve ser nada em comparação com o que seu serviço tem sobre mim.
- Como poderia se comparar? Não passo de um humilde lacaio do Serviço Secreto de Sua Majestade. Você, por outro lado, é uma lenda. Afinal - acrescentou Seymour,
falando mais baixo quantos agentes de inteligência podem dizer que pouparam o mundo de um apocalipse?
Gabriel olhou por cima do ombro e fitou o Domo da Rocha, o terceiro lugar mais sagrado do Islã, resplandecente sob a luz cristalina do sol de Jerusalém. Cinco meses
antes, numa câmara secreta 50 metros abaixo da superfície do Monte do Templo, ele havia descoberto uma bomba que, caso fosse detonada, derrubaria todo o platô. Também
encontrara 22 pilares do Templo de Jerusalém do rei Salomão, provando que o antigo santuário judeu descrito no Livro de Reis e de Crônicas tinha de fato existido.
Embora o nome de Gabriel não tivesse aparecido na cobertura de imprensa da monumental revelação, seu envolvimento era bem conhecido em certos círculos da comunidade
ocidental de inteligência. Também se sabia que seu amigo mais próximo, Eli Lavon, renomado arqueólogo bíblico e agente do Escritório, quase morrera tentando salvar
os pilares da destruição.
- Foi uma sorte dos diabos aquela bomba não ter explodido - comentou Seymour. - Se tivesse, milhões de muçulmanos chegariam às suas fronteiras numa questão de horas.
E depois... - A voz de Seymour se perdeu.
- Seria o fim do jogo para o empreendimento conhecido como Estado de Israel - completou Gabriel. - Esse era exatamente o objetivo dos iranianos e de seus amigos
do Hezbollah.
- Não consigo imaginar como foi ter visto aqueles pilares pela primeira vez.
- Para ser sincero, Graham, não tive tempo para saborear o momento. Estava ocupado demais tentando manter Eli vivo.
- Como ele está?
- Passou dois meses no hospital, mas está quase cem por cento. Na verdade, até voltou a trabalhar.
- Para o Escritório?
Gabriel balançou a cabeça.
- Ele está escavando o Túnel do Muro das Lamentações de novo. Posso providenciar uma visita guiada, se você quiser. Aliás, se tiver interesse, posso mostrar a passagem
secreta que leva direto ao Monte do Templo.
- Não sei se meu governo aprovaria. - Seymour ficou em silêncio enquanto um garçom enchia suas xícaras de café. Então, quando estavam a sós novamente, continuou:
- Então o rumor é verdadeiro, afinal.
- Que rumor?
- De que o filho pródigo enfim voltou para casa. É engraçado - acrescentou ele, com um sorriso triste mas eu sempre imaginei que você passaria o resto da vida caminhando
pelos penhascos da Cornualha.
- É um lugar lindo, Graham. Mas a Inglaterra é a sua casa, não a minha.
- Às vezes sinto que não parece mais ser a minha casa. Helen e eu compramos uma casa em Portugal há pouco tempo. Em breve vou ser um exilado, assim como você foi.
- Sério?
- Não é nada iminente. Mas, no fim, todas as coisas boas devem terminar.
- Você teve uma grande carreira, Graham.
- Tive? É difícil mensurar o sucesso no campo da segurança, não é? Somos julgados com base em coisas que não acontecem: os segredos que não são roubados, os edifícios
que não explodem. Pode ser uma forma profundamente insatisfatória de se ganhar a vida.
- O que você vai fazer em Portugal?
- Helen vai tentar me envenenar com a sua culinária exótica e eu vou pintar paisagens terríveis de aquarela.
- Nunca soube que você pintava.
- Por uma boa razão. - Seymour observou a paisagem e franziu a testa, como se aquilo estivesse muito além do alcance de seu pincel e sua paleta. - Meu pai estaria
se revirando no túmulo se soubesse que estou aqui.
- Então por que você está aqui?
- Estava me perguntando se você se disporia a encontrar algo para um amigo meu.
- O amigo tem um nome?
Em vez de responder, Seymour abriu a maleta e pegou uma fotografia ampliada, passando-a para Gabriel. Mostrava uma jovem atraente que olhava direto para a câmera,
segurando uma edição do International Herald Tribune de três dias antes.
- Madeline Hart? - perguntou Gabriel.
Seymour assentiu. Então, passou uma folha A4 para Gabriel. Continha uma única frase, escrita em uma fonte sem serifa:
Em sete dias a garota morre.
- Merda - praguejou Gabriel baixinho.
- Receio que fique ainda melhor.
Por coincidência, a administração do King David colocou Graham Seymour, o único filho de Arthur Seymour, na mesma ala do hotel que fora destruída em 1946. Seymour
ficou no mesmo corredor do quarto que seu pai tinha usado como escritório no fim do mandato britânico na Palestina. Ao chegar, eles depararam com o aviso de NÃO
PERTURBE pendurado na maçaneta, além de uma embalagem plástica contendo o Jerusalém Post e o Haaretz. Seymour conduziu Gabriel para dentro. Ao verificar que ninguém
havia entrado no quarto durante sua ausência, pôs um DVD para ser reproduzido no laptop. Poucos segundos depois, Madeline Hart, cidadã britânica desaparecida e funcionária
do partido da situação na Inglaterra, apareceu na tela.
“Eu tive relações sexuais com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster pela primeira vez na conferência do Partido em Manchester, em outubro de 2012...”
5
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
O vídeo tinha sete minutos e doze segundos de duração. O tempo todo, Madeline manteve os olhos focados num ponto ligeiramente à esquerda da câmera, como se respondesse
a perguntas feitas por um entrevistador de televisão. Relutante, assustada e exausta, descreveu como tinha conhecido o primeiro-ministro durante uma de suas visitas
à sede do Partido em Millbank. Lancaster havia expressado admiração pelo trabalho de Madeline e, em duas ocasiões, convidou-a para a sede do governo, a fim de receber
informações diretamente dela. No fim da segunda visita, ele admitiu que seu interesse em Madeline não era apenas profissional. O primeiro encontro sexual foi bem
rápido, num quarto de hotel em Manchester. Depois disso, ela passou a ser levada à Downing Street por um velho amigo do primeiro-ministro, sempre que Diana Lancaster
estivesse fora de Londres.
- E agora - falou Seymour, melancólico, enquanto a tela do computador escurecia - o primeiro-ministro do Reino Unido está sendo punido por seus pecados com uma tentativa
primitiva de chantagem.
- Não há nada de primitivo nisso, Graham. Quem está por trás disso sabia que o primeiro-ministro estava envolvido num caso extraconjugal. E conseguiu fazer sua amante
desaparecer da Córsega sem deixar rastros. É óbvio que se trata de alguém extremamente sofisticado.
Seymour tirou o DVD do computador sem dizer nada.
- Quem mais sabe?
Seymour explicou que os três itens - a fotografia, o bilhete e o DVD - haviam sido deixados na manhã anterior em frente à porta de Simon Hewitt, que os levara até
a Downing Street e os mostrara para Jeremy Fallon. Também contou que Hewitt e Fallon confrontaram Lancaster em seu escritório na sede. Gabriel, que havia residido
pouco tempo antes no Reino Unido, conhecia bem os envolvidos: Hewitt, Fallon, Lancaster, a santíssima trindade da política britânica. Hewitt era especialista em
usar a mídia a favor do governo, Fallon era o mestre maquinador e estrategista, e Lancaster era o talento político em pessoa.
- Por que Lancaster escolheu você? - perguntou Gabriel.
- Nossos pais trabalharam juntos no serviço de inteligência.
- Com certeza há mais alguma razão.
- De fato - admitiu Seymour. - Seu nome é Siddiq Hussein.
- Acho que não conheço.
- Por uma boa razão. Graças a mim, Siddiq desapareceu num buraco negro vários anos atrás, para nunca mais ser visto.
- Quem era ele?
- Siddiq Hussein, nascido no Paquistão, era um residente de Tower Hamlets no leste de Londres. Ele apareceu nos nossos radares depois dos bombardeios de 2007, quando
finalmente tomamos juízo e começamos a tirar os muçulmanos radicais das ruas. Você se lembra daqueles dias - disse Seymour com amargura.
- Os dias em que a esquerda e a mídia insistiram que deveríamos fazer algo a respeito dos terroristas entre nós.
- Continue, Graham.
- Siddiq estava convivendo com extremistas conhecidos na grande mesquita do leste de Londres e o número do seu celular aparecia em todos os lugares errados. Eu dei
uma cópia dos arquivos dele para a Scotland Yard, mas o Comando de Contraterrorismo disse que não havia evidência suficiente para agir contra ele. Então Siddiq fez
algo que me deu uma oportunidade de cuidar do problema pessoalmente.
- O que ele fez?
- Agendou um voo para o Paquistão.
- Grande erro.
- Fatal, na verdade - falou Seymour, sombrio.
- O que aconteceu?
- Nós o seguimos até Heathrow e garantimos que ele subisse em seu avião para Karachi. Em seguida, fiz uma ligação discreta para um velho amigo em Langley, Virgínia.
Acho que você o conhece bem.
- Adrian Carter.
Seymour assentiu. Adrian Carter era o diretor do Serviço Clandestino Nacional. Ele supervisionava a guerra global da CIA contra o terrorismo, incluindo os programas
outrora secretos para deter e interrogar agentes de alto nível.
- A equipe de Carter observou Siddiq em Karachi por três dias - continuou Seymour. - Então cobriram sua cabeça com um saco e o colocaram no primeiro voo clandestino
para fora do país.
- Para onde eles o levaram?
- Cabul.
- Para a prisão de Salt Pit?
Seymour aquiesceu devagar.
- Quando tempo ele durou?
- Isso depende de para quem você perguntar. De acordo com o relato da Agência, Siddiq foi encontrado morto em sua cela dez dias depois de chegar a Cabul. Sua família
alegou num processo que ele morreu durante a tortura.
- O que isso tem a ver com o primeiro-ministro?
- Quando os advogados que representavam a família de Siddiq pediram todos os documentos do MI5 referentes ao caso, o governo de Lancaster se recusou a atendê-los,
alegando que isso prejudicaria a segurança nacional britânica. Ele salvou a minha carreira.
- E agora você quer quitar essa dívida tentando salvar o pescoço dele? - Como
Seymour não respondeu, Gabriel acrescentou: - Isso vai acabar mal, Graham.
E, quando acabar, seu nome vai aparecer com destaque no inevitável inquérito.
- Eu deixei claro que, se isso acontecer, vou levar todo mundo junto, incluindo Lancaster.
- Nunca tomei você por uma pessoa ingênua, Graham.
- Sou tudo menos isso.
- Então se afaste. Volte para Londres e diga ao primeiro-ministro para aparecer diante das câmeras com a esposa ao lado, fazendo um apelo público para que os sequestradores
soltem a garota.
- É tarde demais para isso. Além do mais, talvez eu seja um pouco antiquado, mas não gosto quando as pessoas tentam chantagear o líder do meu país.
- O líder do seu país sabe que você está em Jerusalém?
- Você só pode estar brincando.
- Por que eu?
- Porque, se o MI5 ou qualquer serviço de inteligência tentar encontrá-la, o caso vai vazar, assim como o de Siddiq Hussein vazou. E você é bom em encontrar coisas
- continuou Seymour, falando baixo. - Pilares antigos, Rembrandts roubados, instalações iranianas secretas de enriquecimento.
- Desculpe, Graham, mas...
- E porque você também deve uma a Lancaster.
- Eu?
- Quem você acha que autorizou sua estadia na Cornualha com um nome falso quando nenhum outro país o aceitaria? E quem você pensa que o deixou recrutar uma jornalista
britânica quando precisava penetrar na cadeia de fornecimento iraniana?
- Não sabia que estávamos contando pontos, Graham.
- Não estamos. Mas, se estivéssemos, você certamente estaria perdendo a partida.
Os dois caíram num silêncio desconfortável, como se estivessem constrangidos pelo tom do debate. Seymour olhou para o teto, e Gabriel para o bilhete.
Em sete dias a garota morre...
- Um tanto vago, não acha?
- Mas muito eficiente - afirmou Seymour. - Atraiu a atenção de Lancaster.
- Nenhuma exigência?
Seymour balançou a cabeça.
- É óbvio que eles querem revelar seu preço no último minuto. E querem que Lancaster esteja desesperado para salvar a própria pele, pronto a concordar em pagar qualquer
coisa.
- Quanto o seu primeiro-ministro vale?
- Na última vez que dei uma olhadinha em suas contas bancárias - respondeu Seymour jocosamente ele tinha mais de 100 milhões.
- De libras?
Seymour assentiu.
- Jonathan Lancaster fez milhões no centro financeiro londrino, ganhou uma herança milionária e casou-se com a igualmente milionária Diana Baldwin. Ele é um alvo
perfeito, um homem com mais dinheiro do que precisa e com muito a perder. Diana e as crianças vivem na bolha de segurança da Downing Street, logo seria quase impossível
sequestrá-las. Mas a amante de Lancaster... - A voz de Seymour se perdeu. - Uma amante é algo completamente diferente.
- Imagino que Lancaster não tenha comentado sobre isso com a esposa.
Seymour fez um gesto com as mãos indicando que não tinha acesso ao funcionamento interno do casamento de Lancaster.
- Você já trabalhou com um caso de sequestro, Graham?
- Nenhum desde a Irlanda do Norte. E aqueles foram todos relacionados ao IRA.
- Sequestros políticos são diferentes de sequestros criminais - explicou Gabriel. - O sequestrador político comum é um sujeito racional. Ele quer que companheiros
sejam soltos ou que uma política seja modificada, então agarra um político importante ou um ônibus escolar cheio de crianças e os mantém como reféns até que suas
demandas sejam cumpridas. Mas o sequestrador criminoso só quer dinheiro. E, se você paga, faz com que ele queira mais dinheiro. Então ele fica pedindo dinheiro até
achar que não sobrou mais nada.
- Então acho que nos resta apenas uma opção.
- Qual?
- Encontrar a garota.
Gabriel foi até a janela e olhou para além do vale, na direção do Monte do Templo. Por um segundo, ele se viu de volta à caverna secreta 50 metros abaixo da superfície,
segurando Eli Lavon enquanto seu sangue era bombeado para o coração da montanha sagrada. Durante as longas noites que passou ao lado de Lavon no leito de hospital,
Gabriel jurou que nunca poria os pés de novo no campo de batalha do serviço secreto. Mas agora um velho amigo havia surgido das profundezas de seu passado emaranhado
para pedir um favor. E mais uma vez Gabriel estava se esforçando para encontrar as palavras que o mandariam embora de mãos vazias. Como filho único de sobreviventes
do Holocausto, desapontar outras pessoas não estava em sua natureza. Ele fazia concessões e raramente dizia não.
- Mesmo se eu for capaz de encontrá-la - disse ele depois de um tempo os sequestradores ainda vão ter o vídeo da confissão dela.
- Mas o vídeo terá um impacto bem diferente se a rosa inglesa estiver sã e salva em solo britânico.
- A menos que a rosa inglesa decida contar a verdade.
- Ela é leal ao Partido. Não se atreveria.
- Você não tem ideia do que eles fizeram com ela - retrucou Gabriel. - A esta altura, pode ser uma pessoa completamente diferente.
- É verdade. Mas estamos nos precipitando. Esta conversa é inútil se você e seu serviço não empreenderem uma operação para encontrar Madeline Hart.
- Eu não tenho autoridade para colocar meu serviço à sua disposição, Graham. A decisão é do Uzi, não minha.
- Uzi já autorizou - respondeu Seymour sem emoção. - Assim como Shamron.
Gabriel encarou Seymour com desaprovação, mas não disse nada.
- Você realmente acha que Ari Shamron teria me deixado chegar a menos de um quilômetro de você sem saber que eu estava na cidade? - questionou Seymour. - Ele é muito
protetor quando se trata de você.
- Ele tem um jeito engraçado de demonstrar isso. Mas receio que ainda exista uma pessoa em Israel mais poderosa do que Shamron, pelo menos no que diz respeito a
mim.
- Sua esposa?
Gabriel assentiu.
- Em sete dias a garota morre.
- Seis dias - corrigiu Gabriel. - A garota pode estar em qualquer lugar do mundo e não temos uma única pista.
- Isso não é exatamente verdade.
Seymour enfiou a mão na maleta e pegou duas fotografias da Interpol do homem com quem Madeline Hart tinha almoçado na tarde em que desaparecera. O homem cujos sapatos
não deixavam marcas. O homem esquecido.
- Quem é ele? - perguntou Gabriel.
- Boa pergunta. Mas, se você puder encontrá-lo, suspeito que encontre Madeline Hart.
6
MUSEU DE ISRAEL, JERUSALÉM
Gabriel pegou um único item de Graham Seymour - a fotografia de Madeline Hart - e o levou para a região oeste de Jerusalém, até o Museu de Israel. Depois de deixar
o carro no estacionamento para funcionários - um privilégio que haviam lhe concedido recentemente atravessou o enorme hall de entrada feito de vidro e chegou até
a sala que alojava a coleção de arte europeia. Num canto estavam penduradas nove pinturas impressionistas que antes pertenciam a um banqueiro suíço chamado Augustus
Roube. Uma plaqueta descrevia a longa jornada que as pinturas tinham feito a partir de Paris - como foram saqueadas pelos nazistas em 1940 e transferidas para Roube
em troca de serviços prestados à inteligência alemã. Mas não chegava a mencionar o fato de que Gabriel e a filha do banqueiro, a renomada violinista Anna Roube,
tinham descoberto as pinturas num cofre em Zurique, nem que um consórcio de empresários suíços havia contratado um assassino profissional corso para matar Gabriel
e Anna.
Na galeria adjacente estavam pinturas de artistas israelenses. Três telas eram da mãe de Gabriel, incluindo um retrato assombroso da marcha da morte de Auschwitz
em janeiro de 1945, feito com base em suas memórias. Gabriel passou um bom tempo admirando o desenho e as pinceladas antes de sair para o jardim das esculturas.
Na outra extremidade, erguia-se o Santuário do Livro, uma estrutura em forma de colmeia que continha os Manuscritos do Mar Morto. Ao lado dessa ala ficava a mais
nova construção do museu, com 60 côvados de comprimento, 20 de largura e 30 de altura. Por enquanto, o espaço estava coberto por uma lona opaca para construções,
que escondia os 22 pilares do Templo de Salomão do resto do mundo.
Havia seguranças bem armados em ambos os lados da construção e na entrada que ficava voltada para o leste, assim como no templo original de Salomão. Esse era apenas
um elemento do projeto curatorial mais controverso que o mundo já conhecera. Os haredim ultraortodoxos de Israel tinham denunciado a exposição como uma afronta a
Deus que acabaria levando à destruição do Estado judeu, enquanto na parte leste de Jerusalém, que abrigava a população árabe, os mantenedores do Domo da Rocha declararam
que os pilares eram um embuste elaborado.
- Nunca houve Templo no Monte do Templo - escreveu o grande mufti de Jerusalém numa carta aberta publicada pelo New York Times - e nenhuma exposição ou museu vai
mudar esse fato.
Apesar das violentas batalhas religiosas e políticas, a organização da exposição progredia de forma consideravelmente rápida. Poucas semanas após a descoberta de
Gabriel, aprovaram-se os planos arquitetônicos, angariaram-se fundos e foi iniciada a construção. Boa parte do crédito pertencia à diretora e designer-chefe italiana.
Em público, referiam-se a ela por seu nome de solteira, Chiara Zolli. Mas todas as pessoas associadas ao projeto sabiam que ela se chamava Chiara Allon.
Os pilares foram dispostos da mesma forma em que Gabriel os encontrara, em duas fileiras retas separadas por cerca de 6 metros. O mais alto estava enegrecido pelo
fogo do incêndio provocado pelos babilônios na noite em que derrubaram o Templo - considerado pelos judeus da Antiguidade como a moradia de Deus na Terra. Fora a
esse pilar que Eli Lavon se agarrara quando estava à beira da morte, e foi lá que Gabriel encontrou Chiara agora segurando uma prancheta e gesticulando na direção
do teto de vidro. Ela vestia jeans desbotados, sandálias sem salto e um moletom branco sem mangas que marcava bem as curvas de seu corpo. Os braços descobertos estavam
bem bronzeados pelo sol de Jerusalém. Chiara parecia incrivelmente linda, pensou Gabriel, e jovem demais para ser a esposa de um sujeito tão acabado quanto ele.
No alto da obra, dois técnicos estavam fazendo ajustes nas luzes da exposição sob a supervisão de Chiara. Ela falava com eles em hebraico, com um sotaque italiano
acentuado. Filha do rabino-chefe de Veneza, havia passado a juventude no mundo provinciano de um gueto, partindo apenas por tempo suficiente para cursar o mestrado
em História Romana na Universidade de Pádua. Ela voltara a Veneza depois de se graduar e aceitara um emprego num pequeno museu judaico no Campo del Ghetto Nuovo,
e talvez tivesse permanecido lá para sempre se um observador de talentos do Escritório não tivesse reparado nela durante uma visita a Israel. O homem apresentara-se
num café de Tel Aviv e perguntara a Chiara se ela estaria interessada em fazer mais pelo povo judeu do que trabalhando no museu de um gueto moribundo.
Após passar um ano no programa de treinamento secreto do Escritório, ela retomou sua vida antiga, já como agente secreta israelense. Uma de suas primeiras tarefas
foi ficar na retaguarda de um assassino do Escritório chamado Gabriel Allon, que tinha ido a Veneza para restaurar o retábulo de San Zaccaria, de Bellini. Chiara
revelou-se a ele pouco tempo depois, em Roma, após um incidente envolvendo tiroteios e a polícia italiana. A sós com Chiara em um esconderijo, Gabriel sentiu uma
vontade desesperadora de tocá-la. Esperou até que o caso fosse resolvido e eles voltassem a Veneza. Lá, numa casa à beira de um canal em Cannaregio, fizeram amor
pela primeira vez, numa cama com frescos lençóis de linho. Era como fazer amor com uma figura pintada por Veronese.
Agora, ela virou a cabeça e, notando Gabriel pela primeira vez, sorriu. Seus olhos, largos e meio orientais, tinham cor de caramelo e manchas douradas, uma combinação
que Gabriel nunca fora capaz de reproduzir com precisão na tela. Vários meses já haviam se passado desde que Chiara concordara em posar para ele. A exposição a deixara
com pouco tempo para outros afazeres. Era uma mudança clara no padrão do casamento. Em geral era Gabriel que se via consumido por um projeto, fosse uma pintura ou
uma operação, mas agora os papéis estavam invertidos. Organizadora inata e sempre meticulosa, Chiara conseguia progredir mesmo sob a pressão da exposição. Mas, secretamente,
Gabriel antecipava o dia em que a teria de volta.
Ela caminhou até o pilar seguinte e observou como a luz incidia sobre ele.
- Eu liguei para o apartamento alguns minutos atrás, mas ninguém atendeu.
- Eu estava num brunch com Graham Seymour no King David.
- Que adorável - comentou ela, sarcástica. Em seguida, ainda analisando os pilares, perguntou: - O que tem no envelope?
- Uma oferta de emprego.
- Quem é o artista?
- Desconhecido.
- E o tema?
- Uma garota chamada Madeline Hart.
Gabriel voltou para o jardim de esculturas e sentou-se num banco com vista para as colinas de Jerusalém Ocidental. Alguns minutos depois, Chiara juntou-se a ele.
Um suave vento outonal moveu os seus cabelos. Ela afastou uma mecha do rosto e cruzou as pernas, com a sandália pendente do pé bronzeado. De repente, a última coisa
que Gabriel queria fazer era deixar Jerusalém para procurar uma garota desconhecida.
- Vamos tentar de novo... - disse ela, por fim. - O que tem no envelope?
- Uma foto.
- Que tipo de foto?
- Prova de vida.
Chiara estendeu a mão. Gabriel hesitou.
- Tem certeza?
Chiara assentiu e Gabriel lhe entregou o envelope. Ela o abriu e retirou a foto. Enquanto examinava a imagem, seu rosto ficou sombrio. Claramente vinha à sua memória
um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Gabriel tinha tirado tudo de Ivan: seus negócios, seu dinheiro, sua mulher e filhos. Em seguida, o oligarca retaliara
capturando Chiara. A operação de resgate foi a mais sangrenta em toda a longa carreira de Gabriel: ele matara onze agentes inimigos. E, numa rua tranquila em Saint-Tropez,
também assassinara Ivan. Mesmo morto, Ivan permaneceria como parte de suas vidas. As injeções de ketamina que seus homens haviam aplicado em Chiara fizeram-na perder
o bebê. Como ela não recebera tratamento, o aborto prejudicara sua capacidade de ter filhos. Chiara quase tinha perdido qualquer esperança de ficar grávida de novo.
Ela colocou a foto no envelope e o devolveu a Gabriel. Então, escutou com atenção enquanto ele explicava como o caso tinha caído no colo de Graham Seymour, para
então chegar ao seu.
- Então o primeiro-ministro britânico está forçando Graham Seymour a fazer o trabalho sujo dele - disse Chiara quando Gabriel terminou e Graham está fazendo o mesmo
com você.
- Ele tem sido um bom amigo.
O rosto de Chiara não revelava nenhuma expressão. Seus olhos, normalmente uma janela confiável para seus pensamentos, estavam ocultos atrás de óculos escuros.
- O que você acha que eles querem? - perguntou ela depois de um tempo.
- Dinheiro. Eles sempre querem dinheiro.
- Quase sempre. Mas às vezes querem coisas que não dá para ceder.
Ela tirou os óculos e os pendurou na camiseta.
- Quanto tempo você tem antes de eles a matarem? - Como Gabriel ficou em silêncio, ela balançou a cabeça devagar. - É um caso impossível. Você não poderia encontrá-la
a tempo.
- Olhe para a construção atrás de você. Depois me fale se ainda sente o mesmo.
Chiara não olhou para nada além do rosto de Gabriel.
- A polícia francesa está buscando Madeline Hart há mais de um mês. O que faz você pensar que pode encontrá-la?
- Talvez eles não tenham procurado no lugar certo... ou falado com as pessoas certas.
- Por onde você começaria? Eu sempre acreditei que o melhor lugar para iniciar uma investigação é na cena do crime.
Chiara pegou os óculos e limpou as lentes na calça jeans, distraída. Gabriel sabia que aquilo era um mau sinal: a esposa sempre limpava coisas quando estava aborrecida.
- Desse jeito você vai arranhar as lentes.
- Estão imundas - retrucou ela no mesmo instante.
- Talvez você devesse arrumar um estojo em vez de jogar os óculos na bolsa.
Ela não respondeu nada.
- Você sempre me surpreende, Chiara.
- Por quê?
- Porque você sabe melhor do que qualquer pessoa que Madeline Hart está no inferno. E ela vai ficar no inferno até que alguém a tire de lá.
- Eu só gostaria que outra pessoa fizesse o serviço.
- Não há outra pessoa.
- Ninguém como você.
Ela examinou as lentes e franziu a testa.
- O que houve?
- Estão arranhadas.
- Eu avisei.
- Você sempre tem razão, querido.
Chiara colocou os óculos e olhou na direção da cidade.
- Imagino que Shamron e Uzi já tenham dado suas bênçãos.
- Graham os procurou antes de falar comigo.
- Que esperto da parte dele. - Chiara descruzou as pernas e se levantou. - Eu preciso voltar. Não temos muito tempo antes da abertura.
- Você tem feito um trabalho magnífico, Chiara.
- Ficar me bajulando não vai ajudar.
- Achei que valia tentar.
- Quando vou vê-lo de novo?
- Só tenho sete dias para encontrá-la.
- Seis - ela o corrigiu. - Em seis dias a garota morre.
Chiara lhe deu um beijo suave. Em seguida, virou-se e atravessou o jardim ensolarado, os quadris balançando como se seguissem o ritmo de uma música que só ela conseguisse
ouvir. Gabriel a observou entrar na construção coberta pela lona. Agora, a última coisa que ele queria fazer era deixar Jerusalém em busca de uma garota desconhecida.
Ele voltou ao King David Hotel para recolher o resto do dossiê de Graham Seymour: o bilhete de exigências que não continha nenhuma exigência, o DVD da confissão
de Madeline e as duas fotos do homem de Les Palmiers em Calvi. Além disso, requisitou uma cópia do arquivo pessoal de Madeline no Partido, a ser entregue em um endereço
em Nice.
- Como foi com Chiara? - perguntou Seymour.
- A esta altura, meu casamento pode estar pior que o de Lancaster.
- Algo que eu possa fazer?
- Saia da cidade o mais rápido possível. E não mencione meu nome para o seu primeiro-ministro nem para qualquer outra pessoa na Downing Street.
- Como posso entrar em contato com você?
- Mando um sinal de fumaça quando tiver notícias. Até lá, eu não existo.
Com essas palavras, Gabriel partiu. Voltando para a rua Narkiss, encontrou um cinto de dinheiro na mesa de centro com 200 mil dólares. Ao lado, havia uma passagem
de avião, de um voo das 16 horas para Paris. A reserva fora feita no nome de Johannes Klemp, uma de suas identidades falsas favoritas. Gabriel entrou no quarto e
encheu uma pequena bolsa de viagem com as roupas modernas de Herr Klemp, separando um terno e um casaco pretos para o voo. Então, em frente ao espelho do banheiro,
fez algumas alterações sutis em sua própria aparência: um pouco de grisalho no cabelo, óculos alemães sem aro, lentes de contato castanhas para esconder os característicos
olhos verdes. Em poucos minutos, mal reconhecia o rosto no reflexo. Ele não era mais Gabriel Allon, o anjo vingador de Israel, mas Johannes Klemp, de Munique, um
homem sempre pronto a se ressentir - pequeno, insignificante e carrancudo.
Depois de vestir o terno e passar a fragrância tenebrosa de Herr Klemp, sentou à penteadeira de Chiara e abriu sua caixa de joias. Um item pareceu estranhamente
fora de lugar: um coral-vermelho em forma de mão, preso a uma tira de couro. Ele o pegou e o colocou no bolso. Então, por razões que ele mesmo não saberia explicar,
pendurou o artefato no pescoço e o escondeu sob o casaco de Herr Klemp.
Diante da casa, um sedã do Escritório estava parado com o motor ligado. Gabriel jogou a bolsa no banco de trás e entrou. Em seguida, consultou o relógio, não para
ver as horas, mas a data: 27 de setembro. Já tinha sido seu dia favorito do ano.
- Qual o seu nome? - perguntou ao motorista.
- Lior.
- De onde você é, Lior?
- Berseba.
- Era um bom lugar para uma criança?
- Existem lugares piores.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e cinco.
Vinte e cinco, pensou Gabriel. Por que tinha que ser aquela idade? Olhou de novo para o relógio. Não para a hora; para a data.
- Quais foram suas instruções?
- Disseram-me para levá-lo ao Ben Gurion - respondeu Lior.
- Mais alguma coisa?
- Falaram que talvez você quisesse fazer uma parada no caminho.
- Quem falou isso? Uzi?
- Não. Foi o Velho.
Então ele lembrava, pensou Gabriel. Olhou de novo para o relógio. A data...
- Como devo proceder? - perguntou o motorista.
- Leve-me ao aeroporto.
- Nenhuma parada?
- Só uma.
Lior engrenou a marcha e se afastou suavemente da calçada, como se estivesse se juntando a um cortejo fúnebre. Não se deu o trabalho de perguntar para onde estavam
indo. Era 27 de setembro. E Shamron se lembrava.
Eles foram até o jardim de Getsêmani e seguiram o caminho estreito e sinuoso que subia a encosta do monte das Oliveiras. Gabriel entrou no cemitério sozinho e passou
pelo mar de lápides, até chegar ao túmulo de Daniel Allon, nascido no dia 27 de setembro de 1988, morto no dia 13 de janeiro de 1991, numa noite de neve no Primeiro
Distrito de Viena, num Mercedes azul destruído por uma bomba. O artefato fora plantado por um líder terrorista palestino chamado Tariq al-Hourani, sob ordens diretas
de Yasser Arafat. Gabriel não era o alvo; aquilo seria leniente demais. Tariq e Arafat queriam puni-lo forçando-o a assistir à morte de sua mulher e filho, para
que pudesse passar o resto da vida de luto, assim como os palestinos. Apenas um elemento da trama falhara: Leah sobrevivera ao inferno. Agora ela vivia num hospital
psiquiátrico no topo do monte Herzl, prisioneira da própria memória e de um corpo destruído pelo fogo. Tomada por uma combinação de estresse pós-traumático e depressão
psicótica, revivia constantemente o atentado. De vez em quando, tinha lampejos de lucidez. Durante um desses períodos, ela concedera a Gabriel permissão para se
casar com Chiara. Olhe para mim, Gabriel. Não resta nada de mim. Nada além de uma memória.
Gabriel consultou o relógio de novo. Não olhando a data, mas a hora. Havia tempo para uma última despedida. Uma última torrente de lágrimas. Um último pedido de
desculpas por ter deixado de vasculhar o carro antes de Leah dar partida. Em seguida, ele se afastou cambaleante do jardim de pedra, no dia que já fora o seu favorito
do ano, e subiu na traseira de um sedã do Escritório que era conduzido por um garoto de 25 anos.
Lior teve o bom senso de não falar uma palavra sequer durante o caminho até o aeroporto. Gabriel entrou no terminal como um viajante qualquer, mas então foi a uma
sala reservada para a equipe do Escritório, onde esperou seu voo ser chamado. Ao se acomodar no assento de primeira classe, sentiu um impulso não profissional de
ligar para Chiara. Usando técnicas que lhe foram ensinadas na juventude por Shamron, ele a afastou de seus pensamentos. Agora não havia Chiara. Nem Daniel. Nem Leah.
Havia apenas Madeline Hart, a amante sequestrada do primeiro-ministro britânico Jonathan Lancaster. Enquanto o avião decolava em direção ao céu que começava a escurecer,
ela apareceu para Gabriel num retrato a óleo, como Suzana banhando-se num jardim. Espiando-a de trás de um muro estava um homem com um rosto anguloso e uma boca
pequena e cruel. O homem sem nome nem país. O homem esquecido.
7
CÓRSEGA
Os corsos dizem que, ao se aproximarem de barco de sua ilha, são capazes de sentir o cheiro da vegetação cerrada característica - chamada ali de Mac chia - muito
antes de vislumbrarem o contorno acidentado da costa se erguendo do mar. Gabriel não teve essa experiência, pois chegou à Córsega de avião, no primeiro voo matinal
que partiu de Orly. Só quando estava ao volante de um Peugeot alugado, saindo do aeroporto de Acácio em direção ao sul, é que sentiu pela primeira vez o aroma de
carqueja, sarça, estava e alecrim vindo das colinas. Os corsos usavam as plantas para cozinhar e aquecer suas casas e nelas se refugiavam em tempos de guerra e vendeta.
Segundo a lenda corsa, um homem perseguido poderia penetrar na macchia e, se quisesse, permaneceria lá para sempre sem ser encontrado. Gabriel conhecia um desses
homens. Era por isso que levava no pescoço um artefato de coral-vermelho.
Depois de dirigir por meia hora, ele saiu da estrada costeira e tomou a direção do interior. À medida que o odor da macchia se intensificava, também se fortificavam
os muros que cercavam as pequenas cidades de colina. A Córsega, assim como a antiga terra de Israel, fora invadida muitas vezes: após a queda do Império Romano,
os vândalos pilharam a ilha de forma tão implacável que a maior parte dos habitantes fugiu do litoral e recuou para a segurança das montanhas. Mesmo atualmente,
o medo de estrangeiros ainda era intenso. Num vilarejo isolado, uma idosa apontou para Gabriel com o dedo indicador e o mindinho a fim de afastar os efeitos do occhju,
o mau-olhado.
Passando o vilarejo, a estrada era pouco mais do que uma via de pista única ladeada por paredes densas da macchia. Depois de um quilômetro, ele chegou à entrada
de uma propriedade particular. O portão estava aberto, mas bloqueado por um veículo off-road com dois seguranças. Gabriel desligou o motor e colocou as mãos sobre
o volante, esperando os homens se aproximarem. Por fim, um deles saiu do veículo e caminhou devagar em sua direção. Tinha uma arma numa das mãos e a outra enfiada
na cintura. Com um único movimento de suas sobrancelhas espessas, o homem questionou o propósito da visita de Gabriel.
- Desejo ver Don Orsati - disse Gabriel em francês.
- Ele é um homem muito ocupado - respondeu o segurança no dialeto corso.
Gabriel tirou o talismã do pescoço e o entregou. O corso sorriu.
- Verei o que posso fazer.
Nunca foi muito difícil desencadear uma disputa sangrenta na Córsega. Um insulto. Uma acusação de roubo no mercado. A dissolução de um noivado. A gravidez de uma
mulher solteira. Após a faísca inicial, sempre vinham os distúrbios. Um touro morreria, uma oliveira premiada seria derrubada, uma casa de campo pegaria fogo. Então
os assassinatos começariam. E a coisa seguia em frente, às vezes por uma geração ou mais, até que as partes injuriadas acertassem as diferenças ou desistissem da
luta por exaustão.
A maior parte dos homens corsos estava mais do que disposta a cometer os próprios assassinatos. Mas alguns precisavam de outros para executarem seu trabalho sangrento:
pessoas de renome que eram melindrosas demais para sujarem as mãos ou que não estavam dispostas a arriscar uma prisão ou o exílio; mulheres que não conseguiam matar
e não tinham parentes masculinos para assumirem a questão. Gente desse tipo dependia de assassinos profissionais conhecidos como taddunaghiu e, em geral, recorria
ao clã Orsati.
Os Orsatis tinham uma bela propriedade e seu azeite era considerado o melhor de toda a Córsega. Mas faziam muito mais do que plantar oliveiras. Ninguém sabia quantos
corsos haviam morrido pelas mãos de assassinos dos Orsatis, muito menos os próprios Orsatis, mas de acordo com o folclore local, o número estava na casa dos milhares.
Poderia ter sido muito mais se não fosse o rigoroso processo de vetos do clã. Os Orsatis operavam com base num código rigoroso. Eles se recusavam a cometer um assassinato
se não estivessem convencidos de que o requisitante havia de fato sido injustiçado e que fosse necessária uma vingança sanguinolenta.
No entanto, isso mudou com Don Anton Orsati. Quando ele tomou o controle da família, as autoridades francesas tinham conseguido erradicar as rixas e a vendeta por
toda a ilha, com exceção dos bolsões mais isolados; logo, poucos corsos exigiam os serviços dos taddunaghiu. Com a demanda local em declínio acelerado, Orsati não
teve escolha além de buscar por oportunidades em outros lugares, isto é, do outro lado da água, na Europa continental. Agora, ele aceitava quase todas as ofertas
de trabalho que passassem por sua mesa, mesmo que fossem desagradáveis, e seus assassinos eram considerados os profissionais mais confiáveis de todo o continente.
Gabriel fora uma das duas únicas pessoas que sobreviveram a um contrato da família Orsati.
Embora Anton Orsati fosse descendente de uma família de corsos ilustres, em aparência era indistinguível dos paesanu que protegiam a entrada de sua propriedade.
Ao entrar no amplo escritório do don, Gabriel o encontrou sentado à mesa vestindo uma camisa branca, calças largas de algodão claro e um par de sandálias poeirentas
que pareciam ter sido compradas na feira local. Ele estava analisando um livro-razão antiquado com uma expressão carrancuda. Gabriel não podia imaginar a fonte de
sua insatisfação. Muito tempo antes, Orsati tinha fundido os dois negócios numa única empresa. Seus taddunaghiu modernos eram funcionários da Orsati Olive Oil Company
e os assassinatos eram registrados como encomendas de produtos.
Levantando-se, Orsati estendeu sua mão de granito para Gabriel sem qualquer traço de apreensão.
- É uma honra conhecê-lo, monsieur Allon - falou ele em francês. - Para ser sincero, achava que o veria bem antes. Você tem reputação de lidar severamente com seus
inimigos.
- Meus inimigos eram os banqueiros suíços que o contrataram para me matar, Don Orsati. Além do mais, em vez de me dar um tiro na cabeça, seu assassino me deu isto.
Gabriel meneou a cabeça na direção do talismã, que estava na mesa de Orsati ao lado do livro-razão. Anton franziu a testa. Erguendo o amuleto pela tira de couro,
deixou a mão de coral-vermelho balançar para trás e para a frente, como o pêndulo de um relógio.
- Aquilo foi imprudente - comentou, por fim, o don.
- Abandonar o talismã ou me deixar vivo?
Orsati deu um sorriso evasivo.
- Temos um velho ditado aqui na Córsega: I solda un vènini micca cantendu. Não dá para ganhar dinheiro cantando. Só trabalhando. E, por aqui, trabalho significa
cumprir contratos, mesmo quando envolvem violinistas famosos e agentes da inteligência israelense.
- Então você devolveu o dinheiro para os homens que o contrataram?
- Eles eram banqueiros suíços. Dinheiro era a última coisa de que precisavam. - Orsati fechou o livro-razão e colocou o talismã sobre a capa. - Como pode imaginar,
mantive os olhos em você no decorrer dos anos. Você tem ficado muito ocupado desde que nossos caminhos se cruzaram. Na verdade, alguns dos seus melhores trabalhos
foram feitos no meu território.
- Esta é a minha primeira visita à Córsega.
- Estava me referindo ao sul da França. Você matou aquele terrorista saudita, Zizi al-Bakari, no velho porto de Cannes. E também houve aquele desentendimento com
Ivan Kharkov em Saint-Tropez alguns anos atrás.
- Pelo que eu soube, Ivan foi morto por outros russos - disse Gabriel, evasivo.
- Você matou Ivan, Allon. E você o matou porque ele capturou sua esposa.
Gabriel ficou em silêncio. O corso voltou a sorrir, dessa vez com a confiança de um homem que sabe que tem razão.
- A macchia não tem olhos, mas vê tudo.
- É por isso que estou aqui.
- Imaginei. Afinal, um homem como você certamente não precisaria de um assassino profissional. Você faz isso muito bem por conta própria.
Gabriel tirou um maço de dinheiro do bolso do casaco e o depositou sobre o livro-razão da morte, ao lado do talismã. O don o ignorou.
- Como posso ajudá-lo, Allon?
- Preciso de uma informação.
- Sobre...?
Sem dizer nada, Gabriel colocou a foto de Madeline Hart ao lado do dinheiro.
- A garota inglesa?
- Você não parece surpreso, Don Orsati.
O corso não respondeu.
- Sabe onde ela está?
- Não. Mas tenho uma boa noção de quem a capturou.
Gabriel ergueu a foto do homem de Les Palmiers. Orsati assentiu.
- Quem é ele?
- Não sei. Só o vi uma vez.
- Onde?
- Neste escritório, uma semana antes de a garota inglesa desaparecer. Ele sentou na mesma cadeira em que você está sentado agora. Mas ele tinha mais dinheiro do
que você, Allon. Muito mais.
8
CÓRSEGA
Era hora do almoço, a parte do dia predileta de Don Orsati. Eles se acomodaram na varanda adjacente ao escritório e sentaram a uma mesa repleta de pães, queijos,
vegetais e salsichas da região. O sol estava forte e, por entre os pinheiros-larícios, Gabriel pôde ver o mar azul-esverdeado reluzindo à distância. O aroma da macchia
estava por toda parte; no ar fresco e na comida. Até mesmo Orsati parecia irradiá-lo. Ele serviu vinho vermelho-sangue na taça de Gabriel e, a seguir, passou a cortar
várias fatias da gorda salsicha corsa. Gabriel não questionou a origem da carne. Nas palavras de Shamron, às vezes é melhor não perguntar.
- Fico feliz por não termos matado você - disse Orsati, erguendo a taça uma fração de centímetro.
- Posso garantir, Don Orsati, que sinto o mesmo.
- Mais salsicha?
- Por favor.
Orsati cortou mais duas fatias grossas e as colocou no prato de Gabriel. Em seguida, pôs os óculos de leitura em formato de meia-lua e examinou a fotografia do homem
de Les Palmiers.
- Ele parece diferente nesta foto - comentou após um momento. - Mas definitivamente é a mesma pessoa.
- O que está diferente?
- O penteado. Quando ele veio me ver, estava com mouse no cabelo e o penteara bem para trás. Era uma diferença sutil, mas muito eficiente.
- Ele tinha um nome?
- Apresentou-se como Paul.
- Sobrenome?
- Até onde eu sei, esse era o sobrenome.
- Que idioma nosso amigo Paul falava?
- Francês.
- Local?
- Não, tinha sotaque.
- De que tipo?
- Não consegui identificar - respondeu o don, franzindo as sobrancelhas grossas. - Dava a impressão de ter aprendido francês ouvindo os CDs de algum curso de línguas.
Era perfeito, mas ao mesmo tempo havia algo de estranho ali.
- Imagino que ele não tenha encontrado seu nome numa lista telefônica.
- Não, Allon. Ele tinha uma referência.
- Que tipo de referência?
- Um nome.
- Alguém que contratou você no passado.
- As referências costumam ser desse tipo.
- Que tipo de trabalho era?
- O tipo em que dois homens entram numa sala e só um sai. E não se dê o trabalho de me perguntar o nome da referência - acrescentou Orsati rapidamente. - Estamos
falando dos meus negócios.
Com um leve movimento da cabeça, Gabriel indicou que não tinha desejo que levar a questão mais a fundo, ao menos por enquanto. Então, perguntou a Anton por que o
homem tinha ido vê-lo.
- Conselho - respondeu Orsati.
- Sobre o quê?
- Ele me disse que tinha alguns produtos para mover. Falou que precisava de alguém com um barco rápido. Alguém que conhecesse as águas locais e pudesse navegar à
noite. Alguém que soubesse manter a boca fechada.
- Produto?
- Você pode achar estranho, mas ele não foi específico.
- Você supôs que ele fosse um contrabandista - disse Gabriel. Era mais uma declaração de fato do que uma pergunta.
- A Córsega é uma rota intensa de tráfico de heroína do Oriente Médio para a Europa. Ah, para seu governo, os Orsatis não lidam com narcóticos, embora se saiba que,
vez ou outra, nós eliminamos membros proeminentes desse mercado.
- Por uma taxa, é claro.
- Quanto mais proeminente, maior a taxa.
- Vocês foram capazes de oferecer o serviço para ele?
- Óbvio - respondeu o don. Em seguida, baixando a voz, acrescentou: - Às vezes nós mesmos movemos coisas durante a noite, Allon.
- Coisas como cadáveres?
Orsati deu de ombros.
- São um infeliz efeito colateral de nosso negócio - falou ele num tom filosófico. - Em geral, tentamos deixá-los onde caem. Mas, ocasionalmente, os clientes pagam
um pouco a mais para que eles desapareçam. Nosso método favorito é colocá-los em caixões de concreto e enviá-los para o fundo do mar. Só Deus sabe quantos estão
lá embaixo.
- Quanto Paul pagou?
- Cem mil.
- Como foi a divisão?
- Metade para mim, metade para o homem com o barco.
- Só metade?
- Sorte dele ter recebido tanto.
- E quando você soube que a garota inglesa tinha desaparecido?
- É óbvio que suspeitei. Quando vi a foto de Paul nos jornais... Basta dizer que não fiquei satisfeito. A última coisa que eu preciso é de problemas. São ruins para
os negócios.
- Você não aceita sequestrar mulheres jovens?
- Suspeito que nem você.
Gabriel permaneceu em silêncio.
- Não quis ofender - disse o don sinceramente.
- Não ofendeu, Don Orsati.
Anton encheu seu prato com pimentões assados e berinjela e encharcou-os com azeite de oliva do clã. Gabriel tomou um pouco de vinho, elogiou a comida e perguntou
pelo nome do homem com o barco rápido que conhecia as águas locais, como se não tivesse o mínimo interesse na resposta.
- Estamos entrando em território sensível - alertou Orsati. - Eu faço negócios com essas pessoas o tempo todo. Se descobrirem que as traí, as coisas ficariam feias,
Allon.
- Posso garantir, Don Orsati, que eles nunca vão saber como eu obtive a informação.
Orsati não pareceu convencido.
- Por que essa garota é tão importante a ponto de o grande Gabriel Allon procurá-la?
- Digamos que ela tem amigos poderosos.
- Amigos? - Orsati balançou a cabeça, cético. - Se você está envolvido, é mais do que isso.
- Você é muito sábio, Don Orsati.
- A macchia não tem olhos - comentou o don, misterioso.
- Eu preciso do nome dele - insistiu Gabriel, baixinho. - Ele nunca vai saber onde eu o obtive.
Orsati pegou a taça de vinho e a ergueu contra o sol.
- Se eu fosse você - disse, depois de um instante falaria com um homem chamado Marcel Lacroix. Talvez ele saiba algo sobre o lugar para onde a garota foi depois
que saiu da Córsega.
- Onde eu posso encontrá-lo?
- Marselha. Ele deixa o barco no Velho Porto.
- Qual lado?
- O sul, em frente à galeria de arte.
- Qual é o nome do barco?
- Moondance.
- “Dança da Lua”? Simpático.
- Garanto que não há nada de simpático a respeito de Marcel Lacroix ou dos homens para quem ele trabalha. Você precisa ser cuidadoso em Marselha.
- Você pode achar estranho, Don Orsati, mas eu já fiz isso uma ou duas vezes.
- É verdade. Mas você deveria estar morto há muito tempo. - Orsati passou o talismã para Gabriel. - Coloque isso no pescoço. Afasta mais do que só o mau-olhado.
- Na verdade, eu estava me perguntando se você tem algo um pouco mais poderoso.
- Como o quê?
- Uma arma.
O don sorriu.
- Eu tenho algo melhor do que uma arma.
Gabriel seguiu pela rua até ela virar uma estrada de terra e, então, foi um pouco mais além. O bode velho estava exatamente onde Don Orsati tinha dito que estaria,
bem antes da curva fechada à esquerda, à sombra das três oliveiras centenárias. Quando Gabriel se aproximou, ele se ergueu e ficou no meio da passagem estreita,
como se desafiasse o estranho a tentar passar. Tinha o corpo meio dourado e branco e uma barba vermelha. Assim como Allon, carregava cicatrizes de antigas batalhas.
Ele avançou o carro alguns centímetros, tentando fazer o bode entregar sua posição sem briga, mas o animal manteve-se firme. Gabriel olhou para a arma que Don Orsati
tinha lhe dado. Uma Beretta 9 milímetros carregada no banco do carona. Um tiro entre os chifres desgastados do bode seria o bastante para terminar o impasse. Mas
não era possível. O bode, assim como as velhas oliveiras, pertencia a Don Casabianca. Se Gabriel tocasse num pelo de sua maldita cabeça, haveria uma batalha e sangue
derramado.
Gabriel deu duas buzinadas, mas o bode não cedeu. Com um suspiro profundo, saiu do carro e tentou discutir com o bicho - primeiro em francês, depois italiano e por
fim, exasperado, em hebraico. O bode respondeu baixando a cabeça e a mirando como um aríete na direção da barriga de Gabriel. Mas Allon, que acreditava que a melhor
defesa era um bom ataque, avançou primeiro, balançando os braços e gritando como um lunático. Surpreso, o bode recuou na mesma hora e sumiu por um vão na macchia.
Gabriel voltou depressa até a porta aberta do carro, mas parou ao ouvir um som ao longe, como o gorjeio de um tordo. Ele se virou e olhou para cima, na direção da
casa ocre ao lado da colina seguinte. Parado no terraço estava um homem louro todo vestido de branco. E, embora Gabriel não pudesse ter certeza, parecia que o homem
estava rindo descontroladamente.
9
CÓRSEGA
O homem esperando por Gabriel na casa não era corso - ao menos não tinha nascido ali. Seu nome real era Christopher Keller e ele fora criado num sólido lar de classe
média alta no elegante distrito londrino de Kensington. Na Córsega, no entanto, apenas Don Orsati e um punhado de seus subordinados sabiam de tudo isso. Para o resto
da ilha, ele era conhecido simplesmente como “o Inglês”.
A história da jornada de Keller de Kensington à Córsega fora uma das mais intrigantes que Gabriel já escutara, o que em si já não era pouca coisa. Filho único de
dois médicos da Harley Street, logo cedo deixou claro que não tinha a menor intenção de seguir os passos dos pais. Obcecado por história, especialmente história
militar, queria se tornar um soldado. Seus pais o proibiram de se alistar no Exército e, por um tempo, ele se resignou. Matriculou-se em Cambridge e começou a estudar
história e idiomas orientais. Era um aluno brilhante, mas no segundo ano de estudos perdeu a paciência e uma noite sumiu sem deixar rastros. Alguns dias depois,
apareceu na casa do pai, em Kensington, de cabelo raspado, vestindo um uniforme verde-oliva: tinha entrado para o Exército britânico.
Após completar o treinamento básico, Keller se juntou a uma unidade de infantaria, mas seu intelecto, capacidade física e iniciativa logo chamaram a atenção do Serviço
Aéreo Especial, conhecido na Inglaterra como SAS. Poucos dias depois de chegar à sede do regimento em Hereford, ficou claro que Keller tinha encontrado sua vocação.
Seus resultados no “matadouro” - uma instalação abjeta onde recrutas praticavam combate e resgate de reféns - foram os melhores já registrados e os instrutores do
curso de combate desarmado escreveram que nunca tinham visto alguém com um talento tão instintivo para tirar a vida humana. Seu treinamento culminou numa marcha
de quase 65 quilômetros pelos pântanos ventosos conhecidos como Brecon Beacons, um teste de resistência que já tinha levado homens à morte. Com uma mochila de 25
quilos nas costas e um fuzil de 4,5 quilos nas mãos, Keller quebrou o recorde do percurso por trinta minutos, uma marca que nunca foi superada até os dias atuais.
Inicialmente, ele foi designado para um esquadrão Sabre especializado em guerra no deserto, mas sua carreira logo deu uma guinada quando um homem da inteligência
militar foi procurá-lo. Ele estava atrás de uma espécie única de soldado, capaz de executar o procedimento de observação próxima e outras tarefas especiais na Irlanda
do Norte. Disse estar impressionado com suas habilidades linguísticas e sua aptidão de improvisar e pensar rápido. Keller estaria interessado? Na mesma noite, Christopher
fez as malas e se mudou de Hereford para uma base secreta nas Terras Altas da Escócia.
No decorrer do treinamento, Keller demonstrou mais um talento notável. Havia anos que as forças de segurança e inteligência britânicas enfrentavam dificuldades com
a miríade de sotaques na Irlanda do Norte. Em Ulster, as comunidades inimigas eram capazes de identificar umas às outras apenas pelo som de uma voz, e a maneira
pela qual um homem dizia algumas frases simples poderia significar a diferença entre a vida e uma morte tenebrosa. Keller desenvolveu a habilidade de imitar as entonações
com perfeição. Podia até mesmo mudar de sotaque num piscar de olhos - um católico do condado de Armagh num minuto; um protestante da Shankill Road, de Belfast, no
momento seguinte; depois, um católico dos conjuntos habitacionais de Ballymurphy. Operou em Belfast por mais de um ano, rastreando membros do IRA, coletando pedaços
de fofocas úteis da comunidade local. Devido à natureza de seu trabalho, ocasionalmente ele passava várias semanas sem entrar em contato com os controladores.
Sua missão na Irlanda do Norte chegou a um final abrupto num fim de noite quando foi sequestrado na zona oeste de Belfast e levado até uma fazenda remota em Armagh.
Lá, Keller foi acusado de ser espião britânico. Ele sabia que a situação era desesperadora, então decidiu escapar lutando. Ao deixar a fazenda, quatro terroristas
veteranos do Exército Republicano Irlandês estavam mortos; dois foram praticamente cortados em pedacinhos.
Keller retornou a Hereford, achando que teria um longo descanso trabalhando como instrutor. Mas sua estadia ali terminou em agosto de 1990, quando Saddam Hussein
invadiu o Kwait. Keller voltou depressa à sua velha unidade Sabre e, em janeiro de 1991, já estava no deserto do Iraque, à procura dos lançadores de mísseis Scud
que aterrorizavam Tel Aviv. Na noite de 28 de janeiro, ele e sua equipe localizaram um lançador a 160 quilômetros a noroeste de Bagdá e transmitiram as coordenadas
por rádio para os comandantes na Arábia Saudita. Noventa minutos depois, uma formação de caças-bombardeiros da Coalizão passou voando baixo sobre o deserto. Mas,
num caso desastroso de fogo amigo, em vez dos Scuds, as aeronaves atacaram o esquadrão do SAS. Os oficiais britânicos concluíram que a unidade inteira fora perdida,
incluindo Keller. O obituário não mencionou seu trabalho na inteligência na Irlanda do Norte nem os quatro militantes do Exército Republicano Irlandês que ele tinha
matado na fazenda de Armagh.
O que os oficiais do Exército britânico não perceberam, no entanto, foi que Keller havia sobrevivido ao incidente. Seu primeiro instinto foi entrar em contato com
a base por rádio e requisitar uma extração. Em vez disso, enfurecido pela incompetência dos superiores, começou a caminhar. Oculto pelas típicas vestimentas de um
beduíno e altamente treinado na arte de movimentação clandestina, Keller passou pelas forças da Coalizão e entrou na Síria sem ser detectado. De lá, seguiu de carona
para o oeste, passando por Turquia, Grécia e Itália, até enfim chegar à costa da Córsega, onde caiu nos braços abertos de Don Orsati. Anton lhe deu uma casa e uma
mulher para ajudá-lo a cuidar de suas muitas feridas. Então, quando ele estava descansado, o don lhe deu trabalho. Com sua aparência do norte da Europa e o treinamento
do SAS, Keller foi capaz de cumprir contratos que estavam muito além da capacidade dos taddunaghiu de Orsati nascidos na Córsega. Um desses contratos tinha os nomes
de Anna Roube e Gabriel Allon. A consciência de Keller não permitiu que os matasse, mas o orgulho profissional o levou a deixar para trás o talismã que agora jazia
na palma da mão de Gabriel.
Por uma incrível coincidência, os dois homens já haviam se encontrado numa outra ocasião, muitos anos antes, quando Keller e diversos outros agentes do SAS foram
a Israel treinar técnicas de contraterrorismo. No último dia de sua estadia, Gabriel tinha concordado, com certa relutância, em dar uma palestra confidencial sobre
uma de suas operações mais ousadas: o assassinato de Abu Jihad em 1988, o segundo em comando da OLP, em sua casa na Tunísia. Keller sentou na primeira fileira e
prestou atenção em cada palavra de Allon. Depois, durante uma sessão de fotos do grupo, posicionou-se ao lado de Gabriel, que estava usando óculos escuros e um chapéu
para ocultar sua identidade. Mas Keller olhou direto para a câmera. Foi uma das últimas fotografias tiradas dele.
Agora, enquanto Gabriel saía do carro alugado, o homem que lhe poupara a vida estava parado no vão da porta de seu refúgio na Córsega. Ele era uma cabeça mais alto
que Gabriel e tinha o peito e os ombros bem mais largos. Vinte anos sob o sol corso haviam alterado bastante sua aparência. Agora a pele tinha cor de couro e os
cabelos curtos estavam esbranquiçados pelo mar. Apenas os olhos azuis pareciam iguais. Eram os mesmos que haviam observado Gabriel com tanta atenção quando ele recontara
a morte de Abu Jihad. Os mesmos que, certa vez, em outra época, lhe concederam clemência numa noite chuvosa em Veneza.
- Eu lhe ofereceria um almoço - disse Keller, com seu sotaque britânico claro -, mas fiquei sabendo que você comeu no Chez Orsati.
Quando Keller estendeu a mão, os músculos de seu braço se contraíram sob o casaco branco. Gabriel hesitou por um instante antes de cumprimentá-lo. Cada aspecto de
Keller, desde as mãos potentes até as pernas poderosas, parecia ter sido projetado especificamente para matar.
- O que o don disse? - perguntou Gabriel.
- O suficiente para eu saber que não deveria chegar perto de um homem como Marcel Lacroix sem reforços.
- Então você o conhece?
- Uma vez ele me deu carona.
- Antes ou depois?
- Os dois. Lacroix passou um tempo no Exército francês. E também em algumas das piores prisões do país.
- E isso deveria me impressionar?
- “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas.”
- Sun Tzu - completou Gabriel.
- Você citou essa passagem durante sua palestra em Tel Aviv.
- Então você estava prestando atenção, afinal.
Gabriel passou por Keller e entrou na ampla sala da casa. A mobília era rústica e, assim como Keller, coberta de tecido branco. Todas as superfícies estavam revestidas
por pilhas de livros e as paredes tinham várias pinturas de qualidade, incluindo trabalhos menos conhecidos de Cézanne, Matisse e Monet.
- Nenhum sistema de segurança? - perguntou Gabriel, passando os olhos pela sala.
- Não é necessário.
Gabriel se aproximou do Cézanne, uma paisagem pintada nas colinas perto de Aix-en-Provence, e passou a ponta do dedo com delicadeza pela tela.
- Você está se saindo muito bem, Keller.
- Dá para pagar as contas.
Gabriel não disse nada.
- Você desaprova a minha forma de ganhar a vida?
- Você mata pessoas por dinheiro.
- Você também.
- Eu mato pelo meu país, e só como último recurso.
- Foi por isso que você estourou os miolos de Ivan Kharkov naquela rua em Saint-Tropez? Pelo seu país?
Gabriel deu as costas para o Cézanne e olhou bem nos olhos de Keller. Qualquer outro homem teria murchado perante a intensidade do olhar de Gabriel, mas não Keller.
Seu braços poderosos estavam cruzados despreocupadamente sobre o peito, e um canto da boca estava erguido num meio sorriso.
- Talvez essa não seja uma boa ideia, afinal - falou Gabriel.
- Eu conheço os jogadores e conheço o terreno. Seria tolice não me usar.
Gabriel não respondeu; Keller tinha razão. Ele era o guia perfeito para o mundo do crime na França. E suas habilidades físicas e táticas certamente se provariam
valiosas para os problemas que eles enfrentariam.
- Eu não posso pagar - avisou Gabriel.
- Não preciso de dinheiro - retrucou Keller, observando a bela casa. - Mas preciso que você responda a algumas perguntas antes de partirmos.
- Se não a encontrarmos em cinco dias, ela morre.
- Cinco dias são uma eternidade para homens como nós.
- Sou todo ouvidos.
- Para quem você está trabalhando?
- Para o primeiro-ministro da Inglaterra.
- Não sabia que vocês estavam se falando.
- Alguém da inteligência britânica entrou em contato comigo.
- Em nome do primeiro-ministro?
Gabriel assentiu.
- Qual é a ligação entre o primeiro-ministro e essa garota?
- Tente adivinhar.
- Meu Deus.
- Deus tem muito pouco a ver com isso.
- Quem é o amigo do primeiro-ministro na inteligência britânica?
Gabriel hesitou, então respondeu à pergunta honestamente. Keller sorriu.
- Você o conhece? - perguntou Gabriel.
- Trabalhei com Graham na Irlanda do Norte. Ele é um profissional de verdade. Mas, assim como todo mundo na Inglaterra, acha que estou morto. Logo, não pode saber
que estou trabalhando com você.
- Você tem a minha palavra.
- Tem mais uma coisa que eu quero.
Keller estendeu a mão e Gabriel entregou o talismã.
- Estou surpreso que você o tenha guardado.
- Tem valor sentimental.
Keller pendurou-o no pescoço.
- Vamos - disse ele, sorrindo. - Eu sei onde a gente pode arrumar outro para você.
A signadora vivia numa casa torta no centro do vilarejo, não muito longe da igreja. Keller chegou sem marcar horário, mas a idosa não pareceu surpresa ao vê-lo.
Ela vestia uma túnica preta, e um cachecol preto cobria os cabelos bem secos. Abrindo um sorriso preocupado, tocou a bochecha de Keller com delicadeza. Em seguida,
segurou a cruz pesada pendurada no pescoço e voltou o olhar para Gabriel. Sua tarefa era cuidar dos afligidos pelo mau-olhado. Ela temia que Keller tivesse trazido
a própria encarnação do mal para seu lar.
- Quem é esse homem?
- Um amigo - respondeu Keller.
- Ele é um crente?
- Não como nós.
- Diga-me o nome dele, Christopher... seu nome real.
- Gabriel.
- Como o arcanjo?
- Sim.
Ela analisou o rosto de Gabriel com atenção.
- Ele é israelita, não é?
Keller assentiu e a velha franziu um pouco a testa em desaprovação. Pela doutrina, a signadora considerava os judeus como hereges, mas pessoalmente não tinha nada
contra. Ela desabotoou a camisa de Keller e tocou no talismã dele.
- Esse não é o que você perdeu muitos anos atrás?
- Sim.
- Onde você o encontrou?
- No fundo de uma gaveta abarrotada.
A signadora balançou a cabeça.
- Você está mentindo para mim, Christopher. Você nunca vai aprender que eu sei perceber?
Keller sorriu, mas não disse nada. A velha soltou o talismã e tocou sua bochecha de novo.
- Você está deixando a ilha, Christopher?
- Esta noite.
A signadora não indagou o motivo: sabia exatamente o que Keller fazia para ganhar a vida. Na verdade, ela já tinha até mesmo contratado um jovem taddunaghiu chamado
Anton Orsati para vingar o assassinato do marido.
Com um meneio de cabeça, convidou Keller e Gabriel para se sentarem à pequena mesa de madeira em sua sala. Colocou sobre o tampo um prato cheio de água e uma vasilha
de azeite de oliva. Keller mergulhou o dedo indicador no azeite e, em seguida, o manteve acima do prato, para que três gotas caíssem na água. De acordo com as leis
da física, elas deveriam ter-se aglomerado. Em vez disso, a substância se desfez em mil gotículas e desapareceu.
- O mal retornou, Christopher.
- Receio que seja um risco ocupacional.
- Não faça piadas, meu querido. O perigo é muito real.
- O que a senhora vê?
Ela focou toda a atenção no líquido, como se estivesse em transe. Depois, perguntou baixinho:
- Vocês estão procurando a garota inglesa?
Keller assentiu.
- Ela está viva?
- Sim - respondeu a velha. - Está viva.
- Onde ela está?
- Não está em meu poder dizer isso.
- Nós vamos encontrá-la?
- Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.
- O que a senhora vê?
Ela fechou os olhos.
- Água... montanhas... um velho inimigo...
- Meu?
- Não. - Ela abriu os olhos e encarou Gabriel. - Dele.
A signadora pegou a mão do Inglês e rezou. Após um momento, começou a chorar, um sinal de que o mal tinha passado do corpo de Keller para o seu. Em seguida, fechou
os olhos e pareceu adormecer. Ao acordar, instruiu Keller a repetir o teste do azeite e da água. Dessa vez, o azeite se aglomerou numa única gota.
- O mal saiu da sua alma, Christopher. - Voltando-se para Gabriel, a velha disse: - Agora ele.
- Eu não sou um crente - retrucou Gabriel.
- Por favor - pediu ela. - Se não por você, por Christopher.
Relutante, Gabriel mergulhou o indicador no azeite e deixou três gotas caírem na água. Quando o azeite se dividiu em mil gotículas, a mulher fechou os olhos e começou
a estremecer.
- O que a senhora vê? - perguntou Keller.
- Fogo - respondeu ela, baixinho. - Eu vejo fogo.
Havia uma balsa saindo de Ajaccio às cinco horas. Às quatro e meia, Gabriel estacionou o Peugeot na embarcação e, dez minutos depois, observou Keller subir a bordo
dirigindo um Renault velho. Seus compartimentos ficavam no mesmo deque, um de frente para o outro. O de Gabriel tinha o tamanho e a falta de atrativo de uma cela
de prisão. Ele deixou a mala na cama minúscula e subiu as escadas para o bar. Ao chegar, encontrou Keller sentado a uma mesa perto da janela, tomando um gole de
cerveja com um cigarro queimando no cinzeiro.
Gabriel balançou a cabeça devagar. Quarenta e oito horas atrás, estava diante de uma tela em Jerusalém. Agora buscava por uma mulher desconhecida, acompanhado por
um homem que, no passado, aceitara um contrato para matá-lo.
Pediu um café preto ao barman e saiu para o convés de popa. A balsa já estava longe do porto e o ar da noite havia esfriado. Gabriel levantou a gola do casaco e
envolveu a xícara de café com as mãos para se aquecer. As estrelas do leste brilhavam intensamente no céu sem nuvens, e o mar, que um instante antes estava turquesa,
logo se tornou nanquim. Gabriel teve a impressão de sentir o cheiro de macchia no vento. Um pouco depois, escutou a voz da signadora: “Quando ela estiver morta.
Então vocês saberão a verdade.”
10
MARSELHA
Quando Gabriel e Keller chegaram a Marselha no começo da manhã seguinte, o Moondance estava amarrado no ponto de sempre no Velho Porto, ostentando seus 42 pés de
puro poder de contrabando. O dono, no entanto, não estava à vista. Keller montou um posto estático de observação no lado norte e Gabriel ficou a leste, na frente
de uma pizzaria que, inexplicavelmente, tinha o nome de uma região chique de Manhattan. A cada hora eles mudavam de posição, mas no fim da tarde ainda não havia
sinal de Lacroix. Por fim, ansioso com a perspectiva de um dia perdido, Gabriel percorreu o perímetro do porto, passou pelos vendedores de peixe em suas bancas de
metal e se juntou a Keller no Renault. O tempo estava piorando: chuva pesada, um vento frio vindo das colinas. Keller ligava os limpadores em intervalos de alguns
segundos para manter o para-brisa transparente. O degelador ofegava fracamente contra o vidro embaçado.
- Você tem certeza de que ele não possui apartamentos na cidade? - perguntou Gabriel.
- Ele mora no barco.
- E quanto a mulher?
- Ele tem várias, mas nenhuma consegue tolerar sua presença por muito tempo. - Keller limpou o para-brisa com o dorso da mão. - Talvez possamos ficar num hotel.
- Não acha um pouco cedo? Afinal, acabamos de nos conhecer.
- Você sempre faz piadas cretinas durante as operações?
- É um mal cultural.
- Piadas cretinas ou operações?
- Ambos.
Keller pegou um guardanapo do porta-luvas e fez o melhor que pôde para consertar a bagunça que tinha feito no para-brisa.
- Minha avó era judia - comentou ele casualmente, como se admitisse que sua avó gostava de jogar bridge.
- Parabéns.
- Outra piada?
- O que você quer que eu diga?
- Você não acha interessante que eu tenha uma ancestral judia?
- Por minha experiência, a maior parte dos europeus tem um parente judeu escondido em algum lugar.
- A minha estava em plena vista.
- Onde ela nasceu?
- Na Alemanha.
- Ela foi para a Inglaterra durante a guerra?
- Logo antes. Ela foi abrigada por um tio distante que não se considerava mais judeu. Ele lhe deu um nome cristão adequado e a mandou para a igreja. Minha mãe só
soube que tinha um passado judeu com 30 e tantos anos.
- Odeio ser portador de más notícias - disse Gabriel -, mas, na minha opinião, você é judeu.
- Para ser sincero, sempre me senti um pouco judeu.
- Você tem aversão a mariscos e a ópera alemã?
- Quis dizer num sentido espiritual.
- Você é um assassino profissional, Keller.
- Isso não significa que eu não acredite em Deus. Na verdade, suspeito que eu saiba mais sobre a sua história e as suas escrituras do que você.
- Então por que você anda com aquela mística maluca?
- Ela não é maluca.
- Não me diga que você acredita naquela bobagem.
- Como ela sabia que estávamos procurando a garota?
- Suponho que o don lhe tenha dito.
- Não - discordou Keller, balançando a cabeça. - Ela viu. Ela vê tudo.
- Como a água e as montanhas?
- Sim.
- Nós estamos no sul da França, Keller. Eu também vejo água e montanhas. Inclusive, parecem estar por toda parte.
- É óbvio que ela deixou você nervoso com aquela conversa sobre um velho inimigo.
- Eu não fico nervoso. Quanto a velhos inimigos, não consigo sair da porta de casa sem trombar com um.
- Então talvez você devesse mudar a porta da sua casa de lugar.
- Isso é um provérbio corso?
- Só um conselho amigável.
- Ainda não somos exatamente amigos.
Keller encolheu os ombros quadrados para demonstrar indiferença, mágoa ou algo entre um sentimento e outro.
- O que você fez com o talismã que ela lhe deu? - perguntou ele depois de um silêncio amuado.
Gabriel deu um tapinha no peito para indicar que o talismã, idêntico ao de Keller, estava pendurado no pescoço.
- Se você não acredita - indagou Keller por que o está usando?
- Eu gosto do modo como ele valoriza as minhas roupas.
- O que quer que você faça, não o tire: ele mantém o mal à distância.
- Eu gostaria de manter à distância algumas pessoas na minha vida.
- Como Ari Shamron?
- Como você sabe de Shamron? - perguntou Gabriel, ocultando sua surpresa.
- Eu o conheci quando fui treinar em Israel. Além do mais, todo mundo no negócio sabe de Shamron. E todo mundo sabe que ele queria que você fosse c chefe, em vez
de Uzi Navot.
- Você não devia acreditar em tudo que lê nos jornais, Keller.
- Eu tenho boas fontes. E elas me disseram que o emprego era seu, mas você o recusou.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse Gabriel, com o olhar cansado voltado para o para-brisa respingado de chuva -, mas não estou a fim de ter um papo
nostálgico com você.
- Eu só estava tentando matar tempo.
- Talvez pudéssemos aproveitar um silêncio confortável.
- Outra piada?
- Você entenderia se fosse judeu.
- Tecnicamente eu sou judeu.
- Quem você prefere: Puccini ou Wagner?
- Wagner, claro.
- Então não tem como você ser judeu.
Keller acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo para apagá-lo. Uma rajada de vento jogou a chuva no para-brisa, dificultando a visão do porto. Gabriel baixou a sua
janela alguns centímetros para dar vazão à fumaça de Keller.
- Talvez você esteja certo - disse ele por fim. - Talvez um quarto seja uma boa ideia.
- Não acho que seja necessário.
- Por que não?
Keller ligou os limpadores do para-brisa e apontou para além do vidro.
- Porque Marcel Lacroix está vindo em nossa direção.
Ele estava usando um agasalho preto e tênis verde-néon, e carregava no ombro uma mala esportiva Puma. Era óbvio que Lacroix havia passado a maior parte da tarde
na academia. Não que ele precisasse de exercício: tinha pelo menos 1,90 metro e pesava mais de 90 quilos. Seus cabelos escuros com gel estavam presos num rabo de
cavalo curto. Havia piercings nas duas orelhas e ideogramas chineses tatuados no lado do seu grosso pescoço - evidência de que era um estudante das artes marciais
asiáticas. Seus olhos não paravam de se mexer, mas ele não chegou a perceber os dois homens sentados no pequeno Renault com janelas embaçadas. Enquanto o observava,
Gabriel deu um suspiro profundo. Lacroix certamente seria um oponente digno, em especial dentro do espaço apertado do Moondance. Apesar do que dizem, tamanho é documento.
- Nenhuma piadinha? - perguntou Keller.
- Estou pensando em alguma.
- Por que você não me deixa cuidar disso?
- Por alguma razão, não acho que sei a uma boa ideia.
- Por que não?
- Porque ele sabe que você trabalha para Don Orsati. Se você aparecer e começar a fazer perguntas sobre Madeline Hart, ele vai saber que foi traído, e isso seria
prejudicial aos interesses do don.
- Deixe que eu me preocupo com os interesses do don.
- É por isso que você está aqui, Keller?
- Eu estou aqui para garantir que você não acabe num caixão de cimento no fundo do Mediterrâneo.
- Há lugares piores para ser enterrado.
- A lei judia não permite enterros no mar.
Keller ficou em silêncio quando Lacroix entrou na doca e começou a seguir em direção ao Moondance. Gabriel focou na região lombar do francês, prestando atenção em
como pendia a roupa esportiva. Em seguida, olhou para a forma como a bolsa estava pendurada.
- O que você acha? - perguntou Keller.
- Acho que ele está carregando a arma na bolsa.
- Você também notou isso?
- Eu noto tudo.
- Como você vai fazer?
- Do jeito mais silencioso possível.
- O que você quer que eu faça?
- Espere aqui - respondeu Gabriel, abrindo a porta do carro. - E tente não matar ninguém até eu voltar.
O Escritório tinha uma doutrina simples quanto ao uso operacional adequado de armas ocultas. Ela fora dada por Deus a Ari Shamron - pelo menos era o que dizia a
história -, que por sua vez passou-a para todos os que adentravam secretamente a noite para desempenharem seus serviços. Embora não estivesse escrita em lugar algum,
todo agente de campo era capaz de recitá-la com tanta facilidade quanto a bênção das velas no sabá. Um agente do Escritório saca a arma com apenas um propósito.
Ele não a brande como um gângster nem faz ameaças vazias. Apenas atira - e só interrompe os disparos quando o alvo não está mais entre os vivos. Amém.
Foi com a advertência de Shamron ecoando em seus ouvidos que Gabriel deu os passos finais na direção do Moondance. Hesitou antes de embarcar. Até mesmo um homem
tão esguio quanto ele poderia fazer com que o barco se inclinasse um pouco. Portanto, velocidade e uma confiança aparente seriam essenciais.
Gabriel deu uma última olhada por cima do ombro e viu que Keller o observava com um pouco de receio pela janela do carona do Renault. Em seguida, subiu a bordo do
Moondance e atravessou rapidamente o convés de popa até a cabine principal. Lacroix estava no vão da porta. No espaço apertado do barco, o francês parecia ainda
maior do que na rua.
- Que porra você está fazendo no meu barco? - ele exigiu saber.
- Peço desculpas - disse Gabriel, erguendo as mãos num gesto conciliatório. - Me disseram que você estaria me esperando.
- Quem disse?
- Paul, é claro. Ele não falou que eu estava vindo?
- Paul?
- Sim, Paul - respondeu Gabriel, confiante. - O homem que o contratou para entregar o pacote da Córsega ao continente. Ele disse que você era o melhor profissional
que já viu. Que, se eu precisasse de alguém para transportar bens valiosos, você era a pessoa certa.
Gabriel viu uma série de reações na expressão do francês: confusão, apreensão e, claro, cobiça. No fim, a cobiça saiu vitoriosa. Ele deu um passo para o lado e,
com um movimento dos olhos, o convidou para entrar. Gabriel deu dois passos lânguidos para a frente enquanto analisava o interior da cabine, tentando encontrar a
bolsa de ginástica de Lacroix. Estava em cima de uma mesa, ao lado de uma garrafa de Pernod.
- Você se incomoda? - perguntou Gabriel, meneando a cabeça em direção à porta. - Não é o tipo de coisa que você queira que os seus vizinhos ouçam.
Lacroix hesitou por um instante. Em seguida, andou até a porta e fechou-a. Gabriel se posicionou ao lado da mesa que continha a mala esportiva.
- Que tipo de trabalho é? - perguntou Lacroix, voltando-se para Gabriel.
- Muito simples. Na verdade, vai levar só alguns minutos.
- Quanto?
- O que você quer dizer? - perguntou Gabriel, fingindo confusão.
- Quanto dinheiro você está oferecendo? - indagou Lacroix, esfregando o indicador e o dedo médio no polegar.
- Estou oferecendo algo muito mais valioso do que dinheiro.
- O que seria?
- A sua vida. Marcel, você vai me dizer o que seu amigo Paul fez com a garota inglesa. E, se não disser, vou cortá-lo em pedacinhos e usá-lo como isca para peixe.
A arte marcial israelense do krav maga não é conhecida por sua elegância, mas não foi projetada mesmo para ser estética. Seu único propósito é incapacitar ou matar
o adversário o mais rápido possível. Ao contrário de muitas disciplinas ocidentais, ele não hesita em usar objetos pesados para repelir um inimigo de maior tamanho
e força. Na verdade, os instrutores encorajam os alunos a usarem quaisquer recursos que tenham à disposição para se defenderem. Davi não se atracou com Golias, eles
gostavam de dizer, mas o atingiu com uma pedra. E só depois cortou sua cabeça.
Gabriel escolheu uma garrafa de Pernod em vez de uma pedra. Pegou-a pelo gargalo e lançou-a como uma faca na direção de Marcel Lacroix, que corria para atacá-lo.
A garrafa bateu bem no centro da testa do francês, abrindo um corte horizontal profundo logo acima da densa sobrancelha. Ao contrário de Golias, que caiu no instante
em que foi atingido, Lacroix conseguiu se manter de pé, embora com bastante dificuldade. Gabriel avançou e deu uma joelhada na virilha desprotegida do francês. Depois,
deu-lhe um soco no estômago e quebrou seu maxilar com uma cotovelada bem aplicada. Com o outro cotovelo, acertou sua têmpora, levando-o ao chão. Gabriel se agachou
e tocou o pescoço do francês para verificar se ele ainda tinha pulsação. Erguendo os olhos, viu Keller parado à porta, sorrindo.
- Impressionante. O Pernod foi um toque adorável.
11
PERTO DE MARSELHA
A chuva parou quando o sol se pôs, mas o vento mistral continuou soprando sem remorso muito depois do escurecer. Uivava nos cordames dos barcos amontoados no Velho
Porto e redemoinhava nos deques do Moondance enquanto Keller o conduzia com habilidade mar adentro. Gabriel permaneceu a seu lado na ponte de comando até eles saírem
do porto. Então, desceu as escadas para o alojamento principal, onde Marcel Lacroix jazia no chão, com o rosto voltado para baixo, amarrado, amordaçado e vendado.
Gabriel rolou o francês, deixando-o de barriga para cima, e tirou a fita adesiva que lhe cobria os olhos com um único movimento ríspido. Lacroix já tinha recuperado
a consciência e não havia sinal de medo em seus olhos, apenas fúria. Keller estava certo: não era fácil assustar o francês.
Gabriel voltou a vendá-lo e deu início a uma busca minuciosa na embarcação, começando pelo alojamento principal e terminando na cabine de Lacroix. Ele encontrou
um esconderijo com drogas ilegais, cerca de 60 mil euros em dinheiro vivo, passaportes falsos, carteiras de motorista francesas em quatro nomes diferentes, cartões
de crédito roubados, nove celulares descartáveis e uma coleção elaborada de pornografia impressa e eletrônica. Além disso, havia um recibo com um número de telefone
rabiscado atrás, de um lugar chamado Bar du Haut, no Boulevard Jean Jaurès, em Rognac, uma cidade de classe operária ao norte de Marselha, não muito longe do aeroporto.
Gabriel já tinha passado por ali uma vez, em outra época da vida. Era o tipo de lugar que servia apenas de parada a caminho de algum outro lugar.
Gabriel verificou a data do recibo. Em seguida, examinou os históricos de chamada dos nove celulares em busca do número escrito no verso do papel. Encontrou-o em
três dos telefones. Naquela manhã, Lacroix ligara duas vezes para ele com dois celulares diferentes.
Gabriel guardou os aparelhos, o recibo e o dinheiro numa mochila de náilon e voltou para o alojamento principal. Mais uma vez tirou a fita adesiva dos olhos de Lacroix,
mas também removeu a mordaça. O rosto do francês estava muito distorcido, devido ao inchaço do maxilar quebrado. Gabriel o apertou com força enquanto fitava os olhos
do contrabandista.
- Vou fazer algumas perguntas, Marcel. Você tem só uma chance para me dizer a verdade. Entendeu? - perguntou Gabriel, pressionando o maxilar dele com um pouco mais
de força. - Uma chance.
A única resposta de Lacroix foi um grunhido de dor.
- Uma chance - repetiu Gabriel, erguendo o indicador para enfatizar. - Está ouvindo?
Lacroix não respondeu.
- Vou tomar isso como um sim. Agora, Marcel, quero que você me diga os nomes dos homens que estão com a garota. E depois quero saber onde posso encontrá-los.
- Não sei nada sobre essa garota.
- Você está mentindo, Marcel.
- Não, eu juro...
Antes que Lacroix pudesse continuar, Gabriel lhe colocou a mordaça de novo. Em seguida, passou bastante fita adesiva ao redor da cabeça do francês, até deixar apenas
as suas narinas visíveis. Desceu até o convés inferior, pegou uma corda de náilon num armário e voltou para cima, até a ponte de comando. Keller segurava o leme
com as duas mãos, estreitando os olhos para o mar turbulento.
- Como está indo lá embaixo? - perguntou ele.
- Estou surpreso: não consegui persuadi-lo a cooperar.
- Por que a corda?
- Mais persuasão.
- Algo que eu possa fazer para ajudar?
- Reduza a velocidade e ligue o piloto automático.
Keller obedeceu e seguiu Gabriel até o alojamento principal. Encontraram Lacroix bem perturbado, arfante, lutando para respirar através do capacete de fita adesiva.
Gabriel o rolou, deixando-o de barriga para baixo, e passou a corda de náilon pelas amarras nos pés e calcanhares. Depois de prendê-la com um nó firme, arrastou
Lacroix até o convés de popa como se ele fosse uma baleia recém-arpoada. Então, com a ajuda de Keller, aproximou o francês da beirada e o jogou para fora do barco.
Lacroix bateu na água escura com um baque pesado e começou a se debater ferozmente para tentar manter a cabeça acima da superfície. Gabriel o observou por um momento
e, em seguida, vasculhou o horizonte em todas as direções. Nenhuma luz visível. Era como se eles fossem os três últimos homens na terra.
- Como você vai saber quando parar? - perguntou Keller, vendo Lacroix lutar pela própria vida.
- Quando ele começar a afundar - respondeu Gabriel, calmo.
- Me lembre de nunca entrar na sua lista negra.
- Nunca entre na minha lista negra.
Depois de 45 segundos na água, de repente Lacroix parou de se mover. Gabriel e Keller o puxaram depressa de volta para o barco e removeram a fita adesiva que lhe
cobria a boca. Por vários minutos, o francês não conseguiu falar, alternando-se entre respirar sofregamente e tossir água do mar. Quando ele pareceu cuspir tudo,
Gabriel segurou o maxilar quebrado e o apertou.
- Você pode não estar se dando conta neste instante, mas hoje é seu dia de sorte, Marcel. Agora vamos tentar de novo: diga onde eu posso encontrar a garota.
- Eu não sei.
- Você está mentindo para mim, Marcel.
- Não - respondeu Lacroix, balançando a cabeça violentamente de um lado para o outro. - Estou dizendo a verdade. Não faço ideia de onde ela está.
- Mas você conhece um dos homens que está com ela. Você até tomou uns drinques com ele num bar em Rognac uma semana antes de a garota desaparecer. E, desde então,
você tem se mantido em contato com ele.
Lacroix ficou em silêncio. Gabriel apertou o maxilar quebrado com mais força.
- O nome, Marcel. Diga-me o nome dele.
- Brossard - Lacroix se esforçou para dizer, tomado pela dor. - O nome dele é René Brossard.
Gabriel encarou Keller, que assentiu.
- Muito bem - falou para Lacroix, relaxando o aperto. - Agora continue falando. E nem pense em mentir para mim. Caso contrário, volta para a água. Mas, da próxima
vez, vai ser para sempre.
12
PERTO DE MARSELHA
O convés de popa tinha duas cadeiras giratórias. Gabriel amarrou Lacroix na que estava a estibordo e sentou-se na outra, diante dele. Lacroix continuou vendado,
a roupa encharcada pelo tempo que passara dentro d'água. Tremendo violentamente, implorou por uma muda de roupas ou um cobertor. Como não teve resposta, falou de
uma noite quente em meados de agosto, quando um homem aparecera no Moondance sem aviso prévio, da mesma forma que Gabriel havia feito mais cedo.
- Paul? - perguntou Gabriel.
- Sim, Paul.
- Vocês se conheciam?
- Não, mas eu já o tinha visto.
- Onde?
- Em Cannes.
- Quando?
- Durante o festival de cinema.
- Este ano?
- Sim, em maio.
- Você foi ao Festival de Cannes?
- Eu não estava na lista de convidados, se é isso que você quer saber. Estava trabalhando.
- Que tipo de trabalho?
- O que você acha?
- Roubando das estrelas do cinema e dos ricaços?
- É uma das nossas semanas mais ocupadas do ano, uma verdadeira dádiva para a economia local. Só tem imbecil em Hollywood. Nós os roubamos todas as vezes que o pessoal
de lá vem para cá, e acho que nem percebem.
- O que Paul estava fazendo?
- Passando tempo com os ricaços. Acho que até o vi entrando no salão umas duas vezes para ver os filmes.
- Acha?
- Ele sempre tem uma aparência diferente.
- Ele estava dando golpes em Cannes?
- Isso você teria que perguntar para ele. Não discutimos esse assunto quando ele veio me ver. Só falamos do serviço.
- Ele queria contratar você e o seu barco para levarem a garota da Córsega até o continente.
- Não - negou Lacroix, balançando a cabeça com veemência. - Ele nunca disse nenhuma palavra sobre uma garota.
- O que foi que ele disse?
- Queria que eu entregasse um pacote.
- Você não perguntou o que era?
- Não.
- Você sempre opera assim?
- Depende.
- Do quê?
- De quanto dinheiro tem na mesa.
- E quanto tinha?
- Cinquenta mil.
- Isso é bom?
- Muito bom.
- Ele chegou a mencionar onde obteve o seu nome?
- Com o don.
- Que don7.
- Don Orsati, o Corso.
- Que tipo de trabalho o don faz?
- Ele tem um dedo em todo tipo de esquema, mas principalmente em assassinatos. De vez em quando, dou uma carona para um de seus homens. E às vezes eu ajudo a fazer
coisas desaparecerem.
O inquérito de Gabriel tinha um propósito duplo. Permitia testar a veracidade das respostas de Lacroix, ao mesmo tempo que encobria suas próprias pegadas. Agora
o francês achava que Gabriel nunca tivera o prazer de conhecer um assassino corso chamado Orsati. E, pelo menos até agora, ele estava respondendo honestamente às
perguntas de Gabriel.
- Paul disse quando o serviço ia ser executado?
- Não. Ele disse que me avisaria 24 horas antes e que eu provavelmente ouviria algo dele em uma semana, dez dias no máximo.
- Como ele entraria em contato com você?
- Por telefone.
- Você ainda tem o telefone que usou?
Lacroix assentiu e recitou o número associado ao aparelho.
- Ele ligou?
- No oitavo dia.
- O que ele falou?
- Me pediu para buscá-lo na manhã seguinte, na enseada que fica bem ao sul de Capo di Feno.
- A que horas?
- Três da madrugada.
- Como ficou combinado?
- Ele queria que eu deixasse um bote na praia e o esperasse no mar.
Gabriel ergueu os olhos para a ponte de comando, de onde Keller observava o interrogatório. O Inglês aquiesceu, como se confirmando que de fato há uma enseada em
Capo di Feno e que o cenário descrito por Lacroix era perfeitamente plausível.
- Quando você chegou à Córsega? - perguntou Gabriel.
- Alguns minutos após a meia-noite.
- Estava sozinho?
- Sim.
- Tem certeza?
- Sim, eu juro.
- A que horas você deixou o bote na praia?
- Às duas.
- Como você voltou para o Moondance?
- Fui andando - brincou Lacroix. - Como Jesus.
Gabriel arrancou o piercing da orelha direita de Lacroix.
- Foi só uma piada - alegou o francês, arquejante, com sangue fluindo do lóbulo arruinado.
- Se eu fosse você - retrucou Gabriel não estaria fazendo piadas sobre o Senhor num momento destes. Eu faria o possível para conseguir cair nas graças Dele.
Gabriel olhou de novo para a ponte de comando e viu que Keller tentava conter um sorriso. Em seguida, mandou Lacroix descrever os eventos que se seguiram. Paul,
disse o francês, chegara bem na hora, às três em ponto. Lacroix tinha visto um único veículo, um pequeno modelo com tração nas quatro rodas, descendo aos solavancos
a pista íngreme do topo da colina até a enseada, só com as luzes de freio acesas. Então, ouviu o barco se aproximar pela água. Quando o escaler encostou na popa
do Moondance, ele viu a garota.
- Paul estava com ela?
- Sim.
- Mais alguém?
- Não, só Paul.
- Ela estava inconsciente?
- Quase.
- O que estava usando?
- Vestido branco. E um capuz preto cobria sua cabeça.
- Você viu o rosto dela?
- Em nenhum momento.
- Alguma ferida?
- Os joelhos estavam sangrando e os braços tinham muitos arranhões e hematomas.
- Algemas?
- Nas mãos.
- Na frente do corpo ou atrás?
- Atrás.
- De que tipo?
- Algemas plásticas, muito profissionais.
- Continue.
- Paul deitou a garota num sofá no alojamento principal e aplicou algo nela para deixá-la quieta. Depois veio para a ponte de comando e me disse para onde queria
ir.
- Para onde?
- Para o estuário logo a oeste de Saintes-Maries-de-la-Mer. O lugar tem uma marina pequena, já usei antes. É um ponto excelente. Paul tinha feito a lição de casa.
Outra olhada para Keller. Outro assentimento.
- Você atravessou direto?
- Não - respondeu Lacroix. - Isso teria nos levado para a terra em plena luz do dia. Passamos o dia inteiro no mar. Avançamos em torno das onze horas daquela noite.
- Paul manteve a garota no alojamento o tempo inteiro?
- Ele a levou para a proa uma vez, mas fora isso...
- Fora isso o quê?
- Ele usou a seringa.
- Ketamina?
- Não sou médico.
- Não brinca.
- Você me fez uma pergunta, eu respondi.
- Ele a levou para a terra no escaler?
- Não. Eu fui direto para a marina. É o tipo de lugar onde dá para estacionar um carro bem ao lado do barco. Havia um esperando. Um Mercedes preto.
- Que tipo de Mercedes?
- Classe E.
- Placa?
- Francesa.
- Sem ninguém?
- Não. Havia dois homens. Um estava apoiado no capô quando nós entramos. O outro estava ao volante.
- Você conhecia o que estava apoiado no capô?
- Nunca o vi antes.
- Mas o que estava ao volante você conhecia, não é mesmo, Marcel?
- Sim. Era René Brossard.
René Brossard era o soldado raso de uma família criminosa com ligações internacionais que estava se dando bem em Marselha. Era especializado em trabalho pesado:
cobrança de dívidas, coerção, segurança. No tempo livre, trabalhava como leão de chácara num clube noturno perto do Velho Porto, principalmente porque gostava das
garotas que trabalhavam lá. Lacroix o conhecia da vizinhança. Também sabia seu telefone.
- Quando você ligou para ele? - perguntou Gabriel.
- Alguns dias depois de ter lido a primeira matéria sobre a garota inglesa que desapareceu durante as férias na Córsega. Somei um mais um e me dei conta de que era
a garota que eu tinha deixado no porto em Saintes-Maries-de-la-Mer.
- Você é algum tipo de gênio da matemática?
- Eu sei somar - gracejou Lacroix.
- Você se deu conta de que Paul poderia receber uma bela grana de resgate de alguém e quis uma fatia do bolo.
- Ele me passou a perna quanto falou do tipo de trabalho. Eu nunca teria concordado em fazer parte do sequestro de alguém importante por meros 50 mil dólares.
- Quanto você queria?
- Eu tento não criar o hábito de negociar comigo mesmo.
- Homem sábio.
Gabriel perguntou a Lacroix quanto tempo Brossard tinha levado para retornar seu telefonema.
- Dois dias.
- Vocês entraram em detalhes pelo telefone?
- O suficiente para deixar claro o que eu queria. Brossard me ligou de volta algumas horas depois e me disse para ir ao Bar du Haut na tarde seguinte, às quatro.
- Isso foi uma burrice, Marcel.
- Por quê?
- Porque Paul poderia estar lá em vez de Brossard. E ele poderia ter metido uma bala entre os seus olhos por ter a audácia de pedir mais dinheiro.
- Eu sei cuidar de mim mesmo.
- Se isso fosse verdade - falou Gabriel -, você não estaria amarrado numa cadeira no próprio barco. Mas continue: você estava me contando sobre a sua conversa com
René Brossard.
- Ele disse que Paul queria ser razoável. Depois disso, começamos a negociar.
- Negociar?
- O preço do meu acordo. Paul fez uma oferta. Eu fiz uma contraoferta. Fomos e voltamos várias vezes.
Tudo por telefone?
Lacroix assentiu.
- Qual é o papel de Brossard na operação?
- Ele fica na casa onde estão mantendo a garota.
- Paul está lá também?
- Não perguntei.
- Quantas pessoas estão lá?
- Não sei. Só sei que outra mulher vive lá, para que eles pareçam uma família.
- Brossard chegou a mencionar a garota inglesa?
- Disse que ela está viva.
- Só isso?
- É.
- Qual é o estado atual das suas negociações com Paul e Brossard?
- Chegamos a um acordo esta manhã.
- Quanto você conseguiu arrancar deles?
- Mais 100 mil.
- Quando você vai pegar o dinheiro?
- Amanhã à tarde.
- Onde?
- Em Aix.
- Onde, lá?
- Num café perto da praça Charles de Gaulle.
- Qual é o nome do lugar?
- Le Provence. Mais alguma coisa?
- Como ficou combinado?
- Brossard ficou de aparecer primeiro, às cinco e dez. Vou encontrá-lo dez minutos depois.
- Onde ele vai estar sentado?
- Numa mesa do lado de fora.
- E o dinheiro?
- Brossard disse que estaria numa maleta de metal.
- Que discreto.
- Foi escolha dele, não minha.
- Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?
- Le Cézanne, subindo um pouco a rua.
- Quanto tempo ele vai esperar lá?
- Dez minutos.
- E se você não der as caras?
- O acordo é cancelado.
- Existe mais alguma instrução?
- Mais nenhum telefonema - respondeu Lacroix. - Paul está ficando nervoso com os telefonemas.
- Aposto que está.
Gabriel olhou para a ponte de comando, mas dessa vez Keller estava imóvel, um vulto contra o céu preto com uma arma nas mãos estendidas. O tiro, suprimido por um
silenciador, abriu um buraco em cima do olho esquerdo de Lacroix. Gabriel segurou os ombros do francês enquanto ele morria. Em seguida, virou-se, furioso, e apontou
a sua arma para Keller.
- É melhor você guardar isso antes que alguém se machuque - disse o Inglês com calma.
- Por que diabos você fez isso?
- Ele entrou na minha lista negra. Além disso - acrescentou Keller, enquanto guardava a arma na cintura -, ele não era mais necessário.
13
CÔTE D'AZUR, FRANÇA
Eles o lançaram ao fundo do mar nas águas profundas além do golfo de Leão e seguiram para Marselha. Ainda estava escuro quando chegaram ao Velho Porto. Gabriel e
Keller saíram do Moondance com alguns minutos de diferença um do outro, entraram nos seus carros, e percorreram a costa a caminho de Toulon. Um pouco antes da cidade
de Bandol, Gabriel parou na beira da estrada e afrouxou vários cabos do motor. Ligou para a locadora de veículos e, com a voz histérica de Herr Klemp, deixou uma
mensagem dizendo onde o carro “quebrado” podia ser encontrado. Depois de limpar as digitais do volante e do painel, entrou no Renault de Keller e os dois foram para
o leste, seguindo para Nice sob o sol nascente. Havia um prédio antigo na Rue Verdi, branco como um osso, onde o Escritório mantinha um de seus vários flats secretos
na França. Gabriel entrou no edifício sozinho e pegou a correspondência, que incluía a cópia do arquivo pessoal de Madeline Hart no Partido, solicitada a Graham
Seymour. De volta ao carro, ele leu o documento enquanto Keller dirigia rumo a Aix pela Autoroute A8.
- O que diz aí? - perguntou o Inglês depois de vários minutos de silêncio.
- Que Madeline Hart é perfeita. Mas nós já sabíamos disso.
- Eu também já fui perfeito. E olha como fiquei.
- Você sempre foi um patife, Keller. Só não percebeu até aquela noite no Iraque.
- Eu perdi oito colegas tentando proteger o seu país dos Scuds de Saddam.
- Somos eternamente gratos.
Mais calmo, Keller ligou o rádio e sintonizou numa estação sediada em Mônaco que transmitia em inglês, voltada para a grande comunidade de expatriados britânicos
que viviam no sul da França.
- Com saudades de casa? - perguntou Gabriel.
- Gosto de ouvir o som do meu idioma nativo de vez em quando.
- Você nunca voltou?
- Para a Inglaterra?
Gabriel assentiu.
- Nunca - respondeu Keller. - Eu me recuso a trabalhar lá e nunca aceite, contratos envolvendo ingleses.
- Que nobre da sua parte.
- Deve-se operar de acordo com um código de conduta.
- Então os seus pais não sabem que você está vivo?
- Não.
- Você não deve mesmo ser judeu - repreendeu Gabriel. - Nenhum garoto judeu deixaria a mãe pensar que ele está morto. Não se atreveria.
Gabriel abriu o registro mais recente do arquivo pessoal de Madeline Hart e o leu em silêncio enquanto Keller dirigia. Era a cópia de uma carta enviada por Jeremy
Fallon para o presidente do Partido, recomendando que a Srta. Hart fosse promovida a um posto júnior no ministério e preparada para cargos oficiais. Fitou uma fotografia
de Madeline sentada numa cafeteria a céu aberto com o homem que eles conheciam apenas pelo nome de Paul.
Observando-o, Keller perguntou:
- Em que você está pensando?
- Estou só me perguntando por que uma jovem estrela em ascensão no partido britânico da situação dividia uma garrafa de champanhe com um sujeito tão estranho como
o nosso amigo Paul.
- Porque ele sabia que Madeline tinha um caso com o primeiro-ministro. E estava se preparando para sequestrá-la.
- Como ele teria descoberto?
- Eu tenho uma teoria.
- É baseada em fatos?
- Em alguns.
- Então é só uma hipótese.
- Mas pelo menos vai ajudar a passar o tempo.
Gabriel fechou a pasta para indicar que estava prestando atenção. Keller desligou o rádio.
- Homens como Jonathan Lancaster sempre cometem o mesmo erro quando têm um caso: confiam que os guarda-costas vão ficar de boca fechada - começou o Inglês. - Mas
eles não ficam. Eles conversam entre si, conversam com as esposas, as namoradas, os velhos amigos que conseguiram trabalho no negócio particular de segurança da
Inglaterra. E, em pouco tempo, o caso chega aos ouvidos de alguém como Paul.
- Você acha que Paul está ligado ao negócio britânico de segurança?
- Ele poderia estar. Ou então conhecer alguém que esteja. Enfim, uma informação dessas vale ouro para alguém como Paul. Ele provavelmente manteve Madeline sob observação
em Londres e invadiu o celular e as contas de e-mail dela. E descobriu que a garota ia passar as férias na Córsega. Quando ela chegou, Paul a estava esperando.
- Então por que almoçar com ela? Por que correr o risco de mostrar o rosto?
- Porque, para o sequestro correr bem, precisava que ela estivesse sozinha.
- Ele a seduziu?
- Ele é um canalha charmoso.
- Essa eu não engulo - retrucou Gabriel, depois de pensar por um momento.
- Por que não?
- Porque, quando foi raptada, Madeline estava envolvida romanticamente com o primeiro-ministro britânico. Ela não teria sido seduzida por alguém como Paul.
- Madeline era a amante do primeiro-ministro, logo havia muito pouco romantismo em seu relacionamento. Ela devia ser uma garota solitária.
Gabriel olhou de novo para a foto - não para Madeline, mas para Paul.
- E quem é esse sujeito?
- Com certeza não é um amador. Só um profissional que conhece o don. E um profissional que se atreveria a bater na porta do don para pedir ajuda.
- Se ele é tão profissional, por que estava dependente do talento local para fazer o serviço?
- Você quer saber por que ele não tem equipe própria?
- Isso.
- Economia básica - respondeu Keller. - Manter uma equipe pode ser uma empreitada complicada. E, invariavelmente, as pessoas geram problemas. Quando o serviço é
lento, os garotos ficam infelizes. E, se conseguem bastante grana, querem uma parte maior.
- Então ele usa freelances com contratos diretos de taxa por serviço para evitar compartilhar os lucros.
- No ambiente global competitivo da economia atual, é o que todo mundo está fazendo.
- Não o don.
- O don é diferente. Nós somos uma família, um clã. E você está certo quanto a uma coisa: Marcel Lacroix teve sorte de não ter sido morto por um assassino a mando
de Paul. Se ele se atrevesse a pedir mais dinheiro a Don Orsati depois de completar um trabalho, teria acabado no fundo do Mediterrâneo dentro de um caixão de concreto.
- Que é onde ele está agora.
- Exceto pela parte do concreto, claro.
Gabriel olhou para Keller com desaprovação, mas não disse nada.
- Foi você que arrancou o brinco dele.
- Um lóbulo da orelha rasgado é um mal temporário. Uma bala no olho é um mal eterno.
- E o que a gente deveria ter feito com ele?
- Poderíamos tê-lo levado para a Córsega e o deixado com o don.
- Confie em mim, Gabriel, ele não teria durado muito. Orsati não gosta de problemas.
- E, como Stálin gostava de dizer, “a morte resolve todos os problemas”.
- “Se não há homem, não há problema” - Keller completou a citação.
- E se o homem estivesse mentindo para nós?
- O homem não tinha motivos para mentir.
- Por quê?
- Porque sabia que nunca ia sair vivo do barco - disse Keller, e acrescentou baixinho: - Ele só estava torcendo para ter uma morte indolor.
- Essa é outra de suas teorias?
- Regras de Marselha. Quando as coisas por aqui começam de forma violenta, sempre terminam com violência.
- E se René Brossard não estiver sentado no Le Provence às cinco e dez com uma maleta de metal? O que faremos?
- Ele vai estar lá.
Gabriel queria ser confiante como Keller, mas sua experiência o impedia. Consultou o relógio e calculou o tempo que tinham para salvar a garota.
- Caso Brossard apareça, talvez seja melhor não o matarmos antes de ele nos conduzir até o cativeiro de Madeline.
- E depois?
A morte resolve todos os problemas, pensou Gabriel. Se não há homem, não há problema.


CONTINUA

Advogado sem importância, Jonathan Lancaster não parecia nem um pouco apto a entrar na política. Mas ele sabia como trilhar seu caminho com base em contatos. Seus dois pilares foram Jeremy Fallon, o brilhante publicitário que procurava um garoto-propaganda para seu partido, e Simon Hewitt, o colunista que ditava o sucesso de qualquer aspirante a altos cargos. Assim, Lancaster se tornou o primeiro-ministro do Reino Unido, levando os amigos junto para o poder.
Passados quatro anos, o governo britânico está imerso em uma crise. Sem poder suportar mais nenhum problema em sua gestão, Lancaster recebe um bilhete de ameaça:
“Em sete dias a garota morre.’’ Acompanhando o papel, vem um vídeo de Madeline Hart, funcionária do partido, confessando ser amante do primeiro-ministro.
Para a negociação, Lancaster pede a ajuda de Gabriel Allon, um espião israelense em dívida com o governo britânico. Porém, nem com toda a sua experiência o agente conseguirá prever as consequências do surpreendente caso.


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Parte 1
A REFÉM
1
PlANA, CÓRSEGA
Foram atrás dela no final de agosto, na Córsega. A hora exata nunca seria determinada - algum momento entre o entardecer e o meio-dia do dia seguinte foi o máximo
que os funcionários da casa conseguiram determinar. Eles a viram pela última vez durante o pôr do sol, descendo a entrada da casa de campo numa lambreta vermelha,
com a saia de algodão transparente esvoaçando ao redor das coxas bronzeadas. Só ao meio-dia perceberam que não estava no quarto. A cama tinha apenas um livro, lido
pela metade e com cheiro de óleo de coco e um vago traço de rum. Mais 24 horas se passaram antes de ligarem para os gendarmes. Era um verão agitado e Madeline era
aquele tipo de garota.
Tinham chegado à ilha duas semanas antes: quatro garotas bonitas e dois rapazes zelosos, todos funcionários fiéis do governo britânico ou do partido da situação.
Traziam um único carro - um Renault hatch compartilhado, grande o bastante para acomodar cinco pessoas, ainda que sem conforto - e a lambreta vermelha, usada apenas
por Madeline, que a conduzia com uma imprudência quase suicida. A casa ocre ficava nos limites do vilarejo, a oeste, num penhasco com vista para o mar. Era arrumada
e compacta, o tipo de lugar que corretores sempre descrevem como “charmoso”, com piscina e um jardim murado repleto de arbustos de alecrim e aroeiras. Poucas horas
depois de chegarem, eles já tinham se acomodado naquele estado feliz de seminudez bronzeada a que os turistas britânicos aspiram, independentemente do destino de
suas viagens.
Embora fosse a mais jovem do grupo, informalmente Madeline era a líder, um fardo que aceitava sem problemas. Era ela que cuidava do aluguel da casa e providenciava
os longos almoços, os jantares tardios e os passeios para o interior da ilha, sempre seguindo à frente na lambreta pelas ruas traiçoeiras. Ela nem se dava o trabalho
de consultar um mapa. Seu conhecimento enciclopédico da geografia, história, cultura e cozinha da Córsega fora adquirido durante c longo período de estudo e preparações
intensas nas semanas anteriores à viagem. Pelo visto, Madeline não queria deixar nada ao acaso. Raramente deixava.
Ela havia entrado para o Partido em Millbank fazia dois anos, depois de se formar em Economia e Políticas Públicas na Universidade de Edimburgo. Apesar de ter cursado
uma instituição de segunda categoria - a maior parte de seu;
colegas vinha de escolas públicas de elite e de Oxbridge transitou rapidamente por uma série de cargos administrativos antes de ser promovida a diretora de Envolvimento
com a Comunidade. Seu emprego, como ela frequentemente o descrevia, consistia em conseguir votos junto a classes de britânicos que não tinham nenhuma razão para
apoiar o Partido, sua plataforma ou seus candidatos. Todos concordavam que não passava de um posto temporário em sua jornada para um status melhor. O futuro de Madeline
era brilhante - “brilhante como uma erupção solar”, nas palavras de Pauline, que observava a ascensão da colega mais jovem com uma boa dose de inveja. Rumares insinuavam
que ela era beneficiada pela influência de alguém importante no Partido. Alguém próximo ao primeiro-ministro. Talvez até mesmo o próprio. Com uma aparência de estrela
de cinema, intelecto aguçado e energia inesgotável, Madeline estava sendo preparada para uma vaga no Parlamento e um ministério. Tratava-se de uma questão de tempo.
Pelo menos era o que diziam.
Por tudo isso, era muito estranho que Madeline Hart fosse solteira aos 27 anos. Quando lhe perguntavam sobre sua parca vida amorosa, ela declarava que estava ocupada
demais para se dedicar a um homem. Fiona, uma linda mulher com cabelos escuros e um lado ligeiramente perverso, achava a explicação duvidosa. Na verdade, até acreditava
que Madeline estava sendo desonesta - sendo que desonestidade era a melhor qualidade de Fiona, por isso seu interesse pelas políticas do Partido. Para sustentar
sua teoria, ressaltava que, embora se estendesse em conversas sobre qualquer assunto imaginável, a moça era excepcionalmente reservada quando se tratava da vida
pessoal. Madeline se dispunha a oferecer boatos ocasionais e inofensivos sobre a infância problemática - a sombria moradia popular em Essex, o pai de quem mal se
lembrava, o irmão alcoólatra que não trabalhou um dia sequer na vida -, mas todo o resto ela mantinha oculto atrás de paredes de pedra cercadas por um fosso.
- Nossa Madeline poderia ser uma assassina psicopata ou acompanhante de luxo - sugeriu Fiona -, e ninguém saberia.
Mas Alison, uma auxiliar do Ministério do Interior que sofrerá diversas desilusões amorosas, tinha outra teoria.
- A pobrezinha está apaixonada - declarou ela uma tarde, ao observar Madeline saindo como uma deusa do mar da pequena enseada perto da casa. - O problema é que o
seu amor não é correspondido.
- E por que não? - questionou Fiona com voz sonolenta, usando uma enorme viseira.
- Talvez ele não possa corresponder.
- Casado?
- Mas é claro.
- Maldito.
- Você nunca?
- O quê, se eu já tive caso com homem casado?
- Sim.
- Só duas vezes, mas estou considerando uma terceira.
- Você vai queimar no inferno, Fi.
- Estou contando com isso.
Foi naquele momento, na tarde do sétimo dia, que, confrontados com a menor das evidências, as três garotas e os dois rapazes hospedados com Madeline Hart na casa
alugada em Piana assumiram a tarefa de encontrar um namorado para ela. E não qualquer um, disse Pauline. Ele precisaria ter a idade adequada, boa aparência e estabilidade
financeira e mental, ser de boa família, sem podres e outras mulheres na cama. Fiona, a mais experiente nas questões do coração, disse que era uma missão impossível.
- Esse tipo de homem não existe - explicou, com o cansaço de uma mulher que passou muito tempo buscando alguém que cumprisse esses requisitos. - E, se existir, ou
está casado ou tão apaixonado por si mesmo que não vai ter tempo para a pobre Madeline.
Apesar de suas dúvidas, Fiona mergulhou de cabeça no desafio, mesmo que fosse apenas para acrescentar um pouco de fofoca ao feriado. Felizmente, não faltavam alvos
potenciais, pois parecia que metade da população do sudeste da Inglaterra tinha abandonado sua ilha úmida em busca do sol da Córsega. Havia uma colônia de financistas
do centro de Londres que alugavam casas luxuosas na ponta norte do golfo do Porto. E o grupo de artistas vivendo como ciganos num povoado nas colinas da Castagniccia.
E a trupe de atores na beira da praia em Campomoro. E a delegação de políticos da oposição que tramavam sua volta ao poder em uma mansão no topo dos penhascos de
Bonifácio. Usando o Gabinete da Grã-Bretanha como cartão de visitas, Fiona logo arranjou uma série de encontros improvisados. Em todas as ocasiões - um jantar, uma
caminhada pelas montanhas ou uma tarde regada a álcool na praia -, ela enlaçava o homem que achava mais interessante e o colocava ao lado de Madeline. Mas nenhum
deles conseguiu escalar seus muros, nem mesmo o jovem ator que tinha acabado de fazer uma turnê bem-sucedida como protagonista do musical mais popular da temporada
do West End.
- Realmente é um caso perdido - resignou-se Fiona ao voltar para casa uma noite com todo o grupo, sempre guiado por Madeline em sua lambreta vermelha.
- Quem você acha que é? - perguntou Alison.
- Não sei - respondeu Fiona com voz arrastada, deixando transparecer inveja. - Mas deve ser alguém muito especial.
Foi naquela época, faltando pouco mais de uma semana para o retorno a Londres, que Madeline começou a passar um bom tempo sozinha. Ela saía da casa de manhã cedo,
normalmente antes de os outros terem acordado, e voltava no fim da tarde. Quando lhe perguntavam sobre seu paradeiro, ela dava respostas vagas, e durante o jantar
se mostrava taciturna ou inquieta. Alison temeu pelo pior: achou que o suposto amante de Madeline tivesse informado que os seus serviços não seriam mais requisitados.
Mas, no dia seguinte, depois de voltarem para casa após um passeio ao shopping, Fiona e Pauline anunciaram com alegria que Alison estava enganada. Parecia que o
amante de Madeline viera para a Córsega. E Fiona tinha as fotos para provar.
Ele fora visto às 13h50 no Les Palmiers, no cais Adolphe Landry, em Calvi. Madeline estava numa mesa na beira do porto e tinha a cabeça um pouco voltada para o mar,
como se não estivesse ciente do homem sentado à sua frente. Usava óculos escuros grandes e um chapéu de palha para se proteger sol, com um laço preto elaborado,
que projetava uma sombra sobre sua face impecável. Pauline tentou se aproximar da mesa, mas Fiona, captando a intimidade tensa da cena, sugeriu uma retirada brusca.
Ela se deteve o suficiente para, disfarçadamente, tirar a primeira fotografia incriminadora com o celular. Madeline pareceu alheia à intrusão, mas o homem, não.
No instante em que Fiona apertou o botão, ele virou a cabeça bruscamente, como se um instinto animal o tivesse alertado de que sua imagem estava sendo capturada
eletronicamente.
Depois de fugirem para uma brasserie próxima, Fiona e Pauline examinaram com cuidado o homem na foto. Seu cabelo, louro-cinza, estava desgrenhado pelo vento e o
volume exagerado lhe dava um ar quase infantil. Caindo sobre a testa, emoldurava um rosto anguloso, dominado por uma boca pequena e cruel. O traje era vagamente
marítimo: calças brancas, uma camisa em tecido oxford com listras azuis, um relógio grande de mergulhador, mocassins de lona com solas que não deixariam marcas no
convés de um navio. Ele era um homem desse tipo: nunca deixava marcas.
Partiram do princípio de que ele fosse inglês, embora pudesse ser alemão, escandinavo ou, talvez, especulou Pauline, um descendente de nobres poloneses. Dinheiro
claramente não era problema, considerando-se a garrafa de champanhe cara que suava no balde de gelo no canto da mesa. Imaginaram que sua
fortuna fora conquistada, e não herdada, mas que não seria totalmente legal seria um apostador. Teria contas bancárias na Suíça. Viajava para lugares perigosos.
Procurava ser discreto. Seus afazeres, assim como os mocassins de. não deixavam nenhuma marca.
Mas foi Madeline que mais as intrigou. Ela já não era a garota que conheciam de Londres, nem mesmo a garota com quem estavam compartilhando uma villa nas últimas
duas semanas. Parecia ter adotado uma postura completamente diferente. Era uma atriz em outro filme. Reclinadas sobre o celular como uma dupla de adolescentes, Fiona
e Pauline escreveram o diálogo e acrescentaram carne e osso aos seus personagens. Na versão delas, o romance tinha começado de maneira inocente, com um encontro
por acaso numa loja exclusiva na Bond Street. O flerte havia sido longo, e a consumação, planejada com minúcias. Mas, por enquanto, o final da história era desconhecido,
pois a vida real ainda estava por escrevê-lo. Ambas concordaram que seria trágico.
- É assim que histórias desse tipo sempre acabam - afirmou Fiona, por experiência própria. - A garota conhece o garoto. A garota se apaixona pelo garoto.
A garota tem os seus sentimentos feridos e faz o possível para destruir o garoto.
Fiona tirou mais duas fotos de Madeline e seu amante naquela tarde. Uma mostrava os dois caminhando pelo cais sob o sol forte, com as mãos se tocando de leve, meio
furtivas. Na outra, o casal se separava sem um beijo sequer. Naquela cena, o homem subiu num bote Zodiac e partiu em direção ao por Madeline montou em sua lambreta
vermelha e voltou para casa. Ao chegar, não estava mais carregando o chapéu de sol com o laço preto elaborado.
Naquela noite, ao relatar os eventos do dia, ela não mencionou a ida a Calvi nem o almoço com o homem de aparência próspera no Les Palmiers.
Fiona achou a performance impressionante.
- Nossa Madeline tem uma habilidade extraordinária para mentiras - disse ela a Pauline. - Talvez seu futuro seja tão brilhante quanto dizem. Quem sabe Talvez ela
seja primeira-ministra algum dia.
As quatro garotas bonitas e os dois rapazes zelosos da casa alugada planeja:a- um almoço em Porto, uma cidade próxima. Madeline fez as reservas em France e até mesmo
instou o proprietário a guardar sua melhor mesa, que fica. no terraço com vista para a parte rochosa da enseada. Imaginaram que iriam para o restaurante na caravana
de sempre, mas, pouco antes das sete, Madeline declarou que estava indo a Calvi para tomar um drinque com um velho amigo de Edimburgo.
- Encontro vocês no restaurante! - gritou ela por cima do ombro, descendo a rampa. - E, pelo amor de Deus, tentem chegar na hora para variar!
Então ela se foi. Ninguém achou estranho ela não aparecer para o jantar. Nem ficaram alarmados ao acordarem e verem sua cama vazia. Era um verão agitado e Madeline
era aquele tipo de garota.
2
CÓRSEGA - LONDRES
A polícia nacional francesa declarou oficialmente que Madeline Hart estava desaparecida às 14 horas da última sexta-feira de agosto. Depois de três dias de buscas,
não descobriram nenhum vestígio dela além da lambreta vermelha, que acharam numa ravina isolada próxima ao monte Cinto, com a lanterna quebrada. No fim da semana,
a polícia já tinha praticamente perdido qualquer esperança de encontrá-la com vida. Em público, insistiram que o caso consistia numa busca por uma turista britânica
desaparecida. Em particular, no entanto, já procuravam seu assassino.
Não havia suspeitos além do homem com quem ela almoçara no Les Palmiers no dia de seu desaparecimento. Mas, assim como Madeline, ele parecia ter sumido da face da
terra. Era um amante secreto, como Fiona e os outros desconfiavam, ou os dois teriam se conhecido havia pouco tempo, na Córsega? Ele seria inglês? Francês? Ou, nas
palavras de um detetive frustrado, um alienígena de outra galáxia que tinha se desfeito em partículas e voltado para a nave espacial? A garçonete do Les Palmiers
não foi de muita ajuda. Lembrava que ele conversara em inglês com a garota de chapéu, mas que fizera seu pedido num francês perfeito. O homem havia pagado a conta
em dinheiro - notas novas e limpas que ele colocara na mesa como um jogador de pôquer - e dera uma generosa gorjeta, algo raro naqueles dias de crise econômica na
Europa. O que mais marcara a garçonete foram as mãos dele: muito pouco pelo, nenhuma marca de sol ou cicatriz, unhas limpas. O desconhecido cuidava muito bem das
unhas. Ela gostava disso num homem.
Sua fotografia foi mostrada com discrição nos bares e restaurantes mais finos da ilha, mas gerou apenas reações apáticas. Ao que tudo indicava, ninguém tinha posto
os olhos nele. E, se alguém tivesse, não conseguia se recordar de seu rosto. Era um tipo comum nas praias da Córsega no verão: bem bronzeado, óculos de sol caros
e um relógio suíço de puro ouro para aumentar seu ego. Era um nada com um cartão de crédito e uma garota bonita do outro lado da mesa. Era um homem esquecido.
Talvez para os donos de lojas e restaurantes da Córsega, mas não para a polícia francesa. A imagem foi passada por todos os bancos de dados de criminosos em seu
arsenal e por mais alguns. Como nenhuma busca deu frutos, os policiais debateram a possibilidade de revelar a foto para a imprensa. Algumas pessoas, especialmente
nos cargos mais altos, argumentaram contra. Afinal, era possível que o pobre coitado não tivesse culpa de nada, talvez apenas de infidelidade, algo longe de ser
crime na França. Mas, quando se passaram mais 72 horas sem nenhum progresso, concluíram que não havia escolha: precisariam pedir ajuda à população. Duas fotografias
editadas com cuidado foram liberadas para a imprensa - uma do homem sentado no Les Palmiers; outra dele andando ao longo do cais - e, ao anoitecer, os investigadores
já estavam sendo bombardeados por centenas de pistas. Rapidamente eliminaram os farsantes e os trotes e focaram recursos apenas nas que pareciam mais plausíveis.
Porém, nada deu resultado. Uma semana depois do desaparecimento, o único suspeito ainda era um homem sem nome nem nacionalidade.
Apesar de a polícia não ter nada promissor, não faltavam teorias. Um grupo de detetives acreditava que o homem do Les Palmiers era um psicopata que tinha atraído
Madeline para uma armadilha. Outro grupo achava que era apenas alguém no lugar errado e na hora errada. De acordo com essa hipótese, ele era casado, portanto não
poderia se revelar e cooperar com a polícia. Já Madeline provavelmente teria sido vítima de um assalto que acabara mal - uma jovem andando de moto sozinha era um
alvo tentador. Em algum momento o corpo apareceria. O mar o cuspiria, um alpinista o encontraria nas colinas ou um fazendeiro o desenterraria ao arar o campo. Assim
eram as coisas na ilha: a Córsega sempre devolvia os seus mortos.
As falhas da polícia foram uma ocasião propícia para os ingleses criticarem os franceses. Mas, de forma geral, até mesmo os jornais simpáticos à oposição trataram
o desaparecimento de Madeline como uma tragédia nacional. Sua ascensão notável, desde a moradia popular em Essex, foi narrada em detalhes, e diversos membros do
Partido emitiram declarações sobre uma carreira promissora abreviada precocemente. Sua mãe chorosa e seu irmão desajeitado deram uma única entrevista para a televisão
e, em seguida, desapareceram das vistas do público. O mesmo aconteceu com seus companheiros de férias na Córsega. Ao voltarem para a Inglaterra, apareceram juntos
numa coletiva de imprensa no aeroporto de Heathrow, observados por uma equipe de assessores do Partido. Posteriormente, recusaram todos os outros pedidos de entrevistas,
incluindo aqueles que ofereciam pagamentos lucrativos. A cobertura não incluiu nenhum traço de escândalo. Não houve histórias sobre bebedeiras festivas, jogos sexuais
ou perturbação da ordem pública, apenas a baboseira de sempre sobre os perigos enfrentados por mulheres jovens viajando em países estrangeiros. Na sede do Partido,
a assessoria de imprensa se parabenizou em particular pela hábil manipulação do caso, enquanto a equipe política percebeu uma leve melhoria na aprovação ao primeiro-ministro.
Por trás de portas fechadas, chamaram o fenômeno de “o efeito Madeline”.
Gradualmente, as matérias sobre o destino de Madeline saíram das primeiras páginas e foram para as seções internas e, ao final de setembro, ela já tinha desaparecido
dos jornais. Era outono, hora de voltar ao negócio de governar. Os desafios que a Inglaterra enfrentava eram imensos: uma economia em recessão, a zona do euro na
UTI, uma lista interminável de males sociais não resolvidos que estavam destruindo a qualidade de vida no Reino Unido. Pairando sobre tudo, a perspectiva de uma
eleição. O primeiro-ministro tinha dado inúmeras pistas de que haveria uma antes do fim do ano. Ele estava ciente dos riscos políticos de voltar atrás agora. Jonathan
Lancaster estava à frente do governo britânico porque seu antecessor havia deixado de convocar uma eleição após meses de flerte público com a ideia. Lancaster, então
líder da oposição, dissera que ele era “o Hamlet do Número 10” - em referência ao endereço da residência do primeiro-ministro - e a ferida mortal se abriu.
Isso tudo explicava por que Simon Hewitt, o diretor de comunicação do primeiro-ministro, não andava dormindo bem nos últimos tempos. O padrão de sua insônia nunca
variava. Exausto pela rotina esmagadora de trabalho, adormecia rapidamente, em geral com uma pasta de arquivos sobre o peito, mas acordava duas ou três horas depois.
Uma vez desperta, sua mente se acelerava. Após quatro anos no governo, ele parecia incapaz de focar nada além do negativo. Esse era o preço de ser assessor de imprensa
na Downing Street. No mundo de Simon Hewitt não havia triunfos, apenas desastres e quase desastres. Como os terremotos, sua intensidade variava de pequenos tremores
que mal eram sentidos a convulsões sísmicas capazes de derrubar prédios e desfazer vidas. Todos esperavam que Hewitt previsse a calamidade vindoura e, se possível,
contivesse os danos. Nos últimos tempos, ele tinha chegado à conclusão de que seu trabalho era impossível. Nos momentos mais sombrios, essa constatação lhe dava
um pouquinho de consolo.
Ele já fora um homem de reputação. Como colunista-chefe de política do
Times, Hewitt havia sido uma das pessoas mais influentes do gabinete, no Palácio de Whitehall. Com poucas palavras de sua característica prosa afiada, podia condenar
uma política governamental, assim como a carreira do ministro responsável por apresentá-la. O poder de Hewitt se tornou tão grande que nenhum governo tomava uma
decisão importante sem consultá-lo. E nenhum político que aspirasse a um futuro melhor pensaria em concorrer a um posto de liderança em algum partido sem garantir
o apoio de Hewitt. Foi o que fez Jonathan Lancaster, um ex-advogado do centro financeiro londrino, egresso de um distrito parlamentar do subúrbio. No início, Hewitt
não lhe deu muita importância: era muito polido, bem-apessoado e elitista para ser levado a sério. Mas, com o passar do tempo, ele passou a considerar Lancaster
um competente homem de ideias que queria reconstruir seu partido moribundo para, então, reconstruir o país. Hewitt se surpreendeu ao perceber que realmente gostava
de Lancaster, o que nunca era um bom sinal. À medida que o relacionamento progrediu, os dois passaram menos tempo fofocando sobre as maquinações políticas de Whitehall
e mais discutindo como consertar a sociedade britânica. Na noite da eleição, quando Lancaster conquistou a vitória com a maior margem de apoio do Parlamento daquela
geração, Hewitt foi uma das primeiras pessoas para quem ele ligou.
- Simon - disse, com sua voz sedutora. - Eu preciso de você, Simon. Não posso fazer isso sozinho.
Àquela altura, Hewitt já tinha escrito com fervor sobre as perspectivas de sucesso de Lancaster, sabendo muito bem que, em alguns dias, estaria trabalhando para
ele na Downing Street.
Agora, Hewitt abriu os olhos lentamente e fitou com desprezo o relógio ao lado da cama. Os dígitos brilhantes indicavam que eram 3h42, como se estivessem zombando
dele. Ao lado do relógio estavam três celulares, todos com a bateria carregada para o ataque da mídia do dia seguinte. Ele gostaria de poder recarregar as próprias
baterias com a mesma facilidade, mas, àquela altura, não havia sono ou sol tropical que pudesse reparar o dano que ele infligira ao seu corpo de meia-idade. Olhou
para Emma. Como sempre, ela estava dormindo profundamente. Em outros tempos, Hewitt poderia ter pensado em um jeito lascivo de acordá-la, mas isso já não era mais
possível; sua cama conjugal havia se tornado uma lareira apagada e congelada. Por um breve período, Emma fora seduzida pelo glamour do emprego dele, mas depois passou
a se ressentir da devoção servil do marido a Lancaster. Ela encarava o primeiro-ministro quase como um rival sexual, e seu ódio atingira um fervor irracional.
- Você é duas vezes melhor que ele, Simon - comentara Emma na noite anterior antes de lhe dar um beijo frio na bochecha caída. - Ainda assim, por alguma razão, você
sente a necessidade de fazer o papel de criado. Talvez algum dia possa me dizer por quê.
Hewitt sabia que o sono não voltaria, não agora; então ficou acordado na cama e escutou a sequência de sons que sinalizavam o começo de seu dia. O baque dos jornais
matinais na porta. O gorgolejo da máquina de café automática. O ronronar de um sedã do governo na rua, embaixo de sua janela. Levantando-se com cuidado para não
acordar Emma, vestiu o roupão e desceu até a cozinha. A cafeteira sibilava raivosamente. Hewitt preparou uma xícara sem açúcar, pelo bem de sua cintura em expansão,
e a levou para o hall. Uma rajada de vento úmido o saudou quando ele abriu a porta. A pilha de jornais estava envolta em plástico sobre o tapete de boas-vindas ao
lado de uma panela de barro com gerânios mortos. Ao se curvar, viu mais uma coisa: um envelope de papel pardo bem selado, sem nada escrito. Soube na mesma hora que
não tinha vindo da sede do governo, pois ninguém de sua equipe se atreveria a deixar nem o mais trivial documento ali na soleira. Portanto, deveria ser algo não
solicitado. Isso não era incomum; os velhos colegas da imprensa conheciam seu endereço em Hampstead e sempre lhe deixavam encomendas. Pequenos presentes por uma
informação vazada no momento certo. Discursos agressivos referentes a alguma desfeita percebida. Um rumor perverso sensível demais para ser transmitido por e-mail.
Hewitt fazia questão de ficar em dia com a fofoca de Whitehall. Sendo ex-repórter, sabia que o que era dito pelas costas de um homem costumava ser muito mais importante
que o que era escrito sobre ele nas primeiras páginas.
Hewitt cutucou o envelope com o dedão para ver se não continha fios ou baterias, então o colocou em cima dos jornais e voltou para a cozinha. Depois de ligar a televisão
e baixar o volume até um sussurro, tirou os jornais do plástico e passou os olhos pelas primeiras páginas. Estavam dominadas pela proposta de Lancaster para tornar
a indústria britânica mais competitiva com uma diminuição das taxas de juros. Como já era de esperar, o Guardian e o Independent estavam horrorizados, mas, graças
aos esforços de Hewitt, a maior parte das matérias era positiva. As outras notícias de Whitehall eram misericordiosamente benignas. Nenhum terremoto. Nem mesmo tremores.
Depois de passar pelos chamados jornais de maior prestígio, Hewitt deu uma lida rápida nos tabloides, que considerava um termômetro mais confiável da opinião pública
britânica do que qualquer enquete. Em seguida, servindo-se de mais café, abriu o envelope anônimo. Dentro, havia três itens: um DVD, uma única folha de papel A4
e uma fotografia.
- Merda - praguejou Hewitt, baixinho. - Merda, merda, merda.
O que aconteceu depois passaria a ser fonte de muita especulação. Para Simon Hewitt, um ex-jornalista político que deveria ter sido mais sensato, não faltaram recriminações.
Em vez de contatar a polícia metropolitana londrina, como exigia a lei inglesa, ele carregou o envelope até o escritório na Downing Street, número 12. Depois de
conduzir a reunião habitual das oito horas, durante a qual não mencionou os itens, Hewitt os mostrou para Jeremy Fallon, conselheiro político de Lancaster e o chefe
de gabinete mais poderoso da história inglesa. Suas responsabilidades oficiais incluíam planejamento estratégico e coordenação de políticas dos diversos departamentos
do governo, o que lhe permitia meter o nariz em qualquer questão de seu interesse. A imprensa frequentemente se referia a ele como o “cérebro de Lancaster”, um título
que agradava a Fallon e gerava ressentimento em Lancaster.
A reação de Fallon diferiu apenas na escolha do palavrão. Seu primeiro instinto foi levar na mesma hora o material para Lancaster, mas, como era quarta-feira, esperou
até o chefe sobreviver à batalha de gladiadores conhecida como Perguntas ao Primeiro-Ministro. Em nenhum momento da reunião, Lancaster, Hewitt ou Jeremy Fallon sugeriram
passar o material para as autoridades competentes. Os três concordaram que precisavam de uma pessoa discreta e habilidosa, à qual, acima de tudo, poderiam confiar
a proteção dos interesses do primeiro-ministro. Fallon e Hewitt pediram uma lista de candidatos a Lancaster, que deu apenas um nome. Havia uma relação familiar e,
o mais importante, uma dívida não paga. Lealdade contava muito em tempos assim, disse o primeiro-ministro, mas influência era algo muito mais eficiente.
Isso explica o convite sutil feito por Downing Street a Graham Seymour, o vice-diretor de longa data do Serviço de Segurança britânico, também conhecido como MI5.
Muito tempo depois, Seymour descreveria o encontro - realizado na sala de reuniões diante de um retrato carrancudo da baronesa Thatcher - como o mais difícil da
carreira. Concordou em ajudar o primeiro-ministro sem hesitação, pois era isso que um homem como ele fazia em circunstâncias daquele tipo. Ainda assim, deixou claro
que, caso seu envolvimento algum dia se tornasse público, destruiria o responsável.
Ficou em aberto apenas a identidade do agente que conduziria a busca. Assim como Lancaster, Graham tinha apenas um candidato. Ele não compartilhou o nome com o primeiro-ministro.
Em vez disso, usando fundos de uma das várias contas operacionais secretas do MI5, reservou um assento num voo da
Brites Airways daquela tarde com destino a Tel Aviv. Enquanto o avião decolava, Graham ponderou a melhor abordagem. Lealdade contava muito em tempos assim, mas influência
era algo bem mais eficiente.
3
JERUSALÉM
O coração de Jerusalém, não. muito longe do Ben Yehuda Mall, ficava a silenciosa e arborizada rua Narkiss. O prédio no número 16 era pequeno, com apenas três andares,
parcialmente oculto por um robusto muro de pedra calcária e um imenso eucalipto crescendo no jardim da frente. O apartamento no terceiro andar era igual aos outros,
exceto pelo fato de já ter pertencido ao serviço secreto de inteligência do Estado de Israel. Tinha uma sala de estar espaçosa, uma cozinha bem-arranjada cheia de
eletrodomésticos modernos, uma sala de jantar formal e dois quartos. O quarto menor, reservado para uma criança, fora penosamente convertido num estúdio artístico.
Mas Gabriel ainda preferia trabalhar na sala de estar, onde a brisa fresca que vinha da varanda ajudava a dissipar o cheiro forte dos solventes.
No momento, ele estava usando uma solução, preparada com cuidado, de acetona, álcool e água destilada, que aprendera a fazer em Veneza com o mestre restaurador de
arte Umberto Conti. A mistura era forte o bastante para dissolver contaminações na superfície e o verniz velho, mas não chegava a prejudicar as pinceladas originais
do artista. Gabriel umedeceu um cotonete feito à mão na solução e o girou delicadamente sobre o peito empinado de Suzana. Ela olhava em outra direção, banhando-se,
e mal parecia ciente dos dois anciãos lascivos da aldeia que a espiavam de trás do muro do jardim. Gabriel tinha uma atitude protetora em relação a mulheres e desejava
poder intervir, poupando-a do trauma por vir: as falsas acusações, o julgamento, a sentença de morte. Em vez disso, continuou o serviço e observou a pele amarelada
dela adquirir um tom branco luminoso.
Quando o cotonete já estava imundo, Gabriel o colocou num frasco hermético para reter os vapores. Enquanto preparava outro, seus olhos se moveram lentamente pela
superfície da pintura. Até aquele momento, a obra era atribuída apenas a um discípulo de Ticiano. Mas o proprietário atual da tela, o renomado negociante de arte
Julian Isherwood, acreditava que a tela tinha vindo do estúdio de Jacopo Bassano. Gabriel concordava - na verdade, agora que expusera um pouco da pincelada, viu
evidências do próprio mestre, especialmente na imagem de Suzana. Ele conhecia bem o estilo do pintor, pois havia estudado bastante suas pinturas e passara vários
meses em Zurique restaurando uma tela importante de Bassano para um colecionador particular. Na última noite de sua estadia, matara um homem chamado Ali Abdel Hamidi
num beco úmido perto do rio, um líder terrorista palestino com um bocado de sangue israelense nas mãos, que estava se passando por dramaturgo. Gabriel lhe dera uma
morte digna de suas pretensões literárias.
Ele umedeceu o novo cotonete no solvente, mas, antes de dar continuidade ao trabalho, escutou o ronco familiar do motor de um carro pesado na rua. Foi à varanda
para confirmar suas suspeitas e, então, abriu a porta da frente uns 2 centímetros. Um instante depois, Ari Shamron já estava empoleirado num banquinho de madeira
ao lado de Gabriel. Vestia calça cáqui, camisa de oxford branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Seus óculos feios refletiam a luz das lâmpadas
de halogênio que Gabriel usava para trabalhar. Seu rosto, com rugas e sulcos profundos, estava travado numa expressão de puro desgosto.
- Eu senti o cheiro desses produtos químicos assim que saí do carro. Imagino o estrago que eles provocaram ao seu corpo depois de todos esses anos.
- Tenho certeza que não é nada comparado ao dano que você provocou - retrucou Gabriel. - Estou surpreso por eu ainda ser capaz de segurar um pincel.
Gabriel tocou o cotonete umedecido na pele de Suzana e o girou devagar. Shamron consultou seu relógio de aço inoxidável e franziu a testa, como se houvesse algo
errado.
- O que foi? - perguntou Gabriel.
- Estou só imaginando quanto tempo vai levar até você me oferecer uma xícara de café.
- Você sabe onde fica tudo. Agora você praticamente mora aqui.
Shamron resmungou alguma coisa em polonês sobre a ingratidão das crianças. Em seguida, ergueu-se do banco com um impulso e, apoiando-se pesada- mente na bengala,
foi até a cozinha. Conseguiu encher a chaleira com água da torneira, mas pareceu perplexo com os diversos botões do fogão. Por duas vezes, Ari Shamron havia sido
diretor do serviço secreto de inteligência de Israel e, antes disso, fora um dos oficiais mais condecorados do mesmo serviço. Agora, contudo, já velho, parecia incapaz
de realizar as tarefas caseiras mais básicas. Cafeteiras, liquidificadores, torradeiras, todos esses utensílios eram um mistério para ele. Gilah, sua esposa resignada,
costumava brincar que, se o grande Ari Shamron fosse deixado sozinho, seria capaz de morrer de fome numa cozinha cheia de comida.
Gabriel acendeu o fogão e voltou ao trabalho. Shamron ficou parado no vão das portas da varanda, fumando. O fedor do tabaco turco logo prevaleceu sobre o odor do
solvente.
- Isso é mesmo necessário? - questionou Gabriel.
- É.
- O que está fazendo em Jerusalém?
- O primeiro-ministro queria dar uma palavra.
- Sério?
Shamron olhou para Gabriel de cara fechada através da cortina de fumaça cinza-azulada.
- Por que um pedido do primeiro-ministro para me ver surpreenderia você?
- Porque...
- Eu sou velho e irrelevante? - completou Shamron.
- Você é exagerado, impaciente e às vezes irracional. Mas você nunca foi irrelevante.
Shamron assentiu. A idade havia lhe dado a habilidade de, pelo menos, perceber suas falhas, apesar de ter roubado o tempo necessário para que ele pudesse remediá-las.
- Como ele está? - perguntou Gabriel.
- Como você pode imaginar.
- Sobre o que vocês conversaram?
- Nossa conversa foi abrangente e franca.
- Isso quer dizer que vocês gritaram um com o outro?
- Eu só gritei com um primeiro-ministro.
- Qual? - indagou Gabriel, realmente curioso.
- Golda. Foi depois de Munique. Eu lhe disse que precisávamos mudar as nossas táticas, aterrorizar os terroristas. Dei a ela uma lista de nomes de homens que deviam
morrer. Golda não queria saber daquilo.
- Então você gritou com ela?
- Não foi meu melhor momento.
- O que ela fez?
- Gritou também, claro. Mas, no fim das contas, compreendeu meu raciocínio. Então, montei outra lista de nomes, dos jovens de quem eu precisava para realizar a operação.
Todos concordaram sem hesitar. - Shamron fez uma pausa, em seguida acrescentou: - Todos menos um.
Em silêncio, Gabriel guardou o cotonete sujo no frasco hermético, que reteve os gases tóxicos do solvente, mas não a memória de seu primeiro encontro com o homem
que eles chamavam de Memuneh, a pessoa encarregada. Ocorrera a poucas centenas de metros de onde ele estava agora, no campus da Academia Bezalel de Artes e Design.
Gabriel tinha acabado de assistir a uma palestra sobre as pinturas de Viktor Frankel, o renomado expressionista alemão que também era seu avô materno. Shamron esperava
por ele na beira de um pátio ensolarado, um homem baixo e esguio, com óculos escuros tenebrosos e dentes afiados, que lembravam uma armadilha de aço. Como sempre,
estava bem preparado. Sabia que a mãe de Gabriel, uma artista talentosa, tinha sobrevivido ao campo de concentração em Birkenau, mas que não conseguira derrotar
o câncer que devastara seu corpo. Também sabia que a língua materna de Gabriel era o alemão e que esse ainda era o idioma no qual ele sonhava. Todas as informações
estavam na pasta que Shamron segurava com dedos manchados de nicotina.
- A operação será chamada Ira de Deus - explicara ele. - Não se trata de justiça. Trata-se de vingança, pura e simplesmente. Queremos vingar as onze vidas inocentes
perdidas em Munique.
Gabriel disse a Shamron para procurar outra pessoa.
- Eu não quero outra pessoa. Eu quero você.
Pelos três anos seguintes, Gabriel e os outros agentes da Ira de Deus seguiram suas presas pela Europa e pelo Oriente Médio. Carregando uma Beretta calibre 22, uma
arma discreta, adequada para matar de perto, Gabriel assassinou seis membros do Setembro Negro. Sempre que possível, atirava onze vezes, uma bala para cada israelense
massacrado em Munique. Quando finalmente voltou para casa, o cabelo ao redor de suas têmporas estava grisalho e seu rosto era o de um homem vinte anos mais velho.
Incapaz de produzir trabalhos de arte originais, ele foi a Veneza para estudar restauração. Então, depois de repousar, voltou a trabalhar para Shamron. Nos anos
que se seguiram, desempenhou algumas das operações mais fabulosas na história da inteligência israelense. Agora, após muitos anos peregrinando incansavelmente, voltara
para Jerusalém. Ninguém ficou mais satisfeito do que Shamron, que amava Gabriel como um filho e tratava o apartamento na rua Narkiss como se fosse o seu próprio.
Em outros tempos, talvez Gabriel tivesse se irritado com a presença constante de Shamron, mas agora isso não o incomodava. O Velho era eterno, mas o corpo em que
seu espírito residia não duraria para sempre.
Nada havia prejudicado mais a saúde de Shamron do que o implacável tabagismo. Fora um hábito adquirido na juventude, no leste da Polônia, e que piorara depois de
sua ida à Palestina, onde lutou na guerra que levou à independência de Israel. Agora, enquanto descrevia a reunião com o primeiro- -ministro, ele abriu seu velho
isqueiro Zippo e o usou para acender mais um cigarro fétido.
- O primeiro-ministro está inquieto, mais do que o normal. Imagino que ele tenha esse direito. O grande Despertar Árabe levou a região toda ao caos. E os iranianos
estão cada vez mais perto de realizarem seus sonhos nucleares. Em breve, vão entrar numa zona de imunidade, impossibilitando uma ação militar nossa sem a ajuda dos
americanos. - Shamron fechou o isqueiro com um estalo e olhou para Gabriel, que tinha voltado a trabalhar na pintura. - Você está me ouvindo?
- Cada palavra.
- Prove.
Gabriel repetiu a última declaração de Shamron palavra por palavra. Shamron sorriu. Ele considerava a memória impecável de Gabriel uma de suas melhores virtudes.
Girou o Zippo entre os dedos. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
- O problema é que o presidente americano não quer demarcar um limite inflexível. Ele diz que não vai permitir que os iranianos construam armas nucleares. Mas não
faz diferença nenhuma dizer isso se os iranianos têm a capacidade de construí-las num curto período de tempo.
- Como os japoneses.
- Os japoneses não são governados por xiitas apocalípticos. Se o presidente americano não tomar cuidado, suas duas conquistas mais relevantes na política externa
serão um Irã nuclear e a restauração do califado islâmico.
- Bem-vindo ao mundo pós-americano, Ari.
- E é por isso que eu acho uma estupidez deixar nossa segurança nas mãos deles. Mas esse não é o único problema do primeiro-ministro. Os generais não têm certeza
se podem destruir o suficiente do programa para fazer com que um ataque militar seja eficiente. E o King Saul Boulevard, liderado por seu amigo Uzi Navot, está dizendo
ao primeiro-ministro que uma guerra unilateral contra os persas seria uma catástrofe de proporções bíblicas.
O King Saul Boulevard era o endereço do serviço secreto de inteligência israelense no exterior. O nome longo e propositalmente enganoso tinha muito pouco a ver com
a verdadeira natureza de suas atividades. Até mesmo agentes aposentados como Gabriel e Shamron se referiam à instalação apenas como “o Escritório”.
- Uzi é que vê a realidade nua e crua todos os dias - falou Gabriel.
- Eu vejo também... Não tudo - acrescentou Shamron às pressas mas o bastante para me convencer de que os cálculos de Uzi sobre quanto tempo nós temos podem estar
errados.
- Matemática nunca foi o ponto forte de Uzi. Mas, quando estava em campo, ele nunca errava.
- Isso porque ele raramente se colocava numa posição em que fosse possível cometer um erro. - Shamron parou de falar, observando o vento mover o eucalipto além do
parapeito da varanda de Gabriel. - Eu sempre disse que uma carreira sem controvérsias não é uma carreira de verdade. Tive o meu quinhão, e você também.
- E tenho as cicatrizes para provar.
- E os louros também - completou Shamron. - O primeiro-ministro está preocupado com a possibilidade de o Escritório ser cauteloso demais quando se trata do Irã.
Sim, nós inserimos vírus em seus computadores e eliminamos um punhado de cientistas, mas faz um tempinho que nada explode. O primeiro-ministro gostaria que Uzi orquestrasse
outra Operação Obra-Prima.
Obra-Prima era o codinome de uma operação conjunta israelense, americana e britânica que resultara na destruição de quatro instalações iranianas secretas de enriquecimento
de urânio. Tinha ocorrido durante o comando de Uzi Navot, mas dentro dos corredores do King Saul Boulevard era considerada uma das maiores conquistas de Gabriel.
- Oportunidades como a Obra-Prima não aparecem todo dia, Ari.
- Isso é verdade - admitiu Shamron. - Mas sempre acreditei que a maioria das oportunidades são conquistadas, e não ganhas. O primeiro-ministro compartilha dessa
opinião.
- Ele perdeu a confiança em Uzi?
- Ainda não. Mas queria saber se eu tinha perdido.
- O que você disse?
- Que escolha eu tinha? Fui eu que o recomendei para o cargo.
- Então você o apoiou?
- Com um porém.
- Qual?
- Eu lembrei ao primeiro-ministro que a pessoa que eu realmente queria
para o trabalho não estava interessada. - Shamron balançou a cabeça devagar.
- Você é o único homem na história do Escritório que recusou uma chance de ser diretor.
- Sempre há uma primeira vez, Ari.
- Isso significa que você poderia reconsiderar?
- É por isso que você está aqui?
- Pensei que você fosse apreciar minha companhia. Eu e o primeiro-ministro estávamos nos perguntando se você estaria disposto a ajudar um dos nossos aliados mais
próximos.
- Qual?
- Graham Seymour veio para a cidade sem aviso prévio. Ele gostaria de uma conversa.
Gabriel se virou para encarar Shamron.
- Sobre o quê? - perguntou depois de um instante.
- Ele não disse, mas acho que é urgente. - Shamron foi até o cavalete e observou o pedaço límpido de tela no qual Gabriel estava trabalhando. - Parece até que a
pintura é recente.
- Esse é o objetivo.
- Alguma chance de você fazer o mesmo por mim?
- Desculpe, Ari - respondeu Gabriel, tocando a bochecha enrugada de Shamron -, mas temo que você esteja além de qualquer restauração.
4
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
Na tarde de 22 de julho de 1946, o grupo sionista extremista conhecido como Irgun detonou uma grande bomba no King David Hotel, sede de todas as forças militares
e civis da Inglaterra na Palestina. O ataque era uma retaliação pela prisão de centenas de combatentes judeus e matou 91 pessoas, incluindo 28 ingleses que ignoraram
um telefonema alertando-os para evacuar o hotel. Embora condenado universalmente, o bombardeio logo se provou um dos atos de violência política mais eficientes já
cometidos. Passados dois anos, os ingleses saíram da Palestina, e o Estado moderno de Israel, outrora um sonho sionista quase inimaginável, tornou-se realidade.
Entre os afortunados que sobreviveram ao bombardeio estava um jovem agente da inteligência britânica chamado Arthur Seymour, um veterano do programa de guerra Double
Cross que tinha sido transferido recentemente para a Palestina com a função de espionar os movimentos de resistência judeus. Era para Seymour estar em seu escritório
no momento do ataque, mas ele atrasou alguns minutos depois de uma reunião com um informante na Cidade Antiga. Ouviu a detonação enquanto passava pelo Portão de
Jaffa e, horrorizado, contemplou parte do hotel desmoronar. A imagem assombraria Seymour pelo resto da vida e moldaria os rumos de sua carreira. Anti-israelense
virulento e fluente em árabe, ele forjou laços desconfortavelmente próximos com muitos inimigos de Israel. Com frequência, era convidado do presidente do Egito,
Gamai Abdel Nasser, e admirador precoce de um jovem revolucionário palestino chamado Yasser Arafat.
Apesar de suas tendências pró-árabes, o Escritório considerou Arthur Seymour um dos oficiais mais competentes do MI6 no Oriente Médio. Por isso, houve certa surpresa
quando o único filho de Arthur, Graham, optou por uma carreira no MI5 em vez do mais glamoroso Serviço Secreto de Inteligência. Seymour, o Jovem - como era conhecido
no início da carreira -, serviu primeiro na contrainteligência, operando contra a KGB em Londres. Então, após a queda do Muro de Berlim e com a ascensão do fanatismo
islâmico, foi promovido a chefe de contraterrorismo. Agora, como vice-diretor do MI5, era forçado a aplicar sua experiência em ambas as disciplinas. Atualmente,
havia mais espiões russos operando em Londres do que no auge da Guerra Fria. E, graças aos erros de sucessivos governos britânicos, o Reino Unido abrigava milhares
de militantes muçulmanos do mundo árabe e da Ásia. Seymour chamava Londres de “Kandahar no Tâmisa”. Intimamente, temia que seu país estivesse escorregando cada vez
mais na direção de um abismo civilizacional.
Embora tivesse herdado a paixão do pai pela espionagem, Graham Seymour não compartilhava de forma alguma seu desdém por Israel. De fato, sob sua condução, o MI5
havia se aproximado do Escritório e, em especial, de Gabriel Allon. Os dois se consideravam membros de uma irmandade secreta que fazia as tarefas desagradáveis que
ninguém mais estava disposto a fazer, deixando para se preocupar com as consequências depois. Tinham lutado um pelo outro, sangrado um pelo outro e, em alguns casos,
matado um pelo outro. Eram tão próximos quanto dois espiões de serviços opostos poderiam ser, o que significava que tinham uma leve desconfiança mútua.
- Alguém no hotel não sabe quem você é? - perguntou Seymour, dando um aperto de mão em Gabriel como se o estivesse encontrando pela primeira vez.
- A garota na recepção perguntou se eu estava aqui para o bar mitzvah dos Greenbergs.
Seymour abriu um sorriso discreto. Com sua aparência vigorosa e queixo robusto, parecia o arquétipo de um barão colonial britânico, um homem que decidia questões
importantes e nunca servia o próprio chá.
- Dentro ou fora? - perguntou Gabriel.
- Fora - respondeu Seymour.
Eles ocuparam uma mesa no terraço, Gabriel voltado para o hotel e Seymour de frente para os muros da Cidade Antiga. Agora era a calmaria entre o café da manhã e
o almoço; haviam passado poucos minutos das onze horas. Gabriel só tomou café, mas Seymour pediu bastante comida. Sua esposa era uma cozinheira entusiástica, mas
pavorosa. Para Seymour, comida de avião era um mimo, e um brunch de hotel, mesmo feito na cozinha do King David, era uma ocasião a ser apreciada. O mesmo valia,
pelo visto, para a vista da Cidade Antiga.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse ele entre as mordidas na omelete -, mas esta é a minha primeira visita ao seu país.
- Eu sei. Está tudo no seu arquivo.
- É uma leitura interessante?
- Tenho certeza de que não deve ser nada em comparação com o que seu serviço tem sobre mim.
- Como poderia se comparar? Não passo de um humilde lacaio do Serviço Secreto de Sua Majestade. Você, por outro lado, é uma lenda. Afinal - acrescentou Seymour,
falando mais baixo quantos agentes de inteligência podem dizer que pouparam o mundo de um apocalipse?
Gabriel olhou por cima do ombro e fitou o Domo da Rocha, o terceiro lugar mais sagrado do Islã, resplandecente sob a luz cristalina do sol de Jerusalém. Cinco meses
antes, numa câmara secreta 50 metros abaixo da superfície do Monte do Templo, ele havia descoberto uma bomba que, caso fosse detonada, derrubaria todo o platô. Também
encontrara 22 pilares do Templo de Jerusalém do rei Salomão, provando que o antigo santuário judeu descrito no Livro de Reis e de Crônicas tinha de fato existido.
Embora o nome de Gabriel não tivesse aparecido na cobertura de imprensa da monumental revelação, seu envolvimento era bem conhecido em certos círculos da comunidade
ocidental de inteligência. Também se sabia que seu amigo mais próximo, Eli Lavon, renomado arqueólogo bíblico e agente do Escritório, quase morrera tentando salvar
os pilares da destruição.
- Foi uma sorte dos diabos aquela bomba não ter explodido - comentou Seymour. - Se tivesse, milhões de muçulmanos chegariam às suas fronteiras numa questão de horas.
E depois... - A voz de Seymour se perdeu.
- Seria o fim do jogo para o empreendimento conhecido como Estado de Israel - completou Gabriel. - Esse era exatamente o objetivo dos iranianos e de seus amigos
do Hezbollah.
- Não consigo imaginar como foi ter visto aqueles pilares pela primeira vez.
- Para ser sincero, Graham, não tive tempo para saborear o momento. Estava ocupado demais tentando manter Eli vivo.
- Como ele está?
- Passou dois meses no hospital, mas está quase cem por cento. Na verdade, até voltou a trabalhar.
- Para o Escritório?
Gabriel balançou a cabeça.
- Ele está escavando o Túnel do Muro das Lamentações de novo. Posso providenciar uma visita guiada, se você quiser. Aliás, se tiver interesse, posso mostrar a passagem
secreta que leva direto ao Monte do Templo.
- Não sei se meu governo aprovaria. - Seymour ficou em silêncio enquanto um garçom enchia suas xícaras de café. Então, quando estavam a sós novamente, continuou:
- Então o rumor é verdadeiro, afinal.
- Que rumor?
- De que o filho pródigo enfim voltou para casa. É engraçado - acrescentou ele, com um sorriso triste mas eu sempre imaginei que você passaria o resto da vida caminhando
pelos penhascos da Cornualha.
- É um lugar lindo, Graham. Mas a Inglaterra é a sua casa, não a minha.
- Às vezes sinto que não parece mais ser a minha casa. Helen e eu compramos uma casa em Portugal há pouco tempo. Em breve vou ser um exilado, assim como você foi.
- Sério?
- Não é nada iminente. Mas, no fim, todas as coisas boas devem terminar.
- Você teve uma grande carreira, Graham.
- Tive? É difícil mensurar o sucesso no campo da segurança, não é? Somos julgados com base em coisas que não acontecem: os segredos que não são roubados, os edifícios
que não explodem. Pode ser uma forma profundamente insatisfatória de se ganhar a vida.
- O que você vai fazer em Portugal?
- Helen vai tentar me envenenar com a sua culinária exótica e eu vou pintar paisagens terríveis de aquarela.
- Nunca soube que você pintava.
- Por uma boa razão. - Seymour observou a paisagem e franziu a testa, como se aquilo estivesse muito além do alcance de seu pincel e sua paleta. - Meu pai estaria
se revirando no túmulo se soubesse que estou aqui.
- Então por que você está aqui?
- Estava me perguntando se você se disporia a encontrar algo para um amigo meu.
- O amigo tem um nome?
Em vez de responder, Seymour abriu a maleta e pegou uma fotografia ampliada, passando-a para Gabriel. Mostrava uma jovem atraente que olhava direto para a câmera,
segurando uma edição do International Herald Tribune de três dias antes.
- Madeline Hart? - perguntou Gabriel.
Seymour assentiu. Então, passou uma folha A4 para Gabriel. Continha uma única frase, escrita em uma fonte sem serifa:
Em sete dias a garota morre.
- Merda - praguejou Gabriel baixinho.
- Receio que fique ainda melhor.
Por coincidência, a administração do King David colocou Graham Seymour, o único filho de Arthur Seymour, na mesma ala do hotel que fora destruída em 1946. Seymour
ficou no mesmo corredor do quarto que seu pai tinha usado como escritório no fim do mandato britânico na Palestina. Ao chegar, eles depararam com o aviso de NÃO
PERTURBE pendurado na maçaneta, além de uma embalagem plástica contendo o Jerusalém Post e o Haaretz. Seymour conduziu Gabriel para dentro. Ao verificar que ninguém
havia entrado no quarto durante sua ausência, pôs um DVD para ser reproduzido no laptop. Poucos segundos depois, Madeline Hart, cidadã britânica desaparecida e funcionária
do partido da situação na Inglaterra, apareceu na tela.
“Eu tive relações sexuais com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster pela primeira vez na conferência do Partido em Manchester, em outubro de 2012...”
5
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
O vídeo tinha sete minutos e doze segundos de duração. O tempo todo, Madeline manteve os olhos focados num ponto ligeiramente à esquerda da câmera, como se respondesse
a perguntas feitas por um entrevistador de televisão. Relutante, assustada e exausta, descreveu como tinha conhecido o primeiro-ministro durante uma de suas visitas
à sede do Partido em Millbank. Lancaster havia expressado admiração pelo trabalho de Madeline e, em duas ocasiões, convidou-a para a sede do governo, a fim de receber
informações diretamente dela. No fim da segunda visita, ele admitiu que seu interesse em Madeline não era apenas profissional. O primeiro encontro sexual foi bem
rápido, num quarto de hotel em Manchester. Depois disso, ela passou a ser levada à Downing Street por um velho amigo do primeiro-ministro, sempre que Diana Lancaster
estivesse fora de Londres.
- E agora - falou Seymour, melancólico, enquanto a tela do computador escurecia - o primeiro-ministro do Reino Unido está sendo punido por seus pecados com uma tentativa
primitiva de chantagem.
- Não há nada de primitivo nisso, Graham. Quem está por trás disso sabia que o primeiro-ministro estava envolvido num caso extraconjugal. E conseguiu fazer sua amante
desaparecer da Córsega sem deixar rastros. É óbvio que se trata de alguém extremamente sofisticado.
Seymour tirou o DVD do computador sem dizer nada.
- Quem mais sabe?
Seymour explicou que os três itens - a fotografia, o bilhete e o DVD - haviam sido deixados na manhã anterior em frente à porta de Simon Hewitt, que os levara até
a Downing Street e os mostrara para Jeremy Fallon. Também contou que Hewitt e Fallon confrontaram Lancaster em seu escritório na sede. Gabriel, que havia residido
pouco tempo antes no Reino Unido, conhecia bem os envolvidos: Hewitt, Fallon, Lancaster, a santíssima trindade da política britânica. Hewitt era especialista em
usar a mídia a favor do governo, Fallon era o mestre maquinador e estrategista, e Lancaster era o talento político em pessoa.
- Por que Lancaster escolheu você? - perguntou Gabriel.
- Nossos pais trabalharam juntos no serviço de inteligência.
- Com certeza há mais alguma razão.
- De fato - admitiu Seymour. - Seu nome é Siddiq Hussein.
- Acho que não conheço.
- Por uma boa razão. Graças a mim, Siddiq desapareceu num buraco negro vários anos atrás, para nunca mais ser visto.
- Quem era ele?
- Siddiq Hussein, nascido no Paquistão, era um residente de Tower Hamlets no leste de Londres. Ele apareceu nos nossos radares depois dos bombardeios de 2007, quando
finalmente tomamos juízo e começamos a tirar os muçulmanos radicais das ruas. Você se lembra daqueles dias - disse Seymour com amargura.
- Os dias em que a esquerda e a mídia insistiram que deveríamos fazer algo a respeito dos terroristas entre nós.
- Continue, Graham.
- Siddiq estava convivendo com extremistas conhecidos na grande mesquita do leste de Londres e o número do seu celular aparecia em todos os lugares errados. Eu dei
uma cópia dos arquivos dele para a Scotland Yard, mas o Comando de Contraterrorismo disse que não havia evidência suficiente para agir contra ele. Então Siddiq fez
algo que me deu uma oportunidade de cuidar do problema pessoalmente.
- O que ele fez?
- Agendou um voo para o Paquistão.
- Grande erro.
- Fatal, na verdade - falou Seymour, sombrio.
- O que aconteceu?
- Nós o seguimos até Heathrow e garantimos que ele subisse em seu avião para Karachi. Em seguida, fiz uma ligação discreta para um velho amigo em Langley, Virgínia.
Acho que você o conhece bem.
- Adrian Carter.
Seymour assentiu. Adrian Carter era o diretor do Serviço Clandestino Nacional. Ele supervisionava a guerra global da CIA contra o terrorismo, incluindo os programas
outrora secretos para deter e interrogar agentes de alto nível.
- A equipe de Carter observou Siddiq em Karachi por três dias - continuou Seymour. - Então cobriram sua cabeça com um saco e o colocaram no primeiro voo clandestino
para fora do país.
- Para onde eles o levaram?
- Cabul.
- Para a prisão de Salt Pit?
Seymour aquiesceu devagar.
- Quando tempo ele durou?
- Isso depende de para quem você perguntar. De acordo com o relato da Agência, Siddiq foi encontrado morto em sua cela dez dias depois de chegar a Cabul. Sua família
alegou num processo que ele morreu durante a tortura.
- O que isso tem a ver com o primeiro-ministro?
- Quando os advogados que representavam a família de Siddiq pediram todos os documentos do MI5 referentes ao caso, o governo de Lancaster se recusou a atendê-los,
alegando que isso prejudicaria a segurança nacional britânica. Ele salvou a minha carreira.
- E agora você quer quitar essa dívida tentando salvar o pescoço dele? - Como
Seymour não respondeu, Gabriel acrescentou: - Isso vai acabar mal, Graham.
E, quando acabar, seu nome vai aparecer com destaque no inevitável inquérito.
- Eu deixei claro que, se isso acontecer, vou levar todo mundo junto, incluindo Lancaster.
- Nunca tomei você por uma pessoa ingênua, Graham.
- Sou tudo menos isso.
- Então se afaste. Volte para Londres e diga ao primeiro-ministro para aparecer diante das câmeras com a esposa ao lado, fazendo um apelo público para que os sequestradores
soltem a garota.
- É tarde demais para isso. Além do mais, talvez eu seja um pouco antiquado, mas não gosto quando as pessoas tentam chantagear o líder do meu país.
- O líder do seu país sabe que você está em Jerusalém?
- Você só pode estar brincando.
- Por que eu?
- Porque, se o MI5 ou qualquer serviço de inteligência tentar encontrá-la, o caso vai vazar, assim como o de Siddiq Hussein vazou. E você é bom em encontrar coisas
- continuou Seymour, falando baixo. - Pilares antigos, Rembrandts roubados, instalações iranianas secretas de enriquecimento.
- Desculpe, Graham, mas...
- E porque você também deve uma a Lancaster.
- Eu?
- Quem você acha que autorizou sua estadia na Cornualha com um nome falso quando nenhum outro país o aceitaria? E quem você pensa que o deixou recrutar uma jornalista
britânica quando precisava penetrar na cadeia de fornecimento iraniana?
- Não sabia que estávamos contando pontos, Graham.
- Não estamos. Mas, se estivéssemos, você certamente estaria perdendo a partida.
Os dois caíram num silêncio desconfortável, como se estivessem constrangidos pelo tom do debate. Seymour olhou para o teto, e Gabriel para o bilhete.
Em sete dias a garota morre...
- Um tanto vago, não acha?
- Mas muito eficiente - afirmou Seymour. - Atraiu a atenção de Lancaster.
- Nenhuma exigência?
Seymour balançou a cabeça.
- É óbvio que eles querem revelar seu preço no último minuto. E querem que Lancaster esteja desesperado para salvar a própria pele, pronto a concordar em pagar qualquer
coisa.
- Quanto o seu primeiro-ministro vale?
- Na última vez que dei uma olhadinha em suas contas bancárias - respondeu Seymour jocosamente ele tinha mais de 100 milhões.
- De libras?
Seymour assentiu.
- Jonathan Lancaster fez milhões no centro financeiro londrino, ganhou uma herança milionária e casou-se com a igualmente milionária Diana Baldwin. Ele é um alvo
perfeito, um homem com mais dinheiro do que precisa e com muito a perder. Diana e as crianças vivem na bolha de segurança da Downing Street, logo seria quase impossível
sequestrá-las. Mas a amante de Lancaster... - A voz de Seymour se perdeu. - Uma amante é algo completamente diferente.
- Imagino que Lancaster não tenha comentado sobre isso com a esposa.
Seymour fez um gesto com as mãos indicando que não tinha acesso ao funcionamento interno do casamento de Lancaster.
- Você já trabalhou com um caso de sequestro, Graham?
- Nenhum desde a Irlanda do Norte. E aqueles foram todos relacionados ao IRA.
- Sequestros políticos são diferentes de sequestros criminais - explicou Gabriel. - O sequestrador político comum é um sujeito racional. Ele quer que companheiros
sejam soltos ou que uma política seja modificada, então agarra um político importante ou um ônibus escolar cheio de crianças e os mantém como reféns até que suas
demandas sejam cumpridas. Mas o sequestrador criminoso só quer dinheiro. E, se você paga, faz com que ele queira mais dinheiro. Então ele fica pedindo dinheiro até
achar que não sobrou mais nada.
- Então acho que nos resta apenas uma opção.
- Qual?
- Encontrar a garota.
Gabriel foi até a janela e olhou para além do vale, na direção do Monte do Templo. Por um segundo, ele se viu de volta à caverna secreta 50 metros abaixo da superfície,
segurando Eli Lavon enquanto seu sangue era bombeado para o coração da montanha sagrada. Durante as longas noites que passou ao lado de Lavon no leito de hospital,
Gabriel jurou que nunca poria os pés de novo no campo de batalha do serviço secreto. Mas agora um velho amigo havia surgido das profundezas de seu passado emaranhado
para pedir um favor. E mais uma vez Gabriel estava se esforçando para encontrar as palavras que o mandariam embora de mãos vazias. Como filho único de sobreviventes
do Holocausto, desapontar outras pessoas não estava em sua natureza. Ele fazia concessões e raramente dizia não.
- Mesmo se eu for capaz de encontrá-la - disse ele depois de um tempo os sequestradores ainda vão ter o vídeo da confissão dela.
- Mas o vídeo terá um impacto bem diferente se a rosa inglesa estiver sã e salva em solo britânico.
- A menos que a rosa inglesa decida contar a verdade.
- Ela é leal ao Partido. Não se atreveria.
- Você não tem ideia do que eles fizeram com ela - retrucou Gabriel. - A esta altura, pode ser uma pessoa completamente diferente.
- É verdade. Mas estamos nos precipitando. Esta conversa é inútil se você e seu serviço não empreenderem uma operação para encontrar Madeline Hart.
- Eu não tenho autoridade para colocar meu serviço à sua disposição, Graham. A decisão é do Uzi, não minha.
- Uzi já autorizou - respondeu Seymour sem emoção. - Assim como Shamron.
Gabriel encarou Seymour com desaprovação, mas não disse nada.
- Você realmente acha que Ari Shamron teria me deixado chegar a menos de um quilômetro de você sem saber que eu estava na cidade? - questionou Seymour. - Ele é muito
protetor quando se trata de você.
- Ele tem um jeito engraçado de demonstrar isso. Mas receio que ainda exista uma pessoa em Israel mais poderosa do que Shamron, pelo menos no que diz respeito a
mim.
- Sua esposa?
Gabriel assentiu.
- Em sete dias a garota morre.
- Seis dias - corrigiu Gabriel. - A garota pode estar em qualquer lugar do mundo e não temos uma única pista.
- Isso não é exatamente verdade.
Seymour enfiou a mão na maleta e pegou duas fotografias da Interpol do homem com quem Madeline Hart tinha almoçado na tarde em que desaparecera. O homem cujos sapatos
não deixavam marcas. O homem esquecido.
- Quem é ele? - perguntou Gabriel.
- Boa pergunta. Mas, se você puder encontrá-lo, suspeito que encontre Madeline Hart.
6
MUSEU DE ISRAEL, JERUSALÉM
Gabriel pegou um único item de Graham Seymour - a fotografia de Madeline Hart - e o levou para a região oeste de Jerusalém, até o Museu de Israel. Depois de deixar
o carro no estacionamento para funcionários - um privilégio que haviam lhe concedido recentemente atravessou o enorme hall de entrada feito de vidro e chegou até
a sala que alojava a coleção de arte europeia. Num canto estavam penduradas nove pinturas impressionistas que antes pertenciam a um banqueiro suíço chamado Augustus
Roube. Uma plaqueta descrevia a longa jornada que as pinturas tinham feito a partir de Paris - como foram saqueadas pelos nazistas em 1940 e transferidas para Roube
em troca de serviços prestados à inteligência alemã. Mas não chegava a mencionar o fato de que Gabriel e a filha do banqueiro, a renomada violinista Anna Roube,
tinham descoberto as pinturas num cofre em Zurique, nem que um consórcio de empresários suíços havia contratado um assassino profissional corso para matar Gabriel
e Anna.
Na galeria adjacente estavam pinturas de artistas israelenses. Três telas eram da mãe de Gabriel, incluindo um retrato assombroso da marcha da morte de Auschwitz
em janeiro de 1945, feito com base em suas memórias. Gabriel passou um bom tempo admirando o desenho e as pinceladas antes de sair para o jardim das esculturas.
Na outra extremidade, erguia-se o Santuário do Livro, uma estrutura em forma de colmeia que continha os Manuscritos do Mar Morto. Ao lado dessa ala ficava a mais
nova construção do museu, com 60 côvados de comprimento, 20 de largura e 30 de altura. Por enquanto, o espaço estava coberto por uma lona opaca para construções,
que escondia os 22 pilares do Templo de Salomão do resto do mundo.
Havia seguranças bem armados em ambos os lados da construção e na entrada que ficava voltada para o leste, assim como no templo original de Salomão. Esse era apenas
um elemento do projeto curatorial mais controverso que o mundo já conhecera. Os haredim ultraortodoxos de Israel tinham denunciado a exposição como uma afronta a
Deus que acabaria levando à destruição do Estado judeu, enquanto na parte leste de Jerusalém, que abrigava a população árabe, os mantenedores do Domo da Rocha declararam
que os pilares eram um embuste elaborado.
- Nunca houve Templo no Monte do Templo - escreveu o grande mufti de Jerusalém numa carta aberta publicada pelo New York Times - e nenhuma exposição ou museu vai
mudar esse fato.
Apesar das violentas batalhas religiosas e políticas, a organização da exposição progredia de forma consideravelmente rápida. Poucas semanas após a descoberta de
Gabriel, aprovaram-se os planos arquitetônicos, angariaram-se fundos e foi iniciada a construção. Boa parte do crédito pertencia à diretora e designer-chefe italiana.
Em público, referiam-se a ela por seu nome de solteira, Chiara Zolli. Mas todas as pessoas associadas ao projeto sabiam que ela se chamava Chiara Allon.
Os pilares foram dispostos da mesma forma em que Gabriel os encontrara, em duas fileiras retas separadas por cerca de 6 metros. O mais alto estava enegrecido pelo
fogo do incêndio provocado pelos babilônios na noite em que derrubaram o Templo - considerado pelos judeus da Antiguidade como a moradia de Deus na Terra. Fora a
esse pilar que Eli Lavon se agarrara quando estava à beira da morte, e foi lá que Gabriel encontrou Chiara agora segurando uma prancheta e gesticulando na direção
do teto de vidro. Ela vestia jeans desbotados, sandálias sem salto e um moletom branco sem mangas que marcava bem as curvas de seu corpo. Os braços descobertos estavam
bem bronzeados pelo sol de Jerusalém. Chiara parecia incrivelmente linda, pensou Gabriel, e jovem demais para ser a esposa de um sujeito tão acabado quanto ele.
No alto da obra, dois técnicos estavam fazendo ajustes nas luzes da exposição sob a supervisão de Chiara. Ela falava com eles em hebraico, com um sotaque italiano
acentuado. Filha do rabino-chefe de Veneza, havia passado a juventude no mundo provinciano de um gueto, partindo apenas por tempo suficiente para cursar o mestrado
em História Romana na Universidade de Pádua. Ela voltara a Veneza depois de se graduar e aceitara um emprego num pequeno museu judaico no Campo del Ghetto Nuovo,
e talvez tivesse permanecido lá para sempre se um observador de talentos do Escritório não tivesse reparado nela durante uma visita a Israel. O homem apresentara-se
num café de Tel Aviv e perguntara a Chiara se ela estaria interessada em fazer mais pelo povo judeu do que trabalhando no museu de um gueto moribundo.
Após passar um ano no programa de treinamento secreto do Escritório, ela retomou sua vida antiga, já como agente secreta israelense. Uma de suas primeiras tarefas
foi ficar na retaguarda de um assassino do Escritório chamado Gabriel Allon, que tinha ido a Veneza para restaurar o retábulo de San Zaccaria, de Bellini. Chiara
revelou-se a ele pouco tempo depois, em Roma, após um incidente envolvendo tiroteios e a polícia italiana. A sós com Chiara em um esconderijo, Gabriel sentiu uma
vontade desesperadora de tocá-la. Esperou até que o caso fosse resolvido e eles voltassem a Veneza. Lá, numa casa à beira de um canal em Cannaregio, fizeram amor
pela primeira vez, numa cama com frescos lençóis de linho. Era como fazer amor com uma figura pintada por Veronese.
Agora, ela virou a cabeça e, notando Gabriel pela primeira vez, sorriu. Seus olhos, largos e meio orientais, tinham cor de caramelo e manchas douradas, uma combinação
que Gabriel nunca fora capaz de reproduzir com precisão na tela. Vários meses já haviam se passado desde que Chiara concordara em posar para ele. A exposição a deixara
com pouco tempo para outros afazeres. Era uma mudança clara no padrão do casamento. Em geral era Gabriel que se via consumido por um projeto, fosse uma pintura ou
uma operação, mas agora os papéis estavam invertidos. Organizadora inata e sempre meticulosa, Chiara conseguia progredir mesmo sob a pressão da exposição. Mas, secretamente,
Gabriel antecipava o dia em que a teria de volta.
Ela caminhou até o pilar seguinte e observou como a luz incidia sobre ele.
- Eu liguei para o apartamento alguns minutos atrás, mas ninguém atendeu.
- Eu estava num brunch com Graham Seymour no King David.
- Que adorável - comentou ela, sarcástica. Em seguida, ainda analisando os pilares, perguntou: - O que tem no envelope?
- Uma oferta de emprego.
- Quem é o artista?
- Desconhecido.
- E o tema?
- Uma garota chamada Madeline Hart.
Gabriel voltou para o jardim de esculturas e sentou-se num banco com vista para as colinas de Jerusalém Ocidental. Alguns minutos depois, Chiara juntou-se a ele.
Um suave vento outonal moveu os seus cabelos. Ela afastou uma mecha do rosto e cruzou as pernas, com a sandália pendente do pé bronzeado. De repente, a última coisa
que Gabriel queria fazer era deixar Jerusalém para procurar uma garota desconhecida.
- Vamos tentar de novo... - disse ela, por fim. - O que tem no envelope?
- Uma foto.
- Que tipo de foto?
- Prova de vida.
Chiara estendeu a mão. Gabriel hesitou.
- Tem certeza?
Chiara assentiu e Gabriel lhe entregou o envelope. Ela o abriu e retirou a foto. Enquanto examinava a imagem, seu rosto ficou sombrio. Claramente vinha à sua memória
um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Gabriel tinha tirado tudo de Ivan: seus negócios, seu dinheiro, sua mulher e filhos. Em seguida, o oligarca retaliara
capturando Chiara. A operação de resgate foi a mais sangrenta em toda a longa carreira de Gabriel: ele matara onze agentes inimigos. E, numa rua tranquila em Saint-Tropez,
também assassinara Ivan. Mesmo morto, Ivan permaneceria como parte de suas vidas. As injeções de ketamina que seus homens haviam aplicado em Chiara fizeram-na perder
o bebê. Como ela não recebera tratamento, o aborto prejudicara sua capacidade de ter filhos. Chiara quase tinha perdido qualquer esperança de ficar grávida de novo.
Ela colocou a foto no envelope e o devolveu a Gabriel. Então, escutou com atenção enquanto ele explicava como o caso tinha caído no colo de Graham Seymour, para
então chegar ao seu.
- Então o primeiro-ministro britânico está forçando Graham Seymour a fazer o trabalho sujo dele - disse Chiara quando Gabriel terminou e Graham está fazendo o mesmo
com você.
- Ele tem sido um bom amigo.
O rosto de Chiara não revelava nenhuma expressão. Seus olhos, normalmente uma janela confiável para seus pensamentos, estavam ocultos atrás de óculos escuros.
- O que você acha que eles querem? - perguntou ela depois de um tempo.
- Dinheiro. Eles sempre querem dinheiro.
- Quase sempre. Mas às vezes querem coisas que não dá para ceder.
Ela tirou os óculos e os pendurou na camiseta.
- Quanto tempo você tem antes de eles a matarem? - Como Gabriel ficou em silêncio, ela balançou a cabeça devagar. - É um caso impossível. Você não poderia encontrá-la
a tempo.
- Olhe para a construção atrás de você. Depois me fale se ainda sente o mesmo.
Chiara não olhou para nada além do rosto de Gabriel.
- A polícia francesa está buscando Madeline Hart há mais de um mês. O que faz você pensar que pode encontrá-la?
- Talvez eles não tenham procurado no lugar certo... ou falado com as pessoas certas.
- Por onde você começaria? Eu sempre acreditei que o melhor lugar para iniciar uma investigação é na cena do crime.
Chiara pegou os óculos e limpou as lentes na calça jeans, distraída. Gabriel sabia que aquilo era um mau sinal: a esposa sempre limpava coisas quando estava aborrecida.
- Desse jeito você vai arranhar as lentes.
- Estão imundas - retrucou ela no mesmo instante.
- Talvez você devesse arrumar um estojo em vez de jogar os óculos na bolsa.
Ela não respondeu nada.
- Você sempre me surpreende, Chiara.
- Por quê?
- Porque você sabe melhor do que qualquer pessoa que Madeline Hart está no inferno. E ela vai ficar no inferno até que alguém a tire de lá.
- Eu só gostaria que outra pessoa fizesse o serviço.
- Não há outra pessoa.
- Ninguém como você.
Ela examinou as lentes e franziu a testa.
- O que houve?
- Estão arranhadas.
- Eu avisei.
- Você sempre tem razão, querido.
Chiara colocou os óculos e olhou na direção da cidade.
- Imagino que Shamron e Uzi já tenham dado suas bênçãos.
- Graham os procurou antes de falar comigo.
- Que esperto da parte dele. - Chiara descruzou as pernas e se levantou. - Eu preciso voltar. Não temos muito tempo antes da abertura.
- Você tem feito um trabalho magnífico, Chiara.
- Ficar me bajulando não vai ajudar.
- Achei que valia tentar.
- Quando vou vê-lo de novo?
- Só tenho sete dias para encontrá-la.
- Seis - ela o corrigiu. - Em seis dias a garota morre.
Chiara lhe deu um beijo suave. Em seguida, virou-se e atravessou o jardim ensolarado, os quadris balançando como se seguissem o ritmo de uma música que só ela conseguisse
ouvir. Gabriel a observou entrar na construção coberta pela lona. Agora, a última coisa que ele queria fazer era deixar Jerusalém em busca de uma garota desconhecida.
Ele voltou ao King David Hotel para recolher o resto do dossiê de Graham Seymour: o bilhete de exigências que não continha nenhuma exigência, o DVD da confissão
de Madeline e as duas fotos do homem de Les Palmiers em Calvi. Além disso, requisitou uma cópia do arquivo pessoal de Madeline no Partido, a ser entregue em um endereço
em Nice.
- Como foi com Chiara? - perguntou Seymour.
- A esta altura, meu casamento pode estar pior que o de Lancaster.
- Algo que eu possa fazer?
- Saia da cidade o mais rápido possível. E não mencione meu nome para o seu primeiro-ministro nem para qualquer outra pessoa na Downing Street.
- Como posso entrar em contato com você?
- Mando um sinal de fumaça quando tiver notícias. Até lá, eu não existo.
Com essas palavras, Gabriel partiu. Voltando para a rua Narkiss, encontrou um cinto de dinheiro na mesa de centro com 200 mil dólares. Ao lado, havia uma passagem
de avião, de um voo das 16 horas para Paris. A reserva fora feita no nome de Johannes Klemp, uma de suas identidades falsas favoritas. Gabriel entrou no quarto e
encheu uma pequena bolsa de viagem com as roupas modernas de Herr Klemp, separando um terno e um casaco pretos para o voo. Então, em frente ao espelho do banheiro,
fez algumas alterações sutis em sua própria aparência: um pouco de grisalho no cabelo, óculos alemães sem aro, lentes de contato castanhas para esconder os característicos
olhos verdes. Em poucos minutos, mal reconhecia o rosto no reflexo. Ele não era mais Gabriel Allon, o anjo vingador de Israel, mas Johannes Klemp, de Munique, um
homem sempre pronto a se ressentir - pequeno, insignificante e carrancudo.
Depois de vestir o terno e passar a fragrância tenebrosa de Herr Klemp, sentou à penteadeira de Chiara e abriu sua caixa de joias. Um item pareceu estranhamente
fora de lugar: um coral-vermelho em forma de mão, preso a uma tira de couro. Ele o pegou e o colocou no bolso. Então, por razões que ele mesmo não saberia explicar,
pendurou o artefato no pescoço e o escondeu sob o casaco de Herr Klemp.
Diante da casa, um sedã do Escritório estava parado com o motor ligado. Gabriel jogou a bolsa no banco de trás e entrou. Em seguida, consultou o relógio, não para
ver as horas, mas a data: 27 de setembro. Já tinha sido seu dia favorito do ano.
- Qual o seu nome? - perguntou ao motorista.
- Lior.
- De onde você é, Lior?
- Berseba.
- Era um bom lugar para uma criança?
- Existem lugares piores.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e cinco.
Vinte e cinco, pensou Gabriel. Por que tinha que ser aquela idade? Olhou de novo para o relógio. Não para a hora; para a data.
- Quais foram suas instruções?
- Disseram-me para levá-lo ao Ben Gurion - respondeu Lior.
- Mais alguma coisa?
- Falaram que talvez você quisesse fazer uma parada no caminho.
- Quem falou isso? Uzi?
- Não. Foi o Velho.
Então ele lembrava, pensou Gabriel. Olhou de novo para o relógio. A data...
- Como devo proceder? - perguntou o motorista.
- Leve-me ao aeroporto.
- Nenhuma parada?
- Só uma.
Lior engrenou a marcha e se afastou suavemente da calçada, como se estivesse se juntando a um cortejo fúnebre. Não se deu o trabalho de perguntar para onde estavam
indo. Era 27 de setembro. E Shamron se lembrava.
Eles foram até o jardim de Getsêmani e seguiram o caminho estreito e sinuoso que subia a encosta do monte das Oliveiras. Gabriel entrou no cemitério sozinho e passou
pelo mar de lápides, até chegar ao túmulo de Daniel Allon, nascido no dia 27 de setembro de 1988, morto no dia 13 de janeiro de 1991, numa noite de neve no Primeiro
Distrito de Viena, num Mercedes azul destruído por uma bomba. O artefato fora plantado por um líder terrorista palestino chamado Tariq al-Hourani, sob ordens diretas
de Yasser Arafat. Gabriel não era o alvo; aquilo seria leniente demais. Tariq e Arafat queriam puni-lo forçando-o a assistir à morte de sua mulher e filho, para
que pudesse passar o resto da vida de luto, assim como os palestinos. Apenas um elemento da trama falhara: Leah sobrevivera ao inferno. Agora ela vivia num hospital
psiquiátrico no topo do monte Herzl, prisioneira da própria memória e de um corpo destruído pelo fogo. Tomada por uma combinação de estresse pós-traumático e depressão
psicótica, revivia constantemente o atentado. De vez em quando, tinha lampejos de lucidez. Durante um desses períodos, ela concedera a Gabriel permissão para se
casar com Chiara. Olhe para mim, Gabriel. Não resta nada de mim. Nada além de uma memória.
Gabriel consultou o relógio de novo. Não olhando a data, mas a hora. Havia tempo para uma última despedida. Uma última torrente de lágrimas. Um último pedido de
desculpas por ter deixado de vasculhar o carro antes de Leah dar partida. Em seguida, ele se afastou cambaleante do jardim de pedra, no dia que já fora o seu favorito
do ano, e subiu na traseira de um sedã do Escritório que era conduzido por um garoto de 25 anos.
Lior teve o bom senso de não falar uma palavra sequer durante o caminho até o aeroporto. Gabriel entrou no terminal como um viajante qualquer, mas então foi a uma
sala reservada para a equipe do Escritório, onde esperou seu voo ser chamado. Ao se acomodar no assento de primeira classe, sentiu um impulso não profissional de
ligar para Chiara. Usando técnicas que lhe foram ensinadas na juventude por Shamron, ele a afastou de seus pensamentos. Agora não havia Chiara. Nem Daniel. Nem Leah.
Havia apenas Madeline Hart, a amante sequestrada do primeiro-ministro britânico Jonathan Lancaster. Enquanto o avião decolava em direção ao céu que começava a escurecer,
ela apareceu para Gabriel num retrato a óleo, como Suzana banhando-se num jardim. Espiando-a de trás de um muro estava um homem com um rosto anguloso e uma boca
pequena e cruel. O homem sem nome nem país. O homem esquecido.
7
CÓRSEGA
Os corsos dizem que, ao se aproximarem de barco de sua ilha, são capazes de sentir o cheiro da vegetação cerrada característica - chamada ali de Mac chia - muito
antes de vislumbrarem o contorno acidentado da costa se erguendo do mar. Gabriel não teve essa experiência, pois chegou à Córsega de avião, no primeiro voo matinal
que partiu de Orly. Só quando estava ao volante de um Peugeot alugado, saindo do aeroporto de Acácio em direção ao sul, é que sentiu pela primeira vez o aroma de
carqueja, sarça, estava e alecrim vindo das colinas. Os corsos usavam as plantas para cozinhar e aquecer suas casas e nelas se refugiavam em tempos de guerra e vendeta.
Segundo a lenda corsa, um homem perseguido poderia penetrar na macchia e, se quisesse, permaneceria lá para sempre sem ser encontrado. Gabriel conhecia um desses
homens. Era por isso que levava no pescoço um artefato de coral-vermelho.
Depois de dirigir por meia hora, ele saiu da estrada costeira e tomou a direção do interior. À medida que o odor da macchia se intensificava, também se fortificavam
os muros que cercavam as pequenas cidades de colina. A Córsega, assim como a antiga terra de Israel, fora invadida muitas vezes: após a queda do Império Romano,
os vândalos pilharam a ilha de forma tão implacável que a maior parte dos habitantes fugiu do litoral e recuou para a segurança das montanhas. Mesmo atualmente,
o medo de estrangeiros ainda era intenso. Num vilarejo isolado, uma idosa apontou para Gabriel com o dedo indicador e o mindinho a fim de afastar os efeitos do occhju,
o mau-olhado.
Passando o vilarejo, a estrada era pouco mais do que uma via de pista única ladeada por paredes densas da macchia. Depois de um quilômetro, ele chegou à entrada
de uma propriedade particular. O portão estava aberto, mas bloqueado por um veículo off-road com dois seguranças. Gabriel desligou o motor e colocou as mãos sobre
o volante, esperando os homens se aproximarem. Por fim, um deles saiu do veículo e caminhou devagar em sua direção. Tinha uma arma numa das mãos e a outra enfiada
na cintura. Com um único movimento de suas sobrancelhas espessas, o homem questionou o propósito da visita de Gabriel.
- Desejo ver Don Orsati - disse Gabriel em francês.
- Ele é um homem muito ocupado - respondeu o segurança no dialeto corso.
Gabriel tirou o talismã do pescoço e o entregou. O corso sorriu.
- Verei o que posso fazer.
Nunca foi muito difícil desencadear uma disputa sangrenta na Córsega. Um insulto. Uma acusação de roubo no mercado. A dissolução de um noivado. A gravidez de uma
mulher solteira. Após a faísca inicial, sempre vinham os distúrbios. Um touro morreria, uma oliveira premiada seria derrubada, uma casa de campo pegaria fogo. Então
os assassinatos começariam. E a coisa seguia em frente, às vezes por uma geração ou mais, até que as partes injuriadas acertassem as diferenças ou desistissem da
luta por exaustão.
A maior parte dos homens corsos estava mais do que disposta a cometer os próprios assassinatos. Mas alguns precisavam de outros para executarem seu trabalho sangrento:
pessoas de renome que eram melindrosas demais para sujarem as mãos ou que não estavam dispostas a arriscar uma prisão ou o exílio; mulheres que não conseguiam matar
e não tinham parentes masculinos para assumirem a questão. Gente desse tipo dependia de assassinos profissionais conhecidos como taddunaghiu e, em geral, recorria
ao clã Orsati.
Os Orsatis tinham uma bela propriedade e seu azeite era considerado o melhor de toda a Córsega. Mas faziam muito mais do que plantar oliveiras. Ninguém sabia quantos
corsos haviam morrido pelas mãos de assassinos dos Orsatis, muito menos os próprios Orsatis, mas de acordo com o folclore local, o número estava na casa dos milhares.
Poderia ter sido muito mais se não fosse o rigoroso processo de vetos do clã. Os Orsatis operavam com base num código rigoroso. Eles se recusavam a cometer um assassinato
se não estivessem convencidos de que o requisitante havia de fato sido injustiçado e que fosse necessária uma vingança sanguinolenta.
No entanto, isso mudou com Don Anton Orsati. Quando ele tomou o controle da família, as autoridades francesas tinham conseguido erradicar as rixas e a vendeta por
toda a ilha, com exceção dos bolsões mais isolados; logo, poucos corsos exigiam os serviços dos taddunaghiu. Com a demanda local em declínio acelerado, Orsati não
teve escolha além de buscar por oportunidades em outros lugares, isto é, do outro lado da água, na Europa continental. Agora, ele aceitava quase todas as ofertas
de trabalho que passassem por sua mesa, mesmo que fossem desagradáveis, e seus assassinos eram considerados os profissionais mais confiáveis de todo o continente.
Gabriel fora uma das duas únicas pessoas que sobreviveram a um contrato da família Orsati.
Embora Anton Orsati fosse descendente de uma família de corsos ilustres, em aparência era indistinguível dos paesanu que protegiam a entrada de sua propriedade.
Ao entrar no amplo escritório do don, Gabriel o encontrou sentado à mesa vestindo uma camisa branca, calças largas de algodão claro e um par de sandálias poeirentas
que pareciam ter sido compradas na feira local. Ele estava analisando um livro-razão antiquado com uma expressão carrancuda. Gabriel não podia imaginar a fonte de
sua insatisfação. Muito tempo antes, Orsati tinha fundido os dois negócios numa única empresa. Seus taddunaghiu modernos eram funcionários da Orsati Olive Oil Company
e os assassinatos eram registrados como encomendas de produtos.
Levantando-se, Orsati estendeu sua mão de granito para Gabriel sem qualquer traço de apreensão.
- É uma honra conhecê-lo, monsieur Allon - falou ele em francês. - Para ser sincero, achava que o veria bem antes. Você tem reputação de lidar severamente com seus
inimigos.
- Meus inimigos eram os banqueiros suíços que o contrataram para me matar, Don Orsati. Além do mais, em vez de me dar um tiro na cabeça, seu assassino me deu isto.
Gabriel meneou a cabeça na direção do talismã, que estava na mesa de Orsati ao lado do livro-razão. Anton franziu a testa. Erguendo o amuleto pela tira de couro,
deixou a mão de coral-vermelho balançar para trás e para a frente, como o pêndulo de um relógio.
- Aquilo foi imprudente - comentou, por fim, o don.
- Abandonar o talismã ou me deixar vivo?
Orsati deu um sorriso evasivo.
- Temos um velho ditado aqui na Córsega: I solda un vènini micca cantendu. Não dá para ganhar dinheiro cantando. Só trabalhando. E, por aqui, trabalho significa
cumprir contratos, mesmo quando envolvem violinistas famosos e agentes da inteligência israelense.
- Então você devolveu o dinheiro para os homens que o contrataram?
- Eles eram banqueiros suíços. Dinheiro era a última coisa de que precisavam. - Orsati fechou o livro-razão e colocou o talismã sobre a capa. - Como pode imaginar,
mantive os olhos em você no decorrer dos anos. Você tem ficado muito ocupado desde que nossos caminhos se cruzaram. Na verdade, alguns dos seus melhores trabalhos
foram feitos no meu território.
- Esta é a minha primeira visita à Córsega.
- Estava me referindo ao sul da França. Você matou aquele terrorista saudita, Zizi al-Bakari, no velho porto de Cannes. E também houve aquele desentendimento com
Ivan Kharkov em Saint-Tropez alguns anos atrás.
- Pelo que eu soube, Ivan foi morto por outros russos - disse Gabriel, evasivo.
- Você matou Ivan, Allon. E você o matou porque ele capturou sua esposa.
Gabriel ficou em silêncio. O corso voltou a sorrir, dessa vez com a confiança de um homem que sabe que tem razão.
- A macchia não tem olhos, mas vê tudo.
- É por isso que estou aqui.
- Imaginei. Afinal, um homem como você certamente não precisaria de um assassino profissional. Você faz isso muito bem por conta própria.
Gabriel tirou um maço de dinheiro do bolso do casaco e o depositou sobre o livro-razão da morte, ao lado do talismã. O don o ignorou.
- Como posso ajudá-lo, Allon?
- Preciso de uma informação.
- Sobre...?
Sem dizer nada, Gabriel colocou a foto de Madeline Hart ao lado do dinheiro.
- A garota inglesa?
- Você não parece surpreso, Don Orsati.
O corso não respondeu.
- Sabe onde ela está?
- Não. Mas tenho uma boa noção de quem a capturou.
Gabriel ergueu a foto do homem de Les Palmiers. Orsati assentiu.
- Quem é ele?
- Não sei. Só o vi uma vez.
- Onde?
- Neste escritório, uma semana antes de a garota inglesa desaparecer. Ele sentou na mesma cadeira em que você está sentado agora. Mas ele tinha mais dinheiro do
que você, Allon. Muito mais.
8
CÓRSEGA
Era hora do almoço, a parte do dia predileta de Don Orsati. Eles se acomodaram na varanda adjacente ao escritório e sentaram a uma mesa repleta de pães, queijos,
vegetais e salsichas da região. O sol estava forte e, por entre os pinheiros-larícios, Gabriel pôde ver o mar azul-esverdeado reluzindo à distância. O aroma da macchia
estava por toda parte; no ar fresco e na comida. Até mesmo Orsati parecia irradiá-lo. Ele serviu vinho vermelho-sangue na taça de Gabriel e, a seguir, passou a cortar
várias fatias da gorda salsicha corsa. Gabriel não questionou a origem da carne. Nas palavras de Shamron, às vezes é melhor não perguntar.
- Fico feliz por não termos matado você - disse Orsati, erguendo a taça uma fração de centímetro.
- Posso garantir, Don Orsati, que sinto o mesmo.
- Mais salsicha?
- Por favor.
Orsati cortou mais duas fatias grossas e as colocou no prato de Gabriel. Em seguida, pôs os óculos de leitura em formato de meia-lua e examinou a fotografia do homem
de Les Palmiers.
- Ele parece diferente nesta foto - comentou após um momento. - Mas definitivamente é a mesma pessoa.
- O que está diferente?
- O penteado. Quando ele veio me ver, estava com mouse no cabelo e o penteara bem para trás. Era uma diferença sutil, mas muito eficiente.
- Ele tinha um nome?
- Apresentou-se como Paul.
- Sobrenome?
- Até onde eu sei, esse era o sobrenome.
- Que idioma nosso amigo Paul falava?
- Francês.
- Local?
- Não, tinha sotaque.
- De que tipo?
- Não consegui identificar - respondeu o don, franzindo as sobrancelhas grossas. - Dava a impressão de ter aprendido francês ouvindo os CDs de algum curso de línguas.
Era perfeito, mas ao mesmo tempo havia algo de estranho ali.
- Imagino que ele não tenha encontrado seu nome numa lista telefônica.
- Não, Allon. Ele tinha uma referência.
- Que tipo de referência?
- Um nome.
- Alguém que contratou você no passado.
- As referências costumam ser desse tipo.
- Que tipo de trabalho era?
- O tipo em que dois homens entram numa sala e só um sai. E não se dê o trabalho de me perguntar o nome da referência - acrescentou Orsati rapidamente. - Estamos
falando dos meus negócios.
Com um leve movimento da cabeça, Gabriel indicou que não tinha desejo que levar a questão mais a fundo, ao menos por enquanto. Então, perguntou a Anton por que o
homem tinha ido vê-lo.
- Conselho - respondeu Orsati.
- Sobre o quê?
- Ele me disse que tinha alguns produtos para mover. Falou que precisava de alguém com um barco rápido. Alguém que conhecesse as águas locais e pudesse navegar à
noite. Alguém que soubesse manter a boca fechada.
- Produto?
- Você pode achar estranho, mas ele não foi específico.
- Você supôs que ele fosse um contrabandista - disse Gabriel. Era mais uma declaração de fato do que uma pergunta.
- A Córsega é uma rota intensa de tráfico de heroína do Oriente Médio para a Europa. Ah, para seu governo, os Orsatis não lidam com narcóticos, embora se saiba que,
vez ou outra, nós eliminamos membros proeminentes desse mercado.
- Por uma taxa, é claro.
- Quanto mais proeminente, maior a taxa.
- Vocês foram capazes de oferecer o serviço para ele?
- Óbvio - respondeu o don. Em seguida, baixando a voz, acrescentou: - Às vezes nós mesmos movemos coisas durante a noite, Allon.
- Coisas como cadáveres?
Orsati deu de ombros.
- São um infeliz efeito colateral de nosso negócio - falou ele num tom filosófico. - Em geral, tentamos deixá-los onde caem. Mas, ocasionalmente, os clientes pagam
um pouco a mais para que eles desapareçam. Nosso método favorito é colocá-los em caixões de concreto e enviá-los para o fundo do mar. Só Deus sabe quantos estão
lá embaixo.
- Quanto Paul pagou?
- Cem mil.
- Como foi a divisão?
- Metade para mim, metade para o homem com o barco.
- Só metade?
- Sorte dele ter recebido tanto.
- E quando você soube que a garota inglesa tinha desaparecido?
- É óbvio que suspeitei. Quando vi a foto de Paul nos jornais... Basta dizer que não fiquei satisfeito. A última coisa que eu preciso é de problemas. São ruins para
os negócios.
- Você não aceita sequestrar mulheres jovens?
- Suspeito que nem você.
Gabriel permaneceu em silêncio.
- Não quis ofender - disse o don sinceramente.
- Não ofendeu, Don Orsati.
Anton encheu seu prato com pimentões assados e berinjela e encharcou-os com azeite de oliva do clã. Gabriel tomou um pouco de vinho, elogiou a comida e perguntou
pelo nome do homem com o barco rápido que conhecia as águas locais, como se não tivesse o mínimo interesse na resposta.
- Estamos entrando em território sensível - alertou Orsati. - Eu faço negócios com essas pessoas o tempo todo. Se descobrirem que as traí, as coisas ficariam feias,
Allon.
- Posso garantir, Don Orsati, que eles nunca vão saber como eu obtive a informação.
Orsati não pareceu convencido.
- Por que essa garota é tão importante a ponto de o grande Gabriel Allon procurá-la?
- Digamos que ela tem amigos poderosos.
- Amigos? - Orsati balançou a cabeça, cético. - Se você está envolvido, é mais do que isso.
- Você é muito sábio, Don Orsati.
- A macchia não tem olhos - comentou o don, misterioso.
- Eu preciso do nome dele - insistiu Gabriel, baixinho. - Ele nunca vai saber onde eu o obtive.
Orsati pegou a taça de vinho e a ergueu contra o sol.
- Se eu fosse você - disse, depois de um instante falaria com um homem chamado Marcel Lacroix. Talvez ele saiba algo sobre o lugar para onde a garota foi depois
que saiu da Córsega.
- Onde eu posso encontrá-lo?
- Marselha. Ele deixa o barco no Velho Porto.
- Qual lado?
- O sul, em frente à galeria de arte.
- Qual é o nome do barco?
- Moondance.
- “Dança da Lua”? Simpático.
- Garanto que não há nada de simpático a respeito de Marcel Lacroix ou dos homens para quem ele trabalha. Você precisa ser cuidadoso em Marselha.
- Você pode achar estranho, Don Orsati, mas eu já fiz isso uma ou duas vezes.
- É verdade. Mas você deveria estar morto há muito tempo. - Orsati passou o talismã para Gabriel. - Coloque isso no pescoço. Afasta mais do que só o mau-olhado.
- Na verdade, eu estava me perguntando se você tem algo um pouco mais poderoso.
- Como o quê?
- Uma arma.
O don sorriu.
- Eu tenho algo melhor do que uma arma.
Gabriel seguiu pela rua até ela virar uma estrada de terra e, então, foi um pouco mais além. O bode velho estava exatamente onde Don Orsati tinha dito que estaria,
bem antes da curva fechada à esquerda, à sombra das três oliveiras centenárias. Quando Gabriel se aproximou, ele se ergueu e ficou no meio da passagem estreita,
como se desafiasse o estranho a tentar passar. Tinha o corpo meio dourado e branco e uma barba vermelha. Assim como Allon, carregava cicatrizes de antigas batalhas.
Ele avançou o carro alguns centímetros, tentando fazer o bode entregar sua posição sem briga, mas o animal manteve-se firme. Gabriel olhou para a arma que Don Orsati
tinha lhe dado. Uma Beretta 9 milímetros carregada no banco do carona. Um tiro entre os chifres desgastados do bode seria o bastante para terminar o impasse. Mas
não era possível. O bode, assim como as velhas oliveiras, pertencia a Don Casabianca. Se Gabriel tocasse num pelo de sua maldita cabeça, haveria uma batalha e sangue
derramado.
Gabriel deu duas buzinadas, mas o bode não cedeu. Com um suspiro profundo, saiu do carro e tentou discutir com o bicho - primeiro em francês, depois italiano e por
fim, exasperado, em hebraico. O bode respondeu baixando a cabeça e a mirando como um aríete na direção da barriga de Gabriel. Mas Allon, que acreditava que a melhor
defesa era um bom ataque, avançou primeiro, balançando os braços e gritando como um lunático. Surpreso, o bode recuou na mesma hora e sumiu por um vão na macchia.
Gabriel voltou depressa até a porta aberta do carro, mas parou ao ouvir um som ao longe, como o gorjeio de um tordo. Ele se virou e olhou para cima, na direção da
casa ocre ao lado da colina seguinte. Parado no terraço estava um homem louro todo vestido de branco. E, embora Gabriel não pudesse ter certeza, parecia que o homem
estava rindo descontroladamente.
9
CÓRSEGA
O homem esperando por Gabriel na casa não era corso - ao menos não tinha nascido ali. Seu nome real era Christopher Keller e ele fora criado num sólido lar de classe
média alta no elegante distrito londrino de Kensington. Na Córsega, no entanto, apenas Don Orsati e um punhado de seus subordinados sabiam de tudo isso. Para o resto
da ilha, ele era conhecido simplesmente como “o Inglês”.
A história da jornada de Keller de Kensington à Córsega fora uma das mais intrigantes que Gabriel já escutara, o que em si já não era pouca coisa. Filho único de
dois médicos da Harley Street, logo cedo deixou claro que não tinha a menor intenção de seguir os passos dos pais. Obcecado por história, especialmente história
militar, queria se tornar um soldado. Seus pais o proibiram de se alistar no Exército e, por um tempo, ele se resignou. Matriculou-se em Cambridge e começou a estudar
história e idiomas orientais. Era um aluno brilhante, mas no segundo ano de estudos perdeu a paciência e uma noite sumiu sem deixar rastros. Alguns dias depois,
apareceu na casa do pai, em Kensington, de cabelo raspado, vestindo um uniforme verde-oliva: tinha entrado para o Exército britânico.
Após completar o treinamento básico, Keller se juntou a uma unidade de infantaria, mas seu intelecto, capacidade física e iniciativa logo chamaram a atenção do Serviço
Aéreo Especial, conhecido na Inglaterra como SAS. Poucos dias depois de chegar à sede do regimento em Hereford, ficou claro que Keller tinha encontrado sua vocação.
Seus resultados no “matadouro” - uma instalação abjeta onde recrutas praticavam combate e resgate de reféns - foram os melhores já registrados e os instrutores do
curso de combate desarmado escreveram que nunca tinham visto alguém com um talento tão instintivo para tirar a vida humana. Seu treinamento culminou numa marcha
de quase 65 quilômetros pelos pântanos ventosos conhecidos como Brecon Beacons, um teste de resistência que já tinha levado homens à morte. Com uma mochila de 25
quilos nas costas e um fuzil de 4,5 quilos nas mãos, Keller quebrou o recorde do percurso por trinta minutos, uma marca que nunca foi superada até os dias atuais.
Inicialmente, ele foi designado para um esquadrão Sabre especializado em guerra no deserto, mas sua carreira logo deu uma guinada quando um homem da inteligência
militar foi procurá-lo. Ele estava atrás de uma espécie única de soldado, capaz de executar o procedimento de observação próxima e outras tarefas especiais na Irlanda
do Norte. Disse estar impressionado com suas habilidades linguísticas e sua aptidão de improvisar e pensar rápido. Keller estaria interessado? Na mesma noite, Christopher
fez as malas e se mudou de Hereford para uma base secreta nas Terras Altas da Escócia.
No decorrer do treinamento, Keller demonstrou mais um talento notável. Havia anos que as forças de segurança e inteligência britânicas enfrentavam dificuldades com
a miríade de sotaques na Irlanda do Norte. Em Ulster, as comunidades inimigas eram capazes de identificar umas às outras apenas pelo som de uma voz, e a maneira
pela qual um homem dizia algumas frases simples poderia significar a diferença entre a vida e uma morte tenebrosa. Keller desenvolveu a habilidade de imitar as entonações
com perfeição. Podia até mesmo mudar de sotaque num piscar de olhos - um católico do condado de Armagh num minuto; um protestante da Shankill Road, de Belfast, no
momento seguinte; depois, um católico dos conjuntos habitacionais de Ballymurphy. Operou em Belfast por mais de um ano, rastreando membros do IRA, coletando pedaços
de fofocas úteis da comunidade local. Devido à natureza de seu trabalho, ocasionalmente ele passava várias semanas sem entrar em contato com os controladores.
Sua missão na Irlanda do Norte chegou a um final abrupto num fim de noite quando foi sequestrado na zona oeste de Belfast e levado até uma fazenda remota em Armagh.
Lá, Keller foi acusado de ser espião britânico. Ele sabia que a situação era desesperadora, então decidiu escapar lutando. Ao deixar a fazenda, quatro terroristas
veteranos do Exército Republicano Irlandês estavam mortos; dois foram praticamente cortados em pedacinhos.
Keller retornou a Hereford, achando que teria um longo descanso trabalhando como instrutor. Mas sua estadia ali terminou em agosto de 1990, quando Saddam Hussein
invadiu o Kwait. Keller voltou depressa à sua velha unidade Sabre e, em janeiro de 1991, já estava no deserto do Iraque, à procura dos lançadores de mísseis Scud
que aterrorizavam Tel Aviv. Na noite de 28 de janeiro, ele e sua equipe localizaram um lançador a 160 quilômetros a noroeste de Bagdá e transmitiram as coordenadas
por rádio para os comandantes na Arábia Saudita. Noventa minutos depois, uma formação de caças-bombardeiros da Coalizão passou voando baixo sobre o deserto. Mas,
num caso desastroso de fogo amigo, em vez dos Scuds, as aeronaves atacaram o esquadrão do SAS. Os oficiais britânicos concluíram que a unidade inteira fora perdida,
incluindo Keller. O obituário não mencionou seu trabalho na inteligência na Irlanda do Norte nem os quatro militantes do Exército Republicano Irlandês que ele tinha
matado na fazenda de Armagh.
O que os oficiais do Exército britânico não perceberam, no entanto, foi que Keller havia sobrevivido ao incidente. Seu primeiro instinto foi entrar em contato com
a base por rádio e requisitar uma extração. Em vez disso, enfurecido pela incompetência dos superiores, começou a caminhar. Oculto pelas típicas vestimentas de um
beduíno e altamente treinado na arte de movimentação clandestina, Keller passou pelas forças da Coalizão e entrou na Síria sem ser detectado. De lá, seguiu de carona
para o oeste, passando por Turquia, Grécia e Itália, até enfim chegar à costa da Córsega, onde caiu nos braços abertos de Don Orsati. Anton lhe deu uma casa e uma
mulher para ajudá-lo a cuidar de suas muitas feridas. Então, quando ele estava descansado, o don lhe deu trabalho. Com sua aparência do norte da Europa e o treinamento
do SAS, Keller foi capaz de cumprir contratos que estavam muito além da capacidade dos taddunaghiu de Orsati nascidos na Córsega. Um desses contratos tinha os nomes
de Anna Roube e Gabriel Allon. A consciência de Keller não permitiu que os matasse, mas o orgulho profissional o levou a deixar para trás o talismã que agora jazia
na palma da mão de Gabriel.
Por uma incrível coincidência, os dois homens já haviam se encontrado numa outra ocasião, muitos anos antes, quando Keller e diversos outros agentes do SAS foram
a Israel treinar técnicas de contraterrorismo. No último dia de sua estadia, Gabriel tinha concordado, com certa relutância, em dar uma palestra confidencial sobre
uma de suas operações mais ousadas: o assassinato de Abu Jihad em 1988, o segundo em comando da OLP, em sua casa na Tunísia. Keller sentou na primeira fileira e
prestou atenção em cada palavra de Allon. Depois, durante uma sessão de fotos do grupo, posicionou-se ao lado de Gabriel, que estava usando óculos escuros e um chapéu
para ocultar sua identidade. Mas Keller olhou direto para a câmera. Foi uma das últimas fotografias tiradas dele.
Agora, enquanto Gabriel saía do carro alugado, o homem que lhe poupara a vida estava parado no vão da porta de seu refúgio na Córsega. Ele era uma cabeça mais alto
que Gabriel e tinha o peito e os ombros bem mais largos. Vinte anos sob o sol corso haviam alterado bastante sua aparência. Agora a pele tinha cor de couro e os
cabelos curtos estavam esbranquiçados pelo mar. Apenas os olhos azuis pareciam iguais. Eram os mesmos que haviam observado Gabriel com tanta atenção quando ele recontara
a morte de Abu Jihad. Os mesmos que, certa vez, em outra época, lhe concederam clemência numa noite chuvosa em Veneza.
- Eu lhe ofereceria um almoço - disse Keller, com seu sotaque britânico claro -, mas fiquei sabendo que você comeu no Chez Orsati.
Quando Keller estendeu a mão, os músculos de seu braço se contraíram sob o casaco branco. Gabriel hesitou por um instante antes de cumprimentá-lo. Cada aspecto de
Keller, desde as mãos potentes até as pernas poderosas, parecia ter sido projetado especificamente para matar.
- O que o don disse? - perguntou Gabriel.
- O suficiente para eu saber que não deveria chegar perto de um homem como Marcel Lacroix sem reforços.
- Então você o conhece?
- Uma vez ele me deu carona.
- Antes ou depois?
- Os dois. Lacroix passou um tempo no Exército francês. E também em algumas das piores prisões do país.
- E isso deveria me impressionar?
- “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas.”
- Sun Tzu - completou Gabriel.
- Você citou essa passagem durante sua palestra em Tel Aviv.
- Então você estava prestando atenção, afinal.
Gabriel passou por Keller e entrou na ampla sala da casa. A mobília era rústica e, assim como Keller, coberta de tecido branco. Todas as superfícies estavam revestidas
por pilhas de livros e as paredes tinham várias pinturas de qualidade, incluindo trabalhos menos conhecidos de Cézanne, Matisse e Monet.
- Nenhum sistema de segurança? - perguntou Gabriel, passando os olhos pela sala.
- Não é necessário.
Gabriel se aproximou do Cézanne, uma paisagem pintada nas colinas perto de Aix-en-Provence, e passou a ponta do dedo com delicadeza pela tela.
- Você está se saindo muito bem, Keller.
- Dá para pagar as contas.
Gabriel não disse nada.
- Você desaprova a minha forma de ganhar a vida?
- Você mata pessoas por dinheiro.
- Você também.
- Eu mato pelo meu país, e só como último recurso.
- Foi por isso que você estourou os miolos de Ivan Kharkov naquela rua em Saint-Tropez? Pelo seu país?
Gabriel deu as costas para o Cézanne e olhou bem nos olhos de Keller. Qualquer outro homem teria murchado perante a intensidade do olhar de Gabriel, mas não Keller.
Seu braços poderosos estavam cruzados despreocupadamente sobre o peito, e um canto da boca estava erguido num meio sorriso.
- Talvez essa não seja uma boa ideia, afinal - falou Gabriel.
- Eu conheço os jogadores e conheço o terreno. Seria tolice não me usar.
Gabriel não respondeu; Keller tinha razão. Ele era o guia perfeito para o mundo do crime na França. E suas habilidades físicas e táticas certamente se provariam
valiosas para os problemas que eles enfrentariam.
- Eu não posso pagar - avisou Gabriel.
- Não preciso de dinheiro - retrucou Keller, observando a bela casa. - Mas preciso que você responda a algumas perguntas antes de partirmos.
- Se não a encontrarmos em cinco dias, ela morre.
- Cinco dias são uma eternidade para homens como nós.
- Sou todo ouvidos.
- Para quem você está trabalhando?
- Para o primeiro-ministro da Inglaterra.
- Não sabia que vocês estavam se falando.
- Alguém da inteligência britânica entrou em contato comigo.
- Em nome do primeiro-ministro?
Gabriel assentiu.
- Qual é a ligação entre o primeiro-ministro e essa garota?
- Tente adivinhar.
- Meu Deus.
- Deus tem muito pouco a ver com isso.
- Quem é o amigo do primeiro-ministro na inteligência britânica?
Gabriel hesitou, então respondeu à pergunta honestamente. Keller sorriu.
- Você o conhece? - perguntou Gabriel.
- Trabalhei com Graham na Irlanda do Norte. Ele é um profissional de verdade. Mas, assim como todo mundo na Inglaterra, acha que estou morto. Logo, não pode saber
que estou trabalhando com você.
- Você tem a minha palavra.
- Tem mais uma coisa que eu quero.
Keller estendeu a mão e Gabriel entregou o talismã.
- Estou surpreso que você o tenha guardado.
- Tem valor sentimental.
Keller pendurou-o no pescoço.
- Vamos - disse ele, sorrindo. - Eu sei onde a gente pode arrumar outro para você.
A signadora vivia numa casa torta no centro do vilarejo, não muito longe da igreja. Keller chegou sem marcar horário, mas a idosa não pareceu surpresa ao vê-lo.
Ela vestia uma túnica preta, e um cachecol preto cobria os cabelos bem secos. Abrindo um sorriso preocupado, tocou a bochecha de Keller com delicadeza. Em seguida,
segurou a cruz pesada pendurada no pescoço e voltou o olhar para Gabriel. Sua tarefa era cuidar dos afligidos pelo mau-olhado. Ela temia que Keller tivesse trazido
a própria encarnação do mal para seu lar.
- Quem é esse homem?
- Um amigo - respondeu Keller.
- Ele é um crente?
- Não como nós.
- Diga-me o nome dele, Christopher... seu nome real.
- Gabriel.
- Como o arcanjo?
- Sim.
Ela analisou o rosto de Gabriel com atenção.
- Ele é israelita, não é?
Keller assentiu e a velha franziu um pouco a testa em desaprovação. Pela doutrina, a signadora considerava os judeus como hereges, mas pessoalmente não tinha nada
contra. Ela desabotoou a camisa de Keller e tocou no talismã dele.
- Esse não é o que você perdeu muitos anos atrás?
- Sim.
- Onde você o encontrou?
- No fundo de uma gaveta abarrotada.
A signadora balançou a cabeça.
- Você está mentindo para mim, Christopher. Você nunca vai aprender que eu sei perceber?
Keller sorriu, mas não disse nada. A velha soltou o talismã e tocou sua bochecha de novo.
- Você está deixando a ilha, Christopher?
- Esta noite.
A signadora não indagou o motivo: sabia exatamente o que Keller fazia para ganhar a vida. Na verdade, ela já tinha até mesmo contratado um jovem taddunaghiu chamado
Anton Orsati para vingar o assassinato do marido.
Com um meneio de cabeça, convidou Keller e Gabriel para se sentarem à pequena mesa de madeira em sua sala. Colocou sobre o tampo um prato cheio de água e uma vasilha
de azeite de oliva. Keller mergulhou o dedo indicador no azeite e, em seguida, o manteve acima do prato, para que três gotas caíssem na água. De acordo com as leis
da física, elas deveriam ter-se aglomerado. Em vez disso, a substância se desfez em mil gotículas e desapareceu.
- O mal retornou, Christopher.
- Receio que seja um risco ocupacional.
- Não faça piadas, meu querido. O perigo é muito real.
- O que a senhora vê?
Ela focou toda a atenção no líquido, como se estivesse em transe. Depois, perguntou baixinho:
- Vocês estão procurando a garota inglesa?
Keller assentiu.
- Ela está viva?
- Sim - respondeu a velha. - Está viva.
- Onde ela está?
- Não está em meu poder dizer isso.
- Nós vamos encontrá-la?
- Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.
- O que a senhora vê?
Ela fechou os olhos.
- Água... montanhas... um velho inimigo...
- Meu?
- Não. - Ela abriu os olhos e encarou Gabriel. - Dele.
A signadora pegou a mão do Inglês e rezou. Após um momento, começou a chorar, um sinal de que o mal tinha passado do corpo de Keller para o seu. Em seguida, fechou
os olhos e pareceu adormecer. Ao acordar, instruiu Keller a repetir o teste do azeite e da água. Dessa vez, o azeite se aglomerou numa única gota.
- O mal saiu da sua alma, Christopher. - Voltando-se para Gabriel, a velha disse: - Agora ele.
- Eu não sou um crente - retrucou Gabriel.
- Por favor - pediu ela. - Se não por você, por Christopher.
Relutante, Gabriel mergulhou o indicador no azeite e deixou três gotas caírem na água. Quando o azeite se dividiu em mil gotículas, a mulher fechou os olhos e começou
a estremecer.
- O que a senhora vê? - perguntou Keller.
- Fogo - respondeu ela, baixinho. - Eu vejo fogo.
Havia uma balsa saindo de Ajaccio às cinco horas. Às quatro e meia, Gabriel estacionou o Peugeot na embarcação e, dez minutos depois, observou Keller subir a bordo
dirigindo um Renault velho. Seus compartimentos ficavam no mesmo deque, um de frente para o outro. O de Gabriel tinha o tamanho e a falta de atrativo de uma cela
de prisão. Ele deixou a mala na cama minúscula e subiu as escadas para o bar. Ao chegar, encontrou Keller sentado a uma mesa perto da janela, tomando um gole de
cerveja com um cigarro queimando no cinzeiro.
Gabriel balançou a cabeça devagar. Quarenta e oito horas atrás, estava diante de uma tela em Jerusalém. Agora buscava por uma mulher desconhecida, acompanhado por
um homem que, no passado, aceitara um contrato para matá-lo.
Pediu um café preto ao barman e saiu para o convés de popa. A balsa já estava longe do porto e o ar da noite havia esfriado. Gabriel levantou a gola do casaco e
envolveu a xícara de café com as mãos para se aquecer. As estrelas do leste brilhavam intensamente no céu sem nuvens, e o mar, que um instante antes estava turquesa,
logo se tornou nanquim. Gabriel teve a impressão de sentir o cheiro de macchia no vento. Um pouco depois, escutou a voz da signadora: “Quando ela estiver morta.
Então vocês saberão a verdade.”
10
MARSELHA
Quando Gabriel e Keller chegaram a Marselha no começo da manhã seguinte, o Moondance estava amarrado no ponto de sempre no Velho Porto, ostentando seus 42 pés de
puro poder de contrabando. O dono, no entanto, não estava à vista. Keller montou um posto estático de observação no lado norte e Gabriel ficou a leste, na frente
de uma pizzaria que, inexplicavelmente, tinha o nome de uma região chique de Manhattan. A cada hora eles mudavam de posição, mas no fim da tarde ainda não havia
sinal de Lacroix. Por fim, ansioso com a perspectiva de um dia perdido, Gabriel percorreu o perímetro do porto, passou pelos vendedores de peixe em suas bancas de
metal e se juntou a Keller no Renault. O tempo estava piorando: chuva pesada, um vento frio vindo das colinas. Keller ligava os limpadores em intervalos de alguns
segundos para manter o para-brisa transparente. O degelador ofegava fracamente contra o vidro embaçado.
- Você tem certeza de que ele não possui apartamentos na cidade? - perguntou Gabriel.
- Ele mora no barco.
- E quanto a mulher?
- Ele tem várias, mas nenhuma consegue tolerar sua presença por muito tempo. - Keller limpou o para-brisa com o dorso da mão. - Talvez possamos ficar num hotel.
- Não acha um pouco cedo? Afinal, acabamos de nos conhecer.
- Você sempre faz piadas cretinas durante as operações?
- É um mal cultural.
- Piadas cretinas ou operações?
- Ambos.
Keller pegou um guardanapo do porta-luvas e fez o melhor que pôde para consertar a bagunça que tinha feito no para-brisa.
- Minha avó era judia - comentou ele casualmente, como se admitisse que sua avó gostava de jogar bridge.
- Parabéns.
- Outra piada?
- O que você quer que eu diga?
- Você não acha interessante que eu tenha uma ancestral judia?
- Por minha experiência, a maior parte dos europeus tem um parente judeu escondido em algum lugar.
- A minha estava em plena vista.
- Onde ela nasceu?
- Na Alemanha.
- Ela foi para a Inglaterra durante a guerra?
- Logo antes. Ela foi abrigada por um tio distante que não se considerava mais judeu. Ele lhe deu um nome cristão adequado e a mandou para a igreja. Minha mãe só
soube que tinha um passado judeu com 30 e tantos anos.
- Odeio ser portador de más notícias - disse Gabriel -, mas, na minha opinião, você é judeu.
- Para ser sincero, sempre me senti um pouco judeu.
- Você tem aversão a mariscos e a ópera alemã?
- Quis dizer num sentido espiritual.
- Você é um assassino profissional, Keller.
- Isso não significa que eu não acredite em Deus. Na verdade, suspeito que eu saiba mais sobre a sua história e as suas escrituras do que você.
- Então por que você anda com aquela mística maluca?
- Ela não é maluca.
- Não me diga que você acredita naquela bobagem.
- Como ela sabia que estávamos procurando a garota?
- Suponho que o don lhe tenha dito.
- Não - discordou Keller, balançando a cabeça. - Ela viu. Ela vê tudo.
- Como a água e as montanhas?
- Sim.
- Nós estamos no sul da França, Keller. Eu também vejo água e montanhas. Inclusive, parecem estar por toda parte.
- É óbvio que ela deixou você nervoso com aquela conversa sobre um velho inimigo.
- Eu não fico nervoso. Quanto a velhos inimigos, não consigo sair da porta de casa sem trombar com um.
- Então talvez você devesse mudar a porta da sua casa de lugar.
- Isso é um provérbio corso?
- Só um conselho amigável.
- Ainda não somos exatamente amigos.
Keller encolheu os ombros quadrados para demonstrar indiferença, mágoa ou algo entre um sentimento e outro.
- O que você fez com o talismã que ela lhe deu? - perguntou ele depois de um silêncio amuado.
Gabriel deu um tapinha no peito para indicar que o talismã, idêntico ao de Keller, estava pendurado no pescoço.
- Se você não acredita - indagou Keller por que o está usando?
- Eu gosto do modo como ele valoriza as minhas roupas.
- O que quer que você faça, não o tire: ele mantém o mal à distância.
- Eu gostaria de manter à distância algumas pessoas na minha vida.
- Como Ari Shamron?
- Como você sabe de Shamron? - perguntou Gabriel, ocultando sua surpresa.
- Eu o conheci quando fui treinar em Israel. Além do mais, todo mundo no negócio sabe de Shamron. E todo mundo sabe que ele queria que você fosse c chefe, em vez
de Uzi Navot.
- Você não devia acreditar em tudo que lê nos jornais, Keller.
- Eu tenho boas fontes. E elas me disseram que o emprego era seu, mas você o recusou.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse Gabriel, com o olhar cansado voltado para o para-brisa respingado de chuva -, mas não estou a fim de ter um papo
nostálgico com você.
- Eu só estava tentando matar tempo.
- Talvez pudéssemos aproveitar um silêncio confortável.
- Outra piada?
- Você entenderia se fosse judeu.
- Tecnicamente eu sou judeu.
- Quem você prefere: Puccini ou Wagner?
- Wagner, claro.
- Então não tem como você ser judeu.
Keller acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo para apagá-lo. Uma rajada de vento jogou a chuva no para-brisa, dificultando a visão do porto. Gabriel baixou a sua
janela alguns centímetros para dar vazão à fumaça de Keller.
- Talvez você esteja certo - disse ele por fim. - Talvez um quarto seja uma boa ideia.
- Não acho que seja necessário.
- Por que não?
Keller ligou os limpadores do para-brisa e apontou para além do vidro.
- Porque Marcel Lacroix está vindo em nossa direção.
Ele estava usando um agasalho preto e tênis verde-néon, e carregava no ombro uma mala esportiva Puma. Era óbvio que Lacroix havia passado a maior parte da tarde
na academia. Não que ele precisasse de exercício: tinha pelo menos 1,90 metro e pesava mais de 90 quilos. Seus cabelos escuros com gel estavam presos num rabo de
cavalo curto. Havia piercings nas duas orelhas e ideogramas chineses tatuados no lado do seu grosso pescoço - evidência de que era um estudante das artes marciais
asiáticas. Seus olhos não paravam de se mexer, mas ele não chegou a perceber os dois homens sentados no pequeno Renault com janelas embaçadas. Enquanto o observava,
Gabriel deu um suspiro profundo. Lacroix certamente seria um oponente digno, em especial dentro do espaço apertado do Moondance. Apesar do que dizem, tamanho é documento.
- Nenhuma piadinha? - perguntou Keller.
- Estou pensando em alguma.
- Por que você não me deixa cuidar disso?
- Por alguma razão, não acho que sei a uma boa ideia.
- Por que não?
- Porque ele sabe que você trabalha para Don Orsati. Se você aparecer e começar a fazer perguntas sobre Madeline Hart, ele vai saber que foi traído, e isso seria
prejudicial aos interesses do don.
- Deixe que eu me preocupo com os interesses do don.
- É por isso que você está aqui, Keller?
- Eu estou aqui para garantir que você não acabe num caixão de cimento no fundo do Mediterrâneo.
- Há lugares piores para ser enterrado.
- A lei judia não permite enterros no mar.
Keller ficou em silêncio quando Lacroix entrou na doca e começou a seguir em direção ao Moondance. Gabriel focou na região lombar do francês, prestando atenção em
como pendia a roupa esportiva. Em seguida, olhou para a forma como a bolsa estava pendurada.
- O que você acha? - perguntou Keller.
- Acho que ele está carregando a arma na bolsa.
- Você também notou isso?
- Eu noto tudo.
- Como você vai fazer?
- Do jeito mais silencioso possível.
- O que você quer que eu faça?
- Espere aqui - respondeu Gabriel, abrindo a porta do carro. - E tente não matar ninguém até eu voltar.
O Escritório tinha uma doutrina simples quanto ao uso operacional adequado de armas ocultas. Ela fora dada por Deus a Ari Shamron - pelo menos era o que dizia a
história -, que por sua vez passou-a para todos os que adentravam secretamente a noite para desempenharem seus serviços. Embora não estivesse escrita em lugar algum,
todo agente de campo era capaz de recitá-la com tanta facilidade quanto a bênção das velas no sabá. Um agente do Escritório saca a arma com apenas um propósito.
Ele não a brande como um gângster nem faz ameaças vazias. Apenas atira - e só interrompe os disparos quando o alvo não está mais entre os vivos. Amém.
Foi com a advertência de Shamron ecoando em seus ouvidos que Gabriel deu os passos finais na direção do Moondance. Hesitou antes de embarcar. Até mesmo um homem
tão esguio quanto ele poderia fazer com que o barco se inclinasse um pouco. Portanto, velocidade e uma confiança aparente seriam essenciais.
Gabriel deu uma última olhada por cima do ombro e viu que Keller o observava com um pouco de receio pela janela do carona do Renault. Em seguida, subiu a bordo do
Moondance e atravessou rapidamente o convés de popa até a cabine principal. Lacroix estava no vão da porta. No espaço apertado do barco, o francês parecia ainda
maior do que na rua.
- Que porra você está fazendo no meu barco? - ele exigiu saber.
- Peço desculpas - disse Gabriel, erguendo as mãos num gesto conciliatório. - Me disseram que você estaria me esperando.
- Quem disse?
- Paul, é claro. Ele não falou que eu estava vindo?
- Paul?
- Sim, Paul - respondeu Gabriel, confiante. - O homem que o contratou para entregar o pacote da Córsega ao continente. Ele disse que você era o melhor profissional
que já viu. Que, se eu precisasse de alguém para transportar bens valiosos, você era a pessoa certa.
Gabriel viu uma série de reações na expressão do francês: confusão, apreensão e, claro, cobiça. No fim, a cobiça saiu vitoriosa. Ele deu um passo para o lado e,
com um movimento dos olhos, o convidou para entrar. Gabriel deu dois passos lânguidos para a frente enquanto analisava o interior da cabine, tentando encontrar a
bolsa de ginástica de Lacroix. Estava em cima de uma mesa, ao lado de uma garrafa de Pernod.
- Você se incomoda? - perguntou Gabriel, meneando a cabeça em direção à porta. - Não é o tipo de coisa que você queira que os seus vizinhos ouçam.
Lacroix hesitou por um instante. Em seguida, andou até a porta e fechou-a. Gabriel se posicionou ao lado da mesa que continha a mala esportiva.
- Que tipo de trabalho é? - perguntou Lacroix, voltando-se para Gabriel.
- Muito simples. Na verdade, vai levar só alguns minutos.
- Quanto?
- O que você quer dizer? - perguntou Gabriel, fingindo confusão.
- Quanto dinheiro você está oferecendo? - indagou Lacroix, esfregando o indicador e o dedo médio no polegar.
- Estou oferecendo algo muito mais valioso do que dinheiro.
- O que seria?
- A sua vida. Marcel, você vai me dizer o que seu amigo Paul fez com a garota inglesa. E, se não disser, vou cortá-lo em pedacinhos e usá-lo como isca para peixe.
A arte marcial israelense do krav maga não é conhecida por sua elegância, mas não foi projetada mesmo para ser estética. Seu único propósito é incapacitar ou matar
o adversário o mais rápido possível. Ao contrário de muitas disciplinas ocidentais, ele não hesita em usar objetos pesados para repelir um inimigo de maior tamanho
e força. Na verdade, os instrutores encorajam os alunos a usarem quaisquer recursos que tenham à disposição para se defenderem. Davi não se atracou com Golias, eles
gostavam de dizer, mas o atingiu com uma pedra. E só depois cortou sua cabeça.
Gabriel escolheu uma garrafa de Pernod em vez de uma pedra. Pegou-a pelo gargalo e lançou-a como uma faca na direção de Marcel Lacroix, que corria para atacá-lo.
A garrafa bateu bem no centro da testa do francês, abrindo um corte horizontal profundo logo acima da densa sobrancelha. Ao contrário de Golias, que caiu no instante
em que foi atingido, Lacroix conseguiu se manter de pé, embora com bastante dificuldade. Gabriel avançou e deu uma joelhada na virilha desprotegida do francês. Depois,
deu-lhe um soco no estômago e quebrou seu maxilar com uma cotovelada bem aplicada. Com o outro cotovelo, acertou sua têmpora, levando-o ao chão. Gabriel se agachou
e tocou o pescoço do francês para verificar se ele ainda tinha pulsação. Erguendo os olhos, viu Keller parado à porta, sorrindo.
- Impressionante. O Pernod foi um toque adorável.
11
PERTO DE MARSELHA
A chuva parou quando o sol se pôs, mas o vento mistral continuou soprando sem remorso muito depois do escurecer. Uivava nos cordames dos barcos amontoados no Velho
Porto e redemoinhava nos deques do Moondance enquanto Keller o conduzia com habilidade mar adentro. Gabriel permaneceu a seu lado na ponte de comando até eles saírem
do porto. Então, desceu as escadas para o alojamento principal, onde Marcel Lacroix jazia no chão, com o rosto voltado para baixo, amarrado, amordaçado e vendado.
Gabriel rolou o francês, deixando-o de barriga para cima, e tirou a fita adesiva que lhe cobria os olhos com um único movimento ríspido. Lacroix já tinha recuperado
a consciência e não havia sinal de medo em seus olhos, apenas fúria. Keller estava certo: não era fácil assustar o francês.
Gabriel voltou a vendá-lo e deu início a uma busca minuciosa na embarcação, começando pelo alojamento principal e terminando na cabine de Lacroix. Ele encontrou
um esconderijo com drogas ilegais, cerca de 60 mil euros em dinheiro vivo, passaportes falsos, carteiras de motorista francesas em quatro nomes diferentes, cartões
de crédito roubados, nove celulares descartáveis e uma coleção elaborada de pornografia impressa e eletrônica. Além disso, havia um recibo com um número de telefone
rabiscado atrás, de um lugar chamado Bar du Haut, no Boulevard Jean Jaurès, em Rognac, uma cidade de classe operária ao norte de Marselha, não muito longe do aeroporto.
Gabriel já tinha passado por ali uma vez, em outra época da vida. Era o tipo de lugar que servia apenas de parada a caminho de algum outro lugar.
Gabriel verificou a data do recibo. Em seguida, examinou os históricos de chamada dos nove celulares em busca do número escrito no verso do papel. Encontrou-o em
três dos telefones. Naquela manhã, Lacroix ligara duas vezes para ele com dois celulares diferentes.
Gabriel guardou os aparelhos, o recibo e o dinheiro numa mochila de náilon e voltou para o alojamento principal. Mais uma vez tirou a fita adesiva dos olhos de Lacroix,
mas também removeu a mordaça. O rosto do francês estava muito distorcido, devido ao inchaço do maxilar quebrado. Gabriel o apertou com força enquanto fitava os olhos
do contrabandista.
- Vou fazer algumas perguntas, Marcel. Você tem só uma chance para me dizer a verdade. Entendeu? - perguntou Gabriel, pressionando o maxilar dele com um pouco mais
de força. - Uma chance.
A única resposta de Lacroix foi um grunhido de dor.
- Uma chance - repetiu Gabriel, erguendo o indicador para enfatizar. - Está ouvindo?
Lacroix não respondeu.
- Vou tomar isso como um sim. Agora, Marcel, quero que você me diga os nomes dos homens que estão com a garota. E depois quero saber onde posso encontrá-los.
- Não sei nada sobre essa garota.
- Você está mentindo, Marcel.
- Não, eu juro...
Antes que Lacroix pudesse continuar, Gabriel lhe colocou a mordaça de novo. Em seguida, passou bastante fita adesiva ao redor da cabeça do francês, até deixar apenas
as suas narinas visíveis. Desceu até o convés inferior, pegou uma corda de náilon num armário e voltou para cima, até a ponte de comando. Keller segurava o leme
com as duas mãos, estreitando os olhos para o mar turbulento.
- Como está indo lá embaixo? - perguntou ele.
- Estou surpreso: não consegui persuadi-lo a cooperar.
- Por que a corda?
- Mais persuasão.
- Algo que eu possa fazer para ajudar?
- Reduza a velocidade e ligue o piloto automático.
Keller obedeceu e seguiu Gabriel até o alojamento principal. Encontraram Lacroix bem perturbado, arfante, lutando para respirar através do capacete de fita adesiva.
Gabriel o rolou, deixando-o de barriga para baixo, e passou a corda de náilon pelas amarras nos pés e calcanhares. Depois de prendê-la com um nó firme, arrastou
Lacroix até o convés de popa como se ele fosse uma baleia recém-arpoada. Então, com a ajuda de Keller, aproximou o francês da beirada e o jogou para fora do barco.
Lacroix bateu na água escura com um baque pesado e começou a se debater ferozmente para tentar manter a cabeça acima da superfície. Gabriel o observou por um momento
e, em seguida, vasculhou o horizonte em todas as direções. Nenhuma luz visível. Era como se eles fossem os três últimos homens na terra.
- Como você vai saber quando parar? - perguntou Keller, vendo Lacroix lutar pela própria vida.
- Quando ele começar a afundar - respondeu Gabriel, calmo.
- Me lembre de nunca entrar na sua lista negra.
- Nunca entre na minha lista negra.
Depois de 45 segundos na água, de repente Lacroix parou de se mover. Gabriel e Keller o puxaram depressa de volta para o barco e removeram a fita adesiva que lhe
cobria a boca. Por vários minutos, o francês não conseguiu falar, alternando-se entre respirar sofregamente e tossir água do mar. Quando ele pareceu cuspir tudo,
Gabriel segurou o maxilar quebrado e o apertou.
- Você pode não estar se dando conta neste instante, mas hoje é seu dia de sorte, Marcel. Agora vamos tentar de novo: diga onde eu posso encontrar a garota.
- Eu não sei.
- Você está mentindo para mim, Marcel.
- Não - respondeu Lacroix, balançando a cabeça violentamente de um lado para o outro. - Estou dizendo a verdade. Não faço ideia de onde ela está.
- Mas você conhece um dos homens que está com ela. Você até tomou uns drinques com ele num bar em Rognac uma semana antes de a garota desaparecer. E, desde então,
você tem se mantido em contato com ele.
Lacroix ficou em silêncio. Gabriel apertou o maxilar quebrado com mais força.
- O nome, Marcel. Diga-me o nome dele.
- Brossard - Lacroix se esforçou para dizer, tomado pela dor. - O nome dele é René Brossard.
Gabriel encarou Keller, que assentiu.
- Muito bem - falou para Lacroix, relaxando o aperto. - Agora continue falando. E nem pense em mentir para mim. Caso contrário, volta para a água. Mas, da próxima
vez, vai ser para sempre.
12
PERTO DE MARSELHA
O convés de popa tinha duas cadeiras giratórias. Gabriel amarrou Lacroix na que estava a estibordo e sentou-se na outra, diante dele. Lacroix continuou vendado,
a roupa encharcada pelo tempo que passara dentro d'água. Tremendo violentamente, implorou por uma muda de roupas ou um cobertor. Como não teve resposta, falou de
uma noite quente em meados de agosto, quando um homem aparecera no Moondance sem aviso prévio, da mesma forma que Gabriel havia feito mais cedo.
- Paul? - perguntou Gabriel.
- Sim, Paul.
- Vocês se conheciam?
- Não, mas eu já o tinha visto.
- Onde?
- Em Cannes.
- Quando?
- Durante o festival de cinema.
- Este ano?
- Sim, em maio.
- Você foi ao Festival de Cannes?
- Eu não estava na lista de convidados, se é isso que você quer saber. Estava trabalhando.
- Que tipo de trabalho?
- O que você acha?
- Roubando das estrelas do cinema e dos ricaços?
- É uma das nossas semanas mais ocupadas do ano, uma verdadeira dádiva para a economia local. Só tem imbecil em Hollywood. Nós os roubamos todas as vezes que o pessoal
de lá vem para cá, e acho que nem percebem.
- O que Paul estava fazendo?
- Passando tempo com os ricaços. Acho que até o vi entrando no salão umas duas vezes para ver os filmes.
- Acha?
- Ele sempre tem uma aparência diferente.
- Ele estava dando golpes em Cannes?
- Isso você teria que perguntar para ele. Não discutimos esse assunto quando ele veio me ver. Só falamos do serviço.
- Ele queria contratar você e o seu barco para levarem a garota da Córsega até o continente.
- Não - negou Lacroix, balançando a cabeça com veemência. - Ele nunca disse nenhuma palavra sobre uma garota.
- O que foi que ele disse?
- Queria que eu entregasse um pacote.
- Você não perguntou o que era?
- Não.
- Você sempre opera assim?
- Depende.
- Do quê?
- De quanto dinheiro tem na mesa.
- E quanto tinha?
- Cinquenta mil.
- Isso é bom?
- Muito bom.
- Ele chegou a mencionar onde obteve o seu nome?
- Com o don.
- Que don7.
- Don Orsati, o Corso.
- Que tipo de trabalho o don faz?
- Ele tem um dedo em todo tipo de esquema, mas principalmente em assassinatos. De vez em quando, dou uma carona para um de seus homens. E às vezes eu ajudo a fazer
coisas desaparecerem.
O inquérito de Gabriel tinha um propósito duplo. Permitia testar a veracidade das respostas de Lacroix, ao mesmo tempo que encobria suas próprias pegadas. Agora
o francês achava que Gabriel nunca tivera o prazer de conhecer um assassino corso chamado Orsati. E, pelo menos até agora, ele estava respondendo honestamente às
perguntas de Gabriel.
- Paul disse quando o serviço ia ser executado?
- Não. Ele disse que me avisaria 24 horas antes e que eu provavelmente ouviria algo dele em uma semana, dez dias no máximo.
- Como ele entraria em contato com você?
- Por telefone.
- Você ainda tem o telefone que usou?
Lacroix assentiu e recitou o número associado ao aparelho.
- Ele ligou?
- No oitavo dia.
- O que ele falou?
- Me pediu para buscá-lo na manhã seguinte, na enseada que fica bem ao sul de Capo di Feno.
- A que horas?
- Três da madrugada.
- Como ficou combinado?
- Ele queria que eu deixasse um bote na praia e o esperasse no mar.
Gabriel ergueu os olhos para a ponte de comando, de onde Keller observava o interrogatório. O Inglês aquiesceu, como se confirmando que de fato há uma enseada em
Capo di Feno e que o cenário descrito por Lacroix era perfeitamente plausível.
- Quando você chegou à Córsega? - perguntou Gabriel.
- Alguns minutos após a meia-noite.
- Estava sozinho?
- Sim.
- Tem certeza?
- Sim, eu juro.
- A que horas você deixou o bote na praia?
- Às duas.
- Como você voltou para o Moondance?
- Fui andando - brincou Lacroix. - Como Jesus.
Gabriel arrancou o piercing da orelha direita de Lacroix.
- Foi só uma piada - alegou o francês, arquejante, com sangue fluindo do lóbulo arruinado.
- Se eu fosse você - retrucou Gabriel não estaria fazendo piadas sobre o Senhor num momento destes. Eu faria o possível para conseguir cair nas graças Dele.
Gabriel olhou de novo para a ponte de comando e viu que Keller tentava conter um sorriso. Em seguida, mandou Lacroix descrever os eventos que se seguiram. Paul,
disse o francês, chegara bem na hora, às três em ponto. Lacroix tinha visto um único veículo, um pequeno modelo com tração nas quatro rodas, descendo aos solavancos
a pista íngreme do topo da colina até a enseada, só com as luzes de freio acesas. Então, ouviu o barco se aproximar pela água. Quando o escaler encostou na popa
do Moondance, ele viu a garota.
- Paul estava com ela?
- Sim.
- Mais alguém?
- Não, só Paul.
- Ela estava inconsciente?
- Quase.
- O que estava usando?
- Vestido branco. E um capuz preto cobria sua cabeça.
- Você viu o rosto dela?
- Em nenhum momento.
- Alguma ferida?
- Os joelhos estavam sangrando e os braços tinham muitos arranhões e hematomas.
- Algemas?
- Nas mãos.
- Na frente do corpo ou atrás?
- Atrás.
- De que tipo?
- Algemas plásticas, muito profissionais.
- Continue.
- Paul deitou a garota num sofá no alojamento principal e aplicou algo nela para deixá-la quieta. Depois veio para a ponte de comando e me disse para onde queria
ir.
- Para onde?
- Para o estuário logo a oeste de Saintes-Maries-de-la-Mer. O lugar tem uma marina pequena, já usei antes. É um ponto excelente. Paul tinha feito a lição de casa.
Outra olhada para Keller. Outro assentimento.
- Você atravessou direto?
- Não - respondeu Lacroix. - Isso teria nos levado para a terra em plena luz do dia. Passamos o dia inteiro no mar. Avançamos em torno das onze horas daquela noite.
- Paul manteve a garota no alojamento o tempo inteiro?
- Ele a levou para a proa uma vez, mas fora isso...
- Fora isso o quê?
- Ele usou a seringa.
- Ketamina?
- Não sou médico.
- Não brinca.
- Você me fez uma pergunta, eu respondi.
- Ele a levou para a terra no escaler?
- Não. Eu fui direto para a marina. É o tipo de lugar onde dá para estacionar um carro bem ao lado do barco. Havia um esperando. Um Mercedes preto.
- Que tipo de Mercedes?
- Classe E.
- Placa?
- Francesa.
- Sem ninguém?
- Não. Havia dois homens. Um estava apoiado no capô quando nós entramos. O outro estava ao volante.
- Você conhecia o que estava apoiado no capô?
- Nunca o vi antes.
- Mas o que estava ao volante você conhecia, não é mesmo, Marcel?
- Sim. Era René Brossard.
René Brossard era o soldado raso de uma família criminosa com ligações internacionais que estava se dando bem em Marselha. Era especializado em trabalho pesado:
cobrança de dívidas, coerção, segurança. No tempo livre, trabalhava como leão de chácara num clube noturno perto do Velho Porto, principalmente porque gostava das
garotas que trabalhavam lá. Lacroix o conhecia da vizinhança. Também sabia seu telefone.
- Quando você ligou para ele? - perguntou Gabriel.
- Alguns dias depois de ter lido a primeira matéria sobre a garota inglesa que desapareceu durante as férias na Córsega. Somei um mais um e me dei conta de que era
a garota que eu tinha deixado no porto em Saintes-Maries-de-la-Mer.
- Você é algum tipo de gênio da matemática?
- Eu sei somar - gracejou Lacroix.
- Você se deu conta de que Paul poderia receber uma bela grana de resgate de alguém e quis uma fatia do bolo.
- Ele me passou a perna quanto falou do tipo de trabalho. Eu nunca teria concordado em fazer parte do sequestro de alguém importante por meros 50 mil dólares.
- Quanto você queria?
- Eu tento não criar o hábito de negociar comigo mesmo.
- Homem sábio.
Gabriel perguntou a Lacroix quanto tempo Brossard tinha levado para retornar seu telefonema.
- Dois dias.
- Vocês entraram em detalhes pelo telefone?
- O suficiente para deixar claro o que eu queria. Brossard me ligou de volta algumas horas depois e me disse para ir ao Bar du Haut na tarde seguinte, às quatro.
- Isso foi uma burrice, Marcel.
- Por quê?
- Porque Paul poderia estar lá em vez de Brossard. E ele poderia ter metido uma bala entre os seus olhos por ter a audácia de pedir mais dinheiro.
- Eu sei cuidar de mim mesmo.
- Se isso fosse verdade - falou Gabriel -, você não estaria amarrado numa cadeira no próprio barco. Mas continue: você estava me contando sobre a sua conversa com
René Brossard.
- Ele disse que Paul queria ser razoável. Depois disso, começamos a negociar.
- Negociar?
- O preço do meu acordo. Paul fez uma oferta. Eu fiz uma contraoferta. Fomos e voltamos várias vezes.
Tudo por telefone?
Lacroix assentiu.
- Qual é o papel de Brossard na operação?
- Ele fica na casa onde estão mantendo a garota.
- Paul está lá também?
- Não perguntei.
- Quantas pessoas estão lá?
- Não sei. Só sei que outra mulher vive lá, para que eles pareçam uma família.
- Brossard chegou a mencionar a garota inglesa?
- Disse que ela está viva.
- Só isso?
- É.
- Qual é o estado atual das suas negociações com Paul e Brossard?
- Chegamos a um acordo esta manhã.
- Quanto você conseguiu arrancar deles?
- Mais 100 mil.
- Quando você vai pegar o dinheiro?
- Amanhã à tarde.
- Onde?
- Em Aix.
- Onde, lá?
- Num café perto da praça Charles de Gaulle.
- Qual é o nome do lugar?
- Le Provence. Mais alguma coisa?
- Como ficou combinado?
- Brossard ficou de aparecer primeiro, às cinco e dez. Vou encontrá-lo dez minutos depois.
- Onde ele vai estar sentado?
- Numa mesa do lado de fora.
- E o dinheiro?
- Brossard disse que estaria numa maleta de metal.
- Que discreto.
- Foi escolha dele, não minha.
- Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?
- Le Cézanne, subindo um pouco a rua.
- Quanto tempo ele vai esperar lá?
- Dez minutos.
- E se você não der as caras?
- O acordo é cancelado.
- Existe mais alguma instrução?
- Mais nenhum telefonema - respondeu Lacroix. - Paul está ficando nervoso com os telefonemas.
- Aposto que está.
Gabriel olhou para a ponte de comando, mas dessa vez Keller estava imóvel, um vulto contra o céu preto com uma arma nas mãos estendidas. O tiro, suprimido por um
silenciador, abriu um buraco em cima do olho esquerdo de Lacroix. Gabriel segurou os ombros do francês enquanto ele morria. Em seguida, virou-se, furioso, e apontou
a sua arma para Keller.
- É melhor você guardar isso antes que alguém se machuque - disse o Inglês com calma.
- Por que diabos você fez isso?
- Ele entrou na minha lista negra. Além disso - acrescentou Keller, enquanto guardava a arma na cintura -, ele não era mais necessário.
13
CÔTE D'AZUR, FRANÇA
Eles o lançaram ao fundo do mar nas águas profundas além do golfo de Leão e seguiram para Marselha. Ainda estava escuro quando chegaram ao Velho Porto. Gabriel e
Keller saíram do Moondance com alguns minutos de diferença um do outro, entraram nos seus carros, e percorreram a costa a caminho de Toulon. Um pouco antes da cidade
de Bandol, Gabriel parou na beira da estrada e afrouxou vários cabos do motor. Ligou para a locadora de veículos e, com a voz histérica de Herr Klemp, deixou uma
mensagem dizendo onde o carro “quebrado” podia ser encontrado. Depois de limpar as digitais do volante e do painel, entrou no Renault de Keller e os dois foram para
o leste, seguindo para Nice sob o sol nascente. Havia um prédio antigo na Rue Verdi, branco como um osso, onde o Escritório mantinha um de seus vários flats secretos
na França. Gabriel entrou no edifício sozinho e pegou a correspondência, que incluía a cópia do arquivo pessoal de Madeline Hart no Partido, solicitada a Graham
Seymour. De volta ao carro, ele leu o documento enquanto Keller dirigia rumo a Aix pela Autoroute A8.
- O que diz aí? - perguntou o Inglês depois de vários minutos de silêncio.
- Que Madeline Hart é perfeita. Mas nós já sabíamos disso.
- Eu também já fui perfeito. E olha como fiquei.
- Você sempre foi um patife, Keller. Só não percebeu até aquela noite no Iraque.
- Eu perdi oito colegas tentando proteger o seu país dos Scuds de Saddam.
- Somos eternamente gratos.
Mais calmo, Keller ligou o rádio e sintonizou numa estação sediada em Mônaco que transmitia em inglês, voltada para a grande comunidade de expatriados britânicos
que viviam no sul da França.
- Com saudades de casa? - perguntou Gabriel.
- Gosto de ouvir o som do meu idioma nativo de vez em quando.
- Você nunca voltou?
- Para a Inglaterra?
Gabriel assentiu.
- Nunca - respondeu Keller. - Eu me recuso a trabalhar lá e nunca aceite, contratos envolvendo ingleses.
- Que nobre da sua parte.
- Deve-se operar de acordo com um código de conduta.
- Então os seus pais não sabem que você está vivo?
- Não.
- Você não deve mesmo ser judeu - repreendeu Gabriel. - Nenhum garoto judeu deixaria a mãe pensar que ele está morto. Não se atreveria.
Gabriel abriu o registro mais recente do arquivo pessoal de Madeline Hart e o leu em silêncio enquanto Keller dirigia. Era a cópia de uma carta enviada por Jeremy
Fallon para o presidente do Partido, recomendando que a Srta. Hart fosse promovida a um posto júnior no ministério e preparada para cargos oficiais. Fitou uma fotografia
de Madeline sentada numa cafeteria a céu aberto com o homem que eles conheciam apenas pelo nome de Paul.
Observando-o, Keller perguntou:
- Em que você está pensando?
- Estou só me perguntando por que uma jovem estrela em ascensão no partido britânico da situação dividia uma garrafa de champanhe com um sujeito tão estranho como
o nosso amigo Paul.
- Porque ele sabia que Madeline tinha um caso com o primeiro-ministro. E estava se preparando para sequestrá-la.
- Como ele teria descoberto?
- Eu tenho uma teoria.
- É baseada em fatos?
- Em alguns.
- Então é só uma hipótese.
- Mas pelo menos vai ajudar a passar o tempo.
Gabriel fechou a pasta para indicar que estava prestando atenção. Keller desligou o rádio.
- Homens como Jonathan Lancaster sempre cometem o mesmo erro quando têm um caso: confiam que os guarda-costas vão ficar de boca fechada - começou o Inglês. - Mas
eles não ficam. Eles conversam entre si, conversam com as esposas, as namoradas, os velhos amigos que conseguiram trabalho no negócio particular de segurança da
Inglaterra. E, em pouco tempo, o caso chega aos ouvidos de alguém como Paul.
- Você acha que Paul está ligado ao negócio britânico de segurança?
- Ele poderia estar. Ou então conhecer alguém que esteja. Enfim, uma informação dessas vale ouro para alguém como Paul. Ele provavelmente manteve Madeline sob observação
em Londres e invadiu o celular e as contas de e-mail dela. E descobriu que a garota ia passar as férias na Córsega. Quando ela chegou, Paul a estava esperando.
- Então por que almoçar com ela? Por que correr o risco de mostrar o rosto?
- Porque, para o sequestro correr bem, precisava que ela estivesse sozinha.
- Ele a seduziu?
- Ele é um canalha charmoso.
- Essa eu não engulo - retrucou Gabriel, depois de pensar por um momento.
- Por que não?
- Porque, quando foi raptada, Madeline estava envolvida romanticamente com o primeiro-ministro britânico. Ela não teria sido seduzida por alguém como Paul.
- Madeline era a amante do primeiro-ministro, logo havia muito pouco romantismo em seu relacionamento. Ela devia ser uma garota solitária.
Gabriel olhou de novo para a foto - não para Madeline, mas para Paul.
- E quem é esse sujeito?
- Com certeza não é um amador. Só um profissional que conhece o don. E um profissional que se atreveria a bater na porta do don para pedir ajuda.
- Se ele é tão profissional, por que estava dependente do talento local para fazer o serviço?
- Você quer saber por que ele não tem equipe própria?
- Isso.
- Economia básica - respondeu Keller. - Manter uma equipe pode ser uma empreitada complicada. E, invariavelmente, as pessoas geram problemas. Quando o serviço é
lento, os garotos ficam infelizes. E, se conseguem bastante grana, querem uma parte maior.
- Então ele usa freelances com contratos diretos de taxa por serviço para evitar compartilhar os lucros.
- No ambiente global competitivo da economia atual, é o que todo mundo está fazendo.
- Não o don.
- O don é diferente. Nós somos uma família, um clã. E você está certo quanto a uma coisa: Marcel Lacroix teve sorte de não ter sido morto por um assassino a mando
de Paul. Se ele se atrevesse a pedir mais dinheiro a Don Orsati depois de completar um trabalho, teria acabado no fundo do Mediterrâneo dentro de um caixão de concreto.
- Que é onde ele está agora.
- Exceto pela parte do concreto, claro.
Gabriel olhou para Keller com desaprovação, mas não disse nada.
- Foi você que arrancou o brinco dele.
- Um lóbulo da orelha rasgado é um mal temporário. Uma bala no olho é um mal eterno.
- E o que a gente deveria ter feito com ele?
- Poderíamos tê-lo levado para a Córsega e o deixado com o don.
- Confie em mim, Gabriel, ele não teria durado muito. Orsati não gosta de problemas.
- E, como Stálin gostava de dizer, “a morte resolve todos os problemas”.
- “Se não há homem, não há problema” - Keller completou a citação.
- E se o homem estivesse mentindo para nós?
- O homem não tinha motivos para mentir.
- Por quê?
- Porque sabia que nunca ia sair vivo do barco - disse Keller, e acrescentou baixinho: - Ele só estava torcendo para ter uma morte indolor.
- Essa é outra de suas teorias?
- Regras de Marselha. Quando as coisas por aqui começam de forma violenta, sempre terminam com violência.
- E se René Brossard não estiver sentado no Le Provence às cinco e dez com uma maleta de metal? O que faremos?
- Ele vai estar lá.
Gabriel queria ser confiante como Keller, mas sua experiência o impedia. Consultou o relógio e calculou o tempo que tinham para salvar a garota.
- Caso Brossard apareça, talvez seja melhor não o matarmos antes de ele nos conduzir até o cativeiro de Madeline.
- E depois?
A morte resolve todos os problemas, pensou Gabriel. Se não há homem, não há problema.


CONTINUA

Advogado sem importância, Jonathan Lancaster não parecia nem um pouco apto a entrar na política. Mas ele sabia como trilhar seu caminho com base em contatos. Seus dois pilares foram Jeremy Fallon, o brilhante publicitário que procurava um garoto-propaganda para seu partido, e Simon Hewitt, o colunista que ditava o sucesso de qualquer aspirante a altos cargos. Assim, Lancaster se tornou o primeiro-ministro do Reino Unido, levando os amigos junto para o poder.
Passados quatro anos, o governo britânico está imerso em uma crise. Sem poder suportar mais nenhum problema em sua gestão, Lancaster recebe um bilhete de ameaça:
“Em sete dias a garota morre.’’ Acompanhando o papel, vem um vídeo de Madeline Hart, funcionária do partido, confessando ser amante do primeiro-ministro.
Para a negociação, Lancaster pede a ajuda de Gabriel Allon, um espião israelense em dívida com o governo britânico. Porém, nem com toda a sua experiência o agente conseguirá prever as consequências do surpreendente caso.


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Parte 1
A REFÉM
1
PlANA, CÓRSEGA
Foram atrás dela no final de agosto, na Córsega. A hora exata nunca seria determinada - algum momento entre o entardecer e o meio-dia do dia seguinte foi o máximo
que os funcionários da casa conseguiram determinar. Eles a viram pela última vez durante o pôr do sol, descendo a entrada da casa de campo numa lambreta vermelha,
com a saia de algodão transparente esvoaçando ao redor das coxas bronzeadas. Só ao meio-dia perceberam que não estava no quarto. A cama tinha apenas um livro, lido
pela metade e com cheiro de óleo de coco e um vago traço de rum. Mais 24 horas se passaram antes de ligarem para os gendarmes. Era um verão agitado e Madeline era
aquele tipo de garota.
Tinham chegado à ilha duas semanas antes: quatro garotas bonitas e dois rapazes zelosos, todos funcionários fiéis do governo britânico ou do partido da situação.
Traziam um único carro - um Renault hatch compartilhado, grande o bastante para acomodar cinco pessoas, ainda que sem conforto - e a lambreta vermelha, usada apenas
por Madeline, que a conduzia com uma imprudência quase suicida. A casa ocre ficava nos limites do vilarejo, a oeste, num penhasco com vista para o mar. Era arrumada
e compacta, o tipo de lugar que corretores sempre descrevem como “charmoso”, com piscina e um jardim murado repleto de arbustos de alecrim e aroeiras. Poucas horas
depois de chegarem, eles já tinham se acomodado naquele estado feliz de seminudez bronzeada a que os turistas britânicos aspiram, independentemente do destino de
suas viagens.
Embora fosse a mais jovem do grupo, informalmente Madeline era a líder, um fardo que aceitava sem problemas. Era ela que cuidava do aluguel da casa e providenciava
os longos almoços, os jantares tardios e os passeios para o interior da ilha, sempre seguindo à frente na lambreta pelas ruas traiçoeiras. Ela nem se dava o trabalho
de consultar um mapa. Seu conhecimento enciclopédico da geografia, história, cultura e cozinha da Córsega fora adquirido durante c longo período de estudo e preparações
intensas nas semanas anteriores à viagem. Pelo visto, Madeline não queria deixar nada ao acaso. Raramente deixava.
Ela havia entrado para o Partido em Millbank fazia dois anos, depois de se formar em Economia e Políticas Públicas na Universidade de Edimburgo. Apesar de ter cursado
uma instituição de segunda categoria - a maior parte de seu;
colegas vinha de escolas públicas de elite e de Oxbridge transitou rapidamente por uma série de cargos administrativos antes de ser promovida a diretora de Envolvimento
com a Comunidade. Seu emprego, como ela frequentemente o descrevia, consistia em conseguir votos junto a classes de britânicos que não tinham nenhuma razão para
apoiar o Partido, sua plataforma ou seus candidatos. Todos concordavam que não passava de um posto temporário em sua jornada para um status melhor. O futuro de Madeline
era brilhante - “brilhante como uma erupção solar”, nas palavras de Pauline, que observava a ascensão da colega mais jovem com uma boa dose de inveja. Rumares insinuavam
que ela era beneficiada pela influência de alguém importante no Partido. Alguém próximo ao primeiro-ministro. Talvez até mesmo o próprio. Com uma aparência de estrela
de cinema, intelecto aguçado e energia inesgotável, Madeline estava sendo preparada para uma vaga no Parlamento e um ministério. Tratava-se de uma questão de tempo.
Pelo menos era o que diziam.
Por tudo isso, era muito estranho que Madeline Hart fosse solteira aos 27 anos. Quando lhe perguntavam sobre sua parca vida amorosa, ela declarava que estava ocupada
demais para se dedicar a um homem. Fiona, uma linda mulher com cabelos escuros e um lado ligeiramente perverso, achava a explicação duvidosa. Na verdade, até acreditava
que Madeline estava sendo desonesta - sendo que desonestidade era a melhor qualidade de Fiona, por isso seu interesse pelas políticas do Partido. Para sustentar
sua teoria, ressaltava que, embora se estendesse em conversas sobre qualquer assunto imaginável, a moça era excepcionalmente reservada quando se tratava da vida
pessoal. Madeline se dispunha a oferecer boatos ocasionais e inofensivos sobre a infância problemática - a sombria moradia popular em Essex, o pai de quem mal se
lembrava, o irmão alcoólatra que não trabalhou um dia sequer na vida -, mas todo o resto ela mantinha oculto atrás de paredes de pedra cercadas por um fosso.
- Nossa Madeline poderia ser uma assassina psicopata ou acompanhante de luxo - sugeriu Fiona -, e ninguém saberia.
Mas Alison, uma auxiliar do Ministério do Interior que sofrerá diversas desilusões amorosas, tinha outra teoria.
- A pobrezinha está apaixonada - declarou ela uma tarde, ao observar Madeline saindo como uma deusa do mar da pequena enseada perto da casa. - O problema é que o
seu amor não é correspondido.
- E por que não? - questionou Fiona com voz sonolenta, usando uma enorme viseira.
- Talvez ele não possa corresponder.
- Casado?
- Mas é claro.
- Maldito.
- Você nunca?
- O quê, se eu já tive caso com homem casado?
- Sim.
- Só duas vezes, mas estou considerando uma terceira.
- Você vai queimar no inferno, Fi.
- Estou contando com isso.
Foi naquele momento, na tarde do sétimo dia, que, confrontados com a menor das evidências, as três garotas e os dois rapazes hospedados com Madeline Hart na casa
alugada em Piana assumiram a tarefa de encontrar um namorado para ela. E não qualquer um, disse Pauline. Ele precisaria ter a idade adequada, boa aparência e estabilidade
financeira e mental, ser de boa família, sem podres e outras mulheres na cama. Fiona, a mais experiente nas questões do coração, disse que era uma missão impossível.
- Esse tipo de homem não existe - explicou, com o cansaço de uma mulher que passou muito tempo buscando alguém que cumprisse esses requisitos. - E, se existir, ou
está casado ou tão apaixonado por si mesmo que não vai ter tempo para a pobre Madeline.
Apesar de suas dúvidas, Fiona mergulhou de cabeça no desafio, mesmo que fosse apenas para acrescentar um pouco de fofoca ao feriado. Felizmente, não faltavam alvos
potenciais, pois parecia que metade da população do sudeste da Inglaterra tinha abandonado sua ilha úmida em busca do sol da Córsega. Havia uma colônia de financistas
do centro de Londres que alugavam casas luxuosas na ponta norte do golfo do Porto. E o grupo de artistas vivendo como ciganos num povoado nas colinas da Castagniccia.
E a trupe de atores na beira da praia em Campomoro. E a delegação de políticos da oposição que tramavam sua volta ao poder em uma mansão no topo dos penhascos de
Bonifácio. Usando o Gabinete da Grã-Bretanha como cartão de visitas, Fiona logo arranjou uma série de encontros improvisados. Em todas as ocasiões - um jantar, uma
caminhada pelas montanhas ou uma tarde regada a álcool na praia -, ela enlaçava o homem que achava mais interessante e o colocava ao lado de Madeline. Mas nenhum
deles conseguiu escalar seus muros, nem mesmo o jovem ator que tinha acabado de fazer uma turnê bem-sucedida como protagonista do musical mais popular da temporada
do West End.
- Realmente é um caso perdido - resignou-se Fiona ao voltar para casa uma noite com todo o grupo, sempre guiado por Madeline em sua lambreta vermelha.
- Quem você acha que é? - perguntou Alison.
- Não sei - respondeu Fiona com voz arrastada, deixando transparecer inveja. - Mas deve ser alguém muito especial.
Foi naquela época, faltando pouco mais de uma semana para o retorno a Londres, que Madeline começou a passar um bom tempo sozinha. Ela saía da casa de manhã cedo,
normalmente antes de os outros terem acordado, e voltava no fim da tarde. Quando lhe perguntavam sobre seu paradeiro, ela dava respostas vagas, e durante o jantar
se mostrava taciturna ou inquieta. Alison temeu pelo pior: achou que o suposto amante de Madeline tivesse informado que os seus serviços não seriam mais requisitados.
Mas, no dia seguinte, depois de voltarem para casa após um passeio ao shopping, Fiona e Pauline anunciaram com alegria que Alison estava enganada. Parecia que o
amante de Madeline viera para a Córsega. E Fiona tinha as fotos para provar.
Ele fora visto às 13h50 no Les Palmiers, no cais Adolphe Landry, em Calvi. Madeline estava numa mesa na beira do porto e tinha a cabeça um pouco voltada para o mar,
como se não estivesse ciente do homem sentado à sua frente. Usava óculos escuros grandes e um chapéu de palha para se proteger sol, com um laço preto elaborado,
que projetava uma sombra sobre sua face impecável. Pauline tentou se aproximar da mesa, mas Fiona, captando a intimidade tensa da cena, sugeriu uma retirada brusca.
Ela se deteve o suficiente para, disfarçadamente, tirar a primeira fotografia incriminadora com o celular. Madeline pareceu alheia à intrusão, mas o homem, não.
No instante em que Fiona apertou o botão, ele virou a cabeça bruscamente, como se um instinto animal o tivesse alertado de que sua imagem estava sendo capturada
eletronicamente.
Depois de fugirem para uma brasserie próxima, Fiona e Pauline examinaram com cuidado o homem na foto. Seu cabelo, louro-cinza, estava desgrenhado pelo vento e o
volume exagerado lhe dava um ar quase infantil. Caindo sobre a testa, emoldurava um rosto anguloso, dominado por uma boca pequena e cruel. O traje era vagamente
marítimo: calças brancas, uma camisa em tecido oxford com listras azuis, um relógio grande de mergulhador, mocassins de lona com solas que não deixariam marcas no
convés de um navio. Ele era um homem desse tipo: nunca deixava marcas.
Partiram do princípio de que ele fosse inglês, embora pudesse ser alemão, escandinavo ou, talvez, especulou Pauline, um descendente de nobres poloneses. Dinheiro
claramente não era problema, considerando-se a garrafa de champanhe cara que suava no balde de gelo no canto da mesa. Imaginaram que sua
fortuna fora conquistada, e não herdada, mas que não seria totalmente legal seria um apostador. Teria contas bancárias na Suíça. Viajava para lugares perigosos.
Procurava ser discreto. Seus afazeres, assim como os mocassins de. não deixavam nenhuma marca.
Mas foi Madeline que mais as intrigou. Ela já não era a garota que conheciam de Londres, nem mesmo a garota com quem estavam compartilhando uma villa nas últimas
duas semanas. Parecia ter adotado uma postura completamente diferente. Era uma atriz em outro filme. Reclinadas sobre o celular como uma dupla de adolescentes, Fiona
e Pauline escreveram o diálogo e acrescentaram carne e osso aos seus personagens. Na versão delas, o romance tinha começado de maneira inocente, com um encontro
por acaso numa loja exclusiva na Bond Street. O flerte havia sido longo, e a consumação, planejada com minúcias. Mas, por enquanto, o final da história era desconhecido,
pois a vida real ainda estava por escrevê-lo. Ambas concordaram que seria trágico.
- É assim que histórias desse tipo sempre acabam - afirmou Fiona, por experiência própria. - A garota conhece o garoto. A garota se apaixona pelo garoto.
A garota tem os seus sentimentos feridos e faz o possível para destruir o garoto.
Fiona tirou mais duas fotos de Madeline e seu amante naquela tarde. Uma mostrava os dois caminhando pelo cais sob o sol forte, com as mãos se tocando de leve, meio
furtivas. Na outra, o casal se separava sem um beijo sequer. Naquela cena, o homem subiu num bote Zodiac e partiu em direção ao por Madeline montou em sua lambreta
vermelha e voltou para casa. Ao chegar, não estava mais carregando o chapéu de sol com o laço preto elaborado.
Naquela noite, ao relatar os eventos do dia, ela não mencionou a ida a Calvi nem o almoço com o homem de aparência próspera no Les Palmiers.
Fiona achou a performance impressionante.
- Nossa Madeline tem uma habilidade extraordinária para mentiras - disse ela a Pauline. - Talvez seu futuro seja tão brilhante quanto dizem. Quem sabe Talvez ela
seja primeira-ministra algum dia.
As quatro garotas bonitas e os dois rapazes zelosos da casa alugada planeja:a- um almoço em Porto, uma cidade próxima. Madeline fez as reservas em France e até mesmo
instou o proprietário a guardar sua melhor mesa, que fica. no terraço com vista para a parte rochosa da enseada. Imaginaram que iriam para o restaurante na caravana
de sempre, mas, pouco antes das sete, Madeline declarou que estava indo a Calvi para tomar um drinque com um velho amigo de Edimburgo.
- Encontro vocês no restaurante! - gritou ela por cima do ombro, descendo a rampa. - E, pelo amor de Deus, tentem chegar na hora para variar!
Então ela se foi. Ninguém achou estranho ela não aparecer para o jantar. Nem ficaram alarmados ao acordarem e verem sua cama vazia. Era um verão agitado e Madeline
era aquele tipo de garota.
2
CÓRSEGA - LONDRES
A polícia nacional francesa declarou oficialmente que Madeline Hart estava desaparecida às 14 horas da última sexta-feira de agosto. Depois de três dias de buscas,
não descobriram nenhum vestígio dela além da lambreta vermelha, que acharam numa ravina isolada próxima ao monte Cinto, com a lanterna quebrada. No fim da semana,
a polícia já tinha praticamente perdido qualquer esperança de encontrá-la com vida. Em público, insistiram que o caso consistia numa busca por uma turista britânica
desaparecida. Em particular, no entanto, já procuravam seu assassino.
Não havia suspeitos além do homem com quem ela almoçara no Les Palmiers no dia de seu desaparecimento. Mas, assim como Madeline, ele parecia ter sumido da face da
terra. Era um amante secreto, como Fiona e os outros desconfiavam, ou os dois teriam se conhecido havia pouco tempo, na Córsega? Ele seria inglês? Francês? Ou, nas
palavras de um detetive frustrado, um alienígena de outra galáxia que tinha se desfeito em partículas e voltado para a nave espacial? A garçonete do Les Palmiers
não foi de muita ajuda. Lembrava que ele conversara em inglês com a garota de chapéu, mas que fizera seu pedido num francês perfeito. O homem havia pagado a conta
em dinheiro - notas novas e limpas que ele colocara na mesa como um jogador de pôquer - e dera uma generosa gorjeta, algo raro naqueles dias de crise econômica na
Europa. O que mais marcara a garçonete foram as mãos dele: muito pouco pelo, nenhuma marca de sol ou cicatriz, unhas limpas. O desconhecido cuidava muito bem das
unhas. Ela gostava disso num homem.
Sua fotografia foi mostrada com discrição nos bares e restaurantes mais finos da ilha, mas gerou apenas reações apáticas. Ao que tudo indicava, ninguém tinha posto
os olhos nele. E, se alguém tivesse, não conseguia se recordar de seu rosto. Era um tipo comum nas praias da Córsega no verão: bem bronzeado, óculos de sol caros
e um relógio suíço de puro ouro para aumentar seu ego. Era um nada com um cartão de crédito e uma garota bonita do outro lado da mesa. Era um homem esquecido.
Talvez para os donos de lojas e restaurantes da Córsega, mas não para a polícia francesa. A imagem foi passada por todos os bancos de dados de criminosos em seu
arsenal e por mais alguns. Como nenhuma busca deu frutos, os policiais debateram a possibilidade de revelar a foto para a imprensa. Algumas pessoas, especialmente
nos cargos mais altos, argumentaram contra. Afinal, era possível que o pobre coitado não tivesse culpa de nada, talvez apenas de infidelidade, algo longe de ser
crime na França. Mas, quando se passaram mais 72 horas sem nenhum progresso, concluíram que não havia escolha: precisariam pedir ajuda à população. Duas fotografias
editadas com cuidado foram liberadas para a imprensa - uma do homem sentado no Les Palmiers; outra dele andando ao longo do cais - e, ao anoitecer, os investigadores
já estavam sendo bombardeados por centenas de pistas. Rapidamente eliminaram os farsantes e os trotes e focaram recursos apenas nas que pareciam mais plausíveis.
Porém, nada deu resultado. Uma semana depois do desaparecimento, o único suspeito ainda era um homem sem nome nem nacionalidade.
Apesar de a polícia não ter nada promissor, não faltavam teorias. Um grupo de detetives acreditava que o homem do Les Palmiers era um psicopata que tinha atraído
Madeline para uma armadilha. Outro grupo achava que era apenas alguém no lugar errado e na hora errada. De acordo com essa hipótese, ele era casado, portanto não
poderia se revelar e cooperar com a polícia. Já Madeline provavelmente teria sido vítima de um assalto que acabara mal - uma jovem andando de moto sozinha era um
alvo tentador. Em algum momento o corpo apareceria. O mar o cuspiria, um alpinista o encontraria nas colinas ou um fazendeiro o desenterraria ao arar o campo. Assim
eram as coisas na ilha: a Córsega sempre devolvia os seus mortos.
As falhas da polícia foram uma ocasião propícia para os ingleses criticarem os franceses. Mas, de forma geral, até mesmo os jornais simpáticos à oposição trataram
o desaparecimento de Madeline como uma tragédia nacional. Sua ascensão notável, desde a moradia popular em Essex, foi narrada em detalhes, e diversos membros do
Partido emitiram declarações sobre uma carreira promissora abreviada precocemente. Sua mãe chorosa e seu irmão desajeitado deram uma única entrevista para a televisão
e, em seguida, desapareceram das vistas do público. O mesmo aconteceu com seus companheiros de férias na Córsega. Ao voltarem para a Inglaterra, apareceram juntos
numa coletiva de imprensa no aeroporto de Heathrow, observados por uma equipe de assessores do Partido. Posteriormente, recusaram todos os outros pedidos de entrevistas,
incluindo aqueles que ofereciam pagamentos lucrativos. A cobertura não incluiu nenhum traço de escândalo. Não houve histórias sobre bebedeiras festivas, jogos sexuais
ou perturbação da ordem pública, apenas a baboseira de sempre sobre os perigos enfrentados por mulheres jovens viajando em países estrangeiros. Na sede do Partido,
a assessoria de imprensa se parabenizou em particular pela hábil manipulação do caso, enquanto a equipe política percebeu uma leve melhoria na aprovação ao primeiro-ministro.
Por trás de portas fechadas, chamaram o fenômeno de “o efeito Madeline”.
Gradualmente, as matérias sobre o destino de Madeline saíram das primeiras páginas e foram para as seções internas e, ao final de setembro, ela já tinha desaparecido
dos jornais. Era outono, hora de voltar ao negócio de governar. Os desafios que a Inglaterra enfrentava eram imensos: uma economia em recessão, a zona do euro na
UTI, uma lista interminável de males sociais não resolvidos que estavam destruindo a qualidade de vida no Reino Unido. Pairando sobre tudo, a perspectiva de uma
eleição. O primeiro-ministro tinha dado inúmeras pistas de que haveria uma antes do fim do ano. Ele estava ciente dos riscos políticos de voltar atrás agora. Jonathan
Lancaster estava à frente do governo britânico porque seu antecessor havia deixado de convocar uma eleição após meses de flerte público com a ideia. Lancaster, então
líder da oposição, dissera que ele era “o Hamlet do Número 10” - em referência ao endereço da residência do primeiro-ministro - e a ferida mortal se abriu.
Isso tudo explicava por que Simon Hewitt, o diretor de comunicação do primeiro-ministro, não andava dormindo bem nos últimos tempos. O padrão de sua insônia nunca
variava. Exausto pela rotina esmagadora de trabalho, adormecia rapidamente, em geral com uma pasta de arquivos sobre o peito, mas acordava duas ou três horas depois.
Uma vez desperta, sua mente se acelerava. Após quatro anos no governo, ele parecia incapaz de focar nada além do negativo. Esse era o preço de ser assessor de imprensa
na Downing Street. No mundo de Simon Hewitt não havia triunfos, apenas desastres e quase desastres. Como os terremotos, sua intensidade variava de pequenos tremores
que mal eram sentidos a convulsões sísmicas capazes de derrubar prédios e desfazer vidas. Todos esperavam que Hewitt previsse a calamidade vindoura e, se possível,
contivesse os danos. Nos últimos tempos, ele tinha chegado à conclusão de que seu trabalho era impossível. Nos momentos mais sombrios, essa constatação lhe dava
um pouquinho de consolo.
Ele já fora um homem de reputação. Como colunista-chefe de política do
Times, Hewitt havia sido uma das pessoas mais influentes do gabinete, no Palácio de Whitehall. Com poucas palavras de sua característica prosa afiada, podia condenar
uma política governamental, assim como a carreira do ministro responsável por apresentá-la. O poder de Hewitt se tornou tão grande que nenhum governo tomava uma
decisão importante sem consultá-lo. E nenhum político que aspirasse a um futuro melhor pensaria em concorrer a um posto de liderança em algum partido sem garantir
o apoio de Hewitt. Foi o que fez Jonathan Lancaster, um ex-advogado do centro financeiro londrino, egresso de um distrito parlamentar do subúrbio. No início, Hewitt
não lhe deu muita importância: era muito polido, bem-apessoado e elitista para ser levado a sério. Mas, com o passar do tempo, ele passou a considerar Lancaster
um competente homem de ideias que queria reconstruir seu partido moribundo para, então, reconstruir o país. Hewitt se surpreendeu ao perceber que realmente gostava
de Lancaster, o que nunca era um bom sinal. À medida que o relacionamento progrediu, os dois passaram menos tempo fofocando sobre as maquinações políticas de Whitehall
e mais discutindo como consertar a sociedade britânica. Na noite da eleição, quando Lancaster conquistou a vitória com a maior margem de apoio do Parlamento daquela
geração, Hewitt foi uma das primeiras pessoas para quem ele ligou.
- Simon - disse, com sua voz sedutora. - Eu preciso de você, Simon. Não posso fazer isso sozinho.
Àquela altura, Hewitt já tinha escrito com fervor sobre as perspectivas de sucesso de Lancaster, sabendo muito bem que, em alguns dias, estaria trabalhando para
ele na Downing Street.
Agora, Hewitt abriu os olhos lentamente e fitou com desprezo o relógio ao lado da cama. Os dígitos brilhantes indicavam que eram 3h42, como se estivessem zombando
dele. Ao lado do relógio estavam três celulares, todos com a bateria carregada para o ataque da mídia do dia seguinte. Ele gostaria de poder recarregar as próprias
baterias com a mesma facilidade, mas, àquela altura, não havia sono ou sol tropical que pudesse reparar o dano que ele infligira ao seu corpo de meia-idade. Olhou
para Emma. Como sempre, ela estava dormindo profundamente. Em outros tempos, Hewitt poderia ter pensado em um jeito lascivo de acordá-la, mas isso já não era mais
possível; sua cama conjugal havia se tornado uma lareira apagada e congelada. Por um breve período, Emma fora seduzida pelo glamour do emprego dele, mas depois passou
a se ressentir da devoção servil do marido a Lancaster. Ela encarava o primeiro-ministro quase como um rival sexual, e seu ódio atingira um fervor irracional.
- Você é duas vezes melhor que ele, Simon - comentara Emma na noite anterior antes de lhe dar um beijo frio na bochecha caída. - Ainda assim, por alguma razão, você
sente a necessidade de fazer o papel de criado. Talvez algum dia possa me dizer por quê.
Hewitt sabia que o sono não voltaria, não agora; então ficou acordado na cama e escutou a sequência de sons que sinalizavam o começo de seu dia. O baque dos jornais
matinais na porta. O gorgolejo da máquina de café automática. O ronronar de um sedã do governo na rua, embaixo de sua janela. Levantando-se com cuidado para não
acordar Emma, vestiu o roupão e desceu até a cozinha. A cafeteira sibilava raivosamente. Hewitt preparou uma xícara sem açúcar, pelo bem de sua cintura em expansão,
e a levou para o hall. Uma rajada de vento úmido o saudou quando ele abriu a porta. A pilha de jornais estava envolta em plástico sobre o tapete de boas-vindas ao
lado de uma panela de barro com gerânios mortos. Ao se curvar, viu mais uma coisa: um envelope de papel pardo bem selado, sem nada escrito. Soube na mesma hora que
não tinha vindo da sede do governo, pois ninguém de sua equipe se atreveria a deixar nem o mais trivial documento ali na soleira. Portanto, deveria ser algo não
solicitado. Isso não era incomum; os velhos colegas da imprensa conheciam seu endereço em Hampstead e sempre lhe deixavam encomendas. Pequenos presentes por uma
informação vazada no momento certo. Discursos agressivos referentes a alguma desfeita percebida. Um rumor perverso sensível demais para ser transmitido por e-mail.
Hewitt fazia questão de ficar em dia com a fofoca de Whitehall. Sendo ex-repórter, sabia que o que era dito pelas costas de um homem costumava ser muito mais importante
que o que era escrito sobre ele nas primeiras páginas.
Hewitt cutucou o envelope com o dedão para ver se não continha fios ou baterias, então o colocou em cima dos jornais e voltou para a cozinha. Depois de ligar a televisão
e baixar o volume até um sussurro, tirou os jornais do plástico e passou os olhos pelas primeiras páginas. Estavam dominadas pela proposta de Lancaster para tornar
a indústria britânica mais competitiva com uma diminuição das taxas de juros. Como já era de esperar, o Guardian e o Independent estavam horrorizados, mas, graças
aos esforços de Hewitt, a maior parte das matérias era positiva. As outras notícias de Whitehall eram misericordiosamente benignas. Nenhum terremoto. Nem mesmo tremores.
Depois de passar pelos chamados jornais de maior prestígio, Hewitt deu uma lida rápida nos tabloides, que considerava um termômetro mais confiável da opinião pública
britânica do que qualquer enquete. Em seguida, servindo-se de mais café, abriu o envelope anônimo. Dentro, havia três itens: um DVD, uma única folha de papel A4
e uma fotografia.
- Merda - praguejou Hewitt, baixinho. - Merda, merda, merda.
O que aconteceu depois passaria a ser fonte de muita especulação. Para Simon Hewitt, um ex-jornalista político que deveria ter sido mais sensato, não faltaram recriminações.
Em vez de contatar a polícia metropolitana londrina, como exigia a lei inglesa, ele carregou o envelope até o escritório na Downing Street, número 12. Depois de
conduzir a reunião habitual das oito horas, durante a qual não mencionou os itens, Hewitt os mostrou para Jeremy Fallon, conselheiro político de Lancaster e o chefe
de gabinete mais poderoso da história inglesa. Suas responsabilidades oficiais incluíam planejamento estratégico e coordenação de políticas dos diversos departamentos
do governo, o que lhe permitia meter o nariz em qualquer questão de seu interesse. A imprensa frequentemente se referia a ele como o “cérebro de Lancaster”, um título
que agradava a Fallon e gerava ressentimento em Lancaster.
A reação de Fallon diferiu apenas na escolha do palavrão. Seu primeiro instinto foi levar na mesma hora o material para Lancaster, mas, como era quarta-feira, esperou
até o chefe sobreviver à batalha de gladiadores conhecida como Perguntas ao Primeiro-Ministro. Em nenhum momento da reunião, Lancaster, Hewitt ou Jeremy Fallon sugeriram
passar o material para as autoridades competentes. Os três concordaram que precisavam de uma pessoa discreta e habilidosa, à qual, acima de tudo, poderiam confiar
a proteção dos interesses do primeiro-ministro. Fallon e Hewitt pediram uma lista de candidatos a Lancaster, que deu apenas um nome. Havia uma relação familiar e,
o mais importante, uma dívida não paga. Lealdade contava muito em tempos assim, disse o primeiro-ministro, mas influência era algo muito mais eficiente.
Isso explica o convite sutil feito por Downing Street a Graham Seymour, o vice-diretor de longa data do Serviço de Segurança britânico, também conhecido como MI5.
Muito tempo depois, Seymour descreveria o encontro - realizado na sala de reuniões diante de um retrato carrancudo da baronesa Thatcher - como o mais difícil da
carreira. Concordou em ajudar o primeiro-ministro sem hesitação, pois era isso que um homem como ele fazia em circunstâncias daquele tipo. Ainda assim, deixou claro
que, caso seu envolvimento algum dia se tornasse público, destruiria o responsável.
Ficou em aberto apenas a identidade do agente que conduziria a busca. Assim como Lancaster, Graham tinha apenas um candidato. Ele não compartilhou o nome com o primeiro-ministro.
Em vez disso, usando fundos de uma das várias contas operacionais secretas do MI5, reservou um assento num voo da
Brites Airways daquela tarde com destino a Tel Aviv. Enquanto o avião decolava, Graham ponderou a melhor abordagem. Lealdade contava muito em tempos assim, mas influência
era algo bem mais eficiente.
3
JERUSALÉM
O coração de Jerusalém, não. muito longe do Ben Yehuda Mall, ficava a silenciosa e arborizada rua Narkiss. O prédio no número 16 era pequeno, com apenas três andares,
parcialmente oculto por um robusto muro de pedra calcária e um imenso eucalipto crescendo no jardim da frente. O apartamento no terceiro andar era igual aos outros,
exceto pelo fato de já ter pertencido ao serviço secreto de inteligência do Estado de Israel. Tinha uma sala de estar espaçosa, uma cozinha bem-arranjada cheia de
eletrodomésticos modernos, uma sala de jantar formal e dois quartos. O quarto menor, reservado para uma criança, fora penosamente convertido num estúdio artístico.
Mas Gabriel ainda preferia trabalhar na sala de estar, onde a brisa fresca que vinha da varanda ajudava a dissipar o cheiro forte dos solventes.
No momento, ele estava usando uma solução, preparada com cuidado, de acetona, álcool e água destilada, que aprendera a fazer em Veneza com o mestre restaurador de
arte Umberto Conti. A mistura era forte o bastante para dissolver contaminações na superfície e o verniz velho, mas não chegava a prejudicar as pinceladas originais
do artista. Gabriel umedeceu um cotonete feito à mão na solução e o girou delicadamente sobre o peito empinado de Suzana. Ela olhava em outra direção, banhando-se,
e mal parecia ciente dos dois anciãos lascivos da aldeia que a espiavam de trás do muro do jardim. Gabriel tinha uma atitude protetora em relação a mulheres e desejava
poder intervir, poupando-a do trauma por vir: as falsas acusações, o julgamento, a sentença de morte. Em vez disso, continuou o serviço e observou a pele amarelada
dela adquirir um tom branco luminoso.
Quando o cotonete já estava imundo, Gabriel o colocou num frasco hermético para reter os vapores. Enquanto preparava outro, seus olhos se moveram lentamente pela
superfície da pintura. Até aquele momento, a obra era atribuída apenas a um discípulo de Ticiano. Mas o proprietário atual da tela, o renomado negociante de arte
Julian Isherwood, acreditava que a tela tinha vindo do estúdio de Jacopo Bassano. Gabriel concordava - na verdade, agora que expusera um pouco da pincelada, viu
evidências do próprio mestre, especialmente na imagem de Suzana. Ele conhecia bem o estilo do pintor, pois havia estudado bastante suas pinturas e passara vários
meses em Zurique restaurando uma tela importante de Bassano para um colecionador particular. Na última noite de sua estadia, matara um homem chamado Ali Abdel Hamidi
num beco úmido perto do rio, um líder terrorista palestino com um bocado de sangue israelense nas mãos, que estava se passando por dramaturgo. Gabriel lhe dera uma
morte digna de suas pretensões literárias.
Ele umedeceu o novo cotonete no solvente, mas, antes de dar continuidade ao trabalho, escutou o ronco familiar do motor de um carro pesado na rua. Foi à varanda
para confirmar suas suspeitas e, então, abriu a porta da frente uns 2 centímetros. Um instante depois, Ari Shamron já estava empoleirado num banquinho de madeira
ao lado de Gabriel. Vestia calça cáqui, camisa de oxford branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Seus óculos feios refletiam a luz das lâmpadas
de halogênio que Gabriel usava para trabalhar. Seu rosto, com rugas e sulcos profundos, estava travado numa expressão de puro desgosto.
- Eu senti o cheiro desses produtos químicos assim que saí do carro. Imagino o estrago que eles provocaram ao seu corpo depois de todos esses anos.
- Tenho certeza que não é nada comparado ao dano que você provocou - retrucou Gabriel. - Estou surpreso por eu ainda ser capaz de segurar um pincel.
Gabriel tocou o cotonete umedecido na pele de Suzana e o girou devagar. Shamron consultou seu relógio de aço inoxidável e franziu a testa, como se houvesse algo
errado.
- O que foi? - perguntou Gabriel.
- Estou só imaginando quanto tempo vai levar até você me oferecer uma xícara de café.
- Você sabe onde fica tudo. Agora você praticamente mora aqui.
Shamron resmungou alguma coisa em polonês sobre a ingratidão das crianças. Em seguida, ergueu-se do banco com um impulso e, apoiando-se pesada- mente na bengala,
foi até a cozinha. Conseguiu encher a chaleira com água da torneira, mas pareceu perplexo com os diversos botões do fogão. Por duas vezes, Ari Shamron havia sido
diretor do serviço secreto de inteligência de Israel e, antes disso, fora um dos oficiais mais condecorados do mesmo serviço. Agora, contudo, já velho, parecia incapaz
de realizar as tarefas caseiras mais básicas. Cafeteiras, liquidificadores, torradeiras, todos esses utensílios eram um mistério para ele. Gilah, sua esposa resignada,
costumava brincar que, se o grande Ari Shamron fosse deixado sozinho, seria capaz de morrer de fome numa cozinha cheia de comida.
Gabriel acendeu o fogão e voltou ao trabalho. Shamron ficou parado no vão das portas da varanda, fumando. O fedor do tabaco turco logo prevaleceu sobre o odor do
solvente.
- Isso é mesmo necessário? - questionou Gabriel.
- É.
- O que está fazendo em Jerusalém?
- O primeiro-ministro queria dar uma palavra.
- Sério?
Shamron olhou para Gabriel de cara fechada através da cortina de fumaça cinza-azulada.
- Por que um pedido do primeiro-ministro para me ver surpreenderia você?
- Porque...
- Eu sou velho e irrelevante? - completou Shamron.
- Você é exagerado, impaciente e às vezes irracional. Mas você nunca foi irrelevante.
Shamron assentiu. A idade havia lhe dado a habilidade de, pelo menos, perceber suas falhas, apesar de ter roubado o tempo necessário para que ele pudesse remediá-las.
- Como ele está? - perguntou Gabriel.
- Como você pode imaginar.
- Sobre o que vocês conversaram?
- Nossa conversa foi abrangente e franca.
- Isso quer dizer que vocês gritaram um com o outro?
- Eu só gritei com um primeiro-ministro.
- Qual? - indagou Gabriel, realmente curioso.
- Golda. Foi depois de Munique. Eu lhe disse que precisávamos mudar as nossas táticas, aterrorizar os terroristas. Dei a ela uma lista de nomes de homens que deviam
morrer. Golda não queria saber daquilo.
- Então você gritou com ela?
- Não foi meu melhor momento.
- O que ela fez?
- Gritou também, claro. Mas, no fim das contas, compreendeu meu raciocínio. Então, montei outra lista de nomes, dos jovens de quem eu precisava para realizar a operação.
Todos concordaram sem hesitar. - Shamron fez uma pausa, em seguida acrescentou: - Todos menos um.
Em silêncio, Gabriel guardou o cotonete sujo no frasco hermético, que reteve os gases tóxicos do solvente, mas não a memória de seu primeiro encontro com o homem
que eles chamavam de Memuneh, a pessoa encarregada. Ocorrera a poucas centenas de metros de onde ele estava agora, no campus da Academia Bezalel de Artes e Design.
Gabriel tinha acabado de assistir a uma palestra sobre as pinturas de Viktor Frankel, o renomado expressionista alemão que também era seu avô materno. Shamron esperava
por ele na beira de um pátio ensolarado, um homem baixo e esguio, com óculos escuros tenebrosos e dentes afiados, que lembravam uma armadilha de aço. Como sempre,
estava bem preparado. Sabia que a mãe de Gabriel, uma artista talentosa, tinha sobrevivido ao campo de concentração em Birkenau, mas que não conseguira derrotar
o câncer que devastara seu corpo. Também sabia que a língua materna de Gabriel era o alemão e que esse ainda era o idioma no qual ele sonhava. Todas as informações
estavam na pasta que Shamron segurava com dedos manchados de nicotina.
- A operação será chamada Ira de Deus - explicara ele. - Não se trata de justiça. Trata-se de vingança, pura e simplesmente. Queremos vingar as onze vidas inocentes
perdidas em Munique.
Gabriel disse a Shamron para procurar outra pessoa.
- Eu não quero outra pessoa. Eu quero você.
Pelos três anos seguintes, Gabriel e os outros agentes da Ira de Deus seguiram suas presas pela Europa e pelo Oriente Médio. Carregando uma Beretta calibre 22, uma
arma discreta, adequada para matar de perto, Gabriel assassinou seis membros do Setembro Negro. Sempre que possível, atirava onze vezes, uma bala para cada israelense
massacrado em Munique. Quando finalmente voltou para casa, o cabelo ao redor de suas têmporas estava grisalho e seu rosto era o de um homem vinte anos mais velho.
Incapaz de produzir trabalhos de arte originais, ele foi a Veneza para estudar restauração. Então, depois de repousar, voltou a trabalhar para Shamron. Nos anos
que se seguiram, desempenhou algumas das operações mais fabulosas na história da inteligência israelense. Agora, após muitos anos peregrinando incansavelmente, voltara
para Jerusalém. Ninguém ficou mais satisfeito do que Shamron, que amava Gabriel como um filho e tratava o apartamento na rua Narkiss como se fosse o seu próprio.
Em outros tempos, talvez Gabriel tivesse se irritado com a presença constante de Shamron, mas agora isso não o incomodava. O Velho era eterno, mas o corpo em que
seu espírito residia não duraria para sempre.
Nada havia prejudicado mais a saúde de Shamron do que o implacável tabagismo. Fora um hábito adquirido na juventude, no leste da Polônia, e que piorara depois de
sua ida à Palestina, onde lutou na guerra que levou à independência de Israel. Agora, enquanto descrevia a reunião com o primeiro- -ministro, ele abriu seu velho
isqueiro Zippo e o usou para acender mais um cigarro fétido.
- O primeiro-ministro está inquieto, mais do que o normal. Imagino que ele tenha esse direito. O grande Despertar Árabe levou a região toda ao caos. E os iranianos
estão cada vez mais perto de realizarem seus sonhos nucleares. Em breve, vão entrar numa zona de imunidade, impossibilitando uma ação militar nossa sem a ajuda dos
americanos. - Shamron fechou o isqueiro com um estalo e olhou para Gabriel, que tinha voltado a trabalhar na pintura. - Você está me ouvindo?
- Cada palavra.
- Prove.
Gabriel repetiu a última declaração de Shamron palavra por palavra. Shamron sorriu. Ele considerava a memória impecável de Gabriel uma de suas melhores virtudes.
Girou o Zippo entre os dedos. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
- O problema é que o presidente americano não quer demarcar um limite inflexível. Ele diz que não vai permitir que os iranianos construam armas nucleares. Mas não
faz diferença nenhuma dizer isso se os iranianos têm a capacidade de construí-las num curto período de tempo.
- Como os japoneses.
- Os japoneses não são governados por xiitas apocalípticos. Se o presidente americano não tomar cuidado, suas duas conquistas mais relevantes na política externa
serão um Irã nuclear e a restauração do califado islâmico.
- Bem-vindo ao mundo pós-americano, Ari.
- E é por isso que eu acho uma estupidez deixar nossa segurança nas mãos deles. Mas esse não é o único problema do primeiro-ministro. Os generais não têm certeza
se podem destruir o suficiente do programa para fazer com que um ataque militar seja eficiente. E o King Saul Boulevard, liderado por seu amigo Uzi Navot, está dizendo
ao primeiro-ministro que uma guerra unilateral contra os persas seria uma catástrofe de proporções bíblicas.
O King Saul Boulevard era o endereço do serviço secreto de inteligência israelense no exterior. O nome longo e propositalmente enganoso tinha muito pouco a ver com
a verdadeira natureza de suas atividades. Até mesmo agentes aposentados como Gabriel e Shamron se referiam à instalação apenas como “o Escritório”.
- Uzi é que vê a realidade nua e crua todos os dias - falou Gabriel.
- Eu vejo também... Não tudo - acrescentou Shamron às pressas mas o bastante para me convencer de que os cálculos de Uzi sobre quanto tempo nós temos podem estar
errados.
- Matemática nunca foi o ponto forte de Uzi. Mas, quando estava em campo, ele nunca errava.
- Isso porque ele raramente se colocava numa posição em que fosse possível cometer um erro. - Shamron parou de falar, observando o vento mover o eucalipto além do
parapeito da varanda de Gabriel. - Eu sempre disse que uma carreira sem controvérsias não é uma carreira de verdade. Tive o meu quinhão, e você também.
- E tenho as cicatrizes para provar.
- E os louros também - completou Shamron. - O primeiro-ministro está preocupado com a possibilidade de o Escritório ser cauteloso demais quando se trata do Irã.
Sim, nós inserimos vírus em seus computadores e eliminamos um punhado de cientistas, mas faz um tempinho que nada explode. O primeiro-ministro gostaria que Uzi orquestrasse
outra Operação Obra-Prima.
Obra-Prima era o codinome de uma operação conjunta israelense, americana e britânica que resultara na destruição de quatro instalações iranianas secretas de enriquecimento
de urânio. Tinha ocorrido durante o comando de Uzi Navot, mas dentro dos corredores do King Saul Boulevard era considerada uma das maiores conquistas de Gabriel.
- Oportunidades como a Obra-Prima não aparecem todo dia, Ari.
- Isso é verdade - admitiu Shamron. - Mas sempre acreditei que a maioria das oportunidades são conquistadas, e não ganhas. O primeiro-ministro compartilha dessa
opinião.
- Ele perdeu a confiança em Uzi?
- Ainda não. Mas queria saber se eu tinha perdido.
- O que você disse?
- Que escolha eu tinha? Fui eu que o recomendei para o cargo.
- Então você o apoiou?
- Com um porém.
- Qual?
- Eu lembrei ao primeiro-ministro que a pessoa que eu realmente queria
para o trabalho não estava interessada. - Shamron balançou a cabeça devagar.
- Você é o único homem na história do Escritório que recusou uma chance de ser diretor.
- Sempre há uma primeira vez, Ari.
- Isso significa que você poderia reconsiderar?
- É por isso que você está aqui?
- Pensei que você fosse apreciar minha companhia. Eu e o primeiro-ministro estávamos nos perguntando se você estaria disposto a ajudar um dos nossos aliados mais
próximos.
- Qual?
- Graham Seymour veio para a cidade sem aviso prévio. Ele gostaria de uma conversa.
Gabriel se virou para encarar Shamron.
- Sobre o quê? - perguntou depois de um instante.
- Ele não disse, mas acho que é urgente. - Shamron foi até o cavalete e observou o pedaço límpido de tela no qual Gabriel estava trabalhando. - Parece até que a
pintura é recente.
- Esse é o objetivo.
- Alguma chance de você fazer o mesmo por mim?
- Desculpe, Ari - respondeu Gabriel, tocando a bochecha enrugada de Shamron -, mas temo que você esteja além de qualquer restauração.
4
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
Na tarde de 22 de julho de 1946, o grupo sionista extremista conhecido como Irgun detonou uma grande bomba no King David Hotel, sede de todas as forças militares
e civis da Inglaterra na Palestina. O ataque era uma retaliação pela prisão de centenas de combatentes judeus e matou 91 pessoas, incluindo 28 ingleses que ignoraram
um telefonema alertando-os para evacuar o hotel. Embora condenado universalmente, o bombardeio logo se provou um dos atos de violência política mais eficientes já
cometidos. Passados dois anos, os ingleses saíram da Palestina, e o Estado moderno de Israel, outrora um sonho sionista quase inimaginável, tornou-se realidade.
Entre os afortunados que sobreviveram ao bombardeio estava um jovem agente da inteligência britânica chamado Arthur Seymour, um veterano do programa de guerra Double
Cross que tinha sido transferido recentemente para a Palestina com a função de espionar os movimentos de resistência judeus. Era para Seymour estar em seu escritório
no momento do ataque, mas ele atrasou alguns minutos depois de uma reunião com um informante na Cidade Antiga. Ouviu a detonação enquanto passava pelo Portão de
Jaffa e, horrorizado, contemplou parte do hotel desmoronar. A imagem assombraria Seymour pelo resto da vida e moldaria os rumos de sua carreira. Anti-israelense
virulento e fluente em árabe, ele forjou laços desconfortavelmente próximos com muitos inimigos de Israel. Com frequência, era convidado do presidente do Egito,
Gamai Abdel Nasser, e admirador precoce de um jovem revolucionário palestino chamado Yasser Arafat.
Apesar de suas tendências pró-árabes, o Escritório considerou Arthur Seymour um dos oficiais mais competentes do MI6 no Oriente Médio. Por isso, houve certa surpresa
quando o único filho de Arthur, Graham, optou por uma carreira no MI5 em vez do mais glamoroso Serviço Secreto de Inteligência. Seymour, o Jovem - como era conhecido
no início da carreira -, serviu primeiro na contrainteligência, operando contra a KGB em Londres. Então, após a queda do Muro de Berlim e com a ascensão do fanatismo
islâmico, foi promovido a chefe de contraterrorismo. Agora, como vice-diretor do MI5, era forçado a aplicar sua experiência em ambas as disciplinas. Atualmente,
havia mais espiões russos operando em Londres do que no auge da Guerra Fria. E, graças aos erros de sucessivos governos britânicos, o Reino Unido abrigava milhares
de militantes muçulmanos do mundo árabe e da Ásia. Seymour chamava Londres de “Kandahar no Tâmisa”. Intimamente, temia que seu país estivesse escorregando cada vez
mais na direção de um abismo civilizacional.
Embora tivesse herdado a paixão do pai pela espionagem, Graham Seymour não compartilhava de forma alguma seu desdém por Israel. De fato, sob sua condução, o MI5
havia se aproximado do Escritório e, em especial, de Gabriel Allon. Os dois se consideravam membros de uma irmandade secreta que fazia as tarefas desagradáveis que
ninguém mais estava disposto a fazer, deixando para se preocupar com as consequências depois. Tinham lutado um pelo outro, sangrado um pelo outro e, em alguns casos,
matado um pelo outro. Eram tão próximos quanto dois espiões de serviços opostos poderiam ser, o que significava que tinham uma leve desconfiança mútua.
- Alguém no hotel não sabe quem você é? - perguntou Seymour, dando um aperto de mão em Gabriel como se o estivesse encontrando pela primeira vez.
- A garota na recepção perguntou se eu estava aqui para o bar mitzvah dos Greenbergs.
Seymour abriu um sorriso discreto. Com sua aparência vigorosa e queixo robusto, parecia o arquétipo de um barão colonial britânico, um homem que decidia questões
importantes e nunca servia o próprio chá.
- Dentro ou fora? - perguntou Gabriel.
- Fora - respondeu Seymour.
Eles ocuparam uma mesa no terraço, Gabriel voltado para o hotel e Seymour de frente para os muros da Cidade Antiga. Agora era a calmaria entre o café da manhã e
o almoço; haviam passado poucos minutos das onze horas. Gabriel só tomou café, mas Seymour pediu bastante comida. Sua esposa era uma cozinheira entusiástica, mas
pavorosa. Para Seymour, comida de avião era um mimo, e um brunch de hotel, mesmo feito na cozinha do King David, era uma ocasião a ser apreciada. O mesmo valia,
pelo visto, para a vista da Cidade Antiga.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse ele entre as mordidas na omelete -, mas esta é a minha primeira visita ao seu país.
- Eu sei. Está tudo no seu arquivo.
- É uma leitura interessante?
- Tenho certeza de que não deve ser nada em comparação com o que seu serviço tem sobre mim.
- Como poderia se comparar? Não passo de um humilde lacaio do Serviço Secreto de Sua Majestade. Você, por outro lado, é uma lenda. Afinal - acrescentou Seymour,
falando mais baixo quantos agentes de inteligência podem dizer que pouparam o mundo de um apocalipse?
Gabriel olhou por cima do ombro e fitou o Domo da Rocha, o terceiro lugar mais sagrado do Islã, resplandecente sob a luz cristalina do sol de Jerusalém. Cinco meses
antes, numa câmara secreta 50 metros abaixo da superfície do Monte do Templo, ele havia descoberto uma bomba que, caso fosse detonada, derrubaria todo o platô. Também
encontrara 22 pilares do Templo de Jerusalém do rei Salomão, provando que o antigo santuário judeu descrito no Livro de Reis e de Crônicas tinha de fato existido.
Embora o nome de Gabriel não tivesse aparecido na cobertura de imprensa da monumental revelação, seu envolvimento era bem conhecido em certos círculos da comunidade
ocidental de inteligência. Também se sabia que seu amigo mais próximo, Eli Lavon, renomado arqueólogo bíblico e agente do Escritório, quase morrera tentando salvar
os pilares da destruição.
- Foi uma sorte dos diabos aquela bomba não ter explodido - comentou Seymour. - Se tivesse, milhões de muçulmanos chegariam às suas fronteiras numa questão de horas.
E depois... - A voz de Seymour se perdeu.
- Seria o fim do jogo para o empreendimento conhecido como Estado de Israel - completou Gabriel. - Esse era exatamente o objetivo dos iranianos e de seus amigos
do Hezbollah.
- Não consigo imaginar como foi ter visto aqueles pilares pela primeira vez.
- Para ser sincero, Graham, não tive tempo para saborear o momento. Estava ocupado demais tentando manter Eli vivo.
- Como ele está?
- Passou dois meses no hospital, mas está quase cem por cento. Na verdade, até voltou a trabalhar.
- Para o Escritório?
Gabriel balançou a cabeça.
- Ele está escavando o Túnel do Muro das Lamentações de novo. Posso providenciar uma visita guiada, se você quiser. Aliás, se tiver interesse, posso mostrar a passagem
secreta que leva direto ao Monte do Templo.
- Não sei se meu governo aprovaria. - Seymour ficou em silêncio enquanto um garçom enchia suas xícaras de café. Então, quando estavam a sós novamente, continuou:
- Então o rumor é verdadeiro, afinal.
- Que rumor?
- De que o filho pródigo enfim voltou para casa. É engraçado - acrescentou ele, com um sorriso triste mas eu sempre imaginei que você passaria o resto da vida caminhando
pelos penhascos da Cornualha.
- É um lugar lindo, Graham. Mas a Inglaterra é a sua casa, não a minha.
- Às vezes sinto que não parece mais ser a minha casa. Helen e eu compramos uma casa em Portugal há pouco tempo. Em breve vou ser um exilado, assim como você foi.
- Sério?
- Não é nada iminente. Mas, no fim, todas as coisas boas devem terminar.
- Você teve uma grande carreira, Graham.
- Tive? É difícil mensurar o sucesso no campo da segurança, não é? Somos julgados com base em coisas que não acontecem: os segredos que não são roubados, os edifícios
que não explodem. Pode ser uma forma profundamente insatisfatória de se ganhar a vida.
- O que você vai fazer em Portugal?
- Helen vai tentar me envenenar com a sua culinária exótica e eu vou pintar paisagens terríveis de aquarela.
- Nunca soube que você pintava.
- Por uma boa razão. - Seymour observou a paisagem e franziu a testa, como se aquilo estivesse muito além do alcance de seu pincel e sua paleta. - Meu pai estaria
se revirando no túmulo se soubesse que estou aqui.
- Então por que você está aqui?
- Estava me perguntando se você se disporia a encontrar algo para um amigo meu.
- O amigo tem um nome?
Em vez de responder, Seymour abriu a maleta e pegou uma fotografia ampliada, passando-a para Gabriel. Mostrava uma jovem atraente que olhava direto para a câmera,
segurando uma edição do International Herald Tribune de três dias antes.
- Madeline Hart? - perguntou Gabriel.
Seymour assentiu. Então, passou uma folha A4 para Gabriel. Continha uma única frase, escrita em uma fonte sem serifa:
Em sete dias a garota morre.
- Merda - praguejou Gabriel baixinho.
- Receio que fique ainda melhor.
Por coincidência, a administração do King David colocou Graham Seymour, o único filho de Arthur Seymour, na mesma ala do hotel que fora destruída em 1946. Seymour
ficou no mesmo corredor do quarto que seu pai tinha usado como escritório no fim do mandato britânico na Palestina. Ao chegar, eles depararam com o aviso de NÃO
PERTURBE pendurado na maçaneta, além de uma embalagem plástica contendo o Jerusalém Post e o Haaretz. Seymour conduziu Gabriel para dentro. Ao verificar que ninguém
havia entrado no quarto durante sua ausência, pôs um DVD para ser reproduzido no laptop. Poucos segundos depois, Madeline Hart, cidadã britânica desaparecida e funcionária
do partido da situação na Inglaterra, apareceu na tela.
“Eu tive relações sexuais com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster pela primeira vez na conferência do Partido em Manchester, em outubro de 2012...”
5
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
O vídeo tinha sete minutos e doze segundos de duração. O tempo todo, Madeline manteve os olhos focados num ponto ligeiramente à esquerda da câmera, como se respondesse
a perguntas feitas por um entrevistador de televisão. Relutante, assustada e exausta, descreveu como tinha conhecido o primeiro-ministro durante uma de suas visitas
à sede do Partido em Millbank. Lancaster havia expressado admiração pelo trabalho de Madeline e, em duas ocasiões, convidou-a para a sede do governo, a fim de receber
informações diretamente dela. No fim da segunda visita, ele admitiu que seu interesse em Madeline não era apenas profissional. O primeiro encontro sexual foi bem
rápido, num quarto de hotel em Manchester. Depois disso, ela passou a ser levada à Downing Street por um velho amigo do primeiro-ministro, sempre que Diana Lancaster
estivesse fora de Londres.
- E agora - falou Seymour, melancólico, enquanto a tela do computador escurecia - o primeiro-ministro do Reino Unido está sendo punido por seus pecados com uma tentativa
primitiva de chantagem.
- Não há nada de primitivo nisso, Graham. Quem está por trás disso sabia que o primeiro-ministro estava envolvido num caso extraconjugal. E conseguiu fazer sua amante
desaparecer da Córsega sem deixar rastros. É óbvio que se trata de alguém extremamente sofisticado.
Seymour tirou o DVD do computador sem dizer nada.
- Quem mais sabe?
Seymour explicou que os três itens - a fotografia, o bilhete e o DVD - haviam sido deixados na manhã anterior em frente à porta de Simon Hewitt, que os levara até
a Downing Street e os mostrara para Jeremy Fallon. Também contou que Hewitt e Fallon confrontaram Lancaster em seu escritório na sede. Gabriel, que havia residido
pouco tempo antes no Reino Unido, conhecia bem os envolvidos: Hewitt, Fallon, Lancaster, a santíssima trindade da política britânica. Hewitt era especialista em
usar a mídia a favor do governo, Fallon era o mestre maquinador e estrategista, e Lancaster era o talento político em pessoa.
- Por que Lancaster escolheu você? - perguntou Gabriel.
- Nossos pais trabalharam juntos no serviço de inteligência.
- Com certeza há mais alguma razão.
- De fato - admitiu Seymour. - Seu nome é Siddiq Hussein.
- Acho que não conheço.
- Por uma boa razão. Graças a mim, Siddiq desapareceu num buraco negro vários anos atrás, para nunca mais ser visto.
- Quem era ele?
- Siddiq Hussein, nascido no Paquistão, era um residente de Tower Hamlets no leste de Londres. Ele apareceu nos nossos radares depois dos bombardeios de 2007, quando
finalmente tomamos juízo e começamos a tirar os muçulmanos radicais das ruas. Você se lembra daqueles dias - disse Seymour com amargura.
- Os dias em que a esquerda e a mídia insistiram que deveríamos fazer algo a respeito dos terroristas entre nós.
- Continue, Graham.
- Siddiq estava convivendo com extremistas conhecidos na grande mesquita do leste de Londres e o número do seu celular aparecia em todos os lugares errados. Eu dei
uma cópia dos arquivos dele para a Scotland Yard, mas o Comando de Contraterrorismo disse que não havia evidência suficiente para agir contra ele. Então Siddiq fez
algo que me deu uma oportunidade de cuidar do problema pessoalmente.
- O que ele fez?
- Agendou um voo para o Paquistão.
- Grande erro.
- Fatal, na verdade - falou Seymour, sombrio.
- O que aconteceu?
- Nós o seguimos até Heathrow e garantimos que ele subisse em seu avião para Karachi. Em seguida, fiz uma ligação discreta para um velho amigo em Langley, Virgínia.
Acho que você o conhece bem.
- Adrian Carter.
Seymour assentiu. Adrian Carter era o diretor do Serviço Clandestino Nacional. Ele supervisionava a guerra global da CIA contra o terrorismo, incluindo os programas
outrora secretos para deter e interrogar agentes de alto nível.
- A equipe de Carter observou Siddiq em Karachi por três dias - continuou Seymour. - Então cobriram sua cabeça com um saco e o colocaram no primeiro voo clandestino
para fora do país.
- Para onde eles o levaram?
- Cabul.
- Para a prisão de Salt Pit?
Seymour aquiesceu devagar.
- Quando tempo ele durou?
- Isso depende de para quem você perguntar. De acordo com o relato da Agência, Siddiq foi encontrado morto em sua cela dez dias depois de chegar a Cabul. Sua família
alegou num processo que ele morreu durante a tortura.
- O que isso tem a ver com o primeiro-ministro?
- Quando os advogados que representavam a família de Siddiq pediram todos os documentos do MI5 referentes ao caso, o governo de Lancaster se recusou a atendê-los,
alegando que isso prejudicaria a segurança nacional britânica. Ele salvou a minha carreira.
- E agora você quer quitar essa dívida tentando salvar o pescoço dele? - Como
Seymour não respondeu, Gabriel acrescentou: - Isso vai acabar mal, Graham.
E, quando acabar, seu nome vai aparecer com destaque no inevitável inquérito.
- Eu deixei claro que, se isso acontecer, vou levar todo mundo junto, incluindo Lancaster.
- Nunca tomei você por uma pessoa ingênua, Graham.
- Sou tudo menos isso.
- Então se afaste. Volte para Londres e diga ao primeiro-ministro para aparecer diante das câmeras com a esposa ao lado, fazendo um apelo público para que os sequestradores
soltem a garota.
- É tarde demais para isso. Além do mais, talvez eu seja um pouco antiquado, mas não gosto quando as pessoas tentam chantagear o líder do meu país.
- O líder do seu país sabe que você está em Jerusalém?
- Você só pode estar brincando.
- Por que eu?
- Porque, se o MI5 ou qualquer serviço de inteligência tentar encontrá-la, o caso vai vazar, assim como o de Siddiq Hussein vazou. E você é bom em encontrar coisas
- continuou Seymour, falando baixo. - Pilares antigos, Rembrandts roubados, instalações iranianas secretas de enriquecimento.
- Desculpe, Graham, mas...
- E porque você também deve uma a Lancaster.
- Eu?
- Quem você acha que autorizou sua estadia na Cornualha com um nome falso quando nenhum outro país o aceitaria? E quem você pensa que o deixou recrutar uma jornalista
britânica quando precisava penetrar na cadeia de fornecimento iraniana?
- Não sabia que estávamos contando pontos, Graham.
- Não estamos. Mas, se estivéssemos, você certamente estaria perdendo a partida.
Os dois caíram num silêncio desconfortável, como se estivessem constrangidos pelo tom do debate. Seymour olhou para o teto, e Gabriel para o bilhete.
Em sete dias a garota morre...
- Um tanto vago, não acha?
- Mas muito eficiente - afirmou Seymour. - Atraiu a atenção de Lancaster.
- Nenhuma exigência?
Seymour balançou a cabeça.
- É óbvio que eles querem revelar seu preço no último minuto. E querem que Lancaster esteja desesperado para salvar a própria pele, pronto a concordar em pagar qualquer
coisa.
- Quanto o seu primeiro-ministro vale?
- Na última vez que dei uma olhadinha em suas contas bancárias - respondeu Seymour jocosamente ele tinha mais de 100 milhões.
- De libras?
Seymour assentiu.
- Jonathan Lancaster fez milhões no centro financeiro londrino, ganhou uma herança milionária e casou-se com a igualmente milionária Diana Baldwin. Ele é um alvo
perfeito, um homem com mais dinheiro do que precisa e com muito a perder. Diana e as crianças vivem na bolha de segurança da Downing Street, logo seria quase impossível
sequestrá-las. Mas a amante de Lancaster... - A voz de Seymour se perdeu. - Uma amante é algo completamente diferente.
- Imagino que Lancaster não tenha comentado sobre isso com a esposa.
Seymour fez um gesto com as mãos indicando que não tinha acesso ao funcionamento interno do casamento de Lancaster.
- Você já trabalhou com um caso de sequestro, Graham?
- Nenhum desde a Irlanda do Norte. E aqueles foram todos relacionados ao IRA.
- Sequestros políticos são diferentes de sequestros criminais - explicou Gabriel. - O sequestrador político comum é um sujeito racional. Ele quer que companheiros
sejam soltos ou que uma política seja modificada, então agarra um político importante ou um ônibus escolar cheio de crianças e os mantém como reféns até que suas
demandas sejam cumpridas. Mas o sequestrador criminoso só quer dinheiro. E, se você paga, faz com que ele queira mais dinheiro. Então ele fica pedindo dinheiro até
achar que não sobrou mais nada.
- Então acho que nos resta apenas uma opção.
- Qual?
- Encontrar a garota.
Gabriel foi até a janela e olhou para além do vale, na direção do Monte do Templo. Por um segundo, ele se viu de volta à caverna secreta 50 metros abaixo da superfície,
segurando Eli Lavon enquanto seu sangue era bombeado para o coração da montanha sagrada. Durante as longas noites que passou ao lado de Lavon no leito de hospital,
Gabriel jurou que nunca poria os pés de novo no campo de batalha do serviço secreto. Mas agora um velho amigo havia surgido das profundezas de seu passado emaranhado
para pedir um favor. E mais uma vez Gabriel estava se esforçando para encontrar as palavras que o mandariam embora de mãos vazias. Como filho único de sobreviventes
do Holocausto, desapontar outras pessoas não estava em sua natureza. Ele fazia concessões e raramente dizia não.
- Mesmo se eu for capaz de encontrá-la - disse ele depois de um tempo os sequestradores ainda vão ter o vídeo da confissão dela.
- Mas o vídeo terá um impacto bem diferente se a rosa inglesa estiver sã e salva em solo britânico.
- A menos que a rosa inglesa decida contar a verdade.
- Ela é leal ao Partido. Não se atreveria.
- Você não tem ideia do que eles fizeram com ela - retrucou Gabriel. - A esta altura, pode ser uma pessoa completamente diferente.
- É verdade. Mas estamos nos precipitando. Esta conversa é inútil se você e seu serviço não empreenderem uma operação para encontrar Madeline Hart.
- Eu não tenho autoridade para colocar meu serviço à sua disposição, Graham. A decisão é do Uzi, não minha.
- Uzi já autorizou - respondeu Seymour sem emoção. - Assim como Shamron.
Gabriel encarou Seymour com desaprovação, mas não disse nada.
- Você realmente acha que Ari Shamron teria me deixado chegar a menos de um quilômetro de você sem saber que eu estava na cidade? - questionou Seymour. - Ele é muito
protetor quando se trata de você.
- Ele tem um jeito engraçado de demonstrar isso. Mas receio que ainda exista uma pessoa em Israel mais poderosa do que Shamron, pelo menos no que diz respeito a
mim.
- Sua esposa?
Gabriel assentiu.
- Em sete dias a garota morre.
- Seis dias - corrigiu Gabriel. - A garota pode estar em qualquer lugar do mundo e não temos uma única pista.
- Isso não é exatamente verdade.
Seymour enfiou a mão na maleta e pegou duas fotografias da Interpol do homem com quem Madeline Hart tinha almoçado na tarde em que desaparecera. O homem cujos sapatos
não deixavam marcas. O homem esquecido.
- Quem é ele? - perguntou Gabriel.
- Boa pergunta. Mas, se você puder encontrá-lo, suspeito que encontre Madeline Hart.
6
MUSEU DE ISRAEL, JERUSALÉM
Gabriel pegou um único item de Graham Seymour - a fotografia de Madeline Hart - e o levou para a região oeste de Jerusalém, até o Museu de Israel. Depois de deixar
o carro no estacionamento para funcionários - um privilégio que haviam lhe concedido recentemente atravessou o enorme hall de entrada feito de vidro e chegou até
a sala que alojava a coleção de arte europeia. Num canto estavam penduradas nove pinturas impressionistas que antes pertenciam a um banqueiro suíço chamado Augustus
Roube. Uma plaqueta descrevia a longa jornada que as pinturas tinham feito a partir de Paris - como foram saqueadas pelos nazistas em 1940 e transferidas para Roube
em troca de serviços prestados à inteligência alemã. Mas não chegava a mencionar o fato de que Gabriel e a filha do banqueiro, a renomada violinista Anna Roube,
tinham descoberto as pinturas num cofre em Zurique, nem que um consórcio de empresários suíços havia contratado um assassino profissional corso para matar Gabriel
e Anna.
Na galeria adjacente estavam pinturas de artistas israelenses. Três telas eram da mãe de Gabriel, incluindo um retrato assombroso da marcha da morte de Auschwitz
em janeiro de 1945, feito com base em suas memórias. Gabriel passou um bom tempo admirando o desenho e as pinceladas antes de sair para o jardim das esculturas.
Na outra extremidade, erguia-se o Santuário do Livro, uma estrutura em forma de colmeia que continha os Manuscritos do Mar Morto. Ao lado dessa ala ficava a mais
nova construção do museu, com 60 côvados de comprimento, 20 de largura e 30 de altura. Por enquanto, o espaço estava coberto por uma lona opaca para construções,
que escondia os 22 pilares do Templo de Salomão do resto do mundo.
Havia seguranças bem armados em ambos os lados da construção e na entrada que ficava voltada para o leste, assim como no templo original de Salomão. Esse era apenas
um elemento do projeto curatorial mais controverso que o mundo já conhecera. Os haredim ultraortodoxos de Israel tinham denunciado a exposição como uma afronta a
Deus que acabaria levando à destruição do Estado judeu, enquanto na parte leste de Jerusalém, que abrigava a população árabe, os mantenedores do Domo da Rocha declararam
que os pilares eram um embuste elaborado.
- Nunca houve Templo no Monte do Templo - escreveu o grande mufti de Jerusalém numa carta aberta publicada pelo New York Times - e nenhuma exposição ou museu vai
mudar esse fato.
Apesar das violentas batalhas religiosas e políticas, a organização da exposição progredia de forma consideravelmente rápida. Poucas semanas após a descoberta de
Gabriel, aprovaram-se os planos arquitetônicos, angariaram-se fundos e foi iniciada a construção. Boa parte do crédito pertencia à diretora e designer-chefe italiana.
Em público, referiam-se a ela por seu nome de solteira, Chiara Zolli. Mas todas as pessoas associadas ao projeto sabiam que ela se chamava Chiara Allon.
Os pilares foram dispostos da mesma forma em que Gabriel os encontrara, em duas fileiras retas separadas por cerca de 6 metros. O mais alto estava enegrecido pelo
fogo do incêndio provocado pelos babilônios na noite em que derrubaram o Templo - considerado pelos judeus da Antiguidade como a moradia de Deus na Terra. Fora a
esse pilar que Eli Lavon se agarrara quando estava à beira da morte, e foi lá que Gabriel encontrou Chiara agora segurando uma prancheta e gesticulando na direção
do teto de vidro. Ela vestia jeans desbotados, sandálias sem salto e um moletom branco sem mangas que marcava bem as curvas de seu corpo. Os braços descobertos estavam
bem bronzeados pelo sol de Jerusalém. Chiara parecia incrivelmente linda, pensou Gabriel, e jovem demais para ser a esposa de um sujeito tão acabado quanto ele.
No alto da obra, dois técnicos estavam fazendo ajustes nas luzes da exposição sob a supervisão de Chiara. Ela falava com eles em hebraico, com um sotaque italiano
acentuado. Filha do rabino-chefe de Veneza, havia passado a juventude no mundo provinciano de um gueto, partindo apenas por tempo suficiente para cursar o mestrado
em História Romana na Universidade de Pádua. Ela voltara a Veneza depois de se graduar e aceitara um emprego num pequeno museu judaico no Campo del Ghetto Nuovo,
e talvez tivesse permanecido lá para sempre se um observador de talentos do Escritório não tivesse reparado nela durante uma visita a Israel. O homem apresentara-se
num café de Tel Aviv e perguntara a Chiara se ela estaria interessada em fazer mais pelo povo judeu do que trabalhando no museu de um gueto moribundo.
Após passar um ano no programa de treinamento secreto do Escritório, ela retomou sua vida antiga, já como agente secreta israelense. Uma de suas primeiras tarefas
foi ficar na retaguarda de um assassino do Escritório chamado Gabriel Allon, que tinha ido a Veneza para restaurar o retábulo de San Zaccaria, de Bellini. Chiara
revelou-se a ele pouco tempo depois, em Roma, após um incidente envolvendo tiroteios e a polícia italiana. A sós com Chiara em um esconderijo, Gabriel sentiu uma
vontade desesperadora de tocá-la. Esperou até que o caso fosse resolvido e eles voltassem a Veneza. Lá, numa casa à beira de um canal em Cannaregio, fizeram amor
pela primeira vez, numa cama com frescos lençóis de linho. Era como fazer amor com uma figura pintada por Veronese.
Agora, ela virou a cabeça e, notando Gabriel pela primeira vez, sorriu. Seus olhos, largos e meio orientais, tinham cor de caramelo e manchas douradas, uma combinação
que Gabriel nunca fora capaz de reproduzir com precisão na tela. Vários meses já haviam se passado desde que Chiara concordara em posar para ele. A exposição a deixara
com pouco tempo para outros afazeres. Era uma mudança clara no padrão do casamento. Em geral era Gabriel que se via consumido por um projeto, fosse uma pintura ou
uma operação, mas agora os papéis estavam invertidos. Organizadora inata e sempre meticulosa, Chiara conseguia progredir mesmo sob a pressão da exposição. Mas, secretamente,
Gabriel antecipava o dia em que a teria de volta.
Ela caminhou até o pilar seguinte e observou como a luz incidia sobre ele.
- Eu liguei para o apartamento alguns minutos atrás, mas ninguém atendeu.
- Eu estava num brunch com Graham Seymour no King David.
- Que adorável - comentou ela, sarcástica. Em seguida, ainda analisando os pilares, perguntou: - O que tem no envelope?
- Uma oferta de emprego.
- Quem é o artista?
- Desconhecido.
- E o tema?
- Uma garota chamada Madeline Hart.
Gabriel voltou para o jardim de esculturas e sentou-se num banco com vista para as colinas de Jerusalém Ocidental. Alguns minutos depois, Chiara juntou-se a ele.
Um suave vento outonal moveu os seus cabelos. Ela afastou uma mecha do rosto e cruzou as pernas, com a sandália pendente do pé bronzeado. De repente, a última coisa
que Gabriel queria fazer era deixar Jerusalém para procurar uma garota desconhecida.
- Vamos tentar de novo... - disse ela, por fim. - O que tem no envelope?
- Uma foto.
- Que tipo de foto?
- Prova de vida.
Chiara estendeu a mão. Gabriel hesitou.
- Tem certeza?
Chiara assentiu e Gabriel lhe entregou o envelope. Ela o abriu e retirou a foto. Enquanto examinava a imagem, seu rosto ficou sombrio. Claramente vinha à sua memória
um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Gabriel tinha tirado tudo de Ivan: seus negócios, seu dinheiro, sua mulher e filhos. Em seguida, o oligarca retaliara
capturando Chiara. A operação de resgate foi a mais sangrenta em toda a longa carreira de Gabriel: ele matara onze agentes inimigos. E, numa rua tranquila em Saint-Tropez,
também assassinara Ivan. Mesmo morto, Ivan permaneceria como parte de suas vidas. As injeções de ketamina que seus homens haviam aplicado em Chiara fizeram-na perder
o bebê. Como ela não recebera tratamento, o aborto prejudicara sua capacidade de ter filhos. Chiara quase tinha perdido qualquer esperança de ficar grávida de novo.
Ela colocou a foto no envelope e o devolveu a Gabriel. Então, escutou com atenção enquanto ele explicava como o caso tinha caído no colo de Graham Seymour, para
então chegar ao seu.
- Então o primeiro-ministro britânico está forçando Graham Seymour a fazer o trabalho sujo dele - disse Chiara quando Gabriel terminou e Graham está fazendo o mesmo
com você.
- Ele tem sido um bom amigo.
O rosto de Chiara não revelava nenhuma expressão. Seus olhos, normalmente uma janela confiável para seus pensamentos, estavam ocultos atrás de óculos escuros.
- O que você acha que eles querem? - perguntou ela depois de um tempo.
- Dinheiro. Eles sempre querem dinheiro.
- Quase sempre. Mas às vezes querem coisas que não dá para ceder.
Ela tirou os óculos e os pendurou na camiseta.
- Quanto tempo você tem antes de eles a matarem? - Como Gabriel ficou em silêncio, ela balançou a cabeça devagar. - É um caso impossível. Você não poderia encontrá-la
a tempo.
- Olhe para a construção atrás de você. Depois me fale se ainda sente o mesmo.
Chiara não olhou para nada além do rosto de Gabriel.
- A polícia francesa está buscando Madeline Hart há mais de um mês. O que faz você pensar que pode encontrá-la?
- Talvez eles não tenham procurado no lugar certo... ou falado com as pessoas certas.
- Por onde você começaria? Eu sempre acreditei que o melhor lugar para iniciar uma investigação é na cena do crime.
Chiara pegou os óculos e limpou as lentes na calça jeans, distraída. Gabriel sabia que aquilo era um mau sinal: a esposa sempre limpava coisas quando estava aborrecida.
- Desse jeito você vai arranhar as lentes.
- Estão imundas - retrucou ela no mesmo instante.
- Talvez você devesse arrumar um estojo em vez de jogar os óculos na bolsa.
Ela não respondeu nada.
- Você sempre me surpreende, Chiara.
- Por quê?
- Porque você sabe melhor do que qualquer pessoa que Madeline Hart está no inferno. E ela vai ficar no inferno até que alguém a tire de lá.
- Eu só gostaria que outra pessoa fizesse o serviço.
- Não há outra pessoa.
- Ninguém como você.
Ela examinou as lentes e franziu a testa.
- O que houve?
- Estão arranhadas.
- Eu avisei.
- Você sempre tem razão, querido.
Chiara colocou os óculos e olhou na direção da cidade.
- Imagino que Shamron e Uzi já tenham dado suas bênçãos.
- Graham os procurou antes de falar comigo.
- Que esperto da parte dele. - Chiara descruzou as pernas e se levantou. - Eu preciso voltar. Não temos muito tempo antes da abertura.
- Você tem feito um trabalho magnífico, Chiara.
- Ficar me bajulando não vai ajudar.
- Achei que valia tentar.
- Quando vou vê-lo de novo?
- Só tenho sete dias para encontrá-la.
- Seis - ela o corrigiu. - Em seis dias a garota morre.
Chiara lhe deu um beijo suave. Em seguida, virou-se e atravessou o jardim ensolarado, os quadris balançando como se seguissem o ritmo de uma música que só ela conseguisse
ouvir. Gabriel a observou entrar na construção coberta pela lona. Agora, a última coisa que ele queria fazer era deixar Jerusalém em busca de uma garota desconhecida.
Ele voltou ao King David Hotel para recolher o resto do dossiê de Graham Seymour: o bilhete de exigências que não continha nenhuma exigência, o DVD da confissão
de Madeline e as duas fotos do homem de Les Palmiers em Calvi. Além disso, requisitou uma cópia do arquivo pessoal de Madeline no Partido, a ser entregue em um endereço
em Nice.
- Como foi com Chiara? - perguntou Seymour.
- A esta altura, meu casamento pode estar pior que o de Lancaster.
- Algo que eu possa fazer?
- Saia da cidade o mais rápido possível. E não mencione meu nome para o seu primeiro-ministro nem para qualquer outra pessoa na Downing Street.
- Como posso entrar em contato com você?
- Mando um sinal de fumaça quando tiver notícias. Até lá, eu não existo.
Com essas palavras, Gabriel partiu. Voltando para a rua Narkiss, encontrou um cinto de dinheiro na mesa de centro com 200 mil dólares. Ao lado, havia uma passagem
de avião, de um voo das 16 horas para Paris. A reserva fora feita no nome de Johannes Klemp, uma de suas identidades falsas favoritas. Gabriel entrou no quarto e
encheu uma pequena bolsa de viagem com as roupas modernas de Herr Klemp, separando um terno e um casaco pretos para o voo. Então, em frente ao espelho do banheiro,
fez algumas alterações sutis em sua própria aparência: um pouco de grisalho no cabelo, óculos alemães sem aro, lentes de contato castanhas para esconder os característicos
olhos verdes. Em poucos minutos, mal reconhecia o rosto no reflexo. Ele não era mais Gabriel Allon, o anjo vingador de Israel, mas Johannes Klemp, de Munique, um
homem sempre pronto a se ressentir - pequeno, insignificante e carrancudo.
Depois de vestir o terno e passar a fragrância tenebrosa de Herr Klemp, sentou à penteadeira de Chiara e abriu sua caixa de joias. Um item pareceu estranhamente
fora de lugar: um coral-vermelho em forma de mão, preso a uma tira de couro. Ele o pegou e o colocou no bolso. Então, por razões que ele mesmo não saberia explicar,
pendurou o artefato no pescoço e o escondeu sob o casaco de Herr Klemp.
Diante da casa, um sedã do Escritório estava parado com o motor ligado. Gabriel jogou a bolsa no banco de trás e entrou. Em seguida, consultou o relógio, não para
ver as horas, mas a data: 27 de setembro. Já tinha sido seu dia favorito do ano.
- Qual o seu nome? - perguntou ao motorista.
- Lior.
- De onde você é, Lior?
- Berseba.
- Era um bom lugar para uma criança?
- Existem lugares piores.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e cinco.
Vinte e cinco, pensou Gabriel. Por que tinha que ser aquela idade? Olhou de novo para o relógio. Não para a hora; para a data.
- Quais foram suas instruções?
- Disseram-me para levá-lo ao Ben Gurion - respondeu Lior.
- Mais alguma coisa?
- Falaram que talvez você quisesse fazer uma parada no caminho.
- Quem falou isso? Uzi?
- Não. Foi o Velho.
Então ele lembrava, pensou Gabriel. Olhou de novo para o relógio. A data...
- Como devo proceder? - perguntou o motorista.
- Leve-me ao aeroporto.
- Nenhuma parada?
- Só uma.
Lior engrenou a marcha e se afastou suavemente da calçada, como se estivesse se juntando a um cortejo fúnebre. Não se deu o trabalho de perguntar para onde estavam
indo. Era 27 de setembro. E Shamron se lembrava.
Eles foram até o jardim de Getsêmani e seguiram o caminho estreito e sinuoso que subia a encosta do monte das Oliveiras. Gabriel entrou no cemitério sozinho e passou
pelo mar de lápides, até chegar ao túmulo de Daniel Allon, nascido no dia 27 de setembro de 1988, morto no dia 13 de janeiro de 1991, numa noite de neve no Primeiro
Distrito de Viena, num Mercedes azul destruído por uma bomba. O artefato fora plantado por um líder terrorista palestino chamado Tariq al-Hourani, sob ordens diretas
de Yasser Arafat. Gabriel não era o alvo; aquilo seria leniente demais. Tariq e Arafat queriam puni-lo forçando-o a assistir à morte de sua mulher e filho, para
que pudesse passar o resto da vida de luto, assim como os palestinos. Apenas um elemento da trama falhara: Leah sobrevivera ao inferno. Agora ela vivia num hospital
psiquiátrico no topo do monte Herzl, prisioneira da própria memória e de um corpo destruído pelo fogo. Tomada por uma combinação de estresse pós-traumático e depressão
psicótica, revivia constantemente o atentado. De vez em quando, tinha lampejos de lucidez. Durante um desses períodos, ela concedera a Gabriel permissão para se
casar com Chiara. Olhe para mim, Gabriel. Não resta nada de mim. Nada além de uma memória.
Gabriel consultou o relógio de novo. Não olhando a data, mas a hora. Havia tempo para uma última despedida. Uma última torrente de lágrimas. Um último pedido de
desculpas por ter deixado de vasculhar o carro antes de Leah dar partida. Em seguida, ele se afastou cambaleante do jardim de pedra, no dia que já fora o seu favorito
do ano, e subiu na traseira de um sedã do Escritório que era conduzido por um garoto de 25 anos.
Lior teve o bom senso de não falar uma palavra sequer durante o caminho até o aeroporto. Gabriel entrou no terminal como um viajante qualquer, mas então foi a uma
sala reservada para a equipe do Escritório, onde esperou seu voo ser chamado. Ao se acomodar no assento de primeira classe, sentiu um impulso não profissional de
ligar para Chiara. Usando técnicas que lhe foram ensinadas na juventude por Shamron, ele a afastou de seus pensamentos. Agora não havia Chiara. Nem Daniel. Nem Leah.
Havia apenas Madeline Hart, a amante sequestrada do primeiro-ministro britânico Jonathan Lancaster. Enquanto o avião decolava em direção ao céu que começava a escurecer,
ela apareceu para Gabriel num retrato a óleo, como Suzana banhando-se num jardim. Espiando-a de trás de um muro estava um homem com um rosto anguloso e uma boca
pequena e cruel. O homem sem nome nem país. O homem esquecido.
7
CÓRSEGA
Os corsos dizem que, ao se aproximarem de barco de sua ilha, são capazes de sentir o cheiro da vegetação cerrada característica - chamada ali de Mac chia - muito
antes de vislumbrarem o contorno acidentado da costa se erguendo do mar. Gabriel não teve essa experiência, pois chegou à Córsega de avião, no primeiro voo matinal
que partiu de Orly. Só quando estava ao volante de um Peugeot alugado, saindo do aeroporto de Acácio em direção ao sul, é que sentiu pela primeira vez o aroma de
carqueja, sarça, estava e alecrim vindo das colinas. Os corsos usavam as plantas para cozinhar e aquecer suas casas e nelas se refugiavam em tempos de guerra e vendeta.
Segundo a lenda corsa, um homem perseguido poderia penetrar na macchia e, se quisesse, permaneceria lá para sempre sem ser encontrado. Gabriel conhecia um desses
homens. Era por isso que levava no pescoço um artefato de coral-vermelho.
Depois de dirigir por meia hora, ele saiu da estrada costeira e tomou a direção do interior. À medida que o odor da macchia se intensificava, também se fortificavam
os muros que cercavam as pequenas cidades de colina. A Córsega, assim como a antiga terra de Israel, fora invadida muitas vezes: após a queda do Império Romano,
os vândalos pilharam a ilha de forma tão implacável que a maior parte dos habitantes fugiu do litoral e recuou para a segurança das montanhas. Mesmo atualmente,
o medo de estrangeiros ainda era intenso. Num vilarejo isolado, uma idosa apontou para Gabriel com o dedo indicador e o mindinho a fim de afastar os efeitos do occhju,
o mau-olhado.
Passando o vilarejo, a estrada era pouco mais do que uma via de pista única ladeada por paredes densas da macchia. Depois de um quilômetro, ele chegou à entrada
de uma propriedade particular. O portão estava aberto, mas bloqueado por um veículo off-road com dois seguranças. Gabriel desligou o motor e colocou as mãos sobre
o volante, esperando os homens se aproximarem. Por fim, um deles saiu do veículo e caminhou devagar em sua direção. Tinha uma arma numa das mãos e a outra enfiada
na cintura. Com um único movimento de suas sobrancelhas espessas, o homem questionou o propósito da visita de Gabriel.
- Desejo ver Don Orsati - disse Gabriel em francês.
- Ele é um homem muito ocupado - respondeu o segurança no dialeto corso.
Gabriel tirou o talismã do pescoço e o entregou. O corso sorriu.
- Verei o que posso fazer.
Nunca foi muito difícil desencadear uma disputa sangrenta na Córsega. Um insulto. Uma acusação de roubo no mercado. A dissolução de um noivado. A gravidez de uma
mulher solteira. Após a faísca inicial, sempre vinham os distúrbios. Um touro morreria, uma oliveira premiada seria derrubada, uma casa de campo pegaria fogo. Então
os assassinatos começariam. E a coisa seguia em frente, às vezes por uma geração ou mais, até que as partes injuriadas acertassem as diferenças ou desistissem da
luta por exaustão.
A maior parte dos homens corsos estava mais do que disposta a cometer os próprios assassinatos. Mas alguns precisavam de outros para executarem seu trabalho sangrento:
pessoas de renome que eram melindrosas demais para sujarem as mãos ou que não estavam dispostas a arriscar uma prisão ou o exílio; mulheres que não conseguiam matar
e não tinham parentes masculinos para assumirem a questão. Gente desse tipo dependia de assassinos profissionais conhecidos como taddunaghiu e, em geral, recorria
ao clã Orsati.
Os Orsatis tinham uma bela propriedade e seu azeite era considerado o melhor de toda a Córsega. Mas faziam muito mais do que plantar oliveiras. Ninguém sabia quantos
corsos haviam morrido pelas mãos de assassinos dos Orsatis, muito menos os próprios Orsatis, mas de acordo com o folclore local, o número estava na casa dos milhares.
Poderia ter sido muito mais se não fosse o rigoroso processo de vetos do clã. Os Orsatis operavam com base num código rigoroso. Eles se recusavam a cometer um assassinato
se não estivessem convencidos de que o requisitante havia de fato sido injustiçado e que fosse necessária uma vingança sanguinolenta.
No entanto, isso mudou com Don Anton Orsati. Quando ele tomou o controle da família, as autoridades francesas tinham conseguido erradicar as rixas e a vendeta por
toda a ilha, com exceção dos bolsões mais isolados; logo, poucos corsos exigiam os serviços dos taddunaghiu. Com a demanda local em declínio acelerado, Orsati não
teve escolha além de buscar por oportunidades em outros lugares, isto é, do outro lado da água, na Europa continental. Agora, ele aceitava quase todas as ofertas
de trabalho que passassem por sua mesa, mesmo que fossem desagradáveis, e seus assassinos eram considerados os profissionais mais confiáveis de todo o continente.
Gabriel fora uma das duas únicas pessoas que sobreviveram a um contrato da família Orsati.
Embora Anton Orsati fosse descendente de uma família de corsos ilustres, em aparência era indistinguível dos paesanu que protegiam a entrada de sua propriedade.
Ao entrar no amplo escritório do don, Gabriel o encontrou sentado à mesa vestindo uma camisa branca, calças largas de algodão claro e um par de sandálias poeirentas
que pareciam ter sido compradas na feira local. Ele estava analisando um livro-razão antiquado com uma expressão carrancuda. Gabriel não podia imaginar a fonte de
sua insatisfação. Muito tempo antes, Orsati tinha fundido os dois negócios numa única empresa. Seus taddunaghiu modernos eram funcionários da Orsati Olive Oil Company
e os assassinatos eram registrados como encomendas de produtos.
Levantando-se, Orsati estendeu sua mão de granito para Gabriel sem qualquer traço de apreensão.
- É uma honra conhecê-lo, monsieur Allon - falou ele em francês. - Para ser sincero, achava que o veria bem antes. Você tem reputação de lidar severamente com seus
inimigos.
- Meus inimigos eram os banqueiros suíços que o contrataram para me matar, Don Orsati. Além do mais, em vez de me dar um tiro na cabeça, seu assassino me deu isto.
Gabriel meneou a cabeça na direção do talismã, que estava na mesa de Orsati ao lado do livro-razão. Anton franziu a testa. Erguendo o amuleto pela tira de couro,
deixou a mão de coral-vermelho balançar para trás e para a frente, como o pêndulo de um relógio.
- Aquilo foi imprudente - comentou, por fim, o don.
- Abandonar o talismã ou me deixar vivo?
Orsati deu um sorriso evasivo.
- Temos um velho ditado aqui na Córsega: I solda un vènini micca cantendu. Não dá para ganhar dinheiro cantando. Só trabalhando. E, por aqui, trabalho significa
cumprir contratos, mesmo quando envolvem violinistas famosos e agentes da inteligência israelense.
- Então você devolveu o dinheiro para os homens que o contrataram?
- Eles eram banqueiros suíços. Dinheiro era a última coisa de que precisavam. - Orsati fechou o livro-razão e colocou o talismã sobre a capa. - Como pode imaginar,
mantive os olhos em você no decorrer dos anos. Você tem ficado muito ocupado desde que nossos caminhos se cruzaram. Na verdade, alguns dos seus melhores trabalhos
foram feitos no meu território.
- Esta é a minha primeira visita à Córsega.
- Estava me referindo ao sul da França. Você matou aquele terrorista saudita, Zizi al-Bakari, no velho porto de Cannes. E também houve aquele desentendimento com
Ivan Kharkov em Saint-Tropez alguns anos atrás.
- Pelo que eu soube, Ivan foi morto por outros russos - disse Gabriel, evasivo.
- Você matou Ivan, Allon. E você o matou porque ele capturou sua esposa.
Gabriel ficou em silêncio. O corso voltou a sorrir, dessa vez com a confiança de um homem que sabe que tem razão.
- A macchia não tem olhos, mas vê tudo.
- É por isso que estou aqui.
- Imaginei. Afinal, um homem como você certamente não precisaria de um assassino profissional. Você faz isso muito bem por conta própria.
Gabriel tirou um maço de dinheiro do bolso do casaco e o depositou sobre o livro-razão da morte, ao lado do talismã. O don o ignorou.
- Como posso ajudá-lo, Allon?
- Preciso de uma informação.
- Sobre...?
Sem dizer nada, Gabriel colocou a foto de Madeline Hart ao lado do dinheiro.
- A garota inglesa?
- Você não parece surpreso, Don Orsati.
O corso não respondeu.
- Sabe onde ela está?
- Não. Mas tenho uma boa noção de quem a capturou.
Gabriel ergueu a foto do homem de Les Palmiers. Orsati assentiu.
- Quem é ele?
- Não sei. Só o vi uma vez.
- Onde?
- Neste escritório, uma semana antes de a garota inglesa desaparecer. Ele sentou na mesma cadeira em que você está sentado agora. Mas ele tinha mais dinheiro do
que você, Allon. Muito mais.
8
CÓRSEGA
Era hora do almoço, a parte do dia predileta de Don Orsati. Eles se acomodaram na varanda adjacente ao escritório e sentaram a uma mesa repleta de pães, queijos,
vegetais e salsichas da região. O sol estava forte e, por entre os pinheiros-larícios, Gabriel pôde ver o mar azul-esverdeado reluzindo à distância. O aroma da macchia
estava por toda parte; no ar fresco e na comida. Até mesmo Orsati parecia irradiá-lo. Ele serviu vinho vermelho-sangue na taça de Gabriel e, a seguir, passou a cortar
várias fatias da gorda salsicha corsa. Gabriel não questionou a origem da carne. Nas palavras de Shamron, às vezes é melhor não perguntar.
- Fico feliz por não termos matado você - disse Orsati, erguendo a taça uma fração de centímetro.
- Posso garantir, Don Orsati, que sinto o mesmo.
- Mais salsicha?
- Por favor.
Orsati cortou mais duas fatias grossas e as colocou no prato de Gabriel. Em seguida, pôs os óculos de leitura em formato de meia-lua e examinou a fotografia do homem
de Les Palmiers.
- Ele parece diferente nesta foto - comentou após um momento. - Mas definitivamente é a mesma pessoa.
- O que está diferente?
- O penteado. Quando ele veio me ver, estava com mouse no cabelo e o penteara bem para trás. Era uma diferença sutil, mas muito eficiente.
- Ele tinha um nome?
- Apresentou-se como Paul.
- Sobrenome?
- Até onde eu sei, esse era o sobrenome.
- Que idioma nosso amigo Paul falava?
- Francês.
- Local?
- Não, tinha sotaque.
- De que tipo?
- Não consegui identificar - respondeu o don, franzindo as sobrancelhas grossas. - Dava a impressão de ter aprendido francês ouvindo os CDs de algum curso de línguas.
Era perfeito, mas ao mesmo tempo havia algo de estranho ali.
- Imagino que ele não tenha encontrado seu nome numa lista telefônica.
- Não, Allon. Ele tinha uma referência.
- Que tipo de referência?
- Um nome.
- Alguém que contratou você no passado.
- As referências costumam ser desse tipo.
- Que tipo de trabalho era?
- O tipo em que dois homens entram numa sala e só um sai. E não se dê o trabalho de me perguntar o nome da referência - acrescentou Orsati rapidamente. - Estamos
falando dos meus negócios.
Com um leve movimento da cabeça, Gabriel indicou que não tinha desejo que levar a questão mais a fundo, ao menos por enquanto. Então, perguntou a Anton por que o
homem tinha ido vê-lo.
- Conselho - respondeu Orsati.
- Sobre o quê?
- Ele me disse que tinha alguns produtos para mover. Falou que precisava de alguém com um barco rápido. Alguém que conhecesse as águas locais e pudesse navegar à
noite. Alguém que soubesse manter a boca fechada.
- Produto?
- Você pode achar estranho, mas ele não foi específico.
- Você supôs que ele fosse um contrabandista - disse Gabriel. Era mais uma declaração de fato do que uma pergunta.
- A Córsega é uma rota intensa de tráfico de heroína do Oriente Médio para a Europa. Ah, para seu governo, os Orsatis não lidam com narcóticos, embora se saiba que,
vez ou outra, nós eliminamos membros proeminentes desse mercado.
- Por uma taxa, é claro.
- Quanto mais proeminente, maior a taxa.
- Vocês foram capazes de oferecer o serviço para ele?
- Óbvio - respondeu o don. Em seguida, baixando a voz, acrescentou: - Às vezes nós mesmos movemos coisas durante a noite, Allon.
- Coisas como cadáveres?
Orsati deu de ombros.
- São um infeliz efeito colateral de nosso negócio - falou ele num tom filosófico. - Em geral, tentamos deixá-los onde caem. Mas, ocasionalmente, os clientes pagam
um pouco a mais para que eles desapareçam. Nosso método favorito é colocá-los em caixões de concreto e enviá-los para o fundo do mar. Só Deus sabe quantos estão
lá embaixo.
- Quanto Paul pagou?
- Cem mil.
- Como foi a divisão?
- Metade para mim, metade para o homem com o barco.
- Só metade?
- Sorte dele ter recebido tanto.
- E quando você soube que a garota inglesa tinha desaparecido?
- É óbvio que suspeitei. Quando vi a foto de Paul nos jornais... Basta dizer que não fiquei satisfeito. A última coisa que eu preciso é de problemas. São ruins para
os negócios.
- Você não aceita sequestrar mulheres jovens?
- Suspeito que nem você.
Gabriel permaneceu em silêncio.
- Não quis ofender - disse o don sinceramente.
- Não ofendeu, Don Orsati.
Anton encheu seu prato com pimentões assados e berinjela e encharcou-os com azeite de oliva do clã. Gabriel tomou um pouco de vinho, elogiou a comida e perguntou
pelo nome do homem com o barco rápido que conhecia as águas locais, como se não tivesse o mínimo interesse na resposta.
- Estamos entrando em território sensível - alertou Orsati. - Eu faço negócios com essas pessoas o tempo todo. Se descobrirem que as traí, as coisas ficariam feias,
Allon.
- Posso garantir, Don Orsati, que eles nunca vão saber como eu obtive a informação.
Orsati não pareceu convencido.
- Por que essa garota é tão importante a ponto de o grande Gabriel Allon procurá-la?
- Digamos que ela tem amigos poderosos.
- Amigos? - Orsati balançou a cabeça, cético. - Se você está envolvido, é mais do que isso.
- Você é muito sábio, Don Orsati.
- A macchia não tem olhos - comentou o don, misterioso.
- Eu preciso do nome dele - insistiu Gabriel, baixinho. - Ele nunca vai saber onde eu o obtive.
Orsati pegou a taça de vinho e a ergueu contra o sol.
- Se eu fosse você - disse, depois de um instante falaria com um homem chamado Marcel Lacroix. Talvez ele saiba algo sobre o lugar para onde a garota foi depois
que saiu da Córsega.
- Onde eu posso encontrá-lo?
- Marselha. Ele deixa o barco no Velho Porto.
- Qual lado?
- O sul, em frente à galeria de arte.
- Qual é o nome do barco?
- Moondance.
- “Dança da Lua”? Simpático.
- Garanto que não há nada de simpático a respeito de Marcel Lacroix ou dos homens para quem ele trabalha. Você precisa ser cuidadoso em Marselha.
- Você pode achar estranho, Don Orsati, mas eu já fiz isso uma ou duas vezes.
- É verdade. Mas você deveria estar morto há muito tempo. - Orsati passou o talismã para Gabriel. - Coloque isso no pescoço. Afasta mais do que só o mau-olhado.
- Na verdade, eu estava me perguntando se você tem algo um pouco mais poderoso.
- Como o quê?
- Uma arma.
O don sorriu.
- Eu tenho algo melhor do que uma arma.
Gabriel seguiu pela rua até ela virar uma estrada de terra e, então, foi um pouco mais além. O bode velho estava exatamente onde Don Orsati tinha dito que estaria,
bem antes da curva fechada à esquerda, à sombra das três oliveiras centenárias. Quando Gabriel se aproximou, ele se ergueu e ficou no meio da passagem estreita,
como se desafiasse o estranho a tentar passar. Tinha o corpo meio dourado e branco e uma barba vermelha. Assim como Allon, carregava cicatrizes de antigas batalhas.
Ele avançou o carro alguns centímetros, tentando fazer o bode entregar sua posição sem briga, mas o animal manteve-se firme. Gabriel olhou para a arma que Don Orsati
tinha lhe dado. Uma Beretta 9 milímetros carregada no banco do carona. Um tiro entre os chifres desgastados do bode seria o bastante para terminar o impasse. Mas
não era possível. O bode, assim como as velhas oliveiras, pertencia a Don Casabianca. Se Gabriel tocasse num pelo de sua maldita cabeça, haveria uma batalha e sangue
derramado.
Gabriel deu duas buzinadas, mas o bode não cedeu. Com um suspiro profundo, saiu do carro e tentou discutir com o bicho - primeiro em francês, depois italiano e por
fim, exasperado, em hebraico. O bode respondeu baixando a cabeça e a mirando como um aríete na direção da barriga de Gabriel. Mas Allon, que acreditava que a melhor
defesa era um bom ataque, avançou primeiro, balançando os braços e gritando como um lunático. Surpreso, o bode recuou na mesma hora e sumiu por um vão na macchia.
Gabriel voltou depressa até a porta aberta do carro, mas parou ao ouvir um som ao longe, como o gorjeio de um tordo. Ele se virou e olhou para cima, na direção da
casa ocre ao lado da colina seguinte. Parado no terraço estava um homem louro todo vestido de branco. E, embora Gabriel não pudesse ter certeza, parecia que o homem
estava rindo descontroladamente.
9
CÓRSEGA
O homem esperando por Gabriel na casa não era corso - ao menos não tinha nascido ali. Seu nome real era Christopher Keller e ele fora criado num sólido lar de classe
média alta no elegante distrito londrino de Kensington. Na Córsega, no entanto, apenas Don Orsati e um punhado de seus subordinados sabiam de tudo isso. Para o resto
da ilha, ele era conhecido simplesmente como “o Inglês”.
A história da jornada de Keller de Kensington à Córsega fora uma das mais intrigantes que Gabriel já escutara, o que em si já não era pouca coisa. Filho único de
dois médicos da Harley Street, logo cedo deixou claro que não tinha a menor intenção de seguir os passos dos pais. Obcecado por história, especialmente história
militar, queria se tornar um soldado. Seus pais o proibiram de se alistar no Exército e, por um tempo, ele se resignou. Matriculou-se em Cambridge e começou a estudar
história e idiomas orientais. Era um aluno brilhante, mas no segundo ano de estudos perdeu a paciência e uma noite sumiu sem deixar rastros. Alguns dias depois,
apareceu na casa do pai, em Kensington, de cabelo raspado, vestindo um uniforme verde-oliva: tinha entrado para o Exército britânico.
Após completar o treinamento básico, Keller se juntou a uma unidade de infantaria, mas seu intelecto, capacidade física e iniciativa logo chamaram a atenção do Serviço
Aéreo Especial, conhecido na Inglaterra como SAS. Poucos dias depois de chegar à sede do regimento em Hereford, ficou claro que Keller tinha encontrado sua vocação.
Seus resultados no “matadouro” - uma instalação abjeta onde recrutas praticavam combate e resgate de reféns - foram os melhores já registrados e os instrutores do
curso de combate desarmado escreveram que nunca tinham visto alguém com um talento tão instintivo para tirar a vida humana. Seu treinamento culminou numa marcha
de quase 65 quilômetros pelos pântanos ventosos conhecidos como Brecon Beacons, um teste de resistência que já tinha levado homens à morte. Com uma mochila de 25
quilos nas costas e um fuzil de 4,5 quilos nas mãos, Keller quebrou o recorde do percurso por trinta minutos, uma marca que nunca foi superada até os dias atuais.
Inicialmente, ele foi designado para um esquadrão Sabre especializado em guerra no deserto, mas sua carreira logo deu uma guinada quando um homem da inteligência
militar foi procurá-lo. Ele estava atrás de uma espécie única de soldado, capaz de executar o procedimento de observação próxima e outras tarefas especiais na Irlanda
do Norte. Disse estar impressionado com suas habilidades linguísticas e sua aptidão de improvisar e pensar rápido. Keller estaria interessado? Na mesma noite, Christopher
fez as malas e se mudou de Hereford para uma base secreta nas Terras Altas da Escócia.
No decorrer do treinamento, Keller demonstrou mais um talento notável. Havia anos que as forças de segurança e inteligência britânicas enfrentavam dificuldades com
a miríade de sotaques na Irlanda do Norte. Em Ulster, as comunidades inimigas eram capazes de identificar umas às outras apenas pelo som de uma voz, e a maneira
pela qual um homem dizia algumas frases simples poderia significar a diferença entre a vida e uma morte tenebrosa. Keller desenvolveu a habilidade de imitar as entonações
com perfeição. Podia até mesmo mudar de sotaque num piscar de olhos - um católico do condado de Armagh num minuto; um protestante da Shankill Road, de Belfast, no
momento seguinte; depois, um católico dos conjuntos habitacionais de Ballymurphy. Operou em Belfast por mais de um ano, rastreando membros do IRA, coletando pedaços
de fofocas úteis da comunidade local. Devido à natureza de seu trabalho, ocasionalmente ele passava várias semanas sem entrar em contato com os controladores.
Sua missão na Irlanda do Norte chegou a um final abrupto num fim de noite quando foi sequestrado na zona oeste de Belfast e levado até uma fazenda remota em Armagh.
Lá, Keller foi acusado de ser espião britânico. Ele sabia que a situação era desesperadora, então decidiu escapar lutando. Ao deixar a fazenda, quatro terroristas
veteranos do Exército Republicano Irlandês estavam mortos; dois foram praticamente cortados em pedacinhos.
Keller retornou a Hereford, achando que teria um longo descanso trabalhando como instrutor. Mas sua estadia ali terminou em agosto de 1990, quando Saddam Hussein
invadiu o Kwait. Keller voltou depressa à sua velha unidade Sabre e, em janeiro de 1991, já estava no deserto do Iraque, à procura dos lançadores de mísseis Scud
que aterrorizavam Tel Aviv. Na noite de 28 de janeiro, ele e sua equipe localizaram um lançador a 160 quilômetros a noroeste de Bagdá e transmitiram as coordenadas
por rádio para os comandantes na Arábia Saudita. Noventa minutos depois, uma formação de caças-bombardeiros da Coalizão passou voando baixo sobre o deserto. Mas,
num caso desastroso de fogo amigo, em vez dos Scuds, as aeronaves atacaram o esquadrão do SAS. Os oficiais britânicos concluíram que a unidade inteira fora perdida,
incluindo Keller. O obituário não mencionou seu trabalho na inteligência na Irlanda do Norte nem os quatro militantes do Exército Republicano Irlandês que ele tinha
matado na fazenda de Armagh.
O que os oficiais do Exército britânico não perceberam, no entanto, foi que Keller havia sobrevivido ao incidente. Seu primeiro instinto foi entrar em contato com
a base por rádio e requisitar uma extração. Em vez disso, enfurecido pela incompetência dos superiores, começou a caminhar. Oculto pelas típicas vestimentas de um
beduíno e altamente treinado na arte de movimentação clandestina, Keller passou pelas forças da Coalizão e entrou na Síria sem ser detectado. De lá, seguiu de carona
para o oeste, passando por Turquia, Grécia e Itália, até enfim chegar à costa da Córsega, onde caiu nos braços abertos de Don Orsati. Anton lhe deu uma casa e uma
mulher para ajudá-lo a cuidar de suas muitas feridas. Então, quando ele estava descansado, o don lhe deu trabalho. Com sua aparência do norte da Europa e o treinamento
do SAS, Keller foi capaz de cumprir contratos que estavam muito além da capacidade dos taddunaghiu de Orsati nascidos na Córsega. Um desses contratos tinha os nomes
de Anna Roube e Gabriel Allon. A consciência de Keller não permitiu que os matasse, mas o orgulho profissional o levou a deixar para trás o talismã que agora jazia
na palma da mão de Gabriel.
Por uma incrível coincidência, os dois homens já haviam se encontrado numa outra ocasião, muitos anos antes, quando Keller e diversos outros agentes do SAS foram
a Israel treinar técnicas de contraterrorismo. No último dia de sua estadia, Gabriel tinha concordado, com certa relutância, em dar uma palestra confidencial sobre
uma de suas operações mais ousadas: o assassinato de Abu Jihad em 1988, o segundo em comando da OLP, em sua casa na Tunísia. Keller sentou na primeira fileira e
prestou atenção em cada palavra de Allon. Depois, durante uma sessão de fotos do grupo, posicionou-se ao lado de Gabriel, que estava usando óculos escuros e um chapéu
para ocultar sua identidade. Mas Keller olhou direto para a câmera. Foi uma das últimas fotografias tiradas dele.
Agora, enquanto Gabriel saía do carro alugado, o homem que lhe poupara a vida estava parado no vão da porta de seu refúgio na Córsega. Ele era uma cabeça mais alto
que Gabriel e tinha o peito e os ombros bem mais largos. Vinte anos sob o sol corso haviam alterado bastante sua aparência. Agora a pele tinha cor de couro e os
cabelos curtos estavam esbranquiçados pelo mar. Apenas os olhos azuis pareciam iguais. Eram os mesmos que haviam observado Gabriel com tanta atenção quando ele recontara
a morte de Abu Jihad. Os mesmos que, certa vez, em outra época, lhe concederam clemência numa noite chuvosa em Veneza.
- Eu lhe ofereceria um almoço - disse Keller, com seu sotaque britânico claro -, mas fiquei sabendo que você comeu no Chez Orsati.
Quando Keller estendeu a mão, os músculos de seu braço se contraíram sob o casaco branco. Gabriel hesitou por um instante antes de cumprimentá-lo. Cada aspecto de
Keller, desde as mãos potentes até as pernas poderosas, parecia ter sido projetado especificamente para matar.
- O que o don disse? - perguntou Gabriel.
- O suficiente para eu saber que não deveria chegar perto de um homem como Marcel Lacroix sem reforços.
- Então você o conhece?
- Uma vez ele me deu carona.
- Antes ou depois?
- Os dois. Lacroix passou um tempo no Exército francês. E também em algumas das piores prisões do país.
- E isso deveria me impressionar?
- “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas.”
- Sun Tzu - completou Gabriel.
- Você citou essa passagem durante sua palestra em Tel Aviv.
- Então você estava prestando atenção, afinal.
Gabriel passou por Keller e entrou na ampla sala da casa. A mobília era rústica e, assim como Keller, coberta de tecido branco. Todas as superfícies estavam revestidas
por pilhas de livros e as paredes tinham várias pinturas de qualidade, incluindo trabalhos menos conhecidos de Cézanne, Matisse e Monet.
- Nenhum sistema de segurança? - perguntou Gabriel, passando os olhos pela sala.
- Não é necessário.
Gabriel se aproximou do Cézanne, uma paisagem pintada nas colinas perto de Aix-en-Provence, e passou a ponta do dedo com delicadeza pela tela.
- Você está se saindo muito bem, Keller.
- Dá para pagar as contas.
Gabriel não disse nada.
- Você desaprova a minha forma de ganhar a vida?
- Você mata pessoas por dinheiro.
- Você também.
- Eu mato pelo meu país, e só como último recurso.
- Foi por isso que você estourou os miolos de Ivan Kharkov naquela rua em Saint-Tropez? Pelo seu país?
Gabriel deu as costas para o Cézanne e olhou bem nos olhos de Keller. Qualquer outro homem teria murchado perante a intensidade do olhar de Gabriel, mas não Keller.
Seu braços poderosos estavam cruzados despreocupadamente sobre o peito, e um canto da boca estava erguido num meio sorriso.
- Talvez essa não seja uma boa ideia, afinal - falou Gabriel.
- Eu conheço os jogadores e conheço o terreno. Seria tolice não me usar.
Gabriel não respondeu; Keller tinha razão. Ele era o guia perfeito para o mundo do crime na França. E suas habilidades físicas e táticas certamente se provariam
valiosas para os problemas que eles enfrentariam.
- Eu não posso pagar - avisou Gabriel.
- Não preciso de dinheiro - retrucou Keller, observando a bela casa. - Mas preciso que você responda a algumas perguntas antes de partirmos.
- Se não a encontrarmos em cinco dias, ela morre.
- Cinco dias são uma eternidade para homens como nós.
- Sou todo ouvidos.
- Para quem você está trabalhando?
- Para o primeiro-ministro da Inglaterra.
- Não sabia que vocês estavam se falando.
- Alguém da inteligência britânica entrou em contato comigo.
- Em nome do primeiro-ministro?
Gabriel assentiu.
- Qual é a ligação entre o primeiro-ministro e essa garota?
- Tente adivinhar.
- Meu Deus.
- Deus tem muito pouco a ver com isso.
- Quem é o amigo do primeiro-ministro na inteligência britânica?
Gabriel hesitou, então respondeu à pergunta honestamente. Keller sorriu.
- Você o conhece? - perguntou Gabriel.
- Trabalhei com Graham na Irlanda do Norte. Ele é um profissional de verdade. Mas, assim como todo mundo na Inglaterra, acha que estou morto. Logo, não pode saber
que estou trabalhando com você.
- Você tem a minha palavra.
- Tem mais uma coisa que eu quero.
Keller estendeu a mão e Gabriel entregou o talismã.
- Estou surpreso que você o tenha guardado.
- Tem valor sentimental.
Keller pendurou-o no pescoço.
- Vamos - disse ele, sorrindo. - Eu sei onde a gente pode arrumar outro para você.
A signadora vivia numa casa torta no centro do vilarejo, não muito longe da igreja. Keller chegou sem marcar horário, mas a idosa não pareceu surpresa ao vê-lo.
Ela vestia uma túnica preta, e um cachecol preto cobria os cabelos bem secos. Abrindo um sorriso preocupado, tocou a bochecha de Keller com delicadeza. Em seguida,
segurou a cruz pesada pendurada no pescoço e voltou o olhar para Gabriel. Sua tarefa era cuidar dos afligidos pelo mau-olhado. Ela temia que Keller tivesse trazido
a própria encarnação do mal para seu lar.
- Quem é esse homem?
- Um amigo - respondeu Keller.
- Ele é um crente?
- Não como nós.
- Diga-me o nome dele, Christopher... seu nome real.
- Gabriel.
- Como o arcanjo?
- Sim.
Ela analisou o rosto de Gabriel com atenção.
- Ele é israelita, não é?
Keller assentiu e a velha franziu um pouco a testa em desaprovação. Pela doutrina, a signadora considerava os judeus como hereges, mas pessoalmente não tinha nada
contra. Ela desabotoou a camisa de Keller e tocou no talismã dele.
- Esse não é o que você perdeu muitos anos atrás?
- Sim.
- Onde você o encontrou?
- No fundo de uma gaveta abarrotada.
A signadora balançou a cabeça.
- Você está mentindo para mim, Christopher. Você nunca vai aprender que eu sei perceber?
Keller sorriu, mas não disse nada. A velha soltou o talismã e tocou sua bochecha de novo.
- Você está deixando a ilha, Christopher?
- Esta noite.
A signadora não indagou o motivo: sabia exatamente o que Keller fazia para ganhar a vida. Na verdade, ela já tinha até mesmo contratado um jovem taddunaghiu chamado
Anton Orsati para vingar o assassinato do marido.
Com um meneio de cabeça, convidou Keller e Gabriel para se sentarem à pequena mesa de madeira em sua sala. Colocou sobre o tampo um prato cheio de água e uma vasilha
de azeite de oliva. Keller mergulhou o dedo indicador no azeite e, em seguida, o manteve acima do prato, para que três gotas caíssem na água. De acordo com as leis
da física, elas deveriam ter-se aglomerado. Em vez disso, a substância se desfez em mil gotículas e desapareceu.
- O mal retornou, Christopher.
- Receio que seja um risco ocupacional.
- Não faça piadas, meu querido. O perigo é muito real.
- O que a senhora vê?
Ela focou toda a atenção no líquido, como se estivesse em transe. Depois, perguntou baixinho:
- Vocês estão procurando a garota inglesa?
Keller assentiu.
- Ela está viva?
- Sim - respondeu a velha. - Está viva.
- Onde ela está?
- Não está em meu poder dizer isso.
- Nós vamos encontrá-la?
- Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.
- O que a senhora vê?
Ela fechou os olhos.
- Água... montanhas... um velho inimigo...
- Meu?
- Não. - Ela abriu os olhos e encarou Gabriel. - Dele.
A signadora pegou a mão do Inglês e rezou. Após um momento, começou a chorar, um sinal de que o mal tinha passado do corpo de Keller para o seu. Em seguida, fechou
os olhos e pareceu adormecer. Ao acordar, instruiu Keller a repetir o teste do azeite e da água. Dessa vez, o azeite se aglomerou numa única gota.
- O mal saiu da sua alma, Christopher. - Voltando-se para Gabriel, a velha disse: - Agora ele.
- Eu não sou um crente - retrucou Gabriel.
- Por favor - pediu ela. - Se não por você, por Christopher.
Relutante, Gabriel mergulhou o indicador no azeite e deixou três gotas caírem na água. Quando o azeite se dividiu em mil gotículas, a mulher fechou os olhos e começou
a estremecer.
- O que a senhora vê? - perguntou Keller.
- Fogo - respondeu ela, baixinho. - Eu vejo fogo.
Havia uma balsa saindo de Ajaccio às cinco horas. Às quatro e meia, Gabriel estacionou o Peugeot na embarcação e, dez minutos depois, observou Keller subir a bordo
dirigindo um Renault velho. Seus compartimentos ficavam no mesmo deque, um de frente para o outro. O de Gabriel tinha o tamanho e a falta de atrativo de uma cela
de prisão. Ele deixou a mala na cama minúscula e subiu as escadas para o bar. Ao chegar, encontrou Keller sentado a uma mesa perto da janela, tomando um gole de
cerveja com um cigarro queimando no cinzeiro.
Gabriel balançou a cabeça devagar. Quarenta e oito horas atrás, estava diante de uma tela em Jerusalém. Agora buscava por uma mulher desconhecida, acompanhado por
um homem que, no passado, aceitara um contrato para matá-lo.
Pediu um café preto ao barman e saiu para o convés de popa. A balsa já estava longe do porto e o ar da noite havia esfriado. Gabriel levantou a gola do casaco e
envolveu a xícara de café com as mãos para se aquecer. As estrelas do leste brilhavam intensamente no céu sem nuvens, e o mar, que um instante antes estava turquesa,
logo se tornou nanquim. Gabriel teve a impressão de sentir o cheiro de macchia no vento. Um pouco depois, escutou a voz da signadora: “Quando ela estiver morta.
Então vocês saberão a verdade.”
10
MARSELHA
Quando Gabriel e Keller chegaram a Marselha no começo da manhã seguinte, o Moondance estava amarrado no ponto de sempre no Velho Porto, ostentando seus 42 pés de
puro poder de contrabando. O dono, no entanto, não estava à vista. Keller montou um posto estático de observação no lado norte e Gabriel ficou a leste, na frente
de uma pizzaria que, inexplicavelmente, tinha o nome de uma região chique de Manhattan. A cada hora eles mudavam de posição, mas no fim da tarde ainda não havia
sinal de Lacroix. Por fim, ansioso com a perspectiva de um dia perdido, Gabriel percorreu o perímetro do porto, passou pelos vendedores de peixe em suas bancas de
metal e se juntou a Keller no Renault. O tempo estava piorando: chuva pesada, um vento frio vindo das colinas. Keller ligava os limpadores em intervalos de alguns
segundos para manter o para-brisa transparente. O degelador ofegava fracamente contra o vidro embaçado.
- Você tem certeza de que ele não possui apartamentos na cidade? - perguntou Gabriel.
- Ele mora no barco.
- E quanto a mulher?
- Ele tem várias, mas nenhuma consegue tolerar sua presença por muito tempo. - Keller limpou o para-brisa com o dorso da mão. - Talvez possamos ficar num hotel.
- Não acha um pouco cedo? Afinal, acabamos de nos conhecer.
- Você sempre faz piadas cretinas durante as operações?
- É um mal cultural.
- Piadas cretinas ou operações?
- Ambos.
Keller pegou um guardanapo do porta-luvas e fez o melhor que pôde para consertar a bagunça que tinha feito no para-brisa.
- Minha avó era judia - comentou ele casualmente, como se admitisse que sua avó gostava de jogar bridge.
- Parabéns.
- Outra piada?
- O que você quer que eu diga?
- Você não acha interessante que eu tenha uma ancestral judia?
- Por minha experiência, a maior parte dos europeus tem um parente judeu escondido em algum lugar.
- A minha estava em plena vista.
- Onde ela nasceu?
- Na Alemanha.
- Ela foi para a Inglaterra durante a guerra?
- Logo antes. Ela foi abrigada por um tio distante que não se considerava mais judeu. Ele lhe deu um nome cristão adequado e a mandou para a igreja. Minha mãe só
soube que tinha um passado judeu com 30 e tantos anos.
- Odeio ser portador de más notícias - disse Gabriel -, mas, na minha opinião, você é judeu.
- Para ser sincero, sempre me senti um pouco judeu.
- Você tem aversão a mariscos e a ópera alemã?
- Quis dizer num sentido espiritual.
- Você é um assassino profissional, Keller.
- Isso não significa que eu não acredite em Deus. Na verdade, suspeito que eu saiba mais sobre a sua história e as suas escrituras do que você.
- Então por que você anda com aquela mística maluca?
- Ela não é maluca.
- Não me diga que você acredita naquela bobagem.
- Como ela sabia que estávamos procurando a garota?
- Suponho que o don lhe tenha dito.
- Não - discordou Keller, balançando a cabeça. - Ela viu. Ela vê tudo.
- Como a água e as montanhas?
- Sim.
- Nós estamos no sul da França, Keller. Eu também vejo água e montanhas. Inclusive, parecem estar por toda parte.
- É óbvio que ela deixou você nervoso com aquela conversa sobre um velho inimigo.
- Eu não fico nervoso. Quanto a velhos inimigos, não consigo sair da porta de casa sem trombar com um.
- Então talvez você devesse mudar a porta da sua casa de lugar.
- Isso é um provérbio corso?
- Só um conselho amigável.
- Ainda não somos exatamente amigos.
Keller encolheu os ombros quadrados para demonstrar indiferença, mágoa ou algo entre um sentimento e outro.
- O que você fez com o talismã que ela lhe deu? - perguntou ele depois de um silêncio amuado.
Gabriel deu um tapinha no peito para indicar que o talismã, idêntico ao de Keller, estava pendurado no pescoço.
- Se você não acredita - indagou Keller por que o está usando?
- Eu gosto do modo como ele valoriza as minhas roupas.
- O que quer que você faça, não o tire: ele mantém o mal à distância.
- Eu gostaria de manter à distância algumas pessoas na minha vida.
- Como Ari Shamron?
- Como você sabe de Shamron? - perguntou Gabriel, ocultando sua surpresa.
- Eu o conheci quando fui treinar em Israel. Além do mais, todo mundo no negócio sabe de Shamron. E todo mundo sabe que ele queria que você fosse c chefe, em vez
de Uzi Navot.
- Você não devia acreditar em tudo que lê nos jornais, Keller.
- Eu tenho boas fontes. E elas me disseram que o emprego era seu, mas você o recusou.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse Gabriel, com o olhar cansado voltado para o para-brisa respingado de chuva -, mas não estou a fim de ter um papo
nostálgico com você.
- Eu só estava tentando matar tempo.
- Talvez pudéssemos aproveitar um silêncio confortável.
- Outra piada?
- Você entenderia se fosse judeu.
- Tecnicamente eu sou judeu.
- Quem você prefere: Puccini ou Wagner?
- Wagner, claro.
- Então não tem como você ser judeu.
Keller acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo para apagá-lo. Uma rajada de vento jogou a chuva no para-brisa, dificultando a visão do porto. Gabriel baixou a sua
janela alguns centímetros para dar vazão à fumaça de Keller.
- Talvez você esteja certo - disse ele por fim. - Talvez um quarto seja uma boa ideia.
- Não acho que seja necessário.
- Por que não?
Keller ligou os limpadores do para-brisa e apontou para além do vidro.
- Porque Marcel Lacroix está vindo em nossa direção.
Ele estava usando um agasalho preto e tênis verde-néon, e carregava no ombro uma mala esportiva Puma. Era óbvio que Lacroix havia passado a maior parte da tarde
na academia. Não que ele precisasse de exercício: tinha pelo menos 1,90 metro e pesava mais de 90 quilos. Seus cabelos escuros com gel estavam presos num rabo de
cavalo curto. Havia piercings nas duas orelhas e ideogramas chineses tatuados no lado do seu grosso pescoço - evidência de que era um estudante das artes marciais
asiáticas. Seus olhos não paravam de se mexer, mas ele não chegou a perceber os dois homens sentados no pequeno Renault com janelas embaçadas. Enquanto o observava,
Gabriel deu um suspiro profundo. Lacroix certamente seria um oponente digno, em especial dentro do espaço apertado do Moondance. Apesar do que dizem, tamanho é documento.
- Nenhuma piadinha? - perguntou Keller.
- Estou pensando em alguma.
- Por que você não me deixa cuidar disso?
- Por alguma razão, não acho que sei a uma boa ideia.
- Por que não?
- Porque ele sabe que você trabalha para Don Orsati. Se você aparecer e começar a fazer perguntas sobre Madeline Hart, ele vai saber que foi traído, e isso seria
prejudicial aos interesses do don.
- Deixe que eu me preocupo com os interesses do don.
- É por isso que você está aqui, Keller?
- Eu estou aqui para garantir que você não acabe num caixão de cimento no fundo do Mediterrâneo.
- Há lugares piores para ser enterrado.
- A lei judia não permite enterros no mar.
Keller ficou em silêncio quando Lacroix entrou na doca e começou a seguir em direção ao Moondance. Gabriel focou na região lombar do francês, prestando atenção em
como pendia a roupa esportiva. Em seguida, olhou para a forma como a bolsa estava pendurada.
- O que você acha? - perguntou Keller.
- Acho que ele está carregando a arma na bolsa.
- Você também notou isso?
- Eu noto tudo.
- Como você vai fazer?
- Do jeito mais silencioso possível.
- O que você quer que eu faça?
- Espere aqui - respondeu Gabriel, abrindo a porta do carro. - E tente não matar ninguém até eu voltar.
O Escritório tinha uma doutrina simples quanto ao uso operacional adequado de armas ocultas. Ela fora dada por Deus a Ari Shamron - pelo menos era o que dizia a
história -, que por sua vez passou-a para todos os que adentravam secretamente a noite para desempenharem seus serviços. Embora não estivesse escrita em lugar algum,
todo agente de campo era capaz de recitá-la com tanta facilidade quanto a bênção das velas no sabá. Um agente do Escritório saca a arma com apenas um propósito.
Ele não a brande como um gângster nem faz ameaças vazias. Apenas atira - e só interrompe os disparos quando o alvo não está mais entre os vivos. Amém.
Foi com a advertência de Shamron ecoando em seus ouvidos que Gabriel deu os passos finais na direção do Moondance. Hesitou antes de embarcar. Até mesmo um homem
tão esguio quanto ele poderia fazer com que o barco se inclinasse um pouco. Portanto, velocidade e uma confiança aparente seriam essenciais.
Gabriel deu uma última olhada por cima do ombro e viu que Keller o observava com um pouco de receio pela janela do carona do Renault. Em seguida, subiu a bordo do
Moondance e atravessou rapidamente o convés de popa até a cabine principal. Lacroix estava no vão da porta. No espaço apertado do barco, o francês parecia ainda
maior do que na rua.
- Que porra você está fazendo no meu barco? - ele exigiu saber.
- Peço desculpas - disse Gabriel, erguendo as mãos num gesto conciliatório. - Me disseram que você estaria me esperando.
- Quem disse?
- Paul, é claro. Ele não falou que eu estava vindo?
- Paul?
- Sim, Paul - respondeu Gabriel, confiante. - O homem que o contratou para entregar o pacote da Córsega ao continente. Ele disse que você era o melhor profissional
que já viu. Que, se eu precisasse de alguém para transportar bens valiosos, você era a pessoa certa.
Gabriel viu uma série de reações na expressão do francês: confusão, apreensão e, claro, cobiça. No fim, a cobiça saiu vitoriosa. Ele deu um passo para o lado e,
com um movimento dos olhos, o convidou para entrar. Gabriel deu dois passos lânguidos para a frente enquanto analisava o interior da cabine, tentando encontrar a
bolsa de ginástica de Lacroix. Estava em cima de uma mesa, ao lado de uma garrafa de Pernod.
- Você se incomoda? - perguntou Gabriel, meneando a cabeça em direção à porta. - Não é o tipo de coisa que você queira que os seus vizinhos ouçam.
Lacroix hesitou por um instante. Em seguida, andou até a porta e fechou-a. Gabriel se posicionou ao lado da mesa que continha a mala esportiva.
- Que tipo de trabalho é? - perguntou Lacroix, voltando-se para Gabriel.
- Muito simples. Na verdade, vai levar só alguns minutos.
- Quanto?
- O que você quer dizer? - perguntou Gabriel, fingindo confusão.
- Quanto dinheiro você está oferecendo? - indagou Lacroix, esfregando o indicador e o dedo médio no polegar.
- Estou oferecendo algo muito mais valioso do que dinheiro.
- O que seria?
- A sua vida. Marcel, você vai me dizer o que seu amigo Paul fez com a garota inglesa. E, se não disser, vou cortá-lo em pedacinhos e usá-lo como isca para peixe.
A arte marcial israelense do krav maga não é conhecida por sua elegância, mas não foi projetada mesmo para ser estética. Seu único propósito é incapacitar ou matar
o adversário o mais rápido possível. Ao contrário de muitas disciplinas ocidentais, ele não hesita em usar objetos pesados para repelir um inimigo de maior tamanho
e força. Na verdade, os instrutores encorajam os alunos a usarem quaisquer recursos que tenham à disposição para se defenderem. Davi não se atracou com Golias, eles
gostavam de dizer, mas o atingiu com uma pedra. E só depois cortou sua cabeça.
Gabriel escolheu uma garrafa de Pernod em vez de uma pedra. Pegou-a pelo gargalo e lançou-a como uma faca na direção de Marcel Lacroix, que corria para atacá-lo.
A garrafa bateu bem no centro da testa do francês, abrindo um corte horizontal profundo logo acima da densa sobrancelha. Ao contrário de Golias, que caiu no instante
em que foi atingido, Lacroix conseguiu se manter de pé, embora com bastante dificuldade. Gabriel avançou e deu uma joelhada na virilha desprotegida do francês. Depois,
deu-lhe um soco no estômago e quebrou seu maxilar com uma cotovelada bem aplicada. Com o outro cotovelo, acertou sua têmpora, levando-o ao chão. Gabriel se agachou
e tocou o pescoço do francês para verificar se ele ainda tinha pulsação. Erguendo os olhos, viu Keller parado à porta, sorrindo.
- Impressionante. O Pernod foi um toque adorável.
11
PERTO DE MARSELHA
A chuva parou quando o sol se pôs, mas o vento mistral continuou soprando sem remorso muito depois do escurecer. Uivava nos cordames dos barcos amontoados no Velho
Porto e redemoinhava nos deques do Moondance enquanto Keller o conduzia com habilidade mar adentro. Gabriel permaneceu a seu lado na ponte de comando até eles saírem
do porto. Então, desceu as escadas para o alojamento principal, onde Marcel Lacroix jazia no chão, com o rosto voltado para baixo, amarrado, amordaçado e vendado.
Gabriel rolou o francês, deixando-o de barriga para cima, e tirou a fita adesiva que lhe cobria os olhos com um único movimento ríspido. Lacroix já tinha recuperado
a consciência e não havia sinal de medo em seus olhos, apenas fúria. Keller estava certo: não era fácil assustar o francês.
Gabriel voltou a vendá-lo e deu início a uma busca minuciosa na embarcação, começando pelo alojamento principal e terminando na cabine de Lacroix. Ele encontrou
um esconderijo com drogas ilegais, cerca de 60 mil euros em dinheiro vivo, passaportes falsos, carteiras de motorista francesas em quatro nomes diferentes, cartões
de crédito roubados, nove celulares descartáveis e uma coleção elaborada de pornografia impressa e eletrônica. Além disso, havia um recibo com um número de telefone
rabiscado atrás, de um lugar chamado Bar du Haut, no Boulevard Jean Jaurès, em Rognac, uma cidade de classe operária ao norte de Marselha, não muito longe do aeroporto.
Gabriel já tinha passado por ali uma vez, em outra época da vida. Era o tipo de lugar que servia apenas de parada a caminho de algum outro lugar.
Gabriel verificou a data do recibo. Em seguida, examinou os históricos de chamada dos nove celulares em busca do número escrito no verso do papel. Encontrou-o em
três dos telefones. Naquela manhã, Lacroix ligara duas vezes para ele com dois celulares diferentes.
Gabriel guardou os aparelhos, o recibo e o dinheiro numa mochila de náilon e voltou para o alojamento principal. Mais uma vez tirou a fita adesiva dos olhos de Lacroix,
mas também removeu a mordaça. O rosto do francês estava muito distorcido, devido ao inchaço do maxilar quebrado. Gabriel o apertou com força enquanto fitava os olhos
do contrabandista.
- Vou fazer algumas perguntas, Marcel. Você tem só uma chance para me dizer a verdade. Entendeu? - perguntou Gabriel, pressionando o maxilar dele com um pouco mais
de força. - Uma chance.
A única resposta de Lacroix foi um grunhido de dor.
- Uma chance - repetiu Gabriel, erguendo o indicador para enfatizar. - Está ouvindo?
Lacroix não respondeu.
- Vou tomar isso como um sim. Agora, Marcel, quero que você me diga os nomes dos homens que estão com a garota. E depois quero saber onde posso encontrá-los.
- Não sei nada sobre essa garota.
- Você está mentindo, Marcel.
- Não, eu juro...
Antes que Lacroix pudesse continuar, Gabriel lhe colocou a mordaça de novo. Em seguida, passou bastante fita adesiva ao redor da cabeça do francês, até deixar apenas
as suas narinas visíveis. Desceu até o convés inferior, pegou uma corda de náilon num armário e voltou para cima, até a ponte de comando. Keller segurava o leme
com as duas mãos, estreitando os olhos para o mar turbulento.
- Como está indo lá embaixo? - perguntou ele.
- Estou surpreso: não consegui persuadi-lo a cooperar.
- Por que a corda?
- Mais persuasão.
- Algo que eu possa fazer para ajudar?
- Reduza a velocidade e ligue o piloto automático.
Keller obedeceu e seguiu Gabriel até o alojamento principal. Encontraram Lacroix bem perturbado, arfante, lutando para respirar através do capacete de fita adesiva.
Gabriel o rolou, deixando-o de barriga para baixo, e passou a corda de náilon pelas amarras nos pés e calcanhares. Depois de prendê-la com um nó firme, arrastou
Lacroix até o convés de popa como se ele fosse uma baleia recém-arpoada. Então, com a ajuda de Keller, aproximou o francês da beirada e o jogou para fora do barco.
Lacroix bateu na água escura com um baque pesado e começou a se debater ferozmente para tentar manter a cabeça acima da superfície. Gabriel o observou por um momento
e, em seguida, vasculhou o horizonte em todas as direções. Nenhuma luz visível. Era como se eles fossem os três últimos homens na terra.
- Como você vai saber quando parar? - perguntou Keller, vendo Lacroix lutar pela própria vida.
- Quando ele começar a afundar - respondeu Gabriel, calmo.
- Me lembre de nunca entrar na sua lista negra.
- Nunca entre na minha lista negra.
Depois de 45 segundos na água, de repente Lacroix parou de se mover. Gabriel e Keller o puxaram depressa de volta para o barco e removeram a fita adesiva que lhe
cobria a boca. Por vários minutos, o francês não conseguiu falar, alternando-se entre respirar sofregamente e tossir água do mar. Quando ele pareceu cuspir tudo,
Gabriel segurou o maxilar quebrado e o apertou.
- Você pode não estar se dando conta neste instante, mas hoje é seu dia de sorte, Marcel. Agora vamos tentar de novo: diga onde eu posso encontrar a garota.
- Eu não sei.
- Você está mentindo para mim, Marcel.
- Não - respondeu Lacroix, balançando a cabeça violentamente de um lado para o outro. - Estou dizendo a verdade. Não faço ideia de onde ela está.
- Mas você conhece um dos homens que está com ela. Você até tomou uns drinques com ele num bar em Rognac uma semana antes de a garota desaparecer. E, desde então,
você tem se mantido em contato com ele.
Lacroix ficou em silêncio. Gabriel apertou o maxilar quebrado com mais força.
- O nome, Marcel. Diga-me o nome dele.
- Brossard - Lacroix se esforçou para dizer, tomado pela dor. - O nome dele é René Brossard.
Gabriel encarou Keller, que assentiu.
- Muito bem - falou para Lacroix, relaxando o aperto. - Agora continue falando. E nem pense em mentir para mim. Caso contrário, volta para a água. Mas, da próxima
vez, vai ser para sempre.
12
PERTO DE MARSELHA
O convés de popa tinha duas cadeiras giratórias. Gabriel amarrou Lacroix na que estava a estibordo e sentou-se na outra, diante dele. Lacroix continuou vendado,
a roupa encharcada pelo tempo que passara dentro d'água. Tremendo violentamente, implorou por uma muda de roupas ou um cobertor. Como não teve resposta, falou de
uma noite quente em meados de agosto, quando um homem aparecera no Moondance sem aviso prévio, da mesma forma que Gabriel havia feito mais cedo.
- Paul? - perguntou Gabriel.
- Sim, Paul.
- Vocês se conheciam?
- Não, mas eu já o tinha visto.
- Onde?
- Em Cannes.
- Quando?
- Durante o festival de cinema.
- Este ano?
- Sim, em maio.
- Você foi ao Festival de Cannes?
- Eu não estava na lista de convidados, se é isso que você quer saber. Estava trabalhando.
- Que tipo de trabalho?
- O que você acha?
- Roubando das estrelas do cinema e dos ricaços?
- É uma das nossas semanas mais ocupadas do ano, uma verdadeira dádiva para a economia local. Só tem imbecil em Hollywood. Nós os roubamos todas as vezes que o pessoal
de lá vem para cá, e acho que nem percebem.
- O que Paul estava fazendo?
- Passando tempo com os ricaços. Acho que até o vi entrando no salão umas duas vezes para ver os filmes.
- Acha?
- Ele sempre tem uma aparência diferente.
- Ele estava dando golpes em Cannes?
- Isso você teria que perguntar para ele. Não discutimos esse assunto quando ele veio me ver. Só falamos do serviço.
- Ele queria contratar você e o seu barco para levarem a garota da Córsega até o continente.
- Não - negou Lacroix, balançando a cabeça com veemência. - Ele nunca disse nenhuma palavra sobre uma garota.
- O que foi que ele disse?
- Queria que eu entregasse um pacote.
- Você não perguntou o que era?
- Não.
- Você sempre opera assim?
- Depende.
- Do quê?
- De quanto dinheiro tem na mesa.
- E quanto tinha?
- Cinquenta mil.
- Isso é bom?
- Muito bom.
- Ele chegou a mencionar onde obteve o seu nome?
- Com o don.
- Que don7.
- Don Orsati, o Corso.
- Que tipo de trabalho o don faz?
- Ele tem um dedo em todo tipo de esquema, mas principalmente em assassinatos. De vez em quando, dou uma carona para um de seus homens. E às vezes eu ajudo a fazer
coisas desaparecerem.
O inquérito de Gabriel tinha um propósito duplo. Permitia testar a veracidade das respostas de Lacroix, ao mesmo tempo que encobria suas próprias pegadas. Agora
o francês achava que Gabriel nunca tivera o prazer de conhecer um assassino corso chamado Orsati. E, pelo menos até agora, ele estava respondendo honestamente às
perguntas de Gabriel.
- Paul disse quando o serviço ia ser executado?
- Não. Ele disse que me avisaria 24 horas antes e que eu provavelmente ouviria algo dele em uma semana, dez dias no máximo.
- Como ele entraria em contato com você?
- Por telefone.
- Você ainda tem o telefone que usou?
Lacroix assentiu e recitou o número associado ao aparelho.
- Ele ligou?
- No oitavo dia.
- O que ele falou?
- Me pediu para buscá-lo na manhã seguinte, na enseada que fica bem ao sul de Capo di Feno.
- A que horas?
- Três da madrugada.
- Como ficou combinado?
- Ele queria que eu deixasse um bote na praia e o esperasse no mar.
Gabriel ergueu os olhos para a ponte de comando, de onde Keller observava o interrogatório. O Inglês aquiesceu, como se confirmando que de fato há uma enseada em
Capo di Feno e que o cenário descrito por Lacroix era perfeitamente plausível.
- Quando você chegou à Córsega? - perguntou Gabriel.
- Alguns minutos após a meia-noite.
- Estava sozinho?
- Sim.
- Tem certeza?
- Sim, eu juro.
- A que horas você deixou o bote na praia?
- Às duas.
- Como você voltou para o Moondance?
- Fui andando - brincou Lacroix. - Como Jesus.
Gabriel arrancou o piercing da orelha direita de Lacroix.
- Foi só uma piada - alegou o francês, arquejante, com sangue fluindo do lóbulo arruinado.
- Se eu fosse você - retrucou Gabriel não estaria fazendo piadas sobre o Senhor num momento destes. Eu faria o possível para conseguir cair nas graças Dele.
Gabriel olhou de novo para a ponte de comando e viu que Keller tentava conter um sorriso. Em seguida, mandou Lacroix descrever os eventos que se seguiram. Paul,
disse o francês, chegara bem na hora, às três em ponto. Lacroix tinha visto um único veículo, um pequeno modelo com tração nas quatro rodas, descendo aos solavancos
a pista íngreme do topo da colina até a enseada, só com as luzes de freio acesas. Então, ouviu o barco se aproximar pela água. Quando o escaler encostou na popa
do Moondance, ele viu a garota.
- Paul estava com ela?
- Sim.
- Mais alguém?
- Não, só Paul.
- Ela estava inconsciente?
- Quase.
- O que estava usando?
- Vestido branco. E um capuz preto cobria sua cabeça.
- Você viu o rosto dela?
- Em nenhum momento.
- Alguma ferida?
- Os joelhos estavam sangrando e os braços tinham muitos arranhões e hematomas.
- Algemas?
- Nas mãos.
- Na frente do corpo ou atrás?
- Atrás.
- De que tipo?
- Algemas plásticas, muito profissionais.
- Continue.
- Paul deitou a garota num sofá no alojamento principal e aplicou algo nela para deixá-la quieta. Depois veio para a ponte de comando e me disse para onde queria
ir.
- Para onde?
- Para o estuário logo a oeste de Saintes-Maries-de-la-Mer. O lugar tem uma marina pequena, já usei antes. É um ponto excelente. Paul tinha feito a lição de casa.
Outra olhada para Keller. Outro assentimento.
- Você atravessou direto?
- Não - respondeu Lacroix. - Isso teria nos levado para a terra em plena luz do dia. Passamos o dia inteiro no mar. Avançamos em torno das onze horas daquela noite.
- Paul manteve a garota no alojamento o tempo inteiro?
- Ele a levou para a proa uma vez, mas fora isso...
- Fora isso o quê?
- Ele usou a seringa.
- Ketamina?
- Não sou médico.
- Não brinca.
- Você me fez uma pergunta, eu respondi.
- Ele a levou para a terra no escaler?
- Não. Eu fui direto para a marina. É o tipo de lugar onde dá para estacionar um carro bem ao lado do barco. Havia um esperando. Um Mercedes preto.
- Que tipo de Mercedes?
- Classe E.
- Placa?
- Francesa.
- Sem ninguém?
- Não. Havia dois homens. Um estava apoiado no capô quando nós entramos. O outro estava ao volante.
- Você conhecia o que estava apoiado no capô?
- Nunca o vi antes.
- Mas o que estava ao volante você conhecia, não é mesmo, Marcel?
- Sim. Era René Brossard.
René Brossard era o soldado raso de uma família criminosa com ligações internacionais que estava se dando bem em Marselha. Era especializado em trabalho pesado:
cobrança de dívidas, coerção, segurança. No tempo livre, trabalhava como leão de chácara num clube noturno perto do Velho Porto, principalmente porque gostava das
garotas que trabalhavam lá. Lacroix o conhecia da vizinhança. Também sabia seu telefone.
- Quando você ligou para ele? - perguntou Gabriel.
- Alguns dias depois de ter lido a primeira matéria sobre a garota inglesa que desapareceu durante as férias na Córsega. Somei um mais um e me dei conta de que era
a garota que eu tinha deixado no porto em Saintes-Maries-de-la-Mer.
- Você é algum tipo de gênio da matemática?
- Eu sei somar - gracejou Lacroix.
- Você se deu conta de que Paul poderia receber uma bela grana de resgate de alguém e quis uma fatia do bolo.
- Ele me passou a perna quanto falou do tipo de trabalho. Eu nunca teria concordado em fazer parte do sequestro de alguém importante por meros 50 mil dólares.
- Quanto você queria?
- Eu tento não criar o hábito de negociar comigo mesmo.
- Homem sábio.
Gabriel perguntou a Lacroix quanto tempo Brossard tinha levado para retornar seu telefonema.
- Dois dias.
- Vocês entraram em detalhes pelo telefone?
- O suficiente para deixar claro o que eu queria. Brossard me ligou de volta algumas horas depois e me disse para ir ao Bar du Haut na tarde seguinte, às quatro.
- Isso foi uma burrice, Marcel.
- Por quê?
- Porque Paul poderia estar lá em vez de Brossard. E ele poderia ter metido uma bala entre os seus olhos por ter a audácia de pedir mais dinheiro.
- Eu sei cuidar de mim mesmo.
- Se isso fosse verdade - falou Gabriel -, você não estaria amarrado numa cadeira no próprio barco. Mas continue: você estava me contando sobre a sua conversa com
René Brossard.
- Ele disse que Paul queria ser razoável. Depois disso, começamos a negociar.
- Negociar?
- O preço do meu acordo. Paul fez uma oferta. Eu fiz uma contraoferta. Fomos e voltamos várias vezes.
Tudo por telefone?
Lacroix assentiu.
- Qual é o papel de Brossard na operação?
- Ele fica na casa onde estão mantendo a garota.
- Paul está lá também?
- Não perguntei.
- Quantas pessoas estão lá?
- Não sei. Só sei que outra mulher vive lá, para que eles pareçam uma família.
- Brossard chegou a mencionar a garota inglesa?
- Disse que ela está viva.
- Só isso?
- É.
- Qual é o estado atual das suas negociações com Paul e Brossard?
- Chegamos a um acordo esta manhã.
- Quanto você conseguiu arrancar deles?
- Mais 100 mil.
- Quando você vai pegar o dinheiro?
- Amanhã à tarde.
- Onde?
- Em Aix.
- Onde, lá?
- Num café perto da praça Charles de Gaulle.
- Qual é o nome do lugar?
- Le Provence. Mais alguma coisa?
- Como ficou combinado?
- Brossard ficou de aparecer primeiro, às cinco e dez. Vou encontrá-lo dez minutos depois.
- Onde ele vai estar sentado?
- Numa mesa do lado de fora.
- E o dinheiro?
- Brossard disse que estaria numa maleta de metal.
- Que discreto.
- Foi escolha dele, não minha.
- Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?
- Le Cézanne, subindo um pouco a rua.
- Quanto tempo ele vai esperar lá?
- Dez minutos.
- E se você não der as caras?
- O acordo é cancelado.
- Existe mais alguma instrução?
- Mais nenhum telefonema - respondeu Lacroix. - Paul está ficando nervoso com os telefonemas.
- Aposto que está.
Gabriel olhou para a ponte de comando, mas dessa vez Keller estava imóvel, um vulto contra o céu preto com uma arma nas mãos estendidas. O tiro, suprimido por um
silenciador, abriu um buraco em cima do olho esquerdo de Lacroix. Gabriel segurou os ombros do francês enquanto ele morria. Em seguida, virou-se, furioso, e apontou
a sua arma para Keller.
- É melhor você guardar isso antes que alguém se machuque - disse o Inglês com calma.
- Por que diabos você fez isso?
- Ele entrou na minha lista negra. Além disso - acrescentou Keller, enquanto guardava a arma na cintura -, ele não era mais necessário.
13
CÔTE D'AZUR, FRANÇA
Eles o lançaram ao fundo do mar nas águas profundas além do golfo de Leão e seguiram para Marselha. Ainda estava escuro quando chegaram ao Velho Porto. Gabriel e
Keller saíram do Moondance com alguns minutos de diferença um do outro, entraram nos seus carros, e percorreram a costa a caminho de Toulon. Um pouco antes da cidade
de Bandol, Gabriel parou na beira da estrada e afrouxou vários cabos do motor. Ligou para a locadora de veículos e, com a voz histérica de Herr Klemp, deixou uma
mensagem dizendo onde o carro “quebrado” podia ser encontrado. Depois de limpar as digitais do volante e do painel, entrou no Renault de Keller e os dois foram para
o leste, seguindo para Nice sob o sol nascente. Havia um prédio antigo na Rue Verdi, branco como um osso, onde o Escritório mantinha um de seus vários flats secretos
na França. Gabriel entrou no edifício sozinho e pegou a correspondência, que incluía a cópia do arquivo pessoal de Madeline Hart no Partido, solicitada a Graham
Seymour. De volta ao carro, ele leu o documento enquanto Keller dirigia rumo a Aix pela Autoroute A8.
- O que diz aí? - perguntou o Inglês depois de vários minutos de silêncio.
- Que Madeline Hart é perfeita. Mas nós já sabíamos disso.
- Eu também já fui perfeito. E olha como fiquei.
- Você sempre foi um patife, Keller. Só não percebeu até aquela noite no Iraque.
- Eu perdi oito colegas tentando proteger o seu país dos Scuds de Saddam.
- Somos eternamente gratos.
Mais calmo, Keller ligou o rádio e sintonizou numa estação sediada em Mônaco que transmitia em inglês, voltada para a grande comunidade de expatriados britânicos
que viviam no sul da França.
- Com saudades de casa? - perguntou Gabriel.
- Gosto de ouvir o som do meu idioma nativo de vez em quando.
- Você nunca voltou?
- Para a Inglaterra?
Gabriel assentiu.
- Nunca - respondeu Keller. - Eu me recuso a trabalhar lá e nunca aceite, contratos envolvendo ingleses.
- Que nobre da sua parte.
- Deve-se operar de acordo com um código de conduta.
- Então os seus pais não sabem que você está vivo?
- Não.
- Você não deve mesmo ser judeu - repreendeu Gabriel. - Nenhum garoto judeu deixaria a mãe pensar que ele está morto. Não se atreveria.
Gabriel abriu o registro mais recente do arquivo pessoal de Madeline Hart e o leu em silêncio enquanto Keller dirigia. Era a cópia de uma carta enviada por Jeremy
Fallon para o presidente do Partido, recomendando que a Srta. Hart fosse promovida a um posto júnior no ministério e preparada para cargos oficiais. Fitou uma fotografia
de Madeline sentada numa cafeteria a céu aberto com o homem que eles conheciam apenas pelo nome de Paul.
Observando-o, Keller perguntou:
- Em que você está pensando?
- Estou só me perguntando por que uma jovem estrela em ascensão no partido britânico da situação dividia uma garrafa de champanhe com um sujeito tão estranho como
o nosso amigo Paul.
- Porque ele sabia que Madeline tinha um caso com o primeiro-ministro. E estava se preparando para sequestrá-la.
- Como ele teria descoberto?
- Eu tenho uma teoria.
- É baseada em fatos?
- Em alguns.
- Então é só uma hipótese.
- Mas pelo menos vai ajudar a passar o tempo.
Gabriel fechou a pasta para indicar que estava prestando atenção. Keller desligou o rádio.
- Homens como Jonathan Lancaster sempre cometem o mesmo erro quando têm um caso: confiam que os guarda-costas vão ficar de boca fechada - começou o Inglês. - Mas
eles não ficam. Eles conversam entre si, conversam com as esposas, as namoradas, os velhos amigos que conseguiram trabalho no negócio particular de segurança da
Inglaterra. E, em pouco tempo, o caso chega aos ouvidos de alguém como Paul.
- Você acha que Paul está ligado ao negócio britânico de segurança?
- Ele poderia estar. Ou então conhecer alguém que esteja. Enfim, uma informação dessas vale ouro para alguém como Paul. Ele provavelmente manteve Madeline sob observação
em Londres e invadiu o celular e as contas de e-mail dela. E descobriu que a garota ia passar as férias na Córsega. Quando ela chegou, Paul a estava esperando.
- Então por que almoçar com ela? Por que correr o risco de mostrar o rosto?
- Porque, para o sequestro correr bem, precisava que ela estivesse sozinha.
- Ele a seduziu?
- Ele é um canalha charmoso.
- Essa eu não engulo - retrucou Gabriel, depois de pensar por um momento.
- Por que não?
- Porque, quando foi raptada, Madeline estava envolvida romanticamente com o primeiro-ministro britânico. Ela não teria sido seduzida por alguém como Paul.
- Madeline era a amante do primeiro-ministro, logo havia muito pouco romantismo em seu relacionamento. Ela devia ser uma garota solitária.
Gabriel olhou de novo para a foto - não para Madeline, mas para Paul.
- E quem é esse sujeito?
- Com certeza não é um amador. Só um profissional que conhece o don. E um profissional que se atreveria a bater na porta do don para pedir ajuda.
- Se ele é tão profissional, por que estava dependente do talento local para fazer o serviço?
- Você quer saber por que ele não tem equipe própria?
- Isso.
- Economia básica - respondeu Keller. - Manter uma equipe pode ser uma empreitada complicada. E, invariavelmente, as pessoas geram problemas. Quando o serviço é
lento, os garotos ficam infelizes. E, se conseguem bastante grana, querem uma parte maior.
- Então ele usa freelances com contratos diretos de taxa por serviço para evitar compartilhar os lucros.
- No ambiente global competitivo da economia atual, é o que todo mundo está fazendo.
- Não o don.
- O don é diferente. Nós somos uma família, um clã. E você está certo quanto a uma coisa: Marcel Lacroix teve sorte de não ter sido morto por um assassino a mando
de Paul. Se ele se atrevesse a pedir mais dinheiro a Don Orsati depois de completar um trabalho, teria acabado no fundo do Mediterrâneo dentro de um caixão de concreto.
- Que é onde ele está agora.
- Exceto pela parte do concreto, claro.
Gabriel olhou para Keller com desaprovação, mas não disse nada.
- Foi você que arrancou o brinco dele.
- Um lóbulo da orelha rasgado é um mal temporário. Uma bala no olho é um mal eterno.
- E o que a gente deveria ter feito com ele?
- Poderíamos tê-lo levado para a Córsega e o deixado com o don.
- Confie em mim, Gabriel, ele não teria durado muito. Orsati não gosta de problemas.
- E, como Stálin gostava de dizer, “a morte resolve todos os problemas”.
- “Se não há homem, não há problema” - Keller completou a citação.
- E se o homem estivesse mentindo para nós?
- O homem não tinha motivos para mentir.
- Por quê?
- Porque sabia que nunca ia sair vivo do barco - disse Keller, e acrescentou baixinho: - Ele só estava torcendo para ter uma morte indolor.
- Essa é outra de suas teorias?
- Regras de Marselha. Quando as coisas por aqui começam de forma violenta, sempre terminam com violência.
- E se René Brossard não estiver sentado no Le Provence às cinco e dez com uma maleta de metal? O que faremos?
- Ele vai estar lá.
Gabriel queria ser confiante como Keller, mas sua experiência o impedia. Consultou o relógio e calculou o tempo que tinham para salvar a garota.
- Caso Brossard apareça, talvez seja melhor não o matarmos antes de ele nos conduzir até o cativeiro de Madeline.
- E depois?
A morte resolve todos os problemas, pensou Gabriel. Se não há homem, não há problema.


CONTINUA

Advogado sem importância, Jonathan Lancaster não parecia nem um pouco apto a entrar na política. Mas ele sabia como trilhar seu caminho com base em contatos. Seus dois pilares foram Jeremy Fallon, o brilhante publicitário que procurava um garoto-propaganda para seu partido, e Simon Hewitt, o colunista que ditava o sucesso de qualquer aspirante a altos cargos. Assim, Lancaster se tornou o primeiro-ministro do Reino Unido, levando os amigos junto para o poder.
Passados quatro anos, o governo britânico está imerso em uma crise. Sem poder suportar mais nenhum problema em sua gestão, Lancaster recebe um bilhete de ameaça:
“Em sete dias a garota morre.’’ Acompanhando o papel, vem um vídeo de Madeline Hart, funcionária do partido, confessando ser amante do primeiro-ministro.
Para a negociação, Lancaster pede a ajuda de Gabriel Allon, um espião israelense em dívida com o governo britânico. Porém, nem com toda a sua experiência o agente conseguirá prever as consequências do surpreendente caso.


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Parte 1
A REFÉM
1
PlANA, CÓRSEGA
Foram atrás dela no final de agosto, na Córsega. A hora exata nunca seria determinada - algum momento entre o entardecer e o meio-dia do dia seguinte foi o máximo
que os funcionários da casa conseguiram determinar. Eles a viram pela última vez durante o pôr do sol, descendo a entrada da casa de campo numa lambreta vermelha,
com a saia de algodão transparente esvoaçando ao redor das coxas bronzeadas. Só ao meio-dia perceberam que não estava no quarto. A cama tinha apenas um livro, lido
pela metade e com cheiro de óleo de coco e um vago traço de rum. Mais 24 horas se passaram antes de ligarem para os gendarmes. Era um verão agitado e Madeline era
aquele tipo de garota.
Tinham chegado à ilha duas semanas antes: quatro garotas bonitas e dois rapazes zelosos, todos funcionários fiéis do governo britânico ou do partido da situação.
Traziam um único carro - um Renault hatch compartilhado, grande o bastante para acomodar cinco pessoas, ainda que sem conforto - e a lambreta vermelha, usada apenas
por Madeline, que a conduzia com uma imprudência quase suicida. A casa ocre ficava nos limites do vilarejo, a oeste, num penhasco com vista para o mar. Era arrumada
e compacta, o tipo de lugar que corretores sempre descrevem como “charmoso”, com piscina e um jardim murado repleto de arbustos de alecrim e aroeiras. Poucas horas
depois de chegarem, eles já tinham se acomodado naquele estado feliz de seminudez bronzeada a que os turistas britânicos aspiram, independentemente do destino de
suas viagens.
Embora fosse a mais jovem do grupo, informalmente Madeline era a líder, um fardo que aceitava sem problemas. Era ela que cuidava do aluguel da casa e providenciava
os longos almoços, os jantares tardios e os passeios para o interior da ilha, sempre seguindo à frente na lambreta pelas ruas traiçoeiras. Ela nem se dava o trabalho
de consultar um mapa. Seu conhecimento enciclopédico da geografia, história, cultura e cozinha da Córsega fora adquirido durante c longo período de estudo e preparações
intensas nas semanas anteriores à viagem. Pelo visto, Madeline não queria deixar nada ao acaso. Raramente deixava.
Ela havia entrado para o Partido em Millbank fazia dois anos, depois de se formar em Economia e Políticas Públicas na Universidade de Edimburgo. Apesar de ter cursado
uma instituição de segunda categoria - a maior parte de seu;
colegas vinha de escolas públicas de elite e de Oxbridge transitou rapidamente por uma série de cargos administrativos antes de ser promovida a diretora de Envolvimento
com a Comunidade. Seu emprego, como ela frequentemente o descrevia, consistia em conseguir votos junto a classes de britânicos que não tinham nenhuma razão para
apoiar o Partido, sua plataforma ou seus candidatos. Todos concordavam que não passava de um posto temporário em sua jornada para um status melhor. O futuro de Madeline
era brilhante - “brilhante como uma erupção solar”, nas palavras de Pauline, que observava a ascensão da colega mais jovem com uma boa dose de inveja. Rumares insinuavam
que ela era beneficiada pela influência de alguém importante no Partido. Alguém próximo ao primeiro-ministro. Talvez até mesmo o próprio. Com uma aparência de estrela
de cinema, intelecto aguçado e energia inesgotável, Madeline estava sendo preparada para uma vaga no Parlamento e um ministério. Tratava-se de uma questão de tempo.
Pelo menos era o que diziam.
Por tudo isso, era muito estranho que Madeline Hart fosse solteira aos 27 anos. Quando lhe perguntavam sobre sua parca vida amorosa, ela declarava que estava ocupada
demais para se dedicar a um homem. Fiona, uma linda mulher com cabelos escuros e um lado ligeiramente perverso, achava a explicação duvidosa. Na verdade, até acreditava
que Madeline estava sendo desonesta - sendo que desonestidade era a melhor qualidade de Fiona, por isso seu interesse pelas políticas do Partido. Para sustentar
sua teoria, ressaltava que, embora se estendesse em conversas sobre qualquer assunto imaginável, a moça era excepcionalmente reservada quando se tratava da vida
pessoal. Madeline se dispunha a oferecer boatos ocasionais e inofensivos sobre a infância problemática - a sombria moradia popular em Essex, o pai de quem mal se
lembrava, o irmão alcoólatra que não trabalhou um dia sequer na vida -, mas todo o resto ela mantinha oculto atrás de paredes de pedra cercadas por um fosso.
- Nossa Madeline poderia ser uma assassina psicopata ou acompanhante de luxo - sugeriu Fiona -, e ninguém saberia.
Mas Alison, uma auxiliar do Ministério do Interior que sofrerá diversas desilusões amorosas, tinha outra teoria.
- A pobrezinha está apaixonada - declarou ela uma tarde, ao observar Madeline saindo como uma deusa do mar da pequena enseada perto da casa. - O problema é que o
seu amor não é correspondido.
- E por que não? - questionou Fiona com voz sonolenta, usando uma enorme viseira.
- Talvez ele não possa corresponder.
- Casado?
- Mas é claro.
- Maldito.
- Você nunca?
- O quê, se eu já tive caso com homem casado?
- Sim.
- Só duas vezes, mas estou considerando uma terceira.
- Você vai queimar no inferno, Fi.
- Estou contando com isso.
Foi naquele momento, na tarde do sétimo dia, que, confrontados com a menor das evidências, as três garotas e os dois rapazes hospedados com Madeline Hart na casa
alugada em Piana assumiram a tarefa de encontrar um namorado para ela. E não qualquer um, disse Pauline. Ele precisaria ter a idade adequada, boa aparência e estabilidade
financeira e mental, ser de boa família, sem podres e outras mulheres na cama. Fiona, a mais experiente nas questões do coração, disse que era uma missão impossível.
- Esse tipo de homem não existe - explicou, com o cansaço de uma mulher que passou muito tempo buscando alguém que cumprisse esses requisitos. - E, se existir, ou
está casado ou tão apaixonado por si mesmo que não vai ter tempo para a pobre Madeline.
Apesar de suas dúvidas, Fiona mergulhou de cabeça no desafio, mesmo que fosse apenas para acrescentar um pouco de fofoca ao feriado. Felizmente, não faltavam alvos
potenciais, pois parecia que metade da população do sudeste da Inglaterra tinha abandonado sua ilha úmida em busca do sol da Córsega. Havia uma colônia de financistas
do centro de Londres que alugavam casas luxuosas na ponta norte do golfo do Porto. E o grupo de artistas vivendo como ciganos num povoado nas colinas da Castagniccia.
E a trupe de atores na beira da praia em Campomoro. E a delegação de políticos da oposição que tramavam sua volta ao poder em uma mansão no topo dos penhascos de
Bonifácio. Usando o Gabinete da Grã-Bretanha como cartão de visitas, Fiona logo arranjou uma série de encontros improvisados. Em todas as ocasiões - um jantar, uma
caminhada pelas montanhas ou uma tarde regada a álcool na praia -, ela enlaçava o homem que achava mais interessante e o colocava ao lado de Madeline. Mas nenhum
deles conseguiu escalar seus muros, nem mesmo o jovem ator que tinha acabado de fazer uma turnê bem-sucedida como protagonista do musical mais popular da temporada
do West End.
- Realmente é um caso perdido - resignou-se Fiona ao voltar para casa uma noite com todo o grupo, sempre guiado por Madeline em sua lambreta vermelha.
- Quem você acha que é? - perguntou Alison.
- Não sei - respondeu Fiona com voz arrastada, deixando transparecer inveja. - Mas deve ser alguém muito especial.
Foi naquela época, faltando pouco mais de uma semana para o retorno a Londres, que Madeline começou a passar um bom tempo sozinha. Ela saía da casa de manhã cedo,
normalmente antes de os outros terem acordado, e voltava no fim da tarde. Quando lhe perguntavam sobre seu paradeiro, ela dava respostas vagas, e durante o jantar
se mostrava taciturna ou inquieta. Alison temeu pelo pior: achou que o suposto amante de Madeline tivesse informado que os seus serviços não seriam mais requisitados.
Mas, no dia seguinte, depois de voltarem para casa após um passeio ao shopping, Fiona e Pauline anunciaram com alegria que Alison estava enganada. Parecia que o
amante de Madeline viera para a Córsega. E Fiona tinha as fotos para provar.
Ele fora visto às 13h50 no Les Palmiers, no cais Adolphe Landry, em Calvi. Madeline estava numa mesa na beira do porto e tinha a cabeça um pouco voltada para o mar,
como se não estivesse ciente do homem sentado à sua frente. Usava óculos escuros grandes e um chapéu de palha para se proteger sol, com um laço preto elaborado,
que projetava uma sombra sobre sua face impecável. Pauline tentou se aproximar da mesa, mas Fiona, captando a intimidade tensa da cena, sugeriu uma retirada brusca.
Ela se deteve o suficiente para, disfarçadamente, tirar a primeira fotografia incriminadora com o celular. Madeline pareceu alheia à intrusão, mas o homem, não.
No instante em que Fiona apertou o botão, ele virou a cabeça bruscamente, como se um instinto animal o tivesse alertado de que sua imagem estava sendo capturada
eletronicamente.
Depois de fugirem para uma brasserie próxima, Fiona e Pauline examinaram com cuidado o homem na foto. Seu cabelo, louro-cinza, estava desgrenhado pelo vento e o
volume exagerado lhe dava um ar quase infantil. Caindo sobre a testa, emoldurava um rosto anguloso, dominado por uma boca pequena e cruel. O traje era vagamente
marítimo: calças brancas, uma camisa em tecido oxford com listras azuis, um relógio grande de mergulhador, mocassins de lona com solas que não deixariam marcas no
convés de um navio. Ele era um homem desse tipo: nunca deixava marcas.
Partiram do princípio de que ele fosse inglês, embora pudesse ser alemão, escandinavo ou, talvez, especulou Pauline, um descendente de nobres poloneses. Dinheiro
claramente não era problema, considerando-se a garrafa de champanhe cara que suava no balde de gelo no canto da mesa. Imaginaram que sua
fortuna fora conquistada, e não herdada, mas que não seria totalmente legal seria um apostador. Teria contas bancárias na Suíça. Viajava para lugares perigosos.
Procurava ser discreto. Seus afazeres, assim como os mocassins de. não deixavam nenhuma marca.
Mas foi Madeline que mais as intrigou. Ela já não era a garota que conheciam de Londres, nem mesmo a garota com quem estavam compartilhando uma villa nas últimas
duas semanas. Parecia ter adotado uma postura completamente diferente. Era uma atriz em outro filme. Reclinadas sobre o celular como uma dupla de adolescentes, Fiona
e Pauline escreveram o diálogo e acrescentaram carne e osso aos seus personagens. Na versão delas, o romance tinha começado de maneira inocente, com um encontro
por acaso numa loja exclusiva na Bond Street. O flerte havia sido longo, e a consumação, planejada com minúcias. Mas, por enquanto, o final da história era desconhecido,
pois a vida real ainda estava por escrevê-lo. Ambas concordaram que seria trágico.
- É assim que histórias desse tipo sempre acabam - afirmou Fiona, por experiência própria. - A garota conhece o garoto. A garota se apaixona pelo garoto.
A garota tem os seus sentimentos feridos e faz o possível para destruir o garoto.
Fiona tirou mais duas fotos de Madeline e seu amante naquela tarde. Uma mostrava os dois caminhando pelo cais sob o sol forte, com as mãos se tocando de leve, meio
furtivas. Na outra, o casal se separava sem um beijo sequer. Naquela cena, o homem subiu num bote Zodiac e partiu em direção ao por Madeline montou em sua lambreta
vermelha e voltou para casa. Ao chegar, não estava mais carregando o chapéu de sol com o laço preto elaborado.
Naquela noite, ao relatar os eventos do dia, ela não mencionou a ida a Calvi nem o almoço com o homem de aparência próspera no Les Palmiers.
Fiona achou a performance impressionante.
- Nossa Madeline tem uma habilidade extraordinária para mentiras - disse ela a Pauline. - Talvez seu futuro seja tão brilhante quanto dizem. Quem sabe Talvez ela
seja primeira-ministra algum dia.
As quatro garotas bonitas e os dois rapazes zelosos da casa alugada planeja:a- um almoço em Porto, uma cidade próxima. Madeline fez as reservas em France e até mesmo
instou o proprietário a guardar sua melhor mesa, que fica. no terraço com vista para a parte rochosa da enseada. Imaginaram que iriam para o restaurante na caravana
de sempre, mas, pouco antes das sete, Madeline declarou que estava indo a Calvi para tomar um drinque com um velho amigo de Edimburgo.
- Encontro vocês no restaurante! - gritou ela por cima do ombro, descendo a rampa. - E, pelo amor de Deus, tentem chegar na hora para variar!
Então ela se foi. Ninguém achou estranho ela não aparecer para o jantar. Nem ficaram alarmados ao acordarem e verem sua cama vazia. Era um verão agitado e Madeline
era aquele tipo de garota.
2
CÓRSEGA - LONDRES
A polícia nacional francesa declarou oficialmente que Madeline Hart estava desaparecida às 14 horas da última sexta-feira de agosto. Depois de três dias de buscas,
não descobriram nenhum vestígio dela além da lambreta vermelha, que acharam numa ravina isolada próxima ao monte Cinto, com a lanterna quebrada. No fim da semana,
a polícia já tinha praticamente perdido qualquer esperança de encontrá-la com vida. Em público, insistiram que o caso consistia numa busca por uma turista britânica
desaparecida. Em particular, no entanto, já procuravam seu assassino.
Não havia suspeitos além do homem com quem ela almoçara no Les Palmiers no dia de seu desaparecimento. Mas, assim como Madeline, ele parecia ter sumido da face da
terra. Era um amante secreto, como Fiona e os outros desconfiavam, ou os dois teriam se conhecido havia pouco tempo, na Córsega? Ele seria inglês? Francês? Ou, nas
palavras de um detetive frustrado, um alienígena de outra galáxia que tinha se desfeito em partículas e voltado para a nave espacial? A garçonete do Les Palmiers
não foi de muita ajuda. Lembrava que ele conversara em inglês com a garota de chapéu, mas que fizera seu pedido num francês perfeito. O homem havia pagado a conta
em dinheiro - notas novas e limpas que ele colocara na mesa como um jogador de pôquer - e dera uma generosa gorjeta, algo raro naqueles dias de crise econômica na
Europa. O que mais marcara a garçonete foram as mãos dele: muito pouco pelo, nenhuma marca de sol ou cicatriz, unhas limpas. O desconhecido cuidava muito bem das
unhas. Ela gostava disso num homem.
Sua fotografia foi mostrada com discrição nos bares e restaurantes mais finos da ilha, mas gerou apenas reações apáticas. Ao que tudo indicava, ninguém tinha posto
os olhos nele. E, se alguém tivesse, não conseguia se recordar de seu rosto. Era um tipo comum nas praias da Córsega no verão: bem bronzeado, óculos de sol caros
e um relógio suíço de puro ouro para aumentar seu ego. Era um nada com um cartão de crédito e uma garota bonita do outro lado da mesa. Era um homem esquecido.
Talvez para os donos de lojas e restaurantes da Córsega, mas não para a polícia francesa. A imagem foi passada por todos os bancos de dados de criminosos em seu
arsenal e por mais alguns. Como nenhuma busca deu frutos, os policiais debateram a possibilidade de revelar a foto para a imprensa. Algumas pessoas, especialmente
nos cargos mais altos, argumentaram contra. Afinal, era possível que o pobre coitado não tivesse culpa de nada, talvez apenas de infidelidade, algo longe de ser
crime na França. Mas, quando se passaram mais 72 horas sem nenhum progresso, concluíram que não havia escolha: precisariam pedir ajuda à população. Duas fotografias
editadas com cuidado foram liberadas para a imprensa - uma do homem sentado no Les Palmiers; outra dele andando ao longo do cais - e, ao anoitecer, os investigadores
já estavam sendo bombardeados por centenas de pistas. Rapidamente eliminaram os farsantes e os trotes e focaram recursos apenas nas que pareciam mais plausíveis.
Porém, nada deu resultado. Uma semana depois do desaparecimento, o único suspeito ainda era um homem sem nome nem nacionalidade.
Apesar de a polícia não ter nada promissor, não faltavam teorias. Um grupo de detetives acreditava que o homem do Les Palmiers era um psicopata que tinha atraído
Madeline para uma armadilha. Outro grupo achava que era apenas alguém no lugar errado e na hora errada. De acordo com essa hipótese, ele era casado, portanto não
poderia se revelar e cooperar com a polícia. Já Madeline provavelmente teria sido vítima de um assalto que acabara mal - uma jovem andando de moto sozinha era um
alvo tentador. Em algum momento o corpo apareceria. O mar o cuspiria, um alpinista o encontraria nas colinas ou um fazendeiro o desenterraria ao arar o campo. Assim
eram as coisas na ilha: a Córsega sempre devolvia os seus mortos.
As falhas da polícia foram uma ocasião propícia para os ingleses criticarem os franceses. Mas, de forma geral, até mesmo os jornais simpáticos à oposição trataram
o desaparecimento de Madeline como uma tragédia nacional. Sua ascensão notável, desde a moradia popular em Essex, foi narrada em detalhes, e diversos membros do
Partido emitiram declarações sobre uma carreira promissora abreviada precocemente. Sua mãe chorosa e seu irmão desajeitado deram uma única entrevista para a televisão
e, em seguida, desapareceram das vistas do público. O mesmo aconteceu com seus companheiros de férias na Córsega. Ao voltarem para a Inglaterra, apareceram juntos
numa coletiva de imprensa no aeroporto de Heathrow, observados por uma equipe de assessores do Partido. Posteriormente, recusaram todos os outros pedidos de entrevistas,
incluindo aqueles que ofereciam pagamentos lucrativos. A cobertura não incluiu nenhum traço de escândalo. Não houve histórias sobre bebedeiras festivas, jogos sexuais
ou perturbação da ordem pública, apenas a baboseira de sempre sobre os perigos enfrentados por mulheres jovens viajando em países estrangeiros. Na sede do Partido,
a assessoria de imprensa se parabenizou em particular pela hábil manipulação do caso, enquanto a equipe política percebeu uma leve melhoria na aprovação ao primeiro-ministro.
Por trás de portas fechadas, chamaram o fenômeno de “o efeito Madeline”.
Gradualmente, as matérias sobre o destino de Madeline saíram das primeiras páginas e foram para as seções internas e, ao final de setembro, ela já tinha desaparecido
dos jornais. Era outono, hora de voltar ao negócio de governar. Os desafios que a Inglaterra enfrentava eram imensos: uma economia em recessão, a zona do euro na
UTI, uma lista interminável de males sociais não resolvidos que estavam destruindo a qualidade de vida no Reino Unido. Pairando sobre tudo, a perspectiva de uma
eleição. O primeiro-ministro tinha dado inúmeras pistas de que haveria uma antes do fim do ano. Ele estava ciente dos riscos políticos de voltar atrás agora. Jonathan
Lancaster estava à frente do governo britânico porque seu antecessor havia deixado de convocar uma eleição após meses de flerte público com a ideia. Lancaster, então
líder da oposição, dissera que ele era “o Hamlet do Número 10” - em referência ao endereço da residência do primeiro-ministro - e a ferida mortal se abriu.
Isso tudo explicava por que Simon Hewitt, o diretor de comunicação do primeiro-ministro, não andava dormindo bem nos últimos tempos. O padrão de sua insônia nunca
variava. Exausto pela rotina esmagadora de trabalho, adormecia rapidamente, em geral com uma pasta de arquivos sobre o peito, mas acordava duas ou três horas depois.
Uma vez desperta, sua mente se acelerava. Após quatro anos no governo, ele parecia incapaz de focar nada além do negativo. Esse era o preço de ser assessor de imprensa
na Downing Street. No mundo de Simon Hewitt não havia triunfos, apenas desastres e quase desastres. Como os terremotos, sua intensidade variava de pequenos tremores
que mal eram sentidos a convulsões sísmicas capazes de derrubar prédios e desfazer vidas. Todos esperavam que Hewitt previsse a calamidade vindoura e, se possível,
contivesse os danos. Nos últimos tempos, ele tinha chegado à conclusão de que seu trabalho era impossível. Nos momentos mais sombrios, essa constatação lhe dava
um pouquinho de consolo.
Ele já fora um homem de reputação. Como colunista-chefe de política do
Times, Hewitt havia sido uma das pessoas mais influentes do gabinete, no Palácio de Whitehall. Com poucas palavras de sua característica prosa afiada, podia condenar
uma política governamental, assim como a carreira do ministro responsável por apresentá-la. O poder de Hewitt se tornou tão grande que nenhum governo tomava uma
decisão importante sem consultá-lo. E nenhum político que aspirasse a um futuro melhor pensaria em concorrer a um posto de liderança em algum partido sem garantir
o apoio de Hewitt. Foi o que fez Jonathan Lancaster, um ex-advogado do centro financeiro londrino, egresso de um distrito parlamentar do subúrbio. No início, Hewitt
não lhe deu muita importância: era muito polido, bem-apessoado e elitista para ser levado a sério. Mas, com o passar do tempo, ele passou a considerar Lancaster
um competente homem de ideias que queria reconstruir seu partido moribundo para, então, reconstruir o país. Hewitt se surpreendeu ao perceber que realmente gostava
de Lancaster, o que nunca era um bom sinal. À medida que o relacionamento progrediu, os dois passaram menos tempo fofocando sobre as maquinações políticas de Whitehall
e mais discutindo como consertar a sociedade britânica. Na noite da eleição, quando Lancaster conquistou a vitória com a maior margem de apoio do Parlamento daquela
geração, Hewitt foi uma das primeiras pessoas para quem ele ligou.
- Simon - disse, com sua voz sedutora. - Eu preciso de você, Simon. Não posso fazer isso sozinho.
Àquela altura, Hewitt já tinha escrito com fervor sobre as perspectivas de sucesso de Lancaster, sabendo muito bem que, em alguns dias, estaria trabalhando para
ele na Downing Street.
Agora, Hewitt abriu os olhos lentamente e fitou com desprezo o relógio ao lado da cama. Os dígitos brilhantes indicavam que eram 3h42, como se estivessem zombando
dele. Ao lado do relógio estavam três celulares, todos com a bateria carregada para o ataque da mídia do dia seguinte. Ele gostaria de poder recarregar as próprias
baterias com a mesma facilidade, mas, àquela altura, não havia sono ou sol tropical que pudesse reparar o dano que ele infligira ao seu corpo de meia-idade. Olhou
para Emma. Como sempre, ela estava dormindo profundamente. Em outros tempos, Hewitt poderia ter pensado em um jeito lascivo de acordá-la, mas isso já não era mais
possível; sua cama conjugal havia se tornado uma lareira apagada e congelada. Por um breve período, Emma fora seduzida pelo glamour do emprego dele, mas depois passou
a se ressentir da devoção servil do marido a Lancaster. Ela encarava o primeiro-ministro quase como um rival sexual, e seu ódio atingira um fervor irracional.
- Você é duas vezes melhor que ele, Simon - comentara Emma na noite anterior antes de lhe dar um beijo frio na bochecha caída. - Ainda assim, por alguma razão, você
sente a necessidade de fazer o papel de criado. Talvez algum dia possa me dizer por quê.
Hewitt sabia que o sono não voltaria, não agora; então ficou acordado na cama e escutou a sequência de sons que sinalizavam o começo de seu dia. O baque dos jornais
matinais na porta. O gorgolejo da máquina de café automática. O ronronar de um sedã do governo na rua, embaixo de sua janela. Levantando-se com cuidado para não
acordar Emma, vestiu o roupão e desceu até a cozinha. A cafeteira sibilava raivosamente. Hewitt preparou uma xícara sem açúcar, pelo bem de sua cintura em expansão,
e a levou para o hall. Uma rajada de vento úmido o saudou quando ele abriu a porta. A pilha de jornais estava envolta em plástico sobre o tapete de boas-vindas ao
lado de uma panela de barro com gerânios mortos. Ao se curvar, viu mais uma coisa: um envelope de papel pardo bem selado, sem nada escrito. Soube na mesma hora que
não tinha vindo da sede do governo, pois ninguém de sua equipe se atreveria a deixar nem o mais trivial documento ali na soleira. Portanto, deveria ser algo não
solicitado. Isso não era incomum; os velhos colegas da imprensa conheciam seu endereço em Hampstead e sempre lhe deixavam encomendas. Pequenos presentes por uma
informação vazada no momento certo. Discursos agressivos referentes a alguma desfeita percebida. Um rumor perverso sensível demais para ser transmitido por e-mail.
Hewitt fazia questão de ficar em dia com a fofoca de Whitehall. Sendo ex-repórter, sabia que o que era dito pelas costas de um homem costumava ser muito mais importante
que o que era escrito sobre ele nas primeiras páginas.
Hewitt cutucou o envelope com o dedão para ver se não continha fios ou baterias, então o colocou em cima dos jornais e voltou para a cozinha. Depois de ligar a televisão
e baixar o volume até um sussurro, tirou os jornais do plástico e passou os olhos pelas primeiras páginas. Estavam dominadas pela proposta de Lancaster para tornar
a indústria britânica mais competitiva com uma diminuição das taxas de juros. Como já era de esperar, o Guardian e o Independent estavam horrorizados, mas, graças
aos esforços de Hewitt, a maior parte das matérias era positiva. As outras notícias de Whitehall eram misericordiosamente benignas. Nenhum terremoto. Nem mesmo tremores.
Depois de passar pelos chamados jornais de maior prestígio, Hewitt deu uma lida rápida nos tabloides, que considerava um termômetro mais confiável da opinião pública
britânica do que qualquer enquete. Em seguida, servindo-se de mais café, abriu o envelope anônimo. Dentro, havia três itens: um DVD, uma única folha de papel A4
e uma fotografia.
- Merda - praguejou Hewitt, baixinho. - Merda, merda, merda.
O que aconteceu depois passaria a ser fonte de muita especulação. Para Simon Hewitt, um ex-jornalista político que deveria ter sido mais sensato, não faltaram recriminações.
Em vez de contatar a polícia metropolitana londrina, como exigia a lei inglesa, ele carregou o envelope até o escritório na Downing Street, número 12. Depois de
conduzir a reunião habitual das oito horas, durante a qual não mencionou os itens, Hewitt os mostrou para Jeremy Fallon, conselheiro político de Lancaster e o chefe
de gabinete mais poderoso da história inglesa. Suas responsabilidades oficiais incluíam planejamento estratégico e coordenação de políticas dos diversos departamentos
do governo, o que lhe permitia meter o nariz em qualquer questão de seu interesse. A imprensa frequentemente se referia a ele como o “cérebro de Lancaster”, um título
que agradava a Fallon e gerava ressentimento em Lancaster.
A reação de Fallon diferiu apenas na escolha do palavrão. Seu primeiro instinto foi levar na mesma hora o material para Lancaster, mas, como era quarta-feira, esperou
até o chefe sobreviver à batalha de gladiadores conhecida como Perguntas ao Primeiro-Ministro. Em nenhum momento da reunião, Lancaster, Hewitt ou Jeremy Fallon sugeriram
passar o material para as autoridades competentes. Os três concordaram que precisavam de uma pessoa discreta e habilidosa, à qual, acima de tudo, poderiam confiar
a proteção dos interesses do primeiro-ministro. Fallon e Hewitt pediram uma lista de candidatos a Lancaster, que deu apenas um nome. Havia uma relação familiar e,
o mais importante, uma dívida não paga. Lealdade contava muito em tempos assim, disse o primeiro-ministro, mas influência era algo muito mais eficiente.
Isso explica o convite sutil feito por Downing Street a Graham Seymour, o vice-diretor de longa data do Serviço de Segurança britânico, também conhecido como MI5.
Muito tempo depois, Seymour descreveria o encontro - realizado na sala de reuniões diante de um retrato carrancudo da baronesa Thatcher - como o mais difícil da
carreira. Concordou em ajudar o primeiro-ministro sem hesitação, pois era isso que um homem como ele fazia em circunstâncias daquele tipo. Ainda assim, deixou claro
que, caso seu envolvimento algum dia se tornasse público, destruiria o responsável.
Ficou em aberto apenas a identidade do agente que conduziria a busca. Assim como Lancaster, Graham tinha apenas um candidato. Ele não compartilhou o nome com o primeiro-ministro.
Em vez disso, usando fundos de uma das várias contas operacionais secretas do MI5, reservou um assento num voo da
Brites Airways daquela tarde com destino a Tel Aviv. Enquanto o avião decolava, Graham ponderou a melhor abordagem. Lealdade contava muito em tempos assim, mas influência
era algo bem mais eficiente.
3
JERUSALÉM
O coração de Jerusalém, não. muito longe do Ben Yehuda Mall, ficava a silenciosa e arborizada rua Narkiss. O prédio no número 16 era pequeno, com apenas três andares,
parcialmente oculto por um robusto muro de pedra calcária e um imenso eucalipto crescendo no jardim da frente. O apartamento no terceiro andar era igual aos outros,
exceto pelo fato de já ter pertencido ao serviço secreto de inteligência do Estado de Israel. Tinha uma sala de estar espaçosa, uma cozinha bem-arranjada cheia de
eletrodomésticos modernos, uma sala de jantar formal e dois quartos. O quarto menor, reservado para uma criança, fora penosamente convertido num estúdio artístico.
Mas Gabriel ainda preferia trabalhar na sala de estar, onde a brisa fresca que vinha da varanda ajudava a dissipar o cheiro forte dos solventes.
No momento, ele estava usando uma solução, preparada com cuidado, de acetona, álcool e água destilada, que aprendera a fazer em Veneza com o mestre restaurador de
arte Umberto Conti. A mistura era forte o bastante para dissolver contaminações na superfície e o verniz velho, mas não chegava a prejudicar as pinceladas originais
do artista. Gabriel umedeceu um cotonete feito à mão na solução e o girou delicadamente sobre o peito empinado de Suzana. Ela olhava em outra direção, banhando-se,
e mal parecia ciente dos dois anciãos lascivos da aldeia que a espiavam de trás do muro do jardim. Gabriel tinha uma atitude protetora em relação a mulheres e desejava
poder intervir, poupando-a do trauma por vir: as falsas acusações, o julgamento, a sentença de morte. Em vez disso, continuou o serviço e observou a pele amarelada
dela adquirir um tom branco luminoso.
Quando o cotonete já estava imundo, Gabriel o colocou num frasco hermético para reter os vapores. Enquanto preparava outro, seus olhos se moveram lentamente pela
superfície da pintura. Até aquele momento, a obra era atribuída apenas a um discípulo de Ticiano. Mas o proprietário atual da tela, o renomado negociante de arte
Julian Isherwood, acreditava que a tela tinha vindo do estúdio de Jacopo Bassano. Gabriel concordava - na verdade, agora que expusera um pouco da pincelada, viu
evidências do próprio mestre, especialmente na imagem de Suzana. Ele conhecia bem o estilo do pintor, pois havia estudado bastante suas pinturas e passara vários
meses em Zurique restaurando uma tela importante de Bassano para um colecionador particular. Na última noite de sua estadia, matara um homem chamado Ali Abdel Hamidi
num beco úmido perto do rio, um líder terrorista palestino com um bocado de sangue israelense nas mãos, que estava se passando por dramaturgo. Gabriel lhe dera uma
morte digna de suas pretensões literárias.
Ele umedeceu o novo cotonete no solvente, mas, antes de dar continuidade ao trabalho, escutou o ronco familiar do motor de um carro pesado na rua. Foi à varanda
para confirmar suas suspeitas e, então, abriu a porta da frente uns 2 centímetros. Um instante depois, Ari Shamron já estava empoleirado num banquinho de madeira
ao lado de Gabriel. Vestia calça cáqui, camisa de oxford branca e uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Seus óculos feios refletiam a luz das lâmpadas
de halogênio que Gabriel usava para trabalhar. Seu rosto, com rugas e sulcos profundos, estava travado numa expressão de puro desgosto.
- Eu senti o cheiro desses produtos químicos assim que saí do carro. Imagino o estrago que eles provocaram ao seu corpo depois de todos esses anos.
- Tenho certeza que não é nada comparado ao dano que você provocou - retrucou Gabriel. - Estou surpreso por eu ainda ser capaz de segurar um pincel.
Gabriel tocou o cotonete umedecido na pele de Suzana e o girou devagar. Shamron consultou seu relógio de aço inoxidável e franziu a testa, como se houvesse algo
errado.
- O que foi? - perguntou Gabriel.
- Estou só imaginando quanto tempo vai levar até você me oferecer uma xícara de café.
- Você sabe onde fica tudo. Agora você praticamente mora aqui.
Shamron resmungou alguma coisa em polonês sobre a ingratidão das crianças. Em seguida, ergueu-se do banco com um impulso e, apoiando-se pesada- mente na bengala,
foi até a cozinha. Conseguiu encher a chaleira com água da torneira, mas pareceu perplexo com os diversos botões do fogão. Por duas vezes, Ari Shamron havia sido
diretor do serviço secreto de inteligência de Israel e, antes disso, fora um dos oficiais mais condecorados do mesmo serviço. Agora, contudo, já velho, parecia incapaz
de realizar as tarefas caseiras mais básicas. Cafeteiras, liquidificadores, torradeiras, todos esses utensílios eram um mistério para ele. Gilah, sua esposa resignada,
costumava brincar que, se o grande Ari Shamron fosse deixado sozinho, seria capaz de morrer de fome numa cozinha cheia de comida.
Gabriel acendeu o fogão e voltou ao trabalho. Shamron ficou parado no vão das portas da varanda, fumando. O fedor do tabaco turco logo prevaleceu sobre o odor do
solvente.
- Isso é mesmo necessário? - questionou Gabriel.
- É.
- O que está fazendo em Jerusalém?
- O primeiro-ministro queria dar uma palavra.
- Sério?
Shamron olhou para Gabriel de cara fechada através da cortina de fumaça cinza-azulada.
- Por que um pedido do primeiro-ministro para me ver surpreenderia você?
- Porque...
- Eu sou velho e irrelevante? - completou Shamron.
- Você é exagerado, impaciente e às vezes irracional. Mas você nunca foi irrelevante.
Shamron assentiu. A idade havia lhe dado a habilidade de, pelo menos, perceber suas falhas, apesar de ter roubado o tempo necessário para que ele pudesse remediá-las.
- Como ele está? - perguntou Gabriel.
- Como você pode imaginar.
- Sobre o que vocês conversaram?
- Nossa conversa foi abrangente e franca.
- Isso quer dizer que vocês gritaram um com o outro?
- Eu só gritei com um primeiro-ministro.
- Qual? - indagou Gabriel, realmente curioso.
- Golda. Foi depois de Munique. Eu lhe disse que precisávamos mudar as nossas táticas, aterrorizar os terroristas. Dei a ela uma lista de nomes de homens que deviam
morrer. Golda não queria saber daquilo.
- Então você gritou com ela?
- Não foi meu melhor momento.
- O que ela fez?
- Gritou também, claro. Mas, no fim das contas, compreendeu meu raciocínio. Então, montei outra lista de nomes, dos jovens de quem eu precisava para realizar a operação.
Todos concordaram sem hesitar. - Shamron fez uma pausa, em seguida acrescentou: - Todos menos um.
Em silêncio, Gabriel guardou o cotonete sujo no frasco hermético, que reteve os gases tóxicos do solvente, mas não a memória de seu primeiro encontro com o homem
que eles chamavam de Memuneh, a pessoa encarregada. Ocorrera a poucas centenas de metros de onde ele estava agora, no campus da Academia Bezalel de Artes e Design.
Gabriel tinha acabado de assistir a uma palestra sobre as pinturas de Viktor Frankel, o renomado expressionista alemão que também era seu avô materno. Shamron esperava
por ele na beira de um pátio ensolarado, um homem baixo e esguio, com óculos escuros tenebrosos e dentes afiados, que lembravam uma armadilha de aço. Como sempre,
estava bem preparado. Sabia que a mãe de Gabriel, uma artista talentosa, tinha sobrevivido ao campo de concentração em Birkenau, mas que não conseguira derrotar
o câncer que devastara seu corpo. Também sabia que a língua materna de Gabriel era o alemão e que esse ainda era o idioma no qual ele sonhava. Todas as informações
estavam na pasta que Shamron segurava com dedos manchados de nicotina.
- A operação será chamada Ira de Deus - explicara ele. - Não se trata de justiça. Trata-se de vingança, pura e simplesmente. Queremos vingar as onze vidas inocentes
perdidas em Munique.
Gabriel disse a Shamron para procurar outra pessoa.
- Eu não quero outra pessoa. Eu quero você.
Pelos três anos seguintes, Gabriel e os outros agentes da Ira de Deus seguiram suas presas pela Europa e pelo Oriente Médio. Carregando uma Beretta calibre 22, uma
arma discreta, adequada para matar de perto, Gabriel assassinou seis membros do Setembro Negro. Sempre que possível, atirava onze vezes, uma bala para cada israelense
massacrado em Munique. Quando finalmente voltou para casa, o cabelo ao redor de suas têmporas estava grisalho e seu rosto era o de um homem vinte anos mais velho.
Incapaz de produzir trabalhos de arte originais, ele foi a Veneza para estudar restauração. Então, depois de repousar, voltou a trabalhar para Shamron. Nos anos
que se seguiram, desempenhou algumas das operações mais fabulosas na história da inteligência israelense. Agora, após muitos anos peregrinando incansavelmente, voltara
para Jerusalém. Ninguém ficou mais satisfeito do que Shamron, que amava Gabriel como um filho e tratava o apartamento na rua Narkiss como se fosse o seu próprio.
Em outros tempos, talvez Gabriel tivesse se irritado com a presença constante de Shamron, mas agora isso não o incomodava. O Velho era eterno, mas o corpo em que
seu espírito residia não duraria para sempre.
Nada havia prejudicado mais a saúde de Shamron do que o implacável tabagismo. Fora um hábito adquirido na juventude, no leste da Polônia, e que piorara depois de
sua ida à Palestina, onde lutou na guerra que levou à independência de Israel. Agora, enquanto descrevia a reunião com o primeiro- -ministro, ele abriu seu velho
isqueiro Zippo e o usou para acender mais um cigarro fétido.
- O primeiro-ministro está inquieto, mais do que o normal. Imagino que ele tenha esse direito. O grande Despertar Árabe levou a região toda ao caos. E os iranianos
estão cada vez mais perto de realizarem seus sonhos nucleares. Em breve, vão entrar numa zona de imunidade, impossibilitando uma ação militar nossa sem a ajuda dos
americanos. - Shamron fechou o isqueiro com um estalo e olhou para Gabriel, que tinha voltado a trabalhar na pintura. - Você está me ouvindo?
- Cada palavra.
- Prove.
Gabriel repetiu a última declaração de Shamron palavra por palavra. Shamron sorriu. Ele considerava a memória impecável de Gabriel uma de suas melhores virtudes.
Girou o Zippo entre os dedos. Duas voltas para a direita, duas para a esquerda.
- O problema é que o presidente americano não quer demarcar um limite inflexível. Ele diz que não vai permitir que os iranianos construam armas nucleares. Mas não
faz diferença nenhuma dizer isso se os iranianos têm a capacidade de construí-las num curto período de tempo.
- Como os japoneses.
- Os japoneses não são governados por xiitas apocalípticos. Se o presidente americano não tomar cuidado, suas duas conquistas mais relevantes na política externa
serão um Irã nuclear e a restauração do califado islâmico.
- Bem-vindo ao mundo pós-americano, Ari.
- E é por isso que eu acho uma estupidez deixar nossa segurança nas mãos deles. Mas esse não é o único problema do primeiro-ministro. Os generais não têm certeza
se podem destruir o suficiente do programa para fazer com que um ataque militar seja eficiente. E o King Saul Boulevard, liderado por seu amigo Uzi Navot, está dizendo
ao primeiro-ministro que uma guerra unilateral contra os persas seria uma catástrofe de proporções bíblicas.
O King Saul Boulevard era o endereço do serviço secreto de inteligência israelense no exterior. O nome longo e propositalmente enganoso tinha muito pouco a ver com
a verdadeira natureza de suas atividades. Até mesmo agentes aposentados como Gabriel e Shamron se referiam à instalação apenas como “o Escritório”.
- Uzi é que vê a realidade nua e crua todos os dias - falou Gabriel.
- Eu vejo também... Não tudo - acrescentou Shamron às pressas mas o bastante para me convencer de que os cálculos de Uzi sobre quanto tempo nós temos podem estar
errados.
- Matemática nunca foi o ponto forte de Uzi. Mas, quando estava em campo, ele nunca errava.
- Isso porque ele raramente se colocava numa posição em que fosse possível cometer um erro. - Shamron parou de falar, observando o vento mover o eucalipto além do
parapeito da varanda de Gabriel. - Eu sempre disse que uma carreira sem controvérsias não é uma carreira de verdade. Tive o meu quinhão, e você também.
- E tenho as cicatrizes para provar.
- E os louros também - completou Shamron. - O primeiro-ministro está preocupado com a possibilidade de o Escritório ser cauteloso demais quando se trata do Irã.
Sim, nós inserimos vírus em seus computadores e eliminamos um punhado de cientistas, mas faz um tempinho que nada explode. O primeiro-ministro gostaria que Uzi orquestrasse
outra Operação Obra-Prima.
Obra-Prima era o codinome de uma operação conjunta israelense, americana e britânica que resultara na destruição de quatro instalações iranianas secretas de enriquecimento
de urânio. Tinha ocorrido durante o comando de Uzi Navot, mas dentro dos corredores do King Saul Boulevard era considerada uma das maiores conquistas de Gabriel.
- Oportunidades como a Obra-Prima não aparecem todo dia, Ari.
- Isso é verdade - admitiu Shamron. - Mas sempre acreditei que a maioria das oportunidades são conquistadas, e não ganhas. O primeiro-ministro compartilha dessa
opinião.
- Ele perdeu a confiança em Uzi?
- Ainda não. Mas queria saber se eu tinha perdido.
- O que você disse?
- Que escolha eu tinha? Fui eu que o recomendei para o cargo.
- Então você o apoiou?
- Com um porém.
- Qual?
- Eu lembrei ao primeiro-ministro que a pessoa que eu realmente queria
para o trabalho não estava interessada. - Shamron balançou a cabeça devagar.
- Você é o único homem na história do Escritório que recusou uma chance de ser diretor.
- Sempre há uma primeira vez, Ari.
- Isso significa que você poderia reconsiderar?
- É por isso que você está aqui?
- Pensei que você fosse apreciar minha companhia. Eu e o primeiro-ministro estávamos nos perguntando se você estaria disposto a ajudar um dos nossos aliados mais
próximos.
- Qual?
- Graham Seymour veio para a cidade sem aviso prévio. Ele gostaria de uma conversa.
Gabriel se virou para encarar Shamron.
- Sobre o quê? - perguntou depois de um instante.
- Ele não disse, mas acho que é urgente. - Shamron foi até o cavalete e observou o pedaço límpido de tela no qual Gabriel estava trabalhando. - Parece até que a
pintura é recente.
- Esse é o objetivo.
- Alguma chance de você fazer o mesmo por mim?
- Desculpe, Ari - respondeu Gabriel, tocando a bochecha enrugada de Shamron -, mas temo que você esteja além de qualquer restauração.
4
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
Na tarde de 22 de julho de 1946, o grupo sionista extremista conhecido como Irgun detonou uma grande bomba no King David Hotel, sede de todas as forças militares
e civis da Inglaterra na Palestina. O ataque era uma retaliação pela prisão de centenas de combatentes judeus e matou 91 pessoas, incluindo 28 ingleses que ignoraram
um telefonema alertando-os para evacuar o hotel. Embora condenado universalmente, o bombardeio logo se provou um dos atos de violência política mais eficientes já
cometidos. Passados dois anos, os ingleses saíram da Palestina, e o Estado moderno de Israel, outrora um sonho sionista quase inimaginável, tornou-se realidade.
Entre os afortunados que sobreviveram ao bombardeio estava um jovem agente da inteligência britânica chamado Arthur Seymour, um veterano do programa de guerra Double
Cross que tinha sido transferido recentemente para a Palestina com a função de espionar os movimentos de resistência judeus. Era para Seymour estar em seu escritório
no momento do ataque, mas ele atrasou alguns minutos depois de uma reunião com um informante na Cidade Antiga. Ouviu a detonação enquanto passava pelo Portão de
Jaffa e, horrorizado, contemplou parte do hotel desmoronar. A imagem assombraria Seymour pelo resto da vida e moldaria os rumos de sua carreira. Anti-israelense
virulento e fluente em árabe, ele forjou laços desconfortavelmente próximos com muitos inimigos de Israel. Com frequência, era convidado do presidente do Egito,
Gamai Abdel Nasser, e admirador precoce de um jovem revolucionário palestino chamado Yasser Arafat.
Apesar de suas tendências pró-árabes, o Escritório considerou Arthur Seymour um dos oficiais mais competentes do MI6 no Oriente Médio. Por isso, houve certa surpresa
quando o único filho de Arthur, Graham, optou por uma carreira no MI5 em vez do mais glamoroso Serviço Secreto de Inteligência. Seymour, o Jovem - como era conhecido
no início da carreira -, serviu primeiro na contrainteligência, operando contra a KGB em Londres. Então, após a queda do Muro de Berlim e com a ascensão do fanatismo
islâmico, foi promovido a chefe de contraterrorismo. Agora, como vice-diretor do MI5, era forçado a aplicar sua experiência em ambas as disciplinas. Atualmente,
havia mais espiões russos operando em Londres do que no auge da Guerra Fria. E, graças aos erros de sucessivos governos britânicos, o Reino Unido abrigava milhares
de militantes muçulmanos do mundo árabe e da Ásia. Seymour chamava Londres de “Kandahar no Tâmisa”. Intimamente, temia que seu país estivesse escorregando cada vez
mais na direção de um abismo civilizacional.
Embora tivesse herdado a paixão do pai pela espionagem, Graham Seymour não compartilhava de forma alguma seu desdém por Israel. De fato, sob sua condução, o MI5
havia se aproximado do Escritório e, em especial, de Gabriel Allon. Os dois se consideravam membros de uma irmandade secreta que fazia as tarefas desagradáveis que
ninguém mais estava disposto a fazer, deixando para se preocupar com as consequências depois. Tinham lutado um pelo outro, sangrado um pelo outro e, em alguns casos,
matado um pelo outro. Eram tão próximos quanto dois espiões de serviços opostos poderiam ser, o que significava que tinham uma leve desconfiança mútua.
- Alguém no hotel não sabe quem você é? - perguntou Seymour, dando um aperto de mão em Gabriel como se o estivesse encontrando pela primeira vez.
- A garota na recepção perguntou se eu estava aqui para o bar mitzvah dos Greenbergs.
Seymour abriu um sorriso discreto. Com sua aparência vigorosa e queixo robusto, parecia o arquétipo de um barão colonial britânico, um homem que decidia questões
importantes e nunca servia o próprio chá.
- Dentro ou fora? - perguntou Gabriel.
- Fora - respondeu Seymour.
Eles ocuparam uma mesa no terraço, Gabriel voltado para o hotel e Seymour de frente para os muros da Cidade Antiga. Agora era a calmaria entre o café da manhã e
o almoço; haviam passado poucos minutos das onze horas. Gabriel só tomou café, mas Seymour pediu bastante comida. Sua esposa era uma cozinheira entusiástica, mas
pavorosa. Para Seymour, comida de avião era um mimo, e um brunch de hotel, mesmo feito na cozinha do King David, era uma ocasião a ser apreciada. O mesmo valia,
pelo visto, para a vista da Cidade Antiga.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse ele entre as mordidas na omelete -, mas esta é a minha primeira visita ao seu país.
- Eu sei. Está tudo no seu arquivo.
- É uma leitura interessante?
- Tenho certeza de que não deve ser nada em comparação com o que seu serviço tem sobre mim.
- Como poderia se comparar? Não passo de um humilde lacaio do Serviço Secreto de Sua Majestade. Você, por outro lado, é uma lenda. Afinal - acrescentou Seymour,
falando mais baixo quantos agentes de inteligência podem dizer que pouparam o mundo de um apocalipse?
Gabriel olhou por cima do ombro e fitou o Domo da Rocha, o terceiro lugar mais sagrado do Islã, resplandecente sob a luz cristalina do sol de Jerusalém. Cinco meses
antes, numa câmara secreta 50 metros abaixo da superfície do Monte do Templo, ele havia descoberto uma bomba que, caso fosse detonada, derrubaria todo o platô. Também
encontrara 22 pilares do Templo de Jerusalém do rei Salomão, provando que o antigo santuário judeu descrito no Livro de Reis e de Crônicas tinha de fato existido.
Embora o nome de Gabriel não tivesse aparecido na cobertura de imprensa da monumental revelação, seu envolvimento era bem conhecido em certos círculos da comunidade
ocidental de inteligência. Também se sabia que seu amigo mais próximo, Eli Lavon, renomado arqueólogo bíblico e agente do Escritório, quase morrera tentando salvar
os pilares da destruição.
- Foi uma sorte dos diabos aquela bomba não ter explodido - comentou Seymour. - Se tivesse, milhões de muçulmanos chegariam às suas fronteiras numa questão de horas.
E depois... - A voz de Seymour se perdeu.
- Seria o fim do jogo para o empreendimento conhecido como Estado de Israel - completou Gabriel. - Esse era exatamente o objetivo dos iranianos e de seus amigos
do Hezbollah.
- Não consigo imaginar como foi ter visto aqueles pilares pela primeira vez.
- Para ser sincero, Graham, não tive tempo para saborear o momento. Estava ocupado demais tentando manter Eli vivo.
- Como ele está?
- Passou dois meses no hospital, mas está quase cem por cento. Na verdade, até voltou a trabalhar.
- Para o Escritório?
Gabriel balançou a cabeça.
- Ele está escavando o Túnel do Muro das Lamentações de novo. Posso providenciar uma visita guiada, se você quiser. Aliás, se tiver interesse, posso mostrar a passagem
secreta que leva direto ao Monte do Templo.
- Não sei se meu governo aprovaria. - Seymour ficou em silêncio enquanto um garçom enchia suas xícaras de café. Então, quando estavam a sós novamente, continuou:
- Então o rumor é verdadeiro, afinal.
- Que rumor?
- De que o filho pródigo enfim voltou para casa. É engraçado - acrescentou ele, com um sorriso triste mas eu sempre imaginei que você passaria o resto da vida caminhando
pelos penhascos da Cornualha.
- É um lugar lindo, Graham. Mas a Inglaterra é a sua casa, não a minha.
- Às vezes sinto que não parece mais ser a minha casa. Helen e eu compramos uma casa em Portugal há pouco tempo. Em breve vou ser um exilado, assim como você foi.
- Sério?
- Não é nada iminente. Mas, no fim, todas as coisas boas devem terminar.
- Você teve uma grande carreira, Graham.
- Tive? É difícil mensurar o sucesso no campo da segurança, não é? Somos julgados com base em coisas que não acontecem: os segredos que não são roubados, os edifícios
que não explodem. Pode ser uma forma profundamente insatisfatória de se ganhar a vida.
- O que você vai fazer em Portugal?
- Helen vai tentar me envenenar com a sua culinária exótica e eu vou pintar paisagens terríveis de aquarela.
- Nunca soube que você pintava.
- Por uma boa razão. - Seymour observou a paisagem e franziu a testa, como se aquilo estivesse muito além do alcance de seu pincel e sua paleta. - Meu pai estaria
se revirando no túmulo se soubesse que estou aqui.
- Então por que você está aqui?
- Estava me perguntando se você se disporia a encontrar algo para um amigo meu.
- O amigo tem um nome?
Em vez de responder, Seymour abriu a maleta e pegou uma fotografia ampliada, passando-a para Gabriel. Mostrava uma jovem atraente que olhava direto para a câmera,
segurando uma edição do International Herald Tribune de três dias antes.
- Madeline Hart? - perguntou Gabriel.
Seymour assentiu. Então, passou uma folha A4 para Gabriel. Continha uma única frase, escrita em uma fonte sem serifa:
Em sete dias a garota morre.
- Merda - praguejou Gabriel baixinho.
- Receio que fique ainda melhor.
Por coincidência, a administração do King David colocou Graham Seymour, o único filho de Arthur Seymour, na mesma ala do hotel que fora destruída em 1946. Seymour
ficou no mesmo corredor do quarto que seu pai tinha usado como escritório no fim do mandato britânico na Palestina. Ao chegar, eles depararam com o aviso de NÃO
PERTURBE pendurado na maçaneta, além de uma embalagem plástica contendo o Jerusalém Post e o Haaretz. Seymour conduziu Gabriel para dentro. Ao verificar que ninguém
havia entrado no quarto durante sua ausência, pôs um DVD para ser reproduzido no laptop. Poucos segundos depois, Madeline Hart, cidadã britânica desaparecida e funcionária
do partido da situação na Inglaterra, apareceu na tela.
“Eu tive relações sexuais com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster pela primeira vez na conferência do Partido em Manchester, em outubro de 2012...”
5
KING DAVID HOTEL, JERUSALÉM
O vídeo tinha sete minutos e doze segundos de duração. O tempo todo, Madeline manteve os olhos focados num ponto ligeiramente à esquerda da câmera, como se respondesse
a perguntas feitas por um entrevistador de televisão. Relutante, assustada e exausta, descreveu como tinha conhecido o primeiro-ministro durante uma de suas visitas
à sede do Partido em Millbank. Lancaster havia expressado admiração pelo trabalho de Madeline e, em duas ocasiões, convidou-a para a sede do governo, a fim de receber
informações diretamente dela. No fim da segunda visita, ele admitiu que seu interesse em Madeline não era apenas profissional. O primeiro encontro sexual foi bem
rápido, num quarto de hotel em Manchester. Depois disso, ela passou a ser levada à Downing Street por um velho amigo do primeiro-ministro, sempre que Diana Lancaster
estivesse fora de Londres.
- E agora - falou Seymour, melancólico, enquanto a tela do computador escurecia - o primeiro-ministro do Reino Unido está sendo punido por seus pecados com uma tentativa
primitiva de chantagem.
- Não há nada de primitivo nisso, Graham. Quem está por trás disso sabia que o primeiro-ministro estava envolvido num caso extraconjugal. E conseguiu fazer sua amante
desaparecer da Córsega sem deixar rastros. É óbvio que se trata de alguém extremamente sofisticado.
Seymour tirou o DVD do computador sem dizer nada.
- Quem mais sabe?
Seymour explicou que os três itens - a fotografia, o bilhete e o DVD - haviam sido deixados na manhã anterior em frente à porta de Simon Hewitt, que os levara até
a Downing Street e os mostrara para Jeremy Fallon. Também contou que Hewitt e Fallon confrontaram Lancaster em seu escritório na sede. Gabriel, que havia residido
pouco tempo antes no Reino Unido, conhecia bem os envolvidos: Hewitt, Fallon, Lancaster, a santíssima trindade da política britânica. Hewitt era especialista em
usar a mídia a favor do governo, Fallon era o mestre maquinador e estrategista, e Lancaster era o talento político em pessoa.
- Por que Lancaster escolheu você? - perguntou Gabriel.
- Nossos pais trabalharam juntos no serviço de inteligência.
- Com certeza há mais alguma razão.
- De fato - admitiu Seymour. - Seu nome é Siddiq Hussein.
- Acho que não conheço.
- Por uma boa razão. Graças a mim, Siddiq desapareceu num buraco negro vários anos atrás, para nunca mais ser visto.
- Quem era ele?
- Siddiq Hussein, nascido no Paquistão, era um residente de Tower Hamlets no leste de Londres. Ele apareceu nos nossos radares depois dos bombardeios de 2007, quando
finalmente tomamos juízo e começamos a tirar os muçulmanos radicais das ruas. Você se lembra daqueles dias - disse Seymour com amargura.
- Os dias em que a esquerda e a mídia insistiram que deveríamos fazer algo a respeito dos terroristas entre nós.
- Continue, Graham.
- Siddiq estava convivendo com extremistas conhecidos na grande mesquita do leste de Londres e o número do seu celular aparecia em todos os lugares errados. Eu dei
uma cópia dos arquivos dele para a Scotland Yard, mas o Comando de Contraterrorismo disse que não havia evidência suficiente para agir contra ele. Então Siddiq fez
algo que me deu uma oportunidade de cuidar do problema pessoalmente.
- O que ele fez?
- Agendou um voo para o Paquistão.
- Grande erro.
- Fatal, na verdade - falou Seymour, sombrio.
- O que aconteceu?
- Nós o seguimos até Heathrow e garantimos que ele subisse em seu avião para Karachi. Em seguida, fiz uma ligação discreta para um velho amigo em Langley, Virgínia.
Acho que você o conhece bem.
- Adrian Carter.
Seymour assentiu. Adrian Carter era o diretor do Serviço Clandestino Nacional. Ele supervisionava a guerra global da CIA contra o terrorismo, incluindo os programas
outrora secretos para deter e interrogar agentes de alto nível.
- A equipe de Carter observou Siddiq em Karachi por três dias - continuou Seymour. - Então cobriram sua cabeça com um saco e o colocaram no primeiro voo clandestino
para fora do país.
- Para onde eles o levaram?
- Cabul.
- Para a prisão de Salt Pit?
Seymour aquiesceu devagar.
- Quando tempo ele durou?
- Isso depende de para quem você perguntar. De acordo com o relato da Agência, Siddiq foi encontrado morto em sua cela dez dias depois de chegar a Cabul. Sua família
alegou num processo que ele morreu durante a tortura.
- O que isso tem a ver com o primeiro-ministro?
- Quando os advogados que representavam a família de Siddiq pediram todos os documentos do MI5 referentes ao caso, o governo de Lancaster se recusou a atendê-los,
alegando que isso prejudicaria a segurança nacional britânica. Ele salvou a minha carreira.
- E agora você quer quitar essa dívida tentando salvar o pescoço dele? - Como
Seymour não respondeu, Gabriel acrescentou: - Isso vai acabar mal, Graham.
E, quando acabar, seu nome vai aparecer com destaque no inevitável inquérito.
- Eu deixei claro que, se isso acontecer, vou levar todo mundo junto, incluindo Lancaster.
- Nunca tomei você por uma pessoa ingênua, Graham.
- Sou tudo menos isso.
- Então se afaste. Volte para Londres e diga ao primeiro-ministro para aparecer diante das câmeras com a esposa ao lado, fazendo um apelo público para que os sequestradores
soltem a garota.
- É tarde demais para isso. Além do mais, talvez eu seja um pouco antiquado, mas não gosto quando as pessoas tentam chantagear o líder do meu país.
- O líder do seu país sabe que você está em Jerusalém?
- Você só pode estar brincando.
- Por que eu?
- Porque, se o MI5 ou qualquer serviço de inteligência tentar encontrá-la, o caso vai vazar, assim como o de Siddiq Hussein vazou. E você é bom em encontrar coisas
- continuou Seymour, falando baixo. - Pilares antigos, Rembrandts roubados, instalações iranianas secretas de enriquecimento.
- Desculpe, Graham, mas...
- E porque você também deve uma a Lancaster.
- Eu?
- Quem você acha que autorizou sua estadia na Cornualha com um nome falso quando nenhum outro país o aceitaria? E quem você pensa que o deixou recrutar uma jornalista
britânica quando precisava penetrar na cadeia de fornecimento iraniana?
- Não sabia que estávamos contando pontos, Graham.
- Não estamos. Mas, se estivéssemos, você certamente estaria perdendo a partida.
Os dois caíram num silêncio desconfortável, como se estivessem constrangidos pelo tom do debate. Seymour olhou para o teto, e Gabriel para o bilhete.
Em sete dias a garota morre...
- Um tanto vago, não acha?
- Mas muito eficiente - afirmou Seymour. - Atraiu a atenção de Lancaster.
- Nenhuma exigência?
Seymour balançou a cabeça.
- É óbvio que eles querem revelar seu preço no último minuto. E querem que Lancaster esteja desesperado para salvar a própria pele, pronto a concordar em pagar qualquer
coisa.
- Quanto o seu primeiro-ministro vale?
- Na última vez que dei uma olhadinha em suas contas bancárias - respondeu Seymour jocosamente ele tinha mais de 100 milhões.
- De libras?
Seymour assentiu.
- Jonathan Lancaster fez milhões no centro financeiro londrino, ganhou uma herança milionária e casou-se com a igualmente milionária Diana Baldwin. Ele é um alvo
perfeito, um homem com mais dinheiro do que precisa e com muito a perder. Diana e as crianças vivem na bolha de segurança da Downing Street, logo seria quase impossível
sequestrá-las. Mas a amante de Lancaster... - A voz de Seymour se perdeu. - Uma amante é algo completamente diferente.
- Imagino que Lancaster não tenha comentado sobre isso com a esposa.
Seymour fez um gesto com as mãos indicando que não tinha acesso ao funcionamento interno do casamento de Lancaster.
- Você já trabalhou com um caso de sequestro, Graham?
- Nenhum desde a Irlanda do Norte. E aqueles foram todos relacionados ao IRA.
- Sequestros políticos são diferentes de sequestros criminais - explicou Gabriel. - O sequestrador político comum é um sujeito racional. Ele quer que companheiros
sejam soltos ou que uma política seja modificada, então agarra um político importante ou um ônibus escolar cheio de crianças e os mantém como reféns até que suas
demandas sejam cumpridas. Mas o sequestrador criminoso só quer dinheiro. E, se você paga, faz com que ele queira mais dinheiro. Então ele fica pedindo dinheiro até
achar que não sobrou mais nada.
- Então acho que nos resta apenas uma opção.
- Qual?
- Encontrar a garota.
Gabriel foi até a janela e olhou para além do vale, na direção do Monte do Templo. Por um segundo, ele se viu de volta à caverna secreta 50 metros abaixo da superfície,
segurando Eli Lavon enquanto seu sangue era bombeado para o coração da montanha sagrada. Durante as longas noites que passou ao lado de Lavon no leito de hospital,
Gabriel jurou que nunca poria os pés de novo no campo de batalha do serviço secreto. Mas agora um velho amigo havia surgido das profundezas de seu passado emaranhado
para pedir um favor. E mais uma vez Gabriel estava se esforçando para encontrar as palavras que o mandariam embora de mãos vazias. Como filho único de sobreviventes
do Holocausto, desapontar outras pessoas não estava em sua natureza. Ele fazia concessões e raramente dizia não.
- Mesmo se eu for capaz de encontrá-la - disse ele depois de um tempo os sequestradores ainda vão ter o vídeo da confissão dela.
- Mas o vídeo terá um impacto bem diferente se a rosa inglesa estiver sã e salva em solo britânico.
- A menos que a rosa inglesa decida contar a verdade.
- Ela é leal ao Partido. Não se atreveria.
- Você não tem ideia do que eles fizeram com ela - retrucou Gabriel. - A esta altura, pode ser uma pessoa completamente diferente.
- É verdade. Mas estamos nos precipitando. Esta conversa é inútil se você e seu serviço não empreenderem uma operação para encontrar Madeline Hart.
- Eu não tenho autoridade para colocar meu serviço à sua disposição, Graham. A decisão é do Uzi, não minha.
- Uzi já autorizou - respondeu Seymour sem emoção. - Assim como Shamron.
Gabriel encarou Seymour com desaprovação, mas não disse nada.
- Você realmente acha que Ari Shamron teria me deixado chegar a menos de um quilômetro de você sem saber que eu estava na cidade? - questionou Seymour. - Ele é muito
protetor quando se trata de você.
- Ele tem um jeito engraçado de demonstrar isso. Mas receio que ainda exista uma pessoa em Israel mais poderosa do que Shamron, pelo menos no que diz respeito a
mim.
- Sua esposa?
Gabriel assentiu.
- Em sete dias a garota morre.
- Seis dias - corrigiu Gabriel. - A garota pode estar em qualquer lugar do mundo e não temos uma única pista.
- Isso não é exatamente verdade.
Seymour enfiou a mão na maleta e pegou duas fotografias da Interpol do homem com quem Madeline Hart tinha almoçado na tarde em que desaparecera. O homem cujos sapatos
não deixavam marcas. O homem esquecido.
- Quem é ele? - perguntou Gabriel.
- Boa pergunta. Mas, se você puder encontrá-lo, suspeito que encontre Madeline Hart.
6
MUSEU DE ISRAEL, JERUSALÉM
Gabriel pegou um único item de Graham Seymour - a fotografia de Madeline Hart - e o levou para a região oeste de Jerusalém, até o Museu de Israel. Depois de deixar
o carro no estacionamento para funcionários - um privilégio que haviam lhe concedido recentemente atravessou o enorme hall de entrada feito de vidro e chegou até
a sala que alojava a coleção de arte europeia. Num canto estavam penduradas nove pinturas impressionistas que antes pertenciam a um banqueiro suíço chamado Augustus
Roube. Uma plaqueta descrevia a longa jornada que as pinturas tinham feito a partir de Paris - como foram saqueadas pelos nazistas em 1940 e transferidas para Roube
em troca de serviços prestados à inteligência alemã. Mas não chegava a mencionar o fato de que Gabriel e a filha do banqueiro, a renomada violinista Anna Roube,
tinham descoberto as pinturas num cofre em Zurique, nem que um consórcio de empresários suíços havia contratado um assassino profissional corso para matar Gabriel
e Anna.
Na galeria adjacente estavam pinturas de artistas israelenses. Três telas eram da mãe de Gabriel, incluindo um retrato assombroso da marcha da morte de Auschwitz
em janeiro de 1945, feito com base em suas memórias. Gabriel passou um bom tempo admirando o desenho e as pinceladas antes de sair para o jardim das esculturas.
Na outra extremidade, erguia-se o Santuário do Livro, uma estrutura em forma de colmeia que continha os Manuscritos do Mar Morto. Ao lado dessa ala ficava a mais
nova construção do museu, com 60 côvados de comprimento, 20 de largura e 30 de altura. Por enquanto, o espaço estava coberto por uma lona opaca para construções,
que escondia os 22 pilares do Templo de Salomão do resto do mundo.
Havia seguranças bem armados em ambos os lados da construção e na entrada que ficava voltada para o leste, assim como no templo original de Salomão. Esse era apenas
um elemento do projeto curatorial mais controverso que o mundo já conhecera. Os haredim ultraortodoxos de Israel tinham denunciado a exposição como uma afronta a
Deus que acabaria levando à destruição do Estado judeu, enquanto na parte leste de Jerusalém, que abrigava a população árabe, os mantenedores do Domo da Rocha declararam
que os pilares eram um embuste elaborado.
- Nunca houve Templo no Monte do Templo - escreveu o grande mufti de Jerusalém numa carta aberta publicada pelo New York Times - e nenhuma exposição ou museu vai
mudar esse fato.
Apesar das violentas batalhas religiosas e políticas, a organização da exposição progredia de forma consideravelmente rápida. Poucas semanas após a descoberta de
Gabriel, aprovaram-se os planos arquitetônicos, angariaram-se fundos e foi iniciada a construção. Boa parte do crédito pertencia à diretora e designer-chefe italiana.
Em público, referiam-se a ela por seu nome de solteira, Chiara Zolli. Mas todas as pessoas associadas ao projeto sabiam que ela se chamava Chiara Allon.
Os pilares foram dispostos da mesma forma em que Gabriel os encontrara, em duas fileiras retas separadas por cerca de 6 metros. O mais alto estava enegrecido pelo
fogo do incêndio provocado pelos babilônios na noite em que derrubaram o Templo - considerado pelos judeus da Antiguidade como a moradia de Deus na Terra. Fora a
esse pilar que Eli Lavon se agarrara quando estava à beira da morte, e foi lá que Gabriel encontrou Chiara agora segurando uma prancheta e gesticulando na direção
do teto de vidro. Ela vestia jeans desbotados, sandálias sem salto e um moletom branco sem mangas que marcava bem as curvas de seu corpo. Os braços descobertos estavam
bem bronzeados pelo sol de Jerusalém. Chiara parecia incrivelmente linda, pensou Gabriel, e jovem demais para ser a esposa de um sujeito tão acabado quanto ele.
No alto da obra, dois técnicos estavam fazendo ajustes nas luzes da exposição sob a supervisão de Chiara. Ela falava com eles em hebraico, com um sotaque italiano
acentuado. Filha do rabino-chefe de Veneza, havia passado a juventude no mundo provinciano de um gueto, partindo apenas por tempo suficiente para cursar o mestrado
em História Romana na Universidade de Pádua. Ela voltara a Veneza depois de se graduar e aceitara um emprego num pequeno museu judaico no Campo del Ghetto Nuovo,
e talvez tivesse permanecido lá para sempre se um observador de talentos do Escritório não tivesse reparado nela durante uma visita a Israel. O homem apresentara-se
num café de Tel Aviv e perguntara a Chiara se ela estaria interessada em fazer mais pelo povo judeu do que trabalhando no museu de um gueto moribundo.
Após passar um ano no programa de treinamento secreto do Escritório, ela retomou sua vida antiga, já como agente secreta israelense. Uma de suas primeiras tarefas
foi ficar na retaguarda de um assassino do Escritório chamado Gabriel Allon, que tinha ido a Veneza para restaurar o retábulo de San Zaccaria, de Bellini. Chiara
revelou-se a ele pouco tempo depois, em Roma, após um incidente envolvendo tiroteios e a polícia italiana. A sós com Chiara em um esconderijo, Gabriel sentiu uma
vontade desesperadora de tocá-la. Esperou até que o caso fosse resolvido e eles voltassem a Veneza. Lá, numa casa à beira de um canal em Cannaregio, fizeram amor
pela primeira vez, numa cama com frescos lençóis de linho. Era como fazer amor com uma figura pintada por Veronese.
Agora, ela virou a cabeça e, notando Gabriel pela primeira vez, sorriu. Seus olhos, largos e meio orientais, tinham cor de caramelo e manchas douradas, uma combinação
que Gabriel nunca fora capaz de reproduzir com precisão na tela. Vários meses já haviam se passado desde que Chiara concordara em posar para ele. A exposição a deixara
com pouco tempo para outros afazeres. Era uma mudança clara no padrão do casamento. Em geral era Gabriel que se via consumido por um projeto, fosse uma pintura ou
uma operação, mas agora os papéis estavam invertidos. Organizadora inata e sempre meticulosa, Chiara conseguia progredir mesmo sob a pressão da exposição. Mas, secretamente,
Gabriel antecipava o dia em que a teria de volta.
Ela caminhou até o pilar seguinte e observou como a luz incidia sobre ele.
- Eu liguei para o apartamento alguns minutos atrás, mas ninguém atendeu.
- Eu estava num brunch com Graham Seymour no King David.
- Que adorável - comentou ela, sarcástica. Em seguida, ainda analisando os pilares, perguntou: - O que tem no envelope?
- Uma oferta de emprego.
- Quem é o artista?
- Desconhecido.
- E o tema?
- Uma garota chamada Madeline Hart.
Gabriel voltou para o jardim de esculturas e sentou-se num banco com vista para as colinas de Jerusalém Ocidental. Alguns minutos depois, Chiara juntou-se a ele.
Um suave vento outonal moveu os seus cabelos. Ela afastou uma mecha do rosto e cruzou as pernas, com a sandália pendente do pé bronzeado. De repente, a última coisa
que Gabriel queria fazer era deixar Jerusalém para procurar uma garota desconhecida.
- Vamos tentar de novo... - disse ela, por fim. - O que tem no envelope?
- Uma foto.
- Que tipo de foto?
- Prova de vida.
Chiara estendeu a mão. Gabriel hesitou.
- Tem certeza?
Chiara assentiu e Gabriel lhe entregou o envelope. Ela o abriu e retirou a foto. Enquanto examinava a imagem, seu rosto ficou sombrio. Claramente vinha à sua memória
um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Gabriel tinha tirado tudo de Ivan: seus negócios, seu dinheiro, sua mulher e filhos. Em seguida, o oligarca retaliara
capturando Chiara. A operação de resgate foi a mais sangrenta em toda a longa carreira de Gabriel: ele matara onze agentes inimigos. E, numa rua tranquila em Saint-Tropez,
também assassinara Ivan. Mesmo morto, Ivan permaneceria como parte de suas vidas. As injeções de ketamina que seus homens haviam aplicado em Chiara fizeram-na perder
o bebê. Como ela não recebera tratamento, o aborto prejudicara sua capacidade de ter filhos. Chiara quase tinha perdido qualquer esperança de ficar grávida de novo.
Ela colocou a foto no envelope e o devolveu a Gabriel. Então, escutou com atenção enquanto ele explicava como o caso tinha caído no colo de Graham Seymour, para
então chegar ao seu.
- Então o primeiro-ministro britânico está forçando Graham Seymour a fazer o trabalho sujo dele - disse Chiara quando Gabriel terminou e Graham está fazendo o mesmo
com você.
- Ele tem sido um bom amigo.
O rosto de Chiara não revelava nenhuma expressão. Seus olhos, normalmente uma janela confiável para seus pensamentos, estavam ocultos atrás de óculos escuros.
- O que você acha que eles querem? - perguntou ela depois de um tempo.
- Dinheiro. Eles sempre querem dinheiro.
- Quase sempre. Mas às vezes querem coisas que não dá para ceder.
Ela tirou os óculos e os pendurou na camiseta.
- Quanto tempo você tem antes de eles a matarem? - Como Gabriel ficou em silêncio, ela balançou a cabeça devagar. - É um caso impossível. Você não poderia encontrá-la
a tempo.
- Olhe para a construção atrás de você. Depois me fale se ainda sente o mesmo.
Chiara não olhou para nada além do rosto de Gabriel.
- A polícia francesa está buscando Madeline Hart há mais de um mês. O que faz você pensar que pode encontrá-la?
- Talvez eles não tenham procurado no lugar certo... ou falado com as pessoas certas.
- Por onde você começaria? Eu sempre acreditei que o melhor lugar para iniciar uma investigação é na cena do crime.
Chiara pegou os óculos e limpou as lentes na calça jeans, distraída. Gabriel sabia que aquilo era um mau sinal: a esposa sempre limpava coisas quando estava aborrecida.
- Desse jeito você vai arranhar as lentes.
- Estão imundas - retrucou ela no mesmo instante.
- Talvez você devesse arrumar um estojo em vez de jogar os óculos na bolsa.
Ela não respondeu nada.
- Você sempre me surpreende, Chiara.
- Por quê?
- Porque você sabe melhor do que qualquer pessoa que Madeline Hart está no inferno. E ela vai ficar no inferno até que alguém a tire de lá.
- Eu só gostaria que outra pessoa fizesse o serviço.
- Não há outra pessoa.
- Ninguém como você.
Ela examinou as lentes e franziu a testa.
- O que houve?
- Estão arranhadas.
- Eu avisei.
- Você sempre tem razão, querido.
Chiara colocou os óculos e olhou na direção da cidade.
- Imagino que Shamron e Uzi já tenham dado suas bênçãos.
- Graham os procurou antes de falar comigo.
- Que esperto da parte dele. - Chiara descruzou as pernas e se levantou. - Eu preciso voltar. Não temos muito tempo antes da abertura.
- Você tem feito um trabalho magnífico, Chiara.
- Ficar me bajulando não vai ajudar.
- Achei que valia tentar.
- Quando vou vê-lo de novo?
- Só tenho sete dias para encontrá-la.
- Seis - ela o corrigiu. - Em seis dias a garota morre.
Chiara lhe deu um beijo suave. Em seguida, virou-se e atravessou o jardim ensolarado, os quadris balançando como se seguissem o ritmo de uma música que só ela conseguisse
ouvir. Gabriel a observou entrar na construção coberta pela lona. Agora, a última coisa que ele queria fazer era deixar Jerusalém em busca de uma garota desconhecida.
Ele voltou ao King David Hotel para recolher o resto do dossiê de Graham Seymour: o bilhete de exigências que não continha nenhuma exigência, o DVD da confissão
de Madeline e as duas fotos do homem de Les Palmiers em Calvi. Além disso, requisitou uma cópia do arquivo pessoal de Madeline no Partido, a ser entregue em um endereço
em Nice.
- Como foi com Chiara? - perguntou Seymour.
- A esta altura, meu casamento pode estar pior que o de Lancaster.
- Algo que eu possa fazer?
- Saia da cidade o mais rápido possível. E não mencione meu nome para o seu primeiro-ministro nem para qualquer outra pessoa na Downing Street.
- Como posso entrar em contato com você?
- Mando um sinal de fumaça quando tiver notícias. Até lá, eu não existo.
Com essas palavras, Gabriel partiu. Voltando para a rua Narkiss, encontrou um cinto de dinheiro na mesa de centro com 200 mil dólares. Ao lado, havia uma passagem
de avião, de um voo das 16 horas para Paris. A reserva fora feita no nome de Johannes Klemp, uma de suas identidades falsas favoritas. Gabriel entrou no quarto e
encheu uma pequena bolsa de viagem com as roupas modernas de Herr Klemp, separando um terno e um casaco pretos para o voo. Então, em frente ao espelho do banheiro,
fez algumas alterações sutis em sua própria aparência: um pouco de grisalho no cabelo, óculos alemães sem aro, lentes de contato castanhas para esconder os característicos
olhos verdes. Em poucos minutos, mal reconhecia o rosto no reflexo. Ele não era mais Gabriel Allon, o anjo vingador de Israel, mas Johannes Klemp, de Munique, um
homem sempre pronto a se ressentir - pequeno, insignificante e carrancudo.
Depois de vestir o terno e passar a fragrância tenebrosa de Herr Klemp, sentou à penteadeira de Chiara e abriu sua caixa de joias. Um item pareceu estranhamente
fora de lugar: um coral-vermelho em forma de mão, preso a uma tira de couro. Ele o pegou e o colocou no bolso. Então, por razões que ele mesmo não saberia explicar,
pendurou o artefato no pescoço e o escondeu sob o casaco de Herr Klemp.
Diante da casa, um sedã do Escritório estava parado com o motor ligado. Gabriel jogou a bolsa no banco de trás e entrou. Em seguida, consultou o relógio, não para
ver as horas, mas a data: 27 de setembro. Já tinha sido seu dia favorito do ano.
- Qual o seu nome? - perguntou ao motorista.
- Lior.
- De onde você é, Lior?
- Berseba.
- Era um bom lugar para uma criança?
- Existem lugares piores.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e cinco.
Vinte e cinco, pensou Gabriel. Por que tinha que ser aquela idade? Olhou de novo para o relógio. Não para a hora; para a data.
- Quais foram suas instruções?
- Disseram-me para levá-lo ao Ben Gurion - respondeu Lior.
- Mais alguma coisa?
- Falaram que talvez você quisesse fazer uma parada no caminho.
- Quem falou isso? Uzi?
- Não. Foi o Velho.
Então ele lembrava, pensou Gabriel. Olhou de novo para o relógio. A data...
- Como devo proceder? - perguntou o motorista.
- Leve-me ao aeroporto.
- Nenhuma parada?
- Só uma.
Lior engrenou a marcha e se afastou suavemente da calçada, como se estivesse se juntando a um cortejo fúnebre. Não se deu o trabalho de perguntar para onde estavam
indo. Era 27 de setembro. E Shamron se lembrava.
Eles foram até o jardim de Getsêmani e seguiram o caminho estreito e sinuoso que subia a encosta do monte das Oliveiras. Gabriel entrou no cemitério sozinho e passou
pelo mar de lápides, até chegar ao túmulo de Daniel Allon, nascido no dia 27 de setembro de 1988, morto no dia 13 de janeiro de 1991, numa noite de neve no Primeiro
Distrito de Viena, num Mercedes azul destruído por uma bomba. O artefato fora plantado por um líder terrorista palestino chamado Tariq al-Hourani, sob ordens diretas
de Yasser Arafat. Gabriel não era o alvo; aquilo seria leniente demais. Tariq e Arafat queriam puni-lo forçando-o a assistir à morte de sua mulher e filho, para
que pudesse passar o resto da vida de luto, assim como os palestinos. Apenas um elemento da trama falhara: Leah sobrevivera ao inferno. Agora ela vivia num hospital
psiquiátrico no topo do monte Herzl, prisioneira da própria memória e de um corpo destruído pelo fogo. Tomada por uma combinação de estresse pós-traumático e depressão
psicótica, revivia constantemente o atentado. De vez em quando, tinha lampejos de lucidez. Durante um desses períodos, ela concedera a Gabriel permissão para se
casar com Chiara. Olhe para mim, Gabriel. Não resta nada de mim. Nada além de uma memória.
Gabriel consultou o relógio de novo. Não olhando a data, mas a hora. Havia tempo para uma última despedida. Uma última torrente de lágrimas. Um último pedido de
desculpas por ter deixado de vasculhar o carro antes de Leah dar partida. Em seguida, ele se afastou cambaleante do jardim de pedra, no dia que já fora o seu favorito
do ano, e subiu na traseira de um sedã do Escritório que era conduzido por um garoto de 25 anos.
Lior teve o bom senso de não falar uma palavra sequer durante o caminho até o aeroporto. Gabriel entrou no terminal como um viajante qualquer, mas então foi a uma
sala reservada para a equipe do Escritório, onde esperou seu voo ser chamado. Ao se acomodar no assento de primeira classe, sentiu um impulso não profissional de
ligar para Chiara. Usando técnicas que lhe foram ensinadas na juventude por Shamron, ele a afastou de seus pensamentos. Agora não havia Chiara. Nem Daniel. Nem Leah.
Havia apenas Madeline Hart, a amante sequestrada do primeiro-ministro britânico Jonathan Lancaster. Enquanto o avião decolava em direção ao céu que começava a escurecer,
ela apareceu para Gabriel num retrato a óleo, como Suzana banhando-se num jardim. Espiando-a de trás de um muro estava um homem com um rosto anguloso e uma boca
pequena e cruel. O homem sem nome nem país. O homem esquecido.
7
CÓRSEGA
Os corsos dizem que, ao se aproximarem de barco de sua ilha, são capazes de sentir o cheiro da vegetação cerrada característica - chamada ali de Mac chia - muito
antes de vislumbrarem o contorno acidentado da costa se erguendo do mar. Gabriel não teve essa experiência, pois chegou à Córsega de avião, no primeiro voo matinal
que partiu de Orly. Só quando estava ao volante de um Peugeot alugado, saindo do aeroporto de Acácio em direção ao sul, é que sentiu pela primeira vez o aroma de
carqueja, sarça, estava e alecrim vindo das colinas. Os corsos usavam as plantas para cozinhar e aquecer suas casas e nelas se refugiavam em tempos de guerra e vendeta.
Segundo a lenda corsa, um homem perseguido poderia penetrar na macchia e, se quisesse, permaneceria lá para sempre sem ser encontrado. Gabriel conhecia um desses
homens. Era por isso que levava no pescoço um artefato de coral-vermelho.
Depois de dirigir por meia hora, ele saiu da estrada costeira e tomou a direção do interior. À medida que o odor da macchia se intensificava, também se fortificavam
os muros que cercavam as pequenas cidades de colina. A Córsega, assim como a antiga terra de Israel, fora invadida muitas vezes: após a queda do Império Romano,
os vândalos pilharam a ilha de forma tão implacável que a maior parte dos habitantes fugiu do litoral e recuou para a segurança das montanhas. Mesmo atualmente,
o medo de estrangeiros ainda era intenso. Num vilarejo isolado, uma idosa apontou para Gabriel com o dedo indicador e o mindinho a fim de afastar os efeitos do occhju,
o mau-olhado.
Passando o vilarejo, a estrada era pouco mais do que uma via de pista única ladeada por paredes densas da macchia. Depois de um quilômetro, ele chegou à entrada
de uma propriedade particular. O portão estava aberto, mas bloqueado por um veículo off-road com dois seguranças. Gabriel desligou o motor e colocou as mãos sobre
o volante, esperando os homens se aproximarem. Por fim, um deles saiu do veículo e caminhou devagar em sua direção. Tinha uma arma numa das mãos e a outra enfiada
na cintura. Com um único movimento de suas sobrancelhas espessas, o homem questionou o propósito da visita de Gabriel.
- Desejo ver Don Orsati - disse Gabriel em francês.
- Ele é um homem muito ocupado - respondeu o segurança no dialeto corso.
Gabriel tirou o talismã do pescoço e o entregou. O corso sorriu.
- Verei o que posso fazer.
Nunca foi muito difícil desencadear uma disputa sangrenta na Córsega. Um insulto. Uma acusação de roubo no mercado. A dissolução de um noivado. A gravidez de uma
mulher solteira. Após a faísca inicial, sempre vinham os distúrbios. Um touro morreria, uma oliveira premiada seria derrubada, uma casa de campo pegaria fogo. Então
os assassinatos começariam. E a coisa seguia em frente, às vezes por uma geração ou mais, até que as partes injuriadas acertassem as diferenças ou desistissem da
luta por exaustão.
A maior parte dos homens corsos estava mais do que disposta a cometer os próprios assassinatos. Mas alguns precisavam de outros para executarem seu trabalho sangrento:
pessoas de renome que eram melindrosas demais para sujarem as mãos ou que não estavam dispostas a arriscar uma prisão ou o exílio; mulheres que não conseguiam matar
e não tinham parentes masculinos para assumirem a questão. Gente desse tipo dependia de assassinos profissionais conhecidos como taddunaghiu e, em geral, recorria
ao clã Orsati.
Os Orsatis tinham uma bela propriedade e seu azeite era considerado o melhor de toda a Córsega. Mas faziam muito mais do que plantar oliveiras. Ninguém sabia quantos
corsos haviam morrido pelas mãos de assassinos dos Orsatis, muito menos os próprios Orsatis, mas de acordo com o folclore local, o número estava na casa dos milhares.
Poderia ter sido muito mais se não fosse o rigoroso processo de vetos do clã. Os Orsatis operavam com base num código rigoroso. Eles se recusavam a cometer um assassinato
se não estivessem convencidos de que o requisitante havia de fato sido injustiçado e que fosse necessária uma vingança sanguinolenta.
No entanto, isso mudou com Don Anton Orsati. Quando ele tomou o controle da família, as autoridades francesas tinham conseguido erradicar as rixas e a vendeta por
toda a ilha, com exceção dos bolsões mais isolados; logo, poucos corsos exigiam os serviços dos taddunaghiu. Com a demanda local em declínio acelerado, Orsati não
teve escolha além de buscar por oportunidades em outros lugares, isto é, do outro lado da água, na Europa continental. Agora, ele aceitava quase todas as ofertas
de trabalho que passassem por sua mesa, mesmo que fossem desagradáveis, e seus assassinos eram considerados os profissionais mais confiáveis de todo o continente.
Gabriel fora uma das duas únicas pessoas que sobreviveram a um contrato da família Orsati.
Embora Anton Orsati fosse descendente de uma família de corsos ilustres, em aparência era indistinguível dos paesanu que protegiam a entrada de sua propriedade.
Ao entrar no amplo escritório do don, Gabriel o encontrou sentado à mesa vestindo uma camisa branca, calças largas de algodão claro e um par de sandálias poeirentas
que pareciam ter sido compradas na feira local. Ele estava analisando um livro-razão antiquado com uma expressão carrancuda. Gabriel não podia imaginar a fonte de
sua insatisfação. Muito tempo antes, Orsati tinha fundido os dois negócios numa única empresa. Seus taddunaghiu modernos eram funcionários da Orsati Olive Oil Company
e os assassinatos eram registrados como encomendas de produtos.
Levantando-se, Orsati estendeu sua mão de granito para Gabriel sem qualquer traço de apreensão.
- É uma honra conhecê-lo, monsieur Allon - falou ele em francês. - Para ser sincero, achava que o veria bem antes. Você tem reputação de lidar severamente com seus
inimigos.
- Meus inimigos eram os banqueiros suíços que o contrataram para me matar, Don Orsati. Além do mais, em vez de me dar um tiro na cabeça, seu assassino me deu isto.
Gabriel meneou a cabeça na direção do talismã, que estava na mesa de Orsati ao lado do livro-razão. Anton franziu a testa. Erguendo o amuleto pela tira de couro,
deixou a mão de coral-vermelho balançar para trás e para a frente, como o pêndulo de um relógio.
- Aquilo foi imprudente - comentou, por fim, o don.
- Abandonar o talismã ou me deixar vivo?
Orsati deu um sorriso evasivo.
- Temos um velho ditado aqui na Córsega: I solda un vènini micca cantendu. Não dá para ganhar dinheiro cantando. Só trabalhando. E, por aqui, trabalho significa
cumprir contratos, mesmo quando envolvem violinistas famosos e agentes da inteligência israelense.
- Então você devolveu o dinheiro para os homens que o contrataram?
- Eles eram banqueiros suíços. Dinheiro era a última coisa de que precisavam. - Orsati fechou o livro-razão e colocou o talismã sobre a capa. - Como pode imaginar,
mantive os olhos em você no decorrer dos anos. Você tem ficado muito ocupado desde que nossos caminhos se cruzaram. Na verdade, alguns dos seus melhores trabalhos
foram feitos no meu território.
- Esta é a minha primeira visita à Córsega.
- Estava me referindo ao sul da França. Você matou aquele terrorista saudita, Zizi al-Bakari, no velho porto de Cannes. E também houve aquele desentendimento com
Ivan Kharkov em Saint-Tropez alguns anos atrás.
- Pelo que eu soube, Ivan foi morto por outros russos - disse Gabriel, evasivo.
- Você matou Ivan, Allon. E você o matou porque ele capturou sua esposa.
Gabriel ficou em silêncio. O corso voltou a sorrir, dessa vez com a confiança de um homem que sabe que tem razão.
- A macchia não tem olhos, mas vê tudo.
- É por isso que estou aqui.
- Imaginei. Afinal, um homem como você certamente não precisaria de um assassino profissional. Você faz isso muito bem por conta própria.
Gabriel tirou um maço de dinheiro do bolso do casaco e o depositou sobre o livro-razão da morte, ao lado do talismã. O don o ignorou.
- Como posso ajudá-lo, Allon?
- Preciso de uma informação.
- Sobre...?
Sem dizer nada, Gabriel colocou a foto de Madeline Hart ao lado do dinheiro.
- A garota inglesa?
- Você não parece surpreso, Don Orsati.
O corso não respondeu.
- Sabe onde ela está?
- Não. Mas tenho uma boa noção de quem a capturou.
Gabriel ergueu a foto do homem de Les Palmiers. Orsati assentiu.
- Quem é ele?
- Não sei. Só o vi uma vez.
- Onde?
- Neste escritório, uma semana antes de a garota inglesa desaparecer. Ele sentou na mesma cadeira em que você está sentado agora. Mas ele tinha mais dinheiro do
que você, Allon. Muito mais.
8
CÓRSEGA
Era hora do almoço, a parte do dia predileta de Don Orsati. Eles se acomodaram na varanda adjacente ao escritório e sentaram a uma mesa repleta de pães, queijos,
vegetais e salsichas da região. O sol estava forte e, por entre os pinheiros-larícios, Gabriel pôde ver o mar azul-esverdeado reluzindo à distância. O aroma da macchia
estava por toda parte; no ar fresco e na comida. Até mesmo Orsati parecia irradiá-lo. Ele serviu vinho vermelho-sangue na taça de Gabriel e, a seguir, passou a cortar
várias fatias da gorda salsicha corsa. Gabriel não questionou a origem da carne. Nas palavras de Shamron, às vezes é melhor não perguntar.
- Fico feliz por não termos matado você - disse Orsati, erguendo a taça uma fração de centímetro.
- Posso garantir, Don Orsati, que sinto o mesmo.
- Mais salsicha?
- Por favor.
Orsati cortou mais duas fatias grossas e as colocou no prato de Gabriel. Em seguida, pôs os óculos de leitura em formato de meia-lua e examinou a fotografia do homem
de Les Palmiers.
- Ele parece diferente nesta foto - comentou após um momento. - Mas definitivamente é a mesma pessoa.
- O que está diferente?
- O penteado. Quando ele veio me ver, estava com mouse no cabelo e o penteara bem para trás. Era uma diferença sutil, mas muito eficiente.
- Ele tinha um nome?
- Apresentou-se como Paul.
- Sobrenome?
- Até onde eu sei, esse era o sobrenome.
- Que idioma nosso amigo Paul falava?
- Francês.
- Local?
- Não, tinha sotaque.
- De que tipo?
- Não consegui identificar - respondeu o don, franzindo as sobrancelhas grossas. - Dava a impressão de ter aprendido francês ouvindo os CDs de algum curso de línguas.
Era perfeito, mas ao mesmo tempo havia algo de estranho ali.
- Imagino que ele não tenha encontrado seu nome numa lista telefônica.
- Não, Allon. Ele tinha uma referência.
- Que tipo de referência?
- Um nome.
- Alguém que contratou você no passado.
- As referências costumam ser desse tipo.
- Que tipo de trabalho era?
- O tipo em que dois homens entram numa sala e só um sai. E não se dê o trabalho de me perguntar o nome da referência - acrescentou Orsati rapidamente. - Estamos
falando dos meus negócios.
Com um leve movimento da cabeça, Gabriel indicou que não tinha desejo que levar a questão mais a fundo, ao menos por enquanto. Então, perguntou a Anton por que o
homem tinha ido vê-lo.
- Conselho - respondeu Orsati.
- Sobre o quê?
- Ele me disse que tinha alguns produtos para mover. Falou que precisava de alguém com um barco rápido. Alguém que conhecesse as águas locais e pudesse navegar à
noite. Alguém que soubesse manter a boca fechada.
- Produto?
- Você pode achar estranho, mas ele não foi específico.
- Você supôs que ele fosse um contrabandista - disse Gabriel. Era mais uma declaração de fato do que uma pergunta.
- A Córsega é uma rota intensa de tráfico de heroína do Oriente Médio para a Europa. Ah, para seu governo, os Orsatis não lidam com narcóticos, embora se saiba que,
vez ou outra, nós eliminamos membros proeminentes desse mercado.
- Por uma taxa, é claro.
- Quanto mais proeminente, maior a taxa.
- Vocês foram capazes de oferecer o serviço para ele?
- Óbvio - respondeu o don. Em seguida, baixando a voz, acrescentou: - Às vezes nós mesmos movemos coisas durante a noite, Allon.
- Coisas como cadáveres?
Orsati deu de ombros.
- São um infeliz efeito colateral de nosso negócio - falou ele num tom filosófico. - Em geral, tentamos deixá-los onde caem. Mas, ocasionalmente, os clientes pagam
um pouco a mais para que eles desapareçam. Nosso método favorito é colocá-los em caixões de concreto e enviá-los para o fundo do mar. Só Deus sabe quantos estão
lá embaixo.
- Quanto Paul pagou?
- Cem mil.
- Como foi a divisão?
- Metade para mim, metade para o homem com o barco.
- Só metade?
- Sorte dele ter recebido tanto.
- E quando você soube que a garota inglesa tinha desaparecido?
- É óbvio que suspeitei. Quando vi a foto de Paul nos jornais... Basta dizer que não fiquei satisfeito. A última coisa que eu preciso é de problemas. São ruins para
os negócios.
- Você não aceita sequestrar mulheres jovens?
- Suspeito que nem você.
Gabriel permaneceu em silêncio.
- Não quis ofender - disse o don sinceramente.
- Não ofendeu, Don Orsati.
Anton encheu seu prato com pimentões assados e berinjela e encharcou-os com azeite de oliva do clã. Gabriel tomou um pouco de vinho, elogiou a comida e perguntou
pelo nome do homem com o barco rápido que conhecia as águas locais, como se não tivesse o mínimo interesse na resposta.
- Estamos entrando em território sensível - alertou Orsati. - Eu faço negócios com essas pessoas o tempo todo. Se descobrirem que as traí, as coisas ficariam feias,
Allon.
- Posso garantir, Don Orsati, que eles nunca vão saber como eu obtive a informação.
Orsati não pareceu convencido.
- Por que essa garota é tão importante a ponto de o grande Gabriel Allon procurá-la?
- Digamos que ela tem amigos poderosos.
- Amigos? - Orsati balançou a cabeça, cético. - Se você está envolvido, é mais do que isso.
- Você é muito sábio, Don Orsati.
- A macchia não tem olhos - comentou o don, misterioso.
- Eu preciso do nome dele - insistiu Gabriel, baixinho. - Ele nunca vai saber onde eu o obtive.
Orsati pegou a taça de vinho e a ergueu contra o sol.
- Se eu fosse você - disse, depois de um instante falaria com um homem chamado Marcel Lacroix. Talvez ele saiba algo sobre o lugar para onde a garota foi depois
que saiu da Córsega.
- Onde eu posso encontrá-lo?
- Marselha. Ele deixa o barco no Velho Porto.
- Qual lado?
- O sul, em frente à galeria de arte.
- Qual é o nome do barco?
- Moondance.
- “Dança da Lua”? Simpático.
- Garanto que não há nada de simpático a respeito de Marcel Lacroix ou dos homens para quem ele trabalha. Você precisa ser cuidadoso em Marselha.
- Você pode achar estranho, Don Orsati, mas eu já fiz isso uma ou duas vezes.
- É verdade. Mas você deveria estar morto há muito tempo. - Orsati passou o talismã para Gabriel. - Coloque isso no pescoço. Afasta mais do que só o mau-olhado.
- Na verdade, eu estava me perguntando se você tem algo um pouco mais poderoso.
- Como o quê?
- Uma arma.
O don sorriu.
- Eu tenho algo melhor do que uma arma.
Gabriel seguiu pela rua até ela virar uma estrada de terra e, então, foi um pouco mais além. O bode velho estava exatamente onde Don Orsati tinha dito que estaria,
bem antes da curva fechada à esquerda, à sombra das três oliveiras centenárias. Quando Gabriel se aproximou, ele se ergueu e ficou no meio da passagem estreita,
como se desafiasse o estranho a tentar passar. Tinha o corpo meio dourado e branco e uma barba vermelha. Assim como Allon, carregava cicatrizes de antigas batalhas.
Ele avançou o carro alguns centímetros, tentando fazer o bode entregar sua posição sem briga, mas o animal manteve-se firme. Gabriel olhou para a arma que Don Orsati
tinha lhe dado. Uma Beretta 9 milímetros carregada no banco do carona. Um tiro entre os chifres desgastados do bode seria o bastante para terminar o impasse. Mas
não era possível. O bode, assim como as velhas oliveiras, pertencia a Don Casabianca. Se Gabriel tocasse num pelo de sua maldita cabeça, haveria uma batalha e sangue
derramado.
Gabriel deu duas buzinadas, mas o bode não cedeu. Com um suspiro profundo, saiu do carro e tentou discutir com o bicho - primeiro em francês, depois italiano e por
fim, exasperado, em hebraico. O bode respondeu baixando a cabeça e a mirando como um aríete na direção da barriga de Gabriel. Mas Allon, que acreditava que a melhor
defesa era um bom ataque, avançou primeiro, balançando os braços e gritando como um lunático. Surpreso, o bode recuou na mesma hora e sumiu por um vão na macchia.
Gabriel voltou depressa até a porta aberta do carro, mas parou ao ouvir um som ao longe, como o gorjeio de um tordo. Ele se virou e olhou para cima, na direção da
casa ocre ao lado da colina seguinte. Parado no terraço estava um homem louro todo vestido de branco. E, embora Gabriel não pudesse ter certeza, parecia que o homem
estava rindo descontroladamente.
9
CÓRSEGA
O homem esperando por Gabriel na casa não era corso - ao menos não tinha nascido ali. Seu nome real era Christopher Keller e ele fora criado num sólido lar de classe
média alta no elegante distrito londrino de Kensington. Na Córsega, no entanto, apenas Don Orsati e um punhado de seus subordinados sabiam de tudo isso. Para o resto
da ilha, ele era conhecido simplesmente como “o Inglês”.
A história da jornada de Keller de Kensington à Córsega fora uma das mais intrigantes que Gabriel já escutara, o que em si já não era pouca coisa. Filho único de
dois médicos da Harley Street, logo cedo deixou claro que não tinha a menor intenção de seguir os passos dos pais. Obcecado por história, especialmente história
militar, queria se tornar um soldado. Seus pais o proibiram de se alistar no Exército e, por um tempo, ele se resignou. Matriculou-se em Cambridge e começou a estudar
história e idiomas orientais. Era um aluno brilhante, mas no segundo ano de estudos perdeu a paciência e uma noite sumiu sem deixar rastros. Alguns dias depois,
apareceu na casa do pai, em Kensington, de cabelo raspado, vestindo um uniforme verde-oliva: tinha entrado para o Exército britânico.
Após completar o treinamento básico, Keller se juntou a uma unidade de infantaria, mas seu intelecto, capacidade física e iniciativa logo chamaram a atenção do Serviço
Aéreo Especial, conhecido na Inglaterra como SAS. Poucos dias depois de chegar à sede do regimento em Hereford, ficou claro que Keller tinha encontrado sua vocação.
Seus resultados no “matadouro” - uma instalação abjeta onde recrutas praticavam combate e resgate de reféns - foram os melhores já registrados e os instrutores do
curso de combate desarmado escreveram que nunca tinham visto alguém com um talento tão instintivo para tirar a vida humana. Seu treinamento culminou numa marcha
de quase 65 quilômetros pelos pântanos ventosos conhecidos como Brecon Beacons, um teste de resistência que já tinha levado homens à morte. Com uma mochila de 25
quilos nas costas e um fuzil de 4,5 quilos nas mãos, Keller quebrou o recorde do percurso por trinta minutos, uma marca que nunca foi superada até os dias atuais.
Inicialmente, ele foi designado para um esquadrão Sabre especializado em guerra no deserto, mas sua carreira logo deu uma guinada quando um homem da inteligência
militar foi procurá-lo. Ele estava atrás de uma espécie única de soldado, capaz de executar o procedimento de observação próxima e outras tarefas especiais na Irlanda
do Norte. Disse estar impressionado com suas habilidades linguísticas e sua aptidão de improvisar e pensar rápido. Keller estaria interessado? Na mesma noite, Christopher
fez as malas e se mudou de Hereford para uma base secreta nas Terras Altas da Escócia.
No decorrer do treinamento, Keller demonstrou mais um talento notável. Havia anos que as forças de segurança e inteligência britânicas enfrentavam dificuldades com
a miríade de sotaques na Irlanda do Norte. Em Ulster, as comunidades inimigas eram capazes de identificar umas às outras apenas pelo som de uma voz, e a maneira
pela qual um homem dizia algumas frases simples poderia significar a diferença entre a vida e uma morte tenebrosa. Keller desenvolveu a habilidade de imitar as entonações
com perfeição. Podia até mesmo mudar de sotaque num piscar de olhos - um católico do condado de Armagh num minuto; um protestante da Shankill Road, de Belfast, no
momento seguinte; depois, um católico dos conjuntos habitacionais de Ballymurphy. Operou em Belfast por mais de um ano, rastreando membros do IRA, coletando pedaços
de fofocas úteis da comunidade local. Devido à natureza de seu trabalho, ocasionalmente ele passava várias semanas sem entrar em contato com os controladores.
Sua missão na Irlanda do Norte chegou a um final abrupto num fim de noite quando foi sequestrado na zona oeste de Belfast e levado até uma fazenda remota em Armagh.
Lá, Keller foi acusado de ser espião britânico. Ele sabia que a situação era desesperadora, então decidiu escapar lutando. Ao deixar a fazenda, quatro terroristas
veteranos do Exército Republicano Irlandês estavam mortos; dois foram praticamente cortados em pedacinhos.
Keller retornou a Hereford, achando que teria um longo descanso trabalhando como instrutor. Mas sua estadia ali terminou em agosto de 1990, quando Saddam Hussein
invadiu o Kwait. Keller voltou depressa à sua velha unidade Sabre e, em janeiro de 1991, já estava no deserto do Iraque, à procura dos lançadores de mísseis Scud
que aterrorizavam Tel Aviv. Na noite de 28 de janeiro, ele e sua equipe localizaram um lançador a 160 quilômetros a noroeste de Bagdá e transmitiram as coordenadas
por rádio para os comandantes na Arábia Saudita. Noventa minutos depois, uma formação de caças-bombardeiros da Coalizão passou voando baixo sobre o deserto. Mas,
num caso desastroso de fogo amigo, em vez dos Scuds, as aeronaves atacaram o esquadrão do SAS. Os oficiais britânicos concluíram que a unidade inteira fora perdida,
incluindo Keller. O obituário não mencionou seu trabalho na inteligência na Irlanda do Norte nem os quatro militantes do Exército Republicano Irlandês que ele tinha
matado na fazenda de Armagh.
O que os oficiais do Exército britânico não perceberam, no entanto, foi que Keller havia sobrevivido ao incidente. Seu primeiro instinto foi entrar em contato com
a base por rádio e requisitar uma extração. Em vez disso, enfurecido pela incompetência dos superiores, começou a caminhar. Oculto pelas típicas vestimentas de um
beduíno e altamente treinado na arte de movimentação clandestina, Keller passou pelas forças da Coalizão e entrou na Síria sem ser detectado. De lá, seguiu de carona
para o oeste, passando por Turquia, Grécia e Itália, até enfim chegar à costa da Córsega, onde caiu nos braços abertos de Don Orsati. Anton lhe deu uma casa e uma
mulher para ajudá-lo a cuidar de suas muitas feridas. Então, quando ele estava descansado, o don lhe deu trabalho. Com sua aparência do norte da Europa e o treinamento
do SAS, Keller foi capaz de cumprir contratos que estavam muito além da capacidade dos taddunaghiu de Orsati nascidos na Córsega. Um desses contratos tinha os nomes
de Anna Roube e Gabriel Allon. A consciência de Keller não permitiu que os matasse, mas o orgulho profissional o levou a deixar para trás o talismã que agora jazia
na palma da mão de Gabriel.
Por uma incrível coincidência, os dois homens já haviam se encontrado numa outra ocasião, muitos anos antes, quando Keller e diversos outros agentes do SAS foram
a Israel treinar técnicas de contraterrorismo. No último dia de sua estadia, Gabriel tinha concordado, com certa relutância, em dar uma palestra confidencial sobre
uma de suas operações mais ousadas: o assassinato de Abu Jihad em 1988, o segundo em comando da OLP, em sua casa na Tunísia. Keller sentou na primeira fileira e
prestou atenção em cada palavra de Allon. Depois, durante uma sessão de fotos do grupo, posicionou-se ao lado de Gabriel, que estava usando óculos escuros e um chapéu
para ocultar sua identidade. Mas Keller olhou direto para a câmera. Foi uma das últimas fotografias tiradas dele.
Agora, enquanto Gabriel saía do carro alugado, o homem que lhe poupara a vida estava parado no vão da porta de seu refúgio na Córsega. Ele era uma cabeça mais alto
que Gabriel e tinha o peito e os ombros bem mais largos. Vinte anos sob o sol corso haviam alterado bastante sua aparência. Agora a pele tinha cor de couro e os
cabelos curtos estavam esbranquiçados pelo mar. Apenas os olhos azuis pareciam iguais. Eram os mesmos que haviam observado Gabriel com tanta atenção quando ele recontara
a morte de Abu Jihad. Os mesmos que, certa vez, em outra época, lhe concederam clemência numa noite chuvosa em Veneza.
- Eu lhe ofereceria um almoço - disse Keller, com seu sotaque britânico claro -, mas fiquei sabendo que você comeu no Chez Orsati.
Quando Keller estendeu a mão, os músculos de seu braço se contraíram sob o casaco branco. Gabriel hesitou por um instante antes de cumprimentá-lo. Cada aspecto de
Keller, desde as mãos potentes até as pernas poderosas, parecia ter sido projetado especificamente para matar.
- O que o don disse? - perguntou Gabriel.
- O suficiente para eu saber que não deveria chegar perto de um homem como Marcel Lacroix sem reforços.
- Então você o conhece?
- Uma vez ele me deu carona.
- Antes ou depois?
- Os dois. Lacroix passou um tempo no Exército francês. E também em algumas das piores prisões do país.
- E isso deveria me impressionar?
- “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas.”
- Sun Tzu - completou Gabriel.
- Você citou essa passagem durante sua palestra em Tel Aviv.
- Então você estava prestando atenção, afinal.
Gabriel passou por Keller e entrou na ampla sala da casa. A mobília era rústica e, assim como Keller, coberta de tecido branco. Todas as superfícies estavam revestidas
por pilhas de livros e as paredes tinham várias pinturas de qualidade, incluindo trabalhos menos conhecidos de Cézanne, Matisse e Monet.
- Nenhum sistema de segurança? - perguntou Gabriel, passando os olhos pela sala.
- Não é necessário.
Gabriel se aproximou do Cézanne, uma paisagem pintada nas colinas perto de Aix-en-Provence, e passou a ponta do dedo com delicadeza pela tela.
- Você está se saindo muito bem, Keller.
- Dá para pagar as contas.
Gabriel não disse nada.
- Você desaprova a minha forma de ganhar a vida?
- Você mata pessoas por dinheiro.
- Você também.
- Eu mato pelo meu país, e só como último recurso.
- Foi por isso que você estourou os miolos de Ivan Kharkov naquela rua em Saint-Tropez? Pelo seu país?
Gabriel deu as costas para o Cézanne e olhou bem nos olhos de Keller. Qualquer outro homem teria murchado perante a intensidade do olhar de Gabriel, mas não Keller.
Seu braços poderosos estavam cruzados despreocupadamente sobre o peito, e um canto da boca estava erguido num meio sorriso.
- Talvez essa não seja uma boa ideia, afinal - falou Gabriel.
- Eu conheço os jogadores e conheço o terreno. Seria tolice não me usar.
Gabriel não respondeu; Keller tinha razão. Ele era o guia perfeito para o mundo do crime na França. E suas habilidades físicas e táticas certamente se provariam
valiosas para os problemas que eles enfrentariam.
- Eu não posso pagar - avisou Gabriel.
- Não preciso de dinheiro - retrucou Keller, observando a bela casa. - Mas preciso que você responda a algumas perguntas antes de partirmos.
- Se não a encontrarmos em cinco dias, ela morre.
- Cinco dias são uma eternidade para homens como nós.
- Sou todo ouvidos.
- Para quem você está trabalhando?
- Para o primeiro-ministro da Inglaterra.
- Não sabia que vocês estavam se falando.
- Alguém da inteligência britânica entrou em contato comigo.
- Em nome do primeiro-ministro?
Gabriel assentiu.
- Qual é a ligação entre o primeiro-ministro e essa garota?
- Tente adivinhar.
- Meu Deus.
- Deus tem muito pouco a ver com isso.
- Quem é o amigo do primeiro-ministro na inteligência britânica?
Gabriel hesitou, então respondeu à pergunta honestamente. Keller sorriu.
- Você o conhece? - perguntou Gabriel.
- Trabalhei com Graham na Irlanda do Norte. Ele é um profissional de verdade. Mas, assim como todo mundo na Inglaterra, acha que estou morto. Logo, não pode saber
que estou trabalhando com você.
- Você tem a minha palavra.
- Tem mais uma coisa que eu quero.
Keller estendeu a mão e Gabriel entregou o talismã.
- Estou surpreso que você o tenha guardado.
- Tem valor sentimental.
Keller pendurou-o no pescoço.
- Vamos - disse ele, sorrindo. - Eu sei onde a gente pode arrumar outro para você.
A signadora vivia numa casa torta no centro do vilarejo, não muito longe da igreja. Keller chegou sem marcar horário, mas a idosa não pareceu surpresa ao vê-lo.
Ela vestia uma túnica preta, e um cachecol preto cobria os cabelos bem secos. Abrindo um sorriso preocupado, tocou a bochecha de Keller com delicadeza. Em seguida,
segurou a cruz pesada pendurada no pescoço e voltou o olhar para Gabriel. Sua tarefa era cuidar dos afligidos pelo mau-olhado. Ela temia que Keller tivesse trazido
a própria encarnação do mal para seu lar.
- Quem é esse homem?
- Um amigo - respondeu Keller.
- Ele é um crente?
- Não como nós.
- Diga-me o nome dele, Christopher... seu nome real.
- Gabriel.
- Como o arcanjo?
- Sim.
Ela analisou o rosto de Gabriel com atenção.
- Ele é israelita, não é?
Keller assentiu e a velha franziu um pouco a testa em desaprovação. Pela doutrina, a signadora considerava os judeus como hereges, mas pessoalmente não tinha nada
contra. Ela desabotoou a camisa de Keller e tocou no talismã dele.
- Esse não é o que você perdeu muitos anos atrás?
- Sim.
- Onde você o encontrou?
- No fundo de uma gaveta abarrotada.
A signadora balançou a cabeça.
- Você está mentindo para mim, Christopher. Você nunca vai aprender que eu sei perceber?
Keller sorriu, mas não disse nada. A velha soltou o talismã e tocou sua bochecha de novo.
- Você está deixando a ilha, Christopher?
- Esta noite.
A signadora não indagou o motivo: sabia exatamente o que Keller fazia para ganhar a vida. Na verdade, ela já tinha até mesmo contratado um jovem taddunaghiu chamado
Anton Orsati para vingar o assassinato do marido.
Com um meneio de cabeça, convidou Keller e Gabriel para se sentarem à pequena mesa de madeira em sua sala. Colocou sobre o tampo um prato cheio de água e uma vasilha
de azeite de oliva. Keller mergulhou o dedo indicador no azeite e, em seguida, o manteve acima do prato, para que três gotas caíssem na água. De acordo com as leis
da física, elas deveriam ter-se aglomerado. Em vez disso, a substância se desfez em mil gotículas e desapareceu.
- O mal retornou, Christopher.
- Receio que seja um risco ocupacional.
- Não faça piadas, meu querido. O perigo é muito real.
- O que a senhora vê?
Ela focou toda a atenção no líquido, como se estivesse em transe. Depois, perguntou baixinho:
- Vocês estão procurando a garota inglesa?
Keller assentiu.
- Ela está viva?
- Sim - respondeu a velha. - Está viva.
- Onde ela está?
- Não está em meu poder dizer isso.
- Nós vamos encontrá-la?
- Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.
- O que a senhora vê?
Ela fechou os olhos.
- Água... montanhas... um velho inimigo...
- Meu?
- Não. - Ela abriu os olhos e encarou Gabriel. - Dele.
A signadora pegou a mão do Inglês e rezou. Após um momento, começou a chorar, um sinal de que o mal tinha passado do corpo de Keller para o seu. Em seguida, fechou
os olhos e pareceu adormecer. Ao acordar, instruiu Keller a repetir o teste do azeite e da água. Dessa vez, o azeite se aglomerou numa única gota.
- O mal saiu da sua alma, Christopher. - Voltando-se para Gabriel, a velha disse: - Agora ele.
- Eu não sou um crente - retrucou Gabriel.
- Por favor - pediu ela. - Se não por você, por Christopher.
Relutante, Gabriel mergulhou o indicador no azeite e deixou três gotas caírem na água. Quando o azeite se dividiu em mil gotículas, a mulher fechou os olhos e começou
a estremecer.
- O que a senhora vê? - perguntou Keller.
- Fogo - respondeu ela, baixinho. - Eu vejo fogo.
Havia uma balsa saindo de Ajaccio às cinco horas. Às quatro e meia, Gabriel estacionou o Peugeot na embarcação e, dez minutos depois, observou Keller subir a bordo
dirigindo um Renault velho. Seus compartimentos ficavam no mesmo deque, um de frente para o outro. O de Gabriel tinha o tamanho e a falta de atrativo de uma cela
de prisão. Ele deixou a mala na cama minúscula e subiu as escadas para o bar. Ao chegar, encontrou Keller sentado a uma mesa perto da janela, tomando um gole de
cerveja com um cigarro queimando no cinzeiro.
Gabriel balançou a cabeça devagar. Quarenta e oito horas atrás, estava diante de uma tela em Jerusalém. Agora buscava por uma mulher desconhecida, acompanhado por
um homem que, no passado, aceitara um contrato para matá-lo.
Pediu um café preto ao barman e saiu para o convés de popa. A balsa já estava longe do porto e o ar da noite havia esfriado. Gabriel levantou a gola do casaco e
envolveu a xícara de café com as mãos para se aquecer. As estrelas do leste brilhavam intensamente no céu sem nuvens, e o mar, que um instante antes estava turquesa,
logo se tornou nanquim. Gabriel teve a impressão de sentir o cheiro de macchia no vento. Um pouco depois, escutou a voz da signadora: “Quando ela estiver morta.
Então vocês saberão a verdade.”
10
MARSELHA
Quando Gabriel e Keller chegaram a Marselha no começo da manhã seguinte, o Moondance estava amarrado no ponto de sempre no Velho Porto, ostentando seus 42 pés de
puro poder de contrabando. O dono, no entanto, não estava à vista. Keller montou um posto estático de observação no lado norte e Gabriel ficou a leste, na frente
de uma pizzaria que, inexplicavelmente, tinha o nome de uma região chique de Manhattan. A cada hora eles mudavam de posição, mas no fim da tarde ainda não havia
sinal de Lacroix. Por fim, ansioso com a perspectiva de um dia perdido, Gabriel percorreu o perímetro do porto, passou pelos vendedores de peixe em suas bancas de
metal e se juntou a Keller no Renault. O tempo estava piorando: chuva pesada, um vento frio vindo das colinas. Keller ligava os limpadores em intervalos de alguns
segundos para manter o para-brisa transparente. O degelador ofegava fracamente contra o vidro embaçado.
- Você tem certeza de que ele não possui apartamentos na cidade? - perguntou Gabriel.
- Ele mora no barco.
- E quanto a mulher?
- Ele tem várias, mas nenhuma consegue tolerar sua presença por muito tempo. - Keller limpou o para-brisa com o dorso da mão. - Talvez possamos ficar num hotel.
- Não acha um pouco cedo? Afinal, acabamos de nos conhecer.
- Você sempre faz piadas cretinas durante as operações?
- É um mal cultural.
- Piadas cretinas ou operações?
- Ambos.
Keller pegou um guardanapo do porta-luvas e fez o melhor que pôde para consertar a bagunça que tinha feito no para-brisa.
- Minha avó era judia - comentou ele casualmente, como se admitisse que sua avó gostava de jogar bridge.
- Parabéns.
- Outra piada?
- O que você quer que eu diga?
- Você não acha interessante que eu tenha uma ancestral judia?
- Por minha experiência, a maior parte dos europeus tem um parente judeu escondido em algum lugar.
- A minha estava em plena vista.
- Onde ela nasceu?
- Na Alemanha.
- Ela foi para a Inglaterra durante a guerra?
- Logo antes. Ela foi abrigada por um tio distante que não se considerava mais judeu. Ele lhe deu um nome cristão adequado e a mandou para a igreja. Minha mãe só
soube que tinha um passado judeu com 30 e tantos anos.
- Odeio ser portador de más notícias - disse Gabriel -, mas, na minha opinião, você é judeu.
- Para ser sincero, sempre me senti um pouco judeu.
- Você tem aversão a mariscos e a ópera alemã?
- Quis dizer num sentido espiritual.
- Você é um assassino profissional, Keller.
- Isso não significa que eu não acredite em Deus. Na verdade, suspeito que eu saiba mais sobre a sua história e as suas escrituras do que você.
- Então por que você anda com aquela mística maluca?
- Ela não é maluca.
- Não me diga que você acredita naquela bobagem.
- Como ela sabia que estávamos procurando a garota?
- Suponho que o don lhe tenha dito.
- Não - discordou Keller, balançando a cabeça. - Ela viu. Ela vê tudo.
- Como a água e as montanhas?
- Sim.
- Nós estamos no sul da França, Keller. Eu também vejo água e montanhas. Inclusive, parecem estar por toda parte.
- É óbvio que ela deixou você nervoso com aquela conversa sobre um velho inimigo.
- Eu não fico nervoso. Quanto a velhos inimigos, não consigo sair da porta de casa sem trombar com um.
- Então talvez você devesse mudar a porta da sua casa de lugar.
- Isso é um provérbio corso?
- Só um conselho amigável.
- Ainda não somos exatamente amigos.
Keller encolheu os ombros quadrados para demonstrar indiferença, mágoa ou algo entre um sentimento e outro.
- O que você fez com o talismã que ela lhe deu? - perguntou ele depois de um silêncio amuado.
Gabriel deu um tapinha no peito para indicar que o talismã, idêntico ao de Keller, estava pendurado no pescoço.
- Se você não acredita - indagou Keller por que o está usando?
- Eu gosto do modo como ele valoriza as minhas roupas.
- O que quer que você faça, não o tire: ele mantém o mal à distância.
- Eu gostaria de manter à distância algumas pessoas na minha vida.
- Como Ari Shamron?
- Como você sabe de Shamron? - perguntou Gabriel, ocultando sua surpresa.
- Eu o conheci quando fui treinar em Israel. Além do mais, todo mundo no negócio sabe de Shamron. E todo mundo sabe que ele queria que você fosse c chefe, em vez
de Uzi Navot.
- Você não devia acreditar em tudo que lê nos jornais, Keller.
- Eu tenho boas fontes. E elas me disseram que o emprego era seu, mas você o recusou.
- Talvez você ache difícil de acreditar - disse Gabriel, com o olhar cansado voltado para o para-brisa respingado de chuva -, mas não estou a fim de ter um papo
nostálgico com você.
- Eu só estava tentando matar tempo.
- Talvez pudéssemos aproveitar um silêncio confortável.
- Outra piada?
- Você entenderia se fosse judeu.
- Tecnicamente eu sou judeu.
- Quem você prefere: Puccini ou Wagner?
- Wagner, claro.
- Então não tem como você ser judeu.
Keller acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo para apagá-lo. Uma rajada de vento jogou a chuva no para-brisa, dificultando a visão do porto. Gabriel baixou a sua
janela alguns centímetros para dar vazão à fumaça de Keller.
- Talvez você esteja certo - disse ele por fim. - Talvez um quarto seja uma boa ideia.
- Não acho que seja necessário.
- Por que não?
Keller ligou os limpadores do para-brisa e apontou para além do vidro.
- Porque Marcel Lacroix está vindo em nossa direção.
Ele estava usando um agasalho preto e tênis verde-néon, e carregava no ombro uma mala esportiva Puma. Era óbvio que Lacroix havia passado a maior parte da tarde
na academia. Não que ele precisasse de exercício: tinha pelo menos 1,90 metro e pesava mais de 90 quilos. Seus cabelos escuros com gel estavam presos num rabo de
cavalo curto. Havia piercings nas duas orelhas e ideogramas chineses tatuados no lado do seu grosso pescoço - evidência de que era um estudante das artes marciais
asiáticas. Seus olhos não paravam de se mexer, mas ele não chegou a perceber os dois homens sentados no pequeno Renault com janelas embaçadas. Enquanto o observava,
Gabriel deu um suspiro profundo. Lacroix certamente seria um oponente digno, em especial dentro do espaço apertado do Moondance. Apesar do que dizem, tamanho é documento.
- Nenhuma piadinha? - perguntou Keller.
- Estou pensando em alguma.
- Por que você não me deixa cuidar disso?
- Por alguma razão, não acho que sei a uma boa ideia.
- Por que não?
- Porque ele sabe que você trabalha para Don Orsati. Se você aparecer e começar a fazer perguntas sobre Madeline Hart, ele vai saber que foi traído, e isso seria
prejudicial aos interesses do don.
- Deixe que eu me preocupo com os interesses do don.
- É por isso que você está aqui, Keller?
- Eu estou aqui para garantir que você não acabe num caixão de cimento no fundo do Mediterrâneo.
- Há lugares piores para ser enterrado.
- A lei judia não permite enterros no mar.
Keller ficou em silêncio quando Lacroix entrou na doca e começou a seguir em direção ao Moondance. Gabriel focou na região lombar do francês, prestando atenção em
como pendia a roupa esportiva. Em seguida, olhou para a forma como a bolsa estava pendurada.
- O que você acha? - perguntou Keller.
- Acho que ele está carregando a arma na bolsa.
- Você também notou isso?
- Eu noto tudo.
- Como você vai fazer?
- Do jeito mais silencioso possível.
- O que você quer que eu faça?
- Espere aqui - respondeu Gabriel, abrindo a porta do carro. - E tente não matar ninguém até eu voltar.
O Escritório tinha uma doutrina simples quanto ao uso operacional adequado de armas ocultas. Ela fora dada por Deus a Ari Shamron - pelo menos era o que dizia a
história -, que por sua vez passou-a para todos os que adentravam secretamente a noite para desempenharem seus serviços. Embora não estivesse escrita em lugar algum,
todo agente de campo era capaz de recitá-la com tanta facilidade quanto a bênção das velas no sabá. Um agente do Escritório saca a arma com apenas um propósito.
Ele não a brande como um gângster nem faz ameaças vazias. Apenas atira - e só interrompe os disparos quando o alvo não está mais entre os vivos. Amém.
Foi com a advertência de Shamron ecoando em seus ouvidos que Gabriel deu os passos finais na direção do Moondance. Hesitou antes de embarcar. Até mesmo um homem
tão esguio quanto ele poderia fazer com que o barco se inclinasse um pouco. Portanto, velocidade e uma confiança aparente seriam essenciais.
Gabriel deu uma última olhada por cima do ombro e viu que Keller o observava com um pouco de receio pela janela do carona do Renault. Em seguida, subiu a bordo do
Moondance e atravessou rapidamente o convés de popa até a cabine principal. Lacroix estava no vão da porta. No espaço apertado do barco, o francês parecia ainda
maior do que na rua.
- Que porra você está fazendo no meu barco? - ele exigiu saber.
- Peço desculpas - disse Gabriel, erguendo as mãos num gesto conciliatório. - Me disseram que você estaria me esperando.
- Quem disse?
- Paul, é claro. Ele não falou que eu estava vindo?
- Paul?
- Sim, Paul - respondeu Gabriel, confiante. - O homem que o contratou para entregar o pacote da Córsega ao continente. Ele disse que você era o melhor profissional
que já viu. Que, se eu precisasse de alguém para transportar bens valiosos, você era a pessoa certa.
Gabriel viu uma série de reações na expressão do francês: confusão, apreensão e, claro, cobiça. No fim, a cobiça saiu vitoriosa. Ele deu um passo para o lado e,
com um movimento dos olhos, o convidou para entrar. Gabriel deu dois passos lânguidos para a frente enquanto analisava o interior da cabine, tentando encontrar a
bolsa de ginástica de Lacroix. Estava em cima de uma mesa, ao lado de uma garrafa de Pernod.
- Você se incomoda? - perguntou Gabriel, meneando a cabeça em direção à porta. - Não é o tipo de coisa que você queira que os seus vizinhos ouçam.
Lacroix hesitou por um instante. Em seguida, andou até a porta e fechou-a. Gabriel se posicionou ao lado da mesa que continha a mala esportiva.
- Que tipo de trabalho é? - perguntou Lacroix, voltando-se para Gabriel.
- Muito simples. Na verdade, vai levar só alguns minutos.
- Quanto?
- O que você quer dizer? - perguntou Gabriel, fingindo confusão.
- Quanto dinheiro você está oferecendo? - indagou Lacroix, esfregando o indicador e o dedo médio no polegar.
- Estou oferecendo algo muito mais valioso do que dinheiro.
- O que seria?
- A sua vida. Marcel, você vai me dizer o que seu amigo Paul fez com a garota inglesa. E, se não disser, vou cortá-lo em pedacinhos e usá-lo como isca para peixe.
A arte marcial israelense do krav maga não é conhecida por sua elegância, mas não foi projetada mesmo para ser estética. Seu único propósito é incapacitar ou matar
o adversário o mais rápido possível. Ao contrário de muitas disciplinas ocidentais, ele não hesita em usar objetos pesados para repelir um inimigo de maior tamanho
e força. Na verdade, os instrutores encorajam os alunos a usarem quaisquer recursos que tenham à disposição para se defenderem. Davi não se atracou com Golias, eles
gostavam de dizer, mas o atingiu com uma pedra. E só depois cortou sua cabeça.
Gabriel escolheu uma garrafa de Pernod em vez de uma pedra. Pegou-a pelo gargalo e lançou-a como uma faca na direção de Marcel Lacroix, que corria para atacá-lo.
A garrafa bateu bem no centro da testa do francês, abrindo um corte horizontal profundo logo acima da densa sobrancelha. Ao contrário de Golias, que caiu no instante
em que foi atingido, Lacroix conseguiu se manter de pé, embora com bastante dificuldade. Gabriel avançou e deu uma joelhada na virilha desprotegida do francês. Depois,
deu-lhe um soco no estômago e quebrou seu maxilar com uma cotovelada bem aplicada. Com o outro cotovelo, acertou sua têmpora, levando-o ao chão. Gabriel se agachou
e tocou o pescoço do francês para verificar se ele ainda tinha pulsação. Erguendo os olhos, viu Keller parado à porta, sorrindo.
- Impressionante. O Pernod foi um toque adorável.
11
PERTO DE MARSELHA
A chuva parou quando o sol se pôs, mas o vento mistral continuou soprando sem remorso muito depois do escurecer. Uivava nos cordames dos barcos amontoados no Velho
Porto e redemoinhava nos deques do Moondance enquanto Keller o conduzia com habilidade mar adentro. Gabriel permaneceu a seu lado na ponte de comando até eles saírem
do porto. Então, desceu as escadas para o alojamento principal, onde Marcel Lacroix jazia no chão, com o rosto voltado para baixo, amarrado, amordaçado e vendado.
Gabriel rolou o francês, deixando-o de barriga para cima, e tirou a fita adesiva que lhe cobria os olhos com um único movimento ríspido. Lacroix já tinha recuperado
a consciência e não havia sinal de medo em seus olhos, apenas fúria. Keller estava certo: não era fácil assustar o francês.
Gabriel voltou a vendá-lo e deu início a uma busca minuciosa na embarcação, começando pelo alojamento principal e terminando na cabine de Lacroix. Ele encontrou
um esconderijo com drogas ilegais, cerca de 60 mil euros em dinheiro vivo, passaportes falsos, carteiras de motorista francesas em quatro nomes diferentes, cartões
de crédito roubados, nove celulares descartáveis e uma coleção elaborada de pornografia impressa e eletrônica. Além disso, havia um recibo com um número de telefone
rabiscado atrás, de um lugar chamado Bar du Haut, no Boulevard Jean Jaurès, em Rognac, uma cidade de classe operária ao norte de Marselha, não muito longe do aeroporto.
Gabriel já tinha passado por ali uma vez, em outra época da vida. Era o tipo de lugar que servia apenas de parada a caminho de algum outro lugar.
Gabriel verificou a data do recibo. Em seguida, examinou os históricos de chamada dos nove celulares em busca do número escrito no verso do papel. Encontrou-o em
três dos telefones. Naquela manhã, Lacroix ligara duas vezes para ele com dois celulares diferentes.
Gabriel guardou os aparelhos, o recibo e o dinheiro numa mochila de náilon e voltou para o alojamento principal. Mais uma vez tirou a fita adesiva dos olhos de Lacroix,
mas também removeu a mordaça. O rosto do francês estava muito distorcido, devido ao inchaço do maxilar quebrado. Gabriel o apertou com força enquanto fitava os olhos
do contrabandista.
- Vou fazer algumas perguntas, Marcel. Você tem só uma chance para me dizer a verdade. Entendeu? - perguntou Gabriel, pressionando o maxilar dele com um pouco mais
de força. - Uma chance.
A única resposta de Lacroix foi um grunhido de dor.
- Uma chance - repetiu Gabriel, erguendo o indicador para enfatizar. - Está ouvindo?
Lacroix não respondeu.
- Vou tomar isso como um sim. Agora, Marcel, quero que você me diga os nomes dos homens que estão com a garota. E depois quero saber onde posso encontrá-los.
- Não sei nada sobre essa garota.
- Você está mentindo, Marcel.
- Não, eu juro...
Antes que Lacroix pudesse continuar, Gabriel lhe colocou a mordaça de novo. Em seguida, passou bastante fita adesiva ao redor da cabeça do francês, até deixar apenas
as suas narinas visíveis. Desceu até o convés inferior, pegou uma corda de náilon num armário e voltou para cima, até a ponte de comando. Keller segurava o leme
com as duas mãos, estreitando os olhos para o mar turbulento.
- Como está indo lá embaixo? - perguntou ele.
- Estou surpreso: não consegui persuadi-lo a cooperar.
- Por que a corda?
- Mais persuasão.
- Algo que eu possa fazer para ajudar?
- Reduza a velocidade e ligue o piloto automático.
Keller obedeceu e seguiu Gabriel até o alojamento principal. Encontraram Lacroix bem perturbado, arfante, lutando para respirar através do capacete de fita adesiva.
Gabriel o rolou, deixando-o de barriga para baixo, e passou a corda de náilon pelas amarras nos pés e calcanhares. Depois de prendê-la com um nó firme, arrastou
Lacroix até o convés de popa como se ele fosse uma baleia recém-arpoada. Então, com a ajuda de Keller, aproximou o francês da beirada e o jogou para fora do barco.
Lacroix bateu na água escura com um baque pesado e começou a se debater ferozmente para tentar manter a cabeça acima da superfície. Gabriel o observou por um momento
e, em seguida, vasculhou o horizonte em todas as direções. Nenhuma luz visível. Era como se eles fossem os três últimos homens na terra.
- Como você vai saber quando parar? - perguntou Keller, vendo Lacroix lutar pela própria vida.
- Quando ele começar a afundar - respondeu Gabriel, calmo.
- Me lembre de nunca entrar na sua lista negra.
- Nunca entre na minha lista negra.
Depois de 45 segundos na água, de repente Lacroix parou de se mover. Gabriel e Keller o puxaram depressa de volta para o barco e removeram a fita adesiva que lhe
cobria a boca. Por vários minutos, o francês não conseguiu falar, alternando-se entre respirar sofregamente e tossir água do mar. Quando ele pareceu cuspir tudo,
Gabriel segurou o maxilar quebrado e o apertou.
- Você pode não estar se dando conta neste instante, mas hoje é seu dia de sorte, Marcel. Agora vamos tentar de novo: diga onde eu posso encontrar a garota.
- Eu não sei.
- Você está mentindo para mim, Marcel.
- Não - respondeu Lacroix, balançando a cabeça violentamente de um lado para o outro. - Estou dizendo a verdade. Não faço ideia de onde ela está.
- Mas você conhece um dos homens que está com ela. Você até tomou uns drinques com ele num bar em Rognac uma semana antes de a garota desaparecer. E, desde então,
você tem se mantido em contato com ele.
Lacroix ficou em silêncio. Gabriel apertou o maxilar quebrado com mais força.
- O nome, Marcel. Diga-me o nome dele.
- Brossard - Lacroix se esforçou para dizer, tomado pela dor. - O nome dele é René Brossard.
Gabriel encarou Keller, que assentiu.
- Muito bem - falou para Lacroix, relaxando o aperto. - Agora continue falando. E nem pense em mentir para mim. Caso contrário, volta para a água. Mas, da próxima
vez, vai ser para sempre.
12
PERTO DE MARSELHA
O convés de popa tinha duas cadeiras giratórias. Gabriel amarrou Lacroix na que estava a estibordo e sentou-se na outra, diante dele. Lacroix continuou vendado,
a roupa encharcada pelo tempo que passara dentro d'água. Tremendo violentamente, implorou por uma muda de roupas ou um cobertor. Como não teve resposta, falou de
uma noite quente em meados de agosto, quando um homem aparecera no Moondance sem aviso prévio, da mesma forma que Gabriel havia feito mais cedo.
- Paul? - perguntou Gabriel.
- Sim, Paul.
- Vocês se conheciam?
- Não, mas eu já o tinha visto.
- Onde?
- Em Cannes.
- Quando?
- Durante o festival de cinema.
- Este ano?
- Sim, em maio.
- Você foi ao Festival de Cannes?
- Eu não estava na lista de convidados, se é isso que você quer saber. Estava trabalhando.
- Que tipo de trabalho?
- O que você acha?
- Roubando das estrelas do cinema e dos ricaços?
- É uma das nossas semanas mais ocupadas do ano, uma verdadeira dádiva para a economia local. Só tem imbecil em Hollywood. Nós os roubamos todas as vezes que o pessoal
de lá vem para cá, e acho que nem percebem.
- O que Paul estava fazendo?
- Passando tempo com os ricaços. Acho que até o vi entrando no salão umas duas vezes para ver os filmes.
- Acha?
- Ele sempre tem uma aparência diferente.
- Ele estava dando golpes em Cannes?
- Isso você teria que perguntar para ele. Não discutimos esse assunto quando ele veio me ver. Só falamos do serviço.
- Ele queria contratar você e o seu barco para levarem a garota da Córsega até o continente.
- Não - negou Lacroix, balançando a cabeça com veemência. - Ele nunca disse nenhuma palavra sobre uma garota.
- O que foi que ele disse?
- Queria que eu entregasse um pacote.
- Você não perguntou o que era?
- Não.
- Você sempre opera assim?
- Depende.
- Do quê?
- De quanto dinheiro tem na mesa.
- E quanto tinha?
- Cinquenta mil.
- Isso é bom?
- Muito bom.
- Ele chegou a mencionar onde obteve o seu nome?
- Com o don.
- Que don7.
- Don Orsati, o Corso.
- Que tipo de trabalho o don faz?
- Ele tem um dedo em todo tipo de esquema, mas principalmente em assassinatos. De vez em quando, dou uma carona para um de seus homens. E às vezes eu ajudo a fazer
coisas desaparecerem.
O inquérito de Gabriel tinha um propósito duplo. Permitia testar a veracidade das respostas de Lacroix, ao mesmo tempo que encobria suas próprias pegadas. Agora
o francês achava que Gabriel nunca tivera o prazer de conhecer um assassino corso chamado Orsati. E, pelo menos até agora, ele estava respondendo honestamente às
perguntas de Gabriel.
- Paul disse quando o serviço ia ser executado?
- Não. Ele disse que me avisaria 24 horas antes e que eu provavelmente ouviria algo dele em uma semana, dez dias no máximo.
- Como ele entraria em contato com você?
- Por telefone.
- Você ainda tem o telefone que usou?
Lacroix assentiu e recitou o número associado ao aparelho.
- Ele ligou?
- No oitavo dia.
- O que ele falou?
- Me pediu para buscá-lo na manhã seguinte, na enseada que fica bem ao sul de Capo di Feno.
- A que horas?
- Três da madrugada.
- Como ficou combinado?
- Ele queria que eu deixasse um bote na praia e o esperasse no mar.
Gabriel ergueu os olhos para a ponte de comando, de onde Keller observava o interrogatório. O Inglês aquiesceu, como se confirmando que de fato há uma enseada em
Capo di Feno e que o cenário descrito por Lacroix era perfeitamente plausível.
- Quando você chegou à Córsega? - perguntou Gabriel.
- Alguns minutos após a meia-noite.
- Estava sozinho?
- Sim.
- Tem certeza?
- Sim, eu juro.
- A que horas você deixou o bote na praia?
- Às duas.
- Como você voltou para o Moondance?
- Fui andando - brincou Lacroix. - Como Jesus.
Gabriel arrancou o piercing da orelha direita de Lacroix.
- Foi só uma piada - alegou o francês, arquejante, com sangue fluindo do lóbulo arruinado.
- Se eu fosse você - retrucou Gabriel não estaria fazendo piadas sobre o Senhor num momento destes. Eu faria o possível para conseguir cair nas graças Dele.
Gabriel olhou de novo para a ponte de comando e viu que Keller tentava conter um sorriso. Em seguida, mandou Lacroix descrever os eventos que se seguiram. Paul,
disse o francês, chegara bem na hora, às três em ponto. Lacroix tinha visto um único veículo, um pequeno modelo com tração nas quatro rodas, descendo aos solavancos
a pista íngreme do topo da colina até a enseada, só com as luzes de freio acesas. Então, ouviu o barco se aproximar pela água. Quando o escaler encostou na popa
do Moondance, ele viu a garota.
- Paul estava com ela?
- Sim.
- Mais alguém?
- Não, só Paul.
- Ela estava inconsciente?
- Quase.
- O que estava usando?
- Vestido branco. E um capuz preto cobria sua cabeça.
- Você viu o rosto dela?
- Em nenhum momento.
- Alguma ferida?
- Os joelhos estavam sangrando e os braços tinham muitos arranhões e hematomas.
- Algemas?
- Nas mãos.
- Na frente do corpo ou atrás?
- Atrás.
- De que tipo?
- Algemas plásticas, muito profissionais.
- Continue.
- Paul deitou a garota num sofá no alojamento principal e aplicou algo nela para deixá-la quieta. Depois veio para a ponte de comando e me disse para onde queria
ir.
- Para onde?
- Para o estuário logo a oeste de Saintes-Maries-de-la-Mer. O lugar tem uma marina pequena, já usei antes. É um ponto excelente. Paul tinha feito a lição de casa.
Outra olhada para Keller. Outro assentimento.
- Você atravessou direto?
- Não - respondeu Lacroix. - Isso teria nos levado para a terra em plena luz do dia. Passamos o dia inteiro no mar. Avançamos em torno das onze horas daquela noite.
- Paul manteve a garota no alojamento o tempo inteiro?
- Ele a levou para a proa uma vez, mas fora isso...
- Fora isso o quê?
- Ele usou a seringa.
- Ketamina?
- Não sou médico.
- Não brinca.
- Você me fez uma pergunta, eu respondi.
- Ele a levou para a terra no escaler?
- Não. Eu fui direto para a marina. É o tipo de lugar onde dá para estacionar um carro bem ao lado do barco. Havia um esperando. Um Mercedes preto.
- Que tipo de Mercedes?
- Classe E.
- Placa?
- Francesa.
- Sem ninguém?
- Não. Havia dois homens. Um estava apoiado no capô quando nós entramos. O outro estava ao volante.
- Você conhecia o que estava apoiado no capô?
- Nunca o vi antes.
- Mas o que estava ao volante você conhecia, não é mesmo, Marcel?
- Sim. Era René Brossard.
René Brossard era o soldado raso de uma família criminosa com ligações internacionais que estava se dando bem em Marselha. Era especializado em trabalho pesado:
cobrança de dívidas, coerção, segurança. No tempo livre, trabalhava como leão de chácara num clube noturno perto do Velho Porto, principalmente porque gostava das
garotas que trabalhavam lá. Lacroix o conhecia da vizinhança. Também sabia seu telefone.
- Quando você ligou para ele? - perguntou Gabriel.
- Alguns dias depois de ter lido a primeira matéria sobre a garota inglesa que desapareceu durante as férias na Córsega. Somei um mais um e me dei conta de que era
a garota que eu tinha deixado no porto em Saintes-Maries-de-la-Mer.
- Você é algum tipo de gênio da matemática?
- Eu sei somar - gracejou Lacroix.
- Você se deu conta de que Paul poderia receber uma bela grana de resgate de alguém e quis uma fatia do bolo.
- Ele me passou a perna quanto falou do tipo de trabalho. Eu nunca teria concordado em fazer parte do sequestro de alguém importante por meros 50 mil dólares.
- Quanto você queria?
- Eu tento não criar o hábito de negociar comigo mesmo.
- Homem sábio.
Gabriel perguntou a Lacroix quanto tempo Brossard tinha levado para retornar seu telefonema.
- Dois dias.
- Vocês entraram em detalhes pelo telefone?
- O suficiente para deixar claro o que eu queria. Brossard me ligou de volta algumas horas depois e me disse para ir ao Bar du Haut na tarde seguinte, às quatro.
- Isso foi uma burrice, Marcel.
- Por quê?
- Porque Paul poderia estar lá em vez de Brossard. E ele poderia ter metido uma bala entre os seus olhos por ter a audácia de pedir mais dinheiro.
- Eu sei cuidar de mim mesmo.
- Se isso fosse verdade - falou Gabriel -, você não estaria amarrado numa cadeira no próprio barco. Mas continue: você estava me contando sobre a sua conversa com
René Brossard.
- Ele disse que Paul queria ser razoável. Depois disso, começamos a negociar.
- Negociar?
- O preço do meu acordo. Paul fez uma oferta. Eu fiz uma contraoferta. Fomos e voltamos várias vezes.
Tudo por telefone?
Lacroix assentiu.
- Qual é o papel de Brossard na operação?
- Ele fica na casa onde estão mantendo a garota.
- Paul está lá também?
- Não perguntei.
- Quantas pessoas estão lá?
- Não sei. Só sei que outra mulher vive lá, para que eles pareçam uma família.
- Brossard chegou a mencionar a garota inglesa?
- Disse que ela está viva.
- Só isso?
- É.
- Qual é o estado atual das suas negociações com Paul e Brossard?
- Chegamos a um acordo esta manhã.
- Quanto você conseguiu arrancar deles?
- Mais 100 mil.
- Quando você vai pegar o dinheiro?
- Amanhã à tarde.
- Onde?
- Em Aix.
- Onde, lá?
- Num café perto da praça Charles de Gaulle.
- Qual é o nome do lugar?
- Le Provence. Mais alguma coisa?
- Como ficou combinado?
- Brossard ficou de aparecer primeiro, às cinco e dez. Vou encontrá-lo dez minutos depois.
- Onde ele vai estar sentado?
- Numa mesa do lado de fora.
- E o dinheiro?
- Brossard disse que estaria numa maleta de metal.
- Que discreto.
- Foi escolha dele, não minha.
- Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?
- Le Cézanne, subindo um pouco a rua.
- Quanto tempo ele vai esperar lá?
- Dez minutos.
- E se você não der as caras?
- O acordo é cancelado.
- Existe mais alguma instrução?
- Mais nenhum telefonema - respondeu Lacroix. - Paul está ficando nervoso com os telefonemas.
- Aposto que está.
Gabriel olhou para a ponte de comando, mas dessa vez Keller estava imóvel, um vulto contra o céu preto com uma arma nas mãos estendidas. O tiro, suprimido por um
silenciador, abriu um buraco em cima do olho esquerdo de Lacroix. Gabriel segurou os ombros do francês enquanto ele morria. Em seguida, virou-se, furioso, e apontou
a sua arma para Keller.
- É melhor você guardar isso antes que alguém se machuque - disse o Inglês com calma.
- Por que diabos você fez isso?
- Ele entrou na minha lista negra. Além disso - acrescentou Keller, enquanto guardava a arma na cintura -, ele não era mais necessário.
13
CÔTE D'AZUR, FRANÇA
Eles o lançaram ao fundo do mar nas águas profundas além do golfo de Leão e seguiram para Marselha. Ainda estava escuro quando chegaram ao Velho Porto. Gabriel e
Keller saíram do Moondance com alguns minutos de diferença um do outro, entraram nos seus carros, e percorreram a costa a caminho de Toulon. Um pouco antes da cidade
de Bandol, Gabriel parou na beira da estrada e afrouxou vários cabos do motor. Ligou para a locadora de veículos e, com a voz histérica de Herr Klemp, deixou uma
mensagem dizendo onde o carro “quebrado” podia ser encontrado. Depois de limpar as digitais do volante e do painel, entrou no Renault de Keller e os dois foram para
o leste, seguindo para Nice sob o sol nascente. Havia um prédio antigo na Rue Verdi, branco como um osso, onde o Escritório mantinha um de seus vários flats secretos
na França. Gabriel entrou no edifício sozinho e pegou a correspondência, que incluía a cópia do arquivo pessoal de Madeline Hart no Partido, solicitada a Graham
Seymour. De volta ao carro, ele leu o documento enquanto Keller dirigia rumo a Aix pela Autoroute A8.
- O que diz aí? - perguntou o Inglês depois de vários minutos de silêncio.
- Que Madeline Hart é perfeita. Mas nós já sabíamos disso.
- Eu também já fui perfeito. E olha como fiquei.
- Você sempre foi um patife, Keller. Só não percebeu até aquela noite no Iraque.
- Eu perdi oito colegas tentando proteger o seu país dos Scuds de Saddam.
- Somos eternamente gratos.
Mais calmo, Keller ligou o rádio e sintonizou numa estação sediada em Mônaco que transmitia em inglês, voltada para a grande comunidade de expatriados britânicos
que viviam no sul da França.
- Com saudades de casa? - perguntou Gabriel.
- Gosto de ouvir o som do meu idioma nativo de vez em quando.
- Você nunca voltou?
- Para a Inglaterra?
Gabriel assentiu.
- Nunca - respondeu Keller. - Eu me recuso a trabalhar lá e nunca aceite, contratos envolvendo ingleses.
- Que nobre da sua parte.
- Deve-se operar de acordo com um código de conduta.
- Então os seus pais não sabem que você está vivo?
- Não.
- Você não deve mesmo ser judeu - repreendeu Gabriel. - Nenhum garoto judeu deixaria a mãe pensar que ele está morto. Não se atreveria.
Gabriel abriu o registro mais recente do arquivo pessoal de Madeline Hart e o leu em silêncio enquanto Keller dirigia. Era a cópia de uma carta enviada por Jeremy
Fallon para o presidente do Partido, recomendando que a Srta. Hart fosse promovida a um posto júnior no ministério e preparada para cargos oficiais. Fitou uma fotografia
de Madeline sentada numa cafeteria a céu aberto com o homem que eles conheciam apenas pelo nome de Paul.
Observando-o, Keller perguntou:
- Em que você está pensando?
- Estou só me perguntando por que uma jovem estrela em ascensão no partido britânico da situação dividia uma garrafa de champanhe com um sujeito tão estranho como
o nosso amigo Paul.
- Porque ele sabia que Madeline tinha um caso com o primeiro-ministro. E estava se preparando para sequestrá-la.
- Como ele teria descoberto?
- Eu tenho uma teoria.
- É baseada em fatos?
- Em alguns.
- Então é só uma hipótese.
- Mas pelo menos vai ajudar a passar o tempo.
Gabriel fechou a pasta para indicar que estava prestando atenção. Keller desligou o rádio.
- Homens como Jonathan Lancaster sempre cometem o mesmo erro quando têm um caso: confiam que os guarda-costas vão ficar de boca fechada - começou o Inglês. - Mas
eles não ficam. Eles conversam entre si, conversam com as esposas, as namoradas, os velhos amigos que conseguiram trabalho no negócio particular de segurança da
Inglaterra. E, em pouco tempo, o caso chega aos ouvidos de alguém como Paul.
- Você acha que Paul está ligado ao negócio britânico de segurança?
- Ele poderia estar. Ou então conhecer alguém que esteja. Enfim, uma informação dessas vale ouro para alguém como Paul. Ele provavelmente manteve Madeline sob observação
em Londres e invadiu o celular e as contas de e-mail dela. E descobriu que a garota ia passar as férias na Córsega. Quando ela chegou, Paul a estava esperando.
- Então por que almoçar com ela? Por que correr o risco de mostrar o rosto?
- Porque, para o sequestro correr bem, precisava que ela estivesse sozinha.
- Ele a seduziu?
- Ele é um canalha charmoso.
- Essa eu não engulo - retrucou Gabriel, depois de pensar por um momento.
- Por que não?
- Porque, quando foi raptada, Madeline estava envolvida romanticamente com o primeiro-ministro britânico. Ela não teria sido seduzida por alguém como Paul.
- Madeline era a amante do primeiro-ministro, logo havia muito pouco romantismo em seu relacionamento. Ela devia ser uma garota solitária.
Gabriel olhou de novo para a foto - não para Madeline, mas para Paul.
- E quem é esse sujeito?
- Com certeza não é um amador. Só um profissional que conhece o don. E um profissional que se atreveria a bater na porta do don para pedir ajuda.
- Se ele é tão profissional, por que estava dependente do talento local para fazer o serviço?
- Você quer saber por que ele não tem equipe própria?
- Isso.
- Economia básica - respondeu Keller. - Manter uma equipe pode ser uma empreitada complicada. E, invariavelmente, as pessoas geram problemas. Quando o serviço é
lento, os garotos ficam infelizes. E, se conseguem bastante grana, querem uma parte maior.
- Então ele usa freelances com contratos diretos de taxa por serviço para evitar compartilhar os lucros.
- No ambiente global competitivo da economia atual, é o que todo mundo está fazendo.
- Não o don.
- O don é diferente. Nós somos uma família, um clã. E você está certo quanto a uma coisa: Marcel Lacroix teve sorte de não ter sido morto por um assassino a mando
de Paul. Se ele se atrevesse a pedir mais dinheiro a Don Orsati depois de completar um trabalho, teria acabado no fundo do Mediterrâneo dentro de um caixão de concreto.
- Que é onde ele está agora.
- Exceto pela parte do concreto, claro.
Gabriel olhou para Keller com desaprovação, mas não disse nada.
- Foi você que arrancou o brinco dele.
- Um lóbulo da orelha rasgado é um mal temporário. Uma bala no olho é um mal eterno.
- E o que a gente deveria ter feito com ele?
- Poderíamos tê-lo levado para a Córsega e o deixado com o don.
- Confie em mim, Gabriel, ele não teria durado muito. Orsati não gosta de problemas.
- E, como Stálin gostava de dizer, “a morte resolve todos os problemas”.
- “Se não há homem, não há problema” - Keller completou a citação.
- E se o homem estivesse mentindo para nós?
- O homem não tinha motivos para mentir.
- Por quê?
- Porque sabia que nunca ia sair vivo do barco - disse Keller, e acrescentou baixinho: - Ele só estava torcendo para ter uma morte indolor.
- Essa é outra de suas teorias?
- Regras de Marselha. Quando as coisas por aqui começam de forma violenta, sempre terminam com violência.
- E se René Brossard não estiver sentado no Le Provence às cinco e dez com uma maleta de metal? O que faremos?
- Ele vai estar lá.
Gabriel queria ser confiante como Keller, mas sua experiência o impedia. Consultou o relógio e calculou o tempo que tinham para salvar a garota.
- Caso Brossard apareça, talvez seja melhor não o matarmos antes de ele nos conduzir até o cativeiro de Madeline.
- E depois?
A morte resolve todos os problemas, pensou Gabriel. Se não há homem, não há problema.

 

 

 


CONTINUA